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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM ACIDENTE E OUTRAS HISTÓRIAS / Agatha Christie
UM ACIDENTE E OUTRAS HISTÓRIAS / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM ACIDENTE E OUTRAS HISTÓRIAS

 

       Um Acidente e Outras Histórias reúne contos de Agatha Christie nos quais a grande escritora conseguiu fixar toda a sua capacidade de imaginação, que lhe deu o indiscutível primeiro lugar na literatura policial deste século. O Chalé do Rouxinol, Uma Canção de Meio Xelim, Um Acidente, A Aventura de Anthony Eastwood, O Mistério da Regata, O Problema da Baía de Polenza, Os Iris Amarelos, Miss Marple Conta uma História, e No Fundo do Espelho são narrativas de diferentes dimensões, temas e atmosferas diversas, mas todas sintetizam admiravelmente a variedade criadora de Agatha Christie, a sua capacidade de prender o leitor do princípio ao final dos seus textos, na dúvida das soluções, que são sempre tão inteligentes e racionais quanto absolutamente imprevistas e emocionantes.

       Nesta obra da célebre escritora inglesa confluem assim, em síntese, todas as suas características inconfundíveis de originalíssima criadora de mistérios e problemas, que pela sua mão talentosa se deslindam sucessivamente perante a atenção e a ansiedade crescente do leitor.

 

                                 

 

O CHALÉ DO ROUXINOL

       — Até logo, querida.

       — Até logo, meu bem.

       Apoiada ao portãozinho rústico, Alix Martin acompanhou com o olhar o vulto do marido que se afastava na estrada em direção ao povoado. Logo perdeu-o de vista numa curva, mas ali permaneceu, na mesma posição, ajeitando distraidamente uma madeixa de seus belos cabelos castanhos que o vento desarranjara, o olhar distante e sonhador.

       Alix Martin não era bela, nem mesmo a rigor graciosa, porém o seu rosto, o rosto de uma mulher que já passara da primeira juventude, iluminara-se e suavizara-se, de tal forma que os seus antigos colegas de escritório dificilmente a reconheceriam. A Senhorita Alix King havia sido uma jovem eficiente, organizada, de maneiras um tanto secas, obviamente capaz, decidida.

       A vida fora dura para ela. Durante quinze anos, dos dezoito aos trinta e três, ganhara o seu sustento (e também, por sete anos desse período, o de uma mãe inválida) trabalhando como estenodatilógrafa. Fora a luta pela subsistência que endurecera as linhas suaves do seu rosto juvenil.

       Houvera romance, é verdade. Um romance muito discreto com Dick Windyford, um colega de escritório. Muito feminina, no íntimo, Alix sempre soubera, sem o deixar transparecer, que ele a amava. Aparentemente, porém, eram amigos e nada mais. Com o seu parco salário Dick ainda pagava os estudos de um irmão mais novo e não pudera, portanto, pensar em casamento.

       E então, súbita e imprevisivelmente, ela vira-se livre da faina diária. Uma prima distante de Alix falecera e deixara-lhe os bens, alguns milhares de libras, o bastante para proporcionar-lhe uma renda de umas poucas centenas de libras por ano. Para Alix era a liberdade, a vida, a independência. Agora ela e Dick não precisariam esperar mais.

       Porém a reação de Dick foi inesperada. Ele nunca lhe falara abertamente de amor, e agora parecia ainda menos inclinado a fazê-lo. Passou a evitá-la, mostrando-se irritadiço e taciturno, e Alix logo compreendeu a verdade: ela tornara-se uma mulher de posses e o orgulho e a dignidade de Dick impediam-no de se declarar.

       Ela não lhe quis menos bem por isso, e já estava cogitando em dar o primeiro passo quando pela segunda vez foi colhida pelo inesperado: conheceu Gerald Martin na casa de uma amiga, ele apaixonou-se violentamente por ela e no fim de uma semana estavam noivos. Alix, que sempre se considerara uma natureza racional, viu-se perdidamente enamorada.

       Sem querer, ela encontrara o meio de estimular o seu antigo amor. Dick Windyford viera procurá-la, chegando a gaguejar em sua cólera impotente.

       — O homem é para você um perfeito estranho! Você nada sabe sobre ele!

       — Sei que o amo.

       — Como pode saber? Numa semana?

       — Nem todos levam onze anos para descobrir que estão apaixonados por uma mulher! — exclamou Alix encolerizada.

       O rosto dele perdeu a cor.

       — Gosto de você desde que a conheci. Pensei que também gostava de mim.

       Alix foi honesta.

       — Eu também pensei — ela admitiu. — Mas isso foi antes de saber o que era o amor.

       Dick explodiu em súplicas, rogos e até mesmo ameaças — ameaças contra o homem que o suplantara. Alix ficou atônita ao descobrir o vulcão que existia sob o plácido exterior do homem que julgara tão bem conhecer.

       A cena voltou-lhe à mente na manhã ensolarada, enquanto ela se apoiava no portão do chalé. Estava casada há um mês e sua felicidade era idílica. Apesar disso, naquela momentânea ausência do marido que lhe era tão caro, uma leve ansiedade maculava sua felicidade perfeita. E a causa daquela ansiedade era Dick Windyford.

       Por três vezes desde o seu casamento, o mesmo sonho a perturbara. O cenário mudava, mas os fatos principais eram sempre os mesmos. Ela via o marido caído morto no chão aos pés de Dick Windyford, e sabia clara e distintamente que fora a mão deste que desferira o golpe fatal.

       Mas embora isto, em si, já fosse horrível, havia algo ainda mais pavoroso. Isto é, pavoroso ao despertar, pois no sonho tudo lhe parecia perfeitamente natural e inevitável. Ela, Alix Martin, sentia-se satisfeita com a morte do marido, estendia as mãos ao assassino e algumas vezes agradecia-lhe. O sonho terminava sempre da mesma maneira, com Dick Windyford apertando-a em seus braços.

      

       Alix nada dissera ao marido sobre o sonho, mas ficara mais perturbada do que gostaria de admitir. Seria o sonho uma advertência, uma advertência contra Dick Windyford?

       Ela foi despertada de seus devaneios pela campainha estridente do telefone no interior do chalé. Dirigiu-se para dentro e apanhou o fone. Às primeiras palavras seus joelhos cederam e ela encostou-se na parede.

       — Quem é mesmo que está falando?

       — Alix? O que há com a sua voz? Eu não a reconheci. É Dick.

       — Oh! — fez Alix. — Onde... onde você está?

       — No Brasão dos Viajantes. É esse o nome, não? Ou será que você não conhece o albergue do povoado? Estou de férias... vim pescar um pouco por aqui. Tem objeções a que eu dê uma passadinha para ver o feliz casal esta noite depois do jantar?

       — Tenho — atalhou Alix bruscamente. — Você não deve vir.

       Houve uma pausa, e então a voz de Dick, sutilmente alterada, fez-se ouvir novamente.

       — Desculpe — ele disse em tom formal. — Não os incomodarei, naturalmente.

       Alix interveio aflita. Ele deveria estar achando estranhíssimo o seu comportamento. E era mesmo estranho. Seus nervos deviam estar em péssimo estado.

       — Eu só quis dizer que... hoje à noite temos um compromisso — ela explicou tentando aparentar naturalidade. — Você... você não quer vir jantar conosco amanhã?

       Mas Dick evidentemente percebera a falta de cordialidade em sua voz.

       — Muito obrigado — ele retrucou no mesmo tom formal — mas devo viajar a qualquer momento. Só estou esperando um amigo. Adeus, Alix — ele hesitou por um momento e então acrescentou num tom diferente: — Desejo-lhe muitas felicidades, minha querida.

       Alix desligou o telefone com uma sensação de alívio.

       Ele não deve vir aqui, ela disse a si mesma. Ele não deve vir aqui. Ora, mas eu sou mesmo uma tola! Em que estado fiquei! Mesmo assim, ainda bem que ele não vem.

       Apanhou um rústico chapéu de palha que estava sobre a mesa e saiu. No jardim parou para contemplar as palavras entalhadas sobre a varanda: Chalé do Rouxinol.

       — Não acha esse nome muito pretensioso? — ela perguntara uma vez a Gerald antes do casamento.

       Ele rira.

       — Em Londres você nunca teve oportunidade de ouvir um deles cantar, não é? Ainda bem. Os rouxinóis só deviam cantar para casais apaixonados. Havemos de ouvi-los nas noites de verão em nosso próprio lar.

       Ao lembrar-se da ocasião em que ouvira pela primeira vez o canto da avezinha, Alix, em pé junto ao portão da casa, corou feliz.

       Fora Gerald quem encontrara o chalé. Procurara Alix vibrando de entusiasmo. Descobrira o lugar ideal para eles, uma preciosidade, uma jóia, uma oportunidade rara. Quando Alix o viu, também ficou encantada. É verdade que o local era muito isolado, a três quilômetros do povoado mais próximo, porém o chalé era delicioso com seu ar antiquado, banheiros confortáveis, aquecimento, luz elétrica e telefone, e ela sucumbira instantaneamente a seus encantos. Mas surgira um empecilho. O proprietário, um homem rico que reformara a casa com capricho, recusou-se a alugá-la. Só lhe interessava vender.

       Embora possuísse uma boa renda, Gerald Martin não podia tocar no capital. Poderia obter no máximo mil libras e o proprietário do chalé queria três mil. Porém Alix, que se encantara pela casa, foi em auxílio do noivo. Seus bens, ações ao portador, eram facilmente conversíveis em dinheiro; ela poderia vender metade para a compra da casa. E assim o Chalé do Rouxinol era seu agora, e nunca, nem por um segundo, lamentara a sua decisão. É certo que os criados não apreciavam a paz campestre, e na verdade não tinham nenhum no momento, mas Alix, que ansiara por uma vida doméstica, sentia um grande prazer em preparar com esmero as pequenas refeições e cuidar da casa. Duas vezes por semana, um velho do povoado vinha tratar do jardim colorido no momento por magníficos canteiros de flores.

       Ao chegar ao canto da casa, Alix espantou-se ao ver o velho jardineiro debruçado sobre umas folhagens. Surpreendeu-se pois ele costumava trabalhar às segundas e sextas e aquela era uma quarta-feira.

       — Olá, George, o que está fazendo por aqui? — ela perguntou aproximando-se.

       O velho levantou-se com um sorriso levando a mão à aba do antiquado boné.

       — Eu sabia que a senhora ia ficar espantada, dona, mas acontece que vai ter uma festa de aniversário na sexta-feira, e eu disse pra mim mesmo: “Aposto que o Sr. Martin e a sua boa senhora não se vão importar se eu for na quarta em vez da sexta.”

       — Não tem mesmo importância — anuiu Alix. — Espero que se divirta na festa.

       — Eu pretendo — replicou George com simplicidade. — É ótimo a gente poder comer à vontade quando não é a gente que paga. A mesa de chá é sempre muito farta nas festas do meu senhorio. Mas vim também porque pensei que era bom falar com a senhora antes que fosse embora para saber o que vou plantar nos canteiros. A dona não sabe quando vai voltar, não é?

       — Eu? Mas não vou a lugar nenhum!

       George olhou-a espantado.

       — Então não vai para Londres amanhã?

       — Não. Quem lhe deu semelhante idéia?

       George indicou o povoado com o queixo.

       — Encontrei o patrão no povoado ontem. Ele me disse que ia com a senhora para Londres amanhã e não tinha certeza de quando ia voltar.

       — Que tolice! — retrucou Alix rindo. — Você deve tê-lo entendido mal.

       Mesmo assim ela se perguntou o que teria dito Gerald para que o velho tirasse uma conclusão tão curiosa. Ela nunca mais queria pôr os pés em Londres.

       — Eu detesto Londres! — exclamou subitamente com ênfase.

       — Ah! Bem, devo ter entendido mal — tornou George placidamente — mas me pareceu que foi isso mesmo que ele disse. Mas fico satisfeito que a senhora fique por aqui. Ninguém pára mais quieto hoje em dia, e não sei qual é a graça que Londres tem. Eu nunca precisei ir lá. O problema é que hoje tem carros demais. Depois que alguém compra um carro não consegue mais ficar parado num lugar só. O Sr. Ames, o antigo dono dessa casa, era um homem muito pacato até que comprou um carro. Não passou um mês e ele pôs o chalé à venda. E olhe que ele gastou aqui um bocado de dinheiro, com água quente em toda a parte, luz elétrica e tudo o mais. Eu disse pra ele: “O senhor nunca mais vai ver a cor do seu dinheiro”, mas ele respondeu: “essa casa vale fácil duas mil libras”. E olhe que tinha razão.

       — Ele obteve três mil — tornou Alix sorrindo.

       — Duas mil — teimou George. — Isso foi muito comentado na ocasião.

       — Na realidade foram três mil — insistiu Alix.

       — As mulheres sempre fazem confusão com números — replicou George pouco convencido. — A dona não me vai dizer que o Sr. Ames teve a coragem de dizer na sua cara que queria três mil libras por essa casa?

       — Não foi a mim que ele disse, foi a meu marido.

       George abaixou-se e tornou a se ocupar do canteiro.

       — Ele vendeu por duas mil libras — repetiu obstinadamente.

      

       Alix não insistiu. Dirigiu-se a um canteiro mais afastado e começou a colher uma braçada de flores. Ia voltando para casa com uma perfumada carga quando viu um pequeno objeto verde escuro caído entre a folhagem. Abaixou-se. Era a agenda de bolso do seu marido.

       Ela folheou as páginas com um sorriso divertido. Logo nos primeiros dias do casamento percebera que o seu emotivo e impulsivo Gerald era, estranhamente, metódico e ordeiro. Fazia uma questão extremada de que as refeições obedecessem a um horário rígido e planejava com antecedência e precisão todas as suas atividades.

       Folheando a agenda, sorriu ao ver que no dia 14 de maio ele anotara: “Casar com Alix, St. Peter, 2h30min.”

       Mas que grande bobo, murmurou Alix virando as páginas. Súbito deteve-se,

       — Quarta-feira, 18 de junho. Ora, é hoje!

       No espaço reservado para aquele dia, Gerald escrevera em sua caligrafia precisa e legível: “21 horas”. Mais nada. O que Gerald pretendia fazer às nove da noite, perguntou-se Alix. Sorriu ao pensar que num romance aquele diário teria certamente revelado algum segredo perigoso e sem dúvida conteria o nome de outra mulher. Folheou o caderninho distraidamente. Datas, compromissos, referências a transações comerciais, mas um só nome de mulher — o dela.

       Alix guardou a agenda no bolso. Ao dirigir-se para casa com as flores, entretanto, assaltou-a uma leve inquietação. As palavras de Dick Windyford soaram a seus ouvidos como se ele estivesse ali, a seu lado: “Esse homem é para você um perfeito estranho! Você nada sabe sobre ele!”

       Era verdade. O que sabia ela sobre Gerald? Afinal ele tinha quarenta anos. Deve ter existido outras mulheres em sua vida.

       Alix afastou com impaciência esses pensamentos. Não podia se perder em conjecturas, tinha um problema mais premente para resolver. Devia ou não contar ao marido que Dick Windyford telefonara?

       Sempre havia a possibilidade de que Gerald o encontrasse casualmente no povoado. Mas neste caso, com certeza, ele mencionaria o fato quando voltasse, e o problema estaria resolvido. Caso contrário, o que faria? Alix sentiu uma nítida inclinação a deixar as coisas como estavam.

       Se contasse ao marido, certamente ele sugeriria que convidassem Dick Windyford para o Chalé do Rouxinol, e ela teria de explicar que o próprio Dick se convidara e ela recorrera a um pretexto para mantê-lo afastado. E o que diria quando Gerald perguntasse o motivo? Ele riria se lhe contasse o sonho, ou, pior ainda, perceberia a importância que o sonho tinha para ela. Por fim, um tanto envergonhada, Alix resolveu não dizer nada. Aquele era o primeiro segredo que se interpunha entre ela e o marido, e a idéia a constrangia.

      

       Ao ouvir os passos de Gerald voltando do povoado pouco antes do almoço, Alix correu para a cozinha e fingiu estar ocupada no fogão para esconder a sua perturbação. Logo se tornou evidente que Gerald não vira Dick Windyford. Ela sentiu-se ao mesmo tempo aliviada e envergonhada, pois via-se agora obrigada a conservar em segredo o telefonema.

       Só à noite, depois de uma ceia simples e frugal, quando estavam sentados na sala de estar com o teto cortado por vigas de carvalho e as janelas abertas para o ar noturno docemente perfumado pelas malvas e goivos do jardim, foi que Alix se lembrou da agenda.

       — Olhe o que eu encontrei num dos canteiros — disse atirando a caderneta no colo do marido.

       — Devo tê-la deixado cair quando estava regando as plantas.

       — É, e agora conheço todos os seus segredos...

       — Não tenho segredos — retrucou Gerald sacudindo a cabeça.

       — Não? E quanto ao compromisso para hoje às nove horas?

       — Ora, isso... — por um momento ele pareceu desconcertado, mas então sorriu como se estivesse achando algo muito engraçado, e acrescentou: — Tenho um compromisso com uma mulher muito bonita, Alix. Tem olhos azuis e cabelos castanhos, e se parece muito com você.

       — Acho que está fugindo do assunto — tornou Alix com fingida severidade.

       — Não estou, não. Para falar a verdade, era um lembrete para revelar um filme hoje à noite. E quero a sua ajuda.

       Gerald Martin era um aficionado da fotografia. Possuía uma máquina fotográfica um tanto antiquada, mas com lentes excelentes, e revelava seus próprios filmes numa câmara escura que improvisara na pequena adega.

       — E esta tarefa tem de ser executada precisamente às vinte e uma horas — disse Alix caçoando levemente do marido.

       Gerald ficou um tanto agastado.

       — Minha querida — retrucou com um leve toque de impaciência. — Se sempre planejássemos tudo com precisão, levaríamos todas as nossas tarefas a bom termo.

       Alix ficou em silêncio alguns momentos fitando o marido que fumava. A sua cabeça morena apoiada no encosto da poltrona estava virada para o teto, e o queixo escanhoado de contornos precisos destacava-se contra o fundo escuro. Subitamente, sem saber o motivo, viu-se envolvida por uma onda de pânico e exclamou, antes de poder controlar-se:

       — Oh, Gerald! Gostaria de conhecê-lo melhor!

       O marido voltou o rosto espantado para ela.

       — Mas, minha cara Alix! Você já sabe tudo sobre mim. Contei-lhe sobre minha infância em Northumberland, sobre minha vida na África do Sul e esses últimos dez anos no Canadá onde obtive sucesso.

       — Ora, negócios! — atalhou Alix.

       Gerald soltou uma súbita gargalhada.

       — Sei o que está procurando: casos de amor, não é? Vocês mulheres são todas iguais. Só estão interessadas no elemento pessoal, na vida íntima.

       Alix sentiu a garganta seca, mas insistiu, hesitante:

       — Bem, mas deve ter havido outras mulheres... Se ao menos eu soubesse...

       Novo silêncio caiu entre eles. Gerald Martin franziu a testa com uma expressão indecisa. Quando tornou a falar seu tom era grave, sem traços do tom trocista de há pouco:

       — Alix, você está parecendo a última esposa do Barba-Azul. Considera sensata essa atitude? Existiram mulheres na minha vida, sim. Não vou negar, nem me acreditaria se negasse, mas posso lhe jurar que nenhuma delas significou coisa alguma para mim.

       Suas palavras tinham uma aura de sinceridade que confortou a esposa.

       — Está satisfeita, Alix? — tornou Gerald com um sorriso fitando-a com um ar curioso. — O que lhe despertou esses pensamentos desagradáveis, logo essa noite?

       Ela levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

       — Não sei — replicou. — Estive nervosa o dia inteiro.

       — Estranho — disse Gerald baixinho, como se falasse consigo mesmo. — Muito estranho.

       — Por que acha que é estranho?

       — Ora, minha querida, não se zangue. Achei estranho apenas porque você é sempre tão meiga e calma.

       Alix deu um sorriso forçado.

       — Hoje tudo parecia estar conspirando para me irritar — ela confessou. — Até o velho George pôs na cabeça a idéia ridícula que íamos embora para Londres, e disse-me que foi você quem lhe contou isso.

       — Onde esteve com ele? — inquiriu George em tom abrupto.

       — Ele veio trabalhar hoje em vez de sexta-feira.

       — Velho idiota! — rosnou Gerald encolerizado.

       Alix fitou-o surpresa. O rosto do marido estava convulsionado de raiva. Nunca o vira assim tão irritado. Vendo a sua surpresa, Gerald esforçou-se para recuperar o controle.

       — Bem, mas ele é mesmo um velho tolo — ele protestou.

       — O que lhe disse para lhe dar tal impressão?

       — Eu? Eu não disse nada. Pelo menos... Oh, sim, agora me lembro. Fiz um gracejo qualquer a respeito de ir a pé até Londres amanhã e ele deve ter-me tomado ao pé da letra. Ou talvez tenha ouvido mal. Você esclareceu-o, naturalmente, não?

       Olhou-a, ansioso pela resposta.

       — Sim, mas ele é aquele tipo de velho que quando mete uma idéia na cabeça... Bem, não a tira de lá tão facilmente.

       Alix falou-lhe então sobre a teimosia de George a respeito do preço do chalé.

       Gerald ficou em silêncio alguns momentos antes de responder com vagar:

       — Ames estava disposto a receber duas mil libras à vista e mil parceladas, ficando a casa hipotecada. Deve ser esta a origem da confusão.

       — É bem provável — concordou Alix e levantando os olhos para o relógio acrescentou em tom zombeteiro: — Já deveríamos estar lá embaixo, Gerald. Você já está atrasado cinco minutos.

       Um sorriso estranho passou pelos lábios de Gerald Martin.

       — Mudei de idéia — disse lentamente. — Não revelarei as fotografias esta noite.

       Coisa curiosa é a mente de uma mulher. Ao deitar-se aquela noite, Alix estava tranqüila e satisfeita. Sua felicidade momentaneamente ameaçada reafirmara-se triunfante. Porém, ao anoitecer do dia seguinte compreendeu que forças sutis tentavam solapá-la. Dick Windyford não tornara a telefonar, mas influências que Alix julgava procederem dele atuavam sobre a sua mente. Ouvia a intervalos as suas palavras: “O homem é para você um perfeito estranho... Nada sabe sobre ele.” E logo sobrepunha-se a imagem do marido, nítida como uma fotografia, dizendo: “Você está parecendo a última esposa do Barba-Azul. Considera sensata essa atitude?” Por que ele dissera isso?

       Suas palavras ocultavam uma advertência, quase uma ameaça. Era como se tivesse dito: “É melhor não se intrometer em minha vida, Alix. Pode levar um choque tremendo.”

       Pela manhã de sexta-feira Alix convencera-se de que houvera uma mulher na vida de Gerald, um quarto de Barba-Azul que ele tentava cuidadosamente ocultar-lhe. Seu ciúme, lento no despertar, era agora violento.

       Aquele compromisso para as nove horas seria um encontro com uma mulher? Seria aquela história de revelação apenas uma inspiração de momento?

       Três dias antes ela teria jurado que conhecia profundamente o marido. Agora este se lhe afigurava um estranho de quem nada sabia. Lembrou-se de sua ira insensata contra o velho George, tão em desacordo com o seu habitual bom-humor. Um pequeno detalhe, um fato isolado, talvez, mas que mostrava que ela não conhecia realmente o homem que era seu marido.

       Na tarde da sexta-feira, Alix constatou a falta de vários pequenos artigos em sua cozinha e sugeriu ao marido que continuasse entretido no jardim enquanto iria ao povoado fazer compras. Para sua surpresa, Gerald opôs-se violentamente a esse plano, e insistiu para que ela ficasse em casa. Ele próprio iria ao povoado. Alix viu-se obrigada a ceder, mas a insistência do marido espantou-a e alarmou-a. Por que estaria ele tão ansioso em evitar que ela fosse às compras?

       Súbito ocorreu-lhe uma explicação que elucidaria por completo a questão: seria possível que Gerald, sem lhe dizer nada, houvesse encontrado Dick Windyford? Seu ciúme, adormecido na época do casamento, só despertara mais tarde. E se acontecera o mesmo a Gerald? Não estaria o marido ansioso para impedi-la de rever Dick Windyford? Essa hipótese ajustava-se tão bem aos fatos, e era tão tranqüilizadora para o espírito perturbado de Alix, que ela a acolheu com entusiasmo.

       Entretanto a hora do chá veio encontrá-la inquieta e angustiada, lutando contra um impulso que a perseguia desde a saída de Gerald. Por fim, tranqüilizando a consciência com o pretexto de que o aposento precisava de uma boa arrumação, dirigiu-se ao quarto de vestir do marido, levando um pano de pó para manter a ilusão de domesticidade.

       Se ao menos eu tivesse a certeza, ela pensava. Se ao menos eu pudesse ter a certeza...

       Em vão tentou convencer-se de que o marido teria destruído há muito tempo qualquer indício comprometedor. Sua mente argumentava que às vezes os seres humanos conservavam as provas mais perigosas e conclusivas apenas por um sentimentalismo exagerado.

       Por fim, Alix sucumbiu à tentação. Com as faces rubras de vergonha, ofegante, revolveu maços de cartas e documentos, revirou as gavetas e até examinou os bolsos do marido. Só duas gavetas lhe escaparam: a gaveta inferior da cômoda e uma gavetinha à direita da escrivaninha. As duas estavam trancadas. Mas Alix perdera agora todo o escrúpulo, convicta de que numa dessas gavetas encontraria provas da existência dessa mulher imaginária do passado que a obcecava. Lembrou-se de que Gerald deixara suas chaves jogadas displicentemente sobre a mesa da sala. Desceu para apanhá-las e começou a experimentá-las, uma a uma. A terceira chave abriu a gaveta da escrivaninha. Alix puxou-a com ansiedade. Deparou com um talão de cheques, uma carteira cheia de notas e um pequeno maço de cartas preso com uma fita adesiva.

       Com a respiração irregular, Alix desprendeu a fita. Nova onda de rubor subiu-lhe às faces. Deixou cair as cartas na gaveta, fechando-a à chave. As cartas eram suas, cartas que escrevera a Gerald Martin antes do casamento.

       Ergueu-se e dirigiu-se à cômoda, mais por uma questão de levar a busca até o fim do que pela esperança de encontrar alguma coisa, porém descobriu desapontada que nenhuma das chaves de Gerald ajustava-se à fechadura da gaveta. Sem se dar por vencida, Alix correu os outros quartos e reuniu uma coleção de chaves. Para sua satisfação, a chave do armário do quarto de hóspedes ajustou-se à fechadura da cômoda. Dando volta à chave, ela abriu a gaveta. Nada havia ali senão um velho rolo de recortes de jornais sujos e descorados pelo tempo.

       Alix respirou aliviada. Todavia relanceou a vista pelos recortes com curiosidade em saber o que Gerald achara tão interessante naqueles papéis empoeirados. Quase todos eram recortes de jornais americanos de sete anos atrás, acerca do julgamento do célebre escroque Charles Lemaitre. Suspeitavam de que este assassinara suas vítimas, pois fora encontrado um esqueleto feminino sob o piso de uma das casas que alugara, e a maior parte de suas “esposas” desaparecera.

       Um dos mais talentosos advogados dos Estados Unidos defendera-o da acusação com consumada perícia. O veredicto da legislação escocesa “não há provas” seria o mais adequado ao caso, mas na América ele fora declarado inocente da acusação principal, embora sentenciado a uma longa pena devido aos outros crimes que lhe foram imputados.

       Alix recordava-se da celeuma gerada pelo caso na época e da sensação que a fuga de Lemaitre acarretara cerca de três anos depois. Na ocasião os jornais ingleses haviam debatido exaustivamente a personalidade do criminoso e a extraordinária fascinação que exercia sobre as mulheres, comentando a sua excitabilidade no tribunal, seus veementes protestos de inocência e seus súbitos desfalecimentos provocados por uma deficiência cardíaca, mas que os desavisados atribuíam a seu evidente talento dramático.

       Um dos recortes trazia um retrato do homem. Alix examinou-o interessada. O rosto de erudito com uma barba longa e tratada fazia-lhe lembrar alguém. Quem? Súbito, com um choque, compreendeu. O homem do retrato parecia-se com Gerald. Talvez por isso ele houvesse guardado os recortes. Correu os olhos pelo parágrafo sob a fotografia. O acusado possuía uma agenda em que anotara certas datas, e a promotoria afirmava que essas datas assinalavam os assassinatos de suas vítimas. Uma das testemunhas, uma mulher; identificara o prisioneiro por uma verruga no pulso esquerdo, logo abaixo da palma da mão.

       Alix deixou cair o recorte, presa de uma vertigem. No pulso esquerdo, logo abaixo da palma, seu marido tinha uma pequena cicatriz...

       O quarto rodou à sua volta. Mais tarde achou estranho que de imediato houvesse adquirido a firme convicção de que Gerald Martin era Charles Lemaitre, mas aceitou a idéia num relâmpago. Fatos esparsos rodopiaram em seu cérebro para encaixar-se como peças de um quebra-cabeças.

       A compra da casa fora realizada com o seu dinheiro, somente com o seu dinheiro resultante da venda das ações ao portador que confiara a Gerald. Compreendeu então o verdadeiro significado do seu sonho. Nas profundezas de sua mente o seu subconsciente sempre temera Martin e desejara fugir dele, e esta parte do seu ser procurara auxílio em Dick Windyford. Fora por isso que pudera aceitar a verdade tão facilmente, sem dúvidas ou hesitações. Ela deveria ser mais uma das vítimas de Lemaitre, em um futuro muito próximo, talvez...

       Uma exclamação escapou-lhe dos lábios. Quarta-feira, 21 horas. O porão, com as lajes tão fáceis de remover! Já uma vez ele enterrara uma de suas vítimas num porão. Ele planejara o novo crime para a noite de quarta-feira... Mas anotar a hora de antemão de forma tão metódica era ato de um louco! Não, era apenas lógico. Gerald sempre anotara seus compromissos, e um assassinato para ele deveria ser apenas um assunto comercial.

       Porém, o que a salvara? O que poderia tê-la salvo? Gerald apiedara-se dela no último instante? Não. A resposta ocorreu-lhe instantaneamente: o velho George.

       Compreendia agora a cólera incontida do marido. Sem dúvida ele preparara o caminho dizendo a todos que encontrara que no dia seguinte partiriam para Londres. E então George viera trabalhar inesperadamente, falara-lhe sobre a viagem, e ela negara tal plano. Seria demasiado arriscado matá-la naquela mesma noite, pois o velho jardineiro poderia repetir a conversa. Ela escapara por pouco. Se não tivesse mencionado acidentalmente aquela conversa trivial... Alix estremeceu.

       Não havia tempo a perder. Precisava fugir logo dali, antes que ele voltasse. Recolocou apressadamente os recortes na gaveta, fechou-a e trancou-a à chave.

       Nesse momento imobilizou-se, petrificada. Ouvira o rangido peculiar do portãozinho do jardim. Seu marido estava de volta.

       Por uns instantes Alix ficou paralisada. Com esforço dirigiu-se furtivamente para a janela e espiou por trás das cortinas.

       Sim, era o marido. Gerald sorria e cantarolava uma canção. Na mão trazia um objeto que quase fez parar o coração da aterrorizada Alix. Uma pá, nova em folha.

       Seu instinto avisou-a: Seria aquela noite...

       Entretanto restava-lhe ainda uma chance. Sempre cantarolando o marido dirigira-se para os fundos da casa. Sem hesitar um momento, ela desceu correndo as escadas e atravessou a varanda. Mas ao chegar ao jardim viu o marido na outra extremidade da casa.

       — Olá! — disse ele. — Aonde vai com tanta pressa?

       Alix esforçou-se desesperadamente para aparentar calma e tranqüilidade. Perdera aquela oportunidade, mas poderia ter outra se não despertasse as suspeitas dele. Até mesmo agora, talvez...

       — Ia dar uma volta até o fim da alameda — ela respondeu numa voz que a seus próprios ouvidos soou hesitante e insegura.

       — Ótimo — retorquiu Gerald. — Vou com você.

       — Não... por favor, Gerald. Estou... nervosa, com dor de cabeça. Prefiro ir sozinha.

       Ele fitou-a demoradamente. Alix julgou ver a suspeita infiltrar-se em seu olhar.

       — O que há com você, Alix? Está pálida, trêmula.

       — Não há nada — ela atalhou propositadamente ríspida. — É só uma dor de cabeça. O passeio me fará bem.

       — Está certo, mas não adianta dizer que não quer a minha companhia — declarou Gerald com seu sorriso fácil. — Eu vou, quer você queira, quer não.

       Ela não ousou mais protestar. Se ele suspeitasse que sabia...

       Com esforço conseguiu recobrar parte de sua calma habitual. Tinha porém a inquietante sensação que ele a observava, não de todo satisfeito. Sentia que não conseguira afastar completamente as suas suspeitas.

       Quando voltaram à casa, ele insistiu para que ela se deitasse e trouxe água-de-colônia para banhar-lhe as têmporas. Portava-se como o marido dedicado de sempre. Alix sentiu-se tão desamparada e indefesa como se tivesse os pés e as mãos amarrados.

       Não a deixou só nem por um minuto. Acompanhou-a à cozinha e ajudou-a a colocar na mesa os pratos frios já preparados. A garganta dela contraía-se a cada passagem do alimento, mas forçou-se a cear e a aparentar alegria e naturalidade. Sabia agora que estava lutando por sua vida. Estava sozinha com aquele homem, a quilômetros do auxílio mais próximo, totalmente à sua mercê. Sua única chance era afastar-lhe as suspeitas para que a deixasse só alguns momentos, apenas o suficiente para alcançar o telefone no vestíbulo e pedir socorro. Era a sua única esperança agora. Sentiu um alento passageiro ao lembrar-se de que ele já adiara seus planos uma vez. E se ela lhe dissesse que Dick Windyford viria vê-los naquela noite?

       As palavras já se atropelavam em seus lábios quando resolveu silenciar. Ele não deixaria que seus planos fossem frustrados uma segunda vez. Sua calma ocultava uma determinação, um júbilo, que a apavorava. Se falasse iria precipitar os acontecimentos. Ele a mataria ali mesmo e serenamente telefonaria a Dick inventando qualquer história a respeito de ter de se ausentar inesperadamente. Ah! Se ao menos Dick Windyford estivesse a caminho do chalé... Se Dick...

       Uma idéia repentina ocorreu-lhe. Lançou um rápido olhar ao marido como se temesse que ele pudesse ler seus pensamentos. Com a formação de um plano sua coragem revigorou-se. Seu comportamento tornou-se tão natural que ela mesma se surpreendeu.

       Preparou o café e levou-o à varanda onde costumava sentar-se nas noites quentes.

       — Ah, Alix — disse Gerald, — vamos revelar aqueles filmes essa noite.

       Um arrepio percorreu-lhe a espinha, porém ela conseguiu retrucar com aparente indiferença:

       — Precisa mesmo de minha ajuda? Estou muito cansada hoje.

       — É coisa rápida — ele replicou com um sorriso. — Prometo-lhe que não se sentirá mais cansada depois.

       Essas palavras pareciam diverti-lo. Alix estremeceu. Tinha de executar o seu plano. Era agora ou nunca. Levantou-se.

       — Vou telefonar para o açougueiro — ela declarou com naturalidade. — Não precisa se levantar.

       — Para o açougueiro? A esta hora da noite?

       — Sei que o açougue está fechado, seu bobo. Mas ele deve estar em casa e quero que me traga umas costelas de vitela bem cedo, antes que alguém as compre. Ele é um amor de velhinho. Faz qualquer coisa por mim.

       Ela dirigiu-se para o vestíbulo com passos rápidos e fechou a porta às suas costas. Ainda ouviu Gerald dizer:

       — Não feche a porta.

       Ela replicou no mesmo instante.

       — Não quero que as mariposas entrem. Detesto mariposas. Está com receio de que eu vá namorar o açougueiro, querido?

       Ela apanhou o fone e pediu o número do Brasão dos Viajantes. Fizeram a ligação instantaneamente.

       — O Sr. Windyford ainda está aí? Posso falar com ele?

       Seu coração deu um salto. Aterrorizada viu a porta se abrir e o marido entrar no vestíbulo.

       — Ei, não fique aqui, Gerald — ela disse com uma careta. — Não gosto que ouçam as minhas conversas ao telefone.

       Ele limitou-se a rir e deixou-se cair numa cadeira.

       — Tem certeza de que está telefonando para o açougueiro?

       Alix desesperou-se. Seu plano falhara. Num minuto Dick estaria no telefone. Deveria arriscar tudo e chamar por socorro?

       Então, enquanto nervosamente ligava e desligava o pequeno interruptor que permitia que a sua voz fosse ou não ouvida na outra extremidade, um outro plano ocorreu-lhe à mente.

       Não será fácil, ela pensou. Terei de me controlar, dizer as palavras certas sem hesitar um instante. Mas acho que é possível. Tem de ser possível.

       Naquele momento ouviu a voz de Dick Windyford do outro lado. Alix respirou fundo. Ligou o interruptor com dedos firmes e falou :

       — Aqui é a Sr.a Martin do Chalé de Rouxinol. Por favor, venha (ela desligou o interruptor) amanhã de manhã com seis costeletas bem bonitas de vitela (ela tornou a ligar o interruptor). É muito importante (desligou-o). Muito obrigada, Sr. Hexworthy. Espero que o meu telefonema a essa hora não o tenha incomodado, mas essas costeletas são realmente (ligou o interruptor) uma questão de vida ou morte (desligou-o). Sim, é isso mesmo. Amanhã de manhã (ela tornou a ligar) o mais cedo possível.

       Ofegante, ela recolocou o fone no gancho e virou-se para o marido.

       — Então é assim que conversa com o seu açougueiro, é?

       — É o que eu chamo de “toque feminino” — retrucou Alix brejeiramente.

       Mal podia conter sua excitação. Gerald não suspeitara de nada. Dick viria, mesmo sem compreender.

       — Não gostei muito daquele café que você me deu — queixou-se Gerald. — Estava muito amargo.

       — É uma marca nova. Comprei para experimentar. Mas se não gostou, voltarei ao antigo.

       Alix apanhou o seu trabalho de tapeçaria e começou a bordar. Gerald leu algumas páginas do seu livro. Por fim, levantou os olhos para o relógio e largou o livro.

       — São oito e meia. É uma boa hora para irmos ao porão concluirmos a nossa tarefa.

       O bordado escapou das mãos de Alix.

       — Ah, ainda não. Vamos esperar até às nove.

       — Não, querida. Eu marquei para as oito e meia. Você poderá ir deitar-se mais cedo.

       — Prefiro esperar até às nove.

       — Você sabe que quando estabeleço um horário, sigo-o rigidamente. Venha, Alix. Não vou esperar nem mais um minuto.

       Alix olhou para ele. Sem querer uma onda de terror a imobilizou. Ele arrancara a máscara. Suas mãos crispavam-se, seus olhos brilhavam de excitação, passava e repassava a língua pelos lábios secos. Não se esforçava mais para ocultar a excitação.

       É verdade, ele não pode esperar, parece um louco, pensou ela.

       O marido aproximou-se dela e, segurando-a pelos ombros, fê-la levantar-se.

       — Vamos querida, ou vou carregá-la até lá.

       Seu tom era brincalhão, mas ocultava uma indisfarçada ferocidade que a aterrorizava. Com um supremo esforço ela libertou-se e encostou-se à parede. Estava indefesa. Não podia escapar, não podia fazer nada.

       — Vamos agora, Alix — ele insistiu.

       — Não, não!

       Ela gritara com as mãos estendidas numa tentativa inútil de mantê-lo à distância.

       — Pare! Gerald... tenho algo para lhe dizer... algo para confessar...

       Ele deteve-se.

       — Para confessar? — perguntou curioso.

       — Sim, para confessar.

       Escolhera as palavras a esmo. Agora teria de continuar, lutando desesperadamente para conservar sua atenção.

       O rosto dele assumiu uma expressão de desprezo.

       — Um antigo amante, suponho — disse ele com ironia.

       — Não — retrucou Alix. — É uma outra coisa. Você a classificaria como... um crime.

       Viu imediatamente que escolhera as palavras certas. Conseguira interessá-lo. Recuperou seu sangue-frio, sentindo mais uma vez que estava no controle da situação.

       — É melhor sentar-se — ela acrescentou com tranqüilidade, e atravessando a sala sentou-se em sua velha poltrona e até mesmo apanhou o bordado. Mas por trás de seu ar calmo, os pensamentos atropelavam-se febrilmente. Teria de inventar uma história que prendesse o interesse do marido até que o socorro chegasse.

       — Contei-lhe que fui durante quinze anos uma estenodatilógrafa — ela começou lentamente. — Isto não é toda a verdade. Esse período foi interrompido por duas vezes. A primeira foi quando eu tinha vinte e dois anos. Conheci um homem já idoso com alguns bens. Ele apaixonou-se por mim e pediu-me em casamento. Aceitei. Casamo-nos — Alix fez uma pausa. — Então pedi-lhe que fizesse um seguro de vida em meu favor.

       Ela notou o súbito aumento de interesse no rosto do marido e prosseguiu com uma confiança renovada.

       — Durante a guerra trabalhei algum tempo num hospital. Tinha a meu cargo a manipulação de todas as drogas raras e dos venenos.

       Ela calou-se, observando-o. Ele estava profundamente interessado agora. Assassinato era assunto atraente para um assassino. Ela arriscara tudo naquela cartada, e ganhara. Lançou um olhar ao relógio. Eram vinte e cinco para as nove.

       — Existe um certo veneno, um pozinho branco de aspecto inofensivo. Uma única pitada significa morte. Conhece alguma coisa a respeito de veneno?

       A pergunta ocultava uma certa ansiedade. Se a resposta fosse afirmativa ela teria de ser muito cuidadosa.

       — Não — respondeu Gerald. — Sei muito pouco sobre o assunto.

       Ela respirou aliviada.

       — Mas certamente já ouviu falar em hioscina, não? Pois este veneno a que me refiro atua de forma semelhante, mas não deixa nenhum vestígio. Qualquer médico diria que a morte foi causada por colapso cardíaco. E eu roubei uma pequena quantidade dele, e o guardei.

       Ela fez nova pausa, reunindo suas forças.

       — Prossiga — disse Gerald.

       — Não, estou com medo. Não lhe posso dizer. Talvez um outro dia.

       — Agora — ele ordenou impaciente. — Quero saber.

       — Bem, já estávamos casados há um mês. Fui muito atenciosa com o meu marido, muito carinhosa e dedicada. Ele só se referia a mim elogiosamente. Todos os vizinhos sabiam que eu era uma esposa modelo. Eu preparava o seu café todas as noites. Certa noite, quando não havia mais ninguém em casa, coloquei uma pitada desse alcalóide mortal em sua xícara...

       Alix calou-se e enfiou a linha na agulha. Ela que nunca pisara num palco em toda a sua vida, rivalizava nesse momento com a maior atriz do mundo. Vivia com maestria o papel de uma assassina sem escrúpulos.

       — Tudo correu tranqüilamente. Fiquei sentada observando-o. Sua respiração tornou-se difícil e ele pediu mais ar. Abri a janela. Mas ele não conseguiu mais se mover. Dali a pouco, morreu.

       Calou-se com um sorriso nos lábios. Faltava um quarto para as nove. Eles deviam estar chegando.

       — De quanto foi o seguro? — perguntou Gerald.

       — Cerca de duas mil libras. Mas joguei na Bolsa e perdi. Voltei ao trabalho do escritório, mas sem intenções de ficar ali muito tempo. Conheci então outro homem. Eu conservara meu nome de solteira e ele não descobriu que eu havia sido casada. Era um homem mais novo, atraente e cheio de vida. Tivemos um casamento rápido em Sussex. Ele não quis fazer seguro de vida, mas fez um testamento em meu favor. Gostava que eu mesma preparasse o seu café, assim como o meu primeiro marido.

       Alix sorriu com um ar pensativo e acrescentou com simplicidade.

       — O meu café é muito bom.

       Prosseguiu:

       — Fiz muitos amigos no povoado onde morávamos. Todos tiveram muita pena de mim quando o meu marido faleceu subitamente de colapso cardíaco. Só não gostei do médico. Não que ele suspeitasse de mim, mas a morte repentina de meu marido o surpreendeu muitíssimo. Não sei bem porque voltei para o escritório. Provavelmente foi o hábito. Meu segundo marido deixou-me quatro mil libras. Desta vez apliquei bem o meu dinheiro. Foi então que...

       Mas não pôde continuar. Gerald Martin, com o rosto congestionado, ofegante, engasgado, apontava para ela o indicador trêmulo.

       — O café!... Meu Deus! O café!

       Ela ficou olhando para ele.

       — Agora sei porque estava amargo! Você é um demônio! E este é mais um dos seus truques!

       Suas mãos convulsas agarraram os braços da cadeira. Estava prestes a jogar-se sobre ela.

       — Você me envenenou!

       Alix recuou até a lareira. Aterrorizada abriu os lábios para negar, mas conteve-se. Mais um instante ele iria atacá-la. Reuniu todas as suas forças e sustentou o olhar nele.

       — Sim — ela admitiu. — Eu o envenenei. O veneno já deve estar agindo nesse instante. Você não pode mais se levantar dessa cadeira... Não pode mais se mover...

       Se pudesse conservá-lo ali, por alguns poucos minutos... Ah! O que fora aquilo? Eram passos na estrada. O portão rangeu. Os passos aproximavam-se da varanda. A porta do vestíbulo se abriu.

       — Você não pode mover-se — ela repetiu.

       E passando pelo marido, correu para o vestíbulo para cair desmaiada nos braços de Dick Windyford.

       — Meu Deus! Alix! — ele exclamou.

       Virando-se para o homem que o acompanhava, um indivíduo robusto com uniforme de policial, acrescentou:

       — Vá ver o que está acontecendo naquela sala.

       Colocou Alix com cuidado num divã e ajoelhou-se a seu lado.

       — Minha menina — ele murmurou. — Minha pobre menininha. O que andaram fazendo com você?

       As pálpebras dela estremeceram e ela murmurou o nome de Dick.

       A mão do policial no ombro do rapaz trouxe-o à realidade.

       — Não há nada na sala, senhor, apenas um homem sentado numa cadeira. Parece que ele se assustou muito com alguma coisa e...

       — E o quê?

       — Bem, senhor, ele... está morto.

       A voz de Alix quebrou o silêncio. Como se estivesse sonhando, ainda com os olhos fechados, ela disse:

       — Dali a pouco... — e o seu tom era o de quem fazia uma citação — morreu.

 

UMA CANÇÃO DE MEIO XELIM

       Sir Edward Palliser, K. C, residia no número 9 de Queen’s Anne Close, um beco sem saída que no coração de Westminster mantém uma atmosfera tranqüila e antiquada, contrastando com o bulício do século XX. O local Convinha admiravelmente a Sir Edward Palliser.

       Sir Edward fora um dos mais eminentes advogados criminais de sua época, e mesmo agora que se retirara dos tribunais, entretinha-se reunindo uma excelente biblioteca de criminologia. Escrevera também um livro sobre as reminiscências de criminosos célebres.

       Naquela noite, Sir Edward estava sentado em frente à acolhedora lareira de sua biblioteca, saboreando um esplêndido cafezinho, enquanto sacudia desaprovadoramente a cabeça sobre as teorias engenhosas mas completamente ultrapassadas de Lombroso. A porta abriu-se silenciosamente e o seu bem treinado criado cruzou o grosso tapete.

       — Uma jovem deseja vê-lo, senhor.

       — Uma jovem?

       Sir Edward surpreendeu-se. O acontecimento quebrava a sua rotina diária. Talvez fosse a sua sobrinha Ethel, pensou. Não, nesse caso Armour a teria anunciado. Cautelosamente perguntou:

       — Ela não se identificou?

       — Não, senhor. Mas disse estar bem certa de que o senhor desejaria vê-la.

       — Faça-a entrar — ordenou Sir Palliser sentindo-se agradavelmente curioso.

       Uma jovem alta e morena de uns trinta anos, com um costume negro bem cortado e um chapeuzinho também negro, dirigiu-se a Sir Edward com a mão estendida e uma expressão ansiosa. Armour retirou-se fechando silenciosamente a porta.

       — Sir Edward, está-me reconhecendo, não? Sou Magdalen Vaughan.

       — Ora, naturalmente — ele apertou a mão estendida com calor. Lembrava-se perfeitamente agora. A viagem de volta da América a bordo do Siluric! Fizera a corte a esta criança encantadora, pois ela era pouco mais de uma criança então, uma corte discreta, de um homem mais velho e experimentado. Ela era então adoravelmente jovem, ansiosa, pronta para admirá-lo e adorá-lo como a um herói, feita sob medida para cativar o coração de um homem que se aproximava dos sessenta. A lembrança tornou mais caloroso o seu aperto de mão.

       — Mas que prazer! Sente-se, por favor.

       Ele ofereceu-lhe uma poltrona, conversando com fluência e naturalidade enquanto se perguntava o motivo da sua vinda. Quando por fim esgotou as trivialidades, fez-se um silêncio.

       As mãos dela apertavam nervosamente os braços da cadeira. Ela umedeceu os lábios e por fim falou, de uma forma abrupta.

       — Sir Edward, quero que me ajude.

       Ele surpreendeu-se e retrucou mecanicamente.

       — Como?

       Ela prosseguiu, agora com mais veemência:

       — O senhor disse que se algum dia eu precisasse do seu auxílio, se houvesse qualquer coisa que pudesse fazer por mim... eu poderia contar com o senhor.

       Sim, ele dissera isso. Era o tipo de frase própria para um momento de despedida. Lembrava-se de sua própria voz embargada, de como levara a mão dela aos lábios...

       — “Se algum dia houver algo que eu possa fazer... Lembre-se, pode contar comigo!”

       Sim, muitas frases desse tipo são pronunciadas, porém quão raramente tais promessas são cumpridas! E certamente nunca depois de... quantos mesmo? Nove ou dez anos. Lançou-lhe um rápido olhar. Ela ainda era uma jovem muito bonita, mas perdera o que para ele constituíra o seu encanto: o ar de juventude intocada. Talvez o seu rosto fosse até mais interessante agora, um homem mais novo provavelmente pensaria assim, porém Sir Edward estava muito longe de sentir aquela onda de calor e emoção que o envolvera naquela viagem transatlântica.

       Seu rosto assumiu uma expressão cautelosa e profissional e disse de forma resoluta:

       — Certamente, minha querida jovem. Terei o máximo prazer de fazer tudo que estiver ao meu alcance, mas duvido que lhe possa ser de grande ajuda atualmente.

       Se acaso estava preparando o caminho para uma recusa, ela não percebeu. Era do tipo que só via uma coisa de cada vez, e no momento o que ela via era o seu próprio problema. Nem por um segundo duvidou da boa vontade de Sir Edward.

       — Estamos numa terrível enrascada.

       — Estamos? Casou-se?

       — Não, falo de mim e do meu irmão. Ah! E de William e Emily também. Mas preciso explicar tudo. Tenho, isto é, tinha uma tia, a Sr.ta Crabtree. Talvez tenha lido a seu respeito nos jornais. Foi horrível! Ela morreu... foi assassinada.

       — Ah! — o rosto de Sir Edward assumiu imediatamente uma expressão interessada. — Há cerca de um mês atrás, não foi?

       A moça fez um gesto afirmativo.

       — Um pouco menos. Três semanas.

       — Sim, lembro-me. Golpearam-na na cabeça em sua própria casa. O assaltante não foi apanhado.

       Magdalen Voughan fez novo gesto de assentimento.

       — Não foi apanhado, nem acredito que seja. Sabe, talvez não exista nenhum assaltante.

       — O quê?

       — Sim, é horrível. Não transpirou nos jornais, mas é a opinião da polícia. Ela sabe que não entrou ninguém em casa naquela tarde.

       — Está querendo dizer...

       — Que foi um de nós quatro. Deve ter sido. Eles não sabem quem... e nós também não. Não sabemos. E ficamos nos entreolhando e conjecturando... Oh! Se ao menos pudesse ter sido um estranho! Mas não vejo como.

       Sir Edward fitou-a. Seu interesse crescia.

       — Quer dizer que a família está sob suspeita?

       — Sim, isso mesmo. A polícia não o diz claramente, todos têm sido corteses e simpáticos, mas revistaram toda a casa e interrogaram a nós e a Martha várias vezes. Como não sabem quem foi, estão aguardando os acontecimentos. Estou com tanto medo... estou terrivelmente apavorada!

       — Minha cara jovem, vamos, deve estar exagerando.

       — Não estou, não. Foi um de nós, deve ter sido um de nós.

       — Quem são os quatro a que se referiu?

       Magdalen levantou a cabeça e falou de forma mais controlada:

       — Eu e Matthew, para começar. A tia Lily era nossa tia-avó, irmã de minha avó materna. Fomos morar com ela quando tínhamos quatorze anos (somos gêmeos, como sabe). Há também William Crabtree, sobrinho dela, filho de um irmão. Mora lá com a esposa, Emily.

       — Ela os sustentava?

       — Mais ou menos. Ele tem algum dinheiro, mas não é forte e tem de ficar em casa. É um homem pacato e sonhador. Estou certa de que não poderia ter... Oh! É horrível até mesmo pensar nisso!

       — A situação toda ainda está muito obscura para mim. Talvez não se importe em expor os fatos, se isto não a perturbar em excesso.

       — Oh, não! Eu quero contar-lhe. Tudo está muito claro ainda em minha mente, terrivelmente claro! Tínhamos tomado o chá, entende, e cada qual retornado às suas ocupações. Eu estava costurando, Matthew datilografando um artigo — ele faz um pouco de jornalismo — e William às voltas com os seus selos. Emily não descera para o chá. Tomara um remédio para dor de cabeça e estava deitada. Como vê, estávamos todos entretidos com alguma coisa. Quando Martha entrou na sala para servir a ceia, às sete e meia, encontrou tia Lily morta. Seu crânio estava... oh, é horrível!... fraturado.

       — Suponho que encontraram a arma do crime?

       — Sim. Foi um peso de papéis de bronze que costumava ficar sobre a mesa à porta. A polícia examinou-o à procura de impressões digitais, mas não havia nenhuma. Alguém o limpara.

       — E qual foi a primeira suposição da polícia?

       — Pensamos naturalmente num ladrão. As três gavetas da secretária estavam abertas, como se alguém as houvesse revolvido, e naturalmente pensamos que fora um ladrão. Mas então chegou a polícia e disse que ela estava morta há mais ou menos uma hora. Perguntaram a Martha se alguém entrara na casa, e ela negou. Todas as janelas estavam trancadas por dentro e não existiam sinais aparentes de terem sido forçadas. Foi então que começaram a nos fazer perguntas...

       Ela calou-se. Seus seios arfavam. Seus olhos amedrontados e suplicantes voltaram-se para Sir Edward em busca de conforto.

       — Quem se beneficiou com a morte de sua tia?

       — É simples: todos nos beneficiamos igualmente. Ela deixou o seu dinheiro dividido em partes iguais entre nós quatro.

       — E qual o valor de seus bens?

       — O advogado disse-nos que após o pagamento dos impostos restarão oitenta mil libras.

       Sir Edward abriu mais os olhos, surpreendido.

       — É uma soma considerável. Os quatro sabiam, naturalmente, a quanto montava a fortuna de sua tia?

       Magdalen sacudiu negativamente a cabeça.

       — Não, foi uma grande surpresa para nós. A tia Lily sempre foi muito parcimoniosa com o seu dinheiro. Só mantinha uma empregada e estava sempre falando em economia.

       Sir Edward balançou a cabeça pensativo. Magdalen inclinou-se em sua direção.

       — O senhor vai me ajudar, não vai?

       Essas palavras atingiram desagradavelmente Sir Edward, justamente quando ele começava a se interessar pela história em si.

       — Minha querida jovem, na realidade o que posso fazer? Se deseja uma boa orientação jurídica posso indicar-lhe...

       Ela interrompeu-o.

       — Não, não é isso que eu quero! Quero a sua ajuda, a sua mão de amigo!

       — É desvanecedor ouvir isso, mas...

       — Quero que venha até a nossa casa. Quero que faça perguntas e tire suas próprias conclusões.

       — Mas minha querida...

       — Lembre-se, o senhor prometeu. Disse que em qualquer parte, a qualquer momento que eu precisasse de ajuda...

       O olhar dela era súplice mas confiante. Ele sentiu-se envergonhado e estranhamente enternecido. Que extraordinária sinceridade a dela, como podia crer tão cegamente numa promessa oca de há dez anos atrás como se esta fosse um compromisso sagrado! Quantos homens não haviam dito aquelas mesmas palavras, que eram quase um clichê, e a quão poucos dentre eles fora exigido o seu cumprimento.

       Sem muita convicção, Sir Edward disse:

       — Estou certo de que muitas pessoas poderão orientá-la melhor do que eu.

       — Tenho muitos amigos, naturalmente — ele achou graça na ingênua autoconfiança daquela afirmação, — mas nenhum deles é inteligente como o senhor. O senhor está acostumado a interrogar suspeitos, e com toda a sua experiência certamente saberá.

       — Saberei o quê?

       — Se cada um de nós é inocente ou culpado.

       O rosto severo do causídico amenizou-se num leve sorriso. Estava convencido de que a grosso modo sempre soubera a verdade, embora, muitas vezes, os jurados não compartilhassem de sua opinião.

       Magdalen empurrou para trás o chapeuzinho com um gesto nervoso, correu os olhos pela sala e comentou.

       — Como isto aqui é silencioso! Não anseia às vezes por um pouco de barulho?

       O beco sem saída! Inadvertidamente as palavras dela, ditas ao acaso, tocaram-no profundamente. O seu beco sem saída. Sim, mas sempre restava um caminho, o mesmo por onde entrara: o caminho de volta para o mundo... Laivos de impetuosidade e juventude agitaram-se em seu íntimo. A singela confiança da jovem despertara a melhor faceta de sua natureza, e o problema que ela lhe apresentara interessara vivamente ao criminologista inato. Queria ver as pessoas de quem ela falara. Queria formar o seu próprio conceito.

       Em voz alta Sir Edward disse:

       — Se está realmente convencida de que posso ser-lhe útil... Note que eu não prometo nada.

       Esperava que a jovem ficasse extasiada, pasma de alegria, mas ela recebeu a notícia calmamente.

       — Sabia que podia contar com o senhor. Sempre pensei no senhor como um verdadeiro amigo. Quer acompanhar-me agora?

       — Não. Acho que será melhor se lhe fizer uma visita amanhã. Quer me dar o nome e o endereço do advogado da Sr.ta Crabtree? Desejo fazer-lhe algumas perguntas.

       Ela escreveu duas linhas numa folha e entregou-a ao advogado. Levantou-se então e disse com alguma timidez:

       — Eu... estou realmente gratíssima. Até amanhã.

       — E o seu endereço?

       — Ora, que tolice a minha. Palatine Walk, 18, Chelsea.

      

       Eram três horas da tarde do dia seguinte. Sir Edward Palliser aproximava-se do número 18 de Palatine Walk com passos sóbrios e cadenciados. Descobrira várias coisas nesse interregno. Aquela manhã fizera uma visita à Scotland Yard, cujo diretor-adjunto era um velho amigo seu, e tivera também uma entrevista com o advogado da falecida Sr.ta Crabtree. Tinha, em conseqüência, uma visão mais clara do caso. O procedimento da Sr.ta Crabtree no que dizia respeito ao dinheiro era bastante peculiar. Nunca utilizara um talão de cheques. Costumava escrever ao advogado para que lhe arranjasse uma determinada quantia em notas de cinco libras, quantia essa quase sempre invariável: trezentas libras, e ia apanhar o dinheiro de táxi, para ela o único meio de transporte seguro. Fora disso, nunca saía de casa.

       Na Scotland Yard Sir Edward descobriu que o ângulo financeiro fora cuidadosamente examinado. Se a Sr.ta Crabtree viva fosse, faria dentro de poucos dias um novo pedido de dinheiro, portanto as trezentas libras anteriores deveriam ter-se esgotado, ou quase. Mas este era, certamente, um ponto de difícil verificação. As despesas trimestrais da casa eram bem inferiores a trezentas libras. Por outro lado, a Sr.ta Crabtree tinha o hábito de distribuir notas de cinco libras entre os amigos e parentes necessitados. Assim, era impossível precisar a quantia existente na casa no dia do crime. Porém não se encontrara uma única nota de cinco libras.

       Era justamente esta questão que ocupava o pensamento de Sir Edward quando chegou à residência da morta.

       A porta da casa, um sobrado de dois pavimentos sem porão, foi aberta por uma mulher idosa e frágil com um olhar alerta que o conduziu a uma grande sala dupla à esquerda do estreito vestíbulo. Magdalen veio ao seu encontro e ele pôde ver com maior clareza traços de tensão nervosa em seu rosto.

       — Pediu-me que viesse interrogá-los, e aqui estou eu — disse Sir Edward apertando-lhe a mão com um sorriso. — Em primeiro lugar, quero saber quem viu sua tia pela última vez, e a que horas foi isso.

       — Foi às cinco horas, depois do chá. Martha foi a última pessoa que esteve com ela. Fora fazer alguns pagamentos aquela tarde e trouxera os recibos e o troco para a tia Lilly.

       — A Sr.ta confia em Martha?

       — Oh, totalmente. Ela já estava com a tia Lilly há uns trinta anos, eu creio. É honestíssima.

       Sir Edward fez um gesto de assentimento.

       — Mais outra pergunta: por que a sua prima, a Sr.ta Crabtree, tomou um remédio para dor de cabeça?

       — Ora, porque estava com dor de cabeça.

       — Sim, certamente, mas havia algum motivo específico para essa dor de cabeça?

       — Bem, de certa forma, sim. Houve uma cena no almoço. Emily é muito emotiva e nervosa, e às vezes costumava discutir com tia Emily.

       — Elas discutiram durante o almoço?

       — Sim. Tia Lilly sabia ser irritante em assuntos de pouca monta. Tudo começou por causa de uma ninharia, e num minuto ela e Emily armaram uma terrível discussão. Emily começou a dizer coisas horríveis, que certamente iria lamentar, a dizer que iria embora dali e nunca mais voltaria, que até o pão que comia lhe era dado de má vontade, e toda uma série de tolices. E tia Lilly retrucou que quanto mais cedo ela e o marido fizessem as malas e saíssem, melhor. Mas nenhuma das duas estava falando a sério.

       — Porque o Sr. e a Sr.a Crabtree não tinham dinheiro para tomar tal atitude?

       — Ora, não é só isso. William gostava da tia Lilly. Gostava mesmo.

       — Por acaso houve outras discussões naquele dia?

       Magdalen corou.

       — Está-se referindo a mim? Aquele espalhafato todo só porque eu queria ser modelo?

       — Sua tia não concordava?

       — Não.

       — Por que queria ser modelo, Sr.ta Magdalen? A profissão parece-lhe atraente?

       — Não, mas qualquer coisa seria melhor do que continuar a viver aqui.

       — Sim, mas agora a Senhorita terá uma boa renda, não?

       — Ah, sem dúvida. Agora será diferente — admitiu a jovem com total simplicidade.

       — E seu irmão? Também discutiu com sua tia?

       — Matthew? Não, de forma alguma.

       — Então ninguém poderá insinuar que ele também tinha um motivo para desejar a morte de sua tia?

       Sir Edward percebeu a expressão consternada do rosto dela.

       — Eu tinha esquecido — tornou o advogado em tom casual. — Ele deve bastante dinheiro, não?

       — Sim, pobre Matthew.

       — Mas agora isto poderá ser resolvido.

       — É verdade... — ela suspirou. — E será um alívio.

       E ela continuava a não perceber coisa alguma! Ele mudou de assunto rapidamente:

       — Seus primos e seu irmão estão em casa?

       — Estão. Disse-lhes que o senhor viria, e todos estão ansiosos para ajudar. Oh! Sir Edward, sinto que de alguma forma o senhor vai descobrir que está tudo bem... que nenhum de nós teve coisa alguma a ver com o crime... que afinal, foi mesmo um estranho.

       — Não posso fazer milagres. Talvez seja capaz de descobrir a verdade, mas não posso garantir que a verdade lhe agrade.

       — Não? Mas eu sinto que o senhor pode fazer qualquer coisa, qualquer coisa!

       Ela retirou-se. Perturbado, o advogado pensou: o que ela quis dizer com isso? Estará insinuando que eu proteja alguém? Quem?

       Suas conjecturas foram interrompidas pela entrada de um homem de cerca de cinqüenta anos com uma constituição congenitamente vigorosa, mas encurvado. Vestia-se com desalinho, e seus cabelos haviam sido escovados sem esmero. Parecia bem humorado, mas distraído.

       — Sir Edward Palliser? Muito prazer. Magdalen pediu-me que viesse. É muita bondade sua querer ajudar-nos, embora na minha opinião nunca será descoberto o criminoso. Não creio que peguem o camarada.

       — Acredita então que foi um assaltante, alguém de fora?

       — Bem, deve ter sido. Não poderia ser ninguém da família. Esses camaradas estão cada dia mais espertos. Escalam paredes como gatos e entram em qualquer lugar.

       — Onde estava, Sr. Crabtree, quando ocorreu a tragédia?

       — Estava entretido com meus selos, no meu pequeno gabinete do andar superior.

       — Não ouviu nada?

       — Não, nunca ouço coisa alguma quando estou absorvido em alguma ocupação. É uma deficiência minha, mas é a verdade.

       — Este gabinete a que se refere, fica em cima desta sala?

       — Não, nos fundos.

       A porta tornou a abrir. Uma mulher pequenina e loura entrou. Suas mãos contraíam-se nervosamente. Parecia agitada e exasperada.

       — William, por que não me esperou? Disse-lhe para esperar.

       — Desculpe, querida. Esqueci. Sir Edward Palliser, minha esposa.

       — Como está, Sr.a Crabtree? Espero que a minha vinda não a tenha perturbado. Sei que devem estar todos ansiosos para esclarecer os fatos.

       — Sim, naturalmente. Mas não tenho nada para lhe dizer... tenho, William? Eu estava dormindo... em meu quarto... e só acordei quando Martha gritou.

       Suas mãos continuavam crispadas.

       — Onde fica seu quarto, Sr.a Crabtree?

       — Em cima desta sala. Mas não ouvi nada. Nem podia, estava dormindo.

       Sir Edward não conseguiu obter dela nenhuma outra informação. Não sabia de nada, não ouvira nada, estivera dormindo, ela repetiu várias vezes com a obstinação de uma mulher amedrontada. Porém o advogado sabia que provavelmente era a pura verdade.

       Por fim desculpou-se dizendo que queria fazer algumas perguntas a Marta. William Crabtree ofereceu-se para conduzi-lo à cozinha. No vestíbulo, Sir Edward quase colidiu com um jovem alto que se dirigia à porta da frente.

       — O senhor é Matthew Vaughan?

       — Sim, mas olhe aqui, não posso esperar. Tenho um compromisso.

       — Matthew! — admoestou-o a irmã da escada. — Oh, Matthew, você prometeu!

       — Eu sei, mana, mas não posso ficar. Tenho de encontrar um camarada. Mas de qualquer forma, o que adiantaria ficar falando sobre essa porcaria? A polícia já nos encheu o suficiente. Não agüento mais essa história!

       A porta da frente fechou-se com estrépito às costas do Sr. Matthew Vaughan.

       Sir Edward foi conduzido à cozinha onde Martha passava a ferro a roupa da semana. Ela estava com o ferro no ar. Sir Edward fechou a porta.

       — A Sr.ta Vaughan pediu o meu auxílio — explicou. — Espero que não tenha objeções em responder algumas perguntas.

       Ela sacudiu a cabeça após fitá-lo alguns segundos.

       — Nenhum deles a matou, senhor. Sei o que está pensando, mas não é verdade! É difícil encontrar pessoas tão distintas como eles.

       — Não duvido, mas as qualidades da família não constituem uma prova de sua inocência.

       — Talvez não, senhor. A lei é muito esquisita. Mas existem provas, como quer o senhor. Nenhum deles poderia tê-la matado sem que eu o soubesse.

       — Mas certamente...

       — Sei o que estou falando, senhor. Ah! Escute só isso...

       “Isso” eram fortes rangidos que vinham do teto.

       — São as escadas, senhor. Toda vez que alguém desce ou sobe, esses degraus rangem desse jeito horroroso, por mais cuidado que se tome. A Sr.a Crabtree estava deitada em seu quarto, o Sr. Crabtree estava remexendo naqueles infelizes selos, e a Sr.ta Magdalen estava costurando em sua máquina. Se algum deles tivesse descido essas escadas, eu teria sabido. E ninguém desceu!

       A velha criada falou com tal confiança que o advogado ficou impressionado. Ela seria uma boa testemunha, pensou. Impressionaria o júri.

       — Talvez não tenha percebido o barulho.

       — Não, eu perceberia sim. Perceberia mesmo que não estivesse prestando atenção, como a gente percebe pelo barulho da porta que alguém saiu.

       Sir Edward mudou de tática.

       — Então três membros da família estão fora de questão. Mas ainda resta um quarto. O Sr. Matthew Vaughan também estava lá em cima?

       — Não. Estava no quarto pequeno, embaixo, aí do lado, e estava escrevendo a máquina. Dá para ouvir perfeitamente daqui. Ele não parou de escrever um só momento. Posso jurar. O barulho da máquina é um bocado irritante.

       Sir Edward calou-se por alguns instantes.

       — Foi você que a encontrou, não foi?

       — Sim, senhor. Fui eu. A pobre estava caída no chão com o cabelo cheio de sangue. E ninguém ouviu nada por causa do barulho da máquina do Sr. Matthew.

       — Está convencida então de que ninguém bateu a porta?

       — Como teria sido possível, sem que eu soubesse? A campainha toca aqui na cozinha. E só há uma porta de entrada.

       Ele olhou-a bem nos olhos.

       — Gostava da Sr.ta Crabtree?

       O rosto dela adquiriu uma genuína e inconfundível expressão de ternura.

       — Sim, senhor. Eu gostava muito dela. Se não fosse pela Sr.ta Crabtree... Bem, estou ficando velha e não me importo mais de falar nisso. Fiquei esperando criança quando era moça, e a Sr.ta Lilly me apoiou e me recebeu de volta quando tudo terminou. Eu teria morrido por ela, teria mesmo.

       Sir Edward sabia quando alguém estava sendo sincero, e a sinceridade das palavras de Martha era inequívoca.

       — Então, que você saiba, ninguém entrou pela porta da frente.

       — Não, ninguém poderia ter entrado.

       — Note que eu ressalvei “que você saiba”, pois a Sr.ta Crabtree poderia estar a espera de alguém e abrir ela mesma a porta.

       — Oh! — exclamou Martha desconcertada.

       — É uma possibilidade, não? — insistiu Sir Edward.

       A velha criada estava obviamente confusa. Não podia negar e no entanto desejaria fazê-lo. Por quê? Porque sabia que a verdade era outra. Seria esse o motivo? O culpado era uma das quatro pessoas da família? Queria Martha proteger o criminoso? As escadas teriam rangido? Teria alguém descido furtivamente e Martha saberia quem era esse alguém?

       Sir Edward estava convencido, entretanto, que ela própria era honesta. Ele insistiu no ponto, observando-a.

       — A Sr.ta Crabtree poderia tê-lo feito, não? A janela da sala dá para a rua. Ela poderia ter visto chegar a pessoa que estava esperando e aberto a porta do vestíbulo para deixá-la entrar. Talvez quisesse manter essa visita em segredo.

       Martha parecia aflita, mas por fim admitiu com relutância:

       — Talvez tenha razão, senhor. Nunca pensei nisso. É, talvez ela estivesse esperando algum cavalheiro. É, pode ser.

       Era como se Martha estivesse começando a perceber os pontos positivos naquela hipótese.

       — Você foi a última pessoa a vê-la, não foi?

       — Sim, senhor, depois que tirei a mesa do chá. Levei os recibos e o troco do dinheiro que me dera para ela conferir.

       — Ela deu-lhe o dinheiro em notas de cinco libras?

       — Só uma nota, senhor — retrucou Martha chocada. — As despesas da cozinha nunca chegaram a cinco libras. Eu sou muito cuidadosa.

       — Onde ela guardava o dinheiro?

       — Não sei ao certo, senhor. Mas diria que ela o carregava consigo em sua bolsa de veludo preto. Mas também ela poderia guardá-lo numa das gavetas do seu quarto. Estavam sempre trancadas. Ela gostava muito de trancar as coisas, embora às vezes perdesse as chaves.

       Sir Edward fez um gesto de assentimento.

       — Não sabe quanto dinheiro ela tinha em casa? Quero dizer ao todo.

       — Não, senhor. Não sei dizer.

       — E ela não disse nada que poderia levá-la a concluir que estava esperando alguém?

       — Não, senhor.

       — Tem certeza? O que ela disse, exatamente?

       — Bem — começou Martha refletindo, — ela disse que o açougueiro era um velhaco desonesto, e disse que eu comprara mais duzentos gramas de chá do que deveria, e também que era uma tolice da Sr.a Crabtree não gostar de margarina. Ah, ela não gostou de uma das moedas de meio xelim que lhe trouxe no troco, uma dessas moedas novas como folhas de carvalho. Cismou que era falsa, e tive um trabalhão para convencê-la do contrário. Disse também que o peixeiro mandara hadoque em vez de pescada, se eu havia reclamado, e respondi que sim. Acho que foi só isso, senhor.

       As palavras de Martha tiveram o condão de trazer à mente de Sir Edward uma imagem mais nítida da morta do que qualquer descrição formal. Em tom casual ele comentou:

       — A sua patroa era bastante difícil de contentar, não?

       — Ela era muito exigente, mas coitada, saía muito pouco, e vivendo assim trancada precisava distrair-se com alguma coisa. Ela pode ter sido impertinente, mas era muito caridosa. Nenhum mendigo que batesse à porta saía daqui com as mãos abanando.

       — Alegra-me ver que ao menos uma pessoa lamenta a sua morte, Martha.

       A velha criada prendeu a respiração.

       — Está querendo dizer que... Oh! mas todos aqui gostavam dela, no fundo. Todos discutiam com ela de vez em quando, mas não era para valer.

       Sir Edward levantou a cabeça. Um degrau rangera.

       — É a Sr.ta Magdalen que está descendo.

       — Como sabe? — retrucou ele.

       A velha criada corou.

       — Conheço os passos dela — murmurou.

       Sir Edward deixou a cozinha com rapidez. Martha tinha razão. Magdalen acabara de chegar ao pé da escada. Ela dirigiu-lhe um olhar inquiridor.

       — Não fiz muitos progressos ainda — disse-lhe Sir Edward, e acrescentou: — Por acaso viu as cartas que o correio trouxe para sua tia no dia de sua morte?

       — Estão todas guardadas. A polícia já as examinou, naturalmente.

       Ela o conduziu à sala de estar e, abrindo uma gaveta que estava fechada a chave, apanhou uma bolsa grande de veludo negro com um antiquado fecho de prata.

       — Esta é a bolsa de titia. Conservei-a exatamente como estava no dia em que morreu.

       Sir Edward agradeceu e despejou o conteúdo da bolsa sobre a mesa. Aquela devia ser um exemplo típico de bolsa de uma velha dama excêntrica. Encontrou algumas moedas de prata, duas castanhas de gengibre, uma folha com um poema de péssima qualidade sobre os desempregados, um almanaque farmacêutico, um pedaço grande de cânfora, um par de óculos e três cartas: uma numa caligrafia trêmula de alguém que assinara “sua prima Lucy”, um recibo de conserto de um relógio, e uma circular de uma instituição de caridade.

       Depois de examinar tudo minuciosamente, Sir Edward recolocou os objetos na bolsa e entregou-a a Magdalen com um suspiro.

       — Obrigado, Sr.ta Magdalen, mas receio que essa bolsa não tenha sido de grande ajuda.

       — Já se vai?

       — Sim.

       — Mas... tudo vai ficar bem?

       — Nenhum membro da lei comprometer-se-ia com uma declaração tão precipitada — esquivou-se Sir Edward em tom solene e saiu. Imerso em seus pensamentos o advogado desceu a rua. Sentiu que a solução do enigma estava bem ali, ao alcance de sua mão, e no entanto não conseguia agarrá-la. Precisa de mais alguma coisa, um pequeno indício. Só para indicar-lhe o caminho.

       Uma mão pousou-lhe no ombro. Sir Edward sobressaltou-se.

       — Estava procurando o senhor, Sir Edward. Queria desculpar-me por minha estupidez de meia hora atrás. Receio que o meu gênio não seja dos melhores. Foi uma bondade sua incomodar-se com os nossos problemas. Por favor, pergunte-me o que quiser. Se eu puder ajudar de qualquer forma...

       Súbito Sir Edward enrijeceu-se. Olhava fixamente, não para Matthew, mas para o outro lado da rua. Perplexo, Matthew repetiu:

       — Se eu puder ajudar de alguma forma...

       — Pois já ajudou, meu caro jovem — disse Sir Edward — fazendo com que eu parasse nesse lugar e levando minha atenção a fixar-se em algo que talvez não percebesse de outra forma.

       Ele apontou para um pequeno restaurante do outro lado da rua.

       — Os Vinte e Quatro Melros? — perguntou Matthew intrigado.

       — Exatamente.

       — O nome é esquisito, mas disseram-me que a comida é razoável.

       — Não pretendo arriscar-me — retorquiu Sir Edward. — Minha infância já está bem mais distante do que a sua, meu amigo, mas por isso mesmo tenho uma recordação bem precisa dos versinhos infantis. Se não me engano, há um que diz: Uma canção de meio xelim, um punhado de centeio e vinte e quatro melros, para um bom recheio... e vai por aí adiante. O resto não nos importa no momento.

       Sir Edward deu uma volta de cento e oitenta graus.

       — Aonde vai? — perguntou Matthew Vaughan.

       — Para a sua casa, meu amigo.

       Voltaram em silêncio. Matthew Vaughan lançava olhares intrigados a seu companheiro. Sir Edward entrou, dirigiu-se à gaveta da sala, apanhou a bolsa de veludo e abriu-a. Olhou para Matthew e o jovem relutantemente deixou a sala.

       Sir Edward espalhou as moedas sobre a mesa. Examinou-as e fez um gesto de assentimento. Sua memória não falhara.

       Levantou-se e tocou a sineta, escondendo antes alguma coisa em sua mão direita.

       Martha respondeu ao chamado.

       — Se não estou enganado, Martha, você me disse que teve um pequeno problema com sua falecida patroa por causa de uma moeda nova de meio xelim.

       — Sim senhor.

       — Ah! Mas o que é muito curioso, Martha, é que entre as moedas desta bolsa não há nenhuma moeda nova de meio xelim. Há duas moedas aqui de meio xelim, mas são moedas antigas.

       Ela fitou-o com um ar perplexo.

       — Compreende o que significa isso? Alguém entrou nessa sala naquela tarde, alguém a quem sua patroa deu meio xelim... Acho que ela deu a moeda em troca disso...

       Com um gesto rápido, ele estendeu-lhe a mão direita com a folha contendo os versos de pé quebrado sobre o desemprego.

       Um simples olhar foi suficiente. A expressão dela era reveladora.

       — É inútil continuar, Martha. Eu sei de tudo. É melhor me contar.

       Ela deixou-se cair numa cadeira. As lágrimas escorriam pelo seu rosto.

       — É verdade!... É verdade... A campainha não tocou direito, eu não estava certa, e acabei resolvendo ir ver. No momento em que cheguei à porta da sala, ele a golpeou. O rolo de notas de cinco libras estava sobre a mesa, na frente dela... foi por causa do dinheiro que ele fez isso... pensou que ela estava sozinha em casa porque ela mesma abriu a porta para ele. Nem pude gritar. Fiquei paralisada e então ele virou-se... e vi que era o meu filho... Ele sempre foi um mau elemento. Dei-lhe todo o dinheiro de que podia dispor. Já esteve preso duas vezes. Deve ter vindo me ver, e então, como não atendi a porta, a Sr.ta Crabtree foi abrir... ele deve ter ficado sem jeito e então deu a ela esse folheto sobre o desemprego. A patroa, como era caridosa, disse-lhe para entrar e apanhou na bolsa a moeda de meio xelim... E o tempo todo o rolo de notas de cinco libras estava lá, sobre a mesa, desde que eu lhe dera o troco. E então o demônio apossou-se do meu Ben e ele aproximou-se por trás dela e a atacou.

       — E você... — encorajou-a Sir Edward.

       — Oh! senhor, o que eu podia fazer? Ele é da minha carne! O pai dele era um mau elemento, e Ben puxou ao pai... mas era meu filho. Empurrei-o para fora e voltei para a cozinha, e na hora de sempre fui pôr a mesa para a ceia. Acha que agi muito mal, senhor? Tentei não contar mentiras quando o senhor me interrogou.

       Sir Edward levantou-se.

       — Pobre mulher — ele disse com sentimento. — Lamento muito por você, mas a lei precisa seguir o seu curso.

       — Ele fugiu do país, senhor. Não sei onde ele está.

       — Então há uma chance de que seu filho possa escapar da forca, mas não conte com isso. Quer chamar a Sr.ta Magdalen?

       — Oh! Sir Edward! O senhor foi maravilhoso! — exclamou Magdalen quando ele terminou a sua breve exposição. — Salvou-nos a todos. Como posso agradecer-lhe?

       Sir Edward sorriu e deu-lhe uma pancadinha afetuosa na mão, a própria encarnação de um grande homem. A pequena Magdalen estivera encantadora a bordo do Siluric. Ah! aquele maravilhoso esplendor dos dezessete anos! Ela já o perdera, naturalmente.

       — Da próxima vez que precisar de um amigo... — começou o advogado.

       — Irei direto ao senhor!

       — Não, não! — exclamou alarmado Sir Edward. — É exatamente o que não deve fazer. Procure um homem mais jovem.

       Escapando com habilidade dos agradecimentos da família, ele chamou um táxi e instalou-se no banco de trás com um suspiro de alívio. Agora até mesmo o encanto primaveril dos dezessete anos parecia-lhe uma questão discutível. Realmente não podia comparar-se a uma bela biblioteca de criminologia.

       O táxi entrou em Queen’s Anne Close.

       O seu beco sem saída.

 

UM ACIDENTE

       — Estou-lhe dizendo, é a mesma mulher. Não há dúvida alguma!

       O Capitão Haydock olhou para o rosto animado e ansioso do seu amigo e suspirou. Gostaria que Evans não se mostrasse tão positivo e veemente. Durante sua longa carreira naval o velho capitão aprendera a não se intrometer em coisas que não lhe diziam respeito. Já o seu amigo Evans, antigo inspetor da polícia, possuía uma filosofia de vida muito diferente. “Agir baseado nas informações recebidas” fora seu lema no passado, e com o passar do tempo continuara a procurar suas próprias informações. Evans fora um oficial inteligente e alerta, e merecera a sua justa promoção. Mesmo agora, quando se aposentara e fora viver no pequeno chalé campestre de seus sonhos, seu instinto profissional ainda estava bem vivo.

       — É muito raro eu esquecer um rosto — ele afirmou com complacência. — É a Sr.a Anthony. Sim, é a Sr.a Anthony sem dúvida alguma. No momento em que você me apresentou a Sr.a Merrowdene, vi logo que era ela.

       O Capitão Haydock remexeu-se na cadeira constrangido. O casal Merrowdene eram os seus vizinhos mais próximos, fora o próprio Evans, e a identificação da Sr.a Merrowdene com a heroína de uma causa célebre o afligia.

       — Já faz muito tempo — ele retorquiu sem convicção.

       — Nove anos — tornou Evans, preciso como sempre. — Nove anos e três meses. Lembra-se do caso?

       — Vagamente.

       — Descobriram que Anthony costumava tomar arsênico. — explicou Evans — e absolveram-na.

       — Bem, e por que não a deveriam absorver?

       — Não havia motivo algum. Com as provas existentes era o único veredicto possível. Absolutamente correto.

       — Então não existe nada errado — disse Haydock. — Não vejo por que nos preocuparmos.

       — Quem está preocupado?

       — Pensei que você estivesse.

       — Nem um pouco.

       — Está tudo acabado, encerrado — concluiu o capitão. — Se a Sr.a Merrowdene teve o infortúnio de num determinado momento de sua vida ser julgada por assassinato e absolvida...

       — Eu não diria que ser absolvida é um infortúnio — interveio Evans.

       — Você sabe muito bem o que estou querendo dizer — replicou irritado o Capitão Haydock. — Já que a pobre senhora passou por uma experiência tão angustiante, acho que não deveríamos desenterrar o assunto.

       Evans não respondeu.

       — Vamos, Evans. Essa senhora estava inocente, você mesmo o disse.

       — Eu não disse que ela estava inocente. Disse que foi absolvida.

       — É a mesma coisa.

       — Nem sempre.

       O Capitão Haydock, que começara a bater o cachimbo contra o braço de sua poltrona, deteve-se e inclinou-se para a frente com uma expressão alerta.

       — Ha! ha! — exclamou ele. — Então é para esse lado que os ventos sopram, é? Acha que ela era culpada?

       — Não diria isso. Eu não sei. Anthony estava habituado a tomar arsênico. A esposa preparava a dose. Certo dia, por um engano, ele toma uma dose excessiva. O erro foi dele ou da esposa? Ninguém podia saber, e o júri acertadamente absolveu-a. Foi uma decisão correta, não a censuro. Mas mesmo assim, gostaria de saber.

       O Capitão Haydock tornou a concentrar suas atenções no cachimbo.

       — Bem — disse ele recostando-se confortavelmente, — não é da nossa conta.

       — Não tenho tanta certeza...

       — Mas certamente...

       — Ouça-me um minuto. Lembra-se do que o marido, o tal Merrowdene, nos disse essa tarde em seu laboratório, quando estava entretido com aqueles testes?

       — Lembro-me. Ele mencionou o teste de Marsh para arsênico. Disse que você deveria conhecê-lo, era do seu ramo, e riu-se. Penso que não diria isso, nem por um único momento se achasse...

       Evans interrompeu-o.

       — Sim, ele não diria se soubesse, não é? Há quanto tempo eles estão casados? Seis anos, não foi o que você me disse? Aposto o que você quiser que ele não tem a mínima idéia de que a esposa seja a famosa Sr.a Anthony.

       — E certamente não será por meu intermédio que ele vai saber — replicou rigidamente o Capitão Haydock.

       Evans não lhe deu atenção e prosseguiu.

       — Você interrompeu-me há pouco. Depois do teste de Marsh, Merrowdene aqueceu uma substância numa pipeta, dissolveu o resíduo metálico em água e provocou a sua precipitação adicionando nitrato de prata. Este é um teste simples e preciso para cloratos. Mas por acaso li um trecho do livro que estava aberto sobre a mesa: “O H2SO4 decompõe os cloratos com a formação de Cl4O2. Se a mistura for aquecida, ocorrerão violentas explosões. Portanto, deve ser conservada fria e só empregada em pequenas quantidades.”

       Haydock olhou perplexo para o amigo.

       — Bem, e daí?

       — Em nossa profissão também temos testes, testes para determinar se houve ou não um assassinato. Um deles é pesar os fatos com cuidado e dissecar os resíduos após descontar os preconceitos e a imprecisão habitual das testemunhas. Mas existe um outro teste, de grande precisão, mas muito perigoso, como o do ácido sulfúrico: “um assassino raramente contenta-se com um único crime.” Dê-lhe tempo, faça-o sentir-se livre de suspeitas e ele cometerá outro. Um homem é preso. Será que ele assassinou a esposa? Talvez as provas sejam inconclusivas. Mas pesquise o seu passado, e se descobrir que ele teve várias mulheres e que todas morreram de forma um tanto estranha, pode ter certeza! Não estou falando em termos jurídicos, compreenda, estou falando em certeza moral. E uma vez de posse dessa certeza podemos prosseguir e procurar provas.

       — E então?

       — Estou chegando ao ponto principal. Esse método funciona quando o criminoso já possui um passado. Mas e se o apanharmos no seu primeiro crime? Então esse teste não produzirá uma reação. Mas suponhamos que o prisioneiro seja absolvido e recomece a vida sob outro nome. Irá ou não repetir o crime?

       — Que idéia horrível!

       — Ainda acha que não é de sua conta?

       — Sim, acho. Você não tem nenhum motivo para pensar que a Sr.a Merrowdene não seja uma mulher completamente inocente.

       O ex-inspetor permaneceu em silêncio por alguns momentos. Então, lentamente, explicou:

       — Disse-lhe que investigamos o passado dela e não encontramos nada. Isso não é inteiramente verdade. Ela teve um padrasto. Aos dezoito anos, ela interessou-se por um jovem e esse padrasto utilizou sua autoridade para afastá-los. Ela e o padrasto foram dar uma volta junto a um penhasco. Houve um acidente. O homem aproximou-se demasiado do abismo, o terreno cedeu, e ele caiu e morreu.

       — Você não acha...

       — Foi um acidente, um acidente. A dose excessiva de Anthony foi outro acidente. Ele nunca teria ido a julgamento se não houvesse transpirado a existência de um outro homem, que por sinal deu no pé. Pelo jeito não ficou satisfeito com a decisão do júri. Ouça, Haydock, quanto a mim, receio que haja outro “acidente”, na vida dessa mulher!

       O velho capitão deu de ombros.

       — Já se passaram nove anos do julgamento. Por que haveria de acontecer logo agora um outro “acidente”, como diz você?

       — Eu não disse agora, disse algum dia, se aparecer um motivo suficientemente forte.

       O Capitão Haydock tornou a dar de ombros.

       — Bem, não sei como é que você vai impedir isso.

       — Nem eu — replicou Evans azedo.

       — Eu deixá-la-ei em paz — opinou o capitão. — Intrometer-se na vida dos outros nunca dá bons resultados.

       Mas o conselho não agradou ao ex-inspetor. Ele era um homem paciente mas obstinado. Despediu-se do amigo e dirigiu-se ao povoado examinando as possíveis e exeqüíveis linhas de ação.

       Ao entrar no correio para comprar alguns selos, ele esbarrou no objeto de seus cuidados, George Merrowdene. O antigo professor de química era um homem baixo, de aspecto bondoso, gentil e sonhador, totalmente distraído. Reconheceu o inspetor, cumprimentando-o cordialmente, e abaixou-se para recolher as cartas que deixara cair com o impacto. Evans também curvou-se, e sendo mais rápido, apanhou primeiro os papéis e devolveu-os a seu dono com um pedido de desculpas.

       Nisso os seus olhos reconheceram no envelope de cima o nome e o endereço de uma companhia de seguros muito conhecida. Suas suspeitas reacenderam-se.

       Tomou uma resolução instantânea. O inocente Professor Merrowdene nem percebeu por que estava sendo acompanhado pelo ex-inspetor, e muito menos a razão pela qual este conduziu a conversa para o campo dos seguros.

       Evans atingiu o seu objetivo sem dificuldades. Merrowdene forneceu-lhe espontaneamente a informação de que acabara de fazer um seguro de vida em benefício da esposa, e pediu a opinião de Evans sobre a companhia.

       — Fiz alguns investimentos muito importantes — ele explicou — e em conseqüência a minha renda diminuiu. Se me acontecesse alguma coisa, minha esposa ficaria numa péssima situação. Esta apólice irá assegurar o futuro dela.

       — Ela não fez objeções? — perguntou Evans de forma casual. — Algumas mulheres são contra, sabe. Acham que dá azar, ou coisa semelhante.

       — Não, Margaret é muito prática — retrucou Merrowdene sorrindo. — Não é nem um pouco supersticiosa. Na verdade, acho que a idéia partiu dela. Não me queria ver preocupado.

       Evans conseguira a informação que procurava. Despediu-se logo depois. Sua boca adquiria uma expressão severa. O falecido Sr. Anthony também fizera um seguro de vida em favor da esposa poucas semanas antes de morrer.

       Acostumado a confiar em seus instintos, sentia-se seguro de suas deduções, mas saber como agir era um outro problema. Não queria prender um criminoso em flagrante, mas impedir a execução de um crime, o que era bem diferente e muito mais difícil.

       Passou toda a manhã imerso em reflexões. Havia aquela tarde no comando uma festa de barraquinhas em benefício da liga de caridade local, e o ex-inspetor compareceu e participou da pescaria de prendas, arriscou seu palpite quanto ao peso do leitão, e entrou no jogo das argolas, sempre com a mesma expressão concentrada no rosto. Até mesmo investiu meia coroa nos conselhos de Madame Zara e sua bola de cristal, sorrindo ao se lembrar de suas próprias diligências oficiais contra as cartomantes.

       Ele não prestou muita atenção à voz monótona e entorpecedora da mulher até que uma frase captou sua atenção:

       — ... E breve, muito breve mesmo, o senhor será envolvido numa questão de vida ou morte... de vida ou morte para alguém.

       — Ei, o que disse? — perguntou Evans abruptamente.

       — Trata-se de uma decisão. O senhor terá de tomar uma decisão. Precisa ser cuidadoso, muito, muito cuidadoso... Se cometer um erro um pequenino erro...

       — Sim?

       Madame Zara estremeceu. Mesmo achando que tudo aquilo era uma tolice, o inspetor ficou impressionado.

       — Devo avisá-lo: o senhor não pode se enganar. Se o fizer, vejo claramente o resultado — morte!

       Esquisito, muito esquisito, ele pensou. Morte. Estranho ela ter dito logo aquilo.

       — Se eu cometer um erro, a conseqüência será a morte de uma pessoa? É isto que quis dizer?

       — Sim.

       — Neste caso — retrucou Evans levantando-se e dando à mulher uma moeda de meia coroa, — não devo errar, não é?

       Falou em tom de brincadeira, mas ao sair sua boca adquirira uma expressão determinada. Ele não podia cometer um lapso sequer. Fácil de dizer, mas não tão fácil de evitar. Mas uma vida, uma valiosa vida humana dependia disso.

       Não tinha ninguém para ajudá-lo. Viu ao longo o vulto do seu amigo Haydock, contudo não devia contar com ele. Nada de intromissões em assuntos alheios, era o lema de Haydock. E isso era impossível naquele caso.

       Haydock conversava com uma mulher. Quando ela se afastou e encaminhou-se em sua direção, o inspetor reconheceu-a. Era a Sr.a Merrowdene. Seguindo um impulso, ele colocou-se deliberadamente no caminho dela.

       A Sr.a Merrowdene era uma bela mulher. Possuía uma testa larga e serena, lindíssimos olhos castanhos e uma expressão tranqüila. Parecia uma madona italiana, semelhança que ela acentuava repartindo o cabelo no meio e prendendo-o atrás das orelhas. Sua voz era profunda e hipnótica. Sorriu para Evans, um sorriso aberto e cordial.

       — Eu a reconheci de longe, Sr.a Anthony, quero dizer, Sr.a Merrowdene — disse ele consertando com rapidez o seu lapso deliberado enquanto a observava disfarçadamente.

       Ela não vacilou e sustentou com firmeza e orgulho o olhar nele.

       — Estava procurando o meu marido — replicou com naturalidade. — O senhor viu-o em algum lugar?

       — Estava do lado de lá.

       Os dois seguiram na direção indicada conversando tranqüila e agradavelmente. O inspetor sentiu aumentar a sua admiração. Que mulher! Que autocontrole, que maravilhoso aplomb! Uma mulher notável, e muito perigosa. Muito perigosa, tinha a certeza.

       Sentia-se ainda inquieto, embora satisfeito com o seu primeiro passo. Ela estava avisada de que fora reconhecida. Isto deixá-la-ia de sobreaviso. Não iria arriscar-se. E havia ainda Merrowdene. Se pudesse avisá-lo...

       Encontraram o homenzinho contemplando distraído uma boneca de porcelana que lhe coubera numa rifa. A esposa sugeriu que fossem para casa e ele concordou de boa vontade. A Sr.a Merrowdene virou-se para o inspetor e convidou-o:

       — Não quer tomar uma xícara de chá conosco, Sr. Evans?

       Haveria em seu tom um leve desafio? Ele julgou que sim.

       Seguiram para o chalé do casal conversando sobre fatos amenos e banais. O sol brilhava, soprava uma leve aragem, tudo ao redor era aprazível e rotineiro.

       A criada fora à quermesse, explicou a Sr.a Merrowdene quando chegaram ao encantador e antiquado chalé, e foi ao quarto retirar o chapéu. Na volta colocou a chaleira para ferver num pequeno fogareiro de prata e retirou de uma prateleira junto à lareira três pratinhos e três pequeninas tigelas.

       — Temos um chá chinês muito especial — ela explicou — e sempre o bebemos no estilo chinês, em tigelas e não em xícaras...

       Ela interrompeu o que estava dizendo e examinando mais de perto uma das tigelas, trocou-a por uma outra com uma exclamação de aborrecimento.

       — George, mas que coisa mais sem jeito! Esteve utilizando novamente essas tigelas, não?

       — Sinto muito querida — desculpou-se o professor. — Elas são muito adequadas aos meus fins, e as que encomendei ainda não chegaram.

       — Um dia desses você nos vai envenenar a todos — admoestou-o a mulher com um sorriso. — Mary vê essas tigelas no laboratório e torna a guardá-las, sem se dar o trabalho de lavá-las, a menos que haja algum resíduo bem visível no fundo. Ora, outro dia mesmo você colocou cianeto de potássio numa delas! Não percebe o perigo, George?

       Merrowdene demonstrou uma leve irritação.

       — Mary não tem nada que remover utensílios do laboratório. Ela está proibida de tocar em qualquer coisa lá.

       — Mas com freqüência deixamos lá nossas xícaras de chá vazias. Como ela vai perceber a diferença? Seja razoável, querido.

       O professor dirigiu-se resmungando ao laboratório, enquanto a Sr.a Merrowdene despejava com um sorriso a água fervendo sobre o chá e apagava com um sopro a chama do fogareiro de prata.

       Em sua perplexidade, Evans começou a perceber uma pequena luz. Por algum motivo a Sr.a Merrowdene estava revelando o seu jogo. Seria aquele o futuro “acidente”? Estava deliberadamente chamando atenção para aquele fato para preparar o seu álibi. Assim, um dia quando sucedesse o “acidente”, ele seria forçado a testemunhar em favor dela. Mas era uma estupidez da parte dela, pois antes disso...

       Subitamente ele prendeu a respiração. Ela enchera as três tigelas de chá. Colocara uma diante dele, outra em sua frente e a terceira numa mesinha ao lado da poltrona diante da lareira em que o marido costumava sentar-se, e ao fazê-lo um sorriso estranho subiu a seus lábios.

       Foi o sorriso que o advertiu.

       Ele compreendeu!

       Que mulher notável, que mulher perigosa! Ele não poderia provar nada. Ela pensara que ele não suspeitaria simplesmente porque era “cedo demais”. Era uma mulher de uma incrível rapidez de pensamento e ação.

       Evans respirou fundo e inclinou-se para ela:

       — Sr.a Merrowdene, sou um homem de caprichos estranhos. Será que a senhora teria a bondade de satisfazer a um desses meus caprichos?

       Ela assumiu uma expressão de curiosidade, não de suspeita.

       Evans levantou-se, pegou a tigela que estava na frente dela e, levando-a até à mesinha, substituiu-a pela tigela do marido que foi colocar diante da Sr.a Merrowdene.

       — Gostaria que tomasse esse chá.

       Serenos, imperscrutáveis, os olhos dela cruzaram-se com os do inspetor. Então, lentamente o seu rosto perdeu a cor.

       Ela estendeu a mão e pegou a taça. Ele prendeu a respiração. E se estivesse errado, o tempo todo?

       A mulher levou a taça aos lábios, mas no último momento, com um estremecimento, inclinou-se para a frente e despejou com um gesto rápido o conteúdo num vaso de avencas. Em seguida recostou-se e fitou-o num desafio.

       Evans deixou escapar um suspiro de alívio e tornou a sentar-se.

       — E agora? — indagou ela.

       Sua voz modificara-se. Adquiria uma expressão zombeteira, provocante.

       Ele respondeu sóbria e tranqüilamente:

       — A senhora é uma mulher muito inteligente, Sr.a Merrowdene. Creio que me entenderá. Não deve haver uma... repetição. Compreende o que quero dizer?

       — Sim.

       A voz era controlada, sem expressão. Ele fez um gesto de assentimento, satisfeito. Ela era uma mulher inteligente e não queria ser enforcada.

       — A uma longa vida para a senhora e para seu marido — disse ele significativamente enquanto levava a taça aos lábios.

       Seu rosto alterou-se numa horrível contorção... Ele tentou gritar, levantar-se... Seus membros crisparam-se, o rosto ficou roxo. Evans caiu da cadeira em convulsões mortais.

       A Sr.a Merrowdene inclinou-se para a frente, observando-o. Um leve sorriso subiu-lhe aos lábios. Ela falou baixo e gentilmente:

       — O senhor cometeu um erro, Sr. Evans. Pensou que eu quisesse matar George... Que estupidez a sua, que grande estupidez...

       Ficou sentada por um minuto observando o morto, o terceiro homem que ameaçara atravessar-se em seu caminho e separá-la do homem que amava.

       Seu sorriso aumentou. Parecia mais do que nunca uma madona. Então levantou a voz e chamou:

       — George! George!... Venha aqui! Receio que tenha acontecido um acidente pavoroso... Pobre Sr. Evans...

 

A AVENTURA DE ANTHONY EASTWOOD

       Anthony Eastwood olhou para o teto e em seguida para o chão. Dali o seu olhar subiu lentamente pela parede da direita, até que com um súbito esforço de vontade concentrou novamente sua atenção na máquina de escrever.

       A folha virgem de papel só era maculada por um título escrito em maiúsculas: “O MISTÉRIO DO SEGUNDO PEPINO”.

       Era um belo título. Anthony pensou que qualquer um que o lesse ficaria imediatamente interessado e curioso. — O mistério do segundo pepino, diriam, sobre o que será? Um pepino? O segundo pepino? Sem dúvida tenho de ler essa história! — E ficariam todos encantados e entusiasmados pela consumada perícia com que aquele mestre da ficção policial tecera uma trama sensacional acerca de um simples vegetal.

       Até aí tudo bem. Eastwood sabia tão bem quanto qualquer um como deveria ser a história; o problema era que de alguma forma não conseguia começar. Os dois elementos essenciais para uma história de detetive eram o enredo e o título, o resto não passava de mero trabalho braçal. Algumas vezes o título, por si só, dava origem à trama que quase se desenrolava sozinha, mas naquela manhã o título continuava a adornar solitário o topo da página sem que nem um esboço do enredo se estivesse formando.

       Outra vez os olhos do rapaz procuraram inspiração no teto, no tapete e no papel da parede sem que uma única idéia se materializasse.

       — Darei à heroína o nome de Sônia — disse Anthony para se animar — Sônia ou talvez Dolores. Terá uma cútis branca como marfim, sem que sofra de anemia, e olhos insondáveis como dois lagos profundos. O herói vai-se chamar George, ou John, um nome bem curto e britânico. O jardineiro, pois suponho que terá de existir um jardineiro para que possamos introduzir esse diabo desse pepino na história, bem, ele poderá ser um escocês gaiato e pessimista, sempre preocupado com a possibilidade de geadas precoces...

       Aquele método funcionava algumas vezes, mas naquela manhã não estava dando resultado. Embora Anthony pudesse ver Sônia, George e o cômico jardineiro claramente, eles não se mostravam dispostos a se mexer e agir.

       Naturalmente eu poderia transformar o pepino numa banana, pensou Anthony desalentado, ou numa alface ou couve de Bruxelas... Ah, couve de Bruxelas! Bruxelas poderia ser uma mensagem cifrada, um criptograma indicando um sinistro barão belga...

       Por um momento ele julgou ver uma réstia de luz que entretanto logo se desfez. O barão belga não se materializou e Anthony lembrou-se subitamente que pepinos não eram compatíveis com geadas precoces, o que dava fim às divertidas observações do jardineiro ranzinza.

       — Droga! — desabafou Eastwood e levantando-se apanhou o Daily Mail. Talvez algum pobre diabo tivesse morrido em circunstâncias que servissem de inspiração a um agoniado escritor. As manchetes do dia, porém, só falavam em política local e internacional. Anthony largou o jornal enfadado.

       Pegou então um romance que estava sobre a mesa, fechou os olhos, e desceu o dedo ao acaso sobre uma das páginas. O destino escolheu a palavra “carneiros”. Imediatamente, com espantosa clareza, os elementos de uma história delinearam-se no seu cérebro. Linda jovem, noivo morto na guerra, ela perde a razão e vai cuidar de um rebanho de carneiros nas montanhas da Escócia, reencontro místico com o noivo morto, cena final com carneiros, luar, a jovem caída morta e na neve as marcas dos passos de duas pessoas se afastando...

       Daria uma linda história. Anthony saiu de seu devaneio com um suspiro e balançou tristemente a cabeça. Sabia muito bem que o seu editor não queria aquele tipo de conto, por mais belo que fosse. O tipo que lhe agradava e que exigia de seus escritores (e pelo qual às vezes pagava regiamente) versava sobre misteriosas jovens de cabelos negros apunhaladas no coração e jovens heróis injustamente perseguidos, terminando com o súbito esclarecimento do enigma, sendo a culpa do personagem menos suspeito comprovada por indícios altamente improváveis... ou seja, item por item, “O Mistério do Segundo Pepino”.

       Mas eu aposto dez por um que ele irá substituir o título por alguma droga, como por exemplo “Um Crime Nefando”, e isso sem mesmo me consultar, considerou Anthony. Oh, que diabo de telefone!

       Dirigiu-se mal-humorado ao aparelho e pegou o fone. Fora interrompido duas vezes na última hora; a primeira fora engano, e na segunda vira-se obrigado a aceitar um convite para um jantar na casa de uma assanhadíssima senhora da sociedade que ele detestava, mas cuja pertinácia o derrotara.

       — Alô! — ele rosnou ao telefone.

       Uma voz de mulher, suave e acariciante, respondeu com um leve sotaque estrangeiro:

       — É você, amor? — perguntou ela com doçura.

       — Bem... — respondeu cautelosamente Eastwood. — Quem está falando?

       — Sou eu, Carmem. Escute, amor, estou sendo perseguida, estou em perigo, venha depressa! É uma questão de vida ou morte, venha agora!

       — Desculpe-me — retrucou Anthony cortesmente. — Receio que haja algum engano...

       Antes que pudesse acrescentar mais alguma coisa, ela interveio.

       — Madre de Dios! Estão chegando! Se descobrirem que estou telefonando, vão-me matar. Não me abandone. Venha logo, salve-me! Você sabe onde é, na rua Kirk 320. A senha é pepino... Depressa...

       Ele ouviu o leve estalido quando ela desligou o aparelho na outra extremidade.

       — Ora, macacos me mordam! — exclamou o Sr. Eastwood perplexo.

       Dirigiu-se ao pote de fumo e encheu cuidadosamente o cachimbo.

       — Só pode ter sido algum truque do meu subconsciente — disse para si. — Ela não pode ter dito pepino... Que coisa mais estranha! Será que ela disse ou não disse pepino?

       Pôs-se a andar de um lado para o outro, irresoluto.

       — Rua Kirk, 320. Que história será essa? Ela agora deve estar esperando que o seu homem chegue. Gostaria de ter explicado... Rua Kirk, 320, a senha é pepino... Oh, não! É impossível, é um absurdo, deve ter sido uma alucinação do meu cérebro cansado.

       Olhou com uma careta para a máquina de escrever.

       — Para que você serve? Eu gostaria de saber. Estive olhando para você a manhã inteira, e de nada me adiantou. Um autor deveria buscar inspiração na vida... na vida, você ouviu? Vou sair agora mesmo para procurar inspiração.

       Enfiou um chapéu na cabeça, contemplou por um instante com afeição a sua inestimável coleção de objetos antigos esmaltados e saiu do apartamento.

       A rua Kirk, como todos os londrinos sabem, é uma artéria longa e sinuosa, em grande parte ocupada por antiquários. Ali é vendida toda a sorte de mercadorias espúrias a preços atraentes, vendo-se também lojas de objetos de bronze, cristal, e de artigos de segunda mão de aspecto decadente.

       O número 320 era ocupado por uma loja de cristais antigos. Estava superlotada por objetos de vidro de toda a espécie. Anthony teve de locomover-se com a máxima cautela para não derrubar os copos de vinho que se alinhavam sobre os balcões e não bater a cabeça nos candelabros que faiscavam e balançavam no teto baixo. Uma senhora muito idosa estava sentada nos fundos da loja. Ostentava um forte buço que muito colegial teria invejado, e sua expressão era truculenta.

       A velha olhou para Anthony e perguntou numa voz poderosa:

       — O que deseja?

       Rapaz que se embaraçava com facilidade, Anthony ficou sem jeito e imediatamente perguntou o preço de uns copos para vinho branco.

       — Quarenta e cinco xelins a meia dúzia.

       — Quarenta e cinco, é? — repetiu Anthony. — São bem bonitos. E esses, quanto custam?

       — Não são lindos? É cristal Waterford antigo. Faço-lhe o par por dezoito guinéus.

       Eastwood sentiu que se estava metendo numa enrascada e que dali a pouco acabaria comprando alguma coisa, hipnotizado pelo olhar ameaçador da velha. Contudo não se decidiu a sair.

       — E aquilo ali? — perguntou apontando para um lustre.

       — Trinta e cinco guinéus.

       — Ah, é caro demais — lamentou o rapaz.

       — O que está procurando? — perguntou a velha. — Um presente de casamento?

       — Isso mesmo — concordou rapidamente Anthony. — Mas eles têm um gosto muito requintado.

       — Bem, bem — tornou a velha levantando-se com uma expressão determinada. — Todos gostam de objetos de cristal antigo. Tenho aqui este par de garrafas para licor... e este jogo de cálices que qualquer noiva irá adorar.

       Os dez minutos seguintes foram de agonia para Anthony que estava inteiramente sob o domínio da velha. Todos os tipos concebíveis de cristais desfilaram ante os seus olhos. O desespero apoderou-se dele.

       — Lindo, muito lindo — elogiou sem entusiasmo colocando sobre o balcão um grande cálice que ela lhe trouxera. Súbito, gaguejando ele perguntou: — Ah, será que a senhora tem um telefone aqui?

       — Não, não tenho, mas há uma cabine telefônica no correio aí em frente. Mas o que vai levar, o cálice ou esses copos para uísque?

       Não sendo mulher, Anthony desconhecia totalmente a sutil arte de sair de uma loja sem comprar nada.

       — Prefiro o jogo para licor — ele admitiu com desânimo.

       Era o mais barato. Seria horrível ter de comprar o lustre.

       Desalentado pagou pelo presente. Subitamente, quando a velha já estava embrulhando o pacote, recuperou a coragem. Afinal, no máximo ela o julgaria excêntrico, e de qualquer maneira, que importância tinha o que ela pensasse?

       — Pepino — ele disse com voz clara e firme.

       A velha interrompeu bruscamente o que estava fazendo.

       — Ah? O que o senhor disse?

       — Nada — mentiu Anthony apressadamente.

       — Oh! pensei que o senhor tivesse dito pepino.

       — E disse mesmo — admitiu dessa vez desafiadoramente Anthony.

       — Ora — explicou a velha senhora, — por que não disse logo? Fazendo-me perder tempo. Entre por aquela porta e suba as escadas. Ela está à sua espera.

       Como um sonho, Anthony seguiu a indicação da mulher e subiu por uns degraus sujíssimos. No topo, uma porta dava para uma minúscula sala de estar. Sentada numa cadeira, com os olhos fixos na porta e uma expressão ansiosa no rosto, estava uma jovem.

       Que jovem! Possuía realmente a pele de marfim sobre a qual Anthony escrevera com tanta freqüência. E seus olhos! Que olhos! Não era inglesa, via-se imediatamente. Tinha um ar exótico que transparecia até na simplicidade do vestido elegante e dispendioso.

       Anthony deteve-se no umbral, embaraçado. Chegara o momento das explicações. Porém, com um grito de prazer a jovem levantou-se e atirou-se em seus braços.

       — Você veio! — ela exclamou. — Você veio! Oh! Benditos sejam os santos e a Santa Mãe de Deus!

       Anthony, que não costumava deixar passar as boas oportunidades, abraçou a jovem com entusiasmo. Por fim ela afastou-se e levantou o rosto para ele com encantadora timidez.

       — Nunca o teria reconhecido — ela declarou. — Não teria mesmo.

       — Não? — indagou Anthony sem convicção.

       — Não. Até os seus olhos parecem diferentes. Você é dez vezes mais atraente do que eu julgava.

       — Sou mesmo?

       Em seu íntimo Anthony se dizia: Calma rapaz. Calma. Tudo está indo muito bem, não perca a cabeça.

       — Posso beijá-lo novamente?

       — Naturalmente — anuiu Anthony entusiasticamente. — Quanto quiser.

       Fez-se um agradabilíssimo interlúdio.

       Gostaria de saber quem diabos eu sou, pensou o rapaz. Faço votos que o verdadeiro camarada não apareça por aqui. Ela é um amor de pequena.

       Súbito a jovem afastou-se e seu rosto assumiu uma expressão aterrorizada.

       — Não o seguiram até aqui?

       — Deus do céu, não!

       — Eles são muito espertos. Você não os conhece como eu. Bóris é um demônio.

       — Eu darei um jeito em Bóris.

       — Você é valente como um leão! Sim, como um leão! Eles são uns canalhas, todos eles. Ouça, em tenho a coisa. Se soubessem, eles me matariam. Estava com medo, não sabia o que fazer, e então pensei em você... Quieto, o que foi isso?

       Ressoavam passos na loja. Fazendo-lhe um gesto para que permanecesse onde estava, ela dirigiu-se silenciosamente às escadas. Voltou pálida, de olhos arregalados.

       — Madre de Dios! É a polícia. Eles vão subir. Você tem uma faca ou um revólver?

       — Minha querida, não está pretendendo que eu mate um policial, não é?

       — Oh! Mas você está louco! Vão prendê-lo e não escapará da forca.

       — Da forca? — repetiu Eastwood, sentindo um desagradável arrepio percorrer-lhe a espinha.

       Soaram passos nas escadas.

       — Eles vêm aí — sussurrou a jovem. — Negue tudo, é a única esperança.

       — Isto é fácil — murmurou o rapaz baixinho.

       No instante seguinte dois homens entraram no quarto. Não usavam uniforme, mas seu porte revelava uma inequívoca autoridade. O mais baixo, um homem moreno, com tranqüilos olhos cinzentos, tomou a palavra.

       — Conrad Fleckman, está preso pelo assassinato de Ana Rosenburg. Tudo o que disser poderá ser usado como prova contra você. Eis aqui o mandado de prisão. É melhor que venha por bem.

       A jovem sufocou um grito. Anthony deu um passo à frente com um sorriso sereno.

       — Está cometendo um erro, detetive — retrucou cortesmente. — Meu nome é Anthony Eastwood.

       Os dois detetives não se deixaram impressionar pela declaração.

       — Veremos isso depois — tornou o que se mantivera calado até então. Enquanto isso, acompanhe-nos.

       — Conrad — gemeu a moça. — Conrad, não deixe que o levem.

       Anthony olhou para os dois detetives.

       — Os senhores com certeza permitirão que eu me despeça dessa jovem, não?

       Com mais compreensão do que ele esperara, os dois policiais dirigiram-se para a porta. Anthony puxou a jovem para perto da janela e disse-lhe rapidamente em voz baixa:

       — Escute, eu disse a verdade. Não sou Conrad Fleckman. Quando me telefonou esta manhã, fizeram a ligação errada. Meu nome é Anthony Eastwood. Atendi a seu pedido de socorro porque... bem, porque quis.

       Ela fitou-o incrédula.

       — Você não é Conrad Fleckman?

       — Não.

       — Oh! — exclamou a jovem com uma expressão constrangida. — E eu o beijei!

       — Não faz mal — tranqüilizou-a o rapaz. — Os cristãos primitivos beijavam-se habitualmente. É um ótimo costume. Agora ouça: vou acompanhar esses dois, mas logo provarei a minha identidade. Enquanto isso a deixarão em paz e você poderá avisar esse seu querido Conrad. Mais tarde...

       — Sim?

       — Bem, meu telefone é NW 1743. Tome cuidado para não errar a ligação novamente.

       Ela lançou-lhe um olhar cativante, indecisa entre as lágrimas e um sorriso.

       — Eu não esquecerei. Não esquecerei, mesmo.

       — Então está bem. Adeus... Olhe...

       — O que é?

       — Por falar em cristãos primitivos... Uma vez mais não faria mal algum, não acha?

       Ela enlaçou o pescoço do rapaz com os braços. Seus lábios apenas roçaram os dele.

       — Eu gosto de você. Sim, gosto de você. Não se esqueça disso, aconteça o que acontecer.

       Anthony afastou-se dela com relutância e dirigiu-se a seus captores.

       — Estou pronto para acompanhá-los. Não pretendem deter essa jovem, não?

       — Não, senhor. Nada temos contra ela — disse o homem mais baixo cortesmente.

       Camaradas decentes, esses policiais da Scotland Yard, pensou Anthony ao segui-los pelos estreitos degraus.

       Não havia sinal da velha na loja, mas Anthony percebeu uma respiração ofegante ao passar junto à porta dos fundos. Adivinhou que ela estava atrás da mesma, observando cautelosamente os acontecimentos.

       Fora, na rua, Anthony respirou fundo e dirigiu-se ao mais baixo dos dois policiais:

       — Agora, Inspetor... O senhor é um Inspetor, não?

       — Sim, senhor. Inspetor-Detetive Verral. Este é o Sargento-Detetive Carter.

       — Bem, Inspetor Verral, chegou o momento de falarmos a sério. Eu não sou esse Conrad não-sei-o-que-lá. Meu nome é Anthony Eastwood e sou escritor. Se me acompanhar até o meu apartamento, posso dar-lhe provas da minha identidade.

       O tom decidido com que Anthony falou pareceu impressionar os detetives. Pela primeira vez o rosto de Verral assumiu uma expressão de dúvida.

       Carter, aparentemente, era mais duro de convencer.

       — Ah, é? — retrucou com ironia. — Mas se não me engano a jovem chamou-o de Conrad mesmo.

       — Ah, esta é outra questão. Não me incomodo de admitir que por... razões pessoais apresentei-me àquela jovem como sendo esse tal Conrad. Por razões particulares, entendam.

       — Sua história é muito pouco convincente — observou Carter. — Nada disso, o senhor vai nos acompanhar. Chame aquele táxi, Joe.

       O táxi parou e os três homens entraram. Anthony fez uma última tentativa, virando-se para Verral que lhe pareceu o mais acessível dos dois.

       — Escute, caro Inspetor. Que mal pode haver nos senhores me acompanharem ao meu apartamento para verificarem se estou falando a verdade? Deixem o táxi esperando, fica por minha conta. De qualquer modo não perderão mais de cinco minutos.

       Verral olhou-o com atenção.

       — Farei o que deseja — ele acedeu subitamente. — Por estranho que pareça, acredito que o senhor esteja falando a verdade. Não quero fazer papel de idiota aparecendo no departamento com o homem errado. Qual é o endereço?

       — Brandenburg Mansions, 48.

       Verral inclinou a cabeça para fora e gritou o endereço para o motorista. Em silêncio os três aguardaram até chegar ao prédio. Quando Carter desceu, Verral fez sinal a Anthony que o seguisse.

       — Não há necessidade de grosserias — declarou ao sair do carro. — Vamos entrar como amigos. Façamos de conta que o Sr. Eastwood está trazendo dois convidados.

       Anthony ficou muito grato por tal atitude. Sua opinião a respeito do Departamento de Investigações Criminais crescia a cada minuto.

       No vestíbulo tiveram a sorte de encontrar Rogers, o porteiro. Anthony deteve-se.

       — Boa-noite — Rogers — cumprimentou casualmente.

       — Boa-noite, Sr. Eastwood — respondeu o porteiro respeitosamente. Gostava de Anthony, cuja liberalidade nem sempre era imitada por seus vizinhos.

       Anthony deteve-se já com o pé no primeiro degrau das escadas.

       — Rogers, lembra-se por acaso de há quanto tempo moro aqui? — perguntou no mesmo tom casual. — Estava discutindo esse ponto aqui com os meus amigos.

       — Deixe-me ver, senhor... Acho que há quase quatro anos.

       — Foi o que pensei.

       Anthony olhou para os detetives com uma expressão triunfante. Carter resmungou, mas Verral sorriu.

       — Um ponto a seu favor, senhor, mas ainda não é o bastante — ele replicou. — Vamos subir.

       Anthony abriu a porta do apartamento com a sua chave, lembrando-se aliviado que Seamark, o seu criado, estava de folga. Quanto menos testemunhas houvesse daquele vexame, melhor.

       A máquina de escrever estava como a deixara. Carter encaminhou-se até a mesa e com uma voz lúgubre leu o título da folha:

       — “O Mistério do Segundo Pepino.”

       — É uma história que vou escrever — explicou Anthony.

       — Outro ponto a seu favor — tornou Verral com um olhar maroto, balançando a cabeça. — E por falar nisso, como é a história? Qual era o mistério do segundo pepino?

       — Aí é que me pegaram — retorquiu Anthony. — Foi esse segundo pepino que deu origem a toda essa confusão.

       Carter observava-o atentamente. Súbito sacudiu a cabeça e com um gesto sugestivo apontou para a própria testa:

       — É meio pancada, coitado — murmurou em voz audível.

       — Mas agora, senhores, vamos ao nosso caso — disse o rapaz com determinação. — Aqui estão algumas cartas endereçadas a mim, meu talão de cheques, notas dos meus editores. O que mais desejam?

       Verral examinou os papéis que Anthony lhe entregara.

       — Quanto a mim, estou satisfeito — declarou respeitosamente o detetive. — Isto é suficiente. Mas não posso assumir sozinho a responsabilidade de liberá-lo. Embora pareça inegável que o senhor reside aqui há alguns anos com o nome de Eastwood, sempre existe a possibilidade de que Anthony Eastwood e Conrad Fleckman sejam a mesma pessoa. Preciso revistar o seu apartamento, tirar suas impressões digitais e telefonar para a sede do departamento.

       — Parece-me um bom plano — comentou Anthony. — Esteja à vontade. Meus segredos estão todos à sua disposição.

       O inspetor sorriu. Era bastante humano para um detetive.

       — Quer esperar no quarto dos fundos com Carter, enquanto procedo à busca?

       — Está bem — anuiu Anthony com relutância. — Não poderia ser de outra forma, poderia?

       — Como assim?

       — O senhor e dois uísques com soda poderiam fazer-me companhia no quarto dos fundos enquanto o seu amigo sargento revista o apartamento.

       — Se preferir assim, senhor...

       — Eu prefiro.

       Deixaram Carter vasculhando o conteúdo da escrivaninha com perícia profissional. Ao sair da sala ouviram-no pegar o telefone e chamar a Scotland Yard.

       — Assim está melhor — disse Anthony sentando-se ao lado da bandeja de uísque, tendo antes atendido hospitaleiramente as necessidades do Inspetor Verral.

       — Devo beber primeiro para mostrar que o uísque não está envenenado?

       O inspetor sorriu.

       — Isto é muito irregular — comentou. — Porém em nossa profissão acabamos por adquirir certa intuição. Vi logo de início que havíamos cometido um erro, embora tenhamos, naturalmente, de seguir os regulamentos. Não se pode escapar da burocracia, não é, senhor?

       — Suponho que não — lamentou Anthony. — Mas o sargento ainda não me parece muito amistoso.

       — Ah, mas ele é um ótimo profissional. Seria difícil iludi-lo.

       — Já percebi — anuiu Anthony e acrescentou: — Por falar nisso, inspetor, se não há objeções, gostaria de saber alguma coisa sobre o crime que cometi.

       — Como assim, senhor?

       — Ora, vamos, não vê que estou morrendo de curiosidade? Quem era Ana Rosenburg, e por que eu a teria matado?

       — Amanhã o senhor vai ler toda a história nos jornais.

       — “Amanhã talvez eu seja eu mesmo com mais os dez mil anos de ontem” — tornou Anthony citando Fitzgerald. — Na verdade acho que o senhor poderia perfeitamente satisfazer a minha natural curiosidade, inspetor. Esqueça um pouco essa sua discrição profissional e conte-me tudo.

       — Isto seria muito irregular, senhor.

       — Ora, meu caro inspetor, logo quando nos estávamos tornando tão bons amigos?

       — Bem, Ana Rosenburg era uma judia alemã que morava em Hampstead. Sem meios visíveis de subsistência, ela estava cada dia mais rica.

       — Comigo dá-se justamente o contrário — comentou Anthony. — possuo meios visíveis de subsistência e estou a cada ano mais pobre. Talvez eu progredisse mais se morasse em Hampstead. Sempre ouvi dizer que o lugar é muito revigorante.

       — No passado — continuou Verral, — ela negociou com roupas de segunda mão.

       — Então está explicado — interveio Anthony. — Isto me lembra quando vendi meus uniformes de gala depois da guerra. O apartamento estava superlotado de calças vermelhas e alamares dourados, dispostos de forma a realçar seu aparato. Entrou um homem gordo de terno xadrez que veio num Rolls Royce, acompanhado por um comparsa com uma mala. Ofereceram uma libra pelo lote. Tive de juntar um capote e meus binóculos Zeiss para obter duas libras. O ajudante meteu tudo na mala e o gordo me estendeu uma nota de dez libras e pediu o troco!

       — Há cerca de dez anos atrás — prosseguiu o inspetor — vieram para Londres muitos refugiados espanhóis, entre os quais um certo Dom Fernando Ferrarez com sua esposa e um filho. Eram muito pobres e a mulher estava doente. Ana Rosenburg foi ao quarto onde moravam e perguntou se tinham alguma coisa para vender. Dom Fernando não estava, e sua esposa resolveu desfazer-se de um espetacular xale espanhol, maravilhosamente bordado, o último presente que recebera do marido antes de fugirem da Espanha. Quando Dom Fernando voltou, ficou furioso com a venda e tentou inutilmente recuperar o xale. Quando por fim conseguiu encontrar a compradora de roupas usadas, ela declarou que vendera o xale para uma mulher desconhecida. O espanhol ficou desesperado. Dois meses mais tarde foi apunhalado na rua e morreu em conseqüência dos ferimentos. Dali em diante, Ana Rosenburg começou a desfrutar de um luxo muito suspeito. Nos dez anos que se seguiram sua casa foi assaltada nada menos do que oito vezes. Quatro dessas tentativas foram frustradas e nada foi roubado. Das outras vezes, entre as perdas estava sempre um xale qualquer.

       O inspetor calou-se, mas prosseguiu obedecendo a um gesto de encorajamento de Anthony:

       — Uma semana atrás, Carmem Ferrarez, a filha de Don Fernando que estava num convento na França, chegou a esse país. Seu primeiro ato foi procurar Ana Rosenburg em Hampstead. Ali teria havido uma violenta cena entre ela e a velha. Um dos criados ouvia-a ameaçar ao sair: — “Você vai ver! Esses anos todos ganhou fortunas com ele, mas juro solenemente que no final ele lhe trará má sorte. Não tem nenhum direito a ele, e vai chegar o dia em que desejará nunca ter visto o Xale das Mil Flores!”

       — Três dias depois — acrescentou o inspetor — Carmem Ferrarez desapareceu misteriosamente do hotel em que estava hospedada. Em seu quarto foi encontrado um nome e um endereço, o de Conrad Fleckman, e também um bilhete de alguém que se dizia antiquário perguntando-lhe se queria desfazer-se de um xale bordado que estaria em seu poder. O endereço dado no bilhete era falso... Não há dúvida que este xale é o centro do mistério. Ontem de manhã Conrad Fleckman foi à casa de Ana Rosenburg. Ficaram a sós mais de uma hora, e quando ele saiu a velha foi obrigada a deitar-se, tão pálida e desfeita ficara com a entrevista. Mas deu ordens para que se ele viesse procurá-la novamente, deveria ser recebido. À noite passada, ela levantou-se e saiu por volta das nove horas. Não voltou. Foi encontrada essa manhã na casa ocupada por Conrad Fleckman com um punhal no coração. No chão, ao seu lado, estava... Quer dar um palpite?

       — O xale? — balbuciou Anthony. — O Xale das Mil Flores?

       — Algo muito mais horripilante do que isso. Algo que elucidou por completo o mistério que cercava o xale e tornou claro o seu valor... Desculpe-me, acho que é o chefe.

       Alguém tocara mesmo a campainha. Anthony controlou como pôde a impaciência e esperou a volta do inspetor. Estava tranqüilo quanto a sua situação, agora. Assim que tirassem as suas impressões digitais verificariam o engano.

       E depois, talvez, quem sabe, Carmem telefonaria...

       O Xale das Mil Flores! Que história estranha... o tipo de história que criava um cenário adequado à extraordinária beleza da jovem.

       Carmem Ferrarez...

       Com um esforço ele arrancou-se do devaneio. Como estava demorando o inspetor! Levantou-se e abriu a porta. O apartamento estava estranhamente silencioso. Verral teria ido embora? Certamente não sem o avisar.

       Atravessou o seu quarto. Vazio, assim como o living. Estranhamente vazio. Tinha um aspecto desolado e frio. Deus do céu! Seus objetos esmaltados... a prataria!

       Atordoado, percorreu o apartamento. Por toda a parte a mesma coisa. O apartamento fora despojado.

       Todos os seus objetos de valor, e Anthony tinha o gosto requintado de um colecionador, haviam sido roubados.

       Com um gemido o rapaz deixou-se cair numa poltrona com a cabeça entre as mãos. A campainha da porta da frente o despertou. Quando a abriu deparou com Rogers.

       — Desculpe-me, senhor — disse o porteiro — mas aqueles cavalheiros acharam que o senhor poderia estar precisando de alguma coisa.

       — Que cavalheiros?

       — Os seus dois amigos, senhor. Ajudei-os a empacotar as coisas o melhor que pude. Foi uma sorte eu ter aqueles dois caixotes lá no porão.

       Rogers olhou para o chão e acrescentou:

       — Varri a palha o melhor que pude.

       — Você empacotou as minhas coisas aqui? — gemeu Anthony.

       — Sim, senhor. Não era o que o senhor queria? Foi o que o cavalheiro alto me disse. Vi que o senhor estava conversando com o outro lá no quarto dos fundos e não quis perturbá-lo.

       — Eu não estava conversando com ele, ele é que me estava passando na conversa — retrucou Anthony. — Que os diabos o levem!

       Rogers tossiu.

       — Lamento muito que tenha havido essa necessidade.

       — Que necessidade?

       — O senhor precisar vender as suas preciosidades.

       — Hum? Ah, sim, Ha! Ha! — o rapaz deu uma risada sem graça. — Aqueles meus amigos já devem ter ido embora, não?

       — Ah, sim senhor. Já fez algum tempo. Coloquei os caixotes no carro, o cavalheiro alto tornou a subir e logo os dois desceram correndo e foram embora... Desculpe-me, senhor, há alguma coisa errada?

       A pergunta de Rogers era cabível. O gemido que Anthony deixara escapar teria preocupado qualquer um.

       — Está tudo errado, Rogers, obrigado. Mas posso ver claramente que a culpa não é sua. Agora eu preciso falar ao telefone.

       Cinco minutos depois Anthony despejava a sua história nos ouvidos atentos do Inspetor Driver que estava sentado à sua frente com um caderninho de notas.

       Pouco simpático, esse inspetor, pensou Anthony. Nada parecido com a minha imagem de um detetive. Diria que é falso. Eis outro exemplo espantoso da superioridade da arte sobre a natureza.

       Finalmente Anthony terminou a narrativa. O inspetor fechou o caderninho.

       — Bem? — indagou o rapaz ansioso.

       — Claro como o dia — replicou o inspetor. — Foi a quadrilha dos Pattersons: um louro alto, um moreno baixo e uma moça. Têm feito muitos “trabalhinhos” ultimamente.

       — Uma moça?

       — Sim, de cabelos negros e muito bonita. Funciona como isca, geralmente.

       — Uma jovem espanhola.

       — Ela se faz passar por tal. Na verdade nasceu em Hampstead.

       — Eu bem que disse que o lugar era revigorante — murmurou Anthony.

       — Sim, está bem claro — repetiu o inspetor levantando-se para sair. — Ela telefonou e engabelou-o com uma história qualquer até sentir que o senhor iria em seu socorro. Foi procurar então a velha Gibson que costuma ceder por uma boa gorjeta o seu quarto no sobrado a pessoas que receiam encontrar-se em público. Amantes, compreende, não criminosos. O senhor caiu na esparrela, eles o acompanharam e enquanto um deles o entretinha, o outro arrecadava a mercadoria. São os Pattersons, sem dúvida, é bem o estilo deles.

       — E minhas coisas? — perguntou Anthony ansioso.

       — Faremos o que estiver a nosso alcance, senhor. Mas os Pattersons são invulgarmente espertos.

       — É o que parece — retrucou Anthony com azedume.

       O inspetor retirou-se. A porta se fechara há apenas alguns instantes quando a campainha tocou. Anthony atendeu e deparou com um garoto portando um embrulho.

       — Encomenda para o senhor.

       Anthony recebeu-a algo surpreso. Não estava esperando coisa alguma. De volta à sala de estar, cortou o barbante. Era o jogo para licor!

       — Droga! — explodiu o rapaz.

       Então percebeu no fundo de um dos cálices uma delicada e minúscula rosa artificial. Seu pensamento voltou ao quarto do sobrado da rua Kirk.

       “Gosto de você. Sim, eu gosto de você. Não se esqueça disso, aconteça o que acontecer...”

       Será que ela...

       Anthony refreou-se com energia.

       — Nada disso, meu amigo — advertiu a si mesmo. Seu olhar bateu na máquina de escrever. Dirigiu-se à escrivaninha e sentou-se com uma expressão determinada.

       Seu rosto adquiriu novamente um ar sonhador. O Xale das Mil Flores... O que teria sido encontrado no chão ao lado do cadáver? Qual seria a coisa horripilante que explicava todo o mistério?

       Na verdade, nada. Tratava-se apenas de uma invencionice para captar a sua atenção, e o narrador empregara o velho truque das Mil e Uma Noites, interrompendo a narrativa no ponto mais emocionante.

       Mas não poderia existir um objeto que explicasse todo o mistério? Não poderia? Provavelmente, se alguém se aplicasse a fundo ao problema.

       Anthony puxou com decisão a folha de papel da máquina e colocou uma nova. Resolutamente começou a bater um novo título.

      

O MISTÉRIO DO XALE ESPANHOL

       Contemplou as palavras em silêncio por alguns instantes e então começou a bater com rapidez...

       O MISTÉRIO DA REGATA

       O Sr. Isaac Pointz tirou o charuto da boca e comentou com aprovação:

       — Lugarzinho bonito, esse.

       Tendo assim concedido o seu beneplácito ao porto de Dartmouth, recolocou o charuto na boca e olhou em torno com o ar de um homem satisfeito consigo mesmo, seu aspecto, o ambiente e a vida em geral.

       Quanto ao primeiro desses itens, o Sr. Isaac Pointz era um homem de cinqüenta e oito anos, de boa saúde, apenas com uma ligeira deficiência das vias biliares. Não era exatamente gordo, mas confortavelmente constituído. Embora a roupa apropriada para velejar que usava no momento não favorecesse de modo especial a homens de meia idade com uma tendência para a corpulência, o Sr. Pointz estava elegantíssimo, correto em todos os detalhes. Sob a aba do boné o seu rosto moreno, levemente oriental, ostentava um sorriso amplo.

       Quanto ao ambiente, incluía os seus convidados: seu sócio Leo Stein, Sir George e Lady Marroway, um homem de negócios americano, o Sr. Samuel Leathern e sua filha Eve, ainda uma colegial, a Sr.a Rustington e Evan Llewellyn.

       O grupo acabara de descer do iate do Sr. Pointz, o Merrimaid. Tinham visto a regata de manhã e agora desciam para desfrutar um pouco das atrações do parque de diversões: O Homem Aranha, A Mulher Gorda, O Tiro ao Alvo e Os Carrosséis. Foi Eve Leathern quem evidentemente mais se deleitou com esses prazeres, e quando finalmente o Sr. Pointz sugeriu que era tempo de seguirem para o Royal George para o jantar, a única voz dissidente foi a sua.

       — Oh, Sr. Pointz! Eles têm uma cigana de verdade e eu queria tanto ver a minha sorte!

       O Sr. Pointz duvidava muito da autenticidade da tal cigana, mas anuiu com indulgência.

       — Eve está maluquinha pelo parque — desculpou-a o pai — mas não deve dar-lhe atenção se deseja ir agora.

       — Há muito tempo — tornou condescendente o Sr. Pointz. — Deixemos a jovem divertir-se. Vamos aos dardos, Leo.

       — Quem fizer acima de vinte e cinco pontos ganha um prêmio — anunciava o homem da barraca dos dardos numa voz anasalada.

       — Aposto cinco libras que faço mais pontos do que você — desafiou Pointz.

       — Feito — concordou Stein com entusiasmo, e logo os dois homens empenharam-se alegremente na disputa.

       Lady Marroway cochichou para Evan Llewellyn:

       — Eve não é a única criança do nosso grupo.

       Llewellyn sorriu distraidamente. Estivera absorto em seus pensamentos o dia todo. Umas duas vezes dera respostas que pouco tinham a ver com as perguntas.

       Pamela Marroway afastou-se dele e dirigiu-se ao marido.

       — Aquele rapaz está preocupado com alguma coisa.

       — Ou com alguém... — acrescentou Sir George lançando um olhar a Janet Rustington.

       Lady Marroway franziu ligeiramente a testa. Alta, vestia-se com requinte e as unhas escarlates repetiam a tonalidade dos brincos de coral que trazia nas orelhas. Os olhos eram escuros e atentos. As maneiras de Sir George eram as de um descuidado e jovial cavalheiro inglês, mas seus vivos olhos azuis tinham a mesma expressão alerta dos da esposa.

       Isaac Pointz e Leo Stein negociavam com diamantes em Hatton Garden. Já Sir George e Lady Marroway vinham de um mundo bem diverso, Antilhas e Juan-les-Pins, golfe em St.-Jean-de-Luz, e invernos na ilha da Madeira.

       Aparentemente eram como os lírios do campo que não labutam nem tecem, porém talvez isso não fosse inteiramente verdade. Há diversas formas de labutar e tecer.

       — Aí vem a garota de volta — disse Evan Llewellyn à Sr.a Rustington.

       Llewellyn era um jovem moreno com um ligeiro ar de lobo esfaimado que as mulheres achavam muito atraente. Contudo era difícil dizer se a Sr.a Rustington também era dessa opinião. Não era do tipo que exterioriza seus sentimentos. Casara-se cedo, mas o casamento fora um desastre e terminara em menos de um ano. Desde então fora difícil saber o que Janet Rustington pensava a respeito de alguém ou de qualquer coisa, pois suas maneiras eram sempre as mesmas, encantadoras mas distantes.

       Eve Leathern aproximou-se aos pulos com os cabelos louros e lisos dançando em torno dos ombros. Aos quinze anos era ainda uma criança desajeitada embora cheia de vitalidade.

       — Vou-me casar com dezessete anos com um homem muito rico! — ela exclamou ofegante. — Vamos ter seis filhos, as terças e as quintas-feiras são os meus dias de sorte, devo vestir-me sempre de azul ou verde, as esmeraldas constituem a minha pedra de sorte e...

       — Vamos, vamos, já está na hora — interveio o pai.

       O Sr. Leathern era um homem alto e loiro com uma expressão desanimada e ar de quem sofria de dispepsia.

       O Srs. Pointz e Stein voltavam dos dardos. O primeiro ria enquanto o companheiro apresentava um ar de aborrecimento.

       — Foi apenas uma questão de sorte — dizia este.

       O Sr. Pointz bateu alegremente no bolso.

       — É, mas eu ganhei as cinco libras. Foi perícia, meu amigo, pura perícia. Meu velho era um jogador de dardos de primeira classe. Bem, pessoal, então vamos indo. Leram a sua sorte, Eve? Disseram-lhe para tomar cuidado com um homem moreno?

       — Com uma mulher morena — retificou Eve. — Uma mulher ligeiramente estrábica que me pode fazer muito mal se eu lhe der uma chance. Vou me casar quando tiver dezessete anos...

       Prosseguiu tagarelando alegremente enquanto o grupo se dirigia para o Royal George.

       O previdente Sr. Pointz encomendara o jantar com antecedência e um prestimoso garçom conduziu-os a um reservado no primeiro andar onde uma mesa redonda já estava preparada. Uma grande janela oitavada abria para a praça do cais. Até eles vinha o alvoroço do parque e a cantilena estridente dos três carrosséis que tocavam canções diferentes.

       — É melhor fechá-la se quisermos ouvir nossas vozes — propôs o Sr. Pointz executando ele mesmo a sua sugestão.

       O grupo distribuiu-se em torno da mesa enquanto o Sr. Pointz sorria beatificamente aos seus convidados. Sentia que estava sendo magnânimo e gostava disso. Seus olhos percorreram lentamente o grupo. Lady Marroway, uma bela mulher, não era bem o artigo genuíno. Sabia perfeitamente disso, ciente de que aquilo que toda a vida chamara de la crême de la crême não se envolveria com os Marroways, mas então essa mesma crême de la crême ignorava totalmente a sua própria existência. De qualquer forma, Lady Marroway era uma mulher chiquérrima e ele não se importava se ela roubava no bridge. Já quando o espertinho era Sir George, o caso não era tão agradável. O sujeito tinha um olhar velhaco e era um descarado arrivista, mas não levaria a melhor sobre Isaac Pointz. Ele cuidaria disso. O velho Leathern não era um mau sujeito. Falastrão e prolixo como a maioria dos americanos, gostava de desfiar histórias intermináveis. Ainda por cima tinha o desconcertante costume de pedir informações precisas. Qual era a população de Dartmouth? Em que ano fora construída a Escola Naval? E aí por diante. Na certa achava que o seu anfitrião era um almanaque ambulante. Eve, uma garota simpática e alegre. A voz era muito estridente, mas tinha a cabeça no lugar. Uma menina esperta.

       O jovem Llewellyn estava quieto demais, devia estar preocupado com alguma coisa. Falta de dinheiro, provavelmente. Esses escritores estão sempre quebrados. Talvez estivesse apaixonado por Janet Rustington. Uma mulher simpática, atraente e inteligente também, que não alardeava sua erudição. Também era escritora e intelectual, mas ninguém adivinharia ouvindo-a conversar. O velho Leo! Não estava ficando nem um pouquinho mais magro ou mais jovem.

       Beatificamente ignorante do que o seu sócio estava pensando a seu respeito, o Sr. Pointz interrompeu o Sr. Leathern para dizer-lhe que as sardinhas provinham de Devon e não de Cornwall, e preparou-se para saborear a refeição.

       — Sr. Pointz — principiou Eve quando os garçons se retiraram após servir a cavala.

       — Sim, minha jovem?

       — O senhor tem aí aquele brilhante grandão? Aquele que nos mostrou ontem à noite? Disse que andava sempre com ele.

       O Sr. Pointz deu uma risadinha.

       — E ando mesmo. É a minha mascote. Sim, tenho-o comigo.

       — Não acha isso muito perigoso? Nessa confusão toda da feira alguém poderia tê-lo roubado do senhor.

       — Não roubam, não — tornou o Sr. Pointz. — Deixe comigo.

       — Mas podem tentar — insistiu Eve. — Vocês também têm gangsters aqui na Inglaterra, não têm?

       — Eles não roubarão a minha Estrela da Manhã — disse o Sr. Pointz. — Para começar, trago-a num bolso interno especial. E de qualquer forma, o velho Pointz sabe muito bem o que está fazendo. Ninguém vai roubar a Estrela da Manhã.

       Eve riu.

       — Hum! Pois eu aposto que poderia roubá-la!

       — E eu aposto que não pode! — replicou o Sr. Pointz piscando para ela.

       — Bem, eu acho que posso. Estava pensando nisso ontem à noite na cama, depois que o senhor nos mostrou a pedra. Acho que achei um jeitinho de ficar com ela.

       — E que jeitinho é esse?

       Ela inclinou a cabeça para um lado balançando os cabelos louros.

       — Não lhe vou contar agora. Mas quanto quer apostar que eu poderia?

       Os pensamentos do Sr. Pointz voaram à sua juventude.

       — Meia dúzia de pares de luvas — disse ele.

       — Luvas — replicou Eve com uma careta. — Quem liga para luvas?

       — Bem... e de meias de seda, você gosta?

       — Ora se gosto! Correu o fio do meu melhor par hoje de manhã.

       — Muito bem, então. Meia dúzia de pares de meia da melhor qualidade.

       — Ah! — fez Eve deliciada. — E quanto ao senhor?

       — Preciso de uma bolsa nova para fumo.

       — Certo. Está apostado. Mas não conte com a sua bolsa de fumo. Agora vou dizer-lhe o que tem a fazer. Quero que nos mostre novamente a pedra como fez ontem à noite...

       Ela calou-se com a entrada de dois garçons que vieram retirar os pratos. Quando todos começaram a servir-se de galinha, o Sr. Pointz advertiu-a:

       — Lembre-se, minha jovem, que num caso de roubo real eu chamaria a polícia e todos seriam revistados.

       — Eu não me importo. Mas o senhor não precisa ser tão realista, Lady Merroway ou a Sr.a Rustington podem-me revistar o quanto o senhor desejar.

       — Bem, então está combinado — disse o Sr. Pointz. — Será que você está treinando para ser uma famosa ladra de jóias?

       — Até que a idéia não seria má, se a profissão fosse compensadora.

       — Seria compensadora, sem dúvida, se conseguisse roubar a Estrela da Manhã. Mesmo relapidada, a pedra valeria mais do que trinta mil libras.

       — Nossa! — exclamou impressionada. — Quanto é isso em dólares?

       Lady Marroway soltou uma exclamação.

       — E o senhor carrega consigo uma pedra desse valor? — ela censurou-o. — Trinta mil libras... — os seus cílios estremeceram sob o rímel.

       A Sr.a Rustington disse com suavidade:

       — É muito dinheiro... E há também o fascínio da pedra. É belíssima.

       — Não passa de um pedaço de carbono — replicou Evan Llewellyn.

       — Sempre ouvi dizer que o receptador é o grande problema dos ladrões de jóia — comentou Sir George. — Eles ficam com a parte do leão.

       — Vamos, vamos começar logo — insistiu Eve excitada. — mostre-nos o diamante e repita o que nos disse ontem à noite.

       O Sr. Leathern interveio com sua voz profunda e melancólica:

       — Peço desculpas pelo comportamento de minha filha. Às vezes ela se excede...

       — Chega, papai — disse Eve. — E agora, Sr. Pointz...

       Sorrindo o negociante enfiou a mão dentro da jaqueta e tirou um objeto que faiscava em sua palma aberta.

       Um enorme brilhante...

       Em tom formal o Sr. Pointz repetiu o mais aproximadamente possível a sua fala da noite anterior a bordo do Merrimaid.

       — Será que os senhores querem dar uma olhada nisto? É uma pedra invulgarmente bela. Batizei-a de A Estrela da Manhã. Ela tornou-se a minha mascote. Levo-a comigo a toda parte. Gostariam de vê-la?

       Entregou a pedra a Lady Marroway que elogiou a sua beleza e passou-a ao Sr. Leathern que disse em tom muito artificial antes de entregá-la ao Llewellyn:

       — Muito boa, muito boa mesma.

       Neste momento entraram os garçons e a encenação foi interrompida. Quando eles se retiraram Evans disse:

       — É uma bela pedra.

       Em seguida entregou-a a Leo Stein que não se deu ao trabalho de fazer um comentário, passando-a imediatamente a Eve.

       — Que maravilha! — exclamou a garota numa voz muito afetada. — Oh! — exclamou consternada quando a pedra escorregou de sua mão. — Deixei-a cair!

       Eve afastou a cadeira e abaixou-se para procurar debaixo da mesa. Sir George, à sua direita, curvou-se também. Na confusão um copo estilhaçou-se no chão. Stein, Llewellyn e a Sra. Rustington se incorporaram à busca. Por fim Lady Marroway também se abaixou.

       Apenas o Sr. Pointz não participou da comoção geral. Permaneceu sentado saboreando seu vinho com um sorriso sardônico.

       — Oh, meu Deus! — exclamou Eve ainda como se estivesse representando. — Que horror! onde é que ela pode ter ido parar? Não consigo encontrá-la em parte alguma!

       Um por um seus auxiliares levantaram-se.

       — A pedra realmente desapareceu, Pointz — disse Sir George sorrindo.

       — Executado com maestria — observou o Sr. Pointz com um gesto de aprovação. — Você daria uma ótima atriz, Eve. O problema agora é descobrir se a pedra está em seu poder ou se a escondeu em algum lugar.

       — Podem revistar-me — declarou Eve em tom dramático.

       O olhar do anfitrião dirigiu-se a um grande biombo que havia a um canto da sala. Ele fez um gesto em direção do mesmo e olhou para Lady Marroway e a Sr.a Rustington.

       — Se as senhoras quiserem fazer-me o obséquio...

       — Ora, sem dúvida — anuiu Lady Marroway sorrindo.

       As duas mulheres se levantaram.

       — Não tenha receio, Sr. Pointz — acrescentou Lady Marroway. — Faremos uma revista completa.

       As três se retiraram para trás do biombo.

       A sala estava quente. Evan Llewellyn abriu a janela. Embaixo um jornaleiro ia passando. Evan atirou-lhe uma moeda e o homem jogou-lhe um jornal.

       Llewellyn desdobrou-o.

       — A situação na Hungria não está nada boa — comentou.

       — É o pasquim local? — perguntou Sir George. — Estou interessado num cavalo que deve ter corrido hoje em Haldon, o Natty Boy.

       — Leo, tranque a porta — pediu o Sr. Pointz. — Não queremos que estes malditos garçons fiquem entrando e saindo até acabar essa história.

       — Natty Boy ganhou. Pagou três por um — disse Evan.

       — Hum, podia ter sido melhor — resmungou Sir George.

       — Quase que só tem notícias da regata — comentou Evan passando os olhos pela folha.

       As três jovens mulheres saíram detrás do biombo.

       — Nem sinal da pedra — anunciou Janet Rustington.

       — Acredite em mim, ela não a tem — declarou Lady Marroway.

       O Sr. Pointz acreditava nela de boa vontade. Pelo tom cortante e implacável de sua voz, não tinha dúvidas de que a busca fora completa.

       — Ei, Eve, você não a engoliu, não foi? — perguntou ansioso o Sr. Leathern. Poder-lhe-ia fazer mal.

       — Eu não a vi fazer tal coisa — retrucou Leo Stein em voz baixa. — Estava observando-a. Ela não colocou nada na boca.

       — Eu não poderia engolir uma coisa grande e pontiaguda como aquela pedra — disse Eve, e colocando as mãos nos quadris olhou para o Sr. Pointz. — E agora, garotão? — perguntou.

       — Fique aí onde está e não se mova — respondeu o negociante.

       Os homens tiraram tudo de cima da mesa e viraram-na de cabeça para baixo. O Sr. Pointz examinou-a centímetro por centímetro, e em seguida transferiu sua atenção para a cadeira em que Eve estivera sentada e as que ficavam ao lado.

       A busca foi a mais completa e minuciosa possível. Os cinco homens e as duas mulheres empenharam-se a fundo enquanto Eve Leathern, em pé junto à parede perto do biombo, ria gostosamente.

       Cinco minutos depois o Sr. Pointz levantou-se com um gemido e desalentado limpou os joelhos das calças. Sua imaculada elegância fora algo danificada.

       — Eve, tiro-lhe o chapéu — disse ele. — Você é a mais estupenda ladra de jóias que já encontrei. Não consigo saber o que fez com a pedra. No meu entender, se ela não está em seu poder, deveria estar aqui na sala. Reconheço a minha derrota.

       — Ganhei as meias? — perguntou Eve.

       — São todas suas, minha jovem.

       — Eve, meu bem, onde você a escondeu? — indagou com curiosidade a Sr.a Rustington.

       A garota adiantou-se.

       — Vou-lhes mostrar. Ficarão loucos de raiva.

       Ela dirigiu-se à mesa de serviço onde os objetos da mesa de refeição haviam sido empilhados sem cuidado e apanhou sua pequena bolsa preta de noite.

       — Está bem aqui, debaixo de seus narizes. Bem aqui...

       Sua voz alegre e triunfante extinguiu-se de repente.

       — Oh! — ela exclamou. — Oh!...

       — O que há, querida? — perguntou o pai.

       Eve murmurou:

       — Sumiu... Não está aqui...

       — O que aconteceu? — perguntou Pointz adiantando-se.

       Eve virou-se para ele num ímpeto.

       — Escute. Essa minha carteira tinha uma grande pedra falsa no centro do fecho. Ela caiu ontem à noite, e quando o senhor nos mostrou o diamante, notei que eram aproximadamente do mesmo tamanho. Foi aí que me ocorreu a idéia para um roubo. Pensei que poderia encaixar a pedra na armação e prendê-la com plasticina. Tive a certeza de que ninguém iria notá-la ali. E foi o que fiz esta noite. Deixei-a cair primeiro, em seguida me abaixei com a bolsa na mão e um pedaço de plasticina que trazia comigo, depois coloquei a bolsa sobre a mesa e continuei fingindo procurar a pedra. Lembrei-me daquele conto de Poe, A Carta Roubada, e coloquei o brilhante bem debaixo do nariz de todo mundo, ocupando o lugar de uma reles imitação. E o meu plano era bom — ninguém percebeu!

       — Será mesmo? — murmurou o Sr. Stein.

       — O que o senhor disse?

       O Sr. Pointz pegou a bolsa, examinou o buraco vazio em que ainda se via um fragmento de plasticina, e disse devagar:

       — Poderia ter caído no chão. É melhor procurarmos novamente.

       Repetiram a busca que desta vez foi estranhamente silenciosa. A atmosfera na sala era tensa. Por fim, um a um, todos desistiram da busca e começaram a entreolhar-se.

       — A pedra não está aqui na sala — declarou Stein.

       — E ninguém saiu daqui — acrescentou significativamente Sir George.

       Houve um momento de silêncio. Eve explodiu em lágrimas e o pai deu-lhe uma pancadinha afetuosa no ombro.

       — Não chore, querida — disse ele sem jeito.

       Sir George virou-se para Leo Stein.

       — Sr. Stein, há pouco murmurou qualquer coisa baixinho. Disse que não foi nada quando lhe pedi para repetir. Mas na realidade ouvi suas palavras. A Srta. Eve acabara de dizer que ninguém percebera onde colocara o brilhante, e o senhor murmurou: “Será mesmo?”. Temos de enfrentar a possibilidade de que alguém percebeu, alguém que está agora nesta sala... Sugiro que a única coisa decente e honrada a fazer é todos os presentes submeterem-se a uma revista. O brilhante não pode ter saído desta sala.

       Ninguém era capaz de sobrepujar Sir George quando resolvia representar o papel de velho cavalheiro inglês. Sua voz vibrava de indignação e sinceridade.

       — Que coisa mais desagradável — disse o Sr. Stein com um ar infeliz.

       — A culpa é minha — soluçou Eve. — Eu não pretendia...

       — Anime-se, criança — consolou-a bondosamente o Sr. Stein. — Ninguém a está culpando.

       O Sr. Leathern declarou em seu tom arrastado e pedante:

       — Creio que todos nós aprovamos sem restrições a sugestão de Sir George. Quanto a mim, concordo plenamente.

       — Eu também — ajuntou Evan Llewellyn.

       A Sr.a Rustington olhou para Lady Marroway que fez um gesto de assentimento. As duas retiraram-se para trás do biombo acompanhadas pela lacrimejante Eve.

       Um garçom bateu à porta e recebeu ordens de voltar mais tarde.

       Cinco minutos depois, oito pessoas entreolhavam-se incrédulas.

       A Estrela da Manhã evolara-se no ar.

       O Sr. Parke Pyne olhou pensativo para o rosto agitado do jovem à sua frente.

       — Sem dúvida o senhor é galês, Sr. Llewellyn.

       — O que tem isso a ver com o resto?

       O Sr. Parker Pyne abanou uma das mãos grandes e bem cuidadas.

       — Nada, eu sei. Mas me interesso muitíssimo pela classificação das reações emocionais dos diversos tipos raciais. É só isso. Mas voltemos ao seu problema.

       — Na realidade, nem sei por que vim procurá-lo — disse Evan com um ar abatido abrindo e fechando nervosamente as mãos. Não olhava para o Sr. Parker Pyne e o escrutínio daquele cavalheiro parecia fazê-lo sentir-se inconfortável.

       — Não sei por que vim procurá-lo — repetiu. — Mas que diabos eu podia fazer? E a quem recorrer? É essa minha impotência que me está matando... Vi o seu anúncio e lembrei-me de que um amigo certa vez disse-me que o senhor obtinha resultados. E... bem... aqui estou. Talvez tenha sido tolice minha. O meu é o tipo de problema a respeito do qual ninguém pode fazer nada.

       — Nada disso — discordou o Sr. Parker Pyne. — O senhor procurou a pessoa certa. Sou um especialista em infelicidade, e este caso obviamente provocou-lhe grande sofrimento. Tem certeza de que os fatos se passaram exatamente como o senhor os descreveu?

       — Acho que não me esqueci de nada. O Sr. Pointz mostrou o brilhante que passou de mão em mão, aquela desastrada garota americana prendeu-o no fecho de sua ridícula carteira de noite e quando fomos examiná-la, a pedra desaparecera. Não estava em poder de nenhum dos presentes, e até o velho Pointz foi revistado, sugestão que partiu dele mesmo. Posso jurar que não estava em parte alguma da sala. E ninguém saiu do reservado...

       — Nem, por exemplo, os garçons? — perguntou o Sr. Parker Pyne.

       Llewellyn sacudiu a cabeça.

       — Eles saíram antes que garota pusesse as mãos na pedra, e depois Pointz trancou a porta a chave para que não fôssemos interrompidos. Não, foi um de nós.

       — Certamente é o que parece — replicou pensativo o Sr. Parker Pyne.

       — Aquele maldito vespertino! — exclamou Llewellyn com amargura. — Vi quando a idéia lhes ocorreu... Aquela era a única possibilidade...

       — Conte-me exatamente o que aconteceu.

       — Foi muito simples. Abri a janela, chamei o jornaleiro com um assobio, joguei-lhe uma moeda e ele atirou-me o jornal. Como vê, é a única maneira pela qual o brilhante poderia ter saído da sala: eu o teria jogado a um cúmplice que estava embaixo, na calçada, à minha espera.

       — Não é a única forma possível — replicou o Sr. Parker Pyne.

       — Que outra hipótese sugere o senhor?

       — Se não o jogou a um cúmplice, então deve ter havido outra maneira.

       — Ah, compreendo. Esperava que fosse sugerir algo mais concreto do que isso. Bem, apenas posso afirmar que eu não o joguei para fora. Mas não espero que o senhor ou os demais me acreditem.

       — Mas eu acredito — disse o Sr. Parker Pyne.

       — Acredita? Por quê?

       — O senhor não é um tipo criminoso. Isto é, não é do tipo que roubaria jóias. Naturalmente existem crimes que o senhor poderia cometer, mas não vamos entrar nesse assunto. De qualquer forma, não o vejo como o ladrão da Estrela da Manhã.

       — Mas os demais vêem — retrucou Evan com amargura.

       — Compreendo — disse o Sr. Parker Pyne.

       — Eles me olharam de uma forma esquisita. Marroway pegou o jornal e lançou um olhar à rua. Não disse nada, mas Pointz entendeu imediatamente! Pude ver claramente o que estava pensando. Mas não me acusaram abertamente, e isso é que é o diabo.

       O Sr. Parker Pyne fez um gesto de assentimento.

       — É pior ainda — disse ele.

       — Sim. É a suspeita. Um camarada procurou-me para fazer-me umas perguntas, apenas uma investigação rotineira — disse ele. — Um desses policiais de gabinete, de terno e colete. Usou de muito tato, não fez nenhuma alusão ao roubo. Só se mostrou interessado no fato de que eu repentinamente, após estar reconhecidamente quebrado, estava esbanjando dinheiro.

       — E ele tinha razão?

       — Sim, tive sorte nas corridas de cavalo. Infelizmente fiz as apostas no prado, e não posso provar a origem do dinheiro. Eles também não podem provar o contrário, naturalmente, mas é a espécie de história fácil que alguém inventaria se quisesse esconder a procedência do seu dinheiro.

       — Concordo. Mas será necessário muito mais do que isso para um processo.

       — Ora, não estou com medo de ser preso e levado a julgamento. De certa forma seria até melhor, eu saberia onde estava. O horrível é que todas aquelas pessoas acreditam que eu a roubei.

       — Alguém em particular?

       — O que quer dizer?

       — É só uma idéia, nada mais... — disse o Sr. Parker Pyne abanando a sua mão poderosa. — Mas é uma determinada pessoa que o está incomodando particularmente, não é? A Sr.a Rustington, quem sabe?

       O rosto moreno de Llewellyn enrubesceu.

       — Por que logo ela?

       — Ora, meu caro senhor... É óbvio que existe alguém cujas boas graças o senhor deseja muito conservar, provavelmente uma dama. E que mulheres estavam presentes? Uma adolescente americana? Lady Marroway? Mas o senhor provavelmente não desceria na estima de Lady Marroway se tivesse dado tal golpe. Já ouvi falar nela. Então é claro que só pode ser a Sr.a Rustington.

       Com um esforço Llewellyn falou:

       — Ela... ela teve uma experiência bastante infeliz. O marido era um patife sem-vergonha e ela perdeu a confiança nas pessoas. Se acreditar que...

       O rapaz teve dificuldade em continuar.

       — Entendo — disse o Sr. Parker Pyne. — Vejo que o problema é vital. Precisa ser esclarecido.

       Evan soltou uma curta gargalhada.

       — É muito fácil de dizer.

       — E igualmente fácil de fazer — replicou o Sr. Parker Pyne.

       — Acha?

       — Sim, o problema está bem claro, podemos afastar muitas possibilidades e a resposta deve ser simplíssima. Na realidade já estou tendo um vislumbre...

       Llewellyn fitou-o com incredulidade.

       O Sr. Parker Pyne empurrou um bloco em sua direção e ofereceu-lhe uma caneta.

       — Talvez me possa fornecer uma boa descrição do grupo.

       — Já não lhe dei uma idéia?

       — Quero as características pessoais, cor de cabelo e coisas assim.

       — Mas, Sr. Parker Pyne, o que tem isso a ver com o caso?

       — Muito, meu jovem, muito.

       Ainda incrédulo, Evan fez uma breve descrição dos sinais externos de cada membro do grupo.

       O Sr. Parker Pyne acrescentou umas duas notas, colocou o bloco de lado e disse:

       — Excelente! Ah, se não me engano, disse-me que na confusão um copo de vinho quebrou-se.

       Evan encarou-o perplexo.

       — Sim, caiu da mesa e foi pisado.

       — Estilhaços de vidro são muito perigosos — comentou o homem mais velho. — De quem era o copo?

       — Acho que era da garota, Eve.

       — Ah! E quem estava sentado ao lado dela?

       — Sir George Marroway.

       — Não viu quem derrubou o copo?

       — Receio que não. É importante?

       — Realmente, não. Foi uma pergunta supérflua. Bem — disse o Sr. Parker Pyne levantando-se. — Uma boa tarde, Sr. Llewellyn. Quer voltar daqui a três dias? Penso que então tudo estará satisfatoriamente resolvido.

       — Está brincando, Sr. Parker Pyne?

       — Nunca brinco em questões profissionais, meu caro senhor. Isto provocaria a desconfiança de meus clientes. Sexta-feira às 11h30min, está bem? Obrigado.

      

       Na sexta-feira Evan entrou no escritório do Sr. Parker Pyne num alvoroço de sentimentos, dividido entre a esperança e o ceticismo.

       O Sr. Parker Pyne recebeu-o com um amplo sorriso.

       — Bom-dia, Sr. Llewellyn. Sente-se. Quer um cigarro?

       Evan declinou da oferta.

       — Tudo bem? — perguntou.

       — Não podia ser melhor — retrucou o seu interlocutor. — A polícia prendeu a quadrilha ontem à noite.

       — Quadrilha? Que quadrilha?

       — A quadrilha dos Amalfi. Pensei imediatamente neles quando me contou a sua história. Reconheci os seus métodos e quando descreveu os convidados... Bem, não me restou nenhuma dúvida.

       — Quem faz parte dessa quadrilha?

       — O pai, um filho e a nora, isto é, se é que Pietro e Maria são mesmo casados, o que alguns duvidam.

       — Não compreendo.

       — É bastante simples. A origem e o nome da família são italianos, embora o velho Amalfi tenha nascido na América. Repetem geralmente os mesmos métodos. O velho representa o papel de um homem de negócios e trava relações com algum vulto proeminente do negócio de jóias em algum país europeu. Aí aplicam o golpe. Eles estavam deliberadamente atrás da Estrela da Manhã. A pequena idiossincrasia do Sr. Pointz era bem conhecida no seu meio. Maria Amalfi sempre faz o papel da filha. E uma criatura surpreendente, tem no mínimo vinte e sete anos e quase sempre representa o papel de uma garota de dezesseis.

       — Está falando em Eve?

       Evan estava de boca aberta.

       — Exatamente. O terceiro membro da quadrilha arranjou um biscate como garçom no Royal George. Era época de férias e eles estavam precisando de mãos extras. Talvez ele tenha até subornado algum membro da equipe permanente para não comparecer ao serviço. O cenário está preparado. Eve desafia o velho Pointz e ele aceita o repto e mostra o brilhante aos convidados como fizera na véspera. Os garçons entram na sala e o velho Leathern apodera-se da pedra. Quando o grupo de garçons deixa a sala, o brilhante os acompanha preso com um pedaço de chiclete debaixo do prato que Pietro leva consigo. Tão simples!

       — Mas eu vi o brilhante depois disso!

       — Não, não. Viu uma imitação suficientemente boa para enganar um observador casual. O senhor mesmo me disse que Stein mal olhou para a pedra. Eve deixa-a cair, derruba um copo, e pisa com força nos vidros e na pedra. Desaparece miraculosamente o brilhante! Tanto Eve como Leathern podem ser revistados à vontade.

       — Bem... eu... — Evan sacudiu a cabeça sem encontrar palavras. — O senhor disse ter reconhecido a quadrilha pela minha descrição. Eles já deram esse golpe antes?

       — Não com os mesmos detalhes, mas era o seu estilo. Naturalmente foi a garota Eve quem atraiu primeiro a minha atenção.

       — Por quê? Eu não suspeitei dela. Ninguém suspeitou. Ela parecia tão... tão criança!

       — Aí reside justamente o gênio de Maria Amalfi. Ela parece mais acriançada do que qualquer criança. E a plasticina! Aparentemente a aposta surgiu espontaneamente, e contudo a jovem tinha à mão um bocado de plasticina. Isso me faz pensar em premeditação. Minhas suspeitas caíram imediatamente sobre ela.

       Llewellyn levantou-se.

       — Bem, Sr. Parker Pyne, minha dívida com o senhor não tem limites.

       — O que me interessa é a classificação dos tipos criminosos — murmurou o Sr. Parker Pyne.

       — O senhor enviar-me-á a conta...

       — Meus honorários serão muito razoáveis — disse o outro. — Não farão um rombo muito grande nos seus lucros... eqüestres. Mesmo assim, meu jovem, em seu lugar deixaria de lado os cavalos no futuro. São animais muito incertos.

       — Tem razão — anuiu Evan, e apertando a mão do Sr. Parker Pyne deixou o escritório.

       Chamou um táxi e deu o endereço de Janet Rustington.

       No seu estado de espírito triunfante sentia-se capaz de superar todos os obstáculos.

 

PROBLEMA NA BAÍA DE POLENSA

       O navio que fazia a ligação entre Barcelona e Maiorca deixou o Sr. Parker Pyne em Palma nas primeiras horas da manhã, e imediatamente ele experimentou uma desilusão.

       Os hotéis estavam cheios. O melhor que lhe puderam arranjar foi um cubículo abafado abrindo para um pátio interno num hotel do centro da cidade, acomodação que o Sr. Parker Pyne não estava disposto a tolerar. O proprietário do hotel observou com indiferença o seu desapontamento.

       — Que esperava o senhor? — comentou encolhendo os ombros. Palma tornara-se muito popular! O câmbio era favorável. Todo mundo, os ingleses, os americanos, todos vinham para Maiorca no inverno. O lugar estava superlotado. Duvidava até que o cavalheiro conseguisse hospedagem em outro hotel, com exceção talvez do Formentor, onde os preços eram tão escorchantes que até os turistas recuavam.

       O Sr. Parker Pyne tomou um café com um brioche é saiu para ver a catedral, mas descobriu que o seu estado de espírito não estava apropriado para admirar belezas arquitetônicas. Procurou e encontrou um motorista de táxi prestativo com o qual conferenciou num mau francês misturado ao espanhol do local sobre os méritos e as possibilidades de Soler, Alcudia, Polensa e Formentor, onde os hotéis eram bons mas muito dispendiosos.

       O Sr. Parker Pyne perguntou o preço médio da diária.

       Eles pediam uma quantia ridícula e absurda, esquecendo-se de que os ingleses procuravam a ilha justamente porque os preços eram acessíveis, respondeu o motorista.

       O recém-chegado concordou plenamente. Mas qual era mesmo a diária do Formentor?

       Era caríssima!

       Sim, certamente, mas QUAL EXATAMENTE ERA O PREÇO DA DIÁRIA?

       Finalmente o motorista resolveu responder em termos de algarismos. Tendo-se submetido há pouco aos preços extorsivos dos hotéis do Egito e de Jerusalém, a cifra não assustou demasiadamente o Sr. Parker Pyne.

       A bagagem do Sr. Parker Pyne foi enfiada de qualquer jeito na mala do carro e o táxi arrancou pelo litoral em direção de Formentor. No caminho tentariam encontrar uma hospedagem mais em conta.

       Entretanto não chegaram a alcançar aquele ninho de plutocratas, pois após atravessar as ruelas estreitas de Polensa, ao atingir a costa, passaram em frente ao Hotel Pino D’Oro, um hotelzinho junto ao mar do qual se descortinava um panorama que na fina névoa da manhã possuía a delicadeza de uma gravura japonesa.

       No instante em que o viu, o Sr. Parker Pyne decidiu que era aquele o hotel que lhe servia. Mandou parar o táxi e com a esperança de encontrar um abrigo atravessou os portões de ferro batido.

       O prédio pertencia a um casal idoso que não falava inglês, nem francês, mas apesar disso um acordo satisfatório foi firmado e o Sr. Parker Pyne conseguiu um quarto com vista para o mar. O motorista retirou a bagagem do carro, congratulou-se com o seu passageiro por ter-se livrado “das monstruosas exigências” dos novos hotéis, recebeu seu pagamento e partiu com uma alegre saudação espanhola.

       O novo hóspede olhou o relógio e percebendo que ainda faltava um quarto para as dez, dirigiu-se a um pequeno terraço inundado pelo já agora deslumbrante sol da manhã, e pela segunda vez naquele dia pediu um café com brioches.

       Viam-se quatro mesas no terraço: a dele, uma que estava sendo arrumada e mais duas já ocupadas. Na mesa mais próxima estava uma família de quatro pessoas: o pai, a mãe e duas filhas já de meia idade. Na última mesa, num canto do terraço, sentava-se um casal de nacionalidade inglesa, obviamente mãe e filho.

       A mulher, de uns cinqüenta e cinco anos, com cabelos grisalhos bem tratados, usava um discreto costume de tweed sem pretensões à última moda, e aparentava aquele sereno auto-domínio típico da inglesa habituada a viajar pelo estrangeiro.

       O rapaz sentado à sua frente teria uns vinte e cinco anos e também era um tipo característico de sua classe e faixa etária. Não era feio nem bonito, nem alto nem baixo, e evidentemente seu relacionamento com a mãe era dos melhores. Conversavam humoradamente e o rapaz atendia as necessidades dela com presteza.

       Dali a pouco o olhar da senhora cruzou-se com o do Sr. Parker Pyne seguido logo adiante de uma cortês indiferença, mas ele percebeu que havia sido assimilado e rotulado.

       Sua nacionalidade inglesa fora reconhecida e sem dúvida, no devido tempo, alguma observação amável e inofensiva ser-lhe-ia dirigida.

       O Sr. Parker Pyne não fazia objeções a ser interpelado. No estrangeiro seus compatriotas tendiam ligeiramente a entediá-lo, mas sempre estava disposto a uma conversa leve e amena. Seria constrangedor omitir-se num pequeno hotel e tinha certeza que aquela mulher possuía o que costumava chamar de excelentes “maneiras de hotel”.

       O rapaz inglês levantou-se, fez alguma observação jocosa e entrou no salão. A mulher pegou sua bolsa e a correspondência e acomodou-se numa cadeira de frente para o mar. De costas para o Sr. Parker Pyne desdobrou o Continental Daily Mail.

       Ao servir o seu último gole de café, o Sr. Parker Pyne olhou casualmente na direção dela. No mesmo instante alarmou-se e temeu pela tranqüilidade de suas férias. As costas da mulher eram horrivelmente expressivas. Já observara muitas vezes no passado aquela postura. A rigidez, a tensão dos músculos, mesmo sem ver o rosto sabia que lágrimas contidas queimavam os olhos dela, e que a mulher mantinha o controle com um rígido esforço.

       Erguendo-se furtivamente, como um animal acuado, o Sr. Parker Pyne refugiou-se no hotel. Menos de meia hora atrás assinara o seu nome no registro de hóspedes que continuava sobre o balcão. Lá estava em sua caligrafia clara: C. Parker Pyne, Londres.

       Algumas linhas acima encontrou o que procurava sem dificuldades: Sr.a R. Chester e Sr. Basil Chester, Holm Park, Devon.

       Apanhando a caneta, o Sr. Parker Pyne corrigiu rapidamente a própria assinatura. Meio ilegível, lá ficou: Christopher Pyne.

       Se a Sr.a Chester estava infeliz na Baía de Polensa, ele é que não iria facilitar-lhe uma consulta ao Sr. Parker Pyne. Sempre lhe causava um profundo espanto constatar em suas viagens pelo exterior o número de pessoas que o conheciam de nome e haviam lido seus anúncios. Na Inglaterra milhares de pessoas liam o Times todos os dias, e no entanto podiam afirmar, sem faltar com a verdade, que nunca haviam visto o seu nome. Já no estrangeiro os ingleses liam os jornais londrinos de fio a pavio, e nenhuma notícia, e nem mesmo os anúncios classificados, lhes escapava.

       Suas férias já haviam sido interrompidas várias vezes por toda uma série de problemas, desde assassinato até chantagem. Em Maiorca ele estava decidido a ter paz. Sentia instintivamente que uma mãe aflita poderia perturbar consideravelmente aquela paz.

       O Sr. Parker Pyne instalou-se muito confortavelmente no Pino D’Oro. A uma pequena distância, um hotel maior era freqüentado por uma boa quantidade de turistas ingleses, e nas redondezas fixara-se uma colônia de artistas. Podia caminhar pelo litoral até uma aldeia de pescadores. Ali havia algum comércio e um pequeno bar onde uma turma animada se reunia. Tudo muito tranqüilo e aprazível. As moças do local usavam calças compridas e amarravam lenços coloridos em volta dos seios e os jovens de cabelos compridos discutiam sobre valores artísticos e arte abstrata no Mac’s Bar.

       No dia seguinte à chegada do Sr. Parker Pyne, a Sr.a Chester dirigiu-lhe algumas palavras convencionais sobre a vista e a possibilidade de o tempo conservar-se bom. Em seguida deu dois dedos de prosa com uma senhora alemã a respeito de tricô e travou um ameno diálogo sobre a sombria situação política com dois cavalheiros dinamarqueses que tinham o hábito de levantar-se de madrugada e andar onze horas por dia.

       O Sr. Parker Pyne achou muito simpático o jovem Basil Chester, que sempre o tratava cerimoniosamente de “senhor” e escutava com toda a cortesia as palavras do homem mais velho. Algumas vezes os três ingleses tomavam café juntos após o jantar. Depois do terceiro dia, Basil passou a retirar-se após uns dez minutos, deixando o Sr. Parker Pyne num tête-à-tête com a Sr.a Chester.

       Os dois falavam sobre o cultivo de flores, da situação lamentável da libra inglesa, de como se tornara dispendioso o turismo na França e das dificuldades de obter-se um chá realmente bom.

       Todas as noites, quando o rapaz se retirava, o Sr. Parker Pyne percebia o leve tremor dos lábios da mãe, logo controlado. Ela se refazia imediatamente e discorria de forma amena sobre os temas acima mencionados.

       Pouco a pouco ela começou a falar de Basil — de como ele se distinguira no colégio e fora querido por todos, do orgulho que o pai teria sentido se ainda fosse vivo, do quão grata era por Basil nunca se ter tornado rebelde.

       — Naturalmente eu sempre o encorajo a procurar gente jovem, mas ele parece mesmo preferir a minha companhia — ela declarou revelando um contido mas evidente prazer no fato.

       Desta vez, porém, o Sr. Parker Pyne não replicou com o seu tato costumeiro. Em vez disso, redargüiu:

       — Ah... Bem, mas parece que por aqui há muita gente jovem. Não no hotel, mas pelas redondezas.

       A estas palavras a Sr.a Chester retesou-se e retrucou que sem dúvida o lugar estava cheio de artistas. Talvez ela fosse antiquada, mas... Certamente a arte verdadeira era uma outra coisa, mas ali muitos jovens usavam-na como desculpa para não fazer nada... e as jovens bebiam demais.

       No dia seguinte Basil disse ao Sr. Parker Pyne:

       — Estou muito satisfeito por tê-lo encontrado aqui, senhor, especialmente por causa de minha mãe. Ela gosta muitíssimo de conversar com o senhor à noite.

       — O que costumavam fazer logo que chegaram aqui?

       — Para falar a verdade, costumávamos jogar pique.

       — Entendo.

       — Mas as cartas cansam logo, e na verdade fiz alguns amigos aqui, uma turma muito divertida. Acho que minha mãe não os aprova... — e ele riu como se o fato fosse engraçado. — Mamãe é muito antiquada. Choca-se até pelo fato de as moças usarem calças compridas.

       — É mesmo? — redargüiu o Sr. Parker Pyne.

       — Eu sempre digo a ela que é preciso acompanhar a época... as moças inglesas do nosso meio são terrivelmente enfadonhas.

       — Compreendo — disse o Sr. Parker Pyne.

       A situação interessava-o. Ali era um simples espectador de um drama em miniatura, sem que fosse chamado a tomar parte no mesmo.

       Foi então que o pior (do ponto de vista do Sr. Parker Pyne) aconteceu. Uma senhora de suas relações, muito tagarela, hospedou-se no Mariposa. Encontrou-a no salão de chá acompanhado pela Sr.a Chester.

       Ao vê-los a recém-chegada praticamente berrou:

       — Ora! Se não é o Sr. Parker Pyne, o primeiro e único Sr. Parker Pyne! E Adela Chester! Já se conhecem? Já? Estão hospedados no mesmo hotel? Adela, ele é um mágico, a maravilha do século, “A Solução Instantânea Para Todos os Seus Problemas”! O quê? Você não sabia? Mas deve ter ouvido falar nele! Não leu o seu anúncio? “Está em apuros? Procure o Sr. Parker Pyne”. Não há nada que ele não possa fazer. Une casais que se estão engalfinhando, proporciona aventuras excitantes aos que perderam o interesse pela vida. Este homem é um verdadeiro mágico!

       E prosseguiu por aí afora enquanto a intervalos o Sr. Parker Pyne refutava modestamente os elogios. Não estava gostando dos olhares que a Sr.a Chester lhe dirigia. E gostou ainda menos de vê-la afastar-se na companhia de sua eloqüente propagandista.

       O clímax chegou mais depressa do que ele esperava. Naquela noite, após o café, a Sr.a Chester falou abruptamente:

       — Quer me acompanhar à saleta, Sr. Pyne? Tenho algo a dizer-lhe.

       Ele pôde apenas anuir e submeter-se.

       O autocontrole da Sr.a Chester estava se tornando muito tênue e rompeu-se quando a porta da saleta fechou-se às suas costas. Ela sentou-se e rompeu em lágrimas.

       — É meu filho, Sr. Parker Pyne. O senhor precisa salvá-lo. Nós precisamos salvá-lo. Não posso mais suportar isso.

       — Minha cara senhora, como um simples estranho...

       — Mas Nina Wicherley disse que não há nada que o senhor não possa fazer. Disse-me para confiar completamente no senhor, que o senhor poria tudo nos eixos!

       Intimamente o Sr. Parker Pyne amaldiçoou a intrometida Sr.a Wicherley, mas disse resignado:

       — Bem, conte-me o problema. Trata-se de uma garota, suponho?

       — Ele falou-lhe sobre ela?

       — Só indiretamente.

       As palavras jorraram em torrente da boca da Sr.a Chester. A garota era horrível, bebia, dizia palavrões, andava praticamente nua. A irmã, moradora do local, era casada com um holandês, artista. Aquele grupo todo não prestava. Mais da metade dos casais viviam juntos sem serem casados. Basil estava completamente mudado. Sempre fora tão quieto, tão interessado em seus estudos, estava até pensando em se dedicar à arqueologia...

       — Bem — retrucou o Sr. Parker Pyne — a natureza reserva sua desforra...

       — O que quer dizer com isso?

       — Não é saudável para um jovem viver enfiado nos livros quando devia estar bancando o idiota por causa de moças bonitas.

       — Por favor, fale sério, Sr. Parker Pyne.

       — Eu estava falando muito sério. Acaso essa jovem é a mesma que estava tomando chá com a senhora ontem?

       Ele notara as calças compridas de flanela cinza, o lenço vermelho amarrado negligentemente em volta dos seios, a boca escarlate e o fato de que a jovem pedira um coquetel em vez de chá.

       — O senhor a viu? Terrível, não? Muito diferente das moças que Basil costumava admirar.

       — A senhora não lhe deu muitas chances de conhecer muitas moças, deu?

       — Eu?

       — Ele tem permanecido muito tempo em sua companhia! Isto é mau! Entretanto, diria que ele ultrapassará essa crise se a senhora não precipitar as coisas.

       — O senhor não está compreendendo! Ele quer casar-se com essa tal de Betty Gregg. Eles estão noivos.

       — Já chegou a isso?

       — Já, Sr. Parker Pyne. O senhor precisa fazer alguma coisa. Deve evitar que meu filho faça esse casamento desastroso. Sua vida ficará arruinada.

       — Só nós mesmos é que arruinamos as nossas vidas.

       — Mas Basil arruinará a sua — afirmou com ênfase a Sr.a Chester.

       — Não estou preocupado com Basil.

       — Preocupa-se então com a moça?

       — Não, estou preocupado com a senhora. Está desperdiçando a sua vida.

       A Sr.a Chester encarou-o, levemente surpresa.

       — Os anos que vão dos vinte aos quarenta são anos cerceados, restritos pelos laços pessoais e emocionais. Isto é inevitável, é a vida. Inicia-se então um novo estágio. Passamos a refletir, a observar, a descobrir muita coisa sobre os demais, e a verdade sobre nós mesmos. A vida torna-se real, significativa. Vemo-la com um todo e não somente como uma cena em que participamos como atores. Nenhum homem, nenhuma mulher completa-se antes dos quarenta e cinco. É quando a individualidade se afirma.

       A Sr.a Chester retrucou:

       — Sempre me dediquei completamente a Basil. Ele tem sido tudo para mim.

       — Pois não devia ter sido. É por isso que a senhora agora está pagando. Ame-o o quanto desejar, mas lembre-se que é Adela Chester, um ser humano, e não somente a mãe de Basil.

       — Sofrerei muitíssimo se Basil arruinar a sua vida — murmurou a Sr.a Chester.

       Ele fitou as linhas delicadas do seu rosto, a expressão tristonha da boca. Ela era uma mulher amorável, não queria que sofresse.

       — Verei o que posso fazer — ele disse.

       Quando encontrou Basil, o rapaz mostrou-se loquaz, ansioso para defender o seu ponto de vista.

       — A situação está infernal. Mamãe está sendo intransigente, preconceituosa, convencional. Se ela se permitisse, veria que ótima moça é Betty.

       — E Betty?

       — Ora, Betty também não está facilitando em nada as coisas! Se ao menos fizesse um pequeno esforço de adaptação, assim como usar um pouco menos de batom, isso poderia fazer muita diferença. No entanto ela parece exagerar de propósito para parecer bem... bem moderna quando mamãe está por perto.

       O Sr. Parker Pyne sorriu.

       — Betty e mamãe são duas pessoas maravilhosas. Pensei que elas iriam dar-se às mil maravilhas.

       — Ainda tem muito que aprender, meu jovem — retrucou o Sr. Parker Pyne.

       — Gostaria que viesse conhecer Betty para trocarmos idéias sobre o problema.

       O Sr. Parker Pyne aceitou rapidamente a sugestão.

       Betty, sua irmã e o marido desta viviam numa casinha antiga a pouca distância do mar, num ambiente de refrescante simplicidade. A mobília consistia numa mesa, três cadeiras e camas. Algumas prateleiras continham a louça essencial para uma refeição frugal. Hans era um rapaz vibrante de cabelos louros rebeldes que falava com incrível rapidez num inglês muito estranho sem parar de andar de um lado para o outro. Stella, sua mulher, era baixinha e muito clara e Betty Gregg possuía cabelos vermelhos, sardas e um olhar brejeiro. Ele notou que ela não estava tão maquilada como na véspera no Pino D’Oro.

       A jovem ofereceu-lhe um coquetel e disse-lhe piscando um olho:

       — Está por dentro do nosso problema?

       O Sr. Parker Pyne fez um gesto de assentimento.

       — E de que lado está? Dos jovens apaixonados ou da mãe desaprovadora?

       — Posso fazer-lhe uma pergunta?

       — Certamente.

       — A Senhorita agiu com tato?

       — Nem um pouquinho — admitiu com franqueza a Srta. Gregg. — Mas aquela jararaca me provocou — ela acrescentou dando uma olhada para ver se Basil estava por perto. — Aquela mulher me deixa maluca de raiva. Todos esses anos ela conservou Basil atado às suas saias, fazendo-o desempenhar um papel de bobo. Mas Basil não é nenhum boboca. E ainda por cima ela mantém aquela pose irritante de velha dama!

       — Não acho que isto seja mau. Só não está muito na moda atualmente.

       Betty Gregg sorriu subitamente.

       — Como as cadeiras Chippendale na era vitoriana, não? Foram todas guardadas nos sótãos, e hoje são consideradas lindas.

       — Mais ou menos isso.

       Betty Gregg refletiu.

       — Talvez o senhor tenha razão. Para ser franca, foi Basil quem me deixou de pé atrás. Estava ansioso demais que eu causasse uma boa impressão à sua mãe. E acabei tomando a atitude exatamente contrária. Ainda acho que ele desistiria de mim, se a mãe o pressionasse.

       — Talvez — retrucou o Sr. Parker Pyne — se ela soubesse como agir.

       — O senhor pretende orientá-la? Sabe que por si só ela nunca descobrirá a maneira adequada. Vai continuar sendo contra mim, e isso não lhe trará proveitos. Mas se o senhor interferisse...

       Ela mordeu os lábios e ergueu os olhos cândidos para ele.

       — Já ouvi falar do senhor. Dizem que conhece a natureza humana. Acha que eu e Basil formaríamos um bom casal?

       — Gostaria que me respondesse a três perguntas.

       — É um teste de compatibilidade? Está certo, vá em frente.

       — A Srta. dorme com as janelas fechadas ou abertas?

       — Abertas. Gosto de ar fresco.

       — Gosta das mesmas comidas que Basil aprecia?

       — Sim.

       — Gosta de dormir cedo ou tarde?

       — Para ser franca, cedo. Às dez e meia começo a bocejar e sinto-me cheia de energia pela manhã. Mas não conte isso a ninguém, hem?

       — Os dois deverão dar-se muito bem — disse o Sr. Parker Pyne.

       — Esse teste me parece muito superficial.

       — Parece, mas não é. Sei no mínimo de sete casamentos que fracassaram porque o marido gostava de ficar acordado até a meia-noite e a mulher caía de sono às nove, e vice-versa.

       — É uma pena que Basil e eu não possamos ser felizes com as bênçãos da mãe dele.

       O Sr. Parker Pyne tossiu.

       — Acho que posso dar um jeito nisso.

       Ela fitou-o incrédula.

       — O senhor não está tentando me enganar?

       Ele assumiu uma expressão inescrutável.

      

       Com a Sr.a Chester, o Sr. Parker Pyne mostrou-se tranqüilizador, mas lacônico. Um noivado não era um casamento. Ele iria passar uma semana em Soler e aconselhava-a a adotar uma atitude neutra, pelo menos aparentemente conciliatória.

       A semana em Soler foi muito agradável, porém ao voltar o Sr. Parker Pyne descobriu que acontecimentos inesperados haviam modificado a situação.

       A primeira coisa que viu ao entrar no Pino D’Oro foi a Sr.a Chester tomando chá com Betty Gregg. Basil não estava presente. A Sr.a Chester parecia abatida e Betty também tinha má cor. Usava muito pouca maquilagem e suas pálpebras revelavam que estivera chorando.

       Cumprimentaram-no amavelmente, mas nenhuma delas mencionou Basil. Subitamente ouviu a moça reter a respiração como se alguma dor a aguilhoasse. O Sr. Parker Pyne virou a cabeça.

       Basil Chester vinha subindo as escadas que davam para a praia. Ao seu lado estava uma jovem de beleza tão extraordinária que faria qualquer homem perder o fôlego. Morena, tinha um corpo maravilhoso, e só um cego não notaria o fato pois só levava sobre o corpo um vestido leve de crepe azul claro. Usava uma maquilagem ocre e um batom vermelho alaranjado, e os cosméticos apenas acentuavam ainda mais sua beleza exótica. Quanto ao jovem Basil, parecia incapaz de tirar os olhos dela.

       — Você está muito atrasado, Basil — disse a mãe. — Tinha combinado levar a Betty até o Mac’s.

       — A culpa foi minha — replicou a bela desconhecida numa voz langorosa. — Estivemos dando umas voltas por aí. — E virando-se para o rapaz acrescentou: — Meu anjo, arranje-me algo bem estimulante.

       Ela sentou-se, livrou-se dos sapatos e esticou os pés bem tratados cujas unhas verde-esmeralda combinavam com as unhas das mãos. Não prestou nenhuma atenção às duas mulheres, mas inclinou-se para o Sr. Parker Pyne e comentou:

       — Esta ilha é horrível! Antes de encontrar Basil eu estava morrendo de tédio. Mas ele é um amor!

       — Sr. Parker Pyne, Srta. Ramona — apresentou-os a Sr.a Chester.

       A jovem sorriu sedutoramente para o homem mais velho.

       — Acho que vou chamá-lo de Parker — sussurrou. — Meu nome é Dolores.

       Basil voltou com as bebidas. A Srta. Ramona dividiu sua atenção (que em grande parte consistia em lançar olhares profundos e significativos) entre Basil e o Sr. Parker Pyne, não tomando o menor conhecimento da presença das duas mulheres. Betty ainda tentou umas duas vezes tomar parte na conversa, mas a outra moça limitava-se a olhar para ela e bocejar.

       Subitamente Dolores levantou-se.

       — Acho que já vou indo. Estou hospedada no outro hotel. Alguém quer levar-me até lá?

       Basil ergueu-se imediatamente.

       — Vou com você.

       A Sr.a Chester interveio:

       — Basil, meu querido...

       — Eu volto já, mamãe.

       — Ele não é mesmo o queridinho da mamãe? — disse a Srta. Ramona para ninguém em particular. — Você a obedece como um cachorrinho, não?

       Basil corou embaraçado. A Srta. Ramona cumprimentou a Sr.a Chester com uma ligeira inclinação de cabeça, endereçou um sorriso estonteante ao Sr. Parker Pyne e afastou-se acompanhada por Basil.

       Depois que eles saíram houve um silêncio constrangido. O Sr. Parker Pyne não quis ser o primeiro a falar. Betty Gregg abria e fechada nervosamente as mãos olhando para o mar. O rosto corado da Sr.a Chester revelava cólera.

       Betty disse numa voz pouco firme:

       — Bem, o que o senhor acha da nova aquisição da Baía de Polensa?

       Cautelosamente o Sr. Parker Pyne respondeu.

       — Um pouquinho... Ahn... exótica.

       — Exótica? — disse Betty com uma risada curta e amarga.

       A Sr.a Chester atalhou:

       — Ela é horrível, horrível! Basil deve estar louco.

       Betty interveio vivamente:

       — Não há nada de errado com Basil.

       — Aquelas unhas... — tornou a Sr.a Chester com um arrepio de náusea.

       Súbito Betty levantou-se.

       — Sr.a Chester, acho que vou para casa. Afinal resolvi não ficar para o jantar.

       — Oh, querida, Basil ficará tão desapontando!

       — Ficará mesmo? — replicou Betty com uma curta risada. — Acho que vou, de qualquer forma. Estou com dor de cabeça.

       Ela sorriu para os dois e afastou-se. A Sr.a Chester virou-se para o Sr. Parker Pyne.

       — Gostaria de nunca ter vindo a esse lugar.

       O Sr. Parker Pyne balançou tristemente a cabeça.

       — O Sr. não devia ter-se afastado — tornou a Sr.a Chester. — Se estivesse aqui isto não teria acontecido.

       — Minha cara senhora, asseguro-lhe que em questões de mulheres bonitas eu não teria nenhuma influência sobre o seu filho. Ele parece ter uma natureza muito... suscetível.

       — Pois não costumava ter — retrucou a chorosa senhora. — Bem — tornou o Sr. Parker Pyne tentando ser otimista, — essa nova atração parece ter esfriado o entusiasmo do seu filho pela Srta. Gregg. Isso deve-lhe dar alguma satisfação.

       — Não sei do que o senhor está falando — replicou a Sr.a Chester. — Betty é um amor de pequena e dedicadíssima a Basil. Dada a situação, ela está-se comportando maravilhosamente. Acho que meu filho deve ter enlouquecido.

       O Sr. Parker Pyne nem piscou ante esta espantosa mudança de atitude. Estava acostumado às incoerências do comportamento feminino.

       — Ele não está louco, só enfeitiçado — disse brandamente.

       — Aquela criatura é insuportável.

       — Mas belíssima.

       A Sr.a Chester bufou.

       Basil subiu correndo a escadaria do terraço.

       — Olá, mamãe, aqui estou eu. Onde está Betty?

       — Foi para casa. Estava com dor de cabeça, o que não é de admirar.

       — Ela está fazendo pirraça, a senhora quer dizer.

       — Acho que está sendo cruel com a Betty, Basil.

       — Pelo amor de Deus, mamãe, deixe disso. Se Betty for fazer uma cena toda vez que eu falar com outra mulher, vamos ter um belo casamento, sem dúvida.

       — Vocês estão noivos.

       — Sim, estamos noivos, mas isto não significa que não possamos ter os nossos amigos particulares. Hoje em dia todo mundo leva a sua própria vida e tenta deixar de lado essa história de ciúmes.

       O rapaz acrescentou depois de uma pausa:

       — Olhe aqui, já que Betty não vai jantar conosco... Acho que vou voltar para o Mariposa. Convidaram-me para jantar lá.

       — Oh, Basil...

       O rapaz lançou-lhe um olhar exasperado e desceu correndo os degraus.

       A Sr.a Chester dirigiu um olhar eloqüente ao Sr. Parker Pyne.

       — Está vendo só? — disse ela.

       Ele estava.

      

       Dois dias depois os acontecimentos atingiram o clímax. Betty e Basil haviam combinado fazer um piquenique numa praia distante. Quando a moça chegou ao Pino D’Oro descobriu que Basil esquecera a promessa e fora passar o dia no Formentor com a turma de Dolores Ramona.

       A única reação visível de Betty foi uma contração de lábios. Dali a pouco, entretanto, levantou-se e disse para a Sr.a Chester (as duas mulheres estavam sozinhas no terraço):

       — Não faz mal, não tem importância. Mas mesmo assim, acho melhor darmos tudo por acabado.

       A jovem retirou do dedo o anel de sinete que Basil lhe dera. (Ele pretendia comprar um anel de noivado mais tarde.)

       — Quer entregar isto a ele, Sr.a Chester? Diga-lhe que está tudo bem, que não se preocupe.

       — Betty, querida, não faça isso! Ele a ama de verdade!

       — É, parece mesmo — tornou a jovem com uma curta risada. — Não, eu tenho algum orgulho. Diga-lhe que está tudo bem e que... lhe desejo boa sorte.

       Quando Basil voltou, ao entardecer, encontrou uma tempestade.

       Ao ver o anel, enrubesceu ligeiramente.

       — Então é assim que ela se sente? Bem, também acho que é melhor.

       — Basil!

       — Bem, mamãe, para ser franco, não nos estávamos dando muito bem ultimamente.

       — E de quem era a culpa?

       — Não acho que seja minha. O ciúme é uma emoção insuportável. Na realidade, não compreendo por que a senhora está tão alterada. Foi a senhora mesma quem me pediu para não casar com Betty!

       — Isso foi antes de conhecê-la. Basil, meu querido, você não está pensando em casar-se com essa outra mulher, está?

       Basil Chester respondeu com simplicidade:

       — Casar-me-ia com ela nesse instante se ela quisesse. Mas receio que não queira.

       Um arrepio gelado percorreu a espinha da Sr.a Chester.

       Ela saiu à procura do Sr. Parker Pyne e encontrou-o lendo placidamente um livro num cantinho abrigado.

       — O senhor precisa fazer alguma coisa! O senhor precisa fazer alguma coisa! Meu filho vai arruinar a vida dele!

       O Sr. Parker Pyne estava ficando um pouco cansado daquela história de Basil Chester estar a ponto de arruinar a vida dele.

       — O que posso fazer?

       — Procure aquela criatura horrível, e se for necessário, suborne-a!

       — Isso pode-lhe sair muito caro.

       — Não importa.

       — Mas seria lamentável. Talvez haja um outro meio.

       Ela olhou-o interrogativamente. O Sr. Parker Pyne balançou a cabeça.

       — Não posso prometer nada, mas verei o que posso fazer. Já tive casos semelhantes antes. Ah, e por falar nisso, não diga nada a Basil. Seria desastroso.

       — Naturalmente não direi nada.

       À meia-noite o Sr. Parker Pyne voltou do Hotel Mariposa. A Sr.a Chester estava à sua espera.

       — Bem? — ela perguntou ansiosa.

       Os olhos dele brilhavam.

       — A Srta. Dolores Ramona sairá de Polensa amanhã de manhã, e à noite deixará a ilha.

       — Oh! Sr. Parker Pyne! Como conseguiu isso?

       — Não lhe custará um centavo — replicou o Sr. Parker Pyne com os olhos faiscando. — Estava com a impressão que possuía argumentos para convencê-la, e estava certo.

       — O senhor é maravilhoso! Nina Wycherley tinha razão. O senhor pode-me dizer quais os seus... honorários?

       O Sr. Parker Pyne estendeu-lhe a mão bem tratada.

       — Nem um centavo. Foi um prazer. Espero que tudo se resolva bem. Naturalmente o rapaz ficará muito aborrecido quando descobrir que ela partiu sem deixar o endereço. Seja paciente com ele por uma ou duas semanas.

       — Se ao menos Betty o perdoasse...

       — Ela irá perdoá-lo, sim. Formam um belo casal. Mas talvez seja mesmo melhor que eu me vá antes que ele resolva apaixonar-se por uma terceira moça.

      

       O Sr. Parker Pyne debruçou-se sobre a amurada do navio contemplando as luzes de Palma. Ao seu lado estava Dolores Ramona. Ele a congratulava:

       — Um ótimo trabalho, Madeleine. Ainda bem que tive a idéia de telegrafar-lhe. O que é mais estranho é que na realidade você seja uma moça tão pacata e sossegada.

       Madeleine de Sara, vulgo Dolores Ramona, vulgo Maggie Sayers, respondeu recatadamente:

       — Alegra-me que o senhor esteja satisfeito. Foi uma semana muito agradável. Agora acho que vou descer e deitar-me antes que o navio deixe o cais. O mar e eu não somos muito compatíveis.

       Alguns minutos depois alguém colocou a mão no ombro do Sr. Parker Pyne. Ele virou-se e deparou com Basil Chester.

       — Tinha de despedir-me do senhor e agradecer por mim e por Betty. Ela envia-lhe um abraço carinhoso. A sua idéia foi ótima. Mamãe e Betty agora são inseparáveis. Não me agradou enganar a minha velha, mas ela estava se tornando muito difícil. De qualquer forma, agora está tudo bem. Só preciso tomar cuidado e manter um ar desapontado por mais alguns dias. Betty e eu lhe somos infinitamente gratos.

       — Desejo-lhes todas as felicidades — disse o Sr. Parker Pyne.

       — Obrigado.

       Após uma pequena pausa, Basil perguntou com uma indiferença um tanto forçada:

       — A Srta... de Sara... está por aqui? Gostaria de agradecer-lhe também.

       O Sr. Parker Pyne lançou-lhe um olhar penetrante.

       — Receio que a Srta. de Sara tenha ido deitar-se — respondeu.

       — Ah, que pena... Bem, talvez eu possa vê-la em Londres, um dia desses.

       — Para ser preciso, ela deve ir para a América imediatamente, a serviço.

       — Oh! — fez Basil com uma expressão de desapontamento. — Bem, preciso ir indo...

       O Sr. Parker Pyne sorriu. No caminho para o seu camarote bateu à porta de Madeleine.

       — Como está você, minha querida? Está bem? Nosso jovem amigo esteve aqui. Está sofrendo do costumeiro ataque de Madeleinite. Num dia ou dois ficará bom, mas não há dúvida que você é muito perturbadora.

 

       OS ÍRIS AMARELOS

       Hercule Poirot esticou os pés na direção do radiador elétrico embutido na parede. O desenho preciso formado pelas barras paralelas incandescentes agradava à sua mente ordeira.

       — Os fogareiros de carvão eram inconstantes e desajeitados. Nunca tiveram essa simetria tão deliciosa...

       A campainha do telefone soou. Poirot levantou-se consultando o relógio. Eram quase onze e meia. Quem lhe telefonaria a essa hora? É verdade que poderia ser engano.

       — Ou talvez — murmurou para si mesmo com um sorriso sonhador — tenham encontrado um milionário, dono de uma cadeia de jornais, morto na biblioteca de sua casa de campo, com uma orquídea rara esfacelada em sua mão esquerda e uma página de um livro de cozinha preso com um punhal em seu peito...

       Sorrindo a essa agradável possibilidade, ele atendeu o telefone. Imediatamente ouviu uma voz rouca e suave de mulher, que transmitia desespero e premência:

       — É M. Hercule Poirot? É M. Hercule Poirot?

       — Sim, é ele mesmo.

       — M. Poirot... venha, por favor, agora... imediatamente... estou em perigo... em grande perigo... sei que estou...

       Poirot replicou rapidamente:

       — Quem está falando? E de onde?

       A voz, agora mais fraca porém com maior premência, repetiu:

       — Venha agora... é uma questão de vida ou morte... no Jardin des Cygnes... agora... a mesa com os íris amarelos.

       Houve uma pausa — uma exclamação abafada — e a ligação foi cortada.

       Hercule Poirot desligou com uma expressão intrigada. Entre os dentes murmurou:

       — Isto é muito curioso.      

       Na entrada do Jardin des Cygnes, o gordo Luigi adiantou-se:

       — Buona sera, M. Poirot. Quer uma mesa, não?

       — Não, não, meu bom Luigi. Estou procurando alguns amigos. Vou dar uma espiada por aí, talvez ainda não tenham chegado. Ah, vê aquela mesa no canto com os íris amarelos? Se não é indiscrição, permita-me perguntar por que só naquela mesa vejo essas flores, enquanto em todas as outras há vasos com tulipas rosas?

       Luigi encolheu os ombros expressivos.

       — Foi um pedido, monsieur, um pedido especial. Certamente devem ser as flores favoritas de uma das senhoras. Aquela é a mesa do Sr. Barton Russel, um americano riquíssimo.

       — Ah, é preciso satisfazer os caprichos das damas, não é, Luigi?

       — Monsieur tem toda razão — anuiu o italiano.

       — Estou vendo um conhecido naquela mesa. Preciso falar-lhe.

       Poirot contornou agilmente a pista de danças. A mesa em questão fora posta para seis pessoas, mas no momento era ocupada por um único indivíduo, um rapaz que bebericava o seu champanha com uma expressão pensativa e desgostosa.

       Estava muito longe de ser a pessoa que Poirot esperara encontrar. Parecia impossível associar a idéia de perigo ou melodrama a qualquer grupo do qual Tony Chapell fizesse parte.

       Poirot deteve-se junto à mesa dos íris amarelos.

       — Ah! Se não é o meu amigo Anthony Chapell!

       — Mas quem vejo? Que maravilha! Poirot, o detetive! — exclamou o rapaz. — Nada de Anthony, meu caro, sou Tony para os amigos.

       O rapaz puxou uma cadeira.

       — Vamos, sente-se aqui. Falemos sobre o Crime, ou melhor ainda, bebamos ao Crime — e enchendo de champanha um copo vazio, acrescentou: — Mas meu caro Poirot, que está fazendo aqui? Não vai encontrar um só cadáver, só música, dança e alegria.

       Poirot tomou um gole de champanha.

       — Não me parece muito alegre, mon cher.

       — Alegre? Eu sou é um infeliz, positivamente um desgraçado. Escute, está ouvindo essa música? Não a reconhece?

       Poirot arriscou cautelosamente um palpite.

       — Não será “Meu Amor me Abandonou”?

       — Não está muito longe, não, mas errou. O nome da música é “Nada Como o Amor para Torná-lo Infeliz” — “There is Nothing Like Love for Making you Miserable”...

       — Ahn...

       — A minha canção favorita — continuou tristemente Tony Chapell — o meu restaurante favorito, o meu conjunto favorito, e a minha garota favorita... só que ela está dançando com outra pessoa.

       — É essa a causa de sua melancolia? — perguntou Poirot.

       — Justamente. Pauline e eu tivemos uma discussão. Isto é, de cada cem palavras que trocamos, cinco foram minhas. Cada vez que eu dizia “Mas querida, eu posso explicar”, ela iniciava as noventa e cinco dela e não chegamos a nenhuma conclusão — e Tony acrescentou lugubremente: — Acho que vou-me envenenar.

       — Pauline? — murmurou Poirot.

       — Pauline Weatherby, a jovem cunhada de Barton Russel. Jovem, linda e horrorosamente rica. Esta noite Barton Russel está dando uma festa. Conhece-o? É um industrial americano, animado, uma personalidade forte. Foi casado com a irmã de Pauline.

       — E quais são os outros convidados?

       — Vai conhecê-los daqui a um minuto quando parar a música: Lola Valdez, a dançarina sul-americana que é a estrela do novo show do Metrópole, e Stephan Carter. O senhor deve conhecê-lo, está no serviço diplomático. É muito discreto, sua alcunha é “Stephen, o silencioso”. É o tipo do homem que está sempre dizendo “Não tenho permissão para divulgar, etc., etc.”. Olhe, aí vêm eles.

       Poirot levantou-se e foi apresentado a Barton Russel, a Stephen Carter, a Lola Valdez, uma morena exuberante, e a Pauline Weatherby, uma jovenzinha muito clara de olhos azul-hortênsia.

       Barton Russel disse:

       — Ora, o senhor não é o grande Hercule Poirot? Tenho muito prazer em conhecê-lo. Não quer juntar-se ao nosso grupo? Isto é, se não...

       Tony Chapell interveio:

       — Ele deve ter um compromisso com algum cadáver, ou talvez com um banqueiro raptado ou com o famoso rubi do Rajá de Boriobylaga...

       — Ora, meu amigo, pensa que nunca tiro uma folga? Não posso, para variar, estar só querendo divertir-me?

       — Talvez tenha marcado um encontro com o nosso amigo Carter. Quem sabe houve um grande roubo em Genebra, a situação internacional está em perigo e os planos precisam ser recuperados ou haverá uma nova guerra mundial!

       Pauline Weatherby interrompeu-o bruscamente.

       — Precisa estar sempre bancando o palhaço, Tony?

       — Desculpe, Pauline.

       Tony Chapell mergulhou num silêncio descoroçoado.

       — É muito severa, mademoiselle.

       — Detesto gente que sempre quer ser engraçada.

       — Vejo que preciso ser cuidadoso. Só devo falar sobre assuntos sérios.

       — Oh, não, M. Poirot. Não me referia ao senhor. Desculpe-me — disse a jovem, e virando para ele um rosto sorridente, perguntou: — É realmente uma espécie de Sherlock Holmes capaz de tirar dos fatos deduções assombrosas?

       — Ah! As deduções não são tão fáceis assim na vida real. Mas vou fazer uma tentativa. Vejamos, deduzo... que os íris amarelos são as suas flores favoritas? Estou certo?

       — Errado, M. Poirot. Prefiro os íris do vale ou as rosas.

       Poirot suspirou.

       — Fracassei. Tentarei mais uma vez. Esta noite, não faz muito tempo, Mademoiselle telefonou a alguém.

       Pauline riu e bateu palmas.

       — Tem razão.

       — Foi pouco depois de ter chegado aqui?

       — Está certo novamente. Telefonei assim que entrei.

       — Ah, já não está tão bom. Telefonou antes de vir para esta mesa?

       — Sim.

       — Decididamente mau, muito mau.

       — Oh, não. Acho que foi brilhante de sua parte. Como soube que eu telefonei?

       — Ah, Mademoiselle, isto é um segredo profissional. E a pessoa a quem telefonou, acaso seu nome começa com um P, ou talvez com um H?

       Pauline riu.

       — Completamente errado. Telefonei para a minha criada para que postasse umas cartas muito importantes que esqueci sobre a mesa. O nome dela é Louise.

       — Confesso que estou confuso, muito confuso.

       A música recomeçou.

       — Quer dançar, Pauline? — perguntou Tony.

       — Acho que prefiro descansar um pouco, Tony.

       — Não é lamentável? — retrucou Tony com amargura para ninguém em particular.

       Poirot murmurou para a sul-americana que estava do outro lado:

       — Não ouso convidá-la para dançar comigo, senhora. Sou quase uma antigüidade.

       Lola Valdez respondeu:

       — Que tontería, usted es mui joven, seu cabelo ainda é bem preto!

       Poirot encolheu-se.

       — Pauline, como seu guardião e cunhado, simplesmente ordeno-lhe que dance comigo. Estão tocando uma valsa, o único ritmo que danço realmente bem.

       — Ora, certamente Barton. Obedeço sem hesitações.

       — Que boa garota! Pauline, você é formidável.

       Os dois dirigiram-se para a pista de dança. Tony inclinou sua cadeira para trás e olhou para Stephen Carter.

       — Mas você é um grande tagarela, não é Carter? Sua conversa é capaz de animar qualquer festa, não?

       — Chapell, não estou entendendo muito bem o que quer dizer com isso.

       — Ah, não? — retrucou Tony e imitou a pose desanimada do outro.

       — Ora, meu caro!

       — Pelo menos beba, se não gosta de falar.

       — Não, obrigado.

       — Então eu bebo por você.

       Stephen Carter encolheu os ombros.

       — Desculpe, preciso falar com alguém que vi lá adiante. É um velho colega de Eton.

       Stephen Carter levantou-se e dirigiu-se a uma mesa próxima.

       Tony comentou lugubremente:

       — Alguém deveria afogar todos os etonianos ao nascerem.

       Hercule Poirot sussurrou galantemente à bela morena ao seu lado:

       — Gostaria de saber quais são as flores favoritas de Mademoiselle.

       — Ah, e por que esta curiosidade? — perguntou Lola brejeiramente.

       — Mademoiselle, quando envio flores a uma dama, faço questão de que sejam do gosto dela.

       — Que amabilidad! Pois vou-lhe dizer: me gustan os cravos grandes rojos e as rosas rojas.

       — Superbe! Oui, superbe! Então não gosta de flores amarelas, dos íris amarelos?

       — Flores amarelas? Não, elas não combinam com el mio temperamento.

       — Mademoiselle é sábia... Diga-me, telefonou para algum amigo depois que chegou aqui?

       — Io? Se telefonei para um amigo? No. Mas que pergunta estraña!

       — Ah! É que sou um homem muito curioso.

       — Tenho certeza que é. — E fitando-o sedutoramente com seus olhos escuros, ela acrescentou: — E é também un hombre mui peligroso.

       — Não, não, perigoso não. Digamos que sou um homem que pode ser muito útil... no perigo! Está-me compreendendo?

       Lola riu mostrando dentes muito brancos e regulares.

       — No! No! Usted es peligroso!

       Hercule Poirot suspirou.

       — Vejo que não me entende. Tudo isso é muito estranho.

       O aparteado Tony despertou subitamente e perguntou:

       — Lola, que tal nos sacudirmos um pouco? Vamos?

       — Eu vou, já que M. Poirot não é suficientemente corajoso.

       Tony envolveu a cintura da moça e disse a Poirot ao se afastar:

       — Fique meditando sobre os crimes que o aguardam, meu caro.

       — Essa sua observação é muito profunda — respondeu Poirot. — Sim, é muito profunda.

       Ficou pensativo por alguns instantes e por fim ergueu a mão. Luigi atendeu imediatamente, o rosto largo animado por um sorriso.

       — Mon vieux — disse Poirot — preciso de algumas informações.

       — Estou sempre às suas ordens, Monsieur.

       — Gostaria de saber quantos ocupantes dessa mesa utilizaram o telefone esta noite.

       — É fácil, Monsieur. A senhora de branco telefonou logo que chegou aqui. Só depois deixou o abrigo no vestiário. Lá encontrou a outra senhora morena que se ia dirigindo à cabina telefônica.

       — Então a sul-americana também telefonou! E isto foi antes de entrarem no restaurante?

       — Sim, Monsieur.

       — Mais alguém telefonou?

       — Não, Monsieur.

       — Preciso pensar, Luigi, preciso pensar furieusement.

       — É mesmo, Monsieur?

       — Sim, Luigi. Acho que esta noite preciso que todas as minhas faculdades mentais estejam alertas. Alguma coisa vai acontecer, e não estou bem certo do que é.

       — Há algo que eu possa fazer, Monsieur?

       Stephen Carter estava voltando para a mesa. Poirot fez um sinal a Luigi que se afastou discretamente.

       — Fomos abandonados, Sr. Carter — disse o detetive.

       — Ah... sim — retrucou o outro.

       — Conhece bem o Sr. Barton Russel?

       — Sim, conheço-o há bastante tempo.

       — A cunhada, a pequena Srta. Weatherby, é encantadora.

       — Sim, ela é muito graciosa.

       — Também a conhece bem?

       — Ah... sim.

       — Ah... sim. Ah... sim — repetiu Poirot.

       Carter fitou-o espantado.

       A música parou e os demais retornaram.

       Barton Russel dirigiu-se ao garçom:

       — Outra garrafa de champanha, depressa.

       Erguendo o copo virou-se para os convidados:

       — Escutem, amigos. Vou pedir-lhes para fazermos um brinde. Existe um motivo para esta nossa reunião desta noite. Como sabem, pedi um mesa para seis. Éramos apenas cinco, o que deixava um lugar vago. Entretanto, por uma estranha coincidência, o Sr. Hercule Poirot passou casualmente e pedi-lhe que se reunisse a nós. Os senhores ainda não percebem quão apropriada foi essa coincidência. Pois cavalheiros, esse lugar vago representa essa noite uma mulher... uma mulher em cuja memória damos essa festa. Senhoras e senhores, essa festa é em memória de minha querida esposa Iris, que morreu exatamente há quatro anos atrás nessa mesma data!

       Um frêmito de espanto percorreu a mesa.

       Barton Russel, o rosto impassível, ergueu o copo.

       — Peço-lhes para beberem em memória dela. A Íris!

       — Iris? — interpelou-o vivamente Poirot olhando para as flores.

       Barton Russel percebeu a direção do seu olhar e fez um gesto de assentimento.

       Ouviram-se murmúrios em torno da mesa.

       — Íris... Íris...

       Todos pareciam aturdidos e sem jeito.

       O industrial prosseguiu em sua lenta inflexão americana. Cada palavra parecia pesar no silêncio.

       — Pode parecer-lhes estranho que eu celebre o aniversário da morte dela dessa maneira, com uma reunião de gala num restaurante da moda. Mas eu tenho uma razão. Sim, eu tenho uma razão. Em consideração ao M. Poirot, explicarei com detalhes.

       Virando-se para o detetive, ele continuou:

       — Faz hoje quatro anos que ofereci um jantar de gala em New York. Estavam presentes minha esposa, eu, o Sr. Stephen Carter, adido à embaixada em Washington, o Sr. Anthony Chapell, que estava hospedado há algumas semanas em nossa casa, e a Sr.a Lola Valdez, que na época encantava Nova York com a sua dança. A pequena Pauline — e Barton deu uma palmadinha no ombro da moça — só tinha dezesseis anos, mas compareceu a festa numa concessão especial. Lembra-se, Pauline?

       — Sim... eu me lembro — a voz dela tremeu um pouco.

       — M. Poirot, naquela noite aconteceu uma tragédia. Os tambores rufaram e o show começou. As luzes, com exceção de um foco no centro da pista, apagaram-se. Quando reacenderam, M. Poirot, vimos minha esposa caída sobre a mesa. Estava morta. Encontraram vestígios de cianeto de potássio no fundo do seu copo de vinho. O resto da dose foi encontrado na bolsa dela.

       — Ela suicidou-se? — perguntou Poirot.

       — Este foi o veredicto... Fiquei arrasado, M. Poirot. A polícia julgou que havia um motivo para tal ato. Aceitei a conclusão da polícia.

       Subitamente ele bateu com o punho na mesa.

       — Mas não fiquei satisfeito... Durante quatro anos remoí os fatos, refleti... e não estou satisfeito. Não acredito que Íris tenha-se suicidado. M. Poirot, acredito que ela foi assassinada... por uma das pessoas que estão nessa mesa.

       — Ei, escute aqui...

       Tony Chapell erguera-se a meio.

       — Fique quieto, Tony, ainda não acabei — ordenou Russel. — Um dos presentes matou-a. Agora tenho certeza. Alguém que, encoberto pela escuridão, colocou o envelope com os restos de cianeto na bolsa dela. Acredito agora que sei quem foi, e quero descobrir a verdade.

       Levantando a voz, Lola protestou com veemência:

       — Usted es loco, loco! Por que le haria mal? No, usted es loco? Mas io no me quedare aquí!

       Um rufar de tambores interrompeu suas palavras.

       — É o show — disse Barton Russel. — Mais tarde prosseguiremos. Fiquem onde estão. Preciso falar com o conjunto. Tenho um pedido a fazer-lhes.

       O industrial levantou-se e deixou a mesa.

       — Que idéia maluca — comentou Carter.

       — El hombre es loco — ajuntou Lola.

       As luzes enfraqueceram.

       — Acho que vou embora — disse Tony.

       — Não! — protestou vivamente Pauline e acrescentou num murmúrio: — Oh, meu Deus... Oh, meu Deus...

       — O que é, Mademoiselle? — murmurou Poirot.

       A resposta veio quase num sussurro.

       — É horrível! Exatamente como aquela noite...

       — Psiu! Psiu! — reclamaram de uma mesa próxima.

       Poirot abaixou mais a voz e sussurrou-lhe qualquer coisa no ouvido. Em seguida deu-lhe uma palmadinha carinhosa no ombro e tranqüilizou-a.

       — Tudo ficará bem.

       — Dios mio! Oigam! — exclamou Lola.

       — O que foi, senhora?

       — É a mesma música — a mesma canção que tocaram aquela noite em Nova York. Isso deve ser coisa de Barton Russel. No me gusta nada de eso!

       — Coragem... Coragem... Ouviram-se novos psius.

       Uma mulher dirigiu-se para o centro da pista, uma jovem negra com olhos saltados e dentes brilhantes e branquíssimos. Começou a cantar numa voz rouca e profunda, curiosamente comovente.

           Já te esqueci

           Não penso mais em ti

           No teu jeito de andar

           No teu jeito de falar

           Nas coisas que dizias

           Já te esqueci

           Não penso mais em ti

           Não sei mais ao certo

           A cor dos teus olhos

           Já te esqueci

           Tudo acabou

           Não penso mais em ti

           Já te esqueci

           Não penso mais em ti

           Em ti... Em ti... Em ti...

       A canção chorosa na voz profunda da negra produziu um profundo impacto, hipnotizando, enfeitiçando toda a sala. Até os garçons sentiam o seu efeito. A platéia tinha os olhos fixos na cantora, magnetizada pela densa emoção que ela transmitia.

       Um garçom passou silenciosamente em torno da mesa murmurando “champanha” e enchendo os copos, mas todas as atenções estavam concentradas no brilhante foco de luz onde a negra de ancestrais africanos cantava em sua voz profunda:

           Tudo acabou

           Já te esqueci

           Mentira, mentira

           Vou pensar em ti... em ti... em ti

           Até o fim.

       Os aplausos explodiram frenéticos. Barton Russel retornou à mesa e sentou-se em seu lugar.

       — Essa cantora é maravilhosa! — exclamou Tony, mas suas palavras foram cortadas por um grito abafado de Lola:

       — Vejam! Vejam!

       Todos viraram a cabeça.

       Pauline Weatherby estava caída sobre a mesa.

       — Ela está morta! — exclamou Lola. — Exatamente como Íris... Como Íris em Nova York...

       Poirot ergueu-se de sua cadeira e fez sinal para que os demais não se aproximassem. Curvando-se sobre o vulto inerte, muito gentilmente tomou uma das mãos sem vida e procurou o pulso.

       Seu rosto severo estava pálido. Os demais observavam-no, paralisados, em transe.

       Lentamente o detetive sacudiu a cabeça.

       — Sim, la pauvre petite está morta. E eu sentado ao lado dela! Ah! Mas desta vez o assassino não escapará!

       Barton Russel, o rosto cinzento, murmurou:

       — Exatamente como Iris... Ela deve ter visto alguma coisa... Pauline viu alguma coisa naquela noite... Mas não tinha certeza... Ela me disse que não tinha certeza... Precisamos chamar a polícia. Oh, Deus, a minha pequena Pauline...

       Poirot falou:

       — Onde está o copo dela? — E levando o mesmo ao nariz acrescentou: — Sim, sinto o cheiro de cianeto, o cheiro de amêndoas amargas. O mesmo método, o mesmo veneno...

       Apanhou a bolsa da jovem.

       — Vou examinar a sua carteira.

       Barton Russel interveio.

       — O senhor não está pensando em suicídio, está? Ela nunca faria isso.

       — Espere, ordenou Poirot. — Não, não há nada aqui. O assassino não teve tempo. As luzes acenderam-se com muita rapidez. Portanto, o veneno ainda está com ele.

       — Ou ela — acrescentou Carter olhando para Lola Valdez.

       A dançarina explodiu:

       — La que quieres decir? Eu não a matei, é mentira! Io no la he matado! Por que lo haria eso?

       — Em Nova York você estava interessada em Barton Russel. Ouvi mexericos a respeito disso. E as argentinas são notoriamente ciumentas!

       — É tudo mentira! E não sou argentina, sou peruana! Ah, se pongo las manos em tí...

       — Façam silêncio! — ordenou Poirot. — Devem-me escutar agora.

       Barton Russel insistiu:

       — Todos devem ser revistados.

       Poirot retrucou calmamente:

       — Não. Não é necessário.

       — Não é necessário? O que quer dizer com isso?

       — Eu, Hercule Poirot, sei de tudo... Vejo com os olhos da minha mente. E falarei! Sr. Carter, quer me mostrar o envelope que está no bolso superior do seu paletó?

       — Não há nada no meu bolso. Que diabos...

       — Tony, meu bom amigo, quer-me fazer o favor...

       Carter protestou:

       — Seu maldito...

       Antes que Carter pudesse impedi-lo, Tony retirou com um gesto rápido um pequeno envelope do seu bolso.

       — Aqui está, M. Poirot, exatamente como disse.

       — Isto é um embuste! — bradou Carter.

       Poirot apanhou o envelope e leu em voz alta o rótulo.

       — Cianeto de potássio. O caso está completo.

       Com violência contida Barton Russel interveio:

       — Carter! Eu sempre desconfiei! Íris estava apaixonada por você. Queria viver com você. Por causa da sua preciosa carreira você não desejava um escândalo, e então envenenou-a! Será enforcado por isso, cão imundo!

       — Silêncio! — atalhou Poirot numa voz firme e autoritária. — Ainda não acabei. Eu, Hercule Poirot, ainda tenho algo a dizer. Quando cheguei aqui, o meu amigo Tony Chapell disse que eu viera à procura de um crime. Em parte isto é verdade. Havia crime em minha mente, sim. Mas foi para impedi-lo que vim até aqui. E eu impedi esse crime. O assassino planejou bem, mas Hercule Poirot estava uma jogada à sua frente. Foi necessário que eu pensasse rápido e cochichasse algo no ouvido de Mademoiselle quando as luzes se apagaram. Mademoiselle Pauline é uma jovem sensível e inteligente, e desempenhou bem o seu papel. Mademoiselle, quer ter a bondade de nos mostrar que está bem viva, afinal?

       Pauline ergueu a cabeça.

       — A ressurreição de Pauline — anunciou com uma risada vacilante.

       — Pauline, querida!

       — Tony!

       — Meu amor!

       — Meu anjo.

       Barton Russel abriu a boca.

       — Eu... eu não compreendo.

       — Vou ajudá-lo a compreender, Sr. Barton Russel. O seu plano falhou.

       — Meu plano!

       — Sim, o seu plano. Quem foi o único homem que teve um álibi durante a escuridão? O homem que havia deixado a mesa, o senhor, Sr. Barton Russel. Mas protegido pela escuridão o senhor voltou, deu a volta à mesa com uma garrafa de champanha, encheu os copos, colocou cianeto no copo de Pauline e introduziu o envelope meio vazio no bolso de Carter quando se curvou para apanhar o copo dele. Oh, sim, foi muito fácil desempenhar o papel de garçom na escuridão quando a atenção de todos estava desviada. Este foi o verdadeiro motivo desta festa. O lugar mais seguro para cometer um crime é no meio de uma multidão.

       — Por que diabos eu havia de querer matar Pauline?

       — Talvez por dinheiro. Sua esposa nomeou-o guardião de sua cunhada. O senhor mesmo mencionou o fato esta noite. Pauline tem vinte anos. Aos vinte e um, ou quando se casasse, o senhor teria de prestar contas de seus bens. Creio que não poderia fazê-lo. Especulou com o seu dinheiro. Não sei se o senhor matou sua esposa desta mesma maneira, ou se o suicídio dela forneceu-lhe a idéia para este crime, mas sei que esta noite é culpado de tentativa de assassinato. Cabe a Pauline decidir se deseja ou não entregá-lo à Justiça.

       — Não — declarou Pauline. — Prefiro que ele suma da minha vista e deixe o país. Não quero um escândalo.

       — É melhor ir depressa, Sr. Barton Russel. Aconselho-o a ser mais cuidadoso no futuro.

       Barton Russel ergueu-se, trincando os dentes.

       — Vá para o inferno, seu belgazinho presunçoso e intrometido!

       Ele saiu furioso.

       Pauline suspirou.

       — M. Poirot, o senhor foi maravilhoso.

       — Mademoiselle é que foi maravilhosa derramando aquela champanha e representando tão lindamente o papel de cadáver.

       — Uf! — fez ela estremecendo. — O senhor me dá arrepios.

       Ele perguntou gentilmente:

       — Foi a Senhorita quem telefonou, não foi?

       — Fui eu, sim.

       — Por quê?

       — Não sei. Estava preocupada e amedrontada sem saber o porquê. Barton contou-me que estava dando uma festa para comemorar a morte de Íris. Compreendi que ele estava planejando alguma coisa, mas ele negou-se a dizer-me o que era. Parecia tão... tão excitado e estranho que senti que algo terrível estava para acontecer. Mas naturalmente nunca pensei que ele quisesse livrar-se de mim.

       — E daí, Mademoiselle?

       — Já tinha ouvido falar no senhor. Pensei que se pudesse fazer com que viesse até aqui, talvez pudesse impedir qualquer tragédia. Julguei que sendo o senhor um estrangeiro... se eu lhe desse um telefonema misterioso, fingindo estar em grande perigo...

       — Julgou que o melodrama me atrairia? Pois foi o que me intrigou. A mensagem em si soou falsa, pareceu-me um embuste. Mas a voz transmitia um medo real. Resolvi vir até aqui, e então a Senhorita negou categoricamente ter-me telefonado.

       — Era preciso. Não queria que soubesse que o chamara.

       — Ah! Mas eu tinha quase certeza disso! Não de inicio, mas logo compreendi que as únicas pessoas que poderiam saber que a mesa estaria enfeitada com um ramo de íris amarelos eram o Sr. Barton Russel e Mademoiselle.

       Pauline fez um gesto de assentimento.

       — Ouvi quando ele encomendou as flores — ela explicou. — Pediu que fosse preparada uma mesa para seis quando eu sabia que só haveria cinco convidados. Esses fatos fizeram-me suspeitar...

       Ela calou-se, mordendo os lábios.

       — De que suspeitou, Mademoiselle?

       Devagar ela disse:

       — Tive medo... que acontecesse algo ao... ao Sr. Carter.

       Stephen Carter pigarreou. Sem pressa mas com decisão levantou-se da mesa.

       — Eu... tenho que lhe agradecer, M. Poirot. Devo-lhe muito. Agora certamente irão perdoar-me se me retirar. Os acontecimentos desta noite foram... muito perturbadores.

       Olhando o vulto que se afastava, Pauline disse com violência:

       — Detesto esse homem. Sempre achei que foi por causa dele que Íris se matou. Ou talvez... que Barton a matou. Oh, é tudo tão terrível...

       Poirot disse gentilmente:

       — Esqueça, Mademoiselle, esqueça... Deixe o passado para trás... Pense só no presente.

       — Sim, o senhor tem razão — murmurou Pauline.

       Poirot voltou-se para Lola Valdez:

       — Señora, com o correr da noite estou-me tornando mais corajoso. Se quiser dançar comigo agora.

       — Oh, si, si. Usted es um mágico, M. Poirot. Insisto em dançar com o senhor.

       — É muito amável, señora.

       Tony e Pauline ficaram a sós. Inclinaram-se um para o outro por sobre a mesa.

       — Pauline querida!

       — Oh, Tony! O dia inteiro agi como uma gata brava, rancorosa e desagradável. Pode perdoar-me?

       — Meu anjo! Estão tocando outra vez a nossa música. Vamos dançar.

       Afastaram-se enlaçados, sorrindo um para o outro e cantarolando baixinho:

           Nada como o Amor para fazer você infeliz

           Nada como o Amor para fazer você

           Deprimido

           Possuído

           Sentimental

           Temperamental

           Não há nada como o Amor

           Para fazer você desabar.

           Nada como o Amor para arrebentar com você

           Nada como o Amor para fazer você louco

           Abusivo

           Alusivo

           Suicida

           Homicida

           Nada como o Amor

           Nada como o Amor...

 

MISS MARPLE CONTA UMA HISTÓRIA

       Meus queridos Raymond e Joan, acho que nunca lhes contei um caso muito curioso que me aconteceu há alguns anos. Não desejo de forma alguma parecer presunçosa; sei que em comparação com você, Raymond, que escreve aqueles livros avançadíssimos sobre todos aqueles rapazes e moças desagradáveis, e com você Joan, que pinta aqueles quadros extraordinários cheios de pessoas quadradas com curiosas protuberâncias (são interessantíssimos, querida, como diz Raymond, com muita delicadeza pois é o mais bondoso dos sobrinhos), eu sou irremediavelmente vitoriana. Admiro os Srs. Alma-Tadena e Frederic Leighton, embora para vocês dois eles sejam irremediavelmente vieux jeu. Mas o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim, que eu não queria parecer presunçosa mas não pude deixar de ficar um pouquinho envaidecida porque só com o auxílio de um pouquinho de bom-senso consegui resolver um problema que estava desafiando cabeças muito mais aguçadas do que a minha. Embora eu realmente devesse ter visto desde o início que a solução era óbvia...

       Bem, vou-lhes contar a minha pequena história, e se acharem que me envaideci com a minha participação na mesma, devem-se lembrar que ao menos ajudei um ser humano que estava numa grande aflição.

       A primeira vez que ouvi falar neste caso foi uma noite por volta das nove horas quando Gwen (lembram-se de Gwen, a minha criadinha de cabelos vermelhos?) veio avisar-me que o Sr. Petherick e um outro cavalheiro queriam ver-me. Gwen, corretamente, levara-os à sala de estar. Eu estava lendo na sala de jantar porque acho um desperdício acender duas lareiras no início da primavera.

       Dizendo a Gwen que preparasse uma bandeja com alguns cálices, dirigi-me à sala de estar. Não sei se por acaso estão lembrados do Sr. Petherick que morreu há dois anos atrás. Foi um bom amigo durante muitos anos e cuidava de todos os meus problemas legais. Era um homem muito perspicaz e um excelente solicitador. Agora é o filho dele quem trata dos meus interesses, um ótimo rapaz, muito atualizado, mas que não me inspira tanta confiança quanto o Sr. Petherick.

       Expliquei ao Sr. Petherick sobre as lareiras e imediatamente ele ofereceu-se para passar à sala de jantar e apresentou-me o amigo, o Sr. Rhodes, um homem ainda jovem (não tinha muito mais do que uns quarenta anos). Vi logo que ele tinha algum problema muito sério. Suas maneiras eram esquisitas, diria até que rudes se não tivesse percebido que o pobre estava debaixo de uma grande tensão.

       Quando nos acomodamos na sala de jantar e Gwen trouxe a bandeja, o Sr. Petherick explicou a razão de sua visita.

       — Miss Marple — disse ele — perdoará o seu velho amigo por ter tomado uma liberdade? Estamos aqui para consultá-la.

       Não entendi o que ele queria dizer, mas ele prosseguiu:

       — Em casos de doença procuramos ouvir duas opiniões: a do clínico da família e a do especialista. É costume considerar mais valiosa a segunda, mas não estou bem de acordo com isto. O especialista só tem experiência no seu campo, enquanto o clínico, embora talvez tendo menos conhecimentos, possui uma experiência muito mais ampla.

       Compreendi o que ele queria dizer porque há pouco tempo uma das minhas sobrinhas correu com a filha a um conhecido dermatologista, sem consultar o médico da família que ela já considerava um velho gagá. O especialista indicou um tratamento dispendiosíssimo e só depois descobriram que a criança estava com um tipo raro de sarampo.

       Menciono este caso (embora tenha horror a digressões) para mostrar que aceitei o ponto de vista do Sr. Petherick, embora não tivesse ainda uma idéia de onde ele estava querendo chegar.

       — Se o Sr. Rhodes está doente... — eu comecei mas calei-me logo porque o pobre homem soltou uma risada lúgubre.

       — Espero morrer com o pescoço quebrado dentro de alguns meses — declarou ele.

       E o caso veio à baila. Ocorrera há pouco tempo um assassinato em Barnchester, uma cidade que fica a uns trinta quilômetros daqui. Na época não prestei muita atenção ao caso, pois a aldeia estava alvoroçada devido a uns incidentes com a nossa enfermeira distrital, e os acontecimentos exteriores como um terremoto na Índia e o assassinato em Barnchester foram eclipsados pelo nosso escandalozinho local. Apesar disso, lembrava-me de ter lido a respeito de uma mulher apunhalada num hotel, embora não tivesse fixado o seu nome. Agora parecia que esta mulher fora esposa do Sr. Rhodes, e como se isso já não fosse suficientemente ruim, suspeitavam que ele próprio a matara.

       Tudo isso o Sr. Petherick explicou-me com muita clareza, dizendo que embora o veredicto do inquérito preliminar tivesse sido “assassinada por pessoa ou pessoas desconhecidas”, o Sr. Rhodes tinha motivos para acreditar que provavelmente seria preso dentro de um ou dois dias, e assim procurara o Sr. Petherick e colocara-se em suas mãos. O Sr. Petherick disse-me que naquela tarde haviam estado com Sir Malcolm Olde, e que se o caso fosse a julgamento, Sir Malcolm defenderia o Sr. Rhodes.

       Sir Malcolm era um advogado jovem, de métodos modernos e já concebera uma certa linha para a defesa. Porém o Sr. Rhodes Petherick não estava inteiramente satisfeito com esta linha.

       — As idéias de Sir Malcolm, minha cara Miss Marple — disse o Sr. Petherick — estão deturpadas pelo que chamo de “ponto de vista do especialista”. Ele só vê uma coisa ao examinar um caso: a linha de defesa mais plausível. E com isto às vezes ignora o que para mim é o ponto vital: aquilo que realmente aconteceu.

       E após dizer-me algumas palavras bondosas e muito elogiosas sobre a minha perspicácia e o meu conhecimento da natureza humana, ele pediu permissão para contar-me a história na esperança que eu pudesse sugerir alguma explicação.

       Pude ver que o Sr. Rhodes estava totalmente descrente de que eu lhe pudesse ser útil, e aborrecido por ter sido levado à minha casa. Porém o Sr. Petherick ignorou-o e relatou-me os acontecimentos da noite de 8 de março.

       O Sr. e a Sr.a Rhodes estavam hospedados no Crown Hotel em Barnchester. A Sr.a Rhodes, que, pelo que me deu a entender discretamente o Sr. Petherick, era ligeiramente hipocondríaca, recolhera-se ao leito logo após o jantar. Ela e o marido ocupavam quartos contíguos ligados por uma porta de comunicação. O Sr. Rhodes na ocasião escrevia um livro sobre a pré-história e estava trabalhando em seu quarto. Às onze horas, ele arrumou os papéis e preparou-se para dormir, indo ver antes de deitar se a mulher queria alguma coisa. Encontrou a luz da cabeceira acesa e a mulher deitada sobre a cama com um punhal no coração. Estava morta pelo menos há uma hora, ou talvez mais. Constataram-se os seguintes pontos: a outra porta do quarto da Sr.a Rhodes que abria para o corredor estava fechada por dentro e aferrolhada; a única janela do quarto estava trancada; segundo o Sr. Rhodes, ninguém entrara no quarto, a não ser a arrumadeira que trouxera um saco de água quente; a arma encontrada no ferimento era uma adaga italiana que a Sr.a Rhodes costumava usar para cortar papéis e que estivera sobre a cômoda. A arma não tinha impressões digitais.

       A situação, portanto, resumia-se no seguinte: a não ser o Sr. Rhodes e a arrumadeira, ninguém havia entrado no quarto da vítima.

       Indaguei sobre a criada.

       — Foi o nosso primeiro cuidado — disse o Sr. Petherick. — Mary Hill já trabalha há dez anos no Crown Hotel, e não parece haver absolutamente motivo algum para que ela de repente matasse uma hóspede. Além disso, ela é muito obtusa, quase uma débil mental. Sua história não varia: levou o saco de água quente para a Sr.a Rhodes e encontrou-a sonolenta, quase dormindo. Francamente, eu não posso acreditar, e tenho certeza de que nenhum júri acreditaria que ela cometeu o crime.

       O Sr. Petherick prosseguiu acrescentando alguns detalhes. No topo das escadas do Crown Hotel existe uma pequena sala de estar onde os hóspedes às vezes param para tomar uma xícara de café. A última porta do corredor que sai à direita desta sala é a porta do quarto do Sr. Rhodes. Logo em seguida o corredor dobra num ângulo reto novamente para a direita, e a primeira porta é a porta do quarto da Sr.a Rhodes. Na ocasião do crime, essas duas portas podiam ser vistas por testemunhas. A primeira, a do quarto do Sr. Rhodes, que chamaremos de porta A, podia ser vista por quatro pessoas: dois caixeiros-viajantes e um casal idoso que tomava café. Segundo eles, a não ser o Sr. Rhodes e a arrumadeira, ninguém entrou no quarto A. Quanto à outra porta B no outro corredor, um eletricista que estava trabalhando junto à mesma, jura que ninguém entrou ou saiu da porta B, a não ser a arrumadeira.

       O caso sem dúvida era curioso e interessante. Em face das circunstâncias, parecia que o Sr. Rhodes tinha assassinado a esposa. Contudo eu podia ver que o Sr. Pethefick estava convencido da inocência do seu cliente, e o Sr. Petherick é um homem muito sagaz.

       No inquérito o Sr. Rhodes contara uma história vaga e meio incoerente sobre uma mulher que escrevera cartas ameaçadoras à sua esposa. Pelo que compreendi, tal relato fora muito pouco convincente. A pedido do Sr. Petherick, o Sr. Rhodes repetiu sua história.

       — Para ser sincero, eu mesmo nunca acreditei nisso. Pensava que Amy inventara tudo.

       Pelo jeito a Sr.a Rhodes fora dessas pessoas de imaginação larga que romanceiam tudo o que lhes acontece. A quantidade de aventuras que, a acreditar nela, lhe aconteciam a cada ano era simplesmente incrível. Se escorregava numa casca de banana, dizia ter escapado por um triz da morte. Se o abajur pegava fogo, fora salva no último instante de uma casa em chamas. O marido acostumara-se a não fazer caso de suas histórias e simplesmente não deu importância ao caso de uma criança ferida num acidente de carro e cuja mãe jurara vingar-se dela. Esse tal acidente teria acontecido antes do casamento da Sr.a Rhodes, e embora ela tivesse mostrado ao marido umas cartas que pareciam ter sido escritas por uma louca, este suspeitara que a própria esposa as tivesse forjado. Na verdade ela fizera isso umas duas vezes já. Era uma mulher com tendências histéricas, ávida por excitações constantes.

       Ora, não me causou estranheza o comportamento da Sr.a Rhodes. Na realidade temos na aldeia uma mulher que age exatamente da mesma forma. O perigoso é que quando acontece realmente alguma coisa extraordinária com essas pessoas, ninguém acredita que estejam falando a verdade. Pelo que compreendi, a polícia achou que o Sr. Rhodes inventara essa história improvável para afastar de si as suspeitas.

       Perguntei se havia alguma mulher hospedada sozinha no hotel. Parece que havia duas: a Sr.a Granby, uma viúva anglo-indiana, e a Sr.ta Carruthers, uma solteirona desengonçada que trocava todas as consoantes sibilantes pelo xiz. O Sr. Petherick acrescentou que a polícia realizara investigações cuidadosas, e não encontrara ninguém que tivesse visto alguma delas perto da cena do crime, e não fora descoberta nenhuma ligação entre as duas e o casal. Pedi-lhe uma descrição das duas mulheres. Disse-me o Sr Petherick que a Sr.a Granby tinha cabelos vermelhos muito maltratados e cerca de uns cinqüenta anos. Suas roupas eram extravagantes, feitas em sua maioria de seda indiana. Já a Sr.ta Carruthers teria uns quarenta anos, cabelos bem curtos, e usava pince-nez e costumes de corte masculino.

       — Ai, ai, ai. Isto dificulta muito as coisas.

       O Sr. Petherick lançou-me um olhar interrogativo, mas eu não quis acrescentar mais nada no momento, e assim perguntei o que Sir Malcolm Ode dissera.

       Pelo jeito Sir Malcolm estava disposto a jogar todos os seus trunfos na tese do suicídio. O Sr. Petherick disse que o médico legista era totalmente contrário a essa hipótese, além do fato que o punhal não tinha nenhuma impressão digital. Contudo Sir Malcolm estava certo de poder apresentar testemunhos médicos conflitantes e sugerir uma explicação para a ausência de impressões.

       Perguntei ao Sr. Rhodes a sua opinião e ele respondeu-me que achava todos os médicos uns idiotas, mas que ele próprio não podia realmente acreditar que a mulher houvesse se suicidado.

       — Ela não era desse tipo — disse ele com simplicidade e acreditei nele. Pessoas histéricas geralmente não cometem suicídio.

       Refleti um pouco e perguntei se a porta do quarto da Sr.a Rhodes dava diretamente para o corredor. O Sr. Rhodes disse-me que não, a porta do quarto dava para um pequeno saguão que abria para um lavatório. Fora esta porta do quarto para o saguão que havia sido encontrada trancada e aferrolhada por dentro.

       — Sendo assim — retruquei — o caso me parece extremamente simples.

       E na verdade, era mesmo. O caso mais simples do mundo. E no entanto ninguém conseguira ver isto.

       Tanto o Sr. Petherick quanto o Sr. Rhodes ficaram me olhando tão espantados que até fiquei sem jeito.

       — Talvez a Senhorita não tenha pesado bem as dificuldades — disse o Sr. Rhodes.

       — Pesei, sim — repliquei. — Só existem quatro possibilidades: ou a Sr.a Rhodes foi morta pelo marido, ou foi morta pela arrumadeira, ou cometeu suicídio, ou então foi morta por um estranho que ninguém viu entrar nem sair.

       — Esta última hipótese é impossível — interveio o Sr. Rhodes. — Ninguém podia entrar ou sair pelo meu quarto sem que eu visse, e mesmo se alguém conseguisse entrar no quarto de minha mulher sem ser visto pelo eletricista, como poderia ter saído deixando a porta trancada e aferrolhada por dentro?

       O Sr. Petherick olhou para mim e disse encorajadoramente: — Bem, Miss Marple?

       — Gostaria de fazer uma pergunta — retruquei. — Sr. Rhodes, como era a arrumadeira? Poderia descrevê-la?

       Ele respondeu que não tinha reparado muito. Acreditava que fosse mais alta do que baixa, mas não se lembrava se os cabelos eram claros ou escuros. Voltei-me para o Sr. Petherick e fiz-lhe a mesma pergunta.

       Ele disse que ela era de estatura média, tinha cabelos louros, olhos azuis e era muito corada.

       O Sr. Rhodes comentou: — É melhor observador do que eu, Petherick.

       Atrevi-me a discordar e perguntei ao Sr. Rhodes se poderia descrever a minha empregada. Nem ele nem o Sr. Petherick conseguiram fazê-lo.

       — Não vêem o que isto significa? — perguntei. — Ambos estavam preocupados com os próprios problemas, e a pessoa que os recebeu era apenas uma criada. O mesmo se aplica ao Sr. Rhodes no hotel. Estava absorto em seu trabalho e viu somente uma arrumadeira, com um uniforme e um avental. Porém o Sr. Petherick olhou a mesma mulher de forma diferente, avaliando-a como uma pessoa.

       — E foi com isso que a assassina contou.

       Como eles ainda não compreendiam, tive de explicar.

       — Acho que as coisas se passaram assim: a arrumadeira entrou pela porta A, atravessou o quarto do Sr. Rhodes para levar o saco de água quente para a Sr.a Rhodes e saiu pelo saguão para o corredor B. X, como chamaremos a assassina, entrou pela porta B no pequeno saguão, escondeu-se no lavatório e esperou até a arrumadeira sair. Então entrou no quarto da Sr.a Rhodes, apanhou a adaga em cima da cômoda (sem dúvida explorara o quarto antes), dirigiu-se até à cama, apunhalou a mulher adormecida, limpou o cabo da adaga, trancou e aferrolhou a porta pela qual entrara e saiu pelo quarto em que o sr. Rhodes trabalhava.

       O Sr. Rhodes interveio: — Mas eu tê-la-ia visto! E o eletricista também a teria visto entrar!

       — Não, aí é que o senhor se engana — eu disse. — O senhor não a veria, não, se ela estivesse com um uniforme de arrumadeira.

       Deixei a idéia penetrar-lhes no cérebro e então continuei:

       — O senhor estava absorto em seu trabalho. Pelo canto do olho viu uma arrumadeira entrar, ir até o quarto de sua esposa e sair. Era o mesmo uniforme, mas não era a mesma mulher. Foi isso que as pessoas que tomavam café viram: uma arrumadeira entrar, e uma arrumadeira sair. O mesmo se deu com o eletricista. Eu diria que se arrumadeira fosse bonita, a natureza humana sendo o que é, os homens teriam notado o seu rosto. Mas como ela era apenas uma prosaica mulher de meia idade... Bem, todos viram apenas o seu uniforme, não a mulher em si.

       O Sr. Rhodes bradou: — Quem era ela?

       — Bem — retruquei — isso vai ser um pouco difícil. Deve ter sido ou a Sr.a Granby ou a Sr.ta Carruthers. Pela descrição eu diria que é possível que a Sr.a Granby use habitualmente uma peruca, podendo simplesmente tê-la retirado para desempenhar o papel de arrumadeira. Por outro lado, a Sr.ta Carruthers com o seu cabelo bem curto poderia facilmente enfiar uma peruca para desempenhar o seu papel. Mas acho que os senhores descobrirão facilmente qual das duas é a assassina. Pessoalmente, aposto na Sr.ta Carruthers.

       E na realidade, meus queridos, foi assim que terminou a história. Carruthers era um nome falso, e ela era mesmo a mulher que procurávamos. Havia insanidade em sua família. A Sr.a Rhodes fora uma motorista extremamente descuidada e perigosa e atropelara a sua filhinha. A perda levara a pobre mulher à loucura. Ela ocultara com muita sagacidade a sua insanidade que só transparecera nas cartas alucinadas que havia escrito para a sua futura vítima. Há algum tempo ela estava seguindo a Sr.a Rhodes e preparara cuidadosamente os seus planos. Na manhã seguinte ao crime despachara pelo correio bem cedo o uniforme de arrumadeira e a peruca. Ao ser acusada sucumbiu e confessou logo. A pobre está internada em Broadmoor agora. Era completamente louca, sem dúvida, mas planejou o crime com muita astúcia.

       O Sr. Petherick procurou-me mais tarde trazendo-me uma carta muito delicada do Sr. Rhodes. Na verdade, cheguei a corar. O meu amigo perguntou-me nessa ocasião: — Só mais uma coisinha: o que a faz pensar que era mais provável que a assassina fosse a Sr.ta Carruthers, e não a Sr.a Granby? Nunca tinha visto nenhuma delas!

       — Bem — respondi — foi a dicção dela. O senhor mesmo me disse que ela trocava todas as consoantes sibilantes pelo xis. Ora, na realidade isso é muito pouco comum, principalmente numa mulher ainda jovem, de uns quarenta anos. Todos esses xises me pareceram simplesmente um exagero de encenação de alguém que estava representando um papel.

       Não lhes direi o que o Sr. Petherick retrucou, mas foi algo muito elogioso para mim, e na verdade não pude evitar de me sentir um bocadinho envaidecida.

       Sabem, é extraordinário como muitas coisas nesse mundo às vezes acontecem para o bem. O Sr. Rhodes casou-se novamente, desta vez com uma moça muito simpática e sensata. Os dois agora têm uma menininha linda e — adivinhem só — convidaram-me para madrinha.

       Não foi muito gentil da parte deles?

       Só espero que não achem que eu me esteja estendendo demais...

 

NO FUNDO DO ESPELHO

       Não tenho explicações para essa história, nem nenhuma teoria de como e porque vi o que vi. Mas o fato é que vi.

       Mesmo assim, algumas vezes me pergunto como os fatos se teriam desenrolado se na época eu percebesse aquele detalhe essencial que só muitos anos mais tarde vim a enxergar. Se eu tivesse compreendido... talvez o curso de três vidas teria sido totalmente modificado, o que é uma idéia assustadora.

       Para contar-lhes como tudo começou, preciso voltar ao verão de 1914, pouco antes da guerra, quando fui a Badgeworthy com Neil Carslake. Neil era na época o meu melhor amigo. Eu conhecia também o seu irmão Alan, mas não com a mesma intimidade, e nunca vira a irmã dos dois, Sylvia. Ela era dois anos mais moça do que Alan e três anos mais moça do que Neil. Já por duas vezes enquanto éramos colegas de colégio, eu fora convidado a passar parte das férias com Neil em Badgeworthy, mas nas duas ocasiões surgira algum obstáculo. Assim, já completados os vinte e três anos, vi pela primeira vez a casa de Neil e Alan.

       Os convidados eram muitos. A irmã de Neil, Sylvia, acabara de ficar noiva de um tal Charles Crawley. Era muitos anos mais velho do que ela, disse-me Neil, mas um ótimo sujeito e em boa situação financeira.

       Lembro-me que chegamos às sete da noite. Todos se haviam retirado para os seus quartos a fim de preparar-se para o jantar. Neil conduziu-me ao que me fora reservado. Badgeworthy era uma mansão antiga, atraente e espaçosa. Nos últimos três séculos sofrera vários acréscimos e por todo lado as diferenças de piso obrigavam a escadarias inesperadas. Era o tipo de casa em que a orientação é difícil. Neil prometeu passar pelo meu quarto quando fosse descer para o jantar. Eu estava um pouco encabulado à idéia de encontrar pela primeira vez a sua família. Lembro-me de ter dito rindo que não me surpreenderia se encontrasse fantasmas pelos corredores, ao que ele retrucou despreocupadamente que diziam ser a casa mal-assombrada, mas nunca vira coisa alguma e não sabia a forma que o fantasma costumava assumir.

       Logo em seguida ele saiu apressado e comecei a desfazer as malas procurando pelas minhas roupas de cerimônia. Os Carslakes não eram ricos, conservavam a velha mansão mas não tinham criado-de-quarto para ajudar os hóspedes a se vestirem.

       Bem de pé em frente ao espelho, estava acabando de me preparar. Via meu rosto e meus ombros, e atrás de mim a parede do quarto — um trecho nu de parede em que se recortava uma porta. Terminara de dar o nó na gravata quando notei que essa porta estava se abrindo.

       Não sei por que não me virei, creio que teria sido a reação mais natural. Mas de qualquer forma, não me virei. Fiquei olhando a porta que se abria lentamente revelando o quarto contíguo.

       Era um quarto de dormir, maior do que o meu, com duas camas. Súbito, retive a respiração.

       Ao pé de uma das camas estava uma jovem com o pescoço envolvido por um par de mãos masculinas. Um homem estrangulava-a lentamente, forçando-a a curvar-se para trás, sufocando-a devagar.

       Não havia a mínima possibilidade de engano. A visão era perfeitamente nítida. Eu estava presenciando um assassinato.

       Podia ver claramente o rosto da jovem, seus cabelos dourados, o pavor e a agonia em seu belo rosto que lentamente se tingia de sangue. Do homem eu via apenas as costas, as mãos e uma parte da face esquerda cortada por uma cicatriz que descia até o pescoço.

       Este relato tomou-me algum tempo, mas na realidade só por alguns segundos fiquei paralisado antes de virar-me para socorrê-la...

       E então vi que na parede às minhas costas, na parede refletida no espelho, havia apenas um grande guarda-roupa vitoriano. Nenhuma porta aberta. Nenhuma cena de violência. Virei-me rapidamente para o espelho. Ele refletia apenas o guarda-roupa.

       Passei as mãos pelos olhos e atravessando o quarto tentei empurrar o móvel. Foi neste momento que Neil entrou pela outra porta e perguntou-me que diabos eu estava tentando fazer.

       Ele deve ter-me julgado um tanto maluco quando virei e lhe perguntei se existia uma porta atrás do guarda-roupa. Respondeu-me que sim, havia uma porta que abria para o quarto ao lado. Indaguei quem ocupava aquele quarto. Era o casal Oldham, o Major Oldham e a esposa. Perguntei-lhe se a Sr.a Oldham tinha cabelos louros e Neil respondeu-me secamente que era morena. Percebi então estar fazendo papel de tolo. Controlei-me, arranjei uma desculpa qualquer e desci com ele dizendo a mim mesmo que devia ter tido uma espécie de alucinação. Senti-me envergonhado e meio idiota.

       E então... e então... Neil disse: — Minha irmã Sylvia — e me vi olhando para o rosto encantador da jovem que eu acabara de ver sendo lentamente estrangulada... e fui apresentado ao noivo, um homem alto e moreno com uma cicatriz na face esquerda.

       Bem, isso é tudo. Gostaria que refletissem e me dissessem o que teriam feito em meu lugar. Ali estava a jovem, a mesma jovem, e ali estava o homem que eu vira estrangulando-a... e os dois deveriam casar-se dentro de um mês.

       Eu tivera ou não uma visão premonitória? Acaso Sylvia e o marido iriam algum dia hospedar-se naquele mesmo quarto (o melhor quarto de hóspedes), e aquela cena que eu presenciara tornar-se-ia uma sinistra realidade?

       Fiquei remoendo aquilo todo o tempo durante a semana que ali passei. Devia falar ou não? E quase imediatamente surgiu outra complicação: apaixonei-me por Sylvia Carslake no primeiro instante em que a vi. Desejei-a mais do que a qualquer outra coisa no mundo... e de certa forma isto amarrou-me as mãos.

       Porém, se eu não dissesse nada, Sylvia casar-se-ia com Charles Crawley e Crawley matá-la-ia.

       E assim, na véspera de ir-me embora, contei-lhe tudo. Disse-lhe que esperava que ela me julgasse com os miolos moles, ou coisa semelhante, mas jurava solenemente ter visto a cena do espelho, e sentia, já que ela estava decidida a casar-se com Crawley, que devia revelar-lhe a minha estranha experiência.

       Ela ouviu-me em silêncio. Seus olhos tinham uma expressão que não consegui decifrar. Não ficou nem um pouco zangada e quando acabei agradeceu-me gravemente. Fiquei ali repetindo como um idiota: — Eu vi, eu realmente vi, ao que ela retrucou: — Estou certa de que viu. Acredito em você.

       Bem, o desfecho foi que parti sem saber se tinha agido certo ou me comportado como um tolo, e uma semana mais tarde Sylvia desfez o noivado com Charles Crawley.

       Logo depois eclodiu a guerra, e não havia tempo para pensar em mais nada. Uma ou duas vezes, quando estava de licença, encontrei Sylvia, mas evitei-a o mais possível.

       Eu a amava e a desejava mais do que nunca, porém de alguma forma sentia que se a procurasse não estaria agindo corretamente. Por minha causa ela desfizera o noivado com Crawley, e o meu ato só teria sido justificado se eu tivesse agido desinteressadamente.

       Então, em 1916, Neil foi morto e coube-me falar a Sylvia sobre os seus últimos momentos. Depois disso nossas relações não podiam mais permanecer num plano formal. Sylvia adorara Neil, e ele fora o meu melhor amigo. Em sua dor ela mostrou-se adorável, tão doce e meiga que a custo consegui reprimir o meu amor. Voltei para o front rezando para que uma bala pusesse fim à minha miséria. A vida sem Sylvia não tinha atrativos.

       Mas nenhuma bala estava reservada para mim. Uma quase me pegou embaixo da orelha direita, e uma outra foi desviada por uma cigarreira de metal que levava no bolso, e assim saí ileso da guerra. Charles Crawley morreu em ação no início de 1918.

       De algum modo isto fez uma diferença. Voltei para casa no outono de 1918; pouco antes do armistício. Fui direto a Sylvia e disse-lhe que a amava. Não tinha muita esperança de que ela correspondesse logo ao meu amor, e tive a maior surpresa quando ela perguntou por que não lhe falara antes. Gaguejei qualquer coisa sobre Crawley, e ela retrucou: — Mas por que julgou que rompi com ele? — e me contou então que se apaixonara por mim, assim como eu me apaixonara por ela, no primeiro instante em que nos víramos.

       Confessei-lhe ter pensado que ela desfizera o noivado por causa da história que eu lhe contara; ela riu com desdém e afirmou que se amasse realmente um homem nunca agiria de forma tão covarde. Falamos novamente sobre a minha visão e concordamos que era estranha, porém nada mais do que isso.

       Bem, tenho pouco a relatar sobre os meses seguintes. Sylvia e eu nos casamos e fomos felizes. Mas logo compreendi que não estava talhado para ser um bom marido. Amava Sylvia extremosamente, mas era ciumento, absurdamente ciumento de todos a quem ela dedicasse um simples sorriso. A princípio isto divertiu-a. Acho que até mesmo gostava dos meus ciúmes, que ao menos lhe provavam a minha dedicação.

       Quanto a mim, sabia plena e inequivocamente que não só estava agindo como um tolo, mas também colocando em perigo a paz e a felicidade de nossa vida conjugal. Digo que sabia, porém não conseguia modificar-me. Toda vez que Sylvia recebia uma carta e não ma mostrava, eu começava a conjecturar de quem seria. Se ela ria conversando com algum homem, eu ficava imediatamente desconfiado e macambúzio.

       A princípio, como já disse, Sylvia riu-se achando meus ciúmes engraçadíssimos. Depois parou de considerá-los tão engraçados, e por fim deixou de achar-lhes qualquer graça.

       Lentamente ela começou a se afastar de mim. Não no sentido físico, mas retraiu-se, não compartilhando mais comigo os seus pensamentos. Era sempre bondosa, mas triste, como se nos separasse uma longa distância.

       Pouco a pouco compreendi que ela não mais me amava. Seu amor morrera. Eu mesmo o matara...

       A etapa seguinte era inevitável. Percebi que a esperava... e temia.

       E assim Derek Wainwright entrou em nossas vidas. Ele tinha tudo que eu não tinha: um cérebro privilegiado e uma língua afiada. Era atraente, também e — sou forçado a admitir — uma ótima pessoa. Assim que o conheci, pensei comigo: “Este é o homem para Sylvia”...

       Ela lutou contra isto, sei que ela lutou... mas não lhe dei nenhum auxílio. Não podia. Enrustido em minha sombria reserva, sofria as torturas do inferno, mas não conseguia estender um dedo para me salvar. Não a ajudei. Ao contrário, agravei ainda mais a situação. Certo dia a minha ira explodiu e insultei-a selvagem e injustificadamente. Disse coisas falsas e cruéis sabendo perfeitamente quão falsas e cruéis eram. E apesar disso senti um prazer selvagem em dize-las...

       Lembro-me como Sylvia enrubesceu e recuou...

       Levei-a ao limite da tolerância.

       Lembro-me que ela disse: — Isso não pode continuar...

       Quando voltei aquela noite para casa, encontrei-a vazia. Ela deixara um bilhete, como é tradicional nesses casos.

       Nele dizia que me estava deixando para sempre. Ia passar uns dias em Badgeworthy e depois iria procurar a única pessoa que a amava e precisava dela. Sua decisão era final.

       Creio que, até então, eu mesmo não acreditava realmente em minhas suposições. Esta confirmação em preto e branco dos meus piores receios enlouqueceu-me. Peguei o carro e pisando fundo no acelerador fui atrás dela em Badgeworthy.

       Lembro-me que quando empurrei a porta do seu quarto, ela acabara de trocar o vestido para jantar. Vi no seu rosto, no seu belo rosto, o espanto... e o medo.

       Eu disse: — Ninguém, ninguém a não ser eu a terá!

       Envolvi seu pescoço com as minhas mãos e apertei, forçando-a a curvar-se para trás.

       Subitamente vi a nossa imagem no espelho: Sylvia sufocada, eu estrangulando-a, e a cicatriz no meu rosto onde a bala passara de raspão sob a orelha direita.

       Não, eu não a matei. Esta repentina revelação paralisou-me. Abri as mãos e ela escorregou até o chão...

       Explodi em soluços então... e ela me confortou... Sim, ela me confortou...

       Disse-lhe tudo e ela explicou que com a expressão “a única pessoa que me ama e precisa de mim” quisera referir-se ao irmão Alan... Naquela noite abrimos os nossos corações, e acho que desde aquele momento nunca mais nos afastamos um do outro.

       Entretanto é uma idéia assustadora pensar que se não fosse pela graça de Deus e por um espelho, eu hoje seria um assassino...

       Mas algo morreu naquela noite: o demônio do ciúme que me possuíra por tanto tempo...

       Às vezes fico pensando — e se eu não tivesse cometido aquele engano inicial, julgando que a cicatriz era na face esquerda quando na verdade era na direita, invertida pelo espelho? Teria tido tanta certeza que o homem era Charles Crawley? Teria advertido Sylvia? Ela se teria casado comigo... ou com ele?

       Constituirão o passado e o futuro uma coisa só?

       Sou um homem simples, e não pretendo entender dessas coisas. Mas vi o que vi... e por causa do que vi Sylvia e eu estaremos juntos — para empregar as palavras antiquadas — até que a morte nos separe. E talvez ainda além...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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