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O MISTÉRIO DE SITTAFORD / Agatha Christie
O MISTÉRIO DE SITTAFORD / Agatha Christie

 

 

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O MISTÉRIO DE SITTAFORD 

              

A superfície polida da mesa acusou uma leve vibração. Em seguida, começou a balançar com força e a mover-se. Lenta e ritmadamente, tanto assim que foi fácil contar as letras equivalentes às batidas.

      — M... — pausa. — O... Rto.

      — Morto.

      — Alguém morreu?

      Em vez de responder SIM ou NÃO, a mesa começou a vibrar de novo até fixar-se na letra T.

      — T... quer dizer Trevelyan?

      — Sim.

      — Quer dizer que Trevelyan está morto?

      — Sim.

      A batida fora bem forte e precisa. Alguém suspirou profundamente. Os que estavam em volta da mesa sentiram um sobressalto.

 

                      

 

A CASA DE SITTAFORD

O MAJOR BURNABY colocou as galochas, ergueu a gola alta do sobretudo, apanhou uma grande lanterna, abriu devagar a porta de seu pequeno bangalô e espiou lá fora. O que viu era uma cena típica das aldeias inglesas em tempo de inverno. Tudo como nos cartões de Natal ou nos contos e melodramas antigos. Em toda parte havia neve, que caía em flocos de uma polegada ou duas de espessura. A neve vinha caindo em toda a Inglaterra durante os últimos quatro dias, e ali na orla de Dartmoor alcançara uma altura considerável. Todos os donos-de-casa ingleses se viam às voltas com problemas de encanamentos e tubos entupidos. Assim, ter um amigo bombeiro (ou mesmo um amigo de algum funileiro) era quase uma distinção apreciável.

      Ali, na pequena aldeia de Sittaford, um lugar remoto e quase completamente isolado do resto do mundo, os rigores do inverno constituíam um problema premente.

      O Major Burnaby, contudo, era um homem decidido, de ânimo forte. Respirou fundo duas vezes, resmungou outro tanto e pisou resolutamente na neve.

      O lugar aonde ia ficava perto de seu bangalô. Alguns passos mais por uma vereda sinuosa levaram-no a um portão, e deste, através uma passagem mais livre da neve, à porta de uma casa de regular tamanho, construída em granito.

      A porta foi aberta por uma criada de uniforme muito claro e limpo. O major retirou seu sobretudo, as galochas e o cachecol. Entrou na casa e aí ocorreu uma sugestiva mudança de cenário.

      Apesar de serem apenas três e meia, as cortinas tinham sido fechadas, as luzes acesas e na lareira o fogo estava aceso e as chamas brilhavam vivamente. Duas mulheres em vestidos de noite ergueram-se para cumprimentar o resoluto velho guerreiro.

      — Muita amabilidade de sua parte em ter vindo, Major Burnaby — disse a mais velha.

      — Nada disso, Sra. Willett, nada disso. A gentileza foi sua em convidar-me. — E o major apertou as mãos das duas mulheres.

      — Sr. Garfield deve estar chegando — disse a Sra. Willett — e o Sr. Duke também. O Sr. Rycroft disse que viria, mas na sua idade e com este tempo, acho que será difícil. Com este frio intenso, sentimos que é preciso fazer alguma coisa para nos mantermos de bom humor. Violet, coloque outra acha na lareira.

      O major ergueu-se tomando a si tal tarefa, com um gesto cortês.

      — Permita-me, Srta. Violet.

      Colocou a acha de lenha com habilidade no lugar certo e retornou à poltrona que sua anfitrioa lhe indicara. Com naturalidade, procurando ser discreto o mais possível, o velho major relanceou o olhar pelo aposento. Interessante observar como duas mulheres podiam modificar inteiramente o aspecto de um cômodo e de um modo quase sutil, sem que se pudesse identificar o toque essencial dessa mudança.

      A mansão Sittaford fora construída há dez anos pelo Capitão Joseph Trevelyan, da Marinha Real Britânica, após passar para a reserva. Era um homem de posses, e sempre alimentara o desejo de ancorar em Dartmoor. Sua escolha recaíra na pequena aldeia de Sittaford. Não ficava no meio de um vale como a maioria de outras cidadezinhas, mas empoleirada justamente na borda da charneca sob o Farol de Sittaford. Trevelyan adquirira uma ampla faixa de terreno, construindo ali uma casa muito confortável e ampla, com instalação elétrica própria e uma bomba para evitar o trabalho de apanhar água num poço. Depois, pensando em fazer um bom negócio, fez construir seis pequenos bangalôs, cada um dispondo de um quintal amplo.

      O primeiro desses bangalôs fora destinado a seu velho amigo e colega da Marinha, John Burnaby. Os outros foram pouco a pouco vendidos a pessoas que, por escolha pessoal ou necessidade interior, apreciavam viver em isolamento. A aldeia em si consistia de três chalés pitorescos mas mal cuidados, uma ferraria, e uma casa que funcionava ao mesmo tempo como agência de correios e confeitaria. A cidade mais próxima dali era Exhampton, seis milhas adiante, com uma estrada em declive que exigia um aviso endereçado aos que seguissem por ali de carro: “Motoristas, reduzam ao máximo a marcha”. Uma advertência muito usada, aliás, nas estradas de Dartmoor.

      Como já foi dito, o Capitão Trevelyan era um homem de posses. Apesar desse fato, ou talvez em decorrência do mesmo, era uma pessoa muito apegada ao dinheiro. No final de outubro um agente imobiliário de Exhampton lhe escrevera indagando o que achava de vender ou alugar a mansão Sittaford. Um seu cliente o consultara a respeito, desejando alugar a casa para a temporada de inverno.

      O primeiro impulso do Capitão Trevelyan foi o de recusar proposta, e o segundo, solicitar informações mais detalhadas sobre o pretendente. Tratava-se de uma certa Sra. Willett, viúva e com uma filha única. Chegara recentemente da África do Sul e queria alugar uma casa em Dartmoor para aquele inverno.

      — Qual, essa mulher deve ser louca — comentara Trevelyan, na ocasião, com seu velho amigo. — O que acha disso, Burnaby?

      Burnaby concordou com seu amigo e se expressou da mesma maneira veemente.

      — Seja como for, você não deve aceitar. Deixe essa mulher tola escolher outro lugar onde possa congelar-se como deseja. Também, vinda da África do Sul, não espanta que esteja querendo conhecer o inverno...

      Mas foi aí que o apego inusitado ao dinheiro do Capitão Trevelyan falou mais alto. Alugar uma casa no meio do inverno era uma chance muito rara. E ele escreveu ao corretor de imóveis, indagando quanto a pretendente à mansão Sittaford estava disposta a pagar.

      Uma oferta de doze guinéus semanais decidiu a questão. O Capitão Trevelyan foi a Exhampton, alugou uma pequena casa dos arredores por dois guinéus por semana, e cedeu sua casa de Sittaford à Sra. Willett, com a metade do aluguel a ser paga adiantadamente.

      — Essa tola e seu rico dinheirinho logo partirão daqui — ele conjecturou.

      Mas nessa tarde de inverno, ao olhar atentamente para a Sra. Willett, o Major Burnaby tinha que admitir que aquela senhora nada tinha de idiota. Era uma mulher alta, com um ar meio doentio, talvez, mas sua expressão tinha mais de astúcia do que de idiotice. Tinha uma tendência a vestir-se com certo requinte, expressava-se com um sotaque colonial bem distinto e parecia muito feliz com o negócio que fizera. Ela se mostrava muito vivaz e sociável, o que, como Burnaby pensara mais de uma vez, tornava aquela história ainda mais estranha. Afinal de contas, a Sra. Willett não era o tipo de mulher de quem se diria estar sequiosa por solidão.

      No seu papel de vizinha ela se mostrara sociável de um modo até excessivo, pelo menos dentro dos padrões habituais em Sittaford. Choviam convites para visitas à casa que ela alugara. O Capitão Trevelyan fora instado, várias vezes, a entrar naquela casa “como se nós não estivéssemos aqui”. Trevelyan, contudo, não era muito chegado a mulheres. Dizia-se que sofrera uma forte decepção em sua juventude. O fato é que recusava sistematicamente os convites para visitar sua inquilina.

      Agora, dois meses já tinham decorrido desde a chegada das Willett a Sittaford, e a curiosidade inicial desaparecera.

      Burnaby, por índole pouco falante, continuou a observar sua anfitrioa, esquecido de encaminhar uma pequena conversa, mesmo informal. Costuma dar a impressão de ser um tanto tola, mas na realidade não o é, eis como ele resumiu suas observações sobre a Sra. Willett. E seu olhar desviou-se para Violet Willett. Uma jovem bonita, um tanto magra, sem dúvida, mas afinal todas as moças tinham esse tipo atualmente. Entretanto, nos jornais lia-se que as curvas estavam voltando, o que já não era sem tempo. Afinal o que haveria de bom numa mulher se ela não se parecesse exatamente com o que é: uma mulher?

      Burnaby rendeu-se à necessidade de manter uma conversa. A Sra. Willett estava dizendo:

      — Nós receávamos que o senhor não viesse. Pelo menos deve lembrar-se de que usou um “talvez” ontem. Ficamos muito contentes quando falou depois que viria, apesar de tudo.

      — Trata-se de uma sexta-feira — retrucou o major, sempre muito conciso.

      — Sexta-feira? — exclamou a Sra. Willett, com ar curioso.

      — Todas as sextas-feiras vou ver Trevelyan. Nas terças, ele retribui a visita. Fazemos assim há anos.

      — Ah, percebo. Mas, morando tão perto...

      — Uma espécie de hábito.

      — Mas o senhor ainda o conserva. Quero dizer que agora, com ele residindo em Exhampton...

      — É uma pena romper com um velho costume — disse o Major Burnaby. — Nós dois não apreciamos perder esses encontros.

      — O senhor vai também por causa dos torneios, não é mesmo? — perguntou Violet. — Falo de palavras cruzadas e acrósticos.

      Burnaby assentiu, esclarecendo:

      — Eu faço palavras cruzadas e Trevelyan acrósticos. Cada um de nós representa a região em que vive. Ganhei três livros o mês passado num concurso de palavras cruzadas — frisou.

      — É mesmo? Que ótimo! E esses livros eram interessantes?

      — Não sei. Não cheguei a lê-los. Pareceram-me pouco aproveitáveis.

      — É o fato de ganhá-los que importa, não é mesmo? — observou a Sra. Willett, de modo vago.

      — Como faz para ir a Exhampton? — indagou Violet. — O senhor não tem carro.

      — Vou a pé.

      — Como? Não está falando sério. São seis milhas...

      — É um bom exercício. Que são seis milhas de ida e outras tantas de volta? Isso mantém um homem em forma, o que é muito bom.

      — Fantástico! Doze milhas a pé. Mas tanto o senhor como o Capitão Trevelyan eram grandes atletas, não é certo?

      — Costumávamos ir juntos à Suíça. Esqui no inverno e alpinismo no verão. Trevelyan era excepcional como esquiador. Mas agora já estamos velhos para esse tipo de coisa.

      — Creio que ganhou o Concurso de Dança do Exército, não, major? — indagou Violet.

      O major enrubesceu como uma mocinha, murmurando:

      — Quem lhe contou isso?

      — O Capitão Trevelyan.

      — Joe devia ser mais discreto — disse Burnaby. — Ele fala demais. Que acham do tempo que está fazendo agora?

      Percebendo o ar embaraçado do major, Violet o acompanhou até a janela. Afastaram um pouco a cortina e olharam o cenário desolador lá fora.

      — A neve continua a cair — disse Burnaby. — Bastante pesada, a meu ver.

      — Oh, é tão atraente — comentou Violet. — Acho a neve tão romântica... Nunca a tinha visto cair.

      — Não é nada romântica quando a água congela nos canos, sua tolinha — disse a Sra. Willett.

      — Sempre viveu na África do Sul, Srta. Willett? — indagou o major.

      Algo da animação demonstrada até ali pela jovem desertou de seu rosto. Pareceu quase constrangida ao responder:

      — Sim... esta é a primeira vez que saio de lá. Tudo isso é tão emocionante que chega a assustar.

      Seria emocionante vir recolher-se na solidão de uma aldeia isolada no campo? Não deixava de ser uma idéia extravagante, pensou o major. Não conseguia entender aquelas criaturas.

      A porta foi aberta nesse instante e a criada anunciou:

      — Sr. Rycroft e Sr. Garfield.

      Um homem já idoso, magro, e um moço de rosto corado e ar de garoto entraram. O rapaz foi quem falou primeiro.

      — Eu o trouxe comigo, Sra. Willett. Disse a ele que não iria deixá-lo ficar enterrado naquela geladeira. — Riu antes de acrescentar: — Isto aqui parece simplesmente maravilhoso. Lenha de Natal ardendo na lareira...

      — Como diz meu jovem amigo, foi muito gentil da parte dele trazer-me aqui — disse o Sr. Rycroft, mal apertou as mãos das donas da casa, com ar meio cerimonioso. — Como está, Srta. Violet? Um inverno no tempo certo, mas rigoroso demais, acho eu.

      Rycroft acercou-se da lareira conversando agora com a Sra. Willett. Ronald Garfield monopolizou as atenções de Violet.

      — Será que não poderíamos ir patinar por aí? Não há nenhum lago por perto?

      — Acho que escavar a neve seria nosso único esporte no momento.

      — Estive fazendo isso a manhã toda.

      — Oh! você é um bocado homem!

      — Não zombe de mim. Minhas mãos estão cheias de bolhas.

      — Como vai sua tia?

      — Oh, sempre a mesma... Às vezes ela diz que está bem e em outras que vai mal, mas penso que no fundo dá tudo no mesmo. A cada ano que passa pensamos que ela não vai ver um novo Natal, mas ela continua firme. — Riu. — Só é preciso tratá-la com cuidado, senão é capaz de deixar todo o seu dinheiro para um Asilo de Gatos... Ela tem uns cinco bichanos, como você sabe. Tenho que me mostrar afetuoso com eles, embora sinta vontade de chutá-los de vez em quando...

      — Eu gosto mais de cachorros que de gatos.

      — Eu também. Afinal, acho que um cão é... Bem, um cão é um cão, certo?

      — Sua tia sempre gostou de gatos?

      — Acho que é um tipo de coisa que cresceu com ela. Uf! Como detesto esses bichanos!

      — É um gesto bonito da parte de sua tia, mas eles sempre têm algo de assustador.

      — Penso que ela é que assusta. Me passa uns sermões violentos de quando em quando. Ela acha que eu não tenho juízo, sabe?

      — E é verdade?

      — Ei, não diga tal coisa. Um bocado de rapazes dão a impressão de serem tolos, mas no fundo estão rindo dos demais.

      — O Sr. Duke — anunciou a criada.

      O Sr. Duke era um morador recente ali. Adquirira o último dos seis bangalôs em setembro. Era um homem corpulento, muito sossegado e amante da jardinagem. O Sr. Rycroft, que era um devotado criador de pássaros e morava no bangalô vizinho ao do Sr. Duke se interessara por este e era de opinião que o novo morador de Sittaford parecia ser um homem educado, simpático, muito simples, mas sempre pairava uma dúvida sobre a sua profissão. Poderia ser, talvez, um negociante aposentado?

      Mas ninguém gostaria de questioná-lo a esse respeito, e na verdade pensavam ser melhor não saber a verdade. Afinal seria algo embaraçoso e indelicado, e numa pequena comunidade como aquela o melhor era que todos se dessem bem.

      — Não vai a Exhampton desta vez? — perguntou o recém-chegado ao major.

      — Não, mas suponho que, com esse tempo, dificilmente Trevelyan me esperaria esta noite.

      — Está terrível, não é mesmo? — disse a Sra. Willett, com um arrepio. — Ficar enterrada aqui, ano após ano, deve ser assustador.

      O Sr. Duke endereçou-lhe um rápido olhar. O Major Burnaby também a olhou de modo curioso. Mas nesse momento o chá foi servido.

 

A MENSAGEM

APÓS O CHÁ, a Sra. Willett sugeriu uma partida de bridge.

      — Somos seis aqui. Assim, dois ficam de fora.

      Ronald ficou contente com a perspectiva de desfrutar da companhia de Violet e disse:

      — Vocês quatro começam. A Srta. Willett e eu ficamos apreciando.

      Mas o Sr. Duke disse que não jogava bridge, para grande decepção de Ronald.

      — Poderíamos jogar outra coisa — sugeriu a Sra. Willett.

      — Ou “levitar a mesa” — sugeriu Ronnie. — É um truque do outro mundo. Falamos sobre isso outro dia, lembra-se? O Sr. Rycroft e eu conversávamos sobre este fato no caminho para cá.

      — Sou um membro da Sociedade de Pesquisas Psíquicas — explicou Rycroft, com seu modo conciso de se expressar. — Fui capaz de persuadir meu jovem amigo acerca de uns dois pontos básicos.

      — Disparates — disse distintamente o major.

      — Oh, mas isso será muito divertido, não acha? — observou Violet Willett. — Quero dizer, ninguém aqui está pensando que deve acreditar ou não nesses fenômenos. Trata-se simplesmente de um passatempo. Que diz disso, Sr. Duke?

      — Se é do seu gosto, Srta. Willett.

      — Então vamos apagar as luzes e procurar uma mesa adequada. Não... aquela ali não, mamãe. Acho que é muito pesada.

      Tudo foi preparado por fim para satisfação de todos ali. Uma pequena mesa redonda de tampo polido foi trazida de um aposento contíguo à sala. Foi colocada de frente para a lareira e todos se sentaram em volta, com as luzes já apagadas.

      O Major Burnaby sentou-se entre a dona da casa e Violet. Do outro lado, em frente da jovem, estava Ronnie Garfield. Um sorriso malicioso surgiu nos lábios do major, que pensou:

      “Em minha juventude isto se chamava Up Jenkins.” E tentou recordar o nome de uma garota de cabelo espesso, cuja mãozinha ele apertara por baixo da mesa durante longos minutos. Isso fora há muito, muito tempo. Mas aquele era um bom jogo.

      Risinhos, psius, lugares-comuns ditos em voz baixa, sucederam-se então. Tudo que é normal quando algumas pessoas se sentam em volta de uma mesa redonda, num simulacro de convocação dos espíritos de pessoas já falecidas. Eis algumas das frases estereotipadas que se fizeram ouvir:

      — Os espíritos estão longe no tempo...

      — Percorrem um longo caminho até aqui...

      — Silêncio. Nada acontecerá se não levarmos a coisa a sério.

      — Oh! Fiquem quietos, todos vocês.

      — Não aconteceu nada...

      — Claro que não... Isso nunca ocorre de imediato.

      — Se ao menos vocês permanecessem todos quietos...

      Finalmente, após alguns instantes, o murmúrio de conversa cessou.

      Fez-se silêncio, rompido por Ronnie Garfield, que murmurou aborrecido:

      — Esta mesa é igual a um surdo-mudo.

      — Silêncio.

      A superfície polida da mesa acusou uma leve vibração. Depois ela começou a balançar.

      — Façam perguntas agora. Quem começa? Você, Ronnie.

      — Bem... o que devo perguntar?

      — Há algum espírito presente aqui? — sugeriu Violet.

      — Ah, sim... Há algum espírito presente?

      Houve uma batida mais pronunciada.

      — Isso significa sim — disse Violet.

      — Oh! E quem é você?

      Nenhuma resposta.

      — Peça-lhe para declinar seu nome.

      — Como saberemos a resposta?

      — Contaremos o número de batidas.

      — Ah, sim. Por favor, espírito, diga seu nome.

      A mesa balançou fortemente.

      — A B C D E F G H I... Será que foi I mesmo ou J?

      — Pergunte. Foi um I?

      Ouviu-se uma batida.

      — Sim, foi. A próxima letra, por favor.

      O nome do espírito era Ida.

      — Tem alguma mensagem para alguém aqui?

      — Sim.

      — A quem é endereçada? À Srta. Willett?

      — Não.

      — À Sra. Willett?

      — Não.

      — Sr. Rycroft?

      Nova negativa.

      — Eu?

      — Sim.

      — É para você, Ronnie. Continue. Faça-o pronunciar algo mais.

      A mesa vibrou novamente. O resultado foi o nome “Diana”.

      — Quem é Diana? Conhece alguém com esse nome, Ronnie?

      — Não, não conheço. Pelo menos...

      — Mas “ele” pensa que você conhece.

      — Pergunte-lhe se ela é uma viúva.

      Aquilo parecia divertido. O Sr. Rycroft sorriu com ar indulgente. Afinal de contas, gente jovem tinha direito a se divertir. Captou um brilho diferente no olhar da Sra. Willett graças ao súbito fulgor de uma acha acesa na lareira. Ela parecia preocupada e absorta. Seus pensamentos deviam estar longe dali.

      O Major Burnaby estava pensando na nevasca. Iria nevar mais ainda naquela noite. Era o inverno mais rigoroso de que se recordava.

      Quanto ao Sr. Duke, estava levando aquilo a sério. Mas, infelizmente, os espíritos lhe concediam uma atenção mínima. Todas as mensagens transmitidas pela mesa pareciam destinadas a Violet e Ronnie.

      Violet estava sabendo que faria uma viagem à Itália. Alguém iria com ela. Não uma mulher. Um homem. Seu nome era Leonard.

      Houve mais risos. A mesa emitiu o nome da cidade. Uma mistura de letras que soava como uma palavra russa... Pelo menos nada tinha de italiano.

      Houve reclamações, comuns nesse tipo de jogo.

      — Atenção, Violet (o “Srta. Willett” fora omitido agora). Você está empurrando a mesa. Assim não vale.

      — Nada disso. Vejam, mantenho minhas mãos afastadas da mesa e ela balança da mesma forma.

      — Preferia ouvir pancadas secas. Gostaria de pedir-lhe para fazer isso. Pancadinhas mais fortes.

      — Devíamos escutar batidas mais secas, não, senhor? — disse Ronnie, olhando para Rycroft.

      — Nestas circunstâncias, dificilmente eu poderia escutar algo nítido — retrucou o Sr. Rycroft, secamente.

      Houve uma pausa. A mesa estava inerte. Não respondeu às perguntas.

      — Ida já se foi? — insistiram.

      Ouviu-se uma leve pancada.

      — Por favor, um outro espírito não poderia se manifestar aqui?

      Silêncio. Mas de repente a mesa começou a vibrar e balançar com força.

      — Salve! É um novo espírito?

      — Sim.

      — E tem uma mensagem para alguém?

      — Sim.

      — Para mim? — indagou Ronnie.

      — Não.

      — Para Violet?

      Novo não.

      — Para o Major Burnaby?

      — Sim.

      — A coisa agora é com o senhor, Major Burnaby. Poderia anunciar algo mais?

      A mesa passou a emitir batidas vagarosas.

      — T R E V... será mesmo um V? Não pode ser T R E V... isso não faz sentido.

      — Mas é Trevelyan, sem dúvida — murmurou a Sra. Willett. — Capitão Trevelyan.

      — Você quer dizer Capitão Trevelyan?

      — Sim — respondeu o espírito.

      — E tem uma mensagem para o Capitão Trevelyan?

      — Não.

      — Bem, o que quer dizer então?

      A mesa começou a mover-se. Lenta e ritmadamente. Tanto assim que foi fácil contar as letras equivalentes às batidas. —

      — M... — uma pausa. — O... R T O.

      — Morto.

      — Alguém morreu?

      Em vez de responder Sim ou Não, a mesa começou a vibrar de novo até fixar-se na letra T.

      — T... Quer dizer Trevelyan?

      — Sim.

      — Quer dizer que Trevelyan está morto?

      — Sim.

      A batida fora bem forte e precisa.

      Alguém suspirou profundamente. Os que estavam em volta da mesa sentiram um sobressalto.

      A voz de Ronnie, quando interpretou o pensamento de todos ali, mostrou-se insegura, com um toque de receio.

      — Quer dizer realmente que o Capitão Trevelyan morreu?

      — Sim.

      Nova pausa. Era como se ninguém ali soubesse o que deveria ser perguntado a seguir, ou como enfrentar o inesperado da situação. Até ali tudo se processara como um simples entretenimento.

      E durante essa pausa a mesa passou a balançar de novo.

      Ronnie foi captando as letras, emitidas através de batidas lentas e ritmadas.

      — A S S A S S I N A T O...

      A Sra. Willett deu um grito e afastou suas mãos da mesa.

      — Não quero continuar com isto. É horrível. Não gosto disso.

      A voz do Sr. Duke ergueu-se, ressonante e clara. Interrogou a entidade:

      — Quer dizer... que o Capitão Trevelyan foi assassinado?

      Mal pronunciara a derradeira palavra quando a resposta veio. A mesa estremeceu de modo tão brusco e afirmativo que a batida, uma só, soou intensamente.

      — Sim.

      — Ouça — começou a dizer Ronnie, com voz meio trêmula —, isto é o que eu chamo uma brincadeira de mau gosto — e afastou as mãos da mesa.

      — Acendam a luz — disse o Sr. Rycroft.

      O Major Burnaby levantou-se e fez o que fora pedido. A súbita luminosidade deixou à mostra um conjunto de rostos pálidos e constrangidos.

      Todos ali se entreolhavam sem saber o que dizer.

      — Tudo mentira, naturalmente — disse Ronnie, por fim, com um riso forçado.

      — Que coisa mórbida, absurda — observou a Sra. Willett. — Ninguém devia fazer brincadeiras desse tipo.

      — Muito menos sobre a morte de uma pessoa — disse Violet. — Isso é... Oh! eu não gostei nada disso.

      — Eu não movi a mesa — exclamou Ronnie, sentindo-se alvo de censuras veladas. — Juro que não trapaceei.

      — Eu digo o mesmo — falou o Sr. Duke. Voltou-se para Rycroft, indagando: — E o senhor?

      — Claro que não — replicou o Sr. Rycroft, com veemência.

      — Não estão pensando que eu faria uma brincadeira desse tipo, hem? — disse, com irritação, o Major Burnaby. — É de péssimo gosto.

      — Violet querida...

      — Eu não fiz nada, mãe. Verdade. Eu não faria tal coisa.

      A jovem estava quase chorando.

      Todos se sentiam confusos. Uma nota desagradável vinha empanar o que prometera ser uma reunião divertida.

      O Major Burnaby afastou sua cadeira, foi à janela e puxou a cortina. Ficou olhando a paisagem de neve, de costas para os demais.

      — Cinco e vinte cinco — disse o Sr. Rycroft, olhando o relógio da sala. Conferiu com seu próprio relógio e todos ali sentiram de algum modo que seu gesto era significativo.

      — Bem — disse a Sra. Willett, com uma jovialidade forçada — acho que seria melhor bebermos alguma coisa agora. Quer tocar a sineta, Sr. Garfield?

      Ronnie obedeceu.

      Foram trazidos os ingredientes para o coquetel, ficando Ronnie encarregado de misturá-los devidamente. O ambiente desanuviou-se um pouco.

      — Bem — disse Ronnie, erguendo seu copo —, à vossa saúde!

      Os outros lhe fizeram eco, todos exceto uma figura silenciosa junto à janela.

      — Major Burnaby. Aqui está seu drinque.

      O major acusou um leve sobressalto ao emergir de suas divagações e voltou-se lentamente, dizendo:

      — Obrigado, Sra. Willett, mas não vou beber. — Olhou uma vez mais para o exterior nevado e já alcançado pela noite, então acercou-se devagar do grupo reunido perto da lareira. — Muito agradecido por esta agradável reunião. Boa noite para todos.

      — O senhor está de saída?

      — Sim, acho que devo ir.

      — Mas não tão cedo. E numa noite como esta.

      — Lamento, Sra. Willett, mas é o que deve ser feito. Se ao menos aqui houvesse um telefone...

      — Um telefone?

      — Sim, para ser franco, estou... Bem, eu gostaria de me certificar se tudo está em ordem com Joe Trevelyan. Talvez seja uma suposição tola, fruto do que aconteceu aqui... mas assim é. Naturalmente, eu não acredito nessa brincadeira de mau gosto... mas...

      — Mas o senhor não poderá telefonar de outra casa daqui. Não há telefones em Sittaford.

      — Eis aí a questão. Já que não posso telefonar, terei que ir ao povoado mais próximo.

      — Mas... o senhor não conseguirá um carro com a estrada como está agora! Elmer não sairá com seu carro para levá-lo com uma noite destas, major.

      Elmer era o proprietário do único veículo naquele lugar, um velho Ford, alugado a preço convidativo por todos aqueles que desejavam ir a Exhampton.

      — Não, não. O carro está fora de cogitação. Minhas duas pernas me levarão até lá, Sra. Willett.

      Os outros protestaram em coro.

      — Oh, isso é impossível, Major Burnaby. O senhor mesmo disse antes que iria nevar mais ainda esta noite.

      — Mas não agora... talvez mais tarde. Eu chegarei lá, não se preocupem.

      — Oh! o senhor não deve ir. Não podemos permitir — disse a Sra. Willett.

      Ela estava realmente preocupada e nervosa.

      Mas argumentos e súplicas não afetaram em nada o major. Era um homem obstinado. Uma vez que tomasse uma decisão acerca de qualquer assunto, nenhum poder terreno poderia demovê-lo.

      Ele decidira ir a pé a Exhampton e ver pessoalmente se tudo estava bem com seu velho amigo. E repetiu isso pelo menos umas doze vezes. E por fim todos compreenderam que ele tinha razão. Assim, o major vestiu seu sobretudo, acendeu a lanterna de marinheiro, e mergulhou na noite. Mas antes ainda comentou, com ar meio jovial:

      — Darei um pulo à minha casa para apanhar um cantil... e então me porei a caminho. Trevelyan deve acolher-me esta noite. Sei que é uma coisa meio ridícula o que me faz ir lá. Certamente tudo deve estar em ordem com ele. Não se preocupe Sra. Willett. Com neve ou sem neve, estarei lá em duas horas. Boa noite.

      O major afastou-se, a porta foi fechada e os outros voltaram para junto da lareira.

      Rycroft olhara para o céu e agora comentava com o Sr. Duke:

      — Vai nevar mais e começará antes que ele chegue em Exhampton. Eu... espero que ele tenha sorte.

      — Sim. Mas eu acho que devia ter ido com o major. Um de nós deveria tê-lo acompanhado.

      — Foi muito desagradável — disse a Sra. Willett —, muito mesmo. Violet, eu não devia ter permitido que fizessem aquele jogo tolo de novo. Pobre Major Burnaby, talvez acabe caindo num monte de neve... ou, ainda pior que isso, venha a morrer exposto ao frio intenso. Na sua idade... Foi uma tolice sair com este tempo. Certamente o Capitão Trevelyan deve estar muito bem de saúde.

      Os demais disseram quase em uníssono:

      — Naturalmente.

      Mas mesmo agora ao dizerem isso não se sentiam muito à vontade.

      Pairava no ar uma suposição inquietante. E se alguma coisa tivesse acontecido ao Capitão Trevelyan?...

 

CINCO E VINTE CINCO

DUAS HORAS E MEIA após deixar Sittaford, exatamente antes das oito, o Major Burnaby, lanterna na mão, de cabeça baixa para evitar o ofuscamento causado pelo brilho excessivo do caminho nevado, alcançou a entrada de “Hazelmoor”, a pequena casa alugada pelo Capitão Trevelyan.

      A neve recomeçara a cair uma hora antes, na forma de flocos maiores agora, muito brilhantes. O Major Burnaby estava ofegante, emitindo suspiros que denotavam seu estado próximo da exaustão. Estava entorpecido devido ao frio intenso. Bateu os pés, soprou as mãos enregeladas, fez uma careta e esticou o dedo indicador apertando a campainha..

      O som da campainha fez-se estridente.

      Burnaby esperou. Dois minutos depois, como ninguém atendesse, tocou de novo.

      Uma vez mais não se ouviu o menor sinal de movimento no interior da casa.

      Burnaby insistiu novamente. E desta vez manteve o dedo sobre o botão da campainha. Nada. O major resolveu mover a aldrava. O som produzido imitou o de um trovão.

      E ainda dessa vez a pequena casa permaneceu silenciosa como um túmulo.

      O major desistiu de bater à porta. Permaneceu um instante parado, como perplexo, e então, lentamente, afastou-se do pátio, passou pelo portão e pegou de novo a estrada rumo ao centro de Exhampton. Alguns metros adiante ficava a pequena delegacia local.

      Hesitou novamente, mas logo se recompôs e entrou.

      O Delegado Graves, que conhecia muito bem o major, ergueu-se de sua mesa, com evidente surpresa.

      — Senhor, eu nunca o imaginaria aqui numa noite como esta.

      — Ouça — foi logo dizendo Burnaby. — Estive batendo à porta da casa do capitão com insistência e ninguém veio abrir.

      — Agora me lembrei que estamos numa sexta-feira — retrucou Graves, que estava bem a par dos hábitos dos dois velhos amigos. — Mas não vai me dizer que veio a pé de Sittaford até aqui numa noite como esta? Certamente o capitão não o esperava.

      — Que ele estivesse me esperando ou não o fato é que eu vim — replicou o major, taxativamente. — E como já lhe disse, não o encontrei em casa. Toquei a campainha, usei a aldrava e ninguém apareceu.

      A inquietude de Burnaby pareceu contagiar em parte o policial.

      — Isso é estranho — acabou murmurando Graves, franzindo a testa.

      — Claro que é estranho — disse Burnaby.

      — Não seria de esperar que ele saísse com um tempo destes e à noite.

      — Naturalmente ele não deve ter saído.

      — Isso é estranho — repetiu Graves.

      Burnaby demonstrou sua impaciência diante da imobilidade do policial.

      — Não pretende fazer algo? — exclamou o major.

      — Fazer alguma coisa?

      — Sim, claro. Tomar alguma providência.

      O delegado ficou pensativo. E acabou por insinuar:

      — Acha que ele está enfermo? — Aí seu olhar se animou de repente. — Vou telefonar. Esticou a mão e logo discava um número.

      Mas, como acontecera antes quando o major tocara a campainha, não responderam na casa do Capitão Trevelyan.

      — Dá a impressão de que ele adoeceu de repente — murmurou Graves, recolocando o fone no gancho. — E está sozinho na casa. Seria melhor chamarmos o Dr. Warren e levá-lo até lá conosco.

      A casa do Dr. Warren ficava quase ao lado da delegacia. O médico acabara justamente de sentar-se à mesa para jantar com a esposa e não se mostrou muito satisfeito com a visita. Contudo, concordou em acompanhar os dois homens. Resmungando um pouco, vestiu um velho sobretudo, calçou as galochas e enrolou um cachecol no pescoço.

      A neve continuava a cair.

      — Que noite dos diabos — murmurou o médico. — Espero que vocês não me tenham tirado de casa para um caso de resfriado comum. E Trevelyan é forte como um garanhão. Nunca precisou de meus serviços.

      Burnaby não replicou.

      Uma vez chegando a Hazelmoor, tocaram a campainha e bateram à porta com a aldrava, mas ninguém veio atender.

      O médico então sugeriu que rodeassem a casa e tentassem as janelas dos fundos.

      — Será mais fácil de forçar do que a porta — acentuou Warren.

      Graves concordou, e contornaram a casa. Havia uma porta lateral e fizeram uma tentativa para abri-la, mas se achava trancada. Então deram mais alguns passos num trecho cimentado recoberto de neve e observaram as janelas dos fundos. De repente, Warren exclamou:

      — A janela do escritório está aberta!

      Realmente, a porta-janela envidraçada achava-se entreaberta. Apertaram o passo. Numa noite como aquela parecia fora de sentido que alguém abrisse uma janela. Havia luz no aposento e uma réstia fina e amarelada clareava o local onde eles se encontravam agora.

      Os três homens chegaram juntos, intrigados e apreensivos, à janela envidraçada. Burnaby foi o primeiro a entrar, com o delegado a seguir. Ambos pararam no meio do aposento e uma espécie de grito abafado a custo escapou dos lábios do ex-oficial. Logo a seguir, Warren se punha ao lado dos dois homens. E viu o que eles já estavam contemplando.

      O Capitão Trevelyan estava caído no assoalho, de bruços. Seus braços tinham assumido a postura dos de um nadador, e agarravam o vazio. O aposento achava-se na maior confusão. Gavetas retiradas da escrivaninha, papéis espalhados pelo chão. A janela ao lado dos três homens fora forçada e apresentava sinais disso no fecho. Ao lado do cadáver, via-se um objeto alongado, em forma cilíndrica, revestido de baeta, com duas polegadas de espessura.

      Warren acercou-se mais e ajoelhou-se ao lado do corpo inerte. Um minuto bastou-lhe para a fatal constatação. Ergueu-se, o rosto pálido.

      — Ele está morto? — perguntou Burnaby.

      O médico fez que sim com a cabeça. Depois fitou Graves.

      — Cabe a você dizer o que deve ser feito. A mim só compete agora examinar o cadáver e talvez você prefira que eu aguarde até a chegada do inspetor. Mas já posso dizer a causa da morte. Fratura da base craniana. E acho que a arma do crime, obviamente, é esta — e indicou o saquinho de areia cilíndrico e recoberto de baeta.

      — Trevelyan sempre o usava para vedar melhor as fendas da porta em noites chuvosas — comentou Burnaby, com voz rouca.

      — Sim... e é uma espécie de cassetete muito eficiente.

      — Meu Deus!

      — E o que houve aqui, como se vê, foi um assassinato — murmurou o delegado Graves, que tinha um raciocínio sempre lento.

      O policial acercou-se da mesa do telefone. Enquanto isso, o major aproximava-se do médico, perguntando tenso:

      — Tem alguma idéia de quando ele foi morto?

      — Há cerca de duas horas, ou talvez três. Trata-se de um cálculo aproximado apenas.

      Burnaby passou a língua pelos lábios ressequidos e indagou:

      — Diria que ele pode ter sido assassinado às cinco e vinte cinco?

      O médico olhou o major com ar curioso antes de responder:

      — Se eu tivesse que fixar em definitivo a hora do crime, seria esta que você acaba de mencionar.

      — Oh, meu Deus! — murmurou Burnaby.

      Warren ficou a olhá-lo ainda intrigado. O major deixou-se cair numa cadeira, com um olhar em que se lia um evidente horror. E murmurou, mais para si mesmo:

      — Cinco e vinte cinco... Oh, meu Deus, então aquilo era verdade.

     

O INSPETOR NARRACOTT

NA MANHÃ SEGUINTE AO CRIME, dois homens estavam de pé no escritório da casa do Capitão Trevelyan.

      O Inspetor Narracott olhava à sua volta e uma pequena ruga apareceu em sua testa.

      — Sim... — ele murmurou pensativamente. — Sim.

      O Inspetor Narracott era um policial deveras eficiente. Dotado de uma serena persistência, uma mentalidade lógica e um senso atilado dos detalhes que o levavam a obter sucesso onde muitos outros homens teriam falhado.

      Era alto, com maneiras tranqüilas, olhos verdes, ar meio distante e uma voz com sotaque de Devonshire, pausada e branda.

      Enviado de Exeter para cuidar daquele caso, chegara a Exhampton pelo primeiro trem daquela manhã. Se as estradas, cobertas de neve, não estivessem bloqueadas para os carros, ele teria chegado na noite passada. Agora, já completara o exame a que submetera o escritório do Capitão Trevelyan. Com ele estava o Sargento Pollock, da polícia local.

      — Está bem — disse o inspetor.

      Uma nesga de sol tímido invernal penetrava pela janela. Lá fora, a mesma paisagem nevada. Via-se uma cerca a umas cem jardas da janela e mais além o caminho em ascensão da encosta de uma colina coberta de neve.

      O Inspetor Narracott inclinou-se uma vez mais sobre o cadáver que fora deixado ali justamente para ser examinado por ele. Sendo ele próprio de compleição atlética, observou o tipo atlético do morto, seus ombros largos e a boa estrutura muscular. A cabeça era pequena e bem assentada sobre os ombros, e a barba de ex-marinheiro cuidadosamente aparada. Calculara em sessenta anos a idade do Capitão Trevelyan, mas dava a impressão de não ter mais que cinqüenta e dois.

      — Ah! — disse o Sargento Pollock.

      O inspetor voltou-se para seu auxiliar, perguntando:

      — Que pensa disso?

      — Bem... — o sargento coçou a testa. Era do tipo cauteloso, incapaz de aventurar algo além do necessário. — Bem — prosseguiu — do modo como imagino, diria que o nosso homem acercou-se dessa janela, forçou o trinco, e saltou para dentro deste escritório. Suponho que o Capitão Trevelyan devia estar lá em cima. Sem dúvida, o ladrão pensou que a casa estava vazia...

      — Onde fica o quarto do Capitão Trevelyan?

      — Bem em cima deste aposento, senhor.

      — Nesta época do ano às quatro da tarde já escurece. Se o Capitão Trevelyan se achava no seu quarto, a luz elétrica devia estar acesa e o ladrão deveria notá-la ao se aproximar desta janela.

      — Podemos pressupor que ele tenha esperado.

      — Nenhum homem em seu juízo perfeito entraria numa casa com a luz acesa. Se alguém forçou esta janela, o fez pensando que a casa estava vazia.

      O Sargento Pollock voltou a coçar a cabeça.

      — Parece um pouco incomum, eu sei. Mas é como imagino a coisa.

      — Bom, deixemos esse ponto por enquanto. Prossiga em suas deduções.

      — Bem, suponhamos que o capitão tenha ouvido um ruído aqui embaixo. Desce para ver o que está acontecendo. O ladrão ouve seus passos, apanha aquele soquete, se esconde atrás da porta, e quando o capitão entra aqui ele o golpeia na cabeça.

      O Inspetor Narracott assentiu com a cabeça.

      — Sim, isto é certo. O capitão foi agredido quando estava de frente para a janela. Mas, mesmo assim, Pollock, eu não aceito essa teoria.

      — Não, senhor?

      — Não, como lhe disse, eu não acredito nessa história de uma casa ser invadida às cinco horas da tarde.

      — Bem... o nosso homem pode ter pensado que tinha uma boa oportunidade...

      — Não se pode considerar como uma boa oportunidade o fato de que ele tenha encontrado uma janela mal fechada. Ela foi deliberadamente danificada... observe a confusão reinante aqui... o que um ladrão comum visaria de imediato? A despensa, onde a prataria é guardada.

      — Lá isso é verdade — admitiu o sargento.

      — E esta confusão toda... — prosseguiu Narracott — estas gavetas retiradas do móvel, com seu conteúdo esparramado pelo chão. Qual! Isto é uma farsa.

      — Uma farsa? — repetiu o sargento, intrigado.

      — Repare na janela, sargento. Essa janela não foi trancada e depois forçada e mantida entreaberta! Simplesmente estava fechada e aí o assaltante danificou-a do lado de fora para dar a impressão de ter sido forçada.

      Pollock examinou mais atentamente o trinco da janela, assoviando baixinho assim que completou o exame. Aí disse, com entonação respeitosa:

      — Tem razão, senhor. Quem teria pensado nisso agora!

      — Alguém que quis jogar areia em nossos olhos... e fracassou.

      O Sargento Pollock sentiu-se grato pelo “nossos”. Com esses pequenos artifícios de linguagem o Inspetor Narracott se fazia estimar por seus subordinados.

      — Então não se trata de um roubo. O senhor quer dizer que houve outra motivação.

      — Sim — disse o Inspetor Narracott. — A única coisa curiosa, todavia, é o que fez o assassino entrar pela janela. Como você e Graves me contaram, e como pude constatar pessoalmente, há manchas úmidas ainda visíveis da neve aderida às botas do criminoso. Essas marcas se encontram somente neste aposento. O Delegado Graves foi taxativo ao afirmar que não havia mancha alguma desse tipo no vestíbulo quando ele e o Dr. Warren ali entraram. E neste escritório ele as notou imediatamente. De onde se pode deduzir que o assassino foi recebido pelo Capitão Trevelyan na janela. Portanto, devia ser alguém conhecido pêlo capitão. Você que vive neste povoado, sargento, poderia me dizer se o Capitão Trevelyan era homem que criava inimizades facilmente?

      — Não, senhor. Eu até arriscaria dizer que ele não tinha um inimigo sequer neste mundo. Era um pouco apegado ao dinheiro, e também bastante severo, não suportava qualquer relaxamento ou grossura, mas, palavra de honra, ele era respeitado por isso mesmo.

      — Nada de inimigos — murmurou Narracott, pensativo. — Aqui nunca os teve.

      — Mas o fato é que não sabemos quais os inimigos que ele pode ter feito durante sua carreira na Marinha. Minha experiência me diz, sargento, que um homem que faz inimizades num lugar poderá criá-las em outro, mas admito que não podemos colocar inteiramente de lado essa possibilidade. Chegamos agora, logicamente, ao próximo motivo, o mais comum para um crime: o dinheiro. O Capitão Trevelyan era, como depreendi, um homem rico?

      — Bem abastado, realmente. Mas nada gastador. Eu diria que era uma pessoa de quem dificilmente se conseguiria que assinasse uma subscrição.

      — Ah! — exclamou Narracott, sempre pensativo.

      — Nevava demais à noite — disse o sargento, de repente. — Mas também graças a isso obtivemos aquelas pegadas que sempre servem como uma pista para se começar...

      — Ninguém mais morava nesta casa? — perguntou o inspetor.

      — Não. Nestes últimos cinco anos, o Capitão Trevelyan teve somente um empregado. Um ex-marinheiro, seu conhecido. Pela manhã, lá na casa de Sittaford, uma mulher costumava fazer a faxina, mas era o Evans quem cozinhava e olhava pelo seu patrão. Há um mês atrás, Evans casou-se, a contragosto de Trevelyan. Creio ter sido esse um dos motivos que levou o capitão a alugar a casa de Sittaford para aquela senhora da África do Sul. Ele não queria nenhuma mulher vivendo naquela casa. Evans mora na Rua Fore, perto daqui, basta dobrar a próxima esquina, com sua esposa, e vem diariamente cuidar da cozinha e das tarefas domésticas para seu patrão. Eu mandei Evans vir aqui para falar com o senhor. Ele afirma ter saído desta casa ontem por volta de duas e meia, pois o capitão não necessitava dele.

      — Bem, desejo vê-lo. Ele talvez seja capaz de nos dizer algo de útil.

      O Sargento Pollock olhou meio intrigado para seu superior. Havia algo de estranho em seu tom de voz.

      — O senhor pensa... — o sargento começou a dizer.

      — Eu penso — disse o inspetor intencionalmente — que há mais coisas neste caso que chamam a atenção.

      — Em que sentido, senhor?

      Mas o inspetor recusou-se a revelá-lo, indagando:

      — Este tal Evans, está aqui agora?

      — Ele está na sala de jantar.

      — Bom. Já terei uma conversa com ele. Que tipo de pessoa ele é?

      O Sargento Pollock primava mais por relatar ocorrências do que descrever tipos.

      — É um marinheiro aposentado. Um bocado duro numa briga, para ser sincero. É um tipo mal-humorado.

      — Costuma beber?

      — Que eu saiba não costuma ir além da conta.

      — E quanto a sua mulher? Não haveria qualquer interesse do capitão em relação a ela? Ou algo parecido?

      — Oh, não, senhor. Nada disso. O Capitão Trevelyan não era desse tipo de homem. Era tido como uma espécie de inimigo das mulheres.

      — E Evans, era dedicado a seu patrão?

      — É o que todos aqui pensam, senhor, e acho que se não fosse assim logo se saberia. Exhampton é um lugar pequeno.

      O Inspetor Narracott assentiu, dizendo a seguir:

      — Bem, não há mais nada para examinar aqui. Conversarei com o Evans e darei uma olhada no resto da casa. Depois iremos ao Três Coroas e veremos de perto esse Major Burnaby. A observação que ele fez sobre a hora do crime foi interessante. Cinco e vinte cinco, hem? Ele deve saber algo mais que ainda não quis revelar. Ou então por que sugeriu a hora do crime tão precisamente?

      Os dois homens encaminharam-se para a porta do escritório.

      — Este é um caso esquisito — disse o Sargento Pollock, o olhar vagueando pelo chão cheio de papéis em desordem. — Toda esta fachada de roubo!

      — Não é isso que soa estranho para mim — retrucou Narracott — sob essas circunstâncias era, talvez, a coisa mais natural a ser feita. Não, o que me intriga é a janela.

      — A janela, senhor?

      — Sim. Por que o assassino veio até a janela? Pressupondo que se tratava de alguém familiar a Trevelyan e que ele recebesse normalmente em sua casa, por que não usar a porta da frente? Contornar a casa vindo da estrada, numa noite de nevasca como a de ontem não parece um procedimento lógico e cômodo... Deve ter havido um motivo qualquer para tal atitude.

      — Talvez — sugeriu Pollock — o tal homem não quisesse ser visto da estrada entrando nesta casa.

      — Não haveria muitas pessoas capazes de ver esse homem ontem à tardinha. Todos deviam estar em suas casas com aquela neve toda caindo. Não, havia um outro motivo. Bem, talvez isso se esclareça no devido tempo.

     

EVANS

ENCONTRARAM EVANS à espera na sala de jantar. Ele ergueu-se respeitosamente quando os viu entrar.

      Era um homem de estatura baixa e atarracado. Tinha braços muito compridos e o tique de manter as mãos meio cerradas. Limpo, bem barbeado, com uns olhos de leitão, mas seu ar sereno e prestativo compensavam aquela sua aparência de buldogue.

      O Inspetor Narracott mentalizou suas impressões, classificando Evans como inteligente, astuto e prático. Parecia meio chocado.

      Só então fez a primeira pergunta:

      — Você é Evans, hem?

      — Sim, senhor.

      — Qual é seu nome todo?

      — Robert Henry Evans.

      — Ah! Agora, o que sabe a respeito do que houve aqui?

      — Na realidade, nada, senhor. Tudo isso me deixou confuso. Pensar que o capitão se foi!

      — Quando viu pela última vez o seu patrão?

      — Diria que eram duas horas. Retirei a bandeja com as coisas do lanche e deixei a mesa como o senhor a vê agora, para o jantar. O capitão me disse que eu não precisaria voltar naquele dia.

      — O que costuma fazer normalmente aqui?

      — Geralmente eu costumo voltar às sete e fico aqui umas duas horas. Nem sempre, porque algumas vezes o capitão dizia que não ia precisar mais de mim.

      — Então não se surpreendeu quando ele lhe disse para não voltar ontem à tarde?

      — Não senhor. Na noite anterior eu também não precisei voltar, devido ao mau tempo. O capitão era um cavalheiro muito atencioso e compreensivo, desde que não se relaxasse no serviço e no cumprimento do dever. Eu o conhecia bem e a sua maneira de ser também.

      — O que ele lhe disse ontem exatamente?

      — Bem, ele olhou pela janela e disse: “Na certa Burnaby não virá hoje.” E acrescentou: “Não me surpreenderia se Sittaford não estivesse isolada de todo hoje. Desde a minha infância não me lembro de um inverno assim.” Ele se referia a seu amigo, o Major Burnaby, que reside em Sittaford. O major sempre vinha visitá-lo às sextas-feiras, e os dois jogavam xadrez e faziam acrósticos. E nas terças o capitão retribuía a visita ao Major Burnaby. O capitão era muito metódico em seus hábitos. Então ele me disse: “Agora você pode ir, Evans, e só precisa vir amanhã de manhã.”

      — Afora essa referência ao Major Burnaby, ele não disse estar esperando alguém naquela tarde?

      — Não, senhor, nem uma palavra.

      — Não notou nada de incomum ou diferente no comportamento do seu patrão?

      — Não senhor. Nada que eu pudesse perceber.

      — Ah! Agora há pouco vim a saber que você se casou recentemente.

      — Sim senhor. Com a filha da Sra. Belling, do Três Coroas. Há coisa de dois meses.

      — E o Capitão Trevelyan não ficou muito satisfeito com esse fato.

      No rosto de Evans surgiu uma leve contração, muito rápida.

      — O capitão ficou um pouco zangado, realmente. Mas a minha Rebecca é uma boa garota, senhor, e uma ótima cozinheira. Eu esperava que nós dois pudéssemos trabalhar juntos para o capitão, mas... ele nem quis ouvir falar sobre isso. Declarou que não queria a presença de criadas em sua casa. Na verdade, senhor, as coisas se complicaram principalmente quando aquela senhora chegou da África do Sul e quis alugar a casa de Sittaford para a temporada de inverno. O capitão então alugou esta casa, e eu continuei a vir aqui diariamente. Mas pode crer, senhor, eu tinha esperanças de que findo o inverno o capitão mudasse de idéia, e que eu e minha Rebecca pudéssemos voltar para Sittaford com ele. Isso porque o capitão nem iria tomar conhecimento da presença de Rebecca ali. Ela cuidaria apenas da cozinha, e faria o possível para que ele nunca a visse fora dali.

      — Tem alguma idéia do motivo que levava o Capitão Trevelyan a desgostar das mulheres?

      — Nada disso, senhor. Apenas uma questão de hábito. Já conheci muitos outros homens assim, senhor. Se deseja a minha opinião, eu diria que se tratava, nada mais nada menos, de certa timidez: Alguma jovem senhora lhes deu um contra quando eram moços... e eles adquiriram essa mania.

      — O Capitão Trevelyan não era casado?

      — Não senhor.

      — Sabe se ele tinha parentes?

      — Creio que tinha uma irmã lá em Exeter, senhor, e acho também que o ouvi referir-se certa vez a um sobrinho ou sobrinhos.

      — E nenhum desses parentes veio visitá-lo?

      — Não senhor. Penso que ele não se dava bem com a irmã. — Sabe o nome dela?

      — Gardner. É, acho que se chama assim, mas não tenho muita certeza.

      — Não sabe o seu endereço?

      — Lamento, mas não sei, senhor.

      — Bem, certamente iremos saber ao consultarmos os documentos do Capitão Trevelyan. Agora, Evans, me diga o que esteve fazendo desde as quatro horas da tarde de ontem.

      — Estava em minha casa, senhor.

      — E onde fica a sua casa?

      — Justamente na próxima esquina, senhor. Rua Fore, 85.

      — Não chegou a sair nem uma vez?

      — Não senhor. A neve que caía sem parar desaconselhava isso.

      — Sim, sim. Há alguém que possa apoiar sua declaração?

      — Desculpe, senhor. Não entendi bem.

      — Quis dizer se há alguma pessoa que o viu o tempo todo dentro de casa.

      — Minha mulher, senhor.

      — Ela e você estavam sozinhos na casa?

      — Sim senhor.

      — Bem, bem, não tenho nenhuma dúvida sobre esse ponto. É tudo no momento, Evans.

      O ex-marinheiro mostrava-se hesitante. Olhou em volta e disse:

      — Há algo que eu possa fazer aqui, senhor... para pôr em ordem o escritório?

      — Não... tudo deve permanecer como está até segunda ordem.

      — Entendo.

      — Você deve esperar até que eu tenha observado tudo — disse Narracott — para o caso de precisar de algum esclarecimento de sua parte.

      — Está bem, senhor.

      O Inspetor Narracott desviou o olhar de Evans e passou a observar a sala de jantar. Sobre a mesa via-se ainda o que fora preparado para o jantar que o Capitão Trevelyan não chegara a provar: picles, língua defumada, queijo Stilton e biscoitos, e sobre o pequeno fogareiro a gás uma terrina de sopa. Em cima do bufete via-se um sifão com soda, e duas garrafas de cerveja. Ali também havia uma boa coleção de aparelhos de prata, copos e taças, e junto aos mesmos algo fora de lugar ali: três livros de novelas de edição recente.

      O inspetor examinou uma ou duas taças e leu as inscrições ao pé das mesmas.

      — Um grande esportista, esse Capitão Trevelyan — observou.

      — Realmente, senhor — disse Evans. — Praticou o atletismo a vida toda.

      O Inspetor Narracott leu os títulos das novelas: Chave Nova do Amor, Os Alegres Homens de Lincoln, O Prisioneiro do Amor.

      — Hum — ele murmurou, acrescentando: — o gosto literário do capitão não parecia dos melhores...

      — Oh! fala desses livros? — Evans riu. — Isto aí não era para ser lido, senhor. São prêmios que ele ganhou nos concursos de acrósticos Railway Pictures. Dez indicações foram enviadas pelo capitão sob nomes diferentes, incluindo o meu, porque ele dizia que 85 Fore Street era um endereço que lhe daria um prêmio! Quanto mais comuns eram nomes e endereços de pessoas, mais perto estariam de merecer os prêmios, na opinião dele. E um prêmio pelo menos ele ganhou usando meu nome... mas não as cobiçadas 2.000 libras, somente três novas novelas. E o tipo de histórias que, a meu ver, ninguém deve comprar numa livraria.

      Narracott sorriu e então voltou a dizer a Evans que esperasse para fazer a arrumação, continuando a examinar o aposento. A um canto havia uma espécie de guarda-louça, amplo. Formava quase que um pequeno depósito naquele recinto. Ali se via uma série de objetos dispostos de maneira informal. Dois pares de esquis, dois remos colocados em pé, dez ou doze presas de hipopótamos, caniços e linhas de pesca, com outros complementos usados por pescadores, um saco com tacos de golfe, uma raqueta de tênis, um dente de elefante polido e uma pele de tigre. Estava claro que ao alugar a sua casa de Sittaford, o Capitão Trevelyan trouxera de lá seus objetos e troféus de maior estima, livrando-os da curiosidade feminina...

      — Trazer tudo isto com ele foi uma atitude curiosa — disse o inspetor. — Afinal aquela casa foi alugada por poucos meses apenas, não?

      — Exato, senhor.

      — Certamente essas coisas poderiam ter ficado guardadas na casa de Sittaford.

      Pela segunda vez no transcorrer do interrogatório, Evans sorriu de modo um tanto forçado e irônico.

      — Seria mais cômodo naturalmente — concordou. — Não que haja muitos armários na casa de Sittaford. O arquiteto e o capitão planejaram juntos a construção daquela residência e seria necessário a presença ali de uma mulher para entenderem a utilidade de uma despensa. Mesmo assim, deixar essas coisas lá mesmo, seria o mais natural, como diz o senhor. Trazer tudo isto para cá foi uma trabalheira daquelas, eu que o diga! Mas o capitão não podia suportar a idéia de saber que alguém estaria mexendo nestes objetos lá em Sittaford. E como dizia meu patrão, não adiantaria conservar tudo isto trancado, pois uma mulher sempre acha um jeitinho de abrir um armário. Por pura curiosidade feminina, dizia-se ele. E acrescentava: “É melhor não trancar nada se você não deseja que elas mexam no que é nosso. Melhor do que isso é levar tudo conosco; aí estaremos seguros de ter agido da melhor forma.” No entanto, transportar tudo isto para cá, como eu disse, deu muito trabalho, e custou dinheiro também. Mas, na realidade, estas coisas todas eram como filhos queridos para o capitão.

      Evans parou de falar, quase sem fôlego.

      O Inspetor Narracott assentira, pensativo. Havia um outro ponto sobre o qual desejava um esclarecimento, e lhe pareceu oportuno abordá-lo, já que Evans tocara no mesmo indiretamente.

      — Essa Sra. Willett, que alugou a casa de Sittaford, era uma velha amiga ou simples conhecida do Capitão Trevelyan?

      — Oh! Não, senhor. Ele nem sabia da sua existência.

      — Tem certeza disso? — insistiu o inspetor, incisivo.

      — Bem... — o tom empregado pelo inspetor confundiu o velho marinheiro. — O capitão nunca se referiu a isso realmente... mas... Sim, estou certo de que ele não a conhecia.

      — Perguntei — explicou o inspetor — porque alugar uma casa durante o inverno não deixa de ser curioso. Por outro lado, se esta Sra. Willett era relacionada com o Capitão Trevelyan e conhecia a casa, deveria escrever-lhe sugerindo que a alugasse para ela.

      Evans fez que sim com um gesto de cabeça.

      — Foram os corretores... os Williamsons... que escreveram para o capitão, informando que uma certa senhora se interessara pela casa.

      O Inspetor Narracott franziu a testa. Achava aquela história de alugar a casa de Sittaford realmente estranha.

      — Suponho que o Capitão Trevelyan e a Sra. Willett chegaram a se encontrar.

      — Oh, sim. Ela veio ver a casa e ele lhe mostrou todas as dependências da mesma.

      — E tem certeza de que eles não se viram antes?

      — Absoluta, senhor.

      — E eles... — o inspetor fez uma pausa, como se procurasse o modo mais natural de formular a pergunta. — Eles se entenderam bem na ocasião? Agiram cordialmente?

      — A Sra. Willett sim. — Um leve sorriso flutuou nos lábios de Evans. — Toda sorrisos, arriscaria dizer, senhor. Admirou a casa e perguntou ao capitão se planejara a construção da mesma. Excedeu-se em elogios, o senhor sabe como é isso.

      — E o capitão?

      Evans ampliou seu sorriso ao retrucar:

      — Aquela senhora superefusiva e falante não conseguiu romper o gelo do capitão. Ele mostrou-se polido, nada mais. E declinou do convite...

      — Convite? — repetiu o inspetor.

      — Sim, ela disse que o capitão deveria considerar sempre sua aquela casa, e que aparecesse ali quando quisesse, como se estivesse morando ali. Mas ninguém pode fazer tal coisa quando está morando realmente a seis milhas de distância...

      — Ela parecia ansiosa para... Bem, para ver alguma coisa pertencente ao capitão?

      Narracott estava conjeturando sobre o motivo que levara a Sra. Willett a alugar a casa. Seria apenas um meio inicial para fazer amizade com o Capitão Trevelyan? Era esse o jogo verdadeiro? Talvez não lhe tivesse ocorrido pensar que o capitão iria morar mais longe, em Exhampton. Imaginara talvez que ele instalaria num dos pequenos bangalôs de Sittaford, quem sabe compartilhando o do Major Burnaby?

      A resposta de Evans não ajudou muito ao inspetor.

      — Ela é uma senhora muito hospitaleira, sem dúvida. Tem sempre visitas para o chá ou o almoço, diariamente.

      Narracott balançou a cabeça. Não iria saber mais nada por meio de Evans sobre o assunto. Mas resolveu fazer uma visita à Sra. Willett logo que fosse possível. Sua chegada meio insólita a Sittaford merecia ser investigada.

      — Vamos, Pollock, daremos uma olhada lá em cima agora.

      Deixaram Evans na sala de jantar e subiram a escada que levava aos quartos.

      — Bem, o que achou, senhor? — perguntou o sargento em voz baixa, olhando por sobre o ombro na direção da sala de jantar.

      — Parece ter dito a verdade — retrucou o inspetor.

      — Mas nunca se sabe. Esse camarada não é tolo, pelo menos disso tenho certeza.

      — Sim, ele é um tipo inteligente.

      — Sua história parece bastante razoável. Perfeitamente clara e franca. Embora, como já disse, nunca se saiba quando alguém está dizendo toda a verdade — comentou Narracott.

      E com esse pronunciamento, muito característico de seu espírito cauteloso e suspicaz, o inspetor começou a examinar os aposentos do andar de cima.

      Havia ali três quartos e um banheiro. Dois desses quartos estavam desocupados e via-se logo que ninguém entrara nos mesmos nas últimas semanas. O terceiro, pertencente ao Capitão Trevelyan, estava em perfeita ordem. Tudo nos devidos lugares. O Inspetor Narracott moveu-se, abrindo gavetas e armários. Era o quarto de um homem quase fanaticamente metódico e preciso em seus hábitos cotidianos. Narracott terminou sua inspeção e foi ver o banheiro. Ali, também, tudo estava nos lugares certos. Lançou um último olhar à cama, muito bem arrumada, com um pijama dobrado cuidadosamente pronto para ser usado.

      Então ele balançou a cabeça e disse:

      — Nada aqui.

      — Não, tudo parece em perfeita ordem.

      — Há papéis na escrivaninha do escritório. Faria bem em recolhê-los, Pollock. Direi ao Evans que já pode ir. Eu o verei mais tarde na sua casa.

      — Está bem, senhor.

      — O corpo pode ser removido. Gostaria de falar com o Dr. Warren a respeito. Ele mora perto daqui, não?

      — Sim, senhor.

      — No mesmo lado da rua onde fica o Três Coroas ou no outro?

      — No outro, senhor.

      — Então irei ao Hotel Três Coroas primeiro. Cuide de tudo aqui, sargento.

      Pollock desceu à sala de jantar. Pouco depois, Evans retirava-se. O inspetor desceu a seguir, atravessou o vestíbulo e saiu à rua, dirigindo-se ao Hotel Três Coroas.

     

NO TRÊS COROAS

O INSPETOR pretendia conversar com a Sra. Belling, dona do Hotel Três Coroas, antes de falar com o Major Burnaby. A Sra. Belling era gorducha e nervosa, muito falante. Assim, não havia outra solução senão ouvi-la pacientemente até que se pudesse controlar o rumo da conversa e chegar ao ponto desejado.

      — Nunca houve uma noite como esta aqui. — Aí ela entrou finalmente no tema principal, depois de palavras iniciais sobre vários assuntos. — E acho que nenhum de nós em Exhampton poderia pensar que aconteceria tal coisa com aquele pobre e querido cavalheiro. Como já disse uma dúzia de vezes, e repito agora para o senhor, não suporto esses vagabundos nojentos. Ninguém está livre deles. E o capitão não tinha nem um cão de guarda para protegê-lo naquela casa. Os vagabundos costumam fugir deles. Bem, nunca se sabe o que está para acontecer fora das nossas janelas...

      A uma pergunta feita pelo inspetor, aproveitando que a Sra. Belling tomara fôlego, esta respondeu:

      — Sim, Sr. Narracott, o major está aqui. O senhor o encontrará no refeitório tomando o desjejum. Que noite desagradável ele deve ter tido, sem um pijama para vestir ou coisa parecida. Sendo uma mulher viúva, não pude providenciar um pijama para ele, claro. Mas acho que ele nem se preocupou com isso, chocado que ficou com o assassinato de seu melhor amigo. Os dois formavam uma dupla de cavalheiros muito simpáticos, embora o capitão tivesse fama de ser muito apegado ao seu dinheiro. Vejam só, eu sempre achei ser perigoso viver em Sittaford, a milhas e milhas de algum lugar civilizado, e o capitão veio a ser assassinado aqui, em Exhampton... Nesta vida sempre acontece o que a gente menos espera, não é mesmo, Sr. Narracott?

      O inspetor concordou com aquela verdade lapidar e então perguntou:

      — Quem esteve hospedado aqui ontem, Sra. Belling? Algum estranho?

      — Bem... deixe-me pensar. Aqui estavam o Sr. Moresby e o Sr. Jones, dois distintos comerciantes, e também um moço de Londres. Ninguém mais. Nesta época do ano o movimento diminui. Tudo fica muito calmo durante o inverno. Ah, ia-me esquecendo... Esteve aqui um outro jovem cavalheiro... que chegou no último trem. Um moço meio abelhudo, a meu ver. Ele ainda não estivera aqui.

      — Chegou no último trem? — observou o inspetor, pensativo. — Quer dizer o das dez, não? Bem, esse está fora de cogitações. E sobre o outro, o que veio de Londres? Já o conhecia?

      — Nunca o vira antes. Não era um comerciante, isto eu sei. Não consigo me lembrar do seu nome no momento... mas o encontrará no livro de registro. Partiu no primeiro trem desta manhã para Exeter. Às seis e dez. Um rapaz meio estranho. Gostaria de saber o que veio fazer aqui.

      — Ele não disse nada sobre o negócio que o trazia aqui?

      — Nem uma palavra.

      — Viu se chegou a sair do hotel ontem à tarde?

      — Chegou aqui na hora do almoço, saiu por volta de quatro e meia e voltou por perto de seis e vinte.

      — Para onde se dirigia ao sair daqui?

      — Não tenho a menor idéia, senhor. Talvez tivesse ido dar um giro por aí. A neve ainda não começara a cair, mas assim mesmo não era o que se poderia chamar de uma tarde boa para um passeio...

      — Saiu às quatro e meia e voltou por volta de seis e vinte — murmurou o inspetor, refletindo. — Não deixa de ser curioso... Ele fez qualquer referência ao Capitão Trevelyan?

      A Sra. Belling negou taxativamente com um gesto de cabeça.

      — Não, Sr. Narracott, ele não mencionou ninguém daqui. Mostrou-se muito reservado. Um rapaz de aparência simpática... mas muito preocupado, eu achei.

      O inspetor balançou a cabeça e levantou-se para examinar o livro de registro de hóspedes.

      — James Pearson, Londres — disse Narracott. — Bem... isto não diz muito. Acho que terei de fazer averiguações sobre o Sr. James Pearson.

      Então dirigiu-se ao restaurante do hotel para falar com o Major Burnaby.

      O major era a única pessoa ali, no momento. Estava tomando algo que se parecia vagamente com café e mantinha um exemplar do The Times aberto diante dele, escorado por uma cafeteira.

      — Major Burnaby?

      — Sim, sou eu.

      — Sou o Inspetor Narracott, de Exeter.

      — Bom dia, inspetor. Alguma pista?

      — Sim, senhor. Penso que tenho uma pequena pista. Acho que posso dizer isso com segurança.

      — Fico contente em saber — retrucou o major, secamente. Sua atitude denotava uma descrença resignada.

      — Agora, há um ou dois detalhes sobre os quais gostaria de obter um esclarecimento seu, Major Burnaby — disse o inspetor. — E acho que talvez possa satisfazer a minha curiosidade.

      — Farei o possível — limitou-se a retrucar Burnaby.

      — Sabe se o Capitão Trevelyan tinha inimigos pessoais?

      — Era um homem que não tinha um só inimigo neste mundo — respondeu o major, taxativo.

      — E quanto a Evans, o senhor o considera merecedor de confiança?

      — Penso que sim. Afinal, Trevelyan confiava nele.

      — Havia algo de doentio na reação do capitão ao casamento de Evans?

      — Nada disso. Trevelyan mostrou-se apenas aborrecido... não gostava de ver contrariados seus hábitos de vida. Era um velho solteirão, o senhor sabe.

      — Falando de solteirões, chegamos ao outro ponto que me interessa. O Capitão Trevelyan não era casado... mas o senhor sabe se ele fez testamento? E no caso de não tê-lo feito, sabe o senhor quem deveria herdar seus bens?

      — Trevelyan fez testamento — respondeu prontamente Burnaby.

      — Ah..., o senhor está a par do fato.

      — Sim. Ele me pediu para ser o executor testamentário.

      — E sabe como ele fez a distribuição de seus bens?

      — Isso eu não posso dizer.

      — Pelo que soube, ele tinha uma boa situação financeira, não?

      — Trevelyan era rico — replicou Burnaby. — Diria até que muito mais abastado do que iodos nesta cidade poderiam supor.

      — Sabe me dizer algo sobre os parentes do capitão?

      — Ele tinha uma irmã e alguns sobrinhos, presumo. Nunca soube muita coisa sobre eles, mas também nunca ouvi falar que estivessem brigados.

      — E sobre o testamento, sabe a quem foi confiado?

      — A Walters e Kirkwood, advogados aqui em Exhampton. Eles o prepararam para Trevelyan.

      — Nesse caso, sendo o senhor o executor desse testamento, talvez pudesse me acompanhar numa visita a esses advogados. Gostaria de ter, de saída, uma idéia dos termos desse documento.

      Burnaby olhou o inspetor com desconfiança, indagando:

      — Que pretende? Que tem o testamento a ver com o caso?

      O Inspetor Narracott não estava disposto, no entanto, a mostrar seu jogo por enquanto.

      — O caso não é tão simples como nós possamos pensar. No momento, há uma outra pergunta que gostaria de fazer ao senhor. Segundo soube, Major Burnaby, o senhor perguntou ao Dr. Warren se a morte do capitão poderia ter ocorrido às cinco e vinte e cinco, certo?

      — Certo — disse o major, carrancudo.

      — E o que o fez escolher essa hora precisamente, major?

      — Por que não poderia fazê-lo? — retrucou Burnaby, no mesmo tom ríspido.

      — Bem... deve ter tido algum motivo.

      Houve uma longa pausa antes que o Major Burnaby respondesse. O interesse do Inspetor Narracott se acentuou. O major tinha algo em mente que desejava ocultar, isto parecia evidente. Para o inspetor resultava até cômico o embaraço do major.

      — Por que eu não poderia mencionar essa hora ou vinte e cinco para as seis, por exemplo? — retorquiu Burnaby, meio agressivo. — Qual a importância desse detalhe?

      — Talvez tenha, senhor — disse Narracott, em tom apaziguador.

      Não desejava indispor-se com o major naquele momento. Prometeu a si mesmo que até o final daquele dia chegaria à resposta desejada. Assim, abordou outro detalhe.

      — Há uma coisa que me parece curiosa, senhor.

      — Sim?

      — Essa decisão do capitão de alugar sua casa de Sittaford. Não sei o que o senhor pensa disso, mas me parece uma coisa curiosa.

      — Se quer mesmo saber o que penso a respeito, foi algo um bocado estranho.

      — É essa realmente sua opinião?

      — É o que todos pensam.

      — Em Sittaford?

      — Em Sittaford e em Exhampton também. Aquela mulher deve ser louca varrida.

      — Bom, imagino que há gosto para tudo neste mundo — observou o inspetor.

      — Pois é um estranho gosto para uma mulher daquele tipo.

      — Conhece essa Sra. Willett?

      — Sim, eu a conheço. Afinal, eu estava em sua casa quando...

      — Quando o quê? — indagou Narracott ao perceber a interrupção brusca do major.

      — Nada — disse Burnaby.

      O Inspetor Narracott olhou-o atentamente. Intuíra algo na expressão do major que gostaria de ter elucidado. O embaraço evidente do Major Burnaby, seu ar confuso não escaparam à sua observação bem treinada. O que ele estivera a ponto de declarar?

      — Tudo virá à tona em seu devido tempo — disse para si mesmo Narracott. — Agora não é o momento indicado para assediá-lo. — E em tom suave disse com ar de quem não percebe o que se passa com seu interlocutor.

      — Como me dizia, esteve na casa de Sittaford. Há quanto tempo a Sra. Willett está morando lá?

      — Dois meses.

      O major parecia ansioso em apagar o efeito de suas palavras imprudentes. E assim se mostrou mais falante do que lhe era habituai.

      — Trata-se de uma senhora viúva com uma filha, certo?

      — Sim.

      — Ela apresentou algum motivo para sua escolha de moradia?

      — Bem... — e o major esfregou o nariz, incerto. — Ela fala um bocado, é desse tipo de mulher que tem uma beleza natural... meio etérea, como se diz. Mas...

      Burnaby fez uma pausa como se as palavras lhe faltassem. E o Inspetor Narracott veio em sua ajuda:

      — A escolha que ela fez não lhe pareceu natural?

      — Bom, é isso o que eu penso. Ela é uma mulher muito elegante. Veste-se com esmero... e a filha é uma jovem inteligente e bonita. Seria muito natural vê-las hospedadas no Ritz ou no Claridge, ou em qualquer outro grande hotel deste mundo. O senhor sabe o que estou querendo dizer.

      Narracott concordou, perguntando a seguir:

      — Elas não se mostram reservadas? O senhor não diria que estão... tentando esconder-se?

      O Major Burnaby moveu a cabeça numa firme negativa.

      — Oh, nada disso. Elas são muito sociáveis, diria até demais. O senhor sabe, num lugar pequeno como Sittaford, não se organizam reuniões marcadas de antemão, e quando os convites chovem sobre você, torna-se um bocado embaraçoso. Elas são excepcionalmente gentis, muito hospitaleiras, mas um pouco além da conta para os padrões ingleses.

      — Mais ao estilo colonial — observou o inspetor.

      — Sim, suponho que é isso.

      — O senhor tem algum motivo para supor que elas e o Capitão Trevelyan já se conheciam?

      — Claro que não se conheciam.

      — Tem certeza?

      — Se não fosse assim, Joe ter-me-ia contado.

      — E não acha que o motivo da vinda dessas duas pessoas a Sittaford não seria o de travar conhecimento com o capitão?

      Evidentemente era uma idéia que ainda não ocorrera ao major. Ele a analisou por alguns instantes antes de retrucar:

      — Bem, eu nunca pensei nesse detalhe. Elas o cercaram de muitas atenções, é certo. Não que conseguissem impressionar Joe de modo algum. Mas, não. Acho que agiam assim sem uma motivação deliberada. É sua maneira de ser. Cordiais em demasia, como os membros das colônias inglesas costumam ser, como o senhor deve saber — completou o ex-oficial, com aquele típico orgulho insular.

      — Entendo. Agora, falemos da casa em si. Foi o Capitão Trevelyan quem a construiu, não?

      — Sim.

      — E ninguém mais residiu ali então? Quero dizer, ela nunca fora alugada antes?

      — Nunca.

      — Então não parece lícito pensarmos que pudesse haver algo naquela casa que se constituísse numa atração à parte. Isto é curioso... Não parece ter algo a ver com o caso, mas o fato é que há aí uma estranha coincidência que me deixa intrigado. Quem é a proprietária da casa que o capitão alugou aqui?

      — A Srta. Larpent. Uma mulher de meia-idade, que costuma passar o inverno numa pensão em Cheltenham. Todos os anos, nesta estação, ela fecha sua casa aqui, mas às vezes a aluga a algum pretendente, o que não é comum.

      O inspetor balançou a cabeça, meio desencorajado. Não colhera nenhuma informação positiva. Então perguntou:

      — Os Williamsons foram os intermediários na questão do aluguel?

      — Sim.

      — Têm escritório aqui?

      — Sim. Junto ao de Walters e Kirkwood.

      — Ah! Então, se não for inconveniente para o major, poderemos passar lá a caminho do escritório dos advogados.

      — Agora não será possível. Não encontrará Kirkwood em seu escritório antes das dez. Sabe como esses advogados são.

      — Então, podemos ir andando devagar?

      O major, que já concluíra minutos antes seu desjejum, assentiu e levantou-se.

     

O TESTAMENTO

UM MOÇO de olhar perspicaz e solícito levantou-se ao ver os dois homens entrarem no escritório dos Srs. Williamsons.

      — Bom dia, Major Burnaby.

      — Bom dia.

      — Uma coisa terrível, não? — disse o rapaz, puxando conversa. — Há anos que não acontece tal fato em Exhampton.

      Havia um toque de prazer na entonação do jovem que fez o major franzir a testa.

      — Este é o Inspetor Narracott — disse Burnaby.

      — Oh! sim — exclamou o rapaz, com uma agradável excitação.

      — Desejo algumas informações que o senhor certamente me poderá prestar — observou o inspetor. — Segundo soube, foram os senhores que trataram do aluguel da casa de Sittaford.

      — Para a Sra. Willett? Sim, nós cuidamos do assunto.

      — Então pode me dar, por gentileza, detalhes mais amplos de como se processaram os entendimentos. A viúva veio aqui pessoalmente ou se comunicou com os senhores por carta?

      — Por carta. Ela nos escreveu, deixe-me ver... — Abriu uma gaveta e consultou uma ficha. — Sim, foi do Hotel Carlton, em Londres.

      — E ela mencionou a casa de Sittaford?

      — Não, simplesmente expressou seu desejo de alugar uma casa para a temporada de inverno. Especificou que devia ser em Dartmoor e ter, pelo menos, oito cômodos. Não teria importância se a casa ficasse próxima da estação ferroviária ou do centro da cidade.

      — E a casa de Sittaford estava para alugar?

      — Não, o capitão não era nosso cliente. Mas na realidade era a única nas imediações que preenchia as exigências feitas pela Sra. Willett. Esta senhora frisou em sua carta que estaria disposta a pagar até doze guinéus, e nestas circunstâncias achei que valia a pena escrever para o Capitão Trevelyan, perguntando-lhe se lhe interessaria alugar sua casa. Ele respondeu afirmativamente, e nós redigimos o contrato.

      — Sem que a Sra. Willett visse antes a casa?

      — Ela concordou em alugá-la sem vê-la primeiro, e assinou o contrato que lhe enviamos. Então apareceu aqui certo dia, foi a Sittaford, conversou com o Capitão Trevelyan, acertou detalhes sobre a remoção de pratarias e roupas, e viu a casa toda.

      — E ela mostrou-se satisfeita?

      — Veio aqui e nos disse que ficara encantada com a casa.

      — E o que o senhor pensou sobre o assunto? — perguntou o Inspetor Narracott, observando o outro com muita atenção.

      O jovem corretor fez um gesto com os ombros, retrucando:

      — No ramo imobiliário aprendemos a não nos surpreender com essas coisas.

      Após essa breve observação pseudofilosófica, o inspetor agradeceu ao corretor por sua colaboração.

      — Ora, não foi nada. Tive prazer em atendê-lo, acredite.

      E acompanhou os dois visitantes até a porta.

      Como o Major Burnaby dissera, o escritório dos Srs. Walters e Kirkwood ficava ao lado daquele dos agentes imobiliários. Ao entrarem, foram informados de que o Sr. Kirkwood acabara de chegar. E lhes indicaram a sala de trabalho do advogado.

      O Sr. Kirkwood era idoso e tinha uma expressão bondosa. Nascera em Exhampton e sucedera a seu pai e ao avô na direção da firma. Levantou-se, assumindo uma expressão de pesar ao apertar a mão do major.

      — Bom dia, Major Burnaby. Foi algo profundamente chocante. Pobre Trevelyan.

      Olhou em seguida, com ar interrogativo para Narracott, e o Major Burnaby apressou-se a explicar a presença ali do inspetor, com uma boa economia de palavras, como lhe era peculiar.

      — Está encarregado desse caso, Inspetor Narracott?

      — Sim, Sr. Kirkwood. E seguindo o curso de minhas investigações, vim solicitar uma certa informação do senhor.

      — Sentir-me-ei feliz em facilitar-lhe qualquer informação se isso estiver ao meu alcance — retrucou o advogado.

      — Trata-se do testamento feito pelo falecido Capitão Trevelyan. Fui informado de que esse testamento está guardado neste escritório.

      — Exatamente.

      — Ele foi feito há quanto tempo?

      — Há cinco ou seis anos. No momento não posso precisar a data com exatidão.

      — Ah! Mas estou muito interessado em conhecer o mais breve possível o conteúdo deste documento, Sr. Kirkwood. Pode ter um significado muito revelador nesse caso.

      — Realmente? — exclamou o advogado. — É mesmo! Eu não teria pensado nesse detalhe, mas, naturalmente, o senhor conhece bem o seu ofício, inspetor. Bem... — ele lançou um rápido olhar ao acompanhante de Narracott. — O Major Burnaby e eu mesmo funcionamos como executores testamentários. Se ele não tem nenhuma objeção...

      — Nenhuma — atalhou o major, taxativamente.

      — Então, não vejo nenhum motivo para deixar de atender seu pedido, inspetor.

      Kirkwood disse algumas palavras pelo telefone que estava sobre a sua mesa de trabalho. Dois minutos depois, um escrevente entrava na sala e deixava em mãos do advogado um envelope lacrado. Assim que o empregado retirou-se da sala, o Sr. Kirkwood abriu o envelope usando uma espátula de osso e retirou de dentro um papel. Pelo visto, o documento era extenso. Pigarreou e então começou a ler:

       Eu, Joseph Arthur Thevelyan, em minha casa de Sittaford, condado de Devon, declaro ser este testamento a expressão de minha derradeira vontade anunciada neste trigésimo dia do mês de agosto de 1926.

       1) Escolho como executores e testemunhas deste documento John Edward Burnaby, residente no Chalé n° 1 de Sittaford, e Frederick Kirkwood, de Exhampton.

       2) Lego a Robert Henry Evans, que me tem servido lealmente há longo tempo, a soma de cem libras, livres de impostos, para seu próprio uso e benefício absolutamente pessoal, desde que fique comprovado estar o mesmo a meu serviço à época de minha morte, não podendo deixar esta casa sem ter recebido o que lhe é devido.

       3) Deixo para o já citado John Edward Burnaby, como pendor de nossa amizade e de minha afeição e respeito por ele, todos os meus troféus esportivos, incluindo minha coleção de cabeças e peles de animais caçados, como também todas e quaisquer taças e outros prêmios recebidos por mim em competições esportivas.

       4) Confio todas as minhas propriedades reais e pessoais, não indicadas neste testamento, em qualquer cláusula anexa, aos meus depositários sob custódia e que os meus depositários deverão vender, alugar e converter as mesmas em dinheiro.

       5) Meus depositários poderão fazer uso do dinheiro assim obtido para custear meu funeral, gastos com o testamento e dívidas porventura decorrentes destes legados, não expressos em qualquer das cláusulas anexas a este documento.

       6) Meus depositários deverão guardar o restante deste dinheiro ou dos investimentos feitos no tempo devido, cuidando de dividir o mesmo em quatro partes iguais.

       7) Dessa divisão, já mencionada, meus depositários deverão separar uma quarta parte, guardando-a igualmente sob custódia a fim de entregá-la à minha irmã Jennifer Gardner para seu uso exclusivo e pessoal.

       E meus depositários deverão manter sob sua guarda as restantes três parcelas iguais para entregar uma quarta parte igual à anterior a cada um dos três filhos de minha falecida irmã, Mary Pearson, para uso exclusivo dos mesmos.

       Em razão do que, eu, Joseph Arthur Trevelyan, aponho minha assinatura a este documento firmado no dia e ano escritos acima.

       Assinado pelo acima mencionado Testador como sua última vontade, estando nós presentes e que, a seu pedido, subscrevemos o referido documento na qualidade de testemunhas.

      Finda a leitura dos termos do testamento, este foi entregue ao inspetor pelo Sr. Kirkwood.

      — Foi testemunhado também por dois funcionários deste escritório — observou o advogado.

      O Inspetor Narracott lançou um olhar ao documento, com ar pensativo, dizendo então:

      — Aqui se lê “Minha falecida irmã Mary Pearson”. Pode-me dizer algo sobre a Sra. Pearson, Sr. Kirkwood?

      — Sei muito pouco a respeito. Ela morreu há cerca de dez anos, ao que estou inteirado. Seu marido, um corretor da Bolsa, já tinha falecido. Pelo pouco que sei, ela nunca visitou o Capitão Trevelyan aqui.

      — “Pearson” — repetiu o inspetor. Então acrescentou: — Mais uma coisa. O montante exato dos bens do Capitão Trevelyan não é mencionado neste documento. A quanto acha que vai a sua fortuna pessoal?

      — Isso é difícil de dizer com exatidão — retrucou o Sr. Kirkwood, divertindo-se intimamente, como costuma acontecer com os advogados, em tornar difícil a resposta a uma pergunta simples. — Trata-se de uma questão de bens pessoais ou reais. Além da casa de Sittaford, o Capitão Trevelyan possuía algumas propriedades nas imediações de Plymouth, e os vários investimentos que fazia de tempos em tempos sofreram uma flutuação de valor.

      — Eu só queria ter uma noção aproximada — observou Narracott.

      — Eu não gostaria de cometer um engano e...

      — Apenas uma estimativa que me servisse de orientação. Por exemplo, umas vinte mil libras estariam perto do montante exato?

      — Vinte mil libras! Meu caro senhor, a fortuna pessoal do Capitão Trevelyan pode ser calculada em, no mínimo, quatro vezes mais do que acaba de mencionar. Oitenta ou mesmo noventa mil libras seria um cálculo mais fiel à realidade.

      — Eu já lhe dissera que Trevelyan era um homem rico — disse Burnaby ao inspetor.

      O Inspetor Narracott levantou-se, dizendo:

      — Muito obrigado pelas informações que me forneceu, Sr. Kirkwood.

      — Quer dizer que lhe serviram de ajuda, não?

      Era evidente a curiosidade do advogado, mas o Inspetor Narracott não estava disposto a satisfazê-la no momento. Assim, retrucou de modo vago:

      — Num caso como este temos que levar tudo em conta. Mas, a propósito, o senhor tem os nomes e endereços dessa Jennifer Gardner e da família Pearson?

      — Nada sei sobre os Pearson. Quanto à Sra. Gardner reside em Laurels, Waldon Road, em Exeter.

      O inspetor anotou o endereço em seu caderninho.

      — O testamento a beneficia também. Sabe, por acaso, quantos são os filhos da falecida Sra. Pearson?

      — Três, suponho. Duas garotas e um rapaz... talvez dois rapazes e uma menina... não me lembro ao certo.

      O inspetor assentiu, guardou seu caderninho de anotações e, agradecendo mais uma vez ao advogado, saiu em companhia do Major Burnaby.

      Já na rua, o inspetor voltou-se de repente para Burnaby e o encarou, dizendo em tom mais incisivo:

      — E agora, major, gostaria de saber a verdade acerca daquela história das cinco e vinte cinco.

      O rosto do Major Burnaby acusou irritação.

      — Já lhe disse que...

      — Sei, não deseja falar sobre isso — atalhou Narracott. — Mas o que está fazendo, major, é ocultar uma informação. Devia ter algo em mente ao mencionar exatamente aquela hora ao Dr. Warren... e eu acho que tenho uma idéia sobre isso.

      — Então, se é assim, por que me pergunta a respeito? — resmungou o major.

      — Tenho a impressão de que o senhor estava ciente de que certa pessoa tinha um encontro marcado com o capitão àquela hora aproximadamente. Estou certo?

      O Major Burnaby olhou-o surpreso.

      — Nada disso — murmurou. — Não se tratava de uma coisa assim.

      — Acalme-se, major. Que sabe sobre o Sr. James Pearson?

      — James Pearson? Quem é ele? Refere-se a um dos sobrinhos de Trevelyan?

      — Presumo que deva ser um dos sobrinhos do capitão. Ele tinha um chamado James, não?

      — Não faço a mínima idéia. Trevelyan tinha sobrinhos, é claro. Mas como se chamam, isto eu ignoro completamente.

      — O jovem senhor a quem me refiro estava hospedado no Três Coroas na noite passada. O senhor provavelmente o viu ali.

      — Eu não o vi, nem sei quem é essa pessoa — retrucou Burnaby, irritado. — Não poderia reconhecê-lo de modo algum... Nunca vi nenhum dos sobrinhos de Trevelyan.

      — Mas sabe se o Capitão Trevelyan aguardava a visita de um sobrinho ontem ao cair da tarde?

      — Não sei disso — quase gritou o major.

      Na rua, vários transeuntes voltaram-se para olhá-lo.

      — Que diabo, o senhor não reconhece a verdade! Nada sei sobre nenhum encontro. Os sobrinhos de Trevelyan podem estar até na Conchinchina, nada sei sobre eles.

      O Inspetor Narracott sentiu-se meio desconcertado. A veemente negativa do major era sincera demais para que se pudesse pensar que mentia.

      — Então por que essa história das cinco e vinte cinco?

      — Oh! Bom..., acho que será melhor contar-lhe logo... — o major pigarreou, buscando disfarçar seu embaraço. — Mas vou logo avisando: trata-se de algo terrivelmente tolo! Uma brincadeira de mau gosto, inspetor. Como se alguém inteligente pudesse acreditar em tal absurdo!

      O Inspetor Narracott olhou o major mais surpreso do que antes. Burnaby parecia cada vez mais inibido e envergonhado consigo mesmo.

      — Sabe como são certas coisas, inspetor. Temos que participar de certos passatempos para agradar a uma senhora amável... Naturalmente, eu nunca imaginei que fosse acontecer aquilo durante...

      — Durante o quê, Major Burnaby?

      — Chamam isso de “levitação de mesa”.

      — Levitação de mesa? — repetiu o inspetor, curioso.

      Fosse o que fosse o que estava imaginando, Narracott nunca esperara por tal resposta. O major passou a explicar o que acontecera na casa de Sittaford. Em tom hesitante, e introduzindo observações suas sobre a ocorrência, ele descreveu as incidências daquela sessão pseudo-espírita da tarde anterior. E referiu-se à mensagem que lhe fora dirigida.

      — Quer dizer, Major Burnaby, que a mesa se manifestou a respeito de Trevelyan e informou ao senhor que ele seria assassinado?

      O major enxugou a testa suada e retrucou:

      — Sim, foi o que aconteceu. Naturalmente, eu não acredito nessas coisas. Não, não creio nisso — frisou, com ar envergonhado. — Bem... era sexta-feira e pensei, apesar de tudo, ser aconselhável ir ver se tudo estava bem com meu amigo.

      O inspetor ficou pensando nas dificuldades representadas por uma longa caminhada até Exhampton, com a estrada coberta de neve e a perspectiva desanimadora de nova nevasca. E deduziu que, para ir ver o amigo naquelas condições climatéricas adversas, o major devia estar profundamente impressionado com a mensagem do tal espírito. Narracott procurou analisar o fato. Não deixava de ser uma coisa estranha, bem curiosa mesmo. O tipo da coisa que não se pode explicar de modo satisfatório. Mas devia haver algo por trás dessa manifestação “espiritual”. E era o primeiro caso desse tipo, referendado por alguém, que ele já enfrentara.

      Mas embora tal fato explicasse a atitude do Major Burnaby, o inspetor não o encarava como revelador do caso que estava investigando, no sentido prático, bem entendido. Ele tinha que lidar com o mundo material e não com o psíquico.

      Sua função era buscar uma pista concreta do assassino. E para tanto não necessitava de nenhuma orientação do mundo dos espíritos.

     

SR. CHARLES ENDERBY

Ao OLHAR SEU RELÓGIO, o inspetor percebeu que ainda daria para pegar o trem para Exeter, caso se apressasse. Estava ansioso para se entrevistar o mais cedo possível com a irmã do falecido Capitão Trevelyan e obter dela os endereços dos outros membros da família. Assim, despedindo-se apressadamente do Major Burnaby, correu para a estação. O major dirigiu-se para o Três Coroas. Mal se acercara do alpendre quando foi abordado por um jovem de ar animado, com uma cabeleira muito lustrosa, e uma expressão infantil.

      — Major Burnaby? — murmurou o rapaz.

      — Sim.

      — Do chalé n.° 1 de Sittaford?

      — Sim.

      — Eu represento o Daily Wire — disse o moço — e... Não pôde prosseguir, pois o major, dentro da tradição rígida da velha escola militar, o interrompeu bruscamente.

      — Nada tenho a dizer — frisou, com uma entonação ríspida. — Conheço bem você e os de sua classe. Não usam de decência e nem de veracidade em seu trabalho. Vasculham um caso de assassinato como abutres em torno de carniça, mas eu lhe assevero, rapaz, não obterá nenhuma informação da minha parte. Nem uma palavra. Nenhuma história para seu maldito jornal. Se deseja saber alguma coisa, dirija-se à delegacia, e tenha a decência de deixar os amigos do morto em paz.

      O jovem repórter não se deu por vencido. Sorriu mais encorajado que antes. E explicou:

      — Permita dizer-lhe, senhor, que está equivocado a respeito da minha presença aqui. Nada sei sobre esse caso de assassinato.

      Essa não era, estritamente falando, a verdade. Afinal, ninguém em Exhampton poderia ignorar um acontecimento que abalara a quietude costumeira daquela pequena cidade.

      — Estou aqui em nome do Daily Wire — disse apressadamente o rapaz — para lhe entregar este cheque de cinco mil libras e cumprimentá-lo por ter acertado sozinho nosso concurso de resultados do futebol.

      O Major Burnaby sentiu-se envergonhado de sua atitude ríspida inicial, mas o rapaz já se punha a falar de novo:

      — Se não me engano, o senhor deve ter recebido ontem uma carta do meu jornal dando-lhe as boas novas.

      — Carta? — murmurou o major. — Meu caro jovem, ignora, por acaso, que a estrada de Sittaford se acha sob alguns centímetros de neve? Que oportunidade você pensa que eu teria de receber correspondência regular nesses últimos dias?

      — Mas sem dúvida, o senhor deve ter visto seu nome anunciado como vencedor no Daily Wire desta manhã.

      — Não — retrucou Burnaby. — Não cheguei a ler o jornal esta manhã.

      — Ah! Claro que não pôde — observou o rapaz. — Com esse caso tão chocante... Soube que o homem assassinado era amigo seu.

      — Meu melhor amigo — frisou o major.

      — Um rude golpe — murmurou o rapaz, desviando deliberadamente o olhar de Burnaby. Então retirou do bolso um pequeno papel dobrado de cor lilás e o estendeu ao major com um cumprimento adicional.

      — Com os parabéns do Daily Wire — frisou.

      O Major Burnaby recolheu o cheque e disse a única coisa cabível naquelas circunstâncias.

      — Toma um drinque, senhor...

      — Enderby, Charles Enderby, senhor. Estive aqui a noite passada — apressou-se a explicar. — Fiz perguntas sobre o modo de se chegar a Sittaford. Fazemos questão de entregar o cheque pessoalmente aos ganhadores de nossa loteria esportiva. E sempre publicamos uma pequena entrevista. Interessa aos nossos leitores. Bem, todos aqui me disseram da impossibilidade de ir entrevistá-lo, pois a neve caía sem parar e a estrada se achava bloqueada. Foi então que, para sorte minha, soube que o senhor já se achava aqui, hospedado no Hotel Três Coroas. — Sorriu antes de completar: — Não tive nenhuma dificuldade em encontrá-lo. Todo mundo parece conhecer todo mundo neste recanto da Inglaterra.

      — Que vai beber? — indagou o major, já no interior do hotel.

      — Para mim, cerveja — disse Enderby.

      O major pediu duas cervejas.

      — Este lugar parece transtornado com o crime — comentou Enderby. — Pelo jeito, trata-se de um caso realmente misterioso.

      Burnaby limitou-se a um resmungo. Vivia agora um pequeno dilema. Sua opinião a respeito dos jornalistas permanecia a mesma, mas um homem que acaba de entregar a alguém um cheque de cinco mil libras merece certa consideração. Não se pode, simplesmente, mandá-lo passear.

      — Ele não tinha inimigos? — indagou o jovem repórter.

      — Não — disse o major.

      — Mas eu ouvi dizer que a polícia não acredita na hipótese de roubo — insinuou Enderby.

      — Como soube disso?

      Mas o Sr. Enderby não revelou sua fonte de informação.

      — Soube que foi o senhor quem encontrou o corpo.

      — Sim.

      — Deve ter sido um choque terrível.

      A conversa prosseguiu. O Major Burnaby ainda estava decidido a não dar nenhuma informação sobre o crime, mas se sentia envolvido pela argúcia e manhas do jovem repórter. Este fazia observações com as quais o major era forçado a concordar ou não, propiciando, assim, a informação desejada. Mas o rapaz tinha um modo de falar tão amável que esse tipo de sondagem não aborrecia de todo ao Major Burnaby, que até chegou a simpatizar com o astucioso repórter.

      Por fim, o Sr. Enderby levantou-se e disse que precisava passar na agência dos Correios.

      — Agradeceria se o senhor me desse um recibo pelo cheque.

      O major acercou-se da escrivaninha de seu quarto, preparou o recibo e entregou-o a Enderby.

      — Ótimo — disse o repórter, guardando o papel no bolso.

      — Suponho que estará de volta a Londres ainda hoje?

      — Oh, não! — retrucou Enderby. — Desejo tirar umas fotos de seu chalé em Sittaford, para a entrevista que já mencionei. Talvez focalizando o senhor no jardim, cuidando de roseiras, ou dando de comer a leitões, ou qualquer coisa que aprecie fazer como passatempo. O senhor não imagina como nossos leitores apreciam esse tipo de coisa. E também gostaria de uma palavrinha sua sobre o que pretende fazer com o dinheiro do prêmio. Isto é de praxe nesses concursos, o senhor sabe. Não faz idéia de como os leitores ficam desapontados quando um vencedor deixa de responder a essa pergunta.

      — Entendo, mas ouça..., é praticamente impossível ir a Sittaford com este tempo. A nevasca este ano é muito forte. Nos últimos três dias nenhum veículo pôde transitar pela estrada, e talvez nos próximos três a situação não se modifique.

      — Eu sei — retrucou o jovem repórter — isto é um transtorno. Bem, bem, temos que nos resignar a bater pernas aqui em Exhampton. Mas somos muito bem tratados nesta pensão. Já vou indo, senhor, nos veremos mais tarde.

      Enderby caminhou pela rua principal de Exhampton e logo chegava aos correios. Enviou um telegrama a seu jornal, em Londres, informando que, graças a um golpe de sorte, estaria apto a enviar matéria palpitante e exclusiva acerca do assassinato ocorrido em Exhampton.

      Pensando em qual seria seu próximo passo, resolveu entrevistar o criado do falecido Capitão Trevelyan, o Evans, cujo nome o Major Burnaby, desprevenido, deixara escapar no decorrer da conversa mantida há pouco.

      Umas poucas perguntas levaram-no logo ao n.° 85 da Rua Fore. O criado particular do homem assassinado era agora uma pessoa importante. Todos se mostravam dispostos e interessados em indicar onde ele morava.

      Enderby deu umas batidas rápidas na porta. Esta foi aberta por um homem com uma aparência tão reveladora de sua condição de ex-marinheiro, que Enderby não teve dúvida de estar diante do homem certo.

      — Sr. Evans, não? — disse o repórter, com ar jovial. — Acabo de falar com o Major Burnaby.

      — Ah... — Evans hesitou um instante. — Pode entrar, senhor.

      Enderby não se fez de rogado. Uma mulher ainda jovem, gorducha, de cabelo negro e faces rosadas parou o que fazia no momento e ficou olhando do fundo da sala para o visitante. Enderby viu que se tratava da recém-casada Sra. Evans.

      — Uma coisa triste o que aconteceu a seu patrão — disse Enderby.

      — Foi muito chocante, na verdade, senhor.

      — Quem você pensa que o matou? — perguntou Enderby, com o ar ingênuo de quem faz uma pergunta ocasional.

      — Um desses vagabundos de estrada, eu imagino — disse Evans.

      — Oh, não, meu caro. Essa hipótese já foi afastada.

      — Como?

      — Foi apenas uma cortina de fumaça, compreende? A polícia deu logo com a coisa.

      — Quem lhe contou isso, senhor?

      A verdadeira informante de Enderby fora a arrumadeira do Hotel Três Coroas, cuja irmã era casada com o Comissário Graves, mas replicou:

      — Obtive uma informação na delegacia. Sim, essa história de assalto foi só para despistar.

      — Quem eles pensam então que fez isso? — perguntou a Sra. Evans, acercando-se do visitante. Tinha um olhar assustado e curioso.

      — Agora, Rebecca, vá cuidar do que tem para fazer — disse seu marido.

      — Essa polícia daqui é um bocado tola — disse a Sra. Evans. — Não imagina o tempo que vão levar para pôr as mãos no homem certo. — E lançou um rápido olhar a Enderby.

      — O senhor trabalha para a polícia? — indagou Evans.

      — Eu? Oh, não. Trabalho num jornal, o Daily Wire. Vim aqui ver o Major Burnaby. Ele acaba de ganhar o prêmio que oferecemos na nossa loteria do futebol.

      — O quê? — exclamou Evans. — Com os diabos, então essas coisas são honestas, pra valer.

      — E achava que não eram? — perguntou Enderby, sorrindo.

      — Bem, há muita corrupção neste mundo, senhor. — Evans estava meio confuso, sentindo que sua observação fora indelicada. — É que tenho ouvido falar que há um bocado de trapaça nesses concursos. O falecido capitão costumava dizer que os prêmios nunca vão para a pessoa certa. Eis por que ele às vezes usava meu nome nas respostas que enviava para concursos.

      E com uma certa ingenuidade aludiu às três novelas que o Capitão Trevelyan ganhara certa vez.

      Enderby alimentou a conversa. Viu que poderia extrair de Evans uma boa história para seu jornal. O criado fiel, com o toque típico do velho lobo do mar. Ficou a pensar por que a Sra. Evans se mostrava tão nervosa, mas acabou creditando tal nervosismo à natural ignorância das pessoas da sua condição.

      — Descubra o pulha que cometeu esse crime — disse Evans. — Pelo que ouço dizer, os jornais podem ajudar um bocado na captura de criminosos.

      — Foi um ladrão que fez isso — disse a Sra. Evans. — Garanto que foi.

      — Naturalmente, trata-se de um gatuno — repetiu Evans. — Sim, porque ninguém aqui de Exhampton desejaria fazer mal ao capitão.

      Enderby levantou-se, dizendo:

      — Bem, já me vou. Depois, se for possível, voltaremos a conversar mais um pouco. Se o capitão ganhou três novelas de prêmio num concurso do Daily Wire, meu jornal deve encarar a busca desse assassino como uma questão pessoal.

      — Não podia dizer algo mais justo e amável, senhor. Sim, é um belo gesto de sua parte.

      Desejando ao casal um bom dia, Charles Enderby saiu à rua.

      “Quem terá cometido esse crime”, murmurou Enderby, pensativo. “Não penso que fosse nosso amigo Evans. Talvez tenha sido mesmo um ladrão comum. Muito decepcionante, se foi assim... E não parece haver nenhuma mulher envolvida no caso, o que é uma pena. Se não houver algum dado novo e sugestivo, bem cedo este caso esfriará. E minha sorte até aqui não me servirá de nada. E é a primeira vez que me vejo no cenário de uma história real de crime. Tenho que aproveitar para fazer um bom trabalho. Charles, meu rapaz, sua chance de aparecer está aí. Trate de agarrá-la bem. Meu amigo major logo logo comerá na minha mão como um pássaro dócil, se me mostrar respeitoso com ele e chamá-lo sempre de “senhor”. Não me surpreenderia que ele tenha participado da rebelião na Índia... Não, naturalmente que não é tão velho assim... Mas na Guerra Sul-Africana ele deve ter combatido. Vou perguntar-lhe sobre isso, talvez saiba tocar na sua vaidade e conquistar de vez sua simpatia.”

      E com essa resolução em mente, o Sr. Enderby retornou ao Três Coroas.

     

OS LAURÉIS

A VIAGEM DE TREM de Exhampton a Exeter levava meia hora. Cinco para o meio-dia o Inspetor Narracott já estava batendo à porta da casa da Sra. Gardner.

      “Os Lauréis” era o nome dado àquela residência em mau estado de conservação. Precisava, pelo visto, de uma nova e urgente pintura. O jardim estava mal cuidado, com o capim crescendo livremente, e o portão rangia nos gonzos.

      — A situação financeira dos moradores daqui não parece nada boa — murmurou para si mesmo Narracott. — Parecem estar passando um aperto.

      Narracott era muito equilibrado em seus julgamentos, nunca se precipitava, mas eram mínimas as probabilidades de que o capitão tivesse sido morto por um inimigo pessoal. Por outro lado, quatro pessoas, como já tomara conhecimento, estavam em condições de obter uma boa soma em dinheiro com a morte do capitão. Assim, cabia investigar apuradamente as atividades dessas pessoas. O registro no livro do hotel de Exhampton daquele estranho no dia do crime era um dado interessante, mas apesar disso, o sobrenome Pearson era muito comum. O Inspetor Narracott não se mostrava desejoso de tomar qualquer decisão precipitada, mas de manter sua mente aberta sondando o terreno e, isto sim, efetuar o mais rapidamente possível as investigações preliminares.

      Uma criada de aparência meio desleixada veio abrir a porta.

      — Boa tarde — disse o inspetor. — Desejo falar com a Sra. Gardner, por favor. O assunto que me traz aqui se relaciona com a morte de seu irmão, o Capitão Trevelyan, de Exhampton.

      Deliberadamente, Narracott não exibiu suas credenciais à criada. O simples fato de ser um policial, como já sabia por experiência própria, iria perturbá-la e prender-lhe a língua.

      — Sua patroa já soube da morte do irmão? — perguntou o inspetor, de modo casual, assim que a empregada o fez entrar no vestíbulo.

      — Sim, ela recebeu um telegrama do advogado, o Sr. Kirkwood.

      — Perfeito — disse o Inspetor Narracott.

      A criada o introduziu na sala de visitas que, a exemplo do exterior daquela casa, estava necessitando de reparos e indicava falta de dinheiro para fazê-los, mas não carecia de um certo encanto que o inspetor pôde captar sem ser capaz de descobrir o porquê dessa impressão.

      — Deve ter sido um choque para sua patroa o que aconteceu — observou Narracott.

      A jovem empregada mostrou-se meio reticente, como o inspetor pôde notar. E a resposta também lhe pareceu vaga:

      — Ela o via raramente.

      — Feche a porta e venha cá — disse então o inspetor.

      Estava ansioso para testar o efeito de um interrogatório de surpresa.

      — No telegrama se dizia que o capitão fora assassinado?

      — Assassinado!

      Os olhos da criadinha se arregalaram, numa mescla de horror e excitação.

      — Diz que ele foi assassinado?

      — Ah! Vejo que ainda não sabia disso. O Sr. Kirkwood não quis dar essa notícia tão cruamente à sua patroa... Mas, diga-me, minha filha... A propósito, como se chama?

      — Beatrice, senhor.

      — Bem, Beatrice, o caso deve sair nos jornais desta noite.

      — Bem, eu nunca pensei... — murmurou Beatrice. — Assassinado. Que coisa horrível, não é mesmo? Esmagaram a cabeça dele, deram-lhe um tiro, ou que foi?

      O inspetor satisfez a curiosidade por detalhes revelada pela jovem e então acrescentou de modo incidental:

      — Pensei que sua patroa tivesse ido a Exhampton ontem à tarde. Mas suponho que com o mau tempo talvez tenha desistido...

      — Não sei do que está falando, senhor. Acho que deve estar enganado — retrucou Beatrice. — A patroa saiu à tarde para fazer umas compras e depois foi ao cinema.

      — E a que horas ela voltou?

      — Por volta das seis.

      Sendo assim, a Sra. Gardner estava fora de suspeitas.

      — Sei pouca coisa sobre a família Gardner — prosseguiu Narracott, no mesmo tom informal. — A Sra. Gardner é viúva?

      — Oh, não, senhor. O patrão mora aqui.

      — E qual a sua profissão?

      — Ele não faz nada — disse Beatrice, explicando logo a seguir: — Não pode. É um inválido.

      — Está inválido? Oh, sinto muito. Não sabia desse detalhe.

      — Ele não pode andar. Passa os dias inteiros na cama. Uma enfermeira cuida dele. Não é toda moça que agüenta ficar dentro de uma casa o tempo todo, sempre trazendo chá com torradas ou sanduíches para uma enfermeira e um doente, como eu faço.

      — Deve ser difícil realmente — concordou o inspetor, com ar penalizado. — Agora, vá dizer, por favor, à sua patroa que estou aqui da parte do Sr. Kirkwood, de Exhampton.

      Beatrice obedeceu, e poucos minutos depois a porta da sala de visitas era aberta e uma mulher alta, de ar imponente, apareceu diante do inspetor. Tinha um rosto pouco comum, testa ampla sobre as sobrancelhas espessas e cabelo preto com uns fios grisalhos nas têmporas, que ela penteava para trás. Olhou de modo interrogativo para Narracott, indagando:

      — O senhor vem a mando do Sr. Kirkwood de Exhampton?

      — Não é bem assim, Sra. Gardner. Tive que me expressar assim para a sua empregada. Seu irmão, o Capitão Trevelyan, foi assassinado ontem à tarde e eu sou o Inspetor Narracott da Divisão de Homicídios, encarregado do caso.

      Fossem quais fossem seus sentimentos pessoais, o certo é que a Sra. Gardner tinha um excelente controle sobre seus nervos. Seus olhos se estreitaram um pouco, o ritmo de sua respiração se acelerou ligeiramente e foi só. Indicou uma cadeira ao inspetor e sentou-se a seguir, comentando:

      — Assassinado! Que coisa estranha! Quem neste mundo quereria matar Joe?

      — Eis o que estou ansioso para descobrir, Sra. Gardner.

      — Naturalmente. Espero ser capaz de ajudá-lo de algum modo, mas tenho minhas dúvidas. Meu irmão e eu nos vimos muito pouco nestes últimos dez anos. Nada sei sobre seus amigos ou de quaisquer compromissos que tenha assumido.

      — Desculpe-me a pergunta, Sra. Gardner, mas estava brigada com seu irmão?

      — Não..., nós não brigamos. Acho que a palavra estremecidos diria melhor da situação entre nós. Não desejo entrar em detalhes sobre a nossa vida familiar, mas meu irmão se desgostou com o meu casamento. Irmãos, a meu ver, raramente aprovam a escolha feita por suas irmãs, mas também é normal nesses casos, imagino, que dissimulem melhor tal desaprovação do que ocorreu ao meu irmão Joe. Ele, como talvez o senhor já saiba, possuía uma considerável fortuna que herdou de uma tia. Tanto eu como minha irmã nos casamos com homens pobres. Quando meu marido ficou inválido após a guerra, devido ao impacto de uma granada, uma pequena ajuda financeira teria significado um desafogo para nós..., me ajudaria a custear o tratamento caro que meu marido deveria ter e que, infelizmente, não foi possível. E meu irmão, naturalmente, estava em condições de prestar essa ajuda. Mas quando lhe pedi um empréstimo, ele me negou. Desde então nos vimos raras vezes, bem espaçadas, e dificilmente nos correspondíamos.

      A Sra. Gardner acabara de fazer uma declaração sucinta e clara.

      Esta Sra. Gardner tem uma personalidade curiosa, pensou o Inspetor Narracott. De qualquer modo, não podia confiar inteiramente em seu relato. Ela parecia estranhamente serena, e sua descrição dos fatos era natural em demasia. Também notara que, apesar de sua surpresa inicial, ela não pedira esclarecimentos sobre a morte de seu irmão. Este detalhe não deixou de impressionar o inspetor.

      — Não sei se deseja saber com exatidão o que ocorreu... em Exhampton — começou a dizer Narracott.

      Ela franziu as sobrancelhas, retrucando:

      — E precisaria saber desses detalhes? Meu irmão foi morto... sem ter sofrido muito, eu espero.

      — Sem agonia alguma, posso-lhe assegurar.

      — Então, por favor, me poupe certos detalhes revoltantes.

      — Isto não é natural — pensou o inspetor. — Positivamente não é uma atitude natural. Parece insensível.

      Como se a Sra. Gardner tivesse lido os pensamentos de Narracott, explicou:

      — Imagino que o senhor esteja pensando que sou insensível, mas... Tenho ouvido tantas coisas horríveis, muitas histórias envolvendo mortes violentas a que meu marido assistiu durante a guerra... — ela estremeceu levemente. — Acho que o senhor entenderia melhor minha atitude se conhecesse certas circunstâncias.

      — Claro que sim, Sra. Gardner. O que me trouxe aqui foi apenas o desejo de conhecer alguns detalhes sobre a família de seu irmão.

      — Ah, sim?

      — Pode-me dizer quantos são os parentes vivos ainda de seu irmão além da senhora?

      — Parentes próximos somente os Pearsons. Os filhos de minha irmã Mary.

      — E quais são?

      — James, Sylvia e Brian.

      — Diga-me algo sobre o James.

      — É o mais velho. Trabalha numa empresa de seguros.

      — Que idade ele tem?

      — Vinte e oito.

      — É casado?

      — Não, mas está noivo... de uma jovem muito bonita, segundo soube. Não a conheço ainda.

      — E onde ele mora?

      — Na parte sul da cidade. Rua Cromwell, 21.

      O inspetor anotou em seu caderninho.

      — E os outros, Sra. Gardner?

      — Bem, depois vem Sylvia. Casada com Martin Dering. Talvez o senhor tenha lido um livro dele. É um escritor de certo sucesso.

      — Pois não. E seu endereço, qual é?

      — “O Refúgio”, na estrada de Surrey, Wimbledon.

      — E o Brian?

      — Bem, é o mais moço... mas está fora, na Austrália. Não sei ao certo seu endereço lá, mas seus irmãos sabem.

      — Obrigado, Sra. Gardner. Apenas por uma questão de rotina, poderia dizer-me o que fez na tarde de ontem?

      Ela o olhou surpresa.

      — Bem, deixe-me ver... Fiz algumas compras... Sim, então fui a um cinema. Voltei para casa por volta das seis e estive deitada em meu quarto até a hora do jantar, pois em vez de me distrair o filme me deu uma dor de cabeça.

      — Obrigado, Sra. Gardner.

      — Alguma coisa mais?

      — Não, creio que não tenho mais nenhuma pergunta para lhe fazer. Agora irei entrar em contato com seus dois sobrinhos. Não sei se o Sr. Kirkwood já a informou a respeito, mas a senhora e os três jovens Pearsons são conjuntamente herdeiros da fortuna pessoal do Capitão Trevelyan.

      O rosto da Sra. Gardner ganhou novo colorido. E ela disse em tom natural, calmo:

      — Isto será magnífico. A realidade tem sido muito dura, bastante difícil, sempre protelando certas coisas, economizando daqui e dali.

      Ela ergueu-se assim que uma voz de homem muito queixosa veio lá de cima.

      — Jennifer, Jennifer, preciso de você.

      — Desculpe-me — ela disse ao inspetor.

      Mal ela abriu a porta da sala, aquele apelo se fez mais forte, o tom de voz mais imperioso.

      — Jennifer, onde está? Eu preciso de você, Jennifer.

      O Inspetor Narracott acompanhara a Sra. Gardner até a porta da sala de visitas. Parou no hall e pôde vê-la subir as escadas.

      — Já estou indo, querido — disse a Sra. Gardner.

      Uma enfermeira profissional que já ia descendo a escada, parou e se afastou para o lado a fim de deixar Jennifer passar.

      — Por favor, vá ver o Sr. Gardner, ele está muito nervoso. A senhora sempre consegue acalmá-lo.

      O Inspetor Narracott cortou o caminho da enfermeira, deliberadamente assim que ela chegou ao pé da escada.

      — Poderia falar-lhe um momento? — indagou Narracott. — Minha conversa com a Sra. Gardner foi interrompida.

      A enfermeira entrou muito desenvolta na sala de visitas. Foi logo desabafando, enquanto ajustava a bem engomada touca de enfermeira de hospital:

      — A notícia sobre o assassinato perturbou o meu paciente. Aquela tola da Beatrice foi logo entrando e anunciando o fato aos quatro ventos.

      — Sinto muito — disse o inspetor. — Acho que a culpa foi minha.

      — Oh, naturalmente que não. O senhor não podia contar com isso — retrucou a enfermeira, gentilmente.

      — O Sr. Gardner está muito doente?

      — O caso dele é muito triste — disse a enfermeira. — Naturalmente, não corre perigo de vida. Mas devido ao choque nervoso que sofreu durante a guerra não pode movimentar os braços e as pernas.

      — Ele não terá tido nenhuma crise nervosa ou algo desse tipo ontem à tarde? — indagou de repente o inspetor.

      — Que eu saiba, não — retrucou a enfermeira, meio intrigada.

      — Esteve ao lado dele a tarde toda?

      — Eu pretendia ficar, mas... Bem, na verdade, o Capitão Gardner mostrou-se muito interessado em que eu lhe comprasse dois livros. Esquecera de pedir à sua esposa, que saíra há pouco. Assim, para contentá-lo, resolvi sair. Antes ele me pedira que escolhesse uma ou duas pequenas lembranças para ele... Na realidade, eram presentes para sua esposa. — A enfermeira sorriu antes de prosseguir. — Foi muito amável de sua parte. E me disse que tomasse chá, por conta dele, no Boots. Numa das pequenas brincadeiras que costuma fazer, observou que as enfermeiras nunca gostam de perder seu chá das cinco... Não queria me demorar na rua, mas com as lojas cheias nesta época próxima do Natal, e uma coisa e outra, só sei que já passava das seis quando voltei. Mas o capitão estava bem. Disse-me que dormira a maior parte do tempo em que eu estivera fazendo compras.

      — A Sra. Gardner não voltara ainda?

      — Sim, acho que ela estava descansando em seu quarto.

      — Ela é muito dedicada a seu marido, não?

      — Ela o adora. Creio que essa mulher seria capaz de fazer tudo por ele. Muito comovente a sua atitude, e bem diferente de alguns dos casos que já cuidei. Porque, justamente no mês passado...

      Mas o Inspetor Narracott soube atalhar com muita habilidade a narrativa do último caso registrado nas colunas sociais do mês anterior... Olhou para o seu relógio e exclamou:

      — Bom Deus! Acho que vou perder meu trem. A estação não deve ficar longe daqui, ou estou enganado?

      — Se o senhor se refere a de S. David, fica a três minutos daqui, indo a pé. Ou é sobre a da Rua Queen que está perguntando?

      — Tenho que ir agora — disse o inspetor. — Por favor, diga à Sra. Gardner que lamento não me despedir dela pessoalmente. Muito prazer em conhecê-la e ter tido essa pequena conversa com a senhorita.

      A enfermeira empertigou-se ligeiramente num cumprimento amável.

      — Um homem realmente simpático — ela disse para si mesma assim que a porta da frente fechou-se atrás do inspetor. — Tem uma boa aparência, sem dúvida. E uns modos muito educados.

      E após soltar um leve suspiro, a enfermeira subiu a escada para atender a seu paciente.

     

A FAMÍLIA PEARSON

A PRÓXIMA VISITA do Inspetor Narracott foi ao seu chefe, Superintendente Maxwell, a quem informou sobre o andamento das investigações.

      Após ouvir o relato, Maxwell disse, com ar pensativo:

      — Pelo que acaba de me contar e pelo destaque que vem merecendo da imprensa, este caso promete ser complicado.

      — Concordo com o senhor.

      — Temos que agir com prudência. Não podemos cometer nenhum engano. Mas também acho que você está no rumo certo. Deve ver esse James Pearson o mais cedo possível... e saber onde ele esteve ontem à tarde. Como você mesmo frisou, trata-se de um sobrenome bastante comum, mas o fato é que há a coincidência do primeiro nome, também. Naturalmente, que o fato de ter assinado o seu próprio nome no livro de registro do hotel indica que não houve qualquer premeditação da parte de tal pessoa. Do contrário teria sido uma rematada tolice. A coisa me dá a impressão de uma briga e um conseqüente golpe violento de um dos contendores. Se esse Pearson é o suspeito, ele deve ter tido conhecimento da morte de seu tio naquela noite. E se assim foi, por que partiu no trem das seis da manhã sem dizer nada a ninguém? Não, isto soa mal. Isso se admitirmos que a coisa toda não é uma simples coincidência de nomes. Você deve apurar esse detalhe o mais rapidamente possível.

      — É o que pretendo fazer, senhor. Acho melhor tomar o trem das 13h45min para Exeter. Em outra ocasião terei uma conversa com essa Sra. Willett que alugou a casa do capitão. Há alguma coisa de estranho nesse fato. Mas agora não poderei ir a Sittaford, as estradas para lá estão impraticáveis por causa da nevasca. E, por outro lado, essa senhora não pode ter nenhuma conexão com o crime. Ela e sua filha na hora em que ocorreu o assassinato estavam... Bem, elas faziam “levitação de mesa”. Uma espécie de evocação dos espíritos, mas na forma de entretenimento. Mas acontece que houve algo estranho durante o “passatempo”...

      E o inspetor contou a história que ouvira do Major Burnaby.

      — Isso é uma incoerência — protestou o superintendente. —Acha que o velho cavalheiro contou a verdade? É o tipo da história que costuma ser contada por esses crentes em fantasmas e coisas desse gênero.

      — Suponho que ele dizia a verdade, senhor — observou Narracott, com um meio sorriso. — Tive que me empenhar bastante para arrancar dele essa versão. O major não é um crente em assombrações ou ocultismo, exatamente o tipo oposto... Um velho soldado que encara essas coisas como um absurdo.

      Maxwell concordou com seu subordinado, mas acentuou:

      — Bem, não deixa de ser estranho, mas isso não nos leva a nada.

      — Então pegarei o trem das 13h45min para Londres.

      Assim que chegou à cidade, Narracott dirigiu-se à Rua Cromwell. Bateu à porta do n.° 21. Foi informado então que o Sr. Pearson estava no escritório. Só voltaria, com certeza, às sete horas.

      Narracott simulou não se preocupar em absoluto com o contratempo, observando:

      — Voltarei mais tarde, se puder. Trata-se de um assunto sem importância.

      Em vez de passar na Companhia de Seguros onde James Pearson trabalhava, decidiu ir a Wimbledon, ter uma conversa com a Sra. Sylvia Pearson, esposa do escritor Martin Dering.

      Na casa chamada de “O Refúgio” não se notava qualquer sinal de abandono ou pobreza. “Nova e pretensiosa” foi como a catalogou mentalmente o inspetor.

      A Sra. Dering estava em casa. Uma empregada de ar petulante, vestida com um uniforme lilás, o introduziu numa sala de espera mobiliada em excesso. Narracott deu-lhe seu cartão para que o apresentasse à sua patroa.

      A Sra. Dering o atendeu quase que no mesmo momento, segurando ainda o cartão.

      — Suponho que me veio falar a respeito do pobre tio Joseph — ela foi logo dizendo. — Foi chocante... realmente chocante! Eu também vivo muito nervosa por causa desses ladrões. Tive que colocar dois cadeados extras na porta dos fundos nesta última semana, e novos trincos de segurança nas janelas.

      Como soubera através da Sra. Gardner, Sylvia Dering tinha somente vinte e cinco anos, mas dava a impressão de já passar dos trinta. Era baixa e magra, com aparência anêmica, uma expressão inquieta e atormentada. Sua voz tinha aquele toque meio queixoso que é, talvez, o som mais entediante que a voz humana pode conter. Ainda não permitindo ao inspetor falar, ela prosseguiu:

      — Se há alguma coisa que possa fazer para ajudá-lo, claro que terei o maior prazer em atendê-lo, mas meu contato com o tio Joseph foi quase nenhum. Ele não era um homem muito simpático... Estou certa de que não o foi. E nem uma pessoa a quem se pudesse recorrer numa dificuldade qualquer, sempre exigente e crítico. Não era o tipo de homem que soubesse aquilatar o valor da literatura. O sucesso... o verdadeiro êxito nem sempre é avaliado em termos de dinheiro, inspetor.

      Por fim ela fez uma pausa e Narracott, para quem aquelas observações tinham propiciado certas conjecturas, teve sua oportunidade de falar.

      — Soube da tragédia muito depressa, Sra. Dering,

      — Tia Jennifer me telefonou.

      — Entendo.

      — Mas imagino que o caso já deva estar nos jornais. Terrível, não é mesmo?

      — Pelo que deduzi de suas palavras, não via seu tio há anos.

      — Eu o vi duas vezes apenas desde que me casei. Na segunda dessas ocasiões, ele se mostrou realmente rude com Martin. Naturalmente, ele era sob vários aspectos um bocado prosaico... devotado apenas aos esportes. Não tinha nenhum apreço, como frisei há pouco, pela literatura.

      “O marido desta senhora recorreu ao capitão para um empréstimo e este lhe foi recusado”, pensou Narracott, imaginando o que ocorrera.

      — Sra. Dering, apenas por uma questão de rotina, poderia dizer-me quais foram suas atividades na tarde de ontem?

      — Minhas atividades? Que estranha maneira de se expressar, inspetor. Eu joguei bridge a maior parte da tarde e depois uma amiga veio visitar-me e passou a noite comigo, aqui, pois meu marido estava ausente.

      — Ele saiu então... Algum lugar fora da cidade?

      — Não. Esteve num jantar de literatos — explicou a Sra. Dering, enfatizando a importância do evento. — Ele almoçara com um editor americano e marcaram o jantar para a noite de ontem.

      — Entendo.

      Tudo parecia claro e bem coerente. Sendo assim, Narracott abreviou a entrevista, perguntando:

      — Seu irmão mais moço, ao que soube, está na Austrália.

      — Sim.

      — E tem seu endereço?

      — Oh, sim, posso ver para o senhor se assim desejar... É um nome bem peculiar... Não me recordo perfeitamente, mas fica na Nova Gales do Sul.

      — E quanto ao seu irmão mais velho, Sra. Dering?

      — Jim?

      — Sim. Eu desejo entrar em contato com ele.

      A Sra. Dering apressou-se a dar-lhe o endereço solicitado, o mesmo que a Sra. Gardner já lhe fornecera.

      Então, intuindo que nada mais havia para ser dito ou perguntado ali, o inspetor despediu-se e saiu.

      Consultando o relógio, percebeu que até chegar de volta ao centro da cidade já deveriam ser sete horas, quando esperava encontrar o Sr. James Pearson em casa.

      A mesma pessoa que o atendera horas antes, uma senhora de meia-idade, abriu a porta do n.° 21. Sim, o Sr. Pearson já voltara. Estava no segundo andar, caso o cavalheiro desejasse subir para vê-lo.

      A mulher subiu a escada, precedendo a Narracott, bateu numa porta e murmurou numa voz humilde:

      — Aquele senhor deseja vê-lo, Sr. Pearson. — Então, afastando-se ligeiramente, fez o inspetor entrar.

      Um rapaz num traje de noite estava parado no meio do quarto. Era bem apessoado, bonito até, se não se levasse em conta os lábios muito delicados e o olhar de expressão indecisa. Parecia muito preocupado e com ar de ter dormido pouco ultimamente.

      Olhou interrogativamente para o inspetor assim que este se aproximou do meio do aposento.

      — Sou o Inspetor Narracott..., mas não fique assustado.

      Com um grito abafado o jovem deixou-se cair numa cadeira, fincou os cotovelos na mesinha à sua frente e escondendo a cabeça entre as mãos, murmurou:

      — Oh, meu Deus! Chegou a hora.

      Depois de um minuto ou dois ele descobriu a cabeça e disse:

      — Bem, por que não termina logo com isto, inspetor?

      Narracott assumiu um ar fleumático e meio simplório, ao retrucar:

      — Estou investigando a morte de seu tio, o Capitão Joseph Trevelyan. Se me permite, gostaria de saber se tem algo a me dizer.

      O jovem Pearson ergueu-se lentamente e disse com uma entonação surda, contida:

      — O senhor veio... me prender?

      — Não senhor, não vim aqui para isso. Caso contrário, já lhe teria dado a costumeira voz de prisão. Simplesmente desejo saber o que fez na tarde de ontem. Poderá ou não responder as minhas perguntas se assim decidir.

      — E se não responder... isso servirá de acusação contra mim. Oh, sim, eu conheço esses pequenos recursos que vocês usam. Descobriu então que eu estive lá ontem?

      — O senhor assinou seu nome no livro de registro do hotel.

      — Ah, e suponho ser inútil negá-lo. Pois bem, estive lá, sim. E por que não poderia?...

      — Por que, não é mesmo? — o inspetor aproveitou a deixa.

      — Eu fui lá ver meu tio.

      — Marcou encontro?

      — O que quer dizer com essa história de encontro?

      — Seu tio sabia que o senhor iria visitá-lo?

      — Eu... Não... não o avisei. Foi um desejo repentino.

      — Algum motivo o levou a fazer essa visita?

      — Não, não..., por que deveria haver? Eu..., eu apenas quis ir ver meu tio.

      — Perfeitamente, Sr. Pearson. E o viu?

      Houve uma pausa, bem longa aliás. A indecisão se estampara no rosto do rapaz. O Inspetor Narracott sentiu uma espécie de pena enquanto o observava. Será que James Pearson não percebia que essa vacilação equivalia a uma admissão do fato?

      Por fim, Jim Pearson suspirou fundo e disse:

      — Acho que seria melhor contar tudo que houve. Sim, eu vi meu tio. Ao chegar na estação, indaguei como poderia ir a Sittaford. Informaram-me ser impossível naquele dia. As estradas estavam bloqueadas pela neve. Aí eu frisei tratar-se de algo urgente.

      — Urgente? — repetiu o inspetor, em tom suave.

      — Eu... Eu desejava muito ver meu tio.

      — É o que parece, senhor. Prossiga.

      — O encarregado da Estação de Exhampton voltou a balançar a cabeça, salientando ser impraticável a viagem. Aí toquei no nome de meu tio e imediatamente ele se animou informando-me que o capitão estava residindo atualmente em Exhampton. E me disse onde ficava a casa que meu tio alugara.

      — E a que horas foi isso?

      — Por volta de uma hora, acho eu. Fui então ao Três Coroas..., aluguei um quarto ali e comi qualquer coisa no hotel mesmo. Depois é que fui ver meu tio.

      — Logo depois de almoçar?

      — Não, um pouco depois.

      — Que horas eram?

      — Bem, eu não posso dizer com certeza.

      — Três e meia? Quatro? Ou quatro e meia?

      — Eu... eu... — Pearson mostrou-se mais indeciso e gaguejante do que até ali. — Não acho que já fosse tão tarde assim.

      — A Sra. Belling, a proprietária do hotel, declarou que o senhor saiu às quatro e meia.

      — Foi mesmo? Eu... penso que ela se enganou. Não poderia ser tão tarde.

      — Que aconteceu depois?

      — Encontrei meu tio em casa, conversei com ele e voltei para o hotel.

      — Como fez para entrar na casa de seu tio?

      — Toquei a campainha e ele mesmo veio abrir a porta.

      — E ele não se surpreendeu ao vê-lo?

      — Sim... sim. Ficou bastante surpreso.

      — Quanto tempo ficou conversando com seu tio, Sr. Pearson?

      — Quinze ou vinte minutos. Mas ouça, ele estava perfeitamente bem quando o deixei. Perfeitamente bem. Eu juro.

      — A que hora, exatamente, o senhor se despediu de seu tio?

      O rapaz desviou o olhar do inspetor. De novo, a hesitação refletiu-se em seu tom de voz.

      — Não sei ao certo.

      — Acho que sabe, Sr. Pearson.

      A entonação segura do inspetor fez o efeito desejado. Jim respondeu em voz baixa:

      — Eram cinco e quinze.

      — Você retornou ao Três Coroas às quinze para seis. Comumente se levaria apenas sete ou oito minutos da casa de seu tio ao hotel.

      — Eu não voltei logo. Dei um giro pela cidade.

      — Com aquele tempo ruim... na neve!

      — Não estava nevando ainda. A neve só começou a cair mais tarde.

      — Entendo. E sobre que conversaram seu tio e o senhor?

      — Oh! Nada de especial. Eu... apenas queria falar com aquele velho, vê-lo de perto, esse tipo de coisa familiar, o senhor sabe.

      “É um mau mentiroso”, pensou Narracott. “Eu podia fazê-lo melhor se fosse ele.” E em voz alta, declarou:

      — Muito bem, Sr. Pearson. Agora, posso saber por que, ao ser inteirado da morte de seu tio, o senhor partiu de Exhampton sem declinar seu parentesco com o homem assassinado? Pelo que me disse, apenas perguntou ao encarregado da estação sobre o capitão.

      — Eu estava assustado — retrucou Jim Pearson, com franqueza. — Ouvi dizer que ele fora morto quase à mesma hora em que eu o visitara. O choque causado pela notícia e tudo mais dá para assustar alguém, não acha? Assim, eu resolvi sair de lá pelo primeiro trem da manhã. Sim, eu sei que foi tolice minha fazer tal coisa. Mas o senhor sabe o que acontece a uma pessoa que se vê confusa. Acho que qualquer outro, em meu lugar, se sentiria perturbado.

      — E é só isso que tem a dizer, Sr. Pearson?

      — Sim..., sim, naturalmente.

      — Então, talvez não tenha nenhum inconveniente em vir comigo à chefatura de polícia onde fará uma declaração que lhe será tomada por escrito. Depois de lê-la, o senhor a assinará.

      — É... tudo?

      — Acho, Sr. Pearson, que talvez se torne necessário detê-lo até a conclusão do inquérito.

      — Oh, meu Deus! — exclamou Jim Pearson. — Será que ninguém me pode ajudar?

      Nesse exato momento a porta foi aberta e uma moça entrou no quarto.

      Como o Inspetor Narracott observou de imediato, a recém-chegada era uma jovem mulher de um tipo bem especial. Não tinha traços marcantes de beleza, mas era dona de um rosto incomum, destes que uma vez vistos dificilmente são esquecidos. Nela se percebia um toque de equilíbrio, de savoir faire, uma evidente obstinação e um fascínio acentuado.

      — Oh, Jim! — ela exclamou. — Que aconteceu?

      — Está tudo acabado, Emily — retrucou o jovem. — Eles pensam que eu matei meu tio.

      — Quem pensa tal coisa? — indagou a moça.

      Jim fez um gesto indicando seu visitante. — Este é o Inspetor Narracott — disse o rapaz, e acrescentou como uma tímida apresentação: — Esta é a Srta. Emily Trefusis.

      — Ah! — fez Emily, observando o inspetor com seus olhos cor-de-avelã, penetrantes. Então disse prontamente: — Jim agiu como alguém tolo e assustado. Mas é incapaz de matar alguém.

      O inspetor não retrucou.

      — Calculo — observou Emily, voltando-se para Jim — que você tenha feito declarações precipitadas e imprudentes. Mas se lesse os jornais com mais atenção do que eu saberia que nunca se deve falar com um policial a menos que ao nosso lado esteja um advogado para orientar-nos e levantar objeções às perguntas formuladas. Que está acontecendo afinal? O senhor vai levá-lo preso, Inspetor Narracott?

      Narracott explicou em termos técnicos e de maneira clara o que estava fazendo.

      — Emily — Jim quase gritou — você não acredita que eu tenha feito tal coisa, não é? Você não pode crer nisso, pode?

      — Não, querido — respondeu Emily, em tom carinhoso. — Claro que não. — E acrescentou com suavidade e ar pensativo: — Você não teria coragem para tanto.

      — Eu me sinto como se não tivesse um só amigo neste mundo — lamentou-se Jim.

      — Mas tem — disse Emily. — Você pode contar comigo. Levante a cabeça, Jim, e olhe para o anel brilhando no terceiro dedo de minha mão esquerda. É o símbolo da noiva fiel. Agora, vá com o inspetor e deixe o resto por minha conta.

      Jim ergueu-se, ainda com uma expressão confusa. Seu sobretudo estava sobre uma cadeira e ele o vestiu. O Inspetor Narracott estendeu-lhe um chapéu que se achava sobre a escrivaninha. Quando já se acercavam da porta, o inspetor disse cortesmente:

      — Boa noite, Srta. Trefusis.

      — Au revoir, inspetor — disse Emily, suavemente.

      Se Narracott conhecesse melhor a Srta. Emily Trefusis, teria percebido que naquelas simples palavras escondia-se um desafio.

     

EMILY ENTRA EM AÇÃO

O EXAME CADAVÉRICO do Capitão Trevelyan foi efetuado segunda-feira pela manhã. Levando-se em conta o interesse despertado pelo caso, foi um grande desapontamento para o público que o resultado do exame pericial tivesse sua divulgação protelada por alguns dias. De sábado para segunda-feira Exhampton ganhara notoriedade.

      A informação de que o sobrinho do morto fora preso por envolvimento no crime fez com que o caso ganhasse as manchetes dos jornais em vez das pequenas notas publicadas inicialmente. Na segunda-feira, vários repórteres já tinham chegado a Exhampton. Charles Enderby teve motivos mais uma vez para se congratular consigo mesmo pela vantagem que obtivera graças ao feliz acaso de ter vindo entregar aquele prêmio da loteria esportiva ao Major Burnaby.

      Era intenção do jovem jornalista agarrar-se ao major como se fosse uma sanguessuga, e sob o pretexto de fotografá-lo em seu chalé, obter informações exclusivas dos moradores do conjunto de Sittaford sobre seu relacionamento com o homem assassinado.

      Mas tais planos não impediram o Sr. Enderby de prestar atenção à atraente jovem que almoçava numa pequena mesa, no restaurante do Três Coroas. Enderby ficou a imaginar o que ela estaria fazendo em Exhampton. A moça vestia-se com uma elegância discreta, mas com uma graça provocante, e não parecia ser parente do falecido, e muito menos ainda poderia ser catalogada como uma simples curiosa.

      “Quanto tempo ela ficará aqui?”, pensou Enderby. “É uma pena que eu precise ir a Sittaford esta tarde. Seria uma dupla sorte. Bem, mas imagino que não se possa conciliar o trabalho com o prazer.”

      Mas logo após o almoço, o Sr. Enderby teria uma agradável surpresa. Estava no alpendre do Hotel Três Coroas observando a neve que se ia derretendo na rua, e desfrutando dos tímidos raios do sol de inverno, quando ouviu alguém chamá-lo, com uma voz extremamente encantadora.

      — Por favor..., poderia dizer-me se há alguma coisa interessante para se ver em Exhampton?

      Charles Enderby aproveitou a deixa prontamente.

      — Há um castelo, creio. Não é muito... mas é o que há por aqui. Talvez me permita mostrar-lhe o caminho até lá.

      — Seria um gesto muito gentil de sua parte — disse a jovem. — Se realmente não está muito ocupado...

      Charles Enderby apressou-se a afugentar a idéia de estar ocupado com algo. E logo se punha a caminhar ao lado da atraente jovem.

      — Seu nome é Enderby, não?

      — Sim. Mas como soube?

      — A Sra. Belling me falou.

      — Oh, sim.

      — Meu nome é Emily Trefusis. Desejo sua ajuda, Sr. Enderby.

      — Ajudar você? — perguntou o repórter, meio surpreso. — Mas sim, certamente. Mas em quê?

      — Já irá saber. Eu sou noiva de Jim Pearson.

      — Oh! — exclamou Enderby, antevendo suas possibilidades jornalísticas através daquele novo contato.

      — E a polícia acaba de prendê-lo. Sei que ficará preso. Sr. Enderby, eu sei que Jim não fez aquilo. E estou aqui para provar sua inocência. Mas preciso contar com a ajuda de alguém. Nada poderia fazer sem um homem me ajudando. Os homens sempre estão mais a par das coisas, e têm muitos meios de obter informações que são simplesmente impraticáveis para as mulheres.

      — Bem... Sim, suponho que seja assim na realidade — disse Enderby, envaidecido.

      — Estive observando todos esses repórteres esta manhã — prosseguiu Emily. — Acho que a maioria deles tinha uma aparência tola. E acabei dando preferência ao senhor, por julgá-lo o único entre eles realmente inteligente.

      — Oh, eu não diria isso. Não penso que seja verdade — disse Enderby, agora mais envaidecido do que antes.

      — O que quero propor-lhe é uma espécie de parceria — esclareceu Emily Trefusis. — Penso que será vantajoso para ambas as partes. Há certas coisas que eu desejo investigar... para chegar a uma conclusão definitiva. E o senhor, na qualidade de jornalista, poderá ajudar-me. Eu quero...

      Emily fez uma pausa. Na verdade o que queria era transformar o Sr. Enderby numa espécie de detetive particular a seu serviço. Para ir onde ela lhe indicasse, fazer as perguntas que ela própria gostaria de formular e ser como um servidor seu, de modo geral. Mas tinha consciência da necessidade de disfarçar essa intenção com palavras lisonjeiras e amáveis. Na realidade, ela seria o patrão, no caso, mas precisaria de tato para persuadir o Sr. Enderby.

      — Eu desejo — disse por fim Emily — sentir que posso depender de você.

      Ela tinha uma voz adorável, cristalina e cativante. Mal ela pronunciou a última frase, o Sr. Enderby teve a íntima convicção de que aquela adorável e desprotegida jovem podia depender dele até debaixo d’água.

      — Será uma coisa fantástica — disse Enderby, e segurando-lhe a mão delicada ele a apertou efusivamente. — Mas você sabe — acrescentou, ao recordar-se da sua condição de jornalista — não sou dono inteiramente de meu tempo. Quero dizer, tenho de ir aonde me mandam a serviço do jornal.

      — Sim, eu sei. Já pensei nisso, e aonde você for eu estarei por perto. No momento sou o que vocês, jornalistas, chamam de “furo”, certo? Você poderia produzir uma série de pequenas entrevistas diárias comigo, fazendo-me dizer algumas coisas que julga interessantes para seus leitores. Por exemplo: Esta é a noiva de Jim Pearson. Uma jovem que crê apaixonadamente na sua inocência. Lembranças de sua infância que ela nos confidencia. Claro que eu nada sei sobre a infância dele, mas isso não vem ao caso — concluiu Emily.

      — Eu acho você maravilhosa. Realmente maravilhosa — disse Enderby.

      — E depois — disse Emily, aproveitando a vantagem já obtida — tenho todas as facilidades em me aproximar dos parentes de Jim. Posso apresentar você como sendo um amigo meu em lugares onde, possivelmente, lhe fechariam as portas.

      — Não que já não conheça tal situação muito bem — disse Enderby, com certa mágoa, ao lembrar-se de certos revezes no passado.

      Agora, as perspectivas que entrevia eram as mais animadoras possíveis. Ele tivera sorte em toda a linha ao vir a Exhampton. De saída, a oportunidade que tivera ao entregar o prêmio da loteria esportiva a um grande amigo do homem assassinado, e agora...

      — Trato feito — disse ele, entusiasmado.

      — Ótimo — falou Emily, com o ar de quem fecha um negócio importante. — E agora, qual será nosso primeiro passo?

      — Eu irei a Sittaford esta tarde.

      E Enderby explicou seu oportuno encontro com o Major Burnaby e as vantagens que entrevia com esse relacionamento.

      — Afinal, acho que ele é um desses velhos retrógrados que considera venenosos todos os jornalistas. Mas não se pode, evidentemente, jogar isso no rosto de quem acaba de nos entregar cinco mil libras, não acha?

      — Seria bastante deselegante — concordou Emily. — Bem, se vai a Sittaford eu irei com você.

      — Ótimo — disse Enderby. — Só não sei se haverá algum lugar lá para nos hospedarmos. Pelo que soube, em Sittaford só há alguns poucos bangalôs no velho estilo e onde moram pessoas como esse Burnaby.

      — Nós encontraremos acomodações por lá — declarou Emily. — Eu sempre descubro algo.

      Enderby acreditava nas palavras da jovem. Emily era o tipo de pessoa que costuma superar brilhantemente todos os obstáculos.

      Eles estavam agora perto do velho castelo em ruínas, mas sem prestar-lhe atenção, sentaram-se numa pedra sob o pálido sol invernal e Emily passou a expor seu plano com mais detalhes.

      — Estou encarando esse assunto, Sr. Enderby, da maneira menos sentimental possível, como se fosse um negócio. Devemos partir do princípio de que Jim não cometeu o crime. Não falo assim simplesmente porque amo meu noivo, ou por acreditar em seu bom caráter e outras coisas parecidas. Trata-se realmente de uma... convicção. Saiba que desde os dezesseis anos eu tenho cuidado de mim mesma praticamente sozinha. Nunca me dei com muitas mulheres e na verdade conheço bem pouco sobre elas, mas quanto a homens eu sei um bocado. E a menos que uma garota saiba avaliar corretamente a personalidade de um homem, e conheça como lidar com ele, jamais se dará bem. E eu tenho sabido lidar com eles. Trabalho como modelo na Butique Lucie, e lhe asseguro, Sr. Enderby, chegar onde estou foi uma epopéia.

      A essa altura Enderby era todo ouvidos.

      — Bom, como estava dizendo, posso aquilatar o valor de um homem e sua personalidade, com certa precisão. Jim tem uma personalidade vulnerável em muitos sentidos. Não estou certa — prosseguiu Emily, esquecendo por um momento seu papel de admiradora dos homens fortes — de não ser por isso que me apeguei a ele. Refiro-me ao sentimento que me levaria a orientá-lo de certo modo e procurar fazer dele alguém. Há um bom número de coisas que, falo mesmo de delitos, eu imagino Jim capaz de ser levado a cometer, mas nunca um assassinato. Ele simplesmente não poderia segurar um objeto contundente e golpear a nuca de um homem idoso. Ele poderia, por hipótese, dar um tiro e errar, ferindo a vítima apenas. Ele é... uma criatura gentil, Sr. Enderby. Não gostaria nem mesmo de matar um marimbondo. Ele tenta afugentá-los para que voem janela afora sem machucá-los e às vezes recebe uma ferroada. Contudo, não convém me estender nesse assunto. O senhor tem que acreditar em mim e partir da pressuposição de que Jim é inocente.

      — Acha que alguém procura deliberadamente lançar a culpa desse crime sobre ele? — perguntou Charles Enderby, assumindo de novo sua condição de repórter.

      — Não penso assim. Afinal ninguém sabia que Jim viria ver seu tio. Naturalmente que não se pode ter plena certeza disso, mas nesse caso acho que seria uma simples coincidência e uma má sorte, sem dúvida. O que temos de apurar é se havia alguém com um motivo para matar o Capitão Trevelyan. A polícia está convicta de que não se trata do que eles chamam um “trabalho de fora”, isto é, não foi um simples roubo. O fecho da janela foi quebrado de modo proposital.

      — A polícia lhe relatou tudo isto?

      — Praticamente, sim — foi a resposta de Emily.

      — Que quer dizer com “praticamente”?

      — A camareira do hotel daqui sabe de tudo que a polícia local pensa a respeito, pois a irmã dela é casada com o Comissário Graves.

      — Muito bem, então o serviço não foi feito por uma pessoa estranha e sim por alguém da intimidade da vítima.

      — Exatamente. A polícia, na pessoa do Inspetor Narracott, que, a propósito, eu considero um homem muito hábil, começara a investigar os prováveis beneficiados com a morte do capitão, mas como Jim é um destes e já foi preso, acho que não farão outras investigações nesse sentido. E será essa a nossa tarefa a partir de hoje.

      — Que furo de reportagem — disse Enderby, animado — se descobrirmos o verdadeiro assassino. Um expert criminal do Daily Wire, eis como me chamarão. Mas isso é bom demais para ser verdade — acrescentou com ar desalentado. — Esse tipo de coisas só acontece nas novelas.

      — Está enganado — retrucou Emily. — Comigo acontece.

      — Você é simplesmente maravilhosa — repetiu Enderby.

      Emily limitou-se a retirar da bolsa um pequeno bloco.

      — Agora vamos racionalizar os fatos. O próprio Jim, seu irmão e sua irmã, além da tia Jennifer foram beneficiados com a morte do Capitão Trevelyan. Naturalmente, Sylvia, a exemplo de Jim, seria incapaz de matar uma mosca, mas não posso descartar o seu marido, que é o que chamo de um tipo intratável, rude. Você sabe como são esses homens com veleidades artísticas; têm casos com mulheres e outras inclinações que não é bom falarmos. Deve estar sempre precisando de dinheiro. A herança deixada por Trevelyan beneficia Sylvia, mas isto não importa para seu marido. Ele logo trataria de tirar esse dinheiro dela.

      — Pelo que vejo, ele deve ser uma pessoa bem desagradável — observou Enderby.

      — Oh, sem dúvida! Tem boa aparência, conversa fácil, mas é só. As mulheres falam com ele sobre sexo abertamente. Mas os homens de verdade o detestam.

      — Bem, esse é o nosso suspeito n.° 1 — disse Enderby, também anotando num pequeno bloco. — Faremos uma investigação sobre seus movimentos na última sexta-feira... Será uma tarefa fácil, pois simularemos uma entrevista com um popular novelista relacionado com o crime. Que me diz?

      — Excelente — respondeu Emily. — Depois há o Brian, irmão mais moço de Jim. Supõe-se que esteja na Austrália, mas pode muito bem ter voltado sem que se soubesse. As pessoas às vezes viajam de repente sem avisar a ninguém.

      — Nós podemos enviar-lhe um telegrama.

      — Sim, podemos. Quanto à tia de Jim, acho que está fora de suspeita. Pelo que sei a seu respeito, trata-se de uma pessoa maravilhosa. Ela tem firmeza de caráter. Mas, ainda assim, ela não se achava longe da cena do crime, já que mora em Exeter. Poderia ter vindo ver seu irmão, e durante essa visita talvez ele lhe dissesse algo rude contra o marido dela (Jennifer o adora) e aí ela pode ter ficado fora de si e o golpeado mortalmente.

      — Pensa isso realmente? — indagou Enderby, com ar de dúvida.

      — Não, mas nunca se sabe. Bem, depois temos o antigo ordenança do Capitão Trevelyan e seu criado de confiança. Pelo testamento ele obtém apenas 100 libras, mas parece fora de suspeita. Mas é bom repetir, nunca se pode ter certeza. Sua mulher é sobrinha da Sra. Belling. Você já conhece essa senhora, proprietária do Três Coroas. Ela parece ser do tipo maternal e romântico, pronta a me reconfortar se eu chorasse em seu ombro. Acho que me olha com muita pena por eu saber que meu noivo está preso, e se mostra muito solícita comigo. Isso será útil a nossas investigações. Por fim, há os moradores de Sittaford. Sabe o que me deixa mais intrigada neste caso?

      — Não. O que é?

      — As Willetts, mãe e filha. As que alugaram a casa do Capitão Trevelyan em pleno inverno. Uma atitude bastante inusitada.

      — Sim, também acho estranho. Pode haver alguma coisa mais por trás disso... algo relacionado com o passado do Capitão Trevelyan. E aquela sessão também foi bem curiosa — acrescentou Enderby. — Pensei até em mencioná-la no boletim que devo enviar ao meu jornal. Seria interessante obter a opinião de Sir Oliver Lodge e Sir Arthur Conan Doyle, e também de algumas atrizes e pessoas diversas sobre o assunto.

      — A que sessão está se referindo?

      O Sr. Enderby relatou com prazer o que ocorrera na reunião em casa das Willetts. Tudo que estava relacionado com o assassinato do capitão ele procurara saber ali, em Exhampton.

      — Um bocado curioso, não? — perguntou ao concluir. — É algo que nos faz pensar. Deve haver alguma dose de verdade nesse incidente. Pela primeira vez deparo com algo autêntico nesse sentido.

      Emily estremeceu levemente, dizendo:

      — Não gosto de coisas sobrenaturais. Só que dessa vez, como você diz, parece ter havido um conteúdo verdadeiro nessa sessão. Mas como... como é horrível!

      — Essa história de sessão nunca parece levar a algo prático, não é mesmo? Afinal de contas, se o velho capitão pôde manifestar-se e anunciar a sua morte, por que não declinou o nome de seu assassino? Seria muito simples fazê-lo.

      — Acho que a chave desse mistério deve estar em Sittaford — disse Emily, com ar pensativo.

      — Sim, penso que devemos fazer uma boa investigação por lá — concordou Enderby. — Eu aluguei um carro e estarei lá em meia hora. Faria melhor em me acompanhar.

      — Eu irei. E quanto ao Major Burnaby?

      — Ele já caiu na minha armadilha — retrucou Enderby. — Partiu logo após prestar declarações à polícia. Se quer a minha opinião, ele tentou esquivar-se à minha presença ali. Talvez nem me espere mais. Afinal ninguém gostaria de andar a pé várias milhas com esta neve semiderretida na estrada.

      — O carro pode chegar até lá sem contratempos?

      — Oh, sim. Hoje é o primeiro dia em que a estrada fica desimpedida ao tráfego.

      — Bem — disse Emily, erguendo-se. — Está na hora de voltarmos ao hotel. Farei minha mala e encenarei um choro, encostada no ombro da boa Sra. Belling.

      — Não se preocupe com mais nada — disse o Sr. Enderby, cheio de si. — Pode deixar tudo por minha conta.

      — Era justamente o que estava pensando — mentiu Emily. — É maravilhoso termos alguém em quem podemos confiar realmente.

      Emily Trefusis era, sem dúvida, uma jovem bem inteligente.

     

A PRISÃO

Ao VOLTAR AO TRÊS COROAS, Emily teve a sorte de encontrar a Sra. Belling parada no vestíbulo.

      — Oh, Sra. Belling! — exclamou a jovem. — Vou deixar seu hotel esta tarde.

      — É mesmo, senhorita? Vai tomar o trem das quatro e dez para Exeter?

      — Não, eu vou a Sittaford.

      — Sittaford? — repetiu a dona do hotel, contendo, mas sem sucesso, sua curiosidade.

      — Sim, e desejava saber da senhora se há algum lugar em Sittaford onde eu possa me hospedar.

      — Ah, então pretende permanecer lá?

      A curiosidade da Sra. Belling era mais do que evidente a essa altura.

      — Sim, isto é... Sra. Belling, onde eu posso lhe falar confidencialmente por um momento?

      Com um olhar animado e sempre curioso, a Sra. Belling levou a moça até seu recanto privado. Um quarto confortável com a lareira acesa.

      — A senhora não irá contar nada a ninguém, promete? — começou a dizer Emily, ciente de que, de todos os tipos de preâmbulos conhecidos há séculos, esse era o mais indicado para despertar interesse e simpatia.

      — Pode estar certa de que não direi nada, senhorita — afiançou a Sra. Belling, os olhos escuros avivados pela curiosidade.

      — O Sr. Pearson, que a senhora já deve conhecer...

      — Sim. O moço que esteve aqui na sexta-feira passada e que a polícia acaba de prender.

      — Preso, o Jim? A senhora tem certeza?

      — Sim, senhorita. Não faz nem meia hora.

      Emily mostrou-se desconcertada, aflita. Insistiu:

      — Tem certeza disso?

      — Oh, sim, senhorita. A nossa Amy soube através do sargento.

      — Mas é... terrível! — exclamou Emily. Já esperava por algo assim, mas nem por isso se sentia menos triste. — Saiba, Sra. Belling, que eu estou noiva dele. E sei que não cometeu aquele crime e... Oh, isto é tão terrível!

      E nesse ponto, Emily começou a chorar. Há pouco ela dissera a Charles Enderby que pretendia simular uma cena de choro junto à Sra. Belling, mas agora estava impressionada com a facilidade com que aquelas lágrimas lhe vinham aos olhos. Simular choro não é coisa muito fácil. E agora ela sentia haver muita sinceridade naquelas lágrimas. Isso sobressaltou-a. Chorar de verdade não ajudaria Jim em nada. Bom senso, coragem e clareza de raciocínio, eis as qualidades que deviam importar no plano que ela idealizara. Choro desatado nunca ajudara ninguém realmente.

      Mas chorar um pouco sempre representava um alívio. Além do mais, ela pretendera derramar algumas lágrimas, que seriam um passaporte irrecusável para a solidariedade e ajuda da Sra. Belling. Sendo assim, por que não chorar livremente enquanto havia uma ocasião para tal? Uma onda de choro real em que todos os seus problemas, dúvidas e receios íntimos tivessem livre curso.

      — Venha, querida. Isso, encoste a cabeça cm meu ombro. Mas para que ficar assim tão chorosa? — A Sra. Belling, num gesto maternal, passou o braço em volta dos ombros de Emily e procurou consolá-la.

      — Logo de cara, disse para mim mesma que ele não faria aquilo. É um moço simpático e correto. Como sempre tenho dito, esses policiais são mesmo uns cabeças-duras. O que aconteceu foi obra de algum gatuno. Agora, sossegue, minha querida, tudo se resolverá bem, pode crer.

      — Eu gosto tanto dele — suspirou Emily.

      O querido Jim, gentil, meio infantil, incerto e pouco prático. Tão inclinado a tomar uma decisão errada e no momento errado. Que oportunidades ele teria contra o perseverante e resoluto Inspetor Narracot?

      — Nós devemos salvá-lo — murmurou Emily, soluçando ainda.

      — Naturalmente que sim. Naturalmente — murmurou a Sra. Belling, continuando a consolar a moça.

      Emily enxugou seus olhos com firmeza, emitiu um último soluço e após outro suspiro ergueu a cabeça e perguntou em tom mais seguro:

      — Onde poderei me alojar em Sittaford?

      — Vai mesmo a Sittaford, minha querida?

      — Sim — Emily assentiu com energia.

      — Bem, vejamos então — disse a Sra. Belling pensativa. — Há apenas um lugar onde oferecem hospedagem. Sittaford é uma aldeia e bem pequena, na realidade. Primeiro, temos a casa maior, a mansão Sittaford, que o Capitão Trevelyan construiu, e agora está alugada a uma senhora sul-africana. Depois, temos os seis bangalôs que o capitão também construiu. O de n.° 5 é ocupado por Curtis, que costumava cuidar do jardim da casa do capitão, e sua senhora. Ela aluga quartos durante o verão, pois o Sr. Trevelyan a autorizara a fazê-lo. A não ser na casa dos Curtis não há outro lugar onde você poderia ficar. Há ainda, em Sittaford, a ferraria e a agência do Correio, mas Mary Hibbert, que mora com sua cunhada, tem seis filhos para cuidar, e a esposa do ferreiro está esperando seu oitavo filho, assim não haverá um cantinho para você lá. Mas posso saber como irá a Sittaford, senhorita? Alugou um carro?

      — Irei junto com o Sr. Enderby, no que ele alugou.

      — Ah, e onde ele irá hospedar-se, posso saber?

      — Imagino que arrumará um quarto na casa da Sra. Curtis também. Será que ela terá vagas lá para nós dois?

      — Não sei se parecerá correto uma jovem como a senhorita ficar na mesma casa com um estranho — observou a Sra. Belling.

      — Ele é meu primo — disse Emily.

      De nenhum modo, pensou a moça, deveria permitir que a Sra. Belling alimentasse idéias erradas a seu respeito.

      A dona do hotel desfez o franzido da testa e com ar aprovador disse:

      — Bem, assim está tudo certo. E caso você não se sentir bem instalada na casa da Sra. Curtis, poderá ficar na mansão de Sittaford.

      — Sinto muito ter agido como uma tola — murmurou Emily, secando os últimos vestígios de lágrimas de seus olhos.

      — É uma coisa muito natural, minha querida. Chorar a fez sentir-se melhor.

      — E verdade — disse Emily, sinceramente. — Eu me sinto muito melhor agora.

      — Um bom desabafo e uma boa xícara de chá fazem sempre bem. E nós tomaremos esse chá agora mesmo, minha querida, antes que saia por essa estrada neste tempo friorento.

      — Oh, muito obrigada, mas não acho que deva...

      — Nunca pense no que deveria ser e sim no que vai ter — disse a Sra. Belling, erguendo-se com determinação e acercando-se da porta. — E diga a Amelia Curtis que eu a enviei, assim ela lhe dará toda atenção e refeições adequadas.

      — A senhora é muito gentil — disse Emily.

      — Além disso, estarei de olhos e ouvidos bem abertos aqui — observou a Sra. Belling, assumindo com satisfação seu papel de protetora de jovens apaixonados. — Há certas pequenas coisas que eu ouço e que nunca chegam ao conhecimento da polícia. E tudo que eu souber comunicarei logo a senhorita.

      — Fará isso realmente?

      — É meu dever. Não se preocupe, minha querida, veremos seu jovem noivo livre dessa complicação dentro de pouco tempo.

      — Agora vou subir e arrumar minha mala — disse Emily, levantando-se.

      — Mandarei levar o chá para você.

      Emily subiu para seu quarto, colocou seus poucos objetos pessoais numa maleta, lavou os olhos com água fria e recompôs a maquilagem.

      — Você deve chamar mais atenção — disse para si mesma, olhando-se ao espelho. E adicionou mais um pouco do pó facial e um toque de rouge. — Curioso, como me sinto melhor agora — pensou a jovem. — Pareço que até estou com o rosto mais cheio.

      Tocou a sineta. A camareira (a simpática cunhada do Comissário Graves) atendeu prontamente. Emily lhe deu uma libra de gorjeta e lhe pediu encarecidamente que a mantivesse informada sobre os passos da polícia local. A garota se prontificou a atendê-la.

      — Vai ficar na casa da Sra. Curtis em Sittaford? Sim, eu lhe mandarei notícias, senhorita. Farei tudo que puder. Nós todas aqui sentimos muito pela senhorita, pode crer. Todos esses dias tenho dito para mim mesma: “Imagine se esse caso acontecesse com você e o Fred.” Nem quero pensar! Eu ficaria arrasada, acredite. Pode deixar, tudo que souber, mandarei dizer para a senhorita.

      — Você é um anjo — murmurou Emily.

      — Isso me faz lembrar os seis pences que ganhei em Woolworth outro dia por ocasião do caso que foi chamado de “Os Crimes do Lilás.” E a senhorita sabe o que levou a polícia a descobrir o verdadeiro assassino? Simplesmente um pouco de lacre usado para cartas. Seu noivo tem uma figura bonita, não é mesmo? Bem diferente da foto que saiu estampada nos jornais. Esteja certa de que farei o que puder, pela senhorita e por ele.

      E assim, transformada em motivo de interesse romântico, Emily deixou o Hotel Três Coroas, tendo antes tomado o chá prescrito pela Sra. Belling.

      — A propósito, você agora é meu primo, não se esqueça — disse Emily assim que Elmer pôs o motor do velho Ford em marcha.

      — Por quê? — perguntou Enderby.

      — Eles aqui conservam uma mentalidade muito primitiva — disse a jovem. — Achei que seria melhor criar esse parentesco entre nós.

      — Ótimo. Neste caso, seria mais adequado eu chamá-la de Emily.

      — Perfeitamente... primo. E qual é seu primeiro nome?

      — Charles.

      — Muito bem, Charles.

      E o carro seguiu pela estrada de Sittaford.

     

SITTAFORD

EMILY sentiu-se encantada com sua visão inicial de Sittaford. Afastando-se da estrada principal quando já estavam a duas milhas de Exhampton, o veículo seguiu por uma charneca cm marcha mais reduzida por causa do terreno irregular, até alcançar uma aldeia situada exatamente na beira da zona turfosa. Tudo que viram de saída foi uma ferraria, anexa ao posto do correio e uma padaria. Dali seguiram por uma vereda e se viram diante de um grupo de bangalôs pequenos, de pedra, construídos há poucos anos. Elmer freou o carro defronte do segundo desses bangalôs e soube ser ali que residiam os Curtis.

      A Sra. Curtis era uma mulher de pequena estatura, delgada e de cabelos grisalhos, mas com um ar enérgico, mostrando-se muito ativa e falante.

      — Sim, naturalmente que posso hospedá-la aqui e a seu primo também, senhorita. Terei apenas que fazer uma pequena arrumação nos quartos, providenciar roupas limpas de cama. Certamente pretendem fazer suas refeições conosco, não é mesmo? Bem, quem imaginaria o que aconteceria? O Capitão Trevelyan assassinado e toda essa agitação e interrogatórios! Aqui estivemos isolados do resto do mundo desde sexta-feira pela manhã, por causa da neve, e hoje cedo, quando tivemos notícia do que houve em Exhampton, fiquei até tonta. “O Capitão está morto”, eu disse para Curtis, “isso mostra como o mundo de hoje é cruel.” Mas estou falando, falando, e a senhorita aí parada. Entre, por favor, e o senhor também. Tenho uma chaleira no fogo e poderão tomar um chá agorinha mesmo. Devem estar precisando depois de pegarem esta estrada em pleno inverno, embora, naturalmente, hoje esteja menos frio do que nos últimos dias. A neve aqui chegou a cobrir tudo a uns oito ou dez pés...

      Sempre tagarelando, a Sra. Curtis mostrou a Emily e a Charles Enderby os quartos onde iriam ficar alojados. Coube a Emily um quarto pequeno, mas escrupulosamente limpo, com vista para a encosta onde se erguia o farol de Sittaford. O aposente reservado a Charles era menor, uma espécie de anexo na parte da frente da casa dando para a vereda, com espaço suficiente apenas para a cama, uma cômoda e o lavatório.

      Depois que o motorista que os trouxera no Ford deixou a maleta do recém-chegado sobre a cama e foi devidamente pago, retirando-se, Charles observou:

      — O principal é que estamos aqui. E se dentro dos próximos quinze minutos já não soubermos de tudo que há para ser conhecido sobre os moradores de Sittaford, viro mico de circo — pilheriou Enderby, aludindo à excelente fonte de informações que era a Sra. Curtis.

      Dez minutos depois, Emily e Charles já estavam sentados na confortável cozinha, sendo logo apresentados a Curtis. Era um indivíduo muito carrancudo, de cabelo meio grisalho. A refeição foi variada e substancial: pão com manteiga, queijo e ovos bem cozidos. Enquanto comiam e bebiam o chá forte preparado pela dona da casa, ouviam-na atentamente. Dentro de meia hora Charles e Emily já se tinham inteirado de tudo sobre as pessoas que viviam naquela pequena comunidade.

      As primeiras informações se referiam à Srta. Percehouse, moradora do chalé n.° 4, uma solteirona temperamental, de idade indefinida e que, de acordo com a Sra. Curtis, chegara ali há seis anos, com o ar de quem vai morrer no dia seguinte.

      — Acredite ou não, senhorita, mas o clima de Sittaford é tão saudável que ela melhorou assim que pôs os pés aqui. O ar daqui faz maravilhas para os pulmões de uma pessoa.

      E a Sra. Curtis não parou por aí.

      — A Srta. Percehouse tem um sobrinho que vez ou outra vem visitá-la. Por falar nisso, ele está com ela agora. Na minha opinião, procura assegurar-se de que o dinheiro da família não lhe escape das mãos. Afinal, para um homem jovem, ficar alguns dias aqui nesta época do ano não deve ser nada divertido. Mas há sempre males que vêm para bem, e sua vinda aqui foi providencial para a mocinha que mora na casa de Sittaford. Infeliz idéia a de trazerem aquela jovem para aquele casarão em pleno inverno. Umas egoístas de primeira é o que algumas mães são. Aquela moça é muito bonita também. O Sr. Ronald Garfield, sem descuidar da tia, sempre que pode está lá na mansão de Sittaford...

      Charles Enderby e Emily trocaram um olhar significativo. Charles lembrou-se de que Ronald Garfield fora mencionado como um dos participantes da sessão realizada na mansão de Sittaford, na noite da morte do capitão.

      — O bangalô n.° 6, ao lado do meu, foi alugado recentemente a um cavalheiro de nome Duke. Bem, isso se pudermos chamá-lo realmente de cavalheiro. Claro que pode sê-lo ou não. Hoje em dia não se pode afirmar isso com certeza, os verdadeiros cavalheiros não são identificáveis facilmente como antigamente. O fato é que ele se comporta de uma maneira bem reservada. É um tipo de homem meio tímido... À primeira vista diríamos que é um velho militar, mas não tem jeito disso. Não como o Major Burnaby, que se sabe ser um militar de classe assim que o conhecemos pela primeira vez.

      E com esse reparo, a Sra. Curtis passou ao morador do bangalô n.° 3.

      — O. Sr. Rycroft é um cavalheiro baixinho e idoso. Dizem que ele costumava caçar pássaros em países estranhos para o Museu Britânico. É o que chamam de um naturalista. Sempre andando para cá e para lá na charneca, quando o tempo permite. E ele tem uma biblioteca muito bem sortida. Seu bangalô está praticamente atulhado de estantes de livros.

      A seguir, vinha o morador do bangalô n.° 2.

      — O Capitão Wyatt mora ali com um criado indiano. E como sofre o pobre coitado, com este frio. Claro que me refiro ao criado, não ao capitão. Vindo de um país quente, não é de admirar. O calor que as casas de lá conservam o dia todo não é brincadeira. E como se viver dentro de um forno.

      Quase sem interrupção, a Sra. Curtis focalizou o morador do bangalô n.° 1.

      — O Major Burnaby vive sozinho, e eu costumo ir de manhã cedo, diariamente, dar-lhe uma mãozinha na arrumação da casa. Ele é um cavalheiro muito asseado, metódico, um tipo bem especial. Ele e o Capitão Trevelyan eram como unha e carne. Amigos de uma vida inteira. E ambos tinham o mesmo costume de enfeitar as paredes com cabeças de animais empalhados que caçavam em países exóticos.

      Por fim, foram abordadas as duas mulheres que moravam na mansão pertencente ao falecido capitão.

      — Quanto à Sra. Willett e sua filha não se pode ter uma idéia definida. Mas dinheiro é que não lhes falta. Amos Parker, de Exhampton, com quem elas trataram do aluguel da casa, me contou que a despesa semanal ali vai a mais de nove libras. Não fazem idéia da quantidade de ovos frescos que entra naquela casa! Trouxeram com elas suas criadas de Exeter, mas estas não gostaram daqui e quiseram ir embora, o que não lhes censuro, na verdade. A Sra. Willett as envia a Exeter, em seu carro, duas vezes por semana. Com essa folga e a boa vida que levam, concordaram em ficar. Mas se desejam saber minha opinião, acho uma estranha coisa essa senhora tão irrequieta vir enfurnar-se num lugar retirado como este. Bem, bem, acho melhor eu ir limpando a mesa.

      A Sra. Curtis soltou um profundo suspiro e Charles e Emily fizeram o mesmo. Aquela torrente de informações, quase sem pausas, os deixara sufocados.

      Charles arriscou uma pergunta.

      — O Major Burnaby já voltou?

      A Sra. Curtis, que segurava uma bandeja com o serviço de chá e já ia dizer algo, respondeu:

      — Sim, senhor. Chegou meia hora antes dos senhores, andando a pé como sempre faz. Eu lhe disse: “Por que vem a pé, major? O senhor não se cansa de percorrer o caminho de Exhampton até aqui?” E ele me respondeu, com sua entonação enérgica de costume: “Por que não? Se um homem tem duas pernas ele não necessita de quatro rodas. E como sabe, Sra. Curtis, eu faço este mesmo percurso a pé uma vez por semana.” E eu retruquei: “Sim, eu sei, major, mas agora é diferente. Com todo esse abalo que sofreu com o assassinato de seu grande amigo, o inquérito da polícia, é incrível como ainda tem forças para andar esse caminho todo a pé.”

      Mas ele limitou-se a resmungar algo que não entendi e seguiu em frente. Notei que não está com boa aparência. Foi um milagre ter chegado vivo a Exhampton na última sexta-feira. Na sua idade, eu o considero um bravo. Percorrer a pé três milhas sob a nevasca não é para qualquer um. Podem achar que não, mas os moços de hoje em dia não se equivalem aos velhos de ontem. Esse Sr. Ronald Garfield, por exemplo, nunca faria tal coisa. E na minha opinião, que é também a da Sra. Hibbert, dos correios, e do Sr. Pound, o ferreiro, o Sr. Garfield nunca deveria ter deixado o major ir sozinho com aquele tempo a Exhampton. Devia ter ido com ele. Se o Major Burnaby tivesse se perdido na neve, todo mundo estaria agora censurando o Sr. Garfield. E com razão.

      E com ar decidido, a Sra. Curtis internou-se na copa onde logo se ouviu o ruído de xícaras sendo lavadas.

      O Sr. Curtis retirou o velho cachimbo do canto direito da boca para sugá-lo com o esquerdo. Limitou-se a dizer:

      — Mulheres sempre falam um bocado. — Fez uma pausa e então murmurou:

      — E na metade do tempo em que falam não sabem na verdade do que estão falando.

      Emily e Charles acolheram esse pronunciamento em silêncio. Mas percebendo que aquele homem taciturno nada mais acrescentaria, Charles assentiu:

      — Isso é verdade... realmente.

      — Ah! — disse o Sr. Curtis, e mergulhou num repousante e contemplativo silêncio.

      Charles levantou-se, dizendo:

      — Acho que vou ver o velho Burnaby e lhe falar sobre a entrevista com muitas fotos que teremos amanhã de manhã.

      — Eu vou com você — disse Emily. — Desejo saber o que ele pensa realmente sobre Jim e que idéias tem sobre o crime de modo geral.

      — Trouxe botas ou galochas? O terreno está muito lamacento.

      — Eu comprei algumas Wellingtons em Exhampton.

      — Você é uma jovem muito prática. Pensa sempre em tudo.

      — Infelizmente, isto é de pouca valia para nos ajudar a descobrir quem cometeu um assassinato. Mas ajudaria muito a um assassino — retrucou Emily, sensatamente.

      — Bem, não vá me assassinar então — pilheriou Enderby.

      Os dois jovens saíram juntos. A Sra. Curtis voltou à cozinha e o marido lhe disse:

      — Eles foram visitar o major.

      — Ah! — exclamou a Sra. Curtis. — Então, o que você achou deles? São ou não são apegados um ao outro? Dizem que um bocado de problemas surgem de casamentos entre primos. Filhos surdos e mudos ou retardados, e uma série de outros inconvenientes. Mas que ele está caído por ela, isto se nota logo. Quanto a ela, me parece muito viva como minha bisavó Sara Belinda era. Sabia o que fazer com ela e com os homens. Fico imaginando o que ela está procurando aqui agora. Sabe o que eu penso, Curtis?

      O Sr. Curtis assentiu com um resmungo e então a mulher disse:

      — Eu acho é que essa moça se interessa mesmo é pelo rapaz que a polícia prendeu como suspeito do crime. E ela está aqui para sondar as coisas e ver se pode descobrir algo. Guarde bem minhas palavras — concluiu a Sra. Curtis, recolhendo o bule de porcelana —, se há alguma coisa para ser descoberta aqui, ela a descobrirá!

 

AS WILLETTS

No MOMENTO em que Charles e Emily se acercavam do bangalô do Major Burnaby, o Inspetor Narracott estava sentado na sala de visitas da casa principal de Sittaford, tentando formar uma opinião sobre a Sra. Willett.

      Não conseguira aquela entrevista mais cedo porque a estrada estivera impraticável até aquela manhã. Ele não sabia O que iria descobrir indo àquela casa, mas certamente as circunstâncias do encontro não eram as que imaginara. Foi a Sra. Willett quem tomou a iniciativa, não ele.

      Ela se apressara a entrar na sala, como uma mulher de negócios, firme e eficiente. Narracott viu à sua frente uma mulher alta, de feições finas e olhar penetrante. Vestia um elegante modelo de malha de seda que se mostrava praticamente em desacordo com o modo de vestir da gente do campo. Suas meias eram de seda da melhor qualidade, seus sapatos de salto alto de couro finíssimo e feitos a mão. Usava como complemento vários anéis de valor evidente e um colar de pérolas de imitação, mas caro também.

      — Inspetor Narracott? —> disse a Sra. Willett. — Naturalmente o senhor deseja ver esta casa. Que tragédia chocante, não? Custei a acreditar que tivesse realmente acontecido. Nós só ficamos sabendo esta manhã e nos sentimos muito abaladas. Sente-se, por favor, inspetor. Esta é minha filha, Violet.

      Narracott nem se apercebera ainda da presença da jovem que entrara na sala logo após sua mãe. E, no entanto, era uma moça muito bonita, alta e elegante, com grandes olhos azuis.

      A Sra. Willett sentou-se e disse:

      — Posso ajudá-lo de algum modo, inspetor? Sei muito pouco sobre o infortunado Capitão Trevelyan, mas se tem alguma pergunta que me deseje fazer...

      O inspetor disse pausadamente:

      — Obrigado, senhora. Naturalmente, nunca se sabe ao certo o que poderá ser útil ou não no curso de uma investigação.

      — Entendo perfeitamente. É possível que haja alguma coisa nesta casa que ajude a elucidar esse triste caso, mas duvido muito, inspetor. O Capitão Trevelyan removeu daqui todos os seus pertences. O bom homem, desaparecido de modo tão trágico, tinha receio de que eu tocasse em seus utensílios de pesca.

      E a Sra. Willett sorriu francamente.

      — A senhora não se relacionava com o capitão?

      — O senhor quer dizer, antes que eu alugasse esta casa? Oh, não. Eu o convidei a vir aqui desde então, mas ele nunca apareceu. Era tímido demais, aquele pobre homem. Acho que era esse o seu problema. Tenho conhecido dezenas de homens como ele. São chamados de inimigos de mulheres e todo tipo de coisas tolas assim, mas na realidade trata-se sempre de timidez. Se eu tivesse podido conversar melhor com ele — frisou a Sra. Willett, com convicção —, logo logo teria acabado com esse constrangimento. Esse tipo de homem necessita apenas de convívio social, de algo que o desiniba.

      O Inspetor Narracott entendia agora a extremada atitude defensiva do Capitão Trevelyan em relação às suas inquilinas.

      — Nós o convidamos várias vezes — prosseguiu a Sra. Willett. — Não foi, Violet?

      — Oh, sim, mãe.

      — No fundo, era um marinheiro autêntico e simples — observou a Sra. Willett. — Todas as mulheres apreciam um marinheiro de verdade, Inspetor Narracott.

      Nesse ponto, o inspetor conscientizou-se de que até ali a entrevista fora inteiramente conduzida pela Sra. Willett. Convenceu-se de que ela era uma mulher extremamente esperta. Podia ser que fosse tão inocente como aparentava, mas por outro lado, tal impressão podia ser falsa.

      — Há um detalhe sobre o qual desejo muito obter um esclarecimento — disse o inspetor, fazendo uma pausa intencional.

      — Ah, sim, inspetor?

      — Como a senhora não deve ignorar, o Major Burnaby foi quem descobriu o cadáver do capitão. Algo acidental que ocorreu nesta casa é que o levou a fazer essa descoberta.

      — A que se refere, inspetor?

      — À sessão realizada aqui na noite do crime. Peço que me desculpe. — E voltou a cabeça ao ouvir a exclamação abafada da jovem.

      — Pobre Violet — disse sua mãe. — Ela ficou muito impressionada..., para dizer a verdade, todos nós nos sentimos assim! Foi algo incrível. Eu não sou supersticiosa, mas na realidade foi uma coisa difícil de explicar.

      — Então o incidente ocorreu realmente?

      — Se ocorreu? Mas claro que sim. Na ocasião, pensei que fosse uma simples brincadeira... de muito mau gosto, sem dúvida. Cheguei a suspeitar que o jovem Ronald Garfield...

      — Oh! não, mamãe. Tenho certeza de que ele não o fez. Chegou a jurar para mim.

      — Eu apenas disse o que pensei na ocasião, Violet. Quem poderia imaginar que não se tratava de uma brincadeira?

      — Foi curioso — disse o inspetor, em tom pausado. — Ficaram realmente preocupados, Sra. Willett?

      — Todos nós. Parecia uma tolice, mas nos sentimos impressionados. E desejávamos apenas ter algo com que passar o tempo. O senhor sabe como são longas essas noites de inverno. E então, de repente... aquilo aconteceu! Foi uma coisa irritante.

      — Irritante? — repetiu o inspetor.

      — Bem, isso é lógico, não? Eu imaginei que alguém estivesse fazendo aquilo deliberadamente..., por brincadeira, como já disse.

      — E o que pensa agora?

      A Sra. Willett moveu as mãos num gesto vago, retrucando:

      — Não sei o que pensar. Isto é... fora do comum.

      — E o que me diz, Srta. Willett?

      — Eu?

      A moça sobressaltara-se e mostrou-se hesitante.

      — Não sei... Só que não consigo me esquecer do que houve aqui. Sonho com esse incidente e acho que nunca mais participarei de nenhuma sessão dessas de novo.

      Suponho que o Sr. Rycroft diria que o que houve foi autêntico — observou a Sra. Willett. — Ele crê nesse tipo de coisa. E até eu, para ser sincera, me inclino a acreditar. Que outra explicação pode haver para o fato senão a de uma mensagem autêntica de algum espírito?

      O inspetor meneou a cabeça. Aquela sessão fora mencionada por ele apenas como um despistamento. Sua próxima pergunta teve um caráter mais informal.

      — Não acha este lugar muito frio e desolado no inverno, Sra. Willett?

      — Oh, eu adoro isto aqui. É tão diferente. Nós somos sul-africanas como o senhor sabe — ela respondeu, num tom vivo e natural.

      — Ah, sim? De que parte da África do Sul?

      — Oh, do Cabo. Violet nunca tinha estado na Inglaterra. Ela está encantada com o que já viu..., e acha a neve muito romântica. Esta casa é realmente muito confortável.

      — O que a levou a vir para esta região?

      Na voz do inspetor havia um toque de curiosidade contida.

      — Nós lemos muitos prospectos sobre Devonshire, e especialmente sobre Dartmoor. Lemos um livro a bordo do navio..., descrevendo tudo acerca de Widdecombe Fair. Eu sempre senti vontade de visitar Dartmoor.

      — E o que a fez fixar sua atenção em Exhampton? Afinal é uma pequena cidade, muito pouco conhecida.

      — Bem..., nós andamos lendo os livros de que já lhe falei, e havia um moço no navio que nos falou sobre Exhampton... Mostrou-se muito entusiasmado com essa cidade.

      — E qual era seu nome? — indagou o inspetor. — Ele residia nesta região?

      — Como ele se chamava mesmo? Ah, sim. Cullen, eu creio. Não... era Smythe. Como sou esquecida! Na verdade, não consigo me lembrar. Sabe o que acontece nessas viagens de navio, inspetor. Conhecemos certas pessoas e até combinamos nos encontrar de novo... e uma semana depois de desembarcarmos nem conseguimos nos lembrar de seus nomes!

      A Sra. Willett riu antes de acrescentar:

      — Mas ele era um rapaz muito amável... Tinha cabelo ruivo e não era bonito, mas seu sorriso era encantador.

      — E foi motivada por essa sugestão que a senhora resolveu alugar uma casa nestas paragens? — observou Narracott, sorrindo.

      — Sim. Não foi mesmo uma extravagância de nossa parte?

      “Muito hábil”, pensou o inspetor. “Realmente esperta.” E começou a perceber os métodos da Sra. Willett. Sempre conduzia o combate no terreno do inimigo.

      — Então a senhora escreveu aos agentes imobiliários e manifestou seu propósito de alugar uma casa nesta região?

      — Sim... e eles nos enviaram prospectos sobre Sittaford. E eu senti que era o que estava procurando.

      — Por meu gosto não viria para cá nesta época do ano — retrucou o inspetor, rindo.

      — E eu me atrevo a dizer que também não seria essa a nossa escolha, caso já vivêssemos na Inglaterra — replicou a Sra. Willett, inteligentemente.

      O Inspetor Narracott levantou-se.

      — Como descobriu o nome de um corretor imobiliário em Exhampton e ao qual poderia escrever solicitando informações? Certamente não foi uma tarefa fácil.

      Pela primeira vez no decorrer daquela conversação, fez-se uma pausa. Narracott julgou perceber um toque de aborrecimento, ou mesmo de raiva no olhar da Sra. Willett. Sim, ele tocara num ponto para o qual ela não preparara uma resposta. Virando-se para a filha, a Sra. Willett perguntou:

      — Como foi mesmo que nós fizemos, Violet? Não consigo me lembrar.

      Nos olhos da moça lia-se uma expressão diferente da de sua mãe. Ela parecia assustada.

      — Ora, naturalmente que foi graças a Delfridges. Tem uma agência de informações excelente. Sempre que preciso saber algo recorro a eles. Lembro-me que lhes indaguei sobre qual o melhor corretor aqui e me indicaram logo.

      “Muito viva”, pensou o inspetor. “Mas não o bastante. Eu a peguei, dessa vez, madame.”

      O inspetor fez um exame rápido da casa. Não havia nada ali que valesse a pena investigar. Nem documentos, nem gavetas ou armários trancados.

      A Sra. Willett o acompanhou até a porta falando animadamente. O inspetor saiu, agradecendo-lhe polidamente a colaboração prestada.

      Ao retirar-se, Narracott captou um brilho diferente no olhar da jovem Violet, que estava atrás de sua mãe. Não havia dúvida sobre a natureza daquela expressão. Era medo, um medo que ela tentara disfarçar até ali, mas que agora se manifestava claramente em seus olhos azuis.

      O inspetor nem prestara atenção ao tagarelar da Sra. Willett, que antes de vê-lo sair ainda acrescentara algumas palavras de queixa contra as suas criadinhas. Estas tinham ameaçado pedir as contas e irem embora, especialmente após a notícia daquele assassinato, que as assustara mais ainda.

      — Não sei o que fazer, inspetor — concluíra a Sra. Willett, quando Narracott já se achava no portãozinho do jardim. — Talvez os homens correspondam melhor como criados do que essas mocinhas impressionáveis. Foi o que me disseram na agência de empregos, lá em Exeter.

      Mas Narracott limitara-se a responder mecanicamente. Sentia-se desligado daquele falatório da Sra. Willett. Estava pensando era na expressão de profundo receio de Violet.

      Ao caminhar, o inspetor refletia sobre o que vira e ouvira naquela casa. A Sra. Willett mostrara-se habilidosa e esperta em suas respostas mas não o suficiente para convencê-lo.

      Se as Willetts nada tinham a ver com a morte do Capitão Trevelyan, por que Violet estava tão receosa? Resolveu dar meia volta, quando ainda estava a poucos passos da casa. Viu que a Sra. Willett ainda estava à janela e indagou de chofre:

      — A propósito, a senhora conhece o jovem Pearson?

      Dessa vez não houve nenhuma dúvida quanto a uma hesitação por parte da viúva. Ela custou um pouquinho a responder:

      — Pearson? Penso que não...

      Houve uma brusca interrupção. O inspetor pôde captar o som abafado de uma exclamação de susto e depois o baque de um corpo no interior da sala de visitas. Narracott precipitou-se para a casa.

      Violet Willett acabara de desmaiar.

      — Pobre criança — exclamou a Sra. Willett, aflita. — Toda essa tensão nervosa. Aquela sessão infeliz e depois o assassinato... Ela não é uma moça robusta, inspetor. Muito obrigada — disse a viúva, observando o inspetor carregar sua filha com todo cuidado. — Sim..., coloque-a neste sofá, por favor. Ela voltará a si num instante... Por favor, toque aquela sineta.

      Narracott fez o que lhe pediam e depois a Sra. Willett disse:

      — Muito obrigada, mais uma vez, inspetor... Não, creio que o senhor já não precisa preocupar-se. Não desejo retê-lo aqui.

      O Inspetor Narracott retirou-se. E pelo caminho uma indagação lhe veio à mente. Pelo que sabia, Jim Pearson estava noivo daquela jovem extremamente encantadora que ele conhecera em Londres. Por que, então, Violet Willett desmaiara ao ouvir o nome do rapaz? Qual a ligação entre Jim Pearson e as Willetts?

      Parou meio indeciso e então retirou do bolso um pequeno caderno de notas. Nele figurava uma relação dos moradores dos seis bangalôs construídos pelo Capitão Trevelyan, com breves observações sobre os mesmos. O dedo indicador de Narracott pousou no nome do inquilino do bangalô n.° 6, o Sr. Duke.

      — Sim, será melhor visitá-lo agora — murmurou o inspetor. Deu mais alguns passos e logo fazia soar a aldrava do bangalô de numero 6.

     

VISITA AO MAJOR BURNABY

CHARLES ENDERBY deu alguns passos rápidos pelo jardim e bateu de modo jovial à porta do bangalô do Major Burnaby. Este, com ar meio irritado, veio abrir e ficou parado no umbral.

      — Você veio, hem? — observou o major, sem nenhum entusiasmo. E já ia prosseguir com a mesma entonação brusca, mal contida, quando deu pela presença de Emily e aí sua expressão modificou-se.

      — Esta é a Srta. Trefusis — disse Charles, como alguém que exibe um naipe de trunfos. — Ela desejava muito conhecê-lo.

      — Posso entrar? — perguntou Emily, usando o seu mais doce sorriso.

      — Oh, sim! Certamente. Naturalmente que sim.

      Com um ar meio desconcertado, o major apressou-se a puxar três cadeiras e afastar duas mesinhas que estavam fora de lugar na sala de visitas.

      Como era de seu feitio, Emily foi diretamente ao ponto principal.

      — Não sei se o senhor já sabe, Major Burnaby, mas sou noiva de Jim... Jim Pearson. E, naturalmente, estou muito preocupada com a situação dele.

      O Major Burnaby parou de ajeitar uma mesa e ficou olhando a moça ainda desconcertado.

      — Oh, sim, querida jovem, foi uma coisa realmente triste. Mas, minha prezada senhorita, não sei o que lhe posso dizer para reconfortá-la. Lamento demais o que aconteceu.

      — Major Burnaby, me responda francamente. Acredita que Jim é culpado? Oh, não hesite em me dizer o que acha realmente. Prefiro mil vezes que as pessoas não mintam para mim.

      — Não, eu não creio que ele seja culpado — disse o major numa entonação clara e taxativa. Deu duas batidas vigorosas numa almofada, e então sentou-se de frente para Emily já sentada em outra cadeira estofada. — Aquele moço é simpático, não muito firme, eu arriscaria dizer-lhe, senhorita. Não fique sentida com o que lhe vou falar, mas ele me parece o tipo de homem que também pode ceder a certas tentações. Mas quanto a matar alguém, não. E saiba, senhorita, que eu sei do que estou falando... Em meu tempo de serviço na Marinha inúmeros oficiais subalternos estiveram sob meu comando. Pude observar bem seu comportamento. É moda hoje em dia não levar muito a sério os oficiais de marinha aposentados, mas na verdade aprendemos alguma coisa, temos experiência, Srta. Trefusis.

      — Estou convencida disso, major — retrucou Emily. — E lhe sou muito grata por me dizer o que pensa.

      — Deseja tomar algo? Um uísque com soda? — perguntou o major. — Sinto não ter outra coisa para oferecer-lhe — acrescentou, desculpando-se.

      — Não, obrigada, Major Burnaby.

      — Eu poderia preparar um chá — disse o major, com um toque de ansiedade e solicitude.

      — Nós já o tomamos — disse Charles. E acrescentou: — Na casa da Sra. Curtis.

      — Major Burnaby — disse Emily, — quem pode ter cometido o crime?... Tem alguma idéia a respeito?

      — Não. Diabos me levem se eu sei... — disse o major, sentindo que não se expressara convenientemente. Mas logo acrescentou: — A impressão geral era de que algum vagabundo fizera aquilo, mas agora a polícia afirma que não. Bem, essa é a ocupação deles, e suponho que conheçam melhor que nós seu ofício. Eles dizem que ninguém roubou nada da casa, assim imagino que estejam com a razão. Mas de qualquer modo, algo me intriga, Srta. Trefusis. Trevelyan ao que eu sei não tinha nenhum inimigo pessoal.

      — E o senhor não deixaria de saber se houvesse algum.

      — Sim. Posso dizer que conhecia mais coisas sobre Trevelyan do que muitos de seus parentes.

      — E o senhor não poderia lembrar-se de alguma coisa... algo que servisse de ajuda para esclarecer esse caso? — perguntou Emily.

      O major cofiou seu pequeno bigode.

      — Sei o que está pensando. Como ocorre nas novelas, deveria haver algum detalhe, um pequeno incidente, de que eu me lembrasse e que servisse de pista... Bem, sinto muito, mas não há tal coisa. Trevelyan levava realmente uma vida bem normal. Muito poucas eram as cartas que recebia e mais raras ainda as que escrevia. Estou certo de que não havia nenhuma complicação amorosa em sua vida. É... Tudo nesse caso me intriga, Srta. Trefusis.

      Fez-se breve silêncio.

      — E que me diz sobre o criado do capitão? — perguntou então Charles.

      — Estava a seu serviço há muitos anos. De sua inteira confiança.

      — Evans casou recentemente — disse Charles.

      — Com uma jovem correta e muito decente.

      — Major Burnaby — disse Emily —, perdoe-me se coloco a questão de modo embaraçoso, mas o senhor não se mostrou assustado demais naquela noite a respeito do seu velho amigo?

      Burnaby esfregou o nariz, com o ar embaraçado que sempre assumia quando se fazia alusão ao que acontecera na casa da Sra. Willett.

      — Sim, não há como negar esse fato. Sei que aquela coisa era um embuste, uma brincadeira de mau gosto, mas...

      — O senhor teve suas dúvidas — murmurou Emily, animando o major a prosseguir.

      Burnaby assentiu com um gesto de cabeça.

      — Eis aí o que me surpreende... — disse Emily. Os dois homens a olharam curiosos.

      — Não sei se conseguirei explicar o que penso da forma como desejaria, mas o ponto principal é este: O senhor diz não acreditar em sessões espíritas ou em ocultismo... e no entanto, apesar de encarar tais coisas como tolas ou absurdas, e do mau tempo reinante naquela noite, sentiu que devia sair, não importava a intensidade da nevasca, para ver se tudo estava bem com o Capitão Trevelyan. Aí eu lhe pergunto, major, não terá agido assim porque havia algo no ar?

      Ao perceber que o major não denotava compreender seu ponto de vista, Emily procurou novas palavras, ansiosa por uma resposta elucidativa:

      — Não havia algo de diferente na expressão dos que ali estavam. Algo que de um modo ou de outro o senhor viesse a intuir?

      — Bem, eu não sei — retrucou o major. Esfregou de novo o nariz já avermelhado, acrescentando, esperançoso, como se tivesse achado uma saída para aquela questão embaraçosa: — Naturalmente, as mulheres levam essas coisas muito a sério.

      — Mulheres! — exclamou Emily. — Sim — murmurou suavemente para si mesma. — Sim, acho que talvez seja como diz. Então encarou o major e lhe perguntou de supetão:

      — Como são essas Willetts?

      — Oh, bem... — O Major Burnaby se pôs a pensar, afinal descrever pessoas não era seu forte. — Bem, elas são... do tipo que a senhorita conhece... muito hospitaleiras e sociáveis.

      — Por que elas resolveram alugar a mansão Sittaford nesta época do ano?

      — Não faço nenhuma idéia — retrucou o major e acrescentou: — Ninguém sabe.

      — O senhor não acha que foi uma atitude estranha? — insistiu Emily.

      — Claro que sim. Contudo, há gosto para tudo neste mundo. Foi o que disse o inspetor.

      — Isso é um contra-senso — retrucou Emily. — Ninguém faz nada sem um motivo.

      — Bom, eu não sei — disse o Major Burnaby, incrédulo. — Algumas pessoas não o fazem, Srta. Trefusis. Acho que a senhorita é uma delas. Mas há outras pessoas... — suspirou e meneou a cabeça.

      — Tem certeza de que elas não travaram conhecimento com o capitão antes de sua vinda para Sittaford?

      O major refugou tal idéia. Trevelyan lhe teria dito algo. Não, ele se sentira tão surpreso como os demais com a vinda das Willetts para Sittaford.

      — Então ele julgou esquisita a decisão delas?

      — Naturalmente, como já lhe disse, todos nós achamos a mesma coisa.

      — E qual foi a atitude da Sra. Willett em relação ao Capitão Trevelyan? — indagou Emily. — Tentou evitar uma aproximação entre ambos?

      Um sorriso meio irônico flutuou nos lábios do major.

      — Não, ela fez exatamente o contrário. Vivia assediando Trevelyan com convites para visitá-la.

      — Oh! — exclamou Emily, com ar pensativo. Fez uma pausa antes de dizer: — Portanto, ela pode... provavelmente ter alugado a casa de Sittaford com o intuito de fazer amizade com o Capitão Trevelyan.

      — Bem — o major deu a impressão de analisar tal hipótese. — Sim, suponho que ela possa ter alimentado esse propósito. De qualquer modo, seria uma maneira dispendiosa de fazer tal relacionamento.

      — Não sei não — retrucou Emily. — O Capitão Trevelyan não devia ser uma pessoa com quem se travasse conhecimento com facilidade.

      — Não, não era — concordou o amigo do falecido capitão.

      — Imagino.

      — O inspetor pensa o mesmo também — frisou Burnaby.

      Emily sentiu uma súbita irritação contra o Inspetor Narracott. Tudo que ela sugeria ou pensava parecia já ter sido cogitado pelo inspetor. Era uma coisa mortificante para uma jovem que se orgulhava de ser mais perspicaz do que as outras pessoas.

      Ela ergueu-se e estendeu a mão ao major, dizendo simplesmente:

      — Eu lhe agradeço muito.

      — Gostaria de poder ajudá-la mais — disse Burnaby. — Sou um tipo de pessoa muito simplista... sempre fui assim. Se eu fosse um sujeito mais atilado, talvez fosse capaz de descobrir algo que servisse como pista. De qualquer modo, conte comigo para o que precisar.

      — Obrigada — respondeu Emily. — Farei isso.

      — Até logo, senhor — disse Enderby. — Como já sabe, voltarei depois com minha câmara.

      Burnaby emitiu uma espécie de resmungo.

      Emily e Charles voltaram para a casa da Sra. Curtis.

      — Venha ao meu quarto, preciso conversar com você — disse Emily.

      Já no quarto da moça, esta sentou-se numa cadeira e Charles na cama. Emily retirou seu chapeuzinho e o atirou com precisão sobre um móvel do quarto.

      — Agora, preste atenção — disse ela. — Acho que já consegui um ponto de partida. Posso estar certa ou não, mas seja como for, é uma idéia razoável. Acho que há vários pontos falhos naquela história de fazer uma mesa falar. Você já tomou parte nesse tipo de entretenimento, não?

      — Oh, sim, várias vezes. Nada de sério, na verdade.

      — Claro que não. É o tipo de coisa que se pratica num fim de tarde chuvosa, e há sempre alguém que acusa um outro de fazer truques. Bem, se você já conhece o jogo deve saber o que acontece. A mesa estremece e em suas vibrações, “pronuncia” um nome... bem, um nome que todos conhecem. Muitas vezes os participantes do jogo reconhecem logo o nome dessa pessoa e todo o tempo estão inconscientemente torcendo para que seja tal ou qual nome. E aí há sempre quem acabe dando um empurrãozinho na mesma, involuntário sem dúvida, quando a mesa vai emitir a última letra. E aí a coisa pára. E quanto menos você deseja fazer tal gesto involuntário, mais incide nele.

      — Sim, é verdade — assentiu Enderby.

      — Não creio em espíritos ou algo desse gênero. Mas suponhamos que uma daquelas pessoas que se achavam jogando soubesse que o Capitão Trevelyan seria assassinado naquele minuto...

      — Oh, isso seria ir longe demais — protestou Charles.

      — Bem, não é preciso colocar a coisa tão cruamente assim. Estamos apenas formulando uma hipótese, só isso. Nós presumimos que alguém sabia que o Capitão Trevelyan estava morto e não podia, de modo algum, ocultar essa certeza. E a mesa delatou seus sentimentos.

      — Isso é terrivelmente engenhoso — disse Charles, — mas não posso crer que seja verdade.

      — Mas devemos encarar tal fato como verdadeiro — disse Emily, com firmeza. — Estou convencida de que na apuração de um crime não se deve temer a admissão de uma hipótese.

      — Oh, estou inteiramente de acordo — disse Enderby. — Nós a admitiremos como verdadeira... como você deseja.

      — Assim sendo, o que temos a fazer é analisar bem as pessoas que estavam participando do jogo naquela noite. Para começar, temos o Major Burnaby e o Sr. Rycroft. Bem, parece muito improvável que qualquer dos dois tivesse um cúmplice que cometesse o assassinato. Então, temos o Sr. Duke. Bom, no momento nada sabemos sobre ele. Morador ainda recente e, naturalmente, pode ser até uma figura misteriosa... fazer parte de uma gangue ou algo assim. Poremos um X sobre seu nome. E então chegamos às Willetts... Charles, acho que há alguma coisa misteriosa demais envolvendo essas duas mulheres.

      — O que teriam elas a ganhar com a morte do Capitão Trevelyan?

      — Bem, aparentemente nada. Mas se a minha teoria for correta, deve haver uma correlação qualquer. Teremos que descobrir qual é essa conexão.

      — Certo. Mas suponhamos que essa teoria seja uma pura ilusão.

      — Bem, aí teremos que recomeçar tudo de novo — retrucou Emily.

      — Um momento! — exclamou Charles subitamente.

      Ele fizera um sinal para que a jovem calasse. Então foi à janela, abriu-a e tanto ele como Emily, que também se aproximara, ouviram o ruído que lhe despertara a atenção. Era o som distante de um grande sino.

      Enquanto eles prestavam atenção àquele dobre muito forte, ouviu-se a voz excitada da Sra. Curtis lá no corredor.

      — Ouviu o toque do sino, senhorita... Ouviu bem?

      Emily abriu a porta do quarto.

      — Ouviu o sino? — perguntou a Sra. Curtis. — Está claro como água. Agora já sei do que se trata!

      — O que houve? — perguntou Emily.

      — É o sino de alarma de Princetown, senhorita. Fica a doze milhas daqui. Significa que um detento fugiu. George, George, onde se meteu este homem? Não ouviu o sino tocar? Foi um preso que escapou — foi dizendo em voz alta ao internar-se na cozinha.

      Charles fechou a janela e voltou a sentar-se na cama.

      — É uma pena que as coisas aconteçam em ocasião errada — disse ele calmamente. — Se ao menos esse detento tivesse fugido na sexta-feira, aí seria apontado como o mais provável assassino do capitão. A coisa seria logo descrita assim: um homem faminto e desesperado, criminoso convicto, ataca o Capitão Trevelyan. Este defende seu castelo inglês... e o criminoso em desespero o mata. Tudo muito simples.

      — Sim, teria sido simples — murmurou Emily, com um suspiro.

      — Em vez disso, esse detento escapa da prisão três dias depois. Foi... como uma falha num enredo novelesco — observou Charles, movendo a cabeça com ar desgostoso.

     

O SR. RYCROFT

EMILY acordou cedo na manhã seguinte. Sendo uma jovem inteligente, percebeu que seriam mínimas as possibilidades de contar com a colaboração do Sr. Enderby antes que a manhã já estivesse bem avançada. Assim, sentindo-se inquieta e incapaz de ficar mais tempo deitada, resolveu empreender um pequeno passeio por Sittaford, mas seguindo na direção oposta a que tinham percorrido para chegar ali de carro.

      Ela caminhou deixando para trás, à sua direita, a mansão de Sittaford e viu que, pouco depois, a vereda se desviava bruscamente para a direita e ia mergulhar no sopé de uma colina onde o solo era ligeiramente relvoso. A manhã era agradável, o frio menos intenso e revigorante. E a paisagem era atraente.

      Emily subiu até o cimo do Pico de Sittaford, um bloco de rocha acinzentada, com um contorno incomum. Ali do alto, ela pôde ver lá embaixo uma extensa faixa da charneca, deserta até onde sua vista alcançava, sem uma casa sequer ou estrada transitável. No lado oposto ao pico, bem abaixo dela, desenhavam-se massas escuras de granito e pedras.

      Depois de contemplar aquele cenário por um instante, Emily voltou-se para observar o lado norte do qual viera. Bem abaixo dali estava a parte habitada de Sittaford, encravada no flanco da colina, destacando-se de saída como uma mancha escura e quadrada a mansão Sittaford. Mais adiante, os bangalôs. Deitando o olhar mais além, no vale, ela podia ver Exhampton.

      — Devíamos ver melhor as coisas de uma altura como esta — pensou Emily, meio confusa. — Deveria ser como visualizar o interior de uma casa de bonecas quando lhe retiramos o teto.

      Desejaria, de todo coração, ter conhecido, nem que fosse apenas de passagem, o falecido capitão. É tão difícil formar uma opinião sobre uma pessoa que nunca se viu, pensou a jovem. Tinha que se basear no julgamento feito por outras pessoas, e Emily nunca considerara este tipo de julgamento superior ao seu. As impressões tidas pelos outros nunca nos parecem suficientes. Podem ser tão verdadeiras como as nossas, continuou pensando a moça, mas não se pode ter um confronto seguro, nem agir baseado em opiniões de terceiros.

      Refletindo exaustivamente sobre esse problema, Emily suspirou com impaciência e mudou de posição. Estivera até ali tão imersa em seus próprios pensamentos que nem atentara para o que a cercava. Assim, foi com surpresa e um leve susto que sé viu diante de um homem já idoso e baixinho, parado a poucos passos dela. Ele retirara o chapéu cortesmente, e sua respiração era um pouco ofegante.

      — Perdão — disse o cavalheiro — mas é a Srta. Trefusis?

      — Sim — respondeu Emily.

      — Meu nome é Rycroft. Talvez estranhe que eu já a conheça, mas numa pequena comunidade como a nossa os menores detalhes são logo conhecidos e sua chegada aqui, ontem, naturalmente foi percebida. Quero que saiba que todos nós compreendemos e lamentamos a sua situação, Srta. Trefusis. E estamos, todos aqui, desejosos de ajudá-la da forma que nos for possível.

      — Uma atitude muito gentil de sua parte — disse Emily.

      — Nada demais — retrucou o Sr. Rycroft. — Desculpe-me pela maneira um pouco fora de moda com que me expresso, mas nunca se deve deixar de ajudar uma bela jovem num momento de aflição. Mas, falando sério, senhorita, pode contar comigo se de algum modo eu puder ser-lhe útil. Temos uma bela vista aqui de cima, não acha?

      — Maravilhosa — concordou Emily. — É um belo recanto este.

      — Deve ter sabido que um prisioneiro fugiu na noite passada de Princetown.

      — Sim. Ele já foi recapturado?

      — Creio que ainda não. Mas, pobre homem, será logo apanhado. Posso dizer com certeza que nenhum detento teve êxito ao fugir de Princetown nos últimos vinte anos.

      — Em que direção fica Princetown?

      O Sr. Rycroft esticou o braço e apontou para o sul além da charneca.

      — Fica mais além daquele ponto, cerca de doze milhas seguindo em linha reta sobre a terra virgem da charneca. Umas dezesseis milhas pela estrada.

      Emily estremeceu ligeiramente. A imagem daquele homem desesperadamente acuado a impressionava bastante. O Sr. Rycroft a observava e murmurou:

      — Compreendo o que está sentindo. Dá-se o mesmo comigo. É curioso como nosso instinto de rebeldia e independência desperta ao pensarmos nesse homem sendo caçado. E no entanto esses homens presos em Princetown são todos criminosos de grande periculosidade, gente que a senhorita e eu provavelmente desejaríamos sinceramente que ficassem lá para sempre.

      O Sr. Rycroft sorriu, como se pedisse desculpas pela sua pequena digressão.

      — Deve desculpar-me, Srta. Trefusis, mas me interesso profundamente pelo estudo da vida criminal. Um estudo fascinante, sem dúvida. Ornitologia e criminologia são meus assuntos prediletos. — Fez uma breve pausa e então prosseguiu: — Eis aí o motivo por que, e se a senhorita permitir, eu gostaria de lhe emprestar a minha colaboração nesse caso que a preocupa. Estudar os elementos de um crime em primeira mão tem sido um sonho que até hoje não consegui realizar. Desejaria confiar em mim e permitir que coloque minha experiência a seu dispor, Srta. Trefusis? Na verdade, tenho lido bastante e estudado profundamente esse assunto.

      Emily demorou um pouco a responder. No íntimo se sentia feliz por ver como os acontecimentos estavam se encaminhando a seu favor. Um material humano e uma fonte de informações em primeira mão lhe eram oferecidas e ela teve a impressão de já estar vivendo há muito tempo em Sittaford. “Um ângulo de ataque”, pensou Emily, repetindo o que pensara momentos antes. Sim, era do que precisava. Primeiro tentara encontrá-lo na pessoa do Major Burnaby, de forma simples e direta. Mas ele se revelara um observador rotineiro dos fatos, sem nenhuma atenção a sutilezas. Mas agora ela tinha um outro ponto de partida, um ângulo novo e que poderia alargar-lhe a visão daquele caso. Aquele homem idoso, baixinho, de rosto enrugado, tinha lido e estudado profundamente, era um bom conhecedor da natureza humana. Denotava essa curiosidade ávida pela vida, natural num homem de pensamento, bem o contrário do homem de ação e muito prático que era o Major Burnaby.

      — Por favor, me ajude — ela acabou dizendo em tom simples. — Eu me sinto muito preocupada e infeliz.

      — É natural que se sinta assim, minha jovem, muito natural. Bem, segundo soube, o sobrinho mais velho de Trevelyan foi preso ou detido... sendo as provas contra ele de algum modo simples e quase óbvias. Mas eu, naturalmente, tenho minha própria maneira de pensar. E que a senhorita me permitirá expor.

      — Claro — disse Emily. — Por que o senhor crê na inocência de Jim quando nem sequer o conhece?

      — Bem pensado — disse o Sr. Rycroft. — Na realidade, vejo que a senhorita já se constitui num motivo de observação sugestivo. Mas a propósito, seu nome... é córnico como o do nosso finado amigo Trevelyan?

      — Sim. Meu pai era da Cornualha, minha mãe, escocesa.

      — Ah! Muito interessante. Agora abordemos nosso pequeno problema. Suponhamos, por um lado, que o jovem Jim — é o nome dele, não? — estivesse precisando de dinheiro com urgência. Aí pensou em vir procurar seu tio, em Exhampton. Vendo seu pedido de empréstimo ser recusado, e num momento de desespero e privação de sentidos, apanha o saquinho de areia que estava no chão junto à porta e desfere um golpe na cabeça de seu tio. Trata-se de um crime não premeditado..., na realidade um ato irrefletido e uma maneira deplorável de resolver um assunto comum. Bem, agora vejamos a questão por um outro ângulo: ele pode ter saído da casa de seu tio muito irritado e aí então outra pessoa tenha entrado logo após e cometido o crime. Isso é o que a senhorita imagina que aconteceu, e que eu, para ser franco, também espero que tenha ocorrido. Eu não gostaria que o seu noivo tivesse cometido o crime, porque do meu ponto de vista seria algo muito vulgar — observou o Sr. Rycroft, com certo humor. — Desse modo, estou me apoiando em outra hipótese, a de que o crime foi cometido por outra pessoa. Devemos ficar com tal pressuposição e passarmos ao ponto mais importante. Alguém teria conhecimento da discussão ocorrida entre tio e sobrinho? Teria esse incidente precipitado, de fato, a ação do assassino? Percebe onde quero chegar? Alguém estaria premeditando matar o Capitão Trevelyan e aproveitou aquela oportunidade, ciente de que as suspeitas iriam recair sobre o jovem Jim.

      Emily analisou a questão daquele ângulo e começou a dizer:

      — Nesse caso...

      O Sr. Rycroft apressou-se a concluir:

      — Sim, nesse caso, o assassino deveria ser uma pessoa muito íntima do Capitão Trevelyan. E residir em Exhampton. Tudo indica que deveria achar-se na casa, na ocasião da discussão ou depois. E já que não estamos num tribunal e podemos comentar livremente nomes e fatos, o criado da vítima, Evans, me parece uma pessoa que se encaixa bem em nossa hipótese. Um homem que bem poderia ter estado naquela casa, ouvido a discussão e aproveitado a oportunidade que se lhe oferecia. Nossa próxima preocupação seria então saber se Evans se beneficiaria de algum modo com a morte de seu patrão.

      — Creio que ele receberia um pequeno legado.

      — Isso poderia ou não constituir motivo suficiente. Precisamos apurar se Evans tinha ou não necessidade premente de dinheiro. Devemos também levar em conta a Sra. Evans, casada recentemente. Se tivesse estudado criminologia, Srta. Trefusis, estaria a par dos estranhos efeitos provocados por uniões consanguíneas, especialmente nas zonas rurais. Há pelo menos quatro jovens senhoras em Broadmoor, de maneiras educadas e simpáticas, mas com uma disposição de ânimo curiosa, como se a vida humana pouco ou nada lhes importasse. Não, nós não devemos deixar de lado a Sra. Evans.

      — E o que pensa sobre essa história da “mesa que falou”, Sr. Rycroft?

      — Bem, foi um estranho incidente. Muito estranho, Srta. Trefusis. Reconheço que fiquei bastante impressionado com o que aconteceu na ocasião. Como talvez já tenha ouvido falar, sou alguém que crê nessas ocorrências psíquicas. Até certo ponto, sou um adepto do espiritualismo. O caso ocorrido na mansão Sittaford foi autêntico e surpreendente. Cheguei a enviar um comunicado sobre o mesmo para a Sociedade de Pesquisas Psíquicas. Cinco pessoas presentes, nenhuma delas podendo ter a menor idéia ou suspeita de que o Capitão Trevelyan fora assassinado.

      — O senhor não supõe...

      Emily não prosseguiu a frase. Não era nada fácil insinuar na presença do Sr. Rycroft que uma daquelas cinco pessoas tivera uma presciência culposa do crime, já que ele próprio participara da sessão. Não que ela suspeitasse nem de leve que algo pudesse relacionar o Sr. Rycroft com o assassinato do capitão. Na realidade, achava que aquela insinuação não seria conveniente. Assim pensando, procurou apresentar a questão de uma maneira menos direta.

      — Essa história me interessa bastante, Sr. Rycroft; foi, como acabou de dizer, um caso surpreendente. O senhor não acha que alguma das pessoas presentes, com exceção do senhor, naturalmente, estaria em transe mediúnico?

      — Minha jovem e estimada senhorita, eu mesmo não sou um médium. Não possuo poderes psíquicos nesse sentido. Sou apenas um observador profundamente interessado desses fenômenos.

      — E que me diz do Sr. Garfield?

      — Um moço simpático, mas de personalidade bem comum.

      — Um boa-vida, imagino — arriscou Emily.

      — E quebrado — completou o Sr. Rycroft. — Espero estar usando a palavra correta no caso. Ele veio a Sittaford para prestar assistência à sua tia, em quem deposita o que eu chamaria de “grandes esperanças”... A Srta. Percehouse é uma pessoa inteligente e acho que conhece muito bem o motivo das atenções com que é cercada pelo sobrinho. Mas ela possui um tipo de humor sardônico, muito seu, e permite que o rapaz se desmanche em atenções.

      — Gostaria de conhecê-la.

      — Sim, certamente irá vê-la. Sem dúvida, ela se proporá a conhecê-la. Curiosidade, minha prezada Srta. Trefusis... A curiosidade sempre presente.

      — Fale-me sobre as Willetts — pediu Emily.

      — Encantadoras — declarou o Sr. Rycroft. — Têm muito charme... no estilo colonial britânico, naturalmente. Sem qualquer inibição, pode-se entender a que me refiro. Com um senso de hospitalidade um pouco exagerado. Muito apegadas ao lado decorativo das coisas. A Srta. Violet é uma jovem encantadora.

      — Que lugar divertido escolheram para passar o inverno.

      — Sim. Uma escolha esquisita, não é mesmo? Mas, no fundo, tem sua lógica. Nós vivemos neste país ansiando por sol, clima mais quente, palmeiras ondulantes... Pessoas residentes na Austrália ou na África do Sul, em troca, se deliciam com a idéia de um Natal à antiga, com neve e gelo.

      “Imagino que elas lhe tenham dito isso”, pensou Emily.

      Achava que não seria necessário internar-se numa aldeia campestre semideserta a fim de presenciar um Natal tradicional com neve e muito frio. Era evidente que o Sr. Rycroft não via nada de suspeito na escolha das Willetts de uma estação de inverno. Mas tal atitude, ela ponderou, talvez fosse natural em alguém que era um ornitologista e um estudioso dos fatos criminais. Sittaford mostrava-se claramente como uma morada ideal para o Sr. Rycroft, e ele não podia imaginá-lo como um ambiente inadequado para outras pessoas.

      Eles tinham descido devagar a ladeira da colina enquanto conversavam e agora estavam perto dos bangalôs.

      — Quem mora naquele ali? — perguntou bruscamente Emily.

      — O Capitão Wyatt. É um paralítico. E a meu ver, muito insociável.

      — Era amigo do Capitão Trevelyan?

      — Amigo íntimo não. Trevelyan simplesmente lhe fazia uma visita de pura cortesia, de vez em quando. Na verdade Wyatt desencoraja os visitantes. Um homem intratável.

      Emily ficou calada. Estava pensando numa maneira de ser recebida no bangalô de Wyatt. Não pretendia desistir de qualquer ponto que pudesse servir-lhe na investigação daquele caso.

      De repente, lembrou-se do nome de um dos participantes da sessão e que ainda não fora mencionado até ali.

      — E a respeito do Sr. Duke? — ela indagou vivamente.

      — Que tem ele?

      — Bem, quem é esse homem?

      — Bom — retrucou o Sr. Rycroft lentamente — isso é o que ninguém sabe.

      — Curioso — observou Emily.

      — Na realidade, não é bem assim. Compreenda, Duke é um indivíduo inteiramente sem mistérios. Suponho que a única coisa misteriosa sobre ele é sua origem, seu ambiente social. Não... não de todo, se me entende. Mas é um bom sujeito e abastado — apressou-se a acrescentar.

      Emily ficou em silêncio.

      — Este é meu bangalô — disse o Sr. Rycroft, parando. — Talvez você queira me dar a honra de entrar e observá-lo.

      — Adoraria conhecê-lo — disse Emily.

      Deram alguns passos pelo pequeno jardim e entraram no bangalô. O interior era muito agradável. Estantes de livros alinhavam-se ao longo das paredes.

      Emily foi de uma a outra das estantes, olhando de relance, curiosa, os títulos das obras. Uma seção era dedicada ao ocultismo, uma outra ocupava-se de novelas policiais modernas, mas a maior parte dos livros tinha como tema a criminologia e os julgamentos mais famosos. Obras de ornitologia, em comparação, mereciam destaque bem menor.

      — Acho isto tudo delicioso — disse Emily. — Mas tenho que voltar agora. Imagino que o Sr. Enderby já esteja à minha espera. Para falar a verdade, ainda nem fiz meu desjejum. Combinamos com a Sra. Curtis às nove e meia, e vejo que já são dez horas. Eu me atrasei bastante... mas a nossa conversa foi muito interessante, Sr. Rycroft, e me foi muito útil.

      — Saiba que pode contar comigo, em tudo que estiver ao meu alcance — murmurou o Sr. Rycroft, quando Emily lhe endereçou um olhar cativante. — Afinal, nós agimos em colaboração.

      Emily lhe estendeu a mão que ele apertou efusivamente.

      — É maravilhoso — disse ela, usando uma expressão que em sua ainda curta experiência da vida achava a mais efetiva — sentirmos que há alguém em quem podemos realmente confiar.

 

A SRTA. PERCEHOUSE

CHARLES esperou que Emily acabasse de comer ovos mexidos com fatias de presunto. Enquanto isso, a Sra. Curtis, ainda muito excitada com a fuga do presidiário, falava pelos cotovelos:

      — Faz dois anos que o último escapou de Princetown. Mas três dias depois já o tinham apanhado, perto de Moretonhampstead.

      — Acha que ele virá por este caminho? — perguntou Charles.

      — Eles nunca escolhem esta zona, muito descampada. E há somente pequenas aldeias quando se sai da charneca — retrucou a Sra. Curtis, exibindo seu conhecimento da topografia local. — O mais provável é que vá para Plymouth. Mas antes de chegar lá, eles o apanharão.

      — Poderia encontrar um bom esconderijo entre aquelas rochas do outro lado do pico de Sittaford — observou Emily.

      — Tem razão, Srta. Trefusis, e ali há um lugar bem escondido que chamam de Caverna de Pixie. Uma abertura estreita entre duas rochas, difícil de se encontrar, e que se dilata para o interior. Dizem por aqui que um dos defensores do Rei Charles ali se ocultou certa ocasião por duas semanas, e que uma criada de uma fazenda lhe trazia comida às escondidas.

      — Gostaria de visitar essa Caverna de Pixie — disse Charles.

      — Ficaria surpreso com a dificuldade em encontrá-la, senhor. Muitas pessoas durante piqueniques de verão já passaram uma tarde inteira procurando esse refúgio sem descobri-lo, mas se o senhor chegar a encontrá-lo certamente deixará algo ali dentro como sinal de sua sorte.

      Já tinham terminado o pequeno almoço e estavam no jardim, quando Charles disse:

      — Estive pensando... Valeria a pena dar um pulo a Princetown? É curioso como as coisas se acumulam quando se tem um pouco de sorte. Aqui estou, depois de ter vindo para entregar um simples prêmio de uma loteria esportiva, e antes mesmo de me ambientar neste lugar já deparei com um caso de assassinato e a fuga de um presidiário. Que chance espetacular!

      — E quanto à entrevista e as fotos com o Major Burnaby em seu bangalô? — limitou-se a perguntar Emily.

      Charles olhou para o céu e depois retrucou:

      — Hum... Acho que o tempo não está favorável a boas fotos. Muito nebuloso e quanto mais eu esticar a minha razão de estar aqui em Sittaford, melhor será... — observou com um sorriso. — Ah, espero que não fique aborrecida comigo por eu ter enviado ainda há pouco para meu jornal a entrevista que “fiz com você”...

      — Oh, fez bem — disse Emily, mecanicamente. — O que você me fez dizer nessa entrevista?

      — Oh, as coisas que habitualmente as pessoas gostam de saber — disse Enderby. — “Nosso enviado especial entrevistou a Srta. Emily Trefusis, noiva do Sr. James Pearson, que foi preso pela polícia acusado do assassinato do Capitão Trevelyan...” A seguir, meu depoimento pessoal sobre você, que descrevi como uma bela moça, inteligente...

      — Obrigada pela parte que me toca — disse Emily.

      — ...e teimosa — acrescentou Charles. — Que quis dizer com isso?

      — Por acaso você não é uma garota obstinada?

      — Bem, naturalmente que sou. Mas por que mencionou isso?

      — As nossas leitoras sempre gostam de saber — retrucou Charles. — A entrevista está ótima. Não faz idéia das coisas tocantes e bem femininas que “você diz”, na mesma, ao afirmar que lutará por seu noivo, não importando que o mundo inteiro fique contra ele.

      — Eu disse isso realmente? — exclamou Emily, ligeiramente confusa.

      — Será que disse o que não devia? — perguntou Charles, com ar ansioso.

      — Oh, não! Faça bom proveito, meu benzinho.

      Charles olhou-a meio envergonhado e intrigado.

      — Está tudo bem. Foi apenas uma citação que eu fiz. Essa frase figurava no meu babador, quando era bem pequenininha... O meu babador dos domingos — explicou Emily, sorrindo. — Os dos dias úteis tinham outra inscrição: “Não seja gulosa.”

      — Ah, entendi. Acrescentei um bom relato sobre a carreira marítima do Capitão Trevelyan, com umas pitadas de mistério e aventura, referentes a uns ídolos exóticos roubados e a hipótese de uma estranha vingança por parte do guardião de tais relíquias... Somente uns toques de emoção, você sabe como são essas coisas.

      — Bem, parece que você praticou sua boa ação do dia.

      — E que esteve fazendo até há pouco? Caramba, como acordou cedo.

      Emily descreveu seu encontro com o Sr. Rycroft.

      Ela calou-se de repente e Enderby, seguindo a direção assumida pelo olhar da jovem, viu que um rapaz robusto, de rosto corado, se acercava rapidamente do portão, fazendo gestos e pigarreando para chamar a atenção.

      — Saibam que lamento muito vir interrompê-los. Sinto-me até sem jeito, mas minha tia insistiu em que eu viesse.

      — Ah, sim? — disseram Emily e Charles, quase ao mesmo tempo.

      — Sim. Para ser franco, minha tia é uma ditadora. O que ela diz é para ser feito logo, se entendem o que quero dizer. Naturalmente, acho uma temeridade permanecer neste lugar com um tempo como o de agora, mas se conhecessem minha tia saberiam que ela sempre faz o que deseja...

      — A Srta. Percehouse é sua tia? — interrompeu Emily.

      O jovem Ronnie, que estava meio embaraçado, sentiu-se aliviado por ver encurtada a apresentação. — Então já a conhece. A velha Mamãe Curtis na certa já a informou. Ela tem uma língua, hem? Não que seja uma bisbilhoteira, isso não. Bem, o fato é que minha tia deseja conhecer a senhorita, e eis por que vim até aqui correndo dizer-lhe isso. Envia-lhe seus cumprimentos, esperando não tomar muito seu tempo. Sendo ela uma inválida, inteiramente impossibilitada de locomover-se, encararia como uma grande gentileza de sua parte ir vê-la. Bem, a senhorita deve saber como são essas coisas. Simples curiosidade da minha tia, naturalmente. Assim, se a senhorita pretextar uma dor de cabeça ou alguma carta para escrever, tudo ficará bem e não precisará incomodar-se.

      — Oh, mas eu gostaria de visitar sua tia — retrucou Emily. — Irei com você agora mesmo. O Sr. Enderby tem que sair para ver o Major Burnaby.

      — Tenho mesmo? — disse Charles, meio surpreso.

      — Tem sim — disse Emily, com firmeza.

      Endereçando-lhe um rápido aceno, ela acercou-se do rapaz que estava junto ao portão.

      — Suponho que seja o Sr. Garfield — disse Emily, quando já caminhavam rumo ao bangalô da Srta. Percehouse.

      — Sim. Eu devia ter-me apresentado a você.

      — Oh, bem, não foi muito difícil de adivinhar.

      — Muito gentil sua atitude — disse o Sr. Garfield. — Outras moças se sentiriam até ofendidas com essa “intimação” da minha prezada tia. Mas você sabe como são essas velhas senhoras.

      — Não mora aqui, não é, Sr. Garfield?

      — Por certo que não — retrucou Ronnie Garfield, com veemência. — Já viu lugar mais desolado do que este? Vai mais além do que os filmes podem mostrar. Imagino que alguém não precisaria cometer um crime aqui para torná-lo mais sinistro e...

      Fez uma pausa reconhecendo o mau gosto de sua observação.

      — Desculpe. Sinto muito ter dito tal coisa. Sou o maior desastrado deste mundo. Sempre me saindo com uma frase infeliz. Nem por um segundo pensei no que disse a sério, acredite.

      — Estou certa disso — disse Emily, em tom aquietante.

      — Bem, chegamos.

      Ronnie Garfield abriu o portãozinho, e Emily entrou. Cruzou o pátio do pequeno bangalô, idêntico aos outros. Na sala de visitas que dava para o jardim via-se um sofá e deitada nele uma velha senhora com o rosto enrugado e um dos narizes mais pronunciados e interrogativos que Emily já vira até ali. A Srta. Percehouse apoiou-se num cotovelo para se erguer ligeiramente, com pequeno esforço.

      — Então você a trouxe — disse ela, olhando de relance para o sobrinho. — Muita gentileza de sua parte, minha querida, em vir visitar uma velha. Mas você sabe o que acontece quando se é uma inválida. A gente quer participar de tudo que está acontecendo e como não se pode ir até onde está a coisa que nos interessa, ela deve vir a nós. E não pense que é tudo uma questão de mera curiosidade, é mais do que isso. Ronnie, agora você pode ir pintar aquelas duas cadeiras de vime e o banco do jardim. Estão no barracão dos fundos. Encontrará ali a tinta já preparada e tudo o mais.

      — Está bem, tia Caroline.

      E o sobrinho, obediente, retirou-se.

      — Sente-se — disse então a Srta. Percehouse.

      Emily sentou-se na cadeira que lhe fora indicada. Estranho ou não, o fato é que experimentou de imediato interesse e simpatia por aquela senhora de meia-idade, paralítica e muito franca. Na realidade, sentiu que havia certa afinidade unindo-as.

      “Aqui está alguém que vai direto ao fundo de cada questão, sabendo onde pisa e como conduzir a situação. Tal como eu, só que conto mais com a minha simpatia pessoal e ela com sua personalidade forte”, pensou Emily.

      — Então você é a jovem que está noiva do sobrinho de Trevelyan — disse a Srta. Percehouse. — Tenho ouvido falar bastante de você e agora ao vê-la aqui entendo exatamente o motivo do interesse que despertou.

      — Obrigada.

      — Detesto mulheres cheias de dengos e baboseiras. Gosto das que levantam a cabeça e sabem agir.

      A Srta. Percehouse fixou um olhar penetrante em Emily antes de dizer:

      — Imagino que sinta pena de mim... sempre deitada aqui sem poder mover-me e andar por aí.

      — Não — respondeu Emily, com ar ponderado. — Não sei o que faria no seu caso, mas suponho que alguém, se tiver determinação, sempre saberá o que fazer de sua vida. Se não consegue fazer as coisas de um modo, sempre o conseguirá de outro.

      — Perfeitamente correto. Tudo depende de encararmos a vida de um prisma diferente.

      — Um ângulo de ataque — murmurou Emily.

      — Como disse?

      Do modo mais sucinto que lhe foi possível, Emily descreveu a teoria que tinha esboçado aquela manhã e o modo como pensava executá-la em relação ao assunto que a interessava.

      — Nada mau — disse a Srta. Percehouse balançando a cabeça. — E agora, minha querida... nós vamos ao que interessa. Não sendo uma tola, suponho que você veio a esta aldeia para apurar o que puder sobre o pessoal daqui, e ver se descobre assim algo sobre o assassinato. Bem, se há alguma coisa que queira saber sobre as pessoas daqui, posso dizer para você.

      Emily não perdeu tempo. Sempre concisa e como tratasse de um negócio, foi logo indagando:

      — Que me diz do Major Burnaby?

      — Um típico oficial de marinha reformado, de mentalidade estreita e visão limitada, zeloso de seus interesses. Ingênuo em questões de dinheiro. O tipo de homem que investe numa companhia fantasma, digamos a das Espumas dos Mares do Sul, porque não consegue ver um palmo na frente de seu nariz. Gosta de pagar suas dívidas imediatamente e desgosta de pessoas que não limpam seus pés no capacho.

      — E o Sr. Rycroft?

      — Um homenzinho esquisito, tremendamente pretensioso. Um excêntrico. Gosta de se imaginar um sujeito maravilhoso. Suponho que já se tenha oferecido para ajudá-la a resolver o caso baseado nos seus magníficos conhecimentos de criminologia.

      Emily disse que tal acontecera e perguntou:

      — E o Sr. Duke?

      — Nada sei sobre esse homem... no entanto devia saber. Um tipo muito comum. Queria saber mais... e não consigo. É estranho. Parece assim como um nome que está na ponta de nossa língua e no entanto durante uma vida inteira não conseguimos nos lembrar ao certo.

      — E as Willetts?

      — Ah! as Willetts! — A Srta. Percehouse ergueu um pouco o corpo, apoiando-se num cotovelo novamente, com ar mais animado. — Que se sabe realmente sobre as Willetts? Mas eu lhe direi alguma coisa sobre elas, minha jovem. Poderá ser útil para você ou não. Vá até aquela minha escrivaninha e abra a gaveta de cima... a única à esquerda... Sim, essa. Traga-me o envelope branco que está aí.

      Emily fez o que lhe era pedido.

      — Não garanto que seja importante... talvez até nem o seja — disse, pensativa, a Srta. Percehouse. — Todo mundo costuma mentir de um modo ou de outro, e a Sra. Willett está perfeitamente capacitada a fazer o mesmo que as demais pessoas.

      Pegou o envelope e inseriu dois dedos em seu interior.

      — Vou lhe dizer do que se trata. Quando as Willetts aqui. chegaram, com suas roupas feitas, suas empregadas e com as malas cheias de novidades, estas vieram pelo ônibus. Mãe e filha chegaram no velho Ford. E, naturalmente, como você pode calcular, a coisa toda foi um acontecimento aqui. Eu estava perto da porta e as vi passar. Então notei que um rótulo colorido se desprendera de uma das malas e viera voando, tocado pela brisa, até cair num de meus canteiros. E se há coisa que detesto é ver desperdiçada uma folha de papel ou sobras de algo qualquer. Assim, mandei o Ronnie ir apanhar o que caíra. Foi preciso quase forçá-lo a ir, mas quando me trouxe o tal papel, vi que era um bonito rótulo que eu poderia usar nos álbuns de estampas e recortes que preparo para as crianças do hospital. Bem, eu não pensaria mais nesse rótulo se a Sra. Willett não mencionasse deliberadamente em duas ou três ocasiões que Violet nunca se ausentara da África do Sul, e que ela mesma só conhecia a Inglaterra e a Riviera.

      — Ah, sim?

      — Exatamente. E agora... veja isto.

      A Srta. Percehouse colocou na mão de Emily o rótulo de bagagem, com a seguinte inscrição: “Hotel de Mendle, Melbourne”.

      — Austrália e não África do Sul — observou a Srta. Percehouse — pelo menos assim era nos meus tempos de menina. Não digo que isso seja importante, mas sempre merece atenção. E lhe direi outra coisa relacionada com o mesmo ponto. Tenho ouvido a Sra. Willett chamar a filha, usando a exclamação Côo-ee,? que é uma forma de chamamento mais típica da Austrália que da África do Sul. E isso, a meu ver, é curioso. Por que alguém não quereria admitir que viera da Austrália se tal era o caso?

      — Certamente que é curioso. E também é estranho que elas tenham vindo para cá durante o inverno.

      — Isto salta aos olhos. Você já esteve com elas?

      — Não. Pensava em ir lá esta manhã. Só que não sei como justificar essa visita.

      — Eu providenciarei esse pretexto para você — disse, incisiva, a Srta. Percehouse. — Apanhe para mim aquela caneta-tinteiro, algumas folhas de papel e um envelope. Isso. Agora... deixe-me ver. — Fez uma pausa intencional e então, sem qualquer preâmbulo, ergueu a voz num grito de comando.

      — Ronnie, Ronnie, Ronnie! Onde se meteu esse surdo? Por que nunca aparece logo quando é chamado? Ronnie! Ronnie!

      Ronnie apareceu quase correndo, pincel cheio de tinta na mão.

      — Aconteceu alguma coisa, tia Caroline?

      — Por que iria acontecer? Chamei você, só isto. Comeu algum bolo especial com o chá quando esteve ontem na casa das Willetts?

      — Bolo?

      — Sim, bolo, sanduíches... o que seja. Como custa a pegar as coisas, rapaz. O que vocês comeram junto com o chá?

      — Havia um bolo de café — disse Ronnie, bastante embaraçado — e alguns sanduíches de patê...

      — Bolo de café — repetiu a Srta. Percehouse, pensativa. — Isto irá servir. — E começou a escrever rapidamente. — Pode voltar para a sua pintura, Ronnie. Não fique aí imaginando coisas de boca aberta. Suas adenóides foram extraídas quando você tinha oito anos, assim não há desculpa para sua atitude.

      Ela continuou a escrever:

QUERIDA SRA. WILLETT:

       Soube que ontem em sua casa foi servido ao chá um bolo de café muito delicioso. Poderia ter a gentileza de me dar a receita? Sei que não se incomodará que lhe peça isto... afinal uma inválida tem tão poucas coisas com que se interessar além de suas refeições. A Srta. Trefusis se ofereceu gentilmente para levar este bilhete, já que o Ronnie está ocupado esta manhã. Essas notícias sobre o preso que fugiu não são bastante inquietantes?

       Com os cumprimentos sinceros de

                                              CAROLINE PERCEHOUSE

      Colocou o papel dobrado no envelope, fechou-o e escreveu no mesmo o nome da destinatária.

      — Aí está, querida jovem. É muito provável que encontre a porta daquela casa cheia de repórteres. Vários deles passaram não faz muito na jardineira de Forder. Eu os vi daqui. Mas pergunte diretamente pela Sra. Willett e diga que traz um recado meu, assim logo a farão entrar. Não preciso dizer que mantenha seus olhos bem abertos e aproveite ao máximo sua visita. Sei que fará isso a seu jeito.

      — Você é muito gentil, muito mesmo — disse Emily.

      — Eu ajudo os que sabem ajudar-se a si mesmos. A propósito, você não me perguntou o que eu penso de Ronnie. Suponho que ele figure na sua lista do pessoal daqui. A seu modo, ele é um bom garoto, mas de vontade muito fraca. Sinto dizer-lhe que ele seria capaz de quase tudo por dinheiro. Veja só como ele procede comigo! E não tem o bom-senso de perceber que eu gostaria dele dez vezes mais se me enfrentasse agora e sempre, e me mandasse ir pára o diabo.

      Respirando fundo, a Srta. Percehouse concluiu:

      — A outra pessoa de que resta falar é o Capitão Wyatt. Creio que fuma ópio. E é, de longe, o homem mais mal-humorado da Inglaterra. Alguma coisa mais que deseje saber?

      — Creio que não — retrucou Emily. — O que me contou foi bem elucidativo.

 

EMILY VISITA A CASA DE SITTAFORD

ASSIM QUE EMILY se pôs a caminhar, percebeu que o tempo mudara mais uma vez naquela manhã. A neblina já descia sobre tudo ali.

      — Que lugar terrível este para se viver na Inglaterra, pensou Emily. — Se não está nevando ou chovendo lá vem a neblina. E quando o sol aparece, tudo continua tão frio que se fica com as mãos e os pés adormecidos.

      Suas divagações sobre o tempo foram interrompidas por uma voz muito rouca e áspera que soou bem próxima de seu ouvido direito.

      — Desculpe-me — disse o dono da voz —, mas por acaso viu por aí um bull terrier?

      Emily parou e voltou-se para a direita. Inclinado sobre o portão estava um homem alto e magro, de pele muito morena, olhos injetados e cabelo grisalho. Estava se apoiando numa muleta, e olhava Emily com grande interesse. Ela não teve dificuldade em identificá-lo como o Capitão Wyatt, proprietário do bangalô n.° 3.

      — Não, não o vi.

      — Meu cachorro saiu por aí. Um bicho de estimação, mas muito bobo. E com todos esses carros e coisas...

      — Não acho que passem muitos veículos por aqui — disse Emily.

      — Durante o verão camionetas passam por esta estrada às dúzias — disse o Capitão Wyatt, sombrio. — E há o ônibus matinal que sai de Exhampton. Vai até o farol de Sittaford, com uma parada no meio do caminho para refrescos e muita algazarra.

      — Sim, mas não estamos no verão — observou Emily.

      — Mas a mesma caravana acabou de chegar justamente hoje. Repórteres, eu suponho, dispostos a dar uma olhada na casa de Sittaford.

      — Conhecia bem o Capitão Trevelyan?

      Emily intuíra que a escapulida do cachorro fora um mero pretexto ditado pela evidente curiosidade do Capitão Wyatt em conhecê-la. Ela se sabia o centro principal de atenção no momento, em Sittaford. E era natural que o Capitão Wyatt, como os outros ali, desejasse vê-la de perto.

      — Não sei muita coisa sobre ele. Trevelyan me vendeu este bangalô.

      — Sim? — disse Emily, incentivando-o a prosseguir.

      — Um sovina, isto é ó que ele era — disse o Capitão Wyatt. — Segundo o combinado, ele é que deveria entregar a casa pintada de acordo com o gosto do comprador, e justamente por isso é que eu quis janelas de cor creme e portas pintadas de amarelo limão. Mas para fazer tal pintura ele queria que eu arcasse com metade das despesas. Declarou que o combinado fora uma cor uniforme.

      — Então o senhor não simpatizava com ele.

      — Estávamos sempre às turras — retrucou o Capitão Wyatt.

      — Mas eu sempre andei tendo essas rixas com todo mundo — acrescentou, como se pensasse melhor sobre o que dissera. — Num lugar como este tem-se que ensinar as pessoas a deixarem um homem em paz. Estão sempre batendo à nossa porta, se insinuando e bisbilhotando. Não me incomodo de ver pessoas aqui quando estou disposto... mas tem que ser a meu modo e não do delas. Nem o velho Trevelyan, com seus ares de senhor feudal, entrava aqui quando queria. Não há viva alma neste lugar que me venha incomodar agora — completou com satisfação.

      — Oh! — fez Emily.

      — O melhor de tudo é ter um criado nativo — disse logo a seguir o Capitão Wyatt. — Eles entendem nossas ordens. Abdul! — gritou.

      Um indiano alto e de turbante acercou-se da entrada do bangalô e aguardou atento.

      — Entre e beba alguma coisa — disse o capitão a Emily. — E veja meu pequeno bangalô.

      — Sinto, capitão, mas estou com pressa.

      — Não, você tem tempo.

      — Não tenho não. Estou com um encontro marcado.

      — Ninguém entende o modo de vida de hoje em dia — comentou o Capitão Wyatt. — Um corre-corre para pegar trens, compromissos inadiáveis, tempo marcado para tudo... Um absurdo. Acordem com o nascer do sol, digo sempre, comam quando sentirem vontade e nunca se prendam a horas ou datas marcadas. Eu poderia ensinar as pessoas como devem viver, se pudessem me ouvir.

      Emily pensou que os resultados dessa exaltada maneira de viver não eram muito animadores. Nunca encontrara um homem tão azedo e amargurado como o Capitão Wyatt. Mas, sentindo que sua curiosidade já fora satisfeita o bastante por enquanto, insistiu mais uma vez sobre o seu compromisso e afastou-se.

      A mansão Sittaford tinha uma porta principal de madeira sólida de carvalho, um sininho muito polido, um enorme capacho de arame e uma caixa de correspondência de metal muito brilhante. Como era óbvio para Emily, isso representava conforto e bom tom. Uma criadinha bem vestida e com ar formal veio abrir a porta.

      Emily deduziu que os repórteres já tinham estado ali assim que a empregada disse num tom frio:

      — A Sra. Willett não atenderá a mais ninguém esta manhã.

      — Eu trago um recado da Srta. Percehouse.

      As palavras de Emily operaram uma mudança de atitude da empregada! Denotando indecisão, ela acabou por dizer:

      — Entre, por favor.

      Emily foi introduzida no que os agentes imobiliários de Exhampton tinham descrito como “um vestíbulo bem aparelhado”, e daí passou a uma ampla sala de visitas. A lareira estava acesa e havia pequenos detalhes reveladores da presença feminina ali. Algumas tulipas artificiais, uma sacola de costura de crochê, um chapeuzinho de moça e um pierrô de pano com pernas longas, pousado a um canto. Como Emily pôde observar, não havia fotografia alguma naquele aposento.

      Tendo observado tudo que havia para ser visto ali, Emily estava aquecendo suas mãos junto à lareira quando a porta foi aberta e uma jovem entrou na sala. Era muito bonita e, como Emily notou, estava usando um vestido elegante e caro. Mas também concluiu nunca ter visto uma moça tão apreensiva. Mas não era algo aparente, pois a Srta. Willett procedeu como se estivesse perfeitamente à vontade. Dando alguns passos na direção da visitante, apertou-lhe a mão, dizendo:

      — Bom dia. Lamento que minha mãe não possa descer, pois ela passou a manhã de cama.

      — Oh, sinto muito, receio ter vindo em má hora.

      — Não. claro que não. A cozinheira está transcrevendo a receita do bolo. Ficamos encantadas que a Srta. Percehouse queira tê-la. Você está hospedada com ela?

      Emily sorriu intimamente ao perceber que aquela casa era talvez a única em Sittaford onde seus moradores não estavam perfeitamente a par de seus movimentos e nem sabiam por que ela ali estava. Naquela residência se estabelecia um modo de ser bem definido de patrões e empregados. Estes deviam saber quem era ela e o que fazia... os patrões certamente que não.

      — Eu não estou realmente hospedada lá, mas sim na casa da Sra. Curtis.

      — Naturalmente que o bangalô da Srta. Percehouse é muito pequeno, e ela está com o sobrinho morando lá, o Ronnie, não é mesmo? Assim, suponho que não haveria um quarto para você também. Ela é uma pessoa maravilhosa, não? Sempre achei que tem muita personalidade, mas na verdade sinto um pouco de receio dela.

      — É um pouco mandona, não é isso? — admitiu Emily em tom jovial. — Mas não deixa de ser uma tentação para alguém agir desse modo, especialmente quando as pessoas não sabem se impor na sua presença.

      Violet Willett suspirou, retrucando:

      — Eu gostaria muito de saber encarar as pessoas. Hoje tivemos uma manhã terrível sempre incomodadas por repórteres.

      — Ah, sim, claro. Esta casa é a do Capitão Trevelyan, certo? O homem que foi assassinado em Exhampton.

      Emily estava tentando descobrir a verdadeira causa do nervosismo de Violet Willett. A mocinha estava evidentemente tensa. Alguma coisa a assustava... e bastante. Assim, Emily fizera uma menção proposital ao Capitão Trevelyan. A jovem não esboçara uma reação visível, mas provavelmente aguardava uma referência àquele caso.

      — Sim, não foi uma coisa horrível?

      — Diga-me, por favor, será que não se incomoda em tocar nesse assunto?

      — Oh, não... Claro que não. Por que eu iria me incomodar?

      “Há algo errado com essa garota”, pensou Emily. — Acho. que não sabe o que está dizendo. O que a terá perturbado em especial esta manhã?

      — Ah, e quanto àquela sessão... — disse Emily, a seguir. — Ouvi algo a respeito, casualmente, e me pareceu tão assustadoramente interessante... quero dizer, muito chocante. — E pensou ao mesmo tempo: “Dar sustos em garotas impressionáveis” é meu forte.

      — Oh, foi horrível — exclamou Violet. — Que noite... eu nunca poderei esquecê-la! De início, pensamos, é claro, tratar-se de uma tolice... só que tinha o ar de uma brincadeira de mau gosto.

      — Ah, sim?

      — Nunca me esquecerei da ocasião em que acenderam as luzes e... todos ficaram se olhando de modo estranho. Menos o Sr. Duke e o Major Burnaby... eles são do tipo de pessoas imperturbáveis, e nunca admitiriam se impressionar por algo desse gênero. Mas, mesmo assim, deu para notar que o major ficara realmente preocupado com o incidente. Agora tenho para mim que ele acreditou naquilo mais do que os outros. Cheguei a pensar que o pobrezinho do Sr. Rycroft ia ter um ataque cardíaco ou algo parecido, mas ele já deve estar habituado a esse tipo de coisa, porque tem pesquisado bastante esses fenômenos psíquicos. E quanto ao Ronnie, falo de Ronnie Garfield, que você já conhece, ele dava a impressão de que vira um fantasma... e realmente vira um. Até minha mãe ficou muito impressionada... como nunca a vira antes.

      — Deve ter sido algo sobrenatural — disse Emily. — Gostaria de ter estado presente.

      — Foi horrível realmente. Todos nós pretendíamos nos divertir um pouco apenas, mas o que aconteceu depois nada teve de divertido. E então o Major Burnaby de repente cismou de ir a Exhampton. Tentamos dissuadi-lo, dizendo que poderia ficar até congelado no caminho com aquela neve toda caindo, mas ele decidiu-se a sair. E nós ficamos ali sentados depois que ele partiu, muito preocupados. E então, na noite passada... não, ontem de manhã, soubemos do que acontecera.

      — Acha que foi o espírito do Capitão Trevelyan que se manifestou naquele fim de tarde? — perguntou Emily, com entonação deliberadamente assustada. — Ou pensa que foi um caso de Clarividência ou telepatia?

      — Oh, eu não sei. Mas nunca mais farei pouco dessas coisas de novo.

      A empregada entrou na sala trazendo uma folha de papel dobrada numa salva de prata. Entregou-a a Violet.

      Quando a empregada se retirou, Violet desdobrou o papel, leu rapidamente e estendeu-o a Emily.

      — Aqui está a receita. Para ser franca, você veio bem a tempo. Esse assassinato perturbou nossas criadas. Elas acham perigoso viver neste lugar tão isolado. Mamãe perdeu a paciência com elas ontem à tarde e lhes disse para arrumarem suas malas e ir embora. É o que farão após o almoço. Nós vamos contratar dois homens para o serviço desta casa: um mordomo e um doublê de camareiro e motorista. Acho que dará mais certo.

      — Essas criadas são um pouco simplórias, não é mesmo?

      — Afinal, tem-se a impressão até de que o Capitão Trevelyan foi morto nesta casa.

      — O que a fez pensar em vir morar aqui? — perguntou Emily, procurando tornar a pergunta o mais simples e pueril possível.

      — Oh, nós pensamos que seria realmente divertido, diferente — retrucou Violet.

      — Não achou isto aqui monótono?

      — Oh, não, adoro o campo.

      Mas seu olhar evitava o de Emily. Por um instante ela pareceu desconfiada e receosa.

      Mexeu-se na cadeira, pouco à vontade, e Emily ergueu-se meio relutante, dizendo:

      — Agora tenho que ir. Muito obrigada pela sua atenção, Srta. Willett. Desejo as melhoras de sua mãe.

      — Oh, ela está realmente bem. Foi apenas o aborrecimento com esse problemas das empregadas e toda... essa agitação.

      — É natural.

      De costas para a jovem, muito discretamente, Emily deixou suas luvas sobre uma mesinha de canto. Violet Willett acompanhou-a à porta e trocaram algumas palavras amáveis de despedida.

      A empregada que recebera Emily não fechara a porta da frente, mas assim que Violet fechou-a, Emily, lá fora, não percebeu o ruído da chave girando na fechadura. Assim, mal chegou ao portão, deu meia volta e acercou-se de novo da entrada da casa, devagar.

      Aquela visita viera confirmar a teoria que ela ideara acerca da mansão Sittaford. Havia alguma coisa estranha ocorrendo ali. Não pensava que Violet Willett estivesse diretamente envolvida no caso... isto a menos que ela fosse realmente uma atriz consumada. Mas havia algo que não encaixava bem ali, e isso devia ter qualquer ligação com o crime. Devia haver algum elo entre as Willetts e o falecido Capitão Trevelyan, e nessa ligação podia estar a chave para aquele mistério.

      Emily alcançou a porta da frente, girou a maçaneta suavemente e, no umbral, observou o vestíbulo, agora vazio. Ficou imóvel um instante, incerta quanto ao que faria agora. Contava com um pretexto, as luvas que deixara propositadamente sobre a mesinha da sala de visitas. Ficou parada, apurando o ouvido. Não se ouvia o menor ruído ali, exceto um leve murmúrio de vozes no andar de cima. Devagar e o mais silenciosamente possível, Emily chegou ao pé da escada e olhou para cima. Então, foi subindo, um degrau de cada vez, pisando macio. Era uma atitude arriscada, sem dúvida. Não poderia alegar, é claro, que suas luvas tivessem voado até o andar superior, mas era grande seu desejo de ouvir algo da conversa mantida num dos quartos. Na opinião de Emily, os construtores modernos nunca cuidavam de que as portas se encaixassem bem. Sempre se podia captar fiapos de conversa atrás das portas. Um passo adiante... outro mais... As vozes eram de duas mulheres. De Violet e sua mãe, sem dúvida.

      De repente houve uma brusca interrupção da conversa... e um ruído de passos. Emily afastou-se rapidamente.

      Quando Violet Willett abriu a porta do quarto de sua mãe e desceu a escada, surpreendeu-se ao ver sua visitante de há pouco parada no vestíbulo, procurando algo com o jeito de um cãozinho perdido.

      — Minhas luvas — explicou Emily. — Eu devo tê-las deixado aqui. Voltei para apanhá-las.

      — Espero que estejam aqui realmente — disse Violet.

      As duas moças foram à sala de visitas, onde, naturalmente, sobre a tal mesinha estavam as luvas esquecidas propositadamente por Emily.

      — Oh, aqui estão. Muito obrigada. Foi uma distração tola a minha. Estou sempre perdendo coisas assim.

      — E você precisa muito de luvas com este tempo. Está tão frio — observou Violet. — E de novo acompanhou Emily até a saída. Só que dessa vez a porta foi fechada a chave.

      Emily tinha agora algo mais para pensar, pois quando a porta do quarto da Sra. Willett fora aberta por Violet, ela pudera ouvir distintamente uma frase pronunciada em tom irritado e queixoso. A Sra. Willett dissera isto:

      — Meu Deus, eu não suporto mais. Será que a noite de hoje vai custar a chegar?

     

TEORIAS

Ao VOLTAR AO BANGALÔ. Emily soube que seu jovem amigo saíra. A Sra. Curtis explicou que ele saíra com vários outros jovens senhores. Mas tinham chegado dois telegramas para Emily. Depois de lê-los e guardá-los no bolso de seu casaquinho de lã, ouviu a Sra. Curtis indagar, com ar curioso:

      — Espero que não sejam más notícias, hem?

      — Oh, não.

      — Sempre sinto um calafrio quando chega um telegrama — observou a Sra. Curtis.

      — Compreendo. Causa sempre preocupação.

      No momento, Emily desejava mais que tudo ficar sozinha, para pôr em ordem seus pensamentos. Subiu logo para seu quarto e, pegando lápis e papel, passou a fazer anotações seguindo seu próprio método de trabalho. Vinte minutos depois, sua tarefa era interrompida pela chegada de Charles Enderby.

      — Olá, você já está aqui. O pessoal da imprensa andou a manhã toda à sua procura, mas parece que perderam sua pista em algum canto. De qualquer modo, foram informados por mim que você não desejava ser incomodada. No que se relaciona a você, eu me transformei num tipo importante, seu porta-voz.

      Charles sentou-se na cadeira — Emily estava ocupando a cama — e sorriu ao comentar:

      — Inveja e malícia não têm vez comigo! Tenho contornado bem as coisas. Conheço todo mundo e estou no caminho certo. Essa situação toda é boa demais para ser verdade. Tenho até a impressão de que estou sonhando e vou acordar de um minuto para o outro. A propósito, você viu que cerração forte a de hoje?

      — Mas isso não me impedirá de ir a Exeter esta tarde.

      — Quer mesmo ir a Exeter?

      — Sim. Tenho que me encontrar com o Sr. Dacres. Meu advogado, você sabe, o mesmo que está cuidando da defesa de Jim. Ele deseja conversar comigo. E pretendo fazer uma visitinha a Jennifer, a tia de Jim, para aproveitar a oportunidade. Além do mais, Exeter fica apenas a meia hora de viagem daqui.

      — Isso significa que ela podia ter vindo de trem, golpeado seu irmão na nuca e ninguém daria pela sua ausência.

      — Oh, sei que é uma hipótese muito improvável, mas temos que nos apegar a tudo numa investigação. Não que eu imagine a tia Jennifer fazendo uma coisa dessas, não. Mais certo seria suspeitar de Martin Dering. Detesto esse tipo de homem que entra para uma família decente e faz certas coisas publicamente que não se pode justificar sem sentir certa vergonha.

      — E ele é desse tipo de pessoa?

      — Encaixa muito bem e é a personificação ideal de um assassino... sempre recebendo indicações de bookmakers e perdendo dinheiro em corridas de cavalos. Chega a ser uma frustração o fato de contar com um bom álibi. O Sr. Dacres me falou sobre esse detalhe. Um encontro com um editor e um jantar de escritores, um álibi respeitável e difícil de refutar.

      — Um jantar literário — repetiu Enderby. — Sexta-feira à noite. Martin Dering... espere um pouco... Martin Dering... mas sim... Estou quase certo de que ouvi algo a respeito dessa reunião. Agora não me recordo bem, mas posso esclarecer logo as coisas, telegrafando para o Carruthers.

      — De que está falando? — perguntou Emily, intrigada.

      — Já vou explicar. Como sabe, eu vim a Exhampton na noite de sexta-feira. Bem, eu estava querendo obter umas informações e um colega de jornal, o Carruthers, iria passá-las para mim. Ele ficara de me encontrar por volta de seis e meia, antes de ir a um jantar de literatos fazer uma reportagem. Caso não pudesse me ver, enviaria as informações pelo correio para Exhampton. Bem, ele faltou ao encontro, mas me enviou algumas notas.

      — E que tem a ver essa história com o que conversávamos?

      — Não fique impaciente, já vou chegar ao ponto desejado. Meu colega devia estar meio alto ao escrever aquelas notas, deve ter aproveitado bem os vinhos servidos na reunião, como sempre. Depois de me fornecer a informação que eu desejava, gastou várias linhas descrevendo com minúcias o tal jantar. Você sabe... os discursos que ocorrem nessas ocasiões, as frases brilhantes ditas por um famoso novelista e um teatrólogo de sucesso. Carruthers acrescentou que ficara muito mal colocado à mesa durante o jantar. Havia um lugar vago a seu lado onde deveria sentar-se Ruby McAlmott, essa incrível novelista e do outro lado a cadeira estava reservada para o especialista em sexo, Martin Dering, que não aparecera. Aí Carruthers acercou-se de outro convidado, um poeta muito conhecido em Blackheath, para ver se o entrevistava. Que me diz agora?

      — Querido Charles! Isso é ótimo! — exclamou Emily, eufórica. — Quer dizer então que aquele grosseirão não esteve no jantar?

      — Exatamente.

      — Tem certeza de que não houve nenhum engano?

      — Absoluta. Eu joguei fora a tal carta, infelizmente, mas se você quiser, posso pedir confirmação por telegrama ao Carruthers. Mas sei que não cometi nenhum engano quanto ao nome do convidado ausente.

      — Ainda resta o encontro de Dering com o tal editor, é claro. Mas imagino que seja um editor que já tenha voltado a esta hora para os Estados Unidos. E se for esse o caso, o álibi resulta ardiloso. Tenho a impressão de que Martin escolheu alguém de passagem pelo nosso país, justamente para tornar mais embaraçosa e demorada uma comprovação do tal encontro.

      — Você acha que acertamos no alvo? — perguntou Charles.

      — Bem, é a impressão que se tem. Penso que a melhor coisa a fazer agora é... é irmos procurar aquele amável Inspetor Narracott e contar-lhe o que apuramos. Sim, porque nós não podemos contactar com um editor norte-americano que pode estar a esta altura a bordo do Mauritânia ou do Berengaria ou em outro navio qualquer. Isto é tarefa para a polícia.

      — Se essa história der certo, que furo! — exclamou Enderby. — E aí o Daily Wire não me poderá pagar menos do que...

      Emily interrompeu bruscamente os sonhos de melhoria salarial e promoção do jovem Charles, ao dizer:

      — Mas não devemos precipitar-nos e colocar tudo a perder. Eu irei a Exeter e não sei se poderei voltar ainda hoje. Mas tenho uma missão para você.

      — Que tipo de missão?

      Emily relatou então sua visita às Willetts e a estranha frase que ouvira antes de sair da casa. E frisou:

      — Temos necessidade absoluta de saber o que está para acontecer ali hoje à noite. Sinto que há alguma coisa no ar.

      — E deve ser algo incomum.

      — Assim parece. Mas é claro que pode ser uma simples coincidência. No entanto, você fica com a pulga atrás da orelha ao saber que a criadagem foi despedida hoje precisamente. Algo está para acontecer naquela casa à noite, e você tem de estar no local para ver do que se trata.

      — Você não está querendo que eu passe a noite toda tremendo de frio escondido no jardim daquela casa, hem?

      — Bem, acho que pode agüentar, não? Jornalistas não olham para obstáculos quando têm um bom assunto em vista.

      — Quem lhe disse isso?

      — Ninguém me contou, eu sei. Você fará o que lhe peço, não é mesmo?

      — Oh, claro. Não pretendo perder nada dessa história. Se alguma coisa estranha está para acontecer na mansão Sittaford hoje à noite, eu estarei lá.

      Emily falou então sobre o rótulo da bagagem das Willetts.

      — Não deixa de ser estranho — observou Enderby, pensativo. — É na Austrália que está o caçula dos Pearson, não? Claro que esse detalhe talvez não signifique nada, mas ainda assim... Bem, pode haver uma conexão.

      — Hum... Acho que é tudo por enquanto, Charles. Você tem mais alguma coisa a me contar?

      — Bem... eu tenho uma idéia.

      — Ah, sim?

      — Só que não sei se você irá gostar.

      — Que quer dizer com isso?

      — Você não vai aborrecer-se comigo?

      — Suponho que não. Pretendo esperar para ouvir calmamente o que me tem a dizer, seja o que for.

      — Bem, o fato é que... — começou Enderby, meio incerto quanto à possível reação da jovem — não desejo parecer ofensivo, ou algo assim, mas você acha que seu noivo declarou estritamente a verdade?

      — Você quer dizer que no fundo ele pode ter cometido o crime. Bem, você pode adotar essa opinião se ela lhe parece certa. Eu lhe disse, desde o início, ser essa a versão mais aparente do caso, mas também frisei que teríamos que agir juntos partindo do pressuposto de que Jim não praticou esse assassinato.

      — Eu não me referia a esse ponto. Compartilho da sua opinião de que ele não matou o velho capitão. O que quero saber é até que ponto é verdadeira a história que ele contou sobre a visita feita ao seu tio. Ele declarou que esteve lá, conversou com o capitão e depois saiu, deixando-o ainda vivo e bem disposto.

      — Sim.

      — Bem, agora lhe pergunto: não acha possível que ele já tivesse encontrado o tio morto naquela casa? Quero dizer que ele pode ter ficado apavorado e depois não quisesse tocar nesse detalhe, com receio do que iriam pensar.

      Charles expusera essa teoria meio constrangido, mas sentiu-se aliviado por ver que Emily não demonstrava a menor intenção de se irritar e refutar tal idéia. Em vez disso, ela ergueu as sobrancelhas, pensativa.

      — Não pretendo negar esse fato, Charles. É bem possível: Eu não tinha pensado ainda nesse detalhe. Sei que Jim não é capaz de matar ninguém, mas ele pode perfeitamente ficar confuso e contar uma mentira tola depois e então se apegar à mesma. Sim, é perfeitamente possível.

      — O problema é que você não pode ir aonde ele está agora e questioná-lo. Acho que não a deixarão vê-lo na prisão.

      — Mas eu posso pedir ao Sr. Dacres que converse com Jim. Um advogado tem livre acesso aos presos. O pior de tudo é que Jim é terrivelmente teimoso. Se diz uma coisa não volta atrás.

      — Essa é a minha opinião e tinha que expô-la — disse Enderby, com ar compreensivo.

      — Sim, eu sei, Charles, e estou contente que me tenha chamado a atenção para essa hipótese que não me ocorrera até aqui. Nós estávamos procurando alguém que esteve na casa depois de Jim ter saído... mas se tal pessoa lá esteve antes...

      Emily fez uma pausa, mergulhada em seus pensamentos. Duas teorias bem distintas levavam a rumos opostos. Havia a sugerida pelo Sr. Rycroft, segundo a qual o ponto determinante fora a discussão de Jim com o tio. A outra teoria, contudo, não incluía nenhuma ação efetiva por parte de Jim Pearson. A primeira coisa a fazer agora, pensou Emily, seria falar com o médico que fizera o exame inicial no cadáver. Se houvesse uma possibilidade de o Capitão Trevelyan ter sido morto, digamos, às quatro horas da tarde, isto resultaria numa diferença significativa em relação aos álibis. E outra providência a tomar seria solicitar ao Sr. Dacres que insistisse junto a seu cliente sobre a necessidade premente de relatar a verdade acerca da questão.

      Emily levantou-se e disse, com ar resoluto:

      — Bem, agora seria interessante você providenciar um meio mais rápido de esta sua amiga chegar a Exhampton. Acho que o ferreiro tem um carro para alugar. Podia dar um pulo lá e resolver isso para mim? Pretendo sair logo após o almoço. Há um trem às três e dez para Exeter. Isto me dará tempo para visitar o médico antes. Que horas são?

      — Meio-dia e meia — disse Enderby, consultando seu relógio.

      — Então podemos ir juntos resolver o assunto do carro. E ainda há outra coisa que quero fazer antes de deixar Sittaford.

      — Qual é?

      — Vou trocar algumas palavras com o Sr. Duke. É a única pessoa residente em Sittaford que ainda não conheço. E ele foi um dos participantes daquela sessão na casa das Willetts.

      — Nós passamos pelo bangalô dele a caminho da ferraria.

      O bangalô do Sr. Duke era o último do conjunto. Emily e Charles abriram o portãozinho de madeira e entraram no jardim. Foi aí que ocorreu algo de inesperado. A porta da frente foi aberta e um homem saiu. E este homem era o Inspetor Narracott.

      Ele também mostrou-se surpreso e, como Emily supôs, meio embaraçado.

      Emily desistiu de seu. propósito inicial e disse:

      — Estou contente de encontrá-lo aqui, Inspetor Narracott. Há uma ou duas coisas que gostaria de falar com o senhor, se fosse possível.

      — Com muito prazer, Srta. Trefusis. — Tirou o relógio do bolso do colete, olhou as horas e disse: — Receio que nossa conversa tenha que ser muito breve. Estou com o carro esperando. Devo voltar a Exhampton agora mesmo.

      — Que feliz casualidade. Poderia dar-me uma carona, inspetor?

      Narracott respondeu de modo meio forçado que teria prazer em levá-la a Exhampton.

      — Charles, você pode ir apanhar minha maleta. Já está arrumada.

      Charles afastou-se imediatamente.

      — É uma grande surpresa encontrá-la aqui, Srta. Trefusis — disse o inspetor.

      — Daquela vez eu lhe disse au revoir — lembrou-lhe Emily.

      — Não prestei a atenção devida na ocasião.

      — De certo modo o senhor nem prestou atenção em mim — disse Emily, com ar ingênuo. — Sabe, Inspetor Narracott, o senhor cometeu um engano. Jim não é o homem que estava procurando.

      — Não diga!

      — E há mais uma coisa, eu creio sinceramente que o senhor concorda comigo nesse ponto.

      — O que a faz pensar assim, Srta. Trefusis?

      — Que veio fazer no bangalô do Sr. Duke? — desconversou a jovem.

      Narracott pareceu embaraçado, e Emily aproveitou para insistir:

      — O senhor está em dúvida, inspetor... Sim, é isto mesmo. Pensou que prendera o homem certo, mas agora já começa a ter dúvidas, assim está fazendo algumas investigações. Bem, eu tenho algo para lhe dizer e que talvez lhe sirva de ajuda. Contarei tudo a caminho de Exhampton.

      Ouviram passos apressados e logo Ronnie Garfield aparecia, com ar de garoto que matou aula, quase sem fôlego.

      — Srta. Trefusis — ele foi logo dizendo. — Que me diz de um passeio esta tarde? Enquanto minha tia tira um cochilo, é claro.

      — Impossível — retrucou Emily. — Estou de saída para Exeter.

      — Oh, não! Quer dizer que vai embora?

      — Não. Estarei de volta amanhã.

      — Ah! Isso é ótimo.

      Emily tirou um papel dobrado do bolso de seu casaquinho de lã e entregou-o a Ronnie, dizendo:

      — Pode dar isto à sua tia? É uma receita de bolo de café. E diga a ela que foi bem a tempo, pois a cozinheira está de partida hoje e haverá uma troca de criados. Conte isso a ela, sei que gostará de saber.

      O eco de um grito ali perto veio até eles.

      — Ronnie, Ronnie!

      — É a minha tia — disse Ronnie, sobressaltado. — Será melhor eu ir logo.

      — Acho que sim — observou Emily. — Está com uma mancha de tinta verde na face esquerda — ela acrescentou, quando o rapaz já se afastava apressado. — Viu que Charles Enderby já se acercava e concluiu: — Aí está meu jovem amigo, com a minha mala. Vamos, inspetor. Eu lhe contarei tudo no carro.

     

VISITA À TIA JENNIFER

ERAM DUAS E MEIA quando Emily passou pelo consultório do Dr. Warren. Este simpatizou logo com aquela jovem atraente e muito objetiva. Suas perguntas eram bem concisas, indo direto ao fundo da questão.

      — Sim, Srta. Trefusis, entendo perfeitamente o que quer dizer. Deve compreender que, ao contrário do que se lê em novelas, é extremamente difícil determinar com acerto a hora em que se deu a morte de uma pessoa. Vi o cadáver às oito horas da noite. Posso asseverar que o Capitão Trevelyan estava morto há pelo menos duas horas. Se foi um pouco antes, isto seria difícil de afirmar. Se a senhorita me disser que ele foi morto às quatro horas, deverei responder que é possível, embora pessoalmente eu ache que a morte se deu um pouco mais tarde. Por outro lado, o capitão certamente pode ter sido morto um pouco depois da hora que mencionou. Eu diria que o limite razoável seria o de quatro horas e meia.

      — Obrigada — disse Emily, dando por encerrada a conversa. — Isto é tudo que eu desejava saber.

      Emily tomou o trem das três e dez e chegando a Exeter dirigiu-se imediatamente ao hotel onde o Sr. Dacres estava hospedado.

      A entrevista com o advogado de Jim foi objetiva, sem rodeios. O Sr. Dacres conhecia Emily desde criança e cuidava de seus assuntos legais há anos.

      — Emily, deve estar preparada para ouvir o que tenho a dizer — começou o advogado. — A situação de Jim está pior do que eu imaginava.

      — Pior? — repetiu Emily.

      — Sim. Não serve de nada ocultar a verdade. Certos fatos vieram à tona e o colocaram sob um ângulo desfavorável. Refiro-me a detalhes que levam a polícia a encará-lo como o criminoso. Não estaria agindo em seu benefício se lhe ocultasse esses fatos, Emily.

      — Explique-me tudo, por favor.

      Sua voz estava perfeitamente serena e firme. Apesar do choque que sentira intimamente, não tinha nenhum desejo de se deixar levar pelos seus sentimentos. Não seria com sentimentalismos que iria ajudar Jim Pearson, mas sim com a razão. Devia manter-se controlada e muito lúcida.

      — Não há dúvida de que Jim tinha necessidade premente de dinheiro. Não pretendo, no momento, abordar o lado moral da questão. O fato é que Pearson há pouco tempo atrás passou a tomar certas quantias emprestadas — para usar um eufemismo — da firma onde trabalha... sem o conhecimento de seus chefes, poderíamos dizer assim. Ele se interessara em especular com ações e em certa ocasião ao saber que certos dividendos lhe seriam pagos dentro de uma semana, fez uso do dinheiro da firma para adquirir algumas novas ações cuja cotação, como apurou, iria apresentar-se logo em alta. A operação parecia muito satisfatória e, desse modo, o dinheiro que tomara “emprestado” da firma poderia ser reposto sem maiores problemas. Pearson parecia não ter quaisquer dúvidas quanto à honestidade da transação.

      O advogado pigarreou antes de prosseguir:

      — Aparentemente, ele repetiu essa operação há uma semana atrás. Mas dessa vez algo inesperado aconteceu. Os livros contábeis da firma que eram examinados em datas pré-marcadas foram requisitados para uma verificação antecipada. E Pearson se viu às voltas com um incômodo dilema. Tinha perfeita consciência da interpretação que dariam à atitude tomada por ele e se sentia impossibilitado de repor a soma que retirara da firma. Ele admite ter tentado um empréstimo em vários lugares, sem resultado. Como último recurso, resolveu procurar seu tio para lhe explicar sua situação e persuadi-lo a ajudá-lo. Mas o Capitão Trevelyan se recusou taxativamente.

      Após nova pausa, o Sr. Dacres concluiu:

      — E agora, minha cara Emily, nada podemos fazer para evitar que esses fatos sejam divulgados. A polícia já se inteirou do assunto. E não percebe que aí está mais um motivo premente e decisivo para o crime? Com o Capitão Trevelyan morto, Pearson poderia obter facilmente a quantia necessária na forma de um adiantamento da herança, junto ao Sr. Kirkwood, salvando-se, assim, do escândalo e de um provável processo criminal.

      — Oh, mas que grande tolo! — exclamou Emily, contristada.

      — Concordo com você — disse o Sr. Dacres, secamente. — Penso que nossa única oportunidade consiste em provar que Jim Pearson desconhecia inteiramente as disposições testamentárias de seu tio.

      Fez-se breve silêncio enquanto Emily analisava essa observação. Então disse serenamente:

      — Pois acho que essa solução é impraticável. Todos os três irmãos, Sylvia, Jim, e Brian estavam a par desse legado. Com freqüência, discutiam esse assunto, rindo e fazendo blague a respeito do tio rico de Devonshire.

      — Minha querida, isso é uma infelicidade.

      — O senhor não pensa que Jim é culpado, não, Sr. Dacres?

      — Curiosamente, não — replicou o advogado. — De certo modo, Jim é como um livro aberto. Ele não tem, se me permite dizê-lo, Emily, um conceito muito elevado do que se chama honestidade comercial, mas não creio, nem de leve, tenha golpeado mortalmente seu tio.

      — Bem, isso já é uma coisa animadora. Espero que a polícia pense o mesmo.

      — De acordo. Nossas impressões e hipóteses pessoais não têm nenhum alcance prático. A acusação contra ele, infelizmente, é muito forte. Não posso esconder de você, querida amiga, o fato de que as perspectivas são más. Gostaria de sugerir o Sr. Lorimer como defensor de Pearson, do Conselho dos Advogados. Chamam-no de defensor das causas perdidas — comentou Dacres, em tom mais ameno.

      — Há uma coisa que gostaria de saber... Tem visto, naturalmente, o Jim, não?

      — Certamente que sim.

      — Pois desejo que o senhor me diga francamente se a seu ver, ele contou toda a verdade sobre o acontecido em Exhampton.

      — Desse modo, ela apresentava ao advogado a hipótese que Enderby lhe sugerira.

      O Sr. Dacres pensou um pouco antes de responder:

      — Minha impressão é de que falou a verdade quando descreveu o encontro que teve com o tio. Mas resta uma certa dúvida de que tenha agido precipitadamente, e se de fato rodeou a casa, entrou pela janela e deparou com o corpo do tio já morto... é bem possível que tenha ficado receoso demais para admitir o fato e assim inventado uma outra história.

      — Foi o que eu também pensei. Será que poderia persuadi-lo a contar a verdade, quando for visitá-lo de novo, Sr. Dacres? Isto mudaria bastante as coisas.

      — Farei o que me diz. De qualquer modo — acrescentou após uma breve pausa —, penso que se engana quanto a esse ponto. A notícia sobre a morte do Capitão Trevelyan foi ventilada em Exhampton por volta de oito e meia. A essa hora o último trem para Exeter já partira, mas Jim Pearson não embarcou no mesmo, preferindo tomar o primeiro da manhã... o que não deixa de ser um procedimento bem inábil. Assim, ele chamou a atenção sobre seus movimentos, o que não teria acontecido caso deixasse a cidade de trem numa hora mais convencional. Se, como você sugeriu, ele descobriu o cadáver de seu tio algum tempo depois das quatro e meia, penso que aí Jim deveria partir de Exhampton logo em seguida. Há um trem que sai de lá pouco depois das seis e um outro quinze para as oito.

      — Eis um ponto sobre o qual não sei o que pensar.

      — Eu o interroguei insistentemente sobre a maneira como entrou na casa do tio — prosseguiu o Sr. Dacres. — Ele diz que o Capitão Trevelyan o fez descalçar as botas e deixá-las no alpendre. Isso explica o fato de não terem encontrado marcas de neve derretida no vestíbulo.

      — Ele não disse ter ouvido algum ruído... de qualquer espécie que lhe revelasse a presença de alguém mais na casa?

      — Nada me disse nesse sentido, mas posso perguntar a ele.

      — Obrigada. Se eu escrevesse um bilhete, o senhor poderia entregá-lo ao Jim?

      — Estará sujeito a uma leitura prévia, naturalmente.

      — Oh, eu serei muito discreta — assegurou Emily.

      Ela acercou-se da escrivaninha e escreveu algumas linhas.

MEU QUERIDO JIM:

       Tudo vai se resolver, portanto anime-se. Estou trabalhando a todo vapor para descobrir a verdade. Que grande tolo você tem sido, querido.

       Com todo o amor da

                                EMILY.

      — Está pronto — disse a jovem, entregando o bilhete ao Sr. Dacres, que o leu sem fazer comentários.

      — Eu caprichei na caligrafia, assim as autoridades da prisão poderão lê-lo com facilidade. Agora, eu tenho que ir.

      — Mas antes deixe que eu lhe ofereça uma xícara de chá.

      — Não, obrigada, Sr. Dacres. Não tenho tempo a perder. Daqui irei ver a Sra. Jennifer, tia de Jim.

      Ao chegar à Vila Laurels, Emily foi informada de que a Sra. Gardner saíra mas não tardaria a voltar.

      Emily sorriu para a empregada e disse:

      — Já que estou aqui, vou esperá-la.

      — Deseja falar com a enfermeira Davis?

      Emily, sempre disposta a conhecer a todos, respondeu sim prontamente.

      Poucos minutos depois, a enfermeira Davis, muito formal e curiosa, apareceu na sala de visitas.

      — Como vai passando? — disse Emily. — Eu sou Emily Trefusis..., uma espécie de sobrinha da Sra. Gardner. Isto é, sua futura sobrinha, pois sou noiva de Jim Pearson, que foi preso, como deve saber.

      — Oh, isso foi realmente muito desagradável — retrucou a enfermeira Davis. — Nós todos lemos nos jornais desta manhã. Que coisa terrível. Mas parece estar suportando tudo maravilhosamente bem, Srta. Trefusis...

      Havia uma leve censura na entonação da Srta. Davis. Enfermeiras de hospital, ela inclusive, eram capazes de suportar tudo por uma questão de temperamento, mas dos outros mortais esperava-se que dessem livre curso a seus sentimentos.

      — Bem, não podemos entregar os pontos — replicou Emily. — Espero que o que aconteceu não a afete muito. Quero dizer, deve ser desagradável para você estar ligada a uma família em que um de seus membros foi preso por assassinato.

      — É algo muito desagradável, naturalmente — disse a enfermeira, sensibilizada por aquela prova de consideração. — Mas o dever em relação a nossos pacientes está em primeiro lugar.

      — Ótimo. Deve ser maravilhoso para tia Jennifer saber que tem aqui alguém em quem pode confiar.

      — Oh, realmente — disse a enfermeira Davis, com um sorriso afetado —, você é muito gentil. Mas é claro que já tive outras experiências desse tipo antes dessa. Como no último caso que atendi...

      E Emily ouviu pacientemente o relato de um longo caso curioso envolvendo um divórcio meio escandaloso e uma contestação de paternidade. Após cumprimentar a enfermeira Davis por sua habilidade, discrição e savoir faire, Emily deu um jeito de voltar ao tema dos Gardners.

      — Não conheço ainda o marido de tia Jennifer. Nunca o vi. Pelo que sei, ele nunca sai de casa.

      — Não, o pobre homem não pode fazê-lo.

      — De que ele sofre, exatamente?

      A enfermeira Davis abordou o assunto com evidente gosto e orgulho profissional.

      — Então, ele pode, realmente, recuperar-se a qualquer momento — murmurou Emily, pensativa.

      — Ele está com o organismo muito debilitado.

      — Sim, naturalmente. Mas sempre há uma esperança, não é mesmo?

      A enfermeira meneou a cabeça com um pessimismo tipicamente profissional, declarando:

      — Suponho que não haja qualquer possibilidade de cura nesse caso.

      Emily tinha anotado em seu pequeno bloco o horário referente ao que ela denominara o álibi de tia Jennifer. Pensando nisso, arriscou a próxima pergunta:

      — Como parece estranho pensar que tia Jennifer se achava num cinema justamente na hora em que seu irmão era assassinado.

      — Bem melancólico, não é mesmo? Claro que ela não podia adivinhar... mas isso sempre nos perturba depois.

      Emily procurou uma maneira de descobrir o que desejava saber sem incidir numa pergunta direta.

      — Ela não terá tido uma espécie de visão ou premonição? Não foi você quem a encontrou no vestíbulo quando ela chegou e a notou com um ar diferente?

      — Oh, não — retrucou a enfermeira. — Não fui eu. Só a vi quando nos sentamos à mesa, aqui embaixo, para jantar. E ela me pareceu perfeitamente normal, como sempre. Que coisa curiosa essa sua observação.

      — Acho que fiz uma pequena confusão com outro assunto.

      — Talvez esteja se referindo a outra pessoa — sugeriu a enfermeira Davis. — Eu me atrasei um pouco naquela tarde. Senti-me até culpada de ter deixado meu paciente sozinho tanto tempo, mas ele mesmo é que insistira para que eu saísse.

      Olhou de repente para seu relógio e exclamou:

      — Oh! Ele tinha me pedido uma outra garrafa de água quente... Tenho que subir agora mesmo para atendê-lo. Peço desculpas, Srta. Trefusis.

      Emily disse que ficasse à vontade e acercou-se da lareira. Calcou o botão de uma sineta e logo a seguir a empregadinha de aspecto desleixado e um ar assustadiço entrou na sala.

      — Como você se chama? — perguntou Emily.

      — Beatrice, senhorita.

      — Bem, Beatrice, eu não sei se poderei esperar mais a minha tia, digo, a Sra. Gardner... Eu queria perguntar-lhe sobre uma coisas que ela comprou na sexta-feira passada. Sabe se ela trouxe um embrulho volumoso?

      — Não, senhorita, eu não a vi chegar.

      — Acho que você disse anteriormente que ela voltou para casa às seis.

      — Sim, senhorita, assim foi. Eu não a vi entrar, mas quando fui levar um pouco de água morna a seu quarto às sete horas, tomei um susto daqueles ao vê-la na cama e no escuro. “Eta, patroa”, eu lhe disse então, “a senhora me deu um grande susto.” E ela respondeu: “Eu cheguei há um bocado de tempo. Às seis horas.” E não vi nenhum embrulho grande no quarto — completou Beatrice, lamentando não poder ser útil naquela contingência.

      “É tudo tão difícil”, pensou Emily. — Temos que inventar tantas coisas para se obter uma resposta... Já inventei uma premonição e um embrulho de compras, mas pelo que vejo tais mentiras são muito necessárias se não desejamos que nos olhem com desconfiança. Sorriu suavemente e disse:

      — Está tudo bem, Beatrice, é uma coisa sem importância.

      Beatrice retirou-se da sala. Emily apanhou de sua bolsa um pequeno guia de horários de trens de Exeter e consultou-o.

      — Sai da estação de St. David, em Exeter às três e dez — murmurou. — Chega a Exhampton às três e quarenta e dois. Tempo suficiente para ir à casa do irmão e matá-lo... Como isto soa brutal e selvagem... e bastante absurdo também... Digamos de meia a três quartos de hora. Quais são os trens de volta? Sim, há um às quatro e vinte e cinco e também o indicado pelo Sr. Dacres, que sai de lá vinte e três minutos para as sete. Sim, é realmente possível... É uma pena que não haja nada para se suspeitar da enfermeira. Ela esteve ausente durante a tarde e ninguém sabe onde se encontrava. Mas não se comete um crime sem um motivo qualquer. Naturalmente, eu não creio que ninguém desta casa tenha assassinado o Capitão Trevelyan, mas não se pode eliminar o fato de que podiam tê-lo matado. Bem, alguém está chegando...

      Ouviu-se um murmúrio de vozes no vestíbulo, a porta foi aberta e Jennifer Gardner entrou na sala de visitas.

      — Eu sou a Emily. Emily Trefusis. Já deve me conhecer de nome... a noiva de Jim Pearson.

      — Então você é a Emily — disse a Sra. Gardner, apertando a mão da jovem. — Bem, isto é uma surpresa.

      De repente, Emily sentiu-se pequenina e frágil. Assim como uma menina pequena que se põe a fazer alguma coisa muito tola. Sim, tia Jennifer era uma criatura extraordinária. Personalidade ela a tinha de sobra, via-se logo.

      — Já tomou chá, minha querida? Ah, não? Então vamos tomá-lo aqui. Espere só um momentinho... Vou subir e ver o Robert antes.

      Uma expressão diferente flutuou em seu olhar assim que ela pronunciou o nome do marido. Sua voz forte e bela se fez mais suave. Foi como um fio de luz deslizando sobre as águas escuras de um rio.

      “Ela o adora”, pensou Emily, momentaneamente só na sala. “Mesmo assim, há algo que assusta em relação à tia Jennifer. Fico imaginando se tio Robert gosta de ser adorado tanto assim.”

      Quando Jennifer Gardner voltou à sala, já retirara seu chapéu. Emily admirou a suavidade da mecha de cabelo que lhe caía sobre a testa.

      — Deseja falar sobre o que aconteceu, Emily? Se preferir que não toquemos no assunto, eu entenderei perfeitamente.

      — Não é muito agradável falarmos sobre o que houve, não acha?

      — Só nos resta esperar que eles encontrem logo o verdadeiro assassino. Quer tocar a sineta, por favor? Temos que mandar levar o chá para a enfermeira lá em cima. Não desejo que venha tagarelar aqui na sala. Oh, como detesto enfermeiras de hospital.

      — Ela não é boa profissional?

      — Suponho que seja. Robert diz que ela é eficiente. Eu não simpatizo nada com a Srta. Davis, mas Robert afirma ser, de longe, a melhor das enfermeiras que já tivemos aqui;

      — Ela tem uma boa aparência — observou Emily.

      — Qual! Com aquelas horríveis mãos gorduchas?

      Emily observou os longos e alvos dedos de sua futura tia assim que estes tocaram o bule de leite e os tabletes de açúcar.

      Beatrice apareceu, pegou uma xícara de chá e um pratinho de biscoitos e deixou a sala.

      — Robert ficou muito abalado com o que aconteceu — disse a Sra. Gardner. — Ele sofre tantas variações de ânimo. Mas suponho que isso faça parte de sua enfermidade, sem dúvida.

      — Ele não conhecia bem o Capitão Trevelyan, conhecia?

      Jennifer Gardner moveu a cabeça em negativa.

      — Nem sequer o conhecia de vista e nem se preocupava a seu respeito. Para ser sincera, eu mesma não sofri muito com essa morte. Ele era um homem muito ganancioso, Emily. Estava a par das dificuldades que nós enfrentávamos. A nossa pobreza! Sabia que um empréstimo naquela ocasião permitiria a Robert receber um tratamento especial que provavelmente representasse sua cura. Mas ele já recebeu sua punição.

      A entonação empregada por Jennifer era profunda, tocante.

      “Que estranha mulher ela é”, pensou Emily. “Bela e terrível, como uma personagem saída de uma tragédia grega.”

      — Talvez ainda esteja em tempo — prosseguiu a Sra. Gardner. — Escrevi hoje para os advogados de Exhampton, perguntando se poderia receber algum dinheiro adiantado do que me cabe por herança. O tratamento a que me referi sob certos aspectos foge aos padrões médicos comuns, mas já deu certo em vários casos. Como seria maravilhoso, Emily, ver Robert andar de novo.

      Seu rosto ganhou uma luz nova, animou-se.

      Emily sentia-se cansada. Tivera um dia cheio, comera quase nada, e se ressentia de tantas emoções reprimidas. Aquela sala pareceu sufocá-la. Sentiu-se meio tonta.

      — Está sentindo alguma coisa, querida?

      — Está tudo bem — murmurou Emily. Mas para sua própria surpresa, aborrecida por não poder mais controlar-se acabou chorando.

      A Sra. Gardner deixou-a desabafar sem buscar consolá-la, pelo que Emily se sentiu reconhecida. Seria uma nova humilhação para ela se tal acontecesse. Limitou-se a permanecer sentada, calada, até que as lágrimas deixassem de rolar pelo rosto da jovem. E pensou:

      “Pobre menina. É muito azar essa prisão de Jim Pearson... muito desastroso. Gostaria de que alguma coisa pudesse ser feita para salvá-lo.”

     

CONVERSAS

AGINDO AGORA por sua própria conta, Charles Enderby não ficou de braços cruzados. Para inteirar-se melhor dos hábitos de vida em Sittaford, bastava apenas apelar para a Sra. Curtis de um modo parecido com alguém que abre a torneira de um hidrante. A fonte viva de informações não cessava de jorrar. Ouvindo deliciado alguma anedota mais picante, alguma lembrança curiosa, ou escutando uma série de boatos, bem esmiuçados, Charles ia separando, pacientemente, o joio do trigo. Era só aludir a um outro nome de pessoa ali residente para que o fluxo das informações seguisse nessa direção.

      Ele ficou sabendo de tudo sobre o Capitão Wyatt, seu temperamento de homem dos trópicos, sua rudeza, suas brigas com os vizinhos, seus ocasionais e surpreendentes gestos de cortesia, geralmente com mulheres jovens e atraentes. A vida que ele levava ali com seu criado indiano, seu horário peculiar de almoçar e jantar, e até o cardápio escolhido

      Charles também se inteirou a respeito da biblioteca particular do Sr. Rycroft, de seu tônico capilar, de sua insistência quanto a asseio e pontualidade estritos, sua curiosidade incomum a respeito dos hábitos de outras pessoas, a venda recente de alguns bens de grande estima pessoal, sua inexplicável ternura pelos pássaros, e a suspeita de que a Sra. Willett estava tentando conquistá-lo.

      Também ouviu falar da língua muito ferina da Sra. Percehouse e do modo como ela tiranizava seu sobrinho. E também das fofocas sobre a boa vida que o referido sobrinho levava em Londres. Ouviu repetidas informações acerca da amizade do Major Burnaby com o falecido Capitão Trevelyan, suas reminiscências pessoais e sua paixão pelo jogo de xadrez.

      Passou a conhecer tudo que se sabia ali sobre as Willetts, inclusive um possível flerte de Violet Willett com o jovem Ronnie Garfield embora ela não desse a impressão de querer conquistá-lo. Dizia-se que Violet dava misteriosos passeios pela charneca e que já fora vista ali certa vez na companhia de um moço desconhecido. Não fora, portanto, sem razão que as Willetts tinham vindo morar naquele lugar ermo, deduziu a Sra. Curtis. A Sra. Willett certamente trouxera a filha para ali a fim de exercer melhor vigilância sobre a mesma, opinou a Sra. Curtis, acrescentando: “Mas essas garotas costumam ser mais espertas do que suas mães imaginam...”

      A fonte de informações só secava em relação ao Sr. Duke. Ele estava há bem pouco tempo em Sittaford e suas atividades pareciam limitar-se apenas à horticultura.

      Já eram três e meia e, com a cabeça rodando sob os efeitos do falatório da Sra. Curtis, o jovem repórter precisava agora de refrescar as idéias e esticar um pouco as pernas. No momento tencionava conhecer mais de perto a Srta. Percehouse e seu sobrinho. O fato de já estar inteirado dos hábitos de vida daquelas pessoas de Sittaford não lhe fornecia, no entanto, um meio seguro de contactar com a altiva Srta. Percehouse. Mas quis a sorte que um rapaz acabasse justamente de sair da mansão Sittaford. E era exatamente o sobrinho da Srta. Percehouse.

      Ronnie Garfield tinha um ar meio acabrunhado, como se acabasse de receber um fora de alguém.

      — Olá — disse Charles. — Não é esta a casa do Capitão Trevelyan?

      — Esta mesma.

      — Esta manhã quis fotografá-la. Para o jornal onde trabalho, naturalmente — acrescentou logo. — Mas com aquela cerração não foi possível.

      Ronnie acreditou de boa fé nessa explicação sem ponderar que, se só fosse possível tirar fotos em dias de sol, seriam raros os instantâneos colhidos para os jornais.

      — Seu trabalho deve ser muito interessante — disse Ronnie.

      — Qual, é uma vida de cão — retrucou Charles, fiel à norma convencional de nunca demonstrar entusiasmo pelo seu próprio trabalho. — Olhou por sobre o ombro de Ronnie, na direção da fachada da casa. — Suponho que seja um lugar muito sombrio, não?

      — Não imagina a diferença que houve depois que as Willetts vieram morar nesta casa. Estive aqui no ano passado nesta época, e na verdade você diria que se trata da mesma casa. E, no entanto, não sei dizer que mágica elas fizeram para que isso acontecesse. Talvez uma certa mudança na decoração, cortinas novas e detalhes desse tipo. Para mim foi uma bênção divina elas terem vindo para cá, pode crer.

      — É, não deve ser normalmente um lugar divertido, imagino.

      — Divertido? Se eu passasse uns quinze dias seguidos aqui antes acho que ficaria doido. Não sei como minha tia agüenta viver neste lugar. Também ela não me dá sossego. Já viu seus gatos, não? Tive que pentear um deles esta manhã e o danado do bichano me arranhou todo. — E exibiu sua mão direita e o braço para que Charles comprovasse o fato.

      — Uma coisa azarada realmente — observou Enderby.

      — Eu é que sei. Mas você está fazendo alguma pesquisa ou investigação particular? Se for assim, posso ajudá-lo? Bancar o Dr. Watson para um novo Sherlock, ou algo parecido?

      — Será que há alguma pista nessa casa? — perguntou Charles, de maneira casual. — Quero dizer se o Capitão Trevelyan não terá deixado algum de seus objetos pessoais aqui.

      — Penso que não. Minha tia disse que ele levou tudo que tinha aqui. Seus troféus de caça, dentes de elefantes, presas de hipopótamos e todos os rifles e demais pertences foram encaixotados e enviados para Exhampton.

      — Dá a impressão de que ele não pretendia mais voltar aqui — comentou Charles.

      — É a idéia que se tem realmente. Não pensa que ele possa ter se suicidado?

      — Um homem que acerta um golpe perfeito em sua própria nuca com um saquinho de areia deve ser um artista no ramo do suicídio — retrucou Charles.

      — Sim, seria uma hipótese bem infeliz. Mas parece que ele tinha uma espécie de premonição — disse Ronnie, com ar animado. — Ouça, o que me diz disto? Ele percebe que há alguém em seu encalço, sabe que vai ser atacado a qualquer hora aqui, então aluga logo seu bangalô para os primeiros interessados, no caso, as Willetts.

      — As Willetts foram como um milagre caído do céu...

      — Sim, nem sei o que pensar sobre a sua vinda para cá. É curioso que alguém venha enterrar-se num lugar isolado como este. Violet não parece se preocupar com isso... na realidade diz apreciar esta aldeia. Não sei o que há com ela hoje. Imagino que seja por causa de algum problema doméstico. Não sei por que as mulheres se preocupam tanto com as empregadas. Se estas não são eficientes, basta mandá-las embora e pronto.

      — E foi justamente o que elas fizeram hoje, pelo que soube.

      — Sim. Mas mesmo assim ainda se apoquentam. A mãe está de cama com alguma crise nervosa ou algo parecido e a filha com um mau humor terrível. Praticamente me botaram para fora da casa, agorinha mesmo.

      — Elas chegaram a receber a visita da polícia aqui?

      Ronnie parou de caminhar e olhou o outro surpreso.

      — A polícia, não. Por que deveriam vir vê-las?

      — Bem, foi só uma suposição. Vi o Inspetor Narracott esta manhã, em Sittaford.

      Ronnie deixou cair seu maço de cigarros que acabara de tirar do bolso e se abaixou para apanhá-lo, dizendo meio sobres-saltado:

      — Você diz que viu o Inspetor Narracott aqui, esta manhã?

      — Sim... não é o encarregado do caso do Capitão Trevelyan?

      — Certo. Que estaria fazendo em Sittaford? Onde você o viu?

      — Oh, suponho que ele estava apenas checando dados sobre o passado do Capitão Trevelyan, fazendo algumas perguntas de rotina.

      — Acha que foi só isso?

      — Imagino que sim.

      — Será que ele pensa que alguém de Sittaford tenha algo a ver com o caso?

      — Seria algo muito improvável, não acha?

      — E inquietante. Mas você sabe como esses policiais são... Sempre metendo o nariz nos lugares errados. Pelo menos é o que se lê nas histórias de detetives.

      — Pois eu os considero uma corporação dotada de homens inteligentes — replicou Charles. — Naturalmente, a imprensa os ajuda em muito — acrescentou. — Mas se você ler com atenção um relato de um desses casos criminais, ficará surpreso com o modo como eles conseguem agarrar o criminoso sem o auxílio praticamente de nenhuma pista.

      — Bem..., é interessante saber disso, não resta dúvida. Eles certamente foram muito rápidos ao prender esse tal Pearson. Parece muito clara a acusação.

      — Clara como cristal — disse Charles. — Uma sorte que não tenha acontecido com você ou comigo, hem? Bem, agora tenho que enviar uns telegramas. O pessoal daqui parece não se utilizar muito do telégrafo... Se você gasta alguns centavos a mais ao redigi-los, logo pensam que se trata de algum fugitivo do hospício.

      Charles enviou seus telegramas, comprou um maço de cigarros e uns livrinhos de novelas policiais de gosto algo duvidoso e já bem antigas. Então voltou ao bangalô onde estava hospedado, deitou-se em sua cama e dormiu tranqüilamente, sem saber que naquele momento ele e seus afazeres, e especialmente a Srta. Trefusis, estavam sendo objeto de conversas em vários bangalôs de Sittaford...

      Desnecessário dizer que naqueles dias só havia três assuntos de conversa em Sittaford. Um deles era o assassinato do capitão, o outro a fuga do detento de Princetown, e o terceiro se referia à Srta. Emily Trefusis e seu primo. E naquele momento quatro diferentes conversas eram mantidas tendo a jovem como tema principal.

      A Conversa n.° 1 acontecia na mansão Sittaford, onde Violet Willett e sua mãe tinham justamente terminado de lavar suas xícaras de chá recém-tomado porquanto as duas empregadas já tinham partido.

      — Foi a Sra. Curtis quem me contou — disse Violet, que ainda se mostrava pálida e abatida.

      — É quase doentia a maneira como essa mulher vive tagarelando — comentou a Sra. Willett.

      — Eu sei. Parece que a tal moça está hospedada ali com um primo ou algo assim. Ela mencionou esta manhã durante a nossa conversa que está na casa da Sra. Curtis, mas eu acho que isso se deve simplesmente ao fato de a Srta. Percehouse não dispor de um quarto vago para ela. E agora me parece que ela só chegou a conhecer a Srta. Percehouse nesta manhã!

      — Essa mulher me desagrada bastante — observou a Sra. Willett.

      — Quem? A Sra. Curtis?

      — Não, não, a tal Percehouse. Esse tipo de mulher é perigoso. Vivem para descobrir tudo que podem sobre as outras pessoas. Qual, mandar aquela garota aqui para apanhar uma receita de bolo de café! Gostaria de lhe ter mandado um bolo envenenado. Isso a faria parar de vez com essa mania de interferir com a vida dos outros!

      — Eu devia ter imaginado... — começou Violet. Mas sua mãe a interrompeu.

      — Como você podia adivinhar, minha querida! E afinal de contas que mal resultou disso?

      — Por que você acha que ela veio aqui?

      — Não creio que tivesse algum propósito definido. Ela esteve apenas sondando o terreno. A Sra. Curtis tem certeza de que ela está mesmo noiva de Jim Pearson?

      — Essa moça contou ao Sr. Rycroft, segundo penso. Mas a Sra. Curtis diz que suspeitou desse noivado desde o início.

      — Bem, então a história toda é muito natural. Ela está apenas insegura, procurando encontrar alguma coisa que lhe sirva de ajuda.

      — Você não diria isso se. a visse, mamãe — retrucou Violet. — Ela não é nada insegura.

      — Gostaria de tê-la conhecido. Mas meus nervos estavam em frangalhos esta manhã. Imagino que seja uma conseqüência da conversa com aquele inspetor de polícia ontem à tarde.

      — Você foi maravilhosa, mamãe. Se pelo menos eu não tivesse cometido aquela idiotice... desmaiando. Oh, estou envergonhada de ter estragado tudo. Enquanto isso, a senhora estava ali muito serena e controlada... não movia uma pestana.

      — Eu tive um bom treinamento — observou a Sra. Willett, com uma entonação muito seca. — Se você tivesse passado pelo que eu passei... Mas não, espero que nunca lhe aconteça o mesmo, minha filha. Desejo e confio em que você tenha uma vida feliz, calma e segura.

      Violet meneou a cabeça, murmurando:

      — Tenho medo... Medo de que...

      — Não há motivo algum. E quanto ao que disse sobre ter estragado minha atuação ontem ao desmaiar, pode crer que se engana. Não fique preocupada.

      — Mas aquele inspetor... Ele pode pensar...

      — Que a simples menção do nome de Jim Pearson é que a fez desmaiar? Sim, ele certamente pensou em tal coisa. Esse Inspetor Narracott não é nenhum tolo. Mas e daí? Ele suspeitará de alguma relação... e tentará encontrá-la... mas não a descobrirá.

      — Acha que não?

      — Claro! Como poderia descobrir? Confie em mim, Violet querida. Tenho certeza do que digo e, de certo modo, aquele seu desmaio talvez tenha sido até oportuno. Nós devemos encará-lo assim.

      A Conversa n.° 2 tinha lugar no bangalô do Major Burnaby. Era praticamente um monólogo inicial, ensaiado pela Sra. Curtis, que estava de saída após ter ido recolher a roupa do major para lavar.

      — Exatamente como minha bisavó Belinda, foi o que eu disse ao Curtis esta manhã, — declarou a Sra. Curtis com ar triunfante. — Uma jovem absorvente... e alguém que pode ter todos os homens à sua volta num minuto com um simples movimento de dedos.

      O Major Burnaby limitou-se a resmungar.

      — Comprometida com aquele moço e andando aqui com um outro — prosseguiu a Sra. Curtis. — É o retrato vivo de minha tia Sarah Belinda. E não se trata de leviandade ou capricho, saiba o senhor. Ela sabe onde tem o nariz. E agora está pronta a enrolar direitinho esse jovem Sr. Garfield, pode crer no que lhe digo, major. Nunca vi um rapaz parecer mais com um cordeirinho do que ele esta manhã... e isto já é uma boa prova do que eu falei.

      Ela fez uma pausa para tomar fôlego e o Major Burnaby aproveitou para dizer:

      — Bem, bem, não se prenda aqui por minha causa, Sra. Curtis.

      — Na certa, Curtis deve estar esperando pelo seu chá — observou a Sra. Curtis, mas sem se mover. — Nunca fui de ficar parada fofocando. Atenha-se ao seu trabalho... é o que sempre digo. E por falar em trabalho, que me diz, senhor, de uma boa faxina aqui?

      — Não! — disse o major, com veemência incomum.

      — Faz um mês que eu fiz a última limpeza geral.

      — Não. Eu gosto de saber exatamente onde estão as minhas coisas. Depois de uma dessas faxinas não se acha mais nada no lugar costumeiro.

      A Sra. Curtis suspirou. Era uma grande devota da limpeza e de grandes arrumações.

      — Veja o caso do Capitão Wyatt... Só fazem no seu bangalô uma limpeza por alto. Aquele seu irritante criado... que entende ele de limpeza? É o que gostaria de saber. Um tipo desleixado e desagradável.

      — Não há nada melhor do que um criado indígena — retrucou o Major Burnaby. — Conhecem sua função e quase não falam.

      A insinuação contida na última frase endereçava-se à Sra. Curtis, mas esta não se deu conta da alusão, voltando ao assunto inicial.

      — Ela recebeu dois telegramas... chegados quase ao mesmo tempo. Isso sempre me dá um pequeno susto. Mas ela os leu com toda frieza. E então me falou que ia a Exeter hoje e só estaria de volta amanhã.

      — E aquele rapaz foi com ela? — perguntou o major, com ar esperançoso.

      — Não, ele ainda está aqui. Um moço de conversa agradável realmente. Os dois fazem um belo par.

      Novo resmungo foi emitido pelo Major Burnaby.

      — Bem — disse a Sra. Curtis — eu já vou indo.

      O major nem se atreveu a respirar, com receio de que ela desistisse de sair mais uma vez. Mas a Sra. Curtis agora se retirava de verdade. E saiu, fechando a porta da frente.

      O major soltou um suspiro de alívio, acendeu seu cachimbo e começou a consultar o folheto de propaganda de uma certa mina, descrita de uma forma tão exageradamente promissora que deveria despertar dúvidas na mente de qualquer pessoa que não uma viúva ou um militar reformado.

      — Doze por cento — murmurou o Major Burnaby. — Isto parece muito bom...

      No bangalô vizinho, o Capitão Wyatt ditava cátedra para o Sr. Rycroft.

      — Gente como você — dizia Wyatt — não conhece nada deste mundo. Vocês nunca viveram de fato. Nunca deram duro.

      O Sr. Rycroft não replicou. Era tão difícil dar uma resposta que parecesse certa e oportuna ao Capitão ‘Wyatt que, normalmente, o mais seguro seria não replicar.

      O capitão inclinou-se um pouco para o lado em sua cadeira de rodas, acrescentando:

      — Onde está aquela feiticeira? Uma jovem de bela aparência, sem dúvida.

      A associação de idéias na mente do capitão era muito natural, mas não para o Sr. Rycroft, que o olhou com ar meio chocado.

      — O que ela está fazendo em Sittaford? Isto é o que eu queria saber... Abdul!

      — Sim, Sahib?

      — Onde está meu cachorro? Escapuliu de novo?

      — Está na cozinha, Sahib.

      — Bem, não lhe dê comida agora. — Ele recostou-se em sua cadeira de novo e voltou ao assunto interrompido. — O que ela quer aqui? Quem irá encontrar para conversar num lugar como este? Todos vocês, velhos caturras, devem incomodá-la um bocado. Eu troquei umas palavrinhas com ela esta manhã. Acho que deve ter ficado surpresa por encontrar um homem como eu num lugar como este.

      E o capitão cofiou seu bigode.

      — Ela é noiva de James Pearson — disse o Sr. Rycroft. — Você sabe... o homem que foi preso pelo assassinato de Trevelyan.

      Wyatt deixou cair o copo de uísque que acabara de levar aos lábios. Imediatamente gritou por Abdul e o recriminou em termos impublicáveis por não colocar a mesa em posição mais conveniente para ele. E então resumiu suas impressões sobre Emily Trefusis.

      — Ela é como eu disse. Boa demais para um empregadinho de escritório como aquele. Uma garota assim merece um homem de verdade.

      — O jovem Pearson é bastante simpático — observou Rycroft.

      — Simpático... simpático... Ora, uma jovem não quer um manequim bonito. O que esse mocinho que trabalha num escritório fazendo contas sabe da vida? Que experiência pode ter na realidade?

      — Talvez a experiência decorrente de ter sido preso por assassinato já seja uma realidade bem significativa para ele, e por muito tempo — disse secamente o Sr. Rycroft.

      — A polícia tem certeza que foi ele, hem?

      — Devem estar muito seguros ou então não o teriam detido.

      — Uns policiais de aldeia — disse o Capitão Wyatt, com desdém.

      — Nada disso — objetou Rycroft. — Esta manhã conheci o Inspetor Narracott, que me pareceu um homem hábil e eficiente.

      — Onde você o viu esta manhã?

      — Ele esteve em minha casa.

      — Pois aqui na minha ele não apareceu — disse o capitão, em tom ofendido.

      — Bem, você não era um amigo íntimo de Trevelyan ou algo parecido.

      — Não sei o que você quer dizer com isso. Trevelyan era um sovina e eu lhe disse isso na cara. E ele não podia bancar o mandão comigo. Eu não vivia bajulando-o como todo mundo fazia aqui. Vivia sempre se intrometendo... volta e meia se metia a querer dar ordens. Se eu não quero ver ninguém por uma semana, um mês ou ano, isto é somente da minha conta.

      — Você não tem visto ninguém aqui faz uma semana, tem?

      — Não, e por que deveria ver? — E o colérico inválido esmurrou a mesa. Como sempre acontecia, o Sr. Rycroft sentiu ter dito o que não devia dizer. — Por que, raios, eu devia querer ver alguém? Diga-me: por quê?

      O Sr. Rycroft manteve um silêncio prudente. O assomo de raiva do capitão persistia.

      — Seja como for, se a polícia deseja saber algo sobre Trevelyan, sou eu o homem a quem devem recorrer. Eu tenho dado duro por este mundo afora, e sei julgar as coisas e as pessoas. Posso medir um homem pelo que ele vale. Qual a utilidade de entrevistar um bando de tolos e mulheres gagás? O que eles precisam é da opinião de um homem.

      O Capitão Wyatt soqueou de novo a mesa.

      — Bem — argumentou cautelosamente o Sr. Rycroft — suponho que esses policiais saibam, naturalmente, o que procuram.

      — Eles fizeram perguntas sobre mim? Devem tê-lo feito, naturalmente.

      — Bem, eu... não estou lembrado — retrucou Rycroft, prudente.

      — Por que não se pode lembrar? Afinal não está caduco ainda.

      — Acho que estava... Bem, meio sobressaltado — murmurou Rycroft em tom apaziguador.

      — Sobressaltado, você? Com medo da polícia? Pois eu não tenho receio nenhum da polícia. Deixe que venham aqui, é o que lhe digo. Vou mostrar-lhes uma coisa. Sabe que acertei um tiro num gato a uma distância de cem jardas, na noite passada?

      — É mesmo?

      O hábito de o capitão atirar com revólver em gatos reais ou imaginários era uma desagradável provação para seus vizinhos.

      — Bem, eu estou cansado — disse o Capitão Wyatt, de repente. — Quer um drinque antes de sair?

      Interpretando corretamente a insinuação, o Sr. Rycroft levantou-se. O capitão ainda insistiu sobre o último drinque.

      — Você se tornaria mais homem se bebesse um pouco mais. Um homem que não pode apreciar um bom trago não é um homem completo.

      Mas o Sr. Rycroft persistiu na sua recusa. Já se servira de um uísque e soda mais forte do que o normal.

      — Que marca de chá você costuma beber? — perguntou Wyatt. — De chá eu não entendo nada. Direi a Abdul para providenciar algum. Penso que aquela jovem gostaria de vir tomar chá comigo algum dia. Que pequena bonita dos diabos! Devemos fazer alguma coisa por ela. Deve se sentir mortalmente aborrecida num lugar como este sem ter com quem conversar.

      — Um rapaz a tem acompanhado.

      — Os jovens de hoje em dia me deixam até doente — observou o Capitão Wyatt. — Que há de bom neles?

      Tratando-se de uma questão difícil de responder adequadamente o Sr. Rycroft não arriscou uma resposta, preparando-se para sair.

      O cão bull-terrier o seguiu até o portão, deixando-o meio assustado.

      No bangalô n.° 4, a Srta. Percehouse estava conversando com seu sobrinho Ronnie.

      — Se você gosta de andar atrás de uma garota que não lhe dá atenção, isto é com você, Ronald. Seria melhor dar em cima da jovem Willett. Ali você pode ter uma chance, embora eu ache extremamente improvável que tenha êxito...

      — Ora essa, tia — protestou Ronnie.

      — Outra coisa que tenho para dizer é que, se um oficial de polícia esteve em Sittaford, eu devia ter sido logo informada de sua presença. Quem sabe, eu poderia fornecer-lhe alguma informação oportuna.

      — Eu só soube do fato quando o inspetor já deixava esta aldeia.

      — Você faz sempre dessas, Ronnie. Uma distração bem característica sua.

      — Sinto muito, tia Caroline.

      — E quando estiver pintando os bancos do jardim não há necessidade de pintar seu rosto também. Isso não melhora sua fachada e representa perda de tinta.

      — Desculpe, tia Caroline.

      — E agora — murmurou a Srta. Percehouse fechando os olhos — não discuta mais comigo. Estou cansada.

      Ronnie pigarreou, sentindo-se pouco à vontade.

      — E então? — disse a Srta. Percehouse, com voz enérgica.

      — Oh, nada... somente...

      — Sim?

      — Bem, eu queria saber se a senhora não se importaria que eu desse um pulo em Exeter amanhã cedo.

      — Por quê?

      — Bem, quero me encontrar com um amigo lá.

      — Que tipo de amigo?

      — Ora, apenas um conhecido meu.

      — Se um rapaz deseja se sair com uma mentira, deve caprichar mais — observou a Srta. Percehouse.

      — Oh! Eu sei... mas...

      — Não precisa se desculpar.

      — Está certo então? Posso ir?

      — Não sei o que quer dizer com este “Posso ir?”, como se fosse um garotinho. Você já tem mais de vinte e um anos.

      — Sim, mas o que eu quis dizer é que não desejo...

      A Srta. Percehouse fechou os olhos de novo.

      — Já tinha pedido a você para não discutir comigo. Estou cansada e desejo repousar. Se o tal “amigo” que vai encontrar em Exeter usa saias e se chama Emily Trefusis, mais tolo ainda você é... É tudo o que tenho a dizer.

      — Mas, ouça...

      — Estou cansada, Ronnie. Já chega.

     

AVENTURAS NOTURNAS DE CHARLES

CHARLES ENDERBY não via com nenhum agrado a perspectiva de uma noite de vigília. Intimamente se sentia como alguém que vai caçar um fantasma. Achava que Emily tinha uma imaginação meio exagerada.

      Tinha quase certeza de que ela interpretara as poucas palavras que ouvira na casa de Sittaford segundo certa suspeita que já teria em mente. Provavelmente o tédio, pura e simplesmente, é que levara a Sra. Willett a ansiar que a noite chegasse de uma vez.

      Olhou pela janela de seu quarto e estremeceu. A noite estava fria demais, nevoenta. Uma noite em que ninguém desejaria ficar ao relento, imóvel e à espera de que alguma coisa, imprevista c misteriosa, viesse a acontecer.

      Ainda assim não se atreveu a ceder ao seu desejo acentuado de permanecer no aconchego daquele quarto. Lembrou-se da voz melodiosa e clara de Emily ao dizer: “É maravilhoso termos alguém em quem podemos confiar.”

      Ela confiava nele, Charles, e não devia confiar em vão. Por que iria decepcionar aquela jovem linda e desprotegida? Não, nunca.

      E enquanto vestia todas as roupas interiores que tinha, antes de enfiar-se em dois pulôveres e mais o sobretudo, pensou que as coisas ficariam desagradáveis para ele se Emily, ao voltar de Exeter, descobrisse que não cumprira sua promessa.

      Ela lhe diria, com certeza, palavras bem duras. Não, ele não podia se arriscar. Mas quanto ao fato de que alguma coisa estava para acontecer...

      E a propósito disso, quando e como o “improvável” iria acontecer? Ele não poderia estar em vários lugares ao mesmo tempo. O que quer que fosse que estivesse para acontecer, talvez se desenrolasse dentro da casa das Willetts e, assim, ele ficaria sem saber de nada.

      — Tal qual uma menina divertindo-se em Exeter e me deixando aqui para fazer o trabalho desagradável — resmungou Charles.

      Mas então lembrou uma vez mais a voz melodiosa e clara de Emily expressando sua confiança nele, e se sentiu envergonhado daquele desabafo.

      Terminou de vestir-se, após todo aquele circunlóquio, e tratou de sair disfarçadamente do bangalô.

      A noite lhe pareceu ainda mais fria e desagradável do que pensara. Será que Emily teria idéia de tudo o que ele iria suportar para cumprir sua promessa? Esperava que sim.

      Sua mão direita estava enfiada no bolso e acariciava uma garrafinha achatada de uísque.

      — O melhor amigo do homem... pelo menos deve ser numa noite como esta — murmurou.

      Adotando as precauções convenientes, Charles chegou ao portão da mansão Sittaford. As Willetts não dispunham de um cão de guarda, assim não tinha que temer um sinal de alarma. A casinhola do jardineiro estava vazia. Na própria casa só havia uma única luz acesa, na janela do primeiro andar.

      “As duas mulheres estão sozinhas na casa — pensou Charles. Eu não devia ter aceito esta incumbência. Este frio e este lugar dão arrepios!

      Pressupunha que Emily tivesse ouvido realmente aquela frase: Será que a noite de hoje não chega nunca? E o que ela significaria ao certo?

      “Fico imaginando se elas não pretendem desaparecer daqui esta noite... Bem, aconteça o que acontecer, o jovem Charles está aqui para ver.”

      Contornou a casa, mas a uma distância prudente. Devido à neblina densa não havia o risco de ser notado. Tudo que podia ver dali lhe pareceu normal. Uma inspeção cautelosa da parte dos fundos mostrou-lhe que as portas estavam trancadas.

      — Espero que alguma coisa aconteça — murmurou Charles, vendo os minutos irem passando. Tomou um pequeno gole de uísque e pensou que nunca estivera num lugar tão frio como aquele. “O que você enfrentou na Grande Guerra, papai, não deve ter sido pior do que isto.”

      Consultou seu relógio e se surpreendeu que ainda faltassem vinte minutos para meia-noite. Julgara já ser perto de cinco da madrugada.

      Um ruído repentino o fez apurar os ouvidos, sobressaltado. Era o som familiar de uma tranca sendo removida, e vinha lá da casa. Charles deslocou-se por entre os arbustos do jardim, buscando melhor ângulo de observação. Sim, ele acertara, a pequena porta lateral era aberta devagarinho. Por fim, um vulto escuro surgiu na soleira. Ficou perscrutando ansiosamente em meio às sombras da noite.

      — É a Sra. Willett ou sua filha — murmurou Charles. — Suponho que seja a formosa Violet.

      Após um minuto ou dois de espera, o vulto de mulher moveu-se e fechou a porta sem ruído. Afastou-se a seguir em direção oposta ao caminho que conduzia à parte da frente da casa. Esse caminho passava pelos fundos da mansão, internando-se num pequeno grupo de árvores frutíferas e depois perdendo-se em plena charneca.

      A jovem passou tão perto do trecho onde Charles estava oculto que ele pôde identificar aquela mulher com facilidade. Acertara em seu palpite: era Violet Willett. Usava um casaco negro e comprido e uma boina.

      Violet continuou a caminhar e Charles, o mais silenciosamente possível, seguiu-lhe os passos. Não temia ser visto, mas estava alerta ao risco de ser ouvido, pois não lhe interessava alarmar a moça. Devido a essa preocupação logo a moça se distanciava dele. Por um instante, receou tê-la perdido de vista, mas ao olhar ansiosamente por entre as árvores viu-a parar um pouco mais à frente. Ali no muro baixo que cercava a propriedade havia um portão. Violet Willett estava imóvel agora junto a esse portão, olhando lá fora.

      Charles avançou um pouco mais e esperou. Os minutos transcorreram lentamente. A moça segurava uma pequena lanterna e por duas vezes dirigiu o foco da mesma para o seu reloginho de pulso, como Charles pôde observar. Então ela inclinou-se sobre o portão mantendo a mesma postura de expectativa ansiosa. E, de repente, Charles ouviu um leve assovio duas vezes repetido.

      Viu que a jovem se movia repentinamente junto ao portão e imitava aquele assovio, emitindo-o por duas vezes também.

      Subitamente a figura de um homem destacou-se das sombras da noite. Uma exclamação abafada brotou dos lábios da moça. Ela recuou um passo ou dois, o portão rangeu ao ser aberto e o homem passou por ele. Violet lhe falou em voz baixa e apressada. Incapaz de ouvir o que era dito ali, Charles moveu-se de modo imprudente. Um galho seco estalou sob seus pés. O homem voltou-se imediatamente, perguntando:

      — Quem está aí?

      Percebeu que o outro tentava escapar e gritou:

      — Ei, pare! Que está fazendo aqui?

      De um salto, projetou-se na direção de Charles. Este parara tentando desajeitadamente escorar a investida do desconhecido. No instante seguinte os dois homens já rolavam no chão, lutando.

      O combate foi bem curto. O adversário de Charles era muito mais pesado e forte do que ele. Assim ergueu-se rapidamente e fez Charles se levantar, segurando-o pela gola do sobretudo.

      — Aproxime a lanterna, Violet, e me deixe ver o rosto deste sujeito.

      A moça que se mantivera imóvel a poucos passos dali, com ar muito assustado, avançou e iluminou o rosto de Charles com a lanterna.

      — Deve ser o homem que anda pela aldeia — disse Violet. — É jornalista.

      — Um repórter, hem? — exclamou o desconhecido. — Não gosto desses intrometidos. Que estava fazendo, seu cafajeste, invadindo os terrenos de uma propriedade privada a esta hora da noite?

      A lanterna tremeu um pouco na mão de Violet. Pela primeira vez, Charles pôde observar melhor seu atacante. Por instantes alimentara a estranha suspeita de que se tratasse do preso que fugira de Princetown. Um olhar mais atento para o estranho desfez de imediato tal fantasia. Aquele homem não teria mais que vinte e cinco anos. Alto, de boa aparência e ar determinado, sem nenhum indício do criminoso que estava sendo perseguido.

      — Agora me diga como se chama — perguntou o estranho, numa voz firme e imperativa.

      — Meu nome é Charles Enderby. Mas você ainda não me disse o seu.

      — Ainda por cima atrevido!

      Charles teve uma súbita inspiração. Mais uma dessas intuições às vezes acertadas e que já o tinham tirado de apertos em outras ocasiões. Era como um tiro no escuro, mas ele acreditou em seu palpite.

      — Acho — disse calmamente — que já sei como se chama.

      — Ah, é?

      O outro mostrava-se desconcertado.

      — Creio ter o prazer de falar com o Sr. Brian Pearson da Austrália. Estou certo?

      Fez-se um silêncio realmente longo. Charles pressentiu que a sorte o favorecera mais uma vez.

      — Mas como afinal você descobriu? Sim, está certo. Meu nome é Brian Pearson.

      — Nesse caso, suponho que possamos entrar em casa e resolver nossa questão!

     

NO BANGALÔ DO MAJOR

O MAJOR BURNABY estava fazendo suas contas ou, para usarmos uma frase ao gosto de Charles Dickens, examinava seus negócios. O major era um homem extremamente metódico. Num livro encadernado com pele de bezerro, ele registrava o total de ações adquiridas, as já vendidas e a competente anotação de lucros ou perdas. Estas eram mais comuns, porque como a maioria dos militares reformados, o major sempre se deixava levar por uma perspectiva de grandes lucros do que por uma percentagem mais modesta, porém mais segura.

      — Esses poços petrolíferos pareciam promissores — ele estava pensando no momento. — Davam a impressão de que renderiam uma fortuna. Mas se mostraram quase tão improdutivos como aquela mina de diamantes! Terras no Canadá..., sim isto deve render agora.

      Seus cálculos de possibilidades foram interrompidos quando Ronald Garfield enfiou a cabeça pela janela aberta.

      — Olá — disse Ronnie jovialmente. — Espero não ter vindo incomodá-lo.

      — Se desse uma pequena volta e entrasse pela porta da frente seria mais adequado — respondeu o Major Burnaby. — E cuidado com esses cactos. Acho que está pisando neles no momento.

      Ronnie recuou murmurando desculpas e foi entrar pela porta da frente.

      — Limpe seus sapatos no capacho, se não lhe for incômodo — gritou o major lá de dentro.

      Ele considerava aquele rapaz muito irritante. Na verdade, o único jovem por quem sentira certa simpatia em muitos anos era o repórter Charles Enderby.

      — Aquele sim, é um moço bem amável — disse para si mesmo o major. — E muito interessado, também, em que eu lhe fale sobre a Guerra dos Bôers.

      Mas em relação a Ronnie Garfield o major não sentia tal simpatia. Praticamente tudo que o desastrado Ronnie dizia ou fazia tinha o dom de irritar Burnaby. Mas as regras de hospitalidade deviam ser respeitadas.

      — Quer beber alguma coisa? — perguntou o major, fiel àquela tradição.

      — Não, obrigado. Na verdade eu passei aqui para saber se poderíamos viajar juntos. Quero ir a Exhampton hoje e soube que o Elmer vai levar o senhor no carro.

      Burnaby assentiu, explicando:

      — Vou lá cuidar das coisas de Trevelyan. A polícia já liberou aquela casa.

      — Bem, o senhor sabe — disse Ronnie, embaraçado como sempre — eu tenho interesse em ir a Exhampton hoje. Pensei que poderíamos ir juntos e dividir as despesas do aluguel do carro. O que acha?

      — Perfeitamente — respondeu o major. — Estou de acordo. Mas você lucraria mais, meu jovem, dando um passeio a pé. Exercitando os músculos. Nenhum dos moços de hoje faz exercícios. Uma caminhada de seis milhas de ida e seis de volta lhe faria um bem enorme. Se eu não fosse precisar do carro para trazer alguns pertences do Trevelyan para cá, certamente que iria a pé. Comodidade demais, eis o que se aprecia mais atualmente.

      — Oh, bem, eu não creio que essa caminhada me fizesse cansar. Mas estou satisfeito que tenhamos acertado as coisas. Elmer me disse que o senhor sairá às onze. Certo?

      — Isso mesmo.

      — Ótimo. Estarei aqui a essa hora.

      Ronnie não se mostrou pontual como anunciara. Chegou dez minutos atrasado e encontrou o Major Burnaby já resmungando e dando passos curtos perto do carro de Elmer. Sua expressão indicava que não acolheria de bom grado pedidos de desculpa.

      — Que agitação esses velhos antiquados fazem — pensou Ronnie. — Não têm idéia do quanto se tornam aborrecidos para todo mundo com sua mania de pontualidade, irritando-se por causa de um minuto fora da hora marcada, e sempre falando sobre os benefícios de se manter em forma à custa de exercícios exaustivos...

      Divertiu-se por um instante com a idéia de um casamento do Major Burnaby com sua tia Caroline. Qual a união que daria mais certo do que essa? Pensava a todo momento em sua tia. E sorriu ao imaginá-la batendo palmas e dando gritos agudos para chamar o major...

      Afastando tais imagens divertidas de sua mente, entrou no carro e procurou um assunto agradável e interessante para puxar conversa.

      — Sittaford tornou-se um lugar mais animado agora, não? Aqui estão a Srta. Trefusis, seu amigo Enderby e o rapaz que veio da Austrália... Por falar nele, quando apareceu aqui afinal? Surgiu de repente aqui esta manhã e ninguém sabia que chegara da Austrália. Isso deixou minha tia muito intrigada.

      — Ele está na casa das Willetts — disse o Major Burnaby, em tom mordaz.

      — Sim, mas como ele chegou ali sem ninguém saber? E que condução usou? A que eu saiba, as Willetts não dispõem de um aeroporto particular... Sabe, major, eu acho que há alguma coisa realmente misteriosa em relação a esse jovem Pearson. Ele tem nos olhos o que eu chamo de um brilho maligno... Sim, é isso mesmo. Minha impressão é de que foi ele quem deu aquele golpe no pobre Sr. Trevelyan.

      O major não replicou e Ronnie prosseguiu:

      — Eis como eu vejo a situação — prosseguiu Ronnie. — Indivíduos que vêm das Colônias geralmente não têm bom caráter. Mal vistos pelos seus parentes e vizinhos, são enxotados de lá por algum motivo. Muito bem, então vêm para a Inglaterra. Um desses indivíduos, no caso o nosso jovem da Austrália, estando sem dinheiro resolve visitar um tio rico às vésperas do Natal. O tio rico não atende ao sobrinho em dificuldades e aí é morto por ele após uma discussão. Isto é o que eu chamo uma teoria sobre o crime.

      — Devia ter explicado isso à polícia — observou o major.

      — Acho que o senhor é quem devia tocar no assunto, pois já fez camaradagem com o Inspetor Narracott. A propósito, ele esteve investigando de novo em Sittaford, não foi?

      — Que eu saiba, não.

      — Ele não o encontrou em sua casa hoje?

      A ausência de respostas e o laconismo do Major Burnaby fizeram finalmente Ronnie desistir da conversa.

      — Bem, é isso — e mergulhou num silêncio pesado.

      Já em Exhampton, o carro foi estacionar perto do Três Coroas. Ronnie saltou e após combinar um reencontro com o major às quatro e meia para a viagem de volta, dirigiu-se ao centro da pequena cidade para uma visita às poucas lojas ali existentes.

      O major inicialmente foi ver o Sr. Kirkwood. Após breve conversa com o advogado, recolheu as chaves e dirigiu-se à casa onde Trevelyan fora assassinado.

      O major já combinara com Evans se encontrarem lá ao meio-dia, e viu que o criado do falecido capitão se achava à sua espera no jardim. Com um ar taciturno, o major girou a chave na fechadura da porta principal e entrou na casa vazia, acompanhado por Evans. Não estivera mais ali desde aquela noite trágica, e apesar de sua determinação em não demonstrar qualquer emoção, estremeceu ligeiramente ao entrar na sala de visitas.

      Evans e o Major Burnaby compartilhavam da mesma saudade e respeitoso silêncio. Quando um deles fazia um breve comentário sobre o falecido capitão, era logo entendido e secundado pelo outro.

      — Esta é uma incumbência pouco agradável, mas tem que ser cumprida — disse Burnaby. E Evans, recolhendo e contando meias e pijamas, concordou:

      — Parece realmente constrangedor, mas como o senhor mesmo diz, tem que ser feito.

      Evans foi rápido e eficiente em sua tarefa de arrumar os pertences do seu falecido patrão. Tudo foi empilhado devidamente em pequenos pacotes. À uma hora, os dois homens foram ao Três Coroas para um ligeiro almoço.

      Ao retornarem a casa, o major segurou Evans pelo braço de repente, logo que a porta foi fechada.

      — Espere — disse Burnaby. — Não ouviu um ruído de passos? Foi no quarto de Joe.

      — Meu Deus. Sim, senhor, veio dali.

      Uma espécie de temor supersticioso os assaltou por um instante. Então, recuperando-se e com um seco movimento de ombros, o major avançou até o pé da escada e gritou com uma voz potente:

      — Quem está aí em cima?

      Para sua grande surpresa e aborrecimento também, ainda que no fundo se sentisse mais aliviado, viu Ronnie Garfield aparecer no alto da escada. O rapaz mostrou-se embaraçado e meio assustado.

      — Olá... Estive procurando pelo senhor.

      — E posso saber por quê? — indagou o major, com severidade.

      — Bem, eu queria lhe avisar que não voltarei com o senhor às quatro e meia como fora combinado. Tenho que ir a Exeter. Assim, não precisa esperar por mim.

      — Como fez para entrar nesta casa? — perguntou o major.

      — A porta estava aberta — respondeu Ronnie. — Pensei que, naturalmente, o senhor estivesse aqui.

      O major voltou-se imediatamente para Evans, perguntando:

      — Você não fechou a porta quando saímos?

      — Não, senhor, eu não tinha a chave.

      — Que tolice a minha — murmurou Burnaby.

      — O senhor não ficou aborrecido, não é mesmo? Como não vi ninguém aqui embaixo subi a escada e fui olhar lá em cima — disse Ronnie.

      — Claro, não tem importância — retrucou, meio brusco, o major. — Apenas me assustou, eis tudo.

      — Bem... — disse Ronnie, em tom vago. — Tenho que ir agora. Até logo.

      O major deu um resmungo. Ronnie apressou-se a descer a escada.

      — Acho que... — começou o rapaz, com ar meio infantil — o senhor não se incomodaria em me mostrar onde... aquilo aconteceu?

      O major apontou com o dedo na direção da sala de visitas.

      — Oh, e posso dar uma olhadela ali?

      — Se quiser — murmurou Burnaby, com ar molestado. Ronnie abriu a porta da sala de visitas. Esteve ali alguns instantes e então voltou.

      O major já subira a escada, mas Evans permanecia no hall. Tinha o ar de um cão de guarda e seus olhos miúdos e penetrantes observavam Ronnie com atenção e um toque de suspeita.

      — Penso que não deviam lavar as manchas de sangue. Mas acho também que por mais que sejam lavadas sempre aparecem. Bem, acho que estou dizendo uma tolice, não é mesmo? Afinal o velho capitão foi golpeado com um saco de areia. Como este aqui, não? — Segurara o saquinho comprido e estreito de areia que estava encostado na parte inferior de outra porta. Sopesou-o pensativamente. — Que belo brinquedinho, hem? — E moveu-o no ar, simulando o ato de golpear alguém.

      Evans manteve-se calado.

      — Bem — disse Ronnie, percebendo que aquele silêncio não tinha nada de aprovador. — Será melhor eu ir agora. Receio não ter procedido com tato. — Moveu a cabeça na direção do alto da escada, acrescentando: — Esqueci-me de que eles dois eram muito unidos. Companheiros quase inseparáveis, não é mesmo? Bom, até mais ver. Desculpe se falei o que não devia.

      Ronnie cruzou o hall e saiu pela porta da frente. Evans ficou onde estava, impassível, e só quando ouviu o ruído do portão ao ser fechado pelo jovem Garfield subiu a escada e foi ao encontro do major. Sem qualquer comentário, voltou a cuidar de seus afazeres interrompidos devido ao almoço. Andou pelo quarto e se ajoelhou em frente da sapateira na parte inferior de um guarda-roupa.

      Às três e meia sua tarefa foi concluída. Um embrulho com parte dos ternos e roupas de baixo foi entregue a Evans e um outro estava preparado convenientemente para ser remetido ao Orfanato dos Marinheiros. Papéis e recibos diversos foram arrumados numa pasta, e Evans recebeu instruções do major para providenciar junto a uma firma local a embalagem e guarda dos diversos troféus esportivos e de caça do falecido, já que não havia lugar para os mesmos no bangalô de Burnaby. Já que a casa de Hazelmoor fora alugada apenas com os móveis comuns, nenhuma objeção seria feita.

      Quando tudo já estava pronto, Evans pigarreou nervosamente e então disse:

      — Perdão, senhor, mas... eu gostaria de trabalhar para algum cavalheiro, do mesmo modo como fiz todos esses anos para o capitão.

      — Sim, sim, você pode dizer a seu futuro patrão que foi recomendado por mim. Assim estará tudo acertado.

      — Me permita dizer, senhor, que não fui bem compreendido. Rebecca e eu estivemos conversando e nos perguntamos então se o senhor... talvez pudesse testar nosso serviço em sua casa.

      — Oh! Bem..., eu cuido de mim mesmo, você sabe. Aquela velha senhora, por sua própria conta, vai diariamente lá para fazer uma limpeza ligeira para mim e cozinhar alguma coisa. E isso é tudo de que eu preciso... e posso pagar.

      — Não é só o dinheiro que importa, senhor — retrucou Evans prontamente. — O senhor sabe o quanto eu era dedicado ao capitão e... bem, se pudesse fazer pelo senhor o mesmo que fiz por ele, seria praticamente a mesma coisa. Acho que o senhor entendeu o que quero dizer.

      O major pigarreou e desviou o olhar de Evans ao dizer:

      — Esta sua atitude é muito digna. Eu... vou pensar no assunto. — E afastando-se com passo rápido logo depois alcançava a rua.

      Evans ficou olhando-o caminhar e esboçou um sorriso compreensivo, murmurando:

      — Igualzinho um ao outro, ele e o capitão.

      E então esboçou um ar meio intrigado ao pensar:

      — Em que ponto eles diferiam um do outro? Eis aí uma coisa difícil de responder. Perguntarei a Rebecca o que ela pensa a respeito.

     

O INSPETOR NARRACOTT ANALISA O CASO

— NÃO ME SINTO SATISFEITO com o rumo desse caso — disse o Inspetor Narracott.

      O Comissário-Chefe olhou-o com ar interrogativo.

      — Não — repetiu o inspetor. — Não estou mais seguro como me sentia no início das investigações.

      — Acha então que não prendemos o homem certo?

      — Não tenho essa certeza. Como sabe, no início tudo apontava para uma única direção, mas agora... é diferente.

      — As provas contra Pearson continuam no mesmo pé.

      — Sim, mas vários outros detalhes vieram à tona depois, senhor. Há o outro Pearson... o Brian. Admiti como certa a informação de que ele se achava na Austrália, eximindo-o de suspeitas. E quando acaba, venho a saber agora que estava aqui na Inglaterra há dois meses, conforme apurei. Parece que viajou no mesmo navio que aquelas Willetts. Tudo indica que tenha tido um flerte com a jovem Violet durante a viagem. Mas seja como for, o certo é que não se comunicou com nenhum de seus parentes. Nem sua irmã nem seu irmão tinham qualquer idéia de que ele estivesse de volta à Inglaterra. Na quinta-feira da semana passada ele deixou o Hotel Ormsby em Russell Square e foi para Paddington. Mas quanto ao que fez a partir daí até a noite de terça-feira, quando Enderby o encontrou, recusa-se terminantemente a nos explicar.

      — Você chamou a sua atenção sobre a gravidade de persistir em tal atitude?

      — Chamei, mas não me deu crédito. Diz nada ter a ver com o crime, cabendo a nós provar o contrário. O modo como empregou seu tempo é da sua conta e não da nossa. E se nega, taxativamente, a dizer onde esteve e o que andou fazendo.

      — Muito significativo — disse o Comissário-Chefe.

      — Sim, senhor. Trata-se de um caso incomum. Como vê, não se pode desprezar certos dados e esse homem faz mais o tipo do suspeito ideal do que o outro. Há alguma coisa em James Pearson que não nos leva a acreditá-lo capaz de golpear a cabeça de alguém com um cassetete... mas seguindo esse tipo de raciocínio, Brian Pearson poderia fazê-lo. Ele é um moço do temperamento impulsivo, decidido e... como sabe, receberá exatamente o mesmo legado do capitão.

      — Sim...

      — Ele apareceu aqui com o Sr. Enderby esta manhã, muito lépido e fagueiro, falando de modo claro e franco. Mas há algo que não encaixa, senhor. Algo que não se pode admitir.

      — Hum... você está querendo dizer então...

      — Que é algo resultante de um exame dos fatos. Por que ele não se apresentou antes? A morte do seu tio tem sido noticiada pelos jornais desde sábado. Seu irmão foi preso na segunda-feira. É ele nem deu sinal de vida. E continuaria sem aparecer, se esse jornalista não esbarrasse nele nos terrenos da mansão Sittaford à meia-noite de ontem.

      — E que estava fazendo ali? Eu me refiro a Enderby.

      — O senhor sabe como são os repórteres — retrucou Narracott — sempre farejando as coisas. São imprevisíveis.

      — E também um estorvo muitas vezes — observou o comissário. — Apesar de serem úteis em outras.

      — Imagino que tenha sido aquela jovem que o colocou em ação... — murmurou Narracott.

      — Que jovem?

      — A Srta. Emily Trefusis.

      — Como ficou a par do que está acontecendo?

      — Ela está em Sittaford farejando o assunto. E trata-se de uma moça esperta. Pouca coisa lhe escapa à observação atenta.

      — Que diz Brian Pearson quanto ao fato de se encontrar perto da casa de Sittaford?

      — Diz que veio ver a jovem filha da Sra. Willett. A moça preferiu encontrá-lo fora de casa e quando todos estavam dormindo por não querer que sua mãe soubesse. Essa é a versão apresentada pelo Sr. Brian.

      O tom de voz de Narracott denotava descrer de tal versão.

      — Para mim, senhor, se o Enderby não o descobrisse ontem à noite, ele nunca ter-se-ia apresentado aqui. Teria regressado à Austrália e de lá reclamado seu quinhão na herança de Trevelyan.

      Um leve sorriso flutuou nos lábios do Comissário-Chefe.

      — Como ele deve estar maldizendo esses jornalistas intrometidos...

      — Há mais um fato que veio à luz — prosseguiu o inspetor. — Os Pearson são três, o senhor sabe, e Sylvia Pearson é casada com o novelista Martin Dering. Ele me contou que almoçou e passou a tarde com um editor americano, indo depois, à noite, a um jantar literário. Mas ao que consta ele não compareceu a esse jantar.

      — Quem lhe deu essa informação?

      — Novamente o Enderby.

      — Acho que devo conversar com esse jornalista. Parece ser uma fonte de informações preciosa neste caso. Não há dúvida de que o Daily Wire tem alguns jovens repórteres inteligentes em sua equipe.

      — Bem, naturalmente, que isso pode significar pouca coisa ou nada até — continuou o inspetor. — O Capitão Trevelyan foi morto antes das seis da tarde, assim pouco importa onde o Dering passou a noite no dia do crime. Mas por que ele terá mentido deliberadamente quanto a esse ponto? Eu não compreendo tal atitude, chefe.

      — Nem eu — disse o Comissário-Chefe. — Parece quase desnecessário.

      — O que nos faz pensar que suas outras declarações sejam falsas também. Sei que minha suposição pode parecer forçada, mas ele podia ter tomado o trem das doze em Paddington... chegando a Exhampton pouco depois das cinco. Matou o velho capitão, apanhou o trem das seis e voltou à sua casa ainda antes de meia-noite. Seja como for, tal hipótese merece ser confrontada, senhor. Nós temos de investigar sua situação financeira, verificar se ele estava em dificuldades prementes. Casados em comunhão de bens, ele teria fácil acesso ao dinheiro herdado por sua esposa. Bastará sondá-la a respeito do assunto. Temos que nos assegurar se o álibi de Dering quanto àquela tarde é válido ou não.

      — Tudo isso parece extraordinário — comentou o Comissário-Chefe. Mas penso ainda que as provas contra Jim Pearson são muito conclusivas. Noto que não compartilha da minha opinião... Acho que imagina ter prendido o homem errado.

      — As. provas estão corretas, circunstanciais e tudo mais, e qualquer júri o condenaria baseado nelas. Mas apesar de ser verdade o que o senhor diz... eu não vejo esse moço como um assassino.

      — E essa jovem senhorita tem-se mostrado muito empenhada neste caso — comentou o comissário-chefe.

      — Sim, a Srta. Trefusis é muito ativa e uma jovem especial. Uma moça realmente fina e inteligente. E absolutamente decidida a ver o noivo inocentado desse crime. Soube cativar a simpatia do Enderby e está fazendo com que ele trabalhe para ela nas suas investigações particulares... É um grande negócio para o Sr. James Pearson tê-la como defensora aqui fora. Mas além de sua boa aparência não vejo muitas qualidades nesse jovem para torná-lo tão amado por ela.

      — Mas se ela está se empenhando tanto por ele é porque o quer.

      — Ah, bem — disse Narracott —, questão de gosto não se pode discutir. Bom, então o senhor concorda em que será melhor checarmos esse álibi de Dering sem mais demora?

      — Sim, cuide logo desse assunto. E o que me diz sobre a outra parte interessada na herança? Porque há uma quarta pessoa mencionada no testamento, não?

      — Sim, a irmã do capitão. Está tudo correto quanto a ela, senhor. Fiz perguntas em sua casa. Ela estava ali realmente às seis horas. Tenho que me concentrar no caso do Dering.

      Cinco horas depois, o Inspetor Narracott se achava sentado na pequena sala de visitas da casa do casal Dering. Dessa vez o novelista estava ali. A criada dissera inicialmente ao visitante que seu patrão não podia ser incomodado enquanto escrevia, mas o inspetor mostrou suas credenciais e a fez chamar o Sr. Dering sem mais demora.

      Enquanto esperava pelo dono da casa, Narracott deu alguns passos pela saleta. Sua mente estava em franca atividade. De vez em quando pegava um objeto decorativo ou não sobre a mesa ou numa estante e após olhá-lo de relance tornava a recolocá-lo no lugar. Viu uma cigarreira de procedência australiana, possivelmente um presente de Brian Pearson. Pegou também um velho livro, já muito manuseado, o Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Na folha em branco reservada a dedicatórias encontrou o nome de Martha Rycroft, escrito com uma tinta já muito apagada. De algum modo, o sobrenome Rycroft lhe pareceu conhecido, mas no momento não conseguia lembrar-se por quê. Nesse instante viu-se interrompido em suas divagações por Martin Dering que acabara de entrar.

      O novelista era de estatura mediana, com uma espessa cabeleira castanha. Tinha boa aparência, conquanto seus traços fossem meio carregados, com lábios particularmente grossos e vermelhos.

      O Inspetor Narracott não se deixou impressionar pelas aparências.

      — Bom dia, Sr. Dering. Sinto vir incomodá-lo novamente.

      — Oh, não tem importância, inspetor, mas na verdade nada mais tenho a declarar-lhe além do que já foi dito.

      — Nós tínhamos entendido que seu cunhado, o Sr. Brian Pearson, estava na Austrália. Mas agora soubemos que ele se acha na Inglaterra há dois meses. Penso que deveria ter sido informado a respeito. Sua senhora me disse claramente outro dia que ele estava na Nova Gales do Sul.

      — Brian na Inglaterra! — Dering parecia realmente surpreso. — Posso assegurar-lhe, inspetor, eu ignorava esse fato... E nem minha esposa, estou certo, sabia disso.

      — Ele não se comunicou com o senhor de nenhum modo?

      — Não, e sei com certeza que Sylvia lhe escreveu duas vezes para a Austrália durante esses dois meses.

      — Bem, neste caso eu lhe peço desculpas, Sr. Dering. Mas acho que, naturalmente, ele se comunicou com seus parentes, que fizeram mal em me ocultar tal fato.

      — Bem, como já lhe disse nós aqui não sabíamos de nada. Quer um cigarro, inspetor? A propósito, soube que já capturaram aquele homem que escapou da prisão.

      — Sim, ele foi apanhado na noite de terça-feira. Teve o azar de que a neblina descesse mais cedo. Ele estava andando em círculos. Andou assim por cerca de vinte milhas e quando acaba fomos pegá-lo a poucos metros de Princetown.

      — Fantástico como alguém pode andar tanto em círculos durante o fog. Boa coisa para ele não ter fugido na sexta-feira. Assim escapou de ser encarado como o suspeito número um do assassinato do capitão.

      — Ele é um elemento perigoso. Freddy o Camaleão, eis como o apelidavam. Levava uma vida dupla. Metade do tempo agia como um cidadão educado, respeitável e próspero. A outra, ele a dedicava a assaltos e atos de violência. Tenho lá minhas dúvidas de que Broadmoor não seja o lugar mais indicado para ele. Uma espécie de mania o levava a cometer crimes de tempos em tempos. Deixava o ambiente calmo em que vivia e sumia, indo conviver com marginais.

      — Suponho que sejam raras as fugas de Princetown.

      — É quase impossível escapar de lá. Mas essa última fuga foi muito bem planejada e executada. Não chegamos ainda a entender como ele fez para fugir.

      — Bem — Dering ergueu-se e consultou o relógio —, se não há nada mais que queira saber, inspetor... Eu estou muito ocupado e...

      — Ah, sim. Mas há mais uma pergunta, Sr. Dering. Desejo saber por que o senhor me disse que esteve num jantar de escritores no Hotel Cecil, na noite de sexta-feira passada.

      — Eu... não estou entendendo, inspetor.

      — Pois acho que me entendeu bem, senhor. Sei que não compareceu àquele jantar.

      Martin Dering hesitou. Seu olhar incerto foi desviado do rosto de Narracott, indo pousar de início no teto, a seguir na porta da sala e por fim no tapete.

      O inspetor aguardou a resposta, com determinação e fleuma.

      — Bem — disse finalmente Dering, — suponhamos que eu não tenha comparecido. O que esse fato tem a ver com o seu trabalho? O que tem a ver o senhor com o que eu fiz ou deixei de’ fazer, cinco horas após o assassinato de meu tio?

      — Acontece que o senhor nos prestou uma declaração e desejo checá-la. Parte do que nos declarou não confere com a realidade. E eu preciso verificar a outra parte, compreende? O senhor me tinha dito que almoçou e passou a tarde com um amigo.

      — Sim, o meu editor nos Estados Unidos.

      — Nome?

      — Rosenkraun, Edgar Rosenkraun.

      — Ah, e o endereço deste editor?

      — Ele esteve aqui de passagem. Viajou no sábado passado.

      — Para Nova York?

      — Sim.

      — Então ainda deve estar viajando por mar a esta hora. Qual o nome do navio?

      — Eu... realmente não me lembro.

      — Sabe a que empresa marítima pertence? A Cunard ou a Estrela Branca?

      — Eu... não sei dizer.

      — Ah, bem — retrucou o inspetor — nós podemos telegrafar para a editora do Sr. Rosenkraun, em Nova York. Ali devem saber.

      — Ele viaja no Gargantua — disse por fim Dering, mal-humorado.

      — Obrigado, Sr. Dering. Sabia que o senhor se lembraria, caso puxasse pela memória. Então reafirma que almoçou com o Sr. Rosenkraun e que passaram a tarde de sexta-feira conversando. A que horas o senhor se despediu dele?

      — Por volta de cinco horas.

      — E depois?

      — Recuso-me a responder, pois o assunto não lhe diz respeito, inspetor. Já disse o que desejava saber.

      O Inspetor Narracott assentiu, pensativo. Se Rosenkraun confirmasse a declaração de Dering então este ficaria livre de suspeita. O que podia ter feito na noite de sexta-feira não vinha ao caso.

      — O que pretende fazer? — perguntou Dering, pouco à vontade.

      — Enviar um cabograma para o Sr. Rosenkraun, a bordo do Gargantua.

      — Que inferno! — exclamou Dering. — O senhor me envolve numa publicidade negativa. Escute aqui...

      Dering deu alguns passos até sua mesa, rabiscou algumas palavras numa folha de papel e entregou-a ao inspetor.

      — Imagino que irá fazer o que se propõe — disse meio sem graça —, mas pelo menos pode resguardar minha posição. E não é nada correto incomodar um bom amigo. — E indicou a folha de papel, onde se lia:

SR. ROSENKRAUN. S. S. GARGANTUA:

       Favor confirmar minha declaração de que almoçamos Juntos e conversamos até cinco noras sexta-feira última.

                                                  MARTIN DERING.

      — Que a resposta seja remetida ao senhor... isto não importa. Mas não dê o endereço da Scotland Yard ou de algum posto policial. O senhor sabe como esses americanos são. Qualquer indício de um envolvimento num caso policial e o contrato que acabei de firmar com essa editora será desfeito. Mantenha esse assunto em sigilo, inspetor.

      — Não faço nenhuma objeção quanto a esse ponto, Sr. Dering. Tudo o que quero é apurar a verdade. Enviarei o telegrama com a resposta paga, e ela me será remetida para minha casa em Exeter.

      — Obrigado, inspetor, o senhor é um bom sujeito. Eu lhe asseguro que não é nada fácil viver de literatura. O senhor terá a resposta ao seu telegrama e verá confirmada minha declaração. Eu lhe menti acerca do tal jantar, mas na verdade tinha contado à minha mulher que estivera lá e pensei que pudesse repetir a mesma história para o senhor. De outro modo eu iria encontrar-me numa situação muito embaraçosa...

      — Se o Sr. Rosenkraun confirmar sua declaração nada mais terá a recear, Sr. Dering.

      — Um tipo desagradável — pensou o inspetor assim que deixou a casa de Martin Dering. — Mas é quase certo que esse editor de Nova York venha a confirmar a versão desse escritor.

      Um estalo de memória ocorreu ao inspetor, assim que se achou no interior do trem que ia levá-lo de volta a Devon.

      — Rycroft — ele murmurou. — Mas claro, é esse o nome daquele senhor idoso que mora num dos bangalôs de Sittaford. Uma curiosa coincidência...

     

SURPRESAS NO RESTAURANTE DELLER

EMILY TREFUSIS e Charles Enderby estavam sentados numa das mesas do Restaurante Deller, em Exeter. Eram três e meia e o local achava-se relativamente calmo, com poucos fregueses. Estes faziam apenas um ligeiro lanche.

      — Bem — disse Charles — o que achou dele?

      Emily franziu as sobrancelhas, retrucando:

      — É difícil dizer.

      Após ter prestado declarações à polícia, Brian Pearson almoçara com Emily e Charles. Na opinião da jovem, Brian se mostrara amável até demais com ela.

      Para uma moça muito observadora como Emily, tal atitude parecera forçada. Brian era um moço que estava mantendo um caso de amor clandestino e comportando-se como alguém que desejasse permanecer incógnito. No entanto, deixara-se levar como um cordeiro naquelas últimas horas e aceitara sem discutir a sugestão de Charles de tomarem um táxi e procurarem a polícia. Por que essa atitude de dócil aquiescência? Para Emily isso era inteiramente contrário ao que intuíra sobre o temperamento de Brian.

      Segundo ela, seria muito mais natural ouvir dele qualquer frase de protesto à sugestão de Charles, como: “Ora, vão para o diabo e me deixem em paz!”

      Aquele comportamento dócil tornava-se suspeito. E Emily procurou transmitir tal pensamento a Enderby.

      — Concordo com você — disse Charles. — Nosso amigo Brian tem algo a esconder, de outro modo não disfarçaria tanto sua arrogância característica.

      — É esse o ponto, justamente.

      — Acha que ele poderia ter matado o velho Trevelyan?

      — Bem — retrucou Emily, com ar pensativo. — Brian deve        ser levado em conta como suspeito. Parece ser inescrupuloso, e se quisesse algo, não creio que se deixasse intimidar por padrões convencionais de conduta. Não tem nada de submisso.

      — Deixando de lado opiniões pessoais, será que Brian é mais decidido do que Jim?

      — Muito mais — concordou Emily. — Ele levaria a cabo qualquer tarefa... porque é dos que sabem controlar seus nervos muito bem.

      — Falando francamente, Emily, acha que ele pode ter cometido o crime?

      — Eu... não sei. Mas preenche, como ninguém, as condições nesse caso.

      — E posso saber que condições são essas?

      — Bem... — Emily enumerou os pontos a que se referia usando os dedos da mão direita. — Primeiro: o Motivo. O mesmo de seus parentes: vinte mil libras. Segundo: Oportunidade. Ninguém sabe ainda onde ele esteve na sexta-feira passada à tarde, e se andou por algum lugar que só ele sabe, será que irá dizê-lo? Assim podemos presumir que andou realmente pelas vizinhanças da casa Hazelmoor, na sexta-feira.

      — A polícia não encontrou ninguém que o tivesse visto em Exhampton — observou Charles. — E sabemos que não é alguém fácil de passar despercebido.

      Emily balançou a cabeça com ar irônico.

      — Ele não andou por Exhampton. Charles, não vê que se ele fosse o assassino teria tudo planejado de antemão? Só o pobre inocente do Jim é que agiria como um simplório mostrando-se na cidade. Há outras vias de acesso a escolher, como Lydford e Chagford, ou talvez Exeter. Ele poderia ter caminhado desde Lydford, que é a estrada principal e onde a neve não representava um obstáculo intransponível na ocasião. Seria a solução mais viável.

      — Acho que podemos perguntar nas redondezas.

      — A polícia já está cuidando disso — retrucou Emily — e tem melhores recursos que nós para tal investigação. Todos os assuntos de interesse público são melhor conduzidos pela polícia. Nosso terreno é o das coisas mais particulares e pessoais como escutar a conversa animada e proveitosa da Sra. Curtis, colher uma informação da Srta. Percehouse e vigiar de perto as Willetts. Aí é que podemos ter sucesso.

      — Ou não, dependendo das circunstâncias.

      — Voltando ao preenchimento das condições por parte do Brian, já nos referimos a duas: motivo e oportunidade. Resta uma terceira condição... a que, a meu ver, é a mais importante de todas.

      — E qual é ela?

      — Bom, desde o começo percebi que não podíamos ignorar aquele estranho incidente da “mesa que falou”. Tenho procurado interpretá-lo da maneira mais lógica e inteligível possível. Há duas hipóteses cabíveis para o que aconteceu. Primeira: uma manifestação sobrenatural. Bem, naturalmente, pode ter sido assim, mas a meu ver está fora de cogitações. Segunda: um ato deliberado. Alguém pode ter feito aquilo de maneira proposital, mas como não se pode chegar a uma conclusão definida, temos que deixar essa hipótese também de fora. Terceira: uma coisa acidentai. Alguém provocou o incidente sem o sentir... isto é, inteiramente contra a sua vontade. Uma simples premonição. Nesse caso, alguma daquelas seis pessoas que participaram da sessão talvez supusesse que a certa hora daquela tarde o Capitão Trevelyan iria ser assassinado. Ou então que alguém estava tendo uma discussão com Trevelyan, da qual resultaria uma ação violenta. Nenhuma daquelas seis pessoas poderia, obviamente, cometer o crime, mas uma delas talvez estivesse mancomunada com o assassino. Não há nenhuma ligação entre o Major Burnaby e algum de nossos suspeitos, ocorrendo o mesmo quanto ao Sr. Rycroft e a Ronald Garfield. Mas esse elo existe quando chegamos às Willetts. Há uma ligação entre Violet Willett e Brian Pearson. Os dois são bem íntimos e aquela garota anda uma pilha de nervos após o assassinato do capitão;

      — Você acha que ela sabe de alguma coisa? — perguntou Charles.

      — Ela ou sua mãe... Uma das duas.

      — Há uma pessoa a quem você não se referiu. O Sr. Duke.

      — Eu sei. É estranho, mas trata-se da única pessoa sobre a qual não sabemos absolutamente nada. Tentei visitá-lo por duas vezes e não consegui. Parece inexistir qualquer conexão entre ele e o Capitão Trevelyan, ou qualquer dos parentes deste. Não existe nada que o relacione de algum modo com o caso, e no entanto...

      — Sim? — fez Enderby quando Emily interrompeu o que dizia.

      — E no entanto nós vimos o Inspetor Narracott saindo do bangalô do Sr. Duke. O que o inspetor sabe sobre ele que nós ignoramos? É o que eu gostaria de saber.

      — Imagina que...

      — Suponhamos que Duke seja um tipo suspeito e a polícia tenha conhecimento desse fato. Imaginemos ainda que o Capitão Trevelyan tivesse descoberto algo sobre Duke. Lembre-se de que o capitão se interessava muito pela vida de seus inquilinos e, sendo assim, é fácil imaginar que ele pretendesse relatar à polícia o que descobrira. Aí Duke contrata alguém para eliminar Trevelyan. Oh, sei que toda essa história parece muito folhetinesca descrita assim, mas, seja como for, algo parecido pode ter acontecido.

      — É uma hipótese, claro.

      Emily e Charles ficaram silenciosos, mergulhando em seus pensamentos.

      De repente, Emily rompeu o silêncio:

      — Você deve conhecer essa estranha sensação que se tem quando nos sentimos observados por alguém. Pois bem, sinto que o olhar de alguém está pousado nas minhas costas. É imaginação minha ou estão mesmo me olhando agora?

      Charles moveu sua cadeira ligeiramente, de modo casual, e olhou de relance para os fundos do restaurante.

      — Há uma mulher sentada à mesa perto da janela. Alta, morena e elegante. E está olhando para você.

      — É jovem?

      — Não, já passou dos trinta. Epa!

      — O que houve?

      — É o Ronnie Garfield. Acaba de se aproximar da mesa da tal senhora e estão trocando um aperto de mãos... Tenho a impressão de que ela está dizendo algo sobre nós dois.

      Emily abriu sua bolsa e retirou o estojo de pó-de-arroz e um espelhinho. Ajustou-o num ângulo conveniente ao empoar o rosto.

      — É a tia Jennifer — disse baixinho. — Então se conhecem...

      — Ele já se sentou — observou Charles. — Deseja falar com sua tia?

      — Não. Acho melhor para mim fingir que não a vi.

      — Pensando bem, por que sua tia Jennifer não poderia conhecer Ronnie Garfield e encontrá-lo para tomarem um chá?

      — Por que iria convidá-lo?

      — Por que acha que não?

      — Oh, por favor, Charles, chega de tanto poderia, não poderia. Claro que essa conversa não conduz a nada, estamos somente fazendo suposições. O fato é que estávamos justamente dizendo que ninguém mais além das Willetts tinha qualquer relacionamento com a família Pearson e eis que cinco minutos depois vemos Ronnie Garfield tomando chá com a irmã do Capitão Trevelyan.

      — O que demonstra que nunca se pode afirmar nada sem ter certeza.

      — Revela apenas que temos sempre de começar tudo de novo — emendou Emily.

      — E de mais de uma maneira — observou Charles.

      Emily fitou-o, perguntando:

      — Que está querendo dizer?

      — Nada, por enquanto.

      Charles pousou sua mão sobre as da jovem, que não as retirou.

      — Nós temos que resolver esse caso primeiro. Mais tarde...

      — Mais tarde? — disse Emily suavemente.

      — Estou pronto a fazer tudo por você, Emily. Qualquer coisa...

      — É mesmo? Isto é muito gentil de sua parte, Charles querido.

     

ROBERT GARDNER

TINHAM DECORRIDO apenas vinte minutos quando Emily tocou a campainha da porta da frente da casa dos Gardner. Obedecera a um impulso repentino.

      Ela sabia que sua tia Jennifer ainda estava no Deller, com Ronnie Garfield. Sorriu para Beatrice quando esta veio abrir a porta.

      — Sou eu, de novo — disse Emily. — Sei que a Sra. Gardner saiu, mas poderia ver o Sr. Gardner?

      Tal pedido parecia fora dos padrões habituais ali e Beatrice mostrou-se indecisa.

      — Bem, eu não sei. Vou subir e falar com o patrão. Pode esperar um pouquinho?

      — Sim, claro — retrucou Emily.

      Beatrice subiu a escada, deixando a jovem sozinha no vestiário. Poucos minutos depois a criada voltava e pedia a Emily para subir, por gentileza, pois seu patrão iria recebê-la.

      Robert Gardner estava deitado num sofá perto da janela, no espaçoso quarto do andar de cima. Era um homem alto e robusto, de olhos azuis e expressão franca. Segundo Emily, assim deveria ser o olhar de Tristão no terceiro ato de Tristão e Isolda, mas nenhum tenor wagneriano chegara a tal perfeição.

      — Olá — disse Robert Gardner. — Então você é que é a futura esposa do criminoso, hem?

      — Exatamente, tio Robert — retrucou Emily. — Suponho que possa chamá-lo de tio, não?

      — Se a Jennifer assim permitir... O que sente ao saber que um jovem padece na prisão?

      Emily achou-o até cruel. Sim, o tipo de homem que se permitia ironizar e atingir as pessoas em seus pontos mais sensíveis. Mas ela era uma rival à altura e disse com um leve sorriso:

      — É muito emocionante.

      — Mas não para o Sr. Jim, hem?

      — Oh, bem, trata-se de uma nova experiência para ele, não acha?

      — Que lhe ensinará que a vida não é feita só de divertimentos — disse Robert Gardner, maliciosamente. — Ele era muito jovem para lutar na Guerra Mundial, não é mesmo? Sentia-se inclinado à boa vida e a dispor de tudo com facilidade. Bem, bem... Ele se deu mal em outra frente.

      Observou a jovem com ar curioso e perguntou bruscamente:

      — A que devo o seu interesse em vir me conhecer?

      Havia uma espécie de suspeita em sua entonação.

      — Se alguém está prestes a entrar para uma família por meio de um casamento, é natural que deseje conhecer todos os parentes da pessoa com quem se vai unir.

      — Saber do pior antes que seja muito tarde, não é isso? Então você pensa realmente que se casará com o jovem Jim, hem?

      — E por que não?

      — Apesar dessa acusação de assassinato?

      — Sim, apesar dessa acusação.

      — Bem, nunca vi nada tão deprimente. Qualquer um diria que você está-se divertindo com essa situação.

      — E estou. Traçar a pista de um assassino é emocionante demais.

      — Como? — exclamou Robert, intrigado.

      — Eu disse que seguir os passos de um assassino é muito emocionante.

      Robert Gardner ficou olhando para Emily, então voltou a recostar-se nas almofadas.

      — Estou cansado — disse ele, com voz irritada. — Não posso conversar mais. Enfermeira, onde está você? Enfermeira, estou cansado.

      A Srta. Davis já se acercara suavemente, vinda do quarto contíguo.

      — O Sr. Gardner se cansa com muita facilidade. Acho que faria melhor saindo agora se não se incomoda, Srta. Trefusis.

      Emily levantou-se, assentiu prontamente e disse:

      — Até logo, tio Robert. Talvez eu volte aqui algum dia.

      — Que está querendo dizer?

      — Au revoir — foi a resposta da moça.

      Já descera a escada e acercava-se da porta da rua quando parou, dizendo para Beatrice:

      — Oh, ia esquecendo as minhas luvas.

      — Eu as apanho para a senhorita.

      — Oh, não. Pode deixar. — E subiu rapidamente as escadas, entrando sem bater no quarto de Robert Gardner.

      — Desculpem-me. Lamento incomodar de novo, mas deixei minhas luvas aqui. — Recolheu-as, exibindo-as como se reforçasse sua justificativa de invasão do quarto. E sorriu docemente para Robert e a enfermeira, sentados na cama de mãos dadas. Afastou-se rapidamente, desceu as escadas e logo saía da casa.

      — Esse truque de “esquecer” as luvas tem tido resultados assustadores — pensou Emily na rua. — É a segunda vez que funciona. Pobre tia Jennifer, será que já sabe? Acho que não. Tenho que andar depressa ou Charles vai se cansar de esperar.

      Enderby estava esperando, conforme fora combinado, junto ao carro de Elmer.

      — Teve sorte? — ele indagou assim que a fez entrar no veículo.

      — De certo modo, sim. Não estou bem segura.

      Charles olhou-a com ar interrogativo.

      — Não — ela retrucou em resposta àquele olhar. — Prefiro não lhe dizer do que se trata. Ouça, pode ser que nada tenha a ver com o caso... E se for assim, não seria delicado de minha parte contar-lhe o que vi.

      Enderby suspirou resignado e observou:

      — Eu chamo isso de traição.

      — Lamento, mas tem de ser assim.

      — Você sabe o que faz — disse Charles friamente.

      O carro seguiu adiante enquanto Charles se mantinha silencioso, com ar magoado, e Emily mergulhava em suas conjecturas.

      Estavam perto de Exhampton quando Emily rompeu o silêncio com uma pergunta totalmente inesperada.

      — Charles, você joga bridge?

      — Sim. Por quê?

      — Estava pensando... Sabe o que se diz quando você está avaliando o jogo que tem em mãos? Se está se defendendo, calcula o número de prováveis ganhadores... mas se está certo de vencer, calcula quais os perdedores. Agora, num assunto como o nosso nós estamos na ofensiva, mas talvez estejamos usando uma tática errada.

      — Que está querendo dizer?

      — Bem, nós estivemos até agora levando em conta os ganhadores, certo? Quero dizer, investigando as pessoas que poderiam ter matado o Capitão Trevelyan, por mais improvável que pareça. E eis aí por que nós estamos tão confusos.

      — Eu não tenho andado desnorteado — replicou Charles.

      — Bem, então sou eu que me sinto confusa. Tanto que nem consigo raciocinar direito. Sendo assim, vamos encarar a situação por outro ângulo. Vamos concentrar-nos nos “perdedores”... as pessoas que possivelmente não matariam o Capitão Trevelyan.

      — Bem, vamos ver... — murmurou Enderby, refletindo. — Para começar, temos as Willetts, Burnaby, Rycroft e Ronnie... Ah, e o Duke.

      — Sim — assentiu Emily. — Sabemos que nenhum deles podia tê-lo matado. Porque na ocasião em que foi assassinado todos eles estavam na mansão Sittaford atentos uns aos outros e não poderiam mentir de todo. Sim, estão todos fora de suspeitas.

      — Na realidade, todos em Sittaford podem ser descartados. Mesmo o Elmer — baixou a voz ao encarar a possibilidade de o motorista estar atento à conversa. — Isto porque a estrada para Sittaford estava intransitável para veículos na sexta-feira.

      — Ele podia ter ido a pé — observou Emily, também em voz baixa. — Se o Major Burnaby pôde fazê-lo naquela tarde, Elmer também poderia ter saído na hora do almoço... alcançado Exhampton às cinco, cometido o crime, e voltado então a pé.

      Enderby meneou a cabeça, objetando:

      — Não creio que ele pudesse voltar a pé para Sittaford. Lembre-se de que a neve passou a cair por volta de seis e meia. Seja como for, você não está acusando Elmer, está?

      — Não, embora, naturalmente, ele possa ser um maníaco homicida.

      — Ei, assim você pode ferir os sentimentos dele, se a estiver ouvindo.

      — De nenhum modo, você pode afirmar taxativamente que ele não poderia ter matado o Capitão Trevelyan.

      — É quase certo que não poderia ir a Exhampton e regressar sem que todo mundo em Sittaford soubesse e estranhasse tal fato.

      — É realmente um lugar onde todos sabem de tudo — concordou Emily.

      — Exatamente. Aí está porque eu disse que todo mundo em Sittaford está fora de cogitações. As únicas pessoas que não se achavam na casa das Willetts naquela tarde, a Srta. Percehouse e o Capitão Wyatt, são inválidos. Não poderiam, é óbvio, saírem e enfrentar nevascas. Restam ainda a querida Sra. Curtis e seu velho marido. Se um deles tivesse cometido o crime, passaria um repousante fim de semana em Exhampton e regressado somente quando tudo estivesse serenado.

      Emily riu e comentou:

      — Não se poderia ficar um fim de semana fora de Sittaford sem que notassem logo essa ausência.

      — Curtis iria estranhar muito o silêncio na sua casa se a Sra. C. se ausentasse.

      — Naturalmente, a pessoa mais suspeita me parece ser o Abdul. Devia figurar numa novela de aventura. Deve ter sido um marinheiro certamente, e o Capitão Trevelyan poderia ter executado seu irmão favorito a bordo de um navio durante um motim... ou algo desse tipo — brincou Emily.

      — Eu não acredito que aquele infeliz nativo de expressão tão desalentada jamais tenha matado alguém. Ah, já sei! — exclamou de repente.

      — O quê?

      — A mulher do ferreiro. A que está esperando seu oitavo bebê. Uma senhora decidida, apesar de sua condição atual, poderia ir até Exhampton e golpeado o capitão com aquele saco de areia.

      — E por que, me diga, faria tal coisa?

      — Porque, naturalmente, embora o ferreiro fosse o pai dos sete pimpolhos anteriores, o Capitão Trevelyan era o responsável pelo oitavo já a caminho.

      — Charles, não seja indelicado. E de qualquer modo seria o ferreiro e não ela quem tomaria tal atitude agressiva. Haveria um bom motivo para o crime. Pense só naquele braço vigoroso brandindo o saco de areia! E sua esposa praticamente não notaria a ausência dele, tendo já sete filhos pequenos para cuidar.

      — Isto nos leva a conjecturas simplesmente tolas — observou Enderby.

      — Concordo — admitiu Emily. — Fazer cálculos sobre os “perdedores” não foi uma idéia bem sucedida.

      — Que me diz de você?

      — Eu?

      — Onde estava quando o crime foi cometido?

      — Mas que coisa interessante! Nunca pensaria nisso. Estava em Londres, claro. Mas não sei como poderia prová-lo. Achava-me sozinha em meu apartamento.

      — Como vê, tinha o motivo e tudo mais. Seu jovem noivo atrás de vinte mil libras, que mais poderia adicionar?

      — Você é esperto, Charles. Percebo que realmente sou uma pessoa suspeita. Nunca tinha pensado nisso.

     

NARRACOTT EM AÇÃO

DUAS MANHÃS DEPOIS, Emily se achava sentada no gabinete do Inspetor Narracott. Ela acabara de chegar de Sittaford.

      O inspetor contemplou-a com ar apreciativo. Admirava a valentia de Emily, sua firme disposição de ânimo, sua esportividade sempre atuante. Ela era uma lutadora, e Narracott apreciava pessoas assim. Particularmente achava que ela era boa demais para Jim Pearson, mesmo admitindo-se que o rapaz fosse inocente do crime de que era acusado.

      — Lê-se comumente nos livros — dizia o inspetor — que a polícia sempre tenta encontrar uma vítima, um bode expiatório em casos intrincados, e que não liga a mínima que essa vítima seja inocente ou não, desde que tenham provas suficientes para incriminá-la. Isto não é verdade, Srta. Trefusis, só queremos capturar o verdadeiro culpado.

      — E acredita honestamente que Jim seja culpado, Inspetor Narracott?

      — Não posso dar uma resposta em caráter oficial à sua pergunta, Srta. Trefusis. Mas lhe digo o seguinte: temos examinado não só as provas contra ele como também as evidências contra outras pessoas. E fazemos isso meticulosamente.

      — Terá algo contra o irmão de Jim, o Brian?

      — O Sr. Brian Pearson tem procedido de maneira insatisfatória. Recusa-se a responder a certas perguntas ou a fornecer qualquer informação sobre sua pessoa. Mas eu penso... — o sorriso e o sotaque pausado dos de Devonshire se ampliaram por parte do inspetor — penso que já cheguei a uma conclusão sobre alguns movimentos desse cavalheiro. Saberei se estou certo ou não em minhas suposições dentro de meia hora. E há também o marido daquela dama, o Sr. Dering.

      — O senhor o viu? — perguntou Emily, curiosa.

      O Inspetor Narracott percebeu o ar ansioso da jovem, e se sentiu tentado a descartar o protocolo policial. Recostando-se em sua poltrona, relatou sua conversa com o Sr. Dering. Então retirou de uma pasta sobre a mesa a cópia do telegrama que enviara ao Sr. Rosenkraun.

      — Esta é a mensagem que eu enviei. E aqui está a resposta.

      Emily leu a resposta ao telegrama do inspetor.

INSPETOR NARRACOTT,

Drysdale Road, 2, Exeter

       Confirmo naturalmente declaração do Sr. Dering. Esteve em minha companhia toda a tarde de sexta-feira.

                                           ROSENKRAUN.

      — Oh!... que aborrecido — disse Emily, escolhendo uma palavra mais branda do que a que tinha em mente, por saber que os agentes daquela força policial eram meio antiquados e se chocavam facilmente.

      — Sim — disse o Inspetor Narracott, com ar reflexivo. — Isto é meio decepcionante, não é mesmo? — E sorriu de novo. — Mas eu sou um homem desconfiado, Srta. Trefusis. As razões apresentadas pelo Sr. Dering pareciam bem plausíveis... mas achei precipitado confiar nele inteiramente. Assim, enviei um outro telegrama.

      E de novo estendeu à jovem duas folhas de papel.

      Na primeira lia-se:

       Informação desejada referia-se ao assassinato do Capitão Trevelyan. Sustenta a declaração de Martin Dering do álibi dele para a tarde de sexta-feira? Inspetor Narracott, Exeter.

      A resposta denotava evidente inquietação e indiferença negligente pelo preço a pagar pelo telegrama extenso.

       Não tinha nenhuma idéia da ligação de Martin Dering com esse crime de sexta-feira última. Concordei em sustentar sua declaração como um favor que um amigo presta a outro já que sua mulher o vigiava por motivos de um provável divórcio.

      — Oh, o senhor é muito esperto, inspetor.

      Narracott pensou, evidentemente, que tinha sido esperto. Sorriu desta vez amável e contente.

      — Como os homens são unidos nesses truques — prosseguiu Emily, relendo os telegramas. — Pobre Sylvia. Sob certo aspecto, penso realmente que os homens são uns animais. Eis por que — completou, sorrindo e olhando significativamente para o inspetor — é tão agradável encontrar-se um homem em que se possa confiar de verdade.

      — Mas saiba que tudo isto é muito confidencial, Srta. Trefusis — alertou o inspetor. — Ao inteirá-la desses detalhes fugi aos padrões de sigilo habituais.

      — Acho uma coisa adorável de sua parte. Nunca o esquecerei.

      — Bem, lembre-se: nem uma palavra sobre isso a ninguém.

      — Quer dizer que não posso contar ao Charles... isto é, ao Sr. Enderby.

      — Jornalistas são sempre jornalistas — observou o inspetor. — Conquanto a senhorita o mantenha sob controle... Bem, notícias são notícias, não é mesmo?

      — Então não contarei nada a ele. Acho que ficará meio confuso, mas como o senhor acabou de dizer, jornalistas são sempre jornalistas.

      — Nunca compartilhe informações quando for desnecessário. Esta é minha norma — observou o Inspetor Narracott.

      Um brilho muito fugaz surgiu nos olhos de Emily, ao pensar que o Inspetor Narracott infringira aquela norma durante a última meia hora. Uma lembrança repentina lhe veio à mente, mas não era algo que talvez interessasse no momento. Alguma coisa que parecia apontar para um rumo totalmente diverso. Mas ainda assim seria interessante informar-se a respeito.

      — Inspetor Narracott — ela disse subitamente. — Quem é o Sr. Duke?

      — O Sr. Duke?

      Emily intuiu que o inspetor mostrava-se bastante desconcertado com sua pergunta. E acrescentou:

      — O senhor deve estar lembrado de que nos encontramos à entrada do bangalô do Sr. Duke, em Sittaford.

      — Ah, sim, eu me lembro. Na verdade, Srta. Trefusis, eu o procurei porque queria obter uma versão mais fiel daquela sessão realizada na casa das Willetts. O Major Burnaby não tem muito talento descritivo.

      — Nesse caso, se eu fosse o senhor, teria procurado alguém como o Sr. Rycroft para um relato mais preciso. Porque o Sr. Duke?

      Após breve silêncio, o inspetor retrucou:

      — Essa é uma simples questão de opinião.

      — Entendo. Eu me pergunto se a polícia não está a par de alguma coisa sobre o Sr. Duke.

      O Inspetor Narracott não respondeu. Ele fixara seu olhar com atenção no mata-borrão sobre a sua mesa.

      — Um homem que leva uma vida irrepreensível! — exclamou Emily. — Sim, isto parece descrever com terrível precisão o Sr. Duke, mas quem sabe se ele teve sempre uma vida inatacável? Talvez a polícia o saiba?

      Percebeu uma leve contração nos lábios do Inspetor Narracott, como se ele procurasse dissimular um sorriso.

      — Gosta de fazer conjecturas, não, Srta. Trefusis? — disse o inspetor, em tom amável.

      — Quando as pessoas não nos contam certas coisas temos que adivinhar — replicou Emily.

      — Se como a senhorita mesma disse, um homem vem levando uma vida irrepreensível e se tornaria um aborrecimento e uma inconveniência para ele ter seu passado vasculhado... Bem, nesse caso, a polícia deve manter o assunto em sua esfera própria e em sigilo. Nós não desejamos trair o segredo deste homem.

      — Entendo. Mas assim mesmo o senhor foi vê-lo, não foi? Isto dá a impressão de que o senhor, por assim dizer, pensa que ele teve uma participação qualquer nesse caso. Eu... eu gostaria de saber quem é realmente o Sr. Duke. E que possível delito terá cometido no passado.

      Havia muita ansiedade na voz e no olhar de Emily, mas o Inspetor Narracott se manteve imperturbável. Vendo que não havia esperanças de obter a informação desejada, Emily suspirou resignada e levantou-se.

      Quando ela já saíra, o Inspetor Narracott ainda olhava o mata-borrão, esboçando um leve sorriso e fazendo então soar a campainha para um de seus auxiliares entrar na sala.

      — E então? — perguntou o inspetor.

      — Tudo bem, senhor. Mas o Duchy não esteve em Princetown, mas sim no hotel de Duas Pontes.

      — Ah! — E o inspetor pegou os papéis que o outro lhe estendera. — Bem, isso assenta perfeitamente. Você checou os movimentos do outro rapaz na sexta-feira passada?

      — Ele certamente chegou a Exhampton pelo último trem, mas ainda não consegui apurar a que horas deixou Londres. Estão sendo feitas investigações nesse sentido.

      Narracott aprovou tal medida.

      — Aqui está o registro do cartório de Somerset, senhor.

      Narracott folheou o documento. Tratava-se do registro de casamento celebrado em 1894 entre William Martin Dering e Martha Elizabeth Rycroft.

      — Ah! — exclamou o inspetor. — Alguma coisa mais?

      — Sim, senhor. O Sr. Brian Pearson deixou a Austrália a bordo do Phidias, da Blue Funnel. O navio aportou em Cape Town, mas nenhuma passageira de nome Willett embarcou. Nem a Sra. Willett nem sua filha vieram da África do Sul. Há o registro de uma Sra. e uma Srta. Evans e também de umas Sra. e Srta. Johnson, procedentes de Melbourne... estas correspondendo à descrição das Willetts.

      — Hum... Johnson, hem? É provável que nem Johnson nem Willett seja o nome verdadeiro das atuais moradoras da casa de Sittaford.

      Pelo silêncio do seu auxiliar, Narracott concluiu não haver mais nenhuma informação e então limitou-se a dizer:

      — Bem, acho que já temos o bastante para agir.

 

AS BOTAS

— MAS, MINHA CARA JOVEM — disse o Sr. Kirkwood — o que espera encontrar realmente na Vila Hazelmoor? Todos os pertences do Capitão Trevelyan já foram removidos dali. A polícia fez uma busca meticulosa naquela casa. Entendo perfeitamente sua situação e a ansiedade natural por ver o Sr. Pearson... inocentado. Mas o que poderá fazer?

      — Eu não espero descobrir algo — replicou Emily — ou verificar algum detalhe que a polícia possa ter omitido. Não sei como explicar-lhe, Sr. Kirkwood, mas desejo sentir a atmosfera daquele lugar. Por favor, empreste-me a chave da casa. Não há nenhum mal nisso.

      — Certamente que não há nenhum inconveniente — disse o advogado, com toda seriedade.

      — Então me faça essa gentileza — murmurou Emily.

      O Sr. Kirkwood mostrou-se gentil e lhe entregou a chave, com um sorriso indulgente. Mas insistiu em acompanhá-la, o que só pôde ser evitado graças a muita habilidade e firmeza da parte da jovem.

      Naquela mesma manhã, Emily recebera uma carta remetida pela Sra. Belling, que assim se expressara:

CARA SRTA. TREFUSIS:

       Como me disse outro dia que gostaria de saber de alguma novidade que eu viesse a “ouvir” em Sittaford e que parecesse um pouco fora do comum, mesmo sem ser importante, julgo do meu dever levar a seu conhecimento algo curioso que se passou aqui. Espero que esta carta chegue às suas mãos ainda hoje à noite ou pelo correio de amanhã cedo. Minha sobrinha é que soube do fato e me contou logo. Ela me disse que se trata de uma coisa sem grande importância, mas que não deixa de ser curiosa e diferente, no que concordo. Segundo a polícia, nada fora tirado da casa do falecido capitão. Esse “nada” deve referir-se a coisas de algum valor, é claro, pois algo desapareceu daquela casa, embora não fosse notado na ocasião por não parecer importante.

       Mas parece senhorita, que um par de botas do Capitão Trevelyan desapareceu, tendo Evans notado essa falta quando arrumava as coisas do seu falecido patrão em companhia do Major Burnaby. As botas a que me refiro eram de couro de primeira e talvez o capitão as mandasse limpar e engraxar, caso tivesse caminhado na neve pouco antes de sua morte. Mas como sabemos que não saíra na neve, isto não faz muito sentido. O fato é que as botas desapareceram e ninguém aqui sabe quem as levou. Penso que isto talvez não tenha importância, mas, como já lhe disse, me senti na obrigação de lhe contar. Faço votos que as preocupações que a senhorita tem a respeito de seu jovem noivo terminem breve.

       Sua amiga,

                     SRA. BELLING

      Emily lera e relera essa carta, e a comentara com Charles.

      — Botas — dissera Charles, sem muito interesse. — Isto não parece significativo.

      — Deve significar algo — replicou Emily. — Pergunto-me por que um par de botas iria sumir assim?

      — Não acha que possa ser invenção do Evans?

      — E por que ele iria criar essa história? E além do mais, quando alguém inventa qualquer coisa, sempre procura algo mais inteligente, não uma tolice como essa.

      — Botas nos levam a pensar em pegadas — observou Charles, pensativo.

      — Sei. Mas esse tipo de marcas não parece figurar nesse caso. Talvez se ele não pensasse em sair mais quando nevasse...

      — Aí poderia ter dado as botas a algum mendigo — sugeriu Charles — e este, então, as usasse.

      — É possível, mas não combina bem com o modo de ser do capitão. Ele seria capaz, talvez, de arrumar algum serviço para esse vagabundo fazer, ou mesmo lhe dar um shilling, mas não iria presenteá-lo com suas melhores botas de inverno.

      — Bem, eu desisto de pensar nisso.

      — Mas eu não — replicou Emily. — Seja como for, irei ao fundo dessa questão.

      E foi assim que ela se dirigiu a Exhampton, procurando logo a Sra. Belling, que a recebeu muito contente, no Hotel Três Coroas.

      — E pensar que seu jovem noivo ainda está na prisão, senhorita! Bem, embora isto seja uma dura realidade, nenhuma de nós aqui crê que ele tenha cometido esse crime. E, pelo menos, posso tentar ajudá-la ouvindo uma coisinha aqui, outra ali sobre o assunto. Então recebeu minha carta, hem? Gostaria de falar com Evans? Bem, ele mora na próxima esquina, dobrando a direita. Rua Fore, 85. Gostaria de ir com você, querida, mas não posso deixar este local agora. Mas você não pode errar, a casa fica bem perto daqui.

      Emily não teve dificuldade alguma em localizar a casa de Evans. Este saíra, mas sua mulher a convidou a entrar. Emily sentou-se na sala e fez com que a Sra. Evans a imitasse. Tratou logo de ir diretamente ao assunto que lhe interessava.

      — Vim aqui para falar sobre uma coisa que seu marido contou à Sra. Belling. Refiro-me às botas perdidas do Capitão Trevelyan.

      — Sim, foi uma coisa esquisita, realmente — disse a jovem Sra. Evans.

      — Seu marido tem certeza desse desaparecimento?

      — Oh, sim. O capitão usava essas botas durante a maior parte do inverno. Eram grandes e ele costumava colocar um par de meias grossas dentro delas.

      Emily moveu a cabeça e então insinuou:

      — Não podem estar com o sapateiro por acaso?

      — Sem que o Evans soubesse, não — retrucou a Sra. Evans, com orgulho de esposa.

      — É, imagino que não.

      — Foi uma coisa esquisita, mas acho que nada tenha a ver com o crime. Não pensa assim também, senhorita?

      — É o que parece — concordou Emily.

      — A polícia descobriu alguma coisa nova, senhorita? — A voz da jovem senhora traía certa ansiedade.

      — Sim, uma ou duas coisas... nada de muita importância.

      — Como aquele inspetor lá de Exeter esteve aqui de novo hoje, pensei que talvez tivessem alguma novidade.

      — Fala do Inspetor Narracott?

      — Sim, esse mesmo, senhorita.

      — Sabe se ele veio no mesmo trem que eu?

      — Não, veio de carro. Esteve primeiro no Três Coroas e perguntou pela bagagem daquele moço.

      — De que moço está falando?

      — Do jovem cavalheiro que tem acompanhado a senhorita. Emily mostrou-se curiosa.

      — Fizeram perguntas ao Tom — prosseguiu a Sra. Evans. — Eu ia passando pela delegacia pouco depois e ele me contou tudo. Se há alguém com boa observação é o Tom. Tem boa memória e se lembrou de que havia dois rótulos na mala do moço, um de Exeter e o outro de Exhampton.

      Um sorriso repentino flutuou nos lábios de Emily ao imaginar Charles como autor de um crime a fim de obter um furo jornalístico para si mesmo. Até que alguém poderia escrever um conto de horror sobre esse tema. Mas ela apreciava a persistência do Inspetor Narracott em confrontar todos os detalhes referentes a qualquer pessoa, por mais remota que fosse sua relação com o crime. Ele devia ter partido de Exeter logo após a conversa que tivera com ela. Um carro em boa marcha poderia facilmente superar o ritmo do trem, e, além do mais, ela ainda almoçara em Exeter,

      — Aonde foi o inspetor depois de conversar com Tom?

      — A Sittaford, senhorita. Tom o ouviu dizer isso ao motorista.

      — Terá ido à mansão Sittaford?

      Como ela já sabia, Brian Pearson estava hospedado lá, com as Willetts.

      — Não, senhorita. Ele foi ver o Sr. Duke.

      Duke de novo. Emily sentiu-se irritada e meio frustrada. Sempre o tal Duke... um elemento misterioso. Devia ter deduzido logo o motivo de Narracott visitar aquele homem e procurar saber detalhes sobre o estranho indivíduo, mas o Sr. Duke parecia causar a mesma impressão a todos os moradores de Sittaford. Um homem normal, comum e cordial.

      — Preciso vê-lo — disse Emily para si mesma. — Farei tal coisa tão logo volte a Sittaford.

      Depois de agradecer à Sra. Evans é que ela foi falar com o Sr. Kirkwood para obter a chave da Vila Hazelmoor.

      Agora se achava no vestíbulo da casa onde morrera o capitão. E se perguntava como e por que desejara entrar ali.

      Subiu as escadas devagar e entrou no primeiro aposento à direita. Tratava-se, via-se logo, do quarto do Capitão Trevelyan. Como dissera o Sr. Kirkwood, todos os objetos pessoais do falecido haviam sido removidos dali. Cobertores e lençóis estavam cuidadosamente empilhados numa cadeira, as gavetas achavam-se vazias e o armário impecavelmente limpo e sem nada em seu interior. A sapateira estava vazia também.

      Emily suspirou e então desceu as escadas. Chegou à sala de espera onde fora achado o cadáver do capitão. Ela tentou visualizar a cena do crime, com o vento frio entrando pela janela entreaberta.

      Quem golpeara o capitão na cabeça, e por quê? Ele fora morto realmente às cinco e vinte e cinco como todos pensavam... ou Jim teria na verdade se atemorizado e mentido? Teria escutado algum ruído vindo da sala e olhado então pela janela, assustando-se ao deparar com seu tio morto lá dentro? Se ela pudesse saber ao certo... Segundo o Sr. Dacres, Jim aferrava-se à sua versão da visita feita ao tio. Mas... Jim podia ter ficado confuso, apavorado. Ela não podia ter certeza.

      Haveria alguém mais na casa, como sugerira o Sr. Rycroft, alguém que tivesse escutado a discussão entre Jim e o capitão e aproveitasse a oportunidade que se lhe era oferecida?

      Se assim fosse... isto não viria a esclarecer a questão das botas perdidas? Será que alguém estivera escondido no andar de cima... talvez no quarto do Capitão Trevelyan? Emily passou de novo pelo vestíbulo e olhou rapidamente a sala de jantar. Viu dois caixotes ali bem fechados e rotulados. O guarda-louça estava vazio. A prataria estava agora no bangalô do Major Burnaby.

      Emily notou, contudo, que as três novelas recebidas como prêmio num torneio de palavras cruzadas, conforme Charles soubera por Evans, tinham sido esquecidas e estavam jogadas sobre uma cadeira.

      Olhou à sua volta e balançou a cabeça. Não havia nada de interesse ali. Assim, subiu novamente as escadas e voltou a entrar no quarto que fora do capitão.

       Tinha que saber por que aquelas botas haviam desaparecido! Só tiraria isso da mente quando viesse a ter uma explicação satisfatória para tal desaparecimento. Esse detalhe das botas perdidas estava ganhando uma dimensão até meio ridícula, eclipsando tudo mais relacionado com aquele caso. Não haveria nada para ajudá-la nesse sentido?

      Examinou cada uma das gavetas, retirando-as dos lugares e tateando o fundo do móvel. Nas histórias policiais os detetives sempre encontravam algum papel esquecido, um documento qualquer. Mas na vida real evidentemente ninguém devia contar com esses achados fortuitos, ainda mais quando se sabia que o Inspetor Narracott e seus auxiliares já tinham revistado tudo muito bem naquela casa. Emily rebuscou os escaninhos, levantou até as pontas do tapete. Examinou também o colchão fino de uma cama de armar. Não sabia realmente o que desejava descobrir ali, mas continuava a examinar tudo com grande perseverança.

      E então, quando se aprumara após observar o tapete, seu olhar captou algo que não encaixava naquele aposento onde tudo parecia tão bem ordenado. Havia um pouco de fuligem na grade da lareira.

      Ela observou esse detalhe como um pássaro hipnotizado pelo olhar de uma serpente. Acercou-se da lareira, para ver melhor. Não obedecia a nenhuma dedução lógica, nenhum raciocínio de causa e efeito. Simplesmente a visão daquele montinho de fuligem sugeria uma certa possibilidade. Emily retirou suas luvas e esticou os braços, enfiando ambas as mãos pela abertura da parte superior da lareira.

      Um minuto depois ela estava olhando deliciosamente surpresa para um embrulho feito com papel de jornal. Ao desembrulhá-lo dera com as botas perdidas.

      — Mas por quê? — murmurou. — Aqui estão elas! Mas por quê? Por quê? — repetiu.

      Ficou a olhá-las. Então revirou-as, examinou-as por dentro e por fora, com a mesma indagação ressoando monotonamente em seu cérebro: Por quê?

      Era óbvio que alguém apanhara as botas do Capitão Trevelyan e as escondera na lareira. Mas por que teriam feito tal coisa?

      — Oh! — exclamou Emily, angustiada. — Dá até para enlouquecer!

      Colocou cuidadosamente as botas no meio da sala e, puxando uma cadeira, sentou-se e ficou a refletir. Então, passou a repassar cada detalhe do início daquele caso, coisas que descobrira ou deduzira em conversas aqui e ali. Analisou cada personagem daquele drama criminal e suas implicações.

      E, de repente, uma idéia meio estranha e nebulosa começou a tomar forma em sua mente. Uma idéia sugerida por aquele inocente par de botas que permaneciam pousadas no tapete.

      — Mas se foi assim — murmurou Emily — então...

      Pegou as botas e apressou-se a descer as escadas. Abriu a porta da sala de jantar e acercou-se do armário colocado a um canto. Ali estavam guardados, numa mistura heterogênea, os troféus de caça e taças, todos os objetos de maior estima do falecido capitão e que ele não quisera deixar ao alcance da curiosidade feminina de suas inquilinas da casa de Sittaford. Ali estavam os dentes de elefantes, os caniços de pesca, as cabeças de animais empalhados, esquis... Tudo à espera de que os Srs. Young e Peabody os empacotassem criteriosamente para serem levados a um depósito.

      Emily ficou olhando os troféus, com as botas ainda nas mãos. Assim permaneceu, imóvel e pensativa, por uns dois minutos. Lia-se certa incredulidade em seu olhar. Por fim, murmurou:

      — Então foi assim.

      Deixou-se cair numa poltrona. Ainda havia alguns pontos obscuros em seu raciocínio.

      Alguns minutos depois, levantava-se. E disse para si mesma:

      — Eu sei quem matou o Capitão Trevelyan, mas ainda ignoro o motivo. Ainda me falta o por quê. Mas não posso perder tempo.

      Apressou-se a deixar a casa. Encontrar um carro que a levasse logo a Sittaford foi questão de uns poucos minutos. Pediu ao motorista que a deixasse no bangalô do Sr. Duke. Pagou a corrida e acercou-se da porta do bangalô assim que o carro se foi.

      Moveu a aldrava por duas vezes antes que a porta fosse aberta por um homem corpulento e de rosto particularmente impassível.

      Pela primeira vez, ela se via diante do Sr. Duke.

      — Sr. Duke?

      — Sim.

      — Eu sou Emily Trefusis. Posso entrar, por favor?

      Houve uma momentânea indecisão. Então Duke recuou uns dois passos e deixou Emily entrar. Ela caminhou pelo living. Duke fechou a porta e acompanhou a jovem visitante.

      — Desejo falar com o Inspetor Narracott. Ele ainda está aqui?

      Fez-se nova pausa. O Sr. Duke parecia hesitar em responder. Por fim, algo se fez claro em sua mente e ele sorriu. Um sorriso deveras curioso.

      — Sim, o Inspetor Narracott está aqui. Por que a senhorita deseja vê-lo?

      Emily desembrulhou o pacote que trouxera. Retirou as botas e colocou-as sobre a mesa em frente ao dono da casa, retrucando:

      — Eu quero falar com ele acerca destas botas.

     

A SEGUNDA SESSÃO

— OLÁ — disse Ronnie Garfield.

      O Sr. Rycroft, que descia devagar a pequena ladeira perto da agência dos correios de Sittaford, parou esperando que o rapaz se aproximasse dele.

      — Esteve na cabana de Harrods, hem? Conversando com a velha Mamãe Hibbert.

      — Não — retrucou o Sr. Rycroft. — Estive dando um pequeno passeio um pouco além da ferraria. Faz um dia muito agradável.

      Ronnie fitou o céu azul e assentiu:

      — Sim, muito diferente da última semana. A propósito, suponho que está a caminho da casa das Willetts, não?

      — Sim. Você também?

      — Sim. As Willetts são a única fonte de alegrias em Sittaford. Não se deixam levar pelo abatimento, eis o seu lema. Encaram tudo de modo natural. Minha tia diz que é uma prova de insensibilidade da parte delas convidarem pessoas para um chá após o funeral e tudo mais, mas isto é pura conversa. Na verdade, minha tia fala assim porque está muito nervosa devido ao Imperador do Peru...

      — O Imperador do Peru? — repetiu o Sr. Rycroft, surpreso.

      — É um dos seus gatos. Só agora se viu que se trata de uma “imperatriz”, isto é, de uma gata, e tia Carolina, naturalmente, se aborreceu com esse equívoco. Ela não gosta desses problemas de sexo... Assim, como já frisei, ela desabafa seu aborrecimento com observações mordazes sobre as Willetts. Por que elas não podem, afinal, convidar seus vizinhos para uma reunião? Trevelyan não era seu parente, ou algo parecido.

      — É verdade — disse o Sr. Rycroft, voltando sua atenção para um pássaro que voava baixo e que ele reconheceu como sendo de uma espécie rara. — Como é aborrecido ter deixado meus óculos em casa — murmurou.

      — Ei! Falando sobre Trevelyan, o senhor acha que a Sra. Willett possa ter conhecido o velho capitão melhor do que ela afirma?

      — Por que faz tal pergunta?

      — Por causa da mudança que ela sofreu. Já chegou a notar algo assim antes? Ela parece ter envelhecido uns dez anos nessa última semana. O senhor deve ter notado.

      — Sim — respondeu Rycroft. — Eu notei.

      — Bem, eis aí o ponto. A morte de Trevelyan deve ter sido um choque muito sério para ela por algum motivo. Estranho seria descobrirmos que ela fora a esposa ou noiva abandonada pelo capitão em sua mocidade e que ele, anos depois, não veio a reconhecer mais.

      — Dificilmente eu imaginaria algo assim, Sr. Garfield.

      — Parece mais um argumento de filme, não? Mesmo assim, muitas dessas estranhas histórias ocorrem na realidade. Tenho lido coisas surpreendentes desse tipo no Daily Wire..., coisas que não mereceriam crédito se um jornal não as publicasse.

      — E se pode dar realmente crédito ao que dizem os jornais?

      — replicou mordazmente o Sr. Rycroft.

      — O senhor faz um mau juízo sobre o jovem Enderby, hem? — espetou Ronnie.

      — Não gosto de me meter em assuntos que não são da minha conta.

      — Sim, mas interessam a ele — insistiu Ronnie. — Quero dizer que farejar um assunto faz parte do trabalho do pobre rapaz. Ele parece ter caído nas boas graças do velho Burnaby. Curioso é que esse rapaz não suporta me ver. Para ele eu faço o efeito de um pano vermelho para um touro.

      O Sr. Rycroft não lhe deu resposta.

      — Por Júpiter — disse Ronnie, olhando de novo para o céu. — Não vê que estamos numa sexta-feira? Exatamente há uma semana atrás nós dois estávamos a caminho da casa das Willetts, como agora. Mas o tempo mudou um bocado de lá para cá.

      — Uma semana — disse o Sr. Rycroft. — Parece que aconteceu há muito mais tempo.

      — Dá a impressão de que um ano se passou, hem? Olá, Abdul.

      Estavam passando pelo portão do bangalô do Capitão Wyatt no qual o criado indiano estava encostado com o ar melancólico habitual.

      — Boa tarde, Abdul — disse o Sr. Rycroft. — Como vai seu patrão?

      — Patrão vai mal hoje, Sahib — respondeu o indiano, balançando a cabeça. — Não quer ver ninguém. Não fala com ninguém há um bocado de tempo.

      — Sabe, esse indivíduo poderia matar o Wyatt com toda a facilidade e ninguém iria saber — comentou Ronnie, assim que passaram pelo bangalô do velho capitão. — Ele poderia ficar aí no portão por muitas semanas balançando a cabeça e dizendo que o patrão não deseja receber visitas e ninguém julgaria estranho tal atitude.

      O Sr. Rycroft concordou com o comentário, mas fez uma ressalva:

      — Mas restaria o problema de como se livrar do cadáver.

      — Sim, esse é sempre o empecilho, não é mesmo? Uma coisa importuna, o corpo humano.

      Passaram pelo bangalô do Major Burnaby. O major estava em seu jardim, olhando com ar taciturno para uma plantinha que crescera num lugar onde nenhuma planta poderia vingar.

      — Boa tarde, major — disse o Sr. Rycroft. — Vai também à mansão Sittaford?

      Burnaby esfregou o nariz.

      — Acho que não. Elas me enviaram um bilhete convidando-me para o chá. Mas não me sinto com disposição. Suponho que me entendam.

      O Sr. Rycroft baixou a cabeça em sinal de assentimento.

      — Mesmo assim, gostaria que fosse, major. Tenho um motivo para isso.

      — Que motivo é esse?

      O Sr. Rycroft hesitou. Era evidente que a presença ali de Ronnie Garfield o embaraçava. Mas Ronnie, inteiramente alheio a esse detalhe, continuava parado e denotando um interesse pueril pelo diálogo.

      — Eu gostaria de fazer uma experiência — disse por fim o Sr. Rycroft.

      — Que tipo de experiência? — perguntou Burnaby, notando a hesitação do outro.

      — Prefiro não revelar de antemão. Mas se for à reunião eu lhe peço que me apóie em tudo que eu sugerir.

      A curiosidade de Burnaby levou-o a concordar.

      — Está certo, eu irei. Pode contar comigo. Onde estará meu chapéu?...

      O major entrou no bangalô e um minuto depois estava na calçada, já de chapéu na cabeça. E junto com Rycroft e Ronnie se encaminharam para a casa das Willetts.

      — Soube que está esperando visitas, Rycroft — disse Burnaby, puxando conversa.

      O velho entusiasta por criminologia enrubesceu ligeiramente ao indagar:

      — Quem lhe contou?

      — Aquela criatura tagarela, a Sra. Curtis. É muito amiga de limpeza e uma pessoa honesta, mas tem uma língua incansável, não ligando a mínima se você a está ouvindo ou se não quer escutar sua falação.

      — Sim, é verdade. Estou esperando a minha sobrinha, a Sra. Dering, e seu marido, amanhã.

      Estavam agora diante da porta principal da mansão de Sittaford, e ao toque da campainha, Brian Pearson apareceu no umbral.

      Assim que depositaram seus agasalhos no vestíbulo, o Sr. Rycroft observou com atenção o moço alto e de ombros largos, pensando:

      — Um belo espécime. Temperamento forte. Queixo de formato curioso. Deve ser um sujeito duro de se lidar em certas circunstâncias. Sim, é o que se poderia chamar de um jovem perigoso.

      Um estranho sentimento de irrealidade acometeu o Major Burnaby assim que entrou na sala de visitas, e a Sra. Willett ergueu-se para cumprimentá-lo.

      — Muito gentil de sua parte ter voltado aqui.

      As mesmas palavras da semana passada. O mesmo calor reconfortante da lareira. Não tinha plena certeza, mas as duas mulheres pareciam vestir-se de forma igual à daquela tarde de sexta-feira última.

      Esses detalhes lhe causaram uma estranha sensação. Como se a semana anterior tivesse retornado... como se Joe Trevelyan não tivesse morrido... e nada de anormal houvesse acontecido ou mudado. Bem, aí havia um engano. A Sra. Willett... havia mudado. Estava abatida, eis o termo mais preciso para descrever tal mudança. Não parecia mais aquela mulher decidida, com a aparência de uma hostess bem sucedida, mas sim uma criatura intimamente abalada e que fazia um evidente e patético esforço para se mostrar natural diante de seus convidados.

      — Gostaria de saber o que a morte de Joe significou realmente para ela — pensou Burnaby.

      E pela centésima vez teve a impressão de que havia algo bastante estranho e misterioso em relação às Willetts. E como também lhe era habitual, apercebeu-se de seu próprio silêncio e de que alguém falava com ele.

      — Receio que este seja nosso último encontro — dizia a Sra. Willett.

      — Então é uma despedida? — perguntou Ronnie, surpreso.

      — Sim. — A Sra. Willett balançou a cabeça, tentando sorrir. — Nós tínhamos pensado em passar todo o inverno em Sittaford. Claro que, pessoalmente, aprecio este lugar... a neve, os cumes rochosos, o ar rústico desta paisagem. Mas o problema da criadagem! É uma questão tão difícil de resolver... e que me deixa tonta!

      — Pensei que iam contratar os serviços de um cozinheiro e de um mordomo-motorista — observou o Major Burnaby.

      Com um repentino tremor na voz, a Sra. Willett retrucou.

      — Não... Eu... tive que desistir dessa idéia.

      — Minha cara senhora — disse o Sr. Rycroft — isto é um grande golpe para todos nós. Uma pena, realmente. Teremos que voltar à nossa melancólica rotina após a sua partida. A propósito, quando pretende partir?

      — Na segunda-feira, assim espero. A menos que resolva viajar amanhã mesmo. Isto aqui se torna muito difícil sem criados. Naturalmente, terei que acertar certas coisas com o Sr. Kirkwood. Afinal aluguei esta casa por quatro meses.

      — Vai para Londres? — perguntou Rycroft.

      — Sim, talvez comece por lá. Depois, espero que possamos viajar para a Riviera.

      — Será uma grande perda para nós — disse o Sr. Rycroft, num gesto galante.

      A Sra. Willett dirigiu-lhe um leve e estranho risinho, dizendo:

      — Muita gentileza sua, Sr. Rycroft. Bem, vamos tomar nosso chá.

      A Sra. Willett colocou o chá nas xícaras. Ronnie e Brian colaboraram na distribuição de biscoitos. Um estranho constrangimento se apoderou dos que ali estavam reunidos.

      — E quanto a você? Vai partir também? — indagou bruscamente o Major Burnaby, dirigindo-se a Brian Pearson.

      — Sim. Vou para Londres. Naturalmente que aguardarei o desfecho desse caso.

      — Desse caso? — repetiu o major.

      — Refiro-me a meu irmão ser inocentado dessa acusação ridícula que pesa sobre ele.

      Brian dera às suas palavras um tom tão desafiante que ninguém soube o que dizer. O Major Burnaby procurou amenizar a situação.

      — Nunca acreditei que ele fosse culpado. Nem por um momento.

      — Nenhum de nós pensou tal coisa — disse Violet, dirigindo-lhe um olhar agradecido.

      O toque da campainha rompeu o silêncio que se fizera ali.

      — Deve ser o Sr. Duke — disse a Sra. Willett. — Faça-o entrar, Brian.

      O caçula dos Pearson espiou pela janela e voltou-se, dizendo:

      — Não é o Duke. É aquele jornalista intrometido.

      — Oh! — exclamou a Sra. Willett. — Bem, acho que devemos fazê-lo entrar de qualquer modo.

      Brian assentiu e um minuto depois voltava à sala com Charles Enderby.

      Charles exibia o ar ingênuo e jovial que costumava assumir em tais ocasiões. Mas não lhe ocorreu que sua presença fora mal acolhida ali.

      — Olá, Sra. Willett, como vai passando? Saí para dar um giro e saber das novidades por aqui. Mas perguntei onde poderiam estar as pessoas a quem procurava. Agora encontro a resposta.

      — Toma uma xícara de chá, Sr. Enderby?

      — É muita gentileza sua, Sra. Willett. Aceito. Vejo que a Srta. Emily não está aqui. Suponho que tenha ido ver a sua tia, Sr. Garfield.

      — Pelo que sei, não se encontra lá — retrucou Ronnie, prontamente. — Penso que ela foi a Exhampton.

      — Ah! mas já está de volta. Como eu soube? Um passarinho me contou. De nome Curtis, para ser mais explícito. Ela viu o táxi passar pelo correio, subir a ladeira e regressar vazio. Emily não está no bangalô n.° 5 e nem aqui. Curioso... Onde ela estará? Se não foi ver a Srta. Percehouse, só pode estar tomando chá com aquele terrível Capitão Wyatt.

      — Ela pode ter ido ao Farol de Sittaford para apreciar melhor o pôr do sol — insinuou o Sr. Rycroft.

      — Creio que não — disse Burnaby. — Eu a teria visto passar. Estive cuidando do meu jardim até há pouco.

      — Bem, não penso que se trate de uma questão de vida ou morte — disse Charles, em tom brincalhão. — Isto é, não acho que ela tenha sido seqüestrada ou morta.

      — O que é uma pena do ponto de vista de seu jornal, não é mesmo? — ironizou Brian.

      — Ainda que fosse para obter um furo, não desejaria ver Emily sacrificada — replicou Charles, em tom sério. — Ela é fora de série.

      — Muito encantador. Realmente — observou o Sr. Rycroft. — Afinal ela e eu somos... seus colaboradores, não?

      — Todos já terminaram o chá? — perguntou a Sra. Willett. — Que tal jogarmos uma partida de bridge?

      — Espere... um momento — disse o Sr. Rycroft.

      Pigarreou e adquiriu uma pose meio solene. Todos o fitaram, curiosos.

      — Sra. Willett, como sabe, me interesso profundamente pelos fenômenos psíquicos. Há uma semana atrás, no mesmo dia, nesta mesma sala, tivemos uma experiência surpreendente e, na realidade, assustadora.

      Violet Willett teve um sobressalto e o Sr. Rycroft, fitando-a, disse em tom mais suave:

      — Sei como se sente, Srta. Willett. Aquela experiência deixou-a impressionada, é natural. Não pretendo negar essa evidência. Mesmo agora, quando a polícia, após realizar investigações, deteve uma pessoa suspeita do assassinato do Capitão Trevelyan. Mas, pelo menos algumas das pessoas que aqui se encontram, não acreditamos na culpabilidade do Sr. James Pearson. Assim é meu propósito que repitamos a experiência da sexta-feira próxima passada, embora imbuídos desta vez de um diferente estado de espírito. Não mais como um simples entretenimento.

      — Não! — gritou Violet.

      — Acho essa idéia muito imprópria. Não vou tomar parte de modo algum nessa história — disse Ronnie.

      O Sr. Rycroft não lhe deu atenção.

      — Sra. Willett, o que tem a me dizer?

      Ela hesitou antes de responder:

      — Sr. Rycroft, para ser franca, não gosto dessa idéia. Aquele desagradável incidente da semana passada me causou uma impressão muito penosa. Vai levar muito tempo para que consiga esquecê-lo.

      — O que o senhor está querendo exatamente? — perguntou Enderby, muito interessado no assunto. — Presume que os espíritos nos digam o nome do assassino do Capitão Trevelyan? Parece-me uma pretensão descabida.

      — Uma pretensão descabida, como o senhor acaba de dizer, mas na última sexta-feira uma mensagem dessa natureza nos anunciou a morte do Capitão Trevelyan.

      — Sim, isso é verdade — admitiu Enderby. — Mas... Bem, o senhor sabe que esta sua idéia pode ter conseqüências que talvez não tenha avaliado.

      — Quais?

      — Suponhamos que o nome de alguém seja mencionado? Poderia ter certeza de que algum dos presentes não provocasse isso deliberadamente?...

      Enderby fez uma pausa e Ronnie Garfield definiu a situação:

      — Ele está querendo dizer que pode haver trapaça. Isto é, alguém poderá dar um empurrãozinho na mesa...

      — Trata-se de uma experiência séria, Sr. Enderby — afirmou Rycroft secamente. — Ninguém faria o que o senhor supõe.

      — Eu não sei — retrucou Ronnie, com ar duvidoso. — Há sempre uma margem de incerteza. Não quero dizer que eu fizesse isso. Juro que não, e não me estou referindo a trapaças. Mas pode acontecer que alguém, em ar de brincadeira, se vire para mim e diga que movi a mesa.

      — Sra. Willett, sei o que estou fazendo — disse o Sr. Rycroft, com mais veemência. — Eu lhe peço que consinta nessa experiência.

      A Sra. Willett moveu a cabeça, indecisa.

      — Isso não me agrada. Realmente, eu não sei... — olhou à sua volta, constrangida, como se buscasse uma saída para aquela situação. — Major Burnaby, o senhor era um bom amigo do Capitão Trevelyan; o que tem a dizer?

      O Major Burnaby viu que o Sr. Rycroft o fitava. Entendeu ser a ocasião de prestar-lhe apoio, conforme fora sugerido antes de entrar naquela casa. E disse em tom meio rude:

      — Por que não?

      Era como se ele desse o voto de Minerva.

      Ronnie foi à sala contígua de onde trouxe a pequena mesa que fora usada na sexta-feira passada. Colocou-a no meio da sala de visitas, e logo as cadeiras foram dispostas a seu redor. Ninguém fez qualquer comentário. Aquela experiência era acolhida sem nenhum agrado.

      — Acho que está tudo em ordem — disse o Sr. Rycroft. — Vamos repetir a experiência da última sexta-feira exatamente nas mesmas condições.

      — Não, as mesmas não — objetou a Sra. Willett. — O Sr. Duke não está presente.

      — Tem razão — disse o Sr. Rycroft. — Uma pena realmente que ele não esteja aqui. Bem..., nós podemos considerá-lo substituído ou representado aqui pelo Sr. Pearson.

      — Não participe disso, Brian. Eu lhe peço. Por favor, não tome parte — quase gritou Violet.

      — O que tem de mais? Isto tudo nada significa.

      — Eis o que chamo de predisposição de espírito errônea — observou o Sr. Rycroft, com ar severo.

      Brian Pearson não replicou, tomando seu lugar ao lado de Violet.

      — Sr. Enderby — começou a dizer Rycroft, mas Charles o interrompeu:

      — Eu não participo da experiência. Sou um jornalista e o senhor não confia em mim. Anotarei qualquer fenômeno, esta é a palavra certa, não?, que venha a ocorrer.

      A questão fora bem colocada e resolvida. Assim, as outras seis pessoas sentaram-se todas em volta da mesa. Charles apagou as luzes e foi sentar-se perto da lareira. Disse de repente:

      — Um momento. Que horas são? — Olhou seu relógio, aproveitando a claridade provocada pelas chamas da lareira.

      Todos ali se entreolharam quando Charles murmurou:

      — Que coisa curiosa.

      — De que está falando? — indagou Rycroft.

      — São exatamente cinco e vinte e cinco.

      Violet soltou um gritinho.

      O Sr. Rycroft disse com firmeza:

      — Silêncio.

      Os minutos foram passando. Uma atmosfera bem diferente daquela da sexta-feira passada se fez sentir. Nem risinhos abafados, nenhum cochicho ou comentário bem humorado. Somente silêncio, rompido finalmente por leve estalo da mesa.

      — Há alguém aqui? — perguntou o Sr. Rycroft.

      Ouviu-se um outro leve estalido... como um som sobrenatural e lúgubre naquele aposento às escuras.

      — Alguém está entre nós?

      Desta vez não houve nenhum estalo, mas sim uma pancada seca, bem forte.

      Violet gritou e a Sra. Willett imitou-a a seguir.

      Mas a voz de Brian Pearson se fez ouvir tranqüilizadora.

      — Está tudo em paz. Foi a porta da frente que bateu. Já vou fechá-la.

      Ele dirigiu-se ao vestíbulo, sem que ninguém dissesse algo.

      De repente, a porta foi aberta de par em par e as luzes reacesas.

      No umbral estava o Inspetor Narracott. Atrás dele, Emily Trefusis e o Sr. Duke.

      Narracott deu dois passos à frente e disse:

      — John Burnaby, eu o acuso do assassinato de Joseph Trevelyan, ocorrido na sexta-feira passada à tarde, e o advirto de que qualquer coisa que venha a declarar poderá ser usada contra o senhor como prova conclusiva.

     

ESCLARECIMENTOS DE EMILY

QUANDO O INSPETOR NARRACOTT levou o acusado preso, todos os que se achavam na sala, muito surpresos ainda, assediaram Emily Trefusis com perguntas.

      Charles Enderby foi o primeiro a falar:

      — Por favor, conte-me o que houve, Emily. Tenho que telegrafar para meu jornal. Cada minuto agora é vital para mim.

      — Foi o Major Burnaby quem matou o Capitão Trevelyan,

      — Bem, eu vi o Narracott prendê-lo. E suponho que a lucidez desse inspetor não o tenha abandonado de repente. Mas como Burnaby pôde matar Trevelyan? Isto seria humanamente possível? Se Trevelyan foi morto às cinco e vinte e cinco...

      — Aí é que está. O assassinato ocorreu por volta de quinze para as seis.

      — Bem, mas ainda assim...

      — Compreendo. Nunca se imaginaria tal coisa a menos que se levasse em conta certo detalhe. E este detalhe tem um nome: esquis.

      — Esquis? — repetiram os presentes quase em uníssono.

      — Sim. Aquela levitação da mesa foi tramada deliberadamente por Burnaby. Não foi um mero acidente, uma coisa inconsciente como nós pensamos, Charles. Lembra-se daquela segunda alternativa? Pois era a correta. Um ato proposital. Ele sabia que ia nevar bastante naquela tarde. Poderia, perfeitamente, agir com segurança e apagar todas as pistas. Favoreceu então aquela impressão sombria de que o capitão estava morto, fazendo com que todos aqui pensassem assim. Então encenou aquela preocupação toda a respeito do amigo e insistiu em ir a Exhampton.

      Todos tinham sua atenção presa às palavras da jovem, que prosseguiu:

      — Então foi à sua casa, colocou os esquis, que estavam guardados no jardim com outros apetrechos, e partiu. Burnaby é bom esquiador e o trajeto colina abaixo rumo a Exhampton foi um passeio para ele. Gastou apenas dez minutos.

      “Acercou-se da janela dos fundos da casa e bateu. O Capitão Trevelyan, sem suspeitar de nada, o fez entrar. Então, quando Trevelyan se achava de costas fechando a porta, Burnaby aproveitou a oportunidade, pegando o saquinho de areia e desfechando o golpe mortal. Caramba! Só de imaginar a cena me sinto mal.

      Dando de ombros, Emily prosseguiu em sua explicação:

      — O resto foi bem fácil. O major tinha tempo de sobra. Deve ter limpado os esquis e os colocado a seguir no armário envidraçado da sala de jantar, junto com todos aqueles troféus esportivos e de caça. Depois, suponho que forçou a janela e retirou todas aquelas gavetas, deixando a sala em desordem só para dar a impressão de que houvera arrombamento.

      “Então, exatamente antes das oito horas, tudo que lhe restava fazer era sair na neve, tomar por um desvio na estrada e depois voltar a Exhampton como se tivesse vindo a pé desde Sittaford... Como ninguém sabia nada sobre os esquis, ele estava inteiramente a salvo de suspeita. O médico não deixaria de dizer que o Capitão Trevelyan morrera havia pelo menos duas horas. E, assim, como ninguém estava a par dos esquis, o Major Burnaby contava com um perfeito álibi.

      — Mas Burnaby e Trevelyan eram amigos — disse o Sr. Rycroft. — Amigos de longa data. Isso é espantoso.

      — Eu sei — retrucou Emily. — Foi o que pensei. Não podia ver o porquê. Quebrei a cabeça buscando uma resposta e por fim decidi procurar o Inspetor Narracott e o Sr. Duke.

      Fez uma pausa e fitou o impassível Sr. Duke.

      — Posso dizer a eles? — ela perguntou.

      O Sr. Duke sorriu, retrucando:

      — Se assim deseja, Srta. Trefusis.

      — Bem... talvez o senhor prefira que eu não conte. O fato é que fui vê-los, e conseguimos esclarecer a questão. Charles deve lembrar-se de ter-me dito que ouviu Evans contar que o Capitão Trevelyan costumava enviar soluções de charadas aos jornais em seu nome. Trevelyan achava que Mansão Sittaford era um nome longo e pomposo demais para um endereço. Bem..., ele tinha essas manias e ocorreu o mesmo com aquela loteria esportiva, cujo prêmio no valor de cinco mil libras foi entregue pessoalmente ao Major Burnaby por você mesmo, Charles. Mas a aposta, na realidade, fora feita pelo Capitão Trevelyan, que a enviara ao jornal sob o nome de Burnaby. Bangalô n.° 1, Sittaford, soava melhor como endereço segundo o capitão. Então, percebe agora o que aconteceu? Na manhã de sexta-feira passada, o Major Burnaby recebeu uma carta anunciando-lhe ter ganho as cinco mil libras, o que, na verdade, devia ter chamado a nossa atenção, mas tal não se deu. Ele lhe disse que não recebera a carta, que nada lhe chegara às mãos naquela sexta-feira devido à nevasca. Mentia, evidentemente. Até o fim daquela mesma manhã a correspondência pôde ser entregue.

      Emily fez nova pausa antes de retomar as explicações.

      — Bem, onde eu estava mesmo? Ah, sim! O major recebeu a tal carta. Ele necessitava, e como!, daquelas cinco mil libras. Investira um bom dinheiro em ações sem valor e perdera uma quantia respeitável. Aí é que, presumo, lhe veio à mente a idéia do crime. Talvez quando percebeu que nevaria bastante naquela tarde. Se Trevelyan morresse,... ele poderia ficar com aquele dinheiro do prêmio e ninguém saberia da verdade.

      — Espantoso — murmurou o Sr. Rycroft. — Realmente incrível. Nunca imaginaria... Mas; minha querida jovem, como descobriu tudo isso? O que a levou à pista certa?

      Em resposta, Emily referiu-se à carta da Sra. Belling, e contou como descobrira as botas de esquiar na lareira.

      — Estava observando-as quando algo se aclarou em minha mente. Eram botas de esquiar, Sr. Rycroft, daí que me fizessem pensar em esquis. E, de repente, me dirigi à sala de jantar com a impressão de que haveria dois pares de esquis naquele armário. E estava certa. Um dos pares era mais comprido que o outro. E as botas ajustavam-se perfeitamente aos esquis maiores... mas não ao outro par. As alças para prender os dedos dos pés estavam ajustadas para um par de botas muito menores. O par menor de esquis pertencente a uma outra pessoa que não Trevelyan.

      — Ele devia ter escondido os esquis em outro lugar — observou o Sr. Rycroft, amante de crimes artisticamente realizados.

      — Não... não — disse Emily. — Onde mais ele poderia ocultá-los? Aquele era um bom esconderijo realmente. Dentro de um dia ou dois, no máximo, a coleção inteira dos objetos e troféus do capitão seria levada a um depósito, e nesse ínterim acho que a polícia não se iria preocupar com o fato de que o Capitão Trevelyan tivesse tido um ou dois pares de esquis...

      — Mas por que Burnaby escondeu as botas?

      — Imagino que receasse que a polícia viesse a fazer o mesmo que eu fiz... A visão daquelas botas de esquiar talvez lhe sugerisse também a idéia do uso de esquis. Assim decidiu escondê-las dentro da lareira. E aí cometeu um erro, pois Evans, muito meticuloso, deu pela falta das botas de seu patrão e eu vim a saber disso.

      — Ele buscou deliberadamente lançar a responsabilidade de seu crime sobre Jim? — perguntou Brian, indignado.

      — Oh, não. Foi mais um lance comum de pouca sorte do pobre Jim. Ele foi um tolo, um cordeirinho.

      — Está tudo bem com ele agora — disse Charles. — Você não precisa mais se preocupar com o Jim. Se não tem mais nada para contar, Emily, eu vou correndo ao telégrafo. Desculpem-me a pressa, senhores.

      Saiu rapidamente e Emily sorriu, observando com simpatia:

      — É muito dinâmico.

      — A senhorita também se mostrou muito viva e dinâmica nesses últimos dias — disse o Sr. Duke, com sua voz de baixo profundo.

      — Sim, você foi ótima — disse Ronnie, com admiração.

      — Oh, meu Deus! — disse Emily subitamente, deixando-se cair numa poltrona. As emoções tinham sido muitas e intensas naquelas últimas horas.

      — Você está precisando tomar algo estimulante — disse Ronnie. — Que tal um coquetel?

      Emily moveu a cabeça negativamente.

      — Um pouco de brandy — sugeriu o Sr. Rycroft, solícito.

      — Ou uma xícara de chá — disse Violet.

      — Eu gostaria de empoar o rosto — disse Emily, séria — Deixei meu estojo de pó facial dentro da bolsa lá no carro. Não se preocupem, estou apenas um pouco excitada com tudo que aconteceu.

      Violet subiu as escadas com Emily, levando-a a seu quarto. Ali preparou uma dose de um sedativo para Emily, que, depois de tomá-lo, empoou o rosto com pó-de-arroz, dizendo:

      — Pronto, agora me sinto muito melhor. — Sorriu. — Você tem um batom que sirva para mim? Sinto-me como se voltasse ao normal.

      — Você tem sido maravilhosa. Tão valente!

      — Não é bem assim. Sob essa camuflagem eu me senti esses dias tão oscilante como um caniço ao vento, sempre com um friozinho na espinha.

      — Eu compreendo — disse Violet. — Também senti quase a mesma coisa. Estive tão aflita nesses últimos dias... por causa do Brian, sabe? A polícia não poderia acusá-lo da morte do Capitão Trevelyan, é claro, mas se ele dissesse algo sobre onde estivera nesse ínterim, logo iriam descobrir que fora o responsável pelo plano de fuga de papai.

      — Como? — indagou Emily, parando de retocar a maquilagem.

      — O prisioneiro que escapou de Princetown é meu pai. Foi por isso que eu e mamãe viemos para cá. Pobre papai, ele sempre tinha essas... crises estranhas, de repente. Então fazia certas coisas desagradáveis. Nós encontramos Brian durante nossa partida da Austrália, e aí... ele e eu...

      — Entendo — disse Emily, vindo em auxílio da jovem, embaraçada. — É uma coisa muito natural.

      — Eu lhe contei tudo sobre meu pai e ele, em conversa conosco, idealizou um plano. Brian foi maravilhoso! Felizmente nós estávamos bem de finanças, e Brian pôde levar avante o seu plano. É tremendamente difícil fugir lá de Princetown, você deve saber, mas Brian soube promover a fuga de meu pai com êxito. Na verdade, foi quase um milagre. Ficara combinado que depois papai iria cruzar o campo, indo esconder-se por alguns dias na Caverna de Pixie. Depois, então, ele e Brian se apresentariam na mansão de Sittaford como nossos novos criados. Como eu e mamãe já estávamos instaladas aqui há algum tempo, ficaríamos livres de suspeitas, entende? Foi Brian quem nos falou sobre Sittaford, e nos sugeriu fazermos uma proposta tentadora de aluguel desta casa ao Capitão Trevelyan.

      — Sinto muito, acho que tudo saiu errado.

      — Minha mãe ficou arrasada. Mas Brian agiu maravilhosamente conosco. Não é qualquer homem que deseja casar-se com a filha de um presidiário. Mas não acho que meu pai seja responsável pelos delitos que cometeu. Há quinze anos ele sofreu uma desastrosa queda de um cavalo, recebendo um golpe na cabeça. Desde então passou a ter um comportamento ocasionalmente estranho. Brian diz que se ele tivesse tido um tratamento adequado poderia recuperar-se dessas perturbações temporárias. Mas chega de falar sobre mim e um caso que já foi consumado.

      — Nada pode ser feito sobre seu pai?

      Violet balançou a cabeça, pesarosa.

      — Ele está muito doente... Os dias em que esteve na gruta com esse frio terrível, você sabe. Sobreveio uma pneumonia. Mas não posso deixar de pensar que se ele morrer... Bem, seria o melhor para ele realmente. Parece terrível e até desumano eu dizer tal coisa, mas você sabe o que quero significar.

      — Minha pobre Violet — murmurou Emily. — Não tem do que se envergonhar. Eu a compreendo muito bem.

      — Eu tenho Brian, felizmente. E você...

      Violet se interrompeu, meio embaraçada.

      — Sim — retrucou Emily, pensativa. — Você está certa.

     

O FELIZARDO

DEZ MINUTOS DEPOIS, Emily descia apressada o caminho que levava aos bangalôs de Sittaford. O Capitão Wyatt, inclinado sobre o portão, tentou retê-la, dizendo:

      — Ei, Srta. Trefusis. Será certo o que ouvi dizer?

      — É tudo verdade — retrucou Emily, sem deter-se.

      — Sei, mas ouça. Entre um pouco, tome um copo de vinho ou uma xícara de chá. Há tempo de sobra. Não precisa apressar-se assim. Isto é o pior dos males de vocês, pessoas civilizadas.

      — Nós somos mesmo desagradáveis — disse Emily, e apertou o passo.

      Dois minutos depois estava entrando no bangalô da Srta. Percehouse como um pequeno foguete.

      — Vim contar-lhe tudo que aconteceu — disse Emily, mal entrou na sala de visitas.

      E, sem mais demora, fez um relato completo dos fatos, ilustrado aqui e ali por exclamações variadas da Srta. Percehouse, tais como: “Não me diga!”, “Não era o que você dizia?” “Bem, eu sabia disso.”

      Quando Emily concluiu seu relatório verbal, a Srta. Percehouse ergueu um pouco o corpo, com o auxílio dos cotovelos, e disse, esticando seu longo dedo indicador.

      — O que eu lhe disse? Eu lhe falei que Burnaby era um homem invejoso. Amigos de verdade... Qual! Por mais de vinte anos, Trevelyan vinha fazendo qualquer coisa muito melhor do que Burnaby. Esquiava melhor, era melhor alpinista, atirava com muito mais precisão, e decifrava bem melhor palavras cruzadas. Trevelyan era rico e ele, pobre.

      Foi sempre assim, por um longo tempo. Eu lhe digo, é difícil alguém apreciar e estimar um homem que sempre faz tudo melhor do que ele poderia fazer. Burnaby era um homem de mentalidade estreita, um complexado. E se deixou trair pelos seus nervos.

      — Acho que tem razão — disse Emily. — Bem, eu tinha que vir aqui e contar-lhe tudo. Achei que seria imperdoável não colocá-la logo a par do desfecho desse caso. A propósito, sabe que seu sobrinho se dá com a minha tia Jennifer?

      — Ela é madrinha dele — disse a Srta. Percehouse. — Então era para vê-la que esse “malandro” queria ir a Exeter. Como já conheço bem o Ronnie, na certa foi pedir-lhe dinheiro emprestado. Falarei com ele.

      — Eu a proíbo de castigar alguém num dia tão feliz como este — disse Emily, risonha. — Adeus. Tenho que me apressar. Há um bocado de coisas para fazer.

      — Ainda, minha jovem dinâmica? Pois eu diria que você já fez a sua parte.

      — Não de todo. Devo voltar para Londres e procurar os chefes da empresa de Seguros onde Jim trabalha, para pedir-lhes que desistam de processá-lo a propósito do deslize que ele cometeu, retirando algum dinheiro “emprestado”.

      — Hum — limitou-se a dizer a Srta. Percehouse.

      — Agora está tudo bem — disse Emily. — Jim tomará mais juízo daqui em diante. Ele já recebeu sua lição.

      — Talvez. E você pensa que poderá persuadi-lo a andar direito?

      — Sim — respondeu Emily, com firmeza.

      — Bem. Talvez você consiga. Bem, e depois disso?

      — Bem, o caso está encerrado. Fiz tudo o que pude para salvar Jim.

      — Acho que não me expressei bem ou não fui entendida. O que virá depois?

      — Que quer dizer?

      — Vou fazer a pergunta de maneira mais clara e direta: Qual deles você escolherá?

      — Ah, já entendi.

      — Então me diga. Eu quero saber qual dos dois será o felizardo.

      Emily riu. Inclinando-se, beijou a testa da velha senhora.

      — Não se faça de tola — brincou. — Sabe perfeitamente qual é ele.

      A Srta. Percehouse riu baixinho, enquanto Emily saía rapidamente do bangalô.

      Perto do portão viu Charles, que voltava apressado do correio. Ele tomou-lhe as duas mãos entre as suas, exclamando:

      — Querida Emily!

      — Charles, isto tudo não é formidável?

      — Tenho até vontade de dar-lhe um beijo agora mesmo. — E fez o que dizia, observando a seguir: — Sou um homem feito, Emily. E agora, querida, que tal se conversássemos sobre aquilo?

      — A que se refere?

      — Bem..., naturalmente que não teria sido correto tocar no assunto antes, com o pobre Pearson na prisão e tudo mais. Mas o caso foi resolvido e... Bem, ele tem que se resignar como tantos outros.

      — Afinal, de que você está falando?

      — Sabe muito bem que sou louco por você — explicou Charles — e sei que gosta de mim. Jim Pearson foi apenas um equívoco. O que quero dizer... Bem, eu e você fomos feitos um para o outro. Durante todos esses dias tínhamos consciência disso, não é mesmo? Gostaria de casar no civil, no religioso, ou nos dois?

      — Se está me pedindo em casamento — retrucou Emily, com firmeza — nada feito.

      — O quê? Mas eu...

      — Não.

      — Mas... Emily...

      — Se quer saber, eu amo Jim. Apaixonadamente!

      Charles ficou imóvel, olhando-a fixamente, muito confuso.

      — Você não pode amá-lo!

      — Posso sim. E sempre o amei!

      — Você me fez imaginar...

      — Só disse que era maravilhoso ter alguém em quem pudesse confiar.

      — Sim, mas eu pensei...

      — Eu não podia saber o que você pensava. E nem alimentei suas ilusões, Charles.

      — Você é um diabinho esperto, Emily.

      — Eu sei disso, Charles querido. Eu sei. Sou tudo o que você queira me chamar, mas não se esqueça de como conseguiu se projetar nesses dias em sua carreira. Você obteve o furo que todo repórter almeja! Informou tudo sobre o crime, com exclusividade, ao Daily Wire. É um homem feito agora. Para que precisaria de uma mulher para ajudá-lo? Nenhum homem realmente seguro de si precisa de uma simples mulher. Ela somente serviria para estorvá-lo, pendurando-se a ele como uma hera num muro... Todo o grande homem independe de mulheres. Nada é tão belo, tão gratificante para um homem do que uma grande carreira bem sucedida. Você é um homem forte, Charles, alguém que pode firmar-se sozinho...

      — Será que não pode parar de falar assim, Emily? É como um debate sobre as virtudes de um jovem em vencer sozinho na vida! Você me deixou muito magoado. Não sabe como estava adorável quando entrou naquela sala com Narracott. Exatamente como uma jovem deusa justiceira sob um arco do triunfo.

      Soaram passos fortes ali perto, e o Sr. Duke apareceu junto aos dois jovens.

      — Oh! é o senhor — disse Emily. — Charles, tenho algo mais para lhe revelar. Este é o ex-Inspetor-Chefe Duke da Scotland Yard.

      — Como? — exclamou Charles, lembrando-se daquele nome conhecido nos anais da polícia inglesa. — Então é o Inspetor Duke, em pessoa?

      — Sim — disse Emily. — Quando ele se aposentou, veio viver aqui, e sendo um homem de hábitos simples e modesto por natureza, preferiu não se dar a conhecer. Percebo agora por que o Inspetor Narracott sorriu com certa malícia quando eu lhe perguntei outro dia que tipo de delitos o Sr. Duke cometera.

      O Sr. Duke riu.

      Charles ficou pensativo. Em seu íntimo travou-se um rápido desafio entre o homem amoroso e o jornalista. E este último venceu.

      — Estou encantado em conhecê-lo pessoalmente, inspetor — disse finalmente Charles. — Fico pensando se, quem sabe, o senhor concordaria em nos conceder uma entrevista, ou um breve artigo, digamos... de umas oitocentas palavras, sobre o caso Trevelyan...

      Emily aproveitou para afastar-se rapidamente. Pouco depois entrava no bangalô da Sra. Curtis. Foi diretamente a seu quarto. A Sra. Curtis acompanhou-a.

      — Então vai deixar-nos, senhorita? — perguntou a Sra. Curtis ao ver a moça arrumando a mala.

      — Sim. Tenho coisas para fazer... em Londres. E meu jovem enamorado...

      A Sra. Curtis sorriu e aproveitou a interrupção para indagar:

      — Diga-me só uma coisa, senhorita. Qual deles?

      — O que esteve preso, naturalmente. Nunca houve outro — respondeu Emily, colocando suas roupas ao acaso em sua maleta.

      — Ah! Não sei se sabe, senhorita, mas talvez esteja cometendo um erro. Tem certeza de que o outro jovem cavalheiro não é tão merecedor de seu afeto como o de Londres?

      — Oh, não. Não se trata de merecimento... — olhou pela janela e viu que Charles ainda estava persuadindo o ex-Inspetor-Chefe Duke a conceder-lhe a tal entrevista para o Daily Wire. — O Sr. Enderby é o tipo do rapaz que nasceu para subir sozinho na vida... mas não sei o que aconteceria ao “outro” se não houvesse alguém para olhar por ele. Sabe onde ele ainda estaria agora se não fosse por mim!

      — E não poderia dizer nada mais apropriado — murmurou a Sra. Curtis, deixando o quarto e descendo as escadas.

      Foi até a sala de visitas onde seu marido leal e silencioso estava sentado fumando cachimbo.

      — Ela é o retrato vivo de minha bisavó Belinda — disse a Sra. Curtis. — Fez tudo que podia para salvar aquele malandro do George Plunket da falência. A hospedaria estava hipotecada, mas dentro de dois anos todas as prestações já tinham sido pagas e o local recuperara seu antigo prestígio.

      — Ah! — fez o Sr. Curtis, movendo ligeiramente o cachimbo entre os lábios.

      — Aquele George Plunket até que era bonitão — disse a Sra. Curtis, saudosamente.

      — Ah! — voltou a murmurar o marido.

      — Mas depois de casar com Belinda, ele jamais voltou a pôr os olhos em outra mulher.

      — Ah!

      — Ela nunca lhe deu tal oportunidade — sentenciou a Sra. Curtis.

      — Ah! — repetiu o Sr. Curtis.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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