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UM GATO ENTRE OS POMBOS / Agatha Christie
UM GATO ENTRE OS POMBOS / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM GATO ENTRE OS POMBOS

 

      Um colégio só para moças na Inglaterra. Portanto, um colégio altamente sofisticado — o Colégio Meadowbank. E o misterioso ambiente do interior das ilhas Britânicas. Além disso, Um Gato entre os Pombos. E duas professoras que são admitidas no colégio, uma de língua francesa, outra de ginástica: quem são, de onde vêm? A ação se origina muito longe: em Ramat, no Oriente Médio. O regente desse país — que fora como de costume educado na Inglaterra e cujo melhor amigo, como também de costume, é cidadão britânico, piloto de carreira — entrega a este toda a riqueza da família em pedras preciosas a fim de que as leve para o estrangeiro, pois receia uma revolução iminente. É a partir daí que se desencadeia todo o mistério e a aventura, em que o distinto Colégio Meadowbank, na ainda mais distinta Inglaterra, desempenha papel importante.

      No colégio há um pavilhão de esportes onde, além destes, também se pode praticar assassinatos... Como chegar ao desfecho? Como percorrer o longo caminho de espionagem e sangue que leva da Ásia à Europa?

 

                                     

 

PERÍODO DE VERÃO

ERA O DIA DE ABERTURA do período escolar de verão no Colégio Meadowbank. O sol do final da tarde espalhava seu brilho sobre o pátio em frente à casa. A porta principal encontrava-se completamente aberta, de modo hospitaleiro, e, bem à sua entrada, combinando admiravelmente com as suas proporções georgianas, via-se a Srta. Vansittart, sem um fio de cabelo fora do lugar, vestindo um casaco e uma saia de corte impecável.

      Alguns pais mal informados haviam-na tomado pela Srta. Bulstrode, não sabendo que era costume da Srta. Bulstrode retirar-se para uma espécie de santuário, onde poucos e seletos privilegiados eram admitidos.

      Ao lado da Srta. Vansittart, operando num plano ligeiramente diferente, estava a Srta. Chadwick, agradável, inteligente e tão integrada a Meadowbank, que seria impossível imaginar aquele colégio sem a sua presença. Ela sempre estivera ali. A Srta. Bulstrode e a Srta. Chadwick, juntas, haviam fundado o Colégio Meadowbank. A Srta. Chadwick usava pincenê, vestia-se com deselegância, era amável, insegura na maneira de falar e, por acaso, uma brilhante matemática.

      Inúmeras palavras e frases de boas-vindas, proferidas graciosamente pela Srta. Vansittart, espalhavam-se pela casa.

      — Como vai, Sra. Arnald? Bem, Lydia, você gostou do cruzeiro helênico? Que oportunidade maravilhosa! Conseguiu tirar boas fotografias?

      — Sim, Lady Garnett, a Srta. Bulstrode recebeu sua carta a respeito das aulas de Artes e tudo já foi providenciado.

      — Como vai, Sra. Bird?... Bem? Não creio que a Srta. Bulstrode terá tempo hoje para discutir esta questão. A Srta. Rowan estará à sua disposição, caso a senhora deseje falar com ela sobre o assunto.

      — Mudamos você de quarto, Pamela. Você agora ficará na ala perto da macieira...

      — Sim, tem razão, Lady Violet, o tempo tem andado horrível esta primavera. Este é o seu filho mais novo? Qual o seu nome? Hector? Que avião bonito o seu, Hector!

      — Très heureuse de vous voir, Madame. Ah, je regrette, ce ne serait pas possible, cette après-midi. Mademoiselle Bulstrode est tellement occupée.

      — Boa tarde, professor. O senhor tem feito mais descobertas interessantes?

     

      Numa pequena sala no primeiro andar, Ann Shapland, a secretária da Srta. Bulstrode, batia à máquina com rapidez e eficiência. Ann era uma bonita jovem de trinta e cinco anos, com cabelos pretos moldando sua cabeça como um gorro de cetim. Sabia ser atraente quando queria, porém a vida lhe ensinara que a eficiência e a competência muitas vezes traziam melhores resultados e evitavam penosas complicações. No momento ela se concentrava em ser tudo aquilo que a secretária da diretora de um famoso colégio de moças deveria ser.

      De tempos em tempos, quando parava para colocar uma nova folha de papel na máquina, olhava pela janela demonstrando interesse nas pessoas que chegavam.

      — Minha nossa! — disse Ann para si mesma, admirada. — Não sabia que ainda existiam tantos motoristas particulares na Inglaterra!

      Então sorriu, quase sem querer, quando um majestoso Rolls Royce se afastou e um Austin muito pequeno e antigo se aproximou. De dentro do carro saiu um pai de aparência preocupada, acompanhado da filha que parecia muito mais calma.

      Enquanto ele parava incerto, a Srta. Vansittart saiu da casa para recebê-lo.

      — Major Hargreaves? E esta é Alison? Entrem, por favor. Gostaria que o senhor visse pessoalmente o quarto de Alison. Eu...

      Ann sorriu e voltou a bater à máquina.

      — Grande Srta. Vansittart, a gloriosa atriz substituta. Ela consegue copiar todos os truques da Bulstrode. Na verdade, é perfeita!

      Um Cadillac enorme e exageradamente vistoso, pintado em duas cores, vermelho vivo e azul celeste, moveu-se (com dificuldade, devido ao seu tamanho) pela alameda e estacionou atrás do velho Austin.

      O motorista apressou-se em abrir a porta. Um homem escuro, com imensa barba, vestindo uma túnica, desceu seguido de alguém parecendo saída de uma página de figurino e, por último, uma garota morena e magra.

      — Aquela provavelmente é a Princesa Qualoseunome — pensou Ann. — Não consigo imaginá-la de uniforme de colégio, mas suponho que amanhã o milagre se tornará visível.

      Desta vez, tanto a Srta. Vansittart quanto a Srta. Chadwick apareceram.

      — Serão levados à Presença — concluiu Ann.

      Então percebeu que, muito estranhamente, ninguém gostava de fazer piadas a respeito da Srta. Bulstrode. A Srta. Bulstrode era Alguém.

      — Você deve ficar atenta ao Ps e Qs, minha garota — disse para si mesma — e acabar estas cartas sem cometer nenhum erro.

      Não que Ann costumasse errar. Ela poderia escolher à vontade onde trabalhar como secretária. Tinha trabalhado para o diretor executivo de uma companhia de petróleo, fora secretária particular de Sir Marvyn Todhunter, famoso tanto pela sua erudição, quanto por sua irritabilidade e ilegibilidade de sua caligrafia. Podia contar entre seus empregadores dois Ministros de Estado e um importante funcionário do Governo. No todo, seu trabalho havia sido sempre entre homens. Ficava imaginando como iria sentir-se, como ela colocara para si mesma, afogada em mulheres. Bem... era mais uma experiência. E sempre havia o Dennis. O fiel Dennis chegando da Malaia, da Birmânia, de várias partes do mundo, sempre o mesmo, devotado, pedindo mais uma vez para que ela se casasse com ele. Querido Dennis. Mas seria muito monótono estar casada com Dennis.

      Logo ela iria sentir falta da companhia masculina. Todas aquelas professoras... nenhum homem por perto, exceto o jardineiro de quase oitenta anos.

      Entretanto, neste ponto, Ann teve uma surpresa. Olhando pela janela, viu, além da passagem dos carros, um homem aparando a cerca viva... evidentemente um jardineiro, mas muito aquém dos oitenta anos. Jovem, moreno, bonitão. Ann ficou pensando... houvera falatórios sobre conseguir-se trabalho extra... mas aquele ali não era nenhum camponês. Oh, bem, hoje em dia as pessoas faziam lodo tipo de serviço. Era apenas um jovem tentando arrumar algum dinheiro para um projeto ou outro, ou, então, realmente para sobreviver. Entretanto, estava cortando a cerca de modo muito profissional.

      — É, provavelmente seja mesmo um jardineiro de verdade...

      — Tenho a impressão — disse Ann para si mesma — de que ele talvez possa ser interessante...

      Apenas mais uma carta por fazer, ficou contente em observar, e em seguida poderia passear pelo jardim...

     

      No andar superior, a Srta. Johnson, a Superintendente, estava ocupada designando os quartos, cumprimentando os recém-chegados e recebendo as alunas antigas.

      Estava contente que as aulas tivessem recomeçado. Nunca soubera direito o que fazer consigo mesma durante as férias. Tinha duas irmãs casadas que naturalmente estavam mais interessadas em seus próprios afazeres e família do que em Meadowbank. A Srta. Johnson, apesar de gostar imensamente de suas irmãs, estava somente interessada em Meadowbank.

      Sim, era bom que o período escolar tivesse recomeçado.

      — Srta. Johnson?

      — Sim, Pamela?

      — Acho que quebrou alguma coisa na minha valise. Melou tudo! Acho que foi o óleo de cabelo.

      — Ora, ora — disse a Srta. Johnson, apressando-se para ajudar.

     

      No gramado adiante do caminho coberto de cascalho, Mademoiselle Blanche, a nova professora de Francês, passeava. Lançou um olhar de aprovação para o homem jovem e forte que cortava a cerca viva.

      — Assez bien. — pensou Mademoiselle Blanche. Mademoiselle era magra e tímida e passava despercebida; entretanto ela própria notava tudo.

      Seus olhos se voltaram para a procissão de carros que se dirigia à porta principal. Avaliava-os em termos de dinheiro. Meadowbank era certamente formidable! Calculou mentalmente o lucro que a Srta. Bulstrode deveria estar tendo.

      — Sim, realmente formidable!

     

      A Srta. Rich, que ensinava Inglês e Geografia, caminhava em direção a casa em passos rápidos, tropeçando um pouco de vez em quando porque, como sempre, esquecia de olhar por onde andava. Seu cabelo, também como de costume, desprendera-se do coque. Tinha um rosto ansioso e feio.

      Dizia a si mesma. — Estar de volta novamente. Estar aqui... Parece séculos!...

      Tropeçou num ancinho e o jovem jardineiro estendeu-lhe o braço. — Calma, senhorita!

      Eillen Rich disse obrigado sem olhar o rapaz.

     

      A Srta. Rowan e a Srta. Blake, duas professoras mais jovens, iam no sentido do Pavilhão de Esportes. A Srta. Rowan era esbelta, morena e ativa. A Srta. Blake, gorda e loura. Discutiam animadas suas recentes aventuras em Florença; os filmes a que haviam assistido, as esculturas, a beleza das árvores em flor e as atenções (que desejavam fossem atrevidas) de dois cavalheiros italianos.

      — É claro que todo mundo sabe como são os italianos — comentou a Srta. Blake.

      — Desinibidos — disse a Srta. Rowan que estudara psicologia, além de economia. — Sente-se que são extremamente saudáveis. Sem nenhuma repressão.

      — Giuseppe porém ficou bastante impressionado quando descobriu que eu lecionava em Meadowbank — observou a Srta. Blake. — Tornou-se imediatamente muito mais respeitador. Ele tem uma prima que quer estudar aqui, mas a Srta. Bulstrode não tinha certeza se havia vaga.

      — Meadowbank é um colégio realmente de prestígio — afirmou alegremente a Srta. Rowan. O novo Pavilhão de Esportes está espetacular. Nunca imaginei que ficasse pronto a tempo.

      — A Srta. Bulstrode disse que tinha que ficar! — falou a Srta. Blake num tom de quem dissera a palavra final. — Oh! — acrescentou de modo um tanto assustado.

      A porta do Pavilhão de Esportes abrira-se abruptamente e uma mulher ossuda de cabelos ruivos apareceu lançando-lhes um olhar de animosidade afastando-se com um andar apressado.

      — Esta deve ser a nova professora de Ginástica — falou a Srta. Blake. — Como é grosseira!

      — Não é uma aquisição muito agradável para o quadro de professoras — comentou a Srta. Rowan. — A Srta. Jones era tão simpática e sociável!

      — Ela nos fuzilou com o olhar! — disse a Srta. Blake ressentida.

      As duas ficaram bastante irritadas.

     

      A sala da Srta. Bulstrode tinha janelas voltadas em duas direções, uma dando para o passeio e o gramado, e a outra, para um grupo de rododendros atrás da casa. Era uma sala que causava forte impressão e, mais forte ainda, era a impressão causada pela Srta. Bulstrode. Uma mulher alta, de aparência nobre, cabelos bem arrumados, olhos cinzentos carregados de bastante humor, e uma boca firme. O sucesso do Colégio (e Meadowbank era um dos colégios de maior prestígio da Inglaterra) era devido inteiramente à personalidade de sua diretora. Era um colégio muito caro, mas na realidade a razão não era esta. Ficaria melhor explicado dizendo-se que, embora custasse um preço exorbitante, recebia-se pelo que se pagava.

      As meninas eram educadas do modo que os pais desejavam e também à maneira da Srta. Bulstrode, e o resultado dessa conjugação era altamente satisfatório. Devido às altas taxas, a Srta. Bulstrode podia contratar um excelente quadro de funcionários. Não havia nada de produção em massa em relação ao colégio, entretanto, se era individualista, possuía também disciplina. Disciplina sem arregimentação, este era o lema da Srta. Bulstrode, trazia tranqüilidade para as jovens, sustentava ela, dava-lhes segurança. Já arregimentação dava margem à irritação. A procedência de suas alunas era variada. Incluía várias garotas estrangeiras de boa família, muitas vezes pertencentes à realeza. Havia também garotas inglesas de famílias de renome ou de fortuna, que desejavam adquirir conhecimentos de cultura geral, artística, noções fundamentais da vida e regras sociais para tornarem-se agradáveis, bem educadas e capazes de participar de uma conversa inteligente sobre qualquer assunto. Havia outras que queriam estudar com afinco, entrar para a Universidade e completar o curso e, para tal, precisavam apenas de bons ensinamentos e atenção especial. Algumas reagiam de modo negativo ao ensino do tipo convencional. A Srta. Bulstrode, entretanto, tinha regulamentos, não aceitando crianças-problema, delinqüentes juvenis, preferindo receber garotas cujos pais apreciava e nas quais via possibilidade de desenvolvimento. A idade das alunas variava numa larga escala. Havia as que no passado teriam sido rotuladas de moças feitas e as que eram pouco mais que crianças, cujos pais estavam no estrangeiro. Para estas, tinha um interessante esquema de recreação. A palavra final na corte de apelação pertencia à Srta. Bulstrode.

      No momento estava em pé ao lado da lareira ouvindo a Sra. Gerald Hope falar com sua voz ligeiramente lamurienta. Com grande previsão, não sugerira que a Sra. Hope se sentasse.

      — Henriette é muito nervosa, a senhora entende. Muito nervosa mesmo. Nosso médico disse.

      A Srta. Bulstrode balançou a cabeça em sinal de compreensão, contendo-se para não dizer uma frase mordaz, que algumas vezes era tentada a proferir. — Sabe, sua idiota, é isto que toda mãe tola diz a respeito da filha.

      Falou dando apoio: — Não precisa se preocupar, Sra. Hope. A Srta. Rowam, membro do nosso corpo docente, é psicóloga de larga experiência. A senhora ficará surpresa, eu lhe garanto, da mudança que ocorrerá em Henriette (que é uma menina meiga, inteligente, e boa demais para você) depois de um ou dois semestres aqui.

      — Oh, eu sei. A senhora fez maravilhas com a filha dos Lambeth... maravilhas! Sendo assim, sinto-me bem tranqüila. E eu... oh sim, ia-me esquecendo. Vamos para o sul da França daqui a seis semanas. Pensei em levar Henriette. Seria um pequeno descanso para ela.

      — Receio que isto seja impossível — disse a Srta. Bulstrode com um sorriso encantador, como se estivesse atendendo a um pedido, em vez de recusá-lo.

      — Oh, mas... — O rosto ligeiramente petulante da Sra. Hope tornou-se hesitante, mostrando mau gênio. — Realmente, devo insistir. Afinal de contas ela é minha filha!

      — Certo. Mas é meu colégio — afirmou a Srta. Bulstrode.

      — É lógico que posso tirar minha filha de um colégio a hora que eu bem entender.

      — Oh, sim. É claro que pode. Mas então eu não a receberia de volta.

      Agora a Sra. Hope estava realmente zangada.

      — Considerando-se as taxas que pago aqui...

      — Exato — concordou a diretora. A senhora colocou sua filha no meu colégio, não foi? Contudo, aceita-se as regras, ou então nada feito. Como este encantador modelo Balanciaga que a senhora está usando. É Balanciaga, não é? É um prazer encontrar uma mulher com verdadeiro tino para roupas.

      Segurou a mão da Sra. Hope, apertou-a, e imperceptivelmente levou-a em direção à porta.

      — Não se preocupe com nada. Ah, sim, aí está Henriette esperando pela senhora. — (Olhou com aprovação para Henriette, uma menina simpática, bem equilibrada e inteligente, que merecia mãe melhor.) — Margaret, leve Henriette Hope até a Srta. Johnson.

      A Srta. Bulstrode retirou-se para a sua sala e poucos minutos depois estava falando em francês.

      — Mas certamente, Excelência, sua sobrinha pode aprender dança de salão. É muito importante socialmente. E línguas também são necessárias.

      A entrada das próximas pessoas foi seguida de tal onda de perfume que quase fez a Srta. Bulstrode cair para trás.

      “Deve derramar um vidro deste negócio em cima dela todo o dia”, pensou a Srta. Bulstrode, ao cumprimentar a mulher de pele morena primorosamente vestida.

      — Enchantée, Madame.

      Madame soltou uma risadinha.

      Um homem de barba em roupas orientais segurou a mão da Srta. Bulstrode, curvou-se, e falou em bom inglês: — Tenho a honra de trazer-lhe a Princesa Shaista.

      A Srta. Bulstrode sabia tudo sobre sua nova aluna que acabara de chegar de um colégio na Suíça, entretanto estava um pouco confusa em relação a quem a estava escoltando. Não era o próprio Emir, decidiu ela. Provavelmente um Ministro ou um diplomata. Como de costume, quando em dúvida, utilizou o usual título de Excelência e assegurou que a Princesa Shaista teria o melhor tratamento.

      Shaista sorria polidamente. Vestia-se na moda e estava perfumada. Tinha quinze anos de idade, porém, como muitas garotas do Oriente e do Mediterrâneo, parecia mais velha... bastante madura. A Srta. Bulstrode falou com ela a respeito dos planos de estudo e ficou aliviada ao descobrir que ela respondeu prontamente em excelente inglês, sem dar risadinhas. Na verdade, suas maneiras podiam ser comparadas favoravelmente às maneiras desajeitadas das muitas estudantes inglesas de quinze anos. A Srta. Bulstrode algumas vezes pensara que seria uma ótima idéia mandar garotas inglesas aos países do Oriente Próximo para lá aprenderem boas maneiras.

      Mais gentilezas foram trocadas por ambos os lados e, em seguida, a sala ficou vazia outra vez, embora ainda carregada de forte perfume. Foi preciso abrir as duas janelas para deixar o cheiro sair.

      Os próximos a chegar foram a Sra. Upjohn e sua filha Júlia.

      A Sra. Upjohn era uma mulher jovem e agradável nos seus trinta e tantos anos. Cabelo claro, sardas e um chapéu que não lhe ia bem e uma clara concessão à seriedade da ocasião, já que era o tipo de mulher que andava sem chapéu.

      Júlia era uma criança simples e sardenta, com uma testa inteligente e um ar de bom-humor. As preliminares foram rápidas e Júlia foi despachada via Margaret para a Srta. Johnson. Disse alegremente enquanto saía: — Até logo, mamãe. Seja cuidadosa ao acender o aquecedor, agora que eu não estou lá para fazê-lo!

      A Srta. Bulstrode virou-se sorrindo para a Sra. Upjohn, mas não a convidou para sentar. Era provável, embora Júlia aparentasse ser alegre e ter bom senso, que sua mãe também quisesse explicar o quanto a sua filha era nervosa.

      — Há alguma coisa que a senhora gostaria de me contar sobre Júlia? — indagou.

      A Sra. Upjohn respondeu alegremente: — Ah, não, acho que não. Júlia é uma garota comum. Muito saudável e tudo o mais. Penso que ela possui uma inteligência razoável. Contudo atrevo-me a dizer que as mães normalmente pensam isto a respeito de seus filhos, não é mesmo?

      — É, mas — falou a Srta. Bulstrode sorrindo, — nem todas as mães são iguais.

      — É maravilhoso ela poder estudar aqui — comentou a Sra. Upjohn. — Minha tia está financiando, ou melhor, ajudando nas despesas. Eu não poderia pagar sozinha. Estou muito grata, como também Júlia. — Dirigiu-se à janela e falou em tom de elogio: — Como é bonito o seu jardim. Tão bem tratado! A senhora deve ter bons jardineiros.

      — Tínhamos três — explicou a Srta. Bulstrode. — Mas agora estamos com problemas de mão-de-obra, só podemos contar com trabalhadores sem especialização.

      — É claro que o problema hoje em dia — observou a Sra. Upjohn — é que os chamados jardineiros não são jardineiros e sim apenas um leiteiro que quer fazer algo no seu tempo livre, ou algum velho de oitenta anos. Algumas vezes me pergunto por que — exclamou a Sra. Upjohn ainda olhando pela janela. — Que extraordinário!

      A Srta. Bulstrode prestou menos atenção à exclamação do que deveria ter feito, pois naquele momento olhou pela outra janela que dava para os rododendros e teve uma visão altamente indesejável. Não era outra senão Lady Verônica Carlton-Sandways, caminhando cambaleante pelo passeio com seu grande e negro chapéu de veludo caído para um lado, resmungando, claramente num avançado estado de intoxicação alcoólica.

      Lady Verônica não era uma pessoa qualquer. Era uma mulher encantadora, profundamente ligada às suas filhas gêmeas, e muito agradável quando era, como costumavam dizer, ela mesma... mas infelizmente, em intervalos imprevisíveis, se transformava. Seu marido, o Major Carlton-Sandways, sabia lidar com ela muito bem. Uma prima que morava com eles habitualmente estava por perto para observar Lady Verônica e afastá-la, se necessário. No Dia dos Esportes, acompanhada do major e da prima que mantinham uma vigilância cerrada, chegara completamente sóbria e lindamente vestida, num legítimo exemplo do que uma mãe deveria ser.

      Contudo havia ocasiões em que ela dava uma rasteira em seus dois guardiões e ingeria grande quantidade de bebida. Então vinha direto ver suas filhas para assegurar-lhes de seu amor materno. As gêmeas haviam chegado de manhã cedo, de trem. Ninguém, entretanto, esperava Lady Verônica.

      A Srta. Upjohn continuava falando. A Srta. Bulstrode, porém, não ouvia. Pensava em várias atitudes a serem tomadas, pois reconhecia claramente que Lady Verônica aproximava-se rapidamente de um estágio perigoso... Mas de repente, como uma resposta às suas preces, apareceu a Srta. Chadwick com seu passo rápido, ligeiramente ofegante. A fiel Chaddy, pensou a Srta. Bulstrode. Sempre podia-se contar com ela, quer fosse no caso de um corte no dedo, ou uma mãe embriagada.

      — Uma vergonha! — disse Lady Verônica num tom elevado. — Tentaram me manter afastada... não queriam que eu viesse até aqui... enganei Edith direitinho. Fingi que ia descansar... apanhei o carro... enganei a tola da Edith... não passa de uma Solteirona... nenhum homem olharia para ela duas vezes. Na vinda para cá tive problemas com a polícia... disseram que eu não tinha condições para dirigir... bobagem! Vou dizer à Srta. Bulstrode que vou levar as garotas para casa... quero-as em casa, junto ao carinho materno. Uma coisa maravilhosa, o amor materno...

      — Esplêndido, Lady Verônica. — disse a Srta. Chadwick. — Estamos tão contentes que tenha vindo! Quero que veja o novo Pavilhão de Esportes. Vai adorar.

      Habilmente, conduziu os passos incertos de Lady Verônica na direção oposta, afastando-a da casa.

      — Creio que lá encontraremos suas filhas — falou alegremente. — O Pavilhão é lindo! Armários novos, uma sala para secar os maiôs... — suas vozes se afastaram.

      A Srta. Bulstrode continuou olhando para fora. Em dado momento, Lady Verônica tentou se soltar e ir em direção à : casa, mas a Srta. Chadwick era um páreo duro para ela. Desapareceram por trás da curva dos rododendros, encaminhando-se para a solidão distante do novo Pavilhão de Esportes.

      A Srta. Bulstrode soltou um suspiro de alívio. A boa Chaddy! Tão prestativa! Não era moderna. Não era inteligente... com exceção da matemática... mas sempre presente na hora dos problemas.

      Com um suspiro e sensação de culpa, virou-se para a Sra. Upjohn que estivera falando alegremente por algum tempo.

      — ...embora, é claro — estava dizendo, — nada do tipo capa e espada, nem saltos de pára-quedas, sabotagem, ou entregas de mensagens. Eu não teria coragem suficiente. Era mais o trabalho monótono. Trabalho de escritório. Localizar coisas no mapa, mas nada de grande importância. Mas é lógico que algumas vezes era excitante e chegava a ser engraçado, como acabei de dizer... todos aqueles agentes secretos seguindo uns aos outros, todos se conhecendo de vista, e freqüentemente acabando num bar. É evidente que na ocasião eu ainda não estava casada.

      Parou abruptamente com um sorriso amigável de desculpa.

      — Perdoe-me por ter falado tanto. Estou tomando seu tempo, quando a senhora tem tantas pessoas para receber!...

      Estendeu a mão, despediu-se e partiu.

      A Srta. Bulstrode ficou por um momento com ar preocupado. Algum instinto avisava-lhe de que perdera algo que poderia ser importante.

      Afastou esta sensação. Este era o dia da abertura do período escolar de verão e ainda tinha muitos pais a receber. Nunca antes seu colégio fora tão popular, tão seguro do sucesso. Meadowbank estava em seu apogeu.

      Nada havia para lhe indicar que dentro de poucas semanas Meadowbank estaria mergulhado num mar de problemas; que desordem, confusão e assassinato reinariam ali e que certos acontecimentos já estavam se desenrolando...

 

REVOLUÇÃO EM RAMAT

CERCA DE DOIS MESES antes do início das aulas em Meadowbank, certos fatos ocorreram que deveriam ter inesperada repercussão naquele famoso colégio para moças.

      No palácio de Ramat, dois jovens fumavam e analisavam o futuro imediato. Um dos jovens era moreno, com um rosto suave e grandes olhos melancólicos. Era o Príncipe Ali Yusuf, xeque de Ramat que, embora pequeno, era um dos países mais ricos do Oriente Médio. O outro jovem tinha cabelos louros, sardas, não possuindo a não ser o atraente salário que recebia como piloto particular de Sua Alteza o Príncipe Ali Yusuf. Apesar da diferença de status, encontravam-se em termos de perfeita igualdade. Haviam freqüentado a mesma escola pública e eram amigos desde então.

      — Atiraram em nós — disse o príncipe quase incrédulo.

      — Sem dúvida que atiraram! — concordou Bob Rawlinson.

      — E foi para valer. Pretendiam acabar conosco.

      — Aqueles bastardos estavam decididos a nos matar — disse Bob sério.

      Ali meditou por um momento. — Acho que não valeria a pena tentar de novo.

      — Poderíamos não ter tanta sorte desta vez. A verdade, Ali, é que deixamos as coisas para muito tarde. Você deveria ter partido há duas semanas atrás. Eu havia lhe prevenido.

      — Ninguém deve fugir! — disse o governante de Ramat.

      — Entendo seu ponto de vista. Lembre-se entretanto do que Shakespeare ou um destes poetas disse a respeito daquele que fogem, deixando para lutar noutro dia.

      — E pensar — comentou o jovem príncipe com emoção — em todo o dinheiro gasto para criar um Programa de Bem-Estar Social. Hospitais, escolas, serviço de saúde...

      Bob Rawlinson interrompeu a lista.

      — A Embaixada não poderia fazer alguma coisa?

      Ali Yusuf ficou vermelho de indignação.

      — Procurar asilo na Embaixada! Isto nunca! Os extremistas provavelmente invadiriam o local... não respeitariam a imunidade diplomática. Além do mais, se eu fizesse isto, aí sim seria realmente o fim de tudo. A principal acusação que existe contra mim é a de ser pró-ocidente!... — suspirou. — É tão difícil de se entender!... — demonstrava ansiedade, parecendo mais jovem do que seus vinte e cinco anos. — Meu avô era um homem cruel, um verdadeiro tirano. Tinha centenas de escravos e tratava-os com crueldade. Em suas guerras tribais matava seus inimigos impiedosamente e os torturava de um modo horrível. O simples som de seu nome deixava todo mundo pálido. E mesmo assim ele é uma legenda! Admirado! Respeitado! O grande-Achmed Abdullah! E eu? O que eu fiz? Construí hospitais, escolas, conjuntos habitacionais, tudo que seria de se esperar que o povo desejasse. Será que não querem nada disto? Será que prefeririam um reinado de terror como o de meu avô?

      — Acho que sim — respondeu Bob Rawlinson. — Parece injusto mas é verdade.

      — Mas por que, Bob? Por quê?

      Bob Rawlinson respirou fundo, agitou-se e procurou explicar o que sentia. Teve que lutar contra a sua dificuldade de expressão.

      — Bem — começou ele, — seu avô armou um espetáculo... suponho que na verdade foi isto. Ele era... um tanto... dramático, se é que entende o que quero dizer.

      Olhou para o amigo que definitivamente não era teatral. Era um sujeito bom, calmo, decente, sincero e perplexo. Isto definia Ali e por ser assim é que Bob gostava dele. Não era nem excêntrico, nem violento, porém, enquanto na Inglaterra pessoas excêntricas e violentas causavam embaraço e não eram benquistas, no Oriente Médio, Bob estava bem certo, acontecia o contrário.

      — Mas a democracia... — começou Ali.

      — Oh, democracia!... — Bob balançou seu cachimbo. — Esta é uma palavra que em cada lugar tem um significado diferente. Uma coisa é certa: jamais tem o significado que os gregos originalmente tencionavam transmitir. Aposto qualquer coisa como, se conseguirem colocar você para fora, algum comerciante pretensioso tomará o seu lugar, exaltando suas próprias qualidades, transformando-se a si mesmo no Deus-Todo-Poderoso, prendendo ou cortando a cabeça de qualquer um que, de alguma forma, ousar discordar dele. E, guarde bem isto, dirá que é um governo democrata... do povo e para o povo. Acredito que o povo também irá gostar. É excitante para eles. Bastante derramamento de sangue.

      — Não somos selvagens! Hoje em dia somos pessoas civilizadas.

      — Há vários tipos de civilização... — disse Bob vagamente. — Além disto, creio que todos temos um pouco de violência dentro de nós... se pudermos pensar numa boa desculpa para deixar vir à tona.

      — Talvez você tenha razão — concordou Ali.

      — O que as pessoas parecem não desejar hoje em dia, em lugar algum — disse Bob, — é alguém que tenha um pouco de bom senso. Nunca fui muito inteligente, você bem sabe, porém freqüentemente penso que é disto que o mundo realmente precisa... apenas de um pouco de bom senso. — Pousou o cachimbo e sentou-se. — Mas deixa isto para lá. O problema é como tirá-lo daqui. Há alguém no exército em quem você realmente confia?

      O Príncipe Ali balançou a cabeça lentamente.

      — Quinze dias atrás eu teria respondido sim. Agora, entretanto, não sei... não posso ter certeza...

      Bob concordou com a cabeça. — Este é o problema. E quanto ao seu Palácio, me dá arrepios.

      Ali concordou sem emoção.

      — Sim, existem espiões espalhados por todo o Palácio. Ouvem tudo, sabem de tudo.

      — Até mesmo nos porões — Bob parou. — O velho Achmed é que está certo. Ele tem uma espécie de sexto sentido. Encontrou um dos mecânicos tentando sabotar o avião... um dos homens que nós teríamos jurado ser inteiramente digno de confiança. Olhe, Ali, se vamos tirá-lo daqui, terá que ser logo.

      — Eu sei... eu sei. Acho... agora tenho certeza que se ficar serei morto.

      Falava sem emoção ou qualquer espécie de pânico: apenas com leve interesse.

      — De qualquer modo corremos um grande risco de sermos mortos — preveniu Bob. — Teremos que voar em direção ao norte, você sabe. Não nos podem interceptar naquela direção. Mas isto significa sobrevoar as montanhas... e nesta época do ano... — Ele encolheu os ombros. — Você precisa compreender. É tremendamente perigoso.

      Ali Yusuf parecia arrasado.

      — Se alguma coisa acontecer a você, Bob...

      — Não se preocupe comigo, Ali. Não foi isto que eu quis dizer. Eu não sou importante. E, de qualquer maneira, sou o tipo do sujeito que mais cedo ou mais tarde acabará morrendo. Estou sempre fazendo coisas malucas. Não, é você que me preocupa. Não quero persuadi-lo de um modo ou de outro. Se parte do exército é leal...

      — Não gosto da idéia de fugir — disse Ali simplesmente. — Mas não tenho a menor vontade de me transformar em mártir e ser feito em pedaços durante um motim.

      Calou-se por uns instantes.

      — Muito bem — falou finalmente, — faremos a tentativa. Quando?

      Bob encolheu os ombros.

      — Quanto mais cedo melhor. Temos que conseguir com que você vá até o aeroporto sem levantar suspeitas. Que tal dizer que vai inspecionar a construção da nova estrada em Al Jasar? Um capricho repentino. Vá esta tarde. Então, quando o seu carro estiver na pista, pare... Estarei com o avião pronto e ligado. A idéia será inspecionar a construção da estrada por ar, entendeu? Levantaremos vôo e pronto! Não podemos levar bagagem, é claro. Tem que ser tudo de improviso.

      — Não há nada que eu queira levar comigo, exceto uma coisa...

      Sorriu e, de repente, o sorriso alterou seu rosto fazendo dele uma pessoa diferente. Não era mais o moderno e consciencioso jovem de mentalidade ocidental... o sorriso continha toda a malícia e astúcia de sua raça, que possibilitara a sobrevivência de uma longa linhagem de seus ancestrais.

      — Você é meu amigo, Bob, você verá. — Colocou as mãos dentro da camisa e apalpou. Em seguida estendeu uma pequena sacola de camurça.

      — Isto? — Bob franziu as sobrancelhas intrigado.

      Ali tomou-a de sua mão, abriu o cordão e jogou o seu conteúdo sobre a mesa.

      Bob reteve o fôlego por um momento e depois soltou um assobio.

      — Meu Deus! São verdadeiras?

      Ali parecia se divertir.

      — É lógico que são verdadeiras! A maioria delas pertenceu a meu pai. Ele adquiria novas pedras todos os anos. Eu também. Vieram de muitos lugares, compradas para a nossa família por homens de confiança... de Londres, Calcutá, África do Sul. É uma tradição nossa. Tê-las para um caso de necessidade. — Acrescentou num tom casual: — Valem, ao preço atual, cerca de um milhão de libras.

      — Quase um milhão de libras! — Bob soltou um assobio, apanhou as pedras e deixou-as correr entre os dedos. — É fantástico, como um conto de fadas. Mexe com a gente!

      — Sim. — O jovem moreno balançou a cabeça. Mais uma vez aquele ar cansado voltara ao seu rosto. — Os homens não são os mesmos quando se trata de jóias. Há sempre uma trilha de violência que as acompanha. Mortes, traições, assassinatos. E as mulheres são as piores, pois com elas não se trata só do valor. Têm algo a ver com as jóias em si. Belas jóias deixam as mulheres malucas. Desejam possuí-las. Usá-las em volta do pescoço, nos braços. Não confiaria a mulher nenhuma estas pedras. Entretanto confiarei em você.

      — Em mim? — Bob arregalou os olhos.

      — Sim. Não quero que estas pedras caiam nas mãos de meus inimigos. Não sei quando ocorrerá o golpe contra mim. Pode até mesmo estar sendo planejado para hoje. É possível que eu não viva para estar no aeroporto esta tarde. Leve as pedras e faça o melhor que puder.

      — Mas olhe aqui, eu não entendo. O que devo fazer com elas?

      — Arrume um modo de tirá-las do país.

      Ali encarou calmamente seu amigo perturbado.

      — Você quer dizer que deseja que eu as leve de vez?

      — Pode definir assim. Realmente acho você mais capaz do que eu para arquitetar um plano para levá-las para a Europa.

      — Mas olhe, Ali, não tenho a menor idéia de como fazer tal coisa.

      Ali recostou-se em sua cadeira. Sorria de maneira calma e divertida.

      — Você possui bom senso e é honesto. E lembro-me que no tempo em que era meu subordinado sempre conseguia ter uma idéia engenhosa. Dar-lhe-ei o nome e o endereço do homem que trata de tais assuntos para mim, isto é, no caso de eu não sobreviver. Não fique tão preocupado, Bob. Faça o melhor que puder. É só o que lhe peço. Não o culparei se falhar. Será como Alá quiser. Para mim, é simples: não quero que estas pedras sejam tiradas de meu cadáver. Quanto ao resto... — encolheu os ombros. É como eu disse. Tudo acontecerá conforme os desígnios de Alá.

      — Você é maluco!

      — Não. Sou fatalista, apenas isto.

      — Mas veja. Ali, você acabou de dizer que sou honesto. Mas quase um milhão de libras!... Não acha que isto pode enfraquecer a honestidade de qualquer homem?

      Ali Yusuf olhou para seu amigo com afeto.

      — Por estranho que pareça, não tenho nenhuma dúvida a este respeito.

 

A MULHER NA SACADA

ANDANDO PELOS CORREDORES de mármore do Palácio, Bob Rawlinson nunca se sentira tão infeliz em sua vida. O fato de saber que estava carregando quase um milhão de libras no bolso de sua calça causava-lhe uma aguda sensação de amargura. Tinha a impressão de que todos os funcionários do Palácio com quem encontrava tinham conhecimento do que acontecia. Sentia até que o fato estava estampado em seu rosto. Teria ficado aliviado se soubesse que seu rosto sardento trazia exatamente a usual expressão alegre de boa índole.

      Do lado de fora as sentinelas, com um ruído surdo, apresentaram armas.

      Bob caminhou pela rua principal de Ramat, repleta de gente, com a mente ainda confusa. Aonde estava indo? O que pretendia fazer? Não tinha a menor idéia. E o tempo era curto.

      Aquela rua era como a maioria das ruas principais do Oriente Médio. Uma mistura de miséria e esplendor. Os bancos exibiam a opulência recém-construída. Um sem-número de pequenas lojas mostravam coleções de mercadorias de plástico barato. Botinhas de bebê e isqueiros sem valor estavam colocados lado a lado numa arrumação de mau gosto; havia máquinas de costura, peças sobressalentes de automóveis. As farmácias exibiam remédios em embalagens desbotadas e uma enorme quantidade de todo tipo de penicilina e antibióticos. Em poucas lojas havia alguma coisa que se desejaria comprar, exceto os modelos mais recentes de relógios suíços, centenas dos quais eram amontoados em pequeninas vitrinas. A variedade era tanta, que mesmo ali a pessoa fugia à compra simplesmente atordoado pela quantidade.

      Bob, ainda caminhando numa espécie de estupor, acotovelado por figuras em roupas nativas ou ocidentais, recobrou a calma, e mais uma vez perguntou a si mesmo, com todos os diabos, aonde estava indo.

      Entrou num bar e pediu chá. Enquanto saboreava a bebida, começou lentamente a se acalmar. A atmosfera do bar era tranqüila. Na mesa em frente um velho árabe, calmamente balançava um cordão de contas de âmbar. Atrás dele, dois homens jogavam gamão. Era um bom lugar para sentar e pensar.

      E ele precisa pensar. Pedras no valor de quase um milhão de libras haviam-lhe sido entregues e cabia a ele imaginar um modo de tirá-las do país. E também não havia tempo a perder. A qualquer momento o barulho poderia começar...

      Ali era maluco, é claro! Entregar a um amigo uma fortuna daquela maneira despreocupada! E depois ficar sentado tranqüilamente, deixando tudo nas mãos de Alá! Bob não contava com este recurso. O Deus de Bob esperava que os seus fiéis tomassem suas decisões e praticassem seus próprios atos com o melhor da habilidade que Ele lhe havia dado.

      Que diabo iria fazer com aquelas malditas pedras?

      Lembrou-se da Embaixada. Não, não poderia envolver a representação de seu país. E era quase certo que a Embaixada se recusaria a ser envolvida.

      O que ele precisava era de uma pessoa, uma pessoa bem comum que estivesse deixando o país de modo bem natural. Um homem de negócios, ou talvez fosse melhor um turista. Alguém sem ligações políticas, cuja bagagem seria, no máximo, submetida a uma busca superficial ou, mais provavelmente, a nenhuma. Havia, é claro, um outro lado a ser considerado... A possibilidade de sensação no Aeroporto de Londres... Tentativa de contrabando de jóias no valor de quase um milhão. E etc., etc. Era preciso correr este risco.

      Alguém comum... um legítimo viajante. E, de repente, Bob chamou a si mesmo de tolo. Joan, é lógico! Sua irmã Joan Sutcliffe. Joan estava em Ramat há dois meses com sua filha Jennifer, para quem, depois de um grave ataque de pneumonia, havia sido recomendado sol e clima seco. Iam retornar por mar dali a quatro ou cinco dias.

      Joan era a pessoa ideal. O que dissera Ali sobre mulheres e jóias? Bob sorriu consigo mesmo. A boa Joan! Ela não perderia a cabeça por causa de jóias. Sabia que ela mantinha os pés na terra. Sim, ele podia confiar em Joan, em sua honestidade, sim. Mas quanto à sua discrição? Bob balançou a cabeça lamentando. Joan falaria. Não seria capaz de ficar calada. Pior até. Iria desconfiar estar levando alguma coisa muito importante e que não deveria dizer uma palavra a ninguém. Seria realmente excitante...

      Joan nunca fora capaz de guardar um segredo, embora ficasse sempre irritada quando alguém lhe dizia isto. Joan não deveria saber o que estava levando. Seria mais seguro deste modo. Ele faria um embrulho com as pedras, um embrulho de aparência inocente. Inventaria uma história. Um presente para alguém. Uma encomenda. Ele pensaria em algo...

      Bob olhou o relógio e levantou-se. O tempo estava passando.

      Caminhou pela rua esquecido do calor do meio-dia. Tudo parecia tão normal! Não havia nada que indicasse o que estava para acontecer. Somente no Palácio havia alguém consciente dos tiros de emboscada, da espionagem, dos sussurros. O exército... tudo dependia do exército. Quem era leal? Quem era desleal? Um golpe de Estado certamente seria tentado. Teria sucesso ou falharia?

      Bob franziu as sobrancelhas ao entrar no principal hotel de Ramat. Era modestamente chamado de Ritz Savoy e tinha uma grande fachada moderna. Abrira com muita pompa há três anos atrás, com um gerente suíço, um cozinheiro-chefe vienense e um maître-d’hôtel italiano. Tudo tinha sido maravilhoso. O cozinheiro-chefe havia ido embora, seguido do gerente suíço. Agora o mâitre italiano também se fora. A comida continuava pretensiosa, mas ruim, o serviço abominável e grande parte do custoso sistema hidráulico não funcionara.

      O empregado atrás do balcão conhecia Bob e o cumprimentou.

      — Bom dia, comandante. Está procurando por sua irmã? Ela saiu para um piquenique com a garotinha...

      Um piquenique? Bob foi pego de surpresa... mas que hora ela escolhera para um piquenique!

      — Foram com o Sr. e Sra. Hurst da Companhia de Petróleo — informou o funcionário. Todos sempre sabem de tudo. — Foram para a represa de Kalat Diwa.

      Bob praguejou em voz baixa. Joan não estaria de volta tão cedo.

      — Subirei até seu quarto — disse estendendo a mão para pegar a chave que o empregado lhe entregou.

      Abriu a porta e entrou. O quarto, grande e com duas camas de solteiro, encontrava-se em sua confusão costumeira. Joan Sutcliffe não era uma mulher ordeira. Havia tacos de golfe nas cadeiras, raquetas de tênis jogadas em cima da cama. Roupas espalhadas. A mesa estava coberta por rolos de filme, cartões postais, revistas e uma grande variedade de objetos curiosos, a maioria de Birmingham e do Japão.

      Bob olhou em torno do quarto, para as malas e sacolas. Estava com um problema. Não iria poder se encontrar com Joan antes de partir de avião com Ali. Não haveria tempo de ir à represa e voltar. Poderia fazer um embrulho das pedras e deixar um bilhete, porém... balançou a cabeça. Sabia muito bem que quase sempre era seguido. Provavelmente fora seguido do Palácio até o café e do café até ali. Não percebera ninguém... mas sabia que eles eram bons neste trabalho. Nada havia de suspeito em vir ao hotel visitar sua irmã... entretanto, se deixasse um pacote com um bilhete, o bilhete seria lido e o pacote aberto.

      Tempo... tempo... Ele não tinha tempo...

      Quase um milhão em pedras preciosas no bolso de sua calça!

      Olhou em volta do quarto.

      Então, com um sorriso, apanhou em seu bolso um estojo de ferramentas que sempre carregava. Viu que sua sobrinha Jennifer tinha massa para modelagem que ajudaria.

      Trabalhou com rapidez e habilidade. Em dado momento, desconfiado, levantou os olhos para a janela aberta. Não, não havia nenhuma sacada naquele quarto. Eram apenas seus nervos que lhe faziam ter a impressão de que alguém o observava.

      Terminou a sua tarefa e balançou a cabeça satisfeito. Ninguém notaria o que ele fizera... estava seguro disto. Nem Joan, nem nenhuma outra pessoa. Certamente nem Jennifer, uma criança egoísta que nunca via ou percebia nada além dela mesma.

      Recolheu todas as evidências do seu trabalho e guardou-as em seu bolso.

      Em seguida hesitou, olhando em volta.

      Apanhou o bloco de cartas da Sra. Sutcliffe e sentou-se com uma expressão carregada.

      Era necessário deixar um bilhete para Joan...

      Mas o que ele poderia dizer? Precisava ser alguma coisa que Joan entendesse mas que nada significasse para alguém que lesse.

      E isto era praticamente impossível. Nos romances policiais que Bob gostava de ler em seu tempo livre, costumava-se deixar uma espécie de código que era sempre decifrado com sucesso por alguém. Contudo, não conseguia nem começar a pensar num código e, além do mais, Joan era o tipo de pessoa de espírito prático que precisava de todos os pingos nos ii para entender alguma coisa...

      Foi então que sua expressão se clareou. Havia uma outra maneira de fazê-lo... desviar a atenção de Joan... um bilhete comum do dia-a-dia. Em seguida, deixar uma mensagem com outra pessoa para ser entregue a Joan na Inglaterra.

      Escreveu rapidamente:

QUERIDA JOAN:

     Vim convidá-la para uma partida de golfe esta tarde, mas já que você foi à represa, provavelmente estará morta de cansaço. Que tal amanhã? Às cinco horas no clube.

                                                                   Seu,

                                                              BOB

      Era o tipo do bilhete comum para ser deixado para uma irmã que talvez nunca mais visse... mas quanto mais casual melhor. Joan não deveria ser envolvida neste caso estranho, não deveria nem mesmo saber que havia algo anormal. Joan não sabia dissimular. Sua proteção residiria no fato de que ela obviamente de nada sabia.

      E o bilhete serviria a um duplo propósito. Daria a impressão de que ele, Bob, não tinha nenhum plano de partida.

      Pensou por uns momentos e depois dirigiu-se ao telefone e deu o número da Embaixada Inglesa. Puseram-no em contato com um amigo seu, Edmundson, Terceiro Secretário.

      — John? É Bob Rawlinson falando. Você pode me encontrar quando sair?... Não pode ser um pouco mais cedo?... É preciso, meu velho. É importante. Bem, na verdade, trata-se de uma garota — pigarreou embaraçado. — Ela é maravilhosa. Simplesmente maravilhosa. Uma coisa do outro mundo. Apenas um pouco complicada.

      A voz de Edmundson soando ligeiramente presunçosa e re-provadora, disse — Realmente, Bob, você e suas garotas. Está bem, encontro-o às duas horas — e desligou.

      Bob ouviu um segundo click como se uma outra pessoa que estivesse escutando houvesse recolocado o fone no gancho.

      O velho Edmundson! Desde que os telefones de Ramat começaram a ser censurados, Bob e John Edmundson haviam bolado um pequeno código para eles mesmos. Uma garota maravilhosa que era uma coisa do outro mundo significava algo urgente e importante.

      Edmundson o apanharia às duas horas de carro em frente ao novo Banco do Comércio e lhe contaria sobre o lugar do esconderijo. Diria que Joan nada sabia a respeito, mas que se alguma coisa acontecesse a ele aquilo era muito importante. Indo de navio Joan e Jannifer não chegariam à Inglaterra antes de seis semanas. A esta altura a revolução já deveria ter estourado e, tendo alcançado êxito ou tendo sido debelada, Ali Yusuf já deveria estar na Europa, ou então ele e Bob poderiam estar mortos. Contaria a Edmundson o bastante, mas não demais.

      Bob deu uma última olhada no quarto. Estava exatamente igual, sossegado, desarrumado, doméstico. A única coisa a mais era o seu bilhete inofensivo para Joan. Apoiou o bilhete na mesa e saiu. Não havia ninguém no corredor.

     

      A mulher do quarto ao lado do de Joan Sutcliffe saiu da sacada. Havia um espelho em suas mãos.

      Saíra para a sacada a fim de examinar mais detalhadamente um fio de cabelo que tivera a audácia de aparecer em seu queixo. Arrancou-o com a pinça e submeteu seu rosto a um rápido exame sob a luz clara do sol.

      Foi então, quando terminou, que viu algo. O ângulo em que estava segurando seu espelho era tal, que refletia o espelho do armário do quarto vizinho, e neste espelho viu um homem fazendo algo muito curioso.

      Tão estranho e inesperado que ela ficou parada, estática, olhando. De onde estava sentado, ele podia vê-la, e ela só conseguia enxergá-lo por meio de duplo reflexo.

      Se ele tivesse virado o rosto para trás, talvez visse o espelho dela refletido no armário, porém estava muito absorvido no que fazia para olhar para trás. Em dado momento, é bem verdade, ele de repente olhara em direção à janela, mas já que lá não havia nada, tornou a baixar a cabeça.

      A mulher observou-o enquanto ele terminava o que fazia. Depois de uma curta pausa ele escreveu um bilhete que deixou apoiado na mesa. Em seguida saiu do seu campo de visão, entretanto ela podia ouvir o bastante para compreender que ele falava ao telefone. Não conseguia entender o que dizia, mas parecia tratar-se de algo despreocupado... casual. Ouviu, então, a porta se fechar.

      Esperou alguns minutos. Então abriu a porta. Do lado de fora, um árabe, preguiçosamente, tirava pó com um espanador de penas. Em seguida, ele dobrou o corredor e desapareceu.

      A mulher dirigiu-se rápida para a porta vizinha à sua. Estava trancada, mas ela já previra isto. O grampo que trouxera e a lâmina de uma pequena faca fizeram o trabalho com rapidez e eficiência.

      Entrou fechando a porta atrás de si. Apanhou o bilhete. O envelope estava apenas levemente colado, abrindo-se com facilidade. Leu a nota, franzindo a testa. Naquela folha de papel não havia nenhuma explicação.

      Tornou a colar o envelope, colocou-o de volta no lugar e atravessou o quarto.

      Lá, com as mãos estendidas, foi perturbada por vozes vindas do terraço embaixo.

      Uma das vozes ela sabia ser da ocupante do quarto no qual se encontrava. Uma voz decidida, didática, completamente segura de si.

      Correu até a janela.

      Embaixo, no terraço, Joan Sutcliffe, acompanhada de sua filha Jennifer, uma menina pálida de quinze anos, falava em altos brados, para um inglês de aparência triste, do Consulado Britânico, o que achava das providências que ele viera tomar.

      — Mas isto é um absurdo! Nunca ouvi tamanha bobagem. Tudo aqui está perfeitamente tranqüilo e todos são bastante agradáveis. Acho que não passa de pânico infundado.

      — Esperamos que sim, Sra. Sutcliffe, realmente esperamos que sim. Todavia a responsabilidade é tamanha que...

      A Sra. Sutcliffe o interrompeu. Não estava disposta a considerar a responsabilidade de embaixadores.

      — Temos muita bagagem, o senhor sabe. Vamos voltar de navio... na próxima quarta-feira. A viagem por mar fará bem a Jennifer. Foi conselho médico. Sinceramente, devo recusar a mudar todos os meus planos e ser posta num avião a caminho da Inglaterra nesta afobação tola.

      O homem de aspecto triste falou, para encorajar, que a Srta. Sutcliffe e sua filha poderiam ir de avião, não para a Inglaterra, mas sim para Eden e lá tomar o navio.

      — Com a nossa bagagem?

      — Sim, sim, isto pode ser arranjado. Tenho um carro esperando ... uma camioneta. Podemos levar tudo agora mesmo.

      — Oh, bem — cedeu a Sra. Sutcliffe. — Acho que é melhor fazermos as malas.

      — Imediatamente, se não se importar.

      A mulher no quarto recuou prontamente. Deu uma olhada rápida no endereço da etiqueta de uma das malas. Em seguida saiu apressadamente e voltou ao seu quarto no momento em que a Sra. Sutcliffe dobrava o corredor.

      O empregado do hotel vinha correndo atrás dela.

      — Seu irmão, o comandante, esteve aqui, Sra. Sutcliffe. Esteve em seu quarto, mas creio que já foi embora. Por pouco a senhora não o encontra.

      — Que aborrecimento! — exclamou a Sra. Sutcliffe. — Obrigada — agradeceu ao funcionário e dirigiu-se a Jennifer. — Acho que também Bob está inquieto. Eu mesma não vejo nenhum sinal da agitação nas ruas. Esta porta está aberta. Como as pessoas são descuidadas!

      — Talvez tenha sido o tio Bob — opinou Jennifer.

      — Gostaria de ter me encontrado com ele... Oh, um bilhete. — Ela. rasgou o envelope. — Pelo menos, Bob não está criando tempestade num copo d’água — disse ela em tom de triunfo. — É óbvio que ele não sabe de nada. Tudo não passa de temores diplomáticos. Como detesto fazer as malas neste calor! Este quarto está um forno. Ande, Jennifer, apanhe suas coisas na cômoda e no armário. Vamos jogar tudo de qualquer maneira. Mais tarde arrumaremos direito.

      — Nunca estive numa revolução — disse Jennifer pensativa.

      — E não creio que será desta vez — respondeu sua mãe asperamente. — Será como eu disse. Nada acontecerá.

      Jennifer pareceu desapontada.

 

APRESENTANDO O SR. ROBINSON

SEIS SEMANAS DEPOIS, um jovem batia discretamente na porta de uma sala em Bloomsburry e era convidado a entrar.

      Era uma sala pequena. Atrás da mesa, afundado numa cadeira, estava um homem gordo de meia idade, usando um terno amarrotado, com a frente coberta de cinza de charuto. As janelas fechadas tornavam o ar quase insuportável.

      — Bem — disse o homem gordo, falando com os olhos semicerrados. — O que há agora?

      Dizia-se que os olhos do Coronel Pikeaway pareciam estar sempre fechando-se de sono, ou então abrindo-se ao acordar. Comentava-se também que o seu nome não era Pikeaway e que não era coronel. Mas algumas pessoas são capazes de qualquer comentário.

      — O Sr. Edmundson, do Ministério do Exterior, está aqui, senhor.

      — Oh — fez o Coronel Pikeaway.

      Piscou dando a impressão de que ia adormecer e murmurou:

      — O Terceiro Secretário da nossa Embaixada em Ramat na ocasião da revolução. Certo?

      — Certo, senhor.

      — Suponho então que é melhor eu recebê-lo — disse o Coronel Pikeaway sem nenhum prazer especial. Sentou-se numa posição mais empertigada e sacudiu um pouco da cinza de sua roupa.

      O Sr. Edmundson era um jovem louro, alto, impecavelmente vestido, o que combinava com suas maneiras, e com um ar de muda censura.

      — Coronel Pikeaway? Sou John Edmundson. Disseram-me que o senhor... talvez quisesse me ver.

      — Disseram? Bem, eles devem saber — respondeu o coronel. — Sente-se — acrescentou.

      Seus olhos começaram a se fechar novamente, mas antes que eles o fizessem falou:

      — O senhor estava em Ramat na ocasião da revolução?

      — Sim. Foi um negócio sórdido.

      — Estou certo que sim. O senhor era amigo de Bob Rawlinson, não era?

      — Sim. Eu o conheço bem.

      — Conhecia-o — corrigiu o Coronel Pikeaway. — Ele está morto.

      — Sim, senhor, eu sei. Apenas não tinha certeza... — Fez uma pausa.

      — Não precisa se dar ao trabalho de ser discreto aqui — disse o coronel. — Nós sabemos de tudo. Ou se não sabemos fazemos de conta que sim. No dia da revolução, Rawlinson levou Ali Yusuf de avião para fora de Ramat. Desde então, não se soube mais nada do aparelho. Poderia ter pousado em algum lugar inacessível ou poderia ter-se despedaçado. Foram encontrados restos de um avião nas montanhas de Arolez. Havia dois corpos. Amanhã as notícias serão liberadas para a imprensa. Certo?

      Edmundson admitiu que ele estava certo.

      — Aqui sabemos de tudo — afirmou o Coronel Pikeaway. — É para isto que estamos aqui. O avião foi de encontro às montanhas. Pode ter sido a má condição do tempo. Temos razões para acreditar que foi sabotagem. Uma bomba de efeito retardado. Ainda não temos o relatório completo. O avião caiu em lugar de difícil acesso. Havia uma recompensa para quem o encontrasse, mas estas coisas levam tempo para surtir efeito. Tivemos que enviar especialistas para uma investigação. Com todas as formalidades e burocracia, é claro. Requerimento a um governo estrangeiro, autorização de Ministros, gorjetas... para não falar da possibilidade de os habitantes locais se apropriarem de tudo que pudesse ser aproveitado.

      Fez uma pausa e olhou para Edmundson.

      — É tudo muito triste — comentou Edmundson. — O Príncipe Ali Yusuf teria sido um governante de visão, com princípios democráticos.

      — Deve ter sido justamente isto que matou o pobre sujeito — disse o Coronel Pikeaway. — Mas não podemos perder tempo contando histórias tristes de reis mortos. Pediram-nos para fazer certas investigações. Por partidos interessados. Partidos que contam com a boa vontade de nosso governo. — Ele encarou o outro com firmeza. — Sabe a que me refiro, não?

      — Bem, eu ouvi falar que nada de valor foi encontrado nos corpos, ou entre as ruínas e, pelo que sabemos, não houve saque por parte dos camponeses. No entanto, tratando-se de camponeses, nunca se pode ter certeza. Eles conseguem dissimular tão bem quanto o Ministério do Exterior. E o que mais o senhor ouviu?

      — Nada mais.

      — Não ouviu falar de que talvez alguma coisa de valor deveria ter sido encontrada? Por que motivo mandaram-no me procurar?

      — Disseram-me que o senhor talvez quisesse me fazer algumas perguntas — respondeu Edmundson com afetação.

      — Se eu lhe fizer perguntas vou esperar respostas — esclareceu o Coronel Pikeaway.

      — Naturalmente.

      — Não me parece que para você seja tão natural assim. Bob Rawlinson disse-lhe alguma coisa antes de sair de Ramat? Era confidente de Ali. Vamos, responda-me. Ele lhe falou alguma coisa?

      — A respeito de que, senhor?

      O Coronel Pikeaway olhou firme para ele e coçou a orelha.

      — Oh, está bem — resmungou. — Esqueça isto. Se não sabe do que estou falando, não sabe, e pronto.

      — Acho que havia algo... — começou Edmundson com cautela e relutância. — Algo importante que Bob me queria dizer.

      — Ah! — exclamou o Coronel Pikeaway com o ar de um homem que finalmente conseguiu arrancar a rolha de uma garrafa. — Interessante. Vamos ver o que você tem para me contar.

      — É muito pouco, senhor. Bob e eu tínhamos uma espécie de código desde que todos os telefones de Ramat estavam sendo censurados. Bob tinha meios de ouvir boatos que circulavam no Palácio, e eu, às vezes, obtinha algumas informações que transmitia para ele. Assim, se algum de nós telefonasse para o outro e mencionasse uma garota espetacular, usando o termo do outro mundo significava que havia algo.

      — Informações de algum modo importantes?

      — Sim. No dia em que tudo começou, Bob me telefonou usando estes termos. Deveria encontrá-lo no nosso lugar de costume ... em frente a um banco. Todavia, o tumulto começou exatamente naquele quarteirão e a polícia fechou a rua. Ele não podia entrar em contato comigo nem eu com ele. E naquela mesma tarde partiu com Ali.

      — Entendo — disse Pikeaway. — Não tem idéia de onde ele telefonou?

      — Não. Poderia ter sido de qualquer lugar.

      — É uma pena — fez uma pausa e depois acrescentou casualmente: — Conhece a Sra. Sutcliffe?

      — Refere-se à irmã de Bob? Conhecia-a em Ramat, naturalmente. Estava lá com a filha adolescente. Contudo não cheguei a conhecê-la bem.

      — Ela e Bob Rawlinson eram muito chegados?

      Edmundson refletiu.

      — Não, eu não diria isto. Ela era bem mais velha do que ele e agia como tal. E Bob não gostava muito do cunhado... sempre se referia a ele como sendo um imbecil pretensioso.

      — E é mesmo. Um destes industriais preeminentes... e como sabem ser pretensiosos! Então o senhor acha improvável que Bob Rawlinson tenha confiado à irmã um segredo importante?

      — É difícil dizer... mas não, não creio.

      — Eu também não — disse o coronel. Suspirou. — Bem, é isto aí. A Sra. Sutcliffe e sua filha estão a caminho de volta numa longa viagem marítima. Chegam amanhã em Tilbury no Eastern Queen.

      Ficou calado por alguns instantes, enquanto seus olhos faziam um cuidadoso estudo do jovem à sua frente. Então, como se tivesse chegado a uma conclusão, estendeu a mão e falou vivamente: — Obrigado por ter vindo.

      — Lamento não ter sido de grande ajuda. O senhor está certo de que não há nada que eu possa fazer?

      — Não, receio que não.

      John Edmundson retirou-se. O jovem discreto voltou.

      — Pensei que pudesse mandá-lo a Tilbury para transmitir a notícia à irmã de Bob Rawlinson — disse Pikeaway. — Sendo amigo do irmão e tudo o mais, mas decidi que não. É um tipo duro. É o treinamento do Ministério do Exterior. Mandarei o... qual é mesmo o seu nome?

      — Derek?

      — Isto mesmo. — O Coronel Pikeaway balançou a cabeça em sinal de aprovação. — Está começando a me entender bastante bem, não está?

      — Tento o melhor que posso, senhor.

      — Tentar não é o bastante. É preciso conseguir. Chame Ronnie primeiro. Tenho uma tarefa para ele.

     

      O Coronel Pikeaway estava quase pegando no sono de novo quando um jovem chamado Ronnie entrou na sala. Era moreno, musculoso, com jeito alegre e um tanto impertinente.

      O coronel olhou-o por uns momentos e depois sorriu.

      — Que tal você acharia penetrar num colégio de moças? — indagou ele.

      — Um colégio de moças? — O jovem levantou as sobrancelhas. — Isto é algo novo. O que elas andaram fazendo? Bombas na aula de química?

      — Nada disso. É um colégio de alto nível. Meadowbank.

      — Meadowbank! — o jovem assobiou. — Não posso acreditar!

      — Segure sua língua impertinente e preste atenção. — A

      Princesa Shaista, prima e única parenta próxima do falecido Príncipe Ali Yusuf de Ramat, vai para lá este semestre. Até agora ela esteve num colégio na Suíça.

      — O que devo fazer? Raptá-la?

      — Claro que não. Acredito que, em futuro próximo, ela venha a se tornar foco de interesse. Quero que fique de olho nos acontecimentos. É só o que tenho a dizer. Não sei o que, ou quem, poderá surgir, mas se algum dos nossos amigos indesejáveis mostrarem interesse, notifique-me... um trabalho de vigilância, é o que você terá que desempenhar.

      O jovem balançou a cabeça.

      — E de que modo vou entrar lá? Serei o professor de desenho?

      — O corpo docente é todo feminino. — O Coronel Pikeaway avaliou-o com o olhar. — Acho que terei de transformá-lo em jardineiro.

      — Jardineiro?

      — Sim. Estou certo ao pensar que você entende alguma coisa de jardinagem?

      — Sim, está. Quando mais jovem, durante um ano, escrevi uma coluna chamada Your Garden para o Sunday Mail.

      — Ora! — disse o coronel. — Isto não é nada. Eu mesmo poderia escrever um artigo sobre jardinagem sem entender nada do assunto... bastaria copiar alguns catálogos de sementes e uma enciclopédia de jardinagem. Conheço todo o esquema. Por que não fugir à tradição e dar um toque tropical ao seu jardim? Lindas Amabellis Gossiporia e algumas das maravilhosas plantas híbridas chinesas, como a Sinenis Maka. Experimente a rósea beleza de um grupo de Sinistra Hopaless, que não são muito resistentes, mas se dão muito bem junto a um muro voltado para o oeste. — Calou-se e sorriu. — Muito simples! Os tolos compram as plantas, a neve surge e acaba com elas e então eles desejariam ter permanecido fiéis às margaridas e aos miosótis. Não, meu rapaz, refiro-me ao trabalho pesado. Cuspir nas mãos, usar a pá, entender bem da qualidade do solo, de todos os tipos de ancinho, saber escavar a terra, preparar uma cova bem funda para as ervilhas-de-cheiro... e todo o resto deste serviço cansativo. Sabe fazê-lo?

      — Faço isto desde garoto.

      — É lógico que faz. Conheço sua mãe. Bem, esta parte está resolvida.

      — Estão precisando de jardineiros em Meadowbank?

      — Com toda certeza — respondeu o Coronel Pikeaway. — Todos os jardins da Inglaterra estão com problema de mão-de-obra. Escreverei uma carta de recomendação. Você verá, será contratado na mesma hora. Não há tempo a perder, o período de verão começa dia 29.

      — Trabalho no jardim e mantenho os olhos abertos, é isto?

      — É isto mesmo. E se alguma garota mais atirada tentar namorá-lo, Deus o ajude se você der confiança. Não quero que seja expulso cedo demais.

      Apanhou uma folha de papel. — Tem alguma idéia para um nome?

      — Adam seria apropriado.

      — E como sobrenome?

      — Que tal Eden?

      — Não estou seguro se gosto da maneira como seu cérebro está funcionando. Adam Goodman ficará bem. Procure Jensen e invente uma história para o seu passado e depois comece a se mexer. Olhou o relógio. — Não tenho mais tempo para você. Não quero deixar o Sr. Robinson esperando. Já deve ter chegado.

      Adam (para dar-lhe o seu novo nome) parou a caminho da porta.

      — O Sr. Robinson? Ele vem? — perguntou ansioso.

      — Já disse que sim. — Uma campainha soou na mesa. — Aí está ele. Sempre pontual.

      — Diga-me, quem é ele realmente? Qual o seu verdadeiro nome? — indagou Adam.

      — O seu nome — respondeu Pikeaway — é Sr. Robinson. Isto é tudo que eu sei, e é o que todo mundo sabe.

     

      O homem que entrou na sala não dava impressão de que seu nome fosse, ou que jamais pudesse ter sido, Robinson. Poderia ser Demetrius, Isaacstein, ou Perenna... embora nenhum deles em especial. Não poderia ser definido como judeu, grego, português, espanhol, ou sul-americano. O que parecia altamente improvável era que fosse um inglês chamado Robinson. Era gordo, estava bem vestido, possuía um rosto amarelado, olhos escuros e melancólicos, testa larga, boca generosa mostrando dentes brancos e um tanto grande demais. Suas mãos eram bem feitas e cuidadosamente tratadas. No seu inglês não havia nenhum traço de sotaque.

      Ele e o Coronel Pikeaway cumprimentaram-se como dois monarcas em exercício. Foram trocadas cortesias.

      Então, enquanto o Sr. Robinson aceitava um charuto, o Coronel Pikeaway disse: — Foi muita gentileza sua oferecer-se para nos ajudar.

      O Sr. Robinson acendeu o charuto, saboreou-o com satisfação e finalmente falou: — Meu caro, apenas pensei... eu ouço coisas, o senhor sabe. Conheço pessoas e elas me contam histórias. Não sei porque.

      O Coronel Pikeaway não comentou sobre o porquê. Acrescentou: — Suponho que o senhor sabe que o avião do Príncipe Ali Yusuf foi encontrado?

      — Na quarta-feira da semana passada — disse o Sr. Robinson. — O jovem Rawlinson pilotava-o. Um vôo perigoso. Mas o desastre não foi devido a nenhum erro de Rawlinson. O aparelho havia sido sabotado por um certo mecânico chamado Achmed. Inteiramente digno de confiança... ou assim pensava Rawlinson. Entretanto não o era. Tem agora um trabalho muito bem remunerado no novo regime.

      — Então foi mesmo sabotagem! Não tínhamos certeza. É uma história triste.

      — Sim. Aquele pobre jovem... refiro-me a Ali Yusuf... estava mal preparado para lidar com corrupção e traição. Sua educação escolar foi inadequada... ou pelo menos este é o meu ponto de vista. Mas ele é notícia de ontem. Nada é tão morto como um rei morto. Estamos preocupados, o senhor a seu modo, e eu ao meu, com o que um rei morto deixa atrás de si.

      — O quê?

      O Sr. Robinson encolheu os ombros.

      — Uma substancial conta bancária em Genebra, outra mais modesta em Londres, consideráveis propriedades em seu país, agora confiscadas pelo glorioso novo regime (pelo que soube, existe uma sensação de mal-estar pelo modo como foram distribuídas) e finalmente um pequeno item pessoal.

      — Pequeno?

      — Isto é relativo. De qualquer maneira, pequeno em volume. Fácil de se levar no bolso.

      — Pelo que sabemos, nada foi encontrado no corpo de Ali Yusuf.

      — Não, porque ele havia entregue ao jovem Rawlinson.

      — Está seguro disto? — perguntou Pikeaway vivamente.

      — Bem, nunca se pode ter certeza — desculpou-se o Sr. Robinson. — Num Palácio correm muitos boatos. Nem tudo pode ser verdade. Há, porém, um rumor muito forte a este respeito.

      — Também nada foi encontrado no corpo do jovem Rawlinson.

      — Neste caso então — disse o Sr. Robinson — parece que foram levadas para fora do país de uma outra maneira.

      — De que maneira? O senhor tem alguma idéia?

      — Rawlinson foi a um café depois de ter recebido as pedras preciosas. Não foi visto falando ou se aproximando de ninguém enquanto lá permaneceu. Em seguida, foi ao Hotel Ritz Savoy onde sua irmã estava hospedada. Subiu até o seu quarto, onde se demorou uns vinte minutos. Ela havia saído. Depois deixou o hotel indo até o Banco do Comércio onde descontou um cheque. Quando saiu do banco a confusão estava começando. Levou algum tempo até a rua ficar desimpedida. Rawlinson então foi direto ao aeroporto onde, em companhia do Sargento Achmed, examinou o avião. Ali Yusuf saiu para ver a construção da nova estrada, parou o carro na pista do aeroporto e, indo ao encontro de Rawlinson, expressou o desejo de dar um pequeno vôo para ver do ar a represa e a construção da nova estrada. Levantaram vôo e não voltaram mais.

      — Quais suas deduções a este respeito?

      — Meu caro, as mesmas que as suas. Por que Bob Rawlinson permaneceu vinte minutos no quarto da irmã quando ela não estava e lhe haviam dito que só deveria voltar à noitinha? Deixou-lhe um bilhete que levaria no máximo três minutos para ser escrito. O que fez ele durante o resto do tempo?

      — Está sugerindo que escondeu as pedras preciosas em algum lugar entre os pertences de sua irmã?

      — É o que parece, não é? Naquele mesmo dia a Sra. Sutcliffe, juntamente com outros súditos ingleses, foi retirada do país, sendo levada de avião até Eden com a filha. Creio que chega a Tilbury amanhã.

      Pikeaway concordou com a cabeça.

      — Tome conta dela — recomeçou o Sr. Robinson.

      — Vamos tomar — disse Pikeaway. —• Isto já está providenciado.

      — Se as pedras estão com ela, está correndo perigo. — Fechou os olhos. — Detesto violência.

      — O senhor acha que é capaz de haver violência?

      — Há pessoas interessadas. Várias pessoas indesejáveis... se o senhor entende.

      — Entendo — respondeu Pikeaway sério. — E eles, é claro, trairão uns aos outros.

      O Sr. Robinson balançou a cabeça. — É tudo tão confuso.

      O Coronel Pikeaway perguntou cortesmente: — O senhor tem... er... algum interesse especial no caso?

      — Represento um grupo interessado — disse o Sr. Robinson. Sua voz continha um leve toque de reprovação. — Algumas das pedras em questão foram fornecidas ao Príncipe pela minha corporação... por um preço razoável. O grupo de pessoas que represento, que estão interessadas na recuperação das pedras, teria, atrevo-me a dizer, a aprovação do falecido dono. Não gostaria de dizer mais nada. Estes assuntos são muito delicados.

      — Mas o senhor definitivamente está do lado dos anjos. O Coronel Pikeaway sorriu.

      — Ah, anjos! Anjos... sim — fez uma pausa. — O senhor por acaso sabe quem ocupava os quartos que ladeavam o quarto da Sra. Sutcliffe e filha?

      O Coronel Pikeaway estava com um ar vago.

      — Deixe-me ver... acho que sei. Do lado esquerdo estava a Senhora Angélica de Toledo... uma espanhola... er... uma dançarina que se apresentava num cabaré local. Talvez não seja estritamente espanhola e nem tampouco boa dançarina, todavia muito popular entre a clientela. Do outro lado havia uma moça pertencente a um grupo de professoras, acho que...

      O Sr. Robinson fez um gesto de aprovação.

      — O senhor continua o mesmo. Venho-lhe prestar informações, mas quase sempre o senhor já sabe de tudo.

      — Não, não — retratou-se o Coronel Pikeaway polidamente.

      — Nós dois sabemos de muita coisa — afirmou o Sr. Robinson.

      Seus olhos se encontraram.

      — Espero que saibamos o bastante — disse o Sr. Robinson levantando-se.

 

A VOLTA DE UMA VIAJANTE

— REALMENTE! — exclamou a Sra. Sutcliffe, com a voz aborrecida, ao olhar pela janela do hotel. — Não entendo por que sempre tem que chover quando se chega à Inglaterra. Faz com que tudo pareça tão deprimente!

      — Acho ótimo estar de volta — observou Jennifer. — Poder ouvir todo mundo falando inglês nas ruas! E agora poderemos tomar chá de verdade, pão, manteiga, geléia e bolinhos.

      — Gostaria que você não fosse tão limitada, querida! — lamentou a Sra. Sutcliffe. O que adianta levá-la até o golfo da Pérsia, se você depois diz que preferiria ter ficado em casa?

      — Não me incomodo de ir para o estrangeiro por um mês ou dois — explicou Jennifer. — Tudo que eu disse é que estava contente de estar de volta.

      — Agora saia do caminho, querida; preciso certificar-me de que trouxe toda a bagagem. Realmente, sinto... senti que desde que a guerra terminou as pessoas se tornaram desonestas. Tenho certeza de que se eu não tivesse ficado de olho, aquele homem em Tilbury teria carregado a minha sacola verde. E havia um outro rondando’ perto das malas. Tornei a vê-lo no trem. Sabe, acho que estes ladrões mesquinhos esperam a chegada dos navios e, se as pessoas estiverem agitadas ou enjoadas por causa da viagem, eles aproveitam para roubar alguma mala.

      — Oh, você sempre está imaginando coisas deste tipo, mamãe! — reclamou Jennifer. — Acha que todo mundo que encontra é desonesto.

      — A maioria é — disse a Sra. Sutcliffe séria.

      — Não os ingleses! — defendeu a leal Jennifer.

      — O pior é isto — disse a mãe. — Ninguém espera nada diferente dos árabes e estrangeiros, porém, na Inglaterra, as pessoas não ficam na defensiva e isto torna tudo mais fácil para os desonestos. Agora deixe-me contar. Ali está a mala verde e a preta, duas pequenas malas marrons, a sacola, os tacos de golfe, as raquetas, a maleta, a mala de lona... e onde está a sacola verde? Oh, ali está. E o cofre de latão que compramos para colocar coisas extras... sim, uma, duas, três, quatro, cinco, seis... sim, tudo certo. Quatorze ao todo.

      — Podemos tomar chá agora? — perguntou Jennifer.

      — Chá?! São apenas três horas!

      — Estou morrendo de fome.

      — Está bem, está bem. Você pode descer sozinha e fazer o pedido? Preciso descansar um pouco e, em seguida, tirar das malas apenas as coisas que vamos precisar para hoje à noite. É uma lástima que seu pai não tenha podido vir nos encontrar. Não consigo entender por que tinha que ter uma importante reunião de diretoria em Newcastle-on-Tyne justamente hoje. Seria de se esperar que a mulher e a filha viessem em primeiro lugar. Principalmente porque não as vê há três meses. Tem certeza de que pode se arranjar sozinha?

      — Pelo amor de Deus, mamãe! Que idade pensa que tenho? Quer me dar algum dinheiro, por favor? Não tenho nenhum dinheiro inglês.

      Aceitou os dez xelins que sua mãe lhe entregou e saiu com ar de desdém.

      O telefone tocou ao lado da cama. A Sra. Sutcliffe foi atender.

      — Alô... sim... sim, é a Sra. Sutcliffe...

      Bateram na porta. A Sra. Sutcliffe desculpou-se ao telefone, pousou-o e foi atender a porta. Lá havia um jovem de macacão azul-marinho com um pequeno estojo de ferramentas.

      — Eletricista — disse vivamente. — As luzes desta suíte estão com defeito. Mandaram-me vê-las.

      — Oh... está bem.

      Recuou para dar passagem ao eletricista.

      — Onde fica o banheiro?

      — Por ali... atravessando o outro quarto.

      Ela voltou ao telefone.

      — Desculpe-me... o que o senhor estava dizendo?

      — Meu nome é Derek O’Connor. Talvez eu pudesse subir até a sua suíte. Trata-se do seu irmão.

      — Bob? Tem... notícias dele?

      — Receio que sim.

      — Oh... oh, entendo. Sim, suba. É no 3º andar, 310.

      Sentou-se na cama. Já sabia qual deveria ser a notícia.

      Logo ouviu uma batida na porta e abriu-a para deixar entrar um jovem que a cumprimentou de maneira cortês.

      — O senhor é do Ministério do Exterior?

      — Meu nome é Derek O’Connor. Meu superior mandou-me aqui, já que parecia não haver mais ninguém para transmitir-lhe a notícia.

      — Por favor, diga-me. Ele está morto, não é isto?

      — Sim, Sra. Sutcliffe. Ele estava levando o Príncipe Ali Yusuf de avião para fora de Ramat e caíram nas montanhas.

      — Por que eu não soube de nada... por que ninguém telegrafou para o navio?

      — Até poucos dias atrás não havia notícias concretas. Sabia-se que o aparelho estava desaparecido, isto era tudo. Mas em tais circunstâncias ainda poderia haver alguma esperança. Agora, entretanto, os restos do avião foram encontrados. Estou certo de que a senhora gostará de saber que a morte foi instantânea.

      — O Príncipe também morreu?

      — Sim...

      — Não estou nem um pouco surpresa — disse a Sra. Sutcliffe. Sua voz tremeu um pouco mas estava em completo domínio de si mesma. — Sabia que Bob morreria jovem. Sempre foi temerário, o senhor sabe... sempre experimentando novos modelos de avião, procurando sensações novas. Mal o vi nestes últimos quatro anos. Oh, bem, ninguém consegue mudar uma pessoa, consegue?

      — Não — respondeu o visitante. — Receio que não.

      — Henry sempre disse que, mais cedo ou mais tarde, Bob se iria arrebentar. A Sra. Sutcliffe parecia obter uma espécie de melancólica satisfação na precisão da profecia do marido. — Uma lágrima rolou em seu rosto e ela procurou o lenço. — Foi um choque para mim.

      — Eu sei. Sinto imensamente.

      — Bob não poderia fugir ao compromisso, é lógico — comentou a Sra. Sutcliffe. — Quero dizer, ele havia sido contratado como piloto do Príncipe. Eu não gostaria que tivesse desistido do trabalho. E era também um bom piloto. Estou certa de que se o avião caiu nas montanhas a culpa não foi dele.

      — Não — disse O’Connor. — Certamente não foi o culpado. A única esperança de salvar o Príncipe era tirá-lo de lá de avião, não importando em que condições. Era um vôo difícil de ser tentado e não deu certo.

      A Sra. Sutcliffe balançou a cabeça.

      — Compreendo. Agradeço-lhe por ter vindo me contar.

      — Há mais um detalhe — prosseguiu O’Connor — algo que preciso lhe perguntar. Seu irmão confiou-lhe alguma coisa para trazer para a Inglaterra?

      — Confiar-me alguma coisa? — estranhou a Sra. Sutcliffe. — O que quer dizer?

      — Ele lhe deu algum embrulho... pequeno para ser entregue a alguém aqui?

      Ela balançou a cabeça pensativa. — Não. Que motivo o faz pensar assim?

      — Havia um pacote bastante importante que achamos que o seu irmão poderia ter confiado a alguém para trazer para cá. Ele procurou a senhora no hotel naquele dia... quero dizer, no dia da revolução.

      — Eu sei. Ele me deixou um bilhete. No entanto, não era nada de especial, apenas algo sobre jogar tênis ou golfe no dia seguinte. Creio que ao escrever aquela nota, não sabia que teria que viajar com o Príncipe naquela mesma tarde.

      — Era só isto que dizia?

      — O bilhete? Sim.

      — A senhora o guardou?

      — Se eu guardei o bilhete? Não, é óbvio que não. Era bastante trivial. Rasguei e joguei fora. Por que deveria guardá-lo?

      — Por nada — respondeu O’Connor. — Estava só imaginando.

      — Imaginando o quê? — indagou ela de mau humor.

      — Se por acaso não continha... uma outra mensagem. Afinal de contas — ele sorriu — existe uma coisa chamada tinta invisível, a senhora sabe.

      — Tinta invisível! — repetiu a Sra. Sutcliffe com bastante desagrado. — O senhor se refere ao tipo de coisa que usam em histórias de espionagem?

      — Bem, receio que me refiro exatamente a isto — desculpou-se O’Connor.

      — Que bobagem! — disse a Sra. Sutcliffe. — Estou certa de que Bob jamais usaria algo como tinta invisível. Por que ele faria isto? Era uma pessoa objetiva e sensata. — Uma lágrima tornou a rolar em sua face. — Oh, Deus, onde está minha bolsa. Preciso de um lenço. Talvez a tenha deixado no outro quarto.

      — Vou apanhá-la para a senhora — disse O’Connor.

      Passou pela porta de comunicação, parando quando o jovem de macacão que estava abaixado sobre uma mala ergueu-se para olhá-lo, parecendo um tanto assustado.

      — Sou o eletricista — o jovem apressou-se em explicar. — Há alguma coisa errada com as luzes aqui.

      O’Connor acendeu um interruptor.

      — Parece que está tudo bem — disse ele de maneira amável.

      — Devem ter-me dado o número do quarto errado — explicou o eletricista.

      Apanhou seu estojo de ferramentas e saiu apressado para o corredor.

      O’Connor franziu a testa, apanhou a bolsa da Sra. Sutcliffe em cima da cômoda e levou-a até ela.

      — Com licença — disse ele, tirando o fone do gancho.

      — Aqui é do quarto 310. Por acaso os senhores mandaram um eletricista examinar as luzes deste quarto? Sim... sim, eu aguardo.

      Ele esperou.

      — Não? Foi o que pensei. Não, não há nada errado.

      Recolocou o fone no gancho e dirigiu-se à Sra. Sutcliffe.

      — Não há nada errado com as luzes aqui — comentou ele. — E não mandaram nenhum eletricista.

      — Então o que aquele homem estava fazendo aqui? Era um ladrão?

      — Pode ser.

      A Sra. Sutcliffe olhou apressada a bolsa. — Ele não tirou nada. O dinheiro está todo aqui.

      — A senhora têm certeza, certeza absoluta, de que seu irmão não lhe entregou nada para trazer para casa junto com a sua bagagem?

      — Tenho certeza absoluta — garantiu a Sra. Sutcliffe.

      — Ou sua filha... a senhora tem uma filha, não tem?

      — Sim. Está lá embaixo tomando chá.

      — O seu irmão poderia ter entregue alguma coisa a ela?

      — Não, estou certa que não.

      — Há uma outra possibilidade — disse O’Connor — aquele dia em que ficou lhe aguardando em seu quarto, ele poderia ter escondido algo entre suas coisas.

      — Mas por que motivo Bob faria isto? Parece-me absurdo.

      — Não é tão absurdo quanto parece. É possível que o Príncipe Ali Yusuf tenha dado alguma coisa para o seu irmão guardar e que ele achou que estaria mais seguro escondido na sua bagagem do que se levasse consigo mesmo.

      — Acho muito pouco provável.

      — Será que se incomodaria se déssemos uma busca?

      — Quer dizer, procurar na minha bagagem? Desfazer as malas? — A voz da Sra. Sutcliffe levantou-se num gemido ao pronunciar a última palavra.

      — Sei que é uma coisa terrível para lhe pedir — disse O’Connor. — Todavia pode ser muito importante. Eu poderia ajudá-la — falou persuasivo. — Muitas vezes ajudei minha mãe a fazer as malas. Ela dizia que eu era bastante bom neste serviço.

      Empregou todo o seu charme que era um de seus pontos fortes junto ao Coronel Pikeaway.

      — Oh bem — falou a Sra. Sutcliffe rendendo-se. — Creio que... se o senhor assim diz... se, quero dizer, é realmente muito importante...

      — Pode ser muito importante — firmou Derek O’Connor. — Muito bem — sorriu para ela — que tal começarmos agora?

     

      Quarenta e cinco minutos depois, Jennifer voltou do chá. Olhou em torno do quarto e perdeu o fôlego, surpresa.

      — Mamãe, o que você andou fazendo?

      — Desfizemos as malas — respondeu a Sra. Sutcliffe de mau humor. — Agora estamos guardando tudo de novo. Este é o Sr. O’Connor. Minha filha, Jennifer.

      — Mas por que você está fazendo isto?

      — Não me pergunte o porquê — irritou-se a mãe. — Parece que existe a idéia de que seu tio Bob colocou alguma coisa na minha bagagem. Suponho que não lhe entregou nada, não é Jennifer?

      — Você quer saber se tio Bob me deu algo para trazer? Não. Vocês também mexeram nas minhas coisas?

      — Mexemos em tudo — explicou Derek O’Connor alegremente — e não encontramos nada. Agora estamos arrumando as malas novamente. Acho que a senhora deveria tomar um chá, ou alguma outra coisa, Sra. Sutcliffe. Posso fazer o pedido? Talvez um brandy com soda? — Ele foi até o telefone.

      — Aceitaria uma boa xícara de chá — disse a Sra. Sutcliffe.

      — Tomei um chá delicioso — comentou Jannifer. — Pão, manteiga, sanduíches, bolo. Depois o garçom me trouxe mais sanduíches, porque eu perguntei se se encomodaria e ele disse que não. Foi maravilhoso.

      O’Connor pediu o chá e, em seguida, acabou de guardar tudo com tal esmero e rapidez que a Sra. Sutcliffe, contra sua vontade, foi forçada a sentir admiração.

      — Parece que sua mãe lhe ensinou a arrumar malas muito bem — disse.

      — Oh, possuo bastante destreza para este tipo de trabalho.

      Sua mãe estava morta há muito tempo, e a sua habilidade em fazer e desfazer malas havia sido adquirida unicamente trabalhando para o Coronel Pikeaway.

      — Há mais uma coisa, Sra. Sutcliffe. Gostaria que tomasse cuidado consigo mesma.

      — Cuidado comigo mesma? Como assim?

      — Bem — O’Connor foi um tanto vago, — Revolução é uma coisa traiçoeira. Há muitas ramificações. A senhora vai ficar muito tempo em Londres?

      — Vamos para o campo amanhã. Meu marido vai nos levar até lá.

      — Está ótimo, então. Mas não se arrisque. Se alguma coisa de anormal acontecer, por mais insignificante que seja, ligue imediatamente para 999.

      — Oh! — exclamou Jennifer, em extrema satisfação. — Ligue para 999 Sempre desejei isto.

      — Não seja tola, Jennifer — censurou sua mãe.

     

      Extrato de uma nota de um jornal local:

      Ontem, um homem se apresentou diante do tribunal acusado de invadir a residência do Sr. Henry Sutcliffe com a intenção de roubar. Enquanto os membros da família estavam na igreja, o quarto da Sra. Sutcliffe foi todo vasculhado e deixado em total confusão. Os serviçais que preparavam o almoço nada ouviram. A polícia prendeu o assaltante quando este tentava escapar. Evidentemente alguma coisa o alarmou e ele fugiu sem nada levar. Dando o nome de Andrew Ball, sem residência fixa, se confessou culpado. Disse que estava desempregado e que andava atrás de dinheiro, As jóias da Sra. Sutcliffe, com exceção das que estava usando, são guardadas no banco.

      — Eu lhe disse para mandar consertar a tranca da janela da sala de visitas — havia sido o comentário do Sr. Sutcliffe no círculo familiar.

      — Meu querido Henry — falou a Sra. Sutcliffe — você parece não se lembrar de que eu estive fora nos últimos três meses. E, de qualquer maneira, recordo-me de ter lido algo dizendo que se um ladrão quer entrar num lugar, sempre encontra um jeito.

      Acrescentou tristonha, ao tornar a olhar o jornal: — Como soa importante a palavra serviçais. Tão diferente do que é na realidade! Ellis, que está bastante surda e mal se agüenta em pé, e aquela garota meio retardada filha dos Bardwells, que vem aqui nas manhãs de domingo para ajudar.

      — O que não consigo entender — disse Jennifer — é como a polícia descobriu que a casa estava sendo assaltada e chegou a tempo de apanhar o ladrão?

      — Acho incrível que não tenha levado nada — comentou a mãe.

      — Está bem certa a este respeito, Joan? — perguntou o marido. — A princípio você estava um pouco na dúvida.

      A Sra. Sutcliffe soltou um suspiro exasperado.

      — É simplesmente impossível afirmar-se sobre uma coisa como esta de imediato. A desordem em que estava o meu quarto... coisas espalhadas por todos os lugares, gavetas abertas e viradas. Tive que olhar bem antes de ter certeza... embora, agora que estou pensando nisto, não me lembro de ter visto o meu melhor lenço de Jacqmar.

      — Desculpe-me, mamãe. Fui eu. Caiu no mar por causa do vento. Pretendia lhe contar, mas esqueci.

      — Realmente, Jennifer, quantas vezes tenho que lhe pedir para não pegar nada emprestado sem antes me falar?

      — Posso comer mais pudim? — perguntou Jennifer mudando de assunto.

      — Suponho que sim. A Sra. Ellis tem mesmo a mão maravilhosa para doces. Faz com que valha a pena ter que se falar aos gritos com ela. Contudo espero que no colégio não achem você gulosa demais. Lembre-se que Meadowbank não é um colégio comum.

      — Não tenho muita certeza se quero mesmo ir para Meadowbank — disse Jennifer. — Conheço uma garota cuja prima esteve lá e disse que é horrível. Passam o tempo todo ensinando como entrar e sair de um Rolls-Royce e como se comportar caso você almoce com a Rainha.

      — Já chega, Jennifer! — reclamou a Sra. Sutcliffe. — Você não calcula a sorte extraordinária que tem em ser admitida em Meadowbank. Posso-lhe garantir que a Srta. Bulstrode não aceita qualquer uma. É inteiramente devido à importante posição de seu pai e à influência de sua tia Rosamund. Você tem uma sorte imensa! E, se — acrescentou a Sra. Sutcliffe — alguma vez for convidada para almoçar com a Rainha, será bom saber como se comportar.

      — Oh, bem — retrucou Jennifer — imagino que a Rainha muitas vezes receba pessoas que não sabem como se comportar... chefes africanos, jóqueis, xeques...

      — Chefes africanos possuem maneiras muito educadas — disse seu pai que recentemente voltara de uma pequena viagem de negócios a Ghana.

      — Os xeques árabes também — disse a Sra. Sutcliffe. — São verdadeiros lordes.

      — Lembra-se daquela festa do xeque a que fomos? — perguntou Jennifer. — E de como ele apanhou o olho do carneiro e lhe entregou e tio Bob cutucou-lhe para não fazer nenhum estardalhaço e comê-lo? Quero dizer, se um xeque fizesse isto no Palácio de Buckingham com um assado de carneiro, certamente faria a Rainha tremer, não faria?

      — Já chega, Jennifer! — repreendeu sua mãe encerrando o assunto.

     

      Quando Andrew Ball, sem residência fixa, foi condenado a três meses por invasão de domicílio, Derek O’Connor, que estava ocupando uma modesta posição ao fundo do Tribunal, fez uma ligação telefônica.

      — Não havia nada com o sujeito quando o agarramos — disse. E demos a ele tempo suficiente.

      — Quem era ele? Alguém que conhecemos?

      — Acho que pertence ao grupo de Gecko. Está nisto há pouco tempo. Costumam contratá-lo para este tipo de serviço. Não é muito inteligente, porém é tido como eficiente.

      — E aceitou a sentença como um carneirinho? — Do outro lado da linha o Coronel Pikeaway sorria ao falar.

      — Sim. Era o retrato perfeito de um sujeito imbecil e decaído. Ninguém jamais o ligaria a nenhum caso importante. Aí está o seu valor, é claro.

      — E não encontrou nada — comentou o Coronel Pikeaway. — Você também não. Tenho a impressão de que não há nada para ser encontrado. Aquela nossa idéia de que Rawlinson colocou aquelas coisas entre os objetos de sua irmã parece falha.

      — Outras pessoas parecem que tiveram a mesma idéia.

      — É um tanto óbvio, realmente... Talvez queiram que mordamos a isca.

      — Pode ser. Alguma outra possibilidade?

      — Muitas. O negócio ainda pode estar em algum lugar no Hotel Ritz Savoy. Ou então Bob Rawlinson passou para alguém a caminho do aeroporto. Ou pode haver algo naquele palpite do Sr. Robinson. Uma mulher pode ter posto as mãos nelas. Ou pode ser que estivessem com a Sra. Sutcliffe o tempo todo e ela ter jogado ao mar junto com alguma coisa que não tivesse mais utilidade para ela. E isto — acrescentou ele pensativo — pode ter acontecido para o bem.

      — Ora, vamos, vale muito dinheiro.

      — A vida humana também — finalizou o Coronel Pikeaway.

 

CARTAS DO COLÉGIO MEADOWBANK

      Carta de Júlia Upjohn para a sua mãe.

      QUERIDA MAMÃE:

      Já estou instalada e gostando muito daqui. Há uma garota chamada Jennifer que também é novata e nós preferimos fazer as coisas juntas. Ambas somos muito boas no tênis. Ela então é ótima. Tem um saque excepcional, quando consegue executá-lo, o que normalmente não ocorre. Diz que sua raqueta ficou empenada durante o tempo que passou no Golfo da Pérsia. Lá faz muito calor. Ela esteve lá na época da revolução. Perguntei se não havia sido emocionante, mas ela me respondeu que não, que não viram nada. A embaixada, ou sei lá o que, fez com que se retirassem e perdessem todo o espetáculo.

      A Srta. Bulstrode é muito calma, mas também bastante autoritária... ou pode ser. Usa de paciência com as alunas novas. Pelas costas, nós a chamamos de Bull, ou Bully. Aprendemos Literatura Inglesa com a Srta. Rich, que é fantástica. Quando fica agitada seu cabelo se solta. Tem um rosto estranho, mas interessante. Quando lê trechos de Shakespeare tudo parece diferente e real. Outro dia, falou-nos sobre Iago e do que ele sentira... e a respeito do ciúme e de como este toma conta da pessoa fazendo-a sofrer, levando-a quase à loucura, querendo ferir o ser amado. Todas nós ficamos arrepiadas, com exceção de Jennifer, porque nada a perturba. A Srta. Rich também nos , ensina Geografia. Sempre achei a matéria cansativa, porém dada pela Srta. Rich muda de figura. Esta manhã falou-nos a respeito do comércio de especiarias e porque era tão necessário.

      Estou me iniciando em Artes com a Srta. Laurie. Temos duas aulas semanais e ela também nos leva a Londres para percorrermos Galerias de Arte. Estudamos Francês com Mademoiselle Blanche. Ela não consegue manter a ordem na classe. Jennifer diz que isto é próprio do povo francês. Mademoiselle, entretanto, não fica zangada, apenas aborrecida. Ela diz — Enfin, vous m’ennuiez, mes enfants. A Srta. Springer é horrível. É a professora de Ginástica. Tem cabelo vermelho e cheira mal. Há também a Srta. Chadwick (Chaddy) que está aqui desde que o colégio começou. Ensina Matemática, é um tanto minuciosa, todavia bastante simpática. A Srta. Vansittart ensina História e Alemão. É uma espécie de Srta. Bulstrode sem o mesmo vigor.

      Há também muitas garotas estrangeiras, duas italianas, algumas alemãs e uma sueca divertida (ela é uma Princesa ou algo assim) e uma garota metade turca metade persa, que afirma que estava destinada a se casar com o Príncipe Ali Yusuf que morreu naquele desastre de avião, mas Jennifer diz que não é verdade, que Shaista só diz isto porque era prima dele e naquele país é costume casar-se com primas. Entretanto Jennifer garante que ele não ia casar com ela, que ele gostava de outra pessoa. Jennifer sabe de um bocado de coisas mas geralmente não conta nada.

      Suponho que esteja chegando a hora de sua viagem. Não esqueça o seu passaporte como o fez da última vez!!! E leve o seu estojo de primeiros socorros em caso de acidente.

                                                         Com carinho,

      JÜLIA

      Carta de Jennifer Sutcliffe para a sua mãe.

      QUERIDA MAMÃE:

      Na verdade isto aqui não é mau. Estou gostando mais do que esperava. O tempo tem estado ótimo. Ontem tivemos que escrever uma composição sobre Pode uma virtude ser levada ao exagero? Na próxima semana será Comparar as personalidades de Julieta e Desdêmona. Isto também me parece tolo. Você acha que eu poderia ter uma raqueta de tênis nova? Sei que, no último outono, você mandou trocar as cordas da minha raqueta, mas mesmo assim não está boa. Talvez tenha empenado. Gostaria de aprender Grego. Posso? Adoro línguas. Na semana que vem, algumas de nós vamos a Londres assistir ao balé. O espetáculo é o Lago dos Cisnes. A comida aqui é muito boa. Ontem tivemos galinha no almoço e gostosos bolinhos caseiros para o chá. Não consigo me lembrar de nenhuma outra novidade... houve algum outro assalto?

                                               Com amor, sua filha,

      JENNIFER

      Carta de Margaret Gore-West para sua mãe.

      QUERIDA MAMÃE:

      Há poucas novidades. Este semestre estou estudando Alemão com a Srta. Vansittart. Há um boato de que a Srta. Bulstrode vai se aposentar e de que a Srta. Vansittart será sua substituta. Entretanto já ouço este comentário há mais de um ano e estou certa de que não é verdade. Perguntei à Srta. Chadwick (é lógico que não me atreveria a perguntar à Srta. Bulstrode) e ela foi bastante ríspida. Disse que certamente que não, e para eu não dar ouvidos a fofocas. Fomos ao balé na terça-feira. O Lago dos Cisnes. Lindo demais para exprimir-se em palavras!

      A Princesa Ingrid é bastante engraçada. Tem olhos muito azuis, mas usa aparelho nos dentes. Há duas meninas alemãs novas. Falam inglês bastante bem...

      A Srta. Rich está de volta e com ótima aparência. Sentimos sua falta no último semestre. A nova professora de Ginástica se chama Srta. Springer. É muito mandona e ninguém gosta dela. Todavia é boa treinadora de tênis. Uma das alunas novas, Jennifer Sutcliffe, promete muito. Seu golpe de esquerda é um pouco fraco. Sua grande amiga é uma garota chamada Júlia. Chamamo-nas de os Jotas.

      Não vai se esquecer de vir me buscar no dia 20, vai? O Dia dos Esportes será 19 de junho.

                                                    Com carinho,

      MARGARET

      Carta de Ann Shapland para Dennis Rathbone.

      QUERIDO DENNIS:

      Até a terceira semana deste semestre, não vou ter nenhum dia de folga. Gostaria muito de, nesta ocasião, ir jantar com você. Teria que ser sábado ou no domingo. Eu lhe aviso.

      Acho bem divertido trabalhar num colégio. Mas graças a Deus não sou professora. Ficaria completamente maluca.

                                                           Sempre sua,

      ANN

      Carta da Srta. Johnson para a sua irmã.

      QUERIDA EDITH:

      Aqui está tudo como sempre. O período de verão é sempre agradável. O jardim está lindo e, para ajudar o velho Briggs, temos um novo jardineiro... jovem e forte. E também bastante bonitão, o que é uma pena. As garotas costumam ser tão tolas!...

      A Srta. Bulstrode não tocou mais no assunto de se aposentar, sendo assim, espero que tenha mudado de idéia. A Srta. Vansittart não seria, de modo algum, a mesma coisa. Creio realmente que eu não continuaria aqui.

      Meu amor para o Dick e as crianças e recomendações para Oliver e Kate.

      ELSPETH

      Carta de Mademoiselle Angèle Blanche para René Dupont, Posta Restante, Bordeaux.

      QUERIDA RENÉ:

      Tudo correndo bem por aqui embora não possa dizer que esteja me divertindo. As garotas não são obedientes, nem bem comportadas. Creio, entretanto, que é melhor não me queixar à Srta. Bulstrode. É preciso ter cautela ao se lidar com aquela ali!

      No momento não há nada de interessante para lhe contar.

      MOUCHE

      Carta da Srta. Vansittart a uma amiga.

      QUERIDA GLORIA:

      Este período de verão começou sossegadamente. O grupo de alunas é bastante satisfatório. As estrangeiras estão se adaptando bem. Nossa pequena princesa (refiro-me à do Oriente Médio, não à escandinava) tem propensão à falta de aplicação, porém suponho que isto já era de se esperar. Possui maneiras encantadoras.

      A nova professora de Ginástica, a Srta. Springer, não é um sucesso. As garotas não gostam dela pois é rígida demais. É também muito curiosa e está sempre fazendo perguntas muito pessoais. Este tipo de comportamento pode ser bastante desagradável e é falta de educação. Mademoiselle Blanche, a nova professora de Francês, é amável mas não tem do mesmo gabarito da Mademoiselle Depuy.

      No primeiro dia de aula, passamos por um susto daqueles! Lady Verônica Carlton-Sandways apareceu completamente bêbada! Se não fosse a Srta. Chadwick ter percebido a tempo, e tê-la afastado do local, teríamos tido um incidente desagradável. As gêmeas também são ótimas meninas.

      A Srta. Bulstrode ainda não disse nada de definitivo a respeito do futuro... mas pelo seu jeito, creio que já tomou uma decisão. Meadowbank é realmente um ótimo empreendimento e ficarei orgulhosa de continuar com a sua tradição.

      Dê um abraço em Marjorie quando estiver com ela.

                                                            Sua,

      ELEANOR

      Carta ao Coronel Pikeaway, enviada através dos canais habituais.

      Mandar um homem enfrentar o perigo! Sou o único homem capacitado num estabelecimento de, a grosso modo, cerca de 190 mulheres.

      Sua Alteza chegou com toda pompa. Cadillac cor de morango e azul claro, com um árabe em trajes nativos, esposa tipo capa de revista de moda e a edição jovem da mesma (Sua Alteza).

      No dia seguinte, quase não a reconheci vestindo o uniforme da escola. Não haverá dificuldades em estabelecer com ela relações amistosas. Ela própria já tomou providências neste sentido. De forma suave e inocente, perguntava-me o nome de algumas flores, quando uma coruja sardenta, de cabelos vermelhos e voz de cana rachada, caiu sobre ela e levou-a das proximidades. Ela não queria ir. Sempre soube que estas garotas orientais eram educadas com modéstia, por trás dos véus, entretanto esta deve ter tido alguma experiência mundana em seus dias de colégio na Suíça.

      A coruja, aliás a Srta. Springer, professora de Ginástica, voltou para me passar um sermão. O pessoal do jardim não tem permissão para falar com as alunas, etc. Foi minha vez de demonstrar inocência surpreendida. Desculpe-me senhorita, a jovem perguntava-me que flores eram estas. Creio que não existem no lugar de onde vem. A coruja foi facilmente pacificada e no fim quase sorriu. Sucesso menor com a secretária da Srta. Bulstrode, uma moça do interior tipo saia e blusa. A professora de Francês é mais cooperativa. Reservada e quieta na aparência, mas na realidade nem tanto. Fiz também camaradagem com três agradáveis tagarelas, nomes: Pamela, Lois e Mary. Sobrenomes desconhecidos mas de linhagem aristocrática. Um perspicaz cavalo velho chamado Srta. Chadwick está sempre de olho em mim e tenho que ser cuidadoso para não entornar o caldo. .

      Meu chefe, o velho Briggs, é um tipo grosseiro cujo principal assunto de conversa é a respeito dos bons velhos tempos, quando as coisas eram bem melhores e ele, creio eu, o número quatro de uma equipe de cinco. Resmunga a respeito de tudo e de todos, mas tem o maior respeito pela Srta. Bulstrode. E também eu. Ela me dirigiu algumas palavras bem gentis, porém tive a horrível impressão de que podia ler meus pensamentos e saber tudo a meu respeito.

      Até agora nenhum sinal de algo sinistro... mas vivo na esperança.

     

PRIMEIROS DIAS

NA SALA DAS PROFESSORAS contavam-se novidades. Viagens ao exterior, peças de teatro que foram vistas, visitas e exposições de arte. Retratos passavam de mão em mão. A ameaça de ver um sem-número de fotografias estava presente. Todas as entusiastas queriam mostrar suas próprias fotos, mas livrando-se de serem forçadas a ver as das outras.

      Em seguida, a conversa se tornou menos pessoal. O novo Pavilhão de Esportes foi tanto criticado quanto elogiado. Admitiram que era uma excelente construção, mas naturalmente todo mundo, de alguma forma, teria gostado de melhorar a sua arquitetura.

      As novas alunas foram passadas por uma rápida revisão e, no total, o veredicto foi favorável.

      Houve uma conversa amena com as duas professoras novatas. Mademoiselle já havia estado na Inglaterra anteriormente? Em que parte da França nascera?

      Mademoiselle Blanche respondia educadamente, mas com reserva.

      A Srta. Springer era mais acessível.

      Falava com ênfase e decisão. Poderia quase que se dizer que estava fazendo uma palestra. Assunto: as qualidades da Srta. Springer. O quanto era apreciada como colega. Como as diretoras haviam aceito seus conselhos com gratidão e reorganizado os horários.

      A Srta. Springer não era uma pessoa sensível. Uma inquietação na audiência não fora percebido por ela.

      — Mesmo assim, imagino que as suas idéias não foram sempre aceitas da forma ...er... como deveriam ter sido.

      — É preciso estar-se preparada para a ingratidão — disse a Srta. Springer. Sua voz, já alta, tornou-se mais alta ainda. — O problema é que as pessoas são muito covardes. Não encaram os fatos de frente. Muitas vezes preferem não enxergar o que está bem debaixo de seu nariz. Eu não sou assim. Vou direto ao ponto. Mais de uma vez descobri um escândalo vergonhoso e trouxe à baila. Tenho bom faro... no momento em que estou na pista, não abandono, até que tenha segurado a minha presa. — Riu alto. — Na minha opinião, ninguém, cuja vida não fosse um livro aberto, deveria ensinar numa escola. Se alguém tem alguma coisa a esconder, logo será descoberto. Oh! vocês ficariam surpresas se eu lhes contasse as coisas que descobri a respeito de diversas pessoas. Coisas que ninguém jamais teria sonhado.

      — E você gostou desta experiência, não é? — perguntou Mademoiselle Blanche.

      — É claro que não. Estava apenas cumprindo o meu dever. Mesmo assim ninguém me deu apoio. Uma negligência vergonhosa. Então eu pedi demissão... como protesto.

      Olhou em torno e voltou a dar a sua risada divertida.

      — Espero que aqui ninguém tenha nada a esconder — disse alegremente.

      Ninguém estava achando graça. A Srta. Springer, entretanto, não era o tipo de mulher para notar isto.

     

      — Posso falar com a senhora?

      A Srta. Bulstrode pousou a caneta e olhou para o rosto vermelho da supervisora, a Srta. Johnson.

      — Sim, Srta. Johnson?

      — É aquela garota, Shaista... a garota egípcia, ou seja lá o que for.

      — Sim?

      — É a... er... sua roupa de baixo.

      A Srta. Bulstrode levantou as sobrancelhas, surpresa.

      — O seu... bem... o seu sutiã.

      — O que há de errado com o seu sutiã?

      — Bem, não é do tipo comum... quero dizer, não prende, exatamente. Bem... levanta o busto, sem a menor necessidade.

      A Srta. Bulstrode mordeu o lábio para prender o riso, como acontecia freqüentemente em conversas com a Srta. Johnson.

      — Talvez seja melhor eu dar uma olhada — falou séria.

      Uma espécie de inquérito teve lugar com a parte da acusação desempenhada pela Srta. Johnson, enquanto Shaista ouvia com vivo interesse.

      — É este arame e este arranjo com barbatanas — mostrou a Srta. Johnson desaprovando.

      Shaista explodiu em exaltada explicação.

      — Mas é que o meu busto não é muito grande... é pequeno demais. Faz com que eu não pareça mulher. E é muito importante para uma garota mostrar que é uma mulher e não um rapaz!

      — Há muito tempo para isto. Você só tem quinze anos — retrucou a Srta. Johnson.

      — Quinze... isto já é uma mulher! E eu pareço uma mulher, não pareço?

      Ela recorreu à Srta. Bulstrode que balançou a cabeça, séria.

      — Apenas o meu busto é pequeno. Então eu quero que pareça maior. Compreende?

      — Compreendo perfeitamente — respondeu a Srta. Bulstrode. Mas neste colégio você está entre garotas que, na sua maioria, são inglesas, e as meninas inglesas raramente são mulheres aos quinze anos. Gosto que minhas alunas usem maquiagem discreta e roupas apropriadas para seu estágio de crescimento. Sugiro que use seu sutiã quando estiver vestida para uma festa, ou quando for a Londres, mas não aqui. Neste colégio, vocês praticam muito esporte e, para isto, o seu corpo precisa estar livre para movimentar-se com facilidade.

      — É demais... toda esta corrida e ginástica — reclamou mal-humorada. Não gosto da Srta. Springer... ela sempre diz mais depressa, mais depressa, nada de preguiça. Eu fico cansada.

      — Já chega, Shaista — repreendeu a Srta. Bulstrode, sua voz tornando-se autoritária. — Sua família mandou-a para cá a fim de que aprendesse maneiras inglesas. Todo este exercício será muito bom para a sua pele e também para desenvolver seu busto.

      Dispensando Shaista, sorriu para a Srta. Johnson.

      — É mesmo verdade — comentou. — Esta garota é completamente desenvolvida. Pela sua aparência, poderia facilmente ter mais de vinte anos. E é assim que ela se sente. Não se pode esperar que ela se sinta da mesma idade de Júlia Upjohn, por exemplo. Intelectualmente Júlia está muito adiante de Shaista. Fisicamente, porém, bem poderia andar sem sutiã.

      — Gostaria que todas fossem como Júlia Upjohn — disse a Srta. Johnson.

      — Eu não — falou a Srta. Bulstrode vivamente. — Um colégio cheio de garotas iguais seria muito monótono.

      Monótono, pensou, enquanto retornava à correção das composições. Esta palavra vinha se repetindo em seu cérebro já por algum tempo. Monótono...

      Se havia alguma coisa que seu colégio não era, era monótono. Durante sua carreira como diretora, ela mesma nunca sentira monotonia. Tinha havido dificuldades para combater, crises imprevistas, aborrecimentos com os pais, com as crianças; revoluções domésticas. Encarara e lidara com desastres incipientes e os transformara em triunfos. Tudo fora estimulante, excitante, valera demais a pena. E mesmo agora que já tomara sua decisão de se afastar, não tinha vontade de ir embora.

      Encontrava-se em excelente estado de saúde, quase tão forte como quando ela e Chaddy (a fiel Chaddy) haviam começado o grande empreendimento com apenas um punhado de crianças e com o empréstimo de um banqueiro de rara visão. A formação acadêmica de Chaddy havia sido melhor do que a sua, porém fora ela quem tivera o dom de planejar e transformar o colégio num local de tal projeção, que era conhecido em toda a Europa. Nunca sentira medo de experiências novas, enquanto Chaddy se satisfizera em ensinar o que sabia, com profundidade, mas de maneira nada excitante. O supremo feito de Chaddy sempre fora o de estar ali, à mão, pronta a prestar ajuda quando esta era necessária, como no dia do início das aulas com Lady Verônica. Havia sido sobre a sua firmeza, refletiu a Srta. Bulstrode, que uma obra notável fora construída.

      Bem, do ponto de vista material, as duas mulheres haviam se saído muito bem. Se se aposentassem agora, ambas teriam assegurado uma boa renda para o resto da vida. A Srta. Bulstrode ficava imaginando se Chaddy iria querer se aposentar quando ela assim o fizesse. Provavelmente não. Provavelmente, para ela o colégio era o seu lar. Continuaria, dedicada e leal, para apoiar a sucessora da Srta. Bulstrode.

      Já que a Srta. Bulstrode tomara a decisão... precisava haver uma sucessora. Primeiramente, associada, para juntas dirigirem o colégio e depois fazê-lo sozinha. Saber quando se retirar... esta era uma das grandes sabedorias da vida. Partir quando o poder começa a declinar, quando o pulso firme começa a afrouxar, antes de se sentir o início do cansaço, a falta de vontade de enfrentar um esforço contínuo.

      A Srta. Bulstrode terminou de corrigir as redações e notou que a filha da Sra. Upjohn possuía imaginação fértil. Jennifer era inteiramente desprovida de imaginação, mas demonstrava rara percepção dos fatos. Mary Vyse, é evidente, era do tipo acadêmico, dotada de excelente memória. Mas que garota monótona! Monótona... novamente esta palavra. Bulstrode afastou-a de seu pensamento e chamou sua secretária.

      Começou a ditar cartas.

      CARA LADY VALENCE:

      Jane teve problemas com os ouvidos. Anexo relatório médico... etc.

      CARA BARONESA VON EISENGER:

      Certamente que poderemos providenciar para que Hedwig vá à ópera na ocasião em que Hellstern fizer o papel de Isolda...

      Uma hora passou com rapidez. A Srta. Bulstrode raramente parava para conversar. O lápis de Ann Shapland corria sobre o papel.

      Uma ótima secretária, pensou a Srta. Bulstrode. Melhor do que Vera Lorrimer. Garota cansativa, a Vera. Abandonou seu cargo tão subitamente. Esgotamento nervoso, dissera ela. Algo a ver com um homem, pensou a Srta. Bulstrode resignadamente. Normalmente a causa era um homem.

      — Isto é tudo — falou a Srta. Bulstrode, ao ditar a última palavra. Soltou um suspiro de alívio.

      Tantas coisas cansativas para fazer — comentou. — Escrever para pais é como alimentar cachorros famintos. Ofereça-lhes qualquer insignificância que os acalme.

      Ann riu. A Srta. Bulstrode olhou-a com aprovação.

      — O que a fez escolher o trabalho de secretária?

      — Não sei exatamente. Não tinha nenhuma inclinação especial por nada em particular e este é o tipo de trabalho que quase todo mundo pega.

      — Não acha monótono?

      — Creio que tenho tido sorte. Tive vários trabalhos diferentes. Trabalhei durante um ano para Sir Mervyn Todhunter, o arqueólogo, em seguida trabalhei para Sir Andrew Peters da Shell. Fui secretária, por algum tempo, de Monica Lord, atriz... aquilo foi realmente fantástico! Ela sorriu da lembrança.

      — Há muito disto entre as jovens hoje em dia — observou a Srta. Bulstrode. — Toda esta mudança incessante. — Seu tom era de reprovação.

      — Na realidade, não posso fazer nada por muito tempo seguido. Tenho mãe inválida. Ela se torna... bem... um tanto difícil de tempos em tempos. E então preciso voltar para casa e tomar conta dela.

      — Entendo.

      — Mas independente disto receio que não pararia quieta em lugar nenhum. Não possuo o dom da continuidade. Acho que mudanças tornam tudo muito menos monótono.

      — Monótono... — murmurou Bulstrode, atingida mais uma vez pela palavra fatal.

      Ann olhou-a surpresa.

      — Não se importe comigo — falou a Srta. Bulstrode. É que às vezes uma palavra em especial parece surgir a toda hora. O que você acharia de ser professora? — indagou com certa curiosidade.

      — Detestaria — respondeu Ann com franqueza.

      — Por quê?

      — Acho terrivelmente monótono... Oh, desculpe.

      Ela parou desanimada.

      — Ensinar não é nem um pouco monótono — afirmou a Srta. Bulstrode com entusiasmo. — Pode ser a coisa mais excitante do mundo. Sentirei uma falta imensa quando me aposentar.

      — Mas certamente... — Ann a encarou. — A senhora está pensando em se aposentar?

      — Sim, está decidido. Oh, devo continuar por mais um ano... ou mesmo dois.

      — Mas... por quê?

      — Porque dei o melhor de mim mesma a este colégio e retirei dele o melhor. Não quero o segundo melhor.

      — O colégio continuará?

      — Oh, sim. Tenho uma boa sucessora.

      — A Srta. Vansittart, suponho?

      — Então você pensou nela automaticamente? A Srta. Bulstrode olhou-a fixamente. — Isto é interessante.

      — Receio que, na verdade, eu ainda não houvesse pensado nisto. Apenas ouvi as professoras comentando. Creio que ela se sairia muito bem... seguindo exatamente a sua tradição. Tem uma personalidade marcante, é bonita e possui muita presença. Imagino que isto seja importante, não é?

      — Sim, é. Estou certa de que Eleanor Vansittart é a pessoa indicada.

      — Ela prosseguirá onde a senhora parou — comentou Ann enquanto recolhia seu material.

      Mas será isto o que eu quero? pensou Bulstrode consigo mesma quando Ann se retirou. Continuar onde eu parei? É justamente isto que Eleanor fará. Nenhuma experiência nova, nada revolucionário. Não foi deste modo que fiz de Meadowbank o que é hoje. Eu me arrisquei. Enfrentei um sem-número de pessoas. Desafiei e persuadi, recusando-me a seguir os padrões de outros colégios. Não é assim que eu quero que continue? Alguém que traga vida nova ao colégio. Alguma personalidade dinâmica... como... sim... Eileen Rich.

      Mas Eileen não tinha idade suficiente, não possuía experiência o bastante. Entretanto ela era estimulante, sabia ensinar. Tinha idéias. Nunca seria monótona. Bobagem, era preciso tirar aquela palavra da cabeça. Eleanor Vansittart não era monótona...

      Ergueu os olhos quando a Srta. Chadwick entrou.

      — Oh, Chaddy! — exclamou. — Que bom ver você!

      A Srta. Chadwick pareceu um pouco surpresa.

      — Por quê? Há algum problema?

      — O problema sou eu mesma. Não sei o que está acontecendo comigo.

      — Isto não é do seu feitio, Honória.

      — Sim, não é. Como estão correndo as coisas, Chaddy?

      — Muito bem, creio. — A Srta. Chadwick parecia um tanto insegura.

      A Srta. Bulstrode precipitou-se.

      — Ora, vamos! Fale claro. O que há de errado?

      — Nada. Realmente nada mesmo, Honória. É apenas... — A Srta. Chadwick franziu a testa parecendo um tanto perplexa. — Oh, é somente uma sensação. Mas, na verdade, não é nada concreto. As alunas novas são agradáveis. Não gosto muito da Mademoiselle Blanche. Entretanto também não gostava de Genevieve Depuy. É dissimulada.

      A Srta. Bulstrode não deu muita atenção à crítica. Chaddy sempre acusava as professoras de Francês de serem dissimuladas.

      — Não é uma boa professora — observou a Srta. Bulstrode. — E é de admirar, pois suas referências são ótimas.

      — Os franceses não sabem ensinar. Falta disciplina — disse a Srta. Chadwick. E realmente esta tal de Springer é um pouco demais para o meu gosto. Muito saltitante e agitada.

      — Ela é boa no seu trabalho.

      — Sim, é do primeiro time.

      — Professoras novas sempre perturbam — comentou a Srta. Bulstrode.

      — Tem razão — concordou Chadwick ansiosa. — Estou certa de que não é nada mais do que isto. A propósito, o novo jardineiro é bastante jovem. Isto é tão raro hoje em dia! Não parece existir nenhum jardineiro jovem. É uma pena que seja tão bonitão. Teremos que manter os olhos bem abertos.

      Ás duas senhoras balançaram a cabeça em sinal de entendimento. Sabiam, melhor do que ninguém, a devastação causada por um rapaz bonito nos corações de garotas adolescentes.

 

FOLHAS AO VENTO

— NADA MAL, meu rapaz — disse o velho Briggs, relutante. Nada mal. Expressava a sua aprovação ao trabalho de seu novo ajudante. Não é conveniente, pensou Briggs, deixar um jovem muito satisfeito consigo mesmo.

      — Cuidado — continuou — para não fazer as coisas apressadamente. Vá com calma, é o que lhe digo. É a calma que funciona.

      O jovem percebeu que o seu desempenho havia sido comparado um tanto favoravelmente demais com o ritmo de trabalho de Briggs.

      — Deste lado — prosseguiu Briggs — colocaremos algumas dálias. Ela não gosta de dálias... mas não dou atenção. As mulheres têm seus caprichos, entretanto, se a pessoa não der importância, dez contra um como jamais notam nada. Embora tenha que reconhecer que ela é do tipo observador. Seria de se esperar que já tivesse bastante com que se preocupar dirigindo um estabelecimento como este.

      Adam compreendeu que ela, que aparecia tão freqüentemente na conversa de Briggs, era a Srta. Bulstrode.

      — E quem era a pessoa com quem você falava ainda a pouco? — indagou Briggs desconfiado. — Quando você se encaminhava para o viveiro de mudas?

      — Oh, era apenas uma das alunas — respondeu Adam.

      — Ah, era uma destas namoradeiras, não é? É bom tomar cuidado, meu rapaz. Não se envolva com elas, sei do que estou falando. Conheci garotas deste tipo durante a primeira guerra mundial e se naquela época eu soubesse o que sei hoje, teria mais cuidado. Entendeu?

      — Não havia maldade nenhuma — retrucou Adam, assumindo um ar mal-humorado. — Ela estava apenas passando tempo e me perguntou o nome de umas plantas.

      — Ah — disse Briggs, — mas tome cuidado. A sua posição aqui não lhe permite falar com nenhuma das alunas. Ela não iria gostar.

      — Eu não estava fazendo nada de errado e nem disse que devesse.

      — Não estou afirmando o contrário, meu jovem. Entretanto, um bando de jovens presas aqui com nada além que uma professora de desenho para distrair-lhes o pensamento... bem, é melhor tomar cuidado. É só isto. Ah, lá vem aquela mulher novamente. Vai querer alguma coisa complicada, aposto,

      A Srta. Bulstrode aproximava-se a passos rápidos. — Bom dia, Briggs — cumprimentou ela. — Bom dia... er...

      — Adam, senhora.

      — Ah, sim, Adam. Bem, parece que você fez um bom trabalho com esta cova. A cerca de arame em volta da quadra de tênis está cedendo, Briggs. É bom cuidar disto.

      — Está bem, Madame. Será providenciado.

      — O que está plantando aí?

      — Bem, eu pensei em...

      — Não quero dálias — falou a Srta. Bulstrode sem dar-lhe tempo de terminar a frase. — Quero crisântemos! — e partiu bruscamente.

      — Aparecendo aqui... dando ordens — reclamou Briggs. — Não que não seja observadora. Percebe logo se a pessoa faz ou não o trabalho direito. E lembre-se do que eu disse e tome cuidado, meu rapaz. Cuidado com estas jovens namoradeiras!

      — Se ela encontrar algum defeito em mim, sei muito bem o que faria — disse Adam irritado. — Há muito trabalho por aí.

      — Ah. Isto é bem próprio dos jovens de hoje em dia. Não ouvem conselhos de ninguém. Apenas digo-lhe para tomar cuidado.

      Adam continuou mal-humorado, mas abaixou-se e voltou, mais uma vez, ao trabalho.

      A Srta. Bulstrode encaminhava-se de volta ao prédio do colégio. Sua expressão estava um tanto carregada.

      A Srta. Vansittart vinha em direção oposta.

      — Que tarde quente — reclamou a Srta. Vansittart.

      — Sim, o ar está muito carregado. — A Srta. Bulstrode franziu a testa. — Já reparou naquele jovem... o novo jardineiro?

      — Não, não em especial.

      — Parece-me... bem... um tipo estranho — comentou a Srta. Bulstrode pensativa. — Não é do tipo que se vê por aí.

      — Talvez tenha vindo de Oxford e queira ganhar um dinheirinho.

      — É bonitão. As garotas já repararam.

      — O problema de sempre.

      A Srta. Bulstrode sorriu. — Combinar liberdade e supervisão rígida... é isto que você quer dizer, Eleanor?

      — Sim.

      — Conseguiremos.

      — Sim, é claro. Você nunca teve um escândalo em Meadowbank, teve?

      — Chegamos perto por uma ou duas vezes — respondeu Bulstrode. Ela riu. — Não há nunca um momento monótono dirigindo-se um colégio — continuou. — Você acha a vida aqui monótona, Eleanor?

      — Nem um pouco. Acho o meu trabalho muito estimulante e gratificante. Deve se sentir muito orgulhosa e feliz com o grande sucesso que conseguiu.

      — Creio que me saí bem — disse a Srta. Bulstrode pensativa. — É claro que nada é exatamente como se imagina a princípio...

      — Diga-me, Eleanor — falou Bulstrode de repente. — Se ao invés de mim, você estivesse dirigindo este colégio, que mudanças você faria? Não faça cerimônia em falar. Estou interessada em ouvir a sua opinião.

      — Não creio que gostaria de fazer qualquer mudança — respondeu Eleanor Vansittart. — Parece-me que o espírito do lugar e de toda a organização é perfeita.

      — Você continuaria com o mesmo sistema?

      — Sim. Não acredito que possa ser melhorado.

      A Srta. Bulstrode ficou calada por um momento. Pensava consigo mesma: Fico imaginando se ela disse isto para me agradar. Nunca se conhece as pessoas, por mais próxima que se possa ter estado durante anos. É certo que ela não pode achar isto realmente. Qualquer pessoa, por menor que seja seu espírito criativo, deseja fazer modificações. É verdade, entretanto, que não seria de muito tato dizer isto. E tato é uma coisa muito importante com as alunas, e com as professoras. Eleanor certamente possui tato.

      Em voz alta disse: — Contudo deve sempre haver adaptações, não acha? Refiro-me às mudanças de idéias e às condições de vida em geral.

      — Oh, isto sim — concordou a Srta. Vansittart. — A pessoa deve, como se costuma dizer, acompanhar o tempo. Mas é seu colégio, Honória, você o fez o que é, e sua tradição é a sua essência. Tradição é muito importante, não acha?

      A Srta. Bulstrode não respondeu. Estava suspensa na iminência de palavras irrevogáveis. A oferta de uma sociedade estava parada no ar. Embora a Srta. Vansittart, com seu modo bem educado, parecesse nada notar, deveria estar consciente do fato. A Srta. Bulstrode não sabia realmente o que a estava detendo. Por que lhe desagradava tanto se comprometer? Provavelmente, admitiu tristemente, porque detestava a idéia de abrir mão do poder. Secretamente, desejava ficar; queria continuar dirigindo o colégio. Mas, por certo, ninguém poderia ser uma sucessora de maior valor do que Eleanor. Tão segura, tão digna de confiança. É lógico que quanto a isto também o era a querida Chaddy... tão digna de confiança quanto alguém poderia ser. E, entretanto, ela não conseguia imaginar Chaddy como diretora de um colégio de projeção.

      — Afinal o que eu quero? — disse Bulstrode para si mesma. — Como estou sendo cansativa. Realmente, até agora, a indecisão nunca havia sido um de meus defeitos.

      Um sino tocou a distância.

      — Minha aula de alemão — disse a Srta. Vansittart. — Preciso ir. — Encaminhou-se num passo rápido mas elegante em direção às dependências escolares. Seguindo-a mais devagar, a Srta. Bulstrode quase tropeça em Eileen Rich que vinha apressada.

      — Oh, desculpe-me, Srta. Bulstrode. Não a tinha visto. — Seu cabelo, como de costume, estava se soltando do coque mal arrumado. A Srta. Bulstrode, mais uma vez, notou os ossos feios, porém interessantes, de seu rosto. Era uma jovem estranha, ansiosa e de forte personalidade.

      — Você tem aula agora?

      — Sim. De inglês.

      — Você gosta de lecionar, não gosta? — perguntou a Srta. Bulstrode.

      — Adoro. É a coisa mais fascinante deste mundo.

      — Por quê?

      Eileen ficou estática. Passou as mãos nos cabelos. Franziu a testa esforçando-se para pensar.

      — Que interessante! Não me lembro de jamais ter pensado no porquê. Por que alguém gosta de ensinar? Será que faz com que a pessoa se sinta importante e superior? Não, não... não é nada disto. Não, creio que é como pescar. Não se sabe o que se vai apanhar, o que se vai tirar do fundo do mar. É a qualidade do resultado obtido. É tão excitante quando se consegue! É lógico que não acontece com muita freqüência.

      A Srta. Bulstrode balançou a cabeça concordando. Estava certa! Aquela garota tinha algo!

      — Suponho que, algum dia, você dirigirá o seu próprio colégio? — disse ela.

      — Oh, espero que sim. Espero que sim. É o que desejo acima de tudo.

      — Você tem suas próprias idéias de como um colégio deve ser dirigido, não tem?

      — Suponho que todo mundo tenha suas idéias — respondeu Eileen Rich. — Atrevo-me a dizer que muitas delas são fantásticas e que poderiam não dar certo. Seria um risco, é claro. Mas alguém precisaria tentar. Eu teria que aprender por experiência própria. O terrível é que não se pode ir pelas experiências dos outros, não é?

      — Na verdade, não — concordou a Srta. Bulstrode. — Na vida a pessoa tem que cometer seus próprios erros.

      — Isto está certo quanto à vida — disse Eileen Rich. — Na vida a pessoa pode se recuperar e começar tudo de novo. Com os braços caídos ao longo do corpo, cerrou os punhos. Sua expressão era séria. Então, de repente, relaxou. Porém, se um colégio ficar desmoralizado, não é assim tão fácil recomeçar.

      — Se dirigisse um colégio como Meadowbank — indagou a Srta. Bulstrode — você faria mudanças... experiências?

      Eileen parecia embaraçada. — Isto... isto é uma coisa tremendamente difícil de se responder.

      — Você quer dizer que faria. Não tenha receio em dar a sua opinião.

      — Suponho que sempre se deseje usar as próprias idéias — opinou Eileen Rich. — Não digo que funcionassem. Poderiam não dar certo.

      — Mas valeria a pena correr o risco?

      — Sempre vale a pena correr o risco, não acha? Quero dizer, se se tem bastante certeza de alguma coisa.

      — Você não é contra se levar uma vida perigosa. Entendo... — disse a Srta. Bulstrode.

      — Creio que sempre levei uma vida perigosa. — Uma sombra passou sobre o seu rosto. — Preciso ir. Devem estar me esperando. — Saiu apressada.

      A Srta. Bulstrode seguiu-a com o olhar. Ainda estava parada, perdida em seus pensamentos, quando a Srta. Chadwick a encontrou.

      — Ah! Aí está. Estávamos procurando por você em todos os lugares. O Professor Anderson acabou de telefonar. Quer saber se pode vir apanhar Meros no próximo fim de semana. Está ciente de que, assim no início do semestre, é contra o regulamento, porém surgiu uma viagem inesperada para um lugar chamado... er... Azure Basin.

      — Azerbaijin — corrigiu a Srta. Bulstrode automaticamente, com sua mente ainda perdida em pensamentos.

      — Não tem bastante experiência — murmurou para si mesma. — Este é o risco. O que disse, Chaddy?

      A Srta. Chadwick repetiu o recado.

      Mandei a Srta. Shapland dizer que lhe telefonaríamos depois, e pedi que ela a procurasse.

      Diga que está bem — respondeu a Srta. Bulstrode. — Reconheço que se trata de uma ocasião excepcional.

      Chadwick olhou-a atentamente.

      — Está preocupada, Honória?

      — Sim, estou. Não sei o que se passa em minha mente. E isto não costuma acontecer... me perturba. Sei o que gostaria de fazer... mas entregar a diretoria deste colégio para alguém sem a experiência necessária não me parece justo.

      — Gostaria que você desistisse desta idéia de se aposentar. Você pertence a isto aqui. Meadowbank precisa de você.

      — Meadowbank representa muito para você, não é, Chaddy?

      — Não existe colégio como este em lugar nenhum da Inglaterra — afirmou a Srta. Chadwick. — Podemo-nos orgulhar, você e eu, de o termos fundado.

      A Srta. Bulstrode passou o braço carinhosamente em torno de seu ombro.

      — Podemos sim, Chaddy. Quanto a você, pode estar certa de que é o conforto da minha vida. Não há nada a respeito de Meadowbank que você não saiba. Gosta disto aqui tanto quanto eu. E isto quer dizer muito, minha querida.

      A Srta. Chadwick corou de satisfação. Era tão raro Honória Bulstrode quebrar a sua reserva.

     

      — Simplesmente não posso jogar com esta coisa horrível. Não presta.

      Jennifer atirou a raqueta no chão, desanimada.

      — Oh, Jennifer, que estardalhaço você faz!

      — É o balanço. — Jennifer apanhou-a novamente e fez alguns movimentos, experimentando-a. — Ela não está bem balanceada.

      — É muito melhor do que esta minha coisa velha. — — Júlia comparou sua raqueta. — A minha parece uma esponja. Ouça só o barulho dela. — Agitou sua raqueta. — Pretendia mudar as cordas mas mamãe acabou se esquecendo.

      — Mesmo assim, prefiro a sua do que a minha. — Jennifer segurou-a e tentou algumas jogadas com ela.

      — Bem, eu prefiro a sua. Aí então eu realmente poderia acertar alguma jogada. Se você quiser, eu troco.

      — Está bem, vamos trocar.

      As duas garotas arrancaram o pequeno adesivo onde seus nomes estavam impressos e tornaram a colar, trocando as raquetas.

      — Eu não vou trocar de novo — preveniu Júlia. — Sendo assim, não adianta dizer que não gosta da minha velha esponja.

     

      Adam assobiava alegremente enquanto prendia a tela de arame em volta da quadra de tênis. A porta do Pavilhão de Esportes abriu-se e Mademoiselle Blanche, a professora de Francês, olhou para fora. Pareceu assustada ao ver Adam. Hesitou por um momento e, em seguida, voltou para dentro.

      — O que será que ela andou aprontando? — disse Adam para si mesmo. Jamais ter-lhe-ia ocorrido que Mademoiselle Blanche pudesse estar aprontando alguma coisa, se não fosse pelo jeito dela. Estava com uma aparência de culpa que, de pronto, serviu para levantar suspeitas em sua mente. Logo em seguida, tornou a sair, fechando a porta atrás de si e parando para falar com Adam quando passou por ele.

      — Vejo que consertou a tela.

      — Sim, senhorita.

      — As quadras de esporte, a piscina e também o Pavilhão são magníficos. Oh, le sport. Dão muita importância aos esportes aqui na Inglaterra, não é verdade?

      — Sim, creio que sim, senhorita.

      — Você joga tênis? — Seus olhos avaliaram-no de um modo definitivamente feminino e neles havia um leve convite. Ocorreu a Adam que a Mademoiselle Blanche era uma professora de Francês um tanto imprópria para Meadowbank.

      — Não — mentiu ele. — Não jogo tênis. Não tenho tempo.

      — Então joga cricket?

      — Oh, bem, eu jogava cricket quando garoto. A maioria dos rapazes jogam.

      — Não tenho tido muito tempo para andar por aí — disse a Srta. Blanche. — Somente hoje, que o dia está tão bonito, é que me animei para conhecer melhor o Pavilhão de Esportes. Quero escrever para uns amigos meus na França que são donos de um colégio.

      Mais uma vez, Adam ficou um pouco cismado. Parecia muita explicação desnecessária. Era quase como se Mademoiselle Blanche quisesse se desculpar pela sua presença ali no Pavilhão de Esportes. Mas por que ela faria isto? Tinha todo o direito de ir aonde bem entendesse dentro da propriedade do colégio. E certamente não havia nenhuma necessidade de dar satisfações a um simples ajudante de jardineiro. Isto levantou ainda mais suspeitas em sua mente. O que estivera aquela jovem fazendo ali?

      Olhou pensativo para Mademoiselle Blanche. Talvez fosse bom saber um pouco mais a respeito dela. Propositalmente e com muita habilidade suas maneiras mudaram. Continuavam respeitosas, mas não tanto. Permitiu que seus olhos dissessem a ela que a considerava urna jovem atraente.

      — A senhorita deve achar um tanto monótono trabalhar num colégio de moças.

      — É, não me diverte muito.

      — Mas suponho que tenha seus dias de folga?

      Houve uma ligeira pausa. Era como se ela se debatesse consigo mesma. Então sentiu, com ligeiro pesar, que a distância que havia entre eles não tinha sido alterada.

      — Oh, sim! Tenho meus dias livres. As condições de trabalho aqui são excelentes. — Ela fez um pequeno gesto de cumprimento com a cabeça. — Bom dia. — Afastou-se em direção a casa.

      — Na minha opinião, você andou aprontando alguma coisa... — disse Adam para si mesmo.

      Esperou até que ela desaparecesse e então, abandonando o trabalho, foi até o Pavilhão e olhou para dentro. Aparentemente não havia nada fora do lugar. — Mesmo assim — disse ele para si mesmo — continuo achando que ela pretendia algo.

      Ao sair deparou inesperadamente com Ann Shapland.

      — Sabe onde a Srta. Bulstrode está? — indagou ela.

      — Acho que voltou para o prédio do colégio. Ainda há pouco estava falando com Briggs.

      Ann estava com uma expressão carregada.

      — O que você estava fazendo no Pavilhão de’ Esportes?

      Adam foi tomado de surpresa. Maldita mente desconfiada que ela tem! — pensou. Então, com uma leve insolência na voz falou: — Achei que gostaria de dar uma olhada. Não há mal em olhar, há?

      — Você não deveria estar trabalhando?

      — Estou quase acabando de pregar a tela de arame em volta da quadra de tênis. — Virou-se olhando para o edifício atrás dele. — Isto aqui é novo, não é? Deve ter custado uma fortuna. As jovens aqui têm tudo do melhor, não é mesmo?

      — Elas pagam para isto — respondeu Ann secamente.

      Segundo soube, pagam um preço exorbitante — retrucou Adam.

      Sentiu um desejo que ele próprio não entendia de ferir ou aborrecer aquela jovem. Era sempre tão fria, tão auto-suficiente. Ele realmente gostaria de vê-la zangada.

      Ann porém não lhe deu esta satisfação. Simplesmente falou:

      — É melhor você acabar de pregar a tela — e encaminhou-se para o colégio. No meio do caminho diminuiu o passo, olhou para trás e viu que Adam estava ocupado com o seu trabalho. Em seguida olhou para o Pavilhão de Esportes de maneira intrigada.

     

ASSASSINATO

EM SUA NOITE DE PLANTÃO, na Delegacia de Polícia de Hurst St. Cyprian, o Sargento Green bocejava. O telefone tocou e ele atendeu. Um momento depois sua atitude mudou por completo. Começou a escrever rapidamente numa folha de papel.

      — Sim. Meadowbank? Sim... e o nome? Soletre, por favor, S-P-R-I-N-G-E-R? Sim? Springer. Sim, por favor, cuide para que ninguém mexa em nada. Uma pessoa irá para aí imediatamente.

      Metodicamente e com rapidez, começou a dar andamento a várias providências a serem tomadas.

      — Meadowbank? — disse o Inspetor de Polícia Kelsey, quando a sua vez chegou. — É o colégio de moças, não é? Quem foi assassinado?

      — Morte de uma professora de Ginástica — falou Kelsey, pensativo. — Parece título de livro de mistério de livraria de estação de estrada de ferro.

      — Quem o senhor acha que poderia tê-la matado? — perguntou o sargento. — Parece meio estranho.

      — Mesmo as professoras de Ginástica têm vida amorosa — disse o Inspetor Kelsey. — Onde foi que disseram que o corpo foi encontrado?

      — No Pavilhão de Esportes. Suponho que este é um nome pomposo para o ginásio.

      — Pode ser — disse Kelsey. — Morte de uma professora de Ginástica na quadra de esportes... Soa como um crime altamente atlético, não é mesmo? Você disse que ela levou um tiro?

      — Sim.

      — Encontraram o revólver?

      — Não.

      — Interessante — comentou o Inspetor Kelsey e, tendo reunido a sua equipe, partiu para cumprir o seu dever.

     

      A porta de Meadowbank estava aberta deixando passar a luz que vinha de dentro. Ali o Inspetor Kelsey foi recebido pela própria Srta. Bulstrode. Ele a conhecia de vista, assim como era conhecida por quase todas as pessoas da redondeza. Até mesmo neste momento de confusão e incerteza, a Srta. Bulstrode permanecia imperturbável, em comando da situação e de seus subordinados.

      — Inspetor Kelsey, Madame — apresentou-se.

      — O que o senhor gostaria de fazer em primeiro lugar, Inspetor Kelsey? Deseja ir ate o Pavilhão de Esportes ou ouvir os detalhes do ocorrido?

      — O médico está comigo — respondeu Kelsey. — Se a senhora tivesse a gentileza de mostrar a ele e a mais dois dos meus homens onde está o corpo, poderíamos então trocar algumas palavras.

      — Certamente. Venha até à minha sala. Srta. Rowan, por favor, mostre ao médico e aos outros cavalheiros o caminho — acrescentou. — Lá no Pavilhão tem uma pessoa cuidando para que nada seja tocado.

      — Obrigado, Madame.

      Kelsey acompanhou a Srta. Bulstrode até sua sala. — Quem encontrou o corpo?

      — A Srta. Johnson, a supervisora. Uma de nossas alunas estava com dor de ouvido e a Srta. Johnson levantou-se para cuidar dela. Foi então que percebeu que as cortinas não estavam puxadas direito e, indo ajeitá-las, observou que havia luz no Pavilhão de Esportes, o que não deveria acontecer à uma hora da madrugada — terminou a Srta. Bulstrode secamente.

      — Onde está a Srta. Johnson agora? — perguntou Kelsey.

      — Está à sua disposição caso o senhor deseje vê-la.

      — Daqui a pouco. Por favor, continue, Madame.

      — A Srta. Johnson acordou uma de nossas professoras, a Srta. Chadwick. Decidiram ir investigar. Quando saíam pela porta lateral, ouviram um tiro. Correram o mais rápido que podiam em direção ao Pavilhão de Esportes. Chegando lá...

      O inspetor a interrompeu. — Obrigado, Srta. Bulstrode. Se, como a senhora disse, a Srta. Johnson está disponível, ouvirei a outra parte da história diretamente dela. Mas antes, porém, talvez a senhora possa me dizer alguma coisa a respeito da mulher assassinada.

      — Seu nome é Grace Springer.

      — Trabalhava aqui há muito tempo?

      — Não. Começou este semestre. A antiga professora de Ginástica saiu para assumir um posto na Austrália.

      — E o que a senhora sabia sobre a Srta. Springer?

      — Suas referências são excelentes — informou a Srta. Bulstrode.

      — A senhora não a conhecia antes de vir para cá?

      — Não.

      — Tem alguma idéia, por mais vaga que seja, do que poderia ter ocasionado esta tragédia? Ela era uma pessoa triste? Tinha alguma ligação amorosa infeliz?

      A Srta. Bulstrode balançou a cabeça. — Nada de que eu tenha conhecimento. Posso dizer — continuou ela — que me parece muito improvável. — Não era este tipo de mulher.

      — As pessoas surpreendem muito quando se trata deste assunto — disse o Inspetor Kelsey sombriamente.

      — Gostaria que eu fosse buscar a Srta. Johnson agora?

      — Por favor. Quando acabar de ouvir a Srta. Johnson irei até o ginásio, ou o... como é que o chamam... o Pavilhão de Esportes.

      — Trata-se de um prédio adicional que foi construído este ano — explicou a Srta. Bulstrode. — Fica junto à piscina e contém uma quadra de tênis e outras dependências. Lugar para as raquetas de tênis, tacos de hóquei, bastões e outros apetrechos esportivos e ainda uma sala para secar as roupas de banho.

      — Havia algum motivo para a Srta. Springer estar no Pavilhão àquela hora da noite?

      — Nenhum — afirmou a Srta. Bulstrode com segurança.

      — Muito bem, Srta. Bulstrode. Agora falarei com a Srta. Johnson.

      A Srta. Bulstrode retirou-se e voltou trazendo consigo a supervisora. Para acalmá-la, depois da descoberta do corpo, haviam lhe dado uma dose razoável de brandy. O resultado havia sido um pouco mais de eloqüência.

      — Este é o Inspetor Kelsey — apresentou a Srta. Bulstrode. — Acalme-se, Elspeth, e conte a ele exatamente o que aconteceu.

      — É horrível! — disse à Srta. Bulstrode. — Horrível mesmo! Uma coisa como esta nunca me havia acontecido. Nunca! Eu não conseguia acreditar, não conseguia mesmo! Logo a Srta. Springer!

      O Inspetor Kelsey era um homem perspicaz. Sempre disposto a desviar seu curso normal de rotina se uma observação lhe parecesse incomum e digna de ser observada.

      — Parece-lhe... — disse ele — muito estranho que tenha sido justamente a Srta. Springer a pessoa assassinada?

      — Bem, sim, inspetor. Ela era tão... bem, tão forte, entende. Tão enérgica. O tipo de mulher que se imagina agarrando um ladrão de um golpe só.

      — Ladrões? Hum... — fez Kelsey. — Havia alguma coisa para ser roubada no Pavilhão de Esportes?

      — Bem, não; não vejo o que poderia ser. Roupas de banho, material de esporte, é claro.

      — O tipo de coisa que um ladrão comum levaria — concordou Kelsey. — Mas acho que dificilmente valeria a pena arrombar um lugar por isto. A propósito, foi arrombamento?

      — Bem, na verdade, não me lembrei de verificar — respondeu a Srta. Johnson. — Quero dizer, a porta estava aberta quando chegamos lá e...

      — Não houve arrombamento — informou a Srta. Bulstrode.

      — Entendo — disse Kelsey. — Foi usada uma chave. — Olhou para a Srta. Johnson. — A Srta. Springer era uma pessoa querida? — perguntou.

      — Bem, realmente não sei dizer. Afinal de contas ela está morta.

      — Então a senhora não gostava dela — disse Kelsey com argúcia, ignorando os sentimentos mais delicados da Srta. Johnson.

      — Não acredito que alguém pudesse gostar muito dela — explicou. — Era uma pessoa direta demais. Não se incomodava em contradizer os outros claramente. Era eficiente e levava seu trabalho muito a sério, não é mesmo, Srta. Bulstrode?

      — Certamente — concordou a Srta. Bulstrode.

      Kelsey retornou ao assunto original.

      — Agora, Srta. Johnson, vamos ouvir o que aconteceu.

      — Jane, uma de nossas alunas, estava com dor de ouvido. Acordou com uma forte crise e foi me procurar. Dei-lhe um remédio e ao levá-la de volta para a cama, vi que as cortinas da janela estavam batendo e achei que talvez fosse melhor, para variar, que a janela não ficasse aberta já que o vento estava soprando naquela direção. É lógico que as meninas sempre dormem com as janelas abertas. Algumas vezes temos dificuldades com as estrangeiras, porém sempre insisto para que...

      — Isto agora não vem ao caso — interrompeu a Srta. Bulstrode. — Nossas regras gerais de higiene não interessariam ao Inspetor Kelsey.

      — Não, não, é claro que não — desculpou-se a Srta. Johnson. — Bem, como estava dizendo, fui fechar a janela e qual não foi minha surpresa ao ver que havia luz no Pavilhão de Esportes. Dava para ver distintamente, não podia estar enganada. Parecia se mover.

      — Quer dizer que não era uma lâmpada acesa e sim a luz de uma tocha ou de uma lanterna?

      — Sim, sim, deve ter sido isto. Pensei imediatamente: — Meu Deus, o que será que alguém está fazendo lá a esta hora da noite? — É evidente que não pensei em ladrões. Teria sido uma idéia fantasiosa demais.

      — Em que a senhora pensou? — indagou Kelsey.

      A Srta. Johnson lançou um olhar para a Srta. Bulstrode.

      — Bem, realmente não me recordo de ter tido nenhuma idéia em particular. Quero dizer... bem, quero dizer que podia pensar...

      A Srta. Bulstrode a interrompeu. — Creio que a Srta. Johnson suspeitou de que alguma de nossas alunas pudesse ter ido até lá se encontrar com alguém. Estou certa, Elspeth?

      A Srta. Johnson engoliu em seco. — Bem, sim, esta idéia realmente passou pela minha cabeça mas apenas por um momento. Talvez uma de nossas garotas italianas. As garotas estrangeiras são muito mais precoces do que as inglesas.

      — Não seja tão preconceituosa — disse a Srta. Bulstrode. — Temos tido várias garotas inglesas tentando manter encontros inconvenientes. Foi muito natural lhe ocorrer este pensamento e, provavelmente, é o que me teria ocorrido.

      — Continue — falou o Inspetor Kelsey.

      — Então achei melhor — prosseguiu a Srta. Johnson — acordar Chadwick e pedir-lhe para ir comigo ver o que se estava passando.

      — Por que a Srta. Chadwick? — perguntou Kelsey. — Algum motivo especial?

      — Bem, eu não desejava incomodar a Srta. Bulstrode — explicou ela. — Receio que seja uma espécie de hábito nosso, sempre procurar a Srta. Chadwick se não queremos perturbar a Srta. Bulstrode. Sabe, a Srta. Chadwick está aqui há muito tempo e tem muita experiência.

      — Bem, de qualquer modo, a senhora foi até a Srta. Chadwick e a acordou. Correto?

      — Sim. Ela concordou que deveríamos ir até lá imediatamente. Não perdemos tempo nos vestindo, apenas colocamos um casaco e saímos pela porta lateral. E foi aí que ouvimos um tiro vindo do Pavilhão. Então corremos o mais depressa que podíamos. Fizemos a bobagem de não levar uma lanterna e ficou difícil de enxergar por onde andávamos. Tropeçamos uma ou duas vezes, mas chegamos lá depressa. A porta estava aberta. Acendemos a luz e...

      Kelsey a interrompeu. — Então não havia nenhuma luz quando as senhoras alcançaram a porta? Nenhuma lanterna ou algo assim?

      — Não. O lugar estava em completa escuridão. Acendemos a luz e lá estava ela. Ela...

      — Está bem — falou o Inspetor Kelsey gentilmente. — Não é necessário descrever mais nada. Agora irei até lá e verei por mim mesmo. Não encontraram ninguém no caminho.

      — Não.

      — Nem ouviram alguém fugindo?

      — Não. Não ouvimos nada.

      — Alguém mais escutou o tiro no prédio do colégio? — perguntou Kelsey olhando para a Srta. Bulstrode.

      Ela negou com a cabeça. — Não. Não que eu saiba. Ninguém me disse ter ouvido. O Pavilhão de Esportes fica um pouco distante e não creio que o tiro pudesse ser ouvido daqui.

      — Talvez de um dos quartos que dão para o Pavilhão de Esportes?

      — Acho difícil, a não ser que a pessoa estivesse esperando por tal coisa. Estou certa de que não poderia ser suficientemente alto para acordar alguém.

      — Bem, obrigado — agradeceu o Inspetor Kelsey. — Agora vou até o Pavilhão de Esportes.

      — Irei com o senhor — disse a Srta. Bulstrode.

      — Querem que eu vá também? — perguntou a Srta. Johnson. — Se quiserem, eu irei. De nada adianta fugir das coisas, não é? Sempre fui da opinião de que a pessoa deve encarar seja lá o que for, e...

      — Obrigado — disse Kelsey. — Não é preciso, Srta. Johnson. Não desejo expô-la a maior tensão.

      — É tudo tão terrível! — lamentou a Srta. Johnson. — E faz com que me sinta pior por saber que não gostava muito dela. Na verdade, ontem à noite mesmo tivemos uma discussão na sala de reuniões. Eu afirmei que ginástica demais era ruim para algumas garotas... as mais frágeis. A Srta. Springer disse que isto era pura bobagem, que eram justamente estas as que mais precisavam de exercícios. Dava-lhes maior vigor e fazia delas novas mulheres. Retruquei dizendo que ela não sabia tudo embora pudesse pensar que sim. Afinal de contas, tive treinamento especializado e entendo muito mais sobre fragilidade e doença do que a Srta. Springer, embora não tenha dúvida de que a Srta. Springer sabia tudo a respeito de barras paralelas, acrobacias e tênis. Oh, Deus! Agora que penso no que aconteceu, desejaria que não tivesse falado daquele jeito. Suponho que a pessoa sempre se sinta assim depois que uma coisa terrível acontece. Realmente sinto-me culpada.

      — Agora, sente-se aqui, minha querida — disse a Srta. Bulstrode, acomodando-a no sofá. — Fique aí e descanse. E não dê importância a nenhuma discussão insignificante que possa ter tido. A vida seria muito monótona se concordássemos uns com os outros em todos os assuntos.

      A Srta. Johnson sentiu-se balançando a cabeça e, em seguida, bocejou. A Srta. Bulstrode acompanhou Kelsey até o saguão.

      — Dei-lhe uma boa dose de brandy — explicou ela. — Fez com que ficasse um pouco eloqüente demais. Creio, porém, que não estava confusa, estava?

      — Não — garantiu Kelsey. — Prestou uma declaração bastante clara do que aconteceu.

      A Srta. Bulstrode indicou-lhe o caminho pela porta lateral.

      — Foi por aqui que a Srta. Johnson e a Srta. Chadwick saíram?

      — Sim. Dá diretamente para o caminho ladeado de rododendros que leva ao Pavilhão de Esportes.

      O inspetor carregava uma potente lanterna e logo chegaram ao prédio onde, agora, as luzes brilhavam.

      — É um belo prédio — disse Kelsey apreciando.

      — Custou um bom dinheiro. Mas podemos pagar — acrescentou ela serenamente.

      A porta aberta mostrava uma sala de bom tamanho. Lá havia armários com o nome das garotas impresso. No final da sala, uma prateleira para raquetas de tênis e outra para bastões. Uma porta lateral levava para os chuveiros e vestiários. Kelsey deu uma parada antes de entrar. Dois de seus homens haviam estado trabalhando. O fotógrafo acabara de terminar a sua tarefa e o outro homem, que estava ocupado colhendo impressões digitais, ergueu a cabeça e falou: — o senhor pode atravessar a sala. Não tem problema nenhum. Ainda não terminamos este canto aqui.

      Kelsey encaminhou-se até onde o médico da polícia estava ajoelhado junto ao corpo O médico levantou os olhos quando Kelsey se aproximou.

      — Ela foi atingida a uns dois metros de distância — informou. A bala penetrou no coração. A morte deve ter sido instantânea.

      — Há quanto tempo foi?

      — Há uma hora aproximadamente.

      Kelsey balançou a cabeça. Deu a volta e olhou para a figura alta da Srta. Chadwich que estava parada séria encostada numa parede como um cão de guarda. Tinha cerca de 55 anos, calculou ele; testa ampla, boca obstinada, cabelo grisalho desalinhado, nenhum traço de histeria. O tipo de mulher, pensou ele, com quem se pode contar num momento de crise embora pudesse ser negligente na vida do dia-a-dia.

      — Srta. Chadwick? — disse ele.

      — Sim.

      — A senhora veio com a Srta. Johnson e juntas descobriram o corpo?

      — Sim. Ela estava exatamente como agora. Estava morta.

      — E a que horas foi isto?

      — Olhei o relógio quando a Srta. Johnson me acordou. Faltavam dez para a uma.

      Kelsey balançou a cabeça. Isto combinava com a hora que a Srta. Johnson tinha dado. Olhou pensativo para a mulher morta. Seu cabelo ruivo brilhante era curto. Tinha o rosto sardento, com o queixo projetado para a frente e uma silhueta esbelta e musculosa. Usava saia xadrez com uma suéter pesada e escura. Estava com mocassins, sem meias.

      — Algum sinal da arma? — indagou Kelsey.

      Um dos homens balançou a cabeça. — Nenhum sinal, senhor.

      — Há uma lanterna ali no canto.

      — Alguma impressão digital?

      — Sim. Da morta.

      — Então era ela quem estava com a lanterna — disse Kelsey pensativo. Veio até aqui com uma lanterna... por quê? — Perguntou em parte para si mesmo, em parte para seus homens, para a Srta. Bulstrode e à Srta. Chadwick. Finalmente pareceu se concentrar nesta última. — Tem alguma idéia?

      A Srta. Chadwick negou com a cabeça. — Nenhuma. Suponho que ela possa ter deixado alguma coisa aqui... algo que esquecera à tarde ou à noitinha... e tenha vindo buscar. Mas fazê-lo no meio da noite me parece inexplicável.

      — Para ela fazer isto deveria ser algo muito importante — comentou Kelsey.

      Ele olhou em torno da sala. Nada parecia fora do lugar, com exceção da prateleira de raquetas de tênis que havia no canto. Esta parecia ter sido violentamente puxada para frente. Várias raquetas estavam caídas no chão.

      — É lógico — disse a Srta. Chadwick — que ela pode ter visto luz aqui, como a Srta. Johnson viu mais tarde, e ter vindo investigar. Isto me parece o mais provável.

      — Acho que tem razão — concordou Kelsey. — Existe apenas um pequeno problema. Viria ela sozinha?

      — Sim — respondeu a Srta. Chadwick sem hesitação.

      — Entretanto a Srta. Johnson foi acordar a senhora — lembrou Kelsey.

      — Eu sei — disse Chadwick — e é isto o que faria se . tivesse visto luz aqui. Teria acordado a Srta. Bulstrode ou a Srta. Vansittart, ou alguma outra pessoa. Mas a Srta. Springer, não. Sentir-se-ia bastante segura. Na verdade, teria preferido agarrar o ladrão sozinha.

      — Outro ponto... — disse o inspetor. — A senhora saiu pela porta lateral com a Srta. Johnson. A porta estava aberta?

      — Sim, estava.

      — Provavelmente deixada aberta pela Srta. Springer.

      — Esta parece a conclusão lógica — falou a Srta. Chadwick.

      — Então presumimos — disse Kelsey — que a Srta. Springer tenha visto luz no ginásio... ou Pavilhão de Esporte, seja lá como as senhoras o chamam... veio investigar e a pessoa que aqui estava atirou nela. — Virou-se para a Srta. Bulstrode, parada imóvel junto à porta. — Isto lhe parece correto? — perguntou.

      — Nem um pouco — respondeu a Srta. Bulstrode. — Concordo com o senhor quanto à primeira parte. Digamos que a Srta. Springer tenha saído para averiguar por conta própria. Mas que a pessoa que aqui estava tivesse atirado nela... Isto me parece completamente errado. Se havia alguma pessoa, este alguém não deveria estar aqui e o mais provável seria que fugisse, ou que pelo menos tentasse. Por que motivo alguém viria aqui com um revólver a esta hora da noite? É simplesmente ridículo, isto sim: — Ridículo! Não há nada neste local para ser roubado, certamente nada pelo qual valesse a pena cometer-se um assassinato.

      — A senhora acha mais viável a hipótese de a Srta. Springer ter perturbado algum encontro?

      — Esta é a explicação mais natural e razoável — opinou a Srta. Bulstrode. — Contudo não explica o fato do assassinato. As garotas do meu colégio não costumam sair por aí carregando revólveres e não parece muito provável que qualquer jovem com quem elas fossem se encontrar trouxesse um consigo.

      Kelsey concordou. — Sim, teria, no máximo, um canivete. Há uma outra alternativa — prosseguiu ele. — Digamos que a Srta. Springer tenha vindo aqui se encontrar com um homem...

      A Srta. Chadwick soltou um risinho inesperado.

      — Oh, não — disse ela. — Não a Srta. Springer.

      — Não me refiro necessariamente a um encontro amoroso — explicou o inspetor secamente. — Estou sugerindo que o assassinato tenha sido premeditado, que alguém tinha a intenção de matar a Srta. Springer, que combinaram um encontro neste lugar e atiraram nela.

     

UM GATO ENTRE OS POMBOS

      CARTA de Jennifer Sutcliffe à sua mãe.

      QUERIDA MAMÃE:

      Ontem houve um assassinato aqui. A vítima foi a Srta. Springer, a professora de Ginástica. Aconteceu no meio da noite e a polícia veio investigar. Esta manhã fizeram perguntas a todo mundo.

      A Srta. Chadwick disse-nos para não comentarmos o caso com ninguém, mas achei que você gostaria de saber.

                                                      Com carinho,

      JENNIFER

     

      Meadowbank era um estabelecimento de bastante importância para merecer atenção especial do Chefe de Polícia. Enquanto as investigações de rotina eram feitas, a Srta. Bulstrode não ficou inativa. Telefonou para um influente jornalista e para o Secretário de Justiça, ambos seus amigos pessoais. Como resultado destas manobras, muito pouco a respeito do acontecimento havia aparecido na Imprensa. Uma professora de Ginástica havia sido encontrada morta no ginásio do colégio. Levara um tiro, se por acidente ou não, ainda não havia sido esclarecido. A maioria das notícias sobre o ocorrido continha quase que uma nota de desculpa, como se fosse uma gafe extrema de qualquer professora de Ginástica se permitir ser assassinada em tais circunstâncias.

      Ann Shapland teve um dia ocupado anotando cartas para pais. A Srta. Bulstrode não se deu ao trabalho de dizer às alunas para ficarem caladas a respeito do acontecimento. Sabia que isto seria perda de tempo. Era certo que relatos mais ou menos lúgubres seriam apresentados aos pais, ou tutores, ansiosos. Ela pretendia que o seu próprio relatório, equilibrado e racional, da tragédia, chegasse a eles ao mesmo tempo.

      Naquela mesma tarde reuniu-se com o Sr. Stone, o Chefe de Polícia, e o Inspetor Kelsey. A polícia concordou plenamente em ter a imprensa abafada o mais possível. Possibilitava-os continuar as investigações com calma e sem interferência.

      — Lamento muito tudo o que está acontecendo, Srta. Bulstrode, lamento realmente — disse o Chefe de Polícia. Suponho que seja uma coisa ruim para a senhora.

      — Assassinato é uma coisa ruim para qualquer colégio — respondeu a Srta. Bulstrode. Mas agora não adianta ficarmos nos estendendo sobre isto. Não tenho dúvida de que vamos superar este incidente, como já superamos outras tempestades. Espero apenas que o assunto seja rapidamente esclarecido.

      — Não vejo por que não — disse Stone. Olhou para Kelsey.

      Kelsey então falou: — Ficará mais fácil quando soubermos alguma coisa do passado da vítima.

      — O senhor acha mesmo? — perguntou a Srta. Bulstrode secamente.

      — Alguém pode ter planejado matá-la — sugeriu Kelsey.

      A Srta. Bulstrode não respondeu.

      — O senhor acha que tem ligação com este lugar? — perguntou o Chefe de Polícia.

      — Na verdade é isto que o Inspetor Kelsey pensa — disse a Srta. Bulstrode. Está apenas tentando poupar meus sentimentos.

      — Realmente acho que o crime está ligado a Meadowbank — falou o inspetor devagar. — Afinal de contas, a Srta. Springer tinha dias de folga como todas as outras professoras. Se quisesse, poderia ter marcado encontro com alguém em qualquer local que desejasse. Por que escolher o ginásio no meio de noite?

      — A senhora tem alguma objeção a que se faça uma busca nas dependências do colégio? — perguntou o Chefe de Polícia.

      — Nenhuma. Suponho que o senhor esteja procurando um revólver?

      — Sim. Um pequeno revólver de fabricação estrangeira.

      — Fabricação estrangeira — repetiu-a Srta. Bulstrode pensativa.

      — A senhora tem conhecimento de que alguém do seu quadro de empregados, ou alguma de suas alunas, possua um revólver?

      — Não que seja do meu conhecimento — respondeu Bulstrode. — Quanto às minhas alunas, estou bastante certa de que não possuem nenhuma arma. Seus pertences são examinados quando chegam aqui e tal coisa certamente teria sido notada e, posso afirmar, causando muitos comentários. Mas, por favor, Inspetor Kelsey, faça exatamente como desejar. Notei que seus homens andaram procurando pelos jardins.

      O Inspetor Kelsey concordou com a cabeça.

      Ele prosseguiu. — Gostaria de interrogar toda a sua equipe. Alguém pode ter ouvido algum comentário vindo da Srta. Springer que nos sirva de pista. Ou pode ter observado algum comportamento estranho da parte dela.

      Fez uma pausa e continuou. — O mesmo pode ser aplicado às alunas.

      A Srta. Bulstrode falou: — Planejei uma palestra com as garotas esta noite depois das orações. Perguntarei se alguma tem conhecimento de qualquer coisa que possa estar relacionada com a morte da Srta. Springer. E se assim for, deve revelá-lo.

      — Ótima idéia — disse o Chefe de Polícia.

      — Mas o senhor deve se lembrar — observou a Srta. Bulstrode — de que uma ou outra garota pode querer se fazer de importante exagerando algum incidente, ou chegando mesmo a inventar algum. Garotas costumam fazer coisas estranhas. Espero que o senhor esteja acostumado a lidar com esta forma de exibicionismo.

      — Já me deparei com isto antes — disse o Inspetor Kelsey. — Agora — acrescentou, — por favor, dê-me uma lista das pessoas que trabalham aqui; professoras e empregados.

     

      — Inspecionei todos os armários do Pavilhão, senhor.

      — E não encontrou nada? — disse Kelsey.

      — Não, senhor, nada de importância. Em alguns havia coisas engraçadas, mas nada que nos interesse.

      — Nenhum deles estava trancado, estava?

      — Não, mas se quiser podem ser trancados. Havia chaves nas fechaduras, entretanto estavam todos abertos.

      Pensativo, Kelsey olhou para o chão vazio. As raquetas de tênis e os bastões haviam sido recolocados ordenadamente nas prateleiras.

      — Ah, bem — disse ele, — agora vou até o prédio do colégio dar prosseguimento aos interrogatórios.

      — O senhor não acha que foi um trabalho interno?

      — Pode ter sido — respondeu Kelsey. — Ninguém possui um álibi, exceto as duas professoras, Chadwick e Johnson, e a menina que estava com dor de ouvido. Teoricamente, todo mundo estava na cama dormindo, entretanto não há ninguém para testemunhar isto. Todas as garotas e naturalmente também as professoras têm quartos individuais. Qualquer uma delas, incluindo a própria Srta. Bulstrode, poderia ter saído e seguido a Srta. Springer até aqui. Então, depois de matá-la, ter-se esgueirado calmamente por entre os arbustos até a porta lateral e estar confortavelmente de volta à cama quando o alarma foi dado. O motivo é que é difícil de se descobrir — disse Kelsey — o porquê. A não ser que esteja acontecendo alguma coisa por aqui de que nós nem desconfiamos, não parece existir nenhum motivo.

      Saiu do Pavilhão e encaminhou-se lentamente de volta ao prédio principal. Embora já tivesse passado de seu horário de trabalho, o velho Briggs, o jardineiro, continuava cuidando de um canteiro de flores miúdas. Ergueu-se quando o inspetor passou.

      — O senhor trabalha até tarde — comentou Kelsey com um sorriso.

      — Ah! — disse Briggs. — Os jovens não sabem o que é jardinagem. Chegar às oito horas e largar às cinco!... isto é o que eles pensam que é. É preciso estudar o tempo. Certos dias nem é necessário vir ao jardim, mas em outros pode-se trabalhar das sete da manhã às oito da noite. Isto se você amar o lugar e tiver orgulho de sua aparência.

      O senhor pode se orgulhar disto aqui — elogiou Kelsey. — Ultimamente não tenho visto nenhum lugar tão bem tratado quanto este.

      — O senhor está certo — concordou Briggs. — Mas eu tenho sorte. Tenho um jovem forte para trabalhar comigo. E também dois garotos, porém estes não são lá grande coisa. A maioria dos meninos e dos rapazes hoje em dia não querem fazer este tipo de trabalho. Preferem as fábricas, ou o serviço de escritório. Não gostam de sujar as mãos com um pouco de terra honesta. Mas como já disse, tenho sorte. Tenho um bom ajudante trabalhando para mim, que veio oferecer seu serviço espontaneamente.

      — Recentemente? — indagou o Inspetor Kelsey.

      — No início do semestre — informou Briggs. — Seu nome é Adam, Adam Goodman.

      — Não me lembro de tê-lo visto por aqui.

      — Ele hoje me pediu folga — disse Briggs. — Eu concordei. Não parecia haver muito o que fazer com toda esta gente andando de um lado para o outro.

      — Alguém deveria ter-me falado sobre ele — disse Kelsey vivamente.

      — O que quer dizer com falado sobre ele?

      — Ele não consta da minha lista — explicou o inspetor. — Das pessoas empregadas aqui, quero dizer.

      — Ah, bem, o senhor pode vê-lo amanhã. Não que eu acredite que ele tenha alguma coisa para lhe contar.

      — Nunca se sabe — falou o inspetor.

      Um jovem saudável havia se oferecido para trabalhar no começo do semestre? Kelsey teve a impressão de que ali, pela primeira vez, se deparava com algo um pouco fora do comum.

     

      Como de hábito, as alunas lotavam o saguão para as orações. Levantando a mão, a Srta. Bulstrode impediu que se retirassem.

      — Tenho algo para lhes dizer. A Srta. Springer, como todas sabem, foi assassinada ontem à noite no Pavilhão de Esportes. Se alguma de vocês, na semana passada, ouviu ou viu algo... qualquer coisa que as tenha deixado intrigadas e que diga respeito à Srta. Springer, ou qualquer coisa que a própria Srta. Springer possa ter dito sobre si mesma e que vocês considerem importante, eu gostaria de saber. Podem me procurar, esta noite, no meu escritório.

      — Oh — suspirou Júlia Upjohn, enquanto as meninas se retiravam, — como eu gostaria que soubéssemos de alguma coisa. — Mas não sabemos, não é, Jennifer?

      — Não — respondeu Jennifer. — É claro que não.

      — A Srta. Springer sempre me pareceu um tipo tão comum — falou Júlia com tristeza — comum demais para ser assassinada de modo misterioso.

      — Não vejo nada de tão misterioso assim — falou Jennifer. — Apenas um ladrão.

      — Roubando nossas raquetas de tênis, suponho? — disse Júlia com sarcasmo.

      — Talvez alguém estivesse fazendo chantagem com ela — sugeriu a outra garota, esperançosa.

      — A respeito de quê? — perguntou Jennifer.

      Porém não conseguiram pensar em nenhum motivo para se chantagear a Srta. Springer.

     

      O Inspetor Kelsey começou o interrogatório com a Srta. Vansittart. Uma bonita mulher, pensou ele, analisando-a. Tinha possivelmente uns 40 anos, ou um pouco mais. Era alta, bem feita, cabelos grisalhos arrumados com gosto. Possuía dignidade e compostura, com uma certa percepção de sua própria importância. Ela fazia lembrar um pouco a própria Srta. Bulstrode; era o tipo exato de uma professora. Mesmo assim, refletiu ele, a Srta. Bulstrode tinha algo que a Srta. Vansittart não possuía. A Srta. Bulstrode tinha o dom do inesperado. Ele achava que a Srta. Vansittart jamais seria uma pessoa de surpresas.

      Perguntas e respostas seguiram a rotina habitual. De fato, a Srta. Vansittart não havia visto nada, não percebera nada. A Srta. Springer havia sido excelente em seu trabalho. Sim, um pouco brusca em suas maneiras, mas não de forma excessiva. Sua personalidade não era muito atraente. Todavia isto realmente não tinha muita importância no caso de uma professora de Ginástica. Na verdade, era bem melhor não ter professoras de personalidade atraente. Impedia que as alunas se tornassem sentimentais em relação às mestras. A Srta. Vansittart, não tendo trazido nenhuma contribuição de importância, retirou-se.

      — Não vi, não ouvi, não falei. Como os três macaquinhos — observou o Sargento Percy Bond que auxiliava o Inspetor Kelsey em sua tarefa.

      Kelsey sorriu. — É isto mesmo, Percy.

      — Há alguma coisa em professoras que me deixa de mau humor — falou o sargento. — Tenho horror a elas desde que era menino. Conheci uma que era uma peste. Tão arrogante e pretensiosa que nunca se sabia o que estava tentando ensinar.

      A próxima professora a se apresentar foi Eileen Rich. Feia como o diabo, foi a primeira impressão do Inspetor Kelsey. Depois modificou sua opinião; ela possuía uma certa atração. Ele começou suas perguntas rotineiras, porém as respostas não foram tão rotineiras quanto havia esperado. Depois de dizer não, que não notara nada, que não ouvira nenhum comentário especial a respeito da Srta. Springer, ou nada que a própria Srta. Springer houvesse dito, a próxima resposta de Eileen Rich não foi o que ele previra. Ele perguntara: — A senhorita sabe de alguém que a odiasse?

      — Oh, não — respondeu Eileen Rich de pronto. — Ninguém poderia. Sabe, acho que este era o seu drama. O fato de não ser uma pessoa que alguém pudesse odiar.

      — O que exatamente quer dizer com isto, Srta. Rich?

      — Quero dizer que ela não era uma pessoa que alguém desejasse destruir. Tudo que ela era e fazia era superficial. É certo que ela incomodava os outros. Freqüentemente havia troca de palavras ásperas entre ela e outras pessoas, entretanto isto nada significava. Nada de profundo. Estou certa de que ela não foi morta por ela mesma, se o senhor entende o que quero dizer.

      — Não estou bem certo de que entendo, Srta. Rich.

      — Quero dizer que se acontecesse algo como um assalto de banco, ela poderia muito bem ser a caixa que leva um tiro, porém seria como caixa e não como Grace Springer. Ninguém a amaria ou a odiaria o bastante a ponto de querer acabar com ela. Acho que provavelmente, mesmo sem pensar no assunto, percebia isto e por este motivo era tão intrometida. Sabe, encontrando falhas, impingindo regras e descobrindo o que as pessoas faziam de errado e as delatando.

      — Espionando? — perguntou Kelsey.

      — Não, não exatamente espionando — refletiu Eileen Rich. — Ela não andaria nas pontas dos pés, escutando atrás das portas, ou qualquer coisa deste tipo. Todavia, se notasse que alguma coisa estava acontecendo, que não conseguia compreender, investigava com bastante determinação até chegar ao fundo do problema. E acabava por descobrir.

      — Entendo. — Ele ficou calado por um momento. — A senhorita não gostava muito dela, gostava, Srta. Rich?

      — Acho que nunca me preocupei com ela. Era apenas uma professora de Ginástica. Oh! Que coisa horrível de se dizer de alguém. Apenas isto... apenas aquilo. Porém era assim que ela se sentia em relação ao seu trabalho. Era um trabalho do qual se orgulhava em executar bem. Contudo não o achava divertido. Não ficava entusiasmada ao descobrir uma garota que pudesse ser muito boa em algum esporte, ou realmente boa no tênis. Não se alegrava nem se sentia triunfante com a descoberta.

      Kelsey olhou-a com curiosidade. Uma jovem estranha esta aí, pensou ele.

      — A senhorita parece ter sua idéia formada a respeito da maioria das coisas, Srta. Rich — observou ele.

      — Sim. Creio que tenho.

      — Há quanto tempo está em Meadowbank?

      — Apenas há um ano e meio.

      — Nunca aconteceram problemas antes?

      — Em Meadowbank? — Ela parecia assustada.

      — Sim.

      — Oh, não. Até este semestre, tudo sempre correu muito bem.

      Kelsey partiu para o ataque.

      — O que tem andado errado neste semestre? Não está se referindo ao assassinato, está? Refere-se a outra coisa...

      — Eu não... — ela parou. — Sim, talvez sim... mas é tudo muito vago.

      — Continue.

      — A Srta. Bulstrode não tem andado feliz ultimamente — disse Eileen lentamente. — O senhor não notaria. Não creio que mais ninguém tenha percebido. Entretanto eu notei. E ela não é a única a se sentir triste. Mas não é isto que o senhor quer saber, é? Falo apenas dos sentimentos das pessoas. O tipo de coisa que acontece quando se está confinada a um pequeno grupo e se pensa muito numa só coisa. O senhor quer saber se, neste semestre, há algo que parece não estar certo. É isto?

      — Sim — respondeu Kelsey. — É sim, é isto. Então, que me diz?

      — Acho que realmente existe algo errado aqui — disse Eileen devagar. — É como se houvesse alguém entre nós que não pertencesse a este lugar. — Olhou para ele sorrindo, quase chegou a rir, e falou: — Um gato entre os pombos, é esta a espécie de sensação que eu tenho. Nós somos os pombos, todas, e o gato está entre nós. Mas não conseguimos ver o gato.

      — Isto é muito vago, Srta. Rich.

      — Sim, não é? Parece uma enorme tolice. Eu mesma posso perceber isto. Suponho que o que realmente quero dizer é que existe alguma coisa, algum detalhe, que notei, mas não sei definir.

      — A respeito de alguma pessoa em particular?

      — Não, eu já lhe disse, é apenas isto. Não sei quem é; só posso resumir o que eu sinto dizendo que tem alguém aqui que... de algum modo... é falso. Alguém... não sei dizer quem... que me faz sentir inquieta. Não quando estou olhando para ela, mas sim quando olha para mim. Porque é aí que aparece o que me perturba, seja lá o que for. Oh, estou ficando cada vez mais incoerente. E, de qualquer maneira, é apenas uma sensação. Não é o que o senhor deseja. Não se trata de uma evidência.

      — Não — concordou Kelsey. — Não é uma evidência. Ainda não. Entretanto é interessante e, se a sua sensação se tornar mais definida, Srta. Rich, ficaria satisfeito em tomar conhecimento.

      Ela balançou a cabeça. — Sim, porque é muito sério, não é? Quero dizer, o fato de alguém ter sido assassinado... não sabemos por que... e o assassino pode estar a milhas de distância ou, por outro lado, pode estar aqui mesmo no colégio. E, se for assim, a pistola, o revólver, ou seja lá o que for, deve estar aqui também. Isto não é muito agradável, não é?

      Retirou-se fazendo um ligeiro cumprimento com a cabeça. O Sargento Bond disse: — É maluca... ou o senhor não acha?

      — Não — respondeu Kelsey. — Não acho que seja maluca. Creio que é o que se costuma chamar de pessoa sensitiva. Como as pessoas que sabem quando há um gato na sala mesmo antes de tê-lo visto. Se ela tivesse nascido numa tribo africana, provavelmente seria uma feiticeira.

      — Do tipo das que saem por aí farejando o mau, não é isto? — disse o Sargento Bond.

      — Isto mesmo, Percy — respondeu Kelsey. E é exatamente isto que estou tentando fazer agora. Ninguém me apresentou nenhum fato concreto e assim sendo tenho que ir por aí farejando as coisas. Bem, mande entrar a professora francesa.

 

UMA HISTÓRIA FANTÁSTICA

“MADEMOISELLE” ANGÈLE BLANCHE deveria ter uns 35 anos. Não usava nenhuma maquiagem. O cabelo estava bem arrumado, porém de uma forma que não lhe assentava bem. Vestia um casaco e uma saia de corte austero.

      Era seu primeiro semestre em Meadowbank, explicou ela, e não estava certa se desejava permanecer no seguinte.

      — Não é agradável trabalhar-se num colégio onde ocorrem assassinatos — disse ela em tom reprovador.

      E também parecia não existir nenhum alarme contra ladrões no prédio do colégio... e isto era muito perigoso.

      — Não há nada aqui de muito valor para atrair ladrões, Mademoiselle Blanche.

      Mademoiselle Blanche encolheu os ombros.

      — Como se pode saber? Algumas das garotas que estudam neste colégio são de famílias muito ricas. Podem ter em seu poder alguma coisa de muito valor. Talvez o ladrão tenha conhecimento do fato e venha até aqui por achar um local muito fácil de ser assaltado.

      — Mas no caso de uma garota possuir algo de valor, certamente não o guardaria no ginásio.

      — Como é que o senhor pode saber? — perguntou Mademoiselle. Lá estão os seus armários, não estão?

      — Apenas para guardar seus apetrechos de ginástica e coisas deste tipo.

      — Ah, sim, isto é o que se supõe. Porém uma garota poderia esconder qualquer coisa na ponta de um sapato de tênis, ou embrulhá-la numa suéter velha, ou num lenço.

      — Que tipo de coisa, Mademoiselle Blanche?

      Mademoiselle Blanche, entretanto, não tinha idéia do que poderia ser.

      — Mesmo os pais mais indulgentes não entregariam às suas filhas colares de brilhantes para trazerem para o colégio — afirmou o inspetor.

      Mademoiselle tornou a encolher os ombros.

      — Talvez seja algo de um tipo diferente de valor... digamos, um escaravelho, ou algo que um colecionador pagaria muito dinheiro para possuir. Uma das meninas é filha de um arqueólogo.

      Kelsey sorriu. — Sinceramente, não acho que isto seja provável. Mademoiselle.

      Ela encolheu os ombros. — Ah, bem, estou apenas dando uma sugestão.

      — A senhora já lecionou em algum outro colégio na Inglaterra, Mademoiselle Blanche?

      — No norte da Inglaterra, há algum tempo atrás. Lecionei principalmente na Suíça e na Fiança. Na Alemanha também. Pensei em vir para a Inglaterra a fim de aprimorar meu inglês. Tenho uma amiga aqui. Ela adoeceu e disse-me para vir ocupar o seu posto, pois a Srta. Bulstrode ficaria contente em contratar alguém rapidamente. Então eu vim. Entretanto não gosto muito deste lugar. Como já lhe disse, não creio que vá continuar.

      — Por que a senhora não gosta daqui? — insistiu Kelsey.

      — Não gosto de lugares onde há tiroteios — respondeu Mademoiselle Blanche. — E as crianças não são obedientes.

      — Elas não são exatamente crianças, são?

      — Algumas se comportam como bebês, outras poderiam bem ter uns 25 anos. Aqui podemos encontrar de todos os tipos. Gozam de liberdade excessiva. Prefiro um estabelecimento com mais disciplina.

      — A senhora conhecia bem a Srta. Springer?

      — Praticamente não a conhecia. Era mal educada e eu conversava com ela o menos possível. Era toda feita de ossos e sardas e tinha uma voz estridente. Como a caricatura de uma mulher inglesa. Freqüentemente tratava-me com grosseria e eu não gostava disto.

      — Por que motivo era rude com a senhora?

      — Não gostava que eu fosse ao seu Pavilhão de Esportes. Era assim que ela parecia se sentir a respeito do lugar... ou sentia, quero dizer... era o seu Pavilhão de Esportes. Fui lá um dia porque estava curiosa. Era um prédio novo e eu ainda não o havia visitado. Acho-o muito bem construído e equipado e estava somente dando uma olhada. Então a Srta. Springer apareceu e falou: — O que está fazendo aqui? Você não tem nada que estar aqui! — Ela disse isto para mim... para mim, uma professora! O que pensava que eu fosse, uma estudante?!

      — Sim, sim, estou certo de que deve ter sido muito irritante — disse Kelsey acalmando-a.

      — Tinha os modos de um cavalo, essa é a verdade. Em seguida gritou: — Não vá embora levando a chave. — Ela conseguira me perturbar. Quando eu abrira a porta, a chave havia caído e eu a apanhara no chão. E por causa dos insultos da Srta. Springer. esqueci-me de recolocá-la. E então resolve gritar comigo como se pensasse que eu pretendia roubar a chave. A sua chave, suponho, como o seu Pavilhão de Esportes.

      — Isto parece um tanto estranho, não? — comentou Kelsey. — Quero dizer, que se sentisse assim em relação ao ginásio. Como se fosse propriedade sua, como se temesse que alguém encontrasse algo que escondera por lá.

      Falou assim, tentando uma insinuação, entretanto Angèle Blanche apenas riu.

      — Esconder alguma coisa no Pavilhão de Esportes... o que é possível se esconder num lugar como aquele? O senhor acha que ela escondia suas cartas de amor? Tenho certeza de que jamais lhe escreveram uma! As outras professoras, pelo menos, são educadas. A Srta. Chadwick é antiquada, meticulosa, perturba um pouco. A Srta. Vansittart é muito gentil, grand dame, simpática. A Srta. Rich é um pouco maluca, porém amigável. E as professoras mais jovens são bastante agradáveis.

      Após mais algumas perguntas sem importância, Angèle Blanche foi dispensada.

      — É cheia de melindres — observou Bond. — Todos os franceses são assim.

      — De qualquer modo foi interessante — comentou Kelsey. — Ficamos sabendo que a Srta. Springer não gostava de gente rondando seu ginásio... Pavilhão de Esportes... não sei bem como chamar aquele negócio. Agora, por quê?

      — Talvez achasse que a mulher francesa a estivesse espionando — sugeriu Bond.

      — Bem, mas por que ela pensaria assim? Quero dizer, a não ser que tivesse algo para esconder, que importância teria que Angèle Blanche a espionasse?

      — Quem falta ainda a ser interrogada?

      — As duas professoras mais jovens, a Srta. Blake e a Srta. Rowan, e a secretária da Srta. Bulstrode.

      A Srta. Blake era jovem e cheia de vivacidade, com um rosto redondo e bem-humorado. Ensinava Botânica e Física. Nada tinha para declarar que pudesse ajudar. Vira poucas vezes a Srta. Springer e não tinha a menor idéia do que poderia ter causado sua morte.

      A Srta. Rowan, como convinha a alguém dono de um diploma de psicologia, tinha pontos de vista a expressar. Era muito provável, disse ela, que a Srta. Springer tivesse cometido suicídio.

      O Inspetor Kelsey levantou as sobrancelhas.

      — Por que motivo? Ela era uma pessoa infeliz?

      — Era agressiva — explicou a Srta. Rowan, inclinando-se para a frente e olhando com ansiedade através de suas grossas lentes. — Muito agressiva. Considero isto significativo. Era um mecanismo de defesa para esconder um sentimento de inferioridade.

      — Tudo que ouvi até agora — disse o Inspetor Kelsey apontam-na como uma pessoa muito segura de si.

      — Segura demais — retrucou a Srta. Rowan sombriamente. — E muitas das coisas que falou sustentam a minha opinião.

      — Como o que, por exemplo?

      — Ela se referiu ao fato de as pessoas não serem o que parecem. Mencionou que no último colégio onde trabalhara havia desmascarado alguém. A diretora, entretanto, fora preconceituosa, recusando-se a ouvir o que ela descobrira. E também várias outras professoras tinham ficado contra ela. Sabe o que isto significa, inspetor? — Por pouco a Srta. Rowan não cai da cadeira, ao se inclinar para a frente, agitada. Mechas de cabelo escuro caíam sobre seu rosto. Os primeiros sintomas de um complexo de perseguição.

      O Inspetor Kelsey, educadamente, disse à Srta. Rowan que ela poderia estar certa em sua suposição, mas que entretanto ele não poderia aceitar a hipótese de suicídio, a não ser que ela, Srta. Rowan, pudesse explicar como a Srta. Springer conseguira atirar em si mesma de uma distância de pelo menos dois metros, e depois ter feito com que o revólver desaparecesse em pleno ar.

      A Srta. Rowan retrucou azedamente que a polícia era bem conhecida por seu preconceito contra a psicologia.

      Ela então lançou um olhar para Srta. Shapland.

      Bem, Srta. Shapland, falou o Inspetor Kelsey notando com satisfação a aparência eficiente e bem arrumada. — Que esclarecimentos a senhorita poderia nos oferecer?

      — Absolutamente nenhum, lamento. Tenho minha própria sala e raramente vejo as professoras. Tudo isto é inacreditável.

      — Inacreditável, como?

      — Bem, primeiro o fato de a Srta. Springer ter sido assassinada. Comentam que alguém arrombou o ginásio e que ela foi lá ver quem era. Acho que até aí está tudo certo, mas quem iria querer arrombar um ginásio?

      — Garotos, talvez, alguns jovens da redondeza que desejavam se apossar de algum tipo de equipamento esportivo, ou alguém que o fez por simples farra.

      — Se é assim, não posso deixar de pensar que a Srta. Springer teria dito o seguinte: — Ora essa, o que vocês estão jazendo aqui? Saiam já. — e eles teriam saído.

      — Alguma vez lhe pareceu que a Srta. Springer adotava alguma atitude especial em relação ao Pavilhão de Esportes?

      Ann Shapland pareceu intrigada. — Atitude especial?

      — Refiro-me a ela considerá-lo como território seu e de não gostar que outras pessoas entrassem lá.

      — Que eu saiba, não. Por que ela agiria assim? É apenas parte das dependências do colégio.

      — A senhorita nunca percebeu nada? Não notou que se fosse lá ela ficaria ressentida com a sua presença... algo deste tipo?

      Ann Shapland balançou a cabeça. — Não fui lá mais do que umas duas vezes. Não tenho tempo. Nestas ocasiões, fui levar recado da Srta. Bulstrode para alguma aluna. Apenas isto.

      — Não sabia que a Srta. Springer havia desaprovado o fato de Mademoiselle Blanche ter ido lá?

      — Não, não ouvi nada a este respeito. Oh, sim, creio que sim. Mademoiselle Blanche estava magoada com alguma coisa, mas ela é um tanto sensível, o senhor sabe. Tem a história de ela ter entrado, certa ocasião, na sala de desenho e ter ficado ressentida com algo que a professora lhe dissera. É lógico que ela não tem muito o que fazer... refiro-me a Mademoiselle Blanche. Ensina apenas uma matéria... Francês, e lhe sobra bastante tempo livre. Acho que... — ela hesitou — acho que talvez ela seja uma pessoa um tanto curiosa.

      — Acredita ser possível que quando Mademoiselle esteve no Pavilhão de Esportes mexesse em algum armário?

      — Nos armários das garotas? Bem, não acho impossível. Seria uma maneira de se distrair.

      — A Srta. Springer também tinha um armário só dela?

      — É claro que sim.

      — Se Mademoiselle Blanche fosse apanhada mexendo no armário da Srta. Springer, então posso acreditar que aí a Srta. Springer realmente ficaria aborrecida?

      — Certamente que ficaria.

      — A senhorita não sabe nada sobre a vida particular da Srta. Springer?

      — Creio que ninguém sabe — respondeu Ann. — Será que tinha alguma?

      — E não há mais nada... nada ligado ao Pavilhão de Esportes, por exemplo, que a senhorita não me contou?

      — Bem... — Ann hesitou.

      — Sim, Srta. Shapland, fale.

      — Não é nada importante — disse Ann lentamente. — É que certo dia vi um dos jardineiros... não o Briggs, o outro, o rapaz, saindo do Pavilhão e ele não tinha nada que estar lá. Provavelmente tratava-se apenas de curiosidade da parte dele... ou talvez de uma desculpa para se afastar um pouco do trabalho. Ele deveria estar pregando uma tela de arame em volta da quadra de tênis. Não creio que, na realidade, isto seja importante.

      — Contudo a senhorita não se esqueceu — assentou Kelsey. Por quê?

      — Acho que... — ela franziu a testa. — Sim, porque seu jeito era um pouco estranho. Desafiante. E ele falou com sarcasmo a respeito do dinheiro gasto com as garotas.

      — Ah, este tipo de atitude... entendo.

      — Não acredito que isto seja de relevância.

      — Provavelmente não, mas mesmo assim vou anotar o fato.

      — Voltas e mais voltas sem se sair do lugar — disse Bond quando Ann se retirou. — Sempre a mesma coisa. Pelo amor de Deus, espero que os empregados nos revelem alguma coisa.

      Porém conseguiram muito pouco destes.

      — Não adianta me perguntar nada, moço — falou a Sra. Gibbons, a cozinheira. — Primeiro porque não consigo ouvir o que diz e segundo porque não sei de nada. Ontem à noite fui dormir e tive um sono muito pesado. Não ouvi nada da confusão. Ninguém me acordou para contar nada. Ela parecia ofendida. Só soube esta manhã.

      Kelsey berrou algumas perguntas e conseguiu umas poucas respostas que nada diziam.

      A Srta. Springer começara a trabalhar ali naquele semestre e não era tão querida quanto a Srta. Jones que anteriormente ocupava o cargo. A Srta. Shapland também era novata, mas era uma jovem simpática. Mademoiselle Blanche era como todas as francesas... pensava que as outras professoras eram contra ela e permitia que as alunas a tratassem com desrespeito durante as aulas. — Entretanto, não é chorona — admitiu a Sra. Gibbons. Em algumas escolas que estivera, as professoras de Francês costumavam chorar um bocado.

      A maioria das empregadas domésticas era diarista. Havia somente uma outra empregada que dormia no colégio. Esta também mostrou desconhecimento de fatos, embora capaz de ouvir o que lhe falavam. Não sabia de nada. A Srta. Springer era um pouco ríspida. Nada sabia a respeito do Pavilhão de Esportes nem do que era guardado lá e jamais vira algo parecido com um revólver.

      Esta torrente de informações vazias foi interrompida pela Srta. Bulstrode. — Uma das alunas gostaria de falar com o senhor, Inspetor Kelsey — disse ela.

      Kelsey olhou-a vivamente. — É mesmo? Ela sabe de alguma coisa?

      — Quanto a isto tenho as minhas dúvidas — respondeu a Srta. Bulstrode. — Mas é melhor o senhor falar com ela pessoalmente. É uma de nossas alunas estrangeiras. Princesa Shaista... sobrinha do Emir Ibrahim. Talvez esteja propensa a imaginar que é bem mais importante do que o é na realidade. O senhor entende?

      Kelsey balançou a cabeça de modo afirmativo. A Srta. Bulstrode então se retirou e uma garota morena de estatura média entrou.

      Olhou-os com seus olhos amendoados.

      — Os senhores são da polícia?

      — Sim — disse Kelsey sorrindo. — Somos da polícia. Por favor, sente-se e conte-nos o que sabe a respeito da Srta. Springer.

      — Sim, vou contar.

      Sentou-se, inclinou-se para a frente e baixou a voz dramaticamente.

      — Existem pessoas vigiando este lugar. Não se mostram às claras, mas estão aí.

      Ela balançou a cabeça de modo significativo.

      O inspetor percebeu o que a Srta. Bulstrode havia querido dizer. Aquela garota estava dramatizando... e se divertindo com aquilo.

      — E por que motivo estariam vigiando o colégio?

      — Por minha causa. Querem me raptar.

      Seja lá o que Kelsey estivesse esperando ouvir, não era bem aquilo. Levantou as sobrancelhas.

      — Por que iriam querer raptá-la?

      — Para conseguir o resgate, é claro. Fariam meus pais pagarem muito dinheiro.

      — Er... bem... é possível — disse Kelsey duvidando. — Mas... er... supondo que isto seja verdade, o que tem a ver com a morte da Srta. Springer?

      — Ela deve tê-los descoberto — explicou Shaista. — Talvez lhes tenha dito que descobrira algo. Talvez os tenha ameaçado. Então é possível que lhe tenham prometido dinheiro em troca de seu silêncio. E, acreditando neles, foi até o Pavilhão de Esportes onde ficara combinado que o dinheiro seria entregue. E então a mataram.

      — Mas certamente a Srta. Springer jamais aceitaria dinheiro de chantagem.

      — O senhor acha que é muito divertido ser professora... professora de Ginástica? — Shaista falava com desdém. — O senhor não acha que seria bem melhor ter dinheiro, viajar, poder fazer o que se tem vontade? Especialmente alguém como a Srta. Springer que não era bonita, e para quem os homens nem olhavam? Não acha que o dinheiro poderia atraí-la mais do que qualquer outra pessoa?

      — Bem... er... — disse o Inspetor Kelsey — não sei bem o que dizer. Nunca lhe haviam apresentado este ponto de vista antes.

      — Isto é apenas... er... idéia sua? — perguntou. — A Srta. Springer nunca mencionou nada a você?

      — A Srta. Springer nunca dizia nada além de Abaixa, levanta!, Mais depressa! e Não pare! — disse Shaista com ressentimento.

      — É, acredito. Bem, será que toda esta história de rapto não é imaginação sua?

      Na mesma hora, Shaista ficou aborrecida.

      — O senhor não compreende nada. Meu primo era o Príncipe Ali Yusuf de Ramat. Ele morreu na revolução, ou pelo menos quando fugia dela. Estava combinado que quando eu crescesse me casaria com ele. Sendo assim, o senhor pode ver que sou uma pessoa importante. Talvez sejam os comunistas. Talvez não pretendam raptar-me e sim me assassinar!

      O Inspetor Kelsey parecia cada vez mais incrédulo.

      —- Isto me parece um pouco forçado, não acha?

      — O senhor pensa que tais coisas não podem acontecer? Garanto-lhe que podem. Os comunistas são muito perversos. Todo mundo sabe disto.

      Como ele ainda parecia duvidar, ela prosseguiu:

      — Talvez pensem que eu saiba onde estão as pedras preciosas.

      — De que está falando?

      — Meu primo possuía pedras preciosas de muito valor. Assim também como seu pai. Minha família sempre teve uma reserva de pedras preciosas escondida. Para casos de emergência, o senhor entende.

      Ela fez com que parecesse uma coisa trivial.

      Kelsey a encarou.

      — Mas o que é que isto tudo tem a ver com você, ou com a Srta. Springer?

      — Eu já lhe disse. Talvez pensem que eu saiba onde estão as pedras preciosas. E pretendam me prender para me obrigar a falar.

      — E, por acaso, você sabe onde elas estão?

      — Não, é claro que não sei. Desapareceram durante a revolução. Vai ver que os malvados dos comunistas as roubaram, mas também pode ser que não.

      — A quem elas pertencem?

      — Agora que meu primo morreu, pertencem a mim. Não há mais homens na família dele. Minha tia, a mãe dele, está morta. Ali Yusuf gostaria que eu ficasse com elas. Se não tivesse morrido, eu me teria casado com ele.

      — Era este o combinado?

      — Eu teria que me casar com ele. Ele era meu primo, entende?

      — E ao se casar com ele, você herdaria as jóias?

      — Não, eu ganharia jóias novas. Do Cartier de Paris. As outras continuariam guardadas para casos de emergência.

      O Inspetor Kelsey piscou os olhos e deixou que este sistema de seguro para emergências à moda oriental penetrasse na sua consciência.

      Shaista continuava com grande animação.

      — Acho que foi isto que aconteceu. Alguém levou as pedras para fora de Ramat. Talvez uma pessoa boa, talvez má. Uma pessoa boa traria as pedras para mim e diria: — São suas. — e eu lhe daria uma recompensa.

      Balançou a cabeça satisfeita, desempenhando o seu papel.

      — Uma atriz e tanto! — pensou o inspetor.

      — Mas se fosse uma pessoa má — prosseguiu Shaista — ficaria com as jóias e as venderia. Ou viria até mim e diria: — O que você me daria em troca se eu as trouxesse para você? — e se valesse a pena, ele as traria... mas caso contrário, não.

      — Mas na realidade, ninguém lhe falou nada, não é?

      — Não — admitiu Shaista.

      O Inspetor Kelsey decidiu-se.

      — Sabe — disse ele suavemente — acho que você está falando um monte de bobagens.

      Shaista lançou-lhe um olhar furioso.

      — Só lhe contei o que sabia. Apenas isto — respondeu ela de mau-humor.

      — Sim... bem, é muita gentileza sua, e não vou me esquecer.

      Levantou-se e abriu a porta para ela sair.

      — Contos das mil-e-uma-noites, não é? Rapto e jóias fabulosas — disse ele tornando a se sentar. — Que irá em seguida?

 

ENTREVISTA

QUANDO O INSPETOR KELSEY voltou à delegacia, o sargento era serviço informou-lhe: O Sr. Adam Goodman está lhe aguardando, senhor.

      — Adam Goodman? Oh, sim. O jardineiro.

      Um jovem havia se levantado respeitosamente. Era alto, moreno e bem apessoado. Usava calças de brim desbotado presas por um cinto velho e uma camisa de peito aberto de um azul muito vivo.

      — Fui informado de que o senhor desejava me ver...

      Sua voz era rouca e, como a de muitos jovens de hoje em dia, ligeiramente rude.

      Kelsey disse simplesmente: — Exato. Venha até à minha sala.

      — Eu são sei nada sobre o crime — afirmou Adam Goodman mal-humorado. — Não tenho nada a ver com isto. Ontem à noite estava em casa dormindo.

      Kelsey meramente balançou a cabeça sem externar opinião.

      Sentou-se à sua mesa e fez menção para que o jovem se sentasse na cadeira em frente. Um jovem policial vestido à paisana, que os seguira discretamente, acomodou-se a pouca distância.

      — Bem, então você é Goodman — disse o Inspetor Kelsey olhando para as anotações sobre a mesa — Adam Goodman!

      — Sim, senhor. Porém gostaria de primeiro lhe mostrar isto.

      As maneiras de Adam mudaram. Não havia mais rudeza nem mau-humor.

      Estava calmo e respeitoso. Tirou algo do bolso e entregou ao inspetor. O Inspetor Kelsey ergueu ligeiramente as sobrancelhas ao ler o papel. Em seguida levantou a cabeça.

      — Não vou precisar de você, Barber — disse ele.

      O discreto jovem policial levantou-se e saiu. Conseguiu não parecer surpreso embora estivesse.

      — Ah! — exclamou Kelsey. Olhou para Adam com curiosidade e interesse. — Então esta é a sua verdadeira identidade. Gostaria de saber que diabo você está...

      — Fazendo num colégio de moças? — o jovem completou a frase para ele. Sua voz ainda continuava respeitosa, porém ele não pôde deixar de sorrir. — Certamente é a primeira vez que tenho uma missão deste tipo. Não pareço um jardineiro?

      — Não como os que eu vejo por este lados. Normalmente são pessoas bastante idosas. Você entende alguma coisa sobre jardinagem?

      — Bastante. Tenho uma dessas mães com mania de jardinagem. Cuidou para que eu me tornasse um valioso ajudante seu.

      — E o que, exatamente, está acontecendo em Meadowbank... para trazê-lo à cena?

      — Na verdade, não sabemos se está acontecendo alguma coisa em Meadowbank. Minha missão é a de um observador a distância, ou era... até ontem à noite. Assassinato de uma professora de Ginástica!... Não é bem de um currículo colegial.

      — Mas pode acontecer — disse o Inspetor Kelsey. Suspirou. — Qualquer coisa pode acontecer... em qualquer lugar. Aprendi isto. Mas devo admitir que este caso é um tanto fora de rotina. O que haverá por trás disto?

      Adam contou-lhe. Kelsey escutou-o com interesse.

      — Cometi uma injustiça com aquela garota — comentou ele. — Mas você deve admitir que parece fantástico demais para ser verdade. Pedras preciosas no valor de quase um milhão de libras. A quem você disse que elas pertenciam?

      — Esta é uma boa pergunta. Para respondê-la, seria preciso um bando de advogados internacionais trabalhando nisto e provavelmente teriam opiniões discordantes. O caso poderia ser analisado de vários ângulos. Há três meses atrás, elas pertenciam à sua Alteza, o Príncipe Ali Yusuf de Ramat. Mas e agora? Se elas aparecessem em Ramat, tornar-se-iam propriedade do atual Governo, e tomariam todas as providências para que assim fosse. Existe também a possibilidade de Ali Yusuf tê-las deixado em testamento para alguém. Neste caso, muito dependeria de se poder provar a legalidade do documento. Podem também pertencer à família dele. Mas a verdadeira essência da questão é que, se por acaso acontecesse de o senhor ou eu encontrarmos as pedras preciosas na rua e se as guardássemos em nossos bolsos, para todos os efeitos, nos pertenceriam. Quero dizer, duvido que exista algum mecanismo legal que pudesse tirá-las de nós. Poderiam tentar, é lógico, porém a complexidade das leis internacionais é incrível...

      — Quer dizer que falando de um ponto de vista prático, é achar e guardar? — perguntou o Inspetor Kelsey. Balançou a cabeça reprovando. — Isto não é muito bom — disse afetadamente.

      — Não — concordou Adam com firmeza. — Não é nada bom. E é preciso levar em conta também que existe um bando de pessoas atrás delas. Todas, pessoas sem escrúpulos. As histórias se espalham, o senhor sabe: pode ser um boato, pode ser verdade, mas o que se conta é que as pedras foram levadas para fora de Ramat pouco antes de a revolução estourar. Existe uma dúzia de histórias diferentes de como foi feito.

      — Mas por que Meadowbank? Por causa da Princesa das mil-e-uma-noites?

      — A Princesa Shaista, prima em primeiro grau de Ali Yusuf. Sim. Alguém pode tentar entregar-lhe os bens, ou então se comunicar com ela. Do nosso ponto de vista, há algumas pessoas suspeitas rondando as proximidades. Uma tal Sra. Kolinsky, por exemplo, que está no Grande Hotel. É membro proeminente do que poderia ser descrito como Riff-Raff Internacional, Ltda. Nada que diga respeito à polícia, tudo estritamente dentro da lei, tudo honesto; contudo, é uma pessoa perita em recolher informações. Há também uma mulher que dançava num cabaré em Ramat. Obtivemos a informação de que ela andou trabalhando para um certo governo estrangeiro. Não sabemos onde se encontra agora, nem mesmo que cara tem, mas existe um boato de que ela pode estar por esta parte do mundo. Parece, não é, como se tudo estivesse se concentrando em torno de Meadowbank? E ontem à noite a Srta. Springer é assassinada.

      Kelsey balançou a cabeça pensativo.

      — Uma confusão e tanto — observou ele. Lutou por um momento com seus sentimentos. — A pessoa vê este tipo de coisa no cinema... um exagero... é o que se pensa... não pode acontecer na realidade. E não acontece... não no curso natural.

      — Agentes secretos, roubo, violência, assassinato, traição — concordou Adam. — Tudo absurdo... porém este lado da vida existe.

      — Mas não em Meadowbank.

      Estas palavras foram arrancadas do Inspetor Kelsey.

      — Percebo o que quer dizer — falou Adam — lesa-majestade.

      Ficaram calados por uns instantes e, em seguida, o Inspetor Kelsey perguntou: — O que você acha que aconteceu ontem à noite?

      Adam não se apressou em responder e, quando falou, disse devagar: — Springer estava no Pavilhão de Esportes no meio da noite? Por quê? Temos que começar por aí. De nada adianta nos indagarmos quem a matou até que tenhamos decidido por que motivo estava lá, àquela hora da noite. Podemos dizer que, apesar de sua vida impecável e esportiva, ela não estava conseguindo conciliar o sono, e então levantou-se, olhou pela janela e viu uma luz no Pavilhão de Esportes... a janela do quarto dela dá naquela direção?

      Kelsey concordou com a cabeça.

      — Sendo uma jovem valente e destemida, resolveu sair para investigar. Ela perturbou alguém que lá estava... fazendo o quê? Nós não sabemos. Mas era uma pessoa desesperada o bastante para atirar para matar.

      Mais uma vez Kelsey concordou com a cabeça.

      — É deste modo que também estamos analisando o caso — disse ele. — E quanto a esta última parte, tenho pensado nela o tempo todo. Ninguém atira para matar... ou vem armado para tal, a não ser...

      — A não ser que esteja atrás de algo muito importante. Concordo! Este é o caso que poderíamos chamar de a Inocente Springer... morta no cumprimento do dever. Mas existe uma outra possibilidade. Springer como resultado de informações particulares consegue um emprego em Meadowbank, ou é designada por seus chefes por suas qualificações. Espera por uma noite propícia, e então sai escondida para o Pavilhão de Esportes... (novamente tropeçamos numa pergunta... por quê?) Alguém a segue... ou espera por ela... alguém carregando um revólver e pronto para usá-lo... Mas novamente por quê? Para quê? Aliás, que diabo há com este Pavilhão de Esportes? Não é o tipo do lugar que alguém pense em usar para esconder alguma coisa.

      — Não havia nada escondido lá, posso-lhe garantir. Fizemos uma revista minuciosa nos armários das garotas e também no da Srta. Springer. Encontramos apenas material esportivo de todo tipo, tudo normal e dentro dos regulamentos. E é um prédio novo em folha. Lá não havia nada que parecesse com jóias.

      — O que quer que fosse, pode ter sido levado. Pelo assassino, é claro — observou Adam. — A outra possibilidade e que o Pavilhão de Esportes tenha sido usado como um lugar para um encontro... pela Srta. Springer, ou por uma outra pessoa. É um lugar bem jeitoso para isto. Fica a uma distância razoável do prédio do colégio. Não longe demais. E se alguém fosse visto indo para lá, uma explicação simples poderia ser dada, que se pensou ter avistado uma luz, etc., etc. Digamos que a Srta. Springer tenha ido lá se encontrar com alguém... houve um desentendimento e ela levou um tiro. Ou, uma outra hipótese, a Srta. Springer viu alguém saindo do colégio, seguiu esta pessoa, intrometeu-se em algo que não devia ver ou ouvir.

      — Não a conheci viva — disse Kelsey, — mas pelo que dizem dela, tenho a impressão de que talvez fosse uma mulher bisbilhoteira.

      — Acho esta a explicação mais provável — concordou Adam. — A curiosidade matou o gato. Sim, creio que isto explica o porquê do Pavilhão de Esportes.

      — Mas se foi um encontro, então... — Kelsey fez uma pausa.

      Adam balançou a cabeça com firmeza.

      — Sim. Parece que há alguém naquele colégio que merece atenção especial. Um gato entre os pombos, é isto.

      — Um gato entre os pombos — repetiu Kelsey, impressionado com a frase. Hoje a Srta. Rich, uma das professoras, falou algo assim.

      Refletiu por uns minutos.

      — Neste semestre, entraram três novas auxiliares para a equipe da Srta. Bulstrode. Shapland, a secretária, Blanche, a professora de Francês, e, é claro, a própria Srta. Springer. Esta está morta e fora de questão. Se existe um gato entre os pombos, parece-me que uma dessas duas seria a mais provável. — Olhou para Adam. — Alguma idéia, sobre qual delas poderia ser?

      Adam pensou.

      — Certo dia, encontrei Mademoiselle Blanche saindo do Pavilhão de Esportes. Estava com uma expressão de culpa como se tivesse andado fazendo algo que não devesse. Mesmo assim, no todo, acho que apostaria na outra. Na Shapland. Tem sangue frio e inteligência. Se eu fosse o senhor, investigaria cuidadosamente os seus antecedentes. Por que diabo está rindo?

      Kelsey estava sorrindo.

      — Ela suspeitava de você — disse ele. — Pegou você saindo do Pavilhão de Esportes... e achou que havia algo de estranho em seu jeito.

      — Ora, que diabo! — Adam estava indignado. — Que audácia a dela.

      O Inspetor Kelsey reassumiu sua maneira autoritária.

      — O fato, é que — disse ele — por aqui temos muito respeito por Meadowbank. É um excelente colégio. E a Srta. Bulstrode é uma ótima pessoa. Quanto mais cedo resolvermos isto, melhor para o colégio. Queremos esclarecer tudo e entregar a Meadowbank um atestado de bom comportamento.

      Fez uma pausa enquanto olhava pensativo para Adam.

      — Acho que teremos que contar à Srta. Bulstrode quem você é. Ela guardará silêncio... não receie quanto a isto.

      Adam refletiu por um instante. Em seguida balançou a cabeça.

      — Sim — concordou. — Acho que, nessas circunstâncias, é mais ou menos inevitável.

 

LÂMPADAS NOVAS POR VELHAS

A SRTA. BULSTRODE tinha uma outra qualidade que demonstrava sua superioridade sobre a maioria das mulheres. Sabia ouvir.

      Ouviu em silêncio o Inspetor Kelsey e Adam. O máximo que fez foi levantar uma sobrancelha. Em seguida, pronunciou uma única palavra: — Notável.

      A senhora é que é notável, pensou Adam, mas não exprimiu a sua opinião em voz alta.

      — Bem — disse a Srta. Bulstrode indo, como de costume, direto ao ponto. — O que querem que eu faça?

      O Inspetor Kelsey pigarreou.

      — Achamos que a senhora deveria estar plenamente informada... para o bem do colégio.

      A Srta. Bulstrode fez um gesto concordando.

      — Naturalmente — disse ela. — O colégio é minha maior preocupação. Tem que ser. Sou responsável pelo bem-estar e segurança de minhas alunas e, num grau menor, por todos aqueles que trabalham comigo. E agora gostaria de acrescentar que, quanto menos publicidade houver em torno da morte da Srta. Springer, melhor para mim. Este é um ponto de vista puramente egoísta... embora ache meu colégio importante por si mesmo... não apenas para mim. E compreendo perfeitamente bem que, se para os senhores for necessário haver publicidade total, então terão que ir adiante. Mas será preciso?

      — Não — respondeu o Inspetor Kelsey. — Eu diria que, neste caso em particular, quanto menos publicidade melhor. O inquérito será adiado e espalharemos que achamos que se trata de assunto local. Ladrões... ou delinqüentes juvenis, como os chamamos hoje em dia... com revólveres... uns irresponsáveis no uso do gatilho. Normalmente carregam canivetes, porém alguns destes rapazes, vez ou outra, conseguem arranjar revólveres. A Srta. Springer os surpreendeu. Atiraram nela. Isto é o que eu gostaria que fosse espalhado... aí então poderíamos trabalhar com tranqüilidade. Na Imprensa, apenas o que não puder ser evitado. Mas é evidente que Meadowbank é famoso. É notícia. E assassinato em Meadowbank é notícia quente.

      — Creio que posso ajudá-lo nesta parte — disse a Srta. Bulstrode com decisão. — Tenho prestígio com pessoas que ocupam altos postos.

      Ela sorriu e citou alguns nomes. Estes incluíam o Secretário do Interior, dois magnatas da Imprensa, um bispo, o Ministro da Educação. — Farei o que for possível. — Olhou para Adam. — Concorda?

      Adam respondeu rapidamente:

      — Sim, é claro. Sempre gostamos das coisas feitas com discrição.

      — O senhor vai continuar como meu jardineiro? — indagou a Srta. Bulstrode.

      — Se a senhora não fizer objeção. Permita-me ficar exatamente onde quero. E posso estar de olho no que se passa.

      Desta vez a Srta. Bulstrode realmente ergueu as sobrancelhas.

      — Espero que o senhor não esteja esperando por um outro assassinato.

      — Não, não.

      — Fico satisfeita em saber disto. Duvido que algum colégio pudesse sobreviver a dois assassinatos num só semestre.

      Ela se dirigiu para Kelsey.

      — Os senhores já terminaram com o Pavilhão de Esportes? É muito inconveniente não podermos usá-lo.

      — Já terminamos nosso trabalho. De nossa parte está liberado. Seja por que motivo o crime foi cometido, não há nada lá agora que nos possa ajudar. É apenas um Pavilhão de Esportes com seus equipamentos usuais.

      — Não encontraram nada nos armários das garotas?

      O Inspetor Kelsey sorriu.

      — Bem, uma coisa ou outra... uma cópia de um livro francês, chamado Candide... com... er... ilustrações. Um livro caro.

      — Ah — exclamou a Srta. Bulstrode. — Então é lá que ela o guarda. Giselle d’Aubray, suponho?

      O respeito de Kelsey pela Srta. Bulstrode aumentou.

      — Nada lhe escapa, não é Srta. Bulstrode? A senhora está sempre a par de tudo — disse ele.

      — Candide não lhe trará nenhum mal — observou a Srta. Bulstrode. — Trata-se de um clássico. É lógico que certos tipos de pornografia eu apreendo. Agora volta a minha pergunta inicial. Os senhores aliviaram o meu pensamento a respeito da publicidade ligada ao colégio. E o colégio pode ajudá-los de alguma forma? Eu posso ajudá-los?

      — No momento, penso que não. A única coisa que desejo é perguntar-lhe se, neste semestre, alguma coisa lhe causou inquietação? Algum incidente? Ou alguma pessoa?

      A Srta. Bulstrode ficou calada por uns instantes. Então, falou vagarosamente: — Literalmente, a resposta é: não sei.

      Adam falou apressado: — A senhora tem a sensação de que algo está errado?

      — Sim. Apenas isto. Nada definido. Não posso apontar ninguém, ou nenhum incidente... a não ser...

      Ficou em silêncio por um momento e, em seguida, disse:

      — Sinto... senti na ocasião... que havia perdido algo que não deveria ter perdido. Deixe-me explicar.

      Relatou resumidamente o pequeno incidente com a Sra. Upjohn e a lamentável e inesperada chegada de Lady Verônica.

      Adam estava interessado.

      — Vamos esclarecer bem isto, Srta. Bulstrode. A Sra. Upjohn olhando pela janela, a janela da frente, que dá para o passeio, reconheceu alguém. Não há nada de estranho nisso. A senhora tem mais de cem alunas e é bastante natural que a Sra. Upjohn tenha visto alguma mãe, pai ou parente que conhecesse. Porém a senhora está segura de que ela ficou surpresa em reconhecer esta pessoa... na verdade, era alguém que ela não esperava encontrar em Meadowbank.

      — Sim, foi exatamente esta a impressão que tive.

      — E então, pela janela que dá para o lado oposto, a senhora viu a mãe de uma de suas alunas em estado de embriaguez e isto desviou completamente sua atenção do que a Sra. Upjohn estava falando.

      A Srta. Bulstrode concordou com a cabeça.

      — Ela falou durante alguns minutos?

      — Sim.

      — E quando sua atenção voltou-se para ela, estava falando a respeito de espionagem, do serviço secreto que fizera durante a guerra, antes de se casar?

      — Sim.

      — Pode ser que tenha ligação — disse Adam pensativo. — Alguém que ela conhecera durante a guerra. Um dos pais, ou parentes de uma de suas alunas, ou poderia ser alguma de suas professoras.

      — Acho isto difícil — contestou a Srta. Bulstrode.

      — Mas não impossível.

      — É melhor entrarmos em contato com a Sra. Upjohn o mais rápido possível — disse Kelsey. — A senhora tem o endereço dela, Srta. Bulstrode?

      — É lógico. Mas creio que no momento se encontra no estrangeiro. Espere, vou verificar.

      Apertou o botão da campainha de sua mesa duas vezes. Então, impaciente, foi até à porta e chamou uma garota que estava passando.

      — Por favor, Paula, diga a Júlia Upjohn para vir até aqui.

      — Pois não, Srta. Bulstrode.

      — É melhor eu me retirar antes que a garota chegue — observou Adam. — Não pareceria natural eu estar presente aos interrogatórios do inspetor. Para todos os efeitos, ele me chamou aqui para ver se conseguia arrancar alguma coisa de mim. Tendo se certificado de que, pelo menos por enquanto, não conseguia, mandou que eu saísse.

      — Retire-se e lembre-se de que estou de olho em você — rosnou Kelsey com um sorriso.

      — A propósito — falou Adam, dirigindo-se à Srta. Bulstrode enquanto parava à porta, — tem algum problema se eu abusar um pouco da minha posição aqui? Se, digamos, me tornar um pouco mais amigável com algumas de suas professoras?

      — Com qual delas?

      — Bem... com Mademoiselle Blanche, por exemplo.

      — Mademoiselle Blanche? O senhor acha que ela...?

      — Acho que se sente um tanto entediada aqui.

      — Ah! — A Srta. Bulstrode mostrou uma expressão grave.

      — Talvez o senhor tenha razão. Mais alguém?

      — Farei tentativas com todas elas — respondeu Adam alegremente. — Se a senhora perceber que algumas alunas estão se comportando tolamente, escapando para encontros no jardim, por favor acredite que minhas intenções são estritamente as de um investigador.

      — O senhor acha que as garotas podem saber de alguma coisa?

      — Todo mundo sempre sabe de alguma coisa — afirmou Adam. — Mesmo que seja algo que não dêem muita importância.

      — O senhor pode estar certo.

      Bateram na porta e a Srta. Bulstrode falou: — Entre.

      Júlia Upjohn apareceu, bastante ofegante.

      — Entre, Júlia.

      O Inspetor Kelsey disse: — Pode ir agora, Goodman. Volte para o seu trabalho.

      — Eu lhe falei que não sabia de nada — disse Adam mal-humorado. — Maldita Gestapo.

      — Desculpe-me por estar tão ofegante, Srta. Bulstrode — disse Júlia. — Vim correndo lá da quadra de tênis.

      — Está bem. Queria apenas lhe perguntar o endereço de sua mãe... isto é, como posso entrar em contato com ela?

      — Oh! A senhora terá que escrever para tia Isabel. Mamãe está viajando.

      Tenho o endereço de sua tia. Porém preciso entrar em contato com sua mãe pessoalmente.

      — Não sei como a senhora vai conseguir — falou Júlia franzindo a testa. — Mamãe foi para Anatólia de ônibus.

      — De ônibus? — surpreendeu-se a Srta. Bulstrode.

      Júlia balançou a cabeça firmemente.

      — Ela gosta deste tipo de coisa — explicou. — E é claro que é extremamente barato. Um pouco desconfortável, mas mamãe não liga para isto. Entretanto, acho que daqui a umas três semanas mais ou menos ela poderá ser alcançada em Varr.

      — Sim, entendo. Diga-me, Júlia, alguma vez sua mãe mencionou ter visto aqui alguém que conhecera no tempo que trabalhara durante a guerra?

      — Não, Srta. Bulstrode, acho que não. Não, estou certa que não.

      — Sua mãe trabalhou para o Serviço Secreto, não foi?

      — Oh, sim. Acho que mamãe adorou. Não que me pareça muito excitante. Ela nunca explodiu nada. Ou foi presa pela Gestapo. Ou teve as unhas arrancadas. Ou algo assim. Trabalhou na Suíça, e acho... ou foi em Portugal?

      Júlia acrescentou se desculpando: — A pessoa fica um pouco entendida ouvindo todas estas histórias de guerra, e receio que nem sempre eu preste a atenção devida.

      — Bem, obrigado, Júlia. É só isto.

      — Realmente! — exclamou a Srta. Bulstrode quando Júlia saiu. — Ir para Anatólia de ônibus. — A criança falou como se estivesse dizendo que sua mãe houvesse apanhado o ônibus 73 para Marshall e Snelgrove.

     

      Balançando sua raqueta, Jennifer afastou-se da quadra de tênis, mal-humorada. O número de saques errados que ela havia dado aquela manhã tinham-na deixado deprimida. É claro que, com aquela raqueta, não podia esperar grande coisa, mas parecia que ultimamente ela perdera o controle total de seu saque. Seu golpe de esquerda, entretanto, sem dúvida alguma, tinha melhorado bastante. Seu treinamento com Springer havia ajudado muito. Por várias razões, era uma pena que Springer estivesse morta.

      Jennifer levava o tênis muito a sério. Era uma das coisas com que ela se preocupava.

      — Dá licença?

      Jennifer levantou os olhos, assustada. Uma mulher bem vestida, de cabelos louros, carregando um pacote comprido e achatado, estava parada a poucos metros dela. Jennifer ficou imaginando por que razão não teria visto antes a mulher vindo em sua direção. Não lhe ocorreu que ela poderia ter estado escondida atrás de uma árvore ou dos rododendros e, simplesmente, ter saído detrás deles. Tal idéia jamais teria ocorrido a Jennifer, afinal por que motivo uma mulher estaria escondida atrás de rododendros e de repente apareceria?

      Falando com ligeiro sotaque americano, a mulher disse: — Será que me poderia informar onde eu posso encontrar uma garota chamada... — ela consultou um pedaço de papel

      — Jennifer Sutcliffe.

      Jennifer ficou surpresa.

      — Eu sou Jennifer Sutcliffe.

      — Ora, vejam só! Isto é o que eu chamo de coincidência. Num colégio grande como este, acontecer de eu estar procurando uma garota e me deparar justamente com ela. E ainda dizem que tais coisas não acontecem.

      — Suponho que algumas vezes aconteçam — respondeu Jennifer, desinteressada.

      — Eu precisava vir hoje por estes lados almoçar com alguns amigos — prosseguiu a mulher — e ontem, num coquetel, por acaso, comentei com sua tia que viria... ou foi com sua madrinha? Tenho uma péssima memória. Ela me disse o seu nome e eu também me esqueci. Mas de qualquer modo o que interessa é que ela me perguntou se eu poderia vir aqui e entregar-lhe uma nova raqueta de tênis. Disse que você estava querendo uma.

      O rosto de Jennifer se iluminou. Parecia um milagre, nada menos que isto.

      — Deve ter sido minha madrinha, a Sra. Campbell. Chamo-a de Tia Gina. Não teria sido a tia Rosamund nunca. Ela jamais me dá nada, a não ser uns miseráveis 10 xelins no Natal.

      — Sim, lembro-me agora. Era este seu nome, Campbell.

      Entregou o embrulho. Jennifer o apanhou avidamente. Soltou uma exclamação de prazer ao retirar a raqueta da caixa.

      — Oh, é uma maravilha! — exclamou ela. — Esta é uma raqueta boa de verdade. Há muito tempo que eu desejava uma nova. Ninguém pode jogar decentemente se não tiver uma raqueta em boas condições.

      — É, acho que tem razão.

      — Muito obrigado por trazê-la — disse Jennifer agradecida.

      — Não foi trabalho nenhum. Tenho apenas que confessar que me senti um pouco encabulada. Colégios sempre me deixam assim. Tantas garotas. Oh, a propósito, pediram-me para levar a sua velha raqueta de volta.

      Apanhou a raqueta que Jennifer tinha deixado cair no chão.

      — Sua tia... não... madrinha... disse que iria mandar trocar as cordas. Está precisando, não está?

      — Não creio que valha a pena — respondeu Jennifer, sem prestar muita atenção.

      Continuava experimentando o balanço e a firmeza do seu novo tesouro.

      — Mesmo assim, uma raqueta extra é sempre útil — observou sua nova amiga. — Oh, nossa — olhou o relógio. — É muito mais tarde do que eu pensava. Preciso ir.

      — A senhora tem... a senhora quer que eu chame um táxi? Posso telefonar...

      Não. Obrigado, minha querida. Meu carro está perto do portão. Deixei-o lá para não ter que manobrar num lugar apertado. Adeus. Tive muito prazer em conhecê-la. Espero que tenha gostado da raqueta.

      Ela praticamente correu pelo passeio em direção ao portão. Jennifer tornou a chamá-la.

      — Muito obrigado.

      Então, exultante, saiu à procura de Júlia.

      — Olhe — ela exibiu a raqueta com movimentos exagerados.

      — Ora essa! Onde foi que você a arrumou?

      — Minha madrinha mandou para mim. Tia Gina. Ela não é minha tia, mas é assim que eu a chamo. É assustadoramente rica. Imagino que mamãe tenha lhe contado sobre o fato de que vivo reclamando de minha raqueta. É maravilhoso, não é? Não posso esquecer-me de escrever agradecendo.

      — Espero que sim — aconselhou Júlia.

      — Bem, você sabe como as pessoas se esquecem das coisas, vez ou outra. Até de coisas que pretendem realmente fazer. Olhe, Shaista — acrescentou quando esta última estava vindo em direção delas. — Ganhei uma raqueta nova. Não é uma beleza?

      — Deve ter custado muito dinheiro — comentou Shaista examinando-a com respeito. Gostaria de jogar tênis bem.

      — Você sempre se atrapalha com a bola.

      — Nunca sei em que direção a bola vai vir — disse Shaista distraída. — Antes de voltar para casa, preciso ir a Londres mandar fazer um short realmente bonito. Ou então um traje de tênis como o que a campeã americana, Ruth Allen, usa. Acho muito elegante. Talvez mande fazer os dois — sorriu com prazer antecipado.

      — Shaista nunca pensa em nada a não ser em roupas — observou Júlia com desdém, depois que ela se afastou. — Você acha que algum dia ficaremos assim?

      — Pode ser — respondeu Jennifer desanimada. — Mas será terrivelmente aborrecido.

      Entraram no Pavilhão de Esportes, agora oficialmente liberado pela polícia, e Jennifer guardou cuidadosamente a sua raqueta no armário.

      — Não é linda? — disse ela, afagando-a carinhosamente.

      — O que você fez com a raqueta antiga?

      — Oh, ela a levou.

      — Quem?

      — A mulher que trouxe esta aqui. Encontrou com tia Gina num coquetel e ela lhe pediu que me entregasse esta raqueta nova, já que vinha para estes lados. Tia Gina também disse para ela apanhar a minha antiga para trocar as cordas.

      — Oh, entendo. — Mas Júlia estava franzindo a testa.

      — O que a Bully queria com você? — indagou Jennifer.

      — Bully? Oh, nada de especial. Apenas o endereço da mamãe. Mas no momento ela não tem nenhum porque está viajando de ônibus por algum lugar da Turquia. Jennifer... preste atenção. Á sua raqueta não precisava mudar as cordas.

      — Oh, precisava sim, Júlia. Estava uma esponja,

      — Eu sei. Porém, na realidade, aquela era a minha raqueta. Nós trocamos, lembra-se? Era a minha raqueta que precisava de conserto. A sua, a que me pertence agora, já teve suas cordas trocadas. Você mesma disse que a sua mãe mandaria trocar antes de vocês viajarem.

      — Sim, é verdade — Jennifer parecia um pouco surpresa. — Oh, bem, creio que a mulher... seja lá quem for... eu deveria ter perguntado o seu nome, mas estava tão fascinada... ela simplesmente viu que precisava de conserto.

      — Mas você disse que ela falou que foi a sua tia Gina quem dissera que precisava trocar as cordas. E a sua tia Gina não poderia ter falado nada, já que isto não era necessário.

      — Oh, bem... — Jennifer parecia impaciente. — Suponho... suponho...

      — Supõe o quê?

      — Talvez tia Gina apenas imaginou que se eu desejava uma raqueta nova, era porque a outra precisava de cordas novas. De qualquer jeito, que importância tem isto?

      — Creio que não tem importância — respondeu Júlia devagar. — Mas acho estranho, Jennifer. É como... como a troca de lâmpadas novas por velhas. A história de Aladim, lembra-se?

      Jennifer riu.

      — Imagine esfregar a minha velha raqueta... quero dizer, a sua velha raqueta e aparecer um gênio. Se você esfregasse uma lâmpada e um gênio aparecesse, o que você pediria a ele, Júlia?

      — Uma porção de coisas — Júlia respirou extasiada. — Um gravador, um cachorro pastor alemão, ou um dinamarquês, cem mil libras, um vestido de cetim preto, e... Oh, um bocado de outras coisas. E você?

      — Realmente não sei — respondeu Jennifer. — Agora que tenho esta raqueta maravilhosa, não desejo mais nada.

 

A CATÁSTROFE

O TERCEIRO FIM DE SEMANA após o início do semestre seguiu o seu curso normal. Era o primeiro fim de semana que os pais tinham permissão para levarem suas filhas a sair. Como resultado, Meadowbank ficou praticamente deserto.

      Neste domingo, em especial, ficariam apenas vinte garotas para o almoço. Parte do quadro de empregados tinha o dia de semana de folga, retornando no domingo à noite ou na segunda-feira de manhã cedo. Nesta ocasião especial, a própria Srta. Bulstrode estava disposta a se ausentar durante o fim de semana. Isto não era comum, pois ela não costumava se afastar do colégio durante o período escolar. Entretanto tinha seus motivos. Iria hospedar-se na casa da Duquesa de Welshain em Welsington Abbey. A duquesa havia insistido para que fosse e acentuara o fato de que Henry Banks também estaria lá. Henry Bank era o Presidente da Câmara Estadual. Era um importante industrial e havia sido um dos financiadores iniciais do colégio. O convite era portanto quase compulsório. Não que a Srta. Bulstrode permitisse ser comandada se assim não o desejasse. Mas nas atuais circunstâncias aceitava o convite com satisfação. Não era, de modo algum, indiferente a duquesas, e a Duquesa de Welshain era uma pessoa influente e suas filhas haviam sido mandadas para Meadowbank. Estava também particularmente satisfeita por ter a oportunidade de falar com Henry Banks a respeito do futuro do colégio e também de apresentar sua versão sobre a recente e trágica ocorrência.

      Devido às conexões influentes de Meadowbank, o assassinato da Srta. Springer tinha sido conduzido pela imprensa com muito tato. Havia se transformado mais numa triste fatalidade, do que num crime misterioso. Fora dada a impressão, embora não tenha sido falado abertamente, de que possivelmente algum ladrão arrombara o Pavilhão de Esportes e que a morte da Srta. Springer fora mais acidental do que planejada. Fora informado vagamente que vários jovens haviam sido convocados a comparecerem à delegacia para prestar declarações. A própria Srta. Bulstrode estava ansiosa para abrandar qualquer impressão desagradável que, por acaso, as notícias pudessem ter causado nestes dois influentes patronos do colégio.

      Sabia que desejavam discutir a respeito de boato existente sobre a sua próxima aposentadoria. Tanto a duquesa quanto Henry Banks estavam aflitos para persuadi-la a permanecer no seu cargo. Agora era a hora, sentia a Srta. Bulstrode, de ressaltar as qualidades de Eleanor Vansittart, de mostrar a pessoa maravilhosa que ela era e de como estava habilitada para dar prosseguimento às tradições de Meadowbank.

      Na manhã de sábado, a Srta. Bulstrode estava terminando de ditar a correspondência para Ann Shapland, quando o telefone tocou. Ann atendeu.

      — É o Emir Ibrahim, Srta. Bulstrode. Chegou a Claridge e gostaria de vir apanhar Shaista amanhã.

      A Srta. Bulstrode apanhou o fone de sua mão e teve uma rápida conversa com o secretário do Emir. Shaista estaria pronta a qualquer momento a partir das onze e meia da manhã de domingo, disse ela. A garota deveria estar de volta ao colégio às oito da noite.

      Desligou e disse: — Gostaria que os orientais tivessem o hábito de notificar com um pouco mais de antecedência. Estava combinado que amanhã Shaista sairia com Giselle d’Aubray. Agora terá que ser cancelado. Terminamos as cartas?

      — Sim, Srta. Bulstrode.

      — Ótimo, então posso partir de consciência tranqüila. Bata-as a máquina e despache-as. Então você também estará livre para o fim de semana. Só vou precisar de você segunda-feira na hora do almoço.

      — Obrigada, Srta. Bulstrode.

      — Divirta-se, minha cara.

      — Vou me divertir — disse Ann.

      — Algum rapaz?

      — Bem... sim — Ann ficou levemente ruborizada. — Nada sério, entretanto.

      — Pois deveria ser. Se você pretende se casar, não deixe para muito tarde.

      — Oh, ele é apenas um velho amigo. Nada de emocionante.

      — Emoção nem sempre é uma boa base para uma vida matrimonial — preveniu a Srta. Bulstrode. — Chame a Srta. Chadwick, sim?

      A Srta. Chadwick entrou apressada.

      — O Emir Ibrahim, tio de Shaista, vem buscá-la amanhã, Chaddy. Se vier pessoalmente, diga-lhe que ela está fazendo bom progresso.

      — Ela não é muito brilhante — observou a Srta. Chadwick.

      — É intelectualmente imatura — concordou a Srta. Bulstrode. — Porém, em outros aspectos, possui mente extraordinariamente amadurecida. Algumas vezes, conversando, bem poderia passar por uma mulher de 25 anos de idade. Creio que é por causa da vida sofisticada que tem levado. Paris, Teerã, Cairo, Istambul e todo o resto. Neste nosso país, temos tendência a manter nossos filhos crianças por muito tempo. Consideramos uma vantagem quando dizemos: — Ela ainda é uma criança. — Mas isto não é uma virtude. É uma grave desvantagem na vida.

      — Acho que neste ponto não concordo muito com você, minha querida — disse a Srta. Chadwick. — Vou contar a Shaista sobre seu tio. Aproveite bem o fim de semana e não se preocupe com nada.

      — Oh! Não vou me preocupar — garantiu a Srta. Bulstrode. — Na verdade, é uma ótima oportunidade para deixar Eleanor Vansittart responsável pelo colégio e ver como se sai. Com você e ela encarregada disto aqui nada poderá sair errado.

      — Realmente espero que não. Vou procurar Shaista.

      — Shaista pareceu surpresa e nem um pouco satisfeita em saber que seu tio havia chegado a Londres.

      — Ele quer vir me buscar amanhã? — resmungou. — Mas, Srta. Chadwick, está tudo combinado para eu sair com Giselle d’Aubray e sua mãe!

      — Receio que terá que ficar para um outro dia.

      — Mas eu preferia sair com Giselle — disse Shaista contrariada. — Meu tio não é nada divertido. Come e depois ronca. É tudo muito aborrecido.

      — Você não deve falar assim. Não é delicado — repreendeu Chadwick. — Pelo que sei, seu tio ficará na Inglaterra apenas uma semana e é natural que deseje vê-la.

      — Talvez tenha arranjado um novo casamento para mim — disse Shaista com o seu rosto se iluminando. — Se for assim, será divertido.

      — Se for este o caso, sem dúvida ele lhe dirá. Contudo, você ainda é muito jovem para se casar. Precisa antes completar sua educação.

      — Educação é uma coisa muito enjoada — disse Shaista.

     

      A manhã de domingo amanheceu brilhante e serena. A Srta. Shapland havia partido no sábado logo após a Srta. Bulstrode. A Srta. Johnson, a Srta. Rich e a Srta. Blake, domingo de manhã.

      A Srta. Vansittart, a Srta. Chadwick, a Srta. Rowan e Mademoiselle Blanche haviam ficado responsáveis pelo colégio.

      — Espero que as garotas não falem demais — disse a Srta. Chadwick, duvidando. — A respeito da pobre Srta. Springer, quero dizer.

      — Vamos torcer — disse Eleanor Vansittart — para que todo este caso seja logo esquecido. — E acrescentou: — Se algum dos pais tocar no assunto comigo, vou desencorajá-los. Creio que o melhor será adotar uma atitude firme.

      As dez horas as garotas foram à igreja acompanhadas da Srta. Vansittart e da Srta. Chadwick. Quatro meninas católicas foram levadas por Angèle Blanche para assistirem à missa. Então, por volta das onze horas, os carros começaram a chegar. A Srta. Vansittart, elegante e refinada, estava parada no saguão. Cumprimentava as mães com um sorriso, entregava-lhes suas filhas e habilmente desviava qualquer referência à recente tragédia.

      — É terrível — dizia ela. — Sim, terrível demais, porém a senhora compreende, não queremos falar sobre isto aqui. Todas estas cabecinhas jovens... É uma lástima elas terem que participar deste assunto.

      Chaddy também estava no local cumprimentando velhos conhecidos entre os pais. discutindo planos para os feriados e falando de maneira carinhosa a respeito de várias meninas.

      — Acho que tia Isabel bem poderia ter vindo me buscar para um passeio — falou Júlia que, juntamente com Jennifer, estava com o rosto grudado na janela de uma das salas de aula, olhando o movimento de chegada e partida lá fora no pátio.

      — Mamãe vem me apanhar no próximo fim de semana — disse Jennifer. — Papai ia receber algumas pessoas importantes este fim de semana e ela então não pôde vir hoje.

      — Lá vai Shaista — mostrou Júlia. — Toda enfeitada a caminho de Londres.

      Olha só o salto do sapato dela! Aposto que a velha Johnson não gosta nada daquilo.

      Um motorista uniformizado abriu a porta de um enorme Cadillac. Shaista entrou e o carro se afastou.

      — Você pode vir comigo no próximo fim de semana, se quiser — convidou Jennifer. — Disse à mamãe que tinha uma amiga que eu gostaria de levar.

      — Eu adoraria — respondeu Júlia. — Olhe para Vansittart desempenhando o seu papel.

      — Ela é extremamente fina, não acha? — perguntou Jennifer.

      — Não sei por que, mas de algum modo ela faz com que eu tenha vontade de rir — disse Júlia. — É uma espécie de cópia da Srta. Bulstrode, não é? Uma cópia muito boa; mas é como Joyce Grenfell, ou alguma outra pessoa fazendo uma imitação.

      — Lá está a mãe de Pamela — mostrou Jennifer. — Trouxe os garotos. Não sei como todos eles cabem naquele minúsculo Morris Minor.

      — Vão fazer um piquenique. Olhe quantas cestas.

      — O que vamos fazer esta tarde? — perguntou Jennifer. — Acho que não preciso escrever para mamãe esta semana, já que vou vê-la na próxima.

      — Você é muito negligente quando se trata de escrever cartas, Jennifer.

      — Nunca consigo pensar em algo para dizer.

      — Pois eu consigo — disse Júlia. — Posso pensar num bocado de coisas para contar — acrescentou desanimada: — mas no momento não há ninguém para quem eu possa escrever.

      — E sua mãe?

      — Eu já lhe disse que viajou para Anatólia de ônibus. E não se pode escrever cartas para pessoas que andam de ônibus por aqueles lados. Pelo menos não o tempo todo.

      — Para onde você manda as cartas quando escreve?

      — Oh, para consulados aqui e ali. Ela me deixou uma lista. Istambul é o primeiro, depois Ancara e, em seguida, um nome engraçado. — Acrescentou: — Fico imaginando por que motivo Bully estaria tão ansiosa para entrar em contato com mamãe? Pareceu-me bastante perturbada quando lhe disse onde ela estava.

      — Não deve ser nada com você — disse Jennifer. — Você não fez nada errado, fez?

      — Que eu saiba, não — respondeu Júlia. — Talvez ela quisesse lhe contar a respeito de Springer.

      — Por que ela haveria de querer? disse Jennifer. — Acredito que ficaria extremamente satisfeita se houvesse, pelo menos, uma mãe que não soubesse sobre o caso de Springer.

      — Você acha que as mães seriam capazes de pensar que suas filhas também poderiam ser assassinadas?

      — Não creio que minha mãe seja assim tão tola, porém ficou bastante perturbada com esta história.

      — Se você me perguntar — falou Júlia, de modo meditativo, — eu lhe digo que existe muitas coisas que não nos revelaram a respeito de Springer.

      — Que tipo de coisas?

      — Bem, coisas estranhas parecem estar acontecendo. Como a sua nova raqueta de tênis.

      — Oh, ia-me esquecendo de lhe contar — disse Jennifer. — Escrevi à tia Gina agradecendo e, esta manhã, recebi uma carta dela dizendo-se muito contente por eu ter ganho uma raqueta nova, mas que entretanto não fora ela quem a mandara.

      — Eu bem que lhe falei que aquela história da raqueta era esquisita — disse Júlia triunfante. — E sua casa também foi assaltada, não foi?

      — Sim, mas não levaram nada.

      — Isto torna tudo ainda mais interessante — comentou Júlia. — Acho — acrescentou pensativa — que provavelmente em breve teremos um segundo assassinato.

      — Ora, Júlia, por que haveria um segundo assassinato?

      — Bem, nos livros, normalmente, há um segundo assassinato. O que eu acho, Jennifer, é que você deve tomar cuidado para que não seja você a próxima vítima.

      — Eu? — disse Jennifer, surpresa. — Por que alguém iria querer me matar?

      — Porque, de algum modo, você está envolvido nisto tudo — respondeu Júlia. — Semana que vem, você precisa arrancar mais informações de sua mãe, Jennifer. Talvez, em Ramat, alguém tenha entregue a ela um documento secreto.

      — Que tipo de documento secreto?

      — Oh, como é que posso saber — disse Júlia. — Planos ou fórmulas para uma nova bomba atômica. Alguma coisa deste tipo.

      Jennifer não parecia convencida.

      

      A Srta. Vansittart e a Srta. Chadwick estavam na sala de reuniões quando a Srta. Rowan entrou perguntando:

      — Onde está Shaista? Não a encontro em lugar algum. O carro do Emir acabou de chegar para apanhá-la.

      — O quê? — Chaddy ergueu os olhos surpresa. — Deve haver algum engano. O carro do Emir veio buscá-la a uns quarenta e cinco minutos atrás. Eu mesma a vi entrar nele e partir. Foi uma das primeiras a sair.

      Eleanor Vansittart encolheu os ombros. — Suponho que tenham encomendado dois carros ao mesmo tempo.

      Saiu e ela mesma foi falar com o motorista. — Deve haver algum engano — disse ela. — A jovem partiu para Londres há uns 45 minutos.

      O motorista parecia surpreso. — Se a senhora assim o diz, então acho que deve ter havido algum equívoco — falou ele. — Deram-me claras instruções para vir a Meadowbank buscar a jovem.

      — Creio que às vezes podem acontecer mal-entendidos.

      — O motorista dava a impressão de estar imperturbável e nada surpreendido.

      — Acontece sempre — disse ele — recados telefônicos anotados e esquecidos. Este tipo de coisa. Porém, na nossa firma, nos orgulhamos de não cometermos enganos. É claro, se assim posso dizer, que com estes cavalheiros orientais nunca se sabe o que pode acontecer. Algumas vezes trazem um séquito com eles e as ordens são dadas duas, ou até mesmo três vezes. Suponho que neste caso foi o que aconteceu.

      Manobrou seu carro com habilidade e se afastou.

      A Srta. Vansittart ficou um pouco indecisa por um ou dois minutos, mas concluiu que não havia nada com que se preocupar. Então começou a antever com satisfação uma tarde tranqüila.

      Depois do almoço, as poucas alunas que haviam permanecido no colégio escreveram cartas ou passearam pelos jardins. Jogaram umas partidas de tênis e a piscina estava bastante concorrida. A Srta. Vansittart levou sua caneta e o bloco de cartas para a sombra de uma árvore. Quando o telefone tocou às quatro e meia foi a Srta. Chadwick quem o atendeu.

      — É do Colégio Meadowbank? — Era a voz de um jovem inglês bem educado. — É a Srta. Bulstrode?

      — A Srta. Bulstrode não está. Quem está falando? Aqui é a Srta. Chadwick.

      — Oh, é a respeito de uma de suas alunas. Estou falando de Claridge, da suíte do Emir Ibrahim.

      — Oh, sim? É a respeito de Shaista?

      — Sim. O Emir está um tanto aborrecido por não ter recebido nenhum recado.

      — Recado? Por que ele deveria receber algum?

      — Bem, para informar que Shaista não poderia vir, ou que não viria.

      — Não iria! O senhor quer dizer que ela ainda não chegou aí?

      — Não, asseguro-lhe que não. Quer dizer que ela não está em Meadowbank?

      — Exato. Um carro veio buscá-la esta manhã... Oh, acho que por volta das onze e meia!

      — Isto é muito estranho porque não há o menor sinal dela. É melhor eu telefonar para a firma que fornece carros para o Emir.

      — Oh, Deus! — exclamou a Srta. Chadwick. — Espero que não tenha havido um acidente.

      — Ora, não vamos pensar o pior — disse o jovem alegremente. — Acho que se tivesse ocorrido um acidente a senhora já saberia, ou então nós já teríamos conhecimento. Se eu fosse a senhora, não me preocuparia.

      Mas a Srta. Chadwick estava preocupada.

      — Acho muito estranho — disse ela.

      — Suponho que... — o jovem hesitou.

      — Sim — disse a Srta. Chadwick.

      — Bem, não é o tipo de coisa que eu vá sugerir ao Emir, mas somente entre a senhora e eu, não havia... é... bem, nenhum namorado rondando por aí, havia?

      — Certamente que não! — afirmou a Srta. Chadwick com dignidade.

      — Bem, podia ser que houvesse... mas... bem... com estas garotas nunca se sabe, não é mesmo? A senhora ficaria surpresa com as coisas com que eu já me deparei.

      — Posso garantir-lhe que algo deste gênero é totalmente impossível.

      — Mas seria mesmo impossível? Pode-se ter certeza tratando-se de garotas?

      Recolocou o fone no gancho e, um tanto de má vontade, saiu à procura da Srta. Vansittart; Não havia motivo para acreditar que a Srta. Vansittart estivesse mais capacitada do que ela para lidar com a situação, entretanto, sentiu necessidade de consultar alguém. A Srta. Vansittart falou de imediato: — O segundo carro?

      As duas se olharam.

      — Você acha — disse Chaddy devagar — que deveríamos notificar a polícia?

      — A polícia não — falou Eleanor Vansittart com a voz alterada.

      — Sabe, ela disse que alguém estava tentando raptá-la.

      — Raptá-la? Bobagem! — disse a Srta. Vansittart asperamente .

      — Você não acha... — a Srta. Chadwich era persistente.

      — A Srta. Bulstrode deixou-me encarregada do colégio — disse Eleanor Vansittart — e certamente não vou permitir nada disto. Não queremos mais encrencas com a polícia.

      A Srta. Chadwick olhou-a sem afeição. Pensou que a Srta. Vansittart estava sendo imprevidente e tola. Retornou ao prédio do colégio e fez uma ligação para a casa da Duquesa Welsham. Infelizmente todos haviam saído.

     

A INSÔNIA DA SRTA. CHADWICK

A SRTA. CHADWICK estava inquieta. Virava-se de um lado para outro na cama contando carneirinhos e empregando outros métodos famosos para invocar o sono. Tudo em vão.

      Às oito da noite quando Shaista ainda não voltara e continuavam sem notícias dela, a Srta. Chadwick, tomando o problema em suas mãos, telefonou para o Inspetor Kelsey. Ficou aliviada em ver que ele não levara o caso muito a sério. Ela podia deixar tudo por conta dele, garantiu. Seria fácil verificar um possível acidente. Depois disto, ele se comunicaria com Londres. Seria feito tudo que fosse necessário. Talvez a própria garota estivesse se divertindo. Aconselhou a Srta. Chadwick a comentar o menos possível a respeito do assunto. Deixasse que pensassem que Shaista havia passado a noite com seu tio em Claridge.

      — A última coisa que a senhora ou a Srta. Bulstrode desejariam seria mais publicidade — afirmou Kelsey. — É muito pouco provável que a garota tenha sido raptada. Sendo assim, não se preocupe, Srta. Chadwick. Deixe tudo por nossa conta.

      Mas a Srta. Chadwick estava preocupada.

      Deitada na cama, insone, sua mente ia de possível rapto até assassinato.

      Assassinato em Meadowbank. Era terrível. Inacreditável. Meadowbank. A Srta. Chadwick amava Meadowbank. Talvez o amasse mais até do que a própria Bulstrode, embora de um modo um tanto diferente. Fora um empreendimento tão arriscado e corajoso. Acompanhando fielmente a Srta. Bulstrode nesta perigosa empreitada, mais de uma vez suportara o pânico, supondo que tudo falhasse. Na verdade, não havia começado com um capital muito grande. E se não tivessem sucesso... se o empréstimo fosse retirado... A Srta. Chadwick possuía a mente ansiosa e sempre conseguia arranjar inúmeros motivos. A Srta. Bulstrode havia sentido prazer na aventura, no perigo de tudo aquilo, mas Chaddy não. Algumas vezes, num momento de angústia, ela rogara para que Meadowbank fosse dirigido dentro de uma linha mais convencional. Seria mais seguro, insistia. Porém a Srta. Bulstrode não se interessava por segurança. Possuía sua própria visão do que um Colégio deveria ser e seguia esta linha sem medo. E havia sido premiada por sua audácia. Mas oh, que alívio para Chaddy quando o sucesso se tornou um fato concreto! Quando, finalmente, Meadowbank ficara organizado, estabelecido com segurança, como uma grande instituição inglesa. Fora então que seu amor por Meadowbank fluiu mais fortemente. Dúvidas, medos, ansiedades, tudo isto desaparecera. Paz e prosperidade haviam chegado. Ela se aninhou como um gatinho, na segurança de Meadowbank.

      Ficara bastante perturbada quando a Srta. Bulstrode começou a falar em se aposentar. Aposentar-se agora... quando estava tudo organizado! Que loucura!

      Bulstrode falara em viajar e a respeito de tudo que havia no mundo para ser visto. Chaddy não se impressionava com isso. Nada, lugar nenhum, poderia ser, nem de longe, tão bom quanto Meadowbank. Sempre tivera a impressão de que nada seria capaz de afetar o bem-estar de Meadowbank. Entretanto, agora... Assassinato!

      Uma palavra tão feia e violenta... vinda do mundo lá fora como uma tempestade descontrolada.

      Assassinato... uma palavra associada pela Srta. Chadwick apenas a garotos delinqüentes armados de canivetes, ou a médicos perversos envenenando suas esposas. Mas assassinato ali... num colégio... e não num colégio qualquer... em Meadowbank. Era incrível.

      A Srta. Springer... a pobre Srta. Springer, naturalmente não fora sua culpa, porém, irracionalmente, Chaddy sentia que, de alguma forma, deveria ter sido por alguma falha de sua parte. Ela não conhecia as tradições de Meadowbank. Era uma mulher sem tato. Deveria, de algum modo, ter provocado o assassinato. A Srta. Chadwick rolou na cama, virou o travesseiro, disse: — Devo parar de pensar nisto tudo. Talvez seja melhor eu me levantar e tomar uma aspirina. Vou tentar contar até cinqüenta...

      Antes de chegar aos cinqüenta, sua mente, mais uma vez, voltara ao mesmo caminho. Preocupações. Será que tudo isso... e talvez também o rapto... acabaria nos jornais? Será que os pais, ao lerem, se apressariam em tirar suas filhas do colégio...

      Oh, Deus, era preciso se acalmar e dormir. Que horas seriam? Acendeu a luz e olhou o relógio... quinze para uma! Fora por volta desta hora que a Srta. Springer... Não, ela não iria pensar mais naquilo. E que besteira da Srta. Springer ir ao Pavilhão de Esportes daquele jeito, sozinha, sem chamar ninguém!

      — Oh, nossa! — disse a Srta. Chadwick. — Preciso tomar uma aspirina.

      Levantou-se e foi até o armário do banheiro. Com um gole d’água tomou duas aspirinas. Na volta, afastou a cortina da janela e olhou para fora. Fez isto mais para se tranqüilizar do que por qualquer outro motivo. Queria estar segura de que nunca mais haveria luz no Pavilhão de Esportes no meio da noite.

      Mas havia.

      Num minuto, Chaddy entrou em ação. Enfiou os pés num sapato, apanhou um casaco pesado, pegou sua lanterna, saiu do quarto apressada e desceu as escadas. Condenara a Srta. Springer por não ter procurado ajuda antes de sair para investigar, mas a ela também não ocorrera isto. Estava apenas ansiosa para ir ao Pavilhão descobrir quem era o intruso. Mas, na verdade, parou para apanhar uma arma... talvez não muito adequada e, em seguida, passou pela porta lateral e percorreu apressada o caminho através dos arbustos. Estava sem fôlego, entretanto, completamente decidida. Somente quando afinal chegou à porta, ela reduziu o passo e tomou cuidado para mover-se sem fazer barulho. A porta estava ligeiramente aberta. Empurrou-a mais ainda e olhou para dentro.

     

      Mais ou menos na hora em que a Srta. Chadwick se levantara da cama à procura de aspirina, Ann Shapland, muito atraente, num vestido preto, estava sentada numa mesa no Le Nid Sauvage comendo supréme de galinha e sorrindo para o jovem à sua frente. Querido Dennis, pensou Ann consigo mesma, sempre tão exatamente igual. É isto que eu simplesmente não conseguiria suportar se me casasse com ele. Mesmo assim, ele é um amor. Em voz alta, comentou: — Como isto aqui é divertido, Dennis. É uma mudança gloriosa.

      — Que tal o novo emprego? — perguntou Dennis.

      — Bem, na realidade, até que estou gostando.

      — Não me parece bem o seu gênero de trabalho.

      Ann riu. — Seria difícil definir o que faz meu gênero. Gosto de variedade, Dennis.

      — Jamais consegui entender por que você desistiu do seu trabalho com o velho Sir Mervyn Todhunter.

      — Bem, a causa principal foi o próprio Sir Mervyn Todhunter. A atenção que ele me dispensava estava começando a aborrecer sua mulher. E faz parte da minha política nunca criar casos com esposas. Elas são capazes de fazer muito mal, sabia?

      — São umas gatas ciumentas — disse Dennis.

      — Oh, não, não é bem assim — falou Ann. — Eu estou do lado delas. De qualquer maneira, eu gostava muito mais de Lady Todhunter do que do velho Mervyn. Por que está tão surpreso com o meu emprego atual?

      — Oh, um colégio. Eu diria que você não tem mentalidade acadêmica.

      — Eu detestaria ensinar num colégio Detestaria ficar confinada. Agrupada com um bando de mulheres. Mas o trabalho de secretária num colégio como Meadowbank é bem divertido. É um local realmente ímpar, sabia? E a Srta. Bulstrode é uma mulher rara. É mesmo extraordinária, posso-lhe garantir. Seus olhos cinza atravessam a pessoa e ela consegue enxergar até os segredos mais íntimos. E mantém os outros sempre em alerta. Odiaria cometer um erro numa carta que ela me ditasse. Oh, sim, ela é realmente alguém!

      — Gostaria que você se cansasse de todos estes empregos — disse Dennis. — Sabe, Ann, já é tempo de você parar com esta troca-troca de emprego e se acomodar.

      — Você é um amor, Dennis — disse Ann de uma maneira não comprometedora.

      — Poderíamos divertir-nos muito — comentou Dennis.

      — Acredito — concordou Ann. — Mas ainda não estou preparada. E, de qualquer modo, você sabe, tenho minha mãe.

      — Sim, ia mesmo falar com você a esse respeito.

      — A respeito de minha mãe? O que ia dizer?

      — Bem, Ann, você não ignora o quanto eu a acho maravilhosa. A maneira como você consegue um trabalho interessante e depois larga tudo e volta para casa a fim de cuidar de sua mãe...

      — Sim, vez ou outra, é preciso. Quando ela tem um ataque mais sério.

      — Eu sei. Como disse, acho isto formidável da sua parte. Mas mesmo assim, você sabe que hoje em dia existem lugares, lugares bons onde... onde pessoas como a sua mãe podem receber boa assistência e tudo o mais. Não se trata de uma prisão para lunáticos.

      — E que custam uma fortuna — disse Ann.

      — Não, não necessariamente. Ora, até mesmo no Programa de Saúde...

      Um tom amargo surgiu na voz de Ann. Sim, lamento dizer que um dia terei que chegar a este ponto. Mas por enquanto tenho uma velhinha muito boa que mora com mamãe e as duas se dão muito bem. A maior parte do tempo mamãe é bastante racional. No momento em que deixa de ser, volto e presto ajuda.

      — Ela... ela não... ela nunca se torna...

      — Não ia dizer violenta, Dennis? Você possui uma imaginação extremamente lúgubre. Não, minha mãe nunca fica violenta. Fica apenas atordoada. Esquece onde está e quem é, e quer dar longas caminhadas. Às vezes, ela de repente apanha um trem ou um ônibus e vai para algum lugar e... bem, é tudo muito difícil, entende? Certas ocasiões é demais para uma única pessoa enfrentar. Entretanto, é bastante feliz, mesmo quando está atordoada. E tem horas que chega a ser bastante engraçada. Lembro-me de ela ter dito certa vez: — Ann querida, é realmente muito embaraçoso. Eu sabia que ia para o Tibete e lá estava eu sentada naquele hotel em Dôver, sem a menor idéia de como chegara lá. Então pensei, por que motivo eu estava indo para o Tibete? Acho melhor voltar para casa. E aí não consegui me lembrar há quanto tempo eu saíra de casa. É muito constrangedor, querida, quando não se consegue lembrar direito das coisas. — Sabe, mamãe foi mesmo muito engraçada a respeito de tudo aquilo. O que eu quero dizer é que ela própria enxerga o lado cômico da situação.

      — Na realidade, nunca cheguei a conhecê-la — comentou Dennis.

      — Não encorajo as pessoas a fazê-lo — explicou Ann. Isto é uma coisa que acho que se pode fazer pelos seus. Protegê-los da... bem, curiosidade e da piedade.

      — Não se trata de curiosidade, Ann.

      — Não, creio que no seu caso não seria. Mesmo assim, seria piedade. E não desejo isto.

      — Compreendo o que quer dizer.

      — Porém, se você não pensa que eu me importo de ter que, de tempos em tempos, largar meus empregos e ir para casa por um período indefinido, está enganado — comentou Ann. — Jamais pretendi me envolver profundamente em nada. Nem mesmo quando obtive minha primeira colocação, após ter terminado o curso de secretariado. Achei que o negócio era me tornar o mais eficiente possível no meu trabalho. Então, se a pessoa é realmente boa no que faz, pode escolher qualquer posto. Tem a oportunidade de conhecer lugares diferentes e de ver diferentes estilos de vida. No momento, estou conhecendo a vida de um colégio. O melhor colégio visto de dentro! Acho que ficarei lá cerca de um ano e meio.

      — Você jamais se prenderá a nada, não é, Ann?

      — Não — respondeu ela pensativa. — Acho que não. Creio que sou uma observadora nata. Mais como um comentarista de rádio.

      — Você é tão dispersiva — observou Dennis tristemente. — Na verdade, não liga para nada nem para ninguém.

      — Pode ser que algum dia eu mude — encorajou Ann.

      — Compreendo mais ou menos como você pensa e sente.

      — Duvido — disse Ann.

      — De qualquer modo, não creio que fique naquele colégio um ano. Vai se sentir entediada com todas aquelas mulheres — opinou Dennis.

      — Tem um jardineiro muito bonitão — disse Ann. Riu ao ver a expressão de Dennis. Anime-se, estou apenas querendo lhe fazer ciúmes.

      — Que história é esta sobre uma professora ter sido assassinada?

      — Oh, aquilo... — O rosto de Ann tornou-se sério e preocupado.

      — É tudo muito estranho. Muito estranho mesmo. Foi a professora de Ginástica. Você conhece bem o tipo. Acho que há muito mais por trás disto do que se pensa.

      — Não se vá envolver em nada desagradável.

      — Isto é fácil de se dizer. Nunca tive a oportunidade de mostrar o meu talento de detetive. Acho que me sairia muito bem se tentasse.

      — Ora, Ann.

      — Querido, eu não vou sair por aí perseguindo assassinos perigosos. Vou apenas... bem, tirar algumas conclusões lógicas. Por quê? Quem? E para quê? Este tipo de coisa. Descobri algo muito interessante.

      — Ann.

      — Não fique angustiado. Apenas não parece ter ligação com nada — disse Ann pensativa. — Até um determinado ponto tudo se encaixa com perfeição. E então, subitamente, não mais. — Ela acrescentou animada: — Talvez haja um segundo assassinato e isto tornará as coisas um pouco mais claras.

     

      Foi neste exato momento que Srta. Chadwick empurrou a porta do Pavilhão de Esportes.

     

O CRIME SE REPETE

— VENHA — chamou o Inspetor Kelsey, ao entrar na sala com o rosto sério. — Aconteceu outro.

      — Outro o quê? — Adam encarou-o firmemente.

      — Outro assassinato — disse o Inspetor Kelsey.

      Encaminhou-se para fora da sala e Adam o seguiu. Tinha estado bebendo cerveja e discutindo várias probabilidades, quando Kelsey fora chamado ao telefone.

      — Quem foi desta vez? — indagou Adam, enquanto seguia o Inspetor Kelsey escada abaixo.

      — Outra professora... Srta. Vansittart.

      — Onde?

      — No Pavilhão de Esportes.

      — De novo no Pavilhão de Esportes? — disse Adam. — O que há com este lugar?

      — É melhor você revistá-lo desta vez — disse o Inspetor Kelsey. — Quem sabe a sua técnica de busca tenha maior sucesso do que a nossa. Tem que haver alguma coisa naquele Pavilhão, caso contrário, como explicar o fato de os dois assassinatos terem ocorrido lá?

      Entraram no carro. Acredito que o médico chegará antes de nós. Fica mais perto para ele.

      Era como se um pesadelo se repetisse, pensou Kelsey, ao entrar no Pavilhão de Esportes, fortemente iluminado. Ali, mais uma vez, havia um corpo no chão com o médico ajoelhado a seu lado. Mais uma vez o médico se levantou.

      — Foi morta cerca de meia hora atrás — informou. — Quarenta minutos no máximo.

      — Quem a encontrou? — perguntou Kelsey.

      Um dos homens falou: — A Srta. Chadwick.

      — É aquela mais velha, não é?

      — Sim. Ela viu uma luz, veio até aqui e encontrou o corpo. Arrastou-se de volta ao prédio do colégio e depois entrou numa crise nervosa. Foi a supervisora quem telefonou, a Srta. Johnson.

      — Certo — disse Kelsey. — De que modo ela foi assassinada? Outra vez com um tiro?

      O médico balançou a cabeça. — Não. Agora foi com um golpe na nuca. Pode ter sido com um cacetete ou com um saco de areia. Algo deste gênero.

      Um taco de golfe com a cabeça de ferro estava caído perto da porta. Era a única coisa que, naquele local, parecia estar fora do lugar.

      Kelsey apontou naquela direção e perguntou: — Ela não poderia ter sido atingida por aquilo?

      O médico balançou a cabeça. — Impossível. Não há marcas no taco. Não; foi seguramente um cacetete de borracha, ou um saco de areia.

      — Foi algo... profissional?

      — Provavelmente, sim. Fosse quem fosse, desta vez, não pretendia fazer barulho. Chegou por trás da vítima e golpeou-a na nuca. Ela caiu para a frente e possivelmente jamais chegou a saber o que a atingira.

      — O que estava fazendo quando foi golpeada?

      — É provável que estivesse ajoelhada — respondeu o médico. — Ajoelhada em frente a este armário.

      O inspetor foi até o armário e deu uma olhada. — Suponho que este seja o nome da garota — disse ele. — Shaista... deixe ver, esta é... esta é a garota egípcia, não é? Sua Alteza, a Princesa Shaista. — Virou-se para Adam. — Parece fazer sentido. Espere um momento, não é esta a jovem que foi dada como desaparecida?

      — Exato — confirmou o sargento. — Um carro, que supunham ter sido enviado pelo seu tio que está em Londres, veio buscá-la. Ela entrou nele e partiram.

      — Nenhuma notícia ainda?

      — Ainda não, senhor. Esquadrões de busca estão em ação. E a Scotland Yard já entrou no circuito.

      — É uma maneira simples e prática de se raptar alguém — disse Adam. — Nenhuma luta, nenhum grito. Tudo o necessário é saber-se que a garota está aguardando um carro que virá buscá-la e o que se tem a fazer é apenas assumir a aparência de um motorista de alta classe e chegar antes do outro carro. A jovem entra sem pensar duas vezes e você pode partir tranqüilamente sem que ela tenha a menor suspeita do que está acontecendo.

      — Encontraram algum carro? — perguntou Kelsey.

      — Não tivemos notícia de nenhum — respondeu o sargento . — Como eu disse, a Yard agora está trabalhando no caso. E também o Setor Especializado.

      — Não acredito, nem por um minuto, que consigam tirá-la do país.

      — Por que motivo terá sido raptada? — perguntou o médico .

      — Só Deus sabe — falou Kelsey desanimado. — Ela me disse que estava com medo de ser raptada e... envergonho-me de confessar que pensei que estivesse apenas querendo se exibir.

      — Foi o que eu também imaginei, quando o senhor me falou no assunto. — comentou Adam.

      — O problema é que não sabemos o suficiente — observou Kelsey. — Há muitos pontos que não se encaixam. — Olhou em volta. — Bem, parece que não há mais nada a fazer aqui. Continuem com o trabalho de rotina, fotografias, impressões digitais, etc. É melhor ir até o prédio do colégio.

      Lá, foi recebido pela Srta. Johnson que estava tremendo, embora conservasse o autocontrole.

      — É terrível, inspetor — disse ela. Duas de nossas professoras assassinadas! A pobre Srta. Chadwick encontra-se num estado lastimável.

      — Gostaria de vê-la assim que for possível.

      — O médico deu-lhe um remédio e ela agora está bem mais calma. Quer que eu o leve até ela?

      — Sim, daqui a um minuto. Primeiro, fale-me da última vez que a senhora viu a Srta. Vansittart.

      — Não cheguei a vê-la hoje. Estive fora o dia todo. Voltei um pouco antes das onze horas e fui direto para o meu quarto. Fui para a cama.

      — A senhora, por acaso, não olhou pela sua janela para o Pavilhão de Esportes?

      — Não, não, nem pensei nisto. Tinha passado o dia com minha irmã a quem não via a algum tempo e minha cabeça estava repleta de novidades de casa. Tomei um banho, fui para a cama, li um livro, apaguei a luz e peguei no sono. A lembrança mais próxima que tenho é a Srta. Chadwick entrando no quarto feito um raio, branca como um fantasma e tremendo toda.

      — A Srta. Vansittart esteve ausente hoje?

      — Não, ela ficou aqui. Havia ficado responsável pelo colégio. A Srta. Bulstrode estava fora.

      — Quem mais estava aqui, quero dizer, das professoras?

      A Srta. Johnson pensou por um momento. — A Srta. Vansittart, a Srta. Chadwick, a professora de Francês, Mademoiselle Blanche, e a Srta. Rowan.

      — Entendo. Bem, agora, acho melhor a senhora levar-me até a Srta. Chadwick.

      A Srta. Chadwich estava em seu quarto, sentada numa cadeira. Embora fosse uma noite quente, o aquecedor estava ligado e um cobertor cobria seus joelhos. Seu rosto pálido virou-se para o Inspetor Kelsey.

      — Ela está morta... está morta? Não há possibilidade de que... de que ela se recupere?

      Kelsey balançou a cabeça lentamente.

      — É horrível! — disse a Srta. Chadwick. — Com a Srta. Bulstrode ausente! — Ela caiu em pranto. — Isto arruinará o colégio. Não posso suportar!... realmente não posso suportar.

      Kelsey sentou-se ao seu lado. — Eu sei — disse ele solidário. — Eu entendo. Foi um choque tremendo para a senhora, mas quero que seja corajosa, Srta. Chadwick e me conte tudo que sabe. Quanto mais cedo pudermos descobrir quem é o culpado, menos complicações e publicidade teremos.

      — Sim, sim, eu compreendo. O senhor sabe, eu... fui cedo para a cama porque achei que, para variar, seria bom ter uma longa noite de sono. Entretanto, não conseguia dormir. Estava preocupada.

      — Preocupada com o colégio?

      — Sim. E com o fato de Shaista estar desaparecida. E em seguida comecei a pensar a respeito a Srta. Springer e se... se seu assassinato poderia afetar os pais e se por causa disto não mandassem suas filhas de volta no próximo semestre... Estava terrivelmente preocupada com a Srta. Bulstrode. Quero dizer, ela fez este lugar. Foi uma realização magnífica.

      — Entendo. Agora, continue falando. A senhora estava preocupada e não conseguia dormir.

      — Não. Contei carneirinhos e tudo o mais. — Então, levantei-me e tomei umas aspirinas. Em seguida puxei as cortinas. Não sei porque. Acho que foi pelo fato de ter estado pensando na Srta. Springer. Então, vi... vi uma luz no Pavilhão

      — Que tipo de luz?

      — Bem, uma luz que se movia. Quero dizer, acho que devia ser uma lanterna. Era igualzinha à luz que a Srta. Johnson e eu tínhamos visto anteriormente.

      — Era exatamente igual?

      — Sim, sim, acho que sim. Talvez um pouco mais fraca, não sei bem.

      — Sim. Continue.

      — E então — disse a Srta. Chadwick, sua voz tornando-se de repente mais ressonante — resolvi que desta vez eu iria descobrir quem estava lá e o que fazia. E aí vesti um casaco, calcei uns sapatos e saí apressada.

      — Não pensou em chamar mais ninguém?

      — Não, não pensei. Estava com muita pressa para chegar lá. Receava que a pessoa... seja lá quem fosse... fugisse.

      — Sim. Prossiga, Srta. Chadwick.

      — Então fui o mais depressa que pude. Aproximei-me da porta. Pouco antes de chegar, andei nas pontas dos pés para que... para que eu pudesse me aproximar sem ser percebida. Cheguei lá. A porta não estava trancada... apenas encostada e eu empurrei-a ligeiramente. Olhei e... e lá estava ela. Caída de bruços, morta!...

      Começou a tremer toda.

      — Sim, sim, Srta. Chadwick, está bem. A propósito, havia um taco de golfe no chão. Foi a senhora quem o levou? Ou foi a Srta. Vansittart?

      — Um taco de golfe? Não me lembro. Oh, sim, acho que o apanhei no hall. Leveio-o comigo no caso de... bem, no caso de ter que usá-lo. Quando vi Eleanor acho que simplesmente deixei-o cair. Então, não sei como, voltei para casa e procurei a Srta. Johnson. Oh! Eu não posso suportar! Não posso... isto será o fim de Meadowbank!

      A voz da Srta. Chadwick elevou-se histérica. A Srta. Johnson aproximou-se.

      — Descobrir dois assassinatos é demais para qualquer pessoa — afirmou a Srta. Johnson. — Principalmente para alguém na idade dela. — O senhor não vai querer lhe fazer mais nenhuma pergunta, vai?

      O Inspetor Kelsey balançou a cabeça.

      Descendo as escadas, notou, num depósito, uma pilha de antigos sacos de areia e baldes. Ainda da época da guerra. Um pensamento inquietante ocorreu-lhe. O de que não precisaria, forçosamente, ter sido um profissional com um cacetete quem golpeara a Srta. Vansittart. Alguém do colégio, alguém que não queria arriscar-se com o barulho de um tiro pela segunda vez, e que, muito provavelmente, depois do primeiro assassinato, se desfizera do revólver incriminador, poderia ter se servido de uma arma de aparência inocente, mas mortal... e, possivelmente, até mesmo recolocando-a depois no lugar.

 

O MISTÉRIO DO PAVILHÃO DE ESPORTES

— MINHA CABEÇA ESTÁ FERIDA, mas não se curva — disse Adam para si mesmo.

      Ele olhava para a Srta. Bulstrode. Jamais admirara tanto uma mulher.

      De tempos em tempos, o telefone chamava anunciando que mais uma aluna iria ser afastada do colégio.

      A Srta. Bulstrode finalmente tomara uma decisão. Desculpando-se com os policiais, convocou Ann Shapland e ditou um breve comunicado. O colégio ficaria fechado até o final do semestre. Os pais que achassem inconveniente ter suas filhas em casa, poderiam, se assim o desejassem, deixá-las sob seus cuidados e sua educação teria prosseguimento.

      — Sim, Srta. Bulstrode.

      — Então comece pelo telefone. Depois providencie para que a nota datilografada seja enviada a todos.

      — Pois não, Srta. Bulstrode.

      Ao sair, Ann Shapland parou perto da porta.

      Enrubesceu e as palavras saíram atropeladas.

      — Desculpe-me, Srta. Bulstrode. Não tenho nada a ver com isto, entretanto a senhora não acha uma pena ser tão... tão precipitada? Quero dizer... depois de passado o primeiro pânico, quando as pessoas tiverem tempo para pensar, certamente não irão querer retirar as garotas do colégio. Serão sensatos e raciocinarão melhor.

      A Srta. Bulstrode encarou-a fixamente.

      — Acha que estou aceitando a derrota com muita facilidade?

      Ann corou.

      — Sei que a senhora considera audácia de minha parte. Mas... mas, bem, sim, eu acho.

      — Fico satisfeita em ver que você é uma lutadora, minha filha. Entretanto, está muito enganada, Não estou aceitando a derrota e sim empregando meu conhecimento da natureza humana. Impelindo as pessoas a retirarem suas filhas, forçando-as a isto, eles não terão tanta pressa em fazê-lo. Pensarão em motivos para deixá-las ficar. Na pior das hipóteses, decidirão deixá-las voltar no próximo semestre... se houver um próximo semestre — acrescentou ela, séria.

      Olhou para o Inspetor Kelsey.

      — Isto depende do senhor — disse ela. — Esclareça estes assassinatos, prenda o responsável e tudo ficará bem.

      O Inspetor Kelsey parecia infeliz. Falou: — Estamos fazendo o melhor que podemos.

      Ann Shapland retirou-se.

      — É uma moça competente — observou a Srta. Bulstrode. — E leal.

      Isto foi apenas um parêntese. Ela pressionou seu ataque.

      — O senhor não tem a menor idéia de quem pode ter matado minhas duas professoras. A esta altura, o senhor já deveria saber de alguma coisa. E agora, ainda por cima, este rapto. Neste ponto eu me culpo. A garota me falou sobre alguém querendo raptá-la. Imaginei, que Deus me perdoe, que estivesse querendo se fazer de importante. Vejo agora que havia alguma coisa por trás daquilo. Alguém deve ter feito alguma insinuação, ou tê-la prevenido de alguma coisa... não sei qual dos dois... — Ela parou e resumindo: — O senhor não tem nenhuma notícia ?

      — Ainda não. Mas quanto a isso, acho que a senhora não deve se preocupar tanto. O caso foi transferido para o Departamento de Investigações Especiais. Ela deve ser encontrada em vinte e quatro horas, trinta e seis, no máximo. Há vantagens em este país ser uma ilha. Todos os portos, aeroportos, etc., estão em alerta. E a polícia em cada distrito está vigilante. É bastante fácil raptar alguém... manter escondido é que é o problema. Oh, nós a encontraremos!

      — Espero que a encontrem viva — disse a Srta. Bulstrode. séria. — Parece que estamos lidando com uma pessoa que não tem o menor escrúpulo com a vida humana.

      — Não se teriam dado ao trabalho de raptá-la se pretendessem dar cabo dela — observou Adam. — Poderiam ter feito isto aqui mesmo com bastante facilidade.

      Ele percebeu que as suas últimas palavras haviam sido desastrosas. A Srta. Bulstrode lançou-lhe um olhar.

      — É o que parece — disse ela secamente.

      — O telefone tocou. A Srta. Bulstrode atendeu.

      — Sim?

      Ela fez um sinal para o Inspetor Kelsey.

      — É para o senhor.

      Adam e a Srta. Bulstrode observaram-no enquanto recebia a chamada. Ele resmungava, anotava uma ou outra palavra, dizendo finalmente: — Entendo. Alderton Priors. Isto é em Wallshire. Sim, vamos cooperar. Sim, então nós continuaremos daqui para a frente.

      Recolocou o fone no gancho e ficou um momento perdido em seus pensamentos. Em seguida, levantou os olhos.

      — Esta manhã, Sua Alteza recebeu uma nota de resgate. Batido a máquina numa Nova Corona. Posta no correio de Portsmouth. Aposta que é para despistar.

      — Quando e como? perguntou Adam.

      — Num cruzamento a duas milhas ao norte de Alderton Priors. Fica em Wallshire. É um lugar meio deserto. O envelope contendo o dinheiro deverá ser colocado sob uma pedra junto à caixa de correio marcada com as letras A A, amanhã às duas horas da madrugada.

      — Quanto pediram?

      — Vinte mil libras. — Ele balançou a cabeça. — Parece-me amadorismo.

      — O que o senhor vai fazer? — perguntou a Srta. Bulstrode.

      O Inspetor Kelsey olhou para ela. Ele parecia um outro homem. A discrição oficial tomara conta dele.

      — A responsabilidade não é minha, Madame — disse ele. — Temos nossos métodos.

      — Espero que eles alcancem sucesso — disse a Srta. Bulstrode.

      — Deverá ser fácil — falou Adam.

      — Amadorismo? — disse a Srta. Bulstrode, prendendo-se à palavra que eles haviam usado. — Eu fico pensando...

      Então ela falou com firmeza: — E quanto à minha equipe? Em que ficamos? Devo confiar nela ou não?

      Como o Inspetor Kelsey hesitasse, ela disse: O senhor receia que me dizendo quem não está livre de suspeitas, eu demonstraria isto na minha maneira de tratar as pessoas. O senhor está enganado. Eu não faria tal coisa.

      — Não creio que a senhora o fizesse — disse Kelsey. — Mas não posso me arriscar. Não parece, visto por alto, que a pessoa que procuramos seja alguém daqui de dentro. Isto é, baseado no que pudemos descobrir a respeito de cada um. Demos especial atenção àquelas que são novatas neste semestre: Mademoiselle Blanche, a Srta. Springer e a sua secretária, a Srta. Shapland. O passado da Srta. Shapland é completamente limpo. É filha de um general reformado. Ela realmente ocupou os cargos que declarou ter ocupado e os seus antigos patrões atestam por ela. Além disto, tem um álibi para ontem à noite. Na hora em que a Srta. Vansittart foi assassinada, a Srta. Chapland estava com o Sr. Dennis Rathbone numa boate. Ambos são muito conhecidos no local e o Sr. Rathbone é tido como excelente caráter. Os antecedentes de Mademoiselle Blanche também foram verificados. Lecionou num colégio no norte da Inglaterra e em dois colégios na Alemanha e foi dada como ótimo caráter. É tida como uma professora de primeira classe.

      — Não de acordo com os nossos padrões — disse a Srta. Bulstrode torcendo o nariz.

      — Seu passado na França também foi verificado. Quanto à Srta. Springer, as coisas já não são tão conclusivas. Estudou mesmo onde disse ter estudado. Porém, em relação ao tempo em que trabalhou, existem lacunas que não estão plenamente esclarecidas.

      — Contudo, já que ela foi assassinada — acrescentou o inspetor — isto parece eximi-la.

      — Concordo — disse a Srta. Bulstrode secamente — que tanto a Srta. Springer quanto a Srta. Vansittart são hors de combat como suspeitas. Vamos falar com lógica. Apesar de seu passado impecável, Mademoiselle Blanche é considerada suspeita meramente porque ainda está viva, é isto?

      — Ela poderia ter cometido os dois assassinatos. Estava no colégio ontem à noite — observou Kelsey. — Declarou ter ido cedo para a cama e não ter ouvido nada até que o alarma foi dado. Não há evidência do contrário. Nada temos contra ela. Entretanto, a Srta. Chadwick garante que ela é dissimulada.

      A Srta. Bulstrode teve um gesto de impaciência.

      — A Srta. Chadwick sempre acha as professoras de Francês dissimuladas. Tem implicação com elas. — Olhou para Adam. — E você o que acha?

      — Acho que ela fica à espreita — respondeu Adam com vagar. — Pode ser apenas uma curiosidade natural. Pode ser algo mais. Não consigo me decidir. Não me parece uma assassina, mas como é que se pode saber?

      — É justamente isto — disse Kelsey. — Há um assassino aqui, um assassino impiedoso que já matou duas vezes... porém é muito difícil de se acreditar que seja alguém de sua equipe. A Srta. Johnson estava com sua irmã ontem à noite em Lineston e, de qualquer modo, ela trabalha com a senhora há sete anos. A Srta. Chadwick está aqui desde que a senhora começou. De qualquer maneira, ambas estão fora de suspeita no caso da morte da Srta. Springer. A Srta. Rich trabalha com a senhora há mais de um ano e passou a noite no Hotel Alton Grange, a vinte milhas de distância daqui. A Srta. Blake encontrava-se com uns amigos em Littleport. A Srta. Rowan leciona neste colégio há um ano e tem um passado limpo. Quanto aos empregados, francamente não consigo imaginar nenhum deles como assassino. E além disso, são antigos moradores destas redondezas...

      A Srta. Bulstrode balançou a cabeça, satisfeita.

      — Concordo com o seu raciocínio. Não sobra muito, não é? Então... — Calou-se e fixou um olhar acusador em Adam. — Na realidade, parece que deve ter sido você.

      Ele abriu a boca, surpreso.

      — Estava no lugar ideal — observou ela. — Livre para ir e vir... Boa história para explicar sua presença aqui. Antecedentes insuspeitos. Entretanto, você poderia ser um traidor.

      Adam recobrou-se.

      — Realmente, Srta. Bulstrode — disse ele em tom de admiração. — Tiro-lhe o chapéu. A senhora pensa em tudo.

     

      — Minha nossa! — gritou a Sra. Sutcliffe à mesa do café; — Henry!

      Ela acabara de abrir o jornal. A amplidão da mesa estava entre ela e o marido, já que seu convidado de fim de semana ainda não havia se apresentado para a refeição.

      O Sr. Sutcliffe, que abrira seu jornal na página de assuntos financeiros e estava absorto na mudança imprevista de certas ações, não respondeu.

      — Henry!

      O grito estridente chegou até ele. Levantou o rosto, assustado.

      — O que houve, Joan?

      — O que houve? Outro assassinato. Em Meadowbank. No colégio de Jennifer.

      — O quê? Deixe-me ver.

      Não dando atenção ao comentário de sua mulher de que a notícia também deveria estar em seu jornal, o Sr. Sutcliffe debruçou-se sobre a mesa e arrancou o jornal de suas mãos.

      — Srta. Eleanor Vansittart... Pavilhão de Esportes... mesmo local onde a Srta. Springer, a professora de Ginástica... hum... hum...

      — Não consigo acreditar — lamuriava-se a Sra. Sutcliffe. Meadowbank! Um colégio tão exclusivo! Freqüentado pela realeza e tudo o mais...

      O Sr. Sutcliffe amassou o jornal e atirou-o sobre a mesa.

      — Só há uma coisa a ser feita — disse ele. — Você vai para lá imediatamente tirar Jennifer daquele colégio!

      — Você quer dizer, tirá-la de vez?

      — Sim, exatamente isto.

      — Não acha que seria uma atitude um pouco drástica demais? Depois de Rosamund ter sido tão boa e conseguido com que Jennifer fosse aceita?

      — Você não será a única a tirar a sua filha de lá. Breve haverá muitas vagas no seu precioso Meadowbank.

      — Oh, Henry, você acha?

      — Acho, sim. Há algo errado naquele colégio. Traga Jennifer hoje mesmo.

      — Sim, é claro... creio que você tem razão. O que faremos com ela?

      — Colocá-la-emos em algum ginásio moderno aqui por perto. Onde não acontecem assassinatos.

      — Oh, Henry, mas acontecem. Não está lembrado? Houve o caso de um garoto que atirou no professor de Ciências. Saiu a notícia no News of the World da semana passada.

      — Não sei onde a Inglaterra vai parar — comentou o Sr. Sutcliffe.

      Aborrecido, atirou o guardanapo na mesa e transpôs a sala a passos largos.

     

      Adam estava sozinho no Pavilhão de Esportes. Seus dedos ágeis remexiam o conteúdo dos armários. Era pouco provável que encontrasse algo onde a polícia havia falhado, mas afinal de contas nunca se podia ter certeza. Como Kelsey dissera, cada departamento tinha uma técnica diferente.

      O que poderia haver neste caro e moderno edifício para ligá-lo com mortes repentinas e violentas? A hipótese de um lugar para encontros, estava fora de cogitação. Ninguém marcaria um encontro pela segunda vez num local onde já acorrera um assassinato. Então, retornava-se à idéia de que ali havia algo que alguém estava procurando. Dificilmente seria um cofre de jóias. Esta possibilidade parecia estar excluída. Não poderia haver nenhum esconderijo secreto, gavetas falsas, etc. E o conteúdo dos armários era extremamente simples. Possuíam seus segredos, mas eram os segredos de uma vida escolar. Fotografias de artistas de cinema, pacotes de cigarro e, vez ou outra, um livro de bolso pouco recomendável. Retornou com especial atenção ao armário de Shaista. Fora quando ajoelhada diante dele, que a Srta. Vansittart havia sido assassinada. O que a Srta. Vansittart esperara encontrar ali? Teria ela encontrado? Teria o criminoso arrancado, seja lá o que fosse, da mão da morta, conseguido escapar do prédio por apenas uma fração de segundo antes de ser descoberto pela Srta. Chadwick?

      Neste caso, de nada adiantava procurar. O que quer que fosse, já não estava ali.

      O som de passos vindo do lado de fora despertou-o de seus pensamentos. Ele estava de pé, no meio da sala, acendendo um cigarro, quando Júlia Upjohn apareceu na porta, um pouco hesitante.

      — Deseja alguma coisa? — perguntou Adam.

      — Estava pensando se poderia pegar a minha raqueta de tênis?

      — Não vejo porque não — respondeu Adam. — O delegado mandou-me ficar aqui — mentiu ele. — Teve que dar um pulo na delegacia. Disse para eu permanecer aqui enquanto estivesse ausente.

      — Para ver se ele volta, suponho? — disse Júlia.

      — O delegado?

      — Não. Refiro-me ao assassino. Eles sempre voltam à cena do crime, não é mesmo? Têm que voltar. É uma espécie de compulsão.

      — Talvez você tenha razão — concordou Adam.

      Olhou para a série de raquetas alinhadas na prateleira. — Onde está a sua?

      — Debaixo do U — disse Júlia. — Lá no final. Temos nossos nomes gravados nelas — explicou, mostrando o adesivo quando ele lhe entregou a raqueta.

      — Parece um pouco gasta — observou ele. — Mas já deve ter sido uma boa raqueta.

      — Posso apanhar também a de Jennifer Sutcliffe? — indagou Júlia.

      — Esta é nova — disse Adam apreciando-a.

      — Novinha em folha — explicou Júlia. — Sua tia mandou para ela.

      — Garota de sorte!

      — Ela precisa ter uma boa raqueta. É ótima no tênis. Aprimorou a sua canhota de uma maneira incrível. Você não acha que ele vai voltar?

      Adam levou algum tempo para compreender.

      — Oh, o assassino? Não, não creio que seja provável. Seria um tanto arriscado, não?

      — Você não acha que os assassinos sentem esta necessidade?

      — Não, a não ser que eles tenham esquecido alguma coisa.

      — Quer dizer, alguma coisa que servisse como pista? Gostaria de encontrar uma. A polícia já encontrou alguma?

      — Eles não me contariam.

      — É, creio que não contariam. Você se interessa por crimes?

      Olhou para ele de modo inquisitivo. Ele retribuiu o olhar. Por enquanto, não havia nela nada de mulher. Deveria ter, mais ou menos, a mesma idade de Shaista, entretanto seus olhos não continham nada além de indagação.

      — Bem... creio que, até certo ponto, todos nós nos interessamos.

      Júlia balançou a cabeça em concordância.

      — Sim. Também acho. Posso pensar em todo tipo de solução, mas a maioria é absurda demais. Mas é divertido.

      — Você não gostava da Srta. Vansittart?

      — Nunca prestei muita atenção nela. Era legal. Um pouco parecida com a Bull... a Srta. Bulstrode... mas não realmente como ela. Mais como um substituto de ator numa peça de teatro. Não quero dizer que ache bom ela ter morrido. Lamento muito.

      Saiu carregando as duas raquetas.

      Adam permaneceu olhando em volta do Pavilhão.

      — Que diabo poderia ter estado escondido aqui? — matutou ele consigo mesmo.

     

      — Minha nossa! — exclamou Jennifer, permitindo que a bola atirada por Júlia passasse por ela — Lá está a mamãe!

      As duas garotas viraram-se para olhar a figura agitada da Sra. Sutcliffe que, acompanhada da Srta. Rich, aproximava-se a passos largos e gesticulando sem parar.

      — Mais confusão, aposto — disse Jennifer com resignação. — É por causa do assassinato. Você tem sorte, Júlia, de a sua mãe estar num ônibus em Anatólia.

      — Mas tem a tia Isabel.

      — As tias não se preocupam da mesma maneira.

      — Alô, mamãe — ela falou, quando a Sra. Sutcliffe se aproximou.

      — Venha arrumar as suas coisas, Jennifer. Vim para levá-la comigo.

      — Para casa?

      — Sim.

      — Mas... não quer dizer definitivamente. Não para sempre?

      — Sim. Definitivamente.

      — Mas você não pode fazer isto! Meu tênis tem progredido como nunca. Tenho uma boa chance de ganhar as individuais e talvez. Júlia e eu vençamos as duplas, embora eu não acredite muito.

      — Você vai voltar comigo para casa hoje mesmo.

      — Por quê?

      — Não faça perguntas.

      — Imagino que seja porque a Srta. Springer e a Srta. Vansittart foram assassinadas. Mas ninguém matou nenhuma das garotas. Tenho certeza que não iriam querer fazer isto. E o Dia dos Esportes é daqui a três semanas. Acho que vou vencer o salto em distância e lenho boas possibilidades na corrida de obstáculos.

      — Não discuta comigo, Jennifer. Já disse que você vai voltar para casa hoje. Seu pai faz questão.

      — Mas, mamãe...

      Ao lado de sua mãe e discutindo com persistência, Jennifer foi em direção ao prédio do colégio.

      De repente, soltou-se e voltou correndo para a quadra de tênis.

      — Adeus, Júlia. Parece que a mamãe está morrendo de medo. E o papai também. É de dar raiva, não é? Adeus, eu lhe escrevo.

      — Eu também, para lhe contar tudo o que acontecer por aqui.

      — Espero que não matem a Chaddy. Preferiria que fosse Mademoiselle Blanche, e você?

      — Eu também. É a que menos falta faria. Responda uma coisa, você reparou como a Srta. Rich estava com um ar hostil?

      — Ela não disse uma única palavra. Está furiosa por mamãe ter vindo me buscar.

      — Talvez consiga impedi-la. Tem muita força não acha? Não é uma pessoa comum.

      — Ela me lembra alguém comentou Jennifer.

      — Não acho que ela se pareça nem um pouco com qualquer outra pessoa. Ela me dá a impressão de ser bastante diferente.

      — Oh, sim. Ela é diferente. Quis me referir à aparência física. Porém, a pessoa que eu vi era bastante gorda.

      — Não consigo imaginar a Srta. Rich gorda.

      — Jennifer... — chamou a Srta. Sutcliffe.

      — Eu realmente acho os pais uma verdadeira canseira — disse Jennifer de mau-humor. — Sempre criando caso. Não sossegam nunca. Acho que você tem mesmo sorte da...

      — Eu sei. Você já falou isto antes. Deixe-me porém lhe dizer que, neste momento, gostaria que mamãe estivesse bem mais perto e não num ônibus em Anatólia.

      — Jennifer!...

      — Já vou...

      — Júlia caminhou vagarosamente em direção ao Pavilhão de Esportes. Seus passos tornaram-se cada vez mais lentos até que ela parou completamente. Ficou parada, com a expressão carregada, perdida em seus pensamentos.

      O sino para o almoço tocou, mas ela mal ouviu. Olhou para a raqueta que estava segurando, deu um ou dois passos e então, dando a volta, marchou em direção ao colégio. Entrou pela porta da frente, o que não era permitido, evitando assim de se encontrar com alguma colega. O hall estava vazio. Subiu as escadas correndo e entrou em seu pequeno quarto. Olhou em volta apressada e então levantou o colchão da cama, enfiando a raqueta por baixo dele. Em seguida, ajeitando ligeiramente o cabelo, desceu com um ar grave para a sala de jantar.

 

A CAVERNA DE ALADIM

NAQUELA NOITE, as garotas foram para a cama mais quietas do que de costume. Um dos motivos era que o número estava muito reduzido. Pelo menos trinta haviam ido para casa. As outras reagiam de acordo com os seus diversos estados de espírito. Excitação, medo, agitação, alguns risinhos de origem puramente nervosa, e havia também outras que estavam simplesmente quietas e pensativas.

      Júlia Upjohn subiu calada entre a primeira leva. Entrou em seu quarto e fechou a porta. Ficou parada ouvindo os cochichos, risadas, barulho de passos e boas-noites. Então o silêncio desceu sobre o colégio... ou um quase silêncio. Vozes abafadas ecoavam a distância e barulhos de passos de um lado para o outro em direção ao banheiro.

      Não havia tranca na porta. Júlia empurrou uma cadeira contra a porta, com a parte superior do encosto segurando a maçaneta por baixo. Isto lhe serviria de sinal, se alguém quisesse entrar. Mas não era provável que tal acontecesse. Era estritamente proibido às garotas irem ao quarto das outras e a única pessoa que o fazia era a Srta. Johnson, no caso de alguma das meninas estar doente ou sentindo-se mal.

      Júlia foi até à cama, levantou o colchão e apalpou. Retirou a raqueta de tênis e ficou parada por um instante segurando-a. Decidira examiná-la naquele momento mesmo e não mais tarde. Uma luz aparecendo sob a porta do quarto, quando todas as luzes deveriam estar apagadas, poderia atrair atenção. Àquela hora era normal a luz estar acesa, para se poder trocar de roupa, ou para se ler na cama até às dez e meia se assim se desejasse.

      Ficou parada olhando fixamente para a raqueta. Como poderia haver algo escondido numa raqueta de tênis?

      — Mas deve haver — disse Júlia para si mesma, — deve haver. O roubo na casa de Jennifer, a mulher aparecendo com aquela história tola a respeito de uma raqueta nova...

      Somente Jennifer seria capaz de acreditar naquilo, pensou Júlia com desdém.

      Não, eram lâmpadas novas por velhas, e isto significava, como na história de Aladim, que havia algo de especial naquela raqueta de tênis. Jennifer e Júlia nunca haviam mencionado a ninguém que haviam trocado de raquetas... ou, pelo menos, ela, Júlia, jamais mencionara.

      Então, na verdade, aquela era a raqueta que todos estavam procurando no Pavilhão de Esportes. E cabia a ela descobrir porque! Examinou-a cuidadosamente. Olhando-se para ela parecia não haver nada de estranho. Era uma raqueta de boa qualidade, embora incômoda de se usar, mas com cordas novas e em ótimo estado. Jennifer havia reclamado do equilíbrio.

      O único lugar onde seria possível se esconder alguma coisa numa raqueta de tênis era no cabo. Poder-se-ia, pensou ela, cavar o cabo para ali fazer um esconderijo. Parecia absurdo demais, entretanto era possível. Se o cabo tivesse sido alterado, provavelmente afetaria o equilíbrio da raqueta.

      Havia um pedaço de couro com umas letras gravadas nele que estavam quase apagadas. O couro era apenas colado. E se fosse retirado?

      Júlia sentou-se à mesa, começou a trabalhar com um canivete conseguindo remover o couro. Dentro, havia um disco de madeira fina. Não parecia perfeito. Havia marcas em toda volta. Júlia forçou com o canivete. A lâmina fechou. Tesouras seriam mais eficientes. Ela, finalmente, conseguiu removê-lo. Uma substância manchada de azul e vermelho apareceu. Júlia forçou mais um pouco e então descobriu algo. Massa de modelagem. Mas seria normal haver massa de modelagem dentro do cabo de uma raqueta de tênis? Segurou com firmeza a tesoura, e começou a tirar pedaços de massa. O material estava envolvendo alguma coisa. Algo que parecia com botões, ou pedras.

      Ela começou a trabalhar furiosamente.

      Alguma coisa rolou para cima da mesa... depois toais outra. Logo havia um pequeno monte.

      Júlia deu um passo para trás, boquiaberta.

      Ficou olhando, olhando e olhando...

      Um brilho intenso, vermelho, verde, azul profundo e um branco faiscante...

      Naquele instante, Júlia cresceu. Não era mais uma criança. Tornara-se uma mulher. Uma mulher olhando para jóias...

      Todo tipo de pensamentos fantásticos passaram como um raio pela sua cabeça. A caverna de Aladim... Marguerite e seu cofre de jóias... (na semana anterior, elas tinham ido ao Convent Garden assistir Fausto). Pedras fatais... o diamante Hope... Romance... ela própria num vestido de veludo preto, com um ofuscante colar em torno do pescoço...

      Sentou-se em êxtase e sonhou...

      Segurou as pedras entre seus dedos e deixou-as rolar como uma cascata de fogo, um córrego flamejante de deslumbramento e prazer.

      E então, alguma coisa, talvez um leve barulho, chamou-a de volta à realidade.

      Ficou pensando, tentando usar seu bom-senso, decidindo o que deveria fazer. Aquele ruído deixara-a alarmada.

      Recolheu as pedras, levou-as até o lavatório e enfiou-as num saco plástico, colocando por cima sua esponja de banho e a escova de unha. Então retornou à raqueta, forçou a massa de modelar para dentro, recolocou o tampo de madeira e tentou colar o couro por cima. Porém as bordas se levantaram, mas conseguiu resolver o problema colando adesivo em tiras finas e calcando o couro sobre elas.

      Estava feito. A raqueta estava com a mesma aparência e peso de antes. Então atirou-a displicentemente em cima de uma cadeira.

      Olhou para a cama, arrumada e à sua espera. Todavia, não se despiu. Ao invés disto, ficou sentada, atenta. Aquele ruído teria sido som de passos do lado de fora?

      De repente e inesperadamente, ela conheceu o medo. Duas pessoas haviam sido assassinadas. Se alguém soubesse o que ela encontrara, ela seria também assassinada.

      Havia, no quarto, uma cômoda de carvalho razoavelmente pesada. Conseguiu empurrá-la para a frente da porta, desejando que fosse costume de Meadowbank terem chaves nas fechaduras. Foi até à janela e verificou se estava trancada. Não havia por perto nenhuma árvore nem trepadeiras. Ela duvidava que fosse possível alguém entrar por ali mas não queria correr nenhum risco.

      Olhou seu pequeno relógio: dez e meia. Respirou fundo e apagou a luz. Ninguém deveria notar nada fora do comum. Puxou um pouco a cortina. Era noite de lua cheia e podia ver perfeitamente a porta. Sentou-se na beira da cama. Na sua mão estava o sapato mais pesado que possuía.

      — Se alguém tentar entrar — disse Júlia consigo mesma, — eu bato na parede o mais forte que puder. O quarto do lado era o de Mary King e o barulho a acordaria. E eu gritarei... com toda a força da minha voz. E então, se vier muita gente, direi que tive um pesadelo. Qualquer um pode ter um pesadelo depois de tudo que vem acontecendo por aqui.

      Permaneceu sentada e o tempo passou. Então ela ouviu... passos leves no corredor. Escutou quando pararam do lado de fora de sua porta. Depois de uma longa pausa viu a maçaneta girar lentamente.

      Deveria gritar? Ainda não.

      A porta foi empurrada... apenas uma fresta, mas a cômoda segurou. Aquilo deveria ter intrigado a pessoa do lado de fora.

      Outra pausa e então uma batida, uma batida bem suave, na porta.

      Júlia reteve a respiração. Nova pausa e nova batida... mas ainda abafada e suave.

      — Estou dormindo — disse Júlia para si mesma. — Não ouço nada.

      Quem viria bater na sua poria no meio da noite? Se fosse alguém com direito de fazê-lo, chamaria por seu nome, faria ruído com a maçaneta, faria barulho. Esta pessoa, entretanto, não podia se permitir fazer barulho...

      Júlia ficou sentada por muito tempo. A batida não foi repetida, a maçaneta permaneceu imóvel. Ela nunca soube quanto tempo se passou antes que o sono a dominasse. O sino do colégio finalmente a acordou, deitada na beira da cama, num monte amassado e desconfortável.

     

      Depois do café da manhã, as garotas costumavam subir e fazer suas camas e, em seguida, desciam para as orações no grande hall e, finalmente, dispersavam-se para as várias salas de aulas.

      Foi durante esta última prática, quando as meninas estavam andando apressadamente em diferentes direções, que Júlia entrou numa das classes, saiu por uma porta, juntou-se a um grupo apressado do lado de fora, embrenhou-se por entre os rododendros, fez mais uma série de movimentos estratégicos e finalmente chegou perto do muro do jardim, onde havia uma árvore cujos galhos grossos iam quase até o chão. Júlia subiu nela com facilidade. Durante toda sua vida subira em árvores. Completamente escondida por trás dos galhos, olhava de vez em quando o relógio. Estava bastante segura que, por algum tempo, sua falta não seria notada. As coisas andavam desorganizadas, faltavam duas professoras e mais da metade das alunas havia ido para casa. Isto significava que todas as classes teriam que ser reorganizadas. Sendo assim, era provável que ninguém percebesse a ausência de Júlia Upjohn até a hora do almoço, e até lá...

      Júlia tornou a olhar o relógio. Com facilidade, desceu da arvore para o muro e daí pulou para o outro lado. A uns cem metros havia uma parada onde um ônibus deveria chegar em poucos minutos. Veio pontualmente. Júlia fez sinal e embarcou. A esta altura já havia tirado um chapéu de feltro de dentro de seu vestido de algodão e colocado sobre seu cabelo ligeiramente desalinhado. Desceu na estação e tomou um trem para Londres

      Em seu quarto, apoiado sobre o lavatório, deixara um bilhete endereçado à Srta. Bulstrode.

      CARA SRTA. BULSTRODE:

      Não fui raptada e nem fugi, por isso não se preocupe. Volto assim que puder.

      JÚLIA UPJOHN

     

      Na Whitehouse Mansions, 228, George, o mordomo impecável de Hercule Poirot, abriu a porta e contemplou com alguma surpresa uma colegial com o rosto um tanto sujo.

      — Por favor, posso falar com o Sr. Hercule Poirot?

      George levou apenas uma fração de segundo a mais do que o usual para responder. Ele achou aquela presença inesperada.

      — O Sr. Poirot não recebe ninguém sem hora marcada — informou.

      — Receio que não tenha tempo para esperar por isso. Eu realmente preciso vê-lo agora. É muito urgente. É a respeito de uns assassinatos e um roubo, e coisas deste tipo.

      — Vou certificar-me se o Sr. Poirot poderá atendê-la.

      Deixou-a no hall e retirou-se para consultar seu patrão.

      — Está aí uma jovem que deseja vê-lo com urgência.

      — Ora vejam só! — disse Hercule Poirot. — Entretanto as coisas não se arranjam assim com tanta facilidade.

      — Foi isso que disse a ela, senhor.

      — Que tipo de jovem é?

      — Bem, senhor, é quase uma menina.

      — Uma menina, ou uma jovem? O que você quer dizer. George? Na realidade não é a mesma coisa.

      — Bem, ela é, digamos, uma menina... na idade escolar. Mas embora sua roupa esteja rasgada e suja é essencialmente uma pessoa educada. E deseja vê-lo para falar a respeito de roubos e assassinatos.

      Poirot levantou as sobrancelhas.

      — Assassinatos e roubos. É original. Faça a jovem entrar.

      Júlia entrou na sala com apenas um leve traço de hesitação. Falou educadamente e com bastante naturalidade.

      — Como vai, Sr. Poirot? Sou Júlia Upjohn. Acho que conhece uma grande amiga de minha mãe, Sra. Summerhayes. Passamos o último verão em sua casa e ela nos falou um bocado a seu respeito.

      — Sra. Summerhayes... — O pensamento de Poirot voltou-se para uma aldeia na encosta de um morro e para uma casa no topo deste. Recordou-se de um encantador rosto sardento, de um sofá de molas quebradas, de um grande número de cachorros e de outras coisas agradáveis e desagradáveis.

      — Maureen Summerhayes — disse ele. — Ah, sim.

      — Eu a chamo de tia Maureen, mas na verdade ela não é minha tia. Contou-nos como o senhor havia sido maravilhoso salvando um homem que estava preso por assassinato, e então, quando eu não conseguia saber o que fazer e a quem recorrer, lembrei-me do senhor.

      — Sinto-me honrado — disse Poirot, sério.

      Puxou uma cadeira para ela sentar.

      — Agora fale. George, meu criado, informou-me que você desejava me consultar a respeito de um roubo e alguns assassinatos... mais de um assassinato, então?

      — Sim — respondeu Júlia. — A Srta. Springer e a Srta. Vansittart. É, é claro, há também um caso de rapto, mas não creio que isto me diga respeito.

      — Você me deixa atordoado — disse Poirot. — Onde ocorreram todos estes excitantes acontecimentos?

      — No meu colégio, Meadowbank.

      — Meadowbank! — exclamou Poirot. — Ah! — Estendeu a mão para o seu lado onde os jornais estavam cuidadosamente dobrados. Abriu um deles e deu uma olhada, na primeira página, balançando a cabeça.

      — Começo a entender. Agora, conte-me, Júlia, conte-me tudo desde o início.

      Júlia contou. Era uma história bastante comprida e complicada, porém relatou-a com clareza... com uma parada ocasional, quando voltava a alguma coisa que esquecera.

      Contou a história até o momento em que ela examinara a raqueta de tênis em seu quarto na noite anterior.

      — O senhor entende, achei que era exatamente igual ao Aladim... lâmpadas novas por velhas... e que deveria haver algo com aquela raqueta.

      — E havia?

      — Sim.

      Sem nenhuma falsa modéstia, Júlia levantou a saia até quase a altura de sua coxa e expôs o que parecia com um emplastro preso por um adesivo.

      Arrancou as tiras, proferindo um ai! angustiado ao fazê-lo e soltou o emplastro, que Poirot agora percebia tratar-se de um pacote dentro de um saco de plástico cinza.

      Júlia o desembrulhou e, sem avisar, derramou sobre a mesa um monte de pedras cintilantes.

      — Nom d’un nom d’un nom! — disse Poirot num murmúrio de admiração.

      Apanhou-as, deixando-as rolar entre os dedos.

      — Nom d’un nom d’un nom! Mas são verdadeiras. Verdadeiras!

      Júlia concordou com a cabeça.

      — Acho que devem ser. Ninguém chegaria ao ponto de matar se assim não fosse, não acha? Porém posso compreender que se cometa um crime por causa disto.

      E, de repente, como acontecera na noite anterior, um olhar de mulher apareceu naqueles olhos de criança.

      Poirot olhou-a penetrantemente e balançou a cabeça.

      — Sim... você compreende... você sente o feitiço. Elas não podem ser pára você apenas pedras coloridas... e isto é que é uma pena.

      — São jóias! — disse Júlia extasiada.

      — E você as encontrou, como disse, na raqueta de tênis?

      Júlia terminou a narrativa.

      — Já me contou tudo?

      — Acho que sim. Devo ter exagerado um pouco aqui e ali. Costumo fazer isso algumas vezes. Já a Jennifer, minha grande amiga, é o oposto, ela consegue fazer com que as coisas mais excitantes pareçam cansativas. — Tornou a olhar o pequeno monte cintilante.

      — Sr. Poirot, a quem elas pertencem realmente?

      — Provavelmente será muito difícil de se saber. Todavia não pertencem nem a você, nem a mim. Agora precisamos decidir-nos o que fazer em seguida.

      Júlia olhou-o em expectativa.

      — Então você entrega o caso em minhas mãos? Ótimo.

      Hercule Poirot fechou os olhos.

      De repente abriu-os e falou vivamente.

      — Parece que esta é uma ocasião em que não posso, como normalmente prefiro, permanecer na minha cadeira. É preciso haver ordem e método. Entretanto, na história que você me contou não há nem ordem nem método. Isto porque neste caso existem muitos caminhos. Contudo, todos convergem e se encontram num só lugar: Meadowbank. Pessoas diferentes, com intenções diferentes, representando diferentes interesses... todas convergindo para Meadowbank. Então eu também irei para Meadowbank. E quanto a você, onde está a sua mãe?

      — Mamãe está num ônibus em Anatólia.

      — Ah, sua mãe está num ônibus em Anatólia... Il ne manquait que ça! Agora posso compreender bem que ela seja amiga da Sra. Summerhayes. Diga-me, você gostou da sua estada com a Sra. Summerhayes?

      — Oh, sim, foi muito divertido. Ela tem uns cachorros lindos.

      — Os cachorros, oh, sim, lembro-me bem.

      — Eles entram e saem por todas as janelas... como uma pontomima.

      — Você falou muito bem! E a comida? Você gostou?

      — Bem, algumas vezes era um pouco esquisita — admitiu Júlia.

      — É, tem razão.

      — Mas tia Maureen faz omeletas deliciosas.

      — Ela faz omeletas deliciosas. — A voz de Poirot estava feliz. Suspirou.

      — Então Hercule Poirot não viveu em vão — disse ele. — Fui eu quem ensinei à sua tia Maureen fazer omeletas. Tirou o fone do gancho.

      — Agora vamos tranqüilizar sua boa diretora quanto à sua segurança e anunciar a nossa chegada a Meadowbank.

      — Ela sabe que eu estou bem. Deixei um bilhete dizendo que não fui raptada.

      — Mesmo assim, ela agradecerá maiores esclarecimentos.

      Em pouco tempo a ligação fora completada e ele foi informado de que a Srta. Bulstrode estava na linha.

      — Srta. Bulstrode? Meu nome é Hercule Poirot. Sua aluna, Júlia Upjohn, está aqui a meu lado. Proponho-me a levá-la de carro comigo imediatamente. E para a informação do policial encarregado do caso, um certo pacote de algum valor foi depositado em segurança num banco.

      Desligou e olhou para Júlia.

      — Gostaria de tomar um refresco? — sugeriu ele.

      — Refresco de quê? — perguntou Júlia.

      — De morango, de laranja, de groselha.

      Júlia decidiu-se pelo de groselha.

      — Mas as pedras não estão num banco — observou ela.

      — Estarão em pouco tempo — garantiu Poirot. — Mas para o bem de alguém em Meadowbank que tenha escutado o que eu disse, mesmo por acaso, ou então que venha a saber, é melhor que pense que estão num banco, e não mais em seu poder. Retirar pedras preciosas de um banco requer tempo e organização. E eu ficaria muito aborrecido se algo lhe acontecesse, minha filha. Confesso que formei um alto conceito quanto à sua coragem e talento.

 

TROCA DE IDÉIAS

HERCULE POIROT havia se preparado para derrubar qualquer preconceito que a diretora pudesse ter contra estrangeiros idosos com sapatos pontudos e grandes bigodes. Todavia, estava agradavelmente surpreendido. A Srta. Bulstrode cumprimentou-o com uma desenvoltura cosmopolita. Também ela, para sua satisfação, sabia tudo a respeito dele.

      — Foi muita gentileza sua, Sr. Poirot — disse ela, — telefonar-me para atenuar minha ansiedade. Embora esta mal tivesse começado. Sabe, Júlia, não demos por sua falta na hora do almoço — acrescentou ela, virando-se para a garota. — Tantas garotas haviam sido levadas esta manhã e haviam tantos lugares vagos à mesa, que eu creio que metade do colégio poderia estar ausente sem causar nenhuma apreensão. Estamos atravessando uma situação incomum — disse ela, dirigindo-se a Poirot. — Asseguro-lhe que normalmente não seríamos tão descuidadas. Quando recebi o seu telefonema, fui ao quarto de Júlia e encontrei o bilhete que ela deixara.

      — Não queria que pensasse que eu havia sido raptada, Srta. Bulstrode — explicou Júlia.

      — Aprecio, porém acho, Júlia, que você poderia ter-me contado o que planejava fazer.

      — Achei melhor não — disse Júlia, e acrescentou inesperadamente: — les oreilles ennemies nous écoutent.

      Mademoiselle Blanche parece não ter conseguido melhorar muito sua pronúncia — observou a Srta. Bulstrode, vivamente. Entretanto, não a estou repreendendo, Júlia. — Desviou seu olhar para Poirot.

      — Agora, por favor, gostaria de saber exatamente o que aconteceu.

      — Com sua licença — disse Hercule Poirot. Atravessou a sala, abriu a porta e olhou para fora. Exagerou no gesto de fechá-la. Voltou sorridente.

      — Estamos sozinhos — disse ele misteriosamente. — Podemos prosseguir.

      A Srta. Bulstrode olhou para Poirot, depois para a porta e, em seguida, tornou a olhar para ele. Levantou as sobrancelhas. Ele, calmamente, devolveu-lhe o olhar. A Srta. Bulstrode inclinou a cabeça devagar. Retomando sua maneira vivaz, falou: — Agora, Júlia, vamos ouvir o que você tem para contar.

      Júlia iniciou sua narração. A troca das raquetas de tênis, a mulher misteriosa e, finalmente, a descoberta do conteúdo da raqueta. A Srta. Bulstrode virou-se para Poirot. Ele balançou a cabeça.

      — Mademoiselle Júlia relatou tudo corretamente — afirmou ele. — Tomei a meu cargo o que ela me levou. Está guardado em segurança num banco. Assim sendo, acho que a senhora não precisa mais ter receio de um outro acontecimento desagradável.

      — Entendo — disse a Srta. Bulstrode. — Sim, entendo... — Ficou calada por uns instantes e depois perguntou: — O senhor acha aconselhável Júlia permanecer no colégio? Não seria melhor que ela fosse para a casa de sua tia em Londres?

      — Oh, por favor, deixe-me ficar! — pediu Júlia.

      — Então sente-se feliz aqui? — perguntou a Srta. Bulstrode.

      — Sim, eu adoro — respondeu Júlia. — E, além do mais, tem acontecido tanta coisa excitante!

      — Este não é, de forma alguma, o quadro normal de Meadowbank — disse a Srta. Bulstrode secamente.

      — Acho que agora Júlia não corre nenhum perigo aqui — comentou Hercule Poirot. Olhou novamente em direção à porta,

      — Creio que compreendo — falou a Srta. Bulstrode.

      — Mas é preciso que haja discrição — afirmou Poirot. — Será que você consegue ser discreta? — acrescentou ele olhando para Júlia.

      — O Sr. Poirot está querendo dizer — explicou a Srta. Bulstrode — que ele gostaria que você não comentasse nada a respeito do que encontrou. Não deve falar sobre este assunto com as outras garotas. Acha que conseguirá ficar calada?

      — Sim — respondeu Júlia.

      — É uma história muito boa para contar às suas amigas — observou Poirot. — A respeito do que você encontrou dentro de uma raqueta de tênis na calada da noite. Contudo, por vários motivos importantes, seria aconselhável que a história permanecesse ignorada.

      — Entendo — disse Júlia.

      — Posso confiar em você, Júlia? — indagou a Srta. Bulstrode.

      — Pode sim — assegurou Júlia. — Juro!

      A Srta. Bulstrode sorriu. — Espero que sua mãe não demore muito a voltar da viagem.

      — Mamãe? Oh, eu também espero.

      — Soube pelo Inspetor Kelsey — falou a Srta. Bulstrode — que todo o esforço foi feito na tentativa de se entrar em contato com ela. Infelizmente, os ônibus de Anatólia estão sujeitos a atrasos inesperados e nem sempre cumprem o horário.

      — Posso contar à mamãe, não posso? — perguntou Júlia.

      — É lógico. Bem, Júlia, está tudo resolvido. É melhor você ir agora.

      Júlia retirou-se. Fechou a porta atrás de si. A Srta. Bulstrode olhou firme para Poirot.

      — Creio que entendi bem o seu intuito — disse ela. — Ainda há pouco, o senhor fez uma grande encenação ao fechar aquela porta. Mas, na verdade, o senhor deliberadamente deixou-a entreaberta.

      Poirot concordou com a cabeça.

      — De modo que o que falamos pudesse ser ouvido?

      — Sim... no caso de haver alguém interessado em ouvir. Foi uma medida de precaução para proteger a menina. Deve-se espalhar a notícia de que o que ela encontrou está guardado no banco e não mais em seu poder.

      A Srta. Bulstrode olhou-o por um momento e então contraiu os lábios séria.

      — É preciso pôr um ponto final nisto tudo — disse ela.

     

      — Nosso propósito — começou o delegado — é tentarmos juntar nossas idéias e informações. Estamos muito satisfeitos de tê-lo conosco, Sr. Poirot — acrescentou. — O Inspetor Kelsey lembra-se perfeitamente bem do senhor.

      — Foi há muitos anos atrás — disse o Inspetor Kelsey. — O Inspetor-chefe era o encarregado do caso. Eu era um simples sargento, conhecedor do meu lugar.

      — O cavalheiro, para nossa conveniência, chamado de Sr. Adam Goodman, não é conhecido seu, Sr. Poirot, mas acredito que conheça o seu... seu... seu... chefe. Do Departamento Especial.

      — Coronel Pikeaway — disse Hercule Poirot pensativo. Ah, sim, não o vejo a bastante tempo. Continua sonolento? — perguntou ele a Adam.

      Adam riu. — Vejo que o senhor o conhece bem, Sr. Poirot. Jamais cheguei a vê-lo completamente desperto. Quando isto acontecer, pela primeira vez, não estará prestando atenção ao que se passa.

      — Você observou bem, meu amigo. É exatamente isto.

      — Agora — disse o delegado — vamos ao assunto. Não vou me colocar em primeiro plano nem impor minhas opiniões. Estou aqui para ouvir o que os cavalheiros que estão trabalhando no caso sabem e pensam. Esta história tem vários aspectos e antes de mais nada há uma coisa que eu quero mencionar. Digo isto em conseqüência de recomendações que me foram feitas por escalões mais altos. — Olhou para Poirot. — Digamos — disse ele — que uma menina... uma estudante... tenha lhe procurado com uma linda história a respeito de algo que encontrou no cabo de uma raqueta de tênis. Muito excitante para ela. Uma coleção, digamos, de pedras coloridas, uma boa imitação... algo deste tipo... ou até mesmo pedras semi-preciosas que, muitas vezes, são tão atraentes quanto as verdadeiras. Digamos que, de qualquer maneira, era algo que uma criança ficaria excitada em encontrar. Ela poderia até chegar a ter idéias exageradas quanto ao seu valor. Isto é bem possível, não acha? — Olhou de modo penetrante para Hercule Poirot.

      — Parece-me perfeitamente possível — respondeu Poirot.

      — Ótimo — disse o delegado. — Já que a pessoa que trouxe estas... er... pedras coloridas para dentro do país o fez sem saber e inocentemente, não queremos que surja nenhuma averiguação sobre contrabando ilícito.

      — Há também a questão da nossa política externa — prosseguiu. — A situação, creio eu, está um tanto... delicada no momento. Quando se trata de interesses de petróleo, reservas minerais, todo este tipo de coisa, temos que nos entender com qualquer que seja o governo no poder. Não queremos que surja nenhuma pergunta embaraçosa. Não se pode manter assassinatos fora dos jornais e realmente foi o que aconteceu. Porém, nada foi mencionado a respeito de jóias ligado ao crime. De qualquer modo, no momento, não há necessidade de ser.

      — Concordo — disse Poirot. — Deve-se sempre levar em conta possíveis complicações internacionais.

      — Exatamente — falou o delegado. — Acho que estou certo em afirmar que o falecido governante de Ramat era considerado um amigo da Inglaterra e acreditamos que fosse seu desejo que nosso governo cuidasse de seus interesses neste país. A quanto isto monta, acho que ninguém sabe. Se o novo governo de Ramat está reclamando certos bens que alegam ser de sua propriedade, será muito melhor para nós se não tivermos conhecimento a respeito de tais bens estarem neste país. Uma recusa direta seria desastrosa.

      — Não se pode fazer recusas diretas em diplomacia — observou Hercule Poirot. — Ao invés, o melhor é dizer-se que tal assunto receberá a mais alta atenção, mas que no momento não se sabe nada de definitivo a respeito de nenhuma pequena... economia particular, digamos, que o falecido governante de Ramat por acaso possuísse. Pode ainda estar em Ramat, pode estar sob os cuidados de algum fiel do falecido Príncipe Ali Yusuf, pode ter sido levada para fora do país por uma meia dúzia de pessoas diferentes, pode estar escondida em algum lugar na própria cidade de Ramat. — Ele encolheu os ombros. — Simplesmente não se sabe.

      O delegado soltou um suspiro. — Obrigado — agradeceu. — É exatamente isto que eu queria dizer. — Ele continuou: — Sr. Poirot, o senhor tem amigos em altos cargos neste país. Eles confiam muito no senhor. Extra-oficialmente; eles gostariam, caso não se oponha, de deixar em seu poder uma certa mercadoria.

      — Eu não me oponho — garantiu Poirot. — Deixamos como está. Temos coisas mais sérias a considerar, não temos? — Olhou para o rosto de todos. — Ou quem sabe os senhores talvez não sejam desta opinião? Mas, afinal de contas, o que representam três quartos de um milhão ou uma soma parecida em comparação com uma vida humana?

      — Tem razão, Sr. Poirot — concordou o delegado.

      — O senhor tem sempre razão — reforçou o Inspetor Kelsey. — O que queremos é o assassino. Ficaremos satisfeitos em ter a sua opinião, Sr. Poirot, porque é muito mais uma questão de adivinhação. E seu palpite pode ser tão bom quanto o dos outros, ou até mesmo melhor. O negócio todo é como um emaranhado de um novelo de lã.

      — Esta é uma excelente colocação — disse Poirot. — É preciso apanhar este emaranhado de lã e puxar a cor que procuramos, a cor do assassino. Não é isto?

      — Exato.

      — Então, se não for muito cansativo para os senhores, contem-me tudo que sabem até o momento.

      Preparou-se para ouvir.

      Ouviu o Inspetor Kelsey, ouviu Adam Goodman. Ouviu o breve resumo do delegado. E então, recostando-se para trás, fechando os olhos, balançou a cabeça devagar.

      — Dois assassinatos — disse. — Ambos cometidos no mesmo local e, mais ou menos, nas mesmas circunstâncias. Um rapto. O rapto de uma garota que pode ser a figura central da trama. Vamos indagar-nos, em primeiro lugar, por que ela foi raptada.

      — Posso lhe repetir o que ela própria disse — falou Adam.

      Ele contou e Poirot escutou.

      — Não faz sentido — reclamou ele.

      — Foi isto que pensei na ocasião. Aliás, achei que ela estava apenas querendo se fazer de importante...

      — Mas resta o fato de que ela foi raptada. Por quê?

      — Houve pedidos de resgate — informou Kelsey. — Mas... — fez uma pausa.

      — Mas falsos. É esta a sua opinião, não é? Feitos somente para sustentar a teoria do rapto?

      — Exato. Os encontros não foram mantidos.

      — Shaista, então, foi raptada por algum outro motivo. Qual?

      — Para que pudessem forçá-la a dizer onde as... er... pedras estavam escondidas — sugeriu Adam, na dúvida.

      Poirot balançou a cabeça. — Ela não sabia onde estavam — acentuou ele. — Isto, pelo menos, está claro. Não; deve haver alguma outra coisa...

      Sua voz sumiu. Ficou calado, a expressão carregada, por um ou dois minutos. Aí, endireitou-se na cadeira e fez uma pergunta.

      — Os joelhos — disse ele. — Você reparou nos joelhos dela?

      Adam olhou-o, atônito.

      — Não! — respondeu. — Por que eu deveria?

      — Existem várias razões para um homem olhar para os joelhos de uma jovem — disse Poirot severamente. — Infelizmente, você não reparou.

      — Havia algo estranho a respeito dos joelhos dela? Uma cicatriz? Alguma coisa deste tipo? Eu não saberia dizer. Todas elas usam meias a maior parte do tempo e suas saias cobrem os joelhos.

      — Na piscina, talvez? — sugeriu Poirot esperançoso.

      — Jamais a vi na piscina — disse Adam. — Creio que era muito frio para ela. Está acostumada com o clima quente. Onde o senhor está querendo chegar? Uma cicatriz? Algo desse gênero?

      — Não, não é nada disso. Ah, bem, é uma pena.

      Dirigiu-se ao delegado.

      — Com sua permissão, vou comunicar-me com um velho amigo, o Prefeito de Genebra. Creio que ele poderá ajudar-nos.

      — A respeito de alguma coisa que tenha acontecido quando ela estudava lá?

      — Sim, é possível. O senhor permite? Ótimo. Trata-se apenas de uma idéia que eu tive. — Fez uma pausa e então prosseguiu: — A propósito, não saiu nada nos jornais a respeito do rapto?

      — O Emir Ibrahim tomou várias precauções para que tal não acontecesse.

      — Notei, entretanto, um pequeno comentário na coluna de mexericos. Falando de uma certa jovem estrangeira que saiu do colégio muito repentinamente. Um romance de adolescente, foi o que o colunista sugeriu. E que deveria ser cortado pela raiz.

      — Isto foi idéia minha — disse Adam. — Pareceu um bom caminho para se tomar.

      — Admirável! Agora passemos do rapto para algo mais sério. Assassinato. Dois assassinatos em Meadowbank.

 

A TROCA DE IDÉIAS CONTINUA

— Dois ASSASSINATOS EM MEADOWBANK — repetiu Poirot pensativo.

      — Apresentamos-lhe os fatos — disse Kelsey. — Se o senhor tiver alguma idéia...

      — Por que o Pavilhão de Esportes? — disse Poirot. — Esta era a sua pergunta, não era? — falou dirigindo-se a Adam. — Bem, agora temos a resposta. Porque no Pavilhão havia uma raqueta de tênis contendo uma fortuna em pedras preciosas. Alguém sabia deste fato. Quem? Poderia ter sido a própria Srta. Springer. Ela era, de acordo com o que os senhores disseram, um tanto estranha em relação ao Pavilhão de Esportes. Não gostava que as pessoas fossem lá... pessoas sem autorização, devo acrescentar. Parecia suspeitar dos motivos alheios. Isto acontecia especialmente no caso de Mademoiselle Blanche.

      — Mademoiselle Blanche... — repetiu Kelsey pensativo.

      Hercule Poirot tornou a se dirigir a Adam.

      — O senhor mesmo achou estranho o jeito dela no que se refere ao Pavilhão de Esportes.

      — Ela me deu muitas explicações, explicações demais — comentou Adam. — Eu jamais me teria questionado quanto ao seu direito de estar lá se ela não tivesse tanto trabalho de se explicar.

      Poirot balançou a cabeça.

      — Exato. Isto certamente faz com que a pessoa pare para pensar. Porém tudo que sabemos é que a Srta. Springer foi assassinada no Pavilhão de Esportes à uma hora da madrugada quando não tinha nada que estar lá.

      Virou-se para Adam.

      — Onde se encontrava a Srta. Springer antes de vir para Meadowbank?

      — Não sabemos — respondeu o inspetor. — Ela deixou o seu último local de trabalho — ele mencionou um colégio famoso — no verão passado. Onde esteve desde então, não sabemos. — Acrescentou secamente: — Não houve ocasião de se fazer a pergunta antes de ela morrer. Não tinha parentes próximos e nem, que se saiba, amigos chegados.

      — Então poderia ter estado em Ramat — observou Poirot pensativo.

      — Creio que, na ocasião da revolução, havia um grupo de professoras lá. Comentou Adam.

      — Digamos, então, que ela estava lá e que de alguma forma ficou sabendo a respeito da raqueta de tênis. Digamos que, depois de esperar um curto período até familiarizar-se com a rotina de Meadowbank, foi, naquela noite, até o Pavilhão de Esportes. Apanhou a raqueta e estava prestes a retirar as pedras preciosas do lugar onde estavam escondidas, quando... — ele fez uma pausa... — quando alguém a interrompeu. Alguém que a estava espionando? Seguindo-a? Fosse quem fosse, tinha uma pistola... e atirou nela... porém não teve tempo de apanhar as pedras, ou mesmo levar a raqueta, porque pessoas alertadas pelo tiro aproximavam-se do Pavilhão de Esportes.

      Ele parou.

      — O senhor acha que foi isto que aconteceu? — perguntou o delegado.

      — Não sei — respondeu Poirot. — É uma possibilidade. A outra é a de que esta pessoa com a pistola estava lá antes e foi surpreendida pela Srta. Springer. Alguém de quem a Srta. Springer já suspeitava. Ela era, conforme os senhores disseram, este tipo de mulher. Uma bisbilhoteira.

      — E quanto à outra vítima? — perguntou Adam.

      Poirot olhou para ele. Então, lentamente, desviou seu olhar em direção dos outros dois homens.

      — Eu não sei — disse. — E os senhores também não sabem. Pode ter sido alguém de fora...

      Em sua voz havia uma semi-indagação.

      Kelsey balançou a cabeça.

      — Não creio. Investigamos as redondezas com todo cuidado. Especialmente, é lógico, no caso de estranhos. Havia uma tal de Madame Kolinsky hospedada perto daqui... isto é do conhecimento de Adam. Entretanto, ela não podia estar envolvida em nenhum dos dois crimes.

      — Então voltamos a Meadowbank. E existe apenas um meio de se chegar à verdade... por eliminação.

      Kelsey suspirou.

      — Sim — concordou ele. — Acho que é o único meio. No caso do primeiro assassinato, há um campo bastante amplo. Quase todo mundo poderia ter matado a Srta. Springer. As exceções são as Srtas. Johnson e Chadwick... e a menina com dor de ouvido. Todavia, o segundo assassinato reduz o número de suspeitas. A Srta. Rich, a Srta. Blake e a Srta. Shapland estão fora. A Srta. Rich estava hospedada no Hotel Morton Marsh, a vinte milhas de distância. A Srta. Blake estava em Littleport. A Srta. Shapland, numa boate, o Nid Sauvage, com o Sr. Dennis Rathbone.

      — E, pelo o que sei, a Srta. Bulstrode também estava ausente.

      Adam sorriu. O inspetor e o delegado pareciam chocados.

      — A Srta. Bulstrode — disse o inspetor severamente — estava na casa da Duquesa de Welsham.

      — Então isto também elimina a Srta. Bulstrode — disse Poirot, sério. — E nos deixa... o quê?

      — Duas empregadas que dormem no colégio, a Sra. Gibbons e uma jovem chamada Doris Hogg. Mas não posso, seriamente, suspeitar de nenhuma das duas. Com isto, resta apenas a Srta. Rowan e Mademoiselle Blanche.

      — E as alunas, é claro.

      Kelsey olhou-o, atônito.

      — Certamente o senhor não suspeita delas?

      — Para falar a verdade, não. Mas precisamos pensar em tudo.

      Kelsey não se impressionou com aquilo. Prosseguiu falando.

      — A Srta. Rowan trabalha aqui há mais de um ano. Tem uma ficha boa. Não sabemos de nada contra ela.

      — Então chegamos a Mademoiselle Blanche. E é aí que a trilha acaba.

      Houve silêncio.

      — Não há evidências — disse Kelsey. — Suas credenciais parecem verdadeiras.

      — Teriam que ser — observou Poirot.

      — Ela costuma bisbilhotar — disse Adam. — Porém isto não é prova de crime.

      — Espere um minuto — disse Kelsey. — Houve algo sobre uma chave. Na nossa primeira entrevista com ela... vou verificar... ela falou algo a respeito de a chave do Pavilhão ter caído da porta e de ela tê-la apanhado e esquecido de recolocá-la no lugar. E depois ter saído levando a chave, o que fez com que a Srta. Springer a repreendesse.

      — A pessoa que quisesse ir até lá à noite e procurar pela raqueta, precisaria ter uma chave para poder entrar — afirmou Poirot. — Para isto, teria sido necessário tirar o molde da chave.

      — Mas é claro que neste caso ela jamais teria mencionado o incidente da chave para o senhor — disse Adam.

      — Não é bem assim — retrucou Kelsey. — Springer poderia ter feito algum comentário sobre o ocorrido. Sendo assim, talvez ela tenha achado melhor mencionar o fato de maneira casual.

      — É um ponto a ser lembrado — disse Poirot.

      — Não nos leva muito longe — disse Kelsey.

      Olhou desanimado para Poirot.

      — Parece que há — disse Poirot — (isto é, se fui informado corretamente) uma possibilidade. Soube que a mãe de Júlia Upjohn reconheceu alguém aqui no dia do início das aulas. Alguém que ela ficou surpresa em ver. Pelo que foi dito, parece provável tratar-se de alguém ligado à espionagem internacional. Se a Sra. Upjohn indicar Mademoiselle como a pessoa que ela reconheceu, então creio que poderemos agir com alguma segurança.

      — Mais fácil dizer do que fazer — afirmou Kelsey. — Temos tentado entrar em contato com a Sra. Upjohn, mas tem sido uma verdadeira dor de cabeça. Quando a menina mencionou um ônibus, pensei que se referia a uma excursão normal, formada por um grupo de turistas, seguindo uma programação. Mas não é nada disso! Parece que ela está tomando ônibus comum para qualquer lugar que lhe dê na cabeça. Ela não está viajando pela Cook, ou qualquer outra agência de viagens conhecida. Está por conta própria, indo para onde bem entender. O que se pode fazer com uma mulher assim? Ela pode estar em qualquer lugar. Há muito para ser visto em Anatólia!...

      — Sim, isto torna tudo muito difícil — concordou Poirot.

      — Há uma enorme quantidade de excelentes excursões de ônibus — disse o inspetor numa voz contrariada. — Tudo preparado para facilitar a sua viagem... onde parar, o que ver, e cuidadosamente programado para se saber exatamente onde se está.

      — Todavia, é evidente que este tipo de viagem não atrai a Sra. Upjohn.

      — E enquanto isso, aqui estamos nós — prosseguiu Kelsey. — Atados. Aquela mulher francesa pode, no momento que quiser, ir embora. Nada podemos fazer para retê-la aqui.

      Poirot balançou a cabeça.

      — Ela não fará isso.

      — O senhor não pode ter certeza.

      — Mas eu tenho. Se alguém comete um assassinato, não vai querer fazer nada fora do comum, que possa chamar a atenção para si. Mademoiselle Blanche permanecerá aqui no colégio, quieta, até o final do semestre.

      — Espero que tenha razão.

      — Estou certo que sim. E lembre-se: a pessoa que a Sra. Upjohn viu, não sabe que foi vista. A surpresa, quando vier, será completa.

      Kelsey suspirou.

      — Se isto é tudo que temos em que nos apoiar.

      — Existem outras coisas. Conversação, por exemplo.

      — Conversação?

      — É, costuma funcionar. Mais cedo ou mais tarde, se a pessoa tiver alguma coisa a esconder, acaba falando demais.

      — Trair-se? — O delegado parecia cético.

      — Não, não é tão simples assim. A pessoa fica em guarda a respeito do que está tentando esconder. Muitas vezes, porém, fala demais sobre outros assuntos. E há também outras maneiras de se utilizar a conversação. Existe o caso de pessoas inocentes que têm conhecimento de alguma coisa, mas que nem de longe suspeitam da importância do que sabem. E isto me lembra...

      Pôs-se de pé.

      — Com licença. Preciso perguntar à Srta. Bulstrode se há alguém aqui que saiba desenhar.

      — Desenhar?

      — Exato.

      — Bem — disse Adam assim que Poirot se retirou — primeiro joelhos de garotas e agora a arte de desenhar. O que virá em seguida?

     

      A Srta. Bulstrode respondeu às perguntas de Poirot sem demonstrar qualquer surpresa.

      — A Srta. Laurie é a nossa professora de desenho — falou ela vivamente. — Entretanto, ela não está aqui hoje. O que o senhor deseja que ela desenhe? — acrescentou de um modo gentil, como se falasse a uma criança.

      — Rostos — disse Poirot.

      — A Srta. Rich é boa em desenhar pessoas. Tem habilidade em conseguir semelhança.

      — É exatamente disto que preciso.

      A Srta. Bulstrode, ele notou com satisfação, não fez nenhuma pergunta quanto aos motivos. Simplesmente retirou-se da sala e voltou com a Srta. Rich.

      Depois das apresentações. Poirot disse:

      — A senhorita sabe desenhar rostos? Com rapidez?

      Eileen Rich balançou a cabeça.

      — Faço-o com freqüência. Como distração.

      — Ótimo. Então, por favor, desenhe a falecida Srta. Springer.

      — Isto é difícil. Conheci-a por tão pouco tempo! Vou tentar.

      Apertou os olhos e em seguida começou a desenhar com agilidade.

      — Bien — disse Poirot, apanhando o desenho. — E agora, por favor, a Srta. Bulstrode, a Srta. Rowan, Mademoiselle Blanche e, sim... o jardineiro Adam.

      Eileen Rich olhou-o em dúvida e, em seguida, começou a trabalhar. Poirot verificou o resultado e balançou a cabeça satisfeito.

      — A senhorita é boa nisto, muito boa. Tão poucos traços e, mesmo assim, a semelhança está aí. Agora vou pedir para fazer algo mais difícil. Dê, por exemplo, à Srta. Bulstrode um novo penteado. Mude a forma de suas sobrancelhas.

      Eileen encarou-o como se o achasse maluco.

      — Não, não sou maluco. Estou apenas fazendo uma experiência, é só isso. Por favor, faça o que pedi.

      Depois de um ou dois minutos ela disse: — Aqui está.

      — Excelente. Agora faça o mesmo com Mademoiselle Blanche e a Srta. Rowan.

      Quando ela terminou, ele colocou os três desenhos um ao lado do outro.

      — Agora vou-lhe mostrar algo — disse ele. — A Srta. Bulstrode, apesar das mudanças que a senhorita fez, continua sendo, indiscutivelmente, a Srta. Bulstrode. Entretanto, repare nas outras duas. Por não possuírem feições marcantes e nem a personalidade da Srta. Bulstrode, parecem quase que pessoas diferentes, não parecem?

      — Entendo o que quer dizer — falou Eileen Rich.

      Ela o olhou enquanto ele dobrava cuidadosamente os desenhos.

      — O que vai fazer com eles? — perguntou ela.

      — Usá-los — respondeu Poirot.

     

CONVERSAÇÃO

 — BEM... NÃO SEI o QUE DIZER — falou a Sra. Sutcliffe. — Realmente não sei o que dizer...

      Ela olhou para Hercule Poirot com evidente desprazer.

      — Henry não está em casa — informou ela.

      O significado deste pronunciamento era ligeiramente obscuro, porém Hercule Poirot achava que entendia o que se passava em sua mente. Henry, pensava ela, seria capaz de lidar com este tipo de coisa. Henry tinha tantas conexões internacionais! Estava sempre viajando para o Oriente Médio, para Ghana, para a América do Sul, Genebra e até mesmo ocasionalmente, mas não com tanta freqüência, a Paris.

      — Tudo — comentou a Sra. Sutcliffe — foi extremamente lamentável. Fiquei satisfeita em ter Jennifer aqui de volta em segurança. Embora deva confessar — acrescentou ela, com um traço de irritação — que Jennifer tem sido muito cansativa. Depois de ter-nos exasperado quanto ao fato de ir para Meadowbank, afirmando que não iria gostar de lá, dizendo que era o tipo do colégio esnobe, e não o gênero de lugar para onde ela desejaria ir, agora fica o dia todo mal-humorada porque a tiramos de lá. É mesmo um problema.

      Meadowbank é, indiscutivelmente, um colégio muito bom — disse Hercule Poirot. — Muitas pessoas afirmam que é o melhor da Inglaterra.

      — Eu diria que foi — observou a Sra. Sutcliffe.

      — E vai voltar a ser — afirmou Hercule Poirot.

      — O senhor acha? — a Sra. Sutcliffe olhou-o em dúvida. Sua maneira simpática estava gradualmente derrubando a sua resistência. Não existe nada que alivie mais a carga de uma mãe do que lhe permitirem descarregar as duas dificuldades, seus pequenos fracassos e frustrações, que encontram ao lidar com os filhos. A lealdade muitas vezes obrigava-a a suportar os problemas em silêncio. Contudo, no que dizia respeito a um estrangeiro como Hercule Poirot, a Sra. Sutcliffe sentia que esta lealdade não era necessária. Não era como falar com a mãe de uma outra garota.

      — Meadowbank — observou Poirot — está apenas atravessando uma fase infeliz.

      No momento era a melhor coisa que ele conseguia pensar para dizer. Ele percebeu que não se expressara bem e a Sra. Sutcliffe, imediatamente, revidou-o.

      — Bem mais do que infeliz, eu diria — exclamou ela. — Dois assassinatos! E uma garota raptada. Não se pode mandar uma filha para um colégio onde as professoras são assassinadas a toda hora.

      Parecia um ponto de vista altamente sensato.

      — Se descobrirem que os assassinatos — falou Poirot — são obra de uma só pessoa e se esta for capturada, isto muda tudo, não?

      — Bem, suponho que sim — respondeu a Sra. Sutcliffe, incerta. — Quero dizer... o senhor quer dizer... oh, entendo, como Jack o Estripador, ou aquele outro homem... quem era mesmo? Algo a ver com Devoshire. Cream? Neil Cream. Que saía por aí matando um tipo infeliz de mulher. Suponho que este assassino de agora saia por aí matando professoras. Espero que, uma vez que o tenham prendido, o enforquem. Oh, sim, se ele for apanhado, então suponho que isto tornaria tudo diferente. É lógico que não pode existir muitas pessoas assim, não é mesmo?

      — Certamente espera-se que não — disse Poirot.

      — Mas há também o caso deste rapto — acentuou a Sra. Sutcliffe. — Não se deseja mandar uma filha para um colégio onde ela possa vir a ser raptada, não é?

      — É claro que não, Madame. Vejo que a senhora conseguiu analisar tudo com muita clareza. Está absolutamente certa em tudo que diz.

      A Sra. Sutcliffe pareceu satisfeita. Já fazia algum tempo que ninguém dizia nada parecido. Henry simplesmente falava coisas como: — Afinal de contas, não sei por que motivo você quis mandá-la para Meadowbank? — e Jennifer ficava o dia inteiro amuada, recusando-se a conversar.

      — Tenho pensado muito a este respeito — disse ela. — Pensado bastante.

      — Então não deixarei que o caso do rapto a preocupe, Madame. — Entre nous, falando confidencialmente, a Princesa Shaista... não foi exatamente raptada... suspeita-se de um romance...

      — Quer dizer que a garota levada simplesmente fugiu para se casar com alguém?!

      — Meus lábios estão selados — disse Hercule Poirot. — A senhora compreende que se pretenda evitar um escândalo. Este é um segredo entre nous. Estou certo de que a senhora nada dirá.

      — É claro que não — afirmou a Sra. Sutcliffe. Olhou a carta que Poirot trouxera do delegado. — Não entendo bem quem é o senhor, er... er... Poirot. É o que nos romances chamam de... de detetive?

      — Sou um consultor — respondeu Hercule Poirot imponente.

      Este saber de Harley Street encorajou a Sra. Sutcliffe.

      — A respeito de que o senhor deseja falar com Jennifer? — perguntou ela.

      — Apenas para obter suas impressões — respondeu Poirot. — Ela é uma menina observadora?

      — Infelizmente eu diria que não — respondeu a Sra. Sutcliffe, — Ela não é, de forma alguma, o que eu chamaria de uma criança que repara nas coisas, Quero dizer, ela é sempre muito distraída.

      — É melhor do que inventar coisas que jamais aconteceram — opinou Poirot.

      — Oh, Jennifer nunca faria isto — afirmou a Sra. Sutcliffe, com segurança. Levantou-se, foi até à janela e chamou: — Jennifer!

      — Gostaria — disse ela a Poirot, quando voltou — que o senhor tentasse colocar na cabeça de Jennifer que seu pai e eu estamos apenas fazendo o que é melhor para ela.

      Jennifer entrou na sala com um ar mal-humorado, olhando com profunda desconfiança para Hercule Poirot.

      — Como vai? — cumprimentou Poirot. — Sou um velho amigo de Júlia Upjohn. Ela foi a Londres me procurar.

      — Júlia foi a Londres? — disse Jennifer ligeiramente surpresa. — Por quê?

      — Para pedir um conselho — explicou Poirot.

      Jennifer olhou-o incrédula.

      — Pude aconselhá-la — comentou Poirot. — Ela agora está de volta a Meadowbank — acrescentou.

      — Então sua tia Isabel não a tirou de lá — disse Jennifer, lançando um olhar irritado para a mãe.

      Poirot olhou para a Sra. Sutcliffe, que por algum motivo, talvez por ter sido interrompida em alguma tarefa doméstica quando Poirot chegou, ou talvez por causa de algum rompante inexplicável, se levantou e deixou a sala.

      — É um tanto duro — disse Jennifer — estar de fora de tudo que está acontecendo por lá. Todo este alvoroço. Eu disse a mamãe que era tolice. Afinal de contas, nenhuma das alunas foi assassinada.

      — Você tem alguma idéia própria a respeito dos assassinatos? — Indagou Poirot.

      Jennifer balançou a cabeça. — Algum maluco? — sugeriu ela. E acrescentou pensativa: — Suponho que agora a Srta. Bulstrode terá que arrumar novas professoras.

      — É possível — disse Poirot. — Ele prosseguiu: — Estou interessado, Mademoiselle Jennifer, na mulher que apareceu lhe oferecendo uma nova raqueta em troca da sua antiga. Está lembrada?

      — Estou — respondeu Jennifer. — Até hoje, não descobri quem a mandou realmente. Não foi tia Gina, de forma alguma.

      — Que aparência tinha esta mulher? — perguntou Poirot.

      — A que trouxe a raqueta? — Jennifer semicerrou os olhos como se pensasse. — Bem, eu não sei. Estava com um vestido azul enfeitado com uma espécie de capa, acho eu. E um chapéu de abas caídas.

      — Sim. Mas estou mais interessado em seu rosto do que em suas roupas.

      — Acho que estava com um bocado de maquiagem — disse Jennifer vagamente. — Um pouco demais para o campo, quero dizer. Tinha cabelo louro. Parecia americana.

      — Você já a tinha visto antes? perguntou Poirot.

      — Oh, não. Não creio que ela morasse por aqui. Ela disse que tinha vindo para um almoço, um coquetel, ou algo assim.

      Poirot olhou-a pensativo. Ele estava interessado na total receptividade de Jennifer em relação a tudo que ele lhe dizia. Ele disse gentilmente: — Mas ela poderia não estar falando a verdade.

      — Oh, não, suponho que não.

      — Está bem certa de que não a tinha visto antes? Ela poderia ser, por exemplo, uma das meninas disfarçada? Ou uma das professoras?

      — Disfarçada? — Jennifer parecia intrigada.

      Poirot pousou à sua frente o desenho que Eileen Rich havia feito de Mademoiselle Blanche.

      — Não era esta a mulher, era?

      Jennifer olhou incerta.

      — Parece um pouco com ela... mas não, acho que não é ela.

      Poirot balançou a cabeça pensativo. Não havia sinal de que Jennifer tivesse percebido que, na realidade, aquele era um retrato de Mademoiselle Blanche.

      — Sabe — disse Jennifer — para dizer a verdade, não olhei muito para ela. Era uma americana e uma estranha e, então, ela me falou da raqueta...

      Depois disso, era evidente, Jennifer não teria tido olhos Para nada mais além de sua nova aquisição.

      — Entendo — disse Poirot. Ele prosseguiu: — Você, alguma vez, encontrou em Meadowbank alguém que tivesse visto em Ramat?

      — Em Ramat? — Jennifer refletiu. — Oh, não, pelo menos acho que não.

      Poirot agarrou-se à sua ligeira dúvida. — Porém você não tem certeza, não é mesmo, Mademoiselle Jennifer?

      — Bem... — Jennifer coçou a testa com uma expressão preocupada. — Quero dizer, a gente está sempre vendo pessoas que lembram alguém. E não se consegue saber bem com quem elas parecem. Algumas vezes você vê pessoas que já encontrou antes, mas não se lembra quem elas são. E elas dizem: — Você não se lembra de mim? — e então é tremendamente embaraçoso porque realmente você não se recorda. Quero dizer, você sabe que o rosto é familiar, porém não consegue lembrar-se do nome, ou de onde a viu antes.

      — Isto é bem verdade — comentou Poirot. — Sim, é verdade. É comum ter-se esta experiência. — Fez uma curta pausa e então continuou, pressionando gentilmente.

      — A Princesa Shaista, por exemplo, você provavelmente a reconheceu quando a viu, porque você deve tê-la encontrado em Ramat.

      — Oh, ela estava em Ramat?

      — É muito provável — disse Poirot. — Afinal de contas, ela era aparentada com a antiga família reinante. Você poderia tê-la visto por lá.

      — Acho que não — disse Jennifer franzindo a testa. — De qualquer modo, ela não andaria por lá com o rosto à mostra, não é mesmo? Quero dizer, todas elas usam véus ou alguma coisa neste gênero. Embora, acho eu, que elas o tiram em Paris e no Cairo. E em Londres, é lógico — acrescentou.

      — De qualquer forma, você não teve a sensação de ter visto alguém em Meadowbank que já tivesse encontrado anteriormente?

      — Não, tenho certeza que não. É claro que a maioria das pessoas sempre têm alguma coisa em comum, dando a impressão de que já as vimos antes. É somente quando é um rosto estranho como o da Srta. Rich que se presta atenção.

      — Você acha que já a tinha visto em algum lugar antes?

      — Na realidade, não. Deve ter sido alguém parecido com ela. Entretanto, era uma pessoa muito mais gorda.

      — Mais gorda — repetiu Poirot pensativo.

      — Não se consegue imaginar a Srta. Rich gorda — disse Jennifer com um rizinho. — Ela é impressionantemente magra. E, de qualquer jeito, ela não poderia ter estado em Ramat, porque no último semestre estava afastada, doente.

      — E as outras meninas? Você já havia visto alguma antes?

      — Apenas as que eu já conhecia — respondeu Jennifer. — Conhecia uma ou duas delas. Afinal de contas, o senhor sabe, fiquei lá apenas três semanas e na realidade não cheguei a conhecer nem a metade das pessoas, nem ao menos de vista. Não reconheceria a maioria delas se as encontrasse amanhã.

      — Você deveria prestar mais atenção às coisas — disse Poirot com firmeza.

      — Não se pode notar tudo — protestou Jennifer. Continuou: — Se. Meadowbank continuar funcionando, eu gostaria de voltar para lá. Veja se consegue alguma coisa com a mamãe. Embora eu ache que o cabeça-dura é o papai. É horrível aqui no campo. Não tenho oportunidade de melhorar meu tênis.

      — Asseguro-lhe que vou fazer o possível — prometeu Poirot.

 

APERTANDO O PASSO

— QUERO FALAR COM VOCÊ, Eileen — disse a Srta. Bulstrode.

      Eileen Rich acompanhou a Srta. Bulstrode até a sala. Meadowbank estava estranhamente quieto. Cerca de vinte e cinco alunas ainda continuavam lá. Alunas cujos pais haviam achado difícil, ou indesejável, tirá-las.

      O alvoroço causado pelo pânico tinha-se acalmado, como esperara a Srta. Bulstrode, devido à sua tática de ação. Havia uma sensação generalizada de que até o próximo semestre tudo estaria esclarecido e resolvido. Havia sido sensato da parte da Srta. Bulstrode fechar o colégio, é o que pensavam.

      Nenhuma das professoras havia partido. A Srta. Johnson aborrecia-se com o excesso de tempo livre à sua disposição. Um dia no qual quase não havia o que fazer, não a agradava nem um pouco. A Srta. Chadwick, parecendo velha e infeliz, vagava de um lado para outro num estado lamentável. Dava a impressão de ter sido atingida muito mais profundamente do que a Srta. Bulstrode. Esta, na verdade, conseguia, aparentemente sem dificuldade, continuar a ser ela mesma, imperturbável e sem nenhum sinal de tensão ou abatimento. As duas professoras mais jovens nada tinham contra o descanso extra. Tomavam banho de piscina, escreviam longas cartas para amigos, parentes e estudavam folhetos de excursões. Ann Shapland dispunha de um bocado de tempo livre e não parecia ressentir-se por isso. Passava grande parte no jardim dedicando-se à jardinagem com eficiência inesperada. Que ela preferisse ser instruída no trabalho por Adam, ao invés do velho Briggs, talvez não fosse um fenômeno de se estranhar.

      — Sim, Srta. Bulstrode — disse Eillen Rich.

      — Tenho querido falar com você — disse a Srta. Bulstrode. — Se este colégio vai continuar ou não, eu não sei. A reação das pessoas é sempre imprevisível, porque cada uma reage de forma diferente. O resultado, entretanto, será que a reação mais forte terminará convertendo os demais. Sendo assim, ou Meadowbank acabará...

      — Não — falou a Srta. Rich, interrompendo. — Não acabará — ela quase bateu com o pé e seu cabelo começou imediatamente a se soltar. — A senhora não deve permitir isso. Seria um pecado... um crime!

      — Você fala de modo muito forte — comentou a Srta. Bulstrode.

      — É assim que eu sinto. Existem tantas coisas que, na realidade, não têm nenhuma importância! Meadowbank, porém, é uma obra que vale a pena. Senti isso desde o primeiro momento em que aqui cheguei.

      — Você é uma lutadora — observou a Srta. Bulstrode. — Administro pessoas assim e asseguro-lhe que não pretendo me entregar docilmente. De certa forma, vou gostar da briga. Você sabe que, quando tudo isto e as coisas correm bem demais, a pessoa se torna... não sei a palavra exata para o que eu quero dizer... acomodada? Enfastiada? Uma espécie de mistura das duas. Mas agora não me sinto enfastiada nem acomodada e vou lutar com todas as minhas forças e também com cada centavo que possuo. O que eu quero lhe dizer é o seguinte: se Meadowbank continuar, você gostaria de ser minha sócia?

      — Eu? — Eillen arregalou os olhos. — Eu?

      — Sim, minha cara — confirmou a Srta. Bulstrode. — Você.

      — Eu não poderia — disse Eileen Rich. — Não sei o bastante. Sou muito jovem. Ora, eu não tenho a experiência, o conhecimento que a senhora desejaria.

      — Eu sei o que quero. Note bem, no presente momento, esta não é uma boa oferta. Você provavelmente estaria melhor em outro lugar. Contudo, quero lhe dizer uma coisa e é preciso que você acredite em mim. Antes da morte lamentável da Srta. Vansittart, eu já havia decidido que você era a pessoa indicada para continuar à frente deste colégio.

      — A senhora já pensava assim antes? — Eillen Rich olhou-a surpresa. — Mas eu pensei... nós pensamos... que a Srta. Vansittart...

      — Não havia nenhum acordo feito com a Srta. Vansittart — disse Bulstrode. — Confesso que eu a tinha em mente durante estes dois últimos anos. Mas sempre alguma coisa me impedia de ter uma conversa definitiva com ela a este respeito. Atrevo-me a dizer que todo mundo pensava que seria ela a minha sucessora. Ela própria pode ter pensado assim. Também eu, até recentemente, tinha esta idéia. E então cheguei à conclusão de que ela não era bem o que eu queria.

      — Mas ela parecia tão qualificada para o cargo — comentou Eileen Rich. — Ela teria dado continuidade ao seu trabalho, seguindo fielmente as suas idéias e métodos.

      — Sim, e o erro estaria justamente aí. Não se pode ficar presa ao passado. Uma certa dose de tradição é bom, mas nunca em demasia. Um colégio é para as crianças de hoje, e não para as crianças de cinqüenta, ou mesmo de trinta anos atrás. Existem alguns colégios onde a tradição é fundamental. Entretanto, não é este o caso de Meadowbank. Não é o colégio com uma longa tradição atrás de si. É a criação, se assim posso dizer, de uma mulher. Eu. Experimentei certas idéias e levei-as adiante com o melhor de minha habilidade, embora ocasionalmente tivesse que modificá-las quando não correspondiam às minhas perspectivas. Este não é um colégio convencional, mas também não nos podemos vangloriar do contrário. É um colégio que tenta tirar o melhor partido dos dois mundos; o passado e o futuro, mas a verdadeira ênfase está no presente. É assim que vai continuar, como deve continuar. Dirigido por alguém com idéias... idéias atualizadas. Mantendo o que o passado tiver de bom e olhando em direção ao futuro. Você tem a mesma idade que eu tinha quando comecei, porém você possui o que eu não mais posso ter. Você encontrará escrito na Bíblia: Os homens idosos sonham sonhos e os jovens têm visões. Não precisamos de sonhos aqui, precisamos de visões. Acredito que você tenha visões e foi por este motivo que decidi que você era a pessoa indicada e não Eleanor Vansittart.

      — Teria sido maravilhoso — disse Eileen Rich. — Maravilhoso! A coisa que eu mais teria gostado neste mundo.

      A Srta. Bulstrode ficou surpresa com o tempo do verbo embora não o tenha demonstrado. Em vez disso, concordou imediatamente.

      — Sim — disse ela — teria sido maravilhoso. Mas agora não o é. Bem, creio que compreendo.

      — Não, não, não é isto que eu quero dizer — protestou Eileen Rich. — De forma alguma. Eu... eu não posso entrar em muitos detalhes, porém se a senhora tivesse me perguntado, falado comigo desta maneira, há uma semana ou há quinze dias atrás, eu teria dito de pronto que não poderia aceitar, que seria impossível. O único motivo por que... por que agora talvez seja possível, é porque... porque é um caso de luta... de enfrentar problemas. Posso... posso pensar no assunto, Srta. Bulstrode? Eu não sei o que dizer agora.

      — É claro — respondeu a Srta. Bulstrode. Continuava surpresa. Na realidade, ninguém conhece ninguém, pensou ela.

     

      — Lá vai a Rich com o seu cabelo se soltando como sempre — disse Ann Shapland ao se levantar de um canteiro. — Se ela não consegue mantê-lo arrumado, não sei por que não o corta. Tem a cabeça bem feita e ficaria melhor.

      — Você deveria dizer isto a ela — opinou Adam.

      — Não temos este tipo de intimidade — respondeu Ann Shapland. Continuou: — Você acha que isto aqui vai poder continuar funcionando?

      — Esta é uma pergunta difícil — disse Adam. — E quem sou eu para responder?

      — Eu diria que você sabe tanto quanto qualquer outro — falou Ann. — É possível que continue. A velha Bull, como as garotas a chamam, tem garra. Para começar, tem poder hipnótico sobre os pais. Quanto tempo se passou desde que se iniciou o semestre... só um mês? Parece um ano. Ficarei contente quando terminar.

      — No caso de o colégio continuar funcionando, você vai voltar?

      — Não — respondeu Ann com ênfase. — Não é mesmo. Já tive a minha dose de colégios para o resto da vida. E, de qualquer maneira, não fui feita para ficar presa com um bando de mulheres. E, francamente, não gosto de assassinatos. É o tipo de coisa que é divertido para se ler nos jornais, ou para se ler antes de dormir na forma de um bom livro. Entretanto, quando a coisa é verdadeira, não é tão divertido. Acho que — acrescentou Ann pensativa — quando sair daqui, no final do semestre, vou me casar com Dennis e me acomodar.

      — Dennis? Este é o tal a respeito de quem você comentou comigo, não é? Pelo que me lembro, o trabalho dele leva-o à Birmânia, Malaia, Cingapura, Japão e lugares assim. Não seria exatamente acomodar-se se você se casar com ele, seria?

      Ann riu de repente. — Não, suponho que não. Não no sentido físico, geográfico.

      — Acho que você pode conseguir coisa melhor que o Dennis — observou Adam.

      — Você está-me fazendo uma proposta! — perguntou Ann.

      — Certamente que não — respondeu Adam. — Você é uma garota ambiciosa, não se casaria com um humilde jardineiro .

      — Estava pensando em me casar com alguém que trabalha no Departamento Central de Investigações — disse Ann.

      — Não faço parte do Departamento Central de Investigações — disse Adam.

      — Não, não, é claro que não — falou Ann. — Vamos manter a conversa amena. Você não trabalha no Departamento Central de Investigações. Shaista não foi raptada. Tudo neste jardim é lindo. Muito lindo! — acrescentou olhando em volta. — De qualquer maneira — disse ela depois de um ou dois minutos — não consigo compreender o fato de Shaista aparecer em Genebra ou seja lá como foi. Como ela foi parar lá? Vocês devem ser muito displicentes para ter permitido que ela saísse do país.

      — Meus lábios estão selados — disse Adam.

      — Não creio que você saiba alguma coisa a este respeito — disse Ann.

      — Admito que temos que agradecer ao Sr. Poirot por ter tido uma idéia brilhante.

      — O quê? Aquele homem engraçado que trouxe Júlia de volta e veio procurar a Srta. Bulstrode?

      — Acho que ele é coisa do passado — opinou Ann.

      — Eu não entendo o que ele está pretendendo — disse Adam. — Chegou até a ir procurar minha mãe... ou mandou algum de seus amigos.

      — Sua mãe? Para quê?

      — Não tenho a menor idéia. Ele parece ter um interesse mórbido por mães. Também foi ver a mãe de Jennifer.

      — Por acaso ele procurou a mãe da Srta. Rich e a de Chaddy?

      — Acho que a mãe da Srta. Rich já morreu — disse Adam. — Senão, sem dúvida, ele teria ido vê-la.

      — A mãe da Srta. Chadwick mora em Cheltenham — ela me disse. Mas acho que tem cerca de oitenta anos. Pobre Srta. Chadwick, ela própria parece ter oitenta anos. Lá vem ela falar conosco.

      Adam levantou os olhos. — Sim — disse ele — ela envelheceu muito na última semana.

      — É porque ela ama este colégio realmente — observou Ann. — É a sua vida. Não suporta vê-lo desmoronar-se.

      A Srta. Chadwick parecia dez anos mais velha do que no dia do início das aulas. Seus passos haviam perdido sua agilidade e energia. Ela já não caminhava apressada e feliz. Agora vinha em direção deles, com seus passos se arrastando um pouco.

      — A Srta. Bulstrode deseja vê-lo — falou para Adam. — Tem algumas instruções para lhe dar a respeito do jardim.

      — Antes preciso me limpar um pouco — disse Adam. Ele pousou as suas ferramentas e se afastou em direção à estufa.

      Ann e a Srta. Chadwick caminharam juntas para o prédio do colégio.

      — Tudo parece tão quieto, não é mesmo? — comentou Ann, olhando em volta. — Como um teatro vazio — acrescentou pensativa — com as pessoas espalhadas habilidosamente, de modo a dar a impressão de casa cheia.

      — É terrível — disse a Srta. Chadwick. — Terrível! Pensar que Meadowbank chegou a este ponto. Não consigo me conformar. Não consigo dormir à noite. Tudo arruinado! Todos estes anos de trabalho, construindo-se algo realmente bom.

      — Pode vir a ficar tudo bem outra vez — falou Ann alegremente — A senhora sabe que as pessoas têm memória muito fraca.

      — Mas não tão fraca assim — respondeu a Srta. Chadwick, séria.

      Ann ficou calada. No fundo do seu coração, ela concordava com a Srta. Chadwick.

     

      Mademoiselle Blanche saiu da sala de aula, onde estivera ensinando literatura francesa.

      Olhou seu relógio. Sim, haveria bastante tempo para fazer o que pretendia. Naqueles dias, com tão poucas alunas, sempre havia tempo de sobra.

      Subiu até seu quarto e colocou um chapéu. Não era destas que andavam por aí sem chapéu. Estudou sua aparência no espelho, satisfeita. Não era um tipo para ser notado. Bem, poderia haver vantagens nisto. Sorriu para si mesma. Por esse motivo havia sido fácil para ela usar as credenciais de sua irmã. Até mesmo a fotografia do passaporte não fora posta em dúvida. Teria sido uma enorme pena não fazer uso daquelas excelentes referências, já que Angèle morrera. Angèle realmente gostara de lecionar. Para ela era um aborrecimento indescritível. Todavia, o pagamento era excelente. Muito acima do que ela própria jamais conseguira ganhar. E além do mais as coisas haviam saído admiravelmente bem. O futuro ia ser bem diferente. Oh, sim, bem diferente. A insípida Mademoiselle Blanche iria transformar-se. Ela viu tudo diante de seus olhos. A Riviera. Ela vestida com elegância, impecavelmente arrumada. Tudo o que a pessoa precisava neste mundo era de dinheiro. Oh, sim, tudo iria ser muito, muito agradável. Valera a pena ter vindo para este detestável colégio inglês.

      Apanhou sua bolsa, saiu do quarto e tomou o corredor. Seus olhos convergiram para a mulher ajoelhada que ali estava trabalhando. Uma nova diarista. Uma espiã da polícia, naturalmente. Como eles eram ingênuos... achar que as pessoas não iriam perceber!...

      Com um sorriso de desdém, ela saiu do prédio e tomou o caminho até o portão principal. A parada de ônibus era quase em frente. Lá, ela ficou esperando. O ônibus chegaria dentro de alguns minutos.

      Havia poucas pessoas nesta sossegada estrada do interior. Um carro com um homem debruçado sobre o capô. Uma bicicleta encostada numa cerca. Um outro homem esperando pelo ônibus.

      Um dos três, sem dúvida, iria segui-la. Seria feito habilmente, de modo que não chamasse atenção. Estava perfeitamente ciente do fato e isto não a preocupava. Sua sombra era bem-vinda para ver aonde ela iria e o que faria.

      O ônibus chegou. Ela entrou. Quinze minutos depois, desceu na rua principal da cidade. Não se deu ao trabalho de olhar para trás. Atravessou para onde as vitrinas de uma loja mostravam sua nova coleção de vestidos. Artigos baratos, para gosto provinciano, pensou ela, com desprezo. Porém permaneceu olhando como se lhe agradasse.

      Logo depois entrou na loja, fez uma ou duas compras insignificantes e, em seguida, foi ao primeiro andar onde entrou no toalete de senhoras. Lá havia uma mesa, algumas cadeiras e uma cabina telefônica. Entrou na cabina, colocou a moeda necessária, discou o número que desejava, esperando para ouvir se a voz certa atendia.

      Balançou a cabeça, satisfeita, apertou o botão A e falou.

      — Aqui é da Maison Blanche. Você está me compreendendo? A Maison Blanche. Preciso falar-lhe a respeito de uma conta que deve ser paga. Você tem até amanhã à tarde. Amanhã à tarde. A quantia que eu vou lhe dizer deve ser depositada na conta da Maison Blanche, no Crédito Nacional, de Londres, na filial de Ledbury St.

      Ela especificou a soma.

      — Caso o dinheiro não seja depositado, serei forçada a informar ao departamento competente o que vi na noite do dia doze. Diz respeito... preste atenção... à Srta. Springer. Você tem pouco mais de vinte e quatro horas.

      Desligou e saiu da cabina. Uma mulher acabara de entrar. Talvez fosse uma freguesa da loja, ou, quem sabe, talvez não. Mas se assim fosse, era tarde demais para ouvir qualquer coisa.

      Mademoiselle Blanche retocou a maquiagem no vestiário ao lado e, em seguida, experimentou algumas blusas, mas não as comprou. Tornou a sair para a rua, sorrindo para si mesma. Deu uma olhada numa livraria e depois tomou um ônibus de volta para Meadowbank.

      Ainda sorria para si mesma, enquanto caminhava pela alameda. Ela ajeitara tudo muito bem. A quantia que pedira não fora grande demais... não era impossível de ser levantada num curto período. E daria muito bem para começar. Porque, é lógico, no futuro, haveria mais exigências...

      Sim, aquilo ia ser uma ótima fonte de renda. Ela não tinha nenhum problema de consciência. Não considerava, de modo algum, dever seu informar à polícia o que tinha visto. Aquela tal de Springer havia sido uma mulher detestável, rude, mal elevée. Metendo-se em assuntos que não lhe diziam respeito. Ah, bem, ela recebera o seu castigo.

      Mademoiselle Blanche ficou parada por algum tempo perto da piscina. Observou Eileen Rich mergulhando. Então, Ann Shapland também subiu as escadas e mergulhou... muito bem, aliás. Ouviu-se os risos e os gritinhos das garotas.

      A sineta tocou e Mademoiselle Blanche entrou para dar sua aula. As aulas eram desatentas e cansativas, porém Mademoiselle Blanche mal prestou atenção a elas. Breve ela estaria livre daquilo tudo para sempre.

      Subiu para seu quarto para se arrumar para o jantar. Vagamente, sem realmente notar, viu que havia jogado seu casaco em cima de uma cadeira no canto, ao invés de pendurá-lo como de costume.

      Inclinou-se para a frente, estudando o seu rosto no espelho. Passou pó-de-arroz, batom...

      O movimento foi tão rápido que a apanhou completamente de surpresa. Sem o menor ruído. Profissional. O casaco sobre a cadeira pareceu mover-se, caiu no chão e, no mesmo instante, por trás de Mademoiselle Blanche, uma mão com um saco de areia levantou-se e, no momento em que ela abria a boca para gritar, caiu, pesada, sobre sua nuca.

 

UM INCIDENTE EM ANATÓLIA

A SRA. UPJOHN estava sentada na beirada da estrada olhando a ravina. Falava metade em francês e metade por meio de gestos a uma mulher turca, grande e pesadona, que lhe contava com o maior número de detalhes possível, sob tais dificuldades de comunicação, tudo a respeito de seu último aborto. Tivera nove filhos, explicara ela. Oito deles meninos e cinco insucessos. Parecia tão satisfeita com os abortos como com os partos.

      — E a senhora? — ela cutucou gentilmente a Sra. Upjohn nas costelas. — Combien? Garçons? Filles? Combien? — Levantou as mãos pronta para mostrar nos dedos.

      — Une fille — disse a Sra. Upjohn.

      — Et garçons?

      Percebendo que ela estava prestes a passar por uma avaliação por parte da mulher turca, a Sra. Upjohn num impulso de patriotismo preparou-se para mentir. Mostrou os cinco dedos de sua mão direita.

      — Cinq! — disse ela.

      — Cinq garçons? Très bien!

      A mulher turca balançou a cabeça em sinal de aprovação e respeito.

      Acrescentou que se ao menos a sua prima que falava francês fluentemente estivesse ali, elas poderiam entender-se muito melhor. E, em seguida, retornou à história do seu último insucesso.

      Os outros passageiros estavam espalhados por perto, comendo do exótico farnel que traziam nas cestas. O ônibus, caindo aos pedaços, estava encostado junto a uma rocha e o motorista e um outro homem mexiam no motor. A Sra. Upjohn perdera completamente a noção do tempo. Inundações haviam bloqueado duas estradas, tendo sido preciso tomar um desvio. Certa vez haviam ficado parados mais de sete horas até que o rio que transbordara diminuísse o volume das águas. Ancara ficava num local não muito remoto, isto era tudo que sabia. Ela escutava a conversa ansiosa e incoerente de sua amiga, tentando calcular quando devia balançar a cabeça em sinal de admiração ou quando sacudi-la em sinal de compreensão.

      Uma voz cortou seus pensamentos, uma voz que em nada combinava com o ambiente que a cercava.

      — Sra. Upjohn? — disse a voz.

      A Sra. Upjohn levantou os olhos. Um pouco adiante havia um carro parado. O homem a seu lado, indubitavelmente, saíra dele. Seu rosto era, sem dúvida alguma, o de um inglês, como também sua voz. Estava impecavelmente vestido, num terno de lã cinza.

      — Minha nossa! — exclamou a Sra. Upjohn. — Dr. Livingstone?

      — É, devo dar esta impressão — disse o estranho, satisfeito. — Meu nome é Atkinson. Sou do Consulado em Ancara. Estamos tentando entrar em contato com a senhora há dois ou três dias, porém as estradas estão bloqueadas.

      Queriam entrar em contato comigo? Por quê — De repente, a Sra. Upjohn ficou de pé. Todos os traços de uma alegre viajante haviam desaparecido. Ela era, deste momento em diante, toda uma mãe em preocupação.

      — Júlia? Aconteceu alguma coisa com ela?

      — Não, não — tranqüilizou o Sr. Atkinson. — Júlia está muito bem. Não se trata disso. Aconteceram uns problemas em Meadowbank e queremos que a senhora vá para lá o mais rápido possível. Levo-a de carro até Ancara e lá a senhora poderá tomar um avião imediatamente.

      A Sra. Upjohn abriu a boca tornando a fechá-la em seguida. Levantou-se e disse: — o senhor terá que apanhar milha mala em cima do ônibus. É a azul escura. — Virou-se, estendeu a mão para a sua companheira turca e falou: — Sinto muito, tenho que voltar para casa agora. Acenou para o resto do pessoal do ônibus com o máximo de cordialidade, despediu-se com uma saudação turca, parte do seu restrito vocabulário turco, e preparou-se para acompanhar o Sr. Atkinson, sem fazer nenhuma outra pergunta. Ocorreu a ele, como já ocorrera a muitas outras pessoas, que a Sra. Upjohn era uma mulher muito sensata.

 

REVELAÇÕES

NUMA DAS MENORES SALAS de aula, a Srta. Bulstrode olhava para as pessoas presentes. Todos os membros de sua equipe estavam ali; a Srta. Chadwick, a Srta. Johnson, a Srta. Rich e as duas professoras mais jovens. Ann Shapland estava com um bloco de papel e uma caneta para o caso de a Srta. Bulstrode querer tomar alguma anotação. Ao lado da Srta. Bulstrode estava o Inspetor Kelsey e em frente a ele, Hercule Poirot. Adam Goodman num terreno neutro, entre as professoras, e, como ele próprio chamava, o corpo executivo.

      A Srta. Bulstrode levantou-se e falou com uma voz firme e experiente.

      — Acho que é um direito — começou ela — da minha equipe e das interessadas no destino deste colégio saber exatamente a que ponto chegaram as investigações. Fui informada pelo Inspetor Kelsey de vários fatos. O Sr. Hercule Poirot, que possui ligações internacionais, obteve valiosa contribuição na Suíça, e ele próprio irá falar a respeito deste assunto em especial. Lamento dizer que ainda não chegamos ao final das averiguações, porém certos assuntos de menor importância foram esclarecidos e achei que seria um alívio para todas vocês saber em que pé estão os acontecimentos. — A Srta. Bulstrode olhou para o Inspetor Kelsey. Ele se levantou.

      — Oficialmente — iniciou ele — não me encontro numa posição de poder revelar tudo que sei. Posso apenas tranqüilizá-las dizendo que estamos obtendo progressos e começando a ter uma idéia de quem possa ser o responsável pelos três crimes cometidos neste local. Mais do que isso não posso adiantar. Meu amigo, Hercule Poirot, que não está preso a segredos oficiais e que tem inteira liberdade de apresentar-lhes suas próprias idéias, irá revelar-lhes certas informações que ele próprio obteve. Estou seguro de que todas as senhoras são leais a Meadowbank e à Srta. Bulstrode, e que guardarão para si mesmas os fatos que o Sr. Poirot irá relatar e que são de interesse público. Quanto menos comentários, melhor; sendo assim, peço-lhes que mantenham segredo do que irão ouvir hoje aqui. Está entendido?

      — É claro — disse a Srta. Chadwick, falando em primeiro lugar e com ênfase. — É lógico que todos somos leais a Meadowbank, assim eu espero.

      — Naturalmente — falou a Srta. Johnson.

      — Oh, sim! — exclamaram as duas professoras mais jovens.

      — Eu concordo — disse Eillen Rich.

      — Então, por favor, Sr. Poirot.

      Hercule Poirot levantou-se, fez uma reverência à audiência e cuidadosamente cofiou o bigode. As duas jovens professoras tiveram um súbito desejo de rir e, apertando os lábios, desviaram o olhar uma da outra.

      — Tem sido uma época difícil e angustiante para todas as senhoras — começou ele. — Desejo, em primeiro lugar, dizer-lhes o quanto lamento. Naturalmente que tem sido pior para a Srta. Bulstrode; entretanto, as senhoras todas sofreram. Sofreram, em primeiro lugar, a perda de três colegas, uma delas que estava aqui há bastante tempo. Refiro-me à Srta. Vansittart. A Srta. Springer e Mademoiselle Blanche eram, é óbvio, novatas, contudo não tenho dúvidas de que a morte delas foi um grande choque para todas e um acontecimento lamentável. As senhoras devem também ter passado por uma grande dose de apreensão por ter-lhes parecido que fosse um ato de algum louco dirigido às professoras de Meadowbank. Posso assegurar-lhes que não se trata de nada disso e o Inspetor Kelsey poderá confirmar minhas palavras. Meadowbank, por uma série de coincidências, tornou-se o centro de atenções de vários interesses indesejáveis. Existe, eu diria, um gato entre os pombos. Houve três assassinatos e um rapto. Tratarei em primeiro lugar do rapto, pois nesta história toda a dificuldade tem sido esclarecer-se os fatos de menor importância, embora criminosos, que obscurecem, as pistas mais importantes... as pistas que levam a um assassino cruel e impiedoso agindo entre as senhoras.

      Apanhou uma fotografia em seu bolso.

      — Quero mostrar-lhes esta foto.

      Kelsey apanhou-a, entregando-a à Srta. Bulstrode que, por sua vez, passou-a à equipe. Foi devolvida a Poirot. Ele olhou para seus rostos que estavam inexpressivos.

      — Pergunto-lhes se reconhecem a jovem desta foto.

      Todas balançaram a cabeça em negativa.

      — Pois deveriam — disse Poirot. — Já que é a fotografia que obtive em Genebra da Princesa Shaista.

      — Mas esta não é a Princesa Shaista! — exclamou a Srta. Chadwick.

      — Exato — falou Poirot. — O fio da meada começa em Ramat onde, como sabem, houve uma revolução há cerca de três meses atrás. O então governante, Príncipe Ali Yusuf, conseguiu fugir, levado pelo seu piloto particular. O avião, entretanto, caiu nas montanhas ao norte de Ramat e só foi descoberto mais tarde. Um certo artigo, de grande valor, que o Príncipe Ali Yusuf sempre carregava consigo, sumiu. Não foi encontrado entre os destroços do avião e espalharam-se boatos de que tivesse sido trazido para este país. Vários grupos de pessoas estavam ansiosas para se apossarem destes valores. Um dos caminhos para isto era a única parenta viva do Príncipe Ali Yusuf, sua prima, uma jovem que, na ocasião, estudava na Suíça. Parecia provável que, se o precioso artigo tivesse sido levado para fora de Ramat em segurança, deveria ser entregue à Princesa Shaista, seus parentes ou guardiões. Certos agentes foram destacados para vigiarem a própria Princesa. Era sabido que ela deveria vir para este colégio, Meadowbank. Sendo assim, seria apenas natural que alguém fosse designado para conseguir emprego aqui e observar atentamente se alguma pessoa se aproximava da Princesa, sua correspondência e qualquer chamada telefônica. Todavia surgiu uma idéia mais simples e mais eficaz, a de raptar Shaista e mandar alguém do grupo para o colégio no lugar da verdadeira princesa. Isto poderia ser feito com sucesso já que o Emir Ibrahim encontrava-se no Egito e só pretendia visitar a Inglaterra no final do verão. A Srta. Bulstrode não conhecia a garota pessoalmente. Todos os contatos que fizeram a respeito de sua vinda havia sido através da Embaixada de Londres.

      — Este plano era simples ao extremo. A verdadeira Shaista deixou a Suíça acompanhada por um representante da embaixada de Londres. Ou era o que se supunha. Na realidade, a Embaixada de Londres foi informada de que um representante do colégio suíço acompanharia a jovem a Londres. Shaista foi levada para um agradável chalé na Suíça, onde está desde então, e uma garota completamente diferente chegou a Londres, sendo recebida por um representante da embaixada e em seguida trazida para este colégio. Esta substituta, é lógico, era necessariamente muito mais velha do que a verdadeira Shaista. Todavia isto dificilmente chamaria atenção já que as garotas orientais costumam parecer muito mais velhas do que a sua verdadeira idade. Uma jovem atriz, cuja especialidade é representar papéis de colegiais, foi a agente escolhida.

      — Eu perguntei — disse Poirot, num tom pensativo — se alguém reparara os joelhos de Shaista. Os joelhos são um indicativo de idade. Os joelhos de uma mulher de vinte e três ou vinte e quatro anos nunca podem ser tomados por joelhos de uma menina de quatorze ou quinze anos. Ninguém, infelizmente, notara os joelhos.

      O plano não foi o sucesso que eles haviam esperado. Ninguém tentou entrar em contato com Shaista, nenhuma carta ou chamada telefônica de importância chegou para ela e com o passar do tempo a ansiedade aumentava cada vez mais. O Emir Ibrahim poderia chegar à Inglaterra antes do esperado. Não é um homem de anunciar seus planos com antecedência. Tem o costume, pelo que eu soube, de dizer, sem mais nem menos — Amanhã vou para Londres — e embarcar logo após.

      — A falsa Shaista estava, então, ciente de que, a qualquer momento, alguém que conhecia a verdadeira Shaista poderia chegar, especialmente depois do assassinato, e por este motivo ela começou a preparar o caminho para o rapto, falando a este respeito com o Inspetor Kelsey. É óbvio que o verdadeiro rapto já havia ocorrido. Assim que ela soube que seu tio viria buscá-la na manhã seguinte, enviou uma rápida mensagem pelo telefone e, meia hora antes de o carro certo chegar, um carro vistoso com uma placa falsa do CD apareceu e Shaista foi oficialmente raptada. Na realidade, ela foi deixada na primeira cidade, onde, imediatamente, retomou sua própria personalidade. Uma nota de resgate foi enviada para manter a ficção.

      Hercule Poirot fez uma pausa e então disse: — Foi, como podem ver, apenas um truque teatral para desviar a atenção. A pessoa focaliza um rapto aqui e não ocorre a ninguém que o rapto realmente aconteceu há três semanas antes, na Suíça.

      O que Poirot queria dizer na verdade, porém era educado demais para fazê-lo, é que não ocorrera a ninguém a não ser a ele mesmo.

      — Passaremos agora — continuou ele — a algo muito mais sério que rapto... assassinatos.

      — A falsa Shaista poderia, é evidente, ter matado a Srta. Springer, mas não poderia ter matado a Srta. Vansittart nem Mademoiselle Blanche e, não teria motivo para fazê-lo, nem tal coisa havia sido exigido dela. Seu papel era simplesmente o de receber um valioso pacote se, como parecia provável, fosse entregue a ela, ou então receber notícias dele.

      — Voltemos para Ramat onde tudo começou. Foi espalhado por toda Ramat o boato de que o Príncipe Ali Yusuf havia entregue este valioso pacote a Bob Rawlinson, seu piloto particular, e que Bob Rawlinson foi ao hotel principal de Ramat onde sua irmã a Sra. Sutcliffe e sua filha Jennifer estavam hospedadas. Elas haviam saído, porém Bob subiu até o quarto onde permaneceu pelo menos vinte minutos. É um tempo bastante longo sob as circunstâncias. Ele poderia, é claro, ter estado escrevendo uma longa carta para sua irmã. Contudo não foi assim. Deixou somente um pequeno bilhete que poderia ter sido escrito em dois minutos.

      — Foi uma suposição válida, feita por diferentes grupos interessados, a de que, durante o tempo que Bob permaneceu naquele quarto, colocara estes valores entre os pertences de sua irmã e que ela os trouxera para a Inglaterra. Agora chegamos ao que eu poderia chamar a divisão de caminhos. Um grupo de interessados (ou talvez mais de um) presumiu que a Sra. Sutcliffe tivesse trazido estes bens para a Inglaterra e, em conseqüência disto, sua casa foi assaltada e uma busca minuciosa foi feita. Isto mostra que quem estava procurando não sabia onde exatamente o que procurava estava escondido. Somente suspeitava que fosse provável que estivesse entre os pertences da Sra. Sutcliffe.

      — Entretanto, havia alguém que sabia com certeza absoluta onde estava, e acho que a esta altura não causará nenhum problema revelar-lhe onde, na realidade, Bob Rawlinson o escondera: no cabo de uma raqueta de tênis, cavando ali um buraco e em seguida juntando as peças novamente com tanta habilidade que seria difícil notar-se o que fora feito.

      — A raqueta de tênis pertencia não à sua irmã, mas sim a Jennifer. Alguém que sabia exatamente o lugar do esconderijo foi ao Pavilhão de Esportes certa noite, tendo, previamente, tirado o molde e mandado fazer uma chave. Àquela hora da noite, todos deveriam estar dormindo. Mas não foi o que aconteceu. Do prédio do colégio, a Srta. Springer viu uma luz de lanterna no Pavilhão de Esportes e saiu para investigar. Era uma jovem mulher forte e valente e não tinha dúvida quanto à sua própria capacidade de enfrentar qualquer perigo que encontrasse. A pessoa em questão provavelmente estava mexendo nas raquetas para ver se encontrava o que procurava. Sendo descoberta e reconhecida pela Srta. Springer, não hesitou... O invasor era o assassino e atirou, matando a Srta. Springer. Depois, entretanto, o criminoso teve que agir depressa. O tiro fora ouvido e pessoas se aproximavam. A todo custo, precisava sair do Pavilhão de Esportes sem ser visto. Por enquanto, a raqueta teria que ficar onde estava...

      — Poucos dias depois, um novo método foi tentado. Uma mulher estranha, com um falso sotaque americano, ficou na emboscada, esperando Jennifer, quando esta saía da quadra de tênis Contou-lhe uma história plausível sobre uma parenta sua ter-lhe mandado ali, com uma nova raqueta de tênis. Jennifer, sem nada suspeitar, aceitou a história e, com satisfação, trocou a raqueta que carregava pela nova, que a estranha trouxera. Mas havia acontecido algo que a mulher ignorava. Poucos dias antes, Jennifer Sutcliffe e Júlia Upjohn haviam trocado de raquetas. Deste modo, a que a estranha levou era, na realidade, a velha raqueta de Júlia Upjohn, embora o adesivo trouxesse o nome de Jennifer.

      — Chegamos agora à segunda tragédia. A Srta. Vansittart, por alguma razão que desconhecemos, mas possivelmente ligada ao rapto de Shaista que tivera lugar naquela tarde, apanhou uma lanterna e foi até o Pavilhão depois de todos terem ido se deitar. Alguém que a seguira até lá golpeou-a com um cacete ou um saco de areia, enquanto ela estava abaixada em frente do armário de Shaista. Mais uma vez o crime foi descoberto quase que imediatamente. A Srta. Chadwick viu uma luz no Pavilhão e foi rapidamente para lá.

      — A polícia, outra vez, interditou o Pavilhão de Esportes. E o assassino fora impedido de procurar e examinar as raquetas de tênis. Porém, a esta altura, Júlia Upjohn, uma menina inteligente, havia pensado no assunto e chegara à conclusão lógica de que a raqueta que estava em seu poder e que originalmente pertencera a Jennifer era, de algum modo, importante. Investigando por conta própria, descobriu que estava certa em sua suposição, levando para mim o que encontrou na raqueta.

      — Que está agora — disse Poirot — guardado em segurança, e quanto a isto não nos precisamos preocupar mais. — Fez uma pausa e então prosseguiu: — resta analisar a terceira tragédia.

      — O que Mademoiselle Blanche sabia ou suspeitava, jamais saberemos. Ela pode ter visto alguém saindo do prédio do colégio na noite do assassinato da Srta. Springer. Seja lá o que for, ela conhecia a identidade do criminoso. E guardou este segredo para si mesma. Planejava obter dinheiro em troca de seu silêncio.

      — Não há nada — afirmou Hercule Poirot com veemência — mais perigoso do que chantagear uma pessoa que talvez já tenha matado duas vezes. Mademoiselle Blanche pode ter tomado suas precauções, porém foram inadequadas. Marcou um encontro com o assassino e foi assassinada.

      Fez uma nova pausa.

      — Aí está, então — disse ele olhando para os presentes, — o relato de todo o caso.

      Todos o encaravam. Seus rostos, onde a princípio estava refletido interesse, surpresa, agitação, pareciam agora congelados numa calma uniforme. Era como se estivessem apavorados de demonstrar qualquer emoção. Hercule Poirot balançou a cabeça.

      — Sim — disse ele, — entendo como se sentem. Tudo se passando muito próximo. É por isto que eu, o Inspetor Kelsey e o Sr. Adam Goodman estivemos fazendo investigações. Precisamos saber se ainda há um gato entre os pombos. Entendem o que eu quero dizer? Se ainda existe alguém aqui que se está escondendo sob um falso colorido.

      Ouviu-se um leve murmurar entre os que o escutavam. Um ligeiro, quase furtivo, olhar disfarçado, como se desejassem olhar um para o outro, mas não ousassem fazê-lo.

      — Fico feliz em poder tranqüilizar-lhes — disse Poirot. — Todas as senhoras são exatamente quem alegam ser. A Srta. Chadwick, por exemplo é a Srta. Chadwick... quanto a isto certamente não havia dúvida, já que ela está aqui há tanto tempo quanto o próprio Meadowbank. A Srta. Johnson também é, indubitavelmente, a Srta. Johnson. A Srta. Rich é a Srta. Rich. A Srta. Shapland é a Srta. Shapland. A Srta. Rowan e a Srta. Blake são a Srta. Rowan e a Srta. Blake. Para ir mais longe — falou Poirot, virando a cabeça, — Adam Goodman, que trabalha aqui como jardineiro, se não é precisamente Adam Goodman, é de qualquer modo a pessoa cujo nome está em suas credenciais. Sendo assim então, em que ponto ficamos? Precisamos procurar não por alguém que se esteja escondendo sob uma falsa identidade, mas por alguém que, sob sua verdadeira identidade, é um assassino.

      A sala, agora, estava completamente silenciosa. Havia uma ameaça no ar.

      Poirot prosseguiu:

      — Procuramos, em primeiro lugar, alguém que estava em Ramat há três meses atrás. O conhecimento de que os bens estavam escondidos na raqueta de tênis só poderia ter sido obtido de uma maneira. Alguém deve ter visto Bob Rawlinson colocá-los ali. Isto é óbvio. Quem então, de todas vocês aqui presentes, estava em Ramat há três meses atrás? A Srta. Chawick estava aqui. A Srta. Johnson estava aqui. — Dirigiu seu olhar para as duas jovens professoras. — A Srta. Rowan e a Srta. Blake também estavam aqui.

      Seu dedo continuou apontando.

      — Mas a Srta. Rich... a Srta. Rich não estava aqui no último semestre, estava?

      — Eu... não. Eu estava doente. Falou apressada: — Estive fora por um semestre.

      — Isto nós não sabíamos até há poucos dias atrás, quando alguém mencionou o fato casualmente — comentou Poirot. — Quando interrogada pela polícia, a senhorita declarou que trabalhava em Meadowbank há um ano e meio. Isto em si é verdade. Entretanto, a senhorita esteve ausente no último semestre. Poderia ter estado em Ramat... acho que esteve em Ramat. Tome cuidado. Pode ser verificado, como sabe, pelo seu passaporte.

      Houve um momento de silêncio e então Eileen Rich ergueu os olhos.

      — Sim — disse calmamente. — Estive em Ramat. Por que não?

      — Por que motivo foi para Ramat, Srta. Rich?

      — O senhor já sabe, eu estava doente. Fui aconselhada a descansar... a fazer uma viagem. Escrevi para a Srta. Bulstrode explicando que precisava me ausentar durante um semestre. Ela entendeu perfeitamente.

      — É verdade — confirmou a Srta. Bulstrode. — Junto havia um atestado médico que dizia ser desaconselhável para a Srta. Rich prosseguir com seu trabalho no período seguinte.

      — Então a senhorita foi para Ramat — disse Hercule Poirot.

      — Por que eu não deveria ir para lá? —, falou Eileen Rich. Sua voz tremia ligeiramente. — Oferecem tarifas baratas a professoras. Eu precisava descansar. Queria sol. Fui para Ramat. Passei dois meses lá. Por que não. Por que não, pergunto eu?

      — A senhorita nunca mencionou que estivera em Ramat na época da revolução.

      — Por que deveria eu? O que isto tem a ver com as pessoas aqui? Não matei ninguém, posso-lhe garantir. Não matei ninguém.

      — A senhorita foi reconhecida, sabia? — disse Poirot. Não com exatidão. Jennifer foi muito vaga. Disse que achava que a tinha visto em Ramat, porém concluiu que não poderia ser, porque a pessoa que ela vira era gorda, não magra. — Ele se inclinou para a frente, seus olhos fixos no rosto de Eileen Rich.

      — O que tem a declarar, Srta. Rich?

      Ela revidou:

      — Estou sabendo o que o senhor está tentando fazer! — gritou ela. — Está tentando provar que não foi um agente secreto ou algo deste tipo quem cometeu estes assassinatos. Que foi alguém que simplesmente estava aqui, alguém que viu este tesouro ser escondido numa raqueta de tênis. Alguém que sabia que a garota vinha para Meadowbank e que então teria a oportunidade de apanhar o que estava escondido. Mas eu lhe digo que não é verdade.

      — Acho que foi exatamente isto que aconteceu. Sim — falou Poirot. — Alguém viu as pedras serem escondidas e esqueceu-se de todas as suas obrigações e interesses no propósito de possuí-las.

      — Não é verdade, eu lhe digo. Eu não vi nada...

      — Inspetor Kelsey — Poirot virou o rosto.

      O Inspetor Kelsey balançou a cabeça foi até à porta, abriu-a e a Sra. Upjohn entrou na sala.

     

      — Como vai, Srta. Bulstrode? — cumprimentou a Sra. Upjohn, parecendo um pouco embaraçada. — Desculpe-me por estar um tanto desarrumada, porém eu ontem me encontrava em algum lugar perto de Ancara e acabo de chegar de avião. Estou com uma aparência terrível, mas realmente não tive tempo de me ajeitar ou de fazer nada.

      — Isto não tem importância — garantiu Hercule Poirot. — Queremos perguntar-lhe algo.

      — Sra. Upjohn — falou Kelsey, — quando a senhora veio trazer sua filha para este colégio e estava na sala da Srta. Bulstrode, a senhora olhou pela janela... a janela que dá para o pátio da frente... e soltou uma exclamação como se reconhecesse alguém que tivesse visto ali. Estou certo?

      A Sra. Upjohn encarou-o surpresa. — Quando eu estava na sala da Srta. Bulstrode? Olhei... oh, sim, é claro. Sim, eu vi alguém.

      — Alguém que a senhora ficou surpresa em ver?

      — Bem, um tanto... Sabe, havia sido há tantos anos atrás.

      — Refere-se ao tempo em que a senhora trabalhava para o Serviço Secreto, na época da guerra?

      — Sim, há cerca de quinze anos atrás. É lógico que ela parecia bem mais velha, entretanto eu a reconheci de imediato. E fiquei imaginando o que ela estaria fazendo aqui.

      — Sra. Upjohn, poderia olhar e dizer se esta pessoa se encontra nesta sala?

      — Sim, é claro — disse a Sra. Upjohn. — Eu a vi assim que entrei. É ela.

      Apontou com o dedo. O Inspetor Kelsey foi rápido, como também o foi Adam; porém não foram rápidos o bastante. Ann Shapland levantara-se num pulo. Em sua mão havia uma pequena pistola automática, apontando diretamente para a Sra. Upjohn. A Srta. Bulstrode, mais ligeira do que os dois homens, avançou. Entretanto, mais rápida ainda fora a Srta. Chadwick. Não era a Sra. Upjohn que ela tentava proteger, era a mulher que estava entre Ann Shapland e a Sra. Upjohn.

      — Não, não faça isto — gritou Chaddy, atirando-se na frente da Srta. Bulstrode no momento em que a pistola disparava.

      A Srta. Chadwick cambaleou e caiu. A Srta. Johnson correu até ela. A esta altura, Adam e Kelsey haviam segurado Ann Shapland. Ela se debatia como um gato selvagem, porém eles conseguiram arrancar a automática de sua mão.

      A Sra. Upjohn falou ofegante:

      — Na ocasião diziam que ela era uma assassina. Embora fosse tão jovem. Um dos agentes mais perigosos que eles tinham. Angélica, este era seu nome de código.

      — Sua cadela mentirosa! — Ann Shapland gritou as palavras com todas as letras.

      Hercule Poirot disse:

      — Ela não está mentindo. Você é mesmo perigosa. Sempre levou uma vida perigosa. Até agora nunca suspeitaram de você sob a sua verdadeira identidade. Todos os empregos que você teve usando seu próprio nome foram empregos perfeitamente legítimos, realizados com eficiência... mas todos com um propósito, e este propósito tem sido a obtenção de informações. Você trabalhou para uma Companhia de Petróleo; para um arqueólogo, cujo trabalho o levava para uma determinada parte do globo; para uma atriz, cujo protetor era um eminente político. Desde que tinha dezessete anos você tem trabalhado como agente... embora para diferentes patrões. Seu trabalho é para quem der mais e sempre regiamente pago. Você tem desempenhado um duplo papel. A maior parte de suas tarefas foi executada sob o seu nome verdadeiro, contudo havia certos serviços para os quais você assumia identidades diferentes. Era, nestas ocasiões, que você ostensivamente tinha que ir para casa, ficar com sua mãe.

      — Porém tenho forte suspeita, Srta. Shapland, que aquela senhora idosa que eu visitei e que mora numa pequena vila com uma outra senhora, que é ao mesmo tempo enfermeira e dama de companhia, e que é nitidamente uma doente mental, não é de forma alguma sua mãe. Ela tem sido a sua desculpa para se afastar do seu círculo de amigos e de seus empregos. Os três meses deste inverno que passou com sua mãe que tivera uma de suas crises, encobre o tempo que esteve em Ramat. Não como Ann Shapland, mas como Angélica de Toledo, uma dançarina de cabaré espanhola, ou quase espanhola. Você ocupou, no hotel, o quarto vizinho ao da Sra. Sutcliffe e, de alguma maneira, conseguiu ver Bob Rawlinson esconder as pedras preciosas na raqueta. Naquela ocasião você não teve oportunidade de apanhar a raqueta, pois houve uma repentina evacuação de todos os cidadãos britânicos, porém você leu a etiqueta na bagagem e foi fácil descobrir alguma coisa a respeito de sua dona. Obter um posto de secretária aqui, não foi difícil. Fiz algumas investigações. Você pagou uma soma substancial à antiga secretária da Srta. Bulstrode para que ela deixasse seu emprego alegando um esgotamento nervoso. E você tinha uma história bastante convincente. Fora incumbida de escrever uma série de artigos a respeito de um famoso colégio de moças visto por dentro.

      — Tudo parecia muito simples, não parecia? — continuou Poirot. — Se dessem por falta de uma raqueta de tênis de uma das alunas, que importância teria? Mais fácil ainda seria ir à noite ao Pavilhão de Esportes e retirar as pedras. Todavia você não contava com a Srta. Springer. Talvez ela já tivesse visto você examinando as raquetas. Ou talvez, por um acaso, houvesse acordado naquela noite. Ela a seguiu até lá e você a matou. Mais tarde, Mademoiselle Blanche tentou chantageá-la e você também a matou. Para você, matar é uma coisa simples, não é?

      Ele se calou. Falando num tom oficial, o Inspetor Kelsey deu voz de prisão.

      Ela não deu atenção. Virando-se para Hercule Poirot, explodiu em insultos grosseiros que deixou a todos estarrecidos.

      — Céus! — exclamou Adam, quando Kelsey a levou. — E eu que pensava que ela fosse uma boa moça!

      A Srta. Johnson estivera o tempo todo ajoelhada ao lado da Srta. Chadwick.

      — Receio que esteja gravemente ferida — disse ela. — É melhor não removê-la até que o médico chegue.

 

POIROT EXPLICA

A SRA. UPJOHN, percorrendo os corredores de Meadowbank, esqueceu a cena excitante que acabara de presenciar. No momento ela era apenas uma mãe procurando por sua filha. Encontrou-a numa sala de aula deserta. Júlia estava curvada sobre uma carteira, mordendo a língua, absorta nas agonias de uma composição.

      Ela levantou a cabeça e arregalou os olhos. Correu e abraçou a mãe.

      — Mamãe!

      Então, com a autocrítica própria da sua idade, envergonhada da sua emoção incontida, soltou-se e falou num tom propositalmente casual... na verdade, quase acusador: — Você não voltou um tanto cedo, mamãe?

      — Vim de avião — respondeu a Sra. Upjohn, quase se desculpando. — De Ancara.

      — Oh! — exclamou Júlia. — Bem, estou contente que esteja aqui.

      — Sim — disse a Sra. Upjohn. — Eu também estou muito contente.

      Olharam-se embaraçadas. — O que está fazendo? — perguntou a Sra. Upjohn, aproximando-se um pouco mais.

      — Estou escrevendo uma composição para a Srta. Rich — explicou Júlia. — Ela realmente escolhe os assuntos mais interessantes.

      — Qual é este? — indagou a Sra. Upjohn, inclinando-se para olhar.

      O tema estava escrito no alto da página. Abaixo havia umas nove ou dez linhas escritas com a caligrafia incerta e esparramada de Júlia: Analise as atitudes de Macbeth e de Lady Macbeth em relação a assassinatos.

      — Bem — falou ela incerta, — você não pode dizer que o assunto não seja atual.

      Leu o começo da dissertação de sua filha.

      Macbeth [escrevera Júlia] gostou da idéia de matar e estivera pensando bastante sobre isto, porém precisava um empurrão inicial. No momento em que começou, ele sentiu prazer em assassinar as pessoas e não teve mais escrúpulos nem medo. Lady Macbeth era apenas gananciosa e ambiciosa. Ela achou que não iria se importar com o que ela fizesse para conseguir o que queria. Porém quando o fez, descobriu que, na verdade, não gostava daquilo.

      — A sua linguagem não é muito elegante — observou a Sra. Upjohn. — Acho que você terá que melhorar um pouco, mas sem dúvida tem aí um bom ponto de partida.

     

      O Inspetor Kelsey falava num tom levemente queixoso.

      — Está tudo muito bem, Poirot — disse ele. — Você pode dizer e fazer uma porção de coisas que nós não podemos e admito que o negócio todo foi muito bem engendrado. Deixá-la desprevenida, fazê-la pensar que estávamos atrás da Rich e, então, a súbita aparição da Sra. Upjohn fazendo com que ela perdesse a cabeça. Graças a Deus ela guardou a sua pistola depois de matar a Springer. Se a bala combinar...

      — Vai combinar, mon ami, vai combinar — afirmou Poirot.

      — Então podemos prendê-la pela morte de Springer. E acho que a Srta. Chadwick encontra-se em péssimo estado. Mas olhe aqui, Poirot, eu ainda não consegui entender como ela poderia ter matado a Srta. Vansittart. É fisicamente impossível. Ela tem um álibi fortíssimo... a não ser que o jovem Rathbone e todos os empregados do Nid Sauvage sejam seus cúmplices.

      Poirot balançou a cabeça. — Oh, não. Seu álibi é verdadeiro. Ela matou a Srta. Springer e Mademoiselle Blanche. Porém a Srta. Vansittart... —-ele hesitou por um momento, seu olhar indo até onde a Srta. Bulstrode estava sentada, escutando-os. A Srta. Vansittart foi assassinada pela Srta. Chadwick.

      — A Srta. Chadwick?! — exclamaram a Srta. Bulstrode e Kelsey ao mesmo tempo.

      Poirot balançou a cabeça. — Tenho certeza absoluta.

      — Mas... por quê?

      — Acho — disse Poirot — que a Srta. Chadwick amava demais Meadowbank... — Seu olhar encontrou o da Srta. Bulstrode.

      — Entendo — disse ela. — Sim, sim, entendo... eu deveria ter sabido. — Fez uma pausa. — O senhor quer dizer que ela...

      — Quero dizer que ela começou aqui com a senhora e que o tempo todo ela encarou Meadowbank como uma realização de ambas.

      — O que de certa forma é verdade — falou a Srta. Bulstrode.

      — Exato — disse Poirot. — Porém este era apenas o aspecto financeiro. Quando a senhora começou a falar em aposentar-se, ela achou que seria sua substituta.

      — Mas ela é muito idosa — objetou Bulstrode.

      — Sim — concordou Poirot. — Ela é muito idosa e não é adequada para ser uma diretora. Ela, porém, não pensava assim. Tinha, como certo, que quando a senhora se retirasse, ela se tornaria diretora de Meadowbank. E aí descobriu que não era assim. Que a senhora tinha outra pessoa em mente, que voltara seu interesse para Eleanor Vansittart. E ela amava Meadowbank. Amava o colégio e não gostava de Eleanor Vansittart. Acho que no final ela a detestava.

      — É possível — disse a Srta. Bulstrode. — Sim, Eleanor Vansittart era... como vou explicar? Era sempre muito segura de si mesma, muito superior em relação a tudo. Isto é difícil de se suportar se a pessoa sente ciúmes. É isto que o senhor quer dizer, não é? Chaddy sentia ciúmes.

      — Sim — confirmou Poirot. — Tinha ciúmes de Meadowbank e de Eleanor Vansittart. Não podia suportar a idéia do colégio e da Srta. Vansittart juntos. E depois talvez alguma coisa em sua atitude a tenha levado a pensar que a senhora estava fraquejando.

      — Está certo, mas não do modo como talvez Chaddy tenha pensado. Na realidade, eu pensei em alguém mais jovem, mais jovem ainda que a Srta. Vansittart. Refleti melhor e então disse: — Não, ela é jovem demais... — lembro-me que naquele momento Chaddy estava comigo.

      — E ela pensou — disse Poirot — que a senhora estava se referindo à Srta. Vansittart. Que estava dizendo que a Srta. Vansittart era jovem demais. Ela concordava com isto inteiramente. Achava que a experiência e a sabedoria que ela possuía eram fatores muito mais importantes. Mas então, apesar de tudo, a senhora voltou à sua decisão original. Escolheu Eleanor Vansittart como a pessoa certa para deixar, naquele fim de semana, na direção do colégio.

      Acho que foi o que aconteceu. Naquela noite de domingo, a Srta. Chadwick estava inquieta. Levantou-se e viu luz no Pavilhão de Esportes. Foi até lá, exatamente como contou. Há apenas um detalhe diferente. Não foi um taco de golfe que ela levou. Ela apanhou um dos sacos de areia da pilha no hall. Saiu pronta para enfrentar um ladrão, alguém que, pela segunda vez, invadira o Pavilhão. Estava com o saco de areia pronto em sua mão para se defender, caso atacada. O que encontrou ela? Encontrou Eleanor Vansittart ajoelhada em frente a um armário e ela pensou, é possível... (pois sou bom — disse Poirot num parêntese — em colocar-me no lugar de outras pessoas) — ela pensou, que se eu fosse um assaltante, um ladrão, eu me aproximaria por trás e a golpearia. E quando este pensamento surgiu em sua mente, apenas semiconsciente do que estava fazendo, levantou o saco de areia e deu o golpe. E lá estava Eleanor Vansittart morta, fora de seu caminho. Acho que aí ficou horrorizada com o que fizera. Isto a tem torturado desde então, pois ela não é uma assassina nata. Ela foi impulsionada, como algumas pessoas o são, por ciúme e obsessão. A obsessão de seu amor por Meadowbank. Agora, com Eleanor Vansittart morta, ela estava bem certa de que seria sua sucessora em Meadowbank. Sendo assim, ela não confessou seu crime Contou à polícia a história como realmente acontecera, exceto por um ponto vital, que fora ela quem dera o golpe. Entretanto, quando lhe perguntaram a respeito do taco de golfe que, provavelmente, a Srta. Vansittart levara consigo por estar nervosa depois de tudo que acontecera, a Srta. Chadwick apressou-se em responder que fora ela quem o levara até lá. Não queria que pensassem, nem por um segundo, que ela carregara o saco de areia.

      — Por que Ann Shapland também escolheu um saco de areia para matar Mademoiselle Blanche? — indagou a Srta. Bulstrode.

      — Primeiro, porque ela não poderia arriscar-se com o barulho de um tiro de revólver no prédio do colégio e, segundo, porque é uma jovem muito esperta. Queria ligar este terceiro assassinato com o segundo, para o qual tinha um álibi.

      — Não consigo compreender o que Eleanor Vansittart estava fazendo no Pavilhão de Esportes — falou a Srta. Bulstrode.

      — Acho que podemos fazer uma suposição. Ela provavelmente estava muito mais preocupada com o desaparecimento de Shaista do que se permitia demonstrar. Estava tão inquieta quando a Srta. Chadwick. De certo modo, era pior para ela, pois a senhora a deixara encarregada do colégio e o rapto ocorrera enquanto ela era responsável. Além do mais, havia dado pouca importância ao fato por uma relutância em encarar de frente fatos desagradáveis.

      — Então havia fraqueza por trás daquela fachada — comentou a Srta. Bulstrode absorta em seus pensamentos. — Algumas vezes suspeitei disto.

      — Creio que ela também não conseguia conciliar o sono. E acredito que foi, sorrateiramente, até o Pavilhão de Esportes para dar uma busca no armário de Shaista a fim de verificar se lá havia alguma pista que explicasse o desaparecimento da jovem.

      — O senhor parece ter explicação para tudo, Sr. Poirot.

      — Esta é a sua especialidade — disse o inspetor com uma ligeira malícia.

      — E o que o senhor, pretendia ao pedir que Eileen Rich lhe desenhasse o retrato de vários membros da minha equipe?

      — Desejava testar a habilidade de Jennifer em reconhecer um rosto. Logo cheguei à conclusão de que Jennifer estava tão absorvida em seus próprios interesses que dispensava aos outros, no máximo, um olhar superficial, notando apenas os detalhes externos de suas aparências. Ela não reconheceu o retrato de Mademoiselle Blanche com um penteado diferente. Muito menos ainda, ela reconheceria Ann Shapland que, como sua secretária particular, raramente tinha oportunidade de ver de perto.

      — O senhor acha que a mulher com a raqueta era a própria Ann Shapland?

      — Sim. Foi tudo obra de uma só mulher. A senhora está lembrada do dia em que tocou a campainha para chamá-la a fim de que levasse um recado para Júlia? E no final, como o chamado não era atendido, mandou uma menina procurar Júlia? Ann estava habituada a usar disfarces. Uma peruca loura, sobrancelhas desenhadas de modo diferente, um vestido enfeitado e um chapéu. Precisava se afastar de sua máquina de escrever por apenas cerca de vinte minutos. Pude ver pelos bons desenhos da Srta. Rich como é fácil para uma mulher alterar a sua aparência com detalhes puramente externos.

      — A Srta. Rich... será que... — a Srta. Bulstrode parecia pensativa.

      Poirot lançou um olhar para o Inspetor Kelsey e o inspetor disse que precisava se retirar.

      — A Srta. Rich... — repetiu a Srta. Bulstrode.

      — Mande chamá-la — aconselhou Poirot. — É o melhor que tem a fazer.

      — Eileen Rich apareceu. Estava pálida e ligeiramente desafiante.

      — A senhora quer saber — disse ela à Srta. Bulstrode — o que eu estava fazendo em Ramat?

      — Acho que tenho uma idéia — falou a Srta. Bulstrode.

      — É isso — disse Poirot. — As crianças hoje em dia conhecem todos os fatos da vida... porém seus olhos, muitas vezes, conservam a inocência.

      Acrescentou que também ele precisava ir andando e se retirou apressado.

      — Foi isto, não foi? — perguntou a Srta. Bulstrode. Seu tom era firme e formal. Jennifer simplesmente a descreveu como gorda. Ela não compreendeu que era uma mulher grávida que tinha visto.

      — Sim — respondeu Eileen Rich. — Foi isto. Eu estava esperando um filho. Não queria abrir mão do meu trabalho aqui. Continuei durante todo o outono, porém depois disto o meu estado estava começando a se tornar evidente. Arrumei um atestado médico que dizia que eu não estava apta a continuar trabalhando. Viajei para um local remoto, onde pensava não ser provável encontrar alguém que me conhecesse. Voltei para este país e a criança nasceu... morta. Este semestre retornei ao colégio na esperança de que ninguém viesse a saber... Mas compreende agora, não compreende, por que eu disse que teria que recusar a sua proposta de sociedade se a senhora a tivesse feito? Somente agora, que o colégio se encontra em tal estado de calamidade, achei que poderia aceitar.

      Fez uma pausa e falou num tom natural:

      — A senhora quer que eu vá embora imediatamente? Ou prefere que eu espere até o final do semestre?

      — Você ficará até o final — respondeu a Srta. Bulstrode — e se houver um outro semestre aqui, o que eu espero que aconteça, você vai voltar.

      — Voltar? — disse Eileen Rich. — Quer dizer que a senhora ainda me quer?

      — É claro que sim. Você não matou ninguém, matou? Ou ficou maluca por causa de algumas jóias e planejou um crime para obtê-las? Eu direi o que você fez. Você provavelmente negou seus instintos por muito tempo. Apareceu um homem, você se apaixonou por ele, teve um filho. Suponho que não podiam se casar.

      — Nunca houve planos de casamento — explicou Eileen. — Eu estava ciente disto. Ele não é culpado.

      — Muito bem, então — disse Bulstrode — você teve um caso de amor e uma criança. Você queria este filho?

      — Sim — respondeu Eileen Rich. — Sim, eu o queria.

      — O que passou, passou. Agora vou-lhe dizer algo. Acredito que, apesar desse seu romance, sua verdadeira vocação na vida é ensinar. Acho que a sua profissão significa mais para você do que a vida normal de uma mulher com marido e filhos poderia significar.

      — Oh, sim — concordou Eileen Rich. — Estou certa disto. Sempre soube disto. É o que eu realmente quero fazer. É a verdadeira paixão de minha vida.

      — Então não seja tola — disse Bulstrode. — Estou-lhe fazendo uma boa oferta. Se tudo der certo, é claro. Passaremos dois ou três anos juntas, colocando Meadowbank de volta à sua posição. Nossas idéias serão diferentes de como isto deverá ser feito. Ouvirei as suas idéias. Talvez eu até aceite algumas delas. Suponho que você deseje fazer algumas modificações em Meadowbank.

      — Em alguns aspectos, sim — respondeu Eileen Rich. — Não vou fingir, gostaria de ter neste colégio um número maior de garotas bem dotadas.

      — Ah, entendo. É o elemento esnobe que lhe desagrada, não é?

      — Sim — respondeu Eileen, — dá-me a impressão que é um desperdício.

      — O que você não entende — explicou a Srta. Bulstrode — é que para conseguir o tipo de garota que você deseja é necessário ter-se este elemento esnobe. E você sabe que é um número bem reduzido. Algumas garotas da nobreza estrangeira, alguns sobrenomes ilustres, e todo mundo, todos os pais espalhados por este país e pelo mundo querem que suas filhas venham para Meadowbank. Fazem o possível para que suas filhas sejam admitidas em Meadowbank. Qual o resultado? Uma enorme lista de espera, e então eu vejo as garotas, estudo-as as seleciono. Eu escolho as alunas, percebe? Seleciono-as cuidadosamente, algumas por sua personalidade, outras pela inteligência e algumas pelo preparo que já possuem. Algumas porque acho que não tiveram uma oportunidade ainda, mas que poderiam vir a ser pessoas interessantes. Você é jovem, Eileen. Está cheia de idéias... você dá valor ao ensino e à sua parte ética. Seus pontos de vista estão certos. O que importa é o material humano, porém, você sabe, se quiser transformar algo em sucesso, é preciso também ser uma boa comerciante. Idéias são como tudo mais. Precisam ser negociadas. No futuro teremos que fazer um trabalho bastante engenhoso para dar continuidade a Meadowbank. Terei que agarrar algumas pessoas, antigas alunas, argumentar com elas, procurar convencê-las até conseguir que mandem suas filhas para cá. E então as outras virão. Deixe-me usar minhas artimanhas e depois você fará as coisas a seu jeito. Meadowbank continuará funcionando e será um ótimo colégio.

      — Será o melhor colégio da Inglaterra! — afirmou Eileen Rich com entusiasmo.

      — Assim é que se fala — disse a Srta. Bulstrode. — E, Eileen, se eu fosse você daria um bom corte no cabelo. Você não parece conseguir se ajeitar com este coque. E agora — falou ela, mudando sua voz — devo ir ver Chaddy.

      Entrou no quarto e aproximou-se da cama. A Srta. Chadwick estava deitada muito quieta e pálida. Todo o sangue sumira de seu rosto e parecia que a vida lhe fugia. Um policial com um bloco de notas estava sentado por perto e a Srta. Johnson no outro lado da cama. Olhou para a Srta. Bulstrode e balançou a cabeça levemente.

      — Olá, Chaddy — disse a Srta. Bulstrode. Ela tomou a mão fraca entre as suas. A Srta. Chadwick abriu os olhos.

      — Quero lhe contar — falou ela. — Eleanor... fui eu, fui eu.

      — Sim, querida, eu sei — disse a Srta. Bulstrode.

      — Ciúmes — disse Chaddy. — Eu queria...

      — Eu já sei — disse a Srta. Bulstrode.

      Lágrimas rolaram lentamente na face da Srta. Chadwick. — É horrível... Eu não pretendia... não sei como pude fazer tal coisa.

      — Não pense mais nisto — pediu a Srta. Bulstrode.

      — Mas não consigo... você nunca... eu nunca me perdoarei...

      A Srta. Bulstrode apertou sua mão com um pouco mais de força.

      — Ouça, minha querida — disse ela, — você salvou a minha vida. A minha vida e a daquela boa mulher, a Sra. Upjohn. Isto vale alguma coisa, não é mesmo?

      — Eu só queria — disse a Srta. Chadwick — que eu tivesse dado a minha vida pela de vocês duas. Isto me teria redimido ...

      A Srta. Bulstrode olhou-a com pesar. A Srta. Chadwick respirou fundo, sorriu e então, movendo levemente a cabeça para um lado, morreu...

      — Você deu a sua vida, minha querida — falou a Srta. Bulstrode suavemente. — Espero que compreenda isto... agora.

      

LEGADO

ESTÁ AÍ um senhor chamado Sr. Robinson que deseja vê-lo.

      — Ah! — exclamou Hercule Poirot. Estendeu a mão e apanhou uma carta na mesa à sua frente. Olhou-a, pensativo.

      Falou: — Mande-o entrar, George.

      A carta constava de umas poucas linhas.

      CARO POIROT:

      Um Sr. Robinson deve procurá-lo em futuro próximo. É possível que o senhor já tenha ouvido alguma coisa a respeito dele. É uma figura bastante proeminente em certos meios. No nosso mundo moderno há uma grande demanda por homens deste tipo. Creio que, se assim posso dizer, neste assunto em particular ele está do lado dos anjos. Isto é apenas uma recomendação, caso esteja em dúvida. É lógico que o senhor não tem a menor idéia do assunto a respeito do qual ele deseja conversar...

                                          Cordialmente,

      EPHRAIM PIKEAWAY

      Poirot pousou a carta e levantou-se quando o Sr. Robinson entrou na sala. Fez uma reverência, estendeu a mão e indicou-lhe uma cadeira.

      O Sr. Robinson sentou-se, apanhou um lenço e enxugou seu grande rosto amarelo. Comentou que estava um dia quente.

      — Espero que o senhor não tenha vindo a pé neste calor.

      Poirot parecia horrorizado só em pensar nisto. Por uma simples associação de idéias, seus dedos seguraram seu bigode. Ele estava tranqüilo. Não havia hesitação.

      O Sr. Robinson parecia igualmente horrorizado.

      — Não, não. Vim no meu Rolls Royce. Mas estes engarrafamentos!... Algumas vezes fica-se parado durante meia hora.

      Poirot balançou a cabeça em sinal de compreensão.

      Houve uma pausa... a pausa que se sucede à primeira parte da conversa, antes de se entrar no assunto.

      — Fiquei interessado ao saber que... é claro que se ouve tanta coisa... maioria mentirosa... o senhor estava se ocupando com os acontecimentos de um colégio de moças.

      — Ah! — exclamou Poirot. — Aquilo.

      Recostou-se em sua cadeira.

      — Meadowbank — disse o Sr. Robinson pensativo. — Um dos melhores colégios da Inglaterra.

      — É um ótimo colégio.

      — É ou era?

      — Espero que ainda seja.

      — Eu também espero — disse o Sr. Robinson. — Faço votos para que seja uma crise passageira. Ah, bem, é preciso fazer o que for possível... Uma pequena ajuda financeira para vencer um inevitável período de depressão; algumas alunas novas cuidadosamente escolhidas. Tenho alguma influência em vários círculos europeus.

      — Eu também usei de persuasão em certos meios. Se, como o senhor diz, pudermos contornar a situação. Felizmente, a memória é fraca.

      — Isto é o que se deseja. Todavia é preciso admitir que os acontecimentos que tiveram lugar em Meadowbank podem perfeitamente abalar os nervos de mamães cuidadosas... e de papais dedicados. À professora de Ginástica, a professora de Francês e ainda uma outra professora... todas assassinadas.

      — É como o senhor diz.

      — Ouvi falar — disse o Sr. Robinson — (ouve-se tanta coisa) que a infeliz jovem responsável pelos crimes vem sofrendo de uma fobia a respeito de professores desde a sua juventude. Uma infância infeliz no colégio. Os psiquiatras tirarão partido disto. Tentarão pelo menos uma atenuante, alegando que ela não é responsável por seus atos.

      — Esta parece ser a melhor linha a ser seguida — disse Poirot. — O senhor vai-me desculpar por dizer que espero que não obtenham sucesso.

      — Concordo inteiramente com o senhor. É uma assassina impiedosa. Irão, porém, ressaltar seu excelente caráter, seu trabalho como secretária de várias pessoas famosas, sua ficha de guerra... bastante significativa, creio eu... contra-espionagem ...

      Emitiu as últimas palavras de um modo sugestivo... com um quê de interrogação em sua voz.

      — Creio que ela era muito boa neste serviço — disse ele vivamente. — Tão jovem, porém brilhante, de grande utilidade... para ambos os lados. Este era o seu métier... ela deveria ter continuado nele. Porém, posso compreender a tentação... dar uma única cartada e ganhar o grande prêmio. — Ele acrescentou suavemente: — Um prêmio vultoso.

      Poirot balançou a cabeça.

      O Sr. Robinson inclinou-se para a frente.

      — Onde estão, Sr. Poirot?

      — Acho que o senhor sabe onde estão.

      — Bem, francamente, sim. Os bancos são uma instituição tão útil, não é mesmo?

      Poirot sorriu.

      — Não precisamos usar de rodeios, precisamos, meu caro? O que vai fazer com elas?

      — Tenho estado esperando.

      — Esperando por quê?

      — Digamos... por sugestões.

      — Sim, entendo.

      — O senhor sabe que elas não me pertencem. Gostaria de entregá-las ao verdadeiro dono. Mas isto, se entendo a situação corretamente, não é tão simples assim.

      — Os Governos se encontram numa posição muito difícil — disse o Sr. Robinson. — Vulneráveis, por assim dizer. Só para falar em petróleo, aço, urânio, cobalto e similares, relações diplomáticas são assunto da maior sutileza. O mais conveniente seria poder dizer que o Governo de Sua Majestade, etc., etc., não possui nenhuma informação sobre o assunto.

      — Contudo não posso manter este importante depósito no banco indefinidamente.

      — Correto! — Por isso vim-lhe propor que o senhor as entregue para mim.

      — Ah! — exclamou Poirot. — Por quê?

      — Posso-lhe dar alguns motivos excelentes. Estas pedras preciosas... felizmente podemos chamar as coisas pelo seu nome certo... eram, indiscutivelmente, propriedade pessoal do falecido Príncipe Ali Yusuf.

      — É o que eu soube.

      — Sua Alteza entregou-as ao Comandante Robert Rawlinson com certas instruções. Deveriam ser levadas para fora de Ramat e entregues a mim.

      — O senhor tem prova disto?

      — Certamente.

      — O Sr. Robinson tirou um envelope comprido do seu bolso; dele retirou vários papéis. Colocou-os na mesa diante de Poirot.

      Poirot curvou-se sobre eles e estudou-os cuidadosamente.

      — Parece ser como o senhor disse.

      — Bem, e então?

      — Incomoda-se se eu lhe fizer uma pergunta?

      — De forma alguma.

      — O que o senhor, pessoalmente, ganha com isto?

      O Sr. Robinson pareceu surpreso.

      — Meu caro! Dinheiro, é lógico. Um bocado de dinheiro!

      Poirot olhou-o pensativo.

      — É um negócio muito antigo — explicou o Sr. Robinson. — E bastante lucrativo. Há muitos de nós, numa rede espalhada pelo mundo inteiro. Somos, como direi, os que trabalham nos bastidores. Para os Reis, os Presidentes, os políticos, para todos aqueles, digamos, que estão em foco. Trabalhamos em conjunto e lembre-se disso: somos leais. Nosso lucro é grande, mas somos honestos. Nossos serviços são dispendiosos... porém os executamos com perfeição.

      — Entendo — disse Poirot. Eh, bien. Concordo com o que o senhor me pediu.

      — Asseguro-lhe que esta decisão agradará a todos — os olhos do Sr. Robinson pousaram, apenas por um momento, na carta do Coronel Pikeaway que estava na mão direita de Poirot.

      — Mas espere só um instante. Sou humano. Tenho curiosidade. O que o senhor vai fazer com as pedras?

      O Sr. Robinson olhou para ele; então seu grande rosto amarelo enrugou-se num sorriso. Inclinou-se para a frente.

      — Vou lhe contar.

      E lhe contou.

     

      De um lado e do outro da rua, crianças brincavam. Seus gritos roucos enchiam o ar. O Sr. Robinson, que desceu pesadamente de seu Rolls Royce, foi atropelado violentamente por uma das crianças. Afastou-a com delicadeza e procurou o número da casa. Número quinze. Estava correto. Abriu o portão e subiu os três degraus que davam para a porta de entrada. Notou que, na janela, havia cortinas brancas e limpas e que a maçaneta da porta estava bem polida. Era uma pequena casa insignificante, numa rua insignificante de um bairro insignificante de Londres, porém bem tratada. Tinha dignidade.

      A porta se abriu. Uma jovem de cerca de vinte e cinco anos, com aparência agradável e beleza de cartão postal, recebeu-o com um sorriso.

      — Sr. Robinson? Entre.

      Ela o encaminhou para a pequena sala de visitas. Um televisor, estofados simples, um piano encostado à parede. Vestia uma saia escura e um casaco cinza.

      — O senhor toma chá? Acabei de colocar a chaleira no fogo.

      — Não, obrigado. Não tomo chá. E só vou-me demorar pouco tempo. Vim apenas trazer-lhe aquilo sobre o qual lhe escrevi.

      — Da parte de Ali?

      — Sim.

      — Não há... não pode haver... nenhuma esperança? Quero dizer, é mesmo verdade... que ele está morto? Não poderia haver algum engano?

      — Receio que não haja nenhum engano — disse o Sr. Robinson suavemente.

      — Não, suponho que não. De qualquer modo, eu nunca esperei... Quando ele voltou para seu país, eu realmente achei que jamais tornaria a vê-lo. Não quero dizer que pensei que ele seria assassinado, ou que haveria uma revolução. Apenas achei, bem, o senhor sabe, que ele teria que permanecer lá, cumprir o seu papel... aquilo que era esperado dele. Casar-se com alguém de sua própria raça... coisas assim.

      O Sr. Robinson apanhou um pacote e pousou-o sobre a mesa.

      — Abra-o, por favor.

      Seus dedos atrapalharam-se quando rasgou o papel e, por fim, desfez o embrulho.

      Ela reteve a respiração.

      Vermelhas, azuis, verdes, brancas, todas brilhando como fogo, vivas, transformando a pequena sala sombria na caverna de Aladim.

      O Sr. Robinson a observou. Ele já havia visto muitas mulheres olharem para jóias...

      Finalmente ela falou numa voz ofegante.

      — São... não podem ser... verdadeiras?

      — São verdadeiras.

      — Mas elas devem valer... devem valer...

      Sua imaginação falhou.

      O Sr. Robinson balançou a cabeça.

      — Se desejar desfazer-se delas, pode conseguir, pelo menos, meio milhão de libras.

      — Não, não é possível.

      De repente, ela juntou as pedras em suas mãos e embrulhou-as com os dedos trêmulos.

      — Estou com medo — falou ela — assustam-me. O que devo fazer com elas?

      A porta abriu-se bruscamente e um menino entrou.

      — Mamãe, o Billy me emprestou um caminhão maravilhoso. Ele...

      Ele parou, olhando para o Sr. Robinson.

      Era um garoto moreno de olhos escuros.

      Sua mãe disse:

      — Vá para a cozinha, Allen, seu chá está pronto. Leite, biscoitos e um pedaço de bolo de chocolate.

      — Oh, que bom! — Ele saiu alvoroçado.

      — O nome dele é Allen? — perguntou o Sr. Robinson.

      Ela enrubesceu.

      — Era o nome mais parecido com Ali. Não podia chamá-lo de Ali... difícil demais para ele, para os vizinhos.

      Ela prosseguiu, com seu rosto tornando-se sombrio mais uma vez:

      — O que eu devo fazer?

      — Em primeiro lugar, a senhora tem a sua certidão de casamento? Preciso ter certeza que é realmente quem diz ser.

      Ela o encarou por um momento e, em seguida, foi até uma pequena escrivaninha. De uma das gavetas retirou um envelope de onde tirou uma folha de papel e entregou a ele.

      — Hum... sim... Registro de Edmonstow... Ali Yusuf, estudante... Alice Calder, solteira... Sim, está tudo em ordem.

      — Oh, sim, é tudo legalizado. Quanto a isto não há dúvida. E ninguém jamais se preocupou com quem ele era. Havia tantos destes estudantes muçulmanos, entende? Sabíamos que, na verdade, isto não representava muito. Ele era muçulmano e poderia ter mais de uma esposa e sabíamos que teria que voltar para seu país e fazer exatamente isto. Conversamos a este respeito. Porém Allen estava a caminho, compreende, e ele disse que isto resolveria o problema da criança... casaríamos pelas leis deste país e Allen seria filho legítimo. Era o melhor que ele poderia fazer por mim. Sabe, ele realmente me amava. Amava de verdade.

      — Sim — concordou o Sr. Robinson. — Estou certo que sim.

      Ela continuou animadamente:

      — Agora, suponhamos que a senhora deixe tudo a meu cargo. Providenciarei a venda das pedras. Dar-lhe-ei o endereço de um ótimo advogado, digno de confiança. Irá aconselhá-la, espero, a aplicar a maioria do dinheiro num Fundo de Investimento. E haverão outras coisas a serem tratadas; a educação de seu filho e um novo modo de vida para a senhora. A senhora vai desejar uma orientação para o seu comportamento na sociedade. Será uma mulher muito rica e todos os gaviões e vigaristas estarão no seu encalço. Sua vida não será fácil, exceto no aspecto puramente material. Posso-lhe garantir que as pessoas ricas não têm muita paz de espírito... conheci muitas delas para não ter esta ilusão. Entretanto, a senhora tem caráter. Acho que se sairá bem. E seu filho poderá vir a ser um homem mais feliz do que seu pai jamais foi.

      Ele se calou. — Concorda?

      — Sim. Leve-as. — Empurrou-as na direção dele e então, subitamente, falou: — Aquela estudante, a que encontrou as pedras... gostaria que ela ficasse com uma. Que cor o senhor acha que ela preferiria?

      O Sr. Robinson refletiu. — Acho que uma esmeralda... verde de mistério. Boa idéia a sua. Ela achará muito excitante. Ele se levantou.

      — Cobrarei pelos serviços prestados, a senhora sabe — falou o Sr. Robinson. — E meu preço é bastante alto. Porém pode confiar em mim.

      Ela lhe lançou um olhar firme.

      — Sim, creio que posso. E eu preciso de alguém que entenda de negócios, porque eu não entendo nada.

      — A senhora parece ser uma mulher muito sensata, se me permite dizê-lo. Então, devo levá-las? Não quer ficar com... digamos... ao menos com uma?

      Ele a observou com curiosidade. A súbita centelha de excitação, o olhar de cobiça... e então, a centelha morreu.

      — Não — respondeu Alice. — Não vou ficar nem mesmo com uma. — Ela corou. Devo dizer que isto lhe parece uma tolice... não ficar nem ao menos com um rubi ou uma esmeralda... apenas como lembrança. Mas, sabe, ele e eu... ele era muçulmano, entretanto deixava-me ler, vez ou outra, trechos da Bíblia. E lemos juntos este trecho... “o da mulher cujo preço estava acima de rubis.” E assim... não quero nenhuma jóia. Prefiro não...

      — Uma mulher rara — disse o Sr. Robinson para si mesmo, enquanto se afastava da casa em direção ao seu Rolls Royce que o aguardava.

      E repetiu:

      — Uma mulher rara...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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