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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD / Agatha Christie
O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD

 

                       

 

ENQUANTO O DR. SHEPPARD ALMOÇA

Mrs. Ferrars morreu na noite de quinta‑feira, de 16 para 17 de Setembro. Foram chamar‑me às oito horas da manhã de sexta‑feira, 17. Nada havia a fazer; estava morta havia algumas horas. Quando voltei para casa, passava das nove. Abri a porta da entrada com a chave e permaneci alguns instantes, propositadamente, no vestl'bulo, para pendurar o chapéu e o sobretudo de meia estação que julgara conveniente levar, para proteger‑me do frio incipiente daquela manhã outonal. Para dizer a verdade, sentia‑me perturbado, mal‑humorado. Não pretendo dizer, com isto, que previsse os acontecimentos que iriam desenrolar‑se pouco depois; devo declarar, mesmo, que não tive qualquer sensação definida. O meu instinto, entretanto, pressentia que estava para acontecer alguma coisa emocionante.

Da sala de jantar, à esquerda, chegava o tinido de copos e de louça e o tossir de minha irmã Caroline.

 ‑ És tu, Jacques? ‑ perguntou.

Pergunta inteiramente inútil; quem havia de ser?

Era minha irmã a causa daquela demora na antecâmara.

Conta Kipling que o lema das doninhas na Índia é: Corre e descobre.

Se tivesse de aconselhar Caroline a adoptar uma divisa, seria, sem dúvida, esta, com uma doninha rampante; mas sem a primeira parte: Caroline consegue realizar qualquer investigação, permanecendo tranquilamente em casa. Não sei como o faz, sei, porém, que o consegue sempre. Tenho uma vaga desconfiança de que a criadagem e os fornecedores constituem as suas fontes de informações. Quando sai, não é para colher notícias, mas para difundi‑las; e também nisto se revela de uma perícia admirável.

Era precisamente essa última particularidade do seu carácter que me mantinha suspenso num estado de viva incerteza. O que quer que eu dissesse a propósito da morte de Mrs. Ferrars, tinha a certeza de que, dentro de hora e meia, o máximo, seria conhecido em toda a região. Na minha qualidade de médico, dou, naturalmente, valor à discrição; por isso contraí o hábito de ocultar de minha irmã qualquer notícia, pelo menos até onde me for possível. É verdade que ela chega a saber tudo, igualmente, mas tenho pelo menos a satisfação moral de dizer que não foi por mim que o soube.

O marido de Mrs. Ferrars morrera havia pouco mais de um ano, e Caroline sempre sustentara, embora a sua convicção não tivesse o mínimo fundamento real, que a esposa o envenenara.

Recusava‑se, desdenhosamente, a aceitar a minha invariável declaração de que Ferrars morrera de gastrenterite aguda, agravada pelo abuso constante de bebidas alcoólicas. Concordávamos em que os sintomas da gastrenterite e os do envenenamento arsenical se assemelham, mas minha irmã alicerçava as suas acusações em argumentos bem diversos.

  ‑ Não precisas mais do que fitar‑lhe o rosto ‑ disse certa vez.

Mrs. Ferrars, embora não muito jovem, era formosa e os seus vestidos, mesmo feitos com simplicidade, assentavam‑lhe sempre admiravelmente; mas há uma quantidade de senhoras que compram os seus trajos em Paris sem por isso sentirem a necessidade de envenenarem os maridos.

 

Enquanto permanecia indeciso na antecâmara, revolvendo na mente estas circunstâncias, ouviu‑se a voz de Caroline, desta vez um tanto aborrecida:

 ‑ Que estás aí a fazer, Jacques? Porque não vens almoçar?

  ‑ Já vou ‑ apressei‑me a responder. ‑ Estava a pendurar o sobretudo.

  ‑ A esta hora, já tinhas tempo de pendurar meia dúzia.

Pura verdade: não podia deixar de conceder‑lhe razão. Entrei na sala de jantar e, depois de dar‑lhe a habitual palmadinha no rosto, sentei‑me diante do prato de ovos com toucinho que estava na mesa. O toucinho já estava frio.

  ‑ Tiveste de fazer uma visita muito cedo, esta manhã ‑ observou Caroline.

  ‑ Sim ‑ respondi. ‑ A Mistress Ferrars, na Quinta do Rei.

  ‑ Já sei.

  ‑ Como soubeste?

  ‑ Foi Anny quem me contou.

  Anny é a criada. Jovem simpática, mas tagarela impenitente.

  Houve uma pausa, durante a qual continuei o meu almoço. A ponta do nariz de Caroline, longo e subtil, começou a vibrar nervosamente, o que acontece todas as vezes que está interessada num assunto.

  ‑ Então? ‑ perguntou.

  ‑ Um caso triste. Nada pude fazer. Deve ter morrido enquanto dormia.

  ‑ Já sei ‑ disse novamente Caroline.

  Desta vez, abespinhei‑me.

  ‑ Não podes saber ‑ respondi secamente. – Eu próprio não sabia, antes de lá chegar e ainda não o contei a ninguém. Se a tagarela da Anny sabe, então é porque adivinha!

  ‑ Não foi Anny quem contou. Foi o leiteiro, que soube do caso pela cozinheira da casa Ferrars.

  Como já disse, não é necessário que minha irmã saia para caçar notícias. Deixa‑se ficar em casa e as notícias chegam até ela.

  ‑ De que morreu? Doença do coração? ‑ continuou.

  ‑ O leiteiro não te informou? ‑ perguntei com sarcasmo.

  O sarcasmo não a afecta. Toma tudo ao pé da letra.

  ‑ Não sabia ‑ explicou.

  Cedo ou tarde saberia. Não importava, portanto, que lho dissesse.

  ‑ Morreu por ter ingerido uma dose muito forte de veronal. Tomava‑o já há tempos para combater a insónia. Deve ter tomado muito.'

  ‑ Qual! ‑ interrompeu Caroline. ‑ Foi de propósito. Pensas que acredito nisso?

  Estranho! Quando alguém tem uma convicção íntima e secreta que não quer admitir nem para si mesmo, se acontece que outro a descobre, pode ter‑se a certeza de que procurará negá‑la energicamente. Foi por isso que investi contra minha irmã, com os mais vivos protestos.

  ‑ Eis que te entregas de novo aos teus despropósitos ‑ disse‑lhe. ‑ Por que motivo havia Mistress Ferrars de atentar contra a própria vida? Viúva, ainda regularmente jovem, em boas condições financeiras, com boa saúde, nada mais tinha a fazer do que viver alegremente e gozar a vida. É absurdo o que dizes.

  ‑ Qual! Tu também deves ter notado que ultima  mente estava muito diferente. Essa mudança datava de   há seis meses. Parecia atormentada por um pesadelo.

E acabas de dizer que não podia dormir.

  ‑ Qual é então o teu diagnóstico? – perguntei   friamente. ‑ Talvez um enredo amoroso que termi  nou mal?

  Caroline sacudiu a cabeça.

  ‑ Remorsos! ‑ exclamou com ênfase.

  ‑ Remorsos?

  ‑ Certamente! Não quiseste acreditar‑me, quando te dizia que ela envenenara o marido. Agora, estou mais do que convencida.

  ‑ Mas que lógica há em tudo isto? ‑ observei.

  ‑ Se essa mulher tivesse praticado o que dizes, estou certo de que lhe não faltaria o sangue‑frio necessário para gozar os frutos, sem se abandonar a essa fraqueza sentimental que é o remorso.

  Caroline sacudiu de novo a cabeça.

  ‑ Talvez existam mulheres com tal qualidade, mas Mistress Ferrars não era desse tipo. Só tinha nervos. Um instinto irresistível arrastou‑a a desembaraçar‑se do marido, porque era uma dessas naturezas que não podem suportar qualquer sofrimento; e podes ter a certeza de que a mulher de um homem como Arthur Ferrars deve ter sofrido, e não pouco!

Concordei.

  ‑ E, depois da morte do marido, deve ter vivido na obsessão do crime praticado. Coitada! Não posso deixar de compadecer‑me dela.

Não creio que minha irmã tenha experimentado um sentimento de comiseração pela senhora Ferrars, enquanto esta vivia. Agora, porém, encontrava‑se num mundo em que (verosimilmente) não se usam as modas e os figurinos de Paris, e Caroline sentia‑se disposta a deixar‑se vencer pelos mais brandos sentimentos de piedade e de indulgência.

Disse‑lhe que as suas suposições eram absurdas.

E insisti, com mais firmeza, pelo próprio facto de sentir‑me forçado a admitir, em parte, o que ela dizia.

Mas não queria que chegasse a descobrir a verdade, baseando‑se, apenas, em hipóteses e em interrogações; não pretendia, de modo algum, encorajar aquele seu modo de proceder. Tinha a certeza de que iria expor pela vila as suas conjecturas, e todos ficariam julgando que se baseava em dados e informes médicos fornecidos por mim. Infelizmente, a vida reserva‑nos muitas amarguras!

  ‑ Dizes que as minhas palavras são absurdas‑ prosseguiu, respondendo às minhas críticas. ‑ Verás!

Queres apostar em como deixou uma carta em que faz plena confissão?

  ‑ Não deixou carta alguma ‑ respondi secamente, sem prever as consequências de semelhante declaração.

  ‑ Ah! Então interessaste‑te? Creio que, no fundo, Jacques, pensas como eu. Conheço‑te bem; sabes disfarçar!

  ‑ Não podemos afastar a eventualidade de um suicídio! ‑ afirmei em tom conciliador.

  ‑ Farão um inquérito?

  ‑ É possível. Se puder declarar‑me convencido de que o veneno foi ingerido acidentalmente, o inquérito poderá ser dispensado.

  ‑ E estás convencido? ‑ sondou.

Não respondi. Abandonei a mesa.

 

O ANUÁRIO DE KING'S ABBOT

Antes de prosseguir no relato do que disse a Caroline e do que Caroline me disse, vale a pena dedicar algumas palavras ao que chamarei a nossa geografia regional.

O nosso burgo, King's Abbot, é um burgo como qualquer outro. A cidade mais próxima, Cranchester, acha‑se a cerca de doze quilómetros. Temos uma grande estação ferroviária, uma pequena agência postal e dois estabelecimentos de géneros diversos, que estão em perpétua rivalidade entre si. Quem é são e robusto demonstra uma acentuada tendência para deixar o lugarejo, enquanto é novo. Em compensação, King's Abbot tem a fama de hospedar um número regular de solteironas e militares aposentados. Os nossos recursos e distracções intelectuais podem ser sintetizados numa só palavra: mexericos.

No lugarejo, só há duas casas de certa importância. Uma é a Quinta do Rei, a outra, é a villa Fernly, cujo proprietário é Mr. Roger Ackroyd. Este sempre me interessou, pelo facto de parecer a quinta‑essência do fidalgo do campo. Dá a impressão de uma daquelas rubicundas personagens que, em outros tempos, víamos aparecer na cena, aos primeiros compassos do primeiro acto das velhas operetas, cujo cenário representava um vilarejo em flor. Geralmente cantavam uma canção em que falavam de uma viagem a Londres. Hoje, temos as revistas, e o tipo do fidalgote do campo desapareceu das cenas de opereta.

Verdadeiramente, Mr. Ackroyd não pode ser chamado um gentil‑homem do campo. É um fabricante de rodas para veículos ferroviários, muito feliz nos seus negócios. Tem cerca de cinquenta anos, rosto corado e modos cordiais. É íntimo do padre, generoso nas subscrições para os fundos da paróquia – embora seja voz corrente que é extremamente sovina nas suas despesas pessoais ‑ promove jogos desportivos e auxilia os círculos em prol da juventude e dos institutos destinados aos ex‑combatentes inutilizados para o trabalho. Em resumo, é a alma, a vida do nosso pacífico povoado de King's Abbot.

Quando Roger Ackroyd era novo, aos vinte e um anos, apaixonara‑se por uma linda mulher que tinha cinco ou seis anos mais do que ele, e acabara por casar‑se. Chamava‑se Paton, era viúva e tinha um filhinho. Os incidentes desse matrimónio foram breves e dolorosos. Para falar com toda a clareza, Mrs. Ackroyd era alcoólica, e, quatro anos depois do casamento, o torpe vício levou‑a à sepultura.

Nos anos que se seguiram, Mr. Ackroyd não mostrou intenção de arriscar‑se a novas aventuras matrimoniais. O filho do primeiro matrimónio de sua esposa tinha sete anos quando a mãe morreu. Actualmente, tem vinte e cinco. Mr. Ackroyd sempre o considerou como seu próprio filho e como tal o educou, mas ele tornou‑se um malandro e uma fonte de contínuos aborrecimentos e desgostos para o padrasto. Entretanto no lugarejo, Rudolph Paton conquistou a simpatia de todos, pois não se pode deixar de reconhecer que é um belo rapaz.

Como já disse, neste pequeno ambiente todos temos tendências para o mexerico. Cada um notara, desde o princípio, que Mr. Ackroyd e Mrs. Ferrars se compreendiam maravilhosamente. Depois da morte do marido, a intimidade tornara‑se mais acentuada. Eram visto sempre juntos nos passeios e pensava‑se, naturalmente, que, terminado o luto, Mrs. Ferrars se tornaria a Mrs. Ackroyd. Era, efectivamente, uma união que parecia acertada, em certo sentido. Mrs. Ackroyd morrera por intoxicação alcoólica. Mr. Arthur Ferrars fora um bebedor inveterado, durante toda a vida; nada mais justo do que as duas vítimas dos excessos alheios se consolassem, reciprocamente, de quanto tinham sofrido por culpa dos respectivos cônjuges.

Os Ferrars tinham vindo morar para a vila havia pouco mais de um ano, mas em torno de Mr. Ackroyd a bisbilhotice exercitava‑se há muito tempo. Durante a adolescência de Rudolph Paton, uma série de governantas dirigira os negócios domésticos na casa Ackroyd e cada uma fora observada com olhares suspeitosos, por minha irmã e pelas velhas comadres. Não exagero dizendo que, durante quinze anos, pelo menos, todos os do lugarejo viveram na convicção de que veríamos Mr. Ackroyd casar‑se com uma das governantas. A última, uma formosa criatura, Mrs. Russell, dominou plenamente durante cinco anos, dobro do tempo das que a precederam. Julga‑se que se não fosse o aparecimento de Mrs. Ferrars, dificilmente   Mr. Ackroyd teria escapado. Salvou‑o essa circunstância e outra concomitante; isto é, a repentina volta do Canadá de uma cunhada viúva, com a filha. Essa senhora, viúva de Camile Ackroyd, o irmão mais novo e desajuizado de Roger, fixou residência na villa Fernly e conseguiu, no dizer de Caroline, colocar Mrs. Russell no lugar que lhe competia.

Verdadeiramente, não sei o que se pretende dizer com a expressão colocá‑la no seu lugar. Parece‑me uma frase desagradável e antipática ‑ mas sei que Mrs. Russell vive a murmurar e, esboçando um sorriso azedo e forçado, protesta a sua profunda simpatia por aquela pobre Mrs. Ackroyd, obrigada a viver da caridade do irmão de seu marido. O pão da esmola é bastante duro, não é verdade? Sentir‑me‑ia muito infeliz se não pudesse trabalhar para o meu sustento.

Não sei o que pensava Mrs. Ackroyd da atracção que havia entre o seu cunhado e Mrs. Ferrars, quando isto se tornou conhecido de todos. Naturalmente, tinha grande interesse em que ele não se casasse de novo, mas sempre demonstrara uma amabilidade extrema, para não dizer exagerada, para com Mrs. Ferrars.

Minha irmã explica que isto nada significa.

Tais são as nossas preocupações diárias em King's Abbot, de alguns anos a esta parte; examinámos e discutimos a figura de Ackroyd e os seus negócios sob todos os aspectos; e Mrs. Ferrars completava, maravilhosamente, o quadro das bisbilhotices.

Eis que, de repente, da pacífica discussão sobre o próximo matrimónio, caímos no coração da tragédia.

Remoendo no pensamento estas e outras circunstâncias, fui fazer as minhas visitas de costume. Não tinha casos de especial interesse a atender e isto talvez tenha sido um bem, porque os meus pensamentos não podiam afastar‑se da morte misteriosa de Mrs. Ferrars. Ter‑se‑ia na verdade suicidado? Neste caso, era impossível que não tivesse deixado uma carta, uma palavra, para dizer o que resolvera fazer. No decorrer da minha experiência, pude verificar que, quando uma mulher decide eliminar‑se, geralmente não deixa de revelar o estado de alma que a conduz ao passo fatal. Quase sempre quer que o seu caso faça ruído.

Não se passara uma semana depois da última vez que a vira. O seu comportamento fora normal, em vista de... enfim, em vista de tudo.

Mas, repentinamente, lembrei‑me de que a vira na véspera, embora lhe não tivesse falado.

Andava em passeio com Rudolph Paton, o que me surpreendeu, porque não tinha a mínima ideia de que ele se encontrasse em King's Abbot. Na realidade, julgava que tivesse rompido, definitivamente, com o padrasto. Havia seis meses que não aparecia por estas paragens. Os dois caminhavam ao lado um do outro, olhando‑se gravemente.

Creio poder dizer, com segurança, que naquele momento tive um vislumbre do que iria acontecer. Nada de positivo, apenas um vago, indefinido pressentimento. A lembrança daquele diálogo tão grave da véspera, entre Rudolph e Mrs. Ferrars, causou‑me uma impressão desagradável.

Estava a pensar nisto, quando dei de rosto com Roger Ackroyd.

  ‑ Doutor! ‑ exclamou. ‑ Preciso muito de si! É uma coisa terrível!

  ‑ Então, já sabe?

  Respondeu que sim. A notícia atingira‑o em cheio, como pude verificar. O rosto largo e feliz parecia envelhecido, e o jovial, exuberante Ackroyd não parecia o mesmo.

  ‑ Oh! Há outra coisa ainda pior que o senhor não sabe! ‑ disse baixinho. ‑ Ouça, doutor, preciso falar‑lhe. Pode acompanhar‑me neste momento?

  ‑ Não posso. Tenho de visitar três doentes e devo voltar ao meio‑dia para o meu consultório.

  ‑ Então, venha à tarde; não, é melhor que vá jantar comigo, à noite, As sete e meia. Serve?

  ‑ Sim, irei. Mas, que aconteceu? Trata‑se de Rudolph?

Fitou‑me atónito, como se não conseguisse compreender. Comecei a perceber que devia ter acontecido alguma coisa de extremamente grave. Nunca o vira tão perturbado.

  ‑ Rudolph ‑ disse vagamente. ‑ Oh! Não, não é Rudolph. Rudolph está em Londres. Diabo! Vem ali Miss Ganett. Não quero falar‑lhe sobre este horrível assunto. Ver‑nos‑emos à noite, doutor. As sete e meia, está combinado?

Fiz‑lhe um sinal de assentimento e ele afastou‑se rapidamente, deixando‑me perplexo. Rudolph em Londres? Mas se, no dia anterior, estava em King's Abbot! Podia ter voltado à cidade, na tarde daquele dia ou de manhã cedo, mas o modo com que Ackroyd acolhera a minha pergunta deixara‑me uma impressão bem diversa. Falara como se Rudolph se encontrasse ausente há muito.

Não tive tempo de perder‑me em conjecturas.

A Miss Ganett já me assediara sedenta de notícias.

Tem todas as característicás de minha irmã, mas falta‑‑lhe aquela habilidade infalível para tirar conclusões, que confere certa grandiosidade às manobras de Caroline. Ansiosa e cheia de curiosidade, abordou‑me:

  ‑ Que desgraça aconteceu à pobre Mistress Ferrars! Muita gente afirmava que há anos se entregava a estupefacientes. É sempre mau quando o povo começa a murmurar! Entretanto, no meio desses reparos, devia de haver um pouco de verdade! Não há fumo sem fogo! Dizia‑se, também, que Mister Ackroyd soubera, e que, por isso, rompera o noivado; pois era inegável que existia um noivado...

Ela mesmo, pessoalmente, tivera provas incontestáveis. Naturalmente, eu devia saber tudo isto; que é que não sabem os médicos? Mas nunca dizem nada.

Tagarelava cravando‑me no rosto os olhos redondos e inquiridores, para observar o efeito que as suas palavras produziam. Felizmente, a longa convivência com Caroline já me habituou a manter uma atitude impassível e a rebater com golpes breves e certeiros.

Disse a Miss Ganett que fazia muito bem em abandonar os mexericos e a malevolência do povinho. Um contra‑ataque elegante. Efectivamente, ficou um pouco embaraçada e, antes que lhe fosse possível encontrar uma resposta, afastei‑me.

Voltei para casa pensativo. Alguns doentes esperavam‑me no consultório.

Tinha atendido o último, pelo menos assim o julguei, e já me preparava para descer um momento ao jardim, antes de sentar‑me à mesa, quando vi outro cliente na sala de espera. Não pude ocultar um momento de surpresa.

Não saberia como explicar esse meu gesto de espanto, a não ser que se queira admitir que, na figura de Mrs. Russell haja alguma coisa que lembre o bronze ou o ferro fundido, qualquer coisa, em resumo, superior às comuns fraquezas da carne.

A governanta de Mr. Ackroyd é uma mulher alta, bem formada, mas, em conjunto, tem um aspecto nada simpático. O olhar sombrio, os lábios sempre apertados, fazem‑me pensar que, se eu fosse uma criadinha dependente dela, fugiria até o fim do Mundo, logo que se aproximasse de mim.

  ‑ Bom dia, doutor ‑ disse. ‑ Quer ter a gentileza de examinar‑me o joelho?

  Observei‑lhe atentamente o joelho, mas, para dizer a verdade, depois do primeiro exame, sabia menos do que antes. Mrs. Russell falou‑me de dores vagas e as suas palavras eram tão pouco convincentes que, se se tratasse de outra pessoa eu teria suspeitado de fingimento. Por um momento, passou‑me pela mente a ideia de que tivesse inventado, deliberadamente, aquele mal no joelho para me fazer falar a respeito da morte de Mrs. Ferrars; mas logo me apercebi de que, neste ponto pelo menos, a estava julgando mal. Uma rápida referência à tragédia e nada mais. Entretanto, parecia disposta a deixar‑se ficar de conversa.

  ‑ Bem, muito obrigada pela pomada, doutor‑ disse finalmente. ‑ Não que acredite que ela possa produzir efeito.

Eu também era da mesma opinião, mas, por dever profissional, protestei:   Em todo o caso, se não fizer bem, também não fará mal. Não se deve desacreditar a profissão.

  ‑ Não confio em nenhum desses medicamentos ‑ disse Mrs. Russell, lançando um olhar de desprezo para a fila dos frascos de medicamentos. ‑ Alguns remédios são muito prejudiciais. Veja, por exemplo, a cocaína.

  ‑ Realmente, quanto a essa...

  ‑ Na boa sociedade, é largamente usada.

  ‑ Certamente, conhece a boa sociedade melhor do que eu. ‑ Nem sequer tentei contradizê‑la.

  ‑ Diga‑me uma coisa, doutor ‑ continuou.‑ Suponhamos que o senhor é um cocainómano. Poderiam curá‑lo?

  Não se pode responder a uma pergunta dessa espécie, assim do pé para a mão. Dei‑lhe uma explicação a propósito, que ela ouviu com viva atenção. As minhas suspeitas de que quisesse sondar‑me, a respeito de Mrs. Ferrars, começaram a renascer.

  ‑ Agora o veronal, por exemplo... ‑ prossegui...

Estranho! Não parecia interessar‑se pelo veronal, mudou de assunto e perguntou‑me se era verdade que existem venenos tão misteriosos que desafiam qualquer investigação.

  ‑ Ora ‑ retorqui‑lhe. ‑ Vê‑se que é uma leitora de romances policiais.

  Não negou.

  ‑ O enredo do romance ‑ continuei ‑ gira em torno da possibilidade de existir um veneno raríssimo, talvez proveniente da América do Sul, de modo que ninguém o descubra; uma substância venenosa com a qual os selvagens comummente envenenam as flechas. A morte é instantânea e toda a nossa ciência europeia é impotente para desvendar‑lhe o mistério. Aposto que a senhora quer falar deste veneno, não é verdade?

  ‑ Precisamente. Mas existe, então, uma substância dessa espécie?

Sacudi a cabeça, negativamente.

  ‑ Julgo que não existe. Entretanto há o curare.‑ Falei largamente sobre o curare, mas pareceu‑me que perdera novamente o interesse pela explicação. Perguntou se tinha venenos no meu armário e, quando lhe disse que não, pareceu‑me ter diminuído na sua estima.

Finalmente, Mrs. Russell disse que precisava de voltar para casa e acompanhei‑a até à porta do consultório, precisamente no momento em que soava a sineta para o almoço do meio‑dia.

Nunca julguei que aquela mulher fosse uma apaixonada leitora de romances policiais. Agrada‑me imaginá‑la a sair do seu quarto, a fim de ralhar com alguma criada briguenta para, em seguida, voltar a ler em sossego O Mistério da Sétima Morte ou algum outro livro do mesmo género.

 

O CULTIVflDOR DE ABÓBORAS

Ao almoço, comuniquei a Caroline que aquela noite iria jantar na villa Fernly. Não opôs qualquer dificuldade. Pelo contrário:

  ‑ Muito bem ‑ disse. ‑ Assim saberás tudo. A propósito, que aconteceu a Rudolph?

  ‑ A Rudolph? ‑ interroguei surpreendido.‑ Nada!

  ‑ Mas então porque está no Hotel dos Três Javalis em vez de estar na villa Fernly?

  Não pensei, nem de longe, em pôr em dúvida a notícia dada por Caroline de que Rudolph Paton se encontrava no hotel da localidade. Se ela o afirmava!

  ‑ Ackroyd disse‑me que o enteado se encontrava em Londres ‑ respondi. Atacado, assim, de surpresa, esqueci a louvável norma de nunca fornecer informações.

  ‑ Ah! ‑ murmurou minha irmã. Pude vê‑la torcer o nariz, enquanto fazia conjecturas. ‑ Chegou ontem, de manhã, aos Três Javalis ‑ continuou Caroline ‑ e ainda lá se encontra. Ontem, à tarde, esteve em companhia de uma jovem.

Não fiquei surpreendido. Duvido que na vida de Rudolph haja uma só noite que não tenha passado em companhia de alguma linda rapariga. O que estranhei foi que ele viesse distrair‑se em King's Abbot, em vez de o fazer na metrópole.

  ‑ Era uma das garçonettes? ‑ perguntei.

  ‑ Não, saiu para encontrar‑se com ela. Não sei quem seja.

  Ter de confessar a própria ignorância é uma verdadeira amargura para Caroline.

  ‑ Mas posso adivinhá‑lo ‑ continuou, sem embaraço.

Esperei com paciência.

  ‑ Sua prima.

  ‑ Flora Ackroyd? ‑ exclamei surpreendido.

Flora Ackroyd, verdadeiramente, não tem nenhum parentesco com Rudolph Paton, mas, como há muito tempo é considerado filho de Ackroyd, o seu parentesco é admitido como um facto natural e indiscutível.

  ‑ Flora Ackroyd ‑ repetiu minha irmã.

  ‑ Mas então porque não foi à villa Fernly, se queria encontrar‑se com ela?

  ‑ São noivos secretamente ‑ respondeu Caroline com viva satisfação. ‑ O velho Ackroyd ignora tudo, por isso são obrigados a encontrar‑se fora de casa.

Na dedução de Caroline, pareceu‑me perceber muitos pontos obscuros, mas tive o cuidado de não lhos fazer notar. Uma casual observação sobre o nosso vizinho desviou a conversa.

A casa pegada à nossa ‑ a villa dos Lariços – foi recentemente alugada a um forasteiro. Com vivo desgosto, minha irmã nada conseguiu até agora descobrir acerca do recém‑chegado; sabe somente que não é dos nossos lados. Desta vez, as suas fontes de informações falharam. Evidentemente, o vizinho deve comprar leite, verduras, carne, e, de vez em quando, peixe como todos os mortais; mas nenhum dos fornecedores parece ter conseguido trazer, até ao presente, uma única informação digna de interesse. Parece que o seu nome é Porrot, talvez um nome inverosímil. A única coisa que se sabe é que se ocupa da cultura de abóboras.

Mas não é certamente isto que Caroline deseja saber. Ela quer saber de onde vem, que faz, se é casado, quem era, isto é, quem é sua mulher, se tem filhos, qual era o nome de família de sua mãe, e assim por diante. Começo a acreditar que quem inventou os passaportes devia ser um tipo do género de minha irmã.

  ‑ Ouve, Caroline ‑ disse‑lhe. ‑ Não pode haver dúvidas sobre a profissão do nosso vizinho. Deve ser um cabeleireiro que se retirou dos negócios. Não reparaste no seu bigode?

  Não estava de acordo; achava que se fosse um cabeleireiro, teria os cabelos ondulados e não lisos. Todos os cabeleireiros os têm assim.

Citei o exemplo de alguns cabeleireiros que têm os cabelos lisos, mas Caroline não se convenceu.

  ‑ Há dias ‑ disse num tom insatisfeito ‑ pedi‑‑lhe emprestados apetrechos para o jardim; mostrou‑se gentilíssimo, porém, nada consegui arrancar‑lhe. Finalmente, perguntei‑lhe, à queima‑roupa, se era francês, e ele respondeu que não; e, não sei porquê, não   ousei fazer‑lhe outras perguntas.

Comecei a interessar‑me mais vivamente pelo nos  so vizinho. Um indivíduo capaz de fazer calar Caroline   e de mandá‑la embora com água na boca, deve ser cer  tamente uma personalidade pouco comum.

  ‑ Parece‑me ‑ prosseguiu minha irmã – que possui um aspirador eléctrico para pó...

Vi brilhar em seus olhos o pretexto para uma nova sondagem e achei maneira de me escapulir para o jardim. Agrada‑me muito cultivá‑lo e estava arrancando, de boa vontade, as ervas, quando ouvi um grito de alarme; um objecto resvalou‑me pela cabeça e caiu a meus pés, rachando‑se, desagradavelmente. Era uma abóbora.

Olhei para cima, furioso. No alto, sobre o muro divisório, apareceu uma cabeça. Era uma cabeça oblonga, como um ovo, em parte coberta por cabelos de um negro suspeito, com um bigode imenso e um par de olhos perscrutadores. Era o nosso misterioso vizinho: Mr. Porrot.

Desfez‑se imediatamente em desculpas.

  ‑ Peço‑lhe mil perdões, senhor; é verdadeiramente imperdoável o que fiz! Há alguns meses que estou cultivando abóboras. Esta manhã, subitamente, aborreci‑me e mandei‑as todas à fava, não apenas mentalmente, mas também materialmente! Agarrei a maior e atirei‑a ao ar. Sinto‑me deveras confuso! Peço‑lhe que me desculpe!

Diante de tantas exibições, a minha cólera devia forçosamente de abrandar‑se. Afinal, o insólito projéctil não me atingira. Entretanto, fiz votos para que o meu vizinho não se acostumasse a atirar aqueles grossos frutos por cima do muro. Um tal costume não seria certamente muito próprio para conquistar‑lhe a nossa simpatia.

O estranho indivíduo pareceu ler os meus pensamentos.

  ‑ Ah, não! ‑ exclamou. ‑ Não se preocupe.

Não é meu hábito. Mas será o senhor capaz de imaginar um homem que tenha trabalhado para um determinado objectivo, que se tenha matado de fadiga, esgotando‑se para alcançar certo grau de bem‑estar econforto e que, por fim, se surpreenda a pensar, com viva nostalgia, nas velhas ocupações que se julgava tão feliz em poder abandonar?

  ‑ Sim ‑ respondi, medindo as palavras. ‑ Parece‑me que isso é um destino comum. Eu, também, há um ano, tive uma herança; era o bastante para realizar um velho sonho. Sempre desejei viajar, correr mundo. Mas, como vê, ainda aqui estou.

O meu minúsculo vizinho aprovou com a cabeça.

  ‑ É assim mesmo. Acabamos por ser escravos dos

nossos hábitos. Trabalhamos para alcançar um objectivo, e, uma vez alcançado, começamos a sentir falta das velhas ocupações. Digo a verdade, senhor, o meu trabalho era dos mais interessantes que existem no Mundo.

  ‑ Ah!, sim? ‑ animei. Por um momento, senti‑‑me dominado pelo espírito de Caroline.

  ‑ Estudava a natureza humana, meu caro senhor‑ confessou ele.

  ‑ A sério?

  Era evidente que se tratava de um cabeleireiro retirado. Quem conhece os segredos da natureza humana melhor do que um cabeleireiro?

  ‑ Além disso ‑ prosseguiu ‑, tinha um amigo que, por muitos anos, não se afastou de mim. Embora fosse, às vezes, de uma imbecilidade comovedora, queria‑lhe muito. Imagine que até a sua estupidez me era agradável, e ainda sinto a sua falta. A sua ingenuidade, o seu aspecto bonacheirão, o prazer, para mim, de ora diverti‑lo, ora surpreendê‑lo com as descobertas da minha inteligência superior, são coisas que nem lhe sei dizer como me fazem falta.

  ‑ Morreu? ‑ perguntei com interesse.

  ‑ Não. Vive e prospera; mas, no Novo Mundo. Encontra‑se na Argentina.

  ‑ Na Argentina? ‑ exclamei com uma ponta de inveja. ‑ Sempre desejei muito ir à América do Sul.

Suspirei e, quando levantei os olhos, observei que Mr. Porrot me fitava com um olhar de simpatia. Pareceu‑me um homenzinho esperto e inteligente.

  ‑ Gostaria de ir lá, não é verdade? ‑ perguntou. Meneei a cabeça, suspirando.

  ‑ Teria podido ir há um ano ‑ respondi. – Fui um tolo; e, mais do que tolo: o dinheiro obcecou‑me. Arrisquei o assado pelo cheiro.

  ‑ Compreendo ‑ retorquiu o outro. – Começou a especular na bolsa.

Melancolicamente, confirmei com a cabeça, mas, secretamente, divertia‑me. Aquele minúsculo e ridículo homenzinho estava tão cheio de tranquilidade!

  ‑ Não se trata das acções dos terrenos petrolíferos do Porco‑Espinho? ‑ perguntou de repente.

  Fitei‑o surpreso.

  ‑ Acertou; mas, por fim, decidi‑me pelas acções de uma mina de ouro, na Austrália Ocidental.

  O meu vizinho olhava‑zne com uma estranha expressão, que não consegui interpretar.

  ‑ E o destino ‑ disse, por fim.

  ‑ Qual destino? ‑ perguntei‑lhe um pouco abespinhado.

  ‑ Que eu tenha de ser vizinho de uma pessoa que toma a sério os terrenos petrolíferos do Porco‑Espinho e as minas de ouro da Austrália Ocidental. Diga‑me uma coisa: não tem, às vezes, uma fraqueza entre esses cabelos castanhos?

Fitei‑o de boca aberta, e ele desatou numa gargalhada.

  ‑ Não, não sou louco. Esteja tranquilo. A minha pergunta era uma pergunta tola, porque... veja, aquele meu amigo de que lhe falei era um rapaz que julgava que as mulheres eram todas boas e que, na sua maior parte, fossem bonitas. Mas o senhor é um homem amadurecido, um médico, um homem que conhece a vaidade e a loucura das coisas humanas. Bem, bem, somos vizinhos. Rogo‑lhe que aceite a minha mais bela abóbora e presenteie com ela a sua distintíssima irmã.

Baixou‑se, ergueu um enorme exemplar das suas cucurbitáceas e ofereceu‑mo: aceitei‑o com a mesma cordialidade com que me era oferecido.

  ‑ Verdadeiramente ‑ disse‑me com alegria‑ não foi uma manhã perdida. Travei conhecimento com uma pessoa que tem vários pontos de semelhança com o meu distante amigo. A propósito, queria fazer‑‑lhe uma pergunta. O senhor conhece, naturalmente, todas as pessoas da vila. Quem é aquele lindo rapaz de olhos e cabelos pretos, que anda de cabeça erguida, um pouco jogada para trás e que tem sempre um sorriso simpático nos lábios?

A descrição não me deixou indeciso.

  ‑ Deve ser o capitão Rudolph Paton – respondi lentamente.

  ‑ Mora aqui?

  ‑ Não. Há algum tempo que se afastou. É filho, isto é, enteado de Mister Ackroyd, o dono da villa Fernly.

  O meu interlocutor fez um leve gesto de impaciência.

  ‑ Já devia tê‑lo adivinhado. Mister Ackroyd já me falou.

  ‑ Conhece Mister Ackroyd? ‑ perguntei, um pouco surpreso.

  ‑ Mister Ackroyd conheceu‑me em Londres, quando lá estive a trabalhar. Pedi‑lhe que nada dissesse, aqui, sobre a minha profissão.

  ‑ Ah! ‑ exclamei, divertindo‑me com aquele seu ar de importância. Mas ele prosseguiu, imperturbável, com um sorriso de superioridade.

  ‑ É preferível ficar incógnito. Não me importa a notoriedade. Nem sequer me dei ao trabalho de corrigir o meu nome, que todos pronunciam errado.

  ‑ Realmente ‑ disse, não sabendo o que responder.

  ‑ O capitão Rudolph Paton ‑ murmurou pensaivo Mister Porrot. ‑ Assim, ele é noivo da sobririha de Ackroyd, a graciosa menina Flora.

  ‑ Quem lho disse? ‑ perguntei surpreendido.

  ‑ Mister Ackroyd. Há uma semana, mais ou menos. Está muito satisfeito; de há muito deseja esse casamento, pelo menos a julgar pelo que me foi possível compreender. Penso até que tenha feito certa pressão sobre o rapaz. Isso nunca é aconselhável. Um rapaz deveria casar‑se para agradar a si próprio e não para agradar ao padrasto, mesmo quando tenha alguma esperança de herdar.

  Fiquei assombrado. Não podia imaginar um Ackroyd que escolhera um cabeleireiro para seu confidente e discutira com ele o casamento de sua sobrinha com o enteado. Ele costumava tratar com bondosa superioridade as pessoas que lhe são inferiores em classe e tem uma noção bem viva da sua dignidade. Comecei a pensar que, afinal, Mister Porrot poderia não ser cabeleireiro. Para ocultar a minha confusão, disse a primeira coisa que me passou pela cabeça.

  ‑ Que foi que lhe chamou a atenção para Rudolph? Talvez a sua singularidade?

  ‑ Não, não, embora como inglês, seja realmente um belo rapaz, há nele qualquer coisa que não cheguei a compreender.

  Pronunciou estas últimas palavras com um ar pensativo, que produziu em mim uma impressão indefinível. Era como se julgasse o rapaz com um critério recôndito de que eu não podia partilhar. Deixei‑o sob aquela impressão, por ter ouvido minha irmã chamar‑me.

Entrei em casa. Caroline tinha o chapéu na cabeça: era evidente que voltava da vila. Começou sem preâmbulos.

  ‑ Encontrei Mister Ackroyd.

  ‑ Ah!, sim? ‑ exclamei.

  ‑ Fi‑lo parar, naturalmente, mas mostrava‑se muito apressado e queria escapar‑se.

  Não podia ser de outro modo. Devia ter experimentado por Caroline o mesmo sentimento que algumas horas antes me inspirara Miss Ganett, com a agravante de que minha irmã não se dá por vencida täo facilmente.

  ‑ Perguntei‑lhe logo pelo enteado, o Rudolph, e ele ficou estupefacto. Não queria acreditar que o rapaz se encontrasse aqui. Disse‑me logo que estava enganada. Eu enganar‑me?!

  ‑ É ridículo ‑ interrompi. ‑ Vê‑se que não te conhece bastante.

  ‑ Depois disse‑me que Rudolph e Flora são noivos.

  ‑ Já sabia ‑ respondi com certo orgulho.

  ‑ Quem to disse?

  ‑ O nosso vizinho.

  Caroline hesitou um instante, quase como uma bola de roleta que fica indecisa entre dois números, incerta em qual deve cair. Mas, resistindo à tentação de interrogar‑me, continuou:

  ‑ Disse a Mister Ackroyd que Rudolph se encontrava nos Três Javalis.

  ‑ Nunca pensaste, Caroline, que com esse teu hábito de dizer tudo, poderias dar lugar a qualquer sarilho?

  ‑ Que tolice! Cada um deve saber quanto lhe diz respeito e, se não sabe, encarrego‑me de informá‑lo.

Efectivamente, Mister Ackroyd declarou‑se bastante reconhecido.

  ‑ Está bem ‑ concedi, compreendendo que estava para ouvir qualquer coisa interessante.

  ‑ Parece‑me que foi directamente aos Três Javalis; de qualquer modo, se foi, não encontrou Rudolph.

  ‑ Ah! não?

  ‑ Não. Porque, quando voltei, passando pelo bosque...

  ‑ Voltaste passando pelo bosque?

Caroline corou.

  ‑ Estava um dia tão lindo! ‑ exclamou. ‑ Pensei em dar uma volta. Nesta estação, os bosques são pitorescos, com suas tintas outonais!

Minha irmã nunca ligou a menor importância a um bosque, em qualquer estação que fosse. Habitualmente, não os considera mais do que lugares húmidos e desagradáveis. Se não fora a insaciável curiosidade, nada a arrastaria até lá. O bosque é o único lugar próximo de King's Abbot em que se pode falar com uma jovem sem se ser visto pela população inteira. Além disso, é confmante com o jardim da villa Fernly.

  ‑ Bem ‑ disse‑lhe ‑, continua.

  ‑ Como dizia, atravessava o bosque, quando ouvi duas vozes...

Pausa.

  ‑ Então?

  ‑ Uma era de Rudolph... reconheci‑a imediatamente; a outra, era de uma mulher. Bem, não queria ficar a ouvir.

  ‑ Naturalmente ‑ motejei, embora soubesse que, para minha irmã, o sarcasmo era letra morta.

  ‑ Entretanto, não pude deixar de ouvir, sem ser vista. A rapariga que estava com Rudolph disse alguma coisa; não pude perceber bem do que se tratava, e ele respondeu, muito irritado (pelo menos, assim parecia: Não vês, querida, que é claro como água que o velho quer mandar‑me embora sem dinheiro algum? Há muito que está farto de mim. Basta qualquer coisa para que estoure. E precisamos de dinheiro, não o esqueças. Ficarei muito rico quando o velho for para o outro mundo; é sovina, mas garanto‑te que é podre de rico. Não quero que mude o testamento. Deixa tudo ao meu cuidado e não te preocupes. Estas foram precisamente as suas palavras; lembro‑me, uma por uma. Infelizmente, nesse momento, coloquei o pé sobre um ramo seco e eles baixaram a voz e afastaram‑se lentamente. Como não podia acompanhá‑los, não pude ver a rapariga.

  ‑ Que pena! ‑ comentei. ‑ Estou certo, porém, de que foste até aos Três Javalis, fingiste sentires‑te mal, entraste no bar e tomaste um conhaque para verificares se lá estavam as duas garçonettes!

  ‑ Não era uma garçonette ‑ respondeu Caroline, sem hesitação. ‑ Creio, porém, isto é, estou quase certa de que era Flora Ackroyd; somente...

  ‑ Não condiz.

  ‑ Mas, se não era Flora, quem podia ser?

Rapidamente minha irmã passou em revista os nomes das raparigas que moram nos arredores, medindo as razões pró e contra. Quando parou para tomar fôlego, murmurei qualquer coisa a propósito de um doente e saí.

Propusera‑me ir aos Três Javalis; àquela hora, Rudolph devia estar de volta.

Conhecia‑o muito bem, talvez melhor do que qualquer outro, em King's Abbot, pois conhecera sua mãe antes de ele ter nascido; por isso sabia a seu respeito coisas que teriam embaraçado outras pessoas. Podia‑se considerá‑lo, até certo ponto, vítima da hereditariedade. Não herdara de sua mãe a tendência para o bem, mas dela recebera uma fraqueza inata. Como declarara o meu novo vizinho, era um belo rapaz. Alto, com cerca de um metro e noventa, de proporções perfeitas, tinha a calma e a graça natural de um atleta; era moreno como sua mãe, e o rosto bronzeado pelo sol estava sempre pronto a expandir‑se num sorriso. Era dessas criaturas que parece terem nascido para seduzir sem esforço e sem afectação. Gozador e perdulário, não se sujeitava a coisa alguma e a ninguém; contudo, era extremamente simpático e os seus amigos atirar‑se‑iam ao fogo por ele.

Chegado aos Três Javalis, perguntei por ele e soube que acabara de chegar. Subi ao seu quarto e entrei sem me fazer anunciar.

Por um instante, lembrando quando vira e ouvira, fiquei na dúvida de como me receberia, mas as minhas apreensões eram infundadas.

  ‑ Como? É o doutor? Muito satisfeito por vê‑lo.

Caminhou para mim, estendendo‑me a mäo, com um sorriso luminoso no semblante, e prosseguiu:

  ‑ A única pessoa a quem tenho prazer de ver neste maldito lugarejo.

  ‑ Que mal lhe fez a vila?

Soltou uma gargalhada forçada.

  ‑ Oh! A história é longa para ser contada. Os meus negócios não vão bem, doutor. Aceita um cálice?

Agradeci.

Tocou a campainha e deixou‑se cair numa poltrona.

  ‑ Sem exagero ‑ disse com tristeza ‑ acho‑me numa tremenda embrulhada. Para dizer a verdade,

não sei como me sairei desta.

  ‑  Que há? ‑ perguntei com solicitude.

  ‑ E aquele pateta do meu padrasto.

  ‑ Que lhe fez?

  ‑ Não é o que até agora fez que me preocupa; é o que, provavelmente, fará.

O criado atendeu à chamada e Rudolph pediu bebidas. Depois de ele se ter afastado, o rapaz apoiou os cotovelos nos braços da poltrona e franziu as sobrancelhas.

  ‑ É, verdadeiramente... uma coisa séria? ‑ aventurei. Confirmou.

  ‑ Na verdade, não sei que acontecerá... ‑ continuou.

  ‑ Se puder fazer alguma coisa por si... – propus cautelosamente.

  ‑ Muito obrigado, doutor, mas o senhor não pode entrar neste assunto. Tenho de agir sozinho.

Ficou um momento em silêncio: depois repetiu, num tom levemente mudado:

  ‑ Sim, devo agir sozinho.

 

A   VILLA   FERNLY

Pouco faltava para as sete e meia, quando toquei a campainha de entrada da villa Fernly. Com inexcedível solicitude, Parker, o mordomo, veio abrir.

A noite estava tão linda que eu preferira fazer o caminho a pé. Entrei no amplo vesti'bulo quadrado e entreguei o sobretudo a Parker. Precisamente naquele momento, o secretário de Ackroyd, um simpático rapaz chamado Raymond, atravessou o átrio, dirigindo‑se para o escritório do seu chefe, com as mãos cheias de papéis e documentos.

  ‑ Boa noite, doutor. Vem jantar? Ou é uma visita profissional?

A última pergunta aludia a uma maleta preta que eu trazia comigo e que depusera numa cadeira, à entrada.

Expliquei que esperava uma chamada, de um momento para outro, para assistir a uma parturiente, e que, por isso, trouxera o necessário para qualquer eventualidade. Raymond fez um sinal de aprovação e continuou o seu caminho, dizendo, sem se voltar:

  ‑ Espere na sala. Levo estes papéis a Mister Ackroyd e comunicar‑lhe‑ei que o senhor está aqui.

  Com a chegada do secretário, Parker retirou‑se, de forma que fiquei só no vestíbulo. Endireitei a gravata, olhei‑me no espelho e dirigi‑me para a porta que ficava em frente, e que eu sabia ir dar à sala.

Mesmo no momento em que estava para rodar a maçaneta, ouvi um ruído do interior, como o do fechar de uma janela. Assim me pareceu. Notei‑o, mecanicamente, sem lhe dar importância, naquele momento.

Abri a porta, e quase esbarrei com Mrs. Russell, que saía naquele instante. Ambos nos desmanchámos em desculpas.

Pela primeira vez, fui obrigado a admirar a governanta e a pensar que bela mulher devia ter sido noutro tempo. Na realidade, ainda era agradável. Entre os seus cabelos pretos, não havia um único branco e, quando estava um pouco corada, como naquele momento, a sua expressão severa não se notava muito.

Instintivamente, perguntei a mim próprio se vinha de fora, pois estava arfante como se tivesse corrido.

  ‑ Receio ter chegado um pouco cedo ‑ disse‑lhe.

  ‑ Oh! Não. Já passa das sete e meia, doutor.‑ Calou‑se um momento e depois exclamou: ‑ Não sabia que estava convidado para jantar. Mister Ackroyd nada me disse.

Não sei porquê, tive a impressão de que o meu convite para jantar não lhe agradava, porém, não pude adivinhar a razão.

  ‑ E o joelho? ‑ perguntei.

  ‑ Sempre na mesma, obrigada, doutor. Desculpe, mas tenho que fazer. Mister Ackroyd descerá daqui a pouco. E... vim ver se as flores estavam no lugar.

Saiu rapidamente da sala. Aproximei‑me da janela, perguntando‑me por que motivo quisera justificar a sua presença na sala. Enquanto me aproximava, notei, como teria notado antes, se me tivesse interessado, que as janelas eram de batentes e davam para o terraço. O ruído que ouvira, portanto, não podia ter sido produzido por uma janela de subir e descer.

Sempre mecanicamente, mais para desviar a mente de pensamentos insólitos do que por outro motivo qualquer, distraí‑me procurando adivinhar o que teria produzido o ruído que me despertara a atenção.

Carvão posto na chaminé? Não, não era aquele o ruído produzido pelo carvão. Talvez o fechar de uma gaveta no escritório? Também não.

Subitamente, chamou‑me a atenção uma mesinha de tampa móvel, formada por uma chapa de cristal, através da qual se podia ver o conteúdo da gaveta que estava em baixo. Aproximei‑me, observando o que continha. Havia dois objectos de prata, um sapatinho de criança que pertencera ao rei Carlos I, algumas velhas estatuetas chinesas e uma quantidade de quinquilharias e curiosidades vindas de África. Levantei a tampa para examinar mais de perto as estatuetas. Escorregou‑me entre os dedos e caiu.

Imediatamente reconheci o ruído que ouvira antes.

Era produzido pelo abaixar devagar da tampa na mesinha. Repeti a operação uma, duas vezes para convencer‑me. Depois, abri a tampa para examinar, atentamente, o conteúdo da gaveta.

Enquanto estava curvado para a mesinha aberta, observando os vários objectos, entrou Flora Ackroyd.

Nem todos simpatizam com ela, mas, ninguém pode deixar de admirá‑la. O que logo desperta a atenção de quem a olha são os seus cabelos extraordinariamente loiros, de um ouro pálido, característico das belezas escandinavas. Seus olhos são azuis como as águas de um fiorde e a sua tez parece de leite e rosas. O busto é belíssimo, a cintura fina. Para um velho e gasto curandeiro como eu, é confortador contemplar um tão completo exemplo de saúde.

É a típica rapariga inglesa, simples, franca, leal.

Flora aproximou‑se de mim e apresentou as suas dúvidas quanto à probabilidade de Carlos I ter usado aquele sapatinho.

  ‑ De qualquer modo ‑ prosseguiu ‑ não compreendo porque se faz tanto barulho em torno de certas velharias, por terem sido usadas por uma personagem ilustre. A pena com que George Eliot escreveu os seus romances é uma pena como todas as outras, afinal. E se alguém gostar de George Eliot, será pelos romances que escreveu e não pela pena com que eles foram escritos!

  ‑ Sim, mas a Flora já não lê essas velharias!

  ‑ Engana‑se, doutor. Leio‑as e agradam‑me bastante.

  Tive prazer em ouvir aquela declaração. Os livros que as mulheres actualmente lêem e dizem agradar‑lhes assombram‑me.

  ‑ Ainda não me deu os parabéns, doutor. Não sabe da notícia?

Estendeu a mão esquerda para mim. No dedo médio, brilhava um anel com uma pérola finamente engastada.

  ‑ Estou para casar com Rudolph, já sabe?... Meu tio está muito satisfeito. Além do mais continuo na família.

  Tomei‑lhe as mãos, apertando‑as nas minhas.

  ‑ Desejo‑lhe, minha amiga, todas as felicidades.

  ‑ Há quase um mês que estamos noivos ‑ acrescentou, com a sua voz fresca. ‑ Mas só ontem o

anunciámos. Meu tio quer preparar a villa da Pedra Branca para nossa residência, e nós fingiremos de agricultores. No Inverno, iremos caçar; na Primavera, estaremos na cidade e depois junto do mar. Gosto tanto do mar!

Naquele momento, ouviu‑se um ruído de seda e Mrs. Ackroyd entrou na sala, desculpando‑se pela demora.

Sinto dizê‑lo, mas detesto cordialmente Mrs. Ackroyd. Dá‑me a impressäo de que é só ossos e dentes.

É uma mulher muito antipática. Tem dois olhinhos azuis, amortecidos, mas de olhar duro; e, embora as suas palavras sejam melífluas, os seus olhos ficam sempre frios e calculistas.

Aproximei‑me dela, deixando Flora perto da janela.

Estendeu‑me a mão ossuda, coberta de anéis, e começou a falar com volubilidade, perguntando‑me se sabia do noivado de Flora. Tão acertado, sob todos os aspectos! Os dois tinham gostado um do outro, ao primeiro olhar. Um par perfeito! Ele tão moreno, ela tão loira!

  ‑ Não é preciso dizer‑lhe, doutor, o consolo que isto é para um coração de mãe!

  Mrs. Ackroyd suspirou, em homenagem ao seu coração materno, enquanto os seus olhos me perscrutavam agudamente.

  ‑ Surpreende‑me que ainda o não soubesse; o senhor é um velho amigo de Ro,ger e sabemos quanta confïança ele deposita em si. E tão difícil, na minha condição de viúva de Camile... Estou firmemente convencida de que Roger pensa em constituir um dote para Flora, mas, como sabe, é um pouco seguro com o dinheiro; coisa muito comum, aliás, entre os chefes da indústria. Não poderia sondá‑lo sobre este assunto?

Flora estima‑o tanto! Parece‑nos que o senhor é para nós um velho amigo, embora, na realidade, apenas nos conheça há dois anos!

A eloquência de Mrs. Ackroyd foi truncada pelo abrir‑se repentino de uma porta da sala e a interrupção foi mais do que oportuna. Se há coisa no Mundo que odeio é imiscuir‑me nos negócios alheios, e, assim, não tinha nenhuma vontade de arrastar Ackroyd ao assunto do dote de Flora. Se a conversa tivesse durado mais uns minutos ver‑me‑ia obrigado a dizê‑lo francamente à minha interlocutora.

  ‑ Conhece o major Blunt, doutor?

  ‑ Sim, conheço‑o ‑ respondi.

  ‑ Há uma quantidade de pessoas que conhecem Hector Blunt, pelo menos de fama. Matou mais animais ferozes, e nos países mais inverosímeis, do que qualquer outro. Quando, numa palestra, aparece o seu nome, ouve‑se logo dizer:  cAh! Blunt, aquele das grandes caçadas, não é verdade?

A sua amizade por Ackroyd sempre me deu que pensar. Dois temperamentos tão opostos! O major talvez tenha cinco anos menos do que o seu amigo; a sua amizade data de muitos anos, e, conquanto as suas ideias sejam diversas, continua sempre sólida. Uma vez em cada dois anos, mais ou menos, Blunt passa duas semanas na villa Fernly, e então em sua honra o dono da casa coloca na entrada uma enorme cabeça de animal, com um número enorme de chifres, que, ao transpormos o umbral, nos fita com um olhar vidrado.

O major acabava de entrar, com o seu passo peculiar, decidido e silencioso. É de estatuta média e compleição robusta; o rosto moreno é inexpressivo e os seus olhos cinzentos dão a impressão de que está sempre a observar alguma coisa que acontece muito longe.

Fala pouco, e, quando o faz, é como se as palavras custassem a sair.

  ‑ Como está, doutor? ‑ perguntou com o seu modo habitual, seco e repentino. Depois, colocou‑se diante da chaminé, olhando por cima de nós absorto, como se visse alguma coisa muito interessante, no centro da África.

  ‑ Oiça, major ‑ disse Flora ‑, gostaria que me contasse algumas das suas aventuras africanas.

Hector Blunt tinha a fama de misógino inveterado; no entanto, notei que se aproximou de Flora sem se fazer rogado.

Temia que Mrs. Ackroyd quisesse recomeçar a falar do dote e apressei‑me a orientar a conversa para uma nova qualidade de rosas, sobre a qual lera alguma coisa no jornal, nessa manhã. Mrs. Ackroyd nada entende de floricultura, mas pertence à categoria das pessoas que querem parecer sempre bem informadas sobre os factos do dia. Pudemos assim conversar com conhecimento de causa, até que entraram Ackroyd e o secretário. Pouco depois, Parker anunciava que o jantar estava na mesa.

À mesa, sentei‑me entre Mrs. Ackroyd e Flora.

O major estava do outro lado de Mrs. Ackroyd e, a seguir, encontrava‑se Godofred Raymond, o secretário.

O jantar não foi alegre. Percebia‑se que Ackroyd estava preocupado. Parecia profundamente abatido e quase não comeu. Mrs. Ackroyd, o secretário e eu animámos a conversa. Flora parecia bastante impressionada com a tristeza do tio e o major tornara‑se taciturno como de costume.

Terminado o jantar, Ackroyd tomou‑me pelo braço e conduziu‑me para o escritório.

  ‑ Depois de nos terem trazido o café, ninguém mais nos perturbará. Avisei Raymond para prestar atenção, a fim de ninguém nos vir interromper.

Via‑se claramente que estava dominado por viva agitação. Durante um ou dois minutos, passeou de um para outro lado do escritório e quando Parker entrou com as xícaras de café, deixou‑se cair numa poltrona, diante do fogão.

O escritório era confortável. Uma parede estava inteiramente ocupada por uma prateleira cheia de livros; as poltronas eram amplas, forradas de coiro azul. Perto da janela, havia uma grande secretária, cheia de papéis e documentos, cuidadosamente anotados e postos em ordem. Sobre uma mesinha redonda, viam‑se diversas revistas e publicações desportivas.

  ‑ Nestes últimos tempos, tenho sentido de novo a mesma dor depois do jantar ‑ observou Ackroyd, enquanto servia o café. ‑ Peço‑lhe que me dê novamente daquelas plulas que me receitou.

  ‑ Pensei nisso e trouxe algumas comigo.

  ‑ Bravo. Entäo tomo‑as, agora.

  ‑ Estão na minha maleta, lá fora. Vou buscá‑las.

  Ackroyd segurou‑me.

  ‑ Não se incomode. Parker, vá buscar a maleta do doutor.

Parker saiu. Estava para falar, mas ele fez‑me sinal para que guardasse silêncio.

  ‑ Ainda não. Espere. Näo vê que estou tão nervoso que não sei como conter‑me?

Percebia‑o claramente e senti‑me preso de viva inquietação, assaltado por toda a espécie de pressentimentos.

Começou a falar, pouco depois.

  ‑ Quer verifcar se aquela janela está fechada?‑ sugeriu.

  Um pouco surpreendido, levantei‑me e fiz o que me pedira. Era uma das usuais janelas de subir e descer, conhecidas vulgarmente por ccjanelas de guilhotinav, muito comuns nas casas inglesas. Na frente, havia um pesado cortinado de veludo azul; mas a janela estava aberta na parte superior.

Parker entrou no escritório com a maleta, enquanto ainda me encontrava perto da janela.

  ‑ Fechada ‑ disse, voltando para o meio da sala.

  ‑ Bem fechada?

  ‑ Sim, sim. Que tem, Mister Ackroyd?

Certamente não teria feito a pergunta, se Parker não tivesse já fechado a porta.

Esperou ainda uns instantes, antes de responder.

  ‑ É terrível ‑ disse lentamente. ‑ Deixe as pílulas; disse aquilo só por causa do Parker. A criadagem é tão curiosa! Sente‑se nesta cadeira, mais perto de mim. E a porta também está fechada?

  ‑ Sim, ninguém nos pode ouvir. Esteja tranquilo.

  ‑ Doutor, ninguém sabe o que tenho sofrido nestas vinte e quatro horas. Tudo se desmoronou, tudo está arruinado! E Rudolph deu‑me o golpe de misericórdia! Mas, por enquanto, não falemos nisso! O resto! Não sei que fazer; todavia, preciso de decidir‑me e depressa.

  ‑ Que aconteceu?

  Ficou em silêncio alguns instantes. Quando começou, a pergunta que me fez surpreendeu‑me. Esperava outra coisa.

  ‑ Diga‑me, não foi o doutor quem tratou de Arthur Ferrars, na sua última doença?

  ‑ Sim.

  Pareceu‑me que encontrava a maior di iculdade ainda em formular a pergunta seguinte.

  ‑ Nunca suspeitou... nunca lhe passou pela cabeça que... fosse um envenenamento?

Depois de ter ficado em silêncio alguns segundos, decidi‑me a falar. Afinal, Ackroyd não era a Caroline.

  ‑ Dir‑lhe‑ei a verdade. Na ocasião da sua morte não tive qualquer suspeita, mas depois... talvez tenham sido as suposições da minha irmã que me levaram a semelhante ideia. E, desde então, não consegui tirá‑la da cabeça. Mas veja bem que a minha suspeita não tem fundamento concreto.

  ‑ Foi envenenado ‑ disse Ackroyd, em voz surda.

  ‑ Por quem? ‑ perguntei vivamente.

  ‑ Pela própria mulher.

  ‑ Como sabe?

  ‑ Ela própria mo contou.

  ‑ Quando?

  ‑ Ontem! Meu Deus! Ontem! Parece que foi há dez anos!

  Depois de uma pausa, prosseguiu:

  ‑ Compreende, doutor, que é uma prova de confiança dizer‑lhe isto: nada deve transpirar. Preciso dos seus conselhos; não posso suportar este peso sozinho.

Como disse, não sei que fazer.

  ‑ Sim, mas é preciso que me conte tudo ‑ disse.‑ Muitas circunstâncias são‑me desconhecidas. Como foi que Mistress Ferrars se decidiu a fazer‑lhe essa confissão?

  ‑ Há três meses, perguntei‑lhe se consentia em casar comigo; recusou. Renovei o pedido mais tarde, e, dessa vez, aceitou, mas não quis que o nosso noivado fosse anunciado, enquanto não tivesse transcorrido um ano de viuvez. Ontem, fui a casa dela, observei‑lhe que já passara um ano e três semanas após a morte do marido e que, portanto, não havia motivo para ocultar ao público o nosso noivado. Notara que, desde há dias, tinha uns modos estranhos. Subitamente, sem que eu o esperasse, revelou‑me tudo. O seu ódio por aquele bruto, o seu amor por mim, que se tornava cada vez maior, e o meio atroz a que recorrera para libertar‑se. O veneno, santo Deus! Foi um verdadeiro assassínio a sangue‑frio!

Vi pintado no seu rosto o mais profundo horror; o mesmo, pensei, devia ter visto Mrs. Ferrars. O meu amigo não pertence à categoria dos grandes amorosos que tudo podem perdoar por amor. No fundo, é a quinta‑essência da ordem. Todas as suas ideias sobre lei e sobre moral devem ter‑se revoltado contra aquela mulher, no momento da confissão.

  ‑ Sim, foi assim mesmo ‑ prosseguiu com voz baixa e dolorosa ‑ confessou‑me tudo. Parece que outro estava ao corrente do sucedido desde o princípio e que a explorou, obrigando‑a a desembolsar enormes quantias. Foi isto que quase a enlouqueceu.

  ‑ Quem era o autor da chantagem?

Imediatamente, diante dos meus olhos, surgiram as figuras de Rudolph e da Mrs. Ferrars, como os vira na rua. A cabeça de um tão perto da outra! Uma suspeita atroz passou‑me pela mente. E se...? Não, era impossível! Lembrei a cordialidade com que Rudolph me cumprimentara poucas horas antes. Era absurdo!

  ‑ Não quis dizer‑me o nome ‑ respondeu Ackroyd, lentamente. ‑ Isto é, nem sequer quis dizer‑me se era um homem. Mas naturalmente...

  ‑ Naturalmente ‑ concordei ‑ deve ser um homem. E o senhor não suspeita de ninguém?

Como única resposta emitiu um suspiro e ocultou o rosto nas mãos.

  ‑ Não pode ser ‑ exclamou. ‑ Enlouqueço ao pensar nisso. Não, nem ao senhor quero confessar a suspeita terrível que me passou pela mente. De qualquer modo, por algumas palavras que lhe ouvi, sou induzido a suspeitar que se trata de uma pessoa íntima minha. Mas não é possível: devo ter entendido mal.

  ‑ E o senhor que disse?

  ‑ Que podia dizer? Ela viu, certamente, a terrível impressão que a sua revelação me causara. Por outro lado, fui obrigado a perguntar a mim próprio qual era o meu dever. Ela, no fundo, tornara‑me quase seu cúmplice, compreende? Fiquei perplexo. Pediu‑me que esperasse vinte e quatro horas, fez‑me prometer que nada faria durante esse prazo. E recusou‑se firmemente a revelar‑me o nome do criminoso que a explorava. Creio que temia que eu fosse enfrentá‑lo e que o escândalo em que estava envolvida viesse à luz. Garantiu‑me que me comunicaria qualquer coisa antes de decorrido o prazo das vinte e quatro horas. Juro‑lhe, doutor, que nunca me passou pela cabeça que pudesse fazer o que fez. Um assassínio! E fui eu que a impeli a isso.

  ‑ Não, não! ‑ atalhei. ‑ Não deve exagerar.

O senhor não tem qualquer responsabilidade na sua morte.

  ‑ Agora, a questão está nestes termos: que devo fazer? A pobre senhora morreu. Não é necessário remexer nas torpezas passadas.

  ‑ Estou de acordo com o senhor ‑ respondi.

  ‑ Mas há outra coisa. Como hei‑de alcançar o celerado que a arrastou ao suicídio, que foi a causa da sua morte, como se ele mesmo a tivesse assassinado?

Estava a par do crime e valeu‑se disso para viver dele, como um abutre imundo. Aquela desventurada já pagou pela sua culpa. Mas deverá ele ficar impune?

  ‑ Vejo que o senhor pretende aprofundar o caso ‑ proferi lentamente. ‑ Isto significa que passará para o domínio público.

  ‑ Sim, já pensei nisto: estudei a questão sob todos os aspectos, sem chegar a uma conclusão.

  ‑ Estou perfeitamente de acordo com o senhor, de que esse canalha devia ser punido como merece; mas é preciso considerar se vale a pena.

Ackroyd levantou‑se e começou a passear pelo aposento. Depois, deixou‑se cair novamente na poltrona.

  ‑ Ouça, doutor, deixemos as coisas como estão. Se não me chegar qualquer revelação da parte dela... deixaremos que os mortos durmam em paz.

  ‑ Mas que espécie de revelação ainda espera da parte dela? ‑ perguntei com curiosidade.

  ‑ Tenho o vivo pressentimento de que, antes de morrer, me deixou alguma comunicaçäo, num lugar qualquer. Não posso justificar esta convição, mas tenho‑a.

Sacudi a cabeça, em sinal de dúvida.

  ‑ Nada deixou escrito ou verbal? ‑ perguntei.

  ‑ Estou convencido de que alguma coisa deve ter deixado, doutor. Mas há mais. Tenho o pressentimento de que, quando pensou em suicidar‑se, quis que o caso se divulgasse, nem que fosse só para se vingar de quem a arrastara à perdição. Estou certo de que, se a tivesse visto naquela ocasião, ter‑me‑ia dito o nome, fazendo‑me prometer que não a deixaria sem vingança. Olhou para mim.

  ‑ O senhor não acredita nos pressentimentos?

  ‑ Acedito, em parte. Se, como o senhor diz, chegasse alguma comunicação...

  Parei subitamente. A porta abriu‑se sem fazer ruído e Parker entrou com uma bandeja em que estavam várias cartas.

  ‑ O correio da tarde, Mister Ackroyd ‑ anunciou.

Depois, pegou nas xícaras vazias e saiu.

A minha atenção tornou a concentrar‑se em Ackroyd. Ele fixava, como que petrificado, um sobrescrito azul. Deixara cair no chão as outras cartas.

  ‑ A sua letra ‑ murmurou. ‑ Deve ter saído e colocado esta carta no correio ontem, à tarde, precisamente antes... antes de...

Rasgou o sobrescrito e retirou uma carta bastante volumosa. Em seguida, olhou em torno, nervosamente.

  ‑ Está certo de ter fechado bem a janela? ‑ perguntou.

  ‑ Mais do que certo ‑ respondi surpreendido.‑ Porquê?

  ‑ Durante toda a tarde, tenho tido a sensação de ser vigiado, espiado. Que há?

Virou‑se subitamente. Eu fiz o mesmo. Ambos tivemos a impressão de ouvir um leve ruído na fechadura. Fui à porta, abri. Ninguém.

  ‑ São os meus nervos ‑ murmurou Ackroyd.

Desdobrou a carta e leu com voz sufocada:

_ Meu caro, meu adorado Roger:

Vida por vida. Vejo‑o, sinto‑o ‑ percebi claro nos teus olhos, hoje. Por isto, sigo o único caminho que me está aberto. Deixo‑te a incumbência de vingar‑me e de punir quem tornou a minha vida um inferno, de um ano a esta parte. Não quis dizer‑te o nome hoje, mas esforçar‑me‑ei por escrevê‑lo agora. Não tenho filhos, nem parentes próximos para salvar da desonra; por isso não temas que o caso se divulgue. Se puderes, Roger, meu muito amado Roger, perdoa o mal que ia fazer‑te, pois, afinal, quando chegou o momento, não tive coragem...

Ackroyd parou de repente, com a folha na mão sem a voltar.

  ‑ Perdoe, doutor, só poderei ler esta carta sozinho ‑ disse com profunda comoção. ‑ Foi escrita para que só eu a lesse, só eu.

Meteu novamente a carta no sobrescrito e colocou este sobre a mesa.

  ‑ Mais tarde, quando ficar só.

  ‑ Não ‑ exclamei impetuosamente ‑, leia‑a agora.

  Ele fixou‑me surpreso.

  ‑ Oh! Desculpe ‑ murmurei corando ‑, não quero dizer que deva ler‑ma em voz alta. Mas leia tudo, enquanto eu estiver aqui.

Sacudiu a cabeça.

  ‑ Não, prefiro esperar.

Por uma razão inexplicável para mim próprio, insisti:

  ‑ Leia, pelo menos, o nome do criminoso.

  É preciso que se saiba que Mr. Ackroyd é teimoso como um burro. Quanto mais se tenta convencê‑lo a fazer determinada coisa, mais se recusa a fazê‑la. Todos os meus argumentos foram inúteis.

A carta fora entregue às oito e cinquenta. Faltavam, precisamente, dez minutos para as nove, quando o deixei sem que ele a tivesse lido. Parei hesitante, com a mão sobre a maçaneta da porta, perguntando‑me se esquecia alguma coisa. Pareceu‑me ter feito quanto devia fazer. Saí, sacudindo a cabeça e fechando a porta.

Tive um estremecimento, ao achar‑me na frente de Parker. Não conseguiu ocultar o seu embaraço e deu‑me a impressão de que tinha estado a escutar à porta.

Pareceu‑me notar algo de falso nos seus olhos.

  ‑ Mister Ackroyd não quer ser perturbado ‑ informei friamente. ‑ Pediu‑me que lho dissesse.

  ‑ Está bem, doutor. Pareceu‑me ter ouvido a campainha.

Era uma mentira tão descarada que não me dignei responder‑lhe.

  Parker, precedendo‑me, acompanhou‑me até o vesti'bulo e ajudou‑me a vestir o sobretudo. Saí. A Lua estava coberta de nuvens e tudo parecia imerso na calma e na escuridão.

Soavam exactamente nove horas na torre de King's Abbot, quando transpus a entrada da villa e saí pelo portão. Voltei à esquerda, em direcção ao povoado e pouco faltou para que não esbarrasse com um homem que vinha em direcção oposta.

  ‑ É por aqui que se vai para a villa Fernly, se‑ nhor? ‑ perguntou em voz rouca.

Fitei‑o. Tinha o chapéu sobre os olhos e a gola do casaco levantada. Do rosto pouco ou nada pude ver, mas pareceu‑me que era novo. A voz era áspera e desagradável.

  ‑ Aí está o portão da villa ‑ disse‑lhe.

  ‑ Obrigado. ‑ Calou‑se por um momento e acrescentou, embora fosse inútil. ‑ Sou forasteiro

e não conheço o lugar.

Prossegui e, quando me virei para olhá‑lo, vi que atravessava o portão.

  A sua voz não me era desconhecida, mas não consegui identificá‑lo.

  Dez minutos depois, cheguei a casa. Caroline estava sobre brasas. Ansiava por saber porque voltara tão cedo. Tive de inventar pormenores sobre o serão, para satisfazer a sua curiosidade, mas experimentei a desagradável sensação de verificar que pouco acreditava nas minhas palavras e tentava adivinhar a verdade.

Às dez horas, levantei‑me bocejando e propus a Caroline irmos dormir, com o que concordou.

Era sexta‑feira e em todas as sextas‑feiras dou corda aos relógios da casa. Procedi como de costume, enquanto Caroline ia verificar se as criadas tinham fechado a porta da cozinha.

  Eram dez e um quarto, quando subimos para os nossos quartos. Tinha apenas chegado ao patamar, quando tocou a campainha do telefone.

  ‑ Mrs. Bates ‑ anunciou minha irmã.

  ‑ Creio que sim ‑ admiti, contrariado.

Desci a escada e atendi.

  ‑ Quê? ‑ exclamei. ‑ Que está dizendo? Decerto, vou imediatamente.

  Subi a escada correndo.

  ‑ Parker telefonou! ‑ gritei a Caroline. – De Fernly. Encontraram, agora mesmo, Mister Ackroyd assassinado!

 

O CRIME

Num instante, meti‑me no automóvel e voei para a villa Fernly. Toquei a campainha com viva impaciênia. Como demoravam a atender, toquei de novo.

Ouvi, finalmente, o ranger do cadeado; a porta abriu‑se e, na soleira, apareceu Parker, aprumado e impassível.

  ‑ Onde está? ‑ perguntei alvoroçado.

  ‑ Onde está quem, doutor?

  ‑ O seu amo, Mister Ackroyd. Não fique a olhar‑me, assim, apatetado. Avisou a polícia?

  ‑ A polícia? A polícia?

Parker olhou‑me assombrado, como se eu fosse um espectro.

  ‑ Mas que foi que me disse, Parker? Se, como me

disse, o seu amo foi assassinado...

  ‑ O meu amo? Assassinado? Impossível, doutor.

Por minha vez olhei‑o apatetado.

  ‑ Mas não me telefonou há cinco minutos, dizendo‑me que Mister Ackroyd fora encontrado assassinado?

  ‑ Eu, doutor? Eu, não. Nem sonhando me permitiria semelhante coisa.

  ‑ Quer dizer que se trata de uma brincadeira idiota? Então, nada aconteceu a Mister Ackroyd?

  ‑ Perdão, doutor, quem lhe telefonou serviu‑se, talvez, do meu nome?

  ‑ Repito‑lhe as palavras exactas que ouvi: Falo com o doutor Sheppard? Sou Parker, o mordomo da villa Fernly. É favor vir imediatamente, doutor. Mister Ackroyd foi assassinado.

Olhámo‑nos estupefactos.

  ‑ É uma brincadeira de mau gosto ‑ disse Parker, bastante perturbado. ‑ Ter a coragem de dizer

semelhante coisa!

  ‑ Onde está Mister Ackroyd? ‑ perguntei repentinamente.

  ‑ Creio que ainda está no escritório, doutor. As senhoras foram deitar‑se e o major Blunt e Mister Raymond encontram‑se na sala de bilhar.

  ‑ Bem, quero falar com mister. É verdade que não queria ser perturbado, mas esta estúpida brincadeira deixou‑me inquieto. E só para certificar‑me de que está bem.

  ‑ Muito bem, bem doutor. Também me sinto inquieto. Acompanhá‑lo‑ei à porta.

Passei pela porta, à esquerda, seguido do mordomo; atravessei um pequeno corredor, pelo qual uma pequena escada conduzia ao quarto de dormir de Ackroyd, e bati na porta do escritório. Nenhuma resposta.

  ‑ Permita, doutor ‑ disse Parker.

Com agilidade de surpreender num homem tão gordo, ajoelhou‑se e aplicou um dos olhos à fechadura.

  ‑ A chave está no seu lugar ‑ disse levantando‑se.

 ‑ Mister Ackroyd deve ter fechado a porta por dentro e talvez esteja adormecido.

Curvei‑me para ver se dizia a verdade.

  ‑ Parece‑me que tudo está nos seus lugares ‑ observei. ‑ Contudo, é conveniente que acorde o seu amo. Ficaria inquieto se o não ouvisse confirmar que está bem.

Dizendo isto sacudi a maçaneta e chamei.

  ‑ Mister Ackroyd, Mister Ackroyd.

  Nenhuma resposta! Olhei para cima.

  ‑ Não queria alarmar as senhoras ‑ exclamei, hesitante.

  Parker dirigiu‑se para a ampla porta que dava para o vestíbulo e fechou‑a.

  ‑ Assim está bem, doutor. A sala de bilhar encontra‑se no outro lado da casa, onde também ficam a cozinha, os quartos dos criados e os quartos de dormir.

Bati novamente à porta com violência. Curvando‑me para a fechadura gritei:

  ‑ Ackroyd, Ackroyd, sou eu, Sheppard! Abra.

Silêncio. Nem o menor sinal de vida atrás da porta fechada. O mordomo e eu olhámo‑nos.

  ‑ Ouça, Parker ‑ decidi ‑, é preciso arrombar a porta. Assumo a responsabilidade.

  ‑ Se o senhor o afirma, doutor – respondeu o mordomo titubeante.

  ‑ Afirmo e quero. Temo que tenha acontecido alguma coisa de grave ao seu amo.

  Olhei em torno, no pequeno corredor, e vi uma peada cadeira de carvalho. Eu e Parker agarramo‑la firmemente e decidimo‑nos ao ataque. Uma, duas três vezes, batemos com ela na fechadura. Ao terceiro ataque cedeu, e entrámos no escritório.

Ackroyd estava sentado na poltrona, perto da chaminé, na mesma posição em que o deixara. Tinha a cabeça reclinada para um lado e, um pouco abaixo da gola do casaco, via‑se um objecto metálico, brilhante e recurvo.

Avançámos e curvámo‑nos sobre aquele corpo inanimado. Ouvi o mordomo soltar um profundo gemido de angústia.

  ‑ Apunhalado pelas costas ‑ murmurou.‑ É horrível!

Enxugou a testa cheia de suor, depois, incautamente, estendeu a mão para o cabo do punhal.

  ‑ Não lhe toque ‑ disse‑lhe com energia. ‑ Telefone imediatamente à polícia, para avisá‑la do que aconteceu. Depois, avise Mister Raymond e o major Blunt.

  ‑ Está bem, doutor.

  O criado afastou‑se rapidamente enxugando o suor da testa. Fiz então o pouco que devia ser feito, cuidando, sobretudo, de não tirar o cadáver da posição em que se encontrava e de não tocar no punhal. Não era preciso mexer no corpo. Era mais do que evidente que Ackroyd devia ter morrido havia já algum tempo.

 De fora, ouvi a voz de Raymond, incrédulo e assombrado.

  ‑ Que está a dizer? Mas é impossível! Onde está o médico?

Chegou à porta e parou de repente, muito pálido.

O major afastando‑o com a mão, entrou no escritório.

  ‑ Meu Deus! ‑ exclamou Raymond. ‑ Mas então é verdade!

  Blunt avançou até à poltrona. Curvou‑se sobre o cadáver, e, como me pareceu que quisesse, como Parker, agarrar o cabo na arma, segurei‑lhe a mão.

  ‑ Não deve tocar em coisa alguma ‑ recomendei.‑ A polícia deve ver tudo exactamente como se encontra.

O major aprovou com um gesto. O seu rosto estava como sempre, inexpressivo, mas pareceu‑me descobrir um sinal de comoção sob a sua máscara de impassibilidade. O secretário aproximou‑se e, curvado sobre o ombro de Blunt, fitou atentamente o cadáver.

  ‑ É terrível! ‑ exclamou em voz abafada.

Tinha reconquistado o domínio de si próprio, mas, quando tirou os óculos para limpá‑los, observei que as mãos lhe tremiam.

  ‑ Creio que se trata de roubo ‑ sugeriu. – Mas como entrou o assassino? Pela janela? Não levou nada?

Dirigiu‑se para a secretária.

  ‑ Julga que se trata de roubo? ‑ perguntei pesando as palavras.

  ‑ Que outra coisa poderia ser? Não se trata, naturalmente, de um suicídio, não acha?

  ‑ Ninguém poderia apunhalar‑se deste modo‑ respondi com segurança. ‑ É evidente que se trata de um crime. Mas qual seria o motivo?

  ‑ Roger não tinha inimigos ‑ observou o major pacatamente. ‑ Trata‑se de gatunos. Mas que procuravam? Parece‑me que nada foi revolvido.

Olhou em volta, pela sala. Raymond estava arrumando os papéis e documentos sobre a secretária.

  ‑ Parece‑me que nada falta e nenhuma das gavetas mostra sinais de arrombamento ‑ observou, por fim, o secretário. ‑ É um mistério incompreensível!

Blunt sacudiu levemente a cabeça.

  ‑ Olhe, há cartas no chão ‑ observou.

  Olhei. No soalho havia ainda três ou quatro cartas, no lugar onde Ackroyd as deixara pouco antes, durante a nossa conversa.

Mas o sobrescrito azul que continha a carta de Mr. Ferrars desaparecera. Estava para abrir a boca e falar, quando ouvimos tocar a campainha. Ouviram‑se vozes confusas no vesu'bulo; a seguir, Parker entrou no gabinete, acompanhado pelo inspector e por um agente da polícia.

  ‑ Boa noite, senhores ‑ disse o inspector. ‑ Sinto profundamente! Uma pessoa tão boa e afável como Mister Ackroyd! O mordomo diz que se trata de um crime. Está excluída a hipótese de se tratar de um acidente ou de um suicídio, doutor?

  ‑ Excluída de modo absoluto ‑ respondi.

Aproximou‑se e curvou‑se sobre o cadáver.

  ‑ Não lhe tocaram? ‑ perguntou.

  ‑ Apenas para certif car‑me de que estava morto. Coisa muito fácil, infelizmente! Ninguém mexeu no cadáver, nem este foi deslocado do lugar onde o encontrámos.

  ‑ Tudo faz crer que o assassino se tenha posto a salvo, pelo menos por agora. Bem, dêem‑me todos os pormenores. Quem encontrou o cadáver?

Expus todas as circunstâncias, com pormenores minuciosos.

  ‑ Que está dizendo? Um telefonema? Do mordomo?

  ‑ Não podia partir de mim ‑ declarou firmemente Parker. ‑ Durante toda a noite não tive ocasião de me aproximar do telefone. Todos podem confirmar o que digo.

  ‑ É estranho! Pareceu‑lhe a voz de Parker, doutor?

  ‑ Verdadeiramente não posso dizer por não ter prestado atenção: a coisa parecia‑me tão natural!

  ‑ Certamente. Então o senhor chegou aqui, forçou a porta e encontrou o pobre Ackroyd reduzido a este estado. Há quanto tempo julga que tenha morrido?

  ‑ Há meia hora, ou talvez mais ‑ respondi.

  ‑ A porta estava fechada por dentro, disse? E a janela?

  ‑ Eu mesmo a fechei esta noite, antes das nove.

Até desci o ferrolho, a pedido de Mister Ackroyd.

O inspector Davis atravessou a sala, dirigiu‑se para a janela e levantou o cortinado.

  ‑ Mas agora está aberta ‑ observou.

Realmente, a janela, de guilhotina, estava aberta.

A parte inferior fora erguida o máximo possível.

Davis tirou do bolso uma lâmpada eléctrica e iluminou o peitoril.

  ‑ O assassino só pode ter passado por aqui, para entrar e para sair. Vejam.

À luz da poderosa lâmpada eléctrica podiam ver‑se várias pegadas nitidamente marcadas. Pareciam feitas por sapatos guarnecidos de pedaços de borracha nas solas. Especialmente uma, bem nítida, ia em direcção à janela; outra, levemente sobreposta, em direcção ao jardim.

  ‑ Claro como a luz do Sol! ‑ continuou o inspector. ‑ Falta algum objecto de valor?

Raymond sacudiu a cabeça, negativamente.

  ‑ Não, nenhum, ao que parece. Mister Ackroyd não guardava nada de valor nesta sala.

  ‑ Hum! ‑ fez Davis. ‑ O criminoso encontra a janela aberta; trepa, vê Mister Ackroyd sentado perto da mesa; talvez estivesse adormecido. Chega e apunhala‑o; perde o sangue‑frio e foge. Mas deixou o rasto bastante nítido, e não deve ser muito difícil agarrá‑lo.

Não foi notado qualquer forasteiro suspeito, vagueando por estes lados?

  ‑ Oh! ‑ interrompi repentinamente.

  ‑ Que há, doutor?

  ‑ Esta noite, pouco depois de ter atravessado o portão, topei com um indivíduo que me pediu que lhe indicasse o caminho que conduz à villa Fernly.

  ‑ A que horas, mais ou menos?

  ‑ Às nove, em ponto. Ouvi‑as no relógio da torre, quando transpunha o portão.

  ‑ Poderia descrevê‑lo?

  Fiz a descrição como pude.

O inspector virou‑se para o mordomo.

  ‑ Não foi visto ninguém à porta de entrada, cujos traços correspondam a estes?

  ‑ Não, senhor. Não vimos ninguém nas proximidades da villa, esta noite.

  ‑ E do lado da porta de serviço?

  ‑ Não creio. Contudo, vou informar‑me.

Dirigiu‑se para a porta, mas o inspector reteve‑o levantando a mão.

  ‑ Não, obrigado. Eu próprio investigarei. Mas antes de mais nada quero fixar com maior precisäo as fases do crime. Quem viu pela última vez Mister Ack  royd e a que horas?

  ‑ Talvez tenha sido eu quem o viu em último lugar ‑ disse‑lhe. ‑ Quando o deixei? Espere. Às nove menos dez. Disse‑me que não queria ser perturbado e transmiti essa ordem a Parker.

  ‑ Foi assim mesmo, senhor ‑ confirmou o mordomo, respeitosamente.

  ‑ Mister Ackroyd devia, certamente, estar ainda vivo às nove e meia ‑ interviu Raymond – porque ouvi a sua voz quando passei perto da porta.

  ‑ Com quem falava?

  ‑ Não sei. Naturalmente naquele momento estava convencido de que o doutor Sheppard ainda estivesse aqui, com ele. Queria pedir‑lhe esclarecimentos sobre alguns documentos de que me ocupava, mas, quando ouvi vozes no gabinete, lembrei‑me de que dissera querer conversar com o doutor sem ser perturbado; por isso não entrei. Parece, todavia, que àquela hora o doutor já se retirara.

Confirmei com um gesto.

  ‑ Cheguei a casa às nove e um quarto ‑ acrescentei ‑ e não saí mais, até o momento em que recebi o telefonema.

  ‑ Quem teria estado com ele às nove e meia?‑ perguntou o inspector. ‑ Certamente não foi o senhor.

  ‑ Major Blunt ‑ intervim.

  ‑ Ah! O major Blunt? ‑ disse, em tom de deferência.

  O major limitou‑se a confirmar com a cabeça.

  ‑ Parece‑me que já o vi noutra ocasião, major‑ acrescentou o inspector. ‑ De momento, não o reconheci. Há um ano, em Maio, o senhor veio passar algum tempo aqui, com Mister Ackroyd, parece‑me.

  ‑ Em Junho ‑ rectificou Blunt.

  ‑ Precisamente, foi em Junho. Bem, como estava dizendo, não era o senhor que, às nove e meia, se encontrava com Ackroyd?

Blunt acenou que não.

  ‑ Depois do jantar não o vi mais.

Davis dirigiu‑se novamente a Raymond:

  ‑ O senhor não ouviu, por acaso, de que tratava a conversa?

  ‑ Só pude ouvir um fragmento ‑ respondeu o secretário. ‑ E, como julgava que a conversa ainda fosse com o doutor Sheppard, achei estranho aquele fragmento. Se não me falha a memória, eis o que ouvi.

Era Mister Ackroyd quem falava:

__Os apelos à minha bolsa têm sido tão frequentes ultimamente  , isto era o que dizia, que julgo impossível atender novos pedidos.

Naturalmente, afastei‑me, e, por isso, não ouvi o prosseguimento da conversa. Mas fiquei um tanto surpreendido com essas palavras, porque o doutor Sheppard..

 -- Não pede empréstimos para ele nem subvenções para os outros ‑ completei.

  ‑ Um pedido de dinheiro ‑ fez Davis reflectindo. ‑ E possível que haja nisso um indício importante. ‑ Depois, voltando‑se para o mordomo: ‑ Você, Parker, disse que esta noite ninguém entrou pela porta principal.

  ‑ Repito‑o, senhor.

  ‑ Então, é quase certo que foi o próprio Ackroyd quem introduziu esse indivíduo. Mas não me parece claro...

  Reflectiu profundamente, durante alguns instantes.

  ‑ Uma coisa é certa ‑ disse por fim. ‑ Mister Ackroyd, às nove e meia, estava vivo. Este é o último momento em que sabemos que ainda tinha vida.

Parker deixou escapar uma tossezinha significativa que, imediatamente, fez voltar para ele os olhos perscrutadores do inspector.

  ‑ Então? ‑ perguntou com vivacidade.

  ‑ Desculpe, senhor, queria dizer que Miss Flora o viu depois dessa hora.

  ‑ Miss Flora?

  ‑ Sim, senhor. Eram dez menos um quarto. Foi depois desse colóquio que ela me disse que Mister Ackroyd não queria ser perturbado nesta noite.

  ‑ Foi ele quem a mandou dizer‑lhe isso?

  ‑ Verdadeiramente, não. Trazia‑lhe um copo de uísque com soda, numa bandeja, quando Miss Flora, que naquele momento saía da sala, me reteve, dizendo‑me que o tio não queria ser incomodado.

  Davis examinou o mordomo com mais atenção do que antes.

  ‑ Já lhe tinham dito que Mister Ackroyd não queria ser incomodado, não é verdade?

  Parker principiou a atrapalhar‑se. Tremiam‑lhe as mãos.

  ‑ Sim, senhor.

  ‑ No entanto, queria incomodá‑lo?

  ‑ Esqueci uma circunstância, senhor. Todas as noites, àquela hora, levava‑lhe sempre um copo de uís  que com soda; em seguida perguntava‑lhe se desejava mais alguma coisa. Por isso, ia fazer o mesmo esta noite, sem pensar...

Foi naquele instante que principiei a perceber que Parker era vítima de uma comoção verdadeiramente suspeita. Tremia e agitava‑se da cabeça aos pés.

  ‑ Bem ‑ disse o funcionário. ‑ Preciso de falar imediatamente com Miss Flora. Por enquanto, deixaremos ficar este quarto exactamente como está. Voltarei depois de a interrogar. Entretanto, será bom fecharmos a janela com o trinco.

Depois de tomar esta precaução, dirigiu‑se ao vesutíbulo e nós seguimo‑lo. Parou um instante, a fim de dar uma olhadela para a escada, virando‑se, depois, para o agente que o acompanhava.

  ‑ Jones, é melhor ficares aqui e evitar que alguém entre no quarto.

O mordomo adiantou‑se, cerimoniosamente.

  ‑ Perdão, inspector. Se o senhor fechasse à chave a porta que dá para o vesti'bulo principal, ninguém poderia passar para esta parte. Esta escada conduz, apenas, aos quartos de dormir e de banho de Mister Ackroyd. Não tem comunicação com o resto da casa. Antes, havia uma porta de comunicação, mas Mister Ackroyd mandou‑a tapar. Aprazia‑lhe saber que esta parte da casa era inteiramente privada, só para ele.

Para pôr as coisas a limpo e demonstrar exactamente a posição, fiz um desenho rudimentar da ala esquerda da villa. A pequena escada conduz, como explicou o mordomo, a um vasto quarto de dormir (resultante de dois quartos transformados num), ao qual está anexo um quarto de banho e um de toilette.

Davis, num rápido olhar, percebeu a disposição dos quartos. Depois de deixarmos o pequeno corredor e sairmos para o vesu'bulo, fechou a porta e meteu a chave na algibeira.

  Em seguida, deu instruçöes em voz baixa ao agente, que saiu logo depois.

  ‑ Precisamos de examinar as marcas de pegadas ‑ explicou o inspector. ‑ Mas antes de mais nada, preciso falar com Miss Ackroyd. Ela foi a última pessoa que viu o tio ainda com vida. Já sabe da sua morte?

Raymond sacudiu negativamente a cabeça.

  ‑ Está bem, então esperemos ainda cinco minutos, para lhe dar a notícia. Poderá responder melhor senão a assustarmos, revelando‑lhe já a verdade. Digam‑lhe que houve um roubo e peçam‑lhe que se vista e desça, a fim de nos dar algumas informações.

Foi o secretário quem subiu, para cumprir a ordem.

  ‑ Miss Ackroyd descerá imediatamente ‑ informou ao voltar. ‑ Disse‑lhe exactamente o que me ordenaram.

Cinco minutos mais tarde, Flora descia. Vestia um quimono de seda cor‑de‑rosa e o seu aspecto denunciava profunda ansiedade.

Davis caminhou para ela.

  ‑ Boa noite, Miss Ackroyd ‑ saudou gentilmente. ‑ Houve uma tentativa de roubo e desejaríamos que viesse em nosso auxílio. Que sala é esta? Ah! a sala de bilhar!... Entre, faça favor!

Flora sentou‑se calmamente num amplo divã que ocupava uma parte da sala e olhou para o funcionário.

  ‑ Não chego a compreender. Que roubaram? Que deseja saber?

  ‑ Simplesmente isto, Miss Ackroyd. Parker, o mordomo, diz que a viu sair do gabinete de seu tio cerca das nove e três quartos. É verdade?

  ‑ Sim, é verdade. Fui dar‑lhe as boas‑noites.

  ‑ E a hora é exacta?

  ‑ Não posso afirmar com precisão. É possível que fosse um pouco mais tarde.

  ‑ Seu tio estava só, ou havia alguém com ele?

  ‑ Estava só. O doutor Sheppard saíra.

  ‑ Reparou se a janela estava aberta ou fechada?

  ‑ Não sei..., o cortinado estava descido.

  ‑ E não notou que seu tio estivesse perturbado?

  ‑ Não, não me parece.

  ‑ Não lhe desagradaria dizer‑me o que se passou entre os dois?

Flora calou‑se, como se quisesse recordar‑se.

  ‑ Entrei e disse‑lhe: uBoa noite, tio, vou deitar‑me; sinto‑me cansada esta noite. Respondeu mur

murando qualquer coisa e aproximei‑me dele para beijá‑lo. Depois disse‑me que o vestido me ficava bem e, por fim, pediu‑me que saísse, porque estava muito ocupado.

  ‑ Não insistiu, de modo particular, para que não o incomodassem?

  ‑ Ah! sim! Recomendou‑me:   Diga a Parker que esta noite nada mais quero e que não venha perturbar‑me. Depois, vi o mordomo junto da porta e comuniquei‑lhe o desejo de meu tio.

  ‑ Obrigado, miss ‑ disse o inspector.

  ‑ Porque não quer dizer‑me o que roubaram?

  ‑ Porque não temos bem a certeza ‑ respondeu o inspector, embaraçado.

O olhar da jovem mostrou apreensão.

  ‑ Que aconteceu? ‑ inquiriu com um ligeiro estremecimento. ‑ O inspector está a ocultar‑me qualquer coisa.

  Com o seu ar reservado e discreto, Blunt interpôs‑se entre a jovem e o funcionário. Ela estendeu a mão e o major recebeu‑a entre as suas, acariciando‑lha, como se Flora fosse uma criança ansiosa por protecção.

  ‑ Más notícias, Miss Flora ‑ preambulou calmamente. ‑ Más notícias para todos nós. Seu tio Roger...

  ‑ Sim?

  ‑ Será muito doloroso para si, Miss Flora. Seu tio morreu.

  A jovem recuou com uma expressão de horror.

  ‑ Quando foi isso? ‑ murmurou.

  ‑ Mal Miss Flora saiu do escritório – esclareceu Blunt.

  Flora levou as mãos à garganta, soltou um gemido e caiu para trás.

  Corri a ampará‑la e, ajudado por Blunt, levei‑a para o quarto, onde a deitei na cama. Em seguida mandei acordar Mrs. Ackroyd para lhe transmitir a triste notícia. Flora voltou a si lentamente. A mãe foi para a sua cabeceira e eu aconselhei‑a quanto ao que devia fazer. Depois, desci apressadamente.

 

O PUNHAL TUNISINO

Encontrei‑me com o inspector no momento em que este saía da cozinha e das instalações de serviço.

  ‑ Como está Miss Flora, doutor? ‑ interessou‑se.

  ‑ Muito melhor. A mãe ficou com ela.

  ‑ Estive a interrogar os criados. Todos eles são unânimes em afirmar que não esteve ninguém, esta noite, perto da porta de serviço. A sua descrição do tal desconhecido é muito imprecisa, doutor. Poderá fornecer‑me dados mais concisos?

  ‑ Não, infelizmente. A noite estava escura e ele tinha a gola do casaco levantada e as abas do chapéu sobre os olhos.

  Depois de nova insistência de Davis, acabei por dizer‑lhe que a voz do homem não me parecera muito estranha, embora talvez ele a tivesse tentado disfarçar.

  ‑ Não se importa de vir comigo até ao escritório, doutor? Há alguns pontos que desejaria esclarecer consigo.

Anui e, após termos entrado, o funcionário fechou a porta.

  ‑ Não quero que venham perturbar‑nos ‑ explicou.

 ‑ Conte‑me lá que história é essa da extorsão?

  ‑ Extorsão? ‑ exclamei sobressaltado.

  ‑ Será produto da imaginação de Parker ou haverá nisso algo de verdadeiro?

  ‑ Se Parker ouviu falar em chantagem – admiti lentamente ‑, deve tê‑lo escutado atrás da porta, com o ouvido colado à fechadura.

Davis concordou.

  ‑ É muito provável. Estou certo de que Parker sabe alguma coisa. Quando comecei a interrogá‑lo saiu‑se logo com essa confusa história de chantagem.

Nesse momento tomei uma decisão e declarei:

  ‑ Estava na incerteza quanto a revelar certos factos, mas creio que chegou o momento oportuno, já que pôs as cartas na mesa.

Narrei‑lhe, então, os acontecimentos da noite e Davis escutou‑me atentamente.

  ‑ É uma história extraordinária ‑ comentou.‑ Afirma que näo se sabe dessa carta? Pelo menos agora temos o que procurávamos: motivo para o crime.

  ‑ E se o homem que procuramos fosse o próprio Parker? ‑ arrisquei.

  ‑ É possível. Não duvido que estivesse a escutar à porta, quando o doutor partiu. Pouco depois, Miss Flora surpreendeu‑o, quando ia a deixar o gabinete. Mal ela saiu, Parker pode ter apunhalado Ackroyd e aberto a janela por onde saltou, dando a volta à casa e tornando a entrar por uma porta lateral. Que lhe parece?

  ‑ Só näo se entende uma coisa: se Ackroyd prosseguiu na leitura da carta, como então tencionava fazer, não se explica porque ficou a meditar no assunto, durante uma hora, sem ter chamado imediatamente o mordomo, para enfrentá‑lo com as suas acusações. Teria sido uma cena infernal, visto que Ackroyd tinha, como sabe, um temperamento colérico.

  ‑ Talvez não tivese tido tempo de ler a carta até

ao fim ‑ considerou Davis. ‑ Sabemos que esteve alguém com ele, até às nove e meia. Se essa pessoa entrou, quando o doutor saiu e foi logo seguida por Miss Flora que entrou no gabinete para dar as boas‑noites ao tio, este só teria podido acabar de ler a carta, por volta das dez horas.

  ‑ E o telefonema? ‑ inquiri.

  ‑ Foi Parker quem decerto o fez, talvez antes de ter pensado que a porta estava fechada à chave e a janela aberta. Contudo, encheu‑se de pânico e negou tudo.

  ‑ É possível ‑ concedi, como que persuadido.

  ‑ De qualquer modo, podemos verificar esse telefonema na Central. Precisamos de não pôr o mordomo de sobreaviso, fingindo concentrar as investigações sobre esse misterioso desconhecido.

  Levantou‑se da cadeira e aproximou‑se do cadáver que se achava reclinado na poltrona.

  ‑ Talvez a arma possa fornecer‑nos algum indício‑ observou. ‑ É única no género. Trata‑se de um objecto raro, de colecção.

  Com a máxima cautela, segurou‑a pela lâmina, sem lhe tocar no cabo, e retirou‑a do corpo de Ackroyd, indo, em seguida, colocá‑la sobre um grande vaso de porcelana que ornava a chaminé.

Era uma bela arma de lâmina estreita, pontiaguda, com cabo de metal elegantemente esculpido. Cautelosamente, Davis tocou com o dedo na ponta do punhal e fez uma careta.

  ‑ Que gume! ‑ exclamou. ‑ Até uma criança poderia matar, com ela, um homem, sem grande esforço. É realmente um brinquedo perigoso.

  ‑ E agora, posso examinar o cadáver? ‑ propus.

  ‑ Está ao seu dispor ‑ anuiu Davis.

  Fiz um exame prolongado e minucioso.

  ‑ Então? ‑ interessou‑se Davis, quando terminei as minhas observações.

  ‑ Dispensando a linguagem técnica, direi que o golpe foi vibrado pela mão direita de uma pessoa que estava por detrás dele. A morte deve ter sido instantânea. A expressão do rosto da vítima denuncia surpresa. Pode ter morrido, sem saber quem foi o assassino.

  ‑ Continuo a pensar em Parker ‑ disse Davis.‑ Os criados sabem mover‑se silenciosamente e esse mordomo não faz mais ruído do que um gato a andar. Talvez não venha a ser difícil identificar o assassino. Repare no cabo do punhal.

Examinei a arma com uma expressão de dúvida.

  ‑ Talvez o doutor não consiga vê‑las – declarou Davis ‑, mas eu distingo‑as perfeitamente: as impressões digitais.

Perfeitamente   seria realmente exagero, mas podiam discernir‑se sinais de dedos impressos no cabo da arma. O inspector pegou no vaso de porcelana e convidou‑me a acompanhá‑lo até à sala de bilhar.

  ‑ Quero ver se Mister Raymond nos pode fornecer qualquer informação sobre o punhal ‑ explicou.

  Depois de termos fechado a porta do gabinete, fomos ao encontro de Raymond a quem Davis mostrou a arma.

  ‑ Já tinha visto este punhal, Mister Raymond?‑ inquiriu o inspector.

  ‑ Creio que é a arma que o major Blunt ofereceu a Mister Ackroyd. Trouxe‑a de Marrocos, ou melhor, de Túnis. Julga que o tenham morto com este punhal?

Com um sinal de cabeça, Davis afastou‑se rapidamente, comigo na peugada.

  ‑ Rapaz simpático, não acha? ‑ observou Davis, depois de sairmos. ‑ Tem uma expressão franca e leal.

Concordei espontaneamente. Havia dois anos que Raymond era secretário de Ackroyd e nunca ninguém o vira irritado. Sabia‑o um óptimo empregado.

Na sala, o major Blunt confirmou tratar‑se do punhal tunisino que oferecera a Ackroyd.

  ‑ Reconheci‑o, quando entrei no gabinete ‑ disse Blunt.

  ‑ E não nos disse nada?

  ‑ Não considerei o momento oportuno ‑ respondeu calmamente.

  ‑ Não tem portanto a menor dúvida, não é assim?

Sabe porventura onde se achava habitualmente guardado?

Foi Raymond quem, vindo ter connosco, respondeu.

  ‑ Na mesinha‑vitrina.

  ‑ Como? ‑ exclamei.

  Olharam‑me surpreendidos.

  ‑ A que se deve o seu espanto, doutor? ‑ perguntou Davis, encorajando‑me a falar.

Hesitei, antes de responder:

  ‑ Um facto decerto insignificante. À tarde, quando cá vim jantar, ouvi fechar a tampa dessa mesa‑vitrina.

  ‑ Como pode afirmar que se tratava dessa tampa? ‑ admirou‑se o inspector.

Tive de dar uma longa explicação que Davis escutou muito interessado.

  ‑ Quando olhou para o vidro da mesinha, o punhal ainda lá estava? ‑ inquiriu Davis.

  ‑ É possível que lá estivesse, mas francamente, não fixei esse pormenor. Olhei para o móvel, apenas de relance.

Pouco depois, Davis disse a Parker que queria falar com Mrs. Russell.

Esta começou por declarar que não se lembrava de ter estado perto da mesinha.

  ‑ Fui ver se as flores não estariam murchas e... é verdade: veio‑me agora à ideia de que vi a tampa de vidro aberta e, naturalmente, fechei‑a, mas não liguei importância ao facto.

  ‑ Pode dizer‑me se esta arma estaria nessa vitrina?

A mulher olhou para a arma, tranquilamente, e encolheu os ombros.

  ‑ Não sei, senhor... As pessoas deviam estar a descer, de um momento para o outro, e apressei‑me a olhar pelo serviço.

  ‑ Estranha mulher ‑ observou Davis, quando Mrs. Russell se afastou. ‑ Disse, doutor, que encontrou a mesinha em frente da janela? ‑ perguntou.

  Raymond respondeu por mim:

  ‑ E o seu lugar habitual, inspector, frente à janela da esquerda.

  ‑ E a janela estava aberta?

  Foi a minha vez de responder:

  ‑ Estavam ambas fechadas, tanto a da esquerda como a outra.

  ‑ Bem, por hoje creio näo ser necessário tomar‑lhes mais tempo. Voltarei amanhã com o intendente da polícia. Até lá, ficarei com a chave do gabinete.

Quero que o coronel Melrose encontre as coisas tal como estão. Sei que foi hoje jantar fora e que estará ausente toda a noite.

Pegou no punhal e informou:

  ‑ Tenho de embrulhar isto com todo o cuidado, pois é uma prova capital.

  Notei que Raymond sorrira e segui a direcção do seu olhar.

  Pareceu‑me então que Davis entregava a Parker uma pequena caderneta. O mordomo pegou‑lhe, tornando a devolver‑lha e abanando a cabeça.

  ‑ As suspeitas gravitam em torno de Parker‑ comentou Raymond. ‑ Davis usou o velho truque para caçar‑lhe as impressões digitais. Vamos dar‑lhe as nossas? Tirou dois cartões da algibeira e numerou‑os. Depois entregou‑me um deles, onde firmei os dedos. Foi então ter com Davis e disse‑lhe com um sorriso malicioso:

  ‑ Não se esqueça, inspector, que o número um contém as impressões digitais do doutor Sheppard; o número dois, as minhas. Dar‑lhe‑ei as do major Blunt, amanhã.

Nem o assassínio do seu amigo e chefe pudera deprimir a exuberância do jovem Raymond. Quando voltei para casa, era já bastante tarde e pensei que minha irmã se tivesse deitado. Pelos vistos, ainda a não conheço muito bem.

Estava à minha espera e preparara‑me uma taça de chocolate, bem quente. Limitei‑me a relatar‑lhe os pormenores do crime, sem me referir ao caso de extorsão. Quando me levantei da cadeira com intenção de ir dormir, acrescentei:

  ‑ A polícia suspeita de Parker. Todos os indícios parecem estar contra ele.

  ‑ Parker! ‑ admirou‑se Caroline. ‑ Que disparate! Esse Davis deve ser um perfeito imbecil.

  Depois desta inesperada declaração, fomos para os nossos quartos.

 

A PROFISSÃO DO MEU VIZINHO

Na manhã seguinte fui fazer as minhas consultas com uma pressa deveras condenável, embora não tivesse casos graves a tratar. Quando regressei, achei Caroline na antecâmara à minha espera.

  ‑ Flora está cá em casa ‑ anunciou, num sussurro.

Disfarcei como pude a surpresa que tal visita me causava.

  ‑ Diz que tem pressa em falar‑te – acrescentou minha irmã, nervosamente. ‑ Já ali está há meia hora. Segui‑a até à saleta.

Flora sentara‑se perto da janela, estava vestida de preto e torcia as mãos, tão brancas como o rosto, anormalmente pálido. Contudo falou‑me com firmeza.

  ‑ Venho pedir‑lhe o seu auxílio, doutor.

  ‑ Estou certa de que meu irmão a ajudará ‑ animou Caroline.

  Pressenti que não agradaria muito a Flora a presença de minha irmã, mas resignou‑se.

  ‑ Peço‑lhe, doutor, que me acompanhe à villa dos Lariços.

O convite era realmente estranho e Caroline especificou:

  ‑ A casa daquele estranho homenzinho.

  ‑ Exactamente ‑ confirmou Flora. – Sabem quem é, não é verdade?

  ‑ Julgo tratar‑se de um cabeleireiro reformado‑ declarei arriscando um sorriso.

  ‑ Que está a dizer! ‑ espantou‑se Flora.‑ É Hercule Poirot, o célebre detective particular. Tem feito investigações prodigiosas, como essas que vêm nos livros. Retirou‑se, há um ano, da profissão e veio morar para aqui. Meu tio sabia quem ele era, mas prometera‑lhe guardar sigilo, já que ele pretendia manter‑se tranquilo.

  ‑ Essa é boa! ‑ admirei‑me.

  ‑ Decerto que já ouviu falar dele, doutor?

  ‑ Realmente tive ocasião de ler algumas referências a seu respeito ‑ confessei.

  ‑ Que coisa extraordinária ‑ comentou Caroline, juntando as mãos de entusiasmo, mas parecendo‑me secretamente desiludida, por não o ter descoberto sozinha.

  ‑ E quer falar‑lhe, Miss Ackroyd? ‑ sondei calmamente.

  ‑ Certamente. Quer que investigue o crime‑ atalhou minha irmã, como que espantada com a minha falta de perspicácia.

  ‑ Mas não tem confiança no inspector Davis?‑ perguntei.

  ‑ Decerto que näo tem ‑ tornou Caroline a intervir. ‑ Eu também não teria.

  Disse‑o com tanto calor que pareceria ter sido um tio dela o assassinado.

  ‑ Pensa que esse detective quererá ocupar‑se da investigação? ‑ inquiri. ‑ Näo me disse que ele se retirou da profissão?

  ‑ É por esse motivo que quero persuadi‑lo a ajudar‑me.

  ‑ Acha que procede bem, Miss Flora? ‑ sondei.

‑ Não irá despeitar...

  ‑ No seu lugar ‑ interrompeu Caroline ‑ eu faria o mesmo. Se não quiseres ir, eu própria acompanho a nossa amiga.

  ‑ Preferiria que o doutor Sheppard viesse comigo ‑ respondeu Flora, sem recear melindrar minha irmã. ‑ O doutor é médico e foi a primeira pessoa a descobrir o corpo de meu tio. Poderá fornecer‑lhe todos os pormenores.

  ‑ Sim ‑ admitiu Caroline, contrariada.

Após evidente hesitação aconselhei:

  ‑ Peço‑lhe, Flora, que se deixe guiar pela minha intuição. Não chame esse homem... Acho que não deve imiscuí‑lo nos seus assuntos de família.

  ‑ Sei porque me diz isso ‑ respondeu a moça ‑ mas é justamente por esse motivo que pretendo falar‑lhe. O doutor receia que... Mas eu conheço Rudolph melhor que o senhor.

  ‑ Rudolph? ‑ estranhou Caroline. ‑ Mas que tem ele a ver com o caso?

Nem eu nem Flora lhe prestámos atenção.

  ‑ Rudolph poderá ser leviano – prosseguiu Miss Ackroyd ‑ pode, noutros tempos, ter feito uma

série de tolices, mas nunca chegaria ao ponto de matar fosse quem fosse.

  ‑ Nunca pensei isso a seu respeito ‑ defendi‑me.

  ‑ Nesse caso, porque foi, ontem à noite, aos Três

Javalis, depois de ter descoberto o cadáver de meu tio? ‑ perguntou acusadoramente.

  Não soube que responder, pois pensava que essa minha diligência tivesse passado desapercebida.

  ‑ Como soube? ‑ inquiri.

  ‑ Soube pelos criados que Rudolph se instalara nesse hotel e que o doutor foi lá esta manhã ‑ explicou Flora.

  ‑ Não sabia que ele estava em King's Abbot?

  ‑ Não e até fiquei admirada... Perguntei por ele e responderam‑me que saíra, ontem à noite, por volta das nove horas e que não voltara a aparecer.

  Ao dizê‑lo, fitou‑me desafiadoramente.

  ‑ De resto, não era obrigado a voltar lá ‑ prosseguiu, emocionada. ‑ Pode ter regressado a Londres por qualquer razão que ignoramos.

  ‑ Sem retirar as malas? ‑ estranhei.

  ‑ Deve haver uma explicação para isso – teimou Flora, batendo o pé na alcatifa.

  ‑ E é por isso que pretende falar com Poirot?

Não acha preferível deixar correr os acontecimentos?

Lembre‑se de que a polícia não pensou em Rudolph e está seguindo outra pista.

  ‑ Suspeitam dele ‑ informou Flora. – Ainda hoje chegou o inspector Raglan, de Cranchester, um

homenzinho odioso, inquisidor... Esteve no Três Javalis antes de mim. Estou certa de que suspeita de Rudolph como autor do crime.

  ‑ Davis pensa que foi Parker ‑ informei. ‑ Estranho que a polícia tenha mudado de opinião, de ontem para hoje.

  ‑ Parker! Que disparate! ‑ gargalhou minha irmã.

  Flora levantou‑se, pôs‑me a mão no braço e pediu‑me.

  ‑ Venha comigo, doutor. Vamos falar imediatamente a Mister Poirot. Ele saberá descobrir a verdade.

A ideia desagradava‑me profundamente. Como reagiria Davis àquela intromissão de um detective estrangeiro?

  ‑ Acha que convém, realmente, descobrir a verdade? ‑ inquiri significativamente.

  ‑ Estou certa de que Rudolph está inocente‑ respondeu Flora.

Caroline interveio, desesperada por estar calada tanto tempo:

  ‑ É possível que Rudolph tenha sido um tanto ou quanto perdulário, mas é um bom rapaz e extremamente afável. Nada tem de criminoso.

  Noutras circunstâncias teria objectado a minha irmã que muitos criminosos parecem pessoas encantadoras. Visto que Flora estava decidida, resolvi sair imediatamente com ela, antes que Caroline nos impingisse dogmaticamente outra das suas convicções.

Uma velha, com uma enorme touca bretã, veio abrir‑nos a porta da villa dos Lariços. Introduziu‑nos numa saleta invulgarmente arrumada, como se ninguém a habitasse. Momentos depois, apareceu o meu recente amigo da véspera.

  ‑ Doutor ‑ saudou ele, em francês ‑, Miss Ackroyd

  ‑ Deve ter ouvido falar da tragédia de ontem preambulei.

  ‑ Certamente! Que coisa hornvel. Lamento imenso, Miss Ackroyd ‑ acrescentou, virando‑se com uma vénia para Flora.

  ‑ Miss Ackroyd pretendia que o senhor ‑ comecei.

  ‑ Peço‑lhe que descubra o assassino ‑ interrompeu ela.

  ‑ Mas a polícia já está em campo ‑ observou o homenzinho.

  ‑ Pode errar nas suspeitas ‑ objectou Flora.‑ Suplico‑lhe que nos ajude, Mister Poirot. Se se trata

de uma questão de dinheiro...

O detective levantou os braços para o tecto, repudiando a ideia.

 ‑ Não, miss! Não quero dizer que o dinheiro me cause repugnância. Pelo contrário, dei‑lhe sempre o devido valor. Mas se tiver de encarregar‑me desse caso, teremos de assentar numa condição essencial: irei até ao fundo da questão. Um bom perdigueiro nunca abandona o rasto da presa... E pode dar‑se o caso de Miss Ackroyd vir a arrepender‑se desta sua diligência. Porque não deixa o assunto nas mãos da polícia local?

  ‑ Quero saber a verdade ‑ teimou Flora, fitando‑o determinantemente.

  ‑ Toda a verdade?

  ‑ Seja ela qual for.

  ‑ Nesse caso, estamos de acordo ‑ concedeu Poirot. ‑ Exponha‑me, então, todos os pormenores.

  ‑ Seria preferível que o doutor Sheppard lhos expusesse. Sabe mais do que eu.

  Narrei todos os factos que atrás mencionei, terminando a minha história na altura em que Davis e eu tínhamos deixado a villa Fernly, na noite anterior.

  ‑ E agora ‑ pediu Flora ‑, conte o que sabe acerca de Rudolph.

  Hesitei, mas ela impeliu‑me com um olhar imperioso. Obedeci.

  ‑ Soube que o doutor foi ontem à noite, ao Hotel Três Javalis ‑ disse Poirot. ‑ Quer dizer‑me qual o motivo exacto dessa sua diligência?

  ‑ Pensei que devia avisar o rapaz do que acontecera... Já que só eu e Mister Ackroyd sabíamos que ele se encontrava aí hospedado.

Poirot aprovou, com um lento menear de cabeça.

  ‑ Naturalmente... mas foi esse o único motivo que o levou ao hotel?

  ‑ O único ‑ respondi categoricamente.

  ‑ Não teria sido para assegurar‑se do paradeiro do rapaz?

  ‑ Assegurar‑me?

  ‑ Quero dizer que teria sido para si um alívio assegurar‑se de que o capitão Paton permanecera toda a noite no hotel.

  ‑ Não foi esse o motivo ‑ contrariei.

Poirot sacudiu a cabeça, gravemente.

  ‑ Lamento que o doutor não me dispense a mesma confiança que Miss Ackroyd ‑ observou. – Não importa. O que interessa é averiguar por que razão o capitão Rudolph Paton desapareceu em tão estranhas circunstâncias. Talvez a explicação seja até muito simples...

  ‑ É o que tenho dito ‑ interveio Flora, animosamente.

Poirot não insistiu mais no assunto e propôs que fôssemos até ao posto da polícia local. Preferiu que Flora regressasse a casa e que só eu o acompanhasse.

Encontrámos aí o inspector Davis, com ar preocupado, acompanhado do intendente da polícia do Distrito, coronel Melrose, e de um outro indivíduo que, pela descrição de Flora, identifiquei como sendo o inspector Raglan, de Cranchester.

Como conhecia bem o coronel Melrose, apresentei‑lhe Poirot e anunciei‑lhe a nossa pretensão. O intendente mostrou‑se contrariado e Raglan assumiu um ar sombrio, enquanto Davis parecia deveras satisfeito com o desagrado que a intervenção de Poirot causava aos outros.

  ‑ O caso parece‑me de uma simplicidade elementar ‑ declarou Raglan. ‑ Não vejo necessidade de virem amadores meter o nariz neste assunto. Qualquer imbecil, mesmo ontem à noite, poderia ter visto como estavam as coisas, sendo escusado terem‑se perdido doze horas preciosas.

Lançou um olhar furioso a Davis que o recebeu com perfeita imperturbabilidade.

  ‑ Decerto que a família Ackroyd fará o que entender ‑ disse o coronel Melrose. ‑ Contudo, não permitiremos que se criem obstáculos às investigações policiais. Devo dizer ‑ acrescentou cortesmente ‑, que não ignoro a grande e justificada fama de Mister Poirot.

  ‑ Sim ‑ comentou Raglan acidulamente ‑, mas a verdade é que a polícia oficial não pode andar a fazer propaganda, nos jornais, daquilo que todos consideram ser a sua obrigação.

Foi Poirot quem salvou a situação.

  ‑ Retirei‑me da acção e não tencionava ocupar‑me de novos crimes. De resto, aborreço a publicidade e desde já exijo, caso venha a contribuir de qualquer modo para a solução do mistério, que o meu nome não seja mencionado.

A fisionomia de Raglan desanuviou‑se um pouco.

  ‑ Tenho tido conhecimento de alguns dos seus êxitos, realmente notáveis ‑ apreciou o coronel Melrose.

  ‑ Pratiquei muito ‑ disse Poirot ‑, mas a maioria dos meus êxitos deveu‑se ao concurso da polícia. Nutro a maior admiração pela polícia inglesa. Se Mister Raglan quiser aceitar a minha colaboração, ficarei verdadeiramente honrado...

A expressão do inspector melhorou sensivelmente.

Entretanto, Melrose chamara‑me de parte e confidenciou‑me:

  ‑ Ouvi dizer que este homenzinho tem operado verdadeiros milagres. Não queremos recorrer à polícia central de Londres. Raglan entende não precisar da Scotland Yard para nada e está cheio de autoconfiança. Eu já não sinto o mesmo. Conheço melhor do que ele os elementos deste jogo. Se este sujeito belga está disposto a auxiliar‑nos, discretamente, não vejo o menor inconveniente. Que lhe parece?

  ‑ Só contribuirá para maior glória do inspector Raglan ‑ sentenciei solenemente.

  ‑ Bem, bem ‑ disse o coronel, já de bom humor.

Levantando a voz prosseguiu: ‑ Temos, pois, de expor‑lhe, Mister Poirot, os resultados das últimas investigações.

  ‑ Obrigado ‑ agradeceu o detective. ‑ O meu amigo doutor Sheppard disse‑me que as suspeitas incidiam sobre o mordomo Parker.

  ‑ Suposição absurda ‑ criticou vivamente Raglan. ‑ Esses criados de categoria são facilmente impressionáveis e tornam‑se suspeitos pela sua atitude...

  ‑ E quanto às impressões digitais? ‑ insinuei.

  ‑ Nada têm a ver com Parker ‑ declarou Raglan.‑ Nem com ele nem com Mister Raymond.

  ‑ E com as do capitão Rudolph Paton? ‑ interessou‑se Poirot.

  Senti uma secreta admiração pela maneira como o detective belga agarrava o toiro pelos cornos. Na expressão do inspector notei também um clarão de respeito.

  ‑ Vejo que será agradável trabalhar consigo, Mister Poirot ‑ disse Raglan. ‑ É um verdadeiro profissional. Logo que possível, verificaremos as impressões digitais de Rudolph.

  ‑ Está enganado ‑ advertiu o coronel Melrose. ‑ Conheço Rudolph Paton desde criança e sei que jamais cometeria um crime dessa natureza.

O inspector encolheu os ombros com indiferença e limitou‑se a dizer:

  ‑ É possível.

  ‑ Que indícios têm contra ele? ‑ sondei.

  ‑ Saiu ontem à noite, precisamente antes das nove horas. Foi visto nas proximidades da villa Fernly, meia hora mais tarde e depois disso ninguém mais soube dele. É admissível que se encontre, uma vez mais, em dificuldades fmanceiras. Tenho em meu poder um par de sapatos que lhe pertencem. Têm saltos de borracha. Possuía dois pares, quase idênticos, pelo que vou verificar se as pegadas detectadas lhes correspondem. Temos um agente a guardá‑las.

  ‑ Vamos ver isso ‑ decidiu o coronel. ‑ O doutor e Mister Poirot desejam acompanhar‑nos?

Aceitámos e partimos no carro do intendente. A meio da estrada que conduzia à villa Fernly, havia um caminho do lado direito que, passando sob a janela do gabinete de Ackroyd, ladeava todo o terraço.

Melrose inquiriu:

  ‑ Mister Poirot deseja acompanhar o inspector, ou prefere ir já examinar o gabinete?

O belga escolheu a segunda proposta. Parker veio abrir‑nos a porta, irrepreensível e atencioso, parecendo ter‑se completamente refeito do pânico que evidenciara na noite anterior.

  O coronel tirou do bolso uma chave, abriu a porta do gabinete e afastou‑se para que entrássemos.

  ‑ Salvo a remoção do cadáver ‑ anunciou ‑, este aposento encontra‑se nas mesmas condições em que o encontrámos, ontem à tarde.

  ‑ E onde se achava o cadáver? ‑ inquiriu Poirot.

  Descrevi‑lhe a posição do corpo. Diante do fogão via‑se ainda a poltrona onde Ackroyd se sentara.

Poirot dirigiu‑se para ela e sentou‑se no mesmo lugar. Virou‑se para mim e perguntou:

  ‑ Essa carta azul de que me falou..., onde se achava, quando o doutor saiu?

  ‑ Mister Ackroyd colocara‑a nessa mesinha, à sua direita.

  ‑ Tudo o mais está no seu lugar?

  ‑ Creio que sim.

  Poirot levantou‑se e pediu ao coronel:

  ‑ Desculpe incomodá‑lo, mas poderia sentar‑se nesta poltrona? E o doutor quer ter a bondade de indicar‑me a posição exacta do punhal?

Melrose e eu obedecemos amavelmente, enquanto o detective foi postar‑se à entrada da porta.

  ‑ Portanto ‑ prosseguiu Poirot ‑, o cabo da arma estava bem visível e tanto o senhor como o mordomo puderam vê‑lo, mal entraram, não é verdade?

  ‑ Sim ‑ confirmei.

  O belga encostou‑se à janela, examinando‑a. Sem se voltar para nós, inquiriu:

  ‑ Quando descobriu o cadáver a luz estava acesa?

Respondi afirmativamente e aproximei‑me do peitoril que ele examinava.

  ‑ Os saltos de borracha são do mesmo tipo dos que guarnecem os sapatos do capitão Rudolph ‑ observou tranquilamente.

  Em seguida, Poirot foi postar‑se no centro do gabinete, olhou em torno e perguntou‑me:

  ‑ Possui dotes de observação, doutor Sheppard?

  ‑ Creio que sim ‑ respondi surpreso.

  ‑ Disse‑me que o fogão da sala estivera aceso?

E quando forçaram a porta e encontraram o corpo de Mister Ackroyd, acharam‑no ainda aceso?

  ‑ Para falar francamente, não dei por isso. Talvez o major Blunt, ou o secretário, Mister Raymond, possam responder‑lhe mais positivamente.

  ‑ É necessário proceder sempre com método. Cometi um erro ao fazer‑lhe esta pergunta. Decerto que acerca do paciente nada lhe teria escapado, quanto aos mais minuciosos pormenores. Se pretendesse informações sobre as cartas ou documentos que estavam sobre a mesa deveria dirigir‑me a Mister Raymond. Para obter indicações exactas sobre o fogão devo falar com quem está dele encarregado.

Fitou o mordomo e perguntou:

  ‑ Ontem à noite, Parker, quando você e o doutor forçaram a porta, o fogão estava aceso?

  ‑ Sim, senhor, mas não muito vivo. Estava quase apagado.

  ‑ Eh! ‑ exclamou o detective, com um ar de triunfo. ‑ E quanto ao cortinado, Parker, estava como agora?

  ‑ Não, senhor. Estava em baixo e a luz acesa.

Poirot fez um sinal de assentimento.

  ‑ Nada mais, senhor?

  ‑ Diga‑me, Parker: a poltrona estava exactamente neste lugar? Coloque‑a como a achou, por favor.

O mordomo afastou a poltrona, cerca de sessenta centímetros, da parede, virando‑a um pouco mais para a porta.

  ‑ É estranho ‑ murmurou Poirot. – Ninguém estaria disposto a sentar‑se nesta posição. Sabe quem a repôs no seu lugar habitual, Parker?

  ‑ Não sei, senhor. Fiquei muito perturbado ao ver o patrão naquela situação e não voltei a mexer fosse no que fosse.

  ‑ Foi o doutor? ‑ inquiriu o belga, voltando‑se para mim.

Abanei a cabeça.

  ‑ Mas quando entrei aqui, com a polícia ‑ elucidou o mordomo ‑, a poltrona já se achava onde está agora..., na sua posição habitual.

  ‑ Verdadeiramente estranho ‑ repetiu Poirot.

  ‑ Talvez tenha sido Raymond..., ou Blunt ‑ sugeri ‑, que a tenham arrumado no devido lugar. Mas não creio que isso tenha importância.

  ‑ É por parecer insignificante que o facto me despertou interesse. Se um dia o doutor se ocupar de outro caso desta natureza, verá como há factos aparentemente irrisórios que se tornam importantes.

Entretanto, o coronel Melrose afastara‑se com Parker para a sala contígua. O belga continuava a dissertar: ...e verá que todas as pessoas ligadas à vítima terão qualquer coisa a ocultar, em relação a esta.

  ‑ Eu também? ‑ perguntei, sorrindo.

  Calmamente, Poirot respondeu:

  ‑ Creio que sim, doutor. É uma regra.

  ‑ Mas... ‑ ia eu protestar.

  ‑ Disse‑me tudo a respeito do capitão Paton?

  Sorriu, enquanto eu corava. Para dissimular a minha confusão, pedi‑lhe:

  ‑ Gostava que me explicasse os seus métodos de investigação. Por exemplo, as suas perguntas a respeito do lume do fogão de sala...

  ‑ Nada mais simples. Deixou Mister Ackroyd às nove menos dez, não é verdade?

  ‑ Precisamente ‑ confirmei.

  ‑ A essa hora, a janela estava fechada, enquanto a porta ficara aberta. Porém, às dez e um quarto, quando descobriram o cadáver, a situação era inversa: a porta estava fechada e a janela aberta. Quem poderia tê‑la aberto? A resposta é só uma: Mister Ackroyd... e por duas razões. Ou porque a sala se tornara excessivamente quente e abafada, ou porque consentiu que alguém entrasse pela janela. Ora, se ontem o fogo estava quase extinto, num dia de baixa temperatura, podemos excluir a primeira hipótese. Quanto à segunda, se Mister Ackroyd deixou entrar alguém por essa via, devia ser pessoa da sua intimidade, tanto mais que na mesma noite se mostrara preocupado com a possibilidade de a janela estar aberta.

  ‑ Parece lógico ‑ comentei.

  ‑ Tudo é lógico, quando se dispõem os factos com o devido método. Temos portanto de identificar quem se encontrou com Mister Ackroyd, às nove e meia de ontem, embora a última pessoa a vê‑lo com vida tenha sido Miss Flora. E possível que, após a partida do visitante desconhecido, a janela tenha ficado aberta. Pode até ser possível que a mesma pessoa tenha entrado uma segunda vez... Ah! Aí vem o coronel Melrose.

Este entrou no gabinete denunciando viva excitação.

  ‑ Conseguimos, finalmente, identificar o telefonema ‑ informou. ‑ Foi transmitido, às dez e um quarto da noite de ontem, da estação de King's Abbot... E, às 10 e 23, partiu o comboio directo para Liverpool.

 

O INSPECTOR RAGLAN SABE O QUE FAZ

  ‑ Vai ordenar uma investigação na estação? ‑ perguntei.

  ‑ Decerto, mas não tenho grandes esperanças nos resultados. Bem sabe como é a estação de King's Abbot...

Sendo apenas uma simples vila, é também um entroncamento ferroviário, onde a maioria dos comboios directos têm de parar e onde há constantes mudanças de linhas e alteração de composições. Possui três cabinas telefónicas públicas e, àquela hora da noite, chegam quatro comboios, para ligação ao rápido do Norte. Entre as 10 e as 11 horas a confusão é enorme e quase impossível fixar quem utiliza o telefone ou parte no rápido.

  ‑ Não compreendo o motivo desse telefonema‑ observou Melrose. ‑ Parece não fazer sentido.

  Poirot que examinava uma porcelana respondeu sem se voltar:

  ‑ Deve existir uma razão poderosa.

  ‑ Mas qual?

  ‑ Quando soubermos isso ‑ respondeu novamente o detective ‑, saberemos tudo.

Dirigiu‑se à janela e olhou para o exterior. Depois, perguntou‑me:

  ‑ Disse serem nove horas, quando encontrou o tal desconhecido?

Sim ‑ confirmei. ‑ Ouvi‑as soar no relógio da torre.

  ‑ Quanto tempo precisaria ele para chegar até aqui..., a esta janela, por exemplo?

  ‑ Cinco minutos, o máximo ‑ calculei.

  ‑ Mas precisaria de conhecer o local, não?

  ‑ Certamente. Teria de voltar à esquerda e meter pelo atalho ‑ confirmei.

  ‑ Portanto, para pôr‑se aqui em cinco minutos, teria de já cá ter estado anteriormente.

  ‑ Não há dúvida ‑ disse o coronel Melrose.

  ‑ Haverá maneira de sabermos se Mister Ackroyd recebeu algum forasteiro na semana passada?

  ‑ Talvez Raymond o saiba ‑ sugeri.

  ‑ Ou Parker ‑ acrescentou Melrose.

  ‑ Ou ambos ‑ concluiu Poirot, sorrindo.

  O coronel foi à procura de Raymond e eu toquei a campainha para chamar Parker.

  Raymond mostrou‑se encantado por conhecer o detective belga.

  ‑ Não sabia que viera viver junto de nós. Será para mim deveras excitante vê‑lo trabalhar.

  Poirot empurrava a poltrona para o lugar indicado por Parker e Raymond inquiriu:

  ‑ Quer que me sente aí?

  ‑ Ontem à noite, Mister Raymond, alguém empurrou esta poltrona, tal como viu, e foi nessa posição que se encontrou o cadáver de Mister Ackroyd. Foi o senhor, por acaso? ‑ perguntou Poirot.

  ‑ Nem sequer me lembro de a ter visto nessa posição.

  ‑ Não tem importância. Já agora, diga‑me: sabese, na semana passada, veio algum forasteiro visitar Mister Ackroyd?

  O secretário franziu a testa e retorquiu:

  ‑ Não faço a menor ideia. Talvez Parker.

Este entrava nesse momento e sendo identicamente interrogado, declarou:

  ‑ Sim. Veio um rapaz na quarta‑feira, da firma Curtis & Troute.

  ‑ Esse é o empregado dos ditafones ‑ interrompeu Raymond. ‑ Não é decerto o indivíduo que Mister Poirot procura. Mister Ackroyd pretendia adquirir um desses aparelhos que facilitam muito o serviço.

Virando‑se para Parker o detective sondou:

  ‑ Como era esse rapaz?

  ‑ Loiro e de baixa estatura, mas vestia elegantemente, para a sua posição. Lembro‑me, senhor, que trazia uma camisa azul.

  Voltando‑se agora para mim, Poirot perguntou:

  ‑ O desconhecido que viu, doutor, era alto, não é verdade?

  ‑ Sim. Cerca de um metro e oitenta.

  ‑ Obrigado, Parker ‑ disse o belga. ‑ Nada feito!

  O mordomo dirigiu‑se então a Raymond para anunciar‑lhe:

  ‑ Mister Hammond acaba de chegar.

  ‑ Vou imediatamente ‑ disse o secretário.

Quando saiu, Poirot interrogou Melrose com os olhos.

  ‑ Hammond é o advogado da família ‑ esclareceu este. ‑ Ackroyd considerava‑o muito eficiente.

  ‑ E Raymond?

  ‑ Um excelente secretário e moço encantador.

  ‑ Pratica desportos?

  ‑ Golfe e, no Verão, ténis. Porquê? – estranhou Melrose.

  ‑ Apreciará corridas de cavalos?

  ‑ Não creio que se interesse por isso, se é que pensa no jogo de apostas.

Poirot passou os olhos em torno, pela sala e ouvi‑me murmurar:

  ‑ Se estas paredes falassem...

  ‑ Não lhes bastava ter boca ‑ respondeu Poirot.‑ Precisariam também de olhos e ouvidos. Mas às vezes, os objectos prestam‑nos preciosas indicações.

  ‑ Algum deles lhe comunicou hoje alguma coisa?‑ motejei.

  Piscou‑me um olho e respondeu:

  ‑ Uma janela aberta, uma porta fechada, uma poltrona que se moveu sozinha, podem vir a dizer muita coisa.

Pensei que a sua famosa reputação poderia resultar apenas de um factor sorte repetido e creio que o coronel Melrose pensava o mesmo.

  ‑ Deseja ver mais alguma coisa? ‑ perguntou este.

  ‑ Essa mesinha onde se guardava o punhal. Depois disso não o incomodarei mais, coronel.

  Dirigimo‑nos à saleta. Mostrei a mesa de tampo de vidro e levantei e baixei este duas vezes. Depois, fomos para o terraço.

  O inspector Raglan apareceu nesse momento, caminhando na nossa direcção. A sua expressão, sempre severa, demonstrava agora certa satisfação.

  ‑ Descobrimos, Mister Poirot ‑ anunciou.‑ O caso não tinha a menor importância, mas não fiquei satisfeito, já que se trata de um rapaz que todos sempre julgámos excelente, mas que se deixou transviar.

Notei que a bazófia de Poirot se diluía no ar.

  ‑ Nesse caso, já não poderei ser‑vos útil ‑ lamentou.

  ‑ Fica para outra vez ‑ retorquiu Raglan consolado ‑, embora por aqui não haja crimes todos os dias.

Poirot evidenciou grande admiração elogiando:

  ‑ O senhor foi de uma rapidez maravilhosa. Posso perguntar‑lhe como o conseguiu?

  ‑ Certamente. Com método e é tudo!

  ‑ É o que sempre digo: método e matéria cinzenta.

  ‑ Que é isso de matéria cinzenta?

  ‑ A das celulazinhas cerebrais ‑ esclareceu Poirot.

  ‑ Ah, pois! Também por cá sabemos servir‑nos disso.

  ‑ Sem falarmos da psicologia do crime, não é verdade?

  ‑ Vejo que o senhor também sofreu toda essa influência da psicanálise. São uma data de teorias idiotas que só complicam o sistema. Eu sou um homem simples e não preciso dessas tretas para nada. Vou dizer‑lhe como procedi: Mister Ackroyd foi visto vivo, pela última vez, por sua sobrinha, Miss Flora, às dez menos um quarto. Para já, circunstância número um, não é verdade?

  ‑ Exactamente ‑ confirmei.

  ‑ E segundo o doutor Sheppard, aqui presente, a morte de Mister Ackroyd verificara‑se meia hora antes, não é assim?

  ‑ Aproximadamente.

  ‑ É a circunstância número dois. Isso significa que o crime foi praticado num quarto de hora. Fiz um elenco de todas as pessoas que estavam em casa, verificando o que faziam, desde as nove e quarenta e cinco, às dez horas de ontem à noite. Como vê, muito simples.

Entregou a Poirot uma folha de papel que li por cima do seu ombro. Dizia:

__ Major Blunt ‑ Na sala de bilhar, com Mr. Raymond   (este confirma); Mr. Raymond ‑ Sala de bilhar (confirmado pelo major Blunt); Mrs. Ackroyd ‑ Às 9 e 45, assiste à partida de bilhar;   às 9 e 55, vai para a cama (Raymond e Blunt viram‑na subir); Miss Ackroyd ‑ Subiu do escritório do tio, directamente para o seu quarto (confirmado por Parker e pela criada Elsa Dale); Pessoal de serviço: Parker ‑ Foi directamente para a despensa (confirmado pela governanta, Mrs. Russell, que desceu para falar‑lhe às 9 e 47 e permaneceu junto dele cerca de 10 minutos); Mrs. Russell ‑ (Vide indicaçäo supra ‑ falou com a criada Elsa Dale, às 9 e 45); Elsa Dale ‑ Achava‑se no andar superior, onde foi vista por Mrs. Russell e por Miss Flora Ackroyd; Ursula Bourne (criada) ‑ Permaneceu no quarto até às 9 e 45, após o que se dirigiu para as dependências de serviço; Emma Cooper (cozinheira) ‑ Esteve sempre nas dependências de serviço; Mary Tripp (criada) ‑ Idem; Nota: A cozinheira está na villa há seis anos; a primeira criada, há 18 meses; Parker, há pouco mais de um ano. Os outros estão há pouco tempo. Excepto Parker, que demonstra um comportamento um pouco ambiguo, todos os restantes parecem pessoas de bem.

  ‑ É um elenco completíssimo ‑ apreciou Poirot, devolvendo o papel. ‑ Estou plenamente convencido de que não foi Parker quem cometeu o crime.

  ‑ Minha irmã também é dessa opinião ‑ intervim ‑, e geralmente acerta.

Ninguém fez caso do que eu disse.

  ‑ Agora um ponto importante. A porteira, Mary Black, ontem à noite, quando baixava os cortinados das janelas viu Rudolph atravessar o portão e dirigir‑se para a villa.

  ‑ Ela está certa disso? ‑ perguntei com excessiva exaltação.

  ‑ Absoluta. Conhece‑o bem. Viu‑o passar diante da portaria, com muita pressa, e tomar o caminho da esquerda de acesso ao terraço.

  ‑ Que horas eram? ‑ interessou‑se Poirot.

  ‑ Nove e vinte cinco, exactamente – respondeu o inspector.

  Após alguns segundos de silêncio meditativo, Raglan prosseguiu:

  ‑ Agora tudo é claro, visto que todas as circunstâncias se combinam. Às nove e quinze, o capitão Rudolph Paton é visto passar diante da portaria; às nove e trinta, aproximadamente, Mister Raymond ouve alguém, no escritório, pedir dinheiro a Mister Ackroyd que lho nega. Que aconteceu depois disso? Pois bem, o capitão sai por onde entrara, ou seja, pela janela. Passeia um pouco desiludido pelo terraço e aborda a janela aberta da sala. São cerca das nove horas e três quartos. Miss Flora está a desejar boas‑noites ao tio. O major Blunt, Mister Raymond e Mistress Ackroyd encontram‑se na sala de bilhar. A sala está portanto vazia. Paton entra pela janela, apodera‑se do punhal que está na mesinha da sala e volta ao escritório. Comete o crime. Depois, trepa o peitoril... e... é inútil insistir nos pormenores. A seguir sai e foge. Não tem coragem de regressar ao hotel. Vai para a estação e telefona...

  ‑ Porquê? ‑ interrogou Poirot.

  Colhido de surpresa, Raglan emudeceu. Por fim arriscou:

  ‑ Bem, é difícil de explicar o motivo por que o fez, mas os assassinos cometem, por vezes, actos inexplicáveis. Os mais espertos de entre eles têm caído em erros verdadeiramente pueris. Mas... se me acompanharem, mostrar‑vos‑ei as marcas dos sapatos de Paton. Seguimo‑lo, dobrando a esquina do terraço, até à janela do gabinete. A uma ordem de Raglan, um agente da polícia entregou os sapatos que tinham sido encontrados no hotel e o inspector colocou‑os sobre as pegadas.

  ‑ São precisamente estes ‑ declarou com certa arrogância. ‑ Pelo menos, isto é um par de sapatos idêntico ao que deixou estas marcas no peitoril, embora esteja um pouco mais usado, como se vê pelos saltos de borracha já gastos.

  ‑ Mas há muita gente que usa esses saltos de borracha ‑ observou Poirot.

  ‑ Certamente ‑ respondeu Raglan ‑ e eu próprio não daria grande importância às pegadas, se não

houvesse outros indícios.

  ‑ Deve ser um rapaz muito ingénuo – comentou Poirot ‑, para deixar tantos rastos da sua passagem.

  ‑ Sim, realmente ‑ concordou de mau modo o inspector. ‑ A noite estava seca e serena, mas um pouco além, junto da estrada, deve ter brotado água de qualquer lado, visto que a terra se encontra mole. Ora, justamente nesse ponto, vêem‑se marcas de sapatos com saltos de borracha.

Fomos até ao local.

  ‑ Notou que também há marcas de sapatos de mulher? ‑ inquiriu o detective belga.

Raglan riu, um pouco contrafeito.

  ‑ E natural ‑ concedeu. ‑ Passa por aqui muita gente: homens e mulheres. Este atalho conduz à vila e é impossível identificarmos todas as marcas de sapatos. As que realmente nos interessam são as que detectámos sobre o peitoril da janela do gabinete.

Poirot aprovou com um sinal de cabeça, enquanto os seus olhos se detinham num pequeno pavilhão rústico, ou quiosque, como lhe chamavam, que se achava à esquerda do atalho. Dava‑lhe acesso um pequeno trilho muito estreito.

Depois de Raglan ter regressado a casa, Poirot olhou para mim e disse:

  ‑ O doutor foi um enviado do Céu para substituir o meu amigo Hastings!

Piscou‑me um olho e continuou:

  ‑ Quer vir comigo investigar aquela espécie de quiosque?

  Fomos até lá e abri a porta. A luz, no interior, era insuficiente. Viam‑se um par de assentos rústicos, um jogo de croquet e várias cadeiras de viagem, dobradas. Admirei‑me de ver o meu novo amigo pôr‑se de gatas e apalpar o chão com as mãos. Por fim, tornou a erguer‑se manifestando um certo desagrado.

  ‑ Nada ‑ confessou. ‑ Mas podia ter sido muito importante...

  ‑ O quê? ‑ interessei‑me.

  Abriu a mão e mostrou‑me um pedaço de tecido engomado.

  Peguei‑lhe, examinei‑o e devolvi‑lho.

  ‑ Q ue me diz a isso? ‑ desafiou.

  ‑ E um pedaço de cambraia, arrancado a um lenço.

Realmente aquilo parecia não ter a menor importância. Encolhi os ombros. Subitamente, com outro movimento rápido, Poirot apanhou do chão o tubo de uma pena de pato.

  ‑ E isto? ‑ perguntou, com ar triunfante.‑ Que me diz a isto? Limitei‑me a observá‑lo, admirado.

Guardou o tubinho no bolso e começou a examinar o pedaço de cambraia.

  ‑ Será realmente de um lenço? ‑ murmurou, pensativo.

  ‑ Assim parece ‑ concordei.

  ‑ Mas não se esqueça de que,   numa boa lavanderia, não se engomam lenços.

Com uma atitude quase triunfal, entalou o pedaço de tecido entre as páginas da sua agenda.

 

O LAGO DOS PEIXES DOURADOS

Voltámos juntos para a villa onde ninguém sabia do paradeiro do inspector. Poirot parou no terraço, de costas voltadas para o edifício e abanou a cabeça.

  ‑ É uma bela propriedade. Quem será o herdeiro?

As suas palavras fizeram‑me estremecer. Até àquele momento, a questão da herança não me viera à ideia.

  ‑ Ainda não tinha pensado nisso, não é verdade?‑ sondou o detective.

  ‑ Não ‑ admiti ‑, e sinto‑me tolo por esse meu alheamento.

  ‑ Quem sabe a causa desse seu alheamento!‑

disse Poirot. ‑ Que outra preocupação mais forte o impediu de considerar o mais natural motivo para um crime? Mas o senhor não mo diria.

  ‑ Cada qual tem sempre qualquer coisa a ocultar‑ sentenciei.

  ‑ Precisamente ‑ respondeu ‑, mas não é fácil esconder segredos a Hercule Poirot. Sou bastante esperto para descobri‑los. Dizendo isto, desceu para o jardim.

  ‑ Vamos passear um pouco ‑ convidou. – Está um dia encantador.

  Segui‑o. Conduziu‑me por um caminho ladeado de teixos‑anões. Por ele se chegava a uma vereda que conduzia ao centro do jardim. As margens estavam decoradas por flores bem cuidadas e terminava num recesso circular com bancos, em torno de um pequeno lago onde nadavam peixes doirados.

Em vez de seguir até ao fim, Poirot enveredou por outro caminho que serpenteava pelo declive de um bosque.

Desembocámos numa clareira onde se achava um banco rústico. Podíamos apreciar dali um belo panorama, vendo‑se claramente o lagozinho de peixes.

Foi nesse momento que vi Flora. Vinha pelo caminho que tínhamos acabado de percorrer. Cantarolava. Dir‑se‑ia que dançava e, apesar do vestido negro, emanava alegria de toda a sua atitude. De repente deu uma pirueta, fazendo revoar a saia em torno das ancas perfeitas. Lançou a cabeça para trás e soltou uma risada.

Nesse instante, saiu um homem de entre as árvores. Era Hector Blunt. A jovem estremeceu e a sua expressão transformou‑se imediatamente.

  ‑ Assustou‑me. Não o tinha visto.

  O major, sem responder, ficou‑se a contemplá‑la com evidente agrado.

Em tom mordaz, Flora criticou:

  ‑ O que me atrai em si, é a vivacidade da sua conversa! Não é muito loquaz, pois não?

  Creio que Blunt corou sob a epiderme bronzeada pelo sol dos trópicos. Quando começou a falar, vibrava‑lhe na voz uma estranha humildade.

  ‑ A loquacidade nunca foi o meu forte. Nem mesmo quando era jovem e um pouco irresponsável.

  ‑ O que já deve ter sido há bastante tempo ‑ observou Flora maliciosamente.

  ‑ Com efeito ‑ respondeu ele, simplesmente.

  ‑ Já agora, diga‑me, major, como se sente uma pessoa, quanto atinge a idade de Matusalém?

  Desta vez o gracejo era contundente, mas o militar não reagiu, preferindo perguntar:

  ‑ Lembra‑se daquele indivíduo que vendeu a alma ao Diabo para que este o rejuvenescesse?

  ‑ Refere‑se a Fausto, das óperas?

  ‑ Sim, o Fausto, de Goethe. Sei de uma pessoa que gostaria de firmar um pacto semelhante.

  ‑ Ouvindo‑o falar tão seriamente, quase me sinto assustada, major!

  Blunt não retorquiu. Desviou o olhar para o arvoredo e acabou por observar:

  ‑ Creio que já é tempo de voltar para África.

  ‑ Para novas caçadas?

  ‑ Talvez.

  ‑ Foi o senhor quem matou o animal cuja cabeça

ornamenta o nosso vesti'bulo?

  Fez um sinal afirmativo. Depois, corando, balbuciou:

  ‑ Gostaria de ter uma pele, Miss Flora? Terei muito gosto em mandar‑lha.

  ‑ Oh, sim! Muito! Não se esqueça.

  ‑ Pode estar descansada que não me esquecerei de si. Mas já é tempo de voltar à floresta. Não nasci para este género de vida palaciana. Sou demasiado rude para uma sociedade sofisticada e esqueço o que é conveniente dizer‑se, em dadas circunstâncias.

  ‑ Mas não vai partir já, pois não? ‑ disse Flora, um pouco desiludida. ‑ Pelo menos não nos deixará, enquanto estivermos a braços com este infeliz problema.

  ‑ Quer que fique? ‑ sondou o major.

  ‑ Todos gostamos de tê‑lo entre nós...

  ‑ Pergunto‑lhe a si, pessoalmente.

Flora deu um passo para ele e fitou‑o de frente, bem nos olhos.

  ‑ Peço‑lhe que fique..., se isso não afecta as suas decisões.

  ‑ Pelo contrário. Dá‑me profunda satisfação e pode ser de máxima importância no curso da minha vida.

Após um momento de silêncio, sentaram‑se num banco, junto do lago. Parecia que nenhum deles sabia, agora, como reencetar a conversação.

  ‑ Está um dia lindo ‑ comentou Flora, para quebrar o mutismo embaraçoso. ‑ Não posso deixar de sentir‑me satisfeita, apesar de tudo o que aconteceu.

É estranho, quase inconveniente, este sentimento, não acha?

  ‑ Acho‑o perfeitamente natural ‑ apoiou o major. ‑ Miss Flora apenas conhecia o seu tio, há dois

anos. Nunca o vira antes, não é verdade? Não se pode exigir‑lhe que se aflija muito por uma pessoa com quem nunca se mantiveram laços de grande intimidade. A sinceridade é bem melhor do que a hipocrisia.

  ‑ Há em si qualquer coisa que consola e cativa, major. Consegue fazer‑nos sentir que tudo quanto nos rodeia é simples e seguro!

  ‑ Na maioria dos casos, as coisas são realmente simples. As pessoas é que as imaginam complicadas.

  ‑ Nem sempre ‑ objectou a jovem.

  Flora disse então algumas frases em surdina que näo pudemos detectar, enquanto o major fitava a copa das árvores, parecendo embrenhado numa das suas digressões imaginativas pelos sertões. Contudo, naquele momento, vivia bem a realidade, visto que respondeu:

  ‑ Vamos lá, Miss Flora, não se aflija. O caso do seu noivo não está ainda perdido. Esse inspector é burro. É absurdo que Rudolph tenha praticado aquele crime. Foi certamente alguém que entrou pela janela..., um criminoso comum... E a única solução possível.

  ‑ E o senhor acredita realmente nisso?

  ‑ Miss Flora também não acredita?

  ‑ Eu... sim, naturalmente. Vou confessar‑lhe porque me sinto satisfeita, esta manhã. O notário, Mister Hammond, esteve esta tarde na villa para falar‑nos do testamento. O tio Roger deixou‑me vinte mil libras.

Blunt olhou‑a surpreendido.

  ‑ E isso significa realmente muito para si?

  ‑ Sim: significa liberdade, vida. Não precisarei mais de torturar o cérebro..., contar cada centavo, no fundo da minha magra bolsa... não terei mais de fingir que estou grata por uma felicidade que não tinha.

  ‑ Miss Flora fingia?

A jovem hesitou. Depois decidiu confessar:

  ‑ Sim. Fingi‑me reconhecida e alegre com as migalhas que os meus parentes me lançavam... vaidosa de ostentar os vestidos usados e os chapéus fora de moda de minha tia.

  ‑ Pouco entendo de modas, Miss Flora ‑ comentou o major Blunt ‑, mas pareceu‑me sempre a mais bela, a mais elegante...

  ‑ Os seus olhos não são os da sociedade que nosrodeia; são de amigo. Os desta sociedade eram de carcereiro... e agora estou livre para fazer o que quiser. Livre para não ter que aceitar... ‑ ... um casamento indesejado? – inquiriu Blunt.

Flora não respondeu, levando a mão à boca. O major levantou‑se e inclinou‑se sobre o lago. Subitamente, introduziu a ponta da bengala na água.

  ‑ Que está a fazer ‑ interessou‑se Flora, recompondo‑se da emoção.

  ‑ Vi uma coisa a brilhar lá no fundo. Pareceu‑me um alfinete de ouro.

  ‑ Talvez a coroa que Melisenda viu no fundo das águas.

  ‑ Melisenda?... ‑ repetiu o major, em surdina. ‑ Ah, já sei: refere‑se à da ópera?

Flora sorriu e ele correspondeu, mas com certa amargura.

  ‑ A jovem Melisenda que casou com um homem que poderia ser seu pai! ‑ terminou ele.

  ‑ E foram muito felizes..., como nas histórias infantis.

Blunt fitou‑a gravemente e inquiriu:

  ‑ Posso ser‑lhe útil, Miss Ackroyd?... Quero dizer, posso fazer algo em favor de Paton? Imagino como deve estar inquieta.

  ‑ Obrigada, major ‑ respondeu Flora, friamente. ‑ Rudolph nada tem a recear. Sei que está inocente e entreguei‑me nas mãos do mais hábil detective do Mundo. Estou certa de que Mister Poirot descobrirá a verdade.

Bastar‑nos‑ia termos levantado a cabeça, Poirot e eu, para que os dialogantes nos tivessem visto. Pessoalmente não o fiz, porque o meu amigo belga mo impedira, em nome dessa mesma verdade que intentava descobrir. Obrigou‑me a uma imobilidade, incómoda por indiscreta, e eis que foi ele próprio quem subitamente se ergueu, levantando um braço.

  ‑ Peço que me desculpem ‑ declarou ‑, mas não posso permitir que me façam elogios, dessa maneira exagerados, à minha pessoa. É uso dizer‑se que quem escuta, às escondidas, nunca ouve falar bem de si  . Contudo, desta vez, o ditado falhou. Vou descer e apresentar‑vos as minhas desculpas.

Apressei‑me a acompanhá‑lo e alcançámos o par, junto do pequeno lago.

  ‑ Mister Hercule Poirot ‑ apresentou Flora. ‑ O major Hector Blunt. Decerto já ouviu falar dele.

O detective inclinou‑se, numa vénia.

  ‑ Conheço o major Blunt de fama – respondeu Poirot, cortesmente. ‑ Sinto‑me honrado por falar‑lhe pessoalmente e particularmente satisfeito por ter oportunidade de solicitar‑lhe algumas informações.

Blunt fitou‑o com uma expressão reservada e ao mesmo tempo interrogativa.

  ‑ Quando viu, pela última vez, Mister Ackroyd com vida?

  ‑ Ao jantar.

  ‑ Depois disso, não voltou a vê‑lo?

  ‑ Não o vi, mas ouvi‑lhe a voz.

  ‑ Como aconteceu isso?

  ‑ Enquanto passeava no terraço, sob a janela do gabinete.

  ‑ Desculpe‑me a quase impertinência das minhas perguntas, mas... a que horas ainda o ouviu falar?

  ‑ Cerca das nove e meia.

  ‑ E não viu mais ninguém, no exterior?

  ‑ Pareceu‑me ver uma mulher desaparecer entre os arbustos.

  ‑ Uma mulher?

  ‑ Bem... um vulto branco. Se não era um fantasma... devia ser um vestido feminino, deslocando‑se para lá da folhagem. Foi nesse momento que ouvi a voz de Roger falando com o seu secretário.

  ‑ A Mister Raymond?

  ‑ Assim pensei... embora agora saiba que devo ter‑me enganado.

  ‑ Mister Ackroyd não chamou o secretário pelo nome?

  ‑ Não.

  ‑ Nesse caso, porque pensou que fosse ele? ‑ estranhou Poirot.

  ‑ Porque, antes de sair, Raymond dissera‑me que tencionava levar umas cartas a Roger. Naturalmente, não pensei noutra pessoa.

  ‑ Lembra‑se, por acaso, das palavras que conseguiu ouvir?

  ‑ Frases comuns, sem significado especial; simples fragmentos de conversa.

  ‑ Não ouviu, portanto, a voz de Mister Raymond?

  ‑ Não. Só Roger falava.

  ‑ Já agora, major Blunt, diga‑me: quando entrou no escritório, depois da descoberta do cadáver pelo doutor Sheppard e por Parker, foi o senhor quem deslocou uma poltrona do seu lugar?

  ‑ Uma poltrona? Não! Para quê?

Poirot encolheu os ombros e não respondeu. Virando‑se para Flora, sorriu, com o olhar de um gato vendo um rato.

  ‑ Há uma circunstância que desejaria esclarecer, Miss Ackroyd. Quando examinava, com o doutor Sheppard, os objectos que se achavam dentro da mesinha de tampo de vidro, reparou, por ventura, se o punhal se encontrava lá dentro?

A jovem fez um gesto de aborrecimento e retorquiu:

  ‑ O inspector Raglan já me fez essa mesma pergunta. Vou repetir ao senhor, Mister Poirot, a resposta que lhe dei. Estou absolutamente certa de que o punhal já lá não estava. O inspector julga que teria sido Rudolph quem o subtraiu, mais tarde. É falso, mas esse teimoso... perdão, Mister Raglan não quis acreditar‑me, insinuando que eu apenas pretendo ilibar Rudolph.

  ‑ E não pretende, Flora? ‑ inquiri docemente.

  ‑ Sim, doutor, mas com o esclarecimento da verdade. E deixe que lhe diga, doutor, julgava‑o amigo de Rudolph.

Antes que eu tivesse tempo de justificar‑me, Poirot desviou a conversa:

  ‑ Tinha razão, major, no que dizia há pouco. Há qualquer coisa a brilhar dentro do lago. Vou tentar agarrá‑la.

Arregaçou a manga, ajoelhou‑se e imergiu o braço, lentamente, para não turvar a água com o lodo do fundo. Contudo, apesar de todas as suas precauções, este agitou‑se, escurecendo o líquido e o detective retirou o braço da água, confessando irritado que não pescara coisa alguma.

Ofereci‑lhe um lenço para limpar‑se do lodo que se lhe colara à pele, enquanto Blunt, após consultar o relógio, anunciava:

  ‑ São quase horas de almoço. Acho melhor regressarmos à villa.

  ‑ Quer dar‑nos o prazer de almoçar connosco, Mister Poirot? ‑ convidou Flora. ‑ Desejaria que o senhor conhecesse minha mãe. Ela tem grande simpatia por Rudolph...

Com um cumprimento, o detective declarou:

  ‑ Tenho o maior prazer.

  ‑ O doutor virá também, não é verdade? ‑ perguntou Flora.

Hesitei um momento.

  ‑ Peço‑lhe que nos faça companhia ‑ insistiu a jovem.

Aceitei, dissimulando a minha curiosidade, pelo que se iria passar com a presença de Poirot.

Precedidos por Flora e Blunt, dirigimo‑nos para a villa.

  ‑ Que cabelos! ‑ elogiou o belga, erguendo o queixo em direcção de Flora. ‑ Oiro genuíno! Que

belo contraste farão com o negro dos do capitão Paton!

Fitei‑o fixamente e Poirot acrescentou:

  ‑ Meu caro amigo, Hercule Poirot não se arrisca a sujar a manga do casaco, sem ter a certeza de que alcança o seu objectivo. De outro modo seria ridículo. E ridículo é coisa que não sou.

  ‑ Mas o senhor não pescou nada! Veio com a mão vazia!

  ‑ Temos às vezes de ser discretos. O senhor também não diz tudo o que sabe aos seus pacientes. Também não expõe tudo o que pensa a sua irmã, não é verdade? De igual maneira, antes de mostrar‑vos a mão vazia, já passara para a outra o que pescara. Aqui está.

Abriu‑a e exibiu um pequeno anel de oiro: uma aliança de mulher.

  ‑ Veja o que está inscrito do lado interior‑ apontou.

  Na parte interna via‑se gravada uma inscrição:

DE R. ‑ I3 DE MARÇO

Olhei atónito para Poirot, mas nessa altura já ele estava entretido a mirar‑se num pequeno espelho de algibeira e a alisar o bigode, com tal cuidado, que não me prestou atenção. Naturalmente compreendi que não desejava falar mais no assunto.

 

A CRIADA

Fomos encontrar Mrs. Ackroyd, no vestíbulo, acompanhada de um homenzinho seco, com um queixo agressivo e um par de olhos penetrantes.

  ‑ Mister Hammond fica para almoçar ‑ anunciou Mrs. Ackroyd, antes de iniciar as apresentações:

‑ Mister Hammond é o meu advogado.

Virando‑se para este sorriu e perguntou como se exibisse celebridades:

  ‑ Conhece o major Blunt? E o nosso doutor Sheppard? Eram amigos do querido Roger. E permita que lh...

Calou‑se olhando para o detective belga.

  ‑ É Mister Poirot, mamã ‑ interveio Flora.‑ É aquele senhor de que te falei esta manhä.

  ‑ Ah, sim! ‑ disse Mrs. Ackroyd, vagamente como se se tratasse de uma coisa sem importância.‑ Minha filha encarregou‑o de descobrir onde pára Rudolph, não é verdade?

  ‑ Não, mamã ‑ contrariou a jovem ‑, vai descobrir quem matou o tio.

  ‑ Oh, querida por piedade! – exclamou Mrs. Ackroyd teatralmente. ‑ Os meus pobres nervos! Sinto‑me tão mal esta manhã, tão mal! Esta desgraça foi tão atroz! Estou certa de que se tratou de um acidente. Roger era tão desastrado a mexer fosse no que fosse. Deve ter estado a examinar aquela arma raríssima e esta escorregou‑lhe da mão, ou qualquer coisa desse jeito.

A delicadeza dos presentes fez com que esta declaração tivesse sido escutada em discreto silêncio.

Vi Poirot dirigir‑se ao advogado e falar‑lhe em tom confidencial.

Aproximei‑me, indeciso, e perguntei:

  ‑ Venho incomodá‑los?

  ‑ De maneira nenhuma ‑ disse o detective.‑ Tanto eu como o doutor colaboramos nas investigações. Se não o tivesse como braço direito, neste ambiente desconhecido, sentir‑me‑ia perdido. Desejava apenas pedir a Mister Hammond uma pequena informação.

  ‑ Mas acontece que o senhor está agindo a favor do capitão Rudolph Paton ‑ observou o advogado.

  ‑ Não, Mister Hammond ‑ corrigiu Poirot.‑ Ajo apenas no interesse da Justiça. Miss Flora Ackroyd pediu‑me que investigasse a morte do tio.

O advogado não parecia sentir‑se muito à vontade.

  ‑ Näo quero dizer que eu considere, pessoalmente, o capitão Paton envolvido no crime, mas... há certos indícios que lhe são altamente desfavoráveis...

O simples facto de ter grandes necessidades de dinheiro.. .

Poirot mostrou‑se admirado.

Tinha, realmente, grandes necessidades de dinheiro?

O advogado encolheu os ombros e respondeu:

  ‑ Era um gastador impenitente. Nele, a falta de dinheiro constituía um estado crónico. Estava sempre a pedir várias quantias ao padrinho.

  ‑ Que entende por sempre, Mister Hammond?‑ insistiu Poirot. ‑ Refere‑se a qualquer pedido que lhe tenha feito, este ano?

  ‑ Bem, este ano... não sei ‑ balbuciou o advogado.

  ‑ Foi, portanto, no ano passado ‑ persistiu o detective.

  ‑ Bem... não posso precisar, se teria sido no ano passado. Ouvi dizer que Rudolph Paton estava frequentemente a sangrar a bolsa de Mister Roger Ackroyd.

  ‑ E a pessoa que lhe prestou essa informação seria de confiança, Mister Hammond?

  ‑ De absoluta confiança ‑ respondeu este, ligeiramente perturbado.

  ‑ Pode dizer‑me quem lhe confidenciou esse pormenor da vida familiar?

  ‑ Bem... foi Mrs. Ackroyd... casualmente...

  ‑ E também lhe falou no testamento? Mister Hammond está a par das disposições testamentárias de Mister Ackroyd?

  ‑ Certamente. Foi esse o motivo que aqui me trouxe.

  ‑ Nesse caso, dada a missão que Miss Ackroyd me confiou, poderá pôr‑me ao corrente do conteúdo  testamentário?

  ‑ Não vejo qualquer inconveniente – respondeu o advogado ‑, visto não ser secreto. As disposições são muito simples. Depois de pagos certos legados...

  ‑ Tais como? ‑ precisou Poirot.

 A relutância em falar que Hammond manifestava era contrária à sua aparente afabilidade.

  ‑ Bem... pequenas coisas: mil libras para a gover  nanta, Mistress Russell; cinquenta libras para a cozi  nheira, Ema Cooper; quinhentas libras para o secretá  rio, Mister Godofred Raymond. Depois, vários donati  vos a hospitais...

Poirot ergueu uma mão e declarou:

' ‑ Já chega. Não estou interessado nos actos de beneficência colectivos a instituições distantes. Que há quanto à herança, propriamente dita?

  ‑ Mistress Ackroyd ficará com o usufruto de dez mil libras, em acções, enquanto for viva. Miss Flora Ackroyd herda vinte mil libras em dinheiro. Agora,   todo o remanescente, incluindo a propriedade e as acções da firma c Ackroyd & Filho  , foi deixado ao sobrinho e filho adoptivo: Rudolph Paton.

  ‑ Mister Ackroyd possuía, realmente, uma gran  de fortuna?

  ‑ Vastíssima! O capitão Paton tem na verdade motivo para sentir‑se feliz, pois ficará extraordinaria  mente rico.

O sequente momento de silêncio foi interrompido por Mrs. Ackroyd que elevava a voz, chamando:

  ‑ Mister Hammond!

Enquanto o advogado se aproximava da viúva, Poi  rot apontou para as flores e elogiou:

  ‑ Que cor magnífica! ‑ e baixando a voz inquiriu: ‑ E verdade, doutor, que está disposto a auxiliar  ‑me nas minhas investigações?

  ‑ Nada me agradaria mais ‑ respondi, procurando não denunciar excessivo entusiasmo. ‑ Sempre altera favoravelmente a monotonia desta minha vida de médico de aldeia.

  ‑ Nesse caso, seremos colegas. Estou certo de que, dentro de instantes, o major Blunt se acercará de nós, visto ter‑me já apercebido de que a companhia da mamã Ackroyd não é muito do seu agrado. Desejo saber uma coisa, mas não quero manifestar‑lhe directamente o meu interesse. Seria o meu amigo capaz de insinuar o nome de Mistress Ferrars, na vossa conversa? Depois, desbravaria o terreno para algumas outras perguntas.

  ‑ Que devo indagar? ‑ perguntei, ligeiramente apreensivo.

  ‑ Se ele estava cá, em King's Abbot, quando morreu o marido dessa senhora. Observe‑o bem,

quando ele lhe responder. A sua reacção interessa‑me particularmente.

  Não teve tempo para acrescentar nova recomendação, pois Blunt já batia em retirada, na nossa direcção.

Propus ao major irmos tomar um pouco de ar fresco e encaminhámo‑nos para o terraço, enquanto Poirot se fora postar junto à janela aberta que lhe ficava sobranceira.

  Inclinei‑me para cheirar uma rosa serôdia e depois comentei:

  ‑ Quantas mudanças em tão pouco tempo! Ainda   na quarta‑feira passada, quando passeava neste mesmo terraço, estava Ackroyd cheio de vida. Agora, três dias   depois, tudo se alterou. Morreu também Mistress Ferrars! O major conhecia‑a?. . Certamente que sim.

Blunt confirmou com um aceno de cabeça.

  ‑ Teve também ocasião de vê‑la, após este seu regresso de África?

  ‑ Fui visitá‑la, com Roger Ackroyd, na terça‑feira passada. Que mulher fascinante. Era um ser misterioso e ninguém seria capaz de adivinhar o que realmente estava a pensar quando se nos dirigia. Era uma belda de esfíngica.

  ‑ Já a conhecia há muito tempo? ‑ indaguei.

  ‑ Travei conhecimento com ela e com o marido, quando vieram instalar‑se neste lugarejo, o que coincidiu com a minha última estada aqui. Mas Mistress Ferrars mudou muito, de então para cá!

  ‑ Em que sentido? ‑ sondei.

  ‑ Dir‑se‑ia que envelheceu dez anos, nesse curto período.

  ‑ O major estava cá, por acaso, quando Mister Ferrars morreu? ‑ inquiri, procurando tornar a

pergunta o mais natural possível.

  ‑ Não, mas, pelo que ouvi dizer, essa morte foi como que uma verdadeira libertação para Mistress Ferrars.

  ‑ Tem razão, major. Arthur Ferrars não seria uma pérola de marido ‑ critiquei.

  ‑ Um verdadeiro canalha ‑ catalogou Blunt.‑ A sua morte foi um alívio para a pobre Mistress Ferrars.

  ‑ O mal de Arthur Ferrars, segundo creio ‑ argumentei ‑, era possuir demasiado dinheiro.

  ‑ Talvez. Todos os males do mundo provêm do dinheiro; derivam da ânsia pela sua obtenção, ou da sua falta.

  ‑ O que não é o seu caso, major ‑ comentei, tentando não parecer indiscreto.

  ‑ Tenho o indispensável para as minhas necessidades. Recebi uma herança, no ano passado, e perdi‑a, estupidamente, numa desastrosa operação de bolsa.

Manifestei‑lhe o meu pesar e contei‑lhe as minhas desditas no mesmo campo de especulação com acções.

Nesse momento, ouvimos tocar o gongo e avançámos para a sala de almoço. Pegando‑me levemente por um cotovelo, Poirot chamou‑me à parte.

  ‑ Então? ‑ perguntou.

  ‑ Parece‑me um homem irrepreensível ‑ classifiquei.

  ‑ Nada de suspeito?

  ‑ Recebeu uma herança no ano passado. Desbaratou‑a na bolsa, mas tem com que viver desafogadamente.

Entrámos na sala das refeições e pareceu‑me inacreditável que tivessem já decorrido menos de vinte e quatro horas desde a última vez que me sentara àquela mesa, tão mudados se achavam os semblantes. Uma herança opera milagres, e a ansiedade coberta de desgosto dera lugar a uma quase euforia coberta de ansiedade.

Depois do jantar, Mrs. Ackroyd levou‑me para um canto da sala e fez‑me sentar a seu lado, num sofá.

  ‑ Não posso deixar de sentir‑me um pouco ofendida ‑ murmurou manejando um minúsculo lencinho de renda que me não pareceu adequado para limpar as lágrimas, a menos que simuladas. ‑ Ofendida, sim, pela falta de confiança que Roger demonstrou. Aquelas vinte mil libras dever‑me‑ia ter deixado, a mim, e não a Flora. Deve‑se ter confiança na mãe para velar pelos interesses da filha... Foi uma verdadeira falta de confiança.

  ‑ Não se esqueça, Mistress Ackroyd, de que Flora é sobrinha consanguínea de Mister Ackroyd. Ela é uma parenta directa. O caso poderia ser interpretado diferentemente, se Mistress Ackroyd fosse irmã e não apenas cunhada do meu falecido amigo.

  ‑ Na qualidade de viúva do meu pobre Camile,   acho que Roger devia ter tido um pouco de mais consideração por mim, mas foi sempre extremamente avaro. Pode crer, doutor, que Flora e eu chegámos a passar por situações bem críticas, dentro desta casa, embora houvesse a aparência exterior de que nadávamos em opulência. Roger não dava nem um cêntimo à pobre pequena, para as coisas dela. Nem se percebe como nos fez a afronta de deixar todo aquele dinheiro... mil libras, imagine... àquela mulher!

  ‑ Que mulher?

  ‑ Essa Russell. Há qualquer coisa de equívoco nesse seu comportamento e também na maneira como Roger se lhe referia, elogiando‑lhe despropositadamente a rectidão, espírito de independência e coisas desta natureza. Não me importaria que Roger casasse com ela, mas francamente... não o aprovaria. Sei que sempre me odiou, essa Russell, mas compreendo‑a!

Como Hammond se acercasse para despedir‑se, aproveitei a oportunidade para levantar‑me.

  ‑ E quanto ao inquérito, Mistress Ackroyd ‑ inquiriu ‑, onde quer que se realize?... Aqui, ou nos

Três Javalis?

  ‑ O inquérito? ‑ repetiu ela, perturbada. – Mas torna‑se necessário uma investigação policial?

O advogado tossiu e esclareceu:

  ‑ Dadas as circunstâncias de morte por causa violenta, Mistress Ackroyd, a lei determina que a inquirição do Coroner seja feita na presença de um júri.

  ‑ Mas, Mister Hammond ‑ protestou ela ‑, como meu advogado, pode certamente evitar a minha presença nessa enfadonha reunião e... que saberia eu responder, se julgo ter‑se tratado de um acidente infeliz?

  ‑ Tentarei evitar‑lhe os possíveis incómodos. Talvez Mister Raymond, como secretário particular da vítima, possa evitar a sua presença, fornecendo as provas necessárias para identificação dos despojos.

  Como o rosto de Mrs. Ackroyd continuasse a manifestar viva preocupação, Hammond sondou:

  ‑ Quanto a dinheiro, tem o imprescindível para as despesas da casa? Se, neste momento, Mistress Ackroyd, carece de qualquer quantia, poderei providenciar no sentido de...

  ‑ Parece que há dinheiro em casa – interveio Raymond que se aproximara ao ouvir proferir o seu nome. ‑ Mister Roger Ackroyd levantou, ontem de manhã, cem libras do banco.

  ‑ Cem libras?

  ‑ Sim, para o pagamento dos salários e outras despesas previstas para hoje. A quantia deve, portanto, estar intacta.

  ‑ Onde está o dinheiro? No escritório?

  ‑ Não. Mister Ackroyd costumava guardá‑lo no quarto, dentro de uma velha caixa de colarinhos. Ideia deveras curiosa, não lhe parece?

Em vez de responder, o advogado sugeriu:

  ‑ Talvez fosse conveniente certificarmo‑nos da existência dessa quantia.

  ‑ Acompanho‑o ao quarto ‑ ofereceu‑se Raymond ‑, mas... lembro‑me agora de que a porta está fechada à chave.

Parker informou‑nos de que o inspector Raglan estava nos aposentos de serviço a interrogar a criadagem. Momentos depois, Raglan juntou‑se‑nos e subimos as escadas. Tudo ficara como na noite anterior, no quarto de Roger fechado pela polícia. O inspector ergueu os estores para entrar luz e Raymond dirigiu‑se para a gaveta superior de uma cómoda de madeira‑rosa.

  ‑ Guardava o dinheiro, numa gaveta sem chave? ‑ admirou‑se Raglan.

Corando, Raymond respondeu:

  ‑ Mister Ackroyd tinha a máxima confiança em todos quantos trabalhavam com ele.

Pegou numa caixa circular, de coiro, para colarinhos engomados, levantou a tampa e retirou uma bolsa.

  ‑ Aqui está ‑ anunciou o jovem, apresentando um grosso rolo de notas. A quantia tem de estar intacta, visto que Mister Ackroyd não chegou a tocar‑lhe, depois de ter arrumado o dinheiro.

O advogado começou a contar o dinheiro e exclamou:

  ‑ Mas... aqui só estão sessenta libras!

Raymond tirou‑lhe o dinheiro das mãos e contou‑o, por sua vez.

  ‑ Não percebo ‑ confessou Raymond, não só espantado, como preocupado.

oirot adiantou‑se e perguntou‑lhe:

  ‑ Viu Mister Ackroyd guardar aí esse dinheiro?

  ‑ Pois vi, enquanto se vestia, ontem à noite, para   o jantar.

  ‑ Tem a certeza de que não o teria levado, nessa altura, para fazer qualquer pagamento?

  ‑ Tenho a certeza, pois ele próprio me declarou textualmente:   Não quero levar cem libras comigo, pois fazem um grande volume na algibeira.

  ‑ Nesse caso, deve ter tirado quarenta libras do maço, ou então foram‑lhe roubadas ‑ concluiu Raglan.

  ‑ Qual das criadas esteve ontem aqui, Mistress Ackroyd? ‑ inquiriu Poirot.

  ‑ Não sei ‑ respondeu esta ‑, mas deve ter sido a criada de quarto.

  ‑ Tem confiança nela?

  ‑ É uma excelente rapariga do campo.

  ‑ E os outros servidores são honestos?

  ‑ Creio que sim, nunca faltou nada.

  ‑ Há alguém, entre o pessoal de serviço, que tenha manifestado desejo de despedir‑se e esteja para deixar a villa?

  ‑ Bem... esta criada de quarto vai sair. Despediu‑se ontem, segundo creio.

  ‑ Foi a si, Mistress Ackroyd, que a rapariga manifestou essa intenção?

  ‑ A mim! ‑ espantou‑se ela, quase indignada. ‑ De maneira nenhuma. Isso são assuntos da alçada de Mrs. Russell. Eu nada tenho a ver com a criadagem. Mas será assim tão importante, essa investigação?

  ‑ Poderá estar relacionada com o crime, Mistress Ackroyd ‑ justificou o inspector. ‑ É, pois, conveniente interrogar Mistress Russell e essa moça.

Poirot e eu acompanhámos Raglan ao quarto da governanta.

Mrs. Russell recebeu‑nos com a sua costumada frieza e informou‑nos de que Elsa Dale estava na villa Fernly havia seis meses, tecendo‑lhe os maiores elogios, recusando‑se a admitir a hipótese de que a jovem se tivesse apoderado fosse do que fosse.

  ‑ Sabe, porventura, Mistress Russell, por que razão Elsa se vai embora?

  ‑ Não sei nada a esse respeito. Devem referir‑se a Ursula Bourne que foi despedida.

  ‑ Por que motivo?

  ‑ Também não sei. Julga‑se que, ao limpar a secretária de Mister Ackroyd, lhe teria desarrumado alguns papéis e que, furioso com isso, o patrão a despediu.

Eu já tivera ocasião de observar essa empregada, alta, de cabelos castanhos que lhe caíam para os ombros, linda de rosto e de formas esculturais. Era realmente uma estampa e Mrs. Russell reconhecia‑lhe as melhores qualidades, tanto como pessoa, como no desempenho das suas obrigações profissionais. Fomos, atrás de Raglan, falar à rapariga.

  ‑ É Ursula Bourne? ‑ perguntou o inspector.

  ‑ Sim, senhor.

  ‑ Disseram‑me que foi despedida. Por que razão Mister Ackroyd tomou essa decisão?

  ‑ O meu patrão enfureceu‑se por eu ter alterado, involuntariamente, a ordem de alguns papéis que tinha sobre a secretária, ao fazer‑lhe a limpeza habitual. Disse‑me que deixasse o serviço, o mais breve possível.

  ‑ Não esteve, por acaso, no quarto de dormir de Mister Ackroyd?

  ‑ Não, senhor. Esse serviço pertence a Elsa.

  ‑ Devo informá‑la, Ursula ‑ insistiu o inspector ‑, de que do quarto do seu patrão desapareceu uma importante soma, em dinheiro.

Pela primeira vez, vi‑a perturbar‑se.

  ‑ Nada sei acerca desse dinheiro e, se pensa que isso foi a causa do meu despedimento, senhor, afirmo‑lhe que está plenamente enganado ‑ respondeu a jovem, numa atitude e linguagem que nos deixou assombrados.

  ‑ Não estou a acusá‑la ‑ quase se desculpou Raglan. ‑ Não se inquiete, miss.

  ‑ Se o desejar ‑ desafiou ela, brandamente ‑, pode revistar o meu quarto e todos os meus haveres.

  ‑ Foi na tarde de ontem, Miss Ursula – interveio Poirot ‑, que se verificou o seu despedimento?

  ‑ Sim, senhor.

  ‑ E quanto tempo durou essa conversa?

  ‑ Que conversa?

  ‑ A que Mister Ackroyd manteve consigo e o levou a despedi‑la?

  ‑ Não sei.

  ‑ Vinte minutos? Meia hora?

  ‑ Sim, aproximadamente.

  ‑ Mais de meia hora?

  ‑ Não tanto, decerto ‑ respondeu a jovem.

  ‑ Obrigado, Miss Ursula ‑ despediu‑a Poirot.

Notei que os olhos do detective belga brilhavam de satisfação, enquanto ordenava simetricamente alguns objectos sobre a mesa do quarto.

Entretanto, Raglan tornara a interrogar Mrs. Russell:

  ‑ Tem referências acerca dessa empregada?

  Sem responder, a governanta tirou da gaveta de uma cómoda, um maço de cartas. Escolheu uma e entregou‑a ao inspector.

  ‑ Hum! ‑ fez este com o queixo atirado para a frente. ‑ Excelentes referências de Mistress Ada Folliot, da villa Marby. Quem são estas pessoas?

  ‑ Proprietários rurais... gente educada ‑ respondeu Mrs. Russell.

  ‑ Vejamos agora Elsa Dale ‑ prosseguiu o inspector. ‑ Desejo falar com ela.

Era uma moça loira, um pouco apatetada, que se mostrou francammente aflita com o desaparecimento do dinheiro. Depois de ter respondido a todas as perguntas foi‑se embora e Raglan perguntou:

  ‑ Considera‑a, suspeita, Mistress Russell?

  ‑ De uma coisa dessas... não. Contudo, torceu o nariz, como indicando que poderia haver qualquer motivo estranho ao dinheiro que motivara uma certa reserva da governanta a respeito da criada, embora momentos antes lhe tivesse feito os maiores elogios.

Havia algo de duvidoso que permanecia no ar, sem materializar‑se.

  ‑ E quanto a Parker? ‑ continuou Raglan.

Desta vez, o nariz de Mrs. Russell franziu‑se francamente, mas não respondeu.

Finalmente saímos depois de a governanta nos ter cumprimentado com extrema secura. Pensei que Parker cortejasse Elsa e isso desagradasse a Mrs. Russell. Entretanto, Raglan meditava em voz alta:

  ‑ Acho algo de suspeito em Parker, mas não vejo quando teria ocasião de vir até cá acima. Esteve constantemente ocupado, depois do jantar, e apresentou um álibi indestrutível para toda a noite. Deixemos este assunto como está, por enquanto, já que é admissível que Mister Ackroyd tenha feito qualquer pagamento que ignoramos.

Deixei a villa Fernly, na companhia de Poirot.

De súbito, observei:

  ‑ Quem sabe o que representariam aqueles papéis, para Mister Ackroyd? Porque teria ficado tão furioso? Pensaria que Ursula os lera ao arrumar a secretária? Não estará, nesse despedimento, qualquer indício para a solução do mistério?

  ‑ O secretário disse não haver papéis importantes sobre a secretária ‑ lembrou o detective.

  ‑ Sim, mas...

  ‑ Que lhe parece a moça?

  ‑ Quem? Ursula Bourne? ‑ precisei.

  ‑ Sim. Um criada demasiado bem educada, falando correctamente inglês e com um físico que bem poderia levá‑la a bailarina...

  ‑ Parece‑me boa pequena ‑ respondi.

Poirot tirou um papel da algibeira e estendeu‑mo.

  ‑ Repare ‑ convidou.

Era a nota que Raglan lhe entregara nessa manhã e, em frente do nome Ursula Bourne, destacava‑se uma cruz feita a lápis.

  ‑ É a única criada ‑ explicou o detective ‑, cujo álibi não foi confirmado.

  ‑ Mas não vejo motivo para que tenha assassinado Ackroyd ‑ observei.

Franzindo as sobrancelhas, Poirot pensou em voz alta:

  ‑ Se o chantagista era um homem, claro está que não poderia ser ela, mas...

Sufoquei um ataque de tosse e admiti:

  ‑ Realmente, Ackroyd e eu, partimos do princípio que o chantagista seria um homem. Contudo..., Mistress Ferrars, na sua carta, apenas se referia a uma pessoa.

Poirot já não parecia escutar‑me.

  ‑ É possível ‑ murmurava ele ‑, é muito possível, mas, nesse caso... Método! Tenho de pôr as ideias em ordem. Onde fica Marby?

  ‑ A cerca de vinte e dois quilómetros, do lado oposto de Cranchester.

  ‑ Vamos lá amanhã, sim?

  ‑ Amanhã é domingo ‑ lembrei. ‑ Para fazer o quê?

  ‑ Quero que fale com Mistress Folliot acerca de Ursula Bourne.

  ‑ Está bem ‑ anuí ‑, mas desde já lhe digo que essa missão não me agrada muito.

  ‑ São ossos do ofício, mas não se esqueça que desta visita pode resultar a salvação de um homem.

  ‑ Pobre Rudolph! ‑ lamentei. ‑ Ainda pensa que esteja inocente?

  Com ar grave, Poirot declarou:

  ‑ Tudo concorre para indigitá‑lo como verdadeiro culpado. As permissas acusatórias acumulam‑se com tal precisão que chego a considerá‑las demasiado bem coordenadas. E aquele imbecil tem todas as circunstâncias a seu favor.

  ‑ Imbecil? Quem? ‑ admirei‑me.

  ‑ O inspector. Não há dúvida que os indícios apontam para Rudolp Paton, mas, meu amigo, eu procuro a verdade... Pode estar certo de que nada deixarei escapar, como prometi a Miss Flora. E ela tem a certeza, ela sabe...

 

UMA VISITA DE POIROT

Sentia‑me embaraçado quando, na manhã seguinte, toquei à campainha da porta da villa Marby. Que pretenderia Poirot descobrir com aquela diligência?

Fui recebido por uma graciosa criadita que me introduziu numa ampla sala. Enquanto contemplava uma gravura de Bartolozzi, suspensa da parede, Mrs. Folliot apareceu na entrada. Era uma mulher alta, formosa, de sorriso atraente, cabelo castanho e solto.

  ‑ Doutor Sheppard? ‑ inquiriu com certa hesitação.

  ‑ Precisamente, minha senhora. Sinto vir incomodá‑la. Desejaria apenas obter algumas informações acerca de uma criada que teve ao seu serviço: Ursula Bourne.

Bastou que tivesse pronunciado o nome para que o sorriso se lhe desvanecesse dos lábios. Com ele extinguira‑se a cordialidade com que me prendara no primeiro momento. Percebi que não se sentia à vontade, quando repetiu:

  ‑ Ursula Bourne?

  ‑ Talvez não se recorde já do nome... ‑ sugeri.

  ‑ Lembro‑me perfeitamente ‑ respondeu contrariada.

  ‑ Segundo me informaram, deixou esta casa há pouco mais de um ano.

  ‑ Precisamente.

  ‑ Era uma pessoa competente?... Quanto tempo esteve ao seu serviço, minha senhora?

  ‑ Um ano ou dois..., não me lembro exactamente. Era uma moça muito activa. Estou certa de que lhe agradará o seu serviço... Mas não fazia a mínima ideia de que estava para sair da villa Fernly.

Não podia explicar que não desejava contratá‑la, mas tinha de prosseguir:

  ‑ Desejava informações mais pormenorizadas a seu respeito.

  ‑ De que natureza?

  ‑ De onde é natural, de que família provém, etc.

A expressão de Mrs. Folliot tornou‑se quase hostil.

  ‑ Nada sei ‑ replicou secamente.

  ‑ Que fazia antes de vir trabalhar para sua casa?

  ‑ Não me lembro.

Ergueu subitamente a cabeça, num jeito que devia ser‑lhe familiar.

  ‑ Precisa de fazer‑me todas essas perguntas?‑ indagou.

  Mostrei surpresa e intenção de desculpar‑me.

  ‑ Não supunha que lhe desagradasse responder‑me, Mistress Folliot. Sinto imenso...

A sua hostilidade pareceu atenuar‑se.

  ‑ Nada me custa responder‑lhe, doutor. Apenas o seu questionário me pareceu um pouco... estranho. Nada mais.

A minha experiência de médico e de lidar com gente de todos os tipos e educações indicava‑me que aquela mulher tinha verdadeira relutância em falar de Ursula Bourne. Compreendi, portanto, que não seria por seu intermédio que conseguiria obter mais informações sobre a bela criada. Renovando as minhas desculpas, peguei no chapéu e saí.

Fui ver uns doentes e, por volta das seis horas, regressei a casa. Encontrei Caroline sentada à mesa onde havia duas chávenas com restos de chá. No seu rosto discerni uma expressão de satisfação contida, sinal inconfundível de que tivera uma nova notícia e estava prestes a difundi‑la, se o não fizera já algures.

  ‑ Esta tarde foi interessantíssima ‑ prologou.

Enquanto me sentava na poltrona, junto do fogão de sala e estendia as pernas, tentei adivinhar:

  ‑ Esteve cá Miss Ganett?

  ‑ Reprovado! ‑ motejou, satisfeita.

Procurei adivinhar, citando nomes após nomes, mas minha irmã acolhia cada sugestão com triunfante negativa.

Por fim, decidiu‑se a desvendar.

  ‑ Mister Hercule Poirot. Que te parece?

Parecia‑me muita coisa, mas tentei não o dar a perceber.

  ‑ De que falaram? ‑ sondei.

  ‑ De si próprio e das suas aventuras. Já ouviste falar no príncipe Paulo da Mauritânia, que, há pouco tempo, se casou com uma bailarina?

  ‑ Sim, e então?

  ‑ Li há dias, no Bisbilhoteiro, um artigo que falava a respeito da noiva. Insinuava... tratar‑se de uma grã‑duquesa russa, filha do czar, que conseguira fugir a esses assassinos bolchevistas. Parece que Mister Poirot conseguiu aclarar o mistério de um certo crime que ameaçava envolver a segurança do casal. O príncipe Paulo ficou muito grato...

  ‑ E fez‑lhe presente de um alfinete de gravata, com uma esmeralda do tamanho de um ovo de avestruz, não? ‑ motejei.

  ‑ Não falou nisso. Porquê?

  ‑ Porque é o costume, nos romances policiais de superdetectives  . . .

  ‑ Fiquei encantada por ouvi‑lo dissertar sobre o crime e a sua detecção, nos mais íntimos pormenores ‑ cortou Caroline, entusiasmada.

Não pude deixar de admirar a sagacidade de Poirot, procurando impressionar uma solteirona de província cujo maior prazer é a tagarelice.

  ‑ Disse‑te que a bailarina era, realmente, uma grã‑duquesa?

  ‑ Sim, mas pediu‑me sigilo. Não estou autorizada a falar.

  ‑ E, depois de todas essas confidências, fez‑te outras perguntas?

  ‑ Como és desconfiado, Jacques! És um orgulhoso incurável e, ainda por cima, resmungão.

  ‑ Falaram do assassinato de Roger Ackroyd?

  ‑ De que outra coisa iríamos falar? Tentei tirar‑lhe nabos da púcara, como é natural, e consegui corrigir‑lhe certas deduções, aclarando vários pontos e ele mostrou‑se‑me muito reconhecido. Disse‑me que tenho todas as características do detective nato e uma maravilhosa penetração na natureza humana. Parecia uma gata lambuzada de leite‑creme.

  ‑ E fez‑te perguntas?

  ‑ Não. Falou‑me das celulazinhas da massa cinzenta cerebral e confidenciou‑me que as dele eram de primeira qualidade.

  ‑ Já era de esperar. A modéstia não é o seu forte.

  ‑ Depois declarou que seria de máxima importância descobrir o paradeiro de Rudolph Paton e convencê‑lo a aparecer.

  ‑ Que lhe disseste a esse respeito? ‑ inquiri.

  ‑ Contei‑lhe o que se murmura por aí.

  ‑ Falaste‑lhe da conversa que escutaste na floresta? ‑ perguntei subitamente.

  ‑ Decerto e até fiquei espantada por tu não lhe teres revelado isso.

  ‑ Quis proteger Rudolph. Sou seu amigo...

  ‑ Também eu e é por esse motivo que não acredito que seja o criminoso. Concordo com Mister Poirot na necessidade de fazê‑lo aparecer, para que se esclareça a verdade. Se pensares como eu, Jacques, concordarás que provavelmente, na noite do crime, Rudolph veio encontrar‑se com aquela pequena. Isso dava‑lhe um álibi irrefutável.

  ‑ Se pode provar isso, porque não aparece a declará‑lo?

  ‑ Para não comprometer a moça ‑ respondeu‑me Caroline, exultante.

  ‑ Estás continuamente a ler romances e criaste um novo enredo ‑ critiquei. Momentos depois insisti:

‑ E não te fez outras perguntas?

  ‑ Não, a não ser a respeito dos teus doentes.

  ‑ Que doentes? ‑ inquiri, incredulamente.

  ‑ Dos que vieram ao teu consultório. Quis apenas saber se trabalhaste muito e quantos eram.

  ‑ Conseguiste dizer‑lho?

  ‑ Certamente. Desta janela vejo perfeitamente a ruazinha de acesso ao consultório e bem sabes que tenho uma excelente memória.

  ‑ Não duvido ‑ respondi mecanicamente, sabendo‑a uma prodigiosa coscuvilheira.

  ‑ Nessa tarde ‑ prosseguiu Caroline, contando pelos dedos ‑, visitaram‑te a velha Mistress Bennett, o rapaz da feitoria e Dorothy Grice, para lhe tirares uma agulha do dedo; depois, aquele criado americano do transatlântico e o velho George Evans, por causa do tumor... e por último...

Minha irmã fez uma pausa significativa.

  ‑ Então? ‑ desafei.

  ‑ Mistress Russell! ‑ exclamou, numa apoteose.

  ‑ Que há de estranho nisso ‑ repliquei ‑, para fazeres tanto teatro? Veio tratar do joelho.

  ‑ Ora, ora, Jacques! Sofre tanto disso como eu!

Era outra coisa que a interessava.

  ‑ Que coisa?

  ‑ Isso é o que Mister Poirot desejava saber. Diz que há algo de equívoco naquela mulher.

  ‑ Tem graça que Mistress Ackroyd fez‑me idêntica observação.

  ‑ Mistress Ackroyd! ‑ exclamou Caroline.‑ Essa também é c boa  , deixa estar!

  ‑   Boa  , porquê?

Mas Caroline recusou‑se a alongar as suas explicações. Arrumou o tricô e subiu para vestir o casaquinho de seda lilás e colocar ao pescoço o medalhão de oiro que para ela constituem a sua toilette para jantar.

Pensei se Poirot teria vindo realmente investigar acerca da visita de Mrs. Russell, ou se tudo se delineara na imaginação fecunda de minha irmã.

Lembrei‑me da insistência da governanta acerca de estupefacientes, antes de desviar a conversa para envenenamentos... Mas Roger Ackroyd não fora envenenado...

Ouvi a voz de Caroline, num tom um pouco áspero, chamar‑me do alto da escada.

  ‑ Vais atrasar‑te para o jantar, Jacques ‑ censurou.

Coloquei mais carvão no fogão e subi docilmente a escada.

A paz em família exige certos sacrifícios.

 

UMA REUNIÃO ÍNTIMA

Na segunda‑feira seguinte, realizou‑se o inquérito público.

É inútil descrever os pormenores. De acordo com a polícia ficou decidido não haver divulgação das investigações. Fiz o meu depoimento acerca da morte de Roger Ackroyd e estabeleci a hora provável da morte. O médico legista referiu‑se à ausência de Rudolph, sem contudo insistir muito no caso.

A seguir, Poirot e eu trocámos algumas palavras com Raglan que se mostrava preocupado.

  ‑ Está tudo embrulhado, Mister Poirot ‑ queixou‑se ele. ‑ Esforço‑me por julgar o caso com a maior imparcialidade. Sou daqui e vi frequentemente o capitão Paton em Cranchester. Não quero afirmar que seja ele o assassino, mas o facto é que todos os indícios convergem para incriminá‑lo. Se ao menos aparecesse, para destruir as provas que contra ele se acumulam...

Não confessou que os sinais de Rudolph tinham sido transmitidos a todos os postos da polícia e, com tal rede de vigilância, parecia impossível que conseguisse escapar‑lhes.

  ‑ Ninguém o viu naquela noite, na estação ‑ prosseguiu Raglan ‑, e de Liverpool também não veio qualquer notícia positiva.

  ‑ Pensou que estivesse em Liverpool? ‑ perguntou Poirot.

  ‑ Era admissível, já que o telefonema da estação se verificou precisamente três minutos antes da partida do directo para Liverpool.

  ‑ A não ser que o tenha feito para confundir a investigação ‑ admiti.

  ‑ Uma coisa é certa ‑ sentenciou o detective.‑ Quando descobrirmos o autor do telefonema, desvendámos a identidade do assassino.

  ‑ Já o ouvimos dizer isso ‑ lembrei.

O belga confirmou com um aceno de cabeça.

  ‑ Creio que lhe dá excessiva importância ‑ objectou Raglan. ‑ Temos melhores indícios do que

esse, como, por exemplo, as impressões digitais no punhal.

Poirot pareceu alhear‑se do problema, mas retorquiu:

  ‑ Não se meta nisso, meu amigo. Essas impressões podem conduzi‑lo a um resultado negativo.

  ‑ Porquê? Não me consta que possam ser falsificadas!

  Poirot limitou‑se a encolher os ombros.

  ‑ Recolhi todas as impressões digitais das pessoas da villa Fernly, desde Mistress Ackroyd até à criada que lava os pratos e nenhumas coincidem com as do punhal. Portanto, restam duas hipóteses: ou são de Rudolph Paton, ou de um desconhecido. Esse tal forasteiro de que o doutor nos falou. Quando tivermos caçado os dois...

  ‑ Já se perdeu um tempo precioso ‑ respondeu o belga. ‑ E não se terá esquecido de ninguém?

  ‑ Não me esqueci de ninguém ‑ afirmou o inspector peremptoriamente.

  ‑ Nem vivo, nem morto?

  ‑ Refere‑se a...?

  ‑ Ao próprio Roger Ackroyd ‑ insinuou Poirot.

  ‑ Não vai decerto apresentar a hipótese impossível de suicídio.

  ‑ Não, mas o assassino, depois de limpar a arma, pode ter‑lhe impresso os dedos do morto. De resto, é fácil de verificar. O cadáver ainda não foi sepultado.

  ‑ Mas para quê? ‑ protestou Raglan, calando‑se em seguida por compreender a ingenuidade da pergunta.

  ‑ Para complicar ainda mais as investigações‑ disse Poirot, benevolamente. ‑ De resto, note que as impressões no cabo da arma mostram que quem a empunhou fê‑lo como quem pega num talher e não como quem pretende cravá‑la nas costas de um homem. Tendo de enfiar a lâmina naquela posição, nunca poderia ter segurado a arma como as impressões o sugerem.

Raglan fitou espantado o homenzinho que, na sua frente, sacudia, tranquilo, um grão de pó invisível da manga do casaco.

  ‑ Parece uma boa ideia e vou ocupar‑me desse ponto de vista, mas não se admire, Mister Poirot, de que se verifique mais um impasse..., e que aquelas impressões sejam de outra pessoa.

Poirot sorriu e, quando Raglan se afastou, disse‑me.

  ‑ Para a próxima vez terei de ser mais cuidadoso e não ferir o seu amor‑próprio. Agora, caro doutor, que me diz a uma pequena c reunião íntima?

A reunião efectuou‑se meia hora mais tarde na sala de jantar da villa Fernly. Sentámo‑nos em volta da mesa e Poirot ocupou a cabeceira. Éramos seis: Mrs. Ackroyd, Miss Flora, o major Blunt, o jovem Raymond, Poirot e eu. Os criados não estavam presentes.

  ‑ Reunimo‑nos aqui ‑ começou o belga ‑, por um motivo cuja importância veremos muito em breve. Para já tenho de fazer um pedido a Miss Ackroyd.

  ‑ A mim? ‑ admirou‑se Flora.

  ‑ Está noiva do capitão Rudolph Paton ‑ continuou Poirot. ‑ Se sabe onde ele se encontra, deve declará‑lo, pois a sua situação torna‑se, de dia para dia, mais perigosa para a sua segurança. Se sabe onde ele pára, convença‑o a aparecer. Caso contrário, será demasiado tarde.

O rosto de Flora tornou‑se extremamente pálido.

  ‑ Juro‑lhe solenemente, Mister Poirot, que igno  ro o seu paradeiro ‑ respondeu com voz flrme.

  ‑ Está bem ‑ disse o belga. ‑ Agora dirijo um apelo a todos os circunstantes: se são amigos do capitão Paton e sabem onde se esconde, têm de mo dizer.

Seguiu‑se um prolongado silêncio que foi quebrado por Mrs. Ackroyd.

  ‑ Acho realmente muito estranho o desapareci  mento de Rudolph. Felizmente que o noivado de Flora não chegou a ser anunciado. Não o julgo culpado, mas esta situação atrairia uma publicidade terrível para o nosso nome. Ele teve uma mocidade muito irregular e... francamente não sei...

  ‑ Mamã! ‑ protestou Flora, indignada. – Não estás a acusar Rudolph, certamente!

  ‑ Não, mas pergunto‑me o que aconteceria à he  rança, se ele fosse considerado culpado. De qualquer maneira, apenas quero dizer que me sinto feliz por o noivado não ter sido anunciado publicamente.

  ‑ Será amanhã ‑ decidiu a jovem. ‑ Mis  ter Raymond, far‑me‑á o favor de enviar esse anúncio para os jornais. Tal como estão as coisas, devo procurar amparar Rudolph por todos os meios. Não acha, major Blunt, que é esse o meu dever?

Depois de fixá‑la demoradamente, o major fez um sinal de aprovação.

Mrs. Ackroyd protestou ruidosamente, mas Flora não se demoveu. Foi então que Raymond se atreveu a falar:

  ‑ Aprecio as suas razões, Miss Flora, mas não lhe parece que a decisão é um pouco precipitada? Porque não espera mais um dia ou dois?

  ‑ Amanhã ‑ teimou a jovem.

  ‑ Mister Poirot ‑ invocou Mrs. Ackroyd, em tom choroso ‑, o senhor não interfere?

  ‑ Nada há a interferir ‑ disse Blunt. ‑ O que Miss Flora tenciona fazer é justo e estarei a seu lado, aconteça o que acontecer.

  ‑ Obrigada, major Blunt ‑ murmurou Flora.

Finalmente Poirot decidiu‑se a abrir a boca.

  ‑ Permita‑me, Miss Ackroyd, que a felicite pela sua lealdade. Rogo‑lhe agora, tanto pelo interesse de Rudolph Paton, como pelo seu, que não levante obstáculos à missão que me honrou confiar‑me.

Virou‑se então para todos os presentes e declarou:

  ‑ Agora, senhoras e senhores, quero que compreendam que vou descobrir a verdade. Já avancei bastante na idade e não quero encerrar a minha carreira com um desaire. Apesar das resistências que todos vós me têm oposto, hei‑de atingir o meu fim.

  ‑ Que quer dizer com as resistências que... ‑ começou Raymond a protestar.

  ‑ Quero dizer que todos quantos aqui estão têm qualquer coisa a esconder. Podem ser coisas banais, sem importância, que julgam alheias ao crime, mas que podem constituir a chave do problema. É ou não verdade que   cada um dos presentes têm algo a ocultar‑me?

Lançou um olhar acusador em torno da mesa e terminou:

  ‑ Com o vosso silêncio, todos me responderam.

‑ Levantou‑se da mesa e repetiu. ‑ Apelo novamente para que me digam a verdade... Ninguém quer falar?. . E pena!

E dizendo isto, saiu.

 

A PENA DE PATO

Naquela noite, depois do jantar, atendendo um convite de Poirot, fui a sua casa. Caroline viu‑me sair com evidente mau humor, pois ter‑me‑ia seguido de bom grado.

O detective belga recebeu‑me cordialmente, com uma garrafa de uísque irlandês (que detesto) e enfrentando uma taça de chocolate que, como pude concluir mais tarde, é a sua bebida preferida.

Pediu‑me notícias de minha irmã que defmiu como pessoa interessantíssima .

  ‑ Creio que o senhor a envaideceu demasiadamente, quando esteve em minha casa ‑ censurei.

Ele riu, franzindo os olhos.

  ‑ Quando posso, agrada‑me servir‑me de pessoas de observação aguda ‑ confessou.

  ‑ De qualquer modo ‑ objectei ‑, recolheu um molho de informações verdadeiras de mistura com outras falsas, produto da imaginação e bisbilhotice local.

  ‑ A virtude está em separar o trigo do joio. E obtive informações preciosas.

  ‑ Por exemplo? ‑ desafiei.

  ‑ Por que motivo não me disse a verdade? Num lugarejo como este, todas as aventuras de Rudolph viriam a ser conhecidas. Se, por acaso, naquele dia, sua irmã não tivesse passado pelo bosque, qualquer outra pessoa poderia tê‑lo visto.

  ‑ E possível, mas não compreendo porque se interessou tanto pelos meus pacientes?

  ‑ Por um só, doutor! Um só!

  ‑ O último?

  ‑ Não posso negar que a visita de Mistress Russell me interessou muitíssimo.

  ‑ Concorda, portanto, com a minha irmã, descobrindo nessa governanta um não sei quê de equívoco?

  ‑ É possível.

  ‑ Não tem o menor fundamento. A consulta de Mistress Russell circunscreveu‑se a matérias de medicina. Só minha irmã lhe atribuiu outra motivação.

  ‑ Meu caro amigo, as mulheres – generalizou Poirot ‑, são uns seres maravilhosos. Inventam coisas, ao acaso, mas muitas vezes têm razão. Notam pequenos pormenores, num estado de subconsciência, instintivamente, quase sem deles se aperceberem. Depois, juntam todos os factos recolhidos e chegam a conclusões surpreendentes. A isso dão o nome de intuição. Não se esqueça de que sou um psicólogo e sei de que estou a falar.

Bebeu um gole de chocolate e enxugou o bigode cuidadosamente.

  ‑ Gostaria que me dissesse francamente o que pensa de todo este caso.

  ‑ Mas o doutor viu tanto como eu. As suas ideias devem ser idênticas às minhas.

  ‑ Não esteja a caçoar comigo. Não tenho prática de assuntos desta natureza.

Poirot sorriu com indulgência.

  ‑ Pois bem, vou dar‑lhe uma lição. Em primeiro lugar, é necessário formar uma ideia bem clara de tudo quanto aconteceu naquela noite, tendo‑se sempre presente que quem falou não nos disse a verdade.

  ‑ É uma atitude muito suspeitosa ‑ observei.

  ‑ Mas imprescindível, garanto‑lhe. Por exemplo, o doutor Sheppard declarou ter deixado a villa às nove menos dez. Como poderei ter a certeza disso?

  ‑ Porque eu lho disse.

  ‑ Mas poderia dar‑se o caso de o seu relógio estar errado, ou o doutor, por qualquer motivo, não estar a falar verdade. Contudo, se aceitarmos essa sua declaração como verdadeira, registámos que, às nove horas, encontrou um indivíduo desconhecido, precisamente em frente do portão. Como poderei saber se é verdade? Poderia tratar‑se de um personagem imaginário, para desviar a atenção dos indícios que incriminam Rudolph Paton, ou outra qualquer pessoa que o doutor quer proteger. Sei contudo que não se tratou de um expediente, nem de uma alucinação, porque a criada de uma tal Miss Ganett também foi abordada por esse forasteiro, poucos minutos antes de o doutor o encontrar. O homem pediu‑lhe informações sobre o caminho a seguir para a villa Fernly e dessa maneira a sua informação, doutor, foi confirmada. Duas conclusões se tiram desse facto: o indivíduo não conhecia a villa e não procurava ocultar a sua visita, visto que se informou do caminho, junto de duas pessoas.

  ‑ Compreendo.

  ‑ Dei‑me ao trabalho de investigar – prosseguiu Poirot ‑, que o homem esteve a beber no Três Javalis e, aí, a criada disse‑me que ele falava com sotaque americano e dizia ter chegado dos Estados Unidos.

  ‑ Também tive essa impressão ‑ declarei ‑, mas a pronúncia era pouco notória.

  ‑ Precisamente. Agora, aqui tem um pequeno objecto que encontrei no quiosque.

Pôs‑me diante dos olhos o tubo da pena de pato. Olhei‑o com viva curiosidade e, subitamente, lembrei  ‑me de uma coisa que lera acerca de cocaína.

Poirot fez um sinal de aprovação, quando lhe men  cionei o facto.

  ‑ Exactamente. Os cocainómanos servem‑se usualmente de uma pena de ave, para cheirarem cocaí  na. Essa maneira de aspirarem estupefacientes é muito comum nos Estados Unidos e no Canadá. Bastou jun  tar dois e dois.

  ‑ Mas como se lembrou de procurar no pavilhão rústico? ‑ admirei‑me.

  ‑ Porque pensei que, se alguém quisesse marcar um encontro na villa Fernly, sem dar nas vistas, utilizaria aquele quiosque, como aqui lhe chamam.

  ‑ E o pedaço de cambraia?

  ‑ Se quisesse usar a sua massa cinzenta, a explicação ser‑lhe‑ia evidente.

  ‑ Continuo a não ver...

  ‑ Não tem importância, por agora. O que interessa é descobrir esse indivíduo e com quem teria vindo encontrar‑se.

  ‑ Está a pensar no facto de Mistress Ackroyd e Flora terem vindo do Canadá, para se instalarem aqui?

  ‑ Também essa hipótese seria de considerar.

  ‑ Por isso aludiu a que lhe ocultavam a verdade?

  ‑ Talvez, mas prossigamos: que me diz à história da criada?

  ‑ Que história?

  ‑ Do despedimento. Seria realmente necessária meia hora para despedir uma criada? Acha verosímil a justificação dos papéis importantes desarrumados? E note: embora a rapariga declare que esteve no seu quarto, desde as nove até às dez horas, ninguém confirmou essa sua asserção.

  ‑ O senhor deixa‑me perplexo ‑ confessei. Tirei do bolso uma folha de papel e declarei:

  ‑ Muito bem. Como me disse ser sempre necessário método, alinhavei algumas notas, a fim de analisarmos os factos, sob um ponto de vista lógico.

  ‑ É precisamente o que o meu amigo Hastings costumava dizer ‑ interrompeu Poirot ‑, mas infelizmente nunca conseguia pôr em prática o seu princípio.

Comecei a ler:

Primeiro ponto ‑ Mr. Ackroyd foi ouvido a falar com alguém, às nove e meia.

Segundo ponto ‑ A certa hora indeterminada da noite, Rudolph Paton deve ter penetrado pela janela, como ficou provado pelas marcas dos seus sapatos.

Terceiro ponto ‑ Naquela noite, Mr. Ackroyd estava bastante inquieto e decidira só receber pessoas conhecidas.

Quarto ponto ‑ A pessoa que se encontrava com ele,às nove e meia, pedia dinheiro. Ora, sabemos que Rudolph se encontrava com dificuldades financeiras.

Estes quatro pontos concorrem para demonstrar que a pessoa que se achava com Mr. Ackroyd, às nove e meia, só podia ser Rudolph Paton. Contudo, por outro lado, sabe‑se que Mr. Ackroyd ainda estava vivo às dez menos um quarto. Desta maneira, conclui‑se que não foi Rudolph quem o matou. Este, ao sair, deixou a janela aberta. Foi por essa via que o assassino penetrou na villa.

  ‑ Então, quem foi o assassino? ‑ inquiriu Poirot.

  ‑ O americano. Podia estar de acordo com Parker e talvez fosse o mordomo quem exercia chantagem sobre Mistress Ferrars. Sendo assim, deve ter percebido que a extorsão fora descoberta e precisou de avisar o cúmplice. Este, por sua vez, utilizou o punhal fornecido por Parker, para perpetrar o crime.

  ‑ Eis uma reconstituição válida ‑ elogiou Poirot.

‑ Vê‑se que o doutor também tem a sua parcela de massa cinzenta. Comete, porém, o erro de desprezar muitos elementos.

  ‑ Quais, por exemplo?

  ‑ O telefonema; a poltrona colocada fora do seu lugar...

  ‑ Acha esse elemento muito importante? ‑ perguntei ligeiramente amuado.

  ‑ Talvez não, mas há ainda o desaparecimento das quarenta libras.

  ‑ Roger pode ter reconsiderado e deve tê‑las dado a Rudolph ‑ sugeri.

  ‑ O que ainda deixa um ponto obscuro.

  ‑ Qual?

  ‑ Por que motivo estava Blunt certo de que o secretário se encontrava com Ackroyd às nove e meia?

  ‑ Ora, ele explicou isso ‑ observei.

  ‑ Parece‑lhe? Bem, não quero, por agora, insistir nesse ponto. Diga‑me quais foram as razões que levaram Rudolph a desaparecer?

  ‑ Isso é difícil de explicar. Sob um ângulo científico, diria que o sistema nervoso de Rudolph sofrera um súbito colapso. Ao saber que o tio fora assassinado, após o seu diálogo com ele, tempestuoso, ficou impressionado, tomado de pânico e fugiu. Não seria o primeiro a agir desse modo. Sei de muitos indivíduos inocentes que se comportaram como culpados, em circunstâncias semelhantes.

  ‑ Sim, é verdade ‑ admitiu Poirot ‑, mas não devemos esquecer um factor.

  ‑ Bem sei: o motivo. Com a morte do tio, Rudolph herda uma enorme fortuna.

  ‑ Esse é um ‑ concordou o detective.

  ‑ Como, um?

  ‑ Certamente. Não se esqueça de que estamos perante três motivos diferentes. Alguém subtraiu o sobrescrito azul, com o nome do autor da chantagem. É possível que Rudolph fosse quem exercia a extorsão sobre Mistress Ferrars, já que, pelo que disse o advogado Hammond, havia algum tempo que Rudolph não recorria aos pedidos de dinheiro a Ackroyd. Isso leva‑nos a deduzir que tinha outra fonte de angariação monetária. E há ainda o facto de ele se encontrar num sarilho que temia chegasse aos ouvidos do tio. Finalmente, há o motivo de que já falámos.

  ‑ Pobre rapaz ‑ comentei, não sabendo como dissimular a minha surpresa. ‑ Tudo parece conspirar contra ele!

  ‑ Parece‑lhe? ‑ inquiriu Poirot. ‑ Eis o ponto em que não estamos de acordo. Três motivos são realmente muito, mas, mesmo assim, creio que Rudolph Paton esteja inocente... Contra todas as aparências.

 

MRS. ACKROYD

Depois da conversa há pouco narrada, pareceu‑me que a questão poderia ser dividida em duas partes, cada uma bem diversa da outra.

A primeira desenrola‑se desde a morte de Roger Ackroyd, verificada na noite de sexta‑feira, até à noite de segunda‑feira seguinte. É a rígida e exacta relação dos factos, tal como se apresentaram a Hercule Poirot. Durante todo esse tempo estive sempre a seu lado: o que ele viu, também eu vi.

Fiz o que pude para adivinhar os seus pensamentos, mas, até agora, não consegui. Embora me tenha posto ao corrente das suas descobertas como, por exemplo, a do anel, ocultou‑me as impressões de capital importância e sempre lógicas que se formavam no seu cérebro. Como descobri depois, essa discrição era uma característica essencial da sua índole. Limitava‑se, no máximo, a fazer algumas alusões, nada mais.   Como disse, até à noite de segunda‑feira, a minha exposição poderia ser exactamente a do próprio Poirot. Desempenhava o papel de Watson em relação ao seu amigo Sherlock Holmes; depois de segunda‑feira, as nossas investigações tomaram uma direcção diversa. Ele começou a trabalhar por conta própria. Vim a saber o que fazia porque, em King's Abbot, todos acabam por saber tudo; porém, não fui posto a par dos seus pensamentos. De resto, também eu tinha as mi  nhas preocupações.

O que me surpreende é o carácter fragmentário, típico desse período. Cada um trouxe a sua contribuição para a solução do mistério: era quase um jogo de palavras cruzadas ao qual cada um contribuía com uma pequena informação, uma pequena descoberta pessoal. Mas, a Poirot, somente cabe o merecimento de ter sabido combinar todos esses fragmentos, de modo a compor um quadro complexo.

Alguns factos pareciam ser insignificantes. Por exemplo, a questão dos sapatos pretos. Mas isso virá depois.

Para expor as coisas na sua ordem estritamente cronológica, devo começar com a chamada   parte de Mrs. Ackroyd. Mandou‑me chamar bem cedo, na manhã de terça‑feira; julgando tratar‑se de um caso urgente, apressei‑me a atendê‑la, temendo encontrá‑la no fim da vida.

Estava de cama. Estendeu‑me a mão ossuda e indicou‑me uma cadeira que se encontrava perto do leito.

  ‑ Então, Mistress Ackroyd? ‑ perguntei.‑ Que há?

  Falei com aquela espécie de falsa cordialidade que parece ser obrigatória por parte de um médico.

  ‑ Estou pronta! ‑ disse com um fio de voz.‑ Inteiramente pronta. Foi o golpe que recebi com a morte do pobre Roger. Costuma‑se dizer que certas dores não se sentem no momento. A reacção vem mais tarde!

É pena que a um médico seja vedado, na sua profissão, dizer o que às vezes realmente pensa. Não sei quanto teria pago para poder responder‑lhe:   Velha hipócrita!

Em vez disso, tive de receitar‑lhe um tónico, que ela aceitou de bom grado. Não pensei que me tivesse chamado para falar‑me do golpe que recebera com a morte de Ackroyd. Mas a viúva revelava absoluta incapacidade de seguir uma linha recta em qualquer assunto. Aproximava‑se sempre do objectivo por linhas transversas.

  ‑ Depois daquela cena de ontem! ‑ continuou a minha paciente. Parou, como se esperasse que eu retomasse o fio do discurso.

  ‑ Que cena?

  ‑ Mas, doutor! .. . É possível que se tenha esquecido? Aquele odioso homenzinho francês... ou belga, ou lá o que ele seja... Insultar‑nos como o fez! Perturbou‑‑me completamente. Uma coisa dessas depois da morte de Roger?

  ‑ Sinto muito, Mistress Ackroyd.

  ‑ Não sei o que pretendia. Gritar daquela maneira! Julgo saber qual seja o meu dever e nada tenho a ocultar. Prestei à polícia todo o auxílio que me foi possível!

  Calou‑se. Depois, prosseguiu:

  ‑ Ninguém pode dizer que eu tenha faltado ao meu dever. Estou certa que o inspector Raglan está mais do que satisfeito. Por que razão esse forasteiro se intromete? No fim de contas, é tão ridículo! Não sei porque Flora insistiu em que ele tratasse do caso. Nunca me falou nisso. Foi procurá‑lo, por iniciativa própria, sem sequer me consultar. Ela é muito independente. E não pensa que sou uma mulher com experiência e, afinal de contas, sua mãe. Deveria ter falado comigo antes e pedir a minha opinião. Eu escutava em silêncio.

  ‑ Pensa que tenho alguma coisa a ocultar? E ontem, teve a coragem de acusar‑me! Encolhi os ombros.

  ‑ Ora, Mistress Ackroyd, são coisas sem importância. Desde o momento que nada tem a ocultar, qualquer que seja a acusação que ele tenha feito não poderá atingi‑la. Subitamente, a viúva mudou de assunto.

  ‑ Os servidores são tão aborrecidos! Estão sempre a fazer comentários. Assim, as murmurações propagam‑se... e na maioria das vezes sem motivo.

  ‑ Ah! Os criados falaram? ‑ Interessei‑me.‑ E a propósito de quê?

Mrs. Ackroyd olhou‑me muito significativamente, deixando‑me perplexo.

  ‑ Estava certa, doutor, de que o senhor soubesse melhor do que qualquer outro. Não esteve sempre com Mister Poirot?

  ‑ Sim.

  ‑ Então deve saber. Aquela Ursula Bourne... E natural que esteja para partir. Quis praticar todos os desaforos que pôde! Os criados são tão insidiosos! Vai saber exactamente o que ela teve a coragem de dizer. Não quero que circulem falsas impressões. Afinal, o senhor não irá repetir todos os pormenores à polícia, não é verdade? Às vezes, há questões de família, coisas que nada têm que ver com o crime. Mas, se a rapariga é ruim, pode ter inventado sabe Deus quantas perfídias.

Percebi imediatamente que atrás dessas desordenadas efusões devia ocultar‑se uma inquietação profunda. As induções de Poirot estavam bem justificadas! Entre as seis pessoas que ontem se encontravam em torno da mesa, Mrs. Ackroyd tinha, pelo menos, qualquer coisa a ocultar. Eu ia agora descobrir o que era!

  ‑ Se eu estivesse no seu lugar, Mistress Ackroyd, decidir‑me‑ia a confessar tudo.

Soltou um gemido.

  ‑ Ah, doutor!, como pode ser tão severo? Parece‑me como se... como se... Contudo, posso explicar‑lhe tudo tão facilmente!

  ‑ E então porque o não faz? ‑ encorajei.

Puxou um lenço bordado e começou a lacrimejar.

  ‑ Julgava, doutor, que o senhor pudesse apresentar o facto a Mister Poirot, explicando‑o, porque é tão difícil que um estrangeiro possa compreender os nossos pontos de vista. E o senhor não sabe, ninguém o pode saber, contra o que tive de lutar! Um martírio, um longo martírio! Eis o que foi a minha vida. Não gosto de falar mal dos mortos, mas é assim. Não havia a mais insignificante conta que não passasse pelas suas mãos... como se Roger ganhasse apenas uma miserável centena de libras por ano, em vez de ser (como dizia ontem o advogado Hammond) um dos homens mais ricos da região.

Calou‑se por um momento, enxugando os olhos com o lenço bordado.

  ‑ Compreendo ‑ animei. ‑ A senhora falava de contas a pagar?

  ‑ Ah! As malditas contas! E algumas nem quis que as visse. Tratavam de coisas que um homem não poderia compreender. Estou certa que teria dito não serem necessárias. Naturalmente, as contas subiam e continuavam a subir...

Dirigiu‑me um olhar implorativo, como se procurasse uma palavra de consolo para essa insólita consequência.

  ‑ É assim, realmente. É uma particularidade que têm as contas ‑ confirmei.

  Então, mudou de tom e tornou‑se decididamente agressiva.

  ‑ Garanto‑lhe, doutor, que me sentia sempre dominada por uma terrível agitação nervosa. A noite, não conseguia dormir; tinha sempre dolorosas palpitações do coração. Um dia, recebi por carta um oferecimento; verdadeiramente, eram duas cartas de dois cavalheiros gentilíssimos. Chegavam justamente no momento oportuno. Fornecerei imediatamente de dez a dez mil libras, contra um simples "pagarei"  , murmurou com tristeza, depois de uma pausa. ‑ Escrevi a um deles mas, parecia existirem dificuldades.  Calou‑se.

Percebi que chegava à encruzilhada. Nunca conheci pessoa com mais dificuldade de se explicar do que Mrs. Ackroyd.

  ‑ Veja ‑ murmurou ‑, é uma questão de espera e de perspectivas. Naturalmente, perspectivas de herança. E eu esperava que Roger se tivesse lembrado de mim no seu testamento, embora não soubesse como. Oh! Se eu tivesse podido dar uma olhadela no seu testamento (não para ser indiscreta, compreenda‑se bem!) mas só para poder tomar as minhas deliberações.

Lançou‑me um olhar de esguelha. A situação tornava‑se realmente delicada. Felizmente, as palavras, quando usadas habilmente, servem para mascarar a mais feia das realidades.

  ‑ Somente ao senhor ouso dizer isto, doutor Sheppard ‑ prosseguiu rapidamente. ‑ Ouso esperar

que não me julgue mal e que saberá apresentar as coisas a Mister Poirot sob a sua justa fisionomia. Foi na tarde de sexta‑feira...

Parou perplexa.

  ‑ Na tarde de sexta‑feira ‑ repeti para encorajá‑la ‑ e então?

  ‑ Todos tinham saído. Pelo menos, assim julguei. Entrei no escritório de Roger (tinha um motivo real que ali me levava) isto é, quero dizer que nada havia de incorrecto nas minhas intenções. E, ao ver papéis amontoados sobre a secretária, tive uma ideia repentina: quem sabe se Roger não guardará o seu testamento numa das gavetas da secretária? Sou assim, impulsiva por natureza; sempre fui, desde criança... Deixo‑me conduzir pela impressão momentânea... Meu cunhado deixava as chaves (muito imprudente da sua parte) na fechadura da gaveta superior.

  ‑ Ah! ‑ exclamei, como para ir em seu auxílio.‑ A senhora remexeu na gaveta. E pôde encontrar o testamento?

Ela emitiu um pequeno grito e fez‑me compreender não ter eu sido suficientemente diplomata.

  ‑ Que insinuações! Que pergunta! Mas se não houve nada disso!

  ‑ Não, certamente ‑ apressei‑me a repreender‑me. ‑ A senhora deve desculpar a maneira um pouco rude como costumo dizer as coisas.

  ‑ É assim mesmo. Os homens são tão singulares!

No lugar do pobre Roger, não teria dificuldade alguma em revelar as disposições testamentárias. Mas os homens são tão reservados! É natural que se recorra a pequenos subterfúgios para defesa própria.

  ‑ E o resultado desses pequenos subterfúgios?‑ perguntei.

  ‑ É justamente o que eu estava para dizer‑lhe. Chegara à última gaveta, quando Ursula Bourne entrou na sala. Coisa aborrecidíssima. Naturalmente, fechei a gaveta e levantei‑me. Fiz‑lhe observar que, sobre a secretária, ainda havia pó. Mas não me agradou o seu aspecto: muito respeitosa, como de costume, mas com uma expressão estranha no olhar. Quase de desprezo. Nunca traguei aquela rapariga. É boa criada, chama‑me sempre senhora e não faz caretas para usar a touca e o avental (como fazem muitas actualmente, garanto‑lhe). E sabe dizer: Não está em casa, sem nenhum escrúpulo, quando vai responder à porta. E não tem aqueles equívocos ruídos de estômago quando vai servir à mesa, como parece terem quase todas as criadas... Ah! onde ia eu?

  ‑ Estava a dizer que, não obstante as diversas qualidades, a rapariga nunca lhe agradou.

  ‑ Nem antes, nem agora. É estranho... Há nela qualquer coisa diferente das outras. É muito instruída, a meu ver.

  ‑ E depois, que aconteceu? ‑ perguntei.

  ‑ Nada. Isto é, meu cunhado entrou no escritório. Julgava que ele estivesse a passear.

  ‑   Que há?  , perguntou. Nada, respondi. Vim buscar o jornal.   Agarrei no jornal e saí. A criada ficou no escritório. Ouvi que perguntou a Roger se lhe podia falar por um momento. A seguir subi ao quarto para me deitar. Sentia‑me muito perturbada e nervosa. Seguiu‑se uma pausa.

  ‑ O doutor explicará tudo a Mister Poirot, não é   verdade? Pode ver como a coisa em si é insignificante. Naturalmente, quando vi que insistia tanto, dizendo que todos ocultávamos qualquer coisa, pensei imediatamente que fosse isto. Talvez a criada tenha feito um barulho dos diabos em torno deste facto; mas o senhor saberá explicar, não é verdade?

  ‑ É tudo? ‑ perguntei. ‑ Disse‑me realmente tudo?

  ‑ Ss... ‑ respondeu Mrs. Ackroyd, com certa hesitação. ‑ Oh! Sim! ‑ acrescentou com firmeza. Contudo, pressenti haver mais qualquer coisa. Foi um verdadeiro relâmpago de génio que me sugeriu naquele instante esta pergunta:

  ‑ Desculpe, foi a senhora quem deixou aberta a mesinha da sala? O rubor significativo que se espalhou pelo seu rosto e que nem o rouge nem o pó‑de‑arroz conseguiram esconder, foi mais eloquente que qualquer resposta.

  ‑ Como soube? ‑ murmurou.

  ‑ Então foi a senhora?

  ‑ Sim... eu... sabe... havia dois objectos de prata velha... muito interessantes. Li muito a respeito destas coisas; num livro havia até reproduções de um pequeno objecto que alcançara um preço enorme, num leilão. Pareceu‑me idêntico ao que se encontrava na mesinha. Pensei em tirá‑lo para levar comigo a Londres, quando tivesse ocasião para... para mandá‑lo avaliar. Se fosse realmente um objecto de valor, que bela surpresa seria para Roger!

Abstive‑me de fazer comentários e aceitei a explicação de Mrs. Ackroyd pelo que ela valia. Cuidei até de não lhe perguntar porque tentava subtrair de um modo tão clandestino o que desejava levar com um fim tão inocente.

  ‑ E porque foi que deixou a tampa levantada?‑ perguntei. ‑ Esqueceu‑se?

  ‑ Assustei‑me ‑ respondeu. ‑ Ouvi rumor de passos do lado de fora, no terraço. Apressei‑me a sair da sala e subi a escada justamente antes de Parker abrir a porta.

  ‑ Deve ter sido Mistress Russell ‑ murmurei, pensativo. Mrs. Ackroyd acabava de revelar‑me um facto que era extremamente interessante. Se os seus propósitos, relativamente às quinquilharias de Ackroyd, tinham sido rigidamente honestos ou não, não sabia nem me interessava saber. O que me interessava era o facto de Mrs. Russell ter passado para entrar na sala, pela porta envidraçada que dava para o terraço, o que provava que não me enganara quando me pareceu anelante, como se viesse de uma rápida corrida. Onde teria estado? Pensei no quiosque do jardim e no pedaço de cambraia.

  ‑ Quem sabe se Mistress Russell manda engomar os lenços? ‑ perguntei, tomado de súbita intuição.

O assombro de Mrs. Ackroyd fez‑me voltar à realidade e levantei‑me para sair.

  ‑ Crê que poderá explicar a Mister Poirot, o acontecido? ‑ perguntou‑me ansiosamente.

  ‑ Certamente. Não duvide.

Finalmente, pude sair após ouvir ulteriores explicações da sua conduta. A criada encontrava‑se no vestíbulo e foi ela quem me ajudou a vestir o sobretudo. Observei‑a mais atentamente do que fizera até então. Era evidente que devia ter chorado.

  ‑ Como foi ‑ perguntei ‑ que nos disse que Mister Ackroyd a chamara ao escritório na sexta‑feita? Soube que, pelo contrário, foi a menina quem lhe quis falar. Baixou os olhos um instante; depois declarou:

  ‑ De qualquer modo, tencionava despedir‑me‑ disse, titubeante.

  Nada mais acrescentei. Abriu‑me a porta e, quando estava para sair, perguntou‑me baixando a voz:

  ‑ Desculpe, doutor, não há notícias do capitão Paton?

Abanei a cabeça, olhando‑a surpreso.

  ‑ Todavia deve voltar ‑ respondi.

Olhava‑me com um olhar implorante.

  ‑ Ninguém sabe onde está? ‑ perguntou.

  ‑ Você sabe? ‑ perguntei vivamente. Abanou a cabeça.

  ‑ Nada sei. Mas se alguém fosse verdadeiramente amigo dele, devia dizer‑lhe para voltar, custe o que custar.

Parei um momento, esperando que me dissesse mais alguma coisa. Em vez disso, a pergunta que me dirigiu causou‑me imensa surpresa.

  ‑ Quando julga que foi praticado o crime? Antes das dez?

  ‑ Sim, julga‑se que foi entre as nove e três quartos e as dez.

  ‑ Não antes? Não antes das nove e três quartos?

Fixei‑a atentamente. Era tão evidente que esperava uma resposta afirmativa!

  ‑ Não, isso está fora de dúvida ‑ esclareci.‑ Miss Ackroyd viu o tio ainda com vida às nove e três quartos.

Voltou‑se abatida, como se estivesse para desfalecer.

Que linda pequena!, pensei enquanto me afastava. Uma beleza rara! Caroline estava em casa. Recebera nova visita de Poirot e mostrava‑se toda orgulhosa.

  ‑ Não sabes que estou a ajudá‑lo nas suas investigações? ‑ declarou.

  Experimentei um vago sentimento de inquietação, ao vê‑la encorajada nos seus instintos policiais.

  ‑ Andas, por acaso, à procura da jovem misteriosa que se encontrava com Rudolph? ‑ perguntei.

  ‑ Em todo o caso, poderia fazê‑lo por minha conta. Mas não é isso que Mister Poirot quer que indague.

  ‑ Que quer saber, então? ‑ perguntei.

  ‑ Quer saber se as botas de Rudolph eram pretas ou amarelas ‑ informou Caroline solenemente.

  Fixei‑a, estupefacto. Somente agora via que estúpido fora, a propósito dessas botas. Não compreendi o objectivo da pergunta.

  ‑ Eram sapatos amarelos ‑ esclareci.

  ‑ Mas não, Jacques, não se trata de sapatos, trata‑se de botas. Mister Poirot quer saber se o par de botas que Rudolph tinha consigo, no hotel, eram pretas ou amarelas. E um elemento de grande importância.

Fui mesmo obtuso. Não compreendi.

  ‑ E como conseguirás saber? ‑ perguntei.

Respondeu que, quanto àquele ponto, não haveria dificuldade. A melhor amiga da nossa criada Anny era a Clara, criada de Miss Ganett. E Clara dava‑se com o criado do hotel Três Javalis. Tudo se resolveu com a máxima simplicidade; com o auxílio de Miss Ganett, que lealmente colaborava na empresa e que, para isso, concedeu a Clara uma breve licença; a incumbência foi concluída com rapidez.

De modo que, à hora do almoço, minha irmã pôde observar com suprema indiferença:

  ‑ Ah! A propósito das botas de Rudolph...

  ‑ Então que há?

  ‑ Mister Poirot julgava que fossem amarelas. Enganou‑se. São pretas.

E Caroline sacudiu a cabeça várias vezes. Era evidente que julgava ter ganho um ponto sobre Poirot. Não respondi. Perguntava a mim próprio, bastante perplexo, que relação poderia ter com o crime a cor de um par de botas de Rudolph Paton.

 

GODOFRED RAYMOND

Naquele mesmo dia, devia ter outra prova da estratégia de Poirot. A ameaça de revelar quanto cada um de nós queria ocultar‑lhe fora um golpe magistral do seu conhecimento da natureza humana. Um misto de culpa e de temor arrancara a verdade a Mrs. Ackroyd. Fora a primeira a ceder; mas não devia ser a única.

Nessa tarde, de volta das minhas visitas, Caroline disse‑me que Raymond me procurara, tendo partido pouco antes da minha chegada.

  ‑ Queria falar‑me? ‑ perguntei, enquanto pendurava o sobretudo.

  Minha irmã apareceu.

  ‑ Queria falar com Mister Poirot ‑ disse. ‑ Vinha naquele momento da villa dos Lariços, mas o nosso vizinho não estava em casa. Então, Raymond julgou que ele estivesse aqui; ou que, pelo menos, soubesses onde se encontra.

  ‑ Não faço a mínima ideia.

  ‑ Procurei retê‑lo ‑ acrescentou ‑, mas disse que voltaria a passar pela villa dentro de meia hora e saiu. Foi pena, porque Mister Poirot voltou para casa logo após ele ter saído.

  ‑ Mas esteve aqui?

  ‑ Não, foi para sua casa.

  ‑ Como soubeste?

  ‑ Pela janela lateral ‑ explicou.

Pareceu‑me que estava esgotado o assunto. Mas minha irmã não desistiu.

  ‑ Não vais? ‑ perguntou.

  ‑ Aonde?

  ‑ Aos Lariços!

  ‑ Fazer o quê?

  ‑ Mister Raymond parecia estar ansioso por falar a Poirot ‑ respondeu Caroline. ‑ Poderias saber o que há no ar.

Franzi a testa.

  ‑ A curiosidade não é o meu pecado capital‑ observei friamente. ‑ Posso viver perfeitamente sem saber o que fazem e o que pensam os meus vizinhos.

  ‑ Não digas tolices, Jacques ‑ respondeu.‑ Näo és menos curioso do que eu. Somente não és tão sincero. Sentes sempre a necessidade de dissimular.

  ‑ Parece‑te, Caroline? ‑ resmunguei saindo para o consultório.

Dez minutos depois, bateu à porta e entrou. Tinha na mão uma coisa que parecia uma travessa com marmelada.

  ‑ Não te agradaria, Jacques, levar esta marmelada a Mister Poirot? Prometi‑lha. Nunca experimentou marmelada feita em casa.

  ‑ Porque não mandas Anny? ‑ perguntei secamente.

  ‑ Está ocupada.

Eu e minha irmã olhámo‑nos.

  ‑ Está bem ‑ acedi, levantando‑me. ‑ Mas fica entendido: deporei essa travessa na soleira da porta. Estamos entendidos, não é verdade?

Caroline franziu a testa.

  ‑ Naturalmente ‑ disse. ‑ Quem te pediu outra coisa?

Não soube que responder.

  ‑ Se por acaso encontrares Mister Poirot ‑ acrescentou, enquanto eu abria a porta ‑ poderás dizer‑lhe aquilo das botas...

Foi um golpe de verdadeira diplomacia, porque realmente, tinha pressa de decifrar o enigma das botas. Quando a velha criada, com a touca de bretã, me abriu a porta, quase automaticamente perguntei se Mister Poirot estava em casa...

O detective veio ao meu encontro, demonstrando viva satisfação.

  ‑ Sente‑se, meu amigo ‑ convidou. ‑ A poltrona ou esta cadeira? A sala não estará muito quente?

  Pareceu‑me que estava sufocante, mas não me arrisquei a dizê‑lo. As janelas estavam fechadas e na chaminé ardia um grande fogo.

  ‑ Os Ingleses têm uma verdadeira mania pelo ar fresco ‑ declarou. ‑ O ar livre está bem, lá fora, no seu lugar natural. Então porque deixá‑lo entrar em casa? Mas não falemos nessas banalidades. O senhor tem alguma coisa para mim?

  ‑ Duas coisas ‑ respondi. ‑ Em primeiro lugar isto, da parte de minha irmã.

  Entreguei‑lhe a marmelada.

  ‑ Como Miss Caroline é gentil. Não se esqueceu da promessa! E a segunda coisa?

  ‑ Trata‑se de uma informação.

E contei‑lhe do meu diálogo com Mrs. Ackroyd. Ouviu com interesse, mas sem se comover.

  ‑ Esclarece‑me uma dúvida ‑ disse, pensativo.

‑ E tem certo valor por vir confirmar o depoimento da governanta. Ela disse ter encontrado a tampa da mesinha da sala levantada e tê‑la baixado, ao passar.

  ‑ E que diz, a propósito da sua afirmação, de ter entrado na sala para ver se as flores estavam frescas?

  ‑ Ah! Nunca tomei a sério essa afirmação. Era bem evidente a desculpa, inventada apressadamente, apenas para explicar a sua presença ali. Explicava a sua comoção pelo facto de ter estado a mexer na mesinha; mas agora, parece‑me que se deve procurar outro motivo.

  ‑ Sim ‑ concordei. ‑ Com quem foi encontrar‑ e? Porquê?

  ‑ O senhor julga que tenha sido para encontrar‑se com alguém?

  ‑ Sim.

Poirot fez um sinal de assentimento. Houve uma pausa.

  ‑ A propósito ‑ acrescentei ‑ devo transmitir‑lhe uma informação da parte da minha irmã. As botas de Rudolph Paton eram pretas e não amarelas.

Enquanto dizia isto, observava‑o atentamente e pareceu‑me ver nos seus olhos um relâmpago de desilusão.

  ‑ Tem a certeza de que não eram amarelas?

  ‑ Absoluta.

  ‑ Ah! ‑ exclamou ele. ‑ Que pena!

Pareceu‑me profundamente desiludido. Não quis entrar em explicações, mas imediatamente passou a outro assunto.

  ‑ Será indiscreto perguntar‑lhe que se passou a seguir de o senhor ter atentido a governanta, na sexta‑feira de manhã?

  ‑ Absolutamente nada ‑ respondi. – Terminada a consulta, falámos acerca de venenos, da facilidade e da dificuldade de lhes descobrir a acção, dos estupefacientes e das pessoas que os tomam.

  ‑ Com referência particular à cocaína? ‑ perguntou Poirot.

  ‑ Como sabe? ‑ perguntei um tanto surpreso.

Em vez de responder, levantou‑se e dirigiu‑se para um canto da sala onde se encontravam jornais. Trouxe‑me um exemplar do Dayle Budget, com a data de sexta‑feira, 16 de Setembro, e indicou‑me um artigo onde se falava do contrabando da cocaína.

  ‑ Eis o que lhe meteu na cabeça a cocaína ‑ disse o belga.

Não conseguia perceber o que queria dizer mas, justamente naquele momento, a porta abriu‑se e Raymond foi anunciado.

Entrou com as suas maneiras corteses e cumprimentou‑nos a ambos.

  ‑ Como está, doutor? Mister Poirot, é a segunda vez que venho a sua casa esta manhã. Estava interessado em vê‑lo.

  ‑ Talvez seja melhor que eu saia ‑ propus, embora sem muita vontade.

  ‑ Por minha causa não, doutor ‑ prosseguiu, sentando‑se a um sinal do detective. ‑ Vim fazer uma confissão.

  ‑ Verdade? ‑ disse Poirot, mostrando interesse.

  ‑ Na realidade, não é nada de importância. Mas, para dizer‑lhe a verdade, desde ontem à noite que a minha consciência não me deixa em paz. Ontem, o senhor acusou‑nos a todos de lhe ocultarmos qualquer coisa. Pois bem; devo confessar a minha culpa: tenho alguma coisa a dizer‑lhe.

  ‑ E que é, Mister Raymond?

  ‑ Como já disse, nada de importante... Estava endividado e não pouco; por forma que aquele legado chegou no momento oportuno. Quinhentas libras tiram‑me de dificuldades e ainda sobra alguma coisa.

Sorriu simpaticamente.

  ‑ Eis a história. Não é agradável confessar à polícia que se está depenado... Causa sempre má impressão. Mas fui verdadeiramente tolo. Naquela noite, fiquei a jogar com Blunt, na sala de bilhar, das nove e três quartos em diante; por isso tenho um álibi indestrutível e nada tenho a temer. Contudo, quando o senhor nos fez aquele sermão, a propósito do que ocultávamos... bem, senti vivo remorso na consciência e pensei vir aqui para libertar‑me dele.

Levantou‑se e olhou‑nos, sorrindo novamente.

  ‑ O senhor é um rapaz prudente ‑ disse Poirot, fazendo um sinal de aprovação. ‑ Quando sei que alguém tenta ocultar‑me alguma coisa, suspeito logo que aquilo que oculta seja algo muito feio. Fez muito bem em cá vir.

  ‑ Sinto‑me contente por me ter livrado de uma suspeita ‑ disse rindo, o secretário. ‑ Agora, vou‑me embora.

  ‑ Desta maneira, também ele está no seu lugar‑ observei, quando a porta se fechou, depois de ter

saído.

  ‑ Sim ‑ aprovou Poirot. ‑ Uma simples bagatela... mas, se não tivesse estado na sala de bilhar, quem sabe?... Afinal já se praticaram muitos crimes, pormenos de quinhentas libras. Tudo depende da quantia que pode bastar para transviar uma pessoa. E uma simples questão de relatividade, não lhe parece? Já pensou, meu amigo, quantas pessoas naquela casa tiraram benefício da morte de Mister Ackroyd? Mistress Ackroyd, a sua filha, o secretário, Mistress Russell... só um não tirou vantagem: o major Blunt. Pronunciou este nome com um tom de voz tão estranho, que o olhei embaraçado.

  ‑ Não chego a compreender ‑ confessei.

  ‑ Dois dos acusados disseram‑me a verdade.

  ‑ O senhor crê que também o major Blunt tenha alguma coisa a ocultar?

  ‑ Quanto a isso ‑ observou o detective displicentemente ‑ há um ditado que diz que os Ingleses só ocultam uma coisa: o seu amor. E parece‑me que o major não foi feito para subterfúgios.

  ‑ Às vezes pergunto a mim próprio se não chegámos a conclusões muito apressadas acerca deste assunto.

  ‑ Que quer dizer?

  ‑ Estabelecemos como premissa que o extorcionário de Mistress Ferrars e o assassino de Mister Ackroyd não podem ser mais do que uma só pessoa. Não é possível que estejamos enganados?

O belga fez um enérgico sinal de aprovação.

  ‑ Muito bem. Perguntava se teria pensado nisto. Naturalmente que é possível! Mas precisamos de não esquecer um ponto: o desaparecimento da carta. Isso não implica necessariamente que tenha sido o assassino quem a fez desaparecer. E possível que tenha sido subtraída por Parker, sem que o senhor se apercebesse, quando encontraram o cadáver.

  ‑ Parker?

  ‑ Sim, Parker. Volto sempre à figura do mordomo; mas não como assassino: ele não praticou o crime. Porém, quem senão ele, poderia ter sido o misterioso canalha que aterrorizava Mistress Ferrars? É possível que tenha chegado ao conhecimento do envenenamento por intermédio de algum criado dela. De qualquer modo, é muito mais provável que ele se tenha apoderado da carta, do que um hóspede casual, como o major, por exemplo.

  ‑ Decerto, é possível que tenha sido o mordomo quem fez desaparecer a carta ‑ concordei. ‑ Só mais tarde pude observar que não acertava.

  ‑ Mais tarde, quando? Depois que Blunt e Raymond entraram no escritório ou antes?

  ‑ Não posso lembrar‑me ‑ respondi lentamente.

‑ Parece‑me que foi antes... Não, depois. Sim, tenho quase a certeza que foi depois.

  ‑ A suspeita, agora, estende‑se a três pessoas‑ observou pensativo. ‑ Mas é mais provável que tenha sido Parker. Parece‑me oportuno tentar uma pequena experiência com o mordomo. Oiça, doutor, quererá acompanhar‑me até à villa Fernly?

 Concordei e saímos imediatamente. Poirot pediu para falar com Miss Ackroyd e esta apresentou‑se logo.

  ‑ Miss Flora ‑ começou o belga. ‑ Devo confiar‑lhe um pequeno segredo. Não estou completamente persuadido da inocência de Parker; proponho‑me fazer uma pequena experiência com o seu auxílio.

Quero reconstituir alguns dos actos daquela noite.

Mas antes, devo pensar em qualquer coisa para dizer‑lhe... Ah!, encontrei: desejo certificar‑me se de fora do terraço, se podem ouvir as vozes vindas do corredor. Agora, doutor, faça o obséquio de chamar o mordomo.

Fiz como ele me pedia e logo apareceu Parker, melífluo como sempre.

  ‑ Chamou, senhor?

  ‑ Sim, meu bom Parker. Pensei em fazer uma pequena experiência: mandei vir o major Blunt para o terraço e parar diante da janela do escritório. Quero saber se de lá se pode ouvir a voz de Miss Ackroyd e a sua, partindo do corredor. Quero repetir ainda, a pequena cena da outra noite. Queira ir buscar a bandeja ou o que trazia.

O mordomo saiu e nós fomos até o corredor, diante da porta do escritório. Pouco depois, ouvimos um tilintar proveniente do vesti'bulo; Parker apareceu na soleira com uma garrafa de soda, uma garrafa de uísque e dois copos.

  ‑ Um momento ‑ exclamou Poirot, levantando a mão. ‑ Tudo deve ocorrer com ordem; tal como

aconteceu. É um método meu, particular.

  ‑ É um método que praticam no estrangeiro, senhor ‑ observou o mordomo. ‑ Chamam‑lhe reconstituição do crime, não é verdade?

Estava imóvel e imperturbável, como se esperasse as ordens do detective.

  ‑ Ah! Sabe muita coisa, o nosso bom Parker!‑ exclamou Poirot. ‑ Vê‑se que lê. Bem, agora procuremos dispor cada coisa do modo mais exacto. Você chegava do vesti'bulo, assim. Miss Flora encontrava‑se...onde?

  ‑ Aqui ‑ respondeu Flora, tomando o seu lugar, justamente diante da porta do escritório.

  ‑ Muito bem, senhor ‑ disse o mordomo.

  ‑ Tinha apenas fechado a porta ‑ continuou Flora.

  ‑ Sim, miss ‑ aprovou Parker ‑, a sua mão estava ainda apoiada na maçaneta da porta, como agora.

  ‑ Prontos? ‑ interveio Poirot. ‑ Representem, então a pequena comédia.

Flora ficou com a mão apoiada na maçaneta e o criado, chegando do vestl'bulo, com a bandeja na mão, parou na soleira da porta que dá para o corredor.

__ Olá, Parker! Mister Ackroyd não quer ser incomodado esta noite  , disse a jovem.

  ‑ Está bem assim? ‑ perguntou em voz baixa.

  ‑ Optimamente, se a memória me não engana, miss ‑ disse o mordomo. A seguir, levantou a voz, num tom um tanto teatral, disse:   Está bem, miss. Devo fechar a porta, como de costume? Sim, peço‑lhe. Parker atravessou a porta para sair; Flora seguiu‑o e começou a subir a escada principal.

  ‑ Chega? ‑ perguntou sem se voltar.

  ‑ À maravilha ‑ declarou Poirot, esfregando as mãos. ‑ A propósito, Parker, tem a certeza de que estavam dois copos na bandeja, naquela noite? Para quem o segundo?

  ‑ Trazia sempre dois copos, senhor – respondeu Parker. ‑ Deseja mais alguma coisa?

  ‑ Nada mais, obrigado.

O mordomo retirou‑se com ar de suprema dignidade.

Poirot deixou‑se ficar no meio do vesu'bulo, de testa franzida. Flora desceu e aproximou‑se de nós.

  ‑ Deu‑lhe bons resultados a experiência? ‑ perguntou. ‑ Não me parece muito claro, sabe?...

  O belga olhou‑a e sorriu.

  ‑ Não é necessário que pareça muito claro miss.

Mas diga‑me uma coisa: havia realmente dois copos na bandeja de Parker, naquela noite? A moça franziu as sobrancelhas.

  ‑ Na verdade, não me lembro ‑ confessou.‑ Parece‑me que eram dois. É... é este o objectivo da

experiência?

O detective tomou‑lhe as mãos acariciando‑as.

  ‑ Interessa‑me sempre ver se os outros dizem a verdade.

  ‑ E parece‑lhe que Parker tenha dito a verdade?

  ‑ Inclino‑me a crê‑lo ‑ respondeu o belga pensativo.

Pouco depois, saímos.

  ‑ Diga‑me uma coisa: qual era o objectivo daquela pergunta acerca dos dois copos? ‑ perguntei com curiosidade.

Poirot ergueu os ombros.

  ‑ Era necessário dizer alguma coisa ‑ observou.‑ E aquela pergunta serviu como qualquer outra.

  Olhei‑o com surpresa.

  ‑ De qualquer modo, meu amigo ‑ prosseguiu ‑, agora sei uma coisa que queria saber. E fiquemos por aqui.

 

UMA PARTIDA EM FAMÍLIA

Naquela noite, em nossa casa, reuniu‑se um pequeno grupo para jogar o majongue. Esse género de divertimento é muito popular em King's Abbot. Os onvidados chegaram depois do jantar, com as suas galochas e os seus impermeáveis. Tomaram uma chícara de café e, mais tarde, doces, sanduíches e chá.

Os nossos hóspedes naquela noite eram Miss Ganett e o coronel Carter, que mora perto da igreja. Há sempre mexericos durante essas noitadas e, às vezes, chegam a impedir o prosseguimento do jogo. Outrora, jogava‑se o brídege ‑ um brídege terrível, barulhento, cheio de falatório e murmurações. Agora, achamos que o majongue é um jogo mais pacífico. Pelo menos, pode‑se evitar a pergunta irritada, sobre por que razão o parceiro jogou uma carta em lugar de outra; e se ainda continuarmos a exprimir os nossos juízos, estes estão longe do espírito acrimonioso de antes.

  ‑ Muito fria esta noite, não é, doutor? ‑ disse o coronel, com as costas viradas para o fogo. Caroline conduzira para o seu quarto Miss Ganett e ajudava‑a a desembaraçar‑se dos inúmeros agasalhos que a envolviam.

  ‑ Lembra‑me o Afeganistão ‑ acrescentou o coronel.

  ‑ Realmente ‑ respondi, cortês.

  ‑ É um caso muito misterioso esse do pobre Ackroyd ‑ continuou ele, sorvendo uma xícara de café.

‑ Há uma quantidade de pontos obscuros. Confidencialmente, ouvi falar em extorsão!

O coronel dirigiu‑me um olhar especial que poderia ser classificado o olhar entre os homens do mundo.

  ‑ Deve haver de permeio uma mulher ‑ admitiu.‑ Pode estar certo disso.

 Justamente naquele momento, apareceram minha irmã e Miss Ganett. Esta última tomou o café, enquanto Caroline puxava a caixa do majongue e colocava as pedras sobre a mesa.

  ‑ Lavagem das pedras ‑ disse o coronel em tom jocoso. ‑ Assim está bem... lavagem das pedras, como se dizia no nosso círculo, em Xangai.

Agora, é preciso que se saiba que tanto eu como a minha irmã temos a firme opinião que o coronel Carter nunca pôs os pés no Círculo de Xangai. E mais: que nas suas viagens pelo Oriente, nunca foi além da India onde, durante a guerra, lhe foi mandado fazer jogo de prestidigitação com latas  de carne em conserva e de marmelada. Mas ele anda sempre animado de um espírito decididamente militar e, em King's Abbot, toleramos que cada um se entregue livremente às suas pequenas manias.

  ‑ Comecemos ‑ disse Caroline.

  Sentámo‑nos em torno da mesa. Durante cerca de cinco minutos mantivemos um silêncio religioso, visto haver sempre em cada jogador uma luta secreta e tenaz para ser o primeiro a levantar a muralha.

  ‑ Então, para diante, Jacques ‑ exclamou finalmente, minha irmã. ‑ Seis Vento Este.

Tirei uma pedra. Fez‑se um par de giros, interrompidos pelas monótonas chamadas de Três Bambus, Duas Rodas, Pong e, frequentemente de Miss Ganett, de Unpong, dado o seu hábito inveterado de se apressar a reclamar pedras a que não tinha direito algum.

  ‑ Esta manhã, vi Flora Ackroyd ‑ disse ela.‑ Pong... não... Unpong. Enganei‑me.

  ‑ Quatro Rodas ‑ exclamou Caroline. – Onde foi que a viu?

  ‑ Ela, porém, não me viu ‑ respondeu a outra, com aquele ar cheio de misterioso significado que é característico dos lugarejos.

  ‑ Ah! ‑ exclamou Caroline com interesse.‑ Chau!

  ‑ Creio ‑ observou a amiga, momentaneamente distraída do assunto ‑ que se diz agora Ciau e não Chau.

  ‑ Tolices ‑ respondeu minha irmã ‑, eu sempre disse Chau.

  ‑ No Círculo de Xangai ‑ interveio o coronel‑ dizem Chau.

A solteirona, vencida, não disse palavra.

  ‑ Que estava dizendo a respeito de Flora Ackroyd? ‑ perguntou Caroline, depois de um instante dedicado ao jogo. ‑ Estava com alguém?

  ‑ Exactamente ‑ respondeu a outra.

As duas trocaram olhares e pareceram trocar também notícias.

  ‑ Verdade!? ‑ exclamou minha irmã, com interesse. ‑ É assim mesmo? Bem, afinal em nada me surpreende.

  ‑ Estamos à espera que jogue, Miss Caroline‑ observou o coronel, a quem agrada, às vezes, assumir uma atitude severa de inteira observação no jogo e de indiferença às tagarelices. Mas ninguém se ilude.

  ‑ Se quiserem que diga o que penso ‑ prosseguiu Miss Ganett. ‑ (Tirou um Bambu, Caroline? Ah! não, vejo... era uma Roda). Como dizia, se quiserem que dê a minha opinião, Flora teve uma sorte extraordinária. Lá isso teve!

  ‑ Oh! Como, Miss Ganett? ‑ perguntou o coronel. ‑ Faço Pong com aquele Dragão Verde. Como pode dizer que a Flora teve sorte? É uma jovem muito habilidosa, não há dúvida!

  ‑ É possível que eu não entenda muito de crimes‑ respondeu a outra, com ar de quem sabe tudo quanto se pode saber ‑, mas uma coisa posso dizer; a primeira pergunta que sempre se faz é: Quem foi a última pessoa que viu a vítima ainda com vida? E a pessoa que a viu torna‑se suspeita. Pois bem, Flora Ackroyd foi a última pessoa que viu o tio vivo. Esta circunstância não pode deixar de produzir impressão bastante desfavorável a respeito dela. É minha convicção, e ofereço‑a pelo que vale, que Rudolph permanece afastado por causa dela, para desviar as suspeitas.

  ‑ Ora! ‑ protestei. ‑ Não vai certamente supor que uma pequena como Flora seja capaz de apunhalar o próprio tio, a sangue‑frio.

  ‑ Eh! Não sei! ‑ continuou a outra. – Acabei há pouco de ler um livro sobre os bas fond de Paris em que se conta que entre os criminosos mais ferozes, há raparigas de rostos angélicos.

  ‑ Ah! Mas isso é na França ‑ observou prontamente minha irmã.

  ‑ Isso mesmo! ‑ apoiou o coronel. ‑ Agora, vou contar‑lhes uma coisa bem curiosa;, uma historiazinha que se divulgou nos bazares na India... A história do coronel foi de um comprimento interminável e pouco interessante. Um facto que aconteceu na Índia, há muitos anos, não se pode comparar, nem por um momento, com o acontecimento verificado em King's Abbot, há poucos dias. Foi Caroline quem conseguiu pôr termo à narrativa do coronel com a feliz ideia de retomar o jogo do majongue. Depois dos leves dissabores determinados pelas minhas correcções aos cálculos aritméticos de minha irmã, como sempre errados, jogámos outra partida.

  ‑ Passa o Vento Este ‑ disse ela. ‑ A propósito de Rudolph Paton, tenho uma ideia particular. Três Caracteres. Mas, de momento fico com ela.

  ‑ Ah! Sim, querida? ‑ exclamou a Ganett.‑ Chau... queria dizer, Pong.

  ‑ Sim ‑ respondeu, decidida, a minha irmã.

  ‑ E a propósito das botas, que aconteceu? ‑ perguntou a outra.

Minha irmã franziu os lábios e sacudiu a cabeça com ar de saber toda a história.

  ‑ Pong ‑ exclamou a nossa convidada. ‑ Não... Unpong. Creio que o doutor, que é íntimo de Mister Poirot, deve saber todos os segredos.

  ‑ Bem longe disso! ‑ respondi.

  ‑ Jacques é sempre tão modesto! ‑ observou Caroline. ‑ Ah!, um Kong escondido!

O coronel deixou escapar um assobio. Por um momento, a tagarelice parou.

  ‑ E tem também o próprio Vento ‑ disse.‑ E tem dois Pongs de Dragão. Devemos prestar atenção. Miss Caroline quer fazer um grande jogo!

Durante mais algum tempo, continuámos a jogar em silêncio.

  ‑ Mas Mister Poirot ‑ disse o coronel Carter‑ é tão grande detective como se diz?

  ‑ É o mais valente que jamais existiu ‑ respondeu solenemente Caroline. ‑ Imagine que teve de vir aqui incógnito, para evitar a publicidade.

  ‑ Chau ‑ exclamou Miss Ganett. ‑ É um verdadeiro acontecimento para o lugarejo. A propósito: Clara, a minha criada, é amiga íntima de Elsa, a criada da villa Fernly; e sabem o que disse? Que se verificou o roubo de uma avultada quantia em dinheiro e que é sua convicção, diz Elsa, que a outra criada sabe de alguma coisa. Vai deixar o serviço no fim do mês e à noite chora frequentemente. Se quiserem saber o que penso, provavelmente a rapariga tem relações com um bando de malfeitores. Sempre foi esquisita; não tem amigas entre as raparigas dos arredores. Nos dias de folga sai sozinha, coisa nada comum e que dá margem a suspeitas. Certa vez, convidei‑a para ir ao Círculo Educativo para as Raparigas e ela não aceitou. Então, fiz‑lhe algumas perguntas a respeito da sua casa, dos seus e de outras coisas mas, devo confessar, achei os seus modos extremamente impertinentes. Exteriormente, é muito misteriosa... mas fez‑me calar de um modo bem insolente.

A solteirona parou um momento para respirar e o coronel, que não tinha o mínimo interesse no problema das criadas, aproveitou para observar que, no Círculo de Xangai, o jogo movimentado era norma constante. Foi assim que se teve finalmente uma partida um pouco animada.

  ‑ Mas a tal Russell! ‑ recomeçou pouco depois minha irmã. ‑ Veio aqui com o pretexto de consultar Jacques, na sexta‑feira de manhã. Creio que apenas queria era ver onde estão guardados os venenos. Cinco Caracteres.

  ‑ Chau ‑ retorquiu a sua amiga. ‑ Que ideia estranha! Quem sabe se você não tem razão!

  ‑ A propósito de venenos ‑ interveio o coronel.‑ Ah! O quê? Não descartou? Oh! Oito Bambus!

  ‑ Majongue! ‑ exclamou Miss Ganett.

Caroline ficou desanimada.

  ‑ Um só Dragão Vermelho ‑ disse com tristeza ‑, e teria vencido com três duplos.

  ‑ Tive sempre dois Dragões Vermelhos durante todo o jogo ‑ declarei.

  ‑ Só a tua mentalidade, Jacques ‑ observou em tom de censura. ‑ Não compreendes o espírito do jogo.

Parecia‑me, pelo contrário, ter jogado bem. Se Caroline tivesse feito majongue, teria de pagar‑lhe uma quantia considerável. O majongue de Miss Ganett era dos mais mesquinhos, como minha irmã não deixou de observar.

Passou o Vento Este e começou em silêncio nova partida.

  ‑ O que estava dizendo há pouco é isto ‑ respondeu Caroline.

  ‑ Sim?! ‑ exclamou a amiga em tom animador.

  ‑ Isto, é o que penso a propósito de Rudolph Paton.

  ‑ Ah! Sim, querida ‑ disse a nossa hóspede num tom ainda mais encorajador. ‑ Chau.

  ‑ É um sinal de fraqueza fazer Chau tão ced o‑ respondeu minha irmã com severidade. ‑ Devia sustentar o jogo.

  ‑ Sei isso ‑ disse ela. ‑ Estávamos a falar de Rudolph, sabe?

‑ Sim. Parece‑me poder adivinhar onde se encontra.

Interrompemos o jogo e olhámo‑la com curiosidade.

  ‑ Isso é muito interessante, Miss Caroline ‑ observou o coronel. ‑ A ideia é inteiramente sua?

  ‑ Não totalmente. Já viram a carta geográfica da nossa província que está na entrada? Afirmámos tê‑la visto.

  ‑ No outro dia, quando Poirot estava para sair, parou examinando‑a e fez algumas observações de que não me lembro com precisão. Um comentário qualquer acerca de Cranchester ser a única cidade próxima, o que é verdade. Mas, depois de ele sair, veio‑me uma ideia...

  ‑ Que ideia?

  ‑ Que Rudolph se encontra em Cranchester.

Foi nesse momento que derrubei o estojo que continha as peças de jogo. Caroline repreendeu‑me pela distracção. Mas, toda entregue às suas suposições, não insistiu na reprimenda.

  ‑ Em Cranchester, Miss Caroline? ‑ estranhou o coronel. ‑ Qual!, é muito perto.

  ‑ Mais uma razão ‑ exclamou a outra com ar triunfante. ‑ Parece estar averiguado que não se afastou daqui no comboio. Deve ter ido a pé até Cranchester. E creio que ainda lá se encontra. Ninguém pensará em ir procurá‑lo tão perto.

Fiz ressaltar várias incongruências que tal hipótese apresentava: mas, quando minha irmã se aferra a uma ideia não há quem lha tire da cabeça.

  ‑ E julga que Mister Poirot seja da mesma opinião? ‑ perguntou Ganett pensativa. ‑ É uma coincidência verdadeiramente curiosa! Hoje, saí a passeio pela estrada de Cranchester e Mister Poirot passou por mim num automóvel que vinha daquela direcçäo. Olhámo‑nos uns aos outros.

  ‑ Ah! Finalmente! ‑ exclamou de súbito a solteirona. Fizera majongue há muito sem que o soubesse.

A atenção de Caroline foi chamada à realidade. Observou à amiga que não valia a pena fazer majongue numa partida de cores mistas e de muitos Chaus. A outra ouviu imperturbável e recolheu os lucros.

  ‑ É verdade, minha amiga, sei o que quer dizer ‑ observou. ‑ Mas isso depende do modo de começar uma partida, não acha?

  ‑ Sim, mas nunca fará uma grande partida, desse modo ‑ rebateu minha irmã.

  ‑ Bem, cada um joga como sabe ‑ respondeu a outra. ‑ Apesar de tudo, estou a ganhar.

Minha irmã, que, pelo contrário, estava a perder muito, nada disse.

Passou o Vento Este e recomeçou o jogo. Entretanto Anny preparava o chá. Minha irmã e a amiga olhavam‑se de esguelha, como acontece frequentemente durante essas festivas noitadas.

  ‑ Se se decidir a jogar um pouco mais depressa, minha amiga... ‑ observou Caroline, vendo que ela jogava depois de longa hesitação. ‑ Os Chineses jogam as pedras com muita rapidez. E durante alguns minutos, jogámos como os Chineses.

  ‑ Caro doutor, não se pode dizer que o senhor tenha contribuído muito com as suas notícias ‑ observou alegremente o coronel. ‑ Já sabemos! É um perito! Agarrado ao grande detective não deixa escapar nem um gesto nem uma palavra a respeito do andamento do caso.

  ‑ Sim! Jacques é extraordinário ‑ respondeu minha irmã. ‑ É contra a sua natureza dizer o que sabe.

‑ E olhou‑me, evidentemente, pouco satisfeita.

  ‑ Garanto‑lhes ‑ objectei ‑ que nada sei. Poirot sabe guardar os seus segredos.

  ‑ Ele é esperto! ‑ disse o coronel com um sorriso malicioso. ‑ São realmente maravilhosos esses polícias estrangeiros! Conhecem todos os truques e todos os ardis!

  ‑ Pong ‑ declarou Miss Ganett, em tom pacato de triunfo. ‑ É majongue.

A situação tornou‑se tensa. Aborrecida por a amiga ter feito majongue pela terceira vez, Caroline não soube fazer outra coisa senão descarregar a sua raiva sobre mim que estava a erguer uma nova muralha.

  ‑ Como és aborrecido, Jacques! ‑ exclamou.‑ Ficas aí com essa careta e não nos contas nada!

  ‑ Minha irmã ‑ protestei. ‑ Nada tenho a dizer, pelo menos no género do que pensas!

  ‑ Tolices! Deves saber alguma coisa de interessante.

Não respondi. Estava entusiasmado, quase inebriado de contentamento. Sabia que no jogo há uma figura chamada Vitória Perfeita que é quando o jogador fazmajongue no primeiro lance, com as suas pedras originais. Nunca esperei ganhar daquele modo.

Procurando refrear a minha alegria, estendi a mão com a palma para cima.

  ‑ Como dizem no Círculo de Xangai ‑ exclamei.

‑ Tin‑ho, isto é, Vitória Perfeita!

O coronel ficou com os olhos fora das órbitas.

  ‑ Palavra de honra! ‑ disse. ‑ É verdadeiramente extraordinário! Nunca vi coisa semelhante!

Foi então que comecei a tagarelar, provocado pelos gracejos de Caroline e tornando‑me imprudente devido ao triunfo.

  ‑ A propósito de notícias interessantes ‑ exclamei. ‑ Que diriam de uma aliança de oiro, com esta gravação interna:   De R.  ?

Abstenho‑me de descrever a cena que se seguiu. Fui obrigado a dizer exactamente onde fora achado esse tesouro. Fui obrigado a revelar a data.

  ‑ Treze de Março ‑ observou minha irmã.‑ Justamente há seis meses.

Da aflitiva babel das hipóteses e deduções, foi possível chegar às três seguintes conclusões:

l.a ‑ O coronel Carter sugeria que Rudolph se casara secretamente com Flora. Esta foi a primeira e a mais simples solução.

2.a ‑ A de Miss Ganett, que Roger Ackroyd se casara secretamente com Mrs. Ferrars.

3.a ‑ A de minha irmã, que Roger Ackroyd se casara com a governanta, Mrs. Russell.

Uma quarta solução, uma verdadeira super‑hipótese, foi formulada mais tarde, pela própria Caroline, na hora de ir deitar‑se.

  ‑ Lembra‑te das minhas palavras ‑ disse repentinamente. ‑ Não me admiraria de que Flora e Raymond se tivessem casado.

  ‑ Mas então haveria   De G.   e não   De R.   gravado na aliança ‑ objectei.

  ‑ Nunca se sabe. Há raparigas que têm o costume de chamar os homens pelo sobrenome. Depois, ouviste o que disse a Ganett, a respeito do comportamento de Flora?

No rigor da verdade, não me consta que a Ganett tenha dito coisa alguma a tal respeito, mas não quis contradizê‑la.

  ‑ E que dirias do major Blunt? ‑ observei. – Se há alguém...

  ‑ Tolices! ‑ disse Caroline. ‑ Não nego que ele tenha admiração, mesmo amor, por ela. Mas, acredita‑me, uma rapariga não se dispõe a apaixonar‑se por um homem que poderia ser pai dela, quando há um rapagão como o secretário que lhe faz a corte. É possível que se sirva do major para disfarçar. Elas são muito espertas. Mas há uma coisa que quero dizer‑te: que Flora não se interessa por Rudolph e nunca se interessou por ele. Isso te garanto eu. Aceitei, docilmente, a afirmação de minha irmã.

 

PARKER

Na manhã seguinte, tive a impressão de que a satisfação da Tin‑ho, a Vitória Perfeita, me tornara indiscreto. Poirot pedira‑me que mantivesse segredo sobre a descoberta do anel e eu era a única pessoa que estava ao corrente da descoberta. A notícia agora, já se estava a divulgar pelo lugarejo, como incêndio na floresta. Esperava, portanto, uma série de censuras, por parte do detective.

As exéquias de Mrs. Ferrars e de Mr. Ackroyd foram marcadas para as onze horas. Foi uma cerimónia comovedora. Estiveram presentes todos os habitantes da villa Fernly.

Terminada a solenidade, Poirot pegou‑me pelo braço e obrigou‑me a acompanhá‑lo até casa. Tinha um ar muito grave e temi que a minha indiscrição da noite anterior lhe tivesse chegado aos ouvidos. Mas percebi que pensava noutra coisa.

  ‑ Doutor, temos de agir! Quero examinar uma testemunha com a sua intervenção. Interrogá‑la‑emos e infundir‑lhe‑emos tal terror que a verdade terá de surgir.

  ‑ A que testemunha alude? ‑ perguntei.

  ‑ Parker! ‑ respondeu. ‑ Disse‑lhe que se encontrasse em minha casa ao meio‑dia. A esta hora já lá deve estar.

  ‑ Julga que era ele quem explorava Mistress Ferrars? Ou ele, ou... Então? ‑ perguntei depois de um instante de espera.

  ‑ Digo‑lhe isto, meu caro amigo: espero que seja ele.

O ar grave e algo de indefinível que essa atitude evidenciava, reduziram‑me ao silêncio.

Chegados à villa dos Lariços, anunciaram‑nos que Parker estava à nossa espera. Quando entrámos na sala, o mordomo levantou‑se, com deferência.

  ‑ Bom dia, Parker ‑ disse Poirot, cortesmente.

Tirou as luvas e o sobretudo. O mordomo aproximou‑se, pegou nos objectos com o máximo cuidado e colocou‑os sobre uma cadeira, perto da porta. Poirot observava‑o com olhar de aprovação.

  ‑ Obrigado, meu bom Parker. Sente‑se, porque preciso de falar‑lhe.

O criado sentou‑se com um leve gesto de agradecimento.

  ‑ Por que motivo julga que o mandei vir cá?

Parker tossiu.

  ‑ Pensei, senhor, que desejasse fazer‑me alguma pergunta sobre o meu defunto amo... coisas confidenciais.

  ‑ Precisamente ‑ respondeu Poirot. ‑ E... você tem muita experiência relativamente a chantagem?

  ‑ Senhor!

  O mordomo levantou‑se, repentinamente.

  ‑ Não se inquiete ‑ disse o detective com a máxima calma. ‑ Não venha representar a comédia do homem honesto insultado. Você sabe muito bem... tudo quanto é preciso saber a respeito de extorsões, não é assim?

  ‑ Mas, senhor, eu... eu nunca... nunca fui...

  ‑ Insultado assim ‑ completou Poirot. – Por que razão, Parker, naquela noite, depois de ter ouvido a palavra   extorsão   estava ansioso a escutar, quietinho, a conversa que se desenvolvia no escritório de Mister Ackroyd?

  ‑ Mas, não... eu...

  ‑ Quem foi o seu último paträo? – perguntou Poirot à queima‑roupa.

  ‑ O meu último patrão?

  ‑ Sim, antes de Mister Ackroyd.

  ‑ Um major, senhor. O major Ellerby...

Poirot interrompeu‑o, quase arrancando‑lhe a palavra da boca.

  ‑ Precisamente, o major Ellerby. Este dava‑se aos estupefacientes, não é verdade? Você viajou pelo mundo com ele. Durante a estada nas Bermudas aconteceu um grave incidente... um homem foi assassinado. O major era, em parte, responsável. A coisa foi abafada. Você, porém, sabia. Quanto lhe deu o major Ellerby para que se calasse? Parker fitava‑o de boca aberta. Parecia aniquilado.

  ‑ Como vê, fiz algumas indagações – continuou Poirot em tom de gracejo. ‑ E é como lhe digo. Apanhou uma bela quantia pelo seu silêncio. O major continuou a pagar até à morte! Agora quero saber os pormenores da sua última tentativa. O mordomo continuava a olhá‑lo assombrado.

  ‑ É inútil negar. Hercule Poirot   sabe  . É ou não verdade o que eu disse do major Ellerby?

Embora com muita relutância, o mordomo fez um breve gesto afirmativo com a cabeça. O seu rosto estava cadavérico.

  ‑ Mas nunca torci um cabelo a Mister Ackroyd ‑ gemeu. ‑ Juro‑o em nome de Deus, senhor. Sempre pensei que um dia se viria a saber. Mas juro que não fui eu... não fui eu quem o matou! A sua voz quase se transformou num grito.

  ‑ Estou disposto a acreditar, meu amigo – disse o detective. ‑ Você não tem coragem. Mas eu preciso de saber a verdade.

  ‑ Direi tudo. Tudo o que desejar saber. É verdade que naquela noite procurei ouvir. Uma ou duas palavras, surpreendidas quando passava, despertaram a minha atenção. E também o facto de Mister Ackroyd não querer ser perturbado e ter‑se fechado no escritório com o doutor, despertaram as minhas suspeitas. Mas é a pura verdade, juro‑o pela minha alma, aquilo que disse à polícia. Ouvi a palavra extorsão senhor, e...

Calou‑se por um momento.

  ‑ Pensou logo que podia haver alguma coisa também para si ‑ completou imperturbavelmente Poirot.

  ‑ Isso... sim, senhor. Pensei que, se Mister Ackroyd fosse extorquido, porque não haveria alguma coisa também para mim?

O rosto do mordomo adquiriu uma expressão muito curiosa. Projectou‑se para a frente.

  ‑ E antes, tinha algum motivo para crer que Mister Ackroyd poderia ser vítima de chantagem?

  ‑ Absolutamente nenhum, senhor. Foi uma grande surpresa para mim! Um cavalheiro tão perfeito sobre todos os aspectos!

  ‑ Pôde ouvir muito?

  ‑ Não muito, senhor. Quando pude encostar o ouvido uma ou duas vezes à porta, não valeu a pena. Da primeira vez saiu repentinamente o doutor Sheppard e, por puro acaso, não me surpreendeu em flagrante; da outra vez, Mister Raymond passou no vestíbulo e também nada consegui quando fui com a bandeja; Miss Flora impediu‑mo.

Poirot fixou‑o demoradamente, como se quisesse perscrutar‑lhe a alma com o olhar. O mordomo nem pestanejou.

  ‑ Espero que acredite, senhor. Receava que a polícia viesse a descobrir aquela velha história do major Ellerby e desconfiasse de mim.

  ‑ Está bem ‑ disse Poirot. ‑ Estou disposto a acreditar. Mas quero ver a sua caderneta do banco.

Tem uma, não é verdade?

  ‑ Sim, senhor, e está aqui comigo. Sem a menor hesitação tirou do bolso uma caderneta com capa verde e apresentou‑a ao belga que a examinou.

  ‑ Vejo que este ano adquiriu quinhentas libras de títulos do Tesouro!

  ‑ Sim, senhor. Tenho mais de mil libras economizadas... é o resultado das minhas relações com... o meu amo de outrora, o major Ellerby. Além disso, este ano tive um pouco de sorte nas corridas. Lembra‑se? Foi um cavalo não classificado que ganhou o Prémio do Jubileu. Tive a sorte de apostar nele... vinte libras.

Poirot restituiu‑lhe a caderneta.

  ‑ Então, até outro dia. Creio que falou verdade. De contrário, tanto pior para si!

  Logo que o mordomo saiu, Poirot retomou o sobretudo.

  ‑ Vamos fazer agora uma pequena visita ao advogado Hammond ‑ propôs. ‑ A história de Parker é bastante verosímil. Parece evidente julgar que a vítima da extorsão fosse o próprio Ackroyd. Se assim é, quer dizer que nada sabe do caso de Mistress Ferrars.

  ‑ Nesse caso... quem...

  ‑ Precisamente! Quem? Mas a nossa visita ao advogado definirá a questão. Ou libertará Parker totalmente de qualquer suspeita ou...

  ‑ Então?

  ‑ Esta manhã voltei ao antigo hábito de não completar as frases ‑ disse Poirot em tom de desculpa.‑ Tem de perdoar‑me.

  ‑ A propósito ‑ exclamei, acanhadíssimo.‑ Devo fazer‑lhe uma confissão: fui indiscreto a respeito do anel.

  ‑ Que anel?

  ‑ O que o senhor achou no lago dos peixes dourados.

  ‑ Ah! Sim? ‑ exclamou ele sorrindo.

  ‑ Espero que não se zangue.

  ‑ Nada, meu amigo. Absolutamente nada. Não o proibi de falar. O senhor podia contar esse facto. Creio que a sua irmã deve ter ficado interessadíssima.

  ‑ Foi para ela uma notícia verdadeiramente sensacional! Deu lugar às mais desencontradas hipóteses.

  ‑ Todavia, a coisa é simples. A verdadeira explicação salta diante dos olhos, não lhe parece?

  ‑ Parece‑lhe simples?

  ‑ O homem sábio não se compromete ‑ observou. ‑ Mas vamos ao escritório do advogado.

  Hammond estava no escritório. Levantou‑se e cumprimentou‑nos no seu modo preciso e lacónico.

Poirot entrou logo no assunto.

  ‑ Desejaria obter uma informação se quiser ter a bondade de ma prestar. Tratou dos interesses da defunda Mistress Ferrars, não é verdade?

  ‑ Certamente. Todos os seus negócios passaram pelo meu escritório.

  ‑ Muito bem. Agora desejaria que ouvisse quanto o doutor Sheppard vai expor‑lhe. Não tem dificuldade em repetir, doutor, a conversação que teve, sexta‑feira, com Mister Ackroyd?

  ‑ Pelo contrário! ‑ e repeti a narrativa da trágica noite.

  O advogado ouviu‑me com vivíssima atenção.

  ‑ É tudo! ‑ exclamei, ao terminar.

  ‑ Uma extorsão ‑ disse o advogado pensativo.

  ‑ Surpreende‑o? ‑ perguntou Poirot.

  O advogado tirou os óculos e limpou‑os com o lenço.

  ‑ Não muito ‑ respondeu.

  ‑ Há alguém que possa dar uma ideia certa das quantias desembolsadas?... ‑ inquiriu Poirot.

  ‑ Não tenho dificuldade em fornecer‑lhe as informações que solicita ‑ respondeu o advogado depois de um momento de hesitação. ‑ No ano passado, Mistress Ferrars mandou vender alguns títulos. Visto o seu rendimento ter sido bastante vultoso e ela depois da morte do marido ter levado uma vida simples, suponho que essas quantias tenham tido um destino qualquer. Certa vez, procurei sondá‑la acerca desse assunto e respondeu‑me que tinha de ajudar alguns parentes pobres. Não insisti. Sempre pensei que o dinheiro tivesse sido dado a qualquer mulher com direitos sobre Arthur Ferrars.

  ‑ E a quantia? ‑ perguntou Poirot.

  ‑ No total, parece‑me que as quantias ascendem a vinte mil libras.

  ‑ Vinte mil libras, num ano! ‑ exclamei.

  ‑ Mistress Ferrars era riquíssima ‑ disse Poirot, secamente ‑ e o castigo que aguarda uma envenenadora não é nada agradável.

  ‑ Há algo mais que lhe possa interessar? ‑ perguntou o advogado.

  ‑ Não, muito obrigado ‑ disse Poirot, levantando‑se. ‑ Desculpe tê‑lo incomodado.

  ‑ Então? ‑ perguntou o belga, logo que saímos do escritório. ‑ Que diz, agora, do nosso amigo Parker? Com vinte mil libras julga que teria continuado a servir de mordomo? Por minha parte, não creio. Poderia também dar‑se o caso de ter depositado o dinheiro com outro nome; mas estou tentado a crer que nos tenha contado a verdade. Embora sendo canalha, é um canalha modesto: não tem largas visões. Resta ainda a possibilidade de Raymond ou do major Blunt.

  ‑ Raymond não, certamente ‑ protestei. ‑ Sabe‑se que se acha sem dinheiro e com quase quinhentas libras de dívidas.

  ‑ Isso, pelo menos, é o que ele diz.

  ‑ Quanto ao major...

  ‑ Quero dizer‑lhe alguma coisa a respeito do nosso major ‑ interrompeu o outro. ‑ É da minha profissão fazer investigações e faço‑as. Aquela herança a que ele se refere atinge mais ou menos umas vinte mil libras. Que lhe parece?

Fiquei tão surpreendido que apenas pude formular uma resposta.

  ‑ É imposível ‑ disse por fim. ‑ Uma pessoa tão conhecida como o major Blunt!

Poirot encolheu os ombros.

  ‑ Quem sabe? Decerto vê as coisas mais longe do que Parker. Devo admitir, no entanto, que não o imagino autor de chantagem. Mas há outra possibilidade, meu amigo, na qual nunca pensou.

  ‑ Qual?

  ‑ O fogo. É possível que Ackroyd tenha destruído a carta, depois de o senhor ter saído.

  ‑ Não me parece verosímil ‑ murmurei lentamente. ‑ Contudo pode ter mudado de ideias.

  Chegámos à porta de casa e senti‑me no dever de convidá‑lo para almoçar. Pensava que Caroline ficava satisfeita, mas é um verdadeiro problema agradar às donas de casa. Parece‑me que só tínhamos costeletas; duas costeletas colocadas diante de três pessoas é um verdadeiro embaraço. Minha irmã não se intimida perante uma situação penosa. Com uma mentira bem urdida, começou a explicar a Poirot que aderira ao regime vegetariano. Enalteceu com entusiasmo as delícias das omeletas de nozes (que nunca experimentara) e comeu um pedaço de queijo assado sobre uma torrada, citando os perigos que derivam da alimentação carnívora.

Mais tarde, quando fumávamos, inquiriu:

  ‑ Rudolph Paton ainda não foi encontrado?

  ‑ Onde iria desencantá‑lo?

  ‑ Em Cranchester ‑ respondeu Caroline.

Poirot olhou‑a atordoado.

  ‑ Porquê em Cranchester?

  ‑ Um membro do imenso exército dos nossos polícias femininos viu‑o ontem a si, num automóvel, na estrada de Cranchester ‑ expliquei.

A surpresa de Poirot desapareceu. Riu à vontade.

  ‑ Foi uma simples visita ao dentista! Dói‑me um dente, chego lá e imediatamente deixa de doer‑me. Digo‑lhe que voltarei noutra ocasião; desta vez respondeu que era melhor arrancá‑lo; insistiu e ganhou. Estou certo que aquele dente não tornará a molestar‑me. A seguir começámos a falar de Rudolph.

  ‑ É um carácter fraco ‑ insisti ‑, mas näo é mau.

  ‑ Ah! ‑ exclamou Poirot. ‑ Mas até onde chega a fraqueza?

  ‑ É verdade ‑ interveio Caroline. ‑ Jacques, por exemplo... Fraco como ele é, se eu não estivesse sempre a cuidar dele...

  ‑ Ouve, Caroline ‑ atalhei irritado ‑, não podes deixar‑me em paz?

  ‑ Tu és fraco, Jacques ‑ continuou imperturbável. ‑ Tenho oito anos mais do que tu... Oh! não me importa que Mister Poirot o saiba...

  ‑ Sim? Nunca o teria pensado, Miss Caroline‑ disse Poirot curvando‑se galantemente.

  ‑ Oito anos a mais. Por isso, sempre considerei um dever cuidar de ti. Se, por infelicidade, tivesses recebido uma má educação, só Deus sabe em que espécie de desgraças poderias estar metido!

  ‑ Talvez tivesse casado com uma linda aventureira!

  ‑ Jacques está convencido de que o senhor julga

ter sido alguém de casa que praticou o crime. Está enganado. Na minha opinião, somente duas pessoas da casa teriam tido a possibilidade de praticá‑lo: Rudolph Paton e Flora Ackroyd.

  ‑ Mas, Caroline ‑ protestei.

  ‑ Jacques, não me interrompas. Sei o que digo.

Parker viu‑a do lado de fora, junto à porta. Mas não ouviu o tio de Flora dizer‑lhe boa noite. Bem poderia ter sido ela a criminosa.

  ‑ Caroline!

  ‑ Não estou a dizer que o tenha feito. Digo que poderia tê‑lo feito. Contudo, embora Flora seja como todas as raparigas de hoje, sem respeito pelos que lhes são superiores e julgam saber tudo, não a acharia capaz de matar... nem um frango. Mister Raymond e o major têm os seus álibis. Até aquela mulherzinha, a Russell, parece ter um, o que é uma sorte para ela. Quem ficaria ainda? Somente Rudolph e Flora! Digam o que quiserem, eu não creio que Rudolph Paton seja assassino. Um rapaz que conheço desde que nasceu!

Poirot permaneceu em silêncio. Quando por fim se resolveu a falar, a sua voz parecia ter‑se suavizado e vir de longe.

  ‑ Tomemos um homem, por exemplo, um homem comum que não tenha qualquer ideia criminosa no coração. Mas nele, na profundidade da sua alma, há um ponto fraco, um defeito moral. Até o presente, não teve modo de revelar‑se. É possível que nunca tenha ocasião; e, neste caso, viverá respeitado e cercado pela estima universal. Mas suponhamos que lhe aconteça qualquer coisa; que se encontre em dificuldades. Ou que venha, por um acaso qualquer, a conhecer um segredo de vida ou de morte, de alguém. O seu primeiro impulso será o de falar e cumprir o seu dever de homem honesto. Mas eis que o ponto fraco se manifesta; é uma boa ocasião para obter dinheiro em abundância. Precisa de dinheiro, deseja‑o e vê‑o ao alcance da sua mão! Nada tem a fazer. Basta calar‑se, nada mais: água na boca! E assim começa. De dia para dia a avidez do dinheiro cresce, agiganta‑se. Quer mais e sempre mais! Está como que inebriado, deslumbrado pela mina de oiro que vê diante dele, a seus pés. Torna‑se insaciável; e, na sua avidez, excede todos os limites. Um homem pode ser apertado até onde quiser; mas com uma mulher é preciso cautela; não se deve chegar até ao exagero, porque a mulher tem no coração o grande desejo de dizer a verdade. Quantos maridos enganaram a mulher e levaram consigo, muito quietos, o seu segredo para o túmulo! Quantas mulheres, pelo contrário, traíram o marido e se abriram de repente, lançando a verdade no rosto do próprio marido. É por terem sido impelidas até ao extremo limite do desespero. Num momento de abandono (do qual se arrependerão mais tarde) desprezam toda a prudência, toda a precaução e gritam a verdade, gesto que nesse momento lhes causa grande alívio. Parece‑me que é este o nosso caso. A pressão era muito forte. E assim, morreu a galinha dos ovos de oiro. Mas não foi o fim. O perigo do escândalo ameaçava de muito perto o indivíduo a que nos referimos. Já não é o homem que era antes; a sua fibra moral está muito debilitada. Está à beira do desespero; combate numa batalha em que sabe que perderá e está disposto a lançar mão de qualquer meio ao seu alcance, porque sabe que o escândalo será a sua ruína total. E... está ali o punhal!

Calou‑se. Não tentarei descrever a impressão produzida pelas suas palavras. Naquela análise implacável, havia qualquer coisa que despertou um vivo terror, tanto em mim como em minha irmã.

  ‑ Em seguida ‑ prosseguiu lentamente ‑, desaparecido o perigo, voltará a si; voltará a ser normal, afável, sociável. Mas, se a necessidade surgir, feriráoutra vez!

Finalmente, Caroline despertou.

  ‑ O senhor refere‑se a Rudolph Paton? ‑ perguntou. ‑ É possível que tenha razão, mas acho que não tem o direito de condenar um homem sem o ouvir.

Naquele instante, vibrou a campainha do telefone. Fui ao vesti'bulo e atendi.

  A seguir repus o auscultador no seu lugar, voltando para a sala.

  ‑ Mister Poirot ‑ informei. ‑ Prenderam um indivíduo em Liverpool cujo nome é Charles Kent e julga‑se que seja o desconhecido que foi visto em Fernly, sexta‑feira à noite. Querem que vá imediatamente a Liverpool, para identificá‑lo.

 

CHARLES KENT

Meia hora depois, Poirot, o inspector Raglan e eu, seguíamos de comboio em direcção a Liverpool. O inspector estava visivelmente agitado.

  ‑ Se outra coisa näo conseguirmos, talvez possamos obter algum indício sobre o caso da extorsão‑ declarou com ar de júbilo. ‑ A julgar pelo que informaram pelo telefone, esse indivíduo é um cadastrado e dado aos estupefacientes. Não deve ser difícil fazê‑lo falar. Se houvesse um motivo, nada mais provável do que tivesse sido ele quem matou Mister Ackroyd. Mas, nesse caso, porque continua Paton ausente? A propósito, Mister Poirot, tinha razão a respeito das impressões digitais. Eram de Mister Ackroyd. Também tive essa ideia, mas abandonei‑a por não me parecer verosímil.

Não pude deixar de sorrir. Era muito clara a tentativa de Raglan para justificar‑se.

  ‑ E esse indivíduo ainda não foi preso? ‑ perguntou Poirot.

  ‑ Não. Acha‑se detido por suspeitas.

  ‑ E que diz?

  ‑ Muito pouco ‑ respondeu o inspector com uma careta. ‑ Não é burro de todo. Insolências, protestos e nada mais.

Ao chegarmos a Liverpool, vi Poirot entusiasmado. O intendente Hayes, que veio ao nosso encontro, tivera a oportunidade de colaborar, anos antes, com o belga num caso judiciário; e percebia‑se que tinha uma opinião exagerada a respeito da capacidade do detective.

  ‑ Agora que está aqui, Mister Poirot, temos a certeza de avançar com rapidez ‑ disse alegremente.

‑ Julgava que se tivesse retirado da profissão.

  ‑ E verdade, meu caro Hayes, é verdade. Mas é aborrecido não ter que fazer! Não pode imaginar com que monotonia os dias passam, um após outro.

  ‑ E assim, o senhor veio ver o nosso preso. Este é o doutor Sheppard? Julga poder identificá‑lo, doutor?

  ‑ Não tenho a certeza ‑ respondi.

  ‑ Como conseguiram agarrá‑lo? ‑ perguntou o belga.

  ‑ Transmitimos para toda a parte os dados conhecidos. Foram também divulgados pela imprensa; o indivíduo que apanhámos tem o sotaque americano e não nega ter estado naquela noite nas proximidades de King's Abbot. Mas nega‑se a dizer‑nos o motivo.

  ‑ Poderei vê‑lo? ‑ perguntou Poirot.

O intendente piscou um olho com ar entendido.

  ‑ Pode fazer tudo o que julgar necessário. Noutro dia, Japp, da polícia central de Londres, perguntou precisamente pelo senhor. Disse que o soubera ocupado mas não oficialmente. Onde está escondido o capitão Paton, pode dizê‑lo, Mister Poirot?

  ‑ Não sei se seria prudente ‑ respondeu o belga com leve afectação, enquanto eu mordia os lábios para disfarçar um sorriso.

Fomos falar com o detido. Era um rapaz com cerca de vinte e dois ou vinte e três anos. Alto, magro, com um leve tremor nas mãos, demonstrava traços de considerável força física que parecia ter sido desperdiçada. Tinha os cabelos pretos e olhos azuis, que fitavam raramente o interlocutor. Sempre tivera a impressão de encontrar na pessoa daquela noite qualquer coisa que conhecia; mas se este era esse desconhecido, eu estava redondamente enganado. Não lembrava ninguém que eu conhecesse.

  ‑ Vamos, Kent ‑ disse o intendente. ‑ Levante‑se. Está aqui uma pessoa que veio visitá‑lo. Reconhece, pelo menos, um deles?

O homem fitou‑nos com olhar sombrio mas não respondeu. Vi o seu olhar poisar‑se incerto sobre cada um dos três, para depois se demorar em mim.

  ‑ Então, doutor ‑ animou o intendente. – Que diz?

  ‑ A mesma altura ‑ respondi ‑ e, quanto ao aspecto geral, bem poderia ser o mesmo. Mais não posso dizer.

  ‑ Que diabo significa tudo isto? ‑ perguntou o detido. ‑ Que têm contra mim? Vamos, falem! Que suspeitam de mim?

Fiz um sinal afirmativo e alertei.

‑ É ele. Reconheço‑lhe a voz.

‑ Reconhece‑me a voz? Mas onde julga tê‑la ouvido?

  ‑ Na sexta‑feira à noite, perto do portão da villa Fernly. Pediu‑me que lhe indicasse o caminho que conduz à villa.

  ‑ Confirma‑o? ‑ perguntou‑lhe o inspector.

  ‑ Não confirmo coisa alguma. Nada confirmarei, enquanto não souber o que têm contra mim.

  ‑ Não leu os jornais destes últimos dias? ‑ interveio Poirot que até então ficara em silêncio.

O detido semicerrou os olhos.

  ‑ Ah! Agora percebo; vi que mataram em Fernly um velho qualquer. Tentam demonstrar que fui eu o assassino!

  ‑ Naquela noite você esteve na villa – disse o belga com calma.

  ‑ Como sabe?

   ‑Poz isto ‑ disse o detective, tirando do bolso qualquer coisa que lhe aproximou dos olhos.

  Era a pena de pato que encontrara no quiosque do jardim. Vendo‑a, a fisionomia do detido transformou‑se. Não pôde reprimir um movimento instintivo, quase como se quisesse estender a mão para agarrá‑la.

  ‑ A coca ‑ observou o belga. ‑ Não, meu amigo, nada contém. Estava no chão do quiosque, onde a deixou cair naquela noite. O outro olhou‑o vagamente.

  ‑ Parece estar bem informado; mas lembre‑se disto: os jornais dizem que o velho foi morto entre as nove e três quartos e as dez.

  ‑ Sim ‑ admitiu Poirot.

Raglan confirmou:

  ‑ Absolutamente verdadeiro. Entre as nove e três quartos e as dez.

  ‑ Então não há motivo para que me mantenham preso ‑ disse o detido. ‑ Às nove e vinte e cinco encontrava‑me longe de Fernly. Podem informar‑se na Coroa Larga que é uma taberna a dois quilómetros de Fernly. Ainda mais, lembro‑me de que provoquei, ao chegar, o latido dos cães. E eram precisamente nove e três quartos.

Raglan tomou algumas notas na caderneta.

  ‑ Então? ‑ perguntou Kent.

  ‑ Faremos investigações ‑ respondeu aquele.‑ Se disse a verdade não terá de se arrepender. De qualquer modo, que foi fazer a Fernly?

  ‑ Fui para encontrar‑me com uma pessoa.

  ‑ Quem?

  ‑ Não lhe diz respeito.

  ‑ Oh! lá‑lá! Meu rapaz, aconselho‑o a responder com melhores modos ‑ advertiu o intendente.

  ‑ Fui tratar de negócios meus e é tudo. Se posso provar que me afastei antes de ser praticado o crime, não tenho explicações a dar à polícia.

  ‑ O seu nome é Charles Kent? ‑ perguntou Poirot. ‑ Onde nasceu?

  ‑ Sou cidadão britânico, puro sangue! ‑ retorquiu.

  ‑ Sim ‑ confirmou o belga, pensativo. – Creio que nasceu em Kent. O detido arregalou os olhos.

  ‑ Porquê? Pelo meu nome? Por uma pessoa se chamar Kent, conclui‑se que nasceu nessa província? Essa é boa!

  ‑ Em certos casos, creio que isso acontece. Em certos casos... creio que sabe o que quero dizer. Nas suas palavras e nos seus modos havia tantos subentendidos, que os dois funcionários não ocultaram a surpresa. Quanto ao detido ficou vermelho como um pimento e pareceu querer atirar‑se a Poirot. Depois, reflectiu e voltou‑lhe as costas com uma gargalhada. Poirot fez um sinal de satisfação e dirigiu‑se para a porta, seguido dos dois funcionários.

  ‑ Iremos investigar as suas informações ‑ observou Raglan ‑, embora esteja convencido de que não mentiu. Entretanto, terá de dizer‑nos claramente o que foi fazer a Fernly. Começo a crer que desta vez descobrimos o chantagista. Admitindo‑se que o que contou esteja certo, nada teria que ver com o assassínio. Quando foi preso, tinha no bolso dez libras, quantia considerável para um tipo semelhante. Penso que as tais quarenta libras foram parar aos seus bolsos. E verdade que o número das cédulas não corresponde mas, naturalmente, a primeira coisa que fez foi trocá‑las. Mister Ackroyd deve ter‑lhe dado dinheiro e ele procurou sumir‑se o mais depressa possível. Diga‑me uma coisa, Mister Poirot, que pretendia ao perguntar‑lhe se era de Kent?

  ‑ Nada, nada ‑ respondeu o belga, tranquilamente. ‑ Foi cá uma ideia. Tornei‑me famoso por estas pequenas ideias.

  __  Sério? ‑ admirou‑se Raglan. O intendente soltou uma gargalhada.

  ‑ Ouvi o inspector Japp falar nisso mais de uma vez. Aquele diabo do Poirot e as suas pequenas ideias! A mim parecem‑me um tanto fantásticas, costumava dizer, mas, sempre contêm qualquer coisa de genial.

  ‑ Ora, o senhor está a brincar ‑ disse Poirot, modestamente. E, cumprimentando‑os, saiu para a rua.

Jantámos ambos num restaurante. Sei agora que já tinha diante de si toda a meada desenredada. Encontrara o último fio que lhe faltava, para descobrir a verdade. Mas, naquele momento, julgava que apenas tivesse excessiva confiança em si próprio. O enigma que prendia agora a minha curiosidade, era saber o que teria ido fazer naquela noite Charles Kent à villa Fernly. Quanto mais formulava esta pergunta, tanto mais difícil se tornava encontrar a resposta satisfatória. Por fim, não pude deixar de interrogar o meu companheiro. A sua resposta foi imediata.

  ‑ Eh!, meu amigo, isso já descobri.

  ‑ Realmente? ‑ exclamei, céptico.

  ‑ Sim. Mas, neste momento, o doutor não me entenderia, se lhe dissesse que naquela noite foi a Fernly precisamente por ter nascido em Kent.

  ‑ Não percebo ‑ confessei.

  ‑ Não, hem? ‑ disse com ar de compaixão.‑ Bem, depois compreenderá, quando for altura.

 

FLORA ACKROYD

Na manhã seguinte, no regresso das minhas consultas, ouvi o inspector Raglan cumprimentar‑me. Parei o carro e ele pôs o pé sobre o estribo.

  ‑ Bom dia, doutor ‑ disse. ‑ Sabe que aquele álibi está de pé.

  ‑ Qual? O de Charles Kent?

  ‑ Sim. A criada da Coroa Larga, que se chama Salvina Jones, lembra‑se perfeitamente. Escolheu, sem hesitação, a fotografia dele entre cinco que lhe foram apresentadas. Eram exactamente nove e três quartos quando entrou na taberna; e a Coroa Larga está situada a dois quilómetros de Fernly. A rapariga afirmou que estava bem provido de dinheiro; viu‑o tirar do bolso uma porção de notas. Isto surpreendeu‑a bastante, vendo que espécie de indivíduo era, com os sapatos todos esburacados. Aí tem aonde foram parar as quarenta libras.

  ‑ E ele continua a negar‑se a falar a respeito da sua visita a Fernly?

  ‑ É teimoso como um burro. Esta manhã, troquei alguns telegramas com o inspector Hayes, de Liverpool.

  ‑ Poirot diz que sabe o motivo da ida de Kent à villa, naquela noite ‑ observei.

  ‑ Ah! Sim? ‑ exclamou o inspector, com viva curiosidade.

  ‑ Diz que esteve lá por ter nascido em Kent.

Senti verdadeiro prazer por suscitar em Raglan a mesma desilusão que me causara a resposta do belga.

Esboçou um sorriso de escárnio, batendo na testa significativamente:

  ‑ É isto que ele tem um pouco mole. Coitado!

Por isso teve de retirar‑se e vir morar para King's Abbot. Talvez seja uma moléstia de família. Tem um sobrinho completamente doido.

  ‑ Ah! Sim? ‑ exclamei, surpreendido.

  ‑ Sim. Nunca lhe falou nele? Calmo, dócil creio, mas doido varrido, coitado.

  ‑ Quem lho disse?

No rosto de Raglan surgiu o mesmo sorriso.

  ‑ Sua irmã, Miss Sheppard. Foi ela quem mo contou.

Na verdade, Caroline é surpreendente. Não sossega enquanto não conhece os mínimos pormenores, os mais íntimos segredos familiares de cada um. Infelizmente, nunca consegui transmitir‑lhe certo senso de conveniência que lhos faça guardar para si própria.

  ‑ Entre, inspector ‑ convidei, abrindo a portinhola do automóvel. ‑ Iremos à villa dos Lariços e levaremos as últimas notícias ao nosso amigo.

  ‑ Perfeitamente. Embora não regule bem, foi ele quem me pôs no bom caminho, a respeito daquelas impressões digitais. É possível que tenha disparatado, quanto àquele malandro do Kent; contudo, quem sabe... se nessa loucura haverá alguma coisa útil?

Poirot, recebeu‑nos com o seu habitual sorriso de cortesia. Ouviu as informações que lhe levávamos, fazendo frequentes sinais com a cabeça.

  ‑ Não há que dizer, o álibi parece mais do que sustentável! ‑ exclamou Raglan, mal‑humorado.‑ É difícil uma pessoa assassinar alguém num determinado lugar, enquanto se encontra noutro, a dois quilómetros de distância.

  ‑ Vai pô‑lo em liberdade?

  ‑ Não é possível mantê‑lo preso, sob a acusação de ter obtido dinheiro desonestamente. Se se conseguisse provar alguma coisa...

E atirou com raiva um fósforo para a grelha da chaminé.

Poirot recolheu‑o e colocou‑o num cinzeiro. Mas esse acto foi executado mecanicamente. Percebia‑se claramente que o seu pensamento estava voltado para outras coisas.

  ‑ Se fosse o senhor ‑ disse por fim ‑, não o largaria por enquanto.

  ‑ Que quer dizer?

Raglan olhou‑o fixamente.

  ‑ E o que digo. Não lhe restituiria ainda a liberdade.

  ‑ Julga que esteja envolvido no crime?

  ‑ Não creio... mas ainda não podemos ter a certeza.

  ‑ Mas, não lhe disse há pouco...

Poirot levantou a mão como para protestar.

  ‑ Sim, sim, ouvi. Não sou surdo... nem tolo, graças a Deus! Mas o facto é que o senhor está partindo de premissas erradas!

Raglan fitou‑o assombrado.

  ‑ Não compreendo. Sabemos que Mister Ackroyd ainda vivia às dez menos um quarto.

Poirot sacudiu a cabeça com um breve sorriso.

  ‑ Eu nada admito sem provas!

  ‑ Está bem, mas sobre esse ponto temos o testemunho de Miss Ackroyd.

  ‑ Nem sempre creio no que diz uma jovem... nem quando é deliciosamente linda!

  ‑ Ora! Parker viu‑a sair!...

  ‑ Não ‑ e a voz do detective, tornou‑se subitamente áspera e cortante. ‑ Foi justamente isso que ele não viu. Quis convencer‑me com uma pequena experiência no outro dia, lembra‑se, doutor? Parker viu‑a   fora da porta   com a mão sobre a maçaneta. Mas não a viu sair do escritório.

  ‑ Então, donde vinha ela?

  ‑ Talvez da escada.

  ‑ Da escada?

  ‑ Sim, é uma dessas minhas ideias.

  ‑ Mas aquela escada conduz apenas ao quarto de Mister Ackroyd!

  ‑ Precisamente.

Raglan continuava a fitá‑lo admirado.

  ‑ O senhor julga que tenha subido até ao quarto de dormir do tio? Está bem, é possível. Mas que interesse t ria em mentir?

    ‑ Eis o ponto principal da questão. Depende simplesmente do que foi fazer àquele quarto, não lhe parece?

  ‑ O dinheiro... Diabo! Não quererá insinuar, naturalmente, que foi ela quem se apropriou das quarenta libras?

  ‑ Nada quero insinuar ‑ respondeu Poirot. ‑ Mas quero que tenha presente somente isto: para ambas, mãe e filha, a vida não era nada fácil. Contas a pagar... aborrecimentos contínuos por causa de pequenas quantias. E, Mister Ackroyd, em questões de dinheiro tinha certas ideias. É possível que a jovem tenha sido levada ao desespero, talvez por uma quantia relativamente modesta. Imagine o que pode ter acontecido: agarrou o dinheiro e desceu a escada; chegando ao meio desta, ouviu um tilintar de copos, provenientes do vesu'bulo; sabe do que se trata... é Parker que se dirige para o escritório; custe o que custar, ninguém deve vê‑la na escada... de outro modo, Parker achará estranho o acontecimento e não o esquecerá. Quando se souber que o dinheiro desapareceu, é certo que o mordomo se lembrará de tê‑la visto na escada. Apenas tem tempo de precipitar‑se para a porta do escritório, agarrar a maçaneta, e fingir que vinha a sair, justamente no momento em que o criado aparece na soleira do pequeno corredor. Diz o que lhe acode à mente; repete as ordens dadas por Mister Ackroyd, cerca de uma hora antes e sobe para o seu quarto.

  ‑ Sim, mas mais tarde ‑ insistiu o inspector‑ devia ter percebido a importância vital de dizer a verdade! Todo o problema gira sobre este ponto.

  ‑ Mais tarde ‑ continuou Poirot ‑ surgem as dificuldades para Flora. Comunicam‑lhe repentinamente que houve um furto e que a polícia chegou. Naturalmente, concluiu logo que foi descoberto o seu furto. Só tem uma ideia: defender, custe o que custar, a sua comédia. Quando lhe anunciam a morte do tio deixa‑se abater pelo terror. Ah! meu caro senhor, as raparigas de hoje não desmaiam tão facilmente; a não ser que haja algum motivo verdadeiramente importante. Ei‑la diante do dilema: ou continuar no seu fingimento, ou dizer toda a verdade. E uma linda rapariga não pode estar muito disposta a declarar que é uma ladra; principalmente, diante daqueles cuja estima deseja conservar.

Raglan bateu com o punho sobre a mesa.

  ‑ Não posso acreditar! ‑ exclamou. ‑ O senhor sabe isso há muito?

  ‑ Esta possibilidade acudiu‑me desde o princípio ‑ admitiu Poirot. ‑ Tive sempre a convicção de que ela ocultava qualquer coisa e fiz a experiência de que lhe falei; o doutor assistiu a ela.

Raglan levantou‑se.

  ‑ Só há uma coisa a fazer ‑ declarou. – Temos de abordar a jovem e obrigá‑la a falar! Quer ir comigo a Fernly, Mister Poirot?

  ‑ Certamente. O doutor levar‑nos‑á no seu carro.

Concordei de boa vontade. Dissemos que queríamos falar a Miss Ackroyd e fomos introduzidos na sala de bilhar. Flora e o major estavam sentados no amplo sofá, junto à janela.

  ‑ Bom dia, Miss Ackroyd ‑ saudou Raglan.‑ Temos necessidade de falar‑lhe em particular.

Blunt, levantou‑se imediatamente, dirigindo‑se para a porta.

  ‑ Que há? ‑ perguntou Flora, nervosamente.‑ Não saia, major. Não pode ficar? ‑ perguntou, dirigindo‑se a Raglan.

  ‑ Como quiser, Miss Flora ‑ respondeu este, em tom áspero. ‑ O dever obriga‑me a fazer‑lhe algumas perguntas, de preferência em particular.

A jovem fitou‑o intensamente e via‑a empalidecer. A seguir, dirigiu‑se ao major:

  ‑ Desejo que fique. Sim, peço‑lhe. Seja o que for que o inspector tenha a dizer‑me, prefiro que o senhor estejä preserfté.

Raglan encolheu os ombros.

  ‑ Como quiser. Mister Poirot, aqui presente, levou‑me a considerar uma importante circunstância. Na sexta‑feira à noite, Miss Flora não entrou no escritório e, portanto, não pode ter visto seu tio, para desejar‑lhe boa‑noite; quando ouviu Parker atravessar o vestíbulo, Miss Flora encontrava‑se na escada que conduz ao quarto de Mister Ackroyd.

Flora olhou para Poirot que fez um sinal afirmativo e disse:

  ‑ No outro dia, Miss Ackroyd, quando estávamos sentados em torno da mesa, supliquei‑lhe que fosse franca comigo. O que não se quer dizer ao papá Poirot, ele acabará por descobrir. Era isto, não é verdade, que queria ocultar‑me? Bem, procurarei auxiliá‑la! Foi Miss Flora quem tirou o dinheiro, não é verdade?

  ‑ O dinheiro? ‑ exclamou Blunt.

Seguiu‑se um silêncio que demorou, pelo menos, um minuto.

  Depois, a jovem, erguendo‑se, disse:

  ‑ Mister Poirot tem razão: tirei aquele dinheiro. Sou uma ladra... Estou satisfeita que se tenha descoberto. Foi um verdadeiro pesadelo para mim, nestes últimos dias.

Repentinamente, deixou‑se cair no sofá, ocultando o rosto nas mãos. Depois, em voz sufocada, continuou:

  ‑ Os senhores não podem saber o que foi a minha vida nesta casa. Continuamente assediada por uma multidão de necessidades, ter de torturar a mente, para satisfazê‑las: mentir, enganar, contrair dívidas, prometer pagá‑las... Quando penso nisto, sinto verdadeiro ódio e desprezo por mim própria! Foi isto que me levou a um entendimento com Rudolph. Ambos éramos fracos! Eu compreendia‑o perfeitamente. E fiquei triste... porque me encontrava ao mesmo nível. Näo, não somos bastante fortes, para ficarmos sós, tanto ele, como eu. Somos criaturas débeis, infelizes, desprezíveis!

Olhou para o major e subitamente, inquiriu:

  ‑ Porque me olha dessa maneira, como se não pudesse acreditar? Posso também ser uma ladra... mas já não tenho necessidade de mentir. Não preciso mais de fingir ser a ingénua e inocente que lhe agrada. Não me importa que o senhor não queira voltar a ver‑me. Quase sinto ódio e desprezo por mim. Apesar de tudo, deve acreditar numa coisa: se tivesse tido esperança de melhorar a sorte de Rudolph, dizendo a verdade, teria falado clara e destemidamente. Pelo contrário, a minha confissão torna a situação ainda pior. Não lhe faria mal algum, insistindo no meu fingimento.

  ‑ Rudolph ‑ interrompeu Blunt. ‑ Sempre Rudolph.

  ‑ O senhor não compreende ‑ respondeu a jovem com ar desolado ‑ e nunca conseguirá compreender.

Em seguida, dirigindo‑se novamente a Raglan, disse:

  ‑ Confirmo tudo, tinha necessidade de dinheiro; estava reduzida ao desespero. Naquela noite, depois de meu tio se levantar da mesa, não o tornei a ver. Quanto ao dinheiro, podem fazer o que quiserem. Pior do que isto, não poderá ser!

Subitamente, teve uma nova crise de choro. Ocultou o rosto nas mãos e fugiu da sala.

  ‑ E assim ‑ observou Raglan desconcertado‑ ela também está no seu lugar.

Parecia estar indeciso sobre o que havia de fazer. O major avançou e disse calmamente:

  ‑ Ouça, inspector, aquele dinheiro foi‑me entregue por Mister Ackroyd para um fizn particular. Miss Ackroyd nunca lhe mexeu. Está mentindo na esperança de defender o capitão Paton. A verdade é esta e estou disposto a ir para o banco das testemunhas prestar juramento ‑ curvou‑se e saiu da sala.

Poirot voou atrás dele. Alcançou‑o no vestíbulo.

  ‑ Eh!  Major, um momento, rogo‑lhe, tenha a bondade.

Era evidente que o major estava extremamente nervoso. Fixou o detective franzindo a testa. Este disse‑lhe:

  ‑ Não me deixo enganar pela sua invenção! Foi realmente Flora quem tirou o dinheiro. No entanto, foi bem arquitectado e o que o senhor diz... agrada‑me. É bonito o que fez. Vê‑se que é rápido nas suas decisões; não menos pronto a pensar do que a agir.

  ‑ A sua opinião deixa‑me perfeitamente indiferente. Obrigado ‑ respondeu o outro com frieza.

Fez um movimento de retirada, mas Poirot, nada ofendido, pôs‑lhe a mão no braço e reteve‑o.

  ‑ É preciso que me oiça: tenho outra coisa a dizer‑lhe. Há dias, falava‑se de segredos... de subterfúgios. Eu sempre vi o que o senhor procurava ocultar. O senhor está doidamente apaixonado por Flora, desde o primeiro momento que a viu, não é assim? Mas procura ocultar a todos o seu amor. Isso fica‑lhe bem... Mas aceite o conselho de Hercule Poirot... não o oculte à interessada.

O major manifestara diversos sinais de impaciência, enquanto o detective falava. Mas as últimas palavras pareciam ter‑lhe despertado a atenção.

  ‑ Que quer dizer com isso? ‑ perguntou com aspereza.

  ‑ O senhor julga que ela esteja apaixonada pelo capitão Rudolph Paton... mas eu, Hercule Poirot, digo‑lhe que não é o caso. Miss Flora aceitou o capitão Paton, somente para agradar ao tio; e porque via, no casamento, o meio de sair de uma existência que, francamente, se lhe tornara cada vez mais insuportável. Ele era‑lhe simpático e entre os dois havia muita compreensão. Mas, amor... não! Não é ao capitão Paton que Flora ama!

  ‑ Que quer dizer com isso? ‑ perguntou Blunt.

  ‑ Que o senhor tem sido um cego, meu caro major! Rudolph está sob a ameaça de uma grave suspeita e ela faz questão de não o abandonar neste momento. Percebi que chegara a ocasião de tomar a palavra.

  ‑ Uma noite destas ‑ intervim num tom encorajador ‑ minha irmã disse‑me que Flora não se importava com Rudolph e que nunca se importaria com ele. E nestas coisas, minha irmã tem sempre razão.

  Mas Blunt não fez caso das minhas boas intenções.

  ‑ O senhor julga... ‑ começou, dirigindo‑se a Poirot; mas não soube continuar.

É um desses homens de poucas palavras a quem é muito difícil exprimir os pensamentos.

Poirot, pelo contrário, não conhece essas dificuldades.

  ‑ Se não acredita, pergunte‑lho directamente. Mas talvez o senhor já não se interesse. A história do dinheiro...

  ‑ O senhor pensa que essa tolice possa impressionar‑me? Roger teve sempre ideias estranhas a respeito de dinheiro. Talvez ela se tenha encontrado em apuros e não tenha ousado dizê‑lo. Pobre pequena!

Poirot ficou um momento pensativo e olhou para a porta lateral.

  ‑ Flora foi para o jardim, parece‑me.

  ‑ Fui um tolo ‑ respondeu o major subitamente.‑ O senhor é um homem de bem, Mister Poirot. Obrigado.

Estendeu a mão ao belga e apertou‑a de tal modo que este estremeceu de dor. Em seguida, dirigiu‑se para a porta lateral e passou para o jardim.

 

MRS. RUSSELL

O inspetór e Raglan recebera um rude golpe. Também ele não se deixara enganar pela generosa mentira do major.

  ‑ Isto vem mudar inteiramente o aspecto da questão. Não sei se já percebeu isto, Mister Poirot?

  ‑ Já há algum tempo me habituara a essa ideia respondeu este.

Raglan, para quem a ideia ocorrera apenas meia hora antes, olhou com tristeza para o outro e prosseguiu nas suas descobertas.

  ‑ Todos ac ueles álibis nada valem agora; absolutamente nada! E preciso começar de novo. Verificar o que cada um fez, das nove e meia em diante. Às nove e meia... esta é a hora que devemos ter em conta. O senhor tinha razão a respeito de Charles Kent... por enquanto, não lhe será restituída a liberdade. Vejamos um instante: às nove e quarenta e cinco minutos, encontrava‑se na Coroa Larga. É possível que tenha empregado quinze minutos para chegar até lá, se fez o trajecto corrente. É bem possível que fosse dele a voz que Mister Raymond ouviu na ocasião em que, naturalmente, falava a Mister Ackroyd e pedia dinheiro. Mas uma coisa é evidente. Não foi ele quem telefonou ao doutor. A estação encontra‑se a quase um quilómetro de distância da Coroa Larga e ele esteve na taberna até, mais ou menos, às dez e dez. Maldito telefonema. Acabamos sempre por empeçar nele!

  ‑ Efectivamente ‑ concordou o detective – é um facto curioso. Paton entrou no escritório do tio e, encontrando‑o assassinado, decidiu telefonar. Depois, assustado, pensou na possibilidade de ser acusado e tratou de pôr‑se a salvo. É admissível, não lhe parece?

  ‑ Porque havia de telefonar?

  ‑ Talvez porque não tivesse a certeza de que o velho estava vesse realmente morto. Então, pensou chamar o doutor, com a maior brevidade possível, mas não quis dar‑se a conhecer. Que diz desta hipótese? Parece‑me não lhe faltar um fundamento de verdade.

O inspector inchou o peito. Estava tão satisfeito consigo próprio, que qualquer objecção teria sido inútil. Precisamente naquele momento, chegámos defronte da minha casa e apressei‑me a ir para o consultório onde, havia bastante tempo, vários clientes me esperavam, deixando que Poirot e Raglan fossem ao posto policial. Depois de ter despedido o último cliente, fui para o pequeno quarto a que chamo a minha oficina. Sinto‑me um tanto orgulhoso do aparelho de rádio que consegui fabricar sozinho. Caroline tem uma acentuada antipatia pela oficina. Ali estão as minhas ferramentas e Anny está proibida de entrar lá com a sua vassoura e a sua pá. Estava consertando o mecanismo de um despertador que em casa fora declarado inaudível, quando a porta se abriu e apareceu a cabeça de minha irmã, anunciando:

  ‑ Chegou Mister Poirot, que deseja falar‑te.

  ‑ Está bem ‑ respondi um tanto irritado; porque o seu aparecimento me fizera estremecer e deixara cair uma peça delicada do mecanismo. ‑ Se deseja falar‑me, diz‑lhe que venha até cá.

  ‑ Aqui? ‑ perguntou minha irmã.

  ‑ Sim, aqui mesmo.

Caroline retirou‑se com um gesto de desaprovação. Momentos depois introduziu o detective. Saiu de novo, batendo com a porta.

  ‑ Eh! Meu amigo ‑ disse Poirot, avançando e esfregando as mãos. ‑ O senhor não se pode livrar tão facilmente de mim, como vê!

  ‑ Terminou com Raglan? ‑ perguntei.

  ‑ De momento, sim. E o senhor já atendeu todos os clientes?

  ‑ Já estou despachado.

Poirot sentou‑se e fitou‑me reclinando a cabeça oval, com o jeito de quem antegoza uma brincadeira agradável.

   ‑ Engana‑se ‑ disse. Ainda há um que tem de atendér.

  ‑ O senhor, talvez? ‑ exclamei com surpresa.

  ‑ Eh!, não. Sinto‑me muito bem. Para dizer‑lhe a verdade, trata‑se de uma pequena esperteza minha. Há uma pessoa que desejo ver e, ao mesmo tempo, não quereria que toda a vila viesse a saber disso; o que aconteceria se essa pessoa fosse a minha casa, visto tratar‑se de uma mulher. Ao passo que já esteve aqui para consultá‑lo.

  ‑ Mistress Russell ‑ exclamei.

  ‑ Exacto. Preciso imenso de lhe falar; por isso, enviei‑lhe um bilhete, marcando um encontro no seu consultório. Desagrada‑lhe?

  ‑ Pelo contrário ‑ respondi. ‑ Espero, porém, poder assistir ao colóquio.

  ‑ Certamente, visto que se efectua no seu consutório.

  ‑ Em resumo: é um caso complicado ‑ observei, depondo a pinça que tinha na mão. ‑ Cada nova descoberta é como um caleidoscópio: o quadro muda inteiramente de aspecto. E porque deseja falar com Mistress Russell?

Poirot arqueou as sobrancelhass.

  ‑ É tão evidente ‑ murmurou.

  ‑ Sempre a mesma coisa! ‑ resmunguei. – Na sua opinião, tudo é evidente. Mas deixa‑me vaguear desnorteado no nevoeiro.

Sacudiu a cabeça bondosamente.

  ‑ O senhor está caçoando comigo. Tomemos, como exemplo, o caso de Flora; Raglan ficou surpreso, mas o senhor... o senhor... não.

  ‑ Nunca sonhei que fosse uma ladra ‑ respondi.

  ‑ Isso não, talvez. Mas eu perscrutava‑lhe bem a fisionomia e o senhor não se mostrava estupefacto e incrédulo, como o inspector Raglan. Fiquei pensativo por um instante.

  ‑ Talvez tenha razão ‑ concordei por fim.‑ Sempre tive o pressentimento de que Flora ocultasse

qualquer coisa: por isso, quando apareceu a verdade, inconscientemente, talvez já a esperasse. Todavia, perturbou bastante o inspector.

  ‑ Efectivamente. Terá de reorganizar as suas teorias. Aproveitei o seu caos mental para induzi‑lo a prestar‑me um pequeno serviço.

O detective tirou do bolso uma folha de papel. Nela estavam escritas algumas palavras que leu em voz alta: Há dias que a polícia procura o capitão Paton, residente na villa Fernly, em King's Abbot, sobrinho de Mr. Ackroyd morto, como se sabe, na sexta‑feira, em trágicas circunstâncias. O capitão foi visto em Liverpool, onde estava para embarcar com destino à América. Dobrou com cuidado a folha de papel.

  ‑ Esta notícia, meu amigo, aparecerá nos jornais, amanhã de manhã. Fitei‑o assombrado.

  ‑ Mas... não é verdade! Ele não está em Liverpool!

Poirot olhou‑me a sorrir.

  ‑ O senhor compreende imediatamente as coisas.

Custou a convencer Raglan a mandar esta notícia para a imprensa; sobretudo porque não podia pô‑lo ao par das minhas confidências. Mas como lhe garanti do modo mais formal que desta notícia derivariam resultados interessantíssimos, logo que fosse publicada, cedeu; com a condição de não ser de modo algum responsabilizado.

  ‑ Não chego a compreender o que espera conseguir ‑ acabei por dizer‑lhe.

  ‑ Utilize a sua massa cinzenta ‑ desafiou.

Levantou‑se e aproximou‑se da mesa de trabalho.

  ‑ Vê‑se que tem uma verdadeira paixão pela mecânica ‑ observou depois de ter examinado o produto das minhas fadigas.

 Cada um tem as suas predilecções. Apressei‑me a chamar a atenção do detective para o aparelho de rádio de minha fabricação. Vendo que lhe interessava, mostrei‑lhe duas coisas de minha invenção, brincadeiras, mas muito úteis em casa.

  ‑ Decididamente ‑ observou ele ‑ o senhor deveria ser inventor de profissão e não médico... Ouvi a campainha; deve ser a cliente. Vamos para o consultório.

Já me tinham surpreendido os traços de beleza que ainda se notavam no rosto da governanta. Naquele dia, fiquei novamente impressionado. Vestia modestamente de preto; alta, aprumada e altiva como sempre, com os grandes olhos negros e um insólito rubor no rosto, geralmente pálido. Percebia‑se que deveria ter sido muito linda, quando nova.

  ‑ Bom dia, minha senhora ‑ disse Poirot.‑ Sente‑se, faça favor. O doutor Sheppard teve a amabilidade de pôr à minha disposição o seu consultório, para uma pequena palestra que desejo manter consigo. Sentou‑se com a sua habitual compostura.

  ‑ Permita que o diga, mas o seu modo de agir parece um tanto singular ‑ observou.

  ‑ Mistress Russell, tenho uma notícia a dar‑lhe...

  ‑ Ah! Sim?

  ‑ Prenderam Charles Kent em Liverpool.

O seu rosto permaneceu impassível; nem um músculo se alterou. Abriu um pouco mais os olhos e perguntou:

  ‑ E que tenho eu com isso?

Repentinamente, passou‑me pela mente a semelhança que há muito me atormentava; havia no seu ar provocante, qualquer coisa análoga à que mostrara Charles Kent. As duas vozes, uma áspera e desagradável, a outra dolorosamente senhoril, apresentavam estranha semelhança de timbre. Fora justamente Mrs. Russell quem me levara a pensar no encontro daquela noite, perto da entrada da villa Fernly. Muito satisfeito com a minha descoberta, olhei Poirot, que me fez um leve sinal de confirmação.

  ‑ Oh! ‑ respondeu este com a máxima calma.‑ Julgava que esta notícia a interessasse, nada mais.

  ‑ Não me interessa de modo particular ‑ respondeu ela. ‑ Em todo o caso quem é esse Charles Kent?

  ‑ É um indivíduo que na noite do crime se encontrava em Fernly.

  ‑ Sim!?

  ‑ Felizmente, tem um álibi. Às nove e quarenta e cinco, encontrava‑se numa taberna distante daqui.

  ‑ Melhor para ele ‑ comentou Mrs. Russell.

  ‑ Contudo, não se sabe o que veio fazer a Fernly... com quem foi encontrar‑se, por exemplo.

  ‑ Sinto bastante, mas não posso ser‑lhe útil‑ disse a governanta, cortesmente.

Fez um movimento como se quisesse levantar‑se.

Mas Poirot reteve‑a.

  ‑ Não é ainda tudo ‑ continuou calmamente.‑ Esta manhã foram feitas outras descobertas. Parece que Ackroyd não foi assassinado às nove e quarenta e cinco e sim antes. Entre as nove menos dez (quando o doutor o deixou) e as nove e quarenta e cinco. A cor das faces da governanta desapareceu repentinamente e o seu rosto tornou‑se cadavérico. Dobrou‑se para a frente com o corpo agitado por um tremor nervoso.

  ‑ Mas Miss Ackroyd ‑ balbuciou ‑ disse...

  ‑ Miss Ackroyd confessou que mentira. Naquela noite não esteve no escritório.

  ‑ Então...?

  ‑ Então, parece que esse tal Charles Kent é o indivíduo que procuramos. Esteve em Fernly, não apresenta qualquer explicação para o que foi fazer...

  ‑ Posso explicar o que ele lá foi fazer! Não tocou num cabelo do velho Ackroyd... nem sequer se aproximou do escritório. Não foi ele, garanto‑lhe ‑ curvou‑se mais para a frente. Finalmente, aquele férreo domínio de si própria, fora quebrado: o terror e o desespero estavam pintados no seu rosto.

  ‑ Mister Poirot! Mister Poirot! Pode acreditar‑me. Este levantou‑se e bateu‑lhe no ombro.

  ‑ Sim... acredito. Mas foi necessário fazê‑la falar.

Por instantes, um relâmpago de desconfiança surgira‑lhe nos olhos.

  ‑ É verdade o que me disse? ‑ perguntou.

  ‑ Que há suspeita de que Charles Kent tenha praticado o crime? Sim, é verdade. Somente a senhora o pode salvar, dizendo o motivo que o levou a Fernly.

  ‑ Foi encontrar‑se comigo. ‑ Falava em voz baixa, apressadamente. ‑ Eu saí para ir ter com ele...

  ‑ No quiosque, bem sei.

  ‑ Como conseguiu saber?

  ‑ A profissão de Hercule Poirot é saber tudo. Sei que às primeiras horas da noite saiu, a fim de deixar no quiosque um bilhete avisando‑o da hora em que se encontraria aí com ele.

  ‑ Sim, é verdade. Tivera notícias dele. Dizia que viria. Não ousava deixá‑lo entrar em casa. Escrevi para o endereço que me indicara, dizendo‑lhe que o esperaria no quiosque, que descrevi de maneira a não lhe ser difícil encontrá‑lo. Depois, receei que não quisesse esperar pacientemente; saí e deixei uma nota escrita para avisá‑lo de que me encontraria lá às nove e dez. Näo queria ser vista pelas pessoas do serviço. Por isso, saí às escondidas, passando pela porta envidraçada da sala. Voltando, encontrei o doutor Sheppard e pensei que talvez achasse o caso estranho. Estava anelante por ter feito o trajecto a correr e não sabia que o doutor era esperado para o jantar. Calou‑se.

  ‑ Continue ‑ disse Poirot. ‑ Saiu para se encontrar com ele às nove e dez. E que disseram?

  ‑ É difícil, considere...

  ‑ Senhora! ‑ interrompeu o detective. – Numa questão como esta, preciso de saber toda a verdade. Não é necessário que o que disser saia destas quatro paredes. O doutor Sheppard será também discreto. Charles Kent é seu filho, não é verdade?

A cor subiu‑lhe ao rosto.

  ‑ Nunca ninguém o soube. Já se passaram tantos anos, tantos... lá em Kent. Não era casada...

  ‑ Assim, deu‑lhe por apelido o nome da província em que nasceu. Compreendo perfeitamente.

  ‑ Encontrei trabalho e consegui ganhar o suficiente para a sua alimentação e hospedagem. Nunca lhe disse que era mãe dele. Mas cresceu vicioso e mau. Deu‑se ao álcool e aos estupefacientes. Fiz tudo quanto me foi possível. Até que consegui mandá‑lo para o Canadá. Durante cerca de dois anos, não tive notícias; depois, não sei como veio a descobrir que eu era sua mãe. Escreveu‑me a pedir dinheiro. Por fim, vim a saber que voltara. Queria vir procurar‑me a Fernly, segundo escreveu. Eu não ousaria deixá‑lo entrar em casa. Sempre fui considerada... e irrepreensível quanto à moralidade. Se alguém tivesse descoberto o mínimo indício desfavorável, adeus lugar de governanta. Por isso lhe escrevi, como expliquei há pouco.

  ‑ Naquela manhã a senhora veio procurar o doutor Sheppard?

  ‑ Sim. Queria saber se era possível fazer alguma coisa. Não era mau rapaz antes de entregar‑se aos estupefacientes.

  ‑ Está bem ‑ observou Poirot. ‑ Agora continue a sua narrativa. Ele foi naquela noite ao quiosque...

  ‑ Sim, estava à minha espera quando entrei. Tratou‑me mal e até me insultou. Levara comigo todo o dinheiro que possuía e entreguei‑lho. Passeámos um pouco e depois foi‑se embora.

  ‑ Que horas eram?

  ‑ Deviam ser nove e vinte ou nove e vinte e cinco. Não eram ainda nove e meia quando reentrei em casa.

  ‑ Que direcção tomou ao deixá‑la?

  ‑ Tomou o caminho por onde viera, o qual vai dar à estrada precisamente, perto da portaria. O detective fez um sinal de assentimento.

  ‑ E a senhora, que fez?

  ‑ Voltei para casa. Mas ao avistar o major Blunt, que passeava de um lado para o outro no terraço, fumando, tive de dar uma volta para chegar à porta lateral. Não eram ainda nove e meia, como disse.

Outro sinal de Poirot, que tomou algumas notas num pequeno caderno que tirara do bolso.

  ‑ Parece‑me que é o bastante ‑ observou pensativo.

  ‑ Terei que contar isto à polícia? ‑ perguntou ela hesitante.

  ‑ Talvez seja preciso. Mas não há pressa por enquanto. Vamos com ordem e com método. De momento, Charles Kent não está formalmente acusado de ter praticado o crime. Podem vir a surgir circunstâncias que tornem inútil o seu depoimento.

Mrs. Russell levantou‑se.

  ‑ Obrigada. Muito obrigada, Mister Poirot. O senhor foi muito bom para mim... está convencido de que Charles nada tem a ver com o assassínio.

  ‑ Parece‑me fora de dúvida que o indivíduo que às nove e meia falava com Mister Ackroyd não pode ter sido o seu filho. Ânimo, tenha coragem! Tudo terminará bem, verá.

A governanta saiu. Eu e Poirot ficámos sós.

  ‑ Mistress Russell também está no seu lugar?‑ observei. ‑ Estamos ainda com Rudolph na mesma situação. Como conseguiu saber que era ela a pessoa que Charles Kent viera procurar? Notou talvez a semelhança?

  ‑ Mentalmente, já a tinha relacionado com o desconhecido, antes de me encontrar com ele, cara a cara; logo após ter encontrado a pena de pato. A pena fez‑me pensar nos estupefacientes e lembrei‑me do que o senhor me dissera a propósito da consulta de Mistress Russell. No jornal desse dia encontrei depois o artigo sobre a cocaína: tudo então me pareceu muito mais claro. A governanta tivera notícias de alguém dado a estupefacientes... lera o artigo no jornal e resolvera vir aqui para lhe fazer algumas perguntas a esse propósito. Falou em cocaína, visto o referido artigo tratar de cocaína. Depois, quando o senhor parecia interessar‑se muito, apressou‑se em mudar de assunto, passando a falar de romances policiais e de venenos que não deixam vestígios. Tinha precisamente a desconfiança que houvesse no caso um filho, um irmão ou algum outro parente indesejável. Eh! Estou na hora do almoço. Adeus, doutor.

  ‑ Fique connosco ‑ propus.

Sacudiu a cabeça e piscou‑me o olho.

  ‑ Hoje não, obrigado. Não quero condenar Miss Caroline ao useu regime vegetariano, dois dias seguidos. Novamente notei que quase nada escapava à arguta observação de Hercule Poirot.

 

A NOTÍCIA DO JORNAL

Como era de esperar, não passara despercebida a Caroline a visita de Mrs. Russell ao meu consultório. Prevenido, preparei uma cuidadosa relação sobre a moléstia do joelho da governanta. Mas não viera disposta a fazer perguntas. Julgava saber perfeitamente o motivo daquela visita e que eu nada sabia.

  ‑ Veio para te fazer falar, Jacques ‑ disse – do modo mais descarado. Não me interrompas; estou certa de que nem te apercebeste: os homens são tão ingênuos! Ela sabe que és confidente de Mister Poirot e quis sondar o terreno. Sabes o que penso, Jacques?

  ‑ Ainda não me deste tempo para imaginá‑lo. Pensas sempre em tanta coisa!

  ‑ Deixa‑te de ironias. Estou convencida de que Mistress Russell sabe mais sobre a morte de Mister Ackroyd do que quer revelar. Atirou‑se para trás da poltrona, com ar vitorioso.

  ‑ Tens a certeza disso? ‑ perguntei distraidamente.

  ‑ Hoje pareces imbecilizado, Jacques. Não tens vida, não tens energia. É o teu fígado que não funciona. Depois, a nossa conversa virou‑se para assuntos puramente pessoais.

No dia seguinte, no jornal local, apareceu a notícia inspirada por Poirot. Quanto ao seu objectivo, nada sabia, mas o efeito que causou sobre Caroline foi enorme. Com o maior descaramento deste mundo, começou a afirmar que sempre dissera o mesmo. Franzi as sobrancelhas mas não a contradisse. Contudo, deve ter tido um escrúpulo de consciência, porque acrescentou:

  ‑ É possível que não tenha mencionado Liverpool, mas sabia que ele procurava embarcar para a América. E assim, foi agarrado. Parece‑me que é teu dever, Jacques, não permitir que ele seja enforcado!

  ‑ Mas que posso eu fazer?

  ‑ És ou não és médico? Conheces o rapaz desde a infância. É moralmente irresponsável. É evidente que a orientação da defesa deve ser esta. Há dias, li que no manicómio de Broadmo se vive optimamente... é uma espécie de reclusão aristocrática!

  ‑ Nunca imaginei que Poirot tivesse um sobrinho idiota ‑ exclamei, com ironia.

  ‑ Contou‑me tudo. É um martírio para a família. Até ao presente foi sempre mantido em casa, mas o seu estado chegou a tal ponto que temem ter de enviá‑lo para uma casa de saúde.

  ‑ Naturalmente, já sabes tudo a respeito da família Poirot? ‑ disse‑lhe exasperado.

  ‑ Ora ‑ respondeu com satisfação. – Constitui um grande alívio ter alguém a quem contar os próprios desgostos.

  ‑ É possível ‑ observei. ‑ Com a condição, porém, de fazê‑lo espontaneamente. Agora deixar que nos arranquem confidências é outra questão. Caroline olhou‑me com ar de mártir.

  ‑ Tu és sempre tão enigmático, Jacques! Tens verdadeira repugnância de falar com clareza e dizer o que pensas; por isso julgas que os outros também são assim. Acredita que nunca arranquei confidências. Por exemplo: se Mister Poirot vier hoje depois do jantar, nem sequer sonho em perguntar‑lhe quem foi a sua casa, esta manhã, bem cedo.

  ‑ Esta manhã, bem cedo?

  ‑ Muito cedo, sem dúvida. Antes de o leiteiro chegar. Estava olhando pela janela... o vento levantara o cortinado. Era um homem; desceu de um carro fechado e estava de tal modo embuçado que não pude ver‑lhe o rosto nem de fugida. Mas vou dizer‑te o que pensei e verás se não tenho razão.

  ‑ Quem julgas que possa ser?

Minha irmã baixou misteriosamente a voz.

  ‑ Um funcionário do Ministério do Interior murmurou.

  ‑ Um funcionário do Ministério do Interior?‑ objectei, no auge do assombro. ‑ Mas... Caroline!

  ‑ Toma nota das minhas palavras e verás que tenho razão. A Russell esteve aqui, no dia do crime, para te roubar venenos. É possível que, naquela noite, os alimentos de Roger Ackroyd estivessem envenenados.

Soltei uma sonora gargalhada.

  ‑ Não digas tolices! ‑ exclamei. ‑ Foi apunhalado pelas costas. Sabes isso perfeitamente.

  ‑ Sim, mas depois da morte; para desviar as investigações.

  ‑ Examinei o cadáver e sei o que digo. Aquela punhalada não foi vibrada depois da morte, mas precisamente o que o matou. Podes ter a certeza.

Caroline continuava de tal modo na sua atitude omnisciente que acabei por aborrecer‑me:

  ‑ Começo a desconflar de que sejas tu quem possui o diploma de médico.

  ‑ Sei que o diploma é teu, Jacques, mas falta‑te imaginação.

  ‑ Certamente que a Natureza, ao contar só contigo, não deixou nenhuma para mim.

Naquela tarde diverti‑me imenso a observar as manobras de minha irmã, após a chegada de Poirot. Embora sem lhe fazer perguntas directas, abordava continuamente o assunto do hóspede misterioso. Pelos olhares divertidos do belga, pude observar que percebera logo o objectivo de Caroline. Manteve‑se sempre cortês, mas impenetrável; e repeliu os ataques com tal destreza que ela não soube como prosseguir. Depois levantou‑se e propôs‑me darmos uma volta.

  ‑ Desejo emagrecer um pouco ‑ explicou.‑ Quer acompanhar‑me, doutor? Talvez, mais tarde, Miss Caroline nos prepare uma chávena de chá.

  ‑ Com o máximo prazer ‑ respondeu esta.‑ Virá... também... o seu hóspede?

  __ Em Inglaterra, a autoridade judiciária não pode tratar de qualquer exumação sem permissão especial do Ministério do Interior.

  ‑ Muito gentil, minha senhora. Não, obrigado. O meu amigo está a descansar. Espero que, mais tarde, venha a conhecê‑lo.

  ‑ Disseram‑me que é um velho amigo seu ‑ observou minha irmã, reunindo todas as suas forças para o último ataque.

  ‑ Ah! Disseram‑lhe? ‑ murmurou Poirot.‑ Bem, até logo.

Dirigimo‑nos para Fernly. Agora começava a perceber os métodos de Poirot. A mínima coisa, aparentemente sem importância, tinha o seu valor no conjunto global.

  ‑ Tenho um pedido a fazer‑lhe, meu amigo‑ disse o belga, rompendo o silêncio. ‑ À noite, haverá uma pequena reunião em minha casa. Irá, não é verdade?

  ‑ Certamente ‑ respondi.

  ‑ Muito bem. Mas é preciso que estejam também presentes os da casa Ackroyd; isto é, Mistress Ackroyd, Flora, o major Blunt e Mister Raymond. Desejaria que o doutor fosse o meu embaixador. A pequena reunião está marcada para as nove. Quer fazer‑me o obséquio de convidá‑los em meu nome?...

  ‑ Com a melhor vontade. Mas porque não os convida pessoalmente?

  ‑ Porque me fariam uma porção de perguntas: Porquê? Com que fim? Que pensa? Sabe perfeitamente, doutor, que me desagrada expor as minhas ideias, antes da ocasião oportuna.

Sorri.

  ‑ O meu amigo Hastings, de quem já lhe falei, costumava chamar‑me o homem‑ostra. Mas era injusto. Não oculto nenhum facto. Deixo que cada um apresente a sua interpretação.

  ‑ Quando quer que eu faça esse convite?

  ‑ Pode ser agora, se quiser. Estamos perto da villa.

  ‑ E o senhor não entra?

  ‑ Não. Darei uma volta pelo parque e depois alcançá‑lo‑ei, dentro de um quarto de hora, junto ao portão da entrada.

Fiz um sinal de assentimento e dispus‑me a cumprir o encargo. A única pessoa da família que estava em casa era Mrs. Ackroyd, que, embora ainda não fossem nove horas, estava a tomar uma chávena de chá. Recebeu‑me com satisfação.

  ‑ Agradeço‑lhe tanto, doutor, por ter liquidado aquele pequeno assunto com Mister Poirot. Esta vida não é mais do que sequência de aborrecimentos. Naturalmente, já sabe a notícia acerca de Flora?

  ‑ Não sei ‑ respondi, prudentemente.

  ‑ Um novo noivado, com Hector Blunt! Não será um bom partido como Rudolph. Mas é preciso pensar na felicidade, como a primeira coisa deste mundo. O que Flora precisa é de um homem de certa idade... alguém que seja sério, firme, ajuizado, e Hector é uma pessoa muito distinta. Viu a notícia, no jornal desta manhã, sobre a prisão de Rudolph?

  ‑ Sim ‑ respondi.

  ‑ É terrível! ‑ Mrs. Ackroyd fechou os olhos, toda arrepiada. ‑ Raymond ficou profundamente

abalado e telefonou para Liverpool. Mas as autoridades não quiseram dar‑lhe nenhuma informação; isto é, responderam que Rudolph não estava preso. Ele insiste em afirmar que se trata de um engano, de uma balela dos jornais. Proibi que se fale no assunto na presença da criadagem. Que coisa horrível! Imagine se Flora fosse mulher dele!

Fechou os olhos extenuada. Comecei a perguntar a mim próprio quando poderia comunicar‑lhe o convite de Poirot.

Antes que eu tivesse tempo para falar, começou:

  ‑ O senhor esteve aqui ontem, não é verdade, com aquele odioso Raglan? Que homem brutal!... teve a coragem de assustar Flora, acusando‑a de ter roubado o dinheiro do quarto do pobre Roger! E pensar que na verdade a coisa era tão simples. Apenas desejava algumas libras emprestadas e não queria incomodar o tio, já que ele pedira que não o incomodassem. Pois bem, sabendo onde se encontrava o dinheiro, foi buscar a quantia de que necessitava.

  ‑ E o que Flora diz? ‑ perguntei.

  ‑ O senhor sabe como são as raparigas de hoje.

Deixam‑se sugestionar com a máxima facilidade. Naturalmente, o senhor sabe muito melhor do que eu, o que é a sugestão... O inspector começa a berrar, grita e repete continuamente a palavra roubo, até que Flora, impressionada, sugestionada, acaba por julgar que realmente roubou. Percebi logo como as coisas se passaram. Afinal, sinto‑me satisfeita por esse mal‑entendido, que parece ter aproximado mais os dois, isto é, Flora e Hector. Posso assegurar‑lhe que andei algum tempo inquieta por causa de Flora; parecia‑me que entre ela e o jovem Raymond havia uma espécie de entendimento sentimental. Imagine! ‑ e neste ponto a voz de Mrs. Ackroyd transformou‑se num es pasmo de horror. ‑ Um secretário particular e sem dinheiro !

  ‑ Teria sido um golpe doloroso para si ‑ observei. ‑ Queria dizer‑lhe, Mistress Ackroyd, que tenho uma comunicação a fazer‑lhe da parte de Mister Poirot.

‑ A mim! ‑ perguntou alarmada.

Tranquilizei‑a e expliquei‑lhe o que o detective desejava.

  ‑ Certamente ‑ anuiu ainda hesitante. – Creio que é conveniente. Mas de que se trata?

  Garanti que não sabia mais do que ela.

  ‑ Está bem. Comunicarei aos outros e às nove horas lá estaremos todos.

Depois disto, despedi‑me e fui encontrar‑me com Poirot no lugar marcado.

  ‑ Temo ter‑me demorado mais de quinze minutos ‑ observei. ‑ Mas quando aquela excelente senhora começa a falar, torna‑se extremamente difícil detê‑la para intercalar uma palavra.

  ‑ Não importa ‑ disse Poirot. ‑ Distraí‑me bastante. Este parque é magnífico.

Dirigimo‑nos para casa. Quando chegámos, Caroline veio abrir‑nos a porta pois estava, evidentemente, à nossa espera. Colocou um dedo nos lábios.

  ‑ Ursula Bourne ‑ disse ‑, a criada da villa Fernly, está aqui! Fi‑la entrar para a sala de jantar. Está num estado desolador, coitadinha! Diz que precisa falar imediatamente com Mister Poirot. Fiz por ela tudo quanto pude: dei‑lhe uma chávena de chá quente.

  ‑ Na sala de jantar? ‑ perguntou o detective.

  ‑ Por aqui ‑ disse. E abri rapidamente a porta.

Ursula estava sentada junto da mesa. Tinha os braços abertos e via‑se que levantara a cabeça naquele momento. Os seus olhos estavam vermelhos de chorar.

  ‑ Ursula Bourne ‑ murmurei.

Mas, Poirot, passou‑me à frente, estendendo as mãos.

  ‑ Não ‑ exclamou ‑, não é Ursula Bourne, mas, sim, Ursula Paton; a legítima esposa de Rudolph

Paton.

 

AS VICISSITUDES DE URSULA

A jovem olhou para Poirot sem falar. Depois, confirmou e recomeçou a chorar.

  Caroline empurrou‑me para o lado e, cingindo‑a com o braço, acariciou‑lhe levemente o ombro.

  ‑ Ora vamos, querida ‑ disse procurando acalmá‑la ‑, tudo se há‑de arranjar, verá. Verá que tudo

terminará bem! ...

Apesar da sua irrefreável curiosidade, apesar do seu amor à maledicência, minha irmã tem um coração de ouro. Ursula criou ânimo e enxugou os olhos.

  ‑ Sei que é uma fraqueza da minha parte ‑ exclamou.

  ‑ Nós todos podemos fazer ideia de quanto deve ter sofrido ‑ disse, cortesmente, Poirot.

  ‑ Deve ter sido uma prova horrível ‑ observei.

  ‑ E depois descobrir que o senhor sabia! ‑ continou a jovem. ‑ Como soube? Foi Rudolph quem lho disse?

O belga sacudiu a cabeça.

  ‑ Sabe o que me fez vir aqui? ‑ prosseguiu.‑ Isto...

Estendeu a mão, entregando um recorte de jornal todo amarfanhado, em que pude reconhecer a notícia que Poirot mandara publicar.

  ‑ Diz que Rudolph foi preso. Agora tudo é inútil! Não tenho necessidade de continuar a fingir.

  ‑ Nem sempre são verdadeiras as notícias dos jornais, minha senhora ‑ murmurou Poirot, sentindo‑se um pouco envergonhado pelo que fizera. ‑ De qualquer maneira  creio que fará bem contando tudo quanto sabe. E a verdade completa que precisamos conhecer.

A jovem hesitou e olhou titubeante.

  ‑ Então, não confia em mim? ‑ perguntou Poirot com doçura. ‑ Todavia, a senhora veio aqui à minha procura.

  ‑ Não acredito que tenha sido Rudolph quem praticou o crime ‑ respondeu em voz baixa. ‑ Julgo

que o senhor é muito hábil e, por isso, capaz de descobrir a verdade. E também...

  ‑ Sim?

  ‑ Porque me parece que é um homem de coração.

Poirot fez repetidos sinais de confirmação.

  ‑ Fez bem, muito bem. Oiça; estou plenamente convencido de que seu marido está inocente, mas as   coisas estão mal dispostas. Pois bem: para salvá‑lo, é   necessário que eu saiba tudo quanto há para saber...   mesmo que, na aparência, pareça desfavorável.

  ‑ Como compreende bem as coisas! ‑ disse a   jovem.

  ‑ Portanto, a senhora contará tudo desde o prin  cípio, não é assim?

  ‑ Espero que não me mandem embora ‑ interveio Caroline, acomodando‑se tranquilamente numa poltrona. ‑ O que desejaria saber ‑ prosseguiu – é por que motivo se disfarçava de criada.

  ‑ Disfarçava‑se? ‑ perguntei.

  ‑ É justamente o que eu disse. Porquê?

  ‑ Para viver ‑ respondeu Ursula ‑ com simplicidade. E assim, tomando coragem, começou a narrativa que aqui repito por palavras minhas.

Ursula Bourne era uma das numerosas filhas de uma nobre família irlandesa arruinada. Depois da morte do pai, algumas das raparigas saíram de casa à procura de trabalho. A mais velha das irmãs casara com o capitão Folliot. Era a que eu vira no domingo anterior; e, agora, podia explicar plenamente o seu embaraço. Resolvida a ganhar a vida e não querendo ser governanta, único caminho aberto para uma jovem sem aptidões especiais, Ursula preferiu tornar‑se criada. Para referências, dava o nome da irmã. Em Fernly, não obstante o seu retraimento como se viu, provocava alguns comentários. Desempenhava optimamente as suas obrigações; era ágil, competente e metódica.

  ‑ Agradava‑me o trabalho ‑ observou.‑ E, além disso, tinha muito tempo à minha disposição. Depois, dera‑se o seu encontro com Rudolph e as suas relações amorosas que terminaram num casamen  to secreto. Fora Rudolph quem a induzira àquela resolução, embora ela tivesse relutância. Ele dissera que o padrasto era absolutamente contrário a que se casasse com uma jovem sem dinheiro. O melhor, portanto, era casarem secretamente e participar‑lhe a notícia mais tarde, no momento favorável, com as necessárias precauções. Assim fizeram. Ursula Bourne tornou‑se Ursula Paton. Rudolph prometera pagar as suas dívidas, procurar uma colocação e quando estivesse em condições de poder sustentá‑la e se tivesse tornado independente do seu pai adoptivo, revelaria a verdade. Mas para indivíduos do tipo de Rudolph Paton, mudar de vida é mais fácil em teoria do que na prática. Ele esperava que o padrasto, enquanto nada suspeitasse acerca do casamento, se resolvesse a pagar as dívidas e tirá‑lo de dificuldades. Mas quando Roger Ackroyd soube das quantias que ele devia, enfureceu‑se e recusou‑lhe qualquer auxílio. Passaram‑se alguns meses, no fim dos quais o jovem foi chamado a Fernly. O velho Ackroyd não fez muitas cerimónias: desejava que se casasse com Flora e apresentou‑lhe uma proposta definitiva. Foi aqui que a inata fraqueza de Rudolph se revelou. Segundo seu costume, escolheu a solução mais fácil e imediata. Pelo que pude entender, nem ele nem Flora fizeram questão de fingir um amor que não existia. Tanto de um lado como de outro, tratava‑se apenas de uma simples questão de interesses. Mister Ackroyd expôs os seus desejos... e eles submeteram‑se à sua vontade. Flora via, no negócio, uma possibilidade de independência, de conforto e de mudança de ambiente; Rudolph, naturalmente, fazia um jogo bem diverso. Financeiramente encontrava‑se numa situação bem difícil. Agarrou‑se sem hesitar à oportunidade que se lhe oferecia. As suas dívidas seriam pagas e poderia recomeçar a vida de cabeça erguida. O seu carácter não era tal que o levasse a pensar nas consequências futuras; julgo que estivesse resolvido a romper o noivado com Flora após um certo período. Entretanto, ambos combinaram manter secreto o noivado. Naturalmente, ele desejava ardentemente que Ursula nada viesse a saber. Instintivamente percebia que a esposa, firme e resoluta, não acolheria de bom grado o seu procedimento. Quando chegou o momento crítico, Ackroyd resolveu anunciar o noivado; não falou das suas intenções a Rudolph mas somente a Flora; e Flora, indiferente, não opôs dificuldades. Para Ursula, a notícia caiu como um raio. Chamado por ela, Rudolph veio apressadamente da cidade. Encontrara‑se no bosque onde minha irmã pôde ouvir parte da conversa. O capitão pediu à esposa que mantivesse silêncio por mais algum tempo ainda; mas ela mostrou‑se decidida a acabar de uma vez com os subterfúgios. Revelaria toda a verdade a Mr. Ackroyd. Marido e mulher separaram‑se descontentes.

Firme no seu propósito, naquela mesma tarde, Ursula procurou Mr. Ackroyd e revelou‑lhe tudo. Foi um diálogo tempestuoso; e mais teria sido se Ackroyd não tivesse outros pensamentos a atormentá‑lo. O velho não era capaz de se resignar a perdoar o logro de que fora vítima. A sua cólera dirigia‑se principalmente contra Rudolph, mas Ursula também tivera a sua parte, pois considerava‑a uma rapariga que procurara pescar, no filho adoptivo, um homem endinheirado. Tanto de um lado como de outro, foram proferidas palavras que nunca mais se esquecem. Naquela mesma noite, a jovem foi ao encontro marcado com Rudolph; e esse encontro também foi muito agitado. O capitão censurava a esposa por lhe ter estragado irremediavelmente qualquer possibilidade com a sua revelação inoportuna, e ela censurava o marido pela sua falta de sinceridade. Por fim, apartaram‑se; meia hora depois era descoberto o cadáver de Ackroyd. Desde aquela noite, Ursula nunca mais soubera do marido.

À medida que a narrativa prosseguia, compreendia cada vez melhor com que diabólica concatenação se tinham desdobrado os acontecimentos. Se Ackroyd tivesse continuado a viver, não teria deixado de modificar o testamento... conhecia‑o de mais, para não me convencer que este teria sido o seu primeiro pensamento. A sua morte, portanto, fora mais do que opor

tuna para os dois jovens. Não era de admirar que Ursula se tivesse calado.

As minhas meditações foram interrompidas por Poirot. Compreendi imediatamente que não lhe escapavam as consequências que derivavam daquela narrativa.

  ‑ Preciso fazer‑lhe, minha senhora, uma pergunta à qual deve responder com toda a sinceridade, pois tudo depende da resposta: que horas eram quando a senhora e o capitão Paton se despediram no bosque? Pense bem, a fim de dar‑me uma resposta exacta.

A jovem esboçou um sorriso amargo.

  ‑ E o senhor julga que não tenho pensado nisso mais de cem vezes? Quando saí para ir a esse encontro, eram exactamente nove e meia. O major Blunt passeava para cima e para baixo, no terraço; para não ser vista, fui obrigada a passar por entre as moitas. Quando cheguei ao quiosque deviam ser nove e trinta e três, mais ou menos. Rudolph já estava à minha espera. Estive com ele dez minutos: reentrei em casa precisamente às dez menos um quarto. Agora compreendia porque insistira tanto na sua pergunta, dias antes. Ah! Se se tivesse podido provar que Ackroyd fora morto antes das dez menos um quarto e não depois!

E um reflexo desse pensamento surgiu na pergunta que Poirot logo lhe fez:

  ‑ Quem deixou o quiosque em primeiro lugar?

  ‑ Eu.

  ‑ E Rudolph ficou?

  ‑ Sim... mas o senhor não irá julgar...

  ‑ O que eu julgue, minha senhora, não tem nenhuma importância. E que fez qlxando reentrou em casa?

  ‑ Fui para o meu quarto.

  ‑ E até que horas lá ficou?

  ‑ Até às dez.

  ‑ Há alguém que possa confirmá‑lo?

  ‑ Confirmar? Que eu estava no meu quarto? Oh!, não. Vejo que se poderia julgar... se poderia julgar... Vi um relâmpago de horror nos seus olhos.

Foi Poirot quem completou a frase:   ...que foi a senhora quem entrou pela janela e apunhalou Mister Ackroyd enquanto estava sentado na poltrona! Na verdade, pode‑se julgar, precisamente, isso.

  ‑ Ninguém a não ser um idiota poderia acreditar em semelhante infâmia ‑ exclamou desdenhosamente Caroline, acariciando‑lhe o ombro. Ursula ocultara o rosto entre as mãos.

  ‑ Oh!, é horrível ‑ murmurava. ‑ É horrível! Minha irmã sacudiu‑a amorosamente.

  ‑ Vamos, não se preocupe. Tenho a certeza que Mister Poirot não pensa isso. Quanto ao seu marido, parece‑me que não vale grande coisa, francamente. Fugir e deixá‑la sozinha em tal situação!

Ursula sacudiu a cabeça energicamente.

  ‑ Não ‑ exclamou ‑, não é assim. Rudolph não teria fugido de iniciativa própria, pensando unicamente em si. Agora vejo. Quando soube do assassínio do padrasto, talvez tivesse julgado também que fora eu a autora do crime.

  ‑ Qual! Não poderia acreditar em tal absurdo!‑ interveio Caroline.

  ‑ Tratei‑o tão mal naquela noite!. . Fui tão áspera, tão violenta. Não quis ouvir o que tentava dizer‑me... Não queria sequer acreditar nos seus protestos de afecto! Quase não o deixei falar; mas disse‑lhe tudo quanto pensava dele e todas as coisas mais cruéis e amargas que me vinham à mente... Procurava todos os meios de ofendê‑lo!

  ‑ Não lhe fará mal ‑ observou minha irmã.‑

Nunca se entristeça pelo que disser a um homem. Eles   são tão presunçosos e cheios de si que nunca acreditam que se fale verdade quando lhes dizemos alguma coisa desagradável. Ursula continuava a torcer as mãos.

  ‑ Quando o crime foi descoberto e ele não deu sinal de vida, recebi um golpe terrível. Desejava que aparecesse e dissesse abertamente que nada tinha a ver com o sucedido. Sabia que era muito amigo do doutor Sheppard e pensei que talvez o doutor conhecesse o seu esconderijo.

  E virando‑se para mim, acrescentou:

  ‑ Foi o motivo por que no outro dia lhe falei daquele modo. Julgava que, se o senhor soubesse onde ele se encontrava, lhe podia falar.

  ‑ Eu? ‑ exclamei.

  ‑ E porque havia Jacques de saber onde ele se encontra? ‑ interrompeu, repentinamente, Caroline.

  ‑ Sei que era improvável ‑ admitiu Ursula ‑, mas Rudolph falava‑me frequentemente no doutor Sheppard e considerava‑o o melhor amigp que tinha em King's Abbot.

  ‑ Minha senhora ‑ disse‑lhe ‑, não faço a menor ideia relativamente ao lugar onde se encontra Rudolph actualmente.

  ‑ É a pura verdade ‑ confirmou Poirot.

  ‑ Mas... ‑ objectou a jovem apresentando‑lhe o recorte do jornal, com ar de perplexidade.

  ‑ Ah!... isto ‑ observou Poirot um pouco embaraçado. ‑ É um erro. Não vale nada. Não creio que o capitão Paton tenha sido preso, mas há uma coisa que desejo saber: naquela noite, o capitão calçava sapatos ou botas?

Ursula sacudiu a cabeça.

  ‑ Não me lembro.

  ‑ Que pena! Agora, minha senhora ‑ sorriu inclinando a cabeça para um lado e fazendo um sinal eloquente com o dedo indicador ‑, nenhuma pergunta. Não se inquiete. Coragem e tenha confiança em Hercule Poirot.

 

UMA REUNIÃO EM CASA DE POIROT

  ‑ E agora ‑ disse Caroline levantando‑se ‑, a senhora subirá para o meu quarto, a fim de descansar um pouco. Não se aflija. Mister Poirot fará tudo o que lhe for possível. Tranquilize‑se.

  ‑ Devo voltar para Fernly ‑ respondeu Ursula.

Mas minha irmã calou resolutamente os seus argumentos.

  ‑ Tolices! A senhora está nas minhas mãos neste momento. De qualquer maneira, por enquanto, a senhora ficará aqui, não é Mister Poirot?

  ‑ É o melhor que se pode fazer ‑ concordou este. ‑ À noite, terei necessidade de que a senhora esteja presente na minha reunião íntima. Às nove, em minha casa.

Caroline fez um sinal de assentimento e saiu com ela da sala. A porta fechou‑se atrás de ambas. O detective deixou‑se cair novamente na poltrona.

  ‑ Até agora, estamos indo bem! ‑ considerou.

  ‑ Mas a situação de Rudolph torna‑se cada vez mais feia ‑ observei tristemente.

Poirot aprovou com um sinal de cabeça.

  ‑ É verdade. Mas já o tínhamos previsto, não é assim? Há momentos em que tenho saudade do meu amigo Hastings. Aquele de que lhe falei, lembra‑se?... Que se encontra agora na Argentina. Todas as vezes que tive casos importantes, esteve perto de mim. E ajudou‑me. Sim, ajudou‑me várias vezes, porque tinha uma especial habilidade para encontrar a verdade inconscientemente, sem se aperceber. Acontecia‑lhe, às vezes, dizer uma coisa incrivelmente absurda; e justamente essa tolice revelava‑me a verdade! E, além disso, tinha o hábito de tomar nota dos casos que julgava mais interessantes.

Tive um leve acesso de tosse, como para ocultar o meu embaraço.

  ‑ Quanto a isso... ‑ comecei e depois parei. O detective ergueu‑se. Os seus olhos cintilavam.

  ‑ Então? Que quer dizer?

  ‑ É que, como li alguns contos do capitão Hastings, também pensei em escrever alguma coisa semelhante. Parecia‑me um pecado perder esta ocasião, talvez mais única que rara. Talvez a única em que me encontre envolvido em casos desta natureza. Senti uma chama subir ao rosto enquanto pronunciava estas palavras.

Poirot pulou da poltrona! Experimentei uma sensação de terror ao pensar que ia beijar‑me, mas, felizmente, deteve‑se.

  ‑ Mas isso é magnífico! Então, foi anotando as suas impressões à medida que os acontecimentos se foram desenvolvendo?

Fiz sinal que sim.

  ‑ Extraordinário! ‑ exclamou. ‑ Mostre‑me... imediatamente.

  Não estava preparado para um pedido täo inesperado. Torturei o cérebro procurando lembrar‑me como descrevera certos pormenores.

  ‑ Espero que o senhor não faça... ‑ balbuciei.‑ É possível que certos trechos sejam um pouco... como direi?... pessoais.

  ‑ Oh!, compreendo perfeitamente; quer dizer que aqui e ali representou‑me de um modo um pouco caricatural... isto é, talvez ridículo. Não é assim? Ah! Não faz mal. Também Hastings nem sempre era amável comigo! Mas eu sou superior a essas mesquinharias! Ainda um pouco indeciso e hesitante, remexi as gavetas da minha escrivaninha e de lá tirei um maço de papéis em desordem, que lhe apresentei. Em vista de uma possível publicação, dividira o trabalho em capítulos e, na noite anterior, conseguira quase pô‑lo em dia, com a narrativa da última visita de Mrs. Russell. De modo que Poirot tinha nas mãos vinte capítulos.

Saí deixando‑o a lê‑los. Tive de fazer uma visita um pouco distante de minha casa e, quando voltei, já passava das oito. Sobre a mesa estavam dispostos os pratos mantidos quentes, para mim, pois Poirot e minha irmã já tinham jantado às sete e meia, tendo‑se o belga retirado depois para o meu laboratório, a fim de terminar a leitura do manuscrito.

  ‑ Espero, Jacques, que tenhas sido cauteloso e prudente ao falar de mim no teu livro. Não fora nem uma coisa nem outra.

  ‑ Não que eu me importe muito ‑ acrescentou, lendo claramente no meu rosto. ‑ Mister Poirot saberá julgar. Ele compreende‑me melhor do que tu.

Fui para o laboratório. O detective estava sentado perto da janela. O manuscrito estava em cima de uma cadeira, junto dele. Colocou a mão sobre o trabalho e disse:

  ‑ Muito bem! Congratulo‑me consigo... pela sua modéstia.

  ‑ Oh! ‑ respondi um tanto surpreendido.

  ‑ E pelas suas reticências ‑ acrescentou.

Não soube responder senão um novo:   Oh!

  ‑ Hastings não escrevia assim ‑ continuou o detective. ‑ Em cada página havia sempre um que. O que ele pensava, o que fazia. O senhor, pelo contrário... deixou sempre a sua personalidade no último plano; somente uma ou duas vezes, no máximo, se intromete... nas cenas da vida doméstica; vamos cortá‑las?

Uma leve piscadela de olhos fez‑me corar.

  ‑ Diga‑me sinceramente que pensa da minha elucubração? ‑ perguntei nervosamente.

  ‑ Quer conhecer a minha opinião sincera?

  ‑ Sim.

Poirot abandonou o seu tom de gracejo.

  ‑ Trata‑se de uma exposição de factos muito meticulosa ‑ disse com benevolência. ‑ Anotou com escrupulosa exactidão todas as circunstâncias... embora se tenha mostrado circunspecto, em certas ocasiões, quanto à parte que representou.

  ‑ E fui‑lhe útil?

  ‑ Sim. Posso afirmar‑lhe que me auxiliou consideravelmente. Venha, vamos para minha casa, a fim de prepararmos a encenação para a pequena comédia.

Caroline colocara‑se na entrada. Creio que esperava ser também convidada. Mas o belga usou de muito tacto ao tratar da delicada situação.

  ‑ Teria muito prazer em que Miss Sheppard também estivesse presente ‑ disse com pesar ‑, mas, na actual circunstância, não seria prudente. Todos os que forem esta noite a minha casa, serão suspeitos. Entre eles, saberei descobrir o assassino de Mister Ackroyd.

  ‑ Crê nisso verdadeiramente? ‑ perguntei um pouco céptico.

  ‑ Creio que ainda não está convencido ‑ respondeu o outro, secamente. ‑ Nem mesmo agora se resolve a apreciar Hercule Poirot pelo que realmente vale.

Justamente naquele momento, Ursula desceu a escada.

  ‑ Está pronta, minha senhora? ‑ perguntou o belga. ‑ Está bem. Iremos juntos para minha casa.

Confie em mim, Miss Caroline; farei tudo o que puder para lhe ser útil. Boa noite.

Saímos, deixando minha irmã na porta, com o olhar triste, como um cão a quem fosse recusado um passeio. Na villa, a saleta fora preparada. Sobre a mesa, estavam várias garrafas de licores e cálices. Havia também um prato com doces. Da sala vizinha, foram trazidas algumas cadeiras.

Poirot andava de um lado para o outro, colocando no seu lugar uma cadeira, dispondo diversamente uma lâmpada, curvando‑se de quando em quando para assentar os tapetes que cobriam o chão. Mas era sobretudo para a iluminação que a sua atenção se voltava. As lâmpadas foram dispostas de maneira a poder iluminar em cheio o ângulo da sala onde estavam agrupadas as cadeiras, enquanto a outra extremidade da sala, onde supus que ele se sentaria, foi deixada na penumbra.

Ambos, eu e Ursula, observávamos os preparativos. Repentinamente ouviu‑se a campainha.

  ‑ Estão a chegar ‑ disse o detective. – Muito bem. Está tudo pronto.

A porta abriu‑se e entraram, um a um, os moradores da villa Fernly. Poirot avançou e cumprimentou Mrs. Ackroyd e Flora.

  ‑ Muito gentis por terem vindo ‑ exclamou.‑ Ah! Eis o major Blunt e Mister Raymond!

O secretário tinha a sua habitual expressão alegre e despreocupada.

  ‑ Qual é a grande ideia? ‑ perguntou, rindo.‑ Algum aparelho científico? Teremos de pôr correias nos pulsos que registem as pulsações dos nossos corações culpados?

  ‑ Creio ter lido alguma coisa a esse respeito‑ admitiu Poirot. ‑ Mas ainda sou pelo método antigo. Sirvo‑me dos velhos sistemas e emprego a massa cinzenta. E, agora, comecemos... mas, em primeiro lugar, tenho de fazer uma comunicação a todos os presentes.

Tomou pela mão Ursula e fê‑la aproximar‑se.

  ‑ Esta é a esposa de Rudolph Paton. Casou com o capitão no mês de Março!

Mrs. Ackroyd soltou um grito abafado.

  ‑ Rudolph casado! Desde Março! É absurdo. Como foi isso?

E começou a olhar para a jovem como se nunca a tivesse visto antes.

  ‑ Casou‑se com a Bourne? ‑ continuou. – Não Mister Poirot, não posso acreditar

A jovem corou e começou a falar; mas Flora reteve‑a. Aproximou‑se rapidamente dando‑lhe o braço.

  ‑ Não deve fazer caso da nossa surpresa. Nenhum de nós fazia a mínima ideia... A senhora e Rudolph souberam conservar tão bem o seu segredo! Sinto‑me verdadeiramente satisfeita!

  ‑ É muito amável, Miss Ackroyd ‑ respondeu

Ursula em voz baixa ‑, embora tenha todas as razöes para sentir‑se ofendida. Rudolph portou‑se muito mal... sobretudo consigo.

  ‑ Não deve preocupar‑se com isso – exclamou Flora, acariciando‑lhe o braço para a consolar. ‑ Rudolph achava‑se em embaraços e agarrou‑se à única solução que se lhe apresentou. Talvez eu própria, no seu lugar, tivesse feito o mesmo. Apenas... teria podido confiar‑me o segredo. Podia ter a certeza de que não o teria traído.

Poirot deu uiz a pancada na mesa e tossiu de modo muito significativo.

  ‑ A sessão está aberta ‑ disse Flora. ‑ Mister Poirot já nos fez compreender que não devemos conversar. Mas diga‑me uma coisa apenas: onde está Rudolph? A senhora deve sabê‑lo melhor do que qualquer outra pessoa.

  ‑ Não sei ‑ gemeu Ursula. ‑ É assim mesmo. Não sei.

  ‑ Não está detido em Liverpool? – perguntou Raymond.

  ‑ Não, não está em Liverpool ‑ respondeu rapidamente Poirot.

  ‑ Na realidade ‑ observei ‑ não há ninguém que saiba onde ele se encontra.

  ‑ A não ser Hercule Poirot, não é? ‑ objectou o secretário.

Mas Poirot respondeu secamente:

  ‑ Eu sei de tudo. Lembre‑se disto.

O jovem arqueou as sobrancelhas.

  ‑ Está falando a sério? Pode realmente adivinhar onde está escondido Rudolph Paton? ‑ perguntei, incrédulo.

  ‑ Adivinhar, não. Saber, meu amigo.

  ‑ Em Cranchester? ‑ arrisquei.

  ‑ Não ‑ respondeu o detective gravemente.‑ Não está em Cranchester.

Nada mais acrescentou. A um sinal seu, todos os presentes se sentaram. Nesse momento, a porta abriu‑se novamente para deixar entrar duas pessoas: eram Parker e a governanta, que se sentaram perto da porta.

  ‑ O número está completo ‑ disse Poirot. ‑ Todos estão presentes.

Na sua voz vibrava um tom de viva satisfação. Pareceu‑me sentir algo indefinido, uma espécie de inquietação, passar naqueles rostos agrupados na extremidade oposta da mesa. Tinha‑se a impressão de uma ratoeira... de uma ratoeira que se tivesse fechado.

Assumindo um ar importante, Poirot fez a chamada dos presentes, lendo os nomes escritos numa folha de papel.

  ‑ Mistress Ackroyd, Miss Flora Ackroyd, major Blunt, Mister Godofred Raymond, Mistress Ursula Paton, John Parker, Elizabeth Russell. Depois largou o papel.

  ‑ Que significa isto? ‑ perguntou Raymond.

  ‑ O elenco que li ‑ respondeu o detective ‑ é o de todas as pessoas suspeitas. Cada um dos presentes, teve ocasião de matar Mister Ackroyd... Mrs. Ackroyd pôs‑se de pé, protestando:

  ‑ Não me agradam estas coisas. Prefiro voltar para casa.

  ‑ Não deve ir, minha senhora ‑ declarou Poirot ‑, enquanto não ouvir o que tenho a dizer.

Calou‑se por um momento e, depois de tossir, prosseguiu:

  ‑ Começarei pelo princípio. Quando Miss Ackroyd me pediu que procedesse às investigações, dirigi  ‑me a Fernly acompanhado pelo nosso bom doutor   Sheppard. Passeei com ele no terraço, onde me mostraram as pegadas no peitoril da janela. De lá, o inspector Raglan conduziu‑me pelo caminho que vai dar à estrada. O meu olhar foi atraído por um pequeno quiosque do jardim, que revistei cuidadosamente. Aí encontrei dois objectos: um pedaço de cambraia engomada e uma pena de pato. O farrapo de tecido sugeriu‑me a ideia de um avental de criada. Quando Raglan me mostrou o elenco das pessoas que se encontravam na villa, observei imediatamente que uma das criadas, Ursula Bourne, não tinha um álibi verdadeiro. Segundo o seu depoimento, estivera no seu quarto das nove e meia às dez. Mas supondo que tivesse estado no quiosque? Nesse caso, era provável que tivesse ido para se encontrar com alguém. Sabíamos pelo doutor Sheppard que um estranho fora à villa naquela noite: o desconhecido que encontrara perto do portão. A primeira vista, o enigma parecia resolvido: o desconhecido teria ido encontrar‑se com Ursula Bourne. Era contudo certo que esteve no quiosque; isto foi‑me demonstrado pela pena de pato, que me fez imediatamente pensar tratar‑se de uma pessoa dada aos estupefacientes, de uma pessoa que contraíra o vício do outro lado do Atlântico, onde a cocainomania é mais comum do que na Inglaterra. O indivíduo encontrado pelo doutor Sheppard tinha sotaque americano, o que confirmava esta suposição. Mas havia uma coisa que vinha baralhar as minhas hipóteses: os tempos não correspondiam. Ursula Bourne näo podia ter ido, certamente, ao quiosque, antes das nove e meia, ao passo que o outro devia lá ter chegado poucos minutos depois das nove. É verdade que se poderia supor que tivesse ficado à espera durante meia hora. Outra alternativa, era supor‑se que no quiosque, naquela noite, se tivessem dados dois encontros. Pois bem, logo que formulei esta hipótese, descobri várias circunstâncias muito significativas.

Vim a saber que, naquele dia, a governanta estivera no consultório do doutor Sheppard e demonstrara vivo interesse pelos meios de cura das vítimas dos estupefacientes. Aliando este facto à descoberta da pena de pato, cheguei à conclusão de que a pessoa em questão estivera em Fernly para se encontrar com a governanta e não com Ursula Bourne. Mas quando esta última foi ao quiosque, com quem foi encontrar‑se? Não fiquei na dúvida por muito tempo. Em primeiro lugar encontrara um anel... uma aliança que tinha gravado internamente os dizeres "De R.", e uma data. Depois vim a saber que às nove e vinte e cinco o capitão Paton fora visto tomar o caminho que conduz ao pavilhão e também fui informado de uma conversa havida no bosque vizinho, naquela tarde, entre o capitão Paton e uma jovem desconhecida. Eis, portanto, que os acontecimentos se desenrolavam diante de mim, com ordem e precisão. Um casamento secreto; um noivado anunciado precisamente no dia da tragédia, o colóquio tempestuoso no bosque e o encontro marcado no quiosque naquela noite.

 De qualquer modo, isto vinha confirmar‑me uma coisa: que Rudolph Paton e Ursula Bourne (ou Paton) tinham ambos motivos para desejar o desaparecimento de Mister Ackroyd. Além disso, inesperadamente, acabava de ser esclarecido outro ponto: não podia ser o capitão quem às nove e meia se encontrava no escritório de Mister Ackroyd. E eis que se nos apresenta outro aspecto extraordinariamente interessante. Quem se encontrava no escritório de Mister Ackroyd às nove e meia? Não podia ser o capitão Paton que àquela hora estava no pavilhão com sua mulher. Nem Charles Kent que já se havia afastado. Quem, então?   Poirot curvou‑se para a frente, lançando estas últimas palavras com ar de triunfo. Entretanto, Raymond não se deixou impressionar e quis apresentar o seu protesto.

  ‑ Não sei se está procurando fazer‑me passar por mentiroso, Mister Poirot, mas o facto não se baseia somente na minha declaração... descontada talvez a exactidão das palavras ouvidas. Lembre‑se de que também o major Blunt ouviu Mister Ackroyd falar com alguém. Estava do lado de fora, no terraço, e não podia perceber as palavras com clareza; todavia, ouvi vozes. Poirot fez um sinal de confirmação.

  ‑ Não o esqueci ‑ disse tranquilamente. – Mas o major estava na persuasão de que a pessoa a quem Mister Ackroyd falava era o senhor.

Por um momento o secretário pareceu ter sido apanhado desprevenido. Mas, em seguida, refez‑se e rebateu:

  ‑ Sim, mas Blunt sabe agora que se enganou.

  ‑ Precisamente ‑ confirmou o major.

  ‑ Contudo, deve existir um motivo para que se julgasse tratar do senhor ‑ observou o detective e levantou a mão em sinal de protesto. ‑ Sei perfeitamente que motivo quer apresentar mas não basta. Temos de procurar a explicação noutra parte. Mostrarei a questão deste modo: desde o princípio das investigaçöes, chamou‑me a atenção o carácter das palavras ouvidas por Mister Raymond. Surpreendeu‑me bastante que ninguém fizesse nenhum comentário; que ninguém achasse algo de singular nas mesmas.

Calou‑se um instante para depois prosseguir citando e destacando lentamente as palavras ouvidas pelo secretário: os apelos à minha bolsa têm sido tão frequentes ultimamente que julgo impossivel atender a novos pedidos. Não notam nada de insólito, de estranho nestas palavras?

  ‑ Não me parece ‑ observou Raymond. – Mais de uma vez me ditou cartas, usando, quase exactamente, essas mesmas palavras.

  ‑ Bravo! Precisamente ‑ exclamou Poirot. – Eis o ponto a que quero chegar! É possível que uma pessoa falando com outra, use uma fraseologia semelhante? É impossível que faça parte de uma conversa verdadeira. Mas, se tivesse ditado uma carta...

  ‑ Julga, então, que estivesse lendo uma carta em voz alta ‑ disse o secretário medindo as palavras.‑ Mesmo que assim fosse, devia estar presente alguém a quem a estivesse lendo.

  ‑ E porquê? Não temos nenhuma outra prova de que houvesse outra pessoa no escritório. Não se ouviu nenhuma outra voz, a não ser a de Mister Ackroyd, repare bem.

  ‑ Sem dúvida. Mas ninguém leria cartas daquela natureza em voz alta, a si próprio, a não ser que estivesse maluco.

  ‑ O senhor esquece‑se ‑ observou o detective em tom cortês ‑ do indivíduo que esteve na villa, na quarta‑feira anterior. Todos olharam para ele, admirados.

  ‑ Sim ‑ continuou, assumindo um tom persuasivo ‑, quarta‑feira. Em si, o rapaz não tinha importância alguma. O que interessava muitíssimo era a firma que representava.

  ‑ A Ditaphone Company ‑ exclamou Raymond.‑ Agora percebo. Uma máquina para ditar! É nisso que pensa? Poirot fez um sinal afirmativo.

  ‑ Mister Ackroyd pensava adquirir um ditafone como deve lembrar‑se. Eu tive curiosidade de pedir informações à firma. A resposta foi de que ele comprara realmente um ditafone ao seu representante. Não lhe falou nisto?

  ‑ Talvez pensasse preparar‑me uma surpresa‑ murmurou o secretário. ‑ Tinha uma verdadeira mania pueril por coisas semelhantes. Talvez pensasse em manter o segredo durante um ou dois dias. É possível, também, que se divertisse com o aparelho, como se se tratasse de um novo brinquedo. Sim, é verosímil. O senhor tem razão... Ninguém faria uso de tais palavras, numa conversa comum.

  ‑ E isto explica também ‑ acrescentou Poirot‑ por que motivo o major Blunt pensou que fosse o senhor quem estava no escritório. Os fragmentos que chegaram aos seus ouvidos não eram senão fragmentos de um ditado, do qual instintivamente deduziu que o secretário estivesse com Mister Ackroyd. Mas o seu pensamento estava noutra parte; estava completamente absorto na figura branca que entrevira. Julgava tratar‑se de Miss Ackroyd. O que realmente viu foi o avental branco de Ursula, no momento que esta se dirigia para o pavilhão. Entretanto, Raymond refizera‑se da surpresa.

  ‑ Contudo ‑ observou ‑, essa sua descoberta, embora muito brilhante (tenho a certeza de que isto nunca me teria ocorrido) não desloca o eixo da situação. Às nove e meia, Mister Ackroyd ainda vivia, visto que falava ao ditafone. Parece estar demonstrado que àquela hora, Charles Kent já se encontrava muito longe. Quanto a Rudolph Paton...

Parou hesitante, olhando para Ursula.  Um rubor subiu ao rosto da jovem, que conseguiu responder com firmeza:

  ‑ Rudolph e eu separámo‑nos pouco antes das nove e três quartos. Ele não se aproximou da villa. Disso tenho plena certeza. Não tencionava fazê‑lo; de tudo seria capaz naquela noite, menos de enfrentar o padrasto. Tinha muito medo!

  ‑ Não que eu duvide, um instante sequer, da verdade das suas palavras ‑ explicou Raymond. ‑ Sempre tive absoluta certeza de que o capitão Paton estava inocente. Mas devemos pensar também no modo como a questão se apresentaria a um júri e nas perguntas que seriam feitas. Não se pode negar que ele se encontra numa posição muito difícil; porém, se aparecesse...

O detective não o deixou continuar.

  ‑ Acha que deveria aparecer?

‑ Certamente. Se o senhor sabe onde se encontra...

  ‑ Devo registar que o senhor ainda não se convenceu de que eu sei. Sei de toda a verdade acerca do telefonema, das marcas no peitoril da janela e do esconderijo de Rudolph Paton...

  ‑ Onde está? ‑ perguntou subitamente Blunt.

  ‑ Não muito longe daqui ‑ respondeu Poirot, sorrindo.

  ‑ Em Cranchester? ‑ perguntei com ansiedade.

Poirot virou‑se para mim.

  ‑ O senhor faz continuamente essa pergunta. Cranchester tornou‑se‑lhe uma ideia fixa. Não, não se encontra em Cranchester. Ali está ele! Fez um gesto teatral, indicando com o dedo. Todos nos virámos para a direcção indicada. De pé, no umbral da porta, vimos Rudolph Paton.

 

A NARRATIVA DE RUDOLPH PATON

Por momentos, fiquei atordoado. Nem tive tempo para compreender quando ouvi gritos de surpresa e exclamações de toda a parte.

Vi Rudolph ao lado da esposa, segurando‑lhe a mão e sorrindo para mim, do outro lado da sala.

Também Poirot sorria e, ao mesmo tempo, indicava‑me com o dedo, num gesto muito eloquente.

  ‑ Não lhe disse, pelo menos trinta e seis vezes, que é inútil qualquer subterfúgio com Hercule Poirot? ‑ observou. ‑ Que ele sempre chega a descobrir a verdade? Voltou‑se para os outros circunstantes.

  ‑ Há dias, lembram‑se, realizámos outra pequena sessão como esta, na villa Fernly. Éramos precisamente os seis aqui presentes. Acusei os cinco de quererem ocultar‑me alguma coisa. Quatro resolveram revelar‑me o seu segredo. Só o doutor Sheppard se recusou. Mas eu mantive as minhas suspeitas. Naquela noite, o doutor esteve nos Três Javalis, na esperança de encontrar o capitão Paton. Não o encontrou mas podia tê‑lo encontrado no caminho quando voltou para casa? O doutor era amigo dele e, além disso, vinha directamente do local do crime. E talvez soubesse muito mais do que os outros sabiam...

  ‑ Sim, é verdade ‑ exclamei com pesar. ‑ Parece‑me chegado o momento de fazer uma confissäo total. Naquele dia, à tarde, fui visitar Rudolph. A princípio ele não quis fazer‑me qualquer confidência; mas acabou por confiar‑me a história do seu casamento e das dificuldades em que se metera. Logo que se descobriu o crime, percebi imediatamente que, quando se conhecessem as circunstâncias, as suspeitas não deixariam de recair sobre ele... ou recairiam sobre a mulher a quem amava. Naquela noite, apresentei‑lhe claramente a situação. A ideia da possibilidade de ter de fazer declarações que poderiam comprometer a esposa, acabou por decidi‑lo, custasse o que custasse, a... a...

Estive por um momento hesitante e ele interveio, prontamente, para preencher a lacuna.

  ‑ A cortar o nó ‑ disse muito expressivamente.

‑ Quando Ursula me deixou, dirigiu‑se para a villa. Pensei que tivesse tentado falar de novo com o meu padrasto. Já na tarde daquele dia fora extremamente grosseiro com ela. Passou‑me pela mente a ideia de que a tivesse insultado de modo imperdoável e que ela... sem saber o que fazia...Parou... Ursula soltou a mão que segurava e afastou‑se dele.

  ‑ Chegaste a pensar isso Rudolph? Chegaste realmente a pensar que eu seria capaz de praticar semelhante acção?

  ‑ Bem, prossigamos no exame da conduta culposa do doutor Sheppard ‑ atalhou Poirot. ‑ O doutor procurou fazer o que pôde para auxiliá‑lo. Conseguiu, pelo menos, escondê‑lo da polícia.

  ‑ Onde? ‑ perguntou Raymond. ‑ Em sua casa?

  ‑ Qual! Nem por sonhos! ‑ respondeu o detective. ‑ O senhor deveria formular a pergunta que fiz a mim próprio: ‑ Se o nosso bom doutor quer ocultar o rapaz, que lugar escolherá? Naturalmente, um lugar próximo. Pensei em Cranchester. Num hotel? Não! Numa pensão? Pior ainda. Onde, então? Ah! e achei: numa casa de saúde; numa casa de saúde para alienados! Desejei verificar se a minha hipótese era acertada e inventei, sem mais nada, a existência de um sobrinho imaginário que sofria de perturbações mentais. Dirigi‑me a Miss Sheppard para conseguir endereços de casas de saúde. Ela forneceu‑me o endereço de dois sanatórios próximos de Cranchester para onde o irmão tivera ocasião de enviar alguns doentes. Fiz as necessárias investigações. Num deles, sábado de manhã, ao alvorecer, o próprio doutor internara um paciente; embora tivesse dado nome falso, não tive dificuldade em identificar aquele doente, como sendo o capitão Paton. Depois de algumas formalidades, consegui a permissão de trazê‑lo comigo. Eis porque chegou a minha casa ontem, bem cedo.

Fitei‑o com vivo espanto.

  ‑ Este era, então, o funcionário do Ministério de que falava Caroline! ‑ murmurei. ‑ E pensar que nunca tive a mínima suspeita!

  ‑ Está percebendo agora porque chamei a atenção sobre as reticências do seu manuscrito – murmurou Poirot. ‑ Até onde chega, é rigorosamente sincero... mas não se compromete muito, não é verdade, meu amigo?

Estava muito perturbado para discutir.

  ‑ O doutor Sheppard foi muito leal – interveio Rudolph. ‑ Auxiliou‑me contra os obstáculos. Tudo quanto fez, julgou fazê‑lo em meu benefício. Agora vejo, pelo que Mister Poirot me disse, não ser aquele o melhor caminho. Devia ter‑me apresentado e enfrentar a tempestade; lá, no sanatório, não há um jornal e eu não sabia nada do que estava acontecendo.

  ‑ O doutor Sheppard foi um modelo de discrição ‑ observou o detective. ‑ Mas eu sei descobrir todos os segredos. É a minha profissão.

  ‑ E agora podemos ouvir a narrativa do que aconteceu naquela noite ‑ propôs Raymond, com impaciência.

  ‑ Já sabem ‑ respondeu o capitão. ‑ Pouco tenho a acrescentar. Deixei o pavilhão cerca das nove e quarenta e cinco e vagueei ao acaso pelo campo, procurando decidir sobre o que havia de fazer. Sou forçado a admitir que não tenho sequer a sombra de um álibi, mas juro solenemente que não entrei no escritório; não vi o meu padrasto, nem vivo nem morto. Desejo que acreditem nas minhas palavras.

  ‑ Nenhum álibi ‑ murmurou o secretário.‑ É o diabo! Creio no que diz, mas está em maus lençóis.

  ‑ Pelo contrário, está a tornar as coisas mais simples ‑ disse Poirot. ‑ Muito simples, na verdade.

Fitámo‑nos espantados.

  ‑ Não compreendem o que quero dizer? Simplesmente isto: para salvar o capitão Paton, o verdadeiro culpado terá de confessar. Fulminou‑nos a todos com o olhar.

  ‑ Notem que para esta reunião não convidei o inspector Raglan. Pelo seguinte motivo: não lhe queria dizer esta noite tudo quanto sei. Curvou‑se para a frente e tornou‑se agressivo.

  ‑ Sei que o assassino de Mister Ackroyd se encontra aqui, neste momento, nesta sala. É ao assassino que estou falando. Amanhã a verdade será comunicada ao inspector Raglan. Compreenderam? Seguiu‑se um silêncio trágico, que foi quebrado pela entrada da velha bretã com um telegrama numa bandeja. Poirot abriu‑o.

Repentinamente, ecoou a voz áspera do major Blunt.

  ‑ O assassino encontra‑se entre nós? ‑ exclamou. ‑ E o senhor sabe quem é?

  Poirot já lera o telegrama. Amassou‑o, transformando‑o numa bola entre os dedos.

  ‑ Agora sei.

Deu um piparote na bola de papel

  ‑ Que é isso? ‑ perguntou vivamente Raymond.

  ‑ Um cabograma... proveniente de um transatlântico que se dirige para os Estados Unidos. Fez‑se um silêncio mortal. Poirot ergueu‑se e curvou‑se em seguida numa vénia.

  ‑ Senhoras e senhores ‑ proferiu ‑, a nossa pequena reunião está terminada. E tenham bem presente: Amanhã, a verdade será comunicada ao inspector Raglan.

 

TODA A VERDADE

Um breve sinal de Poirot fez‑me ficar na sala, enquanto os outros saíam. Sentia‑me perplexo. Pela primeira vez não conseguia adivinhar o que Poirot visava. De certo modo, a cena anterior pareceu‑me uma montagem teatral para o detective belga se tornar importante, como tanto apreciava. Contudo, nas suas palavras havia uma verdadeira ameaça proferida com inegável sinceridade. Depois de o último convidado ter saído, veio ter comigo, junto do fogão de sala.

  ‑ Então, doutor, que pensa de tudo isto? ‑ perguntou calmamente.

  ‑ Não sei que pensar ‑ respondi francamente.‑ Não compreendo porque não expõe ao inspector Raglan a verdade, nua e crua.

Poirot acendeu um fino cigarro russo, fumou‑o durante alguns segundos e acabou por responder:

  ‑ Porque não utiliza a sua massa cinzenta? Todas as minhas acções têm um objectivo.

  ‑ O primordial motivo parece‑me este: ignora ainda quem seja o culpado, embora esteja certo de que é uma das pessoas que aqui estiveram presentes. A reunião procurava apenas provocar uma confissão.

  ‑ É uma hipótese ‑ considerou Poirot. ‑ Inteligente, mas não verdadeira.

  ‑ Podia também ter por fIm obrigá‑lo a trair‑se, tentando eliminá‑lo, a si, como o fez a Roger Ackroyd.

  ‑ Não, doutor. Não sou tão heróico que me transforme em isca de armadilha.

  ‑ Nesse caso, não entendo o seu procedimento e creio que se arrisca a deixar fugir o assassino, pondo‑o tão claramente de sobreaviso.

  ‑ Já não pode fugir ‑ afirmou Poirot, gravemente. ‑ Só tem uma saída e essa não poderá conduzi‑lo à liberdade.

  ‑ Sabe, portanto, quem foi o assassino?

O detective lançou ao fogo a ponta do cigarro e disse em tom tranquilo:

  ‑ Vai agora acompanhar‑me ao longo de todo o percurso dedutivo que até agora fiz sozinho. Para começar, dir‑lhe‑ei que todos os elementos convergem para uma única pessoa. Para além da divergência paradoxal, relativa à circunstância tempo, houve outras duas que despertaram, desde o início, a minha atenção. A primeira foi o telefonema. Se o assassino fosse realmente Rudolph Paton, esse telefonema não faria o menor sentido. Isso levou‑me a concluir que não deveria ser ele o seu autor. Podia ter sido, realmente, obra de um cúmplice, mas essa possibilidade não me entusiasmava e temporariamente apartei essa circunstância para segundo plano. Contudo, pensando no motivo que teria levado o autor do telefonema a efectuá‑lo, cheguei à conclusão de que o assassino pretendia que o crime fosse descoberto nessa mesma noite e näo na manhã seguinte. Porquê? Porque o assassino, sabendo que, cedo ou tarde, se descobriria o crime, pretendia que essa descoberta tivesse lugar a uma hora a que ele pudesse estar presente, quando a porta do gabinete fosse forçada.

  ‑ Sim ‑ concordei. ‑ Como Ackroyd ordenara que não voltassem a incomodá‑lo, provavelmente só no dia seguinte dariam pelo seu cadáver.

  ‑ Exactamente. A segunda circunstância surgiu com a poitrona desencostada da parede. O inspector desprezou este indício capital, logo de início, embora repetidamente eu lho tivesse apontado.

  ‑ Confesso que estranhei a sua insistência quanto a essa premissa.

  ‑ O doutor traçou, no seu manuscrito, uma planta da sala muito bem delineada e exacta. Se a tivesse aqui, verificaria que, se a poltrona fosse colocada no lugar indicado por Parker, se encontraria em linha recta entre a porta e a janela.

  ‑ Deslocaram a poltrona para que, quem entrasse pela porta, não pudesse ver qualquer coisa relacionada com a janela? ‑ alvitrei.

  ‑ Também pensei nisso, ao princípio, mas abandonei essa hipótese porque as costas da poltrona, embora altas, pouco tapavam a janela. Lembrei‑me depois que, precisamente junto da janela, havia uma mesinha com livros e revistas. Ora, esta, sim, ficava absolutamente oculta pelo espaldar da poltrona. Fui portanto levado a supor que sobre essa mesinha estaria algo que o assassino desejava ocultar, algo que não pudera levar consigo após o crime, algo que deveria desaparecer antes que alguém o encontrasse, quando da descoberta do cadáver. Pois bem, antes da chegada da polícia só entraram no gabinete de Ackroyd quatro pessoas: o doutor, Parker, o major Blunt e Mister Raymond. Mas Parker foi o elemento, entre esses quatro, que logo me apontou a deslocação da poltrona. Por esse motivo, concentrei a minha atenção sobre os restantes três, tanto mais que, se o cadáver fosse descoberto de manhã muito cedo, poucas probabilidades teriam para assistir ao arrombamento da porta.

 ‑ Mas que objecto poderia estar sobre a mesinha? ‑ impacientei‑me.

  ‑ O doutor ouviu, há pouco, as minhas palavras a respeito da conversa escutada casualmente. Quando me informaram que tinha estado na villa um vendedor de ditafones, pensei num desses aparelhos e, admitindo a hipótese de que Mister Ackroyd adquirira um ditafone, por que motivo não fora este encontrado? Ora esse aparelho não é tão minúsculo que uma pessoa possa escondê‑lo na algibeira. Se efectivamente houvera um, o assassino precisaria de uma maleta para o retirar do local do crime.

  ‑ Só não percebo o objectivo do assassino em roubar o ditafone.

  ‑ Porque o doutor, tal como Mister Raymond, admite a priori que a voz que foi ouvida às nove e meia era a de Mister Ackroyd, ditando para o aparelho. Mas um ditafone destina‑se a repetir uma fala, noutra ocasião. Basta girar novamente o cilindro registador.

  ‑ Nesse caso, o assassino estaria no gabinete, ao mesmo tempo que o ditafone reproduzia a fala de Mister Ackroyd, não é isso?

  ‑ É possível, mas não devemos excluir ainda outra hipótese: a da adaptação de um pequeno instrumento de relojoaria ao ditafone, de maneira a pô‑lo a funcionar depois da saída do assassino. Neste caso, teremos alguém que sabia que a vítima comprara aquele aparelho; alguém que era também destro na manipulação de engenhos mecânicos.

  ‑ Estamos, contudo, no mero campo das deduções ‑ observei sorrindo.

  ‑ Sim ‑ prosseguiu Poirot ‑, mas quando passámos ao exame das marcas de sapatos no peitoril da janela, deparei com três novas hipóteses. Primeira: Podiam ser realmente de Rudolph Paton. Segunda: Podiam ser de outra pessoa, que usasse os mesmos tacões de borracha; ora os habitantes da villa estavam fora de causa, porque tinham sapatos diferentes, de sola, e Charles Kent calçava um par de sapatos que lhe fugiam dos pés, conforme declarou a criada da Coroa Larga. Terceira: Só alguém que procurasse fazer recair as suspeitas sobre Rudolph teria usado sapatos com semelhante guarnição de borracha.

  ‑ E conseguiu averiguar isso? ‑ interessei‑me.

  ‑ A polícia requisitara ao proprietário do Três Javalis a entrega de um par de sapatos. Visto este se encontrar cá em baixo, para ser engraxado, não pôde ser utilizado, nem por Rudolph, nem por qualquer outra pessoa. A polícia pensou que ele poderia possuir outro par idêntico e eu obtive essa confirmação. Portanto, esta terceira hipótese implica a necessidade de provar que o assassino utilizara os próprios sapatos de Rudolph, ou utilizara um terceiro par idêntico, ou... um par de botas, com salto igual de borracha. Induzi sua irmã, Miss Caroline, a investigar esse ponto, realçando o pormenor da cor, para ocultar o motivo da minha pergunta. Ora, o doutor já conhece o resultado dessa investigação: Paton tinha calçado realmente um par de botas. Portanto, o criminoso foi alguém que teve possibilidade de tirar, do Três Javalis, um par de sapatos de Rudolph Paton.

O detective interrompeu‑se para aclarar a garganta, assoou‑se e continuou:

  ‑ Mas há ainda outro elemento: o assassino era alguém que teve oportunidade para subtrair o punhal da mesinha‑vitrina da saleta: não se esqueça, porém, de que Miss Flora declarou resolutamente que, quando examinou a mesinha, o punhal já lá não estava. De novo, Poirot fez uma pausa.

  ‑ Recapitulando ‑ prosseguiu ‑, trata‑se de um indivíduo que esteve, naquele dia, no Três Javalis; que conhecia bem Ackroyd, a ponto de saber que este adquirira um ditafone; que tinha certa prática de engenhos mecânicos; que teve oportunidade de tirar o punhal da mesinha, antes de Miss Flora chegar; que levava consigo uma maleta para transportar o ditafone e, finalmente, que pôde permanecer alguns minutos, sozinho, no gabinete, após a descoberta do crime, enquanto Parker telefonava à polícia. Numa palavra: o DOUTOR SHEPPARD!

 

E NADA MAIS DO QUE A VERDADE

Durante dois minutos reinou um silêncio de morte. Depois, comecei a rir.

  ‑ O senhor está louco! ‑ exclamei.

Calmamente, Poirot replicou:

  ‑ Não estou louco. O que me atraiu a atenção para si foi um factor mínimo: os tempos, embora com poucas diferenças, não se ajustavam. Todos admitiram que, para percorrer a distância entre a estrada e a villa, se gastavam cinco minutos (menos até, utilizando o atalho). Ora, o doutor, segundo disse e Parker confirmou, saiu da villa às nove menos dez, mas declarou que atingira o portão da estrada às nove horas. Com a noite gélida e imprópria para passeios, como se explica que levasse o dobro do tempo do trajecto? E em cinco minutos faz‑se muita coisa.

  ‑ Isso é um pormenor tempo que nada prova‑ sublinhei.

Poirot prosseguiu, indiferente à minha objecção:

  ‑ Quanto ao facto de a janela do gabinete estar fechada, sabemo‑lo apenas pelas suas declarações. Suponhamos agora que estava aberta. Naqueles dez minutos, o doutor teria oportunidade de correr em volta da villa, mudar de sapatos, entrar no gabinete pela janela, matar Ackroyd e sair pelo portão. Contudo, considerando que Ackroyd estava muito nervoso nessa noite, tê‑lo‑ia decerto ouvido galgar o peitoril da janela. Portanto, admiti nova hipótese: o doutor matou‑o, antes de sair, quando estava atrás dele; saiu pela porta principal; correu para o quiosque, tirou da maleta de médico os sapatos de Rudolph, calçou‑os, passou sobre a lama e entrou no gabinete, saltando a janela em cujo peitoril deixou as marcas dos saltos enlameados; então, fechou a porta pelo lado de dentro, tornou a sair pela janela, voltou ao quiosque para descalçar os sapatos, enfiando os seus, e saiu pelo portão. Eu próprio reconstituí toda essa cena, no outro dia, enquanto o doutor falava com Mistress Ackroyd, e levei precisamente dez minutos. Em seguida, o doutor foi para casa, confiado no seu álibi perfeito, visto que ajustara o ditafone para as nove e meia.

  ‑ Meu caro Poirot ‑ trocei ‑, vejo que meditou de mais sobre este caso e a sua massa cinzenta deteriorou‑se. Que diabo tinha eu a ganhar com a morte de Ackroyd?

  ‑ A impunidade ‑ retorquiu o belga. ‑ Era o doutor quem exercia chantagem sobre Mistress Ferrars. Fora o doutor quem tratara de seu marido e o único que poderia saber a verdade sobre a sua morte. De resto, lembre‑se de que, quando falou comigo, pela primeira vez, no jardim, aludiu a ter recebido uma herança. Investiguei o facto e verifiquei que isso não passava de uma justificação evidentemente falsa, apenas destinada a explicar a posse das vinte mil libras de Mistress Ferrars. Perdeu‑as em infelizes especulações de bolsa, pelo que começou a forçar exageradamente as possibilidades de extorsão da sua vítima. Esta resolveu, para surpresa sua, tomar a decisão que conhecemos. Se Ackroyd tivesse conhecimento da verdade, não teria misericórdia e o doutor ficaria arruinado para sempre.

  ‑ E o telefonema? ‑ inquiri, tentando ainda manter o riso de desdenhosa superioridade, perante as declarações de um dementado.

  ‑ Confesso que me desnorteou a confirmação de que esse telefonema partira efectivamente da estação de King's Abbot. Foi o seu truque magistral, doutor. Para poder voltar a Fernly, ser o primeiro a descobrir o cadáver e conseguir retirar o ditafone, o doutor precisava de um pretexto sólido, base fundamental do seu álibi.

  ‑ Tudo isso é um disparate ‑ critiquei. – Não me dirá como pude fazer esse telefonema?

  ‑ Quando me debrucei sobre a identidade dos seus pacientes, confesso que me interessei demasiadamente pela consulta de Mistress Russell. Só depois me lembrei de que, entre eles, figurava o criado de um transatlântico americano. Ora, este transatlântico estava fundeado em Liverpool. Localizei o homem e enviei um telegrama para o navio, o Orion, recebendo pouco depois esta reposta...

Poirot estendeu‑me o telegrama, que dizia:

 

EXACTO... STOP... DOUTOR SHEPPARD PEDIU DEI-

XASSE BILHETE EM CASA DE UM DOENTE... STOP... DE-

VIA TELEFONAR DA ESTAÇÃO... COMUNICANDO RES-

POSTA... STOP... TRANSMITI RESPOSTA NENHUMA.

 

  ‑ A sua ideia, doutor ‑ continuou Poirot ‑, era genial, tanto mais que sua irmã estava presente quando atendeu o telefonema. Mas quanto ao teor da informação, só tínhamos a sua versão, doutor.

  ‑ Concordo que essa teoria é realmente muito interessante ‑ apreciei, bocejando. ‑ Pena é que esteja muito longe da realidade.

  ‑ Não se esqueça de que aflrmei comunicar a verdade ao inspector Raglan. Contudo, por atenção a sua irmã, estou disposto a dar‑lhe uma saída, como, por exemplo, uma dose excessiva de soporífero. Compreenda‑me, doutor: Rudolph Paton tem de ficar livre de qualquer suspeita. Proponho‑lhe, pois, que termine o seu interessante manuscrito... mas, desta vez, abandonando as habituais reticências.

  ‑ Nada mais tem a dizer‑me? ‑ perguntei, levantando‑me.

  ‑ Apenas uma recomendação: não tente eliminar‑me, como fez ao seu amigo Roger Ackroyd. Com Hercule Poirot não dá resultado, compreende? Tomei as minhas precauções.

  ‑ Meu caro Poirot ‑ repliquei sorrindo. – Serei o que sou, mas de maneira alguma um imbecil. Agradeço‑lhe esta noitada extremamente interessante e instrutiva. Agora, se mo permite, tenho de retirar‑me.

Poirot levantou‑se também e curvou‑se cortesmente, como sempre, enquanto eu saía da sala.

 

APOLOGIA

Cinco horas da manhã. Estou cansado, mas terminei a tarefa. Dói‑me o braço de tanto escrever. Estranho epílogo o do meu manuscrito. Pensava publicá‑lo qualquer dia, como narrativa de um desaire de Poirot. Mas os homens põem e Deus dispõe. Quando vi Rudolph Paton e Mrs. Ferrars a conversarem, com as cabeças juntas, profundamente absorvidos no que diziam, tive o pressentimento da iminente catástrofe. Receei que a viúva lhe tivesse confiado o seu segredo. Não era o caso. Eu estava enganado, mas a ideia não me saía da cabeça, mesmo depois de ter entrado com Ackroyd, no gabinete, e enquanto ele me contou a verdade. Pobre Ackroyd. Sob o ponto de vista psicológico, o seu nervosismo naquela noite tinha bastante interesse: pressentia a aproximação do perigo, embora não tivesse a menor suspeita a meu respeito. Só pensei no punhal, mais tarde. Levara comigo um bisturi facilmente manejável, mas ao ver na mesinha a arma tunisina compreendi que seria um instrumento mais adequado a afastar as suspeitas da minha pessoa, distribuindo‑as por qualquer indivíduo que tivesse acesso à sala. A verdade é que pensei que Ackroyd se achava excitado por Mrs. Ferrars se lhe ter confessado. Após a morte desta, pensei elminar Ackroyd, atribuindo a culpa a Rudolph Paton.

Dias antes, Ackroyd adquirira um ditafone, com que queria surpreender Raymond, mas, por inexperiência, avariou‑o pouco depois. Induzi‑o a confiar-mo, em vez de devolvê‑lo ao vendedor. Convenci‑o de que repararia facilmente o aparelho. Sinto‑me orgulhoso com as minhas qualidades de escritor. Que poderia haver de mais exacto e cuidadoso do que os seguintes períodos:

A carta foi entregue às nove menos vinte. Eram exactamente nove menos dez, quando o deixei, sem que a tivesse lido. Se neste texto tivesse colocado uma série de pontos, o leitor perguntaria espontaneamente: Que teria acontecido naqueles fatais dez minutos? Agi com absoluta perfeição. O ditafone estava sobre a mesa, perto da janela, pronto a funcionar às nove e meia em ponto. O mecanismo de relógio que lhe adaptei funcionou correctamente. A poltrona, deslocada do seu lugar habitual, ocultava‑o por completo. Confesso que näo esperava que Parker notasse a deslocação da poltrona. Pensei que ficaria tão transtornado com a macabra descoberta que não repararia em tão insignificante pormenor. Não contei com o olhar experimentado de um mordomo de raça. Se ao menos tivesse sabido, antes, que Flora iria declarar ter visto o tio ainda com vida às dez menos um quarto! Esta sua atitude deixou‑me perplexo. O meu maior receio foi sempre a perspicácia de minha irmã Caroline. Talvez nunca venha a saber a verdade. Poirot insinuou haver uma escapatória. Posso confiar nele. Saberá ajustar as coisas com Raglan. Não me agradaria que Caroline viesse a saber o que realmente se passou. Sei que me quer bem e tem o seu orgulho. Se o soubesse ficaria destroçada. Assim, a minha morte entristecê‑la‑á, mas a tristeza passa, como qualquer dor.

Quando tiver ultimado este manuscrito, metê‑lo‑ei num sobrescrito, dirigido a Poirot. Depois, que acontecerá? Veronal? Seria uma espécie de pena de Talião. Não que enjeite qualquer responsabilidade pela morte de Mrs. Ferrars, mas sofreu a consequência directa do seu crime. Não sinto piedade por ela. Nem por mim. Portanto, veronal! Teria sido contudo bem melhor que Hercule Poirot não se tivesse reformado, nem vindo, justamente para aqui, cultivar as suas abóboras!

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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