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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DE BAGDÁ A ISTAMBUL / Karl May
DE BAGDÁ A ISTAMBUL / Karl May

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DE BAGDÁ A ISTAMBUL

 

A Arábia e o Maometismo

Ao sul do extenso e árido deserto sírio e mesopotâmico, cercada pelo mar Vermelho, fica situada a península Arábica, que se distende pelo mar Índico-Arábico adentro.

Em três de suas faces, esse território é cercado de uma orla de costa estreitíssima, mas extraordinariamente exuberante que, ao longo, se eleva num planalto. Este, em toda a sua extensão, apresenta um conjunto panorâmico monótono, meio grotesco, desfraldando às vistas do viajor uma extensa cadeia de montanhas, entre as quais se destaca a de Chammar de acesso dificílimo.

Esta área territorial, cuja extensão exata em metros quadrados ninguém ainda calculou, era na antigüidade dividida em três partes distintas denominadas Arábia Petrae, Arábia Deserta e Arábia Felix, o que em português significa: Arábia Pedregosa, Arábia Deserta e Arábia Feliz. Muitos geógrafos pensam originar-se a palavra Petrae da expressão greco-latina (Nétpx = Petra) que significa pedra, rocha etc, e por isso dão àquela região o nome de Arábia Pedregosa. Errônea, porém, é essa concepção. Aquele nome encontra antes a sua origem na velha cidade Petra que outrora  fora a capital dessa província do nordeste daquele país. O árabe chama a sua pátria de Dschesirat ei Arab (1), ao passo que os turcos e os persas dão-lhe o nome de Arabistão. Atualmente várias designações são dadas àquela península; as populações nômades da região não se preocupam com a denominação do país, visto que para elas, consideradas isoladamente, prevalece a designação de suas respectivas tribos clãs.

Sobre aquela península, o céu é límpido, eternamente límpido, como jamais se viu noutras zonas da terra, e à noite as estrelas brilham com uma claridade e limpidez jamais registradas em zona alguma do mundo. Pelos desfiladeiros das montanhas e pelos agrestes planaltos cruza o filho semi-selvagem das estepes, montado em fogosos corcéis ou em infatigáveis camelos. Seus olhares pousam em toda parte, porque ele vive em rixas com todo o mundo, excetuados apenas os componentes de sua tribo. De uma fronteira à outra ora o suave e límpido rumorejar da brisa ora o ciciar de odes exóticas e selvagens vem embalar a alma do viandante. Vem daío ter-se lá conhecido, através dos séculos, centenas e centenas de poetas, cujas estrofes vivem nos lábios do povo e foram também registradas para uso das gerações vindouras.

Como tronco do legítimo árabe prevalece Joktan, filho de Huts, descendente de Sem em quinta geração. Os descendentes de Yoktan povoavam a Arábia Feliz até aos golfos dos mares persas. Outros árabes, porém, orgulham-se em afirmar serem descendentes de Ismael, filho de Agar.

Aquele Ismael, segundo rezam as lendas, teria seguido com o seu pai Abraão para Meca e lá edificado a santa Caaba. A verdade, porém, é que a Kaaba foi instituída, ou pelo menos terminada a sua construção, pela tribo dos koreichites.

 

(1)     Ilha Arábica.

 

Entre os santuários de que se achava dotada Meca, conta-se a fonte santa de Zem-Zem e a pedra negra, que, segundo dizem, caiu do céu.

Para lá peregrinavam as diferentes tribos de árabes, a fim de armar os ídolos de suas tribos e por certo também os ídolos de suas próprias casas para depois adorá-los. Por isso Meca era para os árabes o que Delfos fora para os gregos e Jerusalém para os judeus. Constituía o ponto de concentração dos nômades dispersos por toda parte e que se não fora isso ter-se-iam perdido, por aí além.

Como pertencesse Meca aos koreichites, constituíam estes, naquele tempo, a mais poderosa e conceituada de todas as tribos árabes e em conseqüência também a mais rica. Os peregrinos provindos de todos os pontos nunca chegavam sem trazer presentes ou mercadorias de valor para negociar.

Um membro dessa tribo de nome Abd Allah (2) faleceu no ano 570 depois de Cristo. Alguns meses mais tarde, em 570, sua mulher, a viúva Amina, deu à luz um menino que mais tarde passou a chamar-se Mao-mé. (3) É muito provável que o menino tenha tido anteriormente outro nome e que só adotasse este último depois que sua atividade religiosa o tornou celebrada personalidade. Este nome é grafado também Mohamed, Muhamed e Mehamed.

Com a morte do pai, herdara o menino apenas dois camelos, cinco ovelhas e uma escrava abissínia. Foi, por isso, obrigado a recorrer à proteção e agasalho do seu avô Abd-al Mokalib e, com a morte deste, foi sucessivamente acolhido pelos seus tios Zuheir e Abu Taleb. Como, porém, a situação de pobreza desses homens não lhes permitia fazer muito pelo menino, este foi obrigado a angariar o pão de cada dia pastoreando ovelhas. Depois tornou-se guia de caravanas e mais tarde carregador de arcos e aljavas. Aí foi que, por certo, adquiriu o espírito belicoso de que era dotado.

Aos vinte e cinco anos de idade entrou para o serviço de Cahditscha, viúva de um comerciante.  Administrava ele com tanto zelo e espírito de sacrifício os bens da viúva riquíssima, que esta dele se enamorou, tomando-o por esposo. Mais tarde, porém, perdeu a grande fortuna adquirida pelo casamento. Até a idade de quarenta anos dedicou-se ao comércio. Em suas longas viagens de negócios entrara ele em contato com judeus e cristãos, com brâmanes e adoradores do fogo e esforçou-se por lhes estudar as religiões. Sofria Maomé de epilepsia e essa depressão nervosa predispunha-o para alucinações. Entregou-se por fim à oração, meditação e ao misticismo. Recolheu-se a uma caverna situada no monte Hara, arredores de Meca.  Lá teve as suas primeiras visões.

O círculo de crentes que aderiram logo à sua religião era assaz limitado e compunha-se de sua mulher Cahditscha, do seu escravo Zaid, dos dois mequenses Othman e Abu Bekr e de seu jovem primo Ali, que mais tarde adotou o nome de honra Areth Allah (4), e que foi um dos mais infelizes heróis do islamismo.

Ali, cujo nome significa o grande, o sublime, nascera no ano de 602 e gozava em tão alto grau da estima de Maomé que recebeu a filha deste por esposa. Quando

 

(2) Servo do Altíssimo.

(3) Muito louvado.

(4)    Leão de Deus.

 

pela primeira vez no círculo de sua família leu o profeta as proposições de sua religião e perguntou aos circunstantes: "Quem de vós quer se tornar adepto de minha seita?" todos silenciaram. Exceto, porém, o menino Ali, que entusiasmado pela poesia de que as proposições se achavam impregnadas, bradou decididamente: "Eu, e jamais dela me separarei!"

Essa sua atitude jamais foi esquecida pelo profeta.

 

A CISÃO DO ISLAMISMO

Ali foi um valente, um audaz guerreiro e a ele deve-se em grande parte haver-se depois, tão celeremente divulgado o islamismo. Contudo, ao falecer Maomé, sem uma disposição de sua última vontade, foi preterido, elegendo-se Abu Bekr, sogro do profeta, para califa (5). Este foi sucedido no ano 634 por um segundo sogro de Maomé, de nome Omar, sucedido mais tarde por Othman, um genro do profeta. Este foi assassinado no ano 656 por seu próprio filho Abu Bekrs. Atribuiu-se então a Ali o mando de tal assassínio e quando ele foi eleito, muitos chefes de Estado recusaram-se prestar-lhe juramento de fidelidade. Durante quatro anos combateu Ali pela sua sustentação no Califado e foi apunhalado no ano 660 por Abd-er-Rahman. Foi enterrado em Kufa, onde ainda hoje existe um monumento erigido em sua memória.

Data daí a cisão dos maometanos em dois exércitos contendores, em que se dividiram os sumitas e os chiitas. A cisão em apreço era motivada menos por princípios islamíticos que pela questão pessoal da sucessão ao Califado.  Os partidários da Chia afirmavam que não a Abu Bekr, Omar e Othman, mas a Ali cabia em primeiro lugar suceder a Maomé, como seu substituto imediato que o era de direito e de fato.

Ali deixou dois filhos, Hassan e Hossein. O primeiro foi pelos chiitas eleito califa, ao passo que os partidários de Sunna Muavijá I, o fundador dinastia dos ommajjaden, elevaram este ao referido cargo. Este último transferiu a sua residência para Damasco, tendo sido um dos seus primeiros atos dar o caráter de hereditariedade à sucessão ao Califado. Ainda em vida fêz sagrar califa ao seu filho Dschesid, o qual mais tarde revelou-se um califa tão furibundo que a sua memória, mesmo pelos sumitas, é lembrada com impropérios. Hassan não pôde vencer Muavijá para manter-se no califado e morreu envenenado em Medina, lá pelo ano 670.

O seu irmão Hossein contrapôs-se ao reconhecimento de Dschesid e tornou-se o herói do mais trágico episódio da história do islamismo.

A mão do califa Muavijá pousava, sinistra, sobre as províncias e os seus governadores o apoiavam com todas as forças e poder de que dispunham. Assim, por exemplo, o governador de Basra ordenou, sob pena de morte, que depois do pôr do sol ninguém saísse às ruas. À noite, logo após a decretação desta lei, cerca de duzentas pessoas foram encontradas fora de suas casas e impiedosamente decapitadas. Na noite seguinte diminuiu o número de decapitações e assim sucessivamente até que a lei foi cumprida com todo o seu rigor. O mais cruel e

 

(5)    Substituto, Lugar-tenente.

 

hediondo dos ommajjaden era Hadjadch, governador de Kufa, cujas tiranias custaram a vida a 120.000 pessoas.

Mais tirano ainda que Muavijá, tornou-se seu filho, o califa Dschesid. Ao tempo de suas atrocidades, achava-se Hossein em Meca, onde recebeu um chamado para ir a Kufa, a fim de ser investido nas funções de califa. Hossein atendeu ao chamado para desgraça sua.

Acompanhado de cem dos seus partidários quando chegou ele em Kerbelá, diante de Kufa, já encontrou a cidade sitiada pelos seus inimigos. Em vão, tentou toda sorte de negociações tendentes a um acordo. Esgotaram-se-lhes as provisões em vitualhas, a água secara à ação da causticante canícula; os animais, exaustos, tombaram e Hossein com seus companheiros de olhos encovados e febris viam o espectro da morte deles se aproximar a passos rápidos. Em vão clamava ele a Alá por salvação. O ocaso de sua vida "se achava escrito nos livros". Nisso, Obeid Allah, um dos condutores do exército de Dschesid invadiu o seu acampamento, massacrou os companheiros de Hossein e a este mandou depois decapitar. Todos já se achavam próximos da morte, mas nem essa circunstância comoveu ao tirano opressor. Contudo, os massacrados portaram-se com raro heroísmo, resistindo tanto quanto suas forças já combalidas ainda permitiam resistir. A cabeça de Hossein foi espetada na ponta de uma lança e carregada em triunfo.

Isto sucedeu no dia 10 de Moharrem; este dia ainda hoje é de luto para os chiitas. No Indostão costumam conduzir um quadro com a cabeça de Hossein espetada na lança, tal qual sucedeu depois de sua morte; com uma ferradura trabalhada em custoso metal, simbolizam-se os seus perseguidores. Todos os anos, no dia 10 de Moharrem, de Bornéos a Celebes, através das índias e da Pérsia até o mogreb (6) da Ásia, onde os chiitas possuem adeptos dispersos ressoa um brado de dor e angústia, e em Kerbela realiza-se uma representação dramática impregnada de inimagináveis cenas de desesperação. Ai do sumita, ai do giaur que neste dia estiver em Kerbela, entre os chiitas vermelhos de agitação e sedentos de vingança. Será cortado aos pedaços!

Esse intróito histórico, é para melhor compreensão dos fatos que passarei a narrar.

 

A PESTE D’ALEPO

Quando ainda no Zab, tomamos a deliberação de costeá-lo e nos dirigirmos até o Chirbani, para, depois, cavalgarmos com destino aos domínios dos curdos do Zibar. Até Chirbani, achavamo-nos munidos de recomendações do bei de Gumri e do melek de Lizan, e dali por diante esperávamos obter outras proteções. Os chirbanis nos acolheram com hostilidade, mas pelos zibaris fomos recebidos bastante hostilmente; contudo, consegui depois conquistar-lhes a amizade. Sem incidentes de maior monta, atingíramos o rio Akra, onde nos chocamos com a malquerença nata das populações montanhesas e, após várias experiências graves no terreno prático, resolvemos dirigir-nos para o sul. Atravessamos então o Zab ao

 

(6) Oeste

 

oeste do Shara Surgh, deixando a aldeia Pir Hasan à nossa esquerda e fomos obrigados, dada à circunstância de nós não podermos fiar nos curdos ali moradores, a dirigirmo-nos para o sudoeste. Seguindo este rumo, era intento nosso dobrar à direita para de qualquer forma alcançar o Tigre, entre Dyaleh e o Pequeno-Zab. Contaríamos com uma acolhida cordial da parte do árabes-zcherboas, se eles nos pusessem à disposição um guia de confiança. Mas infelizmente tivemos de constatar, em lá chegando, que aqueles se haviam aliado com os obeides e Beni-Lams para fazer sentir às tribos, residentes entre o Tigre e o Thatar, a ponta de suas lanças. É verdade que os chammares mantinham relações de amizade com um dos ferkahs dos obeides, cujo xeque era Eslah el Mahem, mas este homem podia também ter mudado de idéias, esquecendo-se daquela amizade. E quanto aos demais ferkahs sabia Maomé Emin serem todos eles inimigos dos haddedins. Nessa conjuntura, o mais aconselhável seria desviar a nossa rota para Sulimania e lá resolver a melhor forma de prosseguir a jornada. Conseguíramos libertar Amad el Ghandur e trazê-lo até aqui assim era preferível fazer uma grande volta no caminho em vez de nos atirarmos em novos perigos.

Depois de algum tempo, chegamos à montanha-norte do Zagros..

Era noite e acampamos na orla de um bosque de tschimar (7). Sobre nós brilhava um firmamento tão límpido e claro como só se observa naquelas regiões. Achavamo-nos nas fronteiras persas e a Pérsia é celebrada pela doçura de sua atmosfera. A luz das estrelas sobre a terra era tão clara que, não obstante não se achar àquela época a lua nem no calendário, nem no céu, eu podia ver as horas no mostrador do meu relógio a três passos de distância. Uma leitura, mesmo nos menores caracteres gráficos, ser-me-ia possível naquela noite tão fartamente estrelada. Os raios de Júpiter eram tão intensos, que mesmo com as lentes de um telescópio aumentadas em seu mais elevado grau, não se lhe distinguiriam os satélites, salvo se se procurasse com a margem do instrumento encobrir o corpo do planeta. Até as estrelas telescópicas eram visíveis naquela região de céu tão lindo e maravilhoso. A sétima estrela da constelação das Plêiades podia-se distinguir no céu sem maior esforço de visão. A intensa claridade de um tal firmamento causa profunda impressão ao nosso ser e agora eu compreendia a razão de ser a Pérsia cognominada a pátria da astrologia.

O local era ótimo para um acampamento. Acendemos um fogo para assar o cordeiro que compráramos a um pastor.

Os nossos cavalos pastavam nas imediações. Nesses últimos dias a nossa expedição lhes exigira o máximo das forças. Mereciam bem alguns dias de descanso, o que infelizmente não nos era possível conceder-lhes, de momento. Todos nós passávamos bem, com exceção de sir Lindsay que andava muito irritado.

Havia dias fora ele acometido de uma febre que persistiu durante vinte e quatro horas apenas. Depois cessou-lhe a febre mas com o seu desaparecimento lhe sobreveio um daqueles horríveis presentes orientais, que o latim classifica de Febris Aleppensis e que o francês denomina de Mal d’Aleppo ou Bouton d’Alep. Essa "peste d’Alepo" que acomete não só as pessoas como também determinados animais, como cães e gatos, em geral é precedida de uma curta febre, à qual

 

(7) Plátanos orientais.

 

sobrevem então um grande tumor no rosto, nos braços, no peito, nas pernas, ou no nariz. Esse tumor durante um ano inteiro produz secreções contínuas e ao desaparecer deixa na região uma cicatriz para toda a vida. O nome dessa peste não é lá muito adequado, visto que ela não grassa apenas em Alepo mas também nas regiões de Antióquia, Mussul, Diarbekr, Bagdad e nalgumas zonas persas.

Eu já me acostumara a ver constantemente pessoas com tumores d’Alepo mas não em tamanho tão descomunal como o que acometera o nosso bom Mister Lindsay. O pior, porém, não era a enormidade do tumor, mas a circunstância de haver este escolhido justamente o nariz para nele se alojar, aquele pobre nariz que já arcava com o peso de sua natural deformidade. E o nosso inglês não suportava o mal com displicência, conforme lhe cabia na qualidade de legítimo representante da

very great and excellent nation, mas explodia numa cólera e impaciência, que chegavam a causar dó aos companheiros de caravana.

Agora se achava ele sentado à fogueira do acampamento e limpava a pústula do nariz.

— Mister, disse-me ele. — Olhe aqui!

— Aí onde?

— Hum! Tola pergunta! Para minha cara, naturalmente! Yes! Tornou a crescer esta coisa?

— Crescer o que, homem?

— ‘sdeath! O tumor do nariz! Cresceu muito?

Muitíssimo. Adquiriu até o formato de um pepino.

— All devils! Horrível! Medonho! Yes!

— É provável que seu nariz com o tempo se transforme num Fowling-bull, sir!

— Quer levar um sopapo de mim, mister? Estou ao seu inteiro dispor para isso! Eu quisera que o senhor também tivesse um desses miseráveis swellings (8) no nariz!

— Sente dor?

— Não.

— Dê-se por satisfeito então!

— Satisfeito? Zounds! Como posso estar satisfeito, se toda gente julga que meu nariz nasceu acompanhado de snuff-box! (9) Que tempo acha que o tumor levará para curar?

— Um ano mais ou menos, sir!

O homem lançou-me um olhar tão raivoso, que estive prestes a recuar de susto. Abriu a boca de modo que o nariz com o seu snuff-box nela poderia ter entrado a dar um passeiozinho, se a isso estivesse disposta

— Um ano?! Um ano inteiro? Doze meses em cheio?!

— Mais ou menos.

— Oh! Ah! Horrible! Pavoroso! Tremendo! Não há meio para evitar isso? Emplastro? Pomada? Compressas? Estirpação do tumor?

— Nada, nada disso!

 

(8) Intumescimento.

(9) Caixinha de rape.

 

— Mas para todos os males há remédios!

— Exceto para esse, sir. O intumescimento do seu nariz não é em si perigoso, mas se nele fizer incisões, massagens etc, pode facilmente agravar-se e acarretar-lhe sérias complicações.

— Hum! E depois de sarar, que sucederá?

— Conforme. Quanto maior o tumor tanto maior a cicatriz, ou orifício que ele deixará no nariz.

— My-sky! Uma cicatriz, um orifício?

Infelizmente, sim.

— Que desastre! Horrível esta terra! Zona miserabilíssima! Vou tratar de voltar a Old England!

— Espere ainda um pouco, sir!

— Por quê?

— Que diriam lá na velha Inglaterra de Sir David Lindsay, quando vissem haver ele permitido ao nariz abrir uma filial?

— Hum! Tem razão, mister! Até os garotos me incomodariam. Continuarei, pois, aqui até...

 

HOSPITALIDADE QUE TRAZ COMPLICAÇÕES

— Sídi, — interrompeu-o Halef — não olhe para trás!

Eu me achava sentado de costas voltadas para o bosque e logo percebi que o meu criado notara alguma coisa de suspeito por trás de mim.

— Que estás a ver? — perguntei-lhe.

— Dois olhos a te fitarem. Bem por trás de ti estão dois plátanos e por entre eles ergue-se um tufo de pêras silvestres. Nesse tufo esconde-se o homem que nos está a observar.

— Vês ainda os olhos dele?

— Espera um momento.

O homenzinho, portando-se com a maior naturalidade possível a fim de não provocar as suspeitas do espião examinou novamente o esconderijo deste, ao mesmo tempo que eu instruía aos demais a se postarem, como se nada houvessem percebido.

— Está lá ainda o homem! — declarou Halef.

Levantei-me, dando aparências de quem ia juntar galhos secos para o fogo. Com isso, me afastei do acampamento a uma tal distância que não podia mais ser visto. Depois entranhei-me no macegal do bosque e, de esgueira primeiro, e de gatinhas depois voltei para o ponto primitivo. Cinco minutos após me achava por trás dos dois plátanos e tive então oportunidade de mais uma vez constatar a excelente acuidade visual de Halef. Entre as árvores e a moita acocorava-se realmente um homem a observar o nosso acampamento.

Por que nos estaria espionando? Achavamo-nos acampados numa região onde num perímetro de milhas e milhas não se achava estabelecida nenhuma aldeia. É verdade que nas vizinhanças havia várias tribos menores de curdos que se degladiavam e também podia ser que alguma clã nômade de persas houvesse atravessado as fronteiras com o fito de perpetrar algum saque ou roubo. Confirmado este último caso, muitos restos de tribos desbaratadaas e dizimadas havia por lá que de boamente se juntariam a qualquer clã que lhes aparecesse.

Não podia pois descuidar-me. Aproximei-me do espião e rapidamente o peguei pela garganta. O homem de tal modo se assustou que ficou hirto e nem reagiu quando o ergui do solo; transportei-o então para junto da fogueira.

Lá o depus no solo e saquei do punhal.

— Não te mexas, porque do contrário te apunhalarei! — ameacei-º

Nem por isso me animavam propósitos maus, ao fazer-lhe aquela ameaça, mas o batedor levou-a a sério. Ajoelhou e de mãos postas suplicou:

— Senhor, perdão!

— De boamente! Mas se mentires serás um homem morto! Quem és tu?

— Sou um turcomano e pertenço à tribo dos bejates.

Um turcomano nestas alturas? Pelo seu modo de trajar-se, podia ser que realmente estivesse dizendo a verdade. Também sabia eu que outrora turcomanos se haviam estabelecido entre o Tigre e as fronteiras persas e era igualmente certo que estes pertenciam exatamente a tribo dos bejates. O deserto de Lura e as planícies de Tapespi haviam sido o teatro de suas tropelias. Quando, porem, o xá Nadir atacou o Ejalet de Bagad, arrastou a tribo dos bejates para Khorassan. O xá designava esta última província de “espada da Pérsia”, devido à sua admirável situação estratégica e esforçava-se por povoa-la de atilados guerreiros.

— Um bejate? — perguntei-lhe. — Mentes!

— Digo-te a verdade, Senhor.

— Os bejates não moram nesta zona, mas na longínqua Khorassan.

— Tens razão neste ponto; mas quando outrora abandonaram esta zona, aqui deixaram alguns dos seus guerreiros, cujos descendentes hoje se contam em mais de mil guerreiros. Os nossos territórios ficam situados nas proximidades das ruínas de Kizzel-Karaba e nas margens do Kuru-Tschai.

Lembrei-me de já haver realmente ouvido dizer isso.

— E atualmente vos achais nas proximidades deste bosque?

— Sim, Senhor!

— De quantas cabanas se compõe o vosso acampamento?

— Não temos cabanas.

Aquilo levantou-me suspeitas. Quando uma tribo nômade deixa o seu acampamento sem levar as cabanas, é sinal certo de que sai em prática dalgum roubo ou assalto, ou então anda em expedição de guerra, a tomar alguma desforra.

— De quantos homens compõe-se o teu atual acampamento?

— De duzentos.

— Inclusive mulheres?

— Elas não se acham em nossa companhia.

— Onde estais acampados?

— Perto daqui. Ao dobrares lá aquela curva do mato, avistarás o nosso acampamento.

— Notastes então a nossa fogueira?

— Notamos sim, e o Khan destacou-me para observar que gente era a que aqui acampava.

— Para onde vos dirigis na presente expedição?

— Rumo ao sul.

— Qual é a localidade do vosso objetivo?

— Pretendemos atingir as cercanias de Sinna.

— Mas Sinna é território persa!

— Realmente. Os nossos amigos que lá moram vão realizar uma grande festa e nós nos achamos em caminho para nelas tomarmos parte, a convite deles.

Outra afirmativa que provocava suspeitas. Aqueles bejates possuíam a sede de sua residência nas margens do Kuru-Tschai e nas proximidades das ruínas de Kizzel-Karaba, portanto nas cercanias de Kifri. Esta cidade, porém, ficava muito distante ao sudoeste do nosso atual acampamento, ao passo que Sinna ficava muito mais perto, na região do sudeste. Por que então não se dirigiam os bejates diretamente de Kifri a Sini? Por que estavam fazendo aquela enorme volta? Com o fito de esclarecer essa estranha circunstância, perguntei-lhe:

— E que estais fazendo aqui? Com que fim alongais ao dobro o vosso caminho?

— Porque pelo caminho mais próximo teríamos de atravessar o território do Paxá de Sulimania que é nosso inimigo.

— Mas da mesma maneira vos encontrais atualmente também em território do mesmo Paxá!

— Mas ele jamais pensa em nos encontrar cá em cima. Ele sabe que caímos em expedição e julga havermos tomado o sul.

Aquela asserção, sim, soava de um modo mais verossímil; contudo eu não me fiava ainda lá muito no homem. Ademais, considerei que a presença daqueles bejates só nos poderia ser vantajosa. Sob a proteção deles poderíamos, sem sermos molestados, alcançar Sinna e de lá em diante não precisávamos recear mais perigo algum. O turcomano me veio ao encontro daquela aspiração, perguntando-me:

— Senhor, não me soltarás? Eu nada te fiz!

— Tu procedeste segundo ordens recebidas; estás em liberdade!

O homem respirou aliviado.

— Muito obrigado, Senhor! Para onde pretendeis seguir, se me permites a pergunta?

— Para o sul.

— E vindes do setentrião?

— Exatamente. Procedemos das montanhas dos Tijaris, da terra dos berwaris e dos caldeus.

— Então sois homens muito valentes e corajosos. A que tribo pertenceis?

— Este homem e eu somos emires de Frankistão e os demais amigos nossos.

— De Frankistão? Senhor, quereis viajar conosco?

— Seremos acolhidos na expedição pelo vosso khan?

— Sereis, sim. Todos sabemos que os frankes são grandes guerreiros. Queres que eu vá avisá-lo de vossa presença aqui?

— Vai e pergunta-lhe se ele está disposto a nos acolher!

O batedor levantou-se e saiu. Os companheiros concordaram todos com a minha resolução, principalmente Maomé Emin com ela muito se alegrou.

— Efêndi, — declarou este — já ouvi falar muito nos bejates. Eles vivem em eternas contendas com os dcherboas, obeides e beni-lames e por isso nos serão úteis. Contudo não lhes dirás ainda que meu filho e eu somos haddedins. É melhor ignorarem tal particularidade.

— Desde já precisamos tomar todas as cautelas, visto ignorarmos ainda se seremos bem acolhidos pelo khan. Ide buscar os vossos cavalos e armai-vos para estardes preparados para qualquer emergência.

Ao que parecia, os bejates realizaram uma grande conferência a nosso respeito, pois antes de darem sinal de si, já havíamos assado e saboreado o cordeiro. Finalmente, percebemos ruídos de passos nas folhas secas do bosque. Daí a pouco surgiu-nos o turcomano que havia pouco estivera conosco. Vinha na companhia de três camaradas.

— Senhor, — declarou ele de chegada — venho agora oficialmente da parte do khan. Temos ordens de vos conduzir ao nosso acampamento, onde sereis bem-vindos.

— Neste caso, caminha à frente e nos guia!

Montamos e o seguimos mas, por via das dúvidas, de espingardas nas mãos. Ao dobrarmos a curvatura do mato, há pouco referida pelo bejate, nada notamos em nossa frente que desse a idéia dum acampamento. Depois de atravessarmos uns densos tufos, porém, chegamos a uma clareira do bosque, na qual ardia uma enorme fogueira. Fora excelente a escolha daquele local para acampamento, visto que do lado de fora não era notada

Haviam acendido o fogo não para aquecer os expedicionários, mas a fim de assar-lhes as provisões. Duzentos vultos escuros se achavam deitados no solo nas vizinhanças da fogueira e junto a esta estava sentado o khan, que à nossa aproximação ergueu-se com lentidão. Cavalgamos diretamente a ele e lá chegando apeamos.

— A paz seja contigo! — saudei-o.

— Mi newahet kjerdem! Aceita minha saudação! — respondeu-me ele, inclinando-se respeitosamente.

O gesto era caracteristicamente persa. Talvez que com isto me queria ele provar ser realmente um bejate, cuja tribo-tronco se achava estabelecida em Khorassan. O persa é o verdadeiro francês oriental. Seu idioma é flexível e sonoro, razão por que se tornou a língua das cortes de diversos regentes e príncipes orientais. Mas as suas maneiras corteses, lisongeiras e às vezes servis até, jamais produziram-me boa impressão. O tratamento ríspido, a rude franqueza do árabe agrada-me muito mais.

Todos os membros da expedição levantaram-se e solicitamente estendiam as mãos para pegar das rédeas dos nossos cavalos, para os acomodar. Não lhes entregamos, porém, os animais porque não podíamos saber se se tratava de um gesto de hospitalidade ou de um ardil para nos roubarem os animais.

— Confiai-lhes os cavalos, que eles os acomodarão! — pediu o khan.

Resolvi pôr tudo às claras primeiro, razão por que lhe perguntei em idioma persa:

— Hestiirchad engiz? Garantes pela nossa segurança pessoal e dos nossos têres?

O khan inclinou a cabeça em sinal de afirmação e, levantando os braços, exclamou: — Mi saukend chordem! — Juro-o! Sentai-vos ao meu lado e palestremos!

Os bejates levaram os cavalos, exceção feita do meu Rih, que Halef ainda segurava. O meu criado compreendia admiravelmente bem minhas preferências. Nós outros tomamos lugar com o khan em torno da fogueira, Era um homem de meia idade de aparência marcial. Os traços fisionômicos eram-lhe francos e despertavam logo a confiança de que dele se acercasse; pela distância respeitosa em que os seus súditos tomaram lugar no acampamento inferia-se quanto o acatavam e estimavam.

— Já me conheces através do nome? — informou-se ele iniciando a palestra.

— Ainda não — respondi-lhe.

— Sou o Heider Mirlam (10), sobrinho do celebrado Bey Hassan Kerkusch. E neste já ouviste falar?

— Neste sim. Residia nas proximidades da aldeia de Dchenijah, situada na estrada real que liga Bagdad a Tauk. Foi um valente guerreiro, o que lhe não impedia de amar a paz; todo o desamparado encontrava nele acolhida e proteção.

Ele declinara-me o seu nome e a cortesia mandava que eu lhe declinasse também o meu. Por isso prossegui.

— O teu batedor já te deve ter dito que sou um franke. Quanto ao meu nome costumam chamar-me Kara Ben Nemsi e estou sempre ao teu....

Não obstante o domínio de si próprio a que está sujeito todo guerreiro oriental, o homem não pôde conter um brado de entusiasmo:

— Ajah... oh! Kara Ben Nemsi! Então este teu companheiro de vermelho é um emir do Inglistão que anda a desenterrar pedras e documentos?

— Já ouviste falar nele?

— Claro senhor! Tu me citaste apenas o teu nome, mas eu já conhecia tanto a ti como a ele através de notícias que recebi. Aquele homenzinho que segura a tua montaria é o pequeno Hadji Halef Ornar, tão temido por muitos grandes e poderosos?

— Adivinhaste.

— E quem são os outros dois?

— São amigos meus, que depuseram os seus nomes no Kuran (11). Quem te deu notícias nossas?

— Conheces o Ibn Zedar Ben Huli, o xeque dos Abu Hammed?

— Conheço. É amigo teu?

— Não é nem amigo e nem inimigo. Fica descansado. Não me compete a mim tomar de ti vinganças no seu lugar.

— Nem tenho receio disso!

— Crei-o. Encontrei-o de uma feita em Eski Kifri e então ele me disse seres tu o culpado de estar ele pagando tributos. Acautela-te senhor! O xeque te matará no dia em que lhe caires nas mãos.

— Pois já estive nas suas mãos, sem que elas me tivessem morto! Fui seu prisioneiro mas ele não conseguiu deter-me por muito tempo.

 

(10) Leão Míriam.

(11) Significa: — "Oculta o nome por motivos que precisam ficar ignorados."

 

— Soube de tudo. Mataste sozinho o leão e no escuro; depois envolvendo-te na sua pele te retiraste a cavalo. E achas que também eu não te conseguiria deter no caso de seres meu prisioneiro?

Aquela pergunta provocou-me logo graves suspeitas do homem. Contudo respondi-lhe calmamente:

— Não me deterias, não! Aliás, não sei de que modo te seria possível levar a efeito o meu aprisionamento!

— Senhor, atenta para a circunstância de sermos duzentos, ao passo que vós sois apenas cinco! ..

— Khan, não te esqueças de que entre esses cinco há dois emires do Frankistão, que valem tanto quanto duzentos bejates!

— Falas com excessiva soberba!

— E tu me fazes perguntas não condizentes com o espírito de hospitalidade! Devo pôr em dúvida a sinceridade das palavras com que nos acolheste, Heider Mirlam?

— Sois meus hóspedes, não obstante não conhecer eu os nomes desses outros dois homens. E na minha companhia sereis servidos de pão e carne.

Um sorriso respeitoso aflorou-lhe aos lábios e o olhar que dirigiu aos dois haddedins dizia-me o bastante. Maomé Emin em virtude de sua lindas barbas, longas e brancas como neve seria reconhecido entre mil.

A um sinal do khan foram trazidos vários pedaços quadriculares de couro, nos quais nos foram servidos pão, carne e tâmaras. Após havermos comido alguma coisa daquela refeição, foi-nos fornecido fumo para os cachimbos que o khan em pessoa nô-los acendeu.

Após tal cerimônia, sim, podíamos estar certos de que éramos hóspedes seus na verdadeira acepção do termo, razão por que fiz sinal a Halef para acomodar o Rih juntamente com os demais cavalos. Ele o fêz e depois sentou-se em nossa companhia.

— Qual o termo de vossa jornada? — informou-se o khan.

— Dirigimo-nos a Bagdad — respondi-lhe cautelosamente.

— E nós a Sinna — volveu ele. — Quereis fazer-nos companhia?

— Permitir-nos-ás?

— Terei imenso prazer em vos ter na minha expedição. Aperte-me a mão, Kara Ben Nemsi! Que meus irmãos sejam teus irmãos e que meus inimigos sejam teus inimigos!

Depois apertou a mão de todos os demais, pronunciando as mesmas frases; os companheiros estavam satisfeitíssimos por haverem, inesperadamente, encontrado um amigo e protetor. E no entanto, por havermos aceito aquela amizade e aquela proteção mais tarde haveríamos de nos arrepender amargamente. O chefe dos bejates não era, aliás, mal intencionado conosco; mas viu logo que nos acolhendo, fazia uma excelente aquisição que mais tarde lhe haveria de trazer extraordinárias vantagens.

— Quais são as tribos que se encontram no caminho, daqui para Sinna? — informei-me dele.

— Esta região é livre e nela ora uma ora outra tribo apascenta os seus rebanhos. Aquela que fôr a mais forte é a que fica dona da situação!

— Que tribo vos convidou para as festas?

— A dos dchiafes.

— A tua tribo deve estar orgulhosa desta amizade, pois os dchiafes são as mais poderosas de todas as tribos do país! Os xeques Ismael, Zengeneh, Kelogawani, Kelhore e até o Chenki e o Hollali a temem.

— Emir, já estiveste aqui de alguma feita?

— Nunca.

— Mas conheces todas as tribos da zona.

— Não te esqueças de que sou um franke!

— Sim, os frankes sabem de tudo, mesmo de coisas que nunca viram, Já ouviste também falar a respeito da tribo dos bebbehs?

— Já. É a tribo mais rica: possui uma enorme extensão do país e tem as suas aldeias nos arredores de Sulimania.

— Estás bem informado. Tens amigos ou inimigos entre eles?

— Nem uma cousa nem outra. Nunca me encontrei com um bebbeh,

— É possível que todos vós venhais a conhecê-los.

— Pretendeis encontrá-los na presente expedição?

— Não pretendemos, até as evitamos o mais que é possível. Mas mesmo assim pode suceder que eles se nos atravessem no caminho.

— Conheces bem a estrada daqui a Sinna?

— Muito bem.

— A que distância fica daqui?

— Bem montado, pode-se alcançá-la em três dias de viagem.

— E daqui a Sulimania?

— Podes alcançá-la em dois dias.

— A que horas levantareis acampamento amanhã?

— Assim que sair o sol. Quereis deitar-vos a dormir?

— Como achares melhor.

— A vontade do hóspede constitui lei em nossos acampamentos e vós deveis estar cansados, pois tu até já depuseste o cachimbo. Também o Amasdar, (12) está com os olhos pequeninos. Deixo-vos ao descanso!

— Bejeted chirinkar! Que nobres costumes os dois bejates! Permite então que estendamos os nossos cobertores!

— Estendei-os! Allah aramed chumara! Deus que vos conceda um bom sono!

A uma ordem sua, foi-lhe trazido um tapete para servir-lhe de leito.. Os meus companheiros se puseram bem à vontade; eu, porém, emendei o laço às rédeas do Rih e amarrei uma das extremidades no braço. Daquela maneira, o esplêndido garanhão poderia pastar a seu bel prazer e eu o tinha em segurança. Além disso, como me resolvera deitar, a uma distância do acampamento, Dojan se acomodou ao meu lado, reforçando-se deste modo a vigilância ao animal.

Assim passou-se um tempo. Não havia eu ainda cerrado os olhos, quando vi que alguém se aproximava de mim. Era o inglês que estendeu, seus dois cobertores ao meu lado e se deitou.

Bela camaradagem esta! — murmurou ele. — Estou lá sentado feito dois

 

(12) O homem do tumor: Lindsay.

 

de pau, sem perceber nada do que falam! Pensei merecer eu ao menos a atenção de me ser traduzida a palestra! Mas nisso, o tal que se diz meu amigo, deu às de Vila Diogo do acampamento, sem sequer me distinguir com um olhar! Hum! Muito obrigado, sir!

— Perdoe-me, sir! Realmente me havia esquecido do senhor!

— Havia se esquecido de mim! Estás cego ou não sou suficientemente grande?

— Ora essa, na vista o seu vulto cai logo, principalmente depois que se supriu de um farol sobre a face. Mas afinal que quer saber?

— Tudo! Ademais, deixemos de uma vez por todas, dessa coisa de farol sobre a face! Que esteve a falar com aquele xeque, khan ou coisa. que o valha?

Transmiti-lhe toda a palestra.

— Well! É promissor para nós esse encontro! Não é?

— Claro. Três dias de viagem em segurança já é alguma coisa,

— O senhor declarou que seguiria para Bagdad? Falou seriamente, sir?

— Realmente seria para nós a rota preferível, mas infelizmente não. há possibilidade de tomá-la.

— Por que não?

— Porque primeiramente temos que voltar aos campos forrageiros dos haddedins, onde o senhor deixou o seu criado, além disso muito sentiria se me visse obrigado a separar-me de Halef, em meio da jornada. Não o deixarei antes de o saber são e salvo, junto de sua jovem esposa.

— Faz muito bem! Yes! Um portento aquele homenzinho! Vale dez mil libras esterlinas! Well! Além disso, eu gostaria muito de voltar para lá.

— Por quê?

— Por causa dos fowlings-bulls.

— Oh! antiqualhas há também nas proximidades de Bagdad, por exemplo entre as ruínas de Hila. Lá há campos de ruínas que se estendem a milhas e milhas geográficas, não obstante não haver sido Babilônia tão grande como Nínive.

— Oh! Ah! Vamos até lá! Yes! Rumo de Hila! Não é assim?

— Por enquanto não nos entusiasmemos ainda com isso. O principal para nós de momento é atingirmos incólumes as margens do Tigre. O resto depois se resolverá com mais calma.

— Bem! Mas para Hila haveremos de seguir um dia! Yes! Well! Good night!

— Boa noite!

Mal pensava o bom do inglês que chegaríamos àquela região antes e em circunstâncias bem diversas das que supúnhamos. Enrolou-se no seu cobertor e daí a instantes roncava dormindo o sono do justo. Adormeci também em seguida, constatando, porém, antes que quatro dos bejates haviam montado a cavalo e abandonado o acampamento.

Quando me acordei já raiava o dia e os turcomanos estavam ocupados no tratamento de seus cavalos. Halef que já se achava também de pé notara igualmente a partida durante a noite dos quatro bejates e me comunicou o fato.

— Sídi, por que expedem emissários, se realmente estão bem intencionados conosco?

— Não creio que os quatro cavaleiros foram expedidos por nossa causa. De mais a mais, já estaríamos completamente no poder do khan se este alimentasse propósitos hostis a nosso respeito. Fica, pois, descansado, Halef!

Calculei logo que os quatro batedores haviam sido expedidos unicamente para fazer um reconhecimento do caminho, devido aos perigos de que estavam minados. A um pedido de informações que fiz ao khan, verifiquei depois que fora acertada a minha suposição.

Depois de uma frugalíssima merenda, composta apenas de algumas tâmaras, levantamos acampamento e prosseguimos viagem. O khan dividira a tropa em grupos, que cavalgavam a distância de quinze minutos uns dos outros. Via-se daí ser ele um homem previdente que cuidava carinhosamente da segurança de seus súditos.

Cavalgamos ininterruptamente até ao meio dia. Quando o sol já havia atingido o zênite, fizemos uma parada para descansar os animais. Durante toda a nossa cavalgada, não encontráramos pessoa alguma e nas moitas e árvores da orla da estrada encontrávamos sinais ali deixados pelos quatro batedores, sinais que nos indicavam o rumo a tomar.

Esse rumo afigurava-se-me enigmático. Do nosso acampamento da noite, ficava Sinna ao sudoeste, mas ao invés de seguirmos aquele rumo, haviamo-nos desviado diretamente para o sul.

— A tua expedição não tem por objetivo visitar os dchiafes?

— Conforme já te disse, sim.

— Aquela tribo nômade, não se acha atualmente nas redondezas de Sinna?

— Exatamente.

— Mas se continuarmos a cavalgar por este rumo, jamais chegaremos a Sinna, mas a Banna ou a Nweizgieh!

— Não preferes viajar a cavaleiro de quaisquer perigos, Senhor?

— Naturalmente!

— E nós também. E por isso é que fazemos uma grande volta, a fim de evitarmos algum contato com tribos inimigas. Até hoje à noite viajaremos numa cavalgada bastante forçada, mas depois poderemos descansar. Esperamos que o caminho para oeste esteja amanhã isento de perigos.

Depois de duas horas de descanso, reencetamos a cavalgada. Penosa era aquela nossa viagem e por muitas vezes fomos obrigados a cavalgar por extensos ziguezagues; havia, pois, muitos pontos, dos quais os batedores julgaram previdente nos afastar.

 

O INICIO DO PERIGO

À noitinha tivemos que transpor um trecho de caminho que se assemelhava um tanto com um desfiladeiro. Eu me conservava ao lado do khan, que dirigia o grupo da vanguarda. Já havíamos quase vencido o caminho, espécie de desfiladeiro, quando nos encontramos com um cavaleiro: este, ao avistar-nos, ficou perplexo, prova de que não esperava encontrar gente estranha pelas redondezas. Afastou-se para o lado, baixou a lança e nos saudou:

— Sallam!

— Sallam! — correspondeu o khan. — Para onde pretendes ir?

— Ao mato, caçar um bergschaj (13).

— A que tribo pertences?

— Sou um bebbeh.

— Tens residência fixa ou és nômade?

— Durante o inverno estabelecemos residência; no verão porém, saímos a apascentar os nossos rebanhos.

— E onde costumais residir no inverno?

— Em Nweizgieh, ao sudoeste daqui. Dentro de uma hora poderás alcançar a nossa aldeia. Os meus companheiros de tribo vos receberão cordialmente.

— De quantos homens compõe-se o grupo de que fazes parte?

— De quarenta. Noutros rebanhos há maior número de companheiros meus.

— Entrega-me tua lança!

— Por quê? — perguntou o homem admirado.

— E a tua espingarda!

— Por quê?

— E a tua faca! Considera-te meu prisioneiro!

— Machallah!

Essa fora uma exclamação de susto, mas no mesmo instante fêz o cavalo se erguer para depois recuar e sair a galope.

— Pegai-me, se quiserdes! — ouviu-se apenas o homem dizer em tom decisivo.

O khan tomou então da espingarda e assestou-a contra o fugitivo. Mal tive tempo de desviar o cano e a bala deflagrou. Naturalmente que o tiro em vista da minha interferência errou o alvo. O khan cerrou os punhos e ergueu-se contra mim. Prontamente, porém, resolveu mudar de resolução.

— Khyangar (14)! Que fazes tu? — exclamou encolerizado.

— Não sou traidor, não — exclamei calmamente. — Viso apenas evitar que incorras nalguma vingança de sangue.

— Mas ele terá que morrer. Se escapar, estaremos perdidos.

— Deixá-lo-ás com vida se eu o trouxer à tua presença?

— Claro. Mas não o pegarás!

— Espera!

Galopei em perseguição do fugitivo. Não se o avistava mais; dai a minutos, porém, quando cheguei ao fim do desfiladeiro, dei com os olhos nele, que galopava a uma boa distância de mim. Diante de mim descortinava-se uma planície coberta por cravos silvestres e do outro lado desta um denso matagal. Se eu deixasse o bebbeh alcançar o matagal, então, sim, jamais o capturaria.

— Rih! — bradei colocando a mão entre as orelhas do garanhão. O valente animal já há dias que vinha sendo forçado a longas cavalgadas; mas àquele sinal, voou pela planície como se já há semanas estivesse a descansar. Em dois minutos me achava apenas à distância de vinte cavalos do bebbeh.

— Pára! — bradei-lhe.

 

(13) Veado.

(14) Traidor.

 

Aquele homem era bastante animoso. Ao invés de fugir ou então parar, conforme eu intimara, fêz o cavalo rodar pelas patas traseiras e depois galopou contra mim. No próximo instante colidiriam as nossas montadas. Vi-o brandir a lança e tomei da espingarda mais leve. Neste meio tempo, desviou ele um pouco para o lado o cavalo e como um raio nos entrecruzamos. A ponteira de sua lança estava dirigida a mim, mas a aparei com felicidade. Continuando na mesma carreira, tomara nova direção, procurando a fuga. Por que não fizera ele uso de sua espingarda?

 

 

 
   

 


Também o seu cavalo não era dos comuns para que sem dó eu o alvejasse, a fim de melhor capturar o prisioneiro.

Desapresilhei o laço do serigote e armei-lhe a laçada. O fugitivo virou-se e viu que eu me aproximava dele. Nunca ouvira ele por certo falar em laço e portanto ignorava os meios de se desviar dessa arma tão terrível, quando bem manejada. Parecia não confiar mais na sua lança, visto que pegava da espingarda, cuja bala não me era possível aparar. Calculei, a olho, à distância que nos separava e precisamente no instante em que ele assestou a arma para a pontaria joguei-lhe o laço. Mal havia eu desviado para o lado o cavalo, senti um arranco no serigote; ressoou um grito e o bebbeh jazia subjugado no solo. Um momento depois me achava junto dele.

— Fôste ferido?

Essa minha pergunta, na conjuntura presente, devia ter soado a chocarrice, pois o homem procurou libertar-se da corda que o prendia e exclamou entre dentes:

— Bandoleiros!

— Enganas-te! Eu não sou nenhum bandoleiro. Desejo que me acompanhes!

— Para onde?

— Para junto do khan dos bejates, de quem acabas de fugir.

— Dos bejates? — Oh! são bejates aqueles homens! Como se chama o khan?

— Heider Mirlam.

— Agora, sei de tudo! Que Alá vos arraste para a ruína, pois não passais de pífios ladrões e canalhas da pior ralé!

— Não invectives! Prometo-te, por Alá, que nada te irá suceder!

— Encontro-me em teu poder e nada mais me resta do que seguir-te.

Tirei-lhe a faca da cinta e juntei do chão a lança e espingarda, caídas ao solo por ocasião da queda, à ação do laço. Depois afrouxei-lhe a corda e montei logo a cavalo a fim de estar preparado para o que desse e viesse. O homem parecia não estar animado de propósitos de fuga. Chamou o seu cavalo e nele montou.

— Eu me fio nas tuas palavras — disse-me. — Vamos!

Galopamos ao lado um do outro, a fim de nos juntarmos aos bejates. Quando Heider Mirlan avistou o fugitivo, desanuviou-se-lhe a fisionomia.

— Senhor, realmente me trazes o prisioneiro! — exclamou o khan.

— Conforme te havia prometido! Dei-lhe, porém, minha palavra de que nada lhe sucederia. Aqui tens as suas armas!

— Tudo ser-lhe-á devolvido mais tarde. Por enquanto, porém, será algemado, para que não nos escape das mãos!

Aquela sua ordem foi logo executada e enquanto isso fomos alcançados pela segunda secção dos bejates. A esta foi confiado o prisioneiro, com as instruções de tratá-lo bem, mas vigiá-lo com todo o rigor. Feito o que, a nossa secção prosseguiu na viagem interrompida.

— Como caiu ele em tuas mãos? — perguntou-me o khan.

— Eu o prendi, simplesmente! — respondi-lhe com laconismo, visto que me achava magoado com a sua atitude anterior.

— Senhor, estás zangado — ponderou o chefe bejate. — Mas concluirás ainda que eu não poderia ter procedido de forma diferente.

— Deus queira!

— Aquele homem não deve tagarelar por aí que os bejates se acham nas proximidades.

— E quando pretendes soltá-lo?

— Assim que o possa fazer sem que sua liberdade nos acarrete algum perigo.

— Reflete bem: aquele homem pertence-me, pois o prendi. E assim, espero que não sejas tu o primeiro a desrespeitar-me a palavra que lhe empenhei!

— E se eu não me preocupasse muito com tua palavra empenhada, que farias então?

— Eu te...

— Matarias? — acudiu o khan atalhando-me.

— Não. Sou um franke, isto é, sou um cristão; só mato a um semelhante quando a minha defesa própria assim o exige. Eu não te mataria, mas aleijaria para o resto da vida o teu braço que contribuiu para a quebra de minha palavra! E então o emir dos bejates seria qual um menino que não está em condições de manejar nem com uma faca, ou então qual uma mulher velha a cuja palavra ninguém dá atenção.

— Senhor, fora outra pessoa que me estivesse a dizer isso, eu me riria em sua própria cara. De ti, porém, não duvido de que tenhas a coragem de agredir-me mesmo em meio dos meus guerreiros.

— E te agrediríamos mesmo, disto podes estar certo! Não há um só entre nós que tema os bejates!

— Nem o Maomé Emin? — perguntou o homem com um sorriso irônico.

— Nem este!

— E tampouco Amad el Ghandur?

— Já ouviste dizer algum dia ser ele um covarde?

— Nunca! Senhor, se vós não fósseis os homens que sois, jamais vos teria eu convidado para nossos companheiros de viagem, visto que vamos trilhando caminhos muito perigosos. Contudo, tenha fé em Alá, que os haveremos de vencer sem novidade.

Anoiteceu e exatamente no instante em que escureceu de tal maneira que se tornou necessário procurarmos um local para acampamento, atingimos um arroio que de um labirinto de penedos, corria para o descampado. Neste haviam feito alto à nossa espera, os quatro batedores expedidos à frente. O khan apeou-se e foi ter com eles demorando-se por algum tempo a palestrar em voz baixa.

Por que procedia ele com tanta discrição? Estaria urdindo algum plano que dele só o khan e os batedores poderiam, por enquanto, ter conhecimento? Um dos quatro saiu à nossa frente e nos conduziu para o interior do labirinto de penedos. Seguimo-lo, levando os animais pelas rédeas e depois de algum tempo chegamos a um lugar cercado por enormes rochas. Aquele local era o mais seguro esconderijo que jamais se poderia achar por aquela zona, embora demasiadamente acanhado para acomodar duzentas pessoas.

— Ficaremos aqui? — perguntei.

— Ficaremos, sim — respondeu Heider Mirlam.

— Mas não todos nós!

— Sim, aqui pernoitaremos apenas quarenta e os demais se acomodarão mais além.

Aquele esclarecimento bastaria para me dissipar qualquer dúvida, mas me admirava ainda que, embora houvéssemos acampado num local muito seguro, não fora aceso um fogo. Também aos companheiros, este fato provocou suspeitas.

— Lindo lugarzinho! — disse Lindsay. — Uma bela arena, não é?

— Realmente.

— Mas úmido e frio, aqui à beira do arroio. Por que não se acende um fogo?

— Não sei. Talvez haja curdos inimigos pelas adjacências.

— Que tem isso? Não nos poderiam ver, apesar do fogo. Hum! Não me está agradando muito isto aqui.

Dito isso, o inglês dirigiu um olhar cheio de dúvidas ao khan, que falava à sua gente com visível empenho de não ser por nós ouvido. Sentei-me ao lado de Maomé Emin, o qual parecia esperar por essa oportunidade, visto que logo me foi perguntando:

— Emir, quanto tempo ficaremos ainda na companhia desses bejates?

— O tempo que melhor te aprouver.

— Se estiveres de acordo, já amanhã nos separaremos deles.

— Por quê?

— O homem que oculta a verdade a outrem, deste não é amigo!

— Tomas o khan por um mentiroso?

— Isto, propriamente, não. Mas não diz tudo o que pensa dos seus companheiros.

— Ele te reconheceu.

— Sei disso; notei-o pelos seus olhares.

— E não só a ti, mas também a Amad el Ghandur.

— Isto é assaz explicável, dada à semelhança dele com o pai.

— E o fato dele te haver reconhecido não te traz apreensões?

— Não. Somos hóspedes dos bejates e estes não nos trairão. Mas por que cargas d’água o khan aprisionou aquele bebbeh?

— Para que ele não vá denunciar a nossa presença aos seus.

— Mas por que não pode ser denunciada, emir? Que terão duzentos cavaleiros bem armados e montados a temer, se não conduzem bagagens, mulheres, crianças e anciãos e menos ainda tendas e rebanhos? Em que região nos encontramos, efêndi?

— Em meio do território dos bebbehs.

— E o khan pretendia visitar os dchiafs? Bem que notei virmos seguindo sempre rumo do setentrião. Por que divide o khan a sua gente cm dois acampamentos? Emir, este Heider Mirlam possui duas línguas, embora talvez não se ache mal intencionado conosco. E, separando-nos dele amanhã, que rumo tomaremos?

— Temos os montes dos Zagros à nossa esquerda. A capital do distrito de Banna deve ficar bem próxima daqui, segundo suponho. Se a atravessarmos, passaremos depois por Amehdabad, Bija, Surene e Bayen-dereh. Por trás de Amehdabad abre-se uma passagem que através de solitários desfiladeiros e soturnos vales conduz ao rio Kizzelzieh. Lá se têm as colinas de Girzeh e Serfir à direita bem como os montes de Kurri-Kazhaf; chega-se às duas correntes d’água Vistan e Karadscholan que fazem junção com o Kizzelzieh para depois desaguarem no lago de Kuipre. Se conseguirmos alcançar o referido lago, estaremos a cavaleiro de perigos, O citado caminho é, naturalmente, muito escabroso.

— Como o sabes?

— Em Bagdad encontrei-me com um curdo-bulbassi, o qual me descreveu a zona com tal precisão que me foi possível organizar um mapa. Espero não precisar utilizá-lo, contudo ele se acha riscado aqui no meu caderno de notas.

— E achas aconselhável tomarmos aquele rumo?

— Embora também eu haja anotado várias veredas por outras localidades, morros e desfiladeiros, considero este caminho o melhor para tomarmos. Poderíamos cavalgar para Sulimania ou, através de Mik e Doweiza, para Sinna, mas não sabemos a maneira por que naquelas zonas seríamos acolhidos.

— Então fica assentado: nos separaremos amanhã dos bejates e seguiremos através dos montes e colinas para o lago de Kuipre. E o teu mapa não te enganará?

— Não, salvo se o curdo-bulbassi me forneceu dados errados.

— Então vamos descansar e dormir por esta noite e deixemos que as bejates façam lá o que bem entenderem!

Levamos os nossos cavalos ao arroio para matarem a sede e depois amarramo-los a uma pastagem. Em seguida os companheiros se deitaram a dormir, ao passo que eu fui procurar o khan.

— Heider Mirlam, onde estão os outros bejates?

— Bem perto daqui. Por que perguntas?

— Com eles acha-se o bebbeh aprisionado, o qual desejo ver.

— Por que desejas vê-lo?

— Por ser meu dever, visto que ele é meu prisioneiro.

— Não é teu, mas meu prisioneiro, pois me entregaste depois de o aprisionares.

— Sobre isso não discutamos. O que desejo agora é apenas procurá-lo, para ver como vai ele passando.

— Vai passando muito bem. Se Heider Mirlam o afirma é porque é verdade. Não te preocupes com o prisioneiro, Senhor, e senta-te ao meu lado; fumemos juntos o nosso cachimbo.

Acedi-lhe ao convite, com o fim de não irritá-lo, mas o deixei logo depois para dormir. Por que não queria ele que eu visse o bebbeh? Maltratado este por certo que não o estava sendo. Neste particular, fiava-me na palavra do khan. Este, porém, alimentava algum propósito que a minha agudeza de espírito não conseguia descobrir. Resolvi à vista disso, com risco próprio, soltar de manhã bem cedo o bebbeh e só depois separar-me dos bejates. Adormeci.

 

DESVENDA-SE A MISTERIOSA ATITUDE DO KHAN

Quando se cavalga desde o amanhecer até à noite, fica-se fatigado mesmo sendo acostumado a cavalgar. Era o que se dava comigo. Dormi sono profundo e não me teria acordado de madrugada se o rosnado do meu Dojan não me houvesse despertado. Abri os olhos, era ainda muito escuro; contudo divisei diante de mim em posição ereta um homem a me contemplar. Puxei da faca.

— Quem és?

A essas minhas palavras despertaram-se também os companheiros e tomaram das armas.

— Não me conheces, Senhor? — foi a resposta. — Sou um dos bejates.

— Que queres?

— Senhor, ajuda-nos! O bebbeh nos fugiu.

Ergui-me de um salto sendo acompanhado pelos companheiros.

— O bebbeh? Quando?

— Não sei. Estávamos todos dormindo quando se deu a fuga.

— Ah! Cento e sessenta homens o vigiavam e contudo ele fugiu!

— Os outros também já estavam no acampamento, àquela hora.

— Queeê?! Os cento e sessenta bejates restantes foram embora?

— Foram, mas voltarão, Senhor.

— Para onde foram, então?

— Não sei.

— Onde está o khan?

— Saiu com a tropa. Segurei o bejate pelo peito:

— Homem, pretendes praticar algum canalismo contra nós? Afianço-te que sairás mal da empreitada!

— Deixa-me, Senhor! Como poderíamos pensar em traição contra vós, que sois nossos hóspedes?!

— Halef, dá uma batida no acampamento e conta o número de bejates que ainda aqui se encontram!

A escuridão era tanta que não se podia lançar um golpe de vista sobre o acampamento. O pequeno Hadji saiu para dar execução à minha ordem.

— Aqui se encontram quatro, — declarou o bejate, — e um está lá na entrada de vigia. No outro pouso, porém, éramos dez e a nós competia guardar o prisioneiro.

— Como conseguiu este fugir? A pé?

— Não. Escapou-nos montado no seu cavalo e levou-nos algumas armas também.

— É uma eloqüente prova do vosso espírito de vigilância!... Mas. afinal, por que vens à minha presença?

— Senhor, captura-nos o prisioneiro!

Quase soltei uma gargalhada. Era sem exemplo a ingenuidade do gesto. Não dei atenção ao pedido e continuei perguntando:

— Não sabeis então para onde foi o vosso khan?

— Não sabemos de fato, Senhor.

— Mas deve ter havido algum motivo para que ele deixasse o acampamento às caladas da noite!

— Claro que sim.

— E qual é?

— Senhor, não é para te dizermos.

— Bem, veremos agora quem manda aqui, se o khan ou eu... Halef interrompeu-me, com o aviso de que realmente só havia mais quatro bejates no acampamento.

— Estes estão ali no canto daquele penedo a nos escutar, sídi! — acrescentou o meu criado.

— Deixa que eles nos escutem. Mas dize, Hadji Halef Omar, as tuas pistolas estão carregadas?

— Já as viste algum dia descarregadas, sídi?

— Bem, tira-as da cinta e se este homem não responder à pergunta que lhe vou fazer pela última vez, manda-lhe uma bala à cabeça! Compreendeste?

— Não te incomodes, sídi! Se ele não te responder logo ao pé da letra não lhe mandarei uma só, mas duas balas ao mesmo tempo!

O homenzinho tirou da cinta as duas pistolas e depois de engatilhá-las, apontou-as para o bejate. Tornei a perguntar a este:

— Por que razão se ausentou do acampamento o teu khan? A resposta não se deixou esperar por um momento que fosse:

— Com o fim de assaltar os bebbehs.

— Os bebbehs? Como me mentiu o vosso khan! Declarou-me ainda esta noite que se dirigia para a zona dos dchiafs.

— Senhor, o khan Heider Mirlan jamais diz uma mentira! Realmente pretende, depois visitar os dchiafs, uma vez que seja bem sucedido no assalto.

Agora atinei com a razão de me haver o chefe dos bejates perguntado se eu era amigo ou inimigo dos bebbehs.

— Viveis em discórdia com os bebbehs? — prossegui no interrogatório.

— Eles é que vivem em discórdia conosco, Senhor. E em represália, tomar-lhes-emos hoje os rebanhos, os tapetes e as armas. Cento e cinqüenta dos nossos homens conduzirão essas presas à nossa aldeia e os cinqüenta restantes acompanharão o khan às festas dos dchiafs.

— Desde que nisso não vos impeçam os bebbehs! — acrescentei.

Com toda a escuridão da madrugada, notei que a essas minhas palavras, o bejate ergueu o busto em soberba postura.

— Aqueles? — retrucou-me. — Os bebbehs são uns poltrões! Não viste hoje como aquele fugiu de nós?

— Sim, mas era um contra duzentos!

— Mas, depois, tu sozinho o prendeste!

— Conforme as circunstâncias, prendo até dez ao invés de um. Por exemplo: tu e aqueles quatro que ali montam guarda à entrada, sois dagora em diante prisioneiros meus. Halef, guarnece a saída. Aquele que deixar este lugar sem o meu consentimento expresso, bem como o que nele quiser entrar, fuzilarás sumariamente!

O valente Hadji foi logo tomar posição à saída do acampamento. O bejate disse tomado de pavor:

— Senhor, estás a caçoar conosco!

— Não estou caçoando, não! O vosso khan ocultou-me a parte mais importante de sua jornada e também tu só me disseste a verdade depois que a isso te coagi. Portanto as vossas pessoas responderão pela nossa segurança pessoal aqui no acampamento. Vinde, aproximai-vos os quatro da guarda!

Eles obedeceram, sem titubiar, ao meu chamado.

— Deponham as vossas armas, aqui diante de meus pés! E, como eles hesitassem em atender, acrescentei:

— Já ouvistes falar a nosso respeito! Pois bem, se procederdes sinceramente conosco, nada vos sucederá, e recebereis vossas armas de volta. Mas se vos negais obedecer-me, vos mandarei imediatamente para o Geena.

A essa ameaça, os bejates depuseram as suas armas. Entreguei estas à guarda dos companheiros e ministrei a Maomé Emin as necessárias instruções a serem seguidas durante a minha ausência. A seguir, deixei o acampamento e saí para o descampado, acompanhando sempre o curso do arroio.

Lá fora entre dois penedos topei com a sentinela que logo me reconheceu.

— Quem mandou que te postasses aqui? — perguntei-lhe.

— O khan.

— Para quê?

— Para que, logo à sua chegada, saiba ele estar tudo em ordem no acampamento.

— Está bem. Vai ao acampamento e dize aos meus companheiros que eu não tardarei em voltar.

— Não me é permitido abandonar o posto.

— Mas o khan não saberá.

— Mas depois virá a saber.

— Isto é possível; dir-lhe-ei, porém, que o fizeste por minha ordem. Por fim o homem me obedeceu. Eu sabia muito bem que ele seria detido e desarmado por Maomé Emin. Não me informara em que ponto ficava o segundo acampamento; ouvira, porém, durante à noite vozes bem próximas ao nosso e por isso esperava encontrá-lo sem dificuldades. E foi realmente o que aconteceu. Ouvi depois de caminhar um pouco, pisoteados de cavalos e seguindo o rumor fui dar com nove bejates sentados no solo. Estes, dada à escuridão, tomaram-me por um dos seus camaradas, pois um deles perguntou-me:

— Que disse ele?

— Quem?

— O emir estranjeiro!

— Pois aqui está ele em pessoa — respondi-lhe. Foi quando me reconheceram; todos se levantaram.

— Oh! emir, vale-nos, por favor! — suplicou-me um deles. — O bebbeh conseguiu evadir-se do acampamento e quando o khan voltar seremos severamente castigados.

— Mas como conseguiu fugir? Não estava amarrado?

— Sim, mas as cordas por certo que lhe foram pouco a pouco afrouxando e quando acordamos, ele havia desaparecido com o seu cavalo e algumas armas nossas.

— Montai a cavalo e acompanhai-me!

Fui prontamente obedecido e os homens acompanharam-me até ao primeiro acampamento. Quando lá chegamos, o chefe haddedin já havia acendido uma fogueira, a fim de iluminar as circunjacências. Os meus companheiros guardavam os bejates desarmados. Os nove homens por mim trazidos, ficaram tão perplexos diante do que viam que sem vacilar me fizeram entrega das suas lanças e facas. Declarei depois aos prisioneiros que só lhes poderia suceder alguma coisa de mal, no caso do khan projetar e consumar alguma traição contra nós. Disse-lhes mais que seria impossível sair em captura do bebbeh fugitivo.

Mister Lindsay, tanto quanto lhe permitiram os seus deficientes conhecimentos do idioma árabe, averiguara de Halef o sucedido. Aproximou-se então de mim e perguntou-me:

— Sir, que faremos desses sujeitos?

— Veremos depois, quando estiver de volta o khan.

— E se eles fugirem?

— Não conseguirão. Estão sob a nossa vigilância. Ademais disso, Halef lá se acha de vigia à entrada do acampamento.

— Lá? — O inglês apontava para a brecha dos penedos que dava acesso ao descampado. Ao acenar-lhe eu afirmativamente, acrescentou Lindsay:

— Não é bastante! Existe uma segunda fenda nos penedos, que facilita a saída. Fica ali aos fundos. Yes!

Acompanhando com o olhar a indicação que me fazia o inglês, avistei à luz da fogueira um penedo alto e diante do mesmo uma moita de arbustos.

— Está pilheriando, sir! — disse-lhe eu. — Quem conseguirá entrar ou sair por aquele lanço! O penedo tem ali a altura mínima de uns cinco metros.

Ele ria-se a bom rir de modo a formar sua boca o celebrado trapezóide, no interior de cujas linhas tornavam-se visíveis os seus dentes amarelados.

— Hum! O senhor é um sujeito avisado, mister! Mas David Lindsay é mais avisado ainda! Well!

— Esclareça tudo, de uma vez, sir!

— Vá até lá e examine o penedo e a moita de arbustos!

— Mas está falando realmente sério? Não convém eu ir lá, visto que isso chamaria a atenção dos bejates aqui aprisionados para a saída secreta, se é que realmente existe.

— Ela existe sim, mister! Yes!

— Como é formada?

— Não se trata de uma rocha, mas de duas e entre o passadiço estreito é que está a moita. Compreendeu?

— Ah! aquilo nos pode ainda ser de grande valia. Sabem os bejates daquela saída?

— Creio que não, pois há pouco quando lá estive, não prestaram a mínima atenção.

— É muito estreita a abertura?

— Dá para se passar a cavalo por ela.

— E depois de se atravessá-la como é formado o terreno?

— Não sei. Não me foi possível averiguar.

Considerei de uma importância tal para nós a descoberta do inglês, que me dispus a examiná-la bem de perto. Avisei o meu propósito aos companheiros e deixei o local. A abertura, que se achava um tanto disfarçada, tinha a largura de dois metros mais ou menos. Por trás dela havia algumas pedras ali desordenadamente colocadas, mas, pelo menos de dia claro, não era difícil passar por entre elas a cavalo.

Como nos encontrássemos numa situação de dúvida, com o auxílio da faca fiz profundos cortes nas hastes dos arbustos, de modo que estes cairiam para o lado de fora, assim que por eles passasse um cavalo. Depois voltei para o acampamento e coloquei Halef de sentinela na saída secreta, com ordem de nos avisar de toda e qualquer aproximação.

— Que encontraste, efêndi — perguntou-me Maomé Emin.

— Uma excelente saída, no caso de precisarmos abandonar o acampamento sem o habitual Sallam.

— Através daquele tufo?

— Por lá mesmo. Fiz, porém, cortes nas hastes dos arbustos. Assim que por ali passar um cavaleiro o tufo tombará, abrindo caminho aos demais.

— Não existem outras pedras à flor da terra?

— Existem. Mas de dia claro pode se cavalgar por meio delas sem perigo.

— E achas que viremos a nos utilizar dessa saída?

— Não estou bem certo disso, mas tenho cá os meus pressentimentos! Não te rias de mim, Maomé Emin, se eu te disser que desde pequeno possuo o dom do pressentimento que me está a chamar a atenção muitas vezes até de coisas que vão se realizar, daí a muito tempo.

— Não, eu creio. Alá é grande!

— O interessante é que jamais pressinto acontecimentos agradáveis. Mas de quando em vez sinto-me acometido de uma sensação de intranqüilidade, de medo mesmo, como se eu houvesse praticado algum mal, cujas conseqüências precisava agora temer. E quando de mim se apossa tal estado d’alma é certo que algo sucede de danoso para mim. E se posteriormente eu confrontar as datas tudo dá certo: a trama do mal que me fora causado começara a urdir-se precisamente no instante em que de mim se apossou o pressentimento.

— Neste caso estejamos atentos ao aviso do perigo que te está agora a fazer Alá.

Realmente, horrível era o pressentimento que naquele instante tomou conta de mim e que contagiou também os companheiros. Todos subitamente emudecemos e ficamos pensativos. Assim permanecemos até clarear o dia. Mal, porém, a claridade permitia ver ao longe no horizonte, veio Halef me avisar haver divisado os vultos de muitos cavaleiros. O seu número exato não pôde ele precisar. Fui ao serigote e da maleta tirei o binóculo, acompanhando depois Halef. Realmente ao longe na planície divisavam-se a olho desarmado numerosos vultos negros em movimento; com o auxílio das lentes, pude distingui-los melhor.

— Sídi, quem são? — perguntou Halef.

— Os bejates.

— Mas não são tão numerosos!

— É que voltam com as presas. Vêm tocando os rebanhos dos bebbehs por diante. Ao que parece o khan na companhia de uma legião de homens tomou a dianteira e se apressa em chegar ao acampamento. Portanto aqui estará antes que os demais.

— E agora que faremos?

— Hum! Continuaremos aqui. Dar-te-ei notícias depois.

Voltei aos companheiros e narrei-lhes o que vira. Como eu, eram também todos de opinião que nada precisávamos recear da parte do khan. A única coisa que podíamos censurar nele era não nos haver comunicado o seu propósito predeliberado. E se ele o fizesse, por certo que não nos juntaríamos à sua gente, visto que para nós seria perigoso se fôssemos vistos na companhia de ladrões de gado. Concordamos todos em recebê-lo cortês, porém, cautelosamente.

Completamente armado, tornei ao posto de Halef. O khan se aproximava com a sua tropa e, decorridos cinco minutos, se achava ele à ininha frente.

— Salam, emir! — saudou-me. — Com certeza te admiraste de não me encontrares no acampamento, ao te acordares. É que eu tinha um negócio urgente a tratar, negócio que agora, felizmente, já se acha realizado. Olha para trás!

Continuei, não obstante, a encará-lo.

— Praticaste um roubo, khan Heider Mirlam!

— Um roubo? — perguntou-me o homem fazendo uma fisionomia de espanto. — Então aquele que apreender ao inimigo o que lhe fôr possível apreender, é considerado um ladrão?

— Segundo os ensinamentos cristãos, sim; e tu sabes muito bem que sou cristão! Mas por que nos ocultaste tão manhosamente este teu propósito preconcebido?

— Porque se eu te revelasse, nos tornaríamos inimigos, visto que nos abandonaríeis.

— Certamente.

— E depois irias prevenir os bebbehs de tudo?

— Não me teria dado ao trabalho de procurá-los. Ademais disso, ignorava por completo em que ponto ou por que lanço pretendias assaltá-los. Agora, se me encontrasse casualmente com um deles, a este eu comunicaria o perigo que pesava sobre a sua tribo.

— Vês, pois, emir, como tive razão, guardando sigilo em torno do meu plano! Aliás, eu só tinha dois caminhos a seguir: ou ocultar o meu propósito ou então aprisionar-vos a todos e segurar-vos violentamente até haver conjurado o perigo que a vossa denúncia nos poderia acarretar. Como, porém, eu era e sou teu amigo, tomei a primeira das resoluções.

— Contudo estive à noite espreitando os dez homens que deixaste no segundo acampamento — foi a minha resposta dada com toda calma.

— Que fôste fazer lá? — perguntou o khan.

— Prender os homens.

— Alá! Por quê?

— Por nos teres abandonado. Eu não podia saber o que me sucederia e aos companheiros e para garantia de nossa segurança pessoal, conservei todos os bejates que aqui ficaram presos à minha disposição.

— Senhor, não há dúvida de que és um homem assaz previdente. Contudo, deverias ter mais confiança em mim. E que fizeste do bebbeh que se achava preso?

— Nada. Nem cheguei mais a vê-lo, pois já se havia evadido. O khan mudou de côr e bradou:

— Derigh! (15) Não é possível! Isto vai transtornar-me tudo, vai conduzir-me talvez à ruína. Deixa-me entrar para o acampamento a ajustar contas com aqueles cães, que com toda certeza dormiam ao invés de vigiar o prisioneiro!

O khan saltou do cavalo, deixou-o no lado de fora e, como um doido, embarafustou-se pela fenda da rocha adentro, rumo ao acampamento. Halef e eu o seguimos. Entre o khan e a sua gente desenrolou-se uma cena difícil de se

 

(15) Interjeição Ah!

 

descrever. Aquele bramia qual leão enjaulado, desferia socos, e ponta-pés a torto e a direito e não se acalmou antes que as forças se lhe houvessem esgotado. Eu estava longe de atribuir àquele homem uma tal inclinação à fúria!

— Acalma-te, khan — intervi. — De qualquer forma terias que dar liberdade ao prisioneiro.

— Sim, eu o teria posto em liberdade, — retrucou ele furioso, — mas hoje ainda não; só depois que estivesse completamente executado o meu plano, para que este não fosse denunciado.

— Que plano?

— Trouxemos tudo o que encontramos na aldeia dos bebbehs. Agora? vamos separar os objetos de valor dos insignificantes. Os primeiros remeterei por veredas seguras e por intermédio de homens de confiança para a nossa aldeia; o resto, o que possui valor insignificante, levaremos conosco, em nossa visita aos dchiafs. Em caminho vamos largando esses objetos, de modo a desviar de nós a desconfiança dos bebbehs. Estes acabarão, por acreditar, haver sido o seu acampamento, durante a sua ausência, assaltado por uma coluna dos dchiafs. Deste modo, a minha gente chegará, sem embaraços, com as presas de valor aos acampamentos e aldeias dos bejates.

— É. O plano não é mau.

— Mas que adianta se agora vai falhar. O bebbeh que se evadiu da prisão pertence à secção por nós assaltada. Ele sabe que somos bejates e tudo irá denunciar. Aliás, ele deve ter percebido logo o plano que tínhamos em vista. Achava-se bem montado. E que será de nós se ele, enquanto promovíamos o assalto, aproveitou a agilidade do seu cavalo,. para dar o rebate aos acampamento amigos das circunjacências?

— Seria muito mau para vós, e também para nós, pois o bebbeh nos viu na vossa companhia — respondi-lhe.

— Ele sabe agora o local do nosso acampamento e é possível que também a entrada entre os penedos para este lugar não lhe seja desconhecida.

 

O PRIMEIRO ENCONTRO COM OS BEBBEHS

Mal havia o khan pronunciado as últimas palavras, da entrada ressoou o brado:

— Allah illa Allah! Ei-los aí! Vamos, prendamo-los com vida!

Viramo-nos e demos com os olhos no bebbeh fugitivo que, com olhares coruscantes, avançava contra mim; por trás dele uma legião de guerreiros invadira o acampamento, ao mesmo tempo que se ouvia uma infernal gritaria entremeada de tiros de espingarda. Havíamos descurado da vigilância da entrada do acampamento.

Não dispunha eu naquele instante de tempo para meditar sobre o que estava ocorrendo, visto que o bebbeh, que agora eu supunha um xeque ou khan, investia furiosamente contra mim. Não vinha ele armado nem de espingarda, nem de lança, mas em sua mão reluzia a fatídica lâmina do agudo punhal afghan.

Recebi o audaz contendor de mão livre, sem haver apelado para arma de espécie alguma. Com a esquerda segurei, com a rapidez dum relâmpago, a mão direita que empunhava a terrível arma e com a direita peguei-lhe a garganta.

— Morrerás agora, ladrão! — urrou o homem, fazendo um titânico esforço para desvencilhar a mão que empunhava a arma.

— Estás enganado — respondi-lhe. — Não sou um bejate e tampouco sabia que estes planejavam o assalto do vosso acampamento.

— És um ladrão, um cão! Aprisionaste-me e agora tu é que serás por mim aprisionado. Sou o xeque Gasahl Gaboya, ao qual ninguém ainda escapou até agora!

Como um raio se me perpassou pelo cérebro a idéia de já ter ouvido aquele nome como sendo o de um dos mais valentes e denodados curdos. Não havia, pois, tempo a perder com ele.

— Pois bem, prende-me, se disso fores capaz! — retruquei-lhe. Dito o que larguei-o e recuei. Ele por certo que viu naquele meu gesto uma prova de fraqueza, pois proferiu um estridente brado de triunfo e ergueu o braço para desferir o golpe. Era exatamente o que eu queria. Desferi-lhe um violento soco nas axilas, de modo que o homem perdeu logo o equilíbrio. Descreveu um arco e foi cair ao solo a seis passos distantes de mim; antes que ele se pudesse erguer desferi-lhe um soco na região temporal, deixando-o desacordado.

— Montai a cavalo e acompanhai-me! — bradei aos companheiros.

Num relancear de olhos apercebi-me de toda cena. Cerca de vinte bebbehs haviam invadido o acampamento e lutavam com os bejates. Mister Lindsay pelejava com dois, de um dos quais, no momento, conseguira livrar-se desferindo-lhe violento coronhaço. Os dois haddedins se haviam recostado às paredes da rocha e não deixavam ninguém deles se aproximar. O pequeno Halef se achava ajoelhado sobre um dos inimigos que arrojara ao solo com uma coronhada da pistola.

— Sídi, não fujamos, não! Nós já os derrotaremos! — foi a resposta que o meu valente criado deu ao meu chamado.

— Mas lá fora há maior número deles. Os bejates estão sendo assaltados. Vamos, anda! Arranquei o punhal da mão do xeque Gasahl Gaboya, a fim de levar uma lembrança daquele dia tão tristemente iniciado e montei a cavalo. Com o fim de imprimir maior impulso à derribada e também para que os meus camaradas ganhassem tempo para me seguirem, fiz o Rih se pôr nas quatro patas e depois, a toda brida, o toquei de encontro ao tufo que ruiu todo de vez, abrindo mais o caminho. Depois tive que seguir devagar, visto que a estreiteza da saida só permitia cavalgar a passos.

Assim que vi os penedos por trás de mim e me certifiquei de que os quatro companheiros também haviam conseguido sair incólumes do acampamento, premi a coxa sobre o lombo do Rih e saí a galope planície afora, seguido dos demais.

Depois já mais calmo, atinei com todo o desenrolar dos acontecimentos. Aquele xeque Gasahl Gaboya era realmente um homem astuto. Percebeu, quando ainda preso, os propósitos de rapinagem dos bejates e, ao invés de, após a fuga, prevenir a sua secção que seria pouco numerosa para assaltar os bejates, promoveu um levante de todas as tribos que nas circunjacências apascentavam o seu gado ou se haviam estacionado; depois, deixou que os bejates assaltassem o seu acampamento e lhes roubassem calmamente os havêres, para, na volta, os cercar à distância e imperceptivelmente, por todos os lados; deste modo os salteadores de boamente largariam as presas, dando-se por muito satisfeitos ainda se conseguissem sair com vida da empreitada criminosa a que se abalançaram. Por trás de nós travava-se a luta. Como conseguira o chefe bebbeh atacar de surpresa os bejates não me restava tempo para averiguá-lo. A nossa esquerda divisei uma linha de cavaleiros que a galope se aproximava do teatro da luta, e à direita em toda a região viam-se vultos escuros de ginetes em movimento a se perderem no horizonte.

— Toquemos para frente, efêndi! — exclamou Maomé Emin. — Do contrário nos encurralarão aqui. Saíste ileso da luta com o bebbeh?

— Saí, sim, e tu?

— Apenas com uma pequena arranhadura.

De fato, da face gotejava-lhe sangue; mas o ferimento não podia ser grave.

— Aproximai-vos! — determinei. — Formemos uma linha reta. Quem nos avistar dos flancos e à distância nos tomará por um único cavaleiro.

Esse ardil foi efetuado, mas os bebbehs que se achavam por trás de nós não se deixaram iludir por ele e daí a pouco notamos que éramos perseguidos por uma considerável legião deles.

— Sídi, será que nos alcançarão? — perguntou Halef.

— Quem sabe! Depende dos cavalos que montam. Mas Hadji Halef Omar, que aconteceu com os teus olhos? Estão pisados?

O meu bravo criado estava com as vistas inchadas, não obstante haver transcorrido apenas alguns minutos depois do assalto.

— Não é nada, sídi — respondeu Halef. — Aquele bebbeh era cinco vezes mais alto que eu e me desferiu algumas taponas. Hamdulillah, jamais repetirá ele a proeza!

— Como? Mataste-o, por ventura?

— Não, porque sei que não queres que se mate ninguém, efêndi!

Realmente não era pequena a minha satisfação por não havermos em nossa fuga tirado a vida a um inimigo. E isso, afora o descargo de consciência, nos trazia, sem dúvida, outras vantagens, principalmente a de não termos incorrido na vingança de sangue dos bebbehs, uma circunstância atenuante em nosso favor no caso de lhes cairmos nas mãos.

Galopamos durante uns quinze minutos. Havíamos perdido de vista o campo da luta, mas os nossos perseguidores continuavam em marcha. Haviam-se dividido em dois grupos. Os que montavam melhores animais se achavam mais próximos de nós.

— Emir, eles nos alcançarão, se não obrigarmos os nossos cavalos a forçarem a marcha — ponderou Amad el Ghandur.

— Não devemos desde já forçar demasiadamente os nossos cavalos. Além disso, os perseguidores se acham divididos, tornando-se difícil entrar num entendimento com eles.

— Machallah, entrar em entendimento? Pretendes porventura falar com eles? — exclamou Maomé Emin.

— Claro que sim! Espero levá-los a tal ponto de desistirem de continuar na perseguição. Prossegui no galope. Eu aqui me deterei à espera deles.

 

PROCURANDO UM ENTENDIMENTO

Os companheiros continuaram no mesmo galope. Eu, segundos depois, apeei, tirei as espingardas do serigote e sentei-me na relva de face virada para os perseguidores.

Quando eles de mim se aproximaram a uns mil passos, tirei o pano do turbante e o desfraldei. Imediatamente converteram eles o galope em trote, passando depois a cavalgar a passo e a quinhentos passos fizeram alto. Depois de uma breve conferência, um deles aproximou-se de mim e perguntou:

— Por que estás sentado no solo? Trata-te de algum ardil ou é sincero o teu gesto?

— Pretendo falar convosco.

— Com todos ou apenas com um de nós?

— Com um escolhido por vós para me ouvir.

— Mas estás armado.

— O emissário pode também chegar armado.

— Depõe as armas um pouco longe de ti e então um de nós irá falar contigo!

Levantei-me, pus no solo os dois revólveres e os punhais; depois coloquei as espingardas no serigote e tornei a me sentar. Seria impossível àquela gente saber quantas e que qualidades de armas conduzia eu; portanto fácil me teria sido conservar ainda pelo menos os revólveres sem que por eles fosse notado. Mas preferi proceder com lealdade para exigir que com a mesma lealdade fosse por eles tratado.

O grupo compunha-se de onze homens. O que viera ter comigo, voltou para o grupo e falou com os companheiros. Depois apeou-se, depôs a espingarda, a azagaia e a faca no chão e a passos lentos voltou para junto de mim. Era uma figura imponente, de estatura esbelta e podia contar cerca de cinqüenta anos. Os seus olhinhos negros coruscavam furiosos sobre mim, contudo o homem sentou-se mudo ao meu lado.

Como eu me conservasse no mesmo mutismo e ele se impacientasse, começou o próprio emissário às negociações dizendo:

— Que pretendes de nós?

— Falar convosco.

— Pois então fala!

— Não me é possível.

— Alá! Por quê? Apontei para trás de mim.

— Vê; conduzo comigo mais armas do que vós o poderíeis supor e as depus todas. Também tu me prometeste depor as tuas. Desde quando são os bebbehs reles mentirosos e homens desleais?

— Mentirosos e desleais? Porventura estou mentindo ou procedendo com deslealdade?

— Para que aquele volume debaixo de tuas vestes?

Eu notara que por debaixo do albornós trazia ele uma clava oculta. O homem mudou de côr e visivelmente contrariado levou a mão por debaixo das vestes e jogou longe a clava.

— Eu me esqueci de depô-la, também — desculpou-se ele.

O fato de a haver posto fora convencia-me de que não fora por perfídia que o bebbeh trouxera a arma oculta. Não tivera ele plena confiança em minhas palavras e daí o haver-se armado secretamente para reagir a qualquer eventual agressão de minha parte. Dei eu desta vez início à conversação:

— Bem! Que reine a paz entre nós até o término das negociações! Prometes contribuir para isso?

— Prometo-o.

— Em reforço disso, apertemo-nos as mãos.

— Aqui tens a minha!

— Por que estais a nos perseguir? — perguntei-lhe.

O emissário olhou-me perplexo.

— Estás doido, homem?! — exclamou depois. — Vós nos assaltais à noite, atravessais como salteadores e inimigos nossos as fronteiras e aí estás tu imbecilmente a me perguntar qual a razão por que vos perseguimos!

— Pois fica sabendo que não atravessamos as fronteiras como inimigos vossos e menos ainda como salteadores.

O homem mostrou-se mais pasmado ainda.

— Não? Allah il Allah! No entanto roubaram-nos os rebanhos e as tendas com tudo que nelas se continha!

— Estais equivocados! Não fomos nós: os bejates é que procederam de tal forma.

— Pois vós sois bejates!

— Não! Somos cinco cidadãos pacíficos. Um deles e eu somos guerreiros do longínquo Frankistão; o terceiro é meu criado, um árabe, provindo de muito além de Meca e os dois últimos são Benis-árabes do oeste daqui e nunca foram vossos inimigos.

— Isto dizes com o fito de me ludibriar. Por meio de expedientes não nos conseguireis escapar. Vós sois bejates!

Atirei para trás o albornós e arregacei a manga do casaco; depois abri a camisa de modo a ficar exposto o peito.

— Um bejate, um curdo ou um árabe tem pele tão clara como eu? — perguntei-lhe.

— Oh! como é branco — exclamou o homem. — És assim em todo o corpo?

— Naturalmente. Sabes ler?

— Claro — respondeu com orgulho.

Tirei do bolso o meu livro de notas e lhe exibi.

— São esses caracteres gráficos, curdos ou árabes?

— Não. Trata-se de uma grafia estrangeira. Guardei de novo a carteira e abri o passe.

— Conheces este selo oficial?

— Katera Allah! Por Deus! É o selo do Grão Senhor!

— E tu és obrigado a acatar este selo, pois és um guerreiro do paxá da Sulimania, que se acha sob o domínio do Sultão. Crês agora que não sou bejate?

— Agora, sim.

— E o mesmo se dá em relação aos meus camaradas.

— Mas estivestes com os bejates, isto é incontestável!

— Encontramo-los ao norte, distante um dia de viagem daqui. Disseram-nos que se dirigiam a uma festa dos dchiafs para a qual haviam sido convidados. Por eles fomos acolhidos como hóspedes sem sabermos que eram inimigos dos bebbehs. Não tínhamos igualmente a menor idéia de que os nossos hospedeiros pretendiam assaltar a vossa tribo. Ontem à noite deitamo-nos a dormir debaixo da sua proteção. Enquanto dormíamos, os bejates se retiraram sorrateiramente e só à sua volta é que verificamos haver-nos alimentado das vitualhas de ladrões e salteadores. Questionava eu com o khan Heider Mirlam por causa dessa sua atitude, quando o acampamento foi por vós assaltado.

— Oh! Queira Alá não nos escape aquele Heider Mirlam! Chegaste a reagir contra a nossa gente?

— Claro. A isso fomos obrigados, em virtude de nos haverem agredido.

— Mataste alguém?

— Ninguém.

— Jura!

— Não juro! Sou cristão e a minha palavra basta!

— Um cristão! — exclamou o homem surpreendido e com inflexão de dó na voz. — Oh! agora estou convencido de que não és nenhum curdo e tampouco um turcomano, pois um muçulmano jamais diz ser cristão. Agora creio que realmente não mataste nenhum dos nossos, mas se limitou a fugir da luta... Pudera não! De que forma poderia um cristão matar a um muçulmano!

De tanto menosprezo era o tom em que me falava o bebbeh que estive quase a esbofeteá-lo; mas em benefício de nossa caravana, era eu obrigado a suportar as suas pesadas ironias, para não dizer grosseiras ofensas. Ademais disso, não me achava eu em lá muito invejável situação, visto que a coluna retardatária havia alcançado a vanguardeira e com ela tornara a fazer junção. Destarte a quinhentos passos de mim se achavam mais de trinta inimigos. A menor inabilidade de minha parte, me poderia acarretar a ruína imediata.

— Uma vez que reconheces não sermos inimigos vossos, nos deixarás em paz?

— Para onde pretendeis seguir?

— Na direção de Bagdad.

— Fica por enquanto aqui. Vou falar com os bebbehs!

O emissário levantou-se e voltou para o grupo. Ao passar pela clava que jogara fora nem se dignou a dirigir-lhe um olhar, muito menos ainda um gesto para apanhá-la. Foi longa, bastante longa a conferência que se seguiu; conforme eu notava pelos gestos, havia opiniões discordantes e concordantes e demorou bem um quarto de hora até volver o emissário para junto de mim.

O homem não tornou a sentar-se ao meu lado, razão por que levantei-me prontamente.

— Tu poderias continuar em paz, mas o diabo é que ainda não vimos os teus companheiros — declarou o bebbeh. — Chama-os! A um sinal meu, se aproximarão igualmente mais quatro bebbehs. Deste modo estaremos em igualdade de condições.

Aquela proposta era extraordinariamente perigosa. Até ali eu não havia ainda virado para os companheiros, a fim de não decair no respeito do emissário, que poderia julgar-me receoso dele. Mas ao volver-me agora para eles, vi-os a uma distância de uns dois mil passos. Haviam parado à espera dos acontecimentos. Deveriam eles voltar para, além de perderem o avanço que já levavam, cairem, talvez, nalguma cilada e serem aprisionados? Eu precisava proceder com toda precaução.

— É um engano de tua parte. Não estaremos então em igualdade de condições, não!

— Como não? Vós sereis cinco e nós cinco!

— Atenta para a dianteira que os meus irmãos vos levam atualmente e a confronta com a que terão depois de voltarem para cá e não serem tratados com maneiras pacíficas!

A essas minhas palavras o homem fêz um movimento de profundo menosprezo.

— Não tenhas medo, giaur! Somos bebbehs e não bejates! Dar-vos-emos depois a mesma dianteira no caso de não chegarmos a um acordo e se reiniciarem as hostilidades.

Fora outra a minha situação e eu teria dado ao homem uma terrível resposta àquele seu giaur. Por enquanto, porém, achei mais prudente fingir como se nem tivesse ouvido a injúria. Em vista disso, respondi-lhe calmamente:

— Fio-me em ti! Virão os teus quatro camaradas armados?

— Como quiseres.

— Eles que conservem suas armas e também nós os dois tornaremos a nos armar.

Meneou a cabeça e sem dizer uma palavra voltou para o bando. Eu coloquei os revólveres e os punhais novamente na cintura e montei a cavalo. Depois acenei para os companheiros voltarem. A atmosfera estava tão clara que eles àquela distância divisaram nitidamente o movimento que eu lhes fiz com o braço. Imediatamente obedeceram ao meu chamado e daí a instantes uma fileira de bebbehs se achava formada defronte à nossa caravana.

— Qual deles é o outro franke? — perguntou o chefe do bando.

— Este — respondi apontando para Lindsay.

Um sorriso de desdém perpassou pela fisionomia dos curdos e o chefe opinou:

— Já não tenho mais a menor dúvida de que realmente se trata de um franke, de um cristão, visto possuir ele um focinho de khansir (16) a que se dá o nome de nariz!

Agora sim, era demais! O homem se excedera ao que eu me predispusera lhe aturar.

— Essa espécie de nariz eu cansei de ver em Alepo e Diarbekr entre os crentes! — retruquei-lhe.

— Cala-te, giaur! — trovejou o curdo-bebbeh.

Avancei uns passos com o cavalo.

— Ouve, homem: disseste há pouco que sabias ler. Leste por acaso o kuran?

— E que tens com isso?

Pergunto-te menos por me interessar pelo livro do profeta, que sou cristão

 

(16) Porco.

 

e nada tenho com ele; mas tu como muçulmano deverias saber de cor e salteado o que Maomé ordenou! Não disse ele: "Quem respeita um inimigo é um homem valente e nobre; quem não sabe respeitar o inimigo é um poltrão, um indivíduo ignóbil!" Adotas os ensinamentos pregados pelo profeta e os consideras os verdadeiros; nós adotamos os de Isa Ben Marryam e os consideramos também os verdadeiros. Portanto o mesmo direito me assiste em te chamar de giaur! Tu usaste deste direito; eu, porém, não; e se dele não usei foi porque acho pouco nobre ofender a um semelhante. Todo aquele que procurar enxovalhar ao seu semelhante, enxovalha-se a si próprio. Anota isso para teu governo, bebbeh!

O homem ficou perplexo ante a minha inominável ousadia. De repente, porém, arrancou subitamente o punhal e trovejou:

— Homem, pretendes ditar-me ensinamentos?! Tu, um cristão, a quem Alá e o profeta queiram amaldiçoar! Queres que eu te rasgue o corpo tal qual se faz com um farrapo de pano? Eu já havia resolvido deixar-vos continuar em paz; mas agora ordeno-vos: safai-vos já daqui, impuros! A vossa dianteira podereis tomar novamente depois, porém, que scheitan vos conduza ao Djehenna.

Vi que o chefe interpretara o sentimento de sua gente ali agrupada, mas vi também os olhares furiosos de Halef e dos dois haddedins repousarem em expectativa em mim. O inglês, que não compreendera o diálogo, não perdia um dos meus movimentos, a fim de estar pronto para o que sucedesse. Resolvi ministrar-lhe as instruções necessárias.

— Sir, se eu atirar, atire o senhor também, mas procurando alvejar exclusivamente os cavalos! Não derramemos sangue inutilmente.

— Yes! Lindo! Excelente! — respondeu.

Depois declarei calmamente ao bebbeh:

— Está bem, já nos safaremos daqui. Antes, porém, tenho a dizer-te uma coisa: Não penses lá que pedimos por temor de vós! Somos amantes da paz somente porque nos repugna verter sangue humano; foi este princípio e exclusivamente ele que nos levou a entrar num entendimento amistoso convosco. Tu, porém assim não o queres, pois seja feita a tua vontade e já hás de arcar com as conseqüências do teu gesto!

— Não nos temeis? — exclamou o bebbeh depois de proferir uma estridente casquinada. — Não estiveste tu aqui sentado na areia a implorar-nos misericórdia, giaur?

— Não repitas esta palavra, bebbeh senão sobre a tua cabeça cairá o meu punho cerrado qual um raio sobre a copa duma árvore! Pedi a paz exclusivamente por amor à vossa vida e não à nossa e agora vamos mostrar-vos quanto menosprezamos o valor bélico dos bebbehs. Desistimos da dianteira que nos assegurastes. Nenhuma vantagem queremos de vossa parte, ouviste?! Que se inicie já e já a luta! Aproximai-vos, se fôrdes homens!

— Assim seja! — trovejou o bebbeh levando a mão ao punhal. No mesmo instante, porém, o meu Rih num formidável pinote passara rente ao seu cavalo, instante em que o agarrei pelo braço e arranquei-o do serigote. Quatro estampidos de carabinas se fizeram ouvir seguidos de mais dois, e quando virei rapidamente o garanhão vi o cavalo do bebbeh juntamente com o cavaleiro rolando no chão.

— Depressa, avante!

 

UMA CRIATURA ORIGINAL

Galopamos como flechas. Ao passar pelo bebbeh, ergui-o do solo e desferi-lhe uma violenta bofetada dizendo: "Aí tens a recompensa por me teres qualificado de giaur!" Depois deixei-o cair novamente. Ele foi bater rente ao casco do cavalo, mas de modo a não ser por ele ferido. Tudo isso passou-se tão rapidamente, que atarantara os bebbehs, os quais só agora é que se lembraram de pôr os seus cavalos em movimento.

— Procedi bem ou com insensatez? — perguntei ao chefe haddehin durante a cavalgada.

— Emir, respondeu Maomé Emin — tu procedeste admiravelmente bem; aquele homem insultara não só a ti mas também a nós todos. Ele agora não será mais considerado guerreiro pela sua tribo, visto que foi batido na cara por um cristão. Isto para ele constitui uma desgraça ainda maior do que a morte, desgraça que procurará vingar horrivelmente. Faze tudo por não caíres jamais nas mãos dos bebbehs; terias que morrer debaixo das mais cruciantes torturas.

Dentro de cinco minutos os bebbehs haviam organizado duas secções; a frente, porém, era menos numerosa, em vista de cinco de seus cavalos terem sido fuzilados. Deixei que tomássemos um bom avanço deles e ordenei que a nossa caravana fizesse alto. Os seis cavaleiros que constituíam a coluna da vanguarda não nos teriam perdido de vista durante o dia todo, pois se achavam excelentemente montados. Precisávamos, pois, em virtude dessa circunstância, abater-lhes os cavalos. Comuniquei isso ao haddedin, apeei e peguei da espingarda.

— Atirar? — perguntou Lindsay, notando-me o gesto.

— Sim. Varramos de vez a cavalhada!

— Yes! Interessante. Vale muito dinheiro a cavalhada!

Pedi aos companheiros para não baterem os gatilhos, antes de firmarem bem a pontaria, de modo a terem a plena certeza de não acertarem nos cavaleiros, mas apenas nos cavalos.

Os nossos perseguidores se aproximavam em doida disparada e já se achavam nos limites do alcance de nossas armas, quando perceberam o nosso intuito; ao invés de se espalharem, fizeram alto agrupados.

— Fire! — comandou mister Lindsay.

Posto que os árabes não compreendessem o idioma inglês, compreenderam o que significava aquela palavra e a nossa salva ressoou. Lindsay e eu deflagramos depois mais um tiro e notamos que nenhum dos nossos tiros errara o alvo: os seis cavalos com os cavaleiros formaram uma espécie de novelo no solo, cujo desembaraço infelizmente não nos restava tempo para assistir.

Tornamos a montar e continuamos a galope; daí a pouco a segunda coluna dos perseguidores surgiu ao longe por trás de nós para depois a, perdermos de vista, achando-nos a sós na planície.

Esta por fim chegou ao seu termo. Diante de nós erguiam-se montanhas e aos lados uma cadeia de outeiros. Instintivamente fizemos parar os cavalos sem que a isso nos levasse qualquer vestígio com o qual deparássemos.

— Para onde, agora? — perguntou Maomé Emin.

— Hum! — resmunguei.

Jamais em minhas jornadas havia eu tomado uma direção tão incerta como esta.

— Reflita, emir! — pediu Amad. — Temos agora tempo. Deixemos os cavalos descansar um pouco.

— É boa! Com a mesma facilidade também poderia eu pedir-vos que refletísseis para ver se encontramos uma saída nesta conjuntura. Não me posso orientar com exatidão sobre o rumo em que nos encontramos; contudo quer me parecer que ao sul daqui estão situada Nweizgieh, Merwa,. Beytosch e Deira. Essa direção nos levaria a Sulimania.

— Para lá não iremos! — atalhou-me Maomé Emin.

— Neste caso, teremos que apelar para o caminho das montanhas a que ontem me referi. Poderemos continuar na direção que levamos até chegarmos ao rio Verozieh, cujo curso teremos que subir durante um dia, para, por trás de Banna, chegarmos ao monte.

— Concordo com este itinerário — disse Maomé.

— Esse rio tem para nós ainda a vantagem de separar a Pérsia de Ejalet e deste modo poderemos mudar de margem sempre que assim o exigir a nossa segurança pessoal.

Prosseguimos a cavalgada na direção do sul. Nesse trecho a campina cada vez mais se elevava até formar, finalmente, uma colina; vales e montanhas sucediam-se em contraste cada vez maiores. À tardinha chegamos ao espinhaço da montanha e antes do pôr do sol atingimos uma choça, de cuja abertura do telheiro saía fumaça.

— Aqui mora alguém, sídi, — disse Halef.

— Provavelmente alguém que não nos fará mal algum. Vou chegar. Esperai aqui até a minha volta.

Apeei e me acerquei da choça. Era feita de pedras; as fendas das paredes se achavam entaipadas com musgos. A cobertura era de arbustos e palhas e a abertura que servia de porta era tão baixa que mesmo uma criança mal poderia passar por ela.

Quando do interior da choça ante-diluviana os meus passos foram ouvidos, à abertura surgiu a cabeça de um animal que tomei por urso; em seguida, porém, pelo latido que soltou, constatei que a exótica criatura era um cachorro. Nisso, ouviu-se um assobio estrídulo no interior da choça e no lugar do cachorro, surgiu outra cabeça, que à primeira vista me foi também difícil dizer a que espécie pertencia. Vi apenas uma floresta de cabelos e barbas, da qual emergia um enorme e fenomenal nariz. Dois olhinhos negros brilhavam ao alto da floresta, tal qual os de um chacal enfurecido.

— Ivari ‘j ker. — Boa noite! — saudei.

Um rosnado abafado foi a resposta.

— Moras sozinho, aqui?

O abafado rosnado elevou-se mais.

— Existem outras casas aqui pelas imediações?

Agora, sim, o rosnado tornou-se terrível, ao mesmo tempo que uma ponta de venábulo era apontada para mim.

— Vem para fora — convidei em tom cortês.

O rosnado tornou-se verdadeiramente pavoroso e a ponta do venábulo visava-me a garganta. Aquilo irritou-me afinal. Peguei da ponta da arma e a puxei. O enigmático morador da choça segurou firme o venábulo e como minhas forças eram superiores às suas consegui puxá-lo para fora da porta. Primeiro saiu a sua floresta de cabelos com o nariz negrejante de carvão, depois ambas as mãos da mesma côr acrescidas de enormes unhas encardidas que causavam pavor ao menos temeroso dos homens. Depois seguiu-se-lhes um saco à guisa de avental, saco idêntico àqueles em que os mercadores de carvão costumam guardar as suas mercadorias, e, por fim, dois tubos de couro sujo que, após minuciosas pesquisas, conclui tratar-se de um par de botas, usadas em outros tempos pelo Colosso de Rodes.

Assim que as duas botas passaram pela abertura, a exótica criatura estacou hirta à minha frente, cedendo lugar para o cachorro mostrar-se em todo o seu tamanho natural. Também a estampa deste era pavorosa. A cabeça e o focinho eram também cobertas de pêlos, deixando a descoberto apenas os olhos, a ponta do nariz preto e a alva dentuça quando a arreganhava. Ambas as criaturas, porém, não obstante as suas figuras de incutir medo, pareciam recear mais a mim do que eu a eles.

— Quem és tu? — perguntei então abruptamente.

— Allo. (17) — resmungou afinal num som de voz humana.

— Qual a tua profissão?

— Kuemuerdar. (18)

Ah! explicada se achavam as cores do nariz e das mãos; mas para o melhor desempenho do seu ofício, não precisava ele deixar crescer daquele modo as unhas. Notei que o tom arrogante com que eu lhe falara me impusera ao seu respeito. O homem encolhia-se todo e também o cão punha a cola entre as pernas.

— Mora mais alguém pelas redondezas? — informei-me.

— Não — respondeu o homem a tremer.

— Que distância tem-se que caminhar para atingir a zona habitada?

— Um dia inteiro de viagem.

— Para quem fabricas carvão?

— Para o Senhor que faz ferros.

— Onde mora ele?

— Em Banna.

— És curdo?

— Sou, Senhor.

— Da tribo dos dchiafs?

— Não!

— Da clã dos bebbehs?

— Tampouco.

A essa palavra o homem escarrou em tom de escárneo. Confesso que dada à nossa situação atual, o homem em virtude daquele seu gesto começou a inspirar-me íntima simpatia.

— Afinal a que tribo pertences então?

 

(17) Alberto.

(18) Carvoeiro.

 

— Aos bannahs.

— Olha lá para cima: vês aqueles quatro cavaleiros?

O homem com as longas unhas afastou dos olhos os pêlos que lhe cobriam toda a face para obter melhor visão. Não obstante a sua cara estar completamente encarvoada, notei que o homem fizera uma fisionomia de pavor.

— São curdos? — perguntou-me.

Ah! eu conseguira afinal fazê-lo tomar também a palavra, ao invés de limitar-se a responder às minhas perguntas. Depois de lhe haver eu respondido negativamente, prosseguiu:

— Que são então?

— Somos três árabes e dois cristãos. O personagem olhou-me boquiaberto.

— Cristão! Que é isso?

— Mais tarde te esclarecerei, pois pernoitaremos na tua choça. O homem espantou-se agora muito mais do que dantes.

— Senhor, peço que não o façais!

— Por que não?

— Moram maus espíritos nas montanhas aqui ao redor.

— Muito folgamos com isso, pois teríamos grande prazer em nos defrontar com algum deles.

— Além disso, freqüentemente está a chover neste sítio!

— Melhor ainda. Aliás para ti não faria mal, se viesse um pouquinho de água...!

— E durante as chuvas troveja muito!

— É indispensável trovejar, quando chove torrencialmente.

— Ademais disso, a zona é habitada por ursos.

— Oh! se tu soubesses o quanto são saborosas as suas patas e o lombo!

— Também salteadores e ladrões costumam acoitar-se nestas montanhas.

— Mataremos todos eles.

Por fim ao ver que não havia desculpas que me demovesse do propósito, resolveu confessar a verdade:

— Senhor, tenho medo de vós!

— Não precisas ter medo de nós, não! Não somos salteadores nem ladrões. Queremos apenas dormir na tua choça e amanhã cedo prosseguiremos viagem sem te importunar. Pela pousada, te pagaremos uma piastra de prata.

— Uma piastra de prata? Sem falta de um só pára? — perguntou o homem pasmado.

— Claro e talvez que até duas, desde que nos trates com afabilidade.

— Ah! eu sou muito afável!

Ao dizer isso, o vulto negro mostrou toda a cabeluda cara risonha. O nariz, os olhos e a boca, que agora eu vira pela primeira vez, movimentaram-se com vivacidade. Era fora do comum a densidade de barbas e de cabeleira daquele curdo-bannah. Nunca eu vira coisa igual. A sua alegria parecia comunicar-se ao cachorro, que levantando a cola tentou com alegres latidos acamaradar-se com Dojan, que lhe deu tão pouca importância como a dá o sultão a um limpador de chaminés.

— Conheces bem a zona das montanhas? — perguntei-lhe.

— Toda ela.

— Sabes onde fica o rio Berozieh?

— Sei; ele constitui a linha divisória.

— A que distância fica daqui?

— Meio dia.

— Conheces Batina?

— Vou lá duas vezes por ano.

O homem conhecia também Amehdabad e Bayendereh.

— Mas ignoras onde fica situada Bistan? — inquiri-lhe.

— Sei até muito bem, visto que meu irmão reside lá.

— Tens que trabalhar todos os dias?

— Trabalho quando quero! — respondeu em tom cheio de orgulho.

— Então também daqui te podes retirar quando quiseres?

— Senhor, não sei qual a razão dessa tua pergunta! O carvoeiro era precavido; isso me agradava bastante.

— Pois te vou esclarecer a causa — respondi-lhe. — Somos forasteiros nesta região e não conhecemos esses caminhos através das montanhas e outeiros; por isso precisamos de uma pessoa honrada que nos sirva de guia. Pagar-lhe-emos pelo seu serviço duas piastras por dia.

— Oh! senhor, dizes a verdade? Eu durante todo o ano ganho apenas dez piastras, a farinha e o sal que consumo. Quereis aceitar-me para vosso guia?

— Primeiramente precisamos conhecer-te melhor, o que sucederá durante esta noite. Se ficarmos satisfeitos contigo, ganharás conosco mais dinheiro do que com o teu carvão durante um ano.

— Senhor, chama os teus companheiros. Fornecer-vos-ei farinha, sal e uma panela para preparardes os vossos alimentos. Tenho tanta caça quanta quiserdes e bem assim capim para os vossos cavalos. Lá na subida há uma vertente d’água para os animais e os vossos leitos eu os alcatifarei como se neles fosse dormir a sultana Balida.

Como se transformou o carvoeiro! E tudo isso por uma simples piastra!

Chamei os companheiros por meio de um aceno. Ao depararem com a figura do carvoeiro, não ficaram eles menos pasmados do que eu. Principalmente o inglês que de admirado pareceu haver perdido a fala; também o bannah admirava-se não menos do nariz de mister Lindsay, proferindo de quando em vez, em surdina, gargalhadas festivas através das imundas barbas. Finalmente o inglês usou da palavra!

— Hum! Que amontoado de nojeira! Que é isso? Algum gorila?

— Não, senhor; é um curdo da tribos dos bannahs.

— Arre! Vai te lavar, homem! — trovejou ele ao pobre carvoeiro. Como, porém, este não lhe compreendia o idioma, o carvão continuou a cobrir-lhe a face. Entrementes, os cavalos haviam sido, depois de desencilhados, postos à soga na pastagem e nós nos sentamos do lado de fora em esteiras cobertas por musgos. Prestei a Mahomé Emin as necessárias informações a respeito do carvoeiro, que se ofereceu para nosso guia. Ficou deliberado trazê-lo sempre debaixo da mais severa observação.

O dono da choça daí a pouco saía desta, trazendo um saco com farinha grosseira e uma vasilha de barro cheia de sal. Depois trouxe-nos uma panela que parecia haver servido durante longos anos a fins misteriosos... A seguir, abriu uma cova próxima de nós, cova que se achava encoberta por pedras e servia de guarda-comida. Nela guardara ele a sua provisão em caças que se compunha de duas lebres e um quarto de gamo. Disse-nos ele para escolhermos qual das veações preferíamos. Escolhemos o veado. Lavamo-lo bem por diversas vezes. A seguir foi aceso um fogo e preparado o espeto para o assado. E, enquanto Halef levava os cavalos à aguada, o carvoeiro cortava pasto para os mesmos com o auxílio de sua faca de mato; eu me entregava à tarefa de virar o espeto ao derredor do fogo.

— Sujeito sujo, aquele! Mas não obstante trabalhador! — resmungou o inglês. — É pena!

— Pena por quê?

— Panela nauseante! Yes! Seria melhor se fosse mais asseada. Daria tão bem para nela se preparar o acepipe.

— Com milhões de diabos, que acepipe, homem?!

— O puding.

— Puding? Ah! Mas como veio ter essa idéia, sir?

— Hum! Não sou um inglês?

— Perfeitamente, mas diga-me por favor de que pretendia o senhor preparar um puding, mesmo que a panela estivesse limpa?

— De qualquer cousa. Yes!

— Conheço umas vinte qualidades de pudings e nenhum deles se poderia preparar aqui.

— Ah! Oh! Por quê?

— Faltam-nos todos os preparos.

— Todos? O no. Temos veado, farinha e sal; basta!

— Veado, farinha, sal! Muito bem, sir, vou tomar nota dessa receita! Quer dizer que os demais ingredientes que se aplicam na preparação de um puding de carne como sejam toucinho, ovos, cebola, pimenta, limão, salsa, mostarda etc, só contribuem para estragar-lhe o gosto?

— Isto mesmo! Yes!

No lugar de um puding, recebeu ele um naco de carne de veado que devorou todo. Quando comecei a fazer a distribuição do assado, o curdo parou-se a um dos ângulos de sua choça a lamber os dedos.

— Vem, Allo! Toma parte na refeição — convidei-o.

De um salto vertiginoso o hospedeiro veio parar-se ao meu lado e notei que naquele instante ainda mais se solidificara a nossa amizade.

— Quanto queres pelo teu veado? — perguntei-lhe.

— Senhor, vo-lo faço presente! Amanhã caçarei outro.

— Contudo quero pagar-te. Aqui tens o dinheiro!

Levei a mão à bolsilha da cinta e tirei duas piastras que lhe depus nas mãos.

— Oh! Senhor! Como és bondoso! Não queres assar também as lebres?

— Levá-las-emos amanhã no farnel de viagem.

Nas proximidades da choça havia um grande monte de folhagens secas. Delas foi o curdo buscar o suficiente para nos preparar um leito com capacidade para cinco pessoas. E cobrindo as folhagens com os nossos cobertores conseguiu realmente o carvoeiro nos preparar um leito tão fofo, como em igual de há muito não dormíamos.

Na manhã seguinte, antes da partida, saboreamos o resto do veado que ficara da véspera.

— O senhor já pagou a nossa refeição, mister; agora cabe-me reembolsá-lo da quantia que adiantou — disse-me Lindsay.

— Deixemos disso! São ninharias!

— Vai este gorila nos guiar? Quanto ganhará ele por dia?

— Duas piastras.

— Pois bem, este salário correrá então por minha conta, ouviu?!

— Está bem, sir!

Como também os haddedins concordassem em tomarmos o curdo por guia, submeti-o a um exame prévio.

— Já ouviste falar no lago de Kiupri?

— Estive lá até.

— Quantos dias dista ele daqui?

— Quereis passar por muitas ou poucas aldeias?

— Queremos nos encontrar com menos gente possível.

— Neste caso levareis seis dias de viagem.

— Qual o caminho que tomamos?

— Sairemos daqui diretamente a Amehdabad, após havermos, é claro, atravessado o Berozieh; depois há uma passagem à direita que conduz para Kizzelzieh, de onde se avistam as águas que afluem para o lago de Kiupri.

Para satisfação minha constatei, pasmado, que era aquela descrição, idêntica ao mapa por mim traçado. Portanto o curdo-bulbassi que me fizera a descrição fora um excelente informador.

— Estás disposto a nos servir de guia? — perguntei-lhe novamente.

— Senhor, vos posso conduzir até à planície que conduz para Bagdad. — respondeu ele.

— Como vieste a conhecer estes caminhos?

— Por diversas vezes tenho servido de guia aos mercadores ambulantes que, carregados, vêm para as montanhas e depois de tudo negociarem voltam sem mercadoria alguma. Naquela época não era ainda carvoeiro.

Aquele homem apesar da sua sujeira, era uma verdadeira pérola para nós. Ademais disso, parecia ser uma boa alma. Por isso apressei-me em contratá-lo.

— Pois vais nos guiar até aquela planície e receberás diariamente duas piastras de honorários. Se nos servires com fidelidade e dedicação ficarás com o cavalo que compraremos para ti. Aceitas a proposta?

Um cavalo! Incalculável seria para ele a riqueza se pudesse possuir um animal desses. Pegou de minha mão que apertou com efusão na região de suas barbas em que, devido razões de ordem anatômica, era de se supor achar-se a boca.

— Oh! Senhor, a tua bondade é ainda maior que todas essas montanhas juntas! Permites que leve também o meu cão e vós custeareis o seu repasto?

— Traze-o. Pelo caminho abateremos caças mais que suficientes para a sua nutrição.

— Muito obrigado. Pena que não tenho uma espingarda e que seja obrigado a pegar as caças por meio de laçadas. Quando me comprarás o cavalo?

— Assim que fôr possível.

O homem tinha sal de que pedi-lhe levasse uma provisão.

Do tempero precioso que é o sal, só nos convencemos quando durante meses e meses somos obrigados a nos privarmos dele. A maior parte dos beduínos e também muitos curdos não estão habituados ao seu paladar.

 

UM CAVALO PARA O GUIA

Allo terminara apressadamente os seus preparativos de viagem. Escondeu a sua provisão de farinha e o resto de sal, no guarda-comida já citado, agarrou o seu terrível venábulo, pôs a faca na cintura e colocou uma coleira com corda ao cachorro, amarrando uma das extremidades à cintura. Chapéu ou qualquer outra espécie de cobertura da cabeça o homem não usava.

Começamos aquele dia de viagem, com renovada confiança em nossa boa estrela. O nosso guia nos levou sempre para o sul, até que ao meio-dia alcançamos o Berozieh. Ali fizemos alto e tomamos um banho no rio. Felizmente, Allo deixou-se persuadir da necessidade de imitar-nos, tomando também um banhozinho, sabe lá Deus depois de quanto tempo... Por sabão utilizou-se ele da areia, de que era rico o leito do rio e quando saiu das águas tinha um aspecto mais humano.

A seguir, rumamos para o oeste, tendo, porém, que fazer numerosas voltas, visto se acharem as margens do rio serpenteadas de colonizações e acampamentos de tribos nômades, das quais julgamos conveniente não nos aproximar. À noite pousamos à beira de um arroio, que, da montanha, corria diretamente ao Berozieh.

Na manhã seguinte, não havíamos viajado ainda bem uma hora, quando o curdo parou e lembrou-se da promessa que eu lhe fizera de comprar um cavalo para a sua montaria. Disse que nas proximidades residia um conhecido seu, que tinha um bom animal à venda.

— Mora este teu conhecido nalguma aldeia populosa? — perguntei-lhe.

— Ela compõe-se apenas de quatro casas.

Folguei com a resposta, visto que queria entrar o menos possível em contacto com pessoas durante aquela jornada e ao curdo sozinho eu não poderia mandar procurar o negociante de cavalo, pois ainda não me podia fiar na sua discrição.

— Quantos anos tem o cavalo a que te referes?

— É novo ainda, terá quando muito uns quinze anos.

— Bem, iremos os dois até lá a examinar o animal, enquanto os companheiros nos ficam esperando nalgum esconderijo. Escolhe um lugar próprio onde eles se possam ocultar.

Depois de uns quinze minutos divisamos ao longe, à beira-rio, algumas casas.

— É lá — disse Allo. — Espera-me aqui que vou esconder os teus camaradas.

O nosso guia levou os meus companheiros para a frente, mas daí a um minuto estava de volta.

— Onde os ocultaste?

— Ali adiante num macegal, onde ninguém os descobrirá.

— Ao teu conhecido não dirás quem sou, também para onde vamos e menos ainda que quatro companheiros aqui se acham à nossa espera!

— Senhor, não direi uma só palavra. Tens sido tão bondoso para mim, e eu te estimo. Não tenhas receio!

Descemos a ladeira e minutos depois nos achávamos diante de uma casa. No alpendre desta se achavam dependurados arreamentos de diversos sistemas. Por trás da casa havia uma espécie de curral onde pastavam vários cavalos. Um velho e esguio curdo veio ao nosso encontro.

— Allo, és tu! — exclamou o homem como que recuperando a calma depois de uma estupefação. — Bendito seja o profeta que te guiou a este caminho!

E à meia voz acrescentou:

— Quem é este grande Senhor?

— Um efêndi de Kerkuk que pretende seguir para Kekekowa, a fim de lá se encontrar com o paxá de Sinna. Como sou conhecedor desses caminhos, fui por ele contratado para guia. Tens ainda o cavalo que te sobrava?

— Tenho — respondeu o homem não tirando os olhos admirados de cima do meu garanhão preto. — Está no curral, por trás da casa. Vamos lá!

Não quis deixar os dois irem a sós: apeei rapidamente para acompanhá-los.

O cavalo que se achava à venda não pertencia ao rol dos piores; era mais novo ainda do que o julgava Allo. E como no curral pastassem outros cavalos na minha opinião todos ordinaríssimos, admirava-me de querer o dono vender exatamente aquele que era o melhor de todos.

— Quanto queres pelo animal?

— Duzentas piastras — foi a resposta.

— Puxa-o pela minha frente.

O animal foi retirado do curral e o curdo montando-o fê-lo caminhar, trotar e também galopar, o que despertou-me desconfianças: é que o animal demonstrava valer muito mais do que o preço pedido por ele.

— Põe-lhe a albarda e alguma carga!

Fui atendido e o animal obedecia a tudo.

— Este animal tem algum defeito?

— Nem um único, Chodih! — assegurou-me o curdo.

— Tem sim e será melhor que digas qual é. O cavalo destina-se ao teu amigo Allo a quem não deves enganar.

— Não o engano, não!

— Pois bem, dada à tua insistência em negar-me a verdade, vou eu sem o teu auxílio descobrir o defeito do animal. Tira-lhe a carga do lombo e põe-lhe um serigote!

— Por que, Senhor?

Essa pergunta era quase a confirmação de minha desconfiança.

— Porque assim o desejo — respondi-lhe com sequidão. Obedeceu-me, finalmente, o homem; depois de encilhado o cavalo, ordenei-lhe que o montasse.

— Senhor, não me é possível.

— Não te é possível! Por quê?

— Sofro de caimbras nas pernas. Não ando a cavalo, por causa dessa doença.

— Bem, então vou montá-lo!

Pela cara que o homem fazia, concluí que eu iria logo dar pelo defeito. O cavalo deixou que eu me aproximasse; porém, quando pus o pé no estribo, afastou-se para o lado, sestroso. Não me deixava montá-lo nem por nada até que resolvi levá-lo de encontro à parede. Montei-o então de chofre, mas o cavalo se pôs logo a pinotear e daí em diante começou a corcovear furiosamente, ameaçando cuspir-me do serigote. Depois de muitos pinotes, caí, mas de propósito, dando a impressão de haver sido arrojado pelo animal.

— Homem, este cavalo não vale nem um pára, quanto mais duzentas piastras! Ninguém o poderá montar. Foi viciado por quem o montava antes.

— Senhor, o cavalo é excelente. Apenas te estranhou, talvez.

— Conheço bem essas coisas! O cavalo durante muito tempo sofreu por certo debaixo de um péssimo serigote e nas mãos de um pior cavaleiro ainda. E isso jamais um animal de trato esquece. Quem o haverá de montar agora? Quando muito poderá ainda ser utilizado como animal cargueiro.

— E não precisas de um, Senhor?

— Por enquanto não; talvez mais tarde.

— Pois compra este; tão facilmente não encontrarás um animal por essas redondezas.

— Achas que devo conduzir inutilmente um cavalo, circunstância que apenas embaraços me traz à viagem?!

— Deixo-te por cento e cinqüenta piastras!

— Pois bem, dou-te cem e nem um pára a mais.

— Senhor, estás gracejando!

— Fica então com o teu cavalo! Fácil me será comprar um em Banna. Vem, Allo!

Montei no meu garanhão e o carvoeiro seguiu-me com fisionomia contristada. Mas cinqüenta passos, se tanto, havíamos dado quando ouvimos por trás de nós uma voz exclamar:

— Deixo por cento e trinta, Senhor! Não respondi.

— Cento e vinte!

Continuei a cavalgar sem volver-lhe um olhar.

— Volte, Senhor! Vá lá, deixo-o pelas cem piastras!

Agora sim, parei o cavalo e perguntei-lhe primeiro se ele tinha um arreamento completo para vender. Depois de me responder afirmativamente, voltei a adquirir um serigote com mais pertences, tudo em bom estado de conservação por quarenta piastras. E o que de mais vantajoso me foi: o homem aceitou o pagamento em velhas Beschlik que pouco a pouco foram se me acumulando na bolsilha. Ensilhei o animal e despedi-me do curdo.

O homem respondeu-me apenas com um sorriso de astúcia e reflexão. Allo também se despediu dele e depois quis montar o seu cavalo. Toda a sua fisionomia, ou por outra, a mínima parte dela que não era encoberta por barbas se iluminara de satisfação por possuir ele agora também o seu fogoso corcel.

— Pela graça do profeta, não o montes! O cavalo te derribaria, partindo-te o pescoço! — exclamou o curdo, agarrando-o pelo braço.

— O teu amigo tem razão — concordei. — Monta agora o meu garanhão. Este por certo que te conduzirá com mais segurança, enquanto eu vou mostrar a este outro que ele é obrigado a obedecer-me quer queira quer não!

O carvoeiro subiu com grande satisfação ao dôrso do meu garanhão preto, o qual consentiu naquele atentado contra a sua dignidade de corcel, somente porque me sabia próximo dele... Levei o cavalo de encontro à parede e consegui montá-lo com mais facilidade do que anteriormente. Mas mal me sentara no serigote, o animal se pôs de novo a pino e depois passou a cabrear furiosamente. Durante alguns minutos deixei que pinoteasse à sua vontade. Depois, porém, encurtei as rédeas e premi-lhe o lombo com as coxas. Quis pinotear, porém não conseguiu mais. Conseguia apenas erguer um pouco as patas, o que constituía verdadeiro brinquedo, comparada com a sua anterior atitude. Não demorou a arquejar o animal e a suar por todos os poros, e da boca saía-lhe espuma em flocos. Estava de pé não obstante fazer-lhe eu violentas pressões com as coxas.

— Homem, o cavalo está novamente domado! — exclamei triunfante. — Presta atenção como ele vai andar sem vacilações! Aconselho-te a jamais tentares ludibriar a boa fé de um amigo. Que Alá seja contigo! Até a volta, se tal suceder!

O curdo olhava-me assombrado; talvez que já se achasse arrependido da venda feita. Cavalguei à frente, com o que modestamente concordou o meu valente Rih.

— Chodih, perguntou o carvoeiro — este cavalo preto agora é meu? Hum! Outra questão!

— Não — respondi-lhe.

— Por que não?

— Este garanhão preto na primeira oportunidade te cuspiria da sela. Para isso basta que eu me afaste de ti. Viajarás nele apenas hoje, pois amanhã este aqui estará completamente domado e então poderás montá-lo.

— E me pertencerá também depois que eu me separar de vós?

— Sim, desde que nos sirvas a contento.

— Oh! farei tudo que exigirdes de mim.

Alcançamos o macegal em que se achavam escondidos os meus companheiros. Tornaram a se reunir a mim e todos ficaram satisfeitos pelo excelente negócio que eu fizera. Apenas Halef se achava indignado.

— Sídi, — declarou ele — isto Alá jamais te perdoará! Obrigar o nobre e valente Rih a conduzir um sapo sujo como aquele! Ele que passe para o meu cavalo e eu montarei o garanhão preto!

— Deixa-o, Halef. Deste modo tu o ofenderias.

— Machallah! pode lá com isso se ofender um curdo que prepara carvão e come com a sua refeição a sujeira dos dedos!

Contudo, prevaleceu a minha ordem.

Cerca do meio dia atingimos a colina de Banna e depois de uma cavalgada apressada chegamos ao passo que se abria diante de nós rumo do sul. Havíamos forçado muito os cavalos durante o dia e por isso pretendi deixá-los descansar durante mais tempo do que em geral os deixávamos ao acamparmos. Neste propósito, dobramos e entramos num vale profundo, adjacente ao passo, vale cujos flancos eram fechados por carvalheirais. Havíamos abatido bastante caça e depois da refeição sorteamos a guarda para a vigilância noturna. Aquela providência era tanto mais necessária quanto se podia calcular que a notícia do roubo de gado que sofreram os bebbehs já devia, por outras veredas, ter chegado a Banna e por certo que também a respeito de nossas pessoas tivessem falado por esta ocasião.

A noite decorreu sem que o menor incidente nos viesse despertar do sono. De manhã bem cedo prosseguimos a jornada. A estrada conduzia por caminhos pedregosos e outeiros sem relva, por escuros desfiladeiros e vales soturnos, onde raramente se encontrava alguma insignificante aguada. Via-se e sentia-se concomitantemente que por aquela zona ainda não atravessara um só europeu.

 

UM ENCONTRO SUSPEITO

Perto do meio dia tivemos que atravessar um vale que seguia direção oblíqua. Exatamente quando íamos chegando na parede oposta, Dojan parou e dirigiu-me olhares súplices. Eu o conhecia muito bem. O fiel galgo notara algo de suspeito e com aquela postura pedia-me licença para abandonar-me por momentos. Parei o cavalo e relancei os olhos ao redor, não descobrindo o menor vestígio de por ali andar alguma criatura viva.

— Juru, Dojan! — exclamei e o cachorro como um relâmpago embrenhou-se pelo macegal. Minutos em seguida ouviu-se um grito acompanhado de leves latidos de Dojan, denunciando ter um homem nas presas.

— Halef, vamos lá!

Pulamos dos serigotes, passamos as rédeas aos companheiros e entranhamo-nos no macegal na direção tomada pelo cão. Realmente à beira de uma moita de espinhal, achava-se Dojan segurando pela garganta um homem, que ele arrojara ao solo.

— Dojan, geri!

O cão afrouxou as presas e o homem levantou-se.

— Que fazes aqui?

O homem encarou-me como se refletisse a resposta que me devia dar. Mas ao invés de responder-me, deu um súbito pulo para o lado e desapareceu.

A um sinal meu o cachorro saiu em sua perseguição. Minutos depois ouvia-se o mesmo brado de angústia do fugitivo e o latido do Dojan. Num galho de árvore, que se erguia ao lado do local onde estivera o homem debaixo das presas do cão, dependurara este a sua espingarda. Mandei que Halef a agarrasse e continuamos pelo macegal adentro. Mais adiante fui encontrar o homem e o cachorro na mesma posição anterior. O primeiro nem se animava a mover-se e menos ainda fazer uso da faca que trazia à cintura.

— Permitirei agora pela última vez que te reergas desta posição. Mas anota: se fugires outra vez, deixarei o cachorro te estraçalhar — preveni-o.

Dito o que, fiz um sinal ao cachorro para largar o homem. Este levantou-se e em postura humilde parou-se diante de mim.

— Quem és tu?

— Sou um morador de Soota — respondeu ele.

— Um bebbeh?

— Deus me livre, Senhor! Somos inimigos daquela tribo, pois sou um dchiaf.

— De onde vens?

— De Achmed Kulwan.

— De tão longe? Que estiveste fazendo lá?

— Pastoreio os rebanhos do kiaja daquela aldeia.

— E para onde pretendes seguir?

— Visitar amigos meus em Soota. Os dchiaf vão realizar uma grande festa, da qual tencionamos participar.

Aquilo era exato.

— Terão os dchiafs muito hóspedes e convidados para a referida festa?

— Ouvi dizer que o khan Heider Mirlam pretendia comparecer à mesma, para o que recebeu convite.

Também aquilo era exato. De suas afirmativas, depreendia-se que não era mentiroso aquele homem.

— Por que te escondes de nós?

— Senhor, não deve um homem estando só, esconder-se ao avistar seis cavaleiros desconhecidos nessa região? Nessas montanhas a gente nunca sabe se topa com amigos ou inimigos.

— Mas por que tentaste fugir-me?

— Julguei que pretendesses proceder hostilmente contra mim, visto que atiçaste contra mim o teu cachorro.

— Andas realmente sozinho?

— Bem sozinho; juro-te pelas barbas do profeta!

— Estou inclinado a te acreditar. Vamos, sai na frente!

Levei-o à presença dos companheiros, aos quais teve ele que repetir as declarações que já antes me fizera. Foram unânimes em concordar comigo que aquele homem não nos era perigoso. Devolvi-lhe então a espingarda e declarei-o em liberdade. Depois de nos haver ele apresentado os seus agradecimentos e implorado que a bênção de Alá nos caísse sobre as cabeças, pusemo-nos em marcha, prosseguindo nossa viagem.

Eu notara que Allo contemplara pensativa e longamente o estranho; também agora cavalgava ele imerso em profunda meditação. Eu já me dispunha a dele me aproximar e lhe perguntar pela causa de se achar tão pensativo, quando ele como que se recordando finalmente do que em vão tentava recordar, de mim se acercou e disse:

— Chodih, aquele homem te mentiu! Eu o conheci mas não me recordava de momento de onde. Agora é que me lembrei de tudo. Não é um dchiaf conforme te afirmou, mas um bebbeh. Deve ser um irmão ou parente próximo do xeque Gassal Gaboya. Encontrei-os a ambos de uma feita em Nweizgieh.

— Oh! se isso fosse verdade! Não te enganaste, por acaso?

— É possível, mas tenho quase plena certeza do que estou dizendo. Comuniquei aos demais as suposições do carvoeiro.

— Estou querendo voltar e capturar o homem!

Maomé Emin meneou a cabeça.

— Para que perder tempo em retroceder? Se aquele homem fosse de fato um bebbeh como poderia ele saber haver sido Heider Mirlam convidado para as festas dos dchiafs? Dessas coisas em geral guarda-se sigilo diante do inimigo.

— E, — acrescentou Amad el Ghandur — de que forma poderia aquele homem nos trazer danos? Ele segue para o norte e nós para o sul. Jamais conseguirão nos alcançar mesmo que ele em Banna avise que nos viu.

Esses argumentos eram de todo procedentes. Desisti, em vista disso, de pegá-lo. Apenas o inglês parecia não estar satisfeito com esta resolução.

— Por que deixar aquele sujeito solto? — disse ele encolerizado. — Antes o tivéssemos fuzilado. Nenhum mal faria. Todo curdo é ladrão! Yes!

— Também o bei de Gumri?

— Hum! Também!

— Sir, o senhor é muito ingrato!

— Não é de sua conta! Aquele bom bei não nos teria feito a recepção que nos fêz se Marah Durimeh não lhe tivesse predisposto o espírito a isto. Boa mulher,

adorável aquela Grandmother (19).

 

(19) Vovó.

 

Ao ser enunciado o nome de Marah Durimeh, em mim despertaram recordações que me fizeram esquecer o presente. Entreguei-me a tais pensamentos até o inglês advertir que já estava em tempo de se escolher um local para a sesta do meio dia.

Tinha razão o inglês. Não obstante a escabrosidade do caminho, vencêramos um bom trecho naquele dia e os animais faziam jus a um descanso. Encontramos um local bem apropriado para tal fim; apeamos e nos deitamos, exceto a sentinela, para dormir uma soneca.

 

Um assalto

Quando fomos despertados, os cavalos já se achavam com suas forças-refeitas. Resolvi fazer uma experiência para ver se o animal adquirido para o carvoeiro já se amansara a ponto de deixar que este o montasse. O animal parecia haver notado que em nosso poder não seria maltratado. Tornou-se dócil e nem parecia mais o mesmo quando com Allo no serigote saiu andando, obedecendo-lhe maravilhosamente ao governo. Deste modo me foi possível montar de novo o meu Rih o que foi uma sorte, conforme pouco depois constatei.

As montanhas e outeiros até agora descampados, pouco a pouco se apresentavam vicejantes à proporção que avançávamos para o sul; é que naquela zona havia mais abundância de aguadas. Mas por outro lado mais penosa se nos tornava a cavalgada. Não havia por ali nenhum caminho ou vereda trilhada. Ora tínhamos que subir por íngremes outeiros, ora descer por ladeiras escarpadíssimas; a seguir éramos forçados a cavalgar por caminhos semeados de cantos de rochas e mais adiante por veredas atulhadas de lenha apodrecida ou então bastante lodosa e atoladiça. À tarde chegamos a um vale estreitíssimo em cujo centro somente havia linha plana em forma de prado; o resto de sua superfície, por ambos os flancos, era coberta por densas matas. Ao longe erguia-se, qual nebulosa azulada, uma alterosa montanha, que com um outeiro à frente parecia nos afastar do caminho.

— Passaremos por aquela montanha? — perguntei a Allo.

— Passaremos, sim. Tomaremos à esquerda e cruzaremos pelo seu sopé.

— Que disse o homem? — perguntou Lindsay.

— Que o nosso caminho passará à esquerda do sopé daquela montanha.

— Isso pouco ou nada nos adianta saber! — resmungou o inglês mal humorado.

Mas não tardaria em constatar ele que de capital importância fora para ele aquela observação do nosso guia, pois mal eu abrira a boca para lhe retrucar, detonaram-se muitos tiros em ambos os flancos do caminho ao mesmo tempo que do matagal que o marginava saltaram cerca de cinqüenta cavaleiros, que logo nos fecharam num cerco.

Que terrível surpresa! As montarias da nossa caravana, todas elas foram atingidas, com exceção do meu garanhão. Conforme mais tarde vim a constatar, aquela exceção não se dera por mera casualidade. Os cavaleiros procuraram livrar-se do estribo para sacar de suas armas. Dentro de poucos segundos estávamos cercados de todos os lados e contra mim galopavam dois cavaleiros que logo reconheci: eram o xeque Gasahl Gaboya e o bebbeh com o qual eu estivera em negociações de paz, quando foi de nossa fuga.

Alvejaram-nos apenas os cavalos. Pretendiam pois capturar-nos com vida. Deixei em vista disso a espingarda "Henry" no serigote e peguei da pesada "Mata ursos".

— Verme, caiste agora em minhas mãos! — trovejou o xeque. — Desta vez não me escaparás, não!

Dizendo isso, pegou de sua clava para o golpe, mas no mesmo instante Dojan abocanhou-o de um salto na altura da coxa. O xeque proferiu um grito de dor e o golpe de clava a mim destinado foi acertar a cabeça do Rih. Este relinchou angustiosamente e se pôs a pino, dando-me tempo para desferir um coronhaço no ombro do chefe bebbeh. Depois o garanhão, com a cabeça dolorida, saiu em vertiginosa carreira não me obedecendo mais às rédeas.

— Dojan! — bradei ainda por trás de mim, visto que eu não queria perder o excelente cachorro. Nesse instante quatro ponteiras de lanças procuraram embargar-me o caminho e eu as aparei todas. Mais não pude ver. A cavalgada que então se seguiu jamais dela me esquecerei em toda vida. Não havia valos demasiadamente profundos, pedras demasiadamente altas, rochedos escorregadiços e nem tampouco tremedais demasiadamente traiçoeiros. Tudo, vales, macegais, matas, rochas, outeiros voavam por mim como que impulsionados por um raio, até que me foi possível sofrear o animal. Nessa altura, vi-me só e isolado numa região agreste e desconhecida. Mas durante a desabrida carreira, tivera eu a presença de espírito de prestar atenção ao rumo que o cavalo tomara. Diante de mim se elevava a montanha de que há pouco falei.

Que deveria fazer agora? Acorrer para junto dos companheiros? Não seria possível de momento; era de se supor que os bebbehs empreenderiam a minha perseguição. Como vieram eles a parar naquelas abruptas montanhas e penedos? Como haviam descoberto termos nós tomado aquela direção? Para mim tudo constituía um enigma.

De momento nada infelizmente me era possível empreender pelos companheiros. Eles ou haviam sido mortos ou então aprisionados. De momento, a única resolução a tomar, seria procurar um esconderijo e só no dia seguinte volver ao teatro das cenas anteriores, a ver o que nele se poderia descobrir, que me servisse de ponto de partida. Só então é que me seria possível fazer alguma coisa em favor dos meus amigos.

Primeiramente examinei a cabeça da garanhão. Nela havia um enorme intumescimento produzido pela pancada. Puxei-o para uma aguada onde o fiz deitar-se. Ali então apliquei-lhe compressas na contusão, com o mesmo carinho com que uma mãe solícita cura da saúde do filho amado. Nisto gastei mais de quinze minutos, quando distingui um rumor ao longe. Era um rumor de uma doida corrida, entrecortada de arquejos de quem estivesse prestes a perder o fôlego. Momentos depois ouviu-se um latido de alegria e Dojan de mim se aproximou, pulando-me ao ombro com tamanha violência que me derribou na relva.

— Dojan!

O cachorro uivava e latia de contentamento ao mesmo tempo. Pulava ora aos meus ombros, ora no lombo do garanhão, e eu fui obrigado a permitir que ele desse expansão a toda a sua algeria, para depois se acalmar pouco a pouco e com mais facilidade. Também ele escapara sem receber o menor arranhão.

O inteligente e fiel animal compreendeu a causa por que eu cuidava tanto do cavalo, pois, depois de mais calmo, passou a lamber-lhe a região contundida. Rih calmamente deixou que o cão lhe fizesse aquele curativo e até de quando em quando desprendia alegres nitridos.

Assim estivemos ali por algum tempo ainda, até que achei de bom aviso abandonar aquele local. O melhor seria na presente conjuntura, procurar o sopé da montanha de que me falara o carvoeiro. Montei e para lá me dirigi.

Os flancos da montanha se achavam cobertos de cerradas matas. Só lá aos fundos, no vale, por onde cruzava o caminho, havia espaço para a gente se mover à vontade. Divisei naquele lugar um ângulo de mata, do qual se podia avistar tudo o que se aproximasse, a uma regular distância. Tomei o rumo do mesmo. Quando o atingi apeei, cuidando, antes de tudo, de encontar um esconderijo seguro para o meu garanhão. Mal, porém, havia eu andado alguns passos, Dojan deu o conhecido sinal de que algo de suspeito estava a perceber. Achei o caso demasiadamente delicado para confiá-lo exclusivamente ao fiel cão. Agarrei-o pela corda, amarrei o cavalo, e depois o segui de espingarda pronta para o tiro.

O cachorro impelia-se tão fortemente para diante, que ameaçava arrebentar a corda que o prendia. De repente, entre dois pinheiros, proferiu uns latidos. Ali havia uma moita de fetos (1) e, quando separei-lhe as folhas com a coronha da espingarda, notei que no solo havia uma toca de uns dois pés de diâmetro.

Estaria um animal dentro daquele covil? Por certo que não. Mas quando sondei a toca com a espingarda, constatei que nela se abrigava um corpo, corpo que não podia ser de nenhum animal feroz, conforme deixava supor o latido do cão. Fiz sinal para que este entrasse no covil, mas o animal não obedeceu, agitando a cauda e olhando alegremente para a abertura do solo. Que mistério seria aquele?!

Decidi-me e meti a mão dentro da cova e logo entrei em contato com uma cabeça cabeluda e exótica. Ah! decifrara-se o enigma! Era o cachorro do carvoeiro que se acoitara dentro da toca. Ao ouvir os primeiros estampidos o animal fugira e o pavor o trouxera casualmente para ali.

— Eisa! — chamei.

Observara eu que o carvoeiro chamava o cão por aquele nome. O animal conservou-se quieto dentro do buraco. Quando, porém, repeti o chamado, ele começou a se mexer. Afastei as folhas dos fetos e imaginem com quem deparei!

Foi um susto agradável, se me permitem a expressão, que experimentei ao encontrar ali, imaginem quem! — Nada mais, nada menos que Allo! Sim, porque se aquele homem conseguira salvar-se, era de esperar que também os companheiros haviam logrado fugir.

— Allo, tu, aqui?! — exclamei.

— Como vês! — respondeu ele muito simplesmente.

— Onde está o teu cão?

— Foi pisoteado! — respondeu o carvoeiro com inflexão de amargura na voz.

— Como conseguiste fugir?

— No momento em que todos desandaram em tua perseguição, ninguém, no primeiro instante, se preocupou conosco. Eu então aproveitei a ocasião e me entranhei no macegal, ganhando depois a mata. Resolvi, então, esconder-me aqui, visto que te havia dito, termos que passar pelo sopé desta montanha. Calculei logo que para cá virias, no caso de não conseguirem os bebbehs te encontrar.

— Quem mais conseguiu escapar?

— Não sei.

— Aqui teremos que ficar à espera de algum dos companheiros, que provavelmente virá encontrar-se conosco. Procura um esconderijo para nele recolher o meu garanhão.

— Conheço um lugar excelente para este fim, Chodih.

— Conheces então esta zona?

— Sim, já fiz carvão aqui. Acompanha-me com o garanhão! Levou-me o carvoeiro um trecho de um quarto de hora, montanha acima. Lá havia uma parede de rocha completamente encoberta por amoreiras. Separou Allo os ramos de uma amoreira num dos lanços da parede e diante de nós surgiu uma abertura, que dava folgadamente para ali guardar o cavalo.

— Aqui morei, quando por cá andei a fazer carvão — disse ele. — Amarra aí o cavalo que vou buscar pasto.

No interior da abertura, havia algumas estacas fincadas no chão, estacas que deviam ter servido de pés de mesa, embora fossem os pés da mesa, ao sistema oriental, muito baixos. Num deles amarrei o cavalo, de modo que este não pudesse se afastar do esconderijo sem ser visto por mim. Ao sair encontrei do lado de fora o carvoeiro a cortar gordos capins destinados a Rih.

— Chodih, volta lá para baixo; é possível que neste ínterim apareça um dos companheiros! Assim que eu tiver forrageado o teu cavalo, irei reunir-me a ti.

Segui-lhe o conselho e tomei uma posição ao sopé da montanha, de onde podia ao longe descortinar todo o horizonte. Alguns minutos depois chegou o carvoeiro.

— O cavalo estará seguro naquele esconderijo?

Ao responder-me ele que sim, acrescentei:

— Tens fome?

Um murmúrio de dúvida foi a sua resposta,

— Infelizmente nada tenho que comer: é preciso termos paciência até manhã.

Tornou a murmurar o homem significativamente e perguntou-me:

— Chodih, ganharei pelo dia de hoje as duas piastras que me prometeste?

— Não; receberás quatro em vez de duas.

Um terceiro murmúrio proferiu o homem, mas desta vez cheio de entusiasmo. Seguiu-se um profundo silêncio entre nós.

Anoiteceu. Precisamente no instante em que da terra se despedia a luz do dia, pareceu-me haver divisado um vulto a entrar numa pequena clareira que ficava do lado oposto. Resolvi ir ao referido local, constatar do que se tratava. Determinei que o curdo ficasse junto de minhas armas. Peguei o cachorro pela corda e saí esgueirando-me pela orla do mata Não vencera ainda metade do caminho, quando vi que o vulto atravessava a pequena clareira e dava com os olhos em mim.

— Zounds! Quem está aí?

A essas palavras dois compridos braços me eram estendidos para um abraço.

— Lindsay! Sir David Lindsay! Mas realmente é o senhor?! — exclamei.

— Oh! Ah! Mister! Yes! Well! Sou eu, sim! E o senhor? Ah! Ah! Well! Também o senhor é o senhor mesmo?... Ah! ah! sim! Yes!

O inglês se achava perturbado de tanta alegria e me deixava também perturbado pela surpresa visto que me abraçava, reabraçava, apertava-me de encontro ao peito, tentava oscular-me, não obstante o seu enfermiço nariz não me trazer lá muito desejo de receber o beijo.

— Nunca pensei de encontrá-lo aqui, sir David!

— Não? O gorila... o no! o carvoeiro disse que teríamos que passar por aqui.

— Vê agora, quanto foi bom nos ter dito ele isso! Mas diga-me de que maneira conseguiu salvar-se!

— Hum! Fui rápido. O meu cavalo foi morto; saí-lhe do lombo e vi que todos saíam em sua perseguição; pulei, então, para o lado e embarafustei pela mata.

— Tal qual Allo!

— Allo? Também fugiu com este estratagema. Também aqui?

— Lá do outro lado está ele sentado. Vamos!

Levei-o para o nosso ponto de observação. Grande foi a alegria do curdo ao ver que mais um companheiro se havia escapado. Essa alegria ele a demonstrou com sons só comparáveis ao ruído produzido pela roda de um tear avariado.

— E como se saiu o senhor? — perguntou Lindsay.

Contei-lhe todo o decurso de minha fuga.

— E nada aconteceu ao seu cavalo?

— Apenas um intumescimento na cabeça.

— E o meu teve que morrer! Bom animal! Hei de matar a esses bebbehs! A todos! Yes!

— Mas ficou ainda de posse da sua espingarda?

— Espingarda? Não faltava mais nada eu deixá-la nas mãos daqueles canalhas! Aqui está ela no chão!

— Devido à escuridão não notara a sua arma no solo.

— Pode então estar satisfeito, sir! Esta espingarda seria insubstituível.

— Também a faca. revólveres e os cartuchos, está tudo comigo.

— Que sorte não tê-los deixado no serigote! Mas não tem ao menos uma idéia se mais alguém dos nossos conseguiu também escapar?

— Nenhum mais. Halef estava ainda debaixo do próprio cavalo e os haddedins se achavam em luta no meio de um grupo de bebbehs.

— Santo Deus! estão todos perdidos!

— Calma, mister! Esperemos! Allah akbar. — Deus é grande, — dizem os turcos.

— Tem razão, sir. Contudo, se minha triste previsão falhar, tudo empreenderemos para libertá-los no caso de ainda viverem e se acharem apenas aprisonados.

— Perfeitamente! Por enquanto, porém, vamos dormir. Estou cansado; tive que andar muito a pé hoje! Dormir sem os cobertores! Miseráveis bebbehs! Miserável país! Yes!

Tanto o inglês como o curdo adormeceram logo. Eu, porém, estive horas e horas de vigília; tarde da noite me levantei e fui ver o meu Rih. Depois tentei dormir, confiando a guarda do acampamento ao fiel Dojan. Fui interrompido no sono por um repelão enérgico no braço. Acordei. Rompia a alvorada. Antes que eu respondesse, apontou o carvoeiro para a orla do macegal oposto. Um gamo se aproximava indo a caminho da aguada. Precisávamos de carne e embora a detonação de um tiro pudesse denunciar ao inimigo o nosso esconderijo, lancei mão da espingarda. Assestei-a e bati o gatilho. Ao estampido, Lindsay deu um vertiginoso salto e se pôs em posição ereta.

— Que há? Onde está o inimigo? Como? Onde? Yes!

— Lá do outro lado, está ele estirado, sir.

O companheiro olhou para a direção apontada.

— Ah! Roe-buck! Veado-macho! Esplêndido! Visitou-nos bem a tempo aquele exemplar da fauna! Desde ontem ao meio dia que não ponho mais alimento algum na boca. Well!

Allo saiu correndo em busca da caça abatida. Alguns minutos depois ardia um fogo num local oculto e nele era assada a apetitosa carne. Resolvêramos o problema de nosso abastecimento, bem como o do cão.

Durante a refeição combinamos ali ainda ficar até ao meio-dia e depois sair a ver o que havia sucedido com os nossos camaradas. Em meia da palestra, Dojan levantou-se e passou a olhar desconfiado para a mata. Permaneceu assim durante algum tempo como que à escuta de algo que viesse de longe. Nisso, em gigantescos saltos se foi o cachorro, sem dirigir-me antes os olhares como era de seu hábito. Levantei-me também rapidamente para agarrar a minha espingarda e sair nas suas pegadas. Fiquei, porém, parado porque ouvi não o brado angustioso de alguém que era agarrado pelas presas do cão, mas alegres latidos deste.

Minutos após, aproximou-se de nós... Hadji Halef Omar, a pé, sim, mas completamente armado e equipado.

— Hamdullillah, sídi, que ainda te encontro e te encontro com saúde! — saudou-me o fiel criado. — O coração partia-me de cuidados pela tua pessoa; mas me consolava a convicção de que inimigo algum conseguiria alcançar o teu Rih.

— O Hadji! — exclamou Lindsay com entusiasmo. — Oh! Ah! Não foi trucidado! Esplêndido! Incomparável! Chegou bem à hora! Venha comer assado de gamo! Well!

O bom do inglês, tomou logo a coisa pelo lado prático. Halef não se achava menos entusiasmado vendo o inglês e o guia salvos da sanha do inimigo. Agarrou logo o enorme pedaço de assado que o Lindsay lhe passava e saboreou-o.

— Como conseguiste escapar, Halef? — perguntei-lhe.

— Os bebbehs atiraram sobre os nossos cavalos — respondeu o homenzinho. — Também o meu tombou sem vida e eu fiquei preso ao estribo. — Eles não se preocuparam conosco, pois, ao que parecia, tencionavam prender especialmente a ti e ao teu garanhão; devido a este propósito dos inimigos, Alá cegou-os de modo que eles não notaram quando mister Lindsay e aquele curdo se escaparam. Quanto a mim, calmamente desprendi o pé do estribo, peguei de minhas armas e dei às de Vila Diogo,

— Que descuido dos bebbehs! Atiraram contra os animais com o fim de capturar com vida os cavaleiros e no entanto deixaram fugir!

— Não viste nada a respeito da situação dos haddedins, Halef?

— Enquanto eu fugia, vi que os haviam aprisionado.

— Oh! não temos então tempo a perder e precisamos partir já em. sua ajuda!

— Espera, sídi, deixa-me contar-te o resto! Quando consegui fugir, conclui ser mais acertado permanecer pelas redondezas e espionar o inimigo, em vez de fugir para mais longe. Subi a uma árvore cheia de ervas trepadeiras que me ocultavam completamente. Lá fiquei até ao anoitecer. Só depois de inteiramente escuro é que resolvi descer.

— Que viste?

— Os bebbehs não pretendem se retirar já. Acamparam lá mesmo e contei ao todo oitenta guerreiros.

— Em que consiste o acampamento?

— Construíram cabanas com ramagens de árvores. Numa dessas cabanas acham-se os haddedins recolhidos e estão com as mãos e os pés algemados.

— Tens certeza disso?

— Tenho, sim, sídi. Nem cheguei a dormir, e durante toda a noite rondei ao redor do acampamento, pois alimentava a esperança de talvez me ser possível chegar até a cabana dos prisioneiros. Mas baldada foi tal esperança. Só tu mesmo é que serias capaz dessa proeza, sídi, contigo é que aprendi a rastejar, no que, como aliás em tudo, és o mestre dos mestres.

— Não te foi possível descobrir, por qualquer circunstância, o motivo de haverem os bebbehs acampado? Não posso compreender por que não deixaram eles imediatamente a zona.

— Nem eu, sídi, e tampouco pude descobrir a causa disso.

— És digno de louvores, Hadji Halef Omar, por teres conseguido aproximar-te tanto de nós sem que te percebêssemos o ruído. Como chegaste à conclusão de que me achava exatamente neste ponto?

— Porque conheço o teu modo de proceder, sídi; costumas numa conjuntura dessas procurar sempre um lugar de onde tudo vês sem seres visto.

— Bem, descança agora um pouco. Eu vou resolver que devemos fazer. Allo, puxa meu cavalo à aguada e dá-lhe pasto novo!

O carvoeiro nem se havia ainda erguido para cumprir minha ordem, quando o cachorro desandou a bater com as patas no chão e a olhar desconfiado para a frente. No mais culminante ponto de nosso horizonte surgiu um cavaleiro que se aproximou rapidamente e por nós passava a trote.

— Olá! devo fuzilá-lo, mister? — perguntou o inglês.

— De forma alguma!

— Mas trata-se de um bebbeh!

— Deixa-o. Não somos assassinos.

— Desse modo teríamos um cavalo.

— Já haveremos de obter outros.

— Hum! neste caso não somos assassinos, mas ladrões! Vamos roubar cavalos! Yes!

Neste instante, aquele bebbeh me deu que pensar. Por que deixara ele o acampamento e para onde se dirigia agora?

Daí a uma hora o enigma ficou resolvido, pois ele voltava e passava por nós sem ter a menor idéia de que nos achássemos tão próximos dele.

— Que teria ele ido fazer lá em baixo? — perguntou Lindsay.

— Indubitavelmente levar algum recado.

— Recado? De quem?

— Por certo que do xeque Gasahl Gaboya.

— A quem?

— À coluna de bebbehs que conserva ocupado o caminho, a meia hora daqui.

— De que modo chega a esta conclusão?

— Muito facilmente até. O xeque sabendo com certeza que viríamos por esta estrada, mandou ocupar a outra extremidade da mesma por uma legião, a fim de que esta prendesse os primeiros de nós que conseguissem escapar.

— Bem raciocinado, sir, desde que seja acertado!

 

LIBERTANDO OS PRISIONEIROS

Se era ou não acertado o meu raciocínio, precisávamos é claro averiguar. Combinamos que o inglês ficaria com o carvoeiro no esconderijo junto do Rih, enquanto eu com Halef sairíamos em observação. Se até o meio-dia do dia seguinte não estivéssemos de volta era para mister Lindsay, guiado por Allo, cavalgar até Bistan e lá permanecer durante quatorze dias na casa do irmão de Allo à minha espera. Se até então eu ainda não estiver de volta com Halef, — acrescentei — é por que estamos mortos e o senhor, sir David, ficará como meu herdeiro universal.

— Hum! Testamento! Horrível! Eu arrasaria todo Curdistão! Herdeiro? De quê? — perguntou-me por fim o valente filho da Albion.

— Do meu cavalo — respondi-lhe.

— Não o quero, não! Se o senhor morrer, que se arrase esta maldita terra! E com ela todos os cavalos! Também os bois, as ovelhas, os bebbehs, tudo! Well!

— Bem, já está o senhor agora de posse de todas as instruções. Agora resta-me apenas instruir também o carvoeiro.

— Esclareça-lhe tudo bem, sir! Não consigo entender-lhe uma só palavra de seu idioma arrevesado! Belo passatempo vou ter com aquele sujeito! Dias agradáveis! Se eu soubesse disso, teria ficado em casa, na velha Inglaterra! Não preciso de Fowling-bulls! Yes!

Não havia tempo a perder. Deixei o inglês entregue ao seu descontentamento. Depois de haver ministrado todas as instruções a Allo, pus ambas as espingardas a tira-colo e entreguei-me à direção de Halef.

Este levou-me exatamente pelos mesmos caminhos que havia ele tomado em sua vinda, circunstância que demonstrava honrar ele as lições que de mim vinha recebendo através de minha jornada pelo oriente. Ele valera-se de todo o acidente do terreno e desfez ou confundiu a senda de um modo tão inteligente, que mesmo a um índio dos Estados Unidos seria impossível descobri-la, senão depois de longas e estafantes pesquisas.

Caminhávamos através de árvores, seculares muitas delas, e nos conduzíamos de modo a conservarmos o descampado à vista. Eu trazia Dojan comigo e como caminhávamos contra o vento, não precisaríamos recear alguma surpresa.

Finalmente nos aproximávamos da zona em que fôramos assaltados. Halef quis prosseguir, mas eu o detive.

— No caso de cair eu prisioneiro, já sabes onde encontrarás o inglês. Por enquanto o melhor é subires num daqueles pinheiros, cujos galhos constituem seguro esconderijo. Conheces muito bem o estampido de minhas espingardas e portanto a destingues do estampido de outras espingardas. Assim, concluirás que estou em perigo, quando ouvires o detonar de minhas armas.

— E que farei então?

— Continuarás no topo do pinheiro, a não ser que eu te chame em altos brados. Trepa agora!

Peguei o cão pela corda curta e me esgueirei para frente através do macegal que então era um pouco cerrado. Era, aliás, arriscadíssima empresa a que eu realizava: aproximar-me de tal modo de um acampamento inimigo.

Depois de algum tempo, divisei através do macegal as primeiras cabanas do inimigo. Eram em forma de pirâmides e construídas de arbustos. Recuei um pouco para depois cortar um semicírculo em torno do acampamento, pois eu precisava ver se havia algum bebbeh acampado no fundo da mata. Se tal acontecesse, tê-lo-ia pelas minhas costas e estaria descoberto.

Rastejei de árvore em árvore e não tardei em ver que a medida por mim tomada fora justificada, pois pareceu-me ouvir vozes humanas, ao mesmo tempo que Dojan me tocava com o focinho na perna. O nobre cão levado pelo seu instinto se apercebera da situação e sabia que um latido seu me lançaria em perigo. Olhava-me com olhares significativos, que tudo diziam.

Continuando com toda a cautela, alcancei uma moita de amoreira em cuja orla se achavam sentados três homens a palestrar. Aquele local era como se houvesse sido feito para eu executar o meu serviço de observação. E como logo julguei que os acontecimentos da véspera eram no instante o assunto da palestra, rastejei depressa para o referido tufo. Ali chegado, tomei uma posição da qual podia, sem ser visto, ouvir toda a conversa.

Como fiquei admirado em ver no grupo o curdo que por duas vezes eu livrara das presas do cão e que depois soltara, porque ele se dizia um dchiaf! Também Dojan o reconhecera, visto que seus olhos flamejavam coléricos contra ele, embora não proferindo o menor latido ou rumor. Allo tivera, pois, razão. Aquele curdo era um bebbeh e lá se achava de sentinela para depois avisar a nossa chegada ao grosso da tropa. Por certo que tinha o seu cavalo escondido pelas imediações e depois de solto tomara um atalho e nos saíra à frente, em vez de cavalgar para o norte, conforme dissera.

— Eram todos uns tolos! — ouvi-o dizer. — Mas o mais tolo de todos era o homem que montava um lindo garanhão preto.

Ah! o homem se referia a mim, e em que termos lisonjeiros!

— Se ele não houvesse prendido os bejates que ficaram no acampamento e não os tivesse ofendido — prosseguiu o que estava com a palavra — estes não nos teriam relatado a palestra por eles ouvida quando o espreitaram e na qual ele declinou todo o roteiro que pretendia seguir.

Agora também este enigma se me decifrava. Quando no acampamento dos bejates combinávamos nos separar dos bejates e traçávamos o plano de nossa rota, éramos espreitados por gente daquela tribo. Depois de aprisionados, os bejates denunciaram o nosso plano, certamente para conquistar a indulgência dos que os aprisionaram.

— Mais tolo ainda se revelou ele, — acrescentou um dos companheiros que antes falara — por se ter deixado ludibriar por ti.

— Não há dúvida. Mais tolo também não o deixou de ser Gasahl Gaboya, ordenando que alvejássemos os cavalos, com exceção do garanhão preto, a fim de poupar a vida aos cavaleiros. Com a morte dos homens nada se perderia; pena seria se perdêssemos o lindo garanhão. Afinal, agora, quatro deles fugiram, entre eles o chefe da caravana e como não dispõem de cavalos poderão refugiar-se nas montanhas mais abruptas. Se não lhes tivéssemos mortos os cavalos, seriam eles obrigados a seguir pelo caminho, cuja embocadura no extremo oposto se acha ocupada pela nossa gente.

Os três bebbehs haviam juntado cogumelos, que agora limpavam, antes de levá-los para o acampamento. Aquela tarefa lhes dava tempo para uma discreta troca de idéias.

— Agora o nosso xeque mandou um emissário à coluna que ocupa o caminho lá em baixo. Aquela secção é para esperar até o sol se achar no seu zênite. Se até então não lhes aparecerem os fugitivos é para eles levantarem acampamento e vir reunir-se a nós, visto que então provado estará que os quatro realmente conseguiram fugir. Quanto a nós regressamos hoje ainda.

— E que será feito com os dois prisioneiros?

— São homens de valor, pois até agora não falaram uma só palavra. Mas hão de nos dizer ainda quem são e pagarão um pesado resgate se não quiserem morrer.

Eu já ouvira o suficiente e tratei de retroceder. Os homens estavam com os cogumelos quase todos limpos e, ao se levantarem ou se retirarem, ser-lhes-ia fácil me descobrirem.

Com que então eu fora um tolo, dentre todos, o mais tolo, aliás!

Fui obrigado a ouvir aquela referência laudatória sem ao menos agradecer a amabilidade daqueles bons homens. O que mais me preocupava em tudo aquilo era a circunstância de pretenderem os bebbehs levantar acampamento ao meio dia. Até àquela hora, pois, eu precisaria libertar os haddedins. Mas de que maneira?

Vi que os três homens se ergueram do solo. Portanto não foi sem tempo que eu me retirara. Aquele que se nos apresentou como um dchiaf, disse:

— Ide, que eu ainda vou passar uma revista na cavalhada!

A este segui de longe. Guiou-me ele, claro que sem o saber, a uma depressão do terreno, onde corria um arroiozinho. Lá se achavam uns oitenta cavalos amarrados às árvores, distantes uns dos outros, de modo que encontravam suculenta relva mais do que suficiente para pastar. O local era claro e nele batia o sol, sendo a distância do primeiro ao último cavalo talvez de uns oitocentos passos.

Do ponto em que me achava, podia avistar tudo. Eram, no geral, excelentes cavalos e em mente já escolhera seis dos melhores entre eles. O que mais me satisfazia era o fato de se achar apenas um curdo vigiando a cavalhada. Não me seria difícil dominá-lo. O meu guia afagou um zaino, que era talvez o melhor animal da tropa. Por força era o de sua montaria e em paga do juízo tão amável que tivera a meu respeito estava resolvido a fazê-lo voltar a pé para casa.

Conversou ele algumas palavras com o guarda e depois tocou-se para o acampamento. Continuei a segui-lo e adquiri a convicção de que num vasto perímetro ao redor do acampamento ninguém me avistaria. Portanto ser-me-ia fácil aproximar-me dele.

Depois de um cuidadoso e lento reconhecimento, consegui contar dezesseis tendas que se achavam construídas em semicírculo por debaixo de árvores. Na maior das tendas deveria morar o xeque Gasahl Gaboya, pois estava ela enfeitada no seu topo com um pano de turbante. Estava armada no ponto mais central do semicírculo, de modo a me ser fácil dela me aproximar. Ao lado daquela, estava a tenda que abrigava os prisioneiros, pois à sua frente dois curdos montavam guarda, empunhando suas espingardas.

Voltei para junto de Halef. Este se achava ainda no topo do pinheiro, do qual, à minha aproximação, desceu. Cientifiquei-o de meu plano de libertação, plano aliás temerário e perigoso, e depois escondemo-nos num local de onde podíamos descortinar todo o caminho. Impacientes aguardávamos ali a hora de entrarmos em ação. Uma tal espera causa-nos, em geral, permanente perturbações e mortificações de espírito, até o momento de agir, quando os nervos se nos acalmam completamente.

Decorreram cerca de duas horas. Vimos então lá em baixo aproximar-se um cavaleiro.

— Aquele por certo vem anunciar a chegada da outra secção — disse Halef.

— É possível. Reparaste aquele carvalho que se ergue na parte mais elevada da depressão do terreno, local em que se acham amarrados os cavalos?

— Reparei, sídi.

— Rasteja até lá e espera-me depois. Preciso saber o que diz aquele cavaleiro. Leva Dojan contigo. Não posso utilizá-lo agora. Também as armas, leva-as contigo!

Halef pegou o cachorro pela corda e se afastou; quanto a mim, apressei-me em aproximar-me tanto da tenda do xeque quanto seria necessário para ouvir toda a conversa que lá se travasse. Consegui-o tanto quanto me foi possível. Mal tomara eu posição por trás do tronco de uma árvore, chegou o cavaleiro a galope e saltou do cavalo.

— Onde está o xeque? — ouvi-o perguntar.

— Na sua tenda! — respondeu alguém.

Gasahl Gaboya saiu da cabana ao encontro do recém-chegado.

— Que novas trazes?

— Os guerreiros não tardam chegar.

— Portanto não viram nenhum dos fugitivos?

— Nenhum.

— Conservastes então os olhos cerrados!

— Não, Senhor, vigiamos durante a noite toda e até agora. Ocupamos todos os vales adjacentes, mas não vimos pessoa alguma.

— Lá vêm eles! — ressoou uma voz lá fora do acampamento.

A esse brado acorreram todos para fora, abandonando o acampamento, inclusive os dois guardas; podiam fazê-lo, visto que os prisioneiros se achavam algemados!

A ocasião tornou-se-me mais propícia do que eu esperava. Com alguns saltos coloquei-me por trás das tendas dos prisioneiros. Dois cortes com a faca e me achava no seu interior. Achavam-se ligados um ao outro, por fortes cordas amarradas aos pés e mãos.

— Maomé Emin, Amad el Ghandur, levantai-vos! Depressa! Em dois segundos cortava eu as cordas que os prendiam.

— Vinde depressa!

— Desarmados mesmo? — perguntou Maomé Emin.

— Quem tirou vossas armas? — O xeque as tem.

Saí de novo pela abertura que eu fizera por trás da tenda e fiz um reconhecimento ao redor. Ninguém se achava com a atenção voltada para o acampamento.

— Para fora, e me acompanhai!

Embarafustei pela tenda do xeque adentro e os haddedins atrás. Achavam-se eles muito perturbados. Suas armas estavam dependuradas a um dos galhos, que serviam de caibros. Junto com elas se achava também uma pistola e uma espingarda persa pertencentes ao xeque. Agarrei também estas duas armas e olhei primeiro para fora; continuava abandonado o acampamento. Saímos e, de esgueira, ganhamos o vale. Este se achava distante, uns cinco minutos, mas dentro de dois achamo-nos com Halef.

— Machallah! Milagre de Deus! — exclamou o homenzinho.

— Agora, rumo à cavalhada! — comandei.

O guarda lá se achava de costas viradas para nós.

A um sinal meu, Dojan saiu correndo e num instante se achava o homem debaixo de suas presas. O homem proferiu um grito, mas o segundo já lhe não foi mais possível proferir. Assinalei os seis melhores cavalos e ordenei a Amad el Ghandur:

— Segura-os por algum tempo! Halef e Maomé Emin, depressa soltemos os demais no mato!

Os companheiros compreenderam-me imediatamente. Enquanto os bebbehs acolhiam os que chegavam, com brados de júbilo, nós saltávamos de cavalo em cavalo a cortar as cordas que os prendiam. Vinte e cinco cordas por homem! Não obstante, porém, o serviço foi efetuado com rapidez; depois enxotamos todos, por meio de varadas e pedradas, de modo a não lhes ocasionar ferimentos; entraram todos na mata, onde se dispersaram. Não foi sem grande esforço, que Amad el Ghandur continha os seis animais que segurava. Eu tinha três espingardas para pôr a tiracolo e duas pistolas para pôr à cintura. A seguir montei o zaino e levei ainda dois dos animais pelo cabresto. Cada um dos companheiros montou um dos animais.

— Agora, avante! Está mesmo em tempo!

Sem me virar, toquei o cavalo pela escarpa acima; depois a mata nos pôs ao abrigo. A cavalgada tornou-se morosa, tanto mais que éramos forçados a fazer grandes voltas. Por fim alcançamos um melhor trecho do caminho, por onde nos foi possível tocar mais ligeiro os cavalos.

De repente, ouvimos por trás de nós um brado estridente. Não havia tempo para cogitações sobre qual a verdadeira causa do brado. Para frente, sempre para frente!

Tivemos que cavalgar um longo caminho e precisamente no ponto onde este dobrava em arco, surgiram então dois cavaleiros. Assim que um deles nos notou, retrocedeu, ao passo que o outro prosseguiu ao nosso encontro.

— Galopemos, galopemos o mais que fôr possível, do contrário perderei o meu garanhão! — exclamei. — Não tarda termos bebbehs pelo costado!

  A nossa escolha fora excelente, pois os animais revelavam-se esplêndidos corredores. Daí a pouco divisamos a nossa cobertura de mata. Alçamo-la e nos postamos por trás das árvores. Vi apenas Allo.

— Onde está o emir? — perguntei-lhe.

— Junto do teu cavalo.

— Aqui tens uma espingarda! Monta esse alazão. E teu!

Dei-lhe a espingarda do xeque e galopei montanha acima, na direção do esconderijo. Este distava uns quinze minutos, mas creio que o venci em cinco. Lindsay se achava sentado no solo.

— Já de volta, mister? Oh! Ah! Como se foi, hein?

— Bem, muito bem! Mas não temos tempo para conversas, pois vamos ser perseguidos. Corra montanha abaixo, sir! Lá está um cavalo para o senhor!

— Perseguidos? Ah! Bom! Esplêndido! Cavalo para mim? Well! Em doida disparada desceu o inglês a montanha. Nem sei como não caiu e rolou por ela abaixo. Desamarrei o garanhão e puxei-o para o sopé. Isto infelizmente não pôde ser feito com a ligeireza que eu desejava; quando cheguei embaixo os companheiros de há muito que se achavam montados à minha espera e Halef segurava o sexto cavalo pela rédea.

— Demorou muito, emir! — disse Maomé Emin. — Vê, já é tarde! Dizendo isso, apontou ele para além, onde o primeiro cavaleiro que nos seguia tornou-se visível. Olhei-o atentamente e mesmo ao longe reconheci aquele homem.

— Conheceis aquele homem? — perguntei aos companheiros.

— Conheço, sídi — respondeu Halef. — É o mesmo dchiaf de ontem.

— Ele não é dchiaf não, mas um bebbeh e nos atraiçoou. Deixai-o passar que depois nos cairá nas mãos.

— Mas se neste permeio chegarem os outros?

— Tão ligeiro não será isso possível. Sir David! Nós dois cavalgaremos à frente e fecharemos aquele cavaleiro entre nós. Se ele reagir, golpeá-lo-emos de modo a deixar que caia a arma.

— Muito bem, mister! Excelente! Yes!

 

APRISIONAMENTO DO SUPOSTO DCHIAF

Neste momento desaparecia o bebbeh na primeira curvatura do caminho e nós deixávamos o esconderijo. Quando eu com Lindsay atingimos a citada curvatura, o homem se achava a uns cinqüenta passos distantes. Percebeu a nossa vinda e virou-se. Reconheceu-nos e tão assustado ficon com a nossa aparição que instintivamente fêz parar o cavalo. Acreditava-nos diante dele e agora nos via por trás. Antes que ele readquirisse a presença de espírito, haviamo-lo agarrado.

Sacou ele da faca. Peguei-lhe do pulso e apertei-o de modo que foi obrigado a largar a arma. E enquanto Lindsay o despojava da lança, com a minha faca cortei a bandoleira da arma que trazia a tira-colo, a qual caiu no chão. O homem estava pois desarmado; o animal galopou com ele a toda a brida ao lado dos nossos. Vendo que não havia outro remédio, entregou-se ao destino.

Assim fomos galopando sempre rumo do sul, até que nos convencemos de havermos vencido uma suficiente dianteira. Foi quando entramos a trotar e Allo passou para frente a nos servir de guia.

— Que faremos deste sujeito? — perguntou Lindsay.

— Castigá-lo-emos.

— Yes! Dchiaf suposto! Que corretivo lhe aplicaremos?

— Não sei ainda. Deliberaremos depois a esse respeito.

— Lindo! Uma sessão! Câmara dos Lords! Câmara dos comuns! Well! De que maneira conseguiste libertar os haddedins?

Relatei-lhe sucintamente a nossa proeza. Quando cheguei na altura em que imobilizamos a guarda do cavalo, tive que suspender a frase.

— Santo Deus! Que fiz eu?

— Que há, mister? Fêz tudo tão bem feito!

— Na pressa, esqueci-me de chamar o meu fiel Dojan de sobre o homem!

— Oh! Ah! que desastre! Mas ele virá atrás!

— Nunca! A esta hora já estará morto, bem como o guarda.

— Por que logo morto?

— Assim que fôr tocado ou que alguém o ameace, mata ele o que tem sob as presas para abocanhar ao outro. Por certo que então os bebbehs o matariam a tiro. Por causa daquele cachorro estou quase a retroceder embora me vá lançar nos maiores perigos! Mas infelizmente de nada já adiantaria isso.

Halef ficou também profundamente sensibilizado com a perda do fiel e excelente cachorro e eu durante toda a tarde estive imerso na mais profunda tristeza. À noite fizemos alto e só então algemamos o bebbeh. Não obstante a pressa com que cavalgáramos, Halef tivera ainda tempo de colocar o quarto do gamo na garupa do cavalo desmontado. Destarte havia suficiente provisão para o nosso jantar daquele dia.

Depois da refeição, inquirimos o prisioneiro. Até então ele não havia pronunciado uma só palavra. Conformara-se contudo, somente porque esperava que a todo momento chegasse a sua gente para libertá-lo.

— Ouve, homem — comecei o interrogatório — quem és tu? Um dchiaf ou um bebbeh?

Não me respondeu.

— Responde, já! Nem sequer pestanejou.

— Halef, arranca-lhe o turbante e corta-lhe a madeixa!

É a maior degradação que pode haver para um curdo e principalmente um muçulmano o cortar-lhe a madeixa do cabelo que cai sobre a testa. Quando Halef com a direita empunhava a faca e com a esquerda pegava uma boa porção de cabelos, o homem suplicou:

— Senhor, deixa-me a cabeleira! Responder-te-ei tudo!

— Bom! A que tribo pertences?

— Sou um bebbeh.

— Então nos mentiste ontem!

— Não se é obrigado a dizer a verdade a um inimigo.

— Os teus princípios são os de um canalha. E tiveste o desplante de jurar pelas barbas do profeta.

— A um infiel é permitido jurar-se falso.

— Mas juraste a fiéis também, que deles há quatro em nossa caravana!

— Nada tenho com isso.

— Além disso me classificaste de tolo!

— Mentiram-te, Senhor!

— Disseste sermos todos uns tolos e que eu era o maior deles! Disseste-o, sim, eu ouvi com os meus próprios ouvidos, na ocasião em que limpáveis os cogumelos. Eu me achava deitado por trás do tufo e ouvi toda a conversa. Depois saí de lá e soltei os prisioneiros e a vossa cavalhada. Agora, dize-me se realmente sou um tolo!

— Perdoa-me, Senhor!

— Nada tenho a perdoar-te, pois palavras proferidas por ti jamais poderão atingir a um emir do Frankistão. Ontem te deixei em liberdade, porque de ti tive compaixão; hoje me caíste novamente nas mãos. Agora dize-me quem de nós dois é o mais idiota?... És irmão do xeque Gasahl Gaboya.

— Não sou.

— Hadji Halef, corta-lhe a madeixa!

Foi tiro e queda.

— Quem te disse? — perguntou apressado o homem.

— Um de nossa caravana que te conhece.

— Dize-me então quanto queres pelo meu resgate?

— Vós pretendeis cobrar um resgate pela liberdade desses dois homens. — Dizendo isso, apontei para os haddedins e continuei: — Mas vós sois curdos. Eu, porém, jamais liberto alguém, recebendo resgate, pois sou cristão. Prendi-te apenas para te mostrar que possuímos mais. inteligência, coragem e habilidade do que pensais. Quem de vós foi o primeiro a notar que os prisioneiros haviam se evadido?

— O xeque.

— Como descobriu?

— Ao entrar em sua tenda, deu com a falta das armas dos prisioneiros e das próprias.

— Fui eu quem as tomei.

— Julguei que um cristão jamais se apossaria do alheio!

— Tens razão. Um cristão jamais se apropriaria de alguma coisa indebitamente mas também não se deixa saquear por um curdo. Matastes nossos cavalos, que estimávamos, e em paga apossei-me de seis dos vossos, que não estimamos. Em nossas maletas e fardeis de serigotes tínhamos muitos objetos de que precisávamos. Vós nô-los roubastes e em compensação apoderei-me da espingarda e das pistolas do xeque. No fundo, pois,. não passa de uma simples troca o que fizemos. Vós iniciastes a troca violentamente e violentamente eu a concluí.

— Os nossos cavalos são melhores do que os vossos!

— Nada tenho com isto, visto que ao matardes os nossos não nos perguntastes previamente pelo seu valor, se eram melhores ou piores do que os vossos, dos quais depois nos apossamos. Por que não foi meu cavalo também alvejado como os demais?

— O xeque o queria para si.

— E julgava ele que o obteria? E mesmo que conseguisse tomá-lo, eu não tardaria recuperá-lo. E quem deu hoje pela falta de vossa cavalhada?

— Também o próprio xeque. Depois de haver estado na tenda dos prisioneiros e de os não ter encontrado mais lá, dirigiu-se ao local onde se achavam guardados os cavalos: também estes lá não se achavam.

— E não encontrou ele nada naquele local?

— Apenas o guarda, que jazia debaixo do cachorro.

— Que aconteceu depois ao guarda?

— Deixamo-lo sob as presas do cão, de castigo por não haver cumprido convenientemente o seu serviço de vigia.

— Horrível! E sois vós criaturas humanas?

— Assim o determinou o nosso xeque.

— E que te acontecerá a ti, que também não fizeste convenientemente o teu serviço? Eu estive por trás da moita de amoreiras a alguns passos apenas distante de ti; depois te segui de longe até o ponto onde se achavam amarrados os cavalos, ponto que até então eu ignorava e que me foi mostrado por ti, sem saberes, é verdade; por fim, continuei a te seguir até que descobri o acampamento.

— Senhor, peço não faças com que o xeque venha a saber disso!

— Fica sossegado! Eu vou deslindar o assunto exclusivamente contigo, nada tenho com o teu xeque. Primeiramente vou agora traduzir aos meus companheiros a tua resposta e eles resolverão a respeito do destino a ser dado à tua pessoa. Não serás julgado por nós dois cristãos, mas pelos muçulmanos que fazem parte da nossa comitiva.

Traduzi em árabe o meu interrogatório.

— Que pretendes fazer dele? —perguntou Maomé Emin.

— Nada — redargui calmamente.

— Emir, ele nos mentiu, nos ludibriou e nos fez cair no poder dos inimigos. Merece, pois, ser executado.

— Ademais disso, — acrescentou Amad el Ghandur — ele jurou falso pelas barbas do profeta. Merece três vezes a morte.

— E que achas a respeito? — perguntou Halef.

— Por enquanto nada. Resolvei lá vós o que devemos fazer dele!

Enquanto os quatro maometanos realizavam um conselho sobre o castigo a ser aplicado ao traiçoeiro bebbeh, o inglês de mim se acercou e perguntou:

— Afinal? Que vamos fazer desse traidor e mentiroso?

— Não sei. Que faria o senhor?

— Hum! Mandaria fuzilá-lo sem mais delongas, nem deliberações.

— E temos nós porventura este direito?

— Yes! Como não!

— O caminho legal a seguirmos seria o seguinte: apresentamos queixa aos nossos consulados; este, por sua vez, a encaminha a Constantinopla que ordenará ao paxá de Sulimania castigue o nosso malfeitor, se é que ao invés disso, não seja ele recompensado.

— Lindo caminho legal!

— Mas o único que nos é permitido seguir, como cidadãos dos nossos respectivos países. À parte isso, diga-me que faria o senhor, como cristão, a este sujeito?

— Deixe de perguntas de ordem sentimental e religiosa, mister! Sou inglês. Faça lá o senhor como cristão o que quiser!

— E se eu o mandasse em paz?

— Então ele que vá em paz! Nada receio; por mim, só espero deixá-lo morto de tanta bordoada. Veja se arranja um meio de eu lhe transferir a filial do meu nariz. Seria este o melhor castigo para tal sujeito, que ontem nos fêz por duas vezes meter os narizes onde não éramos chamados! E os vossos narizes ficaram então em mais deplorável estado ainda do que o meu! Yes!

O bebbeh neste permeio dava mostras de se haver impacientado. Numa pausa feita pelos que deliberavam, dirigiu-se ele a mim:

— Senhor, que me acontecerá?

— Tudo depende de ti. Por quem desejas ser julgado? Pelos quatro homens a quem considerais os verdadeiros crentes ou por nós dois que qualificais insultuosamente de giaur?

— Chodih, eu adoro Alá e o profeta; portanto só me deverão julgar juizes que professam a mesma fé!

— Pois será feita a tua vontade! Se fôssemos nós dois os teus julgadores, serias perdoado e amanhã cedo permitiríamos que voltasses para junto dos teus. Exonero-me da responsabilidade do teu destino. Que te suceda o que tu próprio desejaste, mas que depois não te arrependas de haveres menosprezado dois cristãos, desviando de ti a sua proverbial indulgência!

Finalmente, os quatro juizes chegaram a uma conclusão.

— Emir, resolvemos fuzilar o canalha! — anunciou Maomé Emin, que presidira ao júri.

— De forma alguma consentirei na execução dessa sentença! — redargui-lhe.

— Mas ele enxovalhou a memória do profeta!

— E cabe a vós julgá-lo por este crime? Não. Isto é da alçada do Imam, dos profetas ou da sua própria consciência!

— Ele se fêz espião e nos traiu!

— E com isso algum de nós perdeu a vida?

— Não, mas perdemos outros bens.

— Que ressarcimos com outros melhores. Hadji Halef Omar, tu conheces bem o meu modo de proceder; aflige-me por ver-te assim sanguessedento.

— Não foi este meu voto, sídi, mas o dos haddedins e do carvoeiro bannah, os quais, como vês, constituem a maioria.

— Sou de opinião que o bannah nada tem a ver com o caso, portanto nulo é seu voto. É nosso guia e por este serviço pagamos-lhe salários. Reformai a vossa sentença!

Voltaram a conferenciar em meia voz; depois anunciou-me Moamé Emin nova sentença:

— Emir, tomando conhecimento da apelação que nos interpuseste, resolvemos poupar a vida ao criminoso, comutando a pena de morte em ultraje à sua honra de guerreiro. Cortar-lhe-emos a madeixa e lhe aplicaremos algumas varadas nas faces! E quem dele se deixar bater na face é considerado homem sem honra e desprezado pela tribo!

— Mas isso é mais desumano ainda que a morte, além de nos não trazer vantagem alguma. Ontem esbofeteei um bebbeh porque este injuriou-me a religião e depois ele combateu no entretanto ao lado dos seus contra mim. Pergunto agora se a bofetada que ele recebeu o desonrou?

— Se a bofetada não produzir tal efeito, a tosagem da madeixa o produzirá na certa!

— Ele haveria então de enterrar o turbante na cabeça, para que ninguém desse pela falta daquele ornamento capilar.

— Mas tu próprio ainda há pouco quiseste cortar!

— Ameacei apenas, mas não o teria levado a efeito. Foi um expediente de que lancei mão para obrigá-lo a falar. Afinal, por que pretendeis irritar mais este bebbeh contra nós? Até certo ponto justifica-se a sua atitude hostil contra nós, visto que julgam havermos sido aliados dos bejates. Não podem saber eles que jamais seríamos capazes de encampar uma expedição de rapinagem como a empreendida pelos bejates; não podem saber eles que eu declarei ao khan Heider Mirlam face a face que se me encontrasse com um bebbeh o preveniria do assalto que estava planejado contra os seus haveres. Encontraram-nos junto com os rapinadores e como tais nos tomaram e nos tratam. Agora tivemos a sorte de nos escapar deles e talvez que não consigam mais deitar-nos as mãos; e pretendeis vós com atos de crueldade obrigá-los a prosseguir em nossa perseguição?

— Emir, nós fomos prisioneiros deles e nos cabe tomarmos vingança!

— Também eu já não tenho sido aprisionado e por mais vezes que vós e no entanto jamais cogitei de vinganças. O Rais de Schohord, Nedir-Bey aprisionou-me. Libertei-me e depois o perdoei e ele tornou-se meu amigo. Não foi melhor assim, do que se eu estabelecesse uma questão de vingança de sangue entre nós?

— Emir, és um cristão e os cristãos ou são traidores ou verdadeiras mulheres!

— Maomé Emin, se repetires esta frase, o teu caminho daqui por diante ficará à direita e o meu à esquerda. Jamais zombei ou insultei a tua crença religiosa; porque então zombas e insultas a minha? Já me viste alguma vez ou a este David Lindsay-Bei proceder como traidores ou como mulheres? Eu poderia agora em face de tua atitude ofender o Islã; eu poderia dizer: os muçulmanos são uns ingratos porque se esquecem do que por eles faz um cristão. Mas não o digo, porque por causa de um que não soube conter o seu ímpeto de grosseria não devem pagar todos!

Ao terminar estas palavras, o xeque dos haddedins ergueu-se de um salto e estendeu-me ambas as mãos.

— Emir, perdoa-me! Minhas barbas são nevacentas e as tuas possuem ainda a côr natural da juventude; embora tenhas um coração jovem possuis a madureza e a sensatez de uma pessoa idosa. Entregamos-te este homem. Faze dele o que te aprouver!

— Maomé Emin fico-te muito obrigado! Também teu filho concorda contigo?

— Concordo, sim, efêndi — exclamou sensibilizado Amad el Ghandur.

Satisfeito, dirigi-me então ao bebbeh.

— Já nos mentiste uma vez. Prometes falar-nos hoje a verdade?

— Prometo, sim!

— Se prometeres não fugir, tirar-te-emos já as algemas.

— Senhor, prometo-te!

Pois bem; estes quatro muçulmanos deliberaram dar-te a liberdade. Hoje ficarás ainda conosco mas amanhã cedo podes ir para onde quiseres.

 

A RECONCILIAÇÃO COM O BEBBEH

Tirei as cordas que lhe prendiam pés e mãos.

— Senhor, não te mentirei jamais, mas, perdoa-me a franqueza, inverteram-se os papeis: agora fôste tu, senhor, que me disseste uma inverdade.

— Como assim?

— Disseste-me haverem estes homens me perdoado e isso não é verdade. A minha liberdade, devo-a exclusivamente a ti. Eles primeiramente condenaram-me a fuzilamento; depois, quando te opuseste à sentença, comutaram eles a mesma, resolvendo vergastar-me as faces e cortar-me a madeixa de crente. Mas de mim te compadeceste. Compreendi tudo palavra por palavra, pois entendo o árabe tão bem como o curdo. E também pelas tuas palavras vim a constatar não serdes aliados dos bejates, mas antes mais amigos nossos que deles. Emir, és um cristão e eu sempre odiei os cristãos; hoje vim a conhecê-los, porém, melhor. Queres ser meu amigo e irmão?

— Com muito prazer!

— Queres ter confiança em mim e ficar, embora amanhã os vossos perseguidores estejam aqui?

— Confio em ti!

— Dá-me a tua mão!

— Aqui a tens! Mas também os meus companheiros ficarão em segurança?

— Todo aquele que pertencer à tua caravana. Não exigiste de mim nenhum pagamento a título de resgate pela minha liberdade; primeiro salvaste-me a vida e depois a honra. Quer em ti quer nos demais, ninguém tocará num só fio de cabelo!

Todas as apreensões que nos preocupavam estavam pois removidas! Eu nem idéia tinha de que aquele homem também comprendesse o árabe; considerava-me feliz, porém, por haver ignorado tal circunstância e mais feliz ainda por havermos chegado àquele auspicioso desfecho. Para festejá-lo tirei da maleta o resto de fumo que trazia; não era muito, mas o seu odor agradabilíssimo alegrou-nos os ânimos, que eram agora bem diversos do que os que nos dominavam ao iniciarmos o júri.

Jubilosos, deitamo-nos tranqüilamente a dormir, cometendo ainda a audácia de não postarmos guarda durante o pouso.

Na manhã seguinte o ambiente não era tão poético como o da noite com as chamas do fogo do acampamento a iluminar as redondezas. Resolvi dar uma nova demonstração de confiança ao bebbeh, dizendo-lhe:

— És agora um homem livre. Lá está o teu cavalo e as tuas armas encontrarás ainda no caminho.

— Os meus as acharão. Eu aqui ficarei! — respondeu-me o homem.

— E se eles não vierem?

— Vêm, sim! — respondeu ele em tom convincente. — Tomarei então as providências para que por acaso não passem por nós sem nos verem.

Havíamos pernoitado num vale adjacente, cheio de curvaturas, de modo que dele não era possível sermos vistos do vale principal. O bebbeh foi se postar na saída do vale numa posição em que pudesse descortinar tudo ao redor de si. Nós outros aguardávamos curiosos o desenrolar dos acontecimentos.

— E se ele tornar a nos ludibriar? — perguntou Maomé Emin.

— Desta vez tenho confiança nele. Ele sabia que iria recuperar a sua liberdade; portanto não tinha necessidade de confessar-me que compreendera todas as nossas negociações, a respeito do destino a lhe ser dado. Estou certo de que ele está agora procedendo com toda a sinceridade.

— Mas se ele tornar a nos trair, emir, juro-te por Alá que será ele o primeiro a quem minha bala atingirá.

— Então, sim, o homem não merecerá outra coisa!

Também David Lindsay parecia não concordar lá muito com minha atitude.

— Mister, lá está ele na entrada do vale — disse o inglês. — Se ele nos mentir novamente, estaremos metidos na mais terrível cilada que poderíamos imaginar. Não me leve a mal, se estiver com o olho nas armas e no meu cavalo.

Eu tomara sobre os ombros o peso de uma formidável responsabilidade e confesso francamente que naquele instante não me achava também lá muito tranqüilo. Por sorte, não tardaria a decidir-se tudo, pois notei que o bebbeh se levantara. Com as mãos diante dos olhos, à guisa de pala, parecia olhar ao longe. Depois aproximou-se do seu animal para monta-lo apressadamente.

— Para onde? — perguntei-lhe.

— Ao encontro de minha gente; ela vem vindo lá ao longe. Permite-me, senhor, que eu lhe vá preparar o espírito!

Vai!

 

A PRISÃO DE GASAHL GABOYA

O homem saiu a galope. Maomé Emin opinou:

— Emir, não terias cometido uma asneira?

— Espero haver procedido com sensatez. Firmamos a paz e se eu me mostrasse desconfiado dele seria isso motivo bastante para o tornarmos novamente nosso inimigo.

— Mas ele já se achava em nossas mãos e o devíamos ter conservado como refém.

— De qualquer forma, ele para aqui voltará. Os nossos cavalos acham-se em posição tal que de um salto os poderemos montar. Ficai com as armas em riste, mas de modo que não dê na vista!

— De que nos adiantará isso, emir? São muito mais numerosos que nós e além disso, queres que alvejemos somente aos cavalos deixando incólumes os cavaleiros.

— Maomé Emin, afianço-te que, no caso de nos trair novamente aquele bebbeh de nada nos adiantará alvejar as montarias e eu serei o primeiro que apontarei a espingarda contra os cavaleiros. Ficai vós todos calmamente sentados! Eu me vou postar na entrada do vale. Vós podereis então vos guiar pelo que eu fizer lá.

Montei a cavalo e munido da espingarda me postei na entrada do vale. Avistei logo, a uma distância não muito grande, uma legião de cavaleiros que fizeram alto e ouviam a palavara do bebbeh nosso ex-prisioneiro e que, como ficou dito, era irmão do xeque Gasahl Gaboya. Depois de algum tempo, dois cavaleiros separaram-se da tropa e cavalgaram na direção do vale em que nos achávamos, ao passo que os demais permaneciam no mesmo local. Reconheci nos dois cavaleiros o xeque Gasahl Gaboya e o seu irmão. Agora eu estava certo de que nada mais precisávamos recear.

Ao se aproximarem, o xeque me reconheceu e parou. Os traços de sua fisionomia tostada pelo sol não eram ainda lá muito amáveis e a sua voz soou quase que ameaçadoramente ao perguntar-me:

— Que queres aqui?

— Acolher-te — respondi-lhe lacônicamente.

— Mas a tua acolhida não é lá muito cortês, estrangeiro!

— Exiges porventura que um forasteiro de Frankistão te vá receber com mais cortesia do que a com que dele te aproximas?

— Homem, és muito orgulhoso! Por que montaste a cavalo para receber-me?

— Porque também estás montado.

— Bem, vamos até o vosso acampamento, pois este homem aqui, que também é filho do meu pai, deseja que averigúe se me é possível perdoar-vos.

— Muito bem, vamos até lá. Também os meus companheiros desejam realizar um conselho para resolver se deveis ser castigados ou perdoados.

Aquilo foi-lhe afinal demasiadamente forte.

— Homem, — trovejou ele — medita o que sois vós e o que somos nós!

— Já estou cansado de meditar sobre isso! — respondi-lhe com a maior calma deste mundo.

— Vós sois apenas seis homens!

Meneei a cabeça zombeteiramente.

— Ao passo que nós somos uma grande legião, um grande exército! Respondi-lhe com o mesmo gesto de ironia.

— Bem, obedece-me, e entremos neste vale!

Tornei a repetir o gesto zombeteiro e afastei-me de modo que o xeque e seu irmão pudessem cavalgar pela estreita entrada do vale. Agora, sim, a partida estava ganha por nós, pois se o xeque tentasse proceder em desacordo com a vontade do irmão estariam ambos encurralados por nós no estreito vale.

Ambos cavalgaram na direção do grupo dos meus camaradas; chegando lá apearam-se e se abancaram ao lado deles na relva. Fiz o mesmo.

— Esses homens vêm com propósitos hostis ou amistosos? — perguntou-me o inglês.

— Ainda não sei. Pretende o senhor tomar parte na solução do caso?

— É lógico, sir! Yes!

— Daqui a um minuto levante-se, então, afetando indiferença e vá se postar na entrada do vale, onde há pouco esteve o nosso ex-prisioneiro.

— Watch-man? Bravo! Esplêndido!

— Well! Irei com horrível indiferentismo!

— Assim que o senhor notar que a legião de bebbehs que se acha lá ao longe se põe em movimento para vir para cá, toque a rebate.

— Yes! Hei de gritar a plenos pulmões!

— E assim que um destes dois pretenderem sair do vale sem a minha licença, fuzile-os sumariamente!

— Well! Vou levar o meu porrete de fogo. All right! Sou David Lindsay! Não gosto de brincadeiras! Yes!

Os dois bebbehs naturalmente ouviram a nossa conversa.

— Por que falais vós num idioma estranho? — perguntou desconfiado o xeque.

— Porque este valente emir do ocidente só sabe falar o idioma do seu país — respondi-lhe, indicando Lindsay.

— Valente? Julgais realmente que algum de vós é valente? E com um sinal de desprezo feito com o braço acrescentou:

— Fugistes covardemente de nós!

— Dizes a verdade, xeque — respondi-lhe num riso chocarreiro. — Por duas vezes conseguimos fugir-vos, porque somos mais audazes e valentes que vós. Nenhum bebbeh é homem para lutar com um filho das terras do ocidente!

— Homem, pretendes insultar-me?

— Gasahl Gaboya, acalma o teu espírito para que tenhas a visão clara das coisas! Viestes ter conosco para negociar a paz. Se de fato a queres, concito-te a te portares com mais cortesia do que até aqui. Nós somos apenas poucos homens e vós, conforme tu mesmo o disseste, sois um grande exército; mas este “grande exército” não será capaz de nos aprisionar! Agora, dize-me, constitui isso uma vergonha ou uma honra para nós? Não por covardia, evitamos entrar em luta convosco, mas simplesmente porque desejamos poupar-vos as vidas!

— Estrangeiro, estás redondamente enganado! — atalhou o xeque.

— Achas? Pois já tivemos um guerreiro vosso aprisionado por duas vezes. Poupamos-lhe, porém, a vida. Quando penetrei no teu acampamento, fácil me seria liquidar contigo, mas poupei-te. Sempre vos temos poupado e ainda continuaremos a poupar-vos, mas exigimos também que sejas bastante prudente para reconheceres a tua verdadeira posição.

— Conheço perfeitamente a minha posição. É a posição do vencedor que dita condições! Espero que me peçais perdão e me devolvais tudo que nos roubastes!

— Xeque, enganas-te, pois a tua posição é a do vencido. Não a nós, mas a ti é que compete pedir-nos perdão e espero que o faças imediatamente!

O bebbeh olhou-me estarrecido e emudeceu; depois, porém, proferiu uma formidável casquinada.

— Estrangeiro, tomas os bebbehs por cães e a mim o seu xeque, pelo bastardo de uma cachorra?! Cedi aos rogos deste meu irmão e vim ter convosco para examinar com os olhos da misericórdia a extensão de vossa culpa. Pretendia eu aplicar-vos um castigo brando. Mas como não conheceis qual o caminho a seguirdes para encontrar a vossa salvação, então que o brado das hostilidades torne a ressoar entre nós, e vós haveis de constatar que basta a minha voz de comando para serdes esmagados!

— Pois dá tal voz de comando, xeque Gasahl Gaboya! — respondi-lhe friamente.

Foi então que o seu irmão tomou pela primeira vez a palavra.

— Este estrangeiro do ocidente é meu amigo; ele salvou-me da morte e da desonra: dei-lhe espontaneamente a minha palavra de que reinaria daqui por diante a paz entre nós e a minha palavra há de ser cumprida!

— Pois cumpre-a se o puderes, sem minha intervenção! — retrucou-lhe o xeque.

— Um bebbeh jamais falta aos seus compromissos e haja o que houver permanecerei ao lado dos meus protegidos, enquanto a vida deles correr perigo. E agora eu quero ver se os guerreiros de nossa tribo se atrevem a agredir homens que se acham debaixo de minha proteção!

— A tua proteção não eqüivale à proteção da tribo. A tua parvoíce será a tua desgraça, visto que tombarás com estes estrangeiros!

O xeque ergueu-se e aproximou-se do seu cavalo.

— É a tua última resolução? — perguntou-lhe o irmão.

— É sim! Ficas aqui e eu nada mais posso fazer por ti do que recomendar à minha gente que evite atingir-te durante o tiroteio!

— Pois fica sabendo que não necessito desta tua ordem; todo aquele que se abalançar em agredir os meus amigos, será homem morto! Mesmo que sejas tu em pessoa.

— Faze o que quiseres! Alá concordou que perdesses o juízo; ele que te ampare desde o momento em que te não possa eu mais defender! Eu me vou!

Enquanto o irmão conservava-se sentado ao nosso lado, o xeque montou a cavalo e tentou deixar o vale. Mas ao chegar na entrada, Lindsay assestou-lhe a espingarda ao peito e bradou-lhe:

— Stop, old boy! — Pára, meu velho! — ameaçou-lhe o inglês. — Apeia já, senão vou brincar de matar-te! Não te matarei de um todo, mas aos poucos. Well!

O xeque virou-se para mim e perguntou:

— Que quer de mim este homem?

— Fuzilar-te — respondi-lhe tranqüilamente. — E não faz ele mais do que cumprir ordens, pois não te dei licença para deixares o vale.

O homem viu pelo tom decisivo de minha resposta que eu estava falando seriamente; viu também que o inglês tinha os dedos no gatilho pronto para batê-lo e retrocedeu até o nosso grupo, onde me trovejou:

— Estrangeiro, és um canalha!

— Xeque, repete esta palavra que farei um sinal ao guarda e tu serás então um cadáver!

— Mas procedes como um traidor! Aqui vim como enviado de minha tribo e portanto tens o dever de assegurar-me a minha volta!

— Não és o enviado, não, mas o chefe da tribo. Não te cabem, pois, as imunidades de um parlamentar.

— Conheces alguma coisa de direito das gentes?

— Conheço, mas tu, não. Talvez que já ouvisses algum dia falar neste direito, mas o teu bestunto não permitiu que o compreendesses. O direito a que te referes manda que se mantenha lealdade numa luta; ordena que se avise previamente ao inimigo quando se o pretende atacar. E tomaste tal medida? Não. Investiste contra nós qual um salteador, qual um gavião sobre inerme pomba, para a estraçalhar. E agora te encolerizas porque te tratamos como pifio salteador. Acercaste-te de nós porque julgaste sermos umas múmias que se intimidavam ante a tua tropa e o teu aparato bélico; mas te convencerás do contrário, pois agora só deixarás este vale quando me aprouver. E se tentares forçar a saída, o teu ato custar-te-á a vida. Apeia, pois, e volta a sentar-te ao nosso lado. Mas não te esqueças de que te impusemos uma postura cortês e que tua morte será inevitável se os teus bebbehs ousarem invadir este vale!

Indeciso, o homem obedeceu à minha intimação, mas não deixou de observar em tom de ameaça:

— Deixa estar: minha gente há de me vingar horrivelmente!

— Não tememos a tua gente, conforme, aliás, já tiveste ocasião de constatar! Mas falemos por enquanto com calma e reflexão a respeito do assunto que te trouxe à nossa presença. Fala, pois, xeque Gasahl Gaboya, mas evita toda e qualquer ofensa!

— Vós sois inimigos nossos, pois vos juntastes aos bejates, com o fim predeliberado de nos roubar...

— É um engano teu. Durante um dos pousos de nossa jornada, encontramo-nos com os bejates e o xeque Heider Mirlam convidou-nos para sermos hóspedes de sua tribo. Declarou-nos ele então que se achava a caminho para uma festa dos dchiafs a que fora convidado e nós acreditamos no que disse. Se soubéssemos que era seu propósito assaltar-vos não nos teríamos reunido à sua legião. O referido xeque com sua gente, assaltou os vossos rebanhos à noite enquanto dormíamos e depois que descobrimos o seu ato reprovável demonstrei-lhe de viva voz a minha indignação em face do mesmo. Tu nos assaltaste e mandaste nos perseguir; não vos tememos; poupamos as vossas vidas e conseguimos escapar-vos, depois de te haver eu provado que éramos inocentes em todo o roubo perpetrado pelos nossos hospedeiros. Contudo, não nos deixaste ir em paz. Armaste-nos uma emboscada e nós prendemos o teu espião e procedemos complacentemente para com ele. Tornaste a nos agredir e nós te poupamos novamente a vida. Invadi o vosso acampamento e libertei os meus camaradas que havias aprisionado; estiveste em minhas mãos e eu entretanto não quis que se derramasse uma só gota de sangue. Vós nos perseguistes; aprisionamos teu irmão e não lhe tocamos num só fio de cabelo. Aviva a tua memória, xeque, e compreende afinal que procedemos não como inimigos mas como amigos. E em paga disso tudo, te aproximas de nós com palavras injuriosas e em vez de nos pedires desculpas, exiges que nós te peçamos perdão! Que seja Alá o juiz entre vós e nós! Não vos tememos, repito!

O homem me ouvira quase desatento e atalhou-me ironicamente:

— O teu discurso é demasiadamente extenso, estrangeiro; entretanto, o que dizes não passa de mentiras e falsidades.

— Prova-o!

— É fácil de provar. Os bejates são nossos inimigos; estivestes na sua companhia, conseqüentemente sois também nossos inimigos. Quando minha gente vos perseguiu, matastes os seus cavalos. E qualificas este gesto de amigo?

— E era gesto de amigos o de nos perseguirdes?

— Tu me bateste na cabeça de modo a ficar atordoado, caído no solo. Depois bateste nas faces do mais valente dos meus guerreiros, como se ele não passasse de um verme. E qualificas este gesto de amigo?

— Tu me agrediste e ao derribar-te, nada mais fiz do que me defender; teu mais valente guerreiro lançou-me um grave ultraje em face e eu provei-lhe que ele não passa de um verme diante de mim.

— O espancamento do meu guerreiro constitui para ele o mais infamante ultraje, que só conseguirá ele desagravar, vertendo-te sangue!

— As minhas pancadas não devem ter sido um ultraje para ele, mas sim uma honra, visto que não obstante consentiste que ele continuasse a lutar ao teu lado. E se ele para desagravar-se da ofensa pretende verter-me o sangue que venha!

— E finalmente roubastes-nos ontem os melhores cavalos. E qualificas este gesto de amigo?

— Tomamos-te os cavalos porque tua gente havia morto os nossos. Todas as tuas acusações são falsas e infundadas. Não dispomos de tempo e nem a isso estamos inclinados, para permitir que continueis a abusar de nossa paciência. Dize-me, mas sucintamente, o que de nós exiges que sucintamente também te responderei!

O xeque começou, então, a desenrolar o seu rosário de exigências:

— Em primeiro lugar exijo que venhais para o meio de minha legião...

— Continua! — ordenei-lhe, visto que o homem suspendera a frase.

— Que nos entregues os cavalos, as armas, tudo enfim que conduzis convosco.

— Continua!

— Depois podeis ir para onde bem vos aprouver.

— É tudo?

— É sim. Como vês, sou muito indulgente!

— E que espécie de satisfação exiges mais de mim?

— Exijo ainda uma indenização de guerra cujo valor depois fixarei. Espero que concordarás também com esta condição!

— Não concordo, aliás, discordo de tudo. Não vós mas nós é que temos o direito de fazer-vos imposições. Ademais disso, as tuas exigências são verdadeiramente idiotas. Como poderíamos nós pagar-vos uma idenização se tudo quanto nos pertencia roubastes? Aconselho-vos a deixar que nos retiremos sem que oponhais o menor embaraço! Reflete c compreende que estás em nosso poder e que de ti poderemos fazer o que bem entendemos!

— Pretendes ordenar o meu trucidamento?

— Trucidamento não, mas o teu fuzilamento, no caso dos teus bebbehs cometerem o menor ato hostil contra nós.

— Eles me vingarão a morte; já te disse!

— Não vingarão coisa alguma, mas se lançarão todos na ruína irremediável. Olha cá, xeque Gasahl Gaboya! Nesta espingarda tenho eu carregados vinte e cinco tiros e nesta outra, dois; cada um destes revólveres possuem seis tiros e cada uma de tuas pistolas que vês aqui na minha cinta, dois; estou apto a fazer fogo durante quarenta e três vezes consecutivas sem carregar as armas. Os meus companheiros estão armados da mesma maneira e, além disso, estás encerrado neste vale, por cuja entrada só pode passar um único guerreiro de cada vez. Todos, pois, tombariam sem ter ocasião de matar ou ferir um só de nós. Atende a mim e ao teu irmão: deixa que nos retiremos em paz que nada te faremos!

— Queres porventura que me cubra de ridículo perante a minha gente? Como podes carregar tantos tiros numa espingarda? As tuas palavras não parecem dizer a verdade.

 

— Não minto, não. Os silahdar (2) do ocidente são mais hábeis que os vossos. Olha atentamente para cá, que te vou dar algumas explicações acerca destas armas.

Mostrei-lhe as disposições da espingarda de repetição e dos revólveres e a sua fisionomia cada vez mais sulcada de apreensão comprovava que eu apelara para a verdadeira tática.

— Alá é onipotente! — murmurou o homem. — Por que não deu ele aos verdadeiros crentes a habilidade de construir armas tão eficientes!?

— Porque eles abusariam dessas armas. Alá é onisciente e todo bondade. Ele só põe dessas armas nas mãos dos cristãos porque estes só se utilizam delas quando se lhes esgota a paciência. Toma de uma vez por todas uma resolução difinitiva!

— Senhor, vi as vossas armas; são excelentes; contudo não as receamos. Não obstante, porém, farei derramar a minha indulgência sobre vós, desde que concordeis com as novas exigências que agora vos farei.

— Que novas exigências?

— Que nos devolvais os seis cavalos bem como o garanhão preto que montas. Além disso, entregar-me-ás essa espingarda de vinte e cinco tiros, as duas pistolinhas de seis cada uma e mais as minhas pistolas que te apoderaste quando me invadiste a tenda. Mais nada quero eu!

— Não receberás um só dos teus cavalos de volta, visto que matastes os nossos; não obterás o meu garanhão preto, porque este vale mais do que mil cavalos dos bebbehs. Nem minhas armas, que delas eu próprio necessito. Mas como prova de minha liberalidade, estou pronto a devolver-te as tuas armas, no momento em que me convencer de que de fato nos deixais prosseguir na jornada sem nos perrurbardes.

— Reflete estrangeiro, que tu...

O homem suspendeu a frase, visto que fora do vale deflagrou-se um tiro, mais outro e diversos. Dirigi-me ao inglês em altos brados:

— Que houve, sir?

— Dojan! — respondeu Lindsay.

Aquela palavra eletrizou-me de tal modo que o próximo segundo já me achava na entrada do vale. Realmente era o meu lindo galgo. Os curdos o perseguiam mas Dojan teve a prudência de cortar um arco, a fim de se afastar do alcance das armas dos perseguidores. Mas o ardil parecia não surtir efeito, pois o cão se achava tão esfalfado que os matungos dos bebbehs desenvolviam mais velocidade do que ele. Notei que ele se achava em perigo de ser morto a tiros e montei a cavalo.

— Gasahl Gaboya, vais ver agora que espécie de armas conduz um emir do ocidente. Mas ai de ti se durante a minha ausência tentares sair do vale. Considera-te meu prisioneiro até a minha volta!

— Para onde vais, sídi? — perguntou Halef.

— Defender o meu fiel Dojan.

— Vou junto!

Tu ficas. Cuida da vigilância para que os bebbehs não se escapem!

 

(2) Armeiros.

 

UM TIROTEIO COM OS BEBBEHS

Saí pela planície afora e com o braço estendido fiz um sinal aos curdos para desistirem da perseguição ao cachorro. Eles bem que viram o sinal, mas não obedeceram. Também o cão me avistou e, em vez de seguir pelo arco que ia descrevendo, dele se desviou e em linha reta veio ao meu encontro. Essa direção conduzia-o bem perto dos seus perseguidores. Era natural que tudo eu empreenderia para não me matarem o animal que eu já dera por perdido. Por isso ao me achar à distância dos bebbehs correspondente ao alcance da espingarda, parei o cavalo e fiz pontaria. Abati os cavalos dos dois curdos que se achavam mais próximos de Dojan. Este passou incólume pelos perseguidores, que ergueram nm formidável berreiro de raiva e a toda brida vieram em minha direção.

De alegria por me haver achado, o cão esqueceu-se do cansaço e com alguns saltos se achava junto de mim e pulava-me incessantemente no serigote; eu, porém, não permiti que ele ficasse na garupa, pois me estorvaria em qualquer manobra a que me visse obrigado a realizar.

— Buraja, buraja! Aqui, para cá! — ouvi bradar na entrada do vale. Era o xeque que pretendia valer-se da ocasião para safar-se de sua situação nada agradável. Os curdos ouviram a voz, deram de esporas nos cavalos e brandiam as armas. Naturalmente que cheguei antes deles na entrada do vale e vi o xeque atirado no solo, ao passo que Halef e o inglês se achavam ocupados em algemá-lo. O seu irmão achava-se livre, ao lado, e, de sua postura, concluía-se que se mantinha neutro em face da luta.

— Emir, poupa o meu irmão! — pediu-me ele.

— Desde que o vigies! — respondi-lhe.

— Vigiá-lo-ei, Senhor!

Apeei depressa e ordenei aos companheiros que tomassem posição por trás dos rochedos que se levantavam à entrada.

— Atirai somente contra os cavalos! — pedi-lhes.

— Esqueces-te da palavra dada, emir? — exclamou Maomé Emin meio indignado.

— O irmão do xeque está procedendo com sinceridade. A primeira salva, pois, somente contra os cavalos! Depois disso veremos o resto.

Os bebbehs se haviam aproximado de tal modo que se encontravam já nos limites do alcance de nossas espingardas. Eu havia deflagrado os dois canos da espingarda “Mata-ursos” e por isso tomei da espingarda de repetição, sistema Henry. As nossas armas deram duas descargas mais.

— Bounce-bardauz, ei-los que tombam! — exclamou o inglês. Cinco, oito, nove cavalos ao todo! Yes!

Os companheiros ergueram-se de suas posições a fim de carregarem as armas, enquanto que eu continuei atirando ininterruptamente. Até Allo havia dado um tiro com o arcabuz do xeque. Ele é que fora o culpado de haver sido ferido um dos bebbehs. Os demais companheiros nenhum deles errou o alvo.

A primeira salva conseguiu diminuir o galope dos curdos que se aproximavam de nós e a segunda os fêz parar imediatamente.

— Come on — avante! — bradou Lindsay. — Para fora! — esmagar aqueles Houndchatchter, caçadores de cães!

O mister Fowling-bull pegou da espingarda pelo cano e quis realmente sair do vale e investir contra os curdos. Eu, porém, o agarrei, detendo-o.

— Está doido, sir? — bradei-lhe. — Pretende perder o seu nariz privilegiado? Permaneça na sua atual posição!

— Por quê? O momento é azado. Em cima deles, em cima deles> mister!

— Tolice! Aqui estamos seguros, o que não acontece lá fora.

— Seguros? Hum! Pois então refestele-se no canapé e durma a sua sesta, mister! Tolice, deixar aqueles sujeitos fugirem! Well!

— Calma e sangue frio, mister Lindsay! Vê como eles se retiram? Receberam uma lição da qual haverão de se lembrar por muito tempo.

— Bela lição e barata! Custou-lhes apenas alguns cavalos! Nesse instante o irmão do xeque pôs a mão sobre o meu ombro.

— Emir — disse ele — eu te fico muito obrigado! Tu poderias matar os meus companheiros em número superior aos cavalos que tombaram lá fora, e no entanto não o fizeste. És um cristão, mas mesmo assim Alá há de proteger-te.

— Reconheces que nossas armas superam às vossas em eficiência?

— Reconheço.

— Então vai lá fora e dize isso aos teus irmãos de tribo!

— Vou já. Mas que será feito do xeque!

— Ficará aqui. Dou-te quinze minutos de tempo. Se até então não estivestes de volta com a mensagem de paz, o xeque será enforcado nesta árvore! Estou cansado de lutar com um inimigo obstinado.

— E se eu voltar com a mensagem de paz?

— Soltarei o xeque.

— E os tributos de guerra que ele te impôs?

— Não os pagarei de maneira alguma.

— Nem lhe devolverás as suas armas?

— Também não. Ele é o culpado da agressão há pouco por nós rechaçada; portanto não deve ele esperar mais a menor indulgência de nossa parte. Somos os vencedores absolutos. Faze o que entenderes!

O bebbeh foi ter com a tropa, enquanto que eu me entreguei ao trabalho de carregar as espingardas deflagradas. O cão rosnava de alegria, embora estivesse tão esgotado que a língua pendia-lhe da boca.

— Que achas, emir, teria ele morto o guarda da cavalhada? — perguntou Amad el Ghandur.

— Espero que não. Quero admitir tenha ele abandonado o homem, por ter sido obrigado a segurá-lo por demasiado tempo. Segurou durante a tarde e a noite toda. O pobre animal está ainda horrivelmente fatigado. Allo, dá-lhe de comer! Só mais tarde é que deverá beber um pouco de água.

O xeque algemado jazia no solo e não dizia uma só palavra; os seus olhares, porém, nos acompanhavam todos os movimentos. Estava-se vendo que jamais se tornaria amigo nosso.

 

GASAHL GABOYA COMO REFÉM

Esperávamos ansiosos pela resolução dos bebbehs. Achavam-se eles agrupados e pelas suas gesticulações, depreendemos que a conferência se tornava agitadíssima. Finalmente, voltou o nosso enviado.

— Venho com a paz, Senhor! — anunciou o irmão do xeque. — E sob que condição?

— Nenhuma.

— Por isto eu não esperava. Parece-nos que não foi sem grandes esforços, que fizeste prevalecer o teu ponto de vista junto dos companheiros. Eu te agradeço!

— Compreende-me primeiro, antes que me apresentes teus agradecimentos, Senhor! Trago-te a paz mas também os bebbehs não aceitam quaisquer condições.

— Ah! e a isso chamais de paz? Bem, pois então vamos nos pôr em segurança. Dize-lhes que levarei o xeque, teu irmão, como refém.

— Até que tempo o conservarás em teu poder?

— O tempo que me convier; até que nos julguemos o cavaleiro de vossa perseguição. Depois, sim, o mandaremos em paz sem lhe fazer o menor mal.

— Eu creio na tua promessa. Permite-me que a transmita aos meus irmãos de tribo!

— Sim, transmite-a e dize-lhes que recuem para o morro que fica ao pé daquela planície. E assim que notar que eles se movimentam em nossa perseguição, matarei o vosso xeque.

O homem saiu para transmitir o recado e daí a pouco vimos que os bebbehs quer os montados como os desmontados, recuavam lentamente para o norte. O irmão do xeque, porém, voltou a fim de buscar o seu cavalo.

— Emir, eu era teu prisioneiro. Dar-me-ás agora a liberdade? — perguntou ele ao acercar-se de nós.

— Sim, porque és meu amigo. Aqui leva as pistolas do teu irmão. Não a ele mas a ti as devolvo. Quanto ao arcabuz, este fica pertencendo ao homem a quem presenteei.

Ficou ainda ele conosco até que amarrássemos o seu irmão ao cavalo e nos aprestássemos para iniciar a viagem. Depois estendeu-me a mão.

— Adeus, Senhor! Que Alá abençoe tuas mãos e teus pés! Levas contigo um homem que é teu inimigo e agora também meu, entretanto, recomendo-o à tua benevolência, pois apesar de tudo ele é filho de meu pai!

 

UMA DIVERGÊNCIA COM OS HADDEDINS

Seguiu-nos durante muito tempo com o olhar, até desaparecermos no horizonte. Tomamos a direção do sul. Halef e Allo escoltavam o xeque e depois de algumas instruções indispensáveis prosseguimos a jornada debaixo de absoluto mutismo. Eu notara que a minha atitude desses últimos dias não contava com a aprovação dos haddedins. Não me faziam eles a menor observação neste sentido, mas aquilo se depreendia de seus olhares, de suas fisionomias, enfim de todos os seus gestos. Eu preferiria que os camaradas me censurassem com toda franqueza a que se mantivessem naquela postura de reprovação surda. Também a natureza, o conjunto panorâmico que nos cercava não era de molde a nos alegrar o espírito. Cavalgávamos através de ápices de montanhas e outeiros desertos e áridos, através de sombrios desfiladeiros. Quando anoiteceu estava tão frio e ventava tanto como se estivéssemos em pleno inverno. Pernoitamos entre dois rochedos que se erguiam paralelos um ao outro e não houve nada que os levantasse o moral.

Pouco antes de romper a alvorada, levantei-me, agarrei a espingarda e saí a ver se abatia uma caça. Depois de longa procura, consegui abater um mísero texugo que levei para o acampamento. Os meus camaradas já se achavam todos acordados. Um olhar que me dirigiu então Halef significou-me haver sucedido alguma coisa durante a minha ausência. Não precisei esperar muito para saber o que se passara, pois ao me abancar na relva, perguntou-me Maomé Emin.

— Emir, que tempo vamos ainda arrastar conosco este bebbeh?

— Se pretendes entabolar uma palestra mais minuciosa, afastemo-nos daqui, visto que o prisioneiro compreende tão bem o árabe como o seu irmão! — ponderei-lhe.

— Allo que o tome sob sua guarda.

Aceitei o conselho do haddedin, conduzi o prisioneiro a uma distância e o confiei aos cuidados do carvoeiro, com a recomendação de vigiá-io severamente. Depois voltei ao acampamento.

— Agora sim, podemos falar sem testemunhas inconvenientes — disse Maomé Emin. — Repito a minha pergunta: Que tempo vamos ainda arrastar conosco este bebbeh?

— Por que me fazes esta pergunta?

— Não tenho o direito de fazê-la, efêndi?

— Não há dúvida, é um direito que não discuto. Pretendo retê-lo em nosso poder, até julgarmos possível prosseguir na jornada a coberto da perseguição de sua gente.

— Mas de que maneira obterás tal certeza?

— Muito fácil. Cavalgaremos até ao meio-dia; depois vós acampais em determinado lugar enquanto que eu voltarei; tenho a certeza de encontrar os bebbehs, no caso de haverem eles empreendido a nossa perseguição. Amanhã cedo estarei de volta.

— Mas merece o inimigo um tal incômodo de tua parte?

— Não merece coisa alguma, mas a nossa segurança é que está a exigir tal providência.

— E por que não poupas a ti e nós maiores serviços, com viagens de retornos, vigilância redobrada, etc?

— De que modo se poderia poupá-lo?

— Estás convencido de que ele é exatamente inimigo nosso?

— E um ferrenho inimigo!

— Que está constantemente a ansiar por nossa morte?

— Isto mesmo.

— Que mesmo depois de se achar em nossas mãos, nos atraiçôou, pois chamou sua gente quando saíste para o vale em defesa de Dojan.

— Também neste ponto tens razão.

— Segundo as leis dos schammares este homem por várias vezes incorreu na pena de morte.

— E essas leis prevalecem também para esta zona?

— Prevalece onde quer que haja um schammar interessado no julgamento de um criminoso.

— Ah! pretendes julgar o prisioneiro? Acho mesmo que já lhe lavraste a sentença; qual é?

— A de morte.

— E por que já não a executaste?

— Poderíamos fazê-la sem o teu assentimento, emir?

— Não tens coragem de executar a sentença imposta ao prisioneiro, mas tiveste a “lealdade” de julgá-lo à minha revelia. Oh! Maomé Emin, estás trilhando por um caminho errado, pois a execução deste bebbeb acarretaria também a tua.

— Como explicas isto?

— De um modo facílimo. Aqui estão sentados os meus amigos Lindsay-Bei e o meu valente Hadji Halef Omar. Achas que eles permitiriam que tu matasses o bebbeh durante a minha ausência?

— Eles não nos teriam impedido de fazê-lo. Sabem muito bem que somos fisicamente mais fortes que eles.

— Não há dúvida de que sois os mais valentes heróis dos haddedins, mas estes dois homens jamais sentiriam medo de inimigo algum. E que pensas tu teria eu feito se na minha volta testemunhasse a tua ação?

— Já não te seria mais possível remediar o que estava feito.

— Nesse ponto tens razão, mas nem por isso deixaria de ser um homem morto. Eu fincaria a faca no solo diante de ti e em ti vingaria eu a morte do prisioneiro, muito embora te encontres debaixo de minha proteção. Só Alá é quem sabe se tu me terias vencido.

— Emir, não falemos mais disso. Bem vês que te estamos a consultar antes de procedermos concretamente. O xeque mereceu a pena de morte, deliberemos a seu respeito!

— Deliberarmos? Não sabes então que prometi ao seu irmão soltá-lo ileso, assim que nos sentíssemos imunes de alguma perseguição dos seus guerreiros?

— Foi uma promessa precipitada. Fizeste-a sem nos consultar previamente. És porventura nosso chefe? Noto que ultimamente te habituas-te a proceder sempre por conta própria!

Foi uma censura que eu jamais esperava dos seus lábios. Calei-me por algum tempo a fazer um exame de consciência. Depois repliquei-lhe:

— Tendes todos razão se disserdes que algumas vezes eu procedi sem consultar-vos previamente. Mas assim o fiz não por me julgar o mais graduado dentre vós, mas por outros motivos. Vós não falais curdo e eu era o único que sempre tratava com os curdos. Achas que a toda pergunta e a toda resposta, deveria eu suspender as negociações para vô-las traduzir? Quando se tem de tomar uma resolução urgente, ou concertar uma ação inadiável, dispõe-se de tempo para perder com delongas conferenciado com camaradas, que nem todos falam o mesmo idioma? Algum dia as minhas orientações trouxeram alguma desvantagem para a caravana?

— Desde que nos encontramos com os bejates, os teus conselhos nunca foram bons.

— Não concordo com esta asserção, posto que não pretendo discutir contigo. Não sou Alá. mas uma criatura humana como qualquer outra sujeita a errar. Até agora nos entregastes espontaneamente a direção da jornada porque confiáveis em mim; mas como vejo que desapareceu esta confiança considero-me destituído da chefia; és o mais idoso de nós, Maomé Emin e prazeirosamente te confiamos daqui por diante a direção de nossa comitiva!

Por isso ninguém da caravana esperava; minhas últimas frases lisonjearam sobremodo o velho haddedin, para que ele recusasse a incumbência sem corar.

— É este o teu desejo, emir? E achas que realmente estou na altura de assumir a vossa chefia?

— Sim, porque és tão sábio quanto valente e forte.

— Fico-te muito agradecido pela distinção, mas não conheço o idioma curdo.

— Serei o teu intérprete.

O bom homem não compreendia que em vista da original composição de nossa pequena caravana, não seria possível confiar a um só homem a sua direção absoluta.

— Ademais disso, — acrescentei — não tardaremos a chegar numa zona em que só se fala árabe.

— E os demais companheiros concordam com a tua resolução? — perguntou Maomé Emin.

— O Hadji Halef Omar fará o que eu quero e quanto ao inglês, vou consultá-lo.

Depois de haver posto o inglês ao corrente do que projetava, retrucou-me ele:

— Não cometa tal erro, mister! Já de há muito que eu vinha notando que o haddedin metera alguma tolice na cabeça. Somos cristãos e demasiadamente humanos para acatarmos todas as ordens dadas por esta gente. Well!

— Contudo acho que tomei uma resolução acertada. Pede o haddedin que eu lhe pergunte se concorda com a sua chefia?

— Yes, desde que ele conheça os caminhos. Quanto ao resto, pouco me preocupa com o ter ou não a caravana um chefe. Sou inglês e faço o que bem rne aprouver.

— Devo dizer-lhe isto?

— Diga-lhe isto e por mim mais alguma coisa que lhe ocorra. Eu estou satisfeito mesmo que fosse aquele carvoeiro sujo o designado para chefiar a. caravana.

Transmiti a resolução do inglês ao haddedin com as seguintes palavras:

— David Lindsay-Bei está de acordo. A ele é indiferente se o chefe és tu ou o carvoeiro Allo. É um emir do Inglistão e de qualquer maneira, seja quem fôr o condutor da comitiva, ele procederá como bem lhe aprouver.

O haddedin franziu o sobrecenho; a sua autoridade ameaçava baquear desde logo.

— Aquele que confiar em mim, comigo ficará satisfeito — disse por fim Maomé Emin. — Mas agora vamos resolver a respeito do bebbeh. Ele está condenado à morte. Devemos fuzilá-lo ou enforcá-lo?

— Nem uma nem outra coisa. Já te disse que dei minha palavra como penhor de sua vida!

— Emir, isso agora não vale mais, pois acho-me investido nas funções de condutor da caravana. E o que o chefe diz, faz-se!

— O que o chefe diz, faz-se, desde que os restantes membros da caravana ou, pelo menos a sua maioria, estejam de acordo. E não admito que se ponha em jogo a minha palavra, que quero seja cumprida à risca!

— Efêndi!

— Xeque Maomé Emin!

Nesta altura, o pequeno Halef sacou de uma de suas pistolas e perguntou-me:

— Sídi, apraz-te que eu mande uma bala à cabeça de alguém? Por Alá que o farei imediatamente!

— Hadji Halef Omar, deixa tuas armas na cinta, visto que todos somos amigos, embora que o haddedin pareça esquecer esta circunstância — respondi-lhe calmamente.

— Senhor, não nos esquecemos, não, — retrucou Amad el Ghandur — mas também tu não deves esquecer que és um cristão que se encontra na companhia de verdadeiros crentes. Aqui prevalecem as leis do Karan e um cristão não nos impedirá de cumpri-las. Já defendeste o irmão deste xeque e basta. A este não deixaremos que nos arranques das mãos. Por que nos ordenaste que lhes alvejássemos exclusivamente os cavalos? Achas que somos curdos que conduzem armas para brincar? Por que havemos de ser complacentes para com traidores? Os ensinamentos que segues te custarão ainda a vida!

— Cala-te Amad el Ghandur, que és ainda um menino, embora sejas portador de um nome que significa herói. Aprende primeiro a conhecer os homens antes de falares!

— Senhor, eu já sou um homem!

— Não o és! Se já fosses um homem não contribuirias para que a palavra de outrem fosse quebrada!

— Tu não faltarás com a tua palavra, visto que seremos nós quem castigará o bebbeh.

— Proibo terminantemente tal execução e acabou-se!

— E eu a ordeno e acabou-se! — exclamou Maomé Emin, erguendo-se encolerizado.

— Com que direito dás ordens aqui? — perguntei-lhe.

— Com que direito proíbes tu que se faça alguma coisa aqui? — retrucou-me o haddedin.

— A minha palavra empenhada assegura-me tal direito!

— Tua palavra de nada vale para nós. Estamos fartos de ser dirigidos por um homem que estima os nossos inimigos! Esqueceste-te do bem. que te tenho feito. Acolhi-te como hóspede, protegi-te e te presenteei um cavalo que vale metade de minha existência. És um ingrato!

Senti que o sangue fervia-me nas faces e a mão instintivamente tremia na direção do punhal. Felizmente, porém, consegui me dominar.

— Retira essas expressões! — redargüi-lhe, erguendo-me calmamente.

Fiz um aceno a Halef e me encaminhei para o local onde se achava o prisioneiro sob a guarda do carvoeiro. Chegando lá, sentei-me. Minutos depois também o inglês abancou-se ao nosso lado.

— Que há, mister? — perguntou-me Lindsay. — Zounds, está com os olhos rasos d’água! Homem, diga-me a quem devo fuzilar e estrangular de uma vez!

— Aqueles que ousarem tocar neste prisioneiro.

— E quem são?

— Os haddedins. Maomé Emin lançou-me em face proceder eu com ingratidão para com ele. Devolvi-lhe o garanhão preto.

— O garanhão? Mas enloqueceu, mister? Devolver o animal depois. de haver passado à sua legítima propriedade! Espero, porém, que as coisas ainda se venham a modificar.

Nesse instante, chegou Halef com dois cavalos: o dele e um dos quê havíamos tomado aos bebbehs. O animal que até agora trazíamos no cabresto, estava encilhado com o meu arreamento que o meu criado tirara ao garanhão. Também o pequeno Halef estava com os olhos cheios de lágrimas e sua voz tremia quando me disse:

— Procedeste muito bem, Senhor! O scheitan entrou no corpo dos haddedins. Queres que eu tome o chicote e o afugente de lá?

— Não, eu os perdôo. Vamos partir já!

— Sídi, o que faremos se eles quiserem matar o bebbeh?

— Matá-los-emos a tiros no próprio local.

— Muito bem! Que Alá apedreje esses canalhas!

O prisioneiro foi novamente amarrado ao cavalo e nós montamos: eu, naturalmente, não no lindo garanhão mas num zaino que na Alemanha valeria uns quatrocentos taleres. A pequena comitiva se pôs em movimento e passou pelos haddedins que ainda se achavam abancados num cômoro de relva. Julgaram talvez que nós haveríamos de ceder às suas. imposições. Agora, porém, como viram que procedíamos seriamente, ergueram-se de chôfre do solo.

— Emir, para onde pretendes ir? — perguntou-me Maomé Emin.

— Embora — respondi-lhe lacônicamente.

— Sem nós?

— Como quiserdes!

— Onde está o garanhão?

— Lá onde se achava maneado.

— Macballah! mas ele te pertence!

— Agora, não: devolvo-te, Sallam. Alá faça reinar a paz entre ti e os teus!

Dei de esporas no cavalo e saímos a trote. Mas mal vencêramos uma milha inglesa os dois nos saíram atrás. Amad el Ghandur montara o garanhão e trazia o animal pelo cabresto. Agora tornava-se-me impossível aceitar novamente o garanhão.

Maomé Emin cavalgou para o meu lado, ao passo que o filho ficou à alguma distância.

— Eu penso que fui nomeado chefe da comitiva, emir, — começou ele.

— Precisamos de um chefe mas não de um tirano!

— Eu apenas quero castigar o bebbeh que aprisionou a mim e ao meu filho. E que te fiz eu?!

— Maomé Emin, enxovalhaste a amizade e o respeito de três homens que por várias vezes arriscaram a sua vida por ti e teu filho e que ainda agora por vossa salvação não trepidariam afrontar os maiores perigos!

— Efêndi, perdôa-me!

— Não te odeio!

— Aceita novamente o garanhão. É teu, pois dele te fiz presente.

— Jamais o aceitarei novamente!

— Pretendes castigar-me a velhice e causar vergonha às minhas barbas brancas?

— Exatamente a tua velhice e as tuas nevacentas barbas deveriam te ter dito que a cólera nunca traz resultados apreciáveis.

— Queres que entre os filhos do Beni Arabs se diga que o xeque dos haddedins recebeu de volta um presente que fizera a alguém, porque não se tornara digno de fazer tal presente?

— Claro que dirão isso!

— Emir, és cruel, pois lanças a vergonha sobre minha fronte encanecida!

— Tu próprio é que a lanças. Fui teu amigo e te estimava, tanto que te perdôo e não me separo de ti odiando-te. Sei bem qual a vergonha por que pássaras se voltares levando o garanhão de volta. Eu quisera salvar-te, mas não me é possível.

— É possível, sim. Basta que recebas novamente o garanhão.

— Eu o faria em atenção à amizade e ao respeito que te dedico; mas até isso se me tornou impossível. Olha para trás!

O xeque virou-se e meneou a cabeça.

— Não vejo nada. Ao que te referes, emir?

— Não vês que o garanhão já tem dono?

— Agora compreendo-te, emir! Amad já apeará.

— Mas eu não aceitaria mais o cavalo. Ele encilhou-o com o seu arreio e o montou; isto prova que aceitaste a devolução que tacitamente te fiz eu. Se o houvesses trazido desencilhado tal qual o deixei, então, sim, eu acreditaria que tu eras meu amigo e te livraria da vergonha que pesa sobre ti. Amad el Ghandur declarou-me em tom de menosprezo se eu um cristão e como um cristão procedia; pois ele é um muçulmano e não procede como um muçulmano, visto que monta um cavalo, cujo dorso já conduziu um cristão. Conta isto aos crentes que encontrares!

— Allah il Allah! que grave erro fomos cometer!

Compadecia-me do velho xeque, mas não me era possível fazer nada em seu favor. Devera eu proceder de modo a tirar-lhe a vergonha e passá-la para mim? Não. Aliás, eu não podia compreender o que de um momento para outro dera na cabeça daqueles dois homens, em geral sensatos. Questões pessoais por certo que não o eram. Talvez que o germe determinante daquela atitude neles já se aninhara há mais tempo e eu o vinha desenvolvendo cada vez mais pelo simples fato de tratar indulgentemente os nossos inimigos. E a circunstância de querer eu poupar a vida daquele bebbeh constituiu a última gota que fêz transbordar-lhes a medida. Mas não obstante pesar-me a perda do garanhão, não me levou nem por sombras à idéia de sacrificar daí por diante os meus pontos de vista de humanidade aos hábitos vingativos daqueles nômades.

 

UM GESTO PRECIPITADO DE MAOMÉ EMIN

O haddedihn cavalgou por muito tempo silenciosamente ao meu lado. Por fim, disse fraquejando:

— Por que continuas encolerizado?

— Não estou encolerizado contigo, não, Maomé Emin; mas pesa-me sinceramente que desejes tomar vingança de sangue contra aqueles aos quais o teu amigo já perdoara.

— Pois está bem, vou reparar esta minha falta!

Dito o que, retrocedeu. Por trás de mim cavalgavam Halef e o inglês; depois vinha Allo com o preso e por último Amad el Ghandur. Não voltei, porque pensava pretender Maomé Emin falar com o filho; o mesmo fizeram Halef e Lindsay. Só nos viramos ao ouvir o haddedihn dizer em voz alta:

— Volta para os teus, pois estás em liberdade!

Ao primeiro golpe de vista, notei que ele havia cortado as cordas ao preso, que no mesmo instante segurou as rédeas do seu cavalo e se foi a toda disparada.

— Xeque Maomé, o que fôste fazer! — exclamou Halef.

— Thunder strom, que foi dar na veneta daquele sujeito! — bradou o inglês.

— Procedi corretamente, emir? — perguntou o chefe haddedihn.

— Procedeste como uma criança! — retruquei-lhe colérico.

— Eu tencionei satisfazer-te a vontade! — respondeu.

— Quem te disse ser desejo meu soltá-lo, já? Agora perdemos o nosso refém e nos achamos novamente em perigo!

— Allah istafer! — Deus que o perdoe! — exclamou Halef. — Partamos em perseguição do fugitivo!

— Não o alcançaremos mais! — ponderei. — Os nossos cavalos são inferiores ao seu; só mesmo o garanhão seria capaz de vencer-lhe o animal que monta.

— Amad sai já a persegui-lo! — gritou Maomé Emin. — Traze-o de volta ou mata-o se não o conseguires prender.

O filho do xeque virou o garanhão. Vencera uns quinhentos passos, quando o cavalo passou a corcovear negando-se a continuar a conduzi-lo. Mas Amad não era homem para se deixar arrojar assim sem mais nem menos ao solo. Naturalmente que cavalgamos em sua direção. Desaparecera numa curvataura e quando alcançamos a mesma, vimo-lo a uma distância novamente em luta com o cavalo. Aplicava o jovem haddedihn todas as suas forças e todas as suas habilidades, mas em vão. Finalmente o animal cuspiu-o da sela. O animal retrocedeu em disparada e veio parar ao meu lado, bufando alegremente e afagando-me a perna com a cabeça.

— Allah akbar, Deus é grande! — disse Halef. — Ele dota um cavalo de melhor coração do que a muitos homens! Que pena, sídi, que o teu sentimento de honra não permita reaver o nobre animal!

Amad levara uma não pequena queda e ao examiná-lo, constatei que não se ferira propriamente.

— Este garanhão é um demônio! — disse ele. — No entretanto antigamente conduzia-me com garbo!

— Tu te esqueces de que depois passei a montá-lo — esclareci-lhe — e eu o habituei a carregar apenas aqueles a quem eu dou permissão para isso.

— Jamais montarei este scheitan!

— Terias procedido com prudência se já antes não o tivesses montado. Tivesse eu estado no seu dorso aquele Gasahl não nos teria escapado.

— Monta-o agora, emir, e persegue-o — pediu-me Maomé Emin.

— Não me ofendas! — repliquei-lhe.

— Queres então que o bebbeh fuja?

— Ele fugirá de qualquer forma e por tua exclusiva culpa!

— Horrível! — exclamou o inglês. — Formidável asneira! Desagradabilíssimo! Yes!

-— Que vamos fazer, sídi? — perguntou Halef.

— Para capturar o bebbeh? Nada. Eu mandaria o cão em sua perseguição, se este não me tivesse tanto valor. Mas em todo caso, precisamos tomar uma resolução.

E dirigindo-me ao haddedin, informei-me:

— Quando pela manhã saí em caçada, falaste na presença do bebbeh a respeito do rumo que pretendíamos seguir?

Maomé Emin hesitou na resposta e Halef acudiu:

— Sim, sídi, eles falaram a tal respeito.

— Mas em árabe — desculpou-se o chefe haddedin.

Se a sua aparência não fosse tão respeitosa, não se escaparia ele de um corretivo em regra. Assim, limitei-me a censurá-lo com calma.

— Não procedeste com a devida precaução. Que disseste então?

— Que tencionávamos seguir para Bistan.

— Nada mais? Dá tento à memória! É indispensável para tomarmos uma resolução, sabermos agora palavra por palavra o que falastes. O mais insignificante pormenor que omitires pode acarretar-nos graves danos.

— Eu disse mais, que de Bistan provavelmente nos dirigiríamos a Kulwan, mas que em qualquer dos casos cavalgaríamos para Kizzeldschi, a fim de chegarmos ao lago Kiupri.

— Fôste um parvo, xeque Maomé Emin. Não tenho mais a menor dúvida de que o xeque Gasahl Gaboya agora reencetará a nossa perseguição. E continuas ainda pensando que estarias em condições de ser o nosso chefe?

— Emir, perdoa-me! Mas estou convencido de que os bebbehs não nos alcançarão mais. O xeque terá que cavalgar uma muito longa distância para encontrar a sua gente.

— Achas? Já visitei muitos povos cujos costumes estudei minuciosamente e por isso não me iludo de um modo tão fácil. O irmão do xeque é um homem leal mas não é ele o chefe dos bebbehs. Ele apenas conseguiu de sua tribo que pudéssemos partir sem nos acontecer alguma coisa, mas dou minha cabeça ao picador se depois a legião não nos veio seguindo à distância. Enquanto estivesse o xeque em nosso poder, nada precisaríamos temer, mas agora que ele conseguiu fugir precisamos tomar todas as precauções. Eles nos tirarão vingança de tudo, inclusive dos cavalos que lhes matamos.

— Não os precisamos temer, — consolou-nos Amad el Ghandur — pois exatamente devido aos cavalos que lhes matamos não poderão nos perseguir a todos. E mesmo no caso de virem, serão recebidos com nossas excelentes armas.

— Isto soa muito bem, mas o pior é que não será como pensas. Eles já constantaram que lhes somos superiores para uma luta em campo aberto. Portanto resolverão agora armar-nos uma emboscada ou assaltar-nos durante a noite.

— Postaremos sentinelas!

— Somos seis homens e exatamente este número será necessário para estarmos em segurança. Precisamos adotar outra medida de defesa que não esta que propões.

O nosso guia, o carvoeiro, mantinha-se um tanto afastado do grupo. Estava contrafeito visto que esperava ser censurado por haver permitido ao haddedin soltar o preso.

— Até que ponto do sul perambulam os bebbehs? — perguntei-lhe.

— Até além do lago — respondeu.

— E conhecem eles bem toda a zona?

— Oh! se conhecem! Tão bem quanto eu conheço qualquer montanha ou outeiro, desfiladeiro ou vale entre Derghezin e Miek, entre Nweizgieb e Dschenawera.

— Temos necessidade, — prossegui — de tomar outro caminho que o anteriormente planejado. Para o oeste não devemos rumar. É muito longe daqui até a cadeia principal das montanhas dos Zagro?

— Oito horas, se seguirmos em linha reta.

— E se não nos fôr possível seguir em linha reta?

— Conforme. Conheço um pouco abaixo daqui um passo. Se cavalgarmos em direção ao levante, poderemos pernoitar numa mata segura e amanhã quando o sol estiver no zenite chegaremos às montanhas do Zagro.

— Mas se não me engano, lá deve ser a fronteira persa.

— Realmente ali confina o território curdo Terratul com o distrito persa de Sakiz, que pertence a Sinna.

— Existem lá curdos dos dchiafs?

— Existem e são muito perigosos.

— Mas talvez nos acolham bem, visto que nada lhes fizemos. E também é possível que o nome do khan Heider Mirlam nos sirva de recomendação. Guia-nos ao passo de que falaste. Seguiremos para o leste.

Os companheiros concordaram todos com esta resolução. Depois de haver Amad el Ghahdur passado os arreios para o seu cavalo, partimos para o rumo combinado. Maomé Emin conduzia o garanhão pelo cabresto. O incidente desagradável e depois a fuga do bebbeh tudo enfim roubara muito tempo e já era quase meio dia quando atingimos o passo. Quando nos achamos em meio das montanhas, dirigimo-nos para leste, depois de havermos tomado todas as providências no sentido de não deixarmos vestígio de termos mudado de roteiro.

Em breve começou o terreno a se desenvolver numa depressão e soube então pelo carvoeiro que entre o ponto em que nos encontrávamos e a cadeia de Montanhas de Zagro havia um considerável vale a atravessar. O incidente da manhã causara uma sensível dissonância em nossa comitiva que antes vivia em fraternal cordialidade, dissonância que era notada principalmente em meu semblante. Eu não podia nem pôr os olhos no garanhão. O alazão não era lá um cavalo muito mau, mas os curdos não sabem domar convenientemente as suas montarias. Portanto eu montava aquele animal com indecisão, pois precisava estudar-lhe os defeitos e as manhas. Comprazia-me, na verdade, por ver caminhar o garanhão desmontado ao nosso lado.

À noitinha alcançamos o mato no qual iríamos acampar. Até então não havíamos encontrado pessoa alguma e no trajeto abatêramos várias caças, que constituiriam o nosso jantar da noite. Durante a refeição reinou sepulcral silêncio entre a comitiva. Finda esta, deitamo-nos a dormir.

A mim tocara o primeiro quarto da guarda e me recostara a uma árvore num dos flancos da mata. Daí a instantes, de mim se aproximou Halef e me perguntou em voz baixa:

— Sídi, estás triste? Estimarás mais aquele cavalo do que o teu fiel Hadji Halef Omar?

— Não, Halef, por ti eu daria mil cavalos iguais àquele.

— Pois então consola-te, que estou contigo e contigo ficarei sem jamais me separar de ti!

Dito o que, deitou-se ao meu lado a dormir, visto que o quarto seguinte seria o dele. Sentei-me, e ali permaneci envolvido pelo silêncio da noite. Vieram-me então, pensamentos de ordem sentimental: sonhava unir-me um dia a uma criatura que me amasse. Oh! quão feliz não seria o homem que vivesse tranqüilamente na sua pátria e possuísse não só uma esposa dedicada e carinhosa, mas ainda um filho no qual visse crescer e se desenvolver a sua própria imagem.

Na manhã seguinte reencetamos a jornada e em breve constatamos que Allo não se enganara. Divisamos, ainda antes do meio dia, os cumes das montanhas do Zagro e resolvemos então prodigalizar um descanso aos animais que se achavam fatigados da puxada que havíamos feito naquele dia. Fizemos parada num vale de paredes tão escarpadas que pareciam inacessíveis. Deixamos que os animais pastassem à vontade e deitamo-nos na relva, que era viçosa, visto ser o vale banhado por um arroio.

Lindsay deitara-se ao meu lado e resmungava alguma coisa que eu não compreendia. Estava de mau humor.

 

UMA “PESCARIA” ESTRATÉGICA QUE FALHA

De repente, ele soergueu-se e apontou para trás de mim. Virei e dei corn três homens que de nós se aproximavam. Trajavam vestes leves e xadrezadas, e não usavam chapéu ou coisa que o valha na cabeça; achavam-se armados apenas de faca. Em face daquelas míseras criaturas não valia a pena pegar das armas, como é de hábito em ocasiões tais. Pararam diante do nosso grupo e saudaram-nos respeitosamente.

— Quem sois vós? — perguntei-lhes.

— Somos curdos da tribo dos mer mammallis.

— Que fazeis por aqui?

— Incorremos numa vindita de sangue e fugimos para ver se encontramos guarida nalguma outra tribo. E quem sois vós?

— Viandantes.

— E que fazeis aqui?

— Descmsamos.

— Neste arroio há peixes. Permitis que pesquemos alguns?

— Mas não tendes nem rede nem anzóis!

— Pegamo-los à mão, no que estamos adestrados.

Eu notara que no arroio havia muita truta e como estivesse curioso em saber como se as pegava à mão, disse-lhes:

— Conforme já vos disse, somos estranhos nesta zona; portanto não nos cabe o direito de vos impedir a pesca.

Imediatamente começaram eles com o auxílio das facas a cortar capim. Quando já haviam cortado o suficiente, carregaram pedras para uma das curvaturas do arroio, a fim de ali improvisarem um dique. Daí a pouco, a parte do arroio que ficava além do dique secou e podiam-se pegar as trutas facilmente com as mãos. Aquela pesca, a despeito da sua simplicidade originalíssima, despertou o nosso interesse, pelo que tomamos também parte nela. As trutas, escorregadiças como são, nos escapavam constantemente das mãos de modo que precisávamos estar bem atentos. Farta fora a colheita; enquanto nela nos ocupávamos, esquecemo-nos dos três curdos, até que subitamente ouvimos um infernal brado do nosso guia:

— Atenção! eles vos estão roubando!

Olhei para cima e vi os três sujeitos já montados em nossos cavalos: um no garanhão, outro no meu alazão e o terceiro no cavalo de Lindsay. Antes que os companheiros se recobrassem do susto eles sairam em doida disparada.

— Ali devils! O meu cavalo! — exclamou Lindsay.

— Allah kehrim! Deus que nos seja misericordioso! O garanhão! — gritava Maomé Emin.

— No seu encalço, avante! — bradou Amad el Ghandur.

Eu fui o único que me portei com calma. Não se tratava de ladrões de cavalos e muito menos de homens desembaraçados do contrário não nos teriam deixado os outros cavalos.

— Pára! Espera! — gritei para Amad. — Maomé Emin, reconheces o garanhão como novamente de tua propriedade?

— Sim, emir!

— Bem! Não devo permitir que mo presenteies de novo. Mas queres me emprestar o garanhão por alguns minutos?

— Como, se ele também foi roubado?

— Responde-me depressa se queres emprestar?

— Claro que sim, emir!

— Então segue-me lentamente.

Pulei no lombo do melhor dos cavalos e saí em perseguição dos ladrões. O que eu previra sucedeu. Pouco adiante se achava o curdo mal seguro no garanhão que pinoteava violentamente, visando derribar o cavaleiro. Não me havia aproximado bem dele, quando foi cuspido do arreio. O garanhão voltou e ao meu chamado veio postar-se bem ao meu lado. Passei rapidamente para o seu dorso, deixando o outro cavalo parado, e saí a toda a brida.

O curdo se reerguera e procurava fugir. Puxei uma das pistolas, agarrei-a pelo cano e ergui o braço. Ao passar por ele desferi-lhe um coronhaço, que o deixou estirado no solo. Pus novamente a pistola na cinta e preparei o laço que trazia à cintura. Longe, já mais abaixo, vi os outros dois que prosseguiam em disparada. Pus a mão entre as orelhas do cavalo.

— Rih!

O animal voava mais rápido que um pássaro nos ares. Não se passou um minuto, quando eu alcencei o da retaguarda.

— Pára! Apeia imediatamente! — ordenei-lhe.

O homem olhou para trás; vi que se assustara. Não obedeceu, porém, e tocou mais ainda o cavalo. Atirei-lhe o laço certeiro; seguiu-se um tirão. Arrastei-o a uma pequena distância e depois parei para apear. O homem perdera os sentidos ao ser arrastado. Desenvencilhei-o do laço, fiz nova laçada e, montando novamente, persegui o terceiro e último deles. Não tardei a alcançá-lo também. O terreno era muito favorável, porque nem à direita e nem à esquerda havia caminho por onde ele se escapasse. Ordenei-lhe que parasse, mas desobedeceu-me também. Atirei-lhe o laço e ele teve a mesma sorte do companheiro, com a única diferença de não ter perdido os sentidos.

Apeei e passei-lhe o laço pelo ventre, erguendo-o depois. O seu cavalo parará trêmulo.

— Então eram estes os peixes que pretendíeis pegar à mão?! Como te chamas?

— O homem não respondeu.

— Como é isso! Há pouco não eras mudo. Não contes com nossa indulgência se não te decidires a responder-me.

Insistiu no seu mutismo.

— Bem, ficarás aí estirado, até os meus camaradas trazerem os outros dois.

Dei-lhe um empurrão que ele, por não se animar a mover-se caiu redondamente no solo. Sentei-me na relva à espera dos companheiros que vinham vindo a uma boa distância ainda. Dentro em breve, eles chegaram com os nossos cavalos e com os ladrões. O carvoeiro tivera a feliz idéia de, enquanto perseguíamos os curdos, enrolar na sua manta os peixes que pegáramos.

Acendemos um fogo e os preparamos como foi possível, visto que não tinham água e menos ainda temperos para os mesmos.

O bravo David Lindsay recuperara o seu bom humor. Mas muito desconcertados se achavam os pobres diabos aos quais obrigáramos a realizar uma tão formidável prova de equitação... Não se arriscavam nem a abrir os olhos.

— Por que pretendestes vos apoderardes dos nossos cavalos? — perguntei a um deles.

— Porque deles tínhamos muita necessidade, visto sermos fugitivos.

Era uma desculpa que eu aceitava tanto mais que o roubo de cavalo não constitui uma ação infamante.

— És ainda jovem. Teus pais estão na tribo?

— Estão, sim, tanto os meus como os dos outros; este aqui até tem mulher e um filho.

— Por que não falam os teus companheiros?

— Senhor, eles estão envergonhados.

— E tu não te envergonhas?

— Mas não deve haver um de nós que te responda às perguntas?

— Parece-me que não és um sujeito mau, e como tenho pena de vós, vou ver se consigo a indulgência dos companheiros para o vosso caso.

Foi em vão aquele meu esforço, pois todos, inclusive Halef e o inglês, sustentaram a sua opinião de que os curdos mereciam um corretivo qualquer. O inglês opinara até que deviam ser vergastados. Desistiu, porém, disso, ao lhe dizer eu que aquilo constituía o mais grave ultraje, incorrendo por isso na vingança de sangue, ao passo que para os curdos roubar cavalos constituía um ato cavalheiresco.

— Então não os vergastamos! — disse Lindsay — Well! Então lhes cortaremos os bigodes! Excelente! Pitoresco! Depois podem ir em paz! Yes!

Tive que me rir e transmiti aos outros o plano do inglês. Concordaram logo com ele. Os três homens foram segurados e dentro de alguns minutos só lhes restava um toco dos bigodes. Nenhum deles resistiu e menos ainda pronunciou uma palavra. Mas assustei-me ao notar os olhos hostis que nos dirigiram ao se retirarem.

Depois de algum tempo aprestamo-nos também para partir. Maomé Emin aproximando-se então de mim, disse:

— Emir, queres me fazer um favor?

— Qual?

— Quero emprestar-te o garanhão por hoje.

Sujeito astuto! Acreditou haver encontrado o meio de se reconciliar comigo e fazer com que pouco a pouco me fosse reapoderando do animal

— Agora não preciso mais dele — repliquei-lhe.

— Mas poderás precisar a todo momento, como sucedeu há pouco.

— Nessas ocasiões te pedirei.

— Mas pode bem acontecer que não tenhas tempo para isso. Monta-o, efêndi, visto que ele não permite que outro o monte!

— Pois sim, montá-lo-ei, mas com a condição de continuar ele sendo teu.

— Vá lá que seja!

Eu me achava com o espírito de reconciliação e aceitei a sua proposta, frisando embora que jamais o aceitaria novamente como meu. Mal sabia que o futuro me obrigaria à resolução bem diferente.

 

Hospedagem Cativante

Não tencionávamos subir as montanhas do Zagro; prosseguimos ao contrário pelo vale em que nos achávamos, sempre rumo do sul. Passamos, depois através de outeiros verdejantes e alcançamos finalmente, ao pôr do sol, um rochedo isolado e muito alto, por trás do qual resolvemos acampar. Contornamo-lo. Eu, que cavalgava na ponta, ao dobrar um dos ângulos do rochedo, quase que derribei a patas de cavalo uma jovem mulher curda, que conduzia um menino de uns quatro anos pelo braço. Ela ficou assustadíssima. Ali bem perto, na orla de um macegal se levantava um edifício de pedra que parecia não servir de residência a gente lá muito comum.

— Não te assustes, — disse à mulher, estendendo-lhe mesmo a mão para o cumprimento. — Que Alá abençoe a ti e a esta formosa criança! A quem pertence esta casa?

— Ao xeque Mahmud Khansur.

— De que tribo é o xeque?

— Dos dchiafs.

— Está ele em casa?

— Não. Raramente vem cá, pois esta casa é a sua residência de verão. Atualmente o xeque se acha longe, ao norte, onde se realiza uma festa.

— Já ouvi dizer. E quem mora aqui na sua ausência?

— O meu marido.

— Quem é o teu marido?

— Chama-se Gibrail Mamrahsch e é o mordomo do xeque.

— Permitir-nos-á ele pernoitarmos esta noite na sua casa?

— Sois amigos dos dchiafs?

— Somos forasteiros, vimos de longínquas terras e somos amigos de todos os homens.

— Espera! Vou falar com Mamrahsch.

Ela afastou-se e nós apeamos. Em breve veio receber-nos um homem que podia andar lá pela casa dos quarenta. A sua fisionomia era muito. franca e leal e o homem causou-nos a melhor impressão.

— Alá abençoe a vossa vinda nesta casa! — saudou-nos ele. — Sereis todos bem-vindos em nosso solar, se vos digneis nele entrar para passar a noite!

Inclinou-se diante de cada um de nós a quem estendeu a mão. Daquele gesto de cortesia, depreendia-se logo que nos achávamos em território persa.

— Tens igualmente lugar para os nossos cavalos? — informei-me.

— Lugar e também pasto suficiente. Poderão ser acomodados no pátio e se forragearem de cevada.

A propriedade era constituída de um muro de forma retangular, no interior do qual se achavam casa, pátio e jardim. Ao entrarmos, notamos logo que a casa dividia-se em duas partes distintas, independentes até no que dizia respeito à entrada. A porta de entrada para a secção dos homens abria-se para fora, ao passo que a entrada para os compartimentos destinados às damas ficava aos fundos.

Nós fomos, é claro, conduzidos pelo dono da casa para a secção dos homens, que media vinte passos de comprimento por dez de largura, espaço portanto mais que suficiente. Janelas não as havia na casa, que era arejada por enormes frestas formadas entre o telheiro e os intervalos dos caibros. Uma alcatifa de cortiça cobria todo o solo à guisa de assoalho, e em torno da parede, viam-se divas. Não eram muito altos esses divas, mas bastante cômodos para quem durante semanas se conservava sentado quase que permanentemente no serigote.

Fomos convidados a sentar-nos e depois o nosso hospedeiro, abrindo um cofre que se achava a um dos ângulos da casa, perguntou-nos:

— Tendes os vossos próprios cachimbos convosco?

Não se pode descrever como foi agradável a impressão que aquela pergunta nos causou. Tendo Allo ficado lá fora com os cavalos, éramos cinco dentro da sala. A pergunta tão amável daquele homem, todas as dez mãos e os cinqüenta dedos, se movimentaram em busca dos respetivos cachimbos, ao mesmo tempo que a resposta “temos” ecoou em harmonioso coro pela sala!

— Permiti então que vos ofereça fumo!

O homem passou-nos fumo, que de há muito fôramos obrigados a deixar de saborear, visto que não o encontrávamos à venda por onde passávamos. Era daquele excelente artigo amarelinho, acondicionado em pacotinhos quadriculares, plantado em Basiran, nas fronteiras do norte da Pérsia. Em dois tempos enchemos os cachimbos e mal as odoríferas espirais subiram ao teto da casa, chegou a mulher com o saboroso moca, do qual também nos víamos privados há tanto tempo. Como era natural, o homem com aquela acolhida hospitaleira, levantava-nos o moral, ainda um tanto abatido em virtude das lutas e incidentes dos últimos dias. Eu me achava em tão bom humor, que teria aceitado novamente o presente, não de um, mas de dez ou vinte garanhões, se Maomé Emin me oferecesse naquele instante. Zangava-me comigo mesmo por haver perdido tanto tempo na pesca, ou melhor, na colheita de trutas, ao invés de cavalgar diretamente para aquela casa. Assim é o homem: sempre e cada vez mais escravo da impressão do momento!

Tomei umas três ou quatro taças de café e com o cachimbo fumegando sai para o pátio a ver os cavalos. O carvoeiro ao me deparar de cachimbo aceso, fêz desprender do ponto de sua floresta de barba onde era de se supor estivesse situada a boca, um tão ansioso grunhido de desejo que eu, penalizado, voltei a pedir ao hospedeiro também um pouco de fumo de Basiran para ele. Ao lhe entregar o fumo, o carvoeiro, em vez de o pôr no cachimbo, levou-o à boca e passou a mascá-lo. Adotava sistema diferente para saborear o fumo.

O muro que cercava a casa tinha a altura de mais de um homem e portanto ali se achavam os animais em segurança, assim que se fechasse o pesado portão da entrada. Aquilo me deixou satisfeito e voltei para a sala, onde encontrei o hospedeiro palestrando em árabe com os companheiros.

Em breve, a hospedeira trouxe algumas lanternas de papel que espalhavam uma agradável meia luz no compartimento; depois trouxe-nos ela o jantar, que se compunha de assados de diversos pássaros, frios, que saboreamos com pão fabricado de farinha de cevada.

— Esta zona ao que parece é rica em aves — observou Maomé Emin.

— Riquíssima — declarou Mamrahsch. — O lago não fica muita distante daqui.

— Que lago? — perguntei-lhe.

— De Zeribar.

— Ah! de Zeribar, em cujo fundo sossobrou a cidade da maldição, que era edificada de puro ouro?

— Exatamente, Senhor. Já ouviste falar naquela cidade?

— A população era tão ateia que escarnecia de Alá e do profeta. Por causa disso o Onisciente mandou um terremoto que fêz sossobrar toda a cidade.

— Ouviste a verdade. Em determinados dias, vêem-se brilhar, quando se navega pelo lago, ao pôr do sol, os palácios e os minaretes de ouro, bem no fundo do lago, e aquele que fôr inspirado por Deus, ouve até a voz do Muezzin ressoar do fundo para a tona: ai aal ei sallah! — Sim, prepara-te para a oração! Depois vê também as pessoas soçobradas carregadas pelas ondas a Moschiah, onde oram e se penitenciam dos seus pecados.

— Também tu já viste e ouviste tudo isso?

— Não, mas o pai de minha esposa viu e ouviu e depois contou-me. Ele pescava no lago e testemunhou tudo quanto há pouco te relatei. Bem, permiti-me que agora eu vá fechar o portão. Deveis estar cansados e precisais, pois, de dormir.

O homem retirou-se e daí a pouco ouvimos o portão bater nos seus gonzos.

— Mister, um bom sujeito este! — disse o inglês.

— Claro. Não perguntou pelo nosso nome e nem pela nossa origem e finalidade. Legítimo espírito de hospitalidade oriental.

— Vou dar-lhe uma boa gorjeta, Well!

Daí a instantes voltou o dono da casa, trazendo travesseiros e cobertores para dormirmos.

— Nesta zona, além dos dchiafs, moram também bebbehs? — perguntei-lhe.

— Moram, mas muito poucos. Os dchiafs e os bebbehs não se estimam lá muito, não. Atualmente não encontrareis muitos dchiafs, porque a maior parte deles expedicionaram para cima, na direção do norte, visto que uma tribo dos bilbas se transferiu para as nossas fronteiras. São os mais selvagens sakeadores que há e supõe-se estejam eles a planejar assaltos e tropelias. Daí o motivo de haver nossa gente deixado a aldeia para ir pôr os seus rebanhos em lugar seguro.

— E tu ficas aqui?

— Assim determinou o meu Senhor.

— Mas se os sakeadores vierem, despojar-te-ão de tudo.

— Eles encontrarão apenas o muro e nada dentro dele.

— Mas poderão prender-te ou até matar-te.

— Também não me acharão. O lago é cercado de juncos e tremedais assaz atoladiços. Lá existem esconderijos que um estranho jamais dará por eles. Bem, agora permiti que me retire para que possais dormir!

— Esta porta aqui fica aberta? — perguntei-lhe.

— Fica; por que perguntas?

— Estamos habituados a nos revesarmos na guarda aos cavalos; por isso necessitamos de sair e entrar a qualquer hora da noite.

— Não precisais montar guarda, não; eu farei este serviço por vós.

— A tua bondade excede o nosso merecimento; mas pedimos que por nossa causa não sacrifiques tuas horas de repouso!

— Sois meus hóspedes e Alá ordena-me que vigie pela vossa segurança, Ele que vos conceda a graça de um bom sonho e de uma boa noite!

Sem o menor incidente gozamos da hospitalidade do curdo-dchiaf. Quando partimos na manhã seguinte, aconselhou-nos o hospedeiro que não rumássemos para o oeste, pois neste caso nos chocaríamos facilmente com os ladrões e ferozes bilbas; o melhor roteiro para tornarmos, acrescentou ele, seria procurarmos o rio Djalah e depois seguir sempre pela sua margem e daí ganhar a planície do sul. Eu não estava lá muito inclinado a seguir tal conselho, pois lembrei-me dos bebbehs com os quais nos podíamos chocar naquela zona, no caso de haverem eles continuado a nos perseguir. Mas o plano de tal modo mereceu a aprovação dos dois haddedins, que eu terminei por concordar com ele.

Depois de havermos presenteado, regiamente aliás, no modo de compreender daqueles povos, Mamrahsch e sua mulher, reencetamos a jornada. Numerosos curdos-dchiafs montados e por ordem do nosso hospedeiro nos acompanharam, a fim de nos assegurarem garantias individuais. Após algumas horas de cavalgada, atingimos o vale que corre entre as montanhas de Zagro e as de Aroman. Por este vale passa a célebre estrada Schamian que estabelece ligação direta entre Sulimania e Kormanscha. Fizemos parada num riacho.

— É este o rio Garran — disse o chefe dos dchiafs que nos acompanhavam. — Seguindo-lhe o curso que vai desaguar no Djalah, estareis no caminho que procurais. Agora de vós nos despedimos! Passai bem e tende muito feliz jornada! Que Alá vos guie!

O contingente voltou e nós ficamos novamente entregues a nós mesmos.

 

A MORTE DO HADDEDIN

No dia seguinte atingimos o Djalah que conduz para Bagdad. Fizemos alto à sua margem a fim de fazermos a nossa refeição do meio dia. Era um dia resplandecente de sol, de que jamais me esquecerei. À nossa direita ouvia-se o murmúrio das águas do rio; à esquerda elevava-se o declive suave de um outeiro, sombreado por copados acerais, plátanos, castanheiras e cornisos; diante de nós, pouco a pouco surgia o espinhaço de uma elevação cujas coroas de rochedos despenhadiços rebrilhavam para baixo, qual as ruínas de um castelo feudal.

A esposa de Mamrahsch suprira de provisões os nossos farnéis, mas estas provisões já haviam terminado; peguei então da espingarda para ver se abatia alguma caça para o nosso sustento. Segui o citado espinhaço de elevação durante bem meia hora sem encontrar a mínima caça e dirigi-me, por este motivo, novamente para o vale. Não atingira ainda este, quando ouvi a detonação de um tiro, seguida de outra. Quem teria atirado? Apressei o passo para alcançar o mais depressa possível os companheiros. Quando lá cheguei, encontrei apenas o inglês, Halef e Allo.

— Onde estão os haddedins? — perguntei-lhes.

— Em busca de caça — respondeu Lindsay.

Também eles ouviram os estampidos, mas supuseram que fossem das armas dos haddedins. Agora detonaram novamente três tiros e pouco depois mais um.

— Por amor de Deus, montemos depressa! — exclamei. — Algo de grave aconteceu.

Montamos e galopamos para a frente. Allo seguiu-nos mais devagar, porque conduzia os animais dos haddedins. Mais dois tiros foram desfechados, seguidos depois de alguns tiros de pistola.

— Um combate, mas um combate de verdade! — exclamou o inglês.

A galope, invadimos o prado cercado pelo rio e depois de dobrar uma curvatura vimos o teatro da luta tão próximo de nós que nela logo passamos a tomar parte. À beira do rio, achavam-se deitados alguns camelos na relva. Não tive tempo de contar o número dos animais. Vi ao lado dos animais um monte de objetos cobertos, à direita junto do penedo uns seis a oito vultos estranhos que se defendiam de uma maioria de curdos e bem à nossa frente se achava Amad el Ghandur a se defender a golpes de coronhas contra um monte de inimigos que o cercavam. Bem ao seu lado jazia Maomé Emin como morto. Aqui de nada valiam perguntas e mostras de fraquezas. Invadi o novelo de curdos, depois de haver deflagrado a espingarda.

— Aí está ele, aí está ele! Poupem-lhe o cavalo! — ouvi uma voz comandar.

Virei-me e reconheci o xeque Gasahl Gaboya. Mal pronunciara a última palavra, Halef cavalgou de encontro a ele e bateu-lhe com a espingarda. Seguiu-se um combate cujas minúcias não me animo a descrever, porque, dado ao fragor da luta, eu próprio delas não me lembro. O quadro do haddedin morto produzira uma impressão desoladora. De fúria, teríamos investido contra mil lanceiros se estes nos atacassem. Lembro-me apenas de que do meu corpo escorria sangue, que do corpo do cavalo escorria sangue, que os tiros detonavam-se uns após outros e que as balas inflamadas passavam-me diante dos olhos; que eu aparava golpes e repelões e que ao meu lado sempre permanecia um vulto auxiliando-me a aparar os golpes que me eram destinados; era o pequeno Halef. Numa dessas, cai o cavalo com uma punhalada no pescoço, punhalada que fora desferida contra mim. Nada mais vi nem ouvi.

 

UM ENCONTRO PROVIDENCIAL

Quando me acordei dei logo com os olhos no meu pequeno Hadji; estava lacrimoso.

— Hamdulillah — Graças a Alá que ele ainda vive! — Ele abre os olhos! — exclamou o meu fiel e dedicado criado, cheio de entusiasmo. — Sídi, ainda sentes dores?

Quis responder-lhe mas não pude. Achava-me tão fatigado que as pálpebras caíam-me.

— Ia Allah, ia Allah, ia jazik, ia wai! Santo Deus, Santo Deus, ele morre! — Ouvi-o ainda exclamar chorando. Depois caí em novo letargo.

O resto foi-me como um sonho, como um pesadelo. Eu lutava contra dragões e gigantes; subitamente, porém, desapareceram os vultos hediondos; uma suave fragrância fêz-se sentir depois ern torno de mim; sons brandos e melodiosos soavam-me aos ouvidos como se fossem vozes angélicas e quatro mãos quentes cuidavam de mim. Continuava agora tudo aquilo a ser sonho como dantes ou era realidade? Abri novamente os olhos.

O sol ia morrendo por trás das montanhas e coloria o céu de maravilhosos tons; o vale jazia no lusco-fusco. Mas a parca claridade ainda permitia admirar a beleza das duas mulheres que se inclinavam para mim.

— Dirigha bija! Vamos-nos embora! — exclamaram enquanto deixavam os véus cair-lhes sobre os rostos; e elas se retiraram a correr.

Procurei soerguer-me do chão e o consegui. Nesse movimento, notei que me achava ferido abaixo da clavícula. Conforme vira a saber mais tarde, levara eu um lançaço naquela região do corpo. Também o resto do corpo doía-me. Era como se me houvessem supliciado. A ferida me haviam amarrado com todo o cuidado e a fragrância que eu sentira há pouco continuava a bafejar-me.

Nesse instante chega Halef e exclama:

— Allah kerihm! Deus é misericordioso, porque te devolveu a vida. Louvado seja ele para todo o sempre!

— Como conseguiste escapar, Halef? — perguntei-lhe exausto.

— Muito bem, sídi. Recebi um tiro na coxa; a bala fêz-me um orifício e atravessou a perna.

— E o inglês?

— Recebeu um tiro de raspão na cabeça e perdeu dois dedos da mão.

— Pobre Lindsay! E que mais?

— Allo recebeu muitas pancadas mas não verteu sangue algum.

— E Amad el Ghandur?

— Não foi ferido mas não fala mais.

— E seu pai?

— Morreu. Que Alá lhe dê o paraíso!

Halef, tendo dito isso, conservou-se em religioso mutismo e eu fiz o mesmo. A confirmação da morte do meu velho amigo comovia-me. Só -depois de uma longa pausa perguntei:

— E que é feito do meu garanhão preto?

— Os ferimentos por ele recebidos são dolorosos mas não são graves. Queres que te fale sobre eles?

— Agora não. Vou tentar reunir-me aos demais. Por que me separaram de vós?

— Porque as mulheres do persa tomaram a si os teus curativos e tratamento. Ele deve ser um homem rico e de distinção. Já acendemos uma fogueira e tu o encontrarás agora em torno da mesma.

Ao erguer-me de um todo do solo senti algumas dores, mas com a ajuda de Halef pus-me de pé. Também me foi possível caminhar. Perto do local onde eu tombara, ardia uma fogueira para a qual me conduziu Halef. O vulto esbelto do inglês me veio ao encontro.

— Behaold, aí está, mister! Levou uma famosa queda mas possui valentes costelas ao que parece. Tomamos o seu desmaio por morte. Yes!

— E o que sucedeu ao senhor? Está com a cabeça e a mão atada!

— Levei um arranhão exatamente na região em que os frenólogos supõem estar o juízo. Perdi alguns cabelos e também um pedacinho de osso; mas isso não quer dizer nada. Yes! Claro que também dois dedos se foram. Vá lá que seja. Não me faziam mesmo grande falta aqueles dedos!

Juntamente com o inglês, outra figura que se achava em torno da fogueira se ergueu. Era um homem de postura respeitosa e de bela estatura. Ele usava sirdchame (1) comprido e manufaturado em tecido de seda vermelha, uma pirahan (2) de seda branca e um alkalik justo e que vinha até aos joelhos. Sobre este ele

 

(1) Pantalonas.   

(2) Camisa.

 

tinha ainda uma kaba (3) azul-marinho e um balapusch de finíssima seda. Num fino kaschmir que lhe cingia a cintura reluziam uma espada de preço, duas pistolas de cabos dourados, um punhal e o kinschals (4). Tinha os pés metidos em botas de montaria feitas de saffian; à cabeça usava um boné de couro de cordeiro envolto num custoso chalé de seda.

Aproximou-se de mim, fêz uma inclinação e saudou-me.

— Mi newahet kjerdem tura. — Aceita os meus cumprimentos!

— Ali scheker kjerdem tura! Muito te agradeço! — respondi-lhe no mesmo tom de profunda cortesia, inclinando-me também.

— Emir, neberd azmai. — És um perito em combate!

— Mir, pahawani — Senhor és um herói!

— Puradarem tu. — És meu irmão!

— Wafaldarem tu! — Sou teu amigo!

Apertamo-nos as mãos. Depois teve ele a delicadeza de dizer-me:

— Já me disseram como te chamas. Quanto a mim, trata-me de Hassan Ardschir-Mirza e considera-me um servo ao teu dispor!

Ele era portador do título Mirza que na Pérsia é usado pelos príncipes; portanto tratava-se de uma personalidade importante.

— Recebe-me tu também a mim debaixo do teu comando! — respondi-lhe.

— Esses oito homens me foram confiados, irás conhecê-los.

A essas palavras apontava o persa para oito figuras que em atitude respeitosa ali se achavam, e prosseguiu:

— Tu és o senhor deste acampamento. Senta-te.

— Acedo ao teu desejo, filho da nobreza que te exorna o sêr. Mas permite que antes vá consolar aquele meu companheiro.

Não muito distante da fogueira jazia o corpo de Maomé Emin. Junto dele e de costas para nós se achava sentado seu filho Amad el Ghandur. Acerquei-me dele. O velho haddedin fora atingido na testa por uma bala e suas barbas nevacentas estavam tintas do sangue que lhe escorria de uma ferida que recebera no pescoço. Ajoelhei-me diante dele em mutismo religioso e com o coração cheio de dor. Só depois de muito tempo é que consegui acalmar a minha perturbação e pus a mão sobre o ombro de Amad!

— Amad, lamento contigo a morte do teu extremoso pai, acredita-me!

Não me respondeu e nem moveu um só músculo. Esforcei-me por fazê-lo falar mas em vão. Era como se a dor o tivesse convertido numa estátua. Tornei para junto da fogueira a sentar-me ao lado do persa. Por esta ocasião quase que tropecei no carvoeiro que deitado de bruços gemia baixinho.

Examinei-o. Não sofrerá ele o menor ferimento, mas recebera algumas bordoadas e repelões que ainda agora lhe causavam dores. Consegui consolá-lo.

Também Hassan Ardschir-Mirza sairá ileso da luta, o que não se dera com sua gente. Esta, no entretanto, não deixava perceber o menor sina! de que sentia dores.

— Emir, — disse-me o persa — tu chegaste bem a tempo. Salvaste-nos a todos!

 

(3) Peça do vestuário parecido com colete.

(4) Casaco-alfange, tipo de faca destinada a decapitações

 

— Compraz-me em te haver servido!

— Vou relatar-te como se deu tudo.

— Permite-me antes que te peça algumas indispensáveis informações! Fugiram os curdos?

— Fugiram. Mandei dois dos meus servos segui-los, a fim de me informarem, de volta, para onde se dirigiram. Eram quarenta. Eles perderam muitos de seus guerreiros, ao passo que nós só temos a morte de um a lamentar, a do teu inditoso companheiro. Para onde conduzem os vossos caminhos?

— Para o território das pastagens dos haddedins, na margem oposta do Tigre. Fomos obrigados a fazer esta volta.

— E os meus para o sul. Ouvi dizer que estiveste em Bagdad?

— Mas demorei-me pouco tempo.

— Conheces o caminho para lá?

— Não conheço, mas é fácil de achá-lo.

— Também o de Bagdad a Kerbela?

— Também este. Pretendes ir a Kerbela?

— Pretendo. Tenciono visitar em romaria o túmulo de Hossein.

Aquela notícia sobremodo me agradou. Portanto o homem era um chiita; intimamente, eu desejava poder fazer com ele aquela interessante viagem.

— Como fôste tomar o caminho destas montanhas? — perguntei.

— Visando evitar os salteadores árabes, que nos caminhos dos peregrinos, estão permanentemente à espreita de presas.

— Em compensação, porém, vieste a cair nas mãos dos curdos. Procedes de Kirmanscha?

— De mais longe ainda. Desde ontem que já estávamos aqui acampados. Um dos meus servos fora ao mato e de longe avistou os curdos que se aproximavam. Também eles o avistaram. Perseguiram-no e conseguiram chegar ao acampamento de modo a nos colherem de surpresa. Durante o combate, em que esperávamos perecer, apareceu-nos o valente ancião que ali jaz morto. Ele fêz tombar dois curdos varados por suas balas e passou logo a participar do combate. Depois chegou seu filho que revelou a mesma valentia e bravura do pai; contudo teríamos perecido se vós outros não chegásseis. Emir, a ti pertence minha vida e tudo que possuo! Faze que o teu caminho nesta jornada seja tanto quanto possível o mesmo que o meu!

— Eu quisera de coração que o pudesse! Mas temos um morto e nos achamos feridos. O morto precisa ser sepultado e nós teremos que ficar aqui mais uns dias, do contrário seremos acometidos de febre proveniente dos ferimentos.

— Pois também ficarei, visto que meus servos foram também feridos.

Em meio da nossa palestra, lembrei-me de que ainda não vira Dojan. Perguntei ao inglês por ele mas não me soube informar a respeito. Halef se lembrava de ter visto o fiel cachorro participar da luta, mas só isso.

Os servos do persa trouxeram abundantes vitualhas que foram preparadas no fogo. Depois da refeição, levantei-me para fazer um reconhecimento pelas redondezas do acampamento e procurar Dojan. Halef acompanhtu-me. Antes dirigimo-nos aos cavalos. O pobre garanhão se achava deitado. Ele recebera, além do ferimento com a lança, um bem incisivo tiro de raspão, mas fora cuidadosamente pensado por Halef. Por ali perto se achavam deitados os camelos. Eram cinco que no momento ruminavam; estava demasiadamente escuro para que lhes pudesse julgar o valor. A seu lado se achavam as cargas por eles conduzidas e mais adiante a tenda das mulheres.

— Tu me viste cair, Halef. Como se deu a queda?

— Pensei que estivesses morto, sídi e este pensamento me deu forças de um louco. Também o inglês estava sedento de vingança e por isso os homens tiveram muito serviço conosco. O persa é um homem muito valente bem como os seus servos.

— Não fizeste presas?

— Armas e alguns cavalos, que nem notaste com a escuridão, agora quando por eles passaste. Aos mortos mandou o persa lançar ao rio.

— Entre os que foram atirados no rio, não haveria algum apenas ferido e desacordado?

— Não sei. Depois da refrega examinei-te e constatei que teu coração ainda batia. Quis te pensar, mas o persa não permitiu. Mandou conduzir-te para o lugar onde há pouco estavas deitado, e as mulheres é que se encarregaram do teu tratamento.

— Que soubeste a respeito dessas mulheres?

— Uma delas é a mulher e a outra uma irmã do persa. Elas têm uma velha serva que se acha permanentemente sentada na tenda a mastigar tâmaras.

— E o persa? Quem é ele?

— Não sei. Os servos não o dizem. Deve-lhes ser vedado revelar a personalidade do seu amo e eu penso que...

— Pára! — atalhei-o. — Ouve!

Haviamo-nos afastado de tal modo do acampamento que não ouvíamos mais os rumores que de lá vinham; em volta, reinava profundo silêncio. Enquanto falava Halef, foi como se eu tivesse ouvido uns uivos muito meus conhecidos. Paramo-nos à escuta. Realmente mais perceptível se tornara agora o latido que o galgo costumava proferir ao derrubar uma presa. Mas não nos apercebêramos ainda da direção de onde partiam os latidos.

— Dojan! — gritei.

A este brado recebi uma resposta muito nítida: vinha do macegal que cobria a escarpa. Galgamo-la vagarosamente. Para melhor me orientar, chamava de quando em quando pelo cachorro, que sempre me respondia. A seguir ouvimos-lhe os latidos com que costumava ele significar a sua alegria. Isto nos conduziu diretamente ao local em que o animal se encontrava. No chão jazia um curdo e sobre ele o cão pronto para o bote mortal. Inclinei-me a contemplar o homem. Não me era possível distinguir-lhe a fisionomia, mas o calor do seu corpo provava que ainda se achava com vida, embora não se arriscasse ele a mover-se.

— Dojan, larga!

O cão obedeceu-me imediatamente e ordenei ao curdo que se levantasse. Ele o fêz e respirou profundamente o que provava haver passado por não pequeno susto. Interroguei-o e ele afirmou ser um curdo da tribo dos sorans. Como esta tribo é inimiga mortal dos bebbehs suspeitei ser ele um bebbeh que se dizia falsamente um soran, para salvar-se.

Perguntei-lhe por isto:

— E como vens aqui e nesta posição, se é verdade que és um soran?

— Pareces ser um forasteiro neste país, visto me fazeres tal pergunta — retrucou-me o homem. — A tribo dos sorans era grande e poderosa. Morava ao sul de Bulbas, e se formava de quatro tribos: rumok, manzar, piran e namash e possuía a sua sede em Harrir, a melhor cidade do Curdistão. Mas Alá deixou de protegê-la tirando-lhe as forças e o poder e passando-os para os inimigos. A sua última aldeia foi fixada na região do Keuy Sandschiak; mas um belo dia lá apareceram os bebbehs e destruíram-na. Os bebbehs roubaram-lhes os rebanhos, as mulheres e as moças levaram-nas eles consigo e os homens, rapazes e meninos mataram-nos. Apenas poucos se salvaram e vivem isoladamente dispersos por outras zonas. Aos primeiros pertenço eu, que moro lá em cima entre os penedos; minha mulher faleceu, meus filhos e irmãos foram assassinados. Não possuo nem um cavalo e minhas armas se resumem numa faca e numa espingarda. Hoje ouvi tiros e desci a apreciar o combate. Vi que se tratava de meus inimigos, os bebbehs, e fui buscar a minha espingarda. Açoitado por trás de árvores abati mais de um; matei-os por vingança e porque pretendia apossar-me de um dos seus cavalos. Ainda acharás a bala de minha espingarda nos seus corpos. Nesse entretempo, o teu cão viu o fogo de minha espingarda e tomou-me por um inimigo. Atacou-me. Eu deixara cair a faca e a arma não fora carregada novamente. Procurei defender-me com o cano da arrua e recuei; o animal, porém, atirou-me finalmente ao solo. Notei que ele me estraçalharia se me aventurasse a fazer o menor movimento e por isso fiquei imóvel até agora. Foram horas horríveis as por que passei!

Via-se que o homem falava a verdade. Não obstante, porém, eu precisava proceder com toda cautela.

— Queres mostrar-nos a tua residência? — perguntei-lhe.

— Pois não! É uma choupana de musgos e galhos de arbustos, com o interior alcatifado de capim e folhas secas.

— Onde está tua espingarda?

— Deve estar por aqui.

— Procura-a.

O curdo afastou-se em procura da arma, ao passo que nós ficamos parados no mesmo lugar.

— Sidi, — cochichou Halef — ele é capaz de fugir.

— Se fôr um bebbeh, sim. Mas se realmente é um soran, voltará e então podemos confiar nele.

Não foi preciso esperarmos muito, pois o homem chamou para cima:

— Desce, Senhor! Achei tanto a espingarda como a faca. Descemos. O homem, pois, parecia ser sincero.

— Acompanhar-nos-ás agora ao acampamento! — disse-lhe eu.

— De boamente, Senhor — respondeu-me. — Mas não poderei falar com o persa, porque só conheço o idioma curdo e a língua dos hagaris .(5)

— Falas corretamente o árabe?

 

(5) Árabe.

 

— Falo, desci até além do mar e até além do Eufrates e conheço toda a zona e todos os caminhos.

Eu folgava com aquilo, porque era vantajoso para nós o encontro com aquele homem. O seu aparecimento despertou a atenção no acampamento; maior impressão causara, porém, ele a Amad el Ghandur, que ao avistar o curdo saiu imediatamente do seu torpor espiritual e ergueu-se.

O jovem xeque dos haddedins tomou o soran por um bebbeh e levou logo a mão ao punhal. Pus-lhe então a mão ao ombro e lhe esclareci que o homem era um inimigo dos bebbehs e que se achava debaixo de minha proteção.

— Um inimigo dos bebbehs! Porventura os conheces? Como também o seu caminho? — perguntou ele então precipitadamente ao soran.

— Conheço-os — respondeu-lhe o homem.

— Então depois continuarei a falar contigo.

Dito o que virou-se o rapaz e tornou a sentar-se junto ao corpo do pai. Narrei ao persa a maneira como eu encontrara o soran e ele concordou em acolhê-lo no acampamento.

Mais tarde voltaram os nuker (6) e anunciaram que os bebbehs haviam cavalgado um bom trecho ao sul e depois fazendo uma volta para a direita, volveram ao monte de Merivan. Não precisávamos pois receá-los mais e os persas se deitaram a dormir depois de havermos tomado em conjunto as medidas de precauções que a nossa situação exigia.

Procurei Amad el Ghandur e pedi-lhe que repousasse também um pouco.

— Repousar? — exclamou ele. — Repouso só o tem um: este morto aqui. Infelizmente não irá repousar na necrópole dos haddedins, na terra dos filhos de suas tribos que o choram; ele dormirá o sono da morte em terra estranha, sobre a qual estará eternamente suspensa a maldição de Amad el Ghandur. Ele saíra de sua tribo para me reconduzir à pátria. E achas que volverei agora à minha pátria antes de vingar a sua morte? Vi a ambos: o que lhe desferiu a punhalada e também o que lhe alvejou a testa com uma bala. Ambos conseguiram escapar-me, mas os conservo bem na retina e hei de mandá-los para o Scheitan.

— Compreendo a tua cólera e compunge-me a tua dor; mas suplico-te que não percas a noção das cousas. Queres perseguir os bebbehs, para vingar a morte do teu extremoso pai. Já refletiste o que significa isso?

— A lei da vingança de sangue ordena-o e o meu dever é obedecê-la. És cristão, emir, e por isso não podes compreender estas coisas.

Conservou-se em silêncio, por algum tempo e depois perguntou-me:

— Acompanhar-me-ás, emir, na perseguição aos bebbehs? Respondi-lhe negativamente e ele, baixando a cabeça, replicou:

— Eu bem que sabia haver Alá feito um mundo onde não existe a verdadeira amizade e o sentimento de gratidão.

— Tu é que te aferras a um falso ponto de vista acerca do que seja a verdadeira amizade e o sentimento de gratidão — redargüi-lhe. — Lança um olhar retrospectivo aos acontecimentos dos últimos tempos e concluirás fatalmente que sempre fui um verdadeiro amigo do teu pai e por isso devias me ser grato. Estou

 

(6) Pájens.

 

pronto a acompanhar-te, com risco de minha vida, aos campos de pastagens dos schammares; mas exatamente por ser teu amigo, devo impedir-te que te lances a um perigo, no qual perecerás inutilmente.

— Repito: és cristão e como cristão falas e procedes. O próprio Alá quer que eu vingue a morte de meu pai, porque hoje de noite deu-me ensejo para isto. Peço-te que me deixes só!

— Vou satisfazer-te esta vontade; mas peço-te que nada empreendas sem antes combinar comigo.

O jovem haddedin afastou-se sem me responder. Depreendi dos seus gestos, que tomara uma resolução e temia que eu o impedisse de levá-la a efeito. Resolvi, à vista disso, observá-lo.

Quando me acordei na manhã seguinte ele continuava sentado no mesmo lugar, mas agora em companhia do soran. Palestravam animadamente e pelos gestos parecia ser grave o assunto de que tratavam. Também os demais companheiros se achavam de pé. O persa estava sentado em frente à tenda e conversava com as duas mulheres; estas tinham as faces envoltas em densos véus.

— Emir, vou sepultar o papai. Vós me ajudareis no trabalho e participareis da cerimônia? — perguntou-me Amad el Ghandur.

— Sim. Onde deve ser ele sepultado?

— Este homem aqui me informou que lá em cima entre os rochedos há um lugar que o sol saúda pela manhã, ao surgir, e à noite, ao se-pôr no ocaso. Eu agora vou lá examinar o local.

— Acompanhar-te-ei — respondi-lhe.

Mal notara o persa que me levantara, acercou-se pressurosamente de mim a trazer-me a sua saudação matinal e ao saber que tencionávamos subir aos penedos, ofereceu-se para nos acompanhar. Encontramos no ápice da montanha um enorme rochedo e na sua chapada resolvemos erigir o túmulo de Maomé Emin. Ali perto estava a palhoça do soran e ao redor da mesma um descampado que se prestava maravilhosamente para nele acamparmos, tanto mais que o mesmo era banhado por uma vertente de água. Realizamos uma conferência em que ficou resolvido ficarmos ali e buscar os animais e todos os havêres nossos.

O transporte foi difícil, mas conseguimos afinal efetuá-lo. Enquanto os que sairam incólumes e os pouco feridos cuidavam da ereção do túmulo, os outros construíam uma palhoça com paredes de certa espessura, para separar as mulheres dos homens. Como os cavalos não suportam a exalação dos camelos, separamos aqueles destes.

 

AS CERIMÔNIAS FÚNEBRES

Ao meio dia o acampamento estava organizado. O persa possuía abundantes provisões de farinha, café, fumo e outras vitualhas indispensáveis. Carne poderíamos obtê-la facilmente, pois a região era abundante em caças. Desse modo, estávamos a coberto de sofrermos privações.

O túmulo só mais tarde é que ficou concluído. Em forma de cone, tinha a altura de oito pés e todo ele foi erigido de pedras. O sepultamento se deveria realizar à hora do Mogreb. O próprio Amad el Ghandur preparou o cadáver para o enterro, muito embora, segundo os ensinamentos de sua religião, ele se impurificasse com aquilo.

O sol aproximava-se do horizonte, quando o pequeno préstito fúnebre se movimentou. À frente ia Allo e o soran conduzindo o morto numa liteira improvisada com ramos de árvores; nós outros seguimo-los dois s dois e Amad esperava o cortejo junto do túmulo. A abertura do mesmo estava voltada para sudoeste exatamente na direção da Kibbla de Meca e quando nela se depositou o corpo do morto este ficou com as faces voltadas na direção do lugar em que o profeta dos muçulmanos recebeu a visita e a inspiração do anjo.

Amad el Ghandur mortalmente pálido acercou-se de mim e perguntou-me:

— Emir, és um cristão, não há dúvida; mas estiveste na cidade santa e conheces o livro sagrado. Queres prestar a tua derradeira homenagem ao teu amigo morto, pronunciando-lhe a sura fúnebre sobre o corpo?

— De boamente e também pronunciarei a sura do encerramento.

— Então demos início às cerimônias!

O sol desaparecia no poente e todos se prostraram a rezar o Mogreb (7) em religioso silêncio. Depois levantamo-nos, formando um semicírculo em torno do túmulo. Foi um momento cheio de unção. O morto se achava em posição sentada na sua derradeira morada. O sol lançava purpúreos raios sobre o seu pálido semblante e a forte aragem que soprava na montanha fazia tremer-lhe as nevacentas barbas. Amad el Ghandur postou-se na direção de Meca, ergueu suas mãos postas e orou:

“Em nome de Deus todo misericordioso! Graças e louvado seja Deus, o Senhor dos Mundos, que reinará no dia do Juízo. A Ti queremos servir, e para Ti queremos suplicar que nos conduzas ao verdadeiro caminho, ao caminho daqueles que se alegram com as tuas graças e não ao caminho daqueles que incorrem na tua cólera e nem ao caminho dos errantes!”

Agora também ergui eu como ele as mãos postas e pronunciei a setuagésima quinta sura do Koran, intitulada Ressurreição e assim concebida:

“Em nome de Deus todo Misericordioso! Juro pelo dia do Juízo Final, juro pelas almas dos que a si mesmos se acusam: pretende realmente o homem crer que um dia não lhe juntaremos os ossos? Em verdade lhos uniremos, mesmo o menor osso de suas falangetas; contudo o homem sempre está predisposto a renegar mesmo o que está diante dele. Ele pergunta: Quando chegará o dia da ressurreição? Quando os olhares lhe obscurecerem, a lua se apagar e fizer junção com o sol, então neste dia perguntará o homem: Onde há por aí um local para refúgio? Mas será em vão pois então já não mais haverá um local de salvação. Vós amais a vida que passa e não curais da vida futura. Algumas fisionomias se iluminarão neste dia a contemplar o seu Senhor; outras, porém, terão um aspeto triste, pois pesadas aflições cairão sobre elas. Seguramente! Esses homens verão suas almas subir, àquela hora, até a garganta e os circunstantes dirão: Quem lhes ministrará uma bebida mágica para a sua salvação? Então será chegada a hora da partida; colar-se-á membro por membro e eles serão conduzidos à presença do Supremo Juiz, porque

 

(7) Oração ao pôr do sol.

 

não creram e nem oraram. Por isso ai de ti, ai de ti! Mais uma vez, ai de ti, ai!

Pensa o homem que está em plena liberdade? Não constitui ele uma semente lançada na seara? Nesta base, formou-o Deus e dele fêz um homem. E Ele que assim o fêz não disporá de poder de despertar nele uma nova vida?”

Dirigi-me depois ao morto e orei:

“Allah il Allah! Ha um só Deus e nós todos somos seus filhos. Ele conduz-nos pela sua mão e nos conserva a todos à sua direita. Ele nos fêz irmãos e nos enviou para a terra, para servi-lo e para alegrá-lo na harmonia da sua graça e misericórdia. Ele nos faz crescer o corpo e desenvolver a alma até esta ansiar pelo céu. Depois manda Ele o anjo da morte livrá-la e conduzi-la para o alto, para a fonte em que se bebe a vida eterna. A alma então estará livre de dores e sofrimentos e não dará atenção aos que choram sobre os outeiros das sepulturas. Aqui jaz Hadji Maomé Emin Ben Abdul Mutaher es Seim Ibn Abu Merwen Baschar esch Schohanah, o valente xeque dos haddedins da tribo dos esc schammar. Foi um dileto de Alá; dos seus lábios jamais brotou a mentira e de suas mãos derramavam-se benefícios pela imensidade das cabanas em que habita a pobreza: era um herói nos campos de batalha; era amigo dos seus amigos; era temido pelos inimigos, e respeitado por todos quanto o conheciam. Por isso Alá não quis que ele morresse na penumbra de sua tenda, mas enviou o Abu Dschajah (8) a buscá-lo em pleno combate do lado dos guerreiros que o cercam no presente instante. Agora o seu pó volverá à terra. A sua fisionomia dirige-se para Meca, a áurea, mas a sua alma está diante do Onipotente a contemplar os esplendores, que olhos mortais não podem penetrar. Dele é a vida agora, e nosso o consolo de que um dia estaremos ao seu lado, quando Isa Ben Marryan (9) tiver de julgar os vivos e os mortos”.

Agora Allo e o soran se aproximaram a fechar o sepulcro. Eu já ia retomar a palavra, quando o persa me fêz um aceno e veio à frente e rezou algumas frases da octogésima segunda sura:

“Em nome de Deus todo Poderoso! Quando o céu se fender e as estrelas se dispersarem, os mares se confundirem e os túmulos se abrirem; então cada uma das almas saberá o que fêz e o que deixou de fazer. Assim é e no entanto renegam o dia do juízo final. Mas sobre vós estão postados guardas que tudo anotam e tudo vêem o que fazeis. Os justos auferirão os gozos e doçuras do paraíso; os maus, porém, os tormentos do inferno. Neste dia nem uma alma dominará a outra por que o único poder será o que emana de Deus!”

Neste ínterim foi entaipado o nicho que guardava o cadáver e chegara, pois, o momento da oração final. Desta também eu me encarregara, mas Halef adiantou-se. Os olhos do bravo e pequeno Hadji se debulhavam de lágrimas e sua voz tornou-se trêmula ao dizer:

— Quero orar!

Ajoelhou-se de mãos postas e orou:

“Vós ouvistes que todos somos irmãos e que Alá nos reunirá a todos no dia do Juízo final. Lá no ocaso desapareceu o sol e amanhã ele ressurgirá com todo o seu esplendor; assim também nós ressurgiremos lá em cima depois que aqui

 

(8) Anjo da morte.

(9) Jesus.

 

morrermos. Oh! Alá, fazei que pertençamos ao rol dos homens que se tornaram dignos da tua graça e não nos separeis então daqueles a quem amamos neste mundo. És onipotente e podes atender a esta minha súplica!”

Enterros como aquele são raros. Um cristão, dois sunitas e um chiita oraram sobre a sepultura do morto, sem que Maomé fizesse cair um raio!... No que se refere a mim, creio não haver cometido pecado algum, despedindo-me do amigo morto no idioma falado por ele em vida; a contribuição do persa, porém, constituía uma prova de que ele ultrapassara a mentalidade dos muçulmanos. A Halef estive quase que a abraçar, por sua oração curta e reveladora de sua grandeza d’alma. Eu de há muito que o sabia: sem que ele próprio o soubesse, era apenas exteriormente um muçulmano, mas o seu íntimo já se havia convertido ao cristianismo.

 

EM BUSCA DA VINGANÇA

Dispusemo-nos a deixar o túmulo. De repente, Amad el Ghandur saca do punhal e com ele quebra uma lasca de uma das pedras do sepulcro e a coloca no bolso. Eu sabia o que significava aquilo e estava certo de que agora, sim, não havia criatura humana capaz de demovê-lo do desejo de vingança que lhe dominava todo o ser. No decorrer da noite ele não tomou alimento algum e tampouco bebeu coisa alguma. Não participou nem com uma sílaba de nossas palestras e nem comigo mostrou desejo de sustentar a mais lacônica conversa. Apenas a uma única observação respondeu-me o jovem haddedin:

— Tu sabes, — dissera-lhe eu — que Maomé Emin recebera a devolução do garanhão preto. Agora o soberbo animal pertence a ti.

— Portanto assiste-me o direito de presenteá-lo?

— Sem dúvida

— Então te ofereço como dádiva.

— Não o aceito.

— Pois obrigar-te-ei a aceitá-lo.

— De que forma?

— Verás em tempo. Leikum saaide! — Boa noite.

Afastou-se e me deixou parado no lugar. Convenci-me de que agora chegara o instante de redobrar a vigilância em que o vinha mantendo. Mas infelizmente, aconteceu diferentemente do que eu tencionava. O persa se achava por trás da parede de arbustos com sua gente e eu, Halef e o inglês nos achávamos no arroio refrescando nossos ferimentos que ardiam. A morte de Maomé comovera-nos mais do que mostrávamos um ao outro. À ardência, com que o sangue me borbulhava nas veias, seguia-se um estremecimento em todo corpo, seguido de dores como se me estivessem a alfinetar. Era o indício da febre proveniente do ferimento.

Passei mal a noite mas a minha robustez orgânica me pôs a salvo de um ataque febril propriamente dito. Era como se eu sentisse o sangue circular-me gota a gota pelas veias; meio acordado, tneio dormindo, meio delirando, andava eu de um lado para outro; falava com toda sorte de gente que a minha imaginação criava; contudo eu sabia que tudo eram fantasias e só pela manhã ferrei no sono do qual só despertei... à noitinha. A mesma fragrância fazia-se sentir, mas em lugar das duas lindas figuras femininas, deparei-me com o nariz d’Alepo do inglês.

— Acordou-se, afinal? — perguntou Lindsay.

— Penso que sim. Que! Lá já vai o sol desaparecendo no poente? Já é quase noite!

— Esteja satisfeito, mister! As damas se encarregaram novamente do seu tratamento. Mandaram gotas para a ferida. Halef as aplicou. Depois veio uma delas em pessoa e derramou um líquido por entre a fileira de dentes do senhor. Não se tratava de cerveja “Porter”, penso eu.

— Qual delas foi?

— Uma delas. A outra ficou na palhoça. Mas também podia ser a outra e a primeira ficou na palhoça. Não sei !

— Que complicação, mister Lindsay! Eu pergunto se foi a de olhos negros ou a de olhos azuis que veio cá?

— Não vi olho algum. O órgão visual destas mulheres está metido dentro de um envólucro como se fossem encomendas postais. Mas deve ter sido a de olhos azuis.

— Por que supõe fosse ela?

— Porque o senhor se acordou de olhos azuis. Além disso, ao que parece, está muito disposto, está passando às maravilhas, o que na Inglaterra se diz “Ouro sobre azul”. Yes!

— Tem razão, mister. Sinto-me muito disposto e forte.

— Creio. O mesmo sucede comigo. As gotas me fizeram um bem extraordinário à ferida, de modo que ela já não dói mais. Excelente mistura aquela! Quer comer?

— Tem o senhor aí alguma cousa? Estou realmente com uma fome canina.

— Aqui tem. Foi a de olhos azuis que mandou. Ou também pode ter sido a de olhos negros. Não sei! Yes!

Ao meu lado havia uma tabah (10) de prata com carne fria, pão e uma variedade de mazih (11). Perto da bandeja estava um tschidan (12) que em vez de chá continha um suculento caldo de carne ainda quente.

— As ladies, parece, sabiam que eu me acordaria antes do caldo esfriar — disse eu.

— Este bule, desde o meio-dia, que está à sua espera. Assim que ele esfriava vinha a velha serva buscá-lo para aquentar. O senhor, ao que parece, caiu nas boas graças daquelas mulheres.

Só agora é que examinei melhor em torno de mim. Não muito longe jazia Halef a dormir. Além dele e o inglês, eu não via pessoa alguma pelas imediações.

— Onde está o persa? — perguntei.

— Com as mulheres. Saiu pela manhã e caçou um cabrito montes. Este caldo que o senhor está tomando é feito da carne do cabrito.

— Mais apetitoso se torna ainda este caldo, quando a gente se lembra que foi preparado por aquelas mãozinhas.

— Não se afobe! Pense, antes, que ele foi preparado pela velha serva! Yes!

 

(10) Bandeja.

(11) Guloseima.

(12) Caçarola para chá.

 

— Onde está Amad el Ghandur?

— Saiu hoje bem cedo a dar um passeiozinho.

Ergui-me de um vertiginoso salto e exclamei:

— Foi-se embora, o louco!

— E acompanhado do carvoeiro e mais o soran. Yes!

Ah! eu agora compreendi a razão de haver ele dito que o próprio Alá lhe proporcionara ensejo de vingar a morte do pai. O soran, um inimigo mortal dos bebbehs, servir-lhe-ia de intérprete na jornada em perseguição ao inimigo. Contudo era de se ter pena do pobre haddedin. Sair-lhe ao encalço, a fim de obrigá-lo a retroceder, era cousa que já não podia ser mais objeto de cogitações. Primeiramente o seu avanço era demasiadamente grande, para se ter esperança de alcançá-lo; em segundo lugar, o meu estado de saúde, à vista dos ferimentos, exigia uma breve estação de cura e, em terceiro, não devíamos tornar-nos assassinos, por causa de uma vingança de sangue alimentada por outrem.

— Foi ele no garanhão? — perguntei.

— O garanhão? Este está aqui — respondeu Lindsay.

Mais esta! Daquele modo obrigava-me Amad el Ghandur aceitar o presente que me oferecera! Verdadeiramente, no primeiro instante eu não sabia se me encolerizaria ou alegraria. Ademais disso, o desaparecimento de Amad constituía um acontecimento diante do qual eu não me podia manter com indiferença. Foi preciso um brutal esforço íntimo para tranquilizar-me até certo ponto.

— Então também Allo se foi embora? — inquiri. — E como liquidaram a questão do seu salário?

— Desistiu. Incomoda-me isso! Não gosto de receber nada de presente de um carvoeiro.

— Console-se, mister Lindsay! Ele está de posse de um cavalo e de uma espingarda. Com isso ele ficou regiamente pago. Ademais, sabe lá qual a oferta que não lhe fêz o haddedin. Quanto tempo já dorme Halef?

— Tanto quanto o senhor.

— Que miraculoso remédio o que nos aplicaram as persas! Mas antes de tudo, quero comer alguma coisa.

 

O NOVO ROTEIRO

Mal havia eu começado a comer, quando fui interrompido. Hassan Ardschir-Mirza veio ter comigo. Quis levantar-me mas ele delicadamente mo impediu de fazer.

— Fica sentado, emir, e come! Isto é o mais necessário. Como te sentes?

— Muito bem, obrigado.

— Eu sabia. A febre não voltará. Agora vou transmitir-te um recado. Amad el Ghandur veio falar comigo. Contou-me muita coisa a teu respeito, de modo que te conheço agora tão bem como ele. Ele saiu ao encalço dos bebbehs e manda pedir-te desculpas, desejando que vós não o acompanheis. Espera ele encontrar-vos mais tarde nos campos de pastagens dos haddedins. Era este o recado que eu tinha a transmitir-te.

— Muito obrigado, Hassan Ardschir-Mirza! A sua partida aflige-me. Mas outro meio não me resta, senão deixá-lo entregue ao seu destino.

— E agora para onde pretendeis dirigir-vos?

— Isto será ainda objeto de deliberação. Este meu amigo e servo Hadji Halef Omar precisa tornar aos haddedins, pois lá se encontra sua mulher. Também lá se encontram dois servos deste emir de Inglistão. Mas é bem possível que antes disso dirijamos nossa jornada para Bagdad. Naquela cidade tem o meu amigo inglês um navio, no qual poderemos nos transportar, através do Tigre, até os campos de pastagens dos haddedins.

— Então resolve, emir! No caso de seguirdes para Bagdad, peço-vos de não me abandonardes. Sois guerreiros valentes; a vós devemos todos a vida e eu desejaria muito mostrar-te o quanto vim a estimar-te. Aqui permaneceremos até podermos, sem perigo para a tua saúde, reencetar a jornada. Por enquanto come! Vou mandar-vos mais alimentos, pois sois meus hóspedes. Deus esteja convosco!

O persa retirou-se e em breve chegou a velha serva com mais duas bandejas de alimentos.

— Aceita! O meu Senhor te manda! — declarou ela.

— Tendes fogo na palhoça? — informei-me.

— Temos e também uma djagard (13), sobre a qual cozinhamos rapidamente.

— Maderka (14) nós vos estamos dando muito trabalho! — disse-lhe eu.

— Oh não, emir! A casa alegra-se em ter hóspede. O Senhor contou à casa quem vós sois e sereis tratados pela casa como se o Senhor dela o fosse! Mas não me chama de Maderka! Eu ainda sou uma duschireh (15) e tratam-me de Alwah e às vezes também de Halwa.

Dito o que, ela foi saindo. Interessante! Estava eu fadado a realizar nesta jornada estudos antropo-botânicos? Ainda há pouco tempo uma “salsa” ern Schohord e agora já uma Alwah que também de quando em vez era chamada de Halwa! Ambas as palavras compõem-se das mesmas letras mas são de diferente significado. Alwah é em persa tanto quanto aloés e halwa é a nossa apreciadíssima flor vermelha e aveludada do amaranto.

Mas aquela donzela envelhecida assemelhava-se mais ao hirsuto aloés do que à linda e mimosa flor do amaranto.

Achava-se ela trajada com compridas bragas amarradas ao tornozelo e uns chinelos de feltro cobriam-lhe os pés. Por cima da braga um colete marrom e uma espécie de albornós côr de castanha. À cabeça trazia um turbante, ao qual se achava preso o véu; mostrava à nuca uma considerável calvície e na fisionomia apenas os dois olhos de coruja desenhados pela junção das duas pontas do véu. Contudo aquela Flor de Amaranto ou Aloés parecia ser uma boa alma e eu resolvi acamaradar-me o mais possível com ela.

Ela trouxera as bandejas em tempo, pois apenas se retirara, Halef começou a bocejar e por fim abriu os olhos. Olhou admirado em redor de si, soergueu-se e exclamou:

— Machallah! Lá já está o sol! Fui eu ou ele que se virou?

 

(13) Tripé.

(14) Mãezinha.

(15) Virgem.

 

Com ele deu-se a mesma coisa do que comigo: não podia imaginar haver dormido por tanto tempo e a sua surpresa aumentou mais ao saber que Amad el Ghandur não se achava mais em nossa companhia.

— Foi-se? Mas foi-se daqui de fato? — perguntou ele. — Sem se despedir? Por Alá que não procedeu bem! E que faremos agora? Agora não precisas voltar para o campo de pastagens do haddedins.

— Eu penso o contrário, pois não te hei de abandonar, sem saber que tornaste ao xeque Melek e te reuniste a Hanneh, tua mulher!

— Sidi, esses dois estão muito bem guardados e poderão esperar até a minha volta. Amo Hanneh, mas não arredarei o pé de ti, antes de regressares para o país em que moram teus pais.

— Não posso exigir tamanho sacrifício de tua parte.

— Não de minha parte, mas da tua é que é sacrifício conservar-te ao meu lado até eu voltar, sidi. Resolve sobre o novo itinerário. Eu te acompanharei fielmente, desde que não pratiques a crueldade de me escorraçares de ti!

Os persas trouxeram naquele instante abundante provisão de peixes pescados no arroio e que serviriam para o nosso jantar. Não participei deste, visto já haver me alimentado e subi à montanha para assistir do túmulo do haddedin ao pôr do sol.

Aquele monumento feito com penedos fêz-me lembrar o que erigimos ao Pir Kamek no vale do Idiz. Nunca imaginávamos, quando foi do enterramento do santo dos dschesidis, que Maomé Emin iria encontrar sua derradeira morada nas longínquas montanhas curdas! Lúgubre e triste era o meu estado d’alma naquele momento. Eu sentia um vazio tal em mim, que se me afigurava haver-se apagado uma parte do meu sêr, com a morte daquele amigo. E no entanto nunca se deve entristecer quando se encontra a sepultura de uma pessoa de bem; a morte é a mensageira de Deus, enviada para nos conduzir às alturas iluminadas onde o Salvador dizia aos apóstolos: “Na casa do meu pai há muitas moradas e para lá. vou eu para preparar-vos um lugar”. A vida é uma luta; vive-se para lutar e morre-se para vencer. Daí a prevenção do apóstolo: Luta a boa luta da Fé e aproveita a vida para o fim a que fôste chamado!

O sol beijava o horizonte, e os seus raios moribundos tingiam-no de luzes candentes que se perdiam para o oeste cada vez mais desbotadas. Os outeiros relvosos situados em baixo da montanha assemelhavam-se à vastidão de um verde mar em cujas ondas o crepúsculo vespertino cada vez mais espalhava as suas sombras. Apenas sobre o espigão da serra situada ali perto notava-se o sopro da brisa a balouçar levemente os ramos das árvores. As sombras cada vez se tornavam mais densas; o horizonte sumia-se; a luz apagava-se e por fim o manto da noite desceu sobre toda a região. Oh! se a gente pudesse seguir junto com o sol! Seguir o sol para além do oeste onde ele naquele instante enviava luz e calor à minha pátria querida! Agora aqui na montanha a nostalgia apoderou-se-me do coração, nostalgia que em terras estranhas ninguém, em cujo peito bata um coração pleno de sentimento, dela se pode livrar. Ubi bene ibi patria é um adágio, que nem sempre se confirma na prática. As impressões da juventude nunca se nos apagam de um todo; a recordação pode adormecer, porém jamais morrer. Quando menos o pensamos, ela desperta e nos causa uma tal saudade, capaz de enfermar todo o ser sentimental da gente. Lembrei-me naquele momento das sentimentais estrofes do poeta teuto-norte-americano:

Oh! terra dos meus pais! Quão longe de ser minha estás!...

O santo solo teu a nenhum se parece

e na minha alma tu jamais te apagarás!...

 

Mesmo quando da vida o vínculo amoroso

a ti não me ligasse, os teus mortos, oh! terra,

os mortos, que, a dormir, repousam no teu chão,

me uniriam a ti, pátria do coração!...

 

Fazendo uma volta, regressei ao acampamento, onde todos já dormiam,. Não obstante a tardia hora da noite, estive por muito tempo deitado sobre o cobertor sem conseguir adormecer. Já se ouviam alguns trinados de passarinho, quando finalmente conciliei o sono. Acordei-me ao meio dia e fui informado por Halef que o inglês saíra com o persa em caçadas de galinhas silvestres. Haviam levado Dojan junto. As feridas do bravo Hadji Halef Omar eram mais dolorosas que as minhas, mas a persa trouxera-lhe pela manhã as gotas que não deixaram de produzir os seus efeitos..

— Quanto tempo ficaremos aqui? — perguntou-me o fiel servo.

— Tanto tempo quanto necessário para que nossas feridas não nos acarretem maiores perigos. Que comeste?

— Uma porção de coisa que nem conheço. Essas persas conhecem às maravilhas a arte culinária. Que Alá as conserve conosco durante todo tempo em que delas necessitarmos! O Mirza me disse que logo que tu acordasses, eu o fosse chamar, bastando para isso aproximar-me da parede da palhoça e bater palmas.

— Faze-o então Halef!

Minutos após haver Halef dado o sinal convencionado junto da tenda, apareceu-me a “Flor de Amaranto” com um znabilik (16) e uma kaweh-dan (17). No primeiro havia pão fresco com fatias de carne fria e na última fumegava a deliciosa bebida, cuja imitação feita com chicórea, na Saxônia, tem o nome de “café de florzinhas”.

— Como te sentes, emir? — perguntou-me a serva. — Descansaste hoje outra vez bastante, graças a Alá!

— Estou bem disposto e sinto fome, cara Flor de Amaranto.

— Aí trago-te tudo; come e bebe para que teus dias jamais se acabem!

— Obrigado; dá lembranças minhas à “casa”!

— Não é hábito, aliás, entre nós mandar-se lembranças; contudo as transmitirei, pois és amigo e irmão do Senhor.

Ela retirou-se e eu me pus a comer. No fundo do cesto encontrei para sobremesa excelentes passas de uvas, helwa (18) e gridgan, (19) que despertaram o desejo do meu Halef. Vi que ele se dispunha a fazer uma observação, mas no instante chegava Halwa com uma segunda vazilha.

 

(16) Cestinho.

(17) Cafeteira.

(18) Nata batida.  

(19) Avelãs.

 

— Emir, — disse ela — aqui te manda a nossa “casa” mais um alimento que é muito bom para acabar com a febre. Permite que depois eu venha buscar o vazilhame!

Ao se retirar a serva, examinei o conteúdo do pote e para surpresa minha verifiquei tratar-se de peras cozidas em calda. Agora sim, Halef não se conteve mais.

— Allah il Allah! — exclamou ele. — louvado seja Deus que promove a vegetação de frutos deliciosos e criou amáveis mulheres que tudo sabem preparar com perícia! Sídi, aquelas persas te são muito afeiçoadas, do contrário não te mandariam servir tão deliciosos quitutes. Casa com a solteira para que esta seja obrigada a cozinhar para ti agora e por toda a eternidade!

— Halef, levanta-te, senão de tão entusiasmado pela tua proposta, esqueço-me de dividir contigo esta guloseima.

O homenzinho estendeu ambos os braços em sinal negativo, posto que estivesse com água na boca.

— Que Alá me guarde do pecado; jamais te privarei do sabor que te causará esse doce. Eu sou um pobre Ben el Aaarab e tu um grande Emir de Nemsistão. Eu posso esperar até que um dia as huris me sirvam, no paraíso, esses deliciosos manjares!

— Mas isso ainda leva muito tempo, Halef. Vamos dividir!

— Sídi, a tua tentação está quase a superar as minhas forças. Não comi ainda nenhum manjar genuinamente persa.

— Senta-te aqui! Eu me alimentarei do café, do pão e da carne e tu comerás as peras e as outras frutas.

— Mas foram preparadas especialmente para ti, efêndi!

— Penso que és meu servo, Halef!

— E o servo mais fiel que possa haver!

— Então obedece, se não me queres encolerizar!

— Se me dás a ordem num tom de tal severidade, nada mais me resta senão obedecer-te!

A sua obediência foi tão ávida que as peras em calda em poucos segundos desapareciam entre os seus enormes bigodes. Eu sabia que o meu pequeno Halef era até certo ponto um tanto guloso; com aquela ninharia eu iria proporcionar-lhe um grande prazer.

Algum tempo depois voltaram os dois caçadores trazendo caças em abundância. O persa saudou-me com sincera alegria e depois se encaminhou para a tenda das mulheres, levando as galinhas abatidas. O inglês abancou-se ao meu lado.

— Como? Agora é que se levantou? Vejo pelo café que toma! — começou ele a palestra.

— Realmente, dormi outra vez muito.

— Well! Vivemos como no país dos Schlarafes. Quanto tempo durará ainda esta boa vida?

— Pelo menos durante o tempo em que estivermos aqui.

— Witty ingenious! E depois para onde iremos?

— Acompanha-nos a Bagdad?

— Concordo com o itinerário. Estou ansioso por sair dessas montanhas. E de Bagdad?

— Depois veremos. Não é certo ainda se meu objetivo será Bagdad. Apenas citei de passagem aquele roteiro.

— Indiferente. O principal é sair daqui de uma vez por todas.

 

A ODISSÉIA DE UM ARISTOCRATA PERSA

Nesse comenos chegou a “Aloés” a fim de entregar ao criado do Mirza as galinhas silvestres para depená-las. Por trás dela vinha o seu Senhor, que, depois de me chamar com um aceno, deixou lentamente o acampamento. Segui-o. Á sombra de duas árvores, abancou-se ele no musgo e me fez um sinal para eu tomar lugar ao seu lado. Depois de me haver sentado, deu ele início á palestra.

— Emir, tenho confiança em ti; ouve-me, pois: Eu sou um perseguido. Não me perguntas quem era meu pai. Este morreu repentinamente, fulminado por uma morte assaz violenta. Os seus amigos murmuravam haver sido ele assassinado porque estorvava alguém. Eu, porém, seu filho, vinguei-lhe a morte e fui obrigado a fugir. Antes porém, carreguei tudo o que de valores me era possível salvar em camelos e confiei a um súdito de confiança para conduzir através das fronteiras do império persa. Depois o seguimos por outro caminho. Eu sabia muito bem que seríamos perseguidos e por isso para confundir e despistar os perseguidores tomei o roteiro pelo Kurdistão bravio. Bem, responde-me agora, Emir se estás disposto a acompanhar-me enquanto forem nossos caminhos os mesmos; mas reflete: eu sou um fugitivo.

Dito o que, conservou-se em silêncio e eu respondi resolutamente:

— Hassan Ardschir-Mirza (20) eu te acompanharei enquanto possa ser útil a ti e aos teus.

O homem estendeu a mão e disse:

— Oh! quanto te sou grato, Emir! E os teus companheiros?

— Vão para onde eu fôr. Permite que pergunte pela meta da tua jornada?

— Hadramaut

Hadramaut! Aquela palavra eletrizou-me. A Hadramaut perigosa e inexplorada! Como por encanto desaparecera-me todo o cansaço e mau humor que me sobreviera aos acontecimentos desses últimos dias. Perguntei com viva tonalidade de voz:

— Estás sendo esperado lá?

— Estou. Mora lá um amigo meu ao qual mandei avisar por um emissário a minha próxima chegada.

— E posso acompanhar-te a Hadramaut? — perguntei.

— Tão longe, emir? É um sacrifício que eu não posso exigir do meu melhor amigo.

— Não é sacrifício, não! Acompanhar-te-ei até lá prazerosamente desde que não te seja inconveniente.

 

(20) Mirza literalmente é: filho de um Senhor. — Anteposto ao nome é um título honorífico e posposto significa: — príncipe.

 

— Sê bem-vindo então, Senhor! Ficarás nosso hóspede durante o tempo que quiseres. Mas devo dizer-te que antes de ir a Hadramaut, visitarei Kerbela.

— Kerbela? Ah! estamos em fins do mês de Dsu ‘l hedsche e começará breve o de Muharren. A dez deste último mês realizam-se as grandes festas dos peregrinos em Kerbela.

— Exatamente. As Hsdsch el manijat (21) já se acham em caminho e eu também me dirijo a Kerbela a fim de sepultar meu pai na cidade dos sofrimentos de Hossein. Como vês, não te será de forma alguma possível acompanhar-nos até lá!

— Impossível por quê? Porque sou cristão e por isso não devo ir a Kerbela? Pois estive em Meca, não obstante a entrada naquela cidade só ser permitida a muçulmanos.

— Hão de estraçalhar-te, se lá fores reconhecido!

— Em Meca me reconheceram também e no entanto não me estraçalharam.

— Emir, és um homem arrojado! Estou certo de que meu pai descansa nas mãos de Alá, quer seja sepultado em Teheran ou Kerbela. Jamais eu peregrinaria a Kerbela, Nedschef (22) e Meca, pois Maomé, Ali, Hassan e Hossein foram também homens como qualquer de nós; mas desejo cumprir a última vontade do meu pai de ser sepultado em Kerbela e por esta razão é que me unirei à caravana da morte. Se pretenderes conservar-te ao meu lado não serei eu que te vá denunciar; a minha casa silenciará também a respeito; mas os meus servos não esposam a minha opinião a respeito dos ensinamentos do profeta; eles serão os primeiros a matar-te.

— Deixa isso aos meus cuidados. Onde te encontrarás com os teus camelos?

— Conheces Ghadhim em Bagdad?

— A cidade dos cavalos? Conheço; fica situada à margem direita do Tigre e defronte a Madhim; está ligada a Bagdad por meio de uma estrada.

— Pois lá me esperam os meus tocadores de camelos, os mesmos que conduzem o corpo de meu pai.

— Pois te acompanharei, primeiramente, até ali e o resto combinaremos depois. Mas em Ghadhim estás em segurança?

— Penso que sim. Serei perseguido, é verdade, mas o paxá de Bagdad não me entregará aos perseguidores.

— Não te fies em nenhum turco, não te fies também em nenhum persa! Fôste tão precavido em tomar caminho através do Curdistão; e supor que pretendes agora desistir dessa sábia prudência. Podes atingir Kerbela, mesmo não te unindo à caravana da morte.

— Como? Não conheço outro caminho.

— Eu te guiarei.

— Conheces a estrada?

— Não, mas a encontrarei. Alá me concedeu o dom de achar localidades em que nunca estive, sem o auxílio de guia.

— Mas mesmo assim é impossível, emir. Eu preciso ir a Ghadhim, onde minha gente está à minha espera.

— Então vai secretamente, evitando Bagdad e a caravana da morte!

 

 (21) Caravanas fúnebres.

(22) Nessa cidade está sepultado o califa Ali.

 

— Senhor, não sou covarde!

— Bom, também tu és arrojado! Isso me alegra, pois servimos um para o outro e juntos viajaremos.

— Concordo, emir, mas com uma condição. Sou rico, muito rico mesmo; exijo que tudo de que careceres na jornada seja por mim fornecido gratuitamente!

— Neste caso a minha situação para contigo será a do servo que percebe salários.

— Não; és meu hóspede, meu irmão, cuja estima me permite ter esses cuidados contigo. Juro por Alá que não cavalgarei na tua companhia se não aceitares esta condição que imponho!

— Com este juramento, obrigas-me a ceder ao teu desejo. És muito bondoso e confiante em mim, não obstante não me conheceres.

— Achas que não te conheço? Não nos salvaste das mãos dos bebbehs? Não me falou Amad el Ghandur a teu respeito? Ficaremos juntos e pelo pouco que eu te oferecer, receberei de ti tesouros que até agora em vão tenho procurado: tesouros espirituais. Emir, não sou um persa vulgar, mas não me posso comparar a ti. Sei que em tua pátria um menino possui maior cabedal de conhecimentos do que, entre nós, um homem maduro, bem como que nadais em bens cujos nomes nem sequer nós conhecemos. Dêem-nos boas mães e os nossos filhos não tardarão em não temer cotejo com os vossos. O coração de mãe é o solo em que se fixam as raízes do espírito da criança. Oh! Maomé, quanto te odeio, pois tiraste a alma às nossas mulheres e as convertestes em escravas e com isso quebrantaste-nos as forças, empederniste-nos o coração, desolaste-nos os solos e ludibriaste todos que te seguem!

Ele se erguera e proferia o exórdio acusativo a Maomé em voz alta. A sorte é que ninguém de sua gente podia ouvi-lo! Só depois de uma pausa, é que se dirigiu novamente a mim, voltando ao assunto anterior.

— Conheces o caminho que conduz daqui a Bagdad?

— Nunca o cavalguei, mas tenho certeza de não o errar. Podemos tomar duas direções: a primeira conduz para as montanhas de Hamrin, ao sudoeste e a outra ao longo do rio Djalah até Ghadhiro.

— A que distância achas que fica Ghadhim daqui?

 

CONCERTANDO DEFINITIVAMENTE O ROTEIRO

— Pelo primeiro caminho chegaremos em cinco dias, e pelo segundo, em seis.

— E esses caminhos atravessam por zonas populosas?

— Atravessam e é exatamente por isso que eu os considero os melhores.

— Há então outros caminhos?

— Há, sim; mas por eles seremos obrigados a cavalgar por trechos em que perambulam os beduínos salteadores...

— De que tribo são estes?

— São na sua maioria dscherdoas, cujas fronteiras são também de quando em quando atravessadas por tropas da tribo de Beni Lam.

— Temes a estas?

— Temê-las? Não! A prudência, porém, manda que entre vários caminhos, se escolha o menos perigoso. Tenho comigo um passe do Grão Senhor e este no Djalah e também ao oeste deste rio será acatado.

— E não obstante, eu desejaria tomar estradas desertas, visto que sou um fugitivo. Já tão próximo da fronteira persa, não desejaria eu ser alcançado pelos meus perseguidores.

— Talvez que o teu ponto de vista seja o verdadeiro; mas leva em conta que a estrada através das estepes, onde a vegetação feneceu à ação da soalheira causticante por que atravessamos, torna-se bastante penosa para as mulheres.

— Estas não temem nem fome nem sede, nem calor e nem geadas; elas só temem uma coisa: que eu seja capturado. Tenho odres que comportam água para o nosso abastecimento durante oito dias e estou provido de vitualhas para o mesmo tempo.

— E podes te fiar na tua gente?

— Em absoluto, emir.

— Bom, cavalgaremos então através do território dos dscherboas; Alá nos há de proteger. Ademais disso, assim que alcançarmos a planície, avançaremos com rapidez, ao passo que os teus camelos só vencerão este terreno cheio de outeiros com muita dificuldade. Estamos portanto combinados e esperaremos apenas que nossas feridas permitam que empreendamos viagem.

— Peço-te que me atendas num pedido! — disse ele com timidez. — Ao empreender jornada supri-me de tudo que era necessário. Em longas viagens as vestes se gastam e como eu soubesse que no trajeto até Hadramaut não encontraria bons bazares, trouxe comigo uma boa provisão de trajes. A vossa indumentária não é mais digna dos cavalheiros que sois; peço-vos por isto que vos suprais do vestuário de que careceis naquela minha provisão!

Aquela proposta eu a recebi com um misto de contentamento e de preocupação. Hassan Ardschir-Mirza tinha razão; nós os três não nos podíamos deixar avistar em localidade civilizada alguma sem que fôssemos tomados por vagabundos autênticos. Mas eu sabia também que o inglês não aceitaria nada de graça e para mim constituía mesmo uma questão de honra não prevalecer-me da amizade do persa, assim logo no primeiro dia. De resto era-me indiferente apresentar-me com trajes árabes. Um legítimo beduíno afere da qualidade do homem pelo cavalo que este monta e em tal sentido eu sabia muito bem que causava inveja a todos que me vissem cavalgar. Na pior das perspectivas, poderia suceder que um filho do deserto me tomasse por um ladrão de cavalo, o que no seu ponto de vista, constituía, aliás, mais um motivo de honra do que de vergonha. Por isso respondi ao Mirza:

— Muito obrigado! Sei quanto és bem intencionado conosco, mas peço-te falar-me nesse assunto só depois que chegarmos a Ghadhim. Para os dscherboas os nossos trajos são mais do que decentes e hão de resistir ainda até as proximidades de Bagdad. Acho que...

Sustive a frase, pois partceu-me haver percebido um rumor por trás de umas amoreiras que se erguiam por entre os carvalhos.

— Não tenhas cuidado, emir, que não foi nada; foi um animal simplesmente, talvez algum pássaro, um tscbelpiseh (23) ou mair-mar (24), — tranquilizou-me o Mirza.

— Estudei toda sorte de rumor nas matas — redargüi-lhe — e aquele não foi de animal nenhum, mas de gente.

 

TRAIÇÃO DE UM SERVO

De um salto cheguei por trás do rufo e segurei um homem que se dispunha a fugir. Era um dos servos da persa.

— Que fazes aqui? — perguntei-lhe.

Não me respondeu.

— Fala, pois do contrário te desprenderei a língua da abóbada palatina!

Abriu os lábios então, mas apenas gaguejou desarticuladamente. Aproximou-se então o Mirza que, ao avistar o homem, exclamou:

— Saduk ists? Ele não te pode responder, porque é mudo.

— Mas que perdeu ele ali por trás do grupo de amoreiras?

— Ele me dirá; eu o compreendo.

Dirigindo-se ao servo, perguntou o Mirza:

— Saduk, que estás a fazer aqui?

O interrogado abriu as mãos onde havia algumas folhas e bagas de zimbro e tentou por meio de gestos tornar-se compreensível.

— De onde vieste?

Saduk apontou para a retaguarda na direção do acampamento.

— E sabias que nos encontrávamos aqui?

O servo sacudiu a cabeça negativamente.

— Ouviste o que estivemos a falar?

Seguiu-se o mesmo sinal.

— Bom, podes ir, mas não tornes a nos interromper.

Saduk retirou-se e o seu amo declarou-me:

— Ele foi encarregado por Allwah de colher temperos necessários ao preparo das galinhas que abati. O acaso é que o trouxe às nossas imediações.

— E esteve a nos espiar — atalhei-o.

— Tu viste que ele negou esta circunstância.

— Não o acredito.

— Oh! é um servo fiel, o Saduk!

— Sua fisionomia não me agrada. O homem portador de um queixo quebrado em ângulo, em geral, é falso. Pode ser um preconceito, mas até aqui todas as minhas observações nesse sentido se confirmaram. Ele já nasceu mudo?

— Não nasceu, não.

— Como perdeu então a fala?

O Mirza hesitou em responder. Por fim esclareceu:

— O homem não tem mais língua.

 

(23) Lagarto.

(24) Espécie de víbora.

 

— Ah! E antes tinha ele a faculdade de falar? Cortaram-lhe então a língua?

— Infelizmente, sim — respondeu o Mirza com reservas.

Lembrei-me no instante, cheio de pavor, do costume, felizmente hoje raríssimo, de se castigar uma pessoa que cometeu alguma falta ou crime por meio de palavras, cortando-lhe a língua. Essa desumanidade era praticada especialmente no Oriente e nos Estados escravagistas dos Estados Unidos da América do Norte.

— Hassan Ardschir-Mirza, vejo que não gostas de falar sobre tal assunto; mas aquele Saduk não me agrada; jamais eu poderia confiar nele e o fato de haver escutado a nossa conversa desperta-me cá algumas suspeitas. Não sou curioso, mas quando me encontro em situações de perigo, costumo observar mesmo as coisas mais insignificantes e indiferentes. Peço-te, por isso, que me contes a maneira como aquele homem foi perder a sua língua!

— Já o tenho submetido a constantes provas, emir; ele é fiel e sincera Contudo saberás já o que levou meu pai a castigá-lo daquela forma.

— Teu pai? Ah! é importante o relato!

— Enganas-te, emir. Aquele Saduk foi em sua mocidade kmankasch (25) do meu falecido pai e como tal cabia-lhe transmitir as suas ordens, mensagens, etc. Nesse caráter visitava ele freqüentemente a casa do Muschtahed (26) e veio a conhecer a filha deste. Agradou-se dela e ele era um rapaz bonito. Um dia quando a moça se achava ocupada em regar as flores do jardim, ele saltou o muro e foi declarar-lhe o seu amor. O muschtahed se achava nas proximidades e mandou prendê-lo. Em consideração ao meu pai, não foi Saduk entregue ao tribunal, que o condenaria fatalmente à morte; mas ele pecara com a língua e o muschtahed fêz pressão sobre o meu pai, obrigando-o a mandar cortar a língua do seu transmissor de recados. Para este fim foi chamado o maitchunigar (27) que era ao mesmo tempo um celebrado médico.

— Mas o castigo era ainda mais cruel do que a morte. Saduk desde então continuou com o teu pai?

— Continuou, sim. Ele suportou as dores com resignação, pois tinha um caráter forte. Mas a maldição pareceu ter-se seguido àquele ato.

— Como assim?

— O muschtahed morreu envenenado; o médico apareceu um dia assassinado diante da porta de sua farmácia; e a moça morreu afogada em conseqüência de ter virado o barco em que ela viajava, à uma colisão sofrida com a de um homem embuçado que navegava em sentido contrário.

— Singular tudo isso! E os três assassinos nunca foram descobertos?

— Não. Já sei o que julgas, emir. Mas a tua suspeita não tem fundamento, pois Saduk quase sempre andava doente e, por coincidência, se achava acamado todas as vezes que se deram aqueles dolorosos acontecimentos.

— Também o teu pai morreu de morte não natural?

— Foi assaltado durante uma excursão que fizera a cavalo. Achava-se então acompanhado de Saduk e de um Kajem Makam. (28) Apenas o primeiro conseguiu

 

(25) Atirador de arcos.

(26) Sacerdote-mor, que, na Pérsia, está ainda, hierarquicamente sobre o “cheik ul Islam”.

(27) Farmacêutico.

(28) Tenente.

 

sair com vida da emboscada e isso mesmo sangrando em virtude de um ferimento que recebeu. Meu pai e o Kajem Makam, porém, foram assassinados.

— Hum! E Saduk não reconheceu os assassinos?

— Era noite muito escura; contudo a um deles pôde reconhecer pela voz; tratava-se do maior adversário do meu pai.

— E dele é que tomaste vingança agora?

— Os juizes o absolveram mas ele... está morto!

O semblante do Mirza dizia-me nitidamente de quão horrível morte tivera o seu antagonista. O tal Saduk ou era um indivíduo sem energia e vida própria ou então um refinado malfeitor. Eu resolvi trazê-lo sempre de olho. Quando eu mais tarde retornei ao acampamento lá estavam ocupados em preparar o almoço. Declarei ao inglês que me achava inclinado a cavalgar na companhia do persa a Bagdad e dali para Kerbela; ele logo decidiu-se a fazer conosco a perigosíssima viagem.

 

NOVOS INDÍCIOS DA TRAIÇÃO DE SADUK

Os ferimentos não me incomodavam, pelo menos nesse dia. Por isso à tarde peguei de uma das espingardas e saí a dar uma volta pelas redondezas acompanhado do meu fiel Dojan. Lindsay quis acompanhar-me, mas eu preferi sair desta vez só. Seguindo hábito arraigado já de há longos anos, tencionava eu nesta caminhada certificar-me pessoalmente da segurança da localização do nosso acampamento. O principal nessa tarefa é desfazer tanto quanto possível as próprias pegadas e ver se encontramos pegadas de outrem que venham a provocar suspeitas. Fiz várias voltas ao acampamento e me aproximei do rio. De longe constatei que a relva da ribeira se achava pisoteada e de um modo a causar sérias desconfianças. Ia chegar-me ao local, quando percebi ramalhar por trás de mim.

Imediatamente acoitei-me por trás de um denso tufo e me pus à espreita. Em breve ouvi passos e... o mudo persa saiu de dentro dum macegal que orlava a ribeira. Relanceou os olhos em torno de si e quando supôs não estar sendo observado, encaminhou-se para o local onde a relva estava pisoteada. Chegando lá continuou a pisotear outro trecho de hervas e, sem deter-se voltou depois. Antes de alcançar o meu esconderijo, dirigiu, ele uns olhares misteriosos para a moita em que o mesmo estava situado e depois prosseguiu.

De repente, porém, saltei da moita e, agarrando-o com a mão esquerda, com a direita desferi-lhe uma violenta tapona que anulou-lhe toda a capacidade de resistência.

— Chaintkar, traidor! Que estás fazendo aqui? — trovejei-lhe.

O homem, aliás, era mudo mas os sons articulados que proferiu eram antes a conseqüência do susto que levara do que o seu intento em esclarecer-me a sua atitude.

— Estás vendo este arcabuz? — perguntei-lhe. — Se não fizeres imediatamente o que te vou ordenar, no mesmo instante serás homem morto. Toma do teu kelah (29), enche-o com água e rega a relva para que esta se erga novamente

 

(29) Boné de pele de cordeiro.

 

o mais depressa possível, no que tu a auxiliarás com as mãos!

O homem fêz, com a mão, um movimento de resistência ou talvez que também o fosse de desculpa; mas quando tirei a espingarda do ombro, obedeceu-me com um olho no seu trabalho e com o outro no cano da arma.

— Bom, agora acompanha-me! — disse-lhe eu ao estar pronto o serviço. — Vamos até àquela moita a ver se encontramos o objeto que atraiu há pouco os teus significativos olhares.

Chegando lá, examinei os dois pontos para onde haviam convergido os seus olhares e vi dependurado em cada um dos dois tufos que ali se levantavam, não muito distante um do outro, um molho de grama.

— Ah! um sinal! A coisa vai então tornar-se interessante! Pega aqueles molhos de capim e lança-os no arroio!

O homem obedeceu sem titubear.

— Bom, agora voltemos para o acampamento. Avante! Se tentares fugir, serás atingido pela bala de minha espingarda ou te estraçalhará o meu cão!

Não me enganara, pois, na idéia que eu formara daquele sujeito: tratava-se de um traidor, embora os fatos precisassem ainda ser constatados com mais exatidão. Quando chegamos ao acampamento, mandei chamar o persa, por intermédio de um dos servos.

— Que há? — perguntou-me ele. — Por que seguras Saduk pelo braço?

— Porque é meu prisioneiro. Ele pretende lançar-te numa emboscada. Estás sendo perseguido e este biltre indica aos teus perseguidores o nosso paradeiro por meio de sinais no solo. Peguei-o em flagrante, pisoteando a relva da ribeira e na orla de dois tufos se achavam pendurados feixes de capim a indicar que para alcançar o nosso acampamento bastava atravessar o macegal.

— É impossível!

— Como impossível, se estou te dizendo! Interroga-o!

O Mirza formulou um sem número de perguntas ao prisioneiro; das mímicas deste pude apenas compreender que ele se dizia admirado da minha atitude, pois que nada fizera de mal.

— Estás vendo, emir, como ele está inocente! — ponderou o persa.

— Bom, neste caso vou eu agir em teu lugar — repliquei-lhe. — Espero poder provar-te que este homem é um traidor. Vai buscar a tua espingarda e acompanha-me. Dize, porém, antes à tua gente que meus companheiros fuzilarão todo aquele que tentar libertar Saduk. Não estão habituados que se graceje com eles. Um dos teus servos se postará de sentinela lá na orla do macegal, a fim de prevenir os demais no caso de algum perigo.

— Iremos a pé ou a cavalo? — perguntou-me.

— A que distância fica daqui o local do vosso último acampamento?

— Umas seis horas de viagem.

— Logo não atingiremos hoje. Portanto vamos sair a pé.

 

EM  RECONHECIMENTO

O homem saiu em busca de sua espingarda. Ministrei a Halef e ao inglês as necessárias instruções. O preso foi por ele algemado e vigiado. Achava-se em tão boas mãos que eu podia me retirar despreocupadamente.

A seguir, saímos vale abaixo rumo ao rio. Em meio deste curto caminho, parei surpreso, pois que numa arvorezinha se achava dependurado um molho de capim igual aos que Saduk fora forçado a jogar no rio.

— Pára, Mirza! Que é isso? — perguntei-lhe.

— Capim — respondeu o persa.

— E nasce este nas árvores? — perguntei-lhe.

— Allah hu! Quem o teria dependurado aqui?

— Saduk! Prossigamos uns vinte passos à direita, onde espero encontrar outro sinal!

O homem acompanhou-me e a minha previsão confirmou-se.

— Mas esses molhos de capim podiam também estar aqui já antes de nossa chegada — disse o Mirza.

— Oh! Hassan Ardschir-Mirza que bom que só eu estou a te ouvir! Não vês então que este capim está verde ainda, prova de que foi cortado recentemente?

— Bom, desçamos agora até o rio, onde na distância correspondente encontrei há pouco o primeiro sinal. Saduk vem assinalando um caminho da largura de vinte passos, caminho que partindo do rio conduz para o nosso acampamento. Lá seríamos assaltados e mortos tal qual sucedeu ao teu pai, ao farmacêutico, ao muschtahed e sua filha.

— Ah! senhor se tu tivesses razão!

— E tenho-a, fica certo disso! És um bom caminhante: acharás o caminho trilhado até aqui ao deixardes o último acampamento?

Ele respondeu afirmativamente e nós subimos pela ribeira, alcançando daí a pouco o local em que eu estivera acampado com os haddedins e os demais companheiros, antes de acorrermos em socorro dos persas. Viéramos então do norte; aqui, porém, o vale do rio não tardou em curvar para o leste e nós seguimos este rumo. Já havíamos vencido a curvatura do vale, quando notamos à direita um vime, de cuja casca haviam tirado duas fitas.

— Em que ordem cavalgastes, em geral, durante a presente jornada? — inquiri.

— As mulheres no meio e os homens divididos em duas secções.

— À qual das secções pertencia Saduk?

— Sempre à da retaguarda. Muitas vezes atrasou-se na marcha, porque se detinha a contemplar e colher flores de que é um grande apreciador.

— Pois, afianço-te que ele ficava para trás com o propósito de assinalar o caminho aos teus perseguidores, sem que tu o notasses. É de uma sagacidade extraordinária o teu Saduk!

— Mas onde estão os sinais?

— Aqui neste vime está um; vamos para frente!

Depois de três quartos de hora o rio era umas três vezes mais largo do que no seu trajeto anterior, formando um lanço facilmente vadeável. Aí ficou o Mirza parado e apontou para um pé de bétula ainda tenro e que fora partido um pouco abaixo de sua copa.

— Talvez tomes isto também por um sinal?! — perguntou ele com ar de gracejo.

Examinei a arvorezinha.

— E realmente é um sinal. Examina bem a arvorezinha e também outras árvores; contempla as direções das elevações e verás que só do oeste é que podem bater os ventos aqui. Nenhum vento norte, sul e leste terá aqui a força de partir uma árvore abaixo de sua copa. E no entanto foi quebrada e de modo que a quebradura indique o lado oeste. Não te cai na vista uma tão curiosa circunstância, Mirza?

— Realmente, emir!

— E contempla a superfície do corte! Está ainda branquinha, logo o corte foi feito ao tempo de tua passagem por aqui. A copa está atirada para o oeste, exatamente a direção que tomaste com tua gente. Continuemos nas pesquisas!

— Vamos nadar?

— Nadar? Para que? O rio é baixo e permite passarmos a pé. Verás que o ponto em que entraste no rio, para atravessá-lo, está assinalado também.

 

AVISTANDO OS PERSEGUIDORES

Despimo-nos e amarramos os nossos trajes sobre a cabeça. A água em geral só nos ia pouco acima dos joelhos; houve apenas um ponto em que a sua profundidade era da altura dos meus ombros. Ao chegarmos ao lado oposto, Mirza teve que constatar que a minha suposição era certa. No ponto em que a caravana entrara no rio para vadeá-lo havia vários cipós amarrados à guisa de porta.

— Mas Saduk teve tempo para trançar todos aqueles cipós? — perguntei.

— Teve sim. Lembro-me de que os camelos obstinavam-se a entrar no rio; tivemos muito trabalho com eles. Saduk deixou o seu cavalo para trás, a fim de fazer um dos camelos atravessar. Depois voltou sozinho a buscar a sua montaria.

— Que finório! E continuas a não suspeitar dele?

— Emir, eu já estou concordando contigo. Mas nas planícies onde só há relva, que espécie de sinal teria ele feito?

— Também isto já havemos de descobrir. De que rumo procedíeis ao chegardes neste ponto?

— Do levante. Lá do outro lado há... Oh! emir, que é aquilo? Dizendo isso, apontou para o leste. Olhei na direção indicada e divisei no horizonte uma linha escura que de nós se aproximava em linha reta.

— São cavaleiros? — perguntou o persa.

— Exatamente. Ligeiro para dentro d’água de novo! Deste lado não há lugar apropriado a esconderijo e lá temos os macegais e os penedos para isso.

A retirada foi feita com rapidez; chegados à margem oposta escondemo-nos num ponto de onde podíamos espreitar os que passavam. Só ali é que tivemos tempo de nos vestir.

— Quem será aquela gente? — perguntou o Mirza.

— Hum! Por esta estrada não há movimento comercial; mas o passo pode também ser conhecido por outros. Aguardemos, pois, os acontecimentos.

Os cavaleiros aproximavam-se a passo e alcançaram a margem oposta do rio. Estavam agora tão perto que dava para se lhes distinguir as fisionomias.

— Derigh! (30) — sussurrou-me o persa. — São tropas persas.

— Em território turco? — perguntei, duvidando.

— Tu vês que ostentam vestes de beduínos!

— São ihlats (31) ou milicianos?

— Ihlats. Conheço o comandante; foi meu comandado.

— Quem é ele?

— É o susbaschi Maktub Agha, (32) o audaz filho de Ejub Khan.

 

(30) Irra!

(31) Os ihlats são recrutados entre as tribos nômades, ao passo que os milicianos entre os moradores das cidades.

(32) Comandante de 500 homens.

 

Vimos que o comandante examinou detidamente as trancas de cipó; depois passou a falar aos seus homens indicando sempre o cipó e entrou no rio para vadeá-lo. Os demais o seguiram.

— Senhor, — cochichou o persa profundamente agitado — tiveste razão em tudo. Essa gente foi expedida para me capturar. Entre ela também se acha o pendschahbaschi (33) Omram, sobrinho de Saduk. Oh! Alá, se eles nos descobrirem aqui! Não há perigo de teu cachorro trair a nossa presença?

— Não, ele ficará em silêncio.

Os perseguidores compunham-se de trinta homens. O seu comandante era um sujeito audaz; conhecia-se à primeira vista. Junto à bétula ficou parado, a rir-se.

— Dusad diwwan, com mil demônios! — exclamou ele. — Vem cá pendschahbaschi e vê! quanto nos podemos fiar no filho do teu irmão. Aqui está um novo sinal. Daqui por diante dirige-se o caminho rio abaixo. Avante!

Passaram por nós os trinta homens sem nos notarem.

— Afinal, Mirza, estás ou não convencido de tudo?

— Convencidíssimo, — respondeu o persa. — Mas não há tempo para conversa; o momento é de ação e não de palavras.

— Ação? Nada mais nos resta fazer do que segui-los cautelosamente.

Deixamos o esconderijo e seguimos os ihlats de modo a conservá-los à vista sem sermos notados por eles. Era vantajoso para nós que os homens cavalgassem com bastante morosidade. Daí a uns quinze minutos, chegaram os soldados persas ao ponto de onde Maomé Emin sairá para lançar-se à morte. Estacaram ali a examinar os vestígios do acampamento.

Quanto a nós, dobramos a direita pelo macegal adentro, a fim de ganharmos distância. De lá ao acampamento nosso distava dez minutos, mas esta distância a vencemos em cinco. Lá chegamos, eu suando em bicas e o Mirza resfolegando. Um golpe de vista pelo acampamento bastou para que se visse estar tudo em ordem.

— Conservai-vos em silêncio! — ordenou o Mirza. — Aproximam-se inimigos.

Dito o que voltamos e fomos nos postar à beira do caminho, num denso macegal, onde antes deixáramos uma sentinela. Os perseguidores não tardaram a surgir. Estacaram defronte ao nosso esconderijo.

— Este seria um excelente local para acampamento — ponderou o susbaschi. — Que achas, Omram?

— O sol está prestes a desaparecer no ocaso! — declarou o pendschahbaschi.

— Bom, pernoitaremos então aqui; água e relva também não faltam.

Por isso naturalmente é que eu não esperava. A resolução podia redundar em perigo para nós. Apagamos todos os vestígios de nossa passagem, menos no local do acampamento primitivo, onde havia gramas pisoteadas e cinza da fogueira. Além disso, eu notara agora que a grama pisoteada à tarde por Saduk se havia reerguido, mas não completamente.

— Allah il Allah, que faremos? — perguntou Ardschir-Mirza.

— Os três somos demais aqui; podemos facilmente ser descobertos. Um basta e este serei eu. Leva o cachorro, volta para o acampamento e preparai-vos para o

 

(33) Tenente, comandante de 50 homens.

 

combate. Se ouvirdes o detonar deste revolver continuai no acampamento; no caso, porém, do estampido ser o desta espingarda vinde apressadamente em meu auxílio porque me encontro em perigo. Halef trará então a minha pesada espingarda que ficou no acampamento.

— Emir, nessa conjuntura de perigo não te posso abandonar aqui!

— Eu aqui estou mais seguro do que tua gente lá em cima. Vai! Tu me estorvas!

Na companhia do seu servo e de Dojan, subiu o persa a encosta e eu fiquei no mesmo local. Era-me preferível isso, do que me achar em companhia de companheiros inexperientes. Eu só estaria propriamente em perigo no caso do susbaschi mandar efetuar uma batida nas redondezas. Mas aquele capitão persa não era nenhum cacique de tribos indígenas dos Estados Unidos para alimentar tal idéia: disso me apercebi da maneira negligente com que acampou, não curando nem mesmo de averiguar se se encontrava em lugar seguro.

Os cavalos foram desencilhados e soltos. Correram logo para a aguada e se espalharam. Cada um deles conhecia o chamado do dono. Os cavaleiros jogaram suas lanças no chão onde também puseram os seus objetos na mais perfeita desordem que se pode observar num acampamento daqueles, e se deitaram a descansar. Apenas o pendschahbaschi fêz uma exploração do terreno e chegou ao local onde, quando acampados, acendêramos o fogo.

— Purtu we diwbad! Raios e trovões! que encontro aqui! — exclamou ele.

— Que? — perguntou-lhe seu superior, erguendo-se de um salto.

— Aqui ardeu um fogo. Aqui eles pernoitaram.

— Hallejah (34)! Onde?

— Iadscha, aqui!

O susbaschi correu até lá, examinou o local e constatou a exatidão da. descoberta do subordinado. A seguir perguntou-lhe:

— Há por aí algum sinal?

— Não vejo nenhum — respondeu o tenente. — Não deve isso ter sido possível a Saduk. Amanhã os acharemos mais adiante. Aqui também nós podemos acender um fogo. Tomai farinha para fazer o pão!

Ao ver eu os soldados procederem tão descuidadamente cheguei logo à conclusão de que não os precisaríamos recear na mínima coisa. Acenderam uma enorme fogueira, fizeram da água do rio e farinha uma massa que depois de batida e enrolada, foi espetada na ponta da lança e segurada diante do fogo. Constituía o pão que eles comiam ainda meio cru e meio queimado com uma sofreguidão de quem estivesse faminto. Oh! quanto uma porção de lingüiça com ervilhas não levantaria o moral daqueles defensores da pátria!

Aquele pão assado no espeto, por assim dizer constituiu a sua única refeição.

Quando a noite caiu sobre as montanhas, eles fizeram a sua oração e aproximaram-se depois da fogueira a contar as suas lendas das “Mil e uma noites” pela milésima primeira vez. Vi que nada adiantaria para a nossa segurança estar ali a ouvir as lendas e voltei para o acampamento. Lá não ardia fogueira alguma e

 

(34) Alleluia, louvado seja o Senhor, Graças a Deus!

 

todos se achavam a postos prontos para a luta. Saduk continuava guardado por Halef e pelo inglês. Haviam-lhe reforçado as algemas e colocado também uma mordaça na boca.

— Em que pé estão os acontecimentos, emir? — perguntou o Mirza.

— Muito bem — respondi.

— Eles se foram embora?

— Não foram, não.

— E como então diz o senhor estarem bem os acontecimentos?

— Porque aqueles ihlats com todo o seu horrível Maktub Agha são os indivíduos mais nadanan (35) que tenho visto em toda minha vida. Se nos conservarmos aqui durante a noite no mais absoluto silêncio, eles amanhã bem cedo prosseguirão a marcha sem darem pela nossa presença. Halef, com tua perna pisada consegues ainda descer a encosta?

— Consigo, sídi.

— Então eles são teus, pois em ti é que melhor me posso fiar. Ficarás a postos lá em baixo, até que eu te venha substituir.

— Onde me procurarás?

— Os homens acenderam uma fogueira e pouco acima desta ergue-se um pinheiro desgalhado. Junto de seu tronco nos encontraremos.

— Já vou, sídi. Deixarei a espingarda aqui; ela me estorvará. A minha faca está afiada e é bastante pontiaguda e se um daqueles lorpas se aventurar a subir a encosta há de se lembrar depois no djehenna do Hadji Halef Omar! Allahi, wallahi, tallahi, tenho dito!

Dito o que, ele foi saindo. O inglês pegou-me pelo braço.

— Mister, onde ficou o seu juízo? Estou aqui sentado durante todo este tempo e não entendo uma só palavra do que falam. Sei que lá em baixo acha-se acampado uma tropa persa, e nada mais. Desembuche, pois: preciso saber alguma coisa.

Em poucas palavras disse-lhe como iam as coisas; ao Mirza afigurou-se gastar eu demasiado tempo com o relato. Fui interrompido por ele com a pergunta:

— Emir, não é permitido nem ao menos ver aqueles ihlats?

— Sabes caminhar através de folhas secas e macegais sem fazer o menor ruído?

— Sei, emir.

— Sabes dominar os espirros e a tosse?

— Isto é impossível.

— Não é impossível, não; nem ao menos é difícil, quando se exercita bem. Contudo vamos tentar. Talvez que nos seja possível espreitá-los e deles ouvir alguma coisa importante para nós. Quando sentires uma irritação por leve que seja na garganta ou no nariz encosta a boca rente ao chão e cobre a cabeça. Aquele que espreita outro, jamais tomará respiração pelo nariz; deste modo é pouco provável espirrar. E se não puder evitar a tosse, deve tossir imitando o mugido do búfalo. Um atilado chekarji (36), porém, jamais tosse ou espirra!

 

(35) Imbecis.

(36) Caçador.

 

Saí rastejando na frente e ele seguiu-me. Procurei remover-lhe do caminho tudo que o levasse a fazer ruído. Deste modo chegamos sem novidade à posição ocupada por Halef e nos ocultamos entre moitas densas. A doze passos de nós ardia a fogueira dos persas. Os dois oficiais estavam sentados bem perto dela e o pessoal se reunira formando três quartos de círculo em torno das chamas. De quando em quando o clarão iluminava o vulto dum dos cavalos, dos quais alguns pastavam dispersos e outros se achavam deitados.

Hassan Ardschir-Mirza não sussurrava uma só palavra, mas pela sua respiração depreendia-se quanto ele se achava agitado. Era um homem cheio de coragem e hábil no manejo das armas, mas nunca se achara em situação idêntica à do momento. Também a mim me bateu o coração quando pela primeira vez espreitei uma tropa de sioux que haviam saído para prender-me. Como era natural, a experiência me proporcionara mais sangue frio.

Os ihlats pareciam convictos de que se achavam sozinhos em toda a região, pois conversavam em voz tão alta que se podia ouvir do outro lado do rio. No momento em que alcançávamos o nosso esconderijo, perguntou o pendschahbaschi:

— Vais prendê-lo com vida?

— Se ele se deixar prender com vida, sim.

— E reconduzi-lo vivo?

— Não sou nenhum lorpa. Quereis que eu o prenda vivo ou morto?

— Morto! — ecoou na roda.

— Naturalmente! Temos ordem de persegui-lo e se não o prendermos com vida, devemos levar a sua cabeça. Se o levarmos com vida, teremos que entregar todos os havêres que lhe apreendermos. E se levarmos apenas a sua cabeça, ninguém nos perguntará pelo resto.

— Dizem que ele conduz o seu dinheiro e mais objetos de valor em camelos — observou o tenente.

— Portanto, aquele filho dum serdar (37) excomungado é muito rico; precisou de oito ou dez camelos para transportar os seus tesouros. Iremos colher boa presa e tocará boa quota a cada um.

— Dize-me cá, susbaschi, que farás se o Mirza se recolher à proteção de algum xeque ou funcionário turco?

— Nem me preocuparei com esta proteção; mas neste caso não devemos declinar a nossa nacionalidade, compreendeis? Ademais, ele nem tempo terá para se asilar sob a proteção de ninguém, pois já amanhã ou o mais tardar depois de amanhã o teremos capturado. Partiremos amanhã ao romper d’alva e continuaremos a encontrar sinais que, como até agora, nos conduzam com segurança ao paradeiro do fugitivo. Aquele idiota Hassan Ardschir-Mirza pensa que Saduk por não poder falar também não sabe escrever. Os sinais que nos vem ele distribuindo pelo caminho constituem uma escrita que se lê com toda nitidez. Acorde deiatia, ide descançar, cães e lorpas, pois já não dispomos mais de muito tempo para o sono reparador de nossas forças.

Todos obedeceram à ordem do comandante e por certo que muitos entraram

 

(37) Generalíssimo

 

logo a sonhar com os fabulosos tesouros que esperavam dentro em breve ter nas mãos. A nossa observação trouxera, além da vantagem de ordem tática, mais a de vir a saber que o pai do Mirza fora um serdar e eu tomava quase como certo que o Mirza mesmo tivesse também o posto de general nas tropas persas. Devia tratar-se de pessoas de condição aquelas de cuja vingança ele vinha fugindo.

Depois que os ihlats se enrolaram nos seus cobertores, nós vagarosamente retrocedemos dali.

Ao chegarmos a uma distância a não podermos mais ser ouvidos, disse o Mirza:

— Emir, aqueles susbaschi e pendschahbaschi foram sempre por mim acumulados de benefícios, de que ignominiosamente se esquecem agora. Ambos devem ser executados!

— Eles neste caso nem são dignos de tua atenção; são verdadeiros cães que correm em tua perseguição; não te encolerizes com eles mas com os seus senhores!

— Mas pretendem matar-me para se apoderarem de meus cabedais.

— Pretendem mas não consumarão o propósito. No acampamento acertaremos medidas neste sentido. Vai indo que breve te seguirei.

O Mirza continuou meio contrariado. Quando não avistei mais os seus vagarosos movimentos procurei Halef a quem ministrei algumas instruções indispensáveis. Depois dobrei um arco em torno do acampamento dos ihlats, de modo a atingir à direita a orla do macegal, onde quebrei um arbusto. Depois segui sempre rumo sul. Cerca de dois minutos depois quebrei outro ramo de modo que o galho quebrado se dirigisse para o sul e assim fui fazendo sucessivamente de cinco em cinco e depois de dez em dez minutos. Feito o que, regressei ao nosso acampamento.

Gastei com aquela excursão mais de meia hora e encontrei o Mirza tomado de cuidados por mim. Também o inglês perguntou-me:

— Por onde andou perambulando? Aqui estou sentado feito um menino órfão, pelo qual ninguém se interessa; estou farto dessa situação! Well!

— Tranqüilize-se! Não tardará a ter ocupação.

— Muito bem! Bravo! Esmagaremos aqueles sujeitos?

— Não, mas lhes pregaremos uma peça bem perto do seu nariz.

— Folgo! Que fiquem com o nariz tal qual o meu! Yes! Quem tomará parte na tal peça?

— Apenas o senhor e eu.

— Tanto melhor! Quem executa um serviço sozinho lhe colherá os louros. E quando começaremos?

— Pouco antes do romper da alvorada.

— Só então? Neste caso vou descansar ainda um pouco os ossos. Enrolou-se no cobertor e ferrou no sono.

Hassan Ardschir-Mirza estava ansioso por acertar as medidas comigo e fora da tenda vi três vultos femininos que a apreensão tirara do leito para ouvir-nos diretamente, visto não poderem esperar para ouvir depois.

— Onde estiveste, depois que nos separamos, emir?

— Quis deixar-te tempo para refletires, a fim de acalmar-te depois. Um homem prudente não pede conselho à sua cólera, mas à razão. Creio haver se acalmado a tua cólera; dize-me, pois, que pretendes fazer?

— Assaltar aquela gente e matá-la!

— Pensas atirar os teus homens exaustos e feridos contra aqueles trinta possantes e cheios de saúde?

— Tu e os teus companheiros estareis do nosso lado.

— Não estaremos, não! Não sou nenhum bárbaro, mas um cristão. A minha fé permite-me defender-me a vida, no caso de ser eu agredido; no mais, porém, ordena-me que respeite a vida dos meus irmãos. O santo livro dos cristãos manda: Amarás a Deus de todo o coração e com todas as tuas forças e ao teu próximo como a ti mesmo! Portanto, a vida do meu próximo deve ser para mim tão sagrada quanto a minha.

— Mas aqueles homens não são nossos irmãos e sim nossos inimigos!

— Mesmo assim, não deixam de ser nossos irmãos. O kuran dos cristãos diz: “Amai os vossos inimigos; abençoai os que vos amaldiçoam; fazei o bem aos que vos ofendem e perseguem; então sereis o filho do vosso Pai no céu!” E eu sou obrigado a obedecer a esses ensinamentos, visto que sou cristão.

— Mas são ensinamentos imprudentes e desvantajosos. Se o seguires, terás que morrer a todo o perigo que te surgir e em todo o combate serás obrigado a ceder terreno ao inimigo.

— Ao contrário! Essas prescrições encerram em si a súmula da sabedoria divina. Achei-me já envolvido em perigos maiores ainda que este e na maior parte das vezes estive em piores condições de me defender do que milhares de outros. Mas como vês, vivo ainda e consegui sair sempre vencedor porque Deus protege os que lhe são obedientes.

— Então não me queres ajudar, emir, não obstante seres meu amigo?

— Sou teu amigo e disso vou dar-te exuberantes provas; mas pergunto-te: pretendes tu, Hassan Ardschir-Mirza, te tornar um assassino?

— Jamais, emir!

— Contudo projetas assaltar os ihlats na ocasião em que estão a dormir! Ou pretendes acordá-los previamente, para que o combate se efetue lealmente? Neste último caso estarias irremediavelmente perdido.

— Senhor, eu não os temo!

— Sei-o. Afianço-te que eu sozinho seria capaz de enfrentar aqueles trinta homens, se se tratasse aqui de uma luta justa; minhas armas são mais eficientes que as deles. Mas quem me garante que o seu primeiro tiro, primeiro golpe ou primeira punhalada não me vai atingir exatamente? Uma valentia selvagem e insofreável assemelha-se à fúria do búfalo, que se atira cegamente à morte. Figuro a hipótese: ainda que matásseis quinze ihlats, restariam ainda quinze que prosseguiriam no combate contra vós. Tu mesmo então lhes terias denunciado a tua senda e eles a conservariam até vos matar a todos!

— As tuas palavras são sábias, Senhor; mas se eu poupar os meus perseguidores, nas mãos lhes cairei! Mais hoje, mais amanhã me capturarão e o que então me sucederá tu próprio acabaste de dizer.

— Quem disse para te atirares em suas mãos?

— E que mais representa isso? Ou quem sabe se serás capaz de movê-los a me deixar seguir calmamente a minha rota?

— Pois é isso mesmo o que pretendo fazer.

— W’Allah! Isto até constitui... constitui uma... uma... Emir, nem sei como deva eu qualificar-te depois de me haveres saído com essa!

— Pois qualifica-me de deli, louco, é a expressão adequada. Não é assim?

— Não devo dizer nem sim nem não, visto que te estimo de todo o coração. Então achas que conseguirás demover aquela gente do seu propósito, aquela gente que anseia pela minha vida e pelos meus cabedais?

— Estou convencido de que o conseguirei; mas ouve: estive há pouco lá em baixo no rio, onde quebrei alguns arbustos e galhinhos de árvores. Se os ihlats virem esses sinais suporão haverem sido feitos por Saduk. Levantarão eles acampamento ao romper d’alva. Eu cavalguei na frente deles a fazer tais sinais, com o fim de despistá-los. Mas se eles vos descobrirem antes de partir o vosso acampamento, defendei-vos; eu ouvirei os vossos tiros e acorrerei imediatamente em vosso auxílio.

— Mas de que nos adiantará desviá-los de nossa senda, se eles mais tarde a encontrarão de novo?

— Deixa tudo por minha conta! Hei de fazê-los errar de tal modo, que não darão mais com a senda primitiva. Trazes pergaminhos contigo?

— Trago. Achamos também um em poder de Saduk; deste faltam algumas folhas.

— Ele as deve ter aproveitado com o fim de deixar secretamente notícias aos ihlats.

— Interrogaste-o neste sentido?

— Interroguei, mas não confessou nada.

— Não precisamos de sua confissão. Dá-me o pergaminho e vai dormir. Vigiarei o nosso acampamento e te acordarei quando fôr hora!

As mulheres desapareceram e os homens deitaram-se a dormir. Saduk pôde ouvir nossa palestra palavra por palavra; ele devia estar como que deitado sobre agulhas. Examinei-lhe as cordas que o algemavam e também a mordaça. As primeiras estavam suficientemente seguras e a última permitia a respiração, embora um tanto pesada.

Enrolei-me no cobertor, sem, porém, dormir.

 

DESPISTANDO OS PERSEGUIDORES

Ao romper do dia acordei o inglês. Também os persas despertaram e o seu chefe não tardou em aparecer.

— Vais partir, Senhor? — perguntou Mirza. — Quando voltarás?

— Assim que adquirir a certeza de haver despistado os perseguidores.

— Isso pode demorar até amanhã!

— Lógico que pode.

— Então leva farinha, carne e tâmaras. E que faremos nós até tua volta?

— Manter-vos-eis em atitude silenciosa e saireis o menos possível do acampamento. No caso de surgir algo de anormal aconselha-te com o meu Hadji Halef Omar, que te deixo no acampamento. Ele é um homem sincero, experimentado e sensato e em quem se pode confiar.

Desci ligeiro a procurar novamente Halef, a fim de pô-lo ao par do meu propósito. Quando voltei. Lindsay já se achava aprestado para a viagem e vi que o persa nos suprira os farnéis com abundantes previsões. Depois de uma breve despedida empreendemos viagem.

Foi muito dificultoso e demandou bastante tempo até que conseguimos passar com os cavalos por entre as árvores e macegais através da semi-escuridão ainda reinante. Fomos forçados a quebrar um atalho a fim de não sermos avistados pelos ihlats. Finalmente alcançamos o vale, montamos a cavalo e prosseguimos a trote, costeando sempre o rio. Não se podia ver muito distante à nossa frente, visto que a cerração tudo envolvia; nisso uma fagueira brisa soprada do sul anunciava-nos o próximo raiar do dia. Em breve atingíamos o ponto em que o rio descreve uma curva e onde na véspera colocara eu o último sinal. Aí apeei.

— Stop! — perguntou o inglês. — Por quê?

— Aqui teremos que aguardar a ver se a tropa persa continuará sem deter a marcha, ou se antes farão uma exploração nas circunjacências, caso em que facilmente se chocaria com os nossos amigos.

— Ah! Boa idéia. Excelente medida de precaução. Well! Então será ainda tempo de corrermos em auxílio dos nossos aliados. Yes! Há fumo entre a nossa provisão?

— Vou ver.

Hassan Ardschir-Mirza — ou também podia ter sido a sua jovem e formosa irmã — fora de uma atenção a toda prova conosco pois junto com as vitualhas havia também uma provisãozinha de fumo persa e do bom.

— Muito bem. Well! Vamos logo fumar! Excelente homem aquele Mirza! Yes! — disse o inglês.

— Vê como lá se desfaz a cerração e dentro de dois minutos poderemos avistar os ihlats. Temos que nos conservar por trás da curvatura, do contrário nos verão eles e o nosso plano estará descoberto.

Ocultamo-nos na curvatura do rio e ali ficamos à espera. Finalmente vi através das lentes do binóculo os trinta ihlats virem cavalgando a passo. Montamos a cavalo e nos fomos com a rapidez de uma flecha. Só uma milha adiante fiz alto e esfolei a casca de um vime.

— Hum! é preciso que sejam muito tolos, para não reconhecerem que esse sinal é muito recente e que data quando muito de hoje de manhã — murmurou Lindsay.

— Tem razão; mas convenha que aquele susbaschi não é nenhum David Lindsay-Bei! Vê, visto daqui, o rio parece formar um arco muito extenso; é certo que mais adiante por trás daqueles montes ele surja de novo, ao sul. Trata-se de um arco com uma corda de umas oito milhas inglesas no mínimo. Vamos fazer aqueles persas andarem um pouquinho por dentro do rio!

— Sou companheiro para qualquer aventura. Yes! Mas eles cairão na esparrela?

— Na certa, alteie o farnel de provisão no serigote!

— Mas aqui é fundo!

— Tanto melhor. Tem medo de morrer afogado?

— Psiu! Creio que me conhece bem! Mas acreditará aquela gente haver o Mirza atravessado o rio com os seus camelos?

— Pois é exatamente isto o que pretendo averiguar. Se o acreditarem, acreditarão também em todos os outros truques.

Larguei um emaranhado de cipó na beira do rio, fiz o cavalo deixar pegadas nítidas e confusas como se fossem de vários e entrei n’água. Vencendo a correnteza que era um tanto forte, atingimos a margem oposta do rio, onde quebrei alguns ramos de arbustos para significar um rumo direto ao sul. O solo era relvoso, com o que muito folguei, visto que a umidade deixava pouco visível nossas pegadas.

Tocamos então a galope para frente. Dentro de meia hora estariam os persas naquele local. Reconheceriam então, desde que não fossem inexperientes ou quiçá uns levianos, que nossa senda datava da manhã. Prosseguimos a galope durante umas duas horas, atravessando pequenas planícies, pequenos outeiros, pequenos vales banhados por pequenos arroios. Alcançamos então, conforme eu previra, novamente o rio Djalah que atravessamos novamente. Claro que nos lugares apropriados deixávamos os sinais convencionados. Agora peguei do pergaminho e dele rasguei uma folha.

— Pretende escrever? — perguntou Lindsay.

— Pretendo. Os sinais cessarão dentro em breve e por isso quero experimentar se a folha do pergaminho produz o mesmo efeito.

— Mostre-me o que escreveu!

— Ei-lo, vê se compreende!

Passei-lhe a folha, na qual se achavam escritas algumas palavras em persa. Do papel passou o homem a olhar-me; a boca se lhe escancara no clássico trapezóide e o nariz, contrafeito, virou-se para um dos lados.

— Heigh ho! Quem conseguirá ler esses garranchos! Que significa?

— São caracteres persas e lêm-se de trás para diante, isto é, da direita para a esquerda. Rezam: “Halijab hemwer zirn bala — daqui em diante permanentemente para baixo!” Quero ver se eles obedecem a essa instrução.

Quebrei dois ramos de um arbusto e neles prendi a folha do pergaminho de modo a não deixar de ser visto. Feito o que, voltamos para o ponto onde vadeáramos o rio a fim de ver os persas sem sermos vistos por eles. Lá chegados, descavalgamos para tomar nossas refeição matinal e deixar os cavalos pastarem nas sumarentas ervas que ali vicejavam. Como era natural, estávamos ansiosos por ver se o nosso ardil vingaria.

Tivemos que esperar muito mais de uma hora, quando ao longe divisamos os cavaleiros em marcha. Depois que eles passaram, através das lentes verifiquei haver produzido efeito o nosso estratagema. Continuamos satisfeitíssimos para a frente. Só ao meio dia deixei novo sinal pelo caminho e depois à noitinha outro, este último num dos ângulos de um vale adjacente que se estendia do rio para o oeste. Chegara o instante de executarmos a segunda parte do nosso programa, isto é, desviar os persas para a direita. Até aqui o terreno não se prestara a isso.

Na estrada deste vale acampamos para pernoitar.

 

Na manhã seguinte deixei em local visível outra folha de pergaminho, avisando que o caminho dali por diante conduziria por muito tempo rumo do ocidente. No decorrer da manhã deixei um terceiro preso à casca de uma árvore e no qual eu avisava que o Hassan Ardschir-Mirza tornara-se desconfiado por me haver (isto é a Saduk) pilhado fazendo um dos sinais. Ao meio dia preguei o quarto e último pergaminho. Continha este o aviso de que o Mirza pretendia seguir através das encostas do Bozian para Dschumeila ou então para Kifri; acrescentava que sua desconfiança recrudescera e que ele me mantinha sempre debaixo de observação; que portanto daqui por diante se me tornava quase que impossível continuar a fazer os sinais combinados.

Com isso estava finda a nossa tarefa. Não achei necessário aguardar a ver se os susbaschi me acompanhariam até aqui, pois isto pelo que sucedera até então era mais do que certo.

 

A FUGA DE SADUK

Dobrando um ângulo retrocedemos, passando por pontos talvez que até então jamais pisados por criaturas humanas. Fomos obrigados a cortar muitos atalhos e por fim atingimos novamente a margem do Djalah. Cavalgamos mais um trecho rio acima até que anoiteceu e fomos forçados a tomar pouso. De manhã bem cedo partimos e ao meio dia chegávamos ao acampamento.

Pouco antes de alcançá-lo, Halef veio pulando ao nosso encontro.

— Graças e louvado seja Alá, sídi, que tu chegas são e salvo! Estivemos todos apreensivos, pois estiveste dois dias e meio ausente em vez de um conforme fora combinado. Aconteceu-vos, por acaso, alguma desgraça em caminho, efêndi?

— Não, ao contrário, tudo correu muito bem. E se não voltamos antes, foi porque ainda não adquiríramos a certeza de que vingara o ardil de que lançamos mão para despistar e confundir os persas. E no acampamento como vão as coisas?

— Bem, embora haja sucedido uma coisa que não deveria ter sucedido.

— Quê?

— Saduk fugiu.

— Saduk! Mas como pôde ele fugir?

— Deve ter entre os persas que acompanham o Mirza alguém que o libertou, cortando-lhe as cordas.

— Quando fugiu ele?

— Ontem, de manhã, já dia claro.

— Mas como foi isso possível?

— Tu estavas ausente com o inglês e eu montava guarda lá em baixo. Os persas, porém, abandonaram o acampamento uns após os outros para ver o que faziam os ihlats. Estes se retiraram calmamente em prosseguimento da viagem, mas quando os nossos voltaram ao acampamento havia desaparecido o prisioneiro.

— Isto é grave, gravíssimo mesmo! Se a fuga se desse um dia depois, poderíamos estar tranqüilos. Vem, acomoda o garanhão.

Chegado ao acampamento todos nos acolheram com transportes de alegria. Via-se o cuidado por que se achavam tomados devido à nossa demora. A seguir, o Mirza conduziu-me para um lado e participou-me a fuga de Saduk.

— Há duas hipóteses a considerar: primeiro, se Saduk conseguir alcançar os ihlats os trará imediatamente de volta; segundo, ele também pode estar acoitado pelas proximidades do acampamento à espreita do momento azado para desforrar-se. Em qualquer dos casos, não nos encontramos mais em segurança se ficarmos aqui. Portanto urge que abandonemos este local.

— E para onde iremos? — perguntou Hassan Ardschir-Mirza.

— Antes de mais nada para a margem oposta. Na direção de baixo não há um passo, consequentemente voltaremos até ao ponto em que atravessaste o rio. Isto nos reforça a segurança, visto que ninguém acreditará que seguiste para cima. No caso de estar Saduk acoitado por aí na expectativa de tomar uma desforra durante a noite, não se aventurará ele a aproximar-se de dia do nosso acampamento. Eu poderia aliás tentar descobrir sua senda expedindo o meu cão à procura da mesma; mas isso é de êxito um tanto duvidoso e requer muito dispêndio de tempo. Dá as ordens no sentido de ser levantado o acampamento e mostra-me as cordas em que esteve o prisioneiro algemado. Dagora em diante cuida com todo empenho de jamais conhecerem os teus servos os propósitos que tens em vista.

 

AS CONDIÇÕES EM QUE SE DEU A FUGA

O homem dirigiu-se à palhoça das mulheres, voltando em seguida com as cordas e a mordaça; esta era feita de um pano. Tudo estava cortado. Passei a examinar os cortes.

— Ordena à tua gente que se aproxime! — propus ao Mirza.

Os servos, ao chamado do chefe, se aproximaram sem perceberem naturalmente de que se tratava; depois, porém, deram com os olhos nas cordas, depostas no chão à minha frente.

— Dai-me vossas facas e punhais! — ordenei-lhes.

Enquanto estendiam os braços com as armas, examinava-lhes eu as. fisionomias de cada um, sem que descobrisse a mais leve contração denunciadora. Examinei depois as lâminas e os fios das facas e punhais. Observara que as cordas e a mordaça haviam sido cortadas com um punhal de três cantos; não tardaria em descobrir o autor dos cortes e conseqüente libertador do prisioneiro.

Havia apenas dois servos armados com punhais de três cantos e notei logo, àquelas palavras, que um deles empalidecia. Descobri mais que o mesmo levantava lentamente um dos pés como quem se preparava para fugir em vertiginosa disparada. Por isso adverti:

— O autor da libertação prepara-se para fugir; ele que não se arrisque, pois complicará com isso a sua situação em vez de minorá-la. No pé em que se acham as coisas só a confissão franca o poderá salvar!

O Mirza contemplava-me admirado e também da fisionomia das mulheres, através do véu diáfano, depreendia-se a surpresa que lhes causavam as minhas palavras.

Terminara eu o exame e estava certo de haver chegado a diligência a um resultado satisfatório. Apontei para o culpado e disse:

— Foi este aqui! Amarrem-no!

Mal eu pronunciara tal ordem, o homem ergueu-se num salto e ganhou o macegal. Os demais queriam persegui-lo.

— Alto! — ordenei-lhes.

— Emir, ele nos escapará! — ponderou o Mirza.

— Não se escapará, não! — repliquei-lhe. — Não vês que Dojan está comigo? — “Dojan tut onu, Dojan pega-o!”

O cachorro saiu a toda velocidade macegal adentro e um grito logo se fêz ouvir de permeio com o latido anunciador do cão.

— Halef vai buscar o sujeito! — ordenei ao meu servo. O pequeno Hadji obedeceu-me de fisionomia satisfeita.

— Mas, emir, — acudiu o Mirza — como podes descobrir pelo punhal, o autor do corte das cordas?

— Muito facilmente! Uma lâmina chata faria cortes bem diferentes que uma de três cantos, apropriadas mais para punhaladas do que para cortes. As superfícies dos cortes se desenvolveram muito para os flancos, razão por que não é possível que tivessem sido feitos com uma lâmina chata. E atenta para aqui: o corte não é liso, mas irregular e cheio de rompimento dos tecidos do couro; a lâmina pois com que foi cortada deve ter uma grande falha no corte. Agora vê o punhal daquele homem. É o único de todos que possui tal falha.

— Senhor, admirável é tua sabedoria!

— Não mereço tal elogio. A experiência ensinou-me a levar em consideração, em casos destes os mínimos detalhes; portanto não é sabedoria, mas um simples hábito que se arraigou em mim.

— Mas como sabias que ele tinha em vista fugir?

— Porque notei que o homem empalideceu e levantou de leve um pé, preparando-se para correr. Quem o interrogará agora, tu ou eu?

— Interroga-o tu, emir! A ti talvez ele não negará coisa alguma.

— Então a tua gente que se afaste, para que a confissão se torne mais fácil. Aqui, devolve-lhes as facas! Vou interrogá-lo, mas com a condição de que me entregues também o julgamento e não me oponhas embargos à execução da sentença a que eu condená-lo.

O Mirza aceitou prazerosamente a condição.

Agora chegava Halef com o criminoso, que se mostrava perturbadíssimo. A um sinal meu, Halef o trouxe para a frente do local em que me achava abancado ao lado do Mirza. Contemplei-o por algum tempo agudamente e depois declarei-lhe:

— O destino que tomaras depende tudo de ti; se confessares sinceramente a tua falta contarás com a nossa indulgência; mas se negares, prepara-te a fim de viajares hoje para o djehenah!

— Senhor, contarei tudo, — disse o indigitado — mas por amor de Deus toca daqui o cachorro!

— O cão ficará postado à tua frente, até concluirmos o interrogatório. Ele está pronto para te estraçalhar ao menor aceno meu. Agora, responde-me sinceramente: fôste tu o libertador de Saduk?

— Sim, fui eu mesmo.

— E por que o fizeste?

— Por que lhe fizera um juramento.

— Quando?

— Antes de encetarmos esta jornada.

— Como lhe poderias ter jurado alguma coisa, se Saduk é mudo e consequentemente não pôde falar contigo?

— Senhor, eu sei ler — respondeu o homem com orgulho.

— Então conta o resto!

— Saduk e eu estivemos sentados a sós no pátio; escreveu ele então num pergaminho a pergunta se eu o estimava. Respondi-lhe que sim, pois compadecia-me dele, por lhe haverem arrancado a língua. Ele escreveu depois que também me estimava e que deveríamos ser amigos e irmãos de sangue. Concordei e então juramos por Alá e sobre o Kuran que jamais nos abandonaríamos mutuamente e que estaríamos ao lado um do outro em todos os perigos e provações da vida.

— Falas a verdade?

— Posso provar-te o que digo, emir, porque conservo ainda em meu poder o pergaminho em que foram aquelas palavras escritas.

— Onde está o pergaminho?

— Aqui na minha cinta.

— Mostra-me.

O homem passou-me a folha; estava suja mas nela se podiam ainda ler nitidamente aquelas palavras. Mostrei o pergaminho ao Mirza; este o leu e meneou a cabeça com ar de que acreditava nas palavras do interrogado.

— Fôste muito imprudente — disse eu ao homem. — Fizeste aquele juramento, sem antes refletir se o mesmo não redundaria talvez em teu mal.

— Emir, todos o tomávamos por um homem leal!

— Conta o resto!

— Nunca supus que ele fosse um biltre, razão por que dele me compadeci, ao vê-lo preso. Lembrei-me então do meu juramento de estar ao seu lado em todos os perigos e provações da vida e temi que Alá me castigasse, caso eu não cumprisse o juramento. Por isso, esperei o momento em que todos se haviam retirado e libertei Saduk.

— Falou ele contigo?

— Ele não fala, pois é mudo.

— Sei disso, mas pergunto se não te falou por meio de mímica!

— Não. Ele ergueu-se, distendeu os membros e depois de me apertar a mão pulou para o matagal.

— Em que direção?

— Naquela.

Apontou para a direção oposta ao rio.

— Quebraste a fidelidade que deves ao teu senhor e nos traiste, para cumprires um juramento feito com leviandade. Adivinha qual o castigo que receberás?

— A morte, emir.

— Sim, mereceste a morte, pois libertaste um assassino e com isso nos lançaste a todos em perigo de morte. Mas como confessaste sinceramente a falta, permito que supliques ao teu senhor um castigo mais brando. Não creio que pertenças ao rol de gente que comete o mal por odiar o bem.

O pobre homem se achava banhado em lágrimas e arrojou-se de joelhos diante do Mirza. Estava tomado de medo, de modo que os lábios lhe tremiam e ele não podia pronunciar uma palavra. A fisionomia severa do seu Senhor, cada vez se abrandava mais.

— Não fales, — declarou este — eu já sei o que me queres pedir e não posso te ajudar em coisa alguma. Eu sempre estive satisfeito contigo, mas o teu destino já não depende mais de mim; só ao emir cabe resolver a teu respeito.

— Senhor, tu ouviste! — tartamudeou o homem, dirigindo-se súplice a mim.

— É de opinião que um bom muçulmano é obrigado a cumprir o seu juramento? — perguntei-lhe.

— Sou, emir.

— Serás capaz de quebrar uma jura?

— Não e mesmo que me custasse a vida!

— E se Saduk voltar secretamente, continuarás ao seu lado?

— Não! Libertei-o, cumprido, pois, está o meu juramento. Dagora em diante, estou desobrigado do mesmo.

Singular aquele ponto de vista sobre a durabilidade de um juramento! Contudo ele nos favorecia.

— Queres tornar esquecido o teu erro, servindo o teu senhor com fidelidade e estima?

— Oh! senhor, se isso fosse possível!

— É possível, sim. Aqui aperta-me a mão e jura!

— Juro-o por Alá e sobre o Kuran, pelos califas e todos os santos que existiram!

— Bom, estás livre e continuarás ao serviço de Hassan Ardschir-Mirza. Mas guarda sempre tal juramento na memória!

O homem de alegria e felicidade, ficou quase fora de si e quanto ao Mirza notei nele que estava de acordo comigo. Contudo não pudemos trocar palavras a este respeito dada a premência de tempo, ocupados que nos achávamos com a transferência do acampamento.

 

 

Em Bagdad

Na transferência do acampamento foram os camelos que mais serviços nos deram. Os estúpidos ruminantes, habituados nos vastos desertos e planícies, andavam com dificuldade por entre as árvores e penedos. Fomos obrigados a carregarmos nós as suas cargas para a margem do rio e depois empurrá-los, por assim dizer, como se fossem viaturas. A mesma dificuldade tivemo-la na travessia do rio.

Conservara-me com Halef sempre por trás dos outros, a fim de desfazer todas as pegadas que deixávamos no solo.

De forma alguma era propósito nosso encetar imediatamente a viagem para Bagdad; pretendíamos apenas abandonar um local onde não nos achávamos mais em segurança e procurarmos outro em que estivéssemos a cavaleiro de sermos descobertos pelos ihlats e Saduk. A tardinha, depois de já havermos rumado de há muito para o sul, encontramos uma palhoça abandonada que por certo havia servido apenas de parada transitória a um único curdo, seguidamente em viagem pela zona. A palhoça recostava-se à parede de uma rocha e nos três flancos restantes era cercada por moitas e arbustos isolados. Do lado de lá das moitas avistávamos ao longe o horizonte, e no meio das mesmas era fácil de se acomodar os animais. Resolvemos fixar ali o nosso acampamento o que não demandou muito tempo e trabalho, pois este consistiu apenas em estendermos nossas colchas no solo.

 

UM ENCARGO DE CONFIANÇA

Quando terminamos o nosso serviço, anoitecera e as mulheres que habitavam a palhoça se entregavam aos seus quefazeres culinários. Foi-nos servido um gostoso jantar. Em conseqüência da forçada cavalgada de quase três dias, achava-me fatigadíssimo e não tardei em adormecer. Havia dormido já algumas horas, quando senti que me tocavam no braço, e abri logo os olhos. A velha Halwa se achava diante de mim a acenar-me. Ergui-me para acompanhá-la. Os outros dormiam todos, a não ser o persa que se achava de sentinela num macegal, de modo a não nos ver. A velha conduziu-me a um dos flancos da casa, onde se erguia uma moita de sabugueiros; lá se achava Hassan Ardschir-Mirza.

— Tens algo de importante a combinar? — perguntei-lhe.

— Para nós muito importante, pois refere-se ao prosseguimento de nossa viagem. Refleti sobre o caminho a seguir e muito folgaria se minha idéia merecesse a tua aprovação. Desculpa-me por te haver interrompido o sono.

— Dize-me o que resolveste!

— Tu já estiveste em Bagdad. Tens amigos ou conhecidos lá?

— Alguns conhecimentos passageiros, contudo não tenho dúvida de que esses homens tenham propósitos amistosos comigo.

— Então poderás lá morar com segurança?

— Não sei do que precisaria eu temer lá. Além disso, acho-me debaixo da proteção do Grão Senhor e em último caso posso também recorrer à de uma potência européia que tenha consulado naquela cidade.

— Então vou fazer-te um pedido. Conforme já te disse, a minha gente me está esperando em Ghadhim. Tenho um pressentimento de que lá não estarei em segurança e daí o pedir-te que vás tu até lá cuidar dos meus interesses.

— Prazerosamente. Quais as incumbências que tens a confiar-me?

— Os camelos que lá encontrares carregam os meus cabedais que pude salvar. Isto no prosseguimento da viagem será trabalhoso de conduzir; resolvi, pois, vender tudo. Queres te encarregar da venda?

— Sim, desde que me dás uma tão elevada prova de confiança.

— Confio muito em ti. Mandarei um dos meus servos acompanhar-te, o qual te legitimará junto com uma carta minha, ao Mirza Selim Agha. Converterás tudo em dinheiro, inclusive os animais e depois pagarás o pessoal e o despedirás.

— E o Mirza Selim Agha não se encolerizará por lhe não haveres confiado a ele tal incumbência? Ele te serviu com fidelidade e dedicação. Afrontando os maiores perigos, conduziu-te os cabedais até Bagdad; portanto fêz jus à tua confiança.

— Não me contraries, emir, pois sei o que faço. Ele será o único que não despeço dos meus serviços com o que poderá dar-se por muito satisfeito. Acho que desempenharás melhor o encargo do que ele e, além disso, outra razão há para eu tomar tal deliberação, razão que depois direi. Encontrarás logo uma residência em Bagdad?

— O difícil será unicamente a escolha.

— Confiar-te-ei não só os meus haveres, como também a minha “casa”, emir. Aceitas?

— Hassan Ardschir-Mirza tu me causas surpresas e me deixas embaraçado! Reflete que sou um homem e um cristão!

— Não te pergunto se és cristão ou muçulmano, pois, quando me arrancaste das mãos dos bebbehs também me não fizeste antes tal pergunta. Eu preciso tudo fazer para escapar dos meus perseguidores. Estes, não devem saber onde se acha Hassan Ardschir-Mirza; por isso entrego-te os meus cabedais e te confio a minha “casa” para que esta durante a minha ausência fique debaixo de tua proteção. Sei que respeitarás a honra de minha mulher e de minha irmã Benda.

— Nem exigirei que elas se apresentem diante dos meus olhos e tampouco que falem comigo. Mas que ausência é esta de que falas, Mirza?

— Enquanto permaneceis em Bagdad, irei na companhia do Mirza Selim Agha a Kerbela enterrar os despojos de meu pai.

— E te esqueces de que também eu pretendo ir a Kerbela!

— Emir, desiste dessa idéia; é bastante perigosa para ti. Sim, estiveste em Meca sem perder a vida; mas tem em vista a diferença que há entre Meca e Kerbela. Lá se acham muçulmanos devotos e pacatos e em Kerbela homens fanáticos que diante da representação da tragédia de Hossein se perturbam até ao delírio e desandam nos paroxismos do ódio, que muitas vezes sacrificam até os próprios crentes. Basta um deles desconfiar de que não és um chiita, ou mesmo que nem muçulmano és, para que sofras a morte mais horrível que se possa conceber. Segue os meus conselhos, e abandona o teu propósito.

— Bem! Em Bagdad resolverei sobre o assunto. Mas quer eu vá quer fique, fica certo, Hassan Ardschir-Mirza, de que tua “casa” ficará protegida e de que nada lhe sucederá.

Com isso terminara a nossa conferência.

Ficamos cinco dias acampados naquele local e só prosseguimos na jornada, depois de estarmos certos de que todos os componentes da caravana haviam refeito suas forças. A cavalgada através das montanhas realizou-se com mais êxito do que esperávamos e, ao contrário de minhas suposições, não tivéramos o menor encontro com os árabes, o que deveríamos agradecer mais ao nosso espírito de precaução do que à boa vontade dos beduínos.

Por trás de Beni Seyd, cinco dias distantes de Bagdad, fizemos alto num canal. Daqui deveria eu partir para Ghadhim a falar com o Mirza Selim Agha a quem Hassan Ardschir confiara os seus haveres. A nossa pequena caravana escolhera para acampamento um ponto em que não era de recear o menor incômodo por parte de inimigos e salteadores. Ajudei primeiramente a organizar o acampamento e depois me foi entregue a carta na qual o Hassan me acreditava junto ao seu súdito.

— Mas encontrarei realmente boa vontade da parte do Selim Agha? — perguntei-lhe ainda.

— A ele cabe obedecer-te como se tu fosses eu em pessoa. Tomaras conta de tudo o que ele conduz e depois de não necessitares mais dele, manda-o para cá, juntamente com o emissário que te vai acompanhar agora. Ficarei aqui até a tua volta. Venderás tudo o que tenho e o que fizeres está bem feito.

O inglês notou os preparativos para o prosseguimento da viagem e perguntou:

— Para Bagdad, mister? Irei junto!

Não me opunha a isso. Mas outro também pretendia acompanhar-me: era Halef. Isso, porém, não era possível, visto que a sua presença era necessária para a defesa do acampamento.

 

GHADHIM

Partimos e daí a duas horas alcançávamos a terceira curvatura do Tigre acima de Bagdad em cujo interior, na margem oposta do rio, ficava situada Ghadhim. Desviamo-nos para a direita da estrada-correios que conduz para Kerkuk, Erbil, Mossul e Diarbekir e passamos pela grande olaria que ali existe. Atravessando lindas alamedas de palmeiras, atingimos Ghadhim que é habitada exclusivamente por chiitas persas.

Aquela localidade está situada dentro do solo “santo”, visto que nela está o túmulo do Imam Ibn Dschafer. Esta célebre personalidade fizera a peregrinação a Meca ao lado do califa Harun al Raschid. Nesta última cidade Imam Ibn Dschafer saudou o profeta com as palavras: “Salve, Pai”! ao passo que o califa havia feito a sua saudação com o seguinte: “Salve, primo”! — “Como, pretendes ser parente mais próximo do profeta que eu que sou o seu legítimo sucessor?!” — trovejou-lhe Harun encolerizado. Desde aquele dia o califa passou a odiá-lo no mesmo grau em que antes o estimava e o preferia. Imam Ibn Dschafer foi depois lançado na masmorra, onde morreu. Mas depois de sua morte ergueram-lhe um pomposo templo sobre o túmulo, templo cuja cúpula é toda de ouro maciço, encimada por quatro imponentes minaretes.

Ghadhim tornou-se notável em virtude de possuir uma instituição de utilidade pública, modelo ocidental, e que a distingue das outras, causando por isto mesmo uma impressão estranha ao viajor: possui ela uma estrada de rodagem e um serviço regular de correio; a estrada tem por ponto de partida o local fronteiro ao arsenal de Bagdad. Foi ela mandada construir pelo espírito altamente adiantado e reformador do regente Midhat Paxá, que mais tarde tão saliente papel veio representar em Istambul. Não tivesse aquele homem sido chamado do cargo de governador geral de Iraque para exercer outras funções governamentais e a Mesopotâmia estaria hoje suprida de uma via férrea cujo objetivo seria ligar os territórios do Tigre e Eufrates através das principais regiões da Síria até Constantinopla. Infelizmente, porém, aquele empreendimento de vulto até hoje não passou de projeto. Midhat Paxá foi forçado naquela época a reunir à chibata os interessados pela construção de sua estrada de rodagem, o que nitidamente ilustra a estabilidade do maometanismo.

Os persas que povoam Ghadhim são em maioria mercadores e negociantes, que diariamente vêm a Bagdad para negócios. E para encontrar o Agha entre aquela população precisava eu procurar uma estação de caravanas que em Bagdad há muitas e em Ghadhim algumas.

 

UM ENCONTRO QUE DEGENERA EM PUGILATO

Era meio dia e nos achávamos no mês de julho. O calor era asfixiante; a temperatura estava a 35 graus Reaumur. Uma aragem muito leve soprava pela cidade e todos que encontrávamos traziam os rostos debaixo de véus. Numa das ruas encontramo-nos com um homem ostentando riquíssimos trajes persas; montava fogoso cavalo tordilho aperado com um reschma, arreios custosíssimos com os quais só os mais abastados poderiam ornar os cavalos. Em face daquele homem nós com nossas vestes nos assemelhávamos a verdadeiros bandoleiros.

— Ez andscha, tschepu rast; raspai-vos daqui, desviai pela direita! — trovejou-nos o homem fazendo com o braço um sinal de aborrecimento.

Eu cavalgava ao lado do inglês, mas a rua era tão larga que o persa poderia com muita folga passar por nós. Eu lhe teria feito a vontade, se não tivesse acompanhado as suas palavras do gesto de menosprezo.

— Há suficiente lugar para passares! — trovejei-lhe, olhando-o de través. — Avante!

Ao invés de passar, atravessou ele o tordilho em nossa frente e urrou:

— Porcos de sunitas, não conheceis o lugar onde vos encontrais; afasta-te do caminho, se não o meu chicote indicará a tua vereda!

— Pois experimenta!

O homem desapresilhou o chicote manufaturado em couro de camelo, do serigote e o levantou para o golpe. Este não me atingiu, porém, porque Rih desviou-se e a galope passou por ele. De passagem, desferi-lhe um soco na cara que ele, apesar de montar num serigote oriental, tombou ao solo. Eu queria prosseguir calmamente o meu caminho; mas nesse instante ouço, além do furioso praguejar do homem, a voz assustada do servo que nos fora posto à disposição por Hassan Ardschir Mirza exclamar:

— Az baray chodeh — Por amor de Deus, este é o Mirza Selim Agha!

Virei-me imediatamente e volvi para o local do incidente. O meu antagonista tornara a montar e brandia o alfange. Só agora é que reconhecera o servo.

— Arap, és tu! — exclamou ele. — Como vieste parar na companhia desses naschijestan (1), que Alá amaldiçoe?!

Não deixei o servo responder, e retruquei:

— Cala-te! O teu nome é Mirza Selim Agha?

— Sim — respondeu, colhido de surpresa pelo tom de minha pergunta.

Aproximei o meu cavalo rente ao dele e disse-lhe à meia voz:

— Sou um enviado de Hassan Ardschir Mirza. Conduze-me à tua residência!

— Tu?! — perguntou, admirado, medindo-me o exterior com um olhar. — Depois dirigiu-se ao servo com a pergunta:

— É isso verdade Arap?

— É sim — respondeu o mesmo. — Este efêndi é o emir Kara Ben Nemsi, que tem uma carta do nosso senhor a entregar-te.

Mais uma vez o olhar desprezível, desaforado mesmo do Agha repousou sobre nós; depois declarou em tom arrogante:

— Vou primeiro ler a carta e depois ajustar contas contigo. Hás de pagar-me caro o bofetão que me desferiste! Acompanhai-me, mas à distância; a vossa promiscuidade ofende-me as vistas!

Aquele homem era, pois, o Schah-Swar, o fiel, que abandonara seu posto no exército persa, a quem o Mirza confiara os seus cabedais e que conquistara até o coração da jovem Benda, pois até isso o Mirza me dissera em horas de confidencias. Pobre moça! E se aquele Agha realmente fosse um Schah-Swar, isto é, um extraordinário cavaleiro, devia também ter aprendido a julgar o homem pelo cavalo que monta e neste particular, nem eu nem o inglês poderíamos ser tomados por gente da ralé. Além disso, fora uma imprudência sua andar na qualidade de fugitivo, de um modo tão ostensivo, trajando-se de maneira a chamar para si a atenção de todos e mantendo uma postura tão arrogante que nem em individualidades de maior relevo se justificaria. Nem por sombras estava eu inclinado a fortalecer-lhe o orgulho e a arrogância; antes, fiz um sinal a Lindsay que, compreendendo-o logo, cavalgou para frente e nós os dois passamos a escoltar o fanfarrão.

— Cão! — trovejou-me este. Afasta-te de mim, do contrário mandar-te-ei chibatar!

— Cala-te, biwakuf, (2) — retruquei-lhe — do contrário te mandarei novamente o punho no nariz! Aquele que passeia usando os aperos do seu Senhor, pode facilmente arrogar-se um grande homem sem o ser! Cuida-te, que te ensinarei a ser cortês!

O homem nada me respondeu e colocou de novo o véu sobre o rosto, que com

a queda se descobrira. Devido ao véu, é que ele não reconhecera logo o servo nosso

 

(1) Indivíduo sem honra.

 (2) Estúpido.

 

guia.

Cavalgamos por várias ruas estreitas e por fim o Agha parou defronte a um muro baixo, que, estando quebrada a cancela, era fechada por meio de alguns sarrafos. Um homem veio-nos abrir a porteira, se é que tal nome se pudesse dar àquilo. No interior do pátio deparamos logo com um certo número de camelos deitados a receber forragem, que se compunha de papa feita de farinha de cevada e semente de algodão, forragem que em Bagdad se distribui aos animais. Por ali jaziam no solo vários vultos de homens em atitude de preguiça, os quais ao avistarem o Agha ergueram-se de chofre, em atitude respeitosa. Ao que parecia, aquele pequeno comandante soubera se impor ao respeito de sua gente.

O homem entregou o seu tordilho a um dos servos para acomodá-lo e nós deixamos as nossas montarias entregues ao servo que nos acompanhara. Depois conduziu-nos à casa, cuja frente formava os fundos do muro. Descemos por uma escada ao sardaubs (3), uma necessidade para a canícula reinante na região. O compartimento quadricular estava “mobiliado” com várias almofadas recostadas à parede; sobre uma das almofadas havia um serviço de café todo de prata maciça; ao lado via-se um kukah (4) de alto preço e na parede se achavam dependurados, além de várias armas de alto valor, certo número de tjibuks destinados aos hóspedes eventuais. Num vaso antiquado, de porcelana, onde se via representada uma cabeça de chinês, havia fumo e do meio do teto pendia uma lâmpada cheia de azeite de sesam.

Correspondendo ao meio, constituía tudo aquilo uma instalação verdadeiramente principesca, razão por que eu estava longe de supor pertencer a mesma ao Agha.

 

ACOLHIDA POUCO HOSPITALEIRA

— Saiam aleikum! — saudei à entrada.

Lindsay fêz o mesmo, mas o Agha não nos correspondeu a saudação. Abancou-se numa das almofadas e bateu palmas. Imediatamente lhe apareceu um dos homens que eu vira no pátio e que recebeu ordem de acender o kukah. Isto foi feito com vagarosidade verdadeiramente oriental, com solenidade de gestos, enquanto nós permanecíamos durante toda a cerimônia como moleques de rua postados na porta. Finalmente a gloriosa tarefa concluíra-se e o criado se afastou indo parar por trás da porta, a ouvir o que se falaria. Agora, afinal, julgou o Agha ter chegado o momento de nos dedicar a sua atenção. Depois de expelir algumas espirais de fumaça, perguntou, sem mandar que nos aproximássemos:

— De onde vindes?

Aquela pergunta era aliás supérflua, pois pelo criado já soubera do objetivo de nossa vinda; contudo em atenção a Benda, irmã do Mirza, resolvi evitar o mais possível que o homem se irritasse conosco. Por isso respondi-lhe.

— Somos emissários de Hassan Ardschir-Mirza.

— Onde se encontra ele?

 

(3) Pavimento térreo.

(4) Cachimbo persa, meio termo entre nargilé e tjibuk.

 

— Nas proximidades da cidade.

— E por que não vem ele em pessoa?

— Por medida de precaução.

— Quem sois?

— Somos dois frankes.

— Giaurs? Ah! Que fazeis neste país?

— Viajamos a conhecer as suas cidades, aldeias e populações.

— Sois muito curiosos! De uma tamanha falta de educação só mesmo os caffirs são capazes. Como viestes a vos encontrar com o Mirza?

— Pelo caminho.

— Grande novidade! Onde, queria eu perguntar.

— Do outro lado, nas montanhas do Curdistão. Estivemos no seu acampamento até hoje. Sou portador de uma carta para ti.

— Constitui imperdoável leviandade da parte do Mirza declinar-vos o seu nome e, o que é mais grave ainda, confiar à gente de vossa laia, uma carta. Sou um crente; nada posso receber diretamente de vossas mãos; entregai a carta ao servo que vou agora chamar!

Aquilo já era mais do que descaramento! Contudo repliquei em tom calmo:

— Não considero o Mirza um homem leviano e peço-te lhe dizeres isto pessoalmente. Além disso, ele jamais se utilizou de terceiros para receber alguma coisa de nossas mãos.

— Cala-te, caffir! (5) Sou Mirza Selim Agha e faço o que bem me aprouver! Conheceis todas as pessoas que fazem parte da caravana do Mirza?

Respondi-lhe afirmativamente e ele continou a interrogar-me, inclusive se também havia mulheres na comitiva do persa e caso afirmativo quantas.

— Duas senhoras e uma serva — respondi-lhe.

— Viste-lhes as figuras?

— Mais de uma vez!

— Foi uma grande imprudência do Mirza. Os olhos de um infiel jamais devem repousar nem sequer nas vestes de uma mulher!

— Dize-o pessoalmente ao Mirza!

— Cala-te desavergonhado! Não preciso dos teus conselhos! Ouvis-te as vozes das mulheres?

Aquele sujeito grosseiro submetia-me a paciência a duras provas!

— Em nosso país não se pergunta pelas mulheres dos outros de modo a dar na vista. Não se adota aqui o mesmo hábito de civilidade? — retruquei-lhe com energia.

— Tens o arrojo de me fâlares neste tom?! — trovejou-me o homem. — Cuida-te! Além disto preciso ainda liquidar contas contigo, sobre o soco que me desferiste há pouco na face. Isto o farei depois. Por enquanto, porém, entrega a carta!

 

(5) Infiel.

 

INVERTEM-SE OS PAPÉIS

Bateu novamente palmas. O criado apareceu, mas não lhe dei atenção. Tirei a carta do bolso e com ela estendi a mão ao Agha.

— Entrega-a ao servo! — ordenou-me, apontando para o serviçal. — Compreendeste?!

— Bom, neste caso voltarei para o local de onde vim. Passa bem, Mirza Selim Agha! — Virei-me e o inglês também.

— Alto! Não permito que vos retires! — exclamou o Agha ordenando depois ao servo:

— Não os deixes sair!

Eu já alcançara a porta e o servo travou-me do braço para deter-me. Aquilo foi demais. Sir Lindsay não compreendera o nosso diálogo, mas pelos gestos e pela seriedade de nossas fisionomias, depreendeu logo não havermos trocado lá muitas amabilidades. Por isso pegou o delgado persa pelas ilhargas, ergueu-o e arrojou-o pelos ares na extensão de todo o compartimento, de encontro ao Agha, derribando-o no solo.

— Fiz bem, mister? — perguntou-me, a seguir.

— Yes! Well!

O Agha ergueu-se de salto e pegou da espada.

— Cães! Corto-vos a cabeça!

Agora, sim, estava a tempo de ministrar-lhe eu uma liçãozinha. Avancei para ele e lhe desferi um soco no braço, que a espada caiu-lhe no chão; depois travei-lhe dos ombros.

— Selim Agha, não és tu o homem capaz de decapitar-nos; senta-te e daqui por diante porta-te com obediência. Eis a carta e ordeno-te que a leias imediatamente!

Pronunciadas tais palavras, com ambas as mãos premi violentamente o homem, fazendo-o sentar-se na almofada. Atônito, o Agha nem se lembrou de resistir; olhava-me, perplexo, pronto a obedecer-me. Virei-me e vi que o seu valente servo preferiu concentrar-se corajosamente na retaguarda... Desaparecera e, ao bater eu palmas, arriscou apenas meter a cabeça pela abertura da porta semi-aberta.

— Entra! — ordenei-lhe.

Obedeceu-me, mas permanecia pronto para a fuga, diante da porta.

— Arranja cachimbos e café! Depressa!

Olhou-me primeiro estarrecido e depois interrogativamente ao Agha; aproximei-me dele e o empurrei para o local em que os cachimbos se achavam dependurados na parede. Aquele ato impôs-me difinitivamente ao seu respeito, visto que o homem colocou-nos logo os cachimbos entre os lábios, ao mesmo tempo que nos oferecia fogo para os acendermos.

— Agora o café! Anda! Depressa e do bom!

O servo desapareceu girando os calcanhares ligeiro como uma flecha.

Refestelamo-nos sobre os divãs fumando displicentemente à espera de que o Agha terminasse a leitura da carta. O homem fazia-o lentamente; disso, porém, não tinha culpa o seu apoucado desenvolvimento em leituras; antes o conteúdo da carta é que talvez lhe parecesse tão estranho, que ele mal se podia aperceber do mesmo!

Era uma linda, mas muito linda figura de homem; vi-o, agora que dispunha de bastante tempo para observá-lo. Tinha carregadas olheiras. O que denunciava desperdício de energia e de tempo em libertinagens; também em seu semblante havia um que de indefinível que, após um exame mais detido, para ele atraía franca repulsa. Aquele Selim Agha não era por certo o homem para fazer feliz Benda, a formosa irmã do Mirza.

Nesse entretempo, apareceu o servo, trazendo as xícaras de café em pires de fina porcelana. Ao invés de duas chícaras, trazia umas duas dúzias de xícaras, para que logo se pudesse retirar sem ser chamado novamente. Também o Agha dava mostras de haver recuperado o equilíbrio íntimo. Dirigiu-me os seus olhares ensombreados e perguntou-me:

— Como te chamas?

— Costumam tratar-me Kara Ben Nemsi.

— E como se chama este outro?

— David Lindsay-Bei.

— É para eu entregar-te tudo?

— Pelos menos é o que ordena o Mirza.

— No entanto eu não entregarei coisa alguma.

— Faze o que bem te aprouver; não me cabe dar-te ordens.

— Volverás imediatamente à presença do Mirza a transmitir-lhe o meu recado.

— Não faltava mais nada.

— Por que não?

— Porque assim como não me compete dar-te ordens a ti também não cabe dar-mas; eu faço o que melhor entender.

— Bom! Enviarei um emissário ao Mirza e não deixarei esta antes de obter resposta.

— O teu emissário não o encontrará.

— Arap, que vos conduziu aqui, deve conhecer o local em que se encontra o seu senhor!

— Claro que conhece!

— Pois a ele é que enviarei.

— Arap não irá!

— Por quê?

— Porque não quero que ele vá! Hassan Ardschir-Mirza incumbiu-me de receber os seus cabedais das tuas mãos e enviar-te juntamente com Arap para o seu atual acampamento. E é o que vou fazer, não modificando nada em tal incumbência. Arap só voltará para junto do seu senhor, acompanhado por ti.

— Tens a presunção de forçar-me à obedecer-te as ordens? Arriscas-te muito!

— Pah, presunção! Arriscar! Que arriscaria eu contigo?! Se tu te igualasses a mim, falar-te-ia eu em bem outros termos; mas eu sou um emir de Frankistão e tu um modesto Agha dos persas. Além disso, tu nem ao menos aprendeste a maneira de se conviver com homens de linha. Na rua exiges que te demos lugar como se fosses um grande da terra; aqui na tua casa te esqueces de corresponder-nos à saudação; não nos convidaste a sentar-nos; não nos serviste café e cachimbos; chamaste-nos de caffires, porcos e cães. Entretanto de um verme não passas diante de nós e do teu senhor, o Mirza! Com um leão, luto eu; mas com um verme não me preocupo, se lhe apraz revolver-se no lodo e nos monturos! Hassan Ardschir-Mirza confiou-me os seus cabedais; portanto aqui ficarei. Agora faze lá tu o que não podes deixar de fazer!. . .

— Hei de apresentar minhas queixas contra ti! — retrucou o homem,

— Não me oponho a isso.

— Não te entregarei coisa alguma!

— Nem é preciso, pois aqui já me abanquei tomando conta de tudo.

— Não tocarás em nada!

— Tocarei daqui por diante em tudo que me foi entregue a mim pelo legítimo dono. E se me importunares levarei logo o fato ao conhecimento do Mirza. Por enquanto, porém, dá ordens no sentido de nos servirem uma boa refeição, visto que já não sou hóspede nesta casa, mas o próprio senhor.

— Esta casa não pertence nem a ti nem a mim.

— Não há dúvida; tu, porém, a alugaste. Não cries embaraços à missão que aqui me trouxe. Dou-te uma alta prova de consideração, permitindo que continues a distribuir as ordens entre o pessoal; mas se não corresponderes a este gesto de fidalguia com que te cumulo, saberei eu em pessoa ordenar o que me apraz e também saberei fazer com que me acatem as determinações.

O homem viu-se num beco sem saída, como se diz em linguagem vulgar. Ergueu-se da almofada e fêz menção de retirar-se.

— Para onde? — inquiri-lhe.

— Ordenar que vos seja trazida uma refeição.

— Isto podes muito bem fazer, daqui mesmo. Chama o servo!

— Homem, porventura sou teu prisioneiro?

— Mais ou menos! Pões embaraços no exercício do meu direito; portanto sou obrigado a impedir que saias daqui, visto ser bem possível que desejes empreender alguma coisa que não me convenha.

— Senhor, ignoras por completo quem eu sou!

Pela primeira vez o homem tratava-me de Senhor; perdera, pois, o senso da segurança individual.

— Como não? Sei até muito bem — repliquei-lhe. — És Mirza Selim Agha e nada mais!

— Sou amigo e pessoa da confiança do Mirza. Sacrifiquei tudo para acompanhá-lo e pôr-lhe a salvo os haveres.

— É uma ação louvável e meritória de tua parte, não há duvida; um servo jamais deve quebrar a sua fidelidade ao senhor. Acompanhar-me-ás agora à presença do Mirza.

— Sim, com isso concordo; vamos já!

— Este meu companheiro aqui permanecerá e providenciarás para que não lhe falte coisa alguma. Quanto ao resto, Hassan Ardschir que resolverá.

 

DE VOLTA AO ACAMPAMENTO DO MIRZA

Ministrei as instruções ao inglês que muito folgou com elas. Era-lhe mais agradável ficar ali na sombra a tratar-se do que, como a mim me ia acontecer, fazer uma cavalgada de retorno debaixo de um sol abrasador. Depois de haver também o Agha dado as necessárias ordens ao seu pessoal, passamos para o pátio onde ele ia montar o excelente tordilho, que comprara em Ghadhim com o dinheiro do Mirza.

— Deixa este; monta outro cavalo! — ordenei-lhe. Olhou-me admirado e perguntou:

— Por quê?

— Para que tua figura não caia na vista. Toma um cavalo dos criados para esta curta viagem!

Se me levou a mal ou não a ordem isto era lá com ele; pouco se me dava! O servo Arap nos acompanhou. A fim de despistar alguns prováveis curiosos ou quiçá perseguidores mesmo, rumei para Madhim, que fica fronteira a Ghadhim, e, depois, por um atalho seguimos para o norte.

Madhim é uma vila de certo renome, situada à margem esquerda do Tigre e dista de Bagdad, ao norte, cerca de uma hora. Lá se acha sepultado o Iman Abu Hanife, um dos fundadores das quatro escolas ortodoxas do Islã; por ele guiam-se todos os livros de leis e rituais dos osmanlis. Primitivamente sobre o seu túmulo erguia-se uma mesquita mandada construir por Seldschukide Melek-Xá; mas quando o primeiro osmanli, Euliman I, dominou Bagdad, constituiu um castelo sobre o sepulcro. Abu Hanife foi envenenado pelo Califa Mansur que lhe votava ódio mortal; agora milhares de chiitas peregrinam anualmente à sua sepultura.

Decorreram duas horas, até alcançarmos o local em que se achava o Mirza acampado. Este ficou visivelmente surpreendido ao ver que eu retornava, mas recebeu o Agha com grande contentamento.

— Por que voltas? — perguntou-me o Mirza.

— Pergunta a este homem! — respondi-lhe, indicando o Agha.

— Então, fala! — ordenou depois a este. O Agha exibiu-lhe a carta e perguntou-lhe:

— Senhor, fôste tu quem escreveu isto?

— Foi. Conheces minha letra, por que, pois, me fazes tal pergunta?

— Por que ordenas uma coisa que eu nunca esperava e tampouco merecia?

As mulheres se postaram por trás das ramagens dos arbustos a ouvir o que falávamos.

— Que não esperavas tu? — perguntou-lhe Hassan Ardschir.

— De ter que entregar tudo quanto salvamos, a este estranho.

— Este emir não é nenhum estranho, mas meu amigo e irmão.

— Senhor, também eu não sou teu amigo?

— Ês meu servo de confiança; quando, porém, te dei o direito de te dizeres meu amigo?

— Senhor, abandonei a pátria; sacrifiquei o meu futuro; tornei-me fugitivo; vigiei e defendi as tuas riquezas: procedi então como amigo ou não?

— Procedeste como era de esperar de todo servo fiel e tal qual procederam todos os outros que compõem minha caravana. Tuas palavras doem-me, pois jamais julguei que serias capaz de creditar o cumprimento dos teus deveres à conta de favores para comigo. Não te disse eu nesta carta que obedecesses ao emir como se fosse a mim em pessoa?

A voz do Mirza adquirira um tom de gravidade; o Agha viu-se em sérios apuros, notadamente quando deu pelas mulheres a espreitar a conversa, ocasião em que procurou escusar-se dizendo:

— Senhor, este homem bateu-me, quando me encontrou!

O Mirza dirigiu-me um olhar e riu-se, replicando depois:

— Mas Selim Agha por que não o mataste? Como permitiste tu que te ofendessem de tal forma! Por que te bateu ele?

— Encontramo-nos numa das ruas e eu ordenei-lhe que fizesse lugar à minha passagem. O homem, além de não me obedecer, bateu-me na face com tamanha violência que me fêz tombar do cavalo.

— É isto verdade, emir? — perguntou-me o Mirza.

— Mais ou menos. Eu não o conhecia e o servo também não o reconheceu de momento, visto que o Agha trazia o véu no rosto. Cavalgava, ele um fogoso corcel tordilho aperado com os teus finíssimos arreios; tomei-o à vista disso, por um grande senhor. Ordenou-nos o Agha que abríssemos ala à sua passagem, não obstante haver suficiente lugar para ele cruzar, e a sua voz por esta ocasião tinha o tom arrogante da de um paxá. Tu me conheces bem, Mirza; gosto muito de ser cortês mas exijo que sejam também corteses comigo; chamei-lhe então a atenção para o lugar que havia, o qual dava para ele passar folgadamente sem nos molestar; o Agha então agarrou o chicote, chamou-me de porco e tentou chicotear-me. Foi então que no próximo instante jazia ele no solo arrojado por mim e só depois disso é que eu soube, infelizmente já tarde, de que se tratava do homem ao qual tu me havias enviado. É tudo quanto eu tinha a dizer. Agora fala com ele mesmo que me vou retirar; se precisares de mim, chama-me.

Dito o que, retirei-me indo para junto dos cavalos, palestrar com Halef.

 

UM TESOURO FABULOSO

Meia hora depois fui procurado por Hassan Ardschir-Mirza. Sua fisionomia mostrava profundas rugas de contrariedade.

— Emir, muitos aborrecimentos me causou tudo o que aconteceu. Estás disposto a perdoar àquele imprudente Selim Agha?

— Prazerosamente, se com isso te alegras! Que resolveste?

— Ele não voltará mais contigo.

— Assim o espero.

— Eis aqui uma relação de tudo quanto eu lhe entreguei. Avaliarás esses cabedais e os venderás: concordarei com tudo que realizares neste sentido, pois sei quanto é difícil achar compradores em tão curto lapso de tempo. Feito o que despedirás os meus servos, pagando-lhes os salários e gratificações que vão assinalados nesta lista à parte. O dinheiro para este pagamento já coloquei na maleta do teu serigote. Quando deverei partir para Kerbela?

— Estamos hoje a primeiro de Moharrem e a dez realiza-se a festa. Quatro dias de viagem levam-se para, de Bagdad, alcançar Kerbela, onde se prefere estar um dia antes da festa; portanto o dia cinco é o designado para a partida.

— Então tenho que me conservar oculto por aqui durante quatro dias!

Não. Há de se encontrar na cidade um lugar seguro para te conservares juntamente com os teus servos. Queres ficar com tudo que tens contigo atualmente?

— Não, também estes haveres devem ser convertidos em dinheiro.

— Neste caso dá-me tudo que te fôr dispensável para eu levar logo junto e dize-me o preço pelo qual deve ser vendido. Há muita gente rica em Bagdad. Talvez me seja possível encontrar um parsi ou armênio que adquira tudo num só lote.

— Mas, emir, o preço de tudo constituirá uma fortuna!

— Deixa isso comigo! Zelarei tanto pelos teus interesses como se estivesse curando dos meus próprios.

— Confio em ti. Vem, vamos examinar os haveres!

Os pacotes e fardos foram abertos e diante dos meus olhos pasmados depararam-se objetos de alto valor, como em tanta variedade e quantidade jamais vira eu. De tudo fizemos uma relação, após o que o Mirza marcou os respetivos preços. Estes eram muito baixos, levando-se em consideração o verdadeiro valor dos objetos; contudo representava o total uma verdadeira fortuna.

— E que farás dos servos que te acompanham, Mirza? — perguntei-lhe.

— Presentear-lhes-ei e os despeço dos meus serviços, assim que encontrar uma residência fixa.

— Para quantas pessoas deve ser a casa?

— Para mim, o Agha, as mulheres e sua serva. Depois tomarei a meu serviço um criado que não me conheça.

— Espero conseguir-te tudo isso. Manda carregar os objetos.

— Quantos tocadores de camelos levarás?

— Nenhum. Basta Halef e eu.

— Emir, não concordo! Não é serviço para ser feito por ti.

— Por que não? Queres que eu leve comigo gente que depois em Ghadhim e Bagdad se me tornem verdadeiros fardos?

— Bom, faze o que melhor achares. Cedo à tua vontade.

Os camelos foram carregados e amarrados uns aos outros e nós nos preparamos para a partida.

— Agora, dá-me um sinal que me acredite junto do teu pessoal — pedi ao Mirza.

— Leva o meu anel oficial.

Jamais sucedera-me usar um anel persa de alto preço como aquele. Após haver eu enfiado o anel, a caravana se pôs em movimento. O Agha não se deixou ver mais e eu não tive de fato a menor vontade de despedir-me dele.

Desta vez gastamos mais tempo em alcançar o Tigre e transpô-lo. Contudo a viagem decorreu bem.

Os persas se admiraram, quando entramos no pátio com o carregamento. Reuni-os imediatamente, exibi-lhes o anel do seu senhor e avisei-os de que daqui por diante cabia-lhes obedecerem exclusivamente a mim, que substituía o Agha.

Soube depois por intermédio deles que o dono da casa em que nos alojávamos era um abastado negociante em grande escala, morador do outro lado de Bagdad, no arrabalde do oeste, próximo de Medresse Mostansirs. Num vasto compartimento da casa se achavam depositados os cabedais conduzidos pelo Agha. Ali mandei depositar também os valores por nós trazidos. Resolvera eu só no dia seguinte entregar-me à tarefa que me fora confiada, visto achar-me fatigado.

Examinando a maleta do serigote, ali encontrei a soma de que o Mirza me falara. Compunha-se em seu total de tomans altamente cotados e representavam quantia quatro vezes maior do que a que eu precisava para o pagamento dos servos. Confiei a Halef a chefia dos servos persas e saí em procura do inglês.

Este se achava deitado preguiçosamente sobre um divã. O nariz se lhe movimentava, obedecendo rigorosamente ao compasso marcado pela respiração: de boca aberta roncava o homem.

— Sir David!

Ouviu-me logo, ergueu-se de um salto e puxou da faca.

— Quem é? Oh! Ah! All right! É o senhor, mister!

— Yes! Como vai o senhor?

__ Bem, muito bem! Esplêndido, aqui em Ghadhim!

— Veja como suo! Infernal esta soalheira.

— Well! Deite-se aqui e durma também!

— Temos mais que fazer. Antes de tudo quero finalmente comer alguma coisa.

— Bata palmas e o sujeito logo aparece.

— Já experimentou?

— Yes. Mas não lhe compreendi uma só palavra. Pedi cerveja “Porter” e ele trouxe-me angu; mandei que me servisse cherry e ele me veio com tâmaras. Horrível!

— Pois vou experimentar a ver se tenho melhor sorte.

Bati palmas e no mesmo instante surgiu o servo, o mesmo que atendera ao Agha. Primeiramente comuniquei-lhe que eu estava substituindo o Agha.

— Senhor, dize-me como devo tratar-te! — pediu-me o criado.

— Me tratarás de emir e a este mirza ali de bei. Providencia logo para que me seja trazida uma refeição.

— Que preferes comer, emir.

— O que houver. Não esqueças de trazer também água fresca! És o mestre-cuca?

— Sou, emir. Espero que ficarás satisfeito comigo.

— De que modo te pagava o Agha?

— Eu adiantava tudo de que carecia e de dois em dois dias recebia dele o dinheiro.

Bem, o mesmo critério adotaremos nós. Agora podes ir!

 

UM COMPRADOR PARA OS CABEDAIS DO MIRZA

Em breve foi-nos servido do que em Bagdad se pode adquirir de vimalhas e iguarias e o bom Lindsay-bei abancou-se novamente a participar da refeição.

— Conseguiu livrar-se daquele sujeito, o Agha, mister? — informou-se ele.

— Consegui. Por enquanto ficará ele na companhia do seu senhor. Temo que ele anseie por vingança.

— Psiu! Covarde! Mas sabe o que faremos depois da refeição? Seguiremos pelo correio até Bagdad a fim de comprarmos vestuários novos.

— Estou de acordo; está mesmo em tempo de mudarmos de indumentária. Além disso, por essa ocasião poderei colher alguns informes, de que careço ainda mais do que dos vestuários. É que eu procuro um comprador para os cabedais do Mirza, dos quais trouxe mais alguns camelos carregados.

— Ah! Oh! Em que consistem esses cabedais?

— São objetos finíssimos e de alto preço que o Mirza é obrigado a vender por verdadeira ninharia. Fosse eu um homem rico e ficaria com tudo.

— Cite-me alguns objetos!

Peguei da relação escrita em persa e li para o inglês.

— Oh! Ah! — exclamou ele. — Quanto pede o Mirza por tudo?

Citei-lhe a importância.

— E vale isso?

— Mesmo em se tratando de irmão para irmão, vale o dobro!

— Well! Bravo! Não precisa procurar ninguém. Sei de um homem que ficará com tudo o que pertence ao Mirza.

— O senhor sabe de um comprador?! Quem?

— David Lindsay. Yes!

— Será possível, sir? Oh! com isto o senhor me alivia de uma grande responsabilidade! Mas como está o senhor no que se refere ao numerário? Naturalmente que o Mirza precisa vender tudo ao contado.

— Numerário? Psiu. O dinheiro está aí. Tanto dinheiro assim só possui David Lindsay-bei. Yes!

— Que sorte! Bem, quanto a isto é assunto resolvido. Agora vem o resto. Refiro-me aos objetos que constituem o cabedal que até agora esteve entregue ao Agha. Este os preciso vender também.

— É muita coisa?

— Precisamos ver primeiro. Tenho a relação aqui e amanhã abriremos os fardos para avaliar as mercadorias ou então mandar avaliá-las por peritos. Só então é que poderei dizer ao certo em quanto importará, esta segunda transação.

— Há coisas bonitas entre esses haveres, hein?

— É claro! Há, por exemplo, entre outras coisas de alto preço, três couraças sarracenas de correntes, raridade de alto preço para um colecionador, alfanges forjados com aço de Lahore; várias garrafas com legítimo, óleo de rosas; brocais de ouro e prata, finíssimos tapetes, xales persas de fina lã de Kerman, um fardo contendo tecidos de seda raríssima, e assim. por diante. Aquele que adquirir essas preciosidades e as levar para os mercados ocidentais para vendê-los a retalho, terá feito um altíssimo negócio.

— Negócio! Oh! Era só o que faltava! Compro tudo para mim, para o meu uso pessoal.

— Tudo, sir? Também os cabedais a que se refere a segunda lista?

— Yes!

— Mas, sir, atente para a fabulosa soma que custará tudo isso!

— Fabulosa? Para o senhor, mas não para David Lindsay. Sabe em quanto monta a minha fortuna?

— Não, pois jamais imaginei sobre a sua situação financeira.

— Pois então cale-se! Minha situação financeira é boa, ótima, Yes!

— É fácil de se calcular ser o senhor um milionário, mas mesmo para um milionário é preciso muita reflexão antes de converter uma tão elevada soma em objetos tais.

— Não quer dizer nada. O valor não me falta e isso é o principal É verdade que não tenho presente toda a quantia necessária ao pagamento, mas possuo conhecidos nesta cidade. Escreverei alguns papéis com a assinatura de David Lindsay e depois receberei dinheiro a rodo. Well! Amanhã veremos os objetos.

— Está muito bem. Conduzir-me-ei com imparcialidade nesta transação visto que o senhor é meu amigo como também o é o Mirza. Vou contratar peritos para efetuarem a avaliação minuciosa de tudo. Depois é que entraremos em negociações propriamente ditas.

— Well! Agora, porém, rumo à cidade, para que depois possamos apresentar um exterior mais civilizado!

— Leve um tjibuk junto, sir. Vamos visitar a cidade com ares de autênticos muçulmanos.

 

UM PASSEIO A BAGDAD

Depois de haver eu comunicado a Halef que talvez ainda voltássemos antes da noite, saímos em procura do correio. Este se encontrava já em péssimo estado de conservação. As janelas caíam aos pedaços, os estofamentos dos bancos já haviam desaparecido e era puxado por dois matungos que sem exagero se poderiam qualificar de “esqueletos ambulantes”. Não obstante, porém, atingimos Bagdad sem acidente algum.

O nosso primeiro passo, como era natural, foi para uma loja de roupas, que depois abandonamos, ostentando outro aspecto. Não consegui convencer Lindsay para não pagar as despesas decorrentes de minhas compras. Também para Halef comprou o inglês uma vestimenta completa, que confiou para carregar a um jovem árabe que se apresentou oferecendo-se para este fim, logo que nos viu sair da loja com o pacote.

— E agora aonde iremos, mister? — perguntou Lindsay.

— Comprar vinho e raki e depois tomar um café.

Lindsay apoiou a minha idéia com um original grunhido e depois de alguma procura encontramos um estabelecimento do gênero que buscávamos. Como as compras por nós feitas iriam sobrecarregar demasiadamente o árabe de pacotes, indicamos ao dono da casa a nossa residência, para onde ele nô-lo devia remeter. A seguir estivemos num café, que ao mesmo tempo era barbearia, onde saboreamos um moca acompanhado de cachimbadas de fumo persa e depois entregamo-nos aos fígaros, para completarem o nosso embelezamento físico.

O nosso carregador postou-se bem diante da porta à nossa espera. Não vestia mais que um simples avental, mas sua postura era a de um rei. Por certo que se tratava de um beduíno já nascido livre. Como viera aquele filho do deserto a abraçar a profissão de mariola e carregador! A sua fisionomia interessou-me de tal modo que o convidei a tomar lugar ao meu lado.

Ele acedeu com ares de um homem cônscio do seu valor individual e aceitou o cachimbo que eu lhe oferecia. Depois de algum tempo, com ele entabolei palestra:

— Não és um turco mas um livre Ben Arab. Permite que te pergunte como vieste parar em Bagdad?

— A pé e depois a cavalo! — respondeu.

— Por que fazes carretos?

— Porque preciso viver.

— Qual o motivo por que não ficaste com os teus irmãos?

— O thar (6) é que me levou a isso.

— Então estás sendo perseguido por um vingador?

— Não é isso; eu é que sou o vingador.

— O teu inimigo fugiu para Bagdad?

— Justamente. Aqui me acho já há dois anos em sua procura.

Portanto impelido pelo desejo de vingança aquele árabe cheio de orgulho descera à condição de mandalete.

— De que terra vieste?

— Senhor, qual a razão de tantas perguntas?

— Porque me encontro em visita a todas as terras do Islã e desejaria saber se já conheço a tua pátria.

— Sou de Kara, no ponto em que o Wadi Montisch bifurca com o Wadi Qirbe.

— Da região dos Saybans em Belad Beni Yssa? Lá ainda não estive eu; recentemente me acho em caminho para aquela zona.

— E serás bem-vindo desde que sejas um devoto filho do profeta.

— Há outros patrícios teus nesta cidade?

— Um único que se apronta para o regresso.

— Quando deixará ele Bagdad?

— Assim que encontrar ocasião. Também ele foi impelido a Dar es Sallam (7) pelo desejo de vingança.

— Estará ele pronto a nos servir de guia à sua pátria?

— Não só como guia mas como Dachyl, que perante vós assume a responsabilidade de tudo.

— Posso falar com ele?

— Hoje e amanhã, não, pois ele foi a Dokhala, de onde regressará depois de amanhã. Vem à noite neste café, que o trarei aqui.

— Pois te esperarei. Como te encontras há dois anos em Bagdad deves conhecer bem a cidade.

— Conheço casa por casa, senhor.

— Não sabes de uma casa onde se possa morar confortavelmente, dela saindo e entrando a qualquer hora sem ser molestado?

— Conheço uma.

— Onde fica?

— Não muito distante daquela em que moro, na alameda das palmeiras, ao sul da cidade.

— Quem é o senhorio?

— É um tealeb devotíssimo que lá vive em isolamento, jamais importunando os inquilinos.

— Fica longe daqui?

 

(6) Vingança de sangue.

(7) Casa do santo.

 

— Se alugares uma cavalgadura, lá chegarás rapidamente.

— Vai então a um almocreve e aluga-nos três bestas. Depois nos guiarás até lá.

— Senhor, duas bastam, pois eu irei a pé.

Em breve tínhamos diante da porta duas cavalgaduras acompanhadas de dois recoveiros. Eram mulas tordilhas, das que há em grande manadas era Bagdad.

Até agora eu e o inglês achavamo-nos sentados de costas, visto que o espaço da barbearia e café ao mesmo tempo não nos permitia outra posição. O fígaro que se encarregara de pôr em ordem o meu ornamento capilar terminara o serviço e o do inglês; daí a segundos bateu palmas significando estar concluída a sua tarefa. Viramo-nos ao mesmo tempo um para o outro. Raramente se se haviam encontrado duas fisionomias tão desarmônicas em relação uma a outra, como as nossas naquele instante. Ao passo que Lindsay proferia uma exclamação de surpresa, não me con-tíve eu e desandei em estrondosa gargalhada.

— Que há para graças? — informou-se Lindsay desconfiado.

— Peça um espelho!

— Como se chama espelho nesta terra?

— Ajna.

— Well! E dirigindo-se ao barbeiro: — Pray the ajna!

O homem segurou um espelho diante do cliente e então, sim, impossível se tornou conter uma gargalhada mais estrondosa ainda em face dos jogos fisionômicos do inglês. Figure-se um semblante comprido e crestado pelo sol, com um cavanhaque de raras barbas avermelhadas; a boca enorme que naquele instante tinha uma abertura igual a do túnel de Gotardo; o enorme nariz três vezes aumentado em conseqüência do tumor d’Alepo e encimando tudo isso um crânio raspado a navalha, erguendo-se ao alto um topete, já de si suficiente para fazer rir a pessoa mais sisuda. Acrescente-se a isso o jogo fisionômico que fazia ele no instante! Não! O próprio beduíno por mais esforços que fêz não conteve o riso diante daquela figura impagável.

— Thunder-storn! Horrível, satânico! — exclamou David Lindsay. — Onde está o meu revólver? Mato este biltre a tiro! Varo-lhe o ventre com um punhal!

— Não se precipite, sir! — disse para solucionar o caso. — Este bom homem não tinha a menor idéia de que o senhor era um inglês. Tomou-o por um muçulmano, e de sua cabeça salvou apenas um topete.

— Well! Tem razão. Mas esta minha cara. Horrível. Detestável!

— Console-se, mister! O turbante cobrirá tudo e antes de regressar o senhor à velha Inglaterra, o couro cabeludo estará novamente em ordem.

— Couro cabeludo! Oh, mister! Por que então a sua cabeleira vai-Ihe tão bem, não obstante lhe haver o seu fígaro poupado igualmente apenas um topetezinho ao alto?

— É devido ao nariz, sir. E, além disso, o alemão em toda parte se sente bem, adapta-se de boamente ao meio.

— Yes! É isso mesmo! O senhor aí está a confirmar a regra. Quanto custa esta tosagem?

— Vou pagar dez piastras por tudo.

— Dez piastras? Está doido? Uns goles de péssimo café, umas cachimbadas de fumo mal odorento, formidável estrago nas cabeças e nas caras da gente e ainda por cima de tudo isso pagar-se dez piastras!

— Mas leve em conta que antes nos assemelhávamos a uns selvagens e agora...

— Yes!

— Se a velha “Allwah” lhe enxergasse, de tão entusiasmada sairia dançando um minueto! Agora vamo-nos daqui!

— Mas para onde?

— Alugar uma casa, nalgum arrabalde da cidade. Este beduíno nos guiará. Montaremos aquelas mulas tordilhas que lá se acham com os recoveiros.

Well! Lindo! Avante!

 

ALUGANDO UMA CASA

Deixamos a barbearia-café e montamos as pequenas, mas resistentes cavalgaduras. Os meus pés quase que roçavam no solo e o inglês foi obrigado a encolher as pernas. O beduíno caminhava à frente e desferia golpes de cajado à direita e à esquerda, sem consideração de espécie alguma, sempre que alguém se aventurava a atravessar o caminho. Nós montávamos as mulas quais macacos em camelos e por trás de nós os recoveiros tocavam os animais com varapaus apropriados a este fim. Assim fomos atravessando ruas e becos até que as casas foram diminuindo. Diante de um muro alto parou o beduíno e nós descavalgamos, Postamo-nos defronte a um estreito portão em que o nosso guia bateu violentamente com uma pedra que apanhara na rua. Demorou muito a se abrir o portão; primeiramente vimos um nariz adunco e depois surgiu uma fisionomia macilenta pelo portão entreaberto.

— Que quereis? — perguntou o homem.

— Efêndi, este estrangeiro deseja falar-te — declarou o guia.

Os dois olhinhos pousaram em mim e depois o homem, escancarando a boca desdentada, disse-me com voz trêmula:

— Entra, mas apenas tu!

— Este emir entrará também — repliquei apontando para o inglês.

— Pois sim, mas só ele, e isso porque se trata dum emir.

Entramos e o portão fechou-se por trás de nós. Os esqueléticos pés do velho se achavam metidos num enorme par de pantufas; conduziu-nos o dono da casa através de uma modelar organização de jardim sobre a qual balouçavam as poéticas ramagens das palmeiras exóticas, cujas folhas largas e enormes assemelhavam-se a leques. Diante de uma bela casinha parou o homem.

— Que quereis? — tornou a perguntar.

— És tu o dono deste lindo jardim e tens alguns apartamentos para alugar?

— Tenho. Pretendeis alugar algum?

— Talvez. Precisamos, porém, vê-los antes.

— Entrai, então. Burza z piorunami! Onde estará minha chave!

Enquanto ele dava busca em todos os bolsos em procura da chave, tive tempo de refazer-me da surpresa por ver um velho turco praguejar em idioma polonês. Finalmente deu ele com a chave depositada numa saliência da janela.

— Entrai!

Passamos para um lindo vestíbulo a cujos fundos se elevava uma escada. À direita e à esquerda havia portas. O velho abriu a da direita e levou-nos a uma ampla sala. No primeiro instante julguei estar a sala alcatifada de tapetes verdes; depois, porém, notei que ao redor havia prateiras com cortinados verdes; o que ocultavam os cortinados, era fácil de calcular olhando-se para a mesa que havia no meio do compartimento: estava repleta de livros e bem diante de mim se achava aberta uma bíblia ilustrada, edição de uma livraria de Nuremberg. Num ligeiro passo, encontrei-me diante da bíblia e sobre a mesma coloquei a mão.

— A bíblia! — exclamei em idioma alemão. — E continuando a examinar os livros: — Shakespeare, Montesquieu, Rousseau, Schiller, Lord Byron! Como vieram parar aqui essas preciosidades literárias!

Esses eram os nomes de alguns dos autores que vi sobre a mesa. O velho ergueu as mãos postas e exclamou:

— Quê? O senhor fala alemão?

— Conforme o senhor ouviu!

— É alemão?

— Sou; e o senhor?

— Sou polonês. E o outro senhor que o acompanha?

— Inglês. O meu nome é...

— Peço que não o decline ainda — atalhou-me o dono da casa. — Antes disso, vamos nos conhecer melhor mutuamente.

Dito o que, bateu palmas à moda oriental por várias vezes; por fim abriu-se uma das portas e no seu limiar apareceu uma figura como tão rotunda e reluzente de gordura raramente tenho visto.

— Allah akhar! Outra vez! — ressoou através dos lábios tipo salsichas do gorducho. — Que queres, efêndi?

— Café e fumo!

— Para ti só?

— Para todos.

— Café forte?

— Vai, safa-te daqui a cumprir a minha ordem!

— Wallahi, billahi, tallahi que efêndi é este meu amo!!

Com essas exclamações, de permeio com verdadeiro gemido, desapareceu pela mesma porta a estranha criatura.

— Quem é aquela criatura, verdadeiro monstrengo? — perguntei talvez que um tanto afoitamente.

— Meu criado e cozinheiro.

— Arre!

— Sim, a maior parte é ele que come e bebe; eu recebo só o que sobra.

— Mas isso não está certo!

— Já estou acostumado assim. É meu criado desde o tempo em que eu ainda era oficial. É apenas um ano mais moço que eu. Não apresenta a idade que tem.

— O senhor foi oficial?

— Ao serviço da Turquia.

— E agora aqui mora sozinho?

— Sozinho.

A essas palavras, uma nuvem de profunda tristeza ensombrou o semblante do velho.

— Fala também o inglês?

— Aprendi-o na minha juventude.

— Neste caso passemos a palestrar nessa língua, para que isto não se torne monótono ao meu companheiro.

— Prazerosamente! Com que então o senhor veio com o fito de alugar minha casa? Quem lhe falou a meu respeito?

— Não a seu, mas a respeito da casa é que me falaram. Foi o árabe que nos acompanhou até o portão. É seu vizinho.

— Não o conheço; não me importo com pessoa alguma. Procura o senhor um quarto só para si?

— Não. Pertencemos a uma caravana, composta de quatro homens, duas damas e uma velha serva.

— Quatro homens, duas damas... hum! Isto soa-me algo romântico!

— E o é de fato. Tudo lhe esclareceremos assim que tivermos examinado os compartimentos a alugar.

— Mas aqui mal há lugar para tanta gente. Aí vem o café!

Voltava o gorducho vermelho como cereja. Sobre uma enorme bandeja apresentava-nos ele três xícaras com café a fumegar; ao lado das xícaras um velho tjibuk com um pouquinho de fumo que mal dava para enchê-lo.

— Aí está, — grunhiu o original servo — é café para todos!

Estávamos sentados num divã e lhe tomamos a bandeija, pois devido à gordura o criado não podia inclinar-se para nós. O seu senhor foi o primeiro a levar a xícara aos lábios.

— Está bom? — perguntou-lhe o gordo servo.

— Está.

O inglês provou depois a rubiácea.

— Está bom? — perguntou-lhe o criado.

— Fi!

O inglês afastou de si a xícara e quanto a mim repus simplesmente a minha na bandeja.

— Não está bom? — perguntou-me o gorducho.

— Prova-o tu mesmo! — retruquei-lhe.

— Machallah, desta qualidade não tomo eu!

Nesse instante, o nosso hospedeiro pegou no cachimbo.

— Mas o fornilho está ainda cheio de cinzas! — declarou em tom de censura ao criado.

— Sim, estive há pouco fumando! — respondeu.

— Pois então competia-te limpá-lo!

— Dá-me!

Dito o que, arrancou a cachimbo da mão do amo, chegou à porta onde bateu a cinza do fornilho e depois o devolveu.

— Aqui o tens agora; podes enchê-lo, efêndi.

O velho obedeceu ao criado, mas enquanto enchia o cachimbo deve ter-se lembrado de que nada havíamos ainda saboreado na sua casa. Por isso resolveu oferecer-nos do melhor que tinha, ordenando ao servo:

— Aqui está a chave da adega. Vai lá.

— Esta bem, efêndi. Que devo trazer?

— O vinho.

— O vinho? Allah kerhim! Senhor, pretendes vender tua alma ao diabo? Queres ser amaldiçoado e conduzido ao fundo das fornalhas do inferno? Toma café ou água! Ambos conservam claras as vistas e crente a alma; aquele, porém, que toma scharab atira-se à mais negra miséria, à ruína certa!

— Anda, vai fazer o que te disse!

— Efêndi, ao menos poupa-me o dissabor de servir de instrumento de tua perdição. Não quero ser eu o primeiro a lançar-te nas garras do scheitan!

— Cala-te e obedece! Lá ainda tem umas três garrafas; traze-as todas!

— Bem, sou obrigado a obedecer-te; mas Alá que me perdoe! Sou inocente em tua maldição.

Após essas palavras, desapareceu ele pela porta.

— Espírito original! — observei.

— Mas fiel, muito embora não me poupe as provisões; apenas no vinho é que não toca porque não tem outro remédio. Dou-lhe a chave, apenas quando quero bebê-lo e assim que mo traz devolve-ma.

— É uma providencial organização, mas...

Não pude prosseguir visto que o rotundo servo voltava fumegando qual uma locomotiva. Trazia uma garrafa debaixo de cada braço e a terceira na mão direita. Baixou-se o quanto lhe foi possível e depositou as garrafas diante dos pés do amo. Tive que morder os lábios para não desandar numa risada travessa: duas das garrafas estavam completamente vazias e a outra mal estava pela metade. O seu senhor olhou-o perplexo, na cara.

— Mas isto é o vinho? — perguntou-lhe.

— As três últimas garrafas!

— Mas estão vazias!...

— Bom bosch — completamente vazias!

— E quem tomou o vinho?

— Eu, efêndi.

— Estás doido? Tomar de vez o vinho todo que era destinado aos meus respeitáveis hóspedes e a mim?

— De vez? Ora, efêndi, aposto contigo como isso não é verdade. Neste ponto de tua acusação lavo as mãos como Pilatos. Sou inocente. Não o tomei de vez, não! Foi aos poucos: ontem, ante-ontem, trás-ante-ontem e sei mais que de ante-ontem; eu tomava o vinho paulatinamente, um copo de cada vez. Não me faças uma injustiça, por Alá!

— Gatuno, ladrão, canalha! Como conseguiste penetrar na adega em todos esses dias? Pois eu é que tenho a chave dia e noite no bolso, bem pertinho de mim? Ou quem sabe, roubaste-me à noite enquanto eu dormia?!

— Oh! que efêndi este! Pilatos me acuda que sou contigo solidário! Também a mim sucede o mesmo que sucedeu contigo! Lavo-me as mãos de tudo isso. Em verdade, em verdade vos digo que o efêndi me está caluniando também neste ponto!

— Mas como chegaste tu a entrar na adega se permanentemente trago as chaves comigo?

— Efêndi, apelo para a tua consciência se algum dia eu fui arrombador?! Não isto é que não! O raio da adega é que em todos esses dias nem fechada esteve. Esta é que é a verdade! Eu jamais seria capaz da leviandade de fechá-la, desde que lá houvesse vinho!

— Trzaskatvica! É bom que eu sabia disso!

— Senhor, praguejar em torno do assunto numa língua estranha é o que não modifica a situação! Tu ainda tens aqui vinho mais do que suficiente para mim e os teus hóspedes!

O velho tomou da garrafa e a segurou contra a luz.

— E que aspecto tem este vinho, eh!

— Efêndi, um aspecto inofensivo; esclareço-te: havia na garrafa quando muito urn cálice da bebida do diabo; claro que não daria para três pessoas e então eu resolvi aumentá-la com água pura e da boa.

— Água! Oh! toma lá a tua água.

Dito o que, o velho arremessou a garrafa de encontro à cabeça do gorducho servo; este, porém, baixou-se mais depressa do que de sua obesidade era de esperar e a garrafa voou por cima dele indo estilhaçar-se de encontro ao portal, derramando-se o líquido no solo. O servo de mãos postas bradou como que em êxtase:

— Por Alá! o que estás a fazer, efêndi. Lá se foi a santa água sucedânea legítima do bom vinho! E estes estilhaços! Não, tu é que te encarregarás de juntá-los, pois sabes muito bem que me é impossível baixar a tal ponto...

Dizendo isso, saiu o homem porta afora gingando as suas adiposidades.

Foi uma cena que eu qualificaria de inverossímil se dela não pudesse dar o meu testemunho pessoal. E o que mais me admirou foi de haver o efêndi, logo após o desastrado arremesso, recuperado a sua habitual tranqüilidade. Para uma tal indulgência de um amo para com o criado atrevido e idiota, deveria haver um motivo qualquer bastante forte e justificável. O dono da casa era como que um enigma cuja decifração passei logo a estudar.

— Desculpem, meus senhores — disse depois o polonês. — Isto não se reproduzirá. Talvez se me proporcione ainda ensejo para relatar-lhes a razão de minha indulgência para com este servo. Prestou-me ele em outros tempos inestimáveis serviços. Encham os cachimbos!

Tirei minha bolsa e do meu fumo derramei uma certa quantidade sobre a mesa, para que todos dele se servissem. Depois de se acharem os fornilhos fumegando, convidou-nos o hospedeiro:

— Venham agora; vou mostrar-lhes a casa!

Conduziu-nos ao primeiro andar. Compunha-se este de quatro salas todas com um vistoso tapete no centro e de vários divãs recostados às paredes. Na sotéia havia ainda dois pequenos compartimentos, independentes do primeiro andar. Agradou-me a casa e perguntei ao homem pelo valor do aluguel.

— Para o caso presente não cogitemos de preço. Somos quase patrícios e peço-lhe, no que se refere à questão da residência considerar-se com os companheiros de comitiva, como meus hóspedes de honra.

Recusei delicadamente a gentileza e depois de alguma relutância do velho acedeu em cobrar aluguel, que ficou logo convencionado.

— Não há muito movimento de visitas em sua casa? Precisamos morar o mais isoladamente possível.

— Pois para isto não pode haver casa mais apropriada que esta. Quanto tempo pensa o senhor morar nela?

— Infelizmente por pouco tempo; no mínimo quatro dias e no máximo dua semanas. Para melhor esclarecer-lhe minha situação, permita-me que lhe conte uma pequena aventura?

— Naturalmente; sentemo-nos. Aqui estaremos tão à vontade quanto lá em baixo, e os nossos cachimbos fumegam ainda.

Sentamo-nos e eu relatei-lhe tanto quanto julguei necessário a nossa situação, bem como as circunstâncias em que nos encontráramos com Hassam Ardschir-Mirza. O homem escutou-me com toda a atenção e quando terminei a narrativa, ergueu-se ele de um salto e exclamou:

— Pois aqui pode o senhor estar seguro que ninguém o molestará, ou aos seus companheiros, menos ainda denunciará. Quando tomarão conta da casa?

— Amanhã ao anoitecer. Esqueci-me, porém, de uma circunstância: possuímos diversos cavalos e dois camelos; tem o senhor algum lugar para guardá-los?

— Mais do que suficiente. O senhor ainda não viu o pátio aos fundos da casa. A sua parte coberta acomoda perfeitamente todos os animais. Apenas de uma coisa me não é possível cuidar: da alimentação de sua comitiva. Esta terá que ficar ao seu cargo.

— Claro; era mesmo o meu propósito.

— Neste caso, estamos entendidos. Em breve corresponderei à sua confiança, narrando-lhe também a situação de minha vida; mas não hoje, visto que o senhor já se levantou e ao que presumo tem outros negócios a tratar. Quando chegar amanhã, contorne o muro do jardim; no lado oposto do portãozinho, pelo qual entraram agora, há um portão maior; lá estarei eu à espera de sua comitiva.

Deixamos o velho satisfeito com o sucesso de nossas negociações e na companhia do nosso guia e dos recoveiros regressamos para a cidade.

 

A NOVA RESIDÊNCIA

Na noite do dia seguinte a nossa caravana foi ocupar a casa. Hassan Ardschir-Mirza ostentava vestes femininas a fim de desviar dele prováveis suspeitas. Os servos foram todos dispensados sendo mantido apenas o Mirza Selim Agha. Para o lugar de criado do Mirza, contratou este por indicação nossa, o árabe que de véspera nos servira de guia.

A permanência em nossa nova moradia deu lugar a um acontecimento, que deixo de parte, não obstante a sua importância, visto que talvez mais tarde terei ocasião de narrá-lo mais minuciosamente aos leitores. De passagem direi apenas que durante as minhas caminhadas por Bagdad encontrei-me por duas vezes com um vulto no qual julguei reconhecer Saduk.

Quando voltei a falar com o persa a respeito de sua excursão a Kerbela tive que constatar persistir ele ainda em se opor que eu o acompanhasse. Não lhe podia em levar a mal tal oposição, pois ele era um chiita e a sua fé lhe proibia sob pena de morte visitar a cidade santa acompanhado de um infiel. A única concessão que me fazia o Mirza era a de acompanhá-lo apenas até Hila, onde nos separaríamos para depois nos reunirmos novamente em Bagdad. Estava, mais, inclinado a deixar as duas mulheres, nesta última cidade; estas, porém, não concordaram com tal resolução e tanto devem ter insistido que ele terminou por aceder em levá-las consigo.

Com isso ficou removida a probabilidade de me ver obrigado a assumir o encargo de protetor das damas.

 

A “CARAVANA FÚNEBRE”

Já agora numerosos peregrinos cruzavam a cidade de Bagdad rumando para o oeste. Mas no dia cinco de Moharrem é que recebemos a notícia de que a “Caravana Fúnebre” propriamente dita se aproximava da cidade. Imediatamente na companhia de Halef e do inglês, montei a cavalo para ir deleitar-me com o espetáculo de sua passagem.

Deleitar? Este deleite era assaz duvidoso! O chiita crê que todo muçulmano cujo cadáver fôr sepultado em Kerbela e Nedschef Ali, irá, sem embargos de espécie alguma, diretamente para o paraíso. Daí o desejo ardente de cada qual ser sepultado numa daquelas duas localidades. Como o transporte de cadáveres por meio de caravanas se torna assaz dispendioso, só os ricos é que podem efetuá-lo; o pobre quando deseja ser sepultado numa das cidades santas, despede-se dos seus parentes e amigos e transporta-se através de longínquos caminhos para as cidades sepulturas de Hossein e Ali, onde aguarda a morte.

Anualmente centenas de milhares de pessoas encaminham-se para aquelas cidades, mas o maior movimento mesmo de peregrinos se dá nas vésperas do dia dez de Moharrem, dia em que se comemora o aniversário do passamento de Hossein. Então descem as “Caravanas fúnebres” de chiitas persas, afgãos, beludschos, etc; de todas as partes vêm caravanas conduzindo cadáveres e alguns são transportados até em vapores que singram o Eufrates. Os cadáveres muitas vezes estão já preparados para a viagem meses e meses antes do encetamento da mesma. Os caminhos trilhados pelas caravanas são longínquos e elas se transportam muito vagarosamente. O calor sulino é intenso, tudo crestando e daí a

razão do cheiro horrível que espalham essas caravanas em sua passagem. Os mortos jazem em frágeis ataúdes que racham à ação do calor ou estão envolvidos em tecidos de feltro ameaçados e na maioria das vezes furados pelos elementos de decomposição; não é de admirar pois que o fantasma da peste montando esquelético cavalo acompanhe pari-passu os préstitos fúnebres. Quem os encontra, deles se desvia já ao longe; só os chacais e os beduínos é que secretamente seguem as caravanas. Os primeiros atraídos pelo cheiro dos corpos humanos em decomposição e os últimos seduzidos pelos tesouros que conduzem os caravaneiros para, no fim da jornada, guardá-los com o morto no túmulo. Guarnições de diamantes, jarros, pérolas, tecidos de alto preço, armas de valor, baixelas custosíssimas de ouro maciço, inestimáveis amuletos, etc. são transportados para Kerbela e Nedschef-Ali, onde desaparecem na tesouraria subterrânea que é o cemitério. Estes valores, a fim de despistarem os bandoleiros, são acondicionados em fardos do formato de um ataúde. No entretanto, a experiência ensinou às tribos árabes empreendedoras meios de tornar improfícua tal medida. Quando assaltam uma caravana abrem eles caixão por caixão, fardel fúnebre por fardel fúnebre até encontrarem os objetos de valor ambicionados. Tétrico é o quadro que depois de um combate desses apresenta o campo da luta, cheio de animais tombados, homens que pereceram na refrega, cadáveres mutilados, destroços de ataúdes; o viajor desvia-se mais que depressa dum local deste, fugindo da peste e do contágio.

As “Caravanas Fúnebres” não devem passar por cidades densamente populosas. Antigamente era-lhe permitido atravessar a cidade de Bagdad. Entravam pelo Schedt Omer, a porta do oeste; mas mal deixavam elas a parte oeste da cidade já o hálito da peste difundia-se pela mesma; imediatamente começavam a grassar violentas epidemias e milhares de pessoas sacrificavam-se ao indiferentismo muçulmano fortalecido pelo triste consolo de que a “vida do homem está escrita no livro”. Posteriormente a situação modificou-se; principalmente o paxá Midhal tão admirado quanto combatido, pôs cobro a preconceitos e praxes que tinham tanto de absurdos quanto de perigosos ao bem público. As “Caravanas Fúnebres” só podem agora tocar na fronteira norte da cidade, para depois atravessar a ponte de barca sobre o Tigre. Neste ponto foi onde nos fomos encontrar com as caravanas deste ano.

Um hálito de peste vinha-nos ao encontro quando delas nos aproximamos. A ponta do extenso préstito surgiu e logo entregou-se aos preparativos para o alto. Uma vistosa bandeira com o escudo persa (um leão e por trás dele o sol nascente) foi fincada ao solo; constituiria ela o ponto central do acampamento. Os pedestres sentaram-se; os ginetes apearam-se dos cavalos e camelos. Os muares, porém, que conduziam os cadáveres não foram descarregados a significar que a parada seria por pouco tempo apenas. Por trás da ponta e lentamente qual lesma movimentava-se a cauda da caravana arrastando-se em linha reta. Nos olhos negros daquela gente chispava o fanatismo, a obsessão, ao entoar a canção de peregrino:

 

Allah, hesti dscbohandar,

Allab, bestem asman pejwend,

Hossein, hesti chun alud

Hossein, bestem eschk eschk fiz! (8)

 

Avançáramos de tal maneira ao encontro dos peregrinos, que fomos nos postar bem próximos deles; mas quanto mais nos acercávamos da caravana, tanto mais infernal se tornava o cheiro, de modo que Halef foi obrigado a desprender uma ponta do lenço do turbante, a fim de com ela tapar as narinas. Um dos persas notou este gesto e acercou-se de nós trovejando ao meu servo:

— Sak — cão! Por que tapas o nariz?

Como Halef não compreendesse o persa, encarreguei-ir.e eu da resposta em seu lugar:

— Achas que a exalação daqueles cadáveres é um aroma do paraíso? !

Olhou-me desprezivelmente e retrucou:

— Não sabes o que diz o Kuran? Diz que os despojos de um crente possuem o aroma do âmbar, gul, sêmen, musch, naschew e nardjin. (9)

— Estas palavras não se acham escritas no Kuran mas no Veria eddin attars pendmameh; anota isso! Ademais, por que tendes vós próprios envolvidos em panos a boca e o nariz?

— São os outros e não eu!

— Então exproba primeiramente os teus e depois vem ter conosco! Não temos e nem queremos ter assuntos a resolver contigo!

— Homem, falas com muita soberba! És um sunita. Vós trouxestes amarguras para o coração dos verdadeiros califas e seus filhos! Que Alá vos amaldiçoe e vos leve aos recônditos do inferno!

Dito o que, o persa fazendo com as mãos um gesto de profundo desprezo, virou-se e tornou aos seus. Com sua atitude tive ocasião de presenciar um exemplo vivo do ódio irreconciliável que, quanto mais velho mais latente, ardia entre Cuna e Schia. Aquele homem se arriscava a nos injuriar nas portas de uma cidade composta de milhares de habitantes sunitas; que então não sucederia a um homem não chiita que fosse descoberto em Kerbela e Nedschef Ali!...

Eu teria esperado até passar o infindável corso, mas o espírito de precaução fêz que me fosse dali. Eu resolvera, desde que os obstáculos não se tornassem de um todo insuperáveis, ir a Kerbela e por isso não era aconselhável postar-me por muito tempo diante dos chiitas. Minha pessoa por um motivo qualquer poderia cair na vista de algum dos peregrinos que depois me reconheceriam na cidade santa. O inglês prazerosamente concordou com a nossa retirada, pois afirmou não resistir mais ao horrível cheiro de cadáveres; Halef, em geral tão valente, fugiu também diante do mau cheiro que tornava insuportável a presença nas proximidades dos persas.

 

 (8) Deus, és Senhor do mundo

     Deus, já estou a alcançar o paraíso

     Hossein, estás salpicado de sangue.

     Hossein, estou lacrimejante.

(9) Âmbar, rosa, jasmim, almíscar, bagas de zimbro e alfazema.

 

ATITUDES SUSPEITAS

Chegados em casa, soube de Hassan Ardschir-Mirza que não se uniria ele à caravana e que seguiria no dia seguinte. Pusera ele Selim Agha ao par de sua resolução e este saíra, a fim de assistir à chegada dos peregrinos persas.

Eu mesmo não encontrava explicação para a suspeita que logo me provocou aquele passo do Agha. O fato de haver ele resolvido ver a chegada da caravana nada tinha em si que despertasse desconfiança; contudo um sombrio pressentimento apoderou-se logo de mim. Até a hora de nos recolhermos ao leito não havia ainda o homem voltado. Também Halef não estava em casa; depois do jantar se dirigira para o jardim e de lá ainda não tornara. Só lá pela volta da meia noite é que percebi leves rumores de passos que de mansinho eram dados diante da porta do nosso compartimento; dez minutos depois foi a mesma quase que imperceptivelmente aberta e alguém se aproximava do local em que eu dormia.

— Quem é? — perguntei a meia voz.

— Eu, sídi — ouvi dizer a voz de Halef. — Levanta-te e vem comigo!

— Mas para onde?

— Silêncio por enquanto! É bem possível que estejamos sendo espreitados.

— Devo levar armas?

— Apenas as pequenas.

Pus a faca e os revólveres na cintura e saí descalço. Encaminhamo-nos para o portão dos fundos; lá chegados é que calcei os sapatos.

— Que há, Halef?

— Por enquanto acompanha-me, efêndi! Precisamos nos apressar e no caminho posso muito bem narrar-te o que se passa.

O meu servo e amigo abriu o portão e nós deixamos o jardim. Em vez de Halef conduzir-me para o centro da cidade, conduziu-me para o sul, o que muito me admirou. Contudo segui-o silencioso até que ele falou:

— Senhor, desculpa-me haver interrompido o teu sono! Mas desconfio qualquer coisa daquele Mirza Selim Agha.

— Que houve com ele? Vi que há pouco é que tornou à casa.

— Vou dizer-te. Quando voltamos do nosso passeio ao encontro dos peregrinos, fui logo acomodar os nossos cavalos. Nas baias encontrei então o rotundo criado do nosso hospedeiro. Estava este enfurecido.

— Com quem?

— Com o Mirza Selim Agha. Este saíra e deixara-lhe ordem para conservar aberto o portão, pois talvez voltasse muito tarde para casa. Eu antipatizo solenemente com o Agha, pois sei que ele não te tolera. O criado mandou alguém segui-lo e descobriu que ele não se dirigiu para a cidade mas rumo do sul. Que pretendia fazer o persa fora da cidade? Efêndi, hás de desculpar-me por ter sido curioso. Voltei para o meu compartimento, jantei e fiz minha oração da noite para depois dormir. Mas estive deitado por algum tempo a ruminar sobre que atitude oculta estaria tomando o tal de Agha. A noite estava tão linda e o céu recamadíssimo de estrelas; eu me achava livre de fazer o que fêz o Agha: saí a passear, tomando o mesmo rumo que ele. Fui bem sozinho; pensei em ti, no xeque Malek, o avô de minha mulher Hanneh, a flor das mulheres, e nessa cadeia de pensamentos não dei pelo fato de já me haver afastado muito. Nisso cheguei defronte a um muro desmoronado; passando por cima dos destroços vi-me num descampado. Fui caminhando sempre até atingir um ponto em que vi árvores e cruzes erguerem-se do solo. Era um mezaristan (10) dos infiéis. As cruzes reluziam à luz das estréias e eu me aproximei de leve, pois não se deve despertar a alma dos infiéis, caminhando com passos fortes. Elas ficam encolerizadas e jamais deixarão a senda dos que lhe interromperam o descanso. Nisso divisei vultos sentados sobre os túmulos. Não eram almas, não; porque fumavam tjibuks, palestravam e riam-se às gargalhadas. Também não se tratava de moradores da cidade porque usavam trajes persas; alguns árabes apenas havia no meio deles e mais adiante, num local onde não havia sepulturas, percebi o rumor de cavalos amarrados.

— Ouviste sobre que falavam os homens?

— Estavam muito distantes de mim e só pude perceber que falavam numa grande presa que pretendiam fazer e que duas pessoas apenas deixariam com vida por esta ocasião. Ouvi ainda uma voz autoritária determinar que os homens continuassem acampados no cemitério até o alvorecer, e depois levantou-se um outro para se despedir dos demais. Passou este bem perto do local em que me ocultara e reconheci nele o Agha. Segui-o ocultamente até em casa. Depois me plantei a matutar e conclui ser talvez de conveniência para nós averiguarmos quem são os homens com os quais esteve o Agha a confabular. Por esta razão é que te fui acordar.

— És portanto de opinião que eles ainda se encontram no cemitério?

— Pelo menos foi o que ouvi ordenar.

— Deve ser o cemitério dos ingleses. Conheço-o de minha primeira estada em Bagdad; não se acha muito distante do portão da cidade e ser-nos-á fácil caminharmos de esgueira até o acampamento dos homens.

Saímos a caminhar de leve e daí a pouco atingimos o lanço desmoronado do muro. Neste local deixei Halef para, caso fosse necessário, cobrir-me a retirada, e segui cautelosamente à meta final do objetivo. O cemitério dos ingleses erguia-se diante de mim; não soprava a mais leve brisa e nem o menor som de voz ou rumor quebrava a quietude da noite. Atingi, sem novidade, a entrada — norte da necrópole: estava escancarado o portão. Entrei de leve e ouvi logo, ao lado, o nitrido dum animal. Devia pertencer a um beduíno, pois só os corcéis que vivem ao ar livre e cruzam estepes e savanas é que possuem tão apurado o sentido do olfato, a ponto de com aqueles nitridos característicos denunciarem a presença de algum perigo ou aproximação de pessoas e animais. Aquele bufido poderia facilmente trair a minha presença no campo santo e tornar-se perigoso para mim: virei-me, pois, para o lado oposto e saí rastejando para frente.

Depois de algum tempo, notei algo branco através das moitas. Eu, conhecia aquilo: era a côr dos albornozes árabes. Rastejei até lá e pude contar seis homens que estirados no chão dormiam a bom dormir. Eram codos árabes; persa não vi nenhum. Mas eu achava impossível que Halef se tivesse enganado. Ou os persas se achavam mais para baixo ou então haviam deixado o cemitério para acampar noutra zona. A fim de obter certeza a tal respeito, continuei a rastejar; cheguei bem perto

 

(10) Cemitério.

 

dos cavalos, sem que, no entanto, descobrisse mais vestígios de pessoas. Embora houvesse eu agora chegado do outro lado, os animais ficaram inquietos; isso, porém, não me preocupava mais. Eu precisava averiguar a trama que urdiam contra nós, houvesse o que houvesse. Contei os animais: eram sete. Lá se achavam seis árabes. Onde estaria o sétimo? Mal fizera eu tal pergunta de mim para mim, quando me vi calcado ao solo por um homem, que se ajoelhara sobre mim. Era o sétimo, que se achava de guarda à cavalhada. E aquele homem não era nenhuma criatura frágil, não! O seu formidável peso premia-me ao mesmo tempo que sua voz, qual urro de leão, chamava os companheiros.

Deveria eu deixar que aquilo degenerasse em luta? Deveria entregar-me tranqüilamente para deste modo descobrir os propósitos daqueles homens? Ergui-me de salto e arrojei-me de costas ao solo; neste movimento ficou o meu agressor emprensado pelas minhas costas. Este movimento de tão inesperado deve-lhe ter causado grande surpresa pois ficou; perturbado; ou então com a manobra por mim efetuada deve ele ter batido violentamente com a cabeça ao solo. O fato é que senti logo que suas mãos se desprendiam de mim, levantei-me e saí correndo vertiginosamente na direção da saída. Mas bem próximo, por trás de mim, percebi os rumores de passos dos que me perseguiam. Felizmente ostentava eu trajes leves e trazia pequenas armas que não me embaraçavam a fuga. Não me alcançaram os beduínos. Ao chegar ao lanço destruído do muro que cingia o descampado, detonei dois tiros de revólver e Halef descarregou as suas duas pistolas. Naturalmente, deflagramos os tiros para o ar e os vultos brancos amedrontados retrocederam, desaparecendo por trás de mim. Momentos depois vimo-los sair do cemitério montados em seis corcéis. O lugar tornara-se-lhes pouco seguro, naturalmente que não por causa dos mortos que lá dormiam o sono eterno!...

— Deixaste que te pilhassem, sídi? — perguntou-me Halef, serenada a primeira impressão da luta.

— Foi isso mesmo. Desta vez procedi com imprevidência. Aqueles, árabes eram mais inteligentes do que supus; haviam destacado uma sentinela e esta foi que me agarrou.

— Allah kerhim! tiveste ainda sorte; coisa de mais grave podia ter-te sucedido, pois que se aqueles homens procuraram acampar no cemitério, por certo que o não fizeram levados por propósitos honestos! Mas eram exclusivamente árabes os teus perseguidores?

— Os persas por ti avistados não se acham mais na sua companhia. Não te pareceu pessoa conhecida a figura do chefe daquele bando?

— Não pude observá-lo bem; para isso não era suficientemente clara a noite, acrescido da circunstância de se achar ele acocorado no meio do grupo.

— Portanto foi em vão que fizemos esta caminhada, posto que estou quase a jurar que os persas não são outros senão os perseguidores do Mirza.

— Mas estes, dado o rumo que tomaram, já poderiam estar aqui?

— Folgadamente. Haviam-se dirigido rumo do oeste, mas fácil lhes era de supor haver o Mirza se encaminhado para Bagdad e então é fácil de concluir hajam eles tomado o rumo sul na direção desta cidade, passando por Dschumeila, Kifri e Zengabad. Por causa das mulheres, não pudemos cavalgar tão apressadamente como eles.

Voltamos para casa, onde comuniquei a nossa aventura e os meus temores ao Hassan Ardschir-Mirza, temores que ele considerava improcedentes. O Mirza era de opinião que os seus perseguidores de forma alguma poderiam ter vindo para Bagdad; inverossímil se lhe afigurava também a probabilidade de se relacionarem com o fato as palavras ouvidas por Halef, quando os espreitou no cemitério. Aconselhei-o que tivesse toda prudência e que recorresse à proteção do paxá; também esta última sugestão não foi aprovada por ele.

— Não tenho o menor receio — disse-me o Mirza. — Aos chiitas não preciso temer, visto que durante as festas cessam quaisquer hostilidades, arrefecendo-se nesses dias mesmo os mais arraigados desejos de vingança. Isto constitui igualmente uma segurança de que não serei assaltado pelos árabes. Até Hila, tu e os teus companheiros viajareis comigo e de lá até Kerbela é só um dia de viagem. Além disso a estrada se acha tão movimentada de peregrinos que nenhuma horda de salteadores lá se há de animar a exercer o seu ofício criminoso.

— Não posso obrigar-te a seguir meus conselhos. Levarás só do que careces até Kerbela e tudo o resto deixarás aqui?

— Nada deixarei em Bagdad. Achas que devo confiar os meus haveres a pessoas estranhas?

— O nosso hospedeiro afigura-se um homem honesto e de toda a confiança.

— Mas a sua casa fica na solidão. Bem, boa noite, emir.

Nada mais me restava do que calar-me ante a resolução inabalável do Mirza. Deitei-me novamente a dormir e só me acordei quando o sol já ia alto. O inglês não estava presente; fora à cidade e ao regressar trouxe quatro homens junto, todos armados de pás, enxadas e picaretas.

— Que vai fazer esta gente? — perguntei-lhe.

— Hum! trabalhar! — respondeu-me. — Três deles são marinheiros ingleses desembarcados e o quarto é um escocês que compreende alguma coisa de árabe. Preciso deles, pois sei que o senhor está resolvido a ir ocultamente a Kerbela. Well!

— Quem lhe arranjou estes homens?

— Encontrei-os, por informações colhidas no consulado.

— O senhor lá esteve? Sem me dizer coisa alguma?

— Yes! Recebi cartas e expedi outras; mandei vir dinheiro. Nada lhe disse porque não sou mais seu amigo!

— Ora essa, e por quê?

— Quem vai a Kerbela e se nega a levar-me junto, não tem igualmente o direito de se interessar com os meus assuntos particulares. Well!

— Mas, sir, que foi que lhe virou tão repentinamente a cabeça?! A sua companhia só podia trazer danos a mim e ao senhor próprio.

— Até hoje sempre o acompanhei, sem acarretar danos a quem quer que fosse. Ao contrário, se danos houve, estes sofri-os eu. Dois dedos, lá se foram; aliás, não representam lá grande prejuízo, porque em compensação me aumentaram o nariz...

Dito o que, em tom de ironia, virou-se Lindsay e saiu a tratar com sua gente.

O bom David Lindsay apesar de sua paixão pelos fowling-bulls, estava ansioso por assistir as festas do dia 10 de Moharrem; mas de forma alguma me seria possível levá-lo comigo.

 

Bagdad de outrora e Bagdad de hoje

À tarde, depois de haver diminuído um pouco o calor, empreendemos viagem, deixando Bagdad. À frente, cavalgava o guia contratado por Hassan Ardschir, tocando alguns muares cargueiros alugados pelo persa. Estes eram de propriedade do próprio guia. Isto fora uma inexplicável imprudência do Mirza. Depois seguia Hassan com o Selim Agha junto com os camelos que levavam as mulheres. Eu ia ao lado de Halef; fechava o corso o inglês que com ares de homem empreendedor vigiava o seu pessoal contratado para forçar as ruínas da Babilônia a lhe entregar os tesouros que ocultavam. Alwah montava uma cavalgadura e o criado árabe ficara em Bagdad.

Fora outra a idéia que eu fizera da presente cavalgada. Toda a sua organização fora feita o inverso do que eu pretendia. Talvez que eu próprio fosse o culpado disso, mas tornara-se-me penoso ventilar no momento o assunto. A minha robustez orgânica, que a princípio parecia resistir galhardamente aos ferimentos, não deixou de sofrer as conseqüências desastrosas dos mesmos. É que em todo esse tempo a mim tocou a maior soma de cuidados, perturbações e esforços do que a qualquer dos outros. Sentia-me fisicamente fatigado e moralmente abatido sem que descobrisse a causa de tudo isso. Eu estava magoado com Hassan Ardschir e com o inglês, sem refletir que o meu aborrecimento é que dera lugar a que me preocupasse menos com os seus assuntos do que era de esperar. O meu estado de espírito tinha origem remota e profunda e quando sua causa veio à tona, quase que se me tornou fatal.

Seguimos sempre beirando o rio, a fim de transpor a ponte de barca da parte alta do rio. Na ponte parei a contemplar a outra residência de Harum el Raschid. Estava ela diante de mim à luz do sol em todo o seu esplendor e grandiosidade, embora mostrasse os inapagáveis vestígios de sua decadência. À esquerda, na parte fronteira, o jardim do povo por trás do qual a pista de cavalos desvia-se para o norte e, um pouco recuado, o posto da quarentena. Depois o alteroso castelo e o edifício do governo, cuja base se assentava no leito do Tigre. À direita, o arrabalde habitado quase que exclusivamente por árabes pobres, com a Medresse Mostansir, único edifício ainda existente mandado construir no mais antigo arrabalde da cidade pelo califa Mansur. Por trás desse edifício um vasto casario encimado por minaretes estilizados e cheios de cúpulas envernizadas de centenas de mesquitas. Por sobre este mar de casas, balouça aqui e ali a copa de uma linda palmeira a dissipar com o seu encanto o pó e o mau cheiro que permanentemente pairam sobre a cidade.

Nesse arrabalde saudou Mansur aquela embaixada do rei da França que viera para com ele negociar a respeito dos omíadas, tão temidos na Espanha. Aí viveu o celebrado Harun el Raschid, ao lado da formosa Zobeide que com ele repartia toda a sua devoção e amor esplendorosos. Repetidamente peregrinavam eles a Meca, mandando por esta ocasião alcatifar a estrada até aquela cidade com custosos tapetes. É onde está hoje a árvore de ouro com frutos de diamantes, rubis, safiras e outras pedras preciosas, árvore esta que, segundo a tradição, projetava sombra sobre o trono de Harun. Aquele califa era cognominado El Raschid (1) e contudo não passava de um tirano traiçoeiro, pois assassinou hediondamente o seu fiel vizir Djafer, mandou murar vivos a sua irmã e filhos e ainda chacinar os bamecidas. A fama laudatória com que as “Mil e uma Noites” o exalta já de há muito a história destruiu, encarregando-se de provar exuberantemente ter sido aquele califa um homem bem diverso do que naquela obra é descrito. Enxotado pelo seu povo, fugiu ele para Rakka e morreu em Rhagas, na Pérsia. Acha-se ele sepultado debaixo duma cúpula em Masched, província de Khorassan; Zobeide, porém, a desperdiçadora de milhões, repousa na orla do deserto e lhe foi erigido um templo com esculturas divinas, templo que os séculos de há muito já reduziram ao nada.

Aqui viveu também o califa Maamun, que renegou a divindade do alcorão e adorou o “Juízo Eterno”. Ao seu tempo corria vinho em cascata e no reinado do seu sucessor Motassim foi ainda pior. Este edificou num ermo a sua residência Samara, que se converteu, é verdade, num paraíso, mas este paraíso consumia todo o erário público. Aí pontificava as mais desbravadas sensualidades e enquanto se pagavam fabulosas riquezas por um olhar de sereia, os súditos morriam de privações. O governador do profeta Mutawakil não se contentou ainda com aquele “paraíso”; mandou edificar uma nova residência, e querendo exibir uma coisa nunca vista, os barrotes deveriam ser extraídos da antiga e afamada “Arvore de Zoroaster”. Esta árvore, um cipreste gigantesco, erguia-se em Tus, na província de Khorassan. Em vão suplicaram todos os mágicos e sacerdotes do Sol. Ofereceram fabulosas somas para salvar a árvore simbólica de sua fé; de nada adiantou. A árvore foi derribada e arrastada para a margem do Tigre; lá chegou ela justamente no instante em que Mutawakil era assassinado pela sua guarda.

Com ele ofuscara-se o brilho dos califas e a celebridade da “Cidade da salvação” cada vez mais se apagava. Bagdad possuía antigamente 100.000 mesquitas, 80.000 casas de negócio, 60.000 casas de banho, 12.000 moinhos, a mesma quantidade de estações de caravanas e dois milhões de habitantes. Que diferença em relação a Bagdad de hoje! Sujeira, pó, ruínas e trapos por toda parte. Até a ponte de barca sobre a qual eu parará estava em ruínas, a cair aos pedaços. Ao invés de Dar ur Khalifet ou Dar us Sallam o nome Dar et Taum (2) mais assenta à cidade. Apesar da vista ainda hoje maravilhosa que ela oferece ao viandante, a terça parte da zona que cinge a cidade compõe-se de necrópoles, campos pestilentos, tremedais pútridos, monturo por toda parte onde bandos enormes de urubus repastam. A peste de cinco em cinco anos grassa em caráter endêmico, exigindo o sacrifício de milhares de vítimas. O muçulmano em face desses casos persiste na sua incurável indolência. “Alá é que assim determina; é pecado empreender o menor embargo à sua vontade” — costuma ele dizer. — Quando foi da terrível epidemia do ano de 1831, o representante consular inglês envidou os mais ingentes esforços para que se tomassem medidas tendentes a debelar a peste; contra a sua atitude, porém, ergueram-se os Mulahs, argumentando ir a mesma de encontro aos ensinamentos do alcorão e o cônsul foi obrigado a se

 

(1) O justiceiro.

(2) Casa da peste.

 

pôr em fuga, sob pena de ser linchado. O resultado disso foi sacrificar a peste com o seu cortejo de horrores uma média diária de três mil pessoas. Depois veio o declínio dos canais que fêz desmoronar numa só noite milhares de prédios, sepultando os habitantes sob os escombros.

A essa idéia era como se também eu me houvesse contagiado naquele instante. Não obstante a canícula, um tremor de frio sacudia-me o corpo. Saí a galope a fim de alcançar os companheiros e dissipar os pensamentos que me ameaçavam dominar.

Entre a estrada que conduz a Basra à direita e a que segue para Deir à esquerda passamos por várias olarias e pelo túmulo da Zobeide, atravessamos o canal de Oschah e afinal encontramo-nos em campo aberto. Para alcançarmos Hila teríamos que transpor o estreito istmo que separa o Eufrates do Tigre. Ali erguiam-se ao fim da Idade Média jardins ao lado de jardins; lá balouçavam as palmeiras, lá as flores exalavam os seus aromas e reluziam ao sol os mais apetitosos e sazonados frutos. Agora, porém, pode-se aplicar àquele lugar a estrofe de Uhland:

 

Nenhuma árvore espalhava sombra

Nenhuma fonte brotava da areia. (3)

 

Os canais que banhavam e davam vida à zona estão ressequidos e só servem para esconderijos dos beduínos salteadores.

O sol desaparecia vermelho no ocaso e a atmosfera tresandava ainda com a passagem das caravanas fúnebres, que no dia anterior sorrateiramente por ali haviam deslizado. Eu tinha a impressão de me achar num hospital desarejado cheio de doentes atacados de varíola. Não era puramente impressão minha, não; Halef sem que ouvisse a minha opinião a este respeito, declarou-me, daí a pouco, sentir a mesma sensação e o inglês mexia o seu nariz intumescido em sinal de aborrecimento em face da estagnada atmosfera.

Aqui e ali encontrávamos com um idoso peregrino que seguia para Kerbela a fim de lá morrer e lá ser enterrado, mas que fatigado da longa jornada se havia detido; ou então grupos de aliistas puxando uma esquelética cavalgadura que conduzia vários cadáveres; o animal arquejava todo suarento e os homens marchavam a seu lado com as mãos às narinas e por trás deles a exalação de corpos humanos em decomposição vinha-nos ao encontro.

 

MENDIGO ORIGINAL

À beira do caminho achava-se sentado um mendigo; estava completamente nu, se um estreito avental não lhe envolvesse as coxas. Dava ele demonstrações crudelíssimas da sua dor pela morte de Hussein: as coxas e os braços se achavam espetados com agudas facas, o ante-braço, a barriga das pernas, por entre as duas fossas nasais, queixo e lábios cravados de polegada em polegada com pregos e taxas; na cintura e no ventre viam-se seguros às carnes rombudos colchetes de aço;

 

(3) Da “Saengers-Fluch”,uma das mais lindas produções do grande rate alemão.

 

todas as outras partes do corpo se achavam espetadas com agulhas; em suma, não havia em todo o corpo uma região do tamanho de uma moeda de um pfennig que não estivesse horrivelmente martirizada. À nossa aproximação ergueu-se o homem e com ele enorme enxame de moscas e mosquitos que lhe cobriam o corpo ensangüentado. Era horrível de ver o homem.

— Dirigha Allah waj Mahomed! Dirigha Hussan, Hussein! — rangeu o mendigo entre dentes com voz repugnante e estendendo ambas as mãos.

Eu vira na Índia penitentes que se ocasionavam a si próprios os mais terríveis martírios e deles sempre tivera dó; a este, porém, que agora nos estendia as mãos e que não passava de um fanático, de um sandeu na verdadeira acepção do termo, preferia eu dar bofetadas ao invés de esmola, pois além da aversão que o seu aspecto despertava, não tolerava eu aquela martirizaçao insensata de um homem pleno de pecado, que contava remi-los com penitências físicas em lugar de purificar a alma. Ademais disso, um tal homem considera-se um santo, a quem depois da morte está assegurado um lugar de realce no paraíso; mesmo aqui na terra faz-se cercar de todas as humildes reverências, conseguindo as mais regias esmolas.

Hassati Ardschir Mirza pôs-lhe uma peça de ouro na mão.

— Hasgadad Allah — Deus te abençoe! — disse o mendigo erguendo o braço como se fosse um sacerdote.

Lindsay levando a mão ao bolso tirou uma moeda de dez piastras e deu-a ao mendigo.

— Subhallan Allah — Deus é misericordioso! — exclamou o penitente mal humorado e pouco cortês, visto que apresentou Alá como doador e não o inglês.

A seguir peguei de uma única piastra e lancei-lhe aos pés. O “Santo” chiita fez primeiro uma fisionomia de espanto e depois de cólera.

— Azdar! — avarento! — trovejou-me acrescentando depois com ares de asco e com incrível ligeireza no linguajar: Azdari pendsch Azdarani, deh azdarani, hazar azdarani, lek azdarani — és um avarento, és cinco vezes avarento, és dez vezes avarento, és cem vezes avarento, és mil vezes avarento e és cem mil vezes avarento!

Pisava sobre a minha piastra, cuspia nela e nisso mostrava uma raiva de que em outras circunstâncias era da gente se pôr em guarda.

— Sídi, que quer dizer Azdar? — perguntou-me Halef.

— Avarento.

— Allah il Allah! E sujeito imbecil em persa como é?

— Bisman.

— E um grosseiro labrego?

— Dschaf.

A seguir virou-se o pequeno Hadji para o persa, ergueu diante dele a mão espalmada, limpou-a na perna, gesto que vale pela mais grave ofensa segundo o costume persa, e bradou-lhe: “Bisman, dschaf, dschaf!”

A essas palavras de Halef, abriram-se as comportas retóricas do mendigo chiita de uma tal forma agressiva que tivemos que nos pôr em fuga. O “Santo Mártir” possuía um tão formidável vocabulário ofensivo que para guardar o decoro não nos é possível reproduzir um só termo aqui. Inclinamo-nos numa saudação irônica de respeito e nos fomos.

 

EM HILA

A atmosfera que ali em diante passamos a respirar não era melhor do que a anterior. As pegadas da caravana fúnebre estavam bem visíveis, e os vestígios de ferraduras e cascos de cavalos mostravam que a escolta militar expedida de Bagdad para defender os caravaneiros dos assaltos dos beduínos havia tomado um caminho bem distante da estrada real para seguir depois paralelamente ao cortejo.

Propus a Hassan Ardschir abandonarmos a senda da caravana e tomar a da escolta; ele, porém, não aceitou a sugestão alegando “ser um grande mérito perante Deus, seguir o peregrino a exalação cadavérica dos que partiram para a mansão do paraíso”. Por sorte nossa, conseguimos ao menos dissuadi-lo de pernoitar num Khan em que os peregrinos tomaram pouso; fomos acampar distante dali, num canal ressequido.

Achavamo-nos numa zona perigosíssima e não devíamos afastar-nos do acampamento. Antes de nos deitarmos, ficou resolvido adiantarmo-nos no dia seguinte dos peregrinos, a fim de alcançarmos Hila e acamparmos na “Torre de Babel”. Ali esperaria Hassan a passagem da caravana para depois segui-la, ao passo que nós outros lá ficaríamos até a sua volta.

Eu me achava fatigadíssimo e me senti subitamente acometido de agudas e ardentes dores de cabeça; impressionei-me com isso, se bem que não era a primeira vez que me via acometido de tais dores. Era como se uma febre me tivesse atacado, razão por que tomei algumas gotas de quinino, que juntamente com outros medicamentos necessários a uma viagem, comprara em Bagdad. Apesar do cansaço que me dominava custou-me a conciliar o sono; finalmente adormeci, mas pesadelos terríveis faziam-me constantemente despertar. Durante um dos pesadelos foi como se eu percebesse a aproximação de abafados passos de cavalos; como eu me achasse meio dormindo, julguei ser aquilo sonho.

Finalmente a agitação fêz-me erguer do leito e saí para a frente da tenda. Começava o dia a raiar; no oeste clareava o horizonte e naquela região dentro em pouco estaria completamente claro. Contemplando o horizonte, vi depois no rumo do levante um ponto negro que cada vez mais se avolumava até que nele reconheci o vulto dum cavaleiro. Era o... Mirza Selim Agha. O seu cavalo resfolegava quando ele desmontou; mostrou uma certa contrariedade ao notar-me ali. Saudou-me com sequidão, amarrou o animal e ia passando por mim quando o interroguei:

— Onde estiveste?

— Que tens com isso? — retrucou-me.

— Muita coisa. Homens que viajam em comum numa zona tão perigosa como esta são obrigados mutuamente a se darem satisfações dos seus atos.

— Fui buscar o meu cavalo.

— Onde o tinhas?

— Havia arrebentado a corda e fugido. Aproximei-me do animal e examinei-lhe as cordas.

— Mas como? As cordas não estão arrebentadas em ponto algum?

— Desfez-se o nó.

— Dá graças a Alá se o que um dia te hão de fazer ao pescoço não resistir melhor que esta corda!

Dito o que, ia me afastar da sua presença; ele, porém, avançou arrogantemente alguns passos à frente e trovejou-me:

— Que disseste tu?! A que te referiste? Não te entendi!

— Raciocina, pois, e tira lá as tuas conclusões!

— Pára, não te podes retirar daqui, antes de me esclareceres o que pretendeste dizer-me com aquelas palavras!

— Pois sim, vá lá. Com elas quis eu lembrar-te do cemitério dos ingleses em Bagdad.

A essas minhas palavras, o homem empalideceu ligeiramente; dominou-se, porém, de modo a dizer em tom de calma:

— Do cemitério dos ingleses? Que tenho eu a ver com ele? Não sou inglês! Tu, porém, falaste sobre uma corda ou um nó ao meu pescoço. Nada tenho a ver contigo diretamente. Vou narrar o sucedido a Hassan Ardschir Mirza. Este já te ministrará instruções sobre o modo com que te cabe tratar-me.

— Quer lhe digas quer não, me é indiferente; de qualquer maneira hei de tratar-te sempre conforme mereces!

A nossa troca de palavras efetuadas em voz alta despertou os demais. Logo foram iniciados os preparativos para o prosseguimento da viagem e depois partimos. Durante a cavalgada, eu vi que o Selim Agha falava animadoramente com Hassan Ardschir. Logo depois este sofreando o cavalo esperou que dele me aproximasse para cavalgar ao meu lado.

— Emir, permite-me que te fale sobre o Selim Agha? — perguntou-me o Mirza.

— Pois não.

— Tu não simpatizas com ele?

— Não simpatizo, não.

— Contudo peço-te que não o ofendas!

— A ofensa que lhe fiz, ele a recebeu sem se defender; portanto com ela não lhe fiz uma injustiça!

— Mas dize-me cá: é motivo para forca deixar-se fugir o cavalo?

— Isso, não. Mas motivo mais que suficiente para forca constitui alguém sair às caladas da noite a confabular com gente que pretende assaltar os companheiros.

— Emir, já notei que estás enfermo física e espiritualmente e o teu corpo está fatigadíssimo; por isso é que vês demasiadamente negras as coisas e o teu modo de falar se tornou muito áspero. Ficarás restabelecido e então, estou certo, reconhecerás o erro em que vens incidindo, pois conheço que és um homem justiceiro. Selim vem me servindo com fidelidade e dedicação já há muitos anos e assim continuará até Alá o chamar da terra.

— E a sua ida secreta ao cemitério dos ingleses?

— Foi mero acaso; há pouco ele ainda me falou nisso: A noite estava linda e ele saiu a dar um passeio: chegou ao cemitério sem que soubesse haver gente pernoitando no mesmo. Eram viandantes pacíficos que palestravam sobre os salteadores que infestam a zona e naturalmente que por esta ocasião falaram também em presas feitas pelos mesmos. Aliás, eu já te dissera que não me impressionava com aquele ato do Selim.

— Mas, acreditas que realmente o seu cavalo fugiu hoje?

— Não tenho a menor dúvida a respeito.

— E achas o Selim Agha um homem capaz de pegar na escuridão da noite um animal fugitivo?

— Por que não?

— Mesmo que o cavalo tenha disparado para muito longe? O animal estava coberto de suor e espuma.

— Por castigo, o Selim o fustigou muito, fazendo-o estugar o passo. Peço-te que o julgues melhor do que o tens julgado até agora!

— Julgá-lo-ei com prazer até, desde que ele mantenha atitudes menos misteriosas, do que até agora.

— Vou ordená-lo! Quanto a ti, tem em mente de que errar é do homem. Apenas Alá é onisciente!

Com esta advertência encerrara-se o nosso diálogo.

 

NA CIDADE E JUNTO À “TORRE DE BABEL”

Que deveria ou aliás, que poderia eu fazer em face da cegueira do Mirza? Eu estava mais do que convencido de que aquele Selim Agha projetava qualquer ladroeira; estava convencido ainda de que naquela noite ele estivera em confabulação com os mesmos homens por nós surpreendidos na necrópole dos ingleses em Bagdad. Como, porém, podia eu provar aquilo? Achava-me abatido. Tinha a impressão de que os ossos se me desconjuntavam e se tornavam ocos e de que a minha cabeça se transformara num tambor, que estava a rufar; sentia que pouco a pouco se arrefecia a força de vontade e que me tornava indiferente em face de coisas que, noutras épocas, punham em ação toda a minha energia física e espiritual. Daí o fato de haver eu aceito o pedido de Hassan Ardschir, pedido que constituía antes uma reprimenda do que uma prova de consideração. No entanto, em silêncio, tomara eu a resolução de estar sempre de atalaia.

Cavalgamos rapidamente através da planície. Os peregrinos pelos quais passávamos aumentavam cada vez mais de número; o cheiro tornava-se a cada passo mais insuportável e antes do meio dia vimos ao oeste, no horizonte, surgir uma das grandes caravanas fúnebres.

— Contornamo-la? — perguntei.

— Sim — respondeu o Mirza, e a um sinal seu o guia dobrou à direita, afastando-se da senda macabra.

Em breve cavalgamos a sós em campo aberto e o ar se nos tornou limpo. Com verdadeira sofreguidão respiramo-lo. Uma rápida cavalgada me teria sido preferível se o caminho não estivesse serpenteado de canais, buracos e valos. Com minha dor de cabeça, transpor tais obstáculos proporcionava-me sofrimentos; por isso alegrei-me quando ao meio dia apeamos a fim de esperar que diminuísse a ardência da canícula.

— Sidi, — declarou Halef que sempre me estivera a observar — a tua fisionomia dá sinais de profundo abatimento e estás com acentuadas olheiras. Sentes-te muito mal?

— Apenas dores de cabeça. Dá-me água do odre e a garrafa de vinagre!

— Gostaria que me fosse possível tirar-te estas dores e passá-las para a minha cabeça!

Bondoso Halef! O coitado nem por sombra pensava no que lhe estava também reservado. Não fosse o meu Rih uma tão excelente montaria, não teria eu suportado a cavalgada e me teria envergonhado da “Aloé”, que como uma elegante amazona montava a sua cavalgadura. Nunca pensei que ela cavalgasse com tanta elegância e habilidade!

Finalmente avistamos à nossa direita as ruínas de El Himaar nos surgir à frente; esta dista apenas uma milha de Hila. A seguir, avistamos as colinas diante de El Mudschellibeh e ao sul as cidades de Amaran-Ohn-Aly; alcançamos os jardins de Hila que vicejam à margem esquerda do Eufrates e transpusemos o mesmo por uma ponte de barca em ruínas para atingir a cidadezinha. Esta é afamada pelos seus parasitas, pela falta de asseio que nela se nota e que mesmo em se tratando do Oriente não se justifica, e pelo fanatismo dos seus habitantes. Íamos fazendo ligeiras paradas a fim de satisfazer sumariamente aos mendigos que se achavam pelo caminho; continuamos depois a galope na direção do Birs Nimrod (4), da “Torre de Babel”, que fica situada a três quartos de hora ao oeste de Hija. Como esta cidade constitui a parte central das ruínas, fácil é de se calcular quão extensa fora Babel.

O sol já declinava no horizonte, quando ao lado das ruínas Ibrahim Cholil vimos erguer-se a Birs Nimrod cercada de ermos e tremedais. A ruína da torre poderá hoje ter uma altura de uns cinqüenta metros no máximo e nela existem algumas colunas isoladas que dominam as redondezas com a sua altura de uns dez metros. São esses os únicos restos ainda de pé da “Mãe das cidades”, como Babel fora cognominada outrora; e mais uma vez tive que me lembrar de Uhland:

 

Apenas uma alterosa coluna

Atesta esplendor ofuscado

Mas mesmo esta já em ruínas

Pode cair à noite.

 

Fizemos alto ao pé da ruína e enquanto os demais realizavam os preparativos para o jantar, subi à plataforma a relancear os olhares pelas redondezas. Solitário, me achava eu cá em cima; o sol alcançara o horizonte e os seus últimos raios se despediam dos destroços da gigantesca cidade destruída.

Que foi aquela Babel?

Banhada pelo Eufrates que a dividia em duas partes, tinha a cidade, segundo Heródoto, um perímetro de 480 estádios, portanto dezesseis milhas. Era cercada por um muro de 50 côvados de espessura e 200 de altura, dotado de torres para a sua defesa; era também a cidade defendida por um profundo valo d’água. Com portas de bronze davam acesso à cidade pelo referido muro. Em cada uma dessas portas havia uma rua que em linha reta conduzia para o portão oposto, de forma que Babel possuía a configuração de um quadrado regular. As casas de três a quatro andares eram construídas de alvenaria de tijolos argamassados com asfalto. Os edifícios possuíam fachadas belíssimas e eram separados uns dos outros por espaços não edificados. Esses vãos que as separavam eram transformados em atraentes jardins. Praças e jardins públicos havia-os aos milhares a deleitar os dois milhões de habitantes da cidade.

Também ambas as margens do rio estavam cingidas por alterosos e espessos muros; pelo seu portão que se fechava à noite tinha-se que passar sempre que se precisava transpor o rio em navios ou batéis. Além disso sobre o rio se achava construída uma ponte esplendorosa com cinqüenta pés de largura e, segundo Estrabão, um estádio que, conforme narra Diodorus, tinha um quarto de hora a cavalo de comprimento. O seu telhado era desmontável. Para conter as ondas

 

(4) Torre de Nemrod.

 

durante a sua construção, fora aberto ao oeste um lago de doze milhas de perímetro e 75 pés de profundidade, para a qual desviou-se o Eufrates. Este lago foi conservado também mais tarde: cabia-lhe acolher as cheias e constituía um formidável reservatório do qual em épocas de seca se aguavam os campos por meio de possantes mangueiras.

Em cada extremidade da ponte erguia-se um suntuoso palácio; ambos se comunicavam por um caminho subterrâneo que corria em toda a sua extensão por baixo do leito do Eufrates, a exemplo do que sucede com o túnel por baixo do Tâmisa. Os principais edifícios da monumental cidade eram: o velho castelo real, com um perímetro superior a uma milha; o novo palácio, cercado por triplos muros e ornamentado por numerosas obras de arte em cantaria e o jardim suspenso de Semiramis. Este formava um quadrado de 160.000 pés quadrados de área e era cingido por um muro de 22 pés de espessura. Em monumentais abóbadas convexas erguiam-se terraços de conformação anfiteatrais, acessíveis por escadas com degraus da largura de 10 pés. As plataformas desses terraços eram apoiadas em pedras de 16 pés de comprimento e 4 de largura, a fim de não passar a água. Sobre as pedras havia uma camada de canos unidos, sobre estes duas camadas de telhas ligadas fortemente com resinas, e depois o todo era coberto com chumbo sobre o qual então colocaram terras férteis e em tamanha quantidade que nela enraizavam e se desenvolviam as mais possantes e frondosas árvores. No terraço de cima havia um poço que recalcava em abundância água do Eufrates para regar os jardins. À entrada desses terraços ficavam situados os poéticos salões-jardins que à noite eram profusamente iluminados; desses salões-jardins cingidos por aromáticas flores se tinha uma vista maravilhosa sobre toda a cidade e arredores.

A mais importante obra de Babel, porém, era a torre de Baal, da qual a bíblia nos fala. A sagrada escritura não nos dá a altura que teve a citada torre; diz apenas: “que o cimo alcançava até ao céu”. Os talmudistas asseveram que a torre possuía uma altura de 70 milhas; segundo tradições orientais, a altura da torre era de 10.000 toesas, segundo outros a de 25.000 pés e nela pretendem hajam trabalhado um milhão de pessoas durante doze anos consecutivos. Naturalmente que nisso há exagero. A verdade é que realmente em meio do templo de Baal se levantava uma torre, cuja base tinha um perímetro de mil passos, enquanto que sua altura era de 600 a 800 pés. Compunha-se de seis secções sobrepostas das quais, à proporção que se iam alteando, diminuía a base em relação à anterior. Por uma escadaria que fazia oito voltas, ascendia-se ao alto da torre. Cada uma das secções se achava dotada de entradas convexas, salas e quartos cujas estátuas, mesas, poltronas, taças, alguidares e outras baixelas eram de puro ouro maciço. Na primeira secção se achava a estátua de Baal, que pesava mil talentos babilônios, possuindo assim um valor de muitos milhões de talers. O último andar era dotado de um observatório no qual os astrônomos e astrólogos faziam as suas observações. Xerxes saqueou a torre levando-lhe todos os tesouros, que, segundo Diodurus, representavam um valor de 6.300 talentos de ouro maciço.

A mitologia oriental acrescenta ainda, neste particular, que na torre havia um poço que tinha a mesma profundidade da altura da monumental obra. Nesse poço foram dependurados com pesadas correntes aos pés os anjos Warud e Marud e que o fundo deste poço encerrava as decifrações de todas as feitiçarias.

Tudo isto é o que foi aquela Babel. E hoje...!

Daqui de cima da torre de Nimrod lancei um olhar retrospectivo aos dias de minha infância e me vi de bíblia na mão sentado na sala aquecida pela estufa. Quantas vezes lera eu as profecias de Jeremias que, qual clangor de clarins, soavam sobre o Sensar justiçado por Deus! Nas águas da Babilônia, nas margens do Eufrates e dos lagos e canais residiam os despatriados filhos de Abraão: emudeceram-se-lhes as liras e lágrimas abundantes rolavam-lhes das faces em penitência dos seus pecados. E quando tangiam as suas harpas, os acordes amargurados em notas plangentes eram plenos de nostalgia. Em meio de toda essa angústia, ressoou a voz de Jeremias, e o povo aflitivo se pôs a escutar as suas palavras:

“Esta é a palavra do Senhor contra Babel e a terra dos caldeus: Do setentrião surgirá um povo que lhes transformará o país num deserto; esse povo tem arcos e escudos e é cruel e desumano; os seus gritos assemelham-se ao bramir do mar. Fugi de Babel para que todos salvem as suas almas, pois há um brado de guerra no país e grandes lamentações. Fala o Senhor Zebaoth: Vede, quero procurar o rei de Babel; mobilizai-vos contra Babel; vociferai contra e ao redor dela; os seus alicerces baquearam, e os seus muros desmoronaram. Vinde todos contra ela; abri os seus celeiros e estrangulai os seus rebanhos; sitiai-a e não deixeis ninguém escapar. Ela procedeu contra o Senhor e por isso os seus homens e os seus guerreiros todos perecerão. Que o alfanje caia sobre Babel e seus príncipes, sobre os profetas e os fortes; sobre os corcéis e carruagem e sobre o populacho que nela residir. Tal qual sucedeu a Sodoma e Gomorra, Babel ficará reduzida a escombros!”

Agora que me achava cá em cima a contemplar as ruínas, foi-me possível constatar o modo pavoroso com que foram cumpridas as palavras do Senhor. Com 600.000 combatentes a pé, 120.000 cavaleiros e 1.000 carros com falcatos e guerreiros montados em camelos chegou Ciro e conquistou a cidade, apesar de sua posição fortificada e não obstante se achar provida de víveres para vinte anos. Mais tarde Dario Hystaspis mandou destruir-lhe os muros e Xerxes a despojou de todos os seus tesouros. Quando o grande Alexandre veio a Babilônia, pretendeu ele restabelecer a torre; só ele concorreu com 10.000 trabalhadores para os serviços de remoção dos destroços e entulhos; devido à sua morte ocorrida repentinamente, porém, o plano teve que ser suspenso. Daquela época em diante, cada vez mais se vem acentuando as ruínas da monumental cidade, de modo que hoje ali nada mais se vê do que um enorme caos de tijolos alterados pela ação do tempo, caos em que nem os olhos mais aguçados do explorador será capaz de se orientar.

À direita da torre vi eu a estrada que conduz a Kerbela e, à esquerda, a que vai para Masched Aly. Exatamente ao norte fica situada Thamasia e por trás das ruínas do Baal o Dschebel Manawieh. Prazerosamente teria eu continuado ainda cá em cima, mas o sol desaparecera no ocaso e em vista do pouco tempo que durava o crepúsculo desci para me juntar aos companheiros.

As tendas das mulheres já estavam armadas e além de Halef e do inglês todos os demais se haviam deitado a dormir. O último quis servir-me alguma coisa para comer e o primeiro mostrou desejos de assentar comigo o plano de nossa atividade para os próximos dias. Adiei essa combinação para a manhã seguinte, enrolei-me no cobertor e procurei dormir. Não me foi possível; a perturbação febril de que me achava acometido permitia apenas uma ligeira modorra que longe de me refazer as forças fatigava-me ainda mais.

Pela madrugada, um glacial tremor de frio sacudiu-me o corpo com intermitências de passageiro calor que me afogava as faces; uma singular dor aguda martirizava-me todo o corpo e, não obstante a escuridão, era como se todos os objetos e acidentes do terreno ao meu redor estivessem a rodar feito carrocei. Julguei ainda tratar-se de uma simples febre que não tardaria a ceder e tomei mais algumas gotas de quinino, ao que me sobreveio um pesado sono que mais se parecia a desmaio.

Quando despertei havia grande movimento em torno de mim. Com surpresa verifiquei já passar das nove horas da manhã e precisamente naquele instante as caravanas fúnebres que haviam pernoitado em Hila se dividiam; uma parte tomava o rumo de Kerbela e a outra a de Masched Aly. Halef ofereceu-me água e tâmaras. Foi-me possível tomar algumas gotas mas não consegui engulir um só bocado. Achava-me numa disposição física idêntica ao do bêbado após haver “cozido” a sua bebedeira; naturalmente que essa opinião eu formulava de experiência própria, pois durante o tempo de estudante por mais de uma vez despertei num desses estados físico e psíquico...

 

SEPARANDO-ME DO MIRZA

Esforcei-me o quanto pude para dominar aquele estado, o que consegui até certo ponto, pois me foi possível falar com Hassan Ardschie Mirza; este dispunha-se a partir assim que os últimos caravaneiros desaparecessem nas curvas dos caminhos. Pedi-lhe com empenho estivesse sempre alerta e de armas à mão para qualquer eventualidade. Ele, com um leve sorriso nos lábios, prometeu atender-me ao pedido e assegurou-me estar de volta a 15 ou 16 de Moharrem. Perto do meio dia empreendeu ele a peregrinação; ao nos despedirmos, Benda que já se achava sentada sobre o camelo, acenou para que dela me aproximasse.

— Emir, sei que nos veremos outra vez, — disse ela — muito embora estejas apreensivo. Para que fiques mais calmo, acederás a um pedido meu: empresta-me o teu punhal até a minha volta!

— Pois não, aqui o tens!

Era o schambijah, que Eslah el Mahem trocara com o meu punhal e em cuja lâmina se achavam gravadas as palavras: “Colocar na bainha só depois da vitória”. Eu sabia que a valente moça no caso de necessidade saberia defender-se com aquela arma.

Depois de me haver o Selim Agha dirigido palavras de despedida breves ou, para melhor me expressar, quase que hostis, a pequena cavalgada se pôs em movimento e nós a seguimos com os olhares até que ela desapareceu no caminho. Depois de mim se apoderou novamente o mesmo estado de prostração de há pouco. Halef pareceu haver notado isso antes que eu.

— Sidi, tens vertigens! — exclamou ele. — As tuas faces estão escarlates. Mostra-me a língua!

Atendi-o.

— Está azulada, Sidi, estás atacado de uma pertinaz isitma (5). Toma remédio e deita-te!

Realmente fui obrigado a sentar-me, pois apoderou-se de mim uma tontura que não me permitia suster-me de pé. Passei daí em diante a ter sérias preocupações com o meu estado de saúde; tomei água com vinagre, de que pus também algumas compressas na cabeça.

— Mister, — disse Lindsay, — creio que o senhor não me acompanhará a procurar um local, onde se possa fazer escavações!

— Não, o meu atual estado de saúde não permite.

— Então também ficarei aqui.

— Não é necessário. Estou acometido de uma febre muito comum de se contrair quando em viagem; Halef está comigo. O senhor pode ir fazer as suas explorações arqueológicas, mas não se afaste muito do acampamento. Se por acaso se chocar com os chiitas eu de nada lhe poderei valer na presente circunstância.

O inglês se foi com a sua gente e eu cerrei os olhos. Apreensivo e triste ficou Halef sentado ao pé de mim a renovar-me as compressas. Não sei quanto tempo estava já deitado, quando percebi ruídos de passos e ao mesmo tempo ouvi uma voz áspera perguntar:

— Quem sois vós?

Abri os olhos. Diante de nós estacavam três árabes armados até os dentes; estavam a pé e de seus cavalos não se viam nem as pegadas. Eram vultos bárbaros, de má catadura, dos quais nada de bom havia a esperar.

— Estrangeiros — respondeu Halef.

— Não sois homens dos chiitas; a que tribo pertenceis, então?

— Provimos de muito além do Egito e pertencemos à tribo dos mugharibeh (6). Por que pergunta?

— Tu pertences talvez aos mugharibeh; este outro, porém, é um franke. Por que não se levanta ele?

— Está doente, acometido de febre.

— Onde estão os demais homens que se achavam convosco?

— Foram a Kerbela.

— Também o outro franke que fazia parte da caravana?

— Este se acha aqui nas imediações.

— A quem pertence este cavalo preto?

— A este efêndi.

— Entrega-me o animal, bem como todas as vossas armas!

Dito o que, o árabe aproximou-se do meu garanhão e pegou-o pelas rédeas; aquele seu ato pareceu-me um excelente específico contra a febre, pois esta subitamente me desapareceu e de um vertiginoso salto me pus de pé.

 

(5) Febre.

(6) Árabes do oeste do Saara.

 

— Alto lá! Antes disso digne-se ao menos de pedir-me licença! Aquele que tocar no cavalo será homem morto.

O homem estacou assustado diante dos dois revólveres que eu lhe apontava. Nas imediações de Bagdad já devia ele ter conhecido a eficiência dessas armas e por isso as temia.

— Estou apenas gracejando! — declarou o árabe.

— Graceja lá com quem quiseres, menos conosco! Que queres aqui?

— Vi-os aqui e vim oferecer os meus préstimos.

— Onde tendes os vossos cavalos?

— Não os temos.

— Mentes! Vejo pelas dobras de tuas calças que andas montado. Como sabes que desta comitiva fazem parte dois frankes?

— Eu soube pelos peregrinos que vos encontraram.

— Mentes outra vez! Não dissemos a peregrino algum quem éramos.

— Se não dás fé às nossas palavras, retiramo-nos.

Recuaram, sem no entanto deixarem de dirigir de lá cubiçosos olhares aos nossos cavalos e armas, e se afastaram, desaparecendo por entre os escombros da antiga cidade.

— Halef, respondeste ao homem com lamentável imprudência — declarei ao meu servo. — Vem, sigamo-los a ver se de fato eles se retiram!

Saímos ao encalço dos estranhos personagens, caminhando, porém, muito vagarosamente, visto que após haver-me aplacado a cólera do primeiro instante, voltou-me a fraqueza de antes. Escureceram-se-me de tal modo as vistas que dificilmente distinguia os objetos diante de mim.

— Avistas os homens? — perguntei a Halef ao chegarmos por trás dos escombros.

— Sim, sídi; chegaram agora a campo nu e se dirigem aos seus cavalos.

— Quantos animais estão lá?

— Três. Mas não os vês tu também?

— Não; estou com muita tontura.

— Montaram agora e se vão a galope. Param, oh! lá mais adiante acha-se parada uma tropa inteira, como que esperando pela volta daqueles três. Alá! Alá!

— São árabes também?

— Não os posso distinguir, dada à distância.

— Então corre em busca do meu binóculo.

Enquanto Halef saía em cumprimento de minha ordem, dei tento à memória a ver se me recordava do local onde já ouvira a voz daquele árabe, voz que tinha quase a certeza de já havê-la ouvido uma vez. Nesse instante volta Halef com o binóculo, mas tudo diante de mim escureceu, de modo que lhe tive de confiar a observação. Levou algum tempo até ele se ajeitar com o binóculo.

— São persas! — declarou o criado.

— Ah! e não reconheces ninguém entre eles?

— Não; agora os três alcançaram a tropa que se põe em movimento.

— A toda brida, e rumo do oeste. Não é assim?

Halef respondeu afirmativamente e eu tomei do binóculo. Passara-me a vertigem.

— Halef, aqueles persas são os perseguidores de Hassan Ardschir-Mirza. Selim Agha está de combinação com eles. Ontem à noite, quando ele esteve ausente, foi procurá-los, a fim de lhes prevenir que nos achávamos aqui na torre de Nimrod. Aqueles três cá vieram a observar se o Mirza já havia prosseguido viagem e agora todos partiram com o intuito de assaltá-lo, antes dele chegar nas proximidades de Kerbela.

— Oh! sídi, que horrível isso! Precisamos persegui-los.

— Lógico. Prepara logo os cavalos!

— Não é para buscar primeiro o inglês? Vi-o, quando se retirou, tomar a direção do local a que chamas de Ibrahim Chalil.

Temos que desistir de chamá-lo; isto demandaria muito tempo em prejuízo da nossa empresa. Vai depressa!

 

HEDIONDA EMBOSCADA

Assestei o binóculo e vi nitidamente que a tropa se dirigia para o oeste. Desprendi uma folha do livro de notas, a fim de nela escrever ao inglês o sucedido e a deliberação por mim tomada. Aconselhei-o no bilhete a abandonar a torre de Nimrod e aguardar nossa volta no canal Anana, visto ser de se esperar o assalto na torre, desde que não me fosse possível dela desviar os salteadores. Coloquei o papel num montículo de telhas de modo que o inglês o encontraria logo; depois montamos e nos fomos a toda brida.

Parece incrível o poder formidável que o espírito tem sobre o corpo. O mau estar me desapareceu completamente, a cabeça refrescou e a minha visão se tornou limpa e clara. Atingimos a estrada dos peregrinos; passamos pela retaguarda da caravana, cujos componentes de nós se desviavam com palavras injuriosas; cruzamos por mendigos a cujos lamurientos pedidos nem prestamos atenção; passamos por... ah! lá se achava caída uma cavalgadura definhando e junto dela dois sujeitos ocupados em enrolar de novo um cadáver meio putreficado na colcha de lã em que o transportavam. Um cheiro horrível enchia a atmosfera; fui atacado de náuseas tão violentas que não me foi possível dominar.

— Sídi, que aspecto apresentas! — gritou Halef, agarrando-me o cavalo pelas rédeas. — Pára, se não cais do cavalo!

— Avante, galopemos para frente!

— Não, sídi! Pára! Os teus olhos estão esbugalhados como os de om louco. Tu cambaleias!

— Para frente, já disse... Sim, eu quis pronunciar essas duas palavras, mas não as ouvi, não as pude pronunciar, dizia apenas frases desarticuladas; entretanto, picava o cavalo para fazê-lo estugar o passo. Isso não demorou muito, pois daí a pouco foi como se tivesse ingerido um forte vomitório; tive que ceder e parar o cavalo. Ao dar depois com os olhos na viscosidade da excreção biliar que produzira o vômito e relacionando-a às dores epigástricas que a antecedera, não pude conter um pavor mortal que me sacudiu todo o ser.

— Halef, vai embora! Abandona-me!

— Abandonar-te! Por quê? — perguntou o homenzinho assustado.

— Eu estou com a... peste!

— Peste! Allah kerhim! Mas é isso verdade, Sídi?

— Verdade e dolorosa. Primeiramente julguei fosse uma simples e passageira febre; agora, porém, constato ser a peste.

— El Tauma, el jumurdschak — a peste! Allah il Allah, pavoroso, horrível!

— Vai-te daqui e avisa o inglês! Ele te acomodará; encontra-lo-ás ou na torre de Nimrod ou então no canal de Anana.

Essas palavras eu as pronunciei gaguejando. Ao invés, porém, de se ir conforme eu lhe determinava, Halef pegou-me das mãos que ardiam como fogo.

— Sídi, pensas então que eu te abandonarei?!!

— Vai-te daqui, Halef!

— Não!! Que a maldição de Alá me devore, se eu te abandonar um só instante. Os teus dentes estão como que enferrujados e a língua te está presa, mas não temo o contágio. Quem haveria de estar ao lado do meu sídi, nesta dolorosa contingência?! Quem o há de abençoar se ele morrer?! Efêndi, oh! efêndi, minh’alma soluça e meus olhos choram! Vem, segura-te no serigote; vou procurar um lugar onde eu te possa tratar.

— Mas realmente pretendes cuidar de mim, meu caro e fiel Halef?

— Senhor, por Alá o juro! Não arredarei pé de ti!

— Jamais me esquecerei deste teu gesto. Quem sabe se me manterei ainda. Vem, continuemos no encalço dos persas!

— Sídi, isto não é possível, pois...

— Para frente!

Finquei as esporas nos flancos do garanhão e Halef teve que me acompanhar voluntariamente ou contrariado. Em breve, porém, tive que moderar o galope do Rih; tornava-se-me novamente tudo escuro diante dos olhos e tive que me confiar a Halef, que sem perda de uma só palavra tomou-me a direção. Cada passo do cavalo produzia-me o efeito de um violento soco na cabeça; não via quem encontrávamos, larguei as rédeas e me segurei no serigote com ambas as mãos.

Por fim, alcançamos a caravana e esforcei-me por lhe distinguir os grupos isolados. Sem pronunciar uma sílaba, a aspirar o ar saturado de miasmas, passamos pelos peregrinos e não notávamos o menor vestígio do que procurávamos.

— Não os viste, Halef? — perguntei quando passamos pela ponta da caravana.

— Não.

— Dobremos então à esquerda e voltemos pela mesma direção. É impossível que tenham eles se desviado para a direita. Vês urubus voando por sobre a “Caravana Fúnebre”?

— Sim, e em grandes bandos, Senhor.

— Procuram presas e cheiram os cadáveres. Procura ver se eles voam a nossa esquerda! Não posso mais, entrego-me a ti!

— Mas se chegarmos à luta, Senhor?

— Neste caso a minha fortaleza de espírito superará a doença. Avante, pois!

O enorme préstito fúnebre se perdera de vista à nossa esquerda; cavalgamos tão rapidamente quanto de suas forças podia dar o cavalo de Halef. Era com um brutal esforço que me sustinha nos estribos. De repente o pequeno Hadji apontou para o ar:

— El Buedsch, um enorme abutre, lá em cima!

— Voa em linha reta ou circularmente?

— Circularmente.

— Ruma de modo a chegarmos por baixo dele. O animal ou está avistando um combate ou alguma presa.

Galopamos dez minutos debaixo do mais absoluto silêncio; eu tinha um pressentimento de que nos achávamos diante do momento decisivo; deixei a tira-colo a pesada Mata-ursos e agarrei a espingarda de repetição Com isso verifiquei o lamentável estado de debilidade em que me achava: o pesado rifle de dois canos que sempre dirigira facilmente com uma só mão parecia-me hoje ter o peso de vários quintais métricos.

— Sídi, ali jazem cadáveres! — gritou Halef erguendo os braços.

— Há vivos entre eles?

— Não os vejo.

— Depressa para lá!

Alcançamos o local, cuja visão tétrica jamais se apagou do meu espírito. Espalhados pelo solo jaziam cinco vultos imóveis. No auge da agitação, pulei do cavalo e ajoelhei-me diante do primeiro. O pulso martelava-me e a mão me tremia quando descobri-lhe o rosto e o reconheci. Era... Saduk, o mudo que nos escapara dos montes curdos.

Continuei a examinar os mortos. Mais adiante se achava estirada ao solo Alwah, a fiel serva, com o temporal partido por uma bala e no mesmo instante gritava Halef:

— Wai! — Aí! esta é a esposa do persa!

Aos saltos me encaminhei para ela. Sim, era ela mesma: Dschanah — o orgulho e felicidade de Hassan Ardschir. Estava também com a cabeça varada por uma bala e perto dela, estendendo-lhe os braços como que procurando ampará-la na morte, o próprio Hassan coberto de pó e areia. As suas feridas denunciavam o quanto fora encarniçado o combate; até as mãos se achavam cobertas de incisões e orifícios.

Tomado de acerba dor, gritei a plenos pulmões: Deus meu, por que não seguiu ele os meus conselhos! Por que não deu ele crédito às minhas prevenções!

— Sim, — disse Halef com ar sombrio — ele próprio é culpado de tudo. Confiou mais no traidor do que em ti. Mas jaz ali outro. Vamos ver!

Um pouco além se achava estendida no solo outra figura feminina na areia revolvida pelas patas de cavalos. Era Benda.

— Allah inhal el Agha; katelahum. — Amaldiçoado por Alá seja o Agha; foi ele que a assassinou!

— Não, Halef. Conheces o punhal que ela tem cravado no coração? Emprestei para ela. Ainda conserva a mão no cabo. O Agha a arrancou do meio dos seus; aqui estão os vestígios dos seus pés ao ser arrastada. Talvez que o ferisse. Depois, porém, é provável que ela própria tenha procurado a morte, ao sentir que não lhe era mais possível defender-se. Hadji Halef Ornar, eu também vou ficar deitado!

— Não, sídi, não há mais vida alguma a despertar; todos estão morros. Não os podemos ressuscitar mas lhes vingaremos a morte!

Não lhe respondi. Lá jazia a “vencedora”, mortalmente pálida, de olhos cerrados e lábios semiabertos, como se quisesse sussurrar em sonho. Aqueles lindos olhos fecharam-se para sempre; aqueles lábios não diriam mais doces e ternas palavras: o aço frio varara aquele coração límpido. Deitada diante de mim se achava uma flor de criatura humana, obrigada a fenecer nos primeiros alvores do seu desabrochar. Ardia-me a cabeça; senti a planície arenosa ensopada de sangue rodopiar diante dos meus olhos; o meu próprio corpo parecia girar-me em torno dos ombros; as mãos que eu apoiara sobre o joelho perdiam a firmeza e eu lentamente fui me escorregando. Tinha a impressão de que sossobrava cada vez mais num precipício escuro e medonho. Não havia nele ponto de apoio e parecia-se mais com um abismo; por fim ouvi a voz de Halef como que pronunciada a muitas milhas de distância:

— Sídi, acorda, para que vinguemos os mortos!

Finalmente, depois de muito tempo parecia-me que já ia sossobrando mais; chegara eu a um local em que encontrei firmeza, a um local em que dois vigorosos braços me seguravam. Tateei esses braços e olhei para o homem ao qual eles pertenciam; vi então que dos seus olhos grossas lágrimas corriam sobre mim. Quis falar e o consegui com muita dificuldade.

— Halef, não chores!

— Oh! senhor, julguei que estivesses morto, que tivesses morrido da peste e debaixo das mais lancinantes dores. Hamdullillah! Tu vives! Ergue-te. Lá estão as suas pegadas. Perseguiremos os assassinos e os mataremos! Sim, matá-los-emos, por Alá, juro-o!

Meneei a cabeça.

— Estou fatigado. Põe-me o cobertor debaixo da cabeça!

— Não podes montar, Senhor?

— Não.

— Peço-te, encarecidamente que o tentes!

Aquela boa criatura pensava que com a idéia da vingança me restabeleceria a força de ação. Não o conseguia, porém; então, desesperado, atirou-se no chão e batia com os punhos cerrados na testa.

— Que Alá arruine aqueles miseráveis, que não posso capturar! Que Alá arruine também a peste, que tirou ao sídi a força varonil! Que Alá arruine. .. sim, Allah illa Allah eu não passo de um verme, de um miserável que não pode ajudar em nada! Melhor é me deitar também aqui para morrer!

Nisso, levantei-me de um salto.

— Halef, achas que devemos deixar os abutres devorar os mortos?!

— Pretendes sepultá-los? — retrucou ele.

— Lógico!

— Onde e como?

— Onde, senão aqui no areal?

— Mas trata-se de uma tarefa dificílima e penosa, Senhor. Vou realizá-la eu; mas este Saduk que se fez de mudo para trair o seu senhor, este miserável Saduk aqui ficará entregue aos abutres e outros animais de presa. Antes, porém, vou revistar os mortos a ver se trazem ainda alguma coisa consigo.

A pesquisa foi improfícua. Haviam sido despojados de tudo. Quantas riquezas foram parar nas mãos daqueles bandidos! De admirar era haverem eles deixado o punhal cravado no coração de Benda. Os facínoras temeram tocar no braço hirto da morta. Pedi a Halef que não lhe tirasse o punhal; jamais me animaria a tocá-lo!

Demos início a escavação das sepulturas; não tínhamos outras ferramentas além das nossas mãos e facas. Morosos eram os trabalhos e depois de escavado um pé de profundidade, o solo tornara-se tão duro que gastaríamos uma semana inteira para abrirmos uma sepultura com as dimensões convenientes.

— Não é possível, Senhor! — disse Halef a certa altura. — Que resolves tu?

— Voltamos para a torre; ela dista quando muito duas horas a cavalo.

— Wallahi! e eu nem me lembrei disso! Traremos o inglês com as suas ferramentas.

— Mas neste ínterim os abutres repastarão os mortos!

— Então irei eu sozinho enquanto ficas aqui.

— Cairias nas mãos dos salteadores. Estes alcançaram o seu objetivo mais próximo e suponho que voltaram para a torre de Nimrod em busca de nossas armas e cavalos.

— Eu hei de estrangulá-los!

— Tu sozinho contra tantos?

— Tens razão, sidi. E nem eu devo abandonar-te, visto que estás doente.

— Voltaremos os dois.

— E os mortos?

— Colocá-los-emos sobre os cavalos e iremos a pé.

— Para isto estás muito fraco, Senhor. Vê como te fatigou o serviço de escavação na areia fina. Tuas pernas estão trêmulas.

Elas tremem mas não obstante resistirão à caminhada. Vamos!

 

OS PROGRESSOS DA PESTE

Tarefa tristíssima e afanosa ao mesmo tempo constituiu para nós o carregamento dos cavalos. Como não dispúnhamos de cordas suficientes, tive que cortar o meu lenço, que há tanto tempo me acompanhava em todas as jornadas pelo mundo. Mas cortei sem hesitar, pois era quase certo que a mão que por tanto tempo o manejara, em poucas horas a morte a imobilizaria também. Colocávamos os mortos de modo a serem presos dois em cada flanco dos cavalos. Depois tomamos das rédeas e saímos rumo ao nosso destino.

Nunca me esquecerei daquela caminhada. Não estivesse Halef do meu lado e eu por dez vezes teria ficado estirado no chão. Apesar de todos os esforços para me firmar, a cada passo dobrava-me o joelho: a cada curto intervalo era eu obrigado a parar, não para reunir forças novas que isso era impossível, mas sim novas energias. As duas horas que se gastavam a cavalo para chegar à torre se dilataram. O sol baixava. Ao invés de puxar o cavalo, me achava pendurado nas rédeas até que por fim Halef passou a apoiar-me.

O caminho se alongou também, devido à circunstância de precisarmos evitar todo e qualquer encontro; deste modo já era noite alta quando chegamos à torre.

Fizemos alto no mesmo local em que acampáramos na véspera. Do inglês não se viam nem vestígios. O bilhete lá já não estava mais; com certeza ele o lera e depois seguindo o meu conselho seguira para o canal. Descarregamos os mortos, pusemos os cavalos à soga e nos deitamos visto que naquele dia nada mais havia a fazer.

“Emir, sei que nos veremos outra vez”, dissera-me Benda. Sim, mas fui eu apenas que a vi outra vez! Mau grado me achar mortalmente cansado e de só conseguir concentrar as idéias depois de um inaudito esforço, passei em silêncio a fazer-me a mim próprio acres censuras. Eu devera ter defendido com mais energia as minhas opiniões e me contraposto com violência, se necessário fosse, à imprevidência de Hassan Ardschir Mirza. Se a doença que subitamente me acometera me houvesse poupado as forças, eu teria imobilizado aquele Selim Agha, provável cabeça do banditismo que culminou com a impressionante tragédia. Até hoje não me pude livrar desse remorso, não obstante haver já decorrido tanto tempo, e no silêncio de minhas meditações continuo a censurar-me a fraqueza que então revelei.

Passei uma noite horrível. Numa temperatura quase normal, estava eu com a pulsação acelerada; respirava com dificuldade; a língua tornara-se-me seca e ardente e à minha fantasia surgiam quadros e aparições que me obrigaram a chamar por diversas vezes Halef para esclarecer-me se aquilo era imaginação ou realidade. Por muitas vezes fui eu despertado dessas fantasias por horríveis dores que sentia nas axilas, no pescoço e no peito. Em vista deste meu estado, que só o descrevi minuciosamente, por ser raro entre nós um caso de peste, acordei-me pela manhã antes de Halef; notei então que nas axilas desenvolviam-se-me tumores, e carbúnculos no peito e no pescoço. Considerei então chancelado o meu destino e acordei o pequeno Hadji.

Este assustou-se do aspecto que eu apresentava. Pedi-lhe que me desse água e mandei-o depois ao canal em busca do inglês. Decorreram três horas, três eternidades para mim. Halef voltou sozinho. Lá não encontrara nada mais que uma enxada e nas proximidades desta vestígios confusos de patas de cavalos a denunciar que ali fora travado um combate. A enxada era uma das que Lindsay adquiria em Bagdad. Teria sido o inglês assaltado? Mas lá não havia o menor vestígio de haver tombado alguém morto ou ferido! Para esclarecer o mistério, nada me era de momento possível empreender, visto que me achava incapaz do mínimo esforço físico.

O meu aspecto deve ter-se agravado durante a ausência de Halef, pois que este mostrou-se ainda mais apreensivo pela minha pessoa e pedia-me encarecidamente que tomasse remédio. Sim, tomar remédio! Mas que remédio? Quinino, clorofórmio, essência de salamoníaco, arnica, ópio e outras drogas por mim compradas em Bagdad, de nada ajudariam. Que entendia eu, na qualidade de profano, sobre o tratamento da peste! O único tratamento que julguei acertado dispensar-me era conservar asseada a pele, tomar ares puros e banhos e fazer incisões nos carbúnculos e, como a prudência aconselhava a não ficarmos ali, comecei a pensar, tanto quanto meu estado permitia em matéria de clareza de idéias, que resolução tomaria.

Devia haver pelas adjacências uma vertente ou qualquer outra aguada por pequena que fosse; quando olhei na direção do oeste das ruínas, palpitou-me que naquele rumo haveria um arroio. Pedi por isso a Halef para cavalgar para aquelas bandas a ver se minha suposição se confirmava.

 

A MELHOR “ARMA” CONTRA OS SALTEADORES

Mostrou-se, como sempre, solícito o meu fiel servo, se bem que não oculto a sua apreensão em me deixar só. Halef já se havia retirado fazia meia hora, quando percebi rumores de um tropel de cavalos que se aproximavam. Virei-me e dei com os olhos em sete árabes, dos quais dois pareciam feridos. Entre eles estavam os três que na véspera haviam falado comigo. Ao avistarem os cadáveres, estacaram indecisos, passando depois a conferenciar em voz baixa. Por fim, aproximaram-se e me fecharam num cerco.

— Afinal, entregar-nos-ás ou não o teu cavalo e armas? — perguntou-me arrogantemente o mesmo que no dia anterior me dirigira a palavra.

— Entrego, sim — respondi calmamente. — Tudo está à tua disposição!

— Onde está o teu companheiro que falta?

— Onde estão os quatro que assaltaste ontem no canal de Anana? — respondi.

— Saberás assim que estivermos de posse dos teus cavalos e armas. Dá-nos! Estás vendo essas seis espingardas apontadas para ti! Assim que fizeres o menor movimento de recusa ou um gesto em busca dalguma arma serás um homem morto!

— Nem me passa pela idéia recusar ou usar de alguma arma contra vós. O que exigis, entrego de bom grado, pois, ao invés de um que era só quanto conseguiria matar, todos vos perdereis tocando no meu cavalo ou nos meus haveres.

O homem riu-se e, chasqueando, respondeu:

— Tuas armas nada conseguirão contra nós!

— Pois experimenta. Aqui as tens!

Dito o que, estendi-lhe um dos braços e entreguei-lhe a pistola aos mesmo tempo que com a outra abri as vestes no peito, de modo a ficar este e mais o pescoço desnudados. Imediatamente o árabe encolheu o braço e saltou para trás saindo em doida disparada para junto do seu cavalo.

— Liwahihalla! — Santo Deus! — gritou pulando num salto de pantera para o serigote. — Este homem tem a peste, a morte, a morte no corpo! Fugi oh! crentes do alcorão, fugi desta cidade maldita, do contrário estareis perdidos!

Ao pronunciar tais palavras deu de esporas no cavalo e saiu voando como uma flecha seguido dos demais.

No auge do pavor, os diletos filhos do profeta não se lembraram da sura que diz: “A vida do homem está escrita no livro” e que portanto, a sua fuga não lhes modificaria o destino traçado por Alá! Esqueceram-se até de mandar-me uma bala na cabeça, direito que segundo a lei dos malfeitores beduínos lhes assistia por não lhes ter sido possível roubar-me os haveres.

Meia hora depois voltava Halef com fisionomia mais alegre. A minha suposição era acertada. Encontrara ele um riozinho de águas límpidas, afluente do Eufrates, e cujas margens eram cingidas por alterosas ervas. Contei-lhe o episódio dos árabes e o homenzinho ficou indignado por não haver estado presente. Jurou-me que teria fuzilado todos de uma: vez!...

 

O SEPULTAMENTO DOS MORTOS

Antes de abandonarmos a torre, precisávamos sepultar os mortos. Com o auxílio da enxada que trouxera Halef do canal abriu este as sepulturas no flanco oeste das ruínas. O persa foi enterrado na companhia das três mulheres, entre uns entulhos das ruínas numa cavidade simetricamente aberta entre as mesmas. Eu assistia aos trabalhos a contemplar a fisionomia daqueles mortos amigos. Benda foi colocada com as costas apoiadas numa parede de alvenaria em ruínas; a sua linda e basta cabeleira caía ao solo e a mão direita continuava no cabo do punhal cravado no coração. Na mesma posição, isto é, de face voltada para o oeste, na direção da santa Kaaba, fora sepultado Maomé Emin. Todos daquela feita assistiram à cerimônia fúnebre e Hassan Ardschir rezou também uma sura. Quem haveria de profetizar então que todos os quatro encontrariam o mesmo destino!

Quando Halef já havia levantado as quatro paredes a uma altura suficiente e antes de cobri-las com lajes, despediu-se dos mortos. Também eu ajoelhei-me à beira do túmulo.

— Allah el Allah, we Magamed Rahsul Allah! — exclamou o pequeno Hadji. — Sídi, permite que hoje reze eu a oração fúnebre!

Ele rezou-a. Precisava eu envergonhar-me das lágrimas que me rolavam pelas faces?

Por fim rezei também eu uma oração do rito cristão em honra dos mortos. Não haviam eles conseguido chegar a Kerbela, a cidade do luto; em meio do caminho empreenderam uma peregrinação mais alta, para a cidade da clareza e da verdade, onde não predominam os enganos e os preconceitos e onde reina a felicidade para todo o sempre!

O túmulo foi completamente fechado e dispomo-nos a empreender a partida. Procurei afugentar do coração a amargura profunda que me sobreviera, da cerimônia fúnebre e me sentei no serigote. Contudo, quando nos pusemos em movimento, não pude deixar de volver os olhos para o túmulo. Dura era-me a despedida daqueles entes que haviam partido para uma melhor vida, entes a que eu, não obstante o relativamente curto espaço de convívio, viera a estimar sinceramente. Oh! homem, a mais linda e mais orgulhosa das criaturas terrenas, como és um ser ínfimo quando sobre ti é desferido o golpe da eternidade.

 

HALEF ACOMETIDO DA PESTE

Saímos a trote lerdo contornando as ruínas de Ibrahim Chalil e passamos para a fronteira sul dos campos de ruínas, que nos ficavam à esquerda. Tive que envidar todos os esforços para não cair do serigote e assim transcorreu mais de uma hora até alcançarmos o lugar que Halef, para achá-lo, havia levado menos de meia hora. Avistei então um riozinho que corria do oeste e cujas águas tinham a limpidez e frescura de uma vertente. Era ele tapado em ambos os lados por densa cerca de vime e outros arbustos. Não me achava com o espírito em condições para sindicar da maneira singular como se originara aquele riozinho de águas tão puras naquela zona; mais tarde, porém, constatei que a zona oeste das ruínas não era nada pobre em vertentes. Mais abaixo existem tremedais, focos permanentes de peste e, no entanto, algumas milhas no alto existem até várias cascatas a refrigerar os viandantes.

Halef improvisou-me um leito fazendo sobre o mesmo um telhado de palhas e arbustos secos, a fim de porteger-me dos raios solares naqueles dias ardentes de estio; tomei depois um banho e deitei-me no “canapé” de folhas secas, que me serviria de leito de enfermo. Eu tinha a língua saburrosa e azulada. Tremores de frio e calor alternavam-se-me no corpo. O pequeno Halef movimentava-se na minha frente como que envolto em densa neblina, e a sua voz soava-me como que partida de um ventríloquo. Enquanto isso, avolumavam-se-me os tumores e carbúnculos. À noitinha, pedi a Halef que me fizesse fortes incisões nos carbúnculos. Para minorar-me os padecimentos da noite, recomendei a Halef que me borrifasse água toda vez que me visse acometido de convulsões. Na manhã seguinte acordei-me muito melhor e Halef saiu em busca de caça.

Em breve voltou trazendo diversas aves que assou no espeto e me serviu. Era-me, porém, impossível engulir o menor bocado. Halef permanecia também sentado à minha cabeceira, mudo e pensativo, sem o menor apetite para comer também alguma coisa. Apenas Dojan tomou a sua refeição. Que tristíssima era a minha situação, perdido às margens do Eufrates o “rio do paraíso”! Mortalmente enfermo, sem outros recursos que não os prodigalizados por nós próprios, cercados de miasmas da peste, em meio de um povo semi-selvagem, fanático em extremo, contra quem só nos poderíamos defender com uma única arma — a peste. Para Hila ou qualquer outra localidade não nos podíamos dirigir, por que nos matariam assim que me viessem com o morbus terrível. Que teria sido de mim sem a assistência dedicada e carinhosa do valente e denodado Halef, que tudo arriscava para demonstrar-me a sua estima e lealdade!

Hoje era o quarto dia da marcha da doença, o decisivo, segundo dizem. Continuei na esperança de salvar-me por meio de ar puro e água límpida; contudo, não obstante a grande fadiga dos últimos dias, eu confiava mais na eficiência do pouco de força que me restava ainda para resistir à moléstia, do que na de qualquer medicamento, de cuja aplicação e fórmula eu não estava ao par.

À tardinha desceu-me a febre e diminuiram-me as dores e o volume dos carbúnculos e demais íntumescimentos. Eu dormia relativamente bem; quando na manhã seguinte exibi a Halef a língua, que já começava a umedecer de novo, o meu criado declarou-me que as manchas azuladas já haviam desaparecido quase que completamente.

Agora entrava eu, pois, em convalescença, a qual tinha esperanças de não ser muito longa. Assustei-me, porém, à tarde, quando o dedicado servo se queixou de idêntica dor de cabeça, tonturas e calafrios. Já à noite estivera eu impressionado com a probabilidade de contagiar o pequeno Hadji com o fatídico morbus. Quando ele saiu em busca de água ao arroio, notei que suas pernas se achavam bambas.

— Halef, tu cais! — exclamei apavorado.

— Oh! Sídi, tudo gira em torno de mim!

— Estás doente! É a peste!

— Sei disso.

— Oh! e fui eu quem te contagiou!

— Alá assim o quis! Estava assinalado no livro. Eu morrerei; tu, porém, voltará aos campos forrageiros dos haddedins a consolar a minha Hanneh.

— Não hás de morrer, não! Eu te tratarei com todo carinho, para que te restabeleças.

— Tu? — replicou-me sacudindo a cabeça. — Mal podes contigo mesmo; lutas igualmente com a morte, que por nada quer se afastar de tua cabeceira.

— Estou a caminho do restabelecimento, Halef, e não farei menos por ti do que fizeste por mim.

— Oh! Sídi, que sou eu comparado contigo?! Deixa-me aqui atirado a morrer!

Pobre Halef! Como já se achava abatido pelos sintomas característicos da peste! Quanto não teria ele resistido antes de se entregar! Tudo fizera, sem dúvida, por ocultar-me o seu estado. Agora isso já não lhe fora mais possível e, aliás, algumas horas depois falava ele desconexamente. Possivelmente havia nele se inoculado o micróbio ao mesmo tempo que em mim, quando em Bagdad estivemos a observar a “Caravana Fúnebre”. Agora nele se irrompia a peste com maior violência ainda que irrompera em mim.

Era com dificuldade que eu me locomovia para ministrar-lhe tratamento, tratamento aliás de que eu próprio ainda carecia. Foi época que ainda dela me recordo com horror.

Também Halef salvou-se; contudo, ao décimo dia da moléstia, estava ele ainda tão débil que eu era obrigado a carregá-lo nos braços; entretanto eu mesmo não conseguia dar um tiro seguro em caça com a minha pesada espingarda. Uma sorte para nós foi não haver sido descoberto o nosso esconderijo. Quando depois pela primeira vez mirei-me nas espelhantes águas do rio, não foi sem susto que estaquei diante da caveira barbada a que eu estava reduzido. Não é de admirar, pois, que bandos de urubus promovessem indefinidamente durante dias os seus vôos em torno de nós e que os chacais e as hienas vindas das ruínas a se dessedentarem no rio olhassem através dos juncais a ver se já não havíamos perecido para lhes servirmos de repasto. Aqueles animais de presa fugiam logo espavoridos ante a vigilância de Dojan que não lhes demonstrava um espírito lá muito hospitaleiro.

 

PELA SEGUNDA VEZ, A PESTE FAZ RETROCEDER OS SALTEADORES

A minha primeira excursão depois da convalescença empreendi-a ao túmulo do persa, túmulo que se achava ainda intacto. Chegara eu a pé às ruínas e estava já sentado bem uma hora na galeria da torre, a recordar os mortos, quando Dojan que eu levara comigo, desandou a latir furiosamente. Virei-me e deparei à certa distância com uma tropa de oito cavaleiros conduzindo alguns falcões abatidos e uma malta de cães. Já me haviam notado e de mim se acercavam. Desci da torre.

— Quem és? — perguntou-me um deles, que parecia o chefe do bando.

— Um estrangeiro.

— Que fazes aqui?

— Reverencio a memória dos mortos que ali se acham sepultados. E apontei para o túmulo.

— De que doença morreram eles?

— Foram assassinados.

— Por quem?

— Por homens persas.

— Ah! Por persas e árabes da tribo dos zobeides! Ouvimos dizer. Assassinaram também vários homens que se achavam acampados no canal.

Fiquei apavorado, pois ele não se referia a outros senão a Lindsay e sua gente.

— Tens certeza disso? — perguntei-lhe.

— Temos. Somos guerreiros da tribo dos schats e guiamos peregrinos a Kerbela. Destes é que soubemos do ocorrido.

O homem dizia uma inverdade. Os schats residem ao sul e é com perigo que se deixam avistar nesta zona. Além disso, o fato de se encontrarem eles em caçadas de falcões comprovava à saciedade que eram moradores das circunjacências. A sua atitude despertou-me desconfiança, que procurei disfarçar.

Nisso, o homem tocou o cavalo rente a mim e exclamou:

— Que original espingarda tens! Mostra-me!

— Dizendo isso, estendeu o braço na direção da espingarda; eu, porém, recuei um passo e respondi-lhe:

— Esta arma é perigosíssima nas mãos de quem não sabe manejá-la.

— Neste caso, explicar-me-ás o seu manejo!

— Prazerosamente, desde que apeies e te afastes um trecho junto comigo. Ninguém entrega a sua arma em mãos estranhas sem que esteja convencido de se achar seguro.

— Dá-me já a arma. É minha!

Estendeu novamente a mão em busca da arma ao mesmo tempo que encurtava as rédeas para derrubar-me à pata de cavalo. Foi quando Dojan num salto de tigre abocanhou o homem pela perna e o derrubou da montaria. O árabe que conduzia a matilha de cães proferiu então um grito, soltando os seus cachorros, que logo se atiraram contra o meu galgo.

— Chama os teus cães! — bradei assestando a espingarda.

Não obedeceu o árabe ao meu brado e por isso bati quatro vezes o gatilho. Cada tiro matou um cão; ao desfechar os tiros, porém, não prestara eu atenção ao chefe do bando; este apesar da perna ferida pela dentada do cão, agarrou-me por detrás e me arrojou ao solo. Eu me achava demasiadamente fraco para opor-lhe uma resistência decisiva; travou-me o homem de cintura e segurou-me enquanto os outros me despojavam.

Foram-me arrancadas a espingarda e a faca; depois algemaram-me e me amarraram de encontro a um dos muros em ruína.

Enquanto isso, Dojan lutava com os únicos três cães sobreviventes. Estava com o pêlo todo em rasgões, várias feridas lhe sangravam, mas o valente animal resistia aos três atacantes, tudo fazendo para não deixá-los agarrar-lhe na guela. Nisso, um árabe assestou a espingarda contra ele e bateu o gatilho; a bala foi alojar-se entre as costelas. O cão caiu morto e foi despedaçado pelos seus antagonistas.

Tive a impressão de haver sido morto ao meu lado o melhor amigo meu. Oh! a minha fraqueza! Estivesse eu em plena pujança de minhas forças, que teria sido das frágeis cordas que me algemavam?

— Estás só aqui? — perguntou-me o chefe.

— Não. Resta-me apenas um único companheiro.

— Onde está ele?

— Nas imediações.

— Que fazeis aqui?

— Fomos em caminho acometido da peste e aqui ficamos estirados. Com esta resposta, aliás sincera, era o único meio de me escapar à sanha daquela gente. Mal pronunciara eu as últimas palavras, eles apavorados se afastaram de mim. Apenas o chefe do bando ficou parado e retrucou-me num sorriso encolerizado:

— És um indivíduo assaz manhoso, mas a mim tu não enganas, não! Aquele que cair em meio do caminho afetado da peste jamais se curará, e tu estás com saúde.

— Com saúde? Olha-me bem e verás em mim os vestígios da doença que já se aplacou! — retruquei-lhe.

— Realmente, o teu aspecto é de um homem que se encontra à beira do túmulo, mas não tens a peste e, sim, uma simples febre. Onde está o teu companheiro, repito?

— Está no... Ah! lá vem ele.

É que eu ouvira ao longe uma voz que desejava ser forte mas que mal conseguia proferir em estrídulos meio desarticulados a palavra Rih! Rih! Rih! A seguir ouviu-se o forte galope do cavalo e um momento depois vi chegar o meu garanhão pulando sobre ruínas e entulhos. Montava-o Halef que lhe cingira o braço esquerdo pelo pescoço e a mão direita apoiava-a entre as orelhas do animal; trazia a tiracolo a sua pistola de dois canos e a espingarda.

Os árabes todos viraram-se para contemplar o espetáculo. Como conseguira o mortalmente debilitado Halef montar o Rih!... Ele nem forças tinha para suster-se de pé. Passou por nós em vertiginosa disparada.

— Dur kawi, Rih — Pára Rih! — bradei eu, tão alto quanto pude. Imediatamente o bravo animal voltou no mesmo galope.

— Tira-lhe a mão das orelhas, Halef!

Ele o fêz e o animal ficou parado em minha frente. Halef caiu no chão. Não tinha mais nem forças para suster-se sentado, o meu pobre servo, e no entanto perguntou-me com os olhos flamejantes de cólera:

— Ouvi o deflagar de tiros. Sidi, a qual deles devo matar?

À visão daquele doente deve ter servido imediatamente de prova aos árabes de que há pouco falara eu a verdade.

— É a peste! Que Alá nos valha! — bradaram todos em coro.

— Sim, realmente é a peste — respondeu o chefe, largando no solo a minha espingarda e a faca. Fugi, homens! Quanto a vós, cães malditos que nos contaminastes, ireis já para o inferno!

Ele alvejou-me, e outro a Halef. Bateram o gatilho mas a mão do primeiro mordida pelo cão não teve firmeza na pontaria, o mesmo sucedendo ao outro, devido ao medo da peste, ambos erraram o alvo. Também Halef descarregou a sua pistola, mas sua mão agitava-se qual a ramagem dum arbusto ao sopro da brisa; também o seu tiro falhou e quando quis assestar a espingarda não o conseguiu, devido ao seu estado de fraqueza. Enquanto isso, os árabes haviam já tomado avanço que os punha fora do alcance de nossas armas.

— Lá vão eles em fuga! O scheitan que os capture! — exclamou o pequeno Hadji. — Mas não era propriamente uma exclamação e sim um leve murmúrio que lhe fugiu dos lábios. — Que te fizeram aqueles biltres, sidi?

Narrei-lhe tudo e pedi-lhe que me cortasse as cordas com que me haviam algemado. O pobre a muito custo o conseguiu, exausto como se achava.

— Mas Halef, como conseguiste montar o Rih?

— Muito facilmente, sidi. Ele estava deitado e eu, depois de desamarrá-lo, sentei-me no seu lombo. Eu sabia onde estavas e quando ouvi os estampidos cabia-me correr em teu socorro. O estampido da tua espingarda de repetição ouve-se muito ao longe. Revelaste-me o segredo de fazer teu garanhão correr como uma flecha e eis a razão de me haver ele trazido tão depressa para aqui.

— A tua simples presença bastou para libertar-me. O pavor pela peste é mais eficiente do que qualquer arma. Aqueles homens hão de falar por aí do encontro que tiveram e por isso podemos ter a certeza de estarmos a coberto de assaltos enquanto aqui permanecermos.

— E Dojan? Aquilo ali são os pedaços de seu corpo?

— São. E teria sido vencedor, se não o houvessem morto a tiro. Mas temos uma perda mais dolorosa ainda a assinalar. O inglês, juntamente com os seus trabalhadores, foi assassinado.

— O inglês? Allah il Allah! Quem te disse?

— O chefe daquele bando de árabes. Afirmou ele ter ouvido dizer isso. Mas é quase certo que ele próprio tomou parte no massacre.

— Neste caso teremos que encontrar os cadáveres. Assim que eu puder caminhar, iremos procurá-los, a fim de enterrá-los. Aquele inglês era um infiel; mas te estimava, razão por que eu o estimava também. Senhor, abre uma sepultura para o cão! Ele irá descansar aqui nas imediações do túmulo do persa. Viveu também para a defesa deste. De maneira alguma deve ele ser devorado pelos abutres e chacais. Depois disso, conduze-me daqui. Estou tão cansado como se também eu tivesse sido atingido por uma bala.

Procedi de acordo com o seu desejo. O pobre Dojan foi sepultado diante do túmulo do persa, como se também depois da morte deste, lhe coubesse guardá-lo. Depois, levando Halef na garupa e pondo as armas a tiracolo, voltei lentamente para o nosso acampamento, à margem do riozinho. Longe estava eu de supor que a notícia do massacre do inglês fora a conseqüência de um simples engano. Fiquei ansioso por deixar a fatídica região o mais depressa possível. Nem pensamos mais na excursão a Hadramaut, que havia tempos projetáramos.

 

Em Damasco

 “Salve, mil vezes salve, Damasco, tu florida, tu rainha dos perfumes, menina dos olhos das formosas cidades, tu virgem dos figos, distribuidora de todas as alegrias e inimiga de todas as agruras!” — Assim saúda o viandante a Damasco, quando ele se encontra lá no alto na Kubbet en Nassr cujas mesquitas, quais guardas vigilantes se erguem com minaretes sobre o Djebel El Salehieh.

Aquela Kupe Es Salehieh constitui indubitavelmente uma das mais admiráveis projetivas do mundo. Por trás dela ficam os pitorescos montes do Líbano, cujas muralhas parecem erguer-se para o céu e à frente se distende a planície destinada pela natureza talvez que para paraíso, a planície tão exaltada pelos muçulmanos, a planície de Damasco. Perto dos montes, fica El Ghuta, a planície de milhas e milhas de perímetro, com seus pomares e lindos jardins floridos; esta planície é refrigerada por oito riozinhos e arroios, dos quais sete são afluentes do rio Barrada. E por trás dessa cadeia de jardins brilha Damasco, cidade a que os árabes cognominam de Schamm e que constitui a verdadeira “Fata Morgana” a refrigerar os peregrinos fatigados. Ao norte fica o Djebel Kassium onde, segundo as crônicas orientais, Caim matou seu irmão Abel. Em El Ghuta, segundo lendas árabes, ergue-se a árvore do bem e do mal, que deu lugar ao pecado original, e em Damasco propriamente dita, fica a mesquita dos Omíadas, por cujo minarete Cristo descerá à terra no dia do juízo final, a fim de julgar os vivos e os mortos. Destarte a história de Damasco, como a de nenhuma outra cidade, abrange o começo e o fim do mundo, como o afirma o orgulhoso e fanático habitante da “cidade do rio Barrada”.

Em todo caso, Damasco realmente é a cidade mais antiga do mundo, mas ninguém pode precisar o dia exato de sua fundação, visto que os historiadores islamitas longe de desenvolvê-los, mais confundiram os dados que serviriam de base à tal conclusão. Antigamente chamou-se ela também Aram Damasek. A sagrada escritura trata-a na maioria das vezes de Damasco. David a conquistou e considerava-a como a mais linda pérola de sua coroa. Mais tarde foi ela dominada pelos assírios, babilônios, persas, pelos seleucidas, pelos romanos e pelos árabes. Quando Saulo se converteu em Paulo, estava ela sob o cetro dos árabes. “Levanta-te, vai à rua que chamam direita, e na casa de Judá pergunta pelo nome de um Saulo de Tarso; vede que ele ora!” Assim falou o Senhor face a face com Ananias. E ainda hoje lá se acha aquela rua. Ela une Bab el Scherki ao leste a Bab el Yahya ao oeste e constitui a artéria de maior movimento da cidade e chama-se ainda hoje Sak el Dschanah, “A rua direita.”

Distante da cidade um quarto de hora, vê-se nas proximidades do cemitério cristão, uma chapa de rocha no local em que Saulo se viu iluminado pela luz do céu e em que uma voz lhe disse: “Eu sou Jesus a quem persegues, duro te será recalcitrar contra o aguilhão.” Na porta orientalis, um bonito portão romano antigo com três entradas, está a casa de Ananias, onde esteve Paulo. Vê-se ainda num portão de alvenaria a janela de onde o apóstolo desceu por um cesto.

Muitas vezes, muitíssimas mesmo, foi Damasco conquistada e reduzida a escombros mas sempre se tem reerguido com novas forças e energias de produção. Maiores sofrimentos teve ela em 1400 sob Tamerlão, que durante dez dias deixou suas hordas selvagens entregues ao massacre nas ruas da cidade; depois quando sobre Damasco reinava o silêncio da morte, o fogo completou a obra destruidora. Sob o domínio dos otomanos, a cidade pouco a pouco foi perdendo a sua significação. Da antiga cidade mundial foi feita uma cidade provincial, sede do governo do paxá, e todo mundo sabe que aquela espécie de administração é adequada para empobrecer dentro de pouco tempo o estado ou cidade mais rica e abater com impostos extorsivos a capacidade de produção dos povos mais ativos.

Diz-se hoje possuir Damasco 200.000 habitantes; o mais certo, porém, é ter ela quando muito 150.000. Dentre estes, há cerca de 30.000 cristãos e de 3.000 a 5.000 judeus. Nenhum muçulmano, nem mesmo o natural de Meca é tão fanático como o de Damasco. Não vai muito longe o tempo em que a um cristão lá era vedado montar um camelo ou um cavalo; tinha que caminhar a pé se não desejasse andar montado no seu burro. Esse fanatismo que facilmente degenerava em encontros sangrentos, ainda hoje perdura no mesmo elevado grau que no ano de 1860, em que milhares de cristãos foram mortos aos montes.

O horrível prelúdio daquela chacina teve início em Hasbei, ao oeste de Hermon, em Deil el Kamr ao sul de Beirute e na cidade costeira de Saida. Em Damasco, no dia 9 de julho daquele ano, o Muedim havia chamado, ao meio dia, os fiéis para a oração, quando o populacho armado, dirigido pelos baschi-bozuks, assaltou o quarteirão dos cristãos. Todo o homem e menino foi morto a golpes; quanto às mulheres e moças, uma parte foi morta de modo ainda mais horrível e a outra parte conduzida ao mercado de escravos. O governador Achmet Paxá assistiu impassível a toda a cena de barbarismo; mas um houve que tomou a peito a defesa dos cristãos e exatamente um que por longos anos a fio combatera os mesmos. Foi Abd el Kader, o herói beduíno da Algéria, que deixara sua pátria exilando-se em Damasco. Abriu as portas de sua casa aos cristãos fugitivos e à frente dos seus algerianos, patrulhou a cidade em busca dos cristãos para acomodá-los na velha cidadela. Quando havia ali posto a salvo uns 10.000 cristãos, pretenderam os chacinadores a toda força invadir a cidadela. Ele, porém, de capacete e couraça, irrompeu entre os assaltantes, ordenando aos seus que ao menor sinal de uma agressão incendiassem Damasco por todos os cantos. Foi a salvação.

De Damasco conduz uma ampla estrada de caravana a Meca, que se alcança em 45 dias de viagem. Até Bagdad uma caravana leva de 30 a 40 dias; o estafeta do correio, porém, a atinge montado em dromedário em 12 dias. Mas caríssimo é este último meio de transporte, visto que se paga por uma carta de Bagdad a Istambul o porte de 28 marcos; por uma carta expressa chegam a cobrar até 50 marcos.

Também eu viera de Bagdad para Damasco, mas não viajara pela estrada do correio. Tinha os meus motivos para isso.

 

O “AMULETO” DO RUH

Depois dos acontecimentos relatados, estivemos ainda seis dias acampados à margem do riacho, até que Halef recuperou as forças de modo a podermos voltar a Bagdad. Antes do regresso, porém, estivemos por várias vezes no canal de Anana onde afanosamente procuramos pegadas de Lindsay e sua gente, sem que nossas pesquisas conduzissem ao mínimo resultado. Chegados a Bagdad, informou-nos o nosso hospedeiro que lá também o inglês não estivera, depois de nossa partida e nem ouvira dizer alguma coisa a seu respeito. Assim, senti-me no dever de comunicar o seu desaparecimento ao consulado da Inglaterra naquela cidade. Foram então prometidas imediatas providências, as quais pareciam não surtir efeito algum, de modo que resolvi partir.

Dificuldades de ordem pecuniária para o prosseguimento da jornada não as tive eu visto que, achando-me ainda nas ruínas de Babilônia, encontrei uma boa soma em dinheiro que me punha a coberto de qualquer privação. Achei-a não escavando ou revolvendo os monturos e escombros, como à primeira vista possa se compreender.

Quando ainda acampados no riacho e numa hora em que Halef dormia um profundo sono em sua convalescença, fui às ruínas; lá, ao refletir sobre a dificultosa situação em que me via a braços, lembrei-me do amuleto que me dera Marah Durimeh, por ocasião de nossa despedida. “Enquanto estiver fechado de nada te ajudará; mas abre-o assim que careceres de um salvador; o Rub ‘i kulyan te socorrerá então, embora não esteja do teu lado.” Naturalmente que nunca julguei conter o amuleto algum recurso material para a minha conjuntura presente; usara-o durante tanto tempo ao pescoço, sem que um dia tivesse a curiosidade em abri-lo; agora, porém, entediado como me achava, aguçou-me a curiosidade de conhecer-lhe o conteúdo. Abri-o. Continha. .. dois cheques visados, em libras esterlinas. Confesso que naquele instante fiz uma fisionomia estranha, porém não de quem se achava contrariado... Razão tinha a velha em dizer:

“Enquanto estiver fechado não produzirá ele nenhum efeito.” Como conseguira ela, a riquíssima filha de um rei, obter fundos num banco inglês?! Bem, a este respeito, seria supérfluo perder tempo com reflexões. Dinheiro e filiais de estabelecimentos bancários ingleses, ou pelo menos correspondentes, encontram-se em toda parte do mundo. Mas ou a doadora, de fato, era riquíssima, de modo a poder sem o menor desequilíbrio financeiro, sofrer aquela sangria na sua bolsa, ou então ela sentiu uma invulgar simpatia pela minha pessoa. Estive quase voltando a Lizan para abraçá-la e agradecer-lhe. Com a perda do inglês, perdera também eu um forte amparo no que se referia ao financiamento da jornada; o seu “pago tudo, well!” significava para mim, pobre diabo, muita coisa. Agora, porém, felizmente, estava removida aquela dificuldade e por muito tempo estaria eu ao abrigo de privações.

Também Halef ficou entusiasmadíssimo, quando lhe comuniquei o meu achado; mais contente ainda ficou ele, quando lhe comuniquei que agora voltaríamos para os campos forrageiros dos haddedins, não só por sua causa, como também por causa dos criados do inglês que lá ficaram. Sentia-me no dever moral de representar Lindsay, assumindo a responsabilidade do amparo de seus servos.

 

DE VOLTA AOS CAMPOS FORRAGEIROS DOS HADDEDINS

Depois de havermos descansado bastante em Bagdad e nos provido do que necessitávamos, partimos deixando o nosso novo endereço para o caso de, após nossa saída, chegar alguma notícia do inglês. Cavalgamos sobre Samara para Tekrit e depois dobramos para o sul, desviando-nos de Tathar, a fim de evitar o encontro com as tribos que conosco tiveram contacto hostil no vale dos Degraus. Depois de dois dias de viagem encontramo-nos com dois homens nas célebres ruínas de El Hather os quais nos informaram que os schammares haviam recuado dos seus antigos campos forrageiros mais para o sudoeste, nas proximidades de El Deir, às margens do Eufrates, a fim de se escaparem das permanentes perseguições e opressões do governo de Mossul. Chegamos àquele destino, sem sofrermos a menor interrupção na viagem.

A nossa chegada provocou alegria e tristeza ao mesmo tempo. Amad el Ghandur ainda não havia regressado. Toda a tribo estivera permanentemente apreensiva pela nossa sorte, contudo nunca perdera a esperança de um dia nos ver de volta sãos e salvos. Agora, porém, aquela esperança se dissipava em parte. O trespasse de Maomé Emin cobriu de luto toda a tribo e imediatamente foram realizadas comemorações fúnebres em homenagem à sua alma.

Bem outro era o estado d’alma de Hanneh que se lançou aos braços de Halef num entusiástico transporte de alegria. Este não esteve menos alegre e entusiasmado do que a esposa, alegria e entusiasmo que redobraram, quando ela nos conduziu à sua tenda e nos mostrou um pequeno Hadji que durante a nossa ausência viera à luz do dia.

— E sabes, sídi, quais os nomes que lhe dei? — perguntou-me ela.

— Quais?

— O teu e o do pai — Kara Ben Halef.

— Procedeste admiravelmente, coroa das esposas e flor das mulheres! — exclamou Halef. — O meu filho será um herói como o seu pai, pois seu nome é mais comprido que a lança de um inimigo. Todos os homens hão de honrá-lo, todas as moças hão de amá-lo, todos os inimigos hão de fugir quando no combate ressoar o nome Kara Ben Hadji Halef Omar Ben Hadji Abjul Abbas Ibn Hadji Dawud al Gossarah!

Também o xeque Malek estava contente por nos tornar a ver. Ganhara ele grande e significativa influência junto dos haddedins e era de se prever que, no estado em que se achava a situação, seria ele agraciado com a dignidade de chefe de tribo. Neste caso, o meu pequeno e fiel Hadji podia contar fazer parte um dia do quadro dos xeques dos schammares.

Visitamos com um grande séquito todas as localidades que visitáramos quando foi de nossa primeira estada com os haddedins; à noite sentamo-nos nas tendas ou diante delas a contar aos curiosos árabes todas as aventuras que vivêramos após nossa separação. Durante a narrativa, Halef não se esquecia de frisar que eu sempre me encontrara debaixo de sua proteção e amparo durante toda a perigosa jornada.

Os dois irlandeses ainda lá se achavam. Durante a nossa ausência eles ficaram meio selvagens e se adaptaram tanto ao ambiente árabe quanto era necessário para se entenderem com os seus amáveis hospedeiros. Contudo, estavam ansiosos por sair de lá e quando souberam que já não podiam mais contar com o seu desaparecido amo, pediram-me que eu os tomasse a meu serviço. Concordei logo, pois para lá fora com esse propósito.

 

EM DAMASCO

Minha resolução era ir a Palestina para ali tomar um vapor que me conduzisse a Constantinopla. Antes disso, porém, pretendia eu conhecer Damasco, a cidade dos omíadas; para desviar-me de todo e qualquer incoveniente encontro que se relacionasse com Mossul, deliberei tomar a estrada ao sul de El Deir, atravessar o Eufrates e depois rumar o mais possível para o setentrião de modo a chegar a Damasco transpondo os montes de Haurans.

Mas os haddedins não me deixaram sair tão depressa. Halef insistia em querer acompanhar-me a Damasco; não devia eu contrapor-me ao seu desejo e como me cabia dar-lhe tempo para matar saudades de sua família, a minha estada entre os haddedins durou desta vez muito mais do que eu tencionava. Semanas e semanas se passaram; nesse ínterim, chegara a estação invernosa que agora já se aproximava do seu termo; agora, sim, não me deixei deter por mais tempo. Partimos.

Uma grande parte dos componentes da tribo nos acompanhou até ao Eufrates, em cuja margem esquerda nos despedimos: Halef por pouco tempo e eu para sempre. Supridos de tudo de que necessitávamos, atravessamos o rio e daí a pouco o perdíamos de vista. Uma semana depois avistamos os montes de Haurans e dois dias antes tivemos um encontro, o qual teria a sua influência para os acontecimentos futuros.

Pela manhã avistamos quatro tocadores de camelos que pareciam tomar o mesmo rumo que nós. Como os beduínos monteses não são de molde a inspirar muita confiança, era-nos de vantagem viajarmos, se possível, com maior número de companheiros. Picamos os cavalos, pois, a fim de encontrar os tocadores de camelo. Quando estes nos avistaram fizeram os seus animais estugar o passo, mas, não obstante, conseguimos aproximarmo-nos deles. Quando isso notaram, fizeram os animais parar, a fim de nos deixarem livre a passagem. Era um homem de alguma idade e três mais jovens e possantes; não tinham um aspecto lá muito marcial, mas conservaram as mãos nas armas, com o fim de se imporem ao nosso respeito.

— Salam! — saudei-os parando o cavalo. — Retirai as mãos das armas, que não somos salteadores, não!

— Quem sois vós? — perguntou o mais velho deles.

— Somos três frankes do ocidente e este meu servo é um árabe pacífico.

Com isso uma expressão de contentamento iluminou a fisionomia do velho, que me perguntou em mau francês, com o fim talvez de certificar-se da verdade de minha asserção:

— Qual é o seu país de origem, meu senhor?

— A Alemanha.

— Ah! — disse com naturalidade — é um país muito pacífico e cujos habitantes nada mais fazem do que escrever livros e tomar muito café. De onde vem o senhor? É porventura também um negociante como eu?

— Não. Viajo com o intuito de colher dados sobre os diversos países, a fim de escrever depois livros, que serão lidos enquanto se toma café. Venho de Bagdad e vou para Damasco.

— Mas ao invés de utensílio de escrever, o senhor conduz uma infinidade de armas!

— Isto é porque com os utensílios de escrever dificilmente me defenderei dos beduínos, que tornam inseguros os caminhos por onde cavalgo.

— Nisso tem razão, — concordou o homem, que por certo imaginava a figura do escritor como a de um homem com uma enorme caneta por trás da orelha, com um serigote-escrivaninha e um enorme barril de tinta em cada lado do cavalo. — Atualmente os anazeh se concentraram nesta zona dos montes e contra eles precisamos tomar todas as precauções. Aceita a proposta de sermos companheiros de jornada?

— Prazerosamente. Dirige-se também para Damasco?

— Dirijo-me. Aliás, resido lá; sou comerciante e anualmente empreendo, com uma pequena caravana, uma viagem de negócios aos redutos árabes do sul. E é de uma dessas viagens que vou agora regressando.

— Tomaremos a direção leste dos Haurans ou cavalgaremos pela estrada de Meca?

— Qual delas será a melhor?

— A última, em todo caso.

— Concordo. Já esteve alguma vez nesta zona?

— Ainda não.

— Então servirei de guia. Avante!

Dissipara-se completamente a desconfiança com que inicialmente me acolhera o homem. Mostrava ser um caráter franco e nobre e logo depois vim a saber que conduzia uma vultosa soma em dinheiro consigo. Aliás, os pagamentos que lhe faziam os árabes eram em sua maior parte com produtos naturais, mas o negociante conseguira em caminho converter vantajosamente os mesmos em dinheiro.

— Também com Istambul encontro-me em permanente contacto comercial — disse-me ele depois. — Não pretende também ir lá?

— Aquela cidade está incluída no meu atual roteiro.

— Neste caso, o senhor me fará o favor de entregar uma carta minha ao meu irmão que lá reside. Ficar-lhe-ia muito grato por este obséquio!

— Com muita satisfação levarei a carta para seu irmão.

— E lá estamos às suas ordens! O meu irmão Maflei é, como eu, negociante e possui um vasto círculo de relações. Talvez que lhe possa ele ser útil.

— Maflei? Hum! Creio que já ouvi neste nome.

— Onde?

— Hum! Deixe-me recordar... ah! lembro-me agora! Encontrei no Egito o filho de um comerciante de Istambul; chamava-se Islã Ben Maflei.

— Realmente? Oh! isto é extraordinário. Islã é o meu sobrinho, filho daquele meu irmão.

— Teria sido o mesmo Islã!

— Descreva-me o tipo!

— Melhor do que quaisquer descrições basta dizer que ele encontrou no Nilo uma jovem que fora raptada aos seus pais.

— É isso mesmo! É isso mesmo! Como se chamava a moça? — Senitza.

— Tudo combina maravilhosamente. Onde o encontrou? Onde lhe narrou ele aquele fato? Talvez em Cairo?

— Não, mas no mesmo local em que o encontrei. Conhece o senhor aquele interessante caso?

— Conheço. Mais tarde esteve ele em Damasco a negócios e narrou-me tudo. Nunca teria ele encontrado sua noiva, se não fosse a intervenção prestimosa de um senhor Kara Ben Nemsi, um efêndi de... de... ah! Allah illa Allah! aquele efêndi também escrevia livros! Como se chama, o senhor?

— Realmente no Egito, como também noutros pontos desta zona costumam chamar-me Kara Ben Nemsi.

— Hamdullillah, quel miracle! É o senhor, é o senhor mesmo aquele efêndi?

— Pergunte-o a este meu servo Hadji Halef que me auxiliou a libertar Senitza!

— Então, senhor, aqui tem novamente a minha mão! Tenho que apertá-la de novo; o senhor não terá só que me visitar em Damasco: vai morar em minha casa. O senhor e a sua gente. Minha casa é sua com tudo o que nela possuo!

Tomado de alegria, apertou o velho também as mãos de Halef e dos dois irlandeses. Estes últimos ficaram perplexos ante aquela demonstração de amizade, cujos motivos eles aliás desconheciam; ao meu Halef, porém, fui obrigado a traduzir a nossa palestra que se realizara no idioma francês.

— Lembras-te ainda do Islã Ben Maflei, Hadji Halef Ornar?

— Lembro-me, sim, — respondeu o meu servo e amigo. — É aquele rapaz cuja noiva libertamos da casa de Abrahim-Mamur.

— Pois este senhor aqui é tio de Islã,

— Graças a Alá! Agora tenho eu a quem contar todo aquele episódio. Sim, as boas ações não se devem esquecer. Precisam ser constantemente narradas para ficarem vivas em nossa memória.

— Sim, conta-me tudo! — pediu-lhe o damasceno.

Não perdeu o pequeno Hadji o ensejo de deitar a fala, entretecendo a narrativa daquele caso com as mais perfumadas flores de sua retórica. Naturalmente que em sua verborréia eu era o maior Hekin do mundo, Halef, o maior herói, Islã, o mais bravo rapaz e Senitza a mais linda huri do paraíso. Abrabim-Mamur, porém, foi descrito como um verdadeiro demônio e, em suma, havíamos praticado um ato que já agora era objeto de todas as palestras no Oriente próximo e longínquo. E quando eu procurei reduzir as suas exageradas afirmativas às justas proporções, alegou ele decididamente:

— Sidi, tu não entendes nada destas coisas! Eu devo saber melhor, pois naquela época fui eu o teu Agha que com o meu chicote de Nilo tudo arranjava para ti.

O oriental é incorrigível nestas retóricas e exageros, razão por que tive que me conformar com Halef. Ao damasceno, porém, parecia agradar extraordinariamente aquela fórmula de narrativa; Halef subiu de um modo invulgar no seu conceito e o resultado foi ter ele conquistado a amizade incondicional do mercador de Damasco.

Alcançamos a estrada das caravanas, sem sermos molestados, e entramos pelo “Portão do Céu” nos arredores de Meidan, onde os Hadjis, os grandes, se concentravam naquele tempo para depois peregrinarem a Meca, em grande caravana. Damasco no seu interior, está muito longe de oferecer o aspecto que dela se espera quando se está no arredor. É verdade que nela não faltam suntuosos edifícios, mas as ruas são miseravelmente calçadas, tortas e estreitas e as paredes de limo sem janela e, em sua maior parte, as casas apresentam um conjunto sem estética e feíssimo. Também nela como em todas as cidades orientais, o serviço de higiene está confiado a enormes bandos de urubus que voejam por toda parte, e a matilhas de cães vagabundos e sarnentos. As águas estagnadas que circundam as cidades, facilitam o desenvolvimento de miasmas pestilentos, que muito prejudicam o renome da cidade dos omíadas.

O bairro dos cristãos está situado ao leste da cidade e começa na Porta Santo Tomaz no ponto de partida da estrada de caravana da Palmira. É tão feia esta parte como toda a cidade e contém uma infinidade de ruínas, cujo desentulho não julgam os muçulmanos de necessidade. Aqui nas proximidades do convento dos Lázaros ergue-se o edifício no qual o príncipe herdeiro da Prússia transformou em seu quartel, no ano de 1869.

Ao sul deste edifício, exatamente no lado oposto da “Rua direita”, fica situado o quarteirão dos judeus, ao passo que a metade oeste da cidade pertence aos muçulmanos. Ali vêem-se as mais belas construções de Damasco: a cidadela, suntuosos estabelecimentos comerciais, o palácio de Han Assad-Paxá e principalmente a mesquita dos omíadas na qual infelizmente a nenhum cristão é permitido pôr os pés.

A mesquita tem 550 pés de comprimento e 150 de largura e se acha construída no local dum templo pagão, destruído pelo imperador Teodósio. Arcádio construiu no ponto um templo cristão, sob a invocação de S. João Batista. Nele se encontrava o andor que conservava a cabeça cortada a São João Batista e que pretendem alguns historiadores tenha sido encontrada por Chalid, o conquistador de Damasco.

Aquele Chalid, que os muçulmanos cognominaram de “Alfange do Senhor”, transformou metade da basílica de S. João em mesquita, uma originalidade que tem o seu motivo especial de ser. É que o exército sitiante compunha-se de duas divisões; uma sob o comando do próprio Chalid, ocupava o portão leste e a outra, sob as ordens do brando Abu Obeida, no portão oeste. Ardendo em ódio por causa da duração do cerco, jurara Chalid não poupar um só habitante da cidade. Por fim vitoriosamente invadiu ele a cidade pelo portão leste e mandou dar início ao estrangulamento geral. Foi então que a parte oeste da cidade apressou-se em firmar um tratado com Abu Obeida pelo qual lhe franqueava o portão sob a condição de poupar ele a vida dos habitantes. Aquele comandante concordou com a proposta. Ambas as divisões de exército movimentaram-se então rumo à “Rua Direita” vindo juntar-se na igreja de S. João. Ante a exposição dos fatos, feita por Abu Obeida, Chalid mandou suspender o massacre da população e acedeu em deixar metade da igreja para os cristãos.

Destarte oraram durante cerca de 150 anos, cristãos e maometanos no mesmo templo, até que Welid I resolveu entregar todo o edifício aos seus irmãos de crença. É verdade que ele ofereceu aos cristãos compensações do dano por estes sofridos com aquele seu ato, mas estes não confiaram nas suas promessas e recusaram a proposta. Houve nessa época uma profecia, segundo a qual todo aquele que tocasse naquele templo de Deus, seria acometido de incurável desequilíbrio mental; pensava-se então afugentar o califa por meio da citada profecia, o que, porém, não aconteceu; antes foi ele o primeiro a tomar do malho e destruir os suntuosos adereços do altar. Depois foi a porta do lanço cristão entaipada com resistente alvenaria. A igreja — ou agora mesquita — teve o seu átrio fechado por colunas coríntias, e foi ornada com mosaicos e ouro maciço. Para a sua remodelação foram contratados os serviços de 1.200 arquitetos e artistas gregos; as mais lindas colunas foram carregadas da Síria para Damasco e diz a tradição que dezoito animais cargueiros figuram na conta. Welid pagou tudo e depois mandou queimar as contas no intuito de ficar os custos da obra envoltos em eterno mistério.

Mokoddy, um escritor árabe, diz que as paredes da mesquita, até uma altura de doze pés, eram revestidas de mármore e dali até ao teto de mosaico de vidro, ornados de ouro e artísticas pinturas. Também a abóboda que cobria lateralmente o átrio, que se assentava em colunas negras e capiteis de ouro, e as ameias do exterior e do pátio, que repousavam sobre colunas de mármore branco, eram revestidos de finos mosaicos. Na cúpula de Nirs repousava um limão de ouro e uma granada do mesmo metal. Os três minaretes das mesquitas provém de diferentes eras. O “minarete da noiva” ao norte foi construído por Welid, como simples torre cuneiforme. El Gharbije, mostra um, porém em estilo egípcio-arábico, formando um elegante octaedro que se vai reduzindo de galeria em galeria e termina num botão esférico. O terceiro ou o “minarete Isa” tem, além de sua torre quadricular, uma outra torre estilo turco com teto agudo e um púlpito para o Muedim. Ao alto deste púlpito se postará Cristo, quanto no dia do juízo final separar os bons dos maus.

 

CARINHOSA ACOLHIDA

Bem próxima dessa mesquita, na “Rua Direita”, era a residência do meu companheiro de viagem. A entrada da mesma ficava numa ruazinha lateral, a qual dobrei na sua companhia, pois que me seria impossível recusar a amável hospedagem que ele me oferecia. Paramos defronte a um alto muro de tijolos no qual, além do portão alto e largo, não havia outra abertura. O comerciante apeou-se, levantou uma grande pedra do chão e com ela bateu no portão. Em breve foi este aberto pelo lado de dentro e uma cara reluzente como o ébano surgiu no seu limiar.

— Alá, o Senhor! — exclamou o negro, escancarando o mais possível o portão.

O comerciante não lhe respondeu coisa alguma e acenou-nos que o seguíssemos. Segui-o com Halef depois de haver significado aos irlandeses que fechassem o portão e parassem diante dele.

Vimo-nos diante de comprido e estreitíssimo pátio e de um segundo muro, cujo portão já se achava aberto. Quando o transpusemos, passamos para uma vasta área quadricular pavimentada com mármore. Em três de suas faces erguiam-se arcadas de trepadeiras, cujas aberturas eram disfarçadas por limoeiros, laranjeiras e figueiras plantadas em toneis com terra. A quarta face pela qual passáramos se achava encoberta por jasmins, rosas damascenas e cravos sírios. O meio do pátio era tomado por uma piscina em cujas águas viviam peixes dourados e prateados e a cada um dos ângulos erguia-se um chafariz a encher a piscina. Por sobre a arcada havia um avarandado, acessível por uma escada, cujo corrimão era todo envolvido com as mais variadas flores; lá havia uma imensidade de compartimentos dos quais alguns tinham as suas portas ornadas com artísticos cortinados de seda, e outros elegantes portais de madeira artisticamente trabalhados.

Ao lado da piscina, um grupo de lindas mulheres se refestelavam em macias almofadas. Ao nos avistarem, as mulheres levantaram-se de chofre e, em cochichos medrosos, correram para a escada para desaparecerem nos compartimentos. Uma única figura de mulher não fugiu. Também esta se levantou, mas veio ao encontro do negociante e beijou-lhe respeitosamente a mão.

— Allah haltunlama senin gelme, baba — Que Alá doure com sua graça a tua vinda, meu pai! — saudou-lhe ela.

Ele apertou-a carinhosamente ao peito e disse-lhe:

— Vai ter com a mamãe e dize-lhe que Deus agraciou minha casa com visitas que nos são caras. Vou levá-las ao Selamlik e depois irei ter convosco.

Também ele, como a filha, falou o idioma turco. Possivelmente fora Istambul a sua residência outrora.

A filha desapareceu e nós a seguimos lentamente escada acima e depois chegamos a um corredor em que se via uma infinidade de portas pertencentes aos compartimentos laterais. O dono da casa abriu uma das portas e nós passamos para uma ampla sala abundantemente iluminada por uma cúpula do telhado, cuja entrada era ornada com artísticos vitrais multicores. Contra as paredes, viam-se almofadas de veludo, altas e largas; em um dos nichos havia uma pêndula francesa com o seu monótono tique-taque; da cúpula pendia um lustre de vários braços e na parede viam-se numerosos quadros. Eram quadros— imaginem a minha surpresa — representando Napoleão em trajes imperiais, Frederico, o Grande, Washington, Lady Stanhope; uma reprodução da batalha naval de Tachesme; um gigantesco ramalhete de helinatus, etc, tudo desenhado em miserável crayon das estampas com que ainda hoje o comércio de quadros explora a humanidade. Aqueles quadros, verdadeiros atentados às belas artes, deviam ter sido traçados realmente só mesmo para o Oriente. ..

Diante das almofadas havia mesinhas muito baixas com chapas de metal, providas já de cachimbos com fumo, e pequenas chícaras para café. No meio da sala havia — a custo continha eu a surpresa, — um piano de cauda, com o verniz um tanto arranhado mas no resto em regular estado de conservação, ao que parecia, Eu preferia tê-lo aberto logo, mas era obrigado a manter a dignidade que o nome Emir Kara Ben Nemsi estava a impor.

Mal entramos na sala e nos sentamos, chegou um belo menino com uma bacia de carvão ardendo a fim de com ele acendermos os cachimbos; alguns minutos depois um outro com um Kahwetest (1) de prata contendo café quente com o qual enchemos as xícaras. À primeira baforada que o dono da casa tirou do seu cachimbo, renovou-nos ele as boas-vindas na sua casa e depois de haver fumegado

 

(1) Cafeteira.

 

todo o conteúdo do seu pequeno fornilho, pediu-nos permissão para afastar-se um pouco a fim de ir cumprimentar as pessoas de sua família.

Continuamos a fumar e a tomar café imersos em mutismo, até que ele voltou e nos convidou a acompanhá-lo. Conduziu-nos a um quarto ricamente mobiliado, segundo a concepção oriental, que me era destinado para dormitório; do lado, havia outro que fora indicado a Halef. Também aos irlandeses prometeu o nosso hospedeiro ir acomodar. A seguir, tivemos que o acompanhar ao terraço. Lá já se achava preparado um esplêndido banho para nós. Foi-nos entregue um traje de casa completo para substituir pelo nosso. Dois criados nos foram postos à disposição para atender ao nosso serviço.

Era um espírito de hospitalidade verdadeiramente oriental o que mostrava aquele homem, pelo que eu lhe era muito reconhecido. Depois de havermos tomado o banho e mudado de roupa, voltamos para o selamik já como outros homens. O atencioso hospedeiro mandara observar a nossa volta, pois mal lá entramos apresentou-se novamente a nos fazer companhia.

— Senhor, grande alegria aos meus causou a minha vinda, — disse ele, tratando-me agora por tu visto ter me dirigido a palavra em árabe. — Quando lhes disse quem eras, mostraram todos o desejo de se apresentarem a ti. Dás-lhes permissão para isso?

— Com muito prazer. Será uma honra para mim poder falar-lhes.

— Só se apresentarão à tarde, pois agora estão ocupados em preparar a refeição, que hoje será feita por elas mesmas e não pelas servas. Já viste algumas vezes quadros como estes? — ao ver que os meus olhos casualmente repousavam no Hércules.

— Sim, são raros os quadros como este! — respondi-lhe ambiguamente.

— Realmente. Comprei-os em Istambul por um preço muito alto. Ninguém em Damasco possui quadros de tanto valor. Sabes também o que eles representam?

— Estou um tanto indeciso neste ponto!

— O primeiro ali é o sultão el Kebir; o segundo o Emir dos Nemsi; depois vem o da rainha da Inglaterra com o xá dos americanos; ali mais adiante a batalha de Tchesme e depois a evasão de Jerusalém pelos cristãos. Não os achas lindos?

— Extraordinariamente lindos! Mas que móvel é este no meio da sala?

— Ah! é a maior preciosidade que possuo aqui. Trata-se de um tschalghay (2) que comprei a um inglês que morou aqui na cidade e depois se mudou. Queres que te mostre?

— Seria uma grande satisfação para mim!

Aproximamo-nos do instrumento e ele o abriu. Por sobre o teclado li a inscrição: “Edward Southey, Leadenhallstreet, London.” A um rápido olhar para a caixa do instrumento, via-se que nela havia algumas cordas partidas, mas no mais se achava em ordem.

— Vou te ensinar como se toca!

Dito o que, o homem passou a esmurrar o teclado, o que me fazia eriçar os cabelos; contudo mantive uma postura de quem se achava deslumbrado e perguntei-lhe se o piano não tinha algum outro acessório.

 

(2) Caixa de música.

 

— O inglês deu-me também um Demir iplik (3) e um martelinho para com ele

fazer-se música, sempre que doam as mãos. Vou mostrar-te.

Retirou-se para voltar em seguida com uma caixinha, contendo cordas de piano de diversos sons bem como uma chave para afiná-lo. O amável inglês deu-se ao prazer de ensinar-lhe a aplicação da chave de um modo jocoso. Além disso o piano se achava desafinadíssimo e cheio de pó e sujeira.

— Queres tu também fazer música? — perguntou-me o hospedeiro. — Ninguém a não ser eu deve tocar neste instrumento; mas a ti faço tal concessão, visto seres meu hóspede de honra. Podes também bater nele!

Passou-me a chave de afinar com ares de profundo conhecedor do assunto.

— Tu me mostraste como se faz música em Damasco — ponderei-lhe; — agora vou mostrar-te como se toca este instrumento no continente ocidental. Antes, porém, permite-me que o concerte visto que não se acha em bom estado!

— Senhor, espero que não me estragarás a caixa de música!

— Não; podes confiar-me sem receio!

Coloquei as cordas que faltavam ao piano e com diversas almofadas organizei um banquinho. Quando o hospedeiro ouviu as oitavas que eu tirava ao afinar o instrumento, exclamou entusiasmado:

— Tu ainda tocas melhor que eu!

— Mas isso ainda não é música alguma; por enquanto estou esticando apenas o arame que faltava ao instrumento. O inglês não te mostrou como se toca?

— Sua mulher é que fazia música, mas ela morreu depois. Ele esmurrava o teclado e nisso tinha muito prazer, pois ria-se toda vez que o fazia.

Então já vais ver como se deve tocar nele.

 

 “HORAS DE ARTE”

Antigamente como estudante pobre, afinei muitos pianos para melhorar a mesada; portanto não me seria difícil pôr aquele velho piano em condições de nele se poder tocar.

Enquanto nisso me ocupava, a porta foi aberta de leve e no seu limiar assomaram todas as figuras femininas que víramos à nossa chegada, no pátio. Ouvi murmúrios de admiração entre elas e de quando em quando lhes escapavam exclamações entusiásticas dos lábios.

Por fim terminei o trabalho e fechei a caixa do instrumento, ocasião em que as mulheres logo desapareceram.

— Não queres continuar a tocar? — perguntou-me o dono da casa.

— És um grande Sanatdar e as mulheres estão a tal ponto inebriadas com a música que serão capazes de nos estragar a refeição, que estão preparando. Deixarei o tschalghay em descanso por enquanto; depois da refeição porém, quando os

 

(3) Arame.

 

membros de tua família aqui se reunirem farei uma música, como eles nunca ouviram.

— Há algumas mulheres em meu harém de visita. É permitido também a estas ouvir a música?

— Como não!

Eu me achava ansioso por ver o efeito que uma valsa produziria naquelas damas, mas tive que adiar o meu desejo a bem do meu próprio interesse gastronômico. Essa minha resolução surtiu depois os seus frutos. Talvez que em atenção à “hora de arte” que eu prometera, as mulheres se esmeraram na sua atividade culinária e nos foi servida uma refeição saborosíssima. Mal, porém, termináramos a refeição, perguntou-nos o hospedeiro se as mulheres podiam comparecer à sala. Dei-lhe o meu assentimento e o menino que nos servia o café apressou-se em chamá-las.

Primeiramente chegou a dona da casa com as duas filhas moças e um filho de uns doze anos de idade. As damas se achavam cobertas com os véus, e na apresentação me foram designadas pelos nomes. Outras quatro mulheres eram amigas de nossa hospedeira. Elas, em postura modesta e silenciosas, tomaram lugares nas almofadas e de quando em quando ajuntavam rápidas palavras à palestra que então se entabolou. Como notei que as cabeças envoltas em véu e de onde só se viam os narizes e os olhos, se dirigiam para o piano, levantei-me para acalmar-lhes a curiosidade.

Era interessante observar a impressão que causaram os primeiros acordes que fiz acompanhar de trinados em cheio.

— Machallah! — exclamou Halef espantado.

— Bana bak — ouvi, ouvi! — bradava o dono da casa, erguendo-se num vertiginoso salto e estendendo os braços, entusiasmado. As mulheres fremiam de entusiasmo e faziam originais movimentos com os braços de modo a lhes cair os véus; cheguei num daqueles instantes a ver todas as fisionomias femininas que assistiam ao “concerto.”

Depois de um curto prelúdio, entrei na execução da valsa, conforme tencionara. O meu público se achava perplexo; não tardou, porém, a que o ritmo começasse a produzir os seus efeitos. Os vultos passaram a movimentar os braços, as pernas e por fim o corpo na sua posição recurvada à moda oriental passaram a balançar de acordo com o compasso. O hospedeiro, porém, levantou-se e veio postar-se ao meu lado a contemplar o meu dedilhamento.

Ao terminar a execução da valsa, ele agarrou-me ambas as mãos a observá-las. — Senhor, que dedos tens tu! Os seus movimentos foram idênticos aos de um Karingdscalyk! Uma coisa destas jamais vi em toda minha vida!

— Sídi, música como esta só existe em El Dschennet, onde moram os espíritos dos santos. Allah illa Allah!

As mulheres não ousaram demonstrar os seus sentimentos por meio de palavras; mas pela vivacidade dos seus movimentos e pelo tom de seus murmúrios vi que haviam deleitado extraordinariamente o espírito.

Prossegui no concerto, executando um programa de uma hora inteira e o meu público não se cansou de ouvir aqueles sons, para ele exóticos.

— Oh! senhor, nunca pensei que neste tschalghay se houvesse metido tão linda música! — disse o dono da casa quando passei a descansar.

— Oh! nela estão metidas músicas dez vezes mais sublimes do que as feitas por mim, redargüi-lhe; a questão é atraí-las para fora. No ocidente há milhares de homens e mulheres que o fazem dez vezes melhor que eu.

— Também mulheres? — perguntou-me admirado.

— Também.

— Então minha mulher tem que aprender também a fazer música no tschalghay para depois ensinar às minhas filhas.

O bom homem não tinha idéia das dificuldades com que realizaria ele, em Damasco, aquele propósito. Não achei necessário dar-lhe esclarecimentos sobre isso e perguntei-lhe:

— Com esta música pode-se também dançar; já viste dançar uma dança ocidental?

— Nunca.

— Então manda chamar os nossos dois companheiros. Eles que venham já.

— Aqueles! Porventura é para eles dançarem?

— Claro.

— Eles? Como homens!

— Os costumes do ocidente permitem que também os homens dancem e tu verás agora como é linda a dança dos homens.

Um uníssono “peh, peh” de entusiasmo fêz-se ouvir pela assistência, quando o menino saiu para chamar os dois irlandeses.

— Sabeis dançar? — perguntei-lhes quando entraram na sala. Também eles haviam mudado os seus trajes por vestes caseiras e se achavam com aspecto de quem também tomara banho. Arregalaram eles os olhos, ao verem o piano.

— Heighday, a music chest! — disse Bill, rindo-se. — Dançar? Naturalmente que o sabemos! Quer que dancemos?

— Quero.

— Nestes trajes?

— Por que não?

— Well; então descalçaremos as pantufas e bailaremos descalços.

— Que danças conheceis?

— Todas! Reel, Hornpipe, Stamp-man, montanhesa, polca, galope, valsa, enfim tudo o que pedirem.

— Bem, afastei o tapete do meio da sala e vamos lá: — uma montanhesa bem gingada!

Os dois possantes irlandeses não se fizeram de rogados, e os risos de aplausos das damas demonstravam com quanto prazer gostariam elas participar da dança. Mas por fim, julguei já haver contribuído bastante para aquela reunião. As damas retiraram-se agradecidas e o hospedeiro declarou também que, depois de sua longa ausência, tinha negócios urgentes a tratar. Eu lhes disse que iria sair também com Halef para ver a cidade e o bom hospedeiro ordenou que nos selassem duas cavalgaduras e que um criado nos acompanhasse. Pediu-nos que não voltássemos tarde à noite, pois alguns amigos seus viriam nos visitar.

Daí a pouco, no pátio já se achavam dois burros brancos originários de Bagdad encilhados e à nossa espera, e um cinzento para o criado, que se aprovisionou abundantemente de fumo para nos servir. Acendemos os cachimbos, montamos e dirigimo-nos para a Rua Direita. Com os pés nus metidos nas pantufas e a fumar os tjibuks, parecíamos dois paxás a divagar pelas movimentadas ruas na direção do bairro cristão. Atingimos este bairro e em meio dele notamos que os transeuntes pareciam dirigir-se todos rumo do portão Santo Tomaz.

— Lá deve haver alguma coisa para ver! — disse eu virando-me para o criado que nos acompanhava.

— E muita, efêndi — respondeu ele. — Hoje é a festa de El Rimal em que se atira com arcos. Quem quiser se divertir é só ir para a frente da cidade em meio dos jardins e tendas a ver que alegria lhe proporcionou Alá.

— Também nós poderemos participar da festa, pois ainda é cedo. Conheces o local?

— Conheço, efêndi.

— Então conduze-nos até lá.

Fizemos os nossos animais trotar e dentro em pouco saíamos portão afora para a Ghuta, que regorgitava de povo em todas as estradas e logradouros. Vi desde logo que El Rimal era uma festa na qual todos podiam tomar parte sem distinção de crenças religiosas; não pude, porém, averiguar do nosso guia a origem de tal comemoração.

 

ARTISTAS TIROLESAS EM DAMASCO

Ao ar livre, achavam-se armados tendas em que se vendiam flores, frutas e toda sorte de comestíveis. Bailarinos em cordas, bufões indús, prestidigitadores, exorcistas de serpentes exibiam suas artes; dervixes pedintes tornavam insegura a passagem; algazarra de crianças; rixas entre mariolas; zurro de camelos; nitridos de cavalos; latidos de cães e de permeio com isso a infernal fanfarra na tenda da musica a assoprar, a bater e a arranhar as mais inimagináveis espécies de instrumentos. Vestígios de um torneio de arcos propriamente não os via. Via-se, é verdade, aqui e ali um homem ou um menino atirar suas flechas, mas isso era como se fosse um divertimento secundário ou se se realizasse por mero acaso; e sempre que acertava uma flecha não se via ninguém aplaudir, antes os poucos que assistiam portavam-se com a maior indiferença.

Passamos por uma extensa fileira de tendas de vendedores de scherbet e frutas, quando subitamente tive que parar o meu burro. Que era aquilo? Ouvira eu bem? Diante de uma grande tenda se achava reunida compacta massa popular; do interior da mesma sons de um violino acompanhado de harpa; e exatamente agora com o acompanhamento daqueles instrumentos uma voz de soprano decaído fêz-se ouvir numa canção alemã, espaço afora:

Zum heil’gen Ab’nd un Mitternacht

Da fliesst statt Wasser Wein

Und wenn ‘ch mich hur net faerchten thaet

Da holt ‘ch mir ‘n Topp voll ‘rein.

— Sidi, que é aquilo? — exclamou Halef. — Está cantando uma mulher. E’ isso possível?

Meneei-lhe afirmativamente com a cabeça, e nisso ouço a seguinte estrofe:

 

“Mer hab’n aach neunerlei Gericht,

Aach Wurscht und Sauerkraut;

Das hat mei’ Alte vorgericht’t,

 Die alte, gute Haut.”

 

Impossível me foi passar por ali sem mais nem menos; eu precisava entrar na tenda a ver se meus ouvidos não se enganavam. Invadimos a multidão; entramos. Diante da porta se achava sentado um turco raivoso e de barbas negras que logo nos foi trovejando:

— Her kischi bir Gurusch — Uma piastra por pessoa!

Paguei-lhe as entradas e relanceei os olhos pelo interior da tenda. Em estacas fincadas ao chão pregaram sarrafos à guisa de bancos e mesas, bem ao sistema das festas populares alemãs. Nesses bancos e a essas mesas se achavam sentados uns cem árabes, turcos, armênios, curdos, judeus, cristãos, drusos, maronitas, bachi-bozuks, aranautes etc, etc; tomavam scherbet ou café; fumavam ou mastigavam confeitos e frutas; aos fundos ficava o bufete e ao lado deste sobre um estrado se achavam abancados dois violinistas, duas harpistas e uma guitarrista, todos trajando vestimentas tirolesas.

Cheguei-me até bem perto da orquestra, e, sem mais formalidades, fui premendo um banco com onze pessoas e nele me sentei juntamente com Halef. Essa conduta sumária deve ter nos imposto ao conceito do garção, que imediatamente veio correndo a nos atender, forçando uma profunda reverência em nossa frente.

— Scherbet para dois! — encomendei, tendo pago pelos dois, cinco piastras. Era um preço que obedecia à tabela dos hotéis!...

Neste permeio, a canção, que ninguém da assistência compreendeu, foi vocalizada até o fim pela guitarrista; ninguém compreendeu a canção, mas no entanto todos a aplaudiram fervorosamente, sendo a orquestra e a cantora obrigadas a repeti-la. A seguir, esta saiu com a clássica bandeja a fazer a coleta entre a assistência. Em atenção talvez a termos chegado recentemente, a arrecadadora passou por nós, sem nos cobrar coisa alguma.

A próxima execução foi a “Canção sem palavras”, depois da qual um dos violinistas desapareceu por trás de um reposteiro. Depois de algum tempo teve início um prelúdio e o violinista voltou vestido de... “aprendiz de artífice alemão”, de avental de couro, botas rotas e chapéu em frangalhos. Com voz de baixo passou ele então a entoar:

 

“Wenn ich mich nach dei Heimat sehn’

Wenn mir im Aug ‘die Thraenen stehn,

Wenn”s Herz mich druekt halt gar so sehr,

Dann fuehl ich’s Alter um so mehr.

Und ‘s wird nur leichter mir ums Herz,

Fuehl’ weniger den stillen Schmerz

Wenn ich so off der Strasse steh

Und mir mein kleennes Geld beseh.”

 

Embora o público ali reunido não tivesse a menor idéia do que fosse um “aprendiz artífice alemão”, cujo tipo há séculos que já anda na poesia popular e tampouco entendesse coisa alguma do texto da canção, aplaudiu delirantemente o cômico que a cantou.

Aquele grupo de artistas ambulantes, sem dúvida, provinha de Pressnitz e com o fim de submeter o cosmopolitismo daquela gente à prova, perguntei á cantora:

— Turku tschaghayr ne schekel. — Em que idioma cantaste há pouco?

— Turku tschaghayr nemtschedsche — Cantei em alemão.

— You are consequently a german Lady — Portanto a senhora é uma dama alemã?

— My native country is german Áustria — Minha pátria é a Áustria-alemã.

— Et comme s’appelle votre ville natale? — Como se chama a sua cidade natal?

— Elle est nommée Pressnitz, situe au nord de Ia Bohéme — Ela chama-se Pressnitz, que fica situada ao norte da Boêmia.

— Ah! não muito distante da fronteira saxônia, perto de Johstadt e Annaberg?

— Exatamente! — exclamou ela. — Viva, o senhor fala alemão?

— Como a senhora está ouvindo!

— E aqui em Damasco?

— Aqui e em toda parte!

Nessa altura, seus colegas passaram a tomar parte na palestra; era geral a alegria por encontrarem um alemão nessas paragens, e a conseqüência dessa alegria, foi esvasiarmos uma boa porção de scherbetis e o pedido que aquela gente me fêz para dizer-lhe qual a minha canção predileta, a fim de a executarem. Disse-lhes e imediatamente começaram a sua execução:

 

Wenn sich zwei Herzen scheiden,

Die sich dereinst geliebt,

Das ist ein grosses Leiden,

Wie’s groesser keines giebt.

 

DAWUHD ARAFIM

Alegrava-me por ouvir depois de muito tempo os acordes melodiosos daquele Lied alemão: nisso Halef tocou-me no braço e acenou-me para a entrada da tenda. Segui com o olhar aquela direção e avistei lá um homem, do qual nos últimos dias tínhamos falado muito e ao qual nunca pensara eu encontrar naquele local. Aqueles traços fisionômicos belos e delicados, mas tão desagradáveis dada à sua desarmonia, aqueles olhares vivos, agudos, friamente penetrantes, aquela sombra fisionômica que lançava ódio, amor, vingança e ambição insaciável sobre o semblante, eram-me demasiadamente conhecidos para enganar-me a densa barba que agora a cobria. O homem não era outro que Dawuhd Arafim, que em sua casa no Nilo apelidava-se Abrahim Mamur!

Mediu ele a assistência com um olhar e desse modo não pôde deixar de fazer cair o seu olhar sobre mim. Vi-o estremecer, depois virou-se ligeiro e deixou apressadamente a tenda.

— Halef. sigamo-lo! Precisamos saber onde mora ele nesta cidade. Levantei-me de um salto e Halef seguiu-me. Chegados à frente da tenda, vi que ele se afastava a galope num burro, ao passo que o seu recoveiro pulou à cauda do animal em que se segurou. O nosso criado não era visto em parte alguma. Depois de muita procura, fomos encontrá-lo na tenda de um narrador de lendas e anedotas; já era então tarde para sairmos em perseguição do fugitivo. A “Ghuta” oferecia-lhe caminhos e coberturas mais que suficientes para ele nos escapar.

Aquele acontecimento deixou-me tão mal humorado, que me decidi regressar para a casa do nosso hospedeiro. À aparição daquele homem, logo me veio o pressentimento de que eu tornaria a me avistar com ele e afinal agora perdera eu o ensejo de averiguar alguns pormenores a respeito de sua estada em Damasco. Também Halef estava indignado com o contratempo e opinou que realmente o melhor seria voltarmos para casa.

Voltamos pelo mesmo caminho em que viéramos. Ao chegarmos à Rua Direita fomos chamados. Era o nosso hospedeiro que na companhia de um simpático jovem, se achava parado diante da porta de uma joalheria. Também ele se achava acompanhado de um criado com um burro.

— Não quer entrar, Senhor? — perguntou-me o homem. — Poderemos depois voltar juntos.

Apeamos e entramos no estabelecimento, onde fomos amàvelmente acolhidos pelo jovem.

— Este é o meu filho Schafei Ibn Jacub Afarah.

Portanto só agora é que vim a conhecer o nome do nosso hospedeiro; Jacub Afarah. Isso, no Oriente, não constitui uma raridade. Ele citou ao filho também os nossos nomes e prosseguiu:

— Esta é a minha joalheria que é administrada por Schafei e um auxiliar. Desculpe-o, por não poder ele nos acompanhar agora! Não pode sair visto que o seu auxiliar foi ver a festa Er Rimal.

Passei um olhar em torno da joalheira. Era pequena e bastante escura, mas nela havia um tal sortimento de mercadorias de alto valor que eu, pobre como rato de igreja, senti-me diminuído. Soube depois que, além daquela joalheria, Jacub possuía outros estabelecimentos comerciais de diferentes gêneros, destacando-se um de tapeçarias finas.

Depois de havermos também na loja ingerido uma xícara de café pusemo-nos em caminho, de regresso. O sol desaparecia no ocaso e assim não nos achávamos há muito tempo em casa quando escureceu.

Durante a minha ausência a sala foi toda ornamentada. Do teto pendiam lustres floridos e aos ângulos da casa viam-se vasos com as mais lindas flores; se interpretasse a linguagem das flores, eu leria nelas um comovido agradecimento das damas pela “hora de arte” que eu lhes proporcionara.

Refestelei-me numa das almofadas, para dar-me ao prazer de não fazer nada; contudo não deixei de fazer alguma coisa: pensar naquele Abrahim Mamur, que não me saía mais da idéia. Que pretendia ele aqui em Damasco? Estaria ele planejando uma de suas vergonheiras? Por que fugira ele ao avistar-me, se já não tínhamos mais contas a saldar? De que maneira viria eu agora a descobrir a sua residência?

Assim estive eu por algum tempo imerso nessa corrente de idéias, ouvindo o movimento e azáfama que havia no corredor. Depois de muito tempo, bateram-me na porta e Jacub entrou.

— Senhor, estás pronto para o jantar?

— Às tuas ordens.

— Então vem! Halef, o teu companheiro, já foi.

Conduziu-me não para o selamlik, conforme eu esperava, mas, através de dois corredores, para a parte da frente, onde abriu uma porta. Era uma sala espaçosa aquela para onde passamos. Iluminada por uns cem círios e as paredes forradas com seda, estavam repletas de dizeres do Alcorão.

Uma terça parte do compartimento era cortada por um varal de ferro com finíssimo cortinado de veludo. Neste, a três pés de altura, havia numerosos respiradores o que me levou a supor que por trás dos cortinados se achassem as mulheres.

Havia uns vinte cavalheiros na sala, que à nossa entrada se levantaram a apertar-me a mão ao mesmo tempo que Jacub lhes declinava o meu nome. Dois filhos e três dos seus auxiliares se achavam presentes. Também Halef já havia chegado e mantinha uma postura cheia de dignidade.

Foi-nos servido primeiramente licor com o indispensável tjibuk. Depois, porém, foi-nos trazido o jantar; o meu bom Halef, ao avistá-lo, não se dominou, afastando da boca os dezesseis fios de cabelos do seu bigode. Além dos pratos orientais já por mim conhecidos, serviram-nos um purê de Tobas e Haab el Aas, salada de Suebh el Belad, Scheursch el Marut, assado, uma espécie de lagarto assado no forno, a que meu hospedeiro chamava Dobb e cuja carne era saborosíssima.

Depois da refeição, retiraram os utensílios e trouxeram o piano para a sala. Um olhar súplice que me dirigia Jacub dizia-me o que ele desejava de mim e eu imediatamente me dispus a atendê-lo. Uma condição, porém, lhe impus, condição sine qua non: o afastamento do cortinado por trás do qual se achavam ocultas as mulheres.

Jacub olhou-me espantado.

— Para que, Senhor?

— Porque o veludo abafa o som da música, de modo a não vos agradar.

— Mas por trás do veludo estão as mulheres!

— Não faz mal; elas estão de véu.

Só depois de uma longa conferência com os seus convivas, é que Jacub se animou a afastar o cortinado de veludo e eu avistei então umas trinta figuras femininas sentadas sobre macias almofadas. Fiz tudo para divertir o meu público e, além da execução ao piano, cantei alguns lieds alemães que procurei quanto me foi possível verter para o árabe.

Quando terminei, Jacub conduziu-me a uma janela gradeada que dava para a Rua Direita. Lá se achava premida corpo a corpo uma compacta multidão de curiosos que enchia um enorme trecho da rua, em toda a sua largura. Que teriam pensado aqueles muçulmanos ao me ouvirem cantar! Quanto aos convivas do meu hospedeiro, tinha certeza não me tomaram por um louco, porque ali estive a dar arras às minhas cordas vocais, o que aliás nenhum velho crente do Islã faz, sob pena de se impurificar. Eram homens, ao que parecia, bastante esclarecidos, para não perturbarem o prazer de ouvir uma boa música ou canto, devido a escrúpulos excessivamente zelosos. Tanto que quando se despediram à meia noite, todos prometeram visitar-me novamente muito breve. No que se refere às damas, vi apenas umas trinta pontas de nariz e outro tanto de olhinhos e nada mais. Nem os pés metidos em finos pantufos os vi por ocasião delas marcarem o compasso quando eu batia o teclado do piano. São realmente ávaras de suas formas as formosas mulheres orientais!

Jacub conduziu-me ao meu quarto e alegrou-se comigo por haver eu permitido que seu filho nos acompanhasse. Este lamentou que seu auxiliar não tivesse assistido à minha recita. Ele teria passado hoje uma noite deliciosa, se houvesse assistido ao sarau musical, — observou-me o jovem. — Ele aprecia muito a música e é um moço inteligentíssimo. Ele poderá falar italiano, francês e inglês contigo, pois estudou esses idiomas.

— É natural de Damasco? — perguntei-lhe.

— Não — respondeu Jacub. — É de Adrianópolis; trata-se de um neto do meu tio. Seu nome é Afrak Ben Hulam. Nunca o víramos; um dia, em Istambul, ele apresentou-se em minha casa, com uma carta de recomendação do seu pai e outra do meu irmão Mafley; empreguei-o então no meu negócio.

— Por que não assistiu ele à reunião?

— Estava cansado e não se sentia bem — respondeu o jovem Scha-fei. — Quando ele voltou da festa, disse-lhe eu que chegara o Kara Ben Nemsi e que, à noite, faria música; ele prazerosamente teria vindo, mas se achava doente e mortalmente pálido. Contudo ele ouviu a música, pois acha-se recolhido ao quarto contíguo à sala em que se realizou o recital.

Depois de palestrarmos ainda por algum tempo, os dois se retiraram e eu me deitei a dormir. Oh! é bem diferente dormir sobre macias almofadas, de que dormir lá fora no chão duro e aspirando muitas vezes o hálito da peste...

Pela manhã me acordei com o cântico do rouxinol, que pulava de ramo em ramo, numa árvore que se erguia à janela do meu quarto. Halef também já estava acordado e quando entrei no seu quarto tomava ele café com saborosos confeitos. Fiz-lhe companhia e depois descemos ao pátio a fim de fumarmos os cachimbos junto da piscina. Antes, porém, fui ver os nossos cavalos. Estavam excelentemente acomodados e forrageavam-se com feno de tâmaras.

Em breve o jovem Rafei, que se dirigia para o negócio, veio despedir-se de nós e convidar-nos a visitá-lo na loja; teria que passar todo o dia lá, visto que o estado de saúde de seu primo e auxiliar se agravara, de modo a ter necessidade de guardar o leito.

— Senhor, sei que és um hekin...

— Quem te disse? — atalhei-o.

— Tu socorreste daquela vez, no Nilo, a muitos doentes, Islã nô-lo contou. Por isso aconselhei há pouco ao meu auxiliar que te falasse, mas ele nega-se a isso; diz ele que constantemente é acometido por aquela doença que dura no máximo dois dias. Não podias fazer-me a fineza de procurá-lo em seu quarto?

— Não, visto que ele já se negou a consultar-me; além disso, eu não sou um hekin.

Quando o jovem comerciante se afastou, ouvi leve dedilhar sobre o teclado do piano; era uma mãozinha assaz leve que feria o teclado e logo a seguir veio o Dschibuktschi e pediu que eu subisse. No corredor se achava uma das filhas de Jacub que súplice veio ao meu encontro.

— Efêndi, perdoa-me! Estou ansiosa por ouvir outra vez aquela música, que ontem tocaste por último.

— Já te satisfarei a vontade.

Encaminhamo-nos para a sala. A jovem sentou-se numa das almofa-das e apoiou a cabeça na parede. Comecei a executar a música pedida. Era o cântico sacro alemão: “Aqui prostam-se diante de Sua Majestade, as legiões cristãs ávidas de salvação.” Toquei a música e cantei também algumas estrofes do cântico. A moça conservava os olhos cerrados e os lábios levemente abertos em atitude de exaltação.

— Quer que eu toque alguma outra coisa? — perguntei-lhe depois. Ela levantou-se e se acercou de mim.

— Não, efêndi, não quero que essa música divinal seja prejudicada por outra. Quem entre vós tem permissão para cantar uma tão linda música e versos?

— Todos. Homens, mulheres e crianças a entoam diariamente ncs templos cristãos. E um pai devoto também a canta em casa juntamente com a família.

— Senhor, como deve ser lindo entre vós! Vós dais liberdade ao vosso amor! Os vossos sacerdotes que vos permitem cantar esses cânticos às vossas famílias, devem ser melhores e mais amáveis que os nossos, pois afirmam não haver Alá dado alma às mulheres. Que o castigo de Alá e do profeta caia sobre eles por causa desta mentira! A ti, efêndi, porém os meus agradecimentos!

Dito o que, ela se retirou e eu a acompanhei com o olhar. Sim, o Oriente, há milênios, anseia por Salvação, que tarda vir!

Fechei o instrumento; não me era possível tocar alguma outra peça, para não prejudicar o efeito que aquela música produzira no espírito da moça. Desci e mandei selar os cavalos, para ir com Halef à cidade fazer algumas compras.

 

MAIS UMA FAÇANHA DE DAWUHD ARAFIM

Como não tínhamos pressa, passeamos pela cidade com toda calma; estivemos nas principais ruas e até no desasseado bairro judeu. Ruínas e miséria lá havia-as em abundância. Entre os restos de edificações, outrora suntuosas, miseráveis espeluncas escancaravam suas portas ao público; os homens ostentavam cafetãs rotos e poluídos e vestes esfrangalhadas cobriam a nudez das crianças. As mulheres, porém, por sobre as suas elegantes vestes, adornavam-se com os seus adereços legítimos ou imitados. Creio que a mesma ostentação faziam as mulheres e filhas dos judeus daquela feita quando o profeta lhes anunciou: “O Senhor raspará a cabeça; das filhas de Sion, para que delas desapareça o ornamento. A este tempo, o Senhor lhes tirará os ornamentos dos bonitos sapatos, os pregadores e broches, as correntes e as pulseiras, as tocas e as orladuras; os cordões e os brincos, os anéis e os passadores de cabelo, as bolsas, os espelhos e os cinturões.”

Quando de regresso passamos pela joalheria, eu ia apear para fazer uma visita a Schafei mas vi, surpreso, que a casa se achava de portas cerradas. Dois khawass guarneciam a loja. Informei-me deles sobre a causa de se achar a casa guardada, mas recebi uma resposta tão grosseira, que logo me fui andando. Ao chegar em casa de Jacub encontrei todos os moradores da mesma em agitação. Já em baixo no portão veio Schafei ao meu encontro. Ia sair de casa a toda pressa, mas ao ver-me deteve-se.

— Efêndi, já sabes? — exclamou em voz alta.

— Quê?

— Que fomos roubados, miseravelmente roubados e enganados!

— Não sabia de coisa alguma!

— Então entra que papai te contará tudo! Eu tenho que me ir.

— Para onde?

— Allah illa Allah! eu mesmo ainda não sei.

Tentou passar por mim, mas eu estendi a mão e o segurei. O acontecimento tirara-lhe a calma da reflexão, justamente tão necessária diante do caso: eu precisava evitar que ele tomasse alguma medida imprudente.

— Calma; não vás por enquanto! — pedi-lhe.

— Deixa-me! Eu preciso sair ao encalço!

— Ao encalço de quem? Do ladrão? Quem é ele?

— Pergunta ao papai!

O moço quis desvencilhar-se de mim, mas eu pulei do burro e travei-o violentamente do braço, obrigando-o a entrar comigo na casa. Depois de havermos galgado a escada, passamos para o quarto de seu pai. Este se achava pronto para sair e no momento colocava duas grandes pistolas à cintura. Quando avistou o filho, trovejou-lhe irado:

— Que fazes ainda aqui? Não há tempo a perder. Vai depressa! Também eu vou sair para matar a tiros o ladrão, seja lá onde o encontrar!

Ao redor dele se achavam os demais membros da família agravando ã situação com lágrimas que de nada adiantavam. Foi com grande esforço que os acalmei e consegui que Jacub me pusessse ao par do acontecimento. Afrak Ben Hulam, o auxiliar enfermo e primo oriundo de Adrianópolis, depois que nós saíramos, deixou o seu aposento e se dirigiu para a joalheria; aí transmitiu a Schafei o recado para procurar imediatamente o pai, a fim de fechar uma vultosa transação; segundo o recado, Jacub se achava à sua espera no grande Han Assad Paxá. Schafei foi atender prontamente ao chamado, mas apesar de infatigáveis procuras não conseguiu encontrar o pai. Veio então rapidamente para a casa e qual não foi a sua surpresa ao encontrar o pai descansando sob a arcada, tendo-lhe dito que não lhe enviara recado algum. Em conseqüência disso, voltou Schafei para a joalheria e encontrou a mesma de portas cerradas. Abriu a loja com uma segunda chave que sempre conduzia consigo e logo ao primeiro golpe de vista notou que haviam desaparecido as jóias e alfaias de maior valor e com elas também o auxiliar. Tornou então vertiginosamente à casa a avisar o pai; teve, porém, ainda a presença de espírito de fechar novamente a porta e postar diante dela dois khawass para guardá-la. A notícia alarmou, como era natural, toda a casa. Quando cheguei com Halef, dispunha-se ele a sair em perseguição do criminoso. Mas sair em que rumo? Ele próprio não o sabia. Também Jacub estava pronto para sair ao encalço do ladrão; não sabia também no entanto onde procurá-lo.

— Com a vossa precipitação acarretareis a vós mesmos maiores danos que resultados — ponderei-lhes. Sentai-vos e deliberemos calmamente sobre o assunto. Um fogoso cavalo de corrida nem sempre é o animal mais veloz.

Tive novas dificuldades para fazer prevalecer o meu ponto de vista. Finalmente, porém, consegui.

— Qual é o valor das jóias e alfaias desviadas? — informei-me.

— Não sei ainda ao certo — respondeu o rapaz. — Mas eleva-se a muitos, muitíssimos saquitéis.

— E achas que só Afrak é que possa ter sido o autor do roubo?

— Não pode ser outro senão ele. O recado que me trouxera foi mentiroso e só ele é que estava de posse da chave e sabia onde se achavam guardados os valores.

— Bom, neste caso a nossa diligência se circunscreverá exclusivamente a ele! Trata-se realmente de um parente vosso?

— Sim. É verdade que nunca o víramos, mas sabíamos que ele estava a chegar e depois as cartas que nos apresentou o identificaram claramente.

— Era ele de profissão joalheiro ou ourives?

— Era sim, e um hábil profissional.

— Conhecia toda a vossa família a sua situação?

— Conhecia, se bem que freqüentemente fazia algumas confusões a este respeito.

— Ele esteve ontem na festa e tu me disseste que ele depois ficou pálido. Já se achava pálido quando voltou ou empalideceu depois ao ouvir falar na presença de Kara Ben Nemsi na vossa casa?

Schafei olhou-me surpreendido.

— Por Alá, onde pretendes chegar com esta pergunta, efêndi? Pareceu-me que só empalideceu depois de eu lhe falar a teu respeito.

— Pois isso nos conduzirá talvez a uma pista segura.

— Oh! efêndi, se isso se confirmasse!

— O homem assustou-se ao ouvir falar a meu respeito; não veio à sala quando toquei piano; deu-se como doente, porque não podia sair de casa, sob pena de encontrar-se comigo; depois quando me retirei, saiu ele de casa. Halef, sabes tu quem é este Afrak Ben Hulam?

— Como poderia sabê-lo! — respondeu o Hadji que até aqui nos ouvia em silêncio.

— Não é outro senão Davuhd Arafim, que também já usou o nome de Abrahim Mamur. Já ontem à tarde desconfiei disso, mas parecia-me tão inverossímil que não pude crer. Agora, porém, estou quase convencido de que minha desconfiança tinha toda razão de ser.

Os meus ouvintes estavam mudos de espanto e só depois de uma longa pausa é que Jacub disse com um enérgico sacudir de cabeça:

— Isso é impossível, efêndi! aquele meu parente jamais se chamou Davuhd Arafim ou Abrahim Mamur e tampouco esteve no Egito. Viste ontem aquele Mamur aqui em Damasco?

— Vi. Esqueci-me de contar, porque absorvi depois todo o meu tempo com a audição de piano. Descreve-me a figura do teu parente e os vestuários que o mesmo usava ontem quando esteve na festa.

A descrição me foi feita com abundantes minúcias; tudo combinava, era de fato o Abrahim Mamur e nenhum outro. Mas os dois comerciantes não queriam acreditar.

— Afrak Ben Hulam nunca esteve no Egito — afirmava repetidamente. — E como poderia um estranho se apoderar das cartas de que ele era portador?

— São estes os dois únicos pontos obscuros; mas achais impossível tenha Abrahim arrebatado as cartas da mão do autêntico Afrak?

— Allah kerhim, neste caso só se o assassinasse, para depois ficar mais seguro.

— Isto talvez ainda venha a se esclarecer; aquele homem é capaz de tudo, para atingir os seus fins. Temos que encontrá-lo; precisamos capturá-lo! Estais agora convencidos de que uma reflexão calma conduz a melhor resultado, do que a precipitação? O ladrão se encontra ainda acoitado na cidade ou então deixou esta apressadamente. Deveis estar preparados para o segundo caso que é o mais provável. Que diligências tomarias tu, Jacub, no caso de ter ele deixado a cidade?

— Se eu soubesse a direção que tomou, sairia em sua perseguição, até capturá-lo, embora tivesse que andar até o fim do mundo.

— Manda então imediatamente Schafei comunicar a ocorrência a polícia. Esta que mande ocupar logo os portões da cidade e expeça patrulhas para a Ghata. Além disso, ela que te forneça um passe, válido em todo o reino do Grande Senhor, bem como um acompanhamento de khawass montados, que ficará à tua disposição para a captura do criminoso.

— Efêndi, os teus conselhos são melhores que a minha ira de há pouco. Tens mais agudeza de espírito que eu; estás disposto a auxiliar-me daqui por diante na diligência?

— Estou às tuas ordens para isso. Conduze-me agora ao quarto ocupado pelo ladrão!

Schafei saiu correndo em direção à polícia e nós fomos ao dormitório do suposto Afrak. Via-se que este abandonara-o com a intenção de não voltar mais; mas não encontrei o mínimo sinal que servisse de ponto de partida às diligências.

— Esta pesquisa de nada adiantou. Precisamos tentar descobrir pista mais segura; dividamo-nos os três em busca de informações nos portões da cidade e nas recovas.

Essa proposta foi entusiasticamente aceita por Halef e Jacub e alguns minutos depois, montado num burro, dirigia-me ao “Portão de Deus.” Não quis utilizar-me do meu garanhão, pois talvez mais tarde eu tivesse necessidade de todo o vigor de suas forças. Essas pesquisas não deram igualmente resultado algum. Bati todos os recantos da cidade onde eu supunha colher dados seguros; percorri toda Ghuta, onde me encontrei com a patrulha policial já destacada para a diligência, farejei enfim tudo, mas nada consegui apurar, nenhuma pista segura e suando em bicas voltei para casa às três horas da tarde. Jacub já voltara uma porção de vezes e tornara a sair. Halef também nada descobrira, contudo ao menos uma esperança trouxe-me ele. Encarregara-se ele de rondar a face norte da cidade e passara pela tenda em que estivéramos na noite anterior. À sua entrada estava a cantora que o reconheceu e chamou-o por meio de um aceno. Ela notara na véspera que por causa de Mamur nos havíamos retirado tão repentinamente e mandou dizer por intermédio de Halef que eu fosse falar com ela, se é que eu desejava saber alguma coisa a respeito daquele homem.

— Mas por que não te disse logo do que se tratava? — perguntei-lhe.

— Sídi, ela não conhece o idioma árabe e eu compreendo muito pouco o turco, que ela fala. Mesmo este pouco que ela disse hoje, eu mais adivinhei do que entendi.

— Vamos imediatamente lá! Sela os nossos cavalos que os burros estão esfalfados.

Era o último dia da festa, que dura cinco dias.

Quando alcançamos a tenda da austríaca, notamos que esta não se achava tão repleta de assistência como no dia anterior. A música fizera precisamente naquele instante um dos seus intervalos, de modo que pude falar logo com a moça. Eu não precisava recear ouvidos indiscretos, pois falamos em alemão.

— Por que saiu o senhor ontem tão apressadamente daqui? — perguntou-me a cantora.

— Saí em perseguição do homem que abandonou a tenda logo depois de nela haver entrado. Eu precisava saber onde morava ele.

— Isto aquele homem não diz a ninguém.

— Ah! e a senhora sabe disso!

— Sim. Ontem foi a terceira vez que ele freqüentou a nossa tenda. Ali perto de nós esteve ele sentado junto com um inglês, a quem também se negou a dizer onde era a sua residência.

— Falava o homem inglês ou o inglês compreendia árabe?

— Falaram inglês e eu compreendi palavra por palavra. O “gentleman” contratou-o para intérprete.

— Que me está dizendo! Para aqui ou para alguma viagem?

— Para uma viagem.

— Uma viagem para onde?

— Não sei; ouvi apenas que a primeira localidade do roteiro será Salehieh.

— E quando pretendem partir?

— Assim que o intérprete haja ultimado o negócio que o trouxe a Damasco. Se não me engano, trata-se da compra de uma partida de azeite para Beirute.

Mais não sabia ela. Agradeci-lhe as informações e dei-lhe um presente.

Para que Jacub não ficasse sem notícias, mandei Halef procurá-lo em sua casa ou onde o encontrasse; eu, porém, contornei a cidade, para atingir o “Portão de Deus”, de onde a estrada segue para Salehieh, que fica situada ao oeste de Ghuta e que é propriamente considerada como um arrabalde de Damasco. Por esta localidade atravessa a estrada real para Beirute, no mar Mediterrâneo, conjuntamente com todas as vias de comunicações pelas quais se atingem as localidades da Palestina.

Quando lá cheguei já era quase noite. Eu estava na incerteza de obter informações seguras, visto que as casas construídas nas estradas do Oriente não o são de molde a delas se observar os transeuntes, como acontece na Europa. Nisso, avistei alguns daqueles infelizes que são segregados da sociedade mas que no entanto vivem graças à caridade desta: os lázaros.

Envoltos em trapos jaziam um pouco distantes da estrada e já de longe gritavam pedindo-me que lhes desse uma esmola.

Cavalguei na sua direção, mas eles imediatamente fugiram, visto que lhes é proibido deixar uma pessoa sã aproximar-se deles. Só depois de eu gritar-lhes repetidas vezes que eu era um europeu e que não temia o seu contágio é que eles pararam. Contudo só me deixaram aproximar uns vinte passos.

— Que queres de nós, Senhor? — perguntou-me um deles. — Deixa a tua esmola aí no chão e te afasta depressa!

— Que esmola preferis? Dinheiro?

— Não. Com ele nada podemos adquirir, visto que nô-lo não aceitam. Dá-nos outra coisa: um pouco de fumo, pão, carne ou qualquer outra coisa de comer.

— Por que estais atirados no campo? Não há em Damasco vários lazaretos?

— Estão todos com a lotação completa. Temos que esperar até que a morte abra vagas para nós.

— Preciso de algumas informações de vós. Se estiverdes em condições de mas prestar amanhã de manhã vos mandarei fumo para diversas semanas e também do resto de que careceis. De momento, porém, nada disso tenho comigo.

— Que informações pretendeis, Senhor?

— Há quanto tempo vos achais neste local?

— Já há vários dias.

— Então deveis ter visto duas pessoas que cruzaram por esta estrada. Houve muito movimento de viajantes?

— Não. Para a cidade viajou muita gente a assistir às festas que lá se estão realizando e que devem terminar hoje; da cidade, porém, veio apenas um transporte de mulas cargueiras que se dirigiu a Ras Heya e Gazein, diversas pessoas que se destinavam a Hasbeya, alguns trabalhadores de Zebedeni e hoje de manhã um inglês e mais dois homens que o acompanhavam.

— Como sabeis que se tratava de um inglês?

— Oh! aqueles homens a gente conhece logo. Estava trajado todo de cinza, trazia um chapéu muito alto à cabeça, tinha um nariz muito grande e dois vidros seguros no mesmo. Um dos seus companheiros teve que lhe traduzir o que desejávamos e ele depois nos deu um pouco de fumo, algumas côdeas de pão e muitos pauzinhos para ascender fogo.

— Descreve-me a figura do homem que lhe serviu de intérprete!

A descrição feita pelo lázaro, a seguir, coincidia exatamente com o ladrão dos valores de Jacub.

— Para onde seguiram eles?

— Não sabemos. Cavalgaram pela estrada de Beirute; mas os filhos do velho Abu Medschah devem saber, pois ele é que lhes serviu de guia. Ele mora na casa que fica encostada a uma grande palmeira, que daqui já avistas.

— Fico-vos muito agradecido! Amanhã bem cedo por aqui passarei, trazendo tudo que vos prometi.

— Oh! Senhor, a tua misericórdia encontrará graça diante dos olhos de Alá. Não podias nos trazer também alguns cachimbos daqueles comuns que se compram por poucos paras?

— Trarei, prometo-vos!

A seguir cavalguei Salehieh adentro e na casa do guia fui informado de que o inglês pretendia seguir para o vale do Sebdani. O velho Medschah fora contratado apenas até lá. Aquilo por certo que não passava de um estratagema do intérprete, para despistar os seus perseguidores. Afinal eu já soubera o bastante e regressei a Damasco.

Encontrei o meu hospedeiro em ansiosa expectativa pelo meu regresso. As suas pesquisas não produziram efeitos mas o meu recado por intermédio de Halef, lhe dera algumas esperanças. Conseguira ele o passaporte policial e dez khawass montados já se achavam de prontidão aguardando apenas a sua ordem de partida.

Relatei tudo o que eu averiguara. Como já fosse noite, achei melhor esperarmos o romper do dia; mas a impaciência de Jacub não queria concordar com a minha resolução. Mandou em procura de um guia que conhecesse o caminho mesmo à noite. Para sua febril intranqüilidade nada havia que fosse feito com a desejada rapidez e mal eu expressara a minha promessa aos leprosos, já ele se deu pressa em mandar adquirir tudo.

Decorreram, depois de minha volta, algumas horas até que nos achássemos aprestados para a viagem. Jacub preferiu tomar animais de aluguel para si e para o criado; e um terceiro para conduzir a bagagem. Como ele não podia saber o tempo que duraria aquela cavalgada e nem também podia divulgar o rumo que tomava a mesma, supriu-se ele de dinheiro a mais, a fim de estar a cavaleiro de qualquer necessidade.

A nossa despedida não tomou muito tempo. A lua cheia surgira por trás da montanha, quando pela “Rua Direita” rumamos para o “Portão de Deus”: à frente o guia ladeado pelo recoveiro, depois nós, isto é, Jacub com seu criado e Halef, eu, os dois irlandezes e os dez khawass.

Nem nos preocupamos com a guarda do portão e passamos a galope por ela. Defronte a Salehieh dobrei à direita para um local onde avistei os leprosos deitados a dormir. A nossa vinda despertou-os e todos ficaram contentíssimos com os numerosos pacotes que depus no chão para eles. A seguir, continuamos viagem. Daí a pouco Salehieh estava por trás de nós e passamos a subir a estrada que conduz a Kubbet en Nassar, esplêndido ponto de observação panorâmica, a que, aliás, já fiz menção. Lá em cima, junto à sepultura do santo maometano, lancei um olhar para baixo, para Damasco, o último na minha vida. A cidade banhada pelo luar brilhava qual mansão dos espíritos cingidos pelos negros anéis da Ghuta. À direita, vinha a estrada de Harun, que me trouxera a Damasco e, mais além, a estrada das caravanas de Palmira. que me ficou interditada.

Naquela época, jamais pensei que me demoraria tão pouco tempo em Damasco.

Cavalgando por trás de Kubbet en Nassar, não tardamos atingir o passo sobre o Rabuh, de onde por via fluvial ia-se a Dimar, uma grande aldeia, que pela primeira vez pisávamos.

Com o auxílio dos nossos khawass acordamos o alcaide; graças às informações e pesquisas realizadas por este, viemos a saber que à tarde quatro cavaleiros haviam atravessado a aldeia a galope; entre eles se achava um inglês ostentando trajes cinza xadrezados, e usando óculos azuis. Informou-nos o alcaide que essa pequena caravana tomara a estrada de El Suk, pela qual, sem delongas, prosseguimos a jornada.

Raiava o dia, quando cavalgávamos pelo planalto El Dschecide; depois passamos à esquerda do ponto onde outrora se erguia a capital de Abilena; do outro lado avistamos o monte, onde foi sepultado Abel. Seguiram-se diversas aldeias menores, numa das quais fizemos alto para descansar os cavalos.

Havíamos feito até ali uma viagem que normalmente deveria ser feita em um dia inteiro. E se dali por diante continuássemos a forçar daquela maneira os cavalos, era certo que estes não nos conduziriam mais por muito tempo. Ademais disso soubemos, por pessoas que atenciosamente nos vieram obsequiar com frutas, que não haviam visto passar ninguém pela aldeia, durante o dia, mas que à noite foram percebidos nítidos rumores de uma pequena caravana que passava.

Depois de se haverem os cavalos refeito o mais possível, continuamos a jornada rumo a El Suk, que não ficava muito distante. Antes da localidade, encontramo-nos com um único cavaleiro. Era um árabe idoso de nevacentas barbas e que foi cordialmente saudado pelo nosso guia, que depois nô-lo apresentou:

— Eis o Abu Medschah, que conduziu o inglês.

— Ah! fôste tu? — exclamou Jacub. — Onde o deixaste?

— Em Sebdani, senhor.

— Quantos homens leva ele consigo?

— Dois, um trugimão e um criado.

— Quem é o trugimão?

— Diz ele ser de Konieh, mas não é verdade. Seu dialeto não é o daquela gente. É um mentiroso e embusteiro.

— Como chegaste à tal conclusão?

— Ele engana o inglês; notei-o, se bem que não me foi possível compreender o inglês.

— Conduz ele muita bagagem?

— A bagagem e os animais cargueiros pertencem ao inglês; o trugimão possui apenas algumas caixas grandes de papelão, que diz ele conter muito valor.

— Em que casa se hospedaram?

— Em nenhuma. Em Sebdani pagaram-me o salário e eu estava despachado; regressei, pois, mas eles continuaram, se bem que os cavalos, de esfalfados, já iam quase caindo. Parei um pouco na casa de um conhecido para descansar e agora vou indo de volta.

— Não ouviste dizer como se chamava o inglês?

— É um nome complicado, difícil de se pronunciar. Parece que é Lisêou Linsê.

Afilei os ouvidos. Seria possível! Perguntei apressadamente:

— Não é Lindsay?

— É isso mesmo, justamente!

— Faze-me uma descrição da figura do inglês!

— Usa trajes cinzentos ainda novos e um chapéu também cinzento e tão alto como do chão até o meu joelho. Trazia permanentemente dois vidros azuis diante dos olhos e uma enxada na mão, mesmo montado.

— E o seu nariz?

— Ah! este é enorme e vermelho como um pimentão. Acha-se afetado da peste de Allepo. Também sua boca é grande e ampla.

— É ele! Halef, ouviste? O nosso inglês ainda vive!

— Hamdulillah! — exclamou o pequeno Hadji. — Alá é grande e forte, para ele tudo é possível; faz morrer e viver, conforme lhe apraz!

Jacub não estava em condições de compreender a razão do nosso contentamento. Relatei-lhe o indispensável para esclarecê-lo e pedi-lhe que prosseguíssemos sem tardança a jornada. Não me achava tranqüilo por saber o amigo “ressuscitado” nas mãos de um canalha.

O velho guia continuou na sua viagem de regresso e nós tocamos para frente. Atravessamos várias aldeias que com seus jardins floridos e pomares alegravam a vista do viandante. Não demorou, porém, que cessassem aqueles lindos jardins e nós atravessamos uma ponte de barca sobre o Barrada, à margem esquerda do mesmo, e passamos para um desfiladeiro cujo leito mal oferecia espaço para o nosso caminho e o leito do rio. O declive do desfiladeiro estreitíssimo e escuro era assaz escarpado e principalmente a sua face norte, onde havia ranhuras na penedia; nestas ranhuras por certo que outrora fora encostada uma espécie de escada que se usava para galgar montes, escada que ruíra à ação do tempo. Aquele desfiladeiro chama-se Suk el Barrada e conduz à planície de Sebdani, na qual fica situada a cidade do mesmo nome.

Depois de vencermos o desfiladeiro e entrarmos ao norte da citada planície, passamos novamente por várias aldeias, e, depois de uma cavalgada forçada, chegamos finalmente a Sebdani, mas com os animais tão cansados que seria impossível o prosseguimento da jornada por aquele dia. O meu garanhão e o cavalo de Halef se achavam fatigadíssimos, e os dos outros pouco faltavam para cairem. Era isso, aliás, o que eu já previa. Sebdani é uma jóia de aldeia cheia de edificações urbanas e rodeadas de olorosos jardins, não obstante estar situada numa elevação bem regular. A maioria dos habitantes é maronita. Os khawass não tardaram a encontrar aquartelamento para eles e nós. Na aldeia soubemos que somente o velho guia é que lá havia parado. O alcaide, porém, expediu um emissário à próxima aldeia chamada Schijit em busca de informações. Este nos informou, depois, que o inglês lá pernoitara e que na manhã seguinte, na companhia de dois moradores da aldeia, do criado e do intérprete seguira para Sorheir. Se de lá ele prosseguiria ou não viagem, ninguém soube informar.

Mal raiara o dia, montamos a cavalo e partimos em prosseguimento do nosso objetivo. O trugimão falara conforme vim a saber pela cantora, numa compra de azeite de olivas a fim de remetê-lo para Beirute. Aquela transação por certo que não passava de um embuste, mas Beirute não podia deixar de ser a meta final de sua viagem, conforme comprovavam as informações por nós colhidas posteriormente. A razão de haver ele tomado aquele caminho, evitando a estrada real de Beirute, era bem explicável, Fizera-o para sua segurança.

Com a aldeia de Schijit alcançamos também as nascentes do Barrada, que ficam numa grande elevação. Chegados que fomos àquela aldeia, confirmaram-se in totum as informações do emissário de Sebdani. Rumamos, em vista disso, para Sorheir. A estrada era assaz íngreme e não tardamos a notar que os khawass se achavam pessimamente montados. Os seus animais haviam resistido, é verdade, a uma viagem puxadíssima, idêntica à da véspera, mas era certo que a terceira não agüentariam mais. Também os animais de aluguel tomados por Jacub eram ordinaríssimos, de modo que a nossa viagem de minuto a minuto se tornava mais morosa. Daquela maneira nunca chegaríamos a alcançar a comitiva que perseguíamos, pois esta nos levava um avanço de umas nove horas.

Propus a Jacub seguirmos Halef e eu na frente, mas ele de forma alguma concordou com essa medida; afirmava o comerciante de Damasco que sem nós, se sentiria inseguro não obstante viajar acompanhado pelos khawass. Tive que desistir, pois, da idéia, aliás vantajosíssima para o nosso propósito e tranqüilizei-me um pouco lembrando-me de que o inglês, devido à sua paixão pelas excavações arqueológicas, não abandonaria tão cedo a região das ruínas de Baalbek.

Mas como viera o inglês a parar em Damasco? De que forma conseguira ele escapar da morte, lá nas margens do Eufrates? Eu estava realmente curioso por saber isso, de maneira que me aborrecia aquela nossa cavalgada a passos de lêsma.

Sorheir fica situada à beira de uma cascata que deságua no Barrada; apesar do seu nome (pequena) é uma aldeia bem considerável. Lá chegados, fizemos alto, e os khawass se dividiram em busca de informações. Soubemos daí a pouco que as pessoas procuradas haviam passado pela aldeia e rumado para o desfiladeiro do Ante-Líbano. Após um breve descanso, pusemo-nos em marcha.

Depois de cavalgarmos por uma vasta planície, alcançamos um vale, que tivemos de subir durante uma hora inteira, a fim de atingirmos o citado desfiladeiro. Chegados ao ápice do Ante-Líbano vimos que o seu declive leste era ainda mais escarpado que o do oeste. O nosso guia disse-nos que Baalbek ficava dali em linha reta umas cinco horas de viagem, mas que devido às curvaturas da estrada e o estado de cansaço dos cavalos, iríamos gastar muito mais tempo para alcançá-la.

Tinha razão o guia. Fomos obrigados a atravessar numerosos vales laterais e enviezados e quando finalmente avistamos diante de nós as monumentais ruínas da cidade-sol, havia ainda muitas horas de viagem para alcançá-la. Um dos khawass avisou que o seu cavalo não podia prosseguir e o seu comandante ordenou em vista disso que se fizesse alto. Não houve rogos, não houve promessas que fizessem os khawass continuarem na jornada. E como Jacub declarou que, tendo sido aquela patrulha policial confiada a ele, não lhe era possível abandoná-la, tivemos que nos cingir à imposição dos mesmos.

Felizmente depois de algum tempo, consegui que o chefe dos khawass concordasse em procurarmos a aldeiazinha pitoresca que ficava ao nosso lado; naturalmente que só consegui aquela concessão depois de lhe haver dado uma gorgeta. Ao chegarmos na aldeia, soubemos, de indagação em indagação, que por lá passara um inglês esquisitamente trajado, que tivera uma altercação com o seu intérprete e pouco depois um cavaleiro atravessou a aldeia, cavaleiro que detive a fazer-lhe indagações. Por uma feliz coincidência, aquele cavaleiro fora o guia de Lindsay. Informou-me ele que não o conduzira até Baalbek, pois na última aldeia antes daquelas ruínas foi dispensado pelo inglês.

No seu parecer surgira uma divergência entre o inglês e o seu trugimão; o inglês era um homem muito precavido, pois diante do intérprete jamais tirava a mão do cabo de uma pistolinha que trazia à cintura; que esta era de um só cano, mas atirava diversas vezes consecutivas sem carregá-la de novo.

Daí por diante e durante a noite toda, mais apreensivo ainda fiquei com a sorte do meu bom amigo David Lindsay.

Achava-me excitado, fôra-se-me o sono. E quando surgiram os primeiros alvores do dia, acordei a patrulha determinando-lhes que se aprestasse para a partida, no que só fui atendido, depois de lhe escorregar mais gorgeta. Ao que parecia, os soldados estavam animados do propósito de servir a Jacub somente de conformidade com a generosidade de sua bolsa. Chamei-lhe a atenção sobre este fato, aconselhando-o a fazer ver àquela gente que lhe cabia apoiar e auxiliá-lo na diligência e não extorquir-lhe infamemente propinas a toda hora.

Tornamos a cruzar por diversas pequenas aldeias e quando as elevações do Alibano desapareceram, vimos o afamado vale do Baalbek diante de nós. As grandes massas que constituem essas ruínas, ocupam uma extensa área territorial e creio haver dificilmente uma segunda cidade de ruínas, cujos destroços produzem uma tão violenta impressão, como aqueles escombros de muralhas e edificações.

Logo à entrada do campo das ruínas, vê-se uma enorme pedreira, onde jaz um enorme bloco de pedra de cal. É de umas trinta varas de comprimento, sete de largura e outras tantas de espessura. Esses blocos constituíam o material para as gigantescas construções de Baalbek. Uma daquelas pedras poderá ter o peso mínimo de uns três mil quintais métricos. Dada à carência de meios mecânicos e técnicos da época, como podiam ser tais massas movimentadas? É um enigma.

Os templos ali eram construídos em honra de Baal ou Moloch; aqueles, cujos escombros lá ainda se erguem hoje, tiveram por certo a sua origem romana. Sabe-se que Antonino Pio construiu ali um templo ao deus do sol Zeus, templo que era considerado uma maravilha do mundo. Ao que parece, nos dois maiores templos eram adorados os deuses sírios e nos menores, porém, o Baal-Júpiter.

Para erguer aqueles templos, foi construído primeiro um fundamento de quinze varas de altura, depois seguiam-se três camadas daqueles blocos gigantescos e sobre estes é que repousavam as monumentais colunas que sustentavam as gigantescas arquitraves. As seis colunas que ainda restam de um templo do sol que em Baalbek se ergueu na antigüidade, possuem uma altura de setenta pés e o pedestal tem um perímetro de seis pés. O pequeno templo tinha o comprimento de oitocentos pés e quatrocentos de largura e a colunata compunha-se de quarenta colunas.

Também a cidade de Baalbek em si era considerável e importantíssima, pois ficava na estrada de Palmira, rumo de Sidon. O companheiro de lutas de Chalid, Abu Abeida, que em Damasco tratara os cristãos com tanta humanidade, conquistou também a cidade de Baalbek. Da acrópole fêz-se uma cidadela e dos materiais resultantes dos templos destruídos construíram-se muralhas fortificadas. Mais tarde vieram os mongóis e depois os tártaros; o que estes deixaram, foi destruído em 1170 por um terremoto. O que lá ainda se ergue dá apenas uma idéia muito vaga do esplendor daquela época.

No local da grandiosa cidade de Baalbek acha-se hoje edificada uma miserável aldeia, habitada por árabes fanáticos da tribo dos mutawileh, e salteadores; os soldados da guarnição local só contribuem para tornar mais insegura ainda a zona.

Tomei do binóculo para contemplar a cidade destruída. Não se via viv’alma. Conforme mais tarde vim a saber, os soldados tendo entrado por conta própria em gozo de férias, retiraram-se em vilegiatura e os mutawileh não estavam lá muito dispostos para em massa nos fazerem uma recepção... Para mais depressa encontrar o inglês, pedi ao comandante dos khawass, que tinha o posto de tschausch, que fizesse sua gente cercar a outrora cidade-sol. Negou-se ele a cumprir a minha ordem, alegando que antes de mais nada, os animais e soldados careciam de descanço e alimentos.

Atendemos ao seu desejo, mas, mesmo depois disso, aquela gente não se dispunha a efetuar o cerco ordenado. Jacub pediu e por fim tornou-se enérgico; eu também pedi e também me tornei enérgico, mas tudo sem resultado. Por fim declarou o sargento com a maior franqueza deste mundo que só obedeceria à ordem depois de receber uma nova propina. Jacub já ia levando a mão ao bolso para atendê-lo, mas eu o detive.

— Esses homens não te foram postos à disposição para te auxiliarem a diligência? — perguntei-lhe.

— Foram, sim — respondeu o comerciante.

— E quais as remunerações que recebem pelos seus serviços?

— Provisões para eles e forragem para os animais; o sargento, cinco piastras por dia e cada soldado, três.

— Bom. Este soldo lhes é pago porque te servem; se se negarem a servir-te, não receberão coisa alguma. E assim será feito, do contrário te deixo aqui e seguirei o meu caminho só. Tu, porém, quando voltares a Damasco, dirás ao paxá que indolentes te pôs ele a teu serviço!

— E que tens tu com isso? — trovejou-me o sargento.

— Fala com mais modos, ouviste?! Não sou nenhum khawass, fica sabendo! — retruquei-lhe. — Farás já o cerco que te ordenei ou não? Lá ao oeste na muralha, nos encontraremos.

Mal humorado o homem montou a cavalo, no que foi seguido pelos seus comandados. Depois de haver ele dado a voz de comando, os homens saíram estendidos em linha.

Um arroio cortava o grande campo de ruínas. Calculei logo que um forasteiro ao chegar ali, procuraria sempre o arroio. Por isso dividimo-nos para percorrer o arroio. Halef ficara com Jacub e eu levei os dois irlandeses comigo.

Depois de havermos convencionado dar notícias de qualquer achado ou acontecimento, por meio de um tiro, cavalgamos margem acima. Curvada sobre uma colunata em ruína, avistei uma muralha, na qual havia uma enorme caverna. Diante dessa caverna da muralha se achava um homem de espingarda na mão. Mais acima, talvez que a uns quinhentos passos, distingui um chapéu-cilindro côr de cinza, que com seu movimento de curvar e levantar significava que quem o tinha à cabeça estava ocupado nalguma escavação.

Voltei para trás das colunas, entreguei o meu cavalo aos irlandeses, ordenando-lhes que ali ficassem escondidos até eu chamá-los. Saí depois e me dirigi ao homem de espingarda na mão, que agora se achava deitado de modo a não me ver; assim, porém, que percebeu os rumores dos meus passos levantou-se de um salto e apontou-me a espingarda. Trajava roupas turcas mas dirigiu-se a mim em inglês:

— Stop! Ninguém pode passar por aqui.

— Por quê? — perguntei-lhe também em inglês.

— Ah! fala inglês. É algum trugimão?

— Não. Mas queira baixar a espingarda; sou seu amigo. Aquele homem que lá se acha escavando não é sir David Lindsay?

— Yes!

— E o senhor é seu servo?

— Yes!

— Bem. Sou um velho conhecido seu, e lhe queria fazer uma surpresa.

— Que grande alegria! Pode ir lá. Aliás a ordem que tenho é de preveni-lo da aproximação de qualquer pessoa, mas não quero estragar a surpresa que o senhor lhe vai fazer. Ademais disso, creio que o senhor me está dizendo a verdade.

Fui e quanto mais me aproximava do cilindro cinzento, menos ruído fazia ao caminhar. Consegui atingir a beira do vão do muro, sem ser pressentido e exatamente num dos movimentos do inglês erguendo-se da escavação tirei-lhe o chapéu.

— ‘s death! Quem é que...

O homem virou-se; e sua boca escancarada não conseguiu articular nem uma palavra, nem uma só sílaba. O nariz descomunal passou a mover-se de modo a deixar cair logo o par de óculos azuis no chão.

— Afinal, sir, — perguntei-lhe — por que não me esperou no canal de Anana?

— Bons espíritos me assistam! — exclamou afinal o inglês. — Quem é este que me está falando? Pois o senhor morreu!

— Sim, mas lhe surjo agora como fantasma. O senhor tem medo do espírito de um bom amigo?

— Não, absolutamente não!

A estas palavras pulou ele para fora da escavação. Voltara a si do espanto e me abraçava emocionado.

— O senhor ainda vive. Ora viva! E Halef?

— Também está aqui. E além dele mais dois conhecidos seus.

— Quem?

— Bil e Freed, que fui buscar nos campos forrageiros dos haddedins.

— Ah! Ah! Não é possível! O senhor esteve depois disso com os haddedins?

— Durante mais de dois meses.

— E eu... well, não encontrei mais os haddedins.

— Quem é aquele homem que monta guarda naquele muro?

— Meu criado. Contratei-o em Damasco. Venha, mister; temos que conversar muito.

Conduziu-me para frente da caverna da muralha, nela entrou para voltar logo depois trazendo uma garrafa e um copo. Era sherry, legítimo sherry, que continha a garrafa.

— Espere, neste caso temos que beber também com os outros dois. Chamei os dois irlandeses e quando estes chegaram assisti a uma cena indescritível. Os dois rapazes choravam de alegria e Lindsay fazia toda sorte de caretas tentando ocultar a sua comoção.

— E onde está o seu intérprete? — perguntei-lhe afinal.

— Intérprete? Ah! o senhor já sabe que contratei um?

— Sei. Contratou-o na festa do Er Rimal, na tenda dos artistas austríacos.

— Admirável! Incompreensível! O senhor é onisciente! Encontrou-me aqui casualmente ou veio cá com este propósito?

— Vim de propósito, pois o sabia aqui. Seguimos-lhe a senda desde Damasco. Afinal que há com o seu trugimão?

— Foi-se!

— Santo Deus! E levou a bagagem dele?

— No. Esta acha-se aqui.

A essas palavras apontou ele para a caverna.

— De fato? Oh! isto é esplêndido! Conte-me o que houve!

— Contar o quê?

— O ocorrido com o seu trugimão, a cujo encalço andamos nós. Do resto temos tempo de falar depois.

— Ao encalço? Ah! Por quê?

— É um ladrão e além disso um inimigo meu de longa época.

— Ladrão? Hum! Ladrão de jóias, quem sabe?

— Exatamente. Viu o senhor as jóias roubadas?

— Yes! Vou lhe contar tudo. Encontrei aquele sujeito na tenda dos austríacos. Ele viu que eu era um inglês e dirigiu-se a mim neste idioma. Estava às voltas com uma transação de azeite e depois de ultimada a mesma pretendia ir a Beirute. Prometeu-me que primeiro iria a Jerusalém e de la por via marítima para Beirute. Encarregou-se também de arranjar-nos um guia. Eu já me achava aprestado para a viagem e aguardava em Damasco a conclusão do seu negócio. De repente, ele veio buscar-me para empreendermos a jornada. O guia foi contratado por ele em Salehieh e...

— Sei disso. Falei pessoalmente com aquele guia.

— Well! Deve ter se encontrado convosco. Como eu estava dizendo, empreendemos a viagem e subimos os montes Ante-Líbano; à noite desconfiei de qualquer coisa e pela manhã constatei não nos acharmos cavalgando pela estrada que conduzia a Jerusalém. Alterquei então com ele. Primeiro negou o fato e depois confessou que realmente conduzira-me por outro rumo, visto pretender fazer-me uma surpresa. Esta consistia em levar-me a Baalbek a fim de escavar fowling-bull para mim. Fiquei satisfeito com a idéia, mas não se me dissiparam cá as desconfianças. Tal pressa teve ele em deixar Damasco e tão confusamente organizou o roteiro que dava a impressão de quem se batia em fuga d’alguma ação má cometida. Parece um conhecedor dessas ruínas, pois cavalgou direito a esta muralha, dizendo haver aqui uma espécie de caverna, que se prestava admi-ravelmente para pouso. Aqui acampamos. Adormeci; os cavalos se achavam do lado de fora; nisso, ouço como em sonhos os nitridos de um cavalo e senti alguém remexendo-me nos bolsos. Acordei; já era dia claro e faltava-me a carteira. Ergui-me apressadamente e peguei da espingarda.

 

O LADRÃO ABANDONA O ROUBO

Lá fora, o meu intérprete já montado se retirava a galope.

Assestei a espingarda e bati o gatilho. A bala acertou no cavalo que caiu morto. O homem tentou ainda desprender as suas bagagens do serigote; estas, porém, estavam muito bem amarradas e quando dele me aproximei fugiu. Tirei eu os fardos e caixas dos arreios e quando os abri verifiquei conterem os mesmos jóias e outros adereços custosos.

— Que continha a sua carteira?

— Oh! preciosidades raras! Emplastros, linha, agulha de coser e quejandas. Meu dinheiro, guardo-o noutra parte. Well!

— Ouça, foi uma coincidência que tem tanto de original quanto de feliz. O dono das jóias e adereços está aqui comigo.

— Chame-o; que venha receber o que lhe pertence. O seu a seu dono. Yes!

— Onde estão aqueles valores?

— Aí na caverna.

Dito o que, Lindsay entrou na caverna e voltou com um pacote que abriu na minha presença. Eram os valores furtados. Depus o pacote no solo e o encobri. Depois bati o gatilho no tiro convencional. Lindsay e os dois irlandeses entraram para a caverna, a fim de não empanarem o brilho da surpresa que eu ia fazer ao comerciante. Em breve chegou Halef com Jacub Afarah. Ambos só avistaram a mim e o pacote encoberto no chão.

— Fôste tu que atiraste, sídi? — perguntou-me Halef.

— Foi.

— Achaste então alguma coisa?

— Achei. Jacub Afarah, faze o favor de levantar esse lenço de turbante que se acha no solo!

O homem apanhou o lenço e recuou num grito de alegre espanto.

— Allah illa Allah, as minhas mercadorias!

— Realmente. Examina-as a ver se não falta alguma coisa!

— Oh! senhor, dize-me depressa, como fôste encontrar e apreender tão depressa as minhas jóias e adereços!

— Não a mim, mas ao cavalheiro que se acha dentro da caverna da muralha é que deves o achado. Halef vai buscá-lo!

O pequeno Hadji entrou na caverna e logo proferiu um brado de alegria.

— Allah akbar, o inglês!

Fizemos então mutuamente os indispensáveis esclarecimentos e depois entrei na caverna para examinar-lhe o interior. Nela havia uma entrada em forma de abóbada; as ruínas do interior foram sendo removidas de modo a formar dois compartimentos, semelhantes a uma vasta sala. Numa delas dormia Lindsay e sua gente e na outra estavam guardados os cavalos e seus demais haveres. O cavalo morto que jazia do lado de fora se achava coberto com entulhos, razão por que não o vira eu, à minha chegada.

Jacub estava satisfeitíssimo por se haver reapossado dos seus valores; mas não ocultava a sua indignação por não lhe ter sido possível deitar mão no larápio.

— Eu, em teu lugar, me daria por muito satisfeito em ter readquirido o que me fora roubado! — repliquei-lhe.

— Mas muito mais satisfeito ainda ficaria eu, se tivesse capturado também o ladrão.

— Hum! É bem possível ainda que consigamos prendê-lo.

— Como?

— Achas que ele desistirá sem mais nem menos de reapoderar-se dos objetos que roubou?

— Ele evitará voltar aqui.

— Sabe lá ele que nos achamos também neste local? O ladrão deixou logo Baalbek, sem haver dado pela nossa presença. Mais tarde voltará aqui, pois crê ser-lhe fácil dominar o inglês e o criado, se os pegar de surpresa. E por esta ocasião é que nos seria fácil capturá-lo. Neste caso nem nós e nem os nossos cavalos devem ser vistos. Também os soldados terão que se sumir incontinenti. O melhor seria que eles se recolhessem ao quartel da aldeia. Alegrar-se-ão por não precisarem fazer coisa alguma. Mesmo os nossos cavalos, e mais acenado seria confiá-los a alguém na aldeia.

— Tratarei disso. Vou procurar o alcaide, ou melhor, o kodscha paxá, visto que Baalbek não é uma aldeia mas cidade, e vou combinar tudo com ele.

Daí a minutos Jacub montava a cavalo e se dirigia para a cidade. Eu preferia me encarregar daquele serviço, mas o comerciante se achava provido de papéis que o acreditavam junto a todas as autoridades do país.

Quando saí da caverna, olhei para o local onde nos devíamos encontrar com os soldados. Calculei logo e acertadamente, conforme mais tarde constatei, que eles nem se preocupariam com o cerco e assim que nos perdessem de vista se dirigiriam para a cidade, aos cafés, para se vangloriarem de haverem saído em expedição para a captura de um perigoso ladrão.

Agora é que tivemos tempo de falar sobre os acontecimentos das ruínas de Babel. Comecei eu, contando a Lindsay tudo o que sucedera conosco.

— Pois eu o julgava morto — disse-me ele, quando terminei o relato.

— Por quê? — perguntei-lhe.

— Foi o que me disseram os sujeitos que me aprisionaram.

— Então chegou a ser aprisionado?

— Oh! sim, e bem aprisionado. Well!

— Por quem?

— Ah! Eu saíra com os trabalhadores para fazer escavações; um deles eu podia ocupar sofrivelmente como intérprete. Não achamos coisa alguma em nossas pesquisas arqueológicas. Encontramos apenas o seu bilhete quando voltamos. Conforme nos aconselhou, nos dirigimos para o canal de Anana; tolice, uma grande tolice foi aquilo.

— Terem sido aprisionados?

— Yes! E isso enquanto dormíamos.

— Ah! a prisão deu-se à noite?

— Não, foi de dia claro, pois do contrário um de nós estaria de guarda e não teria acontecido aquilo. Como eu ia dizendo, dormíamos no canal de Anana e nisso eles nos assaltaram de surpresa. Yes! E antes que nos fosse possível opôr-lhes resistência, estávamos amarrados e com os bolsos vasios.

— Tinha então o senhor muito dinheiro consigo?

— Não muito, pois tencionávamos voltar a Bagdad.

— E que gente era a que os aprisionou?

— Árabes. Disseram pertencer à tribo dos schats.

— Então foram os mesmos que mais tarde fugiram ao nos verem acometidos de peste.

— Deve ser. Deixaram-nos escondidos durante alguns dias entre as ruínas e nos fizeram passar fome; depois levaram-nos de lá.

— Para onde?

— Não sei. O local era quase que só pântanos e juncais. Não nos queriam matar; pretendiam apenas extorquir-me dinheiro e depois poderíamos ir em paz. Fui obrigado a fornecer-lhes uma carta, que pretendiam levar a Bagdad, para com ela fazerem levantamento de uma certa soma. Escrevi ao John Logman, mas redigi a carta de modo que este não desse dinheiro algum aos canalhas. Disse-lhes o meu correspondente que eles voltassem daí a três semanas, visto que não dispunha no momento daquela soma.

— Mas esse estratagema podia tornar-se fatal para o senhor.

— Não, ao contrário, foi bom, pois depois consegui fugir. Conduziram-nos mais para perto de Bagdad. Um dia foram eles assaltados por uma tribo inimiga, o que degenerou num sério combate. Eles venceram, suponho, pois eram superiores em número; nós, porém, nesse permeio, conseguimos nos evadir da prisão. Mais tarde quando tiver mais tempo lhe contarei esse episódio com mais abundância de pormenores.

— Procurou o nosso hospedeiro de Bagdad?

— Yes. Lá fui informado que o senhor com Halef haviam seguido para os campos forrageiros dos haddedins. Que me cabia fazer? Eu precisava procurá-lo e aos irlandeses. Viagem marítima ou fluvial não a ia eu empreender mais, razão por que vendi o iate, que estivera tanto tempo ancorado sem me ter servido. Contratei um intérprete e com ele uni-me ao estafeta do correio para fazer a viagem, pela sua estrada. Foi uma viagem rápida. Em Salameja atravessamos o Tigre, a fim de sairmos em sua procura; não encontramos, porém, nenhum haddedin. Haviam mudado de acampamento e o senhor morrera.

— Quem lhe disse?

— Os Abu Salman haviam roubado e morto vários viajantes estranjeiros e esta notícia coincidiu com o seu desaparecimento. Eu não queria que me matassem e despojassem também e me dirigi a Damasco. De lá despachei o intérprete e estive durante três semanas na cidade. Se o senhor tivesse se hospedado no bairro cristão em casa de algum europeu, nos teríamos encontrado. O resto, já lhe contei. Quer que lhe conte com mais pormenores ainda?

— Não, obrigado; basta. Foi uma grande arriscada de sua parte empreender daquela forma a viagem de Bagdad a Damasco.

— Psiu! E o senhor procedeu diferentemente?

Naquele instante, através da porta da caverna, divisamos uma tropa de cavaleiros que cavalgavam a certa distância do lado de lá. Tomavam a estrada pela qual viéramos. Apurando bem a vista, constatei que eram os... khawass.

Que pretenderiam empreender eles? Por que não tinham ido para a muralha ciclópica, conforme combináramos? Esta pergunta me seria respondida daí a pouco, pois o joalheiro voltou acompanhado de kodscha paxá. Este era um homem de aparência distinta e que logo atraía confiança e simpatia para a sua pessoa.

— Salam! — saudou-me ele ao entrar na caverna.

— Aleikum! — correspondi-lhe.

— Eu sou o Kodscha Paxá de Baalbek e venho visitar-vos e fumar cachimbo convosco.

Ditas essas palavras, a primeira autoridade da cidade tirou o cachimbo do bolso e Lindsay, num rasgo de gentileza, encheu-lhe o fornilho e acendeu-o.

— Sê bem-vindo, efêndi! — respondi-lhe. — Permitirás que nos demoremos alguns dias na comuna que governas?

— Ficai aqui o tempo que vos aprouver e permiti-me que me sente agora convosco! Ouvi dizer que éreis frankes; li também o ofício dos meus superiores e são estas as razões por que vim pessoalmente dizer-vos que estarei pronto a servir-vos em tudo que necessitardes. Aprovais o meu ato, mandando os soldados regressar a Damasco?

— Mandaste-os embora?

— Sim. Ouvi dizer que eles andavam pelos cafés e falar a todo mundo a respeito do objetivo que vos trouxe aqui. Ser-vos-á possível então prender o ladrão se este vier a saber que estais no seu encalço? Além disso, este Jacub Afarah de Damasco disse-me que eles vos desobedeceram e extorquiram-vos gorgetas, o que lhes era vedado fazer. Por este motivo corri com eles da minha cidade, entregando ainda ao tschausch uma carta dirigida ao seu kaimakam, pedindo a punição de toda a escolta. O Grande Senhor, que Alá abençoe, quer ordem no seu império e a nós compete colaborar com ele nesse sentido.

Mostrava-se um funcionário íntegro, coisa rara no império do Grão Senhor. No decorrer da palestra mostrou-se ele ainda pesaroso por não lhe ser possível prestar-nos um auxílio direto, visto que lhe pedíramos guardasse sobre tudo a máxima reserva e deixasse o resto conosco.

— Ficai satisfeitos por não terdes caído na jurisdição de algum outro kodscha paxá — disse-nos o homem. — Sabeis o que faria ele?

— Não.

— Ele vos apreenderia o ouro e as pedras até ficar decidido a quem deveriam pertencer. Quer dizer: primeiro tinha que ficar provado se tratar realmente de cabedais roubados e depois, se os dois partidos em disputa de fato eram o ladrão e o prejudicado. Isso demandaria naturalmente muito tempo e durante um longo tempo tudo pode mudar, inclusive o ouro e as pedras...

Tinha razão a primeira autoridade de Baalbek. Jacub devia dar graças aos céus por ter encontrado as suas jóias nos domínios daquele honesto governador. O kodscha pediu-nos que lhe confiássemos os nossos cavalos, mas que os levássemos um a um para a cidade, para que isso não desse na vista; depois retirou-se, prevenindo-nos antes do perigo que constituíam os corredores e abóbadas das muralhas, que em ruínas, podiam desmoronar de uma hora para outra esmagando os que dormiam na caverna.

Aqueles corredores serviram ao tempo da invasão egípcia de covil a várias categorias de malfeitores e era bem possível que mesmo hoje nele se achasse homisiado algum ou diversos deles, fugindo à ação da justiça.

Jacub já deixara o seu cavalo nas cavalariças do kodscha paxá. EnsiIhamos depois os nossos e os transportamos também para lá, um de cada vez, conforme instruções daquela autoridade administrativa. A cidade era pequena e apresentava mais o aspecto de decadência do que as próprias ruínas, que lhe ficavam adjacentes, e perante as quais deveria ela brilhar num contraste. Os habitantes se dedicam um pouco a sericultura e são afamados como possuidores dos mais possantes corcéis e muares.

A residência do governador era um dos melhores edifícios e a sua cavalariça, em que recolhera as nossas montarias, nada deixava a desejar. Estive a palestrar por algum tempo na casa do kodscha e depois voltei para as ruínas, mas não pelo mesmo caminho pelo qual viera. Uma só pessoa não despertaria as suspeitas do ladrão, se por acaso este ainda por lá andasse à espreita, razão por que eu ia atravessando o campo das ruínas entregue exclusivamente às impressões que elas me causavam, no momento.

Que diferença entre a geração, que soube sem auxílios mecânicos movimentar aquelas formidáveis massas de pedra e rocha e a atual que construiu aquelas choupanas vizinhas a que davam o pomposo nome de cidade! Muitas destas, aliás, estavam recostadas em ruínas da cidade antiga... Vi serpentes subindo enroscadas pelas colunas, um camaleão olhava-me curioso e mais além, nos ares, voejava um falcão, que foi pousar numa das mais pesadas colunas.

Alto! Não foi um vulto que lá adiante qual uma sombra passou de esgueira?

 

NUM LABIRINTO SUBTERRÂNEO

Eu estava certo que fora ilusão óptica, contudo encaminhei-me vagarosamente para o ponto em que divisara a sombra.

Por trás de uma coluna dupla havia na muralha uma abertura em forma de túnel que em mim despertou certa curiosidade. Qual seria a impressão que eu sentiria, ao entrar naquele corredor, onde à luz dos sinistros fachos, as vítimas do deus Baal eram degoladas? Mal não me podia fazer se eu desse alguns passos no interior do túnel fatídico. Se eu avançasse apenas até onde era iluminado pela luz do dia, não me poderia suceder nenhuma desgraça.

Entrei no túnel e dei alguns passos para a frente. O corredor era tão largo que por ele poderiam caminhar folgadamente umas quatro pessoas; o teto era suspenso por monumentais arcos e o ar estava límpido e seco. Estive a contemplar e a escutar na tétrica escuridão do túnel e a fantasia pintava-me o pavor de que fatalmente me deveria acometer, quando daquela caverna surgissem subitamente os servos do templo do sol a travar-me do braço com o fim de sacrificar-me a Moloch.

Virei-me e dirigi-me novamente para a entrada do túnel. Como a impressão da linda luz do dia lá fora era diversa da que se sentia cá dentro! Aos raios do sol o espírito... alto, ouvi um estalido por trás de mim. Ia virar-me, mas naquele instante recebi uma violenta pancada na cabeça. Lembro-me apenas de que cambaleei e estendi ainda os braços para agarrar o meu agressor; depois, porém, tudo escureceu-se em torno de mim.

Não sei por quanto tempo fiquei desacordado. Recuperei os sentidos pouco a pouco, pois levou muito tempo até me recordar de tudo o que me sucedera. Achava-me deitado no chão, com pés e mãos algemados. Diante de mim havia dois pontos que produziam uma tênue e singular claridade. Eram dois olhos, dois aguçados olhos que se dirigiam a mim, sobre os quais as pálpebras abriam e fechavam. Não pertenciam a algum animal, mas eram olhos de um homem: notei-o logo.

Quem era aquele homem? Por certo que o mesmo que me agredira. Por que me tratara ele tão hostilmente? Dispunha-me a fazer-lhe uma pergunta, mas o homem falou antes de mim:

— Ah! finalmente recuperastes os sentidos! Agora posso falar mais calmamente contigo!

Oh! céus! Eu conhecia aquela voz. O homem que se achava diante de mim não era outro senão Abrahim Mamur, em cujo encalço andava a nossa expedição. Devia eu responder-lhe? Por que não? Na escuridão não lhe seria possível distinguir-me a fisionomia para convencer-se de que eu não lhe respondia por desprezá-lo. Eu sabia muito bem que nada de agradável me aguardava naquela situação. Mas não obstante isso, não me desesperei e resolvi portar-me com altivez, não lhe fazendo o menor pedido nem apelando para a sua indulgência. — “Agora posso falar mais calmamente contigo”! — dissera ele e era certo que o homem iria tudo empreender para mortificar-me moralmente. Mas nisso ele se iludia. Que golpe nos poderão causar ao íntimo ofensas morais que nos dirigem indivíduos daquela espécie?!

— Fala! — disse-me com sequidão.

— Fala tu, se quiseres! — retruquei-lhe.

— Conheces-me?

— Sim.

— Não creio. Como poderia saber quem sou?

— Os meus ouvidos não me traem, Abrahim Mamur.

— Realmente, conheces-me: mas irás agora conhecer-me melhor! Lembras-te do Egito?

— Lembro-me.

— Da guzela, que me raptaste?

— Lembro-me.

— O Schellal não me sepultou daquela feita, não. Portanto Alá quer que me vingue!

— Pois fui eu próprio que te salvei a vida. Vês pois que Ala quis que eu não temesse a tua vingança.

— Achas? — silvou-me o homem. — E por que então fêz ele que me caísses nas mãos? Daquela feita procurei-te em Kahira, como se procura uma agulha no palheiro, e não te encontrei; e em Damasco, quando nem pensava em ti, fui encontrar-te e...

— Fugiste de mim. Abrahim Mamur ou antes Dawuhd Arafim, és um covarde!

— Aferroa, aferroa sempre, escorpião! Eu sou o leão que te vai devorar. Eu sabia que me irias denunciar; foi este o motivo por que me retirei da tenda dos austríacos. Eu não iria deixar que me destruísses a obra afanosa já por mim quase realizada. Perseguiste-me depois e me tomaste novamente tudo. Mas recuperarei aquele ouro e aquela pedraria. Disso fica certo!

— Pois recupera!

— Recuperarei, sim! Hei de trazê-las para aqui, na tua frente. É por este motivo que não te matei ainda. Mas morrerás, visto que és o culpado de mil tormentos por que tenho passado na vida. Raptaste-me a mulher pela qual me teria tornado um homem direito. Tornaste a me arrojar para o fundo das águas de onde eu já viera à tona; agora tocou a minha vez de castigar-te. Morrerás, mas não de uma morte rápida por meio de um tiro ou punhalada; não, lenta será a tua agonia e cercada de milhões de dores. A fome te romperá os intestinos e a sede te abrasará a alma.

— Realmente acho-te muito capaz disso!

— Não chasqueis! Pensas talvez que me escaparás?! Soubesses tu quem eu sou e petrificarias de susto.

— Não preciso e nem quero saber!

— Não? Oh! mas tu hás de saber, para que percas toda a esperança de salvação e para que o desespero se apodere do teu espírito. Sim, hás de saber de tudo para que em vão ranjam os teus dentes. Sabes que significa tschulwaldar?

— Sei — respondi, pois já ouvira falar muito nos tschulwaldar, que ainda recentemente tão insegura tornaram Constantinopla.

— Sabes também que os tschulwaldar constituem uma única família sob a direção de um chefe?

— Isso eu não sabia.

— Pois fica sabendo então que eu já fui este chefe e que ainda o sou hoje.

— Fanfarrão!

— Não duvides, não! Não viste tu no Egito quanto sou rico? E de onde poderia eu conquistar tais riquezas, eu o mísero funcionário expulso a chibatadas? Também Afrak Bem Hulam foi metido em um dos nossos sacos, por que minha gente notou que ele trazia muito dinheiro consigo. Trouxeram-me as cartas encontradas em seu poder; abri-as cautelosamente e ao inteirar-me do seu conteúdo, resolvi seguir para Damasco e lá me apresentar como se eu fosse aquele rapaz, para depois despojar a joalheria assim que surgisse a ocasião asada. Nisso apareceste tu, giaur, e eu tive então que me contentar com menos do que tencionava levar. Em paga disso, scheitan te abrirá breve os portões do djehenna!

— Mesmo o “pouco” com que te contentaste tornaste a perder!

— Hei de me reapoderar daquilo, já te disse. Mas será isso a última coisa que avistarás neste mundo. Levar-te-ei a seguir para um local, de onde ninguém volta. Conheço este local, pois fica sabendo que nasci em Sorheir. Meu pai vivia nestes corredores, quando o paxá do Egito recrutou gente para os seus exércitos. Eu ainda era menino. Estava com o meu pai e vim a conhecer todos os recantos destas ruínas. É por isso que conheço esse local, um subterrâneo sinistro onde teu corpo se decomporá, depois de morreres de inanição.

— Alá conhece o referido local melhor que tu!

— Mas Alá não te há de valer, giaur! Tão certa é a morte horrível que te aguarda como é certo que estás seguro por essas cordas.

— Então dize-me mais: onde se encontra aquele Barud el Amasat, que te vendeu Senitza como escrava?

— Virás a saber ainda!

— Aí está, poltrão! Se tu tivesses tanta certeza de minha morte, poderias revelar-me este pormenor!

— Não é por isso que silencio em torno do caso; é que não te será satisfeito desejo algum, como se costuma conceder a muitos condenados. Agora, cala-te. Vou dormir. Preciso hoje de noite revigorar o organismo para a faina de amanhã.

— Não conciliarás o sono, visto que a consciência te atormenta como garras de ferro!

— A um giaur é possível ter consciência, coisa que um crente despreza!

Vi pelo roçar de sua roupa que ele se estendia para deitar-se. Pretenderia ele realmente dormir? Impossível! Tencionava brincar comigo tal qual o menino com o besouro preso a uma linha?

Observei-o atentamente. Não, ele não tencionava dormir. Cerrara os olhos, mas quando os abria para observar-me não se mostravam eles fatigados e sonolentos. Nem poderia o fascínora pensar em sono, quando se lembrava da maneira como me algemara. Algemara-me os pés mais ou menos na articulação dos tornozelos, e as mãos, na altura dos punhos; e como eu tinha os braços amarrados para a frente ser-me-ia fácil levá-los até os pés.

Oh! se eu tivesse uma faca. O biltre, porém, me esvasiara os bolsos. Foi uma sorte trazer eu na ocasião apenas a faca e os dois revólveres! No caso de perecer miseravelmente, ao menos Halef herdaria as duas preciosas espingardas, ao invés de passarem elas para as mãos desses bandidos.

Mas perecer! Chegaria realmente eu a este ponto? Então eu não reagiria? Como me fosse possível movimentar um pouco os braços, não me seria impossível arrancar-lhe uma faca da cintura. Se tal eu conseguisse e me restassem cinco segundos para cortar as cordas, estaria eu salvo. E isto eu precisaria empreender sem demora. Desde minha entrada no túnel, decorrera muito tempo e seria bem fácil resolver ele por fim fuzilar-me, para ter certeza de minha morte e para evitar que ainda viesse a fugir.

Arrastei-me resolutamente para perto do homem, aproveitando um dos momentos que o mesmo conservava cerradas as pálpebras. Ajoelhei-me sobre a sua garganta. O biltre fazia um esforço brutal com ambas as mãos a fim de livrar-se de mim. Isto deu tempo a que lhe arrancasse a faca e cortasse as cordas.

De repente, num formidável repelão, ele desvencilhou-se de mim e ergueu-se de um salto. Gritando: “Cão, não me escaparás!”, tentou ele agarrar-me. Mas apenas roçou-me com os dedos. Eu sabia que ele voltaria a agarrar na mesma altura em que me tocara com os dedos em meio da escuridão. Baixei-me e desviei para o lado, indo postar-me por trás dele.

— Ah! fugiste! Giaur, não te escaparás, não!

O homem desapareceu na escuridão. Recostei-me na parede da muralha e estive a refletir o que faria, mas sempre de olhos e ouvidos alerta. Que deveria eu fazer agora? Prosseguir sempre cada vez mais para dentro da caverna da muralha? Seria perigoso. O kodscha já me falara nisso. Agora avistei com a minha excelente acuidade visual o vulto do bandido. Deveria eu subjugá-lo e obrigá-lo a me ensinar o caminho da saída? Mas ele tinha arma de fogo. Sumiu-se de novo o facínora. Não me seria possível dominá-lo sem tirar-lhe a vida, talvez. E o seu cadáver não me serviria de guia no subterrâneo fatal.

Foram momentos cheios de angústias que passei então. Não ouvi mais o menor ruído. Estaria Abrahim parado? A cada momento eu podia chocar-me com ele. Ah! ah! esse corredor subterrâneo também não podia ser infinito. As apalpadelas fui caminhando por ele, sondando o solo com a ponta do pé, antes de dar o passo. Eu teria caminhado quando muito uns duzentos passos, quando senti que o ar começava a umedecer e refrescar. Eu precisava redobrar de cautela! Realmente uns cinco passos adiante, cessou o solo. Deitei-me e passei a apalpar ao redor. Notei então a borda de um enorme buraco, cuja circunferência tinha o diâmetro igual à largura do corredor. Era por certo um poço. Nele havia água, conforme se evidenciava pela umidade do ar. Quem sabe quanto não seria ele profundo! Quem nele caísse possivelmente nunca mais se salvaria,

A abertura do poço devia ter um diâmetro de umas três varas, portanto eu podia transpô-la facilmente, mas não conhecia a disposição da borda oposta do poço. Talvez o poço estivesse no fim do subterrâneo, ficando no lado oposto à parede da muralha!

Por este lanço, pois, não havia salvação para mim. Tinha que retroceder. Que situação horrível! O inimigo continuava silencioso. Onde estaria ele? Estaria lá onde o vira eu, pela última vez, à minha espreita, porque, perfeito conhecedor do subterrâneo, sabia que eu seria obrigado a voltar por ali? Ou acreditava tivesse eu fugido por outro lanço? Fosse como fosse, ali parado eu não podia ficar. Deitei-me e de ventre no solo rastejei de volta, levando a faca entre os dentes.

Caminhar de pé não devia, e rastejando me era mais fácil ir tateando O caminho à frente com as pontas dos dedos antes de arrastar o corpo.

Fui arrastando-me vagarosamente, sempre para a frente. Contara duzentas vezes a inflexão que fizera para a frente com o corpo; portanto devia me encontrar quase no mesmo ponto onde recuperara há pouco os sentidos e me vira aprisionado. Levara nesse rastejar cerca de uma hora. Passou-se mais meia e continuei a arrastar-me. De repente notei que terminava o subterrâneo, tanto à minha direita como à esquerda; o solo, porém, continuava.

Que era aquilo? À direita e à esquerda havia um ângulo, o que indicava a presença de dois corredores opostos um ao outro. Se aquele por onde eu rastejava prosseguisse, esse ponto constituía então uma encruzilhada, o que era prudente averiguar. Abrahim Mamur podia achar-se nessa encruzilhada. Continuei. Verifiquei depois que realmente o corredor prosseguia. De repente pareceu-me ouvir um rumor. Afilei os ouvidos. Realmente era o tiquetaque do meu relógio roubado por Mamur. Portanto ele se achava ali. Tateei e dei com a ponta dos dedos num tecido. Era a roupa do facínora. Notei depois que ele se achava deitado transversalmente, para sentir a minha passagem, visto que na profunda escuridão do subterrâneo não me poderia enxergar. Passei por cima do seu corpo e continuei caminhando para a frente. A parte mais perigosa da empresa fora realizada. Mais adiante passei a caminhar de posição ereta, visto já estar um pouco distante do facínora. Senti uma mudança de ar, que se tornava menos úmido. Daí a pouco senti que pisava em degraus. Subi pelos mesmos. Tornava-se cada vez mais claro; cheguei a uma abertura, onde uma moita de bagas de zimbro espalhava o seu aroma e por ela saí para a rua.

Graças a Deus, salvo! Vi que me encontrava na face oposta do templo do sol. Precisava apressar-me em procura dos companheiros, se é que tencionávamos prender o homem ainda no interior do túnel, pois que o sol já ia alto no horizonte. Rodeei, pois, o templo, em direção ao ponto onde deixara os camaradas.

Lá chegado, fui acolhido com uma saraivada de perguntas. Haviam-me perdido e procurado depois em vão. Naquele instante chegara o kodscha-paxá a oferecer o seu concurso nas pesquisas sobre o meu paradeiro.

Narrei-lhes a minha original aventura a qual causou alegria e consternação ao mesmo tempo.

— Graças a Alá. Temo-lo de novo! — exclamava Jacub! — Agora para o subterrâneo, a prender aquele patife!

Os presentes pegaram todos de suas armas.

— Esperai! — bradou o kodscha-paxá. — Esperai ainda até que eu vá buscar reforço.

— Somos suficientemente numerosos! — exclamou Halef.

— Não! — retorquiu o kodscha. — Aqueles profundos corredores subterrâneos possuem os seus segredos. Precisamos no mínimo de cinqüenta homens para cercar a ruína.

— Somos ao todo nove homens e esses bastam! — afirmou Jacub. — Qual a tua opinião?

Essa última frase fora dirigida a mim. Fui também de parecer que entrássemos sem delongas em ação. Da mesma forma opinou Lindsay, depois de lhe haver eu esclarecido o estado das coisas. Ficou resolvido pormos imediatamente mãos à obra.

— E a iluminação? — perguntei.

— Vou buscar os fachos, declarou o kodscha-paxá.

— Na cidade? Isso demandaria muito tempo!

— Não na cidade; aqui bem perto. Do lado oposto às ruínas reside um pankbudschi, que possui vários fachos.

Ditas essas palavras, saiu o kodscha em direção à casa do tintureiro, enquanto nós ultimávamos as combinações sobre a prisão que iríamos efetuar.

Tanto o túnel por onde eu entrara, como a abertura que me dera saída precisavam ser ocupados sem tardança. As nossas bagagens e demais teres precisavam também ser vigiados, para o que seriam necessários no mínimo duas pessoas. A entrada bastava uma pessoa para ocupá-la; mas, na coluna dupla diante do túnel, achei de bom aviso colocar duas; junto dos nossos haveres, seriam quatro pessoas. Logo restavam cinco, às quais ficava a tarefa de penetrar no subterrâneo, dominar e prender o larápio.

Como agora dividir esses encargos? De qualquer maneira a mim cabia ser um dos encarregados de descer ao subterrâneo e como Halef sabia caminhar de esgueira e eu gatinhar ou rastejar muito bem, este iria comigo; com ele o kodscha-paxá, em razão do seu cargo. E para completar os quatro, ofereceu-se Lindsay. Recusei o seu oferecimento, visto desejar que ele fosse um dos guarnecedores dos nossos haveres. Precisávamos guarnecer muito bem os cabedais, pois por causa deles é que empreendêramos aquela expedição. Mas não houve forma de aceder o inglês, e a rogos dos demais submeti-me à sua vontade.

Ficaram então cuidando das bagagens, Jacub e o criado de Lindsay. O recoveiro que viera com os animais alugados pelo comerciante não podíamos utilizar porque se achava na cidade cuidando dos cavalos. Na coluna dupla foram postados os dois irlandeses e na saída o criado de Jacub. Estava feita a divisão do serviço; pús as pistolas à cintura, únicas armas que, juntamente com a faca, levei comigo. Bill foi armado com a espingarda sistema Henri e Freed com a “Mata-ursos”. Achavam-se, pois, todos a postos. O kodscha paxá e Lindsay empunhavam os fachos, ainda apagados, e eu com Halef descemos na frente. Chegados aos degraus de que há pouco falei, tiramos os calçados e depois rastejamos para a frente. Eu levava Halef pela mão; este tateava com a mão direita uma das paredes e eu com a esquerda a outra, para, deste modo, nada poder nos escapar, conforme eu fizera há pouco em relação ao criminoso. Agradava-me muito pouco o fato do kodscha que vinha por trás de nós com Lindsay, ranger de quando em quando os dentes.

Alcançamos a encruzilhada dos dois corredores. Lá, por meio de um leve encontrão, signifiquei aos dois que nos seguiam, para ficarem ali à nossa espera. Após o que, prossegui de arrasto com Halef, na direção do ponto em que deixara Mamur. Ficara combinado que um de nós o agarraria e outro se encarregaria de algemá-lo.

 

O FUGITIVO DESAPARECE COM AS JÓIAS

Atingimos finalmente o ponto visado mas... lá já não se encontrava o criminoso. E agora? Estaria ele diante de um dos outros três corredores? Examinamo-los, sem resultado também. Contudo, calculei que ele deveria se achar ali, porém mais para os fundos, talvez. Voltamos para perto dos outros dois companheiros, que, em ansiosa expectativa, esperavam o nosso chamado, significando havermos prendido o homem.

— Não está mais onde o deixei! — sussurrei-lhes. — Voltai um trecho e depois acendei os fachos; mas isso de modo que a sua luz não alumie um dos três corredores que nos restam examinar.

— E que ides fazer? — perguntou Lindsay.

— Dar uma busca nos três corredores.

— Sem os fachos?

— Sim. Seria perigoso levá-los, pois, à luz dos mesmos o biltre teria alvo seguro, sem contar ainda a circunstância que ele de longe já nos avistaria.

— Mas se o encontrardes e nós não estivermos perto?

— Encarregar-nos-emos os dois dele.

A seguir continuamos a pesquisa. Estivemos primeiramente no corredor, em que eu descobrira o poço. Percorremo-lo todo, sem encontrar Abrahim. Voltamos.

Passamos agora para o segundo corredor. Aqui toda precaução era pouca. Rastejamos vagarosamente e levamos um quarto de hora até percorrê-lo todo. Nada encontramos.

O último corredor que nos faltava examinar, exigia também para percorrê-lo a máxima cautela. A busca foi igualmente improfícua e voltamos.

Os camaradas ouviram surpreendidos a minha declaração de não o haver encontrado.

— Ele esteve aqui, portanto deve estar ainda! — afirmou Lindsay. — Yes!

— Ele bem pode ter saído daqui, enquanto lá estivemos a combinar o cerco e batida — ponderei-lhe. — Tomem dos fachos. Façamos uma última tentativa. Vou examinar o poço.

O poço era muito fundo e nele nada mais se via do que as suas águas turvas. Portanto por ele abaixo não poderia ter fugido Abrahim. Examinamos à luz dos fachos o outro corredor da direita. Bem aos fundos descobrimos uma abertura de escada. Esta era tão funda, que de cima não se podia alcançar com o braço.

— Vamos descê-la? — perguntou o kodscha com aborrecimento.

— Lógico. É o único caminho pelo qual ele pode ter escapado.

— Mas se ele nos alvejar de baixo?

— Descerás por trás de nós. Deste modo ficarás a cavaleiro de perigo. Dá-me o facho!

Descemos: contei bem uns vinte degraus, que continha a escada. Depois desta seguia-se um único e extenso corredor, numa grande profundidade da terra e que terminava novamente por outra escada, pela qual subimos. Em cima vimo-nos novamente diante de um corredor. Não nos dividimos mais e juntos seguimos sempre para frente pelo mesmo corredor.

Este, no fim, formava uma encruzilhada idêntica à do primeiro. Agora sim, estávamos em apuros. Deveríamos nos dividir, ou continuar juntos? Decidimos pela primeira das soluções.

Lindsay e o kodscha munidos de um dos fachos, ficaram guarnecendo a encruzilhada. Eu com Halef saímos por um dos corredores a fora. Era igualmente extenso e por fim alcançamos a luz do dia nas duas colunas duplas, por trás das quais eu entrara no subterrâneo pela primeira vez.

Onde se achavam, porém, os dois irlandeses que para lá haviam sido destacados?

— Sídi, o patife saiu por aqui mesmo e eles o prenderam — disse Halef.

— Neste caso teriam os outros companheiros corrido ao subterrâneo para avisar-nos. Vem, vamos ver o que sucedeu!

Fomos primeiramente à saida; também se achava desguarnecida: o criado de Jacub, como os dois irlandeses, havia abandonado o seu posto.

— Eles o conduziram para a caverna em que estamos acampados sidi, — ponderou Halef. — Vamos lá nos certificar disso!

— Pois sim, mas antes busquemos o inglês e o kodscha-paxá. Descemos apressadamente em busca dos dois companheiros e depois saímos do subterrâneo e corremos para a caverna. Diante desta avistamos já de longe o criado do inglês discutindo em animados gestos com os dois irlandeses. O criado árabe de Jacub estava também presente e não os compreendia. Quando nos viram, vieram correndo ao nosso encontro.

— Sir, ele foi-se! — exclamou Bill, já à distância.

— Ele quem?

— Mister Jacub.

— Para onde?

— Para onde o outro foi.

— Que outro?

— O que tencionávamos prender.

— Não te compreendo. Quero crer que o tendes seguro!

— Nós? Não. Pelo nosso lanço ele não passou. Julgamos, porém, que mister Jacub o tivesse capturado, visto que deflagrara tiros e nós corremos então em seu auxílio.

— Por que atirou Jacub?

— Pergunta àquele ali!

Dizendo isso indicou o criado de Lindsay, que ficara de guarda junto com Jacub Afarah; este narrou-nos então a singular ocorrência, que muito nos aborreceu. Achava-se ele sentado com Jacub na entrada da caverna e pensavam que a cada momento deveríamos aparecer trazendo preso Abrahim Mamur. De repente ouvem eles o ruído dalguma parede que desmoronava e ao olharem para trás viram que a parede da muralha que formava o fundo da caverna se achava em ruínas, ameaçando desmoronar. A sua primeira idéia foi de que toda a muralha estava caindo e deitaram a correr, temendo serem sepultados sob os escombros. Mas como depois viram que não se dera o desmoronamento, voltaram lentamente e iam mesmo entrar na caverna a ver os danos causados no interior, quando da abertura da caverna lhes veio um cavaleiro ao encontro: era Abrahim Mamur, Os dois guardas estacaram espantados. Essa confusão momentânea aproveitou-a o larápio para fugir a galope. Jacub, passado o primeiro momento, reanimou-se, pegou de sua espingarda e montando um dos cavalos de Lindsay saiu em sua perseguição, no momento em que o ladrão desfechava-lhe dois tiros, que erraram o alvo.

— Ah! oh! lá se foi o ladrão! — exclamou Lindsay. — Ao seu encalço, ao seu encalço, vamos duma vez!

Dizendo isso pegou o seu terceiro cavalo, mas agarrei-o pelo braço:

— Para onde, sir David?

— Atrás do ladrão!

— Sabe o senhor para onde ele seguiu?

— No!

— Então faça-me o favor de ficar aqui até a volta de Jacub. Dele saberemos outros pormenores.

— Sidi, que é isso? — perguntou-me Halef, estendendo-me uma folha de papel quadricular.

— Onde estava?

— Grudada na testa do cavalo.

Realmente, o papel ainda estava molhado. Fora colado com saliva à testa do animal e continha a seguinte frase turca: “Dinledim, hop ischidim”. Aquilo era demasiadamente forte. Na caverna, por certo, Abrahim não tivera tempo de escrever aquela frase; fê-lo com toda certeza antes disso.

A seguir penetramos na caverna e tudo então se esclareceu. A citada caverna não se abrira por si, mas fora aberta propositadamente e com muito engenho. Ao longo de sua área foram colocados barrotes para escorar quanto possível os escombros. Na base, a parede tinha uma espessura de dez pés aproximadamente e em cima, próximo ao teto, quando muito um pé. Lá havia algumas fendas pelas quais se podia olhar para a caverna e ouvir o que nela se falava.

Desta disposição estava ao par Abrahim, possivelmente desde o tempo em que ali viveu seu pai. Notando que me havia escapado dele, toi postar-se naqueles escombros que tinham comunicações com o subterrâneo em que me aprisionara, a escutar o que falávamos. Assim que os dois guardas se acharam a sós vigiando os cabedais, rompeu a parede que separava o subterrâneo da caverna e a fuga irrefletida de Jacub e seu companheiro proporcionou-lhe ensejo de se reapoderar do roubo sem entrar em luta com os que o guardavam. Realmente era um indivíduo perigoso aquele!

O inglês ensilhava o seu cavalo.

— Este seu trabalho é inútil — observei-lhe.

— O no, é indispensável!

— Não lhe será possível persegui-lo hoje!

— Contudo hei de persegui-lo!

— À noite? Não vê então que já escureceu?

— Ah! Hum! Yes! Mas, se não o perseguimos, o patife fugirá!

— Veremos primeiro.

Nesse momento acerca-se de mim o kodscha-paxá.

— Efêndi, permites que te faça uma sugestão?

— Fala!

— Aquele homem com toda certeza embrenhou-se pela montanha, onde nos será possível capturá-lo. Eu, porém, disponho de gente, que conhece as vias de comunicações daqui ao mar. Queres que eu mande emissários?

— Sim, efêndi, manda-os; serás regiamente recompensado depois pelo teu esforço!

— Para onde devo expedi-los?

— Para todos os portos marítimos e fluviais, onde quer que seja possível ao larápio fugir de vapor.

— Portanto para Tripoli, Beirute, Said, Zor e Akka?

— Sim, para estas cinco cidades, visto que o ladrão não se conservará em terra. Tens que munir esses emissários dalguma carta.

— Sim, pois preciso acreditá-los em todas estas partes, para uma provável ação em conjunto.

— Então apressa-te em escrevê-las mandando depois esses homens aqui para que os supramos de fundos para a viagem.

— Deixa isso a meu cargo, que os suprirei de tudo quanto carecem. Depois indenizareis os cofres da minha cidade das despesas feitas. Eles haveriam de exigir importâncias absurdas se os mandasse aqui ter convosco.

O honrado administrador saiu a galope para a sede de sua cidade. Como nada tínhamos a fazer de momento, fomos examinar melhor o corredor por onde escapara Abrahim. O corredor era tão extenso quanto o que eu pesquisara em companhia de Halef e passava pela mesma encruzilhada, da qual eu passara com Halef para a colunata fronteira à caverna. Fora muito simples a sua passagem para o nosso acampamento; tão simples para ele como fatal para nós.

Nem uma hora havia transcorrido, voltava o kodscha-paxá com quatro cavaleiros.

Ele já os suprira de provisões e dinheiro; contudo cada um deles recebeu de Lindsay uma gorgeta com a qual devem ter ficado satisfeitos. Em seguida partiram.

Tarde da noite ouvimos os passos lentos dum cavalo esfalfado; quando saímos para a frente da caverna, reconhecemos Jacub que regressava. Apeou-se e deixou o cavalo solto, sentando-se mudo e quedo perto de nós. Não lhe dirigimos pergunta alguma, até que por fim ele quebrou o silêncio:

— Alá abandonou-me! Confundiu-me o juízo!

— Alá jamais abandona os homens de bem — consolei-o. — Havemos de capturar ainda o ladrão. Já enviamos próprios a Tripoli, Beirute, Said, Zor e Akka.

— Fico-lhes muito agredecido! Mas essa medida seria supérflua, se Alá não me houvesse abandonado. Eu já o tinha quase preso.

— Onde?

— Além da aldeia de Dschead. Com a pressa em fugir, tomara ele um matungo; eu, porém, montava o corcel do efêndi inglês, muito melhor que o seu; cada vez mais fui aproximando mais do ladrão, embora me tivesse este levado um grande avanço. Seguimos sempre rumo norte, atravessando Dschead a toda brida. Cheguei a me aproximar de tal modo dele, que o podia alcançar com o braço e...

— Por que então não o alvejaste?

— Não pude, visto que havia já detonado os dois canos da pistola. Sentia-se duplamente forte na minha cólera; pretendia agarrá-lo no galope e arrojá-lo do serigote. Nisso passamos por um bosque de nogueira. Aí ele apeou rapidamente e, levando o fardo de jóias ao ombro, embrenhou-se pelo mesmo e se foi. Lancei-me também do serigote e corri atrás dele. O meliante, porém, corria melhor que eu; cortou um arco e depois voltou ao local em que deixáramos os cavalos, montou no cavalo do inglês e se foi deixando-me o esfalfado que montara.

— Que fatalidade! Não te foi possível alcançá-lo mais?

— Tentei-o, mas não consegui e nesse meio tempo anoiteceu. Que Alá converta cada pedra preciosa que o ladrão me levou em pedras de amargura para ele!

O homem era realmente digno de pena: perder pela segunda vez os seus cabedais, que já conseguira apreender! Eu tinha quase como certo que Abrahim seguiria para Tripoli, visto que tomara aquele rumo através de Dschead. Como só poderíamos partir em sua perseguição de manhã cedo ser-nos-ia impossível alcançá-lo antes dele chegar àquela cidade.

Mais indignado ainda que Jacub estava talvez Lindsay. O fato de haver o ladrão se apossado do seu melhor cavalo, encolerizou-o ao auge.

— Hei de mandar enforcá-lo! Well! — exclamou ele.

— Ao que lhe levou o cavalo?

— Yes! Quem mais haveria de ser?

— Neste caso o senhor terá que enforcar o nosso bom Jacub Afarah!

— Afarah? Por que a ele?

— Ele é que lhe levou o cavalo, mas o ladrão foi tão inteligente que dele se apoderou.

— Ah! Oh! Como assim? Conte!

Narrei-lhe o verdadeiro desenrolar dos fatos. Mas ao invés de acalmá-lo, mais fogo ateei, com aquilo, à fogueira de sua ira. Fazia uma carranca como igual jamais eu vira e exclamou tomado de cólera:

— Assim que aconteceu? Horrível! Monta o bom cavalo e não o apanha! E além disso ainda deixa que lhe roube o corcel! Yes! Well!

Jacub notou pelos olhares de Lindsay, que a palestra girara em torno de sua pessoa.

— Comprarei outro cavalo para substituir o que o ladrão me levou! — declarou o comerciante.

— Que quer ele? — perguntou-me irado o inglês.

— Comprar-lhe outro cavalo.

— Ele? para mim? Para mim, David Lindsay? Um cavalo? Isto cada vez fica melhor. Primeiro zanguei-me por que o ladrão me levara o melhor cavalo, depois por que não fora ele que o levara e agora zango-me por que pretendem comprar um cavalo para David Lindsay. Miserável terra. Vou-me embora quanto antes; volto para a velha Inglaterra! Aqui não há mais um só homem judicioso!

Era melhor deixá-lo falar.

O mais judicioso que podíamos de momento fazer era deitar-nos a dormir, para estarmos prontos para a jornada no dia seguinte.

Lindsay pediu ao kodscha que lhe arranjasse um homem com dois cavalos de aluguel e o alcaide de Baalbek prometeu atendê-lo. Depois deitamo-nos.

Passava da meia noite quando fomos despertados por um chamado. Lá fora estava o kodscha com o homem e os cavalos. Jacub gratificou o bom alcaide pelos seus esforços e nós partimos, não levando lá muito boa recordação da Baalbek.

No decurso dos nossos preparativos, o dia já havia começado a clarear de modo que já distinguíamos agora tudo em nossa frente. Logo depois de atravessarmos a verdejante planície de Baalbek, tivemos que atravessar uma outra planície árida e erma, na qual, porém, havia alguns campos de viticultura, que quebravam a monotonia da região. Depois alcançamos a aldeia de Dschead, de onde depois atingimos Ain Ata. Lá fomos informados de que à noite pela aldeia passara um único cavaleiro, que contratara um guia para conduzi-lo a Tripoli pelo caminho mais curto.

Tomamos também um guia para nos conduzir na mesma direção. E assim fomos viajando de aldeia em aldeia e colhendo sempre informações a respeito do fugitivo, sem parar, só descansando durante a noite. Tencionava visitar de outra maneira o Líbano, as montanhas cristãs. Nem sequer o célebre bosque de cedros pude ver.

Finalmente avistamos o Mediterrâneo, com sua claridade azulada a brilhar ao nosso encontro. Em baixo, no sopé da montanha e na costa do mar ficava situada Tripoli. A cidade fica um tanto afastada da praia e só o arrabalde ou, aliás, a cidade costeira El Mina é que fica na ribeira. Entre esta última cidade e Tripoli erguem-se mimosos jardins, que causam uma impressão agradabilíssima ao viajor que chega por aquele lado.

Ao nos aproximarmos da cidade, vimos que um galeão levantava ferros, deixando o porto. Teríamos chegado tarde? Não teria Abrahim Mamur tomado aquela embarcação? Picamos os cavalos e galopamos a toda brida rumo de El Mina. O galeão ainda não se achava muito longe do cais. Assestei o binóculo, pois ainda se podiam distinguir os traços fisionômicos das pessoas que da coberta olhavam para a terra. Realmente lá estava o ladrão entre os passageiros: reconheci nitidamente a sua fisionomia e furioso sapateei. Perto de mim estava um esquálido marinheiro turco.

— Que navio é aquele? — perguntei-lhe.

— Um galeão, ora essa! — respondeu-me com sua grosseria de marinheiro.

Um pouco afastado dali vi o velho limandar que reconheci pelas suas insígnias. Fiz-lhe a mesma pergunta e soube que se tratava do “Bouteuse”, de Marselha.

— Para onde segue aquele navio?

— Para Istambul.

— Não há outro navio que siga ainda hoje para o mesmo porto?

— Não se acha fundeado atualmente outro navio neste porto.

Lá se ia o ladrão novamente! Ficamos na praia. Que fazer agora? Lindsay blasfemava em inglês apoiado pelos dois irlandeses; Jacub em curdo e eu quase que estive a acompanhá-los também. Mas aquilo de nada nos ajudaria.

— Precisamos seguir para Beirute. Lá encontraremos por certo uma embarcação que nos conduza a Istambul — propus.

— Achas que encontraremos? — perguntou-me Jacub.

— Tenho quase certeza.

— Mas pretendias visitar Jerusalém!

— Para isso há tempo mais tarde. Não descanso, enquanto não souber que estás novamente de posse das tuas jóias e alfaias.

Halef perguntou-me se eu o levava junto. Claro que sim. E que Lindsay não nos deixaria viajar sozinhos, disso estava eu também certo. Jacub ajustou contas com o guia e o recoveiro e os despachou, o mesmo fazendo o inglês. Tomamos outros guias e animais de aluguel e na manhã seguinte nossa comitiva se pôs em movimento rumo de Beirute.

Lá chegados, soubemos que havia um veleiro no porto à espera de carga para Istambul. Fomos ver o navio. Depois falamos com o capitão e concordamos em contratar a sua embarcação. Adeus, adeus, Libano! Desta vez por ti passei sem te dar atenção. Fica para outra vez. Adeus!...

 

Em Istambul

No Hotel Pest in Pera se achavam dois homens sentados, a saborear o afamado ruster, que o hoteleiro, senhor Totfaluschi, lhes servira; fumavam cachimbo e pareciam entediados.

As suas indumentárias não se recomendavam muito lá pela elegância. Um deles calçava um par de botas de cano alto, calça e paletó marrom, tinha o rosto crestado pelo sol e as mãos côr de bronze como as dos beduínos. As vestes do outro eram de côr cinzenta, contrastando com a do nariz, que era vermelha como o arrebol. Bebiam e fumavam, fumavam e bebiam debaixo do mais absoluto mutismo; seria aquilo efeito da monotonia ou estariam imersos em pensamentos que no momento agitavam-o mundo, pensamentos que felizmente a linguagem humana não encontra palavras adequadas para expressar?

Parecia mais acertado tratar-se do último dos casos, pois, finalmente, o “cinzento” escancarou a boca e agitou o nariz: não pôde conter-se por mais tempo; uma de suas grandiosas idéias amadurecera e impetuosamente aflorara-lhe aos lábios:

— Mister, que acha o senhor da questão oriental?

— Que é digna de se assinalar não com um sinal de interrogação, mas com um de admiração — foi a resposta do “marrom”.

O “cinzento” escancarou novamente a boca, e de tal forma arregalou os olhos e fêz uma fisionomia, como se no instante fora obrigado a engulir um volume das “Sentenças de um sábio”, de Keladi, volume em grande fólio e encadernado em couro de porco.

O “cinzento” era David Lindsay e o “marrom”, eu. Jamais me preocupei apaixonadamente com questões políticas e a questão oriental era-me uma verdadeira calamidade. Só mesmo aquele que a conseguir definir é que depois será capaz de resolvê-la. Esta questão, bem como a do povo “que constitui uma raça doente”, mesmo em rodas de mais acaloradas discussões, obrigara-me ao silêncio. Não estudei medicina política e não me acho, pois, apto para dizer de que moléstia sofre a referida raça; mas sou de opinião que bem nas suas proximidades predominam situações, que eu não me aventuraria a qualificá-las de politicamente sadias...

O turco é um homem doente, ou por outra, uma raça em decadência e uma raça doente não se cura, cortando-lhe os vizinhos com a espada um pedaço após outro do corpo, os seus vizinhos que são cristãos. A um homem doente não se mata, mas procura-se curá-lo, pois lhe assiste o mesmo sagrado direito de viver como a outro qualquer. Procura-se arrancar-lhe do corpo o germe da moléstia e aplicam-se-lhe os específicos tendentes a restabelecê-lo e a torná-lo novamente um fator produtivo no concerto das nações. O turco, posto que rude, foi outrcra um bravo e honrado nômade, um companheiro sincero e cordato, que de boamente distribuía com os outros o que era seu. Mas sua alma simples foi envolvida na teia da perigosa urdidura islamítica, impregnada de fantasmogorias, inverdades e contradições; perdeu ele então a clareza do senso já então pouco ensaiado nos julgamentos, e pretendendo descobrir o verdadeiro caminho, cada vez mais se embaraçou na urdidura perigosa. O impertinente camarada tornou-se então irado, irado contra si próprio e contra os outros; quis certificar-se se era verdade que a palavra do profeta penderia da ponta da espada por sobre o orbe terrestre. Pôs a clava a tiracolo, pegou da lança e do arco, montou um corcel hirsuto, e foi agarrar o primeiro e o melhor vizinho pelo cabelo. Ele venceu e sempre ia vencendo; isso começou a agradar-lhe. Sentia com as vitórias crescerem-lhe as forças e a confiança em si próprio; por isso em passos audazes continuou para a frente. Milhares e milhares prostraram-se aos pés; ele podia revolver-se em ouro e pérolas, mas preferia comer o seu queijo seco feito com leite de ovelha, acompanhado do duro pão de centeio, que lhe dava uma ossatura quase metálica e uma musculatura de ferro.

Assim continuou a sua situação, até que se viu ele cercado da hipocrisia bizantina e pela astúcia grega. Bajularam-no, fizeram dele um semi-deus; cercaram-no de mil e uma atenções; inventaram-se mil artifícios a fim de conseguir influência sobre ele e ensinaram-lhe necessidades, que o levariam a perecer. A sua natureza robusta resistiu por muito tempo; mas quando ele começou a se achacar, a doença tomou passos de gigante. Hoje, afinal, está cercado de conselheiros, que se o aconselham é para interesse próprio, conselheiros que levam o seu despudor a ponto de apossar-se ainda em vida dele, da sua herança.

Apenas um irmão assiste-lhe de longe com solidariedade cristã. Este único foi outrora seu inimigo leal e agora deseja ser seu amigo leal. Reconhece este irmão que o turco tem o mesmo direito e um grande direito de conservar a sua terra, como o tiveram os prussianos com a sua Silésia e os saxônios com a sua Hannover. O doente, que os urubus estão à espreita, já se sente mais reconfortado com a solidariedade desse irmão e por amor dele está disposto a fazer o que de outro jamais permitiria que lhe obrigasse a fazer.

Este único irmão que assiste ao turco com sua solidariedade cristã, é o alemão.

Se ao germano fôr confiado realmente o papel de condutor da humanidade cristã, ficará ele certo de que Meca se tornará um deserto, pois o amor fará o ódio deixar cair o alfange da mão. Ou quem sabe se é até uma loucura acreditar-se que o turco, um dia, se torne ainda cristão? Afirmar isso seria o mesmo que negar o poder dos evangelhos...

Por que esta introdução? Simplesmente pelo seguinte: não odeio o turco, antes dele me compadeço, por que sou cristão e dói-me sempre que ouço um turcofobo afirmar que os otomanos não são dignos de auxílio. Isso é orgulho farisáico, mas não espírito cristão. Os soldados de nossa santa igreja possuem armas muito mais eficientes que os alfanges e canhões. Essas armas conquistaram domínios no mundo, sem que necessário fosse o derramamento de uma só gota de sangue. E por que não deve essa conquista da paz continuar silenciosa e energicamente? Esta seria a solução da questão oriental, segundo o modo de pensar do cristão convicto.

No porto acha-se atracado o galeão “Boteuse”. Revelara-se uma excelente embarcação, pois chegara a Istambul um dia antes que nós.

Quando desembarcamos, a minha primeira caminhada foi para bordo daquele navio. O capitão recebeu-me com as gentilezas que caracterizam os franceses no trato social.

— O senhor deseja visitar meu navio? — perguntou-me o comandante.

— Não, comandante: eu desejo pedir-lhe informações à respeito dum de seus passageiros.

— Estou ao seu dispor!

— Em Tripoli embarcou um homem no seu navio...

— Sim, foi ele o único passageiro que eu trouxe de lá — atalhou-me o meu interlocutor.

— Permita o senhor que lhe pergunte pelo nome do citado passageiro?

— Ah! o senhor é da polícia?

— Não, senhor; sou um simples alemão. O homem que procuro roubou vultosos cabedais a um amigo meu, residente em Damasco. Vínhamos em sua perseguição; mas quando alcançamos Tripoli, o seu navio, precisamente naquele instante, se fazia ao mar. Só em Beirute é que encontramos meios de seguir-lhe a rota.

O homem cofiou a barba, a refletir.

— Lamento sinceramente o que sucedeu ao seu amigo; não sei, porém,, se lhe poderei valer neste caso, embora de boamente o deseje.

— Mas o passageiro a que me refiro saiu imediatamente de bordo?

— Imediatamente. Ah! lembro-me agora de que ele chamou um bagageiro a bordo, a fim de levar sua bagagem. Essa não era volumosa, visto que ele só trazia um pacote. Eu reconheceria aquele bagageiro imediatamente. O passageiro chama-se Afrak Ben Hulam.

— Trata-se de um nome suposto!

— Provavelmente. Queira o senhor voltar mais tarde aqui. Prometo-lhe interpelar aquele bagageiro, se o encontrar.

Retirei-me. Os outros esperavam no cais. Jacub Afarah pôs-se à nossa frente, a fim de conduzir-nos à casa do seu irmão. Nem Lindsay e nem eu tencionáramos valer-nos da sua hospitalidade; mas nada tinha de extraordinário, se permitíssemos que Jacub nos apresentasse à família do irmão.

Mafley, o forte comerciante, residia nas proximidades da Jeni Dschami, a nova mesquita; pelo exterior de sua casa não se diria que possuísse riqueza. Sem que tivéssemos declinado nossos nomes, fomos conduzidos ao selamlik, onde não nos foi preciso esperar muito tempo pela vinda do dono da casa.

Parecia surpreendido com os numerosos visitantes; quando reconheceu o irmão, quebrou a postura de gravidade a que está obrigado um muçulmano e a passos largos foi ao seu encontro a abraçá-lo.

— Machallah, meu irmão! Mas estou vendo bem?

— Estás, sim, meu irmão!

— Então que Alá abençoe a tua entrada nesta casa e a dos teus amigos!

— Sim, são amigos que trago à tua casa.

— Vens a negócio a Istambul?

— Não. A este respeito falaremos depois. Isla, o filho predileto do teu coração, está em Istambul ou se acha em viagem?

— Está aqui. Sua alma alegrar-se-á ao contemplar o teu semblante.

— Ele irá se alegrar com outra cousa. Chama-o!

Decorreram alguns minutos até a volta do velho Mafley. Com ele veio Isla Ben Mafley e à sua chegada, recuei um pouco, para trás dos companheiros. O jovem abraçou o tio e depois relanceou os olhos pelo grupo. Deu com Halef, que logo reconheceu.

— Alá Hadji Halef Omar Agha, tu aqui?! Estás em Istambul! — exclamou o moço entusiasmado. — Sê bem-vindo, servo fiel e protetor do meu amigo! Separaste-te dele?

— Não.

— Então ele se acha também em Istambul?

— Exatamente.

— E por que não veio contigo?

— Olha para trás!

Isla virou-se e no mesmo instante enlaçou-me o pescoço.

—Efêndi, não imaginas a alegria que me proporcionas! Papai, olha bem este homem! É o efêndi Kara Ben Nemsi, do qual já te tenho falado, e este é Hadji Halef Omar Agha, seu amigo e servo.

Seguiu-se uma cena tão comovente que até os olhos do inglês umedeceram-se. Os criados saíram todos correndo em busca de café e cachimbos. Mafley e Isla fecharam o seu estabelecimento comercial, para se dedicarem exclusivamente a nós; daí a minutos palestrávamos recostados nas almofadas.

— Mas como vieste a te encontrar com o efêndi titio? — perguntou Isla a Jacub.

— Era meu hóspede em Damasco. Encontramo-nos nas estepes e nos tornamos amigos.

— Por que não nos trazes tu lembranças de Afrak Ben Hulam, o neto do meu tio?

— Lembranças não as trouxe, mas notícias dele, sim.

— Notícias sem lembranças? Não te compreendo.

— Em nossa casa se apresentou um Afrak Ben Hulam, mas não era o verdadeiro.

— Allah illa Allah! Como se explica isso? Mandamos-te uma carta por intermédio dele, apresentando-o a ti. Ele não a entregou?

— Entregou-a. Acolhi-o como era de meu dever; acomodei-o na minha casa e no meu coração, mas ele tornou-se ingrato, roubando-me uma verdadeira fortuna em diamantes.

Pai e filho, a essas palavras, emudeceram. De repente, o pai ergueu-se de vertiginoso salto e exclamou:

— Enganas-te, meu irmão! Nenhum homem dos que possuem nas veias sangue de nossos antepassados maculam as mãos com ações infamantes!

— Concordo contigo nesse ponto! — respondeu-lhe Jacub. — Aquele que me apresentou a tua carta de recomendação e se dizia Afrak Ben Hulam era um estranho.

— Achas-me capaz de munir um estranho com uma tal carta de recomendação?

— Afianço-te, porém que se tratava de um estranho e não de nenhum parente nosso. Antigamente chamava-se Dawuhd Arafim, depois usou o nome de Abrahim Mamur e agora...

Nisso, Isla ergue-se, assustado.

— Abrahim Mamur? Que dizes a respeito dele? Onde está Abrahim Mamur? Onde o viste?

— Em minha casa esteve ele, pois morava debaixo do meu teto; confiei-lhe cabedais no valor de milhões, sem suspeitar que fosse ele Abrahim Mamur, o teu inimigo mortal!

— Allah kerihm! Minha alma se transforma em pedra! — exclamou o velho. — Que desgraça foi ocasionar a minha carta! Mas de que maneira foi a missiva parar nas mãos de Abrahim?

— Ele matou o autêntico Afrak Ben Hulam e se apoderou da carta. Depois de lê-la, resolveu apresentar-se em minha casa como meu parente, com o fim de me esvaziar a loja: Só a esse efêndi agradeço o não ter ele levado a cabo a empresa completa.

— E que fizeste dele?

— Fugiu-nos o biltre e nós nos achamos em sua perseguição. Chegou ele ontem a este porto, a bordo dum navio francês. Nós, porém, só hoje é que pudemos aportar aqui.

— Neste caso, vou já me informar do comandante! — disse Isla — levantando-se para sair.

— Não é necessário — disse-lhe eu. — Eu já estive no navio; o ladrão saiu de bordo assim que atracou a embarcação, mas o capitão prometeu-nos auxiliar nas diligências. Convidou-me a voltar lá depois.

— Então não nos atribulemos mais do que já estamos; conta-nos pormenorizadamente como se deu todo o fato! — disse o velho Mafley.

O seu irmão Jacub o atendeu, narrando com abundância de minúcias todo o ocorrido, que, como era natural, causou grande indignação nos circunstantes. Mafley quis dirigir-se imediatamente ao kadi e a todos os demais juizes; queria devassar toda Istambul em procura do criminoso. Andava às voltas pelo selamlik, qual um leão que espera a presa.

Também Isla se achava perturbadíssimo. Quando o sangue encolerizado passou a correr-lhe com mais calma pelas veias, voltou-lhe também o espírito de reflexão, tão necessário para concertar um plano de ação em torno do caso.

Aconselhei que, de momento, se desistisse de qualquer intervenção policial ou judicial; antes devíamos esperar a ver se eu ou qualquer outro de nós descobria uma pista segura. Este meu ponto de vista vingou, afinaL

Quando quis retirar-me na companhia de Halef e do inglês, a fim de nos recolhermos a um hotel, Mafley e Isla se opuseram quase que energicamente a isso. Exigiam incondicionalmente que durante toda a nossa estada em Istambul, fôssemos seus hóspedes de honra. Para que pudéssemos estar mais à vontade, destinaram-nos os nossos hospedeiros uma casa isolada com um lindo jardim fronteiro; fomos obrigados a aceitar a hospedagem, pois que se a recusássemos, ofenderíamos imperdoàvelmente aos Mafleys.

A referida casa ficava bem aos fundos do jardim; achava-se confor-tavelmente instalada ao sistema turco. No nosso isolamento podíamos viver segundo os nossos costumes, sem sermos ameaçados em nossa liberdade pelos hábitos e praxes orientais. Tínhamos tempo de descansar bastante e combinar o modo por que iniciaríamos a procura do paradeiro do fugitivo. Essa tarefa, devido ao borborinho tumultuante de Constantinopla, no qual facilmente uma pessoa pode tomar o rumo que lhe aprouver sem deixar vestígios atrás de si, tornava-se-nos assaz trabalhosa. Nada mais pudemos resolver, que confiar no acaso e percorrer todos os recantos da cidade. Parecia que nosso propósito não seria baldado, pois no terceiro dia depois de nossa chegada, o bagageiro nos procurou para dizer que se havia encontrado com o comandante do navio e que este ordenara que nos procurasse.

Perguntei-lhe pelo passageiro que ele atendera e ele declarou-me que o havia deixado numa casa da movimentadíssima rua da Pera. O carregador afirmava lembrar-se com toda precisão da referida casa e ofereceu-se para conduzir-me até lá. Aceitei imediatamente o seu oferecimento e nos dirigimos para aquela via pública.

Na referida casa residia um kitab, que se lembrava ainda muito bem que no dia e hora citados estivera na sua casa um homem em procura de uma casa para alugar; o agente o acompanhara a mostrar-lhe vários prédios desocupados e de cujos alugueres estava encarregado pelo proprietário; nenhum dos prédios servira ao cliente, que depois de gratificar o agente, dele separou-se sem que depois disso houvesse este sabido notícias suas.

Foi tudo quanto pude averiguar.

Em compensação, porém, no meu regresso, tive um interessante encontro que me indenizou da caminhada que fizera em vão. Entrei num café a fim de mandar vir um moka e um cachimbo; mal me sentara numa almofada, quando a meu lado ouvi uma voz exclamar em idioma alemão:

 

ENCONTRO INESPERADO

— Santo Deus, será possível! É ó senhor mesmo ou é algum outro?

Virei-me para quem assim falava e deparei-me com uma fisionomia coberta por densas barbas, que, não obstante, me parecia muito conhecida, sem que no momento me fosse possível recordar-me de quem se tratava.

— O senhor se refere a mim? — perguntei ao homem.

— Claro, a quem mais havia de ser! Não me conhece mais?

— Naturalmente que o devo conhecer, mas ajude-me um pouco a memória, por favor!

— Já se esqueceu do Hamsad al Dscherbaja, que lá no Nilo cantou tantas trovas do boleeiro para o senhor ouvir e depois...

Atalhei-o apressadamente:

— Ah! justamente! As suas longas barbas atuais é que me ofuscaram a memória. Que Deus esteja com o meu patrício! Sente-se ao meu lado! Tem tempo agora, não é?

— Mais do que suficiente, desde que o senhor tenha a gentileza de me pagar o café. Atualmente estou “tinindo”, como vulgarmente se diz.

O homem tomou lugar ao meu lado e podíamos palestrar à vontade, visto que os muçulmanos presentes não compreendiam o idioma alemão.

— Com que então anda “tinindo”! Como é isso? — perguntei-lhe. — Conte-me como tem passado, após a nossa separação!

— Como tenho passado? Mal! Com isso digo tudo. Aquele Isla Ben Mafley, ao qual eu servira, enxotou-me, depois que não necessitou mais dos meus serviços. Destarte, fui para Alexandria e de lá na companhia de um grego para Candia; desta cidade, como meio marinheiro, aqui para Istambul, onde me estabeleci.

— Com quê?

— Como intermediário de muitas coisas: cicerone na cidade, criado de emergência, enfim como auxiliar de tudo em que me fosse possível ganhar honestamente a vida. Mas não há por aqui ninguém que precise de intermediários; necessita de criados de emergência e tampouco de auxiliares para coisa alguma. E eu então ando a passear e a passar fome, que o estômago chega a apitar. Espero que o senhor me tomará ao seu serviço, patrício meu, pois deve se lembrar ainda quanto lhe fui prestativo naquela sua aventura.

— Veremos isso depois! Por que não se dirigiu aqui ao Isla Ben Mafley? Ele se encontra em Istambul.

— Muito obrigado! Não quero saber dele. Ele molestou-me, atacou-me a honra;  jamais terá ele o prazer de se ver servido por mim!

— Eu moro na casa dele — observei-lhe.

— Oh! isso me é desagradável, porque não o poderei visitar!

— Mas o senhor visitará a mim e não ao Isla.

— Contudo! Não pisarei na casa dele, sob pretexto algum; agora muito eu folgaria se o pudesse servir nalguma cousa.

— E para isso vai ter ocasião. Lembra-se daquele Abrahim Mamur, aquele de cujo poder libertamos uma jovem?

— Muito bem até. Chama-se, aliás, Dawuhd Arafim, e nos fugiu.

— Ele se encontra atualmente aqui em Constantinopla e eu ando à sua procura.

— Que ele se acha aqui, sei muito bem, pois já o vi.

— Ah! onde?

— Do outro lado, em S. Dimitri, onde o encontrei sem que ele me houvesse reconhecido.

Eu sabia que S. Dimitri, como Tatawola, Jenimahalle e Ferikjoe, pertenciam à zona mais corrompida da cidade e por isso perguntei-lhe:

— O senhor vai seguido a S. Dimitri?

— Muitíssimo. Moro lá.

Agora eu já sabia do suficiente. Aquele barbeiro de Jueterbok se havia domiciliado entre a gentalha grega de S. Dimitri, gentalha que constitui a população mais depravada de Istambul. Lá o crime sente-se como em casa, isto é, campeia tão desenfreadamente como na famosa rua da Água, em Nova York, e na ruela Backfriar, em Londres. É perigoso a gente perambular à noite por aquele bairro; mesmo de dia claro e a qualquer hora, a cada passo que se dá, abrem-se de par em par as cavernas, e nelas se exibem os viciados em suas torpes orgias ou denunciam a sua presença com as nauseantes moléstias de que são portadores.

— Em S. Dimitri mora o senhor? — perguntei-lhe admirado. — Não havia outro bairro onde o senhor encontrasse moradia?

— Havia-os mais que suficientes, mas em S. Dimitri é muito lindo, principalmente quando se tem dinheiro para gozar as suas belezas.

— Observou por acaso Abrahim Mamur, quando o encontrou? É de grande importância para mim descobrir-lhe o paradeiro.

— Eu deixei-o em paz, e dei-me por muito satisfeito não haver ele dado pela minha presença. Mas conheço a casa de onde ele saiu e lá vou colher algumas informações.

— Não estará disposto a mostrar-me imediatamente esta casa?

— Estou. Valeu!

Paguei a nossa despesa; depois alugamos dois cavalos numa recova próxima e seguimos rumo a S. Dimitri, através da rua Pera e Tepe Bascha.

Diz-se que Copenhague, Dresden, Nápoles e Constantinopla são as mais lindas cidades da Europa; não tenho motivos para refutar essa afirmativa. Mas no que se refere a Constantinopla, devo no entretanto frisar que só podemos achá-la bonita, quando a contemplamos de longe, do “Chifre de Ouro”, por exemplo. Mas assim que se passa para a cidade não tarda a desilusão. Lembro-me neste instante daquele lorde inglês que, segundo rezam as crônicas, visitou Constantinopla em seu iate a vapor e não quis sair de bordo. Navegou de Rodosto, face norte do mar de Mármara até Istambul, bordejou para o “Chifre de Ouro” diante do qual navegou a Eyub e Sudludje, voltou, singrando em direção ao Bósforo até sua embocadura no Mar Negro e depois voltou à sua pátria, na convicção de não haver, por meio de um passeio pela cidade, empanado a impressão que em conjunto e de longe lhe causara a mesma.

Assim que se pisa na cidade, cruza-se através de ruelas e ruas que nem merecem esses nomes. O calçamento da cidade é raríssimo. As suas casas, na maioria, são de madeira, sem janelas, tendo defronte um jardim ermo ou, quando muito, mal cultivado. Por toda parte perambulam maltas de cães de pêlo arrepiado, que parecem os encarregados da polícia higiênica. Devido à estreiteza da rua, é preciso que se esteja sempre alerta, a fim de não colidir com carregadores, mariolas, cavalos, burros e outras criaturas humanas e animais.

O mesmo se dera agora em nosso caminho para S. Dimitri. As ruas estavam cheias de resíduos que nela jogaram os mercadores de peixe, carne, frutas e verduras. Cascas de melancias apodreciam aos montes no meio da rua; os açougues cheiravam a sangue e carne em decomposição; mais adiante cadáveres de cães, gatos e ratos empestavam o ambiente, de permeio com cavalos e outros animais que jaziam mortos no meio das ruas. Cães e urubus eram as únicas criaturas que contribuíam para amenizar aquela situação. Por toda parte encontravamo-nos com carregadores conduzindo pesadas cargas pelas ruelas, burros cargueiros, rotundos muçulmanos montados e carroças puxadas a boi transportando mulheres; só com muita habilidade é que se poderia passar por tudo isso sem ser esmagado.

Chegamos finalmente a S. Dimitri. Apeamos e devolvemos os animais ao recoveiro. A seguir mostrou-me o barbeiro de Jueterbok a sua residência; esta era constituída de um cubículo situado bem aos fundos de uma choupana em ruínas e mais se assemelhava a um estábulo de cabritos que à residência de gente. A porta era formada por uma grande folha de papel colada e as janelas eram simples buracos abertos às paredes. Outros utensílios não os tinha o barbeiro além de um púcaro para água, por sobre o qual uma aranha já tecera a sua teia. Uma rede e um pedaço de vela de navio formavam o seu leito.

Olhei emudecido aquela triste instalação e acompanhei o meu guia depois porta afora em direção à rua. Levou-me depois a uma casa, cujo exterior não era de molde a inspirar confiança e cujo interior confirmava, logo à primeira vista, tal impressão. Era um daqueles cafés e bar de vinhos gregos, nos quais a vida de um homem eqüivale a zero e cujos habitantes e freqüentadores são difíceis de descrever, tão complicados são os seus hábitos e modo de viver.

Sem se deter na sala da frente, o meu guia me foi conduzindo casa adentro até uma ampla sala onde se jogava carta e... se fumava ópio. Os fumantes jaziam sobre almofadas de palha recostadas à parede. Um sujeito idoso se achava precisamente naquele instante a acender o terrível entorpecente. Sua figura cadavérica e angulosa se soerguera; seus olhos, antes apagados, se iluminavam de uma chispa de gozo e suas mãos tremiam. Causou-me uma impressão desprezível aquele homem. Ao lado, um jovem de uns vinte anos no máximo jazia em sonhos, entorpecido; ria-se como se estivesse no sétimo céu de Maomé; também aquele jovem estava preso pelo demônio do ópio, que nunca desprende as garras da garganta de suas vítimas. Perto do jovem, um esguio dálmata se contorcia nos paroxismos do fumo e mais adiante grunhia a repelente caraça de um dervixe decaído, que deixara o mosteiro e procurara aquela caverna, a fim de sacrificar sua energia vital pelo prazer das fantasiosas imagens do traiçoeiro narcótico.

— O senhor também fuma? — perguntei ao meu cicerone.

— Sim — respondeu ele — mas há muito tempo que não provo.

— Por amor de Deus! Talvez ainda esteja em tempo de deixar esse maldito vício! Não conhece então ainda quão traiçoeiramente, quão satânicamente atua esse terrível veneno?

— Satânicamente? Hum, ao que parece o senhor nada entende dessas cousas! Ao contrário, atua divinamente. Quer experimentar?

— Nem por sombra! Que se obtém aqui para beber?

— Vinho. Da encomenda me encarrego eu e depois o resto é lá com o senhor, que eu estou “pronto”, conforme já lhe disse.

Foi-nos servido um vinho tinto espesso e cujo horrível paladar não se podia definir, sabendo-se quão saborosas são as uvas gregas, que se caracterizam em geral pelo tamanho descomunal dos seus bagos. Aquela era a casa freqüentada por Abrahim Mamur. Pedi ao taverneiro notícias dele; mas como por medida de precaução não me era possível declinar nomes e também como ignorasse qual o nome com que se apresentava agora o meliante, as indagações tornaram-se improfícuas.

Em vista disso, encarreguei o barbeiro de estar sempre alerta e assim que o avistasse dar-me conhecimento. Provi-o de uma pequena soma em dinheiro e despedi-me; mas ainda não havia deixado o tristíssimo local, já ele se achava com os jogadores de azar a perder parte daquela soma; o resto gastá-lo-ia talvez em ópio. Considerei o homem desde logo física e moralmente perdido, contudo não desisti de empreender ainda alguma coisa a ver se o afastava do mau caminho.

No dia seguinte, sexta-feira, Isla tinha negócios a tratar na rua das Peras e convidou-me a acompanhá-lo. No regresso passamos por um edifício, estilo mesquita, que se erguia ao lado do edifício da legação russa e separado da rua por meio de uma cerca de madeira; Isla ficou parado e perguntou:

— Efêndi, já viste um espetáculo dos chora-teperler (1).

— Já, mas não aqui em Constantinopla.

— Aqui é o seu manastyr (2) e esta é a hora dos seus exercícios. Queres entrar comigo?

 

O BAILADO DOS DERVIXES

Acedi ao convite e entramos pelo portão da cerca, passando para o átrio pavimentado com chapas de mármore. A esquerda do átrio confinava com um cemitério também cingido por uma cerca de madeira. Através das grades, via-se debaixo das sombras de alterosos ciprestes uma infinidade de alvacentas lousas mortuárias, coroadas por uma escultura formando uma espécie de turbante. Uma das faces dessas lousas contém o nome do morto e uma inscrição com dizeres do Alcorão. Um grande número de mulheres turcas havia escolhido a necrópole, para o “footing” da tarde e onde quer que se olhasse alvejavam véus e mantos de variadas cores em meio do bosque de cipreste. Os turcos apreciam um passeio pelo local onde os seus mortos repousam no sono eterno.

Aos fundos do átrio, erguia-se um pavilhão em forma de círculo, coberto por uma cúpula, e à direita deste levantava-se o mosteiro, um edifício de um andar coberto também por um zimbório e cujos fundos davam para a rua.

Em meio do átrio havia um alteroso cipreste, coberto até a sua copa de heras. O átrio propriamente dito estava repleto de gente, que se encaminhava para o pavilhão. Isla conduziu-me primeiramente ao mosteiro a fim de mostrar-me o interior de uma casa de dervixes turcos.

Dervixe é um vocábulo persa e significa: “pobre”; o termo árabe equivalente é faquir. Com o nome de dervixe são designados todos os membros de uma ordem religiosa islamítica. Há numerosas ordens dessa natureza; mas os seus professos não prestam juramento; o voto de pobreza, castidade e obediência é coisa desconhecida pelos monges islamíticos. Os tekkijie e Khangah (3) são muitas vezes instituições riquíssimas em bens de raízes, moeda sonante e rendimentos; nenhuma ordem religiosa muçulmana, aliás, padece privações. Os monges em sua quase totalidade são casados e só se preocupam em comer, beber, dormir, jogar, fumar, vivendo num dolce far niente. Antigamente um dervixe possuía uma invulgar personalidade religiosa e política; agora, porém, decaíram do conceito e só da

 

(1) Os dançadores. “Bailado dos dervixes”.

(2) Mosteiro.

(3) Mosteiros de dervixes.

 

parte do populacho é que gozam ainda de algum respeito. Por isso proporcionam os monges reuniões públicas cheias de misticismo ou de fetichismo. Instituem toda sorte de saraus de arte e representações teatrais, representando comédias em que se exibem os monges em danças originais e em canções gritantes holandesas.

Por trás da porta do mosteiro, passamos para um compartimento transversal que ocupava toda a largura do edifício. Ali à esquerda, seguia um corredor paralelo ao comprimento do mosteiro. Nesses corredores ficam as entradas para as celas dos dervixes; as janelas das referidas celas davam para o pátio. Portas propriamente não as tinham os cubículos, de forma que se podia olhar para o seu interior. A sua instalação era extraordinariamente simples: compunha-se apenas de uma almofada estreita, colocada contra a parede, à guisa de diva. Sobre estes estavam os dervixes sentados, com seus bonés de feltro, formato cartucho ou pão de açúcar, tal qual sucede com os palhaços de circos antes de entrarem em cena. Alguns fumavam, outros preparavam-se para tomar parte no bailado que daí a minutos ia realizar-se e outros mantinham-se sentados meditativos e imóveis, quais estátuas.

Dali nos dirigimos para o pavilhão; passamos primeiro para uma ante-sala, de onde entramos para um amplo salão quadricular. Uma cúpula sustentada por colunatas constituía o telhado daquele salão e os flancos eram arejados por fileiras de janelas abertas. O soalho era pavimentado, liso como um espelho e constituía a platéia. Duas ordens de camarotes, um no soalho e outro à meia altura da parede cercavam as paredes da platéia; alguns dos camarotes do alto se achavam providos de gradis dourados: eram os destinados às mulheres. Ao alto, um coreto para a música. Tomamos lugar num dos camarotes de baixo. Os demais, como também a platéia, estavam todos tomados.

Teve início a comédia, que valia pelo serviço divino inicial. Por uma porta lateral entraram uns trinta dervixes, com o seu superior à frente. Este era um homem idoso, de barbas alvacentas e usava um amplo manto escuro; os demais dervixes ostentavam todos capelos fradescos, matizados e exóticos bonés, formato cartucho, cobriam-lhes as cabeças. Rodearam por três vezes a sala em passos graves e postura solene, acocorando-se depois: o chefe defronte à entrada e os demais à sua direita e esquerda, formando um semicírculo. Começou então a música, cujos acordes desarmoniosos estiveram prestes a me arrebentar o tímpano, e de permeio com um cântico que, segundo um poeta alemão, “abrandaria até as pedras e faria os homens sairem em doida disparada...”

Depois dessa desafinação orquestral, passaram os dervixes a fazer toda sorte de prostrações e trejeitos exóticos, parte de encontro aos seus corpos e parte na direção dos seus companheiros. Balançavam-se com as pernas cruzadas para a direita e para a esquerda, torciam o tronco e cabeça como se fossem parafusos, agitavam os braços, batiam palmas, atiravam-se ao comprido no solo e batiam com os bonés-cartuchos na cabeça.

Esta foi a primeira parte do programa organizado para o singular espetáculo e a sua execução durou perto de uma hora. Depois emudeceram orquestras e cantores e os dervixes conservaram-se silenciosos nos seus respectivos lugares. Eu tinha a impressão de me achar diante de um bando-de loucos. Os turcos, porém, assistiram ao espetáculo com ansiedade e interesse, e, ao que parecia, com ele ficaram fascinados.

A orquestra iniciou então nova partitura, mas em tempo mais andante... Os dervixes ergueram-se de um vertiginoso salto, atiraram os capelos ao solo e surgiram então em vestes brancas. Curvaram-se por várias vezes uns diante dos outros e deram início ao “bailado dos dervixes”, tão celebrado pelo populacho islamítico.

Não era propriamente um bailado, mas um simples rodar em torno dos tornozelos. A impressão que me causou o bailado foi tal que eu não desejaria assisti-lo de novo. Os demais espectadores, porém, retiraram-se agradavelmente impressionados com o maravilhoso espetáculo.

Isla olhou-me de soslaio e perguntou-me:

— Que tal achaste, efêndi?

— Quase que me ia sentindo mal durante o espetáculo — respondi-lhe, sinceramente.

— Tens razão. Estou quase duvidando que haja o profeta permitido tais exibições; ademais disso estou também a duvidar se todos os seus ensinamentos são benéficos ao país e ao povo dos osmanlis.

— Tu, um muçulmano, dizendo isso?

— Efêndi, — cochichou-me o rapaz — Senitza, minha mulher, é cristã!

Com isso confessara-me ele indiretamente o que não quis dizer abertamente. Uma boa esposa é como “a deusa do lar”, a condutora das graças e dos verdadeiros ensinamentos de Deus.

Quando através do átrio, nos dirigimos para o portão de saída, senti alguém me bater no ombro. Parei e virei-me: diante de mim se achava-um jovem, que logo reconheci.

— Omar Ben Sadek! Será possível que sejas tu mesmo! — exclamei surpreendido.

— Oh! Bendito e louvado seja Deus que me proporciona neste instante a alegria de contemplar o brilho dos teus olhos. Minha alma ansiou por ti mais de cem vezes depois que me vi obrigado a separar-me de ti, às pressas.

Era Omar, o filho daquele Sadek, que me conduzira, bem como a Halef, através do schott Dscherid e que durante a travessia fora assassinado por Abu en Nassr.

— Como vieste para Istambul e que fazes aqui? — perguntei-lhe.

— Não vês que me tornei um bagageiro? Vamos a um café, sídi, que te contarei tudo.

Isla Ben Mafley ouvira falar naquela nossa aventura em Tunis, no Egito e portanto já conhecia Omar de nome; alegrou-se em ver o rapaz e acompanhou-nos prazenteiramente ao café.

Contou-me Omar que o camelo de montaria, que daquela feita o wekil de Kibili tão traiçoeiramente cedera a Abu en Nassr, vencera àquele que Omar recebera do seu amigo. Contudo, não perdera este o inimigo de vista até Derna; lá, porém, foi Omar obrigado a deixar o seu camelo descançar e quando saiu nas pegadas do perseguido rumo de Bombaim, já conseguira este se reunir a uma caravana rápida que seguira para Siwah. Omar teve que esperar até a próxima ocasião, sendo forçado a trocar o seu animal por outro inferior, para que com a soma que recebesse de volta contemporizasse a sua vida, visto que se achava sem recursos. Só três semanas mais tarde, conseguiu encorporar-se a uma caravana que seguira através do norte do deserto de Barka e através do wadi Dschegabib para o oásis Siwah. Chegando lá, depois de muitas pesquisas e indagações, veio a saber que Abu en Nassr, passando por Om Soghir e Mogarrah, viajara para o lago el Kherum. Quando Omar atingiu este lago, todas as suas buscas e pedidos de informações foram baldados e ele concluiu então que Abu en Nassr, mudando de rota e se juntando a alguma caravana, se encaminhara para o sul. Talvez estivesse em El Wah, Farafer ou Daket. Em conseqüência disso, procurou ele esses três oásis e não conseguiu apurar coisa alguma a respeito do paradeiro do inimigo. Só em Tafah, para onde seguiu depois, soube, em vista de alguns dados colhidos, que o seu perseguido com um suposto nome, tomara um dos navios que cruzam o Nilo, seguindo rio acima. Visitou aldeia por aldeia e cidade por cidade das margens do Nilo e, extenuado e andrajoso, foi parar no Cairo.

Lá, finalmente, teve a sorte de encontrar, sem que o esperasse, Abu Nassr na avenida Maomé-Ali. Perseguiu-o por toda a avenida até Esbekieh, perdendo-o, depois, de vista. Depois disso, dia e noite perambulava pelas ruas e por fim conseguiu encontrar Abu no porto de Bulak, mas exatamente no instante em que este embarcava num navio que seguia para o norte. O comandante não aceitou Omar a bordo porque ele não tinha dinheiro para a passagem e se negou também a conduzi-lo mediante serviços que prestasse durante a viagem.

Ardendo de cólera e desejo de vingança, teve que ver impassível o inimigo escapar-lhe das mãos mais uma vez. Um xeque árabe, porém, a quem ele contou a sua situação, presenteou-lhe um cavalo, para que por terra pudesse seguir o curso do navio. Cavalgou então sempre beirando o rio e passou por Terraneh, Giza, Nadir, Negileh e Dahari; em Ramanieh soube que o navio procurado, mudara de rota seguindo pelo braço-Da-miette. O pobre rapaz então rumou para Kasr el Madschar e Mehalet el Kebir, atravessou o Delta e em Samanud soube que o navio ali atracara e depois seguira rio acima. Dali seguiu ele então a pista segura, até Da-miette, onde chegou já tarde: o assassino de seu pai, tomando um navio carregado de centeio, seguira para Adalia.

Achava-se sem recursos o pobre moço, e viu-se na contingência de se empregar em trabalhos portuários até juntar a soma necessária para continuar a perseguição, pois o que apurara com a venda do cavalo não dava para cobrir as despesas com a jornada. Encontrou finalmente, um navio que o levou gratuitamente a Eyper, em Anamar, onde um pescador o conduziu sem remuneração à terra. Desembarcou da canoa defronte a Eyper e, atravessando Selindi e Alaja a pé, chegou finalmente a Adalia. Aqui, porém, todas as suas averiguações foram sem resultado algum. Já havia transcorrido muito tempo e o rapaz não tinha recursos e nem experiência para encaminhar devidamente as suas averiguações.

Contudo, não desanimou e persistiu no seu propósito; assim o exigia dele a lei de vingança de sangue. Pela direção que tomara Abu en Nassr concluiu Omar fosse sua intenção seguir para Constantinopla. Para lá pois, se dirigiu a mendigar por Anatólia afora. Essa sua jornada decorreu vagarosamente e em Kutahija adoeceu seriamente, em conseqüência dos longos meses de fadiga; sua sorte foi haver encontrado acolhida e tratamento num convento de dervixes.

Deste modo, depois de longos meses, durante os quais realizara eu uma jornada bem maior, chegara o pobre moço a Istambul. Não encontrara ainda uma pista segura do seu fugitivo, mas não perdera ainda e esperança de vingar a morte do pai. Para angariar os meios de sua subsistência e economizar, se possível, alguma cousa, fizera-se carregador, posição bem humilhante para um árabe livre. Quando lhe perguntei por quanto tempo pretendia demorar-se assim sem rumo em Constantinopla, respondeu-me ele:

— Sídi, é provável que bem breve deixe esta cidade. Alá permitiu-me que saísse para descobrir uma pessoa.

— Que pessoa?

— Não disseste tu aquela vez no schoot Dscherid, que aquele Abu en Nassr chama-se na verdade Hamd em Amasat?

— Realmente.

— Descobri aqui um homem que se apresenta com o nome de Ali Manach Ben Barud el Amasat.

— Ah! quem é este homem?

— Um jovem do mosteiro que há pouco visitaste. Eu me achava também lá a fim de lhe falar na sua cela, com o fito de colher alguns informes; nisso, te avistei e não tive mais tempo para abordá-lo.

— Ali Manach Ben Barud el Amasat! — exclamou Isla, tão precipitadamente, que me vi obrigado a chamar a sua atenção para os demais freqüentadores do café. — É o filho daquele Barud el Amasat, — prosseguiu Isla — que vendeu, daquela feita, a minha mulher? Irei já ao mosteiro falar com ele!

— Peço-te que não vás! — repliquei-lhe. — Amasat é um nome muito comum. Possivelmente esse dervixe nenhuma relação tem com o homem a que te referes. E mesmo que seja como pensas, é preciso que procedamos com muita cautela. Permites que vá eu lá?

— Sim, efêndi, mas já! Aqui ficaremos à tua espera.

Continuei nas sindicâncias.

— Como vieste a descobrir que o dervixe em questão chama-se Amasat?

— Viajei ontem com ele e mais um monge, de canoa, para Baharive Keui. Os dervixes durante a travessia palestravam e eu ouvi um deles chamá-lo por aquele nome. Ao desembarcarmos já estava escuro, mas eu os segui; pararam defronte a uma casa que se achava fechada. Quando a porta foi aberta, perguntaram-lhes quem pretendia entrar e um deles respondeu: “En Nassr”. Tive que esperar algumas horas até os dervixes voltarem; durante este tempo, entraram e sairam muitos homens da casa e todos, antes de lhe ser dada entrada, tinham que pronunciar a palavra “En Nassr”. Compreendes isso, sídi!

— Traziam os homens lanternas consigo?

— Não, embora de noite a ninguém seja permitido sair sem lanterna. Não havia um soldado nas imediações. Na volta segui os dois dervixes até ao mosteiro.

— Compreendeste bem as palavras “En Nassr”?

— Perfeitamente bem.

O relato de Omar deu-me muito que pensar. Lembrei-me das palavras que me dissera Abrahim Mamur quando me tinha preso no subterrâneo das ruínas de Palmira. Julgando-me seguro e certo de que dali não sairia eu com vida, alardeou, a fim de mortificar-me, ser ele chefe de uma quadrilha de assassinos. Se aquela declaração fosse verdadeira, o bando sinistro tinha o seu raio de ação estendido por toda a Turquia, alcançando talvez o Egito e Damasco. Constantinopla jamais esteve saneada de malfeitores, mas justamente naquela ocasião campeavam eles impunemente e aos grandes bandos em todos os recantos da cidade. Diariamente encontravam-se casas despojadas e os proprietários assassinados ou raptados, sem que se pudessem encontrar vestígios de seu paradeiro. No “Chifre de Ouro” ou no Bósporo encontravam-se cadáveres boiando à tona d’água, cadáveres que davam mostras de haverem sido massacrados. À noite, em diferentes pontos da cidade, registravam-se incêndios durante os quais eram as casas roubadas, e todos esses incêndios pela unidade de suas circunstâncias pareciam relacionar-se uns com os outros; a cada passo encontravam-se vultos suspeitos, que não se achavam munidos de lanternas, e, quando detidos pela polícia, a esta resistiam, conseguindo fugir. E parece incrível a maneira com que procedia a justiça em relação àquela gente. Em certa ocasião, a patrulha aprisionou um bando composto de indivíduos perigosos e o sultão limitou-se a deportá-los para Tripoli. Depois voltou o capitão do navio que os transportou a dizer que sua embarcação naufragara e que todos os criminosos haviam perecido afogados... Com essa declaração davam as autoridades por encerrado o processo. Alguns dias depois os malfeitores “afogados” eram vistos cruzarem à vontade as ruas da cidade e ninguém estranhava o fato... Casos como estes eram bastante freqüentes.

Disse-me Omar que o dervixe Ali Manach habitava a quinta cela depois que se entrava no corredor. Dirigi-me ao mosteiro.

Sem me preocupar com os presentes, fui entrando portão adentro, direito ao edifício do mosteiro. Percorri por diversas vezes o corredor a olhar para as celas sem que pessoa alguma se preocupasse comigo. Na quinta cela se achava um jovem dervixe de uns vinte e poucos anos de idade. Olhava como que em êxtase para a janela e deixava as noventa e nove contas do rosário correrem-lhe entre os dedos.

— Salam! — saudei-o em voz cava e com atitude de dignidade.

— Salam aleikum! — correspondeu-me. — Que desejas?

— Venho de uma província distante e não conheço os costumes desta casa. Assisti aos vossos bailados e me agradei imensamente deles; desejava agora demonstrar-vos a minha admiração. Tens permissão para aceitar uma dádiva minha?

— Tenho, sim: dá-me logo!

— Qual o mínimo que aceitas?

— Aqui aceitamos qualquer quantia.

— Então, aqui tens minha dádiva.

Dei-lhe uma bagatela, correspondente com a minha situação financeira. Ele, porém, mostrou-se muito satisfeito e disse:

— Muito obrigado! Isto é para mim pessoalmente ou para a ordem?

— Concede-me esta graça e aceita-a para ti pessoalmente!

— Dize-me então como te chamas, para que eu fique conhecendo o meu generoso admirador.

— O profeta diz que as dádivas feitas sem que o doador as faça acompanhar do seu nome são duplamente recompensadas no céu. Permite-me, à vista disso, que eu me conserve incógnito e dize-me tu o teu nome, para que eu saiba com qual dos fervorosos filhos do Islã tive a fortuna de falar.

— Chamo-me Ali Manach Ben Barud el Amasat.

— E qual a localidade de teu nascimento?

— Iskendrieh (4) é a minha cidade natal.

Combinava tudo às maravilhas. Isla já me dissera no Egito que Barud e1 Amasat, que vendera Senitza, residira em Skutari. Continuei o velado interrogatório:

— Residem ainda lá os membros de tua devota família?

— Não — respondeu o monge islamítico.

Não podia continuar eu a interrogá-lo, sob pena de despertar-lhe suspeita; por isso disse-lhe mais algumas frases corteses e me afastei. Omar e Isla esperavam-me já impacientemente.

— Que averiguaste? — foi logo me perguntando Isla.

— É realmente o filho daquele Barud el Amasat; é natural de Skutari e se não me engano, Hamd el Amasat, que se dá também o nome de Abu en Nassr, é seu tio.

— Efêndi, neste caso ele nos terá que dizer onde se acha o seu pai!

— Terá que nos dizer? Como pretendes obrigá-lo a isso?

— Por meio do kadi.

— A este ele dirá uma casa errada, ou, se indicar uma onde realmente se encontra agora o pai, a este avisará em seguida para que se escape. Primeiramente quero ver a casa onde o dervixe esteve ontem. Irei agora lá na companhia de Omar, e só depois é que direi o que há a fazer,

— Seja feita a tua vontade, efêndi; por agora vamos nos separar. Depois trarás Omar Ben Saduk para minha casa; daqui por diante morará ele comigo e não precisa mais trabalhar de carregador.

Isla voltou para casa e eu com Omar me dirigi para o rio, onde tomamos um caíque; subimos o “Chifre de Ouro” até Eyub. Daqui encaminhamo-nos a pé para Baharive Keui, que é a parte noroeste de Constantinopla. Era um caminho escabroso, através de tremedais, imundícies e escombros de taperas, até que chegamos a uma ruela, que dobramos.

Omar mostrou-me a referida casa, na passagem; se parássemos, poderíamos chamar a atenção e perdermos a pista. Era um prédio de um andar estreito mas, pela aparência, com muitos fundos. A porta se achava fechada com espessas folhas de flandres e, além de uma janelinha junto à porta, o resto da parede era nua, sem outra qualquer abertura. Anotei o prédio. A casa vizinha era também de um só andar e também estreita como a outra; à porta se achava colado um pedaço de papel sujo com os seguintes dizeres: “Arar-im bir Kiradschiji” — “Procuro um inquilino”.

Resolutamente empurrei a porta e entrei; Omar acompanhou-me curioso por saber o que pretendia eu fazer. Ao abrir a porta, pisamos num corredor acanhado e escuro, pelo qual continuamos a caminhar até chegarmos a uma porta vis-a-vis à da entrada; abri-a e passamos para um pátio que, como todo o prédio, tinha uns cinco metros de largura, mas, em compensação, um comprimento dez vezes maior. Os

 

(4) Skutari, situada às margens do lago do mesmo nome.

 

dois lados da casa eram formados por uma espécie de galpão triangular, e já se achavam na última estância da ruína. À direita e à esquerda da porta, que dava para o pátio, havia um corredor que conduzia para os dois quartos baixos. Ao primeiro andar subia-se por uma escada de treze degraus de madeira já carunchada; dos treze degraus, seis já haviam caído deteriorados. O espaço do pátio estava tomado por um grande lodaçal; este agora se achava seco à ação do sol e se transformava num formidável entulho que dificultava a passagem. Colado no meio deste via-se um cepo, cuja finalidade era difícil de adivinhar. Sobre esse enigmático cepo se achava sentada uma coisa que mais difícil me seria ainda adivinhar se não estivesse a fumar cachimbo; tinha uma conformação esférica e se achava envolta num esfran-galhado cafetã; a citada esfera estava coberta por uns trapos de turbante matizado, já descoloridos. Entre a esfera e o turbante sobressaía um nariz humano, abaixo do qual fumegava o cachimbo. O nariz não era muito mais curto que o cachimbo.

À nossa aproximação, aquela estranha criatura proferiu um grunhido que soava meio agradável e meio hostil, e dispôs-se a se desenrolar do cafetã.

— Salum! — saudei.

— Sssss... hummmmm! — rangeu e resmungou, à guisa de resposta..

— Esta casa está para alugar?

De chôfre, a esfera disforme saltou do cepo, e adquiriu forma humana.

— Está sim, para alugar imediatamente! Linda casa, excelente moradia, própria mesmo para residência de um paxá, toda ela quase nova! Pretende vê-la, alteza?

Aquilo tudo saiu-lhe dos lábios com uma intensidade quase que de metralhadora. Como prováveis inquilinos eramos-lhe agora bem-vindos, como talvez não o fôssemos antes de conhecer o homem o nosso propósito. Era um judeu a figura que agora se defrontava conosco em toda a sua glória patriarcal, pois tudo nele levava a gente a lançar um olhar retrospectivo para uma era de milênios atrás. Era de estatura baixa, muito baixa mesmo, mas rotunda. Nele nada mais se via que um par de pantufos rotos, o cafetã, o turbante, o nariz e o cachimbo pendendo da boca; tudo isso, exceção feita do nariz, dava mostras de se achar em constante uso desde os tempos de Matusalém. Dos pantufos olhavam os dez dedos dos pés em impressionante cordialidade; o cafetã já não parecia mais de tecido, mas de pura sujeira; o turbante se assemelhava mais a uma caçarola estragada; o cachimbo de tanto ser mordido, dele só restava o fornilho; a piteira o seu dono tivera a habilidade de substituir por um osso ôco de urubu. Além disso, o cafetã já não tinha mais mangas e a preocupação angustiosa que o homem mostrava em enrolar-se nele, dava lugar a desconfiar-se que era a única peça de vestuário que lhe cobria a nudez.

O homem tratava-me por Senhor, pelo que correspondi-lhe com o mesmo tratamento:

— É o senhor o proprietário desta casa?

— Não; apesar disso pode a alteza estar certa de que não pertenço cá ao rol dos que morrem de pobreza, pois...

— Faça-me o favor, — atalhei-o — de responder-me as perguntas o mais sinteticamente possível! A quem pertence este prédio?

 

— Ao abastado furundschi (5) Maomé in Khassin Paxá; ele o herdou.

— E que faz o senhor aqui?

— Sou encarregado de sua vigilância e de atender aos pretendentes a alugá-lo.

— Quanto ganha por este serviço?

— Uma piastra por dia e meia piastra de pão.

— Esta casa está desabitada?

— Está; eu moro aqui do lado.

— Quanto de aluguel pede o padeiro?

— Dez piastras por semana, que devem ser pagas adiantadamente.

— Mostre-nos os compartimentos!

Ele abriu as duas partes do pavimento térreo e topamos então com um compartimento escuro, cheio de sujeiras e parasitas, sobressaindo o impertinente pthirius corporis (muquiranas). Depois subimos a escada e passamos para o primeiro andar, onde havia três salas, uma das quais desejara eu classificar de pombal, a segunda de galinheiro e a terceira de casa de coelhos.

— Esta é o selamlik, esta outra o dormitório e aquela o harem — declarou o judeu em tom solene como se me estivesse a mostrar as dependências de um palácio.

— Bom, e a que se destina o pátio?

— A nada; lá costumam soltar os cavalos. Também os criados moram nele.

— E como se chama o senhor?

— Baruch Schebet Ben Baruch Chereb Ben Rabbi Baruch Mizchach; compro e vendo brilhantes, jóias e antiqualhas e se o senhor precisar de um criado ofereço-me para diariamente varrer o seu quarto e escovar-lhe as vestes, bem como a dar todas as caminhadas de que precisar.

— O senhor tem um verdadeiro nome de guerra! Onde fica o depósito de seus brilhantes, jóias e antiqualhas?

— Alteza, exatamente hoje vendi tudo que tinha em depósito.

— Então vá procurar o padeiro Maomé e diga-lhe que alugo a casa. Aqui tem as dez piastras relativas ao aluguel da primeira semana e aí tem mais dez para o senhor comprar fumo.

— Alteza, fico-lhe muitíssimo obrigado! — exclamou o homem entusiasmado. — O senhor sabe conviver com um homem de elevada posição social, como é um negociante de brilhantes, jóias e antiqualhas. Maomé me perguntará quem é o senhor. Que lhe responderei?

— Antes de tudo, não me chame mais de alteza! Meu traje é novo e limpo, mas na verdade é o único que possuo. Sou um jazidschi paupérrimo, que fica satisfeito quando encontra uma pessoa para a qual possa escrever. E este meu amigo é um carregador, que também ganha ínfimo salário. Moraremos aqui juntos os dois e talvez encontremos mais outro inquilino para que o aluguel se nos torne menos pesado. Quanto a termos serviços para o senhor, isso veremos depois, visto que necessitamos de fazer muita economia.

Eu lhe disse aquilo, porque, devido à vizinhança perigosa que íamos ter,

 

(5) Padeiro.

 

precisávamos aparentar a maior pobreza possível. O judeu respondeu:

— Oh! efêndi, eu me contento com pouca cousa. Se o senhor me der duas piastras diárias vos farei todos os serviços e todas as caminhadas.

— Vou ver se ganharei o suficiente para lhe poder pagar essas duas piastras diárias. Quando podemos nos instalar aqui?

— Imediatamente, efêndi.

— Viremos ainda hoje e espero não encontrar a porta fechada!

— Irei ligeiro à casa do padeiro e depois volto para vos esperar aqui. Com isso estava concluído o negócio e despedimo-nos de Baruch. Ao chegarmos na casa do Isla, contei ao pai e tio deste a nossa aventura e quando lhe expus a minha suspeita, concordaram que eu fosse ocupar a casa na companhia de Halef e Omar. Também Lindsay queria vir junto, mas eu não podia trazê-lo, visto que ele só poderia causar embaraços à empresa. Ficou indignado com isso o bom inglês; alegou que sozinho, sem a minha companhia, não poderia morar na casa de Mafley, e realmente, à tarde, mudou-se para a rua das Peras.

Depois de havermos combinado tudo o que era necessário, empacotamos nossas armas e fomos ocupar nossa nova “residência”.

O judeu já nos esperava. Mandara sua mulher limpar o mais que era possível todas as dependências e alegrou-se regiamente, quando mostrei-me satisfeito com aquela sua medida. Encarreguei-o de comprar-nos pão, café, farinha, ovos, fumo e alguns cobertores e quando ele se afastou para fazer essas compras, pudemos desempacotar nossas armas sem sermos observados. Guardamo-las num dos quartos no qual, a não ser nós, ninguém devia entrar.

Em breve voltou Baruch; sua mulher o ajudava a trazer as compras. A velha se assemelhava a uma múmia ressuscitada e convidou-me a jantar com ela. Aceitei o convite visto que os dois velhos nos poderiam ser úteis, por isso eu precisava captar-lhes a simpatia. Que isso já eu havia conseguido até certo ponto, notei-o antes de minha visita, pois os velhos espontaneamente nos trouxeram dois colchões de arrasto, colchões que nos serviriam de divas. O colchão parecia ter sido feito exclusivamente de trapos; mas Baruch era pobre e nisso se via a sua amizade; tomou-nos por homens sem recursos e a sua intenção fora boa.

Quando o casal de judeus se retirou, fizemos luz, pois já escurecera, e acendemos os nossos cachimbos. Isla nos dera uma lanterna, que estava destinada a nos prestar bons serviços. Combinamos que durante a minha ausência, Omar ficaria de guarda na porta da frente, a observar os que entravam na casa contígua; Halef se postaria no pátio. As duas casas eram separadas, no pátio, por uma frágil parede de madeira e assim o pequeno Hadji talvez conseguisse escutar alguma cousa.

Vi Baruch, que morava no lado oposto, à minha espera. O casal morava numa choupana abandonada e sem dono, casos muito freqüentes em Istambul. Era de se supor que a compra que eles nos fizeram lhes havia deixado algum lucro; estavam extraordinariamente bem humorados e nos acolheram com simpatia e cordialidade. A nossa aparição trouxera-lhes talvez uma esperança de melhorar a sua situação de miséria. A velha judia revelou um asseio que antes eu não lhe atribuía, e assim pude comer com apetite o pouco que ela me ofereceu. Quando lhes entreguei uma pequena porção de café e fumo, que lhes levara, os velhos ficaram tão contentes como se houvessem recebido um presente de alto custo.

Infelizmente observei que o cafetã. constituía realmente o único traje a cobrir a nudez de Baruch; as calças nem cheguei a ver e as mangas da jaqueta, que agora eu podia ver através do que ainda restava ao cafetã, também fizeram, talvez há muito, a “viagem do corvo”. Com pouca cousa eu poderia ajudar o velho e resolvi de fato ajudá-lo. Naturalmente que o negócio de jóias e antiqualhas, que dizia ele exercer, não passou de uma peta que, aliás, me pregou sem más intenções; com uma piastra e alguns pfennigs de pão era aquela gente obrigada a viver, e por isso sentiram-se os dois imensamente felizes quando lhes declarei aceitar-lhes os serviços de arrumação da casa e outros pequenos mandaletes, pagando-lhes um salário de cinco piastras por dia.

No decurso da palestra, pude informar-me, sem com isso dar na vista, a respeito de um ou outro de meus vizinhos.

— Efêndi, — disse Baruch — nesta rua só reside gente pobre. Alguns são bons e honestos, outros, porém, maus e perversos. O senhor é escritor e creio eu não é nesta zona que vai encontrar serviço; não precisará, pois, tratar com os que aqui residem, mas apesar disso, peço-lhe que se cuide especialmente com o vizinho do lado.

— Por quê?

— É perigoso a gente dizer.

— Mas eu sou discreto!

— Creio-lhe, mas o senhor será capaz de mudar-se imediatamente se eu lhe dissesse e isso me pesaria de todo o coração.

— Prometo-lhe não me mudar, embora me diga tudo. Penso que nos tornamos amigos e, sendo assim, o senhor é obrigado a ser sincero e honesto comigo. Não sou rico, mas o pobre também sabe o que é gratidão.

— Já me aquilatei de sua bondade e em vista disso creio na sua promessa. Todos os moradores desta rua sabem que na casa, contígua à sua não se passam coisas lá muito agradáveis, mas ninguém se importa com isso; uma vez um morador ao lado do referido prédio, espreitou-o e quando foi na manhã seguinte encontraram-no enforcado num dos barrotes do seu quarto. Não se tratava, conforme se averiguou depois, dalgum caso de suicídio!

 

A CASA SINISTRA

— Então acha o senhor que o meu vizinho não só é suspeito, como também perigoso?

— Exatamente. Deve tomar toda a cautela com ele.

— Mas pelo menos deve-se saber quem mora ali!

— É um grego, com a mulher e um filho. Eles têm vinho para beber e hospedam muitos meninos bonitos e moças novas, meninos e moças que no entretanto nunca se vêem na rua. Diversos homens andam de manhã à noite pela cidade a agenciar “habitues” para a casa. Esta é freqüentada por cavalheiros de distinção e gente comum, habitantes de Istambul e estrangeiros; joga-se ali e faz-se música e, creio eu, nem todos os que lá chegam a participar das festas se retiram depois... Ouvem-se às vezes, de noite, gritos de socorro ou o brandir de armas e depois pela manhã encontra-se um cadáver boiando no rio... freqüentemente chegam à noite grupos de homens que, contrariando as posturas da cidade, não vêm munidos de lanternas, em seu lugar, porém, sobraçam enormes pacotes que levam para dentro da casa. Depois o conteúdo desses pacotes é distribuído entre o grupo.

— O senhor diz que ninguém se importa com o que se passa naquela misteriosa casa e, não obstante, sabe de tudo isso com tanta exatidão. Já espiou alguma vez os homens?

— Efêndi, isso não devo dizer a ninguém; estaria então perdido!

— Nem a mim?

— Ao senhor mesmo é que não, porque seria capaz de espioná-los também e depois teria a mesma sorte daquele homem que foi enforcado no barrote de sua própria casa.

— Quem sabe se o senhor só diz-me tudo isso, com o intuito de meter-me medo!

— Efêndi, falo a pura verdade; não costumo mentir!

— Disso também estou convencido; mas quem sabe se tudo o que relata foi um sonho?

Aquilo excitou ainda mais o velho judeu; ele não queria ser nem mentiroso e nem um sonhador e replicou-me:

— Não direi mais nada, mas peço-lhe apenas não tocar nem na tábua e nem nos barrotes.

— Que tábua?

— Na parede direita do seu selamlik há uma tábua solta. Acha-se pendente apenas do prego de cima, e por isso pode ser afastada, em baixo, para o lado. Dali passa-se para um pequeno compartimento intermédio entre a parede da sua casa e a da do vizinho misterioso; também nesta há uma tábua nas mesmas condições; fui eu próprio que a desprendi; afastando-se essa tábua, para o lado, enxerga-se no compartimento do vizinho destinado aos fumantes de ópio, ao lado do qual se ouve o tinir de copos e os meninos e moças rirem.

— Neste caso, o senhor procedeu com muita imprecaução! E se também o vizinho descobrir que a tábua está solta?

— Eu pretendia ver o que se passava ali e outro meio não havia do que esse.

— Como não? Bastaria o senhor fazer um orifício tão pequeno na parede, orifício que o vizinho não notasse; por ele o senhor viria da mesma forma tudo o que se passava.

— Mas não se enxergaria tão bem.

— E que há com o barrote?

— Está no galpão que confina com a casa contígua e suficientemente comprido para se aproveitá-lo de escada. Também na parede deste galpão há uma fresta pela qual se enxerga no compartimento pegado. Ali é uma ampla sala onde se reúnem os homens para dividirem entre si as presas colhidas.

— Em qual das tábuas da parede está a fresta?

— Para eu poder notá-la facilmente, fiz-lhe um pequeno risco com cal.

— Como se explica não haver o senhor dado parte de tudo isso? Creio que isso seria dever seu!

— Efêndi, o meu primeiro dever é tratar de conservar minha vida. Não quero ser enforcado como o outro.

— Mas a polícia não lhe denunciaria ao criminoso. Seria um escândalo se ela o fizesse.

— Senhor, não mora há muito tempo em Istambul? Quando olhei pela fresta vi entre o bando gente de posição; entre ele havia dervixes, e gente da polícia, que conheço. Há muitos altos mansubli (6), que não percebem vencimentos do Grão Senhor e que por isso vivem de gorjetas, que procuram estorquir de toda a parte. E que faz esta gente, quando as gorjetas não são suficientes para viverem? Aquele que denunciar o seu vizinho, senhor, o fará exatamente a um karawulder (7) que esteve na casa misteriosa e então o denunciante será um homem morto na certa. Não, agora já sei o que se passa naquele prédio e daqui por diante não me preocuparei mais com ele. Só ao senhor é que narrei o que vi, e espero que a prevenção lhe seja útil!

Eu já soubera o bastante e me guardei de forçar Baruch a outras revelações. Convencera-me, finalmente, que me lançara a graves perigos, juntamente com os meus companheiros. Com certeza o grego viera a saber que estava agora com novo vizinho; na certa que colheria informações a nosso respeito e nos mandaria observar. Esta última tarefa era-lhe facílima, pois a podia realizar sem que o notássemos, dado o fato de se achar a sua casa separada da nossa por meio de uma simples parede de tábuas. Durante o dia era-nos impossível sair para o pátio, porque seria bem provável sermos avistados por alguém que nos conhecia de antes. Portanto foi conveniente termos contratado os serviços de Baruch; assim, podíamos conservar-nos o dia inteiro em casa.

Os companheiros por certo haviam acendido a luz. Esta podia ser vista pelo vizinho através de alguma fresta; possivelmente palestravam Halef e Omar e a sua palestra era fácil de ser ouvida da casa vizinha. Por isso não me demorei mais com o casal de judeus e voltei para casa. Antes, porém, instruí Baruch sobre o modo dele proceder no caso de ser inquirido a nosso respeito. Era para ele dizer que a casa fora alugada em comum por um pobre escritor, um carregador e um paupérrimo árabe, três homens portanto que tinham muito que trabalhar e que não se preocupariam com a vizinhança. Como a tapera do judeu confinava com a parede de nossa residência, bastava eu bater naquela para ele nos vir atender.

Quando cheguei à porta de entrada de nossa casa, encontrei Omar no seu posto. Disse-me ele que numerosas pessoas já haviam entrado no prédio misterioso. Estas, antes de entrarem, foram interrogadas de uma abertura que fica do lado da porta a respeito do que desejavam e todas responderam com a senha: “En Nassr”. Pedi-lhe que fechasse a porta e me acompanhasse ao nosso apartamento. Halef estava no pátio. Nada vira e nem ouvira e nos acompanhou também ao selamlik. Ali não ardia luz alguma e eu preferi que ficássemos às escuras.

Após haver-lhes relatado a minha palestra com Baruch, passei a examinar a parede direita do meu compartimento e encontrei a tábua solta. Afastei-a para o lado e tateando na largura de um barrote, encontrei a parede vizinha e ao mesmo

 

(6) Funcionário.

(7) Delegado de polícia.

 

tempo a sua tábua despregada, ligeiramente presa apenas por um prego. Afastei também esta muito de mansinho e constatei que o compartimento que se seguia estava no escuro. Pús a parede novamente em ordem, puxamos os colchões e deitamo-nos junto à nossa parede, a escutar, vendo se descobríamos alguma cousa.

Ali estivemos bem uma hora, palestrando somente por meio de sussurros, quando do outro lado percebemos um ruído. Afastei muito de leve a tábua. Ouvi pesados passos de vários homens seguidos de um profundo gemido; depois retumbou uma voz:

— Para aqui! Isso! Hassan que se prepare para sair! Depois de uma pausa continuou a voz:

— Homem, sabes escrever?

— Sim — ouvi a resposta.

— Tens dinheiro em casa?

— Exiges ainda dinheiro? Que vos fiz para me atrairdes aqui e me amarrardes?

— Que nos fizeste? Nada, absolutamente nada! Tua carteira, anel, armas e relógio já temos nós; isso, porém, não basta. Se não puderes dar o que exigimos, amanhã cedo será o teu corpo encontrado no rio.

— Allah kerihm! Quanto dinheiro exigis vós de mim?

— És rico; cinco mil piastras não é dinheiro para ti!

— É demais, pois não disponho dessa quantia.

— Quanto tens em casa?

— Quando muito umas três mil piastras.

— Remeter-te-ão, se as mandares buscar por um emissário? Não mintas, pois juro-te que terá soado tua última hora, se não recebermos o dinheiro!

— Allah illa Allah! Mandarão se eu selar a carta com o meu anel.

— Emprestar-te-ei o anel para isso. — Tirai-lhe as cordas das mãos, para que ele possa escrever!

Dali em diante durante algum tempo não se ouviu mais o menor ruído. Deitei-me no colchão e pouco a pouco fui afastando a tábua até formar uma frestinha. Bem diante de mim se achava um homem de costas viradas para o meu lado. Tinha a cabeça descoberta e suas vestes se achavam rasgadas, dando mostras de haver resistido a alguma investida. Defronte dele se achavam postados três tipos armados até os dentes: um deles usava vestes gregas e os outros dois simples trajes turcos. Observavam a vítima ao selar a carta, que apoiava sobre os joelhos.

Coloquei a tábua no seu primitivo lugar e continuei à escuta. Depois ouvi o grego, que sem dúvida era o dono da casa, dizer em voz alta:

— Isso! Amarrai-o novamente e conduzi-o ali para o lado. Se ele não se mantiver silencioso será simplesmente apunhalado. Ouviste? Anota o que eu disse!

Seguiu-se um silêncio, e depois ouvi os passos dos homens que se retiravam.

Narrei aos companheiros o que eu vira e ouvira.

— São ladrões — opinou Halef. — Que faremos?

— Não são apenas ladrões, mas assassinos também — cochichei-lhe. — Achas que eles soltarão o homem mesmo depois de receberem o dinheiro? Se o soltassem, estariam perdidos. Esperarão até que venham as três mil piastras e depois farão processo rápido com ele.

— Neste caso, temos que socorrê-lo!

— Sem dúvida! Mas de que maneira?

— Arrebentamos as tábuas e o libertaremos.

— Isto produziria muito barulho e é contrário ao nosso objetivo. A coisa se degeneraria em luta, que podia tornar-se perigosa para nós; e mesmo que saíssemos vencedores, abandonaríamos a casa e de nada nos teria adiantado a luta. O melhor, aliás, seria se chamássemos a polícia; mas sabe lá quando encontraríamos esta; até lá pode acontecer muita cousa. E sabe lá se a polícia está preparada para realizar uma batida perigosa ao antro? O mais aconselhável é desprendermos em ambas as paredes mais uma tábua. Deste modo podemos ir buscar o prisioneiro e repor as tábuas no lugar.

— Mas não temos torquezas.

— Mas minha faca basta. O principal é não ouvirem eles os nossos trabalhos. Vou imediatamente pôr mãos à obra.

— E sabes onde recolheram a vítima?

— Sim; através do compartimento onde, segundo me disse Baruch, costumam se reunir as moças e rapazes. Ao que parece está vazio agora. Do lado de lá há uma outra sala; sem dúvida, nesta é que guardaram o prisioneiro.

Examinei a nossa parede por meio de apalpadelas e constatei que cada tábua só se achava presa por um prego em baixo e em cima. O prego do nosso lanço parecia muito fácil de se arrancar; bastava eu colocar a faca entre o barrote e a tábua para desprendê-la sem ruído. Executei o serviço, mas infelizmente constatei depois que a abertura ainda não era suficiente para a passagem de um homem. Precisava deslocar mais uma tábua. Fi-lo sem que durante esse serviço houvesse eu percebido o menor ruído no interior do antro dos criminosos. Halef segurou as tábuas e fui examinar a parede vizinha. Notei que seus pregos se achavam com as pontas viradas. Esta circunstância dificultou consideravelmente o meu trabalho, pois tive de usar a faca à guisa de lima para arrancá-los. Isso produzia algum ruído e também me cançou de tal modo, que repetidas vezes tive que mudar de mão no meu trabalho.

Assim se passou longo tempo. Mal terminara eu o trabalho, ouvi o ruído de passos que se avizinhavam. Era o grego que trazia uma vela na mão. Abriu a porta que ficava fronteira ao nosso ponto de observação, mas não entrou na peça.

Ouvi o turco perguntar-lhe:

— O senhor tem o dinheiro?

— Sim — foi a curta resposta do dono da casa, acompanhada duma risada.

— Então me solte!

— Ainda não; estarás livre somente amanhã de manhã cedo. Quero só dizer-te que não tardará chegar gente a esta peça. Não devem saber que te achas aqui. Decerto não hão de entrar, mas é conveniente que não te ouçam. Por isso te vou amordaçar e amarrar. Se te mantiveres quieto, te daremos a liberdade, mas se fizeres o menor ruído só sairás desta casa feito cadáver!

O turco insistiu: que lhe dessem a liberdade! Prometeu não contar a quem quer que fosse da aventura por que passara. Tudo, porém, foi em vão. Pediu por fim que ao menos não o amordaçassem, pois que se queria conservar em absoluto silêncio. Nem este pedido lhe atenderam. Do leve temor que se lhe notava na voz, percebia-se que o homem adivinhava a verdadeira intenção do grego. Amarraram-no e lhe colocaram a mordaça. Depois o dono da casa se ausentou, tendo antes o cuidado de fechar a porta.

Era preciso agora que se agisse com rapidez antes que viesse a outra gente de que falara o grego. Era uma sorte haver eu terminado o meu trabalho. Peguei de meu revólver e da minha faca; depois esgueirei-me para a peça contígua. Os meus companheiros não me seguiram. Mantiveram-se de prontidão para socorrer-me, caso eu fosse agredido.

— Não faças ruído; quero libertar-te — murmurei ao preso enquanto lhe apalpava as cordas. Senti que eram reforçadas. Cortei-as e levei-as comigo. A mordaça se compunha dum lenço enrolado que tapava a boca e o nariz do prisioneiro. Desfiz os nós e guardei também o pano no bolso.

— Machallah — disse o homem, levantando-se, — quem és e com...

— Quieto! — interrompi-o. — Segue-me!

Retirei-o da peça, fiz que ele passasse através da fenda da parede para a nossa habitação.

— Hamdulillah, graças a Deus! — sussurrou Halef. — Estive muito preocupado por tua causa; mas por felicidade a tentativa resultou melhor do que eu esperava.

Nada respondi, mas usei do saca-rolha do meu canivete para parafusar a tábua do meio das três que havíamos afrouxado e cravei ainda o meu punhal no barrote, transversalmente, de modo que os dois cabos trancavam as tábuas de tal forma que ninguém poderia dizer que as mesmas haviam sido deslocadas.

Não demorou que ouvíssemos pisadas do outro lado.

Conduziam um homem embriagado, que largaram no assoalho para que cozinhasse a sua bebedeira. Agora tive certeza que tão cedo não haveriam de penetrar de novo naquele aposento. Dirigi-me com meus três companheiros para a peça contígua. Lá acendi a luz para examinar o nosso hóspede.

Tratava-se duma figura de porte mediano. Parecia não haver ainda alcançado a idade de cinqüenta anos. Tinha uma fisionomia inteligente. Saudei-o:

— Se bem-vindo! Fomos testemunhas da tua aventura na casa vizinha e entendemos ser nossa obrigação socorrer-te.

— Então não fazeis parte daquele grupo de malfeitores? — perguntou o homem, desconfiado.

— Não.

— Sabia que me queriam tirar a vida e, quando me buscastes, julguei chegado o meu último momento. Quem sois?

— Eu sou alemão. Estes são dois amigos meus, árabes livres do Saara. Este homem, Osmar Ben Sadek, tem a cumprir uma vingança de sangue contra um homem que parece freqüentar essa espelunca. Por esse motivo alugamos esta casa para poder vigiar a nossa vizinhança. Moramos aqui desde hoje e Alá quis que logo na primeira noite tivéssemos ocasião de evitar uma má ação. Podemos saber quem és?

O desconhecido, cabisbaixo, pregou os olhos no chão. Depois sacudiu a cabeça e respondeu:

— Permite que eu me cale! Não quero que meu nome seja publicamente conhecido como envolvido nesta aventura. Tu és um forasteiro, mas hei de te ficar grato do mesmo modo, embora fiques conhecendo meu nome mais tarde.

— Respeito a tua vontade e peço ao mesmo tempo não falares em gratidão. Conheces algum dos homens que se acham do outro lado?

— Não. Há ainda muitos fregueses. Alguns não parecem ser meros fregueses. Ainda esta noite mandarei dar uma batida neste antro.

— Achas que serás bem sucedido? Estou convencido, contudo, de que o grego antes de amanhã não tornará àquele recinto. Será, portanto surpreendido pela polícia a menos que também mantenha vigias do lado de fora. Fui informado de que muitos policiais e funcionários, e até dervixes freqüentam esta casa. Desse modo o teu êxito será um tanto problemático...

— Polícia? — perguntou o homem desdenhosamente. — Vi efetivamente, que numa das peças se achavam alguns khawass, mas não deram por mim. Não. Não irei à polícia. Fica sabendo que sou um zabit (oficial); o grau que tenho é coisa secundária. Trarei os meus soldados e farei um processo sumário nesta espelunca.

Essa notícia tinha para mim tanto de agradável como de desagradável. Se toda a camarilha fosse presa, podia bem acontecer que o homem por nós procurado não se achasse no meio dos delinqüentes. Teríamos nesse caso de encetar a nossa tarefa de novo. Mas a pedra dos acontecimentos fora posta em movimento e tive de deixar que continuasse rolando... Considerando essas particularidades respondi ao homem:

— Então me faze o favor de me mostrar os prisioneiros que fizeres. Eu desejava saber se no meio deles se encontram os homens que estamos; procurando.

— Hás de vê-los todos!

— Permite-me uma observação: Os que pretenderem entrar na casa têm de proferir a senha “En Nassr”. Talvez te seja isto de utilidade.

— Ah! Foi esta então a palavra que o meu guia sussurrou ao vão do lado da porta! Mas, — continuou ele em tom de desconfiança — como é que conheces a senha?

Como ele me falava de semelhante modo deduzi que seu grau militar não devia ser dos mais inferiores. Respondi, pois, de modo calmo:

— Omar Ben Sadek esteve de vigia e a ouviu. Contei tudo que lhe era conveniente saber e continuei:

— Será prudente dividires as tuas forças em duas metades. Uma delas poderá entrar pela porta da frente usando a senha conhecida, e a outra poderá penetrar pela abertura por onde te salvamos. É contudo conveniente que os homens que devem entrar pela porta da frente não entrem sem que primeiro a outra metade já se encontre aqui. Pode ser que o porteiro, ao notar a presença de soldados, dê um sinal de alarme que permita a fuga dos criminosos.

— Vejo que falas com sinceridade. Seguirei o teu conselho. Não tendes algum fêz convosco? Aqueles canalhas descobriram a cabeça dum crente e por isso terão de pagar...

— Emprestar-te-ei o meu. Dar-te-ei também as minhas pistolas, para que não fiques desarmado.

— Agradeço-te, franke. Devolver-te-ei tudo o que me emprestares. Sede cuidadosos; em menos duma hora estarei de volta.

Acompanhei-o até a porta. O desconhecido se afastou rapidamente mantendo-se sempre do lado oposto da viela.

— Sídi, — perguntou-me Omar quando retornei, — deixarão Abu en Nassr ao meu cuidado, se ele fôr aprisionado?

— Ainda não sei.

— Tenho de cumprir a minha vingança.

— Talvez o oficial não cogite disso.

— Então sei o que devo fazer! Lembra-te do juramento que fiz no Schott Dscherid no lugar onde pereceu meu pai? Nota que deixei crescer O cabelo e a barba, e o inimigo, que tenho tão próximo, não me escapará.

Dirigiu-se para fora, ao selamlik e se sentou sobre a tábua solta. Ai de Abu en Nassr, se vier a cair nas mãos do vingador!

Apaguei a luz e segui Omar, acompanhado de Halef. Do outro lado parecia agora haver um número maior de pessoas. Ouvi um profundo ronco e acompanhado de leves gemidos semelhantes aos que costumam emitir as pessoas narcotizadas pelo ópio. Mantivemo-nos no mais absoluto silêncio. Depois de decorridos três quartos de hora me dirigi para a porta à espera do oficial.

Havia já transcorrido mais de uma hora quando na escuridão vi aproximar-se do lado oposto da rua uma longa fila de indivíduos que se moviam com cautela. Decerto já haviam sido instruídos, pois enquanto uma parte deles estacionava, veio o resto do grupo diretamente na direção de nossa porta. Vinham precedidos do oficial, que se conservava fardado. Estava ele suficientemente armado.

— Ah, tu nos esperavas? — sussurrou-me. — Aqui tens as tuas pistolas e o teu fêz. Tirou os objetos das mãos dum homem que o acompanhava. Este era capitão. Enquanto eu conduzia os homens para o interior, — eram uns trinta — conservou-se ele na porta. As três peças da minha casa estavam cheias, quando entrou o último dos homens. Apesar do péssimo estado da escada, penetraram os soldados sem fazer o mais leve ruído.

— Faze luz — disse-me o oficial.

— Fechaste a porta da rua? — perguntei-lhe.

— Puxei o ferrôlho.

— E postaste um guarda?

— Um guarda? Para quê? — perguntou ele com um sorriso.

— Já te disse que apenas hoje cheguei a esta casa. Ainda não conheço suficientemente o terreno. Devemos portanto manter-nos alerta para evitar que o inimigo invada o nosso pátio e fuja pela nossa porta.

— Não te preocupes com isso — respondeu-me ele com superioridade. — Eu sei bem o que devo fazer!

Depois de acesa a luz, colocou-a ao lado da parede de tábuas e ordenou que se começasse. Os soldados da frente investiram com as coronhas contra a parede. Não deixou de ser uma imprudência, pois, antes que o primeiro deles chegasse ao outro lado, já os vizinhos estariam alarmados. Um único dos homens, o mais prudente, retirou meu canivete e meu punhal do barrote e, empurrando as tábuas para o lado, se esgueirou para a casa vizinha. Já ele havia desaparecido quando o oficial seguido dos seus soldados invadiu o antro dos criminosos.

De início eu tive a idéia de guarnecer a porta, mas desisti por considerar que não era de meu papel corrigir os erros alheios. Assim, acompanhado do oficial e do capitão também me dirigi para o outro lado. Havia estendidos no aposento uns seis ou sete homens embriagados ou entorpecidos pelo ópio. Saltamos por cima deles e penetramos no compartimento fronteiro onde vimos sumir-se por outra porta o último vulto. Seguimos adiante.

Do andar térreo já se ouvia um estranho vozerio: era o resto dos soldados que havia penetrado diretamente da rua. O compartimento onde agora penetramos tinha ainda duas portas. Uma dessas abrimos. Deu-nos ela entrada para um compartimento que não tinha outra saída. Estava cheio de rapazes e moças que se achavam em posição de súplica, genuflexos, no chão.

— Uma guarda para esta porta! — ordenou o oficial.

Ele se dirigiu apressado para a segunda porta, acompanhado por mim. Nesse momento por ela apareceu Omar, que nos comunicou, arfante:

— Ele não está lá em cima. Tenho de descer.

A vingança de sangue o impelira, na frente de nós todos, a vasculhar todo o andar superior.

— Quem está lá em cima? — perguntou o oficial.

— Há mais de vinte indivíduos, bem nos fundos. Não conheço a nenhum deles.

Empurrou-nos suavemente para o lado e precipitou-se para baixo.

Nós ainda penetramos em diversos aposentos que se achavam todos iluminados. O assalto se dera de modo tão rápido e inesperado, que de susto se esqueceram de apagar as luzes. Mais tarde vim a saber que o homem que montava guarda à porta, disparara a sua pistola ao avistar o primeiro soldado. Depois desaparecera na escuridão do corredor. Do interior de nossa casa não havíamos ouvido esse disparo por causa, sem dúvida, do ruído produzido pelas coronhadas que nossos soldados davam contra a parede para arrombá-la. Os meliantes devem tê-lo ouvido, e, como aquele tiro era o sinal convencional de grande perigo, trataram todos logo de fugir. Fora esse o motivo por que encontramos vazios os compartimentos dianteiros da casa.

Finalmente chegamos à porta que conduzia à última peça. Haviam-na barricado por dentro. Enquanto os soldados se esforçavam por arrombá-la por meio de coronhadas, também se ouvia do lado de dentro rangidos e estouros. A porta era muito sólida e oferecia muita resistência. Em vista disso me dirigi apressado à nossa habitação a fim de munir-me de minha espingarda, pois trazia comigo somente revólveres e pistolas; das facas se havia apoderado Omar.

Quando voltei com a minha arma a porta apenas mostrava uma pequena fenda. Era construída com solidez, naturalmente porque dava acesso ao último recinto da casa, recinto este que vinha a constituir o último reduto do covil. A parede não era de tábuas como as demais, mas sim de alvenaria.

— Afastem-se! — gritei aos homens. — Deixem-no por minha conta.

Minha espingarda tipo “mata-urso” era um instrumento mais adequado ao arrombamento de uma porta, do que as leves arminhas dos nobres defensores da pátria. Já à primeira investida abri uma brecha com a coronha que era fortemente guarnecida de ferro. Depois de mais três coronhadas achava-se a porta esfrangalhada. Fomos, porém, recebidos com uma salva de mais de dez tiros. Tombaram diversos de nossos soldados, eu, porém, saí ileso por haver me encontrado ao lado da parede quando dei as coronhadas. O oficial, empunhando a sua arma, se atirou para dentro da peça. Quis segui-lo, mas ouvi uns gritos que partiam do pátio:

— Sidi, socorro! Ligeiro!

Compreendi num instante que o bravo Hadji se achava em perigo. Naturalmente tive de procurá-lo. Para fazer o percurso através de todas as peças por onde viéramos e para penetrar na nossa habitação, para daí descer a escada que dava ao pátio, teria sido um caminho demasiado longo. Entrementes poderiam acabar matando o bom Halef. Por segunda vez lhe ouvi o pedido de socorro, e desta vez com maior insistência. Precipitei-me contra a parede de tábuas que dava para nosso pátio e com umas poucas coronhadas despreguei diversas tábuas.

— Coragem, Halef! Eu já vou!

— Ligeiro, Sidi, que o tenho preso — gritou-me ele de novo.

As tábuas velhas e carcomidas voaram para baixo; imperava no pátio uma escuridão profunda, mas seguiram-se algumas detonações acompanhadas de mordazes imprecações. Eu não podia hesitar. Sem vacilações me precipitei na escuridão. A altura não era extraordinária, contudo fiz uma aterrisagem pouco branda. Dum salto achei-me de novo em pé.

— Halef, onde estás? — perguntei.

— Aqui, junto à porta.

Realmente! O bravo Hadji atendera às minhas palavras, o que não fizera o oficial. Em vez de seguir-nos à casa vizinha, postara-se ele à nossa porta. Os homens que se achavam comprimidos no último reduto do covil, arrombaram, como eu o fiz, algumas tábuas da parede que dava para nosso pátio, e de lá também se precipitaram na escuridão. A metade deles já se encontrava no nosso pátio quando nós, no andar superior, apenas lhes invadíamos o reduto. Haviam querido fugir através da nossa casa, mas esbarraram com Halef, o qual em vez de se postar no corredor, recebera-os a peito descoberto. Os disparos que eu ouvira eram dirigidos contra Halef. Não sabia se ele se achava ferido, mas pude ver que se mantinha em pé e que se defendia com a coronha da espingarda.

Uma luta corpo a corpo assim na escuridão, é um caso original. Os sentidos parece que se desdobram na sua acuidade. Vêem-se com uma nitidez aumentada os objetos que normalmente não se veriam, e o instinto que nessas ocasiões nos guia, nos dá resoluções que são imediatamente executadas e que superam em genialidade aos planos mais maduramente concebidos. Com a minha coronha, em breve o libertei de maior perigo. Percebi como diversos vultos tombavam sob as nossas arremetidas; mas tive de pensar em uma coisa:

— Quem é que tens, Halef? — perguntei-lhe no meio do combate.

— Abrahim Mamur!

— Ele? ah, onde está?

— A meus pés. Abati-o a coronhadas.

— Bravos! Finalmente!

Os poucos homens que ainda nos importunavam em breve cederam às nossas investidas. Não mais me preocupei com os mesmos e me abaixei para examinar Abrahim Mamur. A algazarra no pátio ainda continuava; repetidamente vinham saltando homens de cima, homens que fugiam à perseguição dos soldados. Deles eu não cuidei, porque Abrahim era uma presa de maior importância. Risquei um fósforo e iluminei o rosto do homem que jazia no solo.

— Oh! Halef, não é ele.

— Não é? Impossível, Sidi. Ao deflagrar o meu tiro pude ver-lhe claramente a fisionomia.

— Então o homem conseguiu fugir e tu acertaste num outro. Para onde foi ele?

Pus-me de pé e perserutei o interior do pátio. Notei diversos vultos que através duma fenda na cerca se esgueiravam para a casa de Baruch. Também Halef imediatamente o percebeu.

— Sigamo-los, sídi! Ele fugiu por ali!

— Claro! Mas assim não o pegaremos. Ele terá de passar pela nossa porta. Vem comigo.

Avancei para o corredor e abri a porta da frente. Passaram diversos vultos que vinham da casa de Baruch. Eram uns três ou quatro. Um quinto, que os seguia, e que não notara a nossa presença, exclamou:

— Alto! Mantende-vos juntos!

Era ele. Era a sua voz, a voz que por ocasião da nossa fuga no Nilo eu ouvira dirigida aos seus criados. Halef, que a reconhecera, também imprudentemente gritou:

— É ele, sídi! Sigamo-lo!

Abrahim ouvira esta exclamação e sem se voltar deitou a correr. Halef e eu o perseguimos. Com o fim de desvencilhar-se dos seus perseguidores o fugitivo enveredou por diversas ruazinhas tortuosas e escuras. Eu o seguia, porém, a uma distância de uns quinze passos quando muito, e Halef se mantinha sempre a meu lado. Notei que o meu salto noturno para o pátio da nossa casa não ficara sem efeito sobre o meu físico; do contrário, na certa eu teria facilmente alcançado o fugitivo. Era ele um ótimo corredor. O bom Halef quase chegou a deitar os bofes para fora.

— Pára, sídi! — disse-me ele, arfante. — Abate-o com um tiro!

Obedecer-lhe a ordem ter-me-ia sido fácil, contudo não o fiz. Havia outra pessoa que tinha mais direitos sobre o fugitivo. Por isto fiz questão de capturá-lo vivo. Assim, a perseguição continuou. Chegamos por fim a uma viela que dava sobre a praia do “Chifre de Ouro”. Não muito longe da costa se divisava o grupo de ilhas que fica situado entre Barahive Keui e Sudluje.

— Halef, à direita! — gritei.

Ele obedeceu e eu me dirigi para o lado da praia que ficava à esquerda da saída da rua. O fugitivo estacou um momento para ver se o seguíamos. Depois tomou um pequeno impulso e se arrojou à água, sob cuja superfície desapareceu.

— O waih! — gritou Halef. Mas ele não nos escapará. Assestou a espingarda como para atirar.

— Não atires — pedi. — Estás a tremer da corrida e não acertarás. Deixa, que eu o seguirei.

— Sídi, tratando-se dum facínora, podes estar certo de que a minha mão não tremerá — foi a firme resposta que me deu.

Nesse instante emergiu a cabeça do fugitivo à tona d’água. Seguiu-se um estampido — um grito, e a cabeça desapareceu sob o borbulhar das águas.

— Acertei! — gritou o Hadji, entusiasmado. — Está morto! Viste, sídi, como não tremeu a minha mão?!

Esperamos ainda um momento, mas a cabeça de Abrahim Mamur não mais tornou a aparecer. O tiro realmente parecia ter sido mortal. Momentos depois nos retiramos do campo da luta.

Durante a perseguição do criminoso eu prestara toda atenção no rumo que vínhamos seguindo, bem como no comprimento e na conformação das ruas percorridas; mas assim mesmo gastamos um tempo considerável antes de conseguir encontrar a nossa habitação.

Ali, entrementes, ocorrera uma mudança notável. A rua se achava fartamente iluminada, pois com os tiros e a balbúrdia havida os habitantes saíram para a rua munidos de lanternas de papel. Uma parte dos soldados formou um cordão de isolamento ao redor das três casas, e a outra parte, ou continuava nas buscas no interior das habitações, ou montava guarda aos prisioneiros feitos. Eram considerados prisioneiros todos os que naquele dia foram encontrados na casa do grego. Este mesmo havia sido morto. O capitão lhe abrira o crânio. Sua mulher com um golpe de espada se achava junto dos rapazes e das moças que ainda estavam amarrados no interior da casa. Os embriagados e os que se achavam entorpecidos sob a ação do ópio também foram aprisionados. O tumulto passado contribuíra para aclarar-lhe as idéias. Contaram-se diversos soldados mortos e outros feridos; viemos a verificar que infelizmente também nosso valente Halef recebera uma arranhadela por bala no antebraço, ao lado uma facada, que, felizmente, não tinha maior gravidade. Haviam detido sob custódia especial quatro homens, que pareciam pertencer ao bando. Seis deles tinham sido mortos e o resto conseguira escapulir. Omar, que muito se esforçara na luta, mantinha-se encostado, com ar de aborrecido, ao corrimão da escada; não conseguira apossar-se de Abu el Nassr. O resto não o interessava...

O velho Baruch já se havia acomodado no leito, quando foram disparados os primeiros tiros. Logo a seguir haviam-lhe arrombado a porta, e ele, de medo, se manteve enclausurado no quarto. Somente ao nosso regresso é que se atreveu a aparecer. Ficou pasmado ao ouvir o que acontecera. Tinham terminado de reunir os diversos grupos de prisioneiros e o oficial permitiu aos soldados que saqueassem a casa. Dessa permissão não deixaram eles de fazer largo uso. Nem dez minutos haviam decorrido e já nada mais no interior da casa se encontrava, com exceção de certos volumes, que, devido ao seu grande peso, eram difíceis de serem transportados.

Nesse ínterim procurei o capitão, ao qual perguntei pelo oficial.

— Acha-se do lado de fora da casa — foi a sua resposta.

Isso eu já sabia; mas interessava-me obter mais pormenores a respeito daquele oficial. De início respeitei-lhe o mutismo; mas depois ele me tratou de um modo que eu não merecia nem esperava; e agora, após a luta cessada, não lhe importava mais a minha pessoa, de modo que eu já não via mais motivo para manter-me discreto a seu respeito.

— Qual é a categoria que ele ocupa? — indaguei.

— Não me perguntes — foi a brusca resposta. — Foi-nos proibido dizer.

Por esse mesmo motivo fazia eu questão de sabê-lo! Havia um dos soldados, que se ocupava em dar uma busca na casa de Baruch enquanto os demais se dedicavam ao saque. Saira-se ele mal na partilha e, proferindo blasfêmias, se ia dirigindo para a rua. À saída, detive-o.

— Não sobrou nada para ti, meu amigo? — perguntei-lhe.

— Nada — respondeu o homem aborrecido.

— Então farei que possas ganhar alguma coisa, se me quiseres responder a uma pergunta.

— Que pergunta é essa?

— Qual é a categoria de oficial que vos comanda?

— Ele não quer que falemos a seu respeito. Mas ele não se lembrou de mim... Se me dás vinte piastras, eu te direi.

— Hás de tê-las.

— É ele Mir Alai (8) e chama-se...

Deu-me o nome dum homem que havia pouco se notabilizara na vida pública e que ainda hoje é conhecido como notável oficial. Não é turco de nascimento, e, da posição humilde de servo predileto do seu soberano, galgara o posto que ora ocupa somente em virtude de seus extraordinários dotes intelectuais.

Paguei a quantia estipulada e dirigi um olhar para a rua. O Mir Alai achava-se à frente da porta e dificilmente podia deixar de me ver.

Como eu esperava, ele se aproximou de mim e perguntou:

— São pusilânimes como tu todos os frankes? Onde te achavas quando nós outros estivemos envolvidos na luta?

Era uma pergunta atrevida. Tive ímpetos de esmurrá-lo.

— Também nós lutávamos, — respondi-lhe com ar de indiferença — mas só com aqueles que inutilmente deixaste escapar. Um homem prudente se ocupa de preferência em corrigir os erros do próximo.

— A quem deixei escapar? — perguntou ele, meio irado.

— Todos os que conseguiram escapulir. Como não quiseste ouvir o meu conselho de guarnecer a porta de saída, estivemos ocupados, meu servo e eu, em deter a grande maioria, enquanto tu com a tua gente te ocupaste somente com a minoria. Que farás dos prisioneiros?

— Allá o sabe! Onde estarás morando amanhã?

— Aqui, decerto!

— Aqui não morarás mais.

— Por quê?

— Não tardarás em sabê-lo. Onde podes ser encontrado amanhã?

— Na casa de Bazirgian Maflei, que fica próximo a Jeni Dschami.

— Mandarei procurar-te.

A estas palavras o interlocutor deu-me as costas sem se despedir, fazendo um sinal à sua gente. Trouxeram os presos, que foram colocados em quadrado; e a comitiva se pôs em movimento. Dirigi-me sem olhar para trás, ao pátio e percebi a razão por que não mais havia de morar naquela casa. O amistoso oficial mandara deitar fogo à casa do grego e as labaredas já começavam a lamber o teto. Era um modo perfeitamente muçulmânico de apagar uma lembrança desagradável.

Penetrei sem dizer palavra no interior da casa, a fim de ao menos salvar as nossas espingardas e os poucos tarecos que trouxéramos. Apenas terminara de acomodar tudo no pátio quando as chamas subiram além do telhado, projetando claridade na rua. É completamente impossível descrever a algazarra e o tumulto que se seguiram. É necessário que se tenha alguma vez presenciado um incêndio em Constantinopla para fazer-se idéia do pânico indescritível que se manifesta. Ninguém se lembra de salvar o que quer que seja, nem de apagar o fogo; pensam todos em fugir, pois como a maioria das casas são de tábua, acontece que um incêndio não raro devora um quarteirão inteiro.

O velho Baruch achava-se atônito de medo e sua mulher, de susto, nem se podia mexer. Tratamos de consolá-los tão bem quanto nos era possível. Prometemo-lhes uma boa acolhida em casa de Maflei, após havermos ainda conseguido salvar alguns dos seus pobres trastes. Com facilidade arranjamos alguns carregadores e assim abandonamos a casa onde nem vinte e quatro horas havíamos residido, apesar de havermos pago o aluguel correspondente a uma semana. Ê verdade que o padeiro ricaço, o proprietário, não perdeu uma fortuna com o incêndio daquele velho pardieiro.

Como fosse tarde da noite, encontramos fechada a casa de Maflei, mas não demorou muito que às nossas batidas nos abrissem a porta. Reuniram-se os membros de toda a família; ficaram desapontados ao ouvirem o modo como terminara a nossa aventura. Teriam preferido que lhes trouxéssemos Abrahim Mamur; mas conformaram-se, afinal, em saber que o mesmo perecera nas águas do “Chifre de Ouro”, recebendo assim o castigo merecido.

Baruch e sua mulher foram recebidos amistosamente e o dono da casa prometeu zelar por eles.

Quando por fim nos disseram que a vivenda do jardim se achava de novo à nossa disposição, observou Isla com o rosto transbordante de alegria:

— Efêndi, recebemos hoje, enquanto estavas ausente, um hóspede querido. Adivinha quem é!

— Como poderei adivinhar! Será que o conheço?

— Ainda não o viste, mas já te falei a seu respeito. Hei de chamá-lo, e quando o vires, adivinharás.

Fiquei curioso por conhecer o hóspede, pois de algum modo devia ele ter relação com as minhas aventuras. Dentro em breve Isla veio acompanhado dum ancião, o qual todavia, me era desconhecido. Trazia ele a usual vestimenta turca, mas nada dele me apresentava um indício qualquer. As linhas do rosto tostado do sol eram audazes e o rosto mesmo denotava uma singular energia. Contudo se lhe notava no semblante, apesar de emoldurado de vistosa barba branca, traços dum profundo pesar.

— É este o homem, efêndi — disse-me Isla. — Adivinha agora!

— Não sou capaz de adivinhar.

— Não obstante adivinharás! Dirigindo-se ao estranho, pediu-lhe:

— Fala-lhe no idioma da tua pátria!

O ancião fêz uma inclinação para saudar-me e disse:

— Szluga pokoran, wiszoko pocschíowani, vosso submisso servo, meu estimado senhor!

Essa saudação servia de cortesia fêz-me, com efeito, adivinhar logo. Estendi-lhe ambas as mãos e lhe disse:

— Nubo, otatz Osco, dobro, mi docschli, — Vejam só o pai Osco! Sede bem-vindo!

Era realmente Osco, o pai de Senitza, e ele se alegrou bastante por ver que eu o reconhecera pela saudação servio-montenegrina. Claro que naquele momento não pensamos em dormir. Era necessário que me contasse a sua aventura.

Desde o desaparecimento da filha, que era a única do casal, perambulara ele sem sossego. Diversas vezes supunha ter encontrado um indício da filha querida, mas sempre sofrerá decepção... Nessas suas peregrinações através da Ásia Menor e da Armênia não sofrerá privações, pois era homem abastado. Seguindo o hábito oriental jurara não tornar a ver a esposa e a pátria enquanto não encontrasse a filha amada. Mas em vista dos resultados negativos até então colhidos fora obrigado a deter-se em Constantinopla. Uma odisséia semelhante pode acontecer somente no Oriente, pois na Europa pareceria uma loucura. É de imaginar-se a alegria do montenegrino quando, não somente encontrou a filha como esposa do homem para o qual sairá a procurá-la, como também encontrara a esposa, que seguindo também em busca da filha fora ter em Istambul.

Fora ele inteirado de toda a trama havida e achava-se sedento de vingança. Estava resolvido a procurar o dervixe Ali Manach, para obrigá-lo a indicar o paradeiro do seu pai. Tive de convencê-lo de que desistisse daquele intento e que deixasse a visita a meu cargo.

Somente depois dessa conversa é que nos resolvemos a dormir e, devido o cansaço não tardou que eu caísse num sono profundo. Talvez não me tivesse acordado nem de manhã, se não me despertassem. É que Maflei mandara um criado à casa do jardim, para dizer-me que chegara um homem que insistentemente me desejava falar sobre assunto de importância. Visto como no Oriente se costuma dormir vestido, achei-me logo pronto para atender ao chamado. Encontrei um homem que perguntou pelo meu nome e me disse que viesse sem perda de tempo à casa de S. Dimitri, onde se achava o barbeiro de Jueterbog. O barbeiro desejava falar-me e o assunto era de muita urgência.

— Que é que ele quer? — indaguei.

— Não sei de que se trata — respondeu-me o homem — eu moro na vizinhança e o barbeiro me pediu que lhe desse o recado.

— Dize-lhe, então, que já vou.

Paguei-lhe a mensagem; o homem se retirou. Nem bem haviam passado cinco minutos quando me achei a caminho, acompanhado de Omar. Dada à insegurança que oferece uma tal taverna, achei prudente não ir só. A Halef não quis importunar por causa do ferimento que ele recebera no braço. Nos pequenos cavalos alugados, em cujas caudas se seguravam os recoveiros que nos acompanhavam, atravessamos rapidamente diversas ruas. Quando chegamos, o dono da casa veio imediatamente nos receber, dizendo-nos submissamente após nos haver cumprimentado:

— Efêndi, és tu o alemão que há pouco esteve na minha casa com um tal Hamsad al Dscherbaja?

— Sim.

— Pois ele deseja falar-te.

— Onde está ele?

— Está deitado lá em cima.

As palavras “deitado lá em cima” logo me induziram a pensar numa enfermidade ou num acidente. Enquanto Omar ficava esperando no salão de baixo me dirigi com o dono da casa ao primeiro andar. Aí chegados ele parou e me disse:

— Não te assustes, senhor, se o encontrares doente.

— Que houve com ele?

— Oh! nada de importância. Só recebeu uma pequena facada.

— Ah! E quem o feriu?

— Um estranho, que nunca esteve em minha casa.

— Por quê?

— Achavam-se de início sentados juntos e conversavam com vivacidade; depois passaram a jogar e quando o teu conhecido quis pagar, verificou que não trazia dinheiro. Começou a disputa e não tardou que entrassem em cena as facas; ele se achava embriagado e foi ferido.

— É de gravidade o ferimento?

— Não, porque não morreu em seguida.

Consoante a opinião daquele bom homem, um ferimento só é perigoso quando o ferido morre imediatamente...

— E não trataste de segurar o outro?

— Como poderia eu segurá-lo? — respondeu ele embaraçado. — Teu amigo não tinha dinheiro e foi o primeiro a puxar da faca.

— Mas, conheces ao menos o outro?

— Não. Já te disse que nunca esteve na minha casa.

— Já chamaste médico?

— Sim. Logo providenciei para que chamassem um afamado hekim, que lhe fêz os curativos. Espero que me pagues as despesas que tive com o médico e o que o ferido me ficou devendo por bebidas. Também tive de pagar ao estranho a soma ganha no jogo.

— Ainda vou resolver a respeito. Conduze-me até lá agora!

— Entra por aquela porta dos fundos. Eu tenho de atender o meu negócio.

Quando penetrei no aposento indicado, que de mobília só tinha um colchão, logo vi o barbeiro deitado sobre o mesmo, com uma expressão cadavérica no rosto. Percebi que o ferimento devia ser de gravidade e me abaixei para falar-lhe.

— Agradeço-lhe por ter vindo — disse-me ele com voz apagada e com visível esforço.

— O senhor pode falar? — perguntei.

— Oh, não me fará mais mal. Estou perdido.

— Tenha coragem! O médico não lhe deu esperanças?

— É um charlatão.

— Então hei de transportá-lo a Pera. O senhor está de posse dum salvo-conduto do embaixador da Prússia?

— Não. Não quis que me tomasse por um franke.

— Quem foi o homem com o qual brigou?

— Oh! Não sabe então? Se o senhor mesmo me pediu que o procurasse! Foi Abrahim Mamur!

Ergui-me de um salto quando ouvi aquele nome.

— Isso é impossível, Abrahim Mamur está morto!

— Morto? Antes estivesse.

Caso singular! Agora no seu leito de morte o barbeiro não mais falava o seu dialeto regional, mas sim um alemão perfeitamente gramatical! Essa particularidade me chamou a atenção.

— Conte então — pedi-lhe.

— Era tarde da noite e ainda eu me encontrava aqui. Foi quando ele chegou, e completamente molhado, tal como se tivesse vindo a nado. Eu logo o reconheci, mas ele pareceu não me reconhecer; depois jogamos e eu perdi. Eu me achava embriagado e talvez lhe tivesse dito que o conhecia; eu não dispunha de dinheiro e por isto começamos a brigar; quis apunhalá-lo para fazer um favor ao senhor, mas ele foi mais rápido do que eu. Eis tudo!

— Não quero admoestá-lo. Isso nada adiantaria e mesmo o senhor se acha doente. Não notou se Abrahim Mamur era conhecido do dono da casa?

— O dono da casa parecia conhecê-lo muito bem, pois logo lhe deu vestes enxutas, sem que ele lhe tivesse pedido.

— Seja sincero! O senhor não é de Jueterbog?

— O senhor adivinhou. Sei que o ferimento é mortal e quero falar a verdade: nasci na Thuringia. É o quanto basta! Não tenho parentes e não pude voltar à pátria. O senhor quer mesmo mandar-me a Pera?

— Sim. Antes, porém, quero trazer-lhe um médico competente para que o examine e para que veja se o senhor resiste ao transporte. Tem ainda algum desejo?

— Mande que me dêem Scherbet e não se esqueça de mim!

Só a custo conseguira falar, e com muitas interrupções. Finalmente, fechou os olhos; perdeu os sentidos. Desci para junto do dono da casa e dei-lhe as minhas instruções, depois de haver ainda prometido pagar todas as despesas legais. Depois nos dirigimos apressadamente a Pera. Fui à embaixada da Prússia a cujo chanceler expus sucintamente o caso. Ouviu-me este com toda atenção e me prometeu tomar conta do ferido. Incumbiu-se também de conseguir o médico e só me pediu que lhe deixasse Omar, para que lhe servisse de guia. Claro que com isso ainda não me senti desobrigado dos deveres que tinha para com o meu compatriota. Podia contudo tornar à casa por saber que o assunto se achava em boas mãos.

Logo após a minha chegada procurei Isla para dizer-lhe que Mamur não perecera na água, senão que ainda continuava a viver. Achava-se ele rodeado de livros e de amostras de mercadorias num compartimento que parecia ser o seu escritório. Mostrou-se pouco satisfeito com a minha nova, mas acalmou-se à idéia de que talvez ainda conseguíssemos capturar vivo aquele homem. Quanto ao barbeiro, disse-me que não se compadecia dele, pois o tivera de mandar embora em virtude de diversos furtos por ele cometidos.

Durante a nossa conversa os meus olhos repetidas vezes caíram sobre o livro que ele tinha na mão. Parecia tratar-se dum conta-corrente cujo conteúdo pouco me interessava. Enquanto falávamos, os seus dedos, como que brincando, distraidamente manuseavam diversas folhas e — quando outra vez dirigi o olhar para o livro — dei com um nome, que me induziu a colocar a minha mão naquela página, para evitar que ela fosse virada. Era o nome “Henri Galingré, Schkodra”.

— “Galingré, em Schkodra”? (é o nome turco de Scutari). Este nome me interessa dum modo particular. Conheces o tal Galingré em Scutari?

— Sim. É um francês de Marselha, um dos meus fornecedores.

— De Marselha? Combina admiravelmente! Já o viste ou lhe falaste alguma vez?

— Diversas vezes. Já ele esteve aqui e eu estive na casa dele.

— Não sabes nada da sua história e da sua família?

— Colhi informações antes de fazer o primeiro negócio. Mais tarde ele também me contou diversos episódios da sua vida.

— E que sabes acerca dele?

— Tinha uma pequena casa de negócio em Marselha, mas esta não lhe bastava. Depois seguiu para o Oriente, primeiro para Istambul e depois para Adrianópolis; ali vim a conhecê-lo. Faz um ano que se acha estabelecido em Scutari, onde é um dos homens mais abastados.

— E seus parentes?

— Tinha um irmão, que também não se agradou de Marselha. Seguiu este para Algier e depois para Blidah, onde prosperou de tal forma que o irmão de Adrianópolis lhe mandou um filho para com ele fazer aprendizagem. Dito filho se casou com uma menina de Marselha e voltou à casa paterna, para depois de mais alguns anos tomar conta do negócio do pai. Duma feita teve ele de dirigir-se à casa do tio em Blidah, para tratar dum negócio de importância; e na mesma ocasião em que ele lá se achava, aconteceu que mataram o tio e saquearam o conteúdo todo da caixa. Suspeitaram dum mercador armênio, e o jovem Galingré se pôs à sua procura por achar que a polícia não se mostrava bastante ativa. O rapaz nunca mais voltou. O pai, em conseqüência, herdou a fortuna do irmão. Ainda hoje chora ele a perda do filho, e daria uma nababesca gratificação a quem lhe indicasse um rasto do mesmo. É o que a respeito dos Galingré te posso contar.

— Bem, pois eu posso indicar-lhe o rasto que ele procura.

— Tu? — foi a pergunta admirada de Isla.

— Sim.

— Como pudeste silenciar tanto tempo? Já no Egito te contei que Abu en Nassr, aquele que é procurado por Hassan, matou no Wadi Tarfaui a um francês, de cuja propriedade se apossou. Não te comuniquei também que esse francês se chamava Paul Galingré?

— Ainda hoje, aqui neste dedo, trago a aliança que lhe pertenceu, os outros objetos infelizmente se extraviaram na bolsa da minha sela, quando o meu animal se afundou no Schott Dscherid.

— Efêndi, darás esta notícia ao velho!

— Isso é claro...

— Vais escrever-lhe?

— Tratarei de vê-lo. A notícia transmitida através duma carta o surpreenderia demasiadamente. De regresso à minha pátria talvez eu passe por aquele lugar. Devo ainda refletir sobre este assunto.

Após essa conversa procurei Halef para dizer-lhe que Mamur ainda vivia. De começo ele não quis acreditar que errara o tiro, mas por fim me observou:

— Então é possível que meu braço tremesse.

— Assim deve ter sido!

— Mas o homem proferiu aquele grito e desapareceu debaixo d’água!

— Deve tê-lo feito de segunda intenção; parece ser um bom nadador. Meu caro Hadji Halef Omar, fomos uns grandes tolos: achas que um homem que recebe uma bala na cabeça ainda possa gritar?

— Isso não sei dizer, porque nunca recebi uma bala na cabeça. Se um dia me alojarem uma bala nos miolos, o que Alá não permita, então tratarei de ver se é possível gritar. Mas achas, sídi, que lhe encontraremos o rasto?

— Assim o espero.

— Por intermédio do hospedeiro?

— Por intermédio deste ou do dervixe. Parece-me que o dervixe o conhece. Ainda hoje tratarei de falar-lhe.

Visitei também o judeu que com a mulher vivia na casa do jardim. Já se havia ele conformado com a sorte e não mais lamentava a perda ocasionada pelo incêndio da noite anterior. Bem sabia que o rico Maflei facilmente cumpriria a sua promessa de zelar por ele e sua mulher. Enquanto eu estivera em S. Dimitri e em Pera, fora ele de novo a Baharive Keui e me contara que o incêndio devorara quase o quarteirão inteiro.

Ainda estávamos conversando quando de nós se aproximou um criado aegro de Maflei para dizer-me que um oficial me queria falar.

— Quem é esse oficial? — perguntei eu.

— É um jusbaschi (9).

— Traze-o então à minha habitação.

Não achei necessário perder um passo por causa desse homem; e em lugar de me dirigir ao edifício principal, recolhi-me ao meu quarto onde encontrei Halef, a quem contei da visita que eu esperava.

— Sídi, — disse-me ele, o jusbaschi foi descortês para contigo. Vais tratá-lo com cortesia?

— Sim.

— Achas que assim há de se envergonhar de nós? Bem, se assim é, então também o tratarei de modo cortês. Permite-me que o receba como teu chizmetkiar? (10).

Ele saiu para fora e eu me sentei no divã para acender um cachimbo. Poucos minutos depois ouvi as caminhadas do visitante e a voz do pequeno Hadji, que falava ao negro:

— Para onde vais?

— Devo conduzir este Agha ao efêndi estrangeiro.

— Ao emir de Dschermanistan, queres dizer! Podes dar volta, pois deves saber que na casa dum emir não se penetra como na casa dum paputschi ou dum terzi. (Sapateiro ou alfaiate). O emir que Alá me destinou está habituado a ser tratado com a máxima cortesia.

— Onde está o teu amo? — era a voz imperativa do capitão.

— Permite-me, oh Alteza, indagar primeiro quem tu és!

— Isso o teu amo o verá...

— Mas não sei se será do seu agrado. É um homem muito severo e não permite que se lhe apresente um estranho sem que primeiro se tenha obtido a sua licença.

Imaginei com prazer a expressão submissa do pequeno alarife perante a fisionomia intempestiva do oficial, que tinha de cumprir uma ordem do seu superior e que com prazer teria dado meia volta se fosse possível. Ele respondeu:

— É o teu amo então realmente um emir tão nobre? Gente dessa linhagem costuma ter outras habitações além da que vimos ontem à noite.

 

(9) Capitão.

(10) Criado.

 

— Isso fê-lo somente para divertir-se. Para ter um passatempo quis presenciar como sessenta guerreiros valentes aprisionam rapazes e moças indefesas, enquanto deixam escapar os adultos. O espetáculo foi muito do seu agrado e agora se acha ele no seu divã tratando do seu kef, e não quer ser molestado.

— Vejo que estás ferido. Também tomaste parte no combate de ontem?

— Sim. Eu estive postado na porta, no lugar onde deveriam ter colocado um guarda. Mas vejo que gostas de conversar comigo. Permites, Alteza, que te ofereça um assento?

— Alto lá, homem! Parece que estás falando sério. Dize a teu amo que desejo falar-lhe.

— E que direi, se me perguntar quem és?

— Dize a ele então que eu sou o jusbaschi de ontem à noite.

— Bem. Pedir-lhe-ei então que deixe que a sua bondade te ilumine e que te permita a entrada, pois bem sei o que se deve arriscar por um homem da tua nobreza.

Ele entrou e fechou a porta atrás de si. Resplandecia-lhe o rosto de alegria.

— Deverá sentar-se ele ao teu lado? — perguntou Halef a meia voz.

— Não. Coloca a almofada na minha frente e perto da porta. Mas usa de toda a cortesia. Depois trazer-lhe-ás um cachimbo e café.

— E café para ti também?

— Não. Em sua companhia não tomo café.

Abriu a porta e deu entrada ao outro com a submissa observação:

— O emir o permite.

O oficial entrou e, depois de uma imperceptível inclinação de cabeça, começou:

— Vim para tratar da promessa que ontem te fêz...

Interrompeu-se, porque um inequívoco sinal de minha mão determinou que se calasse. Parecia-lhe não ser necessário usar de uma saudação de cortesia perante um franke, e eu senti grandes desejos de fazer-lhe ver que um cristão também está acostumado a ser tratado com cortesia.

Achava-se ainda parado na porta. Halef trouxe a almofada e a depôs a seus pés; isto feito se retirou. Era um espetáculo encantador observar-se a cara do major, que não sabia se havia de assumir um ar de indignação, de vergonha ou de admiração. Submeteu-se às circunstâncias e se sentou. Parecia custar um grande sacrifício ao nobre oficial ter de sentar-se à porta dum cristão.

Visto ser costume no Oriente haver sempre água quente para o café, não tardou que Halef servisse aquela bebida ao visitante, acompanhada, dum cachimbo. Este aceitou ambas as coisas; tomou o café e deixou que Halef lhe acendesse o cachimbo. Depois o último se postou atrás do major e teve início a conversação.

— Meu filho, — disse-lhe eu, em tom paternal, o que devia parecer grotesco, pois devíamos ser mais ou menos da mesma idade — meu filho, peço-te prestares bem atenção àquilo que minha boca te vai dizer. Quando se penetra na habitação dum bilidschi (11) deve-se saudar de modo cortês, do contrário a gente é tida na conta de muda, ou de ignorante. Ademais também não se deve dar início à conversa

 

(11) Homem culto, de posição.

 

enquanto o dono da casa não houver dirigido a palavra ao visitante, pois é dele que deve partir a iniciativa da mesma. Quem se arrogar o direito de julgar o próximo sem conhecê-lo, pode muitas vezes incorrer em lamentável erro, e do erro à humilhação não vai grande distância. Espero que me agradecerás as minhas sinceras palavras, pois os homens experimentados na vida têm a obrigação de ensinar a juventude.

O homem deixara de fumar o cachimbo, tão admirado estava ante a minha atitude que manteve a boca escancarada. Mas agora já não mais se conteve e explodiu com estas palavras:

— Não é nenhum pedido que venho fazer-te, senão uma ordem que te trago.

— Uma ordem? Meu filho, é conveniente falar devagar, pois só desse modo se evita dizer coisas irrefletidas e de conseqüências desagradáveis! Não conheço em Istambul homem nenhum que tenha o direito de me dar ordens. Quererás dizer que tu é que tens a cumprir uma ordem e por este motivo me vens visitar. Tu és um subalterno, mas eu sou um homem livre! Quem foi que te mandou?

— O homem que ontem à noite nos comandou.

— Tu te referes ao Mir Alai... ?

Mencionei o nome que no dia anterior viera a saber daquele soldado. O major fêz um movimento de espanto e perguntou:

— Conheces então o seu nome?

— É como ouves! Qual é o seu desejo?

— Mandou que te ordenasse que não falasses a pessoa alguma dos acontecimentos da noite passada.

— Já te disse que ninguém tem o direito de me dar ordens. Dize ao Mir Alai que publicarei o assunto no próximo número do Bassiret! Já que não posso aceitar a ordem que me queres dar, está terminada a nossa entrevista.

Levantei e me encaminhei para a peça contígua. O major, de tão perplexo, se esquecera de falar e de levantar-se. Só depois de alguns minutos fui procurado por Halef, que me comunicou que o visitante se retirara com umas saborosas blasfêmias.

Era quase certo que o Mir Alai mandaria de novo à minha procura; mas não me senti na obrigação de esperar por seu mensageiro, e me preparei para sair. Dirigi-me depois ao convento dos dervixes, onde queria falar com Ali Manach. Achei-o, como no dia anterior, na sua cela a orar. Quando o cumprimentei, voltou-se ele para mim e pude notar pela expressão da sua fisionomia que não lhe era desagradável a minha visita.

— Salam! tu me trazes por acaso uma nova dádiva? — perguntou ele correspondendo à minha saudação.

— Ainda não sei! Como queres que te chame: Ali Manach Ben Barud al Amasat, ou En Nassr?

De um salto, ergueu-se do divã e se pôs bem próximo de mim.

— Psit! Não fales aqui! — sussurrou-me ele amedrontado. — Vai ao cemitério, do lado de fora; dentro duns instantes te seguirei.

Parecia-me que eu estava com a partida; tive contudo de reconhecer que eram necessários alguns torneios diplomáticos a fim de não me denunciar. Abandonei o convento e cruzei o pátio para penetrar no cemitério, através do portal gradeado. Jaziam ali centenas de dervixes. Haviam eles terminado a sua dança e sobre as suas cabeças, em lugar dos turbantes, havia uma lousa. Terminara a sua comédia! Como atravessarão eles a “ponte da provação”?

Ainda não me havia aprofundado muito na contemplação das sepulturas quando vi que o dervixe se aproximava. Avançou, absorto, aparentemente, em profunda meditação, para um canto do cemitério. Segui-o.

— Que tens a dizer-me? — perguntou ele.

Tive de usar da maior precaução; por isto respondi:

— Antes de tudo devo conhecer-te melhor. Posso fiar-me em ti?

— Pergunta ao usta. (12) Ele bem me conhece.

— Onde se pode achá-lo?

— Em S. Dimitri, na casa do Rum (18) Kolettis. Até ontem estivemos em Baharive Keui, mas fomos descobertos e nos enxotaram. Por pouco que não mataram o usta. Só por ser bom nadador é que ele se pôde salvar.

Estas suas palavras me revelaram que Abrahim Mamur era o chefe dos flibusteiros; falara ele portanto a verdade em Baalbeck. Mas o dervixe me citara o nome dum homem, nome esse que me fêz lembrar uma aventura passada. Não se chamava Alexandre Kolettis o grego que, por ocasião do combate no “Vale dos degraus”, me cairá nas mãos?

— E estaremos seguros na casa de Kolettis? — continuei.

— Completamente! Sabes onde mora?

— Não. Faz pouco que me acho aqui em Istambul.

— E donde vens?

— De Damasco, onde encontrei o usta.

— Sim, ele lá esteve, mas foi mal sucedido. Um hekim franke o reconheceu e o usta teve de fugir.

— Eu sei disso. Conseguiu apoderar-se somente de parte das jóias do rico Schafei Ibn Jacub. Conseguiu vendê-las?

— Não.

— Sabes isto ao certo?

— Com toda a certeza, porque eu e meu pai somos os seus confidentes.

— Eu vim para tratar com ele a respeito dessas jóias. Sei dum homem, que compra tudo. Tem ele as jóias ao alcance da mão?

— Acham-se na torre de Galata num lugar seguro. Talvez já chegues tarde, pois o irmão de Kolettis também encontrou um comprador, que quer hoje tratar do negócio.

Esta notícia me perturbou um pouco, porém me esforcei para não dar demonstração.

— Onde se encontra Barud el Amasat, teu pai? Tenho uma notícia importante a dar-lhe.

— Acha-se em Edreneh (14), na casa do mercador Hulam.

 

(12) Mestre.

(13) Grego.

(14) Adrianópolis.

 

Fiquei sobressaltado. Na certa que estava por ocorrer nova patifaria. Mas me contive.

— Eu sei disso — observei de modo despreocupado. — Esse Hulam é parente daquele Jacub Afarah de Damasco e do mercador Maflei, que reside aqui em Istambul.

— Vejo que sabes de tudo. Posso confiar em ti.

— Dize-me então ainda onde se encontra o teu tio Hamd el Amasat

— Também o conheces? — perguntou ele admirado.

— Conheço-o muito. Esteve no Saara, no Egito.

A sua admiração não teve mais limites. Tomara-me por um membro importante da sua “nobre” congregação.

— De modo que decerto és tu o usta em Damasco?

— Não me perguntes, mas sim responde-me.

— Hamd el Amasat acha-se atualmente em Scutari. Reside com um comerciante francês chamado Galino ou Galineh.

— Decerto queres dizer Galingré.

— Mas, senhor, vejo que conheces a todos!

— Sim, mas duma coisa ainda não sei: como é o nome do usta atual?

— Ele é de Konieh e se chama Abd el Myrrhatta.

— Fico-te muito grato. Em breve ouvirás mais a meu respeito. Ele correspondeu à minha saudação com uma tal subserviência, que me convenci de que meu ardil dera ótimo resultado. Tratava-se agora de não perder tempo, pois do contrário poderia periclitar a vantagem obtida. Sem que previamente eu me dirigisse à casa de Maflei, arrumei um cavalo e me pus a caminho de S. Dimitri para descobrir a casa de Kolettis. O dono da casa se achava ausente mas encontrei sua mulher. Em primeiro lugar me informei do estado de saúde do barbeiro e fui informado de que viera um outro médico que iniciou tratamento diferente. Em seguida me informei do Kolettis. A mulher me fitou admirada e disse:

— Kolettis? Pois é o nome do meu marido.

— Ah, é seu marido? Não sabia. Não se encontra aqui em S. Dimitri um homem de Konieh e que se chama Abd el Myrrhatta?

— Mora conosco.

— Onde se acha ele agora?

— Foi à torre de Galata, a passeio.

— Foi sozinho?

— Não. Seguiu com o irmão de meu marido.

Coincidia tudo admiràvelmente! Teriam ido em busca das jóias? Tive de segui-los. Disse-me ainda a mulher que fazia pouco tempo que eles haviam saído. Fui informado igualmente de que Omar também estivera lá quando os dois homens saíram, e que ele se retirou logo após. O vingador se achava portanto nas pegadas do assassino.

 

A MORTE DE ABRAHIM MAMUR

Montei a cavalo e segui para Galata, a trote. As ruas esconsas desse bairro regurgitavam de marinheiros, soldados navais, oleiros imundos, judeus espanhóis, Hammaliks, marujos atrevidos e outros personagens de importância, de modo que só a custo eu conseguia passar. Era maior a aglomeração de gente quando me aproximei da torre. Parecia haver acontecido algo de anormal, pois senti empurradelas e cotovelaços que constituíam um perigo para o transeunte pacato. Paguei o recoveiro que me acompanhara e me aproximei para colher informações. Um kaiksch que a custo abrira passo através da multidão me informou:

— Subiram dois homens à galeria da torre e caíram ao solo; jazem ali com os corpos esmagados.

Fiquei apreensivo. Omar os seguira; teria ele sido vítima dum desastre?

Tratei de abrir caminho com violência; muito empurrão e muito soco recebi de mistura com tapas e pontapés. Quando cheguei ao pequeno círculo deixado pela multidão, vi dois corpos humanos reduzidos a uma massa informe. A galeria da torre genovesa de Galata tem uma altura duns 140 pés; por aí se poderia julgar do aspecto das duas vítimas. Omar não era nenhuma das vítimas, o que pude constatar pelas roupas. O rosto dum dos mortos se achava intacto e pude ver que era o de Alexandre Kolettis, que conseguira fugir dos haddedins. Mas quem seria o outro? Estava completamente irreconhecível. Teve uma morte horrível, como me contou um dos circunstantes. Durante a queda conseguira ele agarrar-se a uma das grades; mas nessa posição não se pôde manter por mais de um minuto. Depois, caíra para morrer.

Involuntariamente dirigi una olhar para as mãos do morto. Percebi que tinha um talho na mão direita. Decerto fora a mão com que se agarrara. Percebi que não fora vítima duma queda, mas sim que fora empurrado para baixo. Mas onde se achava Omar?

Tratei de abrir passo para a entrada da torre. Entrei. Um bakschisch conseguiu-me a licença para subir. Subi as cinco escadas de pedra que conduzem através dos cinco primeiros andares. Depois ainda subi as três escadas de madeira que dão para o bufete do café. Estava presente ali somente o kawehdschi e não notei a presença de nenhum outro freguês. Até esse recinto tive de escalar 144 degraus. Depois ainda subi os 45 degraus que conduzem ao campanário, que é coberto de folha e tem uma forma muito esguia. Dali saí para fora e avancei para a galeria. Percorri todo o espaço que a mesma abrangia e estacionei no lugar de onde tinham tombado os dois homens. Havia diversas manchas de sangue. Via-se claramente que ali se travara uma luta antes da queda dos infelizes. Fora uma luta, naquelas alturas, e num plano bastante inclinado. Devia ter sido uma luta de dois contra um! Era horrível!

Desci precipitadamente sem me demorar no café e me pus a caminho de casa.

O primeiro que me veio ao encontro no selamlik — foi Jacub Afarah. Resplandecia-lhe o rosto, de alegria; abraçou-me e me disse:

— Alegra-te comigo, emir, recuperei as minhas jóias.

— Impossível — respondi-lhe eu.

— Contudo é verdade!

— E como as recuperaste?

— Por intermédio de teu amigo Omar.

— Onde as conseguiu?

— Não sei. Entregou-me o pacote e logo se dirigiu à casa do jardim. Lá se encerrou e não quer ouvir a ninguém.

— Quero ver se comigo faz exceção.

Na porta da casa do jardim se achava Halef, que me veio ao encontro, dizendo à meia voz:

— Sídi! Que terá acontecido? Omar Ben Sadek voltou para casa ensangüentado. Agora está se lavando.

— Encontrou a Abrahim Mamur e o precipitou torre abaixo.

— Machallah! É verdade isso?

— Acho que sim. Creio mesmo que não tenha sido de modo muito diferente. Lembra-te de que somente nós é que podemos saber disso. Trata pois de ficar calado!

Aproximei-me da porta de Omar, na qual bati, dizendo o meu nome. Ele logo abriu e deixou-me entrar com Halef. Sem que lhe perguntássemos, contou-nos o que acontecera.

Fora ele primeiro com o médico, ao qual acompanhou de novo à casa. Depois com os carregadores que deviam trazer o barbeiro, foi à casa de Kolettis. Ali vira ele Abrahim Mamur em companhia do dono da casa, ambos conversavam em voz baixa. Um dos dois lhe era desconhecido. Percebera ele algumas palavras soltas às quais prestara atenção. Levantou-se e abandonou o recinto; mas pelo corredor se dirigiu à peça contígua, onde claramente pôde perceber a conversa toda. Os homens já não falavam mais em voz abafada porque se supunham sozinhos.

Falaram das jóias roubadas em Damasco, jóias essas que queriam retirar da torre, onde havia de guarda um homem do bando de Abrahim. Omar sabia da história do roubo das jóias em Damasco; ouvira-a da boca de Halef e teve então a certeza de haver encontrado a Abrahim Mamur. No decurso da conversa percebeu ele que não se enganara, pois Abrahim também falou da sua fuga na noite anterior através do “Chifre de Ouro”.

Voltou Omar depois ao recinto onde se achavam os conspiradores e resolveu segui-los até a torre. Conseguira escutar toda a conversa porque a dona da casa se achava ocupada no pátio. Logo que os dois saíram, ele os seguiu. Haviam os dois permanecido durante algum tempo no andar térreo da torre, que servia de galinheiro e parecia um monturo. Depois subiram as escadas e ele os seguiu. No café ainda tomaram ambos um moca; depois o guarda da torre desceu e eles subiram. Omar ia atrás. Quando ele penetrou no campanário achavam-se os dois homens já na galeria, de costas voltadas para ele. A caixinha com as jóias se achava no campanário. Omar também saiu para a galeria e se postou de maneira que o vissem.

— Que queres aqui? — perguntou-lhe Abrahim. — Não estiveste há pouco em casa de Kolettis?

— E que tens que ver com isso? — respondeu-lhe Omar.

— Estás nos seguindo para espionar, cão infame?

A estas palavras se lembrou Omar de que ele era filho do valente Uelad Merasig, e sentiu-se invadido duma nobreza e duma coragem de leão.

— Sim, estou te espiando — foi a resposta franca do rapaz. — Tu és Abrahim Mamur, o ladrão de donzelas e de jóias, cujo covil nós ontem, queimamos. A vingança te está no encalço. Trago-te lembranças do emir de Frankistão, aquele que te arrebatou Guzela e que te enxotou de Damasco. Soou a tua hora!

Abrahim, ao ouvir essas palavras, ficara atônito. Esse momento aproveitou Omar e lhe deu um empurrão que o precipitou para baixo. Kolettis. proferiu um grito e lançou mão do punhal. A luta só teve a duração de segundos. Omar foi ferido de leve, na nuca, e esse ferimento fêz que ele lutasse com forças redobradas. Num relancear de olhos também o segundo dos infames se achava a caminho do solo. Nesse momento notou Omar que o primeiro dos dois se segurara na grade. Um talho com a faca na mão crispada contribuiu para encurtar a agonia do malvado.

A cena toda ocorrera com uma rapidez impossível de se descrever. Omar tornou ao campanário onde agarrou a caixinha das jóias e se retirou> com ela. Conseguira escapulir sem que o notassem, apesar de já se haver aglomerado uma enorme multidão ao redor dos mortos.

Narrara ele todos esses episódios com uma naturalidade como se se tratasse da coisa mais banal do mundo. Eu, por minha vez, também me abstive de comentários e tratei de curar-lhe o ferimento. Depois ele nos seguiu à casa da frente, onde a aventura relatada teve outra acolhida. Surpresos ante o que acabavam de ouvir, Maflei e Isla, seu irmão, só proferiram uma exclamação de surpresa, e, esquecendo por completo a sua gravidade muçulmana se precipitaram para a rua a fim de irem ver os mortos. Só retornaram depois de decorrido algum tempo e nos comunicaram que os cadáveres haviam sido provisoriamente depositados no andar térreo da torre. Nenhum dos circunstantes sabia quem eram os mortos. Eles mesmos evitaram de dizê-lo ou mesmo de dar demonstração de que conheciam os cadáveres.

Perguntei a Halef se não tinha desejos de ver o antigo conhecido seu, o grego Kolettis. A resposta foi um desdenhoso encolher de ombros:

— Se se tratasse de Kara Ben Nemsi ou do Hadji Halef Omar, eu iria vê-los. Mas esse grego era um vil réptil e não quero vê-lo de novo.

Ainda levou algum tempo até que Maflei terminasse a conversa com os parentes e até que com calma pudesse continuar a falar.

— O castigo ainda foi pouco para o miserável — observou Isla. — Um curto momento de agonia não foi o suficiente, se tivermos em vista, os males que ele praticou. Devíamos tê-lo apanhado vivo!

— Restam agora ainda os dois Amasat — observou o pai. — Será que ainda algum dia os tornaremos a ver?

— Deveis conformar-vos com um deles: com Barud el Amast. O outro nada vos fêz. Se me prometerdes não usar de violência contra o mesmo e de entregá-lo às mãos do juiz, eu vô-lo conseguirei.

Estas minhas palavras provocaram uma viva animação. Cobriram-me de pedidos e de interrogações. Contive-me. Nada mais lhes disse enquanto não consegui cumprir com a minha promessa. Depois passei a contar-lhes a conversa que eu tivera com o dervixe.

 

A CARAVANA DA VINGANÇA

Mal eu terminara de falar, levantou-se Jacub Afarah de um salto e gritou:

— Allah ketihm! Estou adivinhando o que quer esta gente. Quer eliminar toda a nossa família porque Isla arrebatou Senitza das mãos de Abrahim Mamur. De início quis que eu ficasse pobre; mas isso não conseguiu. Agora pretendem seguir a Constantinopla e terá chegado a vez de Maflei. Principiaram com o seu fornecedor. Devemos escrever imediatamente para advertir a Hulam e a Galingré.

— Escrever? — perguntou Isla. — Isso de nada serve. Temos de ir nós mesmos a Adrianópolis para capturar Barud el Amasat. Efêndi, tu nos acompanhas?

— Sim — respondi lacônicamente. — É o melhor que podemos fazer, e vos acompanho porque Adrianópolis se acha no caminho à minha pátria.

— E de lá queres voltar para casa?

— Sim. Já me acho longe da minha pátria há mais tempo do que o tencionava.

Posso dizer que essa minha resolução encontrou séria objeção; mas depois de lhes haver feito ver o meu ponto de vista, acabaram concordando comigo. Durante toda essa disputa amistosa houve um homem que não disse uma palavra; foi Halef. Mas pelas contrações da sua fisionomia percebi que ele desejava dizer mais do que os outros.

— Quando partiremos, então? — perguntou Isla, que demonstrou muita pressa.

— Vamos já — respondeu Osco. — Não quero perder um minuto. Não descansarei enquanto não tiver aquele Barud el Amasat nas minhas mãos.

— Creio que precisamos fazer alguns preparativos — observei eu. — Se partimos a boa hora amanhã de manhã, não será tarde demais e teremos todo o dia à disposição. Iremos montados ou embarcados?

— Vamos montados — decidiu Maflei.

— E quem nos acompanha?

— Eu, eu, e eu também — ouvia-se de toda a roda. Verificamos que todos estavam dispostos a tomar parte na viagem.

Depois duma breve discussão ficou resolvido que nos acompanhariam os seguintes: Schafei Ibn Jacub Afarah, que nada tinha que ver com Barud, mas que queria aproveitar a ocasião para fazer uma visita a um parente; Isla, que fêz questão fechada de ajustar contas com o raptor de sua esposa; Osco, que quis vingar o rapto da filha; Omar, que a caminho de Adrianópolis quis seguir para Scutari a fim de ajustar contas com Hamd el Amasat; e eu, que tencionava seguir viagem para a minha pátria. Só a custo convencemos Maflei de que ele devia ficar em casa; era necessário que cuidasse dos seus negócios, e como Isla nos acompanharia, era necessário que ele ficasse excluído.

Halef não perdera uma palavra. Quando me dirigi a ele, tive esta resposta:

— Pensas por acaso, sídi, que te deixarei partir sozinho? Alá nos uniu: ficarei contigo!

— Mas pensa na tua Hanneh, flor entre as mulheres! Cada vez mais te distancias dela.

— Não fala mais, sídi. Sabes que eu sempre realizo o que desejo. Eu te acompanho!

— Mas um dia teremos que nos separar!

— Senhor, talvez não tarde muito que chegue esse dia, e quem sabe se depois mais uma vez na vida nos tornaremos a ver. Por enquanto não te abandonarei; e só te deixarei quando os outros regressarem às suas casas e quando tiveres de abandonar este país.

Levantou-se e se dirigiu para fora como para evitar qualquer objeção; vi-me, pois, forçado a aceitar a sua companhia.

Meus preparativos para a viagem pouco trabalho me deram; bastava que Halef e eu encilhássemos os nossos cavalos para estarmos prontos para seguir. Uma obrigação, porém, ainda me restava a cumprir: tive de sair à procura de Lindsay para pô-lo ao corrente dos nossos propósitos. Quando cheguei à sua casa fazia pouco que ele voltara dum passeio a Bujukdere. Saudou-me meio alegre e meio admoestativo e me disse:

— Welcome! Que homem mau que o senhor é! O senhor vai a Baharive Keui e nem se lembra de convidar-me! Que quer comigo agora?

— Devo dizer-lhe que não moro mais em Baharive Keui.

— Oh, não mora mais lá? Allright, venha então à minha casa!

— Agradecido. Parto amanhã de manhã de Constantinopla. O senhor quer vir junto ou não?

— Partir de Constantinopla, hein? Bonito gracejo, yes!

— É sério. Pode estar seguro!

— Realmente? E por que tanta pressa? Se faz pouco que chegou!

— Conheço bastante a cidade e se parto antes do que esperava, isso não tem importância alguma para mim.

Contei-lhe detalhadamente tudo o que ocorrera.

Depois de eu haver terminado o meu relato, Lindsay meneou satisfeito a cabeça e me disse:

— Muito bem! Folgo em saber que aquele canalha recebeu o castigo merecido. Oxalá também encontrem os outros dois. Well, eu gostaria de estar junto, mas não posso; estou comprometido.

— Por quê?

— Estive no consulado e encontrei um Lindsay, primo meu. Ele quer ir a Jerusalém, mas como não entende de viagens, me pediu que o acompanhasse. Ê pena que os senhores não possam ir conosco. Yes. Esta noite quero visitar Maflei para despedir-me.

— É o que lhe ia pedir. Durante uns poucos meses passamos ambos por episódios pelos quais outros não passam durante toda a vida. E essas aventuras em comum concretizaram a nossa amizade. Tenho-lhe em grande apreço e muito sinto a sua partida, Mas devo submeter-me ao inevitável. Resta-nos a esperança de nos tornarmos a ver.

— Yes! Oh, havemos de nos tornar a ver! Não simpatizo com a sua partida. Não me agrada nada!

Falou-me comovido enquanto com uma mão alisava o nariz e com a outra esfregava os olhos.

— Mas lembro-me agora duma coisa: que será do cavalo?

— Que cavalo?

— Do seu, do Rih!

— Que haverá de ser? Vou cavalgá-lo.

— Hum! Quer então montá-lo sempre? E levá-lo talvez à Alemanha?

— Isso ainda não sei!

— Venda-o! Obterá por ele um bom dinheiro. Mesmo que agora ainda o necessite, aconselho-o a que me venda. Eu não regateio e pago o preço que me pedir. Well!

Essa conversa não me era lá muito agradável. Que poderia um pobre literato como eu fazer com aquele animal? Na minha pátria eu vivia em circunstâncias que não me permitiam a manutenção dum cavalo. Mas... vendê-lo? Vender o animal que eu recebera de presente do xeque haddedin? E quem sabe quem seria o futuro proprietário do meu guapo animal! Não. Eu não podia ficar com ele, mas também me era impossível vendê-lo, eu já sabia que fazer! Era meu dever, em atenção aos perigos de que o nobre animal me salvou, dar-lhes um dono que o tratasse bem. Esse bravo companheiro não havia de perecer nos frígidos invernos do norte: quis que voltasse aos prados do sul, que voltasse à sua terra, às pastagens dos haddedins.

Já que combináramos um encontro para a noite, não era necessário que eu demorasse muito na casa de Lindsay. Dirigi-me outra vez à embaixada, onde encontrei o chanceler. Contou-me ele, que o pretenso barbeiro de Jueterbogk não mais nos importunaria, pois viera a falecer.

Não o haviam tratado com demasiada consideração; ele teve de confessar quem era: um criminoso foragido duma pequena cidade da Turingia. Senti pena dele, pois os dotes intelectuais que possuía, lhe teriam permitido outras perspectivas que não a de morrer abandonado em terra estranha.

O chanceler acompanhou-me até a porta. Ainda trocamos algumas palavras de cortesia quando por nós passaram dois homens montados a cavalo. Não lhes dei atenção, mas um dos homens parou o seu cavalo e o outro teve de imitar-lhe o exemplo. O chanceler retirou-se após uma cordial saudação para o interior da embaixada e eu me dispus a me pôr a caminho, quando ouvi um dos homens gritar:

— Machallah! Será verdade, emir?

Estariam falando da minha pessoa? Detive-me, voltando-me. Os dois cavaleiros eram oficiais. Um deles era aquele Mir Alai, cujo mensageiro eu recebera de modo tão cortês pela manhã, e o outro, o seu companheiro, era o homem que eu surpreendera no bando dos dschesidi e que depois se mostrara tão reconhecido.

Aproximei-me, alegre, por tornar a vê-lo e lhe apertei entusiasticamente a mão.

— Salam, efêndi! — cumprimentei-o. — Lembras-te ainda das palavras que te disse quando nos separamos?

— Que me disseste?

— Eu te disse: faço votos de tornar a encontrar-te como Mir Alai. Vejo que Alá me ouviu. Dum Nasir Agassi resultou um comandante de regimento.

— E sabes a quem devo agradecer?

— Não.

— Agradeço-o a ti, emir! Os dschesidi apresentaram queixa ao Grão Senhor e o governador de Mossul foi castigado com muitos outros. Veio o Anadoli Kasi Askeri para examinar a questão; a sua sentença foi justa, e como eu por tua causa defendi os interesses dos dschesidi, fui promovido. Permites que te faça uma visita?

— De todo coração! Mas infelizmente hoje é o meu último dia em Istambul. Pretendo partir amanhã.

— Para onde?

— Para o Ocidente. Visitei o Oriente para conhecer a sua gente e os seus costumes, e muito terei de contar aos ocidentais. Muitos dos hábitos desta terra parecer-lhes-ão inacreditáveis.

Disse isso com uma pontinha de malícia para o outro companheiro. Este pareceu ter sentido a minha intenção, pois se apressou a dizer-me:

— Hoje tornei a mandar à tua procura, mas havias saído. Permites que eu vá à tua casa?

Percebi que o tom amistoso com que o outro me falava produzia o seu efeito! Respondi-lhe friamente:

— Receber-te-ei, apesar de dispor de pouco tempo.

— Quando?

— Dentro de uma hora. Depois não.

— Allah Akbar! Também vos conheceis? — perguntou Nasir, admirado. — Bem, nesse caso iremos juntos!

Despedimo-nos e continuei meu caminho. Todos, menos ele, eu esperava encontrar! Parecia que todas as minhas aventuras tinham de ser recapituladas em Constantinopla.

Em caminho para casa tive ocasião de fazer ainda umas pequenas compras de objetos necessários para a próxima jornada. Estava convencido de que o meu anfitrião se encarregaria de todas as despesas da viagem, contudo não quis depender demasiadamente da sua benevolência.

Quando contei a Halef que encontrara Nasir Agassi encheu-se ele de grande contentamento. Logo começou a preparar os cachimbos e a fazer outros preparativos que nem eram necessários. É que na sua opinião devíamos receber com particular cortesia o Mir Alai, cujo enviado deixáramos à porta, por vir ele acompanhado dum antigo conhecido e amigo nosso.

Não bem tinha transcorrido a hora marcada quando chegaram os dois oficiais. Foram recebidos com cordialidade e tratados como hóspedes de honra. Notei que os dois haviam falado a meu respeito, pois a conduta do mais velho deles era particularmente atenciosa. O assunto principal da nossa conversa girou, como é de supor-se, ao redor de nossas aventuras entre os adoradores do diabo. Falei-lhes também do meu encontro com o Makredsch de Mossul e vim a saber que ele voltara são e salvo com os soldados àquela cidade e que depois desaparecera. O Anadoli Kasi Askeri devia saber ao certo em que presídio se achava o juiz deposto.

Quando chegou o momento de se retirarem lembrou-se o outro da conveniência de tratar do seu assunto.

— Emir, — disse-me ele — disseram-me que amanhã publicarão uma novidade no Bassiret. Não seria possível cancelar essa notícia?

Encolhi os ombros e disse pensativo:

— Tu és o meu hóspede, efêndi, e estou habituado a dispensar as devidas atenções a todos os hóspedes que me visitam; permite-me, porém, falar-te com franqueza! Se não fosse eu, hoje já não viverias. Pelo que eu fiz por ti, como homem e cristão, não peço nenhuma recompensa. Nisso deverias ter atentado. Ao invés, me trataste como a um dos teus soldados, e hoje até me mandaste aquele major que ousou dar-me ordens. Não me leves a mal por havê-lo admoestado. Não estou acostumado a ser tratado como um homem que freqüenta casas de vinho gregas, na esperança de fazer fortuna; creio ter feito mais do que era da minha obrigação, e se te mostrares disposto a satisfazer a um desejo meu, darei o caso por esquecido.

— Qual é o teu desejo?

— Deves a tua salvação em primeiro lugar a um bravo judeu. Morava ele pegado à minha casa e chamou-me a atenção para a abertura na parede que comunicava com a taverna. Tu mandaste incendiar aquela espelunca e o fogo destruiu-lhe tudo quanto possuía. Se te quisesses resolver a dar uma pequena indenização àquele homem, far-me-ias feliz e eu te poderia ter na conta dum homem do qual se pode guardar uma agradável lembrança.

— Ele é judeu? Sabes também, efêndi, que um moslem detesta todo o judeu, porque é de outra religião. Tratarei de...

— Efêndi, — interrompi-o, dando maior força à minha voz, — lembra-te de que eu tampouco não sou moslem! Tu mesmo és um grego ilhéo e faz pouco que te converteste à religião do profeta. Se detestas um cristão eu te lamento; eu, por mim, nunca detestaria ou desprezaria o que eu mesmo fui por muito tempo!

— Emir, não me referi à tua pessoa! Onde se encontra o judeu?

— O pobre goza da hospitalidade desta casa.

— Queres mandar chamá-lo?

— Imediatamente!

Mandei Halef à sua procura, e não demorou que entrasse Baruch. O Mir Alai fitou-o meio de esguelha e lhe disse friamente:

— Foram ontem queimados os teus objetos?

— Sim, meu senhor — foi a humilde resposta de Baruch.

— Toma aqui, então. Compra outros.

Meteu a mão na bolsa e entregou-lhe uma coisa que eu não pude ver; da posição dos seus dedos, porém, pude observar que não podia ser muito. O judeu agradeceu e quis retirar-se, mas eu o detive:

— Espera, Baruch Schebet Ben Baruch Chereb. Mostra-me o que recebeste! O efêndi há de perdoar a minha curiosidade, mas só quero ver, para contigo poder agradecer-lhe.

Eram duas moedas de cinqüenta e vinte piastras, no total portanto de setenta piastras, ou seja doze a catorze marcos da moeda alemã. Era ser mais do que econômico e também mais do que usurário; aquilo era mesquinhez. Imaginei que o Mir Alai decerto dera uma busca e se apoderara de todo o dinheiro que encontrara na casa antes de dar licença para o saque. Igualmente devia ter revistado os bolsos dos prisioneiros e dos mortos. Era uma coisa que não dava na vista, mas eu conhecia o modo de proceder daqueles nobres senhores.

Por isso lhe perguntei:

— Recuperaste as três mil piastras, efêndi?

— Sim.

— E a esse homem a quem agradeces por elas e pela tua vida dás somente setenta piastras pela propriedade que lhe destruíste. Dá-lhe mil piastras e continuaremos amigos. Farei com que teu nome não apareça no Bassiret!

— Mil piastras, emir! Que estás pensando? Ele é judeu!

— É como quiseres! Baruch, devolve-lhe as setenta piastras. Iremos depois ao kadi. Tu, como queixoso, e eu como testemunha. Quem te tiver queimado a propriedade terá de pagá-la, mesmo que comande um regimento e que seja meu hóspede. Informar-me-ei, por intermédio do embaixador do meu soberano, se o Sultão permite aos seus oficiais que queimem os quarteirões de Istambul!

Pus-me de pé e dei o sinal de despedida; também os hóspedes se levantaram e o judeu se aproximou do Mir Alai para devolver-lhe o dinheiro recebido. Este, porém, lhe fêz um sinal e com mal sopitada indignação lhe disse:

— Guarda-o! Mandar-te-ei o restante!

— Trata então já do dinheiro, efêndi, — observei-lhe — porque dentro de uma hora nos dirigiremos ao juiz!

Era uma cena que nada tinha de agradável, mas não me recriminei por esse motivo. Usara do meio de castigar a arrogância do oficial e de fazer com que o pobre judeu recebesse uma indenização. Mil piastras parecem ser uma soma considerável; contudo representam escassamente duzentos marcos. Desse modo ajudei a Baruch, se bem que a ajuda não tenha sido suficiente para começar um comércio de “jóias e raridades”.

O Mir Alai abandonou a casa com uma soberba inclinação de cabeça. Nasir, porém, se despediu de modo cordial.

— Emir, sei como é desagradável falar desse modo com um hóspede, mas eu, em teu lugar, teria procedido da mesma forma. Ele é um protegido do Ferik-paxá e nada mais. Adeus! Lembra-te de mim, como eu me lembrarei de ti!

Antes que tivesse decorrido uma hora veio um tenente que trouxe uma bolsa com a soma que faltava para completar as mil piastias. Baruch saltava de alegria e a sua mulher me chamou o mais bondoso Efêndi do mundo, prometendo ainda incluir o meu nome em suas preces cotidianas. A felicidade dos pobres velhos reconciliaram-me com a ruptura da hospitalidade que havia pouco eu cometera.

À noite estivemos todos reunidos. Tinham preparado uma ceia de despedida, na qual também Senitza tomou parte. Como ela fosse uma cristã pôde comparecer com o rosto descoberto, se bem que Isla lhe proibisse sair à rua sem o véu. Rememorou ela em nossa presença toda a aventura por que passara, e se referiu à infelicidade que sentira durante o seu cativeiro e à felicidade quando nós a libertamos das mãos de Abrahim Mamur.

Por fim, também Lindsay se despediu. O seu nariz já se achava livre da tumescência e já podia exibir-se em Londres. Quando ele se retirou, acompanhei-o à sua moradia. Abriu uma garrafa de vinho e asseverou que me apreciava como um irmão.

— Estou bem satisfeito com o senhor, — observou ele — só uma coisa me desagrada.

— E que é?

— Perambulamos juntos através de todo o mundo e não achei nenhum Fowling-Bull. Caso desagradável, yes!

— Creio que na Inglaterra os pode encontrar, sem necessidade de desenterrá-los. Há abundância de Jon-Foivling-Bulls!

— Refere-se a mim?

— Nem por sombra!

— E pensou a respeito do negócio com o cavalo?

— Sim. Não o vendo!

— Então conserve-o. Mas o senhor tem de ir à Inglaterra, dentro de dois meses estarei em casa. E, outra coisa! O senhor foi o meu guia e ainda não lhe paguei o seu salário. Aceite isso!

Estendeu-me um pequeno porte-feuille.

— Deixe de gracejos! Viajei com o senhor como amigo e companheiro, mas não como criado que deva ser pago.

— Mas, mister, penso que...

— Pense o que quiser, mas não pense que aceito dinheiro. Adeus!

— Aceite já esta carteira — disse ele simulando desgosto.

— Adeus! Farewell, sir!

Dei-lhe ainda um abraço e retirei-me apressado sem ouvir a sua voz que ainda me chamava.

Passo por alto pela sentida despedida de Maflei e de Senitza, na manhã seguinte. Quando o sol apontava no oeste já nos achávamos em Tschatalsche, por onde passa o caminho que vai por Indschigis e Wisa a Adrianópolis.

 

Em Adrianópolis

Adrianópolis, chamada Edreneh pelos turcos, é, depois de Constantínopla, a segunda cidade em importância do reino osmânico. Ali residiram os sultões desde Murad Primeiro até Maomé Segundo, que em 1453 conquistou Constantinopla e lá fixou residência. Também mais tarde ainda foi a cidade favorita de muitos sultões, dentre os quais em particular Maomé Quarto gostava de lá ficar.

Dentre as quarenta mesquitas, que a cidade possui, é a Selimje a mais afamada, a construída por Selim Segundo. É maior ainda do que a Aja Sophia de Constantinopla e foi construída pelo arquiteto Moshia chamado Sinan. Semelhante a um oásis, ergue-se ela num deserto de míseras casinhas de madeira e com as suas paredes ricamente pintadas contrasta vivamente com a imundície ambiente. A imponente abóbada dessa mesquita é sustentada no interior por oito pilares gigantescos e emoldurada exteriormente com quatro graciosos minaretes, cada um dos quais ostenta três sacadas destinadas aos muezzin. Aos dois lados internos estendem-se duas filas de galerias revestidas de mármores preciosos, e encimadas por 250 janelas. Na época do Ramasan ardem nessa mesquita mais de 12000 círios.

Vínhamos aproximando-nos dos lados de Kirkilissar e já de longe vimos refulgir os esguios minaretes da Selimje. A cidade de Adrianópolis, vista à distância, oferecia um aspecto encantador; mas assim que lhe penetramos nas ruas centrais, deu-se o que se dá com todas as cidades do Oriente: vistas de perto perdem toda a beleza e nunca oferecem o que à distância prometem.

Hulam, a cuja casa nos dirigíamos, residia nas proximidades da Utsch Scherifeli, a mesquita de Murad Primeiro, que tem preciosos adros de mármore. Atravessamo-los. As vinte e quatro cúpulas sustentadas por setenta pilares, foram erigidas à custa do tesouro dos Joanitas, tesouro este que foi conquistado por ocasião do assalto a Smirna. Penetramos numa viela muito movimentada e estacionamos ante um muro da altura de vários andares, em frente a uma porta fechada. Esse muro inexpressivo constituía a fachada da casa cuja hospitalidade havíamos de gozar. Havia no centro da porta, à altura duma pessoa, uma abertura circular, na qual, depois de termos batido, apareceu um rosto barbado.

— Conheces-me ainda, Malhem? — perguntou o jovem de Constantinopla.

— Faze o favor de abrir!

— Machallah! Deus opera milagres! — ouviu-se uma voz que vinha de dentro. — És tu mesmo, senhor? Vem, entra depressa!

Abriu-se a porta e atravessamos uma espécie de passagem que conduzia a um amplo pátio circundado pelas galerias internas da casa. Tudo denotava riqueza e abundância. Essa suposição veio ainda a ser confirmada pelo grande número de criados que por ali se viam.

— Onde se acha o senhor? — perguntou Isla a um homem, que o recebera com uma respeitosa inclinação, e que era, como mais tarde vim a saber, o mordomo da casa.

— Está no gabinete de trabalho, junto a seus livros.

— Conduze esses homens ao Selamlik e cuida que sejam bem servidos. Também é preciso que tratem dos nossos animais.

Jacub Afarah foi agarrado pela mão e conduzido ao gabinete do dono da casa. A nós outros nos conduziram a uma peça do tamanho duma pequena sala. A parte anterior constituía um avarandado aberto sustentado por colunas; as três paredes restantes eram decoradas com aforismos do alcorão, em caracteres dourados.

Apesar da poeira que nos cobria as vestes, em virtude da viagem, abancamo-nos em fofos divãs de veludo verde e cada um de nós recebeu um cachimbo d’água e uma pequena xícara de café, que em vez de ser colocada num pires, o era sobre um pequeno tripé de prata. Tudo denotava um requintado luxo, que por sua vez confirmava a riqueza do dono da casa.

Mal começáramos a tomar o nosso café quando vieram Afarah e Isla acompanhados do dono da casa. Era este duma aparência veneranda e imponente, ostentava uma barba, que em comprimento e formosura se assemelhava à de Maomé Emin. Sua aparência obrigava-nos involuntariamente a nos levantarmos, se bem que isso não fosse uso da terra. Pusemo-nos de pé.

— Salam Aleikum! — Cumprimentou-nos enquanto levantava as mãos como para dar-nos a bênção. — Sede bem-vindos à minha casa e fazei de conta que ela é vossa.

Dirigiu-se de um a outro para dar-nos a mão, e depois sentou na nossa roda acompanhado dos seus dois parentes. Para estes, os criados também trouxeram café e cachimbos, depois o dono da casa lhes fêz um sinal para que se retirassem. Feito isto, incumbiu-se Isla da nossa apresentação. Fitou-me durante alguns segundos e tornou a pegar-me da mão, a qual susteve por um minuto.

— Talvez ainda não saibas, efêndi, que te conheço — disse-me ele. — Isla contou-me muito a teu respeito. Ele te ama e assim também conquistaste o meu coração, apesar de ainda não nos havermos visto.

— Senhor, as tuas bondosas palavras aliviam-me a alma — respondi-lhe eu. — Não nos achamos no deserto ou nalguma pastagem de beduínos, assim, que sempre se tem a certeza de ser bem recebido.

— Tens razão. Essa bela virtude dos nossos antepassados diminuí de ano a ano. Desaparece primeiro nas cidades e se retira lamentavelmente até do deserto. O deserto é o berço do amparo recíproco e Alá faz que no deserto cresça a palma do amor ao próximo. Na cidade, geralmente, o forasteiro se sente mais abandonado do que no deserto, onde nem o teto duma choupana lhe rouba a vista do céu. Já estiveste no Saara, como fui informado; não encontraste lá a confirmação do que te digo?

— Alá se encontra em toda a parte onde há homens que nele crêm. Reside nas cidades e olha para os hammada; Ele vigia sobre as águas e sussurra na solidão dos bosques; Ele governa o inseto no ar e os sóis refulgentes; tu o ouves nas exclamações de júbilo e nos gemidos de dor; brilha Ele na lágrima da alegria e na gota que a dor faz aflorar à face. Estive em cidades onde residem milhões de habitantes, e estive no deserto, longe de qualquer habitação humana, mas nunca tive receio de achar-me só, porque sabia que a mão de Deus me amparava!

— Efêndi, és um cristão, mas um homem devoto; merecerias ser um moslem e te aprecio como se a lei do profeta fosse a tua. Contou-me Isla que vós viestes para livrar-me dum grande prejuízo. Toma tu a palavra pelos outros!

— Não contou-te ele pormenores?

— Não, porque tive pressa em vir para dar-vos as boas-vindas.

— Dize-me então se um forasteiro mora há algum tempo na tua casa.

— Mora comigo um estranho, um homem devoto de Konieh, que hoje não se encontra em Adrianópolis. Seguiu a cavalo para Hadschi Bergas.

— De Konieh? Como se chama ele?

— Seu nome é Abd el Mirrhatta. Visitou a sepultura de São Myrsrhatta, por isso se diz servo de Myrrhatta.

— Por que mora ele na tua casa?

— Eu mesmo o convidei para vir morar comigo. Tenciona ele estabelecer um grande bazar em Brussa e quer fazer grandes compras nesta cidade.

— Mora ainda outro estranho contigo?

— Não.

— Quando volta ele?

— Esta noite.

— Então será esta noite nosso prisioneiro!

— Allah Kerihm! Esse santo moslem é um favorito de Alá. Por que queres prendê-lo?

— Porque é um embusteiro e coisa pior ainda! Notou que tu és um servo fiel de Alá e, para captar-te as boas graças, adotou o disfarce da santidade. Não é ele outro senão o homem que conduziu Senitza, a mulher de Isla, para longe da pátria. Deixa que Isla te conte a história!

Hulam mostrou-se surpreso e Isla começou a contar-lhe a história. Mesmo depois de este haver terminado de falar ainda não quis o dono da casa acreditar que se tratava dum criminoso. Parecia-lhe impossível que um ente humano pudesse usar duma máscara com tanta habilidade.

— Falai-lhe primeiro e estudai-o bem, — disse-nos ele — vereis como estais enganados.

— Não há necessidade de lhe falarmos, — disse Osco — basta que o vejamos, porque eu o conheço bem e Isla também o conhece.

— Não há necessidade de falar-lhe nem de vê-lo, — disse eu — tenho a certeza que se trata de Barud el Amasat. Também Abrahim Mamur, em Constantinopla, dera o nome de Abd el Myrrhatta, e estive a ponto de pensar que também Hamud el Amasat houvesse adotado o mesmo nome em Scutari.

— Mas pode muito bem ser o meu hóspede o verdadeiro Abd el Myrrhatta — observou Hulam.

— É uma vaga possibilidade; mas não é um fato verossímil. Esperamos em todo caso até hoje à noite.

Nada mais a respeito se podia dizer nem fazer. Consoante o antigo uso patriarcal, recebemos todos roupa fresca após havermos tomado o nosso banho. Depois nos indicaram os nossos aposentos. Mais tarde nos reunimos à mesa, que bem condizia com a opulência da casa. Com impaciência esperamos a chegada da noite, e até lá nos entretivemos com conversas e jogos de xadrez. Não era prudente que nos retirássemos a passeio, pois muito bem podia se dar o caso de que a cavalgada de Barud el Amasat a Hadschi Bergas não passasse dum pretexto. Sem dúvida dispunha ele de cúmplices na cidade, onde a sua presença seria mais valiosa do que naquele pequeno lugar.

 

A PRISÃO DO OUTRO CRIMINOSO

Anoiteceu finalmente. A fim de permanecermos juntos, reunimo-nos no aposento que fora designado para Isla. Hulam nos dissera que cearia com seu hóspede no Selamlik e resolvemos que Isla e Osco o haviam de surpreender, enquanto que nós permaneceríamos de fora para evitar que o homem fugisse.

Passaram quase duas horas antes que ouvíssemos o trote dum cavalo no pátio, e quinze minutos após apareceu um criado do dono da casa para comunicar-nos que o senhor se dispunha a cear com seu hóspede. Logo após descemos.

Haviam cerrado a porta que dava para a rua, e o porteiro fora instruído para não deixar sair quem quer que fosse. Aproximamo-nos com passos cautelosos do Selamlik que se achava fartamente iluminado por uma lâmpada pendente e tomamos assento atrás dos pilares laterais. Podíamos ouvir perfeitamente o que falavam na sala de refeições. Hulam, que mantivera os ouvidos aguçados, tratou de dar à conversa um ramo adequado aos nossos fins. Começou a falar de Constantinopla e perguntou então:

— Já estiveste muitas vezes em Istambul?

— Algumas vezes — respondeu o interpelado.

— Então conheces um pouco a cidade?

— Sim.

— Conheces o bairro chamado de Barahive Keui?

— Parece-me ter ouvido falar a respeito. Não fica ele acima de Eiub e ao lado do “Chifre de Ouro”?

— Sim. Faz pouco que lá se deu um caso bem curioso: prenderam a uma camarilha inteira de velhacos e assassinos.

— Allah il Allah! — fez o homem, admirado. — Como deu-se isso?

— Eles possuíam uma casa, na qual só podiam penetrar os que proferissem a palavra “en Nassr” e depois...

— Será possível? — interrompeu o hóspede.

O timbre da voz com que ele proferira essas duas palavras não traduzia o espanto do ouvinte admirado, senão o susto subjetivo do cúmplice. Eu estava convencido de que era esse o homem que procurávamos e, para confirmar, ainda Osco me segredou ao ouvido:

— É ele! Posso ver-lhe claramente a fisionomia.

— A palavra da senha, porém, foi descoberta — prosseguiu Hulam — e, com o auxílio da mesma foi a casa invadida.

Hulam passou então a contar as minúcias do caso e o hóspede escutou-lhe com a maior atenção. Quando o dono da casa acabou de falar, perguntou ele com a voz claramente vibrante:

— E será que mataram o usta?

— O usta? O que se entende por usta? Eu nem proferi essa palavra!

— Refiro-me ao chefe, ao que tu chamaste de Abrahim Mamur. Ao empregar a palavra usta, ele se denunciou. Hulam, por sua vez, sabia agora com quem tratava; contudo não deixou nada a perceber e respondeu calmamente:

— Não. Ele simulou de morto, como se houvesse sido atingido por uma bala. Mas no dia imediato recebeu ele a sua paga. Foi precipitado da galeria da torre de Galata.

— Realmente? Horrível! E morreu?

— Sim. Morreu ele e um grego chamado Kolettis que igualmente foi precipitado para baixo.

— Kolettis? Ia Waih! E quem os precipitou da torre?

— Foi um árabe da Tunísia, da zona do schott Dscherid, que quis realizar uma vingança de sangue contra um tal Hamd el Amasat. Aquele Amasat matou um mercador francês em Blidah, depois matou ainda um sobrinho do mesmo e o pai daquele árabe no schott que mencionei. O filho do árabe está agora à procura dele.

— Allah Kerihm! Que gente má que há no mundo! Mas assim acontece porque ninguém mais crê na lei do Profeta! Será que o árabe encontra o tal Hamd el Amasat?

— Já lhe está no encalço. Aquele assassino tem um irmão chamado Barud el Amasat que é outro canalha. Seqüestrou a filha dum amigo e vendeu-a como escrava. Mas a moça foi arrebatada do comprador, que não era outro senão aquele Abrahim Mamur, e Isla Ben Maflei, um parente meu, depois a desposou. Pôs-se ele agora em caminho para procurar aquele Barud el Amasat, a fim de castigá-lo.

Durante a conversa o hóspede dava cada vez maiores demonstrações de receio. Esquecera-se de comer e o seu olhar se mantinha preso aos lábios do dono da casa.

— Será que o vai encontrar?

— Decerto! Ele não está sozinho! Ele vem acompanhado de Osco, que é o pai da moça seqüestrada, do médico franke, que libertou Senitza das mãos do comprador, do criado deste, e daquele árabe que precipitou Abrahim Mamur da torre de Galata.

— De modo que decerto já encontraram algum rasto?

— Já sabem até o nome que ele agora usa!

— Realmente? E, como se chama?

— Abd el Myrrhatta. Foi este também o nome usado pelo usta de Istambul.

— Mas esse é o meu nome! — exclamou ele horrorizado.

— Realmente! Alá sabe porque eles usaram o nome de um homem cão santo. Oxalá o castigo seja agora dobrado!

— Mas como puderam descobrir este nome?

— Vou dizer-te. Barud el Amasat tem um filho no convento dos dervixes bailantes em Pera. O médico franke se dirigiu a ele e fingiu que também pertencia aos “en Nassr”. O estudante deixou-se convencer e contou que Barud el Amasat se achava em Scutari em casa dum comerciante francês de nome Galingré.

A esta altura da conversa, o ouvinte não mais pôde continuar a escutar. Levantou-se e se desculpou:

— Senhor, o que me contas é tão horrível, que nem posso comer. Estou muito fatigado da viagem. Permite que me recolha para dormir.

Hulam também se pôs de pé.

— Creio bem que não podes mais comer. Quem tem de ouvir semelhante acusação contra si próprio fica com a garganta estrangulada.

— Contra si próprio? Não compreendo! Creio que não supões que eu seja o tal Barud, somente pelo fato de ele haver adotado o meu nome!

— Não é que eu creia: estou convencido disso, canalha! A essas palavras o facínora se empertigou e exclamou:

— Tu me chamas de canalha, a mim? Não te atreves a repetir esta palavra, porque eu te...

— Porque... quê? — disse uma voz a seu lado.

Isla se precipitara a seu lado.

— Isla Ben Maflei! — exclamou o hóspede, horrorizado.

— Sim. Sou Isla Ben Maflei que te conhece e a quem não enganas.  Olha para trás; verás mais alguém que te deseja falar!

Virou-se para o lado e viu Osco na sua frente. Percebeu que estaria perdido se não conseguisse fugir.

— Sois mandados pelo Scheitan. Ide ao Djehenna!

Dizendo isso, deu um empurrão em Isla e quis fugir pela porta. Chegara até as colunas: ali antepôs-se-lhe Halef que estendeu a perna; o fugitivo tropeçou nela e tombou ao solo. Imediatamente o agarraram e o reconduziram ao selamlik.

Era um covarde, aquele homem. Ao ver-se rodeado de tanta gente não fêz a mínima menção de se defender. Deixou calmamente que o atassem e o deitassem ao solo.

— Senhor, crês ainda na santidade desse homem? — perguntou o pequeno Hadji ao dono da casa. — Ele quis roubar-te para depois fugir,

— Tivestes razão — respondeu ele. — Que faremos agora dele?

— Ele me roubou a filha e me obrigou a procurá-la com dor no coração — disse Osco apontando para o criminoso. — Ele me pertence; assim o determinam as leis dos montes negros.

A estas palavras eu me adiantei.

— Essas leis têm vigor somente nos montes negros, mas não aqui. Demais o soberano do teu país já as revogou. Tu me prometeste entregar este homem ao juiz e espero que cumpras a tua palavra.

— Efêndi, eu conheço bem os juizes desta terra — foi a resposta do montenegrino. — São acessíveis ao suborno e darão ao prisioneiro ocasião de fugir. Reclamo-o para mim!

— E que farás dele se te entregarmos? — perguntou o dono da casa. O interpelado tirou dum punhal e disse:

— Morrerá na ponta deste aço!

— Não posso concordar com isso, pois ele não causou derramamento de sangue!

— Mas pertenceu ao bando de assassinos de Istambul!

— Por isso mesmo não o deves matar! Queres que o filho dele escape impune? Queres que os outros todos que pertenceram ao bando e fugiram, escapem impunes também? Ele deve viver para que se possa saber o nome dos restantes.

— Mas quem me dá a certeza de que ele realmente será castigado?

— Eu! O homem que conheces por Hulam não é dos menos influentes da cidade. Irei agora mesmo ao juiz para pedir que mande buscar este criminoso. E juro-te por Alá e pelos profetas, que ele cumprirá o seu dever!

— Então vai! — disse-me Osco com voz cavernosa. — Mas te digo que me apegarei ao teu juramento até que eu esteja vingado!

Encerraram Barud el Amasat em uma peça isolada e o furioso Osco não descansou enquanto não lhe permitiram que lhe fizesse companhia. Hulam se dirigiu ao magistrado e nós ficamos esperando o seu regresso. Quando voltou, veio seguido de diversos soldados incumbidos de levarem o prisioneiro. Tomaram conta deste e, ao se retirarem, procuramos os nossos leitos na convicção de havermos livrado o dono da casa dum perigo iminente e de havermos impedido que um homem mau realizasse os seus funestos propósitos.

A sentença do juiz por via de regra não se faz esperar por muito tempo, de modo que resolvemos aguardá-la. Desse modo tínhamos tempo bastante para visitar a cidade de Adrianópolis.

Visitamos a mesquita de Selim e a de Murad, bem como a Medresse turca. Depois nos dirigimos ao afamado bazar de Ali paxá e terminamos fazendo um passeio de canoa no rio Maritza, a cujas margens fica a cidade. Por volta do meio dia, regressamos e encontramos em casa um ofício do kadi, que nos convidava para depor. Pelas nove horas do horário turco, que eqüivalem as três horas da tarde na Alemanha, comparecemos perante o juiz. O interrogatório teve caráter público. A ele afluíra considerável número de expectadores. Cada um de nós teve que formular a sua acusação: o acusado achava-se presente para ouvi-la. Depois de todos haverem deposto, o kadi perguntou ao acusado:

— Ouves o que dizem estes homens? É verdade ou não?

O acusado nada respondeu; o juiz esperou durante um minuto e prosseguiu:

— Nada podes pois responder à acusação destes homens? Tu te confessas portanto culpado? Como és um membro da camarilha que operou em Istambul, remeter-te-ei para lá; lá receberás o castigo pelo crime de haveres raptado uma menor; mas, pelo fato de teres tentado cometer um crime aqui em Edreneh, mandarei que te dêem cem bastonadas nos pés. Este castigo será cumprido agora mesmo!

Acenou aos soldados que se achavam próximos e ordenou-lhes:

— Trazei a tábua e os bastões!

Retiraram-se dois deles para trazer os objetos pedidos.

Além dos funcionários comparecera também numeroso público para assistir à aplicação do castigo. Nesse momento notou-se um ligeiro movimento no meio dos assistentes, movimento esse que não tinha importância, mas que não escaparia a um observador arguto. Avançava, coleando, um homem, do fundo da sala em direção à frente. Fitei-o de esguelha. Era alto e franzino; ostentava a vestimenta búlgara, mas denotava não pertencer àquela nacionalidade. O pescoço comprido, o nariz aquilino, o rosto longo, o bigode caído, o peito anormalmente desenvolvido — tudo isso denotava ser ele um armênio e não um búlgaro.

Por que avançaria assim aquele homem? Seria meramente por curiosidade ou perseguia ele um outro objetivo? Resolvi estudá-lo com cuidado sem que ele o notasse.

Regressaram os soldados. Trazia um deles diversos daqueles bastões que são imprescindíveis na execução duma pena imposta. O outro carregava uma tábua na qual, no meio e numa extremidade, se viam pontas de cordas para amarrar os criminosos. No outro extremo havia um dispositivo que permitia fixar os pés dos delinqüentes em posição horizontal.

— Tirai-lhe o hábito e os sapatos — ordenou o kadi.

Os soldados se aproximaram do criminoso para dar cumprimento à ordem. Só então o condenado mostrou que podia falar.

— Alto! — gritou ele. — Não permito que me batam! O kadi, a estas palavras, franziu as sobrancelhas.

— Ah, não? — perguntou ele. — Quem me poderá proibir de dar-te as bastonadas prometidas?

— Eu!

— Cão! Atreves-te a falar-me deste modo? Queres que te dê duzentas em vez de cem bastonadas?

— Não me poderás dar uma única sequer! Perguntaste-me muita coisa, mas esqueceste o essencial! Perguntaste-me por acaso quem sou e qual é a minha raça?

— Isso não é necessário! Basta que sejas assassino e gatuno!

— Até agora nada confessei. Mas não me poderás bater de modo algum!

— Por quê?

— Porque não sou moslem e, sim, cristão!

Ao proferir estas palavras notara ele o estranho que avançava abrindo passo através da multidão. Usava ele da maior precaução para não fazer um movimento que o pudesse denunciar e despertar a desconfiança da sua cumplicidade. Mas a sua atitude, o seu semblante, o seu olhar, tudo era de molde a fazer-se notar pelo acusado. Parecia infundir-lhe coragem.

Pela atitude do kadi, notava-se que as palavras proferidas havia pouco pelo criminoso não deixaram de impressioná-lo um pouco.

— És então um giaur, um franke talvez?

— Não. Sou armênio.

— Um súdito, portanto, do Padixá a quem Alá conceda mil vidas! De modo que então não te posso mandar aplicar as bastonadas!

— Enganas-te — disse o armênio enquanto se esforçava por manter uma atitude que devia traduzir a sua soberba. — Não sou súdito nem do Sultão, nem do patriarca; sou armênio de nascimento; converti-me, porém, ao cristianismo evangélico e sou intérprete na embaixada inglesa. Sou neste momento súdito inglês e te responsabilizo pelos maus tratos que vieres a infligir a um súdito do Grão Senhor, principalmente se persistires em mandar dar-me as bastonadas.

O kadi fêz uma cara decepcionada. Resolvera prestar atenção a Hulam, que era cidadão de destaque, e viera agora esse armênio para o atrapalhar...

— Podes provar o que dizes? — perguntou ele ao acusado.

— Sim!

— Então prova-o!

— Manda indagar na embaixada inglesa em Istambul.

— Não sou eu, senão tu quem deve apresentar provas.

— Não posso apresentá-las porque estou prisioneiro.

— Mandarei então um mensageiro a Istambul, mas as cem bastonadas serão redobradas se houveres mentido!

— Estou falando a verdade. Mas mesmo que eu não estivesse, não poderias mandar aplicar-me bastonadas nem mesmo proferir a tua sentença. Tu és um kadi, mas eu quero ser julgado por um Mewlewit (1) regular.

Eu sou o teu Mewlewit!

 

(1) Corte suprema.

 

— Não é verdade. Faço questão de ser julgado pelo Bilad i Kamse Mollatari. E mesmo que eu devesse ser julgado por um Kasi (2), então não deve este compor-se dum homem só, senão dum Kadi, dum mufti, dum naib, dum ajak naib e dum basch kiatib!

As instâncias mencionadas pelo armênio eqüivalem, em sua ordem, a juiz, a promotor público, ao substituto deste, a um tenente civil e a uns escrivão.

O kadi ficou desapontado. Refulgia-lhe a ira nos olhos.

— Homem! — gritou ele. — Conheces tão bem as leis, e não obstante as transgrides! Tratarei que sejam triplicadas as bastonadas que hás de levar!

— Faze como quiseres. Mas toma cuidado... Protesto em nome do embaixador da Grã Bretanha contra os maus tratos que me queres infligir!

O kadi irresoluto, olhou-nos, um a um. Depois disse:

— A lei me obriga a atender as tuas palavras. Não creias, porém que o teu caso se modifique para melhor. És um assassino e tua cabeça corre perigo. Conduzam-no de novo ao cárcere e vigiem-no dez vezes mais do que a qualquer outro preso.

O armênio foi conduzido à prisão e, ao abandonar o recinto, dirigiu ainda um olhar de triunfo e inteligência para o forasteiro, olhar este que não foi notado por ninguém a não ser por mim.

Deveria eu chamar a atenção do kadi sobre aquele homem? De que poderia isso servir? Mesmo que o estranho fosse um conhecido do acusado ainda assim não haveria motivo para contra ele agir por meios legais. E mesmo que as leis, nesse caso, o tivessem permitido, dificilmente um dos dois se teria denunciado. Ademais também eu não tive o kadi na conta de homem assaz perspicaz como para enfrentar a gente dessa laia.

Terminara a audiência e os assistentes se dissolveram. O kadi dirigiu-se a Hulam para desculpar-se e Osco, o montenegrino, voltou-se irritado a mim:

— Não te disse eu, efêndi, que o caso teria este desfecho?

— Eu não contei com semelhante solução — respondi-lhe eu. — Eu não sou nenhum kadi e nenhum mufti, mas penso que o juiz não pode agir de modo contrário.

— Ele tem de mandar indagar em Istambul se o acusado disse a verdade ou não?

— Sim.

— Mas quanto tempo levará isso?

— Teremos de resignar-nos...

— E, se ele fôr realmente um súdito inglês?

— Assim mesmo não se livrará do castigo.

— E se não o fôr?

— Então terá mentido ao kadi e este usará de todas as agravantes para tornar severo o castigo. De resto, não acredito palavra desse assunto de cidadania inglesa.

— Pode bem ser possível! Por que haveria ele de mentir?

Em primeiro lugar, para livrar-se das bastonadas, e, depois, para ganhar

 

(2) Corte ordinária.

 

tempo. Devemos recomendar ao kadi que não descuide a vigilância do  criminoso.  Estou convencido de que ele fará tudo quanto lhe fôr possível para fugir.

— Efêndi, não queres falar com o kadi?

— Fala tu mesmo; falta-me o tempo. Tenho uma caminhada urgente a fazer e na minha volta talvez que te possa contar algo a respeito. Ver-nos-emos de novo na casa de Hulam.

O forasteiro, ao que eu tomara por armênio, abandonara o recinto. Estive interessado em saber algo a seu respeito e por isso o segui. Ele caminhava a passos vagarosos, meditativos; eu o segui durante uns dez minutos. Em dado momento, o desconhecido voltou-se bruscamente e me viu. Eu tomara parte saliente no interrogatório; ele me vira e súbito me reconheceu. Prosseguiu em seu caminho e enveredou depois por uma viela estreita.

Contudo eu resolvera não perdê-lo de vista e assumi a atitude dum homem distraído e preocupado consigo mesmo. Caminhara ele talvez a metade do comprimento da viela, quando de novo olhou para trás. Naturalmente me viu por segunda vez, isso seguramente lhe chamara a atenção. Continuou percorrendo diversas ruazinhas e vielas, virando-se às vezes para ver se eu o seguia; mas eu não o perdia de vista. No entusiasmo da minha perseguição era me indiferente que o homem me visse ou não. A circunstância de ele me observar provava que o desconhecido não tinha a consciência limpa.

Decerto ele não tinha mais dúvidas a respeito à minha intenção. Pois quando mais uma vez dobrou uma esquina onde poucos segundos após eu também dobrei, achava-se ele à minha espera. Olhou-me com um olhar brilhante e perguntou:

— Estás me seguindo?

Parei-me na sua frente e depois de havê-lo fitado atentamente lhe respondi:

— Que te importa o meu caminho?

— Importa em muita coisa, pois parece ser o meu!

— Bendito sejas tu, se assim é! Pois o caminho que eu sigo é franco e leal.

— Queres talvez com isso dizer que o meu não o seja?

— Não conheço os teus caminhos e nada tenho que ver com eles!

— Assim o espero, — disse o homem com ar zombeteiro — faze, então, o favor de passar adiante!

— É-me indiferente — respondi-lhe eu.

Continuei avançando sem olhar para trás, mas o meu ouvido aguçado não se deixara enganar. Continuei a ouvir-lhe os passos na minha retaguarda; depois os passos se afastaram. Parecia que o desconhecido procurava pisar devagar, mas assim mesmo lhe ouvi as passadas.

Quando já não mais lhe ouvi as pisadas, virei-me bruscamente e retrocedi a correr. Efetivamente! Lá corria ele e dobrava uma esquina. Segui-o rapidamente e quando cheguei à esquina onde ele se sumira, vi que o fugitivo já dobrava a outra.

Claro é que poucos segundos após lá também me encontrei e pude ver que o meu herói enveredava para o Tscharschia Ali Paxá.

Tscharschia quer dizer bazar e deriva da palavra eslovena tscharschk, que significa encantar. Quer-se com essa palavra causar a impressão de que as mercadorias do bazar realmente “encantam” o freguês.

Supôs naturalmente o homem que eu perderia a sua pista no meio da multidão, caso o quisesse seguir. Mas essa sua resolução era-me particularmente agradável; a aglomeração de fregueses me permitia aproximar-me bastante dele sem que fosse percebido. Assim também aconteceu. Mantive-me firme no seu encalço apesar de ele haver mudado talvez umas vinte vezes a direção. Finalmente, — mal havíamos atravessado o bazar de roupas feitas — vi que ele ia penetrar numa recova que ficava nas imediações. Daí não me podia ele fugir, pois eu devia supor que o Serai não dispusesse duma segunda saída.

Faltava-me saber se ele ali morava ou se tinha um outro objetivo ao penetrar naquele recinto. Convenci-me em breve da minha última suposição. É que ele, em vez de entrar, estacionou à porta e ficou por um momento esquadrinhando atentamente o ambiente à minha procura. De súbito me veio uma idéia. Entrei na loja mais próxima.

— Salam Aleikum!

— Aleikum! — respondeu-me cortêsmente o dono do estabelecimento.

— Tens pano para um turbante azul?

— Sim, efêndi.

— E uma capa?

— Tantas quantas quiseres.

— Tenho pressa. Quero ambas as coisas emprestadas, sem comprá-las. Avia-te e dá-me o pano e a capa! Tens aqui o meu relógio e as minhas armas; deixo-te também o meu cafetã e quinhentas piastras. Tudo isso decerto te bastará como garantia até que eu volte!

Olhou-me admirado. Freguês assim decerto nunca lhe aparecera.

— Efêndi, por que fazes isto? — perguntou-me ele.

Para que eu não sofresse maior perda de tempo tive de contar-lhe o caso:

— Estou perseguindo um homem que me conhece mas que não me deve reconhecer — respondi eu. — Avia-te senão perco-o de vista.

— Allah il Allah! Tu és então um polícia secreta? — perguntou-me ele.

— Não faças vãs perguntas, e avia-te — ordenei-lhe. — Não sabes por acaso que o Grão Senhor exige a tua cooperação quando se trata da captura dum criminoso?

A estas palavras convenceu-se o comerciante de que eu era de fato um policial disfarçado. Despi o meu cafetã e ele me colocou a capa e o turbante. Depois de lhe haver deixado os mencionados objetos como penhor, pus-me na porta para esperar.

Eu não perdera o armênio. Achava-se ele ainda na porta fronteira da recova, a espreitar. O dono da loja cuidava da direção do meu olhar. Percebeu em quem eu punha a minha atenção e perguntou:

— Efêndi tu te referes àquele homem que está parado na porta fronteira?

— Sim!

— Faz pouco que passou por aqui!

— Isso eu sei!

— E ele me cumprimentou!

— Não o vi. És portanto um conhecido dele?

— Sim. Ele me vendeu roupas usadas. Achas que seja um criminoso?

— É o que vou saber! Como se chama ele?

— Tu és um servo do Padixá, por isso quero ser-te franco! Dize-me o que desejas saber!

— Estavam as roupas que ele te vendeu em boas condições?

— Não.

— Então ele não é um tarzi! (3)

— Isso não! Tive um grande prejuízo. As roupas eram baratas mas me foram confiscadas em sua maioria porque pertenceram a homens que foram assaltados na estrada.

— E ele não foi castigado por isso?

— É estranho no lugar e não o puderam achar. E quando o prenderam na sua volta deram-lhe a liberdade a troco de dinheiro.

— Quem é esse homem?

— Veste-se como um búlgaro, mas é armênio e se chama Manach El Barscha.

— Sabes onde ele mora?

— É coletor de charadsch, (4) em Uskub. Há muitos armênios que arrecadam impostos.

— E onde reside aqui?

— Quando se acha em Edreneh reside ora qui ora acolá. A maior parte das vezes, porém, ele se hospeda na hospedaria de Doxati.

— Onde posso encontrar Doxati?

— Tem a sua casa junto ao Metropoliten grego.

Tampouco eu sabia onde encontrar esse Metropoliten. Contudo não quis dar demonstração da minha ignorância. O armênio nesse momento se retirava do Serai. Segui-o após haver ainda saudado ligeiramente o dono da loja.

Era, sem dúvida um feliz acaso haver eu encontrado alguém que conhecia esse Manach El Barscha. De outro modo quem sabe quanto eu teria tido que perguntar e investigar até que encontrasse uma pessoa que me pudesse prestar informações certas!

O armênio ainda algumas vezes se virou para olhar para trás mas nem por sombras supôs que fosse eu o homem que o perseguia e que até já lhe falara. Não mais havia necessidade de precaver-me tanto como antes e finalmente vi que o homem penetrava numa casa que pelo aspecto, parecia ser uma hospedaria.

Nas proximidades estacionava um vendedor de castanhas. Comprei-lhe um punhado dessas frutas e perguntei:

— Sabes quem mora nessa grande casa à nossa esquerda?

— O Metropoliten grego, efêndi!

— E na casa ao lado?

— Um hospedeiro búlgaro. Chama-se Doxati. Queres morar lá? Tem preços baratos e oferece comodidades.

— Não. Estou à procura dum hospedeiro que se chama Marati.

— A esse não conheço !

Para que ele não desconfiasse das minhas investigações, eu lhe disse um nome qualquer que me ocorreu. Retirei-me; por ora eu sabia o bastante. O que havia de

 

(3) Alfaiate.

(4) Tributo per capita.

 

fazer dali por diante, isso oportunamente se veria. A minha principal preocupação devia ser para que o preso não nos fugisse. Para saber que ligação havia entre este e o tal Manach El Barscha não era tarefa fácil. Mas de qualquer modo eu tinha de tentá-lo.

Gravei bem na memória a casa do hospedeiro búlgaro de modo que facilmente também a pudesse encontrar de noite, se preciso fosse, e depois voltei à casa de Hulam, que não era tão fácil de encontrar através do labirinto por que eu passara.

Já fazia tempo que me esperavam. O desfecho da audiência judicial desagradara a todos. Depois também não sabiam explicar a minha rápida retirada do tribunal.

— Sídi, — disse-me o pequeno Hadji Halef Omar — não imaginas o cuidado que tive por tua causa!

— Por minha causa? Por quê?

— Por quê? Ainda perguntas? — disse ele admirado. — Não sabes então que eu sou teu amigo e protetor?

— Isso eu sei, meu caro Halef!

— Bem, como amigo tens a obrigação de dizer-me para onde vais, e como meu protegido tens a obrigação de levar-me contigo!

— Não pude aproveitar os teus serviços!

— Não pudeste aproveitá-los? — perguntou Halef enquanto energicamente cofiava os treze fiapos que constituíam o seu bigode. — Pudeste aproveitá-los no Saara, no Egito, no Tigris, nos adoradores do diabo, no Curdistão, naquelas ruínas cujo nome não me lembro, em Istambul, em toda parte; e aqui dizes não poder aproveitá-los? Não acredito! Sabes que aqui corres tanto perigo como no Saara ou no Vale dos degraus, onde aprisionamos tantos inimigos?

— Por quê?

— Porque aqui, de tanta gente que há, não se vêem os inimigos. Ou supões por acaso que eu não sei que te achaste na pista dum novo inimigo?

— Donde te vem esta idéia?

— Acompanho os teus olhos com o meu olhar e vejo com que te ocupas.

— Bem, e que fizeram os meus olhos?

— Quando estivemos no julgamento, eles cuidaram dum búlgaro, que no fim de contas não era búlgaro. Logo que aquele se retirou tu também te afastaste.

— Tens razão, Halef, observaste bem — disse eu.

— Oh sídi, — disse ele com entusiasmo — lembras-te ainda quando percorremos o Wadi Tarfaui e quando tu reparaste nas pegadas dos assassinos?

— Sim, lembro-me bem.

— Naquela ocasião eu me ri por quereres ler na areia. Eu era então o que os turcos chamam de ahmak (5), contudo me tive na conta de extraordinariamente sonso.

— Ah, quer dizer que aprendeste alguma coisa de mim? Não é mesmo?

O meu amigo se mostrou um pouco embaraçado. Não queria confessar que um “protetor” tinha aprendido algo do “protegido”; contudo também não o podia

 

(5) Tolo.

 

negar completamente. Respondeu-me pois, para ao menos guardar um pouco as aparências:

— Aprendemos um do outro, sídi. O que tu não sabias eu te ensinei, e o que eu não conhecia tu me indicaste. Desse modo ambos ficamos mais experientes e tão inteligentes que Alá e os profetas se alegram com as nossas pessoas. Se não fosses um cristão e sim um crente, essa alegria seria mil vezes maior.

— O que agora acabas de dizer carece ainda duma verificação. Vamos ver já se de fato és tão inteligente como pensas!

Os seus olhinhos pequenos assumiram um brilho de disfarçada ira.

— Sídi, — disse-me ele — queres talvez ofender-me? Fui teu servo fiel desde que te conheço. Protegi-te de todos os perigos que te ameaçavam o corpo e a alma. Aprecio-te tanto que nem sei se meu coração pertence mais a ti ou a Hanneh, a flor das mulheres. Contigo compartilhei a fome e a sede, suei e senti frio; contigo e por ti lutei; não houve inimigo que me visse de costas, porque seria uma vergonha se te houvesse abandonado. E agora ainda queres ver se sou inteligente! Nada mais tens senão esta ofensa? Sídi, mais eu teria apreciado um pontapé do que esta palavra!

O bravo rapaz falava sério. Notei-lhe uma certa umidade nos olhos. Claro, que não era minha intenção ofendê-lo ou magoá-lo; pus-lhe, pois, para acalmá-lo, a mão no ombro e lhe disse:

— Não compreendeste o que te quis dizer, meu bom Halef. Quis dizer somente que agora tens outra ocasião para pôr à prova a tua sagacidade.

Essas palavras mudaram-no por completo.

— Qual é a ocasião a que te referes, sídi? — perguntou-me ele coro entusiasmo. — Verás que sou digno da tua confiança!

— Trata-se dum homem ao qual eu observei durante o interrogatório. Parece ser um...

— Um conhecido do prisioneiro! — interrompeu-me Halef para provar que adivinhara o meu pensamento.

— Com efeito — respondi-lhe eu.

— Decerto ele tem a intenção de socorrê-lo!

— Disso eu não duvido. Barud El Amasat só poderá salvar-se fugindo. Quem o quiser salvar terá de facilitar-lhe a fuga. Notei que o estranho lhe dirigiu um olhar de encorajamento e decerto não o fêz sem justificada razão.

— Seguiste-o para descobrir-lhe a moradia?

— Sim. Também já sei o seu nome e a sua ocupação.

— Quem é ele?

— Chama-se Manach El Barscha, é coletor de impostos e está alojado em casa do hospedeiro Doxati.

— Ó Alá! Já percebo de que modo queres que te prove a minha argúcia!

— Já o terias adivinhado?

— Sim. Queres que eu cuide desse Manach El Barscha!

— É isso mesmo!

— Mas somente poderei fazer isso se eu morar na casa de Doxati.

— Irás a cavalo para casa logo que escurecer. Acompanhar-te-ei para te mostrar a casa.

A essas palavras adiantou-se o montenegrino para dizer:

— Eu também cuidarei de alguém, sídi!

— Ah, onde?

— Enfrente ao zindan, (6) ende se encontra o prisioneiro.

— Achas que isso seja necessário?

— É-me indiferente que seja necessário ou não! Ele vendeu a minha filha como escrava e isto me causou grande mágoa. Ele faz jús à minha vingança. Tu és um cristão. Dizes tu que a vingança pertence a Deus. Fiz-te a vontade deixando Barud El Amasat nas mãos do kadi. Caso ele fuja das mãos do juiz, então me compete zelar para que não se me escape. Deixo-vos agora e vos darei notícia logo que algo de anormal se verificar.

A essas palavras retirou-se ele sem ouvir as nossas observações.

 

O DESAPARECIMENTO DE HALEF

Halef juntou a sua bagagem e montou a cavalo. Quis causar a impressão de que apenas agora chegava a Adrianópolis. Eu o acompanhei a pé até as proximidades da hospedaria e esperei até que ele penetrasse no portal. Depois me dirigi ao bazar para trocar a indumentária. Quando regressei à casa de Hulam, já anoitecera. Este nos fêz a proposta de visitar um banho, onde havia bom café e excelente aiswasperwerdesi. (7) Fizemos-lhe a vontade.

A respeito dos banhos turcos já muito se escreveu de modo que é supérfluo descrevê-los. As sombrinhas chinesas que foram projetadas depois, do nosso banho não faziam jus a grandes encômios. As geléias podiam ter sido excelentes, mas não eram do meu gosto.

Depois de nos havermos retirado do banho, achamos a noite tão agradável, que resolvemos dar ainda um passeio pela cidade. Dirigimo-nos à zona do oeste e passamos à margem do rio Arda que naquela altura desemboca no Maritza. Era já tarde quando regressamos. Faltaria talvez uma hora para a meia noite; mas havia bastante claridade. Ainda não havíamos alcançado a cidade, quando vimos que se aproximavam três cavaleiros. Dois deles tinham cavalos brancos e o outro montava um escuro. Passaram ao nosso lado sem reparar na nossa presença. Um deles, ao passar ao nosso lado, fêz uma observação qualquer. Eu ouvi o que ele disse e fiquei parado.

— Que há? — perguntou-me Isla. — Conheceste-os?

— Não. Mas essa voz me é conhecida!

— Pode ser que te enganes. Há muitas vozes que se assemelham!

— Tens razão. Isso me tranqüiliza. Doutro modo eu suporia que era o voz de Barud El Amasat.

— Se assim fosse ele teria que ter fugido!

— Efetivamente! Contudo isso não seria impossível!

— Se assim fosse eles teriam enveredado pela estrada real de Filibe (Philipopolis) e não se encontrariam neste caminho deserto.

 

(6) Cárcere.

(7) Geléia de Adrianópolis.

 

— Este caminho deserto é mais adequado para um fugitivo do que a estrada movimentada que conduz a Filibe. A voz era bem a sua!

Eu tive a sensação de que uma voz interna me segredava que eu não me enganara. Estuguei o passo e os outros tiveram de seguir-me. Quando chegamos em casa já uma pessoa nos esperava: era Osco, que se achava no portal.

— Finalmente! — disse ele, mal nos avizinhamos. — Estive esperando-vos ansiosamente. Parece-me que aconteceu algo de anormal.

— Quê? — perguntei interessado.

— Estive deitado na escuridão à porta do presídio. Não demorou, apareceu um homem que mandou abri-la. Entrou e não tardou que voltasse acompanhado de outros dois homens.

— Reconheceste algum deles?

— Não. Mas quando se retiraram ouvi que um disse: “Fomos mais bem sucedidos do que esperávamos.” Desconfiei daquelas palavras e me esgueirei até a esquina, mas eles já haviam desaparecido.

— E depois?

— Depois eu vim para cá para contar-vos o fato. Não vos encontrei em casa e tive de esperar. Já estava impaciente.

— Bem. Vamos agir. Hulam pode vir conosco; os outros que fiquem.

— Dirigi-me com Hulam à rua onde ficava a casa de Doxati. A porta se achava ainda aberta. Entramos. Havia uma peça central que dava para o pátio, mas que não tinha janela para a rua. Sem entrar naquela peça, pedi a um dos empregados que me chamasse o dono da casa.

Doxati era um homenzinho velho que tinha cara de biltre. Fêz uma profunda reverência e perguntou por nossos desejos.

— Entrou hoje de noite um hóspede novo em tua casa? — perguntei-lhe.

— Entraram vários, senhor — foi a sua resposta.

— Refiro-me a um homem pequeno que veio a cavalo.

— Está aqui. Tem uma barba tão rala, como rabo de galinha velha.

— Falas de modo bem irreverente; mas deve ser o homem a quem eu procuro. Onde está ele?

— Está no seu oda. (8)

— Conduze-me a ele!

— Vem, senhor.

O hospedeiro tomou a dianteira e dirigiu-se ao pátio de onde subimos alguns degraus. Em cima, à luz dum lampeão, se divisavam diversos dormitórios. O nosso guia abriu um deles. Mas a peça que tinha por mobiliário somente uma esteira de palha esfrangalhada se achava vasia.

— É aqui que ele mora? — perguntei eu.

— Sim.

— Mas ele não está ali.

— Sabe Alá para onde se dirigiu!

— Onde está o seu cavalo?

— Na estrebaria, no segundo awlu. (9)

 

(8) Dormitório.

(9) Pátio.

 

— Esteve ele em companhia de outros hóspedes?

— Sim. Depois estacionou por longo tempo à porta.

— Além dele procuro ainda um outro homem chamado Manach El Barscha. Conhece-o?

— Como não o haveria de conhecer. Se ainda hoje ele parou em minha casa!

— Parou? De modo que já não mora mais?

— Não. Partiu.

— Só?

— Não. Com dois amigos.

— Seguiram montados?

— Sim.

— Qual era a côr dos cavalos?

— Dois brancos e um escuro.

— Para onde se dirigiram?

— Querem ir a Filibe e de lá à Sofia.

— Conheceste os dois amigos?

— Não. O homem saiu só e voltou com eles.

— De modo que ele trouxe três cavalos?

Não. Trouxe só o escuro. Os brancos comprou-os hoje aqui.

 

A FUGA DE BARUD EL AMASAT

Agora tinha certeza de que o meu ouvido não me enganara. Barud El Amasat conseguira fugir com a ajuda de Manach El Barscha. Mas quem teria sido o terceiro dos companheiros? Talvez o carcereiro, que lhes abriu a prisão e depois foi obrigado a fugir em sua companhia.

Continuei a interrogar:

— E o homem por quem eu te perguntei primeiro não os seguiu?

— Não.

— Sabes isto ao certo?

— Com toda a certeza! Eu estava à porta quando eles partiram.

— Conduz-nos ao seu cavalo.

Atravessamos o pátio fronteiro e através duma passagem abobadada penetramos numa edificação de pouca altura. Meu olfato, já de longe, me dissera que nos avizinhávamos duma estrebaria. O hospedeiro abriu a porta; era escuro. Mas um imperceptível bufar que eu percebi fêz-me pressentir a presença dum cavalo.

— Apagaram a luz — disse ele.

— Estava acesa?

— Sim.

— Achavam-se aqui também os cavalos daquele Manach El Barscha?

— Sim. Eu não estava presente quando ele os veio buscar.

— Vamos pois acender a luz.

— Risquei um fósforo e, num instante, acendemos a lanterna que se achava na parede. Reconheci o cavalo de Halef e, ao lado, um vulto informe que se achava enrolado num cafetã amarrado com cordas. Retirei as cordas e abri o cafetã... era o meu pequeno Hadji Halef Omar. Este se pôs em pé e gritou cerrando os punhos e rangendo os dentes:

— Allah il Allah! Sídi, onde estão esses cães que me subjugaram e esses filhos de cães e netos de filhos de cães que me enrolaram e me amarraram?

— Tu és quem deve saber! — respondi eu.

— Eu? Como hei de saber? Como posso saber ser estive preso como o santo alcorão que se encontra amarrado com correntes de ferro em Damasco?

— Por que deixaste que te amarrassem?

Halef olhou-me com um ar admirado e incrédulo.

— Assim perguntas-me tu a mim? Tu me deste ordem para que eu...

— Para que desses uma prova da tua sagacidade — interrompi-o. — Essa prova não resultou grandemente brilhante para ti!

— Sídi! Não me magoes! Se estivesses estado presente me perdoa-rias!

— Pode ser, mas não é provável! Já sabes que Manach El Barscha conseguiu fugir?

— Sim. Que pereça no Djeena!

— E que Barud El Amasat o acompanhou?

— Sim. Que pereça no Dsjcheena!

— E sabes que és tu quem tem a culpa de tudo?

— Não. Isso não sei.

— Conta, então!

— Quando cheguei à hospedaria do Doxati, que está aqui abrindo a boca como se fosse o Scheitan que deve engulir a Manach El Barscha,

Soube que este possuía três cavalos por ter comprado mais dois animais ao escurecer. Observei-o, e vi que ele abandonava a casa.

— Adivinhaste qual era a sua intenção?

— Sim, sídi.

— Por que não o seguiste?

— Supus que ele se havia de dirigir ao cárcere. Mas lá se achava Osco.

— Hum! Até aí, tudo bem combinado!

— Vês, sídi, como me tens que dar razão!

Notava-se pela voz do homenzinho que ele agora se sentia mais aliviado. Prosseguiu:

— Calculei que ele queria libertar o prisioneiro; sabia também que ele necessitava de cavalos. De qualquer modo tinha de regressar à estrebaria; por isso me escondi aqui para surpreendê-lo.

— Tu te escondeste? Não era necessário. Devias ter mandado, ou tu mesmo ido à procura duns soldados. Teria sido o mais acertado.

— Oh, sídi, nem sempre o que é o mais acertado é o mais bonito. Teria tido tanto prazer se eu mesmo tivesse podido prendê-los!

— E temos nós agora de pagar as conseqüências!

— Alá os deixará cair em nossas mãos! Esperei, portanto. Quando vieram, eram três. Perguntaram-me o que eu queria aqui; mas mal Barud El Amasat me avistou, fui reconhecido. Ele me vira como testemunha durante a audiência. Caíram sobre mim; ofereci-lhes resistência e até rasguei as roupas de Barud durante a luta.

— Por que não fizeste uso das tuas armas?

— Sídi, eram seis os braços que me comprimiam, e eu não disponha de mais de dois. Se Alá me tivesse dado dez braços, então me teriam sobrado quatro para usar as armas. Por fim me derrubaram, me enrolaram no meu cafetã, e me amarraram com cordas. Assim permaneci até que tu vieste para libertar-me. Foi isto o que se passou.

— Ai, ai, Hadji Halef Omar, ai ai!

— Sídi, eu também quisera exclamar ai, ai. Mas isso de nada adianta. Eles se ausentaram. Se eles se encontrassem no deserto, ser-nos-ia fácil descobrir-lhes as pegadas; mas aqui neste grande Edreneh será impossível.

— Eu já lhes descobri as pegadas. Já sei para onde foram.

— Hamdullilah! Glória a Alá, por te haver dado a inteligência, a...

— A inteligência que tu hoje não revelaste — interrompi-lhe eu. — Deves saber que, por se ter um rasto, ainda não se tem o homem. Alumia aqui. Que é isso?

Halef se abaixou e levantou um regular pedaço de pano. Examinou-o e disse:

— É um pedaço do cafetã de Barud El Amasat, que lhe rasguei durante a luta. Vê, ainda tem um bolso!

— Contém alguma coisa?

Ele meteu a mão e respondeu:

— Contém isto; um pedaço de papel.

Examinei-o à luz da lanterna e o desdobrei. Era uma cartinha minúscula, mas lacrada com um grande selo. Continha três linhas escritas em linguagem árabe, mas em caracteres tão pequenos que com a fraca luz da lanterna não me foi possível ler. Meti a cartinha no bolso e me dispus a procurar outros vestígios da luta, sem contudo encontrá-los. Era-me incompreensível terem deixado os homens a faca e as duas pistolas de Halef. Sua espingarda estava apoiada a um canto da hospedaria.

— Manach El Barscha ocupou também um quarto na tua casa? — perguntei ao hospedeiro que se achava admirado ao nosso lado.

— Sim — respondeu ele.

— Era teu freguês há mais tempo?

— Sim.

— Então o conheces bem?

— Sim. Ele tem o nome que disseste e é coletor de impostos.

— Onde mora?

— Em Uskub. Mas raras vezes está em casa. Arrendou muitas povoações e tem muito que viajar para coletar os impostos.

— Mostra-nos o quarto em que ele morou.

Fomos à peça em questão, mas nada que nos houvesse podido dar um esclarecimento foi encontrado. Halef desempenhara a missão que lhe confiei, mas infelizmente com resultado negativo. Mandei o pequeno Hadji com o seu cavalo para casa. Afastou-se abatido e murmurou mil imprecações que se sumiram nos fiapos a que ele chamava bigode. A Hulam, porém, pedi que me acompanhasse à casa do kadi. Hulam até agora não dissera uma palavra. Quando lhe falei, porém, me disse:

— Ketir, Ketir! Isso é demais! Quem o teria pensado! Se não tivéssemos ido ao banho, teríamos sido alcançados por Osco, e talvez lhes tivéssemos impedido a fuga,

— Temos que imaginar que tinha de ser assim mesmo!

— Mas que havemos de fazer na casa do kadi? Achas que ele o poderá remediar?

— Vamos fazer-lhe comunicação do ocorrido, e somente com a sua ajuda poderemos ter a prova de que o prisioneiro efetivamente fugiu.

— O kadi decerto já está dormindo.

— Então o acordaremos.

— Mas ele não consentirá.

— Terá de consentir.

O juiz efetivamente já se havia recolhido e foi preciso que eu falasse energicamente até que se resolvessem a acordá-lo. Depois fomos recebidos. Ele não fêz cara de muitos amigos e perguntou a que vínhamos.

— Confiamos Barud El Amasat às tuas mãos, — disse eu, igualmente sem excessiva cortesia. — Tomaste as devidas precauções para que ele fosse bem vigiado?

— Vieste somente para fazer-me esta pergunta?

— Responder-te-ei depois de ouvida a tua resposta.

— O preso está sendo bem vigiado. Podeis retirar-vos.

— Não somos nós os que nos retiramos senão que foi ele quem se retirou.

— Ele? Quem?

— O prisioneiro.

— Allah Akbar! Deus é grande e poderá compreender as tuas palavras. Mas eu não te compreendo.

— Devo então falar com mais clareza: Barud El Amasat fugiu! O kadi levantou-se bruscamente do divã em que se achava sentado à nossa entrada e no qual decerto também dormira.

— Que dizes tu? Então ele fugiu?

— Sim.

— Evadiu-se? Evadiu-se da prisão?

— Sim.

— Como o sabes?

— Encontramo-lo em caminho.

— Ia Allah! Por que não o seguraram?

— Não o conhecíamos.

— Como sabeis então que era ele?

— Vimos a sabê-lo depois. Ele foi libertado pelo coletor de impostos que se chama Manach El Barscha.

— Manach El Barscha? Oh, conheço esse biltre! Antigamente era ele arrecadador de impostos e morava em Uskub, mas já não o é mais. Agora, ele vive nos montes.

— Vive nos montes quer dizer teve de fugir para os montes. Perguntei, pois: — Não o viste hoje durante o interrogatório?

— Não. Donde o conheces?

— Vim a conhecer-lhe o nome na casa dum negociante de roupas usadas. Ele morava na hospedaria de Doxati e hoje à noite comprou cavalos e fugiu com Barud El Amasat, em companhia de um terceiro.

— Quem era esse terceiro?

— Não sei. Mas suponho que fosse o carcereiro.

Contamos-lhe abreviadamente o que sabíamos. Mandou que lhe trouxessem a sua espada, depois ordenou a dez soldados que nos acompanhassem e pôs-se a caminho do presídio.

O inspetor do presídio não ficou admirado ante a visita que lhe fazíamos a tão tardias horas.

— Conduze-nos ao preso que se chama Barud El Amasat, — disse O kadi.

O funcionário obedeceu e grande foi o seu espanto ao encontrar vazia a cela que fora ocupada pelo preso mencionado. O carcereiro, porém, a cujos cuidados fora particularmente recomendado o prisioneiro, não pôde ser encontrado; fugira com o criminoso.

É impossível descrever-se a ira manifestada pelo kadi. O venerando juiz usou dum palavreado impossível de ser versado em linguagem decente e mandou por fim que prendessem o inspetor. Tratei de acalmá-lo e fiz-lhe ver a possibilidade de perseguir o evadido na manhã seguinte. Ele prometeu por fim fazer-nos acompanhar de alguns soldados e de munir-nos duma ordem de prisão. Retiramo-nos do cárcere e ao penetrarmos na rua, reacendemos as lanternas que trouxéramos. Sem uma luz na mão era arriscado transitar pela cidade a não ser que quiséssemos ser presos e fazer uma estadia pouco agradável no meio duma “sociedade” heterogênea.

 

UMA CILADA

Ainda não havíamos caminhado muito quando, ao dobrar uma esquina, esbarrei num homem que parecia vir com grande pressa. Atropelou-me, recuou, e disse:

— Atsch Gozunu! Abre os olhos!

— Devias ter falado antes — foi a minha resposta.

— Aman, aman! Perdoa-me! Vinha com muita pressa e se me apagou a lanterna. Permites-me que a acenda na tua?

— Pois não!

Tirou a vela da lanterna que era feita de papel oleado e a acendeu na minha. Durante essa operação me disse como que a guisa de desculpa.

— Devo procurar urgentemente um médico, um barbeiro ou um boticário. Temos um hóspede que adoeceu gravemente e que fala somente em nemtsche (10), porque ele é de Nemtschistan.

Essa notícia despertou logo o meu interesse. Adoecera inesperadamente um conterrâneo meu que quase não conhecia o idioma do país! Era portanto meu dever colher ao menos pormenores. Perguntei-lhe pois:

 

(10) Alemão.

 

— Em que parte de Nemtschistan nasceu ele?

— É de Bavaristan.

Ah, era um bávaro, portanto! Nem por sombras supus que se pudesse tratar dalgum embuste. Que sabiam em Edreneh da Baviera? Eu teria sido capaz de apostar que o nome daquele país só podia ser proferido por uma pessoa que realmente ali tivesse nascido. Continuei a perguntar:

— De que doença sofre ele?

— Tem o systma sinirun! (11)

— Qual é a sua ocupação?

— Não sei. Ele veio à casa do meu patrão, que é rutuntschi (12) para comprar fumo.

— Moram longe daqui?

— Não.

— Conduze-me então até lá.

— És tu um médico ou um boticário?

— Não, mas sou nemtsche e quero ver se posso prestar algum auxílio a meu conterrâneo.

— Inisch Allah! Queira-o Deus! Segue-me então!

Meu companheiro quis também seguir-me, mas como eu não necessitasse da sua companhia pedi que continuasse o seu caminho. Dei-lhe a minha lanterna e segui o estranho.

Não era realmente longo o trajeto que tínhamos a percorrer. Depois de poucos minutos estacionou ele defronte a uma porta, na qual bateu. Esta foi aberta e, como eu me achasse detrás do meu guia, percebi a pergunta:

— Hekim buldun my — achaste um médico?

— Não, mas encontrei um hamscheri (13) do doente.

— E que poderá ele ajudar o doente e a nós?

— Poderá servir de intérprete já que não compreendemos o idioma do doente.

— Então, que entre!

Penetrei num estreito corredor que dava para um pátio acanhada A luz da lanterna de papel mal permitia que se enxergasse um objeto à distância de mais de três passos. Não tive a mínima intuição dalgum perigo que me pudesse esperar e fiquei admirado ao perceber uma voz que ordenava em tom autoritário:

— Onu tutyn, Gertsche dir! — peguem-no, é ele mesmo!

No mesmo momento foi apagada a luz e me senti subjugado por braços que se estendiam de todas as direções. Não tive nem tempo de ocupar-me da pergunta. Seria algum engano? Gritar por socorro, seria inútil porque o pequeno pátio era circundado dos quatro lados por altas paredes. Era preciso que eu me livrasse dos agressores e que conseguisse alcançar a porta para fugir. Assumi uma posição firme, com as pernas entreabertas e estendi os braços o mais que pude para vencer a resistência oposta. Depois os encolhi com violento impulso. Dois dos agressores mais próximos chegaram a tombar ao solo em conseqüência do choque, mas as mãos dos outros incontinenti tornaram a comprimir-me, e não demorou que os dois 

 

(11) Nefrite.

(12) Negociante de tabaco.

(13) Patrício.

 

que eu derrubara também estivessem novamente em pé.

Percebi que a agressão era dirigida à minha pessoa; disso tinha eu agora certeza. Espreitaram a minha ida à casa do kadi e atrairam-me para aquela cilada. Com palavras eu nada adiantaria e assim dispus-me a uma luta silenciosa; esforcei-me o mais que pude para livrar-me, mas foi em vão; Eram muitos contra um. Terminaram por derrubar-me ao solo e apesar de eu ainda ter continuado a defender-me, não demorou que eu sentisse que estava sendo amarrado.

Eu me achava preso e manietado!

Tivesse ao menos gritado por socorro! Poderia ter tentado salvar a vida, já que arriscara a liberdade. Parecia que não tinham urgência em tirar-me a vida, naquele momento; do contrário, facilmente com uma facada me poderiam ter morto. Se, contudo, agora eu fizesse ruído e eles tivessem de recear a descoberta, isso me seria de conseqüências fatais.

Um homem dotado de mediano vigor costuma desenvolver, em situações como aquela, forças anormais. Eu quase já não podia mais respirar e os meus agressores estavam tão ofegantes como eu. Eu estava de posse duma faca e duma pistola, mas logo nos primeiros momentos da luta me haviam sido arrebatadas essas armas. Agora já não mais podia pensar em oferecer resistência. Foram talvez uns dez a quatorze braços que me amarraram.

Achavam-se os biltres a meu redor e blasfemavam em todas as tonalidades; isto tudo dentro duma escuridão em que eu não enxergava um palmo adiante do nariz.

— Hazyr, pronto? — perguntou uma das vozes.

— Ewet, sim!

— Conduzam-no para dentro!

Senti-me agarrado e arrastado para dentro da casa. Ter-me-ia sido possível oferecer agora alguma resistência, visto como podia mover o corpo com os joelhos; preferi, porém, desistir dessa idéia para não agravar a minha situação.

Notei que eu era transportado através de duas peças escuras e, quando chegamos a uma terceira, jogaram-me simplesmente ao solo. Os homens que me conduziram se retiraram. Não demorou que entrassem outros dois, um dos quais trazia uma lanterna.

— Conheces-me ainda? — perguntou um deles.

Colocara-se ele de modo que a luz da lanterna lhe iluminasse o rosto. Calcule o leitor a surpresa que experimentei ao reconhecer em sua pessoa o meu amigo Ali Manach Ben Barud El Amasat, o filho do evadido dervixe com o qual eu falara no convento de Constantinopla.

Nada respondi. Deu-me ele um pontapé e repetiu:

— Pergunto se ainda me conheces?

Refleti que o meu silêncio não podia ser-me vantajoso. Caso eu quisesse conhecer-lhes a intenção, o que de momento me era de capital importância, era necessário que eu falasse.

— Sim — respondi.

— Mentiroso! Tu nunca fôste um “Nassr”.

— Por acaso te disse que era?

— Sim!

— Não. Somente não vi motivo para esclarecer-te a respeito do teu engano. Que queres agora comigo?

— Havemos de te matar.

— Que me importa... — disse eu do modo mais despreocupado possível.

— Não finjas que não amas a vida! Tu és um giaur, um cristão, e esses cães não sabem morrer porque não têm alcorão, nem profeta, nem paraíso!

A essas palavras recebi um segundo pontapé dado de lado. Tivesse eu livre uma das mãos que fosse...! Esse dervixe teria executado uma dança bem diferente da que executou no convento em Istambul!

— E que poderei fazer, se vocês resolveram matar-me? — falei calmamente. — Morrerei com a mesma resignação com que agora recebo os teus pontapés. Um cristão não seria suficientemente covarde para maltratar um homem manietado. Tira-me as cordas e veremos qual dos nossos profetas é o melhor e qual dos nossos paraísos o mais belo.

— Cão! Não me ameaces porque do contrário ainda travarás conhecimento com o coveiro, antes do clarear do dia!

— Então deixa-me em paz e safa-te!

— Não. Tenho de falar contigo. Queres talvez ter a gentileza de fumar um cachimbo, enquanto esperas?

Era uma admirável ironia a daquele rapazote, ironia que me poderia ter provocado ira, se não me tivesse alegrado.

— Já vi que és um ótimo choradschi, (14) — disse eu, — mas não sabia que és ainda melhor chakadschi (15); isso me admira, pois é sabido que aos bailarinos falta geralmente o espírito para zombar. Se é que realmente tens de falar comigo, então reflete a quem te diriges. Digo-te que somente ouvirás a minha voz se me mostrares o respeito pela minha barba, respeito que o profeta determina!

Era uma ofensa que intencionalmente eu lhe dirigia. A palavra chora (16) significa para os turcos aquela espécie de dança lasciva que é permitida somente às mulheres ao passo que os homens severamente a evitam. O bailado dos dervixes é de natureza diferente; é tido como coisa sagrada. Não podia haver para ele ofensa maior do que a de classificá-lo de choradschi e de dizer que os adeptos da sua ordem não dispõem de espírito. Já eu esperava novos pontapés e admirei-me quando vi que o rapaz me dirigiu um olhar inflamado, e sem dizer palavra se sentou a meu lado. O outro permaneceu em pé.

— Se tu fosses um moslem eu saberia agora castigar-te — disse-me o dervixe — mas um cristão não é capaz de ofender a um verdadeiro crente. Como poderia um verme sujar o sol?! Quero somente que me respondas a algumas perguntas. Perguntarei e responderás.

— Estou disposto a responder se as tuas perguntas forem tão corteses como tenho o direito de esperar.

— És tu o médico franke que atrapalhou os planos do usta em Damasco?

— Sim.

 

(14) Coveiro.

(15) Bailarino.

(16) Bailado.

 

— Encontraste depois o usta em Istambul?

— Sim.

— Deste-lhe um tiro quando ele saltou à água?

— Não fui eu, mas sim o meu criado.

— Tornaste a ver mais tarde o usta?

— Sim.

— Onde?

— Diante da torre de Galata, já morto.

— De modo que é verdade o que me conta este homem aqui! — ao dizer estas palavras apontou para o homem que segurava a lanterna.

— Não sabias que o usta morreu? — perguntei.

— Não. Ele desaparecera, e ao lado do corpo de Kolettis encontraram um cadáver que ninguém conheceu.

— Era o corpo do usta.

— Vocês o precipitaram da torre?

— Quem te disse isso?

— Este homem. Chegara ele a Edreneh sem saber de nada. Eu havia sido chamado para junto de meu pai. Procurei-o em casa de Hulam sem dizer quem eu era, e ali me disseram que ele havia sido aprisionado. Foi salvo sem a minha ajuda. Este homem foi seu criado e morou com ele na casa de Hulam. Teu amigo e protetor o Hadji Halef Omar contara-lhe tudo. Depois procurei a meu pai na hospedaria do Doxati. Já ele se ausentara, mas vocês se encontravam na estrebaria. Vim a saber que tu eras um alemão; por isso mandei que te esperassem na esquina para te dizerem que um alemão adoecera. Assim, te achas agora nas nossas mãos. Que pensas que faremos agora contigo?

Essa interrogação dava-me sem dúvida assunto para sérias reflexões; mas não lhes dediquei tempo e rapidamente respondi:

— Não receio perder a vida porque sei que não me matarão.

— E por que não haveríamos de matar-te? Não te achas nas nossas mãos?

— Então perderiam o resgate que posso pagar!

Seus olhos manifestaram um estranho fulgor. Uma vez de posse do resgate poderiam ainda eliminar-me facilmente.

— Quando queres dar? — perguntou ele.

— Qual é o valor que me atribuis?

— Teu valor não é mais alto do que o dum agreb (17) ou dum Rylon (18). Ambos são venenosos e costumam ser mortos logo que são encontrados. A tua vida não vale a décima parte dum pára. Mas o mal que nos causaste exige um castigo severo. Por isso deveras pagar o resgate. Ah! ele dizia claramente: queriam o resgate como castigo. Depois a minha vida não valia nem vinte pfennigs! Isso contudo me permitia ganhar tempo. Por isso respondi do modo mais sério que me foi possível:

— Tu me comparas a um verme venenoso! É essa a cortesia que te exigi como condição? Podem matar-me; não me oponho! Não te pago nem um ceitil se não me falares de modo mais cortês!

 

(17) Escorpião.

(18) Serpente.

 

— Far-te-ei a vontade. Mas nota que quanto maior fôr a minha cortesia, tanto maior será o preço do resgate.

— Dize-me então esse preço!

— Tu és rico?

— Não troco as minhas posses pelas tuas.

— Então espera.

O meu interlocutor levantou-se e se ausentou. O outro ficou a meu lado, mantendo, porém, o mais absoluto mutismo. Percebi diversas vozes na peça contígua, mas nada pude compreender; notei que havia diversidade de opiniões. Havia passado mais de meia hora quando o meu algoz regressou. Desta vez, porém, não se sentou.

— Podes pagar cinqüenta mil piastras? — perguntou ele.

— Isso é muito; isso é demais!

Era necessário que eu relutasse um pouco. Ele fêz um gesto de impaciência e me disse:

— Nem um pára de diferença! Queres? Responde já; não temos tempo a perder!

— Bem. Eu pago.

— Onde está o dinheiro?

— É claro que não o tenho comigo. Tomaram-me tudo que eu trazia nos bolsos. Tampouco o tenho aqui em Edreneh.

— Como queres pagar-nos então?

— Darei uma ordem para Constantinopla.

— Contra quem?

— Contra o eltschi de Farfistan.

— Contra o embaixador da Pérsia? — perguntou-me ele admirado. — A ele queres que seja mostrada a tua carta?

— Sim.

— E ele pagará de fato?

— Pensas que o representante do Xá da Pérsia não dispõe de dinheiro?

— Sei que ele dispõe até de muito dinheiro. Mas estará disposto a pagar por tua causa?

— Ele muito bem sabe que receberá toda a quantia que por minha ordem despender.

Eu não dizia nenhuma mentira pois estava convencido de que o embaixador do Xá havia de tomar como louco tanto o portador da carta como a mim mesmo. O adepto do ensino de Zoroastro nem sabia da existência terrena dum escrivinhador de nome alemão como eu.

— Se tens certeza do que dizes, então escreve a ordem!

— Escrever, como? Aqui na parede?

— Traremos o que é preciso e te soltaremos as mãos.

Essas palavras me eletrizaram. As mãos livres! Talvez que me dessem ensejo de libertar-me! Eu podia talvez agarrar o dervixe e ameaçá-lo de estrangulamento. Podia comprimir-lhe a garganta até que me desse a liberdade.

Mas essa idéia romântica, essa idéia esdrúxula nem chegava a ser sedutora. O dervixe que de resto não usava as suas vestimentas claustrais, mostrava-se singularmente precavido. Não tinha confiança na minha pessoa e por isto trouxe quatro homens armados que se agruparam à minha direita e à minha esquerda. As caras desses homens não eram lá de muitos amigos. O menor movimento impensado podia ter-me sido de conseqüências fatais.

Deram-me um pedaço de pergaminho e papel para o envelope. Escrevi as seguintes palavras sobre o joelho, depois de me haverem libertado as mãos:

 

“Ao irmão Abbas Jesub Haman Mirza, ao raio do sol de Farfistan, que agora ilumina Istambul.

Peço-te pagares de minha conta, de conta do pálido reflexo da tua amizade, ao portador deste mektub (19) a importância de cinqüenta mil piastras. Meu sandykschi (20) tas restituirá tão logo as pedires. Não indagues do portador donde ele vem, para onde vai e quem é!

Sou a sombra da tua luz

Hadji Kara Ben Nemsi.”

 

Assinei daquele modo porque tive de supor que o dervixe soubesse por intermédio do criado do seu pai que era aquele o meu nome. Depois de haver-lhe posto o sobrescrito entreguei o envelope e a carta a Ali Manach. Este a leu em voz alta e pude ver pelas fisionomias satisfeitas da “nobre” comitiva, que o conteúdo não deixava de causar-lhes uma agradável impressão. Comigo mesmo eu imaginei a cara que havia de fazer o embaixador da Pérsia, que eu nem conhecia e que decerto tinha um nome completamente diferente, quando se inteirasse da leitura. Ai, então, do portador!

O dervixe abanou satisfeito a cabeça e disse-me:

— Está muito bem! Agiste com prudência ao pedir que ele não indagasse de nada. Ele de qualquer modo não ficaria sabendo de nada. Atai-lhe agora novamente as mãos. O kiradschi já se encontra à espera.

Tive de consentir que me renovassem a desagradável “bandagem”; depois se afastaram e deixaram-me sozinho na escuridão.

Antes de mais nada comecei por experimentar a solidez das cordas. Não demorou que me convencesse da inutilidade duma esperança de libertação. Já como com as mãos eu nada podia fazer, comecei a trabalhar com a mente.

Como chegara o dervixe a Adrianópolis? Decerto não era para perseguir-nos, pois nada sabia a nosso respeito. Recebera um mensageiro do seu pai. Este o chamara, portanto. Para quê? Teria a sua presença sido necessária para a execução da trama arquitetada? Ou se trataria dalgum novo plano do qual eu ainda nada sabia?

Onde me achava eu, de resto? Quem era essa gente? Pertenceriam eles ao bando do usta? Ou teriam outra relação com Barud El Amasat e seu cúmplice? Estive inclinado a aceitar a última suposição. Os quatro sujeitos armados que me montaram guarda tinham fisionomias bem antipáticas; tive-os na conta de arnautas.

Ademais dissera o dervixe que o kiradschi já estava à espera. Os kiradschis são carreteiros que fazem carretos de ocasião através de toda a península balcânica

 

(19) Carta.

(20) Tesoureiro.

 

de modo semelhante ao com que na antigüidade os carreteiros na Alemanha faziam o tráfico de mercadorias através de todo o país e mesmo além-fronteiras. O kiradschi é o expedidor dos Bálcãs. Ele conhece a tudo e a todos e sabe responder a toda pergunta. Onde ele chega é sempre um hóspede bem-vindo, pois sabe contar o que se passa no mundo. Nas serranias íngremes dos Bálcãs há regiões onde durante o ano inteiro os moradores não saberiam o que se passa no mundo se não aparecesse uma vez ao ano o kiradschi para indagar se o campônio não dispõe dum carregamento de queijo para ser vendido.

Confiam a esses carreteiros mercadorias de elevado valor sem que ninguém se lembre de lhes exigir uma garantia. A única garantia que eles apresentam é a sua honestidade. Acontece às vezes que eles somente depois de meses ou de anos voltam; mas voltam; e voltam trazendo o dinheiro da mercadoria vendida. Se nesse meio tempo morreu o pai fica o filho incumbido da entrega do dinheiro, ou o genro. A verdade é que alguém traz o dinheiro.

A honestidade do kiradschi tornou-se proverbial com o correr do tempo. Mas infelizmente parece que os tempos modernos tendem a solapar essa proverbial honradez. É que entre as famílias tradicionais de honrados kiradschis apareceram elementos duvidosos que procuram colher com facilidade o que o espírito de honradez e de trabalho dos antepassados semeara. Fazem eles que os kiradschis aos poucos percam a fama tão arduamente conquistada.

Era um carreteiro destes que já se achava à espera! Seria que se achava à minha espera? Seria para transportar-me a mim? No centro da cidade onde me achava podia eu ainda acariciar a esperança de ser libertado. Se até a manhã seguinte eu não voltasse em casa de Hulam, é certo que este e seus amigos, e em particular, o pequeno Hadji tudo fariam para descobrir o meu paradeiro.

Lembrei-me deles e dos seis soldados que às seis da manhã deviam estar à nossa espera na nossa porta; tive ímpetos de romper os grilhões que me algemavam, mas não o consegui; eram demasiado sólidos!

Eu havia admoestado a Halef por causa da sua falta de cuidado; agora eu me revelava ainda mais tolo que ele: caíra numa tola cilada! Eu fora, sem dúvida, vítima da minha bondade, mas isso não constituía nem consolo nem desculpa. Cumpria-me agora encher-me de resignação, aguardar os acontecimentos com sangue frio, e não perder nenhuma oportunidade que se me deparasse para escapulir.

Enquanto estive absorto nesses pensamentos, voltaram os quatro homens. Sem proferir palavra colocaram-me um grosso pano diversas vezes dobrado sobre a boca, depois me enrolaram num tapete e me carregaram para fora. Para onde? Era coisa que não pude perceber...

Tive dificuldade para respirar. Rescendia a mordaça a alho e a outros ingredientes alquimísticos e infernais. Fiz um esforço inaudito para dilatar os pulmões, mas não o consegui. Sensação semelhante deve experimentar um ente enterrado vivo quando ouve as primeiras pazadas de terra sobre o caixão. Parecia que esses homens nem se lembravam da possibilidade de eu vir a morrer sufocado sob o tapete que me asfixiava!

O movimento que eu sentira, o de ser carregado, cessara. Senti algo de solido sob o meu corpo. Haviam-me deitado em qualquer parte; mas onde, era coisa que não pude adivinhar. Não demorou que me parecesse ouvir o ranger de rodas que se moviam. Fui sacudido para lá e para cár para cima e para baixo. Sim, não havia dúvida, eu me achava colocado num veículo. Transportavam-me para fora de Adrianópolis!

Era-me impossível mover os membros; a única liberdade que senti foi a de poder encolher e espichar as pernas. Fiz esses movimentos e percebi que o tapete aos poucos foi afrouxando. A essa altura ao menos me foi possível aspirar um pouco mais de ar fresco. Cedeu o horrível pesadelo que me comprimia o peito e interroguei-me a mim mesmo sobre a minha situação. Seria de fato tão desesperadora, que eu fosse obrigada a resignar-me indefeso daquele modo?

Por mais que eu aguçasse os ouvidos não percebia uma voz humana que fosse. Era-me portanto impossível dizer se eu me achava aos cuidados de um homem só ou de diversos. Rolei o corpo primeiro para a direita e depois para a esquerda. O espaço que senti de ambos os lados era bero acanhado; o veículo devia, pois, ser bem estreito. Pareceu-me também que me achava depositado num leito fofo: me haviam, sem dúvida, deitado sobre uma camada de palha. Pelos movimentos do veículo pude notar que me achava com a cabeça colocada para a parte posterior do mesmo. Ah! Se eu conseguisse cair da carreta pela parte traseira! Era de noite e imperava uma escuridão profunda. Ter-me-ia sido possível rolar para longe do leito da estrada e então eu estaria salvo!

Encolhi as pernas, firmei os calcanhares e impeli o corpo para a parte posterior. Mas aí encontrei um obstáculo resistente que zombava de todos os meus esforços. Tive de desistir da intenção.

Seguiu-se então um período que me pareceu composto de diversas eternidades. Por fim percebi que mãos humanas se ocupavam do meu tapete. Pegaram duma extremidade. Dei diversas voltas, rolando até que ficasse aberto o fardo que eu constituía com o tapete. Estive deitado num leito de fofa palha; vi que já havia rompido a aurora. Surgiu-me diante dos olhos o rosto do criado de Barud El Amasat.

— Se me prometeres permanecer calado, retirar-te-ei a mordaça — disse-me ele.

Fiz um movimento ansiosamente afirmativo com a cabeça. Ele me retirou a mordaça e — graças a Deus! — senti uma torrente de ar fresco e oxigenado que me invadia os pulmões. Era como se tivesse abandonado o inferno para penetrar no reino dos céus.

— Sentes fome? — perguntou ele.

— Não.

— E sede.

— Tampouco.

— Dar-te-emos alimento e bebida se nos prometeres permanecer quieto e não fizeres esforços para te libertar. Mas uma vez que te revelares desobediente tenho ordens de te matar.

Desaparecera o rosto que me falara. Tive maior liberdade de movimentos. Como o tapete já não mais me comprimisse foi-me possível procurar uma posição que me permitiu sentar. Achei-me na parte posterior da carreta muito estreita e longa, que se achava coberta com um toldo. Logo atrás de mim se achava o criado como meu guarda e, na boléia, se achavam dois homens que me davam as costas. Um deles eu o devia ter visto antes: era sem dúvida um dos que me haviam aprisionado. O outro era decerto o kiradschi do qual falara o dervixe. Dele nada mais pude ver do que a pele com que se vestia, pele que os kiradschis usam também durante o verão. Usava ele também um chapéu de abas bastante reviradas. Ademais também lhe pude notar numa das mãos o chicote que segurava. Esse homem de chapéu revirado e metido numa pele suja era-me agora de máxima importância.

Não me pude conformar à idéia de que um kiradschi da boa e velha “escola” fizesse parte dum grupo de bandidos; por outro lado não pude imaginar um dos modernos kiradschis metido numa daquelas peles tradicionais. Era um dilema; tive de esperar. Recostei-me na parte posterior do veículo e pus-me a fitar o homem.

Depois de longo tempo aconteceu que ele se virou uma vez. Seu olhar se encontrou com o meu. Seus olhos grandes e azuis permaneceram por alguns segundos fitos em mim. Depois se voltou de novo. Antes, porém, encontrou ele tempo para elevar as sobrancelhas e para piscar-me com o olho esquerdo.

Imediatamente lhe interpretei a pantomima dos olhos. O elevar das sobrancelhas significava que eu devia estar alerta, e o piscar do olho esquerdo queria dizer que eu cuidasse da parte esquerda do veículo. Haveria naquele lado alguma coisa de particular que me podia ser de vantagem?

Perscrutei a parte indicada, mas nada mais pude descobrir do que um barbante que descia da boléia e cuja extremidade se perdia sob a palha. Achava-se o barbante teso. Era de presumir portanto que algo nele havia pendurado. Seria por causa desse barbante que o homem me piscara o olho?

Dissimulei e, dando a impressão de que minha atual posição me era incômoda, tratei de escorregar para diante. Recostei-me à parte esquerda do veículo de modo que as minhas mãos, apesar de manietadas, pudessem alcançar a parte onde descia o barbante. Tive de fazer um esforço para conter uma exclamação de alegria, pois na extremidade do fio se encontrava uma faca! O bravo kiradschi a destinara para o meu uso e fora tão cuidadoso que não a amarrara com um nó, mas sim com um simples laço que era fácil de se desfazer.

No momento seguinte se achava ela desprendida do fio e colocada no cano da minha bota de modo que o cabo se achasse virado para baixo e a lâmina emergisse na parte de cima. Dobrei o joelho e o aproximei tão rente a meu corpo que a lâmina me ficou ao alcance das mãos. Era muito afiada; bastava que eu a passasse nas cordas umas quatro ou cinco vezes para libertar as mãos. Desvencilhar os pés foi tarefa de suma facilidade.

Respirei aliviado. Já não era eu mais um prisioneiro e dispunha duma faca que em caso de necessidade podia servir-me de arma eficaz. Todos os movimentos os operara eu sob a palha. Ninguém podia ver que eu me achava livre.

Tive a ousadia de levantar dissimuladamente o braço e de erguer um pouco o toldo, para ver o que se passava de fora. Cavalgava do lado de fora o meu conhecido — Ali Manach Ben Barud El Amasat, o dervixe. Era de presumir que do outro lado do veículo houvesse um outro guarda montado.

Resolutamente arquitetei um plano. Os guardas do veículo achavam-se armados de armas de fogo; era necessário, pois, que eu evitasse uma luta e que confiasse mais no ardil do que na minha força física. Tratei por isso de transportar-me de novo para a parte traseira da carreta e tive a precaução de manter sempre as mãos debaixo da palha. Comecei aos poucos a cortar, com a faca, a parede divisória posterior, que era feita dum trançado de vime, e após uns quinze minutos já dispunha duma abertura que me permitia a fuga. Tudo isso, porém, não era tão fácil como parece, pois o tapete me atrapalhava os movimentos e o guarda me dirigia de quando em vez um olhar que tanto tinha de cuidadoso como de ameaçador. Por sorte o ruído produzido com a faca, ao cortar o vime, era abafado pelo ranger das rodas e pelas pisadas dos cascos dos animais. Esperei até que outra vez o guarda me brindasse com um daqueles seus olhos e depois mergulhei na palha, com as pernas para a frente até a abertura que eu fizera. Logo que toquei com os pés no chão libertei os braços e a cabeça e — achei-me livre.

 

O PRESO APRISIONA O GUARDA!

Senhor da liberdade, cumpria-me agora a tarefa de conseguir um cavalo.

Achavamo-nos num terreno plano e num caminho aparentemente pouco transitado; de ambos os lados havia espesso mato. À esquerda se achava o dervixe e, à direita, como o havia calculado, um outro guarda montado. O cavalo do dervixe não era de porte alto, parecia contudo ser mais forte e resistente. Tinha o animal um pêlo lanudo, uma soberba crina e uma cauda que quase chegava a tocar o chão. A sua pisada era vigorosa mas admiravelmente elástica. Ah, se esse animal pudesse suportar duas pessoas!

Fiquei eletrizado com essa idéia. Primeiro era eu o prisioneiro do dervixe e depois seria ele o meu.

Segurei a faca entre os dentes. O cavaleiro nem por sombras imaginava o que se passava à sua retaguarda. Seguia ele despreocupadamente ao lado da carreta e não podia ser visto pelo companheiro. Trazia somente as pontas dos pés nos estribos. Estava firmemente montado, pois o animal trazia uma sela turca; mas um murro na nuca devia impedi-lo para a frente, e como era de prever ele perderia os estribos. Depois seria necessário que eu conseguisse apeá-lo da sela colocando-o atravessado no dorso do cavalo. Era o meu fito principal manter-me firme sobre o animal, evitando uma queda.

Acelerei o passo, aproximando-me do animal. Tomei impulso, e dum salto achei-me engarupado na cavalgadura. O cavalo, ante o assalto inesperado, estacara por alguns segundos. Um soco na nuca do meu inimigo fê-lo perder os estribos. Agarrei-o pela garganta, pus-me de pé e, com um soco, desalojei-o da sela, na qual no instante seguinte me acomodei sem o haver largado. Deu-se isso no instante adequado, pois no momento seguinte o cavalo se empertigou. Ainda tive o tempo necessário para segurar as rédeas; depois dei meia volta e afastei-me de modo tão cauteloso quanto me foi possível, em direção oposta à que seguíamos.

Não demorou que o caminho fizesse uma curva. Antes de dobrá-la, olhei para trás. A carreta continuava calmamente em marcha: ainda nada haviam notado o que acontecera. Isso se explica devido ao fato de as carretas terem rodas e eixos exclusivamente de madeira, produzindo ao andar um ranger verdadeiramente infernal. Outra circunstância que me favorecera foi a do outro guarda achar-se do lado oposto do veículo, não se lembrando uma vez sequer de olhar para trás.

Ter-me-ia sido um prazer ver a cara daquela gente ao notar que desaparecera o guia e o prisioneiro. Nem me teria sido difícil ocultar-me, — sem perigo de espécie alguma — para poder presenciar essa cena; não quis contudo provocar o azar e me lembrei dos amigos, que deviam estar aflitos por minha causa.

Pus o dervixe atravessado sobre as minhas pernas e esporeei o cavalo, que prosseguiu num galope puxado.

Ali Manach ficara tão surpreso ante o que se passara que nem se lembrou de proferir um grito de socorro. Depois eu lhe havia comprimido a garganta de modo que, mesmo que houvesse querido gritar, não o teria conseguido. Um surdo estertor foi o que se lhe escapou da boca. Pouco depois jazia ele à minha frente, mudo e imóvel. Supus havê-lo estrangulado.

O meu animal galopava de modo tão macio e resistente que eu nem sequer pensava em ser alcançado. De resto não precisava eu recear uma luta, pois já me achava de posse de armas de fogo. Ali Manach trazia à cintura duas pistolas carregadas das quais imediatamente me apossei.

Enquanto o cavalo galopava, revistei os bolsos do meu prisioneiro. Neles encontrei o meu relógio e a minha carteira, a qual, a julgar pelo peso, continha mais dinheiro do que contivera enquanto se encontrava em meu poder. Ao lado da sela achava-se uma maleta de linho. Enterrei-lhe a mão e descobri que continha víveres e munição. Provava isso que eles haviam planejado uma viagem demorada.

Terminara o bosque que marginava de ambos os lados o caminho. Orlavam-no agora plantações de milho e roseirais. Quando, depois de algum tempo, olhei para trás, divisei um cavaleiro que me vinha seguindo a galope. Devia ser o que cavalgava à direita da carreta. Fazia pouco, portanto, que haviam descoberto a minha fuga e ele retrocedera para colher informações.

O meu cavalo, por sorte era tão veloz como o dele, apesar de ter de carregar uma carga dobrada. Nada tive, pois, a recear. Quando depois de mais alguns minutos percebi uma rua movimentada que desembocava na estrada que eu vinha seguindo, senti-me completamente seguro. Verifiquei efetivamente que o meu perseguidor começava a sofrear o seu animal e não tardou que o perdesse de vista.

A essa altura apeei, não só para dar descanço ao cavalo, como também por causa do dervixe. Deitei-o em terra e o examinei. O coração lhe pulsava normalmente e do mesmo modo era normal a sua respiração.

— Ali Manach, não te faças de desmaiado — disse-lhe eu. — Sei que estás perfeitamente acordado. Abre os olhos!

A princípio estivera ele efetivamente desmaiado; mas depois recuperara os sentidos e continuava fingindo, talvez para esquivar-se às minhas perguntas ou para resolver respeito à atitude que perante mim havia de assumir. Talvez estivesse espreitando uma ocasião para fugir. Apesar das minhas palavras manteve os olhos fechados.

— Bem, — disse eu — vejo que estás realmente morto. Quero contudo certificar-me. Vou fincar-te a faca no coração!

Puxei da faca. Mal, porém, sentira ele a ponta da lâmina descançar-lhe no peito, abriu desmesuradamente os olhos e gritou:

— Ah, way! Pára! Queres então matar-me de verdade?

— A um ente vivo eu não gosto de matar. Mas uma facada num morto não lhe causa dano algum. Se quiseres evitar o contato da ponta da lâmina então te aconselho a não fingires mais de morto!

Estava o meu homem estendido no solo. Agora, porém, pusera-se sentado. Perguntei-lhe:

— Dize-me, Ali Manach, para onde me quiseste transportar?

— Para um lugar seguro.

— Isso é um tanto ambíguo. Quem havia de estar seguro: eu de vocês ou vocês de mim?

— Ambas as partes.

— Deves explicar-te melhor para que te compreenda.

— Nada te aconteceria, efêndi. Queríamos levar-te para um lugar de onde não te pudesses libertar. É que meu pai quis ganhar tempo para poder fugir. Depois te haveríamos dado a liberdade em troca do resgate.

— É muita amabilidade de vossa parte. Qual é o lugar para onde me quiseram transportar?

— É um karaul situado nos montes.

— Ah, uma atalaia! Pensaste então que teu pai conseguiria fugir com certeza uma vez que me tivesses em teu poder?

— Sim, efêndi.

— Por quê?

— Porque tu terias descoberto para onde ele se dirigia.

— Como poderia eu descobrir? Não sou onisciente!

— Teu Hadji nos contou que sabes encontrar todas as pegadas.

— Hum, como poderia eu descobrir as pegadas do teu pai nas ruas de Edreneh?

— Não sei.

— Bem, Ali Manach, quero dizer-te que já lhe descobri as pegadas. Teu pai fugiu com o carcereiro e com Manach El Barscha e se dirigiu a cavalo ao longo do Arda, em rumo oeste. Montavam dois cavalos brancos e um escuro.

Notei como ele se assustara ao ouvir as minhas palavras.

— Enganas-te! Enganas-te muito! — apressou-se em responder.

— Não me engano. Não tardará, que eu saiba ainda mais pormenores. Onde se acha o bilhete que me tiraste do bolso?

— Que bilhete?

— Tu mesmo me tiraste do bolso do colete. Espero que ainda o tenhas.

— Joguei-o fora. Não continha nada de importante.

— Parece-me, ao contrário, que era assunto de muita importância o que ele continha. Deixa que eu mesmo procure. Mostra os teus bolsos.

Pôs-se o meu prisioneiro de pé para que eu, como lhe parecia, pudesse revistar-lhe comodamente os bolsos. Mal, porém, estendera eu a mão, deu ele um salto para trás e procurou ganhar o cavalo. Essa cena eu a previra... Ainda não tinha o homem conseguido pôr um pé no estribo quando lhe apliquei um valente soco que o derrubou ao solo.

— Fica deitado, senão te espatifo os miolos com uma bala! Poderás dispor de habilidade para bailar no convento em Istambul, mas para fugires de mim a tua habilidade de nada vale!

Revistei-lhe os bolsos sem que ele se lembrasse de me opor a mínima resistência. Mas nada encontrei. Também na bolsa da sela procurei em vão. Depois me lembrei da minha carteira. Continha ela regular quantidade de moedas que não eram minhas e efetivamente também encontrei a cartinha com as três linhas escritas. O idioma da mesma era nestaalik, que se escreve com caracteres meio inclinados para a esquerda e que ocupa um meio termo entre o neskhi, que é o árabe corrente, e o taalik.

Fiquei satisfeito. Não dispunha de tempo para decifrar a carta, mas guardei-a no meu bolso e disse:

— Espero que esta carta contenha indicações de importância. Tu sabes naturalmente para onde se dirigiu teu pai?

— Não sei, efêndi!

— Não queiras tentar convencer-me disso.

— Ele já havia partido quando cheguei ontem a Edreneh.

— Mas fôste lá informado para onde ele se dirige agora. Decerto se dirige para Iskenderich onde o espera Hamd El Amasat, o seu irmão, que é teu tio.

A estas palavras não o deixei notar que me observava atentamente. Seu rosto traduzia algo que parecia satisfação. Isso me provava que para Iskendrieh o fugitivo não fora.

— Pode ser, — disse a minha presa — mas não sei ao certo. Dize-me tu agora, efêndi, que tencionas fazer de mim!

— Que pensas que farei?

— Deixarás que eu parta a cavalo.

— Ah, não é má idéia! Então queres ir montado em lugar de ires a pé?

— Mas o cavalo é de minha propriedade!

— E tu és propriedade minha; pertence-me em conseqüência, também o cavalo. Ademais, hei de cuidar-te bem para que não fujas.

— Mas tu já te achas livre e eu não te fiz mal algum.

— Ah, a isso tu chamas de não fazer mal algum? Acompanhar-me-ás a Edreneh, à casa para onde ontem vocês me atraíram. Estou curioso por saber quem lá mora. Claro que o kadi nos acompanha.

— Efêndi, não farás isto! Disseram-me que és um cristão e vosso Isa Ben Marryam, o vosso Salvador, vos determina que ameis os vossos inimigos!

— Ah, concordas então em que és meu inimigo?

— Eu não fui inimigo teu, senão que tu te tornaste o meu. Espero que sejas um bom cristão e que obedeças às leis da tua religião!

— Isso farei com prazer.

— Se assim é, efêndi, por que não me soltas, então?

— É porque obedeço ao mandamento da minha religião. Amo-te tanto que de ti não me posso separar.

— Estás a zombar de mim! Pago-te um resgate!

— És rico?

— Não sou, mas meu pai em breve o será.

— A riqueza de teu pai decerto provém de roubos e de furtos. Em dinheiro dessa procedência não quero tocar!

— Dar-te-ei outro então! Restituirei o teu!

— Dinheiro meu? Tu tens dinheiro meu?

— Não; mas partiu o mensageiro a Istambul para buscar o dinheiro para o teu resgate. Se me soltares, eu te darei.

— Oh, Ali Manach Ben Barud El Amasat, com os teus bailados perdeste o juízo! O teu mensageiro não trará uma piastra sequer! O nome que vos indiquei, nem existe. E o persa ao qual o teu mensageiro talvez se dirija nem me conhece!

— Efêndi! Então tu nos enganaste? Não receberemos então dinheiro nenhum?

— Não.

— Se continuasses preso estarias perdido!

— Disso sabia eu. Mas também eu estaria perdido se vocês houvessem recebido o meu dinheiro. De resto nem me preocupei grandemente a prova de que nada eu tinha a recear a tens agora: estou livre!

— De modo que me queres conduzir como prisioneiro a Edreneh?

— Sim.

— Então devolve-me o dinheiro que eu pus na tua carteira.

— Por quê?

— Porque necessito dele. Pertence-me. Terei de comer e beber quando me encontrar na prisão.

— Dar-te-ão o necessário. Claro que guloseimas não receberás. De resto, a um bailarino, não pode fazer mal se ele jejua um pouco de vez em quando.

— Queres então roubar o que me pertence?

— Não. Olha para mim. Vocês durante a luta me rasgaram as vestes; agora tenho de comprar outras. És o causante disto, e assim, sem cometer um roubo, posso ficar com o teu dinheiro. Mas não o quero para mim; dá-lo-ei ao kadi. Dize-me: pode um bailarino ter dinheiro? Eu pensava que pertencia à ordem todo o dinheiro que ele ganha.

— Já não sou mais bailarino. Estive só pouco tempo no convento!

— Decerto por interesses do negócio! Bem, não tenho nada com isso. Vamos seguir viagem. Dá-me tuas mãos!

A essas palavras tirei uma corda de linho que havia pouco eu vira na bolsa da sela.

— Efêndi, que queres fazer? — perguntou-me ele todo assustado.

— Quero amarrar-te as mãos nos estribos.

— Não deves fazer isso! És um cristão e eu sou um adepto do profeta, Não és nenhum polícia. Não tens o direito de tratar-me como a um prisioneiro!

— Não te oponhas, Ali Manach! Olha aqui a corda. Se não me deres imediatamente as mãos dar-te-ei um murro na cabeça e rolarás desmaiado. Não te permito que me digas como devo tratar-te!

Essas palavras produziram efeito. Parecia mesmo que esse pseudo-dervixe era um indivíduo falho de toda coragem e energia. Estendeu-me ambas as mãos, que amarrei. Depois o amarrei no estribo e montei a cavalo.

— Que farás do cavalo? — perguntou ele ainda.

— Entregá-lo-ei ao kadi. Segue-me agora!

Pusemo-nos em movimento. Eu não havia julgado retornar tão cedo a Edreneh, e muito menos ainda naquelas circunstâncias!

Não demorou que alcançássemos a rua principal. Era a que conduzia à afamada recova de Mustaphá Paxá. Encontramos muitos viajantes. Todos fitaram-nos admirados; admiravam-se de nós dois, mas ninguém se lembrou de dirigir-nos uma pergunta. Quanto mais nos aproximávamos do centro da cidade tanto maior era o movimento que se notava nas ruas. Logo ao enveredar para uma das primeiras vielas depararam-se-me dois policiais. Dei-lhes uma pequena explicação do que acontecera e lhes pedi que nos acompanhassem, ao que anuíram. Era minha intenção dirigir-me primeiro à casa de Hulam, a fim de tranqüilizar os meus amigos. Com a ajuda dos dois policiais encontramos facilmente a casa.

Ao transpor um das ruas centrais notei entre a multidão um homem que ficou admirado e estacou ao notar que o meu preso era Ali Manach. Mas depois prosseguiu esse desconhecido o seu caminho, com passo apressado.

Seria um conhecido do prisioneiro? Tive ímpetos de mandar um dos policiais para que o seguisse e o prendesse. Que aconteceria se esse indivíduo avisasse os demais membros do bando? Mas baseado em mera suposição não me era possível mandar prender um homem que talvez fosse inocente e privá-lo da liberdade. Eu não devia esquecer que eu, um cristão, me achava em país maometano!

Ao chegar à casa de Hulam, bati à porta. O porteiro espiou pelo orifício e soltou um grito de alegria ao reconhecer-me.

— Hamdullilah! És tu mesmo efêndi?

— Sim. Abre, Malhem.

— Abro já. Estivemos com grande cuidado por tua causa e supúnhamos que tivesses sido vítima dum acidente. Mas vejo que tudo está bem!

— Onde está o Hadji Halef Omar?

— Está no selamlik. Acham-se eles lá todos reunidos e contristados devido ao teu desaparecimento.

— Alargha! Atenção — disse um dos policiais. — Não és tu talvez Kara Ben Nemsi, efêndi?

— Sim. É este o meu nome.

— Peh Neh Guzel! Que casualidade! De modo que ganhamos trezentas piastras!

— Que trezentas piastras?

— Fomos mandados à tua procura. Quem te encontrasse receberia essa importância.

— Hum! Para falar a verdade fui eu quem vos encontrou! Mas recebereis o dinheiro. Entrem!

Trezentas piastras eqüivalem mais ou menos sessenta marcos em moeda alemã. Era esse, portanto, o valor que me haviam adjudicado! Era-me motivo de orgulho. O porteiro escancarara a porta. Fêz uma cara admirada ao notar que o dervixe vinha em minha companhia. Mal perceberam os de dentro de casa as pisadas dos cavalos no pátio, vieram todos correndo para nós.

Na frente de todos veio o meu pequeno Halef Omar. Contrariando os cerimoniosos hábitos orientais desceu dum salto os poucos degraus que davam para o pátio e precipitou-se sobre a minha pessoa, agarrando-me das mãos e alegremente exclamando:

— Allah illa Allah! És tu mesmo, sídi?

— Sim. Sou eu em pessoa, meu caro Halef. Deixa agora que eu desmonte.

— Vieste a cavalo? Estiveste fora da cidade?

— Sim. Aconteceu-me um desastre, mas também tive muita sorte. Os outros então me estenderam também as mãos. Entre as exclamações de alegria ouvi eu também uma de admiração. Fora ela proferida por Isla.

— Efêndi, quem trazes aqui? — perguntou-me ele. — Não é este Ali Manach, o bailarino?

No meio do geral contentamento os circunstantes haviam-se ocupado somente da minha pessoa e nem haviam reparado no dervixe. Somente a exclamação de Isla lhes chamou a atenção sobre o prisioneiro. Agora notaram que ele se achava prisioneiro.

— Ali Manach? O filho do fugitivo? — perguntou Hulam, admirado.

— Sim — respondi eu. — É meu prisioneiro. Vamos ao selamlik, que lhes contarei a história.

Penetramos no interior da casa e conosco conduzimos também o dervixe; mas nem nos havíamos ainda sentado quando foi de novo aberta a porta da rua. Era o kadi que chegava. Foi tão grande a sua admiração como o seu contentamento quando tornou a ver-me.

— Efêndi! Ainda vives? Estás aqui? — perguntou-me ele. — Graças a Alá. Julgávamos que estivesses perdido apesar de eu haver mandado gente à tua procura. Onde estiveste?

— Toma assento conosco que te contarei!

— Alegrar-me-ei imenso em ouvir-te. Quanto folgo em ver que nada te aconteceu!

O prisioneiro se acomodara a um canto e Halef se sentara a seu lado. Este sabia o que tinha de fazer, antes mesmo que eu lhe falasse.

Comecei o relato da minha aventura e muitíssimas vezes me interromperam antes que eu houvesse terminado. Depois seguiu-se uma série de interrogações e de exclamações de alegria. Halef era o único que se mantinha calmo. No fim da história gritou:

— Calma, minha gente! Agora não devemos falar mas, sim, agir!

O kadi dirigiu ao pequeno Halef um olhar que devia valer por uma admoestação, mas depois disse:

— Na tua opinião, que se deve fazer agora?

— É necessário que se interrogue Ali Manach, que se dê uma busca na casa onde subjugaram o meu sídi, e que se persiga a carreta que o devia conduzir ao esconderijo.

— Tens razão — disse o kadi. — Mandarei transportar já o prisioneiro ao cárcere e tratarei de interrogá-lo.

— Por que não o interrogas aqui, agora já? — perguntei — Eu desejava muito iniciar desde este momento a perseguição de seu pai, e será conveniente que ele seja interrogado para ver o que confessa. Ademais já perdemos um tempo precioso e é bom conhecer a sua resposta.

— Se assim desejas, assim farei!

Assumiu ele uma expressão de gravidade e deu início ao interrogatório.

— O teu nome é Ali Manach Ben Barud El Amasat?

— Sim — respondeu o interrogado.

— Então teu pai se chama Barud Amasat?

— Sim.

— E é ele o homem que nos fugiu?

— Disso nada sei!

— Procuras então negar? Mandarei dar-te uma bastonada! Conheces o antigo coletor de impostos Manach El Barscha?

— Não.

— Mandaste atrair ontem à noite este efêndi à tua casa para aprisioná-lo?

— Não.

— Cão, não me mintas! O efêndi mesmo o contou!

— Ele se engana.

— Mas tu o algemaste e o conduziste hoje na carreta!

— Isso também não é verdade! Eu segui pela estrada e alcancei a carreta. Eu falava com o kiradschi que era dono do veículo e recebi uma pancada na cabeça. Desmaiei e quando recuperei os sentidos vi-me prisioneiro deste homem a quem nada fiz.

— A tua língua diz inverdades! Mas a mentira não poderá melhorar a tua situação; ao contrário: fará que ela piore. Sabemos perfeitamente que és um “Nassr”.

— Não sei o que isso significa!

— Tu mesmo falaste no convento dos dervixes dançantes com o efêndi a esse respeito.

— Eu nunca estive no convento dos dervixes dançantes.

Supunha o homem poder salvar-se se redondamente negasse tudo o de que era acusado. Mas o kadi respondeu-lhe irado:

— Por Alá! Receberás bastonadas se continuares a mentir. Quem sabe se és talvez um súdito inglês, como teu pai?

— Não tenho pai que seja súdito inglês. Vejo que o Barud El Amasat de que falais é outro e não o meu pai. Decerto alguém lhe tomou indevidamente o nome.

— Quem és tu então, se não és um dervixe?

— Sou um pescador e acho-me em viagem.

— Donde vens?

— De Inada, junto ao mar.

— Para onde te diriges?

— Quero ir a Sofia em visita a parentes. Não me demorei nem uma hora em Edreneh. Cheguei à cidade durante a noite e na mesma noite a abandonei pela outra saída. Mais tarde topei com a carreta na estrada.

— Não és nenhum pescador, mas sim um requintado mentiroso. Podes provar que resides em Inada?

— Manda um mensageiro até lá e te dirão que eu disse a verdade. O arrojo do prisioneiro quase fêz o kadi explodir de ira. Dirigiu-se ele para Isla e perguntou:

— Isla Ben Maflei, é verdade que tu viste este homem no convento dos dervixes dançantes?

— Sim — foi a resposta. — É ele mesmo. Juro-o pela barba do profeta e pela dos meus antepassados!

— E tu, Kara Ben Nemsi, viste-o também no convento?

— Sim — respondi-lhe eu. — Cheguei até a falar com ele.

— E afirmas ser ele o mesmo dervixe?

— É ele mesmo. Contou-me ele próprio a noite passada. Pensa agora que se pode livrar com mentiras.

— Isto lhe será tanto pior. Mas como poderemos provar que tendes razão?

Não deixava de ser uma pergunta sobremodo singular!

— Não é ele quem tem de provar que nós não temos razão? — perguntei.

— Isto lhe será tanto pior.

— Permites que te formule uma pergunta?

— Fala!

— Viste o bilhete que ontem à noite encontramos na estrebaria da hospedaria?

— Sim, efêndi.

— Tu o reconhecerias, se te mostrasse?

— Com toda certeza!

— É este?

Tirei o bilhete da minha carteira e o entreguei ao kadi. Este o olhou atentamente e disse:

— É ele. Por que perguntas?

— Já o verás! Halef Ornar, conheces a minha carteira?

— Conheço-a tão bem como a minha própria — foi a resposta do pequeno Hadji.

— É esta?

— Sim, é esta mesma!

Tive então a certeza de ter pegado o dervixe. Dirigi-lhe, pois, a seguinte pergunta:

— Dize-me, Ali Manach, a quem pertencem as moedas que se encontram na minha carteira.

— Pertencem a mim... pertencem decerto ao seu dono e serão tuas se a carteira é a tua!

Por pouco o dervixe cairia na armadilha. Mas ao falar percebeu o terreno falso.

— Não fazes, portanto questão de receber este dinheiro?

— Que tenho eu a ver com este dinheiro? O kadi impaciente abanou a cabeça.

— Efêndi, — disse-me ele — se eu não conseguir pegar este indivíduo, tu não conseguirás. Mandarei encarcerá-lo e obrigá-lo-ei a confessar!

— Até lá não podemos esperar! Conduzamo-lo à casa onde fui assaltado! Os seus moradores terão de dizer que é ele o homem que nós pensamos que seja.

— Tens razão! Ali Manach, em que rua se encontra aquela casa?

— Não sei — respondeu o prisioneiro. — Nunca estive em Edreneh!

As suas mentiras se avolumavam cada vez mais!

— Efêndi, tu encontrarias a casa?

— Com toda certeza. Reparei bem a sua posição.

— Vamos então pôr-nos a caminho. Mandarei procurar mais policiais e prenderei todas as pessoas que lá se acharem. Mas o teu amigo mandou oferecer trezentas piastras. Estes dois homens te encontraram. Receberão eles o dinheiro, efêndi?

— Sim, dar-lhes-ei imediatamente.

Tirei da minha carteira, mas Hulam segurou-me pelo braço com uma expressão de ofendido:

— Alto, efêndi! Tu és o hóspede da minha casa. Não me farás com que eu seja obrigado a cometer um ato desonroso: não cumprir o que prometi.

Compreendi que tinha de deixar-lhe a preferência. Ele pegou da bolsa e quis dirigir-se aos dois policiais que, radiantes, esperavam o dinheiro. Mas o kadi embargou-lhe o passo e segurou-lhe o braço:

— Alto! — disse. — Eu sou o superior da polícia de Edreneh. Dize tu mesmo, efêndi, se os policiais te encontraram...

Não quis que os pobres diabos perdessem a gratificação e respondi:

— Sim; eles me descobriram!

— As tuas palavras são muito sábias. Mas dize-me agora se eles te teriam encontrado se eu não os houvesse mandado à tua procura?

— Hum! Nesse caso não me poderiam ter encontrado.

— A quem agradeces nesse caso de haveres sido por eles descoberto? Tive de submeter-me à sua lógica. De resto não seria prudente fazer que ele ficasse amuado conosco. Por isso respondi:

— Agradeço-o a ti, especialmente.

Abanou-me amistosamente com a cabeça e prosseguiu:

— A quem pertencem então as trezentas piastras, efêndi?

— Pertencem legitimamente a ti!

— Então que Hulam as pague a mim! Não quero que ninguém seja tratado com injustiça! A um kadi assiste também o direito de exigir que se lhe faça justiça!

Recebeu o dinheiro e o meteu no bolso. Os dois policiais ficaram com as fisionomias muito desapontadas. Aproximei-me disfarçadamente dos mesmos e paguei duas moedas de ouro da minha carteira; uma para cada policial. Tive de fazê-lo às escondidas, pois se o kadi o houvesse visto podia bem ter querido que se lhe fizesse “justiça” de novo.

Mostraram-se radiantes os dois homens com a dádiva recebida, a qual não me causou maior prejuízo, visto como se tratava do dinheiro de Ali Manach.

Depois o kadi mandou que trouxessem mais alguns policiais, que sem maior demora chegaram. Antes que nos puséssemos em caminho o kadi fêz-me um sinal, chamando-me à parte. Fiquei curioso por conhecer a comunicação confidencial que ele tencionava fazer-me.

— Efêndi, — disse-me ele — tens toda a certeza de que ele é realmente o dervixe de Istambul?

— Tenho certeza absoluta! — respondi.

— Achava-se ele no grupo quando te assaltaram?

— Sim. Tanto que foi ele quem determinou o valor do resgate que eu devia pagar.

— E apossou-se do que tu tinhas nos bolsos?

— Sim.

— Tirou-te também a carteira?

— Sim — foi a minha resposta.

A esta altura comecei a adivinhar qual era a sua intenção. Eu lhe havia contado, ao narrar-lhe o episódio, que na minha carteira eu encontrara mais dinheiro do que a mesma continha antes. Tratava-se desse superavit; o kadi queria confiscá-lo! Depois prosseguiu num tom da maior cordialidade e confidencia:

— Tinha ele a tua carteira no bolso?

— Sim, fui eu quem lha tomou.

— E encontraste mais dinheiro do que possuías?

— Havia moedas de ouro que não eram da minha propriedade. Isso é verdade.

— Concordas então que aquelas moedas de ouro não te pertencem?

— Ah, não? A quem haviam elas de pertencer então?

— Claro, que pertencem a ele, efêndi!

— Isso é coisa que não posso compreender! Por que motivo haveria ele de colocar dinheiro seu em minha carteira?

— Porque a tua carteira lhe agradou mais do que a sua. Ninguém pode ficar com o que não lhe pertence!

— Tens toda razão! Mas achas que eu queira ficar com algo que não me pertença?

— Claro! As moedas de ouro que ele colocou na tua carteira.

— Wallahi! Não ouviste de sua própria boca que ele não colocou dinheiro nenhum em minha carteira?

— Isso são mentiras!

— É coisa que se terá de provar. Eu nada sei daquele dinheiro!

— Mas tu mesmo disseste que as moedas não se encontravam na tua carteira!

— Confesso... Mas ninguém pode dizer de que modo elas foram ter na minha carteira. Mas já que nela se encontram, são de minha propriedade!

— Com isso não posso concordar! É necessário que a autoridade as tome a si para restituí-las ao seu legítimo dono!

— Dize-me antes a quem pertence a água que a chuva derramou no teu pátio?

— Para que esta pergunta?

— Será que a autoridade toma conta dessa água para restituí-la ao seu legítimo dono? Durante a noite choveram moedas de ouro na minha algibeira. As moedas me pertencem porque o único que teria um direito a reclamá-las, delas desistiu!

— Vejo que és um estrangeiro que não conhece as leis do nosso país.

— Pode ser; mas eu obedeço às minhas próprias leis. Kadi, esse dinheiro não o ganharás!

A essas palavras dei-lhe as costas e ele não fêz o mínimo gesto de revolta. Não tinha eu a intenção de me apossar do dinheiro; mas eu podia dar-lhe melhor destino do que fazê-lo desaparecer nos imperscrutáveis bolsos do funcionário venal.

Depois pusemo-nos todos a caminho. Aos policiais foi determinado que nos seguissem à maior distância, para evitar que nosso aparecimento nas ruas chamasse grande atenção.

 

A MORTE DE ALI MANACH

Atingimos a esquina na qual, na noite anterior, eu esbarrara com aquele homem. Hulam também se lembrava com precisão desse lugar. Dali por diante tive eu de desempenhar o papel de guia. Não me era difícil determinar a casa que procurávamos. A porta se achava cerrada. Batemos repetidas vezes, mas não apareceu viva alma para abrir-nos.

— Eles devem estar com receio, — disse o kadi, — devem ter-nos visto chegar e se esconderam.

— Acho que não, — disse eu — decerto algum dos homens do grupo me viu quando passei pela rua conduzindo preso a Ali Manach. Assim verificou ele que a investida gorara e tratou de advertir aos demais para que em tempo pudessem fugir!

— Então empregaremos a força para entrar na casa!

Os transeuntes aos poucos foram estacionando para ver o que ali se passava. O kadi determinou que os policiais os enxotassem e depois, sem maior dificuldade, a porta foi arrombada.

Imediatamente reconheci o estreito corredor por onde eu havia sido conduzido. Os policiais trataram imediatamente de ocupar todas as dependências da casa, mas não encontraram morador nenhum. Por diversos indícios se podia ver que os habitantes se haviam retirado precipitadamente.

Eu me pus a procurar o recinto em que me achara algemado. Quando voltei ao pequeno pátio, encontrei o kadi que iniciara novo interrogatório. Agora, o dervixe falava com convicção cada vez maior. Decerto teve receio de ser denunciado pelos moradores da casa. Esse receio havia desaparecido do mesmo modo como desapareceram os moradores da casa. Tive de repetir as minhas declarações; tive de mostrar o lugar onde Ali se sentara a meu lado; mostrei também o lugar no pátio onde os agressores me assaltaram.

— De modo que não conheces esta casa? — perguntou o kadi a Ali.

— Não a conheço — foi a resposta deste.

— E nunca estiveste aqui?

— Nunca na minha vida!

O kadi dirigiu-se a mim, e disse:

— Desse modo não há homem que possa mentir! Creio que te enganas, efêndi.

— Então seria necessário que Isla também se enganasse, pois o via também em Istambul.

— Pois não é isso possível? Há muitas pessoas que se assemelham! Creio que este pescador de Inada seja realmente inocente!

— Queres ter a fineza de acompanhar-me, kadi?

— Para quê?

— Quero dizer-te uma coisa que os outros não devem ouvir. Ele deu de ombros e disse:

— Não faz mal que os outros ouçam o que tiveres a dizer-me!

— Desejas por acaso que eles ouçam palavras que não são agradáveis aos teus ouvidos?

O funcionário público refletiu um momento e disse em tom severo:

— Creio que não quererás dizer-me palavra que não me seja agradável de ouvir. Mas serei magnânimo. Far-te-ei a vontade. Vem, pois, e fala.

Retirou-se alguns passos. Segui-o.

— Como é, kadi, que agora me falas de modo tão diferente do que antes? Como é que agora começas a acreditar na inocência desse homem, quando antes te mostraste até irado com a sua ousadia?

— Verifiquei que te enganavas!

— Não, — disse eu com voz abafada — não verificaste que eu me enganei, senão que fôste tu quem se enganou!

— Com quem me haverei enganado? Com esse pescador?

— Não. Tu te enganaste comigo. Pensavas entrar de posse da minha carteira. Como não conseguiste, achas agora que o biltre seja inocente!

— Efêndi!

— Kadi!

— Sabes que te posso mandar prender por essa ofensa? — disse ele em tom ofendido.

— Não farás isso! Sou hóspede deste país e do seu governador; e tu não tens nenhum poder sobre a minha pessoa. Digo-te que Ali Manach confessará, se fingires que lhe vais mandar dar umas bastonadas. Não quero, em absoluto, traçar-te normas de conduta; quisera contudo, dizer em minha pátria que os juizes do Grão Sultão são funcionários justiceiros.

— Pois provar-te-ei já que de fato somos justiceiros.

Depois tornou ele aos demais do grupo e perguntou ao acusado:

— Conheces o hospedeiro Doxati, daqui?

O interpelado empalideceu. A seguir respondeu em tom mal seguro:

— Não, pois nunca estive em Edreneh!

— E ele também não te conhece?

— Como me poderia conhecer?

— Ele mente — interrompi-o. — Deves ver, kadi, que ele falta à verdade. Exijo que faças vir Doxati, para ver... Alto! Recuai, depressa!

Casualmente olhara eu, enquanto falava, para cima. Achavamo-nos no pequeno pátio que era circundado de altas paredes. No lugar, para onde olhei, havia uma espécie de sacada de madeira, entre cujos balaustres vi aparecer os canos de duas espingardas. Assestava uma sobre a minha pessoa e a outra sobre o prisioneiro. Lancei-me para o lado e me precipitei para o corredor em busca de abrigo. No mesmo momento ouvi duas detonações. Seguiu-se um grito de horror,

— Allah illa Allah! Ma una! Oh, meu Deus! Socorro!

Essa exclamação fora proferida por um dos policiais enquanto se inclinava sobre um companheiro que jazia no solo, ensangüentado.

Uma das balas devia ter atingido a mim! Quanto a isso não havia dúvida. Por mais um segundo, e eu seria um homem morto. O assassino já estava dando no gatilho no momento em que me lancei para o lado. Não lhe fora possível deter a bala, e esta se alojou na cabeça do policial que se achava à minha retaguarda.

A segunda bala atingira o alvo: Ali Manach jazia morto, no solo.

Mais não pude ver. No momento seguinte atravessei o pátio. Havia uma escada estreita e alta que conduzia à peça em que se encontrava a sacada de madeira. Segui um impulso involuntário.

— Adiante, sídi! Eu te sigo!

Era a voz do meu pequeno Halef que me vinha no encalço. Penetrei num estreito corredor para o qual saíam diversas peças que melhor se denominariam cubículos. O corredor conduzia à sacada. Percebi ainda o cheiro da pólvora. Mas os atiradores haviam desaparecido. Com a ajuda de Halef percorri as diversas dependências. Não encontramos ninguém. Era quase inexplicável o modo como podiam ter desaparecido os dois assassinos. Deviam ter sido dois os que atiraram, pois eu vira claramente os canos de duas espingardas.

Percebi passos acelerados do outro lado da casa. Deviam ser pisadas de duas pessoas. A parede era formada de tábuas. Descobri um furo pelo qual me pus a espreitar. Realmente! Através do pátio vizinho corriam dois homens ainda com longas espingardas turcas na mão!

Precipitei-me para o pátio e gritei: — Ligeiro, para a rua! Os assassinos estão fugindo pela casa vizinha.

— Isso não é possível — respondeu-me o kadi.

— Eu os vi, — gritei-lhe eu — ligeiro!

Dirigiu-se de modo displicente aos seus homens, aos quais disse:

— Andai e vede se ele tem razão!

Dois deles se ausentaram a passos vagarosos. Para mim, era-me indiferente que ele pegasse os assassinos ou não. Desci de novo ao pátio. Ao chegar ali, me perguntou o kadi:

— Efêndi, tu és médico?

O oriental em geral considera todo franke como jardineiro ou médico. Este não fazia exceção à regra.

— Sim — respondi lacônicamente para não perder tempo.

— Olha então, se esses dois estão realmente mortos.

Quanto a Ali Manach não havia dúvida. A bala penetrara-lhe por uma fonte saindo pela outra. O policial fora ferido na fronte. Achava-se, porém, ainda com vida. Mas era de esperar-se com certeza que dentro de poucos minutos também morreria.

— Meu pai, meu pai! — clamava um dos policiais que se ajoelhara ao lado do moribundo.

— Por que te lamentas? — perguntou-lhe o kadi. — Era o seu destino. Estava escrito no livro que ele tinha de morrer desse modo. Alá sabe o que faz!

Voltaram os dois policiais que haviam seguido em perseguição dos criminosos.

— Então, tem razão este efêndi? — perguntou o kadi.

— Sim.

— Vistes os assassinos?

— Vimo-los.

— Por que não os pegastes?

— Já se achavam na nossa frente atrás da esquina.

— Por que não os perseguistes?

— Não podíamos. Tu não o havias ordenado. Mandaste-nos somente que víssemos se este efêndi tinha razão.

— Sois uns cães preguiçosos. Andai todos, ligeiro, e vede se ainda os podeis alcançar!

Sairam todos a correr; mas eu estava convencido de que a velocidade havia de diminuir tão logo se achassem fora de vista.

— Allah Akbar, Deus é grande — murmurou Halef. — Queriam matar-te esses dois cães e agora podem ainda escapar!

— Deixa-os, meu bom Halef! Não vale a pena nos incomodarmos por sua causa!

— Mas se a bala te tivesse atingido?

— Ah, então eles estariam perdidos. Tu não terias deixado que se escapassem!

O kadi estava inspecionando o cadáver do preso.

— Podes imaginar, efêndi, por que o terão morto? — perguntou ele.

— Claro! Supunham que ele os havia de denunciar. O morto não era um caráter forte e resoluto. Dele tudo poderíamos ter ficado sabendo.

— Ele recebeu o seu castigo! Mas por que terão atirado também sobre o outro?

— Não era a ele, senão a mim que vinha dirigida a bala. Só porque eu dei um salto ao lado, foi que ela o atingiu por estar este pobre homem atrás de mim.

— Quiseram, pois se vingar da tua pessoa?

— Provavelmente. Que farás agora com o cadáver?

— Com ele não me sujo as mãos. Este homem recebeu o seu castigo; farei enterrá-lo. É tudo quanto por ele posso fazer. O seu cavalo acha-se ainda na casa de Hulam? Mandarei buscá-lo.

— E seu pai? Deixarás que ele se ponha a salvo.

— Queres segui-lo, efêndi?

— Naturalmente!

— Quando?

— Não mais necessitas da nossa presença?

— Não. Podes partir.

— Então partiremos daqui a duas horas.

— Que Alá esteja convosco e vos permita pegardes o fugitivo!

— Sim, que Alá me ajude; contudo não prescindo da tua ajuda.

— Queres que eu ajude? De que modo?

— Prometeste-me uma ordem de prisão e seis policiais.

— Sim. Ao romper da aurora deviam eles se achar à tua porta. Mas vim a saber que tinhas sido vítima dum acidente. Necessitas dos seis ainda?

— Não. Bastam-me três.

— Dentro de duas horas se acharão eles à tua disposição. Mas cumprirás a palavra que me deste?

— Cumpro-a do mesmo modo como tu cumpres a tua!

— Então adeus! Que Alá te permita encontrares com saúde a terra dos teus antepassados.

Retirou-se. Desde que eu me negara a dar-lhe o excesso contido na minha carteira, tornara-se ele completamente outro. Os policiais também haviam desaparecido. Restava somente o filho do policial morto, o qual em tom lamuriante, chorava a morte do pai. Achava-se o ferido nos últimos alentos de vida. Puxei da minha carteira, da qual retirei a sobra do dinheiro de Ali, e lhe dei. Apesar da depressão do seu espírito olhou-me ele admirado e me disse:

— Queres que eu fique com este dinheiro, efêndi?

— Sim. O dinheiro é teu. Mas não dize nada ao kadi.

— Senhor, agradeço-te! A tua bondade destila bálsamo na chaga que Alá me desferiu. Meu pai teve de obedecer-lhe ao chamado. Eu sou pobre. Agora posso mandar erigir um túmulo sobre o seu turbante para que os visitantes do cemitério vejam que lá se encontra enterrado um crente.

Desse modo contribuíra eu, um cristão, para que um moslem tivesse uma lousa sobre a sepultura. Quem sabe se o dinheiro teria tido melhor destino se eu o tivesse entregue ao kadi?

Ainda não havíamos alcançado a habitação de Hulam, quando encontramos dois policiais que haviam ido buscar o cavalo de Ali Manach.

Realizara-se desse modo o que na noite anterior ainda nos parecera impossível. Perguntara eu: “E não será castigado Ali Manach?” A Providência não necessitara de procurá-lo em Istambul; ele mesmo lhe veio ao encontro. Esse episódio nos absorvera toda a manhã. Cumpria-nos agora recuperar o tempo perdido.

Reunimo-nos em conselho de guerra. Hulam foi o primeiro a desenrolar a pergunta sobre a espécie de gente que teria sido aquela que dera morte ao dervixe. Supunha ele que deviam achar-se ligados com os “Nassr” de Constantinopla. Era uma hipótese bem aceitável; contudo achei que deviam pertencer à gente da qual o habitante da península costuma dizer que “se retirou às montanhas”.

Achara eu tempo agora de decifrar o conteúdo do bilhetinho.

— Podes ler o que está escrito? — perguntou-me Isla.

Esforcei-me o mais que pude, mas tive de responder com um lacônico “não”. O bilhete caminhou de mão em mão, mas debalde. Ninguém lhe sabia decifrar os caracteres. As letras estavam escritas com bastante clareza, mas as palavras resultantes eram completamente ininteligíveis.

Tratei de soletrar as palavras mais curtas; não lhes pude descobrir sentido algum. A essa altura revelou-se Halef como o mais perspicaz de todos.

— Efêndi, — disse ele — quem poderia ter escrito?

— Deve ter sido Hamd El Amasat.

— Bem; esse homem tinha motivos suficientes para que permanecesse em segredo o que ele escreveu. Não te parece que se trate duma linguagem secreta?

— Hum! Pode ser que tenhas razão. O autor decerto contou com a possibilidade do bilhete poder cair em mãos estranhas. A escrita não é cifrada, mas a seqüência das letras é anormal. “Sa Ha ni”, isso não compreendo. “Al” é uma palavra, mas “nahc” não é expressão oriental... ah, se invertermos resulta “Cban”!

— Pode ser que tudo seja escrito invertido — disse Hulam. — Tu leste “Ha” isso daria invertido “Ali”.

— Com efeito! — disse eu. — Isso é um nome, mas também há uma palavra servia que quer dizer “porém”. “Ni” invertido nos dá “In”, é palavra rumáica que quer dizer “muito”.

— Lê então as três linhas da esquerda para a direita — disse Isla. Assim fiz; contudo ainda levou algum tempo até que eu conseguisse agrupar devidamente as palavras para obter um resultado compreensível. O conteúdo assim resultante era o seguinte:

“In pripeh beste Ia karanorman chan ali sa panajir menelikde.”

Era uma mescla de turco, rumáico e sérvio, que decerto intencionalmente fora adotado. O significado era o seguinte:

“Muito ligeiro notícias em Karanorman-Chan; porém, depois da feira de Menelik.”

— É isso mesmo; — disse entusiasmado Hulam. — A feira em Menelik se realiza dentro de poucos dias.

— E “Karanorman-Chan” — disse eu. — Quem conhece esse lugar? Onde fica ele situado?

Ninguém o sabia. A palavra significa em alemão “casa da floresta negra”. O lugar devia portanto ser pequeno e achar-se situado dentro dum bosque escuro. Mas em que região?

Faziam-se mil conjeturas para acertar com a localização desse ponto misterioso; mas nenhum dava certo.

— Não há necessidade de tanto esforço — disse eu. — O mais importante é que a notícia deve ser transmitida depois da feira de Menelik. A palavra “sa” significa “atrás de”. Daí eu deduzo que o destinatário da carta a deva receber somente depois de realizado a feira. Não é a Menelik que conduz o caminho seguido ontem pelos três cavaleiros?

— Sim, tens razão, efêndi — disse-me Hulam. — Esse Barud El Amasat se dirigiu a Menelik. Talvez lá possamos encontrá-lo.

— Então não percamos mais tempo e tratemos de partir o quanto antes. Deve contudo ser necessário mandar-se um mensageiro a Iskenderieh para advertir Galingré.

— Disso eu me incumbirei. Mas antes de partirdes deveis ainda tomar uma refeição em minha companhia. Deveis, além disso, permitir-me que vos dê tudo o que fôr preciso para a viagem.

Para abreviar posso dizer somente que nem haviam decorrido duas horas já nos achávamos prontos para a viagem. Éramos quatro pessoas: Osco, Omar, Halef e eu. Os outros deviam ficar em casa.

— Efêndi, — disse-me Isla. — por quanto tempo te despedirás de nós?

— Ainda não sei. Se encontrarmos os fugitivos logo nos primeiros dias então retornarei a Edreneh para trazer Barud El Amasat. Se decorrer um tempo mais longo, então é bem possível que não mais retorne aqui.

— Isso não queira Alá. E se seguires à tua pátria terás ainda de voltar uma vez a Istambul para que te possamos contemplar o semblante. Mas Halef Omar, tu nô-lo mandarás de volta logo que partires!

— Irei para onde fôr o meu efêndi, — disse resolutamente Halef. — Dele somente me separarei quando fôr enxotado!

Deixaram entrar os três policiais que vieram a mandado do kadi. Tive vontade de soltar uma forte gargalhada ao vê-los. Montavam eles cinco matungos, dos quais nenhum valia mais de cem piastras. Estavam armados até os dentes mas tinham a expressão mais apalermada que se pode imaginar.

Um deles se adiantou e dirigindo-se a mim, perguntou:

— Efêndi, és tu quem se chama Kara Ben Nemsi?

— Sim — respondi.

— Recebi instruções de me apresentar às tuas ordens. Eu sou o khawass-baschi.

Era portanto o superior hierárquico dos três.

— Trazes também uma ordem de prisão? — perguntei.

— Sim, efêndi.

— Montais bem?

— Oh, montamos como o diabo. Terás dificuldade em acompanhar-nos.

— Isso me alegra. Tomou nota também o kadi de quando recebereis por dia?

— Sim. Terás de pagar dez piastras diárias para cada um. Tenho aqui o escrito.

Efetivamente lia-se essa importância imposta como remuneração aos policiais. Mas era bem diferente daquilo que o kadi me havia prometido! De direito eu devia ter mandado esses três “diabos” ao inferno; mas uma olhada me convenceu de que não gozariam durante muitos dias da remuneração. O khawass-baschi pendia do dorso do cavalo como morcego da calha dum telhado, e os dois restantes pareciam talhados pelo mesmo molde,

— Sabeis de que se trata? — perguntei eu.

— Sem dúvida! Devemos prender aqueles três sujeitos que vós não podeis pegar. Depois devemos conduzi-los a Edreneh.

Era engraçado o que ele dizia. Mas devo confessar que os três me agradaram. Seria um bom divertimento! Halef parecia bastante mal humorado porque o kadi ousara mandar-nos três exemplares daquela espécie.

Começamos a despedir-nos. Usou-se largamente daquele palavreado colorido próprio do Oriente, que contudo era o mais cordial e sincero possível. Não sabíamos ainda se algum dia nos tornaríamos a ver; era uma despedida incerta. Não era um “Adeus” para toda a vida, mas também não era um superficial “até breve” por pouco tempo!

Na verdade, eu deixava sinceros e dedicados amigos. Mas o mais querido dentre eles vinha comigo: era o meu pequeno Hadji Halef Omar. Essa circunstância atenuou um tanto o sentimento da partida que sempre experimentamos quando nos despedimos de entes queridos.

Eu supunha abandonar Edreneh em direção a Filibe; mas nos dirigíamos para outro rumo, para oeste, ao longo do Arda, ao encontro de perigos maiores do que esperávamos...

 

                                                                                            Karl May

 

 

                      

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