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AVANÇO PARA ÁRCON / Kurt Mahr
AVANÇO PARA ÁRCON / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AVANÇO PARA ÁRCON

 

Esperavam uma recepção amistosa, mas foram tratados como mendigos...

História da Terceira Potência em poucas palavras:

1.971 — O foguete Stardust chega à Lua, e Perry Rhodan encontra o cruzador dos arcônidas que realizou um pouso de emergência.

1.972 — Instalação da Terceira Potência, que enfrenta a resistência das potências terrenas unidas e a invasão de seres extraterrenos.

1.975 — Primeira intervenção da Terceira Potência nos acontecimentos galácticos. Perry Rhodan encontra os tópsidas no sistema de Vega e procura solucionar o mistério galáctico.

1.976 — Perry Rhodan atinge, a bordo da Stardust-III, o planeta Peregrino, e juntamente com Bell consegue a imortalidade relativa, mas perde mais de quatro anos.

1.980 — Perry Rhodan regressa à Terra e luta por Vênus.

1.981 — O Supercrânio ataca, e a Terceira Potência defronta-se com a mais dura das provas a que já foi submetida.

1.982/1.983 — Os mercadores galácticos procuram transformar a Terra num mundo colonial, mas o feitiço vira contra o feiticeiro e Perry Rhodan conquista uma das bases mais importantes dos mercadores.

Agora a Terra se encontra no ano de 1.984, e a Ganymed é preparada para o Avanço Para Árcon...

 

                               

 

— Esta nave até parece um pesadelo — disse Reginald Bell em tom compenetrado, enquanto seus cabelos ruivos se arrepiavam numa atitude combativa, contrastante com a solenidade do olhar que lançou pelo corpo esguio da nave acima.

A Ganymed era a mais nova das naves gigantes da Terceira Potência. Só parecia esguia para quem a olhasse de baixo e não a pudesse apreciar na perspectiva correta. Na verdade era um gigantesco cilindro de oitocentos e quarenta metros de altura por duzentos metros de diâmetro. A proa fora reta, havia sido alongada em sessenta metros por meio de um acréscimo arredondado, montado nos estaleiros de Terrânia. Antes disso o comprimento total da nave chegava a setecentos e oitenta metros. Pousada sobre quatro imensos suportes que saíam da popa, dava a impressão de ser um colosso preso ao solo, que ninguém julgaria capaz de jamais sair do lugar.

— A não ser que a comparemos com a Stardust — acrescentou.

Acontece que a Stardust se encontrava a dez quilômetros dali, e seu corpo esférico desenhava um círculo relativamente insignificante contra o céu violeta da noite.

— Quer dizer que vamos à Árcon — disse Bell, mudando de assunto, sem tirar os olhos da Ganymed. — E vamos nesta nave.

— Iremos nesta nave — confirmou Rhodan.

— Por que não vamos na Stardust?

— Porque a Stardust é uma nave de tipo arconídico. Se resolvo fazer uma visita a certo Mr. Thomson, que nunca vi, não usarei um terno que já foi dele, dizendo simplesmente que posso ficar com ele, por tê-lo tirado de outra pessoa. Isso seria contrário às regras da diplomacia, não acha?

O olhar de Bell foi descendo pela Ganymed até chegar ao solo.

— É claro que sim! — disse em tom enfático. — Muito bem. Então iremos à Árcon na Ganymed. Quando pousarmos lá, diremos: viemos da Terra e estamos trazendo dois dos seus náufragos. Façam o favor de ajudar-nos para que a Terra não caia nas mãos dos saltadores. É isso?

Rhodan riu.

— Bem que gostaria de saber como sairão as coisas. Se não houver maiores complicações, eu me lembrarei da sugestão que você acaba de fazer.

A partida foi marcada para o dia 10 de maio de 1.984.

Thora e Crest, os arcônidas, foram as primeiras pessoas a ocuparem seus aposentos a bordo da Ganymed. Até parecia que a mudança prematura serviria para forçar o destino e impedir que a partida fosse adiada mais uma vez.

Naqueles dias Perry Rhodan viu uma nova Thora. Transbordando de vitalidade, seus olhos vermelhos chamejantes transformavam-na numa deusa estranha.

A obstinação, que nos últimos treze anos fora o traço mais marcante de seu caráter, não deixara Rhodan perceber que amava a arcônida. Agora o fato saltava aos seus olhos com uma clareza penetrante.

Os preparativos técnicos estavam a cargo de Reginald Bell. Este cuidava deles com a ânsia do homem que não pode esperar a próxima, a grande aventura.

Bell providenciou para que um dos transmissores fictícios, a mais importante das armas de que dispunham, fosse retirado da Stardust e montado na Ganymed. Certificou-se de que o compensador estrutural, um aparelho que já se encontrava a bordo da Ganymed no momento em que a capturaram das mãos dos saltadores, realmente cumpria aquilo que estava prometendo. Criava um campo protetor absorvente dos abalos da estrutura espaço-temporal causados pela transição da nave. Enquanto o compensador estivesse funcionando, ninguém conseguiria localizar a Ganymed em virtude dos abalos estruturais.

Bell mandou colocar a bordo os 27 destróieres de três tripulantes, que foram guardados na proa recém-construída da gigantesca nave. Também providenciou a colocação das duas naves de reconhecimento de grande alcance, tipo gazela. Tratava-se de aparelhos achatados em forma de disco, de corte elíptico, que mediam trinta metros de comprimento e dezoito de largura.

O coronel Freyt, que figurava como comandante da Ganymed, acompanhou a entrada dos mil tripulantes, cuidando para que cada um soubesse onde era seu lugar a bordo.Os preparativos da decolagem demoraram uma semana. Face ao vulto e à importância da tarefa, era um curto espaço. Mas Rhodan teve que conciliar a pressa resultante da ameaça que a raça mercantil dos saltadores representava para a Terra com a cautela que qualquer homem de responsabilidade deve ter no preparo de um empreendimento desse tipo.

O dia da partida foi mantido. Apesar da rapidez com que foram realizados os preparativos, um controle geral levado a efeito cinco horas antes da decolagem revelou que a bordo da nave tudo estava em boa ordem e em perfeitas condições de funcionamento.

Árcon ficava no grupo estelar M-13, situado a cerca de 34 mil anos-luz da Terra.

A Ganymed não estava em condições de vencer essa distância enorme num único hiper-salto. Rhodan programou um total de cinco saltos; o último devia levá-los à periferia do grupo estelar. Os primeiros quatro saltos seriam realizados sob a proteção do compensador estrutural, mas o quinto não. Em Árcon ninguém devia ter a impressão de que algum inimigo procurava aproximar-se sorrateiramente do centro do Grande Império. O último salto devia ser constatado pelos arcônidas.

 

Quatro transições foram realizadas sem qualquer incidente. As distâncias entre um ponto de transição e outro eram uniformes. Cada salto aumentava em 6.800 anos-luz a distância entre a Ganymed e a Terra.

Pela hora terrena do meridiano de Terrânia eram 22:15 h do dia 10 de maio de 1.984 quando a Ganymed iniciou a última transição. Rhodan ordenou um estado de prontidão rigorosíssima.

A dor foi diminuindo.

Os apitos agudos de alarma despertaram os homens de seu estado de inconsciência. Um grito soou. Ninguém sabia quem soltara o mesmo. Era um grito de admiração.

— Olhem as telas!

A grande tela panorâmica captava todos os ângulos do espaço. Na direção correspondente ao eixo longitudinal da nave, via-se um conglomerado de claridade reluzente. Era um tapete de luminosidade no qual não se distinguiam as fontes de luz, uma nuvem de estrelas maior e mais bela do que qualquer constelação jamais vista por um olho humano.

Era M-13!

Ali estava o núcleo do Grande Império formado por centenas de milhares de sóis que protegiam o coração do grande complexo: Árcon.

Face a esse esplendor, os outros segmentos da tela pareciam vazios e desolados. A concentração estelar da Galáxia empalideceu, transformada em escuridão diante da luminosidade daquele grupo.

Alguns minutos se passaram. Os tripulantes da nave contemplaram sem pressa o grande milagre que se descortinava diante deles. Quase chegaram a esquecer a finalidade da viagem.

Subitamente um forte estalido rompeu o silêncio e uma voz arrastada saiu do tele comunicador:

— Alguma coisa não está em ordem!

A reação de Perry Rhodan foi imediata. Logo se esqueceu do milagre que se desenhava na tela.

— O que não está em ordem?

— Os receptores de hipercomunicação estão dando sinal ininterruptamente. Com perdão da palavra, temos uma verdadeira salada de ondas no instrumento.

— Conseguiu a localização?

— Não, senhor. A goniometria conjugada à medição de intensidade é impossível porque as transmissões se superpõem. E para a goniometria de triangulação precisaríamos dum terceiro ponto de referência.

Rhodan confirmou com um gesto de cabeça.

— Prossiga nas observações — ordenou ao homem do rádio.

E logo emitiu as ordens dirigidas ao comando da nave. Eram precisas e lacônicas.

— Parar a nave! Campos protetores a toda potência! Postos de combate continuarão de prontidão!

A Ganymed imobilizou-se.

A cinqüenta minutos-luz, quase exatamente na direção do eixo longitudinal da nave, ficava o último dos sóis da periferia externa do grupo. Era um gigante vermelho sem planetas.

O silêncio tomou conta da sala de comando. Os olhos fitos na grande tela panorâmica procuraram compreender o que se passava lá fora.

Lá fora, num setor estranho e pavoroso do espaço.

— O fotômetro registra reflexos débeis em Pi cento e oitenta e dois e Teta vinte e um do espectro estelar, com ligeiro deslocamento na faixa do azul. O reflexo aproxima-se do ponto em que nos encontramos.

Os olhares fixaram-se no ponto indicado. Ficava “atrás” da Ganymed, se a direção em que ficava o grupo estelar fosse considerada a frente.Os olhos não encontraram nada. Um olho humano não é nenhum fotômetro.

Rhodan instruiu a sala de rádio para que todas as transmissões recebidas fossem conduzidas para um dos receptores da sala de comando. Dali a um instante, uma confusão de ruídos encheu o recinto. Toda a escala dos barulhos estava presente, desde o zumbido grave e monótono até o chiado agudo e histérico, que quase não podia ser captado pelo ouvido humano.

Eram hiper transmissões, codificadas e condensadas. Quem não possuísse o código e não conhecesse o fator de condensação nunca conseguiria decifrá-las.

A antena direcional revelou que parte das transmissões vinha da área em que o fotômetro acabara de registrar o reflexo débil.

Alguma coisa aproximava-se do grupo estelar a uma velocidade considerável.

O que seria?

Rhodan pediu que Crest comparecesse à sala de comando. Mas o arcônida não conseguiu descobrir o que andava lá por fora.

Uma hora passou-se. O reflexo luminoso aproximou-se a uma distância de vinte minutos-luz. Constatou-se que, se não modificasse a direção de deslocamento, passaria a grande distância da Ganymed.

Rhodan suspirou aliviado. A representação não se destinava a eles.

Subitamente um relampejo surgiu na parte superior da tela. Foi um raio de luz que só durou uma fração de segundo, mas era tão intenso que atraiu todos os olhares. Do lugar do relampejo, saiu um fio esverdeado que atravessou a tela a grande velocidade, desapareceu diante da claridade das estrelas, voltou a surgir e finalmente provocou outro relampejo.

Nas proximidades do local do segundo relampejo, surgiu outro fio luminoso e percorreu o caminho de onde viera o primeiro. Os homens prenderam a respiração, aguardando a detonação; mas esta não veio. O fio de luz percorreu o espaço numa extensão de milhões de quilômetros e desapareceu diante da claridade do grupo estelar.

— Erraram o alvo! — resmungou Reginald Bell.

Essa observação descontraiu os homens.

Não havia a menor dúvida: a quinta transição da Ganymed terminara em meio a uma batalha espacial.

 

— Vamos ficar quietos — ordenou Rhodan. — Não sabemos quem está brigando com quem; o que sabemos é que aquilo não nos diz respeito.

Era uma situação fantasmagórica. Fios luminosos coloridos passavam pela tela e as explosões ofuscantes se sucediam. Crest não sabia o que fazer.

— É claro que existem muitas raças que não concordam com a existência do império dos arcônidas — admitiu. — Quem é poderoso têm inimigos, e nunca neguei que nestes últimos séculos os arcônidas não trataram os rebeldes com o necessário rigor. Mas não tenho meios para saber o que está acontecendo lá fora. Nem posso dizer se há naves arcônidas envolvidas na batalha.

À medida que perdurava a incerteza, crescia o desejo de obter informações. Rhodan sentiu o nervosismo que tomava conta dele, e sabia que a mesma coisa acontecia aos outros.

— Bell!

Reginald Bell levantou a cabeça num gesto abrupto. Um brilho arrojado surgiu em seus olhos.

— Sim. Quer que eu...

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Não podemos ficar parados toda vida. Pegue a Gazela-I e procure descobrir o que está acontecendo.

As mãos ágeis de Bell manipularam o intercomunicador. O tenente Tifflor, que comandava a nave auxiliar Gazela-I, foi informado de que dentro de quinze minutos o aparelho devidamente tripulado deveria estar pronto para sair pelas comportas da nave.

— Nada de arbitrariedades! — advertiu Rhodan. — Apenas queremos saber o que está acontecendo. Não queremos que atire.

— Não se preocupe. Sou o homem mais cauteloso do mundo.

Essas palavras provocaram um sorriso nos homens reunidos na sala de comando, que conheciam bem o gênio esquentado de Bell.

A Gazela-I com seus dez tripulantes possuía todas as características de uma pequena nave espacial. Estava equipada com hiperpropulsores, podia realizar transições de extensão limitada e suas reservas energéticas lhe garantiam uma autonomia de cerca de quinhentos anos-luz.

A potência de seu armamento era tamanha que poderia travar sozinha uma guerra contra o planeta Terra. Era bem verdade que na opinião de Bell era duvidoso que os acontecimentos desenrolados na periferia do grupo estelar M-13 pudessem ser medidos pelos padrões terranos.

Há poucos minutos a Gazela-I saíra do corpo gigantesco da Ganymed. Acelerando ao máximo, atingira 0,8 vezes a velocidade da luz. Percorria o espaço na direção dos débeis reflexos luminosos que os fotômetros da Ganymed continuavam a acusar, e que se deslocavam em direção ao grupo de estrelas.

Bell estava sentado ao lado do jovem tenente Tifflor. Este pilotava a nave, enquanto Bell se encarregava do controle dos goniômetros.

Quando se encontravam a uma distância de cinco minutos-luz, o localizador de microondas começou a reagir. No início, abrangeu um objeto de contornos indefiníveis. Quando se aproximaram mais, viram que se tratava duma nuvem de espaçonaves que se deslocava a alta velocidade.

— A distância é de cem segundos-luz — informou Tifflor.

— Chegue mais perto — resmungou Bell. — Quero vê-los na tela. Reduza a velocidade.

Tifflor olhou-o de lado.

— Atirarão contra nós — ponderou.

— Será? — resmungou Bell. — Está com medo?

Tifflor levantou-se com um gesto tão abrupto que os cintos lhe cortaram os ombros.

— Senhor...

Bell fez um gesto apaziguador.

— Está bem, desculpe. Não tive a intenção de ofendê-lo. Sei perfeitamente que não está com medo. Reduza a velocidade.

Tifflor obedeceu.

Na tela surgiram sombras apagadas. Eram as naves que refletiam a luz do grupo de estrelas. Bell inclinou-se para a frente.

— Meu Deus! — murmurou. — O que é isso?

Graças a um treinamento intensivo, Reginald Bell possuía todo o saber arcônida. Conhecia os tipos de naves do Império tão bem quanto um arcônida, talvez melhor, já que a memória humana é mais eficiente que a arcônida.

Aquilo que tinha diante de si ultrapassava o volume de dados que podia assimilar em alguns segundos. Calculou que o grupo era formado por umas trezentas naves. A maior delas devia ter aproximadamente metade do tamanho da Ganymed, enquanto a menor não passava dum ponto luminoso. Tinha certeza de que seu tamanho não ultrapassava o da Gazela-I.

Havia naves de um tipo que há milênios devia ter sido moderno na galatonáutica arcônida, e outras que Bell não conhecia, naturalmente por não serem de construção arcônida. Não existia a menor dúvida: as naves que se encontravam diante da Gazela-I não eram arcônidas.

 

Depois da ligeira manobra de frenagem desenvolvida por Tifflor, a nave apenas desenvolvia 0,07 da velocidade da luz. Levou alguns segundos para passar longe da formação. Os desconhecidos procediam com muita cautela. Dificultavam a pontaria do inimigo, guardando grande intervalo entre as naves.

Não atiraram contra a Gazela-I. Tifflor suspirou silenciosamente ao ver que os pontos luminosos que representavam as trezentas naves se haviam deslocado para a tela de popa. Bell olhou-o com um sorriso de escárnio.

— Infelizmente tenho que incomodá-lo mais uma vez — disse. — Vamos voltar.

A resposta de Tifflor foi lacônica:

— Sim senhor.

Iniciou as manobras. Depois de cinco minutos inverteu a rota da Gazela-I. A uma velocidade ainda mais reduzida que da primeira vez, passou junto à formação bem espalhada.

Subitamente um dos homens sentados junto a um dos nichos de artilharia gritou:

— Estão abrindo fogo contra nós! Uma faixa larga e ofuscante atravessou a tela. Tifflor atirou a mão para a frente, a fim de executar a manobra desviacionista. Mas o feixe energético passou a uma distância segura. Produziu apenas uma ligeira reação dos campos energéticos, indo atingir em cheio uma das naves estranhas, que se encontrava a milhares de quilômetros de distância.

O efeito do impacto foi tremendo. Por uma fração de segundos, a nave inchou como um balão de brinquedo inflado às pressas. Suas paredes entraram em incandescência e o feixe de fogo explodiu, espalhando uma chuva de fragmentos luminosos e deixando vazio o lugar em que pouco antes se encontrara.

— Vamos embora! — fungou Bell.

A reação de Tifflor foi instantânea. Acelerando ao máximo e descrevendo uma curva fechada, a Gazela-I afastou-se da área perigosa que circundava as naves estranhas.

Novos feixes energéticos atravessaram o espaço, cruzaram as telas e atingiram suas vítimas entre as naves desconhecidas. Uma chuva incessante de fagulhas espalhava-se para todos os lados, mudando de cor, enquanto a Gazela-I, cada vez mais veloz, penetrava no campo do efeito de duplicação.

— Pare! — ordenou Bell.

A Gazela-I encontrava-se a dois e meio minutos-luz da formação que estava sendo bombardeada. O localizador de microondas revelou que os desconhecidos começavam a mexer-se. O que restava de suas naves modificou a velocidade e a direção, para escapar ao fogo violento. A formação espalhou-se para todos os lados. Os feixes energéticos reluzentes atingiam o vazio e desapareciam em meio ao negrume do espaço. O inimigo invisível suspendeu o fogo.

— Quais são suas ordens? — perguntou Tifflor.

— Vamos esperar — respondeu Bell laconicamente. — Ligue o receptor para a freqüência integral.

Tifflor confirmou com um gesto de cabeça. As intenções de Bell eram claras. Em toda luta há sobreviventes, mesmo numa batalha espacial. Se algum tripulante de uma das naves destruídas tivesse sobrevivido ao impacto e vagasse pelo espaço, indefeso, transmitiria seu pedido de socorro pelo rádio embutido no traje espacial.

Dali a quatro minutos a Gazela-I captou o primeiro pedido de socorro. Eram palavras balbuciadas numa língua incompreensível, de mistura com os chiados das interferências. O goniometrista só levou alguns segundos para determinar o local do emissor por meio da antena automática. A Gazela-I voltou a dar partida.

Lenta e cautelosamente, foi-se aproximando do local da batalha recém-terminada. Metade das guarnições de artilharia tiveram que vigiar eventuais feixes energéticos. A grande agilidade da Gazela-I dava-lhe boas chances de desviar-se de um bombardeio energético, já que a maioria das radiações não ultrapassa noventa e nove por cento da velocidade da luz.

Bell ficou de olhos fixos na tela reflexiva do localizador de microondas. A antena de radiações descrevia sem cessar seu movimento pendular, desenhando faixas verdes sobre a tela.

— Ali!

Um ponto iluminou-se na faixa verde, apagou-se quando a antena se deslocou e voltou a iluminar-se no próximo movimento.

Tifflor alterou a rota. Desenvolvendo a velocidade de um automóvel terreno, a nave aproximou-se do ponto. Um débil reflexo surgiu na tela de imagem. Tifflor, um oficial submetido a treinamento intenso na Academia Espacial de Terrânia, dele se aproximou com a rapidez e a segurança de um comandante experimentado.

Agora era com ele. Bell fornecera as diretivas gerais e agora ele daria as ordens.

— Dois homens sairão da nave. Tragam aquela criatura.

Os tripulantes que se encontravam mais próximos à comporta saíram do lugar, fecharam os trajes espaciais e desapareceram no cubículo da comporta. Dali a um minuto surgiram na tela, transformados em vultos disformes e inchados, que voavam tranqüilamente em direção ao reflexo.

Tifflor manteve contato pelo rádio. Os dois soldados colocados no espaço chamavam a intervalos regulares.

— A distância é de duzentos metros. Já distinguimos perfeitamente o homem.— Andem depressa! — ordenou Tifflor. Lançou um olhar preocupado pela tela de imagem. A área era perigosa. A qualquer momento o desconhecido distante poderia localizar a nave e abrir fogo de novo.

— Atingimos o local — anunciou a voz de um dos soldados.

— Tragam o homem.

— Sim senhor, mas...

— Mas o quê?

Ouviu-se uma respiração ofegante, uma tosse.

— Não... não é nenhum homem.

— O que é?

— É... bem, é uma coisa.

Tifflor enfureceu-se.

— É um ser inteligente ou não é?

— Parece que sim... mas é tão esquisito!

Tifflor tinha algumas palavras violentas na ponta da língua. Mas preferiu guardá-las para si e ordenou:

— Tragam-no. Depressa!

A luminosidade dos três pontos projetados na tela voltou a crescer. Os contornos começaram a tornar-se perceptíveis. Eram dois vultos grosseiros e disformes, mas humanos, e uma terceira figura em forma de caixa.

O silêncio tomou conta da nave, até que o ruído provocado pelos homens que vinham do espaço soou na comporta. Bell observou as luzes de controle da escotilha interna e fez um sinal para Tifflor quando viu surgir uma série de luzes verdes.

— Vamos voltar pelo caminho mais rápido!

Tifflor começou a manipular os controles. No momento em que a Gazela-I começou a pôr-se em movimento, os dois soldados vindos da comporta entraram e descansaram cautelosamente o grande volume cujo peso os fizera ofegar.

Bell soltou os cintos de segurança, contornou a mesa de controle e contemplou a coisa de todos os lados. Pelo que constatou, o envoltório cinza-claro, que imitava o couro, não devia pertencer àquele ser; era provável que fosse uma peça de algum traje espacial. Contudo, não descobriu nenhum fecho. Prosseguindo no exame, deu com o lugar em que o envoltório era substituído por uma lâmpada quadrada de vidro flexível que media cerca de vinte e cinco centímetros, permitindo a visão do interior.

Por baixo dela Bell viu um vulto coberto por listras cinza-claras e cinza-escuras. Era aquilo que os dois soldados não quiseram chamar de homem.

Bell bateu na lâmina, mas nada se moveu atrás dela, O ser devia estar inconsciente ou morto.

— Ande depressa! — disse Bell em voz baixa, dirigindo-se a Tifflor.

Este confirmou com uma expressão obstinada no rosto.

 

Rhodan já estava informado quando a Gazela-I entrou pela comporta. Ao seu lado, Crest acompanhava a manobra. Parecia curioso. Tifflor deu prova de suas qualidades de piloto espacial. A manobra foi rápida e segura.

Em torno da Ganymed a batalha espacial continuava a rugir. A dispersão da frota desconhecida, evidentemente, não passara duma ação isolada em meio ao grande combate.

Rhodan dirigiu-se a Crest.

— Quer encarregar-se da investigação? Acho que estará em boas mãos.

Crest concordou com um gesto.

— Avise assim que descobrir alguma coisa — pediu Rhodan.

Crest saiu e aguardou no corredor até que dois dos tripulantes levassem o ser disforme pelo elevador antigravitacional.

— Façam o favor de deixá-lo no laboratório — pediu.

Enquanto o volume era introduzido no laboratório, Crest preparou os aparelhos de que precisaria para a pesquisa.

Sua providência principal consistiu em encher uma das pequenas câmaras de exame, instaladas nos fundos do laboratório, com uma atmosfera de metano submetida a uma pressão considerável.

Conhecia a raça a que pertencia aquele ser indefeso, coberto de listras cinza-claras e cinza-escuras.

Abriu o traje espacial de couro junto à câmara de exames, introduziu o corpo flácido e disforme na pequena comporta o mais depressa que pôde, retirou o ar da mesma e fez com que uma lufada fresca de metano envolvesse o ser estranho.

Na câmara havia uma série de instrumentos que captavam e registravam as funções do corpo. Crest leu nos indicadores que de todos os órgãos somente aquele que correspondia ao coração humano desempenhava uma atividade significativa.

O ser estranho estava morrendo. A temperatura de seu corpo estava abaixo do normal. Provavelmente o aquecimento do traje espacial falhara.

Os controles seguintes foram manipulados com um máximo de rapidez e segurança. Um zumbido grave encheu o recinto no momento em que começou a funcionar o aparelho de encefalografia. Este aparelho registraria as últimas vibrações cerebrais daquele ser que vivia no momento e as traduziria numa programação positrônica.O rumo que tomava a batalha espacial era inconfundível. As formações de naves se agrupavam; mais uma dezena de reflexos foi registrada pelos fotômetros.

No centro de todas as formações encontrava-se a Ganymed.

Ainda estava condenada à espera. A única coisa que podia fazer era ativar os campos energéticos ao máximo de sua potência, para que um impacto casual de um dos potentes canhões energéticos não pudesse causar-lhe qualquer dano.

Dali a uma hora Crest voltou. Rhodan notou que estava mais sério que de costume. Segurava algumas fitas de plástico coloridas, utilizadas como portador de impulsos da calculadora positrônica, e colocou-as diante de Rhodan.

— O que foi? — perguntou Rhodan laconicamente.

— Foi um motunês — respondeu Crest.

— Foi?

— Isso mesmo — confirmou Crest. — Morreu de subesfriamento. Não pude fazer mais nada por ele.

Rhodan refletiu, procurando localizar na profusão de memórias armazenadas durante o treinamento hipnótico tudo que sabia sobre os motuneses.

Era uma raça não-humanóide que respirava metano e habitava os planetas de um extenso sistema solar situado na periferia do grupo estelar. Quando foram subjugados pelo Grande Império já possuíam uma tecnologia desenvolvida e em toda a história nunca foram membros muito submissos do Grande Império. O nível elevado de sua civilização e a repugnância natural dos não-humanóides pelos humanóides fizeram com que de tempos em tempos os motuneses lutassem pela independência de seu sub império.

— Com quem estão brigando? — perguntou Rhodan.

— Com uma grande frota de Árcon — respondeu Crest. — Este motunês informou que, mal a rebelião havia começado, uma enorme frota arcônida surgiu diante do mundo principal de Motun e transformou sua superfície num oceano de rocha derretida.

As unidades estacionadas nos outros planetas passaram à luta. É o que estamos vendo na tela. Não existe a menor dúvida de que a rebelião terminará com a destruição final dos motuneses.

Rhodan ergueu os olhos, espantado.

— Parece que Árcon está ficando enérgico.

Crest deixou-se cair numa poltrona. Parecia um gesto de desânimo e resignação.

— O senhor não entende isso tão bem como eu entendo — disse em voz baixa. — É bem verdade que dispõe do saber arcônida. Mas não possui as impressões emocionais que carreguei comigo ao partir de Árcon. Se no dia em que Thora e eu partimos de Árcon na nave exploradora os motuneses se tivessem revoltado, nenhum arcônida se teria preocupado por isso. Motun fica a quarenta e seis anos-luz de Árcon. Os arcônidas sabiam que pouco importaria o que os motuneses fizessem. De qualquer maneira não conseguiriam chegar aos mundos coloniais mais importantes, quanto mais Árcon, em virtude dos dispositivos automáticos de segurança. Teriam ficado diante das telas de imagens fictícias, esperando que o entusiasmo dos motuneses acabasse por si.

— E agora... isto aqui... essa atividade imensa...

Rhodan deixou passar algum tempo.

— Afinal, treze anos se passaram desde sua partida, Crest — ponderou. — Não acredita...

— Treze anos! — exaltou-se Crest. — Será que treze anos bastariam para produzir uma mudança tão radical no gênio de um povo antiqüíssimo?

Rhodan refletiu.

— Uma evolução natural não poderia produzir esse resultado — confessou. — Talvez tenha havido um golpe de força na história arconídica. Quem sabe se o próprio Árcon não sofreu um ataque, e a situação criada com isso não deixou outra alternativa aos arcônidas senão despertar de sua letargia?

Crest mostrou um sorriso triste e fez um gesto. Estava com a resposta na ponta da língua. Pretendia dizer que um povo condenado ao desaparecimento não se desvia do caminho traçado pelo destino, e prefere sucumbir a defender-se. Mas antes que pudesse dizer uma palavra, o inferno parecia estar às soltas.

As sereias de alarma elevaram sua voz desagradável e irritante, enchendo a nave por alguns segundos com um ruído martirizante. Mal as sereias silenciaram, uma voz gritou no intercomunicador:

— Uma grande formação de naves aproxima-se na direção exata da Ganymed. Distância de três segundos-luz, velocidade 0,05 da luz. Contato dentro de sessenta segundos.

 

Antes de mais nada, Rhodan lançou um olhar sobre o indicador de desempenho do campo protetor. O sinal luminoso tremulava na mancha vermelha: não havia possibilidade de conduzir maior suprimento energético ao campo.

A Ganymed estaria protegida contra qualquer carga concebível. Mas a frota que do nada se aproximava era formada de mais de três mil naves, e nem mesmo o mais potente dos campos energéticos resistiria ao bombardeio de três mil canhões.

Crest levantou-se e recuou para os fundos da sala. Sabia que numa situação como esta deveria deixar a iniciativa por conta dos outros.

Numa questão de segundos, a tripulação da sala de comando se amalgamou naquela comunhão de luta que sempre formara nos momentos de maior perigo. Todos os oficiais estavam nos seus lugares, aguardando as ordens de Rhodan, com um nervosismo reprimido a custo.

Apesar da pressa, Rhodan não perdeu o sentido de coerência. O localizador de microondas gastou dez segundos para apalpar o formato das naves que se aproximavam vertiginosamente e constatar que a frota era de origem arcônida.

Rhodan consumiu mais dez segundos em expedir a mensagem codificada que na opinião de Crest e Thora convenceria qualquer tripulação arcônida de que tinha um irmão de raça diante de si.

Mais dois segundos se passaram até que percebesse que as naves arcônidas não registraram a emissão. E, menos ainda, cogitavam de desviar-se da perigosa rota que estavam seguindo.

Vinte segundos depois do primeiro aviso a frota arcônida abriu fogo contra a Ganymed. Centenas de feixes energéticos concentrados correram pelo espaço. Em parte erraram o alvo, em parte levaram os campos energéticos à incandescência.

— Posto de combate número um, preparar para abrir fogo! — ordenou Rhodan.

O posto de combate número um correspondia ao transmissor fictício, que era a arma mais eficiente da nave.

A confirmação não demorou mais que um segundo.

— Abrir fogo na direção Pi zero com potência média — ordenou Rhodan. — Fogo!

Com a mão direita empurrou o regulador de velocidade para a posição máxima. A Ganymed pôs-se em movimento. Acelerada ao máximo, correu em direção à gigantesca frota do inimigo, abrindo caminho por entre as linhas inimigas por meio do misterioso transmissor fictício. O aparelho registrava o alvo, arremessava-o pelo hiperespaço e fazia-o ressurgir num ponto cuja distância e posição eram escolhidos em função da quantidade e da polarização da energia empregada.

Uma passagem larga abriu-se diante da Ganymed, enquanto os campos energéticos continuavam a iluminar-se sob o fogo das naves arcônidas.

Os arcônidas logo reconheceram o perigo que se aproximava deles. A formação desagregou-se e as naves se afastavam em todas as direções, para dificultar a pontaria do inimigo. Os impactos sobre o campo protetor da Ganymed tornaram-se cada vez mais raros. Desenvolvendo o máximo de aceleração, a nave terrena precipitou-se pela abertura. Confundiu a pontaria arcônida quando a mesma teve que girar além do ângulo de zero graus. Menos de dois minutos depois do primeiro alarma, encontrava-se em segurança, bem além das linhas inimigas.

A frota arcônida reagrupou-se e prosseguiu no seu vôo, mantendo a rota primitiva. Poucos segundos depois observaram-se os primeiros tiros de radiações, que provocaram explosões refulgentes nas profundezas do espaço. O fogo dos arcônidas foi respondido. Mas a proporção dos tiros disparados de lado a lado revelava claramente a situação desesperadora de inferioridade em que se encontravam os motuneses.

Os três mil couraçados, diminuídos de três, que o transmissor fictício transferira para outro setor do espaço, passaram que nem um rolo de fogo sobre os destroços das naves motunesas, deixando atrás de si uma chuva incandescente de destroços, que se reuniam na tela sob a forma de nuvens luminosas amarelo-avermelhadas.

Dali a meia hora Rhodan decidiu prosseguir viagem. Face à rebelião que se manifestara nas áreas exteriores do grupo estelar, achou preferível não expor a Ganymed a outro perigo. Resolveu executar mais um hiper-salto para vencer a distância restante de cerca de quarenta e cinco anos-luz.

A elevada concentração de matéria reinante na área, especialmente no centro do grupo M-13, exigiu maior número de dados para o cálculo das coordenadas do salto. Isto acarretou maior dispêndio de tempo.

Nesse meio tempo a nave ficou de prontidão. Ninguém saberia prever se, depois de ter feito uma limpeza tão rigorosa entre os motuneses, a frota arcônida não se lembraria do inimigo anterior e procuraria localizá-lo.

 

Thora irrompeu em meio aos preparativos da transição e aos pensamentos graves que passavam pela mente de Rhodan. Alguma coisa parecia tê-la excitado além da medida. Seu longo cabelo branco esvoaçava enquanto atravessava a sala de comando a passos rápidos.

Rhodan recebeu-a com um sorriso.

— Foram naves arcônidas, não foram? — perguntou Thora.

“É isso”, pensou Rhodan. “Acompanhou os acontecimentos na tela e agora vem me dizer o que eu deveria ter feito.”

— Foram — admitiu.

— Por que não se identificou?

— Foi exatamente o que fiz. Usei a mensagem codificada. Thora ficou perplexa. Seus olhos chamejantes, assumiram uma expressão um pouco mais suave.

— E não...

— ...não responderam? Não. Pelo contrário: começaram a atirar.

Os braços de Thora caíram molemente junto ao corpo. Sua cólera e seu entusiasmo haviam passado. Só ficou o desamparo.

Crest saiu do canto em que passara os últimos trinta minutos, acompanhando os acontecimentos que se desenrolaram lá fora. Estava pasmo e silencioso. Thora virou-se para ele, com a grande pergunta inexprimível nos olhos.

Crest parou perto dela e fez um gesto grave.

— Nossa situação não é melhor que a sua — disse em arcônida. — Não temos a menor idéia do que pode ter acontecido.

— Mas...

— Durante sua ausência deve ter havido uma modificação profunda no império de Árcon — interveio Rhodan. — Ao que parece, de certo tempo para cá, os comandantes das naves arcônidas foram instruídos a ver um inimigo em qualquer coisa que se interponha no seu caminho. Até os sinais codificados perderam seu valor.

— E agora? O que pretende fazer?

O rosto apavorado de Thora antecipou a resposta: deviam voltar, fugir, ir para casa. Rhodan riu baixinho.

— Não tenha medo. Pretendíamos ir a Árcon, e ainda pretendemos. Vamos realizar a sexta transição, que nos levará ao centro do grupo estelar. Uma coisa eu lhes digo. Ao que tudo indica, é muito mais provável que sejamos destruídos por seus patrícios em vez de atingirmos Árcon sãos e salvos.

— Passo por passo, jornada após jornada o rei Salomão penetra na terra misteriosa de Ofir e se aproxima do palácio dourado da rainha de Sabá.

Com um sorriso, Rhodan olhou para o lado e contemplou seu co-piloto e amigo, que acabara de recitar pela terceira vez o verso que falava no rei Salomão e na rainha de Sabá.

— Está com uma veia romântica, não é? — escarneceu.

Bell não tirou os olhos da tela.

— Isso mesmo — respondeu em tom sério. — Até parece que estou no cinema. Olhe isso — fez um gesto amplo, que abrangeu toda a superfície da tela panorâmica — e ouça isso — apontou para o receptor de telecomunicação montado diante dele que, ligado na freqüência integral, captava a cada segundo as emissões irradiadas por tudo quanto era emissor localizado nesse setor do espaço.

Realmente, a visão oferecida pela tela era fabulosa. As estrelas agrupavam-se tão densamente que em certos pontos pareciam formar paredes luminosas compactas. Em outros lugares, formavam pontos de cruzamento duma rede estreita cuja luminosidade era inconcebível.

Jamais um ser terrano havia visto um céu desses.

O que saía do hipercomunicador era a superposição de pelo menos cem mil palestras conduzidas ao mesmo tempo. Era de supor que a maior parte dessas palestras se realizava num raio de quinze anos-luz em torno da Ganymed, já que é este o alcance para o qual geralmente são regulados os emissores de hipercomunicação. E, se considerarmos que no máximo dez por cento das naves que se encontram em viagem estariam transmitindo ao mesmo tempo, chegaremos à conclusão de que a esfera espacial de trinta anos-luz de diâmetro que tinha a Ganymed por centro devia ter um “conteúdo” de pelo menos um milhão de naves.

Era um número impressionante.

Reginald Bell começou a compreender o que Rhodan queria dizer quando afirmava que, apesar da decadência e do refinamento excessivo, o Império Arcônida era uma coisa tão poderosa e formidável que o espírito humano não conseguiria imaginar.

Mas uma impressão forte como esta sempre irritava Bell. Afastando violentamente a sensação de pequenez e insignificância que começava a surgir em sua mente, formulou uma afirmativa arrojada sobre o verso do rei Salomão que acabara recitar:

— Ao aproximar-se, viu que o outro não passava de latão; recuperou a coragem, e sua vanguarda sozinha derrotou o exército gigantesco da rainha de Sabá.

Voltando-se para o lado, olhou Rhodan com um sorriso mordaz:

— Agora que satisfizemos nossas necessidades mitológicas, o que vamos fazer?

Rhodan apontou para a tela.

— Vamos aguardar a interpretação. Pelos nossos cálculos, saímos da transição a trinta horas-luz do sol de Árcon. O que vemos diante de nós corresponde aos dados constantes dos velhos mapas de Crest. Mas muita coisa mudou neste meio tempo.

Por isso prefiro não assumir nenhum risco; mandarei conferir os mapas. Quem sabe se os arcônidas não construíram outra fortaleza espacial? Poderemos esbarrar com o nariz na mesma, se não nos cuidarmos.

Bell franziu a testa.

— Aliás, já sabemos da existência do chamado anel exterior de fortificações, não é?

— É verdade. Acontece que não fica aqui, mas na órbita planetária mais distante do sistema, ou seja, perto de quinze ou vinte horas-luz da estrela central.

Bell examinou uma série de instrumentos.

— Estamos desenvolvendo a velocidade de 0,2 luz — constatou. — O anel exterior está dentro do raio de alcance de nossos transmissores. Vamos enviar uma mensagem?

Rhodan confirmou com um gesto.

— É claro que vamos. Vamos enviar qualquer mensagem que os faça compreender que nossas intenções são amistosas.

— Muito bem. Tomara que adiante alguma coisa.

A conferência dos mapas não revelou nada de novo. Os arcônidas não haviam acrescentado qualquer estação espacial às já existentes.

Reconheceram parte das cinco mil plataformas equipadas com canhões pesadíssimos, que formavam o anel exterior de fortificações. A Ganymed aproximava-se do círculo a sessenta por cento da velocidade da luz. As antenas da nave expeliam incessantemente sinais codificados e mensagens destinadas aos receptores instalados nessas plataformas.

As plataformas deveriam responder. Ao menos, segundo afirmava Crest, elas o fariam em condições normais. Acontece que não respondiam.

Silenciosas, continuavam a percorrer suas órbitas, e ninguém poderia prever o que fariam se a Ganymed procurasse romper o círculo sem o sinal liberatório do grande emissor, buscando penetrar no coração do Grande Império.

Uma das gigantescas plataformas de guerra foi crescendo lentamente na tela. Na estranha perspectiva do espaço livre, que não permitia a avaliação de distâncias sem instrumentos, parecia que dentro de poucos segundos a mesma se transformava de um pequeno ponto brilhante para um monstro perto do qual a Ganymed não passava dum naviozinho insignificante.

Por uma fração de segundo os olhos viram as aberturas ameaçadoras das torres de radiações.

Subitamente o furacão de fogo irrompeu de todas as peças. Uma parede fulgurante formada por uma massa imensa de energia concentrada precipitou-se sobre a Ganymed. Os geradores do campo protetor uivaram, solicitados ao máximo sob o impacto das forças terríveis, e a nave foi atirada de um lado para outro que nem uma canoa em mar tempestuoso.

O pavor tomou conta das mentes.

As últimas energias que restavam nos propulsores impeliram a nave para a frente. Um repentino golpe de aceleração fez com que os disparos energéticos ininterruptos das torres se perdessem no vácuo por alguns segundos, passando atrás da Ganymed. Quando o dispositivo de pontaria automática percebeu o erro e corrigiu a posição dos canhões de radiação, a nave terrana já se encontrava a mais de duzentos mil quilômetros. Os campos energéticos, que mal e mal resistiram ao primeiro impacto dos tiros disparados a pequena distância, absorviam com a maior facilidade os tiros que agora os perseguiam.

O balanço cessou. Com o campo energético luminoso a Ganymed foi penetrando no estranho sistema deixando para trás o anel mortífero de plataformas.

— Continuaremos em prontidão rigorosa. Devemos contar com novos ataques. Qualquer baixa deve ser avisada imediatamente à sala de comando.

Não houvera nenhuma baixa.

Pálido de susto, Crest estava encolhido na sua poltrona, junto à parede lateral da sala de comando. Rhodan virou-se para ele e exibiu um ligeiro sorriso, para acalmar o arcônida. Crest não retribuiu. O medo estava escrito em seu rosto.

O espaço que se abria diante da Ganymed parecia livre. O poderoso Império concedia uma ligeira pausa de respiração aos invasores.

Rhodan levantou-se, passou pelos postos dos oficiais e dispensou a cada um deles uma palavra animadora e tranqüilizadora. Parou diante de Crest até que este, dominado pelo pavor, notasse sua presença:

— A sala de rádio fica à disposição do senhor e de Thora. O senhor sabe como lidar com os instrumentos. Procure falar com Árcon. Explique àquela gente que não viemos como inimigos.

— Faça o possível para convencê-los. Senão estaremos todos perdidos.

Crest confirmou com um gesto. Parecia muito perturbado. Levantou-se e saiu. Rhodan seguiu-o com os olhos. Depois chamou Thora e pediu-lhe que ajudasse Crest.

Ao que parecia, era Thora que mais precisava de auxílio.

Rhodan reduziu a velocidade da nave depois que a Ganymed deixou para trás os últimos tiros disparados a distância. Seria uma loucura penetrar no sistema a noventa por cento da velocidade da luz.

Era necessário agir com cautela, mesmo que esta consumisse tempo e aumentasse o risco de novo ataque antes que a Ganymed atingisse a órbita de Árcon.

Há vários minutos Thora e Crest procuravam comunicar-se com seu mundo através do hipertransmissor.

Ainda não haviam conseguido nada. Árcon não respondia.

Rhodan começou a suspeitar de alguma coisa. Árcon não respondia! Teria o mundo dos arcônidas sucumbido a alguma catástrofe? Será que uma guerra eliminara a humanidade arcônida?

“É tolice”, disse Rhodan de si para si, espantando seus temores. “Se fosse assim, como se explicariam as frotas gigantescas que fizeram uma limpeza tão radical entre os motuneses?”

E se não fosse tolice?

Era perfeitamente possível que as naves dirigidas por robôs tivessem escapado à destruição, e prosseguissem com a obstinação de máquinas insensíveis na execução das tarefas que lhes haviam sido atribuídas, mesmo que seus senhores já não vivessem.

Será que a Ganymed estava chegando tarde?

Rhodan quis ter certeza. Recorreu ao pequeno programador que encontrou junto à sua mesa para codificar a pergunta:

— As naves de tipo arcônida que a Ganymed enfrentou nas últimas dez horas são unidades dirigidas por robôs?

A pergunta foi transmitida ao centro de cálculos. Rhodan pediu a resposta ao menor prazo possível. Acreditava que o cérebro positrônico levaria ao menos quinze minutos para chegar a um resultado inequívoco.

E nesses quinze minutos...

 

Rhodan foi espantado de suas reflexões pelo estalo do intercomunicador. A voz exaltada do oficial do posto de localização encheu a sala:

— Constatamos uma transição nas imediações. Trata-se de um couraçado da classe da Stardust. Pode ser alcançada pela visão ótica direta.

Uma sombra negra e ameaçadora cobrira parte do tapete de estrelas. No início parecia um pequeno furo, depois uma bola, e por fim um enorme disco redondo, que impedia totalmente a visão da Ganymed para um dos lados.

Rhodan enrijeceu os músculos, como se tivesse que suportar pessoalmente o primeiro impacto. E logo veio o feixe luminoso verde do desintegrador. Atingiu o campo energético da Ganymed pouco acima do leme e produziu uma luminosidade ofuscante nos campos energéticos.

Rhodan desviou a Ganymed. Numa manobra instantânea saiu para o lado, deixando para trás a próxima salva de desintegradores.

Mas a gigantesca nave acompanhou a manobra. Num movimento ágil, que quase parecia uma brincadeira, grudou-se nos calcanhares da Ganymed, aproximou-se a uma distância de vinte quilômetros e bombardeou a nave terrana com uma seqüência ininterrupta de salvas de todos os canhões possíveis.

O uivo infernal dos geradores do campo energético voltou a ser ouvido. A Ganymed voltou a ser sacudida por fortes golpes, já que os neutralizadores antigravitacionais não conseguiam mais absorver os choques provocados pelos impactos. Alguns homens foram arrancados dos assentos e atirados contra as paredes.

Rhodan executou uma manobra após outra. Por vezes, a pressão sobre seu braço era tamanha que movia uma chave sem que o quisesse, imprimindo uma direção nova e totalmente inesperada à Ganymed.

Dessa forma a nave escapou da quarta parte dos disparos. Mas os três quartos restantes bastariam para vencer dentro de poucos minutos a resistência dos campos energéticos.

Finalmente Rhodan tomou uma decisão.

— Todos os postos de combate prontos para disparar. Posto número um: cuidado com a determinação de distâncias.

Os homens respiraram aliviados.

Finalmente! Finalmente estava acontecendo alguma coisa.

Finalmente poderiam mostrar àquele colosso arcônida com quem ele se metera.

— O que era aquilo? Uma nave-gigante?

— Bem, para naves gigantes possuímos armas especiais. Este transmissor, por exemplo, pode arremessar um planeta inteiro...

— O que foi isso? Ordem revogada? Não abriremos fogo?

— Por que será?

Foi porque, no momento mais crítico, a voz desesperada de Thora surgira no intercomunicador. Soava fina face ao barulho que rugia na nave, mas era perfeitamente audível:

— Não atirem, pelo amor de Deus! Revogue a ordem. Conseguimos estabelecer contato com Árcon.

Um último impacto imprimiu um movimento de rotação à Ganymed. As imagens das estrelas desfizeram-se em faixas alongadas.

Rhodan freou o movimento por meio de um ligeiro empuxo contrário, colocou em ordem a imagem na tela e examinou os arredores.

Onde estava o couraçado?

Tinha ido embora. Desaparecera. A massa-estrela do grupo brilhava tranqüilamente em todo esplendor. O colosso não estava mais por perto. A visão abria-se livremente para todos os lados da Ganymed.

— Eu sabia! — resmungou Reginald Bell. — Foi apenas um sonho.

Os homens riram. O riso era um tanto histérico, mas era um riso de alívio.

Para a Ganymed, começou outro período de espera. Rhodan realizou uma ligeira correção de rumo. A série de manobras desviacionistas voltara a aproximar a nave do anel de fortificações.

Na tela, o sol de Árcon brilhava num esplendor fulgurante. Tornou-se necessário cobrir os aparelhos de filtros negros, para que os olhos pudessem suportar aquela visão.

A Ganymed encontrava-se a nove horas-luz da órbita do planeta Árcon. Já deixara para trás a órbita do planeta exterior do sistema.

Embora se encontrasse próxima ao destino, ninguém sabia responder a estas perguntas: o que acontecera em Árcon? Que tipo de influência transformava os arcônidas duma raça decadente e apática em seres sanguinolentos, que atiravam sem aviso contra um visitante que se aproximava?

Thora e Crest haviam realizado uma palestra direta com Árcon, gravando-a em fita. Levaram o pedaço de fita da sala de rádio para a sala de comando, para reproduzi-lo diante de Perry Rhodan.

Rhodan contemplou-os enquanto manipulavam o aparelho de som. Crest parecia tão confuso e apavorado como estivera meia hora antes, ao sair da sala de comando. E as mãos de Thora tremiam. Ligou o aparelho com um gesto furioso, que quase chegou a quebrar a chave.

Rhodan ficou admirado.

Um silêncio profundo reinava na sala de comando no momento em que começaram a soar as vozes gravadas na fita. Graças ao treinamento hipnótico, os oficiais dominavam a língua arcônida como se fosse sua própria.

Crest:

 

— Aqui fala Crest, da família de Zoltral. Sou um membro da expedição Aetron, que partiu de Árcon há onze anos — tempo arcônida — juntamente com Thora, outra sobrevivente da expedição e membro da mesma família. Encontro-me a bordo de uma nave pertencente a uma potência estranha, que quer levar-nos de volta para Árcon. Solicitamos permissão para pousar.

 

“É uma fala bastante cautelosa”, pensou Rhodan. “Se Crest acreditasse que em Árcon as coisas ainda eram como no tempo em que partira, não teria solicitado, mas exigido permissão para pousar.” Os Zoltral eram a família reinante.

A mensagem de Crest foi repetida várias vezes. Depois da segunda repetição a fita reproduziu o rugido da manobra que os desviou do couraçado arcônida. Ouviu-se o uivo dos geradores e, outra vez, a voz de comando de Rhodan vinda pelo intercomunicador que devia permanecer ligado em todas as dependências da nave enquanto durasse o estado de prontidão.

Crest repetiu a mensagem cinco vezes antes que viesse o primeiro sinal de resposta. Pela sua voz notava-se que quase chegara a perder as esperanças.

Uma voz estranha e indiferente falou:

— Árcon para Crest da família Zoltral. O senhor não consta mais das listas de busca. Aguarde uma nave de escolta.

 

Nesse instante, Thora interveio na palestra. Pelo tom de sua voz, as reservas de energia de que dispunha eram muito maiores que as de Crest.

 

— Uma nave de escolta! — chiou furiosa. — O senhor nos mandou uma nave de guerra. Se a mesma não for retirada imediatamente, nosso comandante não terá outra alternativa senão destruí-la.

 

Espantado, Rhodan levantou a cabeça. Seus olhos procuraram os de Thora, mas esta fitava o chão.

A voz indiferente voltou a soar no alto-falante:

 

— É impossível. Ninguém pode destruir um couraçado arcônida.

— Pois espere para ver, seu idiota. — Nesse instante ouviu-se ao fundo a voz de comando de Rhodan, dirigida aos postos de combate. — De qualquer maneira retiraremos o couraçado — prosseguiu a voz estranha. — Não faça nada enquanto a nave de escolta não chegar. Fim.

 

O resto Rhodan já sabia. Thora pedira-lhe que revogasse a ordem de abrir fogo. E o couraçado desapareceu.

Rhodan olhou os arcônidas.

— Não era o que esperavam, não é verdade? — perguntou em arcônida.

Crest não se moveu, mas Thora levantou a cabeça, exaltada.

— Sabe disso tão bem quanto nós — chiou indignada.

Rhodan confirmou com um gesto de cabeça.

— Sei, sim. Mas talvez a falta de respeito pela sua ascendência seja um bom sinal, para toda a raça dos arcônidas. O simples fato de que alguém nos recusa o tratamento de Vossa Alteza ou Vossa Eminência não deve levar ninguém a conclusões sombrias.

Thora fez um gesto de desprezo.

— O senhor diz isso para consolar-nos — disse. — Sabe perfeitamente que um mundo teria que desmoronar antes que um arcônida subalterno recusasse a um membro das famílias reinantes o título que lhe compete.

Rhodan olhou-a pensativo.

— É possível que um mundo tenha desmoronado — disse baixinho.

Provavelmente essas palavras teriam provocado outra discussão, se o oficial de observação, que não sabia nada sobre a palestra com Árcon, não anunciasse com a voz rouca mais uma transição nas imediações da Ganymed.

Bell interrompeu o homem exaltado:

— Acalme-se! — gritou. — A chegada dessa nave estava prevista.

Rhodan afastou os homens das posições de combate. Apenas o posto número 1, que abrigava o transmissor fictício, continuou guarnecido. Rhodan não quis arriscar-se a que nesse momento importante, talvez fosse o mais importante da história da humanidade, um dos homens perdesse os nervos. Porém, devia manter guarnecida ao menos uma das armas, para não ficar inteiramente à mercê da nave estranha.

A gigantesca esfera aproximou-se rapidamente. Rhodan acompanhou a manobra. O piloto arcônida era um mestre na sua arte. Foi se aproximando quase metro por metro, até que entre a linha equatorial de sua nave e o envoltório externo da Ganymed só restou uma abertura de oitocentos metros. Os campos energéticos tocaram-se, iluminando-se nos pontos de contato.

Reginald Bell não conseguiu dominar a impaciência.

— Nunca vi um sujeito tão sem-vergonha — resmungou zangado. — Por que será que chega tão perto de nós?

Rhodan sorriu e deu de ombros.

— Pergunte a ele.

Bell não perdeu tempo. Furioso, bateu na tecla de emissão do tele comunicador, fez a antena girar na direção da nave e expediu o sinal arcônida de emissão.

A tela iluminou-se, fios tremeluzentes começaram a reunir-se num quadro. Bell começou a falar em arcônida antes que visse quem se encontrava diante dele:

— Cruzador espacial Ganymed para a nave de Árcon. Que manobra idiota é... ooooh!

O quadro na tela assumira contornos nítidos. Apavorado, Bell recuou um passo e contemplou-o. Seus olhos semicerrados viram um ser que, pelos instrumentos que se encontravam ao seu lado, devia medir pelo menos três metros de altura. Encontrava-se a boa distância do receptor, por isso foi projetado na tela em todo o tamanho.

Não havia dúvida de que pertencia a uma raça humanóide. Tinha duas pernas da grossura de colunas de templo egípcio e dois braços que pendiam molemente à frente do corpo. A cabeça... bem, era realmente uma cabeça, embora consistisse na figura geométrica exata de uma esfera sem cabelos, tinha na frente três aberturas que serviam de olhos e por baixo delas uma boca larga, cujos lábios pareciam ridículos de tão estreitos. Não possuía nariz. Enquanto Bell ainda estava rígido de pavor, Thora disse com um gemido:

— Meu Deus! São naats! Permitiram que os naats subissem a bordo das naves arcônidas.

No mesmo instante Rhodan lembrou-se da suspeita que lhe ocorrera uma hora antes. Teriam sido os naats, um povo colonial que habitava o quinto planeta do sistema, que desferira o golpe de morte no Império? Será que os naats assumiram o governo, os naats, esses seres simiescos que, sempre que não tinham sob os pés as placas de metal plastificado de uma nave, andavam de quatro, embora fossem dotados de maior grau de inteligência do que seu aspecto dava a entender? Seria por causa dos naats que os sinais codificados deixaram de ser observados?

Reginald Bell recuperou-se do susto.

— Gostaria de saber — voltou a falar — para que serve essa manobra idiota. Isso representa um perigo para as duas naves.

O gigantesco naat observara com uma expressão um tanto estúpida a cena que se apresentava na tela. Respondeu à pergunta de Bell com a indiferença de quem diariamente trava vários diálogos com homens terranos:

— Só assim poderei rebocá-los. Falava o arcônida grosseiro usado em seu mundo natal.

— Rebocar-nos? — esbravejou Bell. — Estamos em condições de mover-nos sem auxílio. Não precisamos de reboque.

— Sabe onde deve pousar? — perguntou o naat.

— Queremos pousar em Árcon, e é o que vamos fazer.

Rhodan fez um sinal para Bell. Este recuou, trêmulo de raiva, cedendo o lugar ao seu comandante.

— Sou Rhodan, comandante da Ganymed — disse este em arcônida. — Quem é o senhor, e quais são suas instruções?

O naat parecia menos indiferente quando viu a figura de Rhodan, mais alta que a de Bell, e ouviu a pergunta lacônica e tranqüila.

— Sou Novaal — respondeu prontamente. — Comando esta nave imperial. Recebi instruções para levar a sua para Naat, colocando-a no espaçoporto de Naatral.

Rhodan lembrou-se do ensino recebido. Naat era um mundo do tamanho de Júpiter, que tinha uma gravitação mortal, é um clima semelhante ao de Marte. Era um mundo de poeira. Os arcônidas admiravam-se de que o mesmo pudera produzir alguma forma de vida e, ainda por cima, de vida inteligente.

— Tenho dois passageiros arcônidas a bordo — objetou Rhodan e colocou-se numa posição tal que Thora e Crest entraram no campo de visão. — Acredito que o senhor terá problemas, Novaal, se não der a estes dois a oportunidade de irem a Árcon pelo caminho mais rápido. Não sei se o nome Zoltral significa alguma coisa para o senhor.

Novaal fez menção de executar um movimento que poderia ser uma mesura. Realmente, a cultura arcônida conhecia um gesto de reverência que muito se assemelhava à mesura terrena.

Mas a voz do Naat continuava indiferente e até um pouco preguiçosa quando respondeu:

— Sinto não poder atender ao seu pedido. Recebi instruções de levá-los para Naat. As autoridades competentes de Árcon estão informadas sobre a presença de dois arcônidas a bordo dessa nave.

— Como fará para levar-nos a Naat?

— Com o raio de tração — respondeu Novaal em tom singelo.

Rhodan refletiu apenas por uma fração de segundo. Depois fez um gesto de concordância.

— Muito bem. Por enquanto não tenho qualquer objeção. Acredito que aquilo que o senhor deve fazer seja necessário. Mas previno-o de uma coisa: se constatarmos que tem alguma intenção má, eu o farei desaparecer juntamente com sua nave.

Não se notou que a ameaça impressionasse Novaal. Este disse:

— De acordo — e a palestra foi interrompida.

Thora nem esperou que Rhodan tivesse tempo de virar-se.

— Por que não exigiu que nos levasse imediatamente para Árcon? Por que teve tanta pressa em concordar com suas exigências? Por que não o ameaçou? Por que...

— Por que faria uma coisa dessas? — interrompeu-a Rhodan laconicamente. — Queria que arriscasse nossas vidas inutilmente?

— Inutilmente? Quero ir para Árcon, não para Naat.

— É o que todos queremos. Acontece que, segundo tudo indica, no momento não desejam nossa presença em Árcon.

— O que é que eu tenho com isso? — continuou a esbravejar Thora. — Afinal, sou uma Khasurn, e nenhum naat preto e ridículo me dirá o que devo fazer. Chame-o e diga-lhe...

Mas o olhar de Rhodan foi tão insistente que a fez perder o ânimo em meio à fala. Fitou o homem alto que tinha diante de si com uma expressão de pavor.

— Por que não quer compreender? — disse baixinho, em tom enfático e. apaziguador. — Treze anos terranos se passaram desde que viu Árcon pela última vez. Não compreende que muita coisa pode acontecer em treze anos? E, em relação a Árcon realmente aconteceu. Não estou interessado em ferir seu orgulho, mas é bem possível que os Zoltral já não gozem do mesmo prestígio que desfrutavam no tempo de sua partida.

Thora baixou os olhos. Por um instante permaneceu rígida. Depois de algum tempo Rhodan fez um gesto para Crest, e este levou a mulher a uma poltrona.

Rhodan voltou ao seu lugar e, em palavras lacônicas, informou a tripulação sobre o que acabara de acontecer. O posto de combate número 1 continuou a ser o único que permaneceu com sua guarnição. Rhodan recomendou o máximo de atenção aos homens.

Ao que parecia, Novaal conseguira aplicar o raio de tração na posição e com a potência adequada. Os instrumentos indicaram um deslocamento a pequena velocidade, sem que o desempenho dos propulsores da Ganymed se tivesse alterado.

Rhodan acompanhou a manobra com a maior atenção. Depois de alguns minutos, convenceu-se de que o grande Novaal era um homem cauteloso. Nada aconteceria à Ganymed aprisionada pelo raio de tração, se continuasse a agir com o mesmo cuidado.

No entanto, Rhodan parecia ser o único que se conformara com a situação. Os oficiais da sala de comando deixavam perceber pelo rosto a contrariedade que lhes causava a tática de apaziguamento de seu comando. O único que poderia arriscar uma palavra era Reginald Bell.

Com um suspiro disse:

— Quem imaginaria uma coisa destas! Sonhávamos com uma marcha triunfal e estamos sendo rebocados que nem um calhambeque.

 

Demorou algumas horas em acelerar as duas naves interligadas, a tal ponto que poderiam contar com a chegada a Naat dentro de mais dez horas.

Thora saíra da sala de comando e se recolhera ao camarote. Crest voltara depois de acalmá-la o suficiente para fazê-lo acreditar que poderia deixá-la só.

Depois da palestra que Rhodan tivera com Novaal, o arcônida parecia mais loquaz e menos abatido que antes. Ao que tudo indicava, a massa de segredos envolvente do planeta de Árcon ultrapassara a medida em que apenas poderia deprimi-lo, passando a despertar seu interesse científico.

— Quer saber de uma coisa? — perguntou, dirigindo-se a Rhodan que, sentado diante da mesa de controle, acompanhava atentamente as indicações dos instrumentos. — Houve um detalhe que me chamou a atenção mais que qualquer outro fato.

Falava em inglês. Rhodan fez uma leitura intermediária, anotou-a apressadamente num papel qualquer e virou-se.

— O que foi?

— Para indicar sua graduação, Novaal usou a palavra “reekha”, que na língua deles significa dirigente. No meu tempo esse título não existia. Quem realmente chefiava uma nave de guerra era um “has’athor”, isto é, um almirante, ou simplesmente o “verc’athor”, que vem a ser o comandante. Um dirigente pode mandar numa estação de terra, mas numa nave...

Crest sacudiu a cabeça.

— O que se conclui daí? — perguntou Rhodan.

Crest abriu as mãos.

— Não tenho certeza. Talvez Novaal, que se chama de dirigente, esteja subordinado a um oficial de patente mais alta que se encontra a bordo do couraçado, e que ainda não apareceu.

Rhodan parecia incrédulo.

— Será que a conclusão é esta? Talvez tenha havido uma mudança de governo em Árcon. Neste caso os novos governantes poderão dar outros nomes às coisas antigas. Crest assustou-se.

— Pelo amor de Deus! Suas suposições já vão tão longe? Uma mudança de governo em...

Foi interrompido. O intercomunicador chamou. Uma voz macabra disse:

— Seção positrônica ao comandante. A resposta à sua pergunta é sim senhor, e isto com uma probabilidade de 89,5 por cento.

Rhodan franziu a testa.

— A resposta à minha... — murmurou pensativo. — Ah, sim! Perguntei se as unidades da frota arcônida eram dirigidas por robôs. Quase que me esqueço. Obrigado.

Interrompeu-se e olhou para Crest.

— O que acha disso? — perguntou. — O cérebro positrônico está convencido de que as naves arcônidas que exterminaram a frota dos motuneses são robôs.

A simples menção da expressão “cérebro positrônico” fez com que Crest aguçasse o ouvido.

— Robôs? — perguntou espantado. — É claro que existem naves robotizadas. Sua construção não é difícil. Acontece que a batalha contra os motuneses foi travada a quarenta e seis anos-luz de Árcon. Para dirigir com segurança uma nave teleguiada a essa distância precisa-se de mecanismos muito mais aperfeiçoados que aqueles que conheço — sacudiu a cabeça. — Acredito que o cérebro positrônico esteja enganado.

Rhodan deu de ombros.

— Afinal, ele deixou uma probabilidade de 10,5 por cento para qualquer outro tipo de explicação — disse com um sorriso significativo.

Levantou-se.

— Vamos fazer um teste — disse com a voz tão alta que todas as pessoas que se encontravam na sala de comando podiam ouvi-lo. — É a respeito da nave imperial que nos está rebocando e de seu comandante.

Rostos estupefatos fitaram-no.

— Qual é a potência do raio de tração? — perguntou Rhodan.

Bell tinha as indicações dos instrumentos diante dos olhos.

— Vinte milhões de megawats.

Rhodan voltou ao seu lugar.

— Por um milésimo de segundo imprimiremos à nossa nave uma aceleração de aproximadamente trinta milhões de megawats em sentido oposto — anunciou. — Queremos conhecer a reação da nave imperial. As reações devem ser registradas com referência ao tempo. Bem entendido: não queremos fugir daquele sujeito.

Sentou e atou os cintos em torno dos ombros.

— X menos cinco minutos — disse em tom áspero.

Ninguém sabia qual era a finalidade daquilo.

O nervosismo tomou conta da sala de comando.

Um período de aceleração de um milésimo de segundo não poderia ser controlado pela mão de Rhodan. Programou o impulso acelerador mais breve possível e introduziu-o no aparelho de pilotagem automática. Depois de decorrido o tempo previsto, fez cumprir a programação.

Na sala de comando reinava um silêncio mortal. Todos os olhares estavam presos no rosto duro, mas tranqüilo de Rhodan.

A experiência não trouxe nenhuma revelação. A única coisa que aconteceu foi que as luzes de controle dos propulsores se iluminaram e se apagaram tão depressa que o olho humano mal conseguia percebê-lo. A pressão causada pela aceleração foi absorvida pelo neutralizador e a distância entre as duas naves continuou inalterada.

Rhodan desatou os cintos.

— Vejamos o que os instrumentos registraram — ordenou com um nervosismo mal disfarçado.

Os grampos dos instrumentos estalaram e folhas de plástico eram rasgadas por mãos fortes, produzindo um ruído arranhento. As folhas cobertas com as linhas coloridas desenhadas pelos instrumentos de registro acumularam-se na mesa de Rhodan.

Rhodan classificou o material.

— Qual é a distância entre as naves? — perguntou enquanto executava o trabalho.

— Mil e trezentos metros de um centro de gravidade a outro.

Rhodan assinalou algumas das folhas, afastando as outras. Crest e Bell estavam de pé atrás dele, olhando por cima de seu ombro.

— Aqui está o impulso de aceleração que emitimos — disse Rhodan, apontando para uma das folhas. — A escala de tempo foi grandemente ampliada. Vinte centímetros correspondem a um milésimo de segundo. Quer dizer que esta faixa de vinte centímetros representa nosso impulso. Vejamos o que fez o raio de tração. Estava funcionando com uma potência de vinte milhões de megawats. Neste ponto, que corresponde a nove microssegundos, ou seja, nove milionésimos de segundo depois de nosso impulso, o desempenho cresce repentinamente para cinqüenta milhões de megawats. Está percebendo alguma coisa? São os vinte milhões de antes, e mais trinta milhões para compensar os trinta milhões de nosso impulso. Aqui o desempenho do raio de tração volta a baixar ao valor antigo; mais uma vez nove microssegundos depois do fim de nosso impulso. Compreenderam?

Reginald Bell não parecia muito impressionado. Enquanto Crest levou apenas um instante para interpretar o resultado da experiência, Bell atirou os lábios para frente e resmungou:

— Compreendi, sim. Mas será que isso tem alguma importância?

Rhodan lançou-lhe um olhar sério e bateu na fita de plástico.

— Nove microssegundos correspondem exatamente ao tempo que um raio de luz gastaria para ir da Ganymed à nave rebocadora e voltar. O tempo que a outra nave gastou para reagir à nossa manobra nem pode ser determinado. Dali se deduz que ao menos a direção técnica da nave arcônida está em mãos dum robô.

Bell respirava com dificuldade e fitou Rhodan com os olhos arregalados.

— Quer dizer que esse... esse monstro é um... — gaguejou.

— Novaal não — retificou Rhodan. — Mas quem realmente manda a bordo da nave de tração é um robô.

Deixou Bell de boca aberta e com um sorriso dirigiu-se a Crest.

— Talvez a esta hora, o senhor já encare a opinião do cérebro positrônico com menos ceticismo. Parece que alguém em Árcon se cansou com seus patrícios decadentes e insolentes e preferiu tripular as naves com robôs e soldados recrutados nas colônias.

Novaal nem parecia ter notado o incidente; ao menos não chamou a Ganymed. Era mais um indício de que a opinião de Rhodan era correta.

Nas dez horas seguintes, o comboio de naves aproximou-se do quinto mundo do sistema de Naat. Na tela de imagem da Ganymed, o planeta foi se transformando de um ponto num disco luminoso, e de um disco num globo amarelo-sujo, no qual as duas naves pareciam precipitar-se.

Rhodan sentia-se dominado por certo nervosismo, que procurou ocultar aos outros, já que o mesmo lhe parecia infantil e super-romântico. Ansiava febrilmente pelo momento em que pela primeira vez pusesse o pé num mundo pertencente ao próprio sistema estelar arcônida.

 

Ali se estendia diante dele, o coração do Grande Império, a organização mais poderosa da história galáctica conservada na memória dos seres inteligentes.

Era verdade que tinha diante de si apenas o quinto planeta, um mundo de poeira habitado por ciclópicos seres simiescos, que poderiam ser tudo, menos verdadeiros arcônidas. Mas Naat distava apenas algumas unidades astronômicas de Árcon, o verdadeiro núcleo do coração do Grande Império.

Rhodan teve a sensação de quem penetra no átrio de um palácio cercado de mistérios. E justamente essa sensação lhe parecia representar um acesso de sentimentalismo e de infantilidade. Por isso preferiu guardá-la para si.

Viu que com seus companheiros não acontecia a mesma coisa. Com a testa enrugada e uma repugnância indisfarçada, contemplava o deserto de poeira que se estendia a seus pés, fustigada por uma tormenta que levantava nuvens de pó vermelho-amarelento.

Mal se distinguiam edifícios. A nave de tração teve que realizar uma manobra antes que os primeiros sinais da presença de seres inteligentes surgissem nas telas da Ganymed.

Viu-se uma cidade, amarela e cinzenta como o resto do planeta. Casas em forma de abóbada, algumas com excrescências em forma de torre na cumiada. Outras sem, enfileiravam-se em linha reta, abrindo alas para ruas. Eram sinais de uma civilização que crescera depressa demais.

Um imenso campo de pouso cercado pelos edifícios que costumam abrigar as instalações técnicas específicas da Astronáutica estendia-se além dos limites da cidade.

Do outro lado parecia haver áreas verdes, das quais só se via uma ponta. As cores vivas de um parque, não afetadas pelo pó e pela tormenta, brilharam nas telas. Rhodan acreditava que era lá que viviam os arcônidas incumbidos de representar o poderio do Império no Planeta Naat.

Novaal, ou melhor, o robô que o mesmo trazia a bordo, manobrou com segurança, colocando a Ganymed no campo de pouso. Os aparelhos ultra-sensíveis da nave não registraram a menor irregularidade quando o imenso torpedo apoiou as enormes pernas-coluna de popa firmemente no solo do planeta, mantendo o artefato na vertical.

Os neutralizadores venceram facilmente a terrível gravitação do planeta. Em todos os compartimentos da nave, os objetos tinham o mesmo peso da superfície da Terra.

A imensa nave de tração de Novaal permaneceu imóvel por algum tempo. De repente afastou-se e foi pousar a vários quilômetros da Ganymed.

Rhodan tirou os olhos da tela.

— Chegamos! — disse em tom resignado.

Algumas horas passaram-se sem que acontecesse qualquer coisa. No início Rhodan permanecera ininterruptamente diante da tela panorâmica, esperando que alguém se interessasse pela nave estranha. Os aparelhos de telecomunicação e hipercomunicação foram mantidos constantemente em recepção.

Mas ninguém apareceu. O tele comunicador permaneceu em silêncio, com exceção de algumas palestras distantes, que não tinham nada que ver com a Ganymed.

Depois de algum tempo, Rhodan colocou sentinelas regulares diante das telas e dos receptores e foi dormir. Antes instruiu seu representante a acordá-lo sem falta assim que houvesse alguma novidade.

Rhodan não dormiu muito bem, mas ninguém o perturbou. Dali a seis horas, quando se levantou, encontrou tudo conforme havia deixado. As telas continuavam apagadas e os receptores mudos. Ao que tudo indicava, a pessoa, que havia colocado a Ganymed no campo espacial praticamente deserto, se esquecera da mesma.

O fato apenas provocou uma ligeira impaciência em Rhodan. Mas havia a bordo da nave terrana uma pessoa que de forma alguma concordava com a situação atual. Ela levara horas procurando um responsável diante do qual pudesse lamentar-se.

Era Thora. Quando encontrou Rhodan, estava quase chorando.

— Por que não faz nada? — disse com os olhos suplicantes, engolindo em seco.

— O que podemos fazer? — perguntou Rhodan em tom delicado.

— Decolar, irradiar uma mensagem, disparar um tiro de advertência... sei lá.

Rhodan virou-se. Seu assento de piloto estava ocupado pelo coronel Freyt, comandante da Ganymed.

— Procure entrar em contato com a nave de tração através do tele comunicador — pediu.

Freyt regulou a antena direcional e emitiu um chamado em freqüência integral. O chamado teve de ser repetido cinco vezes antes que a nave respondesse.

O rosto de Novaal surgiu na tela.

Freyt levantou-se, cedendo o lugar a Rhodan.

— Por que ninguém se interessa por nós? — perguntou Rhodan.

— Não sei — respondeu Novaal. — Acha que alguém devia interessar-se pelos senhores?

A pergunta provocou risos em Rhodan.

— É claro que sim. Quero saber por que estou parado aqui e quanto tempo durará isso.

— O senhor está parado aqui porque a administração arcônida assim ordenou — disse Novaal.

— Isso não é nenhum motivo — retrucou Rhodan em tom áspero. — Ao menos para mim não é.

— Pois chame Sergh! — recomendou Novaal.

— Quem é Sergh?

— O administrador de Naat, um arcônida.

— Será que atende pela freqüência integral?

— Se não atender, o azar é seu. Não conheço sua freqüência oficial.

— Muito bem — murmurou Rhodan. — Obrigado.

Terminou a palestra e voltou-se para Thora.

— Conhece alguém cujo nome seja Sergh?

Thora sacudiu a cabeça. Rhodan modificou a posição da antena direcional. Orientou-a aproximadamente na direção da mancha verde que descobrira pouco antes do pouso junto ao campo espacial e ampliou a potência de saída, para não assumir qualquer risco quanto à recepção. Finalmente falou ao microfone:

— O comandante da nave Ganymed deseja falar com o administrador Sergh.

Repetiu o chamado a intervalos regulares.

Depois de tê-lo feito trinta vezes sem que o destinatário se dignasse sequer a dar um pio, gritou furioso:

— O comandante da nave Ganymed deseja falar com o administrador Sergh. Se esse idiota não responder imediatamente, a Ganymed preferirá abandonar este planeta para não esperar pelos arcônidas, que são uns chatos.

 

Ao que tudo indicava, o administrador estava muito ocupado, pois nem mesmo a pesada ofensa que acabara de lhe ser atirada conseguiu arrancar-lhe qualquer resposta.

Rhodan desligou o tele comunicador e virou-se para seus oficiais.

— Prepare a decolagem, Freyt. Informe a tripulação. Introduzirei o programa.

A nave adquiriu vida. Os tripulantes correram para seus lugares. Dali a dez minutos a Ganymed estava pronta para decolar, e naquele mesmo instante o programa de decolagem de Rhodan estava pronto.

A tentativa infrutífera de entrar em contato com o administrador e o tratamento insolente dispensado à Ganymed, que teve que esperar horas a fio num campo em que nem pretendia pousar, provocaram a ira de Rhodan. Naquele momento agia por impulso, sem preocupar-se com as conseqüências da tentativa de decolar, ao que tudo indicava contra a vontade dos arcônidas.

Os canhões estavam guarnecidos. Enquanto o porto espacial continuasse vazio como estava, a Ganymed teria boas chances de deixar para trás o planeta inóspito.

— Atenção! Decolar! — gritou Rhodan.

Luzes de controle acenderam-se. O zumbido dos reatores foi ouvido em todos os cantos da nave. Um instrumento de alarma começou a apitar. Rhodan aumentou o suprimento de energia dos propulsores. Outro instrumento de alarma fez-se ouvir. O ruído dos reatores modificou-se, crescendo num chiado agudo e furioso, cessou por uma fração de segundo e retornou sob a forma dum uivado quando Rhodan regulou o mecanismo para a potência máxima.

Rhodan deixou os reatores em funcionamento por um minuto. Por um minuto uivaram e rugiram, como se tivessem que movimentar um mundo.

A Ganymed não saiu do lugar.

Com uma pancada furiosa Rhodan colocou as chaves de controle na posição zero.

— Terminou! — disse com um grito. — Não haverá nenhuma decolagem. Quero os dados sobre o campo de sucção que nos reteve.

O oficial do plantão de decolagem respondeu prontamente:

— Potência variável. A cada momento excede em cinqüenta por cento a força de empuxo dos nossos propulsores.

Rhodan deixou a cabeça pender para a frente.

“Que idiota que eu sou”, pensou desanimado. “Os arcônidas não o trouxeram para cá na intenção de deixá-lo ir embora dentro de poucas horas. Como pôde acreditar que não dispunham de nenhum meio de segurá-lo? Seguram você e toda a nave”.

Levantou a cabeça e fitou a tela. O campo de pouso estendido em torno da Ganymed era plano e não apresentava quaisquer contornos nítidos. Todavia, devia haver no subsolo do campo uma série de poderosos aparelhos capazes de produzir e projetar campos de sucção de potência inconcebível.

E agora?

Devia usar as armas? Bombardear o campo de pouso até destruir os projetores?

Não, nada disso. Ainda havia outros recursos.

O desânimo de Rhodan cedeu na medida em que um novo plano surgiu em sua mente e assumiu contornos definidos.

A noite desceu sobre Naat.

Anunciou sua chegada por meio de uma furiosa tempestade com ventos até quatrocentos quilômetros por hora, que uivavam terrivelmente nos microfones externos da nave. A tempestade foi acompanhada de quedas de temperatura até oitenta graus centígrados abaixo de zero.

A escuridão da noite só foi completa por causa da nuvem impenetrável de poeira que a tempestade tangia como se fossem densas nuvens de neblina. Segundo acreditava Rhodan, em outras circunstâncias as noites naquela área da Galáxia seriam luminosas, como uma noite de verão da Suécia, face à enorme profusão de estrelas.

O projeto de Rhodan fora cuidadosamente preparado. Crest e Thora o haviam informado objetivamente sobre a disposição geral da cidade de Naat e as características da área coberta de parques em que viviam os raros arcônidas encontráveis no planeta.

O coronel Freyt foi informado sobre a missão que lhe cabia. Sabia que por algumas horas, talvez mesmo por alguns dias, teria que carregar todo o peso da responsabilidade pelo bem-estar dos ocupantes da nave. Além disso, era responsável pelas três pessoas que se dispunham a deixar a nave.

Eram Perry Rhodan, Reginald Bell e Tako Kakuta.

Rhodan não quis que essa caminhada fosse executada por outra pessoa: apenas ele mesmo e aqueles que lhe eram mais chegados. Era a caminhada que o levaria a Sergh, o administrador arcônida.

O plano de Rhodan provocara discussões violentas. Thora e Crest foram de opinião de que sua execução representaria um perigo de vida. Ao que tudo indicava para os arcônidas, a Ganymed e seus ocupantes eram prisioneiros. Teriam algumas objeções, os prisioneiros resolvessem agir por conta própria, mesmo que fosse apenas para fazer uma visita ao carcereiro.

Era esta a opinião dos dois arcônidas. Rhodan reconheceu que provavelmente estavam com a razão, mas explicou que assim mesmo pretendia empreender a caminhada. E, em Reginald Bell, encontrou uma pessoa que apoiou seu plano em cheio.

Tako Kakuta, o japonesinho de rosto infantil, concordara com um sorriso de confiança e não participara mais das discussões.

Três horas após o escurecer Rhodan e seus companheiros estavam prontos para partir. Usavam trajes transportadores arcônidas, verdadeiros milagres técnicos que envolviam seu portador, como uma vestimenta. Traziam um potente microrreator que gerava um campo gravitacional próprio, um campo de deflexão que desviava os raios luminosos e um campo protetor que absorvia os impactos de projéteis e armas de radiação.

Saíram pela comporta de popa. Por motivos facilmente compreensíveis, preferiram não abrir a larga escada de enrolar para chegar ao solo pelo caminho mais confortável. Confiaram seu peso, que a força gravitacional do planeta aumentara pelo fator 2.8, aos campos gravitacionais artificiais de seus trajes.

A capacidade dos neutralizadores era limitada. Os trajes eram capazes de neutralizar uma gravitação que chegava a 3 G. A solicitação energética que o planeta Naat representaria para os micro geradores representava o máximo de que eram capazes.

Rhodan calculara isso. Teriam que desistir da forma de locomoção confortável e segura que era o vôo, ainda mais que, sempre que havia sobrecarga de um dos campos, o mesmo recorria às reservas energéticas do outro. Se, por exemplo, os tiros absorvidos pelo campo defensivo excediam a medida de sua própria capacidade, o mesmo recorria à energia destinada ao campo de deflexão e ao de gravitação artificial. Uma pessoa, que fosse alvejada enquanto estivesse voando, poderia cair subitamente ou tornar-se visível.

Mas houve uma coisa enfatizada por Rhodan com mais força que a ordem de percorrer a pé os trinta quilômetros que separavam a Ganymed da sede da administração:

— Até agora estávamos acostumados a lidar com seres que consideravam nossos trajes transportadores uma arma milagrosa. Nenhum dos inimigos com que nos defrontamos conhecia coisa igual, com exceção dos saltadores.

“Acontece que são aparelhos arcônidas, e é com os arcônidas que estamos lidando. Para eles, os trajes transportadores de sua própria fabricação não representam nenhum milagre. Não acreditem que a invisibilidade ou o campo defensivo os livrará de todo e qualquer perigo.”

Por isso mesmo, Rhodan acreditava que o primeiro momento crítico de sua carreira poderia surgir no instante em que o grupo se afastasse da Ganymed, penetrando no campo de visão dos arcônidas.

Afastaram-se uns trinta metros da nave, segurando as armas na curva do cotovelo, prontas para disparar, e esperaram.

Os microfones externos dos capacetes registraram o uivo da tempestade e o crepitar do pó. O ruído deixou-os nervoso, pois sufocava qualquer outro. Mas Rhodan mandou que ficassem parados durante dez minutos, para acostumarem-se ao mesmo.

Nada aconteceu nesses dez minutos. Ninguém os havia observado, ou então não julgavam necessário barrar-lhes o caminho.

Em algum lugar o trajeto seria barrado. Rhodan não tinha a menor dúvida.

Rhodan comunicou a Freyt:

— Fase B.

Era o código convencional. A fase A estaria concluída no momento em que se constatasse que nada se opunha ao início da marcha do grupo. O código e a ordem generalizada de exprimir-se com o maior laconismo inspirava-se numa reflexão. Os arcônidas, e também os naats, poderiam captar as mensagens de telecomunicação, desde que descobrissem a freqüência em que funcionavam os aparelhos terrenos. Mas não conheciam a língua usada por Rhodan, e mesmo os instrumentos mais eficientes só seriam capazes de reconstituir a língua inglesa com base nos fragmentos captados quando dispusessem dum volume suficiente de dados léxicos. Isso seria impedido através da linguagem codificada e da redução das mensagens ao mínimo.

Tudo isso não atingia as comunicações entre os três homens arrojados. As mesmas eram realizadas por meio de emissores e receptores eletromagnéticos convencionais, que ficariam regulados para um alcance mínimo, a não ser que surgisse uma situação toda especial.

Rhodan conduziu o grupo através do amplo campo de pouso. Para orientar sua conduta, dispunha apenas dos dados armazenados em sua memória durante o treinamento hipnótico, segundo os quais os arcônidas, que exercem funções administrativas em mundos coloniais, costumam levar a vida bastante despreocupados. Viviam segregados da população nativa, dentro de parques artificiais dotados de todos os requisitos imagináveis. Em meio a essas áreas verdes, erguiam-se as criações da arquitetura arcônida.

Rhodan sabia que na periferia dos parques havia um sistema eletrônico de vigilância que registrava a penetração de qualquer pessoa numa aparelhagem central. Seria necessário enganar ou contornar esse sistema de vigilância. Na opinião de Rhodan, isso não seria muito difícil.

O que mais o preocupava eram as instalações de segurança das casas. Se é que pudesse chamar de casas essas construções que de fora se pareciam com um funil equilibrado sobre a ponta. Era de imaginar que o dispositivo de segurança da casa ocupada pelo administrador devia ser de uma eficiência extraordinária. Provavelmente só Tako Kakuta, o teleportador, conseguiria penetrar na mesma sem enfrentar qualquer obstáculo. Justamente por isso, Rhodan resolvera levá-lo.

Depois de duas horas e meia de marcha, Rhodan examinou o terreno pelo dispositivo de pontaria infravermelho de sua arma. Era o único aparelho de busca que haviam levado pois, de outra forma, sua mobilidade ficaria prejudicada. Viu as construções redondas e achatadas que assinalavam a periferia do campo de pouso e atrás delas a muralha robusta de árvores e arbustos que limitava a zona residencial dos arcônidas.

As construções, ao que tudo indicava, não estavam sendo vigiadas, e não havia ninguém no interior delas. Reforçavam a impressão imposta a qualquer pessoa que visse o campo de pouso: o tempo em que o enorme porto espacial fora construído para preencher as grandes finalidades já pertencia ao passado.

O grupo passou entre duas das construções redondas sem encontrar o menor obstáculo e deteve-se a uns trinta metros do parque.

— Fase B, segunda parte — disse Rhodan.

A título de resposta, o coronel Freyt transmitiu o sinal convencionado: três apitos, dois longos e um breve.

Rhodan dirigiu-se ao japonês.

— Tako, está na sua hora.

— Sim senhor.

A vegetação alta e robusta quebrava a força da tempestade. Rhodan viu que o japonês fitava a folhagem como se procurasse alguma coisa. De repente seu corpo dissolveu-se no nada.

Tako “saltara”. O dom parapsicológico da teleportação permitira-lhe ultrapassar sem qualquer problema o limite do sistema de vigilância arcônida. Se não tivesse acontecido algum imprevisto, a essa hora devia encontrar-se no interior do parque.

Rhodan esperou três minutos. No fim desse prazo, Tako Kakuta comunicou-se através do rádio de capacete, por meio dum pigarro quase imperceptível. Rhodan enviou nova mensagem ao coronel Freyt:

— Fase C imediatamente.

O japonês caminhou a passos largos do lugar em que fora parar depois do salto até o local que Rhodan e Bell o aguardavam. Vinte minutos depois de ter aparecido surgiu entre a folhagem. Rhodan foi ao seu encontro, até chegar perto da linha em que costumava funcionar o sistema de vigilância.

Tako Kakuta aproximou-se dele e, no momento em que quase chegou a tocá-lo, executou outro salto. Rhodan deu um passo rápido, cruzando a linha crítica. Tinha certeza de que o sistema de vigilância, que continuaria a registrar a presença de uma única pessoa no seu campo de atividade, não suspeitaria de nada.

O japonês, que saiu do interior do parque, evidentemente não representava nada de anormal para a vigilância. O instrumento registrou sua presença quando se aproximou do limite, mas não expediu qualquer aviso. E agora que Tako executou outro salto para o interior do parque, não saberia distinguir entre Rhodan e o japonês. Rhodan desejava que o instrumento não se preocuparia pelo fato de que uma pessoa que se deu ao trabalho de atravessar metade do parque para chegar ao limite da zona crítica subitamente teria mudado de idéia, voltando ao cruzar a mesma.

Uma vez que ainda seria necessário proporcionar a Bell a oportunidade de penetrar na área do parque, Rhodan esforçou-se para deixar o limite para trás o mais depressa possível. Caminhou cerca de um quilômetro em linha reta, em sentido perpendicular ao limite do parque. Tinha certeza de que os sensores do sistema de vigilância não chegavam até lá.

Enquanto isso, Tako Kakuta voltou a pôr-se a caminho da fronteira. Vindo de uma área que o sistema de vigilância não poderia considerar crítico, repetiu a manobra, desaparecendo no mesmo instante em que Reginald Bell transpôs a linha fronteiriça.

Para o sistema de vigilância tudo continuava como antes: era um único homem que se encontrava no interior de seu campo de atividade.

Reginald Bell seguiu a pista de Rhodan, que se desenhava nitidamente em meio ao capim. Por algum tempo sentiu-se perturbado por alguma coisa: era um ruído cuja origem não conseguia identificar.

Levou algum tempo para descobrir que não era nenhum ruído, mas a ausência dum ruído. A tempestade acabara.

Bell não acreditava que realmente tivesse acabado. Os arcônidas deviam possuir alguma instalação que isolava suas áreas residenciais das condições climáticas adversas do planeta em que se haviam instalado.

Bell sentiu certa admiração pela habilidade dos arcônidas em satisfazer suas exigências de conforto pessoal até o extremo limite.

Levou quinze minutos para encontrar Rhodan. Estava sentado na grama, ao pé de uma árvore gigantesca e estranha, olhando através do dispositivo de pontaria ótica de sua arma. Por pouco, Bell não tropeça por cima dele. Os arcônidas não haviam feito nada para afastar a escuridão reinante no parque.

— Que quadro fantástico! — murmurou Rhodan.

Bell olhou para trás. Tako ainda não havia chegado. Deitou no solo, colocou o pesado desintegrador automático na posição mais cômoda que as circunstâncias permitiam e ligou o dispositivo ótico infravermelho.

O quadro que se lhe ofereceu não retratava as cores genuínas. O raio refletido desenhava-se num branco ofuscante enquanto o resto do campo permanecia negro. Com isso, a visão tornou-se ainda mais estranha.

Bell não ignorava o que se ofereceria à sua vista, pois possuía o saber arcônida. Sabia que as casas dos arcônidas eram construídas sob a forma de enormes funis, porque sua arquitetura, fortemente impregnada de psicologia, considerava esse formato como aquele que proporcionava ao morador o máximo de individualidade e privacidade.

Mas saber uma coisa e vê-la, são duas coisas completamente diferentes. Bell conteve a respiração diante da visão fabulosa e fantástica. Viu, desenhadas num branco-pálido e brilhante, os contornos estranhos das árvores e dos arbustos que cresciam num chão coberto de grama. De espaço a espaço, como que espalhadas ao acaso, as construções afuniladas banhavam-se em luz. O tamanho das mesmas variava como o das pedras espalhadas pela areia. Havia casas pequenas, em forma de pavilhão que ofereciam um quadro gracioso, semi-ocultas pelas árvores. Eram funis residenciais que deviam ter de dez a trinta metros de altura, e edifícios gigantescos cujo ponto mais alto devia distar mais de cem metros do solo.

Apoiados sobre cabos relativamente finos, às vezes bastante compridos, os funis eram verdadeiros milagres da estática e resistência de materiais. E constituíam mais uma indicação de que a civilização arcônida passara, especialmente no terreno privado, a não se conformar com aquilo que a tecnologia oferecia, preferindo moldar esta por seus próprios desejos.

De repente o japonês surgiu diante de Rhodan e Bell.

— Está pronto? — perguntou Rhodan.

— Sim senhor — respondeu Tako. — Examinei a maior parte dos edifícios de perto. Se, conforme supomos, Sergh ocupa o maior deles, devemos seguir pela direita.

— Qual é a distância?

— Cerca de seis quilômetros.

— Que maldição! — praguejou Bell. — Andar seis quilômetros na bandeja do diabo!

— Façamos votos de que os arcônidas estejam dormindo — tranqüilizou-o Rhodan. — O sistema de vigilância não reagiu, e assim estão despreocupados. A situação só se tornará crítica quando penetrarmos na casa de Sergh.

 

No palácio de Sergh, se é que podia ser chamado assim, era capaz de provocar um acesso de agorafobia numa pessoa que se mantivesse nas proximidades do cabo do funil e levantasse os olhos, contemplando as paredes inclinadas para fora.

Era o único edifício cujas paredes brilhavam sob uma luz opalescente, que já a uma distância de três quilômetros indicara o caminho ao grupo. O funil de Sergh era um dos poucos de cujas paredes inclinadas saíam, de parte em parte, vias descaídas apoiadas sobre a coluna que, atravessando o parque, levavam a outros edifícios ou à cidade de Naatral.

Pelos cálculos de Rhodan, o funil devia ter cerca de cento e oitenta metros de altura. Por certo, não abrigava apenas a residência de Sergh, mas algumas repartições importantes da administração.

A marcha de Rhodan correu sem incidentes. Vez por outra os microfones externos dos capacetes transmitiram ruídos que, segundo parecia, provinham de veículos arcônidas. Mas os intrusos não chegaram a ver nenhum desses veículos, muito menos se encontraram com qualquer arcônida.

Da Ganymed não veio nenhuma novidade.

Além das vias elevadas que ligavam o funil de Sergh com o mundo exterior, o mesmo ainda possuía a entrada usual nesse tipo de arquitetura, situada no cabo do funil. Era um portal largo, cuja soleira ficava a dois metros acima do solo.

Provavelmente teria que ser atingido por meio da fita transportadora dobrável.

Por um instante, Rhodan brincou com a idéia de se aproximar do portal até que o aviso automático reagisse, e esperar que o dono da casa fosse bastante ingênuo para descer a fita e abrir a porta.

Mas logo abandonou a idéia.

“Nada de brincadeiras”, pensou.

Encontravam-se a trinta metros da parede externa do cabo. Rhodan sabia que o aviso automático só reagiria quando o visitante se aproximasse a uma distância de doze metros.

Durante quinze minutos mantiveram-se em silêncio, observando a gigantesca construção. Mas não havia nenhum indício que pudesse revelar se os homens, que se encontravam no interior do prédio, estavam acordados ou não. As paredes do funil afastavam o mundo exterior e faziam com que nada do que acontecesse no seu interior pudesse ser percebido do lado de fora.

— O que estamos esperando? — perguntou Bell impaciente. — Não temos tempo a perder.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Tako!

— Estou pronto.

— Preste atenção, Tako. Dar-lhe-ei mais uma vez um resumo das indicações mais importantes. O funil é oco. As paredes internas são dispostas em forma de terraço. Nos terraços inferiores, geralmente há jardins. Acima deles ficam as peças usadas para residência e escritório. Algumas se abrem para o lado de dentro, outras são isoladas por meio de paredes. Não entre ali com a idéia de que verá uma residência de feitio terreno. O funil forma um mundo por si. Por dentro, provavelmente parece maior que de fora. O mais importante de tudo: só faça uso de sua arma quando sua vida estiver em jogo e o senhor não puder colocar-se em segurança por meio de um salto. Entendido?

— Entendido.

— Muito bem. Aguardo seu regresso dentro de quinze minutos, para apresentar o primeiro relatório.

— Sim senhor.

Quando a última sílaba ainda soava nos ouvidos dos companheiros, Tako já havia desaparecido.

A primeira impressão que se apossou de Tako Kakuta no interior do funil foi a de que uma força turbulenta o impelia para cima. Isto o fez bater, com um ruído surdo, contra um dos pavimentos de terraço presos à parede.

Um tanto confuso, deu-se conta de que os arcônidas haviam providenciado para que a gravitação no interior de suas residências correspondesse à de Árcon. Portanto, equivalia aproximadamente à da Terra. Acontece que o traje transportador estava regulado para a gravitação de 2,8 g, reinante do lado de fora.

Corrigiu o erro e desceu suavemente sobre um canteiro de flores macio.

Rastejou para trás de um arbusto e examinou os arredores.

O interior do funil estava profusamente iluminado. Tako aterrizara no pavimento inferior, isto é, no lugar em que terminava o cabo do funil. O primeiro pavimento formava, por assim dizer, a base dos pavimentos em forma de terraço situados mais acima. Era circular e tinha o diâmetro do cabo do funil, fechando-o como se fosse uma tampa.

O círculo de aproximadamente trinta metros de diâmetro era ocupado por um jardim. Tako abriu o capacete, para completar as impressões que estava recebendo. Sentiu-se atordoado por uma miríade de perfumes diferentes, que o faziam prender a respiração, provocando ânsias de espirrar.

Estreitas veredas cortavam a profusão de flores, árvores e arbustos. Tako ouviu o ruído de água. Provavelmente haviam construído um riacho artificial.

Depois de se ter saciado nas belezas do jardim, Tako dirigiu o olhar para cima. Imponentes e graciosas, as paredes do funil abriam-se; atingiam uma altura em que os olhos mal podiam segui-las face à iluminação sempre igual, perdendo-se na periferia de um círculo negro.

Era o céu! O céu noturno de Naat. De certa forma, o japonês sentiu-se tranqüilizado ao notar que mesmo em meio a esse esplendor artificial não estava totalmente isolado do ambiente natural. A visão do céu, mesmo reduzido a uma mancha negra, espantou parte da depressão que Tako sentira no início.

Examinou cuidadosamente a disposição dos terraços. Pelos seus cálculos, a altura de cada um deles devia ser de quatro ou cinco metros. Dessa forma o funil estaria dividido em quarenta ou cinqüenta terraços superpostos.

O aspecto dos diversos pavimentos era extremamente variável. Nichos abertos alternavam numa seqüência variável com paredes de vidro ou janelas. Vez por outra, havia plataformas que sobressaíam da estrutura dos terraços. Eram lugares destinados à apreciação do panorama ou ao pouso de veículos aéreos.

O parque em que Tako pousara também cobria os três pavimentos seguintes, em parte sob a forma de jardins suspensos, fazendo com que os contornos dos terraços ficassem ocultos pela vegetação profusa que descia dos mesmos. Em alguns lugares, estranhas construções de plástico sobressaíam entre o verde. Tako não teve a menor dúvida de que se tratava de pedaços de pontes pendurados em meio ao verde, para que os arcônidas tivessem oportunidade de passear ao ar livre.

Procurou descobrir escadas ou corredores verticais que ligassem os terraços, mas não encontrou nada. Provavelmente teriam sido instalados nos fundos das salas, junto à parede externa do funil, portanto não podiam ser vistos do lugar em que Tako se encontrava.

O japonês olhou o relógio. Gastara pouco menos de dez minutos para orientar-se. Já sabia como era o interior do funil, ao menos em suas linhas gerais. Mas ainda não havia visto nenhum arcônida.

Estariam todos dormindo?

Tako arriscou mais um salto reduzido, que o deixou no corredor circular do quinto terraço, contado de baixo. O parque e os jardins suspensos ficaram sob ele. Lá de cima viu o riacho e o pequeno lago cuja água provocava o ruído escutado lá embaixo.

Encontrava-se num trecho do corredor aberto para o interior do funil, onde apenas estava protegido por um corrimão, talvez de um metro de altura. À direita e à esquerda abriam-se paredes altas, que se ligavam ao terraço imediatamente superior. E o corredor aberto estava separado das peças contíguas por meio de portas.

Tako voltou-se para a direita e ficou satisfeito ao notar que a porta, que tinha diante de si, se abriu quando se encontrava a três passos da mesma, conforme era usual entre os arcônidas.

A sala que ficava atrás da porta estava iluminada. Junto à parede havia algumas mesas, e as chaves e escalas nelas existentes indicavam que se tratava de emissores de telecomunicação. Algumas poltronas articuladas de modelo arcônida pareciam perdidas no meio da sala. A parede oposta estava coberta por várias telas. Ainda junto da parede oposta às janelas, havia uma abertura circular no teto. Tako caminhou rapidamente em direção à parede, colocou-se embaixo da abertura e, conforme esperava, sentiu imediatamente a tração suave do campo de antigravidade. Bastaria que se empurrasse ligeiramente para que o campo o conduzisse rápida e seguramente ao pavimento superior. Era um elevador antigravitacional, do mesmo modelo usado nas naves espaciais terranas.

Um olhar para o relógio o fez perceber que estava na hora de voltar. Quatorze minutos já se haviam passado desde o momento em que deixara Rhodan e Bell.

Fechando os olhos, memorizou o lugar em que os dois o aguardavam.

Saltou.

 

Sergh de Teffron, da estirpe dos Hugral, radicado em Naat pela decisão sábia do Imperador, geralmente não fazia a menor idéia de qual era a fase do dia fora das paredes de seu funil. Como arcônida e, mais que isso, membro de uma família muito conceituada, teria uma impressão de ridículo ou de repugnância, conforme sua disposição momentânea, se alguém manifestasse a idéia de que ele, Sergh, deveria regular seu dia segundo a divisão arbitrária entre as horas de luz e escuridão, criada pela natureza.

Sergh orientava-se pelos seus desejos e necessidades. Não tinha a menor idéia da situação vantajosa que ocupava em comparação com os naats, e mesmo em comparação com muitos arcônidas que ocupavam posições inferiores. Era detentor de um cargo cujas atribuições eram exercidas por uma série de máquinas muito eficientes e um grande contingente de subordinados. Morava num funil que mesmo em Árcon raras vezes encontrava um igual. E isso, não apenas quanto ao tamanho, mas também quanto às instalações da máquina de morar. Quanto ao cargo que ocupava, nada tinha que fazer senão estar presente. De resto, gastava o tempo seguindo suas inclinações.

Aliás, o verbo seguir pode levar a erro. Seria preferível se disséssemos que as esperava deitado. A ocupação principal dos arcônidas daqueles tempos, que era o jogo simultâneo, era exercida nessa posição. Não havia outra postura que melhor correspondesse à decadência e à apatia daqueles seres.

Contudo, Sergh costumava passar algumas horas do dia nos jardins maravilhosos dos pavimentos inferiores. Deitado na grama ou balançando-se na parte suspensa, costumava conversar com um dos seus subordinados ou com algum hóspede.

Foi o que aconteceu naquele dia. Desta vez o parceiro escolhido fora Ghorn, seu jovem representante. Este não se sentiu nada feliz em ter que abandonar a cômoda posição de repouso e ver-se obrigado a afastar-se da tela fictícia, onde surgiram as figuras geométricas abstratas criadas por seus pensamentos. Figuras que deslizavam, dançavam, e iam-se colorindo de acordo com as regras do jogo simultâneo. Mas Sergh era o único homem que realmente mandava naquele palácio, e apesar de toda apatia de Ghorn, este não se atreveria a deixar de cumprir qualquer de seus desejos.

Foram descendo juntos por uma série de poços antigravitacionais, até atingir o pavimento inferior. Deitaram na beira da lagoa em que desembocava o riacho. Sergh perguntou:

— Por que será que no jogo simultâneo é fácil produzir uma figura azul de treze faces, mas nunca uma figura vermelha desse tipo?

Ghorn respirou aliviado. Receava que o tema fosse mais enfadonho.

— Naturalmente não sei, Senhor — respondeu prontamente. — Mas suponho que nosso cérebro não é capaz de formular o pensamento correspondente. Uma figura vermelha de treze faces corresponde a uma configuração de pensamento que se torna impossível num cérebro arcônida.

Sergh entusiasmou-se.

— Interessante, muito interessante — exclamou. — Sou praticamente da mesma opinião. Estou convicto — ergueu-se alguns centímetros sobre os braços e olhou para um canteiro coberto de flores fareh de caule longo — de que poderíamos ganhar uma série de aspectos novos, se pudéssemos convencer certas inteligências estranhas a participar dum jogo simultâneo. Ou então — voltou a erguer-se — devíamos obrigar seres estranhos a colocar-se à nossa disposição para os jogos simultâneos. Os naats, por exemplo...

Seguiu suas idéias. Depois de deixar passar o tempo exigido pelo respeito, Ghorn observou:

— Também se poderia cogitar da possibilidade de condicionar seres não inteligentes de tal forma que seus impulsos cerebrais primitivos possam ser captados pelo simulador.

No seu íntimo, Sergh felicitou-se pela habilidade que demonstrara em escolher Ghorn como companheiro. Sem dúvida, este estava no seu dia feliz. As idéias que oferecia eram fascinantes.

“Que profusão estupenda de cores e formas surgiria”, pensou Sergh num instante, “se as idéias que naquele instante passavam pelo cérebro de Ghorn pudessem ser transmitidas ao simulador.”

— Parece que a idéia não é má — respondeu Sergh. — Resta saber se é praticável. Realmente, seria impressionante...

Era a única demonstração de entusiasmo que estava disposto a oferecer.

Ghorn pensou:

“Você vai descobrir, sua raposa velha. Se der certo, ninguém poderá duvidar de que a idéia surgiu em seu cérebro.”

— O modelo do instinto de um peixe-cobra vnatólico seria uma sensação na tela... — murmurou Sergh.

Ghorn, que estava disposto a revelar suas melhores idéias, obtemperou:

— Quanto a mim, seria muito inteligente, ou talvez mais, conforme se queira. Estaria interessado em ver projetada na tela a atividade nervosa de uma flor. Que quadro maravilhoso não deve surgir se o jogo das células sensoriais de um ser tão harmonioso como uma flor for captado e registrado pelo simulador.

Se Ghorn esperava que a sugestão provocasse um entusiasmo ainda maior em Sergh, logo se veria decepcionado. Pela terceira vez, Sergh ergueu-se sobre os braços, olhou para o canteiro e, com uma rispidez surpreendente na voz, afirmou:

— Alguém pisou no meu canteiro de fareh. Se soubesse quem fez isso, eu o obrigaria a travar uma luta livre com um naat.

Ghorn estremeceu. Uma luta livre com um naat significava a morte, se o outro parceiro fosse um arcônida que por qualquer crime tivesse perdido sua imunidade. Para os naats, a luta livre era um esporte sagrado. Apesar de todas as tentativas civilizatórias dos arcônidas, há muito abandonadas, não puderam alterar o fato de que os naats matavam invariavelmente o lutador derrotado.

Ghorn levantou-se para dar uma olhada no canteiro. Caminhou até lá, enquanto Sergh, apoiado nos cotovelos, o seguia com os olhos curiosos.

Realmente o canteiro havia sido devastado. Parecia que alguém caíra nele de uma boa altura e de costas. Ghorn compreendeu a indignação de Sergh, ainda mais que as flores fareh se contavam entre as plantas ornamentais mais caras. Vinham da superfície de um planeta pantanoso envenenado que ficava a mais de dez mil anos-luz, e os homens que viajavam até lá especialmente para trazer as flores tão cobiçadas exigiam uma retribuição adequada.Ghorn foi ao lugar em que os pés do desconhecido tocaram o chão no momento da queda. Ali os arbustos impediam que visse Sergh. Apenas ouviu o murmúrio do riacho que desembocava na lagoa.

Viu marcas de pé no chão macio do canteiro, e o formato das mesmas era tão estranho que Ghorn sentiu um nervosismo que há anos não conhecia mais.

A marca de pé media cerca de um palmo e meio. Era muito menos que o comprimento de um pé arcônida. Além de ser muito curta, a grande largura fazia a marca muito feia.

“Talvez seja por causa dos sapatos que o homem usava”, pensou Ghorn.

Mas o argumento contrário logo surgiu em sua mente:

“Quem usaria sapatos tão feios?”

“Nenhum arcônida o faria”, concluiu Ghorn.

E a entrada no funil era proibida a qualquer ser que não fosse um arcônida. Logo, alguém penetrara ali sem permissão.

Os aparelhos de aviso sempre funcionam. E não há nenhuma possibilidade de destruí-los do lado de fora, a não ser que se destrua toda a casa.

Desenvolvendo uma velocidade que assustou Sergh, Ghorn correu em volta dos arbustos e informou o administrador sobre a descoberta que acabara de fazer. Sergh levantou-se, gemendo e resmungando. A passos lentos, conforme lhe convinha, foi até o canteiro para examinar o prejuízo e as marcas de pé.

Estas pareciam diverti-lo. Seguiu-as até o lugar, não muito distante do canteiro estragado, em que desapareceram de repente. Voltando-se, disse com um sorriso malicioso:

— Um estranho penetrou em nossa casa. E é um estranho inteligente, meu caro. Será um prazer observá-lo durante sua atividade. É uma pena que parece ter um corpo arcônida ou ao menos arconóide. Como já disse, preferiria um peixe-cobra vnatólico. Mas é claro que não se pode exigir de um animal desses que possua inteligência e ainda por cima seja esperto. Venha comigo, meu caro. Vejamos onde nosso desconhecido se encontra no momento.

 

Perry Rhodan já sabia que ao menos naquele momento não existia nenhuma vida ou atividade no interior da casa-funil. Por isso resolveu utilizar os conhecimentos adquiridos através do treinamento hipnótico arcônida.

Sabia que a portaria automática do edifício ficava na parte superior do cabo do funil, logo embaixo do jardim que Tako inspecionara em primeiro lugar.

— No fundo é uma sala de máquinas — disse Rhodan ao japonês. — Há muito tempo, os arcônidas constroem suas máquinas com tamanha perfeição que nunca precisam de reparos. Por isso não é de se supor que haja alguém na sala. Se aparecer por lá e notar que se encontra numa posição muito incômoda, imprensado por máquinas de um lado e de outro, não se incomode. Basta localizar o contacto que acabo de descrever e ativá-lo ao menos por trinta segundos.

Tako repetiu as instruções, quase palavra por palavra, e desapareceu. Rhodan comunicou à Ganymed:

— Fase D.

Dirigindo-se a Bell, disse:

— No momento em que Tako acionar o contato, o portal se abrirá. Enquanto estiver aberto, o aparelho de alarma está fora de ação. Portanto, não perca tempo. Saia correndo. Procure entrar enquanto os dedos de Tako estiverem sobre a máquina.

Bell confirmou com um resmungo.

— Estou tão nervoso que sairei que nem um foguete quando aquilo se mexer, por um centímetro que seja — disse em tom mordaz.

Os segundos foram-se arrastando. Rhodan ouviu uma voz no receptor de capacete.

Era Bell que se dispunha a proferir uma observação, provavelmente de impaciência. Mas antes que pudesse falar a primeira palavra, viu-se na luz fluorescente das paredes do funil que um traço negro se abria junto à porta.

Bell cumpriu o que havia prometido. Saiu em disparada e chegou tão depressa que por um instante Rhodan teve medo de que o alarma ainda pudesse captar a fase inicial de sua corrida.

O portal ainda não estava aberto. Um portal arcônida nunca tem pressa. Mas Bell, carregando o pesado desintegrador automático, espremeu-se pela fresta, com um movimento rápido regulou o neutralizador para a gravitação menos intensa e, uma vez do lado de dentro, disse fungando:

— Ande depressa, senão é tarde!

Rhodan não se apressou. Sabia quanto tempo duravam trinta segundos para alguém que receasse perder a hora. Passou tranqüilamente pelo portal, agora totalmente aberto, postou-se ao lado de Bell e, sem dar o menor sinal de impaciência, esperou até que Tako, que se encontrava acima deles, no compartimento de máquinas, providenciasse para que as alas do portal voltassem a deslizar, encostando uma na outra.

Olhou em torno.

O interior do cabo do funil, que sempre era um salão redondo de trinta metros de diâmetro, correspondia a imagem que o treinamento deixara em sua memória. Havia gobelins preciosos, uma profusão de luzes das cores mais variadas, produzidas por fontes invisíveis, pinturas que simulavam a realidade aplicadas no teto de dez metros de altura. O salão demonstrava a opulência do proprietário antes que o visitante tivesse oportunidade de olhar qualquer das peças residenciais propriamente ditas.

Havia, porém, um furo no teto, que perturbava a simetria do conjunto. Ficava fora do centro, era redondo e tinha três metros de diâmetro.

“É bastante amplo para permitir a passagem duma companhia inteira numa questão de segundos”, pensou Rhodan com um modo irônico.

Bell lançou um olhar indagador para a abertura.

— Apenas estou esperando que você diga alguma coisa.

Com quatro ou cinco passos, colocou-se abaixo da abertura, olhou para cima, como quem faz pontaria, e impulsionou-se suavemente com o pé direito. A sucção do campo antigravitacional envolveu-o e arrastou-o para cima. Dali a quatro segundos, tinha desaparecido pela abertura.

Rhodan seguiu-o imediatamente. A luz colorida do hall de entrada apagou-se assim que passou pela abertura no teto.

Bell esperava por ele. A seu lado estava Tako, que se apresentara, segundo as instruções recebidas. Rhodan teve tempo para elogiá-lo por seu trabalho impecável. Tako agradeceu com seu típico rosto sorridente e infantil.

A sala em que se encontravam representava o segundo estágio, bem mais avançado, do contato do visitante com as condições financeiras e sociais do dono da casa. Havia móveis, que não existiam no pavimento de baixo. Algumas poltronas articuladas, espalhadas ao acaso, segundo a moda arcônida, convidavam o visitante a uma pausa de descanso. Sulcos dispostos em círculo, quase invisíveis, que se abriam no soalho, revelavam a existência de mesas de serviço automáticas. Bastava um desejo apenas insinuado para que, providas daquilo que se desejava, subissem a uma altura cômoda, regulada pela posição da poltrona articulada.

A sala era triangular. Ocupava apenas pequena parte da área do pavimento e o teto ficava a apenas três metros e meio acima do soalho. Isto representava que atrás das paredes estavam instaladas as numerosas máquinas de servir, que permitiam aos arcônidas o estilo de vida desejado.A abertura do elevador antigravitacional desta vez não ficava no centro, nem diretamente acima da abertura pela qual haviam subido.

Seguiu-se uma série de salas, cada qual menor, mais íntima e montada com maior requinte que a anterior. A intenção de preparar o visitante gradualmente para o esplendor daquela casa era inconfundível.

Atravessaram um total de seis halls, salas e saletas. Finalmente passaram pelo teto de um recinto de pequenas dimensões e penetraram no primeiro pavimento do funil propriamente dito. Aí o perfume das flores, entre as quais emergiram, atravessou os filtros e penetrou nos capacetes.

— Como sabemos, os arcônidas preferem instalar sua residência nos andares superiores — disse Rhodan, depois de terem concluído a inspeção. — Também o administrador deverá encontrar-se lá em cima. Procuraremos subir o mais rápido possível acima do trigésimo pavimento. Para ganhar tempo, teremos de operar separadamente, ao menos até encontrarmos o administrador. Não se impressionem com o esplendor e a riqueza do prédio. Procurem localizar Sergh e não parem em qualquer lugar quando sentirem que ali não poderão encontrá-lo. Sabem perfeitamente que temos que fazer coisa muito mais importante que estudar o interior de uma casa-funil arcônida. A Ganymed está presa. Precisamos libertá-la e voar para Árcon, pois a Terra precisa de auxílio. Sempre tenham isto em mente!

A advertência foi tão enfática que nem mesmo o irreverente Bell deu qualquer resposta.

 

A idéia de Sergh trouxe um desassossego considerável àquela casa, geralmente tão tranqüila. Ghorn, que tinha a seu cargo a vigilância do interior do funil, teve um volume de trabalho que não condizia com seu gênio.

Quando procurou Sergh para transmitir-lhe uma notícia indispensável, este se encontrava em meio a uma palestra de hipercomunicação que parecia ainda mais importante e excitante. Mal Ghorn abriu a boca para dizer:

— Eles se separaram, Senhor! Vamos...

Sergh interrompeu-o com um gesto violento e chiou:

— Silêncio! Estou falando com Árcon.

Ghorn retirou-se. Não sabia o que deveria fazer. Um contato de hipercomunicação com Árcon era tão raro como uma flor verde. Era bem possível que, depois da palestra, a observação dos estranhos não proporcionasse o menor prazer a Sergh. Ghorn, que carregava sobre os ombros todo o peso do trabalho, estava mais que disposto a suspender as observações e deixar os estranhos por conta das armadilhas automáticas que, preparadas em virtude das observações de Ghorn, funcionariam sem o menor problema.

Mas Sergh era um homem imprevisível.

Enquanto Ghorn voltava ao seu posto de observação situado no quadragésimo pavimento, pensou com certa tristeza como lhe ficaria bem se ele mesmo fosse o administrador. Não seria necessário que ficasse num mundo tão importante como Naat. Ghorn compreendia perfeitamente que os postos de administrador de planetas, como este, teriam de ficar reservados aos membros das famílias mais importantes. Contentar-se-ia com Vnatol. Dali, poderia suprir Sergh com os apreciados peixes-cobra. De resto, seria dono do seu nariz.

Mas os tempos de expansão do Império, em que a cada dia se procurava um novo administrador, já pertenciam ao passado. Raras vezes ficava vago um posto como o que Ghorn cobiçava.

Ghorn estava tão entretido com seus pensamentos melancólicos que, ao retornar à sala de controle, levou algum tempo para dar-se conta de que uma larga faixa de luzes se apagara no painel que registrava o funcionamento dos instrumentos.

Sentou diante da mesa, constatou que nesse meio tempo os instrumentos automáticos haviam perdido de vista os estranhos e procurou encontrar sua pista.

Por um simples acaso, olhou para o painel luminoso, enquanto girava os botões, deixando desfilar na tela pavimento por pavimento, recinto por recinto. A quantidade de luzes apagadas deixou-o perplexo. Inclinou-se sobre os instrumentos e, bastante admirado, constatou que todos funcionavam perfeitamente, embora em relação a alguns deles o painel luminoso indicasse o contrário.

Ligeiramente confuso e desorientado, levantou-se para examinar o tal painel. Quando se encontrava a dois passos do mesmo, as luzes voltaram a iluminar-se.

Passou a mão pela testa. Recuou um passo e as luzes apagaram-se. Avançou um passo e voltaram a acender-se.

A regularidade do fenômeno era inegável. A confusão de Ghorn cedeu lugar a uma ligeira sensação de pavor. Todavia, continuou tranqüilo, como se não tivesse acontecido nada. Retornou para junto da mesa e prosseguiu no trabalho. Não se deixou perturbar pelo fato de que, acesas, as luzes de controle agora podiam ser vistas do lugar em que se encontrava.Ficou manipulando os botões e as chaves até que subitamente a luz se apagou no recinto, uma pesada persiana fechou a janela que dava para o interior do funil e uma escuridão impenetrável encheu o recinto.

Ghorn teve uma idéia pouco nítida do perigo em que se encontrava. Sabia que os aparelhos automáticos de salvamento instalados em todas as peças da casa talvez funcionassem com demasiada lentidão, se o quadro que tinha da situação era correto.

Mas, tal qual todos os arcônidas, e neste ponto não se distinguia de Sergh, seu mestre e senhor, amava tanto a excitação nervosa que deixara o perigo em segundo plano.

É bem verdade que, sob os padrões terranos, tal fenômeno representa antes um sintoma de histeria que um sinal de coragem.

Ghorn continuou a manipular os controles. Conhecia as instalações da pequena cabina e não tinha a menor dificuldade em orientar-se no escuro. As telas de imagem e as luzes indicadoras se haviam apagado juntamente com a luz do recinto.

Subitamente uma pálida luminosidade rompeu a escuridão. Vinha do nada e no primeiro instante parecia dirigir-se ao nada. Mas de repente um círculo de luz fosforescente de três metros de diâmetro surgiu na parede fronteira a Ghorn, cobrindo toda a extensão, do soalho ao teto.

Em meio ao círculo de luz, surgiram os contornos de uma figura bizarra. Era tão pequena que não poderia pertencer a um arcônida, embora tivesse duas pernas, dois braços e uma cabeça, tudo implantado nos seus devidos lugares; era tão gorda, que ninguém a acharia atraente, e tão disforme que Ghorn chegou à conclusão de que o contorno visto por ele não podia ser o vulto de alguém. Seria apenas o formato duma peça de vestimenta.

Ghorn viu que o estranho carregava alguma coisa no braço. Parecia um cabo curto e grosso. Acreditou que devia ser uma arma. Quase toda a coragem imaginária abandonou-o.

Quis dizer alguma coisa, algo que tranqüilizasse o desconhecido, para que o mesmo não começasse a atirar. Mas naquele instante, o vulto fez um rápido movimento com o braço. O objeto disforme que Ghorn acreditara ser a cabeça caiu para o lado e, abaixo dele surgiu um crânio redondo que, segundo Ghorn percebeu apesar do medo e do espanto de que se sentia tomado, estava coberto de cerdas curtas e duras, em vez dos longos cabelos que estava acostumado a ver.

Ghorn fez uma nova tentativa para falar. Mas, nesse instante, o desconhecido disse:

— Está bem. Pode acender a luz.

Ghorn notou que o desconhecido falava um arcônida grosseiro mas correto. Obedecendo às palavras que acabara de ouvir, ligou algumas chaves. A persiana, que fechava a janela, desapareceu e a luz voltou a espalhar-se pelo recinto.

Ghorn lançou os olhos em torno. O desconhecido que, ao colocar-se muito perto do painel luminoso, fizera com que as luzes se apagassem, afastou-se para o lado quando viu que o arcônida começava a desconfiar de alguma coisa. Agora encontrava-se atrás dele.

Ghorn viu um rosto redondo que exibia um sorriso irado. Por cima da testa, as cerdas vermelho sujas se levantavam em atitude combativa. Ghorn notou que o desconhecido não lhe apontara a arma. Parecia sentir-se seguro.

— O... o que deseja? — gaguejou.

O desconhecido continuava a sorrir.

— Quero falar com o administrador. É o senhor?

Ghorn respondeu com um gesto desolado de negativa.

— Meu nome é Ghorn — disse com a voz tímida.

O desconhecido baixou a cabeça numa mesura leve e irônica.

— Meu nome é Bell — respondeu. — Reginald Bell.

Pronunciou com tamanha facilidade os sons estranhos de seu nome, que Ghorn abandonou definitivamente a idéia de que, apesar de sua vestimenta, de origem arcônida — poderia ser algum arcônida deformado.

Aquele homem vinha de longe. Mas de onde?

O desconhecido, que se apresentara como Bell, acomodou-se numa poltrona.

— Quer saber de uma coisa? — voltou a falar Bell. — O senhor vai chamar o administrador e pedir-lhe que venha até aqui. Eu e mais duas pessoas que aparecerão daqui a pouco vamos conversar com ele. Combinado?

Ghorn recusou desesperadamente.

— Se o senhor tivesse uma pequena idéia do nosso estilo de vida — suplicou — poderia imaginar o que aconteceria comigo se eu...

Bell interrompeu-o com um gesto.

— Está certo — disse com um ligeiro desprezo na voz. — Quase que me esqueço. Sergh o condenaria a viver no deserto. Já que é assim, anuncie-se a ele. Meus amigos e eu iremos com o senhor.

Ghorn agarrou a sugestão como um náufrago que segura a corda salvadora.

O desconhecido parecia perigoso, e Ghorn não tinha a menor dúvida de que Sergh teria a mesma opinião assim que o visse. O administrador cometera um erro ao restringir a ação à simples observação. Uma criatura desse tipo sempre é perigosa. Num minuto, concebiam mais idéias que um arcônida num dia, e até rescendiam a uma atividade sobrenatural.

Mas, nos aposentos privados de Sergh, havia um sem-número de instalações automáticas de segurança. E se o desconhecido e seus amigos cometessem a tolice de insistir numa entrevista com o administrador, estariam perdidos assim que transpusessem o limiar da porta.

Ghorn procurou entrar em contato com o administrador. Ansiava de impaciência e fazia votos de que Sergh não se encontrasse nos seus aposentos privados, onde estaria fora do alcance de qualquer instrumento de busca.

Pelo canto dos olhos Ghorn notou que Bell voltara a colocar o capacete. Ouviu-o murmurar algumas palavras numa língua estranha. Supôs que se comunicava com os dois amigos.

Mas logo o rosto de Sergh passou a ocupar a atenção de Ghorn. Ao surgir na tela, parecia cansado e entediado. Ghorn ouviu um rápido movimento atrás de si e sabia que sua vida correria perigo se colocasse o receptor numa posição em que Sergh visse o desconhecido.

Este só viu seu representante.

— O que houve? — perguntou, esticando as palavras.

Ghorn viu que continuava sentado diante do mesmo aparelho de hipercomunicação em que pouco antes falara com ele.

As palavras de Ghorn foram cautelosas:

— Caso o senhor disponha de tempo, eu gostaria de submeter-lhe um problema importante.

O cansaço de Sergh não parecia ser tanto que a visita em perspectiva o deixasse contrariado. Lembrou-se das boas idéias que Ghorn tivera duas horas antes e demonstrou certo interesse.

— Concordo — respondeu, reprimindo um bocejo. — Poderemos conversar na minha sala-refúgio. Você vem logo?

— Naturalmente, Senhor — apressou-se Ghorn em responder. — Não seria capaz de deixá-lo esperar.

Sergh desligou. Bell resmungou atrás de Ghorn:

— Não tenha tanta pressa, meu chapa. Temos de esperar meus amigos.

Ghorn não respondeu, permanecendo imóvel.

Pouco depois, a porta de enrolar abriu-se, e ninguém entrou. Voltou a fechar-se, e dois vultos estranhos surgiram do nada.

Ghorn virou-se e fitou-os estupefato.

Viu um homem pequeno de pele marrom-amarelada, olhos oblíquos e um sorriso constante no rosto. Viu outro homem que quase chegava a ter o tamanho de um arcônida. Seu rosto era sério e a expressão dos olhos cor de gelo deixou Ghorn apavorado.

No mesmo instante Ghorn percebeu que este último era o mais perigoso dos três.

O homem de olhos cor de gelo fitou Ghorn e disse num arcônida sem sotaque:

— Vamos indo. O que estamos esperando?

 

Desde O início da fase D o coronel Freyt não recebera qualquer notícia de Rhodan. Isso não o deixou preocupado. Um sinal de emergência havia sido combinado em caso de Rhodan se ver numa situação realmente difícil. E só em circunstâncias, que Freyt considerava altamente improváveis, a situação se tornaria tão crítica que Rhodan nem tivesse tempo de transmitir esse sinal.

De qualquer maneira, Freyt mantinha-se constantemente preparado para providenciar tudo que se tornasse necessário caso surgisse algum perigo que representasse uma ameaça real para Rhodan.

Seus olhos ardiam de cansaço e muitas vezes a cabeça caía para a frente, mas agüentou no seu lugar.

Quando o tele comunicador emitiu o sinal de chamado, atirou a mão para a frente e num movimento seguro comprimiu o botão que ligava o aparelho. Os olhos avermelhados fitaram com uma expressão preocupada o quadro que se formava na tela.

Mas o que surgiu não foi o sinal de ausência de imagem que seria de esperar, já que Rhodan não levava nenhum receptor. Viu um crânio redondo e calvo coberto de pele negra e áspera; os três olhos lançaram um olhar indiferente para Freyt.

Este dissimulou a repugnância que o gigantesco naat lhe causava.

— Aqui fala Novaal — disse a voz monótona do naat. — Tenho uma notícia para o senhor.

Freyt confirmou com um aceno de cabeça.

— Estou ouvindo.

— O eminente administrador incumbiu-me de dizer ao senhor que apreciaria uma visita dos dois arcônidas que traz a bordo. Queira transmitir a mensagem aos mesmos.

Freyt sabia qual era a conduta que lhe impunha seu posto.

— Transmitirei o recado — respondeu. — Eles mesmos decidirão se apreciam a visita tanto quanto o administrador.

O rosto escuro de Novaal contorceu-se numa careta. Freyt não sabia se essa careta representava um sorriso. De qualquer maneira, naquele instante achou o naat mais simpático que em qualquer oportunidade anterior.

Sem dizer uma palavra, Novaal interrompeu o contacto.

Freyt transmitiu o teor da palestra a Thora e Crest, que se encontravam nos seus aposentos particulares. Crest recebeu a notícia numa atitude calma e pensativa, enquanto os olhos de Thora começaram a chamejar, conforme Freyt esperara.

Freyt sentiu-se surpreso quando dali a meia hora os dois arcônidas entraram em contato com ele e lhe disseram que aceitavam o convite.

Com o rosto sombrio, Freyt respondeu:

— Pelo que ouvi, não houve nenhum convite. Mas terei muito prazer em transmitir suas decisões.

 

Deitado numa espécie de sofá forrado com preciosas peles de sevelot de Uthalla, cujas vibrações de freqüência e intensidade sempre variáveis proporcionavam um máximo de bem-estar ao corpo, Sergh estava projetando alguns pensamentos enfadonhos sobre a tela do simulador.

O resultado foi muito pobre. O tédio aliado à falta de concentração produziu um verde-apagado, que deslizava sobre a tela com uma sonolenta falta de configurações.

Sergh não estava satisfeito consigo mesmo.

O trabalho das últimas horas fora demais.

O sinalizador da porta emitiu um zumbido. A mão esquerda de Sergh desceu ao lado do sofá e comprimiu um botão. O rosto de Ghorn surgiu na pequena tela existente ao lado do simulador. Desenvolvendo uma atividade totalmente supérflua, o aparelho de controle montado do outro lado da porta indicou que não portava nenhuma arma.

— Ah, é você — suspirou Sergh com uma acintosa falta de interesse. — Avisou que chegaria?

Com um entusiasmo surpreendente, Ghorn acenou com a cabeça.

— Sim, Senhor.

— Entre.

O quadro apagou-se. Com os impulsos verbais de Sergh, a porta abriu-se automaticamente. Sergh ouviu que Ghorn entrava na ante-sala.

Seria apenas Ghorn? Pois parecia...

Sergh levantou-se sobre os cotovelos e olhou para a porta. O jogo do simulador terminou numa desarmonia de cores e formas.

A porta interna abriu-se. Ghorn entrou. Seu rosto exprimia uma mistura de esperteza e dores de consciência.

Atrás dele...!

Com um grito indignado, Sergh ergueu-se. Desde a infância era o primeiro grito que alguém ouvia de sua boca. Mas naquele instante, Sergh não se deu conta da singularidade do fenômeno.

Depois do grito, o administrador por algum tempo não teve força para outras exteriorizações. De queixo caído, fitou os três homens que haviam entrado em companhia de Ghorn.

Depois de algum tempo, lembrou-se de que pedira a Ghorn que vigiasse o desconhecido que tratara as flores Fareh de maneira tão vergonhosa. Também se lembrou que em certa oportunidade Ghorn o avisara de que os desconhecidos eram três.

No meio tempo fora completada a ligação com Árcon, e Sergh teve de preocupar-se com outras coisas.

Mas agora, que tinha se lembrado de tudo isso, recuperou o equilíbrio psicológico.

Sorriu para os desconhecidos e disse:

— Tenho muito prazer em conhecê-los de perto. Foi muito divertido observá-los enquanto avançavam pela casa às apalpadelas.

Um dos três, gordo e de estatura mediana, estava tirando o capacete. Sergh ouviu que aspirava o ar com chiado e achou que isso era sinal de que conseguira surpreender o homem.

Mas os outros não deram nenhum sinal de surpresa. O menor deles, um homem de pele amarela, continuava a sorrir. Nos olhos do maior, havia a mesma dureza apavorante que Sergh observara no momento em que o viu pela primeira vez.

— Então o senhor nos observou? — perguntou numa aparente indiferença.

Sergh aborreceu-se ao notar que o desconhecido lhe negava o título que de direito lhe cabia. Mas o prazer e a excitação nervosa que sentia naquele momento fizeram com que Sergh não se importasse com a falha.

— Isso mesmo — confessou. — Nós os observamos a partir do momento em que um dos senhores estragou meu canteiro de fareh.

Rhodan olhou para Bell e o japonês. Tako inclinou ligeiramente o corpo e disse em inglês, em tom abatido:

— Devo ter sido eu. Caí no canteiro quando entrei da primeira vez.

Rhodan limitou-se a fazer um gesto.

— Pois bem — disse ao administrador. — Se é assim, já deve saber quem somos e provavelmente imagina por que viemos.

Sergh estava realmente perplexo.

— Não — respondeu. — Não faço a menor idéia de quem sejam os senhores, nem do que vieram fazer aqui. Nós, Ghorn, e eu, sentimos um prazer imenso ao observá-los...

— O senhor está se repetindo — interrompeu-o Rhodan em tom tão áspero que Sergh se encolheu. — Sou o comandante da nave que o senhor está retendo em seu espaçoporto contra todas as normas de direito. Exijo a liberação imediata da nave.

Sergh teve medo. Nunca ouvira ninguém falar perto dele com tamanha rispidez, energia e arrojo. O homem de olhos cor de gelo arrojava uma capacidade de ação que Sergh quase chegava a sentir fisicamente e que o deixava assustado.

— Quem está retendo a nave não sou eu — respondeu Sergh, e praticamente não se deu conta de que estava a ponto de arrumar uma desculpa. — Recebi instruções para deter sua nave. E contra-instruções não há...

Bell avançou um passo. Rhodan não o demoveu do seu intento. Bell postou-se tão perto de Sergh que este recuou a cabeça.

— Escute aí, meu chapa! — gritou Bell no seu arcônida grosseiro. — Não temos o menor interesse em saber quem deu ordem para grudar a Ganymed ao solo. Só queremos saber quem tem a possibilidade de soltá-la. E este alguém é o senhor. Por isso esperaremos aqui até que nossa nave nos avise de que está novamente em condições de viagem e que virá em seguida para buscar-nos.

Sergh sentiu o hálito do desconhecido no rosto, e isso lhe causou certa repugnância. Mas, ao mesmo tempo, ouviu a voz forte e potente, que lhe inspirou medo. Mal se deu conta de que Ghorn, pelo qual ninguém parecia interessar-se, afastou-se para o lado.

Sentiu certo alívio. Sem dúvida, Ghorn ativaria o dispositivo de emergência.

Ao ver que, por um instante, o olhar de Sergh passou ao lado dele, Bell girou sobre os calcanhares.

— Ei, pare aí! — gritou furioso. — Ghorn já levantara a mão para comprimir um botão. — Sei o que tem em mente. Se o deixássemos à vontade, esse botão faria com que isto aqui se enchesse de gás, enquanto em algum lugar soasse um alarma.

Ghorn empalideceu. Deixou cair a mão, como se esta lhe pesasse demais.

Sergh sentiu-se tão fraco que resvalou para o sofá. O vibrador começou a funcionar automaticamente, mas numa hora como esta a trepidação irritava os nervos do administrador.

— Uma vez que já sabe o que queremos, siga as nossas ordens — disse Rhodan em tom áspero. — O que está em jogo para nós é muito mais do que o senhor imagina. Não nos importaremos nem um pouco em pisar nos calos do eminente administrador até conseguirmos o que pretendemos.

Sergh fez vários gestos apaziguadores.

— Aguarde um momento — fungou. — Estou esperando alguns visitantes e, na presença dos mesmos, terei muito prazer em explicar-lhes o que está acontecendo. Permita que um velho tenha uma pequena pausa de descanso.

Rhodan confirmou com um gesto da cabeça.

— Está bem — disse. — Esperaremos. Mas é bom que fique ciente de uma coisa: no momento em que um de vocês tentar enganar-nos, ambos estarão mortos.

Não era a situação atual que atemorizava Sergh. Como arcônida que era, dispunha de recursos que lhe permitiam dominar qualquer situação.

Aquilo que o fez capitular no momento foi o fato de que nunca antes se defrontara com seres que perseguissem seu objetivo com tamanha energia e se mostrassem tão pouco dispostos a deixar desviar-se do caminho que haviam traçado para si mesmos.

Não que acreditasse não poder subjugar os intrusos.

Mas precisava de um momento de descanso. Os séculos de decadência progressiva fatalmente teriam que deixar suas marcas no cérebro arcônida. O raciocínio tornara-se mais lento. Sergh precisava de uma pausa para recordar os meios de que dispunha para livrar-se dos desconhecidos.

Mas a convicção de que acabaria por dominá-los nunca o abandonara.

Era verdadeira a afirmativa de que aguardava visitantes e que pretendia explicar aos mesmos alguma coisa relacionada com os problemas dos desconhecidos.

Sergh estendeu-se no sofá, descansou os braços molemente ao lado do corpo, fechou os olhos e pôs-se a refletir.

Ghorn e os desconhecidos acomodaram-se em poltronas. Um silêncio constrangedor encheu a sala do simulador de Sergh.

Depois do que tinham visto nas últimas horas e dias, Thora e Crest não penetraram no palácio-funil de Sergh na expectativa de que lhes seria dispensada a recepção a que faziam jus como membros da estirpe dos Zoltral.

Quando penetraram no hall de entrada, uma voz mecânica lhes ordenou em tom áspero que se transportassem pelo caminho mais rápido ao trigésimo quinto pavimento. Assim viram que suas esperanças ainda eram otimistas demais.

Até mesmo a bebida oferecida a título de boas-vindas, que costumava ser dada ao mais ínfimo dos visitantes, lhes foi recusada. Enquanto subiam pelos elevadores antigravitacionais apenas sentiram, diante do esplendor de seu mundo, que a melancolia da saudade passou a envolvê-los no interior do funil. Ao atingirem o trigésimo quinto pavimento, o desânimo que se apossou deles foi quase tão intenso como o que sentiram quando o ser coletivo do planeta Peregrino lhes recusou a ducha celular e, com isso, o dom da vida eterna.

As portas abriram-se automaticamente diante deles, apontando-lhes o caminho. Não viram nenhum dos ocupantes da casa.

Passaram pelo pequeno compartimento que dava para a sala do simulador de Sergh. Thora estacou, surpresa, quando a porta se abriu e ela pôde lançar o primeiro olhar para o interior da sala.

Rhodan levantara-se ao ouvir os passos e colocara-se junto à porta. Receava que Ghorn aproveitasse a confusão momentânea que se estabeleceria com a entrada dos visitantes para acionar algum tipo de alarma.

Mas Ghorn estava tão assustado que nem se mexeu.

— Rhodan... o senhor por aqui? — espantou-se Thora.

Rhodan cumprimentou-a com um aceno de cabeça e apontou para uma poltrona.

— Sente! — disse em arcônida. — O homem que está deitado no sofá tem algo a nos dizer e suponho que neste meio tempo já tenha reunido forças para isso.

Sergh não se mexeu. Virou-se de lado e fitou os dois arcônidas.

— Levante-se quando estiver falando com uma zoltral — disse Thora com a voz enérgica.

— Esta é uma das coisas que pretendia contar-lhe — disse em tom diferente. — Os zoltrals não são mais ninguém em Árcon.

Provavelmente Thora e Crest não esperavam outra coisa. Thora caiu numa poltrona.

— Relate tudo na devida ordem — pediu Thora.

— E coloque ao menos os pés no chão — resmungou Bell. — Fico nervoso quando alguém fala comigo deitado.

Por estranho que fosse, Sergh obedeceu. Rhodan lançou um ligeiro olhar de advertência para Bell. Não valia a pena tornar a situação mais crítica do que já era.

— Nem mesmo os zoltrals sabiam — principiou Sergh com a voz cansada — que há muito tempo alguns sábios instalaram em Árcon e em todo o Império um mecanismo que entraria em ação no momento em que a decadência das energias vitais da nação e a apatia de seu povo atingisse um grau tal que a existência do Império corresse perigo.

“Esse momento — prosseguiu Sergh, pigarreando e fazendo uma ligeira pausa — chegou há cerca de seis anos. Em virtude de certos dados e formas de interpretação que ninguém se deu ao trabalho de investigar há seis anos o maior de todos os cérebros positrônicos, já construídos na Galáxia, incumbiu-se da direção dos destinos de Árcon e seu Império.

“Uma das conseqüências da execução das principais tarefas governamentais por uma máquina foi a substituição da família governante. Os zoltrals abdicaram, outro governante subiu ao trono. Uma vez que foi justamente no reinado de sua dinastia que o cérebro positrônico entrou em ação, os zoltrals estão bastante desacreditados. Atualmente todos eles, inclusive os senhores, apenas são tolerados.

“É bom que não se esqueçam disso, para que não voltem a exigir que um velho se levante só porque pertencem à estirpe dos zoltral.

“Apesar de tudo, acabo de receber informações de Árcon, segundo as quais permitem que os senhores façam uma visita ao seu mundo natal. Dentro de poucos segundos pousará no espaço porto de Naatral uma nave que os levará a Árcon. Lá lhes dirão quanto tempo poderão ficar e o que farão.”

Esgotado, Sergh deixou-se cair de lado e fechou os olhos. Thora manteve-se rija e ereta na sua poltrona, enquanto Crest, de pé ao seu lado, segurava-se no encosto.

— Uma máquina...! — gemeu.

— Isso mesmo. E executa suas tarefas melhor que qualquer governante da família dos zoltral. Equipou todas as naves com robôs e não precisa preocupar-se com os tripulantes, pois os olhos vigilantes dos robôs permitem que coloquem a bordo não só os arcônidas, mas também os naats ou outra gente desse tipo.

A velha cólera voltou a apossar-se de Thora.

— Sabemos perfeitamente que a maior parte dos governantes não prestou — chiou. — Mas não podemos admitir que a modificação desse estado de coisas fique por conta de uma máquina. O cérebro positrônico representa o começo do fim. Um império governado por uma máquina cavará sua própria sepultura. Se os governantes tivessem continuado no poder, levaria alguns milênios para morrer de velhice.

Sergh não estava interessado nesse aspecto.

— É preferível que se apressem — advertiu em tom cansado — senão perderão a nave para Árcon. O cérebro positrônico não espera. E, uma vez perdida esta oportunidade, nunca mais terá uma possibilidade de ir a Árcon.

— O que será feito da nave em que viemos? — perguntou Thora indignada.

— Será que este problema lhe diz respeito? — retrucou Sergh.

Thora lançou um olhar para Rhodan. Este tranqüilizou-a, falando em inglês:

— Não se preocupe conosco. Procure viajar para Árcon. Talvez até lá consigamos resolver a situação. Se isso não acontecer, faça o que puder por nós.

Thora confirmou com um ligeiro movimento de cabeça e levantou-se.

— Está bem, vamos — disse, dirigindo-se a Sergh.

Pelo tom de sua voz Rhodan percebeu que estava prestes a chorar.

— Vá, sim — murmurou Sergh sem virar a cabeça.

Rhodan procurou animar Thora com um gesto enquanto ela saía em companhia de Crest. Mas Thora não se voltou mais. O gesto ficou no ar.

Voltaram a ficar a sós com o administrador cansado e com seu representante assustado. Gemendo, Sergh virou-se de lado.

— Pensei que tivessem saído com os dois — disse, lançando um olhar para Rhodan e seus companheiros.

Não se poderia dizer se estava falando sério. Sua voz era enfadonha como sempre.

Rhodan levantou-se.

— Pois aí é que o senhor se engana — disse em tom áspero. — Já sabe por que viemos, e também sabe que não sairemos antes que nossas exigências tenham sido cumpridas.

Sentado em sua poltrona, Bell disse em tom indiferente:

— Perry, talvez umas bofetadas o ajudem a compreender. Sem isso acabará levando mais cinco horas para acordar de vez.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça e examinou atentamente o rosto de Sergh, como se quisesse escolher o lugar mais adequado para aplicar as bofetadas.

— A idéia não é má — respondeu.

De repente Sergh passou a desenvolver uma atividade espantosa. Levantou-se com uma rapidez que ninguém o julgaria capaz.

— Não, não, minha intenção não foi esta — protestou com um sorriso embaraçado. — Sem dúvida seria interessante saber como se sente uma pessoa que leva pancadas. Quem recorre a bofetadas usa um método atávico. Mas receio que o processo seja acompanhado por dores. Por isso prefiro...

— Pois vamos, vamos logo — animou-o Rhodan. — Quando sairmos desta sala, o senhor e seu representante irão conosco. Tenho certeza de que ninguém porá as mãos em nós enquanto o eminente administrador estiver diante do cano de minha arma.

Sergh concordou.

— A estação de controle dos geradores que alimentam o campo de sucção fica embaixo do cabo do funil. Vamos descer até lá.

Rhodan espalhou os homens de seu grupo. Reginald Bell caminhava à frente, seguido pelo administrador e por Ghorn. O japonês ia no fim da fila. Perry Rhodan esforçou-se para estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

O interior do funil continuava deserto. De repente, Rhodan lamentou não ter trazido um telepata que pudesse informá-lo a qualquer momento sobre os pensamentos de Sergh.

Mas, no início da operação, não se poderia prever que quatro homens teriam a mesma facilidade de locomover-se no interior do gigantesco funil de Sergh.

Passando por uma série de poços de elevadores antigravitacionais, desceram de um terraço para outro. Rhodan começou a acreditar que realmente conseguira intimidar Sergh, e que este não tinha em mente qualquer ação traiçoeira. Por esse motivo, a cautela de Rhodan provavelmente desceu a um nível perigosamente baixo. Além disso, a surpresa surgiu num lugar em que ninguém a esperaria: no meio dum poço anti-gravitacional.

O próprio Sergh submeteu-se a um tratamento bastante desagradável para livrar-se dos incômodos visitantes. Afinal, tanto ele como Ghorn e os três terranos encontravam-se no meio do comprido poço quando subitamente o campo antigravitacional deixou de funcionar. Inverteu a polarização e com uma violência irresistível atirou tudo que se encontrava no poço contra o soalho do próximo pavimento.

Um dos poucos monitores mentais instalados na casa captara os pensamentos aflitos de Sergh e reagira em conformidade com os mesmos. Sergh passara propositadamente pelo poço em que estava instalado o monitor.

Sergh e Ghorn logo perderam os sentidos, da mesma forma que o delicado japonês. Rhodan e Bell apenas sentiram-se ligeiramente confusos; mas antes que tivessem tempo de levantar-se uma série de tubos capilares expeliu uma carga de gás paralisante do teto, do soalho e das paredes. Os dois, ainda não restabelecidos do choque, aspiraram o gás em grandes lufadas. Mantinham os capacetes abertos para falar com os arcônidas, e o funcionamento da tubulação de gás era silencioso.

Dali a alguns segundos, também Rhodan e Bell estavam reduzidos à imobilidade. Não perderam os sentidos por completo. Como que numa névoa, perceberam o que acontecia em torno deles. Mas o raciocínio consciente e os nervos que moviam o corpo estavam bloqueados.

Alguns minutos se passaram. Subitamente uma dezena de vultos com capacetes saiu dos quatro elevadores antigravitacionais que davam para a sala. Rhodan teve uma percepção confusa de que os capacetes na verdade eram máscaras que impediam a entrada do gás nos órgãos respiratórios.

Os cinco corpos imóveis foram levantados e transportados para cima. Rhodan não conseguiu identificar o lugar em que os quatro homens que carregavam Sergh e Ghorn se separaram dos demais. Mas percebeu nitidamente que o recinto em que foi depositado juntamente com os companheiros inconscientes era escuro e isolado do mundo exterior.

O cansaço começou a apossar-se dele. Era um dos efeitos do gás paralisante. Por mais que resistisse, adormeceu em poucos segundos. Ao despertar, não teve a menor idéia de quanto tempo se passara. Mas ficou satisfeito por saber que o sono o robustecera.

 

Ainda se via obrigado a realizar um grande esforço para mover os braços e as pernas, e seus movimentos não eram mais rápidos que os de um velho enfermo. Mas, de qualquer maneira, um movimento lento e penoso sempre é melhor que a imobilidade total.

O recinto em que se encontrava continuava escuro como breu. Não havia o menor raio de luz ao qual a vista pudesse acostumar-se. Os movimentos de ginástica de Rhodan produziram um forte farfalhar no soalho. Dali se concluía que os prisioneiros dos arcônidas haviam sido depositados no revestimento de plástico.

Uma voz resmunguenta falou pesadamente em meio à escuridão:

— Quem dera que esse administrador desengonçado estivesse por aqui. Eu lhe... Perry, é você?

— Sim, sou eu.

O riso sacudiu Rhodan e lhe fez doer o corpo cansado. Se Bell já entretinha idéias de vingança, as coisas não podiam estar tão más assim.

— Como está Tako?

— Não sei. Também está aqui?

— Está. Já consegue mexer-se?

— Vou experimentar. Já mexo o corpo um pouco.

— Pois procure Tako. Preciso pensar.

— Não é necessário — piou uma voz débil vinda da escuridão. — Já acordei.

— Já! — esbravejou Bell. — O homem dorme até altas horas da tarde e...

— Silêncio! — ordenou Rhodan. — Temos coisa mais importante a tratar. Tako, o senhor consegue mover-se?

— Consigo.

— Muito bem. Preste atenção. Experimentamos na própria carne como é difícil impor nossa vontade a um arcônida. Por mais decadentes que pareçam, eles têm uma porção de truques de que nem fazemos idéia. Não sabemos o que Sergh pretende fazer conosco. Pode deixar-nos morrer de fome neste buraco, pode colocar-nos em liberdade de uma hora para outra, ou pode adotar qualquer atitude intermediária entre os dois extremos. Seja como for, tenho certeza de que tomará todas as precauções para que não escapemos antes que tenha tomado sua decisão. E, para ter certeza absoluta de que isso não acontecerá, terá que repetir a intervalos regulares o processo paralisante.

“Não tenho a menor dúvida de que no teto deste recinto existe uma tubulação igual àquela da sala em que caímos na armadilha. E a qualquer momento pode ser realizada nova gaseificação. Portanto, temos que apressar-nos se quisermos fugir. Tako.”

Sim senhor.

— Procure descobrir onde estamos e como podemos sair daqui.

— Perfeitamente.

— Não assuma o menor risco. Lembre-se de que por enquanto os arcônidas nem desconfiam de que em nosso grupo existe um teleportador. Por isso seu dom é uma boa arma. Deixe o radiador térmico aqui. E ande depressa.

Tako desapareceu.

— O que vamos fazer depois? — indagou Bell.

— Queremos libertar a Ganymed. Será que você já se esqueceu?

— Depois de tudo isso?

— Agora mais que nunca. Não sei se Sergh mentiu ao dizer que os controles dos geradores do campo de sucção ficam embaixo do cabo do funil. Acredito que se sentia tão seguro que não se daria ao trabalho de inventar uma mentira. Ainda mais que essas instalações geralmente ficam no interior dos cabos.

— Ah, já sei. Desceremos para lá e demoliremos os quadros de chaves de Sergh de tal maneira que nunca mais possa prender uma nave de gente honesta.

— É mais ou menos isso. Acontece que sua tarefa será outra.

— Qual será?

— Um de nós terá que permanecer nos aposentos privados de Sergh, enquanto os outros estiverem trabalhando com os controles. Sergh dispõe de uma sala da qual pode observar todo o funil. Tako descobrirá essa sala e você se instalará na mesma e cuidará para que ninguém nos ataque pelas costas. Entendido?

— Hum. Não estou gostando disso. Em qualquer funil destes, existem aparelhos de observação. Sempre que alguém queira falar com o administrador, um negócio destes é posto a funcionar para dar busca em uma sala após a outra. Se chegar a um desses locais de observação, o balão estourará.

— Você já devia saber que nenhum desses instrumentos de observação chega aos aposentos privados do dono da casa. Um homem como Sergh estará menos disposto que qualquer outro para permitir que alguém ande focinhando sua vida privada.

— Está bem — suspirou Bell.

Tako voltou depois de poucos segundos.

— Encontramo-nos no quadragésimo terceiro andar. O respectivo terraço é mais profundo que os outros. Para o lado interno do funil, há um corredor circular protegido por um corrimão. Do outro lado, há duas fileiras de salas. A primeira delas tem janelas que dão para o corredor. A fila externa não tem janelas. Estamos presos numa das salas dessa fila.

— Ah. É uma coisa parecida com uma cadeia. Há portas?

— As de costume. As portas estão trancadas. As fechaduras não abrem.

— Viu algum guarda?

— Nenhum. A casa continua vazia.

— Que horas são?

— O céu ainda está escuro.

Rhodan levantou-se. Os movimentos causavam-lhe dores. Os efeitos do gás paralisante ainda não haviam cessado. Rhodan teria dado um bom dinheiro se pudesse aguardar tranqüilamente até que estivesse restabelecido de todo.

Mas naquele momento tinha que apressar-se.

— Pegue seu radiador, Tako. Salte para fora e abra a fechadura a tiro. Faça uma boa pontaria, pois no instante em que a fechadura for danificada, um alarma deverá soar em algum lugar.

Tako voltou a desaparecer. Dali a um instante um chiado feio encheu o recinto, um pontinho luminoso surgiu na escuridão, transformou-se num buraco e acabou substituído pela abertura larga da porta.

Rhodan e Bell saíram correndo. Pararam junto a uma das janelas da parede que dava para o corredor. Não viram nenhum arcônida.

— O mais importante é sair daqui quanto antes — disse Rhodan. — Neste instante alguém já está sabendo que aqui em cima as coisas não estão como deveriam estar. Virão dar uma olhada. Quando isso acontecer, não deveremos estar mais por aqui. Bell, vá com Tako. Ele localizará a sala de observação para você. Tako, o senhor me seguirá assim que tiver fornecido as necessárias indicações a Bell. Encontramo-nos no hall superior do cabo do funil, naquela peça pequena. Está lembrado?

— Sim senhor.

— Muito bem. Vão embora.

Rhodan esperou que os dois desaparecessem pelo elevador antigravitacional dos fundos da sala. Só depois disso pôs-se a caminho.

Para enganar o inimigo, não usou o mesmo elevador. Abriu a tiro uma das janelas, o que sem dúvida provocaria outro alarma, percorreu metade da circunferência do funil no peitoril que circundava as janelas e penetrou em outra sala pela mesma forma violenta que havia usado para sair da primeira. Isto provocaria um terceiro alarma. Após este lance desceu pelo elevador antigravitacional.

Esperava que os freqüentes desvios de rota e os avisos de avaria, acarretados pela destruição de portas, janelas e fechaduras, provocasse um quadro tão confuso que os arcônidas ficariam desorientados. Ao menos, chegariam à conclusão de que não havia três intrusos, mas ao menos uma dezena.

Rhodan chegou ao décimo andar sem encontrar qualquer habitante do funil. Mas, dali em diante, o destino parecia conspirar contra ele.

Enquanto caminhava de um elevador antigravitacional para outro, um homem saiu do inferior com uma rapidez espantosa. Sua vestimenta parecia um uniforme. Devia ser um dos membros da guarda palaciana de Sergh. Rhodan viu-o abrir a boca de pavor.

Também viu o movimento rápido em direção ao bolso lateral, onde devia estar guardada uma arma ou um aparelho de comunicação.

Rhodan precipitou-se para a frente, se é que isso podia ser chamado de precipitar-se. Ainda havia certa quantidade de gás paralisante em seu corpo. Por pouco o arcônida, um ser lento por natureza e por índole, não consegue pegar o aparelho antes que Rhodan se aproximasse dele. Praguejando por sua própria lentidão, Rhodan desferiu um tremendo soco, que fez o homem levantar-se na ponta dos pés, bater na parede e cair ao chão, inconsciente.

No andar seguinte, encontrou-se com uma mulher. Com a rapidez que é peculiar às mulheres numa situação como esta, esta começou a gritar. Os gritos atraíram outro arcônida.

Rhodan cuidou primeiro do homem. Ainda bem que os arcônidas eram ainda menos ágeis que ele mesmo na situação em que se encontrava. Depois, esquecendo tudo que já aprendera sobre os deveres de um cavalheiro, deu uma vigorosa bofetada na mulher, que logo desmaiou, provavelmente antes de indignação que em conseqüência dos efeitos físicos do ato.

Um pouco mais rápido que antes, mas muito menos rápido do que desejaria, continuou na sua corrida. Em cada um dos andares teve de brigar ao menos com um arcônida e finalmente atingiu o elevador antigravitacional que conduzia ao cabo do funil.

Com um último olhar, quase melancólico, para o lindo jardim perfumado, confiou-se ao campo antigravitacional. Empurrando-se com as mãos nas paredes do poço, desceu velozmente à sala em que se encontraria com Tako Kakuta.

O japonês ainda não havia chegado. Teria de esperar.

Tako levou apenas alguns minutos para encontrar a sala sobre a qual Rhodan lhe havia falado. Ficava no mesmo pavimento da sala do simulador de Sergh. Tako descreveu o caminho, e Bell disse que saberia chegar lá, fosse o que fosse que se interpusesse no seu caminho.

Tako desapareceu.

Bell atravessou alguns dos aposentos privados de Sergh e acabou encontrando a sala descrita por Tako. Pôs os aparelhos a funcionar. Entre eles havia alguns que não conhecia. Sentiu-se aliviado quando as telas se foram iluminando.

Colocou o observador para trabalhar no pavimento superior do cabo do funil, e após poucos segundos encontrou Rhodan e o japonês.

Não sabia se havia algum instrumento acústico acoplado ao observador. Por isso fechou o capacete e disse ao microfone:

— Eu os vejo perfeitamente.

Rhodan ouviu estas palavras em seu receptor e também fechou o capacete.

— Está bem — respondeu. — Fique de olho em nós.

— Não se preocupe — exclamou Bell.

No cabo do funil, havia cerca de cinqüenta salas de máquinas. Rhodan tinha certeza de que a que procuravam devia ser a maior de todas. Mandou que Tako saísse por ali e, em cada lugar que surgisse, lhe desse uma descrição minuciosa das máquinas vistas.

Rhodan sabia o que estava procurando. Era uma série de instrumentos que permitisse o controle ou, mais precisamente, o telecontrole, de um ou alguns geradores de campo de sucção. O equipamento teria que incluir antes de mais nada um estojo de telecomunicação que permitisse a emissão dos sinais de comando. Além disso, seria necessário um gerador destinado a fornecer a energia indispensável às transmissões em alta potência. É que os geradores do campo de sucção do espaçoporto de Naatral deviam gerar campos marginais tão fortes que uma transmissão comum não chegaria até as máquinas, já que seria absorvida ou superada pelos campos marginais.

Face a esses conhecimentos, não teria dificuldade em encontrar aquilo que estava procurando. Depois do sexto salto, Tako Kakuta forneceu uma descrição do grande pavilhão onde se encontrava. O relato coincidia tão perfeitamente com aquilo que Rhodan tinha em mente que já não podia haver a menor dúvida.

Face ao volume de interferências que a massa de máquinas produzia nas comunicações de rádio, a voz de Tako saiu tão distorcida que Rhodan mal conseguiu entendê-la.

Rhodan gritou:

— Nessa sala deve haver um aparelho de telecomunicação de elevada potência. Procure localizá-lo.

A resposta de Tako foi incompreensível. Mas dali a pouco sua voz saiu bastante nítida do alto-falante:

— Estou diante do aparelho. O que devo fazer?

— Recue três passos, aponte o radiador térmico e arrebente o negócio.

Reginald Bell acompanhava os dois na tela de imagem: Perry Rhodan e o japonês. Com o espírito tenso, viu os movimentos do japonês quando este levantou a arma e a apontou para a face larga da caixa do tele comunicador...

Ouviu o chiado produzido por seus receptores audiovisuais no momento em que o telecomunicador ativou suas reservas de energia. Viu que as imagens assumiram um tom violeta. Gritou:

— Perry! Tako! Parem! Aquilo tem uma proteção mental. Não...

Era tarde. As reações de Rhodan e do japonês foram muito lentas. Não dispunham da energia provocada pelo pavor súbito, que ajudara Bell a superar os efeitos do gás paralisante. Tako Kakuta já estava com o dedo no gatilho e a arma disparou antes que tivesse tempo de reagir ao grito de Bell.

Alguma coisa explodiu no cérebro de Tako com a violência duma bomba.

Alguma coisa ofuscou Perry Rhodan, fê-lo gritar de dor e o atirou ao solo, inconsciente.

Alguma coisa atravessou o crânio de Reginald Bell, deixando um rastro de fogo e atirando-o para fora da poltrona, inconsciente.

Alguma coisa fez com que, naquele instante, toda vida consciente se apagasse na casa do eminente administrador Sergh.

 

Fosse o que fosse, os efeitos não foram tão desagradáveis como os do gás paralisante que Perry Rhodan respirara horas antes.

Abriu os olhos e, surpreso, percebeu que se encontrava num dos camarotes do hospital da Ganymed.

Dois rostos inclinaram-se sobre ele: o do Dr. Manoli, o velho Eric, amigo e companheiro de lutas de antes da primeira viagem da nave lunar Stardust, e o de Thora.

Manoli disse com um sorriso:

— Não faça drama, chefe! Nada lhe aconteceu.

Rhodan protestou:

— Pois eu não disse nada.

Thora perguntou em tom preocupado:

— Como vai o senhor, Perry?

— Bem, obrigado. O que houve? Onde estão Bell e Tako? Como viemos parar aqui?

Manoli interrompeu-o com um gesto.

— Devagar. Vamos por partes. Primeiro: gostaríamos que o senhor nos contasse o que houve. Segundo: Bell e Tako estão nas cabines ao lado. Pelo que conheço de Bell, ele não demorará em recuperar os sentidos. No japonês pode demorar mais um pouco. Terceiro: vocês vieram para cá por assim dizer nos braços de robôs. Planadores não tripulados largaram-nos junto à Ganymed. Só tivemos que recolhê-los. Até regularam os neutralizadores de seus trajes de tal maneira que a gravitação de Naat não lhes causou o menor dano.

— Hum. O quê...?

Passou a mão pela testa, pois lembrou-se de que a dor que lhe roubara a consciência viera da cabeça. Manoli compreendeu o gesto.

— Ao que tudo indica, vocês foram derrubados por um choque mental. Provavelmente é de origem artificial. Devia ter a força dos impulsos de mil sugestores odientos.

Rhodan olhou para a frente, pensativo.

— Isso lhe diz alguma coisa? — perguntou Manoli.

— Acho que sim — respondeu Rhodan. — Como é? Posso levantar? Sinto-me...

— Sim, já sei. Você se sente com a força de dois ursos. Se quiser pode sair da cama.

— Excelente. Como vai a Ganymed? Continua presa?

— O que você pensava?

— Está certo, o que é que eu poderia pensar? Pode fazer o favor de convocar a oficialidade para uma reunião na cantina, daqui a meia hora?

Manoli confirmou com um aceno de cabeça.

— Posso. Aliás, há outra coisa.

— O que é?

— A permissão para que Thora e Crest viajassem para Árcon foi revogada.

Rhodan ficou perplexo.

— Como foi isso?

— Foi muito simples. Freyt recebeu um chamado acompanhado dum sinal de falta de imagem. Uma voz meia arrogante disse que a permissão havia sido revogada e que não chegaria nenhuma nave para levar os dois. Foi só. Não foi indicado qualquer motivo, e não houve nenhuma oportunidade de formular uma pergunta.

Rhodan olhou para Thora.

— Receio que a culpa seja minha — disse em voz baixa. — Tentamos inutilizar os geradores do campo de sucção, e a senhora ficou ligada à operação. Sinto muito.

Thora tranqüilizou-o com um gesto. Falando em inglês, disse:

— Esqueça isso! Talvez nem teria sido bom se tivéssemos voltado a Árcon em condições tão humilhantes.

Rhodan ergueu as sobrancelhas.

— Acredita que ainda conseguirá ir a Árcon em outras condições?

Thora sorriu. Rhodan teve a impressão de que foi um sorriso um tanto matreiro.

— Acredito, sim — respondeu.

— Ah, é? Como pretende fazer isso?

Thora deu um passo em direção a Rhodan.

— O senhor encontrará um meio, não é mesmo?

 

Perry Rhodan nunca tivera um auditório em cujos rostos a tensão se desenhasse com tamanha nitidez. A oficialidade da Ganymed atingia, além dos mutantes, um total de oitenta e oito homens. O cassino, no qual caberiam confortavelmente cem pessoas, parecia vazio, com exceção do semicírculo de homens que se comprimiam em torno do orador.

Bell estava presente. Afirmava que sua cabeça parecia um tambor em que alguém batesse com dois martelos, mas não queria perder a palestra de Rhodan.

É claro que Thora e Crest também estavam presentes. Thora exibia um sorriso que para Rhodan era otimista demais face à situação em que se encontravam.

Rhodan principiou:

— Treze anos depois da decolagem do primeiro foguetezinho que levaria quatro homens à lua terrena, outros homens, ou, mais precisamente, terranos, favorecidos pelas circunstâncias, procuraram avançar até o coração do império mais poderoso de toda a história galáctica.

“Há treze anos a humanidade ainda tinha certeza de que o primeiro encontro com uma inteligência irmã só lhe seria concedido num futuro distante, se é que isso se tornasse possível um dia.

“A humanidade estava enganada. A primeira viagem espacial proporcionou o encontro. Os acontecimentos tiveram seu curso. Com a fanfarronice e a despreocupação típica do terrano, este se viu consagrado numa série de importantes decisões, avançou muitos anos-luz, até mesmo milhares de anos-luz pela Galáxia. Derrotou outros seres e um belo dia, mais uma vez sob a força das circunstâncias, acreditou ter chegado a hora em que pudesse avançar até o coração do Império Galáctico, onde seria recebido como um amigo há muito esperado.

“É claro que isso foi pura tolice ou, se preferirmos, um raciocínio inspirado no desejo. Os padrões aplicados revelaram-se falhos. O terrano imaginava que o Grande Império fosse algo semelhante ao império de Alexandre, o Grande, ou de Dchengiscan.

Veio com a idéia de que as coisas não poderiam ser tão más assim.

“Foi quando recebeu a primeira lição. Teve de aprender que uma raça que, quando se encontrava no auge, conseguiu criar um império que abrangeu todo o grupo M-13, chegou mesmo a estender-se à parte da Galáxia propriamente dita. Esta raça será extremamente poderosa mesmo quando pelas veias de seu habitante já não circular o sangue vermelho, mas uma mistura de vapores tépidos, e os homens se tiverem tornado tão apáticos que raramente saem das camas.

“A tecnologia arcônida garante a conservação da raça. Essa tecnologia chegou mesmo a governar os arcônidas. No momento crítico, uma máquina passou a dirigir os destinos do Império, transformando seus imperadores e administradores em simples marionetes.

“Devíamos saber, meus caros, que um mundo destes não pode ser conquistado na primeira investida. Mas nossa imaginação não foi capaz de conceber as coisas que encontramos por aqui. Avançamos sem maiores cautelas e quase quebramos a cara.

“Pretendíamos ir a Árcon, mas estamos presos em Naat. Mais do que isso, em virtude de nossa atuação precipitada, Thora e Crest, os amigos arcônidas que estão conosco, foram impedidos de viajar para Árcon. Tentamos libertar nossa nave, mas a única coisa que conseguimos foi um choque mental sob cujos efeitos Tako Kakuta ainda se acha inconsciente.

“Quem fez tudo isso não foi o arcônida que exerce um simulacro de governo em Naat. Ele não nos poderia impedir realmente de libertar a Ganymed. Quem trabalhou por ele foi a máquina instalada em Árcon. Naatral é um campo de pouso da frota de guerra arcônida e está submetido ao cérebro positrônico que assumiu o poder em Árcon. Os aparelhos de comando da aparelhagem do espaçoporto estão instalados no funil de Sergh, mas não controlados pelo cérebro positrônico. Não tenho a menor dúvida de que no instante em que o cérebro positrônico constatasse que um aparelho importante estivesse ameaçado, não só nós, mas todos os ocupantes do funil seriam postos fora de ação. Foram robôs que nos trouxeram até aqui. Provavelmente serão também robôs que voltarão a despertar Sergh e seus homens para a vida. A máquina sabe como proteger-se. E, para fazer isso em benefício do Império, não tem a menor consideração, nem por um inimigo, nem por um arcônida.”

Rhodan fez uma pausa. Viu que suas palavras deviam ter causado uma impressão profunda nos ouvintes. Prosseguiu:

— Estamos presos aqui porque, se avaliamos corretamente o arcônida individual como um ser indolente e decadente, cometemos um erro de avaliação quanto à tecnologia arcônida. Nem por isso vamos perder a esperança. Não nos esqueçamos do pronunciamento do ser coletivo do planeta Peregrino, que prometeu à humanidade o domínio da Galáxia. Temos certeza de que essa promessa se cumprirá ainda no nosso tempo.

“Não esperemos que isso aconteça. Façamos o que depender de nós.”

Rhodan interrompeu-se, passou a mão pelo cabelo, olhou seus oficiais e concluiu:

— Era o que eu lhes queria dizer. Não acreditem que estamos à mercê dessa supermáquina instalada em Árcon. Afinal, somo terranos. Sem querermos enganar nossos amigos, que afinal os arcônidas deveriam ser, ainda dispomos ao menos de um trunfo.

— Gostei muito — confessou Bell. — Foi patético e impressionante. Até cheguei a levantar a crista. Bem que gostaria de saber por quê...

— O que quer dizer? — perguntou Rhodan em tom inocente.

— Gostaria de saber qual é o trunfo que ainda temos.

Rhodan fez uma careta.

— Ainda não descobriu?

Bell sacudiu a cabeça. Rhodan deu uma risada e bateu no ombro do amigo.

— Procure refletir, Bell. E prepare-se para um trabalho muito perigoso.

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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