Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DE CHIMNEYS / Agatha Christie
O SEGREDO DE CHIMNEYS / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SEGREDO DE CHIMNEYS

 

                       

 

Anthony Cade emprega-se

— Cavalheiro Joe!

— Ora, quem havia de ser! O velho Jimmy McGrath!

Os turistas selecionados da Companhia Castle, repre­sentados por sete mulheres de aparência depressiva e três homens suarentos, observavam a cena com considerável in­teresse. Evidentemente, Mr. Cade encontrara um velho ami­go. Todos eles admiravam muito Mr. Cade, sua figura alta, esguia, seu rosto bronzeado, a maneira despreocupada com que apaziguava as disputas e os induzia ao bom humor. E agora havia um amigo — certamente um indivíduo de aspecto curioso. Mais ou menos da mesma estatura que Mr. Cade, porém corpulento e não tão bonito. A espécie de ho­mem sobre o qual se lê em livros, e que provavelmente manteria um saloon. Interessante, entretanto. Afinal de con­tas, é para isso que se viaja para o estrangeiro, para ver todas essas coisas pitorescas que se conhecem através dos livros. Até então tinham-se entediado em Bulawayo. O sol era insuportavelmente quente, o hotel desconfortável; e parecia não existir nenhum lugar especial aonde pudessem ir, até chegar o momento de embarcar para Matoppos. Felizmente Mr. Cade tinha sugerida cartões-postais. Havia um excelente estoque de cartões-postais.

Anthony Cade e seu amigo afastaram-se um pouco.

— Que diabo você anda fazendo com essa carga de mu­lheres? — perguntou McGrath. — Vai montar um harém?

— Não com esse lote — Anthony sorriu ironicamente. — Você já as olhou bem?

— Já. Pensei que você estivesse ficando com a vista fraca.

— Minha vista está tão boa quanto sempre foi. Não; isto é uma excursão selecionada da Companhia Castle. Eu sou Castle — o Castle local, quero dizer.

— Por que diabo você foi se meter num emprego desses?

— Por lamentável necessidade de dinheiro. Mas asse­guro que não condiz com o meu temperamento.

Jimmy sorriu maliciosamente.

— Você nunca se deu bem num trabalho fixo, não é? Anthony ignorou a alusão.

— Há de aparecer qualquer coisa melhor em breve. Estou na expectativa — disse ele esperançoso. — Geral­mente acontece.

Jimmy riu gostosamente.

— Se alguma encrenca se estiver tramando, é certo que Anthony Cade, mais cedo ou mais tarde, estará metido nela; sei disso — disse ele. — Você tem um instinto abso­luto para brigas, e as sete vidas de um gato. Quando é que podemos bater um papo?

Anthony suspirou.

— Tenho que levar essas galinhas cacarejantes para ver o túmulo de Rodes.

— Pois aí é que está — disse Jimmy, aprovando. — Elas voltarão moídas de cansaço, devido às sacudidelas na estrada, e clamando por uma cama para se refazerem dos trancos. Sairemos então, e contaremos as novidades.

— Está certo. Até logo, Jimmy.

Anthony juntou-se novamente a seu rebanho. Miss Taylor, a mais jovem e mais agitada do grupo, atacou-o ime­diatamente.

— Mr. Cade, aquele senhor é seu amigo?

— É, Miss Taylor. Um dos amigos da minha irrepreen­sível juventude.

Miss Taylor deu uma risadinha.

— Achei-o muito interessante.

— Vou dizer-lhe isto.

— Oh, Mr. Cade, como o senhor é indiscreto! Que idéia! Como foi mesmo que ele o chamou?

— Cavalheiro Joe?

— Sim. Seu nome é Joe?

— Pensei que a senhorita soubesse que é Anthony, Miss Taylor.

— Oh, o senhor é impossível! — exclamou faceiramente Miss Taylor.

Anthony reassumira seus deveres. Além das necessárias providências relativas à viagem, esses deveres incluíam apa­ziguar irritáveis cavalheiros idosos quando sua dignidade fosse ferida, propiciar às matronas amplas oportunidades para a aquisição de cartões-postais, e flertar com qualquer uma abaixo de quarenta anos. Esta última tarefa tornava-se-lhe mais fácil graças à extrema presteza com que as damas em questão interpretavam suas mais inocentes observações como expressões de carinho.

Miss Taylor voltou ao ataque.

— Então, por que ele o chama de Joe?

— Oh, precisamente porque não é este o meu nome.

— E por que Cavalheiro Joe?

— Pela mesma razão.

— Oh, Mr. Cade! — protestou Miss Taylor muito aflita. — Estou certa de que o senhor não deveria dizer isso. Ainda ontem à noite papai estava comentando os seus modos de cavalheiro.

— É muita bondade de seu pai, Miss Taylor.

— E todos nós concordamos em que o senhor é mesmo um cavalheiro.

— Sinto-me lisonjeado.

— Realmente. Estou falando sério.

— Mais valem corações do que brasões — retorquiu Anthony de maneira vaga, sem noção do que pretendia dizer, e desejando ardentemente que já fosse a hora do almoço.

— Sempre achei muito belo este poema. O senhor conhece muitas poesias, Mr. Cade?

— Eu poderia recitar O menino estava no convés em chamas. "O menino estava no convés em chamas, quando todos, menos ele, haviam fugido." É tudo quanto sei, mas posso ilustrar esse trecho com gestos, se a senhorita quiser. "O menino estava no convés em chamas — hu-hu-hu-hu (são as chamas, entende?) — quando todos, menos ele, haviam fugido" — nesta parte eu corro para a frente e para trás, como um cachorro.

Miss Taylor riu às gargalhadas.

— Oh, olhem para Mr. Cade. Ele não é mesmo en­graçado?

— Hora do chá matinal — disse Anthony bruscamen­te. — Venham por aqui. Há um excelente café na pró­xima rua.

— Presumo — disse Mrs. Caldicott com sua voz grave — que a despesa esteja incluída na excursão.

— O chá da manhã, Mrs. Caldicott — retorquiu An­thony, assumindo seus ares profissionais — é uma despe­sa extra.

— Lamentável.

— A vida está cheia de provações, não é? — disse Anthony alegremente.

Os olhos de Mrs. Caldicott brilharam, e ela falou com o aspecto de quem estivesse fazendo explodir uma mina:

— Suspeitei disso, e, por precaução, hoje de manhã guardei um pouco de chá numa jarra. Agora é só esquentá-lo na espiriteira. Vamos, pai.

Mr. e Mrs. Caldicott rumaram triunfalmente para o hotel, ela cheia de si, em virtude de sua bem-sucedida pre­monição.

— Oh, meu Deus! — murmurou Anthony. — Quanta gente pitoresca é necessária para se fazer um mundo.

Guiou o restante do grupo em direção ao café. Miss Taylor postou-se a seu lado, e recomeçou a cantilena.

— O senhor não via o seu amigo há muito tempo?

— Há uns sete anos.

— Foi na África que o senhor o conheceu?

— Sim; mas não neste lugar. A primeira vez em que vi Jimmy McGrath, ele já estava preparadinho para o cal­deirão. Algumas tribos do interior são canibais, como a senhorita sabe. Chegamos exatamente na hora.

— Que aconteceu?

— Um fuzuezinho muito agradável. Lançamos alguns caras no caldeirão, e o resto fugiu em desabalada corrida.

— Oh, Mr. Cade, que vida de aventuras o senhor deve ter levado!

— Muito tranqüila, asseguro-lhe. Evidentemente, a moça não acreditou nele.

Eram aproximadamente dez horas, nessa noite, quando Anthony Cade entrou na saleta onde Jimmy McGrath se entretinha manipulando diversas garrafas.

— Faça-o bem forte — implorou. — Garanto-lhe que estou bem necessitado.

— Eu diria que sim, meu velho. Não aceitaria o seu emprego por nada deste mundo.

— Mostre-me outro, e eu o deixarei imediatamente. McGrath serviu a sua própria bebida, agitou-a com prá­tica, e preparou uma segunda dose. Falou, então, lentamente:

— Você está falando sério, meu velho?

— A respeito de quê?

— De largar esse emprego, se puder arranjar outro.

— Por quê? Não vai me dizer que você tem um em­prego dando sopa? Por que não o pega para si próprio?

— Já o peguei; mas não me agrada muito. É por isso que estou tentando passá-lo para você.

Anthony tornou-se desconfiado.

— Que mal há com ele? Você não se empregou como professor numa escola dominical, não é?

— Você acha que alguém me escolheria para lecionar numa escola dominical?

— Claro que não, se bem o conheço.

— É um emprego perfeitamente bom. Não há nada de mal com ele, de maneira alguma.

— Não é na América do Sul, por um feliz acaso? Estou de olho na América do Sul. Uma revoluçãozinha está pres­tes a explodir numa daquelas pequenas repúblicas.

McGrath sorriu maliciosamente.

— Você sempre foi apaixonado por revoluções — qual­quer coisa que se relacione com uma boa briga.

— Julgo que meu talento poderia ser apreciado lá. É como lhe digo, Jimmy, posso ser muito útil numa revolu­ção, tanto de um lado, quanto de outro. É melhor do que ganhar a vida honestamente, dia a dia.

— Creio que já ouvi você expressar essas opiniões an­tes, meu velho. Não, o emprego não é na América do Sul; é na Inglaterra.

— Inglaterra? Retorno do herói a seu país de origem, após tão longos anos. Os credores não me podem importunar depois de sete anos; ou você acha que podem, Jimmy?

— Creio que não. Bem, você está disposto a ouvir mais alguma coisa a respeito do emprego?

— Estou às ordens. A única coisa que me preocupa é o motivo pelo qual você próprio não o quer.

— Já lhe digo. Estou atrás de ouro, Anthony, lá bem para o interior.

Anthony assobiou e olhou para ele.

— Você sempre esteve atrás de ouro, Jimmy, desde que o conheço. É o seu ponto fraco, seu pequeno passatempo particular. Sei que você tem seguido, como ninguém, as pis­tas mais arriscadas.

— E no fim, acertarei no alvo. Você verá.

— Bem, cada um tem seu fraco. O meu são brigas, o seu é ouro.

— Vou contar a história toda. Suponho que você saiba tudo a respeito da Herzoslováquia, não?

Anthony ergueu o olhar de maneira aguçada.

— Herzoslováquia? — indagou com curioso acento na voz.

— Sim. Você sabe alguma coisa a esse respeito? Houve uma pausa considerável, antes que Anthony res­pondesse. Falou, então, lentamente:

— Apenas o que todo mundo sabe. É um dos Estados balcânicos, não é? Rios principais, desconhecidos. Principais montanhas, também desconhecidas, embora numerosas. Ca­pital, Ekarest. População, bandoleiros sobretudo. Passatem­po, assassinar reis e fazer revoluções. Último rei, Nicolau IV, assassinado há uns sete anos. Desde então tem sido repúbli­ca. De um modo geral, lugar muito agradável. Você poderia ter dito antes que a Herzoslováquia fazia parte do assunto.

— Não faz, a não ser indiretamente.

No olhar de Anthony transpareceu mais mágoa do que aborrecimento.

— Você precisa tomar uma providência, James — disse ele. — Faça um curso por correspondência, ou coisa que o valha. Se você contasse uma história desse jeito no Oriente antigo, seria pendurado pelos tornozelos e chicoteado, ou sofreria qualquer tormento igualmente desagradável.

Jimmy prosseguiu, totalmente indiferente às censuras.

— Você já ouviu falar no Conde Stylptitch?

— Agora você está dizendo coisa com coisa — disse

Anthony. — Muita gente que jamais ouviu falar na Herzos­lováquia se animaria à simples menção do nome do Conde Stylptitch. O grande homem dos Bálcãs. O maior estadista dos tempos modernos. O maior vilão que não conseguiram enforcar. Tudo depende do ponto de vista do jornal que se lê. Mas, tenha a certeza disso, o Conde Stylptitch será lembrado muito tempo depois que você e eu estivermos reduzidos a poeira e cinza, James. Nos últimos vinte anos, qualquer ação ou contra-ação no Oriente Próximo teve em seu âmago o Conde Stylptitch. Foi um ditador, um patriota, um estadista— ninguém sabe exatamente o que ele foi, senão um perfeito rei da intriga. Bem, e o que tem ele a ver com o assunto?

— Ele foi primeiro-ministro da Herzoslováquia. Foi por isso que a mencionei antes.

— Você não tem o senso das proporções, Jimmy. A Herzoslováquia não tem importância alguma comparada a Stylptitch. Forneceu-lhe apenas o lugar do nascimento e um posto nas Relações Exteriores. Mas pensei que ele tivesse morrido.

— Morreu, sim. Em Paris, há uns dois meses. O que estou lhe contando aconteceu há alguns anos.

— A questão é a seguinte — disse Anthony: — que é que você está me contando?

Jimmy aceitou a censura e apressou-se em prosseguir.

— Foi assim: eu estava em Paris — há cerca de quatro anos, para ser preciso. Uma noite, quando perambulava so­zinho por um lugar um tanto solitário, vi meia dúzia de valentões franceses batendo em um idoso cavalheiro de apa­rência respeitável. Detesto ver uma exibição unilateral, em vista do que imediatamente entrei na briga, e dei uma surra nos valentões. Creio que jamais tivessem apanhado com tanta violência. Derretiam-se como neve.

— Sorte sua, James — disse Anthony tranquilamente.

— Gostaria de ter visto essa luta.

— Oh, não foi nada excepcional — disse Jimmy mo­destamente. — Mas o velho ficou gratíssimo. Ele havia be­bido um pouco, sem dúvida; estava, porém, suficientemente lúcido para anotar meu nome e endereço, e no dia seguinte veio agradecer-me. E fez a coisa em bom estilo. Descobri, então, tratar-se do Conde Stylptitch. Ele possuía uma casa ao lado do Bois.

Anthony assentiu.

— Sim, Stylptitch foi morar em Paris após o assassi­nato do Rei Nicolau. Queriam que ele voltasse para mais tarde tornar-se presidente; mas ele não quis. Permaneceu fiel a seus princípios monárquicos, embora se dissesse que em todas as confusões ocorridas nos Bálcãs havia dedo seu. Muito profundo, o último Conde Stylptitch.

— Nicolau IV era o homem que tinha um gosto esqui­sito com relação a esposas, não era? — indagou Jimmy su­bitamente.

— Sim — retorquiu Anthony. — E isso lhe custou caro, pobre sujeito. Ela era uma artistazinha de teatro de variedades em Paris, oriunda da sarjeta, e que não servia nem mesmo para uma aliança morganática. Mas Nicolau de­dicava-lhe imensa paixão, e ela estava louca para se tornar rainha. Parece fantástico, porém conseguiram. Chamaram-na de Condessa Popoffsky, ou algo semelhante, e simularam que em suas veias corria o sangue dos Romanoff. Nicolau casou-se na catedral de Ekarest, perante alguns bispos relutantes, e ela foi coroada Rainha Varaga. Nicolau liquidou seus mi­nistros e, julgo eu, pensou que isso era tudo; esqueceu-se, porém, de levar em consideração a ralé. O povo é muito aristocrático e reacionário na Herzoslováquia. Gosta que seus reis e rainhas sejam artigo genuíno. Houve cochichos e des­contentamento, e as habituais repressões cruéis, e a rebelião final que tumultuou o palácio, assassinou o rei e a rainha, e proclamou a república. Tem permanecido república desde então, mas as coisas ainda andam bastante animadas por lá, segundo tenho ouvido dizer. Assassinaram um ou dois presidentes apenas para não perderem a prática. Revenons à nos moutons1. Você tinha chegado ao ponto em que o Conde Stylptitch o aclamava como seu salvador.

1 "Voltemos ao nosso assunto." Em francês no original. (N. do E.)

 

— Sim. Bem, isso foi o fim dessa história. Voltei para a África, e não pensei mais nisso, até que há duas semanas recebi um embrulho de aspecto estranho, que me seguiu por todos os lugares, e só Deus sabe por quanto tempo. Eu tinha lido num jornal que o Conde Stylptitch havia morrido em Paris recentemente. Ora, o embrulho continha suas memó­rias, ou reminiscências, ou o quer que se chamem essas coisas. Junto vinha um bilhete informando-me de que, se eu entregasse o manuscrito a determinada editora, em Londres, a 13 de outubro, ou antes dessa data, os editores tinham ins­truções para me entregar mil libras.

— Mil libras? Você disse mil libras, Jimmy?

— Disse, meu filho. Espero em Deus que não seja um embuste. Não confie em príncipes e políticos, diz a voz do povo. Bem, a coisa é essa. Levando em conta o caminho que ' 1 o manuscrito percorreu para me seguir, não tenho tempo a perder. É uma pena, entretanto, porque acabei de arranjar esta viagem para o interior e estou me empenhando em ir. Jamais terei outra oportunidade tão boa.

— Você é incurável, Jimmy. Mil libras na mão valem muito mais do que um hipotético ouro.

— E supondo-se que seja um embuste? De qualquer forma, aqui estou eu de passagem comprada e malas prontas a caminho da Cidade do Cabo. E você pronto para partir.

Anthony ergueu-se e acendeu um cigarro.

—: Começo a perceber o seu jogo, James. Você vai atrás do ouro, conforme planejara, e eu apanho as mil libras para você. Quanto levo nisso?

— Que é que você acha da quarta parte?

— Duzentas e cinqüenta libras, livres de imposto de renda?

— Isso mesmo.

— Feito. E, só para você ranger os dentes, digo-lhe que teria aceito o negócio por cem libras! Digo-lhe mais, James McGrath, você não é daqueles que morrem na cama contando o dinheiro economizado.

— Então, o negócio está feito?

— Está feito, sim. Já estou nele. E reinará a confusão na excursão selecionada de Castle.

Brindaram solenemente.

 

Uma dama em apuros

— Então, estamos combinados — disse Anthony, ter­minando sua bebida e recolocando o copo sobre a mesa. — Em que navio você ia viajar?

— No Granarth Castle.

— A passagem está comprada em seu nome, portanto suponho que seja melhor eu viajar como James McGrath. Superamos este negócio de passaporte, não é?

— Não temos outro jeito. Somos totalmente diferentes, mas provavelmente nossa descrição coincida numa dessas malditas coisas: altura, um metro e oitenta e três, cabelos castanhos, olhos azuis, nariz comum, queixo comum ...

— Pare com esta história de "comum". Deixe-me di­zer-lhe que Castle escolheu-me entre diversos pretendentes somente por causa de minha aparência agradável e minhas boas maneiras.

Jimmy sorriu malicioso.

— Notei suas boas maneiras esta manhã.

— Que diabo!  Anthony ergueu-se e andou de um lado para o outro no aposento. Sua testa vincou-se levemente, e ele permaneceu alguns instantes em silêncio.

— Jimmy — disse por fim —, Stylptitch morreu em Paris. Qual a necessidade de enviar um manuscrito de Paris a Londres via África?

Jimmy sacudiu a cabeça com desânimo.

— Não sei.

— Por que não fazer um embrulho bem-feitinho e mandá-lo pelo correio?

— Parece muito mais sensato, concordo.

— É claro que sei — prosseguiu Anthony — que os

reis, as rainhas e os funcionários oficiais são impedidos pela etiqueta de fazer as coisas de maneira simples e direta. Desde os Mensageiros do Rei, e tudo o mais. Nos tempos medievais dava-se a um sujeito um anel com sinete, como uma espécie de abre-te sésamo. "O anel do rei! Passe, meu senhor!" — e habitualmente era o outro sujeito, o que o havia roubado. Fico sempre imaginando como é que algum fulano inteligente não teve o expediente de copiar o anel — fazer uma dúzia ou mais — e vender a duzentos ducados a peça. Parece que eles não tinham iniciativa na Idade Média. Jimmy bocejou.

— Creio que minhas observações a respeito da Idade Média não lhe estão agradando. Voltemos ao Conde Stylp­titch. Da França à Inglaterra via África parece-me um tanto estúpido, mesmo para uma personagem diplomática. Se ele quisesse apenas assegurar-se de que você receberia as mil libras, poderia tê-las deixado em seu testamento. Graças a Deus, nem você nem eu somos demasiado orgulhosos para recusar um legado! Stylptitch deve ter sido um excêntrico.

— É o que parece, não?

Anthony franziu o cenho, e recomeçou a andar.

— Você já leu a coisa? — perguntou subitamente.

— Que coisa?

— O manuscrito.

— Por Deus, não. Por que pensa você que eu iria ler uma coisa dessa espécie?

Anthony sorriu.

— Estive apenas imaginando, é tudo. Você bem sabe que uma porção de encrencas têm sido causadas em conseqüência de memórias. Revelações indiscretas, e coisas assim. Pessoas que foram fechadas como ostras durante toda a vida parecem positivamente sentir prazer em causar encrencas, quando elas próprias já estiverem confortavelmente enterradas. Dá-lhes uma certa alegria maliciosa. Jimmy, que espécie de homem era o Conde Stylptitch? Você esteve com ele, conversou com ele, e você é um bom juiz da indigesta natureza humana. Poderia imaginá-lo como um velho demônio vingativo?

Jimmy abanou a cabeça.

— É difícil dizer, você compreende. Naquela noite ele estava visivelmente bêbado, e no dia seguinte era um cavalheiro tão digno, de modos tão educados, cumulando-me de tal forma de cumprimentos que eu nem sabia para onde olhar.

— E ele não disse nada de interessante quando estava embriagado?

Jimmy, franzindo o cenho, procurou lembrar-se.

— Ele disse que sabia onde se achava o Koh-i-noor

— admitiu em tom de dúvida.

— Ora essa — disse Anthony —, todos nós sabemos disso. Eles o guardam na torre, não é? Atrás de espesso vidro e barras de ferro, com uma porção de cavalheiros fantasiados vigiando para que não se furte nada.

— É isso mesmo — concordou Jimmy.

— E Stylptitch falou mais alguma coisa desse gênero? Disse, por exemplo, que sabia em que cidade se encontrava a Coleção Wallace?

Jimmy abanou a cabeça.

— Hum — murmurou Anthony. Acendeu outro ci­garro, e recomeçou a andar na sala de um lado para outro.

— Creio que você não lê nunca os jornais, seu selvagem — disse subitamente.

— Não com muita freqüência — admitiu McGrath de maneira simples. — De modo geral, eles não trazem nada daquilo por que me interesso.

— Graças a Deus, sou mais civilizado. Os jornais têm feito ultimamente diversas referências à Herzoslováquia. Sugestões quanto a uma possível restauração monárquica.

— Nicolau IV não deixou filho — disse Jimmy. — Não creio, porém, nem por um instante, que a dinastia Obolovitch esteja extinta. Existem provavelmente inúmeros pri­mos, primos em segundo e em terceiro grau, que haviam sido afastados, e andam perambulando por aí.

— Visto isso, não haveria dificuldade alguma em en­contrar um rei?

— Nenhuma, diria eu — replicou Jimmy. — Você compreende, não me admiro de que eles estejam cansados de suas instituições republicanas. Um povo de raça pura e viril como esse deve achar demasiado insípido fabricar presidentes depois de se ter habituado a reis. Por falar em reis, isso me lembra alguma coisa mais que o velho Stylptitch deixou escapar naquela noite. Disse que sabia qual era a quadrilha que estava atrás dele. Era gente do Rei Victor, disse ele.

— O quê? — Anthony voltou-se subitamente.

Um sorriso malicioso espalhou-se pela fisionomia de McGrath.

— Isto o deixa um tanto excitado, não é, Sir Joe? — disse pachorrentamente.

— Não seja burro, Jimmy. Você acaba de me dizer algo muito importante.

Dirigiu-se à janela e ficou olhando para fora.

— Mas quem é esse Rei Victor? — indagou Jimmy. — Algum outro monarca balcânico?

— Não — retorquiu Anthony vagarosamente. — Ele não é dessa espécie de rei.

— Então quem é ele?

Após uma pausa, Anthony falou:

— Ele é um escroque, Jimmy. O mais famoso ladrão de jóias do mundo. Um sujeito fantástico, ousado, que não se intimida com nada. Rei Victor é o apelido pelo qual era conhecido em Paris. Em Paris situava-se o quartel-general da sua quadrilha. Apanharam-no lá e puseram-no fora de circulação por sete anos, sob acusações secundárias. Os fatos importantes não puderam ser provados. Logo ele ficará livre, se é que já não está.

— Você acha que o Conde Stylptitch teve alguma coisa a ver com o fato de ele ter sido posto fora de circulação? Foi por isso que a gangue o perseguiu? Por vingança?

— Não sei — disse Anthony. — A julgar pelas apa­rências, não parece provável. Rei Victor nunca roubou as jóias da coroa da Herzoslováquia, que eu saiba. Mas a coisa toda parece um tanto sugestiva, você não acha? A morte de Stylptitch, as memórias, os boatos nos jornais — tudo vago, porém interessante. E há mais ainda: correm notícias de que teriam encontrado petróleo na Herzoslováquia. Estou com um palpite, James, que muita gente vai começar a se interessar por esse pequeno país sem importância.

— Que espécie de gente?

— Gente hebraica. Financistas orientais com empresas espalhadas pelas grandes cidades.

— Aonde é que você quer chegar?

— Estou tentando transformar um emprego fácil em um trabalho difícil, é tudo.

— Você não pode pretender que haverá alguma dificuldade em entregar um simples manuscrito a uma editora, não é?

— Não — disse Anthony pesarosamente. — Suponho que não exista dificuldade alguma quanto a isso. Mas vou lhe dizer uma coisa, James. Sabe aonde tenciono ir com as minhas duzentas e cinqüenta libras?

— Para a América do Sul?

. — Não, meu rapaz. Para a Herzoslováquia. Ficarei ao lado da república, julgo eu. Provavelmente, terminarei como presidente.

— Por que você não se anuncia como o principal des­cendente dos Obolovitch e se torna rei enquanto estiver por lá?

— Não, Jimmy. Os reis são para toda a vida. Os pre­sidentes apenas se empregam por quatro anos, mais ou menos. Ser-me-ia bem agradável governar um reino como a Herzoslováquia durante quatro anos.

— Eu diria que a média de tempo para os reis geral­mente é inferior — interrompeu Jimmy.

— Apropriar-me da sua parte nas mil libras será, pro­vavelmente, enorme tentação para mim. Você não irá pre­cisar, compreende, quando voltar carregado de pepitas. In­vestirei a sua parte em ações de petróleo na Herzoslováquia. Sabe, Jimmy, quanto mais penso nisso, mais contente fico com esta sua idéia. Jamais teria pensado na Herzoslováquia, se você não a tivesse mencionado. Passarei apenas um dia em Londres, para receber a recompensa, e partirei logo pelo expresso balcânico.

— Você não partirá assim tão depressa. Não lhe disse antes, mas tenho uma outra pequena incumbência para você.

Anthony afundou-se em uma cadeira e encarou-o seve­ramente.

— Eu sabia o tempo todo que você estava escondendo alguma coisa. Aí é que são elas.

— Nem tanto. É apenas algo que precisa ser feito para se auxiliar uma dama.

— De uma vez por todas, James, recuso-me a tomar parte em seus selvagens casos de amor.

— Não é um caso de amor. Jamais vi essa mulher. Vou lhe contar a história toda.

— Se tenho de ouvir mais uma das suas histórias lon­gas e desconexas, preciso de um outro drinque.

O anfitrião aquiesceu hospitaleiramente ao pedido, e iniciou a narrativa.

— Foi quando eu me encontrava em Uganda. Havia um gringo, cuja vida eu salvara ...

— Se eu fosse você, Jimmy, escreveria um pequeno livro intitulado Vidas que salvei. É a segunda que ouço esta noite.

— Oh, bem. Dessa vez eu realmente não fiz nada de mais. Apenas puxei o gringo para fora do rio. Como todos os gringos, ele não sabia nadar.

— Espere um pouco. Essa história tem alguma coisa a ver com o outro negócio?

— Nada absolutamente, embora, ainda que pareça es­tranho, agora me lembre de que o homem era um herzoslovaco. Se bem que sempre o chamássemos de "Pedro Holandês".

Anthony assentiu de forma indiferente.

— Qualquer nome serve para um gringo — observou ele. — Prossiga com a boa ação, James.

— Bem, o sujeito parece que ficou muito grato por causa disso. Seguia-me como um cão. Seis meses depois, morreu de febre. Eu estava a seu lado. Nos últimos momen­tos, quando já estava quase desencarnando, chamou-me por gestos e, numa algaravia excitada, sussurrou-me um segredo: uma mina de ouro, julguei ter ouvido. Empurrou para as minhas mãos um pacote embrulhado em oleado, que ele sempre guardara junto ao corpo. Bem, não pensei muito na coisa nessa ocasião. Somente uma semana depois foi que abri o pacote. Fiquei curioso, então, devo confessá-lo. Não pensei que Pedro Holandês tivesse capacidade para descobrir uma mina de ouro — mas, como não há princípios teóricos que possam reger a sorte ...

— E só em pensar em ouro seu coração disparou, como sempre — interrompeu Anthony.

— Nunca me senti tão desgostoso em minha vida. Mina de ouro, com efeito! Pode ter sido uma mina de ouro para ele, cão imundo. Sabe o que era aquilo? Cartas de mulher, sim, cartas de uma mulher inglesa. O malvado fazia chanta­gem com ela, e teve a impudência de passar para mim toda a sua suja bugiganga.

— Compreendo a sua raiva, James, mas é preciso você levar em conta que um gringo será sempre um gringo. Ele não fez por mal. Você lhe salvara a vida, e recebeu em troco uma lucrativa fonte de renda. Seus magnânimos ideais britâ­nicos estavam além das perspectivas do homem.

— Bem, e para que diabo eu quereria aquelas coisas? "Vou queimá-las", foi o meu primeiro pensamento. Ocor­reu-me, então, a lembrança da pobre senhora, ignorando que as cartas tivessem sido destruídas, e vivendo sempre espan­tada e estremecendo com medo de que o gringo tornasse a aparecer algum dia.

— Você tem mais imaginação do que eu supunha, Jimmy — observou Anthony, acendendo um cigarro. — Admito que o caso apresentava mais dificuldades do que parecia à primeira vista. Por que não lhe enviar as cartas pelo correio?

— Como toda mulher, ela não datou nem pôs ende­reço na maioria das cartas. Havia uma espécie de endereço em uma delas — somente uma palavra: "Chimneys".

Anthony interrompeu o gesto que fazia para assoprar o fósforo, e derrubou-o com um movimento súbito do pulso, no instante em que o fósforo queimava-lhe o dedo.

— Chimneys? — disse ele. — É extraordinário.

— Por quê? Você conhece o lugar?

— É um dos majestosos solares da Inglaterra, meu caro James. Um lugar onde reis e rainhas vão passar fins de semana e onde os diplomatas se reúnem para tratar de assuntos diplomáticos.

— Esta é uma das razões pelas quais estou tão contente de que você viaje para a Inglaterra em meu lugar. Você co­nhece todas essas coisas — disse Jimmy com simplicidade. — Um pateta como eu, que vem lá das montanhas do Cana­dá, cometeria toda a sorte de enganos. Mas alguém como você, que esteve em Eton e Harrow ...

— Apenas em um deles — disse Anthony modes­tamente.

— ... será capaz de desempenhar bem a missão. Por que não enviei as cartas, dizia você? Bem, pareceu-me peri­goso. Pelo que pude, deduzir, ela tinha um marido ciumento. Suponha que ele as abrisse por engano. Que aconteceria então à pobre senhora? Ou talvez ela estivesse morta — parece que as cartas foram escritas há bastante tempo. Calculei então que a única coisa viável seria alguém levá-las para a Inglaterra e entregá-las em suas próprias mãos.

Anthony jogou fora o cigarro, e, aproximando-se de seu amigo, bateu-lhe afetuosamente nas costas.

— Você é um verdadeiro cavalheiro errante, Jimmy — disse. — E as montanhas do Canadá deveriam orgulhar-se de você. Nem por sombra, eu faria o negócio melhor do que você próprio.

— Então você o aceita?

— Claro que sim.

McGrath levantou-se, dirigiu-se a uma gaveta, tirou um maço de cartas e arremessou-as sobre a mesa.

— Aqui estão elas. É melhor que você dê uma espiada.

— É necessário? Preferiria não o fazer.

— Bem, de acordo com o que você diz a respeito desse lugar, ela pode ter se hospedado lá. É melhor espiarmos as cartas para ver se encontramos alguma pista quanto ao lugar onde ela realmente mora.

— Creio que você tem razão.

Verificaram cuidadosamente as cartas, sem entretanto encontrar aquilo que esperavam. Anthony juntou-as de novo, pensativamente.

— Pobre diabinho — disse ele. — Estava bastante assustada.

Jimmy assentiu.

— Você acha que será capaz de encontrá-la? — per­guntou com ansiedade.

— Não partirei da Inglaterra enquanto não a tiver encontrado. Você está muito preocupado com essa dama desconhecida, não, James?

Jimmy, pensativo, deslizou os dedos sobre a assinatura.

— É um belo nome — disse à guisa de desculpa. — Virginia Revel.

 

Inquietação nas altas esferas

— Realmente, meu caro, realmente — disse Lorde Caterham.

Por três vezes já se utilizara das mesmas palavras, sempre na esperança de que elas pusessem fim à entrevista e lhe permitissem escapar. Detestava ver-se forçado a per­manecer em pé nos degraus do clube fechadíssimo a que pertencia, obrigado a ouvir a interminável eloqüência do ilustre George Lomax.

Clement Edward Alistair Brent, nono Marquês de Ca­terham, era um cavalheiro de pequena estatura, maltrajado, e inteiramente diverso da concepção popular de um marquês. Possuía pálidos olhos azuis, um melancólico nariz, e manei­ras vagas, porém corteses.

O principal infortúnio da vida de Lorde Caterham era ter sucedido, havia quatro anos, a seu irmão, o oitavo mar­quês. Pois o anterior Lorde Caterham fora um homem famo­so, um marco da Inglaterra. Quando ministro das Relações Exteriores, tivera enorme influência nas deliberações do império, e sua propriedade rural, Chimneys, era famosa pela hospitalidade. Sua mulher, uma filha do Duque de Perth, habilmente o secundava; assim, fazia-se e refazia-se a história nas reuniões informais de fins de semana em Chimneys, e não existia na Inglaterra — ou mesmo na Europa — nenhu­ma personalidade importante que não houvesse algum dia estado lá.

Estava tudo muito bem. O nono Marquês de Caterham tinha o máximo respeito e estima pela memória de seu irmão. Henry fizera essa espécie de coisas de maneira mag­nífica. Aquilo a que Lorde Caterham objetava era a supo­sição de que ele devesse seguir os passos do irmão, e que

Chimneys fosse considerada um patrimônio nacional, em vez de uma casa de campo particular. Nada aborrecia mais a Lorde Caterham do que a política — a não ser, talvez, os próprios políticos. Daí a sua impaciência para com a inesgo­tável eloqüência de George Lomax. Homem robusto, com tendência ao embonpoint1, George Lomax possuía rosto avermelhado, olhos protuberantes, e um imenso senso de sua própria importância.

1 "Obesidade." Em francês no original. (N. do E.)

 

— Você compreende, Caterham? Não podemos, em absoluto não podemos permitir falatórios de espécie alguma, principalmente agora. A situação é da maior delicadeza.

— Sempre é — disse Lorde Caterham com ar irônico.

— Meu caro, eu estou em posição de saber!

— Oh, realmente, realmente — disse Lorde Caterham, recaindo em sua linha de defesa anterior.

— Se deixarmos -escapar esse negócio da Herzoslováquia, estamos fritos. É da maior importância que as conces­sões de petróleo sejam garantidas a uma companhia britânica. Você compreende?

— Claro que sim, claro que sim.

— O Príncipe Miguel Obolovitch chega no fim da semana, e a coisa toda pode ser arranjada em Chimneys, sob o disfarce de uma caçada.

— Eu estava pensando em viajar para o exterior esta semana.

— Bobagem, meu caro Caterham, ninguém viaja para o exterior no começo de outubro.

— Parece que o meu médico não me acha em boas condições físicas — disse Lorde Caterham, observando com olhares cobiçosos um táxi que passava lentamente.

Não lhe era possível dar um salto para a liberdade, entretanto, visto que Lomax tinha o desagradável hábito de segurar a pessoa com quem estivesse entretido em uma séria conversa — resultado, sem dúvida, de longa experiência. No caso presente, agarrara fortemente Lorde Caterham pela lapela do paletó.

— Meu caro, é uma necessidade imperiosa. Sobretudo num momento de crise nacional, tal como o que rapidamente se aproxima.

Lorde Caterham moveu-se intranqüilo. Sentiu subita­mente que preferia realizar quantas reuniões de fim de sema­na fossem necessárias a ouvir George Lomax fazendo cita­ções de seus próprios discursos. Sabia, por experiência, que Lomax era bem capaz de prosseguir durante vinte minutos, sem uma única pausa.

— Está bem — disse apressadamente. — Concordo. Sei que você providenciará tudo.

— Meu caro, não há nada a providenciar. Chimneys, independentemente de sua participação na história, acha-se situada em lugar ideal. Permanecerei na abadia, a menos de sete milhas de lá. Não seria conveniente, com certeza, que eu tomasse parte na reunião.

— Claro que não — concordou Lorde Caterham, que não fazia a mínima idéia da razão de tal inconveniência, nem se interessava em sabê-lo.

— Você não se opõe à ida de Bill Eversleigh, não é? Ele seria útil como portador de recados.

— Será ótimo — disse Lorde Caterham, um pouco mais animado. — Bill é bom atirador, e Bundle gosta dele.

— A caçada, na realidade, não é importante. Serve apenas de pretexto.

Lorde Caterham ficou novamente deprimido.

— Então, está certo. O príncipe, sua comitiva, Bill Eversleigh, Herman Isaacstein

— Quem?

— Herman Isaacstein. O representante do sindicato a respeito do qual lhe falei.

— A União Britânica dos Sindicatos?

— Sim. Por quê?

— Nada, nada ... Eu estava só pensando. Que nomes esquisitos tem essa gente.

— É preciso também um ou dois estranhos, apenas para dar à reunião uma aparência de bona fide. Lady Eileen poderia providenciar isso — gente jovem, despreocupada, sem noção de política.

— Estou certo de que Bundle sé encarregará disso.

— Estou pensando agora... — Lomax pareceu apreensivo. — Você se lembra daquele assunto a respeito do qual acabei de falar?

— Você falou a respeito de tantas coisas!

— Estou me referindo àquele infeliz contratempo — baixou a voz em misterioso sussurro —, às memórias ... às memórias do Conde Stylptitch.

— Você se engana, meu caro — disse Lorde Caterham suprimindo um bocejo —, o povo gosta de escândalos. Eu próprio leio memórias, e também as aprecio.

— A questão não se prende ao fato de as memórias serem lidas ou não — evidentemente serão lidas com a má­xima avidez. O fato é que a sua publicação nesta conjuntura poderia arruinar tudo, tudo. O povo da Herzoslováquia de­seja restaurar a monarquia, e está pronto a oferecer a coroa ao Príncipe Miguel, que tem o amparo e o estímulo do go­verno britânico ...

— E que está pronto a garantir as concessões a Mr. Ikey Hermanstein & Co., em troca do empréstimo de um milhão, ou quantia semelhante, para que possa instalar-se no trono.

— Caterham, Caterham — implorou Lomax em agoni­zante sussurro. — Discrição, peço-lhe. Sobretudo, discrição.

— E o fato é que — prosseguiu Lorde Caterham com certo deleite, embora, em atenção ao pedido do outro, tivesse baixado a voz — algumas reminiscências de Stylptitch po­dem transtornar os planos. Tirania e má conduta da família Obolovitch, de um modo geral, não é? Inquirições feitas pela Câmara. Por que substituir a presente forma de governo democrática e liberal por uma tirania obsoleta? Orientação política ditada pelos capitalistas exploradores. Abaixo o go­verno, e toda essa espécie de coisas, não é?

Lomax assentiu.

— E poderia haver coisa ainda pior — sussurrou. — Suponha ... apenas suponha que alguma referência fosse feita àquele infeliz desaparecimento ... Você sabe o que quero dizer.

Lorde Caterham olhou-o fixamente.

— Não, não sei. Que desaparecimento?

— Você deve ter ouvido falar a respeito disso. Ora, aconteceu quando eles estavam em Chimneys. Henry ficou terrivelmente aborrecido, quase arruinou sua carreira.

— Você me deixa profundamente interessado — disse Lorde Caterham. — Quem ou o que desapareceu?

Lomax inclinou-se para a frente e colou os lábios ao ouvido de Lorde Caterham. Este afastou-se bruscamente.

— Pelo amor de Deus, não assobie em meu ouvido.

— Você ouviu o que eu disse?

— Sim, ouvi — respondeu Lorde Caterham com relu­tância. — Lembro-me agora de ter ouvido algo a esse respeito naquela ocasião. Um caso muito curioso. Imagino quem o teria feito. Nunca descobriram?

— Nunca. É claro que tivemos de usar a máxima dis­crição. Não se podia permitir que o caso viesse a público. Mas Stylptitch se achava lá nessa ocasião. Ele tinha conheci­mento de alguma coisa. Não de tudo, mas de alguma coisa. Nós o passamos para trás, uma ou duas vezes, naquela questão da Turquia. Suponha que, por pura malícia, ele tenha resolvido dar publicidade ao caso. Pense no escândalo, na amplitude das conseqüências. Todo mundo haveria de dizer: por que se fez silêncio em torno disso?

— Diriam certamente — disse Lorde Caterham, com evidente regozijo.

Lomax, cujo tom de voz elevara-se, controlou-se.

— Preciso manter-me calmo — murmurou. — Preciso manter-me calmo. Pergunto-lhe, porém, o seguinte, meu caro: se ele não pretendia causar nenhum mal, por que enviou o manuscrito para Londres por via tão tortuosa?

— É estranho mesmo. Você tem certeza dos fatos?

— Absoluta. Temos nossos agentes em Paris. As me­mórias foram enviadas secretamente, algumas semanas antes de sua morte.

— Parece que elas contêm mesmo alguma coisa — disse Lorde Caterham, com idêntico regozijo ao que demonstrara antes.

— Descobrimos que elas foram mandadas para um ho­mem chamado Jimmy, ou James, McGrath, um canadense que se encontrava nessa ocasião na África.

— É um caso bem imperial, não? — observou Lorde Caterham jovialmente.

— James McGrath deve chegar pelo Granarth Castle amanhã, quinta-feira.

— Que é que você pretende fazer?

— Entraremos imediatamente, é claro, em contato com ele, mostraremos as graves conseqüências que poderão advir, e pediremos que adie, pelo menos por um mês, a publicação das memórias. Ou a sua permissão para que elas sejam... hum... judiciosamente editadas.

— Suponhamos que ele diga: "Não, senhor", ou "Pre­firo que vocês vão para o inferno", ou algo assim tão inteli­gente e jovial — sugeriu Lorde Caterham.

— É o que receio — disse Lomax simplesmente. — Foi por isso que subitamente ocorreu-me que seria uma boa coisa se você também o convidasse para ir a Chimneys. Ele se sentiria lisonjeado, naturalmente, por ser convidado para uma reunião em que toma parte o Príncipe Miguel, e seria mais fácil manejá-lo.

— Não vou fazê-lo — disse Lorde Caterham apressada­mente. — Não me dou bem com canadenses, nunca me dei, sobretudo com esses que moraram na África!

— Provavelmente você o achará um sujeito excelente, um diamante bruto, sabe?

— Não, Lomax. Quanto a isso, estou absolutamente decidido. Alguma outra pessoa terá que manejá-lo.

— Ocorreu-me — disse Lomax — que uma mulher poderia ser de muita utilidade. Ser-lhe-ia contado o suficien­te, mas não demasiado; compreende? Uma mulher poderia manejar a coisa toda delicadamente e com tato, mostrando-lhe a situação tal como é, sem ferir seus melindres. Não que eu aprove mulheres metidas em política — St. Stephen está arruinada, absolutamente arruinada. Mas uma mulher, a sua maneira, pode fazer maravilhas. Veja a mulher de Henry, o que ela fez pelo marido. Mareia foi magnífica, única, perfeita anfitrioa política.

— Você não pretende convidar Mareia para essa reu­nião, não é? — indagou Lorde Caterham francamente, em­palidecendo um pouco à menção do nome de sua temível cunhada.

— Não, não, você entendeu mal. Eu estava falando sobre a influência das mulheres de modo geral. Sugiro uma mulher jovem — bela, encantadora e inteligente.

— Você não está pensando em Bundle, não? Bundle não serviria. Ela é uma socialista inflamada, se é que é alguma coisa, e morreria de rir com a sua sugestão.

— Eu não estava pensando em Lady Eileen. Sua filha, Caterham, é encantadora, simplesmente encantadora, mas bastante infantil. Precisamos de alguém com savoir-faire, 'equilíbrio, conhecimento do mundo... Ah, é claro, minha prima. Virginia é a pessoa exata.

— Mrs. Revel? — Lorde Caterham alegrou-se. Come­çou a sentir que, afinal de contas, poderia divertir-se na reunião. — Ótima sugestão a sua, Lomax. A mulher mais encantadora de Londres.

— Ela está bem a par dos acontecimentos na Herzoslováquia. O marido dela serviu lá na embaixada, você se lembra. E, como bem diz você, trata-se de uma mulher de grande fascínio pessoal.

— Uma criatura deliciosa — murmurou Lorde Ca­terham.

— Então está tudo combinado.

Mr. Lomax diminuiu a força com que segurava a lapela de Lorde Caterham, e este último aproveitou-se imediata­mente da oportunidade.

— Até logo, Lomax, você providenciará tudo, não?

Mergulhou num táxi. Lorde Caterham detestava o ilus­tre George Lomax, tanto quanto é possível um probo cava­lheiro cristão detestar um seu semelhante. Detestava seu avermelhado rosto balofo, sua respiração pesada, seus proe­minentes e graves olhos azuis. Pensou no próximo fim de semana e suspirou. Uma amolação, uma abominável amola­ção. Pensou, então, em Virginia Revel e alegrou-se um pouco.

— Deliciosa criatura — murmurou consigo mesmo. — A mais deliciosa das criaturas.

 

Uma senhora encantadora

George Lomax voltou diretamente a Whitehall. Ao entrar no suntuoso aposento, no qual realizava os negócios de Estado, ouviu um ruído de pés arrastando-se.

Mr. Bill Eversleigh ocupava-se diligentemente em ar­quivar cartas, mas uma imensa poltrona, junto à janela, ainda mantinha o calor de um corpo humano.

Um jovem muito simpático, Bill Eversleigh. Cerca de vinte e cinco anos de idade, alto e um tanto canhestro em seus movimentos, fisionomia feia porém agradável, esplêndi­dos dentes e honestos olhos castanhos.

— Richardson já mandou subir o relatório?

— Não, senhor. Digo-lhe que mande?

— Não tem importância. Algum recado telefônico?

— Miss Oscar está cuidando disso. Mr. Isaacstein dese­ja saber se o senhor pode almoçar com ele amanhã no Savoy.

— Diga a Miss Oscar que verifique meus compromis­sos. Se eu estiver livre, que lhe telefone aceitando.

— Sim, senhor.

— A propósito, Eversleigh, você pode dar um telefo­nema para mim, agora. Olhe no catálogo, Mrs. Revel, 487, Pont Street.

— Sim, senhor.

Bill apanhou o catálogo telefônico, correu os olhos, sem ler, por uma coluna de "Mrs.", fechou a lista com ruído e dirigiu-se para o aparelho que se achava sobre a mesa. Com a mão já no telefone, parou, como que movido por súbita lembrança.

— Oh, acabei de me lembrar, a linha está com defeito. A de Mrs. Revel, quero dizer. Estive tentando telefonar-lhe ainda há pouco.

George Lomax franziu o cenho.

— Coisa aborrecida — disse —, coisa muito aborrecida. — Bateu na mesa de maneira hesitante.

— Se se trata de alguma coisa importante, senhor, tal­vez eu pudesse pegar um táxi e ir lá agora. A esta hora da manhã é seguro encontrá-la em casa.

George Lomax hesitou, ponderando o assunto. Bill es­perava ansioso, pronto para sair, caso a resposta fosse favo­rável.

— Talvez seja esta a melhor solução — disse Lomax por fim. — Muito bem; tome um táxi e vá perguntar a Mrs. Revel se ela estará em casa esta tarde às quatro horas, porque preciso muito falar-lhe a respeito de um assunto importante.

Bill apanhou o chapéu e partiu.

Dez minutos mais tarde, um táxi deixou-o na Pont Street, no número 487. Tocou a campainha e mexeu ruido­samente na fechadura. A porta foi aberta por um grave criado, a quem Bill cumprimentou com o desembaraço de longo conhecimento.

— Bom dia, Chilvers, Mrs. Revel está?

— Creio, senhor, que ela está pronta para sair.

— É você, Bill? — chamou uma voz do alto da esca­da. — Julguei ter reconhecido essa musculosa batida à porta. Suba e venha conversar comigo.

Bill ergueu os olhos para a fisionomia que lhe sorria, e que quase sempre o deixava reduzido — e não apenas a ele — a um estado de balbuciante incoerência. Subiu os degraus, dois a dois, e apertou nas suas as mãos estendidas de Virginia Revel.

— Alô, Virginia!

— Alô, Bill!

O charme é uma coisa muito curiosa. Centenas de mu­lheres jovens, algumas mais belas do que Virginia Revel, podiam ter dito "Alô, Bill" exatamente com a mesma ento­nação, sem produzir nenhum efeito. Entretanto, essas duas simples palavras, pronunciadas por Virginia, exerciam sobre Bill a mais intoxicante influência.

Virginia Revel acabara de completar vinte e sete anos. Alta e de uma esbeltez rara — na verdade, podia-se dedicar um poema à sua esbeltez, de tal forma era bem-proporcionada. O cabelo era de um bronze autêntico, sombreando-se o dourado em tonalidade esverdeada. Possuía pequeno queixo resoluto, nariz encantador, oblíquos olhos azuis que cintila­vam profundamente por entre as pálpebras semicerradas, e uma boca deliciosa e indescritível, que se inclinava levemente em um dos cantos naquilo que se costuma chamar "sinal de Vênus". Seu rosto era profundamente expressivo, e toda a sua pessoa irradiava certa espécie de vitalidade que sempre provocava atenção. Seria praticamente impossível ignorar-se Virginia Revel.

Conduziu Bill a uma pequena sala de visitas, ornamen­tada em tonalidades malva-pálido, verde e amarelo, tal como açafrões num prado.

— Bill, querido — disse Virginia —, o Ministério das Relações Exteriores não está sentindo sua falta? Pensei que não pudesse passar sem você.

— Trouxe-lhe um recado de Codders.

Dessa maneira irreverente costumava Bill referir-se a seu chefe.

— E, a propósito, Virginia, caso ele pergunte, lembre-se de que seu telefone não estava funcionando esta manhã.

— Mas estava.

— Sei disso. Mas foi o que eu lhe disse.

— Por quê? Explique-me esse tom diplomático. Bill lançou-lhe um olhar de censura.

— Para que eu pudesse vir aqui vê-la, é claro.

— Oh, Bill querido, que obtusa sou eu! E como você é amável!

— Chilvers disse que você ia sair.

— Sim, vou à Sloane Street. Há uma loja lá onde se vende uma nova cinta maravilhosa.

— Cinta?

— Sim, Bill. Cinta. C-i-n-t-a. Uma cinta para apertar as cadeiras. Usa-se em cima da pele.

— Enrubesço por você, Virginia. Você não deveria des­crever suas roupas íntimas para um jovem com quem não tem intimidade. Não é delicado.

— Bill, meu caro Bill, não há nada indelicado com res­peito a cadeiras. Todos nós temos cadeiras, embora nós, pobres mulheres, façamos força para fingir que não temos.

Essa cinta é feita de borracha vermelha e chega até quase os joelhos. É simplesmente impossível andar-se com ela.

— Que coisa horrorosa! — exclamou Bill. — Por que você usa isso?

— Oh, porque proporciona uma sensação tão nobre de se estar sofrendo pela própria silhueta. Mas vamos deixar de falar sobre a minha cinta. Dê-me o recado de George.

— Ele quer saber se você estará em casa esta tarde, às quatro horas.

— Não estarei. Estarei em Ranelagh. Por que essa visita formal? Você acha que ele pretende propor-me ca­samento?

— Não me admiraria.

— Porque, se é isso, pode dizer-lhe que prefiro homens que o propõem movidos por um impulso.

— Como eu?

— Com você não é impulso, Bill. É hábito.

— Virgínia, você nunca...

— Não, não e não, Bill. De manhã, antes do almoço, eu não suporto. Tente pensar em mim como uma criatura maternal, aproximando-se da meia-idade, e por quem você sente profunda afeição.

— Virgínia, eu te amo tanto.

— Eu sei, Bill, eu sei. E simplesmente gosto de ser amada. Não é perverso e terrível? Gostaria que todos os homens simpáticos do mundo estivessem apaixonados por mim.

— Creio que a maioria está — disse Bill acabrunhado.

— Mas espero que George não esteja apaixonado por mim. Aliás creio que ele não poderia estar; casou-se com a sua profissão. Que mais disse ele?

— Apenas que se tratava de assunto muito importante.

— Bill, estou começando a ficar intrigada. São tão poucas as coisas que George considera importantes! Acho que devo cancelar Ranelagh. Afinal de contas, posso ir a Ranelagh qualquer outro dia. Diga a George que estarei humildemente esperando por ele às quatro horas.

Bill consultou seu relógio de pulso.

— Creio que não vale a pena eu voltar antes do almoço. Vamos sair para comer alguma coisa, Virgínia.

— Eu ia mesmo sair para almoçar.

— Então vamos juntos. Vamos festejar este dia, sem ligar para nada mais.

— Seria agradável — disse Virgínia, sorrindo para ele.

— Virgínia, você é um encanto. Diga-me uma coisa: você gosta um pouco de mim, não é? Mais do que dos outros?

— Bill, eu adoro você. Se tivesse de me casar com alguém — se tivesse absoluta necessidade —, isto é, quero dizer, se estivesse escrito em meu destino e um mandarim perverso me dissesse: "Case-se com alguém ou morrerá por tortura lenta", eu escolheria você imediatamente; realmente escolheria. Eu diria: "Quero Bill".

— Bem, então...

— Mas eu não preciso me casar com ninguém. Gosto de ser uma viúva maldosa.

— Você poderia fazer as mesmas coisas que faz agora. Sair, e tudo o mais. Você mal me notaria em casa.

— Bill, você não compreende. Pertenço àquela espécie de pessoas que se casam por paixão, se é que se casam.

Bill deu um suspiro cavo.

— Acabo dando um tiro em mim mesmo um dia desses — murmurou melancolicamente.

— Não, você não fará isso, Bill querido. Levará uma bela moça para cear — como fez ontem à noite.

Mr. Eversleigh tornou-se confuso momentaneamente.

— Você está se referindo a Dorothy Kirkpatrick, a pro­tagonista de Olhos traiçoeiros? Bem... eu... ora, com a breca! Ela é uma moça muito agradável, certinha. Não há mal nenhum nisso.

— Bill querido, é claro que não há. Gosto de que você se divirta. Mas não finja estar prestes a morrer com o cora­ção sangrando, apenas isso.

Mr. Eversleigh recobrou a dignidade.

— Você absolutamente não compreende, Virgínia — falou com severidade. — Os homens...

— São polígamos! Sei que eles são. Às vezes tenho a perspicaz suspeita de que sou poliândrica. Se você me ama realmente, Bill, leve-me logo para almoçar.

 

Primeira noite em Londres

Há sempre uma falha nos melhores planos. George Lomax cometera um engano nos seus; houve em sua trama um ponto fraco. E este ponto fraco foi Bill.

Bill Eversleigh era um rapaz extremamente simpático. Ótimo jogador de críquete e de golfe, possuía modos educa­dos e bom humor; sua posição no Ministério das Relações Exteriores, porém, fora conseguida não pela inteligência, mas por suas boas relações. Para o trabalho que realizava, era perfeitamente conveniente. Desempenhava mais ou menos o papel de cão de fila de George. Não executava trabalhos que requeressem inteligência ou responsabilidade. Sua fun­ção era estar constantemente ao lado de George, para entre­vistar pessoas sem importância que George não desejasse ver, para transmitir recados, e ser útil naquilo que fosse ne­cessário. Tudo isso Bill executava fielmente. Quando George se achava ausente, Bill instalava-se confortavelmente na me­lhor poltrona e lia as notícias esportivas, e, ao fazê-lo, cum­pria apenas honrada tradição.

Habituado a mandar Bill levar ou trazer recados, Geor­ge enviara-o aos escritórios da Union Castle para informar-se quando deveria chegar o Granarth Castle. Ora, conforme acontece comumente com os jovens ingleses bem-educados, Bill tinha uma voz agradável, porém quase inaudível. Qual­quer professor de dicção teria considerado errada a sua pro­núncia da palavra "Granarth". Podia ser tudo, menos isso. O funcionário tomou-a por "Carnfrae".

O Carnfrae Castle deveria chegar na quinta-feira se­guinte. Foi o que ele disse. Bill agradeceu e saiu. George Lomax aceitou a informação, e de acordo com ela fez os pla­nos. Nada sabia a respeito dos navios da Union Castle, e tomou como certo que James McGrath deveria chegar na quinta-feira.

Por isso, no momento em que segurava Lorde Caterham pela lapela, nos degraus do clube, na quarta-feira de manhã, teria ficado imensamente surpreso se soubesse que o Gra­narth Castle aportara em Southampton na tarde precedente. Às duas horas dessa mesma tarde, Anthony Cade, viajando sob o nome de Jimmy McGrath, desceu de um trem em Waterloo, tomou um táxi, e, após um momento de hesitação, ordenou ao chofer que seguisse para o Blitz Hotel.

— Um pouco de conforto não faz mal a ninguém — disse Anthony consigo próprio, enquanto olhava interessado através das janelas do táxi.

Estivera em Londres pela última vez havia exatamente catorze anos.

Chegou ao hotel, reservou um quarto, e saiu para um passeio ao longo da margem do rio. Como era agradável estar de volta a Londres! Tudo mudara, naturalmente. Ali, havia outrora um pequeno restaurante — logo depois da Ponte Blackfriars —, onde jantara inúmeras vezes em com­panhia de rapazes sérios. Era socialista, naquela época, e usava uma gravata vermelha esvoaçante. Jovem, muito jovem.

Caminhou de volta, em direção ao Blitz. Precisamente quando atravessava a rua, um homem deu-lhe um encontrão, fazendo-o quase perder o equilíbrio. Recobraram-se ambos, e o homem murmurou desculpas, seus olhos examinando intensamente a fisionomia de Anthony. Era um homem baixo, corpulento, tipo operário, aparentando algo de es­trangeiro.

Anthony entrou no hotel, imaginando o que teria moti­vado esse perscrutante olhar. Nada, provavelmente. Talvez o moreno carregado de seu rosto destoasse um tanto da habitual palidez dos londrinos, e tivesse despertado a aten­ção do indivíduo. Subiu para o quarto e, movido por súbito impulso, aproximou-se do espelho e examinou a própria fisionomia. Seria possível que algum de seus amigos de anti­gamente — somente uns poucos escolhidos — o reconhecesse agora, se o encontrasse face a face? Abanou a cabeça lentamente.

Quando deixara Londres, acabara de completar dezoito anos; era um belo rapaz rechonchudo, com uma ilusória expressão seráfica. Havia pouca probabilidade de que o me­nino fosse reconhecido no homem moreno, esguio, e de apa­rência excêntrica.

O telefone junto à cama tocou, e Anthony encaminhou-se para o aparelho.

— Alô!

Respondeu-lhe a voz do encarregado da recepção:

— Mr. James McGrath?

— Sim.

— Está aqui um cavalheiro que deseja vê-lo. Anthony espantou-se um pouco.

— Ver-me?

— Sim, senhor. Um cavalheiro estrangeiro.

— Qual é o nome dele?

Houve breve pausa, e então o empregado disse:

— Mandarei um menino subir com o cartão dele.

Anthony desligou o telefone e esperou. Dentro de pou­cos minutos, bateram à porta e apareceu um rapazinho, tra­zendo um cartão sobre uma bandeja.

Anthony pegou-o. O nome gravado era: "Barão Lolopretjzyl".

Compreendeu então perfeitamente a pausa feita pelo encarregado da recepção.

Durante alguns instantes permaneceu examinando o cartão, e em seguida decidiu-se.

— Faça o cavalheiro subir.

— Sim, senhor.

Pouco depois o Barão Lolopretjzyl, homem grandalhão, com enorme barba negra em feitio de leque e ampla testa calva, foi introduzido no aposento.

Juntou os calcanhares com ruído, e curvou-se.

— Mr. McGrath — disse.

Anthony imitou seus movimentos tanto quanto possível.

— Barão — disse ele, oferecendo em seguida uma ca­deira —, tenha a bondade de sentar-se. Creio que ainda não tinha tido o prazer de conhecê-lo.

— Realmente — concordou o barão, sentando-se. — Para grande mágoa minha — acrescentou polidamente.

— E minha também — respondeu Anthony no mesmo tom.

— Agora, tratar de negócios — disse o barão. — Re­presento em Londres o Partido Legalista da Herzoslováquia.

— E representa admiravelmente, estou certo — mur­murou Anthony.

O barão curvou-se em agradecimento.

— Bondade sua — disse com firmeza. — Mr. Mc­Grath, nada esconderei do senhor. Chegou o momento de restaurar monarquia, que está suspensa desde martírio de Sua Graça a Majestade Rei Nicolau IV, de sagrada memória.

— Amém — murmurou Anthony. — Isto é, salve, salve!

— No trono quem vai ficar é Sua Alteza Príncipe Mi­guel. Governo britânico apóia.

— Esplêndido — disse Anthony. — É muita bondade sua contar-me tudo isso.

— Tudo arranjado está. Quando senhor chega, faz encrenca.

O barão fixou-o com um olhar severo.

— Meu caro barão! — protestou Anthony.

— Sim, sim, sei o que falo. Senhor tem memórias de falecido Conde Stylptitch.

Fixou Anthony com olhos acusadores.

— E se eu tiver... Que têm as memórias do Conde Stylptitch a ver com o Príncipe Miguel?

— Elas vão causar escândalo.

— A maioria das memórias causa — disse Anthony de maneira confortadora.

— Sabia muitos segredos. Se quarta parte fosse reve­lada, uma guerra era capaz de haver na Europa.

— Ora, ora... — disse Anthony. — As coisas não podem ser assim tão más.

— Opinião desfavorável dos Obolovitch irá para es­trangeiro. Espírito inglês tão democrático.

— Bem posso crer — disse Anthony — que os Obolo­vitch tenham sido um tanto arbitrários de quando em quan­do. Está no sangue. Mas o povo da Inglaterra espera dos Bálcãs esse gênero de coisas. Não sei por quê, mas o fato é que espera.

— Senhor não compreende — disse o barão. — Senhor não compreende absolutamente. E meus lábios selados estão. — Suspirou.

— Exatamente de que o senhor tem receio? — indagou Anthony.

— Enquanto não ler memórias, não sei — explicou o barão com simplicidade. — Mas com certeza tem alguma coisa. Esses grandes diplomatas são sempre indiscretos. Pla­nos serão transtornados, como se diz.

— Veja bem — disse Anthony bondosamente —, estou certo de que o senhor tem uma visão muito pessimista do assunto. Conheço bem os editores: sentam-se nos manuscri­tos e os ficam chocando como se fossem ovos. Levará no mínimo um ano para que elas sejam publicadas.

— Ou muito enganador ou muito ingênuo senhor é. Tudo arranjado para memórias saírem imediatamente num jornal de domingo.

— Oh! — Anthony surpreendeu-se. — Mas o senhor pode negar tudo — disse esperançoso.

O barão sacudiu a cabeça tristemente.

— Não, não, senhor não sabe o que fala. Agora, tratar de negócios. Mil libras vai senhor receber, não? Vê, tenho boa informação.

— Congratulo-me sinceramente com o serviço secreto dos legalistas.

— Ofereço então ao senhor mil e quinhentas. Anthony olhou-o admirado, e balançou a cabeça triste­mente.

— Receio que o negócio não possa ser feito — disse ele com pesar.

— Bem. Ofereço ao senhor duas mil libras.

— O senhor me tenta, barão, o senhor me tenta. Mas ainda lhe digo que o negócio não pode ser feito.

— Diga seu preço então.

— Receio que o senhor não compreenda a situação. Tenho a máxima boa vontade em acreditar que o senhor esteja do lado dos anjos, e que as memórias possam causar danos. Entretanto, comprometi-me a realizar esse trabalho, e pretendo levá-lo a cabo. Entende? Não posso permitir que o outro lado me compre. Isso é uma coisa que não se faz.

O barão ouviu atentamente. Quando Anthony terminou de falar, ele assentiu com a cabeça diversas vezes.

— Compreendo. Sua honra de cavalheiro inglês.

— Bem, não é exatamente assim que colocamos a ques­tão — disse Anthony.

— Ouso dizer, apesar de vocabulário diferente, ambos queremos expressar mesma coisa.

O barão ergueu-se.

— Pela honra inglesa muito respeito tenho — declarou. — Devemos outro caminho tentar. Desejo senhor bom dia.

Juntou os tornozelos com ruído, curvou-se e marchou para fora do aposento, mantendo-se rígido e ereto.

"Imagino o que ele quis dizer com isso", cismou An­thony. "Será uma ameaça? Não que eu tenha medo do velho Barão Lollipop1. A propósito, é um bom nome para ele. Vou chamá-lo de Barão Lollipop."

1 Pirulito, rebuçado. (N. do T.)

 

Deu umas voltas pelo quarto, irresoluto quanto a seu próximo passo. Seria dali a uma semana e pouco a data estipulada para a entrega do manuscrito. Aquele dia era 5 de outubro, e Anthony não tinha a intenção de entregar o manuscrito senão no último momento. Verdade seja dita, agora ele se achava ardentemente ansioso para ler essas me­mórias. Pretendera fazê-lo no navio, durante a viagem, mas estivera adoentado, com febre e sem disposição para decifrar uma caligrafia ilegível, cheia de arabescos, pois nenhuma página do original estava datilografada. Agora, mais do que nunca, achava-se decidido a conhecer o motivo de todas aquelas complicações.

Havia também a outra missão.

Movido por súbito impulso, apanhou o catálogo telefônico  e procurou o nome Revel. Havia seis Revel na lista: Edward Henry Revel, cirurgião, na Harley Street; James Revel & Co., seleiros; Lennox Revel, em Abbotbury Mansions, Hampstead; Miss Mary Revel, com um endereço em Ealing; Hon. Mrs. Timothy Revel, na Pont Street, número 487; e Mrs. Willis Revel, na Cadogan Square, número 42. Eliminando os seleiros e Miss Mary Revel, sobravam-lhe quatro nomes para investigar; e não existia razão especial para supor-se que a dama em questão morasse mesmo em Londres. Fechou o catálogo, balançando levemente a cabeça.

— Por enquanto, deixo o caso entregue à sorte — disse. — Geralmente acontece alguma coisa.

A sorte dos Anthony Cade deste mundo talvez seja proporcional à medida de sua própria crença. Menos de uma hora depois, Anthony encontrou o que procurava, quando estava folheando as páginas de um jornal ilustrado. Tratava-se da notícia da representação de um quadro vivo organizado pela Duquesa de Perth. Abaixo da figura central — uma senhora em trajes orientais — havia a legenda:

"A ilustre Mrs. Timothy Revel como Cleópatra. Antes de seu casamento Mrs. Revel era a ilustre Virginia Cawthron, filha de Lorde Edgbaston".

Anthony olhou a fotografia durante algum tempo, cer­rando lentamente os lábios como se fosse assobiar. Rasgou, então, a página toda, dobrou-a, e guardou-a no bolso. Subiu novamente para o quarto, destrancou a maleta e dela tirou o maço de cartas. Retirou do bolso a página dobrada e introdu­ziu-a sob o barbante que prendia as cartas.

Então, um súbito ruído atrás de si fê-lo virar-se brus­camente. No batente da porta postava-se um homem, a es­pécie de homem que Anthony credulamente imaginara existir apenas como figurante de ópera cômica. Indivíduo de apa­rência sinistra, cabeça grande e achatada, e lábios arreganha­dos em maldoso sorriso.

—. Que diabo está fazendo aqui? — perguntou Antho­ny. — E quem deixou você entrar?

— Eu passo por onde quero — disse o estranho. A voz era gutural e de sotaque estrangeiro, embora seu inglês, idiomaticamente, não fosse mau.

"Outro gringo", pensou Anthony.

— Bem, dê o fora, ouviu? — prosseguiu em tom alto. Os olhos do homem achavam-se fixos no pacote de cartas que Anthony segurava.

— Sairei quando você me entregar o que vim buscar.

— E de que se trata, posso perguntar? O homem deu um passo para a frente.

— Das memórias do Conde Stylptitch — sibilou.

— Impossível levá-lo a sério — disse Anthony. — É o perfeito vilão de teatro. Aprecio muito o seu papel. Quem mandou você aqui? O Barão Lollipop?

— Barão... ? — O homem enfileirou uma quantidade de consoantes que soavam asperamente.

— Ah, então é assim que se pronuncia? Misto de gar­garejo e latido de cachorro. Não creio que eu consiga — minha garganta não se presta a isto. Terei que continuar a chamá-lo de Lollipop. Então, foi ele quem mandou você?

Recebeu, porém, veemente negativa. O visitante foi mais além: após ouvir a sugestão, cuspiu de maneira bastante realista. Tirou do bolso uma folha de papel e arremessou-a sobre a mesa.

— Veja — falou ele. — Veja e trema, maldito inglês. Anthony olhou com algum interesse, sem se dar o trabalho de executar a última parte da ordem. Traçado no papel, de maneira tosca, estava o desenho de uma mão hu­mana colorida de vermelho.

— Parece uma mão — observou. — Mas, se quiser, estou pronto a admitir que se trata de um quadro cubista representando um crepúsculo no pólo norte.

— É a marca dos Camaradas da Mão Vermelha. Eu sou um camarada da mão vermelha.

— Não diga! — disse Anthony, observando-o com grande interesse. — Todos os outros são como você? Não sei o que a Sociedade Eugênica teria a dizer quanto a isso.

O homem rosnou zangadamente.

— Cachorro — disse ele. — Pior do que cachorro. Escravo pago de uma monarquia estéril. Entregue-me as memórias, e sairá incólume. Tal é a clemência da confraria.

— É muita bondade deles — disse Anthony. — Mas tanto você quanto eles estão laborando em engano. Minhas instruções são para entregar o manuscrito, não à sua amável sociedade, mas a uma determinada firma de editores.

— Ah, ah! — riu o outro. — Você pensa que lhe vão permitir chegar vivo à editora? Chega de conversa tola. Entregue-me os papéis, ou atiro.

Tirou do bolso um revólver e brandiu-o no ar.

Mas foi aí que ele julgou mal Anthony Cade. Não estava habituado com homens que pudessem agir tão rapida­mente — ou mais rapidamente — do que pensavam. Antho­ny não ficou na mira do revólver. Tão logo o outro o tirou do bolso, arremessou-se para a frente e, com um tranco, fez o revólver saltar-lhe da mão. Com a violência do golpe, o homem girou de tal forma que ficou de costas para seu agressor.

A oportunidade era demasiado boa para ser perdida. Com um soco vigoroso e direto, Anthony fez o homem voar para o corredor, onde desmoronou como um saco vazio.

Anthony saiu atrás dele; o valente camarada da mão vermelha, entretanto, já agüentara o suficiente. Levantou-se rapidamente e fugiu pelo corredor afora. Anthony não o perseguiu. Voltou para o quarto.

— Tanto melhor para os Camaradas da Mão Vermelha — observou. — Aparência pitoresca, mas facilmente guiados por ação direta. Diabo! Como é que este sujeito foi entrar aqui? Em todo o caso, uma coisa está bem clara: não vai ser um emprego assim tão suave quanto eu pensava. Já fui atacado pelo Partido Legalista e pelo Revolucionário. Su­ponho que, dentro em breve, os nacionalistas e os liberais independentes enviem uma delegação. Está decidido: hoje à noite começarei a ler o manuscrito.

Olhando o relógio, Anthony verificou serem quase nove horas, e resolveu jantar onde se achava. Não esperava mais visitas de surpresa, mas sentia que precisava estar de so­breaviso. Não tinha a intenção de permitir que sua maleta fosse saqueada, enquanto estivesse embaixo, no grill-room. Tocou a campainha e pediu o cardápio, escolheu alguns pratos e mandou vir uma garrafa de Chambertin. O garçom anotou o pedido e retirou-se.

Enquanto esperava que a refeição chegasse, pegou o manuscrito e colocou-o sobre a mesa, juntamente com as cartas.

Bateram à porta, e o garçom entrou com uma pequena mesa e os acessórios para servir a refeição. Anthony tinha-se dirigido para perto da lareira. De pé, costas voltadas para o quarto, postava-se diretamente em frente do espelho, e, olhando de maneira negligente, notou uma coisa curiosa.

Os olhos do garçom estavam colados no pacote que continha o manuscrito. Lançando olhares de soslaio para as costas imóveis de Anthony, movia-se suavemente ao redor da mesa. Suas mãos tremiam, e ele passava a língua sobre os lábios secos. Anthony observou-o com mais cuidado. Tratava-se de um homem alto, com o rosto bem barbeado, obse­quioso como todos os garçons. Italiano, pensou Anthony, e não francês.

No instante crítico, Anthony voltou-se abruptamente. O garçom estremeceu levemente, mas fingiu estar ocupado com o saleiro.

— Qual é o seu nome? — perguntou Anthony de modo brusco.

— Giuseppe, monsieur.

— Italiano, não?

Anthony falou com ele nessa língua, e o homem res­pondeu-lhe com suficiente fluência. Despediu-o, por fim, com um movimento de cabeça, e, enquanto comia a excelente refeição que Giuseppe lhe servira, Anthony pensava rapida­mente.

Estaria enganado? Seria o interesse de Giuseppe pelo embrulho apenas curiosidade comum? Lembrando-se, porém, da febril excitação do homem, decidiu-se contra aquela hi­pótese. De qualquer forma, estava intrigado.

— Com a breca! — exclamou Anthony consigo pró­prio. — Nem todo mundo pode estar atrás deste maldito manuscrito. Talvez eu esteja imaginando coisas.

Terminado o jantar e tirada a mesa, dedicou-se à leitura atenta das memórias. Em virtude da ilegibilidade da caligra­fia do falecido conde, era trabalho bastante lento. Os boce­jos de Anthony sucediam-se, um após outro, com rapidez suspeita. No fim do quarto capítulo, ele desistiu.

Até onde leu, achou as memórias insuportavelmente monótonas, sem nenhuma insinuação de escândalo de espé­cie alguma.

Juntou as cartas e o invólucro do manuscrito, que jaziam num monte sobre a mesa, e trancou-os em sua maleta. Trancou então a porta, e, como precaução adicional, nela encostou uma cadeira. Sobre a cadeira colocou uma garrafa de água, que estava no banheiro.

Observando todos esses preparativos com certo orgulho, despiu-se e meteu-se na cama. Deu mais uma espiada nas memórias do conde, mas, sentindo as pálpebras pesadas, enfiou o manuscrito sob o travesseiro, apagou a luz, e dor­miu quase imediatamente.

Cerca de quatro horas depois, acordou sobressaltado.

O que o fez acordar não saberia dizer — talvez algum som, ou apenas a consciência do perigo, que é extremamente desenvolvida em homens que levaram uma vida de aventuras.

Durante um momento permaneceu absolutamente imó­vel, tentando focalizar suas impressões. Ouviu, então, um ruído furtivo, e percebeu, no chão junto à maleta, uma sombra escura, situada entre ele próprio e a janela.

Com um súbito impulso, Anthony pulou da cama, e acendeu a luz. Uma figura, ajoelhada junto à maleta, saltou de onde se achava.

Era o garçom, Giuseppe. Em sua mão direita brilhava uma faca longa e fina. Lançou-se diretamente sobre Anthony, o qual, a essa altura, tinha plena consciência do perigo que corria. Estava desarmado, e Giuseppe, evidentemente, sabia fazer bom uso de sua própria arma.

Anthony saltou para o lado, e Giuseppe errou o golpe com a faca. No momento seguinte, os dois homens rolavam no chão fortemente abraçados. O pensamento de Anthony concentrava-se todo em prender com a máxima força a mão direita de Giuseppe, de forma a que ele não pudesse se utilizar da faca. Curvava lentamente a mão para trás. Ao mesmo tempo, sentia a outra mão do italiano apertando-lhe a garganta, sufocando-o, estrangulando-o. E, contudo, de maneira desesperada, conseguiu abaixar completamente a mão direita do homem.

Ouviu-se um áspero tinido quando a faca caiu no chão. No mesmo instante, o italiano desvencilhou-se de Anthony com súbito movimento. Anthony ergueu-se também rapida­mente, mas cometeu o erro de correr para a porta, a fim de cortar a retirada do outro. Viu, demasiado tarde, que a ca­deira e a garrafa de água achavam-se exatamente como ele as tinha arrumado.

Giuseppe entrara pela janela, e pela janela saía agora. No breve instante de pausa que Anthony lhe proporcionara ao se dirigir para a porta, o homem saltou sobre o balcão, pulou para o balcão contíguo, e desapareceu através da janela vizinha.

Anthony sabia muito bem a inutilidade de persegui-lo. Sem dúvida, a sua retirada estava perfeitamente assegurada. Só serviria para ele, Anthony, meter-se em dificuldades.

Encaminhou-se para a cama, e enfiou a mão sob o travesseiro, de onde retirou as memórias. Sorte que estivessem ali, e não dentro da maleta. Apanhou a maleta e olhou para dentro dela, pretendendo tirar as cartas.

Praguejou, então, entre dentes.

As cartas haviam desaparecido.

 

A nobre arte da chantagem

Faltavam exatamente cinco minutos para as quatro quando Virginia Revel, pontual em virtude de sã curiosidade, regressou à sua casa na Pont Street. Abriu a porta com a chave, entrou no hall, onde se confrontou imediatamente com o impassível Chilvers.

— Perdão, senhora, mas... há uma pessoa... uma pessoa que deseja ver a senhora.

No momento, Virginia não prestou atenção à fraseolo­gia sutil com que Chilvers encobriu o que pretendia dizer.

— Mr. Lomax? Onde está ele? Na sala de visitas?

—- Oh, não, senhora; não é Mr. Lomax. — O tom de Chilvers era de leve censura. — Uma pessoa... relutei em deixá-lo entrar, mas ele disse que se tratava de um negócio muito importante, relacionado com o falecido capitão. Foi o que ouvi. Julgando, portanto, que a senhora talvez desejasse vê-lo, fi-lo entrar... no estúdio.

Virginia pensou durante um minuto. Era viúva havia alguns anos, e o fato de se referir raramente ao marido era tomado por alguns como indicação de que sob sua conduta negligente ainda ardia uma ferida. Para outros significava exatamente o oposto: que Virginia realmente nunca se im­portara com Tim Revel, e que considerava insincero demons­trar um pesar que não sentia.

— Devia ter-lhe dito, senhora, que o homem tem certa aparência de estrangeiro.

O interesse de Virginia aumentou um pouco. Seu ma­rido pertencera ao serviço diplomático, e ambos haviam estado juntos na Herzoslováquia, precisamente antes do sen­sacional assassinato do rei e da rainha. Esse homem talvez fosse um herzoslovaco, algum antigo empregado passando privações.

— Fez muito bem, Chilvers — disse ela, com um rá­pido e aprovativo movimento de cabeça. — Onde mesmo você disse que ele está? No estúdio?

Cruzou o hall em seu passo leve e alegre, e abriu a porta da saleta que dava para a sala de jantar.

O visitante estava sentado em uma cadeira junto à lareira. Ergueu-se à sua entrada, e permaneceu olhando para ela. Virginia possuía excelente memória para fisionomias, e certificou-se imediatamente de que jamais vira aquele ho­mem. Era alto e moreno, submisso na aparência, e estran­geiro sem dúvida; não o julgou, porém, de origem eslava. Achou que deveria ser italiano, ou possivelmente espanhol.

— Desejava ver-me? — perguntou. — Sou Mrs. Revel. O homem não respondeu, durante um ou dois minutos.

Examinou-a vagarosamente, como se a estivesse avaliando com cuidado. Em seus modos havia uma insolência velada, que ela logo percebeu.

— O motivo de sua visita, por favor? — disse ela, com um toque de impaciência.

— É Mrs. Revel? Mrs. Timothy Revel?

— Sim. Acabei de lhe dizer isso agora mesmo.

— Muito bem. Foi bom que a senhora tivesse consen­tido em ver-me, Mrs. Revel. Caso contrário, conforme disse a seu mordomo, teria sido obrigado a tratar de negócios com seu marido.

Virginia olhou para ele espantada, mas, movida por um impulso, dominou a réplica que lhe subiu aos lábios. Con­tentou-se em observar secamente:

— O senhor teria encontrado alguma dificuldade para fazer isso.

— Creio que não. Sou muito persistente. Mas vamos ao que interessa. Talvez a senhora reconheça isto...

Brandiu algo em sua mão. Virginia olhou sem muito interesse.

— Pode dizer-me de que se trata, madame?

— Parece ser uma carta — replicou Virginia, que, a essa altura, achava-se convencida de estar lidando com um homem mentalmente desequilibrado.

— E talvez a senhora tenha observado a quem é endereçada — falou o homem de maneira significativa, mostran­do-lhe a carta.

— Sei ler — informou Virginia alegremente. — É en­dereçada ao Capitão 0'Neill, à Rue de Quenelles, número 15, Paris.

Pareceu-lhe que o homem, zangadamente, procurou em sua face algo que não conseguiu encontrar.

— Quer ter a bondade de ler?

Virginia apanhou o envelope, tirou o papel nele contido e deu uma espiada. Imediatamente tornou-se rígida, e de­volveu ao homem.

— É uma carta particular; não é destinada a meus olhos, certamente.

O homem riu sardonicamente.

— Felicito-a, Mrs. Revel, por sua admirável represen­tação. A senhora desempenha a sua parte com verdadeira perfeição. Entretanto, creio que a assinatura a senhora não poderá negar!

— A assinatura?

Virginia virou a carta, e ficou muda de espanto. A assinatura, escrita em caligrafia inclinada e delicada, era a de Virginia Revel. Dominando a exclamação de espanto que lhe subiu aos lábios, ela voltou ao começo da carta e deliberada-mente a leu toda. Permaneceu, então, durante um minuto perdida em pensamentos. A natureza da carta tornava evi­dente o que havia em perspectiva.

— Bem, madame? — falou o homem. — É o seu nome, não?

— Oh, sim — disse Virginia. — É o meu nome. "Mas não a minha letra", poderia ter acrescentado.

Em vez disso volveu ao visitante um sorriso encantador.

— Que tal se nos sentássemos para discutir o assunto? — disse de modo suave.

O homem ficou intrigado. Não esperava que ela se com­portasse de tal maneira. Seu instinto dizia-lhe que ela não estava com medo dele.

— Antes de mais nada, gostaria de saber como foi que o senhor me encontrou.

— Isso foi fácil.

Tirou do bolso uma página recortada de um jornal ilustrado, e a entregou a ela. Anthony Cade a teria reco­nhecido.

Ela lhe devolveu a página, com um leve franzir de cenho.

— Estou vendo — disse. — Foi muito fácil.

— Evidentemente a senhora compreende, Mrs. Revel, que esta não é a única carta. Há outras.

— Puxa! — exclamou Virginia. — Parece que fui terrivelmente indiscreta.

De novo pôde perceber que seu tom despreocupado o intrigava. A essa altura, ela estava se divertindo francamente.

— De qualquer forma — disse, sorrindo para ele com suavidade —, é muita bondade sua procurar-me para me devolver as cartas.

Houve uma pausa enquanto ele limpou a garganta.

— Sou um homem pobre, Mrs. Revel — disse por fim, em tom bastante significativo.

— Assim sendo, sem dúvida o senhor entrará mais fa­cilmente no reino do céu, conforme sempre ouvi dizer.

— Não posso permitir que a senhora fique com as cartas a troco de nada.

— Creio que o senhor está equivocado. Essas cartas pertencem à pessoa que as escreveu.

— Pode ser a lei, madame. Mas neste país há um dita­do: "Pela lei, nove pontos são a favor da propriedade". Em todo caso, a senhora está disposta a invocar o auxílio da lei?

— A lei é severa para os chantagistas — lembrou-lhe Virginia.

— Ora, Mrs. Revel, não sou assim tão tolo. Li essas cartas; cartas de uma mulher para o seu amante, e em todas elas transpira o pavor de que o marido descubra. Quer que eu as entregue a seu marido? •

— O senhor descuidou-se de uma possibilidade. Essas cartas foram escritas há alguns anos. Suponha que depois disso... eu tenha ficado viúva?

Ele abanou a cabeça com segurança.

— Nesse caso, se a senhora não tivesse nada a temer, não estaria aqui sentada, entrando em negociações comigo.

Virginia sorriu.

— Qual é o seu preço? — perguntou de maneira comercial.

— Por mil libras entregarei à senhora todo o pacote. É muito pouco o que peço, mas a senhora compreende, não gosto desta espécie de negócios.

— Nem por sonho lhe pago as mil libras — falou Virginia com decisão.

— Madame, nunca pechincho. Mil libras, e a senhora terá as cartas em suas mãos.

Virginia pensou.

— O senhor precisa me dar um pouco de tempo para refletir sobre isso. Não me será assim tão fácil arranjar tal quantia.

— Algumas libras por conta... digamos cinqüenta, talvez, e eu me comunicarei de novo com a senhora.

Virginia olhou o relógio. Eram quatro horas e cinco minutos, e ela julgou ter ouvido a campainha.

— Está bem — disse apressadamente. — Volte ama­nhã, mas mais tarde. Lá pelas seis horas.

Dirigiu-se à escrivaninha encostada na parede, destran­cou uma gaveta e tirou um maço de notas amarrotadas.

— Tem cerca de quarenta libras. É o suficiente para o senhor.

Ele as agarrou com ansiedade.

— E agora, saia imediatamente — disse Virginia. Ele saiu do aposento, de maneira obediente. Através da porta aberta, Virginia viu de relance George Lomax atravessando o hall, e sendo conduzido por Chilvers para cima. Ouvindo a porta da frente fechar-se, Virginia chamou-o.

— Entre aqui, George. Chilvers, traga-nos o chá aqui, sim?

Escancarou as duas janelas, e George Lomax, ao entrar na sala, encontrou-a de pé, cabelos esvoaçantes e olhos vivos.

— Logo as fecharei, George. Achei que a sala preci­sava ser arejada. Você cruzou com o chantagista no hall?

— O quê?

— O chantagista, George. C-h-a-n-t-a-g-i-s-t-a, chan­tagista. Aquele que faz chantagem.

— Minha cara Virginia, você não pode estar falando sério!

— Mas estou, George.

— Mas com quem ele veio fazer chantagem aqui?

— Comigo, George.

— Minha cara Virginia, que é que você andou fazendo?

— Ora, acontece que dessa vez eu não andei fazendo nada. O bondoso cavalheiro tomou-me por alguma outra pessoa.

— Você avisou a polícia, suponho?

— Não, não avisei. E suponho que você pense que eu o devia ter feito.

— Bem... — George ponderou a questão. — Não, não, talvez não; talvez você tenha agido com prudência. Podia se meter em alguma publicidade desagradável com relação ao caso. Podia ter que testemunhar...

— Bem que gostaria — disse Virginia. — Adoraria ser intimada; teria oportunidade de ver se os juizes real­mente fazem as execráveis pilhérias de que tanto se fala. Seria gozado. Ainda outro dia estive na Vine Street, por causa de um broche de brilhantes que eu tinha perdido, e lá encontrei o inspetor mais adorável... o homem mais agradável que já conheci.

George, segundo seu hábito, deixou passar todos os despropósitos.

— Mas, o que você fez com esse patife?

— Bem, George, receio tê-lo deixado fazer o que pre­tendia.

— Fazer o quê?

— Chantagem comigo.

O horror estampado na fisionomia de George era de tal forma pungente que Virginia teve de morder os lábios.

— Você quer dizer... você quer mesmo dizer que não desfez o equívoco em que ele estava laborando?

Virginia assentiu com a cabeça, lançando um olhar de soslaio.

— Por Deus, Virginia, você deve estar louca!

— Suponho que assim lhe pareça.

— Mas por quê? Em nome de Deus, por quê?

— Por diversas razões. Para começar, ele estava fa­zendo o negócio tão bem feito... isto é, quero dizer, fazen­do a chantagem comigo. E eu detesto interromper um artista quando está trabalhando realmente bem. E depois, você compreende, eu nunca havia sido vítima de chantagem...

— Era o que eu esperava, na verdade.

— E desejava experimentar essa sensação.

— Sinto-me perdido quando tento compreendê-la, Vir­gínia.

— Sabia que você não entenderia.

— Espero que você não tenha dado nenhum dinheiro, não?

— Somente um pouco — disse Virgínia desculpando-se.

— Quanto?

— Quarenta libras.

— Virgínia!

— Meu caro George, é a quantia que pago por um traje de noite. E é tão excitante comprar uma nova expe­riência quanto comprar um vestido novo — de fato, é mais até.

George Lomax apenas abanou a cabeça; e, como nesse momento Chilvers aparecesse com o chá, foi salvo da neces­sidade de expressar seus ultrajados sentimentos. Virgínia tocou novamente no assunto, enquanto seus ágeis dedos ma­nipulavam o pesado bule de prata.

— Tive outro motivo também, George, um motivo melhor e mais inteligente. Nós, mulheres, somos geralmente tidas como falsas, mas, não obstante, esta tarde pratiquei uma boa ação para com outra mulher. Provavelmente esse homem não irá procurar outra Virgínia Revel. Ele pensa ter encontrado a presa certa. Pobre diabinha! Devia estar em pânico quando escreveu aquela carta. Com ela o Sr. Chantagista teria feito o trabalho mais fácil de sua vida. Agora, sem o saber, ele vai enfrentar uma pessoa difícil. Partindo da vantagem de ter levado uma vida irrepreensível, brincarei com ele até destruí-lo. Astúcia, George, muita as­túcia.

George ainda abanou a cabeça.

— Não gosto disso — persistiu. — Não gosto disso.

— Bem, não tem importância, caro George. Você não veio aqui para falar sobre chantagistas. A propósito, por que foi que você veio? Resposta correia: "Para ver você!" Acen­to em "você", e significativo beijo em minha mão, a não ser que você tenha ingerido pãezinhos com excessiva man­teiga, e nesse caso então tudo deve ser feito apenas com os olhos.

— Vim para ver você — replicou George gravemente. — E estou satisfeito por tê-la encontrado sozinha.

— "Oh, George, isto é tão súbito!, diria ela engolindo uma passa."

— Quero pedir-lhe um favor. Sempre a considerei, Virginia, uma mulher de enorme fascínio.

— Oh, George!

— E também uma mulher inteligente!

— Realmente? Como me conhece bem.

— Minha cara Virgínia, amanhã chegará a Londres um jovem que eu gostaria que você conhecesse.

— Está bem, George, mas é você quem faz a festa. Que isso fique bem claro.

— Estou certo de que você poderia, se quisesse, exer­cer o seu imenso fascínio.

Virgínia ergueu a cabeça um pouco de lado.

— Meu caro George, não exerço o meu "fascínio" co­mo profissão, você sabe disso. Frequentemente gosto das pes­soas, e elas... bem, e elas gostam de mim. Mas não acre­dito que pudesse, a sangue-frio, fascinar um incauto estranho. Isso não se faz, George, realmente não se faz. Existem sereias profissionais que trabalhariam muito melhor do que eu.

— Isso está fora de cogitação, Virgínia. A propósito, o jovem é um canadense chamado McGrath...

— "Um canadense de ascendência escocesa", diria eu, concluindo de maneira inteligente.

— Provavelmente não está habituado às altas camadas da sociedade inglesa. Gostaria que ele apreciasse o fascínio e a distinção de uma verdadeira dama inglesa.

— Eu, por exemplo?

— Exatamente.

— Por quê?

— Como?

— Eu perguntei por quê. Você não costuma lançar a verdadeira dama inglesa sobre cada canadense andarilho que aporta em nossas plagas. Que há por trás de tudo isso, George? Como se diz vulgarmente: o que você leva nisso?

— Não percebo em que isso lhe interesse, Virgínia.

— Eu não poderia exercer o meu fascínio, a não ser que conhecesse todos os "porquês" e "para quê".

— Você tem uma forma extraordinária de considerar as coisas. Qualquer um pensaria...

— Não é mesmo? Vamos, George, solte mais alguma informação.

— Minha cara Virgínia, a situação acha-se um tanto tensa em um certo país da Europa central. É importante, por razões secundárias, que esse Mr ... Mr. McGrath seja induzido a considerar a restauração da monarquia da Herzoslováquia como um imperativo imprescindível à paz da Europa.

— Quanto ao que se refere à paz da Europa, é tolice

— disse Virgínia tranquilamente —, mas sou sempre a favor da monarquia, sobretudo quando se trata de um povo pitoresco como o da Herzoslováquia. Então, você está fa­zendo correr um rei nos prados herzoslovacos, não? Quem é ele?

George relutava em responder; não sabia, porém, como livrar-se da pergunta. A entrevista de forma alguma estava decorrendo como ele planejara. Previra uma Virgínia dese­josa de colaborar, dócil instrumento recebendo gratamente as suas sugestões, sem fazer perguntas indiscretas. O que, em absoluto, não acontecia. Ela parecia determinada a saber tudo, e George, sempre pondo em dúvida a discrição femi­nina, estava decidido a evitar isso, a todo custo. Cometera um erro: Virgínia não era a pessoa adequada àquele papel. Na verdade, poderia até causar embaraços. Seu relato sobre a entrevista com o chantagista despertara-lhe grave apreen­são. Criatura extremamente independente, sem a mínima no­ção de como tratar assuntos sérios de maneira séria.

— O Príncipe Miguel Obolovitch — replicou, pois Virgínia obviamente esperava uma resposta à sua pergunta.

— Mas, por favor, que isto não saia daqui.

— Não seja absurdo, George. Os jornais fazem toda a espécie de alusões, e trazem artigos exaltando a dinastia Obolovitch, e referem-se ao assassinado Nicolau IV como se ele fosse um misto de santo e herói, em vez de um estúpido homenzinho embevecido por uma atriz de terceira classe.

George estremeceu. Achava-se, mais do que nunca, con­vencido de que cometera um erro ao procurar o auxílio de Virgínia. Precisava afastá-la imediatamente.

- Você tem razão, minha cara Virgínia — disse apressadamente, erguendo-se para despedir-se dela. — Eu não lhe deveria ter sugerido isso. Mas estamos ansiosos para que os Domínios encarem da mesma forma que nós esta crise na Herzoslováquia, e creio que McGrath tem influência nos meios jornalísticos. Como monarquista ardente, e com o conhecimento que você tem do país, pensei que seria um bom plano promover seu encontro com ele.

— Então, é essa a explicação?

— Sim, mas creio que você não se interessaria por ele. Virgínia fitou-o durante um segundo, e depois riu.

— George — falou —, você é um mau mentiroso.

— Virgínia!

— Péssimo! Se eu tivesse o seu treino, teria arranjado uma explicação melhor, pelo menos uma em que se pudesse acreditar. Mas descobrirei tudo, meu pobre George. Fique certo disso. O mistério de Mr. McGrath! Não me admiraria nada se conseguisse descobrir alguma coisa no próximo fim de semana em Chimneys.

— Em Chimneys? Você vai a Chimneys?

George não pôde esconder sua perturbação. Esperava alcançar Lorde Caterham a tempo para que o convite não fosse feito.

— Bundle telefonou hoje de manhã para me convidar. George fez um último esforço.

— Uma reunião bastante monótona, acredite — disse ele. — Não tem interesse para você, Virgínia.

— Meu pobre George, por que não me conta a verda­de, e confia em mim? Ainda é tempo.

George pegou a mão de Virgínia, mas logo a soltou.

— Contei-lhe a verdade — disse friamente, sem corar.

— Assim está melhor — disse Virgínia, aprovando. — Mas ainda não está suficientemente bom. Alegre-se, George, estarei, sim, em Chimneys exercendo o meu imenso fascínio, como diz você. A vida tornou-se subitamente tão divertida. Primeiro um chantagista, e depois George em dificuldades diplomáticas. Dirá ele algo à bela mulher que pede a sua confiança de forma tão patética? Não, ele nada revelará até o último capítulo. Até logo, George. Faça um olhar alegre antes de partir. Não? Oh, meu caro George, não fique em­burrado por causa disso!

Virgínia correu ao telefone tão logo George saiu pela porta da frente num passo grave.

Obteve o número desejado, e pediu para falar com Lady Eileen Brent.

— É você, Bundle? Sim, vou para Chimneys amanha.

Quê? Aborrecer-me? De maneira alguma. Por nada deste mundo eu deixaria de ir, Bundle. Até por lá.

 

Mr. McGrath recusa um convite

As cartas haviam desaparecido!

Tendo plena consciência desse fato, nada havia a fazer senão aceitá-lo. Anthony sabia perfeitamente que não podia perseguir Giuseppe através dos corredores do Blitz Hotel. Fazê-lo seria simplesmente despertar publicidade indesejada, e provavelmente não atingir o objetivo..

Chegou à conclusão de que Giuseppe enganara-se quan­to ao pacote das cartas, embrulhadas como se achavam no outro invólucro, o das memórias. Era possível, portanto, que, ao descobrir o engano, fizesse nova tentativa para apo­derar-se das memórias. E Anthony pretendia estar bem pre­parado para isso.

O plano que lhe ocorreu foi pôr um anúncio discreto, pedindo a devolução do maço de cartas. Supondo-se fosse Giuseppe um emissário dos Camaradas da Mão Vermelha, ou — e isso parecia mais provável a Anthony — um em­pregado do Partido Legalista, as cartas possivelmente não teriam interesse para nenhum desses patrões, e era provável que Giuseppe não quisesse perder a oportunidade de obter pequena quantia em dinheiro, se as devolvesse.

Tendo-se decidido quanto a isso, Anthony voltou para a cama e dormiu tranquilamente até a manhã. Julgou que Giuseppe não estaria ansioso por um segundo encontro du­rante aquela noite.

Anthony levantou-se com seu plano de batalha bem me­ditado. Tomou um farto café da manhã, deu uma espiada nos jornais, cheios de notícias a respeito de novas descober­tas de petróleo na Herzoslováquia, e solicitou então uma entrevista com o gerente. Sendo Anthony. Cade um indivíduo que conseguia o que queria por meio de tranqüila determi­nação, obteve aquilo que desejava.

O gerente, um francês de maneiras requintadamente suaves, recebeu-o em seu escritório particular.

— O senhor desejava ver-me, Mr... Mr. McGrath?

— Sim. Cheguei ao hotel ontem à tarde, e serviu-me o jantar em meu quarto um garçom cujo nome era Giuseppe.

Fez uma pausa.

— Creio que temos um garçom com esse nome — assentiu o gerente com indiferença.

— Chamou-me a atenção alguma coisa estranha nas maneiras do homem, mas naquele momento não lhe dei mui­ta importância. Mais tarde, durante a noite, fui despertado pelo ruído de alguém movendo-se sorrateiramente pelo quar­to. Acendi a luz, e encontrei esse mesmo Giuseppe roubando minha maleta de couro.

A essa altura, a indiferença do gerente desapareceu por completo.

— Mas não ouvi nada a respeito disso — exclamou. — Por que não fui informado antes?

— O homem e eu nos engalfinhamos numa rápida luta; ele estava armado de faca. Afinal, conseguiu fugir pela janela.

— Que fez então o senhor, Mr. McGrath?

— Examinei o conteúdo da minha maleta.

— Faltava alguma coisa?

— Nada... nada de importância — disse Anthony lentamente.

O gerente recostou-se para trás, dando um suspiro.

— Fico satisfeito — observou. — Mas permita-me dizer-lhe, Mr. McGrath, que não compreendo muito bem a sua atitude no caso. O senhor não fez nenhuma tentativa para chamar alguém do hotel? Não perseguiu o ladrão?

Anthony sacudiu os ombros.

— Nada de valor fora tirado, como lhe disse. Estou certo de que, estritamente falando, trata-se de um caso de polícia...

Fez uma pausa, e o gerente murmurou sem nenhum entusiasmo:

— De polícia... é claro...

— De qualquer forma, eu estava seguro de que o homem tinha a fuga garantida, e, desde que nada fora rouba­do, por que incomodar a polícia? O gerente sorriu um pouco.

— Vejo que o senhor compreende, Mr. McGrath, que não faço nenhum empenho em chamar a polícia. Na minha opinião é sempre desastroso. Se os jornais se apoderam de uma notícia dessas, com respeito a um hotel elegante como este, fazem logo um estardalhaço, não importa a insignifi­cância do assunto.

— Perfeitamente — concordou Anthony. — Disse-lhe que nada de valor fora tirado, o que é verdade em certo sentido. Nada de valor para o ladrão, mas ele se apoderou de algo que considero do máximo valor para mim.

— Não diga!

— Cartas, o senhor compreende.

Uma discrição extrema, como somente um francês con­seguiria expressar, estampou-se na face do gerente.

— Compreendo perfeitamente — murmurou. — Mas, naturalmente, não é um caso para a polícia.

— Estamos bem de acordo quanto a isso. Porém, o senhor há de compreender que faço absoluta questão de recuperar essas cartas. No lugar de onde venho, as pessoas estão habituadas a fazer as coisas por si próprias. O que lhe peço, portanto, são as informações mais detalhadas que o senhor me possa dar sobre esse garçom, Giuseppe.

— Não vejo objeção alguma a esse respeito — disse o gerente após breve pausa. — É claro que não lhe posso dar as informações agora, mas, se o senhor quiser voltar dentro de meia hora, terei tudo pronto.

— Muito obrigado. Isso me convém perfeitamente. Meia hora mais tarde, Anthony voltou ao escritório e verificou que o gerente havia cumprido a palavra. Anota­dos em um pedaço de papel estavam todos os fatos impor­tantes referentes a Giuseppe Manelli.

— Ele se empregou conosco há três meses. Um garçom habilidoso e experiente. Satisfez todas as exigências. Está na Inglaterra há cinco anos.

Ambos os homens verificaram juntos uma lista de ho­téis e restaurantes onde o italiano tinha trabalhado. A aten­ção de Anthony foi despertada para um fato que possivel­mente significaria alguma coisa. Em dois dos hotéis em questão houvera sérios roubos durante o tempo em que Giuseppe neles trabalhara, embora nenhuma suspeita tivesse recaído sobre ele em nenhum dos casos. Contudo, o fato era significativo.

Seria Giuseppe apenas um inteligente ladrão de hotel? A busca que dera na maleta de Anthony faria somente parte de sua tática profissional? Talvez estivesse com o maço de cartas na mão no momento em que Anthony acendera a luz, e o tivesse enfiado automaticamente no bolso, a fim de manter as mãos livres. Nesse caso, tratava-se apenas de um furto simples e comum.

Por outro lado, era preciso levar em conta a excitação do homem na noite anterior, quando vira os papéis sobre a mesa. Não havia ali dinheiro ou objeto de valor, o que teria excitado a cupidez de um ladrão vulgar.

Não, Anthony estava convencido de que Giuseppe agira como instrumento de outrem. Com as informações forneci­das pelo gerente, talvez fosse possível saber algo a respeito da vida privada de Giuseppe, e finalmente encontrá-lo. An­thony apanhou a folha de papel e ergueu-se.

— Fico-lhe muito agradecido, realmente. Suponho não ser necessário perguntar-lhe se Giuseppe ainda se encontra no hotel, não?

O gerente sorriu.

— Sua cama não foi desfeita, e ele deixou todas as suas coisas. Deve ter fugido precipitadamente, logo depois de ter assaltado o senhor. Penso que não teremos a oportu­nidade de vê-lo novamente.

— Julgo que não. Bem; muito obrigado. Vou perma­necer aqui.

— Espero que seja bem sucedido quanto ao que pre­tende, mas confesso que tenho minhas dúvidas.

— Sempre espero pelo melhor.

Um dos primeiros passos de Anthony foi interrogar alguns dos garçons mais amigos de Giuseppe; pouco obteve, porém, que o ajudasse a prosseguir. Redigiu um anúncio, conforme havia planejado, e enviou-o a cinco dos jornais mais lidos. Estava pronto para ir ao restaurante onde Giu­seppe trabalhara anteriormente, quando o telefone tocou. Anthony atendeu.

— Alô, quem é?

Uma voz incaracterística replicou:

— Estou falando com Mr. McGrath?

— Sim. Quem é o senhor?

— Aqui é de Messrs. Balderson and Hodgkins. Um instante, por favor. Mr. Balderson vai falar.

"Nossos valiosos editores", pensou Anthony. "Então, eles também estão preocupados, não? Não era preciso. Ainda falta uma semana."

Uma voz enérgica soou em seu ouvido.

— Alô! Mr. McGrath?

— Sim, sou eu mesmo.

— Sou Mr. Balderson, da Balderson and Hodgkins. E aquele manuscrito, Mr. McGrath?

— Bem — disse Anthony —, que é que há com ele?

— Muita coisa. Pelo que sei, Mr. McGrath, o senhor acaba de chegar da África. Assim sendo, provavelmente não pode entender a situação. Vai haver encrenca por causa des­se manuscrito, Mr. McGrath, muita encrenca. Às vezes de­sejaria que não nos tivéssemos comprometido a editá-lo.

— Realmente?

— Asseguro-lhe que sim. No momento, estou ansioso para tê-lo comigo o mais rápido possível, para que possa fazer algumas cópias. Assim, se o original for destruído, nada de mal acontecerá.

— Puxa! — exclamou Anthony.

— Sim, esperava que isso lhe parecesse absurdo, Mr. McGrath. Mas estou certo de que o senhor não avalia bem a situação. Estão sendo feitos esforços decisivos para impe­dir que esse manuscrito chegue até nossa editora. Digo-lhe francamente, sem rodeios, que, se o senhor mesmo tentar trazê-lo, existem dez probabilidades contra uma de que ja­mais consiga chegar até aqui.

— Duvido — disse Anthony. — Quando quero chegar em algum lugar, geralmente chego.

— Existe uma gente muito perigosa tramando contra o senhor. Um mês atrás, eu próprio não teria acreditado. Digo-lhe, Mr. McGrath, que já nos têm tentado subornar com falsas promessas e ameaçado de tal forma que nem sabemos mais como agir. Sugiro-lhe que não tente trazer o manuscrito até aqui. Um dos nossos homens irá procurar o senhor aí no hotel, e se encarregará de trazê-lo.

— E supondo-se que a gangue o apanhe? — perguntou Anthony.

— A responsabilidade então será nossa, não sua. O senhor teria entregado o manuscrito a um nosso representan­te e teria um recibo. O cheque das mil libras, que temos ins­truções para lhe entregar, só será válido na próxima quarta-feira, conforme os termos de nosso acordo com o falecido autor... o senhor sabe a quem me refiro. Mas, se acaso o senhor preferir, mandarei pelo mensageiro um cheque meu.

Anthony refletiu um pouco. Pretendia guardar consigo as memórias até o último dia, porque estava ansioso para conhecer a causa de toda aquela complicação. Admitia, entre­tanto, a força dos argumentos do editor.

— Está bem — disse, dando um leve suspiro. — Faça como quiser. Mande o homem, e, se não for incômodo, man­de também o seu cheque. Prefiro assim, porque talvez viaje para fora da Inglaterra antes da próxima quarta-feira.

— Certamente, Mr. McGrath. Nosso representante irá procurá-lo amanhã bem cedo. Será prudente não mandar alguém diretamente aqui do escritório. Mr. Holmes mora no sul de Londres; a caminho para o escritório, ele passará por aí, e lhe entregará um recibo pelo pacote. Sugiro-lhe que esta noite guarde um embrulho falso no cofre da gerência. Seus inimigos ficarão sabendo, e isso evitará qualquer as­salto a seu apartamento durante a noite.

— Muito bem, farei como o senhor sugere. Anthony desligou o aparelho com uma expressão pen­sativa.

Prosseguiu, então, em seu plano interrompido de pro­curar notícias do fugidio Giuseppe. Nada conseguiu, entre­tanto. Giuseppe trabalhara no restaurante em questão, mas ninguém parecia saber nada a respeito de sua vida privada ou de suas relações.

— Mas eu o apanho, meu rapaz — murmurou Antho­ny entre dentes. — Eu o apanho. É apenas questão de tempo.

Sua segunda noite em Londres foi inteiramente calma.

Às nove horas da manhã seguinte, trouxeram o cartão de Mr. Holmes, de Messrs. Balderson and Hodgkins, e Mr. Holmes foi introduzido no quarto. Um homem baixo, alou­rado, e de maneiras tranqüilas. Anthony entregou-lhe o manuscrito, e recebeu em troca um cheque de mil libras. Mr. Holmes guardou-o em uma pequena sacola marrom que trazia consigo, desejou bom-dia a Anthony e partiu. A coisa toda pareceu muito insípida.

— Mas talvez ele seja assassinado no caminho — murmurou Anthony em voz alta, enquanto olhava pregui­çosamente pela janela. — Gostaria de saber... gostaria mui­to de saber.

Pôs o cheque num envelope, juntou um papel onde escrevera umas poucas linhas, e fechou-o cuidadosamente. Jimmy, que possuía alguma reserva financeira quando de seu encontro com Anthony em Bulawayo, adiantara-lhe substan­cial quantia em dinheiro, que até então se achava pratica­mente intacta.

— Um trabalho está feito, mas o outro ainda não — disse Anthony consigo mesmo. — Até agora, tenho me des­cuidado dele. Creio que irei, convenientemente disfarçado, dar uma espiada no número 487 da Pont Street.

Guardou seus pertences, desceu, pagou a conta, e orde­nou que a bagagem fosse posta em um táxi. Recompensando adequadamente aqueles que se postavam em seu caminho, muitos dos quais nada haviam feito para acrescentar algo material a seu conforto, estava a ponto de sair quando um empregadinho correu atrás dele com uma carta.

— Chegou para o senhor, neste instante. Suspirando, Anthony tirou do bolso mais um xelim. O táxi gemeu pesadamente e saltou para a frente com um horrível ruído de engrenagem; e Anthony abriu a carta.

Tratava-se de um documento um tanto curioso. Pre­cisou lê-lo quatro vezes para certificar-se de seu conteúdo. Posto em bom e claro inglês (a carta não era em inglês claro, mas em estilo emaranhado, peculiar às missivas redigidas por funcionários do governo), o documento presumia que Mr. McGrath, viajando da África, tivesse chegado à Ingla­terra naquele dia, quinta-feira. Referia-se indiretamente às memórias do Conde Stylptitch e pedia a Mr. McGrath para não tomar nenhuma providência quanto a isso até que tives­se uma conversa confidencial com Mr. George Lomax, e ou­tras pessoas cuja importância era vagamente sugerida. Con­tinha também um convite preciso para. que ele fosse a Chimneys, como hóspede de Lorde Caterham, no dia se­guinte, sexta-feira.

Uma comunicação misteriosa e completamente obscura. Anthony apreciou-a muito.

— Velha e querida Inglaterra! — murmurou afetuosa-mente. — Com dois dias de atraso, como de costume. É uma pena. Não posso ir a Chimneys sob falsa identidade. Mas deve haver alguma estalagem por perto. Mr. Anthony Cade lá poderia ficar, sem que ninguém soubesse.

Curvou-se, e indicou nova direção ao chofer do táxi, que a recebeu com um bufo de desdém.

O táxi parou em frente de uma das mais obscuras hos­pedarias de Londres. O preço da corrida, entretanto, foi pa­go de acordo com o lugar de onde o táxi partira.

Tendo tomado um quarto em nome de Anthony Cade, Anthony encaminhou-se para uma sombria sala de escrever, tirou do bolso uma folha de papel timbrado do Blitz Hotel e escreveu rapidamente.

Explicou que tinha chegado na terça-feira precedente, e que entregara o manuscrito em questão a Messrs. Balderson and Hodgkins, e que lamentava recusar o amável con­vite de Lorde Caterham, em virtude de sua imediata parti­da da Inglaterra. Assinou a carta: "Sinceramente, James McGrath".

— E agora — disse Anthony, enquanto colava o selo no envelope —, vamos aos negócios. Sai James McGrath e entra Anthony Cade.

 

Um homem morto

Nessa mesma tarde de quinta-feira, Virgínia Revel foi jogar tênis em Ranelagh. Durante todo o percurso de re­gresso à Pont Street, recostada em sua longa e luxuosa limusine, um pequeno sorriso brincava-lhe nos lábios enquanto ensaiava seu desempenho para a próxima entrevista. Claro que havia a possibilidade de o chantagista não aparecer, mas ela estava certa de que isso não aconteceria. Mostrara-se presa fácil. Bem, talvez dessa vez houvesse uma pequena surpresa para ele!

Quando o carro parou em frente à casa, voltou-se para falar com o chofer antes de subir a escada.

— Como vai sua mulher, Walton? Tinha-me esque­cido de perguntar.

— Creio que está melhor, senhora. O médico disse que iria vê-la mais ou menos às seis e meia. A senhora vai precisar do carro de novo?

Virgínia pensou um pouco.

— Vou passar o fim de semana fora. Sairei de Paddington às seis e quarenta, mas não preciso mais de você; toma­rei um táxi. É melhor que você fale com o médico. Se ele achar que fará bem à sua esposa sair neste fim de semana, leve-a para algum lugar, Walton. As despesas serão por mi­nha conta.

Abreviando os agradecimentos do homem com um im­paciente movimento de cabeça, Virgínia subiu a escada cor­rendo, mergulhou a mão na bolsa à procura da chave, lem­brou-se de que não a trouxera, e tocou apressadamente a campainha.

Não foi logo atendida, e enquanto ali esperava um homem jovem subiu os degraus da escada. Achava-se miseravelmente vestido, e trazia na mão um maço de folhetos. Exibiu um deles a Virginia com uma inscrição claramente visível: "Por que servi minha pátria?" Na mão esquerda segurava uma caixa de esmolas.

— Não posso comprar dois desses poemas horrorosos no mesmo dia — disse Virginia de maneira defensiva. — Já comprei um esta manhã. Comprei mesmo, palavra de honra.

O jovem lançou a cabeça para trás e riu. Virginia tam­bém riu. Deslizando os olhos negligentemente sobre o ho­mem, achou-o um espécime bem mais agradável do que a maioria dos desempregados de Londres. Gostou de seu rosto bronzeado e de sua magreza firme. Chegou ao ponto de de­sejar poder arranjar-lhe um emprego.

Nesse momento, porém, a porta foi aberta, e Virginia imediatamente esqueceu o problema do desempregado, pois, para grande espanto seu, quem a abriu foi Elise, sua criada particular.

— Onde está Chilvers? — perguntou rispidamente enquanto entrava no hall.

— Mas ele partiu, madame, com os outros.

— Que outros? Partiu para onde?

— Para Datchet, madame, para o chalé, conforme dizia o seu telegrama.

— Meu telegrama? — disse Virginia, completamente perdida.

— Então madame não mandou um telegrama? Não pode haver engano. Chegou faz uma hora.

— Não mandei telegrama nenhum. Que dizia ele?

— Creio que ainda está sobre a mesa lá embaixo. Elise retirou-se, pegou o telegrama, e trouxe-o triunfalmente para a patroa.

— Voilà, madame!

O telegrama era endereçado a Chilvers e dizia o se­guinte:

"Favor leve empregados imediatamente chalé. Prepare tudo reunião fim de semana. Pegue trem 5:49".

Não havia nada de extraordinário; era a espécie de mensagem que ela mesma frequentemente tinha enviado, quando, num impulso de momento, resolvia reunir amigos em seu bangalô à margem do rio. Levava sempre todos os empregados, deixando somente uma mulher idosa como vi­gia. Chilvers não teria visto nada de errado no telegrama, e, como bom criado, obedecera fielmente às suas ordens.

— Eu fiquei — explicou Elise —, sabendo que mada­me precisaria de mim para arrumar as malas.

— É um embuste tolo! — exclamou Virginia zangada, jogando o telegrama no chão. — Você sabe muito bem, Eli­se, que eu vou para Chimneys. Disse-lhe isso esta manhã.

— Pensei que madame tivesse mudado de idéia. Às vezes isso acontece, não é mesmo, madame?

Virginia admitiu a verdade da acusação com um ligeiro sorriso. Procurava uma razão para a brincadeira. Elise apre­sentou uma sugestão.

— Mon Dieu! — exclamou, apertando as mãos. — E se fossem os malfeitores, os ladrões! Mandam o telegrama falso, tiram os domestiques da casa, e depois vêm roubar.

— Poderia ser isso — disse Virginia em tom de dúvida.

— Sim, sim, madame, sem dúvida é isso mesmo. To­dos os dias os jornais trazem coisas assim. É melhor madame chamar a polícia imediatamente, imediatamente, antes que eles cheguem e cortem nossas gargantas.

— Não fique tão nervosa, Elise. Eles não virão cortar nossas gargantas às seis horas da tarde.

— Madame, eu lhe imploro, deixe-me sair correndo e trazer a polícia agora, neste instante.

— Para quê? Não seja tola, Elise. Suba e arrume minhas coisas para Chimneys, o que você ainda não fez. O novo vestido de noite de Cailleaux, o branco de crepe e... sim, o de veludo preto. Veludo preto é tão político, não é mesmo?

— Madame fica encantadora com o de cetim eau de nil — sugeriu Elise, reassumindo as maneiras profissionais.

— Não, não levarei esse. Apresse-se, Elise, seja boazinha. Temos muito pouco tempo. Mandarei um telegrama para Chilvers, e quando sairmos falarei com o policial que estiver fazendo a ronda. Vou pedir-lhe que fique de olho na casa. Não comece a rolar os olhos de novo, Elise; se você fica tão apavorada antes de acontecer alguma coisa, que faria se um homem saltasse de algum canto escuro com uma faca apontada para você?

Elise deixou escapar um guincho, e subiu a escada de­pressa, lançando olhares nervosos por sobre os ombros.

Virgínia fez uma careta ante tal retirada, e atravessou o bali, encaminhando-se para o pequeno estúdio onde se achava o telefone. Parecia-lhe boa a sugestão de Elise quanto a chamar a polícia, e era o que pretendia fazer sem mais delongas.

Abriu a porta do estúdio e dirigiu-se ao telefone. Então, com a mão no aparelho, ela parou. Um homem estava sen­tado na poltrona grande, em uma posição estranha e desa­jeitada. Em virtude das circunstâncias, esquecera-se por completo do visitante aguardado. Aparentemente ele dormi­ra enquanto a esperava.

Encaminhou-se para a poltrona, um sorriso travesso brincando-lhe nos lábios. E então, subitamente, apagou-se-lhe o sorriso.

O homem não estava dormindo. Estava morto.

Soube-o imediatamente, antes mesmo que seus olhos vissem o revólver pequeno e brilhante que jazia no chão, o minúsculo orifício envolto por uma mancha escura bem no coração do homem, e o horrível queixo caído.

Permaneceu parada, as mãos estendidas ao longo do corpo. No silêncio, ouviu o barulho de Elise descendo apres­sadamente a escada.

— Madame! Madame!

— Que é?

Dirigiu-se rapidamente para a porta. Todo o seu ins­tinto dizia-lhe para esconder de Elise o que acontecera, pelo menos nesse momento. Elise provavelmente teria um ataque histérico, e o de que precisava agora era muita calma e tranqüilidade para resolver as coisas.

— Madame, não seria melhor que eu passasse a cor­rente na porta? Esses malfeitores podem chegar a qualquer minuto.

— Sim, faça o que quiser.

Ouviu o ruído da corrente, e depois Elise subindo nova­mente a escada. Deu um longo suspiro de alívio.

Olhou para o homem na cadeira, e em seguida para o telefone. Era evidente que devia chamar a polícia.

Não o fez, entretanto. Permaneceu quieta, paralisada pelo horror, e um imenso conflito de idéias tumultuava-lhe o cérebro. O falso telegrama! Teria algo a ver com isso? E se Elise não tivesse ficado? Teria entrado com sua própria chave — isto é, presumindo-se que a tivesse, como de cos­tume — e se teria achado dentro da casa completamente a sós com um homem assassinado. Homem que, em ocasião precedente, submetera-a a chantagem. Era claro que tinha uma explicação para isso; pensando, porém, nessa explica­ção ela não se sentia de consciência tranqüila. Lembrava-se de como George a julgara francamente incrível. Pensariam os outros o mesmo? E essas cartas, agora... era lógico que não haviam sido escritas por ela; mas seria assim tão fácil provar que não?

Comprimiu a testa com as mãos.

— Preciso pensar — disse Virgínia. — Preciso pensar.

Quem teria deixado o homem entrar? Elise certamen­te não. Se o tivesse feito, mencionaria o fato imediatamente. Quanto mais refletia, mais misterioso lhe parecia o caso. Só havia uma coisa a fazer: chamar a polícia.

Estendeu a mão para o telefone, e subitamente pensou em George. Um homem comum, equilibrado — era o que ela queria —, um homem não-emotivo, que encarasse as coisas em suas devidas proporções, e lhe indicasse o melhor caminho a seguir.

Mas abanou a cabeça. George não servia. A primeira coisa em que ele pensaria seria em sua própria posição. Detestaria ver-se envolvido em assunto dessa espécie. Geor­ge, absolutamente, não servia.

Seu rosto, então, suavizou-se. Bill, era claro! Sem perda de tempo, telefonou para Bill.

Foi informada de que havia partido para Chimneys fa­zia meia hora.

— Que praga! — exclamou Virgínia, arremessando o aparelho. Era horrível ficar trancada com um morto, e não ter com quem falar.

Nesse momento a campainha da porta tocou.

Virgínia estremeceu. Pouco depois, a campainha tocou de novo. Sabia que Elise achava-se em cima fazendo as ma­las e não escutaria.

Virginia encaminhou-se para o bali, tirou a corrente e destrancou todos os ferrolhos que Elise cuidadosamente fe­chara. Dando profundo suspiro, abriu a porta. Na escada estava o moço desempregado.

Virginia precipitou-se com um alívio proveniente da tensão nervosa.

— Entre — disse ela. — Creio que talvez tenha um trabalho para você.

Conduziu-o à sala de jantar, puxou uma cadeira para ele e sentou-se em frente, encarando-o atentamente.

— Desculpe-me — disse ela —, mas o senhor vem de... isto é...

— De Eton e Oxford — disse o moço. — Era o que a senhora desejava perguntar, não?

— Algo semelhante — admitiu Virginia.

— A decadência é inteiramente devida à minha inca­pacidade de permanecer em um emprego fixo. Espero que não seja um emprego fixo o que a senhora está me ofe­recendo.

Um sorriso aflorou a seus lábios por um momento.

— É bastante irregular.

— Bom — disse o homem em tom satisfeito. Virginia observou com aprovação seu rosto bronzeado e seu corpo longo e esguio.

— O senhor compreende — explicou —, estou numa encrenca, e a maioria dos meus amigos está... bem, em po­sição de relevo. Todos eles têm algo a perder.

— Eu não tenho absolutamente nada a perder. Por­tanto, pode continuar. Qual é a encrenca?

— Há um homem morto na sala ao lado — disse Vir­ginia. — Foi assassinado, e eu não sei o que fazer.

Proferiu essas palavras de maneira tão simples quanto uma criança o teria feito. O moço subiu imensamente em seu conceito pela maneira com que aceitou sua declaração. Era como se ele estivesse habituado a ouvir semelhantes comunicações todos os dias.

— Excelente — disse com certo entusiasmo. — Sem­pre desejei fazer um pequeno trabalho de detetive amador. Vamos verificar o corpo ou a senhora me dará os fatos pri­meiro?

— Creio que será melhor informá-lo quanto aos fatos. — Parou durante um momento, para considerar qual a me­lhor forma de condensar a história, e então começou, falando tranqüila e concisamente: — Este homem veio à minha casa ontem pela primeira vez, e pediu para falar comigo. Possuía algumas cartas... cartas de amor, assinadas com meu nome...

— Mas que não foram escritas pela senhora — inter­rompeu o moço calmamente.

Virginia encarou-o admirada.

— Como é que o senhor sabia?

— Oh, deduzi. Mas prossiga.

— Ele quis fazer chantagem comigo, e eu... bem, não sei se o senhor compreenderá, eu permiti.

Olhou-o de maneira súplice, e ele assentiu com a cabeça, tranqüilizando-a.

— Claro que compreendo. A senhora desejava expe­rimentar essa sensação.

— Como o senhor parece inteligente! Foi exatamente isso.

— Sou inteligente — disse o moço com modéstia. — Mas é preciso levar em conta que muito poucas pessoas entenderão esse ponto de vista. A maior parte das pessoas não tem imaginação.

— Creio que é isso mesmo. Disse a esse homem que voltasse hoje às seis horas. Cheguei de Ranelagh e, em vir­tude de um telegrama falso, não achei em casa nenhum em­pregado, somente minha criada particular. Dirigi-me ao estúdio e lá encontrei o homem baleado.

— Quem o deixou entrar?

— Não sei. Creio que se fosse minha criada ela me teria dito.

— Ela sabe o que aconteceu?

— Não lhe disse nada.

O moço concordou, e ergueu-se.

— E agora, vamos verificar o corpo — disse brusca­mente. — Digo-lhe, entretanto, que quase sempre é melhor falar a verdade. Uma mentira envolve a gente em tantas outras mentiras... e a mentira contínua é tão monótona.

— Então o senhor me aconselha a chamar a polícia?

— Provavelmente. Mas primeiro vamos dar uma olhada no sujeito...

Virginia conduziu-o para fora da sala. Na soleira da porta parou, e voltou-se para ele.

— A propósito — disse —, o senhor ainda não me disse seu nome.

— Meu nome? Meu nome é Anthony Cade.

 

Anthony Cade livra-se de um corpo

Anthony seguiu Virginia para fora da sala, sorrindo interiormente. Os acontecimentos haviam tomado rumo ines­perado. Mas, ao curvar-se sobre a figura que se achava na cadeira, tornou-se novamente sério.

— Ele ainda está quente — disse rispidamente. — Foi morto há menos de meia hora.

— Pouco antes da minha chegada?

— Exatamente.

Manteve-se aprumado, franzindo as sobrancelhas. Fez então uma pergunta à qual Virginia não deu imediato alcance.

— Sua criada não esteve nesta sala?

— Não.

— Ela sabe que a senhora esteve aqui?

— Ora... sim. Vim até a porta para falar com ela.

— Depois de ter encontrado o corpo?

— Sim.

— E a senhora não disse nada?

— Teria sido melhor se eu tivesse dito? Pensei que ela podia ter um ataque histérico — é francesa, sabe, e se descontrola facilmente — e desejei refletir sobre o que de­veria fazer.

Anthony assentiu com a cabeça.

— Pelo que vejo, o senhor acha que foi um erro.

— Bem, foi um tanto infeliz, Mrs. Revel. Se a senhora e a criada tivessem descoberto o corpo juntas, imediatamen­te após seu regresso, isso teria simplificado muito as coisas. O homem teria sido então definitivamente baleado antes de sua volta para casa.

— Enquanto agora poderiam dizer que ele foi baleado depois... entendo...

Observou como ela logo apreendeu a significação do fato, e confirmou-se a primeira impressão que formara a seu respeito, ao se falarem na escada. Além de beleza, pos­suía coragem e cérebro.

Virgínia estava tão absorta no enigma que lhe fora proposto, que nem se admirou quanto ao fato de um estra­nho saber seu nome.

— E como foi que Elise não ouviu o tiro? — mur­murou.

Anthony apontou para a janela aberta, através da qual chegava o ruído do cano de escapamento de um carro que passava no momento.

— Aí é que está. Londres não é precisamente o lugar onde se consiga ouvir um tiro de revólver.

Virginia, com um pequeno estremecimento, voltou-se para o corpo que se achava na poltrona.

— Ele parece italiano — observou com curiosidade.

— Ele é italiano — disse Anthony. — E eu diria que sua profissão regular é a de garçom. Fazia chantagem apenas nas horas vagas. Seu nome possivelmente seria Giuseppe.

— Céus! — exclamou Virginia. — Trata-se de Sherlock Holmes?

— Não — disse Anthony em tom de lamento. — Acre­dito que seja uma simples fraude. Vou lhe contar tudo a respeito. Este homem mostrou-lhe algumas cartas e pediu-lhe dinheiro. A senhora lhe deu algum?

— Sim, dei.

— Quanto?

— Quarenta libras.

— Fez mal — disse Anthony, mas sem manifestar de­masiada surpresa. — Vamos verificar o telegrama.

Virginia apanhou-o de cima da mesa, e o entregou a ele. Notou que seu rosto tornava-se sério à medida que o lia.

— Que é que há?

Mostrou-o, indicando em silêncio o lugar de origem.

— Barnes — disse. — E a senhora esteve em Ranelagh esta tarde. O que a impediria de tê-lo enviado a senhora mesma?

Virginia sentiu-se fascinada pelas palavras dele. Era como se uma rede se fechasse, comprimindo-a cada vez mais. Ele a forçava a ver tudo aquilo que, de forma obscura, ela sentia nas regiões mais profundas de sua mente.

Anthony tirou do bolso o lenço, enrolou-o à volta da mão e então pegou o revólver.

— Nós, criminosos, precisamos ter cuidado — disse, desculpando-se. — Impressões digitais, sabe?

Subitamente ela percebeu que sua expressão tornou-se rígida. A voz, quando ele falou, estava alterada. Era breve e brusca.

— Mrs. Revel — disse ele —, a senhora conhece este revólver?

— Não — respondeu Virginia admirada.

— Está certa disso?

— Certíssima.

— A senhora tem algum revólver?

— Não.

— Alguma vez já teve um?

— Não, nunca.

— Está certa disso?

— Certíssima.

Olhou-a fixamente durante um instante, e Virginia en­carou-o completamente surpreendida por seu tom de voz. Soltando um suspiro, ele distendeu a fisionomia.

— É estranho — falou. — Como explica isto? Exibiu-lhe o revólver. Era um objeto pequeno, delicado

— quase um brinquedo —, entretanto capaz de executar tra­balho mortal. Gravado na arma achava-se o nome "Virginia".

— Oh, não é possível! — exclamou Virginia.

Seu espanto era tão genuíno, que Anthony só pôde acre­ditar nele.

— Sente-se — disse calmamente. — Há algo mais nisso do que parecia à primeira vista. Para começar, quais são as hipóteses? Existem apenas duas possíveis. Existe, é claro, a Virginia das cartas. Ela pode, de qualquer maneira, ter se­guido a pista do homem, ter atirado nele, largado o revólver, roubado as cartas e fugido. É bem possível, não?

— Suponho que sim — disse Virginia com relutância.

— A outra hipótese é muito mais interessante. Quem quer que seja que desejasse matar Giuseppe, desejava tam­bém incriminá-la; na verdade, pode ter sido esse o objetivo principal. Podiam facilmente tê-lo atraído para qualquer lu­gar, mas não pouparam esforços para fazê-lo vir aqui, e quem quer que seja sabia tudo a seu respeito, a respeito de seu bangalô em Datchet, de seus hábitos domésticos, e que a senhora esteve em Ranelagh esta tarde. Parece uma pergunta absurda, mas a senhora tem inimigos, Mrs. Revel?

— Claro que não tenho; não dessa espécie, pelo menos.

— A questão é a seguinte — disse Anthony: — o que faremos agora? Dois caminhos abrem-se à nossa frente. A: telefonar para a polícia, contar toda a história e confiar em sua conduta inatacável e em sua vida, até então irrepreensí­vel. B: uma tentativa de minha parte para conseguir livrar-me do corpo. Naturalmente minhas inclinações secretas fazem-me tender para B. Sempre desejei verificar se, com a necessária astúcia, poderia esconder um crime, mas minha sensibilidade objetava quanto a derramamento de sangue. No conjunto, creio que A é o caminho mais seguro. Nesse caso, porém, temos que fazer um pequeno expurgo. Telefonar para a polí­cia, etc... mas suprimir o revólver e as cartas da chantagem, isto é, se ainda estiverem no corpo.

Anthony revistou rapidamente os bolsos do homem morto.

— Foi bem depenado — anunciou. — Não deixaram absolutamente nada. Ainda vai haver muita encrenca por causa dessas cartas. Mas... que é isto? Um buraco no for­ro... Alguma coisa estava presa aqui, foi puxada violenta­mente, e restou um pedaço de papel.

Enquanto falava, pegou o pedaço de papel e levou-o para perto da luz. Virginia aproximou-se dele.

— É pena que não tenhamos o resto — murmurou. — "Chimneys, quinta-feira, às onze e quarenta e cinco"... Pa­rece um compromisso.

— Chimneys? — exclamou Virginia. — É extraordi­nário!

— Por que extraordinário? Demasiado requintado para um sujeito vulgar?

— Eu vou para Chimneys esta noite. Pelo menos, ia. Anthony voltou-se para ela.

— Como? Repita isso.

— Eu ia para Chimneys esta noite — repetiu Virginia. Anthony olhou-a espantado.

— Começo a entender. Posso estar errado, mas é uma idéia. Suponha que alguém quisesse muito impedir sua ida a Chimneys...

— Meu primo George Lomax quer — disse Virginia sorrindo. — Mas, seriamente, não posso suspeitar de George como assassino.

Anthony não sorriu. Estava imerso em pensamentos.

— Se chamar a polícia, pode dar adeus à sua ida a Chimneys por hoje, ou mesmo amanhã. E eu gostaria que a senhora fosse para Chimneys. Creio que desconcertaria seus amigos desconhecidos. Mrs. Revel, a senhora confia em mim?

— Então vai ser o plano B?

— Sim, vai ser o plano B. A primeira coisa é fazer essa criada sair de casa. Pode arranjar isso?

— Facilmente.

Virginia saiu para o vestíbulo e gritou para cima.

— Elise! Elise!

— Madame chamou?

Anthony ouviu um rápido colóquio, e em seguida a por­ta da frente foi aberta e fechada. Virginia voltou à sala.

— Ela saiu. Mandei-a procurar um perfume especial, disse-lhe que a loja em questão fica aberta até as oito horas. É claro que não fica. Ela deverá seguir depois de mim, no próximo trem, sem voltar aqui.

— Bem — disse Anthony aprovando. — Vamos tratar agora de nos livrar do corpo. É um método já bastante usado, mas preciso fazer-lhe uma pergunta: existe aqui na casa algu­ma espécie de mala grande?

— Claro que sim. Desça ao porão e escolha à vontade. No porão havia uma variedade de malas. Anthony esco­lheu um artigo sólido, de tamanho conveniente.

— Cuidarei desta parte — disse ele, usando de tato. — Suba e apronte-se para partir.

Virginia obedeceu. Despiu seu traje de jogar tênis, ves­tiu um costume de viagem marrom-claro, pôs um delicioso chapeuzinho cor de laranja e desceu. Encontrou Anthony es­perando no hall, tendo a seu lado uma mala firmemente tran­cada.

— Gostaria de lhe contar a história de minha vida — disse ele —, mas vai ser uma noite um tanto trabalhosa. O que a senhora tem a fazer é o seguinte: chame um táxi, mande colocar nele a bagagem, incluindo esta mala. Dirija-se a Paddington. Lá, mande guardar a mala no depósito de bagagens do lado esquerdo. Estarei na plataforma. Quando passar, dei­xe cair o talão de bagagem. Apanho-o do chão e finjo devol­vê-lo à senhora, mas, na realidade, ele ficará comigo. Siga para Chimneys, e deixe o resto por minha conta.

— É muita bondade sua — disse Virgínia. — É terrível que eu encarregue um estranho de se livrar de um cadáver.

— Gosto disso — retorquiu Anthony com indiferença. — Se um de meus amigos, Jimmy McGrath, estivesse aqui, ele lhe diria que qualquer coisa desse gênero me convém perfeitamente.

Virgínia fitou-o espantada.

— Que nome disse o senhor? Jimmy McGrath? Anthony observou-a de maneira penetrante.

— Sim. Por quê? Já ouviu falar nele?

— Sim... bem recentemente. — Parou irresoluta, e depois prosseguiu. — Mr. Cade, preciso falar com o senhor. Não pode ir a Chimneys?

— Mrs. Revel, digo-lhe que a senhora me verá dentro em breve. Agora, sai o Conspirador A, furtivamente, pela porta dos fundos. E o Conspirador B, em esplendor de glória, sai pela porta da frente para tomar um táxi.

O plano desenvolveu-se sem obstáculos. Anthony, tendo apanhado um segundo táxi, chegou à plataforma a tempo, e pegou o talão derrubado. Em seguida, partiu em busca do Morris Cowley de segunda mão, bem gasto, que havia adqui­rido nesse dia, para o caso de seus planos o tornarem neces­sário.

Voltando a Paddington nesse carro, entregou o bilhete a um carregador, que retirou a mala do depósito e a colocou de modo seguro no porta-malas do carro. Anthony partiu.

Seu objetivo não era Londres. Atravessou Notting Hill, Shepherd's Bush, desceu a estrada de Goldhawk, passou por Brentford e Hounslow, até chegar a uma longa extensão de rodovia entre Hounslow e Staines. Era uma estrada bastante freqüentada, onde os carros passavam continuamente. Pouca probabilidade havia de que marcas de pés e de pneus pudes­sem ser identificadas. Anthony parou o carro em certo local. Desceu, e, em primeiro lugar, escondeu com lama o número da placa. Em seguida, esperou até o momento em que não ouviu barulho de carro vindo de nenhuma das direções; abriu então a mala, dela retirou o corpo de Giuseppe e colocou-o cuidadosamente à margem da estrada, na parte interna da curva, de forma a que os faróis dos carros não incidissem sobre ele.

Entrou de novo no carro e partiu. O trabalho todo ocupou-lhe precisamente um minuto e meio. Fez uma volta à direita, regressando a Londres por Burnham Beeches. Aí parou novamente o carro, escolheu um gigante da floresta, e deliberadamente subiu na imensa árvore. Era uma verdadeira façanha, até mesmo para Anthony. Num dos ramos mais altos prendeu um pequeno pacote embrulhado em papel marrom, escondendo-o num diminuto nicho perto do tronco.

— Uma forma bastante inteligente de livrar-se de um revólver — disse Anthony consigo próprio, em tom de apro­vação. — Todo mundo procura no chão e faz dragagens em lagoas. Todavia, muito pouca gente na Inglaterra seria capaz de subir nesta árvore.

Em seguida, voltou a Londres e dirigiu-se à estação de Paddington. Aí deixou a mala, dessa vez no outro depósito, do lado onde chegavam os trens. Pensou com saudades em coisas boas, tais como bifes macios, suculentas costeletas e grande quantidade de batatas fritas. Abanou a cabeça, porém, com tristeza, enquanto olhava o relógio de pulso. Abasteceu o carro de mais gasolina, e pegou novamente a estrada. Para o norte dessa vez.

Imediatamente depois de onze e meia estacionou o carro na estrada que margeava o parque de Chimneys. Saltou do carro, escalou o muro com facilidade e encaminhou-se para a casa. Levava mais tempo do que lhe parecera, e ele começou a correr. Uma grande massa surgiu na escuridão: o venerável edifício de Chimneys. A distância, um relógio no estábulo bateu um quarto para a meia-noite.

Onze e quarenta e cinco — a hora mencionada no pe­daço de papel. Anthony achava-se no terraço, observando a casa. Tudo parecia escuro e silencioso.

— Vão para a cama cedo esses políticos — murmurou consigo próprio.

E subitamente um som chegou a seus ouvidos, o som de um tiro. Anthony voltou-se rapidamente. Estava certo de que o som viera do interior da casa. Esperou um instante, mas tudo se achava imerso em silêncio mortal. Encaminhou-se, afinal, para uma das longas janelas de onde julgou ter par­tido o som que o assustara. Experimentou o ferrolho. Estava trancado. Experimentou outras janelas, atento a qualquer ruí­do enquanto o fazia. Mas o silêncio permanecia inquebrável.

Por fim, murmurou consigo mesmo que, provavelmente, teria sido apenas imaginação sua, ou talvez se tivesse engana­do quanto a um tiro perdido nos bosques, disparado por algum caçador furtivo. Voltou, e refez seus passos através do parque, vagamente insatisfeito e intranqüilo.

Virou-se para olhar a casa, e, nesse momento, acendeu-se uma luz em uma das janelas do primeiro andar. Um minuto depois apagou-se, e o lugar todo imergiu na escuridão outra vez.

 

Chimneys

Em seu escritório, o Inspetor Badgworthy. Hora: oito e trinta. Homem alto, corpulento, metódico no andar, e com tendência à respiração opressa nos momentos de tensão pro­fissional. De serviço o policial Johnson, novato na força poli­cial, de aparência meiga, e implume como um franguinho.

O telefone sobre a mesa soou agudamente, e o inspetor atendeu-o, com sua habitual e majestosa gravidade quando em ação.

— Sim. É do posto de polícia de Market Basing. Ins­petor Badgworthy falando. Que é que há?

Ligeira alteração nas maneiras do inspetor. Assim como ele é superior a Johnson, há outros acima do Inspetor Badg­worthy.

— Sim, milorde. Perdão, milorde. Não ouvi bem o que o senhor disse.

Longa pausa, durante a qual o inspetor ouve, e uma variedade de expressões passa-lhe pela fisionomia habitual­mente impassível. Por fim, desliga o aparelho após um breve:

— Imediatamente, milorde.

Voltou-se para Johnson, visivelmente inflado de impor­tância.

— De Sua Excelência... em Chimneys... assassinato.

— Assassinato — repetiu Johnson, convenientemente impressionado.

— Assassinato, sim — disse o inspetor, com grande sa­tisfação.

— Ora, nunca houve um assassinato por aqui; não que eu saiba, exceto naquela vez em que Tom Pearse alvejou sua namorada.

— E isso, de certo modo, não foi assassinato, mas sim bebedeira — disse o inspetor de forma depreciativa.

— Ele não foi enforcado por causa daquilo — concor­dou Johnson com tristeza. — Mas este é verdadeiro, não é, senhor?

— É, Johnson. Um dos hóspedes de Sua Excelência, um cavalheiro estrangeiro, foi descoberto baleado. Janela aberta, e pegadas do lado de fora.

— É pena que seja um estrangeiro — disse Johnson com certo pesar.

Tornava o assassinato menos real. Estrangeiros estavam sempre sujeitos a serem baleados, era o que sentia Johnson.

— Sua Excelência acha-se profundamente chocado — prosseguiu o inspetor. — Apanharemos o Dr. Cartwright e o levaremos conosco imediatamente. Peço a Deus que ninguém tenha atrapalhado essas pegadas.

Badgworthy estava no sétimo céu! Um assassinato! Em Chimneys! O Inspetor Badgworthy encarregado do caso. A polícia tem uma pista. Prisão sensacional. Promoção e glória para o supracitado inspetor.

— Isto é — disse consigo próprio o Inspetor Badg­worthy —, se a Scotland Yard não se meter.

O pensamento abateu-o momentaneamente. Era tão pro­vável que acontecesse, em semelhantes circunstâncias!

Pararam para apanhar o Dr. Cartwright, e o médico, que era relativamente jovem, demonstrou aguçado interesse. Sua atitude foi quase igual à de Johnson.

— Ora, valha-me Deus! — exclamou. — Jamais tive­mos um assassinato aqui, desde o tempo de Tom Pearse.

Entraram os três no pequeno carro do médico, e parti­ram rapidamente para Chimneys. Ao passarem pela estalagem local, o Jolly Cricketers, o médico notou um homem em pé junto ao batente da porta.

— Gente estranha — observou. — Sujeito de bela apa­rência. Há quanto tempo será que ele está aqui, e que estará fazendo hospedado no Cricketers? Ainda não o tinha visto. Deve ter chegado ontem à noite.

— Ele não veio de trem — disse Johnson.

O irmão de Johnson trabalhava como carregador na es­tação ferroviária, e Johnson achava-se sempre a par das che­gadas e partidas.

— Quem chegou ontem com destino a Chimneys? — indagou o inspetor.

— Lady Eileen veio pelo trem das três e quarenta, acompanhada de dois cavalheiros, um americano e um jovem militar; nenhum deles trazia criado. Sua Excelência chegou com um cavalheiro estrangeiro — provavelmente o que foi assassinado — pelo trem das cinco e quarenta, e trazia com ele o criado do cavalheiro em questão. Mr. Eversleigh veio no mesmo trem. Mrs. Revel chegou pelo trem das sete e vinte e cinco, e esse mesmo trem trouxe também um cavalheiro care­ca e de nariz adunco. A criada de Mrs. Revel veio pelo trem das oito e cinqüenta e seis.

Johnson parou sem fôlego.

— E ninguém foi para o Cricketers? Johnson abanou a cabeça.

— Ele deve ter vindo de automóvel, então — disse o inspetor. — Johnson, tome nota para abrir inquérito no Cri­cketers, quando você voltar. Queremos saber tudo que se re­fira a estranhos. Esse cavalheiro estava muito bronzeado; vem do estrangeiro, provavelmente.

O inspetor moveu a cabeça com grande sagacidade, como se esse gesto indicasse que espécie de homem alerta era ele. Jamais seria apanhado cochilando em relação a qualquer mo­tivo.

O carro passou pelos portões do parque de Chimneys. Descrições desse histórico local podem ser encontradas em qualquer guia turístico. São também encontradas no terceiro volume de Mamões históricas da Inglaterra, pelo preço de vinte e um xelins. Às quintas-feiras chegam ônibus de Middlingham, trazendo pessoas para visitar as dependências da mansão, que são abertas ao público. Em vista dessas facilida­des, descrever Chimneys seria supérfluo.

Foram recebidos à porta por um mordomo de cabeça branca, cuja conduta era perfeita.

"Não estamos acostumados", parecia ele dizer, "a ter assassinatos cometidos dentro destas paredes. Mas estamos passando por uns maus dias. Vamos encarar a desgraça com perfeita calma, e fingir, de respiração ofegante, que nada de anormal aconteceu."

— Sua Excelência está esperando — disse o mordomo. — Por aqui, por favor.

Conduziu-os a um aposento pequeno e confortável, lugar onde Lorde Caterham se refugiava de toda aquela magnifi­cência, e anunciou-os.

— A polícia, milorde, e o Dr. Cartwright.

Lorde Caterham andava de um lado para outro, em vi­sível estado de agitação.

— Ah! Inspetor, até que enfim o senhor chegou. Sinto-me grato por isso. Como vai, Cartwright? Este negócio é o diabo, você sabe. É o diabo!

E Lorde Caterham, correndo os dedos pelos cabelos de modo frenético, até que se eriçassem em pequenos tufos, pa­recia ter, menos que habitualmente, a aparência de um par do reino.

— Onde está o corpo? — perguntou o médico, de ma­neira incisiva e profissional.

Lorde Caterham voltou-se para ele, como que aliviado por lhe ter sido feita uma pergunta direta.

— Na Sala do Conselho... precisamente onde o encon­trei. Não deixei que ninguém tocasse nele. Creio que... que era isso o que eu devia fazer.

— Exatamente, milorde — disse o inspetor aprovando. Pegou um caderno de notas e um lápis.

— Quem descobriu o corpo? O senhor?

— Por Deus, não! — exclamou Lorde Caterham. — O senhor não pensa que eu me levante habitualmente a essa absurda hora matinal, não é? Não; quem o encontrou foi uma criada. Creio que gritou bastante. Eu próprio não ouvi, con­taram-me depois, e, naturalmente, levantei-me e desci. E lá estava ele, como o senhor sabe.

— Reconheceu o corpo como sendo o de um de seus hóspedes?

— Sim, inspetor.

— Nome?

Esta pergunta, perfeitamente simples, pareceu perturbar Lorde Caterham. Abriu a boca uma ou duas vezes, e depois fechou-a de novo. Por fim, indagou fracamente:

— O senhor quer dizer... quer dizer... qual era o nome dele?

— Sim, milorde.

— Bem — disse Lorde Caterham, olhando lentamente ao redor da sala, como se estivesse em busca de inspiração.

— O nome dele era... eu diria que era... sim, decidida­mente era o Conde Stanislaus.

Havia algo de tão estranho nos modos de Lorde Cater­ham, que o inspetor parou de escrever e encarou-o fixamente. Nesse momento, porém, ocorreu uma interrupção, que pare­ceu ser muito bem recebida pelo embaraçado par do reino.

Abriu-se a porta e uma moça entrou na sala. Era alta, esguia e morena, possuía um atraente rosto pueril e maneiras decididas. Tratava-se de Lady Eileen Brent, vulgarmente co­nhecida por Bundle, a filha mais velha de Lorde Caterham. Fez um cumprimento de cabeça aos outros e dirigiu-se direta-mente a seu pai.

— Peguei-o — anunciou.

Durante um momento o inspetor esteve a ponto de sal­tar para a frente, sob a impressão de que a jovem tivesse capturado o assassino em flagrante; imediatamente, porém, compreendeu que o que ela pretendia dizer era bem diferente.

Lorde Caterham soltou um suspiro de alívio.

— Bom trabalho. Que foi que ele disse?

— Vem para cá imediatamente. Disse que "precisamos usar da máxima discrição".

Seu pai fez um grunhido de aborrecimento.

— É bem o gênero de coisa idiota que George diria. Entretanto, uma vez que ele vem, lavo minhas mãos de todo este caso.

Pareceu alegrar-se um pouco ante tal perspectiva.

— E o nome do assassinado era Conde Stanislaus? — indagou o médico.

Pai e filha cruzaram um rápido olhar, e então o primei­ro falou com certa dignidade:

— Certamente. Já disse isso há pouco.

— Perguntei porque o senhor parecia não estar muito seguro quanto a isso, ainda há pouco — explicou Cartwright.

No olhar de Lorde Caterham perpassou um breve lam­pejo, e ele fitou o médico com um ar de censura.

— Vou conduzi-lo à Sala do Conselho — disse de modo brusco.

Seguiram-no, o inspetor fechando a retaguarda e lançan­do penetrantes olhares a seu redor enquanto caminhava, co­mo se esperasse encontrar uma pista em alguma moldura de quadro, ou atrás de uma porta.

Lorde Caterham tirou do bolso uma chave, destrancou a porta e abriu-a. Entraram todos em um aposento grande, cujas paredes eram revestidas de carvalho, e com três janelas dando para o terraço. Havia uma longa mesa de refeitório, diversas arcas de carvalho, e algumas belas cadeiras antigas. Nas paredes, vários retratos de falecidos Caterham e outras personagens.

Perto da parede esquerda, entre a porta e a janela, um homem jazia de costas, os braços estendidos.

O Dr. Cartwright abaixou-se junto ao corpo. O inspetor encaminhou-se para as janelas e examinou-as uma por uma. A do centro achava-se fechada, sem, entretanto, estar tran­cada. Nos degraus de fora havia marcas de pés na direção da janela, e outras que se dirigiam da janela para fora.

— Bem evidentes — disse o inspetor, com um movi­mento de cabeça. — Mas deveria haver impressões na parte interna também. Elas seriam facilmente notadas neste chão encerado.

— Creio que posso explicar isso — interpôs-se Bundle. — A criada tinha encerado metade do assoalho esta manhã antes de descobrir o cadáver. O senhor compreende, estava escuro quando ela chegou. Encaminhou-se diretamente para as janelas, abriu as cortinas, e começou a limpar o chão; natu­ralmente não viu o corpo, que está escondido deste lado da sala por causa da mesa. Não o viu até chegar exatamente junto dele.

O inspetor assentiu com a cabeça.

— Bem — disse Lorde Caterham, ansioso para escapar —, deixo-o aqui, inspetor. O senhor saberá onde encontrar-me se... se precisar de mim. Mas George Lomax vem vindo de Wyverne Abbey, e poderá contar-lhe muito mais coisas do que eu. Na verdade, o negócio é dele. Não lhe posso explicar, mas ele poderá fazê-lo, assim que chegar.

Lorde Caterham fez uma retirada precipitada, sem espe­rar resposta.

— Maldade de Lomax — queixou-se. — Meter-me nu­ma encrenca dessas. Que é que há, Tredwell?

O mordomo encanecido rodeava-o com deferência.

— Tomei a liberdade, milorde, de antecipar a hora do café da manhã. Está tudo pronto na sala de jantar.

— Não creio absolutamente que eu possa comer alguma coisa — disse Lorde Caterham acabrunhado, encaminhan­do-se entretanto naquela direção. — Absolutamente.

Bundle enfiou o braço sob o dele, e entraram juntos na sala de jantar. Sobre o aparador havia uma quantidade de pesadas travessas de prata, que de forma engenhosa eram mantidas quentes.

— Omelete — disse Lorde Caterham, erguendo uma tampa de cada vez. — Ovos e bacon, rins, caça, peixe, pre­sunto frio, faisão frio. Não gosto de nada disso, Tredwell. Peça à cozinheira para me fazer um ovo poché, sim?

— Certamente, milorde.

Tredwell retirou-se. Lorde Caterham, de maneira distraí­da, serviu-se de grande quantidade de rins e bacon, encheu uma xícara de café e sentou-se à longa mesa. Bundle já estava entretida com um prato de ovos e bacon.

— Estou morrendo de fome — disse Bundle com a boca cheia. — Deve ser a excitação.

— Está tudo muito bem para você — censurou o pai. — Vocês, jovens, gostam de excitação. Mas eu me encontro num estado de saúde muito delicado. Evite toda espécie de aborrecimentos, foi o que me disse Sir Abner Willis, toda espécie de aborrecimentos. É muito fácil para um homem sentar-se em seu consultório na Harley Street e dizer isso. Como posso eu evitar aborrecimentos, quando esse asno do Lomax larga uma coisa dessas em cima de mim? Eu devia ter sido firme na ocasião. Devia ter negado de forma pe­remptória.

Com um triste balançar de cabeça, Lorde Caterham er­gueu-se e serviu-se de presunto.

— Codders com certeza está liquidado desta vez — observou Bundle alegremente. — Falou ao telefone de ma­neira quase incoerente. Dentro em breve estará aqui insistin­do em discrição e silêncio.

Lorde Caterham grunhiu ante tal perspectiva.

— Ele já estava acordado? — indagou.

— Disse-me — retorquiu Bundle — que estava de pé desde as sete horas, ditando cartas e memorandos.

— E orgulhoso disso — observou o pai. — São ex­traordinariamente egoístas esses homens públicos. Fazem suas infelizes secretárias levantarem-se às horas mais impróprias para lhes ditarem asneiras. Se houvesse uma lei que os obrigasse a permanecer na cama até as onze horas, que benefício traria para a nação! Eu não me importaria muito se eles não tagarelassem tanto. Lomax está sempre se referindo à minha "posição". Como se eu tivesse alguma. Quem é que deseja ser par do reino hoje em dia?

— Ninguém — disse Bundle. — Preferem manter uma próspera taverna.

Tredwell reapareceu silenciosamente trazendo dois ovos pochés em uma pequena travessa de prata, que colocou sobre a mesa, em frente de Lorde Caterham.

— Que é isso, Tredwell? — perguntou o último, olhan­do com leve desagrado.

— Ovos pochés, milorde.

— Detesto ovos pochés — disse Lorde Caterham irrita­do. — São tão insípidos. Não gosto nem mesmo de olhar para eles. Leve-os embora, sim, Tredwell?

— Certamente, milorde.

Tredwell e os ovos pochés retiraram-se tão silenciosa­mente quanto haviam chegado.

— Graças a Deus, ninguém se levanta cedo nesta casa — disse Lorde Caterham com sinceridade. — Quando se le­vantarem, suponho que teremos de contar as novidades.

Suspirou.

— Quem será que o assassinou? — falou Bundle. — E por quê?

— Graças a Deus, não temos nada com isso — disse Lorde Caterham. — Compete à polícia descobrir; embora Badgworthy jamais descubra qualquer coisa. De modo geral, eu preferia que tivesse sido Nosystein1.

1 "Narigudo." (N. do T.)

 

— O que quer dizer...

— A União dos Sindicatos Britânicos.

— Por que iria Mr. Isaacstein assassiná-lo quando veio aqui expressamente para encontrar-se com ele?

— Altas finanças — disse Lorde Caterham de maneira vaga. — E isso me lembra algo: não seria surpresa para mim se Isaacstein fosse um madrugador. Ele pode surgir a qual­quer momento, de uma hora para outra. É um hábito de quem trabalha na cidade. Não importa quão ricos sejam, eles sempre pegam o trem das nove e dezessete.

O barulho de um carro dirigido em alta velocidade foi ouvido através da janela aberta.

— Codders — exclamou Bundle.

Pai e filha debruçaram-se à janela e acenaram para o ocupante do carro, quando este se aproximou da entrada.

— Aqui, meu caro, aqui — gritou Lorde Caterham, en­golindo apressadamente um bocado de presunto.

Como George não tivesse a intenção de subir e entrar pela janela, desapareceu através da porta da frente e reapare­ceu conduzido por Tredwell, que imediatamente se retirou.

— Coma alguma coisa — disse Lorde Caterham, aper­tando-lhe a mão. — Que tal um pouco de rim?

George empurrou o rim para o lado com impaciência.

— É uma terrível calamidade. Terrível, terrível.

— Realmente. Quer um pouco de peixe?

— Não, não. É preciso que se faça silêncio. A todo o custo isto deve ser mantido em segredo.

Tal como Bundle profetizara, George começou com a lengalenga.

— Compreendo seus sentimentos — disse Lorde Cater­ham complacente. — Experimente ovos e bacon, ou um pouco de peixe.

— Uma contingência inteiramente imprevista... cala­midade nacional... risco de perda das concessões...

— Deixe o tempo correr — disse Lorde Caterham. — E coma alguma coisa. Você precisa é de alimento para se reanimar. Que tal ovos pochés? Havia alguns ovos pochés aqui há um minuto atrás.

— Não quero nenhum alimento — disse George. — Já fiz o meu desjejum, e mesmo que não tivesse feito não ha­veria de querer. Precisamos pensar no que se pode fazer. Você ainda não contou a ninguém?

— Bem... Bundle e eu sabemos. E a polícia local. E Cartwright. E todos os criados, naturalmente.

George grunhiu.

— Reanime-se, meu caro — disse Lorde Caterham bon­dosamente. — Desejaria que você comesse um pouco. Você parece não compreender que é impossível guardar silêncio quanto a um cadáver. Precisa ser enterrado e tudo o mais. Infelizmente é assim.

George subitamente acalmou-se.

— Você tem razão, Caterham. Disse que chamou a polícia local? Não será suficiente. Precisamos de Battle.

— Que Battle? — perguntou Lorde Caterham com ex­pressão intrigada.

— O Superintendente Battle, da Scotland Yard. Um ho­mem da máxima discrição. Trabalhou conosco naquele la­mentável caso dos fundos do partido.

— Que caso foi esse? — indagou Lorde Caterham com certo interesse.

O olhar de George, porém, recaiu sobre Bundle, sentada à janela, e ele se lembrou a tempo de manter a discrição.

— Não podemos perder tempo. Preciso mandar alguns telegramas imediatamente.

— Se você os redigir, Bundle poderá mandá-los pelo telefone.

George pegou uma caneta e começou a escrever com in­crível rapidez. Passou o primeiro a Bundle, que o leu profun­damente interessada.

— Meu Deus! que nome! — exclamou. — Barão o quê?

— Barão Lolopretjzyl. Bundle piscou.

— Entendi, mas é melhor levá-lo ao correio. George continuou a escrever. Entregou, então, a Bundle o que escrevera e dirigiu-se ao dono da casa.

— A melhor coisa que você tem a fazer, Caterham...

— Sim... — disse Lorde Caterham apreensivo.

— É deixar tudo em minhas mãos.

— Certamente — disse Lorde Caterham com alegria. — Exatamente o que estava pensando. Você encontrará a polícia e o Dr. Cartwright na Sala do Conselho. Com o... com o corpo. Meu caro Lomax, coloco Chimneys sem reser­vas ao seu dispor. Faça o que quiser.

— Obrigado — disse George. — Queria consultá-lo... Lorde Caterham, porém, fora aos poucos e de maneira discreta afastando-se para a porta mais distante. Bundle ob­servou sua retirada com um sorriso.

— Mandarei esses telegramas imediatamente — disse ela. — Conhece o caminho para a Sala do Conselho, não é?

— Obrigado, Lady Eileen.

George saiu precipitadamente da sala.

 

Chega o Superintendente Battle

Tão receoso achava-se Lorde Caterham de ser procurado por George, que passou a manhã toda fazendo um giro por sua propriedade. Somente a aflição provocada pela fome teve o dom de trazê-lo de volta à casa. Considerou, também, que nesse momento o pior já teria passado.

Entrou furtivamente por uma pequena porta lateral. Dali deslizou com habilidade para seu aposento particular. Vangloriava-se de que sua chegada não fora observada, mas estava enganado. O vigilante Tredwell nada deixava escapar. Apresentou-se à porta.

— Desculpe-me, milorde...

— Que é que há, Tredwell?

— Mr. Lomax, milorde, está na biblioteca, ansioso por vê-lo, assim que o senhor chegar.

Por este delicado método Tredwell dava a entender que Lorde Caterham ainda não havia regressado, a não ser que o próprio lorde o desejasse.

Lorde Caterham suspirou, e em seguida levantou-se.

— Creio que devo ir mesmo, mais cedo ou mais tarde. Na biblioteca, você disse?

— Sim, milorde.

Suspirando novamente, Lorde Caterham cruzou as imen­sas distâncias de seu lar ancestral e chegou à porta da biblio­teca, que estava trancada. Como ele mexesse na fechadura, a porta foi destrancada pelo lado de dentro, entreaberta, e o rosto de George Lomax surgiu desconfiado.

Sua expressão mudou quando viu quem era.

— Ah, Caterham, entre. Estávamos ainda há pouco imaginando o que teria acontecido com você.

Murmurando qualquer coisa vaga com referência a de­veres para com a sua propriedade, consertos para os locatá­rios, Lorde Caterham afastou-se para o lado, desculpando-se. Havia dois outros homens na sala. Um era o Coronel Melrose, o chefe de polícia. O outro era um homem de meia-idade, de ombros largos, e com uma fisionomia tão curiosamente desti­tuída de expressão que se tornava digna de nota.

— O Superintendente Battle chegou há meia hora — explicou George. — Ele fez a ronda com o Inspetor Badgworthy, e esteve com o Dr. Cartwright. Deseja agora algu­mas informações nossas.

Sentaram-se todos, depois de Lorde Caterham ter cum­primentado Melrose e de ter sido apresentado ao Superin­tendente Battle.

— Não preciso lhe dizer, Battle — disse George —, que se trata de um caso em que devemos usar da máxima discrição.

O superintendente concordou de modo nada formal, o que agradou a Lorde Caterham.

— Está bem, Mr. Lomax. Mas que não se esconda nada de nós. Segundo sei, o cavalheiro morto chamava-se Conde Stanislaus, pelo menos era o nome pelo qual a cria­dagem o conhecia. Era esse o seu verdadeiro nome?

— Não, não era.

— E qual era, então?

— Príncipe Miguel, da Herzoslováquia.

Os olhos de Battle abriram-se um pouco; foi a única alteração em sua fisionomia.

— E, se me permite perguntar, qual era a finalidade de sua visita aqui? Diversão apenas?

— Existia um outro objetivo, Battle. Isso tudo na mais estrita confiança, naturalmente.

— Sim, sim, Mr. Lomax.

— Coronel Melrose?

— É claro.

— Bem, o Príncipe Miguel achava-se aqui com a fina­lidade expressa de encontrar-se com Mr. Herman Isaacstein. Um financiamento ia ser conseguido, sob determinadas condições.

— Que condições?

— Não conheço precisamente os detalhes. Na verdade, ainda não tinham chegado a um acordo. Mas, na eventua­lidade de subir ao trono, o Príncipe Miguel comprometia-se a garantir concessões de petróleo a certas companhias nas quais Mr. Isaacstein tem interesses. O governo britânico estava disposto a apoiar a pretensão do Príncipe Miguel ao trono, em vista de sua pronunciada simpatia pela Grã-Bretanha.

— Bem — disse o Superintendente Battle —, não julgo que haja necessidade de me aprofundar mais nisso. O Príncipe Miguel queria o dinheiro, Mr. Isaacstein queria o petróleo, e o governo britânico estava pronto a bancar o protetor. Uma pergunta apenas: havia mais alguém atrás dessas concessões?

— Creio que um grupo de financistas americanos tinha feito propostas a Sua Alteza.

— E as propostas foram recusadas, não?

George negou-se a permitir que arrancassem dele algu­ma coisa.

— A simpatia do Príncipe Miguel achava-se inteira­mente do lado britânico — repetiu.

O Superintendente Battle não insistiu nesse ponto.

— Lorde Caterham, segundo estou informado, foi o seguinte o que aconteceu ontem: o senhor encontrou-se com o Príncipe Miguel na cidade, e viajou para cá com ele. O príncipe veio acompanhado por seu criado, um herzoslovaco chamado Boris Anchoukoff, mas seu palafreneiro, o Capitão Andrassy, permaneceu na cidade. O príncipe, logo após a chegada, declarou-se imensamente fatigado, e retirou-se para os aposentos que lhe haviam sido preparados. O jantar foi-lhe servido lá, e ele não se avistou com as outras pessoas presentes na casa. Está certo?

— Perfeitamente.

— Nesta manhã, aproximadamente às sete e quarenta e cinco, uma empregada achou o corpo. O Dr. Cartwright examinou o cadáver e descobriu que a morte foi provocada por um tiro de revólver. Revólver algum foi encontrado, e ninguém na casa parece ter ouvido o tiro. Por outro lado, o relógio de pulso do morto quebrou-se na queda, vindo a indicar que o crime foi cometido exatamente quando faltava um quarto para a meia-noite. A que horas retiraram-se para dormir, ontem à noite?

— Cedo. Por alguma razão, a festa parecia não "engre­nar", se entende o que quero dizer, superintendente. Subi­mos mais ou menos às dez e meia, diria eu.

— Obrigado. Peço-lhe agora, Lorde Caterham, que me faça uma descrição de todas as pessoas que estavam na casa.

— Desculpe-me, mas pensei que o sujeito que cometeu o crime tivesse vindo de fora.

O Superintendente Battle sorriu.

— Ouso dizer que sim. Ouso dizer que sim. De qual­quer forma, preciso saber quem se achava na casa. Questão de rotina, sabe?

— Bem, estavam o Príncipe Miguel e seu criado, e Mr. Herman Isaacstein. O senhor sabe tudo quanto se refere a eles. Achava-se também Mr. Eversleigh...

— Que trabalha em meu departamento — interrompeu George de modo condescendente.

— E que estava a par do verdadeiro motivo pelo qual o Príncipe Miguel se achava aqui?

— Não, eu diria que não — replicou George em tom grave. — Sem dúvida ele percebeu que algo pairava no ar, mas não julguei necessário confiar inteiramente nele.

— Entendo. Quer prosseguir, Lorde Caterham?

— Deixe-me ver... Havia também Mr. Hiram Fish.

— Quem é Mr. Hiram Fish?

— Mr. Fish é um americano. Trouxe uma carta de apresentação de Mr. Lucius Gott. O senhor já ouviu falar em Mr. Lucius Gott, não?

O Superintendente Battle sorriu. Quem não ouvira fa­lar em Lucius C. Gott, o multimilionário?

— Ele estava ansioso para ver as minhas primeiras edições. A biblioteca de Mr. Gott é, naturalmente, inigua­lável, mas eu também possuo alguns tesouros. Mr. Fish é um entusiasta. Mr. Lomax havia sugerido que eu convidasse mais uma ou duas pessoas para o fim de semana, para tornar a reunião ^mais natural, e aproveitei a oportunidade para convidar Mr. Fish. Isso quanto aos homens. Quanto às se­nhoras, há Mrs. Revel, e creio que ela trouxe uma criada ou qualquer coisa nesse gênero. Há também a minha filha e, é claro, as crianças, suas babás e governantas, e toda a criadagem.

Lorde Caterham parou para tomar fôlego.

— Obrigado — disse o detetive. — Mera questão de rotina, porém necessária.

— Não existe dúvida, suponho, quanto ao assassino ter entrado pela janela, não? — indagou George pensativo.

Battle fez uma breve pausa antes de responder lenta­mente:

— Havia marcas de pés em direção à janela, e outras da janela para fora. Um carro estacionou junto ao parque ontem à noite, às onze e quarenta. À meia-noite um jovem chegou de carro a Jolly Cricketers, e reservou um quarto. Deixou as botinas do lado de fora para serem limpas, e elas estavam molhadas e enlameadas, como se ele tivesse cami­nhado sobre a grama densa do parque.

George curvou-se para a frente ansiosamente.

— E as botinas não podiam ser comparadas às pe­gadas?

— Já foram.

— E então?

— Correspondem exatamente.

— Isso resolve tudo — exclamou George. — Já temos o assassino. Este jovem... a propósito, qual é o seu nome?

— Na hospedaria ele deu o nome de Anthony Cade.

— Este Anthony Cade deve ser imediatamente perse­guido, e preso.

— Não há necessidade de persegui-lo — disse o Supe­rintendente Battle.

— Por quê?

— Porque ele ainda está lá.

— Como?

— Curioso, não é?

O Coronel Melrose olhou-o de maneira sagaz.

— Que é que você tem em mente, Battle? Fale de uma vez.

— Disse que é curioso, apenas isso. Eis aí um jovem que devia fugir, mas não foge. Permanece onde está, e nos proporciona todas as facilidades para identificar as pegadas.

— E que é que você acha disso?

— Não sei o que pensar. E esse é um estado de espírito muito perturbador.

— Você imagina... — começou o Coronel Melrose, mas interrompeu-se quando bateram discretamente à porta.

George ergueu-se e encaminhou-se para ela. Tredwell, sofrendo interiormente por ter que bater à porta dessa ma­neira humilhante, permaneceu na soleira, e dirigiu-se a seu patrão.

— Desculpe-me, milorde, mas um cavalheiro deseja falar-lhe com urgência a respeito de um assunto importante, ligado, segundo entendi, à tragédia desta manhã.

— Qual é o nome dele? — perguntou Battle subita­mente.

— O nome dele é Mr. Anthony Cade, mas ele disse que não significaria nada para ninguém.

Parecia significar algo para os quatro homens presen­tes. Retesaram-se em diferentes graus de espanto. Lorde Caterham começou a rir à socapa.

— Estou realmente começando a me divertir. Faça-o entrar, Tredwell. Faça-o entrar imediatamente.

 

Anthony conta sua história

— Mr. Anthony Cade — anunciou Tredwell.

— Entra o estranho suspeito da hospedaria da vila — disse Anthony.

Caminhou em direção a Lorde Caterham, com raro instinto para um estrangeiro. Ao mesmo tempo, mentalmen­te chegava à seguinte conclusão quanto aos outros três ho­mens: 1, Scotland Yard; 2, dignitário local, provavelmente chefe de polícia; 3, aflito cavalheiro à beira da apoplexia, possivelmente ligado ao governo.

— Devo pedir desculpas — prosseguiu Anthony, diri­gindo-se ainda a Lorde Caterham — por insistir em entrar. Mas ouvi rumores em Jolly Dog, ou como quer que se chame a taverna local, que aqui tinha havido um assassinato, e, como pensei que pudesse lançar alguma luz sobre o caso, vim até aqui.

Durante alguns momentos ninguém falou. O Superin­tendente Battle, por se tratar de um homem de vasta expe­riência que sabia quão melhor era deixar que os outros fa­lassem, se achassem que deviam fazê-lo; o Coronel Melrose porque era habitualmente taciturno; George por estar acos­tumado a que lhe trouxessem notícias do assunto em ques­tão; Lorde Caterham porque não tinha a mínima idéia do que dizer. Contudo, o silêncio dos outros três, e o fato de que Anthony se tivesse dirigido diretamente a ele, forçaram por fim Lorde Caterham a falar:

— Per... perfeitamente — disse ele nervoso. — Te­nha a bondade... de sentar-se.

— Obrigado — disse Anthony. George pigarreou solenemente.

superintendente poderá dizer-me, e me pôr no xadrez por alguns meses, se necessário.

— Prossigamos com a história, por favor — disse Battle, mas seus olhos piscaram um pouco.

— Ao chegar a Londres fui para o Blitz Hotel, ainda sob o nome de James McGrath. Minha incumbência em Lon­dres era entregar determinado manuscrito a uma editora, mas, tão logo cheguei, fui procurado por representantes de dois partidos políticos de um país estrangeiro. Os méto­dos utilizados por um deles foram estritamente constitucio­nais, os do outro não. Lidei com cada um de acordo com a situação. Mas os meus aborrecimentos ainda não tinham ter­minado; nessa noite meu quarto foi invadido, e um dos garçons do hotel tentou roubar-me.

— Creio que a polícia não foi informada disso, não é? — disse o Superintendente Battle.

— O senhor tem razão. A polícia não foi informada. Nada foi roubado, entende? Relatei, porém, a ocorrência ao gerente do hotel, e ele poderá confirmar minha história, e contar-lhe que o garçom em questão desertou às pressas du­rante a noite. No dia seguinte, os editores telefonaram-me sugerindo que um de seus representantes viesse me procurar para que eu lhe entregasse o manuscrito, conforme o que fora combinado. Como não ouvi mais nada a esse respeito, presumo que o manuscrito tenha chegado são e salvo. On­tem, ainda como James McGrath, recebi uma carta de Mr. Lomax.

Anthony parou. A essa altura estava começando a di­vertir-se. George moveu-se intranqüilo.

— Lembro-me, sim — murmurou. — Tenho uma cor­respondência tão vasta, que, evidentemente, não podiam es­perar que eu soubesse de quem se tratava, uma vez que o nome é diferente. E posso dizer — a voz de George se ele­vou um tanto, firme e segura de sua autoridade moral — que considero essa farsa de passar por outro homem extre­mamente inconveniente. Não tenho dúvidas, não tenho dúvi­das de espécie alguma de que o senhor incorreu em grave penalidade legal.

— Nessa carta — prosseguiu Anthony sem se alterar

— Mr.. Lomax fazia várias sugestões com referência ao ma­nuscrito em meu poder. Convidava-me também, em nome de Lorde Caterham, para tomar parte na reunião de fim de semana aqui.

— Prazer em recebê-lo, meu caro — disse o fidalgo. — Antes tarde do que nunca, não é?

George fitou-o de cenho franzido. O Superintendente Battle lançou um olhar impassível sobre Anthony.

— E é esta a explicação de sua presença ontem à noite aqui? — indagou.

— Claro que não — disse Anthony calorosamente. — Quando sou convidado para me hospedar em uma casa de campo, não costumo escalar muros a altas horas da noite, andar pelo parque, e tentar abrir janelas. Estaciono o carro no portão da frente, toco a campainha, e limpo os pés no capacho. Prosseguirei. Respondi a Mr. Lomax explicando que o manuscrito já não se achava mais comigo, e que, com pesar, recusava o amável convite de Lorde Caterham. Depois de ter feito isso, entretanto, lembrei-me de algo que até então tinha-me escapado da memória. — Fez uma pausa. Chegara o momento de patinar sobre gelo. — Devo contar-lhes que, durante a minha briga com o garçom Giuseppe, arranquei dele um pequeno pedaço de papel com algumas palavras rabiscadas. Não significaram nada para mim na ocasião. Mas depois, à menção do nome "Chimneys", lem­brei-me delas. Peguei o pedacinho de papel e verifiquei: era exatamente como eu pensava. Eis aqui o papel, senhores; podem ver. As palavras rabiscadas são: "Chimneys, quinta-feira, onze e quarenta e cinco".

Battle examinou o papel com atenção.

— É claro — prosseguiu Anthony — que a palavra "Chimneys" podia não ter relação de espécie alguma com esta casa. Por outro lado, podia significar qualquer coisa. E, indubitavelmente, esse tal Giuseppe era um ladrão velhaco. Decidi vir para cá de automóvel ontem à noite, certificar-me de que tudo estava em ordem, hospedar-me na estalagem, e hoje de manhã procurar Lorde Caterham para avisar-lhe que se acautelasse contra possíveis tramas durante este fim de semana.

— Perfeitamente — disse Lorde Caterham, de maneira encorajante. — Perfeitamente.

— Cheguei tarde aqui. Não calculei bem o tempo. Em vista disso, escalei o muro, e corri através do parque. Quando alcancei o terraço, a casa toda achava-se imersa em silêncio e escuridão. Estava voltando, quando ouvi um tiro. Julguei que o som proviesse do interior da casa, regressei correndo, atravessei o terraço e experimentei as janelas. Achavam-se trancadas, porém, e não havia barulho de espécie alguma dentro da casa. Esperei um pouco, mas tudo estava tão silen­cioso quanto um túmulo. Em vista disso, cheguei à conclu­são de que cometera um engano, o barulho que havia escuta­do era um tiro disparado por algum caçador errante; conclusão muito natural em tais circunstâncias, julgo eu.

— Muito natural — disse o Superintendente Battle de modo inexpressivo.

— Dirigi-me à estalagem, hospedei-me lá, conforme já lhes disse, e hoje de manhã ouvi as notícias. Imaginei, certa­mente, que suspeitariam de mim, em virtude das circunstân­cias. Por isso vim aqui contar a minha história, na esperança de evitar as algemas.

Fez-se uma pausa. O Coronel Melrose olhou de soslaio para o Superintendente Battle.

— Penso que a história parece suficientemente clara — observou.

— Sim — disse Battle. — Creio que esta manhã não haverá necessidade de algemas para ninguém.

— Alguma pergunta, Battle?

— Sim. Há uma coisa que eu gostaria de saber. Que manuscrito era esse?

Encarou George, e esse respondeu com certa má von­tade:

— As memórias do falecido Conde Stylptitch. Você compreende...

— Não é preciso dizer mais nada — disse Battle. — Compreendo perfeitamente.

Voltou-se para Anthony.

— O senhor sabe quem foi assassinado, Mr. Cade?

— A notícia em Jolly Dog foi de que se tratava do Conde Stanislaus, ou qualquer nome semelhante.

— Diga-lhe — disse Battle dirigindo-se laconicamente a George Lomax.

George, evidentemente, relutava, mas foi forçado a falar.

— O cavalheiro que se achava aqui incógnito como Conde Stanislaus era Sua Alteza o Príncipe Miguel da Herzoslováquia.

Anthony assobiou.

— Isso deve ser excessivamente embaraçoso — ob­servou.

O Superintendente Battle, que estava olhando atenta­mente para Anthony, deu um pequeno grunhido, como se estivesse satisfeito com alguma coisa, e ergueu-se brusca­mente.

— Gostaria de fazer a Mr. Cade uma ou duas pergun­tas — disse. — Levá-lo-ei comigo à Sala do Conselho, se me for permitido.

— Certamente, certamente — disse Lorde Caterham. — Leve-o para onde quiser.

Anthony e o detetive saíram juntos.

O cadáver fora removido da cena da tragédia. No chão, no lugar onde estivera, havia uma mancha escura. A não ser isso, nada sugeria que ali tivesse ocorrido uma tragédia. O sol penetrava através das três janelas, inundando a sala de luz, e fazendo sobressair o tom suave do madeiramento. Anthony olhou a seu redor com aprovação.

— Que beleza! — comentou. — Nada se compara à velha Inglaterra, não?

— Pareceu-lhe, a princípio, que o tiro foi disparado nesta sala? — perguntou o superintendente, sem responder ao elogio de Anthony.

— Deixe-me ver.

Anthony abriu a janela e saiu para o terraço, olhando para a casa.

— Sim, foi mesmo nesta sala — disse ele. — A cons­trução dela ocupa toda a extremidade. Se o tiro tivesse sido disparado em qualquer outro lugar, o som teria vindo da esquerda, mas eu o ouvi atrás de mim, ou, quando muito, da direita. Foi por isso que pensei em algum caçador extravia­do. A sala situa-se na extremidade da ala, como vê.

Afastou-se, e perguntou subitamente, como se uma idéia lhe tivesse ocorrido:

— Mas por que pergunta? O senhor sabe que o tiro foi disparado aqui, não é?

— Ah! — exclamou o superintendente. — Nunca sabemos tanto quanto desejaríamos. Sim, ele foi assassinado aqui mesmo. Mas o senhor falou a respeito de ter experi­mentado as janelas, não foi?

— Sim. Elas estavam trancadas pelo lado de dentro.

— Quantas delas o senhor experimentou?

— Todas as três.

— Está certo disso?

— Tenho o hábito de estar certo do que digo. Por que pergunta?

— Há uma coisa engraçada — disse o superintendente.

— Que coisa engraçada?

— Quando o crime foi descoberto, esta manhã, a ja­nela do meio estava aberta, isto é, não estava trancada.

— Puxa! — exclamou Anthony, sentando-se no para­peito da janela, e pegando a cigarreira. — Um golpe e tanto! Isso conduz o caso a um aspecto bastante diferente. Deixa-nos duas alternativas: ou ele foi morto por alguém que se achava na casa, e esse alguém destrancou a janela depois que eu fui embora, para dar a impressão de que o serviço fora feito pelo lado de fora, ou, para falar francamente, eu estou mentindo. Ouso dizer que o senhor se encontra mais inclinado para a segunda possibilidade, mas, palavra de honra, o senhor está enganado.

— Digo-lhe que ninguém sai desta casa, enquanto eu não resolver as coisas — disse severamente o Superintenden­te Battle.

Anthony encarou-o de modo perspicaz.

— Há quanto tempo o senhor tem a idéia de "que o serviço poderia ter sido feito pelo lado de dentro?

Battle sorriu.

— Desde o princípio tive essa impressão. A pista dei­xada pelo senhor era um tanto cintilante demais, se é que assim me posso expressar. E logo que suas botinas confir­maram as pegadas, comecei a ter minhas dúvidas.

— Congratulo-me com a Scotland Yard — disse An­thony alegremente.

Nesse momento, porém, no instante em que Battle apa­rentemente admitia a completa ausência de cumplicidade de Anthony no crime, este último sentia, mais do que nunca, a necessidade de ficar de sobreaviso. O Superintendente Battle era um policial muito astuto. Não valia a pena deixar escapar alguma coisa, estando ele nas imediações.

— Suponho que foi ali que aconteceu, não? — disse Anthony, fazendo um gesto de cabeça em direção à mancha escura sobre o assoalho.

— Sim.

— Com que atiraram nele? Com um revólver?

— Sim, mas só saberemos de que espécie quando fize­rem a autópsia e retirarem a bala.

— Então o revólver não foi encontrado?

— Não, não foi.

— Nenhuma pista?

— Bem, temos isto.

O Superintendente Battle, um tanto à maneira de um prestidigitador, exibiu meia folha de papel de cartas. En­quanto isso, observou novamente Anthony com atenção, sem demonstrar que o fazia.

Anthony, entretanto, reconheceu o desenho traçado no papel, sem nenhum sinal de temor.

— Ah! Os Camaradas da Mão Vermelha de novo. Se eles pretendem espalhar esta coisa por aí, seria melhor que mandassem litografar. Deve ser terrivelmente aborrecido fazer uma de cada vez. Onde o encontraram?

— Embaixo do cadáver. O senhor já tinha visto isto? Anthony narrou-lhe detalhadamente o breve encontro com aquela associação imbuída de espírito público.

— Dá a impressão de que os Camaradas o assassi­naram.

— O senhor acha provável?

— Bem, estaria de acordo com a propaganda deles. Mas sempre achei que aqueles que falam muito a respeito de sangue geralmente nunca o viram correr. Eu não diria que os Camaradas teriam coragem para tanto. E são pessoas tão pitorescas. Não consigo ver um deles disfarçado em hóspede de uma casa de campo. Contudo, nunca se sabe.

— É isso mesmo, Mr. Cade. Nunca se sabe. Anthony, de repente, deu a impressão de estar se di­vertindo.

— Agora compreendo. Janela aberta, pegadas, estranho suspeito na hospedaria da vila. Posso assegurar-lhe, entretanto, meu caro superintendente, que, quem quer que eu seja, o agente local da Mão Vermelha é que não sou.

O Superintendente Battle sorriu um pouco. Jogou, então, sua última cartada.

— O senhor não faria objeção a ver o corpo? — inda­gou subitamente.

— Nenhuma — replicou Anthony.

Battle tirou do bolso uma chave, e, precedendo Antho­ny, atravessou o corredor, parou ante uma porta e destran­cou-a. Era uma das pequenas salas de estar. O cadáver jazia sobre uma mesa, coberto por um lençol.

O Superintendente Battle esperou até que Anthony se aproximasse, e então puxou o lençol de repente.

Vivo clarão perpassou em seu olhar à exclamação que Anthony não conseguiu conter e ao sobressalto de surpresa que deixou escapar.

— Então o senhor o reconhece, Mr. Cade? — disse em tom de voz que se esforçava por não parecer triunfante.

— Sim, já o tinha visto — disse Anthony recuperan­do-se. — Mas não como o Príncipe Miguel Obolovitch. Passava por enviado de Messrs. Balderson and Hodgkins, e usava o nome de Mr. Holmes.

 

O visitante americano

O Superintendente Battle recolocou o lençol, com o ar ligeiramente pesaroso de alguém cujo melhor trunfo tivesse falhado. Anthony mantinha-se com as mãos nos bolsos, per­dido em pensamentos.

— Então era a isso que o velho Lollipop se referia quando falou em "outros meios" — murmurou por fim.

— Como disse, Mr. Cade?

— Nada, superintendente. Desculpe-me a distração. O senhor compreende, eu... ou antes, o meu amigo, Jimmy McGrath, foi habilmente espoliado de mil libras.

— Mil libras é uma boa quantia — disse Battle.

— Não é tanto pelas mil libras — disse Anthony —, embora eu concorde com o senhor que se trata de uma boa quantia. O que me deixa com raiva é o jeito como a coisa aconteceu. Entreguei o manuscrito como um cordeirinho. Isso dói, superintendente, isso dói realmente.

O detetive permaneceu calado.

— Bem, bem — disse Anthony. — Não adianta la­mentar, e pode ser que ainda não esteja tudo perdido. O que tenho a fazer é conseguir apanhar as memórias do velho Stylptitch até a próxima quarta-feira, e tudo ficará em ordem.

— O senhor se incomoda de voltar à Sala do Conselho, Mr. Cade? Há uma pequena coisa que desejo lhe mostrar.

Chegados ao aposento, o detetive dirigiu-se em largas passadas à janela do meio.

— Estive refletindo, Mr. Cade. Esta janela é muito dura; na verdade, é mesmo muito dura. O senhor podia ter-se enganado quando pensou que ela estivesse trancada. Ela poderia estar apenas emperrada. Estou certo... sim, estou certo de que o senhor se enganou.

Anthony encarou-o de modo perspicaz.. — E se eu disser que estou certo de que não me en­ganei?

— Não acha que poderia ter-se enganado? — disse Battle, olhando-o fixamente.

— Bem, para lhe ser agradável, superintendente, creio que sim.

Battle sorriu de maneira satisfeita.

— O senhor compreende as coisas com facilidade. Não faria objeção em afirmar isso de modo despreocupado, num momento conveniente?

— Nenhuma. Eu...

Parou, pois Battle apertara-lhe o braço. O superinten­dente, curvado para a frente, procurava ouvir.

Com um gesto, recomendou silêncio a Anthony. Enca­minhou-se sorrateiramente para a porta, e escancarou-a de repente.

No limiar estava um homem alto, de cabelos negros bem repartidos ao meio, olhos azuis com uma expressão inocente, e uma fisionomia plácida.

— Perdão, cavalheiros — disse em voz lenta e arras­tada, com um pronunciado sotaque transatlântico. — Mas é permitido inspecionar a cena do crime? Creio que perten­cem ambos à Scotland Yard, não?

— Não tenho essa honra — disse Anthony. — Mas este cavalheiro é o Superintendente Battle, da Scotland Yard.

— É mesmo? — disse o americano, aparentando gran­de interesse. — Prazer em conhecê-lo, senhor. Meu nome é Hiram P. Fish, de Nova York.

— Que é que o senhor deseja ver, Mr. Fish? — per­guntou o detetive.

O americano, de maneira cortês, entrou na sala e olhou com muito interesse para a mancha escura sobre o assoalho.

— Estou interessado no crime, Mr. Battle. É um dos meus hobbies. Contribuí para um dos nossos periódicos se­manais com uma monografia cujo assunto é "A degeneres­cência e o criminoso".

Enquanto falava, seus olhos giravam suavemente ao redor da sala, parecendo tudo notar. Detiveram-se um pouco mais na janela. "

— O corpo — disse o Superintendente Battle, afir­mando um fato evidente por si próprio — foi removido.

— É claro — disse Mr. Fish. Seus olhos percorriam as paredes recobertas de madeira. — Esta sala contém alguns quadros notáveis, cavalheiros. Um Holbein, dois Van Dycks, e, se não me engano, um Velásquez. Tenho interesse por quadros, e, igualmente, por edições originais. Foi para ver as suas primeiras edições que Lorde Caterham teve a gen­tileza de me convidar.

Suspirou delicadamente.

— Creio que agora já não será possível. Suponho que seria mais conveniente que os hóspedes voltassem imediata­mente para a cidade, não é?

— Receio que não — disse o Superintendente Battle. — Ninguém pode sair desta casa até que seja feito o in­quérito.

— É mesmo? E quando será o inquérito?

— Talvez amanhã, talvez só na segunda-feira. Preci­samos providenciar a autópsia e ver o juiz de instrução.

— Entendo — disse Mr. Fish. — Nessas circunstân­cias, será uma reunião melancólica.

Battle encaminhou-se para a porta.

— É melhor sairmos daqui — disse. — A porta ainda permanecerá trancada.

Esperou que os outros dois passassem, trancou a porta com a chave e guardou-a.

— Creio que o senhor está procurando impressões di­gitais, não é? — disse Mr. Fish.

— Talvez — disse laconicamente o superintendente.

— Eu também diria que numa noite como a de ontem um intruso teria deixado pegadas na madeira do assoalho.

— Nenhuma do lado de dentro, várias do lado de fora.

— Minhas — explicou Anthony alegremente.

Os olhos inocentes de Mr. Fish deslizaram sobre ele.

— Moço — disse ele —, o senhor me surpreende. Chegaram a um amplo bali, cujas paredes, tal como as da Sala do Conselho, eram revestidas de carvalho, e que pos­suía imensa galeria. Duas outras figuras surgiram na extre­midade oposta.

— Ah! — exclamou Mr. Fish. — Nosso genial anfitrião.

Era uma descrição tão cômica de Lorde Caterham, que Anthony precisou virar a cabeça para esconder um sorriso.

— E com ele — prosseguiu o americano — está uma senhora cujo nome não consegui entender ontem à noite. Mas ela é inteligente... ela é muito inteligente.

Com Lorde Caterham estava Virgínia Revel.

Anthony vinha esperando com ansiedade esse encontro. Não tinha idéia de como agir. Deixaria a iniciativa para Virgínia. Embora tivesse plena confiança em sua presença de espírito, não possuía a mínima idéia quanto à atitude que ela iria tomar. Suas dúvidas, porém, logo se dissiparam.

— Oh, é Mr. Cade! — disse Virgínia. Estendeu-lhe ambas as mãos. — Então, afinal achou que podia vir?

— Minha cara Mrs. Revel, não sabia que Mr. Cade era seu amigo — disse Lorde Caterham.

— É meu velho amigo — retorquiu Virgínia, sorrindo para Anthony, com um brilho irônico no olhar. — Encon­trei-o inesperadamente ontem em Londres, e disse-lhe que viria para cá.

Anthony apressou-se em aproveitar a deixa.

— Expliquei a Mrs. Revel — disse ele — que fora forçado a recusar seu amável convite porque este, na ver­dade, havia sido feito a outro homem. E eu não poderia, sob falsa identidade, impingir-lhe um perfeito estranho.

— Bem, bem, meu caro — disse Lorde Caterham —, tudo isso já passou. Mandarei buscar sua bagagem no Cricketers.

— É muita bondade sua, Lorde Caterham, mas...

— Que tolice! É claro que deve vir para Chimneys. Cricketers é um lugar horrível... para se ficar hospedado, quero dizer.

— É claro que deve vir, Mr. Cade — disse Virgínia suavemente.

Anthony verificou logo a mudança no ambiente que o circundava. O que Virgínia fizera era o suficiente. Ele já não era o ambíguo estranho. A posição dela era tão segura e inexpugnável, que qualquer pessoa por quem se responsa­bilizasse seria naturalmente aceita. Anthony pensou no re­vólver na árvore em Burnham Beeches, e sorriu interior­mente.

— Mandarei buscar seus pertences — disse Lorde

Caterham a Anthony. — Suponho que, em vista das cir­cunstâncias, não possamos ter a caçada. É pena; mas que se vai fazer? E não sei que diabo vou fazer com Isaacstein. É uma desgraça!

O deprimido par suspirou gravemente.

— Está resolvido, então — disse Virgínia. — Pode começar a ser útil desde já, Mr. Cade, levando-me para um passeio no lago. É um lugar muito tranqüilo, longe do crime e de toda essa espécie de coisas. Não é horrível para o pobre Lorde Caterham ter um assassinato cometido em sua casa? Mas a culpa é realmente de George. Como sabem, foi ele quem organizou a reunião.

— Ah! — exclamou Lorde Caterham. — Eu nunca devia ter dado ouvidos a ele!

— É impossível não dar ouvidos a George — disse Virgínia. — Ele segura a gente de tal maneira, que não se consegue escapar. Estou pensando em tirar a patente de uma lapela removível.

— Seria ótimo. — O anfitrião riu. — Estou contente com a sua vinda, Cade. Preciso de amparo.

— Aprecio muito a sua amabilidade, Lorde Caterham — disse Anthony. — Sobretudo — acrescentou — porque sou uma pessoa suspeita. Minha permanência aqui facilitará a tarefa de Battle.

— Em que sentido, senhor? — perguntou o superin­tendente.

— Não será difícil ficar de olho em mim — explicou Anthony amavelmente.

Pelo súbito piscar de olhos do superintendente, ele percebeu que havia atingido o alvo.

 

De política e finanças, sobretudo

Exceto por esse involuntário piscar de olhos, a impassi­bilidade do Superintendente Battle era inigualável. Se havia ficado surpreso com o fato de Virginia conhecer Anthony, não o demonstrara. Ele e Lorde Caterham permaneceram juntos, observando aqueles dois saírem pela porta que dava para o jardim. Mr. Fish também os observava.

— Simpático aquele moço — disse Lorde Caterham.

— Deve ser agradável para Mrs. Revel encontrar um velho amigo — murmurou o americano. — São conhecidos há muito tempo, provavelmente?

— Parece que sim — disse Lorde Caterham. — Mas nunca a ouvi mencionar o nome dele antes. Oh! A propósito, Battle, Mr. Lomax está querendo falar com o senhor. Ele está na saleta azul.

— Está bem, Lorde Caterham. Irei para lá imediata­mente.

Battle encontrou o caminho para a saleta azul sem ne­nhuma dificuldade. Já se achava familiarizado com a geo­grafia da casa.

— Ah, finalmente, Battle — disse Lomax. Caminhava impacientemente, com largas passadas, de um lado para o outro. Havia outra pessoa no aposento, um homem grandalhão, sentado junto à lareira. Trajava-se com correta vestimenta inglesa de caçada, mas que, entretanto, assentava-lhe de maneira estranha. Possuía um rosto rechon­chudo e amarelado, e olhos negros, tão impenetráveis quanto os de uma cobra. Seu nariz fazia uma curva generosa, e as linhas quadrangulares de seu imenso queixo expressavam autoridade.

— Entre, Battle — disse Lomax irritado. — E feche a porta. Este é Mr. Herman Isaacstein.

Battle inclinou a cabeça de maneira respeitosa.

Sabia tudo a respeito de Mr. Herman Isaacstein, e, embora o grande financista permanecesse em silêncio enquan­to Lomax andava de um lado para o outro e falava, ele sabia perfeitamente quem era a verdadeira autoridade na sala.

— Podemos falar com mais liberdade agora — disse Lomax. — Na frente de Lorde Caterham e do Coronel Melrose, eu não queria dizer muita coisa. Você compreende, Battle? Certas coisas não devem transpirar.

— Ah! — disse Battle. — Mas elas sempre transpi­ram; o que é uma pena.

Durante um segundo ele percebeu a sombra de um sorriso na face rechonchuda e amarelada, sorriso este que desapareceu tão logo esboçado.

— Que é que você pensa realmente desse moço... desse Anthony Cade? — continuou George. — Ainda acha que ele é inocente?

Battle sacudiu os ombros ligeiramente.

— Ele conta uma história verossímil. Parte dela pode­remos verificar. Por outro lado, temos que levar em conta sua presença aqui ontem à noite. Telegrafarei à África do Sul, naturalmente, pedindo informações quanto a seus an­tecedentes.

— Você o considera, então, livre de qualquer cumpli­cidade?

Battle ergueu a mão grande e quadrada.

— Mais devagar, senhor. Eu não disse isso.

— Qual é a sua idéia a respeito do crime, Superinten­dente Battle? — indagou Isaacstein, falando pela primei­ra vez.

Sua voz era sonora e profunda, e possuía um certo tom persuasivo. Fora-lhe de grande utilidade em reuniões de conselho, em seus dias de juventude.

— É demasiado cedo para ter idéias, Mr. Isaacstein. Ainda não fui além da primeira pergunta.

— Qual é?

— Oh, é sempre a mesma. O motivo. Quem se bene­ficia com a morte do Príncipe Miguel? Temos que respon­der a essa pergunta antes de ir mais adiante.

— O Partido Revolucionário da Herzoslováquia... — começou George.

O Superintendente Battle desprezou a sugestão com um pouco menos do seu habitual respeito.

— Não foram os Camaradas da Mão Vermelha, se o senhor está pensando neles.

— Mas o papel... com a mão vermelha desenhada?

— Posto lá para sugerir a solução óbvia. George sentiu sua dignidade um tanto ferida.

— Realmente, Battle, não vejo como você possa estar tão certo disso.

— Valha-me Deus, Mr. Lomax. Sabemos tudo quanto se refere aos Camaradas da Mão Vermelha. Estamos de olho neles desde que o Príncipe Miguel desembarcou na Ingla­terra. Esse género de coisas é serviço elementar do nosso departamento. Nunca lhes seria permitido aproximarem-se dele, nem a uma milha de distância.

— Concordo com o Superintendente Battle — disse Isaacstein. — Precisamos procurar em outro lugar.

— Como o senhor vê — disse Battle, encorajado pelo apoio —, sabemos alguma coisa a respeito do caso. Se não sabemos quem se beneficia com a morte dele, sabemos quem perde com ela.

— E isso significa? — disse Isaacstein.

Seus olhos negros encararam o detetive. Mais do que nunca, Battle lembrou-se de uma cobra na tocaia.

— O senhor e Mr. Lomax, sem mencionar o Partido Legalista da Herzoslováquia, se me perdoam a expressão, senhores, estão metidos numa boa enrascada.

— Francamente, Battle — interpôs-se George, profun­damente chocado.

— Continue, Battle — disse Isaacstein. — "Uma boa enrascada" descreve a situação de maneira muito exata. O senhor é um homem inteligente.

— Os senhores precisam de um rei. Perderam o seu rei de uma hora para a outra. — Estalou os dedos enormes. — Precisam encontrar outro rapidamente, e isso não é um trabalho fácil. Não, não quero saber os detalhes de seus planos; bastam-me as linhas gerais. Mas acredito que se trate de um grande negócio, não é?

Isaacstein inclinou a cabeça lentamente.

— É um negócio muito grande.

— Isso me leva à segunda pergunta: quem é o próximo herdeiro do trono da Herzoslováquia?

Isaacstein olhou para Lomax. Este último respondeu à pergunta com certa relutância, e bastante hesitação.

— Seria... eu diria que... sim, todas as probabili­dades indicam que o Príncipe Nicolau seria o próximo herdeiro.

— Ah! — disse Battle. — E quem é o Príncipe Ni­colau?

— Um primo-irmão do Príncipe Miguel.

— Ah! — disse Battle. — Gostaria de saber tudo quanto se refere ao Príncipe Nicolau, principalmente o lugar onde ele se encontra no momento.

— Não se sabe muita coisa a seu respeito — disse Lomax. — Quando jovem, ele tinha umas idéias muito es­quisitas, era ligado aos socialistas e aos republicanos, e agia de maneira extremamente inadequada à sua posição. Creio que foi obrigado a retirar-se de Oxford em conseqüência de uma escapada boêmia. Dois anos mais tarde correu o boato de que ele morrera no Congo, mas foi apenas um boato. Há alguns meses, quando se espalharam notícias de uma reação dos realistas, ele apareceu.

— Não diga! — disse Battle. — Onde foi que ele apa­receu?

— Na América.

— Na América!

Battle voltou-se para Isaacstein com uma palavra lacônica:

— Petróleo?

O financista assentiu.

— Ele objetava que, se os herzoslovacos escolhessem um rei, haveriam de preferi-lo ao Príncipe Miguel em virtu­de de suas idéias modernas e esclarecidas, e chamou a aten­ção para as opiniões democráticas que sustentou quando jovem e sua simpatia pelos ideais republicanos. Em retribui­ção ao apoio financeiro, achava-se pronto a garantir conces­sões a um certo grupo de financistas americanos.

O Superintendente Battle chegou ao ponto de esquecer-se de sua habitual impassibilidade, e deu vazão a um prolongado assobio.

— Então é isso — murmurou. — E o Partido Legalista apoiava o Príncipe Miguel, mas os senhores estavam certos de vencer a parada. E agora acontece isso!

— Você com certeza não pensa... — começou George.

— Tratava-se de um grande negócio — disse Battle. — Assim diz Mr. Isaacstein. E eu diria que aquilo que ele chama de um grande negócio é um grande negócio.

— Existem sempre instrumentos inescrupulosos para serem utilizados — disse Isaacstein tranquilamente. — No momento, quem ganha é Wall Street. Mas ainda não estou vencido. Descubra quem matou o Príncipe Miguel, Supe­rintendente Battle, se quer prestar um serviço a seu país.

— Uma coisa parece-me extremamente suspeita 7— interrompeu George. — Por que o palafreneiro, Capitão Andrassy, não veio para cá ontem com o príncipe?

— Investiguei isso — disse Battle. — É perfeitamente simples. Ele permaneceu na cidade a fim de entrar em com­binações com uma certa dama, como intermediário do Prín­cipe Miguel, para um encontro no próximo fim de semana. O barão reprovava tais coisas, julgando-as imprudentes em vista da situação presente, e por isso Sua Alteza precisava fazê-las de maneira velada. Ele era, se assim posso dizer, inclinado a ser um jovem um tanto... dissipado.

— Receio que sim — disse George gravemente. — Receio que sim.

— Há um outro ponto que devemos levar em consi­deração, creio eu — disse Battle, falando com certa hesita­ção. — Parece que o Rei Victor está na Inglaterra.

— Rei Victor?

Lomax franziu o cenho, esforçando-se por lembrar-se.

— Conhecido escroque francês. Recebemos um aviso da Sûreté de Paris.

— Naturalmente — disse George. — Lembro-me ago­ra. Um ladrão de jóias, não é? Ora, foi esse homem que...

Interrompeu-se abruptamente. Isaacstein, que estivera, de cenho franzido, olhando distraidamente para a lareira, ergueu a vista demasiado tarde para apanhar o olhar telegrá­fico do Superintendente Battle para o outro. Sendo, porém, um homem sensível a vibrações, tornou-se consciente de uma certa tensão.

— Não precisa mais de mim, não é, Lomax? — per­guntou.

— Não, obrigado, meu caro.

— Transtornaria seus planos se eu regressasse a Lon­dres, Superintendente Battle?

— Receio que sim — disse o superintendente cortes­mente. — O senhor compreende; se for, os outros também hão de querer ir. E isso não seria possível.

— Está bem.

O grande financista saiu da sala, fechando a porta atrás de si.

— Esplêndido sujeito esse Isaacstein — murmurou George Lomax de maneira negligente.

— Personalidade muito forte — concordou o Superin­tendente Battle.

George recomeçou a dar largas passadas de um lado para o outro.

— O que você disse me deixou muito perturbado. O Rei Victor! Pensei que ele estivesse na prisão.

— Saiu há alguns meses. A polícia francesa pretendia ficar nos seus calcanhares, mas ele conseguiu despistá-la direitinho. Trata-se de um sujeito arrojadíssimo. Por uma razão ou outra, a polícia acredita que ele esteja na Inglaterra, e avisou-nos a esse respeito.

— Mas que estaria ele fazendo na Inglaterra?

— Isso cabe ao senhor dizer — disse Battle de modo significativo.

— Você quer dizer... ? Você pensa... ? Conhece a história, naturalmente. Ah, sim, vejo que você conhece. Eu ainda não exercia a função nessa época, é claro, mas ouvi a história toda contada pelo falecido Lorde Caterham. Uma catástrofe inigualável.

— O Koh-i-noor — disse Battle pensativamente.

— Psiu, Battle! — George olhou ao redor de modo desconfiado. — Por favor, não mencione nomes. É melhor assim. Se tiver que falar nisso, diga "K".

O superintendente recobrou a impassibilidade.

— Você não está ligando o Rei Victor a este crime, não é, Battle?

— É apenas uma possibilidade. Se o senhor puxar pela memória, há de lembrar-se de que havia quatro lugares onde um... um certo visitante real podia ter escondido a jóia. Chimneys era um deles. O Rei Victor foi preso em Paris três dias depois do desaparecimento do "K", se é assim que devo chamá-lo. Ficamos sempre na esperança de que algum dia ele nos levasse à jóia.

— Mas Chimneys já foi vasculhado de ponta a ponta uma dúzia de vezes.

— Sim — disse Battle sabiamente. — Mas não é de grande utilidade procurar quando não se sabe onde. Supo­nha apenas que esse Rei Victor tenha vindo em busca da coisa, ficasse surpreso com o Príncipe Miguel, e tenha ati­rado nele.

— É possível — disse George. — Uma solução muito provável para o crime.

— Eu não iria tão longe. É possível, mas não muito.

— Por quê?

— Porque nunca se soube que o Rei Victor tivesse matado alguém — disse Battle com seriedade.

— Oh, mas um homem como esse... um criminoso perigoso...

Battle, porém, balançou a cabeça com insatisfação.

— Os criminosos sempre agem de acordo com seu tipo característico, Mr. Lomax. É surpreendente. Contudo...

— Sim?

— Gostaria de fazer algumas perguntas ao criado do príncipe. Deixei-o para o fim de propósito. Mandarei trazê-lo aqui, se o senhor não se incomodar.

George fez um gesto de assentimento. O superinten­dente tocou a campainha. Tredwell apareceu, e saiu para cumprir suas instruções.

Pouco depois voltou acompanhado de um homem alto e louro, de maçãs salientes, profundos olhos azuis, e uma impassibilidade quase comparável à de Battle.

— Boris Anchoukoff?

— Sim.

— Era você o valete do Príncipe Miguel?

— Sim, eu era o valete de Sua Alteza.

O homem falava um inglês correto, embora com acen­tuado sotaque estrangeiro.

— Sabe que seu amo foi assassinado ontem à noite? Profundo rosnado, semelhante ao uivo de um animal selvagem, foi a única resposta do homem. George, alarmado, prudentemente afastou-se para perto da janela.

— Quando viu seu amo pela última vez?

— Sua Alteza foi para a cama às dez e meia. Eu dormi, como sempre faço, na antecâmara ao lado. Ele deve ter saído pela outra porta, a que dá para o corredor. Não o ouvi sair. Pode ser que me tivessem narcotizado. Fui um criado infiel, dormi enquanto meu amo estava acordado. Estou amaldiçoado.

George encarou-o fascinado.

— Você gostava muito de seu amo, não é? — disse Battle, observando o homem com atenção.

A fisionomia de Boris contraiu-se dolorosamente. En­goliu duas vezes, e só então sua voz saiu cheia de emoção:

— Digo-lhe, policial inglês, que eu daria a minha vida por ele! E, já que ele está morto, e eu ainda vivo, meus olhos não hão de dormir, nem meu coração terá descanso, até que eu o tenha vingado. Vou farejar o assassino como um cachorro, e quando o descobrir... Ah! — Seus olhos brilharam. Subitamente retirou de dentro do paletó imensa faca e brandiu-a no ar. — Não vou matá-lo de uma só vez, oh, não! Primeiro vou retalhar seu nariz, e cortar suas ore­lhas e extrair seus olhos, e então... então espetarei esta faca em seu negro coração.

Guardou a faca rapidamente, virou-se e saiu da sala. George Lomax, cujos olhos protuberantes pareciam agora querer saltar das órbitas, olhou espantado para a porta fechada.

— Típica educação herzoslovaca, naturalmente — mur­murou ele. — Gente bárbara. Raça de bandoleiros.

O Superintendente Battle ergueu-se cautelosamente.

— Ou esse homem é sincero — observou — ou é o maior simulador que eu já vi. E, se ele for mesmo sincero, Deus que ajude o assassino do Príncipe Miguel se esse cão de fila conseguir apanhá-lo.

 

O francês desconhecido

Virgínia e Anthony seguiram, lado a lado, pelo caminho que conduzia ao lago. Permaneceram em silêncio durante alguns minutos. Foi Virgínia quem o quebrou, por fim, dan­do uma pequena risada.

— Oh — disse ela —, não é espantoso? Aqui estou eu cheia de coisas para lhe contar, e ansiosa para saber uma porção de coisas, e nem sei por onde começar. Antes de mais nada — baixou a voz —, que foi que você fez com o corpo? Soa terrível, não é? Jamais sonhei em ver-me assim envolvida num crime.

— Creio que é uma sensação bem nova para você — concordou Anthony.

— Mas não para você?

— Bem, certamente nunca precisei me livrar de um cadáver antes.

— Conte-me como aconteceu.

De maneira breve e sucinta Anthony relatou o que fizera na noite anterior. Virginia ouviu com atenção.

— Penso que você agiu de maneira inteligente — disse aprovando, quando ele terminou. — Posso apanhar a mala quando regressar a Paddington. A única dificuldade que po­deria surgir seria se você precisasse prestar contas de onde esteve ontem à noitinha.

— Não acredito que isso aconteça. O corpo não pode ter sido encontrado senão tarde da noite, ou possivelmente esta manhã. Caso contrário, os jornais da manhã trariam qualquer coisa a esse respeito. E, apesar do que você possa imaginar baseada na leitura de histórias policiais, os médicos não são mágicos para precisar exatamente há quanto tempo um homem foi morto. Será bastante vaga a hora da morte dele. Um álibi funcionaria perfeitamente.

— Sei disso. Lorde Caterham esteve conversando co­migo. Mas esse homem da Scotland Yard está bem conven­cido da sua inocência, não é?

Anthony não respondeu imediatamente.

— Ele não parece extraordinariamente astuto — pros­seguiu Virginia.

— Quanto a isso, não sei — disse Anthony com lenti­dão. — Tenho a impressão de que não há nada de errado com o Superintendente Battle. Ele parece estar convencido da minha inocência, mas não estou seguro. No momento, acha-se perplexo com a minha aparente falta de motivos.

— Aparente? — exclamou Virginia. — Mas que pos­sível razão teria você para assassinar um desconhecido conde estrangeiro?

Anthony lançou-lhe um olhar perscrutador.

— Você já esteve na Herzoslováquia, não é? — in­dagou.

— Sim. Estive lá com meu marido durante dois anos, na embaixada.

— Então foi exatamente antes do assassinato do rei e da rainha. Encontrou-se alguma vez com o Príncipe Miguel Obolovitch?

— Miguel? Claro que sim. Vilão terrível! Lembro-me de que ele sugeriu que nos casássemos morganaticamente.

— É mesmo? E que foi que ele sugeriu quanto a seu marido?

— Oh, ele tinha uma espécie de plano Davi e Urias já preparado.

— E como foi que você respondeu a essa amável oferta?

— Bem — disse Virginia —, infelizmente tinha-se que usar de diplomacia. Em vista disso, o infeliz Miguel não recebeu a merecida resposta. De qualquer jeito ficou muito sentido. Por que todo esse interesse em Miguel?

— Uma conclusão a que estou chegando, cá a meu modo. Conforme entendi, você não se encontrou com o ho­mem assassinado, não é?

— Não. Vou dizer como nos livros: "Ele se retirou para seus aposentos, imediatamente após a chegada".

— E, naturalmente, você não viu o cadáver, não é? Virgínia, encarando-o com muito interesse, abanou a cabeça.

— Acha que poderia vê-lo?

— Através de influência nas altas esferas, isto é, Lorde Caterham, ouso dizer que sim. Por quê? É uma ordem?

— Por Deus, não! — exclamou Anthony horrorizado. — Tenho sido tão ditatorial assim? Não; trata-se simples­mente do seguinte: o Príncipe Miguel da Herzoslováquia estava incógnito como Conde Stanislaus.

Os olhos de Virgínia abriram-se desmesuradamente.

— Compreendo. — Subitamente sua fisionomia abriu-se em fascinante sorriso. — Espero que você não esteja su­gerindo que Miguel foi para seu quarto apenas para evitar-me, não?

— Algo semelhante — admitiu Anthony. — Veja bem, se estou certo quanto à minha idéia de que alguém quis impedir a sua vinda a Chimneys, a razão parece residir no fato de você conhecer a Herzoslováquia. Já pensou que você é a única pessoa aqui que conhecia pessoalmente o Príncipe Miguel?

— Quer dizer que o homem que foi assassinado é um impostor? — perguntou Virgínia abruptamente.

— É a possibilidade que me cruzou a mente. Se con­seguir que Lorde Caterham lhe mostre o cadáver, esclarece­remos imediatamente esse ponto.

— Ele foi morto às onze e quarenta e cinco — disse Virgínia, pensativa. — A hora mencionada no pedaço de papel. Tudo isso é horrivelmente misterioso.

— Isso me lembra alguma coisa. Aquela janela é a sua? A segunda a partir da extremidade, sobre a Sala do Conselho?

— Não, meu quarto fica na ala elisabetana, do outro lado. Por quê?

— Apenas porque, enquanto eu me afastava, ontem à noite, após ter julgado ouvir o tiro, acenderam a luz naquele quarto.

— Curioso! Não sei quem ocupa aquele quarto, mas posso descobrir perguntando a Bundle. Teriam ouvido o tiro?

— Se assim fosse teriam logo avisado. Segundo disse Battle, ninguém na casa ouviu o barulho do.tiro. É a única pista que tenho, e ouso dizer que é bem fraca, mas pretendo segui-la de qualquer forma.

— É curioso, certamente — disse Virgínia de modo pensativo.

Tinham chegado à cabana dos barcos, junto ao lago, e nela apoiavam-se enquanto falavam.

— E agora, para conversarmos melhor — disse Antho­ny —, vamos remar suavemente no lago, a salvo dos ouvidos indiscretos da Scotland Yard, de visitantes americanos e criados curiosos.

— Lorde Caterham contou-me alguma coisa — disse Virgínia. — Mas não o suficiente. Para começar, quem é você realmente, Anthony Cade ou Jimmy McGrath?

Pela segunda vez nessa manhã, Anthony desenrolou a história das seis últimas semanas da sua vida, agora porém com uma diferença, o relato feito a Virgínia não precisou de alterações. Terminou contando seu espanto ao reconhecer "Mr. Holmes".

— A propósito — concluiu —, ainda não lhe agradeci pelo perigo a que se expôs dizendo que eu era um velho amigo seu.

— Claro que você é um velho amigo — exclamou Virginia. — Não há de pensar que eu lhe fosse impingir um cadáver, e na próxima vez em que nos encontrássemos fin­gisse que você era um mero conhecido. Realmente!

Fez uma pausa.

— Sabe o que me intriga em tudo isso? — prosseguiu.

— É que nessa história deve haver algum outro mistério em que ainda não penetramos.

— Creio que você tem razão — concordou Anthony.

— Há uma coisa que eu quero que você me diga — con­tinuou ele.

— Qual é?

— Por que se mostrou surpresa quando mencionei o nome de Jimmy McGrath ontem na Pont Street? Já tinha ouvido falar nele?

— Sim, Sherlock Holmes. George, meu primo George Lomax, sabe, procurou-me outro dia, e sugeriu-me uma série de coisas absurdas. Pretendia que eu viesse para cá, conquis­tasse esse tal McGrath, e conseguisse obter as memórias de qualquer maneira. Não falou precisamente assim, é claro.

Disse uma porção de tolices a respeito da dama inglesa, e coisas semelhantes, mas o sentido real era evidente. Só mes­mo o pobre George pensaria numa coisa tão detestável. E então, como eu quisesse saber mais coisas, tentou afastar-me com mentiras que não teriam enganado nem uma criança de dois anos.

— Bem, parece que, de qualquer forma, seus planos deram certo — observou Anthony. — Aqui estou eu, o James McGrath que ele queria, e aí está você sendo amável comigo.

— Com uma diferença, porém: nada de memórias para o pobre George. Agora, quem tem uma pergunta para lhe fazer sou eu. Quando eu disse que não havia escrito aquelas cartas, você afirmou que já sabia disso; não era possível que soubesse tal coisa.

— Oh, sim, era perfeitamente possível — disse An­thony sorrindo. — Tenho bons conhecimentos de psicologia.

— Você quer dizer que acreditava na excelente quali­dade do meu caráter de tal forma que...

Anthony, porém, abanou a cabeça fortemente.

— Absolutamente. Nada sei a respeito de seu caráter. Você podia ter um amante, podia ter-lhe escrito. Mas nunca se prestaria a chantagem. A Virgínia Revel dessas cartas achava-se tremendamente assustada; você teria lutado.

— Fico imaginando quem será essa Virginia Revel, e onde estará. Sinto-me como se tivesse uma sósia em algum lugar.

Anthony acendeu um cigarro.

— Sabe que uma das cartas foi escrita daqui de Chimneys? — indagou por fim.

— Quê? — Virginia sobressaltou-se. — Quando foi escrita? /

— Não foi datada. Mas é curioso, não?

— Tenho absoluta certeza de que nenhuma outra Vir­ginia jamais esteve em Chimneys. Caso isso tivesse aconte­cido, Bundle ou Lorde Caterham teriam dito qualquer coisa a respeito da coincidência de nomes.

— Sim. É um tanto estranho. Sabe, Mrs. Revel, estou começando a acreditar na inexistência dessa outra Virginia Revel.

— Ela é muito esquiva — concordou Virginia.

— Extraordinariamente esquiva. Estou começando a pensar que a pessoa que escreveu essas cartas usou deliberadamente o seu nome.

— Mas por quê? — exclamou Virginia. — Por que teriam feito tal coisa?

— Ah, aí é que está. Ainda há muita coisa para se descobrir em todo esse caso.

— Quem você acha que assassinou Miguel? — per­guntou Virginia subitamente. — Os Camaradas da Mão Vermelha?

— Creio que poderiam ter sido eles — disse Anthony com voz descontente. — Matar sem motivo seria bem ca­racterístico deles.

— Vamos trabalhar — disse Virginia. — Estou vendo Lorde Caterham e Bundle passeando juntos. A primeira coisa a fazer é verificar logo se o morto é Miguel ou não.

Anthony remou para a margem, e poucos momentos depois os dois juntavam-se a Lorde Caterham e sua filha.

— O almoço está atrasado — disse Lorde Caterham com voz desanimada.

— Talvez Battle tenha insultado a cozinheira.

— Este é um amigo meu, Bundle — disse Virginia. — Seja amável com ele.

Bundle olhou fixamente para Anthony durante alguns minutos, e em seguida dirigiu-se a Virginia, como se ele não estivesse presente.

— Onde é que você encontra esses homens bonitos, Virginia? Pergunto "com inveja": como é que você faz?

— Pode ficar com ele — respondeu Virginia de modo generoso. — Eu quero é Lorde Caterham.

Sorriu para o lisonjeado par, enfiou o braço sob o dele e afastaram-se juntos.

— Você fala? — perguntou Bundle. — Ou é somente forte e silencioso?

— Falar? — disse Anthony. — Eu balbucio, eu mur­muro. Eu borbulho como um riacho deslizante, sabe? Às vezes até faço perguntas.

— Por exemplo?

— Quem ocupa o segundo quarto à esquerda, a partir da extremidade? — Apontou-o, enquanto falava.

— Que pergunta extraordinária! — disse Bundle. — Estou muito intrigada. Deixe-me ver... oh, sim, é o quarto de Mlle Brun, a governanta francesa. Ela se esforça para educar minhas irmãs mais moças, Dulcie e Daisy, como na­quela canção, sabe? Creio que teriam dado o nome de Dorothy May à próxima, mas minha mãe cansou-se de ter só meninas e morreu. Achou que qualquer outra se incumbi­ria de fornecer um herdeiro.

— Mlle Brun — disse Anthony pensativo. — Há quanto tempo ela está com vocês?

— Há dois meses. Veio trabalhar conosco quando es­távamos na Escócia.

— Ah! — exclamou Anthony. — Estou pressentindo alguma coisa.

— E eu estou pressentindo alguma fome — disse Bundle. — Convido o homem da Scotland Yard para almo­çar conosco, Mr. Cade? O senhor é um cavalheiro e conhece bem a etiqueta com relação a essas coisas. Nós nunca tivemos um assassino em casa. É excitante, não? Foi uma pena que se desfizessem as dúvidas quanto à sua pessoa, esta manhã. Sempre desejei conhecer um assassino e verificar se eles são tão geniais e encantadores como sempre afirmam os jornais de domingo. Meu Deus! o que é aquilo?

"Aquilo" parecia ser um táxi aproximando-se da casa. Seus dois ocupantes eram um homem alto, careca e com uma barba negra, e um indivíduo mais baixo e mais jovem, de bigode preto. Anthony reconheceu o primeiro, e julgou fosse ele — mais do que o veículo que o trazia — que tivesse pro­vocado nos lábios de sua companheira a exclamação de espanto.

— A não ser que me engane — observou —, aquele é meu velho amigo, o Barão Lollipop.

— Barão o quê?

— Eu o chamo de Lollipop por conveniência. A pro­núncia exata do seu nome faz endurecer as artérias.

— Quase arrebentou o telefone esta manhã — obser­vou Bundle. — Então é esse o barão? Já estou vendo que vão empurrá-lo para mim esta tarde; e já agüentei Isaacstein a manhã toda. George que agüente as suas encrencas, e a política que vá para o diabo! Desculpe-me por deixá-lo, Mr. Cade, mas preciso ficar ao lado de meu pobre pai.

Bundle afastou-se rapidamente em direção à casa.

Anthony permaneceu observando-a durante alguns mi­nutos, e depois, pensativo, acendeu um cigarro. Ao fazê-lo, ouviu um som furtivo, bem próximo. Estava junto à cabana dos barcos, e pareceu-lhe que o som vinha exatamente de trás. Teve a impressão de que um homem tentava inutilmen­te conter um espirro.

— Imagino quem estará atrás da cabana dos barcos — murmurou Anthony consigo próprio. — Creio que é melhor verificar.

Juntando a ação à palavra, jogou fora o fósforo que acabara de apagar e deslizou sem o menor ruído à volta da cabana.

Deu com um homem que, evidentemente, estivera ajoe­lhado no chão, e esforçava-se agora por erguer-se. Era alto, trajava um casaco de cor suave, usava óculos, e quanto ao resto tinha uma barbicha negra e eriçada, e possuía maneiras ligeiramente afetadas. Teria entre trinta e quarenta anos, e sua aparência era muito respeitável.

— Que está fazendo aqui? — perguntou Anthony. Estava certo de que o homem não era um dos hóspedes de Lorde Caterham.

— Peço-lhe perdão — disse o estranho, com acentuado sotaque estrangeiro, e um sorriso que procurava ser sim­pático. — É que desejo regressar ao Jolly Cricketers, e perdi o caminho. Monsieur teria a bondade de me orientar?

— Certamente — disse Anthony. — Mas não se vai pela água.

— Como? — disse o estranho, com ar de espanto.

— Eu disse — repetiu Anthony, lançando um olhar significativo para a cabana dos barcos — que não se vai pela água. Existe um caminho através do parque a alguma distância daqui, mas tudo isso é propriedade particular. O senhor está invadindo propriedade alheia.

— Lamento muito — disse o estranho. — Perdi completamente a direção. Pensei em pedir informações che­gando aqui.

Anthony conteve-se para não observar que ajoelhar-se atrás de uma cabana de barcos era uma forma um tanto estranha de pedir informações. Segurou o desconhecido ama­velmente pelo braço.

Vá por aqui — disse. — Dê a volta ao lago e siga em frente até o caminho. Chegando a ele, vire à esquerda e siga reto até a vila. Está hospedado no Cricketers, suponho?

— Sim, monsieur. Desde esta manhã. Muito obrigado por sua bondade em orientar-me.

— De nada — respondeu Anthony. — Espero que não tenha apanhado um resfriado.

— Como? — disse o estranho.

— Por ter ficado ajoelhado no chão úmido, quero dizer — explicou Anthony. — Creio que o ouvi espirrar.

— Posso ter espirrado — admitiu o outro.

— Perfeitamente — disse Anthony. — Mas não devia reprimir o espirro. Outro dia mesmo um dos médicos mais eminentes disse isso. É extremamente perigoso. Não me re­cordo exatamente o que acontece, se provoca inibições ou endurece as artérias, mas nunca se deve fazê-lo. Bom dia.

— Bom dia, e obrigado, monsieur, por ensinar-me o caminho certo.

— Segundo estranho suspeito da hospedaria da vila — murmurou Anthony consigo próprio, enquanto observava o outro afastar-se. — E alguém que não posso identificar. A aparência é a de um comerciante francês. Não consigo vê-lo como um camarada da mão vermelha. Representaria ele um terceiro partido no tumultuado Estado da Herzoslováquia? No quarto da governanta francesa situa-se a segunda janela, a contar da extremidade. Um francês misterioso é encontrado deslizando furtivamente, e ouvindo conversas que não se destinam a seus ouvidos. Aposto que aqui tem dente de coelho.

Assim cismando, Anthony dirigiu-se para casa. No ter­raço encontrou Lorde Caterham, bastante deprimido, e os dois recém-chegados. Lorde Caterham alegrou-se ao ver An­thony.

— Ah, aí vem o senhor — disse. — Deixe-me apresen­tá-lo ao barão... Barão... e ao Capitão Andrassy. Mr. Anthony Cade.

O barão olhou fixamente para Anthony com crescente suspeita.

— Mr. Cade? — disse, com firmeza. — Creio que não.

— Uma palavra a sós com o senhor, barão — disse Anthony. — Posso explicar-lhe tudo.

O barão assentiu, e os dois homens caminharam juntos pelo terraço.

— Barão — disse Anthony —, devo entregar-me à sua misericórdia. Abusei da honra de um cavalheiro inglês a ponto de viajar para este país com um nome suposto. Apre­sentei-me como Mr. James McGrath, mas, como o senhor próprio pode verificar, o logro foi mínimo. O senhor conhece, sem dúvida, as obras de Shakespeare e suas observações a respeito da insignificância da nomenclatura das rosas. Tra­ta-se do mesmo caso. O homem que o senhor desejava ver era aquele em cujo poder estavam as memórias. Esse homem era eu. Como o senhor sabe muito bem, as memórias já não estão comigo. Um hábil artifício, barão; um artifício realmente muito hábil. Quem pensou nisso, o senhor ou seu chefe?

— A idéia ser de Sua Alteza. E não permitiu que ninguém, senão ele próprio, a levasse avante.

— E executou-a de maneira excelente — disse An­thony, aprovando. — Só mesmo um inglês.

— Foi a de um cavalheiro inglês a educação que o príncipe recebeu — explicou o barão. — É costume na Herzoslováquia.

— Nenhum profissional teria arrancado esses papéis de maneira melhor — disse Anthony. — Posso perguntar, sem ser indiscreto, o que aconteceu com eles?

— Entre cavalheiros — começou o barão.

— É muita bondade sua, barão — murmurou Anthony. — Jamais fui chamado tantas vezes de cavalheiro como tenho sido nestas últimas quarenta e oito horas.

— Para senhor digo isto: acredito que elas foram quei­madas.

— Acredita, mas não tem certeza, não é?

— Sua Alteza guardou consigo. Intenção sua era ler memórias e depois destruir com fogo.

— Entendo — disse Anthony. — Contudo elas não são literatura leve, que se folheia em meia hora.

— Entre os pertences de meu martirizado senhor elas não foram encontradas. Portanto, é claro que queimadas foram.

Hum! — exclamou Anthony. — Teriam sido?

Permaneceu em silêncio durante alguns instantes, e depois prosseguiu.

— Fiz-lhe estas perguntas, barão, porque, conforme o senhor deve ter ouvido, eu próprio estou implicado no crime. Preciso de provas para que nenhuma suspeita recaia sobre mim.

— Sem dúvida — disse o barão. — Sua honra exige isso.

— Exatamente — disse Anthony. — É como o senhor diz. Não tenho inclinação para a coisa. Só posso ficar livre de suspeitas se descobrir o verdadeiro assassino, e para tanto preciso de todos os fatos. Esta questão das memórias é muito importante. Parece-me possível que apoderar-se delas fosse a razão do crime. Diga-me, barão, acha que esta seja uma idéia muito forçada?

O barão hesitou durante alguns instantes.

— O senhor leu as memórias? — indagou, por fim, cautelosamente.

— Creio que já obtive a resposta — disse Anthony sorrindo. — Apenas mais uma coisa, barão. Quero avisá-lo de que ainda tenho a intenção de entregar esse manuscrito aos editores, na próxima quarta-feira, dia 13 de outubro.

O barão olhou-o espantado.

— Mas senhor não tem mais manuscrito em seu poder, não é?

— Eu disse na próxima quarta-feira. Hoje é sexta. Restam-me cinco dias para conseguir recuperá-lo.

— Mas se manuscrito estar queimado?

— Não creio que esteja. Tenho boas razões para não acreditar nisso.

Enquanto falava, contornaram o terraço. Uma figura maciça encaminhava-se ao encontro deles. Anthony, que ainda não havia visto o grande Mr. Herman Isaacstein, en­carou-o com considerável interesse.

— Ah, barão — disse Isaacstein, brandindo o imenso charuto negro que estava fumando —, este é um mau negó­cio... um negócio muito mau.

— Caro amigo Mr. Isaacstein, ser verdade — chora­mingou o barão. — Todo nosso nobre edifício ficar em ruínas.

Anthony, com muito tato, deixou os dois cavalheiros entregues aos seus lamentos, e retrocedeu.

Subitamente estacou. Fina espiral de fumaça erguia-se no ar, aparentemente evolando-se bem do centro de um dos arbustos da sebe.

— Deve haver um vazio no meio — refletiu Anthony. —Já ouvi falar nisso.

Olhou rapidamente à direita e à esquerda. Lorde Caterham e o Capitão Andrassy, ambos de costas, achavam-se na extremidade oposta do terraço. Anthony abaixou-se e insinuou-se ardilosamente através do compacto arbusto.

Estava bem certo em sua suposição. A cerca viva era, na realidade, composta de duas fileiras de arbustos, existindo entre elas estreita passagem. Não havia nenhum mistério nisso, mas, vendo a sebe pela frente, ninguém pensaria em tal probabilidade.

Anthony observou a estreita passagem: pouco mais adiante um homem achava-se reclinado em uma cadeira de vime. Um charuto fumado pela metade descansava no braço da poltrona, e o cavalheiro parecia adormecido.

— Hum! — disse Anthony consigo próprio. — Eviden­temente Mr. Hiram Fish prefere sentar-se à sombra.

 

Chá na sala de aula

Anthony voltou ao terraço inteiramente convencido de que o único lugar seguro para uma conversa particular era o meio do lago.

Soou um gongo, e Tredwell, formal, surgiu de uma porta lateral.

— O almoço está servido, senhor.

— Ah! — disse Lorde Caterham, alegrando-se um pouco. — O almoço!

Nesse momento, duas crianças irromperam de dentro de casa. Duas alegres jovenzinhas de doze e dez anos, as quais, embora se chamassem Dulcie e Daisy, conforme dis­sera Bundle, pareciam ser mais conhecidas por Guggle e Winkle. Executaram uma espécie de dança de guerra, inter­calada de estridentes gritos, até que surgiu Bundle e conse­guiu acalmá-las.

— Onde está mademoiselle? — perguntou-lhes.

— Ela está com migraine1, com migraine, com migraine! — cantou Winkle.

1 "Enxaqueca." Em francês no original. (N. do E.)

 

— Urra! — exclamou Guggle, unindo-se à irmã.

Lorde Caterham conseguira conduzir a maioria de seus hóspedes para dentro de casa. Segurou com firmeza o braço de Anthony.

— Venha ao meu estúdio — sussurrou. — Tenho lá algo especial.

Infiltrando-se pelo hall, mais à maneira de um ladrão do que como o dono da casa, Lorde Caterham abrigou-se em seu refúgio. Ali destrancou um armário, de onde retirou diversas garrafas.

— Conversar com estrangeiros deixa-me sempre tão se­dento — explicou, à guisa de desculpa. — Não sei por quê.

Ouviu-se uma batida à porta, e Virgínia introduziu a cabeça pela porta entreaberta.

— Tem algum coquetel especial para mim? — per­guntou ela.

— Claro que sim — disse Lorde Caterham hospitalei­ro. — Entre.

Os minutos seguintes foram dedicados a grave ritual.

— Eu estava bem necessitado disto — disse Lorde Caterham, repondo o copo sobre a mesa. — Como disse ainda agora, acho excessivamente fatigante conversar com estrangeiros. Talvez seja porque eles são tão polidos. Vamos. Vamos almoçar.

Conduziu-os à sala de jantar. Virgínia segurou o braço de Anthony, e puxou-o um pouco para trás.

— Já fiz a minha boa ação do dia — segredou. — Consegui que Lorde Caterham me levasse para ver o cadáver.

— E então? — perguntou Anthony com ansiedade. Sua teoria seria agora posta à prova.

Virgínia abanou a cabeça.

— Você estava enganado — sussurrou. — Era mesmo o Príncipe Miguel!

— Oh! — lamentou profundamente Anthony. — E mademoiselle teve migraine — acrescentou alto, em tom de insatisfação.

— Que ligação tem uma coisa com a outra?

— Provavelmente nenhuma, mas eu desejava vê-la. Descobri que ela ocupa o segundo quarto a partir da extre­midade, aquele onde vi a luz acender-se ontem à noite.

— É curioso.

— Talvez não signifique nada. Assim mesmo pretendo vê-la ainda hoje.

O almoço mais parecia um sacrifício. Nem mesmo a alegria de Bundle conseguiu harmonizar a heterogênea reu­nião. O barão e Andrassy portavam-se de maneira correta, formal, cheia de etiquetas, e tinham o ar de quem tomasse parte em uma refeição num mausoléu. Lorde Caterham esta­va em estado letárgico e deprimido. Bill Eversleigh fitava Virginia de maneira ardente. George, muito atento à posição difícil em que se encontrava, conversava em tom grave com o barão e Mr. Isaacstein. Guggle e Winkle, excessivamente alegres pelo fato de terem um assassinato em casa, preci­savam ser continuamente repreendidas e mantidas sob con­trole, ao passo que Mr. Hiram Fish mastigava lentamente os alimentos e emitia secas observações em sua pronúncia arrastada. O Superintendente Battle havia desaparecido, e ninguém sabia o que acontecera com ele.

— Graças a Deus terminou — murmurou Bundle para Anthony, ao se levantarem da mesa. — E George, esta tarde, vai levar o contingente estrangeiro à abadia para discutir segredos de Estado.

— Isto possivelmente desanuviará a atmosfera — anuiu Anthony.

—O americano não me incomoda tanto assim — pros­seguiu Bundle. — Ele e papai podem conversar alegremente a respeito de edições originais, em qualquer lugar isolado. Mr. Fish — aproximava-se o objeto do assunto —, estou planejando uma tarde tranqüila para o senhor.

O americano inclinou-se.

— É muita bondade sua, Lady Eileen.

— Mr. Fish — disse Anthony — teve uma manhã bas­tante tranqüila.

Mr. Fish lançou-lhe um rápido olhar.

— Ah, então o senhor me observou em meu refúgio? Há momentos em que isolar-se da multidão turbulenta cons­titui o único lema de um homem de gostos tranqüilos.

Bundle havia-se afastado; o americano e Anthony per­maneceram juntos. O primeiro baixou um pouco a voz:

— Na minha opinião — disse —, há certo mistério em tudo isso.

— Há grande mistério — disse Anthony.

— Aquele sujeito careca faz parte, talvez, das relações da família?

— Qualquer coisa nesse gênero.

— Estas nações da Europa central estão sempre em foco — observou Mr. Fish. — Correu o boato de que o ca­valheiro morto era uma alteza real. Sabe se é verdade?

— Ele estava aqui como Conde Stanislaus — disse Anthony de modo evasivo.

Ao que Mr. Fish replicou apenas com um "Ora, vejam!" de forma um tanto crítica, e depois permaneceu em silêncio durante alguns instantes.

— Esse policial aí de vocês — disse por fim —, esse tal Battle, ou como quer que se chame, é bom mesmo?

— A Scotland Yard acha que sim — respondeu Anthony secamente.

— Parece-me um tanto mesquinho — observou Mr. Fish. — Não tem pressa nenhuma. E que idéia a dele de não deixar ninguém sair daqui; qual a razão disso?

— Todos precisam comparecer ao inquérito amanhã cedo.

— É por isso? Só por isso? Ou os hóspedes de Lorde Caterham são suspeitos?

— Meu caro Mr. Fish!

— Sentia-me meio intranqüilo por ser estrangeiro, Mas é claro que o serviço foi feito por alguém de fora. A propó­sito, a janela estava destrancada, não é?

— Estava — disse Anthony, olhando diretamente para a frente.

Mr. Fish suspirou. Depois de alguns instantes disse em tom de queixa:

— Meu jovem, sabe como é que se extrai água de uma mina?

— Como?

— Bombeando. Mas é um trabalho duro! Percebo que o meu genial anfitrião está deixando aquele grupo. Devo ir ao seu encontro.

Mr. Fish afastou-se delicadamente, e Bundle aproxi­mou-se.

— Engraçado o Fish, não é? — observou ela.

— É, sim.

— Não adianta procurar Virgínia — disse Bundle brus­camente.

— Eu não estava procurando.

— Estava, sim. Não sei como é que ela faz, nem o que ela diz. E também não creio que seja só por sua apa­rência, mas o caso é que ela sempre consegue! De qualquer maneira, agora ela deve estar funcionando em algum outro setor. Pediu-me que fosse amável com você, e vou ser amável nem que seja à força, se necessário.

— Não é preciso fazer força — garantiu Anthony. — Mas, se não lhe for inconveniente, eu preferia que você fosse amável comigo num barco, sobre o lago.

— Não é má idéia — disse Bundle pensativa. Caminharam juntos para o lago.

— Desejaria fazer-lhe apenas uma pergunta — disse Anthony remando suavemente para longe da margem — antes de abordarmos tópicos realmente interessantes. Pri­meiro os negócios, depois os divertimentos.

— A respeito de que quarto você deseja saber agora? — indagou Bundle com a paciência esgotada.

— De nenhum quarto, pelo menos por ora. Mas gos­taria de saber como foi que arranjaram a governanta francesa.

— O homem é fascinante — disse Bundle. — Conse­gui-a através de uma agência, pago-lhe cem libras por ano, e seu nome de batismo é Geneviève. Deseja saber mais alguma coisa?

— Vejamos a agência — disse Anthony. — Que diz sobre as suas referências?

— Oh, brilhantes! Esteve durante dez anos com a Condessa Não Sei De Quê.

— Não Sei De Quê?

— A Condessa de Breteuil, no Castelo de Breteuil, em Dinard.

— Você não se avistou com a condessa? Foi tudo feito por carta?

— Exatamente,

— Hum! — exclamou Anthony.

— Você me intriga — disse Bundle. — Você me intri­ga imensamente. É por amor ou pelo crime em si?

— Provavelmente pura idiotice da minha parte. Esque­çamos isso.

— "Esqueçamos isso", diz ele de maneira negligente, após ter conseguido todas as informações que desejava. Mr. Cade, sobre quem recaem suas suspeitas? Considero Virginia a menos provável. Ou talvez Bill.

— E você?

— Membro da aristocracia une-se secretamente aos Camaradas da Mão Vermelha. Seria mesmo sensacional.

Anthony riu. Gostava de Bundle, embora sentisse certo receio da penetrante argúcia de seus olhos acinzentados.

— Deve sentir orgulho de tudo isso — disse ele subi­tamente, mostrando com um gesto o imenso solar a distância.

Bundle semicerrou os olhos e moveu a cabeça para o lado.

— Sim... creio que significa alguma coisa. Mas esta­mos tão habituados a tudo isso. De qualquer maneira, não permanecemos aqui durante muito tempo; é demasiado mo­nótono. Passamos todo o verão em Cowes e Deauville, e depois estivemos na Escócia. Chimneys ficou envolto em lençóis durante cinco meses. Uma vez por semana a capa dos móveis é tirada e chegam ônibus cheios de turistas, que olham para tudo embasbacados e ouvem as explicações de Tredwell. "À direita, acha-se o retrato da quarta Marquesa de Caterham, pintado por Sir Joshua Reynolds", etc... e um dos rapazes, o humorista do grupo, cutuca a namorada e diz: ""Ei! Gladys, não é que eles têm mesmo alguns qua­dros de valor aqui?" Olham mais alguns quadros, bocejam, arrastam os pés, e então desejam que chegue logo a hora de voltar para casa.

— Entretanto, seja como for, mais de uma vez aqui fez-se a história.

— Você andou dando ouvidos a George — disse Bun­dle bruscamente. — É o gênero de coisas que ele está sempre dizendo.

Anthony, porém, aprumara-se e olhava fixamente a margem.

— Será um terceiro estrangeiro suspeito aquele que estou vendo junto à cabana dos barcos, em postura tão desconsolada? Ou faz parte dos convidados?

Bundle ergueu a cabeça da almofada escarlate.

— É Bill — disse ela.

— Parece que ele está procurando alguma coisa.

— Provavelmente está procurando por mim — disse Bundle, sem entusiasmo.

— Vamos remar rapidamente em direção oposta?

— É a resposta correta, mas devia ser dita com mais entusiasmo.

— Remarei com duplo vigor depois dessa censura.

— Absolutamente — disse Bundle. — Tenho meu or­gulho. Leve-me para onde aquele jovem asno está esperando. Creio que alguém tem que se ocupar dele. Virginia deve

ter-lhe dado o fora. Qualquer dia, ainda que pareça incon­cebível, posso querer casar com George; por isso é bom que vá me exercitando para ser "uma das nossas famosas anfitrioas políticas".

Anthony remou obedientemente em direção à margem.

— Desejaria saber o que será de mim? — queixou-se.

— Recuso-me a ser o intruso. São as meninas que estou vendo a distância?

— Sim. Mas tenha cuidado, senão elas podem amarrá-lo com as cordas.

— Gosto de crianças — disse Anthony. — Posso ensi­nar-lhes algum jogo agradável, intelectual e tranqüilo.

— Bem, não me diga que não lhe avisei.

Tendo deixado Bundle aos cuidados do desconsolado Bill, Anthony encaminhou-se para o lugar onde agudos gritos perturbavam a paz da tarde. Foi recebido com aclamações.

— Sabe brincar de índio pele-vermelha? — indagou Guggle rispidamente.

— Mais ou menos — respondeu Anthony. — Vocês precisam ouvir o barulho que faço quando sou escalpelado. Assim. — Fez a demonstração.

— Serve — disse Winkle com relutância. — Agora dê o grito do escalpelador.

Anthony emitiu horripilante guincho. Dentro de alguns minutos a brincadeira de índio estava em plena ação.

Cerca de uma hora mais tarde, Anthony enxugou a testa e aventurou-se a perguntar pela migraine de mademoiselle, Ficou satisfeito ao ouvir que a dama em questão sentia-se agora em perfeita saúde. Tão popular tornara-se ele que foi insistentemente convidado para tomar chá na sala de aulas.

— E então pode nos contar a respeito do homem que viu enforcado — intimou Guggle.

— O senhor disse que possui um pedaço da corda?

— perguntou Winkle.

— Está em minha maleta — disse Anthony grave­mente. — Darei um pedaço a cada uma de vocês.

Winkle imediatamente soltou um grito indígena de sa­tisfação.

— Creio que devemos ir nos arrumar — disse Guggle com tristeza. — O senhor virá para o chá, não é? Não vai se esquecer?

Anthony jurou solenemente que nada no mundo o faria faltar ao compromisso. Satisfeitas, as duas retiraram-se para casa. Anthony permaneceu durante alguns minutos olhando as meninas se afastarem e, ao fazê-lo, notou um homem saindo do matagal e correndo através do parque. Estava quase certo de que se tratava do mesmo estrangeiro barbudo que encontrara pela manhã. Enquanto hesitava se iria atrás dele ou não, abriram-se os galhos das árvores à sua frente e surgiu Mr. Hiram Fish, que estremeceu levemente ao dar com Anthony.

— Uma tarde tranqüila, não é, Mr. Fish? — indagou o último.

— Sim, obrigado.

Entretanto Mr. Fish não parecia tão calmo quanto de costume. Seu rosto estava rubro e ele respirava com dificul­dade, como se tivesse corrido. Tirou o relógio e consultou-o.

— Creio — disse brandamente — que está quase na hora do chá vesperal, essa instituição britânica.

Fechando o relógio com pequeno ruído, Mr. Fish afas­tou-se de modo suave em direção à casa.

Anthony permaneceu absorto em reflexões, e despertou sobressaltado ao notar o Superintendente Battle a seu lado. Nenhum som indicara a aproximação deste, que parecia, lite­ralmente, ter-se materializado do espaço.

— De onde surgiu o senhor? — perguntou Anthony irritado.

Com ligeiro movimento de cabeça, Battle indicou o pe­queno matagal atrás deles.

— Parece ser um lugar muito popular esta tarde — observou Anthony.

— Estava perdido em pensamentos, Mr. Cade?

— De fato, estava. Sabe o que eu estava fazendo, Battle? Tentava juntar dois e um e cinco e três para ver se dava quatro. E é impossível, Battle, é simplesmente impossível.

— Há certa dificuldade nisso — concordou o detetive.

— Mas o senhor é exatamente o homem que eu dese­java ver. Battle, quero partir. É possível?

Como bom profissional, o Superintendente Battle não demonstrou emoção nem surpresa. Sua resposta veio fácil e natural.

— Isso depende do lugar para onde o senhor queira ir.

— Vou lhe dizer exatamente, Battle. Porei as cartas na mesa. Quero ir a Dinard, ao castelo da Condessa de Breteuil. É possível?

— Quando deseja ir, Mr. Cade?

— Digamos amanhã, depois do inquérito. Eu poderia estar de volta domingo à noite.

— Compreendo — disse o Superintendente Battle, com sua peculiar impassibilidade.

— Bem, e então?

— Não tenho objeções, contanto que o senhor vá para onde diz que vai e volte diretamente para cá.

— Em mil, só há um homem como o senhor, Mr. Battle. Ou sente imensa simpatia por mim, ou o senhor é extraordinariamente profundo. Qual é o caso?

O Superintendente Battle deu um pequeno sorriso, mas não respondeu.

— Bem, bem — disse Anthony. — Creio que o senhor há de tomar suas precauções. Discretos serviçais da lei se­guirão meus passos suspeitos. Que seja. Desejaria, entre­tanto, saber de que tratavam.

— Não o entendo, Mr. Cade.

— As memórias... motivo de toda esta complicação. Seriam apenas memórias? Ou o senhor está escondendo algu­ma coisa?

Battle sorriu novamente.

— Encaremos da seguinte maneira: faço-lhe um favor, porque me deixou uma impressão favorável, Mr. Cade. Gos­taria que o senhor trabalhasse comigo neste caso. O amador e o profissional... vão bem juntos. Um tem a intimidade, por assim dizer, e o outro possui a experiência.

— Bem — disse Anthony de maneira lenta —, não me importo em admitir que sempre quis tentar deslindar um assassinato misterioso.

— Tem alguma idéia a respeito deste caso, Mr. Cade?

— Tenho muitas — disse Anthony. — Mas são per­guntas, sobretudo.

— Como por exemplo?

— Quem calçará os sapatos do falecido Miguel? Pare­ce-me que isso é importante.

Um sorriso de esguelha espalhou-se pelo rosto do Supe­rintendente Battle.

— Imaginei que o senhor pensasse nisso. O Príncipe Nicolau Obolovitch, primo em primeiro grau desse cava­lheiro, é o próximo herdeiro.

— E onde se encontra ele presentemente? — pergun­tou Anthony, virando-se para acender um cigarro. — Não me diga que não sabe, Battle, porque não acreditarei.

— Temos razões para crer que ele esteja nos Estados Unidos. Em todo o caso, era lá que se encontrava até pouco tempo. Levantando fundos para sustentar suas esperanças.

Anthony assobiou surpreendido.

— Entendo — disse. — Miguel era apoiado pela In­glaterra, Nicolau pela América. Em ambos os países existem grupos de financistas ansiosos para obter as concessões do petróleo. O Partido Legalista adotou Miguel como can­didato, e agora tem que procurar em outro lugar. Ranger de dentes da parte de Isaacstein and Co. e Mr. George Lomax. Júbilo em Wall Street. Estou certo?

— Não muito longe da verdade — disse o Superinten­dente Battle.

— Hum! — exclamou Anthony. — Quase ouso jurar que sei o que o senhor estava fazendo nesse matagal.

O detetive sorriu, mas não respondeu.

— Política internacional é muito fascinante — disse Anthony —, mas receio que deva deixá-lo. Tenho um com­promisso na sala de aulas.

Dirigiu-se rapidamente para a casa. Informações for­necidas pelo solene Tredwell indicaram-lhe o caminho da sala de aula. Bateu à porta e entrou, sendo recebido com gritos de alegria.

Guggle e Winkle imediatamente precipitaram-se em sua direção e levaram-no em triunfo para ser apresentado à mademoiselle.

Anthony, pela primeira vez, sentiu náuseas. Mlle Brun era uma mulher pequena, de meia-idade, rosto amarelado, cabelo furta-cor, e florescente bigode!

Como famosa aventureira estrangeira ela não se enqua­drava, de forma alguma, no caso.

"Creio que estou bancando um perfeito tolo", disse Anthony consigo próprio. "Não faz mal; agora vou até o fim."

Mostrou-se extremamente simpático para com mademoiselle, e esta, por seu lado, achava-se evidentemente satis­feita pelo fato de ter sua sala de aulas invadida por um belo jovem. A refeição constituiu um grande sucesso.

Nessa noite, todavia, a sós no agradável quarto que lhe fora destinado, Anthony balançou a cabeça inúmeras vezes.

— Estou enganado — disse para si próprio. — Enga­nei-me pela segunda vez. De qualquer maneira não consigo entender o motivo.

Estacou em sua caminhada de um lado para o outro.

— Que diabo... — começou Anthony.

A porta estava sendo suavemente aberta. Logo em seguida, um homem entrou no quarto e postou-se junto à porta de- maneira deferente.

Tratava-se de um indivíduo grande e louro, de maçãs salientes do tipo eslavo, e olhos sonhadores e fanáticos.

— Quem diabo é você? — perguntou Anthony, encarando-o.

— Sou Boris Anchoukoff — retorquiu o homem em perfeito inglês.

— O criado do Príncipe Miguel, não é?

— Sim. Servi a meu amo. Ele está morto. Agora sirvo ao senhor.

— É muita bondade sua — disse Anthony. — Mas acontece que não quero um valete.

— O senhor é o meu amo agora. Vou servi-lo fiel­mente.

— Sim... mas, olhe aqui... eu não preciso de um valete. Está acima das minhas posses.

Boris Anchoukoff encarou-o com certo desdém.

— Não peço dinheiro. Servi a meu amo, e assim ser­virei ao senhor, até a morte!

Dando rapidamente um passo à frente, ajoelhou-se, pegou a mão de Anthony e colocou-a sobre sua testa. Er­gueu-se, então, bruscamente, e saiu do aposento de maneira tão súbita quanto havia entrado.

Anthony ficou boquiaberto, sua face era a exata expres­são do espanto.

— É bastante estranho — disse consigo próprio. — Uma espécie de cão fiel. Curioso o instinto que esses sujei­tos têm.

Ergueu-se e andou de um lado para o outro.

— De qualquer forma, é esquisito, muito esquisito... por ora, pelo menos.

 

Uma aventura à meia-noite

O inquérito ocorreu na manhã seguinte. Foi extraor­dinariamente diferente dos inquéritos narrados na ficção de forma sensacional. Em sua rígida supressão de todos os detalhes interessantes, satisfez até mesmo a George Lomax. O Superintendente Battle e o juiz de instrução, trabalhando juntos com o apoio do chefe de polícia, reduziram o processo ao mais baixo nível de caceteação.

Imediatamente após o inquérito, Anthony partiu dis­cretamente.

Sua partida constituiu nesse dia a única alegria de Bill Eversleigh. George Lomax, obcecado pelo temor de que algo prejudicial ao seu departamento pudesse acontecer, havia sido excessivamente desagradável. Exigiu a presença cons­tante de Miss Oscar e Bill. Tudo de útil e interessante foi feito por Miss Oscar. A parte de Bill foi correr de um lado para outro levando inúmeros recados, decifrar telegramas, e ouvir incessantemente George repetindo-se a si próprio.

Foi um jovem completamente esgotado o que se retirou para dormir na noite de sábado. Não tivera praticamente a oportunidade de conversar com Virgínia durante todo o dia, em virtude das exigências de George, e sentia-se inju­riado e injustiçado. Felizmente, esse indivíduo das colônias partira; tinha monopolizado demasiado a atenção de Virginia. E George Lomax, na verdade, continuava fazendo dele, Bill, um asno... Adormeceu com a mente fervendo de ressentimentos. E, em sonhos, veio o consolo. Pois ele so­nhou com Virginia.

Foi um sonho heróico, sonhou com uma casa em fogo, e ele fazendo o papel de um galante salvador. Do andar mais alto trouxe Virginia em seus braços. Ela se achava inconsciente. Depositou-a sobre a grama. Saiu, então, para buscar um pacote de sanduíches. Era muito importante que encontrasse esse pacote de sanduíches. Estava com George, mas este, em vez de entregá-lo a Bill, começou a ditar tele­gramas. Achavam-se agora na sacristia de uma igreja, e a qualquer momento Virginia chegaria para se casar com ele. Que horror! Ele estava de pijama! Precisava ir para casa imediatamente e voltar em trajes adequados. Correu para o carro. O motor não pegava. Não havia gasolina no tanque! Estava ficando desesperado. Surgiu, então, um imenso ônibus e dele saiu Virginia de braço com o barão careca, deliciosa­mente impassível, e muito bem vestida de cinza. Aproxi­mou-se dele, sacudiu-o pelos ombros de modo brincalhão. — Bill — disse ela. — Oh, Bill. — Sacudiu-o com mais força. — Bill. Acorde. Oh, acorde!

Bastante entorpecido, Bill acordou. Achava-se em seu quarto, em Chimneys. Parte do sonho, porém, ainda perma­necia: Virginia, debruçada sobre ele, repetia as mesmas pa­lavras, com variações.

— Acorde, Bill. Oh, acorde, Bill!

— Olá! — disse Bill, sentando-se na cama. — Que aconteceu?

Virginia deu um suspiro de alívio.

— Graças a Deus! Pensei que você jamais fosse acor­dar. Estive sacudindo e sacudindo você. Está bem acordado agora?

— Creio que sim — disse Bill em tom de dúvida.

— Como você é pesado — disse Virginia. — Que trabalhão eu tive! Meus braços estão doendo.

— Esses insultos são supérfluos — disse Bill com dig­nidade. — Deixe-me dizer-lhe, Virginia, que considero sua conduta extremamente inconveniente. De forma alguma ade­quada a uma jovem viúva que é correta.

— Não seja idiota, Bill. Estão acontecendo coisas.

— Que espécie de coisas?

— Coisas estranhas. Na Sala do Conselho. Julguei ter ouvido a batida de uma porta em algum lugar, e desci para verificar. Vi luz na Sala do Conselho. Deslizei pelo corredor, e espiei pelo buraco da fechadura. Não pude ver muita coisa, mas o que vi foi tão extraordinário que quero ver mais. Pensei, então, subitamente que precisava de um homem a meu lado, um homem grande, bonito e forte. E você é o homem maior, mais bonito e mais forte que me veio à lembrança. Vim aqui e tentei acordá-lo tranqüilamente. Estou tentando há séculos.

— Compreendo — disse Bill. — E o que você quer que eu faça agora? Que me levante e agarre os assaltantes?

Virgínia franziu as sobrancelhas.

— Não estou certa de que eles sejam assaltantes. Bill, é muito estranho... Mas não vamos perder tempo em conversa. Levante-se.

Bill, obedientemente, saiu da cama.

— Espere até que eu calce um par de botinas. As grandes, com pregos. Embora eu seja corpulento e forte, não vou sair descalço por aí para agarrar criminosos sabidos.

— Gosto do seu pijama, Bill — disse Virginia de modo sonhador. — Alegre, sem ser vulgar.

— Já que estamos nesse assunto — disse Bill, pegando o segundo pé da botina —, gosto dessa coisa que você está usando. Tem um bonito tom de verde. Como é que se chama? Não é um simples penhoar, não?

— É um negligê — disse Virginia. — Fico satisfeita em verificar como você tem levado uma vida pura, Bill.

— Não tenho, não — disse Bill indignado.

— Você acabou de se trair. Você é muito simpático, Bill, e gosto muito de você. Ouso dizer que amanhã cedo... digamos às dez horas, que é uma boa hora para as emoções não serem excitadas indevidamente, eu poderia até beijá-lo.

— Sempre pensei que se fizessem melhor essas coisas num impulso de momento — sugeriu Bill.

— Agora temos que cuidar de outro assunto — disse Virginia. — Se você não pretende pôr uma máscara contra gás e uma couraça, podemos começar?

— Estou pronto — disse Bill.

Enfiou-se em um robe de seda de cor pálida, e pegou um atiçador.

— A arma ortodoxa — observou ele.

— Venha — disse Virginia —, e não faça barulho.

Deslizaram para fora do quarto e pelo corredor, e des­ceram a escada larga e dupla. Virginia franziu o cenho quando chegaram ao fim da escada.

— Estas suas botinas não são lá muito silenciosas, não é, Bill?

— Pregos são pregos — disse Bill. — Estou fazendo o que posso.

— Você precisa tirá-las. Bill resmungou.

— Pode levá-las na mão. Quero ver se você consegue descobrir o que está acontecendo na Sala do Conselho. Bill, é terrivelmente misterioso. Por que os assaltantes iriam desmontar uma armadura?

— Bem, suponho que eles não poderiam levá-la como está. Desmontam e depois embrulham.

Virginia, insatisfeita, balançou a cabeça.

— Por que razão iriam eles roubar uma armadura velha e empoeirada? Chimneys está cheia de tesouros muito mais fáceis de carregar.

Bill abanou a cabeça.

— Quantos estão lá dentro? — perguntou, segurando o atiçador com firmeza.

— Não pude ver exatamente. Você sabe como é um buraco de fechadura. E iluminavam a sala apenas com uma lanterna.

— Espero que já tenham ido embora — disse Bill esperançoso.

Sentou-se no último degrau da escada e descalçou as botinas. Levando-as na mão, deslizou pelo corredor que con­duzia à Sala do Conselho. Virginia rente a seu lado. Pararam junto à maciça porta de carvalho. Tudo era silêncio lá dentro, mas, subitamente, Virginia pressionou-lhe o braço e ele assentiu com a cabeça. Durante alguns instantes surgira uma claridade através do buraco da fechadura.

Bill ajoelhou-se e olhou pelo orifício. O que viu era extremamente confuso. A cena do drama que se desenrolava lá dentro situava-se evidentemente à esquerda, fora do al­cance de sua visão. Todavia, um tinido brando, de quando em quando, parecia indicar que os assaltantes ainda estavam lidando com a armadura. Havia duas delas, lembrava-se Bill. Ficavam junto à parede, precisamente embaixo do qua­dro de Holbein. A claridade da lanterna, com certeza, estava sendo dirigida exatamente sobre o local da ação. Isso deixava o resto do aposento em escuridão quase completa. Uma figura passou rapidamente pelo alcance da visão de Bill, mas a luz não era suficiente para distingui-la. Tanto poderia ter sido um homem quanto uma mulher. Depois de alguns segundos, a figura apareceu outra vez, e um tinido abafado fez-se ouvir novamente. Ouviu-se, então, outro barulho, leves batidas, como se fossem executadas com os nós dos dedos sobre a madeira.

Bill, subitamente, sentou-se sobre os calcanhares.

— Que é? — sussurrou Virginia.

— Nada. Não adianta continuarmos assim. Não conse­guimos ver nada, e não podemos adivinhar o que está acon­tecendo lá dentro. Vou entrar e agarrá-los.

Calçou as botinas e levantou-se.

— Agora preste atenção, Virginia. Abriremos a porta bem de mansinho. Você sabe onde fica o interruptor da luz?

— Sei. Junto da porta.

— Não creio que sejam mais de dois assaltantes. Pode ser que seja um só. Quando eu estiver bem no meio da sala e disser "Pronto", quero que você acenda a luz. En­tendeu?

— Perfeitamente.

— E não vá gritar ou desmaiar, ou qualquer coisa no gênero. Não deixarei ninguém feri-la.

— Meu herói! — murmurou Virginia.

Bill perscrutou-a desconfiadamente através da escuri­dão. Ouvira leve som, que tanto poderia ter sido um suspiro como uma risada. Agarrou, então, o atiçador com firmeza e ergueu-se. Sentia-se em pleno vigor para enfrentar a si­tuação.

Com muito cuidado, girou a maçaneta da porta, que cedeu com facilidade. Virginia rente a seu lado, entraram ambos no aposento, sem fazer o mínimo ruído.

Na extremidade oposta da sala, o foco da lanterna in­cidia sobre o quadro de Holbein. Perceberam a silhueta de um homem, em cima de uma cadeira, dando leves pancadas no madeiramento que recobria a parede. Suas costas, eviden­temente, estavam voltadas para eles, e o homem dava a im­pressão de uma monstruosa sombra.

Não se pode dizer que eles tivessem visto mais alguma coisa, porque nesse momento os pregos das botinas de Bill rangeram sobre o assoalho. O homem virou-se, fazendo incidir neles o poderoso foco da lanterna, ofuscando-os com o brilho súbito.

Bill não hesitou.

— Pronto — bradou para Virginia, e arremessou-se sobre o homem, enquanto ela, obedientemente, pressionava o interruptor da luz.

O imenso lustre deveria ter-se iluminado, mas, em vez disso, o que aconteceu foi apenas o barulho seco do comutador. A sala permaneceu às escuras.

Virginia ouviu Bill praguejar livremente. Nos minutos seguintes o aposento encheu-se de tumulto e sons arque-jantes. A lanterna fora derrubada no chão e apagara-se du­rante a queda. Ouvia-se o barulho de uma luta desesperada desenrolando-se na escuridão, mas Virginia não tinha a mí­nima idéia quanto a quem estaria vencendo ou quem estaria tomando parte nela. Haveria mais alguém na sala, além do homem que estava batendo no madeiramento? Poderia haver. A visão que eles haviam tido ao entrar fora apenas mo­mentânea.

Virginia sentia-se paralisada. Não sabia como agir. Não ousava imiscuir-se na luta. Fazê-lo poderia atrapalhar Bill em vez de ajudá-lo. Veio-lhe a idéia de ficar na porta para impedir a passagem de qualquer pessoa que tentasse escapar. Ao mesmo tempo, desobedeceu às instruções expressas de Bill e gritou alto e repetidas vezes por socorro.

Ouviu portas abrindo-se lá em cima, e súbito clarão de luz proveniente do hall e da grande escadaria. Se Bill conseguisse apenas segurar o homem até chegar algum auxílio...

Nesse minuto, porém, houve uma luta final e terrível. Eles deviam ter esbarrado em uma das armaduras, pois esta caiu com um barulho ensurdecedor. Virginia viu, indis­tintamente, uma figura precipitando-se para a janela, e ao mesmo tempo ouviu Bill praguejando e desvencilhando-se dos fragmentos da armadura.

Abandonou seu posto e arremessou-se com fúria sobre a figura que correra para a janela. Esta, todavia, já estava destrancada; o intruso não precisou perder tempo com isso. Saltou e correu pelo terraço até a outra extremidade. Vir­gínia correu atrás dele. Ela era jovem e esportista, e chegou a extremidade do terraço poucos segundos depois.

Aí, porém, entrou de cabeça nos braços de um homem que acabara de emergir de pequena porta lateral. Era Mr. Hiram P. Fish.

— Oba! É uma senhora — exclamou. — Perdão, Mrs. Revel. Tomei-a por um dos assaltantes, escapando da justiça.

— Ele acaba de passar por aqui — gritou Virginia sem fôlego. — Não podemos agarrá-lo?

Entretanto, ao mesmo tempo em que falava, ela sabia ser demasiado tarde. O indivíduo já devia ter alcançado o parque, e a noite estava escura como breu. Voltou à Sala do Conselho, Mr. Fish a seu lado discursando sobre os hábitos dos assaltantes de modo geral, assunto de que pa­recia ter vasta experiência.

Lorde Caterham, Bundle e vários criados amedrontados achavam-se à porta da Sala do Conselho.

— Que diabo de coisa aconteceu? — perguntou Bun­dle. — Assaltantes? Que faziam você e Mr. Fish, Virginia? Passeavam à meia-noite?

Virginia explicou os acontecimentos noturnos.

— Que coisa terrivelmente excitante — comentou Bundle. — Não é sempre que se tem um assassinato e um assalto num mesmo fim de semana. Que aconteceu com as luzes aqui? Estão perfeitas em todos os outros lugares.

O mistério foi logo explicado. As lâmpadas haviam sido simplesmente removidas e postas em fila junto à parede. Montado em uma escada, o formal Tredwell, formal mesmo em roupas íntimas, restituiu a iluminação ao aposento afetado.

— Se não me engano — disse Lorde Caterham com voz deprimida, enquanto olhava ao seu redor —, esta sala foi palco recente de uma ação um tanto violenta.

Havia certa justiça em sua observação. Tudo aquilo que podia ser liquidado fora liquidado. O chão estava repleto de cadeiras quebradas, louça quebrada, e fragmentos de armadura.

— Quantos eram? — indagou Bundle. — Parece ter havido tremenda luta.

— Creio que apenas um — disse Virginia. Mas, ao falar, hesitou um pouco. Certamente só uma pessoa, um homem, passara pela janela. Quando se precipitara atrás dele, porém, tivera a vaga impressão de que algo roçara nela. Se assim fosse, o segundo ocupante da sala podia ter escapado pela porta. Entretanto, talvez fosse apenas efeito de sua própria imaginação.

Bill, de repente, surgiu à janela. Estava arquejante, sem fôlego.

— Diabo de sujeito — exclamou com raiva. — Esca­pou. Procurei por todo lado. Não há sinal dele.

— Anime-se, Bill — disse Virginia. — Da próxima vez você terá mais sorte.

— Bem — disse Lorde Caterham —, que acham que se deva fazer agora? Voltar para a cama? Não posso loca­lizar Badgworthy a esta hora da noite. Tredwell, você sabe o que é necessário. Providencie tudo, sim?

— Está bem, senhor.

Com um suspiro de alívio, Lorde Caterham preparou-se para se retirar.

— E aquele danado do Isaacstein dorme profundamen­te — observou com certa inveja. — Essa briga toda e ele nem desceu. — Olhou para Mr. Fish. — Estou vendo que o senhor ainda teve tempo de se vestir — acrescentou.

— Sim, enfiei alguma roupa — admitiu o americano.

— Foi muito sensato — disse Lorde Caterham. — Estes pijamas não agasalham nada.

Bocejou. De humor um tanto deprimido, retiraram-se todos para a cama.

 

Segunda aventura à meia-noite

A primeira pessoa que Anthony viu ao descer do trem na tarde seguinte foi o Superintendente Battle. Sua face abriu-se em um sorriso.

— Voltei conforme combinamos — observou. — Veio aqui certificar-se do fato?

Battle abanou a cabeça.

— Não estava preocupado com o senhor, Mr. Cade. Acontece que vou a Londres. Apenas isso.

— É grande a sua boa fé, Battle.

— Acha que sim?

— O que eu acho mesmo é que o senhor é profundo... muito profundo. Águas paradas... etc... Vai a Londres então?

— Vou, Mr. Cade.

— Gostaria de saber por quê. O detetive não respondeu.

— O senhor é tão palrador — observou Anthony. — É o que me faz apreciá-lo.

Um brilho longínquo apareceu nos olhos de Battle.

— E o seu pequeno serviço, Mr. Cade? — indagou. — Como foi?

— Foi infrutífero, Battle. Errei pela segunda vez. Irri­tante, não é?

— Qual era a sua idéia, se lhe posso perguntar?

— Eu suspeitava da governanta francesa, Battle. A: baseando-me em que ela fosse a pessoa menos provável, de acordo com os cânones da melhor ficção. B: porque se acen­deu uma luz em seu quarto na noite da tragédia.

— Não era muita coisa.

— O senhor tem razão. Não era. Mas descobri que ela estava aqui havia pouco tempo, e encontrei um francês sus­peito rondando o lugar. Suponho que saiba tudo a respeito dele, não é?

— Está se referindo ao francês que está hospedado no Cricketers e que diz chamar-se M. Chelles? É um caixeiro viajante; trabalha com tecidos.

— É esse mesmo. Que tal o homem? Que pensa a Scotland Yard dele?

— Sua atitude é suspeita :— disse o Superintendente Battle impassível.

— Muito suspeita, diria eu. Bem, somei dois e dois e quis verificar o resultado. A governanta francesa dentro da casa, o francês do lado de fora. Decidi que eles estavam man­comunados, e corri para entrevistar a senhora com quem Mlle Brun passou os últimos dez anos. Achava-me total­mente preparado para descobrir que esta senhora nunca ouvira falar em semelhante pessoa, isto é, Mlle Brun, mas enganei-me, Battle. Mademoiselle é artigo genuíno.

Battle assentiu com a cabeça.

— Devo admitir — disse Anthony — que, tão logo falei com mademoiselle, tive a convicção de que fora bater em porta errada. Ela parece ser o protótipo da governanta.

Battle concordou com a cabeça novamente.

— Contudo, Mr. Cade, nem sempre se pode guiar pe­las aparências. As mulheres, sobretudo, podem conseguir muita coisa com a maquilagem. Já presenciei uma bela jovem não ser identificada por nove pessoas, entre dez que a tinham visto antes, após ter alterado a cor dos cabelos, empalidecido a cútis, avermelhado as pálpebras, e, o que é mais eficaz, ter envergado roupas bastante desajeitadas. Para os homens não existem assim tantos truques. Podem-se alterar um pouco as sobrancelhas, e, evidentemente, uma dentadura nova mo­difica muito a fisionomia. Mas existem sempre as orelhas... são muito expressivas, Mr. Cade.

— Não olhe tanto para as minhas, Battle — queixou-se Anthony. — Fico nervoso.

— Não me refiro a barbas falsas e maquilagem carre­gada — prosseguiu o superintendente. — Isso existe apenas nos livros. Poucos homens conseguem escapar em virtude de uma caracterização diferente. Na verdade, conheço apenas um homem que é positivamente um gênio para se caracterizar. O Rei Victor. Já ouviu falar no Rei Victor, Mr. Cade? Havia algo tão brusco e súbito na maneira como o de­tetive fez a pergunta, que Anthony controlou as palavras que lhe subiram aos lábios.

— O Rei Victor? — indagou pensativo. — Parece-me que já ouvi este nome.

— Um dos mais famosos ladrões de jóias do mundo. Pai irlandês e mãe francesa. Fala cinco línguas, pelo menos. Esteve preso, mas foi solto há poucos meses.

— É mesmo? E onde se supõe que ele esteja agora?

— Bem, Mr. Cade, isso é o que nós gostaríamos de saber.

— Complica-se a trama — disse Anthony despreocupadamente. — Existe a possibilidade de que ele surja por aqui? Mas acredito que ele não esteja interessado em memórias políticas... só em jóias.

— Não se pode saber — disse o Superintendente Bat­tle. — Pode ser até que ele já esteja aqui.

— Disfarçado como lacaio? Esplêndido. O senhor o reconheceria pelas orelhas e se cobriria de glória.

— Satisfeito com a sua brincadeira, não é, Mr. Cade? A propósito, que pensa desse estranho negócio em Staines?

— Staines? — falou Anthony. — Que aconteceu em Staines?

— Estava nos jornais de sábado. Julguei que o senhor tivesse lido. Um homem baleado foi encontrado na estrada. Um estrangeiro. Os jornais de hoje também dão a notícia, naturalmente.

— Li algo a respeito disso — disse Anthony de modo negligente. — Aparentemente não se trata de suicídio, não é?

— Não. Não foi encontrada a arma. E o homem ainda não foi identificado.

— O senhor parece muito interessado — disse Anthony sorrindo. — Há alguma ligação com a morte do Príncipe Miguel?

Suas mãos estavam firmes, assim como seus olhos. Se­ria imaginação sua ou o Superintendente Battle o fitava real­mente com curiosa intensidade?

— Parece haver uma epidemia desse gênero de coisas — disse Battle. — Mas ouso dizer que não há nenhuma relação.

Virou-se, dirigindo-se a um carregador, pois o trem que seguia para Londres chegava trovejando. Anthony deu um leve suspiro de alívio.

Profundamente pensativo, caminhou através do parque. Resolveu aproximar-se da casa da mesma direção em que o fizera na fatídica noite de quinta-feira, e, à medida em que andava, ia quebrando a cabeça para certificar-se de onde tinha visto a luz. Estava bem seguro de que fora na segunda janela a partir da extremidade?

Fez, então, uma descoberta. Existia um ângulo na extre­midade da casa no qual havia uma janela um tanto afastada. De acordo com o lugar onde se estivesse, contava-se esta janela como sendo a primeira, e a situada em cima da Sala do Conselho como sendo a segunda. Mas, afastando-se alguns metros para a direita, a parte da construção sobre a Sala do Conselho parecia ser a extremidade da casa. A primeira ja­nela tornava-se assim invisível, e as duas janelas dos quartos sobre a Sala do Conselho pareciam ser a primeira e a se­gunda, a partir da extremidade. Onde, exatamente, estaria ele quando vira a luz acender-se?

Anthony achou a questão muito difícil de responder. Um metro, ou tanto, fazia grande diferença. Um ponto, en­tretanto, parecia bastante claro. Era bem possível que ele se tivesse enganado ao julgar que tivessem acendido a luz no segundo quarto a partir da extremidade. Poderia igual­mente ter sido o terceiro.

Quem ocuparia o terceiro quarto? Anthony estava deci­dido a descobrir tão cedo quanto possível. A sorte favo­receu-o. No hall Tredwell acabava de colocar a pesada cha­leira de prata sobre a bandeja. Não havia mais ninguém ali.

— Olá, Tredwell — disse Anthony. — Quero fazer-lhe uma pergunta. Quem ocupa o terceiro quarto, a partir da extremidade oeste? Sobre a Sala do Conselho, quero dizer.

Tredwell refletiu durante alguns instantes.

— É o quarto de Mr. Fish, o cavalheiro americano.

— Oh, é mesmo? Obrigado.

— Não por isso, senhor.

Tredwell preparou-se para sair, mas resolveu ficar. O desejo de contar novidades humaniza até mordomos solenes.

— Talvez o senhor ainda não saiba o que aconteceu ontem à noite.

— Não, não sei — disse Anthony. — Que aconteceu ontem à noite?

— Uma tentativa de roubo, senhor!

— Realmente? E roubaram alguma coisa?

— Não, senhor. Os ladrões estavam desmontando as armaduras na Sala do Conselho, quando foram surpreen­didos e obrigados a fugir. Infelizmente, escaparam.

— É extraordinário! — disse Anthony. — A Sala do Conselho de novo. Entraram por lá mesmo?

— Suponho que sim, senhor. Forçaram a janela.

Satisfeito com o interesse despertado por sua informa­ção, Tredwell ia retirar-se, mas de repente parou com uma desculpa cheia de dignidade.

— Desculpe-me, senhor. Não o ouvi entrar, e não sabia que o senhor estava atrás de mim.

Mr. Isaacstein, que fora a vítima do esbarrão, fez um gesto com a mão de modo amigável.

— Não foi nada, meu amigo. Asseguro-lhe que não foi nada.

Tredwell afastou-se com expressão desdenhosa, e Isaac­stein aproximou-se e sentou-se em uma poltrona.

— Olá, Cade, está de volta então? Ouviu tudo a res­peito do show. de ontem à noite?

— Sim — respondeu Anthony. — Trata-se de um fim de semana bem excitante, não acha?

— Eu diria que o trabalho de ontem à noite foi o de um habitante local — disse Isaacstein. — Parece coisa de um amador desajeitado.

— Há alguém aqui que colecione armaduras? — inda­gou Anthony. — Parece estranha coisa para se colecionar.

— Muito estranha, sem dúvida — concordou Mr. Isaacstein. Parou durante alguns instantes, e depois disse lentamente: — A situação aqui é bastante inauspiciosa.

Em seu tom havia algo quase ameaçador.

— Não entendo bem — disse Anthony.

— Por que somos mantidos aqui desta maneira? O inquérito terminou ontem. O corpo do príncipe será remo­vido para Londres, onde já se espalhou que ele morreu de um ataque cardíaco. E, apesar disso, não permitem que nin­guém saia daqui. Mr. Lomax sabe tanto quanto eu próprio. Ele me diz para consultar o Superintendente Battle.

— O Superintendente Battle está escondendo alguma coisa — disse Anthony pensativo. — Parece ser essencial ao seu plano que ninguém se afaste daqui.

— Mas, desculpe-me, Mr. Cade, o senhor esteve fora.

— Com uma corda presa à minha perna. Não tenho dúvidas de que fui seguido o tempo todo. Não me teriam dado a oportunidade de jogar fora o revólver, ou qualquer coisa nesse gênero.

— Ah, o revólver! — disse Isaacstein pensativo. — Creio que ainda não foi encontrado, não é?

— Ainda não.

— Provavelmente foi jogado no lago, quando por lá passaram.

— É muito possível.

— Onde está o Superintendente Battle? Ainda não o vi esta tarde.

— Foi a Londres. Encontrei-o na estação.

— A Londres? Realmente? Ele disse quando pretende voltar?

— Amanhã cedo, creio eu.

Chegou Virgínia com Lorde Caterham e Mr. Fish. Deu um sorriso de boas-vindas para Anthony.

— Então voltou, Mr. Cade? Já sabe tudo a respeito de nossas aventuras de ontem à noite?

— É verdade, Mr. Cade — disse Hiram Fish arrastan­do as sílabas. — Foi uma noite tremendamente excitante. Contaram-lhe que confundi Mrs. Revel com um dos assal­tantes?

— E nesse meio tempo — disse Anthony — o assal­tante...

— Escapou — disse Mr. Fish em tom de lamento.

— Sirva o chá — disse Lorde Caterham para Virgínia. — Não sei onde está Bundle.

Após fazê-lo, Virgínia aproximou-se de Anthony e sen­tou-se a seu lado.

— Venha à cabana dos barcos depois do chá — disse em voz baixa. — Bill e eu temos algo para lhe contar.

Juntou-se, então, alegremente à conversa geral. O encontro na cabana dos barcos iniciou-se pontual­mente.

Virgínia e Bill estavam fervendo com as notícias. Concordaram em que um barco no meio do lago era o único lugar seguro para uma conversa confidencial. Tendo remado a distância suficiente, toda a história da aventura na noite anterior foi relatada a Anthony, e Bill parecia um tanto emburrado. Desejava que Virgínia não insistisse em pôr esse sujeito das colônias a par do assunto.

— É muito curioso — disse Anthony, terminada a narrativa. — Que acha disso? — perguntou a Virgínia.

— Penso que estavam procurando alguma coisa — res­pondeu ela prontamente. — A idéia de um assalto é absurda.

— Que eles pensavam que essa coisa, ou o quer que seja, estivesse escondida em uma das armaduras é suficien­temente claro. Mas por que teriam dado pancadas no madeiramento? Mais parece que estivessem procurando uma esca­da secreta, ou coisa semelhante.

— Sei que existe um esconderijo em Chimneys — disse Virgínia. — E creio que há também uma escada secreta. Lorde Caterham poderia informar-nos quanto a isso. Mas que coisa estariam eles procurando é o que desejo saber.

— Não é possível que sejam as memórias — disse Anthony. — Trata-se de um pacote volumoso. Deve ser qualquer coisa pequena.

— George deve saber — disse Virgínia. — Só quero ver como é que vou conseguir arrancar isso dele. Desde o começo percebi que havia alguma coisa por trás de tudo isso.

— Você disse que era apenas um homem — prosseguiu Anthony —, mas poderia haver outro, pois você julgou ter ouvido alguém encaminhando-se para a porta no momento em que correu para a janela.

— O som era quase inaudível — disse Virgínia. — Podia ter sido somente a minha imaginação.

— É bem possível. Mas, caso não fosse imaginação sua, a segunda pessoa deve ter sido alguém de dentro da casa. Estou pensando...

— Está pensando em quê? — perguntou Virgínia.

— Na presteza de Mr. Hiram Fish, que se veste intei­ramente ao ouvir gritos de socorro no andar de baixo.

— Aí tem coisa — concordou Virgínia. — E tem mais: Isaacstein dormiu profundamente enquanto tudo aquilo acon­tecia. É duvidoso também. É claro que ele não conseguiria dormir.

— E esse sujeito, Boris — sugeriu Bill. — Parece um perfeito rufião. Estou me referindo ao criado de Miguel.

— Chimneys está cheio de personagens duvidosas — disse Virgínia. — Receio que os outros tenham as mesmas suspeitas a nosso respeito. Gostaria que o Superintendente Battle não tivesse ido a Londres. Creio que é um tanto estú­pido da parte dele. A propósito, Mr. Cade, vi uma ou duas vezes aquele francês de aparência estranha rondando o parque.

— Está tudo muito confuso — confessou Anthony. — Estive fora em uma busca infrutífera. Banquei um asno completo. Veja bem: na minha opinião, a questão toda pa­rece resumir-se nisto: os homens encontraram o que estavam procurando ontem à noite?

— E se não tiverem encontrado? — disse Virgínia. — Na verdade, estou quase certa de que não encontraram.

— Apenas isto: acredito que voltem. Sabem, ou logo saberão, que Battle foi a Londres. Correrão o risco e virão de novo hoje à noite.

— Você pensa realmente assim?

— É uma probabilidade. Vejamos... formaremos um pequeno sindicato nós três. Eversleigh e eu nos escondere­mos, com as devidas precauções, na Sala do Conselho...

— E eu? — interrompeu Virgínia. — Não pensem que vão me deixar fora disso.

— Ouça-me, Virgínia — disse Bill. — Isto é trabalho para homem.

— Não seja idiota, Bill. Estou nisso, fique você saben­do. O sindicato montará guarda hoje à noite.

Assim ficou resolvido, e foram combinados os detalhes do plano. Depois de se retirarem para dormir, os três mem­bros do sindicato deslizaram furtivamente para baixo, um após outro. Estavam munidos de poderosas lanternas elétri­cas, e Anthony trazia um revólver no bolso do casaco.

Anthony dissera acreditar que fariam nova tentativa para dar prosseguimento à busca. Não esperava, entretanto, que essa tentativa partisse do lado de fora. Supunha que Virginia estivesse certa ao julgar que alguém, na noite ante­rior, passara por ela no escuro. Por isso, escondido na som­bra de um velho armário de carvalho, era para a porta e não para a janela que Anthony dirigia o olhar. Virginia mantinha-se agachada atrás de uma armadura na parede opos­ta, e Bill postava-se junto à janela.

Os minutos passaram com interminável lentidão. Soou uma hora, e depois uma e meia, duas, duas e meia. Anthony sentia-se enrijecido e com cãibras. Gradativamente chegava à conclusão de que se enganara. Nenhuma tentativa seria feita essa noite.

E então, subitamente, retesou-se, todos os sentidos em alerta. Ouvira som de passos do lado de fora, no terraço. Silêncio novamente, e depois leve ruído, corno se estivessem arranhando a janela. De repente o barulho parou, e a janela abriu-se. Um homem saltou o peitoril e entrou na sala.

Permaneceu imóvel durante um momento, perscrutando à sua volta como se procurasse ouvir. Após um ou dois mi­nutos, parecendo satisfeito, acendeu a lanterna que trazia consigo, e fê-la girar rapidamente ao redor da sala. Aparen­temente nada viu. Os três observadores prendiam a respi­ração.

Encaminhou-se para o mesmo local do madeiramento que estivera examinando na noite anterior.

Terrível aflição apoderou-se então de Bill. Ele ia espirrar! A desenfreada corrida através do parque úmido, na noite anterior, deixara-o resfriado. Durante todo o dia havia espirrado intermitentemente; aproximava-se agora outro espirro, e nada conseguiria estancá-lo.

Fez uso de todos os remédios que lhe vieram à lem­brança. Apertou o lábio superior, engoliu fundo, inclinou a cabeça para trás e olhou para o teto. Como último recurso segurou o nariz e apertou-o com violência. Foi inútil. Espirrou.

Um espirro débil, sufocado, reprimido, mas que produ­ziu espantoso ruído no silêncio mortal do aposento.

O estranho virou-se num salto, e no mesmo instante Anthony entrou em ação. Acendeu a lanterna, e pulou sobre o estranho. No instante seguinte estavam ambos engalfinha­dos no chão.

— Luz! — berrou Anthony.

Virgínia foi rápida em apertar o comutador. Desta vez a luz veio mesmo. Anthony estava em cima do homem. Bill abaixou-se para ajudá-lo.

— E agora — disse Anthony — vejamos quem é você, meu sujeito.

Virou a vítima. Era o estranho de barba negra, hóspede do Cricketers.

— Muito bem, realmente — disse uma voz, em tom de aprovação.

Olharam todos espantados. A volumosa figura do Supe­rintendente Battle estava postada no batente da porta.

— Pensei que estivesse em Londres, Superintendente Battle — disse Anthony.

Os olhos de Battle piscaram.

— Pensou mesmo? — disse ele. — Bem, julguei que fosse boa coisa pensarem que eu tivesse ido.

— E foi — concordou Anthony, olhando para o inimi­go prostrado.

Para surpresa sua, leve sorriso espalhava-se na fisio­nomia do estranho.

— Posso levantar-me, cavalheiros? — perguntou. — São três contra um.

Anthony, gentilmente, ajudou-o a erguer-se. O estranho arrumou o paletó, endireitou o colarinho, e dirigiu a Battle um olhar aguçado.

— Peço perdão — disse ele —, mas creio que o senhor é um representante da Scotland Yard, não?

— Sou, sim — respondeu Battle.

— Então apresentarei ao senhor as minhas credenciais. — Sorriu com expressão de pesar. — Teria sido mais pru­dente se eu as tivesse apresentado antes.

Tirou do bolso alguns papéis e entregou-os ao detetive da Scotland Yard. Ao mesmo tempo, virou a lapela do pale­tó e mostrou algo ali espetado.

Battle soltou uma exclamação de espanto. Verificou os papéis e devolveu-os com uma leve inclinação de cabeça.

— Lamento que tenha sido maltratado, monsieur — disse ele —, mas a culpa foi sua.

Sorriu, ao notar a expressão atônita na fisionomia dos outros.

— Trata-se de um colega que estamos esperando há algum tempo — disse. — M. Lemoine, da Sûreté em Paris.

 

História secreta

Espantados, todos encararam o detetive francês, que lhes sorriu.

— Sim, é verdade — disse ele.

Houve uma pausa para um geral reajuste de idéias. Virginia, então, voltou-se para Battle.

— Sabe o que penso, Superintendente Battle?

— Que pensa a senhora, Mrs. Revel?

— Penso que já é tempo de nos revelar algumas coisas.

— Revelar? Não compreendo bem, Mrs. Revel.

— Superintendente Battle, o senhor compreende perfei­tamente. Ouso dizer que Mr. Lomax cercou-o de recomen­dações para manter segredo. Isso é próprio de George. Mas é melhor que nos conte, porque senão podemos descobrir o segredo por acaso e, sem querer, ocasionar algum prejuízo. Concorda comigo, M. Lemoine?

— Madame, concordo inteiramente com a senhora.

— Não se pode manter as coisas ocultas indefinida­mente — disse Battle. — Disse isso a Mr. Lomax. Mr. Eversleigh é o secretário de Mr. Lomax. Não vejo objeções em que ele saiba o que há para saber. Quanto a Mr. Cade, está metido na coisa, quer queira quer não, e considero que ele tem o direito de saber onde pisa. Porém...

Battle fez uma pausa.

— Já sei — disse Virgínia. — As mulheres são tão indiscretas! Tenho ouvido George dizer isso freqüentemente.

Lemoine, que estivera observando Virgínia atentamente, voltou-se para o homem da Scotland Yard.

— Será que ouvi bem o nome Revel, quando o senhor se dirigiu a madame?

— É o meu sobrenome — disse Virgínia.

— Seu marido pertenceu ao serviço diplomático, não é? E a senhora esteve com ele na Herzoslováquia pouco antes do assassinato do último rei e da rainha.

— Sim.

Lemoine voltou-se para Battle.

— Penso que madame tem o direito de ouvir a história. Interessa-lhe indiretamente. Além do mais... — seus olhos piscaram um pouco — a reputação de madame quanto à dis­crição paira muito alto nos círculos diplomáticos.

— Sinto-me satisfeita por me fazerem encarnar uma boa personagem — disse Virgínia rindo. — E fico contente por não ser posta de lado.

— Que tal umas bebidas? — disse Anthony. — Onde será a reunião? Aqui?

— Sim, por favor — disse Battle. — Pretendo ficar nesta sala até de manhã. Saberão o motivo quando ouvirem a história.

— Irei, então, fazer uma pilhagem — disse Anthony. Bill saiu com ele e voltaram ambos trazendo uma ban­deja com copos, gasosas e outras necessidades da vida.

O sindicato aumentado instalou-se confortavelmente no canto junto à janela, agrupando-se ao redor de uma mesa de carvalho.

— Compreendam, naturalmente — disse Battle —, que tudo quanto for dito aqui deve ser mantido em estrita re­serva. Nada deve transpirar. Sempre acreditei que isso viria à tona qualquer dia destes. Cavalheiros como Mr. Lomax, que desejam conservar tudo em segredo, correm maiores riscos do que se supõe. Este negócio todo começou há sete anos atrás. Havia uma imensa reconstrução, como costu­mam chamar, sobretudo no Oriente Próximo. Processava-se também na Inglaterra, em surdina, e quem movia os cor­déis era aquele idoso cavalheiro, o Conde Stylptitch. Os países balcânicos eram parte interessada, e a Inglaterra regurgitava de personagens reais. Não vou entrar em detalhes, mas algo desapareceu, e desapareceu de modo incrível, só se podendo admitir duas coisas: que o ladrão era uma perso­nagem real e que, ao mesmo tempo, tratava-se do trabalho de um profissional de alta categoria.

O francês inclinou-se cortesmente e prosseguiu com a narrativa.

— É possível que os senhores aqui na Inglaterra nunca tenham ouvido falar em nosso famoso e fantástico Rei Victor. Seu nome verdadeiro ninguém sabe, mas ele é um homem de estranha coragem e ousadia, fala cinco línguas e é inigua­lável na arte do disfarce. Embora se saiba que seu pai era inglês ou irlandês, ele tem trabalhado sobretudo em Paris. Foi lá que, há uns oito anos, praticou uma série do ousa­dos assaltos, vivendo sob o nome de Capitão O'Neill.

Virgínia deixou escapar leve exclamação. M. Lemoine perscrutou-a com o olhar.

— Creio entender o que deixa madame agitada. Vere­mos dentro de alguns minutos. Nós da Sûreté  tínhamos nossas suspeitas de que esse Capitão O'Neill não fosse outro senão o Rei Victor, mas não conseguíamos obter as provas necessárias. Havia também nessa ocasião, no Folies-Bergère, uma jovem atriz muito esperta, Angèle Mory. Durante algum tempo suspeitamos de que ela estivesse ligada às operações do Rei Victor. Não podíamos, entretanto, provar nada.

"Nessa época, Paris preparava-se para a visita do jovem rei da Herzoslováquia, Nicolau IV. Na Sûreté  tínhamos re­cebido instruções especiais quanto ao método a ser adotado para garantir a segurança de Sua Majestade. Fomos avisa­dos para vigiar com especial atenção as atividades de uma certa organização revolucionária que se intitulava Camara­das da Mão Vermelha. Agora tem-se como certo que os Camaradas aproximaram-se de Angèle Mory, oferecendo-lhe imensa quantia se ela os auxiliasse em seus planos. Seu papel era fazer com que o jovem rei se enamorasse dela e atraí-lo para algum lugar previamente combinado. Angèle Mory aceitou o suborno e prometeu desempenhar a sua parte.

"A jovem, porém, era mais inteligente e mais ambiciosa do que supunham aqueles que a contrataram. Conseguiu cativar o rei, que se apaixonou desesperadamente por ela, e cumulou-a de jóias. Foi então que ela concebeu a idéia de tornar-se, não a amante do rei, mas a rainha! Como realizou sua ambição, todos sabem. Foi apresentada na Herzoslová­quia como a Condessa Varaga Popoleffsky, descendente de um ramo dos Romanoff, e veio a tornar-se a Rainha Varaga da Herzoslováquia. Nada mau para uma pequena atriz pari­siense! Sempre ouvi dizer que ela desempenhou o papel extremamente bem. Foi curto, porém, o seu triunfo. Os Ca­maradas da Mão Vermelha, furiosos com a traição, atentaram duas vezes contra a sua vida. Finalmente levaram o país a tal clímax, que estourou uma revolução, na qual pereceram o rei e a rainha. Os corpos foram encontrados horrivelmente mutilados e dificilmente reconhecíveis, o que atestava a fúria do povo contra uma rainha estrangeira e de baixa origem.

"Mas, em tudo isso, parece certo que a rainha continua­va a manter relações com seu aliado, o Rei Victor. É possível que esse ousado plano tivesse partido dele. Sabe-se que, da corte da Herzoslováquia, ela continuava a se corresponder com ele em código secreto, Para maior segurança, as cartas eram escritas em inglês e assinadas com o nome de uma dama inglesa, então na embaixada. Se um inquérito tivesse sido aberto, e a dama em questão negasse a assinatura, é bem possível que não houvessem acreditado nela, pois as cartas eram as de uma mulher culpada para seu amante. Foi o seu nome que ela usou, Mrs. Revel."

— Sei disso — disse Virgínia. Sua cor ia e voltava, de maneira irregular. — Então, essa é a verdade a respeito das cartas! Frigi os miolos para ver se descobria.

— Que truque vil! — gritou Bill indignado.

— As cartas eram endereçadas à residência do Capitão O'Neill em Paris, e sua finalidade pode ser esclarecida por um curioso fato que veio à luz mais tarde. Depois do assas­sinato do rei e da rainha, inúmeras jóias da coroa que haviam caído, naturalmente, nas mãos do populacho vieram parar em Paris, e descobriu-se que, em nove entre dez, as pedras principais tinham sido substituídas por falsas. Notem bem, havia algumas pedras muito famosas entre as jóias da Her­zoslováquia. Mesmo sendo rainha, Angèle Mory continuava exercendo suas atividades anteriores.

"Vejam agora aonde chegamos. Nicolau IV e a Rainha Varaga vieram à Inglaterra e foram hóspedes do falecido Marquês de Caterham, então ministro das Relações Exte­riores. A Herzoslováquia é um país pequeno, mas não podia ser deixado de lado. A Rainha Varaga foi condignamente recebida. Tratava-se de uma personagem real e, ao mesmo tempo, de experiente ladra. Não resta dúvida de que a... a jóia falsa, tão perfeita que enganaria qualquer pessoa a não ser um especialista, tenha sido idealizada pelo Rei Victor.

Na realidade, o plano todo, em sua ousadia e audácia, apon­tava-o como o autor."

— Que aconteceu? — perguntou Virgínia.

— Ficou tudo em segredo — disse o Superintendente Battle laconicamente. — Até hoje nunca se fez em público menção disso. Fizemos tudo quanto foi possível, em surdina, e foi muito mais do que possam imaginar. Temos nossos métodos próprios, que causariam surpresa. O que lhes posso dizer é que essa jóia não saiu da Inglaterra com a rainha da Herzoslováquia. Não. Sua Majestade escondeu-a em algum lugar, que até hoje não conseguimos descobrir. Imagino — o olhar do Superintendente Battle vagueou suavemente ao redor da sala — se não teria sido aqui nesta sala.

Anthony ergueu-se de um salto.

— Quê? Depois de todos esses anos? — exclamou incrédulo. — Impossível.

— O senhor desconhece as estranhas circunstâncias, monsieur — disse o francês rapidamente. — Apenas quinze dias mais tarde, estourou a revolução na Herzoslováquia, e o rei e a rainha foram assassinados. O Capitão O'Neill foi preso em Paris e condenado à pena mínima. Esperávamos encontrar o maço de cartas em código em sua residência, mas parece que foi roubado durante uma de suas viagens à Herzoslováquia. O homem que o roubou esteve na Herzos­lováquia precisamente antes de arrebentar a revolução, e depois desapareceu por completo.

— Provavelmente viajou para o exterior — disse An­thony pensativo. — É bem possível que tenha ido para a África. E aposto que não se separava do maço de cartas. Valia tanto para ele quanto uma mina de ouro. É curioso como as coisas acontecem. Provavelmente era conhecido por lá como Pedro Holandês, ou coisa semelhante.

Percebeu o impassível olhar do Superintendente Battle voltado para ele, e sorriu.

— Embora pareça, não se trata de clarividência, Battle — disse. — Contarei agora.

— Há uma coisa que ainda não foi explicada — disse Virginia. — Que tem isso a ver com as memórias? Deve existir alguma relação, com certeza.

— Madame é muito sagaz — disse Lemoine em tom de aprovação. — Sim, existe uma relação. O Conde Stylptitch também estava hospedado em Chimneys nessa ocasião.

— Assim sendo ele podia estar a par de tudo?

— Parfaitement.

— E, naturalmente — disse Battle —, se ele trouxesse isso à baila em suas preciosas memórias, a coisa ia pegar fogo. Sobretudo em vista da maneira como se fez silêncio em torno do caso.

Anthony acendeu um cigarro.

— Não existe, talvez, uma pista nas memórias com referência ao lugar onde a pedra foi escondida? — pergun­tou ele.

— É muito pouco provável — afirmou Battle com se­gurança. — O conde não era bem visto pela rainha; opôs-se ao casamento com unhas e dentes. E com certeza ela não depositava confiança nele.

— Eu não estava sugerindo tal coisa, absolutamente — disse Anthony. — Mas, pelo que se sabe, o conde era muito vivo. Podia ter descoberto, sem que ela soubesse, onde a rainha escondera a jóia. Neste caso, que pensa o senhor que ele teria feito?

— Sentado sobre a notícia — respondeu Battle após um instante de reflexão.

— Concordo — disse o francês. — O momento era muito delicado, compreende? Restituir anonimamente a pe­dra teria apresentado enormes dificuldades. Além disso, co­nhecer o segredo do esconderijo dava-lhe grande poder, e o curioso velho gostava do poder. Não somente teria a rainha nas mãos, como uma poderosa arma para negociar em qual­quer ocasião. Não era esse apenas o único segredo que ele possuía. Oh, não! Ele colecionava segredos como algumas pessoas colecionam peças raras de louça. Diz-se que, uma ou duas vezes, antes de sua morte, vangloriou-se das coisas que poderia tornar públicas quando bem entendesse. E, pelo menos uma vez, declarou que pretendia fazer algumas reve­lações espantosas em suas memórias. Daí — o francês sorriu de maneira um tanto seca — a ansiedade geral para se apo­derarem das memórias. A nossa própria polícia secreta pre­tendia apanhá-las, mas o conde tomou as devidas precauções para remetê-las ao exterior antes de sua morte.

— Contudo, não há razão para se acreditar que ele ti­vesse conhecimento desse segredo — disse Battle.

— Perdão — disse Anthony tranqüilamente. — Há as suas próprias palavras.

— Quê?

Ambos os detetives encararam-no como se não acredi­tassem nos próprios ouvidos.

— Quando Mr. McGrath me entregou o manuscrito a fim de que eu o trouxesse para a Inglaterra, contou-me as circunstâncias de seu encontro com o Conde Stylptitch. Foi em Paris. Correndo considerável risco, Mr. McGrath salvou o conde de um bando de apaches. Ele se achava um tanto... digamos, um tanto alegre, e, nessas condições, proferiu duas observações bastante interessantes. Uma delas era que ele sabia onde se encontrava o Koh-i-noor, declaração à qual meu amigo pouca atenção prestou. A outra dizia respeito à qua­drilha em questão: constituía-se de homens do Rei Victor. Vistas em conjunto, são muito significativas essas obser­vações.

— Santo Deus! — exclamou o Superintendente Battle — eu diria que são mesmo. Até o assassinato do Príncipe Miguel assume aspecto diferente.

— O Rei Victor nunca matou ninguém — lembrou-lhe o francês.

— E se ele tiver sido surpreendido quando procurava a jóia?

— Então ele está na Inglaterra? — indagou Anthony bruscamente. — O senhor disse que ele foi solto há alguns meses. Não o seguiram?

Um sorriso um tanto pesaroso espalhou-se na face do detetive.

— Tentamos, monsieur, porém esse homem é um de­mônio. Escapou-nos imediatamente... imediatamente. Pen­samos, é claro, que ele viesse direto para a Inglaterra. Mas não. Ele foi... Para onde pensa que ele foi?

— Para onde? — disse Anthony.

Encarava intensamente o detetive, e, de modo distraído, seus dedos brincavam com uma caixa de fósforos.

— Para a América. Para os Estados Unidos.

— Quê? — O tom de Anthony era de completo espanto.

— É isso mesmo. E como pensa que ele se chamava por lá? Que papel imagina que ele tenha representado? Encarnou a personagem do Príncipe Nicolau da Herzoslováquia.

A caixa de fósforos caiu das mãos de Anthony; seu espanto, porém, era tão grande quanto o de Battle.

— Impossível.

— Nem tanto, meu amigo. Chegarão notícias amanhã cedo. Trata-se do maior blefe. Como se sabe, correu o boato de que o príncipe havia morrido no Congo há alguns anos. Nosso amigo, o Rei Victor, aproveita-se então disso, em vista da dificuldade de se provar uma morte dessa natureza. Res­suscita o Príncipe Nicolau e maneja-o de tal forma que con­segue fugir com tremenda soma de dólares, tudo por conta de supostas concessões de petróleo. Mas, por mero acaso, foi desmascarado e obrigado a sair precipitadamente do país. Desta vez veio para a Inglaterra. E é por isso que aqui me encontro. Mais cedo ou mais tarde ele virá a Chimneys. Isto é, se já não estiver aqui.

— Pensa assim?

— Penso que ele esteve aqui na noite em que morreu o Príncipe Miguel, e ontem à noite de novo.

— Foi outra tentativa, não? — disse Battle.

— Sim, foi outra tentativa.

— O que estava me preocupando — prosseguiu Battle

— era o que teria acontecido a M. Lemoine. Recebi aviso de Paris de que ele estava viajando para vir trabalhar aqui comigo, e não podia entender por que ele não aparecia.

— Na verdade, devo pedir desculpas — disse Lemoine.

— Cheguei na manhã seguinte ao crime. Ocorreu-me que me seria conveniente investigar as coisas de um ponto de vista não-oficial, sem aparecer como seu colega. Pensei que have­ria grandes possibilidades nesse sentido. Estava ciente, é claro, de que poderia me tornar objeto de suspeita; mas isso, de certa forma, convinha a meus planos, pois não despertaria desconfiança nas pessoas que estou procurando. Asseguro-lhes que vi uma porção de coisas interessantes nestes últimos dois dias.

— Mas, olhe aqui — disse Bill —, que aconteceu real­mente ontem à noite?

— Receio que o tenha submetido a exercício um tanto violento — disse Lemoine.

— Então foi o senhor que eu persegui?

— Sim. Contarei as coisas como aconteceram. Vim aqui para investigar, convencido de que o segredo estava ligado a esta sala, uma vez que aqui foi morto o príncipe. Perma­neci do lado de fora, no terraço. Percebi, então, alguém se movendo no interior da sala. De quando em quando eu via a luz de uma lanterna. Experimentei a janela do meio e encontrei-a destrancada. Não sei se o homem havia entrado por ali mais cedo, ou se a tinha deixado destrancada para ter uma saída caso fosse surpreendido. Abri a janela com muito cuidado, e deslizei para dentro da sala. Pé ante pé, procurei um lugar onde pudesse observar as coisas sem a possibilidade de ser descoberto. Não podia ver bem o ho­mem. Estava de costas voltadas para mim, a silhueta de tal forma projetada contra a luz da lanterna, que só eu conseguia ver o seu contorno. Seus movimentos, porém, encheram-me de surpresa. Desmontou as armaduras, uma de cada vez, examinando peça por peça. Quando se convenceu de que o que estava procurando não se encontrava ali, começou a dar pancadas no madeiramento da parede, embaixo daquele qua­dro. O que teria feito em seguida, não sei. Foi interrompido. O senhor irrompeu na sala... — Olhou para Bill.

— Foi mesmo uma pena a nossa bem-intencionada interferência — disse Virgínia pensativa.

— Em certo sentido foi, madame. O homem apagou a lanterna, e eu, que não desejava ser obrigado a revelar minha identidade, precipitei-me para a janela. Colidi com os outros dois no escuro, e caí. Ergui-me e saí pela janela. Mr. Eversleigh, tomando-me pelo assaltante, perseguiu-me.

— Quem o perseguiu primeiro fui eu — disse Virgínia.

— Bill veio em segundo lugar na corrida.

— O outro sujeito teve a idéia de ficar parado, e depois sair furtivamente pela porta. Não sei como ele não se encon­trou com o pessoal que vinha prestar socorro.

— Isso não apresentaria dificuldades — disse Lemoine.

— Ele faria parte dos que vinham ajudar, seria até um dos primeiros.

— Pensa mesmo que este Arsène Lupin seja um dos moradores da casa? — indagou Bill, de olhos cintilantes.

— Por que não? — disse Lemoine. — Ele poderia perfeitamente passar por um criado. Pelo que se sabe, ele bem poderia ser Boris Anchoukoff, o servo fiel do falecido Príncipe Miguel.

— É um sujeito estranho — concordou Bill. Anthony, porém, estava sorrindo.

— Isso não é digno do senhor, M. Lemoine — disse ele suavemente.

O francês também sorriu.

— O senhor agora o tomou como seu valete, não é, Mr. Cade? — perguntou o Superintendente Battle.

— Battle, tiro-lhe meu chapéu. O senhor sabe tudo. Mas, apenas como detalhe, foi ele quem me tomou, e não eu que o tomei.

— Qual seria o motivo disso, Mr. Cade?

— Ignoro — disse Anthony jovialmente. — Trata-se de um gosto esquisito, mas talvez ele tenha ido com a minha cara. Ou, quem sabe, pensa que assassinei seu amo e deseja colocar-se numa posição estratégica para se vingar de mim.

Levantou-se, encaminhou-se para a janela e puxou as cortinas.

— Já está amanhecendo — disse com leve bocejo. — Não haverá mais excitações agora.

Lemoine também ergueu-se.

— Vou deixá-los — disse. — Talvez nos encontremos mais tarde, no decorrer do dia.

Fez amável curvatura para Virgínia, e saiu pela janela.

— Cama — disse Virgínia bocejando. — Foi tudo mui­to excitante. Vamos, Bill, vá para a cama como um bom menino. O desjejum não contará com nenhum de nós, re­ceio eu.

Anthony permaneceu à janela, observando a figura de M. Lemoine que se afastava.

— O senhor não diria — afirmou Battle atrás dele —, mas esse é tido como o detetive mais inteligente na França.

— Não sei se não diria — disse Anthony pensativo. — Creio mesmo que diria.

— Bem — disse Battle —, o senhor tinha razão, termi­naram as coisas excitantes por esta noite. A propósito, lembra-se de que lhe falei a respeito daquele homem encontrado morto por um tiro, perto de Staines?

— Sim. Por quê?

— Por nada. Foi identificado. Parece que se chamava Giuseppe Manelli. Trabalhava como garçom no Blitz, em Londres. Curioso, não é?

 

Battle e Anthony confabulam

Anthony nada disse. Continuou a olhar fixamente para fora da janela. O Superintendente Battle fitou durante algum tempo suas costas impassíveis.

— Bem, boa noite, senhor — disse por fim, e enca­minhou-se em direção à porta.

Anthony voltou-se.

— Espere um instante, Battle.

O superintendente parou obedientemente. Anthony afastou-se da janela. Tirou um cigarro da cigarreira, e acen­deu-o. Então, entre duas baforadas, disse:

— Parece muito interessado nesse caso de Staines, não é?

— Não me interessa tanto assim. É fora do comum, apenas isso.

— Pensa que atiraram no homem no lugar onde ele foi encontrado, ou acha que ele foi morto em qualquer outro lugar, e depois levaram o corpo para lá?

— Penso que atiraram nele em algum outro lugar, e que o cadáver foi transportado num carro.

— Também penso assim — disse Anthony. Algo na ênfase de seu tom fez com que o detetive erguesse o olhar de maneira aguçada.

— Tem alguma idéia a respeito, senhor? Sabe quem o levou para lá?

— Sim — disse Anthony —, fui eu.

Ficou um tanto decepcionado com a absoluta calma mantida pelo outro.

— Devo dizer-lhe que recebe muito bem estes choques, Battle — observou.

— " Nunca demonstre emotividade." Foi uma regra que me ensinaram certa vez, e que tenho achado muito útil.

— E, certamente, o senhor vive em função dela — disse Anthony. — Posso dizer que jamais o vi perturbar-se. Bem, quer ouvir a história toda?

— Se me faz o favor, Mr. Cade.

Anthony puxou duas cadeiras, ambos os homens sen­taram-se, e ele narrou os acontecimentos da noite da quinta-feira anterior.

Battle ouvia impassível. Havia certo brilho longínquo em seu olhar, quando Anthony terminou.

— Sabe, qualquer dia desses o senhor vai se meter em encrenca — disse ele.

— Então, pela segunda vez, não vou ser preso?

— Sempre gostamos de dar bastante corda ao indivíduo — disse o Superintendente Battle.

— Colocado de forma muito delicada — disse Anthony. — Sem dar excessiva ênfase à parte final do provérbio.

— O que não estou percebendo bem — falou Battle — é por que o senhor resolveu trazer isto à baila agora.

— É um tanto difícil de explicar — disse Anthony. — Compreende, Battle, tenho uma opinião realmente muito boa quanto às suas habilidades. O senhor sempre está presente no momento preciso. Veja esta noite. Ocorreu-me, também, que se eu lhe escondesse isso estaria dificultando seus méto­dos. O senhor merece ter acesso a todos os fatos. Fiz o que pude, e até agora só criei confusão. Até esta noite eu não podia falar por causa de Mrs. Revel. Mas, agora que ficou definitivamente provado que essas cartas nada têm a ver com ela, qualquer idéia de sua cumplicidade seria absurda. Em primeiro lugar, aconselhei-a mal; pensei, entretanto, que qualquer declaração sua, afirmando ter pago aquele homem em troca das cartas, apenas por mero capricho, seria difícil de se acreditar.

— Talvez, por um júri — concordou Battle. — Os júris nunca têm nenhuma imaginação.

— Mas o senhor aceita isso facilmente? — disse An­thony, encarando-o com curiosidade.

— Compreenda, Mr. Cade, a maior parte do meu tra­balho tem sido realizado em meio a essa gente. A chamada classe alta, quero dizer. Em geral, a maioria das pessoas está sempre pensando no que os vizinhos irão dizer. Ora, os vagabundos e os aristocratas pouco se incomodam, fazem a primeira coisa que lhes passa pela cabeça e não se importam com o que os outros possam pensar. Não me refiro apenas aos ricos ociosos, aos que dão grandes festas. Refiro-me também aos que nascem e crescem ouvindo dizer que a única opinião que importa é a própria; a dos outros não conta. Sempre encontrei o mesmo nas classes altas: destemor, auten­ticidade, e algumas vezes extrema tolice.

— Trata-se de uma conferência realmente interessante, Battle. Suponho que algum dia o senhor irá escrever as suas memórias. Também serão dignas de uma boa leitura.

O detetive recebeu a sugestão com um sorriso, porém nada disse.

— Gostaria de fazer-lhe uma pergunta — continuou Anthony. —Relacionou-me de algum modo com esse caso de Staines? Julguei que sim, pelo seu jeito.

— Exatamente. Tive uma intuição nesse sentido. Mas nenhuma pista definitiva que pudesse seguir. Seu estilo foi excelente, se assim posso dizer, Mr. Cade. O senhor nunca exagerou a despreocupação.

— Fico satisfeito em sabê-lo — disse Anthony. — Tenho a impressão de que, desde que o encontrei, o senhor vem armando pequenas ciladas para mim. Consegui evitá-las, mas a pressão foi forte.

Battle sorriu amarelo.

— É como se consegue apanhar um trapaceiro. Dá-se-lhe corda, deixa-se que ele se mova e corra de um lado para o outro, e no fim, mais cedo ou mais tarde, ele cai no anzol.

— O senhor é um indivíduo alegre, Battle. Quando me apanhará? É o que imagino.

— Muita corda, senhor — citou o superintendente —, muita corda.

— E nesse meio tempo — disse Anthony — continuo a ser o assistente amador?

— Perfeitamente, Mr. Cade.

— Watson trabalhando para Sherlock?

— As histórias policiais são conversa fiada — disse Battle com indiferença. — Mas agradam às pessoas — acres­centou, depois de certa reflexão. — E às vezes são úteis.

— Em que sentido? — indagou Anthony com curio­sidade.

— Reforçam a idéia universal de que a polícia é estú­pida. Quando temos um crime de amador, tal como um assassinato, isso é realmente muito útil.

Anthony encarou-o em silêncio durante alguns minutos. Battle permaneceu sentado, imóvel, piscando de quando em quando; sua face quadrangular e plácida estava absoluta­mente destituída de expressão. Logo se ergueu, porém.

— Não adianta muito ir dormir agora — observou. — Assim que Lorde Caterham se levantar, quero ter uma pe­quena conversa com ele. Qualquer pessoa que deseje sair desta casa pode fazê-lo. Mas, ao mesmo tempo, eu ficaria muito grato a Sua Excelência se fizesse um convite formal aos hóspedes para que permanecessem aqui. O senhor o acei­tará, faça o favor, e Mrs. Revel também.

— Já encontrou o revólver? — perguntou Anthony subitamente.

— Refere-se àquele com que atiraram no Príncipe Mi­guel? Não, ainda não. Todavia, deve estar na casa ou nos arredores. Aceitarei qualquer sugestão sua, Mr. Cade, e man­darei alguns rapazes saírem à procura. Se eu conseguisse apanhar o revólver, poderíamos dar um bom avanço. O re­vólver e o maço de cartas. O senhor diz que no meio delas havia uma carta encabeçada pela palavra "Chimneys" não é? Tudo depende se essa foi a última escrita. As instruções para achar o diamante foram escritas em código nessa carta.

— Qual é a sua teoria a respeito da morte de Giuseppe? — perguntou Anthony.

— Eu diria que se tratava de um ladrão comum, e que foi empregado pelo Rei Victor ou pelos Camaradas da Mão Vermelha. Não me admiraria se os Camaradas e o Rei Victor estivessem trabalhando juntos. A organização tem muita força e dinheiro, mas possui o cérebro um tanto fraco. A tarefa de Giuseppe era roubar as memórias; eles não podiam saber que as cartas estavam em seu poder. A propósito, é uma estranha coincidência.

— Sei disso — disse Anthony. — É mesmo espantoso.

— Giuseppe, em vez das memórias, apanha as cartas. A princípio, fica profundamente aborrecido. Depois, vê o recorte de jornal e tem a brilhante idéia de utilizar-se delas por sua própria conta, fazendo chantagem com a dama em questão. Não possui, naturalmente, nenhuma idéia quanto ao significado real das cartas. Os Camaradas descobrem o que ele está fazendo, acreditam que ele os está deliberada-mente traindo, e decretam sua morte. Sentem profunda satisfação em executar traidores. Para eles, há nisso um elemento pitoresco que os atrai. O que não consigo entender muito bem é o revólver, em cuja superfície achava-se gravado o nome "Virgínia". É demasiada sutileza, em se tratando dos Camaradas da Mão Vermelha. Via de regra, eles se divertem em borrar com o sinal da Mão Vermelha, com a finalidade de infundir terror em outros possíveis traidores. Não, isso me parece mais coisa do Rei Victor. Que motivo teria ele, não sei. Dá a impressão de uma tentativa deliberada de inculpar Mrs. Revel do crime, e, aparentemente, não parece existir nenhuma razão especial para tanto.

— Eu tinha uma teoria — disse Anthony —, mas não funcionou de acordo com o que pensei.

Contou a Battle como induzira Virgínia a identificar Mi­guel. Battle assentiu com a cabeça.

— Oh, sim, não houve dúvidas quanto à identidade. A propósito, aquele velho barão tem excelente opinião a seu respeito. Refere-se ao senhor nos termos os mais entusiás­ticos.

— É muita bondade dele — disse Anthony. — Sobre­tudo depois que eu lhe avisei sobre a minha intenção em fazer o máximo para recuperar as memórias até a próxima quarta-feira.

— Vai ser um trabalho e tanto — disse Battle.

— Sim... não é mesmo? Suponho que o Rei Victor e companhia tenham as cartas em seu poder.

Battle concordou com a cabeça.

— Furtaram-nas de Giuseppe aquele dia na Pont Street. Foi um trabalhinho bem planejado. Sim, as cartas estão com eles, já as decifraram, e sabem onde procurar.

Ambos os homens estavam saindo da sala.

— Aqui? — disse .Anthony, virando a cabeça para trás.

— Exatamente. Aqui. Mas ainda não acharam o que procuram, e vão correr um bom risco tentando encontrar.

— Creio — disse Anthony — que o senhor deve ter algum plano nessa sua cabeça tão sutil, não é?

Battle não respondeu. Sua aparência era a de uma criatura tola e impassível. Piscou, então, de maneira muito lenta.

— Quer meu auxílio? — perguntou Anthony.

— Quero. E vou precisar de mais alguém.

— De quem?

— Mrs. Revel. O senhor deve ter notado, Mr. Cade, ela tem um jeito realmente sedutor.

— Notei, sim — disse Anthony. Olhou o relógio.

— Estou inclinado a concordar com a sua opinião quan­to a ir para a cama, Battle. Um mergulho no lago, e depois um substancioso desjejum serão bem mais convenientes.

Subiu alegremente a escada, e dirigiu-se a seu quarto. Assobiando, despiu-se, apanhou um roupão e uma toalha de banho.

Subitamente, parou estarrecido diante da mesa de toalete, olhando fixo para um objeto que repousava com gravi­dade em frente ao espelho.

Por um momento não conseguiu acreditar no que viam seus olhos. Apanhou-o, examinou-o cuidadosamente. Sim, não havia engano.

Era o maço de cartas com a assinatura de Virgínia Re­vel. Estava intacto. Não faltava nenhuma carta.

As cartas na mão, Anthony caiu numa cadeira.

— Meus miolos devem estar estourando — murmurou. — Não consigo entender um quarto do que se passa nesta casa. Por que teriam as cartas surgido como um maldito truque de mágica? Quem as teria posto em minha mesa de toalete? Por quê?

Para todas essas pertinentes indagações ele não encon­trou respostas satisfatórias.

 

A maleta de Mr. Isaacstein

Às dez horas dessa manhã, Lorde Caterham e sua filha faziam o desjejum. Bundle parecia muito pensativa.

— Pai — disse por fim.

Lorde Caterham, absorvido na leitura do Times, não respondeu.

— Pai — disse Bundle outra vez, em tom mais agudo.

Lorde Caterham, interrompido na atenta leitura da pró­xima venda de livros raros, ergueu o olhar de maneira dis­traída.

— Hein? — disse ele. — Você falou?

— Sim. Quem já fez o desjejum?

Apontou para um lugar que evidentemente fora ocupa­do. Os outros ainda estavam à espera.

— Oh, aquele fulano.

— O gorducho Iky?

Existia suficiente simpatia entre Bundle e o pai para que compreendessem mutuamente observações desse gênero.

— Ele mesmo.

— O senhor esteve conversando com o detetive hoje de manhã, antes do café?

Lorde Caterham suspirou.

— Sim, estive. Ele me segurou no vestíbulo. Penso que as horas antes do desjejum deviam ser sagradas. Vou ter que viajar para o exterior. A tensão dos meus nervos ...

Bundle interrompeu-o com a maior falta de cerimônia.

— Que foi que ele disse?

— Disse que quem quisesse podia ir embora.

— Bem — disse Bundle. — Isso é ótimo. Era o que o senhor desejava.

— Sei. Mas a coisa não ficou nisso. Ele prosseguiu dizendo que, não obstante, gostaria que eu convidasse todo mundo para ficar.

— Não compreendo — disse Bundle, franzindo o nariz.

— Tão confuso e contraditório — queixou-se Lorde Caterham. — E ainda por cima antes do café.

— Que foi que o senhor disse?

— Oh, concordei, naturalmente. Não vale a pena dis­cutir com essa gente. Sobretudo antes do café — continuou Lorde Caterham, voltando à sua queixa principal.

— Quem o senhor já convidou?

— Cade. Levantou-se cedo esta manhã. Ele vai ficar. Esse não me incomoda. Não o entendo muito bem, mas gosto dele... gosto muito dele.

— Virgínia também gosta — disse Bundle, fazendo com o garfo um desenho sobre a toalha.

— Quê?

— E eu também. Mas isso parece que não tem impor­tância.

— E falei com Isaacstein — prosseguiu Lorde Ca­terham.

— E daí?

— Felizmente ele precisa voltar à cidade. A propósi­to, não se esqueça de ordenar o carro para as dez e cin­qüenta.

— Está bem.

— Se eu pudesse ao menos livrar-me de Fish também

— continuou Lorde Caterham, mais animado.

— Pensei que o senhor gostasse de conversar com ele a respeito de seus livros velhos e embolorados.

— Gosto, sim, gosto, sim. Isto é, gostava. Torna-se monótono quando se descobre que se é a única pessoa a fa­lar. Fish mostra-se muito interessado, mas nunca emite a sua própria opinião.

— É melhor do que ficar só ouvindo — disse Bundle.

— Como acontece quando a gente está com George Lomax.

Lorde Caterham estremeceu à lembrança.

— George é muito bom em palanques — disse Bundle.

— Eu mesma já o aplaudi, embora soubesse, naturalmente, que tudo não passava de palavrório. E, de qualquer forma, sou socialista ...

— Já sei, minha cara, já sei — disse apressadamente Lorde Caterham.

— Está bem — disse Bundle. — Não vou trazer assun­tos políticos para dentro de casa. É o que George faz: fala em casa como se estivesse falando em público. Isso devia ser proibido por ato do Parlamento.

— Isso mesmo — disse Lorde Caterham.

— E Virgínia? — perguntou Bundle. — Ela também vai ser convidada a ficar?

— Battle disse todos.

— E disse com firmeza! Ainda não lhe pediu para ser minha madrasta?

— Creio que não adiantaria — disse Lorde Caterham em tom de lamento. — Embora ela tenha me chamado de querido ontem à noite. Mas o pior dessas jovens atraentes, com disposições afetivas, é que dizem tudo que lhes passa pela cabeça, e isso não tem o menor significado.

— Não tem — concordou Bundle. — Haveria muito mais esperanças se ela atirasse um sapato no senhor, ou ten­tasse mordê-lo.

— Vocês, jovens modernos, parecem ter umas idéias tão desagradáveis a respeito de amor — disse Lorde Ca­terham em tom de queixa.

— Isso nos vem da leitura do Xeique — disse Bundle. — Amor no deserto. Violência, etc...

— Que é o Xeique? — perguntou com simplicidade Lorde Caterham. — É um poema?

Bundle encarou-o com extrema piedade. Ergueu-se, en­tão, e beijou-o no alto da testa.

— Meu velhinho querido — disse, e saiu jovialmente, saltando a janela.

Lorde Caterham voltou à página de anúncios. Sobressaltou-se ao ouvir subitamente a voz de Mr. Hiram Fish, que fizera a sua habitual entrada silenciosa.

— Bom dia, Lorde Caterham.

— Oh, bom dia — disse Lorde Caterham. — Bom dia. Bela manhã, não?

— O tempo está delicioso — disse Mr. Fish. Serviu-se de café. Como alimento sólido, pegou uma torrada.

— A interdição foi mesmo removida? — indagou, após alguns instantes de silêncio. — Estamos, então, todos livres para partir?

— Sim... oh, sim — disse Lorde Caterham. — Na verdade, eu esperava, quero dizer, ficaria muito satisfeito — sua consciência empurrou-o para a frente —, ficaria mes­mo muito satisfeito se o senhor quisesse permanecer por mais algum tempo.

— Mas, Lorde Caterham ...

— Foi uma visita muito desagradável, sei disso — apressou-se Lorde Caterham a dizer. — Abominável. Não posso culpá-lo por querer ir logo embora.

— O senhor me interpreta mal, Lorde Caterham. As circunstâncias foram realmente dolorosas, ninguém pode ne­gá-lo. Mas a vida de campo na Inglaterra, tal como se desen­rola nas mansões dos poderosos, exerce sobre mim profunda atração. Estou interessado no estudo dessas condições. É coisa que, absolutamente, não temos na América. Sinto-me muito satisfeito em aceitar o seu amável convite para ficar.

— Oh, bem — disse Lorde Caterham —, então é isso. Quem fica muito satisfeito sou eu, meu caro amigo; mui­tíssimo satisfeito.

Apressando-se, com maneiras falsamente joviais, Lorde Caterham murmurou algo quanto à necessidade de ir falar com seu administrador, e escapuliu da sala.

No vestíbulo, viu Virgínia, que descia a escada.

— Posso conduzi-la para fazer o desjejum? — pergun­tou Lorde Caterham afetuosamente.

— Já o fiz na cama, obrigada. Estava com muito sono hoje cedo.

Bocejou.

— Teve uma noite ruim, talvez?

— Não foi exatamente uma noite ruim. Sob certo ponto de vista, até que foi uma noite muito boa. Oh, Lorde Ca­terham — passou a mão sob o braço dele, e fez leve pressão —, estou me divertindo tanto. Você seria um amor se me convidasse para ficar.

— Você ficará então, não é? Battle removeu a inter­dição, mas faço questão absoluta de que você fique. Bundle também faz.

— Claro que ficarei. É um convite encantador.

— Ah! — disse Lorde Caterham. E suspirou.

— Qual é a sua mágoa secreta? — indagou Virgínia. —Alguém o mordeu?

— É isso mesmo — disse Lorde Caterham em tom de lamento.

Virgínia ficou intrigada.

— Você não sente vontade, por acaso, de jogar um sapato em cima de mim? Não, estou vendo que não. Oh, bem, não tem importância.

Lorde Caterham afastou-se tristemente, e Virgínia saiu para o jardim por uma porta lateral.

Ali permaneceu durante alguns instantes, respirando o ar fresco de outubro, que era infinitamente revigorante para alguém nas suas condições de cansaço.

Sobressaltou-se ao perceber o Superintendente Battle a seu lado. O homem parecia ter a extraordinária habilidade de surgir do espaço, sem o mínimo aviso prévio.

— Bom dia, Mrs. Revel. Não está demasiado fatigada, espero?

Virgínia abanou a cabeça.

— Foi uma noite extremamente excitante — disse ela. — Valeu a pena a perda de umas horas de sono. A única coisa é que, depois dela, o dia de hoje parece um tanto monótono.

— Há um lugar agradável ali na sombra, embaixo da­quele cedro — observou o superintendente. — Quer que eu leve uma cadeira para a senhora?

— Se o senhor acha que é a melhor coisa que tenho a fazer — disse Virgínia gravemente.

— A senhora é muito viva, Mrs. Revel. Na verdade, quero conversar um pouco com a senhora.

Pegou uma cadeira de vime e levou-a para o gramado. Virgínia seguiu-o, carregando uma almofada sob o braço.

— Aquele terraço é um lugar muito perigoso — obser­vou o detetive. — Isto é, quando se quer ter uma conversa particular.

— As coisas estão ficando excitantes outra vez, Supe­rintendente Battle.

— Oh, não é nada importante. — Tirou enorme reló­gio e verificou a hora. — Dez e meia. Dentro de dez minutos irei à Abadia de Wyverne fazer um relatório para Mr. Lomax.

Temos bastante tempo. Só queria saber se a senhora pode­ria me dizer mais alguma coisa sobre Mr. Cade.

— Sobre Mr. Cade? Virgínia estava sobressaltada.

— Sim, onde a senhora o encontrou pela primeira vez, há quanto tempo o conhece, e assim por diante.

O modo de Battle era natural e suficientemente agra­dável. Evitou, até mesmo, encarar Virgínia; isso, entretanto, deixou-a vagamente intranqüila.

— É mais difícil do que o senhor pensa — disse ela por fim. — Certa vez ele me prestou um grande serviço ...

Battle interrompeu-a.

— Antes que a senhora prossiga, Mrs. Revel, gostaria de lhe dizer uma coisa. Ontem à noite, depois que a senhora e Mr. Eversleigh foram se deitar, Mr. Cade contou-me tudo sobre as cartas e o homem que foi morto em sua casa.

— Ele contou? — espantou-se Virginia.

— Sim, e foi muito sensato. Isso esclarece uma porção de mal-entendidos. Uma coisa apenas ele não me disse: há quanto tempo conhece a senhora. Tenho a minha própria idéia a esse respeito. A senhora me dirá se estou certo ou errado. Penso que aquele dia em que ele foi à sua casa na Pont Street foi a primeira vez em que a senhora o viu. Ah! Vejo que estou certo. Foi isso mesmo.

Virginia não disse nada. Pela primeira vez sentiu medo daquele homem impassível, de rosto inexpressivo. Com­preendeu, então, o que Anthony quis dizer quando afirmou que o Superintendente Battle não era nada tolo.

— Por acaso ele lhe contou alguma coisa a respeito de sua vida? — prosseguiu o detetive. — Antes de viajar para a África do Sul, quero dizer. No Canadá? Ou antes disso, no Sudão? Ou sobre sua meninice?

Virginia apenas balançou a cabeça.

— Aposto, entretanto, que ele tem coisas dignas de serem contadas. A gente não se engana com a fisionomia de um homem que levou uma vida ousada, de aventuras. Bem que ele lhe poderia contar algumas histórias interessan­tes, se quisesse.

— Se o senhor deseja saber alguma coisa a respeito de seu passado, por que não telegrafa para esse tal amigo dele, Mr. McGrath? — perguntou Virginia.

— Oh, já telegrafamos. Mas parece que ele viajou para o interior do país. Contudo, não há dúvidas de que Mr. Cade esteve em Bulawayo na ocasião em que diz ter estado. Gos­taria de saber, porém, o que ele andou fazendo antes de ir para a África do Sul. Trabalhou para a Companhia Castle apenas durante um mês. — Olhou o relógio de novo. — Preciso ir. O carro deve estar esperando.

Virginia observou-o afastar-se em direção à casa. Mas não se moveu da cadeira. Desejou que Anthony aparecesse e se aproximasse dela. Em vez dele, surgiu Bill Eversleigh, com um prodigioso bocejo.

— Graças a Deus, finalmente, tenho uma oportunidade de falar com você, Virginia — queixou-se ele.

— Bem, fale comigo de maneira muito suave, Bill que­rido, senão romperei em lágrimas.

— Alguém esteve aborrecendo você?

— Aborrecendo não é precisamente o termo. Penetran­do em meu cérebro e revirando meus miolos de dentro para fora. Sinto-me como se um elefante tivesse me esmagado.

— Battle?

— Sim, Battle. Ele é de fato um homem terrível.

— Ora, não se importe com ele. Virginia, eu a amo tão terrivelmente ...

— Esta manhã, não, Bill. Não me sinto com forças suficientes. De qualquer forma, sempre lhe disse que as pessoas de alta classe não propõem casamento antes do almoço.

— Meu Deus! — exclamou Bill. — Eu poderia pedi-la em casamento até mesmo antes do desjejum.

Virginia estremeceu.

— Bill, seja sensato e inteligente por alguns instantes. Quero pedir-lhe um conselho.

— Se você se decidisse e aceitasse minha proposta de casamento, sentir-se-ia muitíssimo melhor. Estou certo. Mais feliz, sabe, e mais sossegada.

— Ouça-me, Bill. Pedir-me em casamento é a sua idêe fixe. Os homens fazem propostas de casamento quando estão aborrecidos e não lhes ocorre nada melhor a dizer. Lembre-se da minha idade e da minha condição de viúva, e vá se decla­rar a uma mocinha inocente.

— Minha querida Virgínia... Oh, diabo! Lá vem aquele francês idiota fazer-nos companhia.

Tratava-se, realmente, de M. Lemoine, de barba negra e aparência correta como sempre.

— Bom dia, madame. Espero que a senhora não esteja muito cansada.

— Nem um pouco.

— Ótimo. Bom dia, Mr. Eversleigh.

"Que tal se passeássemos um pouco, nós três?", sugeriu o francês.

— Que diz você quanto a isso, Bill? — disse Virginia.

— Oh, está bem — respondeu de má vontade o jovem a seu lado.

Ele se levantou da grama, e os três começaram a cami­nhar lentamente. Virgínia entre os dois homens. Imediata­mente ela sentiu que o francês estava dominado por uma estranha tensão, com cujo motivo Virginia não atinava.

Logo, com sua habitual perícia, ela o estava deixando à vontade, fazendo-lhe perguntas, ouvindo respostas, e gra­dualmente tranqüilizando-o. Ele lhes contava histórias do famoso Rei Victor. Falava bem, embora com uma certa amargura, ao descrever as várias maneiras pelas quais o bureau de investigações fora passado para trás.

Todavia, não obstante Lemoine estivesse realmente ab­sorvido na própria narrativa, Virginia tinha a impressão de que seu objetivo era outro. Mais ainda, percebeu que Lemoi­ne, dosando, bem a história, tomava um rumo determinado através do parque. Não estavam apenas caminhando ao aca­so. Ele os conduzia deliberadamente para uma determinada direção.

Subitamente, interrompeu a narrativa, e olhou em re­dor. Achavam-se precisamente no caminho que cortava o parque, antes de uma curva abrupta junto à moita. Lemoine observava fixamente um veículo que se aproximava, vindo da casa.

Os olhos de Virginia seguiram os dele.

— É a carroça das bagagens — disse ela — levando para a estação a bagagem de Isaacstein e seu criado.

— É mesmo? — disse Lemoine. Consultou o relógio e sobressaltou-se. — Mil perdões. Fiquei mais tempo do que pretendia... a companhia é tão fascinante. Acham que me seria possível pegar uma carona até a vila?

Saiu para o meio do caminho e fez sinal com o braço.

A carroça parou e, após uma ou duas palavras de expli­cação, Lemoine subiu na parte traseira. Tirou cortesmente o chapéu para Virginia, e afastou-se.

Os outros dois, com expressões intrigadas, ficaram ob­servando a carroça desaparecer. Quando fazia a curva, uma maleta caiu no caminho, e o veículo prosseguiu.

— Venha — disse Virginia. — Vamos presenciar algo interessante. Aquela maleta foi jogada.

— Ninguém notou — disse Bill.

Correram em direção ao objeto que caíra. Quando esta­vam a ponto de alcançá-lo, surgiu Lemoine na curva, a pé, suado por ter andado tão depressa.

— Fui obrigado a descer — disse ele de modo agra­dável. — Descobri que havia esquecido alguma coisa.

— Isto? — perguntou Bill, indicando a maleta.

Era uma elegante maleta de pele de porco, com as iniciais "H. I.".

— Que pena! — disse Lemoine gentilmente. — Deve ter caído. Vamos apanhá-la?

Sem esperar resposta, pegou a maleta e levou-a para a moita. Ali parou, algo brilhou em sua mão, e a fechadura cedeu.

Falou, e sua voz estava completamente diferente; rápi­da e em tom de comando.

— O automóvel chegará dentro de alguns instantes — disse ele. — Já está à vista?

Virginia olhou em direção à casa.

— Não.

— Bom.

Com dedos hábeis, tirou as coisas de dentro da maleta. Garrafas de tampa dourada, pijama de seda, uma variedade de meias. Subitamente tornou-se rígido. Pegou o que pare­cia ser um monte de roupas de baixo, de seda, e desenrolou-o com rapidez.

Bill deixou escapar leve exclamação. No meio da roupa achava-se um pesado revólver.

— Estou ouvindo a buzina — disse Virginia.

Como um raio, Lemoine refez a maleta. Envolveu o revólver em seu próprio lenço de seda, e guardou-o no bolso. Trancou a maleta, e voltou-se rapidamente para Bill.

— Pegue-a. Madame irá com o senhor. Faça o auto­móvel parar, e explique que isto caiu da carroça de baga­gens. Não mencione meu nome.

Bill dirigiu-se com rapidez para o caminho, no momento preciso em que a grande limusine Lanchester surgia na curva. O chofer diminuiu a marcha, e Bill ergueu a maleta, mostrando-a.

— Caiu da carroça de bagagens — explicou. — Vimos por acaso.

Percebeu uma súbita expressão de sobressalto no rosto amarelado do financista, quando este o fitou, e o carro pros­seguiu em sua marcha.

Voltaram para junto de Lemoine. Ele estava com o revólver na mão, e em sua fisionomia espalhava-se imenso regozijo.

— Um bom tiro — disse ele. — Um bom tiro. Mas errou o alvo.

 

Sinal vermelho

O Superintendente Battle achava-se na biblioteca da Abadia de Wyvern.

George Lomax, sentado a uma escrivaninha superlo­tada de papéis, franzia solenemente o cenho.

O Superintendente Battle iniciara a entrevista fazendo um relatório breve e eficiente. Desde então, a conversa fica­ra inteiramente a cargo de George, e Battle contentava-se em responder de maneira sucinta e monossilábica às pergun­tas do outro.

Sobre a escrivaninha, em frente a George, estava o ma­ço de cartas que Anthony encontrara em sua mesa de toalete.

— Não consigo entender, de forma alguma — disse George irritado, pegando o maço de cartas. — Você diz que estão em código?

— Exatamente, Mr. Lomax.

— E onde diz ele que as encontrou? Sobre a mesa de toalete?

Battle repetiu, palavra por palavra, o relato de Anthony Cade de como as cartas tinham voltado para seu poder.

— E ele as entregou imediatamente para você? Fez muito bem... muito bem. Mas quem as teria posto em seu quarto?

Battle abanou a cabeça.

— Isso é coisa que você devia saber — queixou-se George. — Parece-me muito duvidoso... muito duvidoso mesmo. Em todo o caso, que sabemos nós a respeito desse tal Cade? Ele surge de maneira extremamente misteriosa, sob circunstâncias muito suspeitas, e não sabemos absoluta­mente nada a seu respeito. Posso dizer que eu, pessoalmente, não gosto nem um pouco do seu jeito. Tomou informa­ções sobre ele, suponho?

O Superintendente Battle permitiu-se um paciente sor­riso.

— Telegrafamos imediatamente para a África do Sul, e sua história foi toda ela confirmada. Esteve em Bulawayo com Mr. McGrath na ocasião em que diz ter estado. Antes desse encontro, ele se achava empregado com Castle, a agên­cia de turismo.

— Exatamente o que eu esperava — disse George. — Ele possui essa espécie de segurança barata, que carac­teriza certos tipos de emprego. Mas, voltando às cartas... é preciso tomar alguma providência imediatamente.

O grande homem empertigava-se e inchava de impor­tância.

O Superintendente Battle abriu a boca, porém George antecipou-se.

— Não pode haver demora. Estas cartas devem ser decifradas sem perda de tempo. Deixe-me ver: quem é o homem? Há um homem ligado ao Museu Britânico. Sabe tudo quanto se refere a códigos. Dirigiu o departamento para nós, durante a guerra. Onde está Miss Oscar? Ela deve saber. O nome dele é algo assim como Win... Win...

— Professor Wynwood — disse Battle.

— Exatamente. Lembro-me perfeitamente agora. É preciso telegrafar-lhe imediatamente.

— Já o fiz, Mr. Lomax, há uma hora atrás. Ele chega­rá pelo trem das doze e dez.

— Oh, muito bom, muito bom. Graças a Deus, posso tirar isso da cabeça. Preciso ir à cidade hoje. Pode ir comigo?

— Creio que sim.

— Bem, faça o possível, Battle, faça o possível. Estou terrivelmente atarefado.

— Perfeitamente, senhor.

— A propósito, por que Mr. Eversleigh não veio com você?

— Ele ainda estava dormindo. Passamos a noite toda acordados, como já lhe contei.

— Oh, sim. Eu próprio passo freqüentemente quase toda a noite acordado. Fazer o trabalho de trinta e seis horas em vinte e quatro é minha tarefa constante! Quando voltar, mande Mr. Eversleigh vir imediatamente, sim, Battle? —: Dar-lhe-ei seu recado.

— Obrigado, Battle. Sei perfeitamente que você pre­cisou depositar certa confiança nele. Mas acha que era mes­mo necessário confiar em minha prima, Mrs. Revel?

— Em vista do nome assinado nessas cartas, acho que sim, Mr. Lomax.

— Um insulto bastante estranho — murmurou Geor­ge, franzindo o cenho ao olhar para o maço de cartas. — Lembro-me do último rei da Herzoslováquia. Sujeito encan­tador, mas fraco... deploravelmente fraco. Um instrumento nas mãos de uma mulher inescrupulosa. Tem alguma teoria a respeito de como essas cartas foram restituídas a Mr. Cade?

— É minha opinião — falou Battle — que quando não se consegue uma coisa por um meio... tenta-se outro.

— Não o entendo bem — disse George.

— Esse escroque, esse tal Rei Victor, está certo agora de que a Sala do Conselho vem sendo vigiada. Deixará, por isso, que decifremos as cartas e encontremos o esconderijo. E então... vamos ter complicações! Mas Lemoine e eu nos encarregaremos disso.

— Então você tem um plano?

— Eu não iria tão longe a ponto de dizer que tenho um plano. Mas tenho uma idéia. Uma idéia é uma coisa muito útil, algumas vezes.

Tendo dito isso, o Superintendente Battle aprontou-se para sair. «

Não pretendia, além desses limites, confiar em George. Quando regressava, passou por Anthony no caminho, e parou.

— Vai me dar uma carona até a casa? — indagou Anthony. — Que bom!

— Onde esteve, Mr. Cade?

— Fui à estação pedir algumas informações a respeito de trens.

Battle ergueu as sobrancelhas.

— Está pensando em nos deixar outra vez? — per­guntou.

— No momento, não — riu Anthony. — A propósito, que foi que perturbou Isaacstein? Ele chegou quando eu estava de saída, e tinha a aparência de quem tivesse levado um choque desagradável.

— Mr. Isaacstein?

— Sim.

— Não saberia dizê-lo. Mas imagino que seja preciso muita coisa para chocá-lo.

— Também acho — concordou Anthony. — Ele é um dos homens fortes e silenciosos do mundo das finanças.

Subitamente Battle inclinou-se para a frente e tocou o ombro do chofer.

— Pare, sim? E espere-me aqui.

Saltou do carro, para grande surpresa de Anthony. Mas, dentro de alguns segundos, Anthony percebeu M. Lemoine avançando ao encontro do detetive, e deduziu que fora um sinal deste que havia atraído a atenção de Battle.

Houve uma rápida conversa entre os dois, após a qual o superintendente voltou para o carro, acomodou-se e orde­nou ao chofer que prosseguisse.

Sua expressão estava completamente mudada.

— Encontraram o revólver — disse ele de maneira súbita e brusca.

— Quê?

Anthony encarou-o profundamente surpreendido.

— Onde?

— Na maleta de Isaacstein.

— Oh, é impossível!

— Nada é impossível — disse Battle. — Eu devia ter me lembrado disso.

O detetive permanecia imóvel; apenas suas mãos da­vam pequenas batidas nos joelhos.

— Quem o encontrou?

Battle fez um gesto com a cabeça.

— Lemoine. Sujeito esperto. Na Sûreté  ele é considerado o máximo.

— Mas isso não vem perturbar todas as suas idéias?

— Não — disse o Superintendente Battle de modo muito lento. — Não posso dizer que venha. A princípio foi um tanto surpreendente, admito. Mas encaixa-se muito bem em uma idéia que tenho.

— Qual é?

O superintendente, porém, desviou-se para um assunto totalmente diferente.

— O senhor não se incomodaria de procurar Mr. Eversleigh para mim? Trago-lhe um recado de Mr. Lomax. Ele deve ir à abadia imediatamente.

— Está bem — disse Anthony. O carro acabara de chegar à porta principal. — Provavelmente ele ainda está dormindo.

— Penso que não — disse o detetive. — Se o senhor olhar bem, verá que ele está passeando embaixo das árvores com Mrs. Revel.

— Que olhos maravilhosos você tem, não é, Battle? — disse Anthony, afastando-se para transmitir o recado.

Ao recebê-lo, Bill ficou muito aborrecido.

— Que vá tudo para o inferno! — resmungou consigo mesmo, enquanto caminhava em direção à casa. — Por que Codders de vez em quando não me deixa em paz? E por que esses malditos coloniais não voltam para as suas colô­nias? Por que vêm para cá e se apossam das melhores mo­ças? Estou farto de tudo isso.

— Já sabe do revólver? — perguntou Virgínia sem fôlego, quando Bill os deixou.

— Battle contou-me. É surpreendente, não? Ontem Isaacstein estava terrivelmente aflito para partir, mas atri­buí isso apenas ao seu estado nervoso. É uma pessoa que eu julgaria acima de suspeita. Você consegue encontrar algum motivo para que ele quisesse tirar o Príncipe Miguel do caminho?

— Isso, certamente, não se encaixa -— concordou Virginia.

— Nada se encaixa em nenhum lugar — disse Anthony desgostoso. — Pensei que pudesse começar como detetive amador, e tudo quanto fiz até agora foi deixar livre de sus­peita a governanta francesa, após imenso trabalho e algu­ma despesa.

— Foi por isso que você viajou para a França? — indagou Virgínia.

— Sim. Fui a Dinard e estive com a Condessa de Breteuil, extremamente satisfeito com a minha própria inteli­gência, esperando convictamente ser informado de que ela jamais ouvira falar em Mlle Brun. Em vez disso, fizeram-me compreender que a dama em questão fora o sustentáculo dos assuntos domésticos durante os últimos sete anos. Assim sendo, a não ser que a condessa também seja desonesta, essa minha engenhosa teoria vai por água abaixo. Virginia abanou a cabeça.

— Mme de Breteuil está fora de suspeita. Conheço-a muito bem, e tenho uma vaga idéia de que vi mademoiselle lá no castelo. Seu rosto não me é estranho, lembro-me vaga­mente, como em geral a gente se recorda da fisionomia de governantas, damas de companhia, e pessoas que se sentam à nossa frente nos trens. É incrível, mas eu nunca presto muita atenção nelas. E você?

— Só quando são excepcionalmente bonitas — admi­tiu Anthony.

— Bem, nesse caso... — Interrompeu-se. —- Que aconteceu?

Anthony olhava para uma figura que saíra da moita, e postava-se de maneira rígida, chamando a atenção. Trata­va-se de Boris, o herzoslovaco.

— Desculpe-me — disse Anthony para Virginia. — Preciso falar com meu cão por um instante.

Dirigiu-se para onde se encontrava Boris.

— Que aconteceu? Que é que você quer?

— Meu amo — disse Boris curvando-se.

— Sim, está muito bem, mas você não deve ficar me seguindo desse jeito. Fica esquisito.

Sem pronunciar uma única palavra; Boris pegou um pedaço de papel manchado, evidentemente fragmento de uma carta, e entregou-o a Anthony.

— Que significa isto?

Havia um endereço rabiscado no papel, e nada mais.

— Ele o deixou cair — disse Boris. — Trago-o para meu amo.

— Quem o deixou cair?

— O cavalheiro estrangeiro.

— Mas por que entregá-lo a mim?

Boris encarou-o com expressão de censura.

— Bem, de qualquer maneira, pode ir agora — disse Anthony. — Estou ocupado.

Boris fez uma saudação, virou-se bruscamente nos calcanhares, e afastou-se. Anthony voltou para junto de Vir­ginia, guardando no bolso o pedaço de papel.

— Que é que ele queria? — perguntou ela com curio­sidade. — E por que você o chama de seu cão?

— Porque ele age como se fosse um — disse Anthony, respondendo primeiro à última pergunta. — Creio que ele deve ter sido um cão de fila na última encarnação. Entre­gou-me o fragmento de uma carta que, segundo diz, o cavalheiro estrangeiro deixou cair. Suponho que se refira a Lemoine.

— Suponho que sim — concordou Virginia.

— Ele está sempre me seguindo — prosseguiu An­thony. — Como um cachorro. Não pronuncia uma palavra. Fica só me olhando com seus olhos grandes e arredondados. Não consigo entendê-lo.

— Talvez ele se referisse a Isaacstein — sugeriu Vir­ginia. — Isaacstein parece suficientemente estrangeiro.

— Isaacstein — murmurou Anthony com impaciência.

— Que diabo de papel faz ele em tudo isso?

— E você, está arrependido de se ter envolvido nisso? — indagou Virginia subitamente.

— Arrependido? Por Deus que não. Adoro isso. Pas­sei a maior parte de minha vida procurando encrencas, sabe? Talvez, agora, tenha encontrado um pouco mais do que es­perava.

— Mas não há mais perigo para você agora — falou Virginia, um tanto surpresa com a inabitual gravidade de seu tom.

— Ainda pode haver.

Caminharam em silêncio durante alguns instantes.

— Existem algumas pessoas — disse Anthony, rom­pendo o silêncio — que não se conformam com os sinais. Uma locomotiva comum e bem regulada diminui a marcha ou pára quando encontra o sinal vermelho. Talvez eu tenha nascido cego para as cores. Quando vejo o sinal vermelho, não consigo parar. E, no fim, isso significa desastre. Na cer­ta. Tal coisa, geralmente, é prejudicial ao tráfego.

Falava ainda com muita seriedade.

— Suponho — disse Virginia — que você se tenha exposto a muitos riscos em sua vida, não?

— Praticamente a todos os que existem... exceto ao casamento.

— Isso soa um tanto cínico.

— Não foi minha intenção. O casamento, a espécie de casamento a que me refiro, seria a maior aventura de to­das elas.

— Gosto disso — disse Virgínia, corando ansiosamente.

— Existe apenas um tipo de mulher com quem eu me casaria... a mulher que leva o gênero de vida completa­mente diferente do meu. E que faríamos? Iria ela orientar a minha vida, ou seria eu a guiar a dela?

— Se ela o amasse...

— Sentimentalismo, Mrs. Revel. Sabe que é. O amor não é uma droga que se tome para impedir que se enxergue em redor. Pode-se fazê-lo, sim, mas é lamentável. O amor pode ser muito mais do que isso. Que julga que o rei e sua pobre criadinha pensaram da vida conjugai após um ou dois anos de casados? Não teria ela sentido falta de seus trapos, seus pés descalços, e sua vida livre? Aposto que sim. Teria valido a pena que ele renunciasse à coroa por causa dela? Nem um pouco. Estou certo de que ele teria sido um péssi­mo mendigo. E nenhuma mulher respeita um homem quan­do ele faz uma coisa malfeita.

— Apaixonou-se por alguma jovem mendiga, Mr. Cade? — perguntou suavemente Virgínia.

— É a minha outra face, mas o princípio é o mesmo.

— E não há saída? — perguntou Virgínia.

— Sempre há uma saída — disse Anthony tristemente. — Tenho uma teoria segundo a qual pode-se sempre con­seguir o que se quer, quando se está disposto a pagar o preço. E sabe qual é o preço, nove entre dez vezes? O com­promisso. É uma coisa abominável o compromisso, mas infil­tra-se na gente quando a meia-idade se aproxima. Está se infiltrando em mim agora. Para ter a mulher que desejo, eu... eu até me sujeitaria a um emprego fixo.

Virgínia riu.

— Fui educado para exercer uma profissão, sabe? — prosseguiu Anthony.

— E abandonou-a?

— Sim.

— Por quê?

— Uma questão de princípios.

— Oh!

— Você é uma mulher bem fora do comum — disse Anthony subitamente, voltando-se e encarando-a.

— Por quê?

— Consegue abster-se de fazer perguntas.

— Quer dizer que não lhe perguntei qual era a sua profissão?

— Exatamente.

Caminharam em silêncio novamente. Aproximavam-se da casa, passando junto ao aroma adocicado que se evolava do roseiral.

— Você compreende perfeitamente — disse Anthony, rompendo o silêncio. — Compreende quando um homem está apaixonado por você. Não creio que se importe o míni­mo comigo ou com qualquer outro — mas, por Deus, como eu gostaria de fazer você se importar.

— Acha que poderia? — perguntou Virgínia em voz baixa.

— Provavelmente não, mas faria o diabo para tentar.

— Está arrependido de me ter conhecido? — pergun­tou ela subitamente.

— Por Deus que não! É o sinal vermelho de novo. Quando a vi pela primeira vez, naquele dia na Pont Street, sabia que estava deparando com algo que iria me atingir em cheio. Foi seu rosto, seu rosto apenas. Há magia em você da cabeça aos pés; existem algumas mulheres assim, mas nunca conheci uma que possuísse tanta quanto você. Presumo que se casará com algum homem respeitável e próspero, e eu voltarei à minha vida mal-afamada, mas vou beijá-la antes de partir, juro que vou.

— Agora não — disse Virgínia suavemente. — O Su­perintendente Battle está nos observando da janela da bi­blioteca.

Anthony encarou-a.

— Você é um demônio, Virgínia — disse ele tranqüi­lamente. — Mas eu lhe quero muito.

Acenou, então, alegremente para o Superintendente Battle.

— Já pegou algum criminoso esta manhã, Battle?

— Ainda não, Mr. Cade.

— Isso soa muito esperançoso.

Battle, com uma agilidade surpreendente em homem tão estólido, saltou a janela da biblioteca e juntou-se a eles no terraço.

— O Professor Wynwood está lá dentro — anunciou num sussurro. — Chegou neste minuto. Está decifrando as cartas agora. Gostariam de vê-lo trabalhar?

Seu tom sugeria o de um empresário falando de sua atração favorita. Recebendo resposta afirmativa, conduziu-os à janela e convidou-os a espiar para dentro do aposento.

Sentado a uma mesa, as cartas espalhadas à sua frente e escrevendo ativamente em uma longa folha de papel, acha­va-se um homem pequeno, de meia-idade e cabelos ruivos. Resmungava irritadamente consigo próprio enquanto escre­via, e, de quando em quando, esfregava o nariz com violên­cia, tornando-lhe a cor quase igual à dos cabelos.

Em dado momento ergueu o olhar.

— É você, Battle? Por que me fez vir aqui para deslindar esta tolice? Uma criança de colo poderia fazê-lo. Qualquer criança de dois anos poderia fazê-lo mentalmente. Chama isto de código? Isto salta aos olhos, homem.

— Fico satisfeito, professor — disse Battle suavemen­te. — Mas não somos tão inteligentes quanto o senhor.

— Não é preciso ser inteligente — vociferou o pro­fessor. — Isto é trabalho de rotina. Quer todas as cartas? É um negócio comprido, sabe? Requer diligente aplicação e a máxima atenção, mas, em absoluto, não é necessário ser inteligente. Já aprontei aquela datada de Chimneys, a que você diz ser importante. Posso muito bem levar o resto para Londres e entregar a um de meus assistentes. Na rea­lidade, eu próprio não tenho tempo a perder. Estou vindo de um verdadeiro quebra-cabeças, e quero voltar a ele.

Seus olhos brilharam um pouco.

— Está bem, professor — aquiesceu Battle. — Sinto que o nosso caso seja tão insignificante. Explicarei a Mr. Lomax. Tínhamos pressa somente quanto a essa carta. Creio que Lorde Caterham espera que o senhor fique para o almoço.

— Nunca almoço — disse o professor. — Mau hábito, o almoço. Uma banana e um biscoito é tudo quanto todo homem sensato e sadio deveria necessitar no meio do dia.

Pegou o sobretudo, que estava sobre o espaldar de uma cadeira. Battle fez a volta, dirigindo-se para a frente da casa, e poucos minutos depois Anthony e Virgínia ouvi­ram o barulho de um carro partindo.

Battle regressou, trazendo nas mãos a meia folha de papel que o professor lhe entregara.

— Ele é sempre assim — disse Battle, referindo-se ao professor. — Sempre com uma pressa danada. Homem inte­ligente. Bem, eis aqui o cerne da carta de Sua Majestade. Querem dar uma espiada?

Virgínia estendeu a mão, e Anthony leu a carta curvando-se sobre seus ombros. Tratava-se, conforme ele se lembrava, de uma longa epístola, expressando paixão e desespero. O gênio do Professor Wynwood transformara-a em uma comunicação essencialmente comercial:

"Operações realizadas com sucesso, mas S. nos traiu. Removeu a pedra do esconderijo. Não está em seu quarto. Já procurei. Encontrei o seguinte memorando que acredito referir-se a ela: richmond sete em linha reta oito à ESQUERDA TRÊS À DIREITA".

— S.? — disse Anthony. — Stylptitch, é claro. Velho esperto. Mudou o esconderijo.

— Richmond? — disse Virgínia pensativa. — Será que o diamante está escondido em algum lugar em Richmond?

— É o lugar favorito das pessoas reais — concordou Anthony.

Battle abanou a cabeça.

— Ainda penso que se trate de alguma referência a qualquer coisa nesta casa.

— Já sei — exclamou Virgínia subitamente. Ambos os homens voltaram-se para ela.

— O quadro pintado por Holbein, na Sala do Conselho. Estavam batendo na parede exatamente embaixo dele. E é um retrato do Duque de Richmond!

— A senhora descobriu — disse Battle, dando uma palmadinha na própria perna. Expressou-se com inabitual animação.

— O quadro é o ponto de partida, e os patifes conhe­cem tanto quanto nós a significação dos números. Aquelas duas armaduras situam-se bem embaixo do quadro, e a pri­meira idéia deles era que o diamante estivesse escondido em uma delas. As medidas podiam ser polegadas. Isso falhou, e a idéia seguinte que lhes ocorreu foi a de uma passagem ou escada secreta, ou algum painel corrediço. Sabe de qualquer coisa com referência a isso, Mrs. Revel? Virgínia abanou a cabeça.

— Existe uma cela oculta, e, pelo menos, uma passa­gem secreta, pelo que sei — disse ela. — Creio que já me mostraram uma vez, mas não me lembro muito bem agora. Aí vem Bundle, ela deve saber.

Bundle andava rapidamente pelo terraço, encaminhando-se para eles.

— Vou levar o carro para a cidade, depois do almoço — disse ela. — Alguém quer uma carona? O senhor não quer ir, Mr. Cade? Estaremos de volta para o jantar.

— Não, obrigado — disse Anthony. — Estou bem fe­liz e ocupado aqui.

— O homem tem medo de mim — disse Bundle. — Ou da minha maneira de dirigir ou do meu fascínio fatal! Qual deles?

— O último — respondeu Anthony. — Sempre.

— Bundle, minha cara — disse Virgínia —, existe alguma passagem secreta saindo da Sala do Conselho?

— Certamente. É uma antiga passagem. Supunha-se que ligasse Chimneys à Abadia de Wyvern. E, na verdade, assim era; mas antigamente, porque agora está bloqueada. Pode-se caminhar apenas cerca de cem metros, partindo da Sala do Conselho. A que existe lá em cima na Galeria Branca é muito mais divertida, e a cela oculta não é nada má.

— Não as estamos considerando sob o ponto de vista artístico — explicou Virgínia. — Trata-se de negócio. Como é que se entra na passagem da Sala do Conselho?

— Painel corrediço. Posso mostrá-lo a vocês depois do almoço, se quiserem.

— Obrigado — disse o Superintendente Battle. — Às duas e trinta, digamos?

Bundle fitou-o, erguendo as sobrancelhas.

— Patifaria? — perguntou. Tredwell apareceu no terraço.

— O almoço está servido, senhora — anunciou.

 

Encontro no roseiral

Às duas e trinta, um pequeno grupo encontrou-se na Sala do Conselho: Bundle, Virgínia, o Superintendente Bat­tle, M. Lemoine e Anthony Cade.

— Não adianta esperar até que se consiga falar com Mr. Lomax — disse Battle. — Esta é a espécie de negócio para se fazer logo.

— Se está pensando que o Príncipe Miguel foi assassi­nado por alguém que tivesse entrado por aqui, engana-se — disse Bundle. — Não seria possível. A outra extremidade acha-se completamente bloqueada.

— Não se trata disso, milady — disse Lemoine rapi­damente. — É uma busca bem diferente a que desejamos fazer.

— Estão procurando alguma coisa? — indagou Bundle apressada. — Não é aquele histórico não sei quê, por acaso?

Lemoine ficou intrigado.

— Explique-se, Bundle — disse Virgínia em tom encorajador. — Você pode, se tentar.

— Aquela coisa — disse Bundle. — Aquele diamante histórico que foi roubado há séculos, antes que eu crescesse e me tornasse discreta.

— Quem lhe contou isso, Lady Eileen? — indagou Battle.

— Eu sempre soube. Um dos lacaios contou-me quan­do eu tinha doze anos.

— Um lacaio — disse Battle. — Meus Deus! Gos­taria que Mr. Lomax ouvisse isso!

— É um dos bem guardados segredos de George? — Perguntou Bundle. — Que divertido! Na realidade, nunca pensei que isso fosse verdade. George sempre foi um tolo... ele devia saber que os criados sabem tudo.

Encaminhou-se para o quadro de Holbein, tocou em uma mola escondida em algum lugar ao lado do quadro, e imediatamente, com um rangido, parte do painel girou para dentro, revelando escura passagem.

— Entrez, messieurs et mesdames — disse Bundle dra­maticamente. — Vamos, vamos, meus caros. É o melhor show da estação, por um níquel apenas.

Lemoine e Battle estavam providos de lanternas. Foram os primeiros a entrar na passagem; os outros entraram ime­diatamente após eles.

— O ar é fresco e agradável — observou Battle. — Deve haver ventilação em algum lugar.

Caminhou na frente. O chão era feito de pedras ásperas e desiguais, mas as paredes eram atijoladas. Conforme dis­sera Bundle, a passagem estendia-se apenas por uns cem metros. Chegava, então, a um final abrupto, terminando num montão de alvenaria. Battle verificou que não havia saída para o outro lado, e falou por sobre o próprio ombro:

— Vamos voltar, por favor. Eu só queria dar uma olhadela.

Dentro de alguns instantes achavam-se de volta à en­trada do painel.

— Começaremos daqui — disse Battle. — Sete em linha reta, oito para a esquerda, três à direita. Façamos os primeiros passos.

Deu cuidadosamente sete passos, e curvou-se para exa­minar o chão.

— Era o que eu imaginava. Em alguma ocasião fize­ram aqui uma marca de giz. Agora, então, oito à esquerda. Mas não podem ser passos, a passagem é demasiado estreita; só se pode caminhar nela em fila indiana.

— Digamos que a contagem seja por tijolos — sugeriu Anthony.

— Tem razão, Mr. Cade. Oito tijolos a contar de cima ou de baixo, no lado esquerdo. Tentemos primeiro de cima para baixo... é mais fácil.

Contou oito tijolos.

— Agora, para a direita. Um, dois, três. Oba... oba... que é isto?

— Vou gritar dentro de alguns instantes — disse Bundle. — Sei que vou gritar. Que é isto?

O Superintendente Battle tentava remover o tijolo com a ponta de sua faca. Seu olho prático logo percebera ser aque­le determinado tijolo diferente do resto. Após alguns instan­tes de trabalho, conseguiu tirar o tijolo. Havia atrás uma pequena cavidade escura. Battle introduziu a mão.

Todos esperavam com ansiedade.

Battle retirou a mão. Deixou escapar uma exclamação de surpresa e raiva.

Os outros rodearam-no, e olharam, sem compreender, os três objetos que ele segurava. Por um momento, não acre­ditaram no que viam.

Um cartão com pequenos botões de pérolas, um retalho grosseiro de tricô, e um pedaço de papel no qual fora escrita uma fila de ee maiúsculos!

— Bem — disse Battle. — Sinto-me... sinto-me lo­grado. Que significa isto?

— Mon Dieu — murmurou o francês. — Isso é demais.

— Mas que significa? — gritou Virgínia, intrigada.

— Significa? — falou Anthony. — Pode significar apenas uma coisa. O falecido Conde Stylptitch devia ter muito senso de humor! Isto é um exemplo desse humor. Quanto a mim, posso dizer que considero isto muito di­vertido.

— O senhor não se importaria de explicar com mais clareza o que depreende de tudo isso? — falou o Superin­tendente Battle.

— Perfeitamente. Foi uma pequena brincadeira do conde. Ele deve ter suspeitado de que o seu memorando fora lido. Quando os ladrões viessem recuperar a jóia, em vez dela encontrariam este enigma extremamente inteligen­te. Trata-se de uma espécie de brincadeira que se faz em reuniões, quando as pessoas têm que adivinhar quem é você.

— Então tem um significado?

— Eu diria que sim, sem dúvida. Se o conde desejasse ser apenas ofensivo, teria posto um cartaz com a palavra "vendida", ou a fotografia de um burro, ou algo assim grosseiro.

— Um retalho de tricô, alguns ee maiúsculos, e uma porção de botões — murmurou Battle aborrecido.

— É estranho — disse Lemoine com raiva.

— Código número 2 — disse Anthony. — Será que o Professor Wynwood terá mais sucesso com o próximo?

— Quando é que esta passagem foi usada pela última vez, milady? — perguntou o francês a Bundle.

Bundle pensou.

— Não creio que alguém tenha estado aqui nestes úl­timos dois anos. A cela oculta é o que geralmente se exibe para os americanos e turistas. ,

— É curioso — murmurou o francês.

— Curioso por quê?

Lemoine curvou-se e pegou um pequeno objeto no chão.

— Por causa disto — disse ele. — Este fósforo não está aqui há dois anos... nem mesmo dois dias.

— Algum dos senhores, por acaso, derrubou isto? — perguntou.

Recebeu uma negativa geral.

— Bem, então — disse o Superintendente Battle — já vimos tudo o que tínhamos para ver. Poderíamos sair, agora.

A proposta foi aceita por todos. O painel girara, mas Bundle mostrou a maneira como ficava fechado pelo lado de dentro. Destrancou a fechadura, fê-lo girar silenciosamen­te e abrir-se para a Sala do Conselho com um ruído surdo.

— Diabo! — exclamou Lorde Caterham, saltando da poltrona onde, aparentemente, estivera tirando uma soneca.

— Pobre pai — disse Bundle. — Assustei-o?

— Não compreendo — disse Lorde Caterham — por que hoje em dia ninguém descansa um pouco depois de uma refeição. É uma arte perdida. Só Deus sabe o quanto Chimneys é grande, mas, mesmo aqui, parece não existir um único aposento onde eu possa ter a certeza de ficar em paz. Meu Deus! Quantos são? Lembra-me as pantomimas em que eu tomava parte quando menino, nas quais hordas de demônios costumavam sair de alçapões.

— Demônio número 7 — disse Virgínia, aproximan­do-se dele e acariciando-lhe a cabeça. — Não se zangue. Es­távamos apenas explorando passagens secretas.

— Parece haver hoje um excessivo interesse por pas­sagens secretas — resmungou Lorde Caterham, que ainda não se achava inteiramente calmo. — Esta manhã tive que mostrá-las todas àquele sujeito, o tal Fish.

— Quando foi isso? — perguntou Battle com rapidez.

— Precisamente antes do almoço. Parece que ele ouviu falar desta aqui. Mostrei-a, e depois levei-o para ver a da Galeria Branca, e terminamos com a cela oculta. Seu entusias­mo, porém, ia diminuindo; ele parecia profundamente entediado. Mas eu o fiz ir até o fim. — Lorde Caterham riu ao lembrar-se disso.

Anthony segurou Lemoine pelo braço.

— Vamos lá fora — disse em voz baixa. — Preciso falar-lhe.

Os dois homens saíram juntos pela janela. Quando se tinham distanciado da casa o suficiente, Anthony tirou do bolso o pedaço de papel que Boris lhe entregara de manhã.

— Veja — disse ele. — Deixou cair isto? Lemoine pegou-o e examinou-o com interesse.

— Não — respondeu. — Até agora, nunca tinha visto isto. Por quê?

— Tem certeza?

— Absoluta, monsieur.

— É muito esquisito.

Repetiu a Lemoine o que Boris havia dito. O outro ouviu com profunda atenção.

— Não, não fui eu quem o deixou cair. Foi encontrado naquela moita?

— Presumo que sim, mas ele não me disse nada quanto a isto.

— É possível que tenha caído da maleta de Isaacstein. Pergunte a Boris de novo. — Devolveu o papel a Anthony. Após alguns instantes ele disse: — Que sabe exatamente a respeito desse homem, Boris?

Anthony sacudiu os ombros.

— Pelo que sei, ele era o servo fiel do falecido Prín­cipe Miguel.

— Pode ser que sim, mas procure verificar. Pergunte a alguém que saiba, como por exemplo o Barão Lolopretjzyl. Talvez esse homem tenha se empregado há apenas algumas semanas. Quanto a mim, acredito que ele seja honesto. Mas quem poderá saber? O Rei Victor é bem capaz de se fazer passar por um criado fiel, de um momento para o outro.

— Pensa realmente que... Lemoine interrompeu-o.

— Serei muito franco. O Rei Victor tornou-se verda­deira obsessão para mim. Neste momento chego mesmo a perguntar a mim próprio: este homem que está conversando comigo, este Mr, Cade, não será, talvez, o Rei Victor?

— Meu Deus! — exclamou Anthony. — O senhor está mesmo com obsessão.

— Que me importa o diamante? Que me importa des­cobrir o assassino do Príncipe Miguel? Deixo esses casos para o meu colega da Scotland Yard, a quem eles pertencem. Quanto a mim, estou na Inglaterra com uma única finali­dade: capturar o Rei Victor, e capturá-lo em flagrante. Nada mais me importa.

— Pensa que conseguirá? — indagou Anthony, acen­dendo um cigarro.

— Como é que vou saber? — disse Lemoine, subita­mente desanimado.

— Hum! — falou Anthony.

Tinham voltado ao terraço. O Superintendente Battle achava-se junto à janela, em posição estática.

— Olhe o pobre Battle — disse Anthony. — Vamos alegrá-lo. — Parou um instante, e então disse: — Sabe, o senhor às vezes é um tanto estranho, M. Lemoine.

— Em que sentido, Mr. Cade?

— Bem — disse Anthony —, em seu lugar, eu teria anotado esse endereço que lhe mostrei. Pode não ter nenhu­ma importância, o que é provável. Mas, por outro lado, pode ser muito importante.

Lemoine encarou-o fixamente durante alguns instantes. Então, com um leve sorriso, arregaçou um pouco a manga esquerda do paletó. Escritas no punho branco da camisa, encontravam-se as palavras: "Hurstmere, Langly Road Dover".

— Peço desculpas — disse Anthony — e retiro-me vencido.

Aproximou-se do Superintendente Battle.

— Você parece muito pensativo, Battle — observou.

— Tenho muito em que pensar, Mr. Cade.

— Sim, acredito que tenha.

— As coisas não se enquadram. Não se enquadram de maneira alguma.

— É bem desagradável — disse Anthony com simpa­tia. — Não se incomode, Battle; se acaso piorarem, você ainda pode me prender. Afinal de contas, lembre-se de que você pode retomar as minhas pegadas.

O Superintendente Battle, porém, não sorriu.

— Sabe se tem algum inimigo aqui, Mr. Cade? — perguntou.

— Parece-me que o terceiro lacaio não me aprecia mui­to — respondeu Anthony de maneira despreocupada. — Esquece-se sempre de me oferecer as melhores verduras. Por quê?

— Tenho recebido cartas anônimas — disse o Superin­tendente Battle. — Ou antes, uma carta anônima.

— A meu respeito?

Sem responder, Battle tirou do bolso uma folha comum de papel de carta, e entregou-a a Anthony. Rabiscadas em ortografia de pessoa de muito poucas letras estavam as pala­vras: "Preste atenção em Mr. Cade. Ele não é o que parece".

Anthony devolveu-a com um sorriso despreocupado.

— Só isso? Alegre-se, Battle, na verdade sou um rei disfarçado, você sabe.

Entrou na casa, assobiando despreocupadamente en­quanto caminhava. Mas, ao chegar a seu quarto, depois de fechar a porta, sua fisionomia alterou-se. Tornou-se rígida e séria. Anthony sentou-se na beira da cama e olhou para baixo de modo taciturno.

— As coisas estão ficando graves — disse para si pró­prio. — Algo precisa ser feito. Está uma confusão dos diabos...

Permaneceu sentado durante alguns instantes, e depois encaminhou-se para a janela. Por um momento ficou olhando para fora ao acaso, e então seus olhos subitamente focaliza­ram-se em determinado lugar, e seu rosto iluminou-se.

— Claro! — disse. — O roseiral! É isso mesmo. O roseiral!

Desceu correndo e saiu para o jardim por uma porta lateral. Aproximou-se do roseiral por um caminho circular. Em cada extremidade havia um portão. Entrou pelo mais afastado, e andou até o relógio de sol, que se achava erguido sobre pequeno outeiro, bem no centro do roseiral.

No instante em que Anthony chegava perto do relógio, parou atônito e encarou admirado outra pessoa que ali se encontrava, e que pareceu igualmente surpresa.

— Não sabia que se interessava por rosas, Mr. Fish — disse Anthony amavelmente.

— Interesso-me muito por rosas — disse Mr. Fish. Encararam-se com precaução, como antagonistas pro­curando medir as forças.

— Eu também — disse Anthony.

— É mesmo?

— Na verdade, sou louco por rosas — disse Anthony alegremente.

Leve sorriso roçou os lábios de Mr. Fish, e, ao mesmo tempo, Anthony também sorriu. A tensão pareceu diminuir.

— Olhe que beleza — disse Mr. Fish, curvando-se para mostrar uma flor especialmente bela. — Presumo que seja Madame Abel Chatenay. Sim, é isso mesmo. Esta rosa branca, antes da guerra, chamava-se Frau Carl Drusky. Mudaram-lhe o nome, creio eu. Sensibilidade excessiva, talvez, mas verda­deiro patriotismo. A La France é sempre popular. Aprecia as rosas vermelhas, Mr. Cade? Uma rosa escarlate...

A voz arrastada e lenta de Mr. Fish foi interrompida. Bundle debruçava-se de uma janela do primeiro andar.

— Quer uma carona para a cidade, Mr. Fish? Estou saindo.

— Obrigado, Lady Eileen, mas estou muito satisfeito aqui.

— Está certo de que não vai mudar de idéia, Mr. Cade? Anthony riu e balançou a cabeça. Bundle desapareceu.

— Estou com mais vontade é de ir dormir — disse Anthony, dando um vasto bocejo. — Uma boa soneca depois do almoço! — Pegou um cigarro. — Tem um fósforo por acaso?

Mr. Fish passou-lhe uma caixa de fósforos. Anthony serviu-se e devolveu-lhe a caixa agradecendo.

— As rosas agradam sempre — disse Anthony —, mas não me sinto com propensões para a horticultura esta tarde.

Fez um alegre aceno de cabeça, sorrindo com brandura. Perto da casa ouviu-se um ruído trovejante.

— Que motor poderoso ela tem naquele carro — ob­servou Anthony. — Lá vai ela.

Viram o carro passando velozmente pelo caminho.

Anthony bocejou de novo, e dirigiu-se para a casa.

Passou pela porta, e, uma vez lá dentro, pareceu trans­formar-se em Mercúrio. Atravessou o vestíbulo correndo, saltou uma das janelas na extremidade oposta, e correu atra­vés do parque. Sabia que Bundle teria que fazer longa volta, passando pelos portões da entrada e cruzando a vila.

Correu como um desesperado. Era uma luta contra o tempo. Atingiu a extremidade do parque precisamente no momento em que ouvia o barulho do carro. Saltou para a estrada.

— Olá! — exclamou Anthony.

Atônita, Bundle derrapou na estrada. Conseguiu equi­librar o carro sem acidente. Anthony correu até o carro, abriu a porta e pulou para o lado de Bundle.

— Vou a Londres com você — disse ele. — Estava pretendendo ir, desde o começo.

— Pessoa extraordinária — disse Bundle. — Que é que você tem na mão?

— Apenas um fósforo — disse Anthony.

Olhou para o fósforo de maneira pensativa. Era cor-de-rosa, com a cabeça amarela. Jogou fora o cigarro que não chegara a acender, e guardou o fósforo cuidadosamente no bolso.

 

A casa em Dover

— Você não se importa, suponho, que eu dirija um pouco mais depressa, não? — disse Bundle após alguns ins­tantes. — Saí mais tarde do que pretendia.

Parecia a Anthony que já estavam viajando a uma velo­cidade terrivelmente considerável. Mas ele logo verificou que aquilo nada significava comparado à que Bundle conseguia tirar do carro, quando queria.

— Algumas pessoas — disse Bundle, ao diminuir a marcha momentaneamente para atravessar uma aldeia — morrem de medo da minha maneira de dirigir. Meu pobre pai, por exemplo. Nada o convence a viajar comigo neste velho ônibus.

Intimamente, Anthony pensou que Lorde Caterham tinha inteira razão. Sair de carro com Bundle não era um esporte que pudesse ser suportado por um cavalheiro de meia-idade e nervoso.

— Mas você não parece nem um pouco nervoso — prosseguiu Bundle em tom de aprovação, ao fazer uma curva em duas rodas.

— Tenho um bom treino, sabe? — explicou Anthony, sério. — E também — acrescentou, pensando melhor — estou com uma certa pressa.

— Corro um pouco mais? — perguntou Bundle com amabilidade.

— Por Deus, não — disse Anthony apressado.

— Estou ardendo de curiosidade para saber o motivo desta súbita partida — disse Bundle, após executar uma fanfarra com a buzina, que deve ter ensurdecido temporaria­mente toda a vizinhança. — Mas suponho que não deva per­guntar, não? Você não está fugindo da justiça, não é?

— Não estou bem certo — disse Anthony. — Logo saberei.

— Aquele homem da Scotland Yard não é assim tão mau quanto eu julgava — disse Bundle pensativa.

— Battle é bom homem — concordou Anthony.

— Você deve ter pertencido aos quadros diplomáticos .— observou Bundle. — Não solta muita informação, não é?

— Pois eu tinha a impressão de estar sendo muito tagarela.

— Oh! Você não estará fugindo com Mlle Brun, por acaso?

— Absolutamente! — exclamou Anthony com ardor. Houve uma pausa de alguns minutos, durante os quais

Bundle ultrapassou três carros. Então, subitamente, ela per­guntou:

— Há quanto tempo você conhece Virgínia?

— É uma pergunta difícil de responder — disse An­thony, expressando a exata verdade. — Não a encontrei fre­qüentemente, e, entretanto, parece que a conheço há longo tempo.

Bundle assentiu com a cabeça.

— Virgínia tem cérebro — observou de modo abrupto. — Está sempre dizendo tolices, mas tem cérebro. Parece que foi formidável lá na Herzoslováquia. Se Tim Revel ainda fosse vivo, teria uma bela carreira, e, em grande parte, devi­do a Virgínia. Ela trabalhava por ele com unhas e dentes. Fazia tudo quanto podia, e eu sei por quê, também.

— Porque gostava dele? — Anthony olhava fixamente à sua frente.

— Não, porque não gostava. Você não compreende? Ela não o amava; nunca o amou, e por isso fazia o que podia para compensar. É bem próprio de Virgínia. Mas, não se engane, Virgínia jamais amou Tim Revel.

— Você parece muito certa disso — disse Anthony, voltando-se para fitá-la.

As pequenas mãos de Bundle estavam agarradas ao volante, e seu queixo projetado para a frente de modo decisivo.

— Sei de algumas coisas. Eu era apenas uma criança quando ela se casou; mas ouvi certas coisas, e, conhecendo Virgínia, posso juntá-las com bastante facilidade. Tim Revel estava fascinado por Virgínia; ele era irlandês, sabe, e muito atraente, e se expressava como ninguém. Virgínia era muito jovem, tinha dezoito anos. Em todo lugar aonde ia, lá encon­trava Tim em estado deplorável, jurando matar-se ou entre­gar-se à bebida se ela não se casasse com ele. As moças acreditam nessas coisas, ou costumavam acreditar, pois pro­gredimos muito nestes últimos oito anos. Virgínia deixou-se levar pela paixão de que se julgou inspiradora. Casou-se com ele, e sempre foi para ele um anjo. Não teria sido nem a metade desse anjo, se realmente o tivesse amado. Há muita coisa demoníaca em Virgínia. Posso lhe dizer uma coisa, porém: ela adora a liberdade de que desfruta. E qualquer pessoa que pretenda persuadi-la a renunciar a isso terá muita dificuldade.

— Por que você está me contando tudo isso? — disse Anthony lentamente.

— É interessante conhecer as pessoas, não é? Isto é, algumas pessoas.

— Eu desejava saber — admitiu ele.

— E você nunca teria ouvido isso de Virgínia. Mas pode confiar na minha informação. Virgínia é um encanto. Até mesmo as mulheres gostam dela, porque ela não é falsa. E, de qualquer modo — Bundle terminou um tanto obscura­mente —, deve-se ter espírito esportivo, não é?

— Oh, certamente — concordou Anthony. Achava-se intrigado, porém. Não tinha a mínima idéia do que induzira Bundle a dar-lhe tanta informação não solicitada. Não negava, entretanto, que aquilo o tivesse deixado contente.

— Aí estão os ônibus — disse Bundle dando um sus­piro. — Creio que agora vou ter que dirigir com cuidado.

— Seria bom — concordou Anthony.

Todavia, sua idéia e a de Bundle quanto a dirigir com cuidado não coincidiam exatamente. Deixando indignados suburbanos atrás de si, finalmente emergiram na Oxford Street.

— Nada mau, hein? — disse Bundle, olhando o reló­gio de pulso.

Anthony assentiu com ardor.

— Onde você quer descer?

— Em qualquer lugar. Para onde você vai?

— Para Knightsbridge.

— Está bem. Deixe-me na esquina do Hyde Park.

— Até logo — disse Bundle, ao chegar ao lugar indi­cado. — E a volta?

— Eu me arranjo quanto à volta. Muito obrigado.

— Amedrontei-o — observou Bundle.

— Eu não recomendaria a sua maneira de dirigir como um tônico para senhoras nervosas, mas pessoalmente gostei muito. A última vez em que me vi em perigo semelhante foi quando fui assaltado por uma manada de elefantes selvagens.

— Que exagero — disse Bundle. — Não demos nenhu­ma batida hoje.

— Lamento que você se tenha controlado por minha causa — retorquiu Anthony. £

— Acho que os homens não são mesmo muito corajo­sos — disse Bundle.

— Isto é maldade — disse Anthony. — Retiro-me humilhado.

Bundle balançou a cabeça e partiu. Anthony acenou para um táxi que passava.

— Victoria Station — disse para o chofer.

Quando chegou à estação, pagou o táxi e tomou infor­mações a respeito do próximo trem para Dover. Infelizmente acabara de perder um.

Resignando-se a esperar cerca de uma hora, Anthony caminhava de um lado para outro, o cenho franzido. Por uma ou duas vezes abanou a cabeça impacientemente.

Na viagem para Dover nada de especial aconteceu. Assim que chegou, Anthony saiu imediatamente da estação, mas logo voltou, como se subitamente se tivesse lembrado de alguma coisa. Pairava ligeiro sorriso em seus lábios ao perguntar sobre Hurstmere, Langly Road.

A estrada em questão era longa, e partia diretamente da cidade. De acordo com as instruções do carregador, Hurst­mere era a última casa. Anthony caminhou com firmeza. Entre seus olhos a pequena ruga reapareceu. Não obstante, havia certo júbilo em sua expressão, como sempre acontecia quando se aproximava o perigo.

Hurstmere era, conforme havia dito o carregador, a última casa da Langly Road. Situava-se bem no fundo de um terreno desigual e recoberto de vegetação. O local, conside­rou Anthony, devia estar abandonado há anos. Imenso portão de ferro rangia nas dobradiças, e o nome nele inscrito mal se conseguia ler.

— Lugar bastante solitário — murmurou Anthony con­sigo próprio —, e uma escolha bem adequada.

Hesitou durante alguns instantes, lançou um rápido olhar para ambos os lados da estrada — que se achava com­pletamente deserta — e então passou furtivamente pelo portão barulhento, seguindo o caminho recoberto de vegeta­ção. Caminhou um pouco e depois parou para ouvir. Encon­trava-se ainda a alguma distância da casa. Não se ouvia ne­nhum ruído. Algumas folhas amareladas desprenderam-se de uma das árvores e caíram com suave roçar, que soou si­nistro em meio ao silêncio. Anthony sobressaltou-se, mas logo sorriu.

— Nervos — murmurou consigo mesmo. — Nunca pensei que tivesse tal coisa.

Continuou a andar. Como o caminho fizesse uma curva, ele se embrenhou em pequeno matagal e prosseguiu sem que da casa o pudessem ver. Subitamente estacou, espiando através das folhas. A certa distância um cão latia, mas o que atraiu a atenção de Anthony foi um som mais próximo.

Seu ouvido aguçado não o enganou. Um homem surgiu de repente de trás da casa, um homem baixo, corpulento, aparentando ser estrangeiro. Não parou; caminhava rapida­mente, fazendo a volta da casa, e desaparecendo de novo.

Anthony balançou a cabeça.

— Sentinela — murmurou. — Eles fazem a coisa bem feita.

Tão logo o homem passou, Anthony continuou a andar, desviando-se para a esquerda e seguindo os passos da sen­tinela.

Caminhava sem fazer o mínimo ruído.

As paredes da casa situavam-se à sua direita, e ele che­gou até onde extensa mancha de luz incidia sobre o cascalho do caminho. O som de vozes de diversos homens conversan­do ao mesmo tempo tornou-se claramente audível.

— Meu Deus! Que perfeitos idiotas — murmurou An­thony consigo mesmo. — Seria bem feito se levassem um susto.

Andou furtivamente até a janela, abaixando-se para não ser visto. Com muito cuidado, ergueu a cabeça à altura do parapeito da janela e espiou.

Seis homens sentavam-se à volta de uma mesa. Quatro deles eram corpulentos, de maçãs salientes e olhos oblíquos. Os outros dois eram pequenos, tinham feições de rato e gestos rápidos. A língua falada era o francês, mas os quatro homens corpulentos expressavam-se com insegurança e em tom áspero e gutural.

— E o chefe? — rosnou um desses. — Quando virá? Um dos homens pequenos sacudiu os ombros.

— Agora, a qualquer momento.

— Já não é sem tempo — resmungou o primeiro ho­mem. — Nunca vi esse tal chefe de vocês. Bem que pode­ríamos ter executado um trabalho grande e glorioso, em vez de ficarmos aqui à espera, sem fazer nada.

— Tolo! — disse o outro homem pequeno, de modo sarcástico. — Cair nas garras da polícia seria o trabalho grande e glorioso que você e seus preciosos companheiros teriam provavelmente executado. Seus gorilas desajeitados!

— Ah! — bramiu um dos outros sujeitos corpulentos. — Você insulta os camaradas? Logo deixarei a marca da Mão Vermelha à volta da sua garganta.

Ergueu-se um tanto, encarando o francês de maneira feroz, mas um de seus companheiros puxou-o para trás.

— Nada de brigas — grunhiu. — Devemos trabalhar juntos. Pelo que sei, esse tal Rei Victor não tolera ser desobedecido.

Em meio à escuridão, Anthony ouviu os passos da sen­tinela voltando em sua ronda, e afastou-se para trás de um arbusto.

— Quem é? — disse um dos homens lá de dentro.

— Cario, fazendo a ronda.

— Ah! E o prisioneiro?

— Ele está bem; voltando a si rapidamente. Recupe­rou-se do golpe que lhe demos na cabeça.

Anthony afastou-se sorrateiramente.

— Meu Deus! Que sujeitos — murmurou. — Discutem seus negócios com a janela aberta, e esse bobo do Cario faz a ronda com passadas de elefante e olhos de morcego. E ainda por cima os herzoslovacos e os franceses estão a ponto de se atracar. O quartel-general do Rei Victor parece estar em terríveis condições. Seria bem divertido, seria extrema­mente divertido dar-lhes uma boa lição.

Ficou irresoluto durante alguns instantes, sorrindo in­teriormente.

Em algum lugar, sobre sua cabeça, soou um gemido abafado. Anthony olhou para cima. Ouviu novamente o gemido.

Voltou-se com rapidez para a direita e para a esquerda. Cario ainda demoraria um pouco em sua ronda. Agarrou-se à hera e subiu agilmente até alcançar o parapeito de uma janela. A janela estava fechada, mas, com uma ferramenta que tirou do bolso, ele conseguiu forçar a lingüeta.

Parou um instante para ouvir, e depois saltou com agili­dade para o interior do aposento. Havia uma cama na extre­midade oposta, e nela jazia um homem, cuja fisionomia mal se distinguia na escuridão.

Anthony aproximou-se da cama, e iluminou a face do homem com sua lanterna. Era um rosto de estrangeiro, pálido e macilento, e a cabeça estava envolta em pesadas bandagens.

O homem encontrava-se com mãos e pés amarrados. Fitou Anthony com olhar de alguém entorpecido.

Anthony inclinou-se sobre ele, mas, ao fazê-lo, ouviu um ruído atrás de si e voltou-se, a mão movendo-se rápida para o bolso do paletó.

Uma áspera ordem, porém, fê-lo parar.

— Mãos ao alto, filhinho. Com certeza não esperava ver-me aqui, mas acontece que tomei o mesmo trem que você na Victoria Station.

Era Mr. Hiram Fish, em pé junto ao batente da porta. Sorria, e empunhava um revólver grande e azulado.

 

A noite de quinta-feira em Chimneys

Lorde Caterham, Virginia e Bundle estavam sentados na biblioteca depois do jantar. Era a noite de quinta-feira. Cerca de trinta horas haviam passado desde a partida um tanto dramática de Anthony.

Pela sétima vez, no mínimo, Bundle repetia as palavras com que Anthony se despedira na esquina do Hyde Park.

— "Eu me arranjo quanto à volta" — repetiu Virginia pensativa. — Isso faz pensar que ele não pretendia ficar tanto tempo fora. E deixou todas as suas coisas aqui.

— Ele não lhe disse para onde ia?

— Não — disse Virginia, olhando para a frente. — Ele não me disse nada.

Houve silêncio durante alguns instantes. Lorde Cater­ham foi o primeiro a quebrá-lo.

— De um modo geral — observou ele —, manter um hotel é mais vantajoso do que manter uma casa de campo.

— Em que sentido?

— Aquela pequena nota que eles sempre afixam no quarto: os hóspedes que pretendem deixar o hotel devem avisar antes das doze horas.

Virginia sorriu.

— Receio — continuou ele — que eu seja um tanto antiquado e exagerado. Sei que está na moda entrar em uma casa e sair dela como se fosse um hotel. Perfeita liber­dade de ação, e no fim nenhuma conta a pagar!

— Você é um velho resmungão — disse Bundle. — Tem Virginia e tem a mim. Que mais deseja?

— Nada mais, nada mais — assegurou-lhes Lorde Ca­terham com rapidez. — Não é isso, absolutamente. Trata-se da coisa em si, por princípio. Desperta tal sensação de intranqüilidade. Estou quase disposto a admitir que foram vinte e quatro horas ideais. De paz... perfeita paz. Sem assaltos, nem crimes ou violências, sem detetives, sem americanos. Apenas me queixo de que poderia tê-las aproveitado muito mais se me sentisse realmente seguro. Pois a todo instante dizia para mim mesmo: "Um deles vai voltar a qualquer minuto". E isso estragava tudo.

— Mas ninguém voltou — disse Bundle. — Ninguém nos deu atenção. Na verdade, fomos abandonados. É estra­nho o modo pelo qual Fish desapareceu. Ele não lhe disse nada?

— Nem uma palavra. A última vez em que o vi foi ontem à tarde, andando de um lado para o outro no roseiral, e fumando um daqueles seus desagradáveis charutos. Depois disso, parece que se evaporou na paisagem.

— Alguém deve tê-lo raptado — disse Bundle espe­rançosa.

— Creio que, dentro de um ou dois dias, teremos a Scotland Yard fazendo dragagens no lago para encontrar o cadáver dele — disse seu pai em tom lúgubre. — Bem feito para mim. Devia ter ido tranqüilamente para o exterior, cui­dar da minha saúde, e não ter permitido que George Lomax me envolvesse em seus planos duvidosos. Eu...

Foi interrompido por Tredwell.

— Bem — disse Lorde Caterham irritado —, que acon­teceu agora?

— O detetive francês está aqui, senhor, e gostaria que o senhor lhe concedesse alguns minutos.

— Que foi que eu lhes disse? — disse Lorde Cater­ham. — Sabia que era bom demais para durar. Com certeza encontraram o corpo de Fish no tanque dos peixes.

Tredwell, de maneira estritamente respeitosa, fê-lo vol­tar ao ponto de partida.

— Devo dizer-lhe que o senhor o receberá, senhor?

— Sim, sim. Traga-o aqui.

Tredwell retirou-se. Voltou pouco depois, anunciando em tom lúgubre:

— M. Lemoine.

O francês entrou com um passo rápido e leve. Seu andar, mais do que seu rosto, demonstrava que ele se achava excitado por alguma coisa.

— Boa noite, Lemoine — disse Lorde Caterham. — Aceita um drinque?

— Não, obrigado. — Curvou-se meticulosamente para as senhoras. — Finalmente faço progressos. No ponto em que estão as coisas, achei que o senhor devia ter conheci­mento das descobertas, das graves descobertas que fiz no decurso das últimas vinte e quatro horas.

— Julguei mesmo que algo importante estivesse acon­tecendo — disse Lorde Caterham.

— Senhor, ontem à tarde um de seus hóspedes saiu desta casa de maneira estranha. Devo dizer-lhe que, desde o começo, tive minhas suspeitas. Eis um homem que vem das selvas. Há dois meses estava na África do Sul. Mas, antes disso... onde?

Virgínia respirou profundamente. Durante alguns ins­tantes os olhos do francês fixaram-se nela com expressão de dúvida. E então ele prosseguiu:

— Mas, antes disso... onde? Ninguém sabe dizer. E ele é exatamente o homem que estou procurando: alegre, audacioso, despreocupado, alguém capaz das maiores ousa­dias. Envio telegrama após telegrama, e não consigo uma palavra a respeito de seu passado. Sabe-se que há dez anos esteve no Canadá, mas depois disso... silêncio. Minhas sus­peitas crescem. Certo dia apanho um pedaço de papel caído num lugar por onde ele havia passado. Continha um ende­reço ... o endereço de uma casa em Dover. Mais tarde, como se por acaso, deixei cair o mesmo pedaço de papel. Com o rabo dos olhos, vi Boris, o herzoslovaco, apanhá-lo e entre­gá-lo a seu amo. Durante todo o tempo, tive a certeza de que esse Boris era um emissário dos Camaradas da Mão Verme­lha. Sabemos que os Camaradas estão trabalhando neste caso de comum acordo com o Rei Victor. Ora, se Boris reconhecia em Anthony Cade o chefe, não estaria apenas transferindo para este a sua fidelidade? Senão, por que teria ele se devotado a um estranho que nada lhe significava? Digo-lhes que despertava suspeitas, grandes suspeitas.

"Porém, quase fiquei desarmado, pois Anthony Cade mostrou-me imediatamente o papel, e perguntou-me se fora eu quem o deixara cair. Como lhes digo, quase fiquei de­sarmado, mas não inteiramente! Podia significar que ele era inocente, ou podia significar que ele era muitíssimo inteligente. Neguei, naturalmente, que o papel fosse meu ou que eu o tivesse deixado cair. Mas, nesse meio tempo, achavam-se em vias de conclusão as informações que eu providenciara. Somente hoje chegaram-me notícias. A casa em Dover foi precipitadamente abandonada, mas, até ontem à tarde, estava ocupada por um grupo de estrangeiros. Não há dúvida de que ali se situava o quartel-general do Rei Victor. Notem bem a significação de tudo isso. Ontem à tarde, Mr. Cade desapareceu daqui precipitadamente. Desde que deixou cair aquele papel, ele devia saber que o jogo estava a ponto de terminar. Foi para Dover, e imediatamente a quadrilha de­bandou. Qual será o seu próximo movimento, não sei. O certo é que Mr. Anthony Cade não voltará aqui. Conhecen­do, entretanto, o Rei Victor como eu conheço, estou seguro de que ele não abandonará a partida sem fazer mais uma tentativa para conseguir a jóia. Aí é que irei apanhá-lo!" Virgínia ergueu-se subitamente. Andou até a lareira, e falou num tom de voz que soou frio como aço.

— Penso que o senhor está se esquecendo de considerar uma coisa, M. Lemoine — disse ela. — Mr. Cade não foi o único hóspede que desapareceu ontem de maneira suspeita.

— Madame quer dizer...

— Que tudo quanto o senhor disse aplica-se igualmen­te a outra pessoa. Que tal Mr. Hiram Fish?

— Oh, Mr. Fish!

— Sim, Mr. Fish. O senhor não nos disse, naquela primeira noite, que o Rei Victor tinha vindo da América para a Inglaterra? O mesmo acontece com Mr. Fish. É bem verdade que ele trouxe uma carta de recomendação assinada por um homem muito conhecido, mas isso, para um homem como o Rei Victor, seria simples de conseguir. Certamente ele não é o homem que pretende ser. O próprio Lorde Caterham comentou que, quando estava em pauta o assunto de edições originais — motivo da vinda de Fish —, o america­no nunca falava, apenas ouvia. E existem diversos fatos sus­peitos que depõem contra ele. Havia uma luz em sua janela na noite do assassinato. E aquela outra noite na Sala do Conselho; quando eu o encontrei no terraço, ele estava com­pletamente vestido. Ele bem poderia ter deixado cair o papel. O senhor não viu Mr. Cade fazê-lo. Se Mr. Cade foi a Dover, foi simplesmente com o intuito de investigar. Ele pode ter sido raptado lá. Acho que existem muito mais coisas suspei­tas relacionadas aos atos de Mr. Fish do que aos de Mr. Cade.

A voz do francês soou cortante:

— Do seu ponto de vista, pode ser, madame. Não dis­cuto isso. E concordo que Mr. Fish não é o que parece ser.

— Bem, e daí?

— Mas isso não faz diferença. A senhora compreende, madame, Mr. Fish é um detetive americano.

— Quê? — exclamou Lorde Caterham.

— Sim, Lorde Caterham. Ele veio para cá na pista do Rei Victor. O Superintendente Battle e eu já sabíamos disso há algum tempo.

Virgínia não disse nada. Sentou-se devagar. A estrutura, que erguera tão cuidadosamente, com essas poucas palavras desmoronava-se em ruínas a seus pés.

— Compreendem, agora? — prosseguiu Lemoine. — Todos nós sabíamos que eventualmente o Rei Victor viria a Chimneys. Era o único lugar seguro para apanhá-lo.

Virgínia ergueu os, olhos, onde se notava estranho brilho, e subitamente riu.

— Mas ainda não o apanharam — disse ela. Lemoine encarou-a de modo curioso.

— Não, madame. Mas conseguirei.

— Parece que ele é muito famoso em lograr os outros, não é?

A fisionomia do francês tornou-se verde de raiva.

— Desta vez será diferente — disse ele entre dentes.

— Ele é um sujeito muito atraente. — disse Lorde Caterham. — Muito atraente. Mas... por que você disse que ele era um velho amigo seu, Virgínia?

— Por isso mesmo — disse Virgínia calmamente. — Penso que M. Lemoine está cometendo um engano.

Seus olhos encararam os do detetive fixamente, mas este pareceu não se desconcertar.

— O tempo dirá, madame — disse ele.

— O senhor acha que foi ele quem atirou no Príncipe Miguel? — indagou ela.

— Certamente.

Virgínia, porém, abanou a cabeça.

— Oh, não! — disse ela. — Oh, não! Disso estou bem certa. Anthony Cade não matou o Príncipe Miguel.

Lemoine observava-a intensamente.

— Há uma possibilidade de que a senhora esteja certa, madame — disse ele com lentidão. — Uma possibilidade, apenas isso. Pode ser que Boris, o herzoslovaco, tenha exa­gerado as ordens recebidas e desfechado o tiro. Ninguém sabe se o Príncipe Miguel lhe fez alguma injustiça, e o ho­mem tenha querido vingar-se.

— Ele tem mesmo aspecto de assassino — concordou Lorde Caterham. — Segundo ouvi dizer, as criadas gritam quando ele passa por elas nos corredores.

— Bem — disse Lemoine —, agora preciso ir. Achei que o senhor devia saber exatamente em que pé andam as coisas, senhor.

— É muita gentileza sua — respondeu Lorde Cater­ham. — Não quer mesmo tomar um drinque? Está bem, então. Boa noite.

— Detesto esse homem com sua barbicha preta e afe­tada e aqueles óculos — disse Bundle, tão logo se fechou a porta atrás dele. — Desejo que Anthony consiga escapar dele. Adoraria vê-lo dançando de raiva. Que é que você pensa de tudo isto, Virgínia?

— Não sei — respondeu Virgínia. — Estou cansada. Vou subir para dormir.

— Não é má idéia — disse Lorde Caterham. — São onze e meia.

Ao atravessar o imenso vestíbulo, Virgínia viu de re­lance enormes costas, que lhe pareceram familiares, desapa­recendo discretamente por uma porta lateral.

— Superintendente Battle — chamou ela imperio­samente.

O superintendente, pois era ele próprio, voltou-se com uma certa má vontade.

— Sim, Mrs. Revel?

— M. Lemoine esteve aqui. Ele diz... Diga-me, é verdade, realmente verdade, que Mr. Fish é um detetive americano?

O Superintendente Battle assentiu com a cabeça.

— Sim, é verdade.

— O senhor já sabia disso desde o começo?

De novo o Superintendente Battle inclinou a cabeça. Virgínia encaminhou-se para a escada.

— Compreendo — disse ela. — Obrigada. Até esse minuto, recusara-se a acreditar.

E agora...?

Sentada em seu quarto, em frente à penteadeira, ela encarava a questão de modo direto. Cada palavra que Anthony dissera voltava-lhe carregada de novo significado.

Era esse então o "ofício" a respeito do qual ele falara?

O ofício para o qual fora educado. Mas então.

Um ruído diferente perturbou o curso regular de suas meditações. Ergueu a cabeça com um pequeno sobressalto. Seu pequenino relógio de ouro mostrou-lhe que já passava de uma hora. Durante quase duas horas ali permanecera imersa em pensamentos.

O ruído repetiu-se. Uma batida áspera na vidraça. Virginia encaminhou-se para a janela e abriu-a. Lá embaixo, na vereda, estava uma figura alta, inclinando-se para apanhar mais um punhado de pedregulhos.

O coração de Virgínia, durante alguns instantes, bateu com maior rapidez, e então ela reconheceu a corpulência e o contorno anguloso do herzoslovaco Boris.

— Sim — disse ela em voz baixa. — Que é que há? Não lhe pareceu estranho, nesse momento, que Boris estivesse atirando pedregulhos em sua janela a tal hora da noite.

— Que é que há? — repetiu impaciente.

— Venho por ordem de meu amo — disse Boris em voz baixa, que, não obstante, ouvia-se perfeitamente. — Mandou-me buscá-la.

Fez a afirmativa em tom absolutamente natural.

— Buscar-me?

— Sim, devo levá-la até onde ele está. Trago uma nota. Vou jogá-la para a senhora.

Virgínia afastou-se um pouco, e um pedaço de papel, preso a uma pedra, caiu exatamente a seus pés. Desdo­brou-o e leu:

"Minha cara, estou em apuros, mas pretendo vencer as dificuldades. Você confiará em mim e virá ter comigo?"

Por cerca de dois minutos Virginia permaneceu imóvel, lendo e relendo aquelas poucas palavras.

Ergueu a cabeça, olhando o quarto luxuosamente equi­pado, como se o visse com novos olhos.

Debruçou-se, então, novamente à janela.

— Que devo fazer? — perguntou.

— Os detetives estão na outra extremidade da casa, do lado de fora da Sala do Conselho. Desça e saia pela porta lateral. Estarei lá. Tenho um carro esperando na estrada.

Virginia acenou com a cabeça. Mudou rapidamente o vestido por um outro de tricô castanho, e pôs um pequeno chapéu de couro também castanho.

Sorrindo, então, escreveu um breve recado endereçado a Bundle, e prendeu-o na almofada de alfinetes.

Desceu sorrateiramente e destrancou a porta lateral. Parou durante um momento, executando um galante gesto de cabeça, o mesmo gesto com que seus ancestrais partiam para as Cruzadas, e saiu.

 

Dia 13 de outubro

Às dez horas da manhã de quarta-feira, 13 de outubro, Anthony Cade entrou no Harridge's Hotel, e perguntou pelo Barão Lolopretjzyl, que ali ocupava um apartamento.

Após conveniente demora, Anthony foi conduzido ao apartamento em questão. O barão estava em pé sobre o tapete junto à lareira, em postura grave e rígida. O pequeno Capitão Andrassy, em posição igualmente austera, denotan­do porém atitude levemente hostil, ali também se achava.

A entrevista iniciou-se com as habituais curvaturas, o bater de calcanhares e outras saudações formais próprias da etiqueta. Anthony, a essa altura, conhecia perfeitamente aquela rotina.

— Peço-lhe que me desculpe por esta visita assim mati­nal, barão — disse ele jovialmente, pondo o chapéu e a ben­gala sobre a mesa. — Na verdade, tenho um pequeno negó­cio a propor-lhe.

— Ah! É mesmo?

O Capitão Andrassy, que não conseguira vencer sua inicial desconfiança em relação a Anthony, mostrou-se cheio de suspeitas.

— Todo o negócio — disse Anthony — é baseado no conhecido princípio da oferta e da procura. O senhor deseja alguma coisa, e outra pessoa a tem. Só resta estabelecer o preço.

O barão encarou-o atentamente, mas nada disse.

— Entre um nobre herzoslovaco e um cavalheiro inglês os termos seriam facilmente fixados — disse Anthony com rapidez.

Corou um pouco ao dizê-lo. Tais palavras não vêm com facilidade aos lábios de um inglês, mas ele observara, em ocasiões precedentes, o enorme efeito de tal fraseologia sobre a mentalidade do barão. Realmente, a coisa funcionava.

— É isso mesmo — disse o barão em tom de aprovação, inclinando a cabeça. — É exatamente isso.

Até mesmo o Capitão Andrassy pareceu ficar mais à vontade, e também aprovou com a cabeça.

— Muito bem — disse Anthony. — Não farei mais rodeios...

— Que significa isso? — interrompeu o barão. — Fazer rodeios? Eu não compreendo.

— Mera figura de retórica, barão. Para falar com mais clareza, o senhor quer a mercadoria, nós a temos. Tudo no navio está muito bem, mas falta-lhe a figura de comando. Por navio quero dizer o Partido Legalista da Herzoslováquia. No presente momento, falta-lhe o principal suporte da plata­forma política. Falta-lhe um príncipe! Agora, suponha... apenas suponha que eu lhe pudesse fornecer um príncipe.

O barão olhou admirado.

— Não o compreendo nem um pouco — declarou.

— Senhor — disse o Capitão Andrassy, torcendo fe­rozmente o bigode —, isto é um insulto!

— Absolutamente — disse Anthony. — Estou tentan­do ajudar. Oferta e procura, compreende? É tudo perfeita­mente franco e honesto. Só será fornecido um príncipe genuíno (veja-se a marca de fabricação). Se chegarmos a um acordo, o senhor verificará que será tudo muito bem feito. Ofereço-lhe um artigo genuinamente real... tirado do fundo da gaveta.

— Não o compreendo nem um pouco — declarou no­vamente o barão.

— Na verdade, não tem importância — disse Anthony amavelmente. — Só queria que o senhor fosse se habituando a essa idéia. Para falar vulgarmente, trago algo escondido na manga. Guarde apenas isto: o senhor quer um príncipe; sob certas condições, encarregar-me-ei de fornecer-lhe um.

O barão e Andrassy encararam-no admirados. Anthony apanhou o chapéu e a bengala e preparou-se para sair.

— Pense nisso. Há mais uma coisa, barão. O senhor precisa ir a Chimneys hoje à noite; o Capitão Andrassy também. Provavelmente lá acontecerão diversas coisas muito curiosas. Façamos disto um compromisso, sim? Digamos, na Sala do Conselho, às nove horas. Obrigado, cavalheiros; posso então contar com os senhores?

O barão deu um passo à frente e fitou o rosto de An­thony de modo inquisitivo.

— Mr. Cade — disse ele com dignidade —, espero que senhor não pretende fazer graças a meu custa, não?

Anthony retribuiu-lhe o olhar com firmeza.

— Barão — disse, e havia um tom estranho em sua voz —, quando esta noite terminar, penso que o senhor será o primeiro a admitir a seriedade do negócio.

Inclinando-se para ambos os homens, ele saiu do aposento.

Sua próxima visita foi feita no centro da cidade, onde enviou seu cartão a Mr. Herman Isaacstein.

Após algumas delongas, Anthony foi recebido por um indivíduo pálido e estranhamente vestido, com maneiras insinuantes, e um título militar.

— Desejava ver Mr. Isaacstein, não é? — disse o jovem. — Receio que esta manhã ele esteja muito ocupa­do... reunião de conselho e tudo o mais, sabe? Há algo que eu possa fazer?

— Preciso vê-lo pessoalmente — disse Anthony, e acrescentou de modo negligente: — Acabo de chegar de Chimneys.

O jovem vacilou ligeiramente à menção de Chimneys.

— Oh! — disse ele em tom de dúvida. — Bem, verei.

— Diga-lhe que é importante — disse Anthony.

— Algum recado de Lorde Caterham? — sugeriu o jovem.

— Algo semelhante — disse Anthony —, mas é extre­mamente necessário que eu veja Mr. Isaacstein imediata­mente.

Dois minutos depois Anthony foi conduzido a um sun­tuoso santuário, onde o que o impressionou sobretudo foi a imensa amplidão e profundidade das poltronas de couro.

Mr. Isaacstein ergueu-se para cumprimentá-lo.

— Peço-lhe desculpas por procurá-lo desta maneira — disse Anthony. — Sei que o senhor é um homem ocupado, e não vou fazê-lo perder mais do que o tempo necessário. Quero apenas oferecer-lhe um negócio.

Isaacstein, com seus olhos redondos e negros, enca­rou-o atentamente durante alguns instantes.

— Aceite um charuto — disse ele de forma inesperada, apresentando uma caixa aberta.

— Obrigado — disse Anthony. — Vou aceitar. — E serviu-se.

— É sobre aquele negócio da Herzoslováquia — pros­seguiu Anthony, enquanto aceitava um fósforo. Notou um brilho momentâneo no olhar fixo do outro. — O assassinato do Príncipe Miguel deve ter criado certas dificuldades.

Mr. Isaacstein ergueu uma sobrancelha, e murmurou: "Ah?" de modo interrogativo, voltando o olhar para o teto.

— Petróleo — disse Anthony, observando pensativa-mente a superfície lustrosa da mesa. — Que coisa maravi­lhosa é o petróleo.

Percebeu o leve sobressalto que o financista teve.

— O senhor se incomodaria de ir diretamente ao as­sunto, Mr. Cade?

— De maneira alguma. Imagino, Mr. Isaacstein, que, se essas concessões de petróleo fossem garantidas a uma outra companhia, o senhor não ficaria muito satisfeito com tal coisa, não é?

— Qual é a sua proposta? — indagou o outro, olhan­do-o diretamente.

— Um pretendente adequado ao trono, cheio de sim­patias pela Inglaterra.

— Onde o encontrou?

— Isso é negócio meu.

Isaacstein recebeu a réplica com ligeiro sorriso, e seu olhar aguçou-se.

— Artigo genuíno? Não posso apoiar negócios falsos.

— Artigo absolutamente genuíno.

— Correto?

— Correto.

— Confio em sua palavra.

— Parece que não é preciso muita coisa para conven­cê-lo — disse Anthony, fitando-o com curiosidade.

Herman Isaacstein sorriu.

— Eu não teria chegado onde estou se não tivesse aprendido a conhecer quando um homem está falando a verdade ou não — retorquiu ele com simplicidade. — Que condições deseja?

— As mesmas condições e o mesmo empréstimo que o senhor ofereceu ao Príncipe Miguel.

— E quanto ao senhor?

— No momento nada, a não ser o desejo de que o senhor vá a Chimneys hoje à noite.

— Não — disse Isaacstein com decisão. — Não posso fazer isso.

— Por quê?

— Vou jantar fora... um jantar importante.

— De qualquer forma, receio que o senhor deva can­celar o jantar... para o seu próprio bem.

— Que quer dizer com isso?

Anthony encarou-o durante um momento, e depois disse, lentamente:

— Sabe que encontraram o revólver, aquele com que atiraram em Miguel? Sabe onde o encontraram? Em sua maleta.

— Quê?

Isaacstein quase saltou da cadeira. Sua expressão tor­nou-se desvairada.

— Que está dizendo? Que significa isso? -— Já lhe conto.

Gentilmente, Anthony narrou as ocorrências relaciona­das à descoberta do revólver. Enquanto falava, o rosto do outro assumia um tom acinzentado de absoluto terror.

— Mas isso é falso — gritou, quando Anthony acabou de falar. — Nunca pus o revólver ali. Nada sei a esse respei­to. É uma trama.

— Não fique nervoso — disse Anthony acalmando-o. — Nesse caso, o senhor poderá facilmente prová-lo.

— Prová-lo? Como poderei prová-lo?

— Se eu fosse o senhor — disse Anthony com suavi­dade — iria a Chimneys hoje à noite.

Isaacstein encarou-o com expressão de dúvida.

— Aconselha-me a ir?

Anthony inclinou-se e segredou-lhe algo. O financista deixou-se cair para trás admirado, olhando-o fixamente. - Quer dizer que... Vá e verá — disse Anthony.

 

Dia 13 de outubro (continuação)

O relógio na Sala do Conselho bateu nove horas.

— Bem — disse Lorde Caterham, dando profundo sus­piro. — Aqui estão eles de volta, exatamente como os carneirinhos da fábula, abanando as caudas.

Olhou tristemente ao redor da sala.

— O perfeito amolador de órgão, traz até o macaqui­nho — murmurou, indicando com o olhar o barão. — O narigudo da Throgmorton Street...

— Creio que você não está sendo amável com o barão

— protestou Bundle, a quem essas confidencias eram feitas.

— Ele me disse que o considerava um perfeito exemplo da hospitalidade inglesa entre a haute noblesse.

— Receio que sim — disse Lorde Caterham. — Ele está sempre dizendo coisas desse gênero. Torna-se cansativo conversar com ele. Mas já não sou mais aquele hospitaleiro cavalheiro inglês que eu costumava ser. Logo que possa, en­tregarei Chimneys a uma empresa americana, e irei morar num hotel. Pelo menos ali, se alguém aborrecer a gente, pede-se a conta e vai-se embora.

— Alegre-se — disse Bundle. — Parece que perdemos Mr. Fish para sempre.

— Sempre o achei um tanto divertido — disse Lorde Caterham, cujo humor estava contraditório. — Quem me deixou neste estado foi aquele seu precioso jovem. Por que esta reunião em minha casa? Por que ele não aluga The Larches ou Elmhurst, ou qualquer vila residencial agradável, como Streatham, por exemplo, e faz lá a sua reunião?

— Atmosfera inadequada — disse Bundle.

— Espero que ninguém vá nos pregar alguma peça, não é? — disse o pai, um tanto nervoso. — Não confio naquele francês, Lemoine. A polícia francesa se utiliza de toda a sorte de truques. Põe faixas de borracha à volta do braço da gente, e depois reconstitui o crime, e faz a gente pular, e registra tudo num termômetro. Sei que quando eles gritarem: "Quem matou o Príncipe Miguel?" a minha contagem regis­trada será de 122, ou algo assim terrível, e eles me arrasta­rão para a cadeia.

Abriu-se a porta e Tredwell anunciou:

— Mr. George Lomax, Mr. Eversleigh.

— Entra Codders, seguido de seu cão fiel — murmurou Bundle.

Bill dirigiu-se diretamente à moça, enquanto George cumprimentava Lorde Caterham da maneira cordial que as­sumia em público.

— Meu caro Caterham — disse George, apertando-lhe a mão. — Recebi seu recado e vim, naturalmente.

— Fez muito bem, meu caro amigo, fez muito bem. Estou encantado em vê-lo. — A consciência de Lorde Cater­ham levava-o sempre a um excesso de cordialidade quando ele tinha a certeza de não sentir nenhuma. — O recado não era meu, mas isso não tem a mínima importância.

Nesse meio tempo, Bill interpelava Bundle em voz baixa.

— Que significa tudo isto? Ouvi dizer que Virgínia saiu às pressas no meio da noite. Ela não foi raptada, não é?

— Oh, não — disse Bundle. — Seguindo o ritual, ela deixou um aviso preso à almofada de alfinetes.

— Ela não fugiu com alguém? Com aquele homem das colônias, aquele tal de Johnny? Nunca apreciei esse sujeito, e, pelo que ouvi dizer, é ele o famoso escroque. Mas não vejo muito bem como possa ser.

— Por que não?

— Bem, porque esse Rei Victor é um cidadão francês, e Cade é suficientemente inglês.

— Parece que você não ouviu dizer que o Rei Victor é um poliglota emérito, e, além disso, tem ascendência irlandesa.

— Oh, senhor! Foi por isso, então, que ele se manteve afastado, não é?

— Não sei se ele se manteve afastado; só sei, como você também sabe, que ele desapareceu ontem. Hoje de manhã, entretanto, recebemos um telegrama dele, dizendo que estaria aqui às nove horas da noite, e pedindo que con­vidássemos Codders. Toda essa gente também veio... a convite de Mr. Cade.

— Trata-se de uma reunião — disse Bill, olhando ao redor. — Um detetive francês junto à janela, um detetive inglês perto da lareira. O elemento estrangeiro bem repre­sentado. E os Estados Unidos não enviaram o seu repre­sentante?

Bundle abanou a cabeça.

— Mr. Fish evaporou-se. Virginia também não está aqui. Mas todos os outros estão reunidos, e eu tenho a im­pressão, Bill, de que estamos próximos do momento em que alguém dirá "James, o criado", e tudo será esclarecido. Esta­mos apenas à espera de Anthony Cade.

— Ele jamais virá.

— Então, por que teria convocado esta reunião de conselho, como diz meu pai?

— Ah! Existe alguma coisa por trás disso. Quer que fiquemos aqui todos juntos, enquanto ele próprio estará em outro lugar... sabe como são essas coisas.

— Você acha então que ele não virá?

— Não tem perigo. Acredita que ele venha enfiar a cabeça na boca do leão? Ora, a sala está regurgitando de detetives e altas patentes.

— Você não conhece o Rei Victor, se pensa que isso o iria deter. Pelo que se diz a seu respeito, essa é a espécie de situação que ele adora, e sempre consegue se sair bem.

Mr. Eversleigh sacudiu a cabeça com expressão de dúvida.

— Seria um belo feito... com o dado viciado contra ele. Jamais...

Abriu-se a porta novamente, e Tredwell anunciou:

— Mr. Cade.

Anthony encaminhou-se diretamente ao anfitrião.

— Lorde Caterham — disse ele. — Estou lhe causan­do uma terrível amolação, e lamento muito tudo isto. Mas acredito realmente que esta noite o mistério será esclarecido.

Lorde Caterham pareceu acalmar-se. Sempre tivera uma secreta preferência por Anthony.

— Não é amolação nenhuma — disse ele jovialmente.

— É muita bondade sua — disse Anthony. — Esta­mos todos aqui, pelo que vejo. Podemos então começar a função.

— Não compreendo — disse George Lomax em tom grave. — Não compreendo absolutamente. Isto é muito irre­gular. Mr. Cade não tem boa reputação... não tem boa reputação de maneira alguma. A situação é bastante difícil e delicada. Sou de inteira opinião que...

O fluxo da eloqüência de George foi interrompido. Movendo-se de maneira discreta para perto do grandioso homem, o Superintendente Battle sussurrou-lhe algumas pa­lavras ao ouvido. George ficou perplexo e desconcertado.

— Muito bem, uma vez que você diz isso — observou com relutância. E acrescentou em tom mais alto: — Estou certo de que queremos todos ouvir o que Mr. Cade tem a dizer.

Anthony ignorou a evidente condescendência no tom do outro.

— Trata-se somente de uma pequena idéia minha, ape­nas isto — disse com jovialidade. — Provavelmente todos os senhores sabem que outro dia caiu em nosso poder uma certa mensagem em código. Havia uma referência a Richmond, e alguns números. — Fez uma pausa. — Bem, tive­mos uma oportunidade de solucionar a questão... e fracas­samos. Todavia, nas memórias do falecido Conde Stylptitch (acontece que eu as li) existe uma referência a um determi­nado jantar, o "jantar das flores", onde cada pessoa se apre­sentava usando um emblema que representasse uma flor. O próprio conde usou a duplicata exata do modelo que encon­tramos na cavidade da passagem secreta. Representava uma rosa. Se estão lembrados, eram fileiras de coisas, botões, letras ee, e, finalmente, fileiras de retalhos de tricô. Agora, senhores, que é que nesta casa está arrumado em fileiras? Livros, não é? Acrescente-se a isso que no catálogo da bi­blioteca de Lorde Caterham há um livro chamado A vida do Conde de Richmond, partindo do qual creio que se pode­rá ter uma idéia do esconderijo. Tomando-se, portanto, o volume em questão como ponto de partida, e utilizando-se os números para indicar prateleiras e livros, penso que se descobrirá que o objeto que se procura acha-se escondido em algum livro falso, ou em uma cavidade atrás de certo livro.

Anthony olhou em redor com modéstia, obviamente à espera de aplausos.

— Palavra de honra, isso é muito engenhoso — disse Lorde Caterham.

— Muito engenhoso — admitiu George em tom con­descendente. — Mas resta verificar...

Anthony riu.

— O pudim prova-se comendo, não é? Bem, logo veri­ficaremos. — Levantou-se. — Vou à biblioteca...

Não chegou a dar um passo. M. Lemoine afastou-se da janela.

— Um momento, Mr. Cade. Com sua permissão, Lorde Caterham.

Dirigiu-se à escrivaninha, e rabiscou rapidamente algu­mas linhas. Fechou-as em um envelope e tocou a campainha. Tredwell apareceu. Lemoine entregou-lhe o envelope.

— Faça com que seja enviado imediatamente, por favor.

— Está bem, senhor — disse Tredwell.

Com seu andar sempre cheio de dignidade, afastou-se. Anthony, que se mantivera em pé, irresoluto, sentou-se de novo.

— Que idéia é esta, Lemoine? — perguntou amavelmente.

O ambiente impregnou-se de súbita tensão.

— Se a jóia está realmente onde diz o senhor... bem, já se encontra lá há cerca "'de sete anos, um quarto de hora a mais não fará diferença.

— Continue — disse Anthony. — Não era só isso que o senhor queria dizer.

— Não, não era. Nesta conjuntura não é prudente per­mitir que qualquer pessoa saia da sala. Sobretudo se essa pessoa tem antecedentes um tanto duvidosos.

Anthony ergueu as sobrancelhas e acendeu um cigarro.

— Suponho que uma vida errante não seja muito res­peitável — murmurou consigo mesmo.

— Há cerca de dois meses, Mr. Cade, o senhor esteve na África do Sul. Admite-se isso. E antes, onde esteve o senhor?

Anthony recostou-se para trás na cadeira, indolentemente soprando anéis de fumaça.

— No Canadá. Na região erma do noroeste.

— Está certo de que não esteve numa prisão? Numa prisão francesa?

Automaticamente, o Superintendente Battle deu um passo para junto da porta, como se pretendesse cortar uma retirada nessa direção, mas Anthony não demonstrou sinais de fazer nada dramático.

Em vez disso, encarou o detetive francês, e pôs-se a rir.

— Meu pobre Lemoine. Trata-se de uma verdadeira mania! O senhor vê o Rei Victor em toda parte. Imagina, então, que eu seja esse interessante cavalheiro?

— Nega isso?

Anthony limpou um punhado de cinza que lhe caíra na manga do paletó.

— Jamais nego qualquer coisa que me divirta — disse despreocupadamente. — Mas a acusação é na verdade dema­siado ridícula.

— Ah! Julga que sim? — O francês inclinou-se para a frente. Sua face contraía-se dolorosamente, e, ao mesmo tempo, ele parecia perplexo e desconcertado, como se algo nas maneiras de Anthony o intrigasse. — E que tal se eu lhe disser, monsieur, que desta vez... desta vez pretendo apanhar o Rei Victor, e nada me impedirá!

— Muito louvável — foi o comentário de Anthony. — Já pretendeu apanhá-lo antes, não é, Lemoine? E ele levou a melhor. Não tem receio de que isso possa acontecer outra vez? Pelo que se diz, ele é um sujeito muito escorregadio.

A conversa tomara rumo de um duelo entre o detetive e Anthony. Todos sentiam a tensão que dominava o ambien­te. Era uma luta fatal entre o francês, em árdua determina­ção, e o homem que fumava com a maior calma e cujas palavras pareciam demonstrar que ele não tinha preocupação de espécie alguma.

— Se eu fosse o senhor, Lemoine — prosseguiu An­thony —, teria cuidado, muito cuidado. Atenção ao degrau, e coisas assim nesse gênero.

— Desta vez — disse Lemoine inflexível — não ha­verá engano.

— Parece estar muito seguro de tudo — disse Antho­ny. — Mas, o senhor bem sabe, existe uma coisa que se chama prova.

Lemoine sorriu, e algo em seu sorriso pareceu atrair a atenção de Anthony. Sentou-se e apagou o cigarro.

— Viu que, ainda há pouco, escrevi um recado? — disse o detetive francês. — Foi enviado à minha gente, que se acha na taverna. Recebi ontem da França as impressões digitais e as medidas do Rei Victor... também chamado Capitão O'Neill. Pedi que as mandassem para cá. Dentro de alguns minutos saberemos se o senhor é o homem!

Anthony encarou-o fixamente. Um pequeno sorriso pai­rou então em sua fisionomia.

— O senhor é mesmo inteligente, Lemoine. Jamais pensei nisso. Os documentos chegarão, o senhor me obri­gará a mergulhar os dedos na tinta, ou algo assim desagra­dável, medirá minhas orelhas e verificará meus sinais carac­terísticos. E, se tudo se confirmar...

— Bem — disse Lemoine —, se tudo se confirmar, hein?

Anthony inclinou-se para a frente.

— Bem, se tudo se confirmar — disse ele calmamente —, e daí?

— E daí? — O detetive mostrava-se espantado. — Mas... terei provado que o senhor é o Rei Victor! — Pela primeira vez, entretanto, uma sombra de insegurança trans­pareceu em suas maneiras.

— Isso proporcionará, sem dúvida, grande satisfação para o senhor — disse Anthony. — Mas não vejo bem onde possa me atingir. Não estou admitindo nada; supondo-se porém, apenas para argumentar, que eu fosse o Rei Victor, podia estar arrependido, não acha?

— Arrependido?

— É uma idéia. Ponha-se no lugar do Rei Victor, Le­moine. Imagine que acabou de sair da prisão, e está vivendo bem. Perdeu o enlevo pela vida de aventuras. Digamos, mesmo, que encontrou uma bela moça e está pensando em casar-se. Pretende instalar-se no campo e cultivar horta­liças. Decide doravante levar uma vida irrepreensível. Po­nha-se no lugar do Rei Victor. Não consegue imaginar tal sensação?

— Creio que não teria semelhante sensação — disse Lemoine, com um sorriso sardônico.

- Talvez não tivesse — admitiu Anthony. — Mas o senhor não é o Rei Victor, não? Não pode saber quais são as suas sensações.

— É tolice tudo quanto o senhor está dizendo — disse precipitadamente o francês.

— Oh, não; não é. Vejamos, Lemoine: se sou eu o Rei Victor, que é que o senhor tem contra mim, afinal de contas? Lembre-se de que não conseguiu provar nada quan­to ao meu passado. Cumpri minha sentença, e é tudo. Supo­nho que poderia me prender apoiado naquilo que se chama "vadiagem com a intenção de cometer crime", mas isso seria uma satisfação bem pobre, não acha?

— Está se esquecendo da América! — exclamou Le­moine. — E aquele negócio de obter dinheiro sob falsos pretextos, passando pelo Príncipe Nicolau Obolovitch?

— Não serve, Lemoine — disse Anthony. — Eu não estava na América nessa época, e posso prová-lo facilmente. Se o Rei Victor desempenhou o papel do Príncipe Nicolau na América, então eu não sou o Rei Victor. Está certo de que aquele homem não era o próprio príncipe?

Subitamente, o Superintendente Battle interpôs-se:

— Aquele homem era um impostor, Mr. Cade.

— Eu não iria contradizê-lo, Battle — disse Anthony.

— Você tem o hábito de estar sempre certo. Tem certeza também de que o Príncipe Nicolau morreu no Congo?

Battle fitou-o com curiosidade.

— Não juraria quanto a isso. Mas é o que se diz.

— Cuidado, homem. Qual é mesmo a sua divisa? Dar bastante corda, não é? Segui seu exemplo, e dei a M. Le­moine bastante corda. Não neguei suas acusações. Receio, entretanto, que ele vá ficar desapontado. Sempre acreditei, sabe, em trazer algo escondido na manga. Prevendo que alguns pequenos aborrecimentos pudessem surgir aqui, tomei a precaução de trazer comigo um trunfo. Ele está lá em cima.

— Lá em cima? — indagou Lorde Caterham muito interessado.

— Sim, ultimamente ele passou por momentos muito difíceis. Pobre sujeito! Alguém lhe desfechou um terrível golpe na cabeça. Estive cuidando dele.

Subitamente a voz grave de Mr. Isaacstein fez-se ouvir:

— Podemos adivinhar quem seja?

— Se quiserem — disse Anthony --, mas...

Lemoine interrompeu-o com repentina ferocidade:

— Tudo isto é absurdo. O senhor está querendo me lograr de novo. Pode ser verdade o que o senhor diz... que não esteve na América. É demasiado inteligente para afirmar uma coisa que não seja verdadeira. Mas existe algo mais: assassinato! Sim, assassinato. O assassinato do Príncipe Mi­guel. Ele o atrapalhou naquela noite em que o senhor estava procurando a jóia.

— Lemoine, já ouviu dizer que o Rei Victor tivesse cometido algum assassinato? — A voz de Anthony soou cortante. — Sabe tão bem, ou melhor do que eu, que ele nunca derramou sangue.

— Quem, a não ser o senhor, poderia ter assassinado o Príncipe Miguel? — gritou Lemoine. — Diga-me isso!

As últimas palavras morreram-lhe nos lábios, quando se ouviu um assobio agudo no terraço. Anthony ergueu-se de um salto, e pôs de lado toda a sua pretensa indiferença.

— Pergunta-me quem assassinou o Príncipe Miguel? — exclamou ele. — Não lhe vou dizer... vou lhe mostrar. Esse assobio era o sinal que eu esperava. O assassino do Príncipe Miguel está agora na biblioteca.

Saltou a janela, e os outros o seguiram, dando a volta pelo terraço e chegando até a janela da biblioteca. Abriu-a, e puxou suavemente a pesada cortina para que pudessem olhar para dentro.

Em pé, junto à estante, achava-se uma figura sombria, apressadamente tirando e recolocando os volumes em seus lugares, de tal forma absorvida na tarefa, que não deu aten­ção a nenhum ruído exterior.

E então, enquanto observavam, tentando reconhecer a figura, cuja silhueta se projetava vagamente contra a luz da lanterna elétrica que empunhava, alguém passou precipita­damente por eles dando um grito que mais parecia o bramir de um animal selvagem.

A lanterna caiu, apagou-se, e o ruído de terrível briga encheu a sala. Lorde Caterham tateou a parede até o comutador da luz, e acendeu-a.

Duas figuras engalfinhavam-se. Enquanto os outros olhavam, a luta terminou. Um estalido breve e seco de tiro de revólver, e a figura menor vacilou e tombou. A outra

figura voltou-se e encarou-os: era Boris, os olhos brilhando de raiva.

— Ela matou meu amo — rosnou. — Agora tentava atirar em mim. Eu teria arrancado o revólver e dado um tiro nela, mas o revólver disparou durante a luta. O santo Miguel assim o quis. A mulher perversa está morta.

— Uma mulher? — exclamou George Lomax. Aproximou-se dela. Estendida no chão, o revólver ainda preso à sua mão e tendo no rosto uma expressão de malignidade mortal, jazia Mlle Brun.

 

Rei Victor

— Suspeitei dela desde o princípio — explicou An­thony. — Havia uma luz acesa em seu quarto na noite do crime. Depois, tive dúvidas, fiz indagações na Bretanha a seu respeito, e voltei julgando que ela era o que dizia ser. Fui um tolo. Só pelo fato de a Condessa de Breteuil ter empre­gado uma certa Mlle Brun e ter dado boas referências sobre ela, nunca me ocorreu que a verdadeira Mlle Brun pudesse ter sido raptada quando se dirigia ao novo emprego, e uma substituta tomasse o seu lugar. Desviei minhas suspeitas para Mr. Fish. Somente quando ele me seguiu até Dover, e nos explicamos mutuamente, foi que comecei a ver as coisas com maior clareza. Sabendo que se tratava de um detetive ame­ricano, na pista do Rei Victor, minhas suspeitas voltaram-se ao objeto original.

"O que me intrigava era que Mrs. Revel havia reco­nhecido a mulher. Lembrei-me, então, de que fora apenas depois de eu ter mencionado que ela tinha sido governanta de Mme de Breteuil. E tudo quanto dissera fora somente que o rosto da governanta lhe era familiar. O Superintendente Battle poderá informar-lhes que uma verdadeira trama foi organizada para impedir a vinda de Mrs. Revel a Chimneys. De.fato, nada mais nada menos que um cadáver. E, embora o assassinato tenha sido trabalho dos Camaradas da Mão Ver­melha, punindo suposta traição da vítima, a encenação da morte e a ausência do sinal característico indicavam uma inteligência mais capaz dirigindo as operações. Desde o iní­cio, suspeitei que o caso tivesse alguma ligação com a Herzoslováquia. Mrs. Revel era o único membro da reunião que havia estado em tal país. Pensei, a princípio, que alguém estivesse substituindo o verdadeiro Príncipe Miguel, mas isso ficou provado ser uma idéia totalmente errônea. Quan­do entrevi a possibilidade de Mlle Brun ser mesmo uma impostora, acrescendo-se o fato de que seu rosto era fami­liar a Mrs. Revel, comecei a ver claro. Tornava-se, evidente­mente, muito importante que ela não fosse reconhecida, e Mrs. Revel era a única pessoa que teria a probabilidade de fazê-lo."

— Mas quem era ela? — perguntou Lorde Caterham.

— Alguém que Mrs. Revel conheceu na Herzoslováquia?

— Creio que o barão poderá dizer-nos — respondeu Anthony.

— Eu? — O barão encarou-o fixamente, e depois baixou o olhar para a figura imóvel no chão.

— Olhe bem — disse Anthony. — Não se deixe en­ganar pela maquilagem. Lembre-se de que ela já foi atriz.

O barão olhou de novo com atenção, e, subitamente, sobressaltou-se.

— Meu Deus! — exclamou. — Não é possível!

— Que é que não é possível? — indagou George. — Quem é a senhora? Reconhece-a, barão?

— Não, não, não é possível — continuava o barão a murmurar. — Ela foi morta. Foram ambos mortos. Nos degraus do palácio. Seu cadáver foi recuperado.

— Mutilado e irreconhecível — lembrou-lhe Anthony.

— Ela conseguiu dar um blefe. Creio que fugiu para a Amé­rica, e lá passou muitos anos dominada por mortal terror dos Camaradas da Mão Vermelha. Eles haviam promovido a revolução, lembre-se, e, para usar uma frase expressiva, traziam essa tal fulana atravessada na garganta. O Rei Victor foi solto, e planejaram recuperar juntos o diamante. Quando ela procurava a jóia, naquela noite, deparou subitamente com o Príncipe Miguel, e este a reconheceu. Se as coisas ti­vessem decorrido de maneira normal, não recearia tanto encontrar-se com ele. Hóspedes reais não entram em contato com governantas, e ela poderia, em caso de necessidade, re­tirar-se com uma conveniente migraine, como fez no dia em que chegou o barão.

"Entretanto, quando menos esperava, viu-se face a face com o Príncipe Miguel. Isso representava a desmistificação e o infortúnio. Atirou no príncipe. Foi ela quem colocou o revólver na maleta de Isaacstein, para confundir as pistas, e foi ela quem devolveu as cartas." Lemoine deu um passo à frente.

— Diz o senhor que ela desceu, naquela noite, para procurar a jóia — disse ele. — Não iria ela encontrar-se com seu cúmplice, o Rei Victor, que viria pelo lado de fora? Hein? Que me diz a isso?

Anthony suspirou.

— Ainda insiste, meu caro Lemoine? Como é persis­tente! Ainda não entendeu que tenho um trunfo escondido na manga?

Mas George, cujo cérebro trabalhava com lentidão, interrompeu:

— Não estou entendendo nada. Quem é esta senhora, barão? Parece que o senhor a reconhece, não é?

O barão, porém, afastou-se empertigado e rígido.

— Senhor estar enganado, Mr. Lomax. Nunca vi esta senhora antes. Completa estranha é ela para mim.

— Mas...

George fitou-o intrigado.

O barão levou-o para um canto da sala, e murmurou algo em seu ouvido. Anthony observou, bastante divertido, o rosto de George tornar-se rubro, seus olhos arregalarem-se, e todos os sintomas incipientes de apoplexia. Um mur­múrio da voz gutural de George chegou-lhe aos ouvidos:

— Certamente... certamente... sem dúvida... não há necessidade de maneira alguma... situação complica­da... máxima discrição.

— Ah! — Lemoine bateu na mesa de maneira enérgica. — Nada disto me importa! O assassinato do Príncipe Miguel não é caso meu. Quero é o Rei Victor.

Anthony balançou a cabeça suavemente.

— Sinto muito, Lemoine. O senhor é realmente um indivíduo muito capaz. Mas, de qualquer forma, vai perder o jogo. Chegou o momento de apresentar o meu trunfo.

Atravessou o aposento e tocou a campainha. Tredwell apareceu.

— Chegou comigo esta noite um cavalheiro, Tredwell.

— Sim, senhor, um cavalheiro estrangeiro.

— Isto mesmo. Quer ter a bondade de pedir-lhe que venha reunir-se a nós, tão depressa quanto possível?

— Perfeitamente, senhor. Tredwell retirou-se.

— A entrada do trunfo, do misterioso M. X — disse Anthony. — Quem é ele? Será que alguém adivinha?

— Juntando dois mais dois — disse Herman Isaacstein —, as suas misteriosas insinuações desta manhã e a sua ati­tude esta noite, eu diria que não há dúvidas a esse respeito. De um modo ou de outro, o senhor conseguiu trazer o Prín­cipe Nicolau da Herzoslováquia.

— Também pensa assim, barão?

— Sim. A não ser que senhor tenha trazido outro impostor. Mas nisso não acredito. Comigo seu comportamento foi muito honrado.

— Obrigado, barão, não esquecerei essas palavras. Então, estão todos de acordo?

Seus olhos circundaram o círculo de rostos ansiosos pela expectativa. Apenas Lemoine não respondeu; emburrado, manteve os olhos fixos na mesa.

Os ouvidos atentos de Anthony perceberam o som de passos no vestíbulo.

— E, entretanto, saibam que estão todos enganados! — disse ele, com um sorriso estranho.

Encaminhou-se rapidamente para a porta, e escan­carou-a.

No batente da porta achava-se um homem... um ho­mem de barbicha negra, de óculos, com jeito afetado, e a fisionomia ligeiramente desfigurada por uma bandagem que lhe envolvia a cabeça.

— Permitam-me que lhes apresente o verdadeiro M. Lemoine, da Sûreté .

Houve grande tumulto, mas logo ouviu-se a voz fanhosa e calma de Mr. Hiram Fish, tranqüilizando-os da janela:

— Não, nada disso, velhinho... por aqui não. Estive montando guarda durante toda a noite com a finalidade única de impedir a sua fuga. Observe que está bem no alvo do meu revólver. Vim para apanhá-lo, e apanhei-o... mas você é um osso duro de roer!

 

Mais algumas explicações

— Creio que o senhor nos deve uma explicação, Mr. Cade — disse Herman Isaacstein, pouco mais tarde, nessa mesma noite.

— Não há muito o que explicar — disse Anthony mo­destamente. — Fui para Dover e Fish seguiu-me, pensan­do que era eu o Rei Victor. Lá encontramos preso um mis­terioso estranho, e, tão logo ouvimos sua história, ficamos sabendo onde pisávamos. A mesma história de sempre: o homem verdadeiro raptado, e o falso — neste caso o pró­prio Rei Victor — tomando o seu lugar. Parece, entre­tanto, que Battle achou desde o princípio que havia algo de falso em seu colega francês, e telegrafou para Paris pedindo suas impressões digitais e outros meios de identificação.

— Ah! — exclamou o barão. — As impressões digitais e as medidas sobre as quais falou aquele escroque?

— Foi uma idéia bastante inteligente — disse Anthony. — Admirei-a de tal forma, que me senti forçado a tomar parte na encenação. Além disso, o meu modo de agir intrigou profundamente o falso Lemoine. Assim que fiz a sugestão com referência às fileiras e ao lugar onde estaria realmente a jóia, ele passou habilmente a notícia para sua cúmplice, e, ao mesmo tempo, procurou manter-nos todos nessa sala. O bilhete dirigia-se a Mlle Brun. Disse a Tredwell que o entre­gasse imediatamente, e Tredwell assim o fez, subindo para entregá-lo na sala de aulas. Lemoine acusou-me de ser o Rei Victor, desviando com isso a atenção e impedindo qualquer pessoa de sair da sala. Julgou que no momento em que tudo se esclarecesse e fôssemos para a biblioteca procurar a jóia esta já não estaria mais lá.

George pigarreou.

— Devo dizer, Mr. Cade — disse com solenidade —, que considero sua ação neste caso profundamente censurável. Se a mínima falha tivesse ocorrido em seus planos, uma das nossas propriedades nacionais teria desaparecido sem espe­rança alguma de recuperação. Foi estouvamento, Mr. Cade, censurável estouvamento.

— Creio que o senhor não percebeu bem a coisa, Mr. Lomax — disse a voz arrastada de Mr. Fish. — O diamante histórico jamais esteve atrás dos livros da biblioteca.

— Jamais?

— De maneira alguma.

— O pequeno artifício de que se utilizou o Conde Stylptitch — explicou Anthony — representava o modelo original, isto é, uma rosa. Quando descobri isso, na segunda-feira à tarde, fui diretamente para o roseiral. Mr. Fish tam­bém tivera a mesma idéia. Se, com as costas voltadas para o relógio de sol, se der sete passos à frente, e depois oito à esquerda e três à direita, chega-se exatamente junto a alguns arbustos de rosas brilhantes e vermelhas, chamadas Richmond. Toda a casa foi revistada à procura do esconderijo, mas ninguém pensou em escavar o jardim. Sugiro que nos reunamos amanhã cedo para fazer uma pequena escavação.

— Então a história a respeito dos livros da biblio­teca, ..

— Foi uma invenção minha para apanhar a cúmplice. Mr. Fish montou guarda no terraço e assobiou no momento psicologicamente conveniente. Posso dizer que Mr. Fish e eu estabelecemos lei marcial na tal casa em Dover, e impe­dimos que os Camaradas da Mão Vermelha se comunicassem com o falso Lemoine. Ele lhes enviou ordem para evacuar a casa, e recebeu resposta de que isso fora feito. Prosseguiu, portanto, muito satisfeito, com seus planos de denúncia contra mim.

— Bem, bem — disse Lorde Caterham alegremente —, parece que tudo se esclareceu da maneira a mais satisfatória.

— Tudo, menos uma coisa — disse Mr. Isaacstein.

— Qual é?

O grande financista olhou fixamente para Anthony.

— Para que me trouxe aqui? Somente para assistir a uma cena dramática como um espectador interessado?

Anthony abanou a cabeça.

— Não, Mr. Isaacstein. O senhor é um homem ocupa­do, cujo tempo é dinheiro. Por que motivo viera o senhor antes aqui?

— Para negociar um empréstimo.

— Com quem?

— Com o Príncipe Miguel da Herzoslováquia.

— Exatamente. O Príncipe Miguel está morto. O se­nhor está disposto a oferecer o mesmo empréstimo, nas mesmas condições, a seu primo Nicolau?

— E de onde é que o senhor vai tirá-lo? Pensei que ele tivesse morrido no Congo.

— Ele morreu, sim. Eu o matei. Oh, não, não sou um assassino. Quando digo que o matei, quero dizer que espa­lhei a notícia de sua morte. Prometi-lhe um príncipe, Mr. Isaacstein. Será que eu sirvo?

— O senhor?

— Sim, eu mesmo. Nicolau Sérgio Alexandre Ferdinando Obolovitch. Nome um tanto longo para o gênero de vida que me propus viver, em vista do que emergi do Congo apenas como Anthony Cade.

O pequeno Capitão Andrassy levantou-se de um salto.

— Mas isto é incrível... incrível — disse precipita­damente. — Tenha cuidado com o que diz, senhor.

— Posso apresentar inúmeras provas — disse Anthony com tranqüilidade. — Creio que poderei convencer o barão.

O barão ergueu a mão.

— Suas provas examinarei, sim. Mas para mim não ser necessário. Sua palavra apenas ser suficiente para mim. Além disso, senhor muito se parece com sua mãe inglesa. Durante todo o tempo disse comigo: "Este jovem, de um lado ou de outro, ser muito bem nascido".

— O senhor sempre confiou na minha palavra, barão — disse Anthony. — Asseguro-lhe que, nos dias que estão por vir, jamais me esquecerei disso.

Olhou, então, para o Superintendente Battle, cujo rosto permanecia absolutamente impassível.

— A minha posição era extremamente precária — disse Anthony com um sorriso. — Entre todos os que estavam na casa, eu podia ser considerado como o que tinha a melhor razão para desejar que Miguel Obolovitch fosse posto fora do caminho, uma vez que eu era o próximo herdeiro do trono. Durante todo o tempo, senti imenso medo de Battle. Ele sempre suspeitou de mim, mas não agiu em virtude da ausência de provas.

— Nem por um instante acreditei que o senhor tivesse atirado nele — disse o Superintendente Battle. — Temos um sexto sentido para tais assuntos. Mas sabia que estava com medo de alguma coisa, e o senhor me intrigava. Se ti­vesse sabido antes quem o senhor realmente era, ouso dizer que me teria rendido à evidência e o teria prendido.

— Sinto-me satisfeito por ter conseguido esconder de você um segredo perigoso. Conseguiu arrancar-me todos os outros. Você é um homem de uma eficiência infernal em sua profissão, Battle. Sempre pensarei na Scotland Yard com respeito.

— É estranho — murmurou George. — É a história mais estranha que já ouvi. Mal... mal posso acreditar. Está bem certo, barão, de que...

— Meu caro Mr. Lomax — disse Anthony com certa aspereza no tom. — Não tenho intenção de pedir ao Minis­tério das Relações Exteriores da Inglaterra que apóie a minha reivindicação, sem apresentar as mais convincentes provas documentais. Sugiro que nos retiremos agora, e que o senhor, o barão, Mr. Isaacstein e eu discutamos os termos do empréstimo proposto.

O barão ergueu-se e bateu os calcanhares.

— Será o momento de maior orgulho da minha vida — disse ele com solenidade —, quando senhor for rei da Herzoslováquia.

— Oh, a propósito, barão — disse Anthony despreocupadamente, dando-lhe o braço. — Esqueci-me de lhe dizer: há um laço que me prende. Estou casado, sabe?

O barão deu um passo ou dois para trás. O desalento espalhou-se em sua fisionomia.

— Alguma coisa errada eu saber que haveria — trovejou. — Meu Deus todo-poderoso! Ele se casou com uma mulher negra na África!

— Vamos, vamos, não é assim tão mau — disse An­thony rindo. — Ela é bem branca... por fora e por dentro, benza-a Deus.

— Bom. Pode ser, então, um casamento morganático.

— Absolutamente. Ela será tão rainha quanto eu rei.

Não adianta balançar a cabeça. Ela é altamente qualificada para o posto. É a filha de um par do reino, cuja origem re­monta à época do Conquistador. Está muito na moda agora as realezas casarem-se na aristocracia... e ela conhece algu­ma coisa a respeito da Herzoslováquia.

— Meu Deus! — exclamou George Lomax alarmado, esquecendo-se de seu tom discursivo. — Não... não é Virginia Revel?

— Sim — disse Anthony. — É Virginia Revel.

— Meu caro amigo — exclamou Lorde Caterham. — Isto é, senhor, felicito-o realmente. Trata-se de uma criatura deliciosa.

— Obrigado, Lorde Caterham — disse Anthony. — Ela é tudo quanto o senhor diz, e mais ainda.

Mr. Isaacstein, porém, encarava-o com curiosidade.

— Sua Alteza desculpe-me a pergunta, mas quando foi efetuado este casamento?

Anthony respondeu-lhe com um sorriso.

— Na realidade — disse —, casei-me com ela hoje de manhã.

 

Anthony assume novo emprego

— Se quiserem começar, cavalheiros, irei ter com os senhores dentro de alguns minutos — disse Anthony.

Esperou que os outros saíssem, e voltou-se então para o Superintendente Battle, que aparentemente se achava ab­sorvido em examinar o madeiramento da parede.

— Bem, Battle? Quer perguntar-me alguma coisa, não é?

— Quero, sim, embora não saiba como é que percebeu isso. Mas sempre observei que o senhor compreende logo as coisas. Segundo entendi, a mulher que morreu era a Rai­nha Varaga, não é?

— Exatamente, Battle. Espero que se faça silêncio em torno disso. Pode bem entender como me sinto a respeito dos esqueletos da família.

— Mr. Lomax se incumbirá disso. Ninguém jamais sa­berá. Isto é, muitas pessoas saberão, mas o assunto não se espalhará.

— Era isso que desejava perguntar-me?

— Não, senhor... isso foi apenas incidentalmente. Estava curioso para saber o que o fez trocar de nome... se não estou tomando excessiva liberdade.

— Absolutamente. Vou lhe dizer. Matei-me a mim mesmo pelos motivos mais simples, Battle. Minha mãe era inglesa. Fui educado na Inglaterra, e estava muito mais inte­ressado na Inglaterra do que na Herzoslováquia. Sentia-me profundamente ridículo em vaguear pelo mundo com um título de ópera-cômica grudado em mim. Quando eu era jovem, compreende, achava-me imbuído de idéias democrá­ticas. Acreditava na pureza dos ideais e na igualdade dos homens. E, sobretudo, não acreditava em reis e príncipes.

— E depois disso?

— Oh, depois disso viajei e vi o mundo. A igualdade que existe é em proporção infernalmente pequena. Note bem, ainda acredito na democracia. Mas é preciso forçá-la ao povo com mão vigorosa... empurrá-la garganta adentro. Os homens não querem ser irmãos... pode ser que um dia queiram, mas por ora não. Minha crença na fraternidade humana morreu no dia em que cheguei a Londres, na semana passada, e vi as pessoas num trem subterrâneo recusando-se resolutamente a se mover para dar lugar aos que entravam. Não se consegue fazer as pessoas virarem anjos, apelando-se para seus bons sentimentos, pelo menos por enquanto. Mas, pela força justa, pode-se obrigá-las a um comportamento mais ou menos decente, umas para com as outras. Acredito ainda na fraternidade humana, mas ainda está por vir. Di­gamos, dentro de uns dez mil anos, ou tanto. Não adianta ser impaciente. A evolução é um processo lento.

— Estou muito interessado em seus pontos de vista, senhor — disse Battle com um piscar de olhos. — E, se me permite dizer-lhe, estou certo de que o senhor será um rei excelente.

— Obrigado, Battle — disse Anthony, dando um sus­piro.

— Não parece encarar o assunto com muita satisfação.

— Oh, não sei. Ouso dizer que será um tanto diverti­do. O que me preocupa é ter de prender-me a um trabalho fixo. Sempre evitei isso.

— Mas suponho que considere isso seu dever, não é?

— Meu Deus, não! Que idéia! Trata-se de uma mu­lher... é sempre uma mulher, Battle. Por causa dela eu faria mais do que ser rei.

— Tem razão, senhor.

— Arranjei as coisas de forma a que o barão e Isaacstein não possam recuar. Um quer um rei e outro quer petró­leo. Ambos terão aquilo que desejam, e eu tenho... Oh, senhor!... Já esteve apaixonado alguma vez, Battle?

— Sou muito apegado a Mrs. Battle.

— Muito apegado a Mrs... Oh, você não entendeu o que eu quis dizer. É inteiramente diferente!

— Desculpe-me, senhor, mas aquele seu homem está esperando do lado de fora da janela.

— Boris? Lá está ele. É um sujeito maravilhoso. Ainda bem que o revólver disparou durante a luta e matou a mu­lher. Caso contrário, Boris lhe teria torcido o pescoço, com certeza, e você ia querer enforcá-lo. Seu apego à dinastia Obolovitch é extraordinário. O estranho é que, tão logo Miguel morreu, ele se grudou a mim... embora não sou­besse absolutamente quem eu era.

— Instinto — disse Battle. — Tal qual um cão.

— Instinto muito estranho, pensei na ocasião. Tive receio de que você desconfiasse de alguma coisa. Acho que é melhor ver o que ele quer.

Saiu pela porta-janela. O Superintendente Battle ficou só, olhando por algum tempo na direção em que ele partira, e depois falou como se se dirigisse às paredes:

— Oh, sim. Ele servirá. Lá fora, Boris explicava-se:

— Meu amo — disse, e conduziu-o ao longo do ter­raço.

Anthony seguiu-o, imaginando o que estaria por acon­tecer.

Boris parou, e apontou com o indicador. Havia luar, e na frente deles via-se um banco de pedra, onde estavam sentadas duas figuras.

— Ele é um cão — disse Anthony consigo próprio. — E mais ainda, é um perdigueiro!

Caminhou para a frente. Boris sumiu dentro da noite. As duas figuras ergueram-se e vieram a seu encontro. Uma era Virgínia... a outra...

— Olá, Joe — disse uma voz muito conhecida. — Esta sua garota é formidável.

— Jimmy McGrath, que maravilha! — exclamou An­thony. — Que bons fados o trazem aqui?

— Aquela minha viagem para o interior foi por água abaixo. Depois apareceram alguns gringos para me aborrecer. Queriam comprar aquele manuscrito. A próxima coisa que aconteceu foi que, certa noite, quase me enfiaram uma faca nas costas. Isso me fez pensar que eu o havia encarregado de um serviço maior do que julgava. Considerei que você podia estar precisando de auxílio, e vim logo atrás, no navio seguinte.

— Foi esplêndido, não? — disse Virgínia, pressionando levemente o braço de Jimmy. — Por que você nunca me disse que ele era tão simpático? Você é ótimo, Jimmy!

— Pelo que vejo, vocês estão se dando muito bem — disse Anthony.

— Claro! — disse Jimmy. — Eu estava espiando para ver se conseguia notícias suas, quando deparei com esta senhora. Ela não era absolutamente o que eu julgava... al­guma dessas importantes damas da alta sociedade que me­tem medo à gente.

— Ele me falou a respeito das cartas — disse Virgínia. — E eu me senti envergonhada por não ter ficado mesmo em apuros por causa delas, sendo ele tal cavalheiro errante.

— Se eu soubesse que a senhora era assim — disse Jimmy com galanteria — não teria entregue as cartas a ele. Eu próprio as teria trazido. Como é, meu jovem, a brinca­deira acabou mesmo? Não há nada que eu possa fazer?

-— Puxa vida! — exclamou Anthony. — Há, sim. Es­pere um minuto.

Entrou na casa. Instantes depois regressou, trazendo um embrulho que arremessou às mãos de Jimmy.

— Vá até a garagem e pegue um carro de belo aspec­to. Corra para Londres e entregue esta encomenda em Everdean Square, número 17. É o endereço particular de Mr. Balderson. Em troca, ele lhe entregará mil libras.

— Quê? Não são as memórias, não? Ouvi dizer que tinham sido queimadas.

— Por quem você me toma? — indagou Anthony. — Não pensa que eu ia cair numa história daquelas, não é? Telefonei imediatamente para os editores, descobri que aque­le chamado era um embuste, e agi de acordo. Fiz um pacote falso, conforme a orientação que recebi, pus o verdadeiro no cofre da gerência e entreguei o falso. As memórias jamais estiveram fora do meu poder.

— Bravos, meu filho! — disse Jimmy.

— Oh, Anthony! — exclamou Virgínia. — Você não vai permitir que elas sejam publicadas, não é?

— Não posso evitar. Não posso trair um companheiro como Jimmy. Mas não se preocupe. Tive tempo de lê-las, e agora percebo por que todo mundo diz que os figurões nunca escrevem as próprias memórias, mas incumbem outra pessoa de fazê-lo. Como escritor, Stylptitch é insuportavelmente cacete. Tagarela sobre política, e não conta nenhuma anedota picante ou indiscreta. Sua paixão pelo sigilo mante­ve-se firme até o fim. Não há uma única palavra nas memó­rias, do começo ao final, que possa ferir a suscetibilidade do político mais exigente. Telefonei hoje para Balderson, e combinei com ele que o manuscrito seria entregue hoje mes­mo, até a meia-noite. Mas, agora que Jimmy está aqui, ele próprio poderá fazer esse trabalho.

— Já estou de saída — disse Jimmy. — Aprecio mui­to a idéia das mil libras, sobretudo quando já as considerava fora de cogitação.

— Espere um segundo — disse Anthony. — Tenho uma confissão a fazer-lhe, Virgínia. Uma coisa que todos os outros já sabem, mas que ainda não contei a você.

— Não me importo com a quantidade de mulheres estranhas que você tenha amado, contanto que não me con­te nada a respeito delas.

— Mulheres! — disse Anthony, com ar virtuoso. — Mulheres, realmente! Pergunte aqui ao Jimmy com que es­pécie de mulheres eu estava, na última vez em que ele me viu.

— Velhotas — disse Jimmy solenemente. — Nenhu­ma com menos de quarenta e cinco.

— Obrigado, Jimmy — disse Anthony. — Você é amigo de fato. Não, é muito pior que isso. Enganei-a quanto ao meu verdadeiro nome.

— É assim tão horrível? — perguntou Virgínia com interesse. — Algo assim tolo como Pobbles, não é? Imagi­nem só, ser chamada de Mrs. Pobbles.

— Você está sempre pensando o pior de mim.

— Admito que cheguei a pensar que você fosse o Rei Victor, mas somente durante um minuto e meio.

— A propósito, Jimmy. Tenho um emprego para vo­cê... exploração de ouro nas regiões rochosas da Herzoslováquia.

— Tem ouro lá? — perguntou Jimmy ansiosamente.

— Claro que tem — respondeu Anthony. — É um país maravilhoso.

— Então você aceitou meu conselho, e vai para lá?

— Sim — disse Anthony. — Seu conselho valia mais do que você supunha. Agora, quanto à confissão: não fui trocado de berço quando nasci, nem aconteceu nada assim romântico. Sou mesmo, realmente, o Príncipe Nicolau Obolovitch da Herzoslováquia.

— Oh, Anthony! — exclamou Virgínia. — Que formi­dável! E me casei com você! E agora, que vamos fazer?

— Vamos para a Herzoslováquia e fingimos ser rei e rainha. Jimmy McGrath disse certa vez que lá a média de vida de um rei ou rainha é de menos que quatro anos. Espe­ro que você não se importe.

— Me importar? — exclamou Virgínia. — Adorarei!

— Ela não é mesmo formidável? — murmurou Jimmy. E então, discretamente, sumiu dentro da noite. Alguns mi­nutos mais tarde, ouviu-se o barulho de um carro.

— Nada como deixar um homem fazer o seu próprio trabalho — disse Anthony com satisfação. — Além disso, eu não sabia como me livrar dele. Desde que nos casamos, não estive um minuto a sós com você.

— Vamos nos divertir muito — disse Virgínia — ensi­nando os bandoleiros a deixarem de ser bandoleiros, os assas­sinos a não assassinarem, e procurando erguer o nível mo­ral do país.

— Gosto de ouvir este idealismo puro — disse An­thony. — Faz-me sentir que o meu sacrifício não foi em vão.

— Tolice! — disse Virgínia calmamente. — Você bem que gostará de ser rei. Está em seu sangue. Você foi educado para este ofício, e tem aptidão natural para isso, tal como os encanadores têm para os encanamentos.

— Acho que eles nunca têm — disse Anthony. — Mas, que diabo, não vamos perder tempo falando em enca­nadores. Sabe que neste exato minuto eu deveria estar em importante conferência com Isaacstein e o velho Lollipop? Querem conversar a respeito de petróleo. Petróleo, meu Deus! Eles que esperem. Virgínia, lembra-se de quando lhe disse que tentaria tudo para fazer com que você me amasse?

— Lembro-me — respondeu Virgínia suavemente. — Mas o Superintendente Battle estava olhando da janela.

— Bem, mas agora ele não está — disse Anthony. Puxou-a subitamente para si, beijando-lhe as pálpebras, os lábios, seus cabelos dourados...

— Amo-a tanto, Virgínia — sussurrou. — Amo-a tan­to. Você me ama?

Baixou os olhos para ela, certo da resposta. A cabeça de Virgínia pousou em seu ombro, e muito baixo, em voz trêmula e meiga, ela respondeu:

— Nem um pouquinho!

— Diabrete! — exclamou Anthony, beijando-a de no­vo. — Agora, sei com certeza que a amarei até morrer...

 

Detalhes diversos

Cena — Chimneys, quinta-feira, onze horas da manhã.

Johnson, o policial, sem paletó, cavando.

Dominando o ambiente, algo semelhante ao clima emo­tivo de um funeral. Amigos e parentes à volta da sepultura que Johnson está cavando.

George Lomax tem o aspecto do beneficiário principal do testamento do falecido. O Superintendente Battle, com sua fisionomia impassível, parece entretanto satisfeito de que o funeral tenha sido tão bem organizado. Como empresário, isso representa crédito para si. Lorde Caterham acha-se com aquele olhar solene e chocado que assumem os ingleses no decurso de uma cerimônia religiosa.

Mr. Fish já não se enquadra tão bem na cena. Não é suficientemente solene.

Johnson, curvado em sua tarefa, subitamente endireita-se. Leve tumulto de excitação agita o ambiente.

— Assim chega, meu caro — diz Mr. Fish. — Preci­samos ter cuidado agora.

Percebe-se logo ser ele, realmente, o médico da família.

Johnson afasta-se. Mr. Fish, com a devida solenidade, inclina-se sobre a escavação. O cirurgião está a ponto de operar.

Extrai um pequeno pacote embrulhado em lona. Com muita cerimônia, entrega-o ao Superintendente Battle. Este último, por sua vez, entrega-o a George Lomax. A etiqueta exigida pela situação foi cuidadosamente cumprida.

George Lomax abre o pacote, corta o oleado que está dentro e desamarra o embrulho. Durante alguns instantes, segura algo na palma da mão, e então, rapidamente, amor-talha de novo o objeto em algodão. Limpa a garganta:

— Neste momento auspicioso — começa, com a elocução fácil do orador que tem prática.

Lorde Caterham retira-se precipitadamente. No terraço encontra a filha.

— Bundle, aquele seu carro está em ordem?

— Sim. Por quê?

— Leve-me então, imediatamente, para a cidade. Vou viajar para o exterior... hoje mesmo.

— Mas, papai...

— Não discuta comigo, Bundle. George Lomax disse-me, ao chegar hoje de manhã, que estava ansioso para ter uma conversa particular comigo sobre um assunto da máxi­ma delicadeza. Acrescentou que o rei de Timbuctu chegará dentro em breve a Londres. Bundle, está me ouvindo? Nem por cinqüenta George Lomax! Se Chimneys é um lugar assim tão valioso para a nação, que a nação o compre. Caso contrário, eu o venderei a um sindicato, que poderá trans­formá-lo em hotel.

— Onde está Codders agora? Bundle mostra-se à altura da situação.

— No momento — retorquiu Lorde Caterham, con­sultando o relógio — está servindo ao império, pelo menos durante quinze minutos.

Outro quadro.

Mr. Bill Eversleigh, que não fora convidado para a cerimônia fúnebre. Ao telefone.

— Não, realmente, quero dizer... isto é... Não seja assim tão sensível... Bem, você quer cear comigo hoje à noite?... Não, não estive. Estive trabalhando como um mouro. Você não faz idéia de como é Codders... Você sabe perfeitamente, Dolly, o que penso a seu respeito... Sabe que nunca liguei para ninguém, a não ser você... Sim, irei antes ao show. Como vão as piadas? E os Olhos trai­çoeiros? ...

Sons sinistros. Mr. Eversleigh tenta cantarolar o refrão da peça.

E a peroração de George chega agora ao final:

— ... a paz duradoura e a prosperidade do império britânico!

— Creio — disse Mr. Hiram Fish, sotto você para si mesmo e para quem quisesse ouvir — que esta foi uma grande pequena semana.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades