Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VÔO PARA O INFINITO / Clark Darlton
VÔO PARA O INFINITO / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VÔO PARA O INFINITO

 

A Terceira Potência, dirigida por Perry Rhodan — uma combinação feliz da energia humana com a supertecnologia arcônida — pode apresentar, nos seus anos de existência, uma história muito movimentada, cheia de dramáticos altos e baixos.Mas os acontecimentos mais recentes dão a impressão de que, ao defrontar-se com os saltadores ou mercadores galácticos, Perry Rhodan vê-se diante de um poder que tem a intenção e a capacidade de destruir a Terra para eliminar um possível concorrente no comércio interestelar: Por enquanto ainda se mantém a linha de defesa do sistema de Albíreo, formada pelos cruzadores pesados Terra e Solar System. Mas quanto tempo demorarão os saltadores para descobrir que os terranos apenas realizam uma manobra diversionista? Para Perry Rhodan o tempo urge. Mas, para conseguir uma arma eficaz, capaz de defendê-lo contra os saltadores, terá que retornar ao planeta da vida eterna... e realizar um Vôo Para o Infinito.

 

                                 

 

À primeira vista, percebia-se que a gigantesca nave espacial não fora construída por mãos humanas. Deslocando-se em queda livre, descrevia sua órbita em torno do Sol a uma distância de quinze horas-luz. Com seus instrumentos ultra-sensíveis, observava os planetas do sistema. Sua forma lembrava um enorme rolo compressor, arredondado na frente e achatado na parte de trás. Tinha trezentos metros de comprimento e cinqüenta de diâmetro. A intervalos regulares, a luz brilhava nas janelas redondas. Atrás delas, moviam-se enormes sombras quadráticas.

A nave estranha não estava só. Era acompanhada por mais sete. A frota movia-se em torno do Sol, dirigida por seres que jamais haviam posto os pés na Terra. E não apresentavam aspecto humano. Sua pátria não era nenhum planeta, mas o espaço cósmico. Viviam no interior das naves e faziam seus negócios com todas as raças inteligentes do universo. Amavam a paz somente quando a mesma lhes proporcionava lucros. Sempre que uma guerra prometesse ser mais lucrativa, faziam com que irrompesse. Eram tolerantes e autoritários ao mesmo tempo, tinham senso de humor e ao mesmo tempo caracterizavam-se por uma dureza implacável, que se manifestava toda vez que alguém se intrometia em seus negócios.

Na sala de controle da nave capitania, o comodoro Topthor movia-se pesadamente diante das telas ligadas. Movia-se pesadamente, porque segundo as concepções terrenas seu peso quase chegava a meia tonelada. Sua largura equivalia à altura: um metro e sessenta centímetros. A cor da pele caía para o esverdeado e o crânio liso não apresentava nenhum fio de cabelo. Em compensação, seguindo os costumes de sua raça, ostentava uma barba ruiva.

Os mercadores galácticos descendiam dos arcônidas, uma raça que, sendo dona de um grande império situado a trinta e quatro mil anos-luz da Terra, tornara-se fraca demais para controlar o mesmo. Face a isso, os mercadores adquiriram sua independência e criaram um império próprio. Estabeleceram contato com todos os planetas habitados e viviam exclusivamente do comércio.

Mas Topthor não era um mercador comum; pertencia ao clã dos superpesados. Há tempos imemoriais, quando os descendentes dos arcônidas ainda viviam em planetas, seu clã habitava um planeta em que a gravitação chegava a 2,l g. Em virtude disso, sofreram, no curso das gerações, uma série de alterações anatômicas, que conferiram a seu corpo o formato atual. Eram criaturas estranhas em meio à própria raça, mas o pensamento galático não admitia qualquer forma de discriminação. Com sua esperteza, os mercadores — ou saltadores, como também eram chamados — resolveram extrair da modificação da estrutura anatômica de seus companheiros um proveito para si, e também para estes. Os superpesados transformaram-se na tropa de defesa dos saltadores. Ganhavam a vida fornecendo proteção aos seus companheiros de raça sempre que estes o desejassem e, se necessário, lutando por eles.

Mas, desta vez, Topthor estava agindo por iniciativa própria.

Encarou a tela da frente. Nela se projetava a imagem de um planeta verde-azulado que, segundo tudo indicava, servia de sede a uma civilização florescente. Os continentes jaziam em meio aos mares azuis. Camadas de nuvens brancas cobriam certos trechos de terra, ocultando os detalhes.

O ser gigantesco com o rosto de traços quase humanos bateu com a mão grosseira num botão. Imediatamente outra tela iluminou-se. O rosto de outro superpesado surgiu na mesma.

— O que deseja, Topthor?

— Dizem que é ali, no planeta número três do sistema, não é? Que coisa estranha! Só hoje ficamos sabendo...

— Costumam ser chamados de terranos — completou o outro. — Só praticam a navegação espacial de poucos anos para cá e já querem estragar nossos negócios. Estão mantendo relações comerciais com dois sistemas solares.

— Sei, Grogham. As mensagens radiofônicas de nossos irmãos foram bastante claras. Pelo que me lembro, Orlgans e Etztak trocaram relatórios minuciosos, e tivemos oportunidade de ouvir os mesmos. É bem verdade que não pediram que lhes prestássemos socorro, mas as leis de nosso povo não proíbem nossa intervenção, desde que a mesma não cause prejuízo a outro grupo de mercadores.

Conversavam em intercosmo, a língua universal pela qual costumavam comunicar-se as raças de astronautas do Império. Grogham passou a mão pela barba, que o fazia parecer mais velho do que provavelmente era.

— Pelos últimos relatórios, Orlgans e Etztak estão ocupados em capturar o encarregado do terrano Perry Rhodan, que se entrincheirou num planeta gelado, a cerca de trezentos anos-luz daqui. Por que não vamos aproveitar o tempo para dar uma olhada por aqui? Afinal, o planeta número três é a causa de toda agitação. Talvez possamos fazer um bom negócio.

De um instante para outro, Topthor assumiu uma atitude fria.

— Aqui não se fazem negócios, Grogham. Aqui não! Até parece que o senhor ainda não compreendeu que, pela primeira vez, nos vemos diante de uma concorrência mais séria. No curso de um decênio o tal do Rhodan transformou este planeta subdesenvolvido numa potência interestelar. Suas naves atacam-nos. Com isso declarou a guerra contra nós, os saltadores. Por quê? Apenas porque tentamos olhar suas cartas.

— Nós não — retificou Grogham em tom um pouco pedante — mas Orlgans. Foi ele que aprisionou duas naves de Rhodan, para interrogar seus ocupantes. Será que isso representa um ato amistoso?

— Silêncio! — berrou Topthor. E quando esse colosso de meia tonelada berrava, até mesmo as telas de naves distantes tremiam. Por isso não era de admirar que Grogham se assustasse. Afinal, era apenas o comandante de uma das naves pertencentes à frota mercante e de guerra de Topthor. — Acha que estou interessado em futilidades desse tipo? Acha que realizei um vôo tão longo apenas para intrometer-me nos negócios de outros clãs ou até vir em auxílio dos mesmos? Se pudermos auferir algum lucro, não tenho nada a opor. Acontece que por enquanto nem Orlgans nem Etztak solicitaram auxílio. E um auxílio não solicitado não costuma ser pago.

Grogham parecia desorientado.

— Se é assim, por que viemos para cá, Topthor? Não me lembro de que alguma vez o senhor tenha feito qualquer coisa sem um motivo.

— A observação é muito inteligente — elogiou-o Topthor, que se sentia lisonjeado. — Nunca faço coisa alguma em troca de nada. Também desta vez não estou fazendo. Acompanhei atentamente as informações de nossos robôs de espionagem, já desativados, e as mensagens transmitidas por nossa estação instalada na lua Titã. Rhodan não estará em condições de enfrentar Etztak, se este se lembrar de chamar nosso grupo ou outras unidades de combate. Ainda não o fez porque isso custaria dinheiro. Por isso Rhodan pretende conseguir as armas de que precisa para vencer o inimigo, especialmente Etztak. Onde pretende conseguir essas armas? Grogham não sabia.

— Eu sei! — exultou o comandante da frota. — É bem verdade que todo mundo se mostra bastante cético ao falar no planeta da vida eterna. Apenas correm boatos a respeito de sua existência, mas ninguém sabe se a lenda tem um fundo verdadeiro. Quanto a mim, estou inclinado a admitir algumas gotas de verdade em toda e qualquer lenda, inclusive nesta.

— O planeta da vida eterna? — murmurou Grogham, incrédulo. — Já ouvi falar a respeito. Dizem que percorre sua órbita imprevisível em algum ponto na amplidão do espaço, mas até agora ninguém o encontrou. É um belo conto de fadas.

— Conto de fadas coisa alguma! — berrou Topthor, furioso. — O senhor acredita que esse Rhodan correria atrás de um fantasma quando sua existência está em jogo? Tenho informações seguras de que sabe onde fica esse planeta legendário. Conhece a posição do mesmo. E pretende ir para lá em busca de novas armas. Se conseguir, nossa posição dominante na galáxia terá chegado ao fim. Mas se chegarmos antes dele, faremos o melhor negócio de nossa vida.

— Será que Etztak tem conhecimento das intenções de Rhodan?

— É claro que tem, mas é um idiota tal qual o senhor: não acredita na existência do planeta misterioso. Acha que é mais importante pegar esse funcionariozinho de Rhodan, o tal do Tifflor, que se escondeu naquele planeta de gelo. Bem, sou mais inteligente que Etztak.

Grogham não contestou essa afirmativa.

— No momento não estou interessado em Etztak, nem nas táticas desenvolvidas pelo mesmo — prosseguiu Topthor. — Nossa missão consiste apenas em vigiar Perry Rhodan, esse indivíduo extraordinário que conseguiu arrebatar os segredos que os arcônidas guardavam com tanto cuidado. Bem que esse terraqueozinho me impressiona. Mas não me posso deixar levar pelo sentimento; afinal, o objetivo final dele consiste em romper nosso poder. Se a ordem voltar a reinar no reino dos arcônidas, não seremos mais os únicos que fazem os negócios, e a exploração dos mundos recém-descobertos terá chegado ao fim.

— As informações recebidas dizem quando deve decolar?

— Quem? Rhodan? Pois é justamente isso, não sabemos. As informações que recebemos são antigas, ou melhor, relativamente antigas. O fluxo de comunicações foi interrompido quando, numa ação em grande escala, Rhodan conseguiu pôr fora de ação nossa estação retransmissora, ou melhor, a de Etztak. Só fomos informados de que Rhodan procurará visitar o planeta da vida eterna. E o mais importante da história é isto: procurará visitá-lo mais uma vez. Dali se conclui que já esteve lá, motivo por que deve conhecer sua posição.

A barba de Grogham tremia de forma bem visível. Seus olhos arregalaram-se.

— Já esteve lá? — respirava pesadamente. — Por todos os deuses do universo e por todos os mercados da Galáxia...

— Então? — exultou Topthor. — Agora a conversa já é outra, não é? Não estamos seguindo nenhuma pista errática, mas corremos atrás de uma realidade. Aliás — disse, mudando de assunto de um instante para outro — ainda não há notícias das outras naves?

— Estão estacionadas do lado oposto do sistema, a trinta anos-luz do ponto em que nos encontramos. Por enquanto não observaram a decolagem de qualquer nave terrena. E não houve nenhuma transição.

Topthor acenou com a cabeça; parecia satisfeito.

— Isso é importante. As transições acabarão traindo Rhodan. Nossos rastreadores de estrutura espacial permitem observar e calcular qualquer movimento que se realize no plano existencial da quinta dimensão. Basta acompanharmos as transições e, se tivermos bastante sorte, rematerializaremos nas imediações do lugar em que Perry Rhodan e suas naves regressarem ao espaço normal.

— É um plano muito bem concebido — confessou Grogham. — Tomara que a espera não seja muito demorada.

— Nem que demore anos — retrucou Topthor em tom mordaz. — De qualquer maneira compensará. O planeta da vida eterna! O que significam alguns anos perdidos diante dele?

Mais uma vez Grogham ficou sem resposta.

Num silêncio total, as oito naves continuaram a percorrer seu caminho em torno do Sol, esperando que algum terrano deixasse o planeta Terra e o Sistema Solar. Formavam uma barreira que não poderia ser rompida sem pôr em alarma os ultra-sensíveis aparelhos de observação.

Sem que o soubesse, a Terra se transformara no centro de um cinturão de defesa intergaláctica.

E esse cinturão tinha tempo de sobra; poderia esperar...

 

Acontece que Perry Rhodan não tinha muito tempo.

Aquilo que conseguira evitar durante um decênio acabara de acontecer. A raça mais poderosa do Grande Império dos arcônidas tivera sua atenção despertada para a Terra. O tempo do isolamento salvador e da anonimidade benfazeja havia chegado ao fim. Justamente os saltadores, os mercadores galácticos, foram descobrir a Terra!

A primeira batalha havia sido ganha. Todos os robôs de espionagem de que os saltadores se valeram na Terra e no sistema solar foram postos fora de ação. Num ataque-relâmpago, Rhodan conseguira destruir a estação de rádio instalada em Titã. Mas a luta ainda não estava decidida. No distante sistema da estrela gêmea de Beta-Albíreo, a trezentos e vinte anos-luz da Terra, os cruzadores pesados Terra e Solar System estavam em luta contra a frota mercante armada de dois comandantes dos saltadores, Orlgans e Etztak. No segundo planeta do sistema, formado por um mundo de gelo primitivo, o cadete Julian Tifflor e seus companheiros persistiam em suas posições e aguardavam a libertação. Gucky, o pequeno rato-castor dotado de faculdades extraordinárias, estava com eles. Talvez conseguissem reter os saltadores e desviar sua atenção de Rhodan, até que este conseguisse as armas necessárias para expulsar os intrusos de uma vez por todas.

Por isso não se podia dizer que a situação fosse brilhante no momento em que o gigantesco couraçado Stardust-III, uma nave esférica de oitocentos metros de diâmetro, corria vertiginosamente em busca do ponto de transição.

Perry Rhodan se sentia nervoso.

O fato deixou Reginald Bell bastante contrariado.

— Gostaria de saber por que você se preocupa tanto, chefe — disse o amigo para alegrá-lo. — As coisas estão correndo muito bem. Não precisamos preocupar-nos com Gucky e Tiff; eles darão seu jeito. Quanto a Nyssen...

— A tarefa do major Nyssen não é fácil — ponderou Rhodan em tom sério. — Os dois cruzadores comandados por ele sabem o que devem fazer, mas não sei por quanto tempo agüentarão essa história de voar constantemente para realizar ataques simulados. E há um ponto ainda mais delicado. Os saltadores são uma raça inteligente, e ninguém sabe quanto tempo levarão para perceber que apenas pretendemos detê-los.

— Por que esses seres são chamados de saltadores? São iguais a nós.

— É porque não possuem uma verdadeira pátria: saltam com suas naves mercantes de um sistema solar a outro. Também são chamados de mercadores, mas acho que o nome saltadores é mais apropriado, porque acentua sua condição de apátridas.

Bell olhou para a tela. Júpiter, o planeta gigante, deslocou-se para fora do campo de visão. Desenvolvendo uma velocidade próxima à da luz, a Stardust-III corria em direção ao ponto de transição situado além da órbita de Plutão.

— Ainda demorará muito?

Rhodan franziu a testa.

— Você tem um talento inigualável para exprimir os problemas mais complexos através de perguntas simples, meu amigo. Ainda demorará muito? Pois é isso que me deixa mais louco em toda a história. Receio que no momento não possa dar resposta à sua pergunta. Você deve estar lembrado de que já estivemos no planeta da vida eterna e, quando regressamos à Terra, quatro anos e meio se haviam passado. O planeta Peregrino constitui o produto artificial de um superser, e sua existência desenvolve-se num plano temporal diferente do nosso. De qualquer maneira, precisamos ir até lá para obter uma nova arma que nos permita expulsar os saltadores. O que acontecerá se retornarmos depois de um ou dois anos, mesmo que na nossa opinião só tenhamos permanecido poucos dias no Peregrino?

Um sorriso pálido passou pelo rosto largo de Bell. Seu cabelo ruivo em escovinha não fez o menor esforço para, num gesto de protesto, libertar-se da brilhantina que o prendia, conforme era seu costume. Fez um gesto de desprezo com a mão grossa.

— Por que iria acontecer uma coisa dessas? Pediremos àquilo que compense a diferença de tempo.

Por um instante Rhodan parecia perplexo, mas logo deu de ombros.

— Acho que aquilo vai mandar-nos para o inferno.

Aquilo era o ser incompreensível abrigado pelo planeta Peregrino. Representava a união de um povo muito antigo. Encerrava em si bilhões de seres vivos, que renunciaram voluntariamente aos seus corpos. Poderia ser comparado com um ser energético que encerrasse em si a inteligência de toda a Humanidade. Aquilo — um milagre de início incompreensível, que só começava a ser compreendido quando a pessoa se desse conta do fato de que, apesar da sua infinita superioridade, possuía uma boa dose de senso de humor.

— Por quê? — objetou Bell. Desta vez manteve-se sério. — Afinal, você sempre se deu bem com ele, tanto por ocasião da primeira visita como da segunda, que só durou alguns minutos. Por que não nos prestaria o favor de eliminar só por uma vez o tal do fator tempo?

Meio distraído, Rhodan comprimiu um botão. Uma pequena tela iluminou-se. O rosto de um homem surgiu na mesma. Pertencia a um telegrafista.

— Pois não.

— Envie pelo hiper-rádio uma mensagem destinada ao major Nyssen. Posição: sistema Beta-Albíreo, a trezentos e vinte anos-luz. As coordenadas já são conhecidas. O texto será codificado. O teor da mensagem é o seguinte...

Refletiu por alguns segundos e prosseguiu:

— Para os cruzadores Terra e Solar System. Mantenham posições a todo custo sem arriscar as naves. Os saltadores têm de ser mantidos afastados da Terra. Avisarei assim que retornar do Peregrino. Tempo de ausência desconhecido. Rhodan.

O telegrafista confirmou com um aceno de cabeça.

— Com impulsos cruzados?

— Evidentemente. E logo.

Bell viu que o rosto na tela foi se desvanecendo aos poucos, transformando-se numa série de espirais coloridas, que se tornavam cada vez mais apagadas até desaparecerem de todo.

— Tomara que ninguém pegue o sinal — murmurou em tom preocupado.

— Pouco importa que o façam — tranqüilizou-o Rhodan. — Não faz mal que Etztak saiba que mantemos contato com as nossas naves. De qualquer maneira não conseguirá decifrar a mensagem.

— Não estava pensando nisso, chefe. Mas pode acontecer que haja naves dos saltadores por perto, e que estas nos localizem pelo goniômetro...

O rosto de Rhodan tornou-se mais pálido. Compreendeu imediatamente o raciocínio de Bell. Se alguém conhecesse o ponto de transição e se grudasse atrás deles, não era impossível que conseguisse segui-los. Com os instrumentos de localização ultra-sensíveis e os rastreadores estruturais o problema não seria insolúvel. Mas acabou sacudindo a cabeça.

— Destruímos as instalações automáticas de espionagem que os saltadores haviam instalado no sistema solar. E não têm outras naves neste setor do espaço.

Nem ele nem Bell sabiam da existência dos chamados superpesados. Muito menos tinham conhecimento do fato de que justamente esse clã belicoso estava empenhado em descobrir através deles o planeta da vida eterna. Pela primeira vez Rhodan cometeu o erro de subestimar um inimigo. Era bem verdade que sabia que nunca conseguiria vencer os saltadores com os recursos convencionais, pois a raça era muito antiga e experimentada. Através dos negócios de troca realizados com quase todos os mundos habitados da Via Láctea, conseguiram apoderar-se de todos os tipos de armas que existiam. Nem mesmo um Perry Rhodan poderia enfrentar um inimigo destes. Ainda não.

Ainda acontecia que Rhodan estava bastante nervoso. A insegurança que sentia face à peça que o deslocamento temporal poderia produzir em seus planos deixou-o intranqüilo e imprudente. O conselho de Bell, segundo o qual deveria pedir uma neutralização da diferença entre os dois planos existenciais afinal não passara de um conselho. Se aquilo daria ouvido ao pedido já era outra questão.

Seus pensamentos sombrios foram interrompidos por um zumbido. Um relé ligou-se, estabelecendo uma ligação automática entre a sala de comando e a de telegrafia. A confirmação de Nyssen acabara de chegar sob a forma de um impulso que durou apenas alguns segundos. Uma vez decodificado o mesmo, obteve-se este texto:

“Mensagem recebida. Não se preocupe. Daremos o que fazer aos mercadores. Eles não nos agarrarão. Esperamos que a Stardust-III não demore em chegar ao sistema de Albíreo. Até lá agüentaremos. Nyssen.”

Rhodan não parecia se sentir aliviado. Agradeceu ao pessoal da sala de telegrafia e ligou o intercomunicador, que levou sua voz a todos os cantos da gigantesca nave. Disse o seguinte:

— Sala de comando à tripulação. Dentro de cinco horas chegaremos ao ponto de transição situado além da órbita de Plutão. Meia hora antes da transição terá início a contagem regressiva, minuto a minuto. É só.

— Faltam cinco horas! — gemeu Bell num pavor esquisito. — E isso apesar da velocidade da luz.

Rhodan sorriu, mas desta vez seu sorriso não foi tranqüilizador como costumava ser.

— Acontece que a luz é muito lenta, Bell.

 

Topthor ergueu seu vulto gigantesco quando Grogham o chamou. A barba ruiva do companheiro tremia de excitação na tela que tinha diante de si.

— Topthor, nossos instrumentos constataram a presença de um gigantesco veículo esférico, que se dirige para fora do sistema. Suas dimensões são assustadoras...

— É a nave principal do tal do Rhodan — disse Topthor com um aceno de cabeça, sem mostrar-se muito impressionado. — Quer dizer que está na hora. Como conseguiram localizá-la?

— Através de uma mensagem de rádio. Constatamos a direção: Beta-Albíreo. Não conseguimos decifrá-la. Deve tratar-se de alguma informação destinada às forças que estão estacionadas naquele setor.

— Etztak que brigue com essas forças, Grogham. Quanto a mim, só estou interessado em Rhodan e no objetivo ao qual se dirige. Segui-lo-emos a uma distância segura. Ligue as barreiras de localização para que não perceba nossa presença. Assim que se realize a transição, calcule o local e a intensidade do abalo estrutural do espaço. Segui-lo-emos num salto de igual intensidade. Se tudo der certo, deveremos sair da quinta dimensão a uma distância máxima de um ano-luz de Rhodan. Entendido?

— Tudo entendido — confirmou Grogham, interrompendo a ligação.

Topthor deixou-se cair novamente na poltrona e acompanhou os acontecimentos na tela. De início viu uma esfera minúscula, que saía do sistema solar à velocidade da luz. Passaria a meia hora-luz da frota dos superpesados que se mantinha à espreita. As barreiras de localização teriam que ser ligadas. Com isso, a pequena frota de Topthor se tornaria invisível aos instrumentos de Rhodan.

Os três minutos transformaram-se em horas. A Stardust-III passou pelas oito naves em forma de rolo compressor e saiu para o espaço interestelar. A transição poderia ser realizada a qualquer momento.

Topthor mandou seguir nova rota. Acompanharam a Stardust-III numa distância bem calculada, que oferecesse a necessária segurança, e aguardaram a transição que decidiria tudo... e tudo revelaria.

A mesma foi realizada depois de mais duas horas.

Nas telas normais seguiu-se um ligeiro tremeluzir. Após isso, a gigantesca nave desapareceu como se nunca tivesse estado no lugar.

Os rastreadores estruturais captaram o abalo que atravessava a estrutura espácio-temporal a velocidade superior à da luz e mediram a intensidade do mesmo. Os instrumentos produzidos por uma tecnologia inacreditável começavam a funcionar. Dali a dez minutos ofereceram o resultado. Grogham anunciou-o com certo orgulho.

— Intensidade de 467,00958 unidades-salto. Direção constante. Distância de 1.603,18 anos-luz, mais ou menos 0,661. Tem alguma ordem, comandante?

— Vamos à transição. Imediatamente!

As mensagens de rádio correram pelas oito naves. Os relés estalaram. Os propulsores trabalharam com uma potência maior. A distância que separava Topthor do ponto em que a Stardust-III iniciara a transição teria que ser incluída nos cálculos.

Depois...

Um tremeluzir no lugar em que se encontravam as oito naves... e nada mais.

A frota de Topthor arriscara o salto para o desconhecido.

O abalo produzido pela transição multiplicada por oito correu pelo universo.

 

Ao sentir as primeiras dores, depois de recuperar a consciência, Rhodan percebeu que a transição fora bem sucedida. Perto dele, Bell tremia, e examinou as juntas, para verificar se as mesmas haviam voltado aos seus lugares. Sempre receava que, numa transição dessas, poderia haver uma pane em virtude da qual seu nariz reaparecesse em outro lugar.

— Está tudo aí? — perguntou Rhodan em tom irônico. Não participava dos temores secretos do amigo, mas em compensação tinha outras preocupações. — Tomara que consigamos encontrar o Peregrino.

O problema era este. O planeta artificial do superser era invisível a qualquer instrumento de localização e não podia ser localizado por meio da goniometria. Se não desse sinal de sua presença, nunca seria encontrado, a não ser por puro acaso. E Rhodan não gostava de confiar no acaso.

O planeta Peregrino descrevia uma órbita elíptica, levando dois milhões de anos para percorrê-la. Contornava cerca de trinta sistemas solares, que ficavam praticamente em linha reta. Dois deles formavam os focos da elipse. E o fato de que justamente o sistema solar terrestre era um desses focos deu muito que pensar a Rhodan. Em outra oportunidade verificaria o outro foco. Desconfiava que uma surpresa o aguardava naquele ponto.

Embora soubesse que isso não adiantaria nada, mandou pôr em funcionamento o instrumental comum de localização. Um olhar para a tela revelou-lhe que a Stardust-III se encontrava num setor da Via Láctea em que não havia estrelas. Num raio de cinqüenta anos-luz não havia nenhum sol. A uma distância muito grande estavam as inúmeras estrelas, irradiando sua luminosidade tranqüila, como que esperando. Não piscavam; pareciam ser os inúmeros olhos de um monstro incomensurável.

O quadro fora o mesmo tempos atrás, quando Rhodan se dirigira pela primeira vez ao planeta da vida eterna a fim de receber a ducha celular que deteria o processo de envelhecimento por seis decênios. Não havia nenhuma indicação de que, nas suas proximidades, descrevia sua órbita um planeta artificial, onde vivia aquilo. Aquilo, cuja pista Rhodan acompanhara pelo tempo e pelo espaço a fim de descobrir o segredo da imortalidade. Bem, o segredo continuou a ser um segredo, mas aquilo lhe oferecera a dádiva do prolongamento da vida, já que conseguiu solucionar todos os enigmas. Também Bell foi atingido pelo fenômeno, e ao menos pelos próximos sessenta anos não teria de preocupar-se para evitar o branqueamento de sua linda cabeleira ruiva.

Naquela oportunidade jamais teriam descoberto o planeta que, invisível aos olhos, descrevia sua órbita bem perto deles, se o mesmo não tivesse revelado sua presença. Subitamente alguma coisa monstruosa materializou-se num dos grandes pavilhões da Stardust-III. Tiveram que recorrer a todos os recursos fornecidos pela tecnologia para reduzir a coisa à impotência. E o ser incompreensível apenas soltara uma gargalhada homérica, como se tudo não passasse de brincadeira. Rhodan logo compreendera que realmente era assim.

Mas compreendera mais uma coisa. Aquilo teleportara o monstro para o interior da nave por meio de um transmissor fictício de matéria. E foi justamente por isso que resolveu retornar ao planeta Peregrino. Pretendia pedir àquilo que colocasse à sua disposição um desses TFM ou, se possível, dois. Não poderia haver uma arma mais perfeita.

— Encontraremos o Peregrino — disse Rhodan, para espantar as dúvidas de Bell. — Mas não sei quando.

Lembrou-se de como lhe falara da outra vez. Fora uma palestra amistosa.

Velho amigo — era assim que costumavam chamar-se. Afinal, aquilo tinha senso de humor.

— Anuncie o alarma número três. É bem possível que iniciemos com algumas brincadeiras mais rudes.

Bell acenou com a cabeça e dirigiu-se à sala de telegrafia para tomar as providências necessárias. Rhodan ficou só na grande sala de comando. Parado, fitava distraidamente a tela, que não mostrava nada além das estrelas distantes. Não havia o menor sinal do Peregrino, do planeta da vida, onde residia aquilo, sentindo um tédio terrível em virtude de sua imortalidade.

— Olá, querido! Rhodan quase teve um colapso. Era claro que havia moças e mulheres entre os quinhentos tripulantes da nave, mas não se lembrava de ter mantido relações íntimas com qualquer uma delas. Todas viam nele apenas o comandante, um comandante duro e bem-humorado, mas sempre distante. De repente...

Virou-se e contemplou o rosto de uma mulher. Não sabia por quê, mas aquele rosto lhe parecia familiar. Já devia tê-lo visto antes.

— Que é isso, querido? Não me conhece mais?

A voz era amável e sugestiva, atraente e provocadora. O rosto não era inocente, mas possuía certo encanto ao qual nem mesmo Rhodan conseguia fechar-se. Sabia que não se encontrava diante de um ser humano, mas de uma imagem material-intelectual do ser imortal.

— Olá, madame — disse, acompanhando o gracejo do grande ser. — Acredito que tenha vindo a pedido de meu amigo. Faça o favor de sentar.

— Para que tanta cerimônia, querido?

Aproximou-se dele e enlaçou seu pescoço com os braços finos. Rhodan sentiu o calor de seu corpo; era incapaz de mover-se. Parou estarrecido e aspirou o perfume da bela mulher. A mesma usava um vestido que parecia consistir unicamente num envoltório antigo.

— Hum — fez Rhodan, pigarreando desajeitadamente. Não tinha muita experiência no trato das mulheres, ainda mais de mulheres que nem sequer existiam. Mas a proximidade dessa figura corpórea era tão real como a do monstro terrível que tempos atrás sentira perto de si. De qualquer maneira, aquilo havia modificado sua tática, passando a utilizar mulheres em vez de monstros. Era um avanço considerável... conforme as circunstâncias.

— Então? — disse a bela com um sorriso tentador. — Acho que você não vai muito ao cinema, não é?

— Vou raras vezes — confessou Rhodan.

De repente soube quem era a pessoa que aparecera na sala de comando, vinda do nada. O imortal pesquisara sua memória e ali fora descobrir a impressão fugaz causada por um filme há muito esquecido... e materializara a mesma. Era por isso que tinha a impressão de conhecer aquela mulher.

— Perry! — disse esta subitamente e abraçou Rhodan com tamanha força que o mesmo não pôde esboçar qualquer gesto de defesa, embora estivesse firmemente decidido a fazê-lo se acontecesse o que estava acontecendo. — Você ainda me ama? Naquela oportunidade você gostou muito de mim, não gostou?

“Ora essa, a mulher nem sequer existe”, disse Rhodan amargurado de si para si, embora soubesse perfeitamente que existia. Não era a mesma personalidade, segundo lhe parecia. Apenas uma imitação materializada com base em sua memória. Ou então — e isso também já acontecera — aquilo trazia a criatura verdadeira da Terra, ou melhor, apenas seu espírito. E esse espírito bastava para materializar o ser. Aquilo já fora buscar grupos inteiros do passado da Terra, trasladando-os para o plano temporal do planeta Peregrino, onde agiam como se ainda se encontrassem na Terra.

Fosse como fosse, o calor do corpo da bela estrela de cinema, cujo nome Rhodan nem conhecia, era muito real. Procurou defender-se contra a sensação estranha que começou a apossar-se dele. Lançando mão de todas as forças que conseguiu reunir, procurou empurrar a mulher para longe.

Mas enganara-se. A bela tinha forças que lhe permitiriam derrubar um campeão de boxe. Rhodan não conseguiu afastá-la um centímetro que fosse. Pelo contrário. Com o sorriso mais gentil deste mundo, estreitou-o ainda mais nos braços e beijou seus lábios.

Rhodan talvez teria perdoado o gesto, se naquele momento Bell não tivesse voltado à sala de comando. Vinha acompanhado de Redkens, um cadete da Academia Espacial da Terceira Potência. Naquele vôo, trabalhava no setor de navegação da Stardust-III.

Valeria a pena pintar o rosto de Bell naquele instante. Deu dois ou três passos, antes de compreender o que os olhos viam. Logo ali, junto ao painel de controle, seu amigo e mestre Perry Rhodan debatia-se desesperadamente para não ser beijado por Cleópatra. Bell também vira o filme e guardava do mesmo uma lembrança mais precisa que Rhodan.

— Veja! — gemeu em sons inarticulados, apoiando-se na parede oval. — É a Rallas! É de enlouquecer.

— Quem? — gaguejou o jovem cadete, com o rosto vermelho que nem um pimentão.

Era um admirador fiel, embora desesperançado, da conhecida artista e não acreditou no que estava vendo quando a encontrou aqui, a mais de mil e quinhentos anos-luz de Hollywood, nos braços do chefe.

Com um grande esforço, Rhodan conseguiu virar a cabeça. Seu belo espírito parecia não apreciar a assistência que acabara de chegar. Furiosa, a figura por demais real mordeu as pontas das orelhas do amante rebelde.

Rhodan soltou um grito de susto e deu um pontapé nas canelas da famosa Rallas. Mas isso não parecia incomodá-la.

— Querido, eu o amo! — disse ela num sopro.

Bell esteve a ponto de sofrer um ataque. Teve de fazer um grande esforço para manter-se de pé. Com os olhos arregalados, contemplou a estranha cena. Nem se lembrou da possibilidade de que aquilo poderia ser o primeiro sinal de vida do imortal. Só via a bela mulher nos braços de Rhodan.

— Você contrabandeou ela para dentro da nave? — disse fora de fôlego. — Bem que poderia ter contado.

— Acho que devemos deixá-los sós — disse Redkens em tom cortês e dispôs-se a sair. Mas o grito desesperado de Rhodan deteve-o.

— Não se atreva, cadete Redkens! Liberte-me desta mulher, depressa!

— É Cleópatra! — retificou Redkens, perturbado. — Ou melhor, é a divina Rallas...

— Não importa quem seja! — esbravejou Rhodan, tentando libertar-se do abraço implacável da amante vinda do nada. — Vamos, ajudem! O que estão esperando?

Redkens não entendeu uma palavra do que o chefe estava dizendo. Por que trouxera Rallas, se não a queria? Nunca pensara que Rhodan fosse capaz de uma coisa dessas. Todavia...

— Pois vamos — gemeu Bell e pôs-se em movimento. — Não compreendo mais nada; talvez a mulher tenha enlouquecido.

Mal tocou o braço da bela Cleópatra, esta soltou Rhodan, virou-se e fitou o rosto vermelho de Bell.

— Bell, meu querido Bell! Venha para os meus braços, homem amado! — No mesmo instante Bell viu-se no aperto. — Então é aqui que voltamos a encontrar-nos.

Os lábios vermelhos da estrela tão distante comprimiram-se contra os seus, cumprindo um velho desejo, o de um belo dia ser beijado pela linda Rallas. Não ofereceu a menor resistência. Deixou que a mulher fizesse tudo, sem perturbar-se com a gargalhada homérica que veio ter aos seus ouvidos. Rhodan, livre por enquanto dos carinhos insistentes da visitante inesperada, não pôde reprimir o riso quando viu que Bell, frio como gelo e duro como aço, derretia literalmente nos braços da Rallas.

O cadete era o único que tinha que achar que o destino estava sendo injusto com ele. Olhava alternadamente Rhodan e o par enlaçado, e não sabia o que pensar da situação.

Finalmente o imortal parecia reconhecer que as coisas não poderiam continuar assim. Fez com que Cleópatra soltasse sua vítima.

De uma hora para outra, Bell estava só, abraçando alguém que não existia mais. O quadro era tão cômico que Rhodan esqueceu a raiva e pôs-se a rir. Bell abriu os braços, fechados num grande enlevo, e percebeu que estava tendo um comportamento ridículo. E isso na presença de Redkens que, encostado à parede, vivia gaguejando:

— Um autógrafo! Gostaria tanto de um autógrafo dela!

— Cale a boca, Redkens! Essa mulher nunca lhe poderia ter dado um autógrafo. Foi apenas um espírito.

Redkens não acompanhara a primeira viagem ao planeta da vida eterna, e assim não conhecia as brincadeiras do ser incompreensível.

— Um espírito? Ora, eu conheço a Rallas...

— Poderia perfeitamente ter sido Colombo — disse Rhodan. — Mas não me teria assustado como esta... como é mesmo o nome da mulher?

— Rallas, a divina Rallas — gemeu Redkens, decepcionado. — Como é que um espírito pode ter um corpo?

— Um espírito pode tudo — explicou Bell, que aos poucos se recuperava do choque e começava a compreender a ilusão em que caíra. — Cria ilusões materiais em nossa imaginação. Tudo não passa de uma materialização do pensamento. A lembrança de certo filme em que figurava a Rallas estava no subconsciente de Rhodan, e isso bastou para que o imortal realizasse a imitação perfeita da mesma e a fizesse materializar diante de nós. É muito simples, mas tenho que confessar que no primeiro instante caí na brincadeira.

— Foi um instante bastante comprido — objetou Rhodan.

Subitamente calou-se. Uma voz soou em seu cérebro; foi a mesma voz telepática silenciosa vinda dele, do imortal.

— Ei, amigo — disse aquilo. — Veio visitar-me? Pelo que vejo tem motivos importantes para isso. Bem, devíamos conversar prolongadamente a respeito. Mantenham a rota e a velocidade atual. Precisamente dentro de três minutos vocês baterão no campo protetor do Peregrino. Desliguem os propulsores.

Rhodan aguardou outras instruções, mas estas não vieram. Olhou para Bell.

— Ouviu uma voz?

— Não. Você ouviu?

Rhodan compreendeu que aquilo só se dirigira a ele. Por estranho que parecesse, tudo indicava que fazia questão de falar quanto antes com Rhodan. Era o que se concluía da informação sobre a posição exata do planeta.

— Desligue os reatores! — gritou Rhodan. — Bell, providencie para que a tripulação se prepare para uma forte desaceleração. Apesar dos nossos campos antigravitacionais, haverá uma forte pancada. Dentro de três minutos atingiremos o campo energético do planeta Peregrino. Ele nos freará. Depois...

Alguém riu. Foi Redkens. O jovem cadete permanecia encostado à parede. Segurava na mão um cartão postal com uma fotografia. Fitava a mesma e ria até que as lágrimas lhe corressem pela face.

Bell tirou-lhe a fotografia. Olhou-a apenas por um instante e começou a rir. Sem dizer uma palavra, passou a fotografia adiante. Rhodan viu uma fotografia nítida e colorida da dama que há poucos minutos o comprimira tão energicamente contra seu busto. Embaixo dela estava escrito em letra delicada:

 

Ao meu grande admirador Redkens,

com sinceros votos de felicidades.

Rallas.

 

As naves espaciais dos saltadores foram construídas segundo os princípios arcônidas, embora nem sempre fossem iguais umas às outras. As naves capitanias de cada clã estavam equipadas com rastreadores estruturais, que registravam e indicavam qualquer abalo da estrutura espaço-temporal. A esses rastreadores estavam acoplados instrumentos que possibilitavam a localização da causa do abalo e calculavam a distância que seria percorrida pelo objeto que causava o abalo estrutural.

Por isso não era de admirar que Topthor e sua frota retornassem ao espaço normal a menos de cinco horas-luz da Stardust-III.

Fez a mesma constatação de Rhodan: num raio de cinqüenta anos-luz, não havia o menor fragmento de matéria perceptível, com exceção da Stardust-III.

Torcendo o rosto, Topthor olhou para a tela. Numa outra tela Grogham fitava-o tranqüilamente.

— Então, onde está o seu planeta de fadas, Topthor?

O dirigente dos superpesados não se abalou. Não tirava os olhos da Stardust-III. Era importante que a mesma não saísse do alcance dos olhos e dos instrumentos...

— O senhor acreditava que ele estaria logo diante do nosso nariz? Rhodan tomará suas precauções. Se não estou enganado...

Interrompeu-se.

Uma coisa muito estranha aconteceu na tela principal, na qual se via a imagem da Stardust-III.

A nave Stardust-III era uma esfera de oitocentos metros de diâmetro, e uma das metades dessa gigantesca esfera começou a desaparecer. Até parecia que por lá, a cinco horas-luz do ponto em que se encontravam, estava ocorrendo um eclipse da lua. Foi tudo muito rápido. Uma das metades da Stardust-III desapareceu em dois segundos, enquanto a outra metade levou dez segundos para desaparecer. O processo de desaparecimento era mais lento na fase final.

Topthor não encontrou nenhuma explicação para o fenômeno.

— Caramba! Isso não foi nenhuma transição normal — disse um tanto perplexo. — Não houve o menor abalo no ambiente. Nem chegou a ser qualquer espécie de transição. Alguma coisa devorou a nave de Rhodan.

— Devorou a nave? — gaguejou Grogham. Seu rosto foi se tornando pálido. — O que quer dizer com isso?

O alarma tomou conta da nave de Topthor. A frota preparava-se para uma transição ligeira de cinco horas-luz. Quando voltou a materializar-se o espaço em torno dela estava vazio. Os instrumentos não indicavam a presença de qualquer objeto num raio de cinco anos-luz. Logo, a Stardust-III deixara de existir e isso era totalmente impossível. A matéria poderia ser tornada invisível, mas ninguém poderia fazê-la desaparecer de vez. Ao menos isso não poderia ser feito sem uma transição normal, e esta teria sido registrada pelos instrumentos.

O que teria sido feito da Stardust-III?

Topthor não encontrou resposta. Pela primeira vez, viu-se diante de um problema não resolvido. Ou melhor, diante de um problema praticamente insolúvel. Conseguira seguir Rhodan por uma distância superior a mil e quinhentos anos-luz, e agora esse terrano se transformara pura e simplesmente numa porção de vácuo. Alguma coisa não estava certa.

Grogham acenou com a cabeça:

— Se ele desapareceu neste lugar, terá que ressurgir no mesmo. Apenas precisamos de paciência para esperar.

— Foi o que eu pensei — murmurou Topthor, indignado. — Vamos nos preparar para uma longa espera. Temos tempo.

— Posso permitir uma pausa de descanso à tripulação? — perguntou Grogham.

Topthor fez que sim.

— Ordene aos comandantes das outras naves que façam uma pausa para dormir. Não acredito que nas próximas horas aconteça qualquer coisa.

Topthor estava enganado. Mas não poderia imaginar que para seus homens não haveria mais tempo... para adormecer.

 

Com a metade da velocidade da luz, a Stardust-III precipitou-se sobre o campo energético em forma de abóbada que cercava o planeta artificial Peregrino. De um instante para outro, os velocímetros caíram para zero.

Apesar dos campos de neutralização, um forte abalo sacudiu a nave. As pessoas que não haviam colocado os cintos de segurança foram atiradas de um canto para outro. Felizmente, Rhodan, que aguardava o choque, tomara suas precauções. Por isso não houve feridos.

Num espaço de doze segundos, a Stardust-III atravessou o céu artificial do Peregrino... e depois viram o planeta diante de si.

Era um mundo cheio de milagres. Ali se reunia tudo que pudesse ser encontrado nos mundos habitados da galáxia. As paisagens, onduladas com os cursos d’água que deslizavam tranqüilamente, alternavam com os amplos mares salpicados de ilhas deslumbrantes. Os continentes estavam cobertos de florestas que pareciam parques. No meio delas, havia gigantescas estepes, habitadas pelos animais mais estranhos. Montanhas alcantiladas interrompiam o quadro, proporcionando a necessária mudança. Os ares eram percorridos por pássaros primitivos em forma de dragão.

Esse mundo era um verdadeiro paraíso.

Mas não era um mundo normal. Era plano. O planeta Peregrino não era um planeta na acepção comum do termo, mas um gigantesco disco com um diâmetro de oito mil quilômetros. Por cima dele erguia-se a abóbada energética, em cujo ponto mais alto brilhava um sol atômico artificial, que dava calor e vida àquele mundo estranho.

Ao chegar à cúpula de observação da nave, Rhodan mandou abrir as escotilhas metálicas. Bell estava com ele. Mais uma vez o milagre inconcebível do imortal abalou-os até as profundezas da alma. Enlevados, contemplaram a paisagem que desfilava diante deles.

— Está gostando, amigo?

A voz do inconcebível quase chegava a ser ouvida fisicamente no interior do recinto. Até parecia que não se comunicava com eles apenas por via telepática, mas que realmente lhes falava. Rhodan sorriu tranqüilamente.

— É um planeta admirável e pacífico, meu caro amigo. Você acaba de criar um paraíso que causará inveja a qualquer mortal.

— Não são apenas os mortais, mas também os imortais que me invejam — sorriu Aquilo muito alegre.

Perguntou depois:

— Você veio para visitar-me?

— Vim fazer-lhe um pedido — confessou Rhodan, sem tirar os olhos daquela paisagem de conto de fadas. — Você deve saber o que quero.

— Não faço a menor idéia — mentiu aquilo. — Como poderia saber? Não costumo fuçar nos pensamentos mais recônditos dos meus amigos.

— Que mentira! — protestou Bell, que se lembrou da Rallas, que lhe fora tirada tão abruptamente. — Posso provar...

— Ah, é nosso amigo Bell — disse o interlocutor invisível. — Está aborrecido com a bela imitação? Pois bem, vamos dar-lhe uma alegria. Hoje de noite vou contrabandeá-la para dentro de seu camarote.

— Não se atreva! — berrou Bell, assustado.

Não temia tanto a Rallas como os risos dos tripulantes. Seu rosto vermelho adquirira uma estranha palidez. E tornou-se ainda mais pálido quando aquilo soltou uma ruidosa gargalhada. Aquilo estava em toda parte, e por isso também podia ver o rosto assustado de Bell.

— Uma mulher bonita é muito mais interessante que um índio ou um pistoleiro do faroeste — disse a voz em tom divertido, aludindo às reminiscências a que tivera que recorrer por ocasião da primeira visita de Rhodan, para desviar os terranos de seu objetivo. — Aliás, mantenha a rota, amigo. Pouse novamente perto da cidade das máquinas. Não sofreu grandes alterações. Você não terá dificuldades em encontrar o grande pavilhão, onde estarei à sua espera. Homunk o guiará.

Rhodan estava perplexo.

— Como soube que chamei o robô de Homunk?

— Que é isso, amigo? Homunk não é nenhum robô. É um terrano criado por mim, de um pedaço de matéria supérflua. Gostei dele, e por isso deixei que continuasse a existir. Até já ficou mais inteligente; sente-se satisfeito com sua visita.

— Será que você ainda guarda outras surpresas para nós? — perguntou Rhodan. — Ainda teremos de enfrentar alguma prova, algum enigma?

— Não, amigo. Não tenho nenhum motivo para isso. Ainda me divertirei a valer.

Quando a voz se calou, Rhodan e Bell tiveram a impressão de que um homem invisível deixara a sala. Alguma coisa afastou-se deles. Aquilo retirou-se, deixando-os sós.

Bell suspirou aliviado.

— Que coisa medonha. Nunca me conformarei com o fato de que um ser destes exista. Aquilo faz magias, traz os seres de outros planetas e de outros tempos. Aquilo é potente como...

Rhodan sacudiu a cabeça, num gesto de suave censura.

— Não, aquilo não é Deus. Não passa de um ser formado pela fusão de todos os seres de uma raça, e que por isso mesmo domina todo o saber dessa raça. Cometeríamos uma blasfêmia se disséssemos que é Deus. É bem possível que seu saber chegue perto do de um deus, mas aquilo tem mais senso de humor, e trata-se de um humor originado exclusivamente no tédio. Todos os seres imortais sentem tédio.

— Pois eu nunca sentiria tédio, mesmo que vivesse dez mil anos — disse Bell em tom despreocupado. — Sempre surgirão novos acontecimentos que distrairão a gente e nos fazem esquecer que temos tempo demais. Sempre haverá aventuras que espantarão o tédio.

— Bell, um ser mortal nunca pode imaginar o que se passa na alma de um ser verdadeiramente imortal. Asseguro-lhe que tentei, embora não tenha alcançado a verdadeira imortalidade. Meu corpo precisa regularmente da ducha celular vivificadora. Se um dia não a receber, o processo de envelhecimento voltará a funcionar. Apesar disso, fiquei refletindo sobre como devem ser as coisas para quem nunca envelhece. No primeiro instante senti uma felicidade nunca antes experimentada; pensei que estivesse livre de todas as preocupações. Mas isso só aconteceu no primeiro momento. Logo me lembrei de que a eternidade é muito longa. Em torno de mim assistirei à alternância ininterrupta de nascimentos e mortes; enquanto isso, eu continuaria, sem ser atingido por tais ocorrências. Os homens verão um deus em mim, e com isso eu ficaria condenado a uma solidão infinita.

— Você teria companheiros que seriam imortais como você.

— Teria, sim. Mas ficaríamos cansados um do outro se nos víssemos eternamente.

Bell não respondeu. Achava que seria uma banalidade se, a essa altura, asseverasse diante de Rhodan que nunca se cansaria de sua presença, mesmo que a mesma durasse uma eternidade. Contemplou a paisagem que deslizava lentamente lá embaixo. Os propulsores da Stardust-III emitiam um zumbido abafado. Acima deles estendia-se um sol azul-dourado; irradiado pelo sol atômico. Assim que o mesmo se apagasse, surgiriam as estrelas de uma galáxia distante e desconhecida, que talvez fosse a pátria do imortal. Há milhões de anos, as naves de sua raça, extinta mas ainda existente, teriam atravessado o abismo, a fim de encontrar uma nova pátria aqui, na Via Láctea. Aquilo nunca falara a respeito, mas era possível que um dia revelasse o grande segredo.

Rhodan também se manteve em silêncio, contemplando o planeta. Naquele momento estavam passando por cima de um oceano, cuja superfície lisa reluzia para eles. Ao que parecia, não havia a menor brisa que agitasse as águas. No horizonte surgiu um grupo de ilhas.

— Que mundos teriam servido de modelo ao trabalho realizado por aquilo? — disse Bell de si para si. — Às vezes tenho a impressão de encontrar aqui alguma coisa de nossa velha e querida Terra.

— Deve ser isso mesmo — confirmou Rhodan e apontou para a frente. — Aquelas ilhas lembram as do Pacífico Meridional. Por ocasião de nossa primeira visita, vimos uma imitação exata das Montanhas Rochosas dos Estados Unidos.

Subitamente a voz voltou a soar na sala de comando. Aquilo devia ter assistido à palestra e compreendido tudo.

— Você está enganado, meu caro. Não se trata de reproduções. A Rallas não foi uma imitação no verdadeiro sentido da palavra. É bem verdade que seu corpo permaneceu na Terra, no planeta de vocês. Mas aqui seu espírito recebeu outro corpo; portanto, ela compareceu em pessoa. O mesmo objeto pode existir milhares de vezes, desde que seja transferido sucessivamente para planos temporais diferentes. Aquelas ilhas realmente são ilhas da Terra. Mas não existem na Terra agora, neste instante; existiam há milhões de anos. Você constatará isso quando pisar nelas, meu caro. A vegetação não é do nosso tempo, mas da antigüidade mais remota.

— Quer dizer que você conhece dois tipos diferentes de reprodução de imagens — observou Rhodan. — Aquele corpo de mulher permaneceu na Terra, mas estas ilhas não.

— Isso mesmo, amigo. É exatamente como você acaba de dizer. Acompanhei sua palestra desde o início. Estou bastante interessado nos problemas psicológicos da imortalidade. Resolvi todos eles e identifiquei os motivos do tédio, mas não consigo vencê-lo. Às vezes tenho vontade de morrer, e um belo dia acabarei fazendo isso mesmo. Acontece que esse dia ainda não chegou.

Rhodan sorriu.

— Sua fala até parece muito resignada, amigo. Onde está seu senso de humor?

— O senso de humor nem sempre se traduz numa risada. O simples fato de ter concedido o prolongamento da vida a seu amigo Bell evidencia o meu senso infinito de humor. Como é que um imortal não dotado de senso de humor faria viver esse terrano grotesco por mais tempo que o estritamente necessário?

Cerca de metade dos cabelos ruivos de Bell resolveu protestar contra essa constatação, enquanto a outra metade se mantinha em atitude passiva, permanecendo na mesma posição. Rhodan sorriu.

— Você tem razão, amigo — disse. — Acontece que Bell está mortalmente ofendido...

— É justamente aí que está a graça — disse aquilo com uma risadinha. — Como é que se pode ofender mortalmente uma pessoa que alcançou a imortalidade relativa?

— Não vejo nenhuma graça — disse Bell, contrariado. — E também a história da Rallas; gostaria de saber onde está o lado humorístico da mesma.

— Você nunca compreenderá, amigo, que é o segundo em idade — anunciou aquilo satisfeito — porque não tem senso de humor.

Bell fez uma careta e ficou calado. Rhodan viu que se aproximavam do continente em que ficava o grande pavilhão habitado por aquilo. Não demoraria muito até que a cidade estivesse à vista.

— A cidade continua como antes? — perguntou Rhodan, que estava convencido de que o imortal acompanhava seus pensamentos sem cessar. — Não terei nenhum problema em encontrá-la?

— Encontrar o quê? — perguntou aquilo.

Rhodan ficou tão perplexo que alguns segundos se passaram antes que dissesse:

— A cidade, ora esta!

— Desculpe — disse Aquilo em tom apaziguador. Rhodan teve a impressão de que havia uma ligeira ironia em sua voz. — Estou assistindo à destruição de um sistema solar a mais de duzentos mil anos de distância. Há milhões de anos vagou para fora da galáxia, e os habitantes do segundo planeta tentaram afastar o mesmo de seu sol a fim de levá-lo para junto de outro. Seu planeta transformou-se numa Supernova. Atualmente o sistema tem dois sóis, mas não tem habitantes.

Rhodan e Bell ouviram-no, esbaforidos. Aquilo falava em voz tranqüila e indiferente, como se estivesse contando uma história inventada. Contudo, sabiam que pode ria ser tudo menos isso.

— A destruição durou vários meses, mas como atravessei os diversos planos temporais, tudo se desenrolou diante de meu espírito como uma explosão de poucos segundos. Acontece que apenas cometeram um erro pequenino. Quase conseguem.

— Quase conseguem o quê? — perguntou Rhodan, ansioso.

— Quase conseguem retirar o planeta de seu sistema. Já tinham um sol próprio e um dispositivo propulsor que levaria seu mundo... mas o que adianta refletir sobre isso? Aconteceu.

— E não se pode transformar o acontecido em não acontecido?

Houve um instante de silêncio. Depois a voz voltou a falar:

— Por que não? Até que seria uma boa brincadeira. Está vendo aquelas montanhas, amigo? Você as reconhece?

— São os Alpes — disse Rhodan. — Ao menos é a impressão que tenho.

— São os Alpes, sim, meu amigo. Atrás deles fica a cidade que você procura. Mas não vamos perder mais tempo. Bell ficará só por um segundo. Afinal, o que é um segundo na vida de um mortal, quanto mais dum imortal? Rhodan, respire profundamente. Você só soltará a respiração depois de muitas semanas.

Enquanto olhava o calendário automático de bordo — lendo a indicação 17 de agosto, 22:53 h, hora terrena — Rhodan sentiu que estava ficando invisível.

Ainda ouviu a exclamação apavorada de Bell:

— O que houve, Perry?! Você está ficando transparente e...

Depois perdeu a consciência.

 

Era tudo bem diferente.

A pequenina nave não precisava de uma transição regular para reduzir a distância imensa de duzentos mil anos-luz a um nada. Simplesmente voou por toda essa distância, a uma velocidade inconcebível.

A nave tinha uma cabina de comando minúscula, e a disposição dos instrumentos e controles era tão familiar a Rhodan que ele teve a impressão de nunca ter entrado em outra cabina. A quantidade enorme de controles não o deixou perturbado, antes lhe inspirava muita confiança. A tela oval que se estendia em semicírculo parecia uma janela aberta para o universo, através da qual podia lançar os olhos.

Estava só, mas sentia que alguém estava com ele, alguém que não podia ver. Em algum lugar da nave encontrava-se o imortal...

— Não estou com você — disse subitamente a voz já familiar. Desta vez soou verdadeiramente em seu interior. — Agora sou você. Está compreendendo, caro amigo? Assumi seu ser físico e passei a existir dentro de você. Juntos salvaremos um sistema solar, pois sei perfeitamente como você lamenta o destino daquela raça que pereceu em algum ponto do universo, ou vai perecer se não lhe dermos auxílio. Dentro de dois dias pousaremos no planeta Barcon II, exatamente três meses antes da catástrofe.

— Como será que tudo isso é possível? — disse Rhodan num sopro, contemplando a confusão de estrelas desconhecidas que se deslocavam vertiginosamente na tela. — O que sou?

— Você é eu, meu amigo. E vice-versa. Como preferir.

— E a Stardust-III?

— Não se preocupe. Você a reencontrará, e não terá perdido nenhum tempo. Agora temos uma tarefa diante de nós, uma tarefa desejada por você mesmo.

— Isto é mais uma brincadeira sua, brincadeira através da qual você quer espantar o tédio.

— É claro que é uma brincadeira, mas uma brincadeira que salvará um povo. A brincadeira com o destino é a brincadeira mais bela que ainda me resta.

Rhodan não teve vontade de travar mais uma discussão sobre a finalidade da vida. Sua inteligência fria começou a digerir os fatos sem indagar sobre sua origem. Mas havia alguma coisa que fazia questão de saber.

— Qual é o tamanho desta nave?

— O tamanho dela? É suficiente para garantir o espaço necessário para você, os mantimentos e o ar, Não precisa de traje protetor. Poderia ter levado você e a mim a Barcon II em estado incorpóreo, mas assim é melhor e mais interessante.

— Que mecanismo propulsor é este que nos conduz a uma velocidade tão tresloucada através do universo?

— Não se iluda, meu amigo. A velocidade só parece ser muito grande. Estamos voando à velocidade da luz. Apenas, modifiquei o curso normal do tempo. Trata-se de um processo que pode ser invertido a qualquer momento. Na situação em que nos encontramos cada segundo faz passar pouco mais de quatro mil anos. Uma vez que nos deslocamos à velocidade da luz, percorremos em dois dias relativos perto de duzentos mil anos-luz.

— Isso é uma loucura!

— Pelo contrário. É um fenômeno perfeitamente normal. Quem domina o tempo transforma-se no senhor do espaço.

— Mas, se todo esse tempo se passa lá fora, no espaço, o sol Barcon não existirá mais quando chegarmos lá. É uma conclusão lógica. Ou será que não é?

— Seria uma conclusão lógica, se no instante da partida não tivéssemos dado um mergulho de duzentos mil anos no passado. Até mergulhamos três meses a mais, a fim de podermos aguardar o momento apropriado.

— É uma coisa medonha — confessou Rhodan e sentiu que um arrepio percorria sua espinha. — Se não soubesse que você está comigo, teria medo, medo de verdade.

— Contemple o universo — disse a voz do imortal dentro dele. — É possível que nunca mais o veja desta forma. Estamos percorrendo muito mais que um ano-luz por segundo. É uma velocidade inacreditável. Mesmo que batêssemos num planeta ou num sol, não o sentiríamos. Não somos apenas nós que nos deslocamos; também a matéria que está lá fora se move a uma velocidade vertiginosa. Ainda acontece que a probabilidade de tocar num astro é menor que a de derrubar um mosquito com um tiro de pistola dado ao acaso. É muito menor.

Rhodan não respondeu. Seguiu o conselho do imortal, absorvendo o milagre da criação cósmica que lhe era oferecido. Parecia um sonho. Talvez não passasse mesmo de um sonho.

A nave mergulhou num mar de estrelas. A lei da perspectiva fez com que se tivesse a impressão de que os sóis fulgurantes se concentravam no ponto para o qual se dirigia a proa da nave. Novos sóis se iam formando naquele ponto e dali se afastavam em todas as direções, com velocidade crescente à medida que se afastavam do centro. Deslizavam para o lado à velocidade de um ano-luz por segundo para retornar a outro ponto. Este segundo ponto ficava na direção da popa da nave.

A grande distância dessas estrelas peregrinas fez com que se tornassem lentas, umas mais, outras menos. Assim mesmo todas conservaram sua cor primitiva. O conhecido fenômeno do arco-íris não se verificou.

O imortal mantinha-se em silêncio. Talvez estivesse em outro lugar, vagando pelo universo à sua maneira. Por um instante Rhodan teve a impressão de estar só e abandonado. Lembrou-se da Stardust-III e da missão que a mesma devia cumprir. Lembrou-se de Bell, à vista de quem desaparecera tão abruptamente. Lembrou-se de Julian Tifflor, que tinha de permanecer num mundo estranho, em companhia de Gucky e de alguns companheiros, até que ele, Rhodan, trouxesse o auxílio prometido. Todos confiavam nele... nele, que cruzava o espaço cósmico numa nave maravilhosa e desconhecida, a fim de prevenir uma raça estranha, que talvez nem existisse mais.

Sacudiu a cabeça.

— Este meu amigo tem cada idéia esquisita! — murmurou, olhando para o relógio instalado em meio às escalas dos instrumentos. Esse relógio indicava o tempo terrestre. Estavam a caminho há três horas, e assim já haviam percorrido treze mil anos-luz.

— Essa idéia foi sua, Rhodan — disse o imortal.

Concluía-se que o mesmo não tinha ido embora. — Eu lhe disse que certa raça foi destruída, e você falou em salvar a mesma. Apenas quero provar-lhe que em certas condições é possível influenciar o futuro. Não há dúvida de que se trata de uma brincadeira, mas a mesma tem um fundo bastante sério. É que você ainda se encontrará com a raça que vai ser salva. Talvez você se arrependa de tê-la prevenido.

As horas arrastavam-se. Rhodan comeu alguma coisa e adormeceu. Quando despertou, o quadro que se apresentava diante dele estava alterado.

O ponto situado na proa apresentava-se com menos estrelas. Só vez por outra apareciam por ali, e era cada vez mais raro que passassem ao lado da nave para mergulhar na escuridão infinita na região da popa.

Escuridão...?

Só agora Rhodan percebeu que atrás dele não havia uma escuridão completa. A tela redonda não reproduzia todo o espaço, mas apenas um setor de setenta por cento. A popa encontrava-se num ângulo morto. Assim mesmo aquilo que lhe foi dado contemplar bastou para fazer com que um calafrio lhe descesse pela espinha.

Olhou para a Via Láctea que ia surgindo aos poucos.

Em pouco menos de doze horas cruzara a região periférica da galáxia em que nascera e abandonara o setor de grande concentração estelar. A pequena nave do imortal arriscara o salto para o abismo, para o abismo pavoroso dos milhões de anos-luz que se abria entre as vias lácteas e que jamais poderia ser vencido por qualquer raça de seres vivos.

Não poderia mesmo...?

Perplexo, contemplava o quadro que se oferecia aos seus olhos. A forma típica de uma nebulosa em espiral desenhava-se nitidamente, vista “de cima”. Um dos braços luminosos abrigava o sol de seu sistema, que já se encontrava a mais de cinqüenta mil anos-luz. E esse braço da espiral não passava de uma parte minúscula da galáxia. Junto à periferia do quadro galático, luziam duas nuvenzinhas, formadas pelas inúmeras estrelas que se reuniam em grupos esféricos. Em um desses grupos encontrava-se o império dos arcônidas.

De repente Rhodan deu-se conta de como o império dos arcônidas era insignificante em comparação com a Via Láctea. E o que era a Terra em comparação com esse império? Apenas um grãozinho de pó.

Será que o imortal o fizera empreender essa viagem para mostrar-lhe que ele mesmo, Rhodan, não passava de uma partícula microscópica em comparação com o cosmos?

A nebulosa ia diminuindo a olhos vistos. Afastando-se a uma velocidade bilhões de vezes maior que a da luz, mergulhou no infinito. Ao menos era o que parecia.

Rhodan voltou a olhar para a frente. Ali não havia nenhuma estrela. Diante da proa da nave o espaço apresentava-se tão negro como Rhodan jamais o vira. Era a escuridão absoluta, na qual a luz seria um fator desconhecido. Só um pouco à esquerda via-se a luz de uma minúscula mancha apagada. Era necessário fitá-la por dez segundos para enxergá-la. Era outra galáxia, situada a milhões de anos-luz.

Mais à direita havia outra. Seu brilho mal conseguia vencer a escuridão. Era uma pequena mancha, que corporificava o brilho de bilhões de sóis. Agora, porém, sua luminosidade não era maior que a de uma vela que se apagava.

“Mesmo a luz das estrelas é vencida na luta contra o espaço e o tempo”, pensou Rhodan profundamente abalado e fechou os olhos.

Quando despertou, oito horas se haviam passado.

O quadro do universo estava inalterado. Doze ou quinze vias lácteas brilhavam nas mais diversas direções. Não estavam mais perto, embora Rhodan se aproximasse delas a uma velocidade de dez trilhões de quilômetros por hora. E isso há oito horas.

— Escute aí, meu caro — cochichou, emocionado. — Essa brincadeira está indo longe demais. Você me deveria ter poupado a visão do infinito.

— Por quê? — a voz do imortal invisível parecia um tanto espantada. — Por que não há de ver o que está à sua frente? Afinal, todos nós existimos neste infinito e somos parte do mesmo. Por que não vamos saber o que somos?

— É demais. Meu raciocínio se recusa...

— Se ele recusa, é porque compreendeu — interrompeu-o a voz.

Mudaram de assunto, sem afastar-se do objeto da palestra.

— Já compreendeu por que os barcônidas querem afastar seu planeta do sol a que pertence? Compreendeu por que a solidão infinita desse mundo quase os leva à loucura? Sempre que contemplam o céu à noite, não vêem outra coisa senão galáxias distantes, que a seus olhos devem ser um símbolo de uma convivência amistosa, e realmente são. Naquele lugar, pensam eles, os mundos habitados estão tão próximos um do outro que entre eles existe um contato ininterrupto. Acontece que eles, os barcônidas, enfrentam a solidão, uma solidão eterna e infinita.

Subitamente uma onda de água quente parecia derramar-se por cima de Rhodan.

— Os barcônidas...! Se tirarmos o b...

— Nada de especulações! — advertiu o imortal. Rhodan teve a impressão de que estava esboçando um sorriso de compreensão. — O acaso é um solo fértil para os jogos de idéias, mas sempre continuará a ser o acaso. Raras vezes existe uma ligação real entre os fatos.

— Desta vez não existe?

— Você espera que eu lhe dê uma resposta? Pergunte aos barcônidas; você terá oportunidade para isso.

Rhodan não fez mais nenhuma pergunta.

 

Faltavam quinze minutos para completar o segundo dia. Há uma hora, Rhodan se esforçava para descobrir uma estrela em meio à escuridão total e às manchas apagadas das vias lácteas.

— Dentro de sessenta segundos Barcon surgirá na tela, meu amigo. Sua luminosidade pode ser vista a mais de oitocentos anos-luz.

Rhodan não disse nada; esperou. Decorridos exatamente os sessenta segundos, surgiu, bem na sua trajetória, uma pequenina estrela, que aumentava rapidamente.

— Lá está Barcon, o sol solitário. Você vai compreender, meu amigo, que os habitantes de um sistema tão isolado não conhecem as formas de etiqueta galácticas. A tradição já lhes ensinou que não são os únicos seres inteligentes do universo, mas fazem de conta que são. Sua tecnologia é muito aprimorada, mas não se interessaram pela astronáutica, porque a mesma lhes parece inútil. Se voassem à velocidade da luz, levariam cento e cinqüenta mil anos para atingir a estrela mais próxima. A demora seria muito grande, mesmo para um imortal. E os barcônidas podem ser tudo, menos imortais. Por isso dedicaram seu saber a um único projeto, que é o de transformar seu planeta numa gigantesca nave. Acreditam que só assim conseguirão retornar juntos, no curso de milhares de gerações, para a galáxia perdida.

— É um projeto genial — observou Rhodan. — Será que posso fazer alguma coisa por esses cientistas formidáveis? E quem serei aos seus olhos?

— Você poderá ajudar, se eu estiver dentro de você. E não se preocupe com a recepção que lhe será proporcionada. Não existe nenhum povo que anseie tanto por uma visita do espaço como os barcônidas. Vão recebê-lo de braços abertos. É possível que se interessem pelo funcionamento dos propulsores de sua nave, mas saberemos desviar sua atenção. Mesmo que a nave lhes permitisse vencer o tempo e o espaço, não teriam possibilidade de evacuar o planeta, conduzindo seus habitantes a uma distância de milhares de anos-luz. Só lhes resta uma possibilidade, e eles já perceberam a mesma.

Mais cinco minutos se passaram.

O sol Barcon adquirira uma luminosidade brilhante. Encontrava-se a uma distância de quinhentos anos-luz. Dali a nove minutos estariam lá.

Subitamente Rhodan se assustou.

— A desaceleração... deve ser muito forte!

— O retardamento sincronizado do fluxo do tempo neutraliza os efeitos colaterais — informou o imortal rindo. Era a primeira risada que dava nas últimas horas. — Não faça nada, amigo; farei tudo por você. Sinto-me muito satisfeito em ser um homem; é um raro prazer.

Havia uma ironia benévola na voz, mas Rhodan não se incomodou. De repente moveu o braço direito, sem que tivesse dado a respectiva ordem aos músculos. A mão direita manipulou alguns controles. Um ponteiro começou a girar loucamente sobre uma escala redonda. Pequenas lâmpadas se acendiam e voltavam a apagar-se. Uma campainha estridente soou em algum lugar no interior da nave. E o chão vibrou sob os pés de Rhodan.

— Seus olhos apenas registrarão uma redução de nossa velocidade de deslocamento — disse o imortal em tom divertido. — Observe Barcon, mais nada. Não temos outro sistema de referência.

O indicador de distância ainda marcava cento e cinqüenta anos-luz. Se mantivessem a velocidade atual, chegariam a Barcon dentro de cento e sessenta segundos.

Por mais um minuto tudo continuou como estava.

Depois teve início a desaceleração que Rhodan esperava. Barcon continuava a aproximar-se, mas demorou nada menos de meia hora até que a nave mergulhasse no sistema à velocidade de mil quilômetros por segundo.

— Não notarão nossa presença até que estejamos junto deles — profetizou o imortal. — Não possuem telescópios nem instrumentos de observação. Há milhões de anos não vêem uma única estrela.

Rhodan lembrou-se de uma coisa diferente.

— Se nos guiássemos pelo tempo terrestre, qual seria a data de hoje?

A resposta foi imediata.

— Estaríamos em fins de maio deste mesmo ano.

— Maio... foi quando estive doente. Tenho certeza. Não fiquei no hospital, mas na minha residência em Terrânia. Peguei uma espécie de gripe. E o senhor me diz que voltamos a maio?

— Ainda estamos lá! — enfatizou o imortal em tom zombeteiro. — Você está doente e encontra-se na Terra. Esqueceu aquele terrível pesadelo de febre?

— Pesadelo de febre? — Rhodan estremeceu. Sim, lembrava-se. Acordara banhado em suor e olhou para os rostos preocupados de seus amigos, o Dr. Haggard e Bell. — Mas não me lembro do que sonhei.

— Pois eu lhe digo, meu amigo. Você sonhou exatamente aquilo que agora estamos vivendo, apenas numa seqüência mais rápida, e por isso mesmo mais perturbadora para seu espírito. Enquanto sonhava, já tinha esquecido tudo. Tem uma idéia do que seja um sonho?

Rhodan viu o planeta que surgia bem ao longe. Os contornos dos continentes destacavam-se em meio aos mares. Camadas de nuvens cobriam parte de sua superfície.

— O que é mesmo um sonho? — perguntou Rhodan, ansioso.

— É apenas uma excursão do subconsciente. Uma espécie de manifestação do poder de memorização do cérebro humano, uma libertação do espírito, que se desprende do corpo. Durante o sono o cérebro não está preso à matéria, e por isso fica livre das amarras do tempo e do espaço. O homem só conhece um tipo de viagem pelo tempo, que é precisamente o sonho. Contudo, o sonho só abrange uma área diminuta do terreno que fica entre a realidade e a recordação.

— Você quer dizer que realmente vivemos aquilo que sonhamos? Não acredito.

— Não está vendo a prova?

Rhodan calou-se. Teve que reconhecer que não compreendia as explanações do imortal. Sabia que o sonho humano é um fenômeno não explicado de todo, que levanta uma série de indagações. Mas as palavras do imortal lhe abriram perspectivas tão imensas que nem se atrevia a pensar sobre as mesmas. Não se podia contestar que no sonho o ser humano adquire faculdades que não possui em nenhuma outra oportunidade. Consegue vencer a força da gravidade, elevando-se livremente no ar, e em certas circunstâncias consegue mesmo tornar-se invisível e teleportar porções de matéria. Por que podia fazer tudo isso, se não havia motivo para supor que jamais adquiriria esse tipo de capacidade?

Será que num passado muito remoto já pôde fazer essas coisas?

— Daqui a pouco pousaremos — interrompeu-o a voz do imortal. — Os barcônidas são uma raça fortemente amalgamada, no sentido da verdadeira civilização galáctica. Possuem uma capital e um governo que centraliza todas as funções, governo este que, em virtude do projeto gigantesco em que estão empenhados, é formado principalmente por cientistas. Isso nos poupa muito trabalho.

— Não terei... não teremos que recear hostilidades?

— Já disse que para eles somos um presente dos céus. Você terá uma recepção como nunca lhe foi proporcionada em parte alguma, por mais paradoxal que isso possa parecer. Afinal, vamos encontrar-nos com uma raça que nunca teve contato com outros seres, ao menos nos últimos milhões de anos. Essa raça conta com um fato que nenhuma raça do universo dispõe: uma história sem lacunas, baseada em documentos autênticos. Têm, em seus arquivos, filmes de uma época em que o primeiro ser humano na Terra ainda não passava de um sonho distante da natureza criadora.

— Filmes mais antigos que a Humanidade?

— Só em virtude desses filmes já seria lamentável se essa raça fosse destruída.

A pequena nave mergulhou na atmosfera do planeta e circulou em torno do mesmo a uma velocidade várias vezes superior à do som. Cidades extensas alternavam com amplas áreas de cultura e pequenos mares. As linhas cintilantes que uniam as cidades davam mostras de um tráfego intenso.

— O número de habitantes é bastante reduzido em comparação com a grande extensão das terras deste planeta. Isso foi mais um motivo pelo qual negligenciaram o desenvolvimento da navegação espacial. Sabem perfeitamente que os quatro planetas que o sistema abriga além deste não são habitados. E fora disso não teriam para onde ir. Seu mundo oferece tudo de que precisam para a vida.

— Se é assim, por que pretendem sair daqui?

Mergulharam pela última vez na sombra projetada pelo planeta, sobrevoando a face coberta pela noite. Barcon II era do tamanho da Terra e tinha uma atmosfera semelhante. A gravitação era um pouco menor.

— Olhe para o céu, Perry Rhodan, que você compreenderá.

Rhodan olhou para o céu.

Agora, que a atmosfera absorvia inteiramente os débeis raios de luz vindos das galáxias e nebulosas distantes, o céu tornara-se negro. Não havia nenhuma lua que derramasse sua luz suave. Nenhuma estrela brilhava no firmamento escuro como breu. Era uma noite que jamais se vira na Terra, mesmo num céu completamente nublado. Parecia que uma mortalha preta e opaca envolvia este mundo, ameaçando sufocá-lo.

Rhodan teve um calafrio.

— Acho que já começo a compreender — disse em voz baixa.

Subitamente voltaram a mergulhar na luz do sol, que se ergueu vertiginosamente acima do mar no oriente. O continente principal surgiu no horizonte. Em sua costa via-se uma cidade imensa.

— Já estamos sendo esperados — anunciou o imortal. — É claro que essa raça inventou aparelhos que lhes permitem voar pela atmosfera. Mas sabem que não somos deste mundo, pois aqui não existem segredos. Somos seres estranhos, e neste mundo um ser estranho só pode vir do espaço.

— Como são esses seres?

— São como nós; humanóides, tal qual todas as raças da mesma origem.

Rhodan esteve a ponto de formular uma pergunta, mas suas mãos mexeram automaticamente num dos controles, sem que ele pudesse impedi-lo. A pequena nave baixou e passou a deslizar a poucos metros de altura sobre a superfície ligeiramente ondulada do oceano, dirigindo-se à costa. Bem no alto, grandes grupos de ágeis aviões descreviam círculos. Navios enfeitados com bandeirolas coloridas saíram do porto e entraram em formação de parada. Uma compacta massa humana cercava o campo de pouso, situado junto à cidade e ao mar.

— Não se admire com nada — advertiu o imortal. — Para eles somos um filho extraviado que está retornando à pátria. Já mantiveram contato com outras raças, mas quando seu mundo foi-se afastando da galáxia, eles o perderam. Não quiseram deixar sua terra. — Houve uma ligeira pausa. — Alguns poucos o fizeram. E há milhões de anos os barcônidas aguardam o regresso desses poucos.

Os pensamentos atropelaram-se no cérebro de Rhodan, e não houve tempo para pô-los em ordem. O campo de pouso aproximou-se, e a velocidade foi reduzida. A nave pousou com a suavidade de uma pena. O motor desligou-se automaticamente. As vibrações e o zumbido cessaram.

— Vamos descer — sugeriu o imortal. Riu, mas foi uma risada silenciosa e cheia de expectativa, que se comunicou somente com o cérebro de Rhodan. — Não se esqueça de que estou com você, mas lembre-se também de que ninguém sabe disso. Se daqui em diante você tiver que falar comigo, faça-o sem palavras. Compreendeu, velho amigo?

— É claro que compreendi, oh amigo muito mais velho ainda — pensou, divertido, embora seu ânimo não estivesse disposto para gracejos.

— Muito bem — respondeu o imortal em pensamento. — Abra a cabine. Os barcônidas falam o intercosmo. Até foram eles que, em tempos remotos, criaram esse idioma simplificado, mas hoje ninguém mais sabe disso.

Os barcônidas romperam as barreiras que cercavam o campo de pouso e acorreram de todos os lados. Só com grande esforço o elegante veículo de quatro rodas conseguiu abrir caminho em meio à multidão exaltada. Não havia qualquer indício da presença de forças militares ou policiais.

O carro estava aberto. Em seu interior viam-se alguns homens de aspecto dignificante, que em nada se distinguiam de uma delegação terrestre de recepção. Trajavam roupas diversas, que desde logo eliminavam qualquer possibilidade de tratar-se de um uniforme. As calças estavam muito apertadas, enquanto os paletós eram grandes e folgados. Um dos cavalheiros chegava mesmo a trazer uma espécie de cartola sobre a cabeça.

Rhodan lembrou-se do conselho do imortal e não ficou admirado.

Retribuiu a postura de cumprimento do mais velho dos ocupantes do carro, que já parara. Os assistentes eram disciplinados, motivo por que se mantiveram a uma distância que permitia que os quatro ocupantes do carro, que deviam ocupar posições muito elevadas, descessem sem serem molestados.

— Mantenha a calma — recomendou o imortal e soltou uma risada silenciosa. — Estão admirados porque você vem justamente agora. Estão prestes a empreender a grande viagem, e justamente agora recebem uma visita do universo há muito desaparecido.

Rhodan não respondeu. Com um salto colocou-se no solo do planeta estranho e sentiu-se satisfeito pela gravitação reduzida. Em poucos passos colocou-se diante dos quatro homens que o aguardavam.

— Bem-vindo em Barcon, o mundo solitário — disse o velho com a cartola. — Quer dizer que nos encontrou?

Rhodan não pôde deixar de reconhecer que realmente a recepção era muito estranha, pois aquela gente nunca vira um ser estranho à sua raça.

— Falarei através de você — disse o imortal, que percebeu a hesitação de Rhodan. — Portanto, não se espante se você disser alguma coisa de que não tem a menor idéia. De certa forma, você fará a gentileza de emprestar-me seu corpo.

— Foi por acaso — disse Rhodan, e as palavras corriam livremente sobre os lábios que já não eram somente seus. — O governo da galáxia me mandou para procurá-los. Vejo que minha missão foi coroada de êxito. Encontrei Barcon.

— Esperamos por isso mais de um milhão de anos — respondeu o homem de cartola com um sorriso. Rhodan teve a impressão de que estava sonhando; e, a rigor, tudo aquilo não passava de um sono, em sentido figurado. — Mas, à medida que aumentava a distância entre nós e a galáxia, nossas esperanças de conseguir um contato iam minguando. Mas vejo que o milagre acabou por acontecer.

— O milagre reside no domínio do espaço e do tempo — explicou Rhodan sem compreender o que estava dizendo. — Só mesmo esta nave poderia vencer o abismo imenso que se abriu entre Barcon e os nossos mundos.

Um dos quatro homens, que se distinguia por uma espessa barba ruiva, adiantou-se.

— Sou Regoon, físico-chefe de Barcon e representante do chefe de governo. Peço que me explique o princípio de funcionamento do propulsor de sua nave e me diga como foi possível que...

— Nosso hóspede ainda terá tempo para fornecer explicações — interrompeu o barcônida de cilindro em tom de censura e dirigiu-se a Rhodan: — Regoon é um homem muito impaciente, forasteiro. Perdoe sua pergunta precipitada. Aliás, meu nome é Laar; sou o chefe de governo e especialista em energia nuclear.

— Meu nome é Rhodan — disse Perry. Além do mais, o imortal ainda resolvera usar seu nome. — Permanecerei neste mundo por dez semanas. Até lá teremos tempo de sobra para intercambiar nossas experiências no terreno da ciência e da história galáctica.

Laar lançou um olhar em direção à nave, mal disfarçando a curiosidade reprimida a custo.

— Podemos guardar a nave num hangar, para que...

— Não é necessário — disse Rhodan em tom indiferente. — Nosso melhor hangar é o espaço.

Fez um movimento com a mão e a cabine fechou-se automaticamente. O mecanismo propulsor começou a zumbir. O vulto esguio em forma de torpedo começou a subir, ganhou velocidade e logo se transformou num pequenino ponto prateado que se destacou no céu azul.

— Coloquei-o em órbita em torno de Barcon. Daqui a dez semanas voltará a pousar neste lugar.

Os barcônidas contemplaram o espetáculo em silêncio. Só em meio à multidão boquiaberta surgiram alguns gritos de espanto. Laar engoliu algumas vezes em seco antes que conseguisse abrir a boca.

— Um mecanismo de teledireção. É admirável. Lá em cima a nave estará em segurança, embora conosco também o estivesse.

— Desculpem, mas não mandei a nave para o espaço exclusivamente por uma questão de segurança. Tive outros motivos para isso. Enquanto estiver circulando em torno deste mundo, servirá de satélite-laboratório e estação de rádio-recepção. Se houver alguma mensagem importante, pousará imediatamente e a transmitirá. Dessa forma mantenho contato com o governo galático.

Regoon venceu o desapontamento. Apontou para os outros barcônidas que haviam descido do carro.

— Este é Gorat, nosso astrônomo. Infelizmente só pode realizar um estudo teórico dessa ciência interessante, pois nenhum telescópio tem alcance suficiente para permitir um exame mais preciso de qualquer galáxia.

Gorat era muito pequeno e gordo. Sorriu um tanto acanhado e perturbado.

— Gostaria que me contasse alguma coisa sobre as estrelas. Sempre vivo sonhando com a possibilidade de ver uma estrela de verdade, uma estrela que não seja Barcon, evidentemente.

— Este — disse Regoon, apontando para um barcônida muito alto e esbelto — é Nex, que ensina em nosso mundo a ciência do nexialismo.

“Quer dizer que também no mais solitário dos mundos do universo prevaleceu a idéia de que um saber abrangente traz mais vantagens que a simples especialização”, pensou Rhodan, que conhecia perfeitamente a doutrina do nexialismo.

Cumprimentou os dois homens. Laar disse:

— Tivemos tempo de sobra para preparar sua recepção. O senhor é meu hóspede, Rhodan. Terá oportunidade de falar com todos os cientistas de nosso mundo, e convencer-se-á de que, apesar de nosso isolamento, procuramos manter vivo ao menos o contato espiritual com o passado. Queira acompanhar-me.

Laar lançou mais um olhar para o céu.

Mas não se via mais nada daquela nave misteriosa, que trouxera a visita surpreendente e tão ansiosamente esperada.

Rhodan dirigiu-se ao carro e tomou lugar entre Laar e Regoon. Ficou pensando de si para si sobre o que aconteceria se por qualquer motivo a nave não voltasse. Mas também poderia preocupar-se com o que seria dele se o imortal resolvesse desaparecer simplesmente de uma hora para outra. Se isso acontecesse, Rhodan se veria num mundo infinitamente distante, e seria o Robinson mais estranho que o mundo jamais vira.

— Você está se preocupando por nada — disse a voz em seu interior, num tom de suave censura. — Nunca deixarei de cumprir a palavra que dei a você, e prometi que não perderia tempo... quanto muito o necessário a um suspiro. Concentre-se exclusivamente na tarefa que tem de cumprir aqui. E acredite: realmente é uma tarefa.

Rhodan sentiu-se aliviado quando o imortal lhe asseverou isso. Não se poderia duvidar de sua palavra.

— Obrigado, pensou.

A viagem até a residência do presidente parecia uma marcha triunfal. Os barcônidas aglomeravam-se de ambos os lados das ruas majestosas e manifestavam seu júbilo ao visitante do espaço. Ao que parecia ninguém estava trabalhando; todos haviam aproveitado a oportunidade de fazer um feriado.

Durante quase uma hora atravessaram a cidade. Depois, o carro, acompanhado de três veículos ocupados por policiais, levou mais meia hora percorrendo uma larga alameda margeada de parques e florestas. Finalmente reduziu a velocidade e parou diante de uma majestosa entrada. Quando ela se abriu, Rhodan viu a residência do chefe do governo.

O sentido estético dos barcônidas deixou-o admirado. A casa não era muito alta, lembrando um bangalô de proporções gigantescas. A frente era formada principalmente por um material semelhante ao vidro. Era transparente e deixava à mostra as peças que ficavam atrás do mesmo. A casa tinha dois pavimentos, mas a grande área que ocupava dava a impressão de que era baixa.

— Aqui o senhor se sentirá muito bem — profetizou Laar e apontou para o edifício. — Este edifício abriga o centro administrativo e científico de Barcon. Não se iluda com as dimensões reduzidas do mesmo. Uma instalação de televisão teledirigida nos mantém em contato permanente com os pontos mais importantes de nosso mundo. Sem sair de seu quarto, o senhor terá oportunidade de conhecer Barcon e os milhares de séculos de sua história. Em todo esse tempo não houve grandes inovações; até é possível que o senhor nos acuse de esterilidade intelectual. Acontece que concentramos nossos esforços num único objetivo, e por isso negligenciamos os demais.

— Já sei — disse Rhodan, sem dar atenção aos rostos espantados dos quatro homens.

Dali a dez minutos a porta fechou-se atrás dele. Viu-se só no aposento que lhe serviria de residência nas próximas dez semanas. Meio desorientado, deixou-se cair numa poltrona encostada à parede de vidro. Aquela posição lhe proporcionava uma visão ampla sobre a cidade e o mar. Suspirou.

— Dez semanas, velho amigo! O que farei durante dez semanas neste mundo estranho, quando não tenho um minuto a perder, pois tenho assuntos urgentes a tratar? Não estarei desperdiçando meu tempo?

— Podemos conversar em voz alta — respondeu o imortal. — Assim você não se sentirá tão só. Aqui ninguém nos ouve, e não existem microfones escondidos. Você fala em desperdício de tempo? Pois está enganado, caro amigo. Não se esqueça de que ainda estamos no mês de maio, e você está de cama, doente. Seu encontro com os mercadores galácticos ainda está num futuro distante. Faltam mais de dez semanas. Portanto, não está perdendo nada.

— Não sei o que responder. Será que você poderia ter a gentileza de contar o que devo fazer para salvar Barcon da destruição?

— Não se preocupe com isso. Cuidarei do assunto para você. Um simples movimento de mão resolverá tudo. Um dia antes de nossa decolagem eles nos mostrarão as instalações com as quais pretendem conduzir Barcon II através do espaço. E então farei o necessário. É por assim dizer uma espécie de inversão de pólos.

— Só isso? — perguntou Rhodan, espantado.

— Só isso.

— Por que temos que ficar aqui durante dez semanas?

O imortal deu uma risadinha. Ele parecia divertir-se a valer.

— Ficaremos para que você veja a história de nossa galáxia. Você não poderá ver mais depressa do que o tempo corre. Receio que terá de assistir a muitos filmes.

— Um tipo de hipertransmissão em regime de concentração de tempo não seria suficiente?

— Desta vez não, meu velho — na voz do imortal soava uma ligeira recriminação. — Você é praticamente imortal, mas ainda não aprendeu a ter paciência. Acho que esta só chegará quando começar o tédio. Mas pelo que vejo nem mesmo para sentir o tédio você terá paciência.

Rhodan olhou para o crepúsculo que descia sobre a cidade. De repente sentiu-se só e abandonado.

 

Os primeiros quinze dias passaram-se sem que acontecesse nada de extraordinário. Através do aparelho de televisão, prontamente instalado, Rhodan travou conhecimento com o planeta Barcon II. Captava as transmissões diretas realizadas de todos os pontos daquele mundo pacífico e paradisíaco. O que invariavelmente causava impressão mais forte em Rhodan era a escuridão do céu noturno. Era bem verdade que, para vê-lo, não precisava do equipamento de televisão. Uma única vez naqueles quinze dias a atmosfera ficara tão limpa que conseguiu enxergar uma débil luminosidade no zênite. Parecia uma mancha de bordas entrecortadas. Era a Via Láctea em que ficava sua pátria, situada a uma distância de cento e cinqüenta mil anos-luz. E, como naquele momento se encontrasse num presente relativista, a Via Láctea para a qual olhava era cento e cinqüenta milênios mais jovem que aquela com que estava familiarizado. Um simples olhar permitiu-lhe uma visão do passado.

No início da terceira semana foi visitado por Nex, o nexialista.

— Fui incumbido de contar-lhe a história de Barcon. Para isso iremos a um grande arquivo.

— As coisas estão começando a ficar interessantes — disse o imortal silenciosamente a Rhodan. — Prepare-se para algumas surpresas. Não se esqueça de que a raça que você tem diante de si já existia quando a Via Láctea ainda era jovem e desabitada.

Um carro levou-os até a cidade. Ninguém se interessou por eles. Barcon voltara a mergulhar na faina do quotidiano. De repente, Rhodan deu-se conta da coincidência que fizera com que Barcon se parecesse tanto com a Terra. O dia desse planeta durava exatamente vinte e quatro horas.

Entraram numa rua lateral que subitamente começou a descer, conduzindo para baixo da terra. O túnel estava bem iluminado, mas parecia não ter fim. Só dali a dez minutos o carro parou.

— Estamos a duzentos metros abaixo da superfície — explicou Nex. — Só aqui nossos filmes estarão seguros para todos os tempos. Nenhuma radiação cósmica penetra nestas profundezas. O ar só é insuflado quando há uma apresentação, e isso só acontece de cinqüenta em cinqüenta anos, quando é constituído um novo governo. Fora disso ficam no vácuo.

Rhodan não respondeu. Sem dizer uma palavra, seguiu o barcônida pelos longos corredores e através das numerosas peças, até que chegassem a uma sala não muito grande, mas bastante confortável. Uma das paredes era formada por um gigantesco quadro de chaves de controle. Na parte da frente, encimando uma espécie de palco, havia uma tela que emitia um brilho leitoso. Na parede oposta estava embutido o projetor. Duas filas de poltronas estofadas convidavam o visitante a acomodar-se.

— Queira sentar, Rhodan. Aqui tudo funciona automaticamente. Basta comprimir o respectivo botão, para que o material desejado seja introduzido no projetor. Nossa raça conheceu a navegação espacial há um milhão de anos, mas a mesma não pôde salvar-nos da catástrofe. Pelo contrário. A despedida forçada do ambiente familiar foi tornada mais penosa pelo fato de sabermos de que alguns de nós poderiam fugir. Mostrar-lhe-ei Barcon na época em que teve início o desastre, e ao fim de sua história galáctica.

O quarto escureceu. Na área de projeção a parede parecia recuar, para dar lugar a uma realidade que se oferecia aos olhos de Rhodan em suas formas e cores naturais.

— Isso é Barcon, visto de uma nave que está saindo para o espaço — explicou Nex com um tremor quase imperceptível na voz. — Pelo que vê, não mudou muita coisa. Apenas, naquela época havia naves espaciais. Agora o senhor vê perfeitamente o planeta vizinho número três, que está penetrando lateralmente no campo de visão. Infelizmente nunca encontramos em nosso sistema um planeta que se prestasse à colonização. Mas chegamos a possuir um império colonial, e um império colonial muito grande.

— Em que parte da galáxia ficava o sol Barcon? — perguntou Rhodan por impulso próprio, sem que o imortal o levasse a isso.

— Logo verá. Naturalmente é impossível assistirmos, no tempo de que dispomos, a todos os filmes do nosso arquivo. Escolherei os mais importantes. A cada cinqüenta anos, quando é realizada a mudança de governo, as pessoas escolhidas ficam neste recinto durante três meses, com pequenas interrupções. Depois disso conhecem a história de nosso mundo e o passado da galáxia, de cujo presente nada sabemos.

Essa constatação parecia encerrar uma solicitação.

— Ainda falaremos a este respeito — prometeu Rhodan. — Receio, porém, que o senhor fique decepcionado.

— Sua nave admirável leva-me a supor o contrário — disse Nex com um sorriso animador. — Mas veja, aquilo é uma de nossas últimas naves colonizadoras. Leva emigrantes para um sistema recém-descoberto, onde ainda não surgiu a vida.

O gigantesco vulto devia ter dois quilômetros de comprimento e deslocava-se em torno de Barcon numa órbita prefixada. Naves menores levantavam-se da superfície, conduzindo os passageiros. Mangueiras de plástico constituíam um passadiço seguro. As pequenas naves entravam por gigantescas escotilhas, trazendo a bagagem e os equipamentos dos colonos. Lá embaixo Barcon ia girando sob a azáfama.

— A nave de colonização trouxe o filme de volta — explicou Nex. — O senhor está vendo alguns extratos.

Pouco depois o sistema de Barcon mergulhou no espaço. O filme fora produzido sob o regime de concentração de tempo, motivo por que Rhodan passou por uma experiência semelhante à de seu vôo para Barcon: as estrelas deslizavam rapidamente sobre a área de projeção. Um sol amarelo ia aumentando de tamanho. Devia ser o destino da expedição. De repente um planeta penetrou no quadro, um mundo de tamanho regular, coberto por uma vegetação exuberante. Planaltos rochosos erguiam-se em meio às estepes e florestas. Grandes rios atravessavam as planícies férteis, atravessadas por rebanhos imensos de estranhos animais. Certa vez Rhodan acreditou ter visto uma espécie de sáurio, mas talvez fosse engano.

— Nesse mundo ainda não havia nenhuma forma de vida inteligente — explicou Nex. — Mas era um mundo fértil, habitado por animais das mais variadas espécies. Nossos colonos encontraram um verdadeiro paraíso. Do momento do pouso naquele planeta até a formação de uma civilização passaram-se uns dez mil anos, se incluirmos as experiências acumuladas.

— Quer dizer que os senhores costumavam largar os emigrantes num mundo apropriado e não se preocupavam mais com eles? — perguntou Rhodan, espantado.

Nex sorriu de forma estranha.

— Isso mesmo. No início de nossa história fundávamos colônias dependentes, mas acabou-se por descobrir que o sistema não era acertado. Os colonos confiavam no seu mundo natal e no apoio que viria de lá. Não tinham maior interesse em explorar as potencialidades da natureza. Tornavam-se preguiçosos e decadentes. Mas os náufragos voluntários, pois não passavam disso, visto que eram obrigados a desmontar a nave que os trouxera para sobreviver, encontram uma nova pátria, que lhes dava tudo de que precisavam para viver. Tinham que trabalhar e desenvolver-se. É bem verdade que também nesses casos houve recaídas; mais de uma vez tivemos que constatar que nossos descendentes que viviam num planeta-colônia regrediam à barbárie. Mas eram exceções. Via de regra desenvolviam uma civilização pujante, que sabia resguardar a herança dos antepassados, mesmo que esquecesse sua origem. Pois um dos princípios que guiavam os empreendimentos coloniais determinava que os colonos não levariam filmes nem registros escritos. Só assim poderiam tornar-se totalmente independentes.

— Quer dizer que se esqueciam de onde vinham.

— Perfeitamente. Só assim tornou-se possível realizar com êxito a colonização dos planetas da Galáxia, formando raças independentes. Muitas vezes duas dessas raças só se encontravam algumas dezenas de milênios depois. Talvez se admirassem pela semelhança que existia entre elas, mas acreditavam que isso decorresse do curso necessário da evolução.

Mais uma vez Nex sorriu e olhou Rhodan de lado.

— Já está começando a compreender a verdade?

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Acho que sim. Mas um milhão de anos é um tempo muito longo, não acha?

— Representam pouco para quem conta em unidades galácticas e se esquece da brevidade da vida. Em termos galácticos cem mil anos da existência de um planeta não representam mais que uma vida humana. Isso significa que o milhão de anos que estamos sós representam dez gerações galácticas. E o que podem fazer dez gerações com um planeta?

— Às vezes nada, às vezes muito. Tudo depende do grau de desenvolvimento e das qualidades da raça.

— Sinto a recriminação — disse Nex, mexendo nos controles dos projetores. — Na sua opinião ficamos parados no curso dessas gerações, que para nós representam cem mil ou mais. Acha que nossa civilização estagnou. Admira-se por não termos feito nenhuma tentativa para escaparmos ao destino que nos impõe uma cruel solidão. Não procure negar.

— Poderia ter tentado ao menos manter contacto com os mundos que já lhes pertenceram. Talvez pelo rádio.

Nex comprimiu um botão.

— Hoje mesmo mostrar-lhe-ei uma coisa que fará com que compreenda nossa atitude — se possuir um coração.

A sala voltou a ser escurecida. Rhodan viu diante de si uma profusão de constelações, nenhuma das quais lhe parecia familiar. A câmera parecia flutuar no meio do recinto. O quadro não era muito nítido; parecia que uma vidraça se interpunha entre o observador e as estrelas.

— Estas fotografias foram tiradas pelo maior observatório que jamais possuímos — isso há um milhão de anos. A câmera tirava uma única fotografia por ano, sempre num momento determinado. Nos anos em que na respectiva noite o céu fosse encoberto pelas estrelas, desistia-se de tirar a fotografia. Por isso só se conseguia em média uma fotografia em cada três anos. Essa fotografia sempre mostra o mesmo setor da Galáxia — ao menos por enquanto. A cada segundo de projeção a que o senhor está assistindo correspondem cerca de cinqüenta anos. Quer dizer que em dois segundos o senhor vê uma vida humana — cem anos. Veja o que nossos antepassados devem ter sentido. Passaram por uma experiência que os abalou até as profundezas da alma e até hoje constitui o fundamento de nossa fé e nossa mentalidade.

Rhodan viu.

As constelações deslocaram-se lentamente — e foram-se afastando. Juntavam-se cada vez mais, a profusão de estrelas tornava-se mais densa, mas em compensação sua luminosidade decrescia.

Subitamente o ângulo de visão ampliou-se, e Rhodan teve uma visão total. Conseguiu enxergar aquilo que estava procurando. Era um dos braços da espiral de onde viera.

Demorou quase dez minutos até que o braço se tornasse visível em toda a plenitude. Mal se distinguiam as diversas estrelas. Formavam uma nuvem alongada e ligeiramente encurvada, que emitia uma luminosidade própria. E essa luminosidade se tornava cada vez mais débil.

— Está vendo aquela aglomeração de estrelas mais luminosa? — perguntou Nex, inclinando-se para Rhodan. — É este o lugar em que antigamente se encontrava o sol Barcon. Por algum motivo inexplicável desprendeu-se do campo de gravitação da Via Láctea que descrevia seu eterno movimento de rotação e foi-se deslocando para fora do grupo de estrelas a que pertencia. Até hoje não chegamos a um acordo sobre os motivos que determinaram o fenômeno. Num movimento implacável nosso sistema foi penetrando no terrível abismo que separa as galáxias. Não havia nada que pudesse deter o afastamento progressivo. Contemple com os próprios olhos o que nossos antepassados tiveram que ver. Sentiram — bem, não sei se o senhor poderá compreender seus sentimentos.

Rhodan não respondeu.

Dali a uma hora toda a Via Láctea penetrara no campo de visão. O setor do espaço em forma de espiral que abrigava o sol do sistema de Rhodan, que naquele momento iluminava uma terra virgem e desabitada, penetrava profundamente na escuridão infinita do espaço interestelar. Quase no centro encontrava-se o sol, a uma distância de apenas trinta mil anos-luz da escuridão.

Onde ficava Árcon? Foi a pergunta que de repente surgiu na mente de Rhodan, mas este preferiu não formular a mesma em voz alta. Mas o imortal ouvira a indagação silenciosa. Respondeu:

— Ficava praticamente fora da Galáxia, velho amigo. Já o preveni para que não formulasse conjeturas. Ainda não chegou o tempo de compreender as grandes relações de causa e efeito. Você já começa a imaginá-las, e por isso sabe mais que a grande maioria dos mortais que habitam a Galáxia. A experiência que você está vivendo através de imagens representa apenas um resumo da que um outro viverá em escala muito mais intensa num espaço de vários bilhões de anos. Não reflita sobre isso, se não quiser enlouquecer.

A Via Láctea ia minguando e deslizando para a escuridão eterna, Barcon afastava-se cada vez mais. Nas vizinhanças da nebulosa em espiral não havia estrelas. A luminosidade débil daquele conjunto formado por bilhões de estrelas ofuscava a luz ainda mais débil das nebulosas situadas a maior distância. Parecia que aquela Via Láctea era a única que existia no Universo, e a mesma afastava-se a cada segundo — ou a cada século que passava.

A grande solidão dos barcônidas teve seu início.

Nex comprimiu outro botão.

— Daqui em diante passarei o filme com a velocidade aumentada quatrocentas vezes. Cada segundo passa a representar cinco mil anos.

O filme ainda durou pouco mais de três minutos.

Nesses três minutos a Via Láctea precipitou-se vertiginosamente num buraco escuro que não tinha limites. A cada segundo que passava tornava-se menor e mais apagada. Ainda não se via nenhuma estrela, e o céu foi-se tornando escuro. A forma típica da nebulosa em espiral transformou-se numa mancha disforme, que aos poucos se perdeu no infinito.

A imagem parou.

— É este o céu que hoje se apresenta à nossa câmera telescópica, que continua a tirar uma fotografia a cada dois ou três anos — disse Nex com a voz embaraçada.

Bem no centro da área negra da projeção via-se a nebulosa, reduzida a uma mancha pequena e insignificante. Estava só: as outras nebulosas não podiam ser alcançadas pela visão. A atmosfera absorvia sua luz débil.

— Estamos sós — prosseguiu Nex, pigarreando. — Mas sabemos que o trabalho que realizamos no passado não foi em vão. Nos planetas por nós colonizados desenvolveram-se novas raças, que devem ter criado uma civilização inimaginável. E nós, os barcônidas, somos seus ancestrais. Seja qual for o lugar de onde o senhor veio, Rhodan, o senhor tem de conformar-se com o fato de ser um descendente dos nossos colonos, ou então um descendente dos seres que nossos colonos colocaram em algum mundo fértil, mas desabitado. Por maior que seja sua raça, ela deve sua existência a nós, os patriarcas da Galáxia.

Rhodan procurou vencer a emoção que ameaçava dominá-lo. Sabia que um problema gigantesco acabara de ser solucionado, mas não se atrevia a extrair todas as conseqüências do fato. Por que, perguntou de si para si, o imortal lhe teria mostrado tudo isso? Por que o teria levado a Barcon, cuja raça, segundo os padrões humanos, havia visto a eternidade e não conseguira enfrentá-la?

Não encontrou resposta e, ao que parecia, o imortal não estava disposto a dar a mesma, pois permaneceu calado.

O quadro projetado à sua frente apagou-se. A sala voltou a iluminar-se. Nex estava de pé junto a Rhodan. Em seus olhos reluzia a tristeza que passara a fazer parte da vida em Barcon II. Com a voz trêmula disse:

— Já compreendeu o que é a solidão, Rhodan? O senhor vive sob um céu estrelado e sabe que não está só no Universo. Sabe que a qualquer momento pode entrar em contacto com outros seres que são seus semelhantes e amigos.

— Talvez o senhor esteja superestimando os descendentes que sua raça deixou na Galáxia — objetou Rhodan cautelosamente. — Muitos colonos podem ter levado dezenas de milênios para redescobrir a astronáutica. Talvez muitos nunca a tenham descoberto, permanecendo isolados e afastados das outras raças, que afinal são todas irmãs. Muitos podem ter soçobrado sem que tivessem a menor idéia de que não eram os únicos seres inteligentes do Universo.

— O senhor está expondo uma teoria sombria, na qual ninguém de nós gostaria de acreditar. Vivemos apenas da esperança de que nosso trabalho não terá sido em vão. Sua visita prova que nossa vida não deixou de preencher uma finalidade.

— Acontece que não estou em condições de reconduzir Barcon para a comunhão estelar — lembrou Rhodan.

Uma sombra passou pelo rosto de Nex.

— É verdade. Acontece, porém, que o senhor nos traz notícias dos mundos que já pertenceram ao nosso Império e que devem sua vida ao nosso povo. E o senhor lhes levará notícias nossas. O simples fato de sabermos que não fomos esquecidos espanta parte do sentimento de solidão que já se tornou insuportável.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Acho que já estou compreendendo. E acredito que posso fazer alguma coisa pelos senhores.

Nex apontou para a porta.

— Vamos embora. Daqui por diante os filmes serão projetados em seu quarto. Apenas quis mostrar-lhe as instalações. Daqui a algumas semanas, quando tiver travado conhecimento com nosso passado, mostrar-nos-á o que aconteceu neste meio tempo na Galáxia.

— Mostrar? — disse Rhodan espantado. — Como posso mostrar? Não trouxe nenhum material.

— Pode mostrar, sim — disse Nex com um sorriso. — Mostrará através dos conhecimentos armazenados em sua memória. Transformaremos seus pensamentos em imagens.

Enquanto se dirigiam à residência de Laar não disseram mais nada. Rhodan esforçou-se em vão para descobrir um meio de livrar-se da situação. O que poderia fazer para evitar o processo de lavagem cerebral? Era exatamente isso que pretendiam fazer com ele.

— Não se preocupe, velho amigo — cochichou o imortal às escondidas. — Será que você acreditava que não previ essa possibilidade, ou que nem sabia dela? Pois então! Os barcônidas ficarão admirados com os frutos de seu trabalho pioneiro.

— Pretende mostrar-lhes alguma coisa que não existe?

— Apenas pretendo mostrar-lhes o futuro — respondeu aquilo.

 

Durante as primeiras oito semanas Rhodan travou conhecimento com a história dos barcônidas — e, através dela, com a história da Galáxia. Ficou sabendo que os barcônidas se consideravam os criadores da civilização da Via Láctea, da qual foram expulsos por um destino implacável. Levaram a semente da vida aos mundos desabitados, e estavam convencidos de que seus descendentes haviam completado a obra por eles iniciada. Achavam que eram o tronco do qual provinham todas as raças humanóides.

No dia 5 de agosto, data em que, segundo Rhodan estava lembrado, travara uma dura batalha contra os robôs-espiões dos mercadores galácticos, foi levado de carro até a cidade. Num grande edifício os membros do governo de Barcon II o aguardavam, entre eles Laar, Regoon, Nex e Gorat. Encontravam-se numa sala ampla, na qual se viam instrumentos complicados e gigantescos painéis. Sob uma cúpula reluzente feita dum metal desconhecido havia uma poltrona. Rhodan foi conduzido a ela.

— Queremos simplificar as coisas para o senhor — explicou Nex depois dos cumprimentos. — Um relato minucioso da evolução da Galáxia consumiria muito tempo. Está vendo a área de projeção? Estamos em condições de projetar seus pensamentos. Pedimos-lhe que pense, que reproduza na imaginação aquilo que ocorreu, pois assim poderemos participar das suas experiências. Assim tomaremos conhecimento do que aconteceu depois que perdemos o contacto com seu mundo.

Rhodan sentou lentamente. Enquanto Nex colocava um capuz prateado sobre sua cabeça e efetuava algumas ligações, Rhodan fez algumas perguntas silenciosas ao acompanhante invisível:

— E agora, velho amigo? Ficarão sabendo que sua obra foi um fracasso. O que é feito de seu projeto de espalhar as raças humanóides por todos os planetas habitáveis? Afinal, o que aconteceu depois que se viram reduzidos à solidão?

— Aconteceu muita coisa. Mas não aconteceu aquilo que os barcônidas esperavam. O contacto entre os mundos foi perdido, se é que já existiu. O império em que pensavam desmoronou-se antes que se formasse.

— O que devo pensar? Nada sei sobre os acontecimentos que se desenrolaram no espaço. É bem verdade que os arcônidas me deram seu saber, mas o que representa isso com o que realmente aconteceu? Afinal, Árcon e M-13 não passam de partículas de pó na Galáxia.

— Não é muita coisa — respondeu o imortal. — Deixe por minha conta. Pensarei por você. Abra os olhos para viver a experiência daquilo que acontecerá um belo dia... talvez. Não poderei oferecer mais que um resumo muito ligeiro. Mas esse resumo bastará para transmitir a esses infelizes a impressão de que não viveram em vão nesta solidão cósmica.

— Está preparado? — perguntou Nex, interrompendo os pensamentos de Rhodan.

— Estou... naturalmente. O que devo fazer?

— Pense em sua própria história e relate o que aconteceu até hoje.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. As luzes apagaram-se. A parede de projeção em forma de semicírculo emitiu uma fosforescência. Subitamente a superfície tornou-se negra e Rhodan viu planetas — a Terra.

Uma gigantesca nave circulava em torno dela e acabou pousando em sua superfície, sustentada por raios chamejantes. Homens desceram e apossaram-se do mundo novo e desabitado. Os primeiros núcleos começaram a formar-se.

Rhodan teve a impressão de que estava sonhando. O imortal estava exibindo a ele e aos barcônidas quadros que nunca poderiam ter sido realidade. Seriam os terranos descendentes dos barcônidas, uma raça perdida no espaço?

Mais uma vez apareceu a Terra, vista de longe. As calotas polares moviam-se, avançando até as zonas temperadas. Mais tarde as gigantescas geleiras voltaram a retrair-se. A superfície do planeta modificou-se. Cidades enormes começaram a surgir, cidades que não conheciam igual na Terra de hoje. Gigantescas edificações em forma de cúpula tornaram a lua habitável. Naves espaciais corriam de um planeta para outro, conduzindo colonos para Marte e Vênus. Das profundezas do espaço interestelar vinham os cargueiros de outras raças e pousavam na Terra, para oferecer suas mercadorias em troca de outros produtos.

Rhodan compreendeu que o imortal estava contando aos barcônidas a história dum futuro possível. Estes naturalmente pensariam que se tratava da história do passado. Não transmitiu qualquer informação sobre as terríveis guerras, que bastariam para exterminar a população dum planeta, não mencionou o Império dos arcônidas, que se encontrava próximo à decadência final, nada mostrou sobre os conflitos aparentemente insuperáveis que transformavam raças aparentadas em inimigos mortais.

O imortal mentia para os barcônidas, para não lhes tornar ainda mais difícil a terrível solidão em que viviam.

Depois duma visão panorâmica que mostrou claramente como todas as inteligências humanóides da Via Láctea se congregaram numa grande comunidade, o quadro ideográfico apagou-se de uma hora para outra. As luzes foram acendidas aos poucos.

Rhodan olhou cautelosamente em torno de si. Viu os rostos felizes dos barcônidas que sorriam em silêncio. Ao que parecia haviam esquecido o destino cruel que os atingira. Foram eles que tornaram possível a evolução que se exibira diante de seus olhos. Não viveram em vão. Alguém completara sua obra.

Nex levantou-se e aproximou-se de Rhodan, para tirar o capuz de sua cabeça. Com a voz trêmula disse:

— Ficamos muito gratos pelas informações, Rhodan. Assim a longa viagem para o desconhecido não será tão difícil.

Rhodan levantou-se. Contemplou os rostos das pessoas reunidas na sala.

— A longa viagem para o desconhecido? Não compreendo.

— Amanhã revelaremos nosso segredo — disse Nex com um sorriso significativo. — E, assim que lhe tivermos transmitido os conhecimentos teóricos, mostraremos o quanto já avançamos na prática.

Por algum tempo conversaram descontraidamente; ninguém aludiu à viagem para o desconhecido. Dali a duas horas Rhodan estava novamente no seu quarto.

Quando se encontrava na cama e viu que diante das janelas a noite sem luz derramava suas sombras sobre o mundo, disse em voz baixa:

— Você mentiu para eles, velho amigo. Ofereceu-lhes uma ilusão que lhes dará forças para transformar em realidade seu plano tresloucado.

— Isso mesmo — respondeu o imortal, também em voz baixa. — Foi exatamente o que fiz. Um belo dia, daqui a um milhão de anos talvez, a raça dos barcônidas salvará a Galáxia da destruição, trazendo suas experiências através da solidão infinita do abismo que se abre entre as nebulosas. Um belo dia as raças inteligentes da Via Láctea também se sentirão sós. Isso acontecerá no dia em que se derem conta de que nunca poderão vencer esses abismos.

Rhodan não respondeu. Por maior que fosse a receptividade de seu cérebro, aperfeiçoado através do treinamento hipnótico, o mesmo também tinha limites.

E sabia que esses limites já tinham sido ultrapassados.

 

Era o dia 14 de agosto.

Vários dias foram consumidos em explicar o projeto dos barcônidas a Rhodan. O próprio Nex explicara-lhe os detalhes técnicos. Não se cansava de asseverar que há várias gerações sua raça estava familiarizada com o projeto, e que as melhores inteligências dum mundo unido estavam fazendo o possível para eliminar qualquer fonte de erro.

O planeta Barcon II fora escavado por dentro. Toda a população poderia viver e desenvolver-se no interior do mesmo. Sistemas de transporte inconcebíveis garantiam a ligação entre os diversos centros residenciais. Os reatores atômicos espalhados pelos pontos mais diversos garantiam o suprimento de luz, calor e energia por milhares de séculos. As instalações geradoras de ar substituiriam a atmosfera perdida. Enquanto o planeta congelado com sua superfície morta percorresse sua trajetória solitária pelo Universo, a vida continuaria em seu interior.

Gigantescos laboratórios produziriam os alimentos e objetos de uso. A vida não seria diferente da que os habitantes levavam na superfície do planeta. Quando irrompesse a noite, uma noite de escuridão completa, isso aconteceria sob comando.

Mas o aspecto mais importante era a propulsão.

Uma maquinaria incrível faria com que o planeta se desprendesse do campo de gravitação do sol de Barcon e se deslocasse numa velocidade crescente em direção à distante Via Láctea. Um dia, asseverou Nex confiante, a “nave Barcon II” atravessaria o Universo à velocidade da luz.

Rhodan não conseguia livrar-se da impressão de viver num sonho. O imortal não respondeu às perguntas sobre este ponto. Ignorou as observações que Rhodan fazia a este respeito.

Hoje, no dia 14 de agosto, Nex iria mostrar o singular propulsor ao hóspede do planeta.

Foram de carro até o aeroporto, onde um pequenino aparelho os aguardava. Tinha a forma duma gota de líquido e não possuía asas. Rhodan tinha certeza de que não haveria o menor problema em penetrar no espaço por meio dessa nave, mas isso não adiantaria nada. Mesmo que alcançassem a velocidade da luz, levariam cento e cinqüenta mil anos para atingir a estrela mais próxima.

Depois de uma hora de vôo pousaram num platô de rocha, que se erguia em meio a uma planície fértil. Várias construções em forma de cúpula e algumas torres elevadas provavam que havia gente em meio àquela solidão. Olhando melhor, Rhodan notou que a área do platô fora aumentada por meio de grandes massas de pedregulho.

— Esta é a entrada do mecanismo de propulsão, cujo funcionamento se fará sentir aqui — disse Nex, apontando para baixo. — Regoon concluiu a execução dos velhos planos. O senhor o encontrará lá embaixo.

Embaixo — isso significava cerca de cinco mil metros abaixo da superfície.

Rhodan não pôde deixar de admirar as instalações que os barcônidas haviam montado no curso dos séculos. Corredores imensos levavam para o interior do planeta. Os mesmos eram iluminados a espaços regulares por lâmpadas embutidas no teto. Trilhos de bitola estreita davam mostra do meio de transporte utilizado por lá. Uma vibração constante enchia o ar tépido.

Regoon veio ao seu encontro. Trajava um macacão apertado, que não o perturbava no trabalho.

— Talvez o senhor tenha suas dúvidas — disse, apertando a mão de Rhodan. — Mas asseguro-lhe que conseguiremos. Muitas gerações trabalharam na execução deste projeto, e nós o realizaremos.

— O senhor viverá apenas para ver o começo — respondeu Rhodan com um sorriso. — Só nossos descendentes saberão se foi bem sucedido. Quanto tempo levará Barcon II para retornar à nossa Galáxia?

— Calculamos a duração da viagem em duzentos mil anos — respondeu Regoon. — Quanto a isso Gorat não tem a menor dúvida.

Duzentos mil anos! Rhodan estremeceu ao dar-se conta do espírito de sacrifício desses homens extraordinários. Retirar-se-iam para o interior do planeta, a fim de que seus descendentes mais longínquos tivessem possibilidade de viver no seio da comunidade galáctica. Os terranos ainda não haviam chegado a esse ponto. Não pensavam sequer em seus filhos.

— Conseguirão — disse, e estava certo de que tinha razão. — Um dia os descendentes do senhor e os nossos poderão apertar-se as mãos.

O controle da propulsão planetária era um mecanismo de complexidade inimaginável. A profusão de painéis e geradores, instrumentos e fios, telas e postos de observação era tamanha que Rhodan logo desistiu de refletir sobre seu funcionamento. Nem mesmo um cérebro treinado como o seu poderia compreender à primeira vista o que estava acontecendo no interior daquele planeta.

Sem dizer uma palavra caminhava pelos gigantescos pavilhões, ladeado por Nex e Regoon. Ouvia as explicações que os dois cientistas lhe davam. Mostraram-lhe todas as instalações e orgulhavam-se da obra de sua vida, que tornaria todo um mundo independente do sol por um espaço de duzentos mil anos.

Quem dera que ele, Rhodan, pudesse evitar a catástrofe com o auxílio do imortal.

— Sei onde está o erro — disse nesse instante a voz silenciosa em seu cérebro. — Daqui a pouco passaremos pelo gerador principal. Não peça explicações, velho amigo. Como já disse, trata-se apenas dum erro de regulagem, que produziria uma aceleração infinita do processo de fissão nuclear. Se isso acontecer, a energia que deveria durar uma eternidade será liberada num segundo. Você conversará animadamente com os dois, sem preocupar-se com o que sua mão direita fizer.

— Veja, Rhodan, este mecanismo comanda a propulsão, pois regula o processo de fissão nuclear — disse Regoon no mesmo instante. — Laar ficará encarregado de estar aqui dentro de pouco tempo, a fim de dar início à grande viagem. Os preparativos já estão sendo tomados.

— Quer dizer que os propulsores estão prontos? — perguntou Rhodan, apontando com a mão esquerda para as instalações. Regoon e Nex confirmaram com um gesto e olharam na direção em que o braço estava apontando. — Tem certeza de que tudo funcionará perfeitamente?

— Temos certeza absoluta — respondeu Nex com um sorriso. Nem ele nem Regoon perceberam que a mão direita de Rhodan inverteu a posição de duas chaves. — Tudo foi testado milhares de vezes. Não existe a menor possibilidade de erro.

— Faço votos de que seja assim — disse Rhodan e prendeu os grampos das chaves. Sentiu que o imortal se retirou. Sentiu-se só e abandonado, mas isso só durou uma fração de segundo. A voz silenciosa logo se fez ouvir.

— Consegui. Estive no futuro, amigo velho. Os barcônidas iniciam a viagem. Não submergem na fusão de seu planeta.

— Como podemos alterar o futuro? Você não viu seu planeta transformar-se num sol?

— É possível que um dia você compreenda, amigo velho. A imortalidade e o tédio resolvem todos os problemas.

— Vamos dar uma olhada na usina energética, situada numa área isolada — disse Nex, apontando para um alçapão redondo de cinco metros de diâmetro, engastado no soalho. — Seria perigoso entrar ali.

Comprimiu um botão e o alçapão, cuja grossura era de dois metros, abriu-se lentamente. Rhodan aproximou-se da abertura e olhou para o abismo que se abria diante dele. A galeria abria-se mais embaixo, dando para outro pavilhão, no qual se viam gigantescas peças metálicas. Não se reconheciam os detalhes. Um zumbido uniforme subia dali, enchendo o ar com uma vibração intensa. De algum lugar vinha um cheiro de ozônio.

— Amanhã as manobras de evacuação serão iniciadas em todos os pontos do planeta Barcon II — disse Regoon em tom orgulhoso. — Não demorará muito, e a viagem do planeta terá início.

— E amanhã me despedirei de Barcon — respondeu Rhodan. — Informarei os mundos da Galáxia de que os ancestrais da humanidade retornarão.

Nex e Regoon sorriram. Em seus olhos não se via mais nada da tristeza que os mesmos costumavam exprimir. Exalavam confiança e uma felicidade tranqüila. E a força e decisão que lhes permitiriam passar o resto de suas vidas numa solidão absoluta.

 

A viagem ao campo de pouso parecia uma marcha triunfal. Milhares de barcônidas enchiam as ruas e cumprimentavam o embaixador da Galáxia com gritos de júbilo. Nada parecia indicar que toda essa gente via o sol pela última vez, pois antes mesmo que deixasse o sistema, os barcônidas desceriam para as profundezas de seu mundo para morrer por lá. Só seus descendentes mais longínquos veriam um belo dia os novos sóis, que voltariam a dar calor, luz e vida ao seu planeta.

Enquanto o carro diminuía a velocidade até parar, a pequenina nave na qual Rhodan viera desceu do céu. Pousou suavemente. A cabine abriu-se automaticamente.

Laar foi o primeiro a descer do carro. Deu a mão a Rhodan, para ajudá-lo a descer. Nex, Regoon e Gorat seguiram-no.

— Agradecemos pela visita, Rhodan. Já sabemos que nossos filhos não nos esqueceram. Rhodan, transmita à comunidade galáctica lembranças de seus irmãos.

— Serão dadas — prometeu Rhodan.

Quando, ainda de pé na cabine aberta, virou-se para acenar pela última vez para a multidão, o grito de júbilo da massa humana subiu para o ar claro e tépido do planeta. Parecia o grito de alívio duma criatura martirizada, que subitamente se vê livre dos seus sofrimentos.

Rhodan sentiu as lágrimas que lhe subiam aos olhos. Virou-se abruptamente e desapareceu no interior da nave. Esta decolou poucos segundos depois com um leve abalo e, depois de descrever uma curva, subiu verticalmente para o céu.

Barcon II voltou a mergulhar no silêncio eterno da solidão.

Nos próximos dois dias o espetáculo da viagem repetiu-se em sentido inverso. A cada hora que passava a Galáxia crescia, até que a pequena nave mergulhasse na confusão de estrelas de um dos braços da espiral. Naquele instante Rhodan compreendeu o que os barcônidas queriam dizer quando falavam em sua solidão insuportável.

— Dentro de uma hora relativa chegaremos ao destino — disse o imortal de forma bem perceptível. — Será que você não vai me dizer por que veio?

— Você não sabe? — perguntou Rhodan espantado.

— Apesar disso gostaria que você dissesse.

— Preciso duma arma definitiva, para defender meu planeta natal contra o perigo que o ameaça. Os mercadores galácticos descobriram a Terra, e não serão os últimos.

— Ora, os filhos dos barcônidas! — disse aquilo com um riso de escárnio, mas de repente tornou-se muito sério. — Estes não deverão sofrer nenhuma decepção quando chegarem à Galáxia, o que poderá acontecer bem mais cedo do que você pensa. É bem possível que alguém os ajude a vencer o tempo.

Fez uma pausa, para deixar que suas palavras produzissem efeito na mente de Rhodan.

— Uma mão forte deve unir a Galáxia. E essa mão forte é você, Rhodan. Só você! Por isso dar-lhe-ei a arma que me pede. Apenas lhe peço que nunca abuse dela!

— Pretende dar-me a arma? — perguntou Rhodan, que subitamente se sentia desconfiado. — Sem qualquer prova, sem outra missão a cumprir?

— Nossa excursão foi a melhor prova. Você passou bem por ela, não passou?

— Acredito que sim — com sua ajuda.

Aquilo riu divertido.

— É claro que foi com minha ajuda; nem poderia ter sido de outra forma. Quer dizer que você quer um transmissor fictício. Pretende teleportar porções da matéria. Deseja levar, por exemplo, cargas nucleares para dentro das naves de seus inimigos.

— E você me ajudará?

— Naturalmente. Durma, Rhodan, que você tem diante de si mais um salto no tempo. Mas não deixaremos de retornar ao presente, onde há uma tarefa à sua espera. Seu amigo Bell deverá estar curioso para saber por onde você andou durante o segundo em que esteve ausente...

Enquanto refletia sobre as palavras do imortal, Rhodan sentiu um cansaço invencível. Olhou para a tela e viu a primeira constelação, que se deslocava lentamente.

Depois adormeceu...

...e logo despertou.

 

...houve? Você está ficando transparente... já está de volta! Quer fazer um exercício de teleportação?

Rhodan olhou para o relógio de bordo.

17 de agosto, 22:53 h, hora de Terrânia.

Nem chegara a perder um segundo.

— Olá, Bell — disse com a voz embaraçada. — Um exercício de teleportação? Não foi bem isso. Talvez seja uma brincadeira de nosso grande e velho amigo. — Olhou pela vigia da frente. — A montanha! Estamos chegando.

Bell ia perguntar mais alguma coisa, mas preferiu ficar calado. Em sua testa havia uma ruga vertical. Talvez estivesse refletindo para descobrir como era possível que numa fração de segundo Rhodan arranjara uma camisa limpa, e ainda um uniforme bem passado. Mas no planeta da vida eterna tudo era possível, até as coisas mais medonhas.

Viram a cidade. O campo de pouso parecia ter crescido. Novos edifícios erguiam-se em torno dele. O pavilhão continuava no mesmo lugar. A entrada estava aberta. Um vulto humano, solitário e abandonado, estava lá embaixo, olhando para eles.

Era Homunk, a criatura artificial do imortal. Corporificava este e servia de mediador entre ele, o grande invisível, e os humanos. Seu saber infinito permitira-lhe transformar uma porção de matéria num homem para o qual não havia problemas insolúveis.

A Stardust-III pousou.

Rhodan e Bell foram os primeiros a saírem da nave. Dirigiram-se a Homunk, que os aguardava com um sorriso nos lábios.

— Bem-vindos em Peregrino, o planeta da vida eterna — disse, estendendo a mão aos dois homens. — Quer dizer que desta vez desejam uma arma. Um transmissor fictício de matéria, segundo soube de meu senhor. O desejo foi concedido. Fui incumbido de montar dois aparelhos desses nas posições de combate da nave. Será que poderão dar uma ajuda?

Rhodan ficou surpreso em ver com que rapidez o imortal atendia ao seu pedido. Isso não combinava com a imagem que fizera dele, se considerasse as dez semanas que passara com o mesmo. Mas teriam sido realmente dez semanas?

— Ajudaremos, sim — naturalmente. — Rhodan teve que fazer um esforço para não dar uma palmadinha no ombro de Homunk e chamá-lo de “velho amigo”. O homem artificial sorriu.

— Vamos começar.

Não houve nenhum preparativo, nenhuma demora.

Que interesse teria o imortal em não perder tempo — ele, que dominava o tempo?

Por um instante Rhodan se esquecera de que aquilo possuía um ânimo muito galhofeiro.

Os trabalhos foram iniciados imediatamente. Os cinqüenta robôs de trabalho depositados a bordo da Stardust-III levaram para bordo as peças depositadas no grande pavilhão, e ali montaram os dois aparelhos sob a orientação de Homunk.

Quinze dias passaram-se.

Rhodan ficava cada vez mais preocupado com o tempo que estavam perdendo. Bell também não conseguiu disfarçar a ansiedade. No início da terceira semana, quando os trabalhos ainda estavam em pleno andamento, Rhodan olhou para o lado. Encontravam-se numa pequena colina, de onde podiam contemplar a imagem dos Alpes. À sua esquerda estendia-se a superfície reluzente dum mar. O sol artificial encontrava-se praticamente no zênite, e um calor agradável enchia o mundo artificial.

— Já falou com ele a este respeito? — perguntou Bell.

— Você se refere ao tempo — respondeu Rhodan, que sabia perfeitamente onde o amigo queria chegar. — Tentei várias vezes, mas não obtive uma resposta direta. Estamos perdendo muito mais tempo do que poderia parecer. Já estamos aqui há mais de quinze dias. Se me lembro da nossa experiência passada, chego à conclusão de que é bem possível que lá no espaço e sobre a Terra vários anos se tenham passado. E isso seria uma catástrofe. O que nos adiantarão as superarmas, se chegarmos tarde para salvar a Terra e o Universo?

— Devíamos... — principiou Bell, mas calou-se abruptamente. Rhodan percebeu sua hesitação e seguiu o olhar do amigo, que fitava o mar. Uma esfera colorida flutuava sobre a superfície ligeiramente agitada e aproximava-se lentamente. Parecia não ter peso e desconhecer a lei da gravidade. Como se fosse tangida pelo vento, ia velejando em direção à colina em que se encontravam. E dela saiu a voz do imortal, forte e nítida — e entremeada com o habitual tom irônico.

— Assumi uma forma bastante estranha, não acham? Poderia ter vindo sob a forma dum monstro, mas isso seria contrário à estética. Uma bolha de sabão colorida é bem mais bonita.

— Mas esta pode arrebentar — disse Bell sem o menor respeito.

— É claro que pode! — disse o imortal com uma gostosa gargalhada. Parecia divertir-se a valer. — Querem ver?

Rhodan preferiu não perder a oportunidade que se oferecia.

— Não! — exclamou. — Gostaria de fazer-lhe uma pergunta.

— Mais um pedido?

— Sim, mais um pedido, velho amigo. Você sabe qual é a minha situação. Nossos “amigos”, que levam vantagem sobre nós, estão sitiando nosso sistema. Conseguiram atrair alguns amigos meus a uma armadilha e os destruirão se não chegarmos em tempo. O mundo de você fica em outro plano temporal que o meu. Da outra vez que estive aqui passaram-se mais de quatro anos. Agora isso não deve acontecer. Quinze dias já seriam demais. Quero pedir-lhe...

— Um prazo de dez minutos é satisfatório? — perguntou o imortal. A esfera colorida parecia inchar, e a gama de cores parecia cada vez mais variada. Rhodan parecia perplexo.

— Está bem, dez minutos. Mas para quê?

— Dez minutos ao todo, velho amigo. Pense em tudo pelo que você passou nesses dez minutos. Você fez uma excursão à eternidade e acompanhou o destino de sua raça. Além disso, equipou sua nave com a mais formidável das armas. Aliás, tenho armas ainda mais potentes, mas você não fez nenhuma pergunta a respeito. Não posso ajudá-lo, se você não me dá as indicações. Talvez mais tarde...

— Ontem Homunk fez algumas alusões — recordou Bell muito exaltado. — Mas não respondeu às perguntas que lhe fizemos.

— Nem está habilitado a responder — disse com uma risadinha a esfera que agora flutuava bem em cima de suas cabeças. — Mas as indicações que ele forneceu deviam levá-los a pensar um pouco. Talvez em sua próxima visita vocês poderão fornecer informações mais precisas sobre aquilo que desejam de mim. Terei muito prazer em ajudá-los. Não querem que os barcônidas sofram uma decepção quando regressarem.

Bell fez cara de espanto.

— Os barcônidas? Será que está aludindo aos arcônidas?

Uma gargalhada homérica veio do céu.

— Que fantasia deliciosa tem meu jovem amigo! Não deve quebrar a cabeça — ela é muito linda.

Bell esteve a ponto de responder, mas uma forte lufada de ar quase o atira ao chão. A bolha reluzente estourara. O ar veio de todos os lados para encher o vácuo. Logo o vento cessou.

— Foi ele que quebrou a cabeça — murmurou Bell, arrastando Rhodan encosta abaixo. — Quem são esses barcônidas?

— Isso é uma história muito comprida — disse Rhodan em voz baixa. Depois de refletir um pouco, acrescentou: — É possível que seja apenas uma lenda; não sei. Um dia destes contarei. Ainda bem que estamos livres de nossa grande preocupação. Não vamos perder tempo.

— Tem certeza?

— Certeza absoluta! — confirmou Rhodan, andando a passos largos. Lá embaixo a Stardust-III os aguardava. Amanhã as armas estariam em condições de serem usadas.

Homunk compareceu à sala de comando.

— Meu senhor pediu que lhe dissesse que já pode decolar, Rhodan.

— Não vai despedir-se de nós? — perguntou Rhodan espantado.

— Ele o faz por meu intermédio. Além disso, está conosco neste instante.

Bell olhou em torno, mas não viu ninguém.

— Onde está? — perguntou, como se esperasse ver outra esfera colorida.

Homunk sorriu.

— Está corporificado num ser humano, num ser humano que o senhor ama muito, Bell — disse; logo seu rosto voltou a assumir uma expressão séria. — Meu senhor quer que vocês decolem daqui a dez minutos, rompendo a abóbada energética na vertical. Vocês retornarão ao seu sistema no mesmo dia em que partiram de lá.

Rhodan sentiu-se aliviado por ver a informação confirmada mais uma vez.

— E a arma? Será que funciona?

— Não tenha a menor dúvida — asseverou Homunk.

Rhodan ligou o intercomunicador e transmitiu algumas ordens aos postos de combate. Depois olhou para o relógio.

— Veremos — disse. — Meu velho amigo não se zangará se fizer uma experiência na sua área. — Lançou outro olhar para o relógio. — Qual é a profundidade desses oceanos?

— Quatro mil metros.

— Excelente! — Rhodan voltou a falar com os postos de combate. Alguns dados. Depois surgiu a ordem: — Tudo pronto? Pois bem, vou disparar.

Comprimiu um botão que se encontrava a seu lado, e que nunca parecia ter sido usado, o que correspondia à realidade.

Alguns segundos passaram-se. Depois uma enorme montanha de água surgiu lá fora, no oceano, formou um gigantesco cogumelo e caiu sobre si mesma. Vapores brancos turbilhonaram em direção ao céu artificial. A vaga provocada pela explosão correu para a margem e inundou grande extensão da zona costeira.

No mesmo instante começou a chover.

Alguém estava rindo.

— Muito bem, velho amigo. Sabe lidar com armas. Mas volto a preveni-lo: a superioridade que você acaba de adquirir só poderá ser usada em prol da conservação da paz. Se não for assim, a arma será dirigida contra você mesmo. Quando for atacado, poderá destruir o inimigo. Mas nunca ataque ninguém! Eu o previno, velho amigo. Estou falando muito sério!

— Você não tem motivo para preocupar-se — tranqüilizou-o Rhodan. — Nosso poder tem por único objetivo realizar o sonho dos barcônidas. E nisso estamos de acordo, não estamos, velho amigo?

— Inteiramente! Passe bem, Perry Rhodan. Um momento! Antes que eu me esqueça: fiz uma promessa a Bell. Poderá procurar em seu camarote. Mais uma vez o invisível sorriu. Depois reinou um silêncio total.

Homunk dirigiu-se à porta.

— Desejo-lhes tudo de bom. Mais um conselho: assim que saírem da proteção deste mundo e retornarem ao plano existencial comum, tenham cuidado! Passem bem, caros amigos!

Desapareceu antes que pudessem responder.

Bell parecia furar o ar com o olhar.

— No meu camarote? O que foi que ele me prometeu?

— Como posso saber? — disse Rhodan, dando de ombros. — Uma eternidade se passou desde que chegamos aqui. Não posso lembrar-me de tudo.

— Nem eu. Duas semanas e meia são um tempo muito longo.

Rhodan sorriu sem dizer uma palavra. Então Bell vivera dezessete dias. E ele, Rhodan? Teria vivido treze semanas e meia? Ou uma eternidade formada de duas parcelas de cento e cinqüenta anos?

Ou seriam apenas dez minutos?

Levantou a mão e ligou o intercomunicador.

— Atenção, todos os tripulantes! Decolaremos dentro de um minuto. Atar cintos! Dentro de exatamente três minutos romperemos a abóbada energética. O tempo já está correndo. Cento e setenta e nove... cento...

O robô prosseguiu na contagem.

Ao número cento e vinte a Stardust-III ergueu-se e, imponente, subiu ao azul do céu artificial. As nuvens produzidas pela detonação atômica subaquática já haviam descido ao solo. Lá em cima o sol artificial desperdiçava a profusão dos raios dourados.

— Vou até o camarote para deitar um pouco — disse Bell. — Avise-me quando chegarmos perto da transição.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Permaneceu só na sala de comando. O assento de piloto proporcionava uma proteção tamanha que poderia superar o pior dos abalos. Daqui poderia dirigir a enorme esfera com uma das mãos, se não preferisse deixar o controle a cargo do robô.

Exatamente dois minutos depois da decolagem a Stardust-III rompeu a cúpula feita de energia que se estendia acima do planeta Peregrino. O abalo sacudiu todos os compartimentos da nave, mas em grande parte foi absorvida e compensada pelos campos gravitacionais.

Poucos segundos antes do grande acontecimento o sinal de chamada acendeu-se. Bell procurava entrar em contacto com a sala de comando por meio do intercomunicador. Aborrecido, Rhodan não lhe deu atenção. Não tinha tempo para ouvir piadas sem graça ou deixar que o distraíssem de outra forma. A situação exigia toda concentração. Estava lembrado da advertência de Homunk, segundo a qual devia ter um cuidado todo especial quando rompesse a barreira que o separava do Universo normal.

Rhodan não imaginava por que aquele instante representaria um perigo, mas nem pensou em fazer pouco caso do aviso que lhe fora dado.

Seu olhar caiu sobre o relógio de bordo, que poucos segundos antes da ruptura da barreira continuava a indicar o dia 3 de setembro, 15:47 h, tempo de Terrânia.

O abalo veio em seguida. O planeta Peregrino desapareceu de uma hora para outra, sendo substituído pela visão conhecida do Universo.

Os algarismos do relógio correram vertiginosamente diante dos olhos de Rhodan. O calendário de bordo adaptou-se ao novo plano temporal. Marcava o dia 17 de agosto, 22:39 h, tempo de Terrânia.

Fazia exatamente dez minutos e meio que haviam penetrado nesse mesmo ponto na cúpula energética do planeta Peregrino. E fazia apenas sete horas que haviam decolado da Terra.

Dali a quarenta minutos o imortal o levaria consigo, para uma excursão às profundezas dos abismos que se abrem entre as nebulosas. Uma excursão à eternidade...

Rhodan sentiu que seus cabelos se arrepiavam. No mesmo instante o som estridente do alarma encheu a nave.

Os aparelhos automáticos de observação haviam localizado porções de matéria, muito embora nenhuma matéria devesse existir num raio de cinqüenta anos-luz.

Poucos segundos depois veio o aviso da sala de comando das operações de combate:

— Posto de combate TFM preparado!

Antes que as vigias se fechassem, Rhodan viu as oito naves em forma de rolo compressor dos saltadores, que se precipitavam vertiginosamente sobre a Stardust-III embora o surgimento repentino do veículo espacial as deva ter surpreendido.

Mais alguns segundos, e os impulsos eletrônicos percorreram as instalações robotizadas.

Naquele instante uma gargalhada soou nos ouvidos de Rhodan. Uma voz disse em tom galhofeiro:

— Olá, amigo velho! Chegou a hora de experimentar a nova arma. Vai ser muito divertido...

Rhodan não pensava assim. Estreitou os olhos e mordeu os lábios.

— Transmissor um — disparar! — gritou no microfone.

Naquele instante a Stardust-III transformou-se na mais perigosa e mortal de todas as naves que já percorreram o Universo.

 

Topthor não acreditava no que estava vendo.

Poucos minutos antes ordenara uma pausa de descanso, pois contava com uma permanência mais prolongada de Rhodan sobre o planeta que, segundo tudo indicava, era invisível. Assim que a gigantesca esfera voltasse a ingressar no espaço, ele a destruiria num ataque fulminante. Depois disso não seria difícil descobrir o planeta da vida eterna.

E agora a Stardust-III surgiu do nada bem diante do seu nariz, apenas dez minutos depois de ter desaparecido.

Despertou imediatamente. Com uma pancada de seu enorme punho baixou a chave que colocava em funcionamento a comunicação audiovisual com as outras naves.

— Alarma! Rhodan está de volta! Vamos atacá-lo e destruí-lo. Deixem a determinação das coordenadas do ponto de emersão por minha conta.

Grogham estava a postos. Em palavras de comando ligeiras e entrecortadas ordenou e dirigiu o ataque. Mandou que cinco das naves avançassem, enquanto ele mesmo, com a nave de Topthor e mais uma, permanecia na posição atual. Isso salvaria sua vida e a do chefe do clã.

As cinco naves espalharam-se e formaram um anel bem amplo, em cujo centro a Stardust-III os aguardava, sem esboçar qualquer defesa.

— Lançar torpedos! — berrou Grogham no seu aparelho de comunicação. Os comandantes dos cinco couraçados, que tantas vezes haviam corrido em auxílio de outros clãs dos mercadores, receberam a ordem e agiram de acordo com a mesma.

Cinco pesados torpedos com cargas de fusão nuclear saíram das escotilhas e correram em velocidade cada vez maior na direção da Stardust-III.

Tensos, Topthor e Grogham acompanhavam o espetáculo. Estavam curiosos para ver o que aconteceria. Naturalmente contavam com a presença dum poderoso campo de defesa dos terranos, mas esperavam que o mesmo não resistiria à descarga energética de cinco bombas atômicas superpesadas.

Naquele instante verificaram-se cinco explosões em torno da Stardust-III, apagando por um instante a luminosidade débil das estrelas distantes. Topthor fechou os olhos e esperou que a luminosidade diminuísse. Não conseguiu desvencilhar-se de certo sentimento de orgulho. Talvez tivesse conseguido aquilo que Etztak e Orlgans tentaram em vão — destruir Rhodan. Mas a recompensa de seus esforços não seria apenas esta. Ainda teria encontrado o mundo da vida eterna — ou quase o teria encontrado.

Lentamente foi abrindo os olhos.

A gigantesca esfera continuava a flutuar, intacta, em meio às cinco naves de guerra do clã dos superpesados, comandado por Topthor. Teve a impressão de que o metal arcônida emitia um brilho traiçoeiro e desafiador. Fora de si de raiva, berrou:

— Dois torpedos! Cada nave disparará dois torpedos simultaneamente.

Também este ataque foi dirigido por Grogham. Perdera parte da autoconfiança, pois imaginava que talvez desta vez tinham encontrado um inimigo à altura — e não apenas um inimigo, mas também um mestre.

O campo energético da nave de Rhodan também resistiu a essas dez explosões e à descarga energética provocada pelas mesmas. Era bem verdade que os geradores foram solicitados até o limite de sua capacidade. Se os mercadores tivessem a idéia de lançar três torpedos ao mesmo tempo, a Stardust-III estaria perdida.

— Transmissor número um — prepare-se para entrar em ação.

— Preparado! — soou a voz tranqüila e objetiva.

O posto de combate aguardava.

Os homens confiavam na nova arma — e, mais do que isso, em Rhodan.

— Desistiram dos torpedos, constatou Rhodan. Tentavam alcançar o objetivo com feixes de raios concentrados. Era uma arma nada desprezível. Mas o campo energético da Stardust-III resistiu sem problemas.

Teve tempo para dedicar sua atenção a Bell, que entrara correndo na sala de comando, com os cabelos em pé.

— Dormiu bem? — perguntou Rhodan em tom gentil.

Bell enfureceu-se sem o menor motivo.

— Dormi o quê! Enquanto você se divertia com esses pepinos saltadores, eu...

— Eu me diverti com quê? — indagou Rhodan.

— Esses pepinos. Não pertencem aos saltadores ou mercadores? Pois então! Tenho o direito de dar-lhes o nome que melhor me aprouver.

— Por que está tão irritado? Será que uma pulga...

— Pulga o quê! — disse Bell indignado, e contemplou interessado o quadro que se esboçava na tela, onde os raios térmicos disparados pelas cinco naves inimigas eram repelidos pelo campo energético e retornavam ao espaço. — Se voltar a me encontrar com esse imortal, vou... bem, em parte a culpa é minha.

Preocupado, Rhodan sacudiu a cabeça.

— Receio que o último salto temporal não lhe tenha feito muito bem, mesmo que você não tenha percebido nada. Ou será que bateu com a cabeça em algum lugar?

— Não bati em lugar algum! — gritou Bell furioso, batendo com o pé. A cabelaça ruiva tremia de raiva. — Esse imortal...

— O que há de errado comigo? — perguntou uma voz vinda do teto. Rhodan e Bell olharam para cima e endureceram. Bem acima de suas cabeças flutuava uma bola de dez centímetros de diâmetro, que luzia em todas as cores e emitia uma luminosidade branca. — Minhas intenções foram as melhores possíveis, caro Bell. Afinal, a ingratidão é a paga do mundo, segundo se costuma dizer entre os senhores. Rhodan, não desperdice seu tempo com esse moço imaturo. O inimigo está planejando um ataque concentrado com bombas gravitacionais. A Stardust-III será arremessada para a quinta dimensão...

A esfera apagou-se.

Enquanto Bell contemplava perplexo o lugar em que estivera a esfera, Rhodan se transformou numa máquina de combate que funcionava com extrema precisão. Seus escrúpulos desvaneceram-se.

Bombas gravitacionais! Era a mais terrível das armas até então produzidas. Ele mesmo só se atrevera uma única vez a empregá-la. E agora pretendiam destruí-lo com ela.

— Posto de combate. Transmissor número um. Fogo!

As coordenadas eram corretas. Corretíssimas! Uma das cinco naves inchou de um instante para outro, como se uma bomba nuclear estivesse detonando em seu interior — o que realmente estava acontecendo. Um sol formou-se. Quando a nuvem incandescente acabou de espalhar-se pelos quatro cantos, não havia mais vestígio da nave.

O transmissor fictício não tivera a menor dificuldade em transportar a bomba através do campo energético do inimigo e detoná-la no alvo.

Não havia qualquer defesa contra essa arma.

Rhodan venceu os escrúpulos morais.

Sabia que era uma luta de vida e morte. Com esses saltadores não se brincava. E não tinha a menor idéia de que estava lidando com um clã todo especial.

— Transmissor número dois — fogo!

A segunda nave foi destruída com a mesma rapidez da primeira.

— Que coisa horrível! — gemeu Bell. — Que arma é esta?

Rhodan mordeu os lábios e, falando entre os dentes, disse:

— Transmissor número um — fogo!

Depois:

— Transmissor número dois — fogo!

A última das cinco naves que participavam do ataque resolveu recorrer a uma ação desesperada. Acelerando ao máximo, procurou abalroar a Stardust-III de frente. Rhodan conseguiu destruí-la instantes antes da colisão.

O sopro incandescente da explosão roçou o campo energético da Stardust-III. Topthor, que acompanhou os acontecimentos com os olhos arregalados, começou a desconfiar de que algo de inacreditável se passara. Nos dez minutos passados no planeta da vida eterna Rhodan devia ter conseguido a terrível arma. Embora parecesse impossível, devia ser verdade. Não havia outra explicação para a destruição das cinco naves num espaço de menos de dois minutos. Com armas convencionais Rhodan nunca conseguiria realizar uma façanha dessas.

E percebeu mais uma coisa. Rhodan não pensava em atacar quem quer que fosse, muito menos em destruí-lo. Por isso as três naves que restavam não corriam perigo.

— Grogham! Prepare a transição! Pouco importa para onde! Vamos dar um salto de duzentos anos-luz. Uma vez chegados lá, trataremos de orientar-nos. Enquanto isso transmitirei uma mensagem para Etztak.

Rhodan cometeu um pequeno engano.

Não se interessou pelos inimigos que ainda restavam. Acelerou a Stardust-III e precipitou-se vertiginosamente espaço afora, deixando para trás Topthor com as três naves.

— E aquelas ali? — perguntou Bell espantado. — Não vai...

— Destruí-las? Por quê? Não representam qualquer perigo para nós. A esta hora nossa tarefa mais urgente consiste em ajudar Tiff. Não se esqueça de que está num planeta de gelo, que pode transformar-se num inferno de chamas no momento em que Etztak perder a paciência e descobrir o jogo que estão fazendo com ele. Daqui a oito minutos passaremos à transição. Materializaremos no sistema de Beta-Albíreo.

Bell respondeu com um aceno da cabeça, para logo sacudir esta violentamente.

Espere aí! Não podemos levá-la.

— Levar quem?

— Ora essa! A Rallas!

Por um instante Rhodan pensou que Bell tivesse perdido o juízo. Com a testa levemente enrugada fitou o amigo, que parecia desesperado.

— A Rallas? Não venha me dizer...

— Digo, sim. Está sentada no meu camarote e sente-se muito ofendida porque não me interesso por ela. Meu Deus, se a tripulação souber disso — especialmente o tal do Redkens! Não terei mais um minuto de sossego na minha vida.

Rhodan certificou-se de que o piloto automático robotizado estava calculando o ponto de transição e a intensidade do salto. Verificou que restavam mais de sete minutos. Deu um sorriso irônico.

— Fique tranqüilo, que não é a verdadeira Rallas.

— Qual é a diferença? Qualquer um pensará que é ela mesma — e, para dizer a verdade, realmente é. O que devo fazer com ela?

— Ignore-a. Conheço as brincadeiras do imortal; ele a fará desaparecer assim que perceber que não nos interessamos por ela. Por enquanto deixe que fique no seu camarote.

— No meu camarote? — O rosto de Bell parecia tão apavorado que Rhodan não pôde reprimir uma gostosa gargalhada. — Não posso habitar um camarote juntamente com uma dama. Não é que tenha alguma coisa contra o sexo feminino, mas na situação em que nos encontramos...

Rhodan olhou para o relógio. Faltavam seis minutos.

— No momento da transição ela desaparecerá. Tenho plena certeza. O imortal apenas está se permitindo uma brincadeira...

No corredor ouviram-se passos. Ninguém poderia deixar de ouvir as vozes. Alguém estava rindo.

Bell empalideceu de repente. Por um instante lançou um olhar de espanto para Rhodan. Depois, com um gesto decidido, empurrou a porta para o lado.

A Rallas estava no corredor, distribuindo autógrafos. Alguns dos telegrafistas, e também Redkens, do setor de pilotagem, comprimiam-se em torno da estrela de cinema, falando insistentemente à mesma. Especialmente Redkens fez questão de saber se a “divina Rallas” passara todo esse tempo no camarote de Bell.

Para Bell a brincadeira já estava passando da conta.

Fungando de raiva, saltou em meio aos entusiásticos caçadores de autógrafos. Abrindo caminho com os punhos, parou com as pernas afastadas e os cabelos arrepiados diante da Rallas, que lhe lançou um olhar enlevado. Seus olhos brilhavam na maior inocência deste mundo.

— Que idéia é essa? — chiou Bell furioso. — Como se atreve a prejudicar minha boa fama? Essa gente só pode pensar que eu a contrabandeei para dentro da nave, a fim de... de...

— A fim de quê? — indagou a estrela de cinema, cheia de curiosidade.

Bell recorreu à grosseria para disfarçar o embaraço.

— Sabe muito bem! — berrou, pisando no pé de Redkens, que se aproximara de mais. — Só podem pensar isso!

— E não foi isso mesmo? — disse Rallas num sopro e enrubesceu. — Não venha me dizer que não passamos horas felizes juntos.

A cor do rosto de Bell transformou-se numa raridade anatômica. Rhodan não se recordava de jamais ter visto um rosto tão vermelho. Nem os outros. Recuaram instintivamente, como se receassem que Bell pudesse estourar.

— Pas... passamos? — gaguejou Bell e não soube mais o que dizer. Perdeu todo o autodomínio. Com o rosto desfigurado de raiva entesou o corpo, suas mãos precipitaram-se para a frente e os dedos apertaram o pescoço da beleza de Hollywood. — Eu a mato! Você quer minar a moral da tripulação...

Calou-se, perplexo. Com os olhos muito arregalados, estava fitando seu próprio rosto, que o cumprimentava com um sorriso familiar. Exclamações de espanto soaram de todos os lados. Alguém que se encontrava num ponto mais afastado soltou um grito de pavor.

Bell estava prestes a estrangular seu sósia. A Rallas havia desaparecido; um segundo Bell encontrava-se no lugar antes ocupado por ela. Dois Bells fitavam-se. O verdadeiro estava rubro de raiva, disposto a matar o outro. E o falso exibia o sorriso indiferente que todos estavam acostumados a ver em Bell.

Rhodan teve de esforçar-se para reprimir o riso. Faltavam três minutos para a transição.

— A esta hora você já deve ter compreendido que o imortal apenas estava brincando com você — e os outros também estão convencidos disso. Você está reabilitado, Bell. Sua boa fama foi restaurada. Solte seu sósia, que ele não tem culpa de nada.

Bell soltou o pescoço de sua vítima e recuou um passo. Aos poucos a cor de seu rosto foi voltando ao normal.

— Será possível? — perguntou, e em sua voz soava um medo instintivo do desconhecido. — Aquele ali... sou eu! Ou não sou?

— É uma imitação, tal qual a Rallas ou nosso grande amigo Homunk. Poderia ser perfeitamente eu que me defrontasse com você. Vamos deixar de lado as brincadeiras do imortal, pois temos coisa mais importante a fazer. Bell, ajude-me a conferir os dados para a transição. Os outros voltarão a seus postos. Inclusive o senhor, Redkens! Fique com o autógrafo da Rallas; pode arriscar qualquer aposta de que é autêntico.

Os olhos do cadete foram desfilando entre a fotografia com a assinatura e o rosto largo e risonho do falso Bell. Ao que tudo indicava, Redkens não conseguia dedicar a esse rosto o mesmo amor e veneração que lhe merecera o da Rallas. Sua decepção era tão evidente que Bell, que já se encontrava na entrada da sala de comando, lhe disse em tom furioso:

— Dê o fora, Redkens! Afinal, o senhor não vai querer que eu seja tão bonito como a Rallas.

Desesperado, Redkens foi seguindo os telegrafistas que se afastavam apressadamente.

O falso Bell transformou-se numa luminosa esfera branca, que desapareceu com uma risada de escárnio.

— Tomara que tenha desaparecido para sempre! — exclamou Bell e fechou a porta. — Gostaria de estar a algumas centenas de anos-luz daqui.

— Será que você já não suporta uma simples brincadeira? — disse Rhodan admirado. — Pois você desafiou o imortal.

Bell olhou para os instrumentos.

— Ainda faltam sessenta segundos. As coordenadas estão certas. Tudo correto. — Atirou-se na poltrona e reclinou-se na mesma. Quando continuou a falar, fechou os olhos. — Dentro de dois minutos estaremos a mais de 1.750 anos-luz daqui. Calou-se — e Rhodan sentiu-se grato.

Foi agora, exatamente nesse segundo, que iniciou a viagem em companhia do imortal. Sentiu que uma vaga de não-compreensão passava por cima dele e envolvia seu ser. Por um instante teve a impressão de que caía num abismo sem fim. Caía sem o menor apoio. Mantinha os olhos bem abertos, mas estes não viam nada. Apenas descortinavam o negrume da escuridão com uma mancha minúscula e disforme bem à frente.

Era a Via Láctea!

Precipitava-se em direção à mesma, e isso numa velocidade inconcebível.

Mas tudo isso só durou um segundo; depois a visão desapareceu para ceder lugar à realidade. Viu novamente diante de si as telas de controle da Stardust-III, os instrumentos e as escalas, as inúmeras chaves, ponteiros e botões.

Reclinado na poltrona, sentiu a vibração dos propulsores. Era uma realidade inconfundível. O segundo que se passara... bem, o que era mesmo aquilo? Com uma sensação de pavor, Rhodan se deu conta de que a vivera duas vezes — ou melhor, três vezes.

A primeira vez no planeta Peregrino, a. criação incompreensível dum ser ainda mais incompreensível.

Outra vez no infinito, onde esse segundo se transformou em duas entidades distintas: uma realidade de dez semanas e uma visão de trezentos mil anos.

E por fim agora, num segundo perfeitamente normal.

Qual seria o segundo genuíno, o segundo real? E o que seria um segundo, se o mesmo já não tinha qualquer validade?

— Faltam trinta segundos — disse o contador robotizado com sua voz metálica.

— Vinte e nove...

Rhodan fechou os olhos.

Faltavam vinte e nove segundos — ou vinte e nove eternidades, conforme se preferisse. Quanto tempo não estaremos desperdiçando quando tentamos dividi-lo?

Vinda do nada, surgiu a voz que quase chegara a esperar, uma voz silenciosa, mas bem perceptível:

— É uma pergunta muito inteligente, velho amigo. Imagine uma Terra em que não existissem dias e noites, estações do ano, sol e chuva. Será que o homem se daria conta de que estava envelhecendo? Não ficaria muito surpreso quando subitamente sentisse a morte aproximar-se? Saberia que o tempo existe?

— O tempo não é uma coisa perfeita mente real, como o espaço?

— Ambas as coisas são perfeitamente irreais, velho amigo. Você tem diante de si uma distância de mais de 1.750 anos-luz, uma distância inconcebível, que ainda há um decênio todos os habitantes da Terra considerariam insuperável. Você vai vencer essa distância num segundo. Seus relógios lhe mostrarão que na verdade não se passou mais que um segundo. Deixe o tempo de fora, e você reconhecerá que realmente a vitória sobre o espaço não é possível — por essa forma. Assim mesmo ele é vencido. Você tem alguma explicação?

— Existe o hiperespaço, o paraespaço. Passamos pela quinta dimensão...

— São palavras, apenas palavras. O homem as pronuncia, sem jamais compreender seu sentido. Nem mesmo seu cérebro treinado pode entendê-las. O cérebro humano tem uma predileção pela formação de conceitos abstratos. Tentarei transmitir-lhe uma concepção da realidade, mas começo a compreender que com isso apenas o deixaria mais confuso. Ainda temos muito tempo até que você me abandone.

— Não é tanto assim — pensou Rhodan e olhou para o relógio, que continuava a indicar vinte e nove segundos. Perto dele Bell estava estendido, imóvel. Tinha o rosto rígido, como o dum morto.

— Todo o tempo do mundo está concentrado nesse estado — pensou o imortal em resposta. — Olhe para o relógio: está parado. Ainda ouve o contador robotizado? Não, não o ouve, porque também para ele o tempo parou. E seu amigo Bell; sob seu ponto de vista, está morto.

— Morto?

— Isso mesmo: morto. Por mais que você o olhe, para ele só se passa a fração dum milésimo de segundo. Seu sangue está parado nas veias. A Stardust-III continua parada no mesmo lugar. O tempo não passa mais — para você.

Rhodan sentiu um assomo de pavor. Um sopro frio, que parecia vir dum túmulo, parecia atravessar a sala de comando e fê-lo estremecer. Lançou um olhar para o relógio. O ponteiro dos segundos estava parado.

Rhodan lutou com todas as forças contra a sensação de pânico, mas não conseguiu evitar que a mesma o dominasse, ao menos em parte. Sua mão tocou o corpo de Bell.

Este parecia de pedra. Não se moveu um milímetro.

— Bell, você me ouve?

— Não adianta! — disse a voz do imortal vinda do nada. — Do seu ponto de vista, Bell congelou no tempo. Vê você sentado ao seu lado, e não enxerga seus movimentos instantâneos, da mesma forma que não pode ouvir suas palavras. Lembre-se de que para ele não se passa nem um segundo, enquanto nós estamos ocupados em solucionar o problema do tempo, passando talvez várias horas no plano da atemporalidade.

— E eu? O que houve comigo? O que acontecerá se eu me levantar e andar pela nave?

— Ninguém o impedirá, velho amigo. Você sairá do seu lugar, mas na verdade apenas o abandonará por um milésimo de segundo. Seus movimentos são tão rápidos que o olho humano não consegue captá-los.

Rhodan continuou sentado.

— Não compreendo — minha inteligência recusa-se a admitir essa realidade. Não posso existir simultaneamente em dois planos diferentes.

— É claro que você pode. Quando você se encontra diante dum aparelho de telefilmagem, você também existe duas vezes ao mesmo tempo, e em dois tempos diferentes — desde que você apareça no filme que está sendo exibido.

— Isso não é a mesma coisa — objetou Rhodan.

— Será que não é? Será que não é a mesma coisa, se considerarmos que a cada segundo que se passa somos uma pessoa diferente? As células de nosso corpo renovam-se constantemente, tal qual o sangue. Logo, o homem deste segundo não pode ser o mesmo do segundo que se segue. São homens diferentes. Mas, reúna-os no mesmo segundo, o que é perfeitamente possível para quem adquiriu o domínio do tempo, e você terá frente a frente não os mesmos homens, mas dois homens iguais.

— Quer dizer que Bell estava estrangulando a si mesmo, não sua imagem?

O imortal deu uma risada.

— Por pouco não mata o Bell que existirá daqui a dez minutos. Foi dali que eu o trouxe.

Rhodan perguntou:

— E se ele o matasse, o que aconteceria?

O imortal ignorou a pergunta. Não estava disposto a responder a todas as indagações.

— Falamos sobre a influência que se pode exercer no futuro. Você viu a prova. No seu próprio interesse dar-lhe-ei mais uma prova. Mas não acredito que eu possa anular qualquer coisa que está acontecendo neste segundo. Apenas quero que esteja prevenido. Acompanhe-me para o interior da nave de Topthor.

— Quem é Topthor?

— O chefe do clã dos mercadores que localizou você. É um dos chamados superpesados. Não se assuste ao vê-lo. As três naves comandadas por ele estão próximas à transição. Neste instante está dando ordem ao seu telegrafista, para transmitir determinada mensagem. O destinatário é um certo Etztak.

— Etztak — o patriarca dos saltadores. O que vem a ser isso?

— Você sabe perfeitamente que Etztak perdeu a paciência. Quer transformar num inferno atômico o planeta em que se encontram seus inimigos. Se receber a mensagem, não hesitará mais em realizar seu intento.

Você sabe perfeitamente que estava esperando apenas porque pretendia obter informações preciosas de sua gente. Mas, quando receber a mensagem de hipercomunicação de Topthor, ficará ciente de que você o estava enganando. Saberá que as pessoas que se encontram no planeta de gelo só estão ali para distraí-lo, a fim de que você pudesse ir tranqüilamente ao planeta da vida eterna, em busca da nova arma. Topthor o informará de que você conseguiu a nova arma, e provavelmente os atacará com a mesma. Logo, Etztak estará prevenido. Os mercadores são muito unidos quando se trata de defender os interesses comuns. Não costumam sujar o prato de que comem. Etztak solicitará o auxílio da frota de guerra dos mercadores galácticos.

— Não quero a guerra — gemeu Rhodan assustado. — Mesmo que disponha de armas superiores, não a quero.

— Já não é possível evitá-la totalmente — respondeu a voz do imortal. — E não posso intrometer-me nos conflitos existentes na Galáxia, pois isso representaria uma violação das leis naturais. Mas posso fornecer certas indicações. E se eu o prevenir, apenas lhe darei uma indicação. — Deu uma risadinha irônica. — Venha comigo, Rhodan. Quero que conheça Topthor, o inimigo com que vai defrontar-se. É bom que saiba que ele não poderá vê-lo, da mesma forma que você não poderá tocar seu corpo. Você continuará sentado na Stardust-III, mas seu espírito abandonará o corpo, por uma pequenina fração de segundo.

Antes que Rhodan pudesse responder, aconteceu uma coisa muito estranha. Começou a afastar-se de si mesmo. Flutuou abaixo do teto e teve a impressão de olhar para si mesmo. Ao mesmo tempo, segundo imaginava, seu corpo retornava ao plano temporal comum; só seu espírito permanecia no plano em que o tempo parara. O Rhodan para o qual estava olhando “congelou-se”. Seu olhar rígido continuava fixado nos instrumentos.

Subitamente Rhodan, ou seu espírito, atravessou as paredes da Stardust-III. Flutuou livremente no espaço. Tentou em vão ver-se a si mesmo. Estava reduzido ao nada. Estava invisível.

A Stardust-III transformou-se numa esfera parada no espaço, que não se movia um centímetro sequer. Os homens e as máquinas que se encontravam no seu interior transformaram-se num retrato realista, que reproduzia apenas um milésimo de segundo de vida.

A Stardust-III foi diminuindo rapidamente, até que Rhodan não a viu mais.

— Talvez a esta hora você já compreenda por que minha raça renunciou ao corpo, quando se viu diante da possibilidade de espiritualizar-se. O corpo é um simples instrumento. É vulnerável e por isso mesmo é mortal.

— Bem que eu sentiria falta do meu corpo — respondeu Rhodan em pensamento.

— Acontece que você é apenas um humano, velho amigo. Acontece que eu sou minha raça. É uma diferença enorme. Dentro de mim também vivem aqueles que se opunham à espiritualização. Talvez seja por isso que tenho uma tendência de fazer minha aparição sob esta ou aquela forma. Chegamos. Esta é a nave de Topthor.

O “pepino” também estava parado no espaço. Mantinha-se no mesmo plano existencial da Stardust-III. Rhodan não podia conceber que nesse meio tempo não havia acontecido absolutamente nada. Mas já compreendia uma coisa: enquanto se mantivesse por ali, naquele estado, não estaria perdendo tempo.

Quando viu Topthor, o gigante quadrado, levou um susto, muito embora o imortal o tivesse prevenido. A altura do monstro era igual à largura. Topthor segurava um papel nas mãos superdimensionadas. Naquele instante estava passando o papel a outro superpesado, que não ficava atrás dele em peso e tamanho.

— A notícia é esta, amigo velho. Leia.

Rhodan aproximou-se dos dois superpesados. Poderia tocá-los, se tivesse mãos. Uma pergunta passou por seu cérebro: como podia ler, se não tinha olhos?

De qualquer maneira, via perfeitamente o bilhete e as palavras escritas no mesmo. O texto estava redigido em intercosmo, a língua usual no Império arcônida.

O bilhete dizia o seguinte:

 

Para Etztak, patriarca do clã de Etztak. Perry Rhodan, o terrano, conseguiu uma nova arma. Conseguiu destruir cinco das minhas naves. Não há qualquer defesa. Etztak, eu o previno. Garanta o nosso auxílio. Rhodan vai atacá-lo e destruí-lo. Só um golpe de surpresa poderá eliminá-lo. Chamarei duma nova posição e aguardo sua oferta. Topthor Clã dos superpesados.

 

Rhodan leu a mensagem duas vezes e teve certeza de que não esqueceria o texto. Tudo dependeria da rapidez das reações de Etztak. Provavelmente não seriam suficientemente rápidas. A Stardust-III alcançaria o sistema de Beta-Albíreo num único salto. Era bem verdade que o mesmo acontecia com as naves de Topthor. Mas vários dias poderiam passar-se antes que os superpesados interviessem nos combates. Etztak era um homem obstinado, que regatearia o preço do auxílio.

Era esta a única chance de Rhodan.

Recuou alguns passos e lançou um olhar detido para Topthor. O rosto parecia dum homem ou dum arcônida. Ou então — Rhodan estremeceu com a idéia — seria dum barcônida. Sem dúvida havia algumas alterações. Provavelmente a raça dos superpesados vivera por muito tempo num planeta de gravitação extremamente elevada e por isso sofrera uma deformação. Mas os traços da ascendência eram inconfundíveis.

A comunidade galáctica. Um sorriso amargo surgiu no rosto de Rhodan. Ainda bem que os barcônidas não sabiam o que era feito de seu Império. E muito tempo se passaria até que sua longa viagem os levasse às extremidades da Via Láctea. Muita coisa poderia mudar até lá...

— Vamos voltar — insistiu a voz do imortal. — Você já viu a mensagem que seu inimigo irá receber. Tome suas providências. Quando voltar ao plano existencial da Stardust-III, não terá muito tempo. Mas você conseguirá.

Pelas concepções de Rhodan o vôo incorpóreo pelo espaço durou poucos segundos. Logo o vulto familiar da Stardust-III voltou a surgir diante de seus olhos. Sem o menor esforço passou pelo campo energético e pelas paredes da nave, para reencontrar-se na sala de comando, ao lado de Bell, imóvel e inalterado.

— Obrigado, amigo velho. Quando voltaremos a encontrar-nos?

Uma risada silenciosa atravessou seu cérebro.

— A linguagem dum ser atemporal não conhece a palavrinha quando. Mas asseguro-lhe que voltaremos a encontrar-nos. Até lá, passe bem e cuide da herança que lhe foi confiada.

Rhodan sentiu que alguma coisa se afastava dele. No mesmo instante retornou ao seu corpo.

Abriu os olhos. O contador robotizado estava dizendo:

— ...vinte e oito...

Mantivera os olhos fechados por um segundo. Quanta coisa não acontecera nesse segundo? Muita coisa! Sabia que nesse preciso momento um certo Topthor enviaria pelo hiperespaço uma mensagem dirigida a Etztak. Conhecia o teor da mensagem. E começou a imaginar como se formavam certos acontecimentos que os homens ingenuamente designavam pelo nome de destino.

— ...vinte...

Oito segundos se tinham passado. Oito eternidades!

— ...dezoito...

Nunca Rhodan pensara tanto antes duma transição como desta vez. Nunca o tempo lhe parecera tão longo. E nunca Bell se mantivera tão calado.

— Anime-se! — disse Rhodan ao amigo. — Dentro de poucos segundos materializaremos, talvez em meio às naves de Etztak. Cairão sobre nós que nem uma matilha de lobos, para escapar à destruição pela nova arma. Devemos estar preparados para...

— A nova arma? — resmungou Bell irritado. — Você devia voltar a pensar logicamente. Como é que Etztak vai saber que possuímos uma nova arma?

Rhodan esboçou um sorriso condescendente.

— Você tem razão. Como poderia saber? Quase chego a acreditar que estou ficando velho. Até mesmo um homem relativamente imortal pode envelhecer. Vejo isso em você.

— Nove! — disse o robô em tom decidido.

— Em mim? Por quê? — perguntou Bell apressadamente.

— Não se esqueça da Rallas. Se você fosse mais jovem, não se teria irritado com sua presença, mesmo que fosse uma imitação.

— ...quatro...

— Não me irritei por causa da mulher, mas por causa do pessoal de bordo. A disciplina exige...

— Tolice! — disse Rhodan.

Bell ficou calado.

— ...um... — disse o robô de contagem.

E depois:

— Transição!

A Stardust-III saiu do Universo para penetrar na quinta dimensão. Naquele instante o tempo parou para a nave e para aqueles que se encontravam em seu interior. E parou também no resto do Universo, pois mesmo na Terra distante não se passou mais que um segundo enquanto a Stardust-III executava um salto que a transportaria por uma distância que a luz só conseguia vencer em 1.750 anos. Era bem verdade que isso produzia um envelhecimento que também não ultrapassava um segundo.

Mas no subconsciente de Rhodan havia uma pergunta — uma pergunta que alguém formulara durante o salto.

Que pergunta seria esta?

Ah, era a seguinte: Você já compreendeu?

Devia ter sido a voz do imortal.

Você já compreendeu?

Rhodan sacudiu a cabeça e disse em voz alta:

— Não, não compreendi, amigo velho. Afinal, só sou um humano, e como poderia um humano compreender a estrutura da eternidade? Mas agradeço-lhe por me ter proporcionado uma excursão durante a qual consegui imaginar como se criam e conservam os universos.

A escuridão da sala e o sol chamejante não deram qualquer resposta. Apenas Bell murmurou de forma quase imperceptível:

— Isso também deve acontecer com você. Quando despertamos nossa fantasia começa a trabalhar. É a única vantagem da transição. Devíamos fazer alguma coisa contra isso. Já chegamos?

Rhodan contemplou as estrelas cintilantes.

— Já — respondeu com o espírito ausente. — Realmente, devíamos fazer alguma coisa contra isso. Sim, chegamos.

De repente teve a impressão de que alguém ria nas profundezas de sua alma. Não foi uma risada zombeteira ou irônica, mas uma risada gentil e alegre.

A risada de alguém que esteve só por muito tempo, e de uma hora para outra percebe que não está mais.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades