Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
S.O.S. ESPAÇONAVE TITAN
A história da Terceira Potência em poucas palavras:
1971 — O foguete Stardust chega à Lua, e Perry Rhodan encontra o cruzador dos arcônidas que realizou um pouso de emergência.
1972 — Instalação da Terceira Potência, que enfrenta a resistência das potências terrenas unidas e a invasão de seres extraterrenos.
1975 — Primeira intervenção da Terceira Potência nos acontecimentos galácticos. Perry Rhodan encontra os tópsidas no sistema de Vega e procura solucionar o sistema galático.
1976 — Perry Rhodan atinge, a bordo da Stardust-III, o planeta Peregrino, e juntamente com Bell consegue a imortalidade relativa, mas perde mais de quatro anos.
1980 — Perry Rhodan regressa à Terra e luta por Vênus.
1981 — O Supercrânio ataca, e a Terceira Potência defronta-se com a mais dura das provas a que já foi submetida.
198211983 — Os mercadores galácticos procuraram transformar a Terra num mundo colonial, mas o feitiço vira contra o feiticeiro e Perry Rhodan conquista uma das bases mais importantes dos mercadores.
1984 — Perry Rhodan voa para Árcon.
O desejo de Rhodan continua o mesmo: destronar o cérebro positrônico que rege Árcon. Ao fazer um pouso em Honur, o planeta proibido, uma surpresa desagradável acontece...
O Aparelho de contagem regressiva começou a funcionar. Exatamente dentro de um minuto, a Ganymed se levantará no espaço.
Como que preparado para um salto, o gigantesco bojo da Ganymed se erguia para o alto. O teto das nuvens sobre o espaçoporto era de quinhentos metros e parte da gigantesca espaçonave mergulhava pelas nuvens a dentro, até uma altura de oitocentos e quarenta metros.
Faltavam cinqüenta segundos. As nuvens roçavam pela parte superior da nave, encobrindo o lado mais fino da fuselagem, dando a impressão de que seus duzentos metros de diâmetro se tornavam muito maior do que na realidade. Parecia uma torre gigantesca dos velhos tempos da história. Mas os enormes lemes traseiros, sobre os quais se apoiava a espaçonave, davam uma idéia nítida das dimensões e da imponência da Ganymed.
Faltavam quarenta segundos, na contagem regressiva.
A agitação febril na central da Ganymed havia desaparecido. A programação preestabelecida comandava automaticamente o desenrolar das operações. Estava iminente a partida para a Terra. O sol vermelho de Voga, um astro ciclópico com quinze planetas, espalhava sua luz por cima da camada de nuvens, na extremidade frontal da nave. Os possantes lemes traseiros ainda repousavam no revestimento de plástico da base de lançamento de Tagnor.
Tagnor, o enorme espaçoporto do quarto planeta do sistema do sol Voga, era a maior base do planeta Zalit. As naves arcônidas chegaram a estas bandas há mais de 15 mil anos, começando a colonizar este mundo. Há 15 mil anos, pois, desciam e subiam aí as espaçonaves. No entanto eram sempre naves do Império Arcônida ou de seus súditos, nunca, de outras regiões desconhecidas do espaço infinito.
A Ganymed não era uma espaçonave arcônida, não pertencia ao mundo do “montão de estrelas M-13”. Sua pátria era a Terra.
Faltavam vinte segundos para a decolagem para Terrânia.
Em breve ela se projetaria no espaço, na maravilha exuberante de inimaginável beleza, onde milhares de sóis brilhavam das profundezas do infinito, como colares de pérolas. Ficavam bem próximos uns dos outros, tirando, com suas cores maravilhosas, a escuridão fria e horripilante do Universo, para transformar esta parte do cosmo num bulevar de encantadoras cascatas de fogos de artifício.
M-13 distava 34 mil anos-luz da Terra, com mais de cem mil estrelas. Esse era o vasto Império dos Arcônidas, e Zalit, o quarto planeta do sistema Voga em M-13, não seria outra coisa senão um dos muitos mundos, que há milhares de anos, foram colonizados pelos arcônidas.
Faltavam dez segundos. Ao fim desse tempo, a descomunal Ganymed se ergueria no espaço, deixando este fantástico Império, um reino de estrelas com um diâmetro de cem mil anos-luz, para desaparecer no infinito na direção da Terra.
Aqui, M-13, o Império dos Arcônidas e a 34 mil anos-luz, a Terra, um simples nada, pensava Freyt, enquanto seus olhos repousavam no aparelho de contagem regressiva, vendo seu ponteiro descer vagaroso para zero. Quando ele, mentalmente, chamou sua pátria Terra de um nada, estufou por instinto o peito e seu olhar refulgiu de orgulho.
Levantava vôo por determinação de Perry Rhodan, em direção à Terra. Retornaria juntamente com o chefe para poder conquistar este império de mais de cem mil estrelas.
Chegou o último segundo da contagem regressiva. A tela do grande painel deixava ver todo o espaçoporto de Tagnor. Centenas de naves ali estavam estacionadas, mas o comandante Freyt só enxergava uma: a Titan. Sentiu um calafrio pela impressão que esta esfera descomunal sempre despertava nele.
Deu-se a partida da Ganymed.
Como que por força mágica, a nave se levantou, enquanto os mecanismos de propulsão zuniam. Aos poucos, penetrou na camada de nuvens, que como uma massa fina roçava agora nos lemes traseiros.
Mas de repente se ouviu o tamborilar trepidante das forças de propulsão, que atiraram a Ganymed para o alto. Imediatamente, o teto de nuvens se rasgou. A densa camada se desfez, surgindo uma imensa fenda, por onde o sol Voga penetrou com seus raios, inundando Tagnor de luz. E no meio desta orgia de luz, podia-se agora ver a nave espacial em toda a sua imponência.
Acelerava cada vez mais, e seu tamanho diminuía rapidamente. Penetrou pelo céu da tarde, que ainda reinava em Zalit e desapareceu num instante.
Vagarosamente se fechou sobre Tagnor aquela enorme fenda de quilômetros de diâmetro, que se rasgara nas nuvens.
— Lá foi ela embora — disse Reginald Bell, encostando-se na poltrona, diante da tela inteiriça da Titan e botando as mãos atrás da cabeça.
A Ganymed não era mais visível. Um último clarão esbranquiçado da espaçonave foi talvez o adeus para a tripulação da Titan que permanecera em Tagnor.
Reginald Bell se ajeitou confortavelmente na poltrona. No momento, estava contente com a situação. A Ganymed se aproximava do ponto de transição, para, em alguns saltos, atingir a Terra. Lá estavam milhares de especialistas, com severos cursos de hipnose. Cada um, especializado em determinado ramo. Estes homens ansiavam por voltarem com a Ganymed, para formarem a nova tripulação da maior belonave das Galáxias.
E nesta supernave, estava sentado Reginald Bell, chamado em geral apenas de Bell, um pouco obeso, de costas largas. Às vezes, um pouco ríspido em seus momentos de cólera; sempre valente. Mas, acima de tudo, um homem honesto, o melhor amigo de Rhodan, seu substituto e pessoa de inteira confiança.
Agora virou a cabeça para o assento do piloto. Ali estava Perry Rhodan, um homem, que com tudo a seu alcance, estava em condições de se tornar o senhor da Terra. Porém, esta idéia jamais lhe havia ocorrido.
Para Perry Rhodan, havia um outro objetivo, um objetivo num futuro ainda longínquo: transformar a Terra no centro das Galáxias. Terra, este nada num canto perdido da Via Láctea, este grãozinho de areia do Universo, devia substituir Árcon e destituir de suas funções os decadentes arcônidas, que não estavam mais em condições de desempenhá-las e depois, se estender sobre os mundos do Universo.
Bell olhou para ele. Havia muita tensão em seus traços fisionômicos. Ele sempre estava certo e agia com a maior ponderação, na hora em que os outros perdiam a cabeça, sob a emoção do momento.
E ali estava ele sentado calmamente, esperando pela mensagem do Departamento de Rastreamento Estrutural.
Os transmissores de localização da Titan seguiam o vôo da Ganymed. O rastreador de estrutura aguardava pelo momento em que o espaço em torno da nave, que demandava à Terra, estremecesse todo no instante exato da transição.
— Disse alguma coisa, Bell? — perguntou Rhodan, olhando furtivamente para ele. Seus olhos indicavam concentração.
Detiveram-se por um instante no amigo, que se aprumou na poltrona, parecendo um pouco irritado.
— Tomo a liberdade de dizer que agora a Ganymed dispara, Perry — resmungou ele.
— Interessante, Bell, porém nenhuma novidade. O comandante Freyt dispõe do compensador de estrutura e nós, não. Ele pode “disparar”, como você diz. Nós ainda temos que esperar por este instrumento. Não podemos nos dar ao luxo de também “disparar”. Mas você tem razão, poder disparar é realmente excitante, não é, meu caro Bell?
Já nas primeiras palavras de Perry Rhodan, a atenção de Bell havia sido grande. Mas não estava mais olhando para o amigo, e sim reparando no enorme saguão da central da espaçonave.
A Titan era, na sua opinião, um non plus ultra, era realmente a maior, a mais Imponente, a mais perfeita espaçonave da Via Láctea. Mas este hall da central, na sua expressão, era um pesadelo. Não havia ser humano capaz de ler todos os instrumentos e relógios ao mesmo tempo. A Titan, uma esfera de 1.500 metros de diâmetro, o clímax da engenharia espacial dos arcônidas, dispunha de um posto de comando, abri gado numa verdadeira catedral. E aqui neste aparente caos de instrumentos, registros e dispositivos, Perry Rhodan tinha percebido algo muito importante, que Bell, naturalmente não vira.
— Que é que há de extraordinário? — sussurrou Bell.
— Tela do painel redondo, Setor Beta, traço oito, Bell.
Atrás de Perry Rhodan, estava o arcônida Crest; impressionante em sua estatura. Sua fisionomia era tão espirituosa que quem o visse uma vez, jamais o esqueceria. Crest dirigiu seu olhar para o ponto indicado da tela do painel redondo da Titan. Bell gostou de ver que também o grande cientista arcônida só conseguira ver depois que Rhodan indicara o local.
— São espaçonaves — dizia Bell, tentando dar à sua voz um tom de naturalidade, mas como de outras vezes, não foi bem sucedido.
Por isso, olhou de soslaio para Perry que deixou entrever um leve sorriso. Conhecia muito bem seu velho amigo, e sabia que nunca conseguiria tapeá-lo.
— Onde está a avaliação dos dados? — era o chefe, era uma ordem.
Era o próprio Perry Rhodan que sabia que a exploração do curso das três espaçonaves já devia estar elaborada, caso o responsável pelo setor de orientação e goniometria não fosse um dorminhoco.
Apareceram então os resultados.
Perry Rhodan e Bell se entreolharam. A expressão séria de seus olhos se transformou num alegre sorriso. Rhodan, voltando-se para Crest, disse:
— Fomos reconhecidos como amigos pelo cérebro positrônico de Árcon, porém, ele não confia totalmente em nós, ao menos quanto à rota a seguir.
— Um cérebro positrônico não deixa de ser uma máquina, Perry Rhodan — lembrou o velho arcônida condescendente. — Uma máquina não é um ser humano. Um positrônico não pode entender de fidelidade terrana.
Crest notou um sorriso no rosto de Perry Rhodan.
— Muito obrigado pelo elogio, Crest, mas foi bem-intencionado. E nós não somos tão fiéis assim e acho razoável o fato de que o positrônico de Árcon tenha enviado três naves para observar e medir a transição. Entre amigos verdadeiros não pode haver segredos e o regente de Árcon parece saber disso. Deve ter perguntado a si mesmo por que mantivemos em segredo a posição de nossa pátria de origem e como conseqüência lógica deve ter feito investigações sobre as razões da nossa dedicação ao Império Arcônida.
— Mas, você está falando sério? — perguntou Crest meio surpreso.
— Perfeitamente — respondeu Perry com consciência tranqüila. — Mas, de outro lado, não tanto altruística e honestamente, como deve ser entre amigos. Ainda não me esqueci, nem por um instante sequer, do plano de conquistar Árcon para a Terra.
De repente, ecoou do alto-falante do Departamento de Rastreamento Estrutural:
— Ganymed, transição executada sob valores conhecidos. Compensador de estrutura não foi utilizado. Início de mensagem cifrada. Transmito à Central de Rádio.
Mudança de contato, ruído no alto-falante e imediatamente a Central de Rádio:
— Ao Chefe. Três naves desconhecidas no encalço da Ganymed. Dados da exploração: Espaçonaves partiram de Árcon. Fim, Comandante Freyt.
— Então? — perguntou Rhodan, aguardando a resposta de Crest.
Afastando-se do painel redondo, a figura de Crest chegou até Rhodan. Havia sinais de perplexidade em sua fisionomia.
— Sua suposição estava certa, Rhodan, o soberano do Império dos Arcônidas, desconfia de você.
— E vai continuar desconfiando mais, quando os três observadores enviados por ele tiverem de informá-lo de que perderam completamente de vista a Ganymed, depois do seu supersalto. A memória eletrônica do cérebro robotizado vai lhe dizer que eu já lhe dei um caso semelhante e que posso executar transições sem que ninguém consiga acompanhá-las. Crest, não seria interessante, no momento, entrar em discussão com o cérebro robotizado. O mais ajuizado é aquele que cede, pelo menos até que o comandante Freyt esteja de volta com os mil especialistas e com o compensador de estrutura de grande alcance para a Titan. Aí, eu vou querer entrar em contato com o robô. Por enquanto não. E por este motivo também, vamos deixar Tagnor. Certo, Bell?
Este, estava distraído, com o olhar vagando pela central e intimamente sentindo saudades da boa e velha Stardust-III. A Central da Stardust-III era um conjunto compacto, que em caso de necessidade podia ser controlada por dois ou três homens. Mas com dois ou três homens, tentar controlar este posto de comando, seria loucura e meramente impossível. Redundaria num fracasso completo.
— Bell — disse Perry, chamando o amigo pela segunda vez — eu lhe pergunto se concorda com que devamos sair daqui?
— Claro que concordo. Mas, mesmo que você me julgue um chato, quero lhe dizer que não simpatizo em nada com este pedaço do Universo, onde nos queremos esconder. Não gosto nada daqui, mas não me pergunte por quê.
Mas o “imediato disparar da Titan” deu em nada. Milhares de pequenas coisinhas, que no entanto eram coisas importantes para os habitantes de Zalit, retiveram Rhodan por mais alguns dias em Tagnor.
Ninguém mais falava do Zarlt Demesor, o tirano usurpador que pretendia se insurgir contra o Império e nesta tentativa fora morto. Os moofs não apenas continuaram assunto do dia, mas obrigavam a se proceder a uma batida rigorosa por todos os cantos do país, em seu encalço.
Os zalitas ainda demonstravam pavor destas medusas telepatas. Os moofs eram seres inteligentes de uma raça não-humana. Sua pátria de origem devia ser um mundo de gás metano, pois em Zalit eles viviam em recipientes esféricos pressurizados, cheios deste gás. Mas ainda estava de pé a pergunta: Quem havia trazido os moofs para Zalit?
Para Bell já havia uma resposta certa: estava plenamente convencido que não podia ser ninguém a não ser os ciganos das estrelas, os comerciantes da Galáxia. Eles é que ofereceram os moofs ao megalomaníaco Zarlt. Sem perceber que era apenas um joguete nas mãos de gente mais esperta, mandou buscar as medusas estranhas em grande escala para Zalit, pensando que conseguiria, com tripulações dopadas pelas forças sugestivas dos moofs, invadir e destruir o Império dos Arcônidas.
— Diga-me uma coisa, Perry, aqueles três exemplares que temos a bordo estão mesmo guardados com toda segurança?
A resposta de Perry foi uma pergunta muito curta:
— Você já viu alguma coisa na Titan que não seja feita cem por cento?
Aí, o gordo Bell começou a sorrir, olhando para o núcleo da Central. Ainda se podiam ver os sinais de que um dia ali existira uma coisa que estava organicamente ligada com o aço arcônida do chão. Por uns instantes, o olhar de Rhodan também demonstrava concentração preocupada, lembrando-se da luta quase sem esperança de vitória que Ivã Ivanovitch Goratchim, o mutante de duas cabeças, havia travado com o controle automático na Central. Este controle automático era o braço de força todo-poderoso, que atingia até a eternidade, do cérebro robotizado de Árcon. Autárquico na produção de sua energia, construído apenas para a finalidade de executar as ordens do gigante positrônico e que, como conseqüência lógica, também possuía o poder de destruir a gigantesca Titan, se ela, contra qualquer expectativa, tivesse que cair em mãos de estranhos ou fosse utilizada para atacar o Império Arcônida. Goratchim lutou contra o controle automático com as forças inimagináveis de sua mente, pondo alguns átomos de cálcio no processo de fusão. Assim o destruiu de dentro para fora.
Rhodan estava se recordando desta conversa e de muitas outras coisas, enquanto chegavam as mensagens sobre os motores de propulsão da Titan. Dos mini-alto-falantes ecoavam nitidamente todas as mensagens.
As lâmpadas verdes de controle acendiam na frente de Perry. No setor de Bell, não era diferente. Sinais apareciam e sumiam. Somente um cérebro de formação aprimorada na velha sabedoria dos arcônidas é que podia dominar todo este aparato ciclópico.
Uma fina vibração percorreu o dorso do gigante. Esta esfera confeccionada com aço de Árcon, repousando sobre um enorme anel com suportes telescópicos, ansiava febrilmente por se erguer aos ares, precipitando-se no infinito.
Seiscentos quilômetros por segundo, era seu poder de aceleração. Isto significava que, após dez minutos, atingiria a velocidade da luz.
Este colosso, apoiado em dezenas e dezenas de suportes telescópicos, ainda repousava no espaçoporto de Tagnor. Há oito dias atrás, a Ganymed partira para a Terra; em poucos minutos, a Titan também deixaria este mundo. As turbinas começaram a zunir com toda força. Sempre mais luzes verdes se apagando. Mensagens claras do radiofarol, sempre pronto para entrar em ação. O campo-H aguardava nas bobinas. Servia para proteção contra elementos negativos no espaço. Utilizado em terra, limpava todo o espaçoporto num raio de dez quilômetros.
Rhodan olhou justamente para a direita, para o positrônico de bordo. Sentiu uma veneração pela sabedoria dos arcônidas que tinham criado o incrível. Eles que, antes de mergulharem na decadência e de deixarem ir aos pedaços seu glorioso império, há mais ou menos seis anos, adotaram como seu soberano um cérebro-monstro.
Tudo isto começava a tomar corpo na mente de Perry.
O reino de mundos, ou seja, o Império Arcônida estava maduro para ser colhido. Rhodan, porém, não queria aparecer como um conquistador sanguinário, deixando atrás de si um rastro de ruínas e de miséria.
Queria construir, porém, não com os arcônidas atuais, mas com os homens da Terra, dessa raça jovem e corajosa de onde ele também provinha.
Como uma visão, pairavam estes quadros diante dele. Entrementes, era o alarido dos mini-alto-falantes. Mensagens e mais mensagens e o positrônico de bordo seguia seu caminho.
O programa se desenrolava.
O programa da partida. Começou a contagem regressiva.
Aquecimento dos motores de propulsão. Três, dois, um, zero.
A Titan se levantou do solo. Uma esfera de aço de um quilômetro e meio de diâmetro flutuava no espaço. O inimaginável era uma realidade. A maior espaçonave das Galáxias começou a subir.
O planeta caiu para trás. Parecia que o espaço infinito era empurrado contra ele. Foi escurecendo. O sol do sistema Voga, que estavam deixando, se transformou num olho vermelho de um gigante.
E então surgiu M-13, esta festa permanente de fogos de artifício, este indescritível panorama de refulgentes colares de pérolas e a luta entre estes raios suaves de luz e a negridão do espaço infinito.
— Mas, que nave... — exclamava Bell — e que prodígio nossa Titan.
Thora e Crest, os dois arcônidas, se encontravam entre as duas poltronas dos pilotos, onde estavam sentados Rhodan e Bell. Conheciam esta maravilha, era ela sua pátria. Há treze anos atrás, tinham abandonado o “montão de estrelas” para se dirigir à Galáxia e procurar pelo mundo da vida eterna. Na lua da Terra, sua viagem se transformou numa catástrofe e durante treze anos viram pessoalmente como, sob a direção de Perry Rhodan, de uma Terra “selvagem” surgiu um povo que amadureceu e em futuro, não muito longe, seria o herdeiro dos arcônidas. Este povo acabaria sendo o dono do Universo, como uns escritores terranos de literatura barata pensavam.
Thora e Crest não chegavam a acreditar nisso. Sabiam que os homens da Terra conseguiriam, pelo menos, dominar a Galáxia, o que seu povo não conseguira realizar até hoje.
Perry Rhodan havia descoberto, no Planeta Peregrino, o mundo da vida eterna. Ele e Bell foram julgados dignos de serem submetidos a um processo de duchas celulares através do qual ficariam sessenta anos sem envelhecer. Eles, os dois arcônidas não tiveram este privilégio. E agora, o comandante da maior nave do Universo era um homem da Terra: Perry Rhodan.
Tinha sido reconhecido como aliado do Império dos Arcônidas. Havia lutado pela continuação do Império.
Thora e Crest pensavam ao mesmo tempo a mesma coisa. Tinham vivido os últimos treze anos em terra distante e estavam agora em Árcon.
No entanto, sua terra natal lhes parecia agora estranha. Em lugar dos arcônidas, quem governava o grande império era um cérebro robotizado. Nos confins desse enorme reino, naves arcônidas, controladas por robôs, destruíam sem piedade povos que se sublevavam contra a hegemonia de um super-robô.
— Transição em 12 minutos — ouviu-se do posto positrônico automático de bordo.
Com 0,8 tempo luz, a Titan disparava transversalmente pelo “montão de estrelas”. A tela mostrava o sempre fascinante quadro de um mundo de estrelas de rara beleza. Mas não havia muito ambiente para romantismo na Titan. Surgiam os resultados dos cálculos de goniometria.
M-13, com uma dimensão de mais ou menos 230 anos-luz, era o bulevar das espaçonaves. Aqui, neste espaço relativamente pequeno, circulavam nove décimos do conjunto de naves da Galáxia, de estrela em estrela.
Transições eram anunciadas a todo momento, partidas, alterações de direção e indagações para orientação.
Tudo que ali se passava, acontecia depressa. Rhodan estava praguejando. Havia descoberto na tela gigantesca dois pontos minúsculos, logo depois identificados como duas naves voando em seu encalço.
E sua voz gritava um novo comando:
— Orientação? Onde estão os cálculos? Um segundo depois, o micro alto-falante dava os resultados:
— Provindo de Pi 34 graus, Alpha 18, Valor 107: 45,5. Aceleração 500 km/s, velocidade 0,8 tempo-luz. Número dos objetos: dois. Tipo: naves espaciais do Império. Fim da exploração.
O que se deu agora, não estava programado.
Mais do que depressa, Perry Rhodan havia ligado para a direção manual de emergência. O poderoso posto positrônico de bordo estava parado. Não dirigia mais a Titan.
— Espere um pouco, meu curioso cérebro de Árcon — sussurrou Rhodan para si mesmo, parecendo manter com uma mão só o acelerador-regulador.
No mesmo momento em que a força de propulsão estava no máximo e a gigantesca espaçonave atingia uma velocidade de 600 km/s, os amortecedores de compressão zuniam uma oitava acima.
De repente, Rhodan perdeu os dados referentes à orientação. Com muita cortesia, pediu novas informações.
Do alto-falante, ouviu-se primeiro um forte chiado de vento, depois, uma voz excitada:
— Distância trezentos e dez mil quilômetros.
— Obrigado — respondeu Rhodan. — Mas por que a orientação, em curto espaço de tempo, pela terceira vez, não veio com precisão de cem por cento? Terei que lhes impor certos exercícios para treinamento. Meus senhores, nem sempre me sobra tempo para fazer a mesma pergunta duas vezes. Vocês sabem que já houve situações dificílimas que só puderam ser superadas, porque cada um deu tudo que tinha.
As duas naves do Império dos Arcônidas, agora localizadas com toda exatidão e ampliadas através do agregado no painel redondo, pareciam se aproximar cada vez mais.
Bell resmungava, demonstrando aborrecimento. Adquiriu este hábito durante a entrevista com o cérebro positrônico em Árcon.
O olhar de Rhodan adquiriu um brilho intenso. Não era muito comum ver sua fisionomia iluminada por este clarão inteligente, que parecia aniquilar qualquer resistência. Não levava a mal a desconfiança do cérebro positrônico. Afinal de contas, ele estava cortando o espaço infinito deste reino de estrelas com a maior espaçonave do Universo. E não havia recebido a Titan espontaneamente do Imperador de Árcon. Ele a tinha tomado em duro combate, quando o gigante do espaço possuía atrás de si apenas alguns vôos de experiência.
O fato de o cérebro positrônico, depois disso, lhe ter dado de presente, o que tomara em combate, não foi um gesto de caridade. Um autômato positrônico não pode ter sentimentos, mas somente lógica. E o cérebro deve ter partido do ponto de vista de que havia apenas uma tripulação capaz de dirigir o colosso... e essa tripulação estava sob o comando do estrangeiro Perry Rhodan.
— Que está fazendo aí? — perguntou-lhe Bell, um pouco confuso, inclinando-se para ver o que era.
— A prova para o exercício, Bell. A programação continua, embora a tenha cancelado. Estávamos na iminência da primeira transição. Agora quero ver qual é o tempo que vai levar, com minha interferência.
Bell olhava admirado. Thora e Crest também pareciam surpresos.
Thora, antiga comandante de uma nave arcônida em expedição, destruída completamente num acidente na lua da Terra, colocou a mão no ombro de Perry. Este estremeceu um pouco sob este contato. Thora nunca estivera tão perto dele assim, nestes treze anos de viagens.
— Pois não...? — perguntou ele, levantando a cabeça e olhando para ela.
— O que você está exigindo do posto positrônico de bordo ultrapassa o poder do cérebro, Perry. Deve-se fazer uma nova programação para a transição.
De repente, um som agudo e nítido irrompeu dos alto-falantes:
— Contagem regressiva... dezessete... oito... um... zero.
Thora e Crest e todos que estavam de pé correram para as poltronas mais próximas.
Rhodan ainda ouviu o zero. Imediatamente sentiu a horrível sensação na nuca. Então, o hiperespaço invadiu a Titan com seu sibilar monótono e esfusiante, apagando tudo, toda vida, toda matéria, toda energia. O salto da gigante ocorrera.
O que era normal tinha deixado de existir.
Bem atrás da Titan, os goniômetros estruturais das duas naves dos arcônidas haviam registrado o salto da esfera espacial, captando simultaneamente todos os dados a respeito.
— Também, agora chega — murmurou Bell, fechando os olhos e contraindo o rosto, numa expressão de dor.
A Titan tinha acabado de sair da quarta transição. Perry e ele foram os primeiros a voltarem a si.
— Vamos ver — disse Rhodan, deixando tudo aberto.
Bell ficou esperando com ele pelos dados da orientação estrutural. Em seqüência, foram os membros da tripulação recobrando a consciência, após o choque do salto.
Nos mini alto-falantes houve um breve ruído e veio então a transmissão dos dados da orientação estrutural, registrados no segundo da transição para o hiperespaço:
— Cinco saltos, foram realizados, chefe — dizia o oficial triunfante. — Um em cada quarenta e oito vírgula seis minutos-luz de..
— Obrigado — respondeu Rhodan, e desligou.
— Puxa — disse Bell balançando a cabeça — que movimento havia nessas intrincadas linhas espaciais. Gostaria de saber, mais ou menos, quantas naves espaciais circulam neste “montão de estrelas”.
— Há treze anos atrás, Bell, mais de três milhões — respondeu Thora. Ela e Bell já haviam tido boas discussões, mas até hoje, nunca o tinha deixado tão perplexo assim, com esta informação.
— Três milhões — disse Bell, repetindo baixinho o número.
Perry não se surpreendeu.
“Deus do céu”, pensava ele. “Três milhões de naves espaciais e, apesar de tudo isto, deixam cair aos pedaços o que criaram com o próprio esforço. Três milhões de naves espaciais...”
Toda a tripulação da central tinha escutado a afirmação de Thora. Todos estavam impressionados e a todos parecia uma utopia pretender conquistar um império desta pujança.
— E daí?
Esta pergunta curta explodiu como uma bomba.
Perry cruzou o olhar com Thora.
Diante dos olhos dele, a arcônida perdeu a segurança e o orgulho. Perry não era nada vaidoso. Mas, neste momento, ela se lembrou de que Rhodan foi o único neste “montão de estrelas” M-13 que conseguiu vencer o poderoso cérebro positrônico. E a máquina positrônica era mais forte do que ele. Milhões de vezes mais forte. A concentrada força dos mundos da M-13 estava atrás dele. Não era decadente como a raça dos arcônidas. Possuíam pendor para o comércio e, no entanto, perderam, devido à astúcia de um único homem.
Por este motivo, os três milhões de naves espaciais não assustavam Rhodan.
— Não haverá mais transição.
A ordem de Rhodan reboou por todos os conveses da Titan, até ao último aposento ocupado.
Estava convencido de que o quarto salto da Titan, que tinha sido executado no mesmo segundo, com duas outras naves bem próximas, não poderia mais ter sido registrado com exatidão por Árcon. E as duas naus que os seguiam bem desde Zalit, já tinham perdido sua posição no terceiro salto.
— Iniciar a programação do sistema Thatrel — ordenou Perry Rhodan.
Ao lado dele estava Bell, sempre tagarelando:
— Gostaria que alguém me dissesse por que motivo, cada vez que passo por este sistema, ou penso nele, sinto uma sensação cômica? Diga-me, Perry, que foi que transformou a nossa passagem por aqui em uma coisa tão gostosa?
— E você não sabe mesmo, Bell? Foi Thora.
— Estou ouvindo isto hoje pela primeira vez. Então, Thora é quem sabe de tudo e pode nos informar. A que distância estamos de Árcon?
— Quarenta e sete anos-luz. Mas você devia saber isto, Bell. Estava presente quando nos informamos sobre o sistema Thatrel no catálogo sideral dos arcônidas. Bell, o que está se passando com você?
— Nada, Perry, só que não consigo me livrar de um sentimento cômico, cada vez que penso nisso.
— Acho que você devia cuidar de seus nervos — continuou Perry, um pouco mais rude do que realmente intencionava. De fato, Rhodan já estava um tanto preocupado com os constantes maus presságios de Reginald Bell. Porém tinha esperança de que, depois destes dias turbulentos, viessem tempos bons para se descontraírem e descansarem um pouco.
— Senhor — era a voz do oficial responsável pelo posto positrônico de bordo e pela programação. — O programa para o sistema Thatrel está entrando em execução. A nave tomou um novo rumo. Diferença para as coordenadas 0,0003. Distância de Honur 34,62 horas-luz.
Com um pouco mais do que três quartos da velocidade da luz, a Titan avançava para o insignificante sistema Thatrel. Em torno de um sol vermelho-claro, circulavam três planetas mais insignificantes ainda. De acordo com o catálogo sideral de Árcon, este segundo mundo era habitado por uma população degenerada.
Perry Rhodan pensava: “Se os próprios arcônidas, que já eram degenerados, chamavam os outros povos de sua raça de degenerados, o que se pode então esperar deste planeta Honur?”
Durante dois dias, Perry ficou observando o espaço. Mantinha-se firme em sua trajetória, abandonando sempre aquelas faixas mais usadas pelas naves dos arcônidas.
Queria estar bem seguro de que o imperador de Árcon não havia percebido sua presença por ali e de que nenhuma das muitas naves espaciais com as quais cruzara ao longe, o denunciasse em Árcon.
Ninguém na Titan duvidava da seriedade e das intenções de Rhodan. Sabiam todos que o chefe era inimigo do acaso e, na medida do possível, tentava evitá-lo.
Às 10:43 horas, tempo de bordo, veio afinal o comando:
— Tomar o curso diretamente para o sistema Thatrel.
Quase com a velocidade da luz, a Titan devorava o espaço.
Treze horas mais tarde, surgiu na tela do painel redondo o sistema Thatrel.
— Puxa... — disse o analista de espectros, depois de haver examinado a luz do pequeno sol, entregando a Rhodan os resultados da análise. Este os comparou com os dados do catálogo sideral dos arcônidas.
Bell, Crest e Thora estavam em torno dele. O salão de conferência correspondia à magnitude soberba da Titan. Ironicamente, Bell o chamava de salão de dança, pois não era homem dado a bate-papo muito demorado.
— Por que será que temos que descer neste “Marte”, onde não se encontra nada, Perry? Por que pesquisar primeiro todos os dados dos catálogos? Olha o manual de rotas da Galáxia. Eu o encontrei aqui na biblioteca. Não há rota nenhuma tocando este lugar perdido...
— É exatamente isto que procuramos — respondeu Perry. — Você esquece sempre que em Zalit nós não podíamos fazer nada sem centenas de espiões em cima da gente. Vem cá, você não vai dizer que não tinha confiança nos zalitas, mas depois de sua revolução, mostravam-me muito apego ao Império de Árcon. Você pode me indicar uma outra maneira de como podemos construir o compensador de estrutura, sem que ninguém o perceba? E o que este compensador representa para nós, acabamos de ver há pouco. Tivemos que dar quatro saltos para escaparmos dos rastreadores de Árcon. Com o novo compensador, podemos sumir, sem deixar nenhum vestígio, logo após o primeiro salto. Por este motivo é que estou contente de Thora ter nos chamado a atenção para este canto abandonado do espaço. Não confio no acaso, e sei realmente que a construção deste aparelho deve ser feita às escondidas. E, por fim, quero ter em mãos alguns trunfos contra o cérebro robotizado.
— E nesses três milhões de espaçonaves, você não pensa mais? — disse Bell, querendo mostrar prudência.
— Claro que penso, meu caro amigo — respondeu Perry com um sorriso meio suspeito, fazendo com que Bell não se sentisse muito à vontade. — Depois que fiquei sabendo quantas naves existem aqui neste “montão de estrelas”, abandonei meus planos de construir novas naves. Resolveu-se tudo automaticamente e...
— Você não pretende mais construir espaçonaves, Perry? — perguntou Bell muito assustado e se encolerizando subitamente, quando percebeu o fino sorriso de Thora e Crest. A ira lhe toldou um pouco o discernimento, não conseguindo atinar com o motivo do sorriso. Mais zangado ainda, esbravejou: — Falando mais exatamente, a Titan foi roubada. Acho bom que mantenhamos uma norma de conduta moral.
— Mas, meu amigo Bell — interrompeu-o Perry, com um leve sorriso nos lábios — exatamente você se mostra tão sensível neste particular? Que aconteceu com você, rapaz? Preciso lhe lembrar alguns fatos onde você ultrapassou, e por muito, estas normas de conduta? Estou pensando, por exemplo, nas...
Bell recuperou, então, seu autodomínio e antes que Perry citasse aquele exemplo, acrescentou apressado:
— Presenteada.
— Obrigado — disse Perry — mas não me agrada e acho que a ninguém dos presentes, que você classifique nosso modo de agir como um roubo. Lembra-se que chegamos a Árcon como amigos e ao que assistimos quando atingimos este “montão de estrelas”? E quando eu, há pouco, dizia que o problema da construção de naves está resolvido, era para ser entendido no sentido de que os arcônidas serão em breve nossos melhores amigos e colocarão à nossa disposição tantas naves quantas forem necessárias. Então, Bell, se tornou verdade o que você profetizou, há alguns dias, a Crest na Titan. Estamos novamente de acordo?
— Pelo menos até este sistema Thatrel, Perry. Naturalmente, não sou louco, mas este sol está me deixando gelado.
Honur, o segundo planeta do sistema Thatrel, era um mundo ressecado, como se mostrava em toda a sua fealdade no painel redondo da Titan.
— Onde estão, então, as cidades? — perguntou John Marshall, o maior telepata e, desde os primeiros dias da Terceira Potência, o mais fiel seguidor de Perry Rhodan.
— Honur não possui cidades — foi a resposta sucinta de Perry. — É um mundo onde não há nada de útil, nem mesmo jazidas de minério dignas de serem exploradas e, além disso, apresenta péssimas condições climáticas. Por isto, ninguém o procura.
Como as condições climáticas eram ruins, o painel de bordo, já anunciava. Uma forte tempestade de areia varria a superfície marrom e desértica de Honur. A esta altura, dava a impressão como se houvesse alguma coisa queimando na pequena esfera e a fumaça clara, mas densa, fosse comprimida contra a superfície.
Aos poucos, com a inversão da velocidade da Titan, a tempestade de areia se alterou, na tela do painel. Surgiu então uma enorme cadeia de montanhas. As medições de bordo revelavam picos com mais de quatro mil metros de altura.
Tão assustadoramente desolada e calcinada como a superfície plana deste mundo, parecia também a grande cadeia de montanhas que serpenteava do nordeste para o sudoeste.
— Olhem lá um rio — exclamou Bell, apontando para uma faixa sinuosa nas vertentes da montanha, terminando logo adiante num pequeno lago.
A Titan descia para Honur. O maciço estava ainda no painel quando surgiu uma planície. Nela, não predominava o marrom-sujo, mas um verde-escuro, um pouco colorido demais, para se poder dizer que era incolor.
— Que pena que a Titan não esteja lotada — dizia Rhodan, pensando no décimo sétimo convés de sua nave, onde estava instalado o departamento de botânica, mas que no momento estava vazio.
— Que será isso, esse verde-escuro? — perguntou Crest, virando-se para Thora. Mas parou, perplexo, esqueceu o que havia perguntado e ficou olhando fixamente para Thora.
E ali estava a esbelta arcônida, de porte nobre, olhando agora, sem nenhuma nobreza, para o desolado mundo de Honur, no painel de bordo. Um vinco vertical lhe dividia agora a testa larga e fora disso lisa. Seus olhos tinham expressão de tristeza.
Somente agora é que dera com o olhar atento de Crest. Balançou a cabeça, como se quisesse afugentar os maus pensamentos, tentou um sorriso forçado, lembrando-se de repente da pergunta de Crest.
— Essa mancha colorida horrível lá embaixo não poderá ser uma floresta bem espalhada?
— Oh, belas “Montanhas Rochosas” — gritou Bell, traindo assim, mais uma vez, sua origem americana. Não aceitou a hipótese de que o feio verde-escuro pudesse ser uma floresta.
Mais para o horizonte, surgiram dois rios. Ambos terminavam em pequenos lagos. Porém, em lugar algum havia sinal de mar. Honur era um mundo seco, com um único continente sem nenhum valor econômico.
Aos poucos foi surgindo a parte escura, correspondente à noite do planeta. E a feiúra se escondeu.
— De qualquer maneira — disse Bell — isso aí me é mais agradável do que, depois de uma transição, ter que aterrissar no meio de uma batalha aérea ou espacial. Mas não gosto destes desertos.
A resolução de Perry de aterrissar depois desta primeira circunvolução de Honur foi tomada sob a consideração de que, com cada volta a mais, aumentaria a possibilidade de serem descobertos por qualquer outra espaçonave. Então com toda certeza a notícia chegaria ao cérebro positrônico de Árcon, que logo descobriria o paradeiro da Titan.
A gigantesca cadeia de montanhas, com seus picos de quatro mil metros, subindo como muralhas, bem íngremes, interessava muito a Perry.
Assim que a nave saiu da parte escura e entrou para o dia, Rhodan iniciou a descida.
Bell começou a resmungar, quando este mundo árido começou a invadir a tela do painel com sua monótona planície.
Perry não estava vendo aquilo com bons olhos. Mas era preciso pensar na Titan e mesmo que sua tripulação não estivesse completa e, portanto não estivesse em condições de efetuar bons assaltos, contava com uma pequena frota e podia se defender.
Durante a circunvolução de Honur, o planeta continuou sua rotação e a Titan em sua curva de aterrissagem se deslocou mais para sudoeste, exatamente na direção do lago, onde o rio desembocava.
Rhodan dirigia a espaçonave. Queria ficar tão acostumado com esta gigantesca esfera de aço, como estava com a Stardust-III que no momento repousava em seus suportes telescópicos no Deserto de Gobi, na Terra.
Bell deu-lhe um sorriso de confiança, de sua poltrona de co-piloto. Rhodan sabia o que significava este sorriso.
No rebordo central da esfera, zuniam todos os motores de propulsão. Na parte inferior da nave, estrugiam os reatores, e milhões de elementos trabalhavam para que o gigante de aço, obedecendo ao comando de um só homem, seguisse seu curso em direção ao lago.
A alegria resplandecia nos olhos de Perry, a criança despertava no homem. E Bell, o amigo de todas as horas, se alegrava vendo que a criança sempre continuava viva em Rhodan. Por uns instantes, a Titan parecia um brinquedo para Perry. Estes segundos eram a fonte de onde hauria forças para a luta.
A supernave flutuava agora entre o lago e um íngreme pico de montanha. Sua sombra podia ser vista agora no painel de bordo. Vagarosamente o gigante do espaço se aproximava da muralha de pedra. Metro por metro ia descendo.
Perry apertou um novo botão. Da metade inferior da esfera projetaram-se enormes suportes telescópicos, um anel completo, formado por um sem-número de dedos, com base ampla de sustentação.
— Isto é um chão firme — exclamou Bell distraído, pensando, porém, nos milhões de toneladas que a Titan pesava.
— Obrigado — respondeu Perry, olhando rapidamente para ele. — Foi bom você me lembrar isto. Vou obter a compensação do peso pela força da antigravidade.
— Você, hein... — dizia Bell — nunca teria imaginado...
— É, mas imagine só, afundar com todos estes suportes telescópicos no chão de areia fofa e depois ver a Titan ter que se safar daí. Está certo, caro Bell?
— Você andou aprendendo com os telepatas? — perguntou Bell, sorrindo.
A Titan encostou no chão. Tinha aterrissado.
Major Freyt, comandante da Ganymed estava sentado em frente de seu colega major Klein, em Terrânia. Conferia as mensagens que Klein lhe passava, sem dizer uma palavra.
Freyt começou a expressar seu mau humor em termos de gíria arcônida.
— Klein — disse ele, empurrando para o lado o montão de mensagens — o que que está acontecendo com vocês na Terra? Isso é tempo arcônida. Nestas condições, nunca chegarei a Honur com a Ganymed, no tempo combinado. Puxa, por que as bombas de fornecimento não trabalham mais depressa?
Major Klein, substituto de Rhodan na Terra, enquanto o chefe estivesse ausente, balançou a cabeça pensativo.
— Freyt, neste meio tempo, você me contou tanta coisa a respeito do planeta industrial Árcon III, que você já se esqueceu de calcular com as condições aqui da Terra. Reflita um pouco: o compensador de estrutura é uma invenção dos mercadores galácticos. Construir de novo esta obra maravilhosa exige um remanejamento total dos setores industriais. E mais ainda: que monstro de compensador tem que ser construído... E isto não pode ser feito de um dia para o outro. Não estamos em Árcon III e a Terra não é um mundo em que as instalações industriais estão coladas umas com as outras.
— Isto não me adianta nada, Klein. Já transmiti meu último rádio, dizendo exatamente quando chegaria a Honur. Tenho que ser pontual. Não estou agüentando mais de preocupação.
— Com a nave que Perry Rhodan possui agora? — perguntou Klein, virando o rosto um pouco para o lado e contemplando o colossal espaçoporto de Terrânia, onde ao lado da grande Ganymed, estava a Stardust-III, uma esfera metálica de oitocentos metros, apoiada em seus suportes, e mais para o lado, estavam os possantes cruzadores.
Em pensamentos, o major Klein procurava imaginar o tamanho da Titan, e como pequena iria parecer então a Stardust-III. Mas não podia suspeitar o que sua pergunta tinha provocado em Freyt. Respondeu imediatamente:
— Klein, puxa, você vê tudo com óculos cor-de-rosa. Está certo, a nave de Rhodan é um gigante, mas o Império dos Arcônidas também não é uma brincadeira e mais de cem mil sóis com seus satélites são controlados por um cérebro ciclópico com mais de dez mil quilômetros quadrados de dimensão.
— Não vejo lógica nisto, Freyt — interrompeu Klein. — O sistema Thatrel, incluindo o planeta Honur, não é um mundo sem importância? E em vista disso, não é verdade que não pode haver por lá nenhum fator que possa ameaçar a Titan? O que pode acontecer a Perry Rhodan em Honur? Nada, Freyt, absolutamente nada. Além disso, dispõe ainda a bordo de setecentos homens e o chefe nos tem mostrado, e muito bem, que com o mínimo de meios, sempre consegue o melhor resultado. Portanto, se o compensador de estrutura levar uns dois dias a mais para ser entregue, não será uma calamidade pública.
Freyt tamborilava com as pontas dos dedos na chapa da mesa.
— Você fala muito bem, Klein, você pensa com sinceridade, mas nem por isso desaparece minha intranqüilidade. Talvez Rhodan nem esteja mais em Honur, sei lá? E que pode ele fazer sem o compensador? Qualquer nave arcônida poderá identificá-lo durante um supersalto. E a cada salto novo, reunirá mais assistentes em torno de si, por fim, não nos esqueçamos dos saltadores, os mercadores galácticos e de quebra ainda os moofs.
— Você ainda não me havia falado quase nada a respeito disso — acrescentou Klein, tentando distrair um pouco Freyt.
Este se levantou, dirigiu-se à janela e ficou observando Terrânia, a capital da Terceira Potência, situada no meio do Deserto de Gobi e o centro político da Terra.
— Os moofs, estes monstros — começou ele — são qualquer coisa como um mistério das Galáxias.
E a uma distância de 34 mil anos-luz, Perry Rhodan dizia a mesma coisa para Crest:
— Os moofs são e continuam sendo um enigma, mas não porque eles existem, mas sim pelo fato de que conseguiram dominar um mundo inteiro pelo seu poder de sugestão. E isto, apesar da contradição palpável: são muito bobos para agirem por conta própria. Às vezes chego à conclusão de que são imaturos, incompletos em sua evolução. E por fim: quem sugeriu ao Zarlt estes moofs? Quem, Crest?
Crest e Thora pertenciam aos poucos arcônidas de sua categoria, que não haviam sido vítimas da apatia mental que acabara de conduzir o outrora glorioso Império Arcônida a uma fase de pura decadência.
Por alguns instantes, Crest ficou fitando Perry Rhodan, em sua estatura avantajada. Estavam os dois frente a frente na cabina de comando.
— Bell diz que... — e Crest esboçou um fino sorriso, quando Perry, com a testa franzida, olhou com desconfiança para ele — Reginald Bell suspeita dos saltadores. Eu também os tinha como culpados, mas quanto mais penso a respeito, mais aumentam minhas dúvidas. Uma coisa me preocupa muito: este procedimento dos moofs não combina com a mentalidade dos mercadores galácticos. Apesar de tudo, eles são em si honestos, já que se pode chamar os saltadores de honestos.
Parou de falar, porque Rhodan agora sorria um pouco.
— Crest, há pouco você se expressou com muita cautela, apesar disso, ouvi com pesar sua opinião de que os saltadores não entram em questão neste assunto dos moofs. Assim, continua de pé o enigma, quem procura destruir a existência do seu Império? Que os mercadores galácticos são desonestos em relação ao Império Arcônida, está provado através dos dados, em parte falsos, em parte incompletos, que transmitiram ao cérebro robotizado, a respeito da Terra e dos homens. Assim como nós quebramos a cabeça para descobrir a origem dos moofs e quem está por detrás deles, assim também o seu imperador procura saber em que lugar das Galáxias se encontra a Terra e de que maneira, nós, seres humanos, devemos ser classificados. E agora um novo enigma, que fica bem à margem destas perguntas: como é possível, que Bell não se lembre mais da hora em que Thora nos propôs de voarmos para cá, a fim de podermos construir com calma o compensador estrutural da...
— Bell, também? — precipitou-se Crest, assustado, levantando a cabeça.
— Quem ainda mais?
Crest estremeceu todo, sob o olhar penetrante de Rhodan.
— Thora — respondeu o inteligente arcônida, quase sem voz.
— Que você está dizendo?
— Ela mesmo, Perry. Ontem, logo depois da aterrissagem, ela me procurou e me confiou seus cuidados. Ela não consegue explicar, por que motivos nos aconselhou a descer em Honur.
Perry parecia não acreditar nas palavras do arcônida.
— Crest, isto é uma brincadeira de mau gosto, não é?
— Não, Rhodan, infelizmente, não.
Perry começou a ligar os fatos.
Lembrou-se de que o gorducho sempre tivera antipatia contra este sistema. Esta solidão e este deserto horrível realmente eram coisas que não combinavam com o gênio de Bell.
— Crest, venha comigo à biblioteca — pediu Rhodan ao arcônida.
Para chegarem até a biblioteca tinham que tomar três elevadores antigravitacionais. Levaram dez minutos até alcançarem ao seu objetivo.
A biblioteca era um longo salão que em nada lembrava uma biblioteca da Terra. Rhodan se aproximou da pequena mesa de ligações, à direita da porta. Tinha que se familiarizar um pouco com estes dispositivos mais complicados do que os da Stardust-III. Mas então, todo o saber acumulado positronicamente, ali estava para responder a suas perguntas. Em algum lugar, naquele longo corredor, um determinado micro pino entre cem milhões deles, se imantaria para a resposta, e Rhodan e Crest veriam numa tela estável e ouviriam por um alto-falante os dados sobre o planeta Honur no sistema Thatrel, fonética e graficamente.
— Gravitação 0,7... atmosfera pobre em oxigênio... Rotação... Temperatura... Estrutura geológica... — saía rapidamente do mini alto-falante e a parte gráfica aparecia na tela:
Mundo primitivo que há 14.643 anos foi colonizado pelos arcônidas. Dezoito anos mais tarde, chegou a Honur a última leva de imigrantes. Devido a uma alteração climática que não corresponderia às parcas riquezas do solo, do ponto de vista dos gastos necessários, o Conselho do Império desistiu de qualquer iniciativa.
Com os traços fisionômicos um tanto duros, Perry via estes dados monótonos e olhando rapidamente para Crest, disse:
— Isto é a santa burocracia, tanto aqui com vocês, como também conosco na Terra.
O alto-falante forneceu alguma coisa importante:
— Cento e vinte e um anos depois da primeira colonização de Honur, todo o sistema do sol Thatrel foi declarado proibido. Esta proibição nunca foi suspensa até hoje.
Era tudo que se sabia sobre Honur, embora Rhodan tivesse pedido “informações completas”, na mesa de ligações.
— Não haverá nada mais, Crest? — e na voz de Rhodan se podia notar intranqüilidade.
Crest o havia observado, durante todo o tempo das informações. Naturalmente ele já sabia tudo que acabara de ouvir e nesses pormenores de sua pátria, estava mais por dentro do que Rhodan. Podia, pois responder com firmeza.
— É realmente tudo. Havia ainda o traçado de estradas, mas o computador o teria mencionado, se fosse coisa de qualquer importância.
— Território proibido e nenhuma indicação dos motivos? Estes desertos devem ocultar perigos? — perguntou Rhodan.
Não falou mais nada. Lembrou-se apenas que os arcônidas, também há 15 mil anos atrás, só chamavam de perigosas as coisas suspeitas que se davam por ocasião do aparecimento de uma estrela fixa.
— Venha, Crest — dizendo isto saiu apressadamente da biblioteca e correu para a central. Na volta, levou só seis minutos. Um tanto ofegante, Crest o seguiu até o posto de comando.
Rhodan mobilizou todos os especialistas. Era uma ordem atrás da outra, no microfone. E a automatização perfeita da técnica arcônida distribuía cada chamada para o setor a que se destinava.
— Para o comandante da Gazela: preparados para decolar.
“A mais exata análise do ar.
“Enviar sondas automáticas para provas do solo. Executar estudos nas prescrições dos arcônidas.
“Medições do campo magnético, da irradiação dos planetas. Medir tudo, mas tudo, examinar duas vezes e transmitir os resultados para a central.
“Bell — disse chamando o amigo. Bell estava dormindo, sorriu através do intercomunicador de seu camarote para a central. Mas naquele momento, ninguém ria. — Bell, imediatamente para a central.”
— Estou indo.
— Pré-alarme para a Titan.
Em toda a nave, as sirenes começaram a tocar, num determinado ritmo. Do hangar veio a mensagem:
— Gazela pronta para o lançamento.
— Obrigado — foi a resposta de Rhodan.
Crest o admirava. Rhodan não esquecia nada, trabalhando com a precisão de um autômato positrônico — e no entanto, muito melhor. Ele era um ser humano e Crest já sabia, por experiência, o que isto significava. No seu íntimo, surgia um sentimento de inveja. Estava pensando nos arcônidas quando encontrava-se sentado ao lado de um homem que estava prestes a conquistar o Universo para sua raça.
Chegou outra mensagem:
— Saíram sondas para todas as regiões.
Rhodan continuou emitindo novas ordens, no microfone.
— Senhor — anunciou-se a Estação de ótica que controlava o planeta até a linha do horizonte através dos maravilhosos instrumentos arcônidas — movimentos na margem do lago. Agora é... meu Deus, são homens, senhor. Saem de uma fenda da terra. Os primeiros se movimentam em direção à espaçonave. Sim, são homens. Devem ser arcônidas, embora pareçam vagabundos. Já são mais de cem.
Procedeu-se as pesquisas-relâmpago. Um setor depois do outro se anunciava, dando seus resultados. Bell estava sentado há tempo na poltrona de co-piloto, ao lado de Rhodan. Com simples troca de olhar, dividiam entre si o trabalho, colocando em código as mensagens recebidas, para o computador positrônico de bordo. Entrementes, Rhodan ainda teve tempo de mobilizar seu corpo de mutantes. Não lhes disse muita coisa sobre os fatos que se desenrolavam. Cada um conhecia bem seu setor de responsabilidade, em que era mestre absoluto.
Sugestão, telecinese, espionagem, hipnose, teleportação, Rhodan não se esqueceu de nada em seu pensamento rápido e seguro. E John Marshall, em algum lugar da Titan captava a corrente de seus pensamentos, registrava-os e transmitia as ordens do chefe aos demais mutantes.
A população degenerada dos antigos colonizadores do planeta, que se aproximava com lentidão estava sendo examinada em seu conteúdo mental pelos mutantes, homem por homem.
As sondas enviadas já estavam de volta, uma parte do material coletado já tinha sido analisado, controlado, submetido às severas normas de avaliação.
— Nenhum perigo.
— Nada de perigos.
— Flora do planeta: inofensiva.
Uma atrás da outra, choviam as mensagens.
Bell começou a esbravejar em voz alta.
— Bonito demais para ser verdade. E embora nossas raposas entoem hinos de louvor, que o diabo carregue todos estes desertos. Ficarei feliz, quando sairmos deste planeta horrível.
Perry ouviu tudo isso, pensando nas palavras alarmantes de Crest sobre a perturbação da memória de Thora.
Na Titan, continuava o estado de pré-alarme.
Rhodan, porém, estava em estado de máximo alarme.
Já há 14 mil anos atrás, Árcon tinha declarado este sistema como território proibido. Não era permitida qualquer aterrissagem... e esta proibição nunca mais foi suspensa. Onde estaria o perigo, que os próprios arcônidas nunca chegaram a descobrir?
Estavam sentados os quatro na cabina de comando. Perry Rhodan, Reginald Bell, Thora e Crest. Não despregavam os olhos da tela do painel. O dispositivo continuava em pleno funcionamento. Apaticamente, a população saída das profundezas da terra estava lá fora em volta da gigantesca espaçonave, sendo observada na tela um por um.
Eram homens de estatura elevada, esbeltos, quase ressecados. O que chamava muito a atenção era sua calvície e os olhos muito encavados no rosto, de expressão triste. Sua pele era de um marrom-avermelhado, uma cor suja, como toda a fealdade de Honur, em meios tons.
— Andam por aí em farrapos, estes pobres-diabos — disse Bell. — Parecem meio famintos.
Crest fez a pergunta:
— Virá deles o perigo?
Thora ficou corada, aliás um acontecimento raríssimo na orgulhosa arcônida. Seu olhar cruzou com o de Rhodan e num sentimento de desespero sacudiu os ombros, dizendo:
— Não sei, não sei, não sei mesmo como cheguei a propor este mundo aqui como local de encontro com a Ganymed. Não conheço Honur. Penso que antes nunca ouvi, nem li o nome deste sistema. É tudo tão horrível, e acima de tudo, este aviso de não descer em Honur.
Instintivamente, Rhodan lhe colocou a mão sobre o braço.
— Thora — disse ele e sua voz tinha influência sugestiva — nós todos confiamos em demasia na exatidão dos assentamentos dos arcônidas. Porém já presenciamos que às vezes Árcon se esquece de registrar alguma coisa. Entretanto há nove ou dez mil anos atrás o estado de proibido foi suspenso e esta suspensão simplesmente esquecida; esquecida apenas pelo fato de que neste mundo não há nada para procurar... será então que não estamos exagerando os nossos cuidados?
Bell se levantou.
Enfiou as mãos nos bolsos da calça e trombeteou:
— Perry, você agora está ficando esquisito. Será que estamos numa espécie de circo, em que cada um de nós é um palhaço? Primeiro foi Thora, que nos recomendou este museu de desertos e depois não sabe mais a razão por que o fez. Depois, eu. Devo ter estado presente quando foi combinado com o major Freyt que o encontro seria aqui em Honur. E agora você? Você que fareja o ar estragado a mil anos-luz de distância, de repente aceita algo tão miserável? Perry, isso não é possível.
Rhodan ainda mantinha preso o braço de Thora, certamente sem o perceber. Olhou de frente para Bell e se lembrou de uma pergunta que lhe rodava pela cabeça, soltando-a imediatamente:
— Nossos três moofs ainda estão no setor de isolamento?
— Estão, sim — foi a resposta tonitruante de Bell, porém, corrigindo-se um pouco, acrescentou: — Pelo menos até uma hora atrás. Mas eu tive cautela em não me aproximar desses monstros. Não abandonei a zona de segurança. Mas não creio muito nessas “aranhas”. Este jogo que estão fazendo conosco, deve ter alguém escondido atrás dele. Parece muito logicamente arquitetado para ser atribuído aos moofs. Amigo, estamos tratando é com os saltadores, com nossos ciganos das Galáxias. Alguém está exercendo influência sobre nós. Alguém que não se esquece talvez, que fomos nós que capturamos sua mais recente nave comercial e a transformamos na Ganymed. Quem sabe, este alguém quer agora, em troca, algo equivalente, como a Titan, por exemplo?
Nenhum dos três homens observava Thora. Estava sentada, muito quieta, sentindo a mão de Perry sobre seu braço. Emanava de Perry para ela um fluxo sereno de felicidade, e nunca, em seus longos anos de existência, havia experimentado uma felicidade tão intensa. Naturalmente sentia a necessidade, que explodia dentro dela, de se encostar mais em Perry, de colar seu rosto no dele, abraçá-lo; estava mesmo na iminência de se entregar a este arroubo impetuoso de felicidade. Porém a irrupção de cólera de Bell veio como um curto-circuito.
E aí tudo terminou. Como varrido por um tufão. Um grande vazio se abriu diante dela, penetrou-a completamente, ameaçando levá-la para o incerto. Os homens se entreolharam. As afirmações de Bell tinham fundamentos. Mas Rhodan e Crest abanaram a cabeça.
— Apenas um dos nossos mutantes teria sentido os tele impulsos, Bell — disse Rhodan. — Acho cada vez mais que somos vítimas de uma consignação errônea nos dados dos arcônidas e que o bloqueio de Honur já há tempo terminou.
— E o engano de Thora? E o meu, Perry? — insistiu Bell.
Nem Crest, nem Rhodan podiam responder alguma coisa.
Bell se encaminhou para a porta, mas antes de deixar o camarote de Perry, ainda lhe repetiu:
— Estes desertos estão podres, Perry. Acredite-me. Em qualquer lugar por aí, o diabo escondeu um abacaxi para nós. Tomara que os estilhaços da Titan não nos cortem a cabeça.
A seção positrônica de bordo, baseando-se no conjunto de dados recolhidos, declarou:
— Honur é uma terra inofensiva.
A possibilidade de engano chegava a 0,7%.
Perry Rhodan respirou mais aliviado, depois que leu esta mensagem nas listas plásticas. Contente, fez um gesto afirmativo para Crest, que estava de pé a seu lado.
— O pessoal pode deixar a nave e fazer contato com os habitantes, mas o pré-alarme continua valendo para um terço da guarda de segurança.
Perry Rhodan, Reginald Bell e Crest, de pé na escotilha, estavam perplexos, olhando o espetáculo lá embaixo, entre os suportes telescópicos da Titan.
— Meio famintos — dizia Rhodan comovido.
Não prosseguiu. Continuou olhando aquelas figuras magras, secas, passando fome, devorando com apetite animalesco os alimentos que ele havia liberado.
Desceram a rampa bem devagar e pararam numa de suas extremidades.
Os nativos, irreconhecíveis descendentes dos arcônidas, aproximaram-se com seus farrapos dos homens assustados. De seus olhos grandes e muito encavados havia o brilho de sincera gratidão. Nos trapos que cobriam seus corpos, Perry julgava ver restos de velhos uniformes. Mas antes que pudesse perguntar a Crest, uma delegação deles se ajoelhou em sua frente, meteram a mão por baixo dos farrapos de roupa e entregaram presentes para os hóspedes: Flores do planeta Honur.
— Flores negras — disse Crest espantado, dando inconscientemente um passo para trás.
— Muito obrigado aos senhores, que vêm das estrelas — conseguiram ainda entender em dialeto arcônida. Mas o mais espantoso foi o gesto humilde desta delegação: estendida no chão, empurravam com os braços magros as plantas exóticas para a rampa.
— Levantem-se — pediu Rhodan — não somos mais do que vocês.
Os nativos prestaram muita atenção ao som de suas palavras. Será que elas lhe trouxeram à mente recordações dos tempos em que eram soberbos arcônidas?
Os olhares curiosos dos homens da tripulação vagavam entre as três flores negras e a delegação dos nativos. Rhodan ficou fascinado com o brilho aveludado das flores negras. E o próprio Crest, que vira tantas coisas esquisitas em estrelas longínquas, não parava de admirar a beleza exótica e o efeito do colorido.
Rhodan procurou pelo corpo de mutantes que o seguia a poucos passos. Estavam fazendo o último controle. Perry viu o quase imperceptível sinal de cabeça feito por Marshall, sinal este que significava: Os homens não apresentam nenhum perigo.
Então, Rhodan automaticamente estendeu a mão e segurou a do arcônida que com seu olhar misterioso parecia quase adorá-lo.
Também nas outras três rampas que estavam descidas havia grande aglomeração dos tripulantes da Titan. Viram quando o chefe estendeu a mão a uma destas figuras esfarrapadas; para eles, isto queria dizer que deviam manter contato com a população pobre e faminta.
Os nativos falavam um dialeto horrível, que mal dava para se entender. Mas quanto mais viva fosse a conversa, maior seria a possibilidade de se entenderem.
Perry Rhodan e Crest conseguiram saber que eles, entre si, se chamavam algo como “os purificados”. Naturalmente que Bell pensava algo a respeito.
“Isto cheira a sectarismo. E toda pessoa sectária não pode ter cabeça boa.” Mas tinha que sentir simpatia por aquela acolhida tão espontânea e aos poucos foi se entusiasmando. Interessou-se em saber o que lhes faltava.
Os “purificados” viviam daquilo que Honur lhes podia dar. Eram simples e achavam que suas moradias não mereciam a visita dos poderosos homens das estrelas.
Rhodan deu ordem aos robôs de serviço que esvaziassem um setor do grande depósito de roupas. Quando os robôs trouxeram para eles aquela grande quantidade de roupa, ninguém correu para apanhá-las. Aproximaram-se quase que acanhados. Cada um estava preocupado em dar o lugar ao outro. Acabaram pegando as roupas, mas tão lentamente, que Perry ficou preocupado.
Fez um sinal, chamando o telepata John Marshall.
— Será que todos estes “purificados” se encontram em estado de hipnose, Marshall?
Marshall ficou meio sem jeito. Não estava em condições de fornecer ao chefe uma resposta clara.
— Senhor, eles são assim. É o seu modo. Pensam tão lentamente, como se movimentam. Desde alguns minutos que não sinto mais nenhum impulso que indique alegria.
Rhodan percebeu que Marshall estava intimamente intranqüilo. Para seu controle, perguntou:
— Alguns pensamentos perigosos?
— Não, senhor. Não constatei nenhuma intenção perigosa e agora sua mente adormece cada vez mais. Tenho a impressão de que isto se prende ao fato de terem matado a fome.
Pela cabeça de Rhodan, passou rapidamente o pensamento: arcônidas degenerados.
Estes, outrora orgulhosos descendentes de uma grande raça, eram hoje inferiores aos selvagens. Parece que o único dever que tinham na vida era encher a barriga.
A multidão se pôs a caminho, vagarosamente. Os purificados nem olhavam mais para os homens da Titan. Cada um apanhou uma peça de roupa e saiu com passadas bem lentas. Ninguém falava. Calados desapareceram na direção do lago.
A tripulação da Titan ficou olhando decepcionada. Jamais teriam esperado coisa assim, depois de uma recepção tão simpática.
Os comentários sobre os habitantes do planeta eram pesados. O julgamento mais suave foi: estes homens de Honur não são muito normais. O fato é que ninguém concordava em chamá-los de “purificados”. Para alguns, porém, esta expressão podia causar intranqüilidade. Contudo não sabiam que quem apresentava intranqüilidade era Rhodan.
Duas horas mais tarde, os suportes da Titan estavam rodeados pelos “purificados”.
Perry não quis mais entrar em contato com os degenerados. Além disso, não era nada agradável andar lá fora com o aparelho de respiração nas costas e se movimentar numa atmosfera rarefeita, pobre em oxigênio.
— Tenho a intenção de fazer uma viagem de reconhecimento com a Gazela. Crest, quer vir comigo?
O arcônida concordou contente e apontou ao mesmo tempo para a enorme tela que reproduzia o que estava acontecendo entre os suportes da espaçonave.
— Olhe, Perry, lá para baixo. Não são animaizinhos engraçados?
Mas para Perry, estava valendo o pré-alarme. Ligou o contato e perguntou para os guardas da escotilha:
— Onde estão os mutantes?
Da escotilha oito veio a resposta:
— Uma parte deles estava lá fora.
Perry mencionou também o nome de Marshall.
— Urgente, chamar Marshall — ordenou Rhodan, com voz muito enérgica. — Examinar imediatamente os animais. Alguns exemplares devem ser trazidos para o laboratório.
Crest não participava da excitação de Rhodan. Riu à vontade quando Bell apareceu na tela, segurando um destes ursinhos de trinta centímetros com muito carinho dizendo ao mesmo tempo:
— Que olhos maravilhosos, lindamente tristes.
Perry não estava preocupado com os olhos lindos e tristes. O perigo espreitava de algum lugar e agora ele o via nos interessantes animaizinhos, que os purificados, ou os honos como dizia a tripulação, estavam distribuindo entre o pessoal de bordo.
Os pontos de ataque da Titan foram avisados pessoalmente por ele de que o pré-alarme continuava em vigor.
Chegou então a mensagem de Marshall:
— Nada encontrado. São ursinhos cômicos, inofensivos, com patas cor-de-rosa e focinho muito gracioso. Aparentemente, nenhuma inteligência.
Bell se meteu na conversa, através de seu mini-intercomunicador, instalado na máscara de respiração. Trombeteou entusiásticos elogios ao animalzinho que, no momento, brincava em seus ombros, dando-lhe beijos.
— O sujeitinho é como um papagaio, Perry. Já está atendendo pelo nome que lhe dei, chama-se...
Rhodan o tirou da linha. Era a mensagem do laboratório:
— Senhor, terminou o teste rápido. O animalzinho é inofensivo. Quociente intelectual, não foi possível calcular, com o perdão da palavra: burro. Fim.
Perry olhou demoradamente para Crest, que se assustou.
— Crest — falou Rhodan preocupado. — Nestes últimos três anos, nunca ouvi tantas vezes a palavra “inofensivo”, como neste planeta. Isto não é um sinal para se ficar preocupado?
Seria melhor para ele que as mensagens sobre os ursinhos tivessem caráter mais negativo. De repente, Rhodan estremeceu. Refletiu uns instantes e tomou sua resolução:
— Crest, partimos já com a Gazela, não terei sossego, enquanto não vasculhar cada canto deste mundo com o telefarol.
Fez três ligações ao mesmo tempo:
— Tenente Tifflor, imediatamente para o hangar sete.
“Gucky, eu me encontro com você na Gazela, já pronta para partir.”
“Wuriu Sengu...”
— Estou aqui, senhor — apresentou-se o vidente do corpo de mutantes.
— Para o hangar sete, apresentar-se lá.
Rhodan fez sua última ligação. Chamou Bell.
— Pronto — respondeu o gorducho pelo intercomunicador, escutando apenas com um ouvido que Perry pretendia fazer um vôo com a Gazela sobre Honur, um vôo de reconhecimento.
— Está certo — disse Bell brincalhão — olhe bem estes maravilhosos desertos. Certamente vão enjoar muito a você, como enjoaram a mim. Meu consolo é o Aníbal.
— Quem? — respondeu Perry, julgando não ter entendido bem.
— Vamos, Aníbal, vamos. Cumprimente Perry para ele saber quem é você.
— Venha para a central de comando, Bell — respondeu Perry finalmente, não conseguindo disfarçar um sorriso.
O japonês Wuriu Sengu parecia um homem comum. Nada havia nele que pudesse dar a perceber sua força de vidente. Mesmo agora que estava ao lado de um telefarol, esperando por Rhodan, ninguém podia suspeitar de suas forças.
Wuriu dispunha da fantástica faculdade de poder alterar de tal maneira a posição e a conformação do cristalino de seus olhos, que seu olhar conseguia penetrar através da estrutura molecular da matéria. O setor correspondente do cérebro ordena então as impressões recebidas de tal maneira que ele passa a perceber o impedimento ampliado por milhões de vezes. Porém o vê realmente em seu tamanho natural.
O japonês de estatura média não estremeceu de medo, quando, bem perto dele, houve cintilação no ar e dessa cintilação surgiu um animal de mais ou menos um metro — um misto de rato e castor.
Era Gucky, tenente do corpo de mutantes de Perry Rhodan, se bem que não se podia caracterizá-lo perfeitamente como mutante.
Seu pêlo liso e denso era de um marrom-avermelhado e parecia muito bem tratado. O focinho pontiagudo emprestava ao seu todo alguma coisa de cômico e ao mesmo tempo lhe dava uma impressão de calmo e prudente. Mas ao invés de uma cauda de rato, ornava-o uma cauda muito larga e forte de castor.
— Também esperando aqui, hein? — disse Gucky em língua arcônida. Poderia ter dito em intercosmo ou em inglês. Apesar de o próprio Gucky se classificar como animal, possui um elevado grau de inteligência humana além de faculdades tais que lhe conferem uma grandeza de primeira classe.
Quando as circunstâncias o exigiam, Gucky exercia suas funções com extrema seriedade, fazendo tudo com exatidão. Fora disso, porém, era muito brincalhão e ninguém estava livre de suas traquinagens telecinéticas, com exceção de Perry Rhodan, por quem nutria uma espécie de veneração e que era seu maior amigo.
Quase que ao mesmo tempo, entraram Rhodan, Crest e Julian Tifflor. O jovem tenente parecia não ter muita importância ao lado de Rhodan e Crest. Mas o chefe da Terceira Potência, Perry Rhodan, sabia que qualidades se escondiam neste jovem e que confiança ele merecia.
Neste momento, Gucky expunha ao vidente Sengu que os ursinhos de Honur não lhe agradavam.
— Catingam muito — disse horrorizado. — Não sentiu?
— Você ainda vai se dar mal com este faro supersensível, Gucky — disse o japonês amavelmente para o rato-castor. — Eu, por exemplo, não sei se os ursinhos catingam.
— Catingam sim, Wuriu, catingam muito — corrigiu-o Gucky. E esta frase repetida em voz mais alta, chegou aos ouvidos de Rhodan.
— Quem? — perguntou ele, parando na frente de Gucky.
— Todos, chefe, todos os ursos. Não consegui ficar perto deles e pulei para longe.
Perry se pôs em contato com Bell, logo era seguida. Já estava na central.
— Sim — disse ele — você quer ouvir o que o Aníbal...
— Não — Perry não queria nada disso. — Escute, o seu Aníbal cheira ou catinga?
— Que idéia errada — ouviu-se no mini-alto-falante a indignação de Bell. — Aníbal não cheira e muito menos catinga. Quem espalhou esta idéia desavergonhada? Podemos acreditar nas palavras dos honos, nem fazem sujeira nenhuma em casa. São formidáveis estes animaizinhos. Quem foi que falou em catinga, Perry?
— Gucky — respondeu Rhodan, sorrindo.
— Eu ainda torço o pescoço desse mata-mouros, um dia — esbravejou ele no alto-falante.
— Gucky — gritou Perry Rhodan, mas já era tarde. Gucky tinha se afastado num salto de teleportação. Para onde tinha ido, podia-se saber através do mini-alto-falante de Perry Rhodan. Certamente, neste instante, o corpo pesado de Bell, devia estar flutuando rente ao teto da central, recebendo do rato-castor, instruções sobre vôos rasantes, acrobacias sensacionais.
Gucky gostava de fazer esta brincadeira, principalmente com Bell. Os dois se entendiam muito bem e ficavam tristes quando um não podia pregar uma peça no outro. No entanto, Bell sempre levava a pior, pois Gucky, além de tudo, ainda era telecineta, ao passo que ele, Bell, apenas substituto de Perry Rhodan.
Subitamente surge uma sombra em frente a Perry Rhodan, dela saindo Gucky.
— Tenente Gucky, voltando de uma missão, chefe — disse o rato-castor sorrindo com o seu dente de roedor à mostra.
— Que malandro... — ecoava no alto-falante.
Era Bell que esbravejava.
— Será que tenho de voltar, meu caro gordo? — disse Gucky amavelmente.
Bell usou então uma expressão tão forte, vinda de seu íntimo, que o próprio Crest deu uma sonora gargalhada.
Sorrindo, com boa disposição, Rhodan subiu na Gazela com sua tripulação.
Com o bojo em forma de disco, de trinta metros de diâmetro e dezoito nas extremidades verticais, a Gazela era uma nave de reconhecimento, muito rápida. Alcançava quinhentos anos-luz. Era equipada com poderosas armas de raios energéticos para se defender de cruzadores que a perseguissem.
Desde algumas horas, que todos os agregados da Gazela estavam se aquecendo.
A escotilha se fechou automaticamente. Rhodan, sentado na poltrona do piloto, depois de recebida a mensagem, tinha acionado o primeiro comando. Na grossa carcaça da Titan, um vão enorme se abriu, deixando espaço para o salto da Gazela na atmosfera.
A partida foi imperceptível. Os absorvedores de pressão compensavam as forças de empuxo da nave. Sempre com maior velocidade, a nave de telerreconhecimento atravessou o lago a uma altura de cinco mil metros e ao atingir esta altura se manteve em curso.
A enorme cadeia de montanhas com seus vales estéreis ia ficando para trás. Diante deles, se estendia novamente uma outra planície e surgia uma orla de chão verde-escuro.
Julian Tifflor estava no goniômetro, atrás do chefe. Crest não tirava os olhos do painel, vendo desfilar o pobre mundo de Honur.
Do posto de orientação não havia nenhuma observação de importância. A nave de reconhecimento perdia altura. Sobre a superfície do verde-escuro, que dava a impressão de um longo tapete fofo, Perry desceu mais.
Estava agora a cem metros de altitude. A Gazela parou, caiu ainda uns cinqüenta metros e aí se manteve graças às forças antigravitacionais. E, no painel, se via com muita nitidez a floresta virgem de Hunor.
— Como será debaixo deste teto de vegetação horrível? — disse Crest quase em monólogo.
Wuriu Sengu, o vidente, sentiu-se mais ou menos interrogado. Concentrou-se. Havia apenas poucas paredes servindo de barreiras para os seus olhos naquela direção. Não contava com os poucos centímetros de espessura do aço arcônida da Gazela. O teto verde-escuro da vegetação nem entrava em consideração.
— Estou vendo animais — disse Sengu. — Um bando deles. Os corpos cheios de escamas. A cabeça pavorosa. Porém o horrível é este saca-rolha com mais de dois metros de comprimento que cresce na cabeça deles, no lugar onde outros seres têm o nariz.
— Um saca-rolha? — perguntou Rhodan, perplexo, prestando muita atenção nos dados de seu vidente.
— Sim, um negócio em forma de espiral. Santo Deus, com isso perfuram os troncos das árvores. O material deve ser tão duro como couro e... Oh! Perfuram à procura de água. Um desses animais de escamas perfurou um veio d’água no tronco. O líquido jorra aos borbotões. E como o animal bebe.
Devia ser um espetáculo fascinante o que o vidente estava presenciando, graças a suas forças mentais. Apesar disso, Rhodan fez uma pergunta:
— Qual é o tamanho de um animal destes, Sengu? Mais ou menos um metro?
— Um metro? Quase vinte, senhor.
— Vinte metros! — repetiu Rhodan perplexo. — Não pode estar certo. Estas árvores com copa em forma de umbelas não têm nem vinte metros de altura...
— Senhor — gaguejou Wuriu Sengu, um pouco nervoso, pois ia contradizer Rhodan — estas árvores têm todas mais do que cem metros de altura.
— Isto não pode estar certo — discordou Julian Tifflor — o meu altímetro marca exatamente cinqüenta vírgula oito metros acima da superfície.
— Claro, acima da camada superior destas árvores gigantescas, cinqüenta metros.
— Quero tirar a limpo isto — disse Rhodan e baixou mais ainda a Gazela.
Agora faltava apenas um metro para que a quilha inferior da nave tocasse a linha quase plana das copas das árvores.
— Contato — informou Tifflor.
A Gazela estremeceu um pouco, Rhodan olhou para Crest, preocupado.
Houve então um solavanco que percorreu a nave e com o solavanco, ouviu-se o brado de Perry pela cabina:
— Isto não é possível.
Ele tinha manobrado a Gazela como para uma aterrissagem normal. Não houve mais campo para a ação antigravitacional, que compensaria o peso da nave de reconhecimento.
De repente o brado de alarme de Wuriu Sengu:
— Atenção, senhor, a copa da árvore vai rebentar, não está agüentando.
A mão de Perry estava já um pouco acima da tecla certa, pronta para acionar a qualquer segundo o campo antigravitacional. Esperava de propósito para ver por quanto tempo uma única árvore agüentaria todo o peso da Gazela.
— Agora! — gritou Sengu.
Um leve solavanco percorreu a nave. A quase esquecida sensação de elevador se manifestou, mas já estavam em funcionamento as forças de absorção e o peso da Gazela se reduziu a zero através da anti-gravitação.
E como se aquele enorme sustentáculo, a superfície quase plana da umbela da árvore, fosse biologicamente uma corrente elétrica, tudo se transformou numa nuvem de pó cinza-escuro. Desta nuvem de pó, rente à parte inferior do campo antigravitacional, se ergue no ar um jato de água de meio metro de espessura, que se desfaz e se espalha em círculo sobre as outras árvores.
E as cores esmaecidas dessas árvores, ao receberem o jato de água, recuperam repentinamente seu colorido original. Os tons irisantes voltam, aí está o negro aveludado, um lilá terrível, para no final de tudo se reduzirem ao feio cinza-escuro inicial.
— E isto agora é o maior! — disse Crest numa voz estrangulada pela emoção, apontando com os dois dedos indicadores para as extremidades das copas vizinhas, que lenta, mas simultaneamente em toda a circunferência se projetavam para o espaço vazio, produzido pela copa da árvore dissolvida, para cobri-lo com sua ramagem.
Poucos segundos após, havia bem abaixo da Gazela uma superfície compacta, tão maciça que o altímetro de Julian Tifflor estava registrando valores falsos.
— Você reparou por que que é assim?
— Perfeitamente, senhor — disse Tiff radiante. — Cada copa de árvore, ou seja sua umbela, forma uma fechada rede neutra de corrente alternada. Só consigo penetrá-la através dos instrumentos de orientação.
Tinha dois mil quilômetros de extensão esta terrível mata virgem. Depois veio terreno mais acidentado. Eram grandes extensões de cascalho, lembrando as grandes geleiras da Terra, só que estas aqui tinham dimensões gigantescas.
Os homens na Gazela olhavam todos à procura de aldeias ou casas. Viram repentinamente um bando de enormes animais, uma espécie de grandes centopéias, movendo-se despreocupadas, até que uma percebeu a nave de reconhecimento já bem perto delas.
O que então aconteceu, era inexplicável. De um momento para o outro, o ar ficou cheio de pedras, areia e nuvens de poeira. Isto durou alguns minutos. Quando o ar clareou, os homens ficaram decepcionados, vendo apenas uma monótona paisagem de cascalho, sem vida.
— Onde foram parar os bichos? — exclamou Tifflor.
O japonês, vidente, sorriu quase imperceptivelmente.
— Mergulharam pela terra adentro, escondendo-se. Já estão a uns dez metros de profundidade.
Perry Rhodan e Crest se entreolharam. Honur era um mundo triste, seco e maluco, mas não havia perigo nenhum neste planeta.
Voavam já no fim do dia. Quando começou a escurecer, a Gazela aterrissou. Perry fez um pequeno relato para a Titan. Bell devia estar ainda na cabina, pois foi ele quem respondeu, aliás de muito bom humor...
Ao meio-dia da manhã seguinte, já tinham examinado toda Honur e só lhes restava ainda a região do pólo sul, tão seca e quente como a zona temperada.
— Honur é realmente um deserto — dizia Rhodan a contragosto, já sentindo saudades da Titan.
Esta exploração do planeta com sua incrível flora e com sua fauna desconhecida, era no fundo uma questão muito enfadonha. Tudo vivia apenas na dependência do orvalho da noite. Era a luta eterna pela água.
A Gazela continuava no seu rumo: havia apenas uma direção. Repentinamente, Rhodan estremeceu.
— Crest, que é aquilo? São edifícios? Tinha esperado por tudo, ou esperavam ainda por tudo, mas nunca por construções humanas grandiosas assim.
A nave de telerreconhecimento acelerou ao máximo. Empurrava a massa de ar, que de uma hora para outra atuava como uma muralha de cimento. A Gazela zunia e roncava por todos os cantos. Rhodan dirigia com toda a velocidade, como que ansioso para ver de perto aquelas torres distantes.
A baixa altitude, a nave de telerreconhecimento se aproximava rapidamente.
A imagem na tela redonda crescia com cristalina clareza.
— Espaçonaves!
E no mesmo instante a Gazela subiu verticalmente para o espaço.
— Será que nos localizaram? O que acha, Tiff?
O tenente se chamava Julian Tifflor, mas seus amigos o apelidavam de Tiff, e assim é que Rhodan o havia chamado. Mas Tiff não percebeu. Realmente não tinha tempo no momento. Sabia por que o chefe tocara a nave para o alto e ainda agora a mantinha em plena subida com toda força possível.
Tiff trabalhava como uma máquina, como um cérebro robotizado. Queria mesmo saber se tinham sido localizados por uma das muitas espaçonaves.
Havia realmente alguma dúvida?
A Gazela ultrapassou os limites dos mil quilômetros, e Tiff ainda não queria acreditar no que acabava de descobrir.
— Senhor, não consigo localizar nada.
— Senhor — e agora era Wuriu Sengu que se anunciava.
— Pronto — respondeu Rhodan que já estava mais tranqüilo.
— Estou vendo apenas naves abandonadas, destruídas e depredadas, ou melhor, estou vendo um cemitério de espaçonaves.
Concordava com os resultados de Tiff.
A Gazela estava a uma altitude de mil e quinhentos quilômetros.
Perry, com mão firme, deu uma volta com a nave, regulou-a no sentido da proa e desceu verticalmente. O planeta se aproximava célere. Frenagem, absorvedores de impacto, resistência do ar, ruídos infernais, tudo já mil vezes repetido, e no entanto, sempre novo.
A esfera de Honur se transformou numa planície. A planície ia se enrugando cada vez mais, à medida que desciam. E a Gazela continuava flutuando lentamente nos últimos quilômetros de encontro às naves espaciais no pólo sul de Honur.
Com um leve chiado, o aparelho de respiração fornecia a Rhodan o oxigênio necessário. Estava sozinho na escotilha da nave de reconhecimento examinando de longe, com expressão apreensiva, o incrível cemitério de espaçonaves.
Crest havia saído juntamente com ele, para fora da Gazela. O arcônida tinha pensado que podia dispensar o aparelho de respiração. Mas, depois de alguns minutos, sentiu falta de ar, e com a triste constatação de que já estava ficando velho, voltou rapidamente à nave, para botar nas costas o minúsculo aparelho de oxigênio.
Na Gazela, estavam sentados o vidente Wuriu Sengu, Tiff e o rato-castor Gucky atrás do painel de comando das armas. Todos os componentes de ataque estavam de prontidão para aquele enorme depósito de espaçonaves destruídas, prontos para, a qualquer segundo, disparar sua força destruidora.
Perplexo, contemplava Perry este quadro trágico de decadência. Este aço arcônida, que agüentava um calor de 30 mil graus e cujo brilho metálico era para toda a eternidade, estava tudo aqui, sujo, abandonado num depósito de ferro velho.
Perry contemplava os gigantes do espaço — adormecidos na ruína de sua decadência.
Desistiu de contá-los. Até a linha do horizonte se estendiam os ex-gigantes — de pé, deitados, um ao lado do outro, em cima do outro. Alguns, que estavam por baixo, em virtude do peso, estavam enterrados no chão, com apenas a terça parte de seu volume à vista. Tinham, naturalmente, tomado a cor suja do chão. Outros, porém, davam a impressão de novos, mantendo o esplendor de seu aço polido. Só sua fuselagem semi-enterrada no solo, podia servir de base para se saber há quantos anos estavam ali.
Este era o fim de todas as naves que se atreviam a voar para Honur e aí aterrissar. Honur era um planeta proibido.
— Meu Deus, mas como foi possível isto? — perguntava-se Rhodan, quando ouviu um ruído atrás de si. E viu Crest saindo da escotilha.
Crest respondeu:
— Isto é o fim.
Da escotilha da nave até o primeiro esqueleto dos ex-gigantes do espaço era mais ou menos um quilômetro. Rhodan concentrou seu pensamento em Gucky para que ele chamasse o japonês Wuriu Sengu e descesse com ele. Tiff devia ficar de prontidão no painel das armas de ataque.
Gucky apareceu logo num salto pequeno de teleportação. Estava “praticando”, como ele mesmo dizia. Porém, na frente de Rhodan, dominava um pouco seu gênio brincalhão.
O japonês tinha que vir, como todo homem normal, a pé, pela escotilha.
— Senhor — anunciou-se espontaneamente — não vi nas naves abandonadas nem um sinal de vida, nem robôs. Por toda parte, camarotes e salões destruídos.
— Não recebi nenhum impulso, chefe — disse Gucky, tentando em sua mensagem imitar o tom de voz militar do japonês, o que naturalmente foi um fracasso. — Acho que vou dar uma olhada por aí — continuou ele.
— Mas não se exponha a nenhum perigo, Gucky — disse Rhodan em tom paternal, vendo desaparecer no mesmo instante o rato-castor.
Gucky se teleportou.
— Vamos embora — disse Rhodan, pondo-se a caminho.
Pararam no salão de entrada de um gigante do espaço. O ruído compassado dos passos produzia um eco que parecia dizer: esperem um pouco, vocês em breve estarão aqui. Com os olhos arregalados, percorreram vários trechos e o quadro era sempre o mesmo: cem por cento depredado.
Tudo que não estava organicamente ligado com a estrutura de aço arconídico do revestimento e das paredes internas, mãos estranhas desmontaram e carregaram. Havia vestígios dos trabalhos de depredação, porém, nenhum vestígio da identidade dos depredadores.
Crest abanou a cabeça e olhou pensativo para Rhodan. Seu rosto tinha traços rígidos. Alguma coisa trabalhava dentro dele. Queria saber de que direção vinha o perigo. Procurava desesperadamente, mas sem resultado.
A camada de pó, onde pisavam, tinha mais de dez centímetros de espessura. Era uma poeira seca, tão seca como o próprio planeta. Estendia-se na frente deles, sem nenhuma pegada.
— Puxa! Não se vê nem o sinal dos pés dos honos — continuou Rhodan com seus pensamentos. — E, no entanto, a destruição desta espaçonave deve estar relacionada com eles, mas você saberá de que maneira, Crest?
O arcônida não chegou a responder a pergunta, mas definiu muito bem a situação desesperadora:
— Devemos voltar imediatamente para a Titan, Rhodan, enquanto ainda podemos fazer isso, se é que ainda o podemos, e partir o mais rápido possível para aguardarmos em órbita o encontro com o major Freyt. É melhor corrermos o risco de sermos descobertos por outra espaçonave, do que vermos a Titan jogada aqui neste monte de ferro velho.
— ...partir, enquanto ainda podemos partir? — repetiu Rhodan a frase do arcônida. — Você tem medo de que já seja tarde demais, Crest, você, o arcônida?
— Por favor, Rhodan, não elogie agora a nossa tecnologia. Não se esqueça onde nos encontramos no momento: estamos num cemitério. Quando vínhamos para cá, fiquei observando e classificando muitos tipos de naves. Um terço destas eram belonaves: cruzadores e destróieres. Aterrissaram do mesmo modo que as comerciais. Esta descoberta me deixa desesperado. Se não tivesse encontrado naves também dos comerciantes da Galáxia poderia dizer: os saltadores estão por trás desta terrível destruição.
Neste momento, Perry Rhodan e Crest se sentiram apanhados ao mesmo tempo pelas mãos de Wuriu Sengu. O vidente ficou olhando por uns instantes. Em virtude de suas forças mentais, penetrou nos conveses de uma espaçonave e seus olhos varreram os camarotes da frente.
— Senhor — sussurrou com esforço o vidente japonês — estou vendo esqueletos, esqueletos em cada camarote. É uma coisa horrível. Já vi mais de cem. E continuo vendo mais e...
— Sengu, veja também através das próximas naves — ordenou Rhodan, que já tinha compreendido de que maneira estas naves foram destruídas.
Perry pensou: “De dentro para fora.” E chegou então a confirmação do vidente.
— Os aposentos da tripulação estão vazios nas três próximas naves, apenas cheios de poeira. Mais de um metro de espessura. Mas na quarta nave, vejo de novo os esqueletos. Santo Deus, é uma belonave ou um grande transporte espacial? Devem estar ali mais de mil mortos.
— Obrigado, Sengu — disse Rhodan com voz trêmula.
No mesmo momento, houve um turbilhão de poeira e ouviu-se a voz sibilante de Gucky:
— Porcaria de poeira! — num salto exato de teleportação, ele veio parar bem na frente de Rhodan, Crest e Sengu.
Endireitou-se, sentou-se sobre as patas traseiras, apoiando-se na volumosa cauda de castor e procurando fazer uma saudação respeitosa:
— Chefe — desta vez falava em inglês — tantos cadáveres como aqui, nunca vi na minha vida. Onde pensava não haver nada, encontrei um grande número deles, debaixo da poeira. Acho que os arcônidas estavam todos nus ao morrerem, pois não há nenhum vestígio de roupa. Descobri ainda, por acaso, o espaçoporto.
— Descobriu o quê? — perguntou Rhodan visivelmente excitado. — Um espaçoporto de verdade?
— Sim, um espaçoporto, embora não tão moderno, chefe. Mas um belo campo, plano como um espelho. O subsolo deve, um dia, ter sido tratado muito bem, pois neste lugar é mais duro do que cimento.
— Tiff deve vir para cá — ordenou Rhodan.
Antes de deixar a Gazela, tinha proibido qualquer ordem via rádio e antes de iniciar seu vôo de reconhecimento tinha dito o mesmo a Bell.
— Certo, chefe — sorriu Gucky com seu único dente de roedor e desapareceu imediatamente.
Os três ainda não haviam deixado o possante aparelho voador, quando Gucky já estava de volta de seu pulo para a Gazela.
— Ele vem vindo aí — disse Gucky, procurando levantar sua larga cauda de castor, para não fazer poeira. Mas, embora soubesse fazer tantas coisas maravilhosas, não conseguiu erguer suficientemente a cauda e, com um palavrão que havia aprendido com Bell, teleportou-se do bojo do enorme aparelho depredado.
Logo após isto, aproximava-se a Gazela, abriu-se a escotilha e a rampa deslizou. Perry Rhodan, Crest e Wuriu Sengu tiveram que entrar pela escotilha. Mas Gucky saltou diretamente.
Lá estava ele ao lado de Rhodan, que tinha tomado a direção da Gazela, sendo que o rato-castor lhe indicava a posição do espaçoporto descoberto.
Sem um único solavanco, Rhodan desceu calmamente.
— Tirar amostras do solo, Tiff — ordenou ele.
— Isto eu sei fazer melhor e mais depressa — propôs Gucky e desapareceu, levando consigo uma sonda. Tirou um pedaço do chão, que parecia de cimento e voltou para bordo.
Enquanto isto, Rhodan e o arcônida estavam examinando a superfície livre. Este espaçoporto de emergência era a razão por que os restos das espaçonaves não estavam espalhados por todo o planeta, mas formavam aqui um terrífico cemitério. Este lugar era o único ponto em que as espaçonaves podiam firmar sem perigo seus suportes telescópicos e aqui era o lugar em que as naves que vinham para cá eram depredadas em suas peças, máquinas e dispositivos.
— Tifflor, chame a Titan.
Como se esperasse há tempo por esta ordem, Tifflor já estava falando com a estação central de rádio da esfera gigantesca, quando Rhodan ainda principiava a dar-lhe a ordem.
— Aqui é a Gazela. Chefe quer falar com comandante.
Logo a seguir, anunciou-se Reginald Bell, comandante da Titan durante a ausência de Rhodan.
— Perry, que é que há? — perguntou Bell, rindo.
— A bordo tudo cem por cento, Bell?
— O melhor possível, aqui entre nós reina um sadio otimismo. A única coisa é que não posso mais ver estes pobres-diabos dos purificados, assim acabo perdendo minha boa disposição. Alguma novidade com vocês?
— Não, nada de novo, Bell. Obrigado.
Crest olhou fixo para Perry Rhodan, Julian Tifflor e Wuriu Sengu fizeram o mesmo. Só Gucky, o rato-castor é que não. Gucky leu o pensamento de Rhodan.
— Chefe, devo dar um pulo lá e ver o que se passa, realmente? — disse ele baixinho, já se preparando para um salto de teleportação até a Titan.
Rhodan reparou na perplexidade de seus companheiros. Seus olhos se detiveram no olhar inteligente do rato-castor, que o observava com muita apreensão e grande fidelidade.
— Meu caro Gucky, vamos ver isto nós dois juntos.
A nave de telerreconhecimento ergueu-se suavemente. E o ar, afastado para o lado, zunia estridente. E outra vez partia a Gazela a toda velocidade.
Dirigiu-se para seu ponto de partida, onde, bem próximo de um lago, repousava a Titan.
Perry Rhodan tinha a impressão de que a Gazela estava se arrastando. Os segundos lhe pareciam semanas.
Sentia agora que alguma coisa de desagradável, quase que fúnebre, se estendia por toda a Titan. Ouvia-se o oficial do rádio que gargalhava, as palavras de Bell estavam entremeadas de risadas e o que significaria o conceito “boa disposição... otimismo”?
Concentrado em si mesmo, Crest olhava para frente, sem ver nada. Atrás de Rhodan, Tifflor e Sengu trocavam olhares interrogadores. E Gucky não tinha mais o sorriso de sempre e o jeito de brincalhão.
— Que é que há, Perry? — disse Bell, sorrindo no microfone e cocando o pêlo de Aníbal, seu ursinho.
— Está tudo bem a bordo, Bell? — perguntou Rhodan ainda da Gazela.
— Otimamente bem. Reina muita boa disposição entre nós, só que eu não consigo mais ver estes pobres-diabos dos purificados, assim acabo perdendo meu bom humor. E com vocês, alguma novidade?
— Não, nada de novo, Bell, obrigado.
Rindo desbragadamente, de tal modo que seu rosto parecia ainda mais largo do que era, Bell olhava para John Marshall, o telepata.
— Ele vai ficar admirado, quando entrar aqui, John — disse Bell com muita alegria, puxando para o lado a patinha cor-de-rosa de Aníbal, porque o pequeno animal sempre queria brincar no seu nariz. — Aníbal, meu queridinho, deixa meu nariz em paz — dizia ele para o mini-urso.
— Como se chama teu amiguinho? — perguntou Bell amavelmente ao telepata, que escondia seu ursinho sob o paletó.
— “Tannhàuser”, Bell.
— É um nome de marca de automóvel?
— Bell, “Tannhàuser” é uma composição musical de Wagner — explicou Marshall ao substituto de Rhodan, sorrindo com muita afabilidade.
Wagner e Tannhàuser combinavam muito bem, mas a risada de Marshall estava completamente fora de sintonia. Nada tinha de natural.
Bell não o notou. Estava de pernas para o alto, enquanto Aníbal corria em volta.
— É isto mesmo — dizia Bell, gargalhando sempre mais alto. — Como é que me esqueci de que seu filho se chama Tannhàuser. Era seu amigo, este tal Tannhàuser, John? Você vai me contar alguma coisa dele. Vem, deixa o trabalho correr. A Titan está muito bem e o que resta para fazer, Rhodan pode dar conta sozinho. Temos confiança nele. Você não tem a mesma opinião?
— E como? Bell, nós estamos pegando o embalo agora. Eu... eu gostaria de abraçar o mundo inteiro.
Bell concordou, acenando muito garganta:
— Pode fazê-lo, mas deixa um pouco para mim. Já lhe contei alguma coisa do meu hoby, John? É gozado e você vai se divertir muito.
— Bell — sussurrou alguém suavemente da entrada da central.
Thora deu uma piscadela alegre para o gorducho.
— Thora, é você, meu anjo, que posso fazer para agradá-la? — exclamou Bell, pegando Aníbal pela coleira, o colocou no braço e tentou ficar de pé.
Thora sorriu aquele seu lindo sorriso, mas ficou parada na entrada.
— Meu gorduchinho, que tal uma festinha a bordo com um pouquinho de dança? Não acha bom?
Aníbal, nos ombros de seu amo, esticou a língua para Thora. Aí, o amiguinho de Marshall, o Tannhàuser, saiu do paletó do telepata e começou a guinchar:
— Um, dois, três, quatro, este é teu retrato! Um, dois, três...
Entrementes o ursinho de Thora também deu sinal de vida. Sentado no ombro de sua dona, desfazia o seu penteado.
Sorridente veio Bell ao encontro de Thora.
— A gente quase não entende mais a própria palavra, mas isto não tem importância para nossa brincadeira. Você falou de festa a bordo, por este motivo você mereceu um beijo.
Exatamente neste momento, o ursinho de Thora começou a gritar:
— Me dá um beijinho, me dá um beijinho.
Thora ria estrondosamente e apontando para sua Ladolfina, dizia:
— Está ouvindo, Bell, quem vai receber meus beijinhos? Somente Ladolfina, ela não é maravilhosa? Mas o seu Aníbal é muito bonito. E como se chama o seu amiguinho, John?
— “Tannhàuser”, Thora. Ele não tem nenhuma semelhança com isso?
— Lamento muito — retrucou Bell — mas eu acho que um automóvel é coisa completamente diferente. O modelo não foi um Ford?
Thora e Marshall se entreolharam e compreenderam que seria doloroso contradizer Bell. Mas para disfarçar a péssima impressão que causara, Bell se levantou e gesticulando muito falou:
— Rapaziada, estou perguntando novamente sobre a confraternização. Quem é que concorda com uma bruta festa de bordo? Vamos lá, amigos!
Pegou o microfone da central:
— Rapazes — disse ele alegre, usando a língua inglesa — perguntem por aí quem quer participar de uma big festa a bordo. Chamem todos os rapazes.
— Festa a bordo, gorducho? Formidável. Num minuto, estaremos todos aí. Bell, por que esperou tanto para isto?
— Se pudesse teria feito já antes. Mas não percam tempo, a festa tem que parar antes que Rhodan chegue aqui, pois ele não gostará de saber disso.
— Um o quê, senhor? — perguntou Julian Tifflor nervoso e no entanto não havia dúvida de que fora Reginald Bell quem convidara para a festa a bordo.
— Chefe — suplicou Gucky, tocando-lhe de leve o braço — posso dar um pulinho lá? Posso?
— Não — disse Perry mentalmente, para que Gucky lesse.
Um pouco magoado, Gucky largou o braço de Perry e foi sentar num canto.
A Gazela estava a meia hora da Titan. Levaria ainda trinta minutos para aterrissar no hangar sete da grande nave.
— Tiff — substitua-me um momento — passou então Rhodan a direção da Gazela às mãos do seu mais jovem, mas também do seu mais competente piloto. Sem dizer uma palavra, Tiff passou para a poltrona de comando. Calados, Rhodan e Crest deixaram a diminuta central. Quando a porta se fechou atrás deles, apenas se entreolharam num gesto de entendimento.
Neste tipo de nave, não havia realmente nenhum lugar agradável. Tudo foi construído com o objetivo da maior funcionalidade. Rhodan e Crest acabaram sentando nas banquetas destinadas às armas.
— Por que razão o senhor não quer mandar Gucky dar uma olhada na Titan? — perguntou Crest muito abatido.
— Você acha que também ele deve pegar a infecção? Devo também perdê-lo? — perguntou Perry com certa rudeza.
— Quer dizer que o senhor atribui o estado eufórico reinante na Titan a uma infecção?
— Você está chamando este fenômeno de euforia, Crest. Eu falei infecção. Não sabemos se uma dessas coisas ou se ambas estão certas. De qualquer maneira, Bell perdeu por completo a noção do seu estado e flutua numa sensação de superotimismo.
— Exatamente como o senhor acaba de se expressar é que os médicos descrevem também a euforia patológica. Posso acrescentar alguma coisa a mais a tudo isto, Perry?
— Há ainda algo a discutir, Crest, quando se pensa nos esqueletos, milhares de esqueletos, nas espaçonaves depredadas?
A Tróia de Perry Rhodan estava aí. O planeta Honur lhe dera o “presente grego” e com ele invadiram sua cidadela, desarmando-o completamente.
O cemitério de naves ao sul de Honur lhe deixara antever o fim de sua tripulação. Em breve estaria também a Titan entre as milhares de espaçonaves depredadas e dentro da nave gigante, setecentos esqueletos.
No momento, a tripulação se divertia e sublimava a festa com danças. A dança dos mortos. Nesta única expressão, Perry dizia tudo.
Sabia de tudo. Sabia que estava nas ruínas de Tróia e o sonho de conquistar o Universo fora apenas um... sonho. A Titan estava perdida.
— Dança dos mortos — repetiu Crest, e seus olhos estavam úmidos.
— Perry, permita-me dar um pulo lá — suplicou novamente Gucky. — Para o senhor é perigoso, muito perigoso.
Perry Rhodan aterrissou a trezentos metros da gigantesca Titan. A poderosa estação de rádio da central não reagiu mais aos seus chamados. Depois do convite à dança o emissor da nave estava mudo.
E na consciência de sua impotência, de seu estado de desarmado e sem recursos, estava Perry à beira do lago, olhando para o alto, para o local de sua nave, onde, atrás das poderosas chapas de aço arcônida, se encontrava a central, seu posto de comando. Inatingivelmente alta, inatingivelmente...
— Dança dos mortos... — e a voz de Perry tremia.
Gucky, o rato-castor, sentado ao lado dele. O telepata, o telecineta, o teleportador, e só Deus sabe quantos dons estavam escondidos nele. Gucky estava pedindo a Rhodan que lhe permitisse tentar entrar na Titan.
Rhodan já tinha dado o seu não.
Pela terceira vez o rato-castor suplicava.
— Não, não, e cem vezes não, Gucky. Que é que você quer fazer na espaçonave? Quer pegar a infecção? Eu tenho que entrar na nave, tenho que saber por que ficaram doentes... Você quer vê-los todos mortos, Gucky?
— O gorducho também tem que morrer? — Gucky o perguntava como uma criança tímida e dava mostras de como sua amizade era sincera e seus sentimentos profundos para com Reginald Bell.
— Bell também — Rhodan acariciou a cabeça de Gucky, por uns instantes, olhando para seus olhos fiéis e inteligentes. Depois disse: — Fica um pouco sentado aqui, Gucky. Preste atenção nos meus impulsos. Faça tudo certo e rápido, Gucky. Se você me deixar na mão hoje, está tudo perdido, não haverá mais esperança.
O rato-castor nunca ouvira Rhodan falar assim. Concentrou-se em seus pensamentos e só encontrou desânimo.
— Está, realmente, tudo tão ruim, assim?
Gucky, do planeta vagabundo era, de fato, um milagre. Embora ele mesmo se classificasse como um animal, esta classificação estava errada, porque quanto ao caráter, era muito mais do que um homem. Ele, Gucky, era bom, sempre bom, e por isso estava acima do homem, que permanentemente tem que lutar contra o mal interior.
— Esteja atento, Gucky.
Falando assim, Perry se dirigiu à Titan.
— E como vou ficar atento! — exclamou quando Perry, o chefe da Terceira Potência, lhe virou as costas.
E começou sua grande concentração.
Já de longe, Perry ouvia o gargalhar e o cantarolar de sua tripulação. Uma alegria exagerada, totalmente fora do natural, era a impressão que se tinha. Em berrante contraste com tudo isto, lá estavam, entre os suportes do gigante do espaço, imóveis e apáticos, os purificados, indiferentes à algazarra esfuziante da tripulação. Abobalhados, olhavam para a areia, como em pose extática, comprimindo contra o peito os ursinhos.
Enquanto a Gazela descia, Perry já tinha observado muito os honos. Suas presenças lhe causavam decepção, o mesmo acontecendo com o arcônida Crest. Cada um dos dois acreditava em seu íntimo que eram estes purificados os responsáveis pela epidemia que irrompera entre a tripulação da Titan.
Perry caminhava vagarosamente na direção de um hono, ouvindo, da única rampa que estava armada, as horríveis gargalhadas da tripulação.
O hono segurava bem firme um ursinho, dava a impressão de estar dormindo, mas levantou a cabeça com a aproximação de Perry e falou num arcônida muito quebrado, enquanto oferecia o ursinho a ele:
— Aceite meu pequeno presente, digníssimo senhor. Faça-me feliz, aceitando este presente.
Apesar de seu desespero, Rhodan se lembrou do severo julgamento de Gucky a respeito destes animaizinhos. Para o olfato sensível do rato-castor, estes ursinhos catingavam bastante. De repente, como que influenciado, Rhodan, sem o querer, deu um passo para trás impulsivamente. Não sabia que força tinham seus olhos no momento. Percebeu apenas que o velho nono puxou o ursinho para si e desviando os olhos de Rhodan, continuou fitando o horizonte. Os olhos grandes do purificado, encavados numa testa ampla, tinham algo de triste. A boca estreita parecia murmurar alguma prece. Perry julgou ter ouvido uma vez a palavra “deuses”.
Novamente um tremor perpassou seu corpo ao ouvir os gritos frenéticos de sua tripulação. Desviou-se do hono e se dirigiu para a rampa, tentando sempre fugir dos purificados que estavam por toda parte. A suspeita de que eles tivessem levado a epidemia para a nave, diminuía sempre mais.
Ele não estava doente. Crest também não. Aliás, nenhum dos homens que tomaram parte na viagem de reconhecimento, sobre o Planeta Honur.
— Os ursinhos... — gritou ele.
Não sabia que, de boca aberta, como que petrificado, estava parado entre dois purificados e que a poderosa Titan girava sempre mais veloz em sua frente. Sentia um terrível zumbido nos ouvidos.
Ele — Perry Rhodan, o sonhador da conquista do Universo — o “transformador de tudo”, o homem com incrível poder de reação instantânea, ele, que tinha unido a Terra num único Estado, sem usar a força, estava agora sendo destruído por aquela infecção a bordo.
— Digníssimo senhor, faça-me feliz, aceitando meu animalzinho de presente — era uma jovem purificada, um tanto bonita, de pé em sua frente, suplicando. Mantinha os olhos fixos em Rhodan, esticando-lhe, com mãos trêmulas, o animal.
Quando Perry percebeu em sua mão o raio paralisante, sentiu o choque mais horrível de sua vida:
— Vai embora — foi seu comando enérgico para a moça.
Seu olhar desesperado se chocou com o dela.
São os ursinhos, pensava ininterruptamente, enquanto se encaminhava para a rampa. Foi com os animais que a doença entrou na Titan. Com estes animaizinhos é que todos os aparelhos que hoje formam o terrível cemitério foram atacados “por dentro”. E depois, quem levou todos eles lá para a região do pólo sul? Quem os depredou? Quem? Estas figuras esquálidas, famintas, abobalhadas? Estes arcônidas degenerados?
As coisas foram ficando mais claras.
Eles se chamavam de... De repente compreendeu o que esta expressão queria dizer: OS PURIFICADOS estavam imunes ao veneno destes animaizinhos que pareciam tão inofensivos. Eles, os purificados, eram os descendentes dos colonizadores que tinham sobrevivido à peste da euforia. Ainda estava bem claro na fisionomia dos seus descendentes magros, esquálidos e quase débeis mentais, o preço que aqueles arcônidas tinham pago para superar, há mais de 14 mil anos, esta doença.
— Para trás — gritou ele, erguendo a arma contra seus homens.
À frente de todos, correu Kitai Ishibashi, seu melhor sugestor, berrando freneticamente e segurando com muito carinho um ursinho nos braços.
— Perry — disse ele gargalhando e com um brilho nos olhos oblíquos — que posso fazer por você? Dou-lhe tudo que quiser, menos o meu Shiguti. Por que não tem um ursinho? Espera que vou buscar um para você, espera. Por que vai embora, Perry? Fique conosco.
Mas Rhodan tinha dado meia-volta. Pulou pela rampa abaixo, passou ligeiro pelos suportes telescópicos, desviou-se dos purificados: corria na direção do rato-castor. Somente já bem perto de Gucky é que diminuiu os passos.
Tinha ainda na mão a pistola dos raios paralisantes. Gucky o fitava e seu olhar vivo e brincalhão possuía apenas uma expressão de desânimo.
Os três juntos, tentaram mais uma vez penetrar na Titan. Foram recebidos, de novo, entusiasticamente pelos homens que dançavam e gritavam agitados. Todos ostentavam nos braços seus ursinhos da morte e exigiram que os recém-chegados os acariciassem. E então... fracassaram os psicoirradiadores.
— Fogo! — foi o comando de Rhodan ao arcônida e a Julian Tifflor. Rhodan mantinha a arma na mão, ameaçando Ras Tschubai com o psicoirradiador.
O negro, o grande teleportador, não reagiu. Com os “adversários” de Crest e Tifflor, os raios paralisantes também não surtiram efeito.
— Para trás — gritava ainda Rhodan, no último instante, fugindo daquela multidão de alucinados e de seus animais.
Estavam agora sentados na central da nave de telerreconhecimento, deprimidos.
Silêncio total. Wuriu Sengu não levantava a cabeça. Com uma voz que parecia o tilintar de vidros, Rhodan reagiu contra a proposta, aliás, já era a terceira: seu vidente queria tentar abrir caminho, usando desta vez choques energéticos.
— Não posso matar os meus homens e jamais atirarei neles, enquanto restar um fio de esperança de que há ainda outra solução.
Crest estava prostrado num grande silêncio, parecia fisicamente muito esgotado. Perry o percebeu, redobrando com isso seu desespero.
O seu cavalo de Tróia, o presente grego que lhe havia trazido a derrota, eram os animaizinhos interessantes, criados pelos purificados como animais domésticos.
O planeta Honur foi para ele uma verdadeira Tróia.
De repente, sua fisionomia ficou tensa. Começou a pensar nos moofs, esses animais que respiravam metano, utilizados por desconhecidos para destruírem o Império dos Arcônidas. Ele, com os seus, haviam sentido a força diabólica dessas medusas em Zalit e somente as destruíram depois de muita luta. Os tais desconhecidos, que eram os responsáveis camuflados pela importação dos moofs, seriam os mesmos estranhos depredadores das espaçonaves no cemitério do pólo sul de Honur?
— Quando que eles chegarão, Crest? — com esta pergunta, se dirigiu ao arcônida.
Crest levou um susto, despertando do seu torpor de desânimo.
— Quem? Auxílio de Árcon?
— Auxílio de Árcon... — ponderou Rhodan, olhando para Crest.
— Você já se esqueceu da lei dos arcônidas? Já se esqueceu de que é proibido, sob pena de morte e de destruição da nave, prestar socorro no espaço a uma espaçonave que tenha aterrissado num planeta proibido e esteja sob estado de perigo? Esqueceu, realmente, esta lei?
Lentamente, quase sussurrando, o grande cientista fez uma contra-pergunta:
— Perry, vale mesmo a pena ter certeza de alguma coisa e não se esquecer de nada?
— Acho que desta vez, Crest, você tem razão.
Era a derrocada total. Porém, no coração do arcônida irrompe o último lampejo de orgulho. Ele, descendente de uma raça nobre, porém profundamente decadente no momento, sentia-se agora empolgado por uma sede de iniciativa, característica dos homens da Terra.
— Perry, você se esqueceu da Ganymed? Ainda existe a Stardust-III, existem seus cruzadores, Terra, Solar System e Centauro.
Foram toques de clarim, mas não houve eco.
— Existe ainda um modelo, que muito se assemelha à Titan, Crest, e está em Árcon e lá permanecerá por toda a eternidade, pois o seu império não produz mais o tipo de homem capaz de dirigir uma nave esférica deste gabarito. E eu, agora, serei um proscrito no Império de Árcon, serei perseguido, e esta falta de lógica, eu atribuo aos misteriosos desconhecidos, que desenvolvem aqui seu jogo criminoso e não acredito que eles deixem de informar ao cérebro robotizado a respeito de quem encontrou em Honur a sua Tróia. Então, Crest, eu lhe suplico, por favor...
— Rhodan, você está se automartirizando — respondeu o arcônida. — Até hoje, você sempre, e em qualquer situação desesperada, encontrou uma saída. Por que exatamente aqui não haverá saída alguma?
— Nunca até hoje me defrontei com a terrível realidade de perder os homens mais leais, Crest. A perda da Titan não representa nada. Nada mesmo. Mas você não pode calcular o que seja perder um Reginald Bell, saber que dentro de horas, no máximo, dias, estará morto um grande amigo. Ele foi o primeiro homem, que há treze anos atrás, voou comigo da Terra para a Lua. E com Bell, morrem setecentos outros. Cada um deles, sozinho, vale mais do que a Titan toda. E eu, Crest, eu carrego na consciência a morte de setecentos homens, meus amigos. Isso me aniquila, me tira toda vontade de viver. Crest, não posso, nem quero mais viver.
— Perry Rhodan, meu amigo, não pode ser verdade — balbuciava o arcônida trêmulo e desesperado, estendendo as mãos na direção de Perry.
— Vão morrer todos, Crest. Você não viu os esqueletos nas espaçonaves depredadas lá no depósito de ferro velho?
Com todas as fibras do seu ser, Crest lutava contra os argumentos de excessivo desânimo de Rhodan. Procurou então mudar de assunto.
— Perry, há pouco você fez uma pergunta: “Quem deverá chegar?” Que quer dizer com isto?
— “Os papa-defuntos”, os depredadores, Crest. Os homens que penetrarão na Titan, quando não houver mais sinal de vida nela. Os criminosos que levarão a nave ao cemitério, para destruí-la. Estou esperando por isto, apenas por isto.
— E depois?
— Tenho que responder? Crest, você me conhece tão mal, assim? Ficarei pensando em Bell e nos setecentos mortos. Isto vai me dar forças, para cair em cima dos “papa-defuntos”, sem dó nem piedade, até que eu mesmo desapareça numa nuvem de gás.
— Junto comigo — disse Crest, fazendo um juramento.
A noite caiu sobre Honur. Estava frio, mas não demasiadamente. Os purificados continuavam de cócoras, abobalhados, entre os suportes da grande nave. Vez por outra, o vento leve trazia para cá a gritaria e o cantar desordenado dos homens da tripulação que se comportavam como bêbados.
Na Gazela, o silêncio era total. As horas noturnas passavam com lentidão. Depois, veio a manhã. O sol de Thatrel apontou no horizonte. O tempo esquentou. Entre os suportes telescópicos da supernave, continuavam de cócoras os purificados.
Na Titan, dançavam os possessos de euforia. Abraçavam-se com a morte e não sabiam o que estavam fazendo.
Setecentos homens viviam numa explosão indescritível de alegria, dançando e cantando, sem nenhum alimento nem bebida, pelo simples fato de não sentirem nem fome, nem sede. A ânsia de chamar a atenção, de exibir aos outros o mais belo e atraente em si mesmo, de lhes agradar de todos os modos, tirando do caminho tudo que lhes fosse incômodo, tinha chegado ao paroxismo do irracional, do mortalmente irracional.
Alguns perambulavam exaustos pelo convés, subiam e desciam, sem nenhum sentido pelos elevadores antigravitacionais e... já não davam tanta importância aos ursinhos nem gritavam mais. Estavam mudos, porque suas cordas vocais estavam roucas. O mundo era belo demais, todos compartilhavam da imensa alegria e cada um tinha 699 amigos e a ânsia de fazê-los felizes.
Alguns ursinhos dormiam e acordavam em seus braços. Beijavam com carinho seus novos amos atrás da orelha, na nuca, nas mãos. Tagarelavam como papagaios e tinham olhos redondos, maravilhosos. E cada vez que estes bichinhos viravam seus lindos olhinhos de um canto para o outro, seus donos começavam a gritar de alegria.
— Basta, Sengu, basta. Pare com isso — disse Rhodan, de repente, gritando para seu vidente, e tapando os ouvidos com as mãos.
Wuriu Sengu deu graças a Deus por este grito. Limpou o suor da testa e respirou aliviado. Pela primeira vez em sua vida, que ele no desempenho de suas forças mentais, sentiu necessidade de maldizer o destino.
Tinha visto o inferno, o inferno estava na Titan. Ali dentro, só vidas perdidas. Não havia ninguém sadio, só doentes que gargalhavam para a morte. Riam porque não estavam mais em condições de ver a realidade.
Tinha visto também Bell, mas não teve coragem de descrevê-lo para Rhodan, tão horripilante era o aspecto de Reginald Bell.
— Sengu, vá dormir um pouco.
O vidente japonês julgava ter recebido um tapa na cara. Assim foi que ele interpretou a ordem de Rhodan, para descansar.
— Sengu, meu pensamento não foi este — disse-lhe Rhodan — mas você certamente viu muito mais do que nos contou e eu acho que lhe devemos agradecer por isto. E, agora, se quiser, descanse.
Nestas palavras voltou um pouco mais do legítimo Rhodan, sua arte maravilhosa de conduzir os homens e seu modo de agradecer, agradecer exatamente quando a pessoa não esperava.
E na hora de sua total incapacidade, soube ele ganhar um novo amigo, só porque no seu íntimo já tão castigado ainda achou motivo para agradecer a Wuriu Sengu.
Com um leve brilho nos olhos, Crest observava o homem da Terra. Um pequeno sopro de esperança começou a surgir nele. Não podia acreditar que Perry Rhodan iria desesperar. Este ser, daquele mundo chamado Terra, era muito mais forte do que ele mesmo supunha.
O tenente Julian Tifflor estava sentado atrás do goniômetro, chamando Perry.
Este levantou a cabeça como quem desperta de um longo sonho.
— Sim, Tiff?
— Senhor, estou vendo uma nave...
— Estou esperando por isto, Tiff. Uma sombra de decepção perpassou pelo rosto jovem de Julian Tifflor. No seu íntimo, havia imaginado que esta notícia haveria de levantar o ânimo de seu chefe, mas ao invés disso, Rhodan deixou lentamente sua poltrona e se dirigiu a ele. Quase que enfastiado, começou a olhar para o aparelho. Julian Tifflor inclinou-se um pouco para o lado, a fim de que Rhodan pudesse observar melhor.
— Mantenha a posição, Tiff. Não dependemos de minutos. Em menos de três horas a nave não estará aqui. Obrigado.
Voltou ao posto de comando, já ia se sentando, quando se lembrou de alguma coisa. Enquanto acariciava com a mão direita o pêlo do rato-castor, perguntou:
— Gucky, você tocou ou não tocou nestes ursinhos?
— Eles até brincaram com minha cauda — respondeu indignado, e nos seus olhos inteligentes havia revolta.
— E por que você não ficou doente, tenente?
O tenente Guck do Corpo de Mutantes de Perry Rhodan, que até hoje nunca fora tratado por seu chefe com o nome correspondente ao cargo que ocupava, procurou manter uma posição de sentido. E com uma voz que imitava uma mensagem militar, respondeu:
— Não fiquei doente, porque sou um animal, senhor. E também porque farejei logo como aqueles animais catingavam.
Foi o primeiro sorriso aberto no rosto de Rhodan. E pensativo, ele ficou olhando para Gucky. Depois, perguntou:
— Por quanto tempo você ficou em contato com eles?
Crest, Tiff e Sengu ouviam com muita atenção. A voz de Perry ia voltando ao seu tom claro e firme.
— Dez minutos, talvez um quarto de hora, até que não agüentei mais o horrível mau cheiro.
Novamente Gucky mencionou a catinga dos animaizinhos.
— Como era o cheiro deles?
— Não era cheiro, chefe — guinchou Gucky meio zangado — era catinga mesmo.
Rhodan ria agora abertamente.
— Um homem educado não usa uma expressão desta, Gucky.
— Eu não sou homem, sou um animal apenas. Mas se me permitir entrar na Titan, nunca mais usarei a palavra catingar.
Parecia até uma chantagem. E pelo fato de partir de um animal de mais ou menos um metro, que no entanto possuía caráter de homem, a situação se tornava mais esquisita ainda.
Perry se deu por vencido.
— Terá minha permissão, mas somente quando lhe disser que pode entrar. Agora, tente nos descrever, como percebeu o mau odor dos ursinhos, Gucky.
O rato-castor era um excelente analisador. Seus dados detalhados compunham sempre uma imagem completa e coerente, por mais que se espalhasse sobre o assunto.
— Gás?! — disse Crest ansioso, dando o seu palpite.
Rhodan ainda tinha suas dúvidas. Deixou Gucky contar muitos pormenores. Depois interveio:
— Podia ser também uma matéria aromática ou mesmo secreções compostas de um pó muito fino.
E depois, fugindo ao assunto, dirigiu a palavra a Julian Tifflor:
— Preste muita atenção à espaçonave que está voando, e me informe quando estiver atrás do planeta.
Os olhos de Crest resplandeciam.
Este era o verdadeiro, o legítimo Rhodan que nunca se esquecia das coisas importantes. Esta ordem para avisá-lo quando o planeta de aproximadamente 6 mil quilômetros de diâmetro estivesse entre eles e a nave estranha, era, sem dúvida alguma, um sinal de que Rhodan não se dava ainda por vencido.
— Crest, você conhece materiais aromáticos ou em forma de pó que sejam tóxicos ou provoquem infecção?
— Muitos. A maioria deles destrói as células dos gânglios e acho que não preciso explicar o que significa destruição do sistema nervoso central. A medicina dos arcônidas teve que capitular diante dos mistérios do cérebro.
Neste exato momento, os traços fisionômicos de Perry se anuviaram.
Naturalmente estaria pensando no destino de Bell e da tripulação.
— Crest, a gente deveria voar para Árcon e...
Esta esperança seria fulminada pelos argumentos objetivos de Crest.
— Perry, você confunde condições da Terra com condições de Árcon.
— O que quer dizer com isso?
— Dentro do “montão de estrelas” M-13 não há nem mundos nem venenos desconhecidos, que ataquem o sistema nervoso central. Portanto, quando você chegar a um médico e lhe descrever os sintomas de que padece a tripulação da Titan, então estará lavrando sua própria sentença de morte. Será realmente executado em pouco tempo. Pois você mostrará abertamente que veio de um planeta proibido.
— Não conhece nenhum médico de confiança, que você possa consultar às escondidas, Crest?
Esta pergunta era uma crítica indireta à lentidão do arcônida.
Crest sorriu com dificuldade.
— Perry, eu só conheço covardes e preguiçosos. Você é que tem que dar um jeito.
— Mas eu não sou médico — respondeu Perry com indignação. — Mal sei a diferença entre gânglios apolares e unipolares, e aí acaba minha medicina.
— Senhor — interrompeu Tiff, com toda naturalidade — o planeta já encobriu a nave em vôo.
Perry fez um sinal para ele e, depois, dirigindo-se a Crest:
— Temos que conversar ainda a respeito — inclinando-se para frente, percorreu com o olhar todos os controles e acionou a alavanca de partida da Gazela.
Parou bem rente ao solo, tomando então o curso para quatro mil metros de altitude, verticalmente. Esta era mais ou menos a altura do paredão de pedra.
Julian Tifflor, que se tinha em conta de um grande piloto de nave de reconhecimento, sem querer, quase perdeu o fôlego, quando Rhodan, com a segurança de um sonâmbulo, se desviou subitamente de um obstáculo inesperado. Aliás, Rhodan não precisava fazer esta manobra brusca, pois a Gazela, apesar de sua dimensão reduzida, estava equipada com fortíssimos dispositivos de proteção. Mas para ele, o chefe da Terceira Potência, estes dispositivos não existiam. Exigia sempre os maiores esforços e a maior responsabilidade de si mesmo, sem contar muito com a proteção dos recursos técnicos.
A Gazela disparava por sobre a cumeeira da cadeia de montanhas, às vezes demasiadamente próxima dos grandes picos. Depois virava-se para um planalto desconhecido.
— Tiff, estou procurando uma caverna em que caiba a Gazela, preferia mesmo uma saliência na rocha.
— Senhor, há uma, direção NNO 3, altitude três mil e dezoito metros, está vendo?
— Já achei, obrigado, Tiff.
Como ecoou por todos os camarotes da Gazela aquele “obrigado”!
O chefe dirigia. A nave de telerreconhecimento parecia um brinquedo em suas mãos e Crest tinha que ficar resignado olhando. Perry virou-se para o lado do jovem tenente da Terceira Potência. Seus olhares se encontraram, houve um mudo sorriso entre eles, e Gucky, num minissalto, chegou até eles. Queria também participar desta alegria e sorriu com seu dente de roedor.
Apenas Wuriu Sengu não se alegrava. Ainda estava vendo aquelas cenas horríveis a bordo da Titan e não conseguia tirar da memória a figura triste e lastimável de Reginald Bell.
De repente acendeu a luz de reconhecimento. Rhodan descia com a nave numa enorme caverna. De fora, a escuridão se abateu sobre a pequena espaçonave.
Aterrissagem sem o menor abalo.
— Crest, Gucky! Trajes espaciais.
“Tiff, você fique de vigilância no posto de comando, mas decole imediatamente assim que receber o menor impulso de minha parte. O local de encontro será aquela elevação sobre a qual passamos para descer para este planalto.
“Sengu, aguardar ordens especiais. Está tudo claro?”
Todo traje espacial arcônida era uma maravilha em si, não porém para os dois homens e para o rato-castor. Gucky passou por apuros, pois não encontrou seu traje e teve que usar um grande demais, que o “engolia”.
— Não se preocupe com isto, Gucky — dizia Rhodan, tentando acalmá-lo — e se tudo correr bem, você poderá até fazer suas brincadeiras. Não é esta a palavra, amigo?
Ser chamado de amigo, e ainda por cima ouvir isto da boca de Perry Rhodan, era para o rato-castor a maior alegria do mundo. Mas poder realmente brincar um pouco, isto era indescritível. E essa havia sido a promessa de Rhodan.
— Posso mesmo brincar, chefe? — certificou-se Gucky.
Um forte sorriso percorreu a fisionomia de Rhodan.
— Acho que, com toda probabilidade, você não só poderá, mas terá mesmo que brincar.
— Opa, chefe, eu preciso disso, preciso de me expandir bem. Espero, porém, que no fim de tudo, não apareça um “abacaxi”.
— Gucky — disse-lhe Rhodan, enquanto enfiava os braços na manga do traje espacial — as expressões que você está usando, estão cada dia piores.
— É verdade, chefe, é conseqüência da péssima convivência com Bell. Mas nós vamos tirar o pobre sujeito lá das...
— Gucky — ordenou Perry — você quer me envergonhar na frente de Crest? Esta palavra não se deve dizer nunca.
— Será que eu a conheço? — perguntou Crest, que, se pudesse abraçaria Gucky de contente, pois suas expressões brejeiras é que estavam aliviando um pouco o estado de espírito de Rhodan e quebrando o trauma que o envolvia.
— Se você a conhece, Crest? — acrescentou o rato-castor. — Claro, você estava presente quando eu obriguei o Bell a fazer uns loopings no ar, e na hora exata em que ele ia cair, afastei a cadeira por um metro. O gorducho então berrou como um boi, quando bateu no chão. Aí é que ele disse: desgraçado, filho da...
Rhodan não se continha de tanto rir.
— Gucky, se você não parar...
Mas não era fácil parar. De repente seus olhos perderam aquela vivacidade e em tom de choro, Gucky o interrompeu:
— Perry, pergunte então a Crest, o que foi que Bell disse, Crest deve se lembrar.
— Sei mesmo, Rhodan — atalhou o arcônida espontaneamente. — Reginald Bell gritou: “Desgraçado filho da queda livre.” Será que isto é uma palavra indecente?
Perry teve dificuldade em responder. Engoliu a saliva, olhou para Gucky, que mostrava uma cara de santo e correspondeu com uma piscadela sincera ao olhar do amigo.
Rhodan mudou o olhar para Crest. O arcônida conseguiu dominar seus traços fisionômicos, mas não soube esconder o sorriso dos olhos.
— Será que Bell disse isto mesmo? — era a dúvida de Perry.
— Você não acredita? — perguntou Crest com voz imparcial.
— Não.
— E eu também não — terminou o arcônida, enquanto Gucky desapareceu pela escotilha.
Com sua cara costumeira, o rato-castor já estava esperando os outros. Depois a escotilha empurrou os três para fora.
Não chegaram a tocar o chão da caverna, ficaram flutuando no ar. O traje espacial os sustentava, mas isto não era sua única qualidade: podia também provocar uma camada de deflexão que tornava invisível seu portador e — naturalmente — o próprio traje. A única desvantagem nesta operação, era que um parceiro não via o outro. Pequenos geradores embutidos serviam para produção de energia a fim de manter estável o dispositivo anti-choque e os neutralizadores da força da gravidade, graças aos quais eles estavam flutuando.
Deixaram a caverna, flutuavam a uma velocidade de cem quilômetros por hora, em direção à elevação no planalto, sobre a qual, momentos atrás, passara elegantemente a Gazela.
Antes de atingirem seu objetivo, ouviram a voz de Perry:
— Ligar os deflectores de proteção.
Já estavam tocando no chão do rochedo, quando os deflectores os tornaram invisíveis. Para que um não se desgarrasse do outro, formaram um cordão. Embora Gucky fosse o do meio, foi o primeiro a ver já pousada a espaçonave estranha.
— Tem uma conformação cilíndrica — disse Rhodan, entre os dentes, e ficou olhando fixo para a nave de duzentos metros de comprimento e cinqüenta de diâmetro, estacionada a alguns quilômetros de distância da Titan.
Com o aparecimento desta espaçonave, que aterrissou muito mais depressa do que calculava, lembrou-se imediatamente dos comerciantes das Galáxias, ou saltadores, como eram chamados.
Eram também descendentes dos arcônidas. Entretanto já há muitos milênios tinham se tornado independentes. Eram agora, normalmente, os ciganos das estrelas, não tendo residência fixa. Passavam a vida nas espaçonaves, residiam aí com suas famílias e eram assim os mais refinados comerciantes.
Comerciavam até com planetas. Um dia, arquitetaram o plano de depredarem, em sua passagem casual, um satélite muito pequeno. O que faziam tantas vezes, havia também de dar certo, com este minúsculo planeta chamado Terra.
Mas não deu certo. Um tal de Perry Rhodan foi em cima deles de tal maneira, que acabaram fugindo para o espaço.
E agora este mesmo Perry Rhodan estava vendo uma nave dos saltadores estacionada bem próxima de sua Titan infeccionada. Os saltadores voavam com naves cilíndricas. Era uma de suas características.
— Então, novamente os comerciantes — disse Crest zangado. — Nunca imaginei, que fossem eles os autores deste crime horrível.
Gucky se mantinha estranhamente calado. Examinava fixo a espaçonave que veio como um raio do espaço estelar e aterrissou com uma rapidez incrível.
— E mais uma coisa, Crest, sobre a qual não nos preocupamos muito: quem deu informações a esta espaçonave? Onde está em Honur a emissora que passou o rádio? E por último, quem o passou? Um dos honos? Eu me arrisco a dizer que não. Mas devo afirmar que uma estação transmissora clandestina dos saltadores é que nos colocou nas costas este anjo da morte.
Crest se atreveu a fazer uma observação:
— Perry, você está falando muito diferente de ontem. E eu envio meu agradecimento às estrelas pelo fato de voltar a ser de novo o velho Perry Rhodan.
Crest não conseguiu ver o sorriso amargo de Perry, pois, devido ao defletor de proteção, um não podia ver o outro.
— Ontem vivi as horas mais amargas da minha vida, Crest. Não agüentava mais. Estava desesperado e ainda estou. Mas tive tempo para refletir, mais do que agora. A responsabilidade por setecentas pessoas me esmagava. Sim, Crest, ontem me tornei covarde, jamais o esquecerei. Sou apenas um simples homem. Fiquei incapaz de qualquer coisa e nem percebia que estava vivo. Mas, felizmente, é uma das virtudes do ser humano “nunca desesperar, enquanto respirar”. E agora, Crest, estou respirando e profundamente.
Esta confissão comoveu o arcônida e o levou a uma admiração maior pelo homem que de modo objetivo admitia seu erro. Quem dos arcônidas ainda era capaz disso? Ninguém.
— Gucky, você já está na nave? — perguntou Rhodan.
O rato-castor compreendeu o que Perry queria saber. Estudou bem com seus dons telepáticos o espaço entre o lugar em que estava e a nave cilíndrica, esforçando-se para captar impulsos de pensamentos.
Bem baixinho, o rato-castor teve que confessar:
— Não consigo captar nenhuma onda de pensamento. Nunca vi um negócio confuso assim. Tudo, mas tudo mesmo, sai em pedaços. Da nave saem apenas pedaços de impulsos e com isso não posso fazer muita coisa.
Os homens, invisíveis através do defletor, estavam calados, varrendo com os olhos o espaço entre as duas naves. Viam os honos ainda apáticos entre os suportes da Titan, de cócoras. De longe pareciam pontos minúsculos. Não conseguiam, porém, ver nenhum deles, levado por curiosidade, levantar a cabeça e olhar para a nave cilíndrica.
— O que pode captar da Titan, Gucky?
— Impulsos de cérebros doentes. Alegram-se e dançam para a morte.
— Mas a morte terá que esperar — era a obstinação de Rhodan, obstinação nascida de uma vontade irrevogável de transformar o inevitável, pelo menos em coisas melhores.
— Perry — chamou-o Crest através do intercomunicador — eu não estou muito certo aqui de uma coisa e necessito de seu auxílio: esta nave estranha será realmente dos saltadores? Não sei bem, mas de qualquer maneira este formato difere um pouco das tradicionais naves cilíndricas.
Um novo acontecimento interrompeu o diálogo e deixou a pergunta sem resposta.
Da espaçonave estranha desembarcavam robôs.
Tiff estava sentado com Wuriu Sengu na pequena central da nave de reconhecimento. De repente começaram a conversar. O assunto era a explosão de desespero que se abatera sobre Rhodan, na tarde anterior, e sobre a tripulação infeccionada ou envenenada da Titan.
— Eu sabia — dizia Julian Tifflor, que aliás tinha muita semelhança com Rhodan, mesmo que seu rosto bem mais jovem pudesse contradizer a esta afirmação — eu sabia que o chefe não desistiria. E nunca desistirá, enquanto viver. E se ele tiver que perder seu amigo Bell, talvez esta tragédia o torne muito desolado, daqui para frente, mas nunca o fará desistir de seus objetivos. Os olhos de Tiff estavam brilhantes, quando assim falava. Olhou demoradamente para o calmo e modesto Wuriu Sengu.
— Tifflor, você viu o que eu presenciei na Titan. Se o chefe entrar outra vez na Titan, haverá de ver apenas mortos. Dançam, cantam, gargalham de encontro à morte. Vão morrer rindo. Nunca pude imaginar que existe uma coisa assim. Compreendi muito bem seu desespero ontem.
Subitamente, o ruído do mini-alto-falante da Gazela:
— Julian Tifflor? — era a voz do chefe que estava chamando.
E o mais jovem tenente da Terceira Potência, se apresentou:
— Aqui tenente Tifflor, senhor. Entrementes soou de novo a nítida voz de comando de Rhodan.
Cem robôs marchavam ao longo do lago em direção à Titan.
Há um minuto que já estavam em marcha e ainda sempre mais máquinas de combate saíam do bojo da nave cilíndrica.
Os papa-defuntos estavam a caminho.
— Gucky! — o rato-castor sentiu a poderosa mão de Rhodan através do forte traje espacial.
— Opa!... Vamos começar? — disse Gucky ansioso por ver as coisas ficarem quentes.
— Preste atenção — disse Rhodan e então deu ordens detalhadas.
Acabou com as seguintes palavras:
— Se Bell e todos os outros na Titan ainda tiverem a chance de recuperarem a saúde, depende de você.
Gucky ainda deu uma olhadela nos robôs, que em densas formações se dirigiam para a Titan.
— Amigos — disse se referindo a eles — o que nossas máquinas não conseguem destruir, eu consigo. Vou fazer de vocês aviões a jato.
Gucky então se desmaterializou e num salto de teleportação, desapareceu na direção da Titan.
Os minutos se arrastavam. Perto do lago já se movimentavam duas companhias de robôs. Marchavam sem parar, contra a Titan. Para Rhodan e Crest, pareciam minúsculos brinquedos brilhando ao longo da superfície da água. A nave desconhecida continuava despejando sempre mais máquinas de combate. Já estavam formando a terceira companhia.
— Eles já sabiam que tipo de espaçonave estava aqui — disse Perry, olhando pensativo para o gigantesco corpo esférico da Titan.
Quantos dias ainda haveria de levar até que esta maravilha da técnica arcônida se tornasse sucata e fosse levada para o cemitério no pólo sul?
Lá embaixo marchavam os comandos de desmontagem, máquinas desalmadas, imunes ao veneno dos ursinhos, sem nenhuma consideração com a morte de setecentas pessoas.
— E se Gucky não conseguir, Rhodan? — disse Crest, arrancando-o de seus pensamentos.
Perry se endireitou.
— Então seria a primeira vez que Gucky nos deixaria na mão, Crest. Eu só me preocupo com este exército gigantesco. Mas parece que está terminando de sair da nave cilíndrica, ou você ainda está vendo robôs saírem da nave?
— Está tudo calmo lá embaixo. Mesmo que tivessem saído dez companhias mais, eu ainda diria: toda resistência é inútil.
— Eu já não digo isto — respondeu Rhodan. — Será que eu terei de ver com meus olhos como máquinas desalmadas se acotovelam debaixo de setecentos homens doentes para matá-los?
A proteção do defletor escondeu o estremecimento de Crest, ao ouvir isto.
— Quer dizer que o senhor julga que os robôs, como açougueiros, penetram na...
— Não julgo, Crest, eu sei. Não quero repetir de que maneira Wuriu Sengu viu os esqueletos nas naves depredadas. Aquelas máquinas lá embaixo já vêm programadas para assassinar.
A cabeça da primeira companhia de robôs já tinha percorrido um terço do caminho, quando Rhodan retomou o assunto. Ele perguntou a Crest:
— Por que a nave estranha não desceu perto da Titan? Por que este espaço tão grande e o tempo perdido com a longa caminhada até a Titan? Há uma resposta só para tudo isto, ou muitas?
Crest não entendeu bem e perguntou de novo.
— Creio que temos diante de nós uma nave só de robôs. A programação de aterrissagem tem que manter uma distância de segurança e somente por este motivo é que a nave cilíndrica está tão afastada da Titan. Não entendo como uma pergunta desta pode se transformar em problema, Rhodan.
Perry respondeu quase um pouco ríspido:
— Setecentos homens devem pagar com a vida a minha omissão... Setecentas vidas pesarão na minha consciência, se não puderem ser salvas. Eu sabia que Árcon havia proibido o vôo para este mundo. Eu, antes de aterrissar, deveria ter investigado onde estava o perigo para quem desce aqui. Crest, lamento não me ter preocupado muito com este fato. Você compreende agora por que a grande distância entre a nave estranha e a Titan é um problema de importância para mim?
Crest não podia esconder que era um arcônida e não um homem da Terra. Ele era também uma vítima da decadência de Árcon. Com sua resposta, evitou de tomar uma posição clara e fugiu do assunto:
— Para mim, Gucky se tornou um problema. Acho que devemos sepultar nossas esperanças.
— Por quê? — perguntou Rhodan, com firmeza. — Os robôs ainda não estão diante de nossa nave, ainda não estão dentro dela, ainda não estão voando com ela para o cemitério e ainda não a depredaram. Só depois que nossa espaçonave estiver reduzida a um montão de ferro inútil, é que vou sepultar a última esperança de querer usá-la de novo, para com ela dominar o Universo.
“No momento, estou apenas preocupado com os setecentos doentes, fora disso estou completamente tranqüilo. Ou se prefere: frio como gelo.”
— Rhodan — respondeu o arcônida, respirando bem fundo — conheço-o há mais de treze anos, mas algumas situações são para mim piores do que os mais horríveis pesadelos. Agora, por exemplo, não posso entender como você não demonstra nenhuma preocupação com Gucky. E se o pobre coitado não estiver imune ao veneno dos ursinhos e também adoecer?
— Arcônidas são e permanecem arcônidas; sim, Crest, quanto ao temperamento somos tão diferentes como dia e noite Você nunca se sentiu mais forte, depois de uma derrota, Crest? Você nunca conseguiu dizer, depois de um grande fracasso: Agora, sim! Eu não apenas digo, mas também procuro agir assim, sem me esquecer da lógica. No primeiro encontro com os ursinhos, Gucky não pegou a infecção ou ficou envenenado. Portanto também não vai sofrer nada agora na segunda vez. E mais, você esquece uma coisa muito importante: Gucky não é como nós, embora eu nunca tive coragem de chamá-lo de animal, ele não é o que você e eu somos: humanóides. E isto é muito importante, Crest. Aumenta a garantia de que ele não vai pegar a infecção e então Crest... Crest... — e Perry o pegou pelos ombros, sacudiu-o chamando muitas vezes pelo seu nome.
Gucky já se tinha materializado na entrada do convés onde ficava o arsenal, tirando da cabeça aquela viseira e despindo aquele traje espacial incômodo, que o “engolia”.
Rhodan não lhe proibira tirar o traje espacial e ele se sentiu muito mais à vontade. Mas não deixou jogado seu precioso traje. Perto de onde ele estava, havia uma porta que se abriu automaticamente, quando se aproximou. Colocou o traje atrás desta porta, dizendo:
— Até logo, coisa pesada, mas espetacular! — e deixou ali, naquele canto, a maravilha da técnica arcônida.
Passou novamente para o corredor principal. Procurou orientar-se, pois seu objetivo estava a quatrocentos metros para o oeste. Deteve-se um pouco no corredor principal do arsenal.
Depois de se concentrar, teleportou-se. Poucos segundos após, materializou-se no corredor principal do lado oeste, quase dando de cara com cinco homens da tripulação, que se contorciam de tanto rir, brincando como crianças com os seus cômicos ursinhos.
— Meu irmãozinho querido — disse-lhe um homem de cabelo cor de fogo, irradiando imensa alegria — deixe-me abraçá-lo. Meu queridinho, por que faz tempo que nós não nos encontramos?
O outro, de boa estatura, que estava ao lado do de cabelo cor de fogo, segurava a barriga de tanto rir e apontou para Gucky, oferecendo-lhe com a outra mão o seu ursinho, perguntou:
— Posso dar-lhe este presente, gracioso animalzinho de estimação? Você mesmo já parece um macaquinho, mas assim mesmo, vou-lhe presentear meu “Imperador”. Quer dar um beijinho nele, “Imperador”?
Gucky sentiu a catinga e vagarosamente foi se afastando dos homens que se aproximavam. Mas, de repente, o homem de maior estatura deu um pulo em sua direção, lançando-lhe o ursinho aos pés.
Mais do que depressa, Gucky tirou o corpo de lado e colocou em atividade suas forças telecinéticas.
Por estas forças invisíveis o pulo foi interrompido. O pobre animalzinho virou-se para o lado e saltou para o braço do homem que queria dá-lo de presente a Gucky.
“Para longe destes irmãos”, pensou Gucky, escondendo seu dente de roedor. Não sentia nenhuma vontade de “brincar” com estes pobres homens de sorriso doentio, já quase sem forças.
De repente, porém, não estavam mais sentindo o chão debaixo dos pés e isto os fez mais felizes ainda. Começaram a gritar e a gritaria se transformou numa frenética gargalhada, quando, por força telecinética, iam e vinham, flutuando, pelo longo corredor principal da Titan ou pelo poço do elevador antigravitacional.
Aí então Gucky reparou que deste elevador descia um grupo de sete ou oito pessoas.
“Tenho que arranjar uma ocupação para eles”, pensou.
Conduziu, com suas forças telecinéticas, os cinco homens que flutuavam, como um bate-estaca em plena queda, em cima deste grupo.
O rato-castor já estava antevendo, em pensamentos, uma pancadaria bem divertida, quando arregalou bem os olhos, balançando sua engraçada cabeça. A trezentos metros dele, apareceu uma dúzia de homens, um tirando a poeira do outro e alguém apanhando o ursinho perdido e entregando a seu dono. Tudo isto sob gargalhadas histéricas.
— Esta é a verdadeira situação — disse Gucky para si mesmo. — Realmente, estão todos loucos, e só agora compreendo o que é euforia. Rir para a morte, é o pior que existe.
Este entrevero lhe roubara dois minutos, mas agora tinha que dar preferência à tarefa dada por Rhodan. Os últimos cem metros foram vencidos por um salto, aterrissando exatamente diante da poderosa antepara do depósito dos robôs de combate. Perry lhe havia explicado como abrir passagem pela antepara. Sem o menor ruído, a poderosa muralha de aço desapareceu naquele trecho da parede, deixando passagem livre.
Ali, naquele saguão, estavam enfileirados os mais modernos e mais terríveis artefatos de combate dos arcônidas. Não causaram em Gucky nenhuma impressão especial. Ele chamava cada robô de “colega preto”.
Estava atrás do primeiro robô, para ativá-lo e programá-lo. Tinha recebido instruções exatas de como agir, que programação tinha que escolher e que não devia, em nenhuma circunstância, deixar sair isoladamente a força de combate.
— “E preste muito atenção, Gucky, que ninguém da nossa tripulação saia ao ar livre. Não seremos mais amigos, se algum dos nossos conseguir escapulir da espaçonave.”
O rato-castor trabalhava como um possesso. Bem colados uns aos outros ali estavam os robôs de combate e Gucky tinha que fazer milagre para passar entre eles e regular a programação.
A primeira centena já estava ativada. Quando ele se encaminhou para o próximo robô, cem autômatos ativados se puseram simultaneamente em marcha. De repente ecoava o passo metálico dos gladiadores modernos. Em filas de cinco, saíam os cem robôs arcônidas do arsenal da Titan, fazendo estremecer o corredor principal, dirigindo-se para o elevador antigravitacional central.
Ao mesmo tempo, Gucky regulou seu sensor de tempo. Não podia, de maneira alguma, esquecer do momento exato em que a centena de robôs teria que passar pela escotilha, para descer pela rampa a fim de entrarem em combate com seus colegas que se aproximavam.
Gucky naturalmente não sabia que da nave estranha haviam descido trezentos robôs de combate e estavam a caminho da Titan. Mas isto não tinha muita importância para ele, mesmo que fosse o dobro de trezentos. Ele estava aí para isso, e não fazia nenhuma restrição em sua auto-estima.
Trabalhou sem parar. É preciso saber que seu corpo media um metro e meio de comprimento, enquanto a altura em que estavam os contatos da programação era de dois metros.
Como um serelepe, Gucky cabriolava em torno dos robôs. Seus gestos e suas ligações eram cada vez mais rápidos. E mesmo o barulho infernal da tripulação doente, que se comprimia no hall, não conseguia detê-lo.
Transportou-se para fora telecineticamente. Um do grupo estava muito insistente, procurando agora pela terceira vez entrar. Ao mesmo tempo, o despertador de Gucky começou a tocar.
A primeira centena de robôs estava esperando rente à grande escotilha, preparada para deixar a Titan.
O doente, que gritava em voz alta, se encontrava bem atrás dele, quando ainda ativava um robô. Gucky não estava pensando nele, nem tinha mais tempo de se preocupar com seu hóspede. Correu para a antepara, fechou-a, prendendo o doente no hall dos robôs e se teleportou para a escotilha cinco que a centena de robôs tinha procurado para sair da gigantesca esfera espacial.
Quando chegou bem em frente à escotilha, botou as patas dianteiras na frente do focinho, pensou numa porção de palavrões que Bell lhe havia ensinado e abaixou novamente as patas. Agora tinha de resolver outro caso: conter cinqüenta homens e mulheres que se acotovelavam diante da antepara, dançando com aquele alarido infernal.
O reboar dos passos dos gladiadores de aço era cada vez mais forte e Gucky se sentia puxado para todos os lados, tendo ainda que suportar em cada respiração aquela catinga horrível dos honos, que sempre lhe provocava ânsias de vomitar, e ouvir dos ursinhos sempre a mesma coisa: “me dá um beijinho, me dá um beijinho...”. Notou de repente que um homem de boa estatura, com mais de 80 quilos estava pisando na sua pata traseira.
Foi sempre contra este tipo de cumprimento. Soltou um guincho terrível. Mas a gargalhada do eufórico homenzarrão abafou o guincho de Gucky, que não se conteve mais de ira. No mesmo instante, aquela multidão de dançarinos ficou colada bem rente ao teto. E já não havia nenhum impedimento para a primeira centena dos robôs de combate dos arcônidas.
Mais de cinqüenta pessoas, com seus ursinhos, ficaram coladas ao teto, sem poder mover um braço. Por baixo deles, desfilavam os robôs na direção da escotilha, que agora se abriu toda, liberando-lhes a passagem.
Comprimido contra a parede, o rato-castor via desfilar diante dele a mais moderna e fulminante centena de robôs dos arcônidas. Teve então oportunidade de olhar para fora e viu os purificados ainda sentados entre os suportes telescópicos gigantescos da Titan.
Mal havia deixado a rampa o último robô, a escotilha se fechou e a rampa foi levantada.
“Vocês podem descer novamente”, pensou ele. No mesmo instante, o gargalhar frenético e os gritos da pequena multidão que estivera colada ao teto, lhe encheram os ouvidos.
A uma distância de cinqüenta metros, os fez voltar brandamente ao chão. Desmaterializou-se no mesmo instante, voltando num pulo para a antepara do depósito de robôs.
Sua vida esteve por um triz, quando um robô quase o esmagou com seu pé. Com palavrões e com uma expressão de desespero, ia pulando entre os robôs que caminhavam pelo corredor principal, até que, outra vez comprimido contra a parede, ficou olhando para esta segunda centena de robôs, completamente perplexo.
Que teria acontecido? Quem teria programado e ativado estes cem robôs? De onde vinham estas “máquinas”?
Estava mesmo pensando em “máquinas” e não nos “camaradas pretos”. Tinha perdido o bom humor.
Isto seria um desastre. E aquela centena já estava longe.
Num salto desesperado, aterrissou nas costas do último deles. Rhodan lhe havia garantido que seu programa excluía qualquer interferência de um membro da tripulação.
De repente Gucky começou a duvidar desta garantia. Pondo em risco a própria vida, agarrou-se com uma pata no pescoço do robô de combate e, equilibrando-se com muita habilidade, conseguiu controlar em que programação o robô estava ligado. Depois, pulou para a nuca do próximo robô, observou também aí. Chegou à conclusão de que a programação estava certa.
Subitamente se lembrou do doente que deixou preso no depósito dos robôs.
“Tomara que dê certo”, pensou ele.
Transportou-se telecineticamente para a antepara, deu um outro salto pequeno e aterrissou no hall, que com a retirada de duzentos robôs de combate, parecia agora vazio.
O doente preso ouviu o ruído de sua chegada e virou-se para ele rindo, ligando qualquer coisa no robô, atrás do qual se encontrava.
Gucky notou que os fios de seu pêlo estavam eriçados.
— Puxa! — exclamou, com sua voz aguda, fazendo com que o pobre homem subisse como um balão até o teto. Depois começou a regular a programação.
Um minuto depois, estavam os dois trabalhando juntos. Gucky nem protestou mais contra o mau cheiro do ursinho da morte, nem ouvia quase o gargalhar maluco de seu inesperado auxiliar.
— Não estou sendo bacana para você, irmãozinho? — perguntou este já pela décima vez, tentando demovê-lo do trabalho para dançar um pouco. — Ria um pouco, amigo, você não se alegra com a minha felicidade? Eu não sou bom para você e o ajudo?
— Daqui um pouco, vou me alegrar mesmo — disse ele e se teleportou novamente para a escotilha.
O segundo lote de cem robôs estava para deixar a Titan e Gucky tinha ordens expressas de Rhodan de não deixar nenhum doente sair ao ar livre.
— Rhodan, você entende uma coisa desta? Já está saindo a terceira centena da nave...
No mesmo instante se intercalou alguma coisa entre Rhodan e Crest. Surgiu a figura de Gucky. Tentou fazer a saudação no seu uniforme feito sob medida, e se apresentou.
— Tenente Gucky, de volta da primeira incursão. Trezentos “camaradas pretos” na vanguarda. Anuncio-me para a segunda incursão.
— Gucky...
Gucky já tinha desaparecido.
— Este safado — disse Perry com certo orgulho.
Todo reticente, representando o nobre arcônida, perguntou Crest:
— Será que Gucky já conhece esta palavra?
Gostava de ouvir Perry Rhodan. Crest sorria intimamente.
Entre as duas espaçonaves, travava-se a horrível batalha dos robôs, que parecia uma tocha viva de milhares de metros. O acaso fizera com que o número de máquinas de combate fosse exatamente igual dos dois lados.
A árida planície se convertera num inferno. O ar estava cheio de explosões e de relampejos ininterruptos. Nuvens de fumaça invadiam o céu e os clarões eram tão ofuscantes que Perry e Crest, apesar da distância em que estavam, tinham que tapar os olhos. Cada nuvem de fumaça era a destruição de um robô, transformado numa fornalha incandescente de um inferno atômico desenfreado. Até a água do lago, estavam frente a frente. E mesmo rente à montanha íngreme, lutavam com suas armas horríveis. Máquinas desalmadas, programadas para destruir o inimigo, não conheciam reações humanas.
Capacetes de proteção rebentavam como bolhas de sabão; raios com força para destruir tudo transformavam o aço arcônida em gás. Densa poeira se levantava das passadas dos robôs, incandescente às vezes. A água fervia quando um robô atingido começava a fundir, com todo seu armamento de raios atômicos.
Depois de alguns minutos, Rhodan e Crest já não sabiam distinguir onde estavam os robôs da Titan e os seus adversários. As frentes de combate se deslocavam constantemente.
Agora, via-se uma brecha ali no meio. Rhodan e Crest prenderam a respiração. Quem seria o vencedor?
Logo a seguir, sobem ao céu sete colunas de fogo, sete línguas incandescentes que lembravam protuberâncias do nosso sol, ofuscando tudo, deixando atrás de si um caudal de fumaça e gás no chão de areia.
E mais uma vez, os segundos se transformaram em eternidade. O inferno dançava lá embaixo o rito da morte e da destruição. Este inferno parecia ter tragado um ente querido: Gucky.
Crest perguntou por ele. Rhodan não respondeu, porque não percebeu nada que denotasse a presença física de Gucky.
Os pontos lá embaixo — cada ponto representava um robô — estavam às vezes encobertos por nuvens de gás, de fumaça, no meio da cintilação dos raios energéticos e das explosões, tudo acompanhado de um trovejar infernal. Cada vez mais fortes, as explosões e os abalos provocados pela vibração do ar chegavam até onde estavam Rhodan e Crest. Parecia o desenrolar de uma terrível tempestade, mas já se podia perceber que a frente de fogo caminhava lentamente se aproximando da nave cilíndrica.
— Perry, lá está Gucky! — exclamou Crest todo feliz. — Lá, à direita do grande rolo de fumaça. Veja como os dois robôs estão voando como aviões a jato...
Logo a seguir ecoou uma risada espontânea de Rhodan. Tinha localizado os dois robôs que voavam retos na direção deles. Descomunal era sua aceleração. Só podia ser obra do rato-castor, que devia estar escondido lá por baixo, mais ou menos próximo à zona de combate, com seu dente de roedor, todo feliz, brincando, como ele dizia.
— Cuidado — disse Crest. Mas não foi necessário cuidado.
A dez metros deles, desceram os dois robôs, agora transformados em velocíssimos jatos. À primeira vista, podia-se notar que tinham apenas valor de sucata. Sua célula positrônica estava destruída. Apesar disso, Rhodan e Crest correram para o campo de pouso e disseram, quase simultaneamente, depois de curta observação:
— Não são robôs dos saltadores. Então veio a pergunta que tinha de vir:
— Quem constrói destas máquinas de combate?
Crest respondeu bem baixinho:
— Daria qualquer coisa para poder responder, Perry. Nunca vi este modelo de robô e nunca ouvi falar a respeito.
— Observe que possui características típicas dos arcônidas, Crest. Eu gostaria de... — Rhodan, falando, olhou para baixo e percebeu o que estava se passando nos instantes finais. Chamou o tenente Julian Tifflor na Gazela.
Este se apresentou e Rhodan lhe transmitiu a seguinte mensagem:
— Tiff, voe para atacar a nave cilíndrica. Faça um bom serviço.
E, do seu mini-alto-falante, ouviu a resposta de Tiff:
— Senhor, espero fazer tudo bem.
Como uma bala, a nave de telerreconhecimento partiu da caverna onde se abrigara.
Com a palavra “ataque”, Tiff estava em seu elemento.
A Gazela se atirou com estupenda velocidade contra o íngreme paredão de pedra. Em dois segundos, poderia se esfacelar de encontro a um rochedo de uns mil metros de espessura. Wuriu Sengu já se sentia esmagado. Porém apesar de seu medo, não se atrevia a olhar para Tiff.
Tiff sorria, mas era um sorriso duro.
— Ataque!
O ar açoitado zumbia e gemia em torno da Gazela, ficava quente e começava a esfuziar. Na nave de reconhecimento, roncavam os reatores. O zunido do absorvedor magnético começou a atingir freqüências mais elevadas.
A Gazela passou em disparada, bem rente à crista do rochedo.
— Velocidade! — exclamava Julian Tifflor e não sentia barulho nenhum. Levou a velocidade ao máximo, ainda tinha mil metros para baixo. Voavam já pela parte final do planalto.
Um paredão escuro surgiu à sua frente. A velocidade era cada vez maior.
— Curva para a esquerda.
Algum monstro na máquina, faminto, insaciável, devorava todas as forças de resistência. Para fora da curva, para a esquerda. Agora era necessário subir. A quatro mil metros estava o cume da montanha.
O que estava voando — a cumeeira da montanha ou a Gazela?
Wuriu Sengu não entendia como, numa velocidade desta, se podia atingir um objetivo que estava do outro lado da montanha, bem mais para baixo, à margem do lago.
Julian Tifflor ainda não tinha visto a espaçonave desconhecida, nem tão pouco Wuriu. Com uma velocidade infernal, a Gazela passou pela cumeeira da cadeia de montanhas; Tiff havia aprendido a correr assim com seu chefe.
— Descer!
Lá estava o gigantesco cilindro.
— Fogo nele — gritou Julian Tifflor.
Wuriu ligou o interruptor duplo. Todas as armas de raios energéticos da Gazela fizeram fogo. Um clarão ofuscante varreu o espaço e atingiu a nave desconhecida.
— Ela não tem o envoltório de proteção! — Foi um alvoroço incrível quando os raios energéticos devoravam a carcaça da nave, que se fundia toda. Não houve contra-ataque.
Os reatores roncavam alto. Deviam dispender agora uma energia enorme; apenas a uns cinqüenta metros da nave desconhecida é que Tifflor deu a ordem:
— Voltar.
Perry Rhodan que vira o perigosíssimo looping feito pela Gazela, não pôde deixar de exclamar:
— Será que Tiff ficou louco?
A nave de Tiff virou-se um pouco e se atirou com todo peso para baixo.
— Fogo, Sengu! — gritava Tiff, pensando nos setecentos homens envenenados.
O chão parecia voar de encontro a eles e o cilindro se aproximava. A mancha feia no alto da carcaça da nave desconhecida se transformou numa fenda, numa fenda de dez metros de diâmetro.
— Fogo, Sengu!
Das aberturas afuniladas da Gazela, sibilavam raios energéticos. Embaixo, na nave desconhecida, roncavam os reatores, dançavam relês, tudo estava cheio de alta-tensão.
Através do intercomunicador Crest ouviu a voz entusiasmada de Rhodan:
— Olha, Crest, o rapaz sabe voar.
— Aí vem o contra-ataque, Perry.
A nave cilíndrica se defendia. Retiraram a cobertura dos canhões e as grandes aberturas afuniladas estavam livres. A Gazela entrou numa nuvem.
— Descarregar, Sengu — disse Tiff sorrindo.
O fato de ter percebido prontamente a reação da nave desconhecida, ele devia à aparelhagem ótica de primeira classe que a Gazela possuía.
Wuriu Sengu estava compreendendo agora o que que o tenente Julian Tifflor entendia por “descarregar”.
Tiff exigia tudo que a nave podia dar. Não serviria de alvo fácil para os canhões energéticos. Seu envoltório de proteção não agüentaria este impacto, haveria de rebentar e cair.
Havia uma fenda no paredão da montanha. Tiff empinou sua nave na vertical. A fenda mal tinha trinta metros de largura, exatamente vinte e cinco. Havia calculado tudo. A Gazela tinha dezoito metros de largura, portanto, conforme Pitágoras, sobrariam três metros e meio para cada lado.
— De qualquer maneira, o espaço está sobrando — disse Tiff para o japonês.
Mas já estavam bem em cima da montanha e a nave de reconhecimento retomou seu curso normal.
— Tiff — dizia o vidente Wuriu, enxugando o suor da testa.
Julian Tifflor piscou para ele, sem tirar, todavia os olhos dos instrumentos.
— Wuriu, não tive tempo de suar, mas você, no segundo vôo, abriu um rombo na coluna vertebral da nave desconhecida, parabéns.
De novo o alto-falante com o seu “atenção, atenção”. Era o chefe que estava anunciando a presença de Gucky.
Coisa de um instante depois, surgiu Gucky. Ajeitou o capacete de seu uniforme espacial e falou com energia:
— Onde é que está o depósito de bombas?
— Atrás da casa de máquinas — respondeu Tiff. — Como é que está o negócio com os robôs, lá embaixo?
Gucky já ia indo para a casa de máquinas. Parou um pouco, sorriu muito orgulhoso, com o dente de roedor à mostra, e explicou:
— Como é que está? Estive presente a tudo e ainda me pergunto se existe um robô, um soldado de aço, que seja capaz de agüentar uma queda de cinco mil metros de altura, sem se esborrachar... Até agora só vi montes de ferro velho atrás de nós. Até logo, meus aliados.
Gucky, um comodista. A distância para o depósito de bombas era pequena, mas assim mesmo ele se teleportou. Não voltou, foi diretamente para o seu “brinquedo”. Wuriu perguntou por ele. Tiff, que conduzia sua nave através dos picos da montanha, sorriu, dizendo:
— Aposto que já botou seu ovo na nave desconhecida e desapareceu. É um rapaz formidável, parece garganta, mas é a criatura mais simples deste mundo e sempre sabe o que quer.
Nova mensagem do chefe:
— Venha imediatamente, Tifflor, para a Titan.
No minuto seguinte, a situação mudou um pouco a bordo. Tifflor colocou a Gazela em aterrissagem de emergência.
— Chefe — disse o intercomunicador — meu orientador de estrutura não funciona mais, depois de tantas transições e descidas, está falhando.
Rhodan veio correndo para a cabina de comando, acompanhado de Crest e Gucky, que estava acabando de chegar. Perry, que não se assustava com nada, sorriu tranqüilamente para Tiff. Este sorriso queria dizer: Não se afobe, companheiro, o chefe resolve isto com o dedo mindinho.
— Vamos, Tiff, leve a Gazela para o hangar sete.
— Para a Titan? — perguntou Tiff, meio sem jeito.
— Para onde então, para a nave cilíndrica que já é sucata? Vamos.
Foi apenas um pequeno pulo, mas um pulo para setecentos homens doentes ou com infecção, um pulo para o inferno dos ursinhos.
A escotilha para o hangar sete ainda estava aberta e a Gazela pousou sem o menor solavanco. Tiff folhou para Rhodan como que querendo fazer alguma pergunta, ao vê-lo sacar sua pistola de raios paralisantes.
— É com isto que temos que abrir caminho para a central — disse Rhodan a contragosto. Temos infelizmente que usá-la, os raios psíquicos não produzem mais efeito. Mas uma coisa é essencial: o traje espacial tem que ficar fechado. Se vir alguém com o capacete aberto, tenho que atirar com os raios paralisantes. Quanto tempo temos ainda à disposição para chegarmos à central, isto depende das espaçonaves que nos atacarem.
— Mas os robôs de combate ainda estão lutando — disse Crest.
— Foram construídos para isto — foi sua resposta.
Foi o primeiro a sair da nave de telerreconhecimento.
Quatro homens e Gucky penetraram na central da Titan. Jamais gostariam de se lembrar quanto sacrifício lhes custou abrir caminho para o posto de comando. Ninguém falava e não havia mesmo motivo para isto.
A Titan devia partir. Perry Rhodan, Crest, Tiff e Sengu e naturalmente Gucky queriam fazer aquela espaçonave de um quilômetro e meio de diâmetro subir ao espaço.
Eram cinco em lugar de mil e quinhentos. Tornava-se mais do que uma tentativa desesperada: era pura loucura. Mas ninguém se opôs.
— Em duas ou três horas, os primeiros estarão chegando — disse Tiff, consultando o rastreador estrutural.
A reação de Rhodan foi imperceptível. Tinha mil coisas em que pensar no momento. A principal: fugir com a Titan.
— Crest, que há com os motores seis, nove e quatorze? Por que não funcionam?
Crest deu sua resposta, mas Gucky acrescentou:
— Não estou conseguindo ligar os reatores, Dora, Zeta e mais dois outros.
Tiff deixou o rastreador de estrutura e foi ajudar Gucky.
Tudo foi feito, seguindo o manual de emergência, tudo, e a Titan tinha um quilômetro e meio de diâmetro.
Perry correu para os controles dos absorvedores de compressão. Estava concentrado, mas sereno.
— Perry, todos os reatores estão em funcionamento — disse Gucky, como que provando que não só gostava de “brincadeiras” como também de coisas sérias.
O ronco de todos os reatores era ensurdecedor e causava uma leve trepidação na esfera gigante.
— Tiff, venha aqui — disse Rhodan, tirando Julian Tifflor do rastreador estrutural. Este controle não tinha grande importância no momento. Teria só na hora de levantar vôo. — Sente aqui na poltrona do co-piloto.
O jovem tenente nem teve tempo de ficar contente, por ter a honra de pilotar junto com o chefe.
— Não tenha medo, Tiff — era o legítimo Perry, o homem que na hora mais desesperada sabia derramar coragem ao redor.
— Perry, olhe os honos — gritou Crest, através do ronco dos reatores e o sibilar das turbinas.
Lá embaixo, entre os suportes da Titan, ainda estavam alguns purificados, apáticos, olhando para o nada.
— Gucky — era a voz de Rhodan — leve estes honos para longe, mas bem para longe.
Com seus poderes telecinéticos, Gucky os projetou para o outro lado do lago, tendo, porém, o cuidado de lhes proporcionar uma descida suave.
Quatro homens, que não podiam perder um segundo, olhavam pasmados o feito de Gucky.
— Pronto — disse Gucky de volta — o transporte foi rápido, mas confortável. Podemos partir.
E Perry deu a partida. Puxou o controle duplo para todos os reatores, com o outro movimento ligou o envoltório de proteção em tomo de toda nave.
— A nave cilíndrica vai aos pedaços — gritou Sengu. É o que se via no painel da tela redonda, pedaços da nave voando pelos ares como folhas secas ao vento. Mas ninguém teve tempo de olhar.
Era pura loucura tentar levantar vôo apenas com quatro homens. Não podia dar certo. Não houve partida.
Por que não houve partida? Por que a Titan não se ergueu?
Aí a lâmpada de controle acendeu: ligação sincronizada.
Verde! Um ribombar de mil trovões se fez ouvir e a Titan se despregou do chão. Havia partido.
Já estavam no espaço.
Com cinqüenta por cento da velocidade da luz, a esfera gigantesca varava o infinito, protegida apenas por seu envoltório energético. Fora disso estava completamente desarmada, pois não havia recursos humanos para manobrar as armas da grande nave.
Crest arregalou os olhos ao ver no painel as naves cilíndricas que se aproximavam da Titan.
Rhodan sorriu calmamente.
— Isto não é nada, ainda virão muitas outras. Sabiam naturalmente que o bom-bocado que as esperava lá em Honur não era pão de cada dia.
Começou o primeiro ataque por parte da nave cilíndrica mais poderosa. Seis bons tiros fizeram estremecer a maior espaçonave do Universo. Estremecia, mas continuava seu curso. Qualquer outra teria sucumbido a este ataque. O envoltório energético apenas tremeu um pouco, recebendo aquele horrível impacto.
— Ataque pelo verde trezentos e quarenta — anunciou Tiff.
Dez minutos depois não se anunciavam mais os ataques. Ininterruptamente, as centenas de descargas energéticas vinham de todos os lados e chocavam-se no envoltório da Titan. Por duas vezes os registros de bordo acusaram 80% da capacidade de resistência do envoltório.
— Acho que não virão outras espaçonaves, fora estas que aqui estão — disse Tifflor, levando a mão aos olhos para não ser ofuscado por aqueles lampejos de claridade intensa, que transformavam a escuridão do espaço numa orgia de luzes.
Neste momento, o rastreamento automático anunciou transição numa distância de dez minutos-luz.
— Meu Deus! — exclamou Crest. — Estão aí de novo sessenta espaçonaves. De onde vieram todas elas?
— Do inferno — foi a resposta azeda de Rhodan. — Tiff, mande um superimpulso para a Terra, perguntando onde se encontra Freyt com a Ganymed. Chame Freyt, se ele estiver no espaço, mas não se esqueça de pedir socorro.
Ninguém falava em transição. Apenas com quatro homens a bordo, seria temerário tentar uma transição.
A Titan continuava a estremecer com os terríveis impactos que vinham agora do amarelo quatorze.
— Acho que todas estas espaçonaves são dirigidas por robôs — disse Crest.
Tifflor teve imediata ligação com a Terra:
— A Ganymed está no espaço — anunciou Terrânia.
E quase no mesmo instante, percebeu o superimpulso da Ganymed:
— Que que está acontecendo? — perguntou o major Freyt.
— Venha imediatamente — respondeu Tiff. — Temos setecentos moribundos a bordo. Estamos sendo atacados por supernaves cilíndricas. Somos apenas quatro homens e o Gucky. Reúna todos os médicos. Proibido entrar na Titan sem os trajes espaciais. Venha rápido, major.
Soou o alarme na Ganymed. Explicou-se a razão do alarme e em três transições a Ganymed alcançou M-13. Mais um pequeno salto a trouxe para o sistema Thatrel.
Todas as torres de ataque da Ganymed estavam de prontidão, as capas das peças de artilharia energética foram retiradas. Nos pontos de controle se encontravam homens decididos para o que desse e viesse.
Ninguém podia imaginar a situação de Perry.
Finalmente chegaram as coordenadas.
— Graças a Deus — disse Freyt, e a gigantesca Ganymed se atirou na direção exata.
Nenhuma das naves cilíndricas se preocupou com a aproximação da Ganymed.
— São naves robotizadas — foi a conclusão de Freyt, e sua fisionomia se tornou rígida. — Lá está a Titan.
Naquele instante havia uma enorme labareda em volta da esfera espacial. Um fogo cerrado de forças mortíferas ia de encontro à camada de proteção do gigante do espaço. Parecia um sol pequeno.
O júbilo foi indescritível na central da Ganymed, quando depois de tudo, a Titan apareceu de novo, intacta, com seu bojo escuro no espaço.
Das aberturas afuniladas da Ganymed, centenas de bocas vomitavam fogo contra as naves cilíndricas. Por toda parte havia nuvens de fumaça incandescente; eram naves inimigas destruídas. Era heróico o esforço dos homens da Ganymed, que corajosamente tentavam livrar a Titan dos ataques adversários, já que de seus próprios canhões não era possível sair nenhum tiro.
— Desgraçados! — esbravejava Freyt na central da Ganymed. — Temos que transformá-los todos em tochas ardentes.
De repente, mudaram de rumo. Alguns minutos depois, o espaço em torno da Titan e da Ganymed estava vazio, com exceção de uma nave-robô, bem atingida, que se arrastava pelo espaço.
Naturalmente um determinado impulso de rádio havia feito recuar as demais naves.
Agora era a vez de uma outra batalha.
Na nave de Freyt, todos os médicos e oitocentos especialistas estavam prontos para entrarem em ação na Titan.
Primeiro, entraram os médicos. Começaram os exames com Thora, Bell e o sargento Rous.
Por longas horas, Rhodan, Crest, Tiff, Sengu e Gucky tiveram que esperar pelo resultado na central da Titan.
Apresentou-se então a comissão médica. Os quatro homens e Gucky pareciam um só ouvido.
Hipereuforia, era como os médicos classificavam a doença, hipereuforia provocada por um tóxico segregado pelos ursinhos. Este tóxico destruía paulatinamente as células gangliares do sistema nervoso central e não podia ser debelado com os meios até então conhecidos pelos arcônidas.
— Não podemos dizer exatamente quando começarão a morrer. Recomendamos, porém, extirpar todos estes ursinhos, antes que os homens da Ganymed entrem aqui.
Perry Rhodan concordou. Em seu lugar, Crest se dirigiu ao médico chefe:
— Pode providenciar a destruição deles. Eu proponho, porém, que três pares sejam isolados cuidadosamente, para fins de pesquisa científica.
Perry Rhodan estava de olhos fixos no painel da tela redonda, mas não via nada.
Um adversário desconhecido, traiçoeiro, quase que por um fio, não o destrói completamente.
De onde viria o próximo golpe? De que direção? E os setecentos homens, seus amigos, quando morreriam?
Não, e mil vezes não, a morte terá que esperar.
De pé, parado na frente do painel, um pouco recurvado, postura esta nunca vista até hoje em Perry Rhodan, ele olhava para o infinito — um Perry Rhodan cheio de desespero. Entretanto um Perry Rhodan em quem sempre lampejava um raio de esperança.
Kurt Brand
O melhor da literatura para todos os gostos e idades