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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM CRIME ADORMECIDO / Agatha Christie
UM CRIME ADORMECIDO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM CRIME ADORMECIDO

              Frases pronunciadas numa peça de teatro causam uma reação inesperada e aparentemente inexplicada na jovem Gwenda. O mistério vai se adensando quando, em sua nova residência no sul da Inglaterra, ela surpreende uma estranha familiaridade em cada um dos cômodos da casa. Evocações de infância, ecos, lembranças, realidade e pesadelo vão se insinuando em seus passos. Como miss Jane Marple, aqui desvendando seu último caso, o leitor se vê obrigado a mergulhar fundo em uma vida, ou diversas vidas, tentando, como detetive e psicólogo, a partir de suspeitas de insanidade e de assassinatos ocórridos, esclarecer as sombras de crueldade premeditada que encobrem um crime adormecido há dezoito anos.

 

                               

 

UMA CASA

Gwenda Reed, ligeiramente trêmula, estava em pé à beira do cais.

As docas, os depósitos da alfândega, tudo o que podia ver da Inglaterra oscilava lentamente para cima e para baixa. Foi nesse momento que tomou a decisão - uma decisão que acarretaria acontecimentos muito importantes.

Não iria mais de trem para Londres, como planejara. Afinal, por que ir de trem? Ninguém estava à sua espera, ninguém sabia de sua chegada. Acabara de desembarcar daquel navio vagaroso e barulhento. A travessia de três dias, através da baía e até Plymouth, fora excepcionalmente dura. A última coisa que queria era entrar num trem incômodo e oscilante. Iria para um hotel, um bom hotel, sólido e estável, em terra firme, e se deitaria numa boa cama, sem rangidos ou oscilações. Dormiria e no dia seguinte - ora, é claro, que boa idéia! - alugaria um carro e dirigiria lentamente, sem se apressar, por todo o sul da Inglaterra; à procura de uma casa - uma casa gostosa - a casa que ela e Giles tinham resolvido que ela descobriria. Sim, era uma ótima idéia.

Dessa maneira poderia conhecer um pouco a Inglaterra - a ­Inglaterra que Giles lhe descrevera e que ela nunca vira, apesar de chamá-la de sua pátria, como a maioria dos neozelandese. Naquele momento, a Inglaterra não parecia muito atraente. O tempo estava feio, ia começar a chover, soprava um vento forte e enervante. Enquanto seguia obedientemente a fila para a inspeção de passaportes e para a alfândega, Gwenda pensou com seus botões que Plymouth provavelmente não era o melhor lugar da Inglaterra.

Na manhã seguinte, entretanto, sentia-se outra. O sol brilhava. A vista de sua janela era bonita. E o universo já não oscilava mais. Tornara-se estável. Isto era a Inglaterra, finalmente, e lá estava ela, Gwenda Reed, uma jovem recém-casada de vinte e um anos, viajando. A data de chegada de Giles era incerta. Poderia vir encontrá-la dentro de algumas semanas ou, quem sabe, só daí a uns seis meses. Giles sugerira que Gwenda fosse na frente e procurasse uma casa que lhes conviesse. Ambos achavam que seria bom terem um endereço fixo em algum lugar. O trabalho de Giles lhe exigiria viajar sempre. As vezes Gwenda iria junto, outras vezes as condições não seriam boas. Ambos, porém, gostavam da idéia de terem um lar - uma casa que lhes pertencesse. Giles herdara recentemente alguns móveis de uma tia e tudo contribuia para tornar a idéia prática e viável.

Como os dois estivessem em boas condições financeifas, as perspectivas futuras não apresentavam problemas.

No início Gwenda hesitara em escolher a casa sozinha. ­Devíamos escolher juntos, dissera. Mas Giles respondera em tom de brincadeira: - Não dou muito para isso. Se voeê gostar, eu também vou gostar. Quero um jardinzinho, é claro, nada dessas casas modernas horrorosas, nem que seja grande demais. Gostaria que ficasse na costa sul. De qualquer maneira, não muito longe do litoral.

Gwenda lhe perguntara se tinha preferência por algum local específico, mas Giles tinha dito que não. Ficara órfão muito cedo (os dois eram órfãos), e passara as férias com varias fami­lias amigas, em diversos lugares. Nenhum deles o atraía parti­cularmente. A casa seria de Gwenda. Quanto a esperar para po­derem escolher juntos - e se ele só pudesse ir daí a seis meses? O que faria Gwenda durante todo esse tempo. Ficana em hotéis. Não, encontraria uma casa e lá se instalaria.

- O que você quer é que eu tenha todo o trabalho! excla­mara Gwenda.

No fundo, porém, ela gostara da idéia de encontrar uma casa, arrumá-la e estar com tudo pronto para a chegada de Giles.

Estavam casados há apenas três meses e ela o amava muito. Após tomar o café na cama, Gwenda se levantou e orga­nizou mentalmente o programa.

Passou um dia divertido, visitando Plymouth e, no dia se­guinte, alugou um confortável Daimler com motorista e partiu para sua jornada pela Inglaterra.

O tempo estava bom e ela gostou muito do passeio. Visitou diversas casas em Devonshire mas nenhuma delas Ihe agradou realmente. Não havia pressa. Continuaria procurando. Apren­dera a ler nas entrelinhas das entusiásticas descrições dos cor­retores e economizou algumas visitas que seriam absolutamente infrutíferas.

Cerca de uma semana depois, numa terça-feira à tarde, u carro descia suavemente pela estrada em curvas que levava a Dillmouth quando, nos arredores do encantador local de vera­neio, passou por uma placa de "Casa á Venda". Através das árvores, podia-se avistar uma pequena casa vitoriana pintada de branco.

Imediatamente Gwenda teve um sobressalto de admiração - quase que de reconhecimento. Aquela era a sua casa! Já es­tava certa disso. Podia imaginar o jardim, as janelas altas -­ tinha a certeza de que era exatamente o que queria.

Como já fosse tarde, instalou-se no Hotel Clarence e diri­giu-se ao endereço dos corretores, indicado na placa.

Empunhando uma licença para visitar a casa, Gwenda es­tava de pé na sala comprida e antiquada, com duas portas-janela que davam para o terraço. Bem em frente havia um jardim de pedras entremeadas com arbustos floridos e que descia abrupta­mente em direção ao gramado.         Através das árvores, no fundo do jardim, avistava-se o mar.

- Esta é a minha casa, pensou Gwenda. É o meu lar. Tenho a impressão de já conhecer todos os seus detalhes.

A porta se abriu e uma mulher alta, de expressão sombria entrou fungando.

- Sra. Hengrave? - Trouxe comigo uma licença fornecida pelos corretores Galbraith & Penderley. Talvez seja um pouco cedo para visïtar a casa, mas ...

A Sra. Hengrave, assoando o na; iz, respondeu em to~n ~ne­lancólico que não tinha a menor ïmportância. Começaram a ver a casa.

Sim, era exatamente aquilo. Não era grande demais. Um pouco antiquada, mas ela e Giles podiam construir mais um ou dois banheiros. A cozinha podia ser modernizada. Uma pia nova, um equipamento novo ...

Enquanto Gwenda pensava e planejava, ouvia a voz da Sra. Hengrave contando em tom monótono os detalhes da doen­ça do fatecido Major Hengrave. Gwenda se esforçava para fazer os comentários adequados de condolência, simpatia e compre­ensão. Toda a família da Sra: Hengrave morava em Kent. Esta­vam querendo que ela fosse para perto deles, omajor gostava muito de Dillmouth. .. fora secretário do clube de golfe durante anos, mas ela...

- Sim... É claro... Terrivel para a senhora... Muito natural... É, os hospitais são assim mesmo, , . É claro... Com­preendo ...

O pensamento de Gwenda corria. Aqui deve ser o armário de roupa de cama... É isso mesmo. Quarto de casal - bonita vista para o mar - Giles. vai gostar. Aqui tem um quartinho muito útil - pode ficar sendo o quarto de vestir de Giles... Banheiro - a banheira deve ter um rebordo de mogno... Tem mesmo! Que maravilha... E fica no meio do banheiro! Isso eu não vou mudar. É uma peça de época.

Uma banheira enorme!

Dava até a plantar macieiras em volta. E soltar barqui­nhos dentro... e patinhos de brinquedo. Podia fingir que estava no mar... Já sei: vamos transformar aquele quarto extra, tão escuro, em dois banheiros bem modernos, cromados. Os enca­namentos da cozinha devem ficar bem embaixo... Isso aqui vou deixar como está...

- Pleurisia, disse a Sra. Hengrave. - No terceiro dia se transformou numa pneumonia dupla...

- Terrível, respondeu Gwenda. - Não há outro quarto no fim deste corredor?

Havia - e era bem o tipo de quarto que ela imaginara ­quase redondo, com uma grande janela envidraçada. Ia ter que arrumá-lo, é claro. Estava bem conservado, mas por que será que pessoas como a Sra. Hengrave gostam tanto de paredes pintadas em tom mostarda?

Passaram novamente pelo corredor. - Seis, não, . . sete quartos, murmurou Gwenda, - contando com o quartinho me­nor e o sótão.

As tábuas do assoalho rangiam sob seus pés, Gwenda tinha a sensação de que era ela, e não a Sra. Hengrave, quem morava naquela casa. A Sra. Hengrave era uma intrusa ­- uma mulher que pintava as paredes de cor de mostarda e que gostava de glicínias na sala. Gwenda deu uma olhada no papel datilogra­fado que descrevia os detalhes da propriedade e o preço pedido.

Em poucos dias Gwenda ficara muito entendida em preços de casa. A quantia pedida não era demasiada. Naturalmente a casa precisava ser reformada, mas mesmo assim... Reparouna frase "Aceitam-se ofertas". A Sra. Hengrave deve estar louca para ir para Kent, morar perto de seus parentes...

Iam começar a descer a escada;da quando subitamente Gwenda se sentiu invadida por uma onda de terror. Foi uma sensação horrível, que passou tão depressa quanto viera, mas que lhe despertou uma nova idéia.

- A casa não é... mal-assombrada ... é? perguntou ela.

A Sra. Hengrave, um degrau abaixo, tendo chegado ao ponto da narrativa em que o Major Hengrave piorou terrível­mente, olhou para cima com ar ofendido.

- Que eu saiba não, Sra. Reed. Será que ... alguém ... está dizendo uma coisa dessas?

- A senhora nunca viu nem sentiu nada aqui? Ninguém morreu aqui?

Pergunta infeliz, pensou Gwenda, mas agora é tarde... É provável que o Major Hengrave ...

- Meu marido morreu no Hospital Santa Mônica, responde~u secamente a Sra. Hengrave.

- Ah, sim, é claro! A senhora me havia dito!

A Sra. Hengrave prosseguiu em, tom glacial. - Numa casa construida há cerca de cem anos seria muito natural que tivesse ocorrido alguma morte. A Srta. Elworthy, de quem meu que­rido marido comprou esta casa há sete anos atrás, tinha uma ótima saúde; estava até planejando ser missionária em outro país, e náo falou de mortes recentes na família.

Gwenda apressou-se em acalmar a Sra. Hengrave. Estavam novamente na sala. Era uma peça tranqüila e encantadora, com o tipo exato de ambiente que Gwenda desejava. O pânico mo­mentâneo parecia-lhe agora incompreensivel. O quê lhe acontecera? Não havia nada estranho na casa.

Perguntando à dona da casa se podia dar uma olhada no jardim, dirigiu-se para o terraço.

Aqui devia haver degraus... pensou Gwenda, descendo para o gramado.

Em vez disso, porém, havia um enorme tufo de forsítias que, crescidas demais, tapavam a vista para o mar. Gwenda decidiu que mudaria aquïlo.

Seguindo a Sra. Hengrave, voltou para o terraço e desceu alguns degraus que levavam ao lado oposto do terreno. Reparou que o jardim estava maltratado e que a maiorla dos arbustos prccisavam ser podados.

A Sra. Hengrave murmurou, em tom de desculpa, que o jardim estava mal cuidado porque só podia pagar um jardineiro para trabalhar duas vezes por semana, e ele freqüentemente não aparecia.

Examinaram a horta, que era pequena, mas de bom tama­nho, e voltaram para a casa. Gwenda explicou que precisava visitar outras casas e que, apesar de ter gostado muito de Hillside (este nome não me parece estranho!) não podia tomar uma decisão imediata.

A Sra. Hengrave despediu-se dela com olhar melancótico e uma longa fungada.

Gwenda foi direto aos corretores, fez a sua oferta e passou o resto da rnanhã andando por Dillmouth. Era uma encanta­dora e antiquada cidadezinha à b~ira-mar. Na parte "moderna" havia alguns hotéïs novos e bangalôs rústicos, mas a formação geográfica da costa, com as colinas por trás, poupara Dillmouth de uma expansão demasiada.

Depois do almoço o corretor telefonou para Gwenda, in­formando que a Sra. Hen,grave aceitara a oferta. Com um sor­riso malicioso, Gwenda dirigïu-se ao correio e mandou um te­legrama para o marido.

COMPREI UMA CASA. BEIJOS. GWENDA.

Ele vai ficar espantado, pensou Gwenda consigo mesma. Vai ficar sabendo que eu sai cuidar das coisas!

 

O PAPEL DE PAREDE

Passara-se um mês desde que Gwenda se mudara para Hillside. A mobília da tia de Giles fora retirada do guarda-móveis e arru­mada na casa. Eram peças antigas e de boa qualidade. Gwenda vendera dois armários grandes demais, mas o resto coube muito bem e estava de acordo com a casa. Na sala ficaram mesinhas de papier-mache com incrustações de madrepérola e pintura de castelos e rosas. Além disso, uma pequena escrivaninha com uma banqueta de cetim, uma mesa de trabalho de pau-rosa e uma mesinha de centro em mogno.

As espriguiçadeiras tinham sido colocadas nos quartos e Gwenda comprara duas enormes e confortáveis poltronas para que ela e Giles pudessem ficar perto da lareira. Junto as janelas ela cotocou um grande sofá estilo Chesterfield. As cortinas es­colhidas eram de chintz azul bem clarinho, estampadas com buquês de rosas e pássaros amarelos. Gwenda achava que agora a sala estava exatamente como queria.

Não estava completamente instalada, pois ainda havia operários trabalhando. Já deviam ter concluído o serviço, mas Gwenda achou que enquanto não se mudasse eles não iriam embora.

A reforma da cozinha já acabara e os banheiros novos es­tavam quase prontos. Quanto ao resto da decoração, Gwenda decidira esperar um pouco. Queria tempo para saborear sua nova casa e escolher as cores exatas para os quartos. A casa estava muito bem arrumada e não havia necessidade de fazer tudo ao mesmo tempo.

Na cozinha reinava a Sra. Cocker, muito amável e condes­cendente, inclinada a repelir o tom democrático e amigável da dona da casa. No entanto, depois de ter colocado Gwenda em seu devido lugar, tornara-se mais descontraída.

Naquela manhã, a Sra. Cocker pôs a bandeja do café no colo de Gwenda, que se sentara na cama.

- Quando não há um cavalheiro em casa. disse a Sra. Cocker - as senhoras preferem tomar o café na cama.

Gwenda curvou-se ante a suposta regra britânica.

- Hoje de manhã são ovos mexidos, prosseguiu a Sra, Cocker. - A senhora falou em haddock, mas no quarto não é bom. Deixa muito cheiro. Vou preparar haddock ao molho branco e torradas para o jantar.

- Oh, obrigada, Sra. Cocker

Esta sorriu amavelmente e se dispôs a sair do quarto.

Gwenda ainda não se instalara no espaçoso quarto de ca­sal, pois aguardava a chegada de Giles. Escolhera, porenquanto, o quarto dos fundos, de parede redonda e janela envidraçada. Sentia-se à vontade e feliz ali.

Olhando em volta, exclamou subitamente:

- Como gostei deste quarto!

A Sra. Cocker olhou ern torno, com indulgência.

- É um quarto muiro simpático, senhora, apesar de pe­queno. Deve ter sido de criança, porque tem grades na janela.

- Nunca pensei nisso. É possível.

- Ah, bem! exclamou a Sra. Cocker, num tom repleto de subentendidos. E retirou-se.

Parecia estar dizendo que, quando houvesse um homem na casa, quem sabe talvez passasse a ser necessário ter um quarto de criança.

Gwenda enrubesceu. Olhou em torno. Um quarto de crian­ça? Sim, seria um quarto de criança muito simpático. Começou a arrumá-lo mentalmente. Uma casa de bonecas ali, encostada na parede; armários baixos cheios de brinquedos. O fogo aceso na lareira, um anteparo bem alto em torno, peças de roupa pen­duradas para arejar. Mas não essa horrenda parede cor de mos­tarda. Não, forracia com um papel bem alegre, estampado com raminhos de papoula e de centáureas... Sim, ficaria um amor. Procuraria um papel de parede assim. Tinha certeza de já ter visto esse estampado em algum lugar.

O quarto não precisava de muitos móveis. Havia dois ar­mários embutidos, mas um deles, o do canto, estava trancado e a chave tinha-se perdido. Aliás o armário inteiro havia sido pintado. Provavelmente não o abriam há muitos anos. Ela pre­cisava pedir aos operários que o abrissem antes de irem embora pois não havia espaço suficiente para todas as suas roupas.

Sentia-se cada vez mais à vontade em Hillside. Através da janela aberta ouviu alguém pigarrear e tossir. Tomou o café bem depressa. Foster, o jardineiro temperamental, nem sempre cumpridor de suas promessas, devia estar no jardim, conforme o combinado.

Gwenda tomou banho, vestiu uma saia de tweed e um suéter e correu para o jardim. Foster trabalhava perto da janela da sala de estar. Ela decidira mandar fazer um caminho que a par­tir dali, atravessasse o jardim de pedras e flores. Foster relutara, argumentando que as forsítias, os arbustos e os lilases teriam que ser cortados. Gwenda, porém, ficara irredutível e agora Foster estava quase entusiasmado com a tarefa.

Cumprimentou Gwenda com uma risada.

- Pelo jeito vamos voltar aos velhos tempos, senhorita. Insistia em chamar Gwenda de senhorita.

- Velhos tempos? Como assim? Foster bateu com a pá no chão.

- Encontrei os degraus antigos - veja, estavam aqui ­exatamente onde a senhorita queria. Alguém os cobriu e plantou flores por cima.

- Foi uma grande bobagem, observou Gwenda. - É agra­dável olhar o gramado e o mar pela janela da sala.

Foster pouco ligava para a vista, mas concordou de má­vontade.

- Não digo que não vá melhorar, compreende? Vai poder ter a vista, e os arbustos escurecem a sala. Mas estavam ficando lindos... Nunca vi forsítias tão bonitas. Os lilases não valem grande coisa, mas essas outras flores custam caro... E olhe, estão velhas demais para serem replantadas.

- Sim, eu sei. Mas assim vai ficar muito, muito melhor.

- Bem ... murmurou Foster, coçando a cabeça. - Pode ser...

- Tenho certeza retorquiu Gwenda sacudindo a cabeça afirmativamente. - Quem morava aqui antes do casal Hen­grave? perguntou subitamente. - Eles viveram pouco tempo aqui, não é?

- Mais ou menos seis anos. Antes deles? O pessoal da Srta. Elworthy. Gente com mania de igreja. Eram missionários. Uma vez chegaram a hospedar um padre negro. Eram quatro e mais o irmão, mas ele não opinava muito no meio de tantas mulheres. Antes deles... deixe-me lembrar... era a Sra. Fin­deyson. Ah! Essa sim, era uma pessoa fina. Tinha classe! Antes de eu nascer ela já morava nesta casa.

- Morreu aqui? perguntou Gwenda.

- Morreu no Egito ou coisa parecida. Mas trouxeram o corpo de volta. Foi enterrada no cemitério da igreja. Foi ela quem plantou as magnólias e aquelas outras flores ali. Gostava muito de arbustos.

- Naquela época, prosseguiu Foster, - não havia nenhuma dessas casas novas construídas na colina. Isto aqui era roça. Não tinha cinema, nem lojas modernas... Seu tom era desa­provador. Como todos os velhos, não gostava de inovações. ­Mudanças ... resmungou ele. - Só mudanças...

- Acho que tudo tem que mudar, observou Gwenda. - E afinal de contas hoje em dia há muito mais progresso, não é?

- É o que dizem. Eu não vejo nada disso. Mudanças!... - Fez um gesto em direção à sebe, à esquerda, através da qual se avistava um edifício. - Ali era o hospital, prosseguiu. - An­tigamente. Um lugar bom e pertinho. Depois vão embora e constrõem um prédio enorme a uma milha de distância da ci­dade. Para visitar alguém a gente tem que andar vinte minutos a pé.. . ou então pagar uma passagem de ônibus. Tornou a apontar para a sebe. - Agora é um colégio para meninas. Estão lá há dez anos. Vivem se mudando. Hoje em dia as pessoas com­pram uma casa, moram lá dez ou doze anos e depois vão em­bora. Agitação ... O que é que adianta? Não se pode plantar nada direito sem ter bastante tempo pela frente.

Gwenda olhou carinhosamente para o pé de magnóliá.

- Como a Sra. Findeyson, observou.

- Ah, ela sim! Chegou aqui recém-casada. Criou os filhos, casou todos eles, enterrou o marido, recebia os netos no verão e só foi embora quando tinha quase oitenta anos.

O tom de Foster era de calorosa aprovação. Gwenda voltou sorrindo para casa.

Conversou com os operários, foi para a sala, sentou-se em frente à escrivaninha e escreveu algumas cartas. Precisava deixar a correspondência em dia, respondendo a uma carta de uns primos de Giles que moravam em Londres e que insistiam para que se hospedasse na casa deles, em Chelsea, quando fosse a Londres.

Raymond west era um conhecido romancista e Joan, sua mulher, era pintora. Seria divertido ficar na casa deles, se bem que provavelmente a considerariam uma completa ignorante.Nem eu nem Giles somos intelectuais, pensou Gwenda consigo mesma.

Um gongo sonoro ecoou alto no saguão. O gongo, com uma escura moldura de madeira esculpida, fora um dos objetos preferidos da tia de Giles. A Sra. Cocker parecia gostar muito de ouvi-lo e sempre tocava com toda força. Gwenda tapou os ouvidos e se levantou.

Atravessou rapidamente a sala em direção à parede e estan­cou de súbito, aborrecida. Era a terceira vez que fazia isso. Pa­recia até que se achava capaz de atravessar uma parede para ir até à sala de jantar. Era preciso dar a volta, e no inverno seria muito desagradável, pois a entrada da casa era fria e úmida. O aquecimento central só funcionava na sala de estar, na sala de jantar e em dois quartos de dormir.

Não posso entender - pensou Gwenda consigo mesma, ao sentar-se diante da linda mesa de jantar estilo Sheraton que comprara para substituir a grande mesa de mogno da tia Lawn­der - não posso entender porque não mandei abrir uma pas­sagem entre a sala de estar e a de jantar. Quando o Sr. Sims chegar conversarei com ele.

O Sr. Sims era construtor e decorador, um homem de meia­-idade, voz rouca, que tinha sempre à mão um caderninho em que anotava todas as idéias dispendiosas que ocorressem a seus clientes.

Consultado, ele aprovou calorosamente a idéia.

- A coisa mais simples do mundo, Sra. Reed ... e, na minha opinião, será uma melhoria enorme.

- Sai muito caro? Gwenda já aprendera a duvidar um pouco do entusiasmo do Sr. Sims, pois haviam surgido despesas extras não incluídas no seu orçamento original.

- Uma ninharia, respondeu o Sr. Sims em tom indulgente e tranqüilizador. Gwenda ficou ainda mais desconfiada. Apren­dera a duvidar justamente do que ele chamava de ninharia.

- Vamos fazer uma coisa, Sra. Reed, disse o Sr. Sims em tom persuasivo. - Vou pedir a Taylor que dê uma olhada nisso hoje à tarde, quando tiver terminado o serviço no quarto de vestir. Só então poderei dar-lhe um orçamento correto. Depende do tipo de parede.

Gwenda concordou. Escreveu para Joan West, agradecendo o convite e dizendo que naquele rnomento não pud.ia ausentar-se de Dillmouth porque precisava supervisionar os operários. Em seguida foi dar uma caminhada, respirando com prazer a brisa do mar. Quando voltou para a sala, encontrou Taylor, o mestre-de-obras do Sr. Sims, que a recebeu com um sorriso.

- Não há o menor problema, Sra. Reed, disse ele. - Neste lugar já houve uma porta. Alguém resolveu que não queria mais essa passagem e mandou fechá-la com gesso.

Gwenda ficou agradavelmente surpreendida. Que coisa ex­traordinária, pensou ela. Sempre tive a impressão de que ali havia uma porta. Lembrou-se de que, à hora do almoço, se di­rigira sem hesitação para aquele ponto. E, recordando, sentiu, repentinamente, uma sensação desagradável. Pensando bem, era meio estranho... Como podia ter tanta certeza de que ali havia uma porta? Evidentemente, seria prático ter uma porta de co­municaçao entre as duas salas, mas não havia nenhuma marca na parede. Como tinha adivinhado, como sabia da existência daquela porta? Por que, tão decidida, se dirigira exatamente aquele lugar? A porta poderia ficar em qualquer lugar da pa­rede, mas ela se dirigira automaticamente para aquele ponto, o ponto exato em que tinha havido uma porta.

Espero, pensou Gwenda apreensiva, que eu não esteja me tornando vidente ou coisa assim ...

Nunca tivera problemas psíquicos. Não era seu gênero. Ou será que era? O caminho que descia do terraço, através dos ar­bustos, até o gramado... Será que já sabia de sua existência ao insistir para que fosse aberto precisamente naquele lugar?

Talvez eu esteja ficando meio maluca, pensou ela, inquieta: Ou será que há alguma coisa estranha nesta casa?

Por que perguntara à Sra. Hengrave se a casa era mal-as­sombrada?

Não era mal-assombrada! Era um amor de casa! Não podia haver nada de errado ali. A Sra. Hengrave pareceu-lhe muito surpresa com a pergunta.

Ou teria demonstrado certa reserva, respondido em tom cauteloso?

- Meu Deus, estou começando a imaginar coisas! - pensou Gwenda.

Mudou o rumo de seu pensamento e, com esforço, voltou a se dirigir a Taylor.

- Tem mais uma coisa, disse ela. - Uma das portas do armário do meu quarto não abre. Gostaria que o senhor visse isso.

O homem subiu com ela e examinou a porta.

- Já levou várias mãos de tinta, disse ele. - Se não se incomodar de esperar um pouco, amanhã mando os homens da­rem um jeito msso.

Gwenda concordou e Taylor retirou-se.

Nessa noite Gwenda sentiu-se agitada e nervosa. Enq uanto lia, sentada na sala, prestava atenção aos menores ruídos. Mais de uma vez olhou para trás e estremeceu. Repetiu diversas vezes pa,ra si mesma que os incidentes da porta e do caminho não ti­nham qualquer importância. Eram simples coincidências. De qualquer modo, era apenas uma questão de bom-senso.

Mesmo sem querer confessar sua sensaçáo, estava com medo de subir para se deitar. Quando finalmente se levantou apagou a luz e abriu a porta da sala, sentindo-se apavorada de ter que subir a e$cada. Subiu apressadamente, quase correndo, atraves­sou o corredor e abriu a porta da quarto. Uma vez lá dentro, foi-se acalmando aos poucos. Olhou afetuosamente em torno. Sim, agora estava em segurança. (Em segurança contra o quê, sua boba? perguntou a si mesrria.) Olhou para a camisola esten­dida em cima da cama e os chinetos no chão.

Francamente, Gwenda, você parece que tem seis anos! Devia ussr chinelos de pelúcia com cara de coelho.

Meteu-se debaixo das cobertas com uma sensação de alívio e logo adormeceu.

Na manhã seguinte foi à cidade para tomar diversas provi­dências e sb voltou na hora do almoço.

- Os operários já abriram a porta do armário do quarto, senhora, disse a Sra. Cocker ao trazer o linguado frito, o purê de batatas e a cenoura com molho branco.

- Ótimo! exclamou Gwenda.

Estava com fome e almoçou muito bem. Tomou o café na sala de estar e subiu para o quarto. Ao abrir a porta do armário, deu um grito assustado e ficou olhando fixamente.

No seu interior via-se o papel de parede original. O quarto, antigamente, era forrado com um papel de parede bem alegre, todo de flores, ramagens de papoulas vermelhas e centáureas azuis ...

 

Gwenda ficou em pé, olhando fixamente para o papel. Em seguida, dirigiu-se para a cama e sentou-se, trêmula.

Estava numa casa onde janaais estivera antes, num país que jamais conhecera e há apenas dois dias atrás imaginara um papel de parede para esse mesmo quarto, e o papel que imaginara correspondia exatamente ao que forrava as paredes antigamente.

Diversas idéias lhe passavam a toda pela cabeça. Dunne, Experiências com o Tempo... ver o futuro em vez do passado...

O caminho do jardim e a porta podiam ser coincidências... mas agora não havia mais coincidência possível. Era inconce­bível imaginar um papel de parede com determinados motivos no desenho e descobrir um exatamente igual ao que fôra idea­lizado... Não, havia alguma explicação que não entendia e que... sim... a assustava. A toda hora via o passado, e não o futuro. A casa tal como fora antigamente. A qualquer momento podia ver mais alguma coisa - alguma coisa que não queria ver... A casa lhe dava medo ... Mas seria a casa ou ela mesma ? Não queria ser uma dessas pessoas que vêem coisas ...

Suspirou fundo, botou o chapéu e o casaco, saiu apressa­damente.

Chegando ao correio mandou o seguinte telegrama:

WEST, 19 ADDWAY SQUARE. CHELSEA. LONDRES.

MUDEI DE IDÉIA E CHEGAREI AMANHÃ. GWENDA.

 

"CUBRAM O SEU ROSTO "

Raymond West e sua mulher fizeram o possível para que a jovem esposa de Giles se sentisse benvinda. Não tinham culpa de Gwenda achá-los um pouco assustadores. Raymond, com seu aspecto estranho, parecendo uma ave de rapina e empolgando-se cubitamente numa conversa bastante incompreensível, fazia .

Gwenda ficar nervosa e de olhos arregalados. Tanto ele como Joan pareciam falar uma língua própria. Gwenda nunca fre­qüentara um ambiente de intelectuais e quase todas as suas ex­pressões eram desconhecidas para ela.

- Resolvemos levá-la para ver alguns espetáculos, disse Raymond, enquanto Gwenda bebia gim e desejava ardentemente tomar uma xícara de chá no fim do dia.

Gwenda animou-se de imediato.

- Hoje a noite vamos ao balé do Sadler's Wells e amanhã, para festejar o aniversário de minha incrível tia Jane, vamos ver A Duquesa de Malfi, com John Gielgud. Na sexta-feira você não pode deixar de ver They walked without fut. Traduzida do russo - a peça de teatro mais significativa dos últimos vinte anos. Estão levando no teatro Witmore.

Gwenda se mostrou agradecida a todos esses programas para diverti-la. Afinal, quando Giles chegasse, iriam juntos a espetáculos musicais e outras coisas no gênero. Não gostou muito da perspectiva de They walked without fut, mas talvez ainda acabasse gostando. O único problema é que a gente nunca entende nada dessas peças "importantes".

- Você vai adorar minha tia Jane, disse Raymond. - Eu a descreveria como perfeito exemplar de uma peça de época. Vitoriana até a alma. Todas as mesinhas da casa dela são for­radas de chintz. Mora numa aldeia, numa dessas aldeias onde nunca acontece nada, exatamente como um poço estagnado.

- Uma vez aconteceu uma coisa lá, observou Joan secamente.

- Um reles caso passional, sem nenhuma sutileza...

- Na época você se divertiu imensamente com o caso, re­torquiu Joan com uma piscadela.

- As vezes gosto de uma intriga de aldeia, respondeu Ray­mond em tom muito alegre.

- De qualquer modo, tia Jane revelou grande talento na­quele caso de assassinato.

- Oh, ela não é nenhuma boba. Adora problema.

- Problemas? perguntou Gwenda - e sua cabeça se perdeu na aritmética.

Raymond agitou uma das mãos.

- Qualquer tipo de problema, respondeu. - Por que foi que a mulher do açougueiro saiu de guarda-chuva para ir a uma reunião na igreja numa noite linda? Por que um vidro de pickles de camarão foi encontrado em determinado lugar? O que acon­teceu com a sobrepeliz do vigário? Tudo interessa à tia Jane, de modo que, se você tiver algum problema, Gwenda, converse com ela. Ela resolve tudo.

Deu uma risada. Gwenda também riu mas não tão caloro­samente.

No dia seguinte foi apresentada à tia Jane, ou seja, Miss Marple. Miss Marple era uma atraente senhora, já idosa, alta e magra, de maçãs do rosto rosadas, olhos azuis, um jeito amá­vel e um pouco meticuloso. Seus olhos azuis tinham sempre u.m brilho especial.

Depois de jantarem e beberem à saúde de tia Jane, foram todos para o teatro. O grupo também incluía mais dois homens - um ator idoso e um jovem advogado. O ator acompanhava Gwenda e o jovem advogado dividia sua atenção entre Joan e Miss Marple, cujas observações muito o divertiam. No teatro, entretanto, a situação se inverteu e Gwenda sentou-se no meio da fila, entre Raymond e o advogado.

As luzes se apagaram e a peça começou.

A representação era magnífica e Gwenda estava gostando muitu. Não costumava ver peças teatrais de categoria.

A peça se desenvolvia e chegava a um clímax de horror. A voz do ator, no tom trágico de uma mente doentia, disse:

Cubram o seu rosto. Meus olhos se ofuscam, ela morreu jovem ...

Gwenda deu um grito.

Levantou-se da poltrona, passou por toda a fila, tomou o corredor, correu escada acima e saiu na rua. Mesmo assim não parou de correr, tomada de pânico.

Só quando chegou a Piccadilly reparou num táxi vazio que vinha passardo. Fez sinal, entrou, deu o endereço da casa em Chelsea. Lá chegando, pagou o táxi com mãos trêmulas e subiu os degraus. A empregada, ao abrir a porta, olhou-a surpresa.

- Voltou cedo, senhorita. Não está se sentindo bem

- Eu ... não ... sim ... Estou me sentindo fraca.

- Deseja tomar alguma coisa, senhorita? Um pouco de brandy ?

- Não, nada. Vou direto para a cama.

Subiu a escada rapidamente para evitar mais perguntas.

Despiu-se, largou a roupa toda amontoada no chão e enfiou-se na cama. Ficou deitada, tremendo, o coração aos saltos, olhando fixamente para o teto.

Não ouviu o barulho de gente chegando lá em baixo, mas cinco minutos depois a porta se abriu e Miss Marple entrou: Trazia debaixo do braço dois sacos de água quente e segurava uma xícara na mão.

Gwenda sentou-se na cama, tentando dominar o tremor.

- Oh, Miss Marple! Sinto muitíssimo. Não sei o que... fiz um papel horrível! Eles estão muito aborrecidos comigo?

- Não se preocupe, querida, respondeu Miss Marple. ­Trate de se esquentar com esses sacos de água quente.

- Não preciso de saco de água quente.

- Precisa sim. Isso, assim mesmo. Agora beba este chá.

O chá estava quente e forte, doce demais, porém Gwenda tomou-o obedientemente. O tremor diminuíra.

- Agora deite e durma, disse Miss Marple. - Você teve um choque, sabe? Amanhã de manhã vamos conversar sobre isso. Não se preocupe com nada. Durma.

Arrumou o cobertor, sorriu, deu um tapinha no ombro de Gwenda e retirou-se.

Lá embaixo Raymond dizia para Joan, com irritação: - ­Que diabo aconteceu com essa moça? Será que se sentiu mal?

- Meu caro Raymond, não sei! Ela deu um grito! Acho que a peça era um pouco macabra demais para ela.

- Bem, Webster é meio terrível. Mas não poderia supor que... Interrompeu a frase ante a chegada de Miss Marple. - Ela está bem? perguntou.

- Acho que sim. Teve um choque muito grande.

- Choque? Por causa de uma peça de teatro?

- Acho que não deve ter sido só isso, respondeu Miss Mar­ple, com ar pensativo.

Gwenda tomou o café da manhã na cama. Bebeu uns goles de café e corneu um pedaço de torrada. Quando se levantou e desceu, Joan tinha ido para o atelier, Raymond estava tran­cado no escritório e apenas Miss Marple estava sentada junto à janela de que se avistava o rio.        Miss Marple tricotava com­penetradamente.

Ergueu os olhos e sorriu placidamente, quando Gwenda entrou.

- Bom dia, querida. Espero que esteja sentindo-se melhor.

- Oh, sim, estou muito bem. Não sei como fui fazer uma coisa estúpida como aquela ontem à noite! Eles estão... estão muito zangados comigo?

- Oh, não, querida! Compreendem muito bem.

- Compreendem o quê?

Miss Marple parou de olhar para o tricô.

- Que ontem à noite você teve um choque muito grande. E acrescentou com delicadeza : - Não quer conversar comigo sobre isso?

Gwenda andava nervosamente de um lado para o outro.

- Acho melhor eu consultar um psiquiatra qualquer.

- Naturalmente existem ótimos especialistas em Londres... Mas você tem certeza de que é necessário?

- Bem. .. acho que estou ficando louca. .. Devo estar fi­cando louca.

Uma velha empregada entrou na sala, trazendo um tele­grama numa salva de prata, que estendeu para Gwenda.

- O entregador quer saber se tem resposta, senhora.

Gwenda abriu o telegrama. Tinha sido retransmitido de Dillmouth. Ela o olhou por instantes com ar vago e depois o amassou.

- Não há resposta, disse mecanicamente. A empregada saiu da sala.

- Espero que não sejam más notícias, querida!

- É Giles, meu marido. Está vindo para casa. Vai chegar daqui a uma semana.

­Sua voz indicava aflição e perplexidade. Miss Marple pigarreou com discrição.

- Bem... mas isso certamente é muito bom, não é?

- Será? Quando não sei se estou maluca ou não? Se estou maluca nunca devia ter casado com Giles. E a casa, tudo o mais. Não posso voltar para lá. Oh, não sei o que fazer!

Miss Marple deu uma batidioha convidativa no assento do sofá.

- Bem, querida, sugiro que se sente aqui e me conte tudo.

Gwenda aceitou o convite com urna sensação de alívio. Contou toda a história, começando pela primeira vez em que vira Hillside e prosseguindo com os incidentes que a haviam intrigado e depois se tornaram assustadores.

- Aí fiquei com medo, disse ela. - E achei melhor vir para Londres... fugir daquilo tudo. Só que, como vê, não con­segui fugir. Aquilo me perseguiu. Ontem à noite...

Gwenda fechou os olhos e conteve a respiração, rememorando.

- Ontem à noite... ? insistiu Miss Marple.

- Acho que a senhora não vai acreditar, disse Gwenda, falando muito depressa. - Vai achar que eu sou histérica, ex­cêntrica, ou algo parecido. Aconteceu quase de súbito, bem no fim. Estava gostando da peça. Nem uma vez me lembrei da casa. E foi aí... sem mais nem menos... quando ele disse aque­las palavras...

Repetiu em voz baixa e trêmula: Cubram o seu rosto. Meus olhos se ofuscam. Ela rnorreu jovem.

- Eu me vi novamente lá... na escada, olhando para o saguão através da balaustrada, e a vi deitada alì. Estendida... morta. O cabelo louro e o rosto todo... azul! Estava morta, estrangulada, e alguém estava dizendo aquelas mesmas palavras da mesma maneira horrível e tripudiante... e eu vi as mãos dele... cinzentas... enrugadas... não eram mãos... eram pa­tas de macaco... Foi horrível, sabe... Ela estava morta.

Miss Marple perguntou delicadamente: - Quem estava morta?

A resposta veio imediata e automática:

- Helen ...

 

HELEN?

Durante um momento Gwenda ficou olhando fixamente para Miss Marple. Em seguida afastou o cabelo que lhe caía na testa.

- Por que foi que eu disse isso? perguntou. - Por que disse Helen? Não conheço nenhuma Helen!

Num gesto de desespero, deixou cair os braços ao longo do corpo.

- Está vendo? prosseguiu. - Estou louca! Imaginando coi sas! Fico vendo coisas que não existem. Primeiro era só papel de parede... mas agora são cadáveres! Estou piorando!

- Não tire conclusões precipitadas, querida...

- Ou então é a casa... A casa é mal-assombrada... ou enfeitiçada... Vejo coisas que aconteceram lá... ou então vejo coisas que vão acontecer lá... e isso seria ainda pior. Talvez uma mulher chamada Helen vá ser assasinada lá... Só não sei é por que, se a casa é mal-assombrada, fico vendo essas coisas horríveis mesmo quando não estou lá. Dessa maneira, tenho de achar que alguma coisa estranha está ocorrendo comigo. E é melhor eu ir consultar um psiquiatra já... agora de manhã.

- Bem, Gwenda querida, é claro que se pode tomar essa providência quando já se esgotaram todas as outras tentativas de compreensão, mas pessoalmente sempre acho que é melhor, antes disso, analisar as explicações mais simples e comuns. Va­mos esclarecer bem os fatos. Houve três incidentes que abailaram você. Um caminho no jardim que havia sido escondido pelas plantas mas que você sentiu que existia, uma porta na sala que tinha sido tapada; e um papel de parede que você imaginou com todos os detalhes sem tê-lo visto. Não é isso?

- Bem, a explicação mais fácil, mais simples seria a de você já ter visto tudo isso antes.

- Em outra encarnação?

- Não, querida, quero dizer nesta vida. Acho que podem ser lembranças verdadeiras.

- Mas até há um mês atrás eu nunca tinha vindo à Ingla­terra, Miss Marple.

- Você tem certeza disso, querida?

- É claro que tenho. Morei perto de Christchurch, na Nova Zelândia, a vida toda.

- Você nasceu lá?

- Não, nasci na Índia. Meu pai era oficial do exército in­glês. Minha mãe morreu quando eu tinha um ou dois anos, e meu pai me mandou para junto da familia dela, na Nova Ze­lándia, para que cuidassem de mim. Alguns anos depois ele também rnorreu.

- Você não se lembra da viagem da Índia para a Nova Zelândia?

- Não... muito pouco. Lembro-me vagamente de estar num navio. Uma coisa coma janela redonda - uma escotilha, é claro. E um homem de farda branca, rosto vermelho e olhos azuis; com um sinal no queixo... uma cicatriz, talvez. Ele costumava me atirar para o alto, me lembro de que eu gostava e tinha medo disso ao mesmo tempo. Mas são lembranças muito fragmentárias.

- Você se recorda de uma babá? De uma governanta?

- De uma babá, não. Da governanta - Nannie. Lembro-me de Nannie porque ela tomou conta de mim bastante tempo ... até eu fazer cinco anos. Ela recortava patos de papel. Sim, ela estava a bordo. Passou-me um pito porque chorei quando o comandante me deu um beijo e não gostei da barba dele.

- Bem, isso é muito interessante, querida, porque, repare, você está confundindo duas viagens diferentes. Numa delas o Comandante usava barba e na outra tinha o rosto vermelho e uma cicatriz no queixo.

- É... respondeu, Gwenda. - Deve ser isso mesmo.

- Parece-me possível, prosseguiu Miss Marple, - que, quando sua mãe morreu, seu pai tenha primeiro trazido você com ele para à Inglaterra, e que você tenha realmente morado naquela casa - Hillside. Você me falou - lembra-se? - que se sentiu em casa logo que entrou lá. E que o quarto que voce es­colheu para dormir era provavelmente seu quarto de criança...

- Era um quarto de criança. Tinha grades nas janelas.

- Está vendo? Tínha esse boníto e alegre papel de centáu­reas e papoulas. As crianças se lembram muito bem das paredes de seu quarto. Nunca me esqueci dos íris arroxeados na parede do meu quarto; e olhe que o papel foi mudado quando eu tinha uns três anos.

- Por isso é que pensei logo nos brinquedos, na casa de bonecas e nos armários de brinquedos?

- Exato. E na banheira. A banheira com uma borda de mogno. Você disse que pensou em soltar uns patos de brinquedo dentro dela assim que a viu.

- É verdade, respondeu Gwenda, pensativamente. - Eu ti­nha sempre a impressão de que sabia exatamente onde ficava cada coisa - a cozinha, o armário da roupa de cama. E cismei que havia uma porta de comunicação entre a sala de estar e a sala de jantar. Mas evidentemente é impossível eu chegar à In­glaterra e comprar exatamente a mesma casa em que morei há tantos anos!

- Não é impossível, querida. É apenas uma extraordinária coincidência... e as coincidências extraordinárias acontecem... Seu marido queria uma casa na costa sul. Você estava procuran­do-a, passou por uma que lhe revolveu a lembrança e atraiu você. Era de bom tamanho, o preço era acessível e então você a comprou. Não, não é tão loucamente improvável. Se a casa fosse apenas o que se chama (às vezes com acerto) uma casa mal-assombrada, sua reação seria completamente diversa. Mas você não sentiu nenhuma sensação de violência ou de repulsa a não ser, pelo que me contou, num determinado momento, quan­do ia começar a descer a escada e olhou para o saguão.

Voltou, nos olhos de Gwenda, uma expressão de pavor.

- A senhora acha... que... que Helen... que também isso é verdade?

Miss Marple respondeu em tom amável:

- Bem, acho que sim, querida... Acho que devemos reco­nhecer que, se as outras coisas são lembranças, isso também é uma lembrança...

- Eu realmente vi uma pessoa morta... estrangulada... caída ali no chão?

- Não acho que você soubesse conscientemente que ela tinha sido estrangulada; isso foi sugerido pela peça de teatro ontem à noite, e você, como adulta, se dá conta do que deve significar um rosto convulso e azulado. Acho que uma criança muito pequena, descendo uma escada com dificuldade, seria bem capaz de perceber a violência, a morte, o mal, e associá-los com um certo grupo de palavras... pois acho que não há dúvida de que o assassino realmente disse aquelas palavras. Isso seria um choque muito grande para uma criança. As crianças são criatu­rinhas bastante singulares. Se ficarem seriarnente assustadas, so­bretudo por alguma coisa que não entendem, não falam na as­sunto. Recalcam tudo. Aparentemente, talvez o esqueçam. Mas lá no fundo a lembrança continua.

Gwenda suspirou.

- E a senhora acha que foi o que aconteceu comigo? Mas então por que agora não me lembro de tudo?

- Não se pode comandar a memória. E muitas vezes, quan­do se tenta isso, ela se perde mais ainda. Mas creio que há um ou dois indícios de que foi isso o que aconteceu. Por exemplo, agora há pouco, quando você me contou o que sentiu ontem à noite no teatro, você usou uma expressão bastante reveladora. Disse que tinha a impressão de estar olhando "através da ba­laustrada"... Mas normalmente não se olha para um saguão atráss da balaustrada, mas sim por cima dela. Só uma criança olharia através.

- A senhora é muito perspicaz, observou Gwenda admirada.

- Essas pequenas coisas são muito significativas.

- Mas quem era Helen? perguntou Gwenda, atônita.

- Diga, querida, você ainda tem certeza de que o nome era Helen ?

- Tenho... É estranhíssimo, porque não sei quem é He­len... mas ao mesmo tempo sei... quer dizer, eu sei que era "Helen" quem estava caída ali... Como é que vou conseguir descobrir mais alguma coisa?

- Bem, a coisa mais óbvia a fazer é descobrir definitiva­mente se você esteve na Inglaterra quando criança, ou se poderia ter estado. Seus parentes...

Gwenda interrompeu-a. - Tia Alison. Ela saberia. Tenho certeza.

- Então você poderia escrever-lhe uma carta aérea. Diga que, diante das circunstâncias, se torna importantíssimo para você saber se alguma vez esteve na Inglaterra. Quando seu ma­rido chegar, a resposta provavelmente já estará aqui.

- Oh, obrigada, Miss Marple. A senhora foi maravilhosa. E espero que seu raciocínio esteja correto, porque assim fica tudo bem. Quer dizer, não há nada de sobrenatural.

Miss Marple sorriu.

- Espero que dê tudo certo. Depois de amanhã vou passar uns dias com uns amigos no norte da Inglaterra. Na volta, daqui a uns dez dias, passo por Londres. Se você e seu marido esti­verem aqui, ou se tiver chegado uma resposta à sua carta, eu estaria muito interessada em saber do resultado.

- É claro, querida Miss Marple! De qualquer modo, quero que a senhora conheça Giles. Ele é um amor. E vamos bater um bom papo sobre essa históna toda.

Gwenda já se sentia perfeitamente bem.

Miss Marple, entretanto, estava pensativa.

 

ASSASSINATO EM RETROSPECTO

Cerca de dez dias depois Miss Marple entrcu num pequeno hotel em Mayfair e foi entusiasticamente recebida pelo jovem casal Reed.

- Este é meu marido, Miss Marple, apresentou Gwenda. - Giles, você nem faz idéia de como Miss Marple foi gentil comigo.

- Muito prazer em conhecê-la, Miss Marple. Ouvi dizer que por pouco Gwenda não foi internada num hospício.

Os olhos azuis de Miss Marple examinaram Giles com ar de aprovação. Um homem jovem e simpático, alto, louro, com o costume, por timidez, de piscar os olhos de vez em quando, de maneira muito atraente. Observou-lhe a conformação da bo­ca, a linha firme do queixo.

- Vamos tomar chá no escritório, que é mais reservado, disse Gwenda. - Lá não aparece ninguém e poderemos mostrar a Miss Marple a carta de tia Alison.

- Sim, acrescentou, ante o olhar penetrante de Miss Marple. - Já chegou e é quase exatamente o que a senhora pensou.

Terminado o chá, a carta foi aberta e lida.

 

"Querida Gwenda (escrevera a Srta. Danby):

Fiquei muito preocupada ao saber que você passou por uma experiência tão perturbadora. Para lhe dizer a verdade, eu tinha esquecido completamente que você morou na In­glaterra durante um curto período, quando era muito pe­quena.

Sua mãe, minha irmã Megan, conheceu seu pai, o Ma­jor Halliday, quando foi à Índia e ficou hospedada em casa de amigos nossos. Eles se casaram e você nasceu lá. Dois meses depois de seu nascimento, sua mãe morreu. Foi um grande choque para nós e escrevemos a seu pai, com quem nos correspondíamos, mas que nunca tinhamos conhecido pessoalmente, pedindo-lhe que nos deixasse tomar conta de você, o que seria para nós uma grande alegria; além do que talvez fosse difícil para um oficial cuidar de uma cri­ança pequena. Seu pai, no entanto, se recusou, e nos disse que ia demitir-se do exército e trazer você com ele para a Inglaterra. Disse também esperar que fôssemos visitá-lo quando estivesse morando lá.

Durante a viagem de volta seu pai conheceu uma jo­vem, ficou noivo e se casou com ela assim que chegaram à Inglaterra. Acho que o casamento não deu certo e sei que se separaram cerca de um ano depois. Foi então que seu pai tornou a nos escrever, perguntando se ainda está­vamos dispostos a cuidar de você. Nem preciso lhe dizer, querida, como ficamos felizes com a idéia. Voce chegou acompanhada por uma governanta inglesa. Na mesma época seu pai fez um testamento deixando tudo para você e suge­riu que você fosse legalmente adotada por nós e passasse a usar nosso sobrenome. Devo dizer que achamos meio estranho, mas compreendemos que a intenção era boa ­ele desejava que você se sentisse pertencendo realmente a família - mas não aceitamos a sugestão. Cerca de um ano depois, seu pai morreu numa clínica. Suponho que na oca­sião em que mandou você para junto de nós ele já soubesse que não estava bem de saúde.

Sinto muito não saber informar onde você morou com seu pai enquanto esteve na Inglaterra. A carta dele natural­mente dava o endereço, mas isso foi há dezoito anos atrás e a gente esquece esses detalhes. Sei que era no sul da In­glaterra e acho que o nome era mesmo Dillmouth. Tinha uma vaga idéia de que era Dartmouth, mas os dois nomes são parecidos. Acho que sua madrasta tornou a se casar, mas não me lembro de seu nome, nem mesmo do seu nome de solteira, se bem que seu pai o tivesse mencionado na carta em que nos fala de seu novo casamento. Acho que ficamos um pouco ressentidos por ele tornar a se casar tão cedo, mas naturalmente todos sabem que numa viagem de navio a influência da proximidade é muito grande - e pode ser que ele tivesse achado que seria bom para você.

Foi uma bobagem eu nunca lhe ter dito que você já havia estado na Inglaterra, mesmo que não se lembrasse disso, mas, como disse, eu já tinha esquecido toda a história... Para nós, os fatos mais importantes foram a morte de sua mãe na Índia e você ter vindo, depois, morar conosco.

Espero que agora tudo esteja esclarecido.

Acredito que Giles poderá logo ir encontrar com você, pois é duro para os dois estarem afastados nessa fase inicial do casamento.

Mandarei noticias minhas em outra carta pois esta , escrevi às pressas para responder ao seu telegrama.

Afetuosamente, sua tia Alison Danby."

"P.S. Você não contou qual foi essa experiência tão perturbadora."

 

- Está vendo? perguntou Gwenda. - É quase exatamente o que a senhora sugeriu.

Miss Marple alisou a delicada folha de papel aéreo.

- É, é verdade. A explicação dada pelo bom-senso. Já des­cobri que, na maioria dos casos, é a melhor explicação.

- Bem, sou muito grato à senhora, disse Giles. - Coitada de Gwenda... Estava profundamente abalada, e devo confessar que eu também fiquei preocupado ao imaginar que ela fosse vidente ou que estivesse inventando coisas.

- Deve ser uma característica incômoda numa esposa, disse Gwenda. - A menos que sempre você tenha levado uma vida completamente exemplar...

- O que levo sempre, retorquiu Giles.

- E a casa? Como se sentem em relação à casa? perguntou Miss Marple.

- Oh está tudo bem. Vamos para lá amanhã. Giles está morrendo de vontade de conhecê-la.

- Não sei se a senhora já percebeu, Miss Marple, disse Giles, - mas o que mais interessa agora é que nós temos pela frente um misterioso caso de assassinato. Bem na nossa porta, ou melhor, no saguão de entrada da nossa casa.

- Sim, eu já tinha pensado nisso, respondeu Miss Marple, lentamente.

- E Giles adora contos policiais, disse Gwenda.

- Bem, é uma história policìal. O corpo de uma linda mu­lher estrangulada, caído no chão. Nada se sabe sobre ela, a não ser seu primeiro nome. Naturalmente, sei que ja faz quase vinte anos que isso aconteceu. Não deve ter ficado nenhuma pista, depois de tanto tempo, mas pode-se pelo menos investigar um pouco, tentar descobrir alguma coisa. Oh, acho que ninguém vai conseguir decifrár o mistério...

- Acho que é possível, interrompeu Miss Marple. - Mes­mo depois de dezoito anos. Sim, acho que é possivel.

- Mas de qualquer modo, não pode haver nenhum mal em se tentar seriamente, não é?

Giles fez uma pausa. Seu rosto se abriu em largo sorriso.

Miss Marple se mexeu nervosamente na cadeira. Tinha o semblante sério - quase preocupado.

- Mas isso pode causar grandes males, disse ela. - Eu aconselharia vocês dois - oh, sim, aconselharia realmente - que deixassem isso de lado.

- Deixar de lado? Nosso próprio caso de mistério, de as­sassinato - se é que houve um assassinato!

- Acho que houve. E é justamente por isso que é melhor deixar de lado. Um assassinato não é... não é mesmo... uma coisa com a qual se mexa despreocupadamente.

- Mas, Miss Marple, disse Gíles, - se todo mundo pen­sasse assim ...

Ela o interrompeu.

- Oh, eu sei! Há ocasiões em que se trata de um dever ­uma pessoa inocente acusada - suspeitas recaindo sobre várias outras pessoas... um criminoso à solta e que pode atacar de novo. Mas você tem que entender que esse crime já pertence ao passado. Provavelmente ninguém ficou sabendo que houve um crime - se não você logo teria sabido pelo jardineiro ou por algum habitante do lugar. Um crime, por mais antigo que seja, sempre é novidade. Não, devem ter-se livrado do corpo de alguma forma e nunca ninguém suspeitou de nada. Você tem certeza - certeza absoluta - de que vale a pena desencavar tudo isso?

- Miss Marple! exclamou Gwenda. - A senhora parece estar realmente preocupada!

- Estou, querida. Vocês são dois jovens atraentes e encan­tadores, se me permitem dizer assim. Estão recém-casados e felizes. Eu lhes peço, por favor, que não comecem a desencavar coisas que podem... bem, que podem... como explicar?... que podem vir a perturbá-los e trazer-lhes dificuldades.

Gwenda olhava-a fixamente. - A senhora está pensando em alguma coisa especial ... em alguma coisa ... Onde é que a senhora quer chegar?

- A lugar nenhum, minha querida. Estou apenas dando um conselho, porque já vivi muito e sei como a natureza humana E desconcertante. Estou apenas aconselhando vocês a deixarem o caso de lado. É o meu conselho: deixem o caso de lado.

- Mas não se trata de deixar de lado, disse Giles, tendo na voz um acento mais duro - Hillside é nossa casa, minha e de Gwenda, e alguém foi assassinado ali, ou pelo menos é o que imaginamos. Não vou ficar de braços cruzados, sem fazer nada, diante de um assassinato na minha casa, mesmo que tenha sido hâ dezoito anos atrás!

Miss Marple suspirou. - Sinto muito, disse ela. - Suponho que a maioria dos jovens inteligentes se sentiriam assim. Chego até a simpatizar com a sua atitude e a admirar você. Mas eu gostaria - oh, como gostaria - de que vocês não se metessem nisso!

 

No dia seguinte toda a aldeia de St. Mary Mead sabia que Miss Marple estava de volta. Foi vista às onze horas na rua principal. Às dez para o meio-dia foi falar com o vigário. Na mesma tarde três bisbilhoteiras senhoras do povoado foram vi­sitá-la para ouvir suas impressões da festiva metrópole e, após esse tributo à cortesia, contar todos os detalhes da grande con­fusão que se estava armando em torno da barraca de trabalhos manuais para a próxima festa da igreja, e sobre a localização do salão de chá.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Miss Marple foi vista no jar­dim, como de hábito, mas dessa vez preocupava-se mais em arrancar as ervas daninhas do que em prestar atenção no que faziam os vizinhos. No decorrer de sua frugal refeição noturna parecia distraída, mal ouvindo o animado relato de Evelyn, a empregada, sobre as extravagâncias do farmacêutico local. No dia seguinte continuava com ar distraído e uma ou duas pes­soas, inclusive a mulher do vigário, repararam nisso. Nessa noite Miss Marple disse que não estava se sentindo bem e foi deitar-se. Na manhã seguinte mandou chamar o Dr. Haydock.

O Dr. Haydock era médico, amigo e aliado de Miss Marple há muitos anos. Ouviu a descrição dos sintomas, examinou-a e em seguida recostou-se na cadeira, sacudindo, em direção a ela o estetoscópio.

- Para uma pessoa de sua idade, disse ele - apesar dessa enganosa aparência frágil, a senhora está em ótimas condições de saúde.

- Estou certa de que minha saúde está boa, retorquiu Miss Marple - mas confesso que me sinto um pouco cansada, um pouco deprimida.

- A senhora andou saindo muito, fazendo noitadas em Londres.

- É verdade. Hoje em dia acho Londres uma cidade muito cansativa. E com um ar... tão viciado! Não há nada como a brisa do mar!

- O ar de St. Mary Mead é fresco e puro.

- Mas ás vezes é úmido e um tanto abafado. Não é esti­mulante, compreende?

Dr. Haydock olhou-a muito interessado.

- Vou-lhe receitar um tônico, disse ele, com amabilidade.

- Obrigada, Dr. Haydock. Gosto muïto do xarope de Easton.

- Pelo jeito não precisa de receita minha, retorquiu o médico.

- Quem sabe se... uma mudança de ares...?

Miss Marple olhou para o Dr. Haydock inocentemente, com os seus olhos azuis.

- A senhora acaba de passar três semanas fora.

- Eu sei. Mas em Londres, que é, como o senhor disse, um lugar deprimente. E depois no norte - uma região industrial. Não tem o ar revigorante do mar.

O Dr. Haydock fechou a maleta. Em seguida virou-se com um sorriso.

- Conte por que me mandou chamar, disse ele. - Diga-me logo o que tem de ser e eu repito o que a senhora disser. Quer que lhe dê minha opinião profissional de que a senhora precisa da brisa do mar, não é?

- Sabia que o senhor compreenderïa, disse Miss Marple agradecida.

- A brisa do mar é excelente para a saúde. Proponho que a senhora parta ïmediatamente para Eastbourne, se não acabará ficando doente.

- Acho Eastbourne meio frio. Quem sabe mais para osul?...

- Então Bornemouth, ou a Ilha de Wight.

Miss Marple deu-lhe uma piscadela.

- Acho as cidades pequenas muito mais agradáveis.

Dr. Haydock tornou a sentar-se.

- A senhora despertou-me a curiosidade. Qual é a cidade ­à beira-mar em que está pensando?

- Bem, eu estava pensando em Dillmouth.

- É um lugar simpático. Meio parado. Mas por que Dill­h?

Miss Marple ficou em silêncio por alguns instantes. Seus voltaram a indicar preocupação. Em seguida disse : - Suponhamos que um dia, por acaso, o senhor descubra um fato que parece mostrar que há muitos anos atrás - dezenove ou vinte anos - ocorreu um crime. Só o senhor conhece esse fato. Ninguém jamais suspeitou de nada. O que faria?

- Um assassínio em retrospecto?

- Exatamente.

Haydock pensou um pouco.

- Não houve falha da justiça? Ninguém sofreu nada com resultado do crime'?

- Que eu saiba, não.

- Ahn ... Um , assassinio em retrospecto. Um crime ador­mecido. Bem, vou lhe dar minha opinião. Eu deixaria esse crime de lado, adormecido - sim, é isso que eu faria. Mexer com crimes é coisa arriscada. Pode ser mesmo muito perigoso.

- É o que temo.

- Dizem que o assassino sempre torna a atacar. Não é verdade. Existe um tipo de assassino que comete o crime, con­segue escapar da justiça e toma todo cuidado para nunca mais pôr a cabeça de fora. Não diria que ainda é capaz de viver feliz sempre - não acredito que isso seja verdade - há muitos castigos diferentes. Mas, pelo menos aparentemente, tudo vai bem. Talvez tenha sido assim no caso de Madeleine Smith ou, tarde, no de Lizzie Borden. Nada foi provado no caso de Madeleine Smith, e Lizzie foi absolvida - mas muita gente acha que ambas eram culpadas. Poderia citar outros nomes. Nunca repetiram o crime - um crime lhes proporcionou o que queriam e se deram por satisfeitos. Mas suponha que algum perigo os ameaçasse. Imagino que esse seu assassino - ou as­sassina - seja desse desse tipo.Cometeu um crime, saiu-se bem e ninguém desconfiou. Mas já pensou se alguém começa a bisbilhota­r, fazer perguntas, desencavar provas abrindo caminho até conseguir, eventualmente, atingir o alvo? O que é que o assassino ­vai fazer? Ficar parado, sorrindo, sentindo o cerco apertar?Não... A menos que se trate de uma questão de princípio, eu deixaria isso de lado. E repetiu: - Deixe de lado esse crime; acrescentando firmemente : - Essa ó a minha ordem para a senhora. Deixe isso de lado!

- Mas não sou eu que estou envolvida. São duas crianças encantadoras. Deixe-me contar!

Haydock ouviu a história toda.

- Extraordinário, observou ele quando Miss Marple ter­minou o relato. - Uma coincidência extraordinária. A coisa , toda é extraordinária. A senhora não desconhece as possíveis implicações, não é?

- É claro que não! Mas acho que isso ainda não ocorreu a eles!

- Isso pode resultar em muita infelicidade e eles vão de­sejar nunca se terem metido nisso. Os esqueletos devem ficar bem guardados. Mesmo assim, compreendo o ponto de vista do jovem Giles. Ora, afinal de contas eu mesmo não deixaria a coisa de lado. Até já estou ficando curioso...

Interrompeu-se e olhou com severidade para Miss Marple.

- Então é por isso que a senhora arranjou tantas desculpas para ir para Dillmouth. Para se meter numa coisa que não é da sua conta!

- Não é isso, Dr. Haydock. Estou preocupada com aqueles dois. São muito jovens e inexperientes, demasiadamente crédulos e confiantes. Acho que devia estar presente para tomar conta deles.

- Então é por isso que vai. Para tomar conta deles! Será que a senhora nunca vai conseguir deixar um crime de lado? Mesmo um crime em retrospecto?

Miss Marple sorriu.

- Mas o senhor concorda que algumas semanas em Dill­mouth seriam benéficas para a minha saúde, não é?

- É mais provável que acabem com ela de uma vez, res­pondeu o Dr. Haydock. - Mas a senhora não me obedece!

 

Ao chegar ao portão da casa de seus amigos, o Coronel e a senhora Bantry, Miss Marple encontrou o Coronel andando pelo caminho e empunhando uma espingarda, seguido pelo seu cocker-spaniel. Cumprimentou-a amavelmente.

- Que prazer vê-la de volta! Que tal está Londres?

Miss Marple respondeu que Londres estava muito bem. Seu sobrinho a levara para assistir a várias peças de teatro.

- Bem intelectuais, posso apostar, retorquiu ele. - Só gosto de comédias musicais.

Miss Marple contou que assistira a uma peça russa muito interessante, apesar de um pouco longa.

- Esses russos! explodiu o Coronel Bantry. Certa vez, quando estava numa clínica, deram-me um romance de Dostoie­vski para ler.

Acrescentou que Miss Marple encontraria Dolly no jardim. A senhora Bantry estava quase sempre no jardim. Adorava jardinagem. Sua literatura preferida eram catálogos de bulbos e sua conversa girava em torno de prímulas, bulbos, arbustos floridos e novidades alpinas. A primeira visão de Miss Marple foi a de um vasto traseiro vestindo uma saia de tweed desbotada.

Ao ouvir os passos que se aproximavam a senhora Bantry levantou-se com chiados e estremecimentos. De tanto cuidar de jardim, ficara com reumatismo. Com a mão suja de terra, enxu­gou o suor da testa e cumprimentou a amiga.

- Já me haviam dito que você estava de volta, Jane, disse ela. - Não acha que minhas flores estão lindas? Já viu essas novas gencianas pequenas? Deram bastante trabalho, mas acho que agora vão ìndo hem. Precisamos é de chuva. Está tudo hor­rivelmente seco. Esther me disse que você estava de cama, acres­centou. Esther era a cozinheira da senhora Bantry e sua infor­mante oficial do que se passava na aldeia. - Estou contente de ver que não é verdade.

- Um pouco cansada, respondeu Miss Marple. - Dr. Hay­dock acha que preciso de ar marítimo. - Ando meio deprimida.

- Oh, mas você não pode viajar agora! exclarnou a senhora Bantry. - É a melhor época do ano para cuidado jardìm. Seus arbustos devem estar quase florindo!

- Dr. Haydock acha aconselhável.

- Bem, Dr. Haydock não é um bobalhão como tantos ou­tros médicos, admitiu a senhora Bantry a contragosto.

- Dolly, estava pensando naquela sua cozinheira.

- Qual cozinheira? Você está precisando de cozinheira? Não está se referindo àquela que bebia, não é?

- Não, de jeito nenhum. Estou falando daquela que fazìa massas tão maravilhosas! A que era casada com o mordomo.

- Ah! Você se refere à Mock Turtle* - exclamou a senhora Bantry, numa identificação imediata. - Uma que tinha uma voz chorosa. Parecia sempre que estava prestes a cair em prantos. Era uma ótima cozinheira. O marido era um homem gordo, meio preguiçoso. Arthur sempre dizia que ele botava água no uísque. Não sei. É pena que no casal haja sempre um que não serve. Um antigo patrão deixou-lhes uma herança e eles abriram uma pensão na costa sul.

- Era exatamente o que eu pensava. Não foram para Dillmouth?

- Isso mesmo. O endereço é: 14, Sea Parade, Díllmouth.

- Já que o Dr. Haydock sugeriu o mar, pensei em hospe­dar-me com eles. O sobrenome não é Saunders?

- É. Acho uma ótima idéia, Jane. É a melhor coisa a fazer. A senhora Saunders vai cuidar bem de você e, como estamos fora da estação, eles ficarão contentes em recebê-la e poderão fazer-lhe um bom desconto. Com boa alimentação e a brisa do mar você vai se recuperar logo, logo.

- Obrigada, Dolly, respondeu Miss Marple. - Espero que sim.

*N. do T.: Um apelido, obviamente. Tartaruga dissimuiada, ao pé da letra.

 

BRINCANDO DE DETETIVE

- Onde é que você acha que o corpo estava? Mais ou menos aqui? perguntou Giles.

Giles e Gwenda estavam de pé no saguão de entrada d Hillside. Haviam chegado na noite anterior e Giles já estiava, e plena atividade. Parecia uma criança com um brinquedo novo.

- Por aí, respondeu Gwenda. Subiu de costas alguns degraus da escada e olhou atentamente para baixo. - É, acho que estava por aí.

- Abaixe-se, ordenou Giles. - Lembre-se de que você só tem três anos de idade.

Gwenda abaixou-se obedientemente.

- Será que você realmente não poderia ver o homem d'isse aquela frase?

- Não me lembro de tê-lo visto. Devia estar um pouco mais para trás... Sim, aí mesmo. Só via as patas.

- Patas? Giles franziu as sobrancelhas.

- Eram patas. Patas cinzentas - não eram mãos humanas

- Mas escute, Gwenda, isto não é um assassinato na Rue Morgue. Um homem não tem patas!

- Bem, mas ele tinha patas! Giles olhou-a com ar duvidoso.

- Isso você deve ter imaginado depois.

- Você não acha que talvez eu tenha imaginado tudo? perguntou Gwenda, fleugmática. - Sabe, Giles, estive pensando. Parece muito mais provável que tudo tenha sido um sonho. Pode ter sido. Esse tipo de sonho que criança tem, fica terrivelmente assustada e nunca mais esquece. Não acha que talves seja isso a explicação mais razoavel? Porque ninguém em Dillmouth parece ter a mais vaga lembrança de um crime, ou de uma morte súbita, de um desaparecimento ou de qualquer coisa estranha relativa a esta casa.

Giles fez uma cara de criança um tanto diferente; uma criança a quem tivessem tomado o brinquedo novo.

- Acho que pode ter sido um pesadelo, admitiu ele a contragosto. Subitamente seu rosto se iluminou.

- Não, disse ele. - Não acredito. Você podia ter sonhado com patas de macaco e uma pessoa morta, mas duvido que você pudesse ter sonhado com aquela frase tirada da Duquesa de Malfi.

- Posso ter ouvido alguém pronunciá-la e ter sonhado com ela depois.

- Acho que nenhuma criança seria capaz disso. A não ser que a tivesse ouvido sob grande tensão - e se tiver sido assim, voltamos ao ponto de partida. Espere... já sei! Você sonhou, com as patas. Você viu o corpo, ouviu a frase, ficou apavorade e teve um pesadelo em que havia patas de macaco. Provavelmente você tivesse medo de macacos.

Gwenda fez uma cara meio de dúvida, dizendo : - Talvez tenha sido isso...

- Gostaria que você se lembrasse de mais coisas... Venha até o saguão. Feche os olhos. Pense... Não se lembra de mais nada?

- Não, Giles... Quanto mais penso, mais a coisa me escapa... Estou começando a duvidar de que realmente tenha visto alguma coisa. Talvez, na outra noite, não tenha passado de uma perturbação mental no teatro.

- Não. Houve alguma coisa. Miss Marple também acha, E Helen? Não é possível que você não se lembre de alguma coisa sobre Helen!

- Não me lembro de nada. É apenas um nome.

- Talvez não seja nem o nome certo.

- É sim. Era Helen.

O tom de Gwenda era obstinado e convicto.

- Se você tem tanta certeza de que era Helen, você deve saber alguma coisa a seu respeito, observou Giles. - Conhecia-a bem? Ela morava aqui ou era uma hóspede?

- Já disse que não sei! Gwenda estava ficando irritada, tensa.

Giles decidiu tentar por outros meios.

- De quem mais você se lembra? De seu pai?

- Não... Isto é, não sei. Via sempre o retrato dele, entende? Tia Alison me dizia: Esse é seu pai. Mas não me lembro dele aqui, nesta casa...

- Nem dos empregados, de governantas, nada?

- Não... Não. Quanto mais tento lembrar, mais aumenta o vazio. As coisas que sei estão todas subjacentes - como, por exemplo, dirigir-me automaticamente para aquela porta. Não me lembro que havia uma porta ali. Talvez se você não me chateasse tanto, Giles, eu conseguisse me lembrar melhor. De qualquer modo, querer desvendar tudo é inútil. Foi há tanto tempo!

- Inútil não é, de modo algum. Até a velha Miss Marple concordou com isso.

- Mas ela não nos deu nenhuma sugestão de por onde comaçar, retorquiu Gwenda. - No entanto, pelo brilho de seus olhos, acho que ela estava com algumas idéias. Como será que da agiria?

- Não acho que ela pudesse ter idéias muito diferentes das nossas, respondeu Giles em tom firme. - Precisamos parar de especular, Gwenda, e agir de maneira sistemática. Já temos uma base. Examinei todos os registros de pessoas mortas na paróquia. Não há, entre elas, nenhuma Helen com a idade certa. Aliás não parece haver nenhuma Helen no período que nos interessa. Só vi uma tal de Ellen Pugg, de noventa e quatro anos. Agora precisamos pensar em outra maneira prática. Se seu pai, e, presu­mivelmente sua madrasta, moraram nesta casa, ou compraram ou alugaram a propriedade.

- Pelo que disse Foster, o jardineiro, antes dos Hengrave moravam aqui os Elworthy, e antes deles a casa era da senhora Findeyson. Não sabe de mais ninguém.

- Seu pai pode ter comprado a casa, morado aqui muito pouco tempo e depois ter tornado a vendê-la. Mas acho muito mais provável que a tenha alugado - e certamente mobiliada. É melhor indagarmos junto aos corretores da cidade.

A pesquisa junto aos corretores não foi muito longa. Havia apenas dois escritórios de corretagem em Dillmouth. Um deles, o dos Wilkinsons, era relativamente novo. Seus donos só traba­lhavam em Dillmouth há onze anos. Lidavam mais com pequenos bangalôs e as casas novas da outra ponta da cidade. O outro escritório, Galbraith & Penderley, fora o que vendera a casa para Gwenda. Lá chegando, Giles logo atacou com sua história. Ele e a esposa estavam encantados com Hillside e com a cidade da Dillmouth. Aliás, a senhora Reed acabara de descobrir que até morara em Dillmouth quando era criança. Tinha vagas re­cordações do lugar e achava que Hillside era justamente a casa em que morara, mas não podia ter certeza disso. Será que o es­critório teria algum registro de aluguel da casa a um Major Halliday? Isso teria sido há dezoito ou dezenove anos atrás...

O senhor Penderley estendeu os braços num gesto de des­culpas.

- Sinto muito, mas acho que não posso dar-lhe essa infor­mação, senhora Reed. Nossos registros não vão tão longe assim - pelo menos quanto a aluguéis por prazos curtos. Sinto muito não poder ajudá-lo, senhor Reed. Aliás, se o senhor Narracott nosso antigo gerente, fosse vivo - ele morreu no ano passado - provavelmente lhe seria útil. Tinha uma memória extraordi­nária, realmente extraordinária. Trabalhou na firma durante quase trinta anos.

- Não há mais ninguém que pudesse se lembrar?

- Nosso pessoal é todo muito mais moço... Bem, natural­mente há o próprio senhor Galbraith. Ele se aposentou alguns anos atrás.

- Quem sabe posso perguntar a ele? disse Gwenda.

- Bem, quanto a isso, não sei... O senhor Penderley pa­recia em dúvida. Ele teve um derrame no ano passado e sua cabeça já não funciona muito bem. Está com mais de oitenta anos, compreende?

- Ele mora em Dillmouth?

- Oh, sim, em Calcutta Lodge. Uma propriedade muito sim­pática na estrada de Seaton. Mas na realidade acho que não...

 

- É uma tentativa desesperada, disse Giles para Gwenda. - Mas nunca se sabe. Acho que não devemos escrever. Vamos lá pessoalmente, para impor a nossa personalidade.

Calcutta Lodge era cercada por um jardim muito bem tra­tado e a sala na qual foram introduzidos também era muito bem arrumada, embora um tanto sobrecarregada de móveis e objetos. Cheirava a cera e a produtos de limpeza. Os metais brilhavam. Pesadas cortinas fechavam as janelas.

Uma mulher de meia-idade, magra e de olhar desconfiado, entrou na sala.

Giles tratou de explicar rapidamente o motivo de sua pre­sença e a expressão desconfiada da Srta. Galbraith, que imagi­nara ser ele um vendedor de eletrodomésticos, desapareceu.

- Sinto muito, disse ela - mas acho que não posso aju­dá-los em nada. Foi há tanto tempo, não é mesmo?

- Às vezes a gente se lembra das coisas, observou Gwenda.

- Naturalmente não sou a pessoa mais indicada. Nunca trabalhei na firma. O senhor disse Major Halliday? Não, não me lembro de ter conhecido ninguém com esse nome em Dillmouth.

- Talvez o seu pai se lembre, sugeriu Gwenda.

- Meu pai? A Srta. Galbraith abanou a cabeça.

- Ele está muito alheio a tudo e sua memória anda muito fraca.

Os olhos de Gwenda fixavam, com ar pensativo, uma mesa de metal de Benares e se deslocaram para diversos elefantes de marfim colocados em cima da lareira.

- Achei que talvez ele se lembrasse, insìstiu Gwenda, por­que meu pai tinha acabado de voltar da Índia. Sua casa não se chama Calcutta Lodge?

Fez uma pausa com ar interrogativo.

- Sim, respondeu a Srta. Galbraith. - Meu pai passou algum tempo em Calcutá, a negócios. Depois veio a guerra e em 1920 ele entrou, aqui, para a firma, mas sempre diz que gos­taria de ter voltado para lá. Mas minha mãe não gostava de países estrangeiros - e naturalmente não se pode dizer que o clima de lá seja saudável. Bem, não sei... talvez gostasse de ver meu pai. Não sei se hoje ele está num de seus bons dias...

Levou-os a um pequeno escritório, nos fundos da casa. Sentado numa grande poltrona de couro estava um ancião de vastos bigodes brancos caídos. Seu rosto era ligeiramente repu­xado para um lado. Ao olhar para Gwenda fez um ar de ine­quívoca aprovação, após as apresentações de sua filha.

- Minha memória não é mais a mesma, disse ele em voz confusa.

- A senhora disse Halliday? Não, não me lembro desse nome. Conheci um menino no colégio, em Yorkshire... mas isso foi há uns setenta anos...

- Acho que ele alugou Hillside, disse Giles.

- Hillside? Naquela época a casa se chamava Hillside? O Sr. Galbraith fechou e tornou a abrir a pálpebra que ainda mexia. - Findeyson morava lá. Uma mulher maravilhosa...

- Talvez meu pai tenha alugado a casa mobiliada... Ele acabara de chegar da Índia.

- Índia? A senhora falou india? Me lembro de um sujei­to... um oficial do exército. Conhecia aquele bandido chamado Mohammed Hassan, que me roubou no preço de uns tapetes. Tinha uma mulher jovem... e um bebê... uma menininha.

- Era eu, disse Gwenda com firmeza.

- Não me diga! Bem, bem, o tempo voa. Bem, mas como era o nome dele? Queria uma casa mobiliada... sim... A Sra. Findeyson tinha ido para o Egito ou um lugar desses qualquer para passar o inverno. Uma bobagem... Como era mesmo o nome dele?

- Halliday, disse Gwenda.

- Isso mesmo, minha cara ... Halliday. Major Halliday. Bom sujeito. Mulher muito bonitinha - bem moça - loura... Queria morar junto dos parentes, ou coisa assim. Sim, muito bonitinha.

- Quais eram os parentes dela?

- Não faço a menor idéia. Nem tenho noção. A senhora não se parece com ela.

Gwenda ia explicar que era sua madrasta, não sua mãe, mas calou-se para não complicar as coisas. - Como era ela? perguntou.

- Parecia preocupada, respondeu inesperadameate o Sr. Gal­braith. - É isso mesmo, tinha um ar preocupado. Muito simpá­tico, o tal major. Mostrou-se interessado ao saber que eu conhe­cia Calcutá. Não era como esses sujeitos que nunca saíram da Inglaterra. Têm uma mentalidade estreita... Mas eu conheci o mundo. Como é que era o nome, o do sujeito do exército ­que queria uma casa mobiliada?

Parecia uma vitrola velha, repetindo um disco estragado.

- St. Catherine. É issó. Alugou St. Catherine - seis gui­néus por semana - enquanto a Sra. Findeyson estava no Egito. Morreu lá, coitada! A casa foi a leilão - quem foi mesmo que a comprou? Elworthys - um bando de mulheres, irmãs. Muda­ram o nome da casa - disseram que St. Catherine era coisa de carola. Não gostavam de nenhuma espécie de carolice. Joga­vam fora os prospectos religiosos. Mulheres sem nenhum atra­tivo. Interessavam-se pelos negros... mandavam-lhes calças e bíblias. Davam tudo para converter os pagãos.

Subitamente suspirou e reclinou-se na poltrona.

- Faz muito tempo, disse ele em tom agitado. - Não me lembro dos nomes. Um cara da Índia... bom sujeito... Gladya, estou cansado. Gostaria de tomar meu chá.

Gíles e Gwenda agradeceram ao Sr. Galbraíth, à filha, retiraram-se. - Então está provado, disse Gwenda. - Meu pai e eu moramos em Hillside. O que vamos fazer agora?

- Fui um idiota! exclamou Giles. - Somerset House!

- O que é Somerset House? perguntou Gwenda.

- É um escritório onde estão registrados todos os casamen­tos. Vou até lá procurar o registro de casamento do seu pai. Segundo sua tia, seu pai se casou pela segunda vez assim que chegou de volta à Inglaterra. Pense bem, Gwenda - não sei porque isso não nos ocorreu antes - é perfeitamente possível que Helen fosse parente de sua madrasta - talvez uma irmã mais moça... De qualquer modo, quando soubermos seu sobre­nome poderemos encontrar alguém que nos conte alguma coisa sobre a vida em Hillside. Lembre-se de que o velho disse que ela queria uma casa em Dillmouth para ficar perto dos parentes! Se os parentes moram por aqui, podemos descobrir alguma coisa.

- Giles, exclamou Gwenda - você é fantástico!

 

Giles, afinal, não achou mais necessário ir até Londres. Apesar do temperamento enérgico, que sempre o fazia correr de um lado para outro, tentando resolver tudo sozinho, concordou que talvez uma informação de simples rotina pudesse ser obtida por outra pessoa. Entrou, então, em contato com o seu escritório.

- Aqui está - exclamou entusiasticamente, quando chegou a esperada resposta.

Retirou do envelope a cópia de uma certidão de casamento.

- Está aqui, Gwenda! Sexta-feira, 7 de agosto. Cartório dos Registros de Kensington. Kelvin James Halliday e Helen Spenlove Kennedy.

Gwenda deu um grito. - Helen ?

Olharam um para o outro.

Giles disse lentamente: - Mas ... mas... não pode ser ela. Eles se separaram, ela se casou de novo... e foi embora.

- Não sabemos se ela foi embora, disse Gwenda.

Olhou novamente para o nome no papel: Helen Spenlove Kennedy.

Helen...

 

DR. KENNEDY

Alguns dias depois Gwenda estava passeando pela avenida sob um vento frio, quando estancou subitamente junto a um desses abrigos de vidro que uma empresa solícita construiu para proteger os seus visitantes.

- Miss Marple! exclamou, cheia de surpresa.

Sim, era Miss Marple, bem agasalhada por um espesso casaco de lã e toda envolta em cachecóis.

- Deve estar espantada de me encontrar aqui, respondeu vivamente Miss Marple. - Meu médico me receitou uma mu­dança de ares - de preferência junto do mar - e a descrição que vocês fïzeram de Dillmouth foi tão atraente que decidi vir para cá. Além disso descobri que a cozinheira e o mordomo de uma amiga minha têm pensão aqui.

- Mas por que não foi nos visitar? perguntou Gwenda.

- Gente velha é sempre meio maçante, querida. Os jovens recém-casados precisam estar a sós. Sorriu ante o ar de protesto de Gwenda. - Tenho certeza de que seria muito bem recebida por vocês. Como é que vocês vão? E em que pé está indo o nosso mistério?

- Estamos na pista, respondeu Gwenda, sentando-se a seu lado.

Contou-Ihe detalhadamente as várias investigações feitas até o momento.

- E agora, concluiu, - colocamos um anúncio em diversos jornais - nos jornais locais, em The Times e outros de grande circulação. Pedimos que qualquer pessoa que saiba do para­deiro de Helen Spenlove Halliday, nascida Kennedy, entre em contato, etc. Não acha que vamos receber algumas respostas?

- Acho que sim, querida - sim, acho que vão.

A voz de Miss Marple era tranqüila como sempre, mas seu olhar parecia perturbado. Lançou um rápido olhar de observa­ção sobre a moça que se sentava a seu lado. Aquele tom decidido e entusiasmado soava falso. Gwenda parecia estar preocupada. Talvez aquilo a que Dr. Haydock dera o nome de "im­plicações" estivesse começando a lhe ocorrer. Sim, mas agora era muito tarde para voltar atrás...

Miss Marple disse em tom carinhoso e com um ar de des­culpa.

- Estou realmente muito interessada em tudo isso. ­Compreende, minha vida é tão sem novidades! Espero que não me achem metida demais se lhes pedir que me mantenham a par dos acontecimentos, está bem?

- É claro que lhe contaremos tudo! exclamou Gwenda, com entusiasmo. - A senhora vai ficar a par de tudo. Ora, afinal, se não fosse a senhora, eu já teria pedido aos médicos que me trancafiassem num hospital de maluco. Dê-me seu endereço aqui. A senhora precisa ir lá em casa e tomar um drinque - isto é, uma xícara de chá, e conhecer a casa. É preciso ver o cenário do crime, não é mesmo?

Gwenda riu, mas havia algo de nervoso no seu riso. Quando ela partiu Miss Marple sacudiu a cabeça e franziu a testa.

 

Diariamente Giles e Gwenda examinavam com avidez a correspondência, mas a princípio suas esperanças foram vãs. Receberam apenas duas cartas de detetives particulares que se declararam dispostos e preparados para fazer as investigações necessárias.

- Por enquanto eles que fiquem para lá, disse Giles. - Se tivermos de pedir ajuda, vamos contratar uma firma indubitavelmente de primeira ordem, e não um sujeito que se oferece por carta. Mas também não sei o que é que eles poderiam fazer além do que estamos fazendo.

Seu otimismo, (ou amor-próprio), viu-se justificado alguns dias mais tarde, com a chegada de uma carta escrita com letra firme mas de certo modo ilegível, típica de médico.

 

Prezado Senhor:

Em resposta a seu anúncio em The Times, informo que Helen Spenlove Kennedy é minha irmã. Perdemos con­tato há muitos anos e gostaria de ter notícias dela.

Atenciosamente,    

James Kennedy, MD.

Galls Hill

Woodleigh Bolton.

 

- Woodleigh Bolton, disse Giles. - Não é muito longe daqui. O pessoal daqui costuma fazer piqueniques em Woodleigh Camp. Fica na região da charneca, a pouco mais de quarenta quilômetros. Vamos escrever uma carta perguntando ao Dr. Kennedy se podemos ir visitá-lo ou se ele prefere vir aqui nos ver.

Dr. Kennedy respondeu que os receberia na quarta-feira seguinte e no dia combinado o casal partiu.

Woodleigh Bolton era uma aldeia espalhada na encosta de uma colina. Galls Hill era a casa mais alta, no topo da ladeira, com vista para o mar, além de Woodleigh Bolton e da charneca.

- Que lugar mais desolado! exclamou Gwenda, estremecendo.

A casa em si também era desolada, e evidentemente o Dr. Kennedy desprezava as inovações modernas, tais como aqueci­mento central. A mulher que abriu a porta era morena e carran­cuda. Guiou-os através do despojado saguão de entrada até o escritbrio, onde o Dr. Kennedy se levantou para recebê-los. Era uma sala comprida e alta, com as paredes cobertas pelas estantes de livros.

Dr. Kennedy era um senhor de idade, com os cabelos gri­salhos, sobrancelhas espessas e olhos muito vivos. Deteve em cada um dos dois um olhar atento, penetrante.

- Sr. e Sra. Reed? Sente-se aqui, Sra. Reed. Acho que esta é a cadeira mais confortável. Bem, de que se trata?

Giles contou com facilidade toda a sua história previamente bem-animada.

Eles tinham se casado recentemente na Nova Zelândia. Vieram para a Inglaterra, onde Gwenda tinha morado por pouco tempo quando criança, e ela agora estava querendo encontrar os antigos amigos da família e os conhecidos.

Dr. Kennedy permanecia sério e inflexível. Seu tom era polido, mas não escondia a irritação que lhe causava a provinciana insistência sobre os laços sentimentais de família.

- E acha que minha irmã - minha cunhada - e possivel mente eu mesmo somos seus conhecidos? perguntou a Gwenda de modo educado mas ligeiramente hostil.

- Ela era minha madrasta, respondeu Gwenda. - A segunda mulher de meu pai. Naturalmente, não consigo me lembrar dela direito. Eu era tão pequena! Meu nome de solteira é Halliday.

Ele olhou para ela - e subitamente um sorriso iluminou-lhe o rosto. Tornou-se outra pessoa, já menos arredia.

- Meu Deus! exclamou. - Não me diga que você é Gwennie!

Gwenda fez que sim com a cabeça. O apelido infantil, há tanto tempo esquecido, ecoou com uma tranqüilizante familiaridade em seus ouvidos.

- Sim, respondeu ela. - Sou Gwennie.

- Céus! Adulta e casada... Como o tempo voa! Deve vazer... quinze anos... não, é claro que faz muíto mais tempo. Você não se lembra de mim, não é?

Gwenda sacudiu a cabeça.

- Não me lembro nem de meu pai ... ou melhor, tudo é muito nebuloso.

- É claro... A primeira mulher de Halliday era da Nova Zelândia... Lembro que ele me contou isso. Deve ser um paíz muito bonito.

- É o país mais lindo do mundo... mas também gosto muito da Inglaterra.

- Está de passagem ou veio morar aqui? Tocou a campainha. - Precisamos tomar uma xícara de chá.

Quando a alta mulher entrou, ele pediu : - Chá, por favor... e ... torradas com manteiga ou ... bolo, qualquer coisa.

A respeitável governanta parecia cheia de má-vontade, mas respondeu: - Sim, senhor, e retirou-se.

- Não costumo tomar chá, observou o Dr. Kennedy. ­Mas precisamos comemorar.

- O senhor é muito gentil, disse Gwenda. - Não, não estamos de passagem. Compramos uma casa. Fez uma pausa e acrescentou: - Hillside.

- Oh, sim! Fica em Dillmouth, respondeu o Dr. Kennedy com ar vago. - Vocês escreveram de lá.

- É uma coincidência extraordinária, não acha, Giles? perguntou Gwenda.

- Extraordinária, concordou Giles. - Espantosa, realmente!

- Estava à venda, sabe? prosseguiu Gwenda, dirigindo-se so Dr. Kennedy. Percebendo que ele não compreendera, acres­centou: - É a mesma casa em que moramos quando eu era criança.

Dr. Kennedy franziu a testa.

- Hillside? Mas... Ah, sim, ouvi dizer que mudaram o nome. Chamava-se... era um nome de santo... se é que es­tamos falando da mesma casa... a que fica à direita de quem vai para a cidade, na estrada de Leahampton.

- Exato.

- É essa mesmo. Engraçado... Como a gente esquece os nomes! Espere um instante. St. Catherine! Era esse o nome da casa.

- E eu morei lá, não foi? perguntou Gwenda.

- É claro que sim. Olhou-a com um ar divertido. - Por que quis voltar para lá? Não deve se lembrar de quase nada da casa, não é mesmo?

- Não. Mas de certo modo... senti-me em casa.

- Você se sentiu em casa, repetiu o médico. Sua voz era inexpressiva, mas Giles subitamente pôs-se a imaginar o que ele estaria pensando.

- De modo que achei, prosseguiu Gwenda - que o senhor poderia me falar de tudo... de meu pai e de Helen ... e, menos convincente, de tudo...

Ele a olhou pensativamente.

- Acho que lá na Nova Zelândia não sabiam de muita coisa. Por que haviam de saber? Bem, não há muito a contar. Helen, minha irmã, estava voltando da Índia no mesmo navio que seu pai. Ele era viúvo e tinha uma filha pequena. Helen teve pena dele... ou se apaixonou por ele. Ele estava se sentindo sozinho... ou se apaixonou por ela. É difícil saber exatamente porque as coisas acontecem. Ao chegarem a Londres casaram-se e vieram para Dillmouth, para junto de mim. Kelvin Halliday parecia um bom sujeito, bastante nervoso e frágil... mas os dois pareciam felizes. .. naquela época.

Ficou em silêncio por algum tempo, antes de prosseguir. - No entanto, menos de um ano depois ela fugiu com ou­tro. Você provavelmente sabe disso.

- Com quem foi que ela fugiu? perguntou Gwenda.

Ele fixou na moça seus olhos vivos.

- Ela não me disse, respondeu. - Não me fazia confidên­cias. Eu tinha percebido... não podia deixar de perceber... que estava havendo desentendimento entre ela e Kelvin. Não sabia por quê. Sempre fui um sujeito conservador - acredito em fidelidade conjugal. Helen não gostaria que eu soubesse o que estava acontecendo: Eu tinha ouvido boatos - sempre acabam chegando aos ouvidos da gente - mas não havia menção a nenhum nome específico. Freqüentemente hospedavam amigos que vinham de Londres ou de outros lugares da Inglaterra. Acho que fugira com algum deles.

- Quer dizer que não houve divórcio?

- Helen não quis se divorciar. Foi Kelvin quem me contou. Por isso é que imaginei - talvez tenha me enganado - que fosse algum homem casado, cuja mulher fosse católica.

- E meu pai?

- Também não quis pedir divórcio.

Dr. Kennedy falou com certa secura.

- Fale sobre meu pai, pediu Gwenda. - Por que foi que de repente ele resolveu me mandar para a Nova Zelândia?

Kennedy fez uma pausa antes de responder. - Acho que a família de sua mãe fez pressão nesse sentido. Dissolvido o segundo casamento, ele provavelmente achou que seria a melhor coisa a fazer.

- Por que não me levou para lá pessoalmente?

Dr. Kennedy percorreu a lareira com os olhos, procurando vagamente um limpador de cachimbo.

- Oh, não sei ... A saúde dele não ia bem.

- O que é que ele tinha? De que foi que morreu?

A porta se abriu e a desdenhosa governanta entrou, carregando uma pesada bandeja. Trouxera torradas, manteiga e geléia, mas bolo não. Com um gesto vago, o Dr. Kennedy fez sinal a Gwenda para servir o chá. Quando as xícaras estavam cheias e passavam de mão em mão, Gwenda pegou uma torrada e o Dr. Kennedy disse, com animação forçada.

- Contem o que fizeram na casa! Uma porção de alterações e reformas? Acho que eu não a reconheceria mais - depois do que vocês devem ter modificado.

- Estamos nos divertindo um pouco com banheiros novos - respondeu Giles.

Gwenda, com os olhos fixos no médico, insistiu: - De que morreu meu pai?

- Não sei lhe responder exatamente, minha cara. Como já disse, não estava com boa saúde e finalmente acabou se internando num sanatório - num lugar qualquer da costa leste. Morreu uns dois anos depois.

- Onde era, exatamente, esse sanatório?

- Sinto muito, mas não me lembro. Como disse, tenho a impressão de que ficava na costa leste.

O tom, agora, era francamente evasivo. Giles e Gwenda se entreolharam rapidamente.

- Mas pelo menos o senhor pode informar-nos onde ele foi enterrado? disse Giles. - Naturalmente, Gwenda quer muito visitar o túmulo.

Dr. Kennedy inclinou-se em direção à lareira, raspando o interior do cachimbo com um canivete.

- Sabem... disse ele, de maneira meio confusa. - Acho que não se deve insistir demasìadamente no passado. Toda essa veneração por um antepassado - é um erro. O importante é o futuro. Estão aqui vocês dois, jovens, saudáveis, com o mundo aos seus pés. Pensem no futuro. Não adianta colocar flores no túmulo de uma pessoa que, na prática, você mal conheceu.

Gwenda respondeu. teimosamente:

- Gostaria de ver o túmulo de meu pai.

- Sinto muito, mas não posso ajudá-la. - Sua voz era amá­vel, porém fria. - Isso foi há muito tempo, e minha memória já não é a mesma. Perdi contato com seu pai quando ele foi em­bora de Dillmouth. Acho que me escreveu uma vez, do sanatório e, como já disse, tenho a impressão de que ficava na costa leste - mas nem mesmo disso tenho certeza. E não tenho a menor noção de onde foi enterrado.

- Que coisa estranha! observou Gwenda.

- Nem tanto. O que nos ligava, compreende, era Helen. Sempre gostei muito de Helen. É minha meia-irmã e muitos anos mais moça do que eu, mas procurei educá-la da melhor maneira possível. Mandei-a para os melhores colégios e tudo. Mas não adianta esconder que Helen... bem, ela nunca teve um temperamento estável. Quando era muito jovem armou uma confusão com um rapaz bastante inconveniente. Consegui tirá-la da confusão. Depois resolveu ir para a Índia e casar com Walter Fane. Bem, isso estava certo - um bom rapaz, filho do melhor advogado de Dillmouth - mas, francamente, estúpido como uma porta. Sempre a adorou, mas ela nunca lhe deu a mínima. Ainda assim, mudou de idéia e foi para a Índia casar com ele. Quando tornou a vê-lo, desmanchou tudo. Passou-me um tele­grama pedindo dinheiro para a passagem de volta. Eu o mandei.A bordo, conheceu Kelvin. Casaram sem nem eu saber. Senti-me muito... como dizer... muito envergonhado por minha irmã. Isso explica porque Kelvin e eu não mantivemos o nosso rela­cionamento depois de ela ir embora. Subitamente perguntou: ­Onde está Helen agora? Podem me informar? Gostaria de entrar em contato com ela.

- Nós não sabemos, respondeu Gwenda. - Não temos a menor idéia!

- Oh! Quando vi o anúncio, pensei... - Olhou para os dois com repentina curiosidade. - Digam-me uma coisa: por que puseram esse anúncio?

- Queríamos entrar em contato ... disse Gwenda, interrom­pendo a frase no meio.

- Com uma pessoa de quem você mal se lembra?

Dr. Ken­nedy parecia perplexo.

Gwenda apressou-se em continuar.

- Achei que.. se conseguisse entrar em contato com ela ... ela me falaria ... sobre meu pai.

- Sim, sim, compreendo. Sinto muito não ter podido aju­dar. Minha memória não é mais a mesma. E isso foi há muito tempo.

- O senhor deve saber pelo menos que tipo de sanatório era, observou Giles. - De tuberculosos? perguntou.

Mais uma vez o rosto do Dr. Kennedy ganhou subitamente uma expressão mais dura.

- Sim ... acho que era isso mesmo.

- Então nós devemos conseguir localizá-lo com toda faci­lidade, disse Giles. - Muito obrigado, Dr. Kennedy, por tudo o que nos contou.

Levantou-se e Gwenda fez o mesmo.

- Muito obrigada, disse ela. - Não deixe de ir nos visitar em Hillside.

Saíram, e Gwenda, olhando para trás por cima do ombro, viu ainda uma vez o Dr. Kennedy em pé junto à lareira, tor­cendo o bigode grisalho com um ar preocupado.

- Ele sabe de alguma coisa que não quer nos contar, disse Gwenda ao entrarem no carro. - Há alguma coisa... Oh, Giles! Era melhor... era melhor a gente não ter se metido nisso...

Os dois se entreolharam e o mesmo medo, inconfesso, passou de um para o outro.

- Miss Marple tinha razão, disse Gwenda. - Devíamos ter deixado o passado para trás.

- Não precisamos continuar, disse Giles, hesitante. - Tal­vez seja melhor não insistir, minha querida.

Gwenda sacudiu a cabeça.

- Não, Giles. Agora não podemos parar. Ficaríamos o resto da vida imaginando e pensando. Não, temos que conti­nuar... Dr. Kennedy não quis nos contar porque queria ser gentil... mas esse tipo de gentileza não adianta. Temos que continuar e descobrir o que realmente aconteceu. Mesmo se ... mesmo se... tiver sido meu pai quem...

Mas não pôde prosseguir.

 

KELVIN HALLIDAY

Na manhã seguinte, Giles e Gwenda estavam no jardim quando a Sra. Cocker veio avisar que um certo Dr. Kennedy dcsejava falar com Giles ao telefone.

Deixando Gwenda a conferenciar com o velho Foster, Giles entrou e pegou o fone.

- Aqui é Giles Reed, disse ele.

- Aqui é Kennedy. Estive pensando sobre nossa conversa de ontem, Sr. Reed. Existem alguns fatos sobre os quais acho que talvez o senhor e sua mulher devam ser informados. Posso ir aí hoje à tarde?

- É claro. A que horas?

- Às três horas. Está bem para vocês?

- Muito bem.

No jardim, o velho Foster perguntou a Gwenda: - É o Dr. Kennedy que morava em West Cliff?

- Acho que sim. O senhor o conhecia?

- Ele era considerado o melhor médico daqui... se bem que o Dr. Lazenby fosse mais simpático. O Dr. Lazenby sempre dizia alguma coisa engraçada ou ria para animar a gente. O Dr. Kermedy era meio seco... mas sabia trabalhar.

- Quando é que parou de clinicar?

- Há muito tempo. Deve fazer uns quinze anos. Dizem que ficou doente.

Giles voltou e respondeu à pergunta expressa pelo olhar de Gwenda.

- Ele vem aqui hoje à tarde.

- Oh! - Gwenda dirigiu-se novamente a Foster. - Chegou s conheoer a irmã do Dr. Kennedy?

- Irmã? Não me lembro. Ela era uma garota pequena. Foi para o colégio interno, depois viajou para o estrangeiro, mas ouvi dizer que passou uns tempos aqui depois que casou. Acho que fugiu com outro sujeito - dizem que ela era malu­quinha. Não sei se cheguei a vê-la pessoalmente. Passei algum tempo trabalhando em Plymouth, sabe?

Caminhando ao lado de Giles em direção à ponta do terra­ço, Gwenda perguntou:

- Por que é que ele vem aqui?

- Saberemos às três horas.

Kennedy chegou pontualmente. Olhando para a sala, obser­vou:

- Parece estranho estar aqui de novo!

Em seguida entrou direto no assunto.

- Pelo que vi vocês estão decididos a encontrar o sana­tório onde Kelvin Halliday morreu e descobrir todos os detalhes sobre sua doença e sua morte, não é?

- Exatamente, respondeu Gwenda.

- Bem, evidentemente vocês o conseguiriam com a maior facilidade, de modo que cheguei à conclusão de que é menos chocante ouvirem os fatos contados por mim. Sinto muito ter que lhes contar, pois não vai adiantar nada para ninguém e pro­vavelmente causará um grande sofrimento a você, Gwennie. O fato é o seguinte: seu pai não estava tuberculoso e o sanatório era uma clínica de doençaa mentais.

- Doenças mentais? Ele estava louco?

Gwenda ficou bastante pálida.

- Isso nunca foi provado, e na minha opinião ele não es­tava louco no sentido comum dessa palavra. Teve uma estafa muito séria e passou a ter idéias obsessivas. Internou-se por vontade própria e poderia, evidentemente, sair quando bem en­tendesse. Mas não teve melhora e acabou morrendo lá.

- Idéias obsessivas? Giles repetiu as palavras com ar inter­rogativo. - Que tipo de obsessão?

- Ele achava que tinha estrangulado a mulher, respondeu Kennedy secamente.

Gwenda deìxou escapar um grito. Giles rapidamente esten­deu o braço e segurou sua mão gelada.

- E... ele tinha mesmo feito isso? perguntou Giles.

- Hein? Kennedy olhou-o fixamente. - Não, é claro que não. Isso é ponto pacífico.

- Mas... mas como é que o senhor pode saber? perguntou Gwenda hesitante.

- Minha cara, isso jamais aconteceu! Helen deixou-o efugiu com outro homem. Ele estava desequilibrado havia já al­gum tempo. Pesadelos, fantasias mórbidas. O choque liquidou-o de vez. Não sou psicólogo. Eles têm explicações para essas coisas. Se um homem prefere que sua mulher morra em vez de traí-lo, pode acabar acreditando que ela morreu ... até mesmo que ele a matou.

Prudentemente, Giles e Gwenda trocaram um olhar de advertência.

- Quer dizer que o senhor tem certeza absoluta de que não há possibilidade de ter ele realmente feito o que disse? falou Giles, serenamente.

- Absoluta. Recebi duas cartas de Helen. A primeira veio da França, cerca de uma semana depois de ela ter fugido, e a outra chegou uns seis meses mais tarde. Oh, não, era tudo uma obsessão, pura e simplesmente!

Gwenda suspirou fundo.

- Por favor, disse ela, - quer me contar toda a história?

- Vou lhe contar tudo o que sei, minha cara. Kelvin estava, havia algum tempo, num estado neurótico muito estranho. Foi me consultar a respeito. Disse-me que tivera vários sonhos an­gustiantes. Os sonhos eram sempre os mesmos e terminavam da mesma maneira - ele estrangulando Helen. Tentei atingir a raiz do problema - deve ter havido algum conflito na primeira in­fância. Parece que os pais dele não viviam bem... Mas isso não vem ao caso - só tem interesse do ponto de vista médico. Su­geri que Kelvin consultasse um psicólogo - existem ótimos espe­cialistas - mas ele não queria nem ouvir falar nisso. Parece que não acreditava nessas coisas.

Eu achava que ele e Helen não estavam se dando muito bem, mas ele nunca falou sobre isso e eu não gosto de fazer per­guntas. A coisa explodiu de vez quando, certa noite, ele entrou em minha casa - lembro que era uma sexta-feira e eu tinha acabado de chegar do hospital. Encontrei-o à minha espera no consultório. Já estava lá há uns quinze minutos. Assim que entrei ele olhou para mim e disse: - Eu matei Helen.

Por um momento, fiquei sem saber o que pensar. Ele falara com um ar tão frio e direto. Perguntei-lhe: - Você quer dizer... que teve outro sonho? Ele respondeu: - Desta vez não é sonho. É verdade. Ela está caída, estrangulada. Eu a estrangulei.

Em seguida disse com um ar frio e racional: - É melhor você ir comigo lá em casa. De lá você chama a polícia. Eu não sabia mais o que pensar. Peguei o carro e fomos juntos. A casa estava silenciosa e escura. Subimos para o quarto...

Gwenda interrompeu-o. - Para o quarto ? interrogou, ato­nita.

Kennedy parecia ligeiramente surpreso.

- Sim, foi lá que tudo aconteceu. Bem, evidentemente, quando chegamos lá... não havia nada! Nenhuma mulher morta caída na cama. Nada fora do lugar - a colcha nem sequer estava amassada. Tudo não passara de uma alucinação.

- Mas o que disse meu paì?

- Oh, ele insistiu na história, é claro! Acreditava realmente que era verdade. Consegui que tomasse um calmante e deitei-o na cama do quarto de vestir. Em seguida examinei o aposento e a casa toda. Encontrei um bilhete amassado que Helen jogara na cesta de papéis da sala. Estava escrito mais ou menos o se­guinte: "Isto é um adeus. Sinto muito, mas nosso casamento foi um erro desde o começo. Vou-me embora com o único ho­mem que amo. Perdoe-me se puder. Helen."

Evidentemente, Kelvin ao chegar em casa e encontrar o bilhete, subiu a escada, teve uma séria crise emocional e foi falar comigo, convencido de que tinha matado Helen.

Em seguida interroguei a empregada. Fora seu dia de folga e ela chegara tarde. Levei-a ao quarto de Helen e ela examinou todas as suas roupas. Estava tudo bastante claro. Helen arrumara a mala, uma sacola, e partira. Examinei a casa toda, mas não havia sinal de nenhuma anormalidade... muito menos de uma mulher estrangulada.

Na manhã seguinte Kelvin me deu muito trabalho, mas fi­nalmente se convenceu de que fora tudo uma alucinação - ou pelo menos disse que estava convencido - e concordou em ss internar.

Uma semana depois, como já falei, recebi uma carta de Helen. Vinha de Biarritz, mas ela dizia que estava a caminho da Espanha. Pedia-me que dissesse a Kelvìn que não queria se divorciar e que ele tratasse de esquecê-la o mais depressa possível.

Mostrei a carta a Kelvin. Ele não disse grande coisa. Pros­seguiu com seu plano. Telegrafou para a família de sua primeira mulher, na Nova Zelândia, pedindo-lhes que cuidassem da crian­ça. Pôs em dia todos os seus negócios e depois se internou numa ótima clínica particular para doentes mentais, disposto a receber o tratamento adequado. Este, no entanto, não serviu para nada. Ele morreu na mesma clínica dois anos depois. Posso lhe dar o endereço. Fica em Norfolk. O atual diretor, naquela ocasião, era muito jovem e provavelmenle poderá lhe dar mais infor­mações sobre o caso de seu pai.

- E recebeu mais uma carta de sua irmã... depois disso? perguntou Gwenda.

- Sim. Uns seis meses depois. Escreveu de Florença. Pôs uma caixa-postal em nome de "Srta. Kennedy". Disse quecom­preendia que talvez fosse ruim para Kelvin se divorciar, se bem que ela própria não quisesse isso. Caso ele desejasse um divórcio, eu deveria escrever-lhe para a posta restante e ela tomaria as pro­vidências necessárias. Mostrei a carta a Kelvin. Ele disse ime­diatamente que não queria se divorciar. Escrevi para Helen a dei o recado. Depois disso nunca mais tive notícias dela. Não sei onde está morando, nem sei se está viva ou morta. Foi por isso que respondi ao anúncio, na esperança de ter notícias dela.

Acrescentou baixinho:

- Sinto muito, Gwennie, mas você precisava saber. Só queria que você não tivesse começado...

 

FATOR DESCONHECIDO

Giles acompanhou Kennedy até o portão e, ao voltar para dentro de casa, encontrou Gwenda sentada exatamente onde a deixara. As maçãs de seu rosto estavam vermelhas e seus olhos pareciam febris. Quando falou, sua voz era dura e amarga.

- Vem a dar sempre na mesma coisa. Será que tem que ser morte ou loucuca? É isso mesmo .. . morte ou loucura. ..

- Gwenda, minha querida... Giles aproximou-se e passou o braço em torno de seus ombros. Gwenda manteve o corpo insensível e retesado.

- Por que não deixamos isso de lado? por que começamos tudo isso? Foi o meu próprio pai quem a estranguIou. Foi a voz de meu pai que eu ouvi dizer aquelas palavras. É evidente que eu tinha de me lembrar... é evidente que tinha de ficar apavorada. Meu próprio pai!

- Espece, Gwenda, espere! Não temos certeza...

- É claro que temos! Ele disse ao Dr. Kennedy que tinha estrangulado Helen, não disse?

- Mas Kennedy tem certeza de que não era verdade ...

- Porque não encontrou o corpo. Mas ha via um corpo ... e eu vi!

- Você o viu no saguão, e não no quarto.

- Que dïferença faz isso?

- Bem, é estranho, não é? Por que haveria Halliday de di­zer que a estrangulara no quarto se na realidade a estrangulou no saguão?

- Oh, não sei! Isso é um detalhe sem importância.

- Não concordo. Controle-se, querida. Vamos raciocinar. Há alguns pontos obscuros em toda essa história. Já que você insiste, vamos partir do pressuposto de que seu pai estrangulou Helen no saguão. O que aconteceu em seguida?

- Ele foi falar com Kennedy.

- E disse-lhe que tinha estrangulado Helen no quarto, trouxe-o para cá, e não havia nenhum corpo no saguão... nem no quarto. Ora, não pode haver um assassinato sem um corpo. O que é que ele fez do corpo?

- Talvez houvesse um corpo e Kennedy tenha ajudado a sumir com ele... só que, evidentemente, não podia nos dizer isso.

Giles sacudiu a cabeça.

- Não, Gwenda... Não imagino Kennedy fazendo uma coisa dessas. Ele é um escocês astuto, frio e obstinado. Você está admitindo que ele se exporia ao risco de cumplicidade? Não acredito nissso. Poderia ter ajudado Halliday como testemunha de seu estado mental, isso sim. Mas por que haveria de se arris­car para esconder tudo? Kelvin Halliday não tinha laços de fa­mília com ele, não era sequer um amigo intimo. Tratava-se do assassinato da própria irmã de Kennedy e é evidente que ele gostava muito dela - apesar de uma desaprovação meio vito­riana de sua vida irregular. Nem ao menos você era filha da irmã dele. Não, Kennedy não se tornaria conivente, escondendo um crime. Haveria uma única maneira de fazer uma coisa dessas, se ele quisesse: dar um atestado de que ela morrera do coração, ou qualquer coisa assim. Suponho que ele pudesse se sair assim... mas sabemos com toda a certeza que ele não fez isso. Primeiro, porque não há nenhum atestado de óbìto nos cartórios locais e, depois, porque, se ele tivesse feito isso, teria nos dito que sua irmã morreu. Agora, partindo daí, explique, se puder, o que aconteceu com o corpo.

- Quem sabe meu pai o enterrou em algum lugar... no jardim?

- E depois foi dizer a Kennedy que tinha matado a mulher? Por quê? Por que não preferir a versão de que ela o abandonara?

Gwenda afastou a mecha de cabelo que lhe caía na testa. Estava agora menos tensa e sua cor voltara ao normal.

- Não sei, respondeu ela. - Da maneira como você colo­cou as coisas minha teoria parece meio absurda. Você acha que Kennedy disse a verdade?

- Oh, sim! Tenho toda certeza disso. Para ele, a história que nos contou é perfeitamente plausível. Sonhos, alucinações... culminando numa imensa alucinação. Ele não tem dúvida de que foi uma alucinação porque, como já disse, não existe assas­sinato sem cadáver. Nesse ponto é que nós divergimos dele. Nós sabemos que havia um cadáver.

Fez uma pausa e prosseguiu. - Do ponto de vista de Ken­nedy, tudo encaixa. Roupas faltando, uma mala, um bilhete de despedida. E, mais tarde, duas cartas da irmã.

Gwenda se perturbou.

- As cartas... repetiu. - Como explicar essas cartas?

- Não sei, mas tem que haver uma explicação. Se acredi­tarmos que Kennedy contou a verdade - e eu tenho certeza que sim - existe alguma explicação para as cartas.

- Será que a letra era realmente de Helen? Ele reconheceu a letra?

- Sabe, Gwenda, não vejo porque haveria de levantar essa questão. Não é como uma assinatura num cheque duvidoso. Se as cartas foram escritas com uma letra que imitasse razoavelmente a de Helen, Kennedy não tinha motivos para duvidar. Já estava com a idéia preconcebida de que ela fugira com alguém. As cartas apenas confirmaram essa idéia. Se ele nunca mais recebesse notícias dela... bem, aí talvez desconfiasse. Mesmo assim, há alguns pontos curiosos que não o espantaram, mas que a mim espantam. .. As cartas são estranhamente anônimas. Nenhum endereço, apenas uma posta-restante. Nenhuma indica­ção de quem era o homem envolvido. Uma clara decisão de romper com todos os laços antigos. O que quero dizer é o se­guinte: exatamente o tipo de cartas que um assassino forjaria se quisesse se livrar de qualquer suspeita por parte da família da vítima. Teria sido simples mandar colocar as cartas no correio em outro país.

- Você acha que meu pai ...

- Não... pelo contrário, não acho! Pense num homem que está totalmente decidido a se livrar da mulher. Espalha boatos sobre uma possível infidelidade. Encena uma fuga - um bilhete de despedida, roupas levadas dentro de uma mala... As cartas chegarão, vindas do exterior, em intervalos cuidadosamente pla­nejados. Na realidade ele a matou tranqüilamente e escondeu o corpo, digamos, no porão. Isso é um determinado tipo de crime - que já foi cometido muitas vezes. Mas o que esse tipo de assassino não faz é correr para a casa do cunhado, dizer que acabou de matar a mulher e pedir que chame a polícia. Por ou­tro lado, se o seu pai fosse o tipo de assassino passional, louca­mente apaixonado pela mulher e que a estrangula num momento dé ciúmé insuportável - uma tragédia do gênero Otelo, que combina com a frase que você ouviu - bem, esse homem certa­mente não iria arrumar malas, preparar cartas com antecedência e depois correr para contar o crime para um homem que não é do tipo de esconder tudo. Está tudo errado, Gwenda. A coisa não encaixa.

- Então onde é que você está querendo chegar, Giles?

- Não sei ... É que nisso tudo parece haver um fator desconhecido... Vamos chamá-lo de fator X. Alguém que ainda não apareceu, mas cuja técnica se pode entrever.

- X? perguntou Gwenda com ar pensativo. Continuou, em seguida, em tom sombrio: - Você está inventando isso tudo; para me consolar, Giles.

- Juro que não. Você não vê que não há uma solução que consiga explicar todos os fatos? Sabemos que Helen Halliday foi estrangulada porque você viu...

Giles parou a frase no meio.

- Céus! Fui um imbecil! Agora compreendo. Isso expliea tudo. Você tem razão e Kennedy também. Escute, Gwenda. Helen está se preparando para fugir com um amante... quem é, nós não sabemos.

- X?

Giles afastou sua interrupção com um gesto de impaciência.

- Escreveu um bilhete para o marido, mas nesse momento ele entra, lê o que ela acabou de escrever e fica alucinado. Amassa o bilhete, joga-o na cesta de papéis e avança para cima dela. Ela, apavorada, corre para o saguão. Ele corre atrás dela; aperta-lhe o pescoço, ela fica ìnconsciente e ele a deixa cair no chão. Em seguida afasta-se um pouco e diz aquela frase da Duquesa de Malfi no momento exato em que uma crìança chegou no alto da escada e está espiando por trás da balaustrada.

- E daí?

- O negócio é que ela não está morta. Ele pode ter pensado que ela estivesse - mas está apenas semi-asfixiada. Depois que, o marido enlouquecido parte para a casa do médico, do outro lado da cidade, talvez o amante chegue... ou talvez ela volte a si. De qualquer modo, assim que se refaz, trata de ir embora. E bem depressa. Isso explica tudo. A certeza de Kelvin de que a matou. O desaparecimento das roupas, que haviam sido embaladas e levadas embora antes. E as cartas, que são absolutamentt autênticas. Pronto. Isso explica tudo.

- Não explica por que Kelvin disse que a estrangulara no quarto, retorquiu Gwenda.

- Estava tão abalado que não se lembrava bem do local em que tudo aconteceu.

- Gostaria de acreditar nisso. Quero acreditar... Mas con­tinuo tendo certeza... certeza absoluta... de que quando olhei para baixo ela estava morta... bem morta, disse Gwenda.

- Mas como é que você podia saber? Uma criança de me­nos de três anos...

Gwenda lançou-lhe um olhar de dúvida.

- Acho que as crianças sabem... mais que os adultos. É como os cachorros... eles reconhecem a morte, atiram a cabeça para trás e uivam. Acho que as crianças... reconhecem a morte...

- Isso é tolice. Não faz sentido.

A campainha da porta interrompeu-o. - Quem será? per­guntou Giles.

Gwenda olhou intimidada.

- Tinha esquecido! exclamou Gwenda. - É Miss Marple. Convidei-a para tomar chá. Não vamos contac nada disso para ela.

 

Gwenda temia que o convite para o chá acabasse se trans­formando numa situação difícil, mas felizmente Miss Marple pareceu não notar que sua anfitriã estava falando um pouco depressa demais, com excessiva animação, e que sua alegria era um tanto ou quanto forçada. Miss Marple, por sua vez mostrava-se bastante loquaz. Estava gostando tanto da estadia em Dillmouth e, imaginem só, uma amiga tinha escrito a amigos que moravam em Dillmouth e Miss Marple, conseqüentemente, recebera vários convites de habitantes locais.

- A gente se sente tão bem, tão menos estranha, querida, conhecendo pessoas que moram aqui há anos! Por exemplo, vou tomar chá com a Sra. Fane. Ela é viúva do diretor do melIhor escritório de advocacia de Dillmouth. Uma firma de família toda à maneira antiga. Hoje em dia quem dirige o escritório é o filho da Sra. Fane.

A voz amável, tagarelando, continuava. A dona da pensão eta tão delicada, tratava-a tão bem... - E a comida é real­mente deliciosa. Ela trabalhou durante anos em casa de minha velha amiga a Sra. Bantry. Não é daqui, mas a tia morou em Dillmouth muito tempo e ela sempre vinha passar as férias com o marido em casa da tia. Conhece todos os mexericos da cidade. Por falar nisso, estão satisfeitos com o jardineiro? Ouvi dizer que ele não é dos melhores. Fala muito rnas não trabalha nada.

- A especialidade dele é falar e tomar chá, respondeu Giles. - Toma umas cinco xícaras de chá por dia. Mas quando ficamos em cima trabalha maravilhosamente bem.

- Venha ver o jardim, disse Gwenda.

Mostraram-lhe a casa e o jardim. Miss Marple fez os comen­tários habituais. Gwenda não precisava temer que ela reparasse em alguma coisa fora do lugar, com a sua aguda observação; pois Miss Marple não demonstrava o menor conhecimento de qualquer irregularidade.

No entanto, estranhamente, foi Gwenda quem, de súbito resolveu agir de modo imprevisível. Interrompendo um caso que Miss Marple estava contando, disse a Giles: - Não faz mal.. Vou contar para ela...

Miss Marple virou-se para Gwenda com ar atento. Giles começou a falar mas parou.

- Bem Gwenda, a cabeça é sua, disse ele finalmente.

E ela fez o relato completo. A visita a Kennedy, a conse­qüente ida do médico em casa deles e o que lhes contara.

- Era isso que a senhora queria dizer em Londres, não era? perguntou Gwenda em tom ansioso. - A senhora achava que... que talvez meu pai estivesse envolvido nisso?

- Sim, achei que era possível, respondeu Miss Marple, delicadamente. - Helen podia muito bem ser uma jovem madras­ta... e num caso de... estrangulamento, freqüentemente o culpado é o marido.

Miss Marple falava como uma pessoa que observa fenô­menos absolutamente naturais; sem surpresa ou emoção.

- Compreendo por que insistiu para que deixássemos tudo de lado, disse Gwenda. - Oh, teria sido melhor seguir esse conselho! Mas não se pode voltar atrás.

- Não, concordou Miss Marple. - Não se pode voltar atrás.

- Agora gostaria que ouvisse o que Giles tem a dizer. Ele fez vários comentários e objeções.

- O que quero dizer é só que as coisas não encaixam, atalhou Giles.

E expôs com lucidez e clareza, todos os pontos que já ex­pusera a Gwenda. Por fim expôs sua teoria.

- Se a senhora conseguisse convencer Gwenda de que é a única explicação possível...

Miss Marple olhou para Gwenda e novamente para Giles. - É uma teoria perfeitamente razoável, disse ela. - Mas há sempre, Sr. Reed, a possibilidade de X, como o senhor mesmo disse.

- X! exclamou Gwenda.

- O fator desconhecido, disse Miss Marple. - Alguém que ainda não apareceu - mas cuja presença pode ser deduzida através dos fatos.

- Decidimos ir à clínica onde meu pai morreu, em Nor­folk, disse Gwenda. - Talvez lá possamos descobrir alguma coisa.

 

HISTÓRICO DE UM CASO

Saltmarsh House ficava num local aprazível, a cerca de seis milhas da costa. Partindo-se de South Benham, uma cidade que ficava a cinco milhas de distância, podia-se ir de trem para Londres.

Giles e Gwenda foram introduzidos numa grande e arejada sala de estar, cujos móveis eram estofados de cretone com flores. Uma encantadora senhora de cabelos brancos entrou, trazendo um copo de leite. Cumprimentou-os com a cabeça e sentou-se junto à lareira. Olhou para Gwenda com um ar pensativo, in­clinou-se em sua direção e perguntou sussurrando:

- Trata-se de sua criança, minha cara?

Gwenda, um pouco assustada, respondeu:

- Não, não é isso.

- Ah, estava pensando... A velha senhora abanou a ca­beça e tomou um gole de leite. Em seguida prosseguiu, muito naturalmente. - Dez e meia... está na hora. É sempre às dez e meia. Extraordinário... Baixou a voz e inclinou-se novamente para a frente.

- Através da lareira, sussurrou ela. - Mas não diga que fui eu que contei.

Nesse momento uma servente vestida de branco entrou na sala e pediu ao casal que a acompanhasse.

Giles e Gwenda entraram no escritório do Dr. Penrose, que se levantou para recebê-los.

Esse Dr. Penrose, pensou Gwenda consigo mesma, parece meio maluco. Parece muito mais doido que aquela senhora da sala de estar... mas talvez todos os psiquiatras sejam meio malucos.

- Recebi sua carta e a do Dr. Kennedy, disse o Dr. Pen­rose. - E dei uma olhada no histórico do caso de seu pai, Sra. Reed. Lembro-me muito bem do caso, naturalmente, mas queria refrescar minha memória para poder lhe contar tudo o que deseja saber. Pelo que fui informado, a senhora só recentemente veio a conhecer os fatos, não é?

Gwenda explicou que fora criada na Nova Zelândia pela família de sua mãe e que a única coisa que sabia a respeito do pai era sobre seu falecimento numa clinica na Inglaterra.

Dr. Penrose assentiu com a cabeça. - Exatamente. O caso de seu pai, Sra. Reed, apresentava alguns aspectos muito estranhos.

- Tais como? perguntou Giles.

- Bem, a obsessão era muito forte. O Major Halliday, apesar de um estado nervoso bastante sério, era absolutamente enfátíco e categórìco ao afirmar que estrangulara sua segunda esposa num acesso de cíúmes. Não apresentava muitos dos sintomas habituais a esses casos e, para ser franco, Sra. Reed, devo lhe dizer uma coisa. Se Kennedy não tivesse garantido que a Sra. Halliday estava viva, eu talvez tivesse achado, na época, que seu pai só me dizia a verdade.

- O senhor t:ve a impressão de que eie realmente a ma­tara? perguntou Giles.

- Eu disse "na época". Mais tarde reformulei minha opi­nião, pois passei a conhecer melhor a estrutura e a personalidade do Major Halliday. Seu pai, Sra. Reed, não era de maneira alguma um tipo paranóico. Não tinha mania de perseguição nem impulso, violentos. Era um homem afável, cordial e controlado. Não era o que todos chamam de "louco" nem era pe­rigoso. Mas tinha essa idéia fixa sobre a morte da Sra. Halliday. Para explicar isso, estou convencido de que teríamos de voltar muito atrás... a alguma experiência infantil. Mas admito que todos os métodos de análise falharam em seu caso. Às vezes demora-se muito tempo para quebrar a resistência de um pa­ciente à análise. Isso pode levar anos. No caso de seu pai o tempo foi insuficiente.

Fez uma pausa e, em seguida, com um olhar incisivo, pros­seguiu: - Suponho que a senhora esteja ciente de que ele se suicidou.

- Oh, não! gritou Gwenda.

- Sinto muito, Sra. Reed. Pensei que a senhora soubesse. Talvez até tenha o direito de achar que, em parte, a culpa foi nossa. Concordo que uma vigilância maior teria impedido o qut aconteceu. Mas, francamente, eu não via nenhum sintoma de ser o Major Halliday um suicida em potencial. Não mostrava tendência para a melancolia... não tinha depressões nem desâ­nimos. Queixava-se de insônia e meu colega lhe dava compri­midos para dormir. Ele fingia tomá-los e, em vez disso, foi guar­dando todos os comprimidos até possuir uma quantidade sufi­ciente, e...

- Ele se sentia tão infeliz assim?

- Não, acho que não. Era mais, em minha opinião, um complexo de culpa, um desejo de ser castigado. No início, como a senhora sabe, queria chamar a polícia e, apesar de termos conseguido dissuadi-lo, assegurando-lhe não haver cometido cri­me algum, ele nunca se deixou realmente convencer. No entanto provamos a ele seguidamente, e ele concordava, que de maneira nenhuma se lembrava do assassinato em si. Dr. Penrose remexeu nos papéis que estavam em cima de sua mesa. - Seu relato sobre aquela noite era sempre o mesmo. Dizia que tinha entrado na casa e que estava escura. As empregadas haviam saído. Ele foi à sala de jantar e tomou um drinque, como costumava fazer. Em seguida passou para a sala de estar pela porta de comuni­cação. Depois disso não se lembrava de mais nada, até o mo­mento em que se viu de pé, no quarto, olhando para sua mulher que estava morta... estrangulada. Ele sabia que tinha sido ele...

Giles interrompeu. - Desculpe, Dr. Penrose, mas como é que ele sabia que tinha sido ele?

- Não havia a menor dúvida em sua mente. Desde alguns meses antes vinha tendo suspeitas melodramáticas. Disse-me, por exemplo, que estava convencido de que sua mulher lhe dava drogas. Tendo morado na Índia, ele sabia que lá é relativamente comum as mulheres fazerem os maridos enlouquecerem através da administração de datura. Tinha freqüentes alucinações, con­fundindo tempo e lugar. Negava insistentemente que suspeitasse da infidelidade da esposa, mas mesmo assim acho que o motivo foi esse. Parece que o que aconteceu, na realidade, é que ele en­trou na sala, leu o bilhete de sua mulher dizendo que ia deixá-lo, e sua maneira de fugir do fato foi preferir "matá-la". Daí a alu­cinação.

- Acha que a amava muito? perguntou Gwenda.

- Evidentemente, Sra. Reed.

- E ele nunca admitiu... que fosse uma alucinação?

- Concordava que tinha que ser... mas internamente não se convencia. A obsessão era forte demais para ser vencida pela razão. Se tivéssemos conseguido descobrir a fixação infantil in­consciente...

Gwenda interrompeu. Não estava interessada em fixações infantis.

- Mas o senhor diz ter certeza... de que ele não cometeu o crime?

- Oh, se é isso o que a preocupa, Sra. Reed, pode ficar descansada. Por mais ciúmes que tivesse da mulher, Kelvin Halliday não era, de modo algum, um assassino.

Penrose pigarreou e apanhou uma pequena caderneta preta.

- Acho que a senhora é a pessoa que deve ficar com isto, se quiser, Sra. Reed. Contém diversas anotações feitas pelo seu pai enquanto esteve internado aqui. Quando entregamos seus pertences ao testamenteiro - que era um escritório de advocacia, Dr. McGuire, na ocasião, o diretor da clínica ficou com essa caderneta porque fazia parte do histórico do caso. O caso de seu pai está descrito no livro do Dr. McGuire. Evidentemente refere-se a ele apenas através das iniciais - Sr. H. K. Se quiser ficar com este diário...

Gwenda estendeu a mão rapidamente.

- Obrigada, disse ela. - Gostaria muito.

 

No trem, de volta a Londres, Gwenda pegou a pequena caderneta preta e começou a ler.

Abriu-a ao acaso.

"Esses médicos devem saber o que estão dizendo... Para mim é tudo conversa fiada. Será que eu estava apaixonado por minha mãe? Odiava meu pai? Não acredito numa só pala­vro... Não consigo deixar de achar que se trata simples­mente de um caso de polícia... de julgamento... e não de um caso de insanidade. E no entanto... algumas das pessoas aqui... tão normais, tão razoáveis, como todo mundo... a não ser quando a gente esbarra na coisa. Bem, aí eu tam­bém esbarro e fico confuso...

Escrevi para James... insisti para que se comunicasse com Helen ... Quero que ela venha me ver em carne é osso, se estiver viva... Ele diz que não sabe onde ela está... Isso é porque ele sabe que ela morreu e que fui eu que a matei... É um bom sujeito, mas não me engana... Helen está morta...

Quando foi que comecei a desconfiar dela? Faz muito tempo... Logo depois que chegamos a Dillmouth... Ela mudou ... Estava escondendo alguma coisa... Eu a vigiava... Sim, e ela me vigiava...

Será que ela colocava drogas na minha comida? Aqueles pesadelos estranhos e terríveis... Não eram sonhos comuns... pesadelos vivos... Eu sabia que eram efeito de drogas.... Só ela poderia ter feito isso... Por quê?... Há um homem... Algum homem de quem ela sentia medo...

Vou ser franco. Eu desconfiava que ela possuía um aman­te, não é? Havia alguém - eu sei que havia alguém... Ela me disse no navio... Alguém que ela amava e com quem não podia se casar... Comigo era a mesma coisa... Não con­seguia esquecer Megan ... Como Gwennie se parece com Megan! Helen brincava tanto com Gwennie a bordo... He­len ... Você é tão bonita, Helen...

Será que Helen está viva? Ou será que coloquei minhas mãos em torno de seu pescoço e apertei-o até tirar-lhe a vida? Entrei na sala e vi o bilhete em cima da escrivaninha, e de­pois... e depois... tudo negro... só a escuridão. Mas não há dúvida... Eu a matei... Graças a Deus, Gwennie está bem na Nova ZelBndia. O pessoal lá é muito bom. Amam a crian­ça por causa de Megan. Megan - Megan, como eu queria que você estivesse aqui..

É o melhor jeito...  Sem escândalo... É a melhor so­lução para a criança. Não posso continuar. Não desse jeito, ano após ano... Preciso sair pelo atalho. Gwennie nunca saberá disso tudo. Nunca saberá que seu pai era um assas­sino..."

Gwenda mal enxergava através das lágrimas. Olhou para Giles, sentado à sua frente, mas os olhos de Giles estavam fixos no canto oposto.

Percebendo a insistência de Gwenda, ele virou a cabeça. Seu companheiro de compartimento estava lendo um ves­pertino. Na primeira página, bem à vista, havia uma manchete dramática: QUEM ERAM OS HOMENS DE  SUA VIDA?

Lentamente Gwenda sacudiu a cabeça. Baixou novamente os olhos para o diário.

"Havia alguém ... Eu sei que havia alguém ..."

 

OS HOMENS DE SUA VIDA

Miss Marple atravessou a avenida e andou pela calçada de Fore Street, virando em Arcade. Ali as lojas eram bastante antiquadas. Uma loja de artigos de lã e de trabalhos de agulha, um confeiteiro, uma alfaiataria para senhoras, com aspecto vito­riano, e outros estabelecimentos do mesmo gênero.

Miss Marple espiou através da vitrina da loja de traba­Ihos de agulha. Duas jovens vendedoras atendiam as freguesas, mas no fundo da loja havia uma senhora idosa que não estava ocupada.

Miss Marple abriu a porta e entrou. Sentou-se junto ao balcão e a vendedora, uma rnulher simpática de cabelos grisa­lhos, perguntou-lhe:

- Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?

Miss Marple queria uma lã azul claro para fazer um casa­quinho de bebê. Não tinha a menor pressa. Discutiram os dife­rentes pontos de tricô e Miss Marple examinou todos os figu­rinos infantis, enquanto conversava sobre seus sobrinhos-netos. Nem ela nem a vendedora tinham pressa. A vendedora estava acostumada a atender pessoas como Miss Marple. Gostava mais das velhas senhoras amáveis e falantes do que das jovens mães impacientes e freqüentemente mal-educadas que nunca sabiam o que queriam e só escolhiam coisas baratas e espalhafatosas.

- Jim, disse Miss Marple. - Acho que assim vai ficar muito bonitinho. E gosto muito dessa lã. Não encolhe de jeito nenhum. Acho que vou levar mais dois novelos.

Enquanto fazia o embrulho, a vendedora observou que o tempo estava bastante frio.

- É mesmo, respondeu Miss Marple. - Reparei nisso quan­do vinha andando pela rua. Dillmouth está muito mudada. Faz uns dezenove anos que não venho aqui.

- Não me diga, minha senhora! Então deve estar achando muita diferença! O Hotel Superb ainda não existia nessa época, e acho que o Southview também não.

- Oh, não, isto aqui era uma cidadezinha bem pequena. Fiquei hospedada em casa de amigos... Numa casa chamada St. Catherine - talvez a senhora conheça. Fica em Leahampton Road.

Mas a vendedora só morava em Dillmouth há dez anos. Miss Marple agradeceu, pegou o embrulho e foi para a alfaiataria ao lado. Tornou a escolher uma vendedora mais velha e a conversa seguiu mais ou menos o mesmo rumo. Dessa vez a vendedora respondeu imediatamente.

- Deve ser a casa da Sra. Findeyson.

- Sim, é isso mesmo. Mas meus amigos tinham alugado a casa mobiliada. Era o Major Halliday, a esposa e uma meni­ninha.

- Oh, sim! Alugaram a casa por um ano, acho eu.

- É. Ele havia voltado da Índia. Tinham uma cozinheira muito boa, que me deu uma receita maravilhosa de torta de maçã e outra de pão de gengibre. Às vezes me lembro dela. Gos­taria de saber onde mora agora.

- A senhora deve estar se referindo a Edith Pagett. Ainda mora em Dillmouth. Trabalha em Windrush Lodge.

- Havia também outras pessoas - a família Fane. Acho que o pai era advogado.

- O velho Sr. Fane morreu há alguns anos, mas o filho, Sr. Walter Fane, mora com a mãe. O Sr. Walter Fane não casou. Hoje em dia é ele quem dirige o escritório.

- É mesmo? Eu tinha a impressão de que ele fora para a Índia - fazer uma plantação de chá ou coisa parecida.

- Acho que foi, minha senhora. Quando era rapaz. Mas depois voltou e um ou dois anos depois entrou para a firma. Cuidam de todos os negócios importantes daqui. São muito competentes. O Sr. Walter Fane é um cavalheiro simpático e sossegado. Todos gostam dele.

- Agora me lembrei! exclamou Miss Marple. - Ele era noivo da Sra. Kennedy, não era? Depois ela rompeu o noivado e casou com o Major Halliday.

- Exatamente, minha senhora. Ela foi para a Índia para casar com o Sr. Fane, mas parece que mudou de idéia e em vez disso casou com o outro senhor.

A voz da vendedora demonstrava certa desaprovação.

Miss Matple inclinou-se para a frente e baixou a voz.

- Sempre tive tanta pena do Major Halliday - conheci a mãe dele - e da filhinha! Ouvi dizer que a segunda esposa o abandonou. Fugiu com alguém. Era meio maluquinha, não é?

- Era sim. Mas o irmão dela, o médico, era uma ótima pessoa. Cuidou tão bem do meu reumatismo!

- Com quem foi que ela fugiu? Nunca soube o nome dele...

- Isso eu não sei, minha senhora. Uns dizem que foi com um veranista. Só sei é que o Major Halliday ficou arrasado. Mudou-se daqui e acho que sua saúde não resistiu. Está aqui seu troco, minha senhora.

Miss Marple pegou o troco e o embrulho.

- Muito obrigada, disse ela. - Será que Edith Pagett ainda tem aquela receita de pão de gengibre? Perdi a minha - ou melhor, minha empregada perdeu - e gosto tanto de um bom pão de gengibre!

- Acho que sim, minha senhora. Aliás a irmã dela mora aqui ao lado. É casada com o Sr. Mountford, o confeiteiro. Nos dias de folga Edith costuma ir lá, e estou certa de que a Sra. Mountford lhe daria o recado.

- Boa idéia! Muito obrigada por tudo.

- Foi um prazer, minha senhora.

Miss Marple saiu da loja.

- Uma boa loja, pensou consigo mesma. - E esses casacos são muito bonitos. Não desperdicei meu dinheiro. Olhou para o relógio de esmalte azul-claro que usava preso à gola do ves­tido. - Ainda faltam cinco minutos para encontrar os dois jo­vens no Ginger Cat. Espero que não tenham ficado muito pertur­bados com a ida à clínica.

Giles e Gwenda estavam sentados lado a lado numa mesa de eanto no Ginger Cat. A caderneta preta estava em cima da mesa, entre os dois.

Miss Marple entrou e foi ao encontro deles.

- O que deseja tomar, Miss Marple? Café?

- Sim, muito obrigada. Não quero bolo, só um biscoito com manteiga.

Giles fez o pedido e Gwenda empurrou a caderneta em di­reção a Miss Marple.

- Primeiro a senhora precisa ler isso, disse ela. - Depois conversamos. É o que meu pai... o que ele próprio escreveu quando estava internado na clínica. Giles, conte a Miss Marple o que nos disse o Dr. Penrose.

Giles fez o relato. Em seguida Miss Marple abriu a caderneta e a garçonete trouxe três xícaras de café ralo, um biscoito, manteiga e um prato de bolinhos. Giles e Gwenda permaneceram em silêncio. Observavam Miss Marple enquanto lia.

Finalmente ela fechou a caderneta e colocou-a em cima da mesa. Sua expressão era indecifrável. Seus lábios estavam comprimidos e seus olhos brilhavam intensamente. EIa está com raiva, pensou Gwenda.

- Francamente! exclamou Miss Marple. - Francamente! repetiu.

- A senhora nos aconselhou certa vez - lembra-se? - a não prosseguirmos. Agora compreendo por quê. Mas insistimos - e o resultado foi esse. Só que agora tenho a impressão de que chegamos a um ponto ern que poderíamos parar... se quiséssemos. Acha que devemos parar ou não?

Miss Marple sacudiu lentamente a cabeça. Parecia preocupa­da, perplexa.

- Não sei, respondeu ela. - Não sei mesmo. Talvez fosse melhor parar, muito melhor. Porque depois de tanto tempo não há nada que vocês possam fazer - nada que possa ser cons­trutivo.

- A senhora acha, então, que depois de tanto tempo não vamos conseguir descobrir nada? perguntou Giles.

- Oh, não! respondeu Miss Marple. - Não é nada disso. Dezenove anos não é tanto tempo assim! Existem pessoas que se lembrariam de fatos, que resposderiam a perguntas... muita gente. Os empregados, por exemplo. Naquela época devia haver pelo menos duas empregadas na casa, além da governanta, e provavelmente um jardineiro. É só uma questão de tempo e paciência para se conseguir descobrir essas pessoas e conversar com elas. Aliás, já encontrei uma delas. A cozinheira. Não, não foi isso o que eu quis dizer. É mais o problema de saber o que vocês conseguíriam de bom com isso tudo, e a minha resposta é nada. Mas mesmo assim...

Miss Marple fez uma pausa.

- Existe um mas... Demoro um pouco para encontrar as soluções, mas sinto que há alguma coisa - uma coisa talvez não muito palpável - pela qual valeria a pena se arriscar... seria até mesmo um dever se arriscar... mas não consigo dizer exa­tamente o que é.

- Tenho a impressão... disse Giles, interrompendo-se ime­diatamente.

Miss Marple virou-se para ele com ar grato.

- Os homens, disse ela, - têm uma grande clareza de ex­posição. Estou certa de que o senhor tem uma boa linha de ra­ciocínio.

- Estive pensando em tudo, disse Giles, - e acho que existem apenas duas conclusões possíveis. Uma delas é a que eu já sugeri: Helen Halliday não estava morta quando Gwennie a viu caída no saguão. Voltou a si e fugiu com o amante, fosse ele quem fosse. Isso encaixaria com os fatos que conhecemos. Explicaria a crença arraigada de Kelvin Halliday - de que ma­tara sua mulher. Explicaria a falta da mala e das roupas, e o bilhete encontrado por Kennedy. Mas não explica alguns outros pontos. Não explica, por exemplo, por que Kelvin estava con­vencido de que estrangulara sua mulher no quarto de dormir. E não responde à pergunta que, em minha opinião, é a mais intrigante: onde está Helen Halliday agora? Não faz sentido nunca mais se terem ouvido notícias dela. Supondo-se que as duas cartas que ela mandou sejam verdadeiras, o que aconteceu depois? Por que nunca mais escreveu? Ela se dava muito bem com o irmão e ele obviamente gostava muito dela. Sempre gos­tou. Podia desaprovar sua conduta, mas isso não justifica que nunca mais eles tivessem contato. Aliás eu acho que isso também preocupa Kennedy. Vamos partir do princípio de que ele na ocasião, acreditou na história que nos contou. A fuga da irmã e o esgotamento nervoso de Kelvin. Mas ele não esperava não ter mais nenhuma notícia de sua irmã. Acho que, à medida que o tempo foi passando, sem saber do paradeiro de Helen e com Kelvin persistindo em sua idéia fixa até finalmente se sui­cidar, uma terrível dúvida começou a penetrar na mente de Ken­nedy. E se a história de Kelvin fosse verdadeira ? Se ele real­mente tivesse matado Helen? Não há notícias dela. Ora, se ela tivesse morrido, ele certamente teria sido avisado. Acho que isso explica sua ansiedade ao ler o nosso anúncio. Esperou en­contrar alguma pista de onde ela estava ou do que estava fa­zendo. É absolutamente fora do comum alguém desaparecer tão. .. tão completamente como Helen. Isso é altamente suspeito.

- Concordo, disse Miss Marple. - Mas qual é a outra alternativa, Sr. Reed?

- Estava pensando na alternativa, respondeu Giles lentamente. - É meio absurda, sabe, e bastante assustadora, porque significaria... não sei como expressar... uma espécie de malevolência ...

- Sim, atalhou Gwenda, - acho que malevolência é a palavra correta. Acho até que se trata de algo meio doentio... e estremeceu.

- Estou de acordo, disse Miss Marple. - Sabem, há uma coisa muito estranha nisso tudo... Existem muitas coisas estranhas no mundo. Já vi muito disso...

Miss Marple parecia pensativa.

- Não pode haver nenhuma explicação normal, disse Giles, - Estou imaginando uma hipótese fantástica: Kelvin Halliday não matou sua mulher, mas acreditava piamente que a assassinara. É essa a opinião do Dr. Penrose, que me parece um médico competente. Sua primeira impressão foi a de que estava frente a um homem que tinha matado a mulher e que queria se entregar à polícia. Depois teve de aceitar a palavra de Kennedy e foi forçado a acreditar que Kelvin era vítima de um complexo, fixação ou coisa que o valha - mas ele não gostava dessa explicação. Tinha bastante experiência e Kelvin não se encaixava nesse tipo. No entanto, ao conhecer melhor a personalidade de Halliday, convenceu-se de que aquele não era absolutamente o tipo de homem que estrangularia uma mulher devido a uma provocação. Então aceitou a teoria da fixação, mas com reticências. E isso significa, na realidade, que só existe uma hipótese para explicar esse caso: Halliday foi induzido por outra pessoa a acreditar que tinha matado sua mulher. Em outras palavras, chegamos a X.

- Revendo cuidadosamente os fatos, prosseguiu Giles, - eu diria que essa hipótese é possível. Segundo seu próprio relato, Halliday entrou em casa, foi à sala de jantar, tomou um drinque como de costume - depois foi para a sala ao lado, viu o bilhete em cima da escrivaninha e a partir daí não se lembra de mais nada...

Giles fez uma pausa e Miss Marple fez um sinal de aprovação.

- Vamos supor que tenha sido drogado... algumas gotas, dentro do uísque. O passo seguinte é claro, não é? X tinha estran­gulado Helen no saguão, mas depois levou-a para cima e colo­cou-a artisticamente caída na cama, compondo um cenário de crime passional. Kelvin volta a si no quarto e o pobre homem, que vinha sendo atormentado pelo ciúme, acha que foi ele quem cometeu o crime. O que faz em seguida? Sai para falar com o cunhado - indo a pé até a outra ponta da cidade. E isso pro­porciona a X o tempo necessário para o golpe seguinte: embalar e levar embora uma mala com roupas e também sumir com o cadáver - se bem que o que ele fez do corpo continue sendo um mistério para mim...

- Estou surpresa de ouvir o senhor dizer isso, Sr. Reed. Acho que esse é o menor dos problemas. Mas prossiga, por favor.

- QUEM ERAM OS HOMENS DE SUA VIDA? per­guntou Giles, repetindo a manchete do jornal. - Li isso no trem e comecei a pensar... porque, afinal de contas, é o cerne do problema, não é? Se existe um X, como imaginamos, a única coisa que sabemos ë que era louco por ela - literalmente louco por ela.

- E portanto odiava meu pai, acrescentou Gwenda, - e queria fazê-lo sofrer.

- Aí é que está o problema, disse Giles. - Sabemos que tipo de moça era Helen... Giles hesitou.

- Louca por homens, completou Gwenda.

Miss Marple levantou os olhos subitamente, como se fosse dizer alguma coisa, mas ficou em silêncio.

- E era linda. Mas não temos nenhuma pista sobre os homens de sua vida, além do marido. Podem ter sido muitos. Miss Marple sacudiu a cabeça.

- Acho que não. Ela era bastante jovem. Mas o senhor está enganado, Sr. Reed. Sabemos alguma coisa sobre o que o senhor chamou de "os homens de sua vida". Havia o homem com quem ia se casar ...

- Ah, sim, o tal advogado! Como era mesmo o nome dele?

- Walter Fane, respondeu Miss Marple.

- Sim, mas esse não conta. Estava na Malásia, na Índia, ou num lugar desses qualquer.

- Será que estava? Sabe, ele desistiu de ser plantador de chá. Voltou para Dillmouth, entrou para a firma e hoje em dia é o diretor.

- Será que veio atrás dela? perguntou Gwenda.

- Talvez. Não sabemos.

Giles olhava para a velha senhora com um ar íntrigado.

- Como foi que a senhora descobriu tudo isso?

Miss Marple sorriu com ar culpado.

- Estive conversando por aí. Nas lojas... e nas filas de ônibus. Senhoras idosas sempre gostam de fazer perguntas. Fi­ca-se sabendo uma porção de coisas.

- Walter Fane ... disse Giles, pensativo. - Helen não quis casar com ele. Isso talvez tenha causado um grande ressentimento. Ele se casou?

- Não, respondeu Miss Marple. - Mora com a mãe. Vou tomar chá com eles no fim da semana.

- Devíamos pesquisar também outra pessoa, disse Gwenda subitamente. - Lembre-se de que houve alguém de quem ela foi noiva, ou pelo menos namorou firme, quando acabou o co­légio. Kennedy disse que era uma pessoa indesejável. Por que era indesejável?

- Já são dois homens, disse Giles. - Qualquer dos dois pode ter ficado ressentido, com raiva... Talvez o primeiro rapaz não tivesse boa saúde mental.

- Kennedy poderia nos informar quanto a isso, observou Gwenda. - Só que vai ser meio difícil perguntar. É muito sim­ples eu aparecer e querer saber notícias de uma madrasta de quem mal me lembro, mas como é que vou perguntar sobre sua vida amorosa? Parece um interesse um tanto demasiado , por uma pessoa que mal eu conheci.

- Deve haver outra maneira de descobrir, disse Miss Mar­ple. - Oh, sim, acho que com tempo e paciência poderemos conseguir informações.

- De qualquer modo temos duas possibilidades, disse Giles. - Acho qué podemos inferir uma terceira, observou Miss Marple. - Seria, evidentemente, apenas uma hipótese, mas que a meu ver se justifica devido ao rumo dos acontecimentos.

Gwenda e Giles olharam surpresos para ela.

- É só uma dedução, disse Miss Marple, levemente rubo­rizada. - Helen Kennedy foi á India para se casar com o jovem Fane. Não estava loucamente apaixonada, mas devia gostar dele e estava pronta a viver com ele. No entanto, assim que chega lá, desmancha o noivado e telegrafa ao irmão pedindo dinheiro para voltar. Por quê?

- Deve ter mudado de idéia, disse Giles.

Tanto Miss Marple quanto Gwenda o olharam com utn certo desprezo.

- É evidente que mudou de idéia, retorquiu Gwenda. ­Disso nós sabemos. O que Miss Marple perguntou foi - por quê?

- Acho que as moças simplesmente mudam de idéia, res­pondeu Giles.

- Diante de determinadas circunstâncias, observou Miss Marple.

Suas palavras tinham um tom sìgnificativo que ia muito além do que sugeria a frase em si.

- Alguma coisa que ele fez... Giles estava pensando em voz alta quando Gwenda subitamente o ïnterrompeu.

- É claro! exclamou ela. - Outro homem!

Gwenda e Miss Marple se entreolharam com a segurança das mulheres que pertencem a uma maçonaria da qual os ho­mens são excluídos.

- No navio! exclamou Gwenda. - Na ida!

- A proximidade... disse a outra.

- O luar do tombadilho, acrescentou Gwenda. - Todas essas coisas... Mas deve ter sido sério... não foi apenas um namoro.

- Oh, sim, disse Miss Marple. - Acho que foi sério.

- Então por que não casou com o sujeito? perguntou Giles.

- Talvez ele não gostasse realmente dela, respondeu Gwenda. Em seguida sacudiu a cabeça. - Não, acho que nesse caso ela teria se casado com Walter Fane. Oh, mas é claro, que burrice a minha! Um homem casado!

Olhou para Miss Marple com ar triunfante.

- Exatamente, disse esta. - É assim que eu imagino as coisas. Apaixonaram-se, acho que loucamente. Mas se ele era um homem casado - talvez com filhos - e provavelmente um sujeito honrado - bem, isso teria liquidado o caso.

- Só que ela não podia mais casar com Walter Fane, disse Gwenda. - Aí telegrafou ao irmão e voltou para casa. É, deve ter sido assim. E no navio de volta conheceu meu pai...

Fez uma pausa, imaginando o passado.

- Não estavam loucamente apaixonados, prosseguiu. ­Mas sentiram-se atraídos um pelo outro... e havia uma criança - eu. Ambos estavam infelizes... e um consolava o outro. Meu pai falou de minha mãe e talvez ela tenha falado do outro ho­mem... Sim, é claro... Virou as páginas da caderneta. "Eu sabia qtu havia alguém... Ela me contou no navio... Alguém que ela amava mas com quem não podia se casar." Sim, é isso.

- Helen e papai sentiram que eram parecidos - e era preciso cuidar de mim, e ela achou que podia fazê-lo feliz - e talvez tenha pensado que ela própria acabaria sendo feliz.

Parou de falar, olhou para Miss Marple e afirmou:

- É isso mesmo!

Giles parecia exasperado.

- Escute, Gwenda, você inventa uma porção de coisas e fica achando que elas reatmente aconteceram!

- Aconteceram mesmo! Têm que ter acontecido! E isso quer dizer que X pode ser uma terceira pessoa.

- Quem?

- O homem casado. Não sabemos como era. Podia ser meio louco. Pode ter seguido Helen até aqui...

- Você acabou de dizer que ele estava indo para a Índia...

- Bem, as pessoas podem voltar da Índia, não podem? Walter Fane voltou. Quase um ano depois. Não estou afirmando que esse homem tenha voltado, mas é uma possibilidade. Você insiste em querer saber quem eram os homens da vida dela. Bem, já temos três. Walter Fane, um jovem cujo nome não sa­bemos e um homem casado...

- Que não sabemos se existe, interrompeu Giles.

- Vamos descobrir, disse Gwenda.

- Com tempo e paciência, respondeu ela, - podemos des­cobrir muita coisa. Agora gostaria de dar minha contribuir. Através de uma conversa muito oportuna, descobri que Edith Pagett, que era cozinheira em St. Catherine na época que nos interessa, continua morando em Dillmouth. Sua irmã é casada com um confeiteiro. Acho que seria bastante natural você que­rer conversar com ela, Gwenda. Ela é capaz de saber uma porção de coisas.

- Ótimo! exclamou Gwenda. - Tive ainda uma outra idéia, acrescentou. - Vou fazer um novo testamento. Não se preocupe, Giles, meu dinheiro vai ficar para você, mas que vai cuidar desse testamento é Walter Fane.

- Cuidado, Gwenda! disse GiIes.

- Fazer um testamento é coisa rnuito normal. E já pensei em tudo o que vou dizer a ele. De qualquer modo quero conhe-­cê-lo. Quero ver como é, e se achar que possivelmente... Deixou a frase inacabada.

- O que me espanta, disse Giles, - é que ninguém mas tenha respondido ao nosso anúncio. Essa Edith Pagett, por exemplo...

Miss Marple sacudiu a cabeça.

- No interior as pessoas custam muito a tomar uma decisão em casos como esse, disse ela. - São desconfiadas.

 

LILY KIMBLE

Lily Kimble colocou em cima da mesa da cozinha alguns jornais velhos para recolher a gordura das batatas que estavam fritando. Enquanto cantarolava baixinho uma cantiga popular, inclinou-se para ler as notícias.

Subitamente parou de cantarolar e chamou:

- Jim, Jim! Veja isto aqui!

Jim Kimble, um homem idoso e pouco falante, estava la­vando o rosto na pia da copa. Para responder à mulher, usou seu monossílabo preferido.

- Hein? disse ele.

- É um anúncio no jornal. Qualquer pessoa que tenha algum conhecimento de Helen Spenlove Halliday, nascida Ken­nedy, é favor se comunicar com o escritório Reed & Hardy, Southampton Road. Deve ser aquela Sra. Halliday para quem eu trabalhei em St. Catherine. Ela e o marido tinham alugado a casa da Sra. Findeyson. O nome dela era Helen... sim, e era irmã do Dr. Kennedy, aquele que sempre dizia que eu devia operar as adenóides.

Houve uma pausa momentânea enquanto a Sra. Kimble cuidava das batatas. Jim Kimble esfregava o rosto com a toalha.

- Esse jornal é velho, observou a Sra. Kimble, examinando a data. - Já tem mais de uma semana. O que será isso? Será que tem algum dinheiro na história, Jim?

- Ahn ... limitou-se o marido, resmungando.

- Pode ser um testamento ou coisa assim, prosseguiu a mulher. - Já faz muito tempo isso tudo.

- Ahn... - Dezoito anos, ou mais. Não me espantaria se... Por que será que puseram esse anúncio? Você acha que pode ser à polícia, Jim?

- Por quê? perguntou o Sr. Kimble.

- Bem, você sabe o que eu sempre achei, respondeu a Sra, Kimble, em tom de mistério. - Cantei para você quando aconteceu. Fìngiram que ela havia fugido com outro cara. É sempre isso o que os maridos dizem quando liquidam as mulheres. Eu acho que foi crime. Foi o que eu disse a você e a Edie, mas Edie não quis acreditar de jeito nenhum. Edie não tinha a menor imaginação. Aquelas roupas que dizem que ela levou na mala - bem, não eram as roupas certas, compreende? Faltava uma mala, uma sacola, e a quantidade de roupas dava para encher as duas coisas, mas não eram as roupas certas. E foi o que eu disse a Edie. Falei: - Acho que o patrão a matou e escondeu o corpo no porão. Só que não deve ter sido no porão, porque Léonie, aquela governanta suíça, viu alguma coisa pela janela. Ela fora ao cinema comigo. Foi, mesmo sabendo que não podia deixar a criança sozinha - mas aí eu lhe disse que a menina nunca acordava de noite - era tão boazinha, ia sempre dormia direitinho... E disse também que a patroa nunca ia até o quarto da criança de noite, e que ninguém ia ficar sabendo se ela saísse comigo. Aí ela saiu. E quando voltamos havia uma confusão dos diabos. O médico estava lá, o patrão estava doente, dormindo no quarto de vestir, e o médico o examinava, e foi aí que me perguntou sobre as roupas, e na hora eu achei que estava tudo certo. Achei que ela fugira mesmo com o tal sujeito de quem gostava - era um homem casado - e Edie falou que ia torcer e rezar para a gente não acabar se metendo num divórcio. Como era mesmo o nome dele? Não me lembro mais. Começava com M ... ou com R? Céus, minha memória anda ruim!

O Sr. Kimble saiu da copa e, ignorando qualquer assunto que não fosse de interesse imediato, perguntou se o jantar estava pronto.

- Só vou escorrer as batatas... Espere, vou pegar outro jornal. É melhor guardar esse aqui. Não deve ser a polícia.. depois de tanto tempo... Talvez seja algum advogado - e seja questão de dinheiro. Não explica nada... mas talvez valha a pena... Gostaria de saber quem deveria consultar sobre isso tudo. Diz que é para escrever a um endereço em Londres - mas não sei se quero fazer uma coisa dessas... escrever a pessoas que não conheço, em Londres... O que é que você acha, Jim?

- Ahn... resmungou o Sr. Kimble comendo avidamente o peixe com batatas.

A discussão foi adiada.

 

WALTER FANE

Gwenda olhou para o Sr. Walter Fane, sentado do outro lado da ampla mesa de mogno.

Viu um homem de cerca de cinqüenta anos, com ar can­sado, um rosto amável e indefinido. Um tipo de homem, pensou Gwenda, de que dificilmente se lembraria quem o tivesse co­nhecìdo por acaso... Um homem a quem, em termos moder­nos, faltava personalidade. Sua voz era lenta, cautelosa e agra­dável. Deve ser um bom advogado, imaginou Gwenda.

Olhou em torno da sala - a sala do diretor da firma. Com­binava com Walter Fane. Era francamente antiquada. A mo­bília estava surrada, mas era feita de material vitoriano de boa qualidade. Havia arquivos encostados nas paredes, com nomes importantes nas gavetas. Sir John Vavasour-Trench. Lady Jessup. Arthur Ffoulkes, Esq. (Falecido.)

As grandes janelas de guilhotina, um tanto sujas, abriam para o pátio que pertencia à casa vizinha, uma construção do século dezessete. Não havia ali nada que fosse bonito ou mo­derno, mas por outro lado não havia nada horroroso. Era uma sala desarrumada, com gavetas de arquivos empilhadas, uma mesa cheia de papéis e fileiras de livros de direito colocados de qualquer jeito nas prateleiras. Mas era o escritório de uma pessoa que sabia exatamente onde encontrar o que procurava.

A caneta de Walter Fane parou de arranhar, e ele deu um sorriso lento, cordial.

- Acho que está tudo muito claro, Sra. Reed, disse. - Um testamento muito simples. Quando gostaria de voltar para as­siná-lo?

Gwenda respondeu que qualquer dia estava bem. Não tinha pressa.

- Compramos uma casa aqui, disse ela. - Hillside.

Walter Fane olhou para as anotações. - Sim, a senhora me deu o endereço.

Não houve nenhuma alteração em sua voz.

- É uma casa muito simpática, disse Gwenda. - Gostamos muito dela.

- É mesmo? Walter Fane sorriu. - Fica na praia?

- Não, respondeu Gwenda. - Acho que mudaram o nome. Antigamente chamava-se St. Catherine.

O Sr. Fane tirou o pince-nez. Limpou-o com um lenço de seda, olhando para o tampo da mesa.

- Oh, sim! disse ele. - Em Leahampton Road?

Levantou os olhos e Gwenda reparou que as pessoas que costumam usar óculos ficam bastante diferentes sem eles. Seus olhos, de um cinza muito claro, estranhamente fracos e fora de foco.

Fazem o rosto dele parecer ausente, pensou Gwenda.

Walter Fane tornou a colocar o pince-nez. - Se não me engano, a senhora disse que fez um testamento quando se casou? perguntou ele em seu tom preciso de advogado.

- Fiz, mas deixei coisas para várias pessoas da família, na Nova Zelândia, que já morreram. Por isso achei que era muito mais simples fazer um testamento novo - principalmente porque pretendemos ficar morando neste país.

Walter Fane assentiu com a cabeça.

- Sim, é uma atitude sensata. Bem, acho que está tudo claro, Sra. Reed. A senhora pode vir aqui depois de amanhã às onze horas?

- Pois não.

Gwenda levantou-se e Walter Fane também.

- Eu... eu procurei o senhor... disse Gwenda num tom ligeiramente apressado que ensaiara antecipadamente, - porque acho... ou melhor, sei que o senhor conheceu... a minha mãe.

- É, mesmo? Walter Fane acrescentou ao tom de suas palavras um toque de calor social. - Como era o nome dela? - Halliday. Megan Halliday. Acho... me disseram.. . que o senhor foi noivo dela.

O relógio da parede fazia tique-taque, tique-taque. Subitamente Gwenda sentiu seu coração bater um pouco mais depressa. Como o rosto de Walter Fane era tranqüilo! Podia imaginar uma casa assim - uma casa com todas as janelas fechadas. Uma casa com um cadáver. (Que idéias idiotas, Gwenda! )

Walter Fane, sem alterar a voz, respondeu:

- Não, não conheci sua mãe, Sra. Reed. Mas fui noivo, durante um período bastante curto, de Helen Halliday, que mais tarde se casou com o Major Halliday.

- Oh, compreendo. Que bobagem! Confundi tudo. Foi Helen - minha madrasta claro que isso tudo aconteceu numa época de que não me lembro. Eu era apenas uma criança quan­do o segundo casamento de meu pai terminou. Mas tinha ouvido alguém dizer que o senhor fora noivo da Sra. Halliday na Índia - e naturalmente pensei que fosse minha mãe - por causa da Índia... Meu pai conheceu-a na Índia.

- Helen Kennedy foi para a Índia para se casar comigo, explicou Walter Fane. - Depois mudou de idéia e no navio, de volta para casa, conheceu seu pai.

Seu relato era tranqüilo e sem emoção. Gwenda continuava se lembrando da casa de janelas fechadas.

- Sinto muito relembrar tristezas antigas, disse ela.

Walter Fane deu seu sorriso tranqüilo. As janelas estavam abertas.

- Faz dezenove ou vinte anos, isso, Sra. Reed, disse ele. - Depois de algum tempo as loucuras da juventude não repre­sentam muita coisa. Então a senhora é a filhinha de Halliday! Deve saber que seu pai e Helen moraram durante algum tempo aqui em Dillmouth?

- Oh, sei, sim! respondeu Gwenda. - E foi por isso mes­mo que viemos para cá. Não me lembrava muito bem, é claro, mas quando tivemos de decidir em que lugar da Inglaterra nós iamos morar, vim primeiro a Dillmouth, para ver como era. Achei o lugar tão atraente que resolvi que iríamos morar por aqui mesmo. E veja só que sorte: compramos a mesma casa em que minha família morou há tantos anos atrás!

- Lembro-me da casa, disse Walter Fane. Tornou a sorrir tranqüilamente. - A senhora pode não se lembrar de mim, Sra. Reed, mas esteja certa de que brincamos juntos várias vezes. Gwenda riu.

- É mesmo? Então o senhor é um velho amigo, não é? Não posso fingir que me lembro do senhor - mas naquela ocasião acho que eu só tinha uns dois ou três anos... O senhor tinha vindo da Índia para passar as férias?

- Não, tinha desistido da india. Fui para lá com a intenção de ser plantador de chá, mas não me acosturnei àquela vida. Fui educado para seguir a carreira de meu pai - ser um advo­gado do interior, sem o menor espírito de aventura. Como me formara em Direito, voltei e entrei para a firma. Fez uma pausa e acrescentou: - Estou aqui desde aquela época.

Novamente uma pausa e ele então repetiu em voz m baixa : - Sim - desde aquela época...

Afinal, pensou Gwenda, dezoito anos não é tanto tempo assim ...

Em seguida, mudando de atitude, ele estendeu-lhe a mão e disse - Já que somos velhos amigos, a senhora precisa ir com seu marido tomar chá com minha mãe. Vou pedir a ela que lhe escreva um bilhete convidando-os. Então, estamos combinar - na quinta-feira, às onze horas, a senhora vem assinar o testamento. ­

Gwenda saiu do escritório e desceu a escada. No alto da parede havia uma teia de aranha. No centro da teia estava uma aranha pálida, indefinida. Não parecia uma aranha de verdade pensou Gwenda. Não era uma daquelas aranhas gordas que pegam moscas e comem-nas. Parecia mais o fantasma de uma aranha. Um pouco como Walter Fane, para dizer a verdade.

 

Giles foi encontrar sua mulher em frente à praia.

- Como foi? perguntou ele.

- Ele estava aqui em Dillmouth na época, respondeu Gwenda. - Tinha voltado da Índia. Mas não é possível que tenha matado alguém. É muito tranqüilo e afável. Muito simpático, na verdade, mas um tipo de pessoa em quem a gente nem prestra atenção. Sabe, do tipo dessas pessoas que vão às festas e a gente nem repara quando saem. Acho que ele é corretíssimo, todo dedicado à mãe e cheio de virtudes. Mas, do ponto de vista feminino, é terrivelmente sem-graça. Compreendo porque não conseguiu nada com Helen. Seria um marido bom e protetor... mas na realidade não dá para casar com ele.

- Coitado! exclamou Giles. - É provável que estivesse loucamente apaixonado por ela.

- Oh, não sei... Acho que não. De qualquer modo, tenho certeza de que não é o assassino. Não é assim que imagino um assassino.

- Meu amor, acho que você não é muito entendida em as­sassinos, não é?

- O que é que você quer dizer com isso?

- Bem, eu estava pensando na tranqüila Lizzie Borden - o júri achou que não tinha sido ela. E Wallace, um homem tran­qüilo - o júri insistiu em que ele assassinara a mulher, se bem a sentença, mais tarde, tenha sido anulada... E Armstrong, todos diziam ser um sujeito pacífico e sossegado... Acho os assassinos não têm nenhum tipo especial.

- Não consìgo acreditar que Walter Fane ... Gwenda interrompeu a frase.

- Que foi?

- Nada.

Mas ela estava se lembrando de Walter Fane limpando os óculos e de seu estranho olhar vazio quando ela mencionou Catherine.

- Talvez, disse ela sem convicção, - ele estivesse louca­mente apaixonado ...

 

EDITH PAGETT

A sala de estar da Sra. Mountford era um lugar agradável. Havia uma mesa redonda, coberta com uma toalha, algumas poltronas antiquadas e um sofá de aparência incômada mas sur­preendentemente confortável. Sobre a lareira viam-se cachorros de porcelana e outros enfeites, além de uma fotografia colorida das Princesas Elizabeth e Margaret Rose. Em outra parede via-se o Rei vestido com o uniforme de gala da Marinha e um retrato do Sr. Mountford num grupo de padeiros e confeiteiros. Havia wn quadro feito de conchas e uma aquarela que representava o mar rouito verde em Capri. Havia muitas outras coisas, nenhu­ma das quais pretendia ser bela ou ambiciosa, mas o conjunto fazia da sala um local alegre e acclhedor, onde as pessoas se reuniam para se divertir, sempre que podiam.

A Sra. Mountford, nascida Pagett, era baixa, gorducha e morena, com alguns fios brancos no cabelo escuro. Sua irmã, Edith Pagett, era também morena, mas alta e magra. Apesar dos quase cinqüenta anos, não tinha quase nenhum cabelo branco.

- Ora, vejam só! exclamou Edith Pagett. - A pequena Srta. Gwennie! Desculpe falar assim, minha senhora, mas o tempo passa depressa. A senhora costumava ir à cozinha toda arrumada e bonitinha. A senhora dízia "vinhas", "vinhas", quando queria pedir uvas. E eu dava uvas para a senhora, uvas sul­tanas.

Gwenda olhava fixamente para os olhos escuros e as bo­chochas vermelhas da mulher, tentando se lembrar... se lem­brar... mas não se lembrava de nada. A memória é uma coisa muito traiçoeira.

- Eu gostaria de poder me lembrar... disse ela.

- Seria impossível. A senhora era uma criancinha. Hoje em dia ninguém mais quer trabalhar em casas onde há crianças.Não entendo uma coisa dessas. Acho que as crianças dão vida a uma casa, se bem que comida de criança seja sempre meio complicada. Mas sabe, isso é culpa da governanta, não é culpa da criança. As governantas são sempre complicadas - querem bandejas preparadas, querem ser servidas, mais isso, mais aqui­lo.. . A senhora se lembra de Leonie, Srta. Gwennie? Desculpe, quero dizer Sra. Reed.

- Léonie? Era minha governanta?

- Era suíça. Não falava bem inglês e era muito sensível. Chorava à toa, bastava Lily dizer qualquer coisinha e ela se aborrecia. Lily era a copeira. Lily Abbott. Era mocinha, muito esperta e meio avoada. Brincava muito com a senhora, Srta. Gwennie. Brincava de esconder na escada.

Gwenda estremeceu. A escada...

- Lembro-me de Lily, disse ela subitamente. - Ela botou um laço no gato.

- Que engraçado, a senhora se lembrar disso. Foi no seu aniversário, e Lìly cismou que tinha de pôr um laço em Thomas. Pegou uma fita da caixa de chocolates e Thomas ficou feito louco. Saiu correndo para o jardim e se esfregou nos arbustos até conseguir tirar o laço. Os gatos não gostam de brincadeiras assim.

- Era um gato preto e branco.

- Isso mesmo. Coitado do velho Tommy! Caçava ratos que era uma beleza. Era um grande caçador. Edith Pagett fez uma pausa e pigarreou. - Desculpe estar falando tanto, minha senhora. Mas isso me fez lembrar de antigamente. A senhora queria me perguntar alguma coisa?

- Gosto de ouvir contar coisas de antigamente, respondeu Gwenda. - É justamente sobre isso que quero ouvir falar. Com­preende, eu fui criada por parentes, na Nova Zetândia e é claro que eles não sabiam nada sobre meu pai... e minha madrasta. Ela... ela era boazinha, não era?

- Ela gostava muito da senhora. Oh, gostava muito! Cos­tumava levar a senhora à praia e brincar no jardim. Ela era muito moça, compreende? Pouco mais que uma criança. Eu achava muitas vezes que ela se divertia tanto quanto a senhora com as brincadeiras que inventava. Compreende, de certo modo ela era filha única. O irmão, Dr. Kennedy, era muitos anos mais velho e estava sempre ocupado, estudando. Quando ela não estava no colégio, tinha de brincar sozinha...

Miss Marple interrompeu-a delicadamente. - A senhora sempre morou em Dillmouth, não é?

- Oh, sim, minha senhora! Meu pai era dono daquela fa­zenda atrás da colina. O nome da fazenda era Rylands. Ele não tinha filhos homens e minha mãe não conseguìu tocar a fazenda depois que ele morreu. Aí ela vendeu a fazenda e comprou uma lojinha na tua principal. Sim, sempre morei aqui.

- E provavelmente conhece todo mundo em Dillmouth, não é?

- Bem, naquela época isto aqui era uma cidade pequena, apesar de haver sempre muitos veranistas. Mas eram pessoas boas e tranqüilas, que vinham para cá todos os anos. Não eram esses aventureiros de hoje em dia. Era gente de boa família, que ocupava sempre os mesmos quartos, no verão.

- A senhora deve ter conhecido Helen Kennedy antes de se tornar a Sra. Halliday, não é? perguntou Giles.

- Bem, eu a conhecia de nome, e pode ser até que a tenha visto uma vez ou outra. Mas só a conheci de verdade quando fui trabalhar para ela.

- E gostava dela? perguntou Miss Marple.

Edith Pagett virou-se para a velha senhora.

- Sim, minha senhora. Gostava. Havia um quê de desafio em seu tom. - Não interessa o que os outros dizem. Ela foi sempre muito boa comigo.          Nunca imaginei que ela fosse fazer o que fez. Levei um susto! Se bem que... corriam boatos...

Interrompeu a frase subitamente e olhou para Gwenda com ar de desculpa.

Gwenda apressou-se em dizer alguma coisa.

- Quero saber, disse ela. - Por favor, não pense que vou ficar magoada com o que disser. Ela não era minha mãe...

- Bem, isso é verdade, senhora.

- E compreende, estamos querendo muito... encontrá-la. Ela foi embora daqui... e parece que desapareceu. Não sabemos onde mora agora, nem mesmo se ainda está viva. E existem motivos...

Gwenda hesitou e Giles interveio. - Motivos legais. Não sabemos se morreu, ou... o que aconteceu.

- Ah, compreendo, senhor. O marido de minha prima de­sapareceu e foi uma trapalhada, porque ninguém sabia se tinha morrido ou o quê tinha acontecido. Ela ficou em situação difi­cilima. Naturalmente, senhor, se eu souber de alguma coisa que possa ajudar de algum modo... afinal os senhores não são estranhos. Srta. Gwenda e as "vinhas". A senhora dizia isso de um jeito tão engraçado!

- Muito obrigado, disse Giles. - Bem, se não se importa, vou lhe perguntar algumas coisas. A Sra. Halliday abandonou o lar subitamente, não é?

- Sim, senhor. Foi um grande choque para todos nós... e principalmente para o Major, coitado. Ficou arrasado.

- Vou lhe fazer uma pergunta direta. Tem alguma idéia quem era o homem com quem ela fugiu?

Edith Pagett sacudiu a cabeça.

- Foi o que o Dr. Kennedy me perguntou... e eu não soube responder. Nem Lily. E é claro que a tal Léonie, sendo estrangeira, não sabia de nada.

- A senhora não sabia, disse Giles. - Mas não tem ne­nhum palpite? Isso já faz tanto tempo que não faz mal se o palpite estiver errado. A senhora certamente desconfia de alguém...

- Bem, nós desconfïamos... mas era apenas um palpite. Eu, por mim, nunca vi nada. Mas Lily, que era muito esperta, Lily tinha lá suas idéias... há muito tempo. Ela costumava me dizer: - Esse cara está louco por ela. Basta ver o seu jeito de olhar para ela enquanto ela serve o chá. E a mulher dele fica uma fera!

- Compreendo. E quem era o... o cara?

- Bem, senhor, não me lembro do nome dele. Faz muito tempo isso. Comandante... Esdale... não, não era isso... Emery ... não. Tenho a impressão de que começava com E. Ou talvez fosse H. Era um nome meio fora do comum. Mas faz dezesseis anos que nem penso nisso. Ele e a mulher estavam hospedados no Royal Clarence.

- Eram veranistas?

- Eram, mas acho que ele... ou talvez o casal... já co­nhecia a Sra. Halliday. Iam muitas vezes visitá-los. De qual­quer modo, segundo Lily, ele gostava da Sra. Halliday.

- E sua mulher ficava furiosa.

- Ficava, senhor... Mas, sabe, nunca acreditei que houvesse alguma coisa realmente. E até hoje não sei o que achar.

- Eles ainda estavam aqui, no Royal Clarence, quando quando... Helen, minha madrasta, fugiu de casa? perguntou Gwenda.

- Se não me engano foram embora na mesma época, na véspera ou no dia seguinte... enfim, foi muito junto, e isso fez o povo falar. Mas eu nunca soube de nada com certeza. Mesmo que tenha sido ele, tudo foi tratado em segredo. Que coisa mais estranha a Sra. Halliday ir embora assim tão de repente! Mas dizem que ela sempre foi meio maluquinha - se bem que eu nunca tenha reparado em nada desse gênero. Não teria acei­tado ir para Norfolk com eles se desconfiasse disso.

Durante um momento Giles, Gwenda e Miss Marple olha­ram fixamente para a mulher.

- Norfolk? perguntou Giles, finalmente. - Eles iam para Norfolk?

- Sim, senhor. Tinham comprado uma casa lá. A Sra. Hal­liday me contou isso umas três semanas antes de tudo aconte­cer. Perguntou se eu estava disposta a ir com eles, quando se mudassem, e eu respondi que sim. Afinal de contas, eu nunca tinha saído de Dillmouth e achei que talvez fosse bom variar um pouco, já que gostava da família.

- Nunca ouvi dizer que tinham comprado casa em Nor­folk, disse Giles.

- Bem, é engraçado o senhor dizer isso, porque a Sra. Halliday parecia mesmo querer que fosse segredo. Pediu-me que não contasse para ninguém e eu, evidentemente, não con­tei. Mas há muito tempo ela queria ir embora de Dillmouth. Insistia muito com o Major, mas ele gostava do lugar. Acho que até chegou a escrever à Sra. Findeyson, que era a dona de St. Catherine, perguntando se estaria disposta a vender a casa. Mas a Sra. Halliday não queria nem ouvir falar nisso. Dava a impressão de estar com raiva de Dillmouth. Era quase como se estivesse com medo de ficar aqui.

As palavras foram ditas com naturalidade, mas ao ouvi-las os três pessoas que escutavam ficaram alerta.

- Acha que queria ir para Norfolk para ficar perto desse... desse homem cujo nome a senhora não lembra?

Edith Pagett fez um ar desolado.

- Oh, senhor, prefiro não pensar numa coisa dessas! Acho que não, de jeito nenhum. Além do mais acho que... agora me lembrei... aquele casal era do norte. Acho que eram de Northumberland. De qualquer modo, gostavam muito de passar férias no sul porque o clima era bastante mais ameno.

- Ela estava com medo de alguma coisa, não estava? per­guntou Gwenda. - Ou de alguém? Estou me referindo à minha madrasta.

- Estou me lembrando... agora que a senhora falou nisso...

- De quê?

- Um dia Lily entrou na cozinha, depois de varrer a escada, e disse assim: "Temos briga!" Lily falava as coisas sem pensar, por isso desculpem eu estar contando o que ela disse.

Ai eu perguntei o que ela queria dizer com isso e ela res­pondeu que a patroa tinha entrado na sala com o patrão, vinda do jardim, e como a porta estava aberta Lily ouvira a conversa.

- Eu tenho medo de você, disse a Sra. Halliday.

E Lily disse que ela estava com voz de medo. - Há muito ternpo tenho medo de você. Você é Iouco. Você não é normal. Vá embora e me deìxe em paz. Estou com medo. Acho que no fundo sempre tive medo de você..

Era uma coisa desse tipo.. . evidentemente não me lembro das palavras exatas, mas Lily ficou muito impressionada e foi por isso que, depois que tudo aconteceu, ela...

Edith Pagett interrompeu subitamente a frase e sua fisio­nomia expressava medo.

- Eu não queria... acreditem, disse ela. - Desculpe, senhora, mas estou falando demais.

Gíles assumiu um tom afável.

- Conte tudo, por favor, Edith. Compreenda, nós precisamos saber. Faz muito tempo isso tudo, mas nós temos que saber.

- Não sei o que dizer, respondeu Edith.

- Em que Lily não acreditou... ou o que ela achou? perguntou Miss Marple.

- Lily vivia com a cabeça cheia de idéias. Eu nunca prestava atenção a ela. Ela ia sempre ao cinema e por isso inventava uma porção de melodramas. Naquela noite... quando tudo aconteceu, ela fora ao cinema e levara Léonie junto. E fez muito rnal... eu disse isso a ela. - Ora, não tem importância, res­pondeu ela. - A criança não está sozinha na casa. Você está aí na cozinha, mais tarde o patrão e a patroa vão chegar e, de qualquer modo, a menina nunca acorda de noite. Mas não devia ter saído e eu disse isso a ela, mas foi só depois, porque eu não soube antes que Léonie também ia. Se soubesse, tinha ído lá em cima para ver se ela... quer dizer, a senhora, Srta. Gwenda... estava bem. Da cozinha não se ouve nada, quando se fecha a porta.

Edith Pagett fez uma pausa e prosseguiu: - Eu estava passando umas roupas. Anoiteceu muito depressa e, a uma certa altura, o Dr. Kennedy entrou na cozinha e perguntou por Lily. Eu disse que era folga dela, mas que daí a pouco ia voltar. Nesse mesmo instante ela chegou e ele levou-a lá para cima, para o quarto da patroa. Queria saber se levara alguma roupa com ela. Lily olhou tudo, falou com ele e depois desceu. Estava muito aflita.

- Ela fugiu, disse Lily. - Foi embora com alguém. O pa­trão está ruim. Parece que teve um troço qualquer. Foi um cho­que horrível para ele. Bobalhão... Devia ter visto o que estava acontecendo.

Eu disse para Lily que não devia falar assim, que ela não podia saber se a Sra. Halliday tinha fugido com alguém... Talvez tivesse recebido um telegrama de um parente enfermo.

Lily respondeu:

- Parente enfermo uma ova! (Ela sempre falava as coisas de qualquer jeito.) - Deixou um bilhete. Eu perguntei com quem ela havia fugido e Lily disse para eu adivinhar, mas que não era o Sr. Fane, que olhava para ela com aquele ar de car­neiro e a seguia como um cachorrinho. Aí eu perguntei se ela achava que era o tal comandante, e ela respondeu que achava que sim, mas que também podia ser o homem misterioso do carro grande (isso era uma brincadeira entre nós duas). Eu disse, então, que não acreditava, que a Sra. Halliday não ia fazer uma coisa dessas. E Lily me disse assim: - Pois bem, mas foi o que ela fez.

- Isso tudo foi na hora, compreende? prosseguiu Edith Pagett. - Mais tarde, no nosso quarto, Lily me acordou e disse: - Escute, está tudo errado! Eu lhe perguntei o que estava er­rado e ela respondeu: - As roupas. - Que roupas? perguntei eu. Aí ela disse assim: - Escute, Edie, eu olhei todo o armário dela, porque o médico me pediu. Está faltando uma mala e uma porção de roupas... mas são as roupas erradas. - O que é que você quer dizer com isso? perguntei eu. - Ela levou um vestido longo, aquele prateado, mas não levou o cinto nem a combinação que usa com ele. E, em vez de levar a sandália pra­teada, levou um sapato social de brocado dourado. E levou o conjunto de tweed verde, que ela só usa no fim do outono mas, em vez de levar o suéter, levou as blusas de renda que ela só usa com os conjuntos mais finos. E a roupa de baixo também está toda trocada. Lembre-se do que eu estou dizendo, Edie. Ela não foi embora coisa nenhuma. O patrão a matou.

- Bem, aí não consegui mais dormir, continuou Edith. Sentei na cama e perguntei a ela; - Do que é que você está falando?

- É igualzinho ao que eu li no Notícias do Mundo da se­mana passada, respondeu ela. - O patrão descobriu que estava sendo enganado, matou a mulher e enterrou o corpo no porão. Não dava para você ouvir nada porque ficava embaixo do sa­guão de entrada. Foi isso o que ele fez! Depois arrumou a mala para fingir que ela foi embora. Mas é lá que ela está - debaixo do piso do porão. Ela não saiu viva desta casa!

Eu disse a Lily que ela não podia falar uma coisa dessas, mas na manhã seguinte fui ao porão e não havia nada de anor­mal ali, ninguém mexera em nada nem cavaram o chão. Disse-lhe então que ela estava maluca, mas Lily continuou insistindo que o patrão tinha matado a patroa, e me disse ainda : - Não esqueça que ela estava morta de medo dele. Eu a ouvi dizer isso. Aí eu disse para Lily: - Você não tem razão. No dia em que você me contou isso eu espiei logo depois pela janela e o patrão vinha andando pela colina com os tacos de golfe, de modo que não pode ter sido ele quem estava na sala com a patroa. Era outra pessoa.

A frase ficou suspensa no ar, naquela sala de estar comum, mas confortável.

- Era outra pessoa, repetiu Giles em voz baixa.

 

UM ENDEREÇO

O Royal Clarence era o hotel mais velho da cidade. Tinha uma fachada madura e arredondada, com a atmosfera dos pré­dios de antigamente. Era freqüentado por famílias que iam passar um mês à beira-mar.

A Srta. Narracott, sentada atrás do balcão de recepção, era uma senhora de quarenta e sete anos, busto muito grande e penteado antiquado.

Examinou Giles e ficou à vontade, classificando-o como "uma pessoa de bem''. Giles que, por sua vez, conseguia ser muito persuasivo quando queria alguma coisa, contou uma his­tória bem preparada com antecedência. Tinha feito uma aposta com sua mulher, garantindo que sua madrinha se hospedara no Royal Clarence há dezoito anos atrás. Sua mulher retorquira que jamais chegariam a uma conclusão sobre o assunto porque evidentemente, depois de tantos anos, todos os registros teriam sido jogados fora. Mas ele achava que um estabelecimento da categoria do Royal Clarence não cometeria o absurdo de jogar fora seus registros antigos. Deviam possuir registros de cem anos atrás.

- Bem, não é exatamente assim, Sr. Reed, mas guardamos todos os nossos Livros de Visitantes, que contém nomes bas­tante ilustres. Imagine que o Rei se hospedou aqui quando era Príncipe de Gales e a Princesa Adlernar de Holstein-Rotz passava todos os invernos aqui com a dama de companhia. Também hospedamos diversos escritores famosos, e o Sr. Dovery, o pintor de retratos.

Giles mostrou-se devidamente interessado e dentro em pouco o volume que se referia ao ano em questão lhe foi trazido e mostrado.

Depois de ler vários nomes importantes, virou as páginas até chegar ao mês de agosto.

Sim, era certamente isso o que ele procurava.

Major e Sra. Setoun Erskine. Antell Manor, Daith, Northum­berland. 27 de julho a 17 de agosto.

- Posso copiar isto? perguntou.

- É claro, Sr. Reed! Vou lhe dar papel e tinta. Oh, o senhor trouxe sua caneta! Com licença, preciso ir ao escritório.

Deixou-o em frente ao livro aberto e Giles copiou o registro desejado.

Ao voltar para Hillside encontrou Gwenda no jardim, cui­dando de um canteiro.

Ela lançou-lhe um rápido olhar de interrogação.

- Conseguiu alguma coisa?

- Consegui. Acho que deve ser isto aqui.

- Antell Manor, Daith, Northumberland, leu Gwenda em noz alta. - É, Edith Pagett falou em Northumberland. Será que ainda moram lá?

- Vamos ter de verificar.

- Sim - sim, é melhor irmos lá. Quando?

- O mais cedo possível. Que tal amanhã? Podemos ir de carro para você conhecer um pouco mais a Inglaterra.

- E se eles tiverem morrido... ou se tiverem se mudado e houver outras pessoas morando lá?

Giles deu de ombros.

- Nesse caso voltamos para cá e seguimos as outras pistas. Por falar nisso, escrevi a Kennedy pedindo-lhe que me mandasse as cartas que Helen escreveu depois que foi embora - se ele ainda as tiver - e uma amostra da letra dela.

- Gostaria de entrar em contato com a outra empregada, Lily, disse Gwenda. - Aquela que colocou um laço no pes­coço de Tommy...

- Engraçado você se lembrar disso de repente, Gwenda.

- É mesmo... Lembro-me de Tommy. Era preto, com manchas brancas, e tinha três filhotinhos lindos.

- O quê?! Thomas?

- Bem, o nome era Thomas, mas depois descobrimos que era uma gata e ficou se chamando Thomasina. Mas, voltando a Lily... onde será que ela está? Pelo jeito Edith Pagett nunca mais ouviu falar nela. Não era daqui e, depois que saiu de St. Catherine, empregou-se em Torquay. Mandou uma ou duas cartas e depois mais nada. Edith ouviu contar que ela se casou, mas não sabe com quem. Se conseguíssemos falar com ela, po­deríamos ficar sabendo muito mais.

- E poderíamos saber muita coisa através de Leonie, a moça suiça.

- Talvez... Mas ela era estrangeira e não deve ter enten­dido muito bem o que aconteceu. Sabe, não me lembro absolu­tamente dela. Acho que Lily é que poderia ser útil. Lily é que era esperta... Já sei, Giles! Vamos botar outro anúncio - um anúncio em nome dela. Ela se chamava Lily Abbott.

- É, respondeu Giles. - Podemos tentar isso. E amanhã vamos para o norte ver o que conseguimos descobrir sobre o casal Erskine.

 

UM FILHO DEDICADO

- Desça, Henry! ordenou a Sra. Fane ao cocker-spaniel asmático cujos olhos brilhavam de gulodice. - Aceita mais um pãozinho, Miss Marple?

- Muito obrigada. Estão deliciosos. Sua cozinheira é excelente!

- Louisa não é das piores. Muito distraída, como todas elas. E faz sempre os mesmos pudins. Diga-me uma coisa. Como vai a ciática de Dorothy Yarde? Costumava ter dores terríveis. Acho que era tão somente de fundo nervoso.

Miss Marple apressou-se em dar explicações detalhadas so­bre a doença da amiga. Que sorte, pensou ela consigo mesma, ter encontrado, entre tantas amigas espalhadas pela Inglaterra, uma pessoa que conhecia a Sra. Fane e que lhe escrevera di­zendo que Miss Marple estava em Dillmouth e pedindo que a convidasse para ir a sua casa.

Eleanor Fane era uma mulher alta e autoritária, com olhos cinzentos e frios, cabelo branco e crespo e uma tez rosada de bebê que mascarava o fato de não possuir absolutamente nada da doçura de um bebê.

Discutiram as doenças reais ou imaginárias de Dorothy e conversaram sobre a saúde de Miss Marple, o clima de Dillmouth e o mau comportamento da maioria da nova geração.

- Não foram bem educados, afirmou a Sra. Fane. - Em minha casa as coïsas eram diferentes.

- A senhora tem apenas um filho? perguntou Miss Marple.

- Tenho três. Gerald, o mais velho, trabalha no Far East Bank em Singapura. Robert é oficial do exército. A Sra. Fane deu uma fungada de reprovação antes de prosseguir. - Casou-se com uma moça católica! exclamou enfaticamente. - A senhora sabe o que isso significa! Todas as crianças educadas na religião católica! Não sei o que o pai de Robert teria dito. Hoje em dia mal tenho noticias de Robert. Ele não gostou das coisas que eu lhe disse para seu próprio bem. Acho que as pessoas devem ser sinceras e dizer exatamente o que pensam. Em minha opinião o casamento dele foi uma grande infelicidade. Ele pode fingir que é feliz, coitadinho, mas eu não acho que seja tudo muito satisfatório.

- Seu filho mais moço não se casou, não é?

A Sra. Fane deu um largo sorriso.

- Não. Walter mora comigo. Ele tem uma saúde delicada - sempre teve, desde criança - e sempre tive muitos cuidados para com ele. A senhora não pode imaginar como é delicado e atencioso! Considero-me uma mulher de sorte por ter um fillho assim. Daqui a pouco ele vai chegar.

- E ele nunca pensou em se casar? perguntou Miss Marple.

- Walter sempre diz que não gosta dessas jovens modernas. Elas não o atraem. Nós dois temos tanta coisa em comum mas acho que ele não sai tanto quanto devia. À noite ele lê Thackeray para mim e geralmente jogamos uma partida de piquet. Waltet é bastante caseiro.

- Que coisa maravilhosa! observou Miss Marple. - Ele sempre trabalhou na firma? Disseram-me que um de seus filhos morava no Ceilão, e que tinha uma plantação de chá, mas devem ter-se enganado.

A Sra. Fane franziu ligeiramente as sobrancelhas. Ofereceu mais um bolinho a Miss Marple e explicou.

- Isso foi quando ele era muito moço. Um impulso juvenil. Os rapazes sempre querem conhecer o mundo. Na realidade havia uma moça por trás de tudo. As moças ds vezes atrapalham tanto!

- Oh, sim, compreendo. Tenho um sobrinho que...

A Sra. Fane continuou a falar ignorando o sobrinho de Miss Marple. Tomou conta do assunto, aproveitando a oportunidade de relembrar fatos antigos ao conversar com aquela simpática amiga da querida Dorothy.

- Uma moça absolutamente inconveniente. Oh, não era nenhuma atriz ou coisa no gênero. Era a irmã do médico - pare­cia ser sua filha, porque era muitos anos mais moça do que ele - e o pobre médico não tinha noção de como educá-la. Os homens são tão indefesos, não acha? Ela era muito volúvel. Primeiro se meteu com um jovem que trabalhava no escritório, um funcionariozinho que além do mais não tinha bom caráter. Tiveram de despedi-lo, porque passou adiante informações confidenciais. De qualquer modo essa moça, Helen Kennedy, era muito bonitinha. Eu não achava tanto assim. Sempre achei que ela clareava o cabelo. Mas Walter, coitado, apaixonou-se por ela. Como já disse, era uma pessoa que não convinha, sem dinheiro sem futuro, e não era o tipo de moça que se deseja como nora. Porém o que uma mãe pode fazer? Walter pediu-a em casa­mento e ela recusou. Então ele meteu na cabeça essa idéia idiota de ir para a Índia plantar chá. Meu marido achou que devíamos deixá-lo ir, se bem que, evidentemente, tenha ficado bastante aborrecido. Desejava muito que Walter fosse trabalhar na firma, e Walter já se formara em direito. Mas a realidade era outra. Francamente, que confusão essas jovens causam!

- Oh, eu sei! Meu sobrinho...

Mais uma vez a Sra. Fane ignorou completamente o so­brinho de Miss Marple.

- Aí meu filho querido foi para Assam, ou para Bangalore - não me lembro mais, depois de tantos anos, e fiquei muito preocupada porque sabia que sua saúde não resistiria. Não fazia nem um ano que ele estava lá - e estava se saindo otimamente, porque Walter faz tudo muito bem feito - quando aquela da­nadinha muda de idéia e lhe escreve dizendo que resolveu casar com ele.

- Não me diga! exclamou Miss Marple sacudindo a cabeça.

- Faz o enxoval, compra a passagem... e o que é que a senhora imagina que aconteceu?

- Não faço idéia, respondeu Miss Marple.

- Ela tem um caso com um homem casado, nada mais nada menos. A bordo, a caminho da Índia. Um homem casado, com dois ou três filhos. Bem, lá está Walter, no cais, à sua es­pera, e a primeira coisa que ela faz é dizer que não vai mais casar com ele. Não acha que isso é uma maldade?

- Oh, acho sim! Podia ter destruído a confiança de seu filho na natureza humana.

- Isso devia ter aberto os olhos dele para que a visse tal como ela era, mas esse tipo de mulher sempre leva a melhor.

- Ele não... Miss MarpIe hesitou, - não ficou ressentido com o que ela fez? Muitos homens teria ficado furiosos!

- Walter sempre foi muito controlado. Por mais aborrecido ou preocupado que esteja, nunca demonstra nada.

Miss Marple olhou-a com ar de dúvida.

- Talvez seja porque tudo o atinge muito fundo, não acha? Às vezes as crianças espantam a gente. De repente, uma criança que a gente achava toda calma explode sem se saber por quê.Têm um temperamento sensível, mas que não conseguem expres­sar até não agüentarem mais.

- Oh, é interessante a senhora fazer esse comentário, Miss Marple. Lembro-me tão beml Gerald e Robert eram ambos esquentados e sempre prontos para uma briga. Coisa muito na­tural em meninos sadìos...

- Oh, muito natural!

- E o querido Walter sempre quieto e paciente. Um dia Robert pegou um aviãozinho que Walter levara um tempo enor­me para armar - ele era muito jeitoso - e Robert, que era bastante inteligente mas pouco hábil, estragou o awião. Quando entrei no quarto Robert estava caído no chão e Walter batia nele com tanta violência que ele quase desmaiou. Tive que segurar Walter com toda força para fazê-lo parar, e ele só dizia: - Ele fez de propósito... Ele fez de propósito. Eu vou matá-lo! Sabe, fiquei muito assustada. As crianças sentem as coisas de maneira tão intensa, não é mesrno?

- É verdade, respondeu Miss Marple, pensativa. Em seguida voltou ao assunto anterior.

- E então, finalmente, o noivado foi rompido. Que fim levou a moça?

- Voltou para casa. A bordo, na volta, teve outro caso e dessa vez casou-se com o homem. Um viúvo com uma filha. Um homem que acaba de perder a mulher é sempre um alvo fácil - indefeso, coitado! E Ela casou-se com ele e foram morar numa casa chamada St. Catherine, da outra lado da cidade, pertinho do hospital. O casamento, evidentemente, não durou. Ela abandonou o marido menos de um ano depois. Fugiu com outro homem.

- Meu Deus! exclamou Miss Marple, sacudinho a cabeça. - Seu filho teve sorte em escapar!

- É o que sempre digo a ele.

- E ele desistiu da plantação de chá por causa da saúde?

A Sra. Fane tornou a franzir as sobrancelhas.

- Aquela vida não lhe convinha, respondeu ela. - Voltou para casa uns seis rneses depoasis da moça.

- Deve ter sido uma situação delirada, observou Miss Marple. - Se a moça estava morando aqui, na mesma cidade...

- Walter foi rnaravilhosol exclamou a mãe. - Compor­tou-se como se nada tivesse acontecido. Eu, pessoalmente, achei - e disse isso a ele - que seria aconselhável rornper relações de vez. Afinal de contas, ficaria desagradável os dois se encontrarem. Mas Walter insistiu em continuar sendo amigo. Fre­qüentava a casa da maneira mais informal e brincava com a menina. Aliás, por falas nisso, a menina voltou para cá. Está casada. Foi ao escritório de Walter para fazer um testamento. O sobrenome dela agora é Reed.

- Sr. e Sra. Reed? Eu os conheço. Um jovem casal muito simpático. Imagine só... então ela é a filha...

- Filha do primeiro casamento. A primeira esposa morreu na Índia. Coitado do Major... Como era mesmo o nome dele?...Hallway, ou coisa parecida... Coitado, ficou arrasado quando aquela descarada o abandonou. Por que será que as piores mu­lheres atraem os melhores homens? Não posso compreender!

- E o jovem que ela namorou primeiro? Acho que a se­nhora disse que era um funcionário do escritótio de seu filho... Que fim ele levou?

- Vai indo muito bem. É dono de uma frota de ônibus de turismo. Daffodil. Os ônibus são amarelo vivo. Muito vulgar. O nome dele é Afflick.

- Afflick? perguntou Miss Marple.

- Jackie Afflick. Um sujeïto metido e cavador. Decidido a vencer na vida. É provável que tenha namorado Helen Ken­nedy por causa disso. Filha de médico... isso melhoraria a si­tuação social dele.

- E essa Helen nunca mais voltou a Dillmouth?

- Não. Ficamos livres dela. A esta altura provavelmente está levando uma vida daquelas. Fiquei com pena do Dr. Ken­nedy. Não foi culpa dele. A segunda esposa de seu pai era um amor, muitos anos mais moça que ele. Acho que foi dela que Helen herdou esse temperamento selvagem. Sempre achei...

A Sra. Fane interrompeu a frase no meio. ­

- Walter chegou, disse ela. Seu ouvido de mãe percebera sons familiares que vinham do saguão. A porta se abriu e Walter entrou.

- Meu filho, esta é Miss Marple. Toque a campainha, meu filho, para pedirmos um chá fresco.

- Não se incomode, mamãe. Jâ tomei uma zicara.

- É claro que vamos tomar mais chá e uns botinhos, Bea­trice, falou a Sra. Fane à empregada que entreca para pegar o bule.

- Sim, senhora.

Sorrindo de maneira simpática, Walter Fane observou: - ­Acho que minha mãe está me mimando.

Miss Marple fez um comentário adequado e enquanto isso, observou Walter.

Uma pessoa de aspecto amável e tranqüilo, ligeiramente tí­mido - sem-graça. Uma personalidade bem indefinida. O tipo do jovem dedicado, para o qual as mulheres não ligam, e com quem só se casam porque não são correspondidas pelo homem que amam. Walter, o que está sempre ali. Coitado do Walter, o querido da mamãe... O pequenino Walter Fane que atacou o irmão mais velho e queria matá-lo...

Miss Marple ficou pensativa.

 

RICHARD ERSKINE

Antell Manor tinha um aspecto desagradável. Era uma casa branca atrás da qual se viam colinas áridas. Chegava-se à casa por uma alameda cheia de curvas em meio a densos arbustos.

- Por que é que viemos? disse Giles a Gwenda. - O que vamos dizer?

- Já combinamos tudo.

- Bem, atá certo ponto... Tivemos sorte de a prima da tia da irmã do cunhado da Miss Marple, ou seja lá qual for o paren­tesco, morar aqui perto... Mas daí para se fazer uma visita e perguntar ao dono da casa sobre seus casos de amor antigos vai uma grande distância.

- E foi há tanto tempo. Talvez... talvez ele nem se lembre dela.

- Talvez. E talvez nem tenha havido casa de amor nenhum.

- Giles será que estamos fazendo papel de palhaços?

- ­Não sei... Às vezes tenho essa sensação. Não sei porque estamos nos metendo nisso tudo. A esta altura, que impor­tância tem isso?

- Tanto tempo depois... Sim, eu sei... Tanto Miss Mar­ple quanto o Dr. Kennedy nos disseram que não deviamos nos meter nisso. Por que não desistimos, Giles? O que é que nos faz insistir? Será ela ?

- Ela?

- Helen. Será por isso que me lembro? Será que minha lembrança infantil é a única ligação que ela tem com a vida... com a verdade? Será que Helen está me usando - e a você também - para que a verdade apareça?

- Porque ela teve uma morte violenta?...

- É. Dizem... os livros dizem... que às vezes elas não encontram repouso...

- Acho que você está fantasiando, Gwenda.

- Talvez. De qualquer modo, podemos... escolher. Isto é apenas uma visita social. Não precisa ser mais do que isso. . , a menos que a gente queira que seja...

Giles sacudiu a cabeça.

- Vamos continuar. Não podemos desiatir.

- Sim... Você tem razão. Mesmo assim, Giles, acho que estou com medo...

 

- Estão procurando uma casa? perguntou o Major Erskine.

Estendeu para Gwenda um prato de sanduíches. Gwenda serviu-se e olhou para o dono da casa. Richard Erskine era um homem baixo, de cabelos grisaIhos, olhar cansado e pensativo. Sua voz era grave, lìgeiramente arrastada, agradável. Não tinha nada de extraordïnário, pensou Gwenda consigo mesma, mas era, sem dúvida, atraente... Na realidade não era tão bonito quanto Walter Fane, mas enquanto que a maioria das mulheres passavam por Walter Fane sem olhar para ele, não podiam passar por Erskine sem prestar atenção. Fane era indefinido. Erskine, apesar de seu ar tranqüilo, tinha personalidade. Falava de assuntos banais, de maneira banal, mas havia alguma coisa... algo que as mulheres reconhecem logo e diante do que reagem apenas como mulheres. De maneira quase inconsciente, Gwenda arrumou a saia, passou a mão num cacho de cabelo e retocou os lábios. Há dezenove anos atrás Helen poderia ter-se apaixo­nado por aquele homem. Disso Gwenda tinha certeza.

Levantou os olhos e encontrou o olhar da dona da casa, observando-a fixamente. Enrubesceu sem querer. A Sra. Erskine estava conversando com Giles, mas olhava para Gwenda e seu olhar era um misto de aprovação e desconfiança. Janet Erskine era uma mulher alta e de voz grave, quase tão grave quanto a de um homem. Tinha uma compleição atlética e usava um casaco de tweed muito bem cortado, com grandes bolsos. Parecia mais velha que o marido, mas talvez na realidade não fosse, pensou Gwenda. Tinha uma expressão abatida. Uma mulher infeliz, carente.

Aposto que ela inferniza a vida dele, pensou Gwenda consigo mesma.

E, interrompendo seus pensamentos, continuou a conversar em voz alta.

- A tarefa de procurar uma casa é desanimadora, disse ela. As descrições dos corretores são maravilhosas, mas quando se vai ver a casa é sempre horrivel.

- Estão pensando em morar nas vizinhanças?

- Bem... este é um dos lugares em que pensamos. Na rea­lidade é porque fica perto da Muralha de Adriano. Giles sempre teve fascinação pela Muralha de Adriano. Compreende, talvez o senhor ache estranho, mas qualquer lugar da Inglaterra é mais ou menos igual para nós. Eu sou da Nova Zelândia e não tenho nenhuma ligação aqui. E Giles passou férias em casa de diversas tias, em diversos lugares, de modo que também não tem nenhu­ma ligação especial. A única coisa que não queremos é morar perto de Londres. Queremos o campo.

Erskine sorriu.

- Não tenha dúvidas de que aqui é campo mesmo! É com­pletamente isolado. Temos poucos vizinhos, e em casas muito afastadas.

Gwenda percebeu um tom levemente amargo naquela voz tão agradável. Teve uma súbita visão de uma vida solitária ­dias de inverno curtos e escuros, com o vento assobiando na chaminé, as cortinas fechadas, ele trancado, trancado com aquela mulher de olhar infeliz - e os poucos vizinhos morando em casas bem afastadas.

Em seguida a visão desapareceu. Era verão novamente, com as portas abertas para o jardim, o perfume das rosas entrando pela sala.

- Esta casa é antiga, não é? perguntou Gwenda.

Erskine fez sinal que sim.

- Pertence a minha família há quase trezentos anos.

- É uma linda casa. O senhor deve ter bastante orgulho dela...

- Hoje em dia está muito velha. Os impostos são tão altos que fica difícil conservar as coisas direito. Mas agora que as crianças já não moram conosco a pior fase já passou.

- Quantos filhos o senhor tem?

- Dois rapazes. Um deles é oficial do exército. O outro acabou de se diplomar em Oxford. Vai trabalhar numa editora.

Seu olhar se dirigiu para a lareira e Gwenda acompanhou-o, vendo um retrato de dois rapazes - de uns dezoito e dezenove anos, mais ou menos. Deve ter sido tirado há alguns anos, pen­sou Gwenda. A expressão de Erskine era de orgulho e afeto.

- Não é por serem meus filhos, mas são bons meninos, disse ele.

- São muito simpáticos, respondeu Gwenda.

- Sim, disse Erskine. - Acho que vale a pena - realmente. Refiro-me a fazer sacrifícios pelos filhos, acrescentou ante o olhar interrogativo de Gwenda.

- Suponho que... muitas vezes... tenha-se de abrir mão de muita coisa, observou Gwenda.

- Muita coisa, às vezes...

Mais uma vez Gwenda sentiu um tom sombrio, porém a Sra. Erskine interrompeu, perguntando com sua voz grossa e autoritária:

- Vocês estão mesmo procurando casa por aqui? Acho que não conheço nenhuma que sirva, nos arredores.

E se soubesse não me diria, pensou Gwenda com súbita malícia. Essa velha boba está com ciúmes. Está com ciúmes porque estou conversando com o marido dela e porque sou jo­vem e atraente!

- Depende do prazo de vocês, observou Erskine.

- Não temos pressa nenhuma, respondeu Giles em tom animado. - Queremos encontrar uma coisa da qual gostemos muito. Por enquanto temos uma casa em Dillmouth, na costa sul.

O Major Erskine levantou-se e foi pegar um cigarro numa caixa em cima de uma mesa junto à janela.

- Dillmouth, repetiu a Sra. Erskine. Sua voz era inexpres­siva. Seus olhos estavam fixos na nuca do marido.

- Um lugarejo muito bonitinho, disse Giles. - Conhece?

Houve um instante de silêncio e em seguida a Sra. Erskine respondeu no mesmo tom inexpressivo:

- Há muitos anos atrás passamos algumas semanas lá, no verão. Não gostamos muito do clima.

- Isso mesmo, disse Gwenda. - É exatamente o que achamos. Giles e eu preferimos um clima mais revigorante.

Erskine aproximou-se com a caixa de cigarros. Ofereceu um a Gwenda.

- Isto aqui é muito revigorante, disse ele. Sua voz con­tinha certa amargura.

Gwenda olhou para Erskine enquanto acendia o cigarro.

- Lembra-se bem de Dillmouth? perguntou ela com ar ingênuo.

Os lábios de Erskine tremeram no que pareceu a Gwenda um súbito acesso de dor. A resposta veio em tom neutro.

- Acho que me lembro muito bem. Ficamos hospedados no... deixe-me lembrar... no Royal George... não, no Royal Cla­rence!

- Ah, sim, é aquele hotel antigo e tão simpatico! exclamou Gwenda. - Nossa casa fica ali perto. Chama-se Hillside, mas antigamente o nome era... St. Mary... não é isso, Giles?

- St. Catherine, corrigiu Giles.

Dessa vez não houve dúvida quanto à reação. Erskine vi­rou-se abruptamente de costas. A xícara de chá da Sra. Erskine por pouco não caiu no chão.

- Gostariam de ver o jardim? perguntou ele subitamente.

- Oh, com o maior prazer!

Saíram pela porta janela. O jardim era muito bem tratado com canteiros compridos e caminhos de pedra. Gwenda achou que quem cuidava daquilo era o Major Erskine, pois ao falar sobre as rosas, sobre as plantas, o rosto triste de Erskine se ilu­minava. Era evidentemente um entusiasta da jardinagem.

Quando finalmente se despediram e já estavam dentro do carro, Giles perguntou hesitante: - Você... deixou lá?

Gwenda fez sinal que sim.

- Perto da segunda moita de delfínios, respondeu ela. Olhou para o dedo e rodou a aliança com ar distraído.

- E se nunca mais encontrar?

- Bem, não é meu verdadeiro anel de noivado! Não ia correr esse risco!

- Que bom!

- Sou muito sentimental em relação àquele anel. Lembra do que você me disse quando o colocou no meu dedo? Uma esmeralda verde para uma gatinha misteriosa de olhos verdes.

- Acho que nossa linguagem amorosa deve parecer esqui­sita para uma pessoa da geração de Miss Marple, por exemplo.

- Tão boazinha! O que será que está fazendo a uma hora dessas? Tomando sol?

- Está preparando alguma, se é que eu a conheço! Fazendo perguntas aqui, bisbilhotando ali... Espero que não exagere.

- Para uma senhora idosa é coisa muito natural. Se fôsse­mos nós as pessoas estranhariam.

- Por isso é que não gosto... Interrompeu a frase e depois prosseguiu. - Não gosto de você ter que fazer isso. Não suporto a sensação de que fico sentado em casa e mando você fazer tudo.

Gwenda passou carinhosamente a mão no rosto do marido.

- Eu sei, querido, eu sei, mas você tem que concordar que é complicado! É uma insolência interrogar um homem sobre sua vida amorosa pregressa - mas é um tipo de insolência em que uma mulher se sai muito bem... se for esperta. E eu acho que sou esperta.

- Eu sei. Mas se Erskine for o homem que estamos pro­curando...

- Acho que não é, observou Gwenda com ar pensativo.

- Você acha que estamos na pista errada?

- Não. Acho que ele esteve mesmo apaixonado par He­len, mas ele é bom, Giles, muito bom. Não é um estrangulador!

- Você não tem muita experiência de estranguladores, não é, Gwenda?

- Não, mas tenho intuição feminina.

- Acho que muitas vítimas de estranguladores disseram isso. Mas, falando sério, Gwenda, tome cuidado, por favor!

- É claro. Fiquei com tanta pena dele... com aquela mu­lher que é uma fera! Aposto que ele é muito infeliz.

- Ela é uma mulher estranha... Meio assustadora, não sei por que.

- É, tem um jeito sinistro. Você viu como ela ficou olhando para mim o tempo todo?

- Bem, espero que o plano dê certo!

 

Na manhã seguinte o plano foi posto em execução. Giles, sentindo-se como um detetive contratado para um flagrante num caso de divórcio, colocou-se num local de onde podia observar o portão da entrada de Antell Manor. Por volta deonze e meia comunicou a Gwenda que tudo estava bem. A Sra. Erskine saíra num pequeno Austin, dirigindo-se para o mercado, que ficava a três milhas de distância. A pista estava livre.

Gwenda estacionou o carro em frente à porta e tocou a campanhia. Perguntou pela Sra. Erskine e foi informada de que ela não estava. Perguntou pelo Major Erskine e responderam que se encontrava no jardim. Ao ver Gwenda se aproximar, ele parou de cuidar do canteiro de flores.

- Desculpe incornodá-lo, disse Gwenda, - mas acho que ontem deixei meu anel cair aqui no jardim. Lembro que quando acabamos de tomar chá ele estava no meu dedo. É meio largo. Eu ficaria tristíssima se o perdesse, porque é meu anel de noivado.

A busca teve início. Gwenda refez o caminho da véspera, tentou se lembrar onde ficara em pé, em que flores tinha tocado. Finalmente o anel foi encontrado junto a uma grande moita de delfínios. Gwenda demonstrou ofusivamente sua alegria.

- Aceita um drinque, Sra. Reed? Um copo de cerveja? Um sherry ? Ou prefere café?

- Muito obrigada, mas não quero nada. Só um cigarro. Senteu-se num banco e Erskine sentou-se ao seu lado. Durante alguns minutos ficaram em silêncio. O coração de Gwenda batia em ritmo acelerado. Não podia recuar. Precisava agir.

- Queria lhe perguntar uma coisa, disse ela. - Talvez o senhor me ache terrivelmente intrometida, mas eu preciso muito saber... e o senhor é provavelmente a única pessoa que pode me contar. Acho que o senhor já esteve apaixonado por minha madrasta.

Erskine virou-se para Gwenda com ar atônito.

- Sua madrasta?

- Sim. Helen Kennedy. Depois de casada o nome dela era Helen Halliday.

- Compreendo. O homem sentado ao lado de Gwenda ficou muito quieto. Seus olhos fixavam a grama com ar au­sente. A cinza do cigarro ia aumentando. Por trás daquele ar tão quieto Gwenda sentiu o turbilhão interior daquele homem cujo braço estava encostado ao seu.

Como se estivesse respondendo a uma pergunta que fizera a si mesmo, Erskine disse: - Cartas, suponho que.. .

Gwenda não respondeu.

- Nunca escrevi muito para ela... duas cartas, talvez três. Ela disse que havia jogado fora.. . mas as mulheres nunca jo­gam cartas fora, não é? E então caíram em suas mãos e a senhora quer saber.

- Quero saber mais coisas sobre ela. Eu... eu gostava muito dela, se bem que fosse bem pequena quando Helen foi embora.

- Ela foi embora?

- O senhor não sabia?

O olhar cândido e surpreso de Erskine encontrou o de Gwenda.

- Não tenho notícias dela, disse ele, - desde... desde aquele verão em Dillmouth.

- Então não sabe onde ela está agora?

- Como é que posso saber? Isso foi há anos atrás... há anos! Tudo acabado e liquidado. Esquecido.

- Esquecido?

Ele sorriu com amargura.

- Não, talvez não esteja esquecido... A senhora é muito observadora, Sra. Reed. Mas fale sobre ela. Ela não... não morreu, não é?

Um vento frio soprou de repente, fazendo ambos estreme­cerem.

- Não sei se está morta ou não, respondeu Gwenda. - Não sei nada sobre ela. Achei que talvez o senhor soubesse.

Erskine sacudiu a cabeça e Gwenda prosseguiu.

- Compreende, ela foi embora de Dillmouth naquele verão. De repente, certa noite, sem falar com ninguém. E nunca mais voltou.

- E a senhora achou que talvez eu tivesse notícias dela?

- Exato.

Ele tornou a sacudir a cabeça.

- Não. Nem uma só palavra. Mas certamente o irmão dela - o tal módico - mora em Dillmouth. Ele deve saber. Ou será que também morreu?

- Não, está vivo. Mas também não sabe. Todos pensaram que ela fugira... com alguém.

Erskine virou a cabeça e olhou para Gwenda. Um olhar triste e profundo.

- Pensaram que Helen fugiu comigo ?

- Bem, era uma possibilidade.

- Será que era? Acho que não. Não foi nada disso. Ou será que fomos loucos... loucos que perderam conscientemente a oportunidade de serem felizes?

Gwenda não respondeu. Mais uma vez Erskine virou-se e olhou para ela.

- É melhor eu lhe contar. Não há muito o que dizer, mas não quero que faça mau juízo de Helen. Conhecemo-nos num navio, a caminho da Índia. Uma das crianças tinha ficado doente e minha mulher ia tomar o navio seguinte. Helen se casaria com um homem que estava na Índia. Não o amava. Era apenas um velho amigo, bom e delicado, e ela queria sair de casa porque não era feliz. Ficamos apaixonados.

Erskine fez uma pausa.

- Sei que sempre se diz isso, mas não foi - quero deixar isso bem claro - não foi apenas um caso de amor comum. Foi sério. Nós dois ficamos... bem, profundamente abalados. E não havia nada a fazer. Eu não podia largar Janet e as crianças. Helen concordava comigo. Se fosse apenas por causa de Janet... mas havia os meninos. Não havia esperança. Combinamos dizer adeus e tentar esquecer.

Deu uma risadinha seca e irônica.

- Esquecer? Nunca esqueci, nem um instante. A vida era um inferno. Não conseguia parar de pensar em Helen...

Bem, ela acabou não casando com o tal sujeito. Na hora H não conseguiu enfrentar a situação. Voltou para a Inglaterra e na viagem conheceu outro homem - imagino que seja seu pai. Escreveu-me poucos meses depois contando o que fizera. Disse que ele estava muito infeliz por ter perdido a esposa e que tinha uma filha. Ela achou que podia fazê-lo feliz e que era a me­lhor decisão. Escreveu de Dillmouth. Uns oito meses depois meu pai morreu e eu voltei para a Inglaterra. Queríamos tirar umas férias antes de vir morar aqui e minha mulher sugeriu Dill­mouth. Uma amiga informou-lhe que era um lugar bonito e tranqüilo. Evidentemente ela não sabia de nada sobre Helen. Imagine só minha tentação! Vê-la de novo! Ver que tal era o homem com quem se casara!

Houve uma pequena pausa e Erskine prosseguiu.

- Fomos, e ficamos no Royal Clarence. Foi um erro. Foi um inferno tornar a ver Helen... Ela parecia estar bastante feliz - não sei... Evitava estar a sós comigo... Não sabia se ela ainda gostava de mim ou não... Talvez tivesse esquecido. Acho que minha mulher desconfiou de alguma coisa... Ela... ela é muito ciumenta - sempre foi.

E terminou bruscamente: - É só isso. Partimos de Dill­mou ...

- No dia 17 de agosto, completou Gwenda.

- Foi dia 17? É possível. Não me lembro com exatidão.

- Era sábado, disse Gwenda.

- Tem razão. Lembro que Janet disse que talvez fosse um dia ruim para viajar para o norte... mas não sei...

- Por favor, tente se lembrar, Major Erskme. Quando foi que o senhor viu minha madrasta - Helen - pela última vez? . ..

Ele sorriu. Um sorriso suave, cansado.

- Não preciso fazer força. Vi-a na véspera de partir, à noite, na praia. Eu caminhei até a praia depois do jantar... e ela estava lá. Não havia ninguém por perto. Andei com ela de volta para casa. Atravessamos o jardim...

- Aque horas?

- Não sei ... Deviam ser umas nove horas. ­

- E disseram adeus?

- E dissemos adeus. Erskine tornou a rir. - Oh, não foi o tipo de adeus que a senhora está imaginando. Foi muito rá­pido e brusco. Helen me disse : - Por favor, vá embora. Vá depressa. Prefiro não... Ela interrompeu a frase e... e eu... fui embora.

- Voltou para o hotel?

- Voltei mais tarde. Primeiro dei uma longa caminhada pelo campo.

- É difícil lembrar datas... depois de tantos anos, mas acho que nessa mesma noite ela foi embora... e nunca mais voltou.

- Compreendo. E como eu e minha mulher fomos embora no dia seguinte as pessoas espalharam o boato de que ela fugira comigo. Que gente encantadora!

- Bem, quer dizer que ela não fugiu com o senhor?

- Meu Deus, não! Nunca pensamos nisso!

- Então, perguntou Gwenda, - por que acha que ela foi embora?

Erskine franziu as sobrancelhas. Mudou de atitude, tornou-se interessado.

- Compreendo, disse ele. - É uma pergunta difícil. Ela não... não deixou nenhuma explicação?

Gwenda ficou pensativa e em seguida exprimiu sua opinião pessoal.

- Acho que ela não deixou explicação nenhuma. O senhor acha que ela foi embora com alguém?

- Não, é claro que não.

- O senhor parece ter certeza disso.

- E tenho mesmo.

- Então por que ela foi embora?

- Se ela foi embora... subitamente... assim... só vejo uma explicação possível. Ela estava fugindo de mim.

- Do senhor?r

- Sim. Talvez estivesse com medo de que eu tentasse vê-la de novo... de que eu a perseguisse. Deve ter visto que eu ainda estava... louco por ela... Sim, deve ter sido isso.

- ­Isso não explica, retorquiu Gwenda, - por que ela nunca mais voltou. Diga uma coisa... Helen contou-lhe alguma coisa sobre meu pai? Estava preocupada com ele, ou... com medo dele?

- Medo dele? Por quê? Oh, compreendo, a senhora acha que ele podia estar com ciúmes. Era ciumento?

-­Não sei. Ele morreu quando eu ainda era muito criança.

- Ah, entendo. Não, pensando bem, ele sempre me deu a impressâo de uma pessoa normal e agradável. Gostava de Helen, orgulhava-se dela. Não, eu é que tinha ciúmes dele.

- Pareciam felizes?

- Pareciam. Fiquei contente... e ao mesmo tempo ma­goado... ao verificar isso... Não, Helen nunca me disse nada sobre ele. Como já lhe falei, raramente ficávamos sozinhos e não fazíamos confidências. Mas agora, já que a senhora falou no assunto, lembro que achei Helen preocupada...

- Preocupada?

- Sim. Achei que talvez fosse por causa de minha mu­lher... Mas era mais do que isso.

Olhou de modo penetrante para Gwenda.

- Estaria com medo do marido? Estaria ele com ciúmes de outros homens?

- O senhor parece achar que não.

- O ciúme é uma coisa muito estranha. Às vezes pode estar tão escondido que ninguém desconfia. Erskine estremeceu. ­Mas pode ser assustador... muito assustador...

- Gostaria de saber mais uma coisa, disse Gwenda.

Um carro subia a alameda.

- Minha mulher está chegando das compras, disse o Major Erskine.

Num instante ele se transformou numa pessoa completa­mente diferente. Tornou-se formal e sua fisionomia era inex­pressiva. Um leve tremor demonstrava que estava nervoso.

A Sra. Erskine aproximou-se da casa e seu marido foi ao seu encontro.

- A Sra. Reed deixou cair um anel no jardim, ontem à tarde, disse ele.

- É mesmo? retorquiu a Sra. Erskine com rispidez.

- Bom dìa, disse Gwenda. - Felizmente já o encontrei.

- Que sorte !

- É mesmo. Não queria perdê-lo. Bem, preciso ir embora.

A Sra. Erskine ficou em silêncio.

- Vou acompanhá-la até o carro, disse o Major Erskine.

E seguiu atrás de Gwenda pelo terraço. A voz de sua mulher chamou-o em tom agudo.

- Richard! Um telefonema urgente para você! Explique à Sra. Reed.

- Oh, não faz mal! apressou-se Gwenda em dizer. - Por favor, não se incomode!

Correu pelo terraço e deu a volta na casa para chegar ao lugar em que tinha deixado o carro.

Subitamente estancou. A Sra. Erskine estacionara seu carro de tal maneira que Gwenda achou que não poderia passar. Hesitou, e em seguida voltou lentamente para o terraço.

Chegando junto às portas-janelas, parou subitamente. A voz da Sra. Erskine, em tom alto e profundo, chegava a seus ouvidos.

- Não me interessa o que vocé está dizendo. Você combinou tudo. Combinou ontem. Combinou com essa moça ela vir aqui enquanto eu estava em Daith. Você continua o mes­mo... qualquer garota bonitinha serve! Não admito isso, ouviu? Não admito!

A voz de Erskine interrompeu-a num tom baixo, quase de desespero.

- Janet, às vezes acho que você está maluca!

- Não estou maluca coisa nenhuma! Quem está doido E você! Não deixa em paz as mulheres!

- Janet, você sabe que não é verdade!

- É verdade sim! E há muito tempo... na mesma cidade de onde essa moça veio... Dillmouth. Você ousa me dizer que não estava apaixonado por aquela loura, a mulher de Halliday?

- Será que você não consegue esquecer nada? Por que fica ruminando essas coisas? Só serve para perturbar você e...

- A culpa é sua! Você me magoa profundamente!... Não admito, estou avisando. Não vou admitir isso! Marcando en­contros! Rindo de mim pelas costas! Você não liga para mim... nunca ligou! Vou me matar! Vou me atirar de um penhasco... Eu queria morrer...

- Janet... Janet... Pelo amor de Deus...

A voz da Sra. Erskine sumira. Ouvia-se apenas o som de soluços desesperados.

Gwenda afastou-se na ponta dos pés e voltou para junto do carro. Pensou por um instante e em seguida tocou a campainha.

- Será que alguém pode. .. tirar esse carro daí? perguntou ela. Acho que assim não dá para o meu passar.

A empregada foi para dentro de casa e logo um homem seaproximou, vindo do pátio. Tirou o boné para cumprimentar Gwenda, entrou no Austin e levou-o para o pátio. Gwenda pe­gou seu carro e dirigiu à toda para o hotel onde Giles a esperava.

- Como você demorou! exclamou ele à guisa de saudação.

- Conseguiu alguma coisa?

- Consegui. Agora conheço toda a história. É muito pa­tética. Ele estava loucamente apaixonado por Helen.

E contou os acontecimentos da manhã.

- Acho, disse ela, finalizando, - que a Sra. Erskine é meio doida. Estava fora de si. Agora entendo o que ele quis dizer quando contou que ela era ciumenta. De qualquer modo, fica­mos sabendo que não foi Erskine quem fugiu com Helen e que ele não sabe nada sobre a morte dela. Estava viva na noite em que se despediram.

- É... retrucou Giles. - Pelo menos é o que ele diz.

Gwenda fez um ar indignado.

- Isso, repetiu Giles, - é o que ele diz!

 

A TREPADEIRA

Miss Marple, junto à porta-janela do terraço, lutava com uma trepadeira. Era um trabalho difícil, pois, por baixo da terra, a trepadeira invadia tudo, camo sempre. Mas pele menos durante algum tempo os delfmios teriam mais espaço.

A Sra. Cocker apareceu na janela da sala de estar.

- Desculpe, senhora, mas Dr. Kennedy está aí. Quer saber quanto tempo o Sr. e a Sra. Reed vão ficar fora e eu disse que não tinha certeza mas que ia perguntar à senhora. Quer que peça  a ele para vir até aqui.

- Oh! Oh, sim, por favor, Sra. Cocker!

Dentro em pouco a Sra. Cocker voltou com o visita~nte. Miss Marple apresentou-se de maneira bastante confusa.

- ... E então combinei com minha querida Gwenda que viria cuidar um pouco do jardim enquanto ela estivesse fora. Sabe, acho que esse jardineiro, Foster, está abusando dos meus jovens amigos. Vem duas vezes por semana, toma uma porção de xícaras de chá, conversa muito e - pelo menos na minha opinião - não trabalha nada.

- É ... respondeu o Dr. Kennedy, com ar ausente. - É, todos eles são iguais.

Miss Marple examinou-o com ar apreciativo. Era um ho­mem mais velho do que imaginara, baseada na descrição do casal Reed. Prematuramente envelhecido, pensou consigo mes­ma. Parecia, também, preocupado e infeliz. Ficou em pé, acari­ciando com os dedos o queixo firme.

- Viajaram, não é? perguntou ele. - Sabe quando voltam?

- Oh, não vão demorar muito tempo! Foram visitar uns amigos no norte da Inglaterra. Os jovens são tão irrequietos! Estão sempre indo de um lado para outro.

- É, respondeu Kennedy. - É verdade.

Fez uma pausa e prosseguiu meio hesitante.

- Giles me escreveu pedindo uns papéis... um as cartas... se eu conseguisse encontrá-las...

Hesitou novamente e Miss Marple perguntou:

- As cartas de sua irmã?

Kennedy lançou-lhe um olhar rápido e agudo.

- Quer dizer que a senhora... conhece o assunto, não é? É parente deles?

- Apenas amiga, respondeu Miss Marple. - Aconselhei-os da melhor maneira possível, mas as pessoas raramente aceitam conselhos... É pena, mas é assim...

- Qual foi o seu conselho? perguntou ele, curioso.

- Que deixassem a morte em paz, respondeu Miss Marple em tom firme.

Kennedy sentou-se num banco rústico e nada confortável.

- É verdade, disse ele. - Gosto de Gwennie. Era uma criança tão boazinha. Devia ter-se tornado uma adulta muito sensata. Acho que vai se meter em encrencas.

- Existem tantos tipos de encrenca... observou Miss Marple.

- Como? Ah, sim... é mesmo! Suspirou.

- Giles Reed me escreveu pedindo as cartas de minha irmã, - as que me mandou depois que foi embora daqui - e uma amostra de sua letra verdadeira. Olhou para Miss Marple com um olhar penetrante. - Compreende o que isso significa, não é?

- Acho que sim, respondeu Miss Marple.

- Estão achando que, quando Kelvin Halliday dizia que estrangulara a mulher estava falando a verdade. Acham que as cartas mandadas por Helen, depois de ter ido embora, não foram escritas por ela - acreditam que foram forjadas. Para eles, ela não saiu viva desta casa.

- E o senhor, disse Miss Marple em tom afável, - também não tem tanta certeza assim, não é?

- Naquela época eu tinha certeza... Kennedy olhava fixo para a frente. - Parecia tudo absolutamente claro. Era pura alucinação de Kelvin. Não havia corpo, desaparecera a mala com roupas... O que mais eu podia achar?

- E sua irmã estava... há algum tempo... digamos, in­teressada... em certo senhor?

Kennedy olhou para Miss Marple. Seus olhos exprimiam uma dor profunda.

- Eu amava minha irmã, respondeu ele, - mas tenho que admitir que Helen estava sempre metida com algum homem. Há mulheres que são assim... Não conseguem ser diferentes.

- Na ocasião tudo lhe pareceu claro, disse Miss Marple. - Mas agora já não está tão claro. Por quê?

- Porque, respondeu Kennedy com toda franqueza, - acho incrível que, se Helen está viva, não tenha se comunicado comigo durante todos esses anos. E se morreu, é igualmente estranho que eu não tenha sido avisado. Bem...

Levantou-se e tirou alguma coisa do bolso.

- É o que posso fazer para ajudar. Devo ter jogado fora a primeira carta que recebi de Helen. Não consegui encontrá-la. Mas guardei a segunda - a que dava a posta restante como endereço. E aqui está, para se poder comparar, o único exemplar da escrita de Helen que encontrei. É uma lìsta de sementes e bulbos para plantação. Uma cópia guardada por ela de alguma encomenda feita. A letra da carta me parece igual à da enco­menda, mas não sou nenhum perito. Vou deixar aqui para quan­do Giles e Gwenda voltarem. Acho que não vale a pena mandar pelo correio.

- Oh, não! Creio que eles voltarão amanhã ou depois...

O doutor assentiu com a cabeça. Ficou em pé, olhando para o terraço com ar ausente.

- Sabe o que está me preocupando? perguntou ele subi­tamente.

- Se Kelvin Halliday realmente matou sua mulher, deve ter escondido o corpo ou se livrou dele de algum modo... e isso leva a crer que toda a história contada por ele foi uma in­venção... ele já havia arrumado aquela mala cheia de roupas para dar a impressão de que Helen tinha ido embora... que chegou até a dar um jeito de mandar cartas vindas do exterior... Significa, na realidade, que foi um crime frio e premeditado. Gwennie era uma criança muito boa. Não é bom ter tido um pai paranóico, mas é mil vezes pior o pai ter sido um assassino.

Virou-se em direção à janela que se achava aberta.

- Sua irmã estava com medo de quem, Dr. Kennedy? per­guntou Miss Marple.

Kennedy virou-se para Miss Marple com ar espantado.

- Com medo? De ninguém, que eu saiba.

- Estava só pensando... Por favor, desculpe estar fazendo perguntas indiscretas... mas houve um rapaz, não houve? ... Quer dizer, um envolvimento... quando ela era muito moça. Acho que o nome dele era Afflick.

- Oh, esse aí! Foi um envolvimento bobo, muito comum nessa idade. Um rapaz inconveniente, oportunista, de outra classe social. Mais tarde ele se meteu numa encrenca.

- Só estava pensando se ele era um tipo vingador.

Kennedy deu um sorriso cético.

- Oh, acho que não ficou tão atingido assim. De qualquer modo, como já lhe disse, ele se meteu numa encrenca e foi em­bora da cidade.

- Que tipo de encrenca foi?

- Oh, nenhum crime! Apenas indiscrição. Andou falando sobre os negócios de seu patrão.

- O patrão era o Sr, Walter Fane, não é?

Kennedy pareceu um pouco surpreso.

- Sim, sim... Agora me lembro que ele trabalhava na firma Fane e Watchman. Era um pequeno funcionário.

Apenas um pequeno funcionário? Miss Marple, depois de ter se despedido do Dr. Kennedy, voltou à luta com a trepa­deira, mas ficou pensativa...

 

O SR. KIMBLE FALA

- Não sei, tenho certeza que não, disse a Sra. Kimble.

Seu marido, diante do que considerava um ultraje, viu-se obrigado a finalmente falar.

Estendeu a xícara.

- Em que é que você está pensando, Lily? perguntou ele. - Não tem açúcar!

A Sra. Kimble apressou-se a remediar o ultraje e prosseguiu na elaboração de seu tema.

- Estou pensando naquele anúncio, disse ela. - Está es­crito Lily Abbott, assim mesmo. E ainda dizem "ex-empregada em St. Catherine, Dillmouth". Sou eu, não pode haver engano.

- Ahn, resmungou o Sr. Kimble.

- Depois de tantos anos... Jim, você tem que concordar que é esquisito!

- Ahn...

- Bem, o que é que eu devo fazer, Jim?

- Deixe para lá.

- E se for dinheiro?

Ouviu-se um gorgolejar enquanto o Sr. Kimble esvaziou toda a xícara de chá a fim de se preparar para o esforço mental de fazer um discurso. Estendeu a xícara e disse um lacônico: - Mais! Em seguida iniciou sua fala.

- Naquela ocasião você falava muito do que tinha aconte­cido em St. Catherine. Eu nem ligava - achava que era tudo bobagem... mexerico de mulher. Talvez não fosse. Talvez tenha acontecido alguma coisa. Se tiver acontecido é caso de polícia e você não vai se meter nisso. Está tudo acabado, não é? Deixe isso para lá, mulher!

- É muito fácil dizer. Pode ser que eu tenha uma herança para receber. Pode ser que ela só tenha morrido agora e tenha deixado dinheiro para mim.

- Deixar dinheiro para você? Por quê? Ahn... retorquiu o Sr. Kimble, usando seu monossílabo preferido para exprimir o desprezo.

- Mesmo que seja a polícia... Sabe, Jim, às vezes dão uma grande recompensa a qualquer pessoa que possa dar infor­mações sobre um assassino!

- E que informações você pode dar? Tudo o que você sabe foi inventado na sua cabeça!

- Isso é o que você acha, mas estive pensando...

- Ahn... resmungou o Sr. Kimble.

- Bem, mas estive pensando. Desde que vi aquele primeiro anuncio no jornal. Talvez eu tenha me enganado um pouco. Aquela Léonie era burra como todos os estrangeiros, não enten­dia direito o que a gente estava dizendo e falava inglês muito mal. Será que ela não quis dizer o que eu entendi?... Estou fazendo força para lembrar o nome daquele homem... Se foi ele quem ela viu... Lembra aquele filme que eu contei para você? Amante secreto. Era tão empolgante! Seguiram o carro dele. Ele deu cinqüenta mil dólares ao homem do posto para esquecer que ele havia colocado gasolina no carro aquela noite. Nem sei quanto é isso em libras... E o outro também estava lá, e o marido louco de ciúmes. Estavam todos loucos por ela. E no fim...

O Sr. Kimble afastou a cadeira para trás com um resmungo. Levantou-se devagar, com ar de solene autoridade. Antes de sair da cozinha deu seu ultimato - o ultimato de um homem que, apesar de mal saber falar, era astuto.

- Deixe isso tudo para lá, . mulher, disse ele. - Senão você vai acabar se arrependendo!

Foi para a copa, calçou as botas e saiu.

Lily ficou sentada em frente à mesa e seu cérebro não pa­rava de funcionar. É claro que podia fazer tudo diferente do que seu marido achava, mas... Jim era tão quadrado, tão sem ima­ginação... Seria bom poder conversar com alguém. Alguém que soubesse tudo sobre polícia, recompensas, o que queria dizer aquilo... Era uma pena perder a oportunidade de ganhar um bom dinheiro...

O rádio de pilha... permanente no cabelo... aquele casaco vermelho tão bonito da loja Russell... até mesmo, quem sabe, um conjunto de sofá e poltronas novos para a sala...

Continuou sonhando acordada, cobiçosa, imprevidente... O que foi mesmo que Léonie me disse naquela ocasião, há tan­tos anos atrás?

De repente teve uma idéia. Levantou-se e pegou o tinteiro. a caneta e um bloco de papel de cartas.

- Já sei o que vou fazer, disse para si mesma. - Vou es­crever para o doutor, o irmão da Sra. Halliday. Ele vai me dizer o que devo fazer, se é que ele ainda está vivo. De qualquer mo­do, sinto remorso de nunca ter contado nada para ele sobre o que Léonie me disse, nem sobre aquele carro...

Durante algum tempo o silêncio só foi quebrado pelo ba­rulho da caneta no papel. Era raro Lily escrever uma carta e isso representava para ela um esforço considerável.

Finalmente terminou de escrever, colocou o papel num en­velope e fechou-o.

Mas sentia-se menos satisfeita do que imaginara. Tinha cer­teza de que o Dr. Kennedy morrera ou então deixara de morar em Dillmouth.

Havia mais alguém?

Como era mesmo o nome daquele cara?

Se conseguisse se lembrar disso...

 

A JUVENTUDE DE HELEN

Na manhã seguinte, ao voltarem de Northumberland, Giles e Gwenda estavam acabando de tomar café quando Miss Marple chegou. Entrou com jeito de quem pede desculpas.

- Acho que vim muito cedo. Não costumo fazer isso, mas precisava explicar uma coisa.

- Muito prazer em vê-la! disse Giles, puxando uma cadeira para ela. - Gostaria de uma xícara de café?

- Oh, não, muito obrigada. Já tomei um ótimo café da manhã. Agora deixem-me explicar. Estive aqui durante a au­sência de vocês, conforme o combinado, para cuidar um pouco do jardim...

- A senhora foi um anjo, interromgeu Gwenda.

- E cheguei à conclusão de que dois dias por semana é muito pouco para esse jardim. De qualquer modo, acho que Foster está abusando. Muito chá e muita conversa. Descobri que ele não tem mais nenhum dia livre e por isso me encarreguei de contratar outro jardineiro para vir só um dia por semana ­às quartas-feiras - aliás, hoje.

Giles olhou-a com curiosidade e surpresa. A intenção podia ser boa, mas a atitude de Miss Marple tinha um quê de interfe­rência, e ela não era uma pessoa interferente.

- Foster é velho demais para trabalhar de verdade, não há dúvida, disse ele lentamente.

- Só que Manning é mais velho ainda, Sr. Reed. Disse que tem setenta e cinco anos. Mas, sabe, achei que valia a pena contratá-lo por algum tempo porque antigamente, há muitos anos atrás, ele era empregado do Dr. Kennedy. Por falar nisso, o no­me do rapaz que Helen namorou era Afflick.

- Miss Marple, a senhora é incrível! exclamou Giles. ­Um gênio! Sabe que consegui a amostra da letra de Helen?

- Sei, respondeu Miss Marple. - Eu estava aqui quando Kennedy trouxe a carta.

- Hoje mesmo vou mandar pelo correio para um excelente perito que me foi indicado na semana passada.

- Vamos para o jardim conhecer Manning, sugeriu Gwenda.

Manning era um velho curvado e cheio de rugas, de olhos remelentos e ligeiramente velhacos. Ao ver os patrões se apro­ximarem, acelerou o ritmo para limpar um caminho.

- Bom dia, senhor. Bom dia, senhora. Parece que estão precisando de um dia extra de trabalho, às quartas-feiras. Tenho muito prazer em vir. Este jardim está uma vergonha de tão abandonado!

- Acho que há muitos anos não cuidam dele direito.

- É mesmo. Lembro o tempo da Sra. Findeyson. Naquele tempo o jardim era uma beleza. A Sra. Findeyson gostava muito do jardim.

Giles apoiou-se nas costas de um banco, Gwenda cortou alguns botões de rosa e Miss Marple, um pouco afastada, in­clinou-se em direção à trepadeira. O velho Manning apoiou-se em seu ancinho. Estavam todos prontos para passar a manhã discutindo o tempo antigo e a jardinagem de antigamente.

- O senhor deve conhecer a maioria dos jardins deste lugar, disse Giles, a fim de iniciar a conversa.

- Ah, conheço bastante bem isto aqui, e conheci também as coisas que as pessoas inventavam. A Sra. Yule, de Niagra, tinha um arbusto de teixa que era podado em forma de esquilo. Eu achava uma bobagem. Planta é uma coisa e esquilo é outra. E o Coronel Lampard... era louco por begônias. Tinha mara­vilhosos canteiros de begônias. Hoje em dia ninguém mais quer saber de canteiros floridos. Nos últimos anos nem sei quantos canteiros eu desmanchei para fazer gramados. Parece que as pessoas não acham mais graça em gerânios ou lobélias.

- O senhor trabalhava para o Dr. Kennedy, não é?

- Ah, isso foi há muito tempo atrás! Deve ter sido lá por 1920. Ele mudou-se e deixou a clínica. Quem trabalha agora em Crosby Lodge é o jovem Dr. Brent. Tem umas idéias engra­çadas - umas pílulas brancas que ele receita - chamam-se Vittapins.

- O senhor deve se lembrar da Srta. Helen Kennedy, a irmã do doutor.

- Ah, lembro muito bem da Srta. Helen! Era bonitinha, com aquele cabelo louro bem comprido. Depois de casada elaveio morar aqui mesmo, nesta casa. Casou com um oficial do exército que veio da Índia.

- Sim, nós sabemos disso, observou Gwenda.

- Ah, ouvi dizer - acho que foi no sábado de noite - que a senhora e seu marido eram parentes dela. A Srta. Helen era lindinha, quando acabou o colégio e veio para cá. Era muito animada. Gostava de ir a todos os lugares - festas, partidas de tênis, todas essas coisas. Eu tive de marcar a quadra de tênis - fazia uns vinte anos que ninguém a usava. Estava coberta de plantas. Tive que cortar tudo e gastei baldes e mais baldes de cal para marcar a quadra. Tive um trabalhão e, no fim, quase ninguém aproveitou para jogar. Sempre achei aquilo meio es­tranho...

- O quê era estranho? perguntou Giles.

- O negócio da rede de tênis. Alguém foi até lá, uma noite, e cortou a rede em pedacinhos. Em pedacinhos. Por pura mal­dade. Isso mesmo, foi pura maldade.

- Mas quem ia fazer uma coisa dessas?

- Foi o que o doutor quis saber. Ficou danado da vida, e tinha toda razão. Mas ninguém sabia quem fizera aquilo. Nun­ca soubemos. E ele então disse que não ia comprar outra... e tinha razão, porque se fizeram maldade uma vez iam fazer de novo. Mas a Srta. Helen não gostou. Ela não tinha sorte. Pri­meiro o negócio da rede, e depois o pé machucado.

- Ela machucou o pé? perguntou Gwenda.

- Foi. Tropeçou num ancinho, ou coisa que o valha, e cortou o pé. Parecia só um arranhão, mas não havia meio de curar. O doutor ficou bastante preocupado. Fazia curativos, botava remédio, mas não dava jeito. Lembro-me dele dizendo assim: - Não posso compreender. O ancinho devia estar sujo. De qualquer modo, o que é que aquele ancinho estava fazendo ali no meio do caminho? Porque foi lá que a Srta. Helen se machucou, voltando a pé para casa numa noite escura. Coitada da moça, ficou um tempão sentada, de perna espichada, sem poder ir a festas! Ela só dava azar!

Giles achou que era hora de fazer a pergunta.

- Lembra-se de uma pessoa chamada Afflick?

- Ah, o senhor está falando de Jackie Afflick? O que tra­balhava no escritório de Fane e Watchman?

- Exato. Era amigo da Srta. Helen, não é?

- Aquilo foi tudo uma bobagem. O doutor acabou com o negócio, e eu acho que fez muito bem. Jackie Afflick não tinha classe, E era um espertalhão. Essa gente acaba se dando mal, Mas ele não ficou na cidade muito tempo. Meteu-se numa encrenca. Ficamos livres dele. Ninguém gostava dele, em Dillmouth. Todos acharam muito bom ele ir embora e se meter a esperto em outro canto qualquer.

- Ele estava aqui quando cortaram a rede de tênis? perguntou Gwenda.

- Ah, compreendo o que a senhora está pensando! Mas ele não faria uma bobagem dessas. Jackie Afflick era esperto. Quem fez isso fez de pura maldade.

- Havia alguém que tivesse raiva da Srta. Helen? Que quisesse fazer uma maldade com ela?

O velho Manning deu uma risada.

- Algumas moças deviam ter raiva de la. Quase nenhuma delas chegava aos pés da Srta. Helen. Não, acho que aquilo foi uma doideira qualquer. Talvez algum desses vagabundos invejosos.

- Helen ficou muito aflita por causa de Jackie Afflick? perguntou Gwenda.

- Acho que a Srta. Helen não ligava muito para nenhum dos rapazes. Gostava apenas de se divertir. Alguns eram bastante dedicados a ela - o jovem Sr. Walter Fane, por exemplo. Seguia a Srta. Helen como um cachorrinho.

- Mas não gostava nem um pouqulnho dele?

- Não. Ela achava graça, só isso. Ele foi embora para outro país. Depois voltou. Hoje em dia é diretor da firma. Nunca se casou, Acho que tem razão. As mulheres armam muita en­crenca na vida dos homens.

- O senhor é casado? perguntou Gwenda.

- Já enterrei duas, respondeu o velho Manning. - Ah, não posso me queixar. Agora fumo meu cachimbo em paz, onde eu bem entender.

Seguiu-se um silêncio e ele pegou o ancinho novamente, Giles e Gwenda tomaram o caminho que levava à casa e Miss Marple, desistindo de lutar com a trepadeira, seguiu-os.

- Miss Marple, a senhora está com um semblante estranho, observou Gwenda. - Está se sentindo mal?

- Não é nada, querida. A velha senhora fez uma pausa antes de dizer com estranha ênfase: - Sabe, não gostei daquela história da rede de tênis. Cortada em pedaços... Mesmo assim...

Interrompeu a frase. Giles olhou-a intrigado.

- Não estou compreendendo... disse ele.

- Não? Para mim é terrivelmente claro, mas talvez seja melhor que vocês não compreendam. E, de qualquer modo, pode ser que eu esteja enganada. Agora contem o que aconteceu em Northumberland.

Os dois fizeram o relato de suas atividades e Miss Marple ouviu atentamente.

- É realmente muito melancólico, disse Gwenda. - Chega a ser trágico!

- É mesmo. Coitado... coitado!

- Foi isso o que senti. Como aquele homem deve sofrer...

- Hein? Ah, sim, é claro!

- Mas a senhora estava falando...

- Bem, sim, eu estava pensado nela - na mulher dele. Provavelmente apaixonou-se loucamente por ele e ele casou com ela por conveniência, ou porque sentia pena dela, ou por um desses motivos tão sensatos que os homens inventam... e que são tão injustos!

- Conheço cem modos de amar. E todos entristecem o ser amado... - disse Giles baixinho.

Miss Marple virou-se para ele.

- Sim, isso é uma grande verdade. Sabe, o ciúme não precisa ter uma causa. E uma coisa muito mais... como dizer?... muito mais fundamental, baseada na sensação de que o amor não é correspondido. E daí a pessoa continua esperando, vi­giando, à espera de que o ser amado encontre outra pessoa. Isso acontece invariavelmente. De modo que a Sra. Erskine tornou a vida do marido infernal e ele, sem querer, tornou a vida dela um inferno. Mas acho que foi ela quem mais sofreu. E no entanto ouso dizer que ele gosta muito dela.

- Não pode ser! exclamou Gwenda.

- Oh, querida, você é muito jovem! Ele nunca abandonou a mulher, e isso quer dizer alguma coisa, sabe?

- Por causa das crianças! Porque era seu dever!

- Por causa das crianças, talvez, retrucou Miss Marple, - mas confesso que os homens não ligam muito para o dever no que tange a suas esposas... o que demonstram exteriormente é outro assunto.

Giles riu.

- A senhora é muito cínica, Miss Marple!

- Oh, meu caro, acho que não! Há sempre esperança quan­to à natureza humana.

- Continuo achando que não pode ter sido Walter Fane, disse Gwenda, pensativa. - E tenho certeza de que não foi o Major Erskine. Aliás, eu sei que não foi!

- Não se pode ter tanta confiança nos sentimentos, obser­vou Miss Marple. - As pessoas mais insuspeitas fazem coisas... Você não imagina a sensação que foi, na minha cidade, quando se descobriu que o tesoureiro do Clube de Natal apostou todo o dinheiro do clube num cavalo. Era um homem que desaprovava corridas desse gênero, qualquer tipo de jogo ou de apostas. Seu pai jogava em corridas de cavalos e tratava muito mal a mulher, de modo que, racionalmente, o nosso tesoureiro era sincero. Mas um dia, por acaso, passou perto de Newmarket, viu os cavalos treinando e aí a coisa apossou-se dele. Falou a voz do sangue...

- Tanto os antecedentes de Walter Fane quanto os de Richard Erskine são acima de qualquer suspeita, disse Giles com ar sério, mas com um sorriso divertido.

- O que importa, retorquiu Miss Marple, é que eles esta­vam aqui. No local. Walter Fane estava em Dillmouth. O Major Erskine, pelo que diz, deve ter estado com Helen Halliday muito pouco tempo antes de sua morte... e não voltou logo para o hotel.

- Mas ele foi muito sincero a respeito disso tudo! Ele...

Gwenda interrompeu a frase. Miss Marple olhava para ela com um olhar penetrante.

- Quero apenas mostrar a importância de estar no local, disse ela, olhando para um e para outro.

Em seguida acrescentou: - Acho que vocês não terão di­ficuldade em encontrar o endereço de J. J. Afflick. Sendo ele dono da empresa de ônibus Dáffodil Coaches, não haverá pro­blema algum.

- Giles assentiu com a cabeça. Vou procurar na lista telefônica. Fez uma pausa. - Acha que devíamos conversar com ele?

Miss Marple ficou em silêncio durante um momento e disse em seguida: - Se vocês forem... tomem muito cuidado! Lem­brem-se do que o jardineiro disse! Jackie Afflick é esperto. Por favor, tomem cuidado, por favor...

 

J. J. AFFLICK

J. J. Afflick, dono da empresa de ônibus de turismo Daffodil Coaches, figurava duas vezes na lista telefônica - um endereço comercial em Exeter e um endereço particular nos arredores dessa mesma cidade.

Marcaram uma hora para o dia seguinte.

No momento em que Giles e Gwenda estavam saindo de carro a Sra. Cocker correu atrás deles, gesticulando muito. Giles pisou no freio e parou.

- O Dr. Kennedy está no telefone, senhor.

Giles saltou do carro e correu para dentro de casa. Pegou o fone.

- Aqui fala Giles Reed.

- Bom dia. Acabo de receber uma carta muito estranha, de uma mulher chamada Lily Kimble. Quebrei a cabeça para lembrar quem é. Primeiro pensei que fosse uma cliente, mas não é. Suponho que seja a moça que trabalhava aí antigamente. Era copeira. Tenho quase certeza de que se chamava Lily, mas não me lembro do sobrenome.

- Havia uma Lily. Gwenda se lembra dela. Ela amarrou uma fita no pescoço do gato.

- Gwennie tem uma memória extraordinária!

- Tem mesmo.

- Bem, eu gostaria de conversar com vocês sobre esta car­ta, mas não pelo telefone. Posso dar um pulo aí?

- Estamos saindo para ir a Exeter. Se preferir, podemos ir à sua casa. É caminho.

- Ótimo, estamos combinados!

Ao chegarem à casa de Kennedy o médico explicou : - Não gosto de falar nesse assunto pelo telefone. Fico sempre achando que as telefonistas estão ouvindo. Aqui está a carta.

Abriu o envelope e colocou a carta em cima da mesa. Estava escrita numa folha de papel ordinário e a letra era de uma pessoa semi-analfabeta.

 

Prezado Senhor:

Ficaria grata se o senhor pudesse me aconselhar sobre esse recorte que tirei do jornal. Andei pensando e conversei com o Sr. Kimble, mas não sei o que devo fazer. O senhor acha que pode ser dinheiro ou recompenaa? porque eu queria ganhar um dinheiro mas não quero nada com a polícia nem nada disso. Pensei muitas vezes naquela noite que a Sra. Halliday foi embora e acho que ela não foi embora porque as roupas estavam todas erradas. primeiro achei que o patrão tinha matado ela mas de­pois fiquei sem saber por causa do carro que vi pela janela. um carro bacana que eu já tinha visto antes mas não quero fazer nada sem perguntar ao senhor e não quero nada com a polícia porque nunca me meti com a polícia e o Sr. Kimble não ia gos­tar. posso ir falar com o senhor se o senhor me der lìcença na quinta-feira porque é dia de mercado e o Sr. Kimble não vai estar em casa. ficaria muito grata se o senhor pudesse.

Com todo o respeito

Lily Kimble.

 

- Foi mandada para o meu antigo endereço em Dillmouth, disse Kennedy, - e de lá mandaram para cá. O recorte é o anún­cio de vocês.

- Que maravilhar exclamou Gwenda. - Essa tal de Lily, veja só, achou que não foi meu pai quem cometeu o crime! Falava com júbilo.           Kennedy olhou-a com olhos cansados e afáveis.

- Melhor para você, Gwennie, disse ele. - Espero que você tenha ra.zão. Bem, acho que o melhor a fazer é o seguinte. Vou responder à carta e dizer a ela que venha na quinta-feira. A co­nexão de trem é boa. Se ela fizer uma baldeação em Dillmouth Junction, chegará aqui pouco depois das 4:30 h. Vocês dois vêm para cá e, juntos, conversamos com ela.

- Ótimo! exclamou Giles. Olhou para o relógio. - Vamos acrescentou, dirigindo-se a Kennedy, - com o Sr. Afflick, dono da Daffodil Coaches, e ele me disse que é um homem muito ocupado.

- Afflick? Kennedy franziu as sobrancelhas. - Ah, já sei!Dono daqueles ônibus de turismo horrorosos, pintados de am a­relo! Mas conheço esse nome de outro lugar...

- Helen... disse Gwenda.

- Meu Deus... não é aquele sujeito, é?

- É.

- Mas ele era um pobre diabo. Quer dizer que conseguiu vencer na vida?

- Diga uma coisa, senhor, disse Giles. - O senhor interveio num envolvimento entre ele e Helen. Foi apenas por causa de sua... posição social?

Kennedy lançou-lhe um olhar seco.

- Sou um homem antiquado, rapaz. Hoje em dia acham que todos os homens são iguais. Do ponto de vista moral, não há dúvida. Mas acredito firmemente que as pessoas nascem numa determinada posição social e que serão mais felizes se permane­cerem nela. Além disso, acrescentou, - achei que não era o cara certo. Mais tarde ele provou que eu tinha razão.

- O que foi que ele fez?

- Não me lembro mais. Se não me engano, tentou vender informações obtidas através do escritório de Fane, onde traba­lhava. Era um assunto confidencial relativo a um cliente.

- Ele ficou magoado por ter sido despedido?

Kennedy olhou-o com dureza e respondeu secamente: - ­Ficou.

- Não havia nenhum outro motivo para o senhor desa­provar essa amizade com sua irmã? O senhor não achava que ele era... bem... um pouco esquisito?

- Já que você tocou no assunto, vou ser franco. Eu fiquei com a impressão, principalmente depois de ele ter sido despe­dido, de que Jackie Afflick mostrava certos sintomas de desequi­líbrïo. Tratava-se, na realidade, de uma mania de perseguição incipiente. Mas se venceu na vida dessa maneira, deve ter ficado bom.

- Quem o despediu? Foi Walter Fane?

- Não tenho a menor idéia se Walter Fane estava metido nisso. Ele foi despedido pela firma.

- E queixou-se de que estava sendo vítima de uma injus­tiça?

Kennedy assentiu com a cabeça.

- Compreendo... Bem, temos que partir voando! Até quinta, senhor!

A casa era de construção recente, muito grande, corn imen­sas janelas de vidro. Gwenda e Giles atravessaram um enorme e luxuoso saguão e entraram num escritório em que se via uma grande mesa cromada.

Gwenda murmurou em tom nervoso para Giles:

- Francamente, não sei o que seria de nós sem Mis Mr­ple. Ela resolve tudo. Primeiro aqueles amigos dela em Nortum­berland, e agora essa excursão anual do lube dos Menos, dirigido pela mulher do pastor...

Giles fez sinal para que ficasse quieta ao ver a porta abrir e J. J. Afflick entrar.

Era um homem corpulento, de meia-idade, usando um terno xadrez. Seus olhos eram escuros e astutos, seu rosto era verme­lho e tinha um ar bem-humorado. Parecia um bookmaker bem sucedido.

- Sr. Reed? Bom dia. Prazer em conhecê-lo, disse ele. Giles apresentou Gwenda, cuja mão foi apertada um pouco excessivamente.

- Em que posso ajudâ-lo, Sr. Reed?

Afflick sentou-se à imensa mesa. Ofereceu cigarros que es­tavam dentro de uma caixa de ônix.

Giles começou a falar sobre a excursão do Clube dos Me­ninos. Explicou que o clube era dirigido por amigos dele, e que desejava imensamente organizar um passeio de alguns dias a Devon.

Afflick respondeu imediatamente, em tom de negócios, dan­do preços e fazendo sugestves. Mas sua fisionornia mostrava uma indefinida surpresa.

Finalmente acabou dizendo:

- Bem, acho que está tudo certo, Sr. Reed, e vou lhe man­dar uma carta confirmando. Mas isso é assunto de trabalho e, pelo que meu secretário me disse, o senhor queria um encontro pessoal comigo, em minha residência, não é mesmo?

- Exato, Sr. Afflick. Na realidade queria conversar sobre dois assuntos. Um deles já está resolvido. O outro é um tanto particular. Minha mulher deseja muito entrar em contato com sua madrasta, que não vê há muitos anos, e achamos que talvez o senhor pudesse nos ajudar.

- Bem, digam-me como é o nome dessa senhora... Supo­nho que eu a conheço, não é?

- O senhor a conheceu há muito tempo. Ela se chama Helen Halliday, e antes de casar se chamava Helen Kennedy.

Afflick permaneceu imóvel durante alguns instantes. Arre­galou os olhos e lentamente inclinou a cadeira para trás.

- Helen Halliday... Não me lembro... Helen Kennedy... - De Dillmouth, disse Giles.

A cadeira de Afflick voltou bruscamente à posição normal.

- Já sei! exclamou ele. - É claro! Seu rosto redondo es­tava iluminado por um largo sorriso. - A pequena Helen Ken­nedy! Sim, lembro-me dela. Mas isso faz muito tempo! Deve fazer uns vinte anos.

- Dezoito.

- É mesmo? O tempo voa... Mas acho que vou desapon­tá-la, Sra. Reed. Não vejo Helen desde aquela época. Nunca mais ouvi falar dela.

- Oh, que pena! exclamou Gwenda. - Estou realmente de­sapontada. Tinha tanta esperança no senhor!

- Qual é o problema? Os olhos de Afflick passaram de Gwenda para Giles. - Briga? Fugiu de casa? Questão de di­nheiro?

- Ela foi embora... de repente... de Dillmouth... com alguém... há dezoito anos atrás, respondeu Gwenda.

O tom de Jackie Afflick era divertido.

- E a senhora achou que talvez tivesse fugido comigo? Por quê?

- Porque soubemos que o senhor... e ela... estiveram... bem... gostavam um do outro... há muito tempo.

- Eu e Helen? Oh, mas não foi coisa séria! Só um namoro. Nenhum de nós levava a sério! E acrescentou em tom seco: - Não nos incentivavam...

- O senhor deve estar nos achando muito atrevidos... disse Gwenda. Mas Afflick interrompeu-a.

- O que é que tem? Não sou susceptível. A senhora quer encontrar uma determinada pessoa e acha que eu posso ajudar. Pergunte o que quiser. Não tenho nada a esconder.

Olhou para Gwenda, com um ar pensativo.

- Quer dizer que a senhora é a filha de Halliday?

- Sou. Conheceu meu pai?

Ele sacudiu a cabeça.

- Fui até lá para ver Helen, um dia em que estive em Dill­mnuth a negócios. Contaram-me que ela estava casada e mo­rando lá. Ela foi bastante polida... mas não me convidou para jantar. Não, não conheci seu pai.

Não havia certo rancor no tom de Afflick ao dizer que Helen não o convidara para jantar? pensou Gwenda consigo mesma.

- O senhor se recorda se ela... parecia feliz?

Afflick deu de ombros.

- Acho que sim. Mas isso foi há tanto tempo. Se ela esti­vesse com um ar infeliz eu me lembraria.

E acrescentou com uma curiosidade absolutamente normal:

- Quer dizer que nunca mais soube dela, desde há dezoito anos atrás?

- Exato.

- Não mandou cartas?

- Mandou duas, respondeu Giles, - mas achamos que não foi ,ela quem as escreveu.

- Acham que não foi ela quem escreveu? Afflick parecia estar se divertindo. - Parece um caso meio misterioso...

- É o que estamos achando.

- E o irmão dela, aquele médico? Também não sabe onde ela está?

- Não.

- Compreendo. É bem misterioso, não? Por que não colo­cam um anúncio nos jornais?

- Já colocamos.

- Talvez tenha morrido, observou Afflick com naturalidade.

Gwenda estremeceu.

- Está com frio, Sra. Reed?

- Não. Estava pensando em Helen morta. Não gosto de pensar nela morta.

- Tem razão. Eu também não. Ela era linda!

- O senhor a conheceu. Conheceu-a bem, disse Gwenda impulsivamente. - Eu era muito criança. Como é que ela era? O que é que as pessoas sentiam por ela? O que é que o senhor sentia por ela?

Afflick olhou-a durante alguns instantes.

- Vou ser absolutamente franco, Sra. Reed. Acredite se quiser, mas eu tinha pena dela.

- Pena? Gwenda olhou-o estarrecida.

- Exatamente. Acabou os estudos e voltou para casa. Louca para se divertir, como todas as moças, e lá vinha aquele seu ir­mão com certos preconceitos sobre o que uma moça podia ou não podia fazer! Ela não se divertia nunca. Bem, eu saía com ela e mostrava-lhe um pouco da vida. Não gostava realmente dela, nem ela de mim. Gostava mesmo era da sensação de sair escon­dida. Depois descobriram que estávamos nos encontrando e ele acabou com tudo. Não foi culpa dele, sabe? Helen tinha uma situação melhor que a minha. Não chegamos a ficar noivos, nem nada disso. Eu pretendia me casar, mas só quando fosse mais velho. Queria subir na vida e encontrar uma mulher que me ajudasse a fazê-lo. Helen não tinha dinheiro e não signifi­caria o tipo de casamento que eu desejava. Éramos apenas bons amigos, com um certo namoro em tudo isso.

- Mas o senhor deve ter ficado com raiva do doutor...

Gwenda fez uma pausa e Afflick respondeu : - Não nego que fiquei aborrecido. Não tem graça dizerem para a gente que a gente não serve, mas não adianta ser muito sensível...

- E depois o senhor perdeu o emprego, não é? perguntou Giles.

Afflick fechou a cara.

- Fui despedido do escritório de Fane e Watchman. E acho que sei muito bem quem foi o responsável por isso.

- Não me diga! exclamou Giles.

Afflick sacudiu a cabeça.

- Não estou afirmando nada, mas tenho cá minhas idéias. Cai numa cilada - foi isso mesmo - e acho que sei muito bem quem armou tudo. E por que motivo! Seu rosto estava rubro. - Espionar um homem, armar ciladas, inventar mentiras a seu respeito... Trabalhinho sujo! Oh, tive inimigos, mas eles nunca conseguiram me derrotar. Sempre dei o troco. E jamais esqueço!

Parou de falar. Subitamente modificou seu tom e voltou a ser cordial.

- De modo que sinto muito, mas não posso ajudá-la. Helen e eu nos divertíamos um pouco juntos - foi só isso. Nada além disso.

Gwenda olhou-o fixamente. Era uma história bastante plau­sível... mas seria verdade? Alguma coisa destoava e ela subita­mente percebeu o que era.

- Mas mesmo assim, observou ela - o senhor procurou-a mais tarde, quando foi a Dillmouth.

Afflick riu.

- Nisso a senhora tem razão, Sra. Reed. É verdade. Talvez eu quisesse mostrar a ela que eu não ficara por baixo apenas porque um advogado qualquer me despediu do escritório. Meus negócios iam bem, eu guiava um carro último tipo e estava muito bem de vida.

- O senhor foi vê-la mais de uma vez, não foi?

Afflick hesitou um instante.

- Duas... talvez três vezes. Só dei um pulinho até lá. Sinto muito não poder ajudá-la, respondeu ele, dando a entender que a conversa chegara ao fim.

Giles levantou-se.

- Desculpe ter tomado seu tempo, disse ele.

- Não tem importância. É até bom falar de antigamente, para variar.

A porta abriu, uma mulher olhou para dentro e pediu des­culpas.

- Oh, sinto muito! Não sabia que você estava com vi­sitas...

- Entre, querida, entre! Deixe-me apresentar você. Esta é minha mulher. Sr. e Sra. Reed.

A Sra. Afflick cumprimentou o casal. Era uma mulher alta, magra, de fisionomia depressiva, vestida com roupas surpreen­dentemente bem cortadas.

- Estivemos conversando sobre os velhos tempos, disse o Sr. Afflick. - Antes de eu conhecer você, Dorothy.

Virou-se para o casal.

- Conheci minha mulher durante uma viagem, disse ele. - Ela não é daqui. É prima de Lord Polterham.

Falava com orgulho. Sua mulher enrubesceu.

- Viajar é uma coisa muito boa, disse Giles.

- É bastante educativo, replicou Afflick. - Bem, eu não tive lá uma grande educação.

- Sempre digo a meu marido que precisamos fazer um cruzeiro às ilhas gregas, disse a Sra. Afflick.

- Não tenho tempo. Sou um homem muito ocupado.

- Não queremos tomar seu tempo, disse Giles. Até logo, e obrigado. Por favor, não deixe de confirmar o preço da ex­cursão.

Afflick acompanhou-os até à porta. Gwenda olhou para trás. A Sra. Afflick estava em pé junto à porta do escritório. Seu olhar, fixo no marido, demonstrava curiosidade e apreensão.

Giles e Gwenda despediram-se novamente e dirigiram-se para o carro.

- Esqueci meu cachecol! exclamou Gwenda.

- Você sempre esquece alguma coisa, retorquiu Giles.

- Não precisa reclamar. Eu mesma vou buscar.

Gwenda correu de volta à casa e entrou. Através da porta aberta do escritório, ouviu Afflick reclamando em voz alta:

- Por que é que você tem que se meter em tudo? Isso não tem sentido!

- Sinto muito, Jackie. Eu não sabia. Quem são essas pes­soas? Por que deixaram você tão perturbado?

- Não fiquei perturbado. Eu... Interrompeu a frase ao ver Gwenda junto à porta.

- Oh, Sr. Afflick, acho que esqueci meu cachecol!

- Cachecol? Não, Sra. Reed. Não ficou aqui.

- Oh, então deve estar no carro! E tornou a sair.

Giles manobrara para sair. Junto à calçada estava uma grande limosine amarela, cheia de cromados.

- Que carro! exclamou Giles.

- Um carro último tipo, observou Gwenda. - Lembra, Giles? Lembra do que Edith Pagett disse quando estava falando de Lily? Ela falou num "homem misterioso com um carro ba­cana, último tipo"! Você não está vendo que o homem misterioso do carro bacana era Jackie Afflick?

- É, respondeu Giles. - E na carta para Kennedy, Lily falou num carro último tipo.

Os dois olharam um para o outro.

- Ele estava lá... no local, como diria Miss Marple, - na­quela noite. Oh, Giles, mal posso esperar a quinta-feira para ouvir o que Lily Kimble tem a contar! exclamou Gwenda.

- E se ela mudar de idéia e não aparecer?

- Oh, ela vai aparecer! Giles, se aquele carto espalhafatoso estava lá naquela noite...

- Será que era amarelo como esse aí?

- Estão admirando meu carro? A voz jovial de Afflick lhes deu um sobressalto. Estava apoiado na cerca-viva, bem atrás deles. - Costumo chamá-lo de "Botão de Ouro". Sempre gostei de carros bonitos. Esse aí dá para chamar a atenção, não é?

- Não há dúvida, respondeu Giles.

- Gosto muito de flores disse Afflick. - Narcisos, botões-de-ouro, calceolárias... essas são as minhas preferidas. Aqui está seu cachecol, Sra. Reed. Tinha caído atrás da mesa. Até logo. Prazer em conhecê-los!

- Acha que ouviu nossa conversa sobre o carro? perguntou Gwenda, depois de partirem.

Giles fez uma cara desapontada.

- Oh, acho que não! Ele foi tão amável!

- É... mas isso não quer dizer nada... Giles, aquela mu­lher. .. tem medo dele. Notei isso em sua expressão.

- O que? Medo daquele sujeito alegre e cordial?

- Talvez no fundo ele não seja tão cordial assim... Giles, acho que não gostei do Sr. Afflick ... Durante quanto tempo ele terá ouvido a nossa conversa? O que foi que dissemos exa­tamente?

- Nada demais, respondeu Giles.

Mas, ainda assim, ele parecia pouco à vontade.

 

LILY VAI AO ENCONTRO

- ­Raios, não entendo mais nada! exclamou Giles.

Acabara de abrir uma carta que chegara pelo correio da tarde e olhava-a com ar atônito.

- O que foi?

- É o relatório dos peritos em grafologia.

- E não foi ela quem escreveu a carta?

- Aí é que está, Gwenda. - Foi ela!

Gwenda e Giles se entreolharam fixamente.

- Então as cartas não eram falsas! exclamou Gwenda com ar incrédulo. Eram autênticas! Helen foi embora da casa, naquela noite. E escreveu do exterior. E quer dizer que não foi estrangulada?

- Parece, respondeu Giles. - Mas é muito estranho. Não compreendo. Logo agora, que tudo indica outra coisa...

- Quem sabe os peritos se enganaram?

- Pode ser, mas eles estão muito seguros do que dizem. Gwenda, eu realmente não entendo mais nada. Será que estamos fazendo papel de palhaços?

- Baseados no que me aconteceu no teatro? Olha, Giles, vamos conversar com Miss Marple. Dá tempo para ir lá e chegar em casa de Kennedy às quatro e meia.

Miss Marple, no entanto, reagiu de maneira bem diferente da que eles haviam imaginado. Achou que era muito bom.

- Mas, minha querida Miss Marple, disse Gwenda, - o que é que a senhora quer dizer com isso? ~

- Quero dizer, querida, que alguém não foi tão esperto quando podia ter sido.

- Mas como? De que modo? .

- Foi um esquecimento, afirmou Miss Marple com ar satisfeito.

- Mas como?

- Bem, Sr. Reed, o senhor certamente está compreendendo como isso torna as coisas mais definidas.

- Suponho que Helen realmente tenha escrito as cartas, a senhora acha que mesmo assim ela pode ter sido assassinada?

- Acho que era muito importante, para alguém, que as cartas fossem escritas com a letra de Helen.

- Compreendo.. . Ou, pelo menos, acho que compreendo. É possível que, diante de certas circunstâncias, Helen tenha sido forçada a escrever essas cartas... Isso tornaria as coisas mais definidas. Mas que circunstâncias seriam essas?

- Ora, Sr. Reed, o senhor não está raciocinando! É simplís­simo!

Giles fez um ar teimoso e aborrecido.

- Garanto que para mim não é tão simples assim.

- É só questão de raciocínio ...

- Venha, Giles, disse Gwenda. - Vamos chegar atrasados.

Partiram, e Miss Marple ficou sorrindo sozinha.

- Às vezes essa velha me irrita, disse Giles. - Não sei onde ela quer chegar!

Às quatro e meia estavam em casa de Kennedy. Foi o próprio médico quem abriu a porta.

- Mandei a empregada passar a tarde fora, disse ele. ­Achei que seria melhor.

Levou o casal para a sala, onde estava uma bandeja com xicaras e pratinhos, pão, manteiga e bolos.

- Achei que tomar chá era uma boa idéia, não é? pergun­tou ele a Gwenda. - Para botar essa Sra. Kimble à vontade...

- Acho ótimo! respondeu Gwenda.

- Bem, e vocês dois? Devo apresentá-los logo, ou será que isso vai atrapalhar?

- As pessoas do interior são muito desconfiadas, observou Gwenda. - Acho melhor o senhor recebê-la sozinho.

- Também acho, disse Giles.

- Se vocês ficarem na sala ao lado e deixarmos a porta de comunicação entreaberta, poderão ouvir a conversa, sugeriu Kennedy. - Acho que, diante das circunstâncias, isso se justifica.

- Acho que é uma indiscrição, mas não me incomodo, respondeu Gwenda.

Kennedy deu um vago sorriso. - Acho que não estamos que­brando nenhum princípio ético. De qualquer modo não pretendo prometer segredo, apesar de estar disposto a dar o conselho pedido.

Olhou para o relógio.

- O trem chega em Woodleigh Road às quatro e trinta e cinco, isto é; daqui a poucos minutos. Da estação até aqui se leva uns cinco minutos a pé.

Kennedy andava para um lado e para outro. Estava agitado e abatido.

- Não compreendo, disse ele. - Não compreendo o que isso significa. Se Helen nunca saiu da casa... se as cartas eram falsas... Gwenda ia dizer alguma coisa, mas Giles fez-lhe sinal para que ficasse em siléncio. O médico prosseguiu. - Se Kelvin, coitado, não a matou, o que pode ter acontecido?

- Outra pessoa a matou, respondeu Gwenda.

- Mas, minha cara, se outra pessoa a matou, por que havia Kelvin de insistir que foi ele?

- Porque ele achava que era ele. Encontrou-a caída na cama e achou que tinha sido ele. Isso pode ter acontecido, não pode?

Kennedy esfregou a ponta do nariz, com ar irritado.

- Como é que posso saber? Não sou psiquiatra! Choque? Esgotamento nervoso? É, suponho que seja possível... Mas quem podia querer matar Helen?

- Estamos pensando em três pessoas, disse Gwenda.

- Três pessoas? Quem são essas três pessoas? Ninguém tinha motivo para matar Helen... a menos que estivesse louco! Ela não tinha inimigos. Todos gostavam dela.

Aproximou-se da escrivaninha e abriu a gaveta.

- Encontrei isto outro dia... quando estava procurando as cartas.

Estendeu uma fotografia amarelada, na qual se via uma menina alta, de uniforme de ginástica, rabo-de-cavalo, um sor­riso radioso. Kennedy, um Kennedy mais moço, com ar feliz, estava a seu lado, segurando um cachorrinho.

- Tenho pensado muito nela, ultimamente, disse ele. - Há muitos anos não pensava nela.. . tinha quase conseguido esque­cer... Agora não paro de pensar nela. Isso é culpa de vocês!

Falava em tom acusador.

- Acho que a culpa é dela, retorquiu Gwenda.

- Como assim?

- Isso mesmo. Não sei explicar, mas não somos nós. É a própria Helen.

Um apito de locomotiva ecoou ao longe. Kennedy olhou pela janela. Ao longo do vale via-se um rastro de fumaça.

- Lá vai o trem, disse Kennedy.

- Chegando na estação?

- Não, partindo. Fez uma pausa.

- Ela vai chegar a qual­quer momento.

Mas os minutos passavam e Lily Kimble não chegava.

 

Lily Kimble saltou do trem em Dillmouth Junction e atra­vessou a ponte para chegar ao lado oposto, onde o pequeno trem local estava à espera. Os passageiros eram poucos. No máximo uns seis. Era uma hora morta e, de qualquer modo, era dia de mercado em Helchester.

O trem partiu através do vale tortuoso. Havia três estações antes do final da linha, em Lonsbury Bay: Newton Langford, Matchings Halt, ou Woodleigh Camps, e Woodleigh Bolton.

Lily Kimble olhava pela janela com olhos que não viam o verde da paisagem, mas sim um conjunto de sofá e poltronas estofados de verde jade.

Foi a única pessoa a descer na pequenina estação de Mat­chings Halt. Entregou seu bilhete e saiu através do escritório de reservas da estação. Mais adiante, no caminho, havia uma placa com a inscrição "Woodleigh Post", indicando o atalho que subia por uma íngreme colina.

Lily Kimble tomou o atalho e subiu pelo caminho em passos rápidos. O atalho passava ao longo de um bosque e, do outro lado, a encosta da colina era coberta de tojo e urzes.

Alguém saiu de dentro do bosque e Lily Kimble recuou, amedrontada.

- Que susto! exclamou ela. - Não esperava encontrá-lo aqui!

- Que surpresa, não é? Pois tenho mais uma surpresa para você!

O bosque era deserto. Ninguém poderia ouvir um grito ou um barulho de luta. Na realidade não houve grito e a luta logo terminou. Um pombo selvagem levantou vôo...

 

- O que será que aconteceu com a mulher? perguntou Kennedy com ar irritado.

Os ponteiros do relógio marcavam dez para as cinco.

- Será que se perdeu a caminho daqui?

- Expliquei muito bem qual era o caminho. Aliás, é sim­plissimo. Basta virar à esquerda ao sair da estação e depois pegar a primeira estrada à direita. Como já disse, é urna caminhada de apenas alguns minutos.

- Talvez tenha desistido, observou Giles.

- Está parecendo que sim.

- Ou talvez tenha perdido o trem, sugeriu Gwenda.

- Não. Acho mais provável que ela tenha decidido não vir. Talvez o marido tenha proibido. Essa gente do interior é sempre imprevisível.

Continuou andando para um lado e para outro.

Em seguida aproximou-se do telefone e fez uma ligação.

- Alô! É da estação? Aqui fala Dr. Kennedy. Eu estava esperando uma pessoa que vinha no trem de quatro e trinta e cinco. Uma mulher de meia-idade. Alguém perguntou onde fi­cava minha casa?

Giles e Gwenda estavam suficientemente perto para ouvir a voz arrastada do único carregador de Woodleigh Bolton.

- Acho que essa pessoa não veio, doutor. Não tinha nin­guém desconhecido no trem das quatro e trinta e cinco. Tinha só o Sr. Narracott, de Meadows, Johnnie Lawes e a filha do velho Benson. Não tinha mais nenhum passageiro.

- Bem, quer dizer que ela mudou de idéia, disse Kennedy. - Bom, posso tomar chá com vocês. A água está fervendo na chaleira. Vou preparar o chá.

Voltou com o bule de chá e todos se sentaram.

- É um atraso apenas temporário, disse ele em tom mais animado. - Temos o seu endereço. Talvez possamos ir lá con­versar com ela.

O telefone tocou e Kennedy levantou-se para atender.

- Dr. Kennedy?

- Sïm.

- Aqui fala o Inspetor Last, da polícia de Longford. O se­nhor estava esperando uma mulher chamada Lily Kïmble

- Sra. Kimble?

- Estava. Por quê? Houve algum acidente?

- Não se trata propriamente de um acidente. Ela está morta. Estou lhe telefonando porque encontramos uma carta sua junto ao corpo. Será que o Senhor pode vir à polícia o mais rápido possível?

 - Irei imediatamente.

 

- Bem, vamos esclarecer bem os fatos, dizia o Inspetor Last.

Olhou para Kennedy, Giles e Gwenda, que tinham acompa­nhado o médico. Gwenda estava muito pálida e apertava forte­mente as mãos uma contra a outra.

- O senhor Estava esperando essa mulher pelo trem que sai de Dillmouth Junction às quatro e cinco, e chega em Woodleigh Bolton às quatro e trinta e cinco?

Dr. Kennedy fez sinal que sim.

O Inspetor Last olhou para a carta que encontrara junto ao corpo.

 

Prezada Senhora Kimble:

Terei o maior prazer em Ihe dar a melhor orientação possí­vel. Como poderá ver, no alto desta página, não moro mais em Dillmouth. A senhora pode tomar o trem que sai de Coom­beleigh às três e trinta, fazer uma baldeação em Dillmouth Junc­tion e tomar o trem de Lonsbury Bay para Woodleigh Bolton. Minha casa fica no final do caminho, à direita. No portão há uma placa com meu nome.

Atenciosamente, James Kennedy.

 

- Não se falou em sua vinda num trem que chegava mais cedo?

- Mais cedo?

Kennedy fez um ar espantado.

- Foi isso o que ela fez. Saiu de Coombeleigh à uma e meia - e não as três e meia - pegou o trem das duas e cinco em Dillmouth Junction e saltou em Matchings Halt, a estação que fica antes de Woodleigh Bolton.

- Mas isso é fantástico!

- Tratava-se de uma consulta profissional, doutor?

- Não. Deixei a clínica há muitos anos.

- Era o que eu achava. O senhor a conhecia bem?

Kennedy sacudiu a cabeça.

- Não a via há quase vinte anos.

- Mas o senhor... reconheceu-a agora.

Gwenda estremeceu, mas um cadáver não perturba um mé­dico. Kennedy respondeu, pensativamente: - Diante das circunstâncias, acho difícil dizer se a reconheci ou não. Suponho que tenha sido estrangulada, não foi?

- Exatamente. O corpo foi encontrado num bosque pró­ximo ao atalho que vai de Matching Halt para Woodleigh Camp. Quem o encontrou foi um excursionista que estava caminhando a pé, vindo de Woodleigh Camp. Isso foi às dez para as quatro. Nosso legista calcula que ela morreu entre duas e quinze e três horas. Provavelmente foi assassinada pouco depois de sair da estação. Nenhum outro passageiro saltou em Matchings Halt. Ela foi a única pessoa a descer nesse lugar.

- Bem, por que foi que ela saltou em Matchings Halt? prosseguiu o inspetor. - Terá se enganado? Acho que não. De qualquer modo, estava com um adiantamento de mais de duas horas para o encontro com o senhor, e não tomou o trem que foi sugerido, apesar de trazer sua carta na bolsa. Sobre que as­sunto iam conversar, Dr. Kennedy?

Kennedy enfiou a mão no bolso e retirou a carta de Lily. - Trouxe isto comigo. O recorte é um anúncio colocado pelo Sr. e Sra. Reed.

O Inspetor Last leu a carta de Lily Kimble e o anúncio. Em seguida olhou para Giles e Gwenda.

- Gostaria de conhecer a história que está por trás de tudo isso. Suponho que remonte há muito tempo atrás, não é?

Aos poucos, com muitos parênteses e acréscimos, a história foi contada. O Inspetor Last era bom ouvinte, Deixou que as três pessoas a sua frente contassem as coisas à sua moda. Ken­nedy foi seco e prático. Gwenda mostrou-se ligeiramente incoe­rente, mas sua narrativa tinha um grande poder de imaginação. A contribuição mais valiosa foi dada por Giles, que falou com clareza, sem sair do assunto, de modo menos reservado que o de Kennedy e mais coerente que o de Gwenda. A história toda demorou muito tempo.

O Inspetor Last suspirou e fez um resumo.

- A Sra. Halliday era irmã do Dr. Kennedy e era sua ma­drasta, Sra. Reed. Desapareceu da casa onde a senhora mora atualmente há dezoito anos atrás. Lilly Kimble, cujo nome de solteira era Abbott, era empregada da casa naquela época. Por algum motivo, depois de anos, Lily Kimble acha que houve um crime. Na ocasião, concluiu-se que a Sra. Halliday tinha fugido com um homem de identidade desconhecida. O Major Halliday faleceu numa clínica psiquiátrica há quinze anos atrás, ainda com a idéia fixa de que tinha estrangulado sua mulher... se é que era uma idéia fixa ...

Fez uma pausa.

- Todos esses fatos são muito interessantes, mas o principal é sabermos o seguinte: A Sra. Halliday está viva ou morta? Se estïver morta, quando morreu? E o que é que Lily Kimble sabia?

- Parece, diante das cïrcunstâncias, prosseguiu o inspetor, - que ela sabia alguana coisa muito importante. Tão impor­tante que foi assassinada para evitar que falasse sobre o assunto.

- Mas como é que alguém., a não ser nós, podia saber que ela falaria sobre o assunto? exclamou Gwenda.

- O fato de ela ter tomado o trem das duas e cinco em Dillmouth Junction, em vez do de quatro e cinco, é bastante significativo, Sra. Reed. Deve ter havido alguma razão para isso. E por que saltou na estação anterior a Woodleigh Bolton? Por quê? Parece-me possível que, depois de ter escrito ao Dr. Kennedy, ela tenha feito o mesmo a outra pessoa, marcando um encontro em Woodleigh Camps. Caso esse encontro não fosse satisfatório, iria então aconselhar-se com o Dr. Kennedy. É possível que ela suspeitasse de alguém e que tenha escrito para essa mesma pessoa, insinuando que sabia alguma coisa e marcando um encontro.

- Chantagem... observou Giles.

- Acho que não era essa a sua maneira de ver a coisa, respondeu o Inspetor Last. - Ela era apenas ambiciosa e estava meio confusa quanto ao que conseguiria obter. Vamos ver... Talvez o marido possa nos dizer mais alguma coisa.

 

- Eu avisei a ela, bem que avisei, disse o Sr. Kimble em tom deprimido. - Não se meta nessa encrenca! Foi assim que falei para ela. Saiu escondida de mim. Achou que ela sabia o que fazer. Lily era assim mesmo. Toda metida a esperta.

O interrogatório mostrou que o Sr. Kimble pouco tinha a contar.

Lily trabalhara em St. Catherine antes de ele conhecê-la e começar a sair com ela. Gostava muito de cinema e lhe dissera que, quer acreditasse ou não, ela havia trabalhada numa casa onde tinha havido um assassinato.

- Não prestei muita atenção, nem liguei. Achei que era tudo imaginação. Lily nunca se contentava com explicações sim­ples. Contou uma história incrível, dizendo que o patrão tinha matado a patroa e talvez tivesse escondido o corpo no porão... e falou também numa moça francesa que olhou pela janela e viu alguma coisa ou alguém. Eu disse a ela: - Minha filha, não ligue para o que esses estrangeiros contam. São todos uns men­tirosos. Não são como nós. E quando, ela ficava falando nisso eu nem prestava atenção, porque ela estava imaginando tudo. Lily gostava muito de crimes. Comprava sempre o Sunday News para ler a seção de Assassinos Famosos. Ficara toda empolgada e, afinal, se ela gostava de achar que tinha trabalhado numa casa onde houve um crime... bem, pensar não faz mal a nin­guérn, não é? Mas, quando ela começou a querer responder a esse anúncio, eu disse para ela: - Deixe isso para lá. Não se meta nessa encrenca! Se tivesse feito o que eu falei, estaria viva.

Ficou pensativo durante alguns instantes.

- Ahn ... murmurou finalmente. - Estaria viva... Era muito metida a esperta. Lily era assim mesmo...

 

QUAL DELES?

Giles e Gwenda não foram interrogar o Sr. Kimble junto com o Inspetor Last e Kennedy. Por volta das sete horas foram para casa. Gwenda estava pálida e indisposta. Kennedy dissera a Giles que fizesse Gwenda tomar um pouco de conhaque, co­mer alguma coisa e ir para a cama, pois tivera um grande choque.

- É horrível, Giles, repetia ela sem cessar. - Horrível! Coi­tada da mulher, marcou um encontro com o assassino e foi toda confiante... para ser assassinada! Como um carneirinho...

- Não pense mais nisso, querida. Afinal de contas nós não sabíamos que havia mais alguém - um assassino.

- É verdade. Não sabíamos que havia um assassino agora. Quer dizer, havia um assassino naquela época... há dezoito anos atrás. É uma coisa meio irreal. Quem sabe foi tudo engano?

- Bem, isso prova que não foi engano. Você tinha razão, Gwenda.

Giles alegrou-se ao encontrar Miss Marple em Hillside. Miss Marple, assim como a Sra. Cocker, insistiram para que Gwenda tomasse um conhaque, mas ela se recusou, alegando que conhaque sempre lhe lembrava a travessia da Mancha. Final­mente acabou aceitando um uisque quente com limão e depois, por insistência da Sra. Cocker, sentou-se e comeu um omelete.

Gïles queria falar de outro assunto, mas Miss Marple, com sua tática especial, fez questão de discutir o crime de modo tran­qüilo e distante.

- Horrível, meu caro, disse ela. - E também muito cho­cante, mas inegavelmente significativo. Evidentemente, como sou muito velha, a morte não me choca tanto quanto a vocês, a não ser que se trate de uma coisa prolongada e que faça sofrer, como um câncer, por exemplo. O ponto mais importante é que isso prova em definitivo,. sem qualquer sombra de dúvida, que a po­bre Helen Halliday foi assassinada. Sempre achamos isso e agora temos certeza.

- E, segundo a senhora, dev íamos saber onde está o corpo, disse Giles. - Suponho que esteja no porão.

- Não, Sr. Reed. Lembre-se de que Edith Pagett disse que na manhã seguinte foi ao porão, porque estava impressionada com o que Lily tinha falado, e não encontrou nenhum sinal de nada. E se houvesse algum sinal ela teria achado.

- Então o que foi feito do corpo? Levaram embora de carro e atiraram ao mar, do alto de um penhasco?

- Não. Escutem, queridos, o que foi que chamou a atenção de vocês - ou melhor, a sua atenção, Gwenda, quando veio aqui pela primeira vez? O fato de que da janela da sala não se via o mar. No local em que você achou, e com toda razão, que deveria haver degraus para descer até o gramado, havia uma porção de arbustos. Mais tarde você descobriu que os degraus originais eram ali, mas que em alguma época construiram ou­tros degraus na ponta do terraço. Por que foi que mudaram o local?

Gwenda olhou-a fixamente, começando a compreender.

- A senhora acha então que foi ali que...

Deve ter havido algum motivo ara a alteração, pois foi uma alteração que não tem sentido um lugar idiota para co­locar degraus que descem até o gramado. Mas aquela ponta do terraço é um lugar muito sossegado - só é visto da casa através de uma janela - a janela do quarto de crianças, no primeiro andar. Vejam bem, se alguém quer enterrar um corpo a terra vai ficar remexida, e é preciso que haja um motivo para isso. O motivo alegado foi o de que se decidiu mudar os degraus para a ponta do terraço. Kennedy me contou que Helen Halliday e o marido gostavam muito do jardim e viviam mexendo nele. O jardineiro se limitava a cumprir ordens e se, ao chegar para o trabalho, encontrasse algumas pedras fora do lugar, acharia apenas que o casal começara o trabalho durante sua ansência. Naturalmente, o corpo pode ter sido enterrado em qualquer dos dois lugares, mas acho que podemos ter quase certeza de que foi enterrado na ponta do terraço, e não na frente da janela da sala.

- Como podemos ter certeza? perguntou Gwenda.

- Por causa do que a pobre Lily Kimble disse na carta - que mudou de idéia quanto ao corpo ter sido enterrado no porão por causa do que Léonie viu quando olhou pela janeia. Isso torna as coisas bem mais claras, não acham? Durante a noite a moça olhou pela janela e viu escavarem um buraco na terra. Talvez ela tenha visto até quem estava cavando.

- E nunca foi dizer nada à polícia?

- Minha cara, naquela época ninguém estava pensando em crime. A Sra. Halliday tinha fugido com um amante. Léonie só sabia disso e, de qualquer modo, mal falava inglês. Contou para Lily que tinha visto um fato estranho, quando olhou pela janela naquela noite, e isso aumentou a crença de Lily de que tinha havido um crime. Pode ser que tenha contado isso mais tarde, e não no mesmo dia. Mas não tenho dúvida de que Edith Pagett disse a Lily que parasse de inventar bobagens, e a moça suíça resolveu seguir esse conselho porque não queria se meter com a policia. Os estrangeiros sempre têm medo da polícia quan­do estão em outro país. De modo que ela voltou para a Suiça e provavelmente nunca mais pensou no assunto.

- Se ela ainda estivesse viva... murmurou Giles. - Se pudesse ser encontrada...

- Quem sabe? disse Miss Marple.

- O que devemos fazer? perguntou Giles.

- A polícia saberá melhor que nós o que se deve fazer, respondeu Miss Marple.

- O Inspetor Last vem aqui amanhã de manhã.

- Então acho que devia falar a ele... sobre os degraus. - E quanto ao que vi... ou acho que vi... no saguão? perguntou Gwenda em tom nervoso.

- Bem, querida, acho que voce fez muito bem em não ter falado nada sobre isso até o momento. Fez muito bem. Mas acho que está na hora de contar tudo.

- Ela foi estrangulada no saguão, disse Giles lentamente, - e depois o assassino a carregou para cima e colocou-a na cama. Kelvin Halliday chegou em casa, ficou inconsciente com a droga que tinham posto no uísque e foi, por sua vez, carregado para o quarto. Voltou a si e pensou que matara a mulher. O as­sassino devia estar à espreita em algum lugar. Quando Kelvin saiu para ir procurar Kennedy, o assassino pegou o corpo e pro­vavelmente o escondeu no meio dos arbustos da ponta do terraço. Depois esperou até que todos estivessem dormindo, cavou um buraco e enterrou o corpo. Isso quer dizer que ele deve ter fi­cado por aqui, dentro de casa, quase toda a noite.

Miss Marple assentiu com a cabeça.

­- Ele tinha de estar no local, prosseguiu Giles. Lembro-me de que a senhora falou que isso era importante. Temos que ver qual dos nossos três suspeitos encaixa na história. Vamos começar por Erskine. Não há dúvida de que estava no local. Ele mesmo disse que subiu com Helen até aqui, vindo da praia, por volta das nove horas. Disse-lhe adeus. Mas será mesmo que disse adeus, ou a estrangulou?

- Mas estava tudo acabado entre eles! exclamou Gwenda. - Há muito tempo! Ele mesmo disse que quase nunca ficava a sós com Helen.

- Você tem que entender, Gwenda, que agora não pode­mos mais nos basear em nada do que qualquer pessoa disse!

- Fico muito satisfeita em ouvi-lo falar isso, observou MissMarple, - porque fiquei um pouco preocupada ao ver vocês dois aceitarem como verdadeiras todas as coisas que as pessoas disseram. Talvez eu seja uma pessoa bastante desconfiada, mas, num caso de assassinato, faço questão de não acreditar em nada que não possa ser provado. Por exemplo, parece certo que Lily Kimble disse que as roupas que desapareceram não seriam as roupas escolhidas por Helen Halliday. Edith Pagett contou que Lily disse isso a ela, e a própria Lily referiu-se ao fato na carta para Kennedy. Bem, então isso é um fato. Kennedy nos disse que Kelvin Halliday achava que sua mu lher estava lhe dando drogas e, no seu diário, Kelvin Halliday o confirma. Portanto, há outro fato... e um fato bastante interessante, não acham? Bem, mas não vamos falar nisso por enquanto.

- Mas o que eu gostaria de ressaltar, prosseguiu Miss Marple, - é que muitas das suposições que vocês fizeram se baseavam no que foi dito a vocês, e provavelmente foram afir­mações muito plausíveis.

Giles olhou fixamente para. ela.

Gwenda, já refeita, tomava café e estava apoiada sobre a mesa.

- Vamos verificar o que três pessoas nos contaram, disse Giles. - Vamos começar por Erskine. Ele disse...

- Você cismou com ele, interrompeu Gwenda. - É perda de tempo, porque agora ele está definitivamente afastado. Não poderia ter matado Lily Kimble.

Giles prosseguiu sem se deixar perturbar.

- Ele disse que conheceu Helen no navio a caminho da Índia, e que os dois se apaixonaram, mas que ele não conseguiu tomar a decisão de abandonar a mulher e os filhos, concorda­ram, então, em se dizerem adeus. Vamos supor que não tenha sido bem assim. Vamos supor que ele se tenha apaixonado per­didamente por Helen e que ela não quis fugir com ele. Vamos supor que ele a ameaçou de morte caso se casasse com outro homem.

- É muito pouco provável, observou Gwenda.

- Essas coisas acontecem. Lembre-se do que você ouviu a mulher dele dizer. Você acha que é tudo ciúmes, mas pode ter sido verdade. Talvez ela tenha passado um mau bocado com ele em relação a mulheres. Pode ser que ele seja um maníaco sexual.

- Acho que não.

- Você acha que não porque ele atrai as mulheres. Pes­soalmente, acho que há alguma coisa estranha em relação a Erskine. Bem, mas vamos continuar minha teoria sobre ele. Helen rompe o noivado com Fane, volta para a Inglaterra, casa com seu pai e vem morar aqui. De repente, Erskine aparece. Vem passar as férias aqui com a mulher. É uma coisa realmente muito esquisita. Ele admite que veio para tornar a ver Helen. Bem, vamos supor que Erskine fosse o homem que estava na sala com ela no dia em que Lily a ouviu dizer que tinha medo dele. - Eu tenho medo de você... Sempre tive medo de você... Acho que você é doido...

- E, porque ela está com medo, planeja ir morar em Nor­folk, mas faz segredo disso. Ninguém deve ficar sabendo. Nin­guém deve ficar sabendo até o casal Erskine ir embora de Dill­mouth. Até aí tudo encaixa. Agora vamos à noite fatídica. Não sabemos o que o casal Halliday estava fazendo naquela noite, mais cedo ...

Miss Marple pigarreou.

- Por falar nisso, tornei a conversar com Edith Pagett. Ela se lembra de que naquela noite jantaram cedo - às sete horas ­porque o Major Halliday ia a uma reunião - ela acha que era no Golf Club ou então na igreja. A Sra. Halliday saiu depois do jantar.

- Certo. Helen encontra Erskine, tendo marcado um en­contro na praia. Ele vai partir no dia seguinte. Talvez não queira mais ir. Insiste para que Helen fuja com ele. Ela volta para casa e ele vem junto. Finalmente, num acesso de loucura, ele a estran­gula. Quanto ao que se segue estamos todos de acordo. Ele quer que Kelvin Halliday pense que foi ele quem a matou. Mais tar­de, Erskine enterra o corpo. Lembrem-se de que ele disse a Gwenda que voltou para o hotel muito tarde porque ficou an­dando por Dillmouth.

- O que será que a mulher dele estava fazendo? perguntou Miss Marple.

- Provavelmente estava louca de ciúmes, disse Gwenda, - e fez um escândalo quando ele chegou.

- É o que imagino, disse Giles. - E é possível.

- Mas ele não poderia ter matado Lily Kimble, observou Gwenda, - porque ele mora em Northumberland. Portanto, pen­sar que foi ele é pura perda de tempo. Vamos a Walter Fane.

- Certo. Walter Fane é um sujeito reprimido. Parece dócil, amável, facilmente comandado. Mas Miss Marple nos deu um testemunho muito valioso. Em certa ocasião Walter Fane ficou com tanta raiva que quase matou o irmão. Evidentemente, era apenas uma criança, mas foi um fato que espantou a todos, porque aparentemente tinha um temperamento tão bom... Bem, Walter Fane apaixona-se por Helen Kennedy. Fica louco por ela. Ela não liga para ele e este vai para a Índia. Mais tarde ela escreve dizendo que vai casar com ele. Parte para a Índia. Aí vem o segundo golpe. Assim que chega lá ela rompe tudo. Co­nheceu alguém no navio. Volta para a Inglaterra e se casa com Kelvin Halliday. Possivelmente Walter Fane acha que Kelvin Halliday foi o pivô da história. Fica ressentido, com ódio, louco de ciúmes, e volta para cá. Comporta-se de maneira toda afável e amiga, freqüenta a casa, torna-se aparentemente um bichinho de estimação. Mas talvez Helen perceba que não é verdade. Vê o que está por trás das aparências. Talvez, muito tempo antes, tenha percebido algo estranho no jovem Walter Fane. Diz para ele: - Acho que sempre tive medo de você. Planeja secretamente ir embora de Dillmouth e morar em Norfolk. Por quê? Porque está com medo de Walter Fane.

- Bem, voltamos à noite fatídica, prosseguiu Giles. - Agora não estarnos pisando em terreno firme. Não sabemos o que Walter Fane estava fazendo naquela noite e não vejo possibili­dade de chegarmos a descobrir. Mas ele estava no local, visto que morava numa casa localizada a dois ou três minutos a pé. Pode ser que tenha dito que ia para a cama cedo porque estava com dor de cabeça, ou que ficaria trabalhando no escritório, qualquer coisa nesse gênero. Podia ter feito todas as coisas que achamos que o assassino fez e, na minha opinião, seria o mais suscetível dos três de cometer erros ao arrumar a mala, pois não conhece as mulheres e não saberia escolher as roupas certas.

- Foi estranho... disse Gwenda. - Naquele dia que fui ao escritório dele tive uma sensação esquisita de que ele parecia uma casa de janelas fechadas... e fiz até uma fantasia a respeito - achei que dentro da casa tinha uma pessoa morta.

Olhou para Miss Marple.

- A senhora acha que é bobagem minha? perguntou.

- Não, querida. Acho que talvez você esteja certa.

- E agora, disse Gwenda, - chegamos a Afflick. O Afflick dos ônibus de turismo. Jackie Afflick, que sempre foi metido a esperto. A primeira coisa contra ele é que Kennedy achava que ele tinha uma mania de perseguição incipiente, isto é, nunca foi perfeitamente normal. Contou-nos tudo sobre ele e sua irmã, mas agora concordamos que era tudo mentira. Ele não achava apenas que Helen era uma menina bonitinha. Estava loucamente apaixonado por ela. Mas ela não estava apaixonada por ele. Apenas se divertia. Era louca por homens, como diz Miss Marple.

- Não, minha cara, eu não disse isso. Não disse nada disso.

- Bem, era ninfomaníaca, se prefere usar esse termo. De qualquer modo, teve um caso com Jackie Afflick e depois quis acabar tudo. Ele não queria que isso acontecesse. O irmão dela ajudou-a a sair da encrenca, mas Jackie Afflick jamais esqueceu nem perdoou. Ficou sem o emprego e, segundo ele, caiu numa cilada preparada por Walter Fane. Isso mostra um sinal defini­tivo de mania de perseguição.

- Sim concordou Giles, - mas, por outro lado, se isso for verdade, é mais um ponto contra Fane... e um ponto importante.

Gwenda prosseguiu.

- Helen vai para o exterior e ele vai ernbora de Dillmouth. Mas jamais a esquece e, quando ela volta para Dillmouth, ca­sada, ele vem visitá-la. Primeiro ele disse ter vindo uma vez, mas depois admite que veio mais de uma vez. E... oh, Giles! Voce não lembra? Edith Pagett se referiu a "nosso homem misterioso num carro bacana". Isso quer dizer que ele vinha aqui o sufi­ciente para dar o que falar entre as empregadas. Mas Helen to­mou o cuidado de não convidá-lo para jantar, de não deixá-lo conhecer Kelvin. Talvez tivesse medo dele. Talvez ...

Giles interrompeu.

- Pode ser uma explicação, disse ele. Suponhamos que Helen estivesse apaixonada por ele - o primeiro homem de quem gostou, e suponhamos que continuasse gostando dele. Tal­vez tenham tido um caso e ninguém chegou a saber disso. Mas talvez ele quisesse que ela fugisse com ele e a essa altura ela já se sentisse farta e não quisesse ir, e daí... e daí... ele a matou, e o resto nós já sabemos. Na carta para Kennedy, Lily disse que naquela noite havia um carro último tipo parado na porta. Era o carro de Jackie Afflick. Jackie Afftick também estava no local.

- É apenas uma hipótese disse Giles - mas parece-me razoável. Porém precisamos nos lembrar das cartas de Helen. Andei quebrando a cabeça, pensando nas "circunstâncias", como disse Miss Marple, sob as quais ela poderia ter sido forçada a escrevê-las. Tenho a impressão de que, para explicar as cartas, temos que admitir que Heten tinha realmente um amante e que pretendia fugir com ele. Vamos examinar de novo as três possi­bilidades. Comecemos por Erskine. Vamos supor que Erskine não quisesse abandonar a mulher e os filhos, mas que Helen estivesse disposta a abandonar Kelvin e se mudar para um lugar onde Erskine pudesse estar com ela de vez em quando. A pri­meira coisa a fazer é acabar com a desconfiança da Sra. Erskine. Para isso, Helen escreve duas cartas que vão chegar a tempo às mãos de seu irmão e que lhe farão crer que ela foi para o exterior com alguém. Por isso ela se mostrou tão misteriosa quanto ao nome do homem em questão.

- Mas se ela ia largar o marido por causa dele, por que foi que ele a assassinou? perguntou Gwenda.

- Talvez ela tenha mudado de idéia de repente. Talvez tenha achado que, apesar de tudo, gostava do marido. Erskine perdeu a cabeça e a estrangulou. Em seguida, pegou as roupas e a mala e aproveitou as cartas. É uma explicação que resolve tudo.

- O mesmo pode ser dito sobre Walter Fane, observou Gwenda. - Acho que um escândalo seria uma coisa desastrosa para um advogado do interior. Helen pode ter decidido ir para um lugar nos arredores, onde Fane pudesse ir vê-la, mas fin­gindo que fora para o exterior com outra pessoa. As cartas es­tavam prontas e aí ela mudou de idéia. Walter ficou com ódio e a matou.

- E quanto a Jackie Afflick?

- Aí já se torna mais difícil encontrar uma explicação para as cartas. Um escândalo não o afetaria. Talvez Helen estivesse com medo de meu pai, e não dele, e então achou que era melhor fingir que tinha ido para o exterior... Ou talvez, naquela época, a mulher de Afflick tivesse dinheiro e ele precisasse dele para investir nos negócios. Oh, há muitas possibilidades quanto às cartas!

- O que é que a senhora acha, Miss Marple? perguntou Gwenda.

- Não acho que tenha sido Walter Fane... mas...

A Sra. Cocker entrou na sala para retirar as xícaras de café.

- Desculpe senhora, disse ela, - mas esqueci de lhe dar um recado. Fiquei tão perturbada com esse crime, e a senhora e o Sr. Reed envolvidos numa coisa dessas! Não é coisa para a senhora! Bem, o Sr. Fane esteve aqui hoje à tarde e perguntou pela senhora. Esperou meia-hora. Pelo jeito pensou que a senhora estava à espera dele.

- Que coisa estranha! exclamou Gwenda. - A que horas foi isso?

- Deve ter sido às quatro horas, ou pouco depois disso. Depois, mais tarde, veio aqui outro senhor, num grande carro amarelo. Afirmou que a senhora estava à sua espera. Ficou aborrecido. Aguardou vinte minutos. Achei que talvez a senhora os tenha convidado para tomar chá e tenha esquecido.

- Não, disse Gwenda. - Que coisa estranha!

- Vamos telefonar para Fane, disse Giles. - Ainda não deve ter ido dormir.

- Alô! É Fane? Aqui fala Giles Reed. Ouvi dizer que o senhor veio nos procurar hoje à tarde... Como?... Não... não, tenho certeza... não, que coisa estranha! É, também não sei.

Desligou o telefone.

- Aconteceu uma coisa esquisita. Hoje de manhã telefona­ram para o escritório de Fane e deixaram um recado para ele vir aqui à tarde. Disseram que era um assunto importante.

Giles e Gwenda entreolharam-se. Em seguida Gwenda disse: - Telefone para Afflick!

Giles tornou a pegar o fone e fez a ligação.

- Sr. Afflick? Aqui fala Giles Reed. Eu...

Era evidente que, do outro lado da linha, alguém o inter­rompera com uma torrente de palavras, ao final das quais ele conseguiu falar novamente.

- Mas nós não... não, eu garanto que não... nada dis­so... sim, sim... eu sei que o senhor é um homem ocupado. Nem me passaria pela cabeça... Sim, mas escute aqui, quem foi que lhe telefonou?... Um homem?... Não, não fui eu. Não... não... Ah, sim, compreendo!... Bem, concordo que é fantástico!

Recolocou o fone no gancho e voltou para a sala.

- Bem, disse ele, alguém, - um homem que disse que era eu, telefonou para Afflick pedindo que viesse aqui. Era urgente- havia rnuito dinheiro envolvido.

Os três estavam perplexos.

- Pode ter sido qualquer um deles, disse Gwenda. - Você não compreende, Giles? Qualquer dos dois pode ter matado Lily e ter vindo até aqui para forjar um álibi!

- Seria um álibi muito fraco, querida, observou Miss Marple.

- Bem, não seria propriamente um álibi, mas uma desculpa para se ausentarem do escritório. O que quero dizer é o seguinte: um deles está dizendo a verdade e o outro está mentindo. Um telefonou para o outro, pedindo-lhe que viesse aqui... para torná-lo suspeito... mas não sabemos qual deles foi. Só pode ter sido um dos dois. Fane ou Afflick. Eu acho que foi Jackie Afflick.

- E eu acho que foi Walter Fáne, retorquiu Giles.

Ambos olharam para Miss Marple, que sacudiu a cabeça.

- Há outra possibilidade, observou ela.

- Erskine, é claro!

Giles correu para o telefone.

- O que é que você vai fazer? perguntou Gwenda.

- Vou pedir uma ligação interurbana para Northumberland.

- Oh, Giles! Você não pode estar achando...

- Temos que saber! Se ele estiver lá, não pode ter matado Lily Kimble esta tarde. É impossível ter arranjado um avião particular ou uma coisa qualquer no gênero.

Esperaram em silêncio até o telefone tocar. Giles atendeu.

- Sua chamada para o Major Erskine, senhor, disse a telefonista. - Pode falar. O Major Erskine está na linha.

Pigarreando nervosamente Giles dísse : - Erskine? Aqui fala Giles Reed ... Sim, Reed.

Lançou um olhar agoniado, para Gwenda, sem saber o que dizer.

Gwenda levantou-se e pegou o fone.

- Major Erskine? Aqui fala a Sra. Reed. Ouvimos falar de uma casa aí perto... Chama-se Linscott Brake. O senhor a conhece? Acho que fica aí perto da sua.

A voz de Erskine respondeu: - Linscott arake? Não, acho que nunca ouvi falar nessa casa. Qual é o código postal da cidade?

- Está quase ilegível, respondeu Gwenda. - O senhor sabe como são horríveis esses anúncios datilografados que os corre­tores mandam. Mas diz que a casa fïca a quinze milhas de Daith, e então pensei que...

- Sinto muito, mas nunca ouvi falar nessa casa. Quem é que mora lá?

- Oh, o anúncio não diz! Mas não faz mal, porque na rea­lidade nós... nós já escolhemos uma casa. Sinto muito tê-lo incomodado. Provavelmente o senhor estava ocupado.

- Não, de modo algum! Isto é, estava ocupado com afa­zeres domésticos. Minha mulher foi para fora e cozinheira teve que ir ver a mãe, de modo que estou às voltas com proble­mas domésticos. Acho que não dou muito para isso. Gosto mais do jardim.

- Prefiro sempre cuidar do jardim a ter que fazer trabalhos domésticos, respondeu Gwenda. - Espero que sua mulher não esteja doente?

- Oh, não! Ela teve de ir passar uns dias na casa da irmã. Volta amanhã.

- Bem, boa noite! Desculpe ter incomodado o senhor.

Gwenda desligou o telefone.

- Erskine está fora de tudo isso, disse ela  em tom de tri­unfo. - A mulher dele viajou e ele está cuidando da casa. De modo que restam apenas os outros dois. Concorda comigo, Miss Marple?

Miss Marple estava com um ar muito sério.

- Queridos, acho que vocês não pensaram o suficiente sobre esse assunto. Oh, estou realmente muito preocupada! Se me­nos soubesse exatamente o que fazer...

 

AS PATAS DE MACACO

Gwenda pôs os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo nas mãos, enquanto seus olhos percorriam, sem interesse, os restos de um almoço apressado. Precisava levar a louça para a copa, lavar os pratos, guardar tudo e providenciar alguma coisa para o jantar.

Não havia, porém a menor pressa. Sentia que precisava de um pouco de tempo para pensar. Tudo acontecera depressa demais.

Ao rever os acontecimentos da manhã, eles lhe pareciam caóticos e impossíveis. Tudo acontecera depressa demais e de maneira absolutamente inverossímil.

O Inspetor Last chegara cedo - às nove e meia. Estava acompanhado pelo Inspetor Primer e pelo chefe de polícia do condado. Este último não ficara lá muito tempo. Agora, quem estava à testa do caso da morte de Lily Kimble, e de todas as suas conseqüências, era o Inspetor Primer.

Tratava-se de um homem com um ar de falsa amabilidade e voz suave, falando sempre num tom de quem pedia desculpas. O inspetor perguntara a Gwenda se podia mandar seus homens escavarem o jardim.

Pelo seu tom de voz, dava a impressão de que queria apenas que seus homens fizessem um pouco de exercício, não parecendo que iam procurar um cadáver enterrado há dezoito anos.

Giles dissera ao inspetor que talvez pudesse ajudá-lo através de algumas sugestões.

Contou-lhe, então, sobre a mudança nos degraus de pedra que levavam ao gramado, e acompanhou-o até o terraço.

O inspetor olhara para a janela de grades do primeiro andar e observara que ali devia ser o quarto de crianças.

Giles respondera afirmativamente.

Em seguida Giles e o inspetor voltaram para dentro de casa e dois homens rnunidos de pás se dirigirarn ao jardim. An­tes que o inspetor começasse a fazer perguntas, Giles lhe dissera:

- lnspetor, sugiro que o senhor ouça uma coisa que minha mulher ainda não contou para ninguém, a não ser para mim... e... para uma outra pessoa.

O olhar amável, porém bastante constrangedor, fixou-se em Gwenda com ar especulativo. Gwenda pensou consigo mesma: Ele estã querendo adivinhar se pode confiar em mim ou se sou do tipo de mulher que imagina coisas.

A sensação era tão forte que ela começou a falar em tom defensivo.

- Pode ser que eu tenha imaginado isso tudo, disse ela. - Talvez tenha mesmo. Mas parece-me uma coisa verdadeira. O Inspetor Primer falou em tom amável e conciliador.

- Bem, Sra. Reed, vamos ouvir o que a senhora tem a dizer.

E Gwenda contou tudo. Como a casa lhe parecera conhe­cida assim que a viu pela primeira vez. Como viera a saber, de­pois, que ela morara ali quando criança. Como se lembrara do papel de parede do quarto de crianças, da porta de comunicação e da certeza de que num determinado local deveriam existir de­graus para ir até o gramado.

O Inspetor Primer ouvia em silêncio. Não chegou a dizer que as lembranças infantis de Gwenda não tinham maior interesse, mas Gwenda sentiu que era essa a sua opinião.

Finalmente ela chegou ao ponto mais difícil e contou que se lembrara subitamente, no teatro, de ter olhado através da balaustrada da casa e ter visto uma mulher morta no saguão.

- Com o rosto azulado... tinha sido estrangulada... e o cabelo louro... e era Helen... Mas era uma coisa idiota, por­que eu não tinha a menor noção de quem era Helen!

- Temos a impressão de que... começou Giles a dizer. Mas o Inspetor Primer, com ar subitamente autoritário, in­terrompeu-o fazendo um sinal com a mão.

- Por favor, deixe a Sra. Reed contar com suas próprias palavras.

Gwenda prosseguira aos arrancos. Seu rosto estava afoguea­do, e o Inspetor Primer, com extraordinária destreza técnica, procurava ajudá-la.

- Webster? murmurou ele em tom pensativo. - Ahn . A Duguesa de Malfi. Patas de macaco?

- Mas isso provavelmente foi um pesadelo, disse Giles.

- Por favor, não interrompa, Sr. Reed.

- Talvez tenha sido tudo um pesadelo, observou Gwenda.

- Não, acho que não foi, respondeu o Inspetar Primer. - Seria muito dificil explicar a morte de Lily Kimble, a não ser que soubessemos que uma mulher, foi assasstnada nesta casa.

Seu tom era compreensivo, quase confortador. Gwenda ani­rnou-se e prosseguiu.

- E não foi meu pai quem a matou. Tenho certeza disso. Até o Dr. Penrose disse que ele não era desse tipo. E o Dr. Ken­nedy tinha certeza de que ele não cometera o crime, que apenas pensara que sim. De modo que só pode ter sido alguém que queria dar a impressão de que foi meu pai, e acho que sabemos quem foi... ou, pelo menos, sabemos que foi uma entre duas pessoas...

- Gwenda! interrompeu Giles. - Não podemos...

- Sr. Reed, interrornpeu o Inspetor Primer por sua vez, - Será que o senhor se incomoda de ir até o jardim para ver o trabalho de meus homens? Diga a eles que fui eu quem mandei o senhor lá.

Quando Giles saiu da sala, o Inspetor Primer fechou as portas-janela, passando o trinco de segurança, e voltou para junto de Gwenda.

- Bem, conte tudo o que acha, Sra. Reed. - Não se preo­cupe se suas idéias parecerem incoerentes.

Gwenda lhe contara todas as especulações e raciocíonios feitos por ela e por Giles. Contou tudo o que fizeram para des­cobrir o máximo possível de informações sobre os três homens que participaram da vida de Helen. Contau também a que con­clusões tinham chegado, e informou-o sobre os tetefonemas da véspera para Walter Fane e J. J. Afftick, pedindo-lhes que fossem a Hillside e usando o nome de Giles.

- Acho que o senhor concorda, Inspetor, que um dos dois pode estar mentindo, não é?

Em tom afável, porém cansado, o inspetor respondeu: - ­Isso é uma das principais dificuldades no meu trabatho. Tantas pessoas podem estar mentindo! Tantas pessoas geralmente estão mentindo... Às vezes mentem por motivos diferentes dos que a gente imagina, e às vezes nem sabem que estão mentindo.

- O senhor acha que eu sou assim? perguntou Gwenda com ar apreensivo.

- Acho que a senhora é uma testemunha muito verdadeira, Sra. Reed, respondeu sorrindo o inspetor.

- E acha que estou certa quanto a quem a matou?

O inspetor suspirou. - Para nós não se trata de achar isto ou aquilo, respondeu ele. - Trata-se de verificar tudo. Onde estavam as pessoas, o que cada uma delas diz sobre seus movimentos... Sabemos com bastante precisão a que horas Lily Kimble foi morta. Entre duas e vinte e duas e quarenta e cinco. Qualquer pessoa podia ter cometido o crime e depois ter vindo para cá, ontem à tarde. Pessoalmente não entendo a razão dos telefonemas. Não dá nenhum álibi às pessoas de quem a senhora falou.

- Mas o senhor vai descobrir o que estavam fazendo nessa hora, não é? Entre duas e vinte e duas e quarenta e ciaco. O se­nhor vai interrogá-los?

O Inspetor Primer sorriu.

- Pode estar certa de que faremos as perguntas necessárias,  Sra. Reed. Mas vamos esperar o momento adequado. Não adian­ta apressar os acontecimentos. É preciso pensar com calma.

Gwenda compreendeu a maneira de trabalhar do inspetor. Calma e paciente. Sem pressa, sem remorsos...

- Compreendo... murmurou ela. - O senhor é um pro­fissional e Giles e eu somos amadores. Poderíamos acertar por sorte... mas não saberíamos trabalhar de modo organizado.

- É mais ou menos isso, Sra. Reed.

O inspetor tornou a sorrir. Levantou-se e abriu as portas-ja­nela. Em seguida, quando ia passar para o terraço, estancou. Parece um cão de caça, pensou Gwenda consigo mesma.

- Sra. Reed, aquela senhora ali é Miss Marple, por acaso?

Gwenda aproximou-se dele. No fundo do jardim, Miss Mar­ple continuava lutando com a trepadeira.

- Sim, é ela mesma. Um amor de pessoa. Tem nos ajudado tanto no jardim!

- Miss Marple, murmurou o inspetar. - Estou compreen­dendo...

Gwenda olhou-o com ar interrogativo e ele acrescentou: - É um amor de pessoa. Miss Marple é uma pessoa muito fa­mosa. Já passou para trás pelo menos três chefes de polícia de diversos condados. Ainda não conseguiu passar meu chefe para trás, mas acho que isso ainda vai acontecer. Quer dizer que Miss Marple está metida neste caso...

- Ela fez sugestões muito úteis, observou Gwenda.

- Oh, não tenho a menor dúvida! Onde é que ela disse que o cadáver da Sra. Halliday deve estar enterrado?

- Ela falou que Giles e eu devíamos saber muito bem onde procurar, respondeu Gwenda, - e ficamos com cara de bobos por não termos pensado nisso antes.

O inspetor deu uma risadinha e aproximou-se de Miss Mar­ple, dizendo-lhe: - Acho que não fomos apresentados, Miss Marple, mas o Coronel Melrose já me falou na senhora:

Miss Marple levantou-se e enrubesceu, com as mãos cheias de ramos de trepadeira.

- Oh, sim! Gosto muito do Coronel Melrose! Sempre foi muito atencioso. Desde a ocasião em que...

- Desde a ocasião em que um sacristão foi assassinado no escritório do vigário, disse o inspetor. Faz bastante tempo isso. Mas a senhora foi bem sucedida em outros casos, depois desse, como aquele probleminha com um determinado veneno, próximo a Lymstock.

- O senhor sabe muitas coisas sobre mim, Inspetor...

- Inspetor Primer. Pelo jeito a senhora tem trabalhado muito aqui!

- Bem, tento fazer o que posso neste jardim. Está bastante abandonado. Esta trepadeira, por exemplo, é incrível, respondeu Miss Marple, olhando com ar cândido para o inspetor. - As raizes percorrem um caminho fundo por baixo da terra... um caminho muito longo...

- Acho que a senhora tem razão, disse o inspetor. - Muito longo. Muito fundo. Como esse crime... Dezoito anos...

- Talvez a trepadeira seja ainda mais antiga que isso, res­pondeu Miss Marple. - Correndo por baixo da terra... E é um bocado nociva, inspetor, porque estrangula as flores peque­nas...

Um policial. aproximou-se. Transpirava muito e sua testa estava suja de terra.

- Encontramos... alguma coisa, inspetor. Parece que é ela.

 

E foi aí, pensou Gwenda consigo mesma, que a sensação de pesadelo começou. Giles tinha entrado em casa, bastante pá­lido, dizendo: - Gwenda, ela... ela está lá, naquele lugar.

Em seguida um policial dera um telefonema e o médico legista chegou.

E foi aí que a Sra. Cocker, a calma e imperturbável Sra. Cocker, saiu para o jardim - não para satisfazer sua curiosidade, mas apenas a fim de colher um tempero para a receita que estava preparando. E a Sra. Cocker, cuja reação à notícia do crime, no dia anterior, fora de censura e de preocupação com a saúde de Gwenda - pois decidira que o quarto de criança tinha de ser ocupado após um certo número de meses - a Sxa. Cocker deu em cheio com a descoberta feita no jardim. lmediatamente começou a se sentir muito mal.

- É horrível, senhora. Nunca suportei esqueletos. E pensar que havia um aqui no jardim, pertinho do pé de hortelã! Meu coração está batendo à toda... estou com palpitações... quase não consigo respirar. Desculpe a ousadia, mas será que posso tomar um pouquinho de conhaque?

Assustada com as palpitações da Sra. Cocker e com sua palidez, Gwenda correu até o armário, serviu um copinho de conhaque e deu-o à cozinheira.

- Era exatamente o que eu estava precisando, senhora... começou a dizer a Sra. Cocker depois de tomar um gole. Mas subitamente sua voz foi se tornando fraca, e ela pareceu estar se sentindo tão mal que Gwenda gritou por Giles que, por sua vez, gritou pelo médico legista.

- Foi uma sorte eu estar por perto, disse ele mais tard.e. - Se não houvesse um médico por perto, ela teria morrido na hora!

Em seguida o Inspetor Primer pegara a garrafa de conhaque e discutira longamente com o médico a respeito. Depois pergun­tou a Gwenda quando fora que ela e Giles tomaram conhaque pela última vez.

Gwenda respondeu que já fazia vários dias - tinham via­jado para o norte e, depois disso; só tinham tomado gin.

- Mas ontem quase tomei conhaque, acrescentou ela. - Mas conhaque sempre me lembra a travessia da Mancha, e então Giles abriu uma garrafa de uísque para mim.

- A senhora teve muita sorte, Sra. Reed. Se a senhora ti­vesse tomado conhaque ontem, acho que hoje não estaria viva. - Giles quase tomou, mas afinal resolveu beber uísque.

Gwenda estremeceu.

Mesmo agora, sozinha na casa, achava difícil acreditar no turbilhão de acontecimentos. A polícia fora embora e Giles os acompanhara após um almoço improvisado, pois a Sra. Cocker estava no hospital.

Uma coisa era clara: na véspera, a tarde, Jackie Afflick e Walter Fane tinham estado na casa, Qualquer dos dois podia ter colocado veneno no conhaque... E qual a finalidade dos telefonemas, senão proporcionar a um deles a oportunidade de envenenar o conhaque? Gwenda e Giles tinham se aproximado excessivamente da verdade... Ou teria uma terceira pessoa en­trado na casa, talvez pela porta da varanda, enquanto ela e Giles estavam em casa de Kennedy esperando a chegada de Lily Kim­ble? Uma terceira pessoa que forjara os telefonemas para atirar suspeita sobre os outros dois?

Mas uma terceira pessoa... pensava Gwenda consigo mes­ma, isso não faz sentido... Afinal, uma terceira pessoa teria telefonado para apenas um dos homens. Havia de querer um suspeito, e não dois. De qualquer maneira, quem poderia ser essa terceira pessoa? Estava provado que Erskine não saira de Northumberland. Não. Ou Walter Fane tinha telefonado para Afflick e fingira que recebera um telefonema, ou então fora Afflick quem telefonara para Fane. Fora um dos dois, e a polí­cia, que tinha mais recursos que ela e Giles, ia descobrir qual deles tinha sido. Enquanto isso ambos estavam sendo vigiados. Não poderiam... tentar uma outra vez.

Gwenda novamente estremeceu. Era difícil acostumar-se à idéia de tinha tentado assassinar a gente. Há que alguém tempos atrás Miss Marple dissera que era uma tarefa perigosa, mas Giles e ela não levaram à sério a palavra perigo. Mesmo depois da morte de Lily Kimble, não ocorrera a Gwenda a idéia de que alguém tentaria matá-la, assim como a Giles. Só porque estavam muito perto da verdade sobre o que acontecera dezoito anos antes, tentando descobrir o que se passara... e quem era o resporsável por tudo ...

Walter Fane e Jackie Afflick...

Qual dos dois?

Gwenda fechou os olhos, revendo-os sob a luz do que sabia agora.

O tranqüilo Walter Fane, sentado no escritório... a aranha branca no centro da teia. Tão sossegada, tão inofensiva... Uma casa de janelas fechadas... Uma pessoa morta dentro da casa. Uma pessoa que morrera há dezoito anos mas que ainda estava lá. Agora o tranqüilo Walter Fane parecia uma pessoa sinistra. Walter Fane, que em certa ocasião queria matar o ir­mão... Walter Fane, com quem Helen não quis se casar, na Inglaterra, e novamente na Índia. Uma recusa dupla. Uma dupla ofensa. Walter Fane, tão calmo, frio... só podendo se ex­primir, talvez, através de um súbito impulso homicida ... Gwenda abriu os olhos. Estava convencida de que o culpa­do era Walter Fane.

Bem, mas não custa pensar em Afflick. Mas de olhos abertos. O terno xadrez vivo, seu ar autoritário... o oposto de Walter Fane. Não era nem reprimido nem tranqüilo. Mas pro­vavelmente essa aparência era devida a um complexo de infe­rioridade. Os entendidos dizem que é sempre assim. Quando uma pessoa é insegura, sente necessidade de se afirmar e dominar. Desprezado por Helen porque não servia para ela... A ferida continuando, jamais esquecida. A vontade de vencer na vida. Perseguição... Todos contra ele... Demitido do emprego de­vido à falsa acusação feita por um "inimigo"... Isso mostrava que Afflick não era normal. E um assassinato daria a um homem desses enorme sensação de poder. Aquele rosto simpático e jovial era, na realidade, um rosto cruel. Era um homem cruel... e sua mulher, magra e pálida, sabia disso e tinha medo dele. Lily Kim­ble o ameaçara e morrera. Gwenda e Giles tinham interferido - então Gwenda e Giles também precisavam morrer, e ele en­volveria Walter Fane, que o despedira há tanto tempo atrás... Parecia muito plausível...

Gwenda interrompeu seus pensamentos e voltou à realidade. Giles ia chegar e pedir chá. Era preciso arrumar tudo e lavar a louça do almoço.

Pegou uma bandeja e levou tudo para a cozinha, que estava primorosamente limpa. A Sra. Cocker valia ouro.

Ao lado da pia estava um par de luvas de borracha. A Sra. Cocker sempre usava luvas para lavar a louça e as panelas. Sua sobrinha, que trabalhava no hospital, comprava-as a preço re­duzido.

Gwenda calçou as luvas e começou a lavar os pratos. Não custava nada proteger as mãos.

Colocou-os no escorredor, lavou e enxugou todo o resto e guardou tudo cuidadosamente em ordem.

Em seguida, ainda imersa em seus pensamentos, subiu a es­cada. Já que estava de luvas, podia aproveitar para lavar as meias e alguns suéteres.

Aparentemente era nisso que pensava, mas no fundo havia mais alguma coisa.

Ela achava que era Jackie Afflick ou então Walter Fane. Ou um ou outro. E construíra uma boa versão para acusar cada um. Talvez fosse isso o que a preocupava, porque, na realidade, seria muito melhor se só conseguisse uma boa versão. A esta altura era preciso ter certeza das coisas. E Gwenda não tinha certeza...

Se ao menos houvesse mais alguém... Mas não podia haver mais ninguém, porque Richard Erskine estava definitivamente afastado. Estava em Northumberland quando Lily Kimble foi assassinada e quando envenenaram o conhaque. Sim, Richard Erskine estava definitivamente afastado.

Isso alegrava Gwenda, porque ela gostava do Sr. Erskine. Era um homem atraente, muito atraente. Que pena ter-se casado com aquela mulher de olhar desconfiado e voz grossa. Como uma voz de homem...

Com,o uma voz de homem...

Uma idéia passou-lhe subitamente pela cabeça.

Uma voz de homem... Poderia ter sido a Sra. Erskine, e não seu marido, quem falara com Giles ao telefone, na véspera? Não, é evidente que não. É claro que não. Ela e Giles teriam percebido. E, de qualquer modo, a Sra. Erskine não podia ter adivinhado quem estava telefonando. Não, e claro que quem atendeu foi Erskine, e sua mulher, como ele disse, estava fora. Sua mulher estava fora.

Talvez... não, isso era impossível... Poderia ter sido a Sra. Erskine? A Sra. Erskine, enlouquecida pelo ciúme? Teria Lily Kimble escrito para a Sra. Erskine? Teria Léonie visto uma mulher no jardim, quando olhou pela janela naquela noite?

Uma porta bateu no saguão. Alguém entrara pela porta da frente.

Gwenda saiu do banheiro, dirigiu-se para o patamar da escada e olhou por cima da balaustrada. Sentiu um alívio ao verificar que era o Dr. Kennedy.

- Estou aqui! disse ela.

Ela estava com as mãos estendidas para a frente... molhadas brilhantes, com um tom rosa acinzentado... lembrando-lhe al­guma coisa...

Kennedy olhou para cima, tapando os olhos.

- É você, Gwennie? Não consigo ver seu rosto... Meus olhos estão ofuscados...

Gwenda deu um grito de horror...

Olhar para aquelas patas de macaco e ouvir aquela voz no saguão...

- Foi você... balbuciou ela. - Você a matou... matou Helen... Agora eu sei! Foi você... Você...

Kennedy subiu a escada. Lentamente. Olhando para Gwenda.

- Por que não me deixaram em paz? disse ele. - Por que se meteram nisso? Por que foram trazer... ela... de volta? Logo quando eu tinha começado a esquecer... esquecer. Vocês a trouxeram de volta... Helen... minha Helen. Trouxeram tudo de volta Tive que matar Lily... e agora vou ter que matar você. Como matei Helen ... Sim, como matei Helen ...

Estava perto de Gwenda... as mãos estendidas para a frente... em direção a seu pescoço... Aquele rosto agradável, simpâtico, normal, era o mesmo... mas o olhar... o olhar não era normal...

Gwenda recuou lentamente, com um grito paralisado em sua garganta. Já gritara uma vez. Não podia gritar de novo. E, se gritasse, ninguém ouviria.

Porque não havia ninguém em casa - nem Giles, nem a Sra. Cocker... Nem mesmo Miss Marple estava no jardim. Ninguém. E a casa vizinha ficava longe demais para ouvir algu­ma coisa se ela gritasse. De qualquer modo, não conseguia gri­tar... Porque estava aterrorizada demais. Aterrorizada ante aquelas mãos estendidas ...

Poderia correr, e ele a seguiria até que ela se visse encostada a porta do quarto, e aí... então... aquelas mãos apertariam seu pescoço ...

Um soluço lhe saiu dos lábios.

E então, subìtamente, Kennedy estancou e cambaleou, ao ser atìngido entre os olhos por um jato de um líquido turvo. Abriu a boca, piscou e levou as mãos ao rosto.

- Foi uma sorte, disse a voz de Miss Marple, um tanto ofegante por ter subido correndo pela escada de serviço, - foi uma sorte eu estar justamente pulverizando as roseiras!

 

CONVERSA EM TORQUAY

- Mas é claro, querida Gwenda, que nem me passou pela cabeça ir embora e deixar você sozinha na casa! exclamou Miss Marple. - Eu sabia que uma pessoa muito perigosa estava à solta e eu estava observando do jardim.

- A senhora sabia... o tempo todo... que era ele? per­guntou Gwenda.

Miss Marple, Gwenda e Giles estavam sentados no terraço do Imperial Hotel, em Torquay.

Miss Marple havia sugerido uma mudança de ambiente e Giles concordara que isso faria bem a Gwenda. Com a aquies­cência do Inspetor Primer, tinham ido para Torquay.

Respondendo à pergunta de Gwenda, Miss Marple disse : - Bem, eu achava que era, minha querida, apesar de não ter nenhuma prova, apenas indícios.

Olhando-a com curiosidade, Giles ,pbservou : - Mas eu não vejo nem os indícios ...

- Oh, caro Giles, pense una pouco! Para começar, ele es­tava no local.

- No local?

- Evidente. Quando, naquela noite, Kelvin Halliday foi fa­lar com ele, ele tinha acabado de chegar do hospital. Naquela época, como várias pessoas nos disseram, o hospital ficava ao lado de Hillside, ou St. Catherine, como era chamada a casa. De modo que isso o coloca no local certo e na hora certa. Além disso havia mais mil e um pequenos fatos significativos. Helen Halliday disse a Richard Erskine que tinha ido para fora para casar com Walter Fane porque não era feliz em casa. Isto é, não era feliz morando com o irmão. No entanto o irmão era, para todos os efeitos, muito dedicado. Então por que ela não era feliz? O Sr. Afflick disse a você que "tinha pena da menina". Acho que ele foi muito sincero ao dizer isso. Tinha mesmo pena dela. Por que ela precisava sair escondida para encontrar o jovem Afflick? Sabemos que ela não estava apaixonada por ele. Seria porque não podia marcar encontros normalmente, como todos os jovens? Seu irmão era "severo" e "antiquado". Isso lembra vagamente o caso do Sr. Barrett, de Wimpole Street, não acha? Gwenda estremeceu.

- Era louco, disse ela. - Louco!

- Sim, respondeu Miss Marple. - Não era uma pessoa normal. Adorava a irmã e essa afeição tornou-se possessiva e doentia. Isso acontece com mais freqüência do que você imagina. Pais que não querem que as filhas casem... nem ao menos que saiam com rapazes. Como o Sr. Barrett. Pensei nisso quando contaram a históna da rede de tênis.

- Rede de tênis?

- Sim, isso me pareceu muito significativo. Pense naquela menina, Helen, voltando do colégio para casa, querendo apro­veitar a vida como todas as mocinhas, conhecer rapazes, na­morar...

- Um pouco maniaca por sexo.

- Não! exclamou Miss Marple com veemência. - Isso é um dos aspectos mais maldosos desse crime. Kennedy não a matou apenas fisicamente. Se você examinar com cuidado toda a história, verá que o único testemunho de que Helen Kennedy era louca por homens, ou - como é mesmo a palavra que você usa? Ah, sim, ninfomaníaca - foi dado pelo próprio Kennedy. Pessoalmente, acho que ela era uma moça perfeitamente normal, que queria apenas se divertir, namorar um pouco, até finalmente encontrar o homem certo para se casar. E veja o que o irmão fez. Em primeiro lugar, foi severo e antiquado em relação à li­berdade da moça. Em seguida, quando ela quis convidar amigos para jogar tênis - um desejo perfeitamente normal e inocente - ele fingiu que concordava e, certa noite, cortou a rede em pedaços... um ato sádico muito significativo. Depois disso, co­mo ela podia continuar saindo para ir a festas ou para jogar tênis, ele tomou todas as providências para que um simples ar­ranhão no pé não ficasse bom. Foi ele quem infeccionou a ferida, a pretexto de curá-la. Oh, estou convencida de que ele agiu as­sim... Tenho certeza disso!

Acho que Helen não percebia nada. Sabia que seu irmão gostava muito dela e provavelmente não sabia por que se sentia pouco a vontade e infeliz em casa. Mas o fato é que se sentia assim, e finalmente resolveu ir para a Índia e casar com o jovem Fane, apenas para se ver livre. Para se ver livre de quê? Ela não sabia. Era jovem e inocente demais para saber. Partiu para a Índia e no navio conheceu Richard Erskine, por quem se apaixonou. Mais uma vez comportou-se como uma moça honrada, e não como uma ninfomaníaca. Não insistiu para que ele abandonasse a esposa. Pelo contrário, pediu-lhe que não fizesse uma coisa dessas. Mas, quando tornou a ver Walter Fane, percebeu, que não podia casar com ele e, como não sabia o que fazer, telegrafou para o irmão pedindo-lhe dinheiro para voltar para casa.

Na viagem de volta conheceu seu pai - e encontrou outra maneira de escapar. Desta vez havia uma perspectiva de felicidade.

Ao se casar com seu pai, ela não foi fingida, Gwenda. Ele estava se recuperando da perda de uma esposa querida. Ela acabava de sair de um caso de amor impossível. Um podia ajudar o outro. Acho muito significativo o fato de eles terem se casado em Londres e só depois terem ido a Dïllmouth para contar a novidade a Kennedy. Ela deve ter adivinhado instintivamente que era mais garantido agir dessa maneira, em vez de casar em Dillmouth, o que seria mais normal. Contínuo achando, que ela não sabia conscientemente a que estava enfrentando - mas sentia-se pouco à vontade e achou que era mais seguro apresentar seu casamento como fato consumado.

Kelvin Halliday gostou muito de Kennedy. Este, por sua vez, fez tudo para dar a impressão de que o casamento lhe agradava. O casal alugou uma casa mobiliada em Dillmouth.

E agora chegamos a um fato dos mais significativos - a suspeita de Kelvin, que achava que sua mulher o estava envenenando. Só existem duas explicações para isso, porque apenas duas pessoas estavam em condições de fazer uma coisa dessas, Ou Helen Halliday estava mesmo envenenando o marido - mas por que faria isso? - ou então as drogas estavam sendo administradas por Kennedy. Kennedy era o médico de Halliday, o que ficou provado pelo fato de ele ter ido consultá-lo. Confiando no conhecimento médico de Kennedy que, com toda habilidade, lhe sugeriu que sua mulher o estava envenenando.

- Mas será que uma droga pode fazer um homem ter alucinações de que estrangulou a mulher? perguntou Giles. - Existe alguma droga que tenha esse efeito exato?

- Meu caro Giles, você tornou a cair na cilada, ao acreditar no que lhe disseram. A única pessoa que falou nessa alunação foi Kennedy. O próprio Halliday não menciona isso no diário. Tinha alucinações, isso sim, mas não descreve em que consistiam. Ouso afirmar que Kennedy lhe contou casos de homens que estrangularam suas esposas depois de terem pas­sado por uma fase semelhante à que Kelvin estava passando.

- Kennedy era realmente muito perverso, observou Gwenda.

- Acho que naquela ocasião ele já havia ultrapassado o limite entre a sanidade e a loucura, respondeu Miss Marple. E Helen, coitada, começou a perceber isso. Deve ter sido para o irmão que ela disse as palavras ouvidas por Lily : "Acho que sempre tive medo de você". Isso foi uma das coisas que ela falou, e sempre achei bastante significativa. E então ela resolveu ir embora de Dillmouth. Convenceu o marido a comprar uma casa em Norfolk e convenceu-o a não contar para ninguém. Isso constitui um fato muito interessante. O segredo em torno do assunto era bastante revelador. Ela estava, evidentemente, com muito medo de que alguém soubesse disso - mas isso não combinava com a hipótese de ter sido Walter Fane ou Jackie Afflick, e muito menos com Richard Erskine. Não, isso mos­trava algo bem mais próximo à família.

Finalmente Kelvin Halliday, a quem o segredo incomodava e que não via nenhum sentido em manter sigilo, contou para o cunhado.

E, ao fazê-lo, selou seu próprio destino e o de sua mulher, pois Kennedy não ia deixar Helen partir e ser feliz com o ma­rido. Acho que talvez seu plano inicial fosse apenas liquidar a saúde de Halliday através da administração de drogas mas, ao saber que Helen e sua vítima iam escapar-lhe das mãos, ficou completamente transtornado. Saiu do hospital, levando um par de luvas cirúrgicas, e entrou em St.. Catherine pelo jardim. Encon­trou Helen no saguão e estrangulou-a. Ninguém o viu, não havia ninguém que pudesse vê-lo, ou pelo menos foi isso o que pen­sou. E em seguida, num acesso de amor e de loucura, citou aque­las frases trágicas, tão apropriadas à situação.

Miss Marple suspirou.

- Fui uma boba... uma boba completa! Todos nós fomos bobos. Devíamos ter compreendido imediatamente. Aquele tre­cho da Duquesa de Málfi era a verdadeira pista para tudo. Lem­brem-se de que as frases são ditas por um irmão que acabou de tramar a morte da irmã para vingar-se por ela ter-se casado com o homem que amava. Sim, nós fomos muito bobos...

- E depois? perguntou Gwenda.

- Em seguida ele prosseguiu em seu plano diabólico. Car­regou o corpo para cima. Arrumou a mala. Escreveu um bilhete e jogou-o, todo amassado, na cesta de papéis, para convencer Halliday.

- Mas acho que tería sido methor para ele, observou Gwen­da, - se meu pai fosse condenado pelo crime.

Miss Marple sacudiu a cabeça.

- Oh, não! EIe não podia correr esse risco! Lembre-se de que é um escocês cheio de bom senso. Tinha um grande respeito pela polícia. A polícia precisa de muitas provas antes de acre­ditar que um homem é culpado. A polícia podia fazer uma por­ção de perguntas e investigações embaraçosas. Não, seu plano era mais simples e, em minha opinião, mais diabólico. Era só convencer Halliday de duas coisas: primeiro, que tinha estran­gulado sua mulher; segundo, que estava louco. Convenceu Halli­day a se internar numa clínica de doentes mentais, mas acho que na realidade não queria convencê-lo de que tinha sido tudo alucinação. Seu pai aceitou essa teoria principalmente por causa de você, Gwenníe. Continuou achando que tinha matado Helen. Morreu acreditando nisso.

- Perverso! exclamou Gwenda. - Perverso ... perverso ... perverso! repetiu enfaticamente.

- Sim, respondeu Miss Marple. - É o termo exato. E acho, Gwenda, que foi por isso que a cena a que você assistiu em criança a impressionou tanto assim. Naquela noite o mal estava presente.

- Mas e as cartas? perguntou Giles. - As cartas de Helen? A letra era dela. Não podem ter sido forjadas!

- É claro que foram forjadas! Mas foi exatamente aí que ele exagerou. Estava tão ansioso por interromper as investiga­ções de vocês dois! Provavelmente sabia imitar muito bem a letra de Helen... mas não conseguiria enganar um perito. De modo que a amostra da letra de Helen que ele mandou para vocês, junto com a carta, não era a letra de Helen. Foi ele pró­prio quem escreveu as duas coisas. Por isso, evidentemente, os peritos afirmaram que a letra pertencia à mesm a pessoa.

- Meu Deus! exclamou Giles. - Eu nunca pensei nisso!

- Não, retorquiu Miss Marple. Você acreditou no que ele disse. É realmente muito perigoso acreditar nas pessoas. Eu não acredito há anos!

- E o conhaque?

- Isso foi no dia em que ele foi a Hillside levar a carta de Helen e conversou comigo no jardim. Aproveitou o momento em que ficou sozinho na sala, enquanto a Sra. Cocker foi me chamar.

- Céus! exclamou Giles. - E depois da morte de Lily Kimble ele insistiu em que eu levasse Gwenda para casa e lhe desse um conhaque! Como foi que ele se arrumou para encon­trá-la mais cedo?

- Isso foi muito simples. Na carta que escrevera a Lily, dissera-lbe para encontrá-lo em Woodieigh Camp, instruindo-a para que tomasse o trem das duas e cinco de Matchings Halt para Dillmouth Junction. Provavelmente se escondeu no bosque, abordou-a quando ela ia subindo pelo caminho e estrangulou-a. Em seguida limitflu-se a substituir a carta que ela trazia na bolsa pela carta que vocês viram, e voltou para casa para receber vocês e fingir que esperava a chegada de Lily.

- Será que Lily estava realmente ameaçando Kennedy?. A carta dela não dava essa impressão. Parecia suspeitar de Afflick.

- É possível que sim. Mas Léonie, a governanta suíça, tinha falado com Lily, e Léonie era uma ameaça para Kennedy, porque ela olhara pela janela do quarto de Gwennie e o tinha visto cavando o jardim. De manhã, no dia seguinte, ele lhe disse que o Majoar Halliday matara sua mulber, que o Major Halliday estava louco e que ele, Kennedy, mantinha o assunto em segredo por causa da criança. Acrescentou, no entanto, que se Léonie achasse que devia ir à polícia, devia ir, mas que seria uma coisa bastante desagradável para ela, e assim por diante...

Ao ouvir falar em polícia, Léonie assustou-se imediatamente. Ela adorava você, Gwenda, e tinha uma fé absoluta em M. le Docteur. Kennedy deu-lhe uma boa quantia em dinheiro e man­dou-a de volta para a Suiça. Mas, antes de partir, ela contou a Lily que o Major matara sua mulher e que ela vira o corpo sendo enterrado. Por isso é que Lily achava que Léonie tinha visto o Major Halliday cavando no jardim.

- Mas Kennedy, evidentemente, não sabia disso, observou Gwenda.

- É claro que não. Ao receber a carta de Lily, os fatos que o assustaram foi que Léonie tinha contado para Lily o que vira pela janela e a menção ao carro estacionado lá fora.

- O carro? O carro de Jackie Afflick?

- Isto foi mais um mal-entendido. Lily se lembrava, ou pensava se lembrar, de um carro parecido com o de Jackie Afflick, estacionado do lado de fora. Deu asas à imaginação e achou ser o carro do "homem misterioso" que ia sempre ver a Sra. Halliday. Como o hospital era ao lado, é claro que muitos carros estacionavam naquela rua. Mas lembrem-se de que o carro do médico estava estacionado do lado de fora do hospital, naquela noite, e ele provavelmente concluiu que ela se referia ao carro dele.

- Compreendo, disse Giles. - Para a consciência pesada a carta de Lily pode ter parecido uma chantagem. Mas como é que a senhora sabe tanta coisa sobre Léonie?

Miss Marple respondeu com os lábios apertados.

- Ele foi até o fim. Assim que os homens do Inspetor Pri­mer correram e o agarraram, ele contou todo o crime repetida­mente... tudo o que tinha feito. Parece que Léonie morreu muito pouco tempo depois de ter voltado para a Suiça. Uma dose excessiva de remédio para dormir... Oh, ele não podia se arriscar!

- E por isso tentou me envenenar com conhaque.

- Você era uma pessoa muito perigosa para ele, assim como Giles. Por sorte você nunca contou a ele sua lembrança de ter visto Helen morta no saguão. Ele nunca soube que havia uma testemunha ocular.

- E os tetefonemas para Fane e Afflick? perguntou Giles. - Foi ele quem ligou?

- Foi. Se houvesse um inquérito para saber quem tinha colocado veneno no conhaque, qualquer dos dois seria suspeito e, se Jackie Afflick fosse de carro, sozinho, poderia se ver en­volvido na morte de Lily Kimble. Provavelmente Fane teria um álibi.

- E dizer que ele parecia gostar de mim... murmurou Gwenda. - A pequena Gwennie...

- Ele precisava desempenhar um papel, retorquiu Miss Marple. - Imagine o que isso significava para ele. Depois de dezoito anos aparecem você e Giles, fazendo perguntas, reme­xendo o passado, perturbando um crime que parecia morto, mas que estava apenas adormecido... A morte em retrospecto... Uma coisa terrivelmente perigosa, meus caros. Andei muito preo­cupada.

- Pobre Sra. Cocker! exclamou Gwenda. - Escapou por um triz! Ainda bem que vai ficar boa. Você acha que ela vai continuar trabalhando lá em casa depois de tudo isso, Giles?

- Se houver um quarto de crianças ela fica, respondeu Giles com ar muito sério. Gwenda enrubesceu e Miss Marple com um sorriso, desviou o oIhar para a paisagem de Torquay.

- Que coisa estranha tudo ter acontecido daquele jeito... disse Gwenda. - Eu, com aquelas luvas, olhando para elas, e ele entrando no saguão e dizendo aquelas palavras tão semelhantes às outras. "Rosto"... e depois "olhos ofuscados"... Gwenda estremeceu.

- Cubram seu rosto... Meus olhos estão ofuscados... Ela morreu jovem... Podia ter sido eu... se Miss Marple não es­tivesse lá.

Fez uma pausa e acrescentou baixinho: - Pobre Helen... Pobre Helen, tão linda, que morreu jovem... Sabe Giles, ela não está mais lá... na casa.. no saguão. Senti isso ontem, antes de partirmos. Agora existe apenas a casa. E a casa gosta de nós. Podemos voltar, se quisermos...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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