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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PLANETA DOS DEUSES / Kurt Mahr
O PLANETA DOS DEUSES / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PLANETA DOS DEUSES

 

Foi no ano de 1971 que Perry Rhodan, então um oficial da Força Espacial dos Estados Unidos, chegou à Lua com o foguete Stardust e, recorrendo à tecnologia encontrada na nave arcônida que ali realizara um pouso de emergência, fundou a Terceira Potência.

Conflitos na Terra, invasões vindas do espaço, batalhas espaciais, combates em planetas distantes, a tudo isso a Terceira Potência resistiu galhardamente nos poucos anos de sua existência.

Agora os saltadores, representam um grave perigo para toda a Humanidade. Descendentes dos arcônidas, há oito milênios eles detêm o monopólio comercial irrestrito da galáxia, porque reprimem implacavelmente qualquer concorrência que se esboce.

Perry Rhodan tem feito tudo que está ao seu alcance para impedir que os saltadores transformem a Terra num mundo escravo. Levtan, o traidor, representou uma peça importante no jogo de Rhodan, pois só graças a ele tornou-se possível introduzir um grupo de agentes na Grande Conferência do Conselho dos Saltadores.

Esses homens, combatentes consagrados do Exército de Mutantes de Rhodan, vão parar no Planeta dos Deuses, depois de terem praticado um atentado contra a Conferência dos Saltadores...

 

                          

 

— Astronavegação ao comandante. Distância do alvo 205.1012 metros. Velocidade zero. Nenhum objeto no raio de alcance dos instrumentos de observação. Fim.

Sentado de costas para a mesa, Rhodan pôs a mão para trás e baixou a chave do pequeno receptor de intercomunicação.

Com um sorriso ligeiro e indiferente, olhou para as pessoas que estavam de pé diante dele: Thora, a arcônida, e Reginald Bell, co-piloto da Stardust.

— Quer dizer que chegamos — disse em tom indiferente. — Estamos a oito dias-luz de 221-Tatlira, fora do alcance dos instrumentos de localização dos saltadores.

A palavra-chave de Thora acabara de ser pronunciada. Zangada, adiantou-se um passo e dirigiu o brilho chamejante de seus estranhos olhos vermelhos sobre Rhodan.

— Estamos fora do alcance de seus instrumentos, sim — disse em tom de escárnio. — Acontece que para chegar até aqui tivemos de realizar duas transições. Será que os saltadores são tão idiotas que não notaram nada?

— Bell...

Rhodan virou ligeiramente a cabeça.

Bell sabia o que o amigo esperava dele. De maneira ostensiva ficou em posição de sentido e disse:

— Os localizadores da nave registram cinqüenta e cinco transições por hora, em média, naturalmente, num raio de 1015 metros. Provavelmente trata-se de naves dos saltadores que chegam ou partem da base dos saltadores situada em Tatlira II.

Rhodan voltou a cabeça.

— Então, Thora?

Thora não gostou de receber um tratamento professoral como este. Sua raiva cresceu.

— Sei o que está pensando — chiou. — Acredita que em meio a todas essas transições a sua nem foi notada. O que acontecerá, porém, se estiver enganado?

Rhodan deu de ombros.

— Nesse caso realizo uma transição rápida para trás e reapareço num lugar em que os saltadores nunca suspeitariam que eu estivesse.

Thora estendeu os braços.

— Por que não quer ouvir minha sugestão, Rhodan? — perguntou. Falava com a voz suplicante; o chiado de raiva havia desaparecido por completo. — Por que não vai a Árcon e pede socorro ao Grande Império?

Rhodan inclinou-se para a frente em sua poltrona. Inclinou-se tanto que suas mãos quase chegavam a tocar as de Thora, já que sua poltrona se encontrava numa posição mais elevada.

— Permita que lhe explique a situação mais uma vez, Thora. Através de um comandante rebelde dos saltadores ficamos sabendo da conferência dos patriarcas dos saltadores a ser realizada no segundo planeta do sol Tatlira, a mil e doze anos-luz da Terra. A presença do comandante dos saltadores permite-nos colocar nossos mutantes em Tatlira II, a fim de que, por meio de seus dons parapsicológicos, possam convencer os saltadores de que um ataque à Terra poderia representar a destruição final de sua raça.

“O êxito do plano é apenas parcial. Um dos patriarcas teve a idéia de realizar uma lavagem cerebral no comandante rebelde, cuja nave transportou nossos homens para Tatlira II. Sabemos que Marshall conseguiu impedir a lavagem cerebral, matando o saltador rebelde, e que a maioria dos patriarcas dos saltadores pereceu em virtude da explosão de uma bomba.

“Não sabemos até que ponto Kitai Ishibashi, o sugestor, conseguiu inocular na mente dos patriarcas a lenda de uma Terra armada até os dentes. Não temos tempo para voar a Árcon, gastar semanas em negociações com o Conselho e enfrentar a possibilidade de afinal não conseguirmos nada. Temos que ficar aqui para estabelecer contato ao menos com um dos mutantes.

“Sei perfeitamente que a senhora fez a sugestão a fim de ajudar a Terra, não para encontrar um meio de voltar à pátria. Mas não poderá deixar de reconhecer que simplesmente não temos tempo para aceitar a sugestão”.

Recolheu as mãos e levantou-se. Deu alguns passos ao acaso, parou de repente, virou-se e sorriu para Thora.

— Além disso — disse em tom suave — quatro dos meus homens se encontram em Tatlira II. Não deixarei que nenhum deles caia nas mãos do inimigo, a não ser que isso se torne absolutamente necessário. Nossa situação não é tão grave que tenhamos de abandonar nossa gente.

 

Tako Kakuta era um homem que possuía o dom parapsicológico da teleportação, que lhe permitia transportar-se, graças exclusivamente às forças de seu espírito, a qualquer ponto que escolhesse, desde que este não ficasse a mais de cinqüenta mil quilômetros e suas coordenadas geométricas fundamentais lhe fossem conhecidas. Naquele instante dedicava alguns palavrões à situação que o obrigava a usar esse dom.

Deslocava-se pouco acima do chão acidentado coberto de capim em direção à cidade em cujas proximidades haviam pousado. Estava invisível graças ao campo defletor produzido por um pequeno gerador embutido no traje espacial.

O grupo, formado pelo próprio Tako Kakuta, por John Marshall, o telepata, por Kitai Ishibashi, o sugestor, e por Tama Yokida, o telecineta, começara a contar aos participantes da Grande Conferência dos Patriarcas dos Saltadores algumas lendas sobre os armamentos de que dispunha a Terra, mas o velho Etztak lhes atrapalhara o serviço. Mataram Levtan, o saltador rebelde que procurava recuperar sua reputação entre os saltadores; mataram, ainda, a maior parte dos patriarcas, mas depois disso tiveram de fugir.

Depois de passarem por cima da superfície infindável de um grande mar vieram pousar naquela ilha, onde o tempo parecia ter parado. A cidade que se encontrava diante deles, a menos de dez quilômetros de distância, era composta de casas estreitas e altas, de paredes entremeadas de madeira. Estavam tão próximas umas às outras que não devia haver ruas, ou então as mesmas eram muito estreitas.

A cidade ficava junto ao mar e dispunha de um porto natural. E o que havia nesse porto?

Navios a vela!

Navios a vela de todos os tipos e tamanhos, mas nenhum deles era mais moderno que os produzidos pela tecnologia terrestre do início do século XVIII.

E isso acontecia num mundo que os saltadores consideravam sua propriedade particular, e no qual se haviam reunido numa conferência muito importante.

Acontecia no planeta de Goszul.

Tako Kakuta regulou a velocidade com a qual se aproximava da cidade. Preferia não pousar no porto enquanto não estivesse familiarizado com a disposição geral da cidade.

Encontrava-se a cerca de cinco quilômetros dos limites ocidentais da cidade. O pequeno neutralizador gravitacional mantinha-o numa altitude constante de cinco metros acima do solo.

O terreno descia suavemente em direção à cidade. Era um terreno não cultivado, coberto de capim, com elevações que chegavam a um metro de altura. Tako concentrou sua atenção exclusivamente sobre a cidade. Por isso não percebeu a sombra cinzenta que corria pelo ar.

O objeto que produzia a sombra encontrava-se a cerca de quinhentos metros de altura, desenvolvendo uma velocidade extraordinária. Seu formato era circular e, quem o observasse por ocasião da curva que descreveu cerca de dez quilômetros a oeste da cidade, notaria sua semelhança com uma lentilha.

Voltou em direção à cidade, perdeu altitude, reduziu a velocidade e produziu um leve chiado.

Esse chiado foi o primeiro sinal de perigo que chegou ao conhecimento de Tako. Virou-se e descobriu o veículo em forma de lentilha, poucas centenas de metros atrás dele.

Sabia que era uma nave auxiliar do tipo daquelas que as grandes naves dos saltadores trazem a bordo às dezenas ou mesmo às centenas. Seu primeiro impulso foi no sentido de descer ao solo e procurar um abrigo.

Mas que abrigo, pensou, poderia ser melhor que a invisibilidade proporcionada pelo campo defletor?

Freou e imobilizou-se no ar. A nave auxiliar foi se aproximando. Não se deslocava em linha reta, mas numa espécie de ziguezague, como se estivesse procurando alguma coisa.

O susto gelou o corpo de Tako.

Se procuravam alguma coisa em cima dessa área desolada, essa coisa não poderia ser outra senão ele mesmo.

No mesmo instante em que Tako reconheceu o perigo, este começou a concretizar-se. O piloto da nave auxiliar e seus companheiros pareciam saber muito bem onde estava seu alvo. Num ponto que correspondia aproximadamente a linha equatorial surgiu um feixe concentrado de raios energéticos verde-pálidos.

O raio passou a menos de cinco metros de Tako, alcançou o solo mais adiante e atirou para o alto o capim que se encontrava na área de combustão, reduzindo-o a uma nuvem de gases turbilhonantes.

Tako reagiu imediatamente e pela única forma possível. Rememorou o lugar em que Marshall, Ishibashi e Yokida o esperavam, procurando fixá-lo com a maior precisão de que era capaz. Depois retornou a esse lugar num salto de teleportação que não fora preparado com muito cuidado.

Uma fração de segundo depois disso um segundo tiro de radiações passou pelo lugar em que Tako estivera.

Uma vez que não tivera tempo para concentrar-se, Tako pousou a uns duzentos metros do lugar em que o grupo havia montado um acampamento provisório. O terreno era acidentado. Parecia uma grande cadeia de montanhas que alguém tivesse coberto de terra, deixando de fora apenas os cumes mais altos. Em meio ao solo coberto de capim erguiam-se rochas íngremes que chegavam a atingir cem metros de altura. A poeira, a areia tangida pelo vento e as sementes de capim tiveram muito trabalho em fixar-se nas encostas íngremes. Mas no curso dos milênios o conseguiram. Nas encostas tocadas pelo vento durante a maior parte dos dias do ano de Goszul os flancos eram mais suaves e cobertos de espessa vegetação. No lado oposto a encosta era quase vertical, caindo perigosamente do cume ao pé do monte.

Logo após o pouso o grupo descobrira uma ampla caverna na face ocidental de um dos morros mais altos. Abrigaram-se no interior dela. Foi dali que Tako partiu meia hora antes para dar uma olhada na cidade.

Assim que se materializou, lançou um olhar para o alto. Não viu o veículo em forma de lentilha.

“A esta hora devem estar quebrando a cabeça sobre como alguém pode desaparecer tão depressa”, pensou Tako contrariado.

Ainda não se dera conta de que não sabia explicar como os saltadores haviam conseguido localizar uma pessoa como ele, invisível.

Tako procurou concentrar-se no nome de Marshall. Tinha certeza de que dessa forma Marshall, o telepata, o compreenderia à distância de duzentos metros que ainda os separava. Depois disso esforçou-se para pensar no incidente que acabara de ocorrer. No momento o maior perigo era o de que alguém saísse da caverna, fornecendo um alvo a algum veículo espacial dos saltadores que estivesse cruzando em regiões mais elevadas.

Marshall não deixaria de prevenir os outros.

Tako voou até a caverna. Antes de entrar lançou os olhos em redor. Não viu a nave auxiliar dos saltadores. Mas por enquanto Tako não via nisso um motivo para concluir que haviam perdido sua pista.

Entrou na caverna, desativou o campo defletor e informou os companheiros sobre o que acabara de ocorrer. Viu o pavor desenhado no rosto dos três e acrescentou:

— Talvez tudo isso não passe de uma coincidência.

Marshall sorriu.

— Muito obrigado pelo tranqüilizante, Tako — disse. Abanou a cabeça. — É claro que não foi nenhuma coincidência. Já receava que os saltadores pudessem estar em condições de realizar a localização goniométrica dos nossos trajes. Estes contêm um gerador destinado à produção do campo defletor, um gerador antigravitacional e um gerador que ativa o campo protetor, que nos resguarda contra as balas. O conjunto desses aparelhos produz uma quantidade apreciável de radiações disseminadas, e não deve ser difícil medi-las e determinar o ponto em que se originam.

— Se minha suposição for correta, nossos trajes espaciais não servem de mais nada. Pelo contrário: atraem os saltadores. Precisamos...

— Acontece que não sabemos a que distância conseguem localizá-los — objetou Yokida em tom exaltado. — Se só conseguirem nos localizar a uma distância de cem metros, com esses trajes, que afinal têm os campos defensivos, estamos melhores que sem eles.

Marshall ergueu as sobrancelhas.

— Se...! — respondeu Marshall em tom enfático. — Acontece que não sabemos. É possível que consigam nos localizar a cem quilômetros de distância.

Abanou a cabeça e olhou fixamente para a frente.

— Não — murmurou. — Receio que tenhamos que nos desfazer dos trajes. E...

Subitamente levantou a cabeça e olhou para o alto. Yokida esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas Marshall o repeliu com um sinal enérgico.

— Fique quieto!

Dali a dois segundos levantou-se.

— Estão em cima de nós — disse com a maior tranqüilidade. — E estão bem perto. Quase chego a identificar seus pensamentos um por um. Conhecem o ponto em que nos encontramos com uma precisão de vinte metros. Vamos logo! Tirem os trajes espaciais!

Tako tirou o traje e correu em direção à entrada da caverna. Sem pôr a cabeça para fora, viu a nave auxiliar que deslizava metros acima do solo.

No mesmo instante Tako concebeu seu plano.

Voltou ao interior da caverna.

— Entreguem-me seus trajes! — disse em tom enérgico.

Os companheiros arregalaram os olhos.

— Vamos logo! Não façam perguntas. Levantaram os trajes e colocaram-nos sobre os braços estendidos de Tako. Este teve que carregar o peso considerável daqueles conjuntos. Todos os aparelhos estavam desligados. No momento não havia praticamente nenhum impulso que pudesse ser captado pelos saltadores.

— Esperem por aqui! — ordenou Tako. — Eu os levarei a uma pista falsa.

Marshall exclamou.

— Não faça isso! É muito perigoso. Você não vai...

Tako já tinha desaparecido.

Quando voltou a materializar apenas pôde avaliar a distância que o separava da caverna. Não tinha a menor idéia da direção. O salto fora muito rápido.

Perdera de vista a nave auxiliar dos saltadores.

Pousara a poucos metros de uma rocha, e apressou-se em abrigar-se atrás da ponta esguia da mesma. Pôs no chão os pesados trajes, vestiu o que pertencia a ele e ligou todos os geradores.

Depois pôs-se a esperar.

 

No interior da caverna Marshall ocupara o lugar de observador. Deitado junto à entrada, observava atentamente a nave dos saltadores.

— Não se movem — disse. — Se tivéssemos armas mais potentes que estes pequenos radiadores de impulsos, poderíamos derrubá-los.

— Se nos uníssemos todos... — sugeriu Ishibashi; mas no mesmo instante Marshall exclamou:

— Estão indo embora!

Ishibashi e Yokida aproximaram-se da entrada. Viram a nave auxiliar ganhar velocidade, desaparecendo no rumo sudoeste, onde ficava o mar.

— Isso foi obra de Tako! — disse Marshall admirado.

 

Tako Kakuta viu a nave chegar.

Voava pouco acima do solo, descrevendo a mesma rota em ziguezague que há pouco observara. Os goniômetros utilizados pelos saltadores para localizar a fonte das radiações não deviam ser de muita precisão.

Tako esperou até que a nave começou a contornar a rocha.

Só então saltou.

Não percorreu mais de cem metros.

O piloto parecia irritado. Descreveu alguns círculos em torno da rocha, mas não notou os três trajes espaciais que Tako escondera cuidadosamente. Não deixou de notar, porém, as radiações emitidas pelo traje de Tako.

A nave desistiu de descrever círculos e voltou a aproximar-se. Mais uma vez Tako esperou até que se aproximasse a uma distância que quase chegava a ser crítica. Depois voltou a saltar. Desta vez executou um salto de duzentos metros.

Tinha certeza de que o campo protetor do traje seria capaz de absorver qualquer tiro disparado pela nave. Mas também tinha certeza de que para isso consumiria uma quantidade de energia maior que a produzida por seu próprio gerador. E o excedente seria retirado do campo defletor, fazendo com que Tako se tornasse visível. E isso Tako pretendia evitar, inclusive para defender sua integridade física. Um dispositivo de mira automática possibilitaria a fixação indefinida de qualquer alvo, desde que este tivesse sido claramente determinado. Se necessário, a fixação poderia perdurar até que o inimigo conseguisse trazer armas pesadas, que acabariam rompendo o campo protetor.

Desta vez a reação do piloto dos saltadores foi diferente. Assim que seus goniômetros captaram o novo sinal, desistiu da busca no local antigo e aproximou-se imediatamente.

Tako executou um salto de quinhentos metros, que o levou até a costa. A nave dos saltadores seguiu-o docilmente.

Sob a proteção de um rochedo tirou o traje espacial, mas deixou que os geradores continuassem a funcionar, para que os impulsos captados pela nave dos saltadores não diminuíssem em intensidade.

Depois executou um último salto, bem maior, que o levou alguns quilômetros mar afora, com o traje sobre os braços.

Rematerializou cinqüenta centímetros acima da superfície da água, deixou-se cair e soltou o traje no mesmo instante em que seu corpo tocou a água. Enquanto boiava, viu que o objeto branco afundava devagar.

Saltou de volta para o lugar em que escondera os outros trajes. Completou o serviço, cobrindo os mesmos com grandes blocos de pedra, até que tivesse certeza de que ninguém os encontraria, ainda mais que os impulsos dos geradores, desligados há quinze minutos, iam diminuindo progressivamente, e não poderiam fornecer mais qualquer indicação aos saltadores.

Executou outro salto que o trouxe a uma distância de quinhentos metros da caverna, e outro que o colocou em meio aos companheiros.

— Tudo em ordem — disse com um sorriso. — A esta hora devem dar tratos à bola para descobrir o que estamos fazendo no fundo do mar.

Relatou em frases lacônicas o que acabara de fazer. Marshall deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Muito obrigado, Tako — disse em tom objetivo.

Tako deu de ombros.

— Não há por quê. O que vamos fazer? Marshall apontou para a entrada da caverna.

— Seguiremos a pé — sugeriu. — Vamos à cidade. Não queremos ficar para sempre neste mundo estranho.

Ninguém se opôs.

 

No dia 27 de dezembro do calendário terrestre, às 17:21 h, hora de Terrânia, um feixe de raios do localizador da Stardust, que girava ininterruptamente, atingiu, junto ao limite do seu alcance, um objeto metálico; foi refletido pelo mesmo e desenhou um ponto verde na tela.

Por ordem de Perry Rhodan, o dispositivo automático de observação havia sido colocado em estado de prontidão permanente. Uma fração de segundo depois do surgimento do ponto verde, desencadeou o alarma número III.

Rhodan, que se encontrava na sala de comando, foi avisado imediatamente. Manteve-se em contato com o posto de observação e acompanhou a identificação do objeto.

— Distância 7,1010 metros. Velocidade 1,9.108 m/seg. Componente de deslocamento em nossa direção...

E alguns segundos depois:

— As dimensões do objeto não ultrapassam cem metros...

Dali a mais alguns segundos:

— Trata-se de um objeto cilíndrico. Comprimento oitenta metros, diâmetro cerca de dez metros.

E finalmente:

— Os movimentos do objeto estão sendo controlados. Trata-se de um veículo espacial.

Rhodan acenou com a cabeça. A direção de que vinha o objeto dizia tudo. Vinha diretamente de 221-Tatlira.

Era uma nave dos saltadores vinda das profundezas do espaço.

Rhodan chamou os postos de defesa.

— Como está a proteção contra o rastreamento?

— Em perfeito estado. Se não fosse assim, já nos teriam localizado. Em nossa nave os impulsos estão sendo recebidos ininterruptamente.

A proteção contra o rastreamento que envolvia a Stardust era um dispositivo novo e muito eficiente. Impedia o reflexo de feixes de ondas até uma intensidade bastante considerável. Só acima desse limite havia um reflexo insignificante, que causava no inimigo a impressão de ter diante de si um objeto que se encontrava a vários milhões de quilômetros, quando na verdade já se aproximara a algumas centenas de milhares de quilômetros.

Quando a nave desconhecida havia se aproximado a uma distância de 109 metros (um milhão de quilômetros), Rhodan ordenou o alarma número II, e movimentou a Stardust sob a proteção do campo anti-rastreação.

Durante a manobra, que em parte foi executada pelo sistema de pilotagem automática, pediu que dois de seus colaboradores, Ras Tschubai e Gucky, comparecessem à sala de comando.

Tschubai veio pelo caminho mais curto. Era teleportador, tal qual Tako Kakuta, e de uma hora para outra encontrava-se no interior da sala de comando.

Poucos segundos depois surgiu Gucky, o mutante mais competente do Exército de Mutantes de Rhodan. Gucky entrou pela escotilha, depois que lá fora se erguera sobre as pernas traseiras, apertara o botão que anunciava sua presença e esperara que Rhodan acionasse o dispositivo que deixava aberta a entrada.

Para Gucky, um salto de teleportação que o transportasse de um convés para outro da gigantesca nave não representava qualquer problema. Em compensação ainda não se familiarizara com a arte de deslocar-se como um ser humano o bastante para sentir-se satisfeito.

Gucky parecia o resultado do cruzamento de um rato com um castor. Coberto de pêlo vermelho, tinha um metro de comprimento, incluído o toco de rabo. Era membro de uma raça originariamente dotada apenas de inteligência mediana, formada de telecinetas naturais que habitavam o planeta Vagabundo, ao qual Rhodan já fizera uma visita. Gucky uniu-se ao grupo de Rhodan. Um programa de treinamento, adaptado especialmente à sua inteligência, então ainda bastante reduzida, despertou não só o setor inexplorado de sua inteligência consciente, mas também vários dons paranormais. Gucky transformou-se num telepata e teleportador. Dominava várias línguas terrestres e pertencia ao oficialato da Terceira Potência.

Muita gente acreditava que Gucky era um esquisitão, e que a concessão da patente a um ser como ele fora um erro. Mas Gucky soube convencer todos sem muita demora de que não era apenas um excelente mutante, mas também um estrategista dotado de inteligência extraordinária.

Rhodan cumprimentou-o com um sorriso. Depois que a escotilha se fechou, disse:

— Tenho algumas instruções para os dois. Dizem respeito à nave inimiga que se encontra ali.

 

O pequeno veículo espacial era uma nave de reconhecimento. Só dispunha de armamento leve, mas em compensação sua aceleração e maneabilidade eram consideráveis.

O comandante do veículo era Frernad, membro do poderoso clã dos Frers. Sua nave era a Frer LXXII. Para Frernad esse número elevado tinha um aspecto horrível, pois os veículos de cada clã são numerados na ordem decrescente do tamanho, do que resultava claramente que a Frer LXXII era uma das menores.

Foi graças ao velho Etztak que Frernad teve de cumprir a missão de penetrar no espaço numa distância de dez dias-luz, à procura de eventuais inimigos. Etztak se defrontara, num mundo distante, com os inimigos de que ora se tratava, e por isso sofria, na opinião de Frernad, de um complexo de prudência.

Frernad detestava a missão que lhe fora confiada. Todavia, executou-a com o maior cuidado. Os raios dos goniômetros giravam ininterruptamente, mas até então não havia registrado nada, além de alguns fragmentos de rocha que se deslocavam lentamente pelo espaço.

Com os olhos cansados, Frernad examinou o pequeno instrumento que, com base no consumo de energia, registrava a distância do ponto de decolagem, e cujo mostrador luminoso caminhava lentamente em direção à marca dos dez dias-luz.

— Mais dois dias — disse alguém. — Depois estará liquidado.

Frernad virou-se para o interlocutor e levantou as mãos em sinal de concordância.

— Quando tivermos regressado à base, cantarei de alegria — disse com um sorriso amargo.

A sala de comando da Frer LXXII era pequena; só havia três homens no interior dela.

A tripulação da nave era composta de dezoito homens.

Frernad esteve a ponto de dizer alguma coisa, quando o homem que controlava o goniômetro começou a falar apressadamente:

— Um reflexo! — exclamou. — Ali...

Contrariado, Frernad interrompeu-o com um gesto e aproximou-se do goniômetro. O homem que lhe falara apontou a mão rígida para um ponto da tela em que uma mancha, de início grande e intensa, empalidecia rapidamente. Frernad ficou perplexo.

— O que é isso? Apareceu sem mais aquela... e agora não está mais lá?

O homem que lhe falara levantou as mãos. Ia dizer alguma coisa. Mas no mesmo instante uma voz estranha e áspera falou junto ao painel de controle.

— Não fiquem quebrando a cabeça, meus chapas. Quem teve culpa do reflexo fui eu.

Viraram-se abruptamente e fitaram o homem que, de uma hora para outra, se encontrava junto ao painel de instrumentos. Nunca haviam visto uma pessoa como ele. Era grande — quase chegava a ser do tamanho deles — mas sua pele era negra.

Quando percebeu o susto dos outros, riu e mostrou uma fileira de dentes brancos. Usava um traje espacial de feitio estranho e, enquanto falava, ficou com o capacete aberto. Falava um impecável intercosmo, se bem que sua voz fosse estranhamente monótona.

Frernad registrou tudo isso como que por acaso. A pergunta que mais o martirizava, e para a qual não encontrava resposta, foi a seguinte: Como esse sujeito conseguiu entrar?

Frernad abriu a boca para formular a pergunta, mas o homem de pele negra começou a mexer-se, e Frernad sentiu-se fascinado pela segurança dos seus movimentos. Viu que, num movimento rápido, o estranho enfiou a mão no bolso de seu traje espacial e tirou um objeto esférico. Viu-o girar um parafuso ou uma chave que sobressaía da esfera. Depois levantou o rosto e examinou cuidadosamente Frernad e seus companheiros.

— O que significa isso? — perguntou Frernad depois de algum tempo. — Quem é você e o que...

Não conseguiu dizer mais nada. Com uma rapidez que nunca antes conhecera, perdeu a consciência. Nem teve tempo para perceber o que lhe fizera perder os sentidos. Também não pôde ver se os companheiros tiveram o mesmo destino. Caiu.

Com um sorriso satisfeito, Ras Tchubai olhou para os três homens inconscientes. Depois disso fechou o capacete do traje espacial. Os filtros que trazia no nariz teriam sido suficientes para continuar a protegê-lo do gás que saía da bomba esférica.

Tinha que contar com a possibilidade de ter que enfrentar problemas se o gás não se espalhasse logo pela nave. Nesse caso seria preferível estar pronto para entrar em ação.

Com o pé Ras Tschubai empurrou a esfera, que colocara no chão, para junto do túnel de exaustão. A circulação ininterrupta de ar que entrava e saía espalharia o gás incolor e inodoro, carregando-o para toda a nave.

Ras Tschubai cumprira sua tarefa. A tripulação da pequena nave ficaria inconsciente por quatro horas. Era um prazo suficiente para fazer o que Rhodan pretendia.

Com um vigoroso telessalto, Ras voltou para bordo da Stardust.

 

— Agora é sua vez, Gucky — disse Rhodan em tom sério. — Pode levar suas coisas para lá.

Gucky acenou com a cabeça como se fosse um ser humano. Por um instante fitou a tela na qual a nave dos saltadores se desenhava sob a forma de um pontinho luminoso, junto a ela a Stardust se deslocava a uma distância constante de trinta mil quilômetros. Depois voltou o rosto para os objetos empilhados ao seu lado: armas, equipamentos, minicomunicadores.

Com movimentos quase caminhou em direção à pilha, elevou por via telecinética um pesado desintegrador, cravou os dedos na embalagem, e teleportou-se.

Dentro de três minutos a pilha desapareceu; foi teletransportada para a outra nave.

O rato-castor voltou mais uma vez.

Gucky contorceu o rosto e seu dente roedor insinuou um sorriso.

— Já vou — disse em tom amável.

Rhodan acenou a cabeça e lançou mais um olhar rápido para o equipamento espacial da pequena criatura. Foi um equipamento fabricado especialmente para Gucky, o rato-castor.

— Está bem — concordou. — Faça um serviço bem feito. De qualquer maneira temos de localizar Marshall e seus companheiros. Queremos saber o que fizeram com os patriarcas. Além disso, queremos salvá-los.

Gucky não respondeu. Olhou fixamente para a frente e dali a um instante desapareceu da mesma forma que pouco antes com sua bagagem.

Reapareceu no corredor central da Frer LXXII. Poucos minutos bastaram-lhe para que se certificasse de que a bomba de gás de Ras Tschubai colocara toda a tripulação fora de combate; logo encontrou, também, um lugar em que pudesse passar o tempo até que a nave pousasse no planeta de Goszul. Era um cubículo situado no fim do corredor principal. Gucky não tinha a menor idéia da sua finalidade.

Gucky guardou sua bagagem no interior do cubículo, pegou a arma hipnótica que Rhodan lhe entregara e, com ela, trabalhou, um por um, todos os tripulantes da nave de uma maneira tal que garantiria a maior segurança possível a ele e à Stardust. Passou sistematicamente por todos os compartimentos da nave.

Finalmente chegou à sala de comando. Também Frernad e seus companheiros receberam instruções.

Depois disso, Gucky dedicou seu interesse ao goniômetro, que continuava a funcionar. Viu o traço finíssimo que a antena descrevia enquanto seu ângulo de giro abrangia todo o espaço. Não houve qualquer reflexo. A Stardust e, mais além, os cruzadores pesados Centauro, Terra e Solar System estavam invisíveis.

Na opinião de Rhodan, partilhada por Gucky, nos últimos trinta minutos vários reflexos deviam ter surgido na tela. Isso teria acontecido quando, por ocasião de um salto de teleportação, todos os campos protetores da Stardust foram desativados por uma fração de segundo, a fim de permitir a passagem do teleportador e dos objetos que o mesmo levava consigo. Em parte os campos energéticos estavam estruturados de maneira a funcionarem na quinta dimensão, motivo por que representavam uma barreira para o teleportador, que se deslocava no espaço de cinco dimensões.

“Isso representa um ponto fraco”, pensou Gucky. “Devemos descobrir um meio de manter a proteção contra o rastreamento mesmo no instante em que um teleportador sai da nave.”

Razoavelmente satisfeito, voltou ao esconderijo por ele escolhido, instalou-se confortavelmente entre sua bagagem e aguardou os acontecimentos. Combinara com Rhodan que só enviaria uma mensagem pelo microcomunicador quando alguma coisa não estivesse em ordem.

 

Os efeitos da bomba lançada por Ras Tschubai cessaram com a mesma rapidez com que haviam começado.

Quatro horas depois do instante em que os cabelos de Frernad se arrepiaram com o súbito aparecimento da estranha criatura de pele negra aconteceu o seguinte na sala de comando da Frer LXXII:

Frernad levantou-se, juntamente com os dois companheiros, tão depressa que parecia haver caído naquele instante. Não lançou um único olhar em torno de si. Caminhou diretamente para o goniômetro e olhou para a tela. No mesmo instante o homem que controlava o aparelho retornara ao seu lugar diante da tela. O outro homem também voltou ao lugar em que se encontrava antes que Tschubai aparecesse.

— ...e agora não está mais lá? — repetiu no mesmo tom de surpresa as palavras que foram as últimas que pronunciara antes do estranho incidente.

O homem sentado diante do goniômetro levantou as mãos.

— O reflexo foi grande e nítido!

Frernad riu; parecia contrariado.

— Será que você já se deixa enganar por uma simples interferência, Sifflon? Algum feixe de ondas sofreu uma interferência eletromagnética e causou o reflexo. É só isso.

— Está bem — resmungou Sifflon ligeiramente ofendido. — Nem afirmei que se tratasse de uma nave inimiga.

Frernad voltou ao painel de controle. O outro homem, que acompanhara atentamente a troca de palavras, voltou a dedicar-se à atividade que vinha desempenhando. Parecia entediado. Olhou fixamente para a frente, aguardando o momento em que Frernad fosse revesado.

Ninguém guardara a menor lembrança do estranho incidente com Ras Tschubai. E os cuidadosos impulsos hipnóticos de Gucky corrigiram o erro originado no fato de que, desde o momento em que Ras Tschubai saltara para o interior da nave, a Frer LXXII, deslocando-se a baixa velocidade, penetrara uma boa distância no espaço.

Nem mesmo a bomba que Tschubai colocara diante do canal de exaustão provocou a menor suspeita. O terceiro homem descobriu-a quando por acaso lançou os olhos pela sala, pegou-a e mostrou-a a Frernad. Este não soube o que fazer com ela.

— Jogue fora! — ordenou.

Gucky conseguiu mais uma coisa. Durante o vôo nenhum dos tripulantes teve a idéia de abrir a porta do pequeno cubículo situado no fim do corredor principal.

Cerca de dois dias depois disso, a Frer LXXII alcançou o ponto de sua trajetória que ficava mais afastado do planeta de Goszul e retornou. Por ocasião de sua visita à sala de comando, Gucky havia lido as indicações dos instrumentos. Além disso, conseguia ler através das paredes espessas do cubículo em que se encontrava os pensamentos dos homens, não muito distantes.

Sabia que cerca de dez dias ainda se passariam antes que pudesse sair da nave no planeta de Goszul.

 

Enquanto caminhavam em direção à cidade, encontraram uma carroça puxada por animais semelhantes a cavalos.

Depois de terem tirado os trajes transportadores, voltaram a envergar as vestimentas que usavam na nave de Levtan para não despertar a atenção dos tripulantes. Pelo aspecto exterior, praticamente não se distinguiam de qualquer das pessoas que se encontravam a bordo da nave dos saltadores. Até mesmo as barbas, que os saltadores costumavam usar, haviam crescido nesse meio tempo.

Ignorava-se se os habitantes daquela ilha sabiam o que vinha a ser uma nave espacial. Geralmente alguém que anda em navios a vela não tem a menor idéia do que seja uma nave espacial, e muito menos saberá reconhecer um marinheiro espacial pelas roupas que usa.

— Temos que experimentar — disse Marshall. — Não podemos ficar escondidos por toda a vida.

Continuaram tranqüilamente na sua caminhada, enquanto a carroça sacolejante se aproximava pelo caminho que subia suavemente.

Um único homem estava sentado na boléia, segurando as rédeas à maneira de um camponês terrestre dos tempos antigos. Quando viu os três estranhos, o homem sobressaltou-se, fez os animais pararem e protegeu os olhos com a mão, para enxergar melhor.

Marshall e seus companheiros, que recebiam pelas costas a luz forte da 221-Tatlira, viram como o homem se assustou.

“Tomara que compreenda o intercosmo”, pensou Marshall. “Senão teremos que aprender sua língua.”

Pararam junto da carroça. O homem estava tão assustado que nem teve coragem de se mexer. Continuava com a mão sobre os olhos.

— Felicidade a cada dia que passa — disse Marshall, proferindo o cumprimento mais corriqueiro dos saltadores.

O homem sentado em cima da carroça arregalou os olhos. Com um movimento rápido baixou a mão. Dando um grande salto, desceu da carroça, caiu de joelhos e ficou deitado, com a cabeça encostada ao chão. Marshall ouviu que murmurava palavras incompreensíveis.

 

— Levante-se — pediu Marshall.

O homem obedeceu prontamente. A certeza de que entendia o intercosmo deixou Marshall muito mais tranqüilo.

— Olhe para mim — prosseguiu Marshall.

O homem, que não era muito jovem, lançou os olhos apavorados sobre Marshall.

— Como é seu nome? — indagou Marshall.

— Eu... euuu... — gaguejou o velho com a voz rangedora — ...eu sou Vethussar Ologon, senhor.

— Queremos ir à cidade, Vethussar — disse Marshall.

Vethussar inclinou-se.

— A cidade sentir-se-á honrada, ó senhores, se quereis visitá-la, e muito mais honrado me sentirei eu se permitirdes que vos ofereça minha carroça imunda.

Marshall olhou a carroça. Era um modelo de limpeza.

— Permitimos — respondeu. — Ficamos muito gratos pela oferta.

Vethussar ergueu as mãos.

— Não fale em gratidão, senhor. Sou vosso servo.

O velho esperou até que Marshall e seus companheiros subissem à carroça. Marshall não se apressou; aproveitou o tempo para pesquisar os pensamentos de Vethussar. Até então não conseguira nada além do susto enorme que o encontro causara no velho, e que expulsava todo e qualquer pensamento consciente. Mas a mente começou a descontrair-se, e nela se instalou a desconfiança misturada com a admiração.

“Será que realmente são...?”, pensou Vethussar. “Existem mesmo... conforme dizem?”

O conceito que Marshall só conseguiu captar vagamente, sem conseguir interpretá-lo, surgiu por duas vezes. Marshall ficou quebrando a cabeça, enquanto Vethussar virou lentamente a carroça e começou a descer em direção à cidade.

Depois de ter observado mais algumas vezes o mesmo impulso nos pensamentos de Vethussar, Marshall chegou à conclusão de que deveria traduzi-lo pela palavra deuses. Não encontrou nada que mais se aproximasse do verdadeiro significado.

Marshall virou-se e informou os companheiros. Falava em inglês e tinha certeza de que isso não provocaria a menor desconfiança em Vethussar. Afinal os deuses deviam ter bastante inteligência para dominar mais de uma língua.

Percebeu, porém, que Vethussar ficou quebrando a cabeça sobre a língua estranha.

Aos poucos foram-se aproximando da cidade. Nos últimos minutos Vethussar virara-se várias vezes, como se quisesse dizer alguma coisa. Marshall percebeu o desejo de formular uma pergunta.

— Pode falar! — disse ao velho. — Qual é a pergunta que quer fazer?

— Desculpe a curiosidade, senhor — exclamou Vethussar — mas é a primeira vez que uma criatura miserável como eu tem a felicidade de ver um deus. Já que são tão bondosos, gostaria de saber como é a terra dos deuses.

Marshall sentiu-se perplexo com a rapidez com que o ânimo do velho mudava do pavor paralisante e reverente para a curiosidade indisfarçada. Devia ter uma enorme agilidade espiritual, ou não estava acreditando...

— Quer saber de uma coisa, Vethussar? — disse em tom de conversa. — Por lá a coisa não é muito diferente daqui. A grama é verde, as folhas das árvores também e a água do mar é azul enquanto brilha o sol. Acontece que por lá existem veículos muito mais rápidos que esta carroça, e alguns deles podem voar pelos ares, e ainda existem outros com os quais se pode viajar até as estrelas.

Vethussar parecia impressionado. Marshall foi o único que percebeu o ligeiro impulso de desconfiança zombeteira que surgiu nas camadas mais profundas de sua mente. E logo veio outra pergunta:

— Por que estão caminhando a pé, senhor?

Estas palavras foram pronunciadas com a maior humildade.

“Seu hipócrita”, pensou Marshall, divertido e zangado ao mesmo tempo, “você nunca acreditou nos deuses, e agora você quer enganar um.”

Viu-se diante de uma decisão muito importante. Poderia contar alguma desculpa, mas Vethussar não acreditaria numa palavra. Por outro lado, poderia explicar-lhe que não eram melhores que ele mesmo, e que dele se distinguiam apenas pela tecnologia mais desenvolvida, que não transformava ninguém num deus.

Decidiu-se pela segunda alternativa.

— Pare um pouco, Vethussar! — ordenou.

Vethussar assustou-se. Parou os animais e olhou para trás, assustado.

— Sim, senhor... o que...

Marshall apontou para a frente.

— Olhe aquela árvore! — disse.

Vethussar voltou a olhar para trás e fitou a árvore. Marshall pegou a pequena arma de impulsos e, apontando ao lado do ombro do velho, disparou um tiro para um dos galhos inferiores.

O galho soltou-se da árvore, caiu ao chão e durante a queda transformou-se em fumaça e cinzas. Pequenas chamas surgiram em meio ao capim, mas logo se apagaram na umidade do solo.

Vethussar tremia. Mas a aula de Marshall ainda não estava concluída.

— Agora olhe para a esquerda, ali, onde o caminho descreve uma curva.

Marshall deu uma cutucada em Tako Kakuta. Este logo compreendeu do que se tratava. Efetuou um salto rápido, desaparecendo de cima da carroça e surgindo no mesmo instante no ponto indicado, de onde os cumprimentou com um gesto da mão.

Vethussar soltou um grunhido de pavor. Sem que Marshall lhe pedisse, virou-se e, arregalando os olhos, descobriu que o indivíduo que se encontrava lá adiante realmente era o mesmo que um instante antes estivera sentado na carroça.

Dali a pouco Tako voltou, pela mesma forma surpreendente pela qual saíra.

O suor porejava na testa de Vethussar.

Mas quando uma força estranha e invisível agarrou-o, erguendo-o no ar e fazendo-o girar, pôs-se a gritar. Tama Yokida, o telecineta, ergueu-o até a altura da copa da árvore, fez com que ele girasse algumas vezes em torno de si mesmo e recolocou-o suavemente na carroça.

Choramingando e gemendo, Vethussar encolheu-se. Marshall deixou-o à vontade por algum tempo. Depois levantou-o pelo ombro e disse:

— Preste atenção, Vethussar!

Obediente, Vethussar parou de lamentar-se e lançou um olhar de pavor para Marshall. Este prosseguiu:

— Não somos deuses, Vethussar. Não existe nenhum deus além daquele que ninguém jamais viu. É o único e o onipotente, e contra vontade dele nada acontece no mundo. Somos apenas gente, gente como você, Vethussar, e os que vivem na cidade ou em qualquer outro lugar. Apenas sabemos algumas coisas que você não sabe. Não tenha medo de nós. Pelo contrário: poderá pedir-nos alguma coisa se nos levar até a cidade. Dar-lhe-emos uma recompensa.

Sentiu que, embora hesitando, a mente do velho começou a absorver suas palavras. Aos poucos ia acreditando nelas.

Por algum tempo Vethussar fitou Marshall. Depois ergueu-se de vez, pegou as rédeas e pôs os animais em movimento. Sacolejando, a carroça foi seguindo lentamente em direção à cidade.

— Teremos problemas — disse Marshall em tom pensativo, falando em inglês. — Na cidade haverá um tumulto. Pensarão que somos deuses. Vethussar desconfiou por causa de nossas vestimentas. Mas quando usei o cumprimento dos saltadores, “Felicidades a cada dia que passa”, que entre os habitantes da ilha é considerado um cumprimento usado pelos deuses, não teve mais a menor dúvida. Poderemos evitar esse cumprimento. Mas nossos trajes os deixarão desconfiados. Sou de opinião que Vethussar deverá seguir na frente e arranjar roupas adequadas para nós. Qualquer objeção?

Sacudiram a cabeça.

Marshall dirigiu-se a Vethussar e começou a explicar-lhe seu plano.

— É bem verdade — disse ao concluir — que não tenho dinheiro. Quem sabe se você aceitaria outra coisa?

Vethussar possuía um sentimento de dignidade altamente desenvolvido. Marshall teve de esforçar-se bastante para convencê-lo de que a oferta de pagamento não devia ser interpretada como uma ofensa.

— No lugar de onde venho — explicou Marshall — costumamos pagar pelas coisas que nos dão.

Quase reconciliado, Vethussar concordou.

— Aqui também é assim — confirmou. — Mas não entre amigos.

Lendo seus pensamentos, Marshall descobriu que suas palavras eram sinceras.

Sentira-se impressionado pela sinceridade com que fora tratado. No momento era o aliado mais fiel que Marshall e seus companheiros tinham no planeta de Goszul.

A cerca de um quilômetro do dique de terra que cercava a cidade para o interior, Vethussar deixou a carroça com os amigos recém-conquistados. Prometeu que voltaria antes do escurecer com roupas adequadas.

 

Szoltan, o piloto da pequena nave auxiliar que passara a última hora numa busca desesperada, compareceu perante a assembléia dos patriarcas, ou melhor, daquilo que sobrara da mesma depois do atentado.

— A busca não deu resultado. Captamos alguns impulsos. Mas seu ponto de partida mudou várias vezes aos saltos. A própria perseguição foi um problema. Finalmente deslocaram-se para o mar, e a última coisa que captamos provinha de uma profundidade de dois mil metros.

Foi só o que Szoltan teve a dizer. Tinha certeza de que em troca de tais informações não colheria elogios dos patriarcas. Talvez seria mesmo transferido para...

Mas as especulações de Szoltan foram infundadas. A resposta dos patriarcas foi imediata:

— Entregue o veículo ao seu companheiro e siga para Saluntad, capital da ilha. Antes de penetrar na cidade, entre em contato com nosso agente a-G-25, que lhe arranjará roupas locais, para que você não desperte desconfiança no interior da cidade. Tenha cuidado, a-G-25 é o único elemento de que dispomos em Saluntad. A população pertence às camadas mais primitivas de Goszul. Supomos que os tripulantes da Lev XIV que conseguiram escapar seguiram diretamente para a cidade, depois de se livrarem dos instrumentos que poderiam traí-los, jogando-os ao mar. A-G-25 lhe prestará todo auxílio. Goza de grande influência na cidade. Fim.

Szoltan respirou aliviado. Esperara coisa pior.

Voou até as proximidades da cidade, pousou, deixou a nave a cargo de seu companheiro e, antes que este decolasse, mandou irradiar um chamado dirigido a a-G-25. O agente respondeu e foi informado do lugar em que Szoltan se encontrava, recebendo instruções para trazer-lhe roupas que não despertassem a atenção.

Depois disso, a nave decolou e afastou-se em direção ao norte, ganhando altura. Szoltan esperou paciente. Dentro de uma hora ou duas o sol se poria.

“Tomara que a-G-25 não demore”, pensou.

 

As roupas trazidas por Vethussar se pareciam com as que ele mesmo usava.

Uma camisa grosseira, amarrada na cintura por uma espécie de cordel, uma calça de bombachas um pouco menor, amarrada na altura dos tornozelos, um par de sandálias e uma manta sem mangas.

Apesar de sua simplicidade, as vestimentas não pareciam pertencer a um homem pobre. Concluía-se que Vethussar não devia ser pobre.

Vethussar ficou satisfeito com os agradecimentos que os amigos lhe manifestaram. Com um sorriso disse:

— Trouxe mais uma coisa.

Pôs a mão no bolso largo da manta e tirou um pequeno recipiente metálico.

— Vetro! — disse em tom de segredo.

Marshall apressou-se em descobrir o que seria vetro. Mas Vethussar estava tão concentrado na reação dos amigos que seus pensamentos não revelaram nada.

— É incrível — disse Marshall, aparentando uma alegre surpresa. — Passe para cá, amigo.

Vethussar entregou-lhe o recipiente. Marshall abriu-o e viu que seu conteúdo consistia num tipo de creme avermelhado.

— Especialmente para você — disse Vethussar. — É provável que ninguém desconfie dos outros.

No mesmo instante Marshall leu em seus pensamentos do que se tratava. Vetro era um corante da pele, que dava a tipos muito claros ou muito escuros a cor avermelhada dos habitantes de Goszul. Pelo que se deduzia dos pensamentos de Vethussar, o conteúdo daquele recipiente valia uma pequena fortuna.

Marshall agradeceu e pediu a Vethussar que passasse o creme nos lugares de seu corpo que ficassem expostos, sempre ou de vez em quando. Para andarem bem seguros, Yokida, Kakuta e Ishibashi imitaram-no.

Quando o trabalho foi concluído, o sol havia desaparecido. A escuridão irrompeu rapidamente. Subiram à carroça de Vethussar e poucos minutos depois passaram pela abertura no dique que, por assim dizer, representava o portão ocidental da cidade.

O nome da cidade era Saluntad. Se dali não encontrassem um caminho que os levasse para o norte, por cima do mar, nunca mais o encontrariam.

Só lhes restaria pôr suas esperanças nas faculdades extraordinárias de Tako.

 

Sob um aspecto importante, Gucky distinguia-se da maior parte dos seres humanos: era incapaz de sentir tédio.

Sua raça era dotada de um instinto lúdico infalível, que não se comprazia tanto na brincadeira como tal, mas antes na alegria provocada pelas aflições que a brincadeira coerente causava nos parceiros inconscientes.

Tempos atrás a raça de Gucky causara um grave perigo à tripulação da Stardust, porque o instinto lúdico inato à mesma não conhecia medidas. Mais tarde essa falha foi suprida em Gucky através da educação. Este já sabia até onde podia chegar com suas brincadeiras, inclusive numa situação como a presente.

Cinco dos dez dias já se haviam passado.

A Frer LXXII retornava ao planeta de Goszul a 98 por cento da velocidade da luz.

Recorrendo ao projetor hipnótico arcônida, Gucky ordenou a um dos homens que se aproximara a menos de cinco metros do seu cubículo que entrasse no mesmo. Por algum tempo divertiu-se com o rosto desfigurado pelo pavor. Depois recorreu a um impulso hipnótico que o fez esquecer o quadro e interrogou-o sobre as condições reinantes no planeta de Goszul.

Dessa forma ligou o útil ao agradável. Recolheu informações sobre o mundo em que teria de trabalhar e, no fim, ainda teve o prazer de captar fragmentos de pensamentos que passaram pelo cérebro do homem depois de este ter saído do cubículo, quando passou a discutir com os outros tripulantes que quiseram saber por onde tinha andado por todo esse tempo, enquanto ele mesmo afirmava que não saíra do lugar por um instante sequer.

O comando hipnótico geral de não abrir a porta do cubículo não foi afetado pela brincadeira de Gucky.

 

O papel que Vethussar desempenhava na cidade tornou-se evidente quando ele convidou seus amigos a descerem da carroça diante de sua casa.

Sob a luz de tochas crepitantes tiveram oportunidade de admirar muitas fachadas, espantando-se pelo fato de que as construções de Saluntad quase não diferiam daquelas que a cultura ocidental do início do século XVII criara na Terra.

Mas a casa de Vethussar era uma exceção.

Na verdade não era uma casa. Era um palácio!

A construção de um pavimento estendia-se por cerca de cinqüenta metros ao longo da rua estreita. Quanto ao aspecto exterior, era o cúmulo da falta de gosto.

Mas Marshall sentiu o orgulho exuberante de Vethussar e mostrou-se bastante impressionado.

Vethussar introduziu os hóspedes por um portal, e só lá dentro eles se deram conta da riqueza do palácio. O interior da enorme casa estava recheado de uma ostentação perdulária, sem demonstrar a mesma falta de gosto da fachada.

Vethussar sentiu-se muito satisfeito com a admiração sincera que os amigos tributaram a sua casa. Fez questão de que Marshall e seus companheiros, que não tinham dinheiro, ficassem com ele até que tivessem uma idéia melhor. Marshall acabou concordando em seu nome e no de seus companheiros.

Cada um deles recebeu um quarto. Tiveram muito trabalho em convencer Vethussar de que não havia necessidade de um criado para cada um deles. Mas Vethussar não se deixou demover do intento de dar um criado para os quatro.

— Nunca tive hóspedes de categoria tão elevada como vocês — disse com um alegre piscar dos olhos. — E faço questão de que recebam um tratamento condigno.

Marshall teria a impressão de que a gentileza era excessiva, se não tivesse captado nas profundidades da mente de Vethussar a idéia de que o mesmo esperava que a hospitalidade lhe trouxesse um proveito, em virtude das faculdades extraordinárias de que seus hóspedes eram dotados.

 

— Muito bem, vamos fazer um plano — concordou Marshall. — Alguém tem uma idéia?

De madrugada Tako Kakuta dera um giro pela zona portuária.

— Dei uma olhada nos navios — disse — e também conversei com algumas pessoas. Os navios têm uma capacidade de enfrentar o alto-mar que não fica nada a dever a quaisquer outros. Mas, se o vento for normal, gastam cerca de trinta dias para vencer uma distância de cinco mil quilômetros. Se não houver outra saída, poderemos ir num desses navios. O comandante não concordará em ir para o Norte, pois lá fica a terra dos deuses, da qual eles têm um medo terrível. Kitai teria que influenciar o comandante e os oficiais, talvez mesmo toda a tripulação, para evitar um motim.

Marshall confirmou com um aceno de cabeça.

— A distância daqui ao continente norte é de cerca de quatro mil quilômetros — disse. — Se a velocidade para o norte for idêntica à do sul, a viagem demorará pouco mais de vinte dias. Isso seria suficiente para os fins que temos em vista.

“Vamos fixar um ponto. Só no continente norte teremos possibilidade de sair deste planeta e voltar para junto de Rhodan. Teremos que capturar uma nave dos saltadores. Por outro lado, será conveniente que algumas semanas se passem entre o atentado contra a assembléia dos patriarcas e a nova ação que estamos planejando.”

Levantou-se.

— Oportunamente falarei com Vethussar a este respeito — concluiu. — Pelo que deduzo dos seus pensamentos, sua riqueza extraordinária provém do comércio marítimo. É possível que possua alguns navios, e que possa ceder-nos um deles.

Vethussar apareceu dali a alguns minutos. Parecia bastante contrariado. Marshall compreendeu que certa visita o deixara indignado.

— Sinto muito — disse Vethussar depois do cumprimento matinal — mas Honbled soube que tenho hóspedes em minha casa, e veio para dispensar-lhes as graças dos deuses.

— Quem é Honbled? — perguntou Marshall, pois Vethussar não pensava em outra coisa senão no aborrecimento que sentia.

— Honbled é o sacerdote supremo da cidade — respondeu o velho. — Na minha opinião também é o maior idiota. Mas não posso dizer-lhe isso, pois goza de muito prestígio e quase todo mundo acredita nos seus deuses.

Marshall riu.

— Pois deixe-o entrar — sugeriu. — Não tenho nada contra suas bênçãos.

Vethussar suspirou aliviado.

— Muito bem, eu o trarei até aqui. Esperaram. Dali a alguns minutos o velho voltou com um homem que, de tão gordo, quase não passa pela porta delicada. Era pálido e tinha barba rala. Pelos padrões terrestres, aquele homem não devia ter mais de trinta anos.

— Este é Honbled — disse Vethussar em tom pouco gentil.

Honbled não se perturbou. Levantou a mão esquerda, comprimiu-a suavemente contra a testa de Marshall e disse:

— Que os deuses o abençoem, meu filho.

Repetiu o procedimento com Tako Kakuta, com Tama Yokida e finalmente com Kitai Ishibashi.

Depois deixou-se cair pesadamente numa das poltronas.

— Pelo que soube, vocês vêm de longe — disse, iniciando a palestra sem rodeios.

— Isso mesmo — respondeu Marshall e pôs-se a sondar o que ia pelo cérebro do sacerdote.

— Permite que pergunte de onde vêm? — prosseguiu Honbled.

“Será que ele não pensa em nada?”, perguntou Marshall de si para si.

— Descemos das montanhas — respondeu.

Era uma resposta dada ao azar. Como Marshall não conhecesse a topografia da ilha, não sabia se nela existiam montanhas. Sentiu que Vethussar se divertia ao saber que Honbled estava sendo enganado. E Honbled?

— Desceram das montanhas? — disse o sacerdote, espantado. — Nesse caso são daquela raça dura de montanheses que enfrentam as intempéries e alegram os deuses com sua vida frugal.

Marshall sentia-se cada vez mais confuso. Tako Kakuta percebeu a confusão do amigo e encarregou-se da resposta.

— Bem, nossa vida não é tão frugal como costumam dizer aqui embaixo — respondeu em tom insolente. — Levamos nossa vida, festejamos nossas festas e, pelo que dizem, nossas mulheres são as mais belas desta terra.

Honbled parecia decepcionado.

— Os deuses não gostarão de ouvir uma coisa dessas — disse um tanto indignado. — Os deuses gostam que suas criaturas vivam na abstinência. O castigo da luxúria é muito rigoroso.

Ao que parecia, o japonês se divertia com a conversa.

— Não digo que vivemos na luxúria — respondeu. — Apenas quis retificar uma opinião muito em voga. Não passamos o tempo sentados em galhos secos nem vivemos do ar.

Vethussar divertia-se a valer.

— Também costumamos casar — interveio Kitai com o rosto mais sério deste mundo.

— E também tomamos nosso trago — exclamou Tama Yokida.

Ninguém sabia onde aprendera a gíria.

Honbled levantou-se indignado.

— Pelo que vejo — disse, para sair da situação desagradável — vocês têm atrás de si uma viagem muito longa e ainda não se recuperaram das canseiras. Com a vontade dos deuses e de vocês voltarei a visitá-los amanhã, para ouvir mais alguma coisa sobre os homens das montanhas.

Fez um gesto com a mão esquerda e retirou-se. Vethussar seguiu-o com um sorriso.

Marshall levantou-se de um salto, assim que a porta se fechou atrás dos dois.

— O homem tem um bloqueio — disse. — Não consigo captar seus pensamentos.

Tranqüilo, Tama Yokida sacudiu a cabeça.

— Não, ele não tem nenhum bloqueio — afirmou calmamente.

Marshall fitou-o perplexo. Sabia que a capacidade telecinética de Yokida lhe permitia reconhecer os contornos dos objetos invisíveis. Poderia reconhecer um instrumento mecânico implantado no cérebro do sacerdote, por menor que fosse.

— O que é que ele tem? — perguntou Marshall.

— Não tem nada — respondeu Yokida com um sorriso. — Ele é uma coisa, é um robô...

 

A-G-25 voltou com uma rapidez surpreendente. Szoltan, que se encontrava no primeiro andar da casa em que residia o agente, viu-o andar pela rua. Tomou tempo para divertir-se com a submissão que os transeuntes demonstravam ao cumprimentá-lo e admirar a engenhosidade dos construtores, que deram a esse robô uma forma tão humana.

A-G-25 passou pela porta estreita situada no topo de uma pequena escada, que dava diretamente para a rua. Poucos minutos depois encontrava-se ao lado de Szoltan.

Fungava como um homem de Tirou um lenço do traje manchado e passou-o pela testa.

— São eles! — exclamou. — Não tenho a menor dúvida.

— São os tripulantes da Lev XIV?

— Como vou saber? — perguntou. — Não pude perguntar, não é?

Szoltan ficou contrariado.

— Como é que você sabe que são as pessoas que procuramos?

— Entre os habitantes da ilha não há telepatas — respondeu a-G-25, ou melhor, Honbled. — Acontece que um deles é telepata. Senti que tateou em direção ao meu cérebro.

Szoltan esboçou um sorriso um tanto depreciativo. O cérebro de a-G-25 não passava de um conjunto de chaves de reação lenta e rápida, depósitos de impulsos, condutos e controles de medição de tensões.

Era verdade — e isso era o mais importante — entre outros instrumentos, o robô possuía um aparelho de registro de emanações telepáticas.

Szoltan não parecia muito satisfeito.

— O que foi que eles lhe contaram?

A-G-25 relatou a palestra.

— E ainda se divertiram à minha custa — acrescentou, bastante contrariado.

Szoltan atirou os braços para cima.

— E daí? Será que não pode ser verdade o que dizem? É bem possível que venham das montanhas, e que entre os homens das montanhas existam telepatas.

A-G-25 ainda estava suando.

— É possível que entre os homens das montanhas haja telepatas — reconheceu. Intercalou uma pausa, para aumentar o efeito de suas palavras. Depois concluiu enfaticamente: — Acontece que nesta ilha não existe uma única montanha.

 

— Será que é um agente dos saltadores? — perguntou Marshall laconicamente.

Os outros sabiam tanto ou tão pouco quanto ele; por isso a pergunta era puramente retórica.

Mas dificilmente se poderia conceber outra resposta que não fosse um sim. Além dos saltadores não havia ninguém neste mundo que soubesse construir um robô. Qualquer robô que existisse em Saluntad só poderia ser um robô dos saltadores.

Admitidos esses atos, ainda era certo que Honbled viera exclusivamente para saber se eram os fugitivos que estavam sendo procurados.

— Isso afeta nossos planos — constatou Marshall. — Se um dos saltadores souber que estamos nesta cidade, suporá que procuraremos embarcar num navio. Vigiará o porto e logo descobrirá que navio tomamos. Quando nos encontrarmos em alto-mar, os saltadores não terão nenhuma dificuldade em capturar-nos.

— Hum! — fez Yokida. — Poderíamos desmascarar o sacerdote. Basta que lhe abramos a barriga em público para mostrar a todo mundo que o sacerdote que adoravam até então é uma alma de lata.

— Você acha que isso adiantaria alguma coisa? — perguntou Marshall. — Não adiantaria nada. Os saltadores ficariam de olho em nós. Nem sequer sabemos se Honbled é o único agente que mantêm nesta cidade. Teremos que acompanhar o jogo de Honbled por algum tempo. Precisamos descobrir se suspeita de nós, e precisamos adaptar nossos planos à idéia que faz a nosso respeito.

A sugestão foi aceita. Vethussar não foi informado sobre a mesma. Sentiu-se satisfeito porque alguém tivera coragem de fazer uma brincadeira desse tipo com o sacerdote.

 

— Será possível — asseverou a-G-25 em tom insistente. — Não há a menor dúvida. E será bem simples. Um delito desse tipo deixará o povo furioso. Não teremos o menor problema, mesmo que se trate de um dos armadores mais ricos da ilha.

— Deixaremos que as coisas tomem seu curso normal. Não recorreremos aos meios técnicos. Para viver em paz e realizar um trabalho útil, preciso de uma população pacata. Quando alguém começar a arrebentar as casas com desintegradores e trabalhar os homens com armas hipnóticas, a paz e a credulidade deixarão de existir. Não devemos esquecer que os goszuls foram levados à força a esse estado de atraso. Ninguém sabe quais são as recordações do tempo de sua grandeza tecnológica que ainda jazem no seu subconsciente.

Szoltan deu-lhe razão, embora o fato de ter sido derrotado por um robô numa discussão franca o deixasse triste.

— Então, quais são seus planos? — perguntou em tom áspero.

— Colocaremos as provas nos lugares adequados — respondeu prontamente a-G-25. — Depois mobilizamos os templários e marchamos em direção à casa. No caminho uma grande massa de povo deverá juntar-se a nós. Cercamos a casa e intimamos Vethussar a entregar o produto do roubo. Ele fará pouco de nós. Depois disso ocupamos a casa à força. É tudo. Como o edifício será cercado em tempo, ninguém escapará. Prenderemos os quatro homens da Lev e informaremos Vethussar de que ficará isento de pena se os deixar por nossa conta. Ele não se oporá, pois um delito desse tipo é punido com a morte.

Szoltan virou as palmas das mãos para cima.

— De acordo!

 

Marshall acordou.

Lançou os olhos em torno. Na luz do fogo quase extinto — um fogo de lenha sem fumaça, aceso constantemente numa tina de ferro colocada no centro do quarto — descobriu Tako Kakuta, sentado junto à porta.

Desde que Honbled os visitara os quatro sempre permaneciam no mesmo quarto, e de noite ficavam de sentinela por turnos.

— Tako...

O japonês virou-se.

— Sim.

— O que houve?

— Nada de especial. Tudo tranqüilo.

Marshall ergueu-se e aguçou o ouvido.

Algo de extraordinário o despertara. Se fosse alguma coisa que pudesse ser vista, ouvida ou sentida, Tako sem dúvida o teria percebido. Acontece que não percebeu...

Ali estava de novo.

Um impulso de pensamento gerado por um medo extraordinário. Mais um, e mais um, vindo de outro cérebro.

“Vem de longe”, calculou Marshall. “Talvez da ala direita do edifício.”

Acordou os companheiros.

— Alguma coisa está acontecendo — disse em tom sério. — Há alguém por lá que sente um medo terrível. São pelo menos duas pessoas. Vamos dar uma olhada.

No dia anterior haviam conhecido a casa por dentro. A divisão era simples e metódica. Passando pelo corredor central, esgueiraram-se pela escuridão em direção à ala direita.

Os impulsos captados por Marshall tornaram-se mais intensos.

— É naquela sala — cochichou, apontando para os contornos quase imperceptíveis de uma porta situada poucos metros adiante, do lado direito do corredor.

Foram avançando grudados à parede. Da porta saíam ruídos de alguma coisa que era arranhada. Uma voz reprimida falava apressadamente e com raiva.

Marshall compreendeu os pensamentos:

“Quem dera que já estivéssemos prontos! Que sacrilégio! Os deuses nos punirão, apesar da intercessão de Honbled. Vamos dar o fora quanto antes.”

Marshall acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. Viu uma estreita faixa de luz que saía pela fresta da porta. Concluiu havia luz no interior do quarto. Marshall passou rapidamente junto à porta fez sinal para que Tako o seguisse. Tama e Kitai continuaram do outro lado da porta.

Com um forte pontapé Marshall jogou a porta para dentro. Ouviu-se um grito de pavor. No mesmo instante os quatro viram-se no centro da pequena sala, iluminada pela luz trêmula de algumas velas de sebo.

— Segurem-nos! — disse Marshall.

Inspecionou a armação. Viu que suas suposições não o haviam enganado: a sala era o depósito de valores de Vethussar. Preciosidades de todos os tipos estavam espalhadas sobre as tábuas da armação, e o conteúdo da caixa que naquele instante seria colocado sobre uma delas correspondia ao que já se encontrava lá. Eram estatuetas de ouro, com as partes mais interessantes do corpo assinaladas por pedras preciosas. Na caixa haveria umas vinte estatuetas desse tipo. Se no planeta de Goszul, mais especialmente na cidade de Saluntad, o ouro e as pedras preciosas tinham o mesmo valor que na Terra, os dois homens haviam carregado uma fortuna considerável naquela caixa.

“E daí?”, pensou Marshall. “Ninguém pode proibir Vethussar de completar seu tesouro durante a noite”.

Mas havia o medo dos dois homens. Por que esse medo? Por que sentiam tanto medo que nada havia em seus cérebros além desse sentimento?

Kitai colocou-se diante de um dos homens. Tako segurou-o e obrigou-o a fitar Kitai.

— Que estatuetas são estas? — perguntou Kitai.

Seus interrogatórios não admitiam respostas falsas. A força sugestiva de Kitai Ishibashi era tão intensa que até então nenhuma vontade conseguira resistir à mesma.

— São figuras tiradas do templo principal dos deuses — respondeu o homem.

— Vocês as roubaram?

— Não.

— Então, quem foi?

— Honbled, o supremo sacerdote, as entregou a nós.

— Ordenou que as colocassem aqui?

— Sim.

Marshall interveio.

— Está bem, Kitai. Pode parar.

As perguntas de Kitai e a influência sugestiva por ele exercida obrigaram o homem a superar o medo e pensar sobre as coisas a respeito das quais estava sendo interrogado. Marshall sabia o que havia acontecido e, mais do que isso, o que deveria acontecer.

Virou a cabeça. Parte das tábuas da armação estava presa aos postes por meio de correias de couro. Marshall tirou os objetos que se encontravam em cima das tábuas e tirou as correias.

— Amarrem-nos! — disse laconicamente. — Um de nós tem que buscar Vethussar. Rápido.

Tama Yokida saiu em disparada. Mal os dois intrusos estavam amarrados e amordaçados, Yokida voltou com Vethussar. Estupefato, este piscou para a luz das velas.

— Kitai!

O japonês confirmou com um aceno de cabeça. Sabia que não havia tempo a perder. Vethussar estava sonolento. Se alguém lhe quisesse explicar os acontecimentos sem recorrer a qualquer pressão sugestiva, levaria mais de uma hora.

Kitai não teve necessidade de repetir qualquer palavra. O velho logo compreendeu, e também compreendeu o desastre que estava prestes a desabar sobre sua casa.

— Estes homens declaram — concluiu Kitai — que Honbled e seus templários estarão aqui cerca de uma hora depois da meia-noite, para acusar e prender você. Isso significa que apenas nos restam noventa minutos. Você tem alguma sugestão sobre o que devemos fazer?

Vethussar não tinha nenhum plano. A infâmia do sacerdote, que sem dúvida seria bem sucedida se não fosse a vigilância de seus hóspedes, assustara-o tanto que não conseguia concatenar os pensamentos.

— Está bem. Nesse caso é conosco — disse Marshall em inglês. — O velho está tremendo de medo.

Dirigiu-se a Vethussar:

— Onde fica o templo principal?

Vethussar descreveu a situação.

— Tako, você retirará as provas desta casa.

Tako fez que sim.

— Nossa defesa será mais eficiente — explicou Marshall, falando em intercosmo, para que o velho o compreendesse — se os objetos roubados forem levados de volta aos seus lugares. Nesse caso poderemos acusar Honbled de calúnia e expulsá-lo daqui.

Entusiasmado, Vethussar bateu palmas. Marshall prosseguiu em inglês:

— Resta saber se isso bastará para que o robô desista de seus planos. Não acredito que saia daqui sem mais nem menos, depois que não encontrar as estatuetas. De qualquer maneira tentará agarrar-nos. Portanto, mantenham as armas preparadas.

Tako ensaiou um salto em direção ao templo. Marshall completara as indicações de Vethussar com uma descrição dos arredores do templo, extraídas do cérebro do velho. Por isso o salto foi executado com a precisão de um metro.

Tako pousou na escuridão do interior do enorme edifício. Atrás dele, junto ao portal, ardia um pequeno fogo, que provavelmente era sagrado. Dois guardas estavam juntos à porta. Não notaram a presença de Tako.

Tako encontrou os altares dos quais Honbled havia tirado as estatuetas e retornou à casa de Vethussar.

Com mais três saltos levou os objetos roubados de volta ao lugar a que pertenciam. Pouco depois da meia-noite o trabalho estava concluído. Ninguém percebera a ação. Vethussar estava garantido contra as acusações de Honbled. Em palavras exaltadas manifestou sua gratidão aos hóspedes.

Enquanto isso, Marshall havia refletido sobre a maneira de escaparem à rede dos saltadores, que se fechava em torno deles, sem expor-se a qualquer perigo e sem renunciar à posição vantajosa em que se encontravam.

Dispunha de quarenta minutos para elaborar seu plano.

 

Vethussar enviou um mensageiro para colher a informação.

Realmente, a partir de ontem Honbled abrigava em sua casa um hóspede que até o dia anterior ninguém havia visto na cidade.

Marshall recebeu a informação trinta minutos depois da meia-noite e respirou aliviado.

Tinha certeza absoluta de que, antes de acusar Vethussar em público, Honbled mandaria cercar sua casa.

Marshall e seus amigos saíram da casa para observar o cerco. Vethussar ainda recebeu algumas informações, transmitidas às pressas e reforçadas por via sugestiva, e mandou um mensageiro ao porto para que as transmitisse ao homem a que igualmente interessavam.

Finalmente Marshall disse:

— Caro amigo, talvez não possamos valer-nos mais da sua hospitalidade. Isso dependerá da situação. Se não nos encontrarmos mais, tenha certeza de que lhe somos muitíssimo gratos. Você foi um bom amigo, e esperamos que não se esqueça de nós.

Vethussar comoveu-se com estas palavras.

— Não me fale em agradecimentos — disse. — Sou eu que tenho que agradecer-lhes. Vocês me salvaram da morte e da desonra.

Faltavam apenas quinze minutos para o momento em que Honbled pretendia avançar. Apressaram as despedidas e saíram para o grande parque dos fundos do palácio de Vethussar.

Avançaram cautelosamente. Marshall caminhava no centro, pois estava ocupado exclusivamente em captar pensamentos estranhos.

Quando captou o primeiro impulso, pegou a perna de Kitai Ishibashi, que rastejava à sua frente, e segurou-o.

— Ali à frente, um pouco à direita — cochichou.

Kitai confirmou com um aceno de cabeça e informou Tako Kakuta, que se mantinha na ponta, para que seguisse em outra direção.

Poucos segundos depois ouviram um ruído na vegetação. Eram os homens de Honbled que ocupavam seus postos.

Marshall estremeceu ao receber o primeiro impulso de um cérebro bem desenvolvido e treinado. O impulso dizia o seguinte:

“Mais alguns minutos, e os patriarcas terão seus prisioneiros e eu recuperarei o sossego.”

 

Honbled e Szoltan repartiram suas tarefas. Como sacerdote, Honbled, acompanhado de seus templários, encarregou-se da acusação pública. Szoltan, acompanhado de um grupo de pessoas recrutadas e informadas às pressas, cuidou para que ninguém saísse da casa.

Pouco menos de uma hora depois da meia-noite, Szoltan espalhara seu grupo. Ele mesmo escolhera um posto bastante solitário. Impaciente, lia os minutos no relógio luminoso.

Procurou romper a escuridão e disse furioso:

— Eu não lhes disse que ficassem nos seus lugares?

A vegetação abriu-se à sua direita e à sua esquerda e duas figuras abaixadas aproximaram-se às pressas.

— Não, meu filho, você não nos disse nada disso — respondeu uma voz baixa e desconhecida.

Szoltan assustou-se até a medula dos ossos. Não teve tempo de recuperar-se do susto. Uma forte pancada atingiu seu crânio e deixou-o sem sentidos.

— Tudo em ordem — cochichou Marshall.

Kitai e Tama aproximaram-se.

— Vamos aí para os fundos — Marshall apontou para a direção a que se referia.

Os dois japoneses carregaram o saltador inconsciente. Escondidos na vegetação espessa, carregaram-no até o muro que fechava o parque pelos fundos. Tama ajudou-os com suas forças telecinéticas quando o levaram por cima do muro e manteve-o no ar até que subissem no muro atrás dele. Tako seguiu-o, e Marshall ia na retaguarda.

— Tudo tranqüilo — disse. — Dentro de um instante o drama começará.

A poucos passos dali, na viela que ficava junto ao muro, estava a carroça com dois animais que Vethussar deixara ali a seu pedido. O saltador inconsciente foi colocado na mesma. Kitai, Tako e Tama sentaram-se de tal forma que podiam ficar de olho nele, e que o saltador não pudesse ser visto de fora. Marshall sentou na boléia, tangeu os animais e seguiu em direção ao porto.

 

Vethussar não se apressou quando ouviu o gordo sacerdote martelar o portal da casa com os punhos. Esperou que o criado entrasse em seu quarto e dissesse:

— Honbled, o sacerdote supremo, está lá fora. Está muito zangado...

Vethussar fez de conta que bocejava.

— Peça-lhe que volte amanhã de manhã. De noite costumo dormir.

O criado tremia.

— Ele não concordará. Veio com quase todos os templários e afirmam que você cometeu um crime punido com a morte.

Vethussar ergueu-se sobressaltado. Desempenhava seu papel com muita habilidade.

— Eu, que sou o servo mais fiel dos deuses? Um crime infame?

Com um salto ágil saiu da cama e gritou para o criado:

— Traga minha capa. Rápido! E um archote.

Lá fora Honbled voltou a martelar a porta. Com a capa sobre os ombros e o archote na mão, o velho abriu o portal e em atitude arrogante colocou-se diante do gordo Honbled.

— Que tolice é essa que você anda contando ao povo? — gritou. — Quem cometeu um crime digno de morte?

Honbled não se intimidou.

— Foi você! — gritou, apontando para o velho. — Você roubou quatorze imagens dos deuses do templo para aumentar sua riqueza. Você ofendeu os deuses.

— Quem lhe disse isso?

— Dois guardas viram você e um criado seu carregar uma caixa pesada pelo portal pequeno do templo.

— É mentira! — respondeu Vethussar.

— Nada disso! — vociferou Honbled. — Deixe que revistemos sua casa, e descobriremos onde você escondeu as imagens.

Vethussar deu uma risada sarcástica.

— Antes disso quero que você me leve ao templo e mostre quais são as imagens desaparecidas.

— Não quer mais nada? — escarneceu Honbled. — Só assim seus criados terão tempo para esconder os tesouros.

Vethussar estragou-lhe o jogo.

— Pois deixe alguns dos seus homens aqui. Poderão ficar diante da casa e nos corredores. Assim você terá certeza de que nada está sendo escondido.

Gritos de concordância soaram na multidão que se comprimia atrás de Honbled. Este não estava interessado em demorar a operação. Sabia que, atrás da casa, Szoltan estava de guarda. Por isso decidiu ceder ao desejo de Vethussar.

Carregando archotes fumegantes, a multidão que crescia constantemente desceu pela rua, em direção ao templo principal.

— Abram o portão — gritou Honbled de longe.

Os dois guardas que tinham ficado no templo obedeceram e abriram o grande portão.

— Vocês que estão carregando archotes, fiquem junto às paredes para que haja luz.

Os homens foram andando junto às paredes e pararam em intervalos regulares. Uma claridade amarelenta e esfumaçada encheu o recinto.

— Agora — anunciou a voz potente de Honbled — eu lhes mostrarei os altares de onde este malfeitor roubou as imagens dos deuses. Olhem ali...

Estacou. Nada estava faltando no altar do deus do mar, embora tivesse ordenado aos seus homens que esvaziasse esse altar antes dos outros, porque nele se encontrava a mais preciosa das imagens.

— ...ou ali — prosseguiu.

Acontece que também a imagem de ouro do deus dos peixes continuava no lugar de sempre — com pedras preciosas verdes e brilhantes que lhe serviam de olhos.

— Ou ali — arremedou Vethussar, brandindo o archote. — Ou ali... ou ali.

O organismo mecânico de Honbled registrou e classificou a nova situação e fez com que o exterior de seu corpo demonstrasse a reação tipicamente humana à mesma, feita de pavor, medo e espanto.

— Onde estão as imagens roubadas? — gritou Vethussar. — O que foi que eu roubei? Pois está tudo aqui! O que é que você esperava encontrar em minha casa?

O mecanismo de processamento de dados de Honbled trabalhava febrilmente. Pesou todas as alternativas possíveis, inclusive a de que Vethussar soubera do atentado e levara as imagens de volta ao templo. Mas o setor lógico recusou-se a transformar esse conhecimento em impulsos verbais e transmitir os mesmos aos instrumentos de fala, porque a essa altura ninguém mais acreditaria numa palavra do que o sacerdote dissesse.

Enquanto isso, a fala de Vethussar inflamava a multidão. Os que não carregavam archotes apinharam-se em torno do velho e do sacerdote, enquanto os outros saíram de junto das paredes e iluminaram a cena.

— Ele mentiu — gritou Vethussar. — Mentiu para me roubar. Ele, o sacerdote.

— O sacerdote supremo — gritou a multidão enfurecida.

A sorte de Honbled estava selada. A multidão precipitou-se sobre ele. Era bem verdade que a-G-25 era uma máquina potente; não teve a menor dificuldade em defender-se do primeiro atacante. Mas a multidão estava composta de mais de mil pessoas. Honbled não teve outra alternativa senão emitir o sinal de emergência do agente e deixar que os acontecimentos seguissem seus cursos. As pancadas e os pontapés sacudiram seu interior, condenando-o à imobilidade. Sua última reação foi a de fechar os olhos.

Dali a pouco pensaram que estivesse inconsciente ou morto. A barriga gorda de Honbled evitara que o corpo propriamente dito do robô, feito de metal plastificado, fosse colocado à mostra. Os cidadãos de Saluntad foram poupados ao choque metafísico.

Vethussar já se desprendera da multidão e retornara a sua casa. Face às notícias que trouxe e ajudado por seus criados expulsou os servos de Honbled da casa e do jardim.

Concluído este serviço, foi ao seu aposento particular, mandou que o criado acendesse alguns cavacos de pinho e contemplou ansiosamente o relógio de água, que mostrava tranqüilamente as horas.

Fora cheia quatro horas antes da meia-noite. Agora o nível da água estava junto à linha da sexta hora.

Quando passou por essa linha, três tiros de canhão soaram na zona portuária.

Vethussar sorriu satisfeito, levantou-se e apagou os cavacos. Ao deitar-se, pensou:

“Fafer é um homem de confiança.”

 

Os dois animais de tração foram a única dificuldade com que o grupo se deparou no caminho até o porto. Marshall só conseguira uma explicação apressada sobre a maneira de dirigi-los, e mais de uma vez aconteceu que andassem para a esquerda, quando ele queria que seguissem para a direita.

Apesar disso não levaram mais de meia hora para chegar ao porto.

O navio que tinham em vista — o Storrata — foi fácil de encontrar. Era a única embarcação em que havia outra iluminação além das costumeiras luzes noturnas, e no qual se trabalhava.

Marshall levou a carroça até junto ao passadiço, que descia do último dos três conveses sobrepostos.

— Vethussar nos manda a esta hora da noite — gritou Marshall.

Eram as palavras que combinara com o comandante do Storrata, por intermédio de Vethussar e de seu mensageiro.

— Subam! — gritou alguém.

Descarregaram o saltador, ainda inconsciente, e subiram pelo passadiço.

Foram recebidos por uma pessoa que envergava um uniforme colorido. Marshall sondou o conteúdo de seu cérebro: surpresa, curiosidade e certo aborrecimento causado pela incumbência de zarpar a uma hora dessas.

— Sou Fafer — disse o homem. — Sejam bem-vindos.

Marshall agradeceu.

— Sentimos que, por nossa causa, você tenha tanto trabalho — disse. — Mas tivemos oportunidade de prestar um serviço nada desprezível ao seu amo, e ele deseja retribuir. Tenho certeza de que também você sentirá os favores de Vethussar, se puder ajudar-nos a sair desta terra sem que ninguém o saiba.

Marshall percebeu que o humor de Fafer logo melhorou.

— Farei o possível — asseverou o comandante. — Permitam que lhes mostre o lugar em que irão morar.

Perto da popa havia uma escada estreita que levava ao convés do meio. Fafer seguiu em direção à popa e, depois de chegar ao fim do corredor, abriu algumas portas atrás das quais ficavam aposentos cujo esplendor deixou Marshall e seus amigos estupefatos.

— Aquela janela permite uma visão bem ampla — explicou Fafer. — A popa do navio inclina-se da ponte de comando em direção à água. Por isso pode-se olhar tanto para baixo como para cima.

Esse detalhe era importante. E outra vantagem era que cada aposento possuía uma janela desse tipo.

Fafer indagou delicadamente se os aposentos eram do agrado dos hóspedes. Despediu-se depois que estes asseveraram que poucas vezes haviam morado num lugar tão confortável.

— A manobra será difícil — disse, como para desculpar-se. — Daqui a uma hora, aproximadamente, a maré vai mudar. Se não conseguirmos sair o suficiente com a maré vazante, a maré alta nos carregará novamente para dentro do porto.

Quinze minutos depois ouviu-se o ribombo de três tiros de canhão no convés superior. Pouco depois os quatro viram que o panorama mudava diante das janelas. As luzes do porto recuaram e os contornos escuros de outros navios deslizavam lentamente diante deles.

O Storrata saiu do porto.

 

Na manhã do dia seguinte várias pessoas perguntaram a Vethussar, como que por acaso, o que era feito de seus hóspedes. Este, que fora prevenido por Marshall, respondeu às perguntas com a maior boa vontade.

Os quatro forasteiros haviam saído no Storrata. Não, não seguiram em direção às ilhas ocidentais, mas para o continente do sul. Sua missão era muito urgente, por isso Fafer, o comandante, se mostrara disposto a zarpar ainda na mesma noite.

O primeiro “contato de segurança” de Marshall entrara em funcionamento. O fluxo de informações estava em desenvolvimento.

 

O segundo “contato” era o próprio prisioneiro, chamado Szoltan.

Marshall tivera boas razões para não revistar seu equipamento, quanto mais tirar-lhe alguma coisa. Tinha certeza de que devia trazer consigo alguma coisa que lhe permitiria ao menos transmitir um sinal goniométrico aos seus chefes.

E isso mesmo era necessário. Agora, que os saltadores tiveram sua atenção despertada para eles, não adiantaria retardar o regresso ao continente norte. O motivo principal — isto é, a opinião de que com o tempo o atentado contra os patriarcas cairia no esquecimento — já não existia.

E, para vencer a distância de cinco mil quilômetros com maior rapidez do que seria possível num navio a vela, Marshall precisaria dos próprios saltadores. Estes deveriam saber onde encontrar Szoltan e os homens que o haviam aprisionado.

O resto correu conforme Marshall desejara. O Storrata saiu do porto e antes da mudança da maré o vento enfunou suas velas, deslocando-o lentamente em direção ao sul enquanto ia raiando o dia.

 

O planeta de Goszul — era este um nome que não existia há muito tempo, ao menos em comparação com a história do povo que atualmente era chamado de goszuls.

Os goszuls, que a si mesmos davam o nome de gorrs e chamavam seu mundo de Gorr, foram primitivamente um grupo de colonos arcônidas, que se estabeleceram nesse setor da galáxia, vindos de Árcon numa imensa frota espacial. Isso acontecera há vários milênios. Portanto, os gorrs pertenciam à mesma raça de Thora e Crest, ou dois arcônidas aos quais, em última análise, Perry Rhodan devia o imenso avanço tecnológico da Terceira Potência.

Acontece que certas influências climáticas e psicológicas existentes no planeta habitado pelos gorrs trouxeram um retardamento, e finalmente a paralisação do desenvolvimento técnico-civilizatório. Cerca de mil e quinhentos anos após o início da colonização, a tecnologia dos gorrs começou a regredir. Certos objetos que, séculos antes, eram usados por todos deixaram de ser fabricados, porque o povo havia esquecido a maneira de produzi-los.

Não há dúvida de que o processo foi muito lento. Provavelmente os habitantes de Gorr continuariam por mais vinte mil anos uma raça dotada de uma tecnologia relativamente avançada, se o mundo de Goszul não tivesse sido descoberto pelos saltadores, que decidiram acelerar o processo de regressão por meios artificiais.

Os saltadores dispunham de todos os meios para isso. Eram uma raça de mercadores, que não tinha uma verdadeira pátria. Em compensação, detinham o monopólio do comércio galático e, como fossem os seres que mais andavam pelos diversos mundos, eram considerados o grupo tecnicamente mais avançado. Sob o ponto de vista racial também eram aparentados aos arcônidas, mas no terreno político formavam um reino independente dentro do Império Arcônida. Enquanto não surgisse nenhum perigo, as ligações entre eles eram bastante frouxas. Mas sempre que um deles se via numa situação de emergência causada por um elemento não pertencente ao grupo, vinha imediatamente em auxílio de seus semelhantes.

Tiveram sua atenção despertada para a Terra por causa do comandante da nave Orla XI, que observou que, no setor de Vega, alguém praticava o comércio interestelar, rompendo o monopólio dos saltadores. Orlgans, o comandante, colocara seus agentes na Terra e, só porque Rhodan assim o planejara, conseguira capturar um prisioneiro muito importante. Rhodan seguiu a nave dos saltadores, atacou-a e viu-se envolvido numa batalha com as naves de guerra que acudiram às pressas. Compreendendo que com um grupo de três naves, posteriormente aumentado para quatro, não conseguiria enfrentar por muito tempo o poderio superior dos saltadores, dirigiu-se ao mundo artificial do planeta Peregrino, a fim de pedir à entidade espiritual coletiva que ali vivia que lhe concedesse uma arma nova e superior, o transmissor fictício. A entidade espiritual coletiva, que era a concentração mental de uma raça que há muito se extinguira fisicamente, apenas lhe concedeu dois transmissores que seriam instalados na Stardust, o enorme couraçado espacial de Rhodan. Face a isso, Rhodan continuou em situação inferior no terreno tecnológico. Depois disso tinha de impedir que os patriarcas dos mercadores, reunidos em conferência extraordinária no planeta de Goszul, resolvessem lançar um ataque imediato contra a Terra.

Voltando ao planeta de Goszul: Ao reforçar o efeito involutivo do ambiente de Gorr e introduzir no processo de regressão um fator multiplicativo de dez mil, os saltadores criaram um mundo habitado exclusivamente por inteligências subdesenvolvidas.

Transformaram o continente norte numa base, deixando o resto intocado. Fizeram com que os gorrs, que passaram a ser chamados de goszuls, acreditassem em deuses, deuses estes que não eram outros senão os próprios saltadores. Fizeram de seus robôs os supremos sacerdotes, controlando dessa forma a evolução do planeta.

Escolheram os mais inteligentes dentre os goszuls e, depois de submetê-los a um ligeiro treinamento hipnótico, transformaram-nos numa força de trabalho barata e submissa.

Tudo isso fazia com que o planeta de Goszul — ou de Gorr — fosse uma advertência ao vivo do que aconteceria à Terra se um dia os saltadores conseguissem conquistá-la.

 

Era perto do meio-dia.

Fafer tomara o rumo sudoeste.

Marshall e seus companheiros subiram ao convés de comando, observando cuidadosamente os arredores do Storrata.

Quanto a Szoltan, todas as providências haviam sido tomadas. Podia mover-se livremente num dos aposentos. Mas não podia sair do camarote para o interior do navio.

Marshall levantou-se. Estivera sentado num montão de corda enrolada, inspecionando um dos canhões que se encontravam na ponte de comando.

Só deu alguns passos. Estacou diante das palavras de Tako.

— Olhe! Ali!

Marshall agachou-se ao lado dele sobre o tombadilho e olhou na direção em que Tako apontava. Com um suspiro de alívio viu os três pontos negros que, deslocando-se pouco acima da superfície da água, vinham do norte.

— Então deu certo — disse, satisfeito.

O vigia da gávea parecia ter descoberto a mesma coisa ao mesmo tempo.

— Três embarcações estranhas vindas do norte! — gritou.

Fafer, que se encontrava no convés do meio, gritou de volta:

— De que tipo?

O vigia gritou:

— Não andam na água, mas acima dela.

Sua voz parecia amedrontada.

Marshall viu que também Fafer se assustou. Os marinheiros que se encontravam nas proximidades de Marshall haviam acompanhado a troca de palavras da gávea para o tombadilho. Marshall ouviu-os murmurar:

— São os deuses nos seus carros voadores.

Fafer voltara a controlar-se.

— Continuem! — soou sua voz retumbante, atingindo todos os conveses. — Veremos de que se trata.

Marshall transmitiu as últimas instruções.

— Ficaremos de prontidão aqui no convés. Provavelmente ao menos um dos homens descerá de uma das naves e procurará entrar em entendimento com o comandante. Não acredito que ataquem o navio, pois temos um refém a bordo.

As naves aproximaram-se rapidamente. Apesar das ordens de Fafer a tripulação parou de trabalhar. Atiraram-se ao tombadilho quando as naves começaram a circular em torno do navio e uma delas parou na altura do convés do meio, deixando descer um homem.

— Kitai... para a frente! — disse Marshall entre os dentes.

Kitai esgueirou-se até a beirada da ponte de comando e, escondido atrás de um mastro, desceu pela escada estreita que dava para o convés do meio. Marshall viu-o tomar posição atrás do mastro.

Provavelmente o saltador viera na intenção de falar com o comandante do navio. Mas de repente resolveu outra coisa. Marshall viu-o segurar o microfone de bolso e mover os lábios.

A reação foi imediata. A nave da qual o homem acabara de sair desceu ao convés. O outro tripulante também desceu. Outra das naves ocupou a posição da primeira — na altura do convés do meio — e também dela saiu um dos tripulantes.

Os três saltadores parados no convés do meio lançaram os olhos por cima das costas da tripulação que os venerava, atirada no tombadilho.

— Tako!

Foi uma ordem lacônica, executada imediatamente. Tako desapareceu.

Marshall observou a nave que se mantinha no ar, junto ao convés, mas não notou qualquer alteração, embora Tako acabasse de ocupar o lugar do tripulante que acabara de descer.

Kitai Ishibashi fez um sinal de trás do mastro. Os três homens que haviam descido estavam submetidos ao seu controle sugestivo.

Por algum tempo não aconteceu nada.

Subitamente a nave para cujo interior Tako acabara de teleportar-se foi colocada em movimento. Lentamente, como se estivesse sendo pilotada por uma pessoa não muito familiarizada com o comando de um veículo espacial, foi-se afastando do navio, ganhou altura e depois de algum tempo parou.

Marshall observava-a bastante ansioso.

Um raio compacto de desintegrador saiu da nave parada no ar e atingiu a outra, que ainda circulava em torno do navio. Metade do veículo dissolveu-se em nuvens de gases turbilhonantes, enquanto a outra metade caiu como uma pedra atirada com pouca força, bateu na superfície com um estalo e desapareceu dentro de três segundos.

Marshall e Yokida desceram ao convés do meio. Os três saltadores continuavam imóveis. Não haviam notado a derrubada de uma de suas naves, nem deram a menor atenção aos três homens que se aproximavam. Entre eles estava Kitai, que se unira a Marshall e Yokida.

— Fafer! — gritou Marshall.

Olhando por cima do cotovelo, Fafer observara os acontecimentos estranhos que se desenrolaram em torno dele e chegou à conclusão de que os passageiros que trazia a bordo deviam ser muito mais poderosos que os deuses parados no convés. Levantou-se de um salto e aproximou-se solícito.

— Preste atenção, Fafer! — disse Marshall. — Você prosseguirá na viagem ao continente sul. Largue estes homens na primeira ilha. Não tenha receio, que não são deuses. No momento em que perderem o navio de vista terão esquecido tudo que aconteceu com eles. Prometo-lhe que você não sofrerá qualquer castigo. Faça a mesma coisa com o prisioneiro que se encontra num dos camarotes e com o homem que daqui a pouco descerá daquela nave.

Tako dispôs-se a pousar. Balançando, a nave deslizou alguns metros por cima do convés e deu um empurrão violento em alguns dos marinheiros que continuavam abaixados sobre o tombadilho, antes de imobilizar-se.

Tako desceu com o rosto muito sério.

— Tive que matá-lo — disse. — Não me deixava em paz.

— Quer dizer que você terá apenas quatro prisioneiros — comunicou Marshall, dirigindo-se a Fafer, procurando disfarçar a tristeza que a morte do saltador lhe causava.

Fafer prosseguiu no mesmo rumo, depois que os dois carros voadores tinham levantado pouso, levando os passageiros a bordo, e desapareceram em direção ao norte.

 

Se não fossem os pensamentos dos tripulantes, Gucky nem teria notado que a pequena nave de reconhecimento acabara de pousar. Os neutralizadores antigravitacionais absorviam os impactos causados pela frenagem e pelo pouso.

A tripulação preparou-se para sair da nave. Gucky fez a mesma coisa.

Num salto de teleportação audacioso e extenso examinou os arredores mais amplos do enorme espaçoporto que os saltadores haviam instalado no continente norte do planeta de Goszul. Depois de algum tempo encontrou um lugar situado numa pequena cadeia de montanhas, que lhe parecia adequado para esconder os objetos que trouxera consigo. Retornou à nave para efetuar o transporte.

Tal qual fizera dez dias antes a bordo da Stardust, levantou cada um dos objetos por meio da telecinésia, segurou-o com as mãozinhas e o teleportou para o esconderijo que acabara de escolher.

Quando ia levantar a última peça, um pesado desintegrador automático, o desastre aconteceu.

Uma sucessão rápida de teleportações, ainda mais com bagagem, exige tamanha concentração que o indivíduo perde quase todo o contato com o mundo exterior.

Gucky não poderia ter percebido a presença do robô de reparos que, depois de a tripulação ter saído da nave, veio pelo corredor para verificar se havia alguma avaria.

Um simples acaso — o fato de que a poeira levantada pelos objetos afastados à pressa obrigou Gucky a espirrar — impediu-o de desaparecer em tempo com o último dos objetos, um desintegrador pesado.

No mesmo instante em que, depois de ter espirrado, Gucky pretendia concluir o trabalho, sentiu a vibração do chão.

Recorreu à telepatia para descobrir quem se aproximava do lado de fora. A tentativa não teve êxito. Antes que Gucky pudesse tomar qualquer providência, a escotilha do cubículo foi aberta, pondo à mostra um robô forte, de mais de dois metros de altura.

Por sorte de Gucky tratava-se de um simples robô de reparos, classe que, além de não portar armas, não possui uma capacidade de reação muito rápida.

Gucky deixou-se cair sobre as patas dianteiras e numa questão de segundos abriu o fecho de contato do envoltório hermeticamente fechado em que estava guardado o desintegrador. A arma era tão pesada que o rato-castor mal conseguiu movê-la, mas a certeza de que sem isso a missão fracassaria antes de ter começado conferiu-lhe novas forças.

Com dois movimentos repentinos elevou o cano o suficiente para que apontasse mais ou menos para o centro do corpo de metal plastificado do robô. Com um forte movimento da pata traseira puxou o gatilho.

O tiro arrancou um pedaço do robô, gaseificou o mesmo e fez com que o resto do mecanismo, dividido em duas partes desiguais, caísse ruidosamente ao solo.

Gucky voltou a guardar a pesada arma no envoltório, cerrou o fecho de contato e teleportou-se juntamente com o volume. Retornou para uma inspeção final.

Foi então que cometeu um erro.

O erro consistiu em acreditar que a falta de um simples robô de reparos não seria notada tão depressa.

Confiando nisso, Gucky saiu da nave a pé. Tinha certeza de que, se alguém o visse, pensaria que se tratava de um animal inofensivo. A única arma que trazia consigo, um pequeno radiador de impulsos, estava cuidadosamente escondida numa dobra da pele, e o traje espacial fora transportado para o esconderijo em que se encontrava o resto da bagagem.

A área imensa do espaçoporto parecia abandonada sob os raios fortes do sol 221-Tatlira, que era o nome sob o qual constava do catálogo estelar dos saltadores.

Havia muitas naves além daquela em que tinha vindo. Mas estavam tão longe que algumas delas permaneciam semi-ocultas sob a linha do horizonte.

Eram as naves dos patriarcas, todas elas gigantescas. Mas a essa distância pareciam delicadas e inofensivas.

Gucky brincou com a idéia de teleportar-se para bordo de um desses veículos e fazer algumas travessuras que causassem problemas aos patriarcas quando estes quisessem decolar. Mas logo se lembrou da missão que lhe fora confiada e da advertência de Rhodan:

— Os saltadores ainda não sabem que têm diante de si a frota espacial da Terra, a não ser que Marshall ou algum dos seus companheiros tenha aberto a boca. Mas se acontecer alguma coisa que lhes traga à lembrança os acontecimentos do Homem de Neve, do setor do Peregrino ou de outro ponto do espaço, não demorarão em tirar suas conclusões. Portanto, tenha cuidado.

Por isso Gucky abandonou a idéia.

Estacou quando viu o movimento acima do horizonte que tremulava ao ocidente. Parou e olhou em torno. Notou o mesmo movimento ao sul, ao leste e ao norte.

Esquadrilhas de pequenos veículos em forma de lentilha corriam velozmente sobre o campo aberto, seguidas por colunas de robôs que marchavam apressadamente. Foi tudo tão rápido que Gucky estava praticamente cercado antes de compreender que a causa de todo aquele movimento era ele mesmo.

Formava o centro para o qual tanto as naves como os robôs convergiam em linha reta.

“Notaram a perda do robô”, constatou Gucky.

E registrou mais uma coisa. Desde que Rhodan recebera as últimas notícias de Marshall, deviam ter acontecido algumas coisas que fizeram com que os saltadores se tomassem extremamente cautelosos.

Gucky ficou curioso para saber o que Marshall teria feito nesse meio tempo.

Mas nem por isso esqueceu-se de abandonar em tempo o palco dos acontecimentos.

Afastou-se por meio de um salto de teleportação antes que alguém pudesse identificá-lo claramente, e antes mesmo que alguém pudesse ter a idéia de que o objeto da busca era ele.

Pousou nas proximidades do esconderijo para o qual havia transportado o equipamento. Não se entregou a ilusões. Os saltadores não se contentariam em dar busca no campo de pouso. O aparato de que lançaram mão fazia supor que no caso de um insucesso a estenderiam às áreas adjacentes, atingindo inclusive o local do esconderijo, que ficava a poucos quilômetros da extremidade leste do campo espacial.

E o pior não era isso. Os mini-comunicadores — aparelhos criados há pouco tempo, que apesar de seu tamanho reduzido permitiam o contato verbal direto e instantâneo a uma distância de vários anos-luz — mesmo quando não estavam funcionando emitiam uma radiação constante, gerada pela atividade ininterrupta das pequenas células energéticas, que produziam e armazenavam a energia necessária à próxima transmissão.

Gucky tinha certeza de que não desfrutaria por muito tempo o conforto de seu esconderijo. Mas antes que os saltadores se aproximassem, pretendia fazer alguma coisa que trazia em mente.

 

O vôo decorreu sem contratempos, a não ser os pequenos problemas que o manejo dos veículos totalmente desconhecidos causou nos primeiros minutos. Desenvolvendo a velocidade máxima, as duas naves de patrulha aproximaram-se da costa do continente norte.

Ao que parecia, as cidades eram muito raras naquela área. Só Kitai descobriu uma. Ficava à beira-mar e tinha um porto que tinha aproximadamente metade do tamanho do de Saluntad. Alguns navios a vela estavam ancorados no mesmo, o que provava que apesar do temor que lhes inspiravam os deuses, os ingênuos nativos mantinham contato com a terra dos deuses, nome que davam ao continente norte.

Depois que tinham passado pela linha costeira, Marshall desceu com sua nave e pediu que Tako Kakuta o seguisse. As duas naves voavam juntinho ao solo, formando um alvo muito pequeno para as estações de observação dos saltadores.

Marshall deixou-se guiar pelas impressões. Não tinha uma idéia exata sobre o local em que ficava o ponto de reunião dos saltadores. O terreno que sobrevoava era totalmente desconhecido. A única coisa de que se lembrava era que o gigantesco campo espacial em que estavam pousadas as naves dos patriarcas não ficava a mais de cem quilômetros da costa.

Por isso Marshall pousou oitenta quilômetros ao norte da linha costeira. Se fosse mais longe, estaria desafiando a sorte que até então os protegera.

Desceram e deixaram as naves para trás.

O terreno subia. Marshall lembrou-se de que ao sul do espaçoporto vira uma cadeia de montanhas não muito elevadas. Talvez fosse a mesma que começavam a escalar. Talvez bastasse chegar ao cume para ver o espaçoporto aos seus pés.

Quando começou a escurecer, montaram acampamento. Tama Yokida descobriu um pequeno vale que possuía várias saídas bem abrigadas e, principalmente, um suprimento de água.

A água matou sua sede. Mas não tiveram com que matar a fome. Praguejaram contra a própria tolice, que fizera com que não se suprissem de mantimentos.

Apesar disso dormiram profundamente até altas horas da manhã seguinte. Levantaram-se famintos, mas dispostos e animados.

Marshall prometeu que, no correr do dia, usariam o radiador de impulsos para abater um animal comestível, que seria assado no fogo aberto.

— Aliás — constatou Marshall — daqui até o espaçoporto não pode ser longe. Quando conseguirmos vê-lo diante de nós, e desde que Tako possa ajustar-se com uma certa precisão, poderemos viver dos mantimentos dos saltadores. Acho que eles não se alimentam mal.

Sorria e esteve a ponto de dizer mais alguma coisa. Mas de repente teve a impressão de que estava ouvindo alguma coisa. Estacou. O sorriso desapareceu.

Mas dali a pouco voltou.

— Estabelecemos contato! — exclamou. — Gucky está nas proximidades.

Kitai soltou um grito de alegria. Tako estava desconfiado.

— Tem certeza? — perguntou. Marshall confirmou com um rápido aceno de cabeça.

— Certeza absoluta. Gucky está a menos de cinqüenta quilômetros daqui, ao nordeste. Ele... silêncio!

Marshall voltou a escutar. Os outros ouviram que murmurava de si para si, dando respostas telepáticas, apoiadas pela palavra falada a fim de possibilitar uma concentração mais intensa.

— Sim... atentado bem sucedido... oitenta por cento dos patriarcas foram mortos... ainda acreditam que somos gente da Lev... o quê?... Isso mesmo, tripulantes da Lev XIV... só isso, tivemos que fugir... não, não tenho outras informações. Até agora não notamos nada que levasse à conclusão de que os saltadores mudaram de idéia... mas não temos a menor certeza. Sim, pode transmitir isso. Espere aí com quê? Com mini-comunicadores? Está bem. Fim.

Marshall virou-se apressadamente.

— Rhodan está por aí, rapazes! — exultou. — Encontra-se a oito dias-luz. Gucky mantém contato com ele. Traz consigo alguns aparelhos novos.

A alegria e a gratidão apossaram-se de suas mentes, fazendo com que esquecessem a fome que os martirizava. Marchando o mais rápido que o terreno acidentado e de visibilidade restrita permitia, deslocaram-se em direção ao lugar em que Gucky se mantinha escondido com sua bagagem.

 

Pela natureza das coisas e segundo a letra dos estatutos, Etztak era um igual entre seus pares — um patriarca entre outros patriarcas.

Todavia, os acontecimentos dos últimos dias, que confirmaram repetidamente que ele tivera razão ao demonstrar uma cautela aparentemente exagerada, e que aqueles que diziam que as coisas não estavam tão ruins assim estavam enganados, elevaram o velho acima dos co-patriarcas.

Passaram a dar atenção às suas palavras.

Todos começaram a indagar se poderia ser correta a suposição de Etztak, segundo a qual os causadores dos incidentes desagradáveis que se vinham verificando eram os seres que o comandante Orlgans descobrira há algum tempo num braço afastado da galáxia. Era uma suposição que há poucas horas qualquer pessoa teria tachado de idiota.

Etztak era um homem muito velho, mas possuía uma inteligência extraordinária.

— Mais uma vez os prisioneiros escaparam — disse com a voz retumbante, e Vallingar e Wovton, os patriarcas sentados ao seu lado no amplo salão, encolheram a cabeça como se fossem responsáveis pelo fracasso. — Um dos nossos agentes mais preciosos foi demolido a ponto de estar completamente inutilizado, um dos nossos homens foi seqüestrado, uma nave auxiliar foi destruída e duas foram aprisionadas, mais três homens foram seqüestrados e três foram mortos, e agora ao menos um daqueles seres traiçoeiros penetrou em nossa base a bordo da Frer LXXII. E não conseguimos encontrá-lo.

— Ainda não conseguimos encontrá-lo — retificou Vallingar em tom suave. — As buscas ainda não foram encerradas.

Etztak fez um gesto de desprezo.

— Se conseguiu desaparecer do campo espacial aberto debaixo de nossas vistas, não terá a menor dificuldade em esconder-se nas montanhas.

Até parecia que o homem da sala de comando aguardava essa palavra. O receptor de bordo emitiu um zumbido no instante exato em que Etztak acabara de proferir a última palavra. Etztak ligou.

— O que houve? — perguntou com a voz zangada.

— As naves de reconhecimento descobriram alguma coisa, senhor — respondeu o homem apressadamente e em tom assustado.

— O que foi que descobriram? — gritou Etztak impaciente.

— Radiações da quinta dimensão, bastante fracas. Não se sabe qual poderia ser a fonte dessas radiações. De qualquer maneira são consideradas suspeitas.

— Ah, são? — disse Etztak com uma risada sarcástica. — Pois diga a esses rapazes que pousem e dêem uma olhada naquilo, senão terão que explicar-se comigo.

Assustado, o homem prometeu que a ordem seria transmitida imediatamente.

Embora poucos segundos antes ele mesmo tivesse manifestado a opinião de que a busca seria infrutífera, Etztak falou em tom exultante quando se dirigiu aos patriarcas:

— Nem tudo está perdido. Dentro de poucos minutos poremos as mãos no sujeito, ou nos sujeitos.

 

Gucky surpreendeu-se com a rapidez com que as naves de reconhecimento conseguiram seu intento. Acabara de transmitir a mensagem de Marshall a Rhodan por meio do mini-comunicador e recebera a confirmação da mesma.

No momento em que colocou o aparelho cuidadosamente no chão para guardá-lo, viu a sombra da primeira nave deslizar por cima dele.

Recuou alguns metros, procurando um abrigo, e olhou em torno.

Não era só esta nave que se aproximava do seu esconderijo. Vinham de todos os lados: quinze, vinte, vinte e cinco.

Gucky encontrava-se numa armadilha.

Era bem verdade que a armadilha não o atingia pessoalmente. Mesmo no momento em que um inimigo estendesse a mão em sua direção ainda poderia colocar-se em segurança através de um salto de teleportação.

Mas havia os equipamentos! Além de serem muito preciosos, revelariam aos saltadores quem era o inimigo que tinham diante de si. E por enquanto isso teria que ser evitado a todo custo.

Gucky saiu por um instante de trás da rocha que lhe servia de abrigo para guardar o mini-comunicador e o respectivo estojo. Apressadamente fechou o mesmo e pôs-se a lidar com outro volume, do qual retirou o desintegrador automático.

Começou a levar os volumes a um lugar seguro. Lembrou-se de um rio que corria na extremidade oposta do planalto e, depois de passar por um túnel de rocha, penetrava na planície litorânea. Era bastante profundo para os fins que Gucky tinha em vista. Sua profundidade chegava mesmo a ser suficiente para evitar que as radiações constantes dos minicomunicadores pudessem penetrar na atmosfera.

Gucky tinha uma chance diminuta de livrar-se de toda a bagagem antes que os saltadores chegassem, mas essa chance não se realizou.

Agachado sobre o cano do desintegrador pesado, matou cinco saltadores que haviam descido da nave e, segurando os instrumentos de medição numa das mãos e a arma na outra, vinham na direção exata do esconderijo de Gucky.

Depois disso chamou Marshall.

 

Marshall estava subindo por uma rocha lisa, quando o chamado de Gucky o atingiu. A intensidade era tamanha que de tão assustado Marshall largou o apoio que a custo conseguira alcançar, escorregando alguns metros até voltar para junto dos companheiros, que o aguardavam ao pé da rocha.

— Silêncio!

A mensagem de Gucky foi curta e precisa.

— Gucky está em dificuldades — disse Marshall apressadamente. — Os saltadores conseguiram cercá-lo, e não quer deixar a bagagem para trás. Pergunta se Tako poderia chegar para junto dele.

A reação de Tako foi instantânea.

— Qual é a distância e os sinais característicos?

— A distância é de cerca de quarenta e cinco quilômetros, direção leste-norte-leste. Sinal característico: uma reunião de pequenas naves dos saltadores, em parte pousadas, em parte no ar.

Tako confirmou com um aceno de cabeça.

— Está bem — disse laconicamente.

No mesmo instante desapareceu.

 

Tako aterrizou dois metros atrás das costas de Gucky. Este esforçava-se para lidar com o desintegrador pesado. No instante em que Tako apareceu, um disparo energético esverdeado saiu do cano com um zumbido, fazendo a desgraça de alguns saltadores que tentavam aproximar-se do esconderijo.

— Cuidado, Gucky! — gritou Tako. — Cheguei.

Gucky virou-se tranqüilamente e exibiu o dente roedor.

— Já sei — sussurrou. — Acontece que ainda não tive tempo para cumprimentá-lo.

Com a pata direita apontou para um dos volumes cinzentos que se encontravam a seu lado.

— Abra isso e tire o radiador de impulsos. Esses sujeitos ainda nos incomodarão por muito tempo.

Tako apressou-se em obedecer Foi só quando segurava a arma nos braços que teve tempo para avaliar a situação.

Gucky encontrava-se no flanco sudoeste de uma rocha monolítica que se erguia em forma de torre. Algumas rochas menores forneciam-lhe abrigo. As naves de reconhecimento pareciam conhecer o ponto exato em que se encontrava o inimigo, pois, ao circularem em torno da rocha, aproximavam-se dela muito mais nos flancos leste e norte que nos outros.

Ainda não tiveram oportunidade de disparar um único tiro eficaz contra Gucky, pois o alcance de arma automática deste era ao menos igual ao dos canhões leves montados nas naves.

Abrigando-se atrás de algumas rochas pequenas, Tako arrastou-se para o flanco norte da elevação, levando o radiador de impulsos. Colocando-se numa posição segura, dirigiu o cano da arma para cima e transformou cinco naves dos saltadores numa massa de metal plastificado em volatilização, antes que estes compreendessem que também deste lado da rocha se defrontavam com um perigo, e que estava na hora de manterem uma distância respeitosa.

Tako rastejou de volta. O monte de bagagem que se encontrava ao lado de Gucky diminuíra. Gucky aproveitava cada segundo de que podia dispor para teleportar-se com uma peça e voltar. Ainda faltavam quatro volumes que teriam de ser transportados para o esconderijo seguro situado sob a superfície do rio.

— Assim que descobrirem que deste jeito não conseguem nada — disse Tako, observando as naves que continuavam a descrever círculos largos em torno da rocha — lançarão sua artilharia pesada contra nós.

Gucky acenou com a cabeça.

— Sei disso. Mas acho que terminaremos antes que cheguem.

Desapareceu com um dos quatro volumes. Dali a vinte segundos levou mais um.

Foi quando os saltadores voltaram ao ataque. Conceberam uma tática diferente. Vindos de dois lados — do sul e do oeste — atacaram a pé. Ao mesmo tempo meia dúzia de naves contornou a rocha próxima ao solo, vindo de cada um dos dois lados.

Se Gucky estivesse sozinho, essa forma de ataque poderia tornar-se muito perigosa. No entanto, Tako encarregou-se de um dos grupos de atacantes e, antes que os mesmos pudessem fazer outra coisa senão disparar alguns tiros a esmo, meteu-lhes tamanho susto que se retiraram precipitadamente. O trabalho que Gucky desenvolveu no outro flanco não foi menos bem sucedido. Os saltadores fugiram aos tropeções e, ao que tudo indicava, Gucky teria alguns minutos de sossego para completar seu trabalho.

Transportou um dos últimos volumes para o novo esconderijo; tratava-se dos estojos vazios do desintegrador automático e do radiador de impulsos que estava sendo usado por Tako. Depois apontou para o último volume e disse:

— Leve-o a Marshall e volte. Faço votos de que até lá consiga defender-me sozinho.

Tako não sabia o que havia naquele volume. De qualquer maneira Gucky achava que era uma coisa importante. Tako colocou-o nos braços, fechou os olhos para rememorar o lugar em que deixara Marshall e seus amigos e saltou.

Marshall não teve tempo para formular qualquer pergunta. Antes que se recuperasse do susto causado pelo súbito aparecimento de Tako, este voltou a desaparecer.

Nada de novo tinha acontecido com Gucky.

— Ainda estão com medo — sussurrou este em tom zombeteiro.

Tako viu que na extremidade do planalto algumas das naves dos saltadores decolaram, subiram obliquamente e tomaram o rumo oeste. Era naquela direção que ficava o enorme espaçoporto. Podia-se apostar mil contra um que haviam saído em busca de apoio.

— É claro que você tem razão — disse Gucky, lembrando Tako de que, além de possuir os dons da telecinésia e da teleportação, era um eficiente telepata. — Saíram em busca de auxílio. Acontece que, quando voltarem, não encontrarão nenhum inimigo contra o qual possam ser ajudados.

Tako descreveu com a maior precisão possível o lugar em que Marshall os esperava. Saltou na frente e surpreendeu-se ao ver que sua descrição fora tão exata que poucos segundos depois Gucky pousou a menos de dez metros.

Marshall, Kitai e Tama cumprimentaram-no cordialmente. Falando com a voz sussurrante e zombeteira que lhe era peculiar, Gucky disse:

— Se fosse por mim, não teria vindo. Acontece que Rhodan disse que fosse ver se, por acaso, os quatro macacos cabeludos ainda estão vivos. Aí não tive outra alternativa.

Mas logo deixaram de fazer brincadeiras. Lembraram-se de que depois do último incidente a situação não era tão brilhante como seria de desejar para que pudessem executar sua missão. A atenção dos saltadores fora despertada, e isso não de forma genérica, como acontecera há algumas semanas, mas de forma especial, sobre os acontecimentos que se desenrolavam nas imediações do lugar em que se encontravam. O continente norte seria coberto por uma rede de naves de reconhecimento, e provavelmente as malhas dessa rede seriam tão estreitas, que dificilmente haveria uma chance razoável de escapar pelas mesmas.

— Temos que descobrir uma coisa inteligente — disse Marshall contrariado — e logo!

 

Vallingar constatou que Etztak sofreria um colapso se não se acalmasse logo.

Nunca vira ninguém que soubesse aumentar a própria raiva como Etztak. Com a voz esganiçada, gritava palavras desconexas, praguejando ora contra os pilotos das naves auxiliares, ora contra a organização da operação de busca, e finalmente contra toda a raça “decadente” dos saltadores.

Era bem verdade que Vallingar não pôde deixar de reconhecer que havia motivo para tamanha exaltação.

Treze naves destruídas, trinta e oito homens perdidos!

E isso numa luta contra um inimigo que nem chegara a ser visto, do qual não se sabia sequer quem era e qual era sua força. De início os tripulantes das naves informaram que o fogo só provinha de um lugar. Mas pouco depois tiveram que mudar de opinião, pois o fogo foi aberto de outro lugar, ocasionando a perda de cinco naves e das respectivas tripulações.

Mandaram trazer armas pesadas. Mas antes que as mesmas pudessem ser utilizadas, as tripulações das outras partes conseguiram tomar de assalto o esconderijo do inimigo, sem encontrar a menor resistência.

Esse resultado poderia ser considerado plenamente satisfatório, se em virtude dele tivessem capturado o inimigo. Mas o homem, ou os homens que se defenderam com tamanha eficiência pareciam ter-se dissolvido no ar. O esconderijo estava vazio.

Era essa a causa da fúria de Etztak.

Nos últimos momentos em que esteve em seu perfeito juízo mandara que todas as naves disponíveis se lançassem numa enorme operação de busca, que abrangeria todo o continente e grande parte das áreas marítimas adjacentes.

Depois disso começara a esbravejar e até agora não havia feito nenhuma pausa, muito menos dado mostras de que pretendesse acabar num tempo previsível.

Nos primeiros momentos a fúria do velho enervara Vallingar. Mas acabou acalmando-se e, reclinado confortavelmente na poltrona, suportou os acessos de raiva com uma espécie de agradável curiosidade.

O intercomunicador de bordo deu sinal. De tão furioso que estava, Etztak nem percebeu o zumbido. Por isso Vallingar estabeleceu o contato. O homem que se encontrava do outro lado da linha mostrou-se aliviado por não ver o rosto furibundo de Etztak na tela.

— Mais duas naves foram destruídas, senhor — disse com um suspiro.

— Onde? — perguntou Vallingar com a maior tranqüilidade de que foi capaz.

O homem indicou o local exato em que as naves haviam sido derrubadas. Vallingar procurou-o no mapa de plástico, cuja projeção cobria uma das paredes da sala.

Depois procurou despertar Etztak da sua fúria. Só o conseguiu depois que pegou o robusto velho na gola da capa e o obrigou a virar-se de tal maneira que teve de encará-lo.

— Mais duas naves foram derrubadas — disse Vallingar com a voz tranqüila.

Depois de interrompido no seu acesso de cólera, Etztak não perdia o autocontrole sem mais nem menos.

— Acontece que isso nos fornece uma indicação sobre a rota do inimigo — acrescentou Vallingar.

— Onde... como...?

Vallingar arrastou Etztak até o mapa.

— Aqui — disse, apontando para uma ampla mancha verde-claro. — Foi aqui que há uma hora nossas naves brigaram com o inimigo sem o menor resultado. E aqui — a mão de Vallingar deslizou para a esquerda, apontando para um lugar que ficava mais ou menos no centro da linha que unia a mancha verde ao retângulo branco que representava o espaçoporto — foram derrubadas as duas naves. Compreendeu?

Etztak confirmou com um gesto feroz.

— Compreendi — resmungou. — Estão avançando em direção ao campo de pouso.

 

A idéia inteligente concebida por Marshall, Gucky e seus companheiros foi a seguinte:

Precisavam de um lugar seguro para esconder-se durante o tempo em que não recebessem novas instruções de Rhodan, e os saltadores recorressem a toda sua habilidade para localizá-los.

Um esconderijo em algum lugar deserto não serviria. Era justamente ali que os saltadores os procurariam, e com os recursos de que dispunham a chance de não serem descobertos era mínima. Teriam que esconder-se num lugar em que os saltadores só realizariam uma busca superficial, por suporem que nas condições ali reinantes seriam encontrados logo.

Teriam que esconder-se entre homens.

Os saltadores acreditavam que os fugitivos, que eram membros da tripulação da Lev XIV, seriam facilmente reconhecíveis, especialmente, por exemplo, pelos tripulantes dos veleiros primitivos que estavam ancorados junto à costa sul. Se lhes acudisse a idéia de que os homens que procuravam podiam estar escondidos por lá, se limitariam a uma inquirição junto aos comandantes dos navios. Estes não deixariam de dar resposta verídica à indagação de um “deus”.

— Vamos nos esconder num dos navios! — foi esta a diretiva.

Todavia, teriam que tomar seus preparativos. Os saltadores não deveriam conhecer o caminho da fuga, pois isso representaria uma indicação de suma importância.

Era necessário desviar sua atenção. Devia-se fazê-los acreditar que os inimigos se deslocavam em outro sentido — para o espaçoporto, por exemplo, levando-os a chamar os grupos de busca que operavam nas outras partes do continente norte.

Esta parte da missão ficou a cargo de Tako e Gucky. Este fez questão de que Marshall e seu grupo ficassem com uma das armas pesadas. Por isso Marshall ficou com um radiador de impulsos. Tako e Gucky equiparam-se com o desintegrador e uma delicada arma de bolso.

Não havia a menor dúvida de que a missão era perigosa. Assim que tivessem dado sinal de sua presença, teriam que defrontar-se com toda a organização de busca dos saltadores. E acontecia que só tinham um conhecimento bastante limitado do terreno em que teriam de operar. Era bem possível que depois de um salto viessem parar no meio de um grupo de reconhecimento dos saltadores, e nesse caso a possibilidade de escaparem ilesos era bastante reduzida.

Mas tinham de arriscar.

Um tanto abatidos, Marshall, Kitai Ishibashi e Tama Yokida, que seguiriam para o sul em direção à costa, despediram-se dos teleportadores.

 

O céu estava preto de tantas naves auxiliares, pesados veículos deslizantes que, entre os saltadores, desempenhavam o papel de caminhões e pequenas naves de reconhecimento, que eram mais ou menos do tamanho da Frer LXXII, na qual Gucky chegara ao planeta.

Tako e Gucky estavam escondidos numa caverna, e esperavam para ver o que fariam os saltadores. Poucos minutos antes haviam derrubado duas de suas naves e, conforme era de prever, logo depois toda a frota que participava da operação de busca se reunira no local.

Acontece que a mesma não possuía a menor indicação, a não ser a destruição das duas naves. Gucky e Tako não emitiam qualquer tipo de radiação que pudesse ser localizada. O mini-comunicador ficara com Marshall.

Tako olhou para o relógio. Fazia uma hora e meia que Marshall se pusera a caminho. Para alcançar o porto mais próximo teria de marchar quase cem quilômetros, pois era de supor que durante a busca intensa os saltadores já tivessem encontrado as duas naves capturadas. Por isso a ação desviacionista teria que ser prolongada ao máximo para que pudesse ajudar Marshall.

— Temos que passar para o outro lado — cochichou Gucky.

Estava aludindo ao lado oposto do longo vale, que se estendia do leste para o oeste, isto é, a um ponto situado algumas centenas de metros ao norte. Sem dúvida esse ponto ficava fora da área em que os saltadores supunham que os autores do atentado estivessem escondidos.

Tako confirmou com um aceno de cabeça. Convinha preparar sempre surpresas novas para os saltadores.

Saltaram com um intervalo, depois de terem combinado com a maior precisão o ponto de destino do salto. Pousaram aproximadamente a meia altura de uma grande encosta de pedras, da qual sobressaíam alguns blocos de rocha. Gucky, que saltou em último lugar, surgiu a menos de quinze metros do japonês e, como este, procurou abrigar-se imediatamente atrás da rocha mais próxima. Estavam bem ajustados um ao outro.

Viram que do lado oposto do vale as naves dos saltadores pousavam cautelosamente e as tripulações desceram ainda mais cautelosamente.

Alguns veículos destacavam-se do grupo, passavam junto aos flancos íngremes do vale e esforçavam-se para encontrar qualquer pista dos homens que procuravam.

— Vamos dar-lhes uma pequena ajuda — sugeriu Tako.

Descansou o desintegrador sobre uma rocha, fez pontaria por cima do cano e esperou. Tinha tempo; não havia necessidade de seguir o inimigo com a arma. A qualquer momento um deles se colocaria à frente da mesma.

Dali a alguns minutos chegou o momento em que isso aconteceu.

A única coisa que Tako teve que fazer foi curvar o dedo e soltar o gatilho em seguida.

Conseguiu o que queria. Um raio desintegrador de apenas um décimo de segundo atingiu a pequena nave que se aproximara demais, e volatilizou parte de seu casco. Tako não teria o menor trabalho em destruí-la juntamente com a tripulação. Mas ficou satisfeito em ver que a nave descontrolada perdeu altitude e atingiu o chão com um forte baque. As equipes de socorro, formadas às pressas, acorreram de todos os lados. Pareciam nervosas e assustadas.

Tako tinha certeza de que a tripulação ainda estava viva.

Desta vez a reação dos outros veículos dos saltadores foi muito interessante. Alguém parecia ter visto de onde viera o tiro e transmitiu seu conhecimento aos outros. Com uma rapidez e segurança até então desconhecida nos saltadores, estes se afastaram do lugar em que estavam procurando e precipitaram-se para o flanco norte do vale.

— O tempo não está bom para nós — resmungou Tako e colocou a pesada arma sobre os braços. — Vamos para o oeste.

Poucos segundos depois de terem mudado de lugar, os projéteis disparados pelas naves dos saltadores começaram a detonar no ponto em que antes se encontravam.

 

Depois de terem caminhado durante três horas sem serem perturbados, Marshall e seus companheiros chegaram a uma espécie de estrada.

Marshall trazia o radiador de impulsos sobre o ombro. A arma não pesava muito, pois Tama Yokida, o telecineta, suportava parte do peso por meio de seu dom especial. Concentrou o resto de sua potência telecinética sobre o mini-comunicador, que carregava juntamente com Kitai Ishibashi, caminhando atrás de Marshall.

Marshall parou junto às marcas de roda. Parecia pensativo.

— Alguma coisa não lhe está agradando? — perguntou Kitai.

A mão esquerda de Marshall apontou para as marcas.

— É isto — respondeu. — Você acredita que os saltadores permitiriam que os ingênuos goszuls penetrassem tão profundamente no continente? Afinal, estamos a mais de sessenta quilômetros do mar.

Kitai abanou a cabeça.

— Não devem ser os goszuls. Talvez os próprios saltadores tenham deixado estas marcas.

— Não é possível; eles não usam veículos de rodas. São nômades até o fundo da alma. Percorrem o espaço e não gostam de fixar-se em qualquer planeta. Não saberiam o que fazer com um veículo que anda sobre rodas.

— Quem poderia ter sido? — resmungou Kitai.

Marshall deu de ombros.

— Não sei — respondeu. — Veremos, pois vamos caminhar pela estrada.

Mantinham-se à esquerda do caminho, onde as rodas só haviam chegado vez ou outra, pois era difícil caminhar nas marcas profundas deixadas pelas rodas. Meia hora passou-se sem que sua curiosidade fosse satisfeita.

Subitamente Kitai parou e obrigou Tama, que o ajudava a carregar o mini-comunicador, a parar também.

— Ouçam! — exclamou.

Aguçaram o ouvido. De algum lugar, provavelmente das primeiras montanhas a cujo pé se encontravam, veio um ruído crepitante.

— Olá! — disse Marshall espantado. — Até parece o primeiro automóvel de meu avô.

Pararam e esperaram. Nem de longe pensaram na possibilidade de que uma coisa que fizesse um barulho tamanho pudesse representar um perigo.

Depois de algum tempo viram. Numa curva arriscada, saiu da primeira volta do caminho, entrou pelo capim adentro e parou. O ruído crepitante cessou, mas poucos segundos depois voltou a soar mais forte, e o estranho veículo deslocou-se pelo capim, dócil mas um pouco devagar. Descreveu uma curva larga, voltou à estrada e aumentou de velocidade assim que atingiu as marcas de roda. Aproximou-se do grupo que se mantinha à espera. Marshall riu.

— Isso não é o primeiro carro de meu avô; é o primeiro carro de meu bisavô.

Três homens estavam sentados naquela coisa. Não havia dúvida de que eram goszuls, mas seus trajes eram diferentes daqueles usados pelos goszuls que os homens do grupo de Marshall haviam visto até então.

Marshall não teve necessidade de ler seus pensamentos para saber quem eram. Pertenciam ao grupo que os saltadores haviam julgado digno de receber um superficial treinamento hipnótico, a fim de ser transformado numa força de trabalho barata — ou melhor, numa força de trabalho escrava.

Pareciam orgulhosos em cima do incrível veículo e mostraram-se espantados diante dos três caminhantes que se esforçavam para esconder a hilaridade.

O condutor do veículo esforçou-se para parar. Mas só conseguiu fazê-lo, com o motor aos estalos, quando já havia passado alguns metros pelo grupo de Marshall.

Este percebeu os pensamentos dos goszuls. Pensavam que ele e os dois japoneses também fossem trabalhadores a soldo dos saltadores — ou servos dos deuses, como diziam os ingênuos goszuls.

— Aonde vão? — perguntou o homem que se encontrava na direção, uma vez concluído o difícil trabalho de imobilizar o veículo.

Falava o intercosmo no mesmo tom cantante dos habitantes ingênuos do planeta de Goszul. Marshall nem se esforçou para imitar esse tom.

— Vamos ao porto — disse laconicamente.

O goszul espantou-se.

— A pé?

Marshall leu os pensamentos que iam pela cabeça do goszul. “Será que os deuses não dispunham de nenhum carro?”

— Os deuses não nos puderam dar nenhum carro — respondeu Marshall. — Poderiam levar-nos?

— Você sabe que não é possível — respondeu o goszul.

Marshall leu a informação. O veículo só suportava o peso de três pessoas. Marshall virou-se para Tama e cochichou ao ouvido do mesmo:

— O carro só pode levar três pessoas. Será que você poderia levantá-lo?

Tama confirmou com um aceno de cabeça e Marshall voltou a dirigir-se ao goszul.

— Vamos experimentar com cuidado. Está certo?

Sem aguardar uma resposta, subiu na armação de plástico que formava a parte mais importante do automóvel. O goszul que se encontrava na direção ia protestar, mas não teve tempo para fazê-lo, pois, embora Kitai e Tama subissem logo depois de Marshall, o veículo não quebrou.

— Está vendo? — disse Marshall rindo. — Dá perfeitamente. Vamos embora.

O goszul nem pensou em obedecer. Marshall viu a desconfiança despontar em seus pensamentos.

— Quem são vocês? Por que fala de maneira tão estranha, e que instrumento é este que você carrega no ombro?

— Não sei — respondeu Marshall em tom indiferente. — Os deuses não costumam dizer aos seus servos o que estes estão carregando para o porto a mando deles.

O Goszul parecia satisfeito com a resposta.

— Por que sua fala é tão estranha? — perguntou.

— Venho de longe — explicou Marshall.

— Não me diga que vem do continente sul — disse o goszul com os olhos brilhantes.

Marshall cometeu a imprudência de não formular uma indagação ao cérebro estranho antes de dar a resposta.

— Isso mesmo — disse.

No mesmo instante reconheceu o erro que cometera.

— Também sou de lá — exclamou o goszul. — Somos patrícios; mas... — interrompeu-se e prosseguiu com os olhos semicerrados — justamente por isso não compreendo por que sua fala é tão estranha.

Marshall dispôs-se a prestar um esclarecimento amplo; falaria no destino que o arrastara a muitos países, e dali por diante. Mas antes que pudesse falar o goszul fez um gesto e disse:

— Talvez eu esteja enganado. Para dizer a verdade, seu modo de falar nem é tão estranho.

Virou-se e dispôs-se a pôr o motor a funcionar.

Marshall olhou para Kitai. Este deu um sorriso malicioso. Marshall falou baixo:

— Obrigado. As coisas estavam começando a ficar perigosas.

Marshall interessou-se pelo motor que movia o veículo. Neste meio tempo, o goszul que se encontrava na direção já o pusera a andar. Quando ouviu o ruído bem de perto, Marshall não teve mais a menor dúvida de que se tratava de um motor de combustão interna, do tipo dos motores a gasolina. Era bem verdade que o cheiro dos gases de escapamento não lembrava nada que jamais tivesse tocado o nariz de Marshall, mas isso não significava nada. Afinal, um motor de combustão interna também pode ser alimentado com cachaça.

O milagre era outro. Os saltadores, uma raça ligada ao espaço, que não tinha o menor interesse pelos veículos de roda, deram-se ao trabalho de inventar um veículo semelhante a um automóvel para seus servos. Provavelmente não quiseram arriscar-se a confiar aos goszul recursos técnicos que ultrapassassem este motor que funcionava muito mal.

Dali se deveria concluir que não confiavam muito nos goszuls submetidos ao treinamento hipnótico?

Marshall revolveu os pensamentos dos três servos dos deuses, mas não encontrou a menor indicação de que tivessem qualquer pensamento de rancor para com os saltadores. Era bem verdade que isso não queria dizer nada, pois no momento nem pensavam nos saltadores.

Tama Yokida encarregara-se de aliviar parte do peso do veículo, para que o motor que fungava pesadamente pudesse deslocá-lo. O goszul que se encontrava na direção ficou admirado com a velocidade que o veículo descrevia ao sacolejar pela estrada. Virou a cabeça e gritou em tom alegre:

— Daqui a três horas estaremos no porto.

 

A estranha batalha deslocara-se para o norte. Pelos cálculos de Tako, deviam encontrar-se na altura da extremidade norte do enorme espaçoporto. Estava na hora de chegar para o oeste.

As lutas mais ou menos prolongadas haviam custado aos saltadores um total de cinco naves auxiliares e dois transportadores. O único resultado que puderam comunicar aos superiores foi que, depois de cada tiro, conseguiam localizar prontamente o atirador, mas que o contragolpe sempre chegava tarde.

A histeria tomou conta dos grupos de busca.

O que tinham diante de si não era um inimigo como qualquer outro; eram fantasmas.

Etztak gritava num novo acesso de fúria. Disse que qualquer um que se atrevesse a suspender as buscas antes que o inimigo estivesse morto ou preso seria condenado à morte.

Quatro horas e meia já se haviam passado desde que se separaram de Marshall. Pelos cálculos de Tako, pelo menos quatro vezes esse tempo se passaria antes que Marshall conseguisse chegar ao porto. Marshall ainda não os avisara de que conseguira tomar um veículo.

 

A cidade não era Saluntad, e nenhuma das casas tinha a menor semelhança com a que Vethussar possuía no sul.

Mas tinha um porto, e nesse porto estavam ancorados três veleiros de alto-mar de grande porte. Havia lugar de sobra para esconder uma companhia inteira de guerrilheiros terrestres.

De repente Marshall teve muita pressa em sair do carro. À primeira vista notou que na cidade havia grande número de robôs dos saltadores e, enquanto não sabiam quais eram suas funções, não poderiam ter certeza de que um deles não fosse examinar por iniciativa própria os ocupantes do veículo trepidante. Nesse caso não se deixaria demover pela sugestão ou por qualquer outra força, a não ser pelo uso das armas.

Marshall agradeceu aos três goszuls, prometeu retribuir a gentileza um belo dia e afastou-se com os companheiros. O goszul que ia na direção ficou admirado ao notar que agora, que a carga era menor, o carro não obedecia tão bem como antes.

Marshall saiu da rua principal, pois achava que a mesma era movimentada demais e muito freqüentada pelos robôs. Juntamente com Tama e Kitai, que novamente carregavam o mini-comunicador, entrou por uma viela que, pela direção, parecia levar à zona portuária.

Marshall refletiu sobre se convinha transmitir a Gucky a informação de que haviam chegado ao porto antes do tempo previsto, mas felizmente não chegou a levar o pensamento ao fim. De outra forma poderia ter enviado a mensagem.

Outra viela cruzou aquela pela qual estavam seguindo, e um pequeno grupo de robôs dobrou a esquina, produzindo um som metálico com suas pisadas.

Marshall olhou disfarçadamente. Havia muita gente que também havia notado os robôs, mas não se preocupava com sua presença. Marshall achou que devia fazer a mesma coisa. Seguiu pelo lado direito, tão perto das casas que a cada passo que dava o cano do radiador de impulso raspava a parede numa extensão de meio metro. Prosseguiu na marcha e olhava fixamente para a frente, como se refletisse sobre um problema importante.

Mas os robôs não estavam dispostos a permitir que os três homens passassem por eles sem mais nem menos. Quando se encontravam a uns cinco metros, o da frente parou, o outro colocou-se ao seu lado, e assim por diante, até fecharem toda a largura miserável do beco.

— Parem! — gritou a voz metálica de um deles. — Vocês vieram à cidade no último carro?

Reunindo todo o sangue-frio que ainda lhe restava, Marshall parou diante do robô que acabara de formular a pergunta, olhou-o dos pés à cabeça num gesto de desprezo e respondeu:

— Isso mesmo. Você tem alguma coisa com isso?

A reação daqueles que, até então, talvez acreditassem que poderiam assistir a uma cena divertida foi bastante significativa. O beco esvaziou-se num instante. Todos procuraram a entrada da casa mais próxima. Só os quatro robôs e os três homens continuavam no beco.

— Que instrumento é este que os dois estão carregando? — prosseguiu o robô nas suas perguntas, sem dar atenção à observação sarcástica de Marshall.

Um lampejo passou pela cabeça de Marshall: o mini-comunicador! Conforme Gucky lhe havia dito, emitia radiações inertes. E os robôs haviam registrado as mesmas.

“Pois bem”, pensou Marshall numa atitude resignada. “Ao menos sabemos que não adiantará tentar enganá-los.”

— Não sei — respondeu em tom despreocupado.

Com a rapidez peculiar ao seu cérebro eletrônico o robô tomou sua decisão.

— Sigam-me! — ordenou.

Sem dizer mais uma palavra, virou-se e andou pelo caminho por onde tinham vindo. Marshall seguiu-o. As três máquinas restantes pararam até que Tama, que era o último do grupo, tivesse passado por eles e passaram a formar a retaguarda.

Sem preocupar-se com o risco que isso representava, cochichou em inglês para os companheiros:

— Só atiraremos quando estivermos numa área menos movimentada. Não queremos testemunhas.

Os outros compreenderam. Kitai poderia ordenar a duas, três ou mesmo quatro testemunhas que esquecessem o que haviam visto, mas diante de um número maior seria impotente. E o tumulto que se espalharia na cidade com a notícia da “morte” de quatro robôs era o que menos lhes convinha.

Seguiram docilmente o robô que ia à frente e evitaram virar a cabeça para os que seguiam atrás.

O da frente entrou no beco pelo qual havia vindo. Marshall alegrou-se ao ver que, ao sudoeste, as casas começaram a ficar mais espaçadas. Se conseguissem chegar lá sem que fossem presos pelos robôs, a batalha estaria praticamente ganha.

 

Tako atingiu outra nave. Viu que se descontrolou e caiu. Preparou-se para saltar. Os saltadores haviam adotado o hábito de reagir com a maior rapidez diante de cada tiro.

Mas desta vez as coisas foram diferentes. Tako esperou que as máquinas se aproximassem, mas as mesmas continuaram onde estavam.

Por enquanto; depois reagruparam-se, subiram e tomaram o rumo sul. Ultrapassaram a cadeia de montanhas mais próxima e desapareceram.

Tako riu.

— Será que é um novo truque?

Não poderia adivinhar a palestra que poucos segundos antes Etztak mantivera com a cidade portuária de Vintina, nem as instruções que acabaram de ser transmitidas aos pilotos que participavam da busca.

— Não compreendo — cochichou Gucky.

Abanou a cabeça e esteve a ponto de dizer mais alguma coisa. Mas nesse instante seus olhos arregalaram-se. Com o corpo rígido, olhou fixamente para a frente, como se estivesse escutando alguma coisa.

— Marshall e seus companheiros foram aprisionados na cidade por um grupo de robôs. Não compreendo tudo, mas ao que parece estão em dificuldades. Temos que seguir imediatamente para lá.

Marshall havia fornecido a localização aproximada da cidade. Não havia motivo para demora. Saltaram no mesmo instante.

 

Os robôs nem pensaram em cumprir o desejo de Marshall. Muito antes de atingirem o setor do beco em que as construções começavam a escassear, a máquina que ia na frente dirigiu-se para o lado, abriu a porta de uma das casas que era tão suja como as demais que havia naquela área, e procurou fazer com que os prisioneiros entrassem no corredor escuro que se via atrás da porta.

Marshall não perdeu tempo. Não sabia o que lhes aconteceria no interior da casa, mas era bem possível que esta fosse apenas uma armadilha da qual dificilmente conseguiriam escapar.

Era preferível arriscar um tumulto na cidade.

— Atenção! — gritou em inglês, sem mover um músculo da face.

A porta era baixa. Marshall fez de conta que tinha que tirar o radiador de impulsos de cima do ombro para poder passar. A arma escorregou para a curva do cotovelo. No momento em que, ao abaixar-se, virou o corpo num movimento instantâneo, puxou o gatilho.

Tama e Kitai haviam compreendido a advertência. Encontravam-se fora da linha de fogo. Marshall deixou que o raio branco chiasse e destruiu o primeiro robô antes que o mesmo compreendesse o que estava acontecendo. O metal chiou ao atingir o chão, formou uma poça cinzenta e espalhou um calor insuportável.

Tama e Kitai foram mais para o lado. Marshall destruiu mais dois robôs que, ao que tudo indicava, não haviam sido programados para a ação. O último, que provavelmente se viu ativado por uma espécie de ligação de emergência, começou a reagir no mesmo instante em que Tama e Kitai se deram conta de que mesmo com suas pequenas armas de bolso poderiam perfeitamente ter uma chance contra a máquina. Os dois raios energéticos, finos como uma agulha, penetraram no crânio da máquina e fizeram com que o robô cambaleasse.

Marshall cuidou do resto.

O calor aumentara tanto que estava chamuscando seus cabelos e as roupas começavam a fumegar.

— Vamos embora! — fungou Marshall. — Para a direita.

Era a direção da qual tinham vindo. As reações de Marshall foram puramente instintivas. Embora não soubesse qual era o estado de espírito da população, tinha a impressão de que estaria mais seguro num lugar em que pudesse esconder-se em meio a muitas pessoas.

Tinha certeza absoluta de que os saltadores tinham conhecimento da morte de um dos seus robôs no mesmo instante em que essa ocorria. Afinal, conhecia a história de Gucky.

O beco estava vazio. Enquanto corria, Marshall via vez por outra um rosto assustado. O pânico parecia ter-se apoderado da população de Vintina. Provavelmente era a primeira vez que alguém se atrevera a enfrentar um robô.

Marshall perguntou de si para si quanto tempo demoraria a primeira reação dos saltadores diante da morte de um dos seus robôs. Teriam tempo de chegar ao porto para esconder-se num dos navios?

Se continuassem a correr como até aqui, não levariam mais de dez minutos para chegar ao porto. Levariam outros dez minutos, talvez quinze, para encontrar um navio e influenciar ao menos o comandante de tal maneira que não se opusesse à estranha hospedagem.

Se os saltadores levassem meia hora para reagir à destruição de quatro dos seus robôs-polícia, tudo estaria em ordem.

E se levassem menos?

 

Tako e Gucky aterrizaram junto à cidade. Viram a frota de naves auxiliares, aero-transportadores e naves de pequeno porte aproximar-se ruidosamente e espalhar-se pela cidade. As naves desciam às dezenas nas ruelas estreitas e soltavam os tripulantes.

Tako atingiu com o desintegrador uma nave transportadora que voava a pouca altura, danificando-a de tal forma que se viu obrigada a descer antes da cidade, realizando um pouso de emergência bastante acidentado.

O incidente fez com que parte das forças que operavam sobre a cidade recebesse ordem para regressar e sair à procura do atirador atocaiado.

O jogo realizado horas antes nas montanhas repetiu-se. Tako e Gucky atiravam e saltavam, atiravam e saltavam.

Dessa forma conseguiram concentrar em torno de si três quartas partes dos veículos. Só um quarto prosseguiu nas buscas no interior da cidade. Se Marshall tivesse a idéia de esconder-se por algum tempo, os saltadores se convenceriam de que os homens que haviam praticado o atentado contra os robôs já deviam ter saído da cidade, e eram os mesmos que destruíam uma nave atrás da outra sem serem molestados.

Gucky instruiu Marshall nesse sentido. Este recebeu o impulso e confirmou-o.

 

A reação demorou menos de quinze minutos. Marshall ouviu o ruído surdo vindo do alto, olhou para cima enquanto corria e viu uma nave auxiliar redonda passar pouco acima dos telhados.

Foi seguida por outras naves, inclusive transportadoras.

A rua pela qual corriam levava diretamente ao porto. No fim da mesma via-se o casco de um navio. Quase parecia ao alcance da mão.

Enquanto Marshall refletia se não seria preferível esconder-se em algum lugar até que se descobrisse quais eram as intenções dos saltadores, três pequenas naves auxiliares surgiram na rua, vindas do porto, desceram suavemente e abriram as escotilhas.

Três saltadores armados até os dentes desceram delas. Ainda estavam muito longe para poderem descobrir qualquer coisa de suspeito nos três homens que vinham ao seu encontro. Mas os três subiam pela rua, chegavam cada vez mais perto. Sem dúvida desconfiariam se Marshall e seus companheiros fizessem meia-volta e seguissem na direção oposta.

— Cuidado! — cochichou Marshall. — Vamos entrar na primeira casa.

No mesmo instante captou a mensagem de advertência de Gucky. Confirmou o recebimento e acrescentou:

— É o que estamos fazendo.

Tama procurou abrir a porta da primeira casa. Estava trancada. Tama tentou abri-la por meio da telecinésia, mas para isso precisaria concentrar-se, o que exigiria certo tempo. Marshall pegou-o no ombro e empurrou-o até a próxima casa.

— Não temos tempo — resmungou.

Os três saltadores estavam a menos de cem metros. Se a porta da outra casa também estivesse trancada, estaria na hora de atirar.

Tama experimentou a estranha maçaneta triangular, puxou e empurrou com toda força, sacudiu a porta. A madeira velha rangeu...

Nada!

— Fique atrás de mim — ordenou Marshall. — Está na nossa vez.

Tama e Kitai largaram o mini-comunicador. Kitai começou a concentrar-se para que pudesse ajudar Marshall quando chegasse o momento. A distância ainda era grande para tentar a influência sugestiva.

Abrigado na entrada da casa, Marshall foi levantando o cano do radiador de impulsos.

Naquele instante a porta abriu-se devagar, deixando apenas uma fresta livre. Uma mão estendeu-se pela fresta e segurou o braço de Tama, arrastando-o pela porta, que se abriu inteiramente.

Kitai seguiu-o espontaneamente, depois de avisar Marshall. Arrastou o mini-comunicador atrás de si.

Com um grande salto, Marshall colocou-se sob o abrigo da escuridão reinante no corredor.

— Desçam ao porão! — disse uma voz estranha.

Alguma coisa rangeu. Tama, que estava nos fundos do corredor, disse:

— Aqui há uma porta e alguns degraus.

— Não adianta — respondeu Marshall. — Os saltadores viram que entramos aqui. Virão...

Lá fora, passos ruidosos aproximaram-se pelo calçamento desigual e pararam diante da porta. Marshall ouviu a maçaneta girar. Mas ao que parecia a porta voltara a ser trancada.

— Abra! — gritou uma voz rouca.

— Pouco importa quem você seja — disse Marshall baixinho ao desconhecido em meio à escuridão. — Abra, senão eles porão fogo na casa. Saberemos defender-nos.

Passos rastejantes atravessaram o corredor, vindos dos fundos, passaram por Marshall e atingiram a porta.

— Tama, vá para baixo — ordenou Marshall. — Kitai, veja o que pode fazer. Se for necessário poderei trabalhá-los.

Kitai não respondeu. Já estava trabalhando. Os passos tateantes de Tama afastaram-se pela escada. Uma lufada de ar frio passou pelo corredor.

A porta abriu-se, deixando entrar um raio de luz. A figura pequena e franzina destacou-se na escuridão.

Inclinou-se profundamente.

— Que honra imensa... — começou a murmurar.

Um dos saltadores interrompeu-o em tom grosseiro:

— Você escondeu três estranhos nesta casa. Entregue-os.

O magricela endireitou o corpo.

— Eu? Senhor, você está brincando com o mais humilde dos seus servos.

— Pare com essa conversa mole. Quero...

Um dos saltadores colocou a mão sobre seu ombro. O primeiro inclinou-se e deixou que o companheiro cochichasse alguma coisa ao seu ouvido.

— Será? — perguntou ele com a testa enrugada.

Numa fração de segundo foi da mesma opinião, que era a opinião que Kitai já instilara nos dois companheiros: a de que naquela rua nunca haviam passado estranhos, e que por isso mesmo eles não os poderiam ter visto.

— Por que nos olha desse jeito? — gritou para o magricela. — Feche a porta e cuide do seu trabalho.

O magricela voltou a inclinar-se e obedeceu.

Marshall respirou aliviado quando lá fora os passos se afastaram. Os passos rastejantes do magricela voltaram pelo corredor.

— Que poder imenso vocês têm sobre os deuses — disse com uma risadinha. — Acho que vocês bem mereciam que eu os ajudasse.

— Afinal, por que você nos ajudou? — perguntou Marshall.

— Vocês mataram quatro máquinas dos deuses, não é? — perguntou o outro. — Isso é motivo bastante para ser grato e ajudar vocês. Quase todos os outros pensam como eu. Mas têm muita coisa a perder, e por isso têm medo de ajudar. Não querem descer?

— Não, não queremos mais — respondeu Marshall. — Queremos ir ao porto. Talvez a sorte nos ajude para conseguirmos passar sem sermos vistos.

— Talvez — disse o magricela com uma risadinha. — Se vocês descerem ao porão, a sorte os ajudará com toda certeza.

Marshall começou a desconfiar do magricela. Mas a superfície lisa de metal plastificado que sentia no braço tranqüilizou-o. O que poderia ele fazer contra o radiador de impulsos?

— Está bem. Vamos descer — decidiu.

Kitai pegou o mini-comunicador. Tateando, chegou ao início da escada e foi descendo. Marshall seguiu-o. O magricela veio atrás de todos.

Tama gritou lá de baixo.

— Gostaria que não fosse tão escuro. Em algum lugar está entrando ar puro.

O magricela deu outra risadinha. Subitamente Marshall sentiu chão plano sob os pés. Alguma coisa crepitava atrás dele. O magricela acendera um cavaco de lenha.

Encontravam-se num subterrâneo não muito grande. O que havia de estranho nele era a abertura redonda de cerca de um metro existente numa das paredes.

O magricela, um velhinho de roupa esfarrapada e cabeleira imunda e desgrenhada, apontou para a abertura.

— Entrem ali — disse com uma risadinha. — A outra extremidade fica no cais, um palmo acima da água, no momento. Com a maré alta a galeria fica cheia de água até a metade, pois desce em direção ao porto.

Marshall leu seus pensamentos. As indicações eram verdadeiras.

— Nós lhe ficamos muito gratos — disse em tom sério. — Quando chegar a hora, não nos esqueceremos de Wosetell.

O velhinho não parecia espantar-se pelo fato de que Marshall sabia seu nome. Com a voz inalterada, respondeu:

— Vejo que você possui um poder imenso. Acredito que um dia você conseguirá fazer com todos esses deuses malvados a mesma coisa que você fez com quatro de suas máquinas. Não percam tempo; cada instante pode ser precioso.

Rastejando de quatro, Tama entrou na galeria. Kitai empurrou o mini-comunicador atrás dele, para que se encarregasse do mesmo, e seguiu-o. Marshall despediu-se do velho com um aceno de cabeça e entrou na abertura, assim que os sapatos de Kitai haviam desaparecido.

Ouviram a risadinha de Wosetell atrás deles.

 

Tudo indicava que a sorte estava favorecendo Marshall.

Dali a uma hora os saltadores estavam convencidos de que na cidade não havia mais nenhuma das pessoas que procuravam. Concentraram sua atenção para os lugares em que surgiam constantemente tiros breves, disparados com boa pontaria, diminuindo lenta mas seguramente as fileiras dos veículos que participavam da busca.

Cada salto levava Tako e Gucky algumas centenas de metros para o norte. Os saltadores viram-se diante de um mistério. Talvez o inimigo com que estavam lutando fosse o mesmo com que se defrontaram nas montanhas. Nesse caso não sabiam explicar como teria chegado tão rapidamente a Vintina sem qualquer auxílio aparente. Também era possível que se tratasse de outro grupo. Nesse caso não havia como explicar que, tal qual o primeiro, se aproximava do grande espaçoporto sob os olhos dos vigilantes.

Tako acreditava que os saltadores se defrontassem com esse tipo de problema, e perguntou de si para si quanto tempo Etztak levaria para descobrir que não se encontrava diante de membros da tripulação da Lev XIV, mas sim dos seus piores inimigos.

Bem, essa idéia já acudira a Etztak há algum tempo. Mas não dispunha de provas, e, além disso, de certo tempo para cá estava tão furioso que não conseguia concatenar seus pensamentos.

O estranho combate deslocava-se cada vez mais para o norte.

À medida que o combate prosseguia, os saltadores iam se convencendo de que realmente em Vintina não havia mais nenhum dos elementos que procuravam. Sabia-se que quatro homens da tripulação da Lev XIV haviam fugido. E o grupo que tornava as coisas tão difíceis para o grupo de busca devia ser composto ao menos de quatro elementos.

Marshall anunciou que ele e seus companheiros haviam subido num navio e “garantido toda a tripulação, inclusive o comandante”

Gucky respondeu:

— Tudo em ordem! Seguiremos assim que os saltadores se tiverem afastado-o suficiente da cidade.

 

A ocupação do Orahondo foi realizada sem dificuldades. O costado de bombordo ficava a poucos metros do lugar em que a estranha galeria de Wosetell rompia o cais. Deixaram o mini-comunicador e o radiador de impulsos na galeria e nadaram até o navio. Subiram por uma corda.

A tripulação do navio pertencia à classe ingênua de Goszul. Kitai praticamente não teve nenhum trabalho em modular os pensamentos dessa gente de tal forma que acreditavam justamente naquilo que mais convinha à segurança do grupo de três pessoas, posteriormente aumentado para cinco.

Também o comandante foi submetido ao tratamento de Kitai. Indicou-lhes três aposentos confortáveis, e prometeu que mandaria arrumar dois camarotes para as pessoas que deveriam chegar depois.

Depois disso Tama Yokida trouxe para bordo o mini-comunicador e a arma de impulsos.

Marshall comunicou a Gucky que a missão fora coroada de êxito. Este respondeu:

— Tudo em ordem! Seguiremos assim que os saltadores se tiverem afastado o suficiente da cidade.

Subitamente Marshall ficou estarrecido de surpresa, ao captar o impulso retumbante e dolorido:

— Quem vive falando por aí?

Gucky não demorou tanto em recuperar-se do susto. Marshall recebeu sua mensagem:

— O que foi isso?

E logo a resposta dolorida:

— Fui eu!

— Quem é você? — perguntou Gucky.

— Sou um servo dos deuses.

Marshall interveio.

— É um telepata de Goszul, Gucky! — preveniu. — Isso pode ser muito perigoso.

— É mesmo — respondeu Gucky. — Espere um momento.

O próximo impulso foi dirigido ao goszul:

— Quer fazer-nos um favor, amigo?

— Depende.

— Eu explicarei. Coisas importantes estão sendo preparadas. Se você interferir na nossa troca de mensagens, isso poderá perturbar nossa tarefa. Se estiver disposto a ficar calado até que tenhamos liquidado nossos negócios, poderá participar dos nossos lucros.

A resposta veio num tom zombeteiro:

— Você não pode ocultar inteiramente, forasteiro, por mais que você se esforce. Você é um inimigo dos deuses, não é?

Gucky teve bastante inteligência para compreender que realmente o goszul compreendera alguma coisa das vibrações fundamentais de seu cérebro.

— Sou, sim — respondeu.

— Para mim essa recompensa basta — disse o goszul. — Daqui em diante ficarei calado.

Marshall procurou auscultar o impulso. Não havia dúvida de que era genuíno. O goszul pensava o que acabara de dizer por via telepática.

Ao que parecia, havia nessa terra mais inimigos dos deuses do que se poderia acreditar à primeira ou à segunda vista.

— Pois então — suspirou Gucky por via telepática.

 

Dali a duas horas, Gucky e Tako também chegaram ao Orahondo, num salto gigantesco que os levou da extremidade sul do espaçoporto, que acabavam de atingir, até o porto de Vintina.

O comandante e a tripulação do navio estavam espiritualmente preparados para receber o estranho visitante que Gucky era sob todos os pontos de vista. Não houve problemas, e não era de recear que qualquer dos tripulantes avisasse os saltadores.

As barreiras erguidas por Kitai eram mais duras que paredes de aço.

Marshall resumiu os acontecimentos dos últimos dias numa mensagem concentrada bastante lacônica e transmitiu-a a Rhodan através do mini-comunicador.

A resposta de Rhodan veio imediatamente.

— A base dos saltadores no continente norte deve ser destruída de qualquer maneira no mais curto prazo. Realizem uma operação de guerrilha. Não esperem qualquer auxílio das nossas naves.

Marshall leu a fita expelida pelo minicomunicador e fitou os companheiros um por um.

— Quer que destruamos a base — murmurou, estupefato. — Com quê? Só se for com as mãos.

Gucky torceu o rosto e exibiu o dente roedor.

— Você se esquece das coisas que escondi no fundo do rio. Com elas podemos destruir meia galáxia...

— Espere aí... — disse Kitai.

— ...quanto mais essa base ridícula.

Marshall suspirou.

— E eu que pensava que bastaria que ficássemos quietos por alguns dias até que Rhodan viesse buscar-nos. Agora tudo vai começar de novo.

Gucky acenou com a cabeça. Parecia muito sério.

— Naturalmente. No momento estamos em paz. Os saltadores não desconfiam de que estejamos em Vintina, nem a bordo do Orahondo. Lá nas montanhas estão gastando as vistas à nossa procura. Toda a atenção deles está concentrada nas áreas adjacentes ao espaçoporto.

— Seria o momento mais favorável para dar o golpe.

Tako Kakuta disse em tom pensativo:

— Talvez seria conveniente que nos interessássemos mais um pouco pelos nativos, tanto os ingênuos como os servos dos deuses. Pelo que vejo, não é impossível que por aqui já exista uma oposição clandestina. Se for assim, não precisaremos realizar todo o trabalho de reconstrução.

Marshall deu um sorriso pálido.

— Muito bem. Vamos começar de novo. Mas antes disso gostaria de saber uma coisa: Com que idade um funcionário da Terceira Potência tem direito de aposentar-se? Será que para mim ainda não está na hora?

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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