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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REI DO PETRÓLEO / Karl May
O REI DO PETRÓLEO / Karl May

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O REI DO PETRÓLEO

 

O Arizona, cujas montanhas abrigavam foragidos da justiça, é o cenário onde se desenvolve o romance. A penetração do homem branco no Oeste ainda exige grandes esforços, porém a criação de gado se alastrava velozmente. Uma nova riqueza veio então constituir fator de atração para desbravadores bem intencionados e aventureiros de todos os matizes: o petróleo. Grinley, cujo apelido intitula o romance, ilude diversas pessoas, inclusive o banqueiro Rollins, com a afirmativa de que encontrara "ouro negro" no Arizona. Pretende reunir vultosos recursos, de posse dos quais abandonaria o suposto empreendimento econômico. Mas seus projetos despertam suspeitas... A trama adquire complexidade, com o evoluir de conflitos entre os bandoleiros Finders e desbravadores pacíficos. No Rancho de Forner dá-se o encontro entre o Rei do Petróleo e dois personagens admiráveis por sua coragem: Droll e Frank. Surgem Mão de Ferro e Winnetou criando uma situação de impacto. O clima de expectativa é quebrado por situações cômicas.

Brotam piadas e trocadilhos ao lado de palavras rudes e ameaças. Também, ao longo da narração, acham-se inseridas reflexões morais ensejadas pelos acontecimentos.

 

 

As Apostas

Quem desejasse atravessar o Rio Colorado para atingir a Califórnia, pelo caminho habitual de El Paso del Norte, chegaria antes de alcançar Tucson, capital de Arizona, a velha Missão de San Xavier del Bac, a qual dista cerca de nove milhas de Tucson. Esta missão foi fundada no ano de 1668 e é uma obra de arquitetura tão suntuosa que o caminhante fica cheio de admiração ao topar, em pleno deserto do Arizona, com tão brilhante monumento de civilização.

Em cada canto do edifício levanta-se uma torre com campanário: a fachada é adornada com fantásticos ornamentos; a capela principal suporta uma grande cúpula e sobre os muros vêem-se superpostas possantes cornijas e caprichosas decorações. É um trabalho arquitetônico que embelezaria qualquer residência, em qualquer grande cidade.

Esta missão é, em parte, circundada por uma povoação, da qual, ao tempo em que se desenrola a nossa narrativa, faziam parte índios papagos, em número talvez de quase trezentas almas. Esses papagos eram e são ainda hoje uma tribo pacífica, trabalhadora e bem intencionada para com os brancos; estes peles-vermelhas, por meio de um sistema de açudes, conseguiram tornar suas terras maravilhosamente aproveitáveis, cultivando-as carinhosamente com trigo, centeio, abóboras, romãs e outras frutas e cereais.

 

. . .  o caminhante fica cheio de admiração ao topar, em pleno deserto. . .

 

Infelizmente, estes homens bravos e trabalhadores muito tiveram que sofrer da gentalha branca que havia escolhido o Arizona para campo de suas atividades. O território, cercado por montanhas e desertos, estava como que fora de qualquer jurisdição; o braço da lei quase não podia, ou só com muita dificuldade, atingi-lo pelas fronteiras e, assim, centenas e centenas de foragidos da justiça do México e dos Estados Unidos imigravam para lá, onde levavam uma vida pautada pela mais cruel prepotência.

É certo que havia na capital uma milícia destinada a velar pela segurança pública; mas a milícia toda se reduzia apenas a duas companhias, insuficientes, portanto, para uma vasta extensão de aproximadamente trezentos mil quilômetros quadrados. Além disso, a situação chegara a tal ponto que esses heróis se davam por muito satisfeitos em ser deixado em paz pela gentalha. Quase nenhum auxílio se podia esperar deles. Isso sabiam muito bem todos aqueles facínoras e por esse motivo ostentavam um descaramento sem igual. Aventuravam-se, reunidos em bandos, até às imediações de Tucson, e ninguém ousava distanciar-se  da cidade por mais de um quarto de hora, sem levar consigo um verdadeiro arsenal. Um viajante americano pintava-nos a situação da seguinte maneira: "Os mais encarniçados malfeitores do México, Texas, Califórnia e outros Estados, encontravam em Arizona seguro abrigo da ação da justiça. Assassinos e ladrões, degoladores e trapaceiros formavam a massa da população. Todo mundo precisava andar armado e cenas de sangue figuravam sempre na ordem do dia. De governo, nem se falava. E muito menos de lei ou de proteção militar. Os afazeres da guarnição de Tucson consistiam em bebedeiras é em deixar que tudo fosse permitido. E assim permanecia o Arizona talvez como único ponto  de  um país  onde sob a égide de um governo civilizado qualquer um ministrava a justiça segundo o seu próprio interesse."

Reuniram-se então em San Francisco alguns homens de moral sã e de boa vontade, a fim de formar uma liga pró-segurança, e, se bem que sua atividade se exercesse primeiramente sobre a Califórnia, não tardou em se fazer notar no vizinho Estado de Arizona. Intrépidas figuras surgiam ora aqui, ora ali, sozinhas ou reunidas em grupos, por todo o país, a fim de expurgá-lo dos bandidos que o infestavam. Estes verdadeiros heróis nunca desapareciam sem deixar atrás de si um sinal nítido de que haviam exercido a justiça.

Com os papagos de San Xavier del Bac havia-se estabelecido um irlandês, que certamente não viera para o Arizona por motivos muito honestos. Ele abrira aí uma venda, onde afirmava vender todos os objetos possíveis. Em verdade, porém, não se obtinha ali senão uma aguardente por cuja manipulação e venda merecera ele a alcunha de "misturador de venenos".

Sua reputação era tal que gente honrada não mantinha relações com ele.

Num dia de abril, maravilhosamente lindo, achava-se o vendeiro sentado a uma das toscas mesas dispostas defronte ao seu casebre, construído com tijolos ocos. Parecia estar de mau humor, pois batia com o copo vazio sobre a mesa e, como não aparecesse logo alguém, virou-se para a porta aberta, gritando irritado:

- Ó velha feiticeira! Não tens ouvidos? Brande, quero brande! Apressa-te, senão já verás!

Saiu então do casebre uma negra velha com a garrafa e encheu-lhe o copo. Ele bebeu-o dum trago, deixando que lho enchesse novamente e, enquanto ela o fazia, disse:

- Nem um único freguês todo o dia!   Os patifes dos  vermelhos não querem aprender a beber. E quando não vem algum estranho, posso sentar-me eu

 

Saiu então do casebre uma negra velha. . . .

 

mesmo e queimar o estomago!

- Não fica sozinho - tranqüilizou a velha - os fregueses aí vêm.

-  Como sabes disso? - perguntou ele.

-  Eu vi.

-  Onde?

-  No caminho de Tubac, para cá.

-  Verdade? Quem é?

-  Não sei. Os óio veio não reconhece. São cavalero, muntos cavalero...

Ao ouvir estas palavras ele se levantou e dirigiu-se apressadamente para o oitão do casebre, donde se podia observar o caminho para Tubac. Voltou depois ligeiro e gritou para a velha:

-  São os Finders, compreendes, os Finders, e ainda mais, são os doze! Eles sabem beber. Aqui floresce o trigo (1). Já para dentro! Precisamos encher garrafas!

Os dois desapareceram no casebre. Alguns minutos após chegaram à povoação doze cavaleiros, apearam defronte ao casebre e deixaram os cavalos em liberdade. Eram tipos rudes, de aparência atrevida e armados até os dentes. Alguns vestiam à mexicana. Os outros, via-se claramente, eram dos Estados Unidos. Um traço, porém, todos tinham de comum - não havia um único, entre eles, cujo aspecto inspirasse confiança. Faziam algazarra e gritavam entre si. Um deles entrou pela porta aberta, sacou do revólver e deu um tiro para o interior da pocilga, esbravejando para dentro:

-  Alô, Paddy! Estás aí ou não, velho trapaceiro? Salta para fora com teu ácido sulfúrico.  Nós temos sede.

Paddy é, como se sabe, a alcunha dada ao irlandês. Paddy apareceu com uma garrafa cheia debaixo de cada braço e uma dúzia de copos nas mãos. Enquanto dispunha os copos sobre duas mesas e os enchia, foi respondendo:

- Já estou aqui, meus senhores. Já eram esperados. A minha preta viu-os chegando. Aqui está, bebam e sejam "abençoados" em minha casa!

-  Guarda tua bênção para ti, velho gatuno; além disso, ela pode servir de preparação para a morte! Quem bebe da tua droga, pratica um suicídio.

-  Ora, Sr. Buttler, eu o ressuscitarei com uma outra garrafa maior. Há semanas que não nos vemos. Como tem passado? Tem feito bons negócios?

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(1)    Expressão que significa "vai haver bons negócios".   (N. do Trad.)

 

-  Bons? - respondeu Buttler com um gesto de desprezo, enquanto esvaziava o seu copo, no que foi acompanhado por seus camaradas. - Deploráveis têm sido, miseráveis como nunca. Não fizemos nenhum negócio que valha a pena mencionar.

-  Por quê? Vocês são cognominados os Finders e assim se intitulam. Não tinham os olhos abertos? Eu contava poder fechar hoje um bom negócio com vocês.

-  Quer dizer que pretendias comprar-nos o esperado roubo e lograr-nos como de costume. Desta vez não há nada. Nada mesmo. Dos vermelhos não se pode tirar mais nada e, se se encontra um branco, este também é dos que avançam nos bolsos alheios. A par de tudo isso, há ainda a Liga Pró-Segurança - que o diabo a carregue! - Que é que têm esses vilões a ver com os nossos negócios? O que lhes importa que colhamos onde nem nós, nem eles semearam? Positivamente, a gente precisa estar de sobreaviso, pois que em cada macega por onde passarmos podem surgir canos de espingardas. Mas, olho por olho, dente por dente. Resolvemos enforcar sem dó nem piedade todo aquele que nos parecer suspeito de pertencer à Liga. Tens acaso notado algum desses tipos por aqui, Paddy?

-  Hum! - resmungou o vendeiro - vocês acham talvez que eu saiba de tudo? Será possível descobrir pelo simples nariz duma pessoa se esta é um farejador ou se, como vocês, um honrado bandoleiro?

-  Tem vergonha, Paddy, um cão de fila distingue-se perfeitamente dum cão de presa, mesmo que se trate de homens. Dou-te minha palavra que reconheceria a cinqüenta pés de distância qualquer um que pertença a essa Liga.   Entretanto, mudando de  assunto, temos fome. Tens  carne?

-  Nem o suficiente para cobrir a ponta da língua.

-  Ovos?

-  Nem um único. Percorram horas e horas os arredores e não acharão um só animal de açougue, nem sequer uma galinha. Disso são culpados seus próprios colegas, que limparam tudo por aí.

-  Nem pão?

-  Só bolinhos de milho zaburro, e assim mesmo estes precisam ser cozidos.

-  Então manda a tua negra cozinhar. Com respeito à carne fresca, nós mesmos providenciaremos.

-  Vocês? Mas eu já disse que não acharão nada.

-  Qual!   Nós já achamos.

-  O quê?

-  Um boi.

  - Qual nada. Impossível. Onde, então?

-  No caminho, lá atrás, no Vale de Santa Cruz. Isto é, o boi pertence a um comboio de carretas que encontramos, ou melhor, pelo qual passamos.

-  Um comboio?  Talvez imigrantes?

-  Sim.  Quatro carretas, cada uma puxada por duas juntas de bois.

-  Quantas pessoas?

-  Não sei bem ao certo. Junto com os boiadeiros vinham ainda alguns cavaleiros acompanhando as carretas. Quantas pessoas havia dentro não pude ver.

-  Mas vocês falaram com eles, forçosamente, não?

-  Sim. Eles tencionam atravessar o Colorado e farão pousada aqui esta noite.

- Aqui? Hum! Oxalá não aconteça nada que possa comprometer o bom nome da nossa aldeia.

O vendeiro, ao dizer estas palavras, fez um trejeito inconfundível.

-  Não te preocupes - respondeu Buttler. - Nós sabemos ter consideração com nossos amigos. Sem dúvida, o comboio tem de ser nosso, mas somente quando se achar além de Tucson. Aqui, nós apenas tomaremos um boi, porque precisamos de carne.

-  Com intuito de pagar algo por ele? Nem passará pela cabeça dessa gente vender um animal de canga.

-  Bobagem. Que é que tu pensas, afinal, Paddy? Nós nos apoderamos sim, mas não pagamos nunca, tu sabes disso. Quando nos hospedamos em tua casa, naturalmente é coisa diferente. Tu és o nosso comprador, e a ti não só nós pagamos, como ainda nos deixamos enganar. De resto, essa gente não irá oferecer-nos muita resistência. Havia quatro boiadeiros, que nós apenas vimos, mais dois rapazes a cavalo e o scout (2), que os imigrantes contrataram. Somente este último é de se temer; todavia, nós doze haveremos de dar conta dele,  Ele receberá a primeira bala.  Como já disse, não sei quem estava dentro das carretas, mas de quem se abriga tão molemente debaixo do toldo, não devemos temer nenhuma resistência séria. Cavalgava ainda atrás uma personagem sobre a qual eu decididamente não posso dizer se era feminina ou masculina; trazia, entretanto, uma espingarda a tiracolo. Creio mesmo que tinha uma espada sob a capa. Dirigi a palavra a esse fantasma, mas apenas recebi uma breve resposta, que não entendi.  Se não me engano, falava alemão.

- Que pedaço de asno! Quem usa espada aqui é louco. Em todo caso, não é de se temer.   Vocês vão, pois, assaltar esse comboio?

-  Certamente.

-  Então espero que me façam tomar parte nesse negócio.

-  Naturalmente, eu te direi agora o plano.

Como a negra velha saísse do casebre para servir os fregueses, os dois se aproximaram a fim de prosseguir a conversa em voz baixa. Os outros onze pouco tinham ouvido, mantendo entre si uma conversa em altas vozes e ingerindo tão diligentemente o brande, que em breve as duas garrafas esvaziadas precisaram ser substituídas por outras cheias.

Os índios da localidade, que durante seus afazeres se haviam atrasado, faziam grandes voltas para evitar a taverna. Eles receavam os brancos turbulentos, com os quais talvez já tivessem tido amargas experiências.

O irlandês havia chamado os doze cavaleiros de The Finders. Por este nome era conhecido um bando de aventureiros, temido por toda parte, que já há

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(2)    Escoteiro, guia.  (N. do Trad.)

 

bastante tempo se tinha tornado famoso no sul do Arizona. Aparecia ora aqui, ora ali, freqüentemente dividido e simultaneamente em várias povoações, desenvolvendo uma tal rapidez no percurso duma povoação a outra, que a ninguém havia sido possível até então, nem mesmo aos homens da Segurança, alcançar nenhum deles. A palavra Finder significa achador. Aqui, porém, é tomada mais no sentido de cavador, porque não lhes escapava facilmente uma presa.

Subitamente, cessou o vozeio na taverna e todos os olhares se voltaram com estranheza para os três novos recém-chegados. O aspecto destes três homens não podia deixar de causar espanto em quem os visse pela primeira vez.

Haviam apeado e se encaminhavam para uma mesa desocupada, sem ter, aparentemente, notado o grupo.

O primeiro deles era um sujeitinho pequeno e muito gordo. Sob a aba pudicamente descaída dum chapéu de feltro, cuja cor, idade e forma seriam capazes de fazer quebrar a cabeça ao observador mais penetrante, apontava - entre a espessa barba meio preta, meio grisalha - um nariz de proporções quase assustadoras e que poderia servir perfeitamente como marcador de sombra aos relógios de sol.

Além desse órgão tão prodigamente desenvolvido e atrás de tão exuberante crescimento de barba, havia, dignos de nota, dois olhinhos pequenos e inteligentes, dotados de extrema mobilidade e que com astuciosa malícia percorria a taverna do irlandês.  De fato, porém, seu dissimulado olhar investigava os doze Finders.

Essa cabeça assentava sobre um corpo que até abaixo do joelho estava inteiramente metido num velho jaquetão de pele de bode, o qual parecia ter sido feito para uma pessoa maior e mais volumosa, e que consistia todo ele em manchas e remendos, dando ao pequeno homenzinho a aparência de uma criança que, por divertimento, se tivesse metido no camisão de dormir do avô. Desse mais que comprido envoltório, surgiam duas magras e tortas perninhas de foice, metidas num culote franjado, tão velho que sua idade devia ultrapassar de vários decênios à do homenzinho.

Este culote permitia ver um par de botas indianas, nas quais - em caso de necessidade - caberia o dono inteirinho. Os pés tinham um tamanho tão extraordinário que se poderia dizer como na Alemanha: "Com cinco passos atravessa a ponte sobre o Reno." Trazia na mão uma espingarda, cuja aparência lembrava um velho porrete cortado há muito no mato. As armas que provavelmente trazia no cinturão não podiam ser vistas, porque o casaco de caça as ocultava.

E seu cavalo? Não era um cavalo e sim uma mula, mas aparentemente tão velha que seus pais deviam ter vivido numa época bem próxima do dilúvio. As longas orelhas com as quais ela brincava como se fossem pás de moinhos de vento, eram peladas. Uma crina que há muito já não deveria existir. A cola era um toquinho nu, com apenas dez ou doze cabelinhos, e além disso o animal era espantosamente magro. Seus olhos, porém, eram claros como os dum potro, e duma vivacidade de inspirar verdadeiro respeito, pelo menos a um conhecedor.

 

Trazia na mão uma espingarda, cuja aparência lembrava um velho porrete...

 

Aquele que o seguia tampouco deixava de ser um tipo original. Infinitamente comprido e terrivelmente descarnado, sua estatura era toda inclinada para a frente, como se os olhos não tivessem outro objetivo que o de olhar os próprios pés, crescidos nas extremidades das pernas cujo desenvolvimento era de meter medo a qualquer um.

Sobre os sólidos e reforçados calçados de caça, trazia um par de polainas de couro, que lhe cobriam as pernas até uma boa parte da coxa. Vestia uma camisa de caçador bem justa. No largo cinturão que lhe cingia os rins estavam presos, com a faca e o revólver, os mais variados objetos, para atender a diversas necessidades. Sobre os largos ombros quadrados, trazia um manto de lã, cujos fios tinham a mais ampla liberdade de se separarem e voarem em todas as direções. Sobre a cabeça raspado à escovinha havia uma coisa que não era pano, nem boné, nem tampouco chapéu, sendo sua classificação  algo completamente   impossível.

Do ombro pendia-lhe um velho e comprido rifle, que de longe dava a idéia de uma mangueira presa a um pedaço de pau.

O terceiro e último era quase tão comprido e tão magro quanto o segundo. Na cabeça tinha uma espécie de turbante de pano escuro, e vestia uma túnica vermelha de hússar(3), que, por qualquer motivo inexplicável, tinha vindo dar no longínquo Oeste. Compridas calças de linho e botas impermeáveis, nas quais estavam afiveladas enormes esporas. Trazia na cinta dois revólveres e uma faca do mais fino aço de Kingfield. Sua espingarda era uma dessas Kentuckys de dois canos, que na mão dum conhecedor nunca negam fogo, nem erram o alvo. Se quiséssemos procurar alguma característica nas feições deste indivíduo, notaríamos uma boca muito larga: os dois ângulos dos lábios pareciam ter uma bem pronunciada afeição pelas orelhas e se aproximavam delas da maneira mais confiante. Esta particularidade emprestava-lhe ao semblante uma impressão da mais pura sinceridade: ele era um homem no qual não se podia encontrar nada de falso.

Estes dois últimos montavam cavalos que já deviam ter passado por muita fadiga, mas que muito podiam ainda agüentar.

Quando os três se achavam acomodados e o taverneiro veio perguntar-lhes o que desejavam, o pequeno interrogou:

-  O que é que vocês têm para beber?

-  Brande, Sir - respondeu o irlandês.

-  Serve três copos já que não há outra coisa.

-  Que poderia haver mais aqui? Ou talvez desejam tomar champanha? Vocês não têm nenhuma aparência de poder pagá-lo.

-  Sim, infelizmente, infelizmente - aprovou o homenzinho com sorriso discreto. - Você, pelo contrário, me dá a impressão de ter algumas centenas de milhares de garrafas por aqui, se não me engano.

O taverneiro distanciou-se, trouxe o que eles haviam pedido e tornou a sentar-se com os doze bandoleiros. O homenzinho levou o copo aos lábios, provou o brande e cuspiu-o em seguida, despejando no chão o resto. Seus dois companheiros fizeram o mesmo, e o da túnica de hússar alargou ainda mais a boca, dizendo:

-  Brrrr! Estou para crer que este irlandês bandido quer nos liquidar com o brande. Não achas, Sam Hawkens?

-  Yes - respondeu o pequeno - não lhe daremos esse prazer, porém. Nós três bem que suportamos um tal veneno, especialmente quando não o tenhamos ingerido. Mas a troco de que chamaste bandido ao irlandês?

-  A troco de quê? Well! Quem, à primeira vista, não reconhecesse nele o tipo acabado do irlandês, seria bronco como uma porta.

-  Muito bem. Mas o fato de o teres constatado é que me surpreende extraordinariamente, hi... hi... hi... hi...

Este hi... hi... hi... era um riso todo particular e peculiar a ele. Quando ria, ____________________

3)    Hússar, membro da cavalaria húngara.   (N. do Trad.)

 

seus olhinhos fulguravam. Via-se que era nele um riso habitual.

-  Queres talvez insinuar com isso - perguntou o outro - que eu seja bronco?

- Por que não? Sempre, sempre o és, Will Parker! Tenho-te dito durante quinze anos que és um greenhorn(4) como nunca encontrei outro igual. Queres afinal acreditar-me?

-  Não - respondeu o outro sem demonstrar a mínima alteração a esta palavra pouco lisonjeira - depois de quinze anos não se é mais um greenhorn.

-  Normalmente, sim, mas quem, durante quinze anos, não aprendeu nada, esse ainda é e continua sendo um greenhorn, se não me engano. O fato de não o reconheceres é precisamente a prova de que ainda agora és um greenhorn. O que achas daqueles doze gentlemen que nos namoram com tanta curiosidade?

-  Boa coisa é que não são. Vês como riem? Isso é contigo, velho Sam.

-  Comigo? Como?

-  Porque não existe no mundo uma pessoa capaz de olhar para ti sem rir.

- Alegra-me, Will Parker, alegra-me imensamente. Isso faz parte também das muitas vantagens que levo sobre ti. Quem lançasse um olhar sobre ti teria forçosamente de chorar, chorar amargamente. És um tipo triste, bem triste, hi... hi... hi... hi...

Sam Hawkens e Will Parker pareciam viver numa divertida e permanente hostilidade. Mas nenhum se incomodava. O terceiro tinha até agora se conservado calado. Puxou então as polainas que haviam escorregado, esticou as compridas pernas e disse, enquanto um sorriso rudemente irônico se abria na sua magra face:

- Não sabem o que fazer de nós, estes gentlemen. Abaixam-se, aproximam as cabeças e contudo não chegam a uma conclusão. Magnífica súcia, nem, Sam Hawkens?

-  É - assentiu o interpelado - deixa-os quebrar a cabeça, Dick Stone! Tanto melhor para nós sabermos por quem os tomar. Bandoleiros, não, velho Dick?

-  Yes, palpita-me muito que haveremos de trocar algumas palavrinhas com eles.

-  A mim também. E não é só palpite! Tenho quase certeza de que teremos de aplicar nossos punhos em seus narizes. São precisamente os doze cuja senda nós topamos.

-  E que depois seguiram o comboio de carretas, a fim de observá-lo disfarçadamente.

-  Sim, e depois um deles aproximou-se da gente do comboio, fazendo perguntas. Parece-me suspeito, muito suspeito. Dize-me, Will, ouviste alguma vez falar dos Finders?

-  Ouvir falar? - perguntou Parker, e continuou: - Até parece que perdeste a memória, velho coon(5). Voltas a um assunto de que tu próprio já trataste.

— Well, sei muito bem. Perguntei unicamente para ver se, como

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(4)    Expressão do  Oeste Americano,  que significa novato, inexperiente.

 

greenhorn, aprendeste enfim a prestar atenção quando gente de experiência te dirige a palavra.   Sabes então ainda quantos Finders deve haver?

-  Doze.

-  E quantas pessoas vês aqui sentadas, meu querido Will?

-  Treze - riu-se Parker alegremente.

-  Deixa o taverneiro fora, bobalhão.

-  Como poderia eu fazer isso?   Talvez levasse a mal deixá-lo fora.

-  És e continuas a ser sempre um greenhorn dos quatro costados! Não aprendeste ainda nem a deixar um irlandês fora. Por isso virei em auxílio de teu fraquíssimo cérebro a fim de dizer-te que lá estão sentadas somente doze pessoas, compreendes isso, meu doce Parker?

-  Yes, querido Sam. Conheço-te bem e sei que preferirias que fosses tu quem o deixasse fora. Por isso, fingi e fiz como se entendesse tão pouco de subtração como tu. Então são doze. Tu até nem fizeste tão mal a conta desta vez, filhinho. Oxalá te esforces tanto no futuro quanto agora. Doze. Hum!   Isso é estranho, sem dúvida!

-  Estranho? Julgas assim? Então o greenhorn mostrou finalmente um rasto de raciocínio! Mas dize-me também por que achas estranho?

-  Eles são doze e os Finders são também doze - respondeu Parker numa calma imperturbável.

-  Logo... ? Vamos, adiante!

-  Logo, é de se supor que eles talvez sejam os Finders.

- Assim é, honrado Will. Estou muito desconfiado de que sejam os Finders. O chefe dizem chamar-se Buttler. Haveremos já de averiguar se existe um esquire(6), com tal nome entre eles.

-  Eles mesmos te irão dizer.

-  Não te apoquentes! Estão curiosos a nosso respeito, estes gentlemen. Vejo-o em suas caras, e em breve virá um deles nos entrevistar. Estou curioso por ver de que maneira se haverão eles para fazê-lo.

-  Polidamente é que não -- continuou Dick Stone.

-  Não deixaremos, porém, que se vão em branca nuvem.

- Por quê? - perguntou Sam Hawkens. - Achas que devemos ser brutos com eles?

-  Muito, até!

- Absolutamente! Nós três somos cognominados The Leaf of Trefoil(7).  Um apelido de honra. Não podemos enlameá-lo. Somos conhecido como três gentlemen unidos, que são célebres porque costumam conseguir por astúcia e delicadeza muito mais do que pela brutalidade e pela força. Assim também deverá ser aqui.

-  Well, mas é que então esses meninos julgarão que os tememos!

- É bem possível, bem possível, velho Dick. Nesse caso, porém, reconheceriam muito rapidamente seu engano, e até muito, hihihi!... A Folha de Trevo ter medo! Eu juraria que ainda nos enfrentaremos. Pretendem assaltar o

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(5)    Coon: abreviação de racoon - mão-pelada.

(6)    Esquire, gentleman - cavalheiro.

(7)    The Leaf of Trefoil: Folha de Trevo.

 

comboio, o que não permitiremos.

- Queres reduzi-los à impotência, caso se trate dos Finders?

- Eles são doze e os  Finders são também doze. . .

-  Sim.

-  Dificilmente acabará sem luta!

- Achas? Qual! Este velho coon - com isto ele se referia prazenteiramente a si próprio - tem, às vezes, idéias que são mais eficientes do que facadas e tiros. Gosto de fazer uma brincadeira, e, quando é possível tirar uma vantagem sobre o adversário, tanto melhor. Não gosto de derramar sangue. Pode-se subjugar o inimigo sem necessidade de matar e trucidar.

-  Astúcia, então? - interveio Parker.

-  Yes.

-  Qual?

-  Agora ainda não sei. Oportunamente, porém, se apresentará. Primeiro precisamos dissimular e deixar que se riam de nós. Devemos mostrar-nos bem inexperientes.

-  Como greenhorns.

-  Sim, como greenhorns, o que, em teu caso, não requer nenhum fingimento, pois que tu o és em verdade. Vê como se riem de Mary, a minha mula!

-  Também não é lá nenhuma beleza, Sam.

-  Beleza? Tolice! Ela é um animal feio, um animal barbaramente feio. Não a troco, porém, nem por um milhão de puro-sangue. É inteligente, experiente e ajuizada como.. . como. . . como... ora, como Sam Hawkens, seu próprio dono, e já me salvou cem vezes a vida. Também nunca a abandonei e arriscaria a vida se ela se achasse em perigo. Minha Mary é minha Mary, nunca igualada e não pode ser comparada com nenhum outro animal. Contudo, é também uma cabeçuda, incorrigível e ignóbil besta, a quem às vezes seria melhor liquidar logo, com um tiro.

-  Bem corno a tua Liddy - aparteou Dick Stone.

-  Sim, a Liddy - assentiu Sam Hawkens, enquanto seus olhinhos rebrilhavam e ele passava carinhosamente a mão sobre sua extravagante espingarda. - A Liddy me é tão cara como a Mary. Também não negou fogo nenhuma vez. Quantas vezes liberdade e vida estiveram dependentes dela, sempre ela cumpriu o seu dever. Sem dúvida, também tem suas venetas, grandes venetas, e quem não a conhece remará contra a maré. Mas eu a conheço, estudei-a como o médico estuda o carbúnculo. Conheço perfeitamente suas qualidades e fraquezas e sei qual o local que devo alisar e acariciar, a fim de conservá-la de bom humor. Não me apartem dela até morrer, e uma vez morto, se vocês estiverem presentes - por favor - deixem minha Liddy comigo, sob a relva com que me cobrirão. Nem outro, que não a conheça e não a ame, deverá tê-la em suas mãos. A Mary, a Liddy, Dick Stone e Will Parker são os quatro que eu guardo no coração e fora dos quais nada almejo e nada possuo em todo este imenso mundo.

Seus olhos embaciaram-se, perdendo o brilho claro de há pouco, mas ele, passando rapidamente a mão, enxugou-os e disse num tom novamente alegre:

- Vejam. Eis que se levanta um dos doze, aquele que esteve confabulando tão misteriosamente com o taverneiro. No mínimo, vem cá para nos ridicularizar. Well, a comédia pode começar. Mas não a estraguem!

Não se deve estranhar, nem tampouco achar graça, por ter Sam Hawkens se referido à sua mula e à sua espingarda com tanto carinho, chamando-as por nomes tão afetuosos. Os antigos e verdadeiros homens do Oeste - infelizmente hoje constituem uma classe quase extinta - eram homens muito diferentes da canalha que veio depois deles. A expressão canalha não significa no caso somente homens decaídos; essa palavra tem aqui uma significação diferente da habitual. Quando um milionário, um banqueiro, um oficial, um advogado, ou mesmo o próprio Presidente dos Estados Unidos, segue em pessoa para o Oeste, equipado com armas modernas e assassinas, acompanhado e defendido por numerosa comitiva, para que nenhum mosquito se atreva a lhe morder o calo, e então de um lugar seguro mata a caça às centenas, sem necessitar de sua carne para se alimentar - nesse caso o verdadeiro homem do Oeste inclui esse alto e ilustre personagem na canalha e chama-o rabble. Existiam antigamente perto de cinco mil cavalos em tropas livres, os mustangs, e verdadeiros oceanos de bisões, agrupados em manadas de vinte, trinta, mil e mais cabeças. Que fim levaram essas massas imensas? Desapareceram. Na extensa savana não se encontra mais nenhum mustang. Foram destruídos, aniquilados. Lá em cima, no Parque Nacional, "cuida-se" e "poupa-se" alguns exemplares de búfalos e, uma vez ou outra, topa-se com um desses animais em algum jardim zoológico, mas no campo, onde eles antigamente viviam aos milhões, já todos morreram. O índio está morrendo de fome física e moral e um verdadeiro e legítimo homem do Oeste só pode ser visto nas estampas dos livros. A culpa de tal estado de coisas cabe àqueles a quem o trapper e o squatter chamam "canalha", rabble. Não se diga que a civilização não tem por objetivo destruir e matar. Quantas vezes se organizavam, depois do aparecimento das ferrovias transcontinentais, sociedades compostas de cem e mais gentlemen, a fim de empreenderem uma "excursão de caça". Seguiam eles a toda velocidade rumo ao Oeste, ordenavam que o trem parasse" em pleno campo e, seguros dentro dos compartimentos, atiravam sobre as manadas de búfalos que por ali passassem. Depois prosseguiam viagem, deixando apodrecer os cadáveres dos animais e jactavam-se de terem caçado nas Pradarias, onde encontraram uma diversão "excellent and eximious". Para cada animal morto por tais gentlemen podiam-se contar mais de dez atingidos pelas balas, os quais, feridos, se arrastavam com dificuldade para finalmente morrerem da maneira mais cruel. O índio, de longe, a tudo assistia, vendo com ódio impotente como se roubava o seu alimento, condenando-o à fome, sem que nada pudesse fazer. Se se queixava, riam-se dele; se se defendia, era aniquilado da mesma maneira que os búfalos, que ele havia considerado propriedade sua e, por isso mesmo, poupado. O antigo caçador, o verdadeiro homem do Oeste, procedia de maneira muito diversa. Não caçava mais do que o necessário. Ia buscar a carne de sua caça com perigo da própria vida. Arriscava-se, montado em seu cavalo, a entrar no meio da manada de búfalos. Lutava com o mustang que quisesse pegar e amansar. Enfrentava ousadamente o urso cinzento. Sua vida era assim uma luta constante mas cavalheiresca contra fatores adversos, contra os animais ferozes e contra os próprios homens, que também eram seus inimigos. Nessa batalha ele devia contar apenas consigo mesmo, com seu cavalo e com sua espingarda, se não quisesse ser exterminado pelo meio em que vivia.  O cavalo e

 

Arriscava-se, montado em seu cavalo, a entrar no meio da manada de búfalos.

 

a espingarda eram portanto seus amigos inseparáveis. Quantos caçadores expunham sua vida para salvar a de seu cavalo! E que amor eles tinham por sua espingarda, esse objeto inanimado, ao qual a gratidão cheia de fantasias atribuía uma alma! Ele sofria fome e sede, a fim de dar de comer e beber a seu cavalo e, antes de pensar em si, olhava para o velho rifle. Dava-lhes nomes de pessoas, falava-lhes como a seres humanos, quando solitário repousava nos campos ou na mata virgem, tendo como companheiros o seu cavalo e sua espingarda. Sam Hawkens era um desses homens do Oeste. A rudeza de uma vida bravia não corrompera seu coração. Era extraordinariamente astuto porém sensível como uma criança.

O que ele esperava aconteceu: Buttler levantou-se, veio em direção a eles, parou imperioso diante da mesa na qual os três estavam sentados e sarcasticamente disse, sem fazer a menor saudação:

-  Que magnífico aspecto têm vocês! São, pelo que vejo, trigêmeos muitíssimos singulares e bastante ridículos.

-  Sim - concordou Sam muito sério e modestamente.

Essa resposta pareceu a Buttler tão cômica que deu ruidosa gargalhada, no que foi imitado por seus companheiros, dizendo depois:

-  Afinal, quem são vocês?

-  Eu sou o primeiro - respondeu Sam.

-  Eu, o segundo - acrescentou Dick Stone.

-  E eu, o terceiro - apoiou Will Parker.

-  O primeiro, o segundo e o terceiro? Mas como? - perguntou Buttler, não percebendo logo o que eles queriam dizer.

-  Ora, trigêmeos, é claro - retrucou Sam na maior calma.

Uma segunda risada geral seguiu-se a estas palavras. Buttler tinha sido vencido.  Por isso dirigiu-se carrancudo ao homenzinho:

-  Não façam gracinhas estúpidas. Estou acostumado a que falem comigo seriamente. Que não podem ser trigêmeos, isso logo se vê. Quero saber seus nomes.  Respondam logo!

-  Chamo-me Grinell - retrucou Sam pusilânime.

-  E eu, Berry - fez Dick medroso.

-  E eu, White - confessou Will angustiado.

-  Grinell, Berry e White - repetiu Buttler. - Hum, então me digam o que estão fazendo por aqui.

-  Somos trappers(8) - declarou Sam Hawkens.

-  Trappers! - riu-se Buttler. - Mas vocês parece que nunca pegaram um castor ou um racoon.

-  Ainda não pegamos - admitiu, modestamente o pequeno Sam.

-  Ah!   Ainda não pegaram.  Quer dizer então que esperam caçar?

-  Yes.

-  Está bem.  De onde vêm?

-  Vimos subindo, de Castorville.

-  Em que se ocupavam?

-  Tínhamos uma loja de roupa, um negócio em sociedade, nós três.

-  Essa é boa!   Com certeza o negócio não deu certo, não foi?

- Yes. Pedimos uma pequena falência. Tínhamos fiado demais. Concedemos muito crédito e não tínhamos crédito nenhum.

-  Está certo, certinho. Eu logo vi que vocês eram uns falidos. Então negociavam com roupas? Talvez sejam mesmo alfaiates. Imaginem só: três alfaiates que por falta de capacidade, pediram falência, conceberam então a gloriosa idéia de se transformarem em trappers para melhorar de situação.   Estão ouvindo?

A pergunta era dirigida a seus companheiros, que ouviam a conversa com

_____________________

(8)    Caçador solitário que vive no mato com o fim de  colecionar peliças, que consegue por meio de armadilhas. Trap = armadilha.

 

interesse e com ar de zombaria. Ouviu-se então uma terceira e ruidosa gargalhada. Sam Hawkens, porém, exclamou, aparentemente zangado:

-  Falta de capacidade? Está o senhor muito enganado. Sabíamos bem o que fazíamos.   Se não fosse assim nada teria sobrado para nós.

Ele abriu na frente o manto de couro de cabra e, batendo em seu largo cinturão, que produziu um som metálico, acrescentou orgulhoso:

-  Aqui estão as moedas, Sir.

A face de Buttler assumiu ares de ave de rapina à espreita da presa. Mas no tom mais inocente deste mundo, perguntou:

-  Trazem moedas? Então foram mais inteligentes do que parecem ser. Quanto rendeu a vocês a falência?

-  Mais de dois mil dólares.

-  E carregam essa quantia?

-  Yes.

-  Viajando por essas paragens inseguras?

-  Qual!   Temos armas.

- Estas de nada lhes serviriam. Se viessem os Finders, por exemplo, eles saqueariam vocês, pobres alfaiates, antes que tivessem tempo de abrir os olhos. Por que não confiaram antes tanto dinheiro a algum banco?

-  É o que vamos fazer ainda.  Lá em cima, em Prescott.

-  Pretendem subir até lá?

-  Yes.

-  Como trappers?

-  Yes.

-  E tem armadilhas?

-  Não.

-  Onde pretendem obtê-las então?                                                '

-  Compraremos em Prescott.

-  Céus! Que gente! Que pretendem pegar nessas alturas?

-  Castores e...  e...  e...   (Ele estacou tímido.)

-  E... e...  e...  que mais? - insistiu Buttler.

-  Ursos cinzentos.

Irromperam então das outras mesas gargalhadas verdadeiramente homéricas. Buttler, por sua vez, ria tanto que as lágrimas lhe vieram aos olhos, ficando com a respiração embargada. Quando se acalmou um pouco pôde exclamar:

-  Ursos cinzentos! Querem pegar em armadilhas ursos cinzentos, cada um dos quais terá tanto como nove" pés de altura e pesará trinta arrobas. E com armadilhas!

-  Por que não? - resmungou Sam agastado. - Será apenas necessário que as armadilhas sejam bastante grandes e fortes.

-  Mas não existem, nem existirão jamais, armadilhas para ursos cinzentos.

-  Então mandaremos fazer algumas em um  ferreiro de  Prescott.

-  Mas de que maneira?

-  Isso nós resolveremos.

-  Vocês? Três alfaiates?   Pára, gordinho, senão eu morro sufocado! Riu novamente a plenos pulmões.   Passou algum tempo antes que pudesse continuar:

-  E mesmo que essa história dos ursos fosse possível, a gente tem de morrer de tanto rir porque querem ir a Prescott pegar castores.

-  Não é propriamente a Prescott. Lá queremos apenas comprar as armadilhas. Depois cavalgaremos em direção de Gila e do Rio San Francisco.

-  Nos quais há duas polegadas de água. Como poderá haver castores?

-  Deixe isso a nosso cuidado. Li um livro no qual se diz tudo o que se quer saber sobre castores.

-  Lindo, lindo, formidável! Se são tão inteligentes que se orientam por um livro, nada mais se pode dizer. Desejo a vocês tantos castores e ursos quantos quiserem. E mais coisas ainda encontrarão.

-  Quê?

- Índios selvagens, que espreitarão dia e noite, aguardando uma oportunidade para os assaltar.

-  Saberemos nos defender.

-  Com essas armas, não?

-  Yes.

-  Com esta espingarda, por exemplo?

-  Yes.

-  Ora, essa! Praticarão heroísmos imensos! Dê cá esse pau furado. Isso, só vendo de perto.

Ele tirou a espingarda da mão de Sam Hawkens e a passou aos companheiros que soltavam, ao examiná-la, exclamações jocosas. Também Dick Stone foi obrigado a mostrar seu longo rifle, que teve igual acolhimento zombeteiro.   Depois Buttler, devolvendo as espingardas, disse:

-  Ali right. Espero que vocês saibam manejá-las tão bem como o faziam antes com suas agulhas.

-  Não se preocupe - fez Sam com segurança. - No que queremos acertar, acertamos sempre.

-  De verdade?

-  De verdade.

- Proponha tiro ao alvo - cochicharam a Buttler aqueles que lhe estavam sentados próximo.

No Oeste, onde quase todos atiram bem, ninguém deixa escapar uma oportunidade para fazer uma competição de tiro ao alvo. Os caçadores gostam de competir entre si. A fama de vencedor se espalha e muitas vezes somas consideráveis são apostadas. Ali estava uma ocasião não só para se fazer um concurso de tiro, como também para uma boa brincadeira. Os três alfaiates não sabiam lidar com as armas e estas de nada valiam. Era pois uma oportunidade para rir bastante, se conseguissem que eles dessem uma demonstração de suas extraordinárias qualidades. Por isso foi que Buttler disse num tom de dúvida, a fim de estimular e aguilhoar Sam:

-  Sim, acertar com uma agulha num casaco, isto até um cego faz, mas atirar, atirar, é coisa muito diferente. O senhor já atirou alguma vez, Sr. Grinell?

-  Yes - respondeu o homenzinho.

-  Em quê?

-  Em pardais.

-  Com esta espingarda?

-  Não, com um tubo de sopro.

-  Com um tubo de soprar! - riu-se Buttler estrepitosamente. - E por isso o senhor pensa que é um bom atirador de espingarda?

-  Por que não? Fazer pontaria é fazer pontaria.

-  Sim? Pois bem, até que distância você é capaz de acertar?

-  Sempre até onde chegar a bala.

-  Digamos duzentos passos?

-  Well.

-  Mais ou menos a esta distância fica a segunda cabana, aquela que ali está.  Acredita que poderá acertar nela?

-  Na cabana? - retrucou Sam ofendido. - Um cego acertará nela, exatamente como um cego acertará a agulha na manga de um casaco.

-  Quer dizer com isso que o alvo deve ser menor?

-  Yes.

-  Que tamanho, mais ou menos?

-  Do tamanho da minha mão.

-  E acredita que atingirá o alvo com essa espingarda que tem aí?

-  Yes.

-  Impossível! Este cano arrebentará logo no primeiro tiro e, se isso não acontecer, ele é tão torto que suas balas dobrarão a esquina de qualquer casa, mas nunca seguirão uma  linha reta.

-  Podemos experimentar.

-  Vamos apostar? Vocês têm bastante dinheiro. Quanto querem arriscar?

-  Tanto quanto você.

-  Um dólar?

-  De acorda

-  Então está feita a aposta. Mas não atiraremos naquela cabana, pois o proprietário dela não gostaria disso, assim eu...

-  Atirem na minha casa - interrompeu o dono da bodega. - Colarei um papel na parede dos fundos, o qual servirá de alvo.

A idéia foi aceita. Foram todos para os fundos. O papel foi colado e em seguida Buttler contou os duzentos passos. Ele entregou o dólar da aposta e Sam fez o mesmo. Tiraram a sorte para ver quem atiraria primeiro. Coube a Buttler o primeiro tiro. Ele tomou posição na distância medida, fez uma rápida pontaria, puxou o gatilho e acertou no papel.

Agora tocava a Sam. Abriu suas perninhas tortas o mais que pôde, apontou com a Liddy, inclinou-se muito para a frente e dormiu na pontaria. Parecia um fotógrafo que se inclina debaixo da capa de seu aparelho, a fim de fixar bem o objetivo. Todos riam. Finalmente o tiro partiu e Sam precipitou-se para o lado, deixando cair a espingarda e segurando com a mão a face direita. O júbilo dos assistentes era indescritível.

-  A espingarda o machucou ou quem sabe lhe deu um coice? - perguntou Buttler com ar de profunda lástima.

 

Finalmente o tiro partiu e Sam precipitou-se para o lado. . .

 

-  Yes, foi o mesmo que uma bofetada - replicou o homenzinho com tristeza.

-  É um instrumento agressivo. Ela parece ser mais perigosa para você do que para os outros.  Vamos ver se acertou.

-  No papel não se notava nem sombra da bala. Procurou-se por muito tempo, até que afinal um que tinha se afastado um pouco para o lado, exclamou, provocando grandes risadas nos outros:

-  Venham cá, aqui onde estou! Nunca pensei encontrar a bala por essas alturas. Mas aqui está ela para quem a quiser ver. Venham cá! A cachaça escorre do buraco!

Ao lado da casa, a uns dez passos, estava um barril cheio de aguardente, destinada talvez ao consumo. Nesse barril é que a bala foi se alojar e via-se a aguardente jorrar num jato da grossura de um dedo. As gargalhadas eram gerais e parecia que não terminariam nunca. O dono da estalagem, porém, blasfemava e exigia indenização. Quando Sam prometeu pagar-lhe o prejuízo, acalmou-se e com um martelo colocou um pino no buraco.

-  Então, como foi isso? Nem ao menos acertou na casa! - exclamou Buttler, dirigindo-se ao homenzinho que estava perplexo. - Eu não lhe tinha dito que suas balas eram capazes de dobrar qualquer esquina? O dólar é meu.  Quer arriscar mais um, Sr. Grinell?

-  Yes - respondeu Sam.

No segundo tiro Sam acertou na casa, porém no canto, bem em baixo, enquanto que o alvo estava em cima no meio da parede. Ele deu mais quatro ou cinco tiros, sem que se aproximasse do papel, perdendo, assim, outros tantos dólares. Parecia zangado quando exclamou:

-  Isso é porque eu apenas joguei um dólar. Eu acho que se jogássemos mais forte eu acertaria melhor.

-  Está certo - riu-se Buttler. - Quanto quer apostar?

-  Quanto você quiser.

-  Digamos vinte?

-  Yes.

Sam perdeu também os vinte, acertando de novo exatamente no mesmo canto. Buttler embolsou o dinheiro e perguntou:

-  Apraz-lhe jogar mais uma vez, Sr. Grinell? - ao mesmo tempo que, satisfeito, piscava às escondidas para sua gente.

-  Yes - respondeu Sam. - Uma dessas eu acerto.

-  Também acredito.   Quanto?

-  Quanto quiser.

-  Cinqüenta dólares?

-  Yes.

-  Ou quem sabe cem?

-  É muito. Se bem que eu estou convencido de que finalmente agora vou acertar, sinto, porém, despojar-lhe de quantia tão elevada, Sr...., como se chama, Sir?

- Buttler - respondeu muito apressadamente e, portanto, sem a necessária cautela.

Possivelmente ele teria dado um outro nome, se a pergunta de Sam não fosse tão inesperada.

-  Magnífico, Sr. Buttler - continuou Sam. - Cem, não. É demasiado.

-  Não diga isso. O que eu digo está dito. Depende unicamente da sua coragem.

-  Coragem?   Um alfaiate tem sempre coragem.

-  Então vamos aos cem?

-  Yes.

Buttler tinha tanta certeza de acertar no alvo e no fracasso de Sam, que fez desta vez uma pontaria rápida. Talvez mesmo a elevada soma jogada o deixasse um pouco perturbado. Seja como for, o caso é que a sua bala cravou-se no muro, bem perto do papel. Esse fato, entretanto, não lhe alterou o bom humor, pois seu adversário de maneira alguma poderia acertar tão perto do alvo. Em último caso, poderiam dar mais alguns tiros para resolver a questão. Sua vitória estava, assim, garantida.

Agora era Sam que fazia pontaria, mas para onde? Para o canto da parede, onde as balas tinham se alojado, com exceção da primeira.

-  Mas, o que está fazendo, Sr. Grinell?! - exclamou Buttler admirado. - Está apontando para o canto.

-  Parece-me que isso seja natural - respondeu calmamente o pequeno.

-  Como assim?

-  Agora é que compreendo a minha espingarda.

-  Sim?

-  Parece que ela tem vontade própria. É muito caprichosa. Se eu aponto para o papel que está lá em cima, no meio da parede, a bala vai parar no canto debaixo. Apontando para o canto, é possível que ela voe para cima, para o papel.

-  Isso é maluquice.

-  Minha, não. Da espingarda. Olhe só.

Ele puxou o gatilho e a bala foi dar exatamente no meio do papel.

-  Não disse? - riu-se o homenzinho. - Ganhei. Passe para ca os cem dólares, Sr. Buttler.

As quantias apostadas não haviam sido postas de lado e Buttler he-litava em cumprir o prometido.   Pensou em não pagar.   Depois, porém, ocorreu-lhè  uma  idéia que lhe pareceu melhor.   Tirou  as moedas de ouro do bolso, deu-as a Sam e perguntou:

-  Vamos parar?

-  Como quiser.

-  Ou jogamos mais uma vez?

-  Concordo.

-  Mas não cem. Duzentos.

-  Sir, é muita coisa.

-  Não para mim.  Ou está com medo?

-  Medo? Nem penso nisso.

-  Então duzentos, mas "casados".

-  Muito bem. O meu companheiro Berry poderá fazer o papel de árbitro e guardar o dinheiro. Vamos usar outro papel com um ponto bem no centro.  Aquele cuja bala der mais próximo do centro ganhará.

-  Está certo - declarou Buttler. - Mas não vamos atirar de duzentos e sim de trezentos passos.

-  Assim eu não acerto.

-  Também não é preciso. Vamos, Sr. Grinell, tire da cinta os duzentos dólares.

Sam deu o dinheiro a Dick Stone. Parecia que Buttler não tinha essa quantia, pois ele foi falar com diversos companheiros para reunir os duzentos dólares. Quando conseguiu a soma combinada deu-a a Dick, que sabia perfeitamente por que motivo Sam o tinha proposto como árbitro. Depois de colado um novo papel, contaram os trezentos passos e Buttler aprontou-se para dar o tiro.

-  Faça melhor pontaria do que antes - aconselhou um de seus homens.

-  Cala-te! - fez ele zangado. - Um alfaiate não me vencerá.

-  Mas há pouco te venceu.

-  Foi por simples acaso. Nada mais.

Entretanto, desta vez ele fez pontaria com mais cuidado e por mais tempo. O tiro acertou no papel, embora não no centro.

. - Belo tiro!   Tiro excelente!  -  louvaram-no  seus camaradas.

Era a vez de Sam. Ele apontou e o tiro ressoou. Ouviram-se gritos de várias pessoas. Gritos de espanto e de ira. Ele havia acertado exatamente no centro. Dick Stone correu para ele, estendeu-lhe o dinheiro e murmurou:

-  Toma ligeiro, velho Sam; se não o seguras agora, nunca mais o verás.

-  Well. Eles teriam que entregar de qualquer modo. Embolsou o dinheiro e dirigiu-se à casa.

-  Foi uma sorte inconcebível, uma sorte extraordinária! - berrou Buttler colérico. - Nunca se viu um acaso desses.

-  É verdade que comigo nunca se deu um acaso assim - confessou Sam. E dizia a verdade, pois era tão bom atirador que não precisava do acaso para acertar.

Buttler, porém, atribuiu outro sentido a essas palavras e disse:

-  Então devolva o dinheiro.

-  Devolver eu? Por quê?

-  Porque acaba de reconhecer que o alvo foi atingido não por você e sim pelo acaso.

-  Lindo. Mas o acaso se serviu da minha mão e da minha espingarda. Ele acertou no alvo e, portanto, ganhou a aposta e eu vou dar a ele o dinheiro logo que o encontrar.

-  Isso é gracejo? - perguntou Buttler  ameaçadoramente. Seus homens logo formaram um círculo em torno dos dois.

Sam não mostrava a menor preocupação.   Respondeu calmamente:

-  Sir, alfaiates não costumam fazer gracejos quando se trata de dinheiro.  Quer continuar a atirar?

-  Não. Eu quis jogar com você e não com o seu acaso. Ele o favorece sempre assim?

Ao dizer essas palavras, lançou a seus companheiros um olhar furtivo, indicando que desistissem de fazer gestos agressivos. Sam, que notari isso, retrucou satisfeito:

-  Sempre que valha a pena. Nunca, porém, por causa de um miserável dólar, pois, neste caso, minha bala prefere se alojar no canto.

Iam eles justamente dobrar a esquina, a fim de voltar para a frente da casa, quando alguém lhes veio ao encontro. Esse alguém era a mula de Sam Hawkens, a qual parecia espiar curiosamente à procura de seu dona  Buttler que caminhava na frente quase se chocou com o animal,

-  Sai, besta repelente! - exclamou ele dando com o punho na cabeça de Mary. - É um verdadeiro e legítimo cavalo de alfaiate. A qualquer outra pessoa nunca ocorreria a idéia de montar semelhante animalejo.

-  Está bem - concordou Sam. - Apenas é preciso saber a razão disso.

-  Por que ninguém gostaria de montar esse animal? De nojo, naturalmente.

-  É fácil dizer que se tem nojo, quando faltam qualidades para montar.

-  Como? Que quer dizer com isso? Quer afirmar, talvez, que não saberei cavalgar esse bode?

-  Não afirmo isso. Queria apenas dizer que somente um bom cavaleiro seria capaz de se agüentar no lombo de Mary.

Ele disse essas palavras de tal maneira que Buttler perguntou em seguida:

-  Quem sabe se você pensa que eu não sou um bom cavaleiro e que não dominaria esse pobre animal?

-  Meu pensamento não foi esse, embora me pareça que em um minuto ele o lançará no chão.

-  A mim? O melhor cavaleiro desde Frisco até New Orleans? Está louco?

Sam mediu-o com um olhar interrogador, da cabeça aos pés, e perguntou descrente:

-  Você o melhor cavaleiro? Não acredito. Não foi feito para cavalgar.  Suas pernas são muito compridas para isso.

-  Não fui feito para cavalgar? - Buttler deu uma gargalhada. - Que é que compreende um alfaiate a respeito de cavalo? Quando você chegou aqui pendia sobre o animal como um macaco sobre um camelo. E ainda quer falar em montar? Não me faça rir de você! Apertarei essa mulinha de tal modo entre as minhas coxas que cairá dentro de cinco minutos.

-  Ou quem sabe se dentro de um minuto ela lhe bota no chão. Vamos apostar alguma coisa?

-  Jogo dez dólares - exclamou Buttler, que não possuía dinheiro suficiente para poder jogar como antes,

-  Eu também jogo dez.

-  Não me derruba.

-  Afirmo que sim.

-  Bem. "Case" esses dez de uma vez.

Sam tirou o dinheiro e deu-o novamente a Dick Stone. Buttler pediu a quantia emprestada a seus companheiros e também deu-a a Dick. Teria preferido confiá-lo a um dos seus, mas não quis despertar suspeitas.

-  Uma aposta repugnante - disse o dono da estalagem. - Montar um monstro desses para ganhar dez dólares. Desta vez, porém, ganhará na certa.

Buttler tomou a velha Mary pela rédea e levou-a para o terreno livre situado na frente da casa.

-  Dentro de um minuto devo estar no chão - declarou ele a Hawkens.  Se depois desse tempo eu ainda estiver montado, ganhei.

-  Posso falar ao animal? - perguntou Sam.

-  Por que não? Fale com ele, assobie nos ouvidos dele, ou se preferir cante; enfim faça o que bem entender.

Formaram-se dois grupos. De um lado estavam Sam com Dick c Will, do outro, o dono da bodega com os companheiros de Buttler. Este montou. A mula deixou calmamente que ele subisse, permanecendo quieta e imóvel como se fosse esculpida em madeira. Foi então que Sam exclamou:

-  Derruba-o, minha boa Mary!

Repentinamente a mula fez uma corcunda como um gato. Deu um salto para cima, num impulso com as quatro patas. Uma vez no ar estendeu o dorso, chegando ao solo ao mesmo tempo que o cavaleiro. A mula estava no mesmo lugar. Buttler, porém, não estava na sela e sim no chão, ao lado da pobre Mary. Os bandidos soltaram exclamações de surpresa. Buttler ergueu-se e disse raivoso:

-  É uma besta infernal! Primeiro fica quieta como um cordeiro e depois, sem mais nem menos, sobe ao ar como um balão.

-  Seria então melhor que você fosse aeronauta em vez de cavaleiro. O dinheiro é meu - fez Sam, embolsando-o.

-  Com os diabos! Não sei se compreendi bem: você disse ao animal para me derrubar, não foi?

-  Yes.

-  Isso eu não posso admitir.

- Qual o quê! Não disse que eu podia falar com ele como me aprouvesse?

-  Sim, mas não para me prejudicar.

-  Não o prejudiquei. Basta apenas escutar o que eu digo para ficar logo sabendo o que o animal vai fazer e como se deve comportar em cima dele. Você não disse que era um bom cavaleiro?

-  Well, assim, na próxima vez, ganharei na certa. Não me derrubará mais. Joga outros dez?

-  Com o maior prazer.

Buttler pediu emprestado o dinheiro pela segunda vez e disse a Sam, ao montar:

-  Pois diga novamente a essa besta infame o que ela deve fazer. Sam deu uma risadinha e exclamou, dirigindo-se à mula:

-  Tire-o de cima, minha querida Mary!

Mary pôs-se logo a galopar apesar dos esforços desesperados de Buttler para contê-la. Dobrou a esquina tão junto da casa que a perna direita de Buttler ficou imprensada. Tinha que sair da sela se não quisesse quebrá-la. Foi "tirado" de cima da mula, caindo sentado no chão.

-  Com cem mil diabos! - gritou possesso, levantando-se e apalpando os joelhos. - É um animal infernal. Eu esperava naturalmente que fosse procurar me derrubar. Como é que mandou a besta me tirar da sela?

A pergunta era dirigida a Sam, que respondeu:

-  Foi estipulado que eu poderia falar, assobiar e cantar à mula quinto quisesse. Foi o que fiz. O dinheiro me pertence.

Ele pôs no bolso os dólares. Buttler coxeou em direção ao dono da estalagem e disse a este, em voz baixa:

-  Dá-me vinte dólares. Minha gente nada mais possui.

— Pretende jogar outra vez?

— Naturalmente.

— Vai perder de novo.

 

Foi ''tirado" de cima da mula, caindo sentado no chão.

 

-  Agora não perco mais.

-  E se isso acontecer, quem me pagará?

-  Eu, patife, eu!

-  Mas, quando?

-  Até amanhã de manhã.

-  Amanhã de manhã, quando ele já lhe houver tirado tudo?

-  Você parece bobo. Eu apenas peço emprestado o dinheiro. Minha gente não assistiria tão calmamente a tudo isso, se não tivesse a certeza de que amanhã de manhã terei de novo o meu dinheiro e ainda muito mais do que isso.

-  Ah!   Os dois mil dólares desses alfaiates?

-  Yes.

-  Tenha cuidado. Esse indivíduo não é tão estúpido como pensávamos.

-  Qual!   Puro acaso.

-  Com os tiros, sim.  Mas não aquilo com a mula.

-  Ora, a mula! É uma velha e aposentada besta de circo que ele comprou por uns poucos dólares. Sabe os dois truques. Eis tudo. Passe o dinheiro. Devo agora recuperar pelo menos as duas últimas paradas de dez dólares.

Quando o taverneiro trouxe o dinheiro de dentro da casa, Buttler disse a Sam Hawkens:

-  Joga mais uma vez?

-  Sim, mas será a última.

-  De acordo.   Jogaremos, porém, vinte dólares.

-  Yes.

- Aí está o dinheiro. Prometo, da maneira mais sagrada, que esse monstrengo não me derruba mais.   Pode dizer o que quiser.

Ele montou, pegando bem curtas as rédeas de Mary. Firmou as pernas e esperou as ordens de Sam, "derrubar" ou "tirar". O homenzinho, porém, não ordenou nem uma coisa nem outra, dizendo alto:

-  Role com ele, minha querida Mary!

A mula atirou-se logo ao chão, rolando para um lado e outro. Huttler, se não quisesse ficar esmagado pelo rolo compressor, teria que sair de cima. Logo que Mary percebeu que se havia desembaraçado dele, ergueu-se num pulo e saiu troteando para o lado do patrão, esfregando o focinho no ombro deste, ao mesmo tempo que ornejava triunfantemente.

Buttler levantou-se devagar do chão, apalpou todas as partes do corpo, da cabeça aos pés, fazendo uma cara impossível de se descrever. Estava possesso pelas derrotas sofridas, mas não queria que notassem seu estado de ânimo. Além disso, doíam-lhe todos os ossos e músculos, pois tinha ficado debaixo de Mary.

-  Talvez esteja disposto a jogar mais uma vez? - perguntou Sam.

- Vá para o inferno e leve junto esse animal infame! - vociferou o interpelado sentando-se.

-  Não tenho relações com Satanás.  Irei para onde me aprouver.

-  A Prescott?

-  Yes.

-  Hoje mesmo?

-  Não. Ficaremos hoje aqui em San Xavier del Bac.

-  Já conseguiu pouso?

-  Não. Não é preciso. Dormiremos ao relento.

-  E têm o que comer?

-  Ainda não.   Pensávamos obter alguma coisa por aqui.

- Assim vão mal. Só comerão bem se quiserem ser meus hóspedes. Aceitam o meu convite?

-  Aceito. Quando vão comer?

-  Quando a carne chegar mandarei avisar vocês.

Com isso as apostas terminaram e os dois grupos ficaram de novo separados, cada um para seu lado.

 

Planos Desfeitos

- Fizeste um belo negócio - disse Dick Stone a Sam. - De bom grado também teria tomado parte nele.

- A bem dizer, nem era preciso. Tomaram-nos, de fato, por alfaiates, hihihihi. E o sujeito chama-se Buttler.

- São então os doze Finders.  Péssima companhia para o jantar.

- Não precisávamos ter aceito o convite. Temos em nossos arreios provisões suficientes para um dia inteiro, o que dá folgadamente até Tucson. Mantenho, porém, meus bons propósitos e pretendo conservá-los.

- Mas como?

- Daremos um jeito.

- Teria sido melhor, talvez, termos ido embora. É um chão muito perigoso este.   Provavelmente   pretendem   extorquir-te  o   que  ganhaste.

- É claro. Contudo, não será fácil. Não os temo, principalmente depois que verifiquei como se deixam embrulhar. Tomaram-nos por alfaiates, nós, a Folha de Trevo.

- Tens uma cabeça  astuta, velho Sam.

- Estou bem satisfeito com ela, apesar de estar um pouco estragada cá em cima. Também já possuí noutros tempos meu próprio couro cabeludo, legítimo, que usei desde a infância honradamente e de pleno direito, e nenhum advogado jamais se atreveu a contestá-lo, até que uma ou duas dúzias de pawnees um dia me atacaram, arrancando-mo fora. Fui então para Tekania onde comprei um novo. Disseram chamar-se peruca e custou-me três grossos fardos de pele de castor, se bem me lembro. Contudo, não faz mal, esta cabeleira postiça é às vezes mais pratica que a velha, sobretudo no verão. Posso tirá-la quando suo muito, posso lavá-la e penteá-la, sem precisar estar cocando a cabeça. E se, porventura, um vermelho viesse exigir meu escalpo, eu poderia agradá-lo com este, completamente isento de trabalho para ele e de dores para mim, hihihihi.

- E como uns parvos, acreditaram - comentou Will Parker - que íamos mesmo lá em cima no Gila pegar castores e até ursos cinzentos.

- Nem foi tanta parvoíce assim, como julgas - esclareceu Sam - viram muito bem que eras um greenhorn, e dum greenhorn tudo pode-se presumir, até vê-lo querer pegar focas e baleias num campo de feno. Disseram que estavam esperando carne. Onde arranjarão? Será em Tucson? Não creio. Intentam roubá-la, no mínimo. Cuidado, aí vêm eles. Vamos conhecê-los, pois.

Ele se referia a uma enorme carreta de tolda, puxada por quatro bois, que aparecera no descampado, seguida de outras três. Na frente vinha um cavaleiro, muito bem armado, que era o scout. Ao lado da carreta vinham ainda dois rapazes, também armados de faca, revólver e espingarda de dois canos. Os boiadeiros vinham a pé. Em dois dos veículos havia passageiros. Olhavam curiosamente por baixo das toldas.

O scout vinha provavelmente com a intenção de fazer alto, todavia, ao deparar com a turma defronte à taverna, turvou-se seu rosto, e prosseguiu cavalgando.   As carretas seguiram-no.

- Maldição! - exclamou um dos Finders com voz abafada, para o taverneiro. - Nosso assado vai por água abaixo.

-  Por quê?

-  Porque vão adiante.  Sabe lá a que distância vão fazer pousada.

-  Não irão muito longe. Via-se que os dois bois estavam cansados. Vocês não repararam o rosto do scout?

-  Não.

-  Dava a impressão de estar observando vocês. Ficou desconfiado. Talvez tivesse feito pousada aqui; prosseguiu, porém, por causa de vocês. Contudo não irão muito longe. Talvez só até o fim da povoação, onde exista pasto para os animais.

-  Vou averiguar.

-  Não faça isto.  Vendo você, aumentarão suas suspeitas.

- É verdade - concordou Buttler. - Precisamos esperar até que escureça. Então irei eu próprio com alguns de vocês. Deixarão seus bois pastarem livremente. Vamos apartar um deles, e carneá-lo.

-  E serão pilhados - concluiu o taverneiro.

- Como pilhados? Se vier alguém, encontrar-nos-á aqui na taverna saboreando um assado. É tudo. O boi que falta, porém, jaz carneado lá longe, fora da povoação. Quem provará que  somos nós os autores?

-  Estaremos comendo justamente o pedaço que falta do boi roubado.

-  Isso não prova nada, pois podemos ter comprado a carne recentemente, dum vermelho. E se, contudo, ainda quiserem nos amolar, temos armas e facas a fim de nos desembaraçarmos de qualquer importuno.

-  Os três alfaiates comem junto?

-  Sim. Sabes, Paddy, tenho uma idéia. Embebedaremos os alfaiates.

-  Em minha casa?

-  Sim, dentro de casa. Aqui fora seria impossível. Poderia haver alguma testemunha.

-  Mas é muito perigoso para mim que isso aconteça em minha casa...

-  Cala-te. Receberas a tua parte, trezentos dólares. É o suficiente pelo pequeno incômodo.   Estás de acordo?

- Sim, pois vejo que não há outra saída. Receio, porém, que eles dificilmente se deixem embriagar.

-  Facilmente, muito facilmente, podes estar certo. Então não viste que botaram fora tua aguardente?

-  Isto todo taverneiro repara.

-  Vê-se por isso que não são bebedores de aguardente e como tais, não suportarão nada. Depois de alguns copos estarão completamente bêbedos.

-  Eu concluo daí que não costumam beber aguardente e, portanto, não tomarão nem um pouco.   Como querem vocês então embebedá-los?

-  Hum! era só o que faltava! Não tens mais nada a não ser aguardente?

O taverneiro fez uma cara que pretendia ser manhosa, e respondeu:

-  Para bons amigos, e mediante honesta remuneração, tenho por ai um barrilzinho do ardente vinho Caliente, da Califórnia...

-  Vinho Caliente? Precisas prepará-lo! - exclamou Buttler. - Um único litro desse vinho derrubaria estes três alfaiates, e para nós o Caliente será uma verdadeira delícia. Quanto deve custar?

-  Quarenta litros, sessenta dólares.

- Um pouco caro, mas de acordo. Receberas, portanto, trezentos e sessenta dólares daquilo que a próxima noite nos renderá.

-  Por que dar tantas voltas com esses alfaiates? Convida-os para comer, palestra com eles, embriaga-os, etc. Não haverá então um caminho melhor e mais curto?

-  Lá isso há. Contudo, Paddy, quero dizer-te uma coisa: existe algo nas maneiras destes homens que me faz não acreditar de todo que sejam alfaiates. Estive refletindo. Os tiros que o baixote deu foram tiros de mestre, mesmo os primeiros errados. Vimo-lo alvejar o papel, e, contudo, com um rapidíssimo e imperceptível movimento da espingarda, enviou o projétil precisamente no canto. Repara lá como estão sentados. Não olharam nenhuma vez para cá. Contudo, digo-te que sabem tudo tão bem como se seus olhos tivessem estado dirigidos todo o tempo para nós. Conheço estes olhares disfarçados de espiões. E suas maneiras! Como se a cada momento fossem premir o gatilho de seus revólveres. Não se deixarão assaltar ou atacar facilmente, pelo menos não tão facilmente que, com a rapidez do relâmpago, não empunhem logo facas e revólveres.

- Todavia, são doze ou mesmo treze contra três. O resultado deve ser forçosamente seguro.

- Sem dúvida. Entretanto, dos doze alguns seriam mortos ou feridos. Um atordoamento por intermédio dum bom fogo é o melhor e o mais seguro meio...

Buttler estacou em meio do que ia dizendo, e apontando para o escampado, à sua  frente, disse:

Lá vem a estranha figura que cavalgava atrás da carreta.

- Lá vem a estranha figura que cavalgava atrás da carreta. Atrasou-se, não vê mais o comboio e agora parece não saber para onde se dirigir.

A expressão estranha figura era muito apropriada e exprimia, talvez, antes de menos do que demais. À medida que se aproximava lentamente, a personagem ia fazendo em curtos e quase que medidos intervalos as mais regulares oscilações sobre o cavalo, já com as pernas longamente distendidas para trás e a cabeça profundamente inclinada para a frente, já com esta deitada rapidamente para trás e com as pernas para a frente. O corpo estava envolvido num longo e largo capote de chuva e a cabeça toda coberta por um cachenê vienense, cuja ponta caía até as ancas da cavalgadura. Calçava botas de campanha e trazia uma espingarda a tiracolo. Sob o capote cinzento parecia haver uma espada. O rosto que assomava por baixo do cachenê era imberbe, cheio e rosado, de forma que, atentando à indumentária, principalmente, seria difícil dizer-se qual o sexo da pessoa que cavalgava aquele preguiçosíssimo matungo. E a idade daquele misterioso ser? Se esta suposta mulher fosse um ser masculino, deveria ter uns trinta e cinco anos, mas se, do contrário, fosse uma dama, deveria, sem dúvida, estar já pelos quarenta. Parara agora ante às mesas e cumprimentava em voz alta, ou melhor, em voz de falsete:

-  Bom dia, meus senhores. Viram por acaso quatro carretas de bois?

Todos os diálogos até agora tinham sido feitos em inglês. Esta mulher-homem ou este homem-mulher servia-se, porém, da língua alemã, que os interpelados não conheciam, ficando por isso sem resposta a sua pergunta. Depois de tê-la repetido na escala de ré, Sam Hawkens aproximou-se do cavalo e perguntou em alemão:

-  Não fala inglês?

-  Não, só alemão.

-  Posso saber com quem tenho a honra de falar?

Agora foi-lhe concedida a ascensão de uma terça na resposta, que veio afinada, portanto, na escala de fá:

-  Eu sou o senhor cantor aposentado Mathäus Aurelius Hampel, de Klotzsche, em Dresde.

-  Klotzsche, Dresde?  Então o senhor é saxão?

-  Sim, de nascimento, agora, porém, aposentado.

-  E eu também, se bem que há muito tempo vagabundeio na América. O senhor pertence decerto à gente das quatro carretas, não, senhor cantor?

-  Sim. Peço, contudo, encarecidamente, que seja bem preciso. Diga pois, antes - senhor cantor aposentado. Assim qualquer um saberá logo que completei meu serviço de organista e servente de igreja, a fim de consagrar todas as minhas habilidades, inteiramente, à harmoniosa deusa da música.

Os olhinhos de Sam fulguravam divertidamente, enquanto dizia com a máxima seriedade:

-  Bem, senhor cantor aposentado, suas carretas há muito que passaram por aqui e devem ter feito alto, presumo, aí fora, em frente da povoação.

-  Quantos  compassos precisarei dar para  alcançá-las?

-  Compassos?

-  Hum-hum, naturalmente, quero dizer passos?

-  Isso tampouco sei eu, pois acho-me também pela primeira vez aqui. Permite que eu o conduza?

-  Com muito prazer, meu estimado senhor. Eu sou a melodia e o senhor fará o acompanhamento. Se, durante o percurso, não fizermos muitos intervalos de quarta nem muitas dissonâncias, teremos alcançado a carreta perfeitamente no fine.

Sam pôs sua Liddy no ombro, assobiou para Mary e tomando o cavalo da singular criatura pelas rédeas, dirigiu-se para o local onde as corretas tinham feito alto.  Ao mesmo tempo entabulou conversa:

-  Então o senhor compõe, senhor cantor  aposentado?

-  Sim, noite e dia.

-  O quê?

-  Uma grande ópera para três noites teatrais, em doze atos, quatro atos para cada noite. Sabe, uma obra assim como o Anel dos Niebelungen de Richard Wagner; desta vez, porém, não dele, mas da minha autoria, do senhor cantor aposentado Mathäus Aurelius Hampel,. de Klostzsche, em Dresde.

-  Mas o senhor não pode compor isso em sua terra? O que o impele para a América, ainda mais para o Arizona, a parte mais perigosa do Oeste bravio?

-  Que me impele? O gênio, a musa. Que mais havia de ser? O agraciado filho das musas deve seguir a imposição da deusa.

-  Isso não entendo. Não sigo nenhuma deusa. Sigo a minha cabeça.

- Porque o senhor não é um privilegiado. Com juízo não se compõe nenhuma ópera, mas com o baixo geral e o contraponto, quando existem à mão um texto e libreto apropriados. E este texto é a mola que me impeliu para a América.

-  Como, senhor cantor?

-  Por favor, repita certo: cantor aposentado. É só por causa da exatidão. Poder-se-ia crer que ainda tenho de tocar o órgão em Klotzsche, Dresde, enquanto que há dois anos já tenho um sucessor. É que minha ópera já está mentalmente pronta. Falta-me todavia o texto apropriado. Necessito de um enredo forte, um gigantesco, ciclópico enredo, pois minha ópera deverá ser uma ópera épica. Assim tive que procurar eu mesmo heróis, mas infelizmente não achei ainda nenhum apropriado, pois quero heróis novos, originais, ainda não revelados no palco. Entretanto, mora nas cercanias de Dresde meu amigo e protetor Hobble-Frank, o qual...

-  O Hobble-Frank vive lá? E o senhor o conhece? - exclamou surpreso Sam.

-  Sim. O senhor também?

-  Muito. Muito bem até.  Continue.

-  E ele me chamou a atenção para tais heróis, justamente os que busco.

-  Que me diz, senhor cantor?

- Corrijo-o já pela terceira vez, ou até pela quarta: senhor cantor aposentado! De fato, é só por causa da clareza, naturalmente. Senão poder-se-ia crer que me atribuo um emprego que já não ocupo há dois anos. O Hobble-Frank chamou-me pois a atenção para tais heróis, primeiramente, é natural, para si mesmo e depois, em segunda linha, para outros homens, com os quais, em tempos passados, praticou aqui no Oeste bravio feitos verdadeiramente extraordinários, e que talvez os tenha encontrado novamente.

-  Quem é essa gente?

- Um chefe apache de nome Winnetou, dois caçadores da Pradaria chamados Mão de Ferro e Mão de Fogo, e muitos outros. Conhecerá, porventura, também estes três?

-  Quer me parecer, hihihihi. Digo-lhe que poderá ouvir de mim tanta coisa a respeito dessa gente, que terá material para compor vinte óperas. A música adequada terá o senhor mesmo que arranjar, naturalmente.

-  É claro. É claro. Hobble-Frank contou-me todas as aventuras que viveu com estes senhores. Se, todavia, puder obter mais assuntos com o senhor, tanto melhor, pois assim se enriquecerá mais a obra em que trabalho.

-  O senhor terá mais do que o necessário. Mas não dizia há pouco que Hobble-Frank se havia reunido novamente a eles?

-  Sim, disse. Porém só presumo, por não ter disso absoluta certeza. É que já uma porção de dias não aparecia em casa, e quando lá cheguei, faz dias, encontrei umas linhas dele convidando-me a procurá-lo, caso ainda estivesse interessado em vir à América, a fim de travar conhecimento com os heróis em questão, para a minha ópera. Procurei-o logo naturalmente, mas era tarde, pois a Vila Toucinho de Urso, que ele habita, estava trancada, tudo fechado, nenhuma vivalma e na vizinhança pude apenas descobrir que Hobble-Frank devia achar-se em viagem por muito tempo. Concluí, logicamente, que ele tinha vindo para a América e vim atrás dele.

- Mas por que logo para este selvagem Arizona? Tem então algum motivo para crer que ele se encontre por estas paragens?

-  Sim, pois ele me falava freqüentemente de Arizona e Nevada, adiantando-me que viajaria para cá, logo que soubesse que algum de seus antigos companheiros pretendesse fazer o mesmo. Ele mantém correspondência com eles. E pelo fato de ter partido assim, tão repentinamente, sem esperar-me, calculei que tivesse recebido uma tal notícia de seus amigos.

-  E foi por isso, somente por isso, que o senhor empreendeu toda esta longa jornada?

-  Por que não! Terra é terra, tanto faz chamar-se Arizona como Saxônia. Por que haveremos de ter mais incômodos num lugar do que noutro?

- Que idéia! Em primeiro lugar trata-se de Nevada e Arizona, vinte vezes maior do que a Saxônia, e depois há que levar ainda em conta as circunstâncias. O senhor faz uma idéia de quantas e que espécies de tribos indianas vivem aqui?

-  Nada tenho que ver com elas!

- Conhece o senhor os atalhos desta terra, as gargantas selvagens e despenhadeiros imensos, a solidão das regiões montanhosas, a implacabilidade dos desertos, sobretudo dos que ficam compreendidos entre Califórnia, Nevada e Arizona?

-  Também nada tenho a ver com isso.

-  Entende o senhor a língua dos índios ou dos brancos daqui?

-  Não é preciso.   Minha linguagem é a música!

- Mas o índio selvagem não irá absolutamente conversar ou tratar musicalmente com o senhor. Pelo que parece, o senhor não tem a mínima idéia do perigo a que se expõe, querendo encontrar-se com Hobble-Frank.

- Perigos? Já mostrei ao senhor o que penso sobre o assunto. Um discípulo da arte, um filho das musas, não tem perigos a temer. Ele paira tão alto acima da vida comum, como o violino sobre o contrabaixo. Ele vive e respira os divinos acordes do éter e nada tem que ver com dissonâncias terrenas.

-  Well. Então deixe que um pele-vermelha lhe arranque o escalpo um dia e conte-me, depois, que divinos acordes experimentou. Aqui nesta terra existe só uma música e é esta aqui! - bateu na sua espingarda e prosseguiu: - este instrumento musical emite sons ao compasso dos quais se dança aqui em Arizona e Nevada, e...

-  Dança... Pfui! - interrompeu o cantor. - Quem falou de dança ou quem haveria de se ocupar dela? O artista, jamais. A dança é uma exaustiva e contínua transferência do ponto de gravidade, pela qual se transpira um antiestético suor.

-  Então desejo-lhe que não se encontre aqui na contingência de, contra toda a sua artística inclinação, perder seu ponto de gravidade, e talvez até mais, mesmo a própria vida. Infelizmente é de se temer que muito breve o senhor seja forçado a dançar um Hopser(1) que não decorrerá sem transpiração.

-  Eu? Que esperança!   Quem quereria ou poderia me obrigar?

- Os cavalheiros que se achavam sentados defronte da taverna. Eu lhe explicarei isso mais tarde.

-  Por que não agora?

- Porque quero ainda contá-lo também a outros e porque agora acabamos de chegar ao nosso destino, se não me engano.

Eles haviam deixado a povoação e achavam-se atrás dela, na estrada que conduzia à Capital. Durante todo este percurso o cantor tinha executado suas características oscilações de pêndulo sobre o matungo. Já com o tronco para a frente, já inclinado para trás, e com as pernas nos estribos, esticadas na direção oposta, o que parecia divertir muito ao pequeno Sam Hawkens, como o denunciava o brilho divertido de seus olhos. Agora viam diante deles as quatro pesadas carretas de imigrantes. Os seus ocupantes tinham apeado e desatrelado os bois que pastavam o raro capim que por ali havia.

As carretas estavam encostadas uma na outra, com os varais dirigidos todos para o mesmo lado, um grande erro, em tais redondezas, onde, devido aos índios e à canalha branca, seria aconselhável formar uma espécie de  fortaleza.   Os  viajantes tinham  apeado,  e movimentavam-se em vários afazeres. Duas mulheres procuravam galhos de acácia, a única madeira inflamável que por ali se podia obter. Duas outras andavam às voltas com panelas para o preparo da comida. Algumas crianças ajudavam. Dois homens carregavam água em baldes. Um terceiro examinava as rodas das carretas. Estes três eram ainda bastante jovens. Um quarto, que certamente já ultrapassara a casa dos cinqüenta, mas que

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(1)    Hopser, dança característica alemã,  cujos passos são pulados.

 

conservava ainda toda a robustez num corpo forte e bem proporcionado, estava no meio de todo este movimento a fim de fiscalizá-lo, e, de tempos em tempos, dava uma ordem, em voz clara. Ele parecia pois ser o chefe daqueles imigrantes.   Ao reparar nos dois recém-chegados, gritou:

- Onde é que esteve metido novamente, senhor cantor? A gente anda constantemente preocupado com o senhor, enquanto...

-  Por favor, por favor, Sr. Schmidt - interveio o interpelado - senhor cantor aposentado, como já tenho repetido centenas de vezes! É realmente só por causa da precisão e porque não posso deixar que me atribuam um cargo que não exerço mais.

Com isto parou o cavalo e apeou, mas de que maneira! Ergueu primeiro a perna direita para descer pelo lado esquerdo. Isto pareceu-lhe entretanto muito perigoso. Por isso tirou o pé esquerdo do estribo, a fim de tentar chegar à terra pelo lado direito, o que para ele era tão problemático como da outra maneira. Assim, apoiando ambas as mãos no arção da sela, inclinou-se para a frente e foi-se empurrando para trás, de forma que ficou montado nas ancas do animal. Daí continuou sempre mais e mais para trás, até que finalmente escorregou pela cola abaixo. O animal era manso como uma ovelha, não se opondo, pois, a tão estranhos e ridículos modos. Os imigrantes já tinham presenciado muitas vezes esta escorregadela, de maneira que não produzia mais nenhum efeito sobre eles. Ao bom do Sam, todavia, nunca havia sido dado presenciar tal cena, pelo que teve de fazer grandes esforços a fim de não irromper em gargalhadas.

-  Qual nada, aposentado - respondeu Schmidt de maneira ruidosa, que aliás parecia ser-lhe peculiar - para nós continua sempre sendo nosso cantor. Se se aposentou, isso é lá consigo, mas não é motivo para que estejamos sempre a mastigar esta estranha palavra. Por que ficou para trás? A gente precisa cuidar constantemente do senhor.

-  Piano, piano, querido Schmidt. Ouço-o perfeitamente, mesmo quando não grita desta maneira. Ocorreu-me uma idéia musical. Creio que numa ouverture, no caso de faltar um celo na orquestra, poderá ser perfeitamente substituído por uma terceira trompa. Não?

-  Substitua-o, por mim, até pelos bombos. Sei muito bem se um carro precisa ser engraxado para andar melhor, mas não entendo nada de trompas e trombetas numa ouverture. Mas quem é este palhaço que o senhor traz aí?

Com estas palavras referia-se a Sam Hawkens.

O cantor respondeu sem sequer corrigir a pesada e mesmo insultuosa palavra.

- Este senhor é... é... chama-se... chama-se - hum, isto é, nem eu próprio ainda sei. Encontrei-o na povoação. Foi tão gentil que se ofereceu a modular-me até aqui para o senhor. O essencial é que também é um saxão.

- Um... saxão? - perguntou Schmidt em tom de surpresa, enquanto mirava Sam da cabeça aos pés. - É impossível! Se lá na nossa Saxônia alguém se apresentasse com tal indumentária, seria imediatamente trancafiado no xilindró.

-  Todavia, não nos achamos felizmente na Saxônia - respondeu Sam com um sorriso benevolente - por isso provavelmente conservarei minha liberdade, se não me engano. Vocês ainda terão ocasião de ver muitas outras indumentárias por aqui. Também aqui no Oeste bravio não existem de vinte em vinte passos, dez lojas de roupa. Poderei talvez saber para onde vocês pretendem ir?

- Um. . .  saxão? - perguntou Schmidt em tom de surpresa ...

-  Vocês? - disse Schmidt num tom irritado. - Estamos acostumados a ser tratados por senhor, e desejaríamos antes de lhe dar resposta, saber quem é, e que faz.

- Well, isso poderão saber. Chamo-me Falke, vim da Saxônia, vivo como homem do Oeste e dou a cada um a honra que merece. Agora, se quiserem ou não responder à minha pergunta, está na vontade de vocês.

- Vocês!   Sr. Falke,  já lhe  disse que estamos acostumados...

- Está bem, está bem - interrompeu o homenzinho - e eu também já disse que dou a cada um a honra que merece. Quem me tratou de palhaço, não será absolutamente tratado como um grão-senhor por mim!

- Com mil trovões! Refere-se talvez a mim? - bradou o velho enquanto dava um passo para a frente, em atitude provocadora.

- Sim - respondeu Sam, enquanto mirava-o destemida e prazenteiramente nos olhos.

-  Então trate de ir andando o quanto antes, se é que deseja conservar seus ossos inteiros.

-  Isso farei, mas, como seu conterrâneo, julgo meu dever preveni-lo contra os doze cavaleiros que hoje passaram por vocês.

-  Não é  necessário. Somos suficientemente inteligentes para saber onde andamos. Aqueles sujeitos já nos desagradaram de saída, fazendo-nos perguntas.   O senhor vê, pois, que seus bons conselhos são nos supérfluos.

Ele deu as costas, para mostrar que, com Sam Hawkens, nada mais tinha a tratar.

Fez menção de afastar-se, foi contudo impedido por seu bom coração, e disse:

-  Mestre Schmidt, mais uma palavra.

-  O quê? - perguntou o velho grosseiro.

-  Se de fato não precisa de bons conselhos, conservo-os de bom grado comigo. Permita ainda uma pergunta só: esta posição de suas carretas é provisória ou ainda pretende modificá-la?

-  Por que esta pergunta?

- Porque esta é a maneira mais simples de se expor a ser roubado ou mesmo assaltado. Se me fosse dado preveni-lo, sugeriria que formassem um quadrado com as quatro carretas, dentro do qual, todos, pessoas e bois - hihihihi - pessoas e bois, teriam que permanecer a noite inteira. Além disso, seria necessário que uma sentinela ficasse atenta, durante toda a noite, em cuidadosa guarda até o romper do dia.

-  Por quê?

- Porque vocês se acham em Avijour, e não na Saxônia, dentro da circunscrição de Dresde ou Leipzig.

-  Onde estamos, sabemos muito bem, e para chegar a esta conclusão não precisamos o auxílio de nenhum palhaço. Portanto suma-se daqui, antes que eu lhe ponha molas nas pernas.

-  Well, já vou indo, se não me engano. Tive boas intenções com vocês. Agora, porém, o palhaço abandona o circo de macacos.

Voltou-se bruscamente, afastando-se em direção ao povoado. Schmidt dirigiu-se mal-humorado para o cantor:

-  Que boa peça nos impinge o senhor. Tinha a aparência dum arlequim, e era, ao mesmo tempo, bruto como um animal. Tais conterrâneos eu agradeço.

-  Mas comigo ele foi muito atencioso e amável - arriscou o aposentado. - Isto foi provavelmente em conseqüência da maneira bem dolce com que me dirigi a ele, como aliás, nós os artistas, os músicos, cuidamos de nos exprimir, enquanto o senhor interpelou-o muito sforzando.

-  Porque ele se apresentou como um vagabundo e...

Uma alta exclamação interrompeu a Schmidt. Os dois moços que acompanhavam as carretas a cavalo, e dos quais os Finders haviam falado, tinham ido até o rio, a fim de lavar os cavalos empoeirados. Agora voltavam. Um deles tinha uma fisionomia muito viva com os traços e a cor clara dos europeus, se bem que esta última estivesse bastante queimada do sol. Ele devia ter uns dezoito anos, e era mais desenvolvido em corpulência do que em altura. Mais interessante era a cabeça do outro. As feições intrépidas do seu rosto eram tipicamente indianas, posto que não da mesma dureza. Também as maçãs do rosto não eram tão salientes. Sua pele era de um bronzeado opaco, onde sobressaía vivamente o cinzento claro dos olhos e a cor semiloira dos cabelos.

Sua compleição era mais esguia, apesar de tão forte como a de seu companheiro, com o qual devia andar parelho na idade. Ambos estavam vestidos à maneira européia e pareciam excelentemente armados. Também cavalgavam ambos muito bem, parecendo que o de olhos cinzentos estava como que fundido em sua montaria. Este último tinha visto rapidamente, ao aproximar-se do acampamento, a maneira como Sam Hawkens se afastava, e soltara o grito que interrompera a frase de Schmidt.

-  Que é que há?  Que quer o senhor? - perguntou-lhe.

O jovem conduziu o cavalo rapidamente até Schmidt, respondendo em língua alemã, se bem que com sotaque estrangeiro:

-  Quem era o homenzinho que saiu agora mesmo daqui?

-  Por quê?

-  Porque pareceu-me conhecido. Não o vi bem. Mas seu caminhar chamou-me a atenção.  Usava barba?

-  Sim, uma verdadeira mata virgem.

-  Está certo. Como eram os olhos?

-  Muito pequenos.

-  O  nariz?

-  Espantoso.

-  Também está certo.  Deu talvez o nome?

-  Sim.

-  Sam Hawkens, talvez?

-  Não.  Chama-se Falke, e é alemão.

- Singular, porém explicável. Falke em inglês disse Hawk. Muitos alemães, ao virem para cá, tomam nome inglês. Por que não haveria um homem do Oeste que se chama Falke transformar seu nome em Hawkens? Que Sam Hawkens é alemão, em todo o caso eu não sabia. Mas a compleição e o andar característico, meio rastejado? Todo bom homem do Oeste aprendeu a rastejar. Mas assim, somente Sam Hawkens rasteja. Todavia, mais uma pergunta. Aconteceu por acaso que durante a conversação o homem risse alguma vez?

-  Sim.

-  Como?

-  Tentou rir zombeteiramente, ao falar em pessoas e bois.

-- Pergunto com que vogais, em que altura ele riu. A gente ri em a, e, i, ou em o.

-  Foi em i, e era mais uma cachinada do que uma risada.

-: Verdade realmente? - perguntou o jovem com vivacidade. - Então era ele mesmo. Sam Hawkens tem um hihihihi todo particular, como nenhum outro. Ouve-se freqüentemente em sua conversação. Soa tão manhoso e é contudo divertido. Engole-o em parte.

- O senhor verá como se engana: o sujeito era um vagabundo. Certamente não era um homem do Oeste.

Sam voltara à taverna, sentando-se novamente com Dick e Will Para fazerem ao menos alguma despesa, mandaram servir mais um uísque, que tomaram misturado com água. Os Finders riram-se desta sobriedade, deixando todavia os três em paz.

Depois do anoitecer, o irlandês acendeu uma lanterna que iluminava mal e mal o lugar em frente da casa. Lá dentro, só mais tarde teria lugar o jantar. Depois de algum tempo, Buttler levantou-se e fazendo um sinal a três de seus companheiros, ausentou-se com eles.

-  Isso encobre alguma coisa - disse Will Parker baixinho. - O que pretenderão?

-  Não podes imaginar? - perguntou-lhe Sam.

-  Não. Não sou nenhum sabe-tudo.

-  Eu também não. Mas quem não for um greenhorn como Will Parker, tem que sabê-lo forçosamente.

- Então o que é, velho coon ajuizado?

-  Carne.

-  De onde?

-  Dos imigrantes.

-  Ah, sim. Eles devem ter carne seca consigo e esta será roubada.

-  Qual nada. Os Finders querem carne fresca, e lá fora nas carretas há dezesseis bois.  Compreendes agora, meu doce Will?

-  Ah, os bois, certo, certo - assentiu o interpelado. - Não seria de espantar se estes gentlemen roubassem um boi, o que, sem dúvida, é muito mais simples do que trepar numa carreta a fim de surripiar um presunto duro. A gente deita-se no chão, rasteja até o animal e depois trata de conduzi-lo vagarosa e prudentemente para fora do acampamento, até algum lugar seguro.

-  Assim é. Isso mesmo, assim é que se faz, hihihihi. Pareces ter sido em outros tempos um bom ladrão de bois, se não me engano.

-  Cala-te, velho coon. Eu teria pena dessa gente se sofresse a perda dum animal de tiro. Só agora que te ocorreu isso?

-  Não. Logo que Buttler falou em carne.

-  Estiveste com os imigrantes e não  foste capaz de preveni-los?

- Quem é que disse que eu não os preveni? Mas chamaram-me de palhaço e desprezaram um bom conselho que lhes quis dar. Sam Hawkens um palhaço, hihihihi. Achei muita graça. É verdade que não ostento um traje de salão, mas aquele cantor aposentado assemelha-se muito mais a um burlantim do que eu, se não me engano.

-  Tu ris. Lembra-te de que também estamos convidados para o jantar.

- Naturalmente que me lembro. E sinto uma fome de um lobo da Pradaria, em cujo estômago vazio o sol há duas semanas dardeja seus raios.

- Pretendes então aceitar o convite e participar do jantar de carne roubada?

-  Yes, e com muito apetite.

-  Sam, isto custa-me a crer, tendo em vista a tua conhecida e jamais maculada honradez. Em todo caso, faze o que bem entenderes. Eu, porém, não te acompanho. Will Parker jamais comerá mercadoria roubada.

- Sam Hawkens também não, a não ser que saiba que ela será posteriormente paga.

-  Então, queres dizer...?

- Sim - assentiu Sam - fui chamado de palhaço e mandaram-me embora com meu conselho, portanto não impedirei nada. É preciso haver castigo, especialmente quando este serve de lição para corrigir. Terei também grande prazer em tomar parte no jantar, mas também hei de providenciar no sentido de que os prejudicados sejam devidamente indenizados.

- Se for assim, também jantarei. Precisamos, porém, estar alerta. Não me admiraria se os Finders quisessem espoliar-nos.

-  Perderão seu trabalho, esteja certo disso.

Fazia um quarto de hora mais ou menos que Buttler se afastara com seus companheiros, quando reapareceram. Haviam trazido um lombo de boi que foi levado para dentro de casa a fim de ser assado. Enquanto esperavam que ficasse pronto, foram esvaziadas mais garrafas de uísque. Quando, enfim, a negra anunciou que o assado estava pronto, Buttler aproximou-se da Folha de Trevo, a fim de convidá-la para entrar.

-  Não poderia ser servido o nosso jantar aqui fora? - perguntou Sam.

-  Não - foi a resposta. - Quem quiser ser nosso convidado, tem que sentar-se conosco. Ademais, não sabem vocês porventura que o vinho só produz efeito em sociedade?

-  Vinho?   Donde virá? - fez Sam admirado.

-  Sim, de onde. Isto surpreende-os, não é verdade? Digo-lhes, vocês são convidados de legítimos gentlemen. Verificamos que não lhes agradou o uísque, e, por isso, unicamente para ser-lhes agradável, e em sua honra, convencemos o taverneiro de ceder-nos o único barrilzinho que ainda lhe resta. É um vinho, como decerto vocês nunca provaram igual. Venham, pois, ilustres senhores.

Dirigiu-se à porta, por onde já havia desaparecido a sua gente. Isto deu oportunidade a Sam de sussurrar para seus companheiros:

- Querem-nos embriagar e em seguida roubar-nos. Julgam que temos estômago de criança, porque desprezamos a aguardente venenosa do irlandês, hihihihi. Hão de arrepender-se, se não me engano. Sam Hawkens bebe tanto quanto um buraco de porão. E já se viu um buraco de porão ficar tonto? Fingiremos que não suportamos nada, boys; beberemos, porém, com eles até vê-los debaixo da mesa.

Entraram no casebre. À direita ficava a cozinha onde havia uma mesquinha lareira, na qual crepitava o fogo. Ali a negra tinha assado a carne. À esquerda estavam duas compridas mesas de tábuas lascadas e não aplainadas, e dois bancos do mesmo material. Havia, pois, lugar para todos os presentes. O barril de vinho estava sobre um pilãozinho, a um canto. O irlandês encheu dois jarros nos quais o pessoal bebia. Copos, não havia. Os Finders tinham a intenção de beber pouco, até verem seus convidados completamente embriagados. Eles deixavam pois os jarros correrem a roda, fazendo de conta que estavam, a beber valentemente; tomavam, porém, só pequenos goles. Mas o vinho era bom mesmo. Agradava-lhes. E assim aconteceu que seus goles tornaram-se cada vez maiores.

Também o assado estava bom. Foi mesmo elogiado com entusiasmo e estavam já no fim, quando a refeição foi interrompida. Tratava-se do já mencionado guia dos imigrantes, que surgiu na porta seguido do velho Schmidt e mais três outros homens. Traziam as espingardas consigo, enquanto que as dos comilões tinham sido postas de lado. Depois de ter relanceado um rápido olhar pela cena, o guia aproximou-se uns passos e disse:

-  Good evening, Milords. Permitem, talvez, que lhes desejemos bom apetite?

- Por que não? - respondeu Buttler. - De bom grado seriam convidados a jantar.  Mas já foi comido quase tudo.

- Good  evening,  Milords.   Permitem, talvez,  que  lhes desejemos   bom apetite?

-  Sentimos muito. Não se vêem ossos. Até parece que vocês se deram ao luxo de comer lombo?

-  Yes, é um ótimo lombo de búfalo.

-  Ainda existem búfalos por aqui? Deve ter sido certamente um animal manso?

-  É bem possível.   Todavia, compramo-lo por lombo de búfalo.

-  Onde foi isso, se me permitem a pergunta?

— No Rancho de Rhodes, no Vale de Santa Cruz, de onde viemos.

- Devia forçosamente ser um fardo muito grande, e não notamos nenhum quando vocês passaram por nós.

-  Porque cada um levava o seu pedaço consigo, se quiser, Sir - sorriu zombeteiramente Buttler.

-  Well, mestre.   Como acontece então que nos falta um boi?

-  Falta-lhes um boi? Então quantos eram vocês?

Os Finders acompanharam essa grosseira piada com ruidosas gargalhadas.   O guia sem perturbar-se por isso, prosseguiu:

- Sim, desapareceu um dos nossos bois de canga. Têm, talvez, uma idéia, gentlemen, sobre onde teria ido o animal parar?

-  Como poderemos saber?   Procurem-no.

-  Isso fizemos com efeito e encontramo-lo.

-  Pois então alegrem-se e deixem-nos em paz com esse seu boi. Nada temos que ver com esse animal.

-  Talvez. Mas é que ele foi puxado para fora e carneado com um belo e exímio pontaço, bem entre as duas cavidades da cabeça, um pontaço que produziu a morte imediata e silenciosa do animal. É justamente a maneira de agir dos ladrões de gado, carnear a presa em lugar bem próximo.

-  Well. Então vocês julgam que o boi foi roubado?

-  Isso não só pensamos, como temos a certeza e a prova respectiva.

-  Pois então dêem caça aos ladrões. Talvez possam descobri-los. É o único conselho que lhes dou.

-  Já seguimos o seu conselho. É deveras singular que falte justamente o lombo no boi roubado.

- Não acho singular, mas muito explicável: os ladrões sabiam, provavelmente, que o lombo é o melhor e mais saboroso pedaço de um boi.

-  Well, eles foram então da mesma opinião que vocês, pois verifico que este assado é também, justamente, um lombo.

Buttler levantou-se então e perguntou em voz trovejante:

-  O que significa isto? Associa, porventura, o nosso assado ao lombo do animal roubado?

-  Sim, é o que faço sem nenhuma dúvida e espero que não tenham nada contra.

Num abrir e fechar de olhos estava Buttler de arma em punho, e seus companheiros levantaram-se num pulo, a fim de apanharem as suas.

-  Homem! - gritou ele ao guia. - Sabe o que está fazendo? A quanto está se atrevendo? Olhe para essas doze espingardas dirigidos contra você e repita a acusação que acaba de fazer.

-  Nem penso nisso. Cumpri com meu dever, e nada mais tenho a fazer. Sou o guia destes homens aqui atrás de mim. Eles são alemães. Não sabem falar inglês. O que eu disse foi em nome deles, e agora posso ir-me. Sou seu scout e não o guardador de bois. O que tiver de ser feito, poderão eles mesmo fazer.

Voltou-se e foi embora. Segundo seu ponto de vista, este homem tinha toda a razão. Ele havia sido contratado e fazia somente aquilo pelo que era remunerado. Afinal de contas, até havia feito mais do que era necessário, expondo-se assim às ameaças daquela gente perigosa, por causa do lombo roubado. Buttler e seus Finders tornaram a sentar-se. Os alemães pensavam que o scout talvez fosse por um fim a essa questão, pois ficaram sem saber o que fazer, quando ele ausentou-se, até que ao velho Schmidt ocorreu uma idéia. Voltou-se para Sam Hawkens,

 

Num abrir e fechar de olhos estava Buttler de  arma em punho...

 

que comia sossegadamente com seus dois amigos e que parecia não ter notado nada do que se passara:

-  Sr. Falke, ouviu o que nosso guia disse?

-  Mais ou menos - respondeu Sam, enquanto metia um pedaço de carne na boca.

- Nós não compreendemos o que foi. Considerou essa gente como ladrões?

-  Sim.

-  E o  que sucedeu?

-  O que sucedeu? Hum, sucedeu que ele então foi-se embora.

-  Com todos os diabos! Deverei talvez deixar que me roubem os bois?

- Se deverá deixar? O senhor deixou que o roubassem, se não me engano, hihihihi.

Este riso todo particular, para o qual já havia sido chamada a sua atenção, foi reparado bem por Schmidt, que prosseguiu:

-  Então ajude-me a fim de que eu seja reintegrado nos meus direitos. O senhor é alemão, portanto um compatriota nosso, e deve estar do nosso lado.

- Devo? O que é que esperam do auxílio dum palhaço? Se tivessem seguido meu conselho quanto à colocação das carretas e posto uma sentinela para cuidar dos bois, ninguém os teria roubado. Nada posso fazer por vocês.  Absolutamente nada.

- Mas está sentado aqui em sociedade com os bandidos e comendo a carne roubada, isso o senhor pode fazer, não?

-  Sim, isso eu posso, pois fui convidado para jantar, se não me engano.

Então o alemão, batendo furiosamente com a coronha da espingarda no chão, bradou:

- Neste caso agradeço semelhante compatriota e hei de me arranjar sozinho!

-  Como é que pretende começar?

-  Obrigo a esta corja a me pagar. Somos quatro pessoas e temos nossas armas.

-  E aqui em sua frente tem o senhor doze homens ousados que possuem tão boas armas como o senhor. Não faça asneiras. O boi não vai ressuscitar pelo fato de vocês arriscarem suas vidas.

-  Isso é verdade.   Mas como reaver o dinheiro que me custou?

-  Essa gente não tem dinheiro, e mesmo que tivesse não seria pela força que você os faria pagar.

-  Devo talvez recorrer à astúcia?

-  Para isso você não servira. Um urso não é uma raposa, e um maluco estouvado, jamais um esperto, hihihihi.

Já queria Schmidt responder brutalmente, por causa do maluco estouvado, quando esta risada fê-lo mudar de idéia. Perguntou rapidamente:

-  Você se chama mesmo Falke?

-  Sim, se não me engano, hihihihi.

-  Mas é parecido com outro homem do Oeste.

-  Que homem do Oeste?

-  Chi-So disse-me seu nome.   Esqueci-o, porém.

-  Chi-So? - perguntou Sam realmente surpreso. - Quem é?

-  É um jovem que nos acompanha, filho dum chefe navajo, chamado Nitsas-Ini.

Sam fez um gesto de alegria, exclamando:

-  Nitsas-Ini?   Seu filho está com vocês? De regresso da Alemanha?

-  Sim. Ele esteve lá conosco.

-  Esplêndido!   Esplêndido! Uma vez que é assim, não foi em vão que o senhor solicitou o meu auxílio. Volte tranqüilamente ao seu acampamento, pois será indenizado pela perda do boi.

Antes havia tratado o outro por você, agora, porém, começou a tratá-lo por senhor. A notícia que acabava de receber devia ter mudado muito sua disposição de espírito.

-,Diz isto só para ver-se livre de mim? - perguntou Schmidt desconfiado.

-  Não. Dou minha palavra como o senhor será reembolsado do prejuízo que teve, e talvez ainda mais do que isso. Quanto valia o boi?

-  Cento e trinta dólares.

-  O senhor os receberá. Digo-lhe eu. Portanto é verdade, se não me engano.

-  Então o senhor é mesmo aquele homem do Oeste a que Chi-So se referia?

-  Em todo o caso sou, pois vi Chi-So várias vezes quando por ocasião das minhas visitas à sua tribo, onde era hóspede de seu pai. Diga-lhe que o mais cedo possível estarei lá no acampamento, a fim de saudá-lo. Onde se achava ele então quando estive lá  fora ao anoitecer?

-  Tinha ido até o rio a cavalo.

-  E seu guia, que eu também não vi?

-  Havia se afastado. Talvez para ver se caçava alguma coisa. Vou dizer-lhe algumas verdades por ter-nos abandonado desta maneira.

- Isto não lhe trará vantagem nenhuma. Mas vá duma vez. Quanto mais demorar aqui, tanto mais exaltará os ânimos desta gente, contra vocês.

- Então vou e nunca mais em minha vida há de acontecer que eu me deixe roubar. De agora em diante levarei em conta um bom conselho que alguém me der.

- Aproveito a oportunidade dando-lhe agora mesmo um: nunca mais julgue aqui no Oeste bravio um homem pela roupa que veste.

Depois que Schmidt se havia retirado com seus três homens, perguntou Buttler a Sam:

-  Não entendemos patavina.  O que queria afinal o sujeito?

-  Exigia  indenização.

-  E o que respondeu você?

-  Mandei-o embora - disse Sam inocentemente.

O Finder contentou-se com isto e a juntou:

-  Foi a sorte dele obedecer-lhe. Não estamos acostumados a rasgar muita seda com tipos dessa espécie. Sentem-se, porém, novamente. Vamos mostrar que  estes  idiotas não estragaram o nosso bom  humor.

O banquete recomeçou. A janta não se prolongou por muito tempo; em compensação, a bebida redobrou. Quando o barril se achava já pela metade, Sam começou a dar mostras de que o vinho estava produzindo forte efeito nele. Dick e Will seguiram seu exemplo. Isto alegrou extraordinariamente os Finders.  Viam realizar-se o seu objetivo. Estavam crentes de que sua espera duraria pouco e começaram a servir-se dos jarros mais do que antes. Assim passou-se quarto de hora sobre quarto de hora. Sam fazia como se a muito custo mantivesse os olhos abertos. Os Finders, porém, começavam de fato a fechar os seus, por estarem ficando realmente embriagados. Haviam tomado muita aguardente antes.

O primeiro a cair emborrachado foi o irlandês. Sentou-se no chão, cabeceando sonolento, sempre mais e mais, até que finalmente estendeu-se de todo o comprimento.

Sam havia feito o chefe beber de tal maneira consigo, que este já tinha apoiado a cabeça nas mãos, com os cotovelos fincados na mesa. Ele percebia muito bem que o vinho queria derrubá-lo, e não queria dar mostras de fraqueza perante sua gente, por isso piscou-lhes os olhos, significativamente, dando a entender o que pensava. Deviam pensar que ele estava fingindo. A conseqüência muito natural disto foi que todos julgaram que deveriam fazer o mesmo, com grande prazer para cada um. E assim começou a reinar de repente uma grande calma e silêncio naquela sociedade, antes tão movimentada e turbulenta.

Hawkens levantou-se então a fim de encher os jarros. Enquanto havia uma gota ainda no barril, não descansou, acordando ora um, ora outro, oferecendo bebida.

Enfim esvaziou-se o barril. Os Finders achavam-se todos mergulhados num profundo sono, mas não naquele que desfrutam os justos. Sam certificou-se bem, acordando alguns dentre eles. Resmungavam qualquer coisa ininteligível e adormeciam em seguida. Um deles olhava estupidamente, com os olhos arregalados, num ponto vago e perguntava:

-  Estão eles finalmente bêbedos, Buttler?

-  Sim.  Completamente - respondeu Sam.

-  Então fora com eles e faca nas costelas. Depois repartimos o dinheiro e os abandonamos aos abutres.

E  como Sam nada respondesse, prosseguiu com a língua pesada:

-  O quê? Não respondes? Queres talvez deixá-los ir? Isso é que não. A morte deles está resolvida. Queres... que eu... comece... com...  minha...  faca?

-  Sim - disse Hawkens.

- Então... me encarrego... do baixinho... go... go... gordinho... e... - Levou a mão ao cinturão a fim de sacar a faca. Levantou-se, mas não conseguiu manter-se de pé, tombando por terra, onde ficou completamente sem sentidos.

-  Então é verdade - sussurrou Dick Stone. - íamos ser assassinados, roubados e em seguida abandonados aos abutres. Tuas suspeitas foram confirmadas.  Que faremos?

-  O mais simples. Amarramo-los. Correias e cordas deve haver na casa.

Com efeito, isso havia em abundância; e em breve os três haviam amarrado todos os Finders, como também o irlandês e a negra velha, que se achava não menos embriagada que os outros. Em seguida, Sam dirigiu-se ao acampamento do imigrante alemão, deixando seus dois companheiros de sentinela. Ao aproximar-se do acampamento, ouviu uma voz juvenil gritar: "Who is there? 1 shoot": Quem vêm lá? Eu atiro.

-  É Sam Hawkens - respondeu ele.

-  Já?   Esplêndido!   Entre, Sir.   Pule por cima do varal da carreta.

-  Sou muito pequeno para isto.   Passarei antes por baixo.

Sam observou que haviam formado um quadrado com as carretas, e que os animais se achavam no interior do mesmo. Seu conselho tinha sido, pois, seguido, se bem que só depois de terem aprendido a avaliá-lo à custa dum prejuízo. Aquele que se achava de sentinela estendeu-lhe a mão saudando-o. Era Chi-So, o filho do chefe índio. Ele havia falado no mais puro inglês.  Então disse-lhe Sam:

-  Espero que saiba falar o alemão, meu jovem amigo, já que esteve seis anos na Alemanha.

-  Sofrivelmente.

-  Mande acordar os que estão dormindo, a fim de falarmos alemão. Mas escute. Quem vem aí?

 

Era Chi-So, o filho do chefe índio.

 

Eles escutaram dentro da noite. Ouvia-se o trotar dum cavalo na direção da localidade.

-  É um cavaleiro, um só - sussurrou Chi-So. - Quem será?

-  Não é nenhum cavaleiro. Conheço muito bem este bater de cascos. É minha velha e boa Mary, que me seguiu. O senhor deve conhecê-la de outros tempos.

-  Sim, conheço-a. Mas, por favor, não me trate de senhor. Eu sou um índio, e quero continuar a sê-lo, desejo permanecer fiel aos costumes da minha raça.

- Muito bem, meu rapaz. Vejo que não te tornaste orgulhoso lá na Europa. O velho Sam continuará a estimar-te. Tens muito que contar-me. Agora, porém, não é a hora adequada. Temos que deixar para mais tarde.

A mula chegara até rente ao varal da carreta, onde Sam ainda se encontrava, pondo-se a esfregar o focinho no seu ombro. A conversação em voz alta dos dois havia acordado os outros. Aproximaram-se a fim de averiguar quem chegara, pois o fogo se apagara e não podiam ver a Sam. Este foi recebido agora de maneira bem diversa por parte de Schmidt, o qual aconselhou que acendessem o fogo novamente. Quando o lugar iluminou-se, Chi-So apresentou-o ao pessoal. Os três jovens, que eram casados, chamavam-se Strauch, Ebersbach e Uhlmann. O jovem amigo de Chi-So chamava-se Adolf Wolf. Mais não desejava Sam saber, por enquanto. As mulheres e crianças, estas já crescidas, também tinham se aproximado. O guia, por sua vez, também não podia, é claro, conservar-se afastado, de forma que se achavam todos reunidos quando Sam começou a contar, com seu pitoresco modo de falar, seu encontro com os Finders  naquele dia. Com exceção do jovem índio  loiro,  nenhum  dos presentes o conhecia até aquele momento. Ao ouvirem de que maneira ganhara as apostas, como adormecera os Finders embebedados, e em seguida como providenciara quanto à segurança deles, reconheceram que, apesar da modéstia e simplicidade com que narrava os acontecimentos, este original homenzinho não era de nenhum modo um vulgar homem do Oeste, ou mesmo um simples vagabundo. Isto compreendeu também o velho Schmidt. Por isso quando Sam terminou a narração, estendeu-lhe a mão, dizendo em tom de desculpa:

-  Reconheço que devo pedir-lhe perdão. Não avaliei devidamente o seu valor.  Espero que não me levará a mal.

-  Ora, não falemos nisso - riu-se Sam. - Já é bastante pesado carregar meus próprios defeitos, ainda vou acumular os dos outros? O palhaço foi-se, e deve ser esquecido, se não me engano, hihihihi.

-  O senhor é então de parecer que aqueles doze sujeitos são realmente os Finders?

-  Sim.

-  E que o senhor com Stone e Parker deviam ser assassinados?

-  Sim.

-  Pois então existem motivos suficientes para pegar esses malandros e, no mínimo, enviá-los ao presídio. Durante esta noite ficaremos de guarda a fim de impedir que fujam, e amanhã entregá-los-emos à autoridade.

-  Não, isso não faremos.

-  Por quê?

-  Deixemo-los ir em paz.

-  Deixá-los ir em paz, esses assassinos, dos quais o senhor apenas acaba de livrar-se? O senhor não tem miolos na cabeça?

-  Talvez tenha algum lá dentro. Dentro das minhas botas é que não estão, mestre Schmidt. Bem que a gente nota estar o senhor há pouco tempo neste país. A que autoridade se refere o senhor? Onde existe uma autoridade? E se existe, tem ela o devido poder? Posso talvez provar a minha acusação?

-  Acho que sim.

-  Não. Eu acho que estes homens são os Finders porque eles são em número de doze e um deles chama-se Buttler. Poderia isto constituir uma prova perante um juiz? Eu me queixo de que queriam assassinar-nos, porque o suponho. Que dirá o juiz a isso? E se ele tomar em conta a acusação e trancafiar os Finders, teremos perdido uma porção de tempo e lucrado uma infindável série de incômodos.

-  Pois bem. Formaremos pois nós mesmos um tribunal. Condenaremos os bandidos à morte e meteremos uma bala em cada um deles.

- Deus me livre. Não sou nenhum assassino. Somente em caso de legítima defesa seria capaz de derramar sangue humano.

-  Então o senhor pretende mesmo deixá-los ir embora?

-  Sim.

-  E não receberão nenhum castigo?

-  Sim. Justamente porque eles devem ser castigados quero deixá-los ir.

-  Isto é um contra-senso.

-  Contra-senso, diz o senhor? Mestre Schmidt, a coisa tem muito senso, se não me engano. Para tanto basta apenas um pouquinho de massa cinzenta na cabeça. Possui o senhor alguma? hihihihi.

-  Senhor, está se tornando injurioso! - bramiu Schmidt, que, apesar de sua recente promessa, não era capaz de refrear-se.

-  Injurioso? Não. Eu falo sempre da mesma maneira com que me falam. Perguntaram-me há pouco se eu tinha miolos na cabeça, e vou explicar-lhe que não há um contra-senso. Não temos agora nenhuma prova, somente suspeitas. Precisamos, pois, arrumar provas. Deixamo-los ir agora. Eles assaltarão o seu comboio e nós os apanharemos pelo gasnete. Então possuiremos a prova da culpabilidade deles, se não me engano.

-  Como? Vamos deixar que nos assaltem? Mas assim nos expomos a um risco que poderá custar-nos a vida.

-  Nem penso nisso. Depende tudo da maneira pela qual se ata um cavalo, se pela cola ou pela cabeça. Confie em mim. Sam Hawkens, este velho coon, armará um alçapão do qual estes Finders não escaparão. Ainda falaremos mais sobre isso. Preciso agora conversar com Will Parker e Dick Stone. O principal neste momento é o cumprimento da minha promessa: indenização pelo prejuízo do boi. Quer vir buscá-la agora?

-  Se puder obtê-la, com muito gosto. Resta saber se os Finders pagarão toda a soma.

-  Por que não haveriam de pagar?

-  Porque eles levaram somente o lombo e nós tomamos conta do resto.

-  É o mesmo. O boi está morto e precisa ser pago. Venha então buscar a indenização. Mas não deve chamar-me pelo nome de Sam Hawkens. Tenho boas razões para encobrir por enquanto meu nome a estes gentlemen.

-  Qual dentre nós deverá ir à povoação?

-  Somente o senhor, mestre Schmidt. Os outros devem ficar aqui a fim de preparar-se para o assalto e atrelar os bois aos carros, de forma que o comboio depois da nossa volta possa seguir imediatamente para Tucson.

-  Agora já? Em meio da noite? Precisamos descansar e pretendíamos seguir somente ao amanhecer.

-  Isso não será possível. Nas circunstâncias atuais o senhor terá que abrir mão do repouso da noite.

Ouviu-se, então, do lugar onde se achavam as mulheres, uma voz grave e forte, de baixo profundo, em legítimo dialeto saxão:

-  Ouça, seu. Daqui não sai nada. O homem necessita de repouso e o gado também.   Fica-se portanto aqui.

Sam olhou admirado para a mulher que falara assim. Oposição da parte de uma mulher, e sobretudo naquele tom, ele não esperava. Ela era uma figura de robusta compleição e duma aparência masculina e independente. Se houvesse mais fogo, ou fosse dia claro, teria Sam notado que sob as linhas enérgicas do seu nariz havia algo escuro que, apesar da melhor boa vontade, não se poderia denominar de outro modo senão de bigode.

-  Sim, pode olhar para cá - prosseguiu ela ao reparar o olhar admirado do homem do Oeste. - Não será de outra maneira. De dia viaja-se. De noite dorme-se. Então vem qualquer um, assim, e põe-se a ditar ordens aqui?

-  Mas minha sugestão tem por fim unicamente a sua segurança, a sua tranqüilidade, minha querida senhora - respondeu Sam.

-  Isto o senhor não me mete na cabeça - rebateu ela - o homem direito não anda assim no meio da noite, numa escuridão destas pela América. Sim, se fosse na minha terra, lá eu me atreveria a mais. Mas em terras estranhas, espera-se bem quietinho que amanheça o dia. Compreendeu, seu?

-  Claro que a compreendi, minha querida senhora.   Mas  acho.. .

-  Sua querida senhora? - interrompeu ela. - Eu não sou nada a sua querida senhora.   Sabe afinal  quem  eu  sou  e como me  chamo?

-  Naturalmente é esposa de um destes quatro gentlemen.

-  Gentlemen? Ora, fale alemão quando tem diante de si uma senhora alemã. Sou a Sra. Ebersbach, nascida Morgenstern, viúva Leiermueller. Aquele ali - apontava para um dos três jovens imigrantes - é o meu atual marido. O senhor mestre ferreiro Ebersbach. Assim é que se escreve, mas pronuncia-se Eberschbach. E saiba-o duma vez por todas, ele não dança pelo seu assobio, mas tem que guiar-se por mim, porque sou onze anos mais velha do que ele e portanto tenho mais juízo e experiência. Eu fico aqui e, por conseguinte, ele também fica. Durante a noite, que é destinada ao repouso do sono, não se perambula pelo mundo.

Como nenhum dos imigrantes fizesse objeção, Sam, depois de passear seus alegres  e vivos  olhinhos pelo  círculo, disse:

-  Se os senhores estão acostumados a obedecer a esta tão autoritária lady, devo pedir então que, ao menos desta vez, façam uma exceção.

Queria prosseguir, ela porém cortou-lhe a palavra:

-  Ora, o que está o senhor a dizer? Uma exceção! Como se eu fosse permitir uma coisa destas; é que o senhor não me conhece! Por que está a olhar assim? Não precisa fazer essa cara. Sabe, sou eu a pessoa pela qual o senhor deve guiar-se aqui. Entendeu, seu? Quem é que pagou então todas as despesas para atravessar o mar, e depois também para a viagem por terra até aqui?   E quem terá que continuar emprestando dinheiro?  Eu. Eu sou o capital. Agora já sabe de tudo, e toca a dormir, todos.

Outra vez ninguém pronunciou nenhuma palavra de objeção, mesmo Schmidt que parecia ser o chefe e que havia falado tão autoritariamente a Sam naquela tarde. Por isto este levantou-se do seu lugar junto ao fogo, e disse num tom de indiferença:

-  Como quiser. Digamos então boa-noite, se não me engano. É a última vez que o fazem, pois estou certo de que este será o seu último sono, hihihihi.

Fez menção de retirar-se. Então a mulher levantou-se rapidamente, segurou-o por um braço e perguntou:

-  Nosso último sono?   O que quer dizer com isso, homenzinho? Ela era, aliás, assim parada, de estatura mais alta que a sua.

Sam retrucou prazenteiramente:

-  Quero dizer que tão cedo não acordará deste sono.

-  Mas por que não?

-  Porque estará morta.

-  Morta? Era só o que faltava. A Sra. Rosalie Ebersbach não morrerá tão cedo.

-  Acredita a senhora que os doze vagabundos com os quais vai-se haver vão porventura guiar-se pela Sra. Rosalie Ebersbach?

-  Eles não podem fazer-nos mal. Estão amarrados, conforme o senhor contou.

-  Hão de libertar-se e virão assaltá-la, apenas eu e meus dois camaradas tenhamos deixado a taverna.

-  O senhor vai afastar-se?   Pretende ir embora?

-  Naturalmente.

-  Mas por que então? Afinal é seu dever vigiar esses presos até estarmos em lugar seguro. O que hei de pensar do senhor se nos deixar em tal aperto e desaparecer como manteiga ao sol?

-  Pense o que quiser.

-  Bonita maneira de falar. Muito bonita. Então nunca ouviu dizer, seu, que os homens devem ser atenciosos para com as damas e protegê-las? E a Sra. Rosalie Ebersbach é uma dama, ouviu?

-  Muito certo. Mas quem se coloca sob minha proteção, tem que guiar-se por mim. Ouviu também? Vocês vão ser assaltados. Se acontecer isto depois de terem ido deitar-se novamente, estarão perdidos. Se não acontecer não poderemos provar nada. Para expormos a prova, precisamos ir a Tucson onde procurarei o comandante, a fim de solicitar alguns soldados para nos ajudar. Por isso precisamos seguir imediatamente para estarmos já de manhã em Tucson e ter a cilada preparada para os Finders antes que estes a percebam. Poderá compreender isso, Sra. Ebersbach, nascida Morgenstern?

— Por que não disse isto logo? - perguntou ela num tom bem diferente. - Além disso,  sou viúva Leiermueller,  nascida Morgenstern. Se o senhor fala comigo tão ajuizadamente como acaba de fazer, também serei ajuizada. Eu nunca caí de cabeça, acho que poderá notar isso, não? Então vamos atrelar os bois e preparar-nos para seguir. Mas que somente Schmidt vá com o senhor, isso não. Espere um pouco, seu. Vou buscar uma arma. Quero ver esses sujeitos também.

Foi até sua carreta onde se achava a arma. Ao voltar, o marido pediu-lhe:

-  Fica aqui, Rosalie, isto não é nada para mulheres. Irei em teu lugar.

-  Tu? - respondeu ela. - Tu serias mesmo o indicado. Não te arvores a herói. Sabes que não suporto isto. Fica, portanto, e espera até eu voltar.

Dirigiu-se a Sam que rindo baixinho, tomou a direção da povoação com ela e Schmidt.

Ao alcançarem a taverna, estavam os Finders justamente começando a libertar-se dos efeitos da formidável bebedeira, e Buttler dirigiu-se rancorosamente a Stone e Parker.

-  Que quer o homem? - perguntou Sam aos dois.

-  O que há de ser? - respondeu Stone. - Admira-se naturalmente que sejam eles que estão em nosso poder e não o contrário. Pergunta se isso é gratidão da nossa parte, depois de nos ter permitido comer e beber com eles.

-  Sim - gritou Buttler furioso, enquanto se remexia todo para ver se endireitava ao menos o tronco. - Que é que vocês pensam tratando-nos desta maneira, enquanto dormíamos? Tratamos a vocês como hóspedes, não ofendemos a ninguém, não lhes fizemos o mínimo mal, e em paga vocês...

-  Não nos fizeram o mínimo mal? - interrompeu-o Sam. - Acho que o que o incomoda é a nossa façanha. Afinal de contas, para que tantas palavras? Conhecemos as intenções de vocês, por quem íamos ser sacrificados; em recompensa disto pretendemos entregá-los ao juiz.

Riu-se Buttler zombeteiramente e declarou:

-  Ele vai acreditar em vocês, talvez.  Não têm provas.

-  Vocês embriagaram-se.

-  E mesmo que assim fosse, nenhum juiz vai dar ouvidos às palavras de um bêbedo. Suas provas têm fracas pernas. Deixe que venha o juiz.  Enfrentá-lo-emos tranqüilamente.

-  Você vê, pois, uma acusação da nossa parte pouco adiantaria. Podíamos até jurar sobre o que ouvimos de vocês; contudo, perderíamos tanto tempo com o juiz que julgamos melhor desistir disso.

-  É a melhor idéia que podiam ter. Espero pois que também nos livrarão agora das cordas.

-  Não se precipite.   Ainda temos que conversar um pouco.

-  Então apresse-se.  Que querem ainda?

— Pagamento pelo boi que vocês carnearam.

-  O que lhes importa o boi?

-  Muito. Associamo-nos a estes imigrantes alemães. Também vão para as montanhas caçar ursos e castores com armadilhas, bem como nós. Somos portanto companheiros agora e temos o dever de providenciar para que sejam indenizados da perda do boi.

-  Mas vocês nada têm que ver com isso - berrou Buttler - não daremos nada.

-  Não faz mal, pois se vocês não quiserem dar por bem, nós mesmos tomaremos a indenização. Quanto valia o boi, mestre Buttler?

-  Isso nos é indiferente. Sabem perfeitamente que em conseqüência das apostas, vocês nos deixaram sem um níquel.

-  Mas vocês pouco se incomodaram com isso, pois iam roubar-nos tudo de novo. Façamos a conta de cento e cinqüenta dólares, não?

-  Por mim até cem mil.  Não podemos pagar.

- Em dinheiro, admito que não. Mas decerto não trarão os bolsos completamente vazios.

-  Zounds!(1)   Porventura pretendem  esvaziar-nos  os  bolsos?

-  Por que não?

-  Sir, isto seria extorsão!

-  Não importa. Temos prazer em exercer por uma vez o ofício de vocês.

- Não somos ladrões. E se vocês violarem nossos bolsos, apresentaremos queixa à autoridade.

-  Teríamos muito prazer nisso. Só quero saber o que diria o juiz quando os visse. Vamos, então, Dick e Will, vamos passar uma revista nos bolsos deles.

Os dois puseram-se com grande prazer à obra. Os Finders rebelaram-se em vão. Seus bolsos foram esvaziados completamente. Apareceu toda sorte de objetos, sobretudo valiosos relógios que, com toda certeza, deviam ter sido roubados, ou extorquidos. Sam, mostrando-os a Schmidt, perguntou-lhe:

— Receberia talvez estes relógios em pagamento?

-  Os rapazes não possuem moeda sonante. Receberia talvez estes relógios em pagamento?

-  Se não tiverem moeda de fato, sim - respondeu o interpelado. - Resta porém saber se não saio prejudicado. Precisaria vender os relógios e

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Do inglês: Irra!

nenhum comerciante me pagará o preço que realmente valem.

-  Não se preocupe. Não perderá um tostão. Estes relógios valem forçosamente quatro vezes mais do que o seu boi.  Isso lhe asseguro.

-  Mas, meu caro senhor, se estes objetos são roubados?

-  Sim, provavelmente, o são.

-  Então pertencem às pessoas que foram roubadas, e não a mim.

-  Certo. Mas essas pessoas jamais receberão de novo os seus relógios.  Possivelmente foram assassinadas.  E mesmo que assim não fosse, poderia o senhor tomar conta deles sem mais considerações. Aqui imperam circunstâncias bem diferentes do que em nossa pátria.

-  Mas se não é possível esclarecer quem são os legítimos donos, a gente tem a obrigação de entregar estes objetos à autoridade.

- A quem se refere o senhor com a denominação de autoridade? Nenhum funcionário do governo dar-se-ia ao trabalho de procurar os donos desses relógios. Pelo contrário, embolsava-os e ainda ria-se do senhor. Embolse-os, pois, despreocupadamente, e se julga que não está fazendo uma coisa direita, deixe à minha consciência que eu arcarei com as responsabilidades.

-  Se é assim, seria bobagem de minha parte relutar ainda em aceitá-los.

Meteu os relógios no bolso. Buttler, ao ouvir isso, gritou:

-  O que significa isso? O que pretende este homem com os nossos relógios?   Isto...

-  Cala-te, velhaco! - atalhou Sam. - Ele está cobrando o boi carneado, e vocês devem ficar satisfeitos se o castigo consistir só nisso. Além do mais, não queremos fugir à prestação de contas. Iremos daqui para Tucson e acamparemos naquela encruzilhada além. Podem seguir-nos e procurar-nos com a polícia, com quem conversaremos de muito bom grado.

- Sim, sim,  isto  faremos. Exatamente isto.   Vamos ter ao acampamento de vocês a fim de buscar o que nos roubaram.   E libertem-nos de uma vez destas amarras.

-  Como se fôssemos idiotas. Se os libertarmos, vocês irão procurar-nos hoje mesmo no acampamento em vez de fazê-lo amanhã. Ficarão, pois, deitados aí, bem como estão. Quando for dia claro, há de aparecer alguém que os liberte.

-  Serão cobrados mais tarde no inferno!

-  Obrigado, Sir, e para que vocês não venham a nos proporcionar algum prejuízo inesperado, levaremos a munição conosco. Poderão ir buscá-la amanhã, junto com os relógios.

Hawkens, Stone e Parker esvaziaram as armas e guardaram consigo todos os cartuchos, assim como as balas e a pólvora. Isto deixou os Finders extraordinariamente  furiosos.

A Sra. Ebersbach tinha sido muda espectadora de toda esta cena. Não entendia nada do que se falava, contudo tinha uma idéia bem clara do que se passava. Havia também outra testemunha muda - Mary, a mula de Sam, que novamente seguira o dono.

Quando terminaram o serviço com os Finders, deixaram a taverna, tendo fechado a porta por fora e posto ainda uma pesada pedra para trancá-la. Então as cinco pessoas dirigiram-se para o acampamento. Mary trotava calmamente atrás. Estava acostumada a seguir o dono, como um cão fiel, uma vez que ele não tivesse feito previamente um sinal determinado, indicando-lhe que devia ficar parada nalgum lugar.

 

Partida para Tucson

Durante sua ausência tinham sido feitos todos os preparativos, de forma que podiam partir imediatamente. O guia cavalgava à frente com os dois adolescentes aos quais agradava aquela cavalgada noturna, à frente do comboio solitário. Seguiam-se as carretas escoltadas por Dick Stone e Will Parker, enquanto Sam Hawkens e o cantor vinham atrás. Ele escolhera de propósito este companheiro, do qual pretendia obter informações sobre a gente que compunha aquela pequena caravana.

Singular, bem singular deve ser todo este pessoal, dizia ele para si, depois do que já vira e ouvira. O originalíssimo e musical cantor, esta pesada Sra. Rosalie Ebersbach, o filho do chefe índio, que viera da Alemanha, o jovem alemão, que parecia ser seu amigo e não pertencer aos demais, eram personagens que aguçavam forçosamente a curiosidade. O cantor veio facilitar os planos do homenzinho, pois, apenas os veículos se haviam posto em movimento, começou ele a conversa com a pergunta:

-  Nossa Sra. Rosalie foi com os senhores até lá para ver os Finders. Deve ter-lhes dito umas verdades, pois sabe usar da língua, quando quer.  Ela, em todo caso, falou, não?

-  Nenhuma palavra.

-  Isto me surpreende. Pensava até que ia dirigir-se bem fortíssimo a eles.

-  Ela então fala inglês?

-  Apenas algumas palavras que anotou durante a viagem.

-  Como então pode o senhor pensar que ela iria falar com essa gente, que só entende inglês ou espanhol? Dez ou doze expressões captadas assim a esmo, não seriam suficientes para um sermão. Aliás, ela pareceu ter perdido o ânimo para um tal discurso, ao deparar com aquelas caras selvagens.

-  O ânimo? Isso o senhor não creia. A Sra. Rosalie não se arreceia de homem nenhum. Possa ele parecer tão distinto ou tão temerário como for.  Ela tem cabelinho na venta e está acostumada a ser obedecida.

-  Isso já reparei. Todos calavam a boca quando ela retrucava.

- Sim, isso a gente precisa fazer, se não quiser atrair sobre si uma verdadeira tormenta. Contudo, ela é uma boa alma e é só deixá-la falar à vontade, que depois ela se deixa levar pelo dedo mínimo. O que não suporta é que a contradigam.

-  Isso é um grande defeito, se não me engano. Quando não se entende alguma coisa, precisa-se aceitar ensinamentos.

-  Oh, esta Sra. Rosalie entende muito e de tudo.

-  Bobagem. Destas situações e da maneira como haver-se nelas, ela não pode entender nada. E se ainda repetir tais cenas, como a de hoje, ela corre o risco de expor toda a turma a grandes prejuízos e até a perigos.

-  Também isso o senhor não deve acreditar. Mesmo quando nada entenda dum assunto, ela se enfronha dele com extraordinária rapidez. O senhor mesmo viu que a Sra. Rosalie tinha o mesmo ponto de vista que o seu.

 

Seguiam-se as carretas escoltadas por Dick Stone e Will Parker…

 

-  Também o senhor parece ter-lhe um grande respeito, seu cantor.

- Senhor cantor aposentado, por obséquio. É só por causa da formalidade, porque já me despedi e não me acho mais no ofício. Sim, tenho-lhe muito respeito e ela o merece. É uma mulher ativa e musicalmente culta.

- Ah, musicalmente culta, hihihihi. Porventura será também compositora?

-  Não, mas toca.

-  O quê?

-  Gaita-de-foles!

- Cáspite! Isso já é outra coisa. Gaita-de-foles! Um instrumento superior, se não me engano. Sim, se ela toca isso é necessário respeitá-la. Nunca ouvi falar de uma dama que tocasse gaita-de-foles.

-  Eu também não. A Sra. Rosalie é a primeira. Já ganhou uns bons táleres com isso.

-  Ah, decerto andava com alguma banda feminina ambulante?

-  Não, tocando para dançar.

-  Bravo. Supunha que o senhor julgasse a dança uma coisa antiestética,

-  Assim acontece, de fato. Todavia aqui as circunstâncias são outras. É que a Sra. Rosalie é uma Morgenstern, de nascimento.. .

-  Isso ela me disse!

-  E casou no moinho de Leier, em Heimberg...

-  Viúva do moleiro de Leier, Leiermuellering - assentiu Sam sorrindo.

-  Anexa ao moinho havia uma taverna com um pequeno salão de baile. O negócio no começo ia mal, até que começaram a explorar este outro. Foi outro caso patente onde se verificou o valor da divina música. Ela não abandona nenhum filho e nenhuma filha das musas. A Sra. Rosalie comprou uma gaita-de-foles, aprendeu a tocar e atraiu para seu salão toda a juventude apreciadora da dança. Como era ela mesmo que tocava para dançarem, não precisava pagar a nenhum músico, e recolhia assim um bom dinheiro, pois a peça custava dois pfennigs por cabeça. Mais barato ela não podia fazer, pois quem foi dotado pelas musas, tem o direito de tirar proveito de seu valor. Portanto não se dançava somente, mas também comia-se e bebia-se. O negócio desenvolveu-se extraordinariamente, e, quando o moleiro morreu, deixou a viúva sentada sobre um saco de dinheiro. Ela era a mulher mais rica da aldeia. Mais tarde vendeu o moinho por um alto preço, e posteriormente tornou-se esposa do nosso mestre ferreiro...

-  Que lhe obedece da mesma maneira que todos vocês.

-  E por que não?

-  Mas como e por que  motivo veio ela  agora para a  América?

-  Esta excelente idéia fui eu quem lha deu.

- O senhor? Hum! A mulher podia ter ficado em casa. Pois ela não passava mal, por lá.

- Então o senhor acha que a gente só deve imigrar quando passa privações em sua terra?

- Isso não. Mas uma necessidade interior ou exterior, é geralmente o principal motivo que impele a gente.

- Também aqui foi um caso de necessidade, de premência, um stringendo, para o novo mundo. Eu lhe havia emprestado alguns livros e a ferreira começou a sentir-se mal. Não lhe agradava mais a casa na pátria. Ao ouvir então tudo o que o Hobble-Frank me contara, e sabendo que eu desejava procurar meus heróis aqui na América, ficou toda entusiasmada e quis vir junto.

-  Mas como chegou o senhor a ir ter com ela em Heimberg, se o senhor é de Klotzsche? Porventura são vizinhas essas duas aldeias?

-  Não. Heimberg fica nas montanhas, enquanto que Klotzsche fica perto de Dresde. Mas eu sou natural de Heimberg e estava sempre em contato com os meus conterrâneos, por meio de uma regular correspondência. Além disso, ia freqüentemente até lá. Contudo, não lhe teria ocorrido a idéia de tomar assim tão firmemente a resolução de vir para a América, se não ocorresse a circunstância que diz respeito a Wolf.

-  Que circunstância?

-  Isto o senhor ainda não sabe?

-  Não.

- Wolf, o monteiro de Heimberg, tem um irmão sem filhos aqui na América, o qual possui muito mato, grandes herdades e acho até que também há aí minas de prata. Este irmão pediu-lhe que mandasse seu filho para cá, ao qual quer tornar seu sucessor e herdeiro universal, se se agradar dele. O monteiro interrogou o filho que estava estudando na Academia de Monteiros em Tharandr, e este respondeu que seguiria de muito boa vontade, logo que terminasse seus exames.

-  Isso não seria leviandade ou falta de amor filial da parte dele?

- Nem por sombra. Bem pelo contrário. O monteiro tem uma família numerosa e um ordenado reduzido. Eram obrigados a ser muito econômicos na cozinha, e os sacrifícios que custavam os estudos do mais velho pesavam extraordinariamente ao velho monteiro. Era absolutamente impossível dar aos outros filhos a possibilidade de estudar, se bem que todos eles eram muito talentosos. Assim é que Adolf recebeu o convite do tio com grande prazer. É verdade que devia deixar sua pátria e seus pais, dizia ele, mas lembrava-se de que depois, como sucessor do rico plantador, poderia ajudar a todos os seus irmãos.

- Este gesto é realmente digno de todos os elogios. E atendeu ele ao chamado?

-  Sim, ali na frente vai indo ele a cavalo.

-  É aquele o rapaz? Aquele jovem? É impossível que assim tão jovem já tenha concluído o curso na Academia de Monteiros.

-  Pois é. Aliás tirou o curso com belíssimos atestados. Ele será de grande utilidade ao tio com os conhecimentos que tem, considerando as grandes extensões de matas que o mesmo possui. Além disso, existia ainda outro motivo para que ele se decidisse tão prontamente a vir para a América, e este motivo pode ser expresso na palavra indiana Chi-So.

-  Mas este não é o nome do filho do chefe índio?

-  É. Pelo que ouvi dizer, o senhor é conhecido do chefe. Sabe talvez, por que mandou ele o filho à Alemanha?

-  Sim.

-  Isso me agrada. Poderá o senhor me harpejar isto à prima vista? Ou trata-se talvez de algum segredo?

-  Não existe nenhum motivo para segredo sobre o fato. Só pode honrar o chefe, mostrá-lo como um homem cujo grau de cultura sobrepujou de muito, muito mesmo ao de seus semelhantes. Quando ele era jovem, uma tribo inimiga assaltou um comboio de imigrantes. Foram todos massacrados, tendo sido poupada somente uma menina, que era alemã e que levaram consigo. O chefe raptou-a e trouxe-a para a sua tribo. Primeiro deveria refazer-se ali do sofrimento e da sua infelicidade. Depois ele pretendia entregá-la na primeira colônia de brancos. Ela foi bem cuidada e melhor tratada. Seus parentes haviam sido assassinados. Não tinha conhecidos em parte alguma. A colônia, para onde devia ser levada, era-lhe completamente estranha. Agradou-lhe a vida no seio dos navajos. Ganhou a estima do chefe Nitsas-Ini (Grande trovão) que a raptara e tornou-se sua mulher. Nunca teve de que arrepender-se e vivia imensamente feliz com ele.

-  Será possível!? - exclamou o cantor. - Um homem vermelho com uma mulher branca?

-  Um homem vermelho, diz o senhor; isto soa como menosprezo. Digo-lhe que Deus é o Criador e Salvador de todos os homens. A cor da pele não faz diferença nenhuma. Conheci índios diante dos quais milhares e milhares de brancos podiam envergonhar-se. Nitsas-Ini é um deles. Sua mulher branca não era nenhuma senhorita culta, mas uma menina simples; todavia, como alemã, sobrepujava a todas as mulheres e meninas vermelhas. A sua presença foi como que uma bênção para a tribo toda. Ela tornou-se o modelo de todas as squaws(1) e filhas. Produziu-se uma grande modificação, um grande movimento renovador

 

Sua mulher branca não era nenhuma senhorita culta, mas uma menina simples...

 

nos costumes da tribo. Seu marido, o chefe, foi o seu primeiro e mais aplicado aluno, e não fez nenhuma objeção quando ela mais tarde começou a falar alemão

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(1) Squaw, do inglês: mulher casada

com as crianças que lhe dera, ensinando-as e comprando-lhes livros. Foi então que ela conheceu Winnetou, o grande chefe dos apaches. Com ele veio Mão de Ferro, o amigo e protetor de todos os peles-vermelhas bem intencionados. Eles viam com alegria o resultado obtido pela squaw branca, todas as bênçãos que sua presença trouxera à tribo. Ficaram por longo tempo entre os navajos e lá voltaram várias vezes, a fim de consolidar e aumentar aquela obra.

Nunca mais esta tribo saiu para a guerra, e só pegava em armas quando obrigada a defender-se ou para reivindicar seus direitos. Os navajos são amigos dos brancos e, por isso, nunca mais foram perseguidos por estes; pelo contrário, puderam conservar seu patrimônio, se bem que obedecendo as delimitações efetuadas pelo Governo. Estes navajos são possuidores de vastos campos e pastagens e imensas matas. Suas possessões cresceram de ano para ano e, apesar dos olhares cobiçosos que lhes lançam os brancos squatters e os usurpadores de terras, nada lhes pode ser tomado. É que devido aos esforços de Mão de Ferro junto aos poderes públicos, estas terras foram consideradas, por um decreto dos Estados Unidos, não como terrenos reservados aos índios, mas como autêntica propriedade privada, em legítima posse, e cujos direitos o decreto protege contra qualquer atentado.

A gente quase que podia atrever-se a chamar este decreto de civilizado. O Grande Trovão foi suficientemente esclarecido para reconhecer que não possuía conhecimentos bastantes para, no futuro, poder defender seus direitos e que seu sucessor deveria estudar muito mais do que ele próprio estudara. Influenciado por sua mulher branca, tomou a resolução de enviar o seu primogênito a um colégio de brancos. Mão de Ferro concordou plenamente, com grande alegria. Ele era alemão e a squaw uma conterrânea sua, assim os dois convenceram o chefe a que mandasse o filho à Alemanha, a fim de educá-lo numa instituição adequada.

-  Eu sei, eu sei - obtemperou então o cantor - conheço a tal instituição, pois é a mesma onde Adolf Wolf tirou o seu curso, na Academia de Tharandt. Por que devia Chi-So estudar justamente para monteiro?

-  Por causa das grandes matas que são propriedade da sua tribo. Ele deve, como futuro chefe, possuir os necessários conhecimentos para não somente conservar os vastos matagais que se encontram dentro dos seus domínios, como também, possivelmente, aumentá-los. É sabido que os Estados Unidos têm uma organização deficiente de monteiros. A fim de salvaguardar-se de tais eventuais prejuízos, para toda a tribo, é que Chi-So tirou o curso de monteiro. Prossigamos, porém; o senhor ia-me dizer qual a influência que estes dois jovens acadêmicos de Tharandt exerceram sobre a antiga senhora moleira de Leier, seu cantor.

-  Sim. Mas primeiro, tenha o senhor finalmente a bondade de observar que eu não me acho mais no ofício e que por conseguinte, por causa da clareza, o senhor deve dizer senhor cantor aposentado. Não devo enfeitar-me com penas que já há muito despi, e a constante omissão desta palavra levanta muito justificadamente em mim a suspeita de que o senhor ainda acredita no meu ofício, e que, por conseguinte, desconfia das minhas aptidões musicais, que são tais, que me permitiram aposentar-me.

Chi-So e Wolf vinham freqüentemente de Tharandt até Heimberg, onde freqüentavam o Moinho de Leier e mais tarde também a ferraria, quando a moleira se casou com o ferreiro. Eram muito conhecidos de ambos. Justamente quando o Hobble-Frank me convencera de vir à América para procurar seus companheiros heróis, chegou a carta do tio e também a notícia de que Chi-So devia voltar para a sua tribo. Esse tio era imensamente rico e devia morar nas proximidades dos navajos. Esta notícia correu rápida pela aldeia, cujos habitantes são na maioria paupérrimos. E não me foi difícil convencer a alguns deles a imigrar em minha companhia para cá.

-  Então foi o senhor que, por assim dizer, seduziu esta pobre gente? - perguntou Sam num tom repreensivo.

-  Seduzir? Mas que expressão! Um cantor aposentado, que milhares de vezes tocou o órgão no Ofício Divino, já pertence em parte ao clero, portanto acha-se num estado em que nem é possível pensar numa tal palavra, como esta que acaba de pronunciar. Posso ser o guia, isso sim, dessa gente, mas o desencaminhador deles, nunca, pois vou conduzi-los para a felicidade! Estou certo de que o tio de Wolf os acolherá bem. E dinheiro, para comprar terras, ou começar um negócio, também existe.

-  Pensava que estes três eram pobres.

-  Sim. Os Schmidts, os Strauchs e os Uhlmanns não tinham nada. Mas os Ebersbachs, como já ouviu, são remediados, e a Sra. Rosalie adiantou-lhes o dinheiro necessário. O senhor vê daí que admirável senhora ela é. Podia muito bem ter ficado na sua pátria, mas, se resolveu vir junto foi unicamente por solidariedade a esses três, por amizade a mim e em conseqüência da irresistível propensão que a impele para o desconhecido! Ficou especialmente encantada com o fato das damas aqui na América serem tratadas tão atenciosamente.

-  Ah! - sorriu Sam divertido. - E a Sra. Rosalie Ebersbach, nascida Morgenstern, viúva Leiermueller, também é uma dama! Isso realmente esclareceu-me um ponto antes obscuro. Então vocês têm a intenção de aboletar-se todos em casa do tio de Wolf?

-  Vão consultá-lo.   Se ele não concordar, seguirão adiante.

-  E o senhor? O que fará?

-  Eu? Procurarei Mão de Ferro, Mão de Fogo e Winnetou. Naturalmente também acharei Hobble-Frank.

-  Pelo que diz, o senhor parece imaginar tudo isso extraordinariamente fácil, e contudo poderá viajar anos e anos pelo Oeste sem sequer encontrar um único desses homens.

-  A gente  precisa  perguntar.   Informar-se.

-  Pensa que isso aqui é como em qualquer aldeia ou cidadezinha, onde se pergunta simplesmente pelo Sr. Müller, Meier ou Schulze? As pessoas que se procura podem passar a cavalo umas dez vezes, facilmente, bem próximo da gente, sem que todavia cheguemos mesmo a imaginá-lo.

-  Oh! Eu imagino. Pode crer. A um artista do som, nada é difícil. Quem foi designado pelas musas e segue impelido por elas, vê reunir-se ao seu redor todos os sons em acordes. Assim hão de congregar-se ao meu redor os homens procurados, como músicos bem disciplinados em torno do seu dirigente.

- Desejo-o. Mas agora o senhor deve deitar-se numa das carretas e dormir.

-  Dormir?   Por quê?

- Porque amanhã à noite, provavelmente, não poderemos dormir. Precisamos estar alerta porque os Finders vêm assaltar-nos.

-  Está mesmo certo disso, Sr. Hawkens?

-  Sim. Qualquer um que de manhã cedo vá à taverna, ou passe por lá, ouvirá os chamados e os libertará.   Eles então montarão logo a cavalo a fim de nos seguir.

-  Para Tucson?

-  Nem pensam nisso. Não se deixarão certamente ver na cidade. Vão contornar Tucson e depois seguirão a trilha das nossas carretas, até notarem que acampamos. Para não dar-lhes muita vantagem, despojei-os de toda a sua munição. Todavia, serão suficientemente espertos para irem reabastecer-se em San Xavier del Bac, embora isso não seja muito fácil, realmente, pois lá não haverá muito. E agora siga meu conselho e meta-se numa carreta.

-  Obrigado.   Não durmo.

-  Por quê?

-  Porque numa cavalgada noturna como esta, acorrem-me as mais lindas idéias musicais. Faço então estudos sobre a minha ópera. Talvez organize, já no primeiro ato, o desfile duma dessas carretas de bois pelo palco, o que, ao clarão de uma foicinha de lua, produzirá uma impressão toda especial, enquanto os instrumentos imitarão o estalo dos chicotes, o berro dos bois e o chiado das rodas das carretas.

-  Desejava estar presente - disse Sam no tom mais sério deste mundo. - Deve ser um grandioso espetáculo de arte. Então faça os seus estudos e fique acordado. Mas costuma atirar-se sempre assim para a frente e para trás?   Isso deve fatigá-lo terrivelmente.

-  Bastante. Infelizmente, porém, não me é possível abster-me de fazê-lo.

- Mas como? É incompreensível. Isso também fatiga o animal, deixando-o esfalfado.

-  Não sei fazer de outro modo, meu caro Sr. Sam. Componho sempre, constantemente, mesmo agora, enquanto falo consigo. Enquanto me acode ao cérebro a melodia, preciso ir dando-lhe o respectivo compasso. Para isso é necessário, de fato, um instrumento apropriado chamado metrônomo. Mas como me é absolutamente impossível carregar este instrumento comigo aqui pelo Oeste bravio, descobri um comodíssimo e prático medidor de compasso, executando estas curtas e regulares oscilações sobre o animal. Realmente, o cavalo fica um tanto confuso às vezes, pensa que quero apear e por isso estaca em meio do trote. Mas isso não me perturba, pois logo que concluo a composição, faço-o caminhar   novamente.

-  Mas com isso deve ficar atrás freqüentemente.

-  De fato, é o que acontece.

- Mas poderá ainda resultar num grande perigo para o senhor: Seu  homem  imprudente!

-  Não creio, Sr. Sam.

- Se o senhor ficar para trás e for assaltado pela canalha branca ou vermelha, não escapará.

-  A mim não ataca nenhuma canalha. Estou benzido contra  isto.

-  Bobagem.

-  Não fale de bobagem, caro Sr. Sam. Sei o que digo. Já ouviu dizer alguma vez, porventura, que um célebre compositor de óperas tenha sido  assaltado  por  qualquer  canalha?

-  Não.   Não me recordo.

-  Vê, aí tem o senhor. Como compositor de uma grande ópera heróica e poeta do respectivo libreto, estou sob a proteção toda especial das musas. Estas jamais permitiriam que, ao me concederem a graça destas idéias musicais, pudesse eu ser assaltado e até assassinado, o que teria como conseqüência a perda irremediável de todas essas idéias. Seria a mesma asneira que um sapateiro depois de ter confeccionado umas botas novas, as introduzisse num forno a fim de destruí-las. Ou julga o senhor que as musas sejam menos inteligentes do que um ajuizado sapateiro?

-  Não posso dizer isso. Ainda não vi, nem falei nunca com uma destas senhoras. Mas não posso estar a noite inteira aqui com o senhor, nem posso exigir de outro que esteja a cuidar constantemente do senhor. Para que não fique, em nenhuma hipótese, atrasado, visto termos inimigos  à retaguarda,  vou   amarrá-lo.    Assim  sua pessoa   ficará  bem segura.

-  Amarrar, Sr. Hawkens?   Mas onde?   Talvez no cavalo?

- Isso nada adiantaria, porque neste caso o cavalo também poderia ficar parado. Não, vou amarrá-lo aqui na última carreta.

-  Julga   isso  útil?

- Amarrar, Sr. Hawken?  Mas onde?   Talvez  no cavalo?

-  Muito, o cavalo não poderá ficar parado, pelo contrário, terá que caminhar ininterruptamente, apesar das suas oscilações. Ao mesmo tempo, estará sempre sozinho e sem ser incomodado, podendo entregar-se às suas criações musicais, sem ser interrompido.

-  Certo, muito certo! Esta idéia é muito boa! Fico-lhe imensamente grato por isso e porei à sua disposição uma entrada grátis para a estréia da minha ópera.  Ou deseja duas?

-  Ainda pensarei no assunto, seu cantor,  caso eu...

-  Por favor, por favor, senhor cantor aposentado. Posso jurar-lhe que é apenas por causa da clareza.

-  Sei, sei. E eu asseguro-lhe que foi só, unicamente, esquecimento da minha parte.

Sam tirou uma corda do bolso da sela e atou o matungo do cantor à última carreta. Assim estava solucionada a continuidade da marcha do cavalo, bem como seu sacrifício tornava-se menor; e o genial compositor não precisava mais ser constantemente vigiado.

Assim prosseguiu a marcha, no vagaroso passo dos bois, durante toda a noite, de forma que quando os viajantes viram a cidade diante de si, o sol brilhava já há mais de duas horas, apesar da distância de San Xavier del Bac a Tucson ser tão diminuta.

A impressão desta capital era um pouco mais prazenteira. A despeito de ser ainda manhã cedo, o sol dardejava seus raios já com tal intensidade sobre as choupanas de barro e as ruínas de pedra, que o calor era quase insuportável.

Cães coiotes de aspecto feio ladravam e ganiam ao encontro do comboio; esquálidas figuras humanas, envoltas em trapos multicores, espreguiçavam-se nas portas e pelas esquinas, retorcendo num riso seus rostos tisnados de sol, ao verem passar rangendo a última carreta, com o senhor cantor montado no cavalo a cabresto. Ele acenava-lhes amavelmente sem levar-lhes a mal o riso. Podiam eles achar ridícula a sua situação.   Ele, porém, estava satisfeito, por não precisar mais guiar o animal.

Por sugestão de Sam fizeram alto num descampado ou, melhor dito, num lugar absolutamente nu, onde em breve se aglomerava uma multidão de cães famintos, crianças gritonas e vagabundos que miravam as carretas por todos os lados, dirigindo sua atenção especialmente para a Folha de Trevo e o cantor.

Como os imigrantes durante a viagem tivessem aprendido muito pouco inglês e apenas apanhado algumas expressões do espanhol, Sam Hawkens tomou a si o encargo de se informar se se podia obter pasto para os animais e água. Sim, feno e água conseguia-se, mas ambos em péssimas condições e preço demasiado alto; e logo dez, vinte ou mais preguiçosos mostraram-se dispostos a trazê-los, para com este trabalho, que aliás não era trabalho nenhum, ganharem alguns centavos.

Uma vez arranjado isso, foi o homenzinho ter com o comandante a fim de solicitar reforço.

Ficou sabendo que aquele oficial tinha ido a Prescott com numerosa escolta, e que quase toda a guarnição tinha marchado para as proximidades do passo de Guadalupe, a fim de punir os mimbrenjos amotinados, que estavam praticando depredações ali.

Foi conduzido perante um capitão, que assumira o comando da guarnição, na ausência do comandante. Achava-se tomando seu chocolate matinal, enquanto lia um número atrasado de jornal que, em Tucson, porém, devia ser considerado novo. Ao ver o recém-chegado, seu rosto demonstrou primeiro surpresa, depois foi serenando mais e mais. Por fim soltou uma estrondosa gargalhada, levantou-se de sua cadeira e disse num tom escarnecedor:

 

Foi conduzido perante um capitão, que assumira o comando...

 

- Homem, quem é você?   Que quer?   Um tal Jack-Pudding(2)  eu nunca encontrei.

-  Eu também não - respondeu Sam duma maneira e com um gesto que demonstrava estar se referindo ao oficial.

-  Você também não? Que quer dizer com isto? - gritou ele. - Quer porventura insultar-me?

-  Será insulto eu concordar com você? - perguntou Sam muito sério e tranqüilo.

- Ah, neste caso louvo o seu reconhecimento. Repito que nunca encontrei um tal arlequim, como você parece ser. Decerto vem pedir licença para dar algum espetáculo de diversões aqui?

- Sim, é isto - riu-se. - Você acertou, Sir, e deverá ajudar-me, se não me engano.

-  Ajudar? Eu? Então você toma o substituto do comandante, um oficial dos Estados Unidos, por um burlantim como você?

Sam deixou ouvir sua conhecida risada zombeteira, mas não respondeu. Serenamente puxou uma cadeira e sentou-se. O oficial ia protestar furiosamente, mas Sam atalhou-o com a amável pergunta:

-  Ouviu  alguma vez  falar  na conhecida  Folha de Trevo, capitão?

-  Folha de Trevo? A que folha de trevo está se referindo?

- Aos três caçadores da Pradaria, se não me engano!

-  Sim. Conheço esta Folha de Trevo. Compõe-se de Dick Stone, Will Parker e Sam Hawkens, do qual se conta. . .

-  Bem, Sir, bem - atalhou o homem do Oeste. - Portanto, já ouviu falar destes três homens. Folgo, folgo muito com isto. Em breve estará a par do nosso espetáculo e saberá quem é que desempenha o papel de palhaço. Sabe, porventura, também que Sam Hawkens foi scout na última guerra?

 

_________________            

(2)    Scout do exército, guia, escoteiro.  (N. do Trad.)

 

-   Sim. Com os homens do Gen. Grant. Em conseqüência de seus serviços prestados com tanta eficiência, devido à sua astúcia e audácia, galgou até o posto de capitão.   Mas que tem isto a ver com  vocês?

-  Muito, muito, Sir. Em todo o caso, mais do que com você, pois acho que você naquela ocasião ainda não estava metido neste uniforme. É que a Folha de Trevo acha-se presentemente aqui.

-  Aqui?   Em  Tucson?

- Sim, Sir. E Sam Hawkens, o capitão honorário dos Estados Unidos, acha-se ainda mais próximo. Acha-se neste momento sentado aqui em sua sala.

-  Aqui? Em minha sala? - exclamou o militar chocado e arregalando os olhos... - Então... então... será você, você, você esse Hawkens?

- Yes.   Sou eu mesmo, se não me engano.

-  Thunder-storm!(3) Você será Sam  Hawkens, você?

-  Creio que sim. Por que não havia de sê-lo?

-  Porque. . . porque. .. porque... - gaguejou o capitão desolado. - Porque, em todo caso, você não aparenta, absolutamente. Um oficial não pode se meter, em nenhuma hipótese, num vestuário destes.

-  Não sabia. Por que não podia fazê-lo? Por que não poderá um oficial vestir-se como bem entende, Sir? E este é afinal o meu gosto, o gosto de Sam Hawkens, e quem quiser tomar-me por um sujeito sem gosto, que tome. Não tenho nada contra, enquanto estiver calado. Mas se se atreve a dizer-me a mim, convém pôr-se na minha frente com a espingarda engatilhada, a fim de descobrir qual das balas atingirá exatamente o coração do outro.

Isso foi dito num tom que, a despeito da ridícula indumentária de Sam, produziu forte impressão no capitão. Com um gesto apaziguador, ele respondeu  delicadamente:

-  Não é preciso, Sir, não é preciso. Por que dois gentlemen que são camaradas, haviam de matar-se mutuamente, sem motivos?

-  Hum!   Já que reconheceu o suposto palhaço com um gentleman seu camarada, tome a minha mão.  Falemos em paz sobre o divertido espetáculo no qual deverá tomar parte.

Apertaram-se as mãos e, a seguir, Sam contou-lhe o seu encontro do dia precedente com doze cavaleiros, que julgava serem os Finders. O capitão escutou muito atentamente. Seu rosto demonstrava cada vez mais interesse, e quando Sam terminou, levantou-se excitado, exclamando:

- Se você não estiver enganado, Hawkens. Se forem realmente os Finders, que presa!

Sam piscou-lhe seus olhinhos, perguntando-lhe:

-  Julga que Sam Hawkens é tão tolo a ponto de não saber o que sustenta?   São eles, asseguro-lhe que são eles.

-  Mas por que deixaram San Xavier del Bac sem trazê-los? Pois estavam presos, vocês os tinham sob seu poder.

-  Porventura posso provar que são ladrões, bandoleiros, assassinos, que são enfim, os Finders? Essa prova só aparecerá com a oportunidade que lhes dou __________________

(3)    Com mil trovões.

 

de nos assaltarem. Se forem surpreendidos em flagrante, serão abatidos.

-  Será possível?   Então vocês pretendem deixar-se assaltar?

-  Yes,

-  Deixar que assaltem vocês de verdade?

-  Naturalmente.  Ou pensa que eu somente sonho com isso?

- Isso é brincadeira. Porém, eu levo o caso a sério. Não poderia sair-me mais brilhantemente da minha incumbência de substituto do comandante, prendendo justamente agora, que a guarnição se acha sob minhas ordens, esta terrível quadrilha. Mas, se pretendem esperar que eles os assaltem, vocês expõem-se a um grande risco.

- Só se ficarmos parados. Todavia, o pequeno Sam Hawkens desaparecerá com a sua gente.

-  Então nem se fala em assalto?

-  Por que não? As carretas serão assaltadas e se não nos encontrarmos lá, o ato constituirá uma pilhagem, o que aqui nesta terra requer como castigo a pena de morte.

-  Well, mas pretendem pegá-los sem que haja luta e sem se exporem, portanto, a perder suas vidas?

-  Isso há de arranjar-se, com toda certeza, uma vez que nos queiram dar sua proteção. É só montar a cavalo e acompanhar-me com uma tropa de cavalaria.

-  Seria bem feliz se pudesse fazê-lo. Mas não me é possível abandonar meu posto. E como tenho tão pouca gente, só poderia ceder um tenente com vinte homens.

-  Isso satisfaz perfeitamente.

-  Já que o deseja, assim seja. Contudo, preciso saber, antes de mais nada, como planejaram a coisa. Estão mesmo bem certos de que os Finders os seguirão?

-  Que eles vêm, é tão certo como este meu velho chapéu ser de feltro, hihihihi. É verdade que não quererão ser vistos em Tucson, por isso a contornarão. Mas é provável que enviem um investigador aqui na cidade. Por isso ninguém deverá saber do plano, além de nós dois e talvez o tenente. Eles farão uma volta por Tucson e tomarão a estrada novamente, seguindo o rasto das nossas carretas até notarem onde faremos alto para acampar durante a próxima noite. Ficarão naturalmente para trás e aguardarão que anoiteça. Então, provavelmente, se dará o assalto, se não me engano.

-  Bem, e você? Decerto não pretende ficar junto às carretas, como disse, há pouco?

-  Era só o que faltava, hihihihi. Conhece o lugar onde a estrada de Guadalupe se junta com a de Babasaqui? E será que o tenente também a conhece?

-  Estivemos freqüentes vezes lá, tanto eu como ele.

-  Well, então está bem. Acamparemos lá. Sei que existe água ali, o que é o essencial para os animais de tiro. O senhor enviará o tenente na frente com sua gente. Mas ele deverá conservar-se sempre do lado do nosso caminho, para evitar que os Finders percebam suas pegadas e fiquem desconfiados. Seguiremos mais tarde e o encontraremos lá. Logo que escurecer, acenderemos um fogo bem grande para que os Finders nos descubram facilmente. Deixaremos então as carretas, afastando-nos a fim de que, logo que os tipos se aproximarem, possamos deitar-lhes a mão em cima, subjugá-los e conduzi-los presos!

O capitão deu alguns passos em silêncio, rapidamente, para lá e para cá. Então, estacando diante de Sam, disse:

-  Assim como você diz, tudo isso parece tão fácil, tão certo, como se nem pudesse ser diferente!   Os Finders não efetuarão o assalto, afinal de contas, sem  que  tenham   antes  enviado  um   batedor,   para   vigiar o acampamento de vocês.

-  É o que deveriam fazer e o que farão.

- Mas então o batedor verificará que vocês não se acham no acampamento!

-  Não, isto ele não verificará, pois não o deixaremos enquanto ele  não  tiver estado  lá.

-  Então vocês precisariam estar informados sobre seus movimentos.

-  E estaremos, Sir. Você parece julgar Sam Hawkens muito mais tolo do que é, hihihihi. Você acha que os Finders com toda certeza mandarão um espião. E não podemos nós fazer o mesmo? Garanto-lhe, Sir, que embrulharei aqueles senhores muito antes que eles me embrulhem!

O oficial sacudiu a cabeça, desesperado, e retrucou:

-  Isto seria impossível. Nesse caso, teriam que vigiá-los já de dia. Já ouvi contar muito, muito mesmo a respeito de vocês três, sei pois quão temerários são, mas que pretendam espiar essa gente à plena luz do dia, aqui, onde não existe mato de espécie alguma para a gente esconder-se, isto vocês nem poderiam ousar! Devem pensar no seguinte: vocês acenderão um grande fogo, eles, ao contrário, não serão tolos em fazer o mesmo. Eles podem, pois, de longe ver-lhes o acampamento, enquanto com vocês não se dará o mesmo.

-  Acha isso? Acredita-o realmente? Sam Hawkens não vai saber onde se meteram esses gentlemen, hihihihi. Isto seria o mesmo que minha cabeça não soubesse que ela se encontra debaixo do meu chapéu. Não se preocupe, diga logo francamente se quer ajudar-me nesse negócio ou não. Mesmo sozinhos, havemos

 

Sam afastou-se muito  satisfeito. . .

 

de nos sair bem com eles. Só que, neste caso, teriam que experimentar as nossas balas. Mas como prefiro não derramar sangue, dirigi-me a você. Se puser à minha disposição vinte homens, portanto quarenta braços, poderemos conseguir dominá-los só com as mãos, o que, em caso contrário, só seria possível com o auxílio de pólvora e chumbo.

- Bom. Estou de acordo. Mas desejava ouvir também a opinião do tenente.

- Então mande vir o homem. Acho, porém, que ele não dará outra direção ao pau que eu fiz navegar.

O próprio capitão foi buscar o tenente, seguindo-se uma explicação, que terminou com a sugestão apresentada por Sam. Os dois oficiais estavam curiosos por verem também Dick Stone e Will Parker, mas Sam Hawkens dissuadiu-os de tal idéia, fazendo-os ver que sua presença no acampamento, ou sua visita em casa do capitão, daria forçosamente na vista. Algum eventual espião dos Finders ficaria logo sabendo disso, e Buttler poderia calcular que haviam solicitado auxílio à guarnição. Depois de terem combinado mais alguns detalhes secundários, Sam afastou-se muito satisfeito com o resultado do seu entendimento com o senhor seu camarada.

 

O Assalto

Ao chegar às carretas, viu Sam que estava todo aquele povinho vadio de Tucson em redor delas, bem como na Alemanha grupos de ociosos seguem os bandos de ciganos para observarem suas atividades.

Os caravaneiros estavam almoçando sem sequer dar a mínima atenção àquela turba de espectadores. Sam sentou-se com eles, a fim de tomar parte na frugal refeição e expor o resultado da sua conversa com o capitão.

Mais tarde aproximaram-se alguns curiosos para puxar conversa com os viajantes, o que realmente só conseguiram com o cantor, em conseqüência de já ter ele aprendido um número muito maior de expressões em inglês, do que os outros.

Entre essa gente havia um jovem que afinal se chegou para o guia, entabulando com ele uma comprida conversa. Sam observava-o. Reparou que tinha uma postura militar e que durante a palestra examinava com bastante insistência a ele, Dick Stone e Will Parker.

Por isso o homenzinho levantou-se, aproximando-se dos dois. Quando ia chegando, ouviu distintamente quando o guia em resposta a uma pergunta do outro dizia:

-  Sim, é a Folha de Trevo. Posso garanti-lo, se bem que a princípio eu próprio não acreditei.

Então Sam, tomando o outro por um braço, disse-lhe com uma maneira especial:

-  Mestre, você é soldado, não? Pertence a esta guarnição?

Via-se que a frase causara-lhe um certo embaraço. Ele gaguejou algo que parecia uma resposta, mas de todo ininteligível, por isso Sam prosseguiu:

-  Não vou aborrecê-lo. O capitão não me conhece pessoalmente, e em conseqüência duma garantia que me deu, precisa saber se realmente sou Sam Hawkens. Por isso você teve que vir em busca de informações exatas.   Confirma isso?

-  Sim, Sir, não se enganou - foi a resposta. - Como sei finalmente que pertence de fato à Folha de Trevo, posso confirmá-lo.

-  Pois então vá dizer ao capitão o que ouviu. Mas não fale com mais ninguém a respeito disso.

-  Nenhuma palavra.   Sei do que se trata.   Sou suboficial e faço parte dos vinte homens que deverão acompanhar o tenente. Daqui a uma hora devemos pôr-nos a caminho.

O homem saudou-o cortesmente e afastou-se. Sam dirigiu-se então ao guia:

-  Diga-me, que é que você pensa distribuindo assim informações a nosso respeito?

-  Ele perguntou - respondeu o guia rapidamente.

-  Então quando alguém lhe pergunta qualquer coisa, você responde logo seja lá para quem for?

-  Não vai querer por certo mandar na minha boca?

-  Sim. Pretendo isso, sem dúvida. Você sabe que ninguém deverá saber que somos a Folha de Trevo e, contudo, você pendurou-o logo sob o nariz deste investigador. Quer ser um guia, um homem do Oeste, e, todavia, não tem a menor noção da prudência. Eu não quisera estar confiado à sua guia.

-  Nem precisa. Antes de você ter chegado, ia tudo segundo minha vontade e minha orientação. Você, porém, porta-se como se fosse nosso patrão. Fui contratado por esta gente e sou o seu guia...

-  Para a perdição - ajuntou Sam. - Você tem que protegê-los. Porventura está fazendo isto? Sem a nossa vinda, vocês teriam sido roubados e assassinados esta noite.

-  Qual! Também tenho os olhos abertos. Deixe estar, mestre Hawkens, que levarei os que me foram confiados até o Forte Iuma. Até lá sou o chefe do comboio. Se quiser vir, terá que obedecer-me. Mais tarde poderá dar ordens quando quiser.   Basta.

Sam, batendo-lhe então no ombro, disse, sempre com o seu sorriso mais amável, atrás do qual, porém, adivinhava-se justamente o contrário:

-  Não basta. Ainda não. Sei para onde se dirige esta gente. Não é necessário que passem pelo Forte Iuma. Existe um outro caminho, que, sem dúvida, você parece desconhecer. Ficará até amanhã ainda conosco, depois poderá ir para onde bem entender.

-  Para mim é o mesmo, desde que receba meu salário até o Forte Iuma.

- Você o receberá e então eu guiarei esta gente sem cobrar nada. Não hão de correr mais perigo devido à tagarelice de seu guia.

O guia sentou-se resmungando no varal duma carreta. Sam afastou-se dele indo ter com seus companheiros.

- Fizeste mal, meu velho - ponderou Will Parker. - Não posso compreender-te.

-  Fiz mal? Por quê? - perguntou Sam.

-  Por que precisa ele ficar conosco até amanhã? Devias tê-lo mandado logo embora.

-  Então essa é que foi a falta? Will Parker, o greenhorn, atreve-se a dar ensinamentos a Sam Hawkens? Então não vês, honrado Will, que eu não podia mandá-lo embora hoje?

-  Não, não vejo.

-  Oh, doce Will, como é triste o teu caso! Não serás nunca, jamais, um homem do Oeste. Como me envergonho de ter um tal discípulo que não compreende nada. Tu, porém, deves considerar-te feliz por teres a mim como mestre, pois sem mim e Dick Stone há muito que estarias eliminado. Sabes o que este chamado scout faria se já corresse com ele hoje daqui?

-  O que então?

-  Iria, por vingança, ter com os Finders e contar-lhes nossos planos. Mas teu acanhado cérebro não pode comportar uma idéia tão grande!

-  Yes - concordou Parker. - Tens razão, velho Sam. É realmente um verdadeiro pecado, uma vergonha que nenhum dos teus bons ensinamentos consiga imprimir-se em mim, como uma mancha de tinta. Nem posso compreender como me suportas.

-  Isso não admira, pois não compreendes de fato nada. O motivo é que sou para ti como uma mãe indulgente que gosta mais, justamente, do filho que maiores preocupações lhe dá.

Viam-se agora os vinte soldados passarem cavalgando. O comboio de carretas, todavia, continuou parado, e só por volta do meio-dia, pôs-se lentamente em marcha.

Até o ponto onde deviam fazer o pouso havia uma distância, aproximadamente, de nove milhas inglesas, de forma que, mesmo a despeito do vagaroso passo dos bois, deviam chegar antes do escurecer. A zona por onde se movia o comboio era um deserto coberto de cascalho onde cá e lá apareciam, de vez em quando, um cacto seco ou uma palmeira raquítica. Todos os galhos secos que encontravam eram levados junto, para alimentar o grande fogo que pretendiam fazer à noite.

O caminho que liga Tucson ao Gila é principalmente composto desse terreno deserto, onde existem pouquíssimos lugares com água para os animais e só dois ou três poços de água potável mandados ainda construir pela sociedade do Correio Transcontinental, e que ainda hoje existem. Aquelas paragens são denominadas o deserto das Noventa Milhas. Em todo caso existem outros lugares com água, sem ser os já mencionados, porém estas fontes são vedadas aos brancos pelos índios, que as declaram proibidas, e dissimulam a sua boca com areia e cascalhos, assim como os nômades do Saara fazem com seus poços proibidos. Sam Hawkens conduzia o comboio. O ex-guia não cavalgava mais à frente, porém atrás. Os olhares que lançava de tempos a tempos a Sam não eram nada bons. Se se observasse bem, poder-se-ia descobrir neles o desejo de vingança.

Ao entardecer, quando faltavam apenas duas milhas a cobrir, Sam começou a prestar mais atenção do que antes, examinando o caminho e as redondezas. Aliás, dum caminho propriamente dito não se podia falar. Mas quem passa por aquelas bandas, segue sempre a mesma direção tanto faz andar a cavalo como de carreta, e assim acontece que, com certo exagero, se fala lá até de estradas, referindo-se aos trilhos que ligam as solitárias localidades entre si.

Estas últimas duas milhas atravessavam um terreno todo ondulado, como se uma turba de gigantes tivesse despejado cestos cheios de areia, cascalhos e cacos de pedra, neste lugar.

Por isso as carretas avançavam só muito lentamente. Um desses gigantes enchera seu cesto com pedaços de rochedos do tamanho dum homem e maiores ainda, e os lançara de tal maneira ali, que formavam como que um parapeito, assim juntos atravessados e empilhados. Quem se escondesse atrás deles poderia enxergar muito longe, sem, entretanto, ser visto.

Sam apontou para aqueles rochedos e chamou a atenção de seus dois companheiros:

-  Aqui é o lugar onde os Finders farão alto. Ou queres talvez apostar, Will Parker, que não tenho razão?

-  Era só o que faltava, velho coon - respondeu o interpelado. - Apesar do meu cérebro ser tão pequeno, na tua opinião, reparei logo naqueles rochedos, como excelente lugar para um acampamento abrigado. Repara, ali à esquerda existem mais dessas pedras altas. Decerto vão para ali aqueles sujeitos.

-  Não, porque aqui vês algumas centenas de canas de palha, que poderão dar a seus cavalos.   Lá porém, também haverá alguém.

-  Quem?

-  Não podes imaginar quem?

-  Sim, velho Sam.

-  Então, quem?

-  Tu mesmo. Vais te esconder ali a fim de ver sua chegada e espioná-los  depois.

Então Sam levantou suas mãos gordas acima da cabeça e exclamou com fingida admiração:

-  Será possível isto? Este greenhorn teve uma idéia, uma verdadeira idéia, e até uma boa idéia!? Ou o mundo está prestes a vir abaixo, ou então desatou-se finalmente o nó deste velho Will Parker. Sim, ilustre Will, depois de ter visto o lugar do nosso pouso, voltarei para esconder-me ali e aguardar os Finders.

-  Levas-me junto?

-  Não devo arriscar, Will. Para isso é preciso gente habilidosa e experimentada.  Precisas ainda freqüentar a escola.

-  Hum, não será que te enganas, velho Sam? Conheci um rapaz que não estudava nada, apesar de ter uma cabeça bem esperta. A gente dizia que o culpado era o professor que não entendia nada, e não o rapaz.  Não se dará aqui o mesmo caso?

Depois de terem passado por mais algumas elevações do terreno, este tornou-se plano e, um quarto de hora mais tarde, o árido cascalho transformava-se numa terra composta de moitas de mezquite e ocochila(1).

Havia até água. Aqui, aliás, ficava um daqueles poços cavados pelo pessoal do Correio Transcontinental. O lugar do acampamento estava aí e fez-se alto.

Primeiro refrescaram-se todos na água. Depois deram de beber aos cavalos e bois. Estes em seguida foram experimentar tosar algumas folhas verdes daqueles  arbustos espinhosos.

As carretas estavam dispostas como Sam aconselhara na véspera, de modo que cada uma constituía um lado dum quadrado formado por elas, Naturalmente procuraram os soldados. Contudo não havia nenhum visível.  Sam olhava satisfeito para a frente e dizia:

-  Não é nenhum cabeça-oca, este tenente; não quis aparecer aqui enquanto não tivéssemos chegado. Mas não deve tardar em apresentar-se.

Como se estas suas palavras tivessem sido ouvidas, surgiu ao norte um cavaleiro que se aproximou rapidamente. Era o tenente. Quando alcançou o acampamento, estendeu a mão a Sam e disse:

-  Achamo-nos já há várias horas nas proximidades. Conservamo-nos afastados por causa do poço. Podia vir alguém buscar água e se nos visse, talvez os Finders viessem a saber também. Mas nossos cavalos precisam beber.   Podemos vir até cá?

-  Naturalmente - respondeu Sam. - Mas quando começar a escurecer terão que ir. Virão espiões provavelmente; não deverão vê-los. Oportunamente, buscaremos vocês.

-  De acordo. Onde julga que os Finders farão alto a fim de esperar o momento azado?

Sam apontou para o sudoeste onde ficavam os já mencionados rochedos, que ainda eram perfeitamente visíveis dali.

-  Lá atrás, naquelas pedras. Como chegarão lá provavelmente ainda de dia, não virão além para não serem vistos.

-  Mas não verão a mim e a meus cavaleiros?

_________________________

(1)    Árvores americanas.   (N. do Trad.)

 

-  Estive ontem sentado no meio deles, e sei que nenhum deles possui binóculo. Uma vista nua, por mais forte que seja, verá apenas as carretas e mais tarde, quando estiver escuro, somente a fogueira. Pode estar descansado a respeito de sua gente.

O oficial partiu e voltou logo em seguida com seus vinte cavalarianos que se haviam afastado apenas a uma distância suficiente para não serem vistos dali. Foi designado o lugar até onde a tropa devia recuar quando anoitecesse. Então Sam deu-se, a si mesmo, a ordem de aprontar-se para a sua caminhada de investigação. Precisava ir a pé, porque assim podia ocultar-se mais facilmente.  Aproximou-se, pois, e disse:

-  Deita-te, velha Mary, e espera até que eu esteja de volta!

A mula entendeu perfeitamente e deitou-se, permanecendo tranqüilamente assim, até que seu amo a convidasse novamente a erguer-se. Depois voltou-se ele para Parker:

-  Como é, doce Will?  Não desejavas que te levasse junto?

-  Vai sozinho - foi a resposta. - Um greenhorn, como eu, não te pode ser útil.

-  Mas preciso levar-te comigo, se é que queres aprender alguma coisa!

-  Well, vou junto. Mas não por causa da aprendizagem e sim para que não fiques sem auxílio, quando os Finders te descobrirem e te quiserem escalpar.

- Podem fazê-lo quantas vezes quiserem. Podem levar minha pele. Comprarei uma nova e mais bonita.

Hawkens e Parker deixaram o acampamento, levando, naturalmente, suas armas. A sudoeste ficavam as pedras, atrás das quais, presumia Sam, iriam ocultar-se os Finders. Ao sul, portanto, à direita, viam-se os rochedos onde Sam pretendia esconder-se. Para lá dirigiram-se os dois, mas não em linha reta, porém fazendo uma curva para este, a fim de que, caso os Finders já tivessem chegado, não pudessem vê-los. É claro que Sam, antes de afastar-se do acampamento, deixara instruções para todas as eventualidades.

Quando tinham alcançado o seu destino, achava-se o sol já bem próximo da linha do horizonte. Em meia hora, mais ou menos, deveria começar o crepúsculo, notavelmente breve naquelas regiões. Defronte, nos outros rochedos, não havia ainda vivalma. Dirigiram, pois, os olhos para o lado donde deviam vir os esperados.  Não havia ninguém à vista.

-  Virão, afinal de contas? - perguntou Parker. - Partimos só de uma suposição, não de uma verdade.

- O que para ti é uma suposição, para mim é uma certeza, se não me engano - respondeu Sam.

-  Podem ter perdido a vontade. Não representamos suficientemente bem.

- Tanto maior será a sua sede de vingança. Repara! Não vês alguma coisa movendo-se lá entre as duas penúltimas ondulações?

Parker aguçou bem a vista e respondeu excitado:

-  Cavaleiros!   São eles!

-  Sim, são eles. Surgem da baixada. Não é possível contá-los ainda; todavia, mais do que doze não são.

-  E também não são menos. São eles mesmo, com certeza. Tiveste razão, velho Sam.

-  Tenho sempre razão, sempre, doce Will, e isto não é nada difícil. Sabes como se faz para não errar nunca?

-  Yes.  É muito fácil.

-  Como então?

-  Não se deve afirmar nada.

-  Também está certo. Mas não é isso que quero dizer. Não se deve afirmar nada, enquanto não se tiver absoluta certeza de que aquilo que se vai dizer é a pura verdade.

-  Não é nenhuma arte!

- Não? Então a gente deve afirmar sempre o contrário daquilo que um greenhorn diz.

-  Bonito, querido Sam! De agora em diante não concordarei nunca contigo.  Olha, não quererão vir para cá?

- Não farão isso! Agora puseram-se novamente a caminho. Afastam-se levemente para a direita do nosso caminho. Conhecem estas redondezas e sabem que precisam ir lá para cima nos rochedos, se quiserem avistar nosso acampamento.

-  Achas que eles têm como certo que acampamos lá no poço?

-  Naturalmente. Ninguém irá acampar no deserto quando tem um lugar com água assim. Que pergunta, de novo! Will Parker, Will Parker; o que terei de passar ainda! Não posso honrar-me contigo, e não posso, por conseguinte, mostrar-me nunca em tua companhia. Tu me afliges e entristeces tanto, que ainda me arrastarás à negra morte, se não me engano. Repara, eles cavalgam lá para cima, e eu tive novamente razão. Não vêm para cá.

Via-se que eles se dirigiam para os tais rochedos. Quanto mais se aproximavam, tanto mais cautelosamente portavam-se, aproveitando toda pedra para ocultar-se das vistas lá do poço. Apearam, enfim, conduzindo os cavalos pelas rédeas, porque montados poderiam ser percebidos. Alcançaram finalmente os rochedos e por detrás deles espiavam. Via-se em seus movimentos a alegria que lhes causava a vista das carretas. Prenderam os cavalos com cavilhas e depois tomaram comodamente posição, dissimulando-se no topo dos rochedos, a fim de observarem o acampamento.

-  São eles - confirmou Sam.  Agora pode-se contá-los.

-  Vamos até lá? - perguntou Will.

-  Sim. Logo que escurecer.

Não precisaram esperar muito. O sol já tinha tocado a linha do horizonte. Desapareceu. A escuridão cada vez mais densa do crepúsculo veio do oeste e cobriu tudo. Lá fora, no poço, brilhava um fogo claro e grande. Já não era possível distinguir os Finders.

-  Vem - convidou Sam. - Não percamos tempo.

Deixaram o esconderijo, dirigindo-se para o acampamento dos adversários. Quanto mais se aproximavam, mais leves e por fim completamente silenciosos eram seus passos.

Que Sam Hawkens, com suas gigantescas botas pisasse tão maciamente, como um beija-flor, na relva, era quase incompreensível. E Will Parker movimentava-se tão habilidosamente, que demonstrava bem não ser nenhum greenhorn, como Sam constantemente o denominava.

Ao alcançarem o sopé da pequena elevação, Sam entregou a espingarda ao companheiro e sussurrou-lhe:

-  Fica aqui e segura minha Liddy. Subirei sozinho.

-  Well, mas se estiveres correndo perigo, eu te seguirei.

-  Qual! Como se eu não soubesse que perigo podia haver. Levanta bem as orelhas, Will, para que não te apanhem.

-  Quem?

-  O batedor que mandarão daqui a pouco espiar nosso acampamento. Não é certo, mas é possível que passe por aqui.

Deitou-se ao chão e prosseguiu rastejando. Era a melhor hora para rastejar, porque, logo após o crepúsculo, as poucas estrelas que havia não brilhavam muito.

É sabido que o brilho das estrelas cresce gradativamente depois do crepúsculo.

Como já vimos, a elevação onde se achavam os rochedos, consistia num terreno em que predominavam pedras arredondadas, o que não tornava nada fácil o rastejar por ali.

Todavia, Sam prosseguia sem o mínimo ruído, avançando polegada por polegada, sem deslocar uma única pedrinha do seu lugar. Assim atingiu ele o topo.

Seus perspicazes olhinhos afeitos à escuridão examinaram os adversários. Mesmo que não os estivesse vendo, podia perfeitamente estar a par do que tramavam os facínoras, pois estes conversavam entre si. Ousou aproximar-se ainda mais, até chegar a uma enorme pedra, atrás da qual se escondeu. Dois ou três dos Finders estavam postados nos rochedos a fim de observarem o acampamento da fogueira. Os outros tinham-se posto à vontade. Estavam sentados no chão. Dois conversavam, Buttler e um outro. Justamente quando Sam acabara de acomodar-se atrás da pedra, ouviu o último dizer:

-  Se ao menos tivéssemos conseguido mais munição. Precisamos ser extraordinariamente econômicos.

-  É só por enquanto - respondeu Buttler. - Havemos de recuperar tudo novamente e mais ainda. Poston, está na hora. Já está bastante escuro. Vai duma vez! Mas não te deixes pegar, ou mesmo só ouvir ou ver, senão vais te haver comigo.

-  Então vou deixar-me ver? - respondeu o outro. - Não é a primeira vez que vou espionar.

-  Por isso é que te mando a ti e não a outro. Não precisas expor-te a perigo. Não necessitas arriscar-te aproximando-te deles. Isto seria inútil.

-  Mas eu gostaria de saber o que eles conversam!

-  Isto não tem nenhuma utilidade para nós. Só quero saber se estão só eles, lá no poço, ou se há mais gente.

-  Mas se conseguir ouvir-lhes a conversa, poderei talvez saber se estão desconfiados ou não!

-  Desconfiar?  Donde lhes virá a suspeita?

-  Eles podem supor que nós estamos em seu encalço.

-  Para isso são demasiados tolos. Os alemães nem entram na conta e o guia não parece ser homem que arrisque a vida para salvar outros. Portanto, restariam só os três marotos, que ontem, a despeito de toda a sua burrice, tiveram tal sorte conosco. Sua inteligência por certo não chegará para concluir que os seguimos. Caçar ursos e castores no Gila, com armadilhas! Já se ouviu tamanha maluquice? Vai, então, Poston e toma cuidado! Em meia hora podes estar de volta.

O batedor afastou-se e o primeiro que falara tomou novamente a palavra:

-  Quando pensas que podemos cair sobre eles, Buttler? Ainda hoje de noite ou amanhã cedo?

-  Só amanhã? Tanto não esperarei. Eu ardo por pegá-los, especialmente àquele pequeno gordo, e dar-lhes o troco. Não. Será ainda hoje à noite.

-  Quando estiverem dormindo e não haja mais fogo?

-  Não. Vamos abatê-los com algumas descargas. Para isto necessitamos luz.

-  Mas o fogo é grande e ilumina tão longe, que forçosamente seremos vistos ao chegar.

-  Com aquela enorme fogueira que acenderam, provam que não alimentam a mais leve suspeita. Realmente é um tanto desagradável que essa grande chama ilumine tão longe, por conseguinte temos de esperar até que a chama diminua. Então não nos demoraremos nenhum minuto mais. Aviso-os de que ninguém deve atirar no pequeno gordo; ele deverá morrer com um balaço meu.

Prosseguiu em termos rancorosos na sua exagerada maneira de falar, referindo-se ao acontecimento da véspera, e da peça que lhe haviam pregado, a ele e a seus companheiros.

Sam esperava ouvir algo mais de importante, por isso ficou ainda um bom quarto de hora naquela posição. Todavia, enganou-se. Por isso se afastou tão silenciosa e prudentemente como viera. Ao chegar em baixo, junto a Will Parker, este entregou-lhe a sua arma dizendo:

-  Toma tua Liddy.  Deu para ouvir alguma coisa?

-  Pouco.

-  Mas de importância?

-  Só que o assalto se dará quando o fogo tiver diminuído. Precisamos tomar providências.   Viste o batedor?

-  Sim.  Passou bastante próximo a mim, mas não me viu.

-  Vem. Precisamos ir ter com os nossos.

Afastaram-se, primeiro com passos abafados, depois já com menos precaução. Não se dirigiram em linha reta para o acampamento. Fizeram uma curva para evitar um encontro com o batedor. Não haviam percorrido ainda a metade do caminho, quando ouviram uma exclamação em inglês, seguida duma em alemão.

-  Tempest! - exclamou a primeira.

-  Sr. Yemineh! - gritou a segunda.

-  Quem é que está caindo por cima de mim?

-  É o cantor - sussurrou Sam a seu companheiro. - Este homem ainda me fará uma asneira. Vem ligeiro, mas não faças ruído, para que não nos notem senão quando julgarmos conveniente!

Dirigiram-se depressa na direção donde tinham partido as vozes. Quando estavam bem próximos, pararam e escutaram.

-  Quem é? - dizia a voz em inglês.

-  Eu sufoco! - foi a resposta em alemão.

Sim, era a voz do aposentado. Soava como se alguém lhe estivesse apertando o pescoço.

-  Quero saber o nome! - ouviu-se novamente em inglês.

-  Lá do acampamento.

-  Não o entendo. Fale inglês!

-  Sou compositor!

-  Pertence àquela gente que está ali junto ao fogo?

-  Uma ópera heróica, que deverá tomar três noites completas!

- Homem, se você não se tornar compreensível, não sairá daqui. Responda, portanto.   Quem é você?

-  Doze atos!  Quatro em cada noite!

-  O nome, o nome!

-  Procuro Hobble-Frank!

-  Ah, finalmente! Frank é seu nome! Mas o que faz você aqui, assim sozinho e às escuras?

-  De Klotzsche em Dresde, sou. Deixe-me duma vez... Oh, finalmente, graças a Deus!

A voz soou mais clara. O cantor havia se desvencilhado e afastava-se depressa.   Seus passos ressoavam.

-  Conseguiu livrar-se! - disse o outro com voz irada. - Devo.. . Não.  Preciso ir adiante.

-  Não perseguiu o fugitivo, mas tomou a passos rápidos o caminho para os Finders.

-  É o batedor - disse Sam baixinho. - Esta história vem nos trazer incômodos. Poderá estragar tudo. Tenho que voltar aos rochedos para  ouvir o que o homem vai dizer. Fica aqui! Preciso chegar lá, antes dele.

Afastou-se rápido. Will Parker esperou. Passou-se meia hora antes que Sam retornasse. Ao chegar, contou:

-  Correu tudo melhor do que eu esperava. Esse encontro podia ter custado a vida ao cantor, ou se nos lançássemos em seu socorro, ao menos, o estrago dos nossos planos.

-  Por quem tomam os Finders este infeliz aposentado? - perguntou Will Parker.

-  Nem se falou nele. Este espião das dúzias nem sequer mencionou o encontro.

-  Incrível! Pois é muito importante. Precisaria indubitavelmente ser mencionado.

-  Isto aquele homem talvez não compreenda. No mínimo calou-se por medo.

-  Por medo?   Como?

-  De medo, por causa do aviso. Antes de sair, foi advertido por Buttler de que não se deixasse ver, em caso algum. Contudo, ele até caiu por cima de alguém. Se contasse isso, nada de bom o esperaria. Assim preferiu calar-se. Isso só nos pode ser útil. Vamos agora para o acampamento!

Prosseguiram; não haviam, porém, dado muitos passos, quando pararam em conseqüência dum ruído que ouviram. Ao aproximarem-se mais, verificaram que se tratava do ruído de patas de cavalos.

-  Um cavalo a galope que vem diretamente sobre nós!

-  É - concordou Sam. - Que será isso outra vez, se não me engano? Ligeiro para o lado!

O cavalo aproximara-se rapidamente. Eles mal tiveram tempo de atirar-se para o lado direito. Ao passar, viram, apesar da escuridão reinante, que havia duas figuras montadas.   Uma delas gemia alto.

-  Será um dos nossos, Sam? - perguntou Parker.

-  Não sei. Eram dois, velho greenhorn.

-  Porém eram inimigos. Um deles estava bem direito na sela, enquanto o outro estava ajoelhado por trás e apertava-lhe o pescoço.

-  Tão bem não o pude distinguir. Não te enganaste, talvez?

-  Não, eu estava mais próximo do que tu, portanto podia ver melhor.

-  Um decerto é dos nossos, mas quem será o outro?

Este outro pertencia igualmente ao pessoal do comboio. É que se passara o seguinte:

A Sra. Rosalie abriu um bate-boca com Poller, o guia, em meio do qual ela finalmente exclamou furiosa:

-  Então você pensa que nós somos seus servidores ou seus escravos? Eu, Sra. Rosalie Ebersbach, Morgenstern de nascimento, viúva do moleiro Leier, mando tanto aqui como o senhor, compreende, seu? Você mostra-nos o caminho e nós o pagamos para isso. Assim é que é. E amanhã você vai embora, seu! O Sr. Sam Hawkens continuará guiando-nos. Ele entende disso muito mais do que você e ainda o faz de graça.

- Melhor do que eu? - perguntou zangado o guia. - Sobre isso, a senhora, como estranha e como mulher, nem pode dar palpite. As mulheres, afinal de contas, devem ficar caladas!

- Calar-me! Eh, quanta asneira está dizendo, seu! Nós, as damas, devemos calar-nos? Ouça, seu. Está muito enganado comigo. Então para que é que temos boca? Cale-se você, pois tudo quanto diz é falso e maluco. Estaremos satisfeitos amanhã quando você tiver ido embora. De seu trôpego ofício de guia, como conhecedor de caminho e chkuut, realmente não pode se ufanar muito.

-  Posso deixar este ofício hoje mesmo, então?

- Como não! Isso me agrada. Estamos de acordo. Será imediatamente aceita a sua demissão. Dê o fora, então. Está despedido.

-  Mas não antes de ter recebido meu pagamento!

- Isso você receberá imediatamente, seu. Por causa deste punhado de pfennigs não nos deixaremos mais lesar.

-  Julius, tens dinheiro à mão?

Era o homem que estava a seu lado. Respondeu afirmativamente.

-  Então paga o homem. Não entrará mais em minha casa. Já lhe mostro se nós, as damas, precisamos ficar caladas. Vim para a América, unicamente, porque as damas aqui são tratadas com mais distinção do que na Europa, e logo este primeiro ianque que se atravessa em meu caminho, quer proibir-me o uso da palavra! Pague-lhe, portanto, e então, bau du iu du!

O guia recebeu efetivamente seu salário, como se os tivesse conduzido até o Forte Iuma. Embolsou-os com um sorriso manhoso. Afinal, só por isso trouxera à baila toda a discussão, para receber o dinheiro, e poder safar-se durante a ausência de Sam. Encilhou o cavalo, tomou sua espingarda e  montou. Então  Dick Stone aproximou-se e  perguntou:

-  Poderá dizer-me o que significa isso, Sir, assim repentinamente, meter o cavalo entre as pernas?   Pelo que parece, pretende ir embora?

-  Yes, quem sabe se você se opõe? - respondeu rispidamente o guia. - Aliás, não tenho de perguntar-lhe a sua opinião.

- Oh, Dick Stone é justamente o homem a quem se deve fazer semelhante pergunta. Vamos ser assaltados. Isto quer dizer, ou amigo ou inimigo.   Se quer ir-se justamente agora, já sabemos qual o motivo!

- Ah, sabem o motivo. Realmente? - escarneceu o guia. - Talvez queiram ter a bondade de dizer-me qual é?

-  Sim. Vai ter com os Finders a fim de avisá-los.

-  Acho que você enlouqueceu! Vou dizer-lhe, pois, para onde vou. Fui despedido por estes alemães, não posso, portanto, ficar mais aqui. Minha dignidade não mo permite. Por isso vou lá para junto dos soldados, onde esperarei o romper do dia. Minha intenção é esta. Deixe-me, pois, ir embora!

Dick Stone convenceu-se no primeiro momento com estes argumentos, deixando as rédeas escapar de suas mãos. O guia deu uma esporeada no animal, afastando-se na direção em que seguira o tenente com seus homens após a saída de Sam e Parker.

Um segundo depois, porém, já Dick Stone recobrara a clareza de espírito.   Num pulo apanhou sua espingarda e gritou:

-  O canalha mentiu-me. Vai nos trair com os Finders. Vou mandar-lhe uma bala no encalço!

Então Chi-So aproximou-se rapidamente e disse:

-  Não atire, Sir! Está escuro. A bala erraria o alvo. Trago-lhe o homem de novo.

Após estas palavras, o adolescente embrenhou-se noite adentro.

- Trazê-lo de volta? Este jovem? - perguntou Dick Stone. - Será difícil. Tenho que seguir atrás dele.

Ia dirigir-se para seu cavalo, quando Adolf Wolf tomando-o pelo braço, pediu-lhe:

-  Fique. Ele o trará.

-  Será possível?

-  Ele o trará. Pode crer. Chi-So, apesar de tão jovem, é capaz de muitas outras coisas ainda.

O tom firme e convencido com que Wolf pronunciou estas palavras produziu efeito.

-  Hum! - resmungou Dick. - Não teria nenhum objetivo determinado se o seguisse. Não posso ver para onde foi. Se vai realmente até os Finders, topará na certa com Sam e Will, os quais se encarregarão de detê-lo. Portanto ficarei. Todavia, será uma história dos diabos se ele conseguir escapar.  O que dirá Sam!

Este não dizia nada, pois justamente nesse instante escutava juntamente com Parker, na direção por onde havia desaparecido o cavalo. Ouvia-se ainda claramente seu resfolegar; contudo, o ruído dos cascos tinha cessado. Mas pouco depois era novamente ouvido. Vinha de volta, porém, aproximava-se muito mais vagarosamente do que antes.

-  É estranho! - resmungou Sam. - Os dois cavaleiros deram volta e vêm a passo! Vamos deitar-nos, pois assim podemos ver melhor quem são.

Estenderam-se no chão. Apareceu o cavalo, mas só com um cavaleiro, que, todavia, trazia atrás de si um vulto escuro de arrasto.

- Chi-So! - exclamou Sam. - Então era você?   Você!   Como é que veio parar aqui?

O interpelado susteve a marcha do cavalo e disse num tom queixoso:

- Oh, Sir! Procurei-o por toda a parte. O guia fez com que lhe pagassem o dinheiro ajustado e em seguida fora-se contra nossa vontade. Ia trair-nos com os Finders. Então saí em sua perseguição. Alcancei-o, pulei na garupa do seu cavalo, estonteei-o com um coronhaço de revólver, detive o animal e atirei o dono ao chão. Agora meu laço o traz de arrasto.

 

. . .  todavia, trazia atrás de si um vulto escuro de arrasto.

 

-  Com mil trovões! Perseguir, pular na garupa do cavalo, estontear, atirar ao chão. Já és um verdadeiro, um legítimo Mão de Ferro! Bravo, meu rapaz! Contarei isso a teu pai. Talvez tenhas até liquidado o traidor.. .

-  Não.  Está apenas desacordado.

-  Caramba! E tudo isso no maior silêncio, sem um tiro ou outro qualquer ruído, se não me engano!

O adolescente respondeu com simplicidade e sensatamente:

-  Não podia haver ruído, pois o inimigo acha-se nas proximidades.

-  All right. Fizeste um serviço tão limpo que qualquer elogio seria supérfluo. Mas voltemos agora ao acampamento. Apressemo-nos a fim de liquidar rapidamente o negócio com os Finders!

Retornaram ao acampamento. O guia em conseqüência das dores provenientes do arrastamento, recobrou os sentidos. Começou a choramingar, mas não lhe deram atenção até terem atingido o acampamento. Lá levantou-se vagarosamente. O laço tinha-lhe amarrado as mãos, e, passando por baixo dos braços, prendia-se à sela. É fácil de imaginar-se a maneira como foi recebido. Com os olhos fixos no chão, não respondia a nenhuma pergunta que lhe faziam. Igualmente silencioso conservava-se Chi-So aos elogios que lhe vinham de todos os lados. Ia afastando-se silenciosamente, mas não pôde evitar que a Sra. Rosalie, tomando-o por um braço, lhe perguntasse:

-  Seu Chi-So, conhece porventura a história da princesa encantada?

-  Qual delas? - respondeu ele. - Existem muitas histórias com este título.

-  Refiro-me àquela princesa que foi encantada num botão, na torre da igreja.

-  Essa, não conheço.

-  A torre tinha cento e onze côvados de altura; por isso, quem quisesse desencantá-la, tinha que praticar cento e onze feitos heróicos, um para cada côvado. Muitos milhares de anos esteve a pobre princesa no botão, sem que ninguém chegasse, ao menos, ao terceiro feito heróico, até que um jovem cavaleiro de Schleswig-Holestein praticou os cento e onze feitos com seu escudo e sua vida. Então abriu-se o botão da torre da igreja e a princesa, saltando para fora, deu a mão direita ao salvador e conduziu-o à sacristia.

-  Ah! - sorriu Chi-So. - E qual a utilidade desta tão linda quão comovente história?

-  Utilidade? O que quer dizer com isso? Não vá transformar a utilidade em prejuízo para si! Contei-lhe isso do botão da torre porque vejo que o senhor também é um corajoso cavaleiro de Schleswig-Holestein. também existem princesas encantadas entre os índios?

-  Não.

-  É pena! Acho que o senhor também chegaria até cento e onze. Conte com meu respeito e minha gratidão!

Quis prosseguir, porém foi empurrada por alguém que se interpôs entre os dois. Era o cantor que, tomando a mão de Chi-So, disse:

-  Meu jovem e caro amigo, sabe que estou compondo uma grande ópera heróica?

-  Sim, já nos disse isso muitas vezes!

-  E que esta ópera terá doze atos?

-  Sem dúvida, acho que o senhor falou mesmo de doze atos.

-  Bem. Em que ato deseja aparecer?

-  Por que eu?

- Porque o senhor é o tipo do herói que eu necessito para a minha composição. Entrará em cena arrastando o traidor pelo laço, através do palco.   Portanto, faça o favor, em que ato?

Pela face do semi-índío, habitualmente tão séria, perpassou um alegre sorriso, ao responder:                                                                                       

-  Digamos, no nono.

-  Bem! E quer arrastá-lo através do palco em maior ou em menor?

- Em menor !

-  Bom. Então eu opino por dó-menor, que tem o acorde de sexta-dominante com sol e está ligado em primeiro grau com o divino mibemol maior. E para o compasso, escolheremos não o ternário ou o sextário, mas o quaternário, porque o cavalo, que o senhor montará, terá exatamente quatro pernas. O senhor vê que tudo está conforme. Vou em seguida tomar nota de tudo.

Sacou do bolso seu livrinho de notas. Neste momento soou atrás de si uma voz:

-  Também tenho uma coisa a lhe observar, seu cantor. Ele virou-se e viu Sam diante de si.  Delicadamente corrigiu:

-  Por favor, por favor, cantor aposentado. É só por causa da clareza.   Uma vez que não me acho mais em ofício...

-  Então o senhor anda por fora do acampamento! - interrompeu-o Sam. - Quem lhe mandou deixar o acampamento?

-  Quem me mandou? O gênio da arte impeliu-me, primeiro lento, depois vivace e por fim até allegrissimo. O senhor sabe, quando a musa manda, o discípulo deve obedecer.

-  Então peço que se despeça da musa, pois ela não tem boas intenções para consigo.

-  Não diga isso, prezado senhor. Eu precisava de um trinado duplo para minha ópera. Como não pudesse achá-lo aqui no acampamento, afastei-me a fim de concentrar-me bem, lá fora, onde ninguém me incomodasse.

-  E para isso sentou-se no chão?

-  Sim.

-  E ficou a espera do trinado? Mas quem apareceu foi um estranho que, não o vendo, tropeçou no senhor!

-  Oh, ele não só tropeçou, como de fato caiu de todo o comprimento por cima de mim. No mesmo momento segurou-me pelo pescoço, da mesma maneira como se empunha um violino.

-  Então teve lugar um dueto?

-  Até nem foi um dueto.  Apenas conversamos um pouco.

-  0 senhor em alemão e ele em inglês e nenhum entendeu o outro.

-  Isso não é milagre. Quem quiser entender-me, não deve apertar-me o pescoço. Isso ele devia ter previsto. Além disso, aproveitei uma ocasião em que ele afrouxou um pouco a pressão para afastar-me dele e do lugar.

-  Com certeza também allegro ou allegrissimo?

-  Já era mais con freta, pois eu desconfiava que ele estava com intenção de subjugar-me.

-  Isso ele faria e muito mais ainda! Sabe quem era ele?

-  Não houve, no decorrer de nossa palestra, nenhuma oportunidade de fazermos as apresentações.

-  Acredito-o. Ele, afinal, não estava absolutamente interessado em tais delicadezas, mas o que ele queria era a sua vida.

-  Minha vida? - perguntou o cantor muito admirado.

-  Sem dúvida. O homem que tropeçou no senhor pertence aos Finders, que querem nos assaltar e assassinar!

-  Não quero acreditar nisso! O senhor deve estar enganado. Já tive o prazer de repetir-lhe, explicando que para o filho das musas não existe nenhum perigo, senão o da perda de sua obra.

-  Então se um bandido declarado tropeça justamente no senhor e o segura pelo gasnete para estrangulá-lo, isto não constitui nenhum perigo para a sua pessoa?

-  Não. Aliás, o senhor tem a prova, caro senhor. Ele deixou-me ir embora, e também foi-se. Sobre mim paira um gênio, que por mim vela e me guarda de toda a infelicidade.

-  Se essa crença o faz feliz, conserve-a, assim, até ser alvejado, espancado, apunhalado e escalpelado. A sua nostálgica esperança de um trinado expõe-nos, porém, a um perigo. Para o futuro não só amarraremos o seu cavalo, mas também o senhor próprio.

-  Senhor, insurjo-me contra tal medida. O gênio não conhece peias, e quando se sente tolhido, rompe todos os liames. Como quer reprimir os sons de uma trombeta quando já a tem na boca?

-  Simplesmente retirando-a da boca, se não me engano. Por enquanto exijo somente que se conserve quieto e permaneça onde eu o colocar. Nossa vida depende disso, isto é, de que ninguém cometa um erro.

-  Se o caso é este, obedecerei às suas ordens, pode estar certo. Todavia, se houver luta e também algum morto, disponho-me de bom grado a compor rapidamente uma Missa pro defunctis acompanhada de apreciável texto. Procurarei imediatamente concentrar-me, a fim de encontrar um tema sugestivo e belo.

O fogo tinha sido aumentado durante todo este tempo. Agora deveriam abandonar o acampamento. Sam decidiu que somente ele, Stone, Parker e os soldados ficassem para a escaramuça com os Finders. Os outros não deveriam expor-se ao perigo. Schmidt, Strauch, Ebersbach e Uhlmann estavam de acordo. Mas a Sra. Rosalie interveio, indignada:

-  O quê? Devo ficar com as mãos abanando enquanto os outros arriscam a vida por mim? Isso não posso permitir. Se não sobrar nenhuma espingarda para mim, agarro uma pá ou um enxadão, e ai daquele que se aproximar de mim! Na ópera heróica do senhor aposentado também devem aparecer algumas damas, e eu quero ser a primeira. Portanto, digam-me o lugar onde deverei postar-me. Farei o serviço que me toca. O que não farei é fugir daqui!

Custou não pouco trabalho convencê-la de que sua cooperação poderia causar prejuízo e só a contragosto resolveu juntar-se aos que deviam assistir à luta. Os quatro imigrantes alemães dirigiram-se com suas mulheres, crianças e animais de tiro, para o local antes ocupado pelos soldados. O cantor estava naturalmente com eles e Sam recomendou-lhes muito que exercessem rigorosa vigilância sobre ele, a fim de que não saísse outra vez em busca de trinados! Os cavalos e o guia prisioneiro foram igualmente conduzidos para um lugar seguro. Aliás Chi-So e Adolf Wolf também deviam ser afastados da refrega, em vista de sua pouca idade; o primeiro, porém, declarou que se sentiria tão ofendido com tal medida que Sam permitiu-lhe ficar, em conseqüência do que também não pode negar o seu consentimento a Adolf Wolf. Os soldados trataram de conduzir os cavalos dos imigrantes para um lugar seguro. Sam Hawkens fez-lhes as devidas recomendações e depois disse ao oficial:

-  Vou fazer mais uma inspeção, rastejando pelas redondezas do acampamento, para verificar o ambiente.

Quando estava prestes a afastar-se, aproximou-se Chi-So e em tom circunspecto suplicou-lhe que o deixasse também rastejando vigiar os movimentos dos Finders, a fim de poder avisar os amigos sobre o momento preciso do ataque dos adversários. Sam piscou seus olhinhos espertos, assentindo benevolamente. Em seguida afastaram-se ambos em rumo diverso. Chi-So conservou exatamente uma linha reta em direção ao acampamento de emergência dos Finders. Após ter caminhado prudentemente uns dez minutos, sentou-se a alguns passos para o lado. Reinava o mais profundo silêncio em seu redor. Lá atrás, a fogueira do acampamento brilhava cada vez menos, até que por fim se distinguiu num bruxulear. Era o sinal pelo qual esperavam os Finders para iniciar o assalto. Efetivamente, em breve ouviu-se na direção mencionada como que um sussurro. Era o ruído quase imperceptível de passos rastejantes. Ele ergueu-se a meio espreitando ainda mais cuidadosamente do que antes. Seu bom ouvido informou-o de que os que se aproximavam estavam a uma distância de vinte a trinta passos. Por isso rastejou rapidamente para o lado, deitando-se então bem colado à terra. Eles prosseguiam, em silêncio, lentamente, num denso grupo, e não um atrás do outro, como o fariam os índios ou experimentados homens do Oeste. Passaram rastejando, e Chi-So ergueu-se e seguiu no seu encalço.

Assim foram indo, avançando sempre, seguindo-lhes Chi-So, como uma sombra. Quando os Finders alcançaram mais ou menos as proximidades do acampamento, estacaram. Se o filho do cacique quisesse ouvi-los agora, precisaria ser muito ousado. Por isso deitou-se no chão arrastando-se até chegar tão próximo, que se quisesse podia tocar um deles com a mão. Esta temeridade foi recompensada, pois podia ouvir a Buttler  falar, ainda que  muito baixinho, porém  compreensivamente:

-  O fogo está quase apagado e acho que eles agora vão dormir. Mas vamos  esperar ainda um pouco, antes de cair-lhes em cima. O seguro morreu de velho. Devemos cercá-los imediatamente. Se cada um de nós distanciar-se uns trinta passos um do outro, será o suficiente para formarmos um círculo em redor das carretas. Depois deverão aguardar o meu sinal.

 

Passavam rastejando, e Chi-So ergueu-se e seguiu no seu encalço.

 

-  Que sinal? - perguntaram.

-  Imitarei com uma haste de capim o trilar do grilo. A este sinal, vocês devem-se aproximar das carretas. Assim que eu chegar até lá, trilo pela segunda vez e espero a fim de dar tempo a vocês de se aproximarem. Finalmente, quando eu der o terceiro sinal, será a ordem para vocês passarem por baixo das carretas, dos varais e por entre as rodas, para fazerem estes sujeitos experimentarem as suas facas.   Evitaremos dar tiros.

-  Que faremos com as mulheres e crianças?

-  Serão liquidadas! Não deve ficar ninguém que mais tarde nos possa denunciar. Os despojos repartiremos, e as carretas com os cadáveres serão queimados. Portanto, avante! A metade segue pela direita e a outra metade pela esquerda. Eu fico aqui. Tomem muito cuidado e evitem todo ruído para não sermos surpreendidos.

Um ainda perguntou:

-  E se toparmos com algum espia?  Talvez tenham enviado alguém.

- Não creio. Mas se tal acontecer, deverá ser apunhalado. O golpe deverá ser bem dado. Deve ser mortal. Então, ao trabalho agora, e prestem atenção ao meu sinal.

Os Finders afastaram-se em duas direções, a fim de envolver o agrupamento das carretas num círculo. Buttler ficou onde estava. Chi-So refletiu um instante. Deveria ir fazer a comunicação? Não. Tinha o bandido bem diante de si. Se o inutilizasse, seria muito mais fácil subjugar os outros. Esperou um pouco, após, tomando posição atrás de Buttler, vibrou-lhe um golpe de revólver tão formidável, que o atingido caiu sem dizer nada. Em seguida afastou-se rastejando para o lado, arrastando o desacordado pela gola. Sabia perfeitamente para onde Sam mandara os soldados com. Dick Stone e Will Parker. Quando lá chegou, Sam acabava de voltar do seu reconhecimento. O pequeno caçador agachou-se para ver melhor o vulto que o índio trazia de arrasto e disse admirado:

Vibrou-lhe um golpe de revólver tão formidável. . .

-  Um homem! Que aconteceu? Está morto?

-  Não. Somente desmaiado - respondeu Chi-So.

-  Quem é?

-  Buttler!

-  Diabo! Como perdeu os sentidos?

-  Com um coronhaço que lhe apliquei.

-  Zounds! Cometeste um grande erro e estragaste todo o meu lindo plano! Conta depressa como se passou isto!

Chi-So expôs o ocorrido em poucas palavras. Quando terminou, disse-lhe Sam, aliás já num tom bem diferente:

-  Caramba! Bem; uma vez que é assim, já não posso recriminar-te. Vou então trilar alguma coisa para estes Finders, o que conduzirá os mesmos para nossas mãos. Amarra este sujeito e aplica-lhe uma mordaça, a fim de que não se torne palrador quando acordar. Os soldados apressaram-se a cumprir a ordem.   Enquanto isso, o tenente perguntava:

-  Então o senhor quer dar o sinal em lugar de Buttler? Como é que pretende imitar o trilo?

-  Muito simples. Com o auxílio duma haste de capim. Juntam-se as mãos de maneira a formar uma concavidade, sobre a qual os polegares ficam colocados um ao lado do outro. Aperta-se entre os dedos polegares um capinzinho, bem esticado, sopra-se neste e sairá um som idêntico ao trilar dum grilo.

-  Também preciso experimentar isso!

- Não me oporei. Contudo, peço-lhe que realize esta experiência só amanhã ou daqui a dez anos, mas não hoje e aqui, pois assim espantará estes rapazes que queremos pegar!

-  Como?

-  Porque o verdadeiro trilo não sai certo assim logo à primeira tentativa. Você tirará um som provavelmente semelhante ao de uma clarineta. E agora ponham-se sem ruído atrás dos Finders, de maneira que fiquem sempre dois de nós para cada um deles. Assim que eu trile, deverão eles avançar e vocês atrás. E quando eu der o terceiro sinal e eles quiserem passar por baixo das carretas, vocês caem sobre eles, derrubando-os com um coronhaço!

-  Mas eu achava que um tiro ou uma facada seria melhor. Estes canalhas há muito que perderam o direito à vida!

-  Certamente!   Mas eu não sou nem seu juiz nem seu carrasco.

-  Mas, Sir, o que julga que acontecerá a estes homens em Tucson?

-  Atar-se-ão cordas em seus pescoços e em seguida serão guindados.

-  Está certo. Serão enforcados. Portanto morrerão. Nesse caso será a mesma coisa, tanto faz serem julgados aqui como lá!

-  Pode ser. Mas você esquece de que lá estarão sob o regime da lei, enquanto que aqui eles ainda não foram condenados? Não, não, vamos pegá-los vivos.  O que acontecerá depois, lá na cidade, é com vocês.

- Hum, então vou guiar-me pelo senhor, se bem que estes patifes não mereçam tal escrúpulo.

Puseram-se em ação. Os soldados dividiram-se em dois grupos. Stone, Parker e o tenente encarregaram-se de guiá-los. Afastaram-se a fim de circundar os Finders de dois em dois. Adolf Wolf ficou junto a Buttler, para vigiá-lo. Chi-So teve que conduzir Sam até o lugar onde derrubara Buttler. Estes dois últimos ocuparam então um trecho do círculo organizado pelos Finders, enquanto os soldados fechavam um cerco em torno deste círculo.

Quando Sam calculou que o cerco devia estar pronto, apanhou um capinzinho e, apertando-o entre os polegares, deixou escapar o trilo combinado. Em seguida, rastejou sozinho até a metade do círculo e deu, perto das carretas, o segundo sinal, esperando depois alguns segundos. Começaram então a chegar, rastejando silenciosamente. O círculo tinha-se estreitado de tal maneira que, dum lado ao outro, era possível reconhecer-se mutuamente bastante bem.

-  Buttler, estou aqui - sussurraram da direita.

-  Vai tudo bem? - perguntou outro à esquerda. - Não percas tempo.  Dá o sinal duma vez!

Sam voltou-se para trás. Seus olhos agudos lobrigaram Dick Stone com um soldado, deitado atrás do que falara primeiro. Atrás do segundo esperavam também já dois militares prontos. Então ele trilou pela terceira vez, atirando-se em seguida para a esquerda sobre o assaltante a fim de auxiliar os companheiros.

 

...   atirando-se em seguida para a  esquerda sobre o assaltante...

 

Também o filho do cacique pulou para a direita; Dick Stone, porém, já tinha o seu prisioneiro seguro pelo pescoço.

 

Ouviu-se o ruído de coronhaços e alguns gritos abafados. Depois, ficou tudo em silêncio.

-  Alô! - exclamou Sam em voz alta. - Correu tudo bem?

-  Tudo - respondeu Will Parker da outra banda. - Estão todos bem seguros.

-  Então tragam-nos para cá e acendam o fogo novamente para que possamos, como manda o bom-tom, mostrar-lhes nossas caras!

Alguns minutos mais tarde jaziam os Finders subjugados no interior do forte formado pelas carretas. Em redor deles achavam-se Sam, Dick Stone, Will, o tenente e Adolf Wolf, enquanto que os soldados haviam ido buscar os imigrantes e os cavalos. Alguns destes tinham ido sob as ordens de Chi-So para o acampamento dos Finders a fim de trazer os cavalos. O fogo brilhou alto e claro, iluminando todo o acampamento.

Os Finders jaziam um ao lado do outro, e no momento até estavam de olhos bem abertos. Nenhum havia sido assassinado. Estavam outra vez em seu juízo perfeito. Assim é que viam e ouviam tudo que se passava ao redor deles. Nenhum parecia ter vontade de falar; via-se, porém, facilmente, nas suas expressões furiosas e nos olhares rancorosos que lançavam, toda a raiva que deviam sentir. Ainda não lhes haviam dirigido nenhuma pergunta, pois Sam desejava aguardar primeiro o retorno dos imigrantes. Ouviu-se então de longe uma voz feminina bradando jubilosamente:

-  We have them, we have them!

Quem assim falava aproximou-se, alcançou o acampamento, passou por baixo dum varal e precipitou-se sobre Sam, bradando:

-  We have them, we have them! Não significa isto: nós os temos, Sr. Hawkens?

Era a querida Sra. Rosalie Ebersbach, nascida Morgenstern, viúva Leiermueller.  Tinha-se adiantado a todos os outros.

-  Sim - respondeu Sam.

-  Então we have them, we have them, nós os temos! Graças a Deus! Quanto medo senti e quantas preocupações me assaltaram! Quase fugi para voltar aqui e ajudar a lutar, a esfaquear, a brigar. Apareceram então os soldados e disseram: We have them! E eu toquei-me para cá, o mais depressa possível, para também poder pegá-los! - Seu olhar caiu sobre os prisioneiros.

-  Mas o que é isto? Eles ainda vivem? Julguei que encontraria apenas seus cadáveres. Isto não me entra na cabeça. Porventura procedeu-se assim de propósito?

-  Sem dúvida.

-  Bom, então neste ano a Páscoa caiu numa quinta-feira em lugar de cair num domingo, o que por si mesmo se explica, como de direito! Ignora então, Sr. Hawkens, que estes bandidos pretendiam atentar contra nossas vidas?

-  Isso eu sei, sem dúvida.

-  E o senhor ainda não lhes deu uns tiros? Isso é uma generosidade que absolutamente meu temperamento não aprova. Quem mata, também precisa ser liquidado. Olho por olho, dente por dente. Assim está escrito na Bíblia e em todos os livros de leis!

-  A senhora foi  realmente assassinada, Sra. Ebersbach?

-  Não. Como pode falar assim! Se tivesse sido assassinada, estaria agora como um fantasma ante o senhor, e espero que não me tome por tal.

-  Certamente que não, Sra. Ebersbach. Então, olho por olho, dente por dente. A senhora não foi assassinada, por isso também não assassinamos os Finders.

-  Mas eles queriam assassinar-nos! É a mesma coisa como se tivessem realmente assassinado!

-  E eu quis realmente alvejá-los. É pois a mesma coisa como se os tivesse alvejado.

Ela mirou-o comicamente, e chocada, passando a mão pela testa, confessou sinceramente:

-  Mas que Rosalie idiota que sou! Deixo-me derrotar com minhas próprias palavras! Isso acontece-me pela primeira vez em minha vida... Mas diga-me finalmente o que acontecerá a esta canalha. Já que o senhor foi tão consciencioso ao tratá-los, posso permitir-me, com boas razões, a pergunta se eles, talvez, receberão uma recompensa, um prêmio ou uma medalha de ouro?

-  Saberá muito breve o que tencionamos fazer com eles.

-  Assim o espero. Lembre-se de que pertenço às personalidades que iam ser atingidas! Se o assalto se tivesse realizado, estaria eu agora cadáver abandonado no campo da chacina, e a aurora iluminaria minha morte prematura.   Isso requer castigo. Compreende-me?

-  O castigo não será esquecido, Sra. Ebersbach, pode estar segura. Mas isso não quer dizer que os culpados devem ser assassinados. Nós somos cristãos e a senhora é uma mulher, uma dama. A senhora pertence ao delicado, ao belo sexo, que renuncia à cólera, ao ódio e governa o mundo com amor e bondade. Estou certo de que também em seu coração mora a ternura, sem a qual a mais bela mulher torna-se feia.

O impagável homenzinho, falando daquela maneira, não se enganara. A Sra. Rosalie bateu no peito e respondeu:

-  Se a ternura mora em meu coração? Naturalmente que ela mora aqui! Pois eu tenho um coração, e que coração! Derrete-se como manteiga ao sol. Pertenço também a este belo e delicado sexo a que se refere o senhor, e quero governar o mundo com minha bondade. Acontece até que minha pessoa, às vezes, não é devidamente compreendida, e freqüentes vezes já aconteceu que minha ternura e bondade fossem avaliadas bastante profundamente. Nesta circunstância, porém, quero provar abertamente que o meu sexo fraco é forte no perdão. Verá que não se enganou comigo, Sr. Hawkens. Não desejo ver uma punição a esta turba de assassinos. Deixe-os andar.

Ela teria certamente continuado a falar, se não tivessem chegado os soldados com seus cavalos, e com eles, os imigrantes, que traziam o guia prisioneiro.

Teve lugar então um acalorado diálogo, que não cessou senão quando os alemães estavam inteiramente a par de tudo quanto se passara em sua ausência.

Também o cantor escutava atentamente, se bem que não se achasse, como os outros, sentado junto ao fogo, mas em constante movimento, Ocupava-se com os prisioneiros, cuja acomodação parecia não lhe agradar. Empurrava ora um, ora outro até que Sam finalmente perguntou-lhe:

-  Que está fazendo? Não estão bem acomodados esses homens, seu cantor?

O interpelado voltou-se e respondeu em tom incisivo:

-  Cantor aposentado, se me faz favor, Sr. Hawkens! É unicamente por causa da clareza e para que não haja confusão. Sim, o senhor adivinhou, os prisioneiros estão mal colocados, devem estar em posição bem diferente.

-  Por quê?

-  Seu agrupamento não lhes empresta a devida unidade. Parece que o senhor ainda não sabe ou já se esqueceu do que se trata?

Sem pensar logo na singular mania do cantor, Sam perguntou imprudentemente:

-  O quê?

-  Nada menos que a minha ópera. Estou trabalhando no sentido de compor uma grande ópera de doze atos e só por causa disso viajo por essas redondezas, a fim de colher a matéria necessária. Descobri uma cena aqui, uma ótima cena: trata-se do Coro dos Assassinos. Eles jazem no chão e cantam um sexteto duplo. Mas para isso é necessário uma colocação bem diferente da que o senhor lhes deu. Estou estudando o caso e desenharei o modelo do agrupamento quando tenha achado a colocação conveniente. Pode estar certo de que terei o máximo cuidado a fim de que eles não se machuquem.

-  Quanto a isso não se incomode! Sujeitos como esses não devem ser tratados com luvas de pelica.

Em seguida o compositor épico prosseguiu em seu trabalho, e com tanto empenho e tão compenetradamente, que Buttler, que até então se conservara em silêncio, disse rancorosamente a Sam:

-  Sir, para que está esse homem a nos remexer e sacudir? Providencie duma vez a fim de que ele nos deixe finalmente em paz! Não somos bonecos em quem se pode puxar e mexer à vontade!

Sam não julgou que valesse a pena responder à pergunta, e assim, após alguns instantes, Buttler prosseguiu:

-  Aliás, quero saber com que direito vocês nos assaltam e subjugam!

- Quer saber? - riu-se o caçador. - Acho que ninguém precisa esclarecê-lo a este respeito e você próprio poderá responder à sua pergunta.

-  Como? Vínhamos como pacíficos viajantes, quando vimos o fogo do acampamento. Como não sabíamos de quem ele era, rastejamos secretamente até aqui, a fim de, como é muito natural, averiguarmos de quem se tratava. Entretanto, fomos traiçoeiramente subjugados. Exigimos pois imediatamente a nossa liberdade!

- Vá exigindo. Por mim, não tenho nada contra vocês, se não me engano. Livres estarão vocês amanhã, ou melhor, enforcados num belo e reforçado poste, hihihihi.

- Se a sua intenção foi fazer pilhéria, escolha outro motivo. Ultrajar gente honrada não é pilhéria. Talvez sejam vocês mesmos que serão dependurados no poste em Tucson.

Sam levantou-se de perto do fogo e dirigiu-se para ele dizendo zombeteiramente:

-  A fim de terminarmos com esta sua estúpida maneira de falar, vamos fazer as devidas apresentações: Chamo-me Sam Hawkens. Compreende? Ali estão Dick Stone e Will Parker. Costumam chamar-nos a Folha de Trevo. Compreendeu agora? Acham vocês que são homens para nos darem lições e até  nos ameaçarem?

Com essas palavras Buttler empalideceu mortalmente, não conseguindo achar nenhuma resposta.  Sam Hawkens prosseguiu:

-  Eu próprio estive hoje lá com vocês, espiando-os e ouvi tudo o que disseram. Vocês, são os Finders; aliás eu não precisava descobrir isto hoje, pois já o sabia em San Xavier del Bac.

Então Buttler ergueu-se assustado e exclamou:

- Hawkens! Os Finders! Que idéia confundir-nos com eles! Quem contou tal história?

-  Vocês mesmos.   Tenho bons ouvidos.

-  Ora, mesmo o ouvido mais atilado pode enganar-se e entender mal!

-  Acha? Porventura também foi um mal-entendido há pouco, quando você foi interrogado sobre o destino a ser dado às mulheres e às crianças que se acham conosco?

-  Não sei de nada disso.

-  Que elas também deviam ser liquidadas a fim de que não existissem, mais tarde, eventuais delatores.

-  Não tenho a mínima idéia disso!

- Também não tem idéia de que iam repartir a presa e queimar as carretas?

-  Não.

-  Então você possui uma memória muito fraca. Mas lá em Tucson avivá-la-emos.

O oficial, tomando pela primeira vez a palavra, dirigiu-se a Sam:

- Não gaste palavras com essa gente, Sir! Deixe-o falar quanto quiser, pois isso não lhe ajudará nada. Sabemos que eles são os Finders e por isso amanhã estarão pendurados.

-  Não será necessário nosso testemunho? - indagou Dick  Stone.

- Não. Vocês tencionam seguir adiante com as carretas e eu não os interromperei, fazendo-os voltar comigo para Tucson. Disseram-me o que era preciso. É como se tivesse acontecido perante a autoridade. Temos provas mais do que suficientes e não fará mal nenhum se esta zona ficar enfim desinfestada desta canalha, que vagou durante tanto tempo impune por aqui.   Dou-lhe minha palavra como todos serão enforcados.        

Renunciaram a maiores conversações. Colocaram as sentinelas necessárias e depois deitaram-se para dormir. Um dos soldados ficou encarregado de não perder os prisioneiros de vista.

O guia amarrado foi conduzido para junto dos Finders e, por casualidade, ficou justamente ao lado de Buttler. Estes dois ainda não haviam trocado nenhuma palavra entre si, apesar de ser relativamente fácil, em virtude de estarem bem próximos, um do outro. Mais tarde, quando todos já dormiam, e o guia observou que a sentinela cuidava unicamente de que nenhum se livrasse das amarras, bateu com o cotovelo em Buttler e sussurrou:

 

... e,  por casualidade, ficou justamente ao lado de Buttler.

 

-  Não está dormindo?

- Não - foi a resposta. - Quem pode dormir com tamanhos incômodos?

-  Então volte-se para o meu lado.  Preciso conversar com você. Buttler aceitou o convite, inquirindo em seguida:

- Você não era o guia desses patifes? O que aconteceu para que recebesse seu pagamento dessa forma?

-  Porque suspeitaram de que eu estava com projetos de entrar em combinação com vocês.

-  Mas isso não era verdade, não?

- A princípio, realmente não. A intenção veio-me depois. Chamo-me Poller e desejava que tivesse confiança em mim. Vocês têm cem probabilidades contra uma de serem enforcados. Mas eu desejava salvá-los.

-  Sério?

-  Sim, juro-lhe. Estes sujeitos ofenderam-me e eu não sou homem para deixar que fique assim essa injustiça. Sozinho, nada posso fazer. Se, porém, você me quiser ajudar, eles receberão seguramente o que merecem.

-  Ajudar? Aqui ninguém pode ajudar. Nem você a mim nem eu a você.

- Não pense assim. Estou certo de que amanhã me darão liberdade. Atarão vocês nos cavalos e seguirão para Tucson, levando-os. Eu seguirei atrás.

- Agradeço-lhe! Todavia de nada me servirá. É me absolutamente impossível escapar.

-  Qual! Tenho uma boa idéia. Porventura estará ligado tão intimamente à sua gente que não queira libertar-se caso eles também não possam fazê-lo?

-  Bobagem! Cada um é o próximo de si mesmo. Se eu puder salvar-me, eles que se pendurem por mim!

-  Bem, então estamos de acordo. Diga, durante a cavalgada, que se acha numa posição tal que o ferimento produzido pelo coronhaço lhe dói muito. Cambaleie bastante. Mostre-se o mais fraco possível! Surpreender-me-ia se este tenente não fizesse alto uma vez a fim de dar-lhe ocasião de refazer-se. Então será preciso tirar-lhe as amarras dos pés. Aí poderá, mesmo com as mãos atadas, dominar o cavalo mais rápido e fugir, naturalmente para trás, onde o aguardarei. Serão tomados de surpresa e não sairão logo em sua perseguição. Com isto, conseguirá adiantar-se. Se depois acontecer que se aproxime alguém, tenho minha boa espingarda e o derrubarei da sela.

Buttler não respondeu logo. Refletiu e disse somente depois de algum tempo:

-  A sua sugestão é a única que pode servir. Aceito-a. Se realmente conseguir livrar-me, então três vezes ai desta Folha de Trevo e de todos aqueles alemães!   Conservemo-nos unidos, mestre Poller.

Nesse ponto terminou a conversa dos dois e da qual a sentinela não ouviu nada. Buttler sentiu-se mais ou menos tranqüilizado e até conseguiu dormir.

Apenas amanheceu, ergueram-se todos no acampamento. Primeiro tomaram uma rápida refeição das provisões que os cavalarianos haviam trazido. O tenente anunciou que pretendia partir com seus prisioneiros. Ordenou que fossem amarrados a seus cavalos. Suas mãos foram atadas na frente, de maneira que pudessem segurar as rédeas para dirigir o cavalo. Enquanto se passava isto, o guia gritou para Sam Hawkens:

-  E o que farão comigo? Porventura vão deixar-me assim amarrado como prisioneiro, aqui?

-  Não - respondeu Sam. - Queria somente tê-lo seguro por esta noite.   Agora já é dia, portanto, pode ir para onde bem entender.

-   Well, então libertem-me!

-  Não se precipite, meu muito honrado mestre Poller! Suponho que queira vingar-se de nós e talvez nos siga com essa intenção. Por isso vou torná-lo inofensivo, conservando as suas armas comigo.

-  Protesto!   Isso seria banditismo, roubo!

-  Qual! Denomine-o como quiser. Não modificará absolutamente nada.

Poller foi desvencilhado das cordas e, montando a cavalo entre pragas e maldições, afastou-se em direção leste, para mais adiante desviar, disfarçadamente, para o lado de Tucson. O tenente despediu-se, afastando-se com seus soldados e prisioneiros para oeste. Agora, que toda aquela gente tinha ido embora, e que se podia novamente pensar em cada um particularmente, Sam Hawkens observou que faltava o cantor. Já iam ser enviados batedores à sua procura, encarregados de trazê-lo de volta, quando foi visto, aproximando-se de leste, lentamente e com singulares gesticulações. Quando alcançou o acampamento, dirigiu-se-lhe Sam severamente:

-  Por onde andava o senhor novamente?  O que procurava lá fora?

 

-  Uma marcha triunfal - respondeu o entusiasta da música, que parecia estar bastante suado.

-  Marcha triunfal?   Está maluco?

-  Maluco? Mas como chega a dizer uma palavra tão injuriosa, prezado senhor? Nós vencemos. Aprisionamos o inimigo, e por isso afastei-me a fim de achar, na solidão, o motivo para uma marcha de entrada e de vitória!

-  Asneiras! O senhor não deve andar assim aí por fora. É uma falta que não posso permitir!

-  Falta? Faça o favor! Um filho da arte não incorre em erro. Isso acontece muito mais facilmente ao guia!

-  O guia? Como?

- Estava há pouco em plena atividade compondo, quando ele se aproximou de mim a cavalo, tomando-me as minhas armas. Deixou-me só a espada, mas dela eu não preciso.

-  Com mil trovões! - explodiu então Sam Hawkens. - Já o imaginava! Mando o rapaz embora sem armas e o senhor corre expressamente para fora a fim de entregar-lhe as suas!

-  Entregar-lhe? Nem me passou pela idéia. Tomou-me e em paga deu-me duas.. .  duas. . .  nem devo dizê-lo.

-  Diga-o. Preciso saber.

-  Em alemão, não me é possível. Em latim chama-se Golaphus.

-  Colaphus é bofetada. Portanto, o senhor recebeu duas bofetadas dele?

-  Sim.   E de que espécie!   Fortíssimo!

-  Foi a melhor ação que este sujeito praticou em toda a sua vida!

-  Por favor, por favor, prezadíssimo Sr. Hawkens! Um compositor, um filho da música, no qual aplicam dois formidáveis tapões!

-  Integralmente merecidos! - atalhou-o Sam. - De agora em diante terei o senhor ainda muito mais rigorosamente sob nossas vistas do que antes. Prepare-se para a partida. Vamos seguir adiante!

Uma hora depois, o comboio de carretas punha-se em movimento. Na frente, cavalgava Sam Hawkens, que assumira o lugar do ex-guia. Buttler estava firmemente resolvido a seguir o conselho do guia. Não sabia de nenhum outro meio que o conduzisse à liberdade. Portanto tinha que aparentar mal-estar! Ele havia recomendado isso a seus companheiros, logo ao acordar-se naquela manhã, mas prevenira de que não o manifestassem muito cedo a fim de não levantar suspeitas. Assim, começou a fingir sentir-se mal somente depois de terem coberto já quase metade do caminho. Levou as mãos atadas à cabeça e pôs-se a gemer. Isso devia forçosamente chamar a atenção do tenente. Este informou-se a respeito e teve como resposta que o coronhaço da véspera provavelmente lhe havia abalado os miolos.

Buttler foi ficando cada vez mais fraco. Começou a oscilar de tal maneira na sela, que teve dois cavalarianos colocados, à direita e à esquerda, a fim de o ampararem. Quando essa fraqueza começou a manifestar-se também em outros prisioneiros, o tenente ficou apreensivo e deu ordem para fazerem alto e apearem.

Naturalmente os soldados apearam primeiro para desatarem as cordas que prendiam as pernas dos Finders aos cavalos. Buttler foi o primeiro a quem aconteceu isto. Tiraram-no do cavalo e ele caiu logo ao chão.

 

. . . tomou as rédeas e saiu em disparada para leste. . .

 

Em vista dessa grande fraqueza, acharam que não seria necessário uma atenção especial sobre ele, e cuidaram por isso muito mais de sua gente. Era justamente o que ele queria. Observara que o cavalo do tenente era o melhor de todos. Estava a um lado, livre, pois o oficial, naturalmente, também tinha apeado. Assim, como os cavalarianos não tinham Buttler sob os olhos, este, de repente, levantou-se num pulo, correu até o cavalo, atirou-se, a despeito de suas mãos atadas, sobre a sela, tomou as rédeas e saiu em disparada para leste, porque lá aguardava-o o guia.

Isso acontecera tão rapidamente e a surpresa paralisara de tal maneira os membros dos cavalarianos, que o fugitivo já havia conseguido uma notável distância antes que explodisse o primeiro grito de cólera.

- Atirem! Atirem! Derrubem-no da sela. Mas não acertem no cavalo! - exclamou o oficial.

Correram todos para os cavalos, em cujas selas achavam-se as armas penduradas. Com isto transcorreu bastante tempo, e como o cavalo não devia ser alvejado, o alvo estava muito difícil.

Finalmente ecoaram alguns tiros, mas como eram dirigidos muito alto, passavam por cima da cabeça do fugitivo. Entretanto ele conseguira pôr-se fora do alcance das balas.

Enquanto isso, os outros prisioneiros haviam aproveitado a confusão para em parte fugir a pé, em parte disparar nos cavalos, dos quais ainda não tinham apeado. Ocorreu então uma enorme gritaria e desesperada atrapalhação. Os cavalarianos precisaram espalhar-se, a fim de pegar os fugitivos um por um, de maneira que restaram apenas uns quatro ou cinco, que se lançaram em perseguição de Buttler completamente em vão. Sua vantagem era muito grande e seu cavalo o mais ligeiro. Perderam-no de vista e deram volta praguejando. Ele, porém, continuou a galopar sem parar, até avistar diante de si um cavaleiro. Era o guia, seu novo comparsa, que o saudou alegremente. Ambos procuraram então um lugar seguro contra os perseguidores, e seguiram, na manhã seguinte, o rasto das carretas, que levavam apenas a diferença de um dia de viagem sobre eles. Queriam vingança!

 

O Rancho do Forner

Na margem do pequeno Rio San Carlos, um afluente do Rio Gila, havia um rancho que, por causa do seu atual proprietário, era denominado o Rancho do Forner. Pertencia a este americano uma grande extensão de pastagens. Porém, como hospedaria, servia somente a parte que ficava junto ao rio. A casa não era muito grande, entretanto era forte, construída de pedra e circundada por um muro, igualmente forte, da altura de um homem, em cuja superfície abriam-se, em regulares intervalos, estreitas seteiras, o que constituía uma medida de grande utilidade nestas longínquas e perigosas paragens. O espaço abrangido por este muro era tão vasto, que Forner, no caso de uma escaramuça com os índios, podia encerrar nele todo seu gado.

Era então a melhor época. A estepe ostentava uma relva densa e verde, onde pastavam, contentes, numerosas vacas e ovelhas. Também uma dúzia de cavalos pastavam em liberdade, vigiados, à distância, por vários peões, que, graças ao seu liberal ofício, jogavam cartas. A larga porteira do muro que dava para o rio estava escancarada. Nesse momento surgiu o rancheiro, legítima figura de campeiro, forte e robusto. Seu olhar enérgico percorreu a extensa propriedade. Em seguida, protegendo os olhos com a mão, olhou o horizonte. Sua fisionomia assumiu um aspecto de vivo interesse. Voltou-se então e gritou para cima, na direção do pátio:

-  Alô, boy, apronta a garrafa de brande! Vem alguém aí que vocês verão cair no chão de tanto beber.

-  Quem? - perguntou aquele a quem era dirigida a pergunta, isto é, o filho dele, cujo rosto assomou a uma das janelas da casa.

-  O Rei do Petróleo.

-  Vem sozinho?

-  Não.  São dois cavaleiros com um cargueiro.

- Well. Se os outros bebem como ele, posso já separar mais algumas garrafas.

Diante da casa havia uns dez ou doze blocos de pedras, dispostos de modo a que o maior, o do centro, figurava uma mesa, enquanto os outros menores serviam de cadeiras. O filho saiu em seguida e colocou três garrafas com aguardente e alguns copos nessa mesa. Logo depois atravessou o pátio indo reunir-se ao pai, a fim de aguardar com este a chegada dos visitantes.

Estes haviam alcançado a margem oposta do arroio e conduziam seus cavalos para dentro da água que não era muito profunda.

- Será possível! - exclamou Forner admirado. - Talvez esteja enganado; entretanto, não atino, realmente, o que poderia trazer este homem lá do seguro Arkansas para estas paragens desprotegidas.

-  Quem? - perguntou o filho.

-  Mestre Rollins, de Brownsville!

-  Aquele banqueiro com o qual trataste daquela vez?

 

Nesse  momento  surgiu  o rancheiro,   legitima figura de  campeiro. . .

 

-  Sim. E é ele, de fato. Não me engano! Estou curiosíssimo de descobrir o que ele veio fazer aqui no selvagem Arizona.

Os cavaleiros já haviam alcançado a margem mais próxima e dirigiam-se a trote para o rancho. O que vinha na frente gritou ainda de longe:

-  Good morning, mestre Forner. Terá por aí um trago reforçado para três gentlemen, que quase caem dos cavalos, de tanta sede?

O que falara era um homem alto, seco e muito bem armado. Seu rosto, de traços extraordinariamente duros, era tostado do sol e crestado pelo vento e pelo tempo. Usava uma roupa que se prestava justamente para aquela região, mas que parecia nem lhe ir direito. O segundo cavaleiro era um senhor idoso de aparência agradável. Parecia que a rápida cavalgada matutina o fatigara. Suava. Trazia pendurada na sela uma bela arma de caça. Se trazia ainda outras armas - talvez no bolso - não se via, pois não usava cinturão. Via-se claramente que o Oeste bravio lhe era estranho, ou pelo menos não lhe era familiar. Parecia achar-se na mesma situação que um rato do seco em alto mar.

O terceiro era um homem jovem e forte, que, embora não tivesse a aparência de um experimentado homem do Oeste, parecia, contudo, ser um bom cavaleiro. Tinha um rosto franco e amável, que estava levemente queimado do sol. Suas armas consistiam em uma espingarda, uma faca e um revólver.

-  Mais de um trago! - respondeu Forner.

- Welcome, meus senhores!   Apeiem e deixem-se servir por mim!

O senhor de aparência agradável estacou o cavalo, fitou o rancheiro por alguns instantes e disse:

-  Tenho a impressão de que já nos vimos, Sir. Rancho do Forner! Então o senhor chama-se Forner. Esteve porventura comigo em Brownsville? Chamo-me Rollins e este jovem senhor aqui a meu lado é o Sr. Baumgarten, meu guarda-livros.

Forner curvou-se ante os dois e respondeu:

- Naturalmente já nos vimos, Sir. Tinha as minhas economias depositadas em seu banco e fui buscá-las antes de vir aqui para o Arizona.  Não foi, porém, uma soma tão elevada, que minha pessoa pudesse chamar-lhe a atenção e ficar na sua memória. Entrem, pois! Meu brande é tão bom como qualquer outro, e poderão também comer alguma coisa desde que não sejam muito exigentes. Quanto tempo pretende demorar-se aqui, mestre Grinley?

-  Até ter passado o pior calor do meio-dia - respondeu o que fora denominado Rei do Petróleo, pois a este tinha sido dirigida a pergunta.

Os cavalos foram desencilhados e postos a pastar. Os cavaleiros acomodaram-se nas pedras. Grinley encheu imediatamente um copo de brande e esvaziou-o de um só trago. Pouco depois a garrafa jazia completamente vazia no chão. O banqueiro misturou a aguardente com água, enquanto Baumgarten só tomava água. Forner, pai e filho, retiraram-se para dentro da casa a fim de preparar um jantar para os hóspedes, com as simples provisões de que dispunham.

Nenhum dos que se achavam ali podia ver os cavaleiros que atravessaram o arroio e se aproximavam do rancho. Eles deviam ter uma longa jornada atrás de si, pois seus cavalos estavam muito cansados. Estes dois homens eram Buttler, o chefe dos Finders, e Poller, o guia demitido pelos imigrantes alemães. Enquanto se aproximavam da portaria aberta, Poller  perguntou:

-  Está mesmo certo de que o rancheiro não o conhece? Você descreveu-o como um homem honrado e suponho que o nome de Buttler vá sobressaltá-lo.

-  Ele nunca me viu - retrucou o interpelado. - Somente meu irmão esteve várias vezes com ele.

- Que naturalmente também se chama Buttler!

-  Sem dúvida; todavia ele aqui se chamava Grinley.

-  Foi inteligente. Mas irmãos são geralmente parecidos. Provavelmente com vocês acontece o mesmo?

-  Não. Somos irmãos apenas por parte de pai. Temos mães diferentes.

-  Sabe onde ele se encontra presentemente?

-  Não. Quando nos separamos, dirigi-me para o sul, a fim de fundar a sociedade dos Finders. Ele, porém, estava indeciso sobre a direção a tomar. Quem sabe onde vamos nos encontrar, novamente, se é que ainda nos encontraremos nesta vida... Com todos os diabos, lá está ele!

Os dois haviam chegado neste momento à porteira e viram os três forasteiros sentados no pátio. Buttler reconheceu o Rei do Petróleo imediatamente e parou o cavalo, admirado. No mesmo momento o olhar de Grinley caía sobre a porteira. Reconheceu Buttler, teve, porém, a presença de espírito de, apesar da surpresa, levar a mão rapidamente à boca, em sinal de silêncio.

-  Sim, é  ele - prosseguiu   Buttler,   enquanto punha  o  cavalo outra vez em movimento, entrando no pátio. - Viu o sinal que me fez?  Não devemos conhecê-lo.

Apearam, deixaram os cavalos em liberdade e aproximaram-se das pedras, justamente quando os dois Forners saíam da casa, com pão e carne para os hóspedes. Saudaram e pediram licença para sentar. Não lha negaram, naturalmente, e assim comeram e beberam com os outros, sem que lhes fosse perguntado o nome e seu destino.

Os dois irmãos que não deviam conhecer-se, tinham, como é natural, o máximo empenho em conversarem. Todavia isso só podia dar-se às ocultas. Por isso Grinley, após a refeição, levantou-se e disse que ia deitar-se um pouco na sombra, atrás da casa, a fim de descansar. Buttler, seguiu-o uns minutos após com toda naturalidade e de maneira a chamar, o menos possível, a atenção. Os outros ficaram sentados.

E mais uma vez chegaram dois cavaleiros, mas agora, não do lado do rio, porém ao longo da margem de cá. Vinham muito bem montados. Se fossem outras figuras, poderiam ser tomados de longe por Mão de Ferro, o famoso caçador da Pradaria, e Winnetou, o não menos famoso chefe dos apaches. Mas os dois eram de estatura muito pequena, um gordo e outro magro.

O magro usava culotes franjados e um casaco de caça, de couro também franjado, e botas, cujos canos ele puxara até acima dos joelhos. Na cabeça trazia um amarrotado chapéu de abas largas. O cinturão, composto de uma peça inteiriça, abrigava dois revólveres e uma faca. Do ombro esquerdo ao quadril direito pendia o laço e, ao redor do pescoço, numa fita de seda, prendia-se um cachimbo de paz indiano. Atravessadas nas costas trazia ele duas espingardas, uma longa e uma curta. Idêntica maneira de vestir adotava Mão de Ferro. Também ele usava duas espingardas, a temível carabina estilo Henry, de vinte e cinco tiros, e a vastamente conhecida, longa e pesada mata-ursos.

Enquanto este pequeno homem magro esforçava-se por parecer idêntico, ou uma cópia de Mão de Ferro, o outro parecia empenhar-se em imitar Winnetou. Trazia uma camisa de tecido branco com bordados vermelhos indianos. As calças eram do mesmo tecido e guarnecidas nas costuras com fios de cabelos. Todavia, se eram cabelos de escalpo, não se podia dizer. Os pés estavam metidos em sapatilhas indianas bordadas com contas e enfeitadas com espinhos de ouriço. No pescoço trazia igualmente um cachimbo de paz junto com um saquinho de couro, que devia representar uma sacola de medicina indígena. Em redor da larga cintura enrolava-se uma faixa de Santillo. Desta emergiam os cabos de duas facas e dois revólveres. A cabeça estava descoberta. Deixara crescer os cabelos e usava-os arranjados em um alto topete. Atravessada em suas costas trazia uma espingarda de dois canos, cuja parte de madeira era revestida toda de pregos de prata - uma imitação da célebre espingarda de prata do chefe apache Winnetou.

Quem conhecesse Mão de Ferro e Winnetou e visse esses dois homenzinhos, não poderia deixar de sorrir - o rosto liso, bonacheirão e um tanto ufano do magro, em comparação com as feições barbudas e varonis de Mão de Ferro. E as faces coradas, cheias de vida, o olhar singelo e os lábios risonhos e prazenteiros do gordo contrastando com o brônzeo rosto do apache!

 

Quem  conhecesse Mão de  Ferro e Winnetou e visse esses dois homenzinhos, não poderia deixar de sorrir.

 

E contudo estes dois não eram, de maneira nenhuma, gente para ser motivo de riso.

Sim, eles possuíam determinadas e notáveis particularidades; eram, porém, homens honrados, cavalheiros legítimos e já tinham enfrentado muito perigo, desassombrada e corajosamente. Numa palavra, o gordo era o famoso homem do Oeste, conhecido pela alcunha de Tia Droll, e o magro, seu amigo e primo Hobble-Frank.

Sua veneração por Mão de Ferro e Winnetou era tão grande, que trajavam como estes dois, o que, aliás, emprestava-lhes um aspecto todo esquisito. Suas vestimentas eram novas e haviam custado não pouco dinheiro. E no arreamento de seus animais, também não haviam sido nada econômicos.

Tinham igualmente o rancho como objetivo e caminharam porteira adentro. Quando  surgiram no pátio provocaram certa curiosidade, que tinha explicação no contraste existente entre sua equipagem guerreira e suas fisionomias bonachonas. Não fizeram muitos rodeios. Apearam, acenaram uma breve saudação e sentaram-se em duas pedras vazias que ali havia, sem sequer perguntarem se era permitido fazê-lo ou não.

Forner observava os dois recém-chegados com olhares curiosos. Era um homem experiente; todavia ainda não sabia o que pensar sobre eles. Não pôde vencer certa curiosidade e perguntou:

-  Os cavalheiros talvez queiram algo para comer?

-  Agora não - respondeu Droll.

- Então, mais tarde. Quanto tempo pensam demorar-se aqui?

-  Depende das circunstâncias. Se for preciso.

-  Nesse caso, posso dizer que aqui comigo estarão seguros.

-  Noutra parte também!

-  Acham? Então ainda não sabem que os navajos desenterraram a machadinha de guerra?

-  Sabemos.

-  E que os moquis e os nijoras também se acham em franco levante?

- Também sabemos.

-  E contudo consideram-se seguros?

-  E por que havemos de nos sentir inseguros, se for preciso?

É bem característico e sobejamente conhecido que raramente um homem do Oeste não se tenha habituado a falar de uma maneira peculiar. Sam Hawkens, por exemplo, servia-se a toda hora da frase "se não me engano". Droll acostumara-se à expressão "se for preciso". Muitas vezes tais expressões eram empregadas em circunstâncias em que se tornavam altamente ridículas, chegando a dizer justamente o contrário do que deviam exprimir. Assim também acontecia neste momento. Por isso Forner olhou admirado para o pequeno gordo, prosseguindo, porém, seriamente:

-  Conhece então esses indígenas?

-  Um pouco.

-  Isso não é suficiente. Precisa-se ser amigo deles, e mesmo assim ainda pode acontecer que se perca o escalpo, se eles declaram guerra aos brancos. Se o seu caminho for para o norte, aconselho-o a desistir. Lá não existe caminho seguro. Vocês parecem vir bem preparados, mas pelos seus fatos novos vejo que vem diretamente do leste, e suas caras não são assim de modo a que se possa descobrir logo nelas o destemido homem do Oeste.

- Ah! Isso é muita franqueza. Então o senhor julga as pessoas pelas fisionomias, se for preciso?

-  Sim.

-  Então perca este costume o mais depressa possível! A gente atira e dá golpes com a espingarda e com a faca e não com a fisionomia, entendeu? Pode-se ter uma cara muito brava e valente e contudo ser um poltrão.

-  Isso não contradigo, mas você... Hum! Poderei então saber quem são, cavalheiros?

-  Por que não? Nós somos... bem, nós somos, afinal de contas como se costuma dizer, caçadores.

- Oh, é assim! Então decerto vieram aqui para o Oeste por puro divertimento?

-  Por aflição é que não foi, naturalmente.

-  Se assim é, Sir, então dêem volta imediatamente, se não quiserem ser liquidados assim como se apaga uma vela! Pela maneira de falar, vejo que não têm a mínima idéia dos perigos que os aguardam aqui nestas redondezas, mestre...   mestre...   como é mesmo o seu nome?

Droll meteu a mão no bolso, lentamente, tirou um cartão e passou-o a ele. O rancheiro fez uma cara como se a muito custo conseguisse conter o riso e leu alto: Sebastian Melchior Droll.

Hobble-Frank tinha igualmente remexido no bolso e apresentado seu cartão. Forner leu: Heliogabalus Morpheus Edeward Frank.

Fez uma pausa e explodiu então numa risada:

-  Mas gents(1), que nomes estranhos, que gente estranha são vocês! Julgam talvez que os cândidos índios fugirão ante esses nomes complicados?   Digo-lhes que...

Foi obrigado a interromper, pois Rollins, o banqueiro, entrou na conversa:

-  Por obséquio, mestre Forner, cuide em não ofender estes senhores com suas palavras. Não tenho, é verdade, a honra de conhecê-los pessoalmente; sei, porém, que são pessoas merecedoras de toda a consideração. E dirigindo-se a Hobble-Frank, prosseguiu:

-  Sir, o seu nome é tão incomum, que eu o guardei de memória. Eu sou o banqueiro Rollins de Brownsville, em Arkansas. Há alguns anos atrás não foram depositadas certas importâncias em seu nome, no meu banco?

- Sim, é verdade - assentiu Frank. - Confiara-o a um amigo, que devia fazer o depósito em seu banco, pois o senhor tinha-me sido recomendado por Mão de Fogo. Mais tarde não me foi possível retirar pessoalmente o dinheiro, e dei ordem para que o enviassem a Nova York.

- É isso mesmo! - exclamou Rollins pressurosamente. - Mão de Fogo, sim, sim! Parece que naquela ocasião os senhores acharam uma grande quantidade de ouro, lá em cima nas proximidades de Fillmore City, no Mar de Prata, acho eu.  Não é isso?

-  Sim - riu-se Frank divertidamente. - Foram alguns dedais cheios.

Então Forner levantou-se de um pulo e exclamou:

-  Caramba! É verdade? Será possível? Estiveram lá em cima no Mar de Prata?

_________________

(1)    Gents, abreviatura de gentlemen.

 

-  Certamente.   E aqui o meu primo também estava conosco.

-  Verdade, verdade? Naquela época os jornais todos estavam cheios da extraordinária história. Mão de Fogo, Mão de Ferro e Winnetou estiveram presentes; também o Gordo Jemmy, o Comprido Davy, Hobble-Frank, Tia Droll e muitos outros!   Então conhece essa gente?

-  Naturalmente que os conheço. Eis aqui a meu lado Tia Droll, se  os senhores tiverem  a  amabilidade de permitir.

Ele se referia com estas palavras a seu companheiro. Este apontou para ele e esclareceu:

-  E aí têm os senhores o nosso Hobble-Frank, se for preciso Pensam ainda que somos gente que ainda não conhece o Oeste?

-  Incrível? Positivamente incrível! Mas não pode ser! Tia Droll não é visto senão numa vestimenta toda original, na qual a gente toma-a por uma lady. E Hobble-Frank usa um fraque azul com botões polidos, e na cabeça um grande chapéu de plumas!

-  Tem que ser assim? Não pode a gente vestir-se uma vez de outra maneira? Como amigos e companheiros de Mão de Ferro e Winnetou, agrada-nos agora vestir-nos exatamente como estes dois homens. Se não nos acreditam, isso é com vocês mesmos. Nós não temos nada a opor.

-  Acredito, acredito, Sir! Ouvi dizer que se pode notar em Tia Droll e Hobble-Frank quão valorosos são, e isso está completamente de acordo. Quanto me alegro de vê-los, minha gente! Agora precisam contar, pois estou todo curioso por ouvir da boca de vocês, como se passou tudo aquilo naquela ocasião, e como foi descoberto o tão formidável placer(2).

Então o banqueiro interveio:

-  Devagar, devagar! Isso ainda poderá ouvir em tempo. Antes há coisa de muito maior importância, pelo menos para mim.

Isso ele dissera a Forner. Depois dirigiu-se novamente a Droll e Frank:

- É que estou também numa situação semelhante. Estou em vias de ganhar muitos  e muitos milhões.

-  Sabe também de algum placer? - perguntou Droll.

-  Sei, mas não de ouro e sim de petróleo; dizem haver por lá.

-  Dá no mesmo.  Petróleo é ouro líquido. E onde fica esse placer?

-  Isso ainda é segredo. Mestre Grinley foi quem fez a descoberta. Ele,  porém, não dispõe de meios para fazer a extração. Para isso é preciso muito, muito dinheiro, e eu o tenho. Ele ofereceu-me o placer e eu estou disposto a comprá-lo. Em tais negócios, é preciso a gente tratar pessoalmente. Por isso pus-me a caminho e trouxe comigo um dos meus guarda-livros, o Sr. Baumgarten, a fim de sermos conduzidos ao local pelo Sr. Grinley. Se for comprovada a veracidade da sua descrição, compro o lugar ali mesmo.

-  Então ainda não sabem para onde ele vai conduzi-los?

- Em todo o caso, exatamente, não. Aliás é muito justo que ele guarde sigilo até o último momento sobre o local. Quando se trata de milhões, nunca se é prudente demais.

____________

(2)    Placer, expressão de mineiros.   Veio de ouro ou de prata.

 

- Quanto me alegro de vê-los, minha gente! Agora precisam contar...

-  Muito certo. Espero que não só ele esteja agindo com prudência, pois ó senhor tem muito mais motivos de ser prudente, pelo menos tem que sê-lo tanto quanto ele. Mas deve saber, ao menos aproximadamente, onde é que fica situada a zona petrolífera.

-  Isso eu sei, sem dúvida.

-  Então, onde é? Pode dizer-me?

- Digo-lhe com muito gosto. Pois desejava ouvir a sua opinião a respeito. Fica no afluente Chelly, do Rio San Juan.

O rosto cheio e vermelho de Droll alongou-se. Mirou pensativamente o chão e disse:

- No afluente Chelly, do Rio San Juan? Lá.. . querem... achar pe... tróle... o? Nunca!

- Quê? Como? Por quê? - exclamou o banqueiro. - Não acredita?  Conhece então a região?

-  Não.

-  Então não pode falar desta maneira sobre o assunto!

-  Por que não? Não é preciso ter-se estado lá para saber que em tal lugar não pode existir petróleo.

-  Isso eu contesto. O Sr. Grinley esteve lá e achou petróleo. O senhor, porém, não esteve lá.

-  Hum! Também ainda não estive no Egito nem no Pólo Norte. Todavia, se alguém me dissesse que viu correr soro de manteiga no Nilo e crescer palmeiras no Pólo, eu não acreditaria!

-  Está levando a coisa para o lado ridículo. Para dar uma opinião tão rápida e conclusiva precisaria ser um geólogo. O senhor o será?

-  Não. Possuo, porém, meu perfeito juízo humano e tenho-o exercitado.

Interveio então Forner, esclarecendo Tia Droll:

-  Está sendo injusto com o Sr. Grinley. Todos aqui sabem que ele achou petróleo. Muitos até seguiram-no a fim de descobrir o segredo do lugar, se bem que sempre em vão.

-  Naturalmente, em vão, porque este lugar não existe!

-  Existe, afirmo-lhe! O Sr. Grinley é denominado aqui por todos o Rei do Petróleo!

-  Isso não prova nada.

-  Mas ele demonstrou com diversas provas que havia óleo!

-  Também isso não prova nada. Qualquer um pode mostrar petróleo. Realmente afigura-se-me inteiramente incrível que lá possa existir petróleo. Precavenha-se Sr. Rollins! Lembre-se de que não faz muito tempo houve velhacos que engambelaram ricaços com terrenos auríferos e até com diamantes. Depois descobriu-se que lá não havia ouro e muito menos pedras preciosas.

-  Pretende suspeitar do Sr. Grinley?

-  Qual! Nada tenho a ver com isso. Pediu-me minha opinião e dei-lhe.

-  Bem. Posso talvez saber também o que o Sr. Frank pensa disso?

-  Exatamente o mesmo que pensa Droll - respondeu Hobble-Frank. - Se não quiser acreditar-nos, espere alguns dias. Virão então duas pessoas em cuja opinião pode confiar.

-  Quem são?

-  Mão de Ferro e Winnetou.

- O quê? - perguntou Forner agradavelmente surpreso. - Estes dois homens vêm para cá?  Donde o sabe?

- De Mão de Ferro. Ele tem a amabilidade de alegrar-me de vez em quando com uma carta, e há oito semanas escreveu-me que combinara com Winnetou um encontro, por este tempo, no Rancho Forner, no Rio San Carlos.

-  E acha que isso se dará?

-  Com toda certeza.

-  Poderão ocorrer empecilhos!

-  Sim. Nesse caso, porém, um esperará pelo outro. Já aconteceu que combinassem de encontrar-se em tal dia, junto à tal árvore, no meio do mato, e nunca aconteceu que um faltasse. Assim que li a carta, certifiquei-me de que qualquer empecilho seria afastado e que estariam aqui no tempo marcado. Resolvi imediatamente vir também e fazer-lhes uma surpresa. Meu primo Droll juntou-se a mim logo, e o fato de termos vindo da Alemanha, da Saxônia, para cá deve convencê-lo de que eles virão impreterivelmente encontrar-se aqui.

- Da Alemanha? Da Saxônia? - interveio apressadamente Baumgarten, o guarda-livros. - Então é alemão, Sir?

-  Sim.  Ainda não sabe?

- Não. E se soubesse não o teria mais esquecido. Alegro-me, pois, em poder saudar na sua pessoa um compatriota. Eis aqui minha mão. Queira permitir-me apertar a sua!

Então Hobble-Frank estendeu-lhe a sua, exclamando alegremente, no dialeto de sua terra:

- Então tome-a com todos os dedos que lhe pertencem. O senhor também é alemão? Se não estivesse vendo, não o acreditaria!   Em que região da pátria passou o senhor da eternidade de além para a idade contemporânea?

-  Em Hamburgo!

-  Em Hamburgo? Com mil diabos! Algumas horas acima da geográfica região onde meu querido Elba celebra seu noivado com o Mar do Norte! Fomos então ambos batizados com água do Elba, e quando estiver novamente no Toucinho de Urso, posso enviar-lhe serenamente minhas, saudações em suas ondas.

-  Toucinho de Urso? - perguntou Baumgarten admirado.

-  Sim, senhor, sim, senhor! Toucinho de Urso é o nome da vila que construí na minha bela pátria. Quando for à Saxônia, precisa ir visitar-me, pois lá encontrará recordações de todas as minhas aventuras dentro e fora do país.

Baumgarten já ouvira falar em Hobble-Frank. Convenceu-se então de que este era mesmo um indivíduo bem original. Tinha-o em carne e osso na sua frente e entregou-se com imenso prazer a uma animada e ininterrupta palestra com ele. Esta tornou-se ainda mais viva pelo fato de Droll participar nela com sua fala de velho burguês.

Entretanto, Poller, o guia demitido, levantou-se e fez como se estivesse ocupado em olhar para o seu cavalo. Levou um certo tempo nesta ocupação, e depois desapareceu atrás da casa, onde os dois irmãos Buttler, deitados na relva, contavam coisas importantíssimas um ao outro. Como um deles se achava no Rancho de Forner sob o nome de Grinley, tinha empenho em conservar o mesmo. Os irmãos Buttler tinham antigamente, em sociedade com outros da mesma espécie, praticado uma série de façanhas incríveis entre as fronteiras da Califórnia, Nevada e Arizona. Fora até preciso formar-se uma sociedade de Reguladores, que por suas próprias mãos pusesse fim a tais abusos; o que deu resultados. A maior parte dos componentes da quadrilha foi linchada. Poucos haviam escapado, e entre eles, justamente os dois principais e piores, os Buttlers. Conforme já foi dito, eles haviam-se encontrado. Depois um tinha ido para o Sul, a fim de fundar a quadrilha dos Finders, e o outro andava vagando muito tempo por Utah, Colorado e Novo México sem destino certo, até que teve certa idéia torpe, que se dispôs a pôr em prática. Depois de ter exposto a parte principal do plano a seu irmão, este olhou-o e disse:

-  Tu sempre foste o mais esperto de nós dois, e concordo plenamente com teu atual projeto, que merece a minha inteira aprovação. Achas que este banqueiro Rollins vai mesmo na onda?

-  Sem dúvida. Ele está justamente disposto a aceitar a proposta, o que vai render, duma só vez, no mínimo, cem mil dólares.

-  Tanto assim?   Tanto oferece ele? - exclamou o outro.

-  Quieto! Mais baixo! Aqui às vezes as hastes de capim têm ouvidos. Lembra-te de que ele está convencido de poder ganhar facilmente e em pouco tempo, alguns milhões!   O que são, nesse caso, uns míseros cem mil dólares, com os quais, uma vez por todas, faço a minha independência?

-  Mas quando os pagará?   Descobrirá  o  logro em  pouco tempo.

-  Imediatamente, terá que pagar, imediatamente! Sei que ele tem as escrituras consigo e que só falta assiná-las. E isso ele fará assim que a embriaguez do óleo o tiver transtornado completamente.

-  Admira-me somente que ele não tenha trazido nenhum perito consigo. O guarda-livros que o acompanha não passa de uma nulidade, nesse sentido.

- Sim, para isso precisei muito jeito, até consegui-lo. Quanto mais acompanhantes, tanto mais ofertas haveria. Eu devo ter somente a ele como ofertante e não ter nenhuma outra oportunidade de venda. Tivesse ele trazido um engenheiro consigo, poderia este, por conta própria e secretamente, entabular negociações comigo. Esta idéia ele a julga sua, na verdade, porém, quem lha meteu na cabeça fui eu. Trouxe o guarda-livros, porque precisa de um auxiliar a fim de poder logo providenciar em todos os sentidos. Suportei a presença dele porque se trata de um alemão bobo, ao qual não tenho que temer. Ele seria o último a pensar que toda a história da fonte de petróleo é tapeação.

-  Estás certo de que a tua provisão de óleo será suficiente? - perguntou Buttler a seu irmão.

-  Bastará. Podes imaginar, todavia, o quanto me custou trazer os tonéis de tão longe e de um em um, até lá em cima. Ninguém podia suspeitar da mínima coisa e todo encontro no caminho eu precisava evitar. Trabalhei nisso meio ano e tive que fazê-lo sozinho, pois, com exceção de ti, não podia confiar em ninguém, e tu não estavas aqui.

-  Terias terminado isso que está por fazer também sem ajuda de um outro?

-  Tinha que consegui-lo; teria, porém, muito trabalho. Deves lembrar-te de que sou o guia do banqueiro e portanto não posso afastar-me dele, principalmente para não levantar suspeitas. E contudo, precisaria fazê-lo para pôr o petróleo n'água. São quatorze tonéis, um trabalho bárbaro para um único homem que, além do mais, não tem tempo para isso! Tanto mais me alegro por ter-te encontrado, pois acho que vais me prestar auxílio!

-  Com o maior prazer. Mas aviso-te que naturalmente não será de graça.

-  É natural! Realmente, dos cem mil dólares não pretendia dar nada, pois indubitavelmente mereço-os, e afinal não tens nada mais a fazer do que abrir os tonéis. Por isso pedirei mais. Este excedente será para ti, compreendes?

-  E se ele não der mais?

-  Ele dará mais. Asseguro-te. E se porventura eu estivesse enganado, conheces-me e sabes perfeitamente que com facilidade chegaremos a um acordo. Mas precisas partir imediatamente, pois se te demorares mais por aqui pode acontecer ainda que Rollins e seus alemães venham a suspeitar que nos conhecemos.

-  De qualquer maneira teria que ir, pois à tarde chegarão os imigrantes com sua Folha de Trevo e não devem naturalmente ver-me.

-  Suspeitarão que tu os segues?

-  Não, ao menos creio que não, pois não podem ter vindo a saber que me evadi. Tem-nos custado muito trabalho alcançá-los ainda hoje. O esperto do Sam Hawkens fê-los modificar a rota. Atravessou o Gila em lugar de lhe seguir o curso, e na Estância Bell trocou os vagarosos bois por mulas ligeiras, a fim de viajar com mais rapidez. Também vendeu as carretas e todos os demais apetrechos supérfluos. Agora vão todos montados.

-  Sabes com certeza que chegam aqui hoje?

-  Sim. Espiei-os ontem em seu acampamento. Poller também os ouviu.

-  Ah, este Poller!  Não te estará ele estorvando?

-  Ainda não.

-  Em compensação, estorva-me a mim. Não haverá um meio de te veres livre dele?

- Dificilmente. Vingar-se-ia denunciando-me à Folha de Trevo e provavelmente ainda daria esclarecimentos sobre a tua pessoa.

-  Mas ele não me conhece.

-  Oh, sim, pois quando te vi aí sentado, disse-lhe que eras meu irmão. Enquanto estiver aqui, ouvirá forçosamente falar sobre a fonte de petróleo. Naturalmente perceberá a verdade, e se eu o abandonar, irá denunciar-te.

-  Que maçada!  Não devias ter-lhe dito nada.

-  Mas assim foi, e agora não é mais possível modificar as coisas. Além disso, pode ser-me útil aliviando-me bastante o trabalho lá em cima no Gloomy Water(3).

-  Queres torná-lo cúmplice?

-  Só em parte!  Inteiramente, não.

-  Mesmo assim, sempre quererá ter parte no negócio.

-  Pode ser. Não receberá nada, entretanto. Logo que ele não me sirva mais, afastá-lo-ei.

-  Well, então, sim. Poderá ajudar-nos agora. Depois receberá uma bala ou talvez se afogue no petróleo.  Quando partem vocês?

-  Pode ser agora mesmo.

-  Bem!   Assim, hoje à noite já poderão estar bem longe daqui.

- Estás enganado. Nem me passa pela cabeça perder os alemães imigrantes de vista.

-  Precisas desistir deles, uma vez que vais me ajudar.

-  Absolutamente. Existe uma, entre eles, chamada Ebersbach, que possui muito dinheiro, do legitimo, e além disso eles têm muitas coisas que

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(3)    Água   pastosa.

 

podem servir. A par disso ainda há a minha vingança, da qual não abro mão de modo algum.

-  É me sumamente desagradável isso e não serve de nenhum modo a meus planos!

-  Por que não? Seu itinerário passa pelas proximidades do Gloomy Water. Precisas unicamente juntar-te a eles. O resto, deixa por minha conta.

Estava nesta altura a sua conversa, quando viram Poller chegar. Este aproximou-se bem e disse num tom importante:

-  Tenho que interrompê-los, pois lá na frente passam-se coisas muito graves.

-  São tão graves assim que você tenha mesmo que nos interromper? - perguntou Buttler de mau  humor.

-  Sim. É que Mão de Ferro e Winnetou vêm para cá.

-  Com os diabos! - exclamou Grinley. - O que vêm procurar aqui?

-  Que te importa a ti que eles venham para cá? - opinou Buttler, já calmo. - Para ti deve ser bem indiferente onde eles se encontrem.

-  Absolutamente, pois onde se achem estes dois homens, não fica, em toda redondeza, uma folha que não seja examinada. Indagam e querem saber de tudo, de tudo.

- Hum, isto é verdade. Mas donde sabe você, Poller, que eles vêm para cá?

- Tenho que interrompê-los, pois lá na frente passam-se coisas muito graves.

-  Há pouco, quando vocês se afastaram, chegaram dois estranhos, por intermédio dos quais soube que pretendem aguardar Mão de Ferro e Winnetou aqui.  Os recém-chegados estão trajados da mesma maneira que aqueles dois.  Agora estão ali sentados engrolando alemão com o guarda-livros do banqueiro.

-  Mas donde sabe - perguntou Grinley - que se trata de um banqueiro com seu guarda-livros?

-  Foi Rollins mesmo que o disse.

-  Essa agora! Talvez contasse até mais a nosso respeito?

-  Refere-se ao petróleo? Sim, ele contou isso!

-  Era fatal, absolutamente fatal! - exclamou ele levantando-se num pulo. - Preciso ir ter com eles a fim de evitar mais coisas. Você disse que falavam alemão, são alemães então?

-  Sim.  Um é denominado Tia Droll e o outro Hobble-Frank.

-  Que está dizendo? Então pertencem àquela sociedade que enriqueceu tão depressa lá em cima no Mar de Prata!

-  Sim. Falaram nisso. Esses dois tipos parecem ter muito dinheiro consigo.

-  E o que disseram da minha fonte de petróleo?

-  Não acreditam nela e preveniram o banqueiro. Acham que é fraude.

-  Raios os partam! E agora mais este contratempo com a vinda de Mão de Ferro e Winnetou! Ainda não estão aqui e já o diabo começa o seu jogo! Devemos nos segurar bem nas selas! Que disse o banqueiro sobre o aviso?

-  Pareceu não perder a confiança. Mas aconselharam-no a esperar por Winnetou e Mão de Ferro e informar-se deles.

-  Era só o que faltava!   E seguiu o conselho?

-  Isso não disse.   Agora está ali sentado e parece refletir.

-  Então necessito ir ter com ele para dissipar-lhe as dúvidas. Antes, porém, precisamos nos entender rapidamente, pois vocês devem partir. Ouçam, pois, o que vou dizer.

Conversaram ainda um pouco, baixinho e animadamente. Pareciam tratar de promessas e compromissos mútuos, pois apertaram-se várias vezes as mãos. Então Buttler e Poller dirigiram-se para a frente, onde participaram ao rancheiro que tencionavam partir. Quiseram pagar o que haviam tomado, porém ele não aceitou nada, alegando que o rancho não era estalagem. Depois partiram, sem que ninguém ficasse sabendo algo sobre seus nomes e objetivos. Nenhuma vez foi-lhes feita qualquer pergunta nesse sentido.

Pouco depois veio Grinley. Fez como se tivesse descansado e sentou-se novamente em seu lugar, enquanto saudava Frank e Droll mostrando no rosto a mais honesta expressão possível, a fim de inspirar-lhes confiança. O banqueiro, todavia,  não pôde conter-se. Disse:

-  Mestre Grinley. Aqui estão dois bons conhecidos de Winnetou e Mão de Ferro. Trata-se do Sr. Droll e do Sr. Hobble-Frank, os quais não querem dar crédito à sua fonte de petróleo.  Que diz a isso?

-  Que digo a isso? - respondeu ele com serenidade. - Digo que não lhes tomo a mal. Em casos em que se trata de tão grandes somas, é preciso ser prudente. Eu próprio não acreditei, enquanto minhas amostras de petróleo não foram examinadas por vários entendidos no assunto. Se for do seu agrado, estes gentlemen poderão vir conosco, a fim de se certificarem da formidável quantidade de petróleo que este lugar contém.

-  Querem esperar aqui por Winnetou e Mão de Ferro.

-  Não posso me opor a isto. Mas como não quero vender meu placer nem a Winnetou nem a Mão de Ferro, não serei eu quem vá esperar por estes dois.

-  Mas se eu quisesse ficar?

-  Eu absolutamente não o impedirei. Não obrigo ninguém a ir comigo. Se for até Frisco(4) encontrarei lá capitalistas que imediatamente me acompanharão, sem contudo deixar-me na metade do caminho. Quem não me dá crédito, que fique em casa!

Esvaziou um copo de brande e saiu a ter com seu cavalo.

-  Aí têm vocês - observou o banqueiro - o seu modo de convencê-los completamente de que está seguro acerca do seu negócio.

-  Perfeitamente - respondeu Tia Droll. - Mas, se se trata de negócio direito ou não, só saberemos mais tarde.

-  Ofendi-o e ele não esperará por mim aqui. É evidente que não posso deixá-lo ir só e que preciso ir com ele, pois não desejo perder este extraordinário negócio. Estou inclinado a crer que a desconfiança de vocês por enquanto é infundada.

-  Para o senhor, talvez; nós, porém, julgamos de nosso dever preveni-lo. Dissemos-lhe que lá em cima, para onde pretendem ir, não poderão achar petróleo. Isso não quer absolutamente dizer que o "seu" Grinley c indubitavelmente um intrujão, pois ele mesmo pode ter-se enganado. Todavia, quero dizer-lhe francamente que a cara desse sujeito não me agrada. Se fosse comigo, refletiria dez vezes antes de depositar minha confiança nele.

-  Agradeço-lhe sua sinceridade; julgo, porém, que não podemos fazer uma pessoa responsável pela sua fisionomia, pois a culpa não é da pessoa.

-  Engana-se. Sem dúvida, o rosto de uma criança é dado pela natureza, todavia, pela educação e outras impressões, muda um pouco e nessa modificação geralmente exterioriza-se a alma. Jamais confiarei numa pessoa que não saiba encarar-me de franca e lealmente nos olhos, e com este mestre Grinley acontece assim. De maneira alguma quero insinuar, com isto, que ele seja algum bandido, quero apenas que fique prevenido.

-  O caso é que, mesmo sem o seu aviso, eu não trataria levianamente este negócio. Sou homem de negócios e cuido refletir agudamente. Compreende-se que num caso destes, em que se trata de tão grandes somas, eu pensei mais de cem vezes antes de pronunciar dez palavras. E, além disso, somos dois contra um, pois o Sr. Baumgarten aqui é fiel e disposto.

-  Hum! Grinley pode ter comparsas que estejam à espera de vocês lá em cima. Também precisam levar em conta que os vermelhos, por cujos domínios vocês terão que passar, parecem estar amotinados. E mesmo que assim não fosse, a simples circunstância de que vocês são dois contra um não quer absolutamente dizer que estejam seguros. Ele os liquidará alvejando-os inopinadamente, ou os aprisionará surpreendendo-os durante o sono, a fim de extorquir dinheiro ou outra qualquer coisa. Por isso sugeri que ficassem e esperassem por Mão de Ferro e Winnetou, em cuja opinião vocês podem confiar.

Rollins mirou o chão pensativamente por um largo tempo, dizendo depois:

-  Infelizmente não me é possível esperar por eles. Se eu resolver ficar aqui, o Rei do Petróleo irá certamente embora sem mim.

-  Disso também estou certo e sei bem o motivo: no mínimo ele tem que

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(4)  Abreviatura de San Francisco, usada pelos americanos.   (N. do Trad.)

 

temer a companhia dessa gente. Em todo o caso eu o preveni e você deve saber enfim como se decidir.

- Isso é difícil, muito difícil, ainda mais que essa decisão deve ser tomada tão rapidamente. Depositava até este instante a mais absoluta confiança em Grinley. Agora quase ficou abalada. Que devo fazer? Desistir. A maior asneira, se a coisa for honesta! Sr. Baumgarten, você que está aqui mais próximo de mim, o que me aconselharia?

O jovem alemão seguira a conversa com atenção sem manifestar-se. Agora, que fora convidado a dar o seu parecer, respondeu:

-  A coisa é tão importante que sou obrigado a desistir de dar-lhe conselho; recairia sobre mim uma responsabilidade que não posso assumir. Mas o que eu faria em seu lugar, isso posso dizer-lhe.

-  Então, desistir? Ou arrostar o perigo?

-  Nenhum dos dois!

-  Mas não existe uma terceira alternativa.

-  Oh, sim! Prosseguiremos viagem com o Rei do Petróleo, sem contudo nos expormos ao perigo.

-  Como quer fazer isso?

-  Pedirmos aqui a estes dois cavalheiros, Sr. Droll e Sr. Frank para nos acompanharem. São dois homens de cabelo na venta e ao lado dos quais estaremos seguros.

-  Apoiado.   Mas viriam realmente conosco, meus senhores?

-  Hum! - fez Hobble-Frank. Isso faríamos até de muito boa vontade, já considerando que o Sr. Baumgarten é alemão, e nós, alemães, cuidamos ser sempre unidos em todo o mundo. Mas sabem por que precisamos ficar aqui.

-  Precisam? - interveio Baumgarten. - Isso não. Winnetou e Mão de Ferro podem seguir-nos, ou, se não quiserem fazê-lo, podem esperar aqui até que vocês estejam de volta. Vejam que para cavalgarmos até o Rio Chelly levaremos apenas três dias. Seriam seis dias, ida e volta. Não é tanto, realmente, para pessoas que não precisam estar contando as horas, pelo contrário, até são senhores de seus dias e semanas.

- Nisso concordamos. Nesse ponto somos não só senhores, porém, condes e príncipes. Além disso, sabemos que os nossos célebres amigos esperarão de muito bom grado, ou mesmo nos seguirão, se assim lhes pedirmos por intermédio do rancheiro. Eles nem sequer suspeitam de que nos achamos aqui, e só a alegria de rever-nos assim inesperadamente assegurará a realização de nosso pedido.   Que dizes a isso, primo Droll?

-  Iremos juntos - respondeu o interpelado numa rápida decisão.

-  Mão de Ferro certamente virá atrás de nós e o apache também. Ardo por encarar este Rei do Petróleo, e como ele não quer esperar, nada mais nos resta senão ir junto. Existem aqui dois motivos poderosos que nos obrigam a ir com vocês: trata-se de um negócio de milhões e o Sr. Baumgarten é alemão, tem, pois o direito de esperar cooperação e ajuda de nossa parte.

-  Agradeço-lhes! - disse o último enquanto apertava-lhes a mão. - Também quero ser franco e dizer-lhes que não depositei plena confiança no Rei do Petróleo. Por isso, justamente, pedi ao Sr. Rollins que me levasse consigo. Observei bem a Grinley, constantemente, durante o caminho, mas nada vi, deveras, que pudesse aumentar a minha desconfiança. Contudo, ao saber que tenho ao meu lado pessoas como vocês, não tenho medo do que possa acontecer.  Toquem, sejamos bons camaradas.

Apertaram-se as mãos e o banqueiro seguiu contentíssimo seu exemplo. O rancheiro tinha chegado e ouvido a última parte da conversa. Disse, pois:

-  Isso mesmo, pessoal, conservem-se unidos! Não creio que isso seja preciso por causa do Rei do Petróleo, pois não posso dizer nada de mal acerca dele. Mas por causa dos índios, dou-lhes este conselho. Os nijoras, e os navajos desenterram as suas machadinhas de guerra, e mesmo os moquis, que são extraordinariamente pacíficos, não inspiram mais confiança, presentemente. Portanto, não ficarão aqui. O que deverei dizer a Mão de Ferro e Winnetou, quando estes chegarem?

-  Que esperem aqui por nós, ou melhor, que nos sigam ao Rio Chelly, imediatamente - respondeu Droll. - Quero, porém, pedir-lhe que não participe nada disto ao Rei do Petróleo.

-  Prometo com muito gosto. Não ouvirá nenhuma palavra sobre isso. Onde estará metido? Vou vê-lo.

Saiu pela porteira, por onde há pouco saíra Grinley, e procurou por este. Avistou, então, para as bandas do sul, um grupo de cavaleiros que se aproximava do rancho.

 

Um Monstro

Muito ao longe, ainda, vinha essa gente, e somente depois de algum tempo percebeu-se que traziam cargueiros consigo. Em breve, porém, reparou Forner que a caravana não se compunha exclusivamente de homens. Havia também mulheres e crianças. Alguns tinham cavalos, os restantes, porém, vinham montados em burros.

Na frente, cavalgava um sujeitinho pequeno metido num casaco de caça, de couro de bode, desmesuradamente folgado para ele. Do rosto, em virtude do extraordinário desenvolvimento duma barba cerradíssima divisavam-se apenas uns olhinhos pequenos a brilhar astuciosamente e um nariz duma expansão verdadeiramente assustadora. Este homenzinho era Sam Hawkens que, com seus dois companheiros, Dick Stone e Will Parker, assumira a direção da caravana dos imigrantes e se afastara do itinerário originalmente traçado, devido à grande perda de tempo que haviam sofrido. Fez a sua velha mula, a Mary, passar do vagaroso passo de marcha para um galope, e estacando diante de Forner, saudou:

-  Good day, Sir! Este estabelecimento denomina-se Rancho do Forner, não é?

- Ai, Mestre, é isso mesmo - respondeu o fazendeiro, enquanto examinava o pequeno e os cavaleiros que o seguiam. - Vocês parecem ser imigrantes, não?

-  Yes, se nada tem a dizer.

- Não faço objeção nenhuma, contanto que sejam sujeitos honrados. Donde vêm vocês?

-  De um pouco acima de Tucson, se não me engano.

-  Então tiveram um trecho bem ruim, assim com crianças. E para onde vão?

-  Para as proximidades de Colorado. O dono da casa está?

-  Sim, como vê. Sou eu mesmo.

-  Então diga-me se podemos descansar aqui até amanhã?

-  Por mim pode, pois espero que não terei de arrepender-me disso.

-  Não vamos devorá-lo, pode estar certo. E a despesa que fizermos será paga de bom grado, se não me engano.

Apeou. O Rei do Petróleo achava-se um pouco distante a princípio, depois, porém, aproximara-se e ouvira tudo. Sabia, pois, que tinha diante de si os imigrantes de quem o irmão e o guia infiel lhe haviam falado. Os que se achavam no pátio tinham chegado até a porteira, justamente no momento em que os viajantes preparavam-se para apear. Isso, porém, não decorreu tão simplesmente como era de se esperar. O burro montado pela Sra. Rosalie parecia ter as suas idéias próprias. Não queria que ela apeasse, pois desejava continuar trotando. Hobble-Frank aproximou-se como um rapazinho constantemente preocupado com o cavalheirismo, a fim de prestar-lhe auxílio, o que indignou enormemente o burro, que começou a distribuir coices para todos os lados. A mulher teria

 

Na frente,  cavalgava um  sujeitinho pequeno. . .

 

certamente sofrido uma queda desastrosa se Frank não a tivesse agilmente amparado. Em lugar, porém, de ficar-lhe grata por isto, separou-se dele com um safanão, aplicou-lhe um valente cotovelaço entre as costelas e vociferou-lhe furiosa:

-  Sheep’s head! (Cabeça de carneiro!).

- Sheep’s nose! (Nariz de carneiro!) - respondeu ele com sua bem conhecida facilidade de expressão.

-  Clown! (Brutalhão!) - gritou ela furiosa enquanto ameaçava-o com sua possante direita.

-  Stupid girl! (Moça boba!) - riu-se ele afastando-se em seguida. Ela tomara-o por um americano e assim usara das palavras de combate que conhecia.

A stupid girl, porém, alarmara-a de tal maneira que, tomando-o por um braço, pôs-se a descompô-lo em alemão já que o seu cabedal de inglês não dava para mais:

- Seu burro, seu grandessíssimo asno! Como é que se atreve a descompor uma dama! Sabe quem eu sou? Eu sou a Sra. Rosalie Ebers bach, Morgenstern de nascimento e viúva do moleiro de Leier! Vou denunciá-lo ao juiz de Direito! Primeiro espanta-me o burro, depois aperta os seus braços em torno de minhas cadeiras, e finalmente atira-me ao rosto palavras que uma pessoa decente nem deve conhecer!   Está ouvindo?

Lançou-lhe um olhar de desafio e pôs as mãos acintosamente nos quadris. Hobble-Frank, surpreendido, deu um passo para trás e perguntou em idioma alemão:

-  Como é isso?   Seu nome é Rosalie Ebersbach?

-  Sim - respondeu ela, enquanto dava também um passo à frente, seguindo-o.

-  Morgenstern de nascimento? - prosseguiu ele, enquanto recuava mais dois passos.

-  Naturalmente! Ou talvez o senhor faz alguma objeção a isso? - replicou ela seguindo-o também nesses dois passos.

-  Viúva do moleiro de Leier?

-  Ora, sem dúvida! - assentiu ela.

-  Mas então a senhora deve ser alemã?

- E que alemã! Diga mais uma única palavra inoportuna e verá bem quem eu sou! Estou habituada a ser tratada com amabilidade. Compreende?

-  E eu fui atencioso para com a senhora!

-  Atencioso? Ora, o que está me dizendo! Porventura é atenção da sua parte agarrar-se ao meu burro?

-  Queria somente segurá-lo porque ele não lhe obedecia.

- Não obedecia? Agora, esta! A mim qualquer burro obedece. Pode tomar nota disso! E depois o senhor quase esmagou-me em seus braços. Faltou-me o ar e saiu fogo pelos meus olhos. Isso não posso permitir, absolutamente. Com uma dama deve-se lidar delicada e pacientemente. Nós somos o belo e também suave sexo e queremos ser tratadas com brandura.  Mas quem vem como um carregador e...

Não concluiu a frase, pois foi interrompida. Ecoou atrás dela um grito que a fez calar. Um grito de surpresa e de júbilo:

-  Sr. Jemineh, mas este é o famoso Hobble-Frank!

Frank voltou-se rapidamente e exclamou com igual espanto, ao ver quem falara:

-  O nosso cantor Hampel! Será possível! Apeie e venha a meus braços!

O honrado criador de óperas tinha, como de costume, ficado para trás, e somente agora alcançara a porteira. Ergueu o dedo com ar de censura e respondeu:

- Cantor aposentado, se me permite, Sr. Frank! O senhor sabe, é unicamente por causa da legalidade e para evitar desagradáveis confusões. Poderia muito bem haver um segundo cantor Mathäus Aurelius Hampel, que não estivesse ainda aposentado. E desejava ainda também chamar a sua atenção, antes de apear, para um outro ponto.

-  Então qual é? Estou curiosíssimo, meu muito caro e honrado cantor.

- Veja, outra vez! O senhor diz somente cantor, enquanto eu atenciosamente lhe chamo Sr. Frank. Um filho da Arte não pode transigir em nada. Por isso, devo pedir-lhe que para o futuro não omita o senhor. Isso não é absolutamente orgulho de minha parte, é unicamente por causa da legalidade, como provavelmente o senhor deve saber.

O cantor desceu muito cautelosamente do cavalo e abraçou Frank com majestosos movimentos. Este opinou sorrindo:

-  Achamo-nos em pleno Oeste bravio, onde uma tal formalidade afinal de contas nem é necessária. Todavia, se lhe dá prazer, direi senhor cantor.

-  Senhor cantor aposentado, por obséquio!

-  Muito bem! Diga-me, porém, primeiro como e de onde apareceu o senhor. Pode estar certo de que eu não esperava ter um revoir com o senhor aqui.

-  Revoir, em alemão wiedersenhen, é o que  decerto  quer dizer! O senhor devia estar preparado para um encontro destes comigo, pois o senhor bem sabe a respeito da minha intenção de compor uma ópera!

-  Sim, o senhor já me havia falado. Uma ópera de três ou quatro atrizes.

-  Doze! E não atrizes, mas atos! Deve ser uma ópera heróica, e como o senhor me contou acerca dos heróis do Oeste, eu queria empreender com o senhor uma viagem pelo Oeste, a fim de colher material para essa ópera. Infelizmente, porém, o senhor partiu sem me avisar, e como eu soubesse mais ou menos para onde tinha ido, vim atrás.

-  Que imprudência! Então acha que a gente aqui se encontra com a mesma facilidade que lá em casa, seu Uhland(1) furioso?

-  Rolando, quer o senhor dizer - interrompeu-o o cantor.

Frank enrugou a testa e disse repreensivamente:

-  Ouça, senhor cantor, já é a terceira vez que me interrompe. Isso não posso e não devo absolutamente tolerar. As duas primeiras vezes deixei passar impunemente, agora, porém, acabou-se. As suas observações são insultos pelos quais eu até devia desafiá-lo para um duelo, se não fosse tão seu amigo. Portanto, não me interrompa mais para o futuro quando eu for dizer alguma coisa. Podia acontecer que nossa simpatia mútua se dissolvesse, o que eu sentiria, por sua causa. Agora, porém, permita-me apresentar-lhe aqui meu primo e amigo, para o que, espero, o senhor e seus acompanhantes também se dêem a conhecer.

O bom do cantor, sem sentir-se ofendido, satisfez o desejo de seu ilustre amigo, e apresentou pelo nome, um por um, todos os seus companheiros de viagem. Houve então muito que contar e mil perguntas a responder. Mas primeiramente era preciso providenciar no sentido de organizar o acampamento e acomodar os animais. Tudo o mais foi preterido.

Enquanto estavam todos ocupados nisso, Grinley pôs-se a observá-los por um momento. Ele tivera de prometer que se apoderaria da caravana de imigrantes e os traria ao seu irmão e seu companheiro. Por isso aproveitou um instante em que Sam Hawkens se afastou dos demais, saudou-o cortesmente e perguntou:

-  Ouvi dizer que o senhor é Sam Hawkens, o célebre homem do Oeste.   Disseram-lhe o meu nome, porventura?

-  Não - respondeu o homenzinho, também em tom cortês.

Grinley era irmão de Buttler apenas por parte de pai e não tinham em

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(1)    Uhland, conhecido poeta alemão.  (N. do Trad.)

 

comum nenhum traço fisionômico. Por isso, não podia Sam suspeitar sequer que tinha diante de si um parente tão próximo do bandido.

-  Chamo-me Grinley. Tratam-me, porém, de Rei do Petróleo aqui por essas redondezas, porque conheço um lugar onde existe uma fonte extraordinariamente rica.

-  Uma fonte? - perguntou Sam vivamente. - Então o senhor foi um felizardo e poderá tornar-se riquíssimo. Pretende explorá-la o senhor mesmo?

-  Não. Sou muito pobre para isso.

- Chamo-me Grinley. Tratam-me, porém, de Rei do Petróleo.

-  Vai vender, então?

-  Sim.

-  Já tem comprador?

-  Já achei um. Está sentado lá dentro, no pátio. É o Sr. Rollins, um banqueiro de Brownsville, em Arkansas.

-  Então aproveite a ocasião e não se deixe lograr. Exija o preço mais alto possível.   Tenciona ir com ele até a fonte?

-  Sim.

-  Fica muito distante?

-  Não muito.

-  Bem. O local é naturalmente segredo seu e não quero perguntar-lhe por ele. Todavia, você puxou conversa e concluo daí que devia ter forçosamente um motivo para aproximar-se de mim.

-  Sem dúvida. Diziam há pouco que o senhor se dirigia para o Colorado.

-  É verdade.

-  Minha fonte petrolífera fica situada no Rio Chelly, assim seguimos na mesma direção.

-  É. Mas por que vem dizê-lo justamente a mim?

-  Porque desejava pedir-lhe licença para reunir-me a vocês.

-  Com o seu banqueiro?

-  Sim e com esse guarda-livros que o acompanha. Sam examinou o outro dos pés à cabeça e disse:

-  Hum, aqui nestas paragens, como deve saber, não se é nunca suficientemente prudente na escolha de companhia.

-  Sei disso muito bem. Diga-me, porém, se tenho a aparência de um indivíduo em quem não se possa depositar confiança.

-  Isso eu não quero afirmar, se não me engano. Mas por que quer vir conosco? Um local onde se descobre petróleo conserva-se secreto, e por isso chama a atenção o fato de você querer juntar-se a nós, se não me engano.

-  Isso, porque sei perfeitamente que um Sam Hawkens não vai trapacear-me.

-  Bem, aí está certo. Por mim e meus camaradas não perderá nenhuma gota de petróleo.

-  Tenho ainda um outro motivo, até dois. É que os vermelhos andam inquietos e eu me sentiria muito mais seguro na companhia de vocês do que com meus dois companheiros inexperientes. Isso o senhor deve compreender.

-  Muito bem, se não me engano.

-  E depois o Sr. Droll deixou-me muito embaraçado. Contamos-lhe em boa fé acerca do nosso objetivo lá no Rio Chelly, e ele aproveitou-se dessa nossa franqueza para nos intrigar com o banqueiro, fazendo-o desconfiar de nós.  Ele não acredita que possa haver petróleo no Rio Chelly.

-  Hum! disso não o posso censurar, pois eu também não creio que haja petróleo nessa região.

-  Diz isso sério?

-  Com toda a seriedade.

-  Então também o senhor julga-me um velhaco?

-  Não.  Admito que o senhor tenha-se iludido.

-  Não, ninguém podia ter-me iludido, pois fui eu próprio que descobri o placer.

-  Então o senhor mesmo iludiu-se, tomando qualquer outro líquido por petróleo.

-  Isso nem é possível. Que líquido poderia ser?

-  Também não sei. Mas seria capaz de jurar que lá em cima no Chelly não existe petróleo.

-  Conhece a região?

-  Sim. Estive lá uma vez, se não me engano.

-  Por algum tempo?

-  Não.  Apenas alguns dias.  Mas nem é necessário isso para saber que ali não pode haver petróleo. A região não é adequada. Sim, se você dissesse talvez ter descoberto ouro ou prata ou qualquer outro metal por lá, poderia acreditar; nunca, porém, petróleo!

-  Mas eu mandei examiná-lo!

-  Sim?   E qual foi o resultado?

-  Absolutamente a meu contento.

-  Não posso compreender isso. Então deu-se algum milagre e acho que seria interessante poder ver esse extraordinário petróleo.

-  Poderá fazê-lo, Sir. Se nos der o consentimento de cavalgarmos em sua companhia terá ocasião de vê-lo.

-  Vai conduzir-me ao placer?

-  Sim.

- Well. Isso realmente me causaria prazer.. . Então o Sr. Droll não acreditou no petróleo, provavelmente o Sr. Frank também não?

-  Nenhum dos dois.

-  E você aborrece-se naturalmente com isso?

-  Exatamente por isso, não. Aborrece-me o fato do banqueiro desconfiar de mim. Por mim, podiam duvidar dez ou cem vezes, mas não precisavam convencer à força o banqueiro. Com isso, facilmente podiam estragar todo o meu negócio.

-  E esse Sr. Rollins ficou realmente desconfiado?

- Sim, e também por esse motivo pedi-lhe que aceitasse a sua companhia. Assim, sentindo-se sob a sua proteção, não recearão que eu vá tramar algo contra eles. Quer prestar-me esse favor, Sir?

- Com muito gosto. Desejava, porém, antes consultar meus companheiros.

-  Será preciso? Porventura lhe inspiro tão pouca confiança que o senhor, que parece ser o guia, tenha que pedir-lhes a aprovação?

-  Não é assim como pensa. Se não faz objeção a que eu seja bem franco com o senhor, direi que não o tomo por nenhum velhaco, bem pelo contrário, tomo-o por um indivíduo a quem primeiro é preciso conhecer e examinar, para depois poder fazer algum juízo sobre a sua pessoa. Por isso desejava primeiro informar-me com Dick Stone e Will Parker.

-  Com todos os diabos! Essa sua franqueza não é nenhuma delicadeza para comigo!

-  Contudo é melhor do que se eu o tratasse afavelmente pela frente, e por trás, com desconfiança.   E para que veja que nem é assim como pensa, vou dizer-lhe já, antes de consultar meus companheiros, que concordo desde logo.

-  Obrigado, Sir.  E quando pretendem partir?

- Amanhã cedo, se não me engano. Quando pretendiam vocês prosseguir?

-  Hoje mesmo. Todavia, convencerei o Sr. Rollins e o Sr. Baumgarten a esperarmos até amanhã.

-  Faça isso, pois  nossos  animais estão  cansados  e  as mulheres e crianças também, porque não estão habituados a cavalgar. Espero não ter de que me arrepender por haver concordado em vocês virem conosco.

-  Não se preocupe. Sou um sujeito direito e acho que o demonstrarei sobejamente, dispondo-me a mostrar-lhe o placer, apesar de todo o perigo a que me exponho. Um outro, dificilmente o faria.

-  Sim, eu, pelo menos, é que não iria confiar meus segredos a outrem que não fosse o comprador. Então estamos combinados. Amanhã partiremos.

Afastou-se dele. Grinley dirigiu-se para o pátio dando um suspiro e resmungando com raiva:

-  Damned fellow! Hás de pagar-me por isso! Lançar-me tal desaforo na cara. Preciso primeiro ser examinado para depois poderes saber se posso ser tomado por um homem honrado ou não! Que o raio te parta! Agora alegro-me por meu irmão querer agarrar esses canalhas. Tinha pouca vontade de ajudá-lo antes. Agora, porém, depois desse insulto, será até um prazer para mim entregá-los a ele.  Sim, eles verão petróleo!

Os cavalos, burros e mulas tinham sido desencilhados e pastavam agora a grama fresca, ou banhavam-se gostosamente na água do rio. Com varas e colchas foram erguidas algumas barracas, pois não cabia toda a gente no interior do rancho. Em seguida, as mulheres puseram-se em uma grande atividade, que resultou logo num apetitoso aroma de carne assada e fritada de milho, que invadiu o ar. Para o banquete que então começou foram convidados Tia Droll e Hobble-Frank. Os outros ocuparam-se de seus assuntos.

Frank ria-se consigo mesmo, observando como a Sra. Rosalie Ebersbach, Morgenstern de nascimento e viúva do moleiro de Leier, preocupava-se com ele. Ela oferecia-lhe os melhores pedaços. Era obrigado a comer muito mais do que realmente desejava. Finalmente teve que recusar, à força, mais uma fritada de milho que ela lhe oferecia. Ela porém suplicou-lhe:

- Aceite ainda só este, Sr. Hobble-Frank! Ofereço-lhe de coração. Compreende?

-  Oh, sim - riu-se ele. - Já verifiquei há pouco que é de coração que me oferece tudo. Cheguei quase a levar bofetadas.

-  Porque nem sabia quem o senhor era. Se tivesse sabido logo que se tratava do famoso Hobble-Frank, nem teria ocorrido este mal-entendido.

-  Mas com um outro ficaria zangada por isso?

-  É claro, com um tal comportamento. Eu não permito que alguém me ofenda, pois não sou somente ilustrada como também uma mulher corajosa, e sei perfeitamente como deve portar-se uma dama quando não é tratada com a devida consideração.

-  Mas eu repito-lhe que não houve absolutamente falta de consideração ou indelicadeza em relação à senhora. Quis chamar-lhe cavalheirescamente a atenção sobre o motivo por que o seu burro estava manhoso. A senhora dirigiu-me erradamente admoestações, enquanto que foi o burro quem não soube portar-se como um cavalheiro diante de uma senhora.

-  Mas que tinha o senhor de segurá-lo? Não tinha nada a ver com o caso. Sei lidar com burros, sejam lá da espécie que forem. Ainda há de conhecer-me bem. Não tenho medo de nenhum burro, nem mula, nem de índio vermelho, nem de nenhum branco cara-pálida. O senhor cantor aposentado falou-me tanto e tão bem a seu respeito, que tomei amizade pelo senhor e decidi-me a prestar-lhe auxílio e socorro, toda vez que o necessitar. Pode estar seguro. Pelo senhor, passarei através do fogo, se for preciso. Mas aceite ainda esta costela. É a melhor que ainda tenho para o senhor.

- Obrigado, obrigado! - esquivou-se ele. - Não posso mais, realmente. Estou bem recheado e poderia facilmente, se ainda comesse mais, ser vítima de uma indigesticulação.

-  Indigestão, quer o senhor dizer, seu Frank - interrompeu-o o cantor. Mas Frank dirigiu-se irritado a ele:

-  Cale-se, seu emeritécnico(2) confuso! O que entende o senhor a respeito de dicionários gregos e arábicos? Poderá, quando muito, tocar órgão, ou até compor óperas; quanto ao resto, deve conservar-se calado,

 

Aceite ainda só este, Sr. Hobble-Frank.

 

especialmente quando se encontra à frente dum caçador da Pradaria e um intelectual como eu. Se eu fosse abrir uma controvérsia literária com o senhor, deixá-lo-ia pequerruchinho.

-  Isso eu desejava tirar a limpo - respondeu o cantor.

-  Quê? Como? O senhor não quer reconhecer isso? Então o que tem a criticar em minha indigesticulação, meu querido, doce, ilustre senhor cantor aposentado, Mathäus Aurelius Hampel de Klotzsche em Dresde?

-  Deve ser indigestão.

-  Ah, ah!   E o que significa esta linda e deliciosa palavra?

-  Impossibilidade de digerir.   E indigerível quer dizer indigesto.

- Isso eu creio de todo o coração, pois o senhor mesmo é altamente indigesto. Pelo menos me é impossível suportar a sua mania de sempre saber mais. Mas o que tem o senhor contra essa palavra empregada por mim: "indigesticulação"?

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(2) Em língua alemã aposentado diz-se eméritus.   Daí a supressão da última sílaba desta formou esse arranjo irônico de palavras

 

-  Não é palavra de sentido, mas pura tolice.

-  Ah, hum, hum! E o que é gesticulação?

-  É a fala por meio de gestos, movimentos das mãos, ou outras partes do corpo.

- Bem, muito bem! Agora chegamos aonde eu queria chegar. Agora tenho-o preso, como Carlos Martel a Cleópatra (3), na Batalha de Beresina! Então gesticulação é fala por meio de gestos, e indi, significa internamente, com relação ao estômago, pois o senhor próprio disse que indigerível significa indigesto. Portanto, se me sirvo da expressão altamente espirituosa de indigesticulação, é porque comi demais, e quero dizer em sentido figurado que meu estômago se pôs em estado de tempestade e vendaval, a fim de chamar-me a atenção por intermédio dessa gesticulação e me fala, por meio de gestos, que garfo, faca e colher devem ser postos de lado. O senhor, porém, parece não ter suficiente aptidão intelectual para compreender esses apelos do estômago, pois, do contrário, não criticaria minha indigesticulação. Conhece, porventura, a fábula da rã e do boi?

-  Sim.

-  Então, como é?

- A rã viu o boi. Quis tornar-se tão grande como este, inchou e... estourou.

-  E a lição que se extrai dessa fábula qual é?

-  O pequeno não deve arvorar-se a grande, senão será prejudicado.

-  Muito bem! Ótimo mesmo - aprovou Frank entusiasmado. - Tome nota dessa lição, senhor cantor aposentado! Essa fábula serve maravilhosamente para nós ambos, isto é, para o senhor e para mim.

-  Como?

O sorriso manhoso com que o cantor acompanhou estas palavras deixava adivinhar que ele estava levando Hobble-Frank a cair em sua própria armadilha. Também os outros olhavam interessados para o excitado homenzinho. Estavam curiosos por ver se ele efetivamente cairia na cilada armada pelo cantor. Frank estava por demais compenetrado para percebê-lo.   Respondeu ao "Como?" do aposentado sem refletir no que dizia:

-  Porque o senhor espiritualmente é insignificante, enquanto eu sou uma grandeza. Se o senhor quiser comparar-se a mim, terá inevitavelmente que estourar, pois em matéria de conhecimentos, feitos e sabedoria, o senhor é a pequena rã, enquanto que em todas as grandes coisas, o grande b... - Frank estacou em meio da palavra. Seu rosto encompridou.  Reconheceu, de repente, a enrascada em que começara a meter-se.

-   . . .o grande boi sou eu - completou a frase maliciosamente o cantor.

-  Não quero contradizê-lo nesse ponto!

Irrompeu naturalmente uma gargalhada geral, que não tinha mais fim. Frank gritou furioso em meio das risadas, o que teve por conseqüência unicamente fazer com que o riso se tornasse mais forte e ininterrupto.

-  Calem a boca, suas gralhas! Se não ficarem já bem quietos, pego o

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(3)     Carlos Martel,  príncipe  franco.   (N.  do  Trad.)

 

cavalo e vou-me embora, deixando-os aí.

Mas ninguém ligou à ameaça. Pelo contrário, as gargalhadas recomeçaram, e até seu amigo e primo Droll ria tanto que sacudia toda a sua volumosa barriga.

Isso deixou Hobble completamente fora de si. Ergueu os dois poderosos punhos ameaçadoramente para o grupo, e gritou com voz completamente transtornada pela ira:

-  Pois bem! Se não querem ouvir, eu os farei sentir!   Sacudirei o pó das minhas botas e seguirei meu caminho. Lavo minhas  mãos em cândida inocência e deixo o remorso com vocês.

Saiu correndo, enquanto as gargalhadas, agora realmente homéricas, ecoavam atrás de si.

Um único havia que não participara do riso geral. Era Chi-So, o filho do cacique. A inata seriedade indiana conservou-o impassível. Bem compreendia o alemão e ouvira a maneira cômica como Frank caíra em seu próprio laço. Também sentia-se alegre, a sua alegria, porém, esboçava-a num leve sorriso que lhe brincava nos lábios. Levantou-se depois de pouco tempo e dirigiu-se à porteira a fim de ver para onde fora o enraivecido homenzinho.   Alguns instantes após voltou e informou:

- Ele falou sério mesmo, pois está encilhando o cavalo lá fora. Devo pedir-lhe que volte?

- Não - respondeu Droll, com sua expressão de velho burguês. - Apenas quer nos assustar. Conheço meu conterrâneo. Nem lhe passa pela cabeça deixar-me aqui.

Mesmo assim Chi-So voltou à porteira. Mal chegara lá, soltou um assobio e gritou quando olharam:

-  Ele montou.   Parece que é sério mesmo.

Correram todos. Chegaram justamente em tempo de verem o impetuoso Hobble efetivamente montado dirigindo-se a passo para o lado do rio.

Droll gritou-lhe:

-  Frank, primo, para onde vais? Não tivemos intenção de melindrar-te.

Hobble fez o cavalo dar volta e respondeu:

-  Tenham a intenção que quiserem. O caçador da Pradaria e intelectual privado, Heliogabalus Morpheus Edeward Frank, não permite que se riam dele.

-  Mas nós não rimos de ti, mas sim do cantor - mentiu Droll.

-  Isso vocês não me impingem. Riram do grande boi, que nem sequer acabei de pronunciar. Saiu só pela metade. O resto ficou-me na boca. Será tão engraçado isso?

-  Engraçado não, mas altamente perigoso ter meio boi metido na boca. Isso realmente nenhum de nós será capaz de imitar. Nossa admiração aumenta; volta, pois, velho Frank.

-  De modo algum. Sobretudo agora que ris novamente por causa do boi. Oh, primo Droll, quanto tenho de agüentar e sofrer contigo! Isso eu não esperava. Mas é preciso haver castigo. Hobble-Frank desaparecerá!

-  Tolice!   Volta duma vez, não sejas tonto.

-  Tonto? Essa palavra fez transbordar o vaso que já estava cheio! Hobble-Frank é tonto!

Voltou-se novamente, esporeou o cavalo e dirigiu-se para o rio onde entrou.

-  Frank, Frank, volta, ora volta! - gritou Droll rindo-se. - Não vês que não podes abandonar a tua tia!

Mas o iracundo Aquiles continuou cavalgando. Atravessou o pequeno rio e prosseguiu pela vasta campina adentro.

- Isso aborrece-me extraordinariamente - declarou o preocupado cantor. - É um tanto belicoso, especialmente com relação à sabedoria; fora disso, porém, é uma boa alma. Tinha-me alegrado tanto o encontro com ele e agora o aborreci!

-  Pelo menos por uma hora só - respondeu Droll.

-  Sim. Conheço-o. Quando não se lhe dá razão, gosta de emburrar-se, fica, porém, logo bom outra vez. Sei que sem mim ele não pode viver e, por certo, não vai abandonar-me agora. Levará sua fúria lá fora para o campo e depois voltará. Podem estar certos. Então os senhores não deverão dirigir-lhe logo a palavra. Devem fazer como se nada tivesse ocorrido e como se nem o vissem. Aliás, nunca, quando ele começa a brigar, devem contradizê-lo provocando-lhe a ira. Ele simplesmente considera-se uma sumidade em toda matéria de cultura intelectual. Com isso não prejudica ninguém, e até devem deixá-lo cavalgar um cavalo de pau, se ele assim desejar.

Naturalmente, todos os presentes foram testemunhas do afastamento de Frank.  Até a peonada, criadagem do fazendeiro tinha ouvido as gargalhadas, abandonando a casa e corrido para a porteira. Também o banqueiro com seu guarda-livros presenciara o incidente. Como não compreendesse o alemão, o último teve que traduzir-lhe todos os diálogos. Riu do fato e estava curioso por saber se efetivamente se realizaria a predição de Droll sobre a volta de Frank. Enquanto estes dois ainda conversavam, aproximou-se deles Sam Hawkens e perguntou:

-  Dirige-se ao Rio Chelly, Sr. Rollins? Nosso itinerário passa por aí e amanhã de manhã partiremos. O seu Rei do Petróleo tenciona juntar-se a nós e eu concordei.   Estava a par disso?

-  Não. Ele ainda não me participou nada. Que me diz da descoberta de petróleo?

-  Que ele enganou-se quanto ao líquido, se não for coisa pior. Só lhe aconselho prudência.

-  Portanto, exatamente como o Sr. Droll. Nesse caso, com o seu conselho oferece-me ainda um auxílio de que talvez ainda venha a necessitar muito. Assim junto-me a vocês e expresso-lhe desde já meus agradecimentos por nos deixarem ir juntos.

Assim estavam as coisas mais ou menos arrumadas a contento de todos, e Rollins, Baumgarten e o Rei do Petróleo que, a princípio, conservavam-se um pouco reservados, confraternizaram com os imigrantes e os seus guias. Sentaram-se juntos. Conversou-se muito e em breve já eram todos bem conhecidos uns dos outros. Com isso passou-se a tarde. Veio a noite e acenderam um fogo no pátio, a fim de assar a carne fornecida pelo hospedeiro. Depois da refeição devia servir-se café. Os apetrechos necessários os imigrantes tinham consigo, de forma que não foi preciso pedi-los emprestados a Forner. A Sra. Rosalie e uma outra das mulheres, tomaram uma vasilha e dirigiram-se ao rio para buscar água. Alguns minutos após voltaram muito alarmadas e sem a vasilha. Suas fisionomias denotavam uma grande indignação.

-  O que aconteceu? - perguntou o cantor. - Onde deixaram a vasilha?   Que fisionomias tão transtornadas!

A outra mulher nem podia falar de tão assustada que estava. A Sra. Rosalie respondeu, mas também sob uma profunda impressão de susto:

-  A minha cara?   Não está nada boa, hem?

- Bem cadavérica de tão pálida. Porventura teve algum encontro desagradável?

-  Encontro?   E que encontro!   Nossa Senhora, o que vimos nós!

- Mas o que foi?

-  O quê? Sim, isso também não sei.   Pergunta-me muita coisa.

Disse-lhe então o marido:

-  Não sejas tão tola!   Deves, por força, saber o que viste!

Pôs ela então as mãos nas cadeiras e perguntou-lhe furiosa:

-  Sabes tu, talvez?

-  Eu? Não - respondeu ele derrotado.

-  Pois então! Fica também caladinho, ouviste! Sei bem onde tenho os olhos, mas um ser tão monstruoso como o que acabamos de ver nunca me apareceu em toda a vida.

- Foi um espírito. Um fantasma do rio - esclareceu a outra mulher enquanto tremia toda.   Tinha recuperado a fala.

- Bobagem! - respondeu a Sra. Rosalie. - Espíritos não existem, e fantasmas, acho eu, muito menos.

-  Então foi uma sereia.

- Também não. Não sejas tão supersticiosa. Sereias só existem nos contos de crianças.

- Então o que achas que tenha sido?

-  Eu? Perguntas-me demais. Um espírito não foi, porque não existem. Um ser humano tampouco, portanto foi um animal, mas que animal!

O cantor tomou, então novamente a palavra.

-  Se foi um animal, em breve teremos esclarecido qual a sua raça, espécie e nome. Eu sou zoólogo, do tempo em que dava lições na escola.   Responda  à  minha pergunta:   Era um animal vertebrado?

-  De vértebras não notei nada.   Para isso estava demasiado escuro.

- Mas que tamanho tinha?

-- Enquanto esteve n’água não pude observá-lo bem, mas ao saltar era, meu Deus, do tamanho dum homem!

- Então foi sem dúvida um vertebrado.   Talvez um mamífero.

-  Isso não posso dizer.

-  Vejamos as classes separadamente.  Teria sido um macaco?

-  Não, pois não tinha pêlos.

-  Bom, bom, hum, hum!  Um peixe talvez?

-  Não, não podia ser, pois um peixe não tem pernas nem braços.

- Este tinha?

-  Sim.

-  Estranho, altamente estranho! Braços e pernas só têm os homens e os macacos. Um macaco, porém, não foi, como a senhora afirma. Portanto é admissível que tenha sido um homem.

-  Qual nada! Um homem não foi. Um homem tem voz bem diferente.

- Ele tinha voz?

- Ora, e que voz!

-  Não poderia imitá-la para mostrar-nos mais ou menos como foi?

- Vou tentar. - Aspirou profundamente e berrou: Uhahahuahua-huahuaauauauahh!

Com este berro medonho levantaram-se todos os presentes num pulo.

-  Meu Deus, que monstro teria sido! - Um leão.. . um tigre... uma pantera! - Assim entrecruzavam-se os comentários.

-  Silêncio, gente!  - pediu o cantor. - Não se alterem!   O que ouviram não foi nenhuma fera. Nada temam; em breve, com a mão da sabedoria, esclarecerei tudo. O animal não tinha pêlos, portanto não era mamífero. Não podia tampouco ter sido um peixe, porque tinha voz. Como a hipótese de tratar-se dum invertebrado nem pode ser formulada, restam-nos os anfíbios, especialmente as rãs e os sapos.

- Qual nada!   Um homem não foi.

A outra mulher exclamou rapidamente:

-  Sim, sim, está certo.  Foi um sapo.

-  Não, foi uma rã! - declarou a Sr. Rosalie depressa.

-  Não, um sapo! Assim como aquele animal, somente um sapo pode estar agachado n'água.

-  Mas pulou alto!

- Mas não como as rãs, e os sapos andam mais em terra que na água.  Compreendes?   Era uma rã!

-  Mas uma rã daquele tamanho! - desesperava-se o cantor, enquanto sacudia a cabeça pensativamente. - Pois a senhora dizia que era do tamanho duma pessoa!

-  Sim, tão grande era, palavra de honra!

-  Hum, hum! O maior sapo aqui da América e o sapo-boi. Mas não atingia o tamanho duma pessoa.

-  Sapo-boi?   Existe isso?   Então decerto foi um.

-  Impossível, pois um sapo desses não alcança nunca um tal tamanho.

-  Mas por que não? Existem gigantes e anões por toda a parte, portanto também pode havê-los entre os sapos. Foi pois um sapo-boi, ou sapo-boi gigante, um gigante-boi ou gigante-boi-sapo...

-  Pare, pare, pare! - advertiu o cantor horrorizado. - O que não fará ainda desse sapo. No meu livro de História Natural não estava mencionado um tal boi-gigante-sapo. Mas não quero brigar. Amo mais a Arte do que a Zoologia e não quero afirmar que não possa existir. Então acha a senhora que realmente foi um gigantesco sapo-boi, Sra. Ebersbach?

- Sim, juro pela minha honra e pela minha alma! Posso jurá-lo, pois quando o animal pulou assim com as quatro pernas para o ar, só poderia ter sido uma rã.

-  Mas o que fazia o animal, antes de pular? Estava imóvel ou andava?

-  Estava agachado, como uma rã! A parte de trás não víamos, e na da frente, somente divisávamos as pernas de cima, um pouco do ventre e a cabeça fora d'água. E lembro-me bem da boca larga de rã e dos olhos saltados, com os quais nos mirava fixamente, senhor cantor.

-  Por obséquio, cantor aposentado, por causa da legalidade. Apesar da descrição dada pela senhora, encontramo-nos ante um enigma, e proponho que nos dirijamos ao rio a fim de nos certificar.

-  Acha que ainda estará lá?

-  Sim. Rãs não são nômades, mas sim animais estacionários. Esta rã nasceu aqui e, portanto, não abandonará esta região. Mas como se trata dum animalão tão grande, convém levarmos as espingardas, O bicho poderia morder.

O hospedeiro teve que arranjar algumas lanternas. Em seguida todos deixaram o pátio, dirigindo-se ao rio. Sam Hawkens, Dick Stone e Will Parker estavam entre os últimos. Com eles ia Droll. Este perguntou, enquanto ria-se baixinho  consigo   mesmo:

-  Pessoal, o que acham mesmo vocês que seja esse tal bicho?

-  Ora, apenas uma rã, e só do tamanho da minha mão - respondeu Hawkens. - Assustou-se com a presença das mulheres e saltou n'água. Elas, no susto, tomaram-na por uma rã quinze vezes maior.

-  Não.   Era mesmo deste tamanho - replicou Droll.

-  Tolice.  Uma rã do tamanho dum homem!

- Nem foi uma rã. Trata-se dum homem que estava se banhando. Naturalmente, meu Hobble-Frank.

-  Com mil trovões!   Que idéia, se não me engano.

-  Sim, é ele com toda a certeza. Falou-me disso hoje quando estávamos sentados no pátio, na hora da canícula, dizendo que pretendia tomar um banho hoje à noite quando estivesse bem escuro.

-  Mas ele foi embora!

-  Qual! Ele está aí novamente. Conheço-o. Naturalmente não quis voltar ao pátio e acampou lá fora.  Veio-lhe então outra vez a idéia do banho.  Despiu-se e entrou n'água, suponho. Ah, silêncio. Cá temos a nossa rã.

O grupo dos curiosos, munido de quatro lanternas, havia chegado à margem do rio. Lá achava-se sentado na relva Hobble-Frank, ao lado do seu cavalo que pastava despreocupadamente. Levantou-se surpreendido ao ver tanta gente e perguntou em alemão:

-  Mas o que pretendem vocês, gentes? Isso é um verdadeiro corso que se aproxima!

-  Ah, o senhor novamente, Sr. Frank! - respondeu o aposentado. - Isso alegra-me extraordinariamente, pois talvez o senhor possa prestar-nos auxílio.  Há quanto tempo está novamente aqui?

-  Há uma hora, mais ou menos.

-  Reparou no que se passou aqui neste lugar?

-  Naturalmente, pois tenho meus olhos e meus ouvidos, e a um caçador da Pradaria da minha marca nada pode passar despercebido.

-  Viu as duas mulheres que vieram buscar água?

-  Sim.

-  E viu também o bicho?

-  Que bicho?

-  Que estava sentado n'água.

-  N'água?   Não vi nada.  Mas que espécie de animal devia ser?

- Um sapo-boi.

-  Não, de um sapo-boi realmente não percebi nada.

-  Esteve então mesmo por aqui quando chegaram as mulheres?

-  Sim, não posso dizer que estava longe. Achava-me sem dúvida bem próximo.

A Sra. Rosalie arrastou-se então até ele e disse:

-  O senhor, eu não vi com muita clareza, porém vi a rã-boi. Se pretende ter estado assim tão próximo a nós, devia também tê-la visto, forçosamente.   Era suficientemente grande!

-  Mais ou menos de que tamanho?

-  Bem como um homem completamente desenvolvido.

-  Oh! Deste tamanho nunca será uma rã, mesmo que se trate de uma rã-boi. Vi muitas dessas. Serão talvez um pouco maior do que uma possante mão de homem. Nunca, porém, ultrapassando essas dimensões. O seu nome não provém do fato de terem o tamanho de um boi, mas da sua agradável voz, pois coaxam exatamente como o berro dum boi.

-  É isso, é isso!   Ouvimos o animal berrar.

-  Isso eu também devia ter ouvido!

- Também acho. Mas onde tinha suas orelhas e seus olhos, que não ouviu nem viu o animal?

-  De fato, não sei. Mas mostre-me por obséquio o lugar onde a rã berrou.

-  Ela berrou só quando se levantou.

-  Ouça, Sra. Ebersbach, isso se me afigura de todo impossível Uma rã não berra enquanto salta e sim quando está sentada.

-  Não. Esta gritou no momento em que saltava fora da água. Quero mostrar-lhe o lugar.

A Sra. Ebersbach guiou o incrível Frank à margem do rio, apontou para um ponto próximo do qual jazia o balde vazio, depois para dentro d’água e esclareceu:

-  Aqui estávamos nós, a fim de buscar água para o café. Como prova está o balde vazio, o qual jogamos fora de medo. E ali na água estava a rã-boi!

Hobble-Frank fez então uma cara muito comprida, que se transformou, porém, cada vez mais numa expressão divertida e perguntou:

-  Viu, pois, que era efetivamente uma rã-boi?

-  Ora, falando com franqueza, não sabíamos, primeiramente, a que classe de insetos pertencia o bicho, mas o nosso cantor estudou "Zovolia", e com sua bondosa ajuda ficou esclarecido que se tratava mesmo duma rã-boi.

-  Admirável, admirável! Isso diverte-me imensamente, minhas senhoras e meus senhores! E por que vêm agora com lanternas e archotes ao rio?

-  À procura da rã-boi, para pegá-la - respondeu a Sra. Rosalie.

-  Acham que isso será tão fácil assim?

-  Ora, duma rã não podemos nos atemorizar. Verdade que é uma rã-gigante, mas se embravecer, não adiantará. Logo que quiser morder, será alvejada. Como vê, trouxemos as espingardas.

Ele explodiu então numa grande gargalhada, em virtude da qual a Sra. Rosalie sentiu-se ofendida e disse-lhe irada:

-  Não se ria assim, seu! Não é nenhuma brincadeira, assim numa hora noturna de sono, quando fica escuro...

-   .. .tomar o célebre Hobble-Frank por uma rã-boi!

Ela recuou um passo, fulminou-o com o olhar e perguntou:

-  O senhor, o senhor era a rã-boi?

-  Sim, eu - riu-se ele. - Havia cavalgado pela planície afora e quando escureceu, voltei. O dia fora tão quente e a cavalgada deixou-me com mais calor. Ao passar novamente aqui pelo riozinho, a água refrescou-me tanto que me ocorreu a idéia de tomar um banho. Assim, apeei, despi-me e entrei n'água.

Enquanto Frank fazia aqui uma pausa, a Sra. Rosalie juntou as mãos e exclamou assustada:

-  Meu Deus do Céu, o que estou ouvindo!  O senhor entrou n'água?

-  Sim, nadei para lá e para cá, refresquei-me bem e dispunha-me a voltar outra vez para o seco, quando lobriguei duas pessoas femininas que, sem que o notasse, se haviam aproximado do rio, achando-se já bem próximas. Imediatamente agachei-me, pois julgava que fossem passar. Mas vieram parar justamente no lugar da onça beber água e onde o Frank estava. Aí estacaram e me olharam.

-  Isso sem dúvida é verídico - interveio a Sra. Rosalie. - Vimos algo branco no meio da escuridão, e nem sabíamos, a princípio, o que poderia ser; em todo o caso, era um ser vivo que nos mirava duma maneira horrível.

- Desculpe-me, Sra. Ebersbach! Não mirei ninguém duma maneira horrível. Até pelo contrário, olhei-as medrosamente, esperando que delicadamente se afastassem. Mas não aconteceu tal. Por isso resolvi fazer uma evolução estratégica: dei um pulo, bati palmas e berrei quanto pude.

Ao ouvir esta narração a Sra. Ebersbach pareceu ficar ressentida e disposta a responder-lhe com mais dureza ainda do que antes. Droll, porém, tomou a palavra:

-  Foi um equívoco, meus honrados senhores, um equívoco que não veio prejudicar ninguém. Por isso não mais briguemos nem gritemos, mas, sim, façamos honra ao mérito. Viva nosso Hobble-Frank, o sapo-boi-gigante.  Três hurras a ele!

Depois de todos terem feito coro à saudação, prosseguiu:

-  Eis ali a vasilha, encham-na duma vez a fim de que, enfim, tomemos o nosso café. Depois formaremos duas filas para conduzir o nosso sapo-boi-gigante triunfalmente para o acampamento.

Assim aconteceu. Hobble-Frank queria esquivar-se, mas o ferreiro Ebersbach, que era o mais comprido dos imigrantes, colocou-o como a uma criança sobre os ombros, e o corso dirigiu-se de volta ao acampamento a passo militar, enquanto todos imitavam todas as formas do coaxar dos sapos. Lá chegados, sentaram-se todos em torno do fogo e a refeição interrompida recomeçou. O objetivo do dia seguinte era um pueblo solitário situado na encosta da Serra de Mogollon. A fim de alcançá-lo deviam partir cedo e não fazer muitas paradas pelo caminho. Além disso, não foram dormir logo, pois havia muito que contar.

O Rei do Petróleo tomou parte ativa na palestra e conversou animadamente. Isso foi possível porque o banqueiro não entendia o alemão e, por consideração a ele, usavam o idioma inglês. Assim também Grinley podia participar da conversa. Ele esforçou-se por cair no agrado, o que foi muito fácil com relação aos alemães, se bem que estes não entendessem muito da conversa em inglês. Também a desconfiança do banqueiro começou a dissipar-se.

Com a excentricidade de caráter do astuto Sam Hawkens, a alegria de Droll e a originalidade de Hobble-Frank fácil é de avaliar-se a animação da palestra. O tempo correu com extraordinária rapidez, de maneira que ficaram todos grandemente admirados quando Will Parker, finalmente, lembrou que já passava da meia-noite.

Dispunham somente de quatro ou cinco horas de sono, por isso trataram todos de deitar-se logo. Alguns minutos após estavam imersos no sono. Não foi preciso destacar sentinelas porque os peões do hospedeiro vigiavam, lá fora.

 

No “Pueblo”

Apenas raiara o dia, Forner providenciara sobre o café e pão de milho fresco, de maneira que os caravaneiros não precisaram preocupar-se nem perder tempo quanto à primeira refeição daquele dia. Foi dada bastante água aos animais, pois no percurso que fariam nesse dia não havia água potável.

O hospedeiro recebeu o pagamento pelo que fornecera. Os peões receberam gorjeta. Depois a caravana partiu.

Sam Hawkens cuidara que as mulheres fossem bem acomodadas em seus animais: a viagem não as fatigava mais do que aos homens. As crianças foram instaladas em jacas, cada burro levando dois, um à direita e outro à esquerda. Estavam forrados de palha, de modo que não eram muito sacrificados os seus ocupantes. Assim, os burros podiam acompanhar bem o passo dos outros. Desse modo, a marcha prosseguia com relativa rapidez.

À medida que se afastavam do rio, a região tornava-se mais estéril. Onde, naquelas paragens, existe umidade ou mesmo água corrente, a terra oferece uma extraordinária riqueza de produtos. Onde, porém, falte a gota vivificante, não existe senão a implacável solidão do deserto.

De manhã, o calor não foi muito forte. Quanto mais, porém, o sol subia no horizonte, mais intenso se tornava o bafo abrasador, que vinha do chão duro e pedregoso e irradiava das escarpas nuas e lisas das montanhas rochosas. E isso era quase insuportável para os pobres imigrantes alemães, não acostumados a um tal calor.

Até as primeiras horas da tarde, o trajeto foi feito por pequenos vales e intermináveis ermos que não apresentavam o mais leve vestígio de qualquer planta. Vieram depois algumas elevações que, todavia, não ofereciam do seu cimo nenhuma vista atraente, porque a natureza tão avara naquelas regiões não concedera nenhuma árvore, nem um arbusto sequer, para ataviar um pouco a paisagem. Só mesmo em alguma quebrada, nalgum recanto escondido, onde o sol não dardejasse seus raios da manhã à noite, onde houvesse enfim uma nesga de sombra, é que se erguia, às vezes, o porte solitário dum cacto de fantástica disposição, cujo cinzento triste e sem vida não dava, contudo, alegria à paisagem.

Por volta do meio-dia, quando o calor se tornara quase insuportável, fizeram alto para sestear junto à escarpa de uma montanha. Havia um pouco de sombra; a parede rochosa, porém, exalava de tal modo todo o bafo esbraseante do calor absorvido pelos ardentes raios de sol, que os viajantes tinham mais vontade de montar logo e seguir viagem, pois, cavalgando, sempre havia certa aragem para refrescar, desde que não se andasse muito devagar.

Enfim, o sol já começava a declinar no horizonte: o calor pareceu diminuir um pouco, rápido, muito mais rapidamente do que, afinal, era de esperar.

Sam Hawkens examinou o céu e mostrou a fisionomia levemente pensativa.

 

Sam  Hawkens  examinou  o  céu  e mostrou a fisionomia levemente  pensativa.

 

-  Por que olhas assim? - perguntou-lhe Hobble-Frank. - Parece que não te agrada o céu?

-  Pode ser que tenha razão.

-  Por quê?

-  Porque o ar refrescou tanto e tão de repente.

-  Ah, talvez um temporal?

-  Estou quase temendo isso.

-  Isso seria bom mesmo! Um temporal depois desta seca e deste calor, seria realmente bem-vindo!

-  Agradeço. Os temporais nesta região costumam ser bem diferentes do que pareces imaginar. Aqui se passa um ano inteiro, freqüentemente, sem que caia uma única gota de água. Sim, houve época em que não choveu durante dois e até três anos. Em compensação, quando depois chove é uma tempestade tão tremenda como não fazes idéia. Tratemos de alcançar o pueblo.

-  Que distância tem ainda até lá?

-  Em meia hora lá estaremos.

-  Então não há perigo. Ainda não há uma única nuvenzinha no céu.  Podem decorrer horas ainda até que o céu escureça.

-  Não te iludas! Aqui são precisos apenas alguns minutos para que fique escuro, e estou quase a afirmar que pressinto a eletricidade que anda no ar, como se a aspirasse. Repara só em minha Mary, como tem pressa, como dilata as ventas e como mexe com as orelhas e a cauda! O ajuizado animal sabe perfeitamente que algo está para acontecer.

Efetivamente assim era. A velha mula apressava visivelmente o passo e demonstrava uma impaciência que realmente chamava a atenção. E contudo, não havia nada de extraordinário que pudesse alarmar os inexperientes. Quando Frank comunicou a seu primo Droll os receios de Sam, aquele respondeu:

- Já imaginava isso. Vê como está amarelo em redor, na linha do horizonte. Isso subirá, subirá, e quando atingir o zênite, desabará a tempestade.   Ainda bem que em breve estaremos debaixo dum teto.

-  No pueblo?

-  Sim.

-  Mas lá só existem barracas onde entra a chuva.

-  O que pensas tu?   Então já viste um pueblo?

-  Não.

- Vais admirar-te então quando lá chegarmos. É muito interessante e bem fora do comum.

Ele tinha razão ao dizer que um pueblo oferece um aspecto bem fora do comum. Quanto à denominação pueblo, é uma palavra espanhola que significa "lugar habitado", portanto pode designar tanto uma casa só como uma aldeia ou uma localidade. Os índios habitantes desses povoados chamam-se simplesmente pueblos. A esses pertencem os tanos, taos, tehua, vemes, queres, acoma, zuni e moqui, em sentido mais amplo também os pima, maricopas e papagos no. Rio Gila e ao sul deste.

Um pueblo é construído ou de pedra ou de tijolo oco ou de ambos. Comumente, a construção situa-se numa rocha, que serve como parede de fundo, na qual são abertos compartimentos para moradia. Esta edificação eleva-se por degraus, de maneira que o andar inferior avança para fora da base do que lhe fica superior, formando uma espécie de plataforma ou terraço, que é por seu turno coberto por um telhado. Assim o andar térreo suporta, em parte, o chão do andar superior, em seu telhado. Na parede do andar térreo não existe porta. Para dar acesso ao andar de cima existe um buraco no telhado. Escadas na construção propriamente não existem, mas sim escadas portáteis de madeira, que estão encostadas na parte de fora, podendo ser retiradas à vontade.

Esse tipo de construção foi adotado pelas velhas gerações ordeiras e trabalhadoras, em virtude das hordas selvagens de bandidos que infestavam as proximidades. Um tal pueblo constituía, apesar da sua simplicidade de construção, uma fortaleza, que para os meios de agressão daquele tempo era realmente inexpugnável. Precisava-se unicamente retirar as escadas e o inimigo não podia subir. E se trouxessem escadas consigo, uma vez escalado um andar, precisavam primeiro tomá-lo de assalto para poderem depois prosseguir na escalada. Essas povoações de índios são, na maior parte, pacíficas e estão sob a proteção do Governo. Todavia, existem pueblos que estão localizados em paragens distantes, solitárias. Seus moradores consideram-se livres e devem ser tratados da mesma maneira como as selvagens e desenfreadas tribos nômades. A essa espécie pertencia o pueblo que os nossos viajantes haviam tomado como objetivo. Seus habitantes eram selvagens índios nijoras, cujo chefe chamava-se Ka Maku. Ka significa três e Maku é o plural de dedos. Portanto Ka Maku quer dizer Três Dedos. Ele usava este nome de guerra, porque perdera dois dedos em combate e tinha assim só três. Era conhecido como um guerreiro valente e destemido, em cuja palavra e amizade a gente poderia em tempos normais talvez confiar. Agora, porém, que diversas tribos haviam desenterrado a sua machadinha de guerra, seria muito temerário confiar ilimitadamente nele.

Seu pueblo jazia ali solitário, iluminado pelo sol moribundo. Tinha, fora o andar térreo, cinco andares cujas paredes de trás se apoiavam na encosta vertical da montanha. Os andares inferiores eram construídos de grandes pedaços de rocha que estavam ligados entre si por meio de pedras de argila. Os andares de cima eram compostos, finalmente, de tijolos ocos. A construção tinha seguramente mais de cinco séculos de existência e contudo nela não se notava a menor fenda.

Viam-se mulheres e crianças no terraço, todas muito ocupadas e sérias, segundo o costume dos vermelhos. Um observador atento notaria que as mulheres e mesmo as crianças dirigiam seguidamente olhares ansiosos para o sul, como se esperassem algum acontecimento importante daquelas bandas. Nem um homem, nem um guerreiro se via. De repente, porém, surgiram pelo buraco do terceiro terraço três pessoas, um vermelho e dois brancos, que ficaram na plataforma e também puseram-se a olhar para o sul. O vermelho era Ka Maku, o cacique, uma figura alta e robusta com a pena de corvo no alto do penacho. Seu rosto não estava pintado, sinal de que seu pueblo estava em paz. Por isso, também havia em seu cinturão somente a faca de escalpar. Os dois brancos a seu lado, eram Buttler, o chefe dos doze Finders, e Poller, seu companheiro, que havia sido o guia dos imigrantes alemães. Como não lobrigassem nada na direção para onde olhavam, disse Buttler:

-  Ainda não.  Mas virão em todo caso, antes do anoitecer.

-  Sim, hão de apressar-se - asseverou o cacique. - Há homens inteligentes entre eles que se aperceberão do temporal que se avizinha. Por isso tratarão de chegar depressa, antes que desabe a tempestade.

-  Vais cumprir tua palavra então?   Posso confiar em ti?

-  Há muito tempo que és meu irmão e serei leal contigo. Todavia, espero que também possa confiar em ti e receber a remuneração que me prometeste.

-  Dei-te a minha mão. Vale tanto como um juramento. Trata somente de facilitar o meu encontro com o Rei do Petróleo a fim de que eu possa entender-me com ele!

-  Conduzir-te-ei a ele. Não seria fácil a mim manter minha palavra. Mas o temporal se aproxima e esses caras-pálidas não quererão ficar lá fora e sim entrar no pueblo para não se molharem. Posso aprisioná-los então sem que haja combate.

-  Aqueles, porém, que te indiquei deves separar, para que julguem mais tarde que foi o Rei do Petróleo que os salvou.

-  Acontecerá como disseste. Uff! Lá fora vem cavaleiros. Devem ser eles.  Escondam-se depressa.

Os dois subiram rapidamente para o outro andar por onde desapareceram. O cacique, porém, ficou parado observando com olhares agudos os que se aproximavam.

 

. . .surgiram  pelo  buraco do terceiro terraço  três pessoas, um vermelho e dois brancos. . .

 

Era um comboio de cavaleiros e cargueiros. Os três cavaleiros da dianteira cavalgavam um ao lado do outro. Sam Hawkens, Droll e Hobble-Frank. Ao avistar nitidamente diante de si os terraços do pueblo próximo, disse Hobble-Frank:

-  Semelhante construção nunca vi. Que estilo será este? Bizantino ou Românico. Talvez seja gótico puro ou talvez qualquer outro estilo grego. Em todo o caso, para um entendido no assunto, como eu, é altamente interessante observar com que regularidade se sobrepôs e justapôs gradualmente este pueblo indiano.

A escada que dava acesso ao andar térreo estava baixada. Nos diversos terraços, além das mulheres e crianças, apareciam alguns homens. Isso dava a impressão de que os guerreiros se achavam ausentes. O cacique esperava imóvel e orgulhosamente a fala dos viajantes. Sam Hawkens gritou-lhe numa mistura de inglês, espanhol e índio, que era o idioma usado ali:

-  És tu, Ka Maku, o cacique desse pueblo?

-  Sim - respondeu ele secamente.

-  Queremos fazer pouso aqui. Poderemos obter água para nós e nossos cavalos?

-  Não.

Esta negativa era apenas simulada. Estava decidido a capturá-los. Tinha, pois, que fornecer-lhes água. Mas não deviam sequer suspeitar de que queria tratar com eles.

-  Por que não? - perguntou Sam.

-  A pouca água que temos mal dá para nós e nossos animais.

-  Mas não vejo nem guerreiros nem cavalos.   Onde se acham eles?

-  Na caça. Não devem tardar, porém.

-  Então devem ter água de sobra.   Por que no-la negas?

-  Não os conheço.

-  Então não vês que há mulheres e crianças conosco? Somos pois, gente bem intencionada. Precisamos beber. Se não queres dar, nós mesmos a buscaremos.

-  Não a achareis.

Voltou-se, como se não quisesse mais conversa com eles. Isso foi demais para o bravo Hobble-Frank.  Disse furioso para o seu primo Droll:

-  Mas o que este sujeito pensa que nós somos? Se me der vontade, meto-lhe uma bala na cabeça e quero ver se não vai se tornar logo mais delicado. Somos gente ilustrada, que tem cabelinho na venta e não nos deixamos tratar como vagabundos. Proponho que troquemos algumas palavras sérias com este homem.  Ou não queres?

-  Sim - respondeu Droll em seu dialeto natal - não é lá muito agradável ter sede e não ter água. Mas havemos de achá-la de qualquer maneira.   Precisamos somente procurá-la.

Os cavaleiros apearam a fim de procurar uma suposta fonte. Umidade havia suficiente ali, pois havia capim nas proximidades do pueblo, e não muito distante havia até pequenas roças de milho, abóbora e outras plantas, cuja cultura requeria uma boa quantidade de água para regar muito bem. Mas o que procuravam não havia meio de aparecer; assim é que Frank finalmente exclamou mal-humorado:

-  Bobalhões é que somos. Nada mais. Se Mão de Ferro e Winnetou estivessem aqui, com sua presença de espírito já teriam encontrado água há muito tempo.  Sim, creio até que a farejariam.

-  Não é preciso este famoso guerreiro - opinou Chi-So, o filho do cacique, que acompanhara todos aqueles esforços até agora com um leve sorriso. - É preciso refletir em lugar de procurar.

-  É? Pois então reflete.

-  Isso já o fiz - respondeu este.

-  Verdade? Então queres ter a bondade de participar-nos o resultado do teu exercício mental.

-  Este pueblo é uma fortaleza, que não pode viver sem água. Esta torna-se mais necessária num caso de cerco, quando os ocupantes da construção não podem deixar a mesma. Removendo este obstáculo, é fácil deduzir-se onde deve ser o poço.

-  Ah, crês que seja talvez dentro do edifício?   Mas onde, então?

- De qualquer maneira não há de ser num dos andares de cima - gracejou o jovem índio.

-  Onde foi instalado há séculos, quando construíram o pueblo.

-  Certo! Isso é tão claro como graxa de sapato. Escuta, meu querido e jovem amigo, nem és assim tão bobo como pareces. Se continuares a desenvolver-te dessa maneira, é bem possível que venhas ainda a ser alguma coisa. Portanto devíamos ter procurado na parte térrea. Mas como chegaremos a entrar lá? Não se vê nenhum portão de entrada, e as escadas portáteis comumente usadas foram retiradas contra o costume. Mas se formarmos uma pirâmide egípcia, trepando um no ombro do outro, poderão alguns dos nossos alcançar o telhado e de lá chegar ao andar térreo onde se encontra a aqua destillanteritm.

Sam Hawkens observou então:

- Isso seria fazer justamente aquilo que deveríamos evitar, se não me engano. Parece que podemos contornar essa dificuldade. O cacique desce. Acho que quer falar conosco.

Efetivamente, Ka Maku descera até a primeira plataforma. Chegou-se até o parapeito da mesma e perguntou:

-  Os caras-pálidas já acharam água?

-  Permite que subamos até aí em cima, que a acharemos - respondeu Sam. - Está aí no pueblo.

-  Adivinhaste. Poderia ceder alguma, mas anda tão escassa aqui a água, que...

-  Pagaremos - interrompeu-o Sam.

- Isso  é bom.   Porventura sabe meu  irmão  que várias  tribos de vermelhos desenterraram suas machadinhas de guerra contra os brancos? Poderemos confiar nos caras-pálidas?

-  Nada precisas temer de nossa parte. Talvez já tenhas ouvido alguma vez falar a nosso respeito. Eu e esses dois guerreiros aqui ao meu lado somos denominados a Folha de Trevo.  Aqui atrás de mim está...

- A Folha de Trevo? - interrompeu-o pressurosamente o cacique. - Eu os conheço.   Vocês chamam-se Hawkens, Stone e Parker?

-  Sim.

-  Por que não me disse logo? A Folha de Trevo sempre tem sido amiga de nós, vermelhos. Vocês, nossos irmãos, são bem-vindos aqui. Terão água de graça e quanta desejarem. Nossas mulheres se encarregarão de fornecê-la a vocês.

- Os caras-pálidas já acharam água:

A um chamado seu vieram as sqttaws e retiraram grandes jarros do poço situado no andar térreo, de modo que os viajantes puderam servir-se facilmente deles por meio de escadas que foram encostadas às paredes. Tudo isso dava uma impressão tão agradável de paz, que a nenhum, nem mesmo a Sam Hawkens sempre tão inteligente, ocorreu a idéia de que toda aquela amizade do cacique pudesse ser puro fingimento.

Enquanto pessoas e animais saciavam a sede, o aspecto do céu tinha sofrido uma transformação total. Primeiro cor-de-rosa, depois escarlate, e finalmente uma cor de violeta que foi se transformando aos poucos em um negro carregado, sem que se pudesse dizer, contudo, que se tratasse de nuvens.

-  Está feio! - opinou Dick Stone a Hawkens. - Que dizes a isso, Sam?  Parece tratar-se de um huracán ou tornado.

-  Não creio - respondeu o interpelado, enquanto examinava o céu num demorado olhar. - Sim, teremos tormenta, uma formidável tormenta, mas muita, muita água também. Seria melhor se pudéssemos estar debaixo dalgum telhado, e bem assim nossos cavalos, a fim de que não fujam.

Dirigindo-se ao cacique que ainda se encontrava na plataforma, perguntou-lhe:

-  O que diz meu irmão vermelho a esta inquietante mudança de tempo? Em que dará isso?

-  Uma grande tempestade com tanta água, que dentro em pouco tudo estará nadando aqui.

-  Também penso assim; não tenho vontade, porém, de nadar e deixar minhas coisas se estragarem na chuva. Não poderemos ser admitidos no pueblo?

-  Meus irmãos brancos queiram subir com suas mulheres e crianças. Que não os molhe uma só gota d'água.

- E nossos animais? Não haverá um lugar para eles donde não possam fugir?

-  Aí à esquerda do pueblo existe um curral onde podem encerrá-los.

-  Bem, faremos  isso. Entrementes,  as mulheres  poderão subir. Foram arreadas mais escadas, de maneira que as mulheres e crianças alemães puderam subir ao segundo andar e de lá, através do buraco, descer ao primeiro. Ao mesmo tempo vieram mais squaws índias adolescentes que carregaram a bagagem retirada dos cavalos e mulas até a primeira plataforma e de lá, pelo mesmo buraco, ao andar térreo. No flanco do pueblo indicado pelo cacique havia um espaço quadrangular, fechado por um muro bastante alto e que, conforme dissera Ka Maku, servia de curral. Para aí foram conduzidos os cavalos. Depois fechou-se a porteira que consistia em varais colocados horizontalmente em buracos feitos no muro. Apenas tinham terminado esse trabalho, um relâmpago iluminou todo o firmamento que este pareceu todo em chamas, e reboou um trovão tão poderoso que toda a terra pareceu tremer. Ao mesmo tempo começou a chover torrencialmente, tornando-se impossível enxergar-se a poucos passos de distância. A tormenta que desabou foi tão violenta que precisaram encostar-se ao muro a fim de não serem arrastados pelo vento. Os homens correram para as escadas. O banqueiro e seu guarda-livros não eram tão ágeis como os demais, assim é que foram os últimos a chegar às escadas. Todos subiram atropeladamente para a segunda plataforma, e de lá, pelo buraco do telhado, com o auxílio de outra escada, desceram ao primeiro andar. Cada um pensava somente em si e tratava de pôr-se a salvo o mais depressa possível. Não prestaram atenção a mais nada. Assim ninguém reparou nos cinco ou seis índios que se achavam ao lado do cacique, enquanto este acompanhava os movimentos dos que entravam. A tampa com a qual podia fechar-se o buraco que estabelecia a comunicação entre os dois andares, jazia ali ao lado. Espalhadas perto dali, havia uma quantidade de pedras, cada uma de dez quilos pelo menos, que igualmente não chamaram a atenção de ninguém. O banqueiro e seu guarda-livros, como já foi dito, foram os últimos a alcançar a escada. Quando o primeiro ia pôr o pé no primeiro degrau da escada que levava ao primeiro andar, gritou-lhe o cacique:

-  Alto.  Não podem entrar.

-  Por que não? - perguntou Rollins.

-  Já o verão.

Atirou-se com os seus índios sobre os dois, subjugando-os antes que eles tivessem tempo de, reagir. Seus gritos de socorro foram abafados pela fúria do vendaval e o reboar dos trovões. Com a mesma ligeireza, o cacique retirou a escada com um pontapé, atirando em seguida a tampa sobre o buraco, tendo ainda o cuidado de pôr todas aquelas pedras por cima da tampa. Os que haviam descido não podiam mais subir. Estavam prisioneiros.

O banqueiro e Baumgarten foram conduzidos para um andar abaixo e atirados ao chão no andar térreo, bem amarrados com laços. Depois foi, também aqui, trancada a saída. O cacique enviou um de seus homens para fora, pela escada da primeira plataforma.

Este emissário saiu correndo, apesar dos trovões e relâmpagos, do vendaval e da chuva, ao longo da encosta rochosa na qual se apoiava a construção, desapareceu num canto e surgiu uns dez minutos mais tarde num lugar onde as ruínas duma parede ou rocha desabada formavam um montão de escombros, que oferecia um ótimo esconderijo. Aí tinham-se escondido os guerreiros do pueblo, a fim de fazer os brancos acreditarem que andavam na caça. Àqueles o mensageiro deu a notícia de que o golpe surtira efeito e que, por conseguinte, já podiam voltar.

Sim, o golpe surtira efeito e até duma maneira mais rápida, fácil e melhor do que o cacique o imaginara. Para este inesperado sucesso contribuiu, em grande parte, o temporal desabado tão repentinamente, mas também não pouco a imprudência com que os prisioneiros se deixaram cair na armadilha. Primeiro, como já foi dito, desceram as mulheres e crianças do terceiro ao segundo andar. Lá chegadas, constataram achar-se num compartimento de uns três metros de altura, fechado e sem janelas. Com exceção do buraco por onde haviam descido, não havia uma única abertura nas paredes rochosas. O andar era dividido por quatro paredes transversais em cinco compartimentos, dos quais o do meio era o maior. Nesse achavam-se elas. Em um pequeno nicho ardia uma lamparina, cuja pálida chama apenas iluminava a uma distância de poucos passos.

A Sra. Rosalie sacudiu a cabeça enquanto examinava o local ao redor de si. Não deparando, afora a escada e a lamparina, com o mínimo objeto aí dentro, disse consternada:

-  Não, uma coisa dessas eu nunca vi! Então metem os seus hóspedes num tal buraco onde não existe um canapé e nem mesmo uma única cadeira! Isso é um verdadeiro porão. Onde vai a gente sentar-se? Onde pendurar a gente as suas coisas. Onde se fará o fogo? Onde se fará o café? Não se vê nenhuma janela e não existe fogão. Isso, realmente, tenho que reprovar. Nós somos damas, e damas não se metem num... Com mil trovões! - interrompeu-se ela mesma, assustada com o ribombar do primeiro raio que fez tremer o compartimento. - Acho até que caiu um raio aqui.  Não?

-  Sim, foi um raio, e que raio! - respondeu a Sra. Strauch. - Eu olhava justamente através do buraco e o vi nitidamente.

-  Então coloquem-se todas imediatamente naquele canto. Os homem vinham dizendo durante a viagem que os temporais aqui são bem diferentes. Se algum desses malucos raios americanos se despenhar por este buraco abaixo, estaremos no mesmo momento bem mortas. Por isso até é bom que não exista feno, palha nem outra qualquer matéria inflamável por aqui. Compreendem-me? Ouvem como cai a chuva lá em cima? Nossa Senhora! Nossos pobres homens ficarão molhados até os ossos. Dentro em pouco teremos resfriados, dores de cabeça e de estômago. Quem é que sofre com as preocupações e o medo? Naturalmente nós, as mulheres, as esposas, as damas, o que se explica perfeitamente! Oxalá voltem logo.

O seu desejo foi satisfeito quase que instantaneamente, pois o primeiro dos que desciam apareceu. Era Hobble-Frank, ao qual seguiram-se os outros. Uma vez em baixo, tratou de sacudir a água de si e, olhando em volta, disse desolado:

-  Mas que buraco miserável é este, afinal? Será isto uma moradia? Se estes gentlemen vermelhos não contam com coisa melhor para nos oferecer hospitalidade, vou mandar-lhes um real construtor de moradias da Saxônia. Ele mostrará a diferença que existe entre a minha Vila Toucinho de Urso, na margem do Elba, e esta imunda pocilga subterrânea. Onde poderá a gente deitar-se quando tiver vontade de fazer uma sestazinha ao meio-dia?

-  Onde quiser, seu Frank - respondeu a Sra. Rosalie. - Há lugar de sobra.

-  Como? O que diz a senhora? - perguntou Frank já todo espinhado. -Lugar de sobra? Por que não se senta a senhora? Por que não lhe serve, não?   E o que não lhe agrada, serve muito bem para mim?

-  Quieto, Frank - recomendou-lhe Sam. - Aqui não é lugar nem hora apropriada para esses bate-bocas. Temos mais o que fazer.

-  O que então?

-  Antes de mais nada, temos de fumar o cachimbo da paz, se não me engano.

-  Com estes índios?

-  Sim, com o cacique, ao menos. Sabes perfeitamente que com esses vermelhos só se está seguro depois de ter fumado o kalumet com eles.

-  Isso sei eu.  Mas então devíamos ter fumado lá fora.

-  Mas não houve tempo.

-  Devíamos tê-lo feito, a despeito do temporal. Agora estamos metidos aqui neste porão, e se os vermelhos não estiverem bem intencionados conosco, é o mesmo que... Com os diabos! Vejam! A encrenca já começou.   Puxam a escada para cima.   Segurem-na.   Segurem-na!

Ele apressou-se atirando-se de braços estendidos na direção da escada; chegou, porém, tarde demais.   Ela desapareceu pela abertura do teto.

-  Aí têm o castigo! - exclamou furioso. - Agora estamos no lodo, como Pitágoras no tonel!

-  Isso foi Diógenes - corrigiu Sam.

-  Silêncio! - impôs-lhe Frank. - O que entendes de Diógenes? Tu és o anão no tonel de Heidelberg1. Tens sempre que estar brigando comigo?

-  Não - riu-se Sam. - Mas a história da escada faz-me pensar. Por que a retiram tão depressa? Precisariam dela com urgência, nalgum outro andar?  Com um tempo desses seria bem possível. Vejamos.

Constatou-se a falta do banqueiro e seu guarda-livros. Por isso disse Sam Hawkens satisfeito:

- Estou tranqüilo. Eles são dos nossos, portanto precisam descer também. Sem dúvida necessitaram depressa da escada num outro lugar, se não me engano.

- Mas por que fecharam lá em cima e puseram a tampa no buraco? - interveio Droll.

- Ainda perguntas? - respondeu Frank. - Realmente, eu me envergonho de seres meu primo, meu parente. Toda pessoa ajuizada fecha as janelas quando chove. Aqui não só chove torrencialmente, mas ainda entra água como numa banheira. Por isso fecharam a abertura a fim de resguardar nossas respeitáveis cabeças... Podes compreender isso?

-  Sim, querido primo e amigo Heliogabalus Morpheus Edeward Frank, porque tu explicaste tão bem eu o entendi.

_____________________

1)    Frank  aludia,  a um tradicional  tonel que  existe   em   Heidelberg,   cuja altura vai a quatro ou cinco metros. (N. do Trad.)

 

- Sim, esse deve ter sido o motivo - concordou Sam. - Enquanto  o cacique não desce, passemos uma revista em nossa moradia de hoje, com o auxílio desta lamparina.

De uma moradia provavelmente não se podia falar. Os quartos estavam completamente vazios. Não havia nenhum assento, nenhuma coberta, nem sinal de palha, feno ou folhagem que pudesse servir, ao menos, para um homem. Então um desânimo profundo se apoderou daquela gente encharcada. Sam, porém, não perdeu a coragem ainda, e disse ao voltarem novamente para o quarto do meio:

-  Isso já mudará. Deixem chegar o cacique. Então teremos tudo quanto desejarmos.

Chi-So, o jovem índio, não tomara parte na revista pelos quartos, estava sentado no chão, com as costas apoiadas na parede, olhando seriamente para a frente. Ao ouvir, porém, as palavras consoladoras de Sam, quebrou o mutismo e disse:

-  Sam Hawkens está enganado. Não mudará nada. Estamos prisioneiros.

-  Prisioneiros?   Com mil trovões!   Donde concluis isso?

- Sou índio e sei como isso é. Quando entramos lá por cima, vi duas escadas encostadas na parede do andar de cima. Se precisavam urgentemente de uma, por que não se utilizaram de uma daquelas que era muito mais fácil de apanhar do que a nossa?

-  E mais uma coisa - prosseguiu o jovem. - Onde está Grinley, que se atribui o nome de Rei do Petróleo?

-  Com mil trovões, é mesmo! - exclamou Sam preocupado.

-  Por que faltam justamente aqueles a quem ele provavelmente pretende lograr? Sabe que não permitiremos isso, quer desembaraçar-se de nós e para isso dirigiu-se ao cacique.

-  Mas como e quando?

- Lembra-te daqueles dois brancos no Rancho do Forner? Falou com eles. Descobri até que esteve confabulando largo tempo com um deles atrás da casa.

- Se de fato foi assim, deram-se certas coincidências que me fazem pensar seriamente. Mas como podem atrever-se a aprisionar um tão grande número de pessoas aqui, como nós? Estamos excelentemente municiados e podemos reagir.

-  Onde?

-  Abrindo o buraco.

-  Experimente-o. Certamente não o conseguirá.

-  Então pela parede de fora.

-  Esta compõe-se de pedra e dum barro que seguramente é mais duro ainda do que a pedra.

-  Através do teto.

-  Tente atravessá-lo com suas facas.

- Mas, com exceção do cacique, só vi mulheres e crianças!

- Os guerreiros tinham-se escondido. Deviam estar na caça. Como se houvesse alguma caça que se pudesse abater nesta época e nestas paragens desertas! Vocês sabem que diversas tribos de índios desenterraram suas machadinhas de guerra. Se estes acham-se a caminho da guerra e podem, por conseguinte, aparecer de um momento para outro, em qualquer povoação, os outros serão tão imprudentes a ponto de, mesmo assim, afastarem-se das suas habitações indo caçar e arriscando deste modo suas vidas?   Além disso, desde quando os índios de pueblo saem aos bandos para caçar?   Não vivem eles quase exclusivamente do produto de suas lavouras?

-  Tens razão. Tuas ponderações estão certas.

-  Sim. Estamos prisioneiros.

-  Convençamo-nos então de que realmente assim é e experimentemos se a tampa ali em cima não cede.

Dick Stone e Will Parker precisaram fazer uma escada, pela qual Sam subiu, podendo deste modo, de cima dos ombros daqueles, alcançar a tampa da abertura e forçá-la.  Em vão, não cedeu um milímetro.

- É isso, engaiolaram-nos - resmungou, ao baixar. - Havemos, porém, de mostrar a estes patifes que se enganaram.

-  De que maneira? - perguntou Stone.

-  Escavaremos uma saída através do muro ou pelo teto. Examinemos primeiramente aquele.

Ao clarão da lamparina foi examinada primeiramente, em diversos lugares, a composição do muro e das paredes que dividiam aquele andar. Constatou-se que o muro, conforme Chi-So já o dissera, se compunha, em toda a. sua extensão, de grossas pedras unidas por uma espécie de barro no qual nenhuma faca   penetra.  E outro instrumento mais forte não tinham.

Restava, pois, só o teto como única probabilidade de evasão daquela arapuca. Nesse sentido empenharam-se todos com ardor. Sempre dois servindo de base a um terceiro, que do alto dos ombros daqueles forçava a estrutura do teto, procuraram fazer um buraco com a faca. Certificaram-se de que a referida estrutura se compunha de vigas de madeira, justapostas. Tinha séculos de existência e, contudo, a umidade ainda não afetara aquela madeira dura como o ferro, que oferecia tal resistência às facas dos prisioneiros, que estes nem chegaram a descobrir de que se compunham as camadas de cima.

As mulheres acompanhavam todos estes esforços em receosa expectativa. Quando se convenceram de que todo trabalho era em vão, a Sra. Rosalie exclamou furiosa:

-  Seria possível imaginar que existisse gente tão ruim como essa canalha de vermelhos? Se estivessem aqui esses bandidos, meu Deus, quanta verdade lhes diria! Mas aí vê-se novamente em que resulta quando a gente confia nos homens. Devem ser os nossos protetores naturais, mas, em lugar de cuidar de nós e nos proteger, conduzem-nos justamente à mais negra infelicidade!

-  Ora, fica quieta! - pediu-lhe o marido. - Tu ofendes os cavalheiros com tuas eternas brigas.

-  O quê? Como? Eternas brigas? - perguntou ela irada. - Desde quando discuto e falo? Não fazem nem quatro segundos. E a isso denominas eternas! Quem está com o direito não precisa segurar a língua. Fomos uns bobos em deixar-nos engaiolar. Não sou eu a culpada. Mas quero saber o que nos espera e o que será de nós!

 

Dick Stone e Will Parker precisaram fazer uma escada, pela qual Sam subiu.

 

-  Ainda pergunta! - respondeu Hobble-Frank, torcendo manhosamente o canto da boca. - Mas é tão claro o que nos vai acontecer.

-- Então, o que, por exemplo?

-  Primeiro seremos amarrados.

-  Porventura também as damas?

-  Naturalmente!   Depois atam-nos ao poste dos martírios...

-  Também nós, as damas?

-  Claro.   Depois seremos lentamente trucidados...

-  As damas também?

-  Todos. E depois, quando  estivermos mortos, seremos  escalpados.

-  Minha Saxônia!   Mas a nós, damas, também?

-  Sem dúvida, também. Os vermelhos costumam até escalpar vivas as mulheres. Nem esperam que estejam mortas, sabe? Porque as damas têm cabelos mais bonitos e compridos, o que dá maior valor aos escalpos...

-  Obrigado por este galanteio - interrompeu-o ela.

-  Por favor! - respondeu ele. - E ademais, porque a pele do escalpo não sai com tanta facilidade da cabeça de um cadáver, como de uma pessoa viva.

-  Será verdade isso ou quer somente amedrontar-nos, Sr. Frank?

-  É a pura,  legítima verdade, na qual pode confiar inteiramente.

-  Então esses vermelhos são uns verdadeiros bárbaros assassinos?! Mas eu não me deixo escalpar nem morta quanto mais viva. Minha pele não terão por preço algum. Eu me prezo. Defenderei meus cabelos do primeiro ao último momento. Eu sou a Sra. Rosalie Ebersbach Morgenstern de nascimento, e viúva do moleiro de Leier, e a mim eles vão conhecer!

No outro grupo de prisioneiros, isto é, o banqueiro e seu guarda-livros, não existia tanta animação. Jaziam, um ao lado do outro, no andar térreo. Não havia nenhuma lamparina. Estava completamente escuro. A umidade do ar ali e um contínuo rumorejar indicavam que se achavam nas proximidades do poço. As paredes eram tão espessas que quase não se ouvia a fúria da tempestade lá fora. Depois de terem sido baixados por meio de laços através da abertura e depositados no chão, ficaram alguns momentos à escuta. Estava tudo quieto e nada revelava a existência de nenhum ser vivo.   Por isso o banqueiro tomou a palavra:

-  Está sem sentidos ou me ouve, Sr. Baumgatten?

-  Ouço-o. Sem dúvida dá para perder os sentidos. O que fizemos aos índios para nos tratarem dessa maneira?

-  Hum! isso também pergunto. Por que motivo aprisionam justamente a nós e não aos outros?

-  Eu acho que aos outros não aconteceu nada melhor.

-  Julga então que  também foram feitos prisioneiros?

-  Sim.

-  Conhece você algum motivo que explique isso?

-  Vários. Duma coisa, porém, tenho certeza: os vermelhos não nos poderão fazer prisioneiros sem que subjuguem também nossos companheiros porque, do contrário, estes nos libertariam.

-  Está certo, mas também desesperador, porque nos tira toda a esperança de sermos libertados.

-  De maneira nenhuma. Tenho esperança até o último momento. Também não acho que devemos desesperar de um auxílio de nossos companheiros. Devem estar, como nós, prisioneiros, mas não amarrados. Tem suas armas consigo. Tenha depois em conta de que tipos se trata. Este Hobble-Frank é uma personalidade esquisita, mas, sem dúvida, uma pessoa destemida e um valoroso homem do Oeste. Sam Hawkens, Parker, Stone e Droll, a mesma coisa. Quanto aos demais, não existe por certo nenhum, com exceção deste incrível cantor, que não agüente firme qualquer empreendimento.

- Well, também acho. Mas por que nos subjugaram? Teria sido com intenção de algum resgate em dinheiro?

-  Dificilmente. Isso seria próprio de bandidos brancos, mas não de índios. Suponho que o procedimento dos vermelhos é uma conseqüência do rompimento das hostilidades entre brancos e vermelhos.

-- Ali Devils! Então não poderíamos ter esperanças, pois seríamos, por assim dizer, prisioneiros de guerra, e custar-nos-á provavelmente o pescoço. Bonita expectativa. No poste dos martírios seremos assados e depois, escalpados.

-  Assim ainda não estamos! Tentemos primeiro conseguir safarnos daqui.

Empregaram todos os esforços. Aplicaram todas as forças, até o extremo, sem nenhum resultado. As amarras estavam muito bem presas. Em desfazer os nós um do outro, nem pensaram sequer, e todavia podiam tê-lo tentado, mesmo com as mãos amarradas.

Estavam assim deitados, quietos um ao lado do outro, e esperaram muito tempo, como lhes pareceu. Então ouviram um ruído por cima. A tampa foi afastada. Entreviram o azul estrelado do céu. A tormenta tinha passado e descera a noite. Viram que foi baixada a escada e que o cacique desceu por ela. Curvou-se sobre eles e tocou-os com as mãos. Depois de certificar-se de que ainda estavam bem amarrados e quietos, disse:

- Os cães brancos são mais idiotas que os coiotes berrões. Vêm à povoação dos vermelhos sem lembrar-se de que agora foi desenterrada a faca entre nós e eles. Tomaram-nos nossa terra, nossos lugares sagrados e nos enxotaram. Perseguem-nos e enganam-nos sempre, sempre. Vieram poucos e agora contam-se por milhões. Nós, porém, éramos milhões, e somos obrigados a desaparecer, como os mustangs e bisões na savana. Contudo, não morreremos sem nos vingar. A machadinha de guerra foi desenterrada e todos os caras-pálidas que caírem em nossas mãos estão perdidos. Amanhã, logo que raiar a aurora serão amarrados aos postes de martírios e seus gritos de dor ecoarão longe nos ares! Assim será, pois Ka Maku, o cacique, o disse!

Depois destas palavras, subiu novamente, puxou a escada atrás de si e recolocou a tampa na abertura.

Um calafrio percorreu a espinha dos dois. Não podiam imaginar que ele fizera todo aquele discurso pintando o seu destino com tão negras cores, porque recebera ordem para isso, a fim de que depois ficassem ainda mais agradecidos aos seus falsos salvadores.

Esta visita do cacique deixou o banqueiro completamente abatido, e também Baumgarten não estava tão disposto como antes. Já na próxima madrugada no poste dos martírios! Isso era terrivelmente rápido e o tempo demasiado curto para poder existir possibilidade de salvação!

Transmitiram um ao outro os seus receios. Quebravam a cabeça procurando uma solução. Recomeçaram a forçar as amarras de tal maneira que estas lhes cortaram as carnes, sem o mínimo resultado, porém. Então já tinham decorrido algumas horas, e novamente ouviram um ruído. Olharam para cima. A tampa foi afastada e apareceu uma cabeça na abertura.

-  Pst, pst, Sr. Rollins, está por acaso aí em baixo? - ouviram num tom abafado.

-  Sim, sim! - respondeu o interpelado cheio de alegria e em voz alta por causa da esperança que renascia.

-  Baixo, baixo! Se ouvirem algo, estou perdido. O Sr. Baumgarten estará talvez aí consigo?

-  Sim, também estou aqui - respondeu o alemão.

-  Até que afinal os achei! Procurei-os a despeito dos mil riscos de vida a que me expus a fim de salvá-los. Machucaram-se? Estarão talvez feridos?

Estas palavras foram ditas num tom quase afetuoso.

-  Não, estamos perfeitamente sãos - respondeu Rollins.

- Então esperem um pouco; quero ver se consigo trazer uma escada. Existem sentinelas em quase todos os pontos aí em cima, mas em todo o caso vou tentar salvá-los.

A cabeça desapareceu da abertura.

-  Graças a Deus! Seremos salvos! - suspirou o banqueiro, depois de ter inalado ar profundamente com uma sensação de alívio. - Foi Grinley, nosso Rei do Petróleo, não?

-  Sim - respondeu o guarda-livros. - Se bem que não lobrigasse perfeitamente seu rosto, reconheci-o pela voz, apesar de ter murmurado apenas.

-  Vai tirar-nos daqui. Arrisca a vida para nos libertar. É bonito da sua parte, não?

-  Sem dúvida. Muito.

-  Vê-se novamente como a gente se pode enganar com a fisionomia de um homem! Quase o tomamos por um embusteiro.  Agora podemos estar seguros de que nos merece inteira confiança. Não suspeitarei  mais dele.

 

Consegui. Eis a escada. Subam.

Apareceu Grinley novamente na abertura. Arreou uma escada e convidou os dois em voz baixa:

-  Consegui. Eis a escada. Subam.

-  Não podemos, pois estamos amarrados - respondeu Rollins.

-   Isso é grave, pois perderei um precioso tempo para descer aí a ter com vocês.

Desceu até eles, apalpou as amarras e depois cortou-as. Levantaram-se estirando os membros a fim de ativarem a circulação do sangue. Rollins estendeu-lhe a mão e disse-lhe baixinho:

-  Jamais esquecerei isso, Sir! Diga-me, como conseguiu ...

- Pst, silêncio! - interrompeu-o o Rei do Petróleo. - Mais tarde. Agora tratemos de safar-nos o quanto antes, pois a qualquer momento poderá aparecer alguém para vigiá-los. Estaríamos perdidos, então. Venham ligeiro para cima. Mas não se ponham logo de pé, senão serão vistos. Temos que nos afastar rastejando.

Ele subiu seguido pelos outros. Em cima, deitaram-se no telhado.

- Olhem para cima! - disse-lhe ele baixinho. - Estão vendo a sentinela?

Viram ao clarão das estrelas os índios nos terraços de cima. Em sua inexperiência, nem lhes chamou a atenção o fato de não haver um posto de sentinela em baixo, justamente onde era mais necessário. Nem tampouco lembraram de que podiam muito bem ser vistos pelos índios lá de cima e que toda a cena do Rei do Petróleo não passava de pura farsa. Deixou o buraco aberto e a escada ali e sussurrou-lhes:

-  Sigam-me sem ruído até a borda, onde tenho uma escada colocada. Se conseguirmos chegar lá em baixo sem sermos vistos, nada mais teremos a temer.

Arrastaram-se até a borda do primeiro terraço e lá viram a escada encostada. Também este fato não lhes chamou a atenção. Desceram um após outro e acharam-se finalmente fora do pueblo.

-  Enfim, enfim! - disse o Rei do Petróleo. - Conseguimos. Agora depressa, afastemo-nos daqui.

-  Ainda não, Sr. Grinley - disse o consciencioso guarda-livros. - Nossos companheiros em todo o caso ainda estão presos.

-  Sem dúvida.

-  E vamos abandoná-los?   Temos o dever de...

- Asneira! - interrompeu-o o outro. - O que pensa o senhor: O cacique mentiu. Seus guerreiros não estão na caça, mas acham-se aqui. O que podemos fazer nós três contra sessenta ou setenta índios bem armados? Será a nossa perdição na certa. Deve considerar-se satisfeito por eu ter podido salvá-los!

-  Talvez tenha razão.  Mas sinto-o por eles.

-  Oh, eles darão um jeito. São sujeitos ativos e certamente acharão uma saída.

- Isso tranqüiliza-me. Mas como iremos embora? Com certeza vão seguir-nos. Sim, se tivéssemos nossos cavalos e nossas armas... Também nossa bagagem vai fazer falta.

-  Está tudo aí.  Salvei tudo.

-  O quê? Como?  É possível?

- Ora, um homem disposto faz por seus amigos, do impossível, possível. Sem dúvida, sozinho, eu nada teria conseguido. Encontrei ajuda e proteção.

-  De quem?

-  De dois gentlemen aos quais vou conduzi-los agora. Venham, pois, depressa. Não podemos desperdiçar nem mais um segundo aqui.

Conduziu-os pelo muro lateral do pueblo àquele lugar dos escombros de pedras, onde tinham estado escondidos os índios. Lá encontraram Buttler e Poller e acharam com estes não só seus cavalos e armas, como também toda a sua bagagem. Isso aumentou-lhes mais ainda a admiração. À sua pergunta, porém, o Rei do Petróleo respondeu:

-  Agora precisamos afastar-nos daqui o mais depressa possível, pois, como o senhor muito bem ponderou, vamos com certeza ser perseguidos e por isso precisamos tratar de obter a maior vantagem possível sobre os nossos perseguidores. No caminho ficarão sabendo como se passou tudo.

Ele já tinha preparado uma história mais ou menos plausível e estava certo de que acreditariam nela. Montaram e afastaram-se a galope. O banqueiro não sabia como exprimir a sua gratidão aos seus salvadores. Não se preocupava com os que tinham ficado. Baumgarten, porém, não podia esquecer-se de que teria sido seu dever, ao menos tentar a salvação de seus companheiros.

Estes encontravam-se numa situação que, apesar de séria tinha o seu lado cômico, em virtude das personalidades de alguns componentes do grupo. A princípio, estavam certos de que a entrada do buraco seria aberta mais uma vez para dar entrada ao banqueiro e seu guarda-livros. A afirmação de Chi-So aboliu já essa certeza e depois, ao decorrerem horas e horas sem que se abrisse a abertura, ninguém duvidou de que o jovem índio tinha falado a verdade. Então o estado de ânimo dos prisioneiros, até agora bastante calmo, transformou-se completamente. Os experientes homens do Oeste, sem dúvida, estavam acostumados a dominar-se; tanto mais alarmados, porém, mostravam-se os imigrantes alemães, alguns dos quais estavam fora de si. Um único não estava absolutamente preocupado. Era o cantor, a quem nem sequer por um momento ocorreu lembrar-se de que todos os seus esforços artísticos e poéticos podiam estar prestes a ter um fim. Como é fácil de imaginar, a Sra. Rosalie foi quem tomou a palavra. Primeiro dirigiu uma porção de impropérios aos índios e depois despejou-os sobre Sam Hawkens e seus companheiros, aos quais atribuía a culpa de se encontrarem naquela situação.

- Quem havia de pensar tal coisa daquele velho e vermelho burgomestre índio - disse ela com rancor. - Foi afável, como manteiga fresca e amarelinha. Tratou-nos com tanta polidez que até pensei fosse convidar-me para dançar uma valsa. E agora vê-se que tudo foi falsidade, intriga e traição. O que visava ele, enfim? Nossas coisas ou nosso dinheiro? Diga-me, pois, Sr. Hawkens. Fale. Diga alguma coisa. Está como uma divindade chinesa, sem dizer uma palavra.

-  Naturalmente que visava o que possuíamos -  respondeu Sam.

-  Naturalmente? Não acho nada naturalmente, como o senhor acha. O que é meu, é meu, e ninguém tem nada que estar metendo o bico nisso. Quem estender a mão para os haveres que me pertencem de direito e legalmente, é um ladrão. Compreenda-me. E na Saxônia existem certos parágrafos que são observados rigorosamente pelos policiais. Quem é gatuno vai para a cadeia.

-  Está muito certo.   Mas infelizmente não nos achamos na Saxônia.

-  Não estamos na Saxônia? Ih, o que não diz o senhor! Eu ainda não sou americana. Casualmente encontro-me em terra estrangeira, mas sou sempre ainda a filha da minha linda terra saxônica no Elba. Os saxões combateram em mais de vinte batalhas e saberão tirar-me também daqui deste embrulho.  Não permito que me roubem e depois me larguem por aí sem um pfennig no bolso.

- Sam lançou um daqueles seus característicos olhares penetrantes à alarmada mulher e disse:

-  A senhora faz uma idéia errônea a este respeito, Sra. Rosalie. Não vão roubá-la e depois mandá-la embora.

-  Não?   O que, então?

-  Quando o índio rouba, mata também. Se ele se apodera dos nossos haveres, também se apodera da nossa vida para que não possamos mais tarde vingar-nos.

-  Senhor, amparai minha alma! Agora sim. Era o que faltava! E isso o senhor sabia e, contudo, conduziu-nos até aqui? Sr. Hawkens, não me leve a mal, mas o senhor é um monstro, uma salamandra, um dragão, como nunca vi outro em toda a minha vida!

-  Desculpe-me! Como podia eu saber o que planejavam estes índios? Estes pueblos são conhecidos como amigos e nos quais se pode confiar. Era quase impossível pensar que havia uma tal armadilha preparada para nós.

-  E precisava o senhor ter se metido nela? Podíamos muito bem ter ficado do lado de fora.

-  Com um tempo desses?

-  Ora, o tempo. Deixo preferivelmente dez temporais molharem-me o coque do que deixar-me roubar e assassinar. Isso o senhor pode imaginar facilmente. Oh, céus! Ser assassinada! Quem havia de pensar uma coisa dessas! Saí em viagem a fim de viver ainda uma longa série de anos, anos americanos, e mal pus os pés nesta terra vem a morte em carne e osso ao meu encontro.  Quisera ver quem suportava isto.

Então chegou-se o cantor, pôs-lhe a mão no braço e disse tranqüilizadoramente:

-  Não se alarme em vão, minha querida Sra. Ebersbach. De morte nem se fala aqui neste caso.

-  Não? Como?

-  Enquanto eu estiver aqui, a senhora estará segura de qualquer perigo.  Protegê-la-ei!

-  O senhor?... A mim.. . ? - perguntou ela, olhando incredulamente para o vulto do cantor.

-  Sim. Vou protegê-la. A senhora bem sabe que vou compor uma ópera heróica de doze atos.

-  Naturalmente, pois bastantes vezes já ouvi o senhor mencionar isto.

-  Pois então. Um compositor é um filho da Arte, e a senhora pode estar certa de que esta poderosa deusa não deixará morrer nenhum dos seus protegidos.

-  Mas eu não componho.

- Não faz mal. Está sob a minha proteção. Para que se realize a composição da minha ópera, as musas providenciarão a fim de que nada suceda a mim até eu voltar para casa, pois, do contrário, o mundo perderia uma inestimável obra de arte. Não será molestado nenhum fio dos seus cabelos nesta minha viagem pela América. Por conseguinte, todo aquele que se achar comigo está isento de qualquer perigo.

-  Bem, se o senhor está assim tão certo de que nada nos acontecerá, tenha a bondade de nos tirar desta enrascada!

Ele coçou atrás da orelha e resmungou:

-  A senhora parece que não me compreendeu, minha cara. Não se deve tocar um trecho em allegro vivace quando o mesmo está assinalado em lento. Quando lhe disse que a senhora na minha companhia está fora de perigo, não quis dizer, contudo, que serei eu quem arrombará as portas da nossa atual prisão. Para isso existe outra gente aqui. Quero apenas mencionar o nome do Sr. Frank que já praticou grandes feitos e não nos deixará em falta. Então, não tenho razão?

Dirigiu esta última pergunta a Hobble-Frank. Este sentiu-se lisonjeado e respondeu em seu dialeto costumeiro:

- Sim, o senhor falou com acerto, com muito acerto, senhor cantor aposentado, e a confiança com que me honra não será infundada. Nem que seja obrigado a romper todas as barreiras.

-  Dize-me como? - perguntou Sam.

- Talvez não acreditem! Enquanto vocês andavam inutilmente de um lado para outro, estive me concentrando e achei o caminho que nos conduzirá à liberdade.

-  Estou curioso por conhecê-lo - declarou Sam.

-  Creio.  Tu é que não o terias achado, em todo o caso!

-  Ouçamos primeiro se este teu caminho não está errado.

-  Ouve, quero dizer-te uma coisa: Onde tu não estiveres, senhor tocador de órgão, todas as flautas se calarão2. Eu sou o senhor tocador de órgão e tu a flauta, que deve calar-se. Vocês andaram batendo no muro e raspando o teto, e as facas de vocês não conseguiram separar as pedras. Eu, porém, aposto como aqui existem buracos nos quais podemos apoiar a alavanca da salvação.

-  Buracos? Onde estão?

-  Onde? Sim, isso precisamos averiguar primeiramente.

-  Estamos, pois, na mesma, como antes, quando procurávamos e não achávamos nada.

-  Cala-te. Os ouvidos de vocês estão surdos e todos os seus narizes não valem três pfennigs. A abertura lá de cima está tapada e fora dela parece não haver outra. Se isso fosse verdade, teríamos que sufocar aqui forçosamente, pois faltaria o ar, em conseqüência da escassez de oxigênio. Ao menos deveria haver um cheiro a putrefação, de vácuo. Veja porém, a lamparina como arde bela em sua chama, excitando os tecidos nasais, como se não houvesse o menor vestígio de ar viciado. Estou seguro de que o ar é sempre renovado; devem, pois, existir em cima ou em baixo buracos bem como lá na minha vila, Toucinho de Urso, no Elba. Existe aqui uma constante corrente de ar que precisamos descobrir. E sabem vocês como melhor chegaremos a esta descoberta?

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2)    Trecho dum poema  cômico   muito  conhecido   na  Alemanha

 

-  Com a luz, talvez? - perguntou Sam.

-  Sim, com a lamparina. Vês que contigo acontece existirem períodos nos quais não és de todo pancada! Toma, pois, a luz e leva-a junto ao chão, ao longo do muro até o buraco lá em cima. Acharão então os lugares por onde entra o ar de fora e sai o viciado.

-  Frank, esta idéia não é má - exclamou Sam Hawkens. - Tua observação é certa. Temos aqui ar completamente puro. Deve existir, por força, uma corrente de ar. Procuremos.

-  Vês, velha flauta, que o tocador de órgão entende da coisa. Se não fosse eu.. .

Interrompeu sua fala e os outros também dirigiram os olhos para cima, de onde vinha um ruído. O temporal havia passado. Não trovejava mais e por isso ouvia-se bastante bem o que se passava no telhado chato. Rolaram pesadas pedras e abriram a abertura, só uma frestinha. Ouviu-se então a voz do cacique:

-  Ouçam os homens brancos o que vou dizer-lhes! Saibam agora que são meus prisioneiros. Existe guerra entre nós e os caras-pálidas e pelo direito deviam morrer. Mas quero ser generoso e conceder-lhes a vida, se estiverem dispostos a entregar tudo o que trazem consigo. Seu chefe queira responder-me.

Com a denominação chefe referia-se a Sam Hawkens. Este respondeu:

-  Terás tudo o que desejas.   Deixa-nos subir e entregaremos tudo.

-  Meu irmão fala com a língua da víbora. Se eu os deixo subir, não darão nada e defender-se-ão.

-  Então desce e vem buscar o que exiges.

-  Então conservar-me-iam preso. Os caras-pálidas queiram depor todas as suas armas e atá-las com as cordas que atirarei. Depois baixaremos nossos laços a fim de puxar o fardo para cima. Sam Hawkens que diga se está de acordo.

- Cumprirá Ka Maku a sua palavra, dando-nos a liberdade, se entregarmos tudo?

-  Sim.

-  Sim? Hihihihi! Não nos julgues tão bobos assim como tu e desaparece o quanto antes aí de cima desta abertura, senão mato-te com uma bala na cabeça. Sabemos muito bem com quem tratamos, seus mentirosos, traidores. Não .obterão de nós nem a cabeça de um alfinete.

-  Terão que morrer, nesse caso.

-  Espera, então. A morte também nos aguardaria se entregássemos as nossas coisas. Mas te enganaste. Nós temos armas e obrigaremos vocês a nos deixarem ir sem dinheiro de resgate.

-  Sam Hawkens engana-se. Suas armas de nada valerão, pois nem haverá luta. Vocês estão presos e não podem sair. Não combateremos; não precisam defender-se. Mas não têm água nem alimentos. Esperaremos até que estejam exaustos e então obteremos sem luta o que queremos. Howgh!

A tampa fechou-se e ouviram que rolavam as pedras novamente para cima da mesma.

-  Bobagem! - resmungou Dick Stone. -- Podias ter feito melhor.

-  Como então?

-  Nem responder. Mandar-lhe logo uma bala à cabeça. O patife bem que resguardava a cabeça, contudo a sua testa estava tão visível que se podia perfurá-la com um balaço.

- Isso eu bem sei, velho Dick. Mas crês tu que isso nos adiantaria alguma coisa? Nossa situação, pelo contrário, tornar-se-ia mais difícil. Não, quando não é necessário, não derramo sangue. Tentemos antes de mais nada conseguir nossa liberdade por meio de astúcia.

- Quer dizer que seguimos o conselho de Frank. Mas devemos nos apressar, pois a lamparina vai extinguir-se em breve e depois estaremos imersos nas trevas.

Constataram que Hobble-Frank tinha razão. Junto ao chão, no muro de fora, havia diversos buracos destinados à entrada de ar no recinto, e em breve descobriram no teto pequenas aberturas que serviam para a saída do ar viciado. Estas aberturas dirigiam-se diagonalmente para fora através do teto. Se fossem verticais, seria possível enxergar o céu através delas, e por conseguinte também mais fácil seria de achá-las. Tinham talvez de diâmetro uns seis centímetros. Sensivelmente maiores eram as aberturas no chão que comunicavam com o exterior pelo muro.

-  É provável que consigamos agora alguma coisa - opinou Will Parker. - Há pouco nada podíamos fazer com nossas facas. Porém esses buracos oferecem-nos pontos de apoio de onde seguramente as nossas afiadas lâminas conseguirão alguma coisa. Resta saber por onde sairemos. Pelo muro?

-  Tem muita espessura - disse Sam. - Para conseguir abrir aí um buraco suficientemente grande levaríamos muito tempo.

-  Então pelo teto?

-  Sim. Sem dúvida torna-se mais difícil, pois o que trabalha tem de estar de pé ou sentado sobre os ombros de outros dois. Mas depois de termos conseguido afastar uma viga, irá depressa. Infelizmente teremos luz somente por meia hora. Depois estaremos nas trevas. Escolhamos o lugar adequado.

Acharam-no rapidamente. Sam e Droll quiseram ser os primeiros a trabalhar. O primeiro apoiou-se sobre Stone e Parker; o último, sobre os alemães  Strauch e Ebersbach. Quando estivessem cansados deviam ser substituídos. Ao começarem o trabalho, Chi-So fez esta observação:

-  A luz não vai dar. Talvez mais tarde seja mais necessária do que agora. Por que não apagá-la agora?

Tinha razão. Apagaram a lamparina. Ficou tudo na mais completa escuridão dentro do compartimento. Ouvia-se o ruído abafado das facas rangendo e da respiração dos dois trabalhadores. Estes esforçaram-se tanto, que depois de um quarto de hora já tiveram que ser substituídos. De dormir nem se cogitou. Furaram, cortaram e rasparam a noite toda. Então tinham aberto na madeira do teto um buraco suficiente para dar passagem a um homem. Agora tratava-se de continuar esta abertura através do material de fora. Este material compunha-se de um barro amassado que tinha quase a consistência da pedra. Assim foram avançando lentamente para fora até que, à hora do meio-dia, pelo ruído das facas perceberam que o teto estava prestes a ser atravessado.

-  Agora trabalhem sem fazer o mínimo ruído - ordenou Sam Hawkens - senão eles aí de cima ouvirão vocês.

Apenas pronunciara estas palavras, ouviu-se lá fora uma detonação, e alguns segundos mais tarde exclamou Dick Stone que trabalhava ao lado de Chi-So:

-  All devils! Estou ferido.

-  Será possível?   Onde? - perguntou Sam.

-  No antebraço. Os patifes alvejaram-nos.

-  Através do teto? Então ouviram o ruído das facas. É grave o ferimento?

-  Creio que não. Provavelmente apenas um arranhão. O osso não foi atingido, sinto, porém, o sangue correr.

-  Desce então ligeiro! Poderiam atirar novamente e atingir a cabeça de um de vocês. Vamos examinar o teu braço.

Reconheceram agora como tinha sido prudente não terem deixado a lamparina extinguir-se. Apenas estava livre o lugar abaixo do teto, soaram mais dois ou três tiros. Ouviram-se as balas baterem no chão em baixo. Sam Hawkens pôs-se a gritar desesperadamente.

-  Que tens? - perguntou-lhe Parker. - Foste atingido?

-  Não.  Quero apenas averiguar onde se acham estes patifes.

Em cima ecoou uma gritaria de júbilo. Os índios haviam ouvido a voz de Sam e julgavam-no ferido.

-  Muito bem! - riu-se Sam. - Eles jazem ou estão comendo justamente sobre este buraco e escutam. Mandem-lhes também algumas balas. Frank e Will, venham. Em nossas espingardas de dois canos temos ainda seis balas. Cada um, dois rápidos tiros consecutivos. Um... dois... três!

Os tiros detonaram e imediatamente ouviu-se em cima um berreiro de raiva e de dor.

-  Well! Excelente! Hihihihi! - riu Sam. - Parece que atingimos alguns. Não creio que virão sentar-se outra vez a fim de escutar.

-  Mas também eu não me colocarei mais debaixo do buraco para expor-me às suas balas!  - bramiu Stone.

-  Ninguém exigirá isso - retrucou Sam. - Mostra teu braço.

A lamparina foi novamente acesa. Ao seu clarão, verificaram tratar-se apenas dum ligeiro arranhão, que facilmente seria pensado. Depois de terem arranjado isso, Hobble-Frank fez-se ouvir:

-  Não devíamos ter perfurado o teto e sim aqui o muro. Por cima do teto estão os índios e ouvem-nos. Se perfurássemos o muro, porém, ninguém nos ouviria.

-  Mas o trabalho é muito difícil - replicou Sam.

-  Antes um trabalho difícil onde não se arrisca a vida do que um fácil onde a gente é alvejado.

Concordaram com ele. As aberturas do muro de fora eram bastante grandes para permitir que se introduzissem nelas dois canos de espingarda, utilizando-os como alavancas. Desta maneira conseguiram, após longas horas de

 

Os tiros detonaram e imediatamente ouviu-se em cima um berreiro de raiva e de dor.

 

esforços, é claro, deslocar um pouco a argamassa que unia as pedras, permitindo assim prosseguir o trabalho com as facas.

Com isso passou-se a tarde. Já tinha anoitecido quando caiu a primeira pedra do muro. E havia muitas, muitas a deslocar! E qual não era a situação dos prisioneiros! Fizeram aqui uma pausa para recuperar as forças. Em tais condições, o momento não era de comer, mas sim de beber. Já estavam presos há mais de um dia, sem ter nenhum alimento. A fome e a sede começaram a produzir os seus efeitos. Para os adultos ainda não significava nada, as crianças, porém, exigiam comida e bebida e não se conformavam facilmente.

Revezando-se sempre de dois em dois, trabalharam a noite inteira. Parecia ir muito devagar o trabalho, pois o muro era duríssimo e a argamassa quase tão dura como a pedra. Mas afinal terminaram, a última pedra rolou para fora. Pela pequena abertura passou a claridade baça do romper do dia. Agora ia mais depressa. Meia hora mais e o buraco estava bastante largo para permitir que um homem por ele se esgueirasse.

-  Vitória! - exclamou a Sra. Rosalie. - Este buraco não é nada confortável para uma dama se meter a passar, contudo, tratando-se da liberdade, eu passo até por uma chaminé, pois a gente pode lavar-se depois. Agora avante, meus senhores! Quem vai na frente? A delicadeza manda sem dúvida que, em primeiro lugar, nós as damas sejamos salvas. Por isso proponho que seja eu quem comece.

Abaixou-se logo a fim de enfiar a cabeça pelo buraco. Mas Hobble-Frank puxou-a para trás e disse:

-  Está maluca, Sra. Ebersbach? Que é que está pensando? Isso não é para mulheres. Aqui são os homens que precisam fazer o sacrifício do começo.

-  Quem? - perguntou ela. - Os homens, o sacrifício? E destes o senhor também faz parte, provavelmente?

-  Naturalmente!

-  Ora, mas então todo o seu imenso sacrifício comove-me. Eu sou uma dama, uma dama alemã, do Império da Alemanha. E não ouviu o senhor que precisa ser atencioso para as damas?

-  Oh.. . oh! Pela maneira de falar, parece ter uma concepção totalmente errônea da palavra. Deve-se ser atencioso quando é permitido ser atencioso. Não compreende isto, então? Mas a senhora está equivocada...

-  Errada, eu? Como?

-  Ora, o buraco está ao menos três metros acima do terraço inferior. Não?

-  Sim, senhor.

- Portanto deverá pular até lá em baixo.  Poderá fazê-lo?

- Espero-o. Tratando-se da minha liberdade e da minha vida, pulo qualquer altura e de qualquer modo.

-  De cabeça também?

-  De cabeça. Ou como será então?

-  Ora, se a senhora pular de cabeça para baixo, duma altura de três metros, enfiará a cabeça pelos ombros a dentro, de tal modo que a mesma desaparecerá. A gente pula com os pés e não com aquela parte do corpo na qual está situado o juízo duma pessoa normal. Portanto, é necessário passar primeiro os pés.

-  Mas isto não está certo, pois não tenho os olhos nos pés.

- Concordo. Além disso, verá que é apenas por uma questão de escrúpulo que quero descer antes da senhora. Suponhamos que os índios nos ouviram escavar as pedras. Nesse caso, certamente destacaram sentinelas por aí. E se alguém pretender sair, manda-lhe uma bala, tanto faz tratar-se de uma pessoa que enfrente a luz do dia primeiro com os pés ou com a cabeça.  Se ainda quiser ir na frente, não me oponho.

- Nesse caso, agradeço. Agradeço muito! Sou uma dama e por conseguinte não tenho obrigação de sacrificar-me pelos homens recebendo um balaço.

Deu volta apressadamente. Frank, porém não obteve mesmo assim licença para ser o primeiro. Sam Hawkens fez questão de tomar a si o perigoso encargo. Passou primeiro o chapéu e a espingarda pela abertura. Depois meteu-se atrás de cabeça. Prosseguiu lenta, muito lentamente. Ao atingir a boca da abertura, recuou rapidamente e anunciou:

- Com efeito. Estão várias sentinelas postadas na plataforma de baixo.  Descobriram nossa saída.

-- Viram-te? - perguntou Dick Stone.

-  Não.

-  Como estão armados?

-  Com espingardas.

-  Atirarão, de qualquer maneira. Estão em baixo na plataforma sobre a qual devemos saltar e só podemos sair de um em um. Provavelmente o buraco não está vigiado somente por baixo. Em cima deve também haver sentinelas. Vejamos.

Tomou seu longo rifle, colocou seu incrível e indescritível chapéu na boca do cano e empurrou-o devagarinho através da abertura no muro, de forma a dar a impressão do lado de fora de que ia saindo uma pessoa. Fora ecoou um tiro. Examinou o turbante e disse:

-  Varado por duas balas. Uma de cima, outra de baixo. Que dizes a  isto, velho Sam?

Passou-se um largo tempo antes que este respondesse. Esperavam todos a sua palavra que finalmente fez-se ouvir num tom bastante desanimado:

-  Existem sentinelas também por cima, que do alto do telhado do nosso andar observam a nossa saída. Sentinelas em cima. Sentinelas em baixo.   Isto é grave, muito grave!

-  Dispersemo-los a tiros! - opinou Hobble, decidido.

-  Experimenta-o. Poderás, porventura, atingir os que se encontram sobre o nosso telhado?

-  Não. Nisso não pensei. Mas em compensação tanto mais fácil será alvejar os que se encontram abaixo de nós.

-  Como queres fazê-lo?

-  Ora, preciso apenas dirigir a arma contra eles e premir o gatilho.

-  Isso é fácil de dizer. A abertura é tão estreita que precisaria estar com a arma, os dois braços e a cabeça do lado de fora para poder atirar. Mas antes que te acomodes mais ou menos nesta posição, terás uma bala na cabeça.

-  Bolas, é verdade. Agora temos esta linda abertura e não podemos utilizá-la.

-  Infelizmente, infelizmente. Cansamo-nos em vão. Não podemos sair nem pelo teto nem pelo muro.

-  Minha Saxônia! É verdade isso? - perguntou a Sra. Rosalie.

-  É a pura verdade - esclareceu Sam.

-  Não haverá então nenhum outro meio? Pelo chão talvez?

-  Não, pois provavelmente estão alerta também por baixo de nós.

-  Então está tudo no mesmo, como antes. E ainda quer ser o homem do sacrifício!   Se eu fosse homem, saberia certamente o que fazer.

-  O que faria então?

-  Bem, isso eu não sei, porque não sou homem e sim uma dama. Os cavalheiros existem para defender as damas. Compreendem-me. Cumpra, pois, o seu dever! Eu absolutamente não tenho necessidade de estar quebrando minha cabeça para descobrir como sairemos desta prisão, e por isso convido-o a esforçar um pouco seus miolos a fim de comunicar-nos de que maneira poderá salvar-me e ao senhor também.

Houve uma longa pausa.  Cada um pensava e procurava um meio de salvação. Mas ninguém ergueu a voz para participar que achara uma solução. Assim passou-se muito tempo num silêncio penoso e desolador. Finalmente ouviu-se Chi-So dizer:

-  Pensar e esquadrinhar nada adianta. Não podemos safar-nos, pois teríamos que sair de um a um e seríamos alvejados também um por um. Contudo, penso que ainda seremos salvos.

-  Como? Como? De que maneira? Por que meio? - soou de todos os lados.

- Mão de Ferro e Winnetou pretendem encontrar-se no Rancho do Forner. Forner falará a nosso respeito e eles seguirão nossa pista. Virão, pois, aqui para o pueblo.

-  Sim - confirmou Sam com um profundo suspiro. - É a única esperança que ainda podemos acalentar. Eles virão. Juraria que se agüentarmos até lá, estaremos salvos.

-  Mas são somente dois indivíduos. O que poderão fazer contra todos estes índios? - opinou a Sra. Rosalie.

-  Cale-se e seja mais humilde - ordenou-lhe Hobble-Frank. - O que sabe a senhora a respeito desses dois heróis que são meus amigos e benfeitores? Depois de terem dado com nossa pista, não necessitamos mais preocupar-nos. Tiram-nos daqui e não somente nós.

-  Quem mais?

-  O banqueiro também, se ainda estiver vivo.

-  Provavelmente não vive mais - asseverou Droll. - Nem ele nem tampouco seu guarda-livros. O plano tinha. principalmente a eles como objetivo. Viu-se isso claramente, pois do contrário não teriam sido separados de nós.

Tinha razão, se bem que doutra maneira. Eles, efetivamente, tinham sido o alvo do plano, mas sem risco de vida.

 

Salvos!

Os fugitivos cavalgaram ininterruptamente com o Rei do Petróleo, Buttler e Poller, em direção norte, até atingirem, por volta do meio-dia, as Serras de Mogollon, a primeira mata que lhes ofereceu alguma sombra fresca e água. Apearam e sentaram-se à beira de um riacho a fim de descansar e permitir também que seus cavalos se refizessem um pouco. Foi aí que o Rei do Petróleo contou a sua história, com a qual tentou explicar ao banqueiro os acontecimentos da noite anterior, tendo-o conseguido plenamente. Rollins tinha-o novamente na conta de um homem honrado e alegrava-se por terem encontrado dois companheiros tão leais, como Poller e Buttler.

Depois de descansarem, montaram novamente e prosseguiram viagem até que, ao anoitecer, encontraram um lugar que se prestava muito bem para pousada. Havia água e lenha seca em abundância para alimentar um bivaque por toda a noite. O fato de Buttler e Poller estarem excelentemente munidos de víveres, os quais só podiam provir do pueblo, não chamou a atenção de Rollins nem tampouco de Baumgarten. Quando Poller acendeu o fogo, disse Buttler em tom de leve preocupação:

-  Estamos nas proximidades dos domínios dos índios nijoras. Não seria conveniente desistir do fogo uma vez que pode trair-nos?

-  Não há perigo - esclareceu o Rei do Petróleo. - Tenho boas relações com os nijoras.

-  Mas eles desenterraram  a machadinha de  guerra!

-  Não importa.  Mesmo em tempo de guerra nada tenho a temer.

-  Pode ser. Contudo, eles moram para o norte e para o sul ficam os gilenos. Estamos, pois, na fronteira entre os dois, isto é, justamente onde têm lugar as primeiras hostilidades. Sempre existem nessas ocasiões guerreiros errantes, que vagueiam solitários por essas paragens e são altamente perigosos, não fazendo muita distinção entre amigo e inimigo quando procuram matar a sua sede de vingança.

-  Pois eu te asseguro que em toda esta redondeza não existe um mortal a não ser nós. Especialmente este nosso lugar, situado assim numa baixada, fica bem escondido. Eu, que tão freqüentes vezes estive aqui, não encontrei nunca nem sinal de gente. Encontramo-nos bem sós, num vasto perímetro, e podemos tranqüilamente acender o nosso fogo.

Ele estava convencido de que falava a verdade, e, contudo, se enganava, pois aproximavam-se dois cavaleiros. Estes todavia vinham separados e ignoravam por completo cada um o objetivo do outro, que era casualmente o local onde acampara o Rei do Petróleo com seus companheiros.

Os cavaleiros distavam ainda umas três milhas aproximadamente do acampamento e cerca de uma milha entre si. Vinham ambos do sul. Um deles, um branco, montava um soberbo garanhão negro de narinas vermelhas e com aqueles característicos redemoinhos na longa crina, o que para os índios vale como um índice certo de superiores qualidades. Os arreios eram de fino material indígena. Este homem não era de estatura muito alta nem muito corpulento, mas seus tendões pareciam ser de aço e seus músculos de ferro. Uma barba loiro-escura emoldurava seu rosto grave e tostado do sol. Usava culotes franjados, bem como uma camisa de caça igualmente franjada e na cabeça trazia um chapéu de feltro de abas largas e amarrotadas, cuja fita estava toda ornada de orelhas de urso cinzento. No cinturão largo, trançado de uma tira inteiriça de couro, havia dois revólveres e uma boa faca. Fora disso, havia também uma provisão de cartuchos. Do ombro esquerdo ao quadril direito pendia um laço, feito de diversas tiras de couro, e, no pescoço, preso a uma forte fita de seda, trazia um cachimbo de paz, todo enfeitado com penas de beija-flor e em cuja cabeça havia umas inscrições indígenas. Na mão direita carregava uma arma de cano curto, de construção toda original - era uma espingarda de repetição estilo Henry, de vinte e cinco tiros - e à bandoleira, uma mata-ursos de dois canos, dum calibre tão grosso como hoje em dia já não existe.

O verdadeiro caçador da Pradaria não cuida do brilho e da boa aparência. Quanto mais extravagante pareça tanto maior é a honra, pois tanto maior é o número de privações por que já passou. Ele olha com certo menosprezo a todo aquele que tem muito cuidado com a aparência exterior. O que lhe causa maior aversão, porém, é uma espingarda bem polida e brilhante. Pela sua experiência sabe perfeitamente que nenhum legítimo campeador do Oeste tem tempo de sobra para despendê-lo nessas banalidades. Neste homem, porém, havia tal aparência de limpeza, que dir-se-ia ter ele saído na véspera, de S. Louis com destino ao Oeste. Suas armas pareciam saídas recentemente das mãos do fabricante. As botas estavam impecavelmente engraxadas, e nas esporas não havia o mais leve vestígio de ferrugem. Sua vestimenta apresentava-se igualmente sem mácula e tanto no rosto como nas mãos notava-se o perfeito asseio. Realmente, não seria exagero tomá-lo por um caçador domingueiro.

E, com efeito, este homem do Oeste, por causa da sua boa aparência, fora muitas vezes tomado como caçador domingueiro, por pessoas que o não conheciam e o viam pela primeira vez. Logo que ouvissem seu nome, porém, reconheciam o seu profundo engano, pois ele não era outro senão Mão de Ferro, o famoso, ousado, mas prudente caçador, o grande amigo da raça vermelha e também o implacável inimigo dos malfeitores que infestavam naquela época e ainda hoje infestam o Mississipi.

Mão de Ferro era o seu nome de guerra. Mas ele somente derramava sangue inimigo quando absolutamente necessário, e mesmo então não matava, somente feria. A sua força, apesar da aparência não o denotar, era prodigiosa, e o vigor de seu punho tão grande, que com um murro fazia qualquer adversário dormir. Daí o nome que lhe deram os índios e os brancos.

E o outro cavaleiro que vinha a uma milha de distância a leste, era um índio. O cavalo que montava era exatamente igual ao de Mão de Ferro.

Existem pessoas que, mesmo antes de nos dirigirem a palavra, produzem uma profunda e imperecível impressão em nós. Este índio parecia ser uma dessas pessoas.

Usava uma camisa de caça guarnecida de bordados indígenas de cor vermelha. As calças eram do mesmo tecido e ornadas com grossas franjas feitas de escalpos. Nenhuma mancha, nem o mais leve indício de falta de limpeza descobria-se em seu vestuário. Seus pequenos pés calçavam mocassinas bordadas de pérolas e enfeitadas com cerdas de porco-espinho. Em volta do pescoço trazia um custoso saquinho de medicina, o cachimbo da paz artisticamente lavrado

 

... pois ele não era outro senão Mão de Ferro.

 

e uma tríplice corrente composta de garras de urso cinzento, a temível fera das Montanhas Rochosas. Em volta de sua delgada cintura enrolava-se um valioso manto de Santillo. Deste emergiam as coronhas de dois revólveres e o cabo de uma faca de escalpo. A sua cabeça estava descoberta. Seu longo e espesso cabelo, que de tão negro tinha tons azulados, formava no alto da cabeça uma trança em forma de elmo e guarnecido com uma pele de cascavel. Nenhuma pena de águia, nenhum outro sinal distintivo ornava este penteado, e contudo, à primeira vista, reconhecia-se ser este guerreiro vermelho um cacique, e um cacique de alta linhagem. O perfil da sua bela, grave e máscula fisionomia, poderia ser considerado como o de um romano. As maçãs do rosto eram muito pouco salientes. Os lábios, no rosto completamente liso, eram cheios, porém bem talhados, e a pele apresentava uma cor parda com um tom bronzeado. Atravessada sobre a sela trazia uma espingarda, cuja parte de madeira era toda cravejada de pregos de prata.

 

E o outro cavaleiro...  era um índio.

 

Se topasse com algum homem do Oeste a quem nunca encontrara, seria logo reconhecido por essa espingarda, que era o assunto de milhares de bivaques de acampamento. Existiam no Oeste três armas, com cuja fama nenhuma outra podia competir. Estas eram a espingarda estilo Henry, a mata-ursos de Mão de Ferro  e a carabina prateada de Winnetou.   Este cavaleiro vermelho era, pois, Winnetou, o cacique dos apaches, o mais fiel e leal amigo de seus amigos, e também o mais temido adversário de todos os seus inimigos.

Ele não montava de maneira comum, mas inclinado para a frente, como se não soubesse andar a cavalo. Seu olhar parecia fixar vagamente o chão de maneira cansada e sonhadora, mas quem o conhecesse sabia que seu espírito era claríssimo e que a seus olhos perspicazes não escapava a mínima  coisa.

Subitamente endireitou-se e empunhou a carabina fazendo pontaria a uma árvore. Ecoou a detonação. Foi um tiro curto e rápido. Dirigiu o cavalo para as árvores, encostou-o bem ao tronco, pôs-se de pé sobre a sela e estendeu a mão em direção a uma concavidade que havia logo abaixo do primeiro galho. Retirou de lá o ser que abatera. Era um animal do tamanho de um cachorro comum, com um pelo amarelo-cinzento, cujos pelos tinham pontas pretas. A cauda tinha a metade do comprimento do corpo. Este animal era um coati, ou, como dizem os americanos, um racoon, e cuja aparição é sempre bem-vinda a qualquer caçador, pois constitui um apreciável assado.

Apenas agarrara o animal, não decorrendo ainda dez segundo após o seu tiro, quando ecoou, para oeste, uma segunda detonação, que repercutiu profundamente e duma maneira toda particular.

-  Uff! - disse consigo o índio admirado. - Akaya Selkhi Lata! Esta expressão significa na língua dos apaches:

-  Ali anda Mão de Ferro.

E coisa singular: também Mão de Ferro seguia o seu caminho assim distraidamente, ensimesmado, quando ecoou o tiro do apache. Imediatamente fez o cavalo estacar e disse:

-  Foi o som da carabina prateada!

Disse essas palavras em alemão, sinal evidente de que era alemão. Rapidamente empunhou a sua mata-ursos e detonou, o que fez com que Winnetou logo reconhecesse a proximidade do amigo. Ao europeu ou a qualquer um que nunca esteve no Oeste, afigura-se impossível uma coisa dessas. Mas um homem do Oeste, experimentado e traquejado, reconhece imediatamente o estampido de qualquer arma conhecida. Seus sentidos são apuradíssimos, porque mil vezes deles dependeu e ainda vai depender a sua vida. Quem não possuir essa agudeza dos sentidos está perdido. Como difere a voz humana! Reconhece-se a voz dum conhecido entre mil outras. E o que acontece com o latir dos cães? Não reconheces então a voz de teu Plutão, César ou Nero, instantaneamente? O mesmo se dá com as armas. Cada uma possui a sua nota característica, toda peculiar. Todavia, tal só distingue aquele que possui um ouvido apto para isso.

Após ecoarem os dois tiros, antes que os amigos se vissem, cada um deixou o rumo que seguia e dirigiram-se um ao encontro do outro. A fim de tornar bem nítida a sua posição, deram ambos mais um tiro. Encontraram-se então numa pequena clareira onde se abraçaram fraternalmente.

-  Como se alegra a minha alma por encontrar tão cedo meu bom irmão branco! - disse Winnetou. - Alcançaremos o Rancho do Forner apenas depois de amanhã. Meu coração tinha saudades de ti e meus pensamentos iam ao encontro dos longos dias de viagem que ainda nos separavam.

-  Também estou contente por ter a meu lado o melhor e mais leal dos meus amigos - replicou Mão de Ferro. - Pensei em ti com saudade e desde que nos apartamos tenho sentido tua falta. Agora, porém, minha alma está tranqüila, pois que nos encontramos e vejo-te diante de mim. Como passou meu irmão durante essa longa viagem?

-  O sol sobe e desce no horizonte. Os dias vão e vêm. A relva nasce e fenece. Winnetou, porém, ainda continua o mesmo. Teve o meu irmão branco muitas aventuras desde a última vez que o vi?

-  Muitas! Nem todos os dias são belos e entre as flores da Pradaria existem muitas venenosas. Esta Pradaria é igual ao passado. Mas também eu continuo ainda a ser o mesmo. Quando estivermos sentados no bivaque, contaremos um ao outro as nossas aventuras, vividas durante esses dias em que estivemos separados. Conhece meu irmão algum lugar conveniente para descansarmos tranqüilamente?

-  Sim, se cavalgarmos ainda uma hora, chegaremos a um pequeno arroio, ao qual aflui um pequeno córrego. Na fonte, donde brota esse córrego, é o lugar onde nenhum olhar penetra, pois que é completamente cercado de vegetação. Lá poderemos fazer fogo, a fim de assar o coati abatido há pouco por mim.  Meu irmão que me acompanhe!

Cavalgaram adiante, sob a copa frondosa das altas árvores da mata. Aqui estava bem fresco, pois apesar de não poder observar-se de dentro da mata, o sol, nesse meio tempo, se havia aproximado bastante do horizonte.

Decorrera cerca de uma hora quando atingiram o local por onde deslizava o pequeno e estreito arroio a que se referira Winnetou. Atravessaram-no. Pararam em seguida ao descobrirem um trilho de relva pisada, que vinha da esquerda e continuava para a direita, ao longo do arroio. Ambos apearam a fim de examinar e estudar os rastros e ambos ergueram-se simultaneamente, após alguns, momentos.

-  Cinco cavaleiros - disse Mão de Ferro - com cavalos bastante cansados.

-  Passaram recentemente por aqui - rematou Winnetou. - Não devem estar acampados muito longe.

-  Precisamos averiguar quem são, pois meu irmão deve saber que foi desenterrada a machadinha de guerra.  Temos que ser prudentes!

Conduziram os cavalos para uns arbustos cerrados que havia ali perto, a fim de que pastassem um pouco, ataram e puseram a mão sobre seus focinhos. Era sinal para os bem amestrados cavalos indígenas de que não deviam fazer ruído e traí-los com algum eventual relincho. Em seguida voltaram para perto do riacho e seguiram a pista com lentos e   silenciosos   passos.   Ambos   eram   mestres   em   rastejar,   e  utilizavam cada árvore, cada arbusto, cada curva do riacho para  se ocultarem.

Apenas tinham decorrido cinco minutos, quando Winnetou estacou e aspirou profundamente o ar pelas narinas. Mão de Ferro fez o mesmo e sentiu cheiro de fumaça.

-  Acham-se bem próximos e têm um fogo - sussurrou a Winnetou. - Devem ser brancos, pois um vermelho não cometeria a imprudência de acamparem num lugar desprotegido e contra as brisas.

O apache assentiu com a cabeça e continuou a rastejar. O riacho corria agora entre as árvores, debaixo das quais havia grandes arbustos. Isso servia maravilhosamente para encobrir os dois caçadores. Em breve lobrigaram o fogo. Crepitava vivamente junto à água e as labaredas atingiam uma altura de vários pés. Era uma imprudência que um verdadeiro homem do Oeste jamais cometeria. O chão era aí de musgo bem fofo, de maneira que os passos, mesmo de gente menos experiente que Winnetou e Mão de Ferro, passariam despercebidos. O fogo ardia atrás de quatro árvores que tinham crescido ali bem juntas uma da outra, estando ainda ligadas entre si por cerrada macega, o que lhes dava a forma como que de um guarda-sol, e que podia muito bem ser utilizado pelos dois espias. Rastejaram prudentemente até lá, deitando-se colados à terra e com a cabeça bem encostada à parte inferior e sem folhas das macegas, por onde se puseram a espiar. Viram então os cinco homens bem próximos. O fogo ardia cerca de uns quatro passos de distância das árvores. Do lado destas estavam sentados o Rei do Petróleo e Buttler, seu irmão, de costas para as macegas. Do outro lado, o banqueiro e seu guarda-livros, Baumgarten. Mais para a direita estava Poller, que se ocupava em quebrar gravetos para alimentar o fogo. Deviam sentir-se muito seguros, pois não tinham a menor precaução de baixar a voz, falando tão alto que podiam facilmente ser ouvidos, no mínimo, a uma distância de vinte passos, uma falta que, aos espiões, só podia ser agradável.

-  Sim, Sr. Rollins - dizia o Rei do Petróleo - asseguro-lhe que o negócio que vai fazer será um negócio brilhante, grandioso. O petróleo flutua ali numa espessura de, pelo menos, um dedo sobre a água. Devem existir lá quantidades imensas debaixo da terra. Se não fosse assim, nem teria sido possível eu descobri-lo, pois o lugar é tão ermo e escondido, que, aposto, nunca o pé do homem andou por ali, e nem seria descoberto por vários decênios, se bem que o afluente Chelly tenha sido freqüentemente visitado por caçadores e mesmo por índios. É como digo, se não fosse o cheiro do petróleo, eu certamente teria passado por ali sem desconfiar de nada.

-  Mas era assim tão forte? - perguntou Rollins.

-  Queria que visse! Eu ainda me achava a meia milha de distância e já sentia o cheiro do petróleo. Pode assim fazer uma idéia da quantidade do produto. Estou certo de que a broca não precisará perfurar muito profundamente para dar no veio subterrâneo.   Heigh-Day, que esguicho, quando espirrar!   Quer apostar, Sir, como atingirá, no mínimo, a altura de cem pés?

 

. . .  com a cabeça encostada à parte interior e sem folhas das macegas, por onda se puseram a espiar.

 

-  Não costumo apostar - respondeu Rollins tranqüilamente, para o que tinha de fazer não pouco esforço, pois o brilho de seus olhos demonstrava bem a excitação de que estava possuído. - Espero, porém, que seja tudo assim como você conta.

-  Acaso poderia ser diferente? Estaria eu lhe mentindo quando o senhor mesmo pode tão bem descobrir a verdade ao chegarmos ao local? Ainda não exigi um único dólar do senhor, e somente aceitarei o pagamento quando o senhor mesmo estiver convencido de que não o engano e que o negócio é honesto.

-  Sim, o senhor portou-se como um verdadeiro homem honesto. Isso, reconheço de bom grado.

-  A isso acrescente-se que o senhor não me pagará à vista e sim a crédito, em San Francisco, não é?

Um observador atento notaria que, ao fazer esta pergunta, ele não pôde evitar que transparecesse em sua fisionomia um pouco de perturbação, pela ânsia com que aguardava a resposta. Seu olhar tinha uma expressão má quando encarou o banqueiro.

Rollins não lhe notou essa perturbação nem tampouco o olhar, e respondeu despreocupadamente:

-  Sim, quanto a isso pode estar descansado, sem dúvida. Naturalmente, estou munido de algumas penas, bem como de um pequeno frasco de tinta. Aliás, surpreende-me que nos acontecimentos de ontem não tenha ocorrido ao cacique Ka Maku esvaziar-nos os bolsos. Realmente, não posso compreender isso.

-  Ora, a explicação é muito fácil! Os vermelhos estavam tão atarefados em cuidar dos prisioneiros, que nem tiveram tempo de escamotear alguma coisa de vocês.  Isso viria mais tarde.

-  Acha que eles tinham intenção de atentar contra nossa vida?

-  Naturalmente! De qualquer maneira, ao amanhecer vocês seriam amarrados ao poste dos martírios.

-  Neste caso, muito devemos a vocês três. Realmente, é uma dívida tão grande que nem poderemos pagá-la. Só tenho pena de nossos pobres companheiros. Talvez a esta hora já não reste um único vivo.

-  Sim - declarou Baumgarten - sinto profundo remorso por termos fugido daquela maneira, pensando unicamente em nós. Indubitavelmente, o nosso dever teria sido tentar primeiro, por todos os meios, salvá-los também.

-  Isso você diz agora, porque está em segurança - interrompeu-o o Rei do Petróleo. - Eu, porém, asseguro-lhe que a salvação deles era absolutamente impossível. . Tenho muita experiência aqui no Oeste bravio, e vocês podem crer no que digo. Não há motivo para termos o mais leve remorso. Pelo contrário, garanto-lhes que somente pôde trazer vantagens aos nossos companheiros, porque, com isso, ganharam tempo. Os vermelhos, logo ao darem por nossa fuga, devem se ter posto em nossa perseguição. Portanto, não dispõem de tempo para martirizar e matar seus prisioneiros. Este ato ficará retardado, no mínimo, por dois dias, e sabe lá quanta coisa pode acontecer em dois dias, sobretudo tratando-se de pessoal tão experimentado, decidido e sagaz.

-  Hum! - murmurou o banqueiro. - O que diz não deixa de ter fundamento. Hobble-Frank e Tia Droll são indubitavelmente dois sujeitos extravagantes, mas também não resta a menor dúvida de que não são gente que se deixe abater como um cordeiro. Também aqueles três caçadores, que se denominam a Folha de Trevo, deram-me a impressão de que são homens de valor.

-  Refere-se a Sam Hawkens? - perguntou Buttler.

-  Sim. Ele, Dick Stone e Will Parker. São verdadeiros homens do Oeste como se vêem nos livros. Vocês não chegaram, a vê-los, Sr. Buttler e Sr. Poller, e ainda não lhe contei de que maneira teve lugar o encontro entre eles e os imigrantes alemães. Ouçam, para avaliar o quanto são destemidos esses homens!

-  Também esteve presente, Sir? - perguntou Poller.

-  Não, mas durante o trajeto do Rancho do Forner ao pueblo ouvi contar o que se passou.

-  Sim - respondeu Buttler com um sorriso forçado. - Aquele Hawkens, sobretudo, deve ser um homenzinho extraordinariamente astuto. Mas não dizia há pouco que seríamos perseguidos pelos vermelhos?

-  Com efeito - asseverou o Rei do Petróleo.

-  E se os vermelhos nos pilharem? Se descobrirem nosso fogo que brilha tão alegre e vivamente?

-  Isso não acontecerá.   Não nos alcançarão.

-  Não estará enganado? - perguntou Rollins. - Não conheço o Oeste bravio, mas ouvi muito e li ainda mais a respeito deste território. Estes índios são terríveis quando perseguem uma pessoa, e são capazes de, durante meses  inteiros, seguir-lhe a  pista até  apanharem  a sua  vítima.

-  Isso não ocorrerá aqui. Veja, quando saímos do pueblo? Somente ao romper do dia é que podiam ter-se posto a caminho a fim de iniciar a perseguição. Levamos pois sobre eles um avanço impossível de ser recuperado.

-  Como assim? Precisam apenas cavalgar sem parar, enquanto nós descansamos aqui.   Antes da meia-noite nos terão alcançado.

O Rei do Petróleo soltou uma estrepitosa gargalhada e exclamou:

-  O senhor declarou há pouco não saber nada acerca do Oeste bravio, e, realmente, tinha toda a razão. O senhor não sabe absolutamente nada a respeito. Não disse que os vermelhos poderiam nos seguir durante a noite?

-  Sim, pelo menos se forem inteligentes não deixarão de fazê-lo.

-  Como farão isso? Terão alguma idéia acerca do lugar onde nos encontramos?

-  Isso não. Todavia precisam apenas seguir nossas pegadas para nos acharem.

-  Poderão perceber as pegadas pelo olfato ou porventura vê-las durante a noite?

-  Não, ora, isso não.

-  Podem então os vermelhos seguir nossa pista agora que está escuro?

-  Não.

- Muito bem. Não. Precisarão fazer alto e aguardar a luz do dia. Como poderão recuperar a diferença existente entre nós e eles, se amanhã de manhã as nossas pegadas estarão completamente irreconhecíveis? Não, Sir, não temos nada, absolutamente nada mesmo a temer. Chegaremos sem novidade ao Gloomy Water, e lá, espero, liquidaremos felizmente o nosso negócio.

-  Gloomy Water? Que é isso?

-  É o lugar onde descobri o petróleo.

-  E de onde proveio esse nome? Você disse, há pouco, que nunca ninguém pisou lá.

-  Isso eu disse, realmente, e estou convencido de que assim é.

-  Mas o senhor contou-me que o lugar não tinha nome. Se ele se denomina Gloomy Water é porque foi batizado assim por alguém.

Esta conclusão deixou o Rei do Petróleo um tanto confuso. Apesar da sua habitual presença de espírito, nenhuma resposta lhe ocorria de momento pela qual pudesse sair da entalada. Preencheu a pequena pausa que se seguiu com um risinho à meia voz, que devia dar-lhe tempo para refletir. Para sua felicidade, seu irmão Buttler entrou na conversa.

-  Sr. Rollins, o senhor julga ter feito uma observação muito espirituosa, não?

-  Espirituosa? - respondeu o banqueiro. - Isso acho que não. Mas concisa, creio que foi. O lugar tem um nome, portanto forçosamente deve ter estado alguém lá, antes do Sr. Grinley. Por que não falou essa pessoa acerca do petróleo que, por força, devia ter descoberto? O senhor vê, pois, que existem certas contradições que não podiam deixar de escapar à minha atenção.

-  Ora, essas são facilmente explicáveis. A pessoa a quem o senhor se refere não é nem mais nem menos do que aqui o nosso Sr. Grinley, o Rei do Petróleo.

-  Ah! - fez o outro admirado.

-  Sim, foi ele quem batizou o lugar de Gloomy Water, porque...

- Porque - apressou-se a explicar Grinley - porque o terreno é pantanoso e a água tem uma cor quase negra.

Ele mostrava-se agradecido a Buttler por tê-lo livrado da suspeita e lançou-lhe um olhar de gratidão, que o outro respondeu meneando a cabeça em sinal de reprovação. Nem o olhar, nem o movimento de cabeça foram percebidos por Rollins ou Baumgarten.   Grinley parecia haver perdido a disposição para manter a palestra, pois levantou-se e distanciou-se em seguida com a alegação de que precisava ainda procurar lenha para o fogo.

Já era tempo de Mão de Ferro e Winnetou se retirarem, pois se ainda permanecessem ali podiam ser descobertos por Grinley. Por felicidade, este distanciou-se arroio acima, sem sequer lançar um olhar para o local onde estavam. Estivera sentado de costas para os dois, separado deles apenas pelos galhos e arbustos. Por este motivo não puderam lobrigar-lhe o rosto. Mas agora, ao levantar-se para caminhar, teve que fazer um movimento que lhes permitiu distinguir nitidamente suas feições. Recuaram pela mata adentro até um lugar onde o clarão do fogo não os pudesse atingir mais. Então levantaram-se e voltaram ao lugar onde haviam deixado os cavalos escondidos. Sem gastar palavras sobre o que acabavam de escutar e observar, Winnetou puxou seu cavalo para fora, tomou-o pela rédea e internou-se na mata com ele a cabresto. Mão de Ferro seguiu-o com o seu.

Ali onde os cavalos tinham estado escondidos havia relva e água, duas coisas úteis e imprescindíveis. Um bom lugar, pois, para acampar, sem receio de serem espreitados, descobertos ou molestados, por aquelas cinco pessoas. Mas não era de todo impossível que na manhã seguinte alguns daqueles indivíduos passassem por ali, onde podia topar com eles, ou mesmo somente descobrir os vestígios de que eles tinham passado a noite. Por isso foram-se.

As pegadas que haviam deixado até aquele momento estariam já apagadas na manhã seguinte, porque a relva estaria novamente viçosa.

Mas como não pudessem prescindir de água e pasto para os animais, é fácil de compreender que voltassem outra vez para o riacho, porém, num lugar mais distanciado, é natural. O trajeto para lá devia ser percorrido numa curva, sobre o musgo macio, onde não perdurariam os rastos dos pés e dos cascos, até a manhã seguinte.

Os experimentados olhos de Winnetou e de Mão de Ferro, habituados à escuridão, conduziram-os através da mata, sem que chegassem a topar, uma única vez, nalgum madeiro. Moviam-se com tanta segurança como se fosse dia claro. Avançaram assim durante um quarto de hora aproximadamente, dobrando então para a direita, a fim de juntar-se novamente ao curso d'água. Exatamente no lugar onde encontraram outra vez o riacho, afluía a esse um pequeno fio d'água. Atravessaram o arroio e seguiram na direção do corregozinho até alcançarem o lugar donde ele brotava na terra. Era a fonte a que se referira Winnetou e onde pretendera acampar. Que extraordinário tino de orientação devia ter esse índio para, assim no meio da mata virgem e a despeito da escuridão reinante, dar exatamente com o lugar da fonte!

Desvencilharam os animais, deixando-os pastar livremente. Tinham aquela liberdade os dois belos animais, porque eram fiéis como cães, acudiam ao primeiro chamado de seus donos e jamais se afastavam das proximidades destes. Somente então foi quebrado o silêncio por Winnetou, que perguntou:

-  Terá meu irmão branco algo para comer?

-  Um pedaço de carne seca - respondeu o companheiro. - Não providenciei em obter mais, porque hoje passaria pelo pueblo de Ka Maku.

-  Meu irmão que guarde a carne seca. Assaremos o coon que abati há pouco.

Após estas palavras afastou-se. Mão de Ferro não perguntou onde ia. Sabia perfeitamente que ele ia fazer uma inspeção ao redor da fonte, a fim de se certificar de que não havia nada de anormal. Voltou, cerca de dez minutos mais tarde, com uma braçada de lenha seca, sinal de que não havia nenhum inimigo pelas redondezas. O apuradíssimo ouvido de Mão de Ferro não ouvira o ruído da lenha quebrando-se, outro sinal da assombrosa habilidade do apache.

Em breve crepitava o fogo, pequeno, porém, à maneira indígena. Os dois homens sentaram-se então a fim de tirar o couro do coati. Em poucos momentos o ar estava impregnado daquele apetitoso aroma de assado, que não existe em nenhuma cozinha, porém somente nos fogos de acampamento. Comeram lenta e prudentemente sem que nenhum dos dois pronunciasse qualquer palavra. Quando ambos se achavam satisfeitos, prepararam o resto do assado para o dia seguinte e somente então Winnetou falou.

- Assaremos o coon que abati há pouco.

-  Quantas correias tem meu irmão consigo?

-  Talvez umas vinte - respondeu Mão de Ferro, que já sabia bem por que o apache perguntava por correia. - Um homem do Oeste, aliás, está sempre bem munido de correias.

-  Também tenho mais ou menos outras tantas - acrescentou o cacique. - Além disso, ainda cortaremos o couro do coati em tiras, pois que amanhã talvez necessitemos de correias.

-  Para os guerreiros de Ka Maku - assentiu Mão de Ferro. - Este cacique ainda não se defrontou conosco como inimigo, mas amanhã creio que seremos obrigados a fazê-lo dançar na corda bamba.

-  Meu irmão tem razão. Conhece aqueles a quem estivemos espionando?

-  Somente um deles já vi. Aquele que era denominado Grinley, o Rei do Petróleo. Creio tê-lo visto entre um bando de salteadores.

-  Mesmo sem saber disso, pensei comigo que devia ser um indivíduo perigoso. Meu irmão esteve comigo no Rio Chelly, do qual falavam. Queira dizer-me se lá pode haver petróleo!

-  Nenhuma gota!

-  E esse Grinley descobriu o Gloomy Water e batizou-o com esse nome?

-  Não. Estive contigo lá, há anos, naquele lago, e já naquela época tinha esse nome. O Rei do Petróleo está planejando uma grande velhacaria e talvez, coisa muito pior ainda, com essa gente.

-  Um duplo assassínio!

-  Sim.   Dois  daqueles homens que  vimos estão destinados  a  serem logrados e assassinados depois. Eles devem certificar-se da existência duma fonte petrolífera, pagar a sua descoberta e depois desaparecer.

-  Precisamos salvá-los!

-  Certamente. Todavia, isso não é de tanta urgência como a libertação dos prisioneiros de Ka Maku. As duas vítimas de Grinley que reconheçam, primeiro o seu erro.

-  Meu irmão branco está decidido a abandonar o nosso plano anterior?

-  Sim. Queríamos nos encontrar no Rancho do Forner, porém já o fizemos aqui. Pretendíamos de lá dirigir-nos para Sonora, a fim de visitarmos os apaches de lá. Poderemos fazê-lo mais tarde. Agora, o que temos a fazer é libertar os prisioneiros do pueblo e depois salvar a vida destes dois caras-pálidas. Mas o que diz meu irmão ao fato de haver entre eles amigos nossos?

-  Uff! Como é que Hobble-Frank veio parar aqui?

-  Escrevo de vez em quando ao Hobble, e numa dessas vezes participei-lhe a intenção de realizar este encontro contigo, mencionando mesmo o lugar e a data. Isso despertou no homenzinho a febre do Oeste e impeliu-o para cá. Droll, naturalmente, seguiu-o de boa vontade.

-  E Hawkens, Stone e Parker também estão presentes! Uff!

Isso era uma expressão de surpresa e contentamento. O motivo da surpresa foi logo abordado por Mão de Ferro:

-  Que gente tão experimentada se deixe prender, é quase incrível! Forçosamente devem ter ouvido falar em algum movimento guerreiro da parte dalguma tribo vermelha e assim agido com dupla prudência. Não poderiam ter penetrado no pueblo sem antes ter fumado o cachimbo da paz com o cacique. Todavia o temporal de ontem pode ter sido a causa.

-  Isso mesmo! Provavelmente o temporal impeliu-os para os pueblo tão precipitadamente, que nem tiveram tempo de se assegurarem da amizade do cacique.  Habitualmente Ka Maku é afável para com os brancos.

-  Descobriremos amanhã o motivo da sua atual inimizade. Chamo a atenção de meu irmão Winnetou para algo muito mais importante: nosso Hobble-Frank dirigiu-se com seu Droll para o Rancho do Forner, a fim de lá encontrar-se conosco. Ele conhece-nos perfeitamente e sabia, portanto, que chegaríamos lá pontualmente. Por que não esperou por nós? Por que se juntou a esses imigrantes?

-  Rei do Petróleo!

Winnetou pronunciou apenas essas palavras e demonstrou, assim, a maneira esclarecida com que encarava toda a marcha dos acontecimentos.

-  É isso. Hobble-Frank e Droll ouviram lá no Rancho falar da suposta descoberta do petróleo e em lugar de acreditarem, suspeitaram do negócio. Isso, naturalmente, comunicaram a Sam Hawkens e às suas duas Folhas de Trevo e estes entraram com ele para o grupo. O Rei do Petróleo notou isso e para ver-se livre deles fez com que Ka Maku aprisionasse toda a turma e depois soltasse aqueles por quem estava interessado.

-  Meu irmão exprime os meus próprios pensamentos. Quando julga que devamos partir a fim de libertarmos os prisioneiros?

-  Amanhã cedo. Se saíssemos já, chegaríamos amanhã de dia ao pueblo e seríamos facilmente descobertos. O que temos em vista só poderá ser levado a efeito durante a noite. Se partirmos amanhã de manhã bem cedo, chegaremos perfeitamente a tempo.

-  Winnetou concorda. Ao anoitecer estaremos nas proximidades do pueblo. Apaguemos agora o fogo!

Enquanto Mão de Ferro apagava o fogo com água da fonte, Winnetou foi dar mais uma volta a fim de certificar-se de que podiam dormir despreocupadamente. Em seguida, os dois deitaram-se, um ao lado do outro na relva macia, para entregar-se ao descanso noturno. Não precisavam fazer quartos de sentinela, pois tinham bastante confiança em seus ouvidos e em seus cavalos, que estavam habituados a denunciar a presença ou a aproximação de gente ou animais, por meio de relinchos.

No dia seguinte, ao amanhecer, a primeira coisa que providenciaram foi dar bastante de beber aos animais, pois previam que estes deveriam ficar talvez mais de um dia sem água. No pueblo não seria possível dar-lhes de beber, uma vez que agora seriam adversários de seus habitantes.

Aqueles dois homens, tão diferentes na cor, e contudo tão profundamente ligados pelos laços da amizade, repartiram o pedaço de carne que sobrara da refeição da véspera, encilharam seus animais e cavalgaram ao encontro do dia, cuja noite prometia ser bastante difícil para eles.

Do lugar onde haviam pernoitado até o pueblo era um bom dia de viagem a cavalo, para os seus, porém, era uma brincadeira, e antes de anoitecer já haviam atingido a meta. Cavalgaram durante toda a manhã seguindo o rasto do Rei do Petróleo e seus companheiros de viagem, e só por volta do meio-dia fizeram alto para dar algum descanso aos cavalos. Até ali, trataram unicamente de transmitir um ao outro as suas aventuras vividas durante o tempo em que haviam estado separados. Sobre os acontecimentos do dia nem sequer se falou. Somente agora, enquanto descansavam, disse Winnetou:

-  Meu irmão reconhece que não nos enganamos: Ka Maku está agindo de cumplicidade com o Rei do Petróleo?

-  Sim. Se assim não fosse, o cacique teria seguido os fugitivos e teríamos topado com ele, ou então teríamos encontrado o seu rasto.

Depois continuaram a viagem, até que, ao anoitecer, estavam apenas a uma hora de distância do pueblo. Agora deviam agir com muita prudência se não quisessem ser vistos. Apearam, portanto, a fim de deixar passar mais algum tempo, para que, quando se aproximassem do pueblo. já estivesse escurecendo. O lugar onde se encontravam era ermo e arenoso. O deserto estendia-se em uma língua cada vez mais estreita em fertilidade até às Serras de Mogollon. Eles tinham feito alto propositadamente ao lado de um desses blocos rochosos, isolados, cujos cantos da frente permitiam espiar para as bandas do sul, na direção do pueblo. Quem viesse de lá não poderia vê-los, nem tampouco os cavalos.

Não estavam ali muito tempo, quando Winnetou apontou em direção à direita, exclamando admirado:

-  Teshi, tlao tchate!

Estas três palavras do idioma apache significavam: "Vê, muitos veados," ou: "Vê, uma manada de veados!" Esta denominação, contudo, não quer dizer que se tratasse de verdadeiros veados, mas sim de uma espécie de antílopes americanos que, aliás, raramente se vê no Arizona. Daí a admiração do apache. Com que prazer não se entregariam ele e Mão de Ferro à caça desses velozes quadrúpedes, cuja carne oferece um excelente assado! Mas a missão que se tinham proposto cumprir não lhes permitiu isso.

Os belos animais passaram em graciosos e elegantes saltos, para o sul, sumindo-se em breve no horizonte. Iam em direção contrária ao vento, o que nunca fazem quando são perseguidos, a fim de que seus perseguidores não só os percam de vista, como também de olfato.

-  Com mil trovões! - disse Mão de Ferro. - Vêm-nos completamente fora de hora.

Examinou a direção do vento, que soprava do sul.

-  Talvez nos tragam a passagem dos inimigos por aqui - assentiu Winnetou. - Dirigem-se exatamente na direção  do  pueblo.   Se forem vistos de lá, em breve teremos guerreiros vermelhos por aqui, pois o vento sopra de lá para cá.

Puseram-se, pois a examinar o lado do sul com maior atenção ainda do que antes. Passou-se assim uma meia hora, sem que nada acontecesse. Os antílopes pareciam, portanto, ter passado despercebidos. Neste momento, porém, surgiram, na direção para onde tinham voltada toda a sua atenção, alguns pontinhos escuros que rapidamente foram crescendo.

-    Uff! Lá vem eles! - disse Winnetou. - Agora seremos descobertos!

-  Talvez não - opinou o companheiro. - Talvez possamos passar despercebidos. Se não vierem espalhados, mas num bloco uno, passarão dum lado só e nós poderemos esconder-nos do outro. Vejamos!

Ergueram-se e tomaram seus cavalos bem curto nas rédeas. Sim, os antílopes  tinham sido notados.   Volviam e atrás deles viam-se quatro cavaleiros, que vinham a toda disparada.

-  Somente quatro! - disse Winnetou. -- Se o cacique estivesse junto!

Rapidamente Mão de Ferro sacou seu binóculo do bolso e assestou-o em direção aos cavaleiros.

-  Está presente - anunciou. - Vem no cavalo mais rápido e é o que está na dianteira.

-  Isso é bom! - exclamou o apache enquanto seus olhos brilharam. -  Pegamo-lo?

-  Sim. Naturalmente, e não somente ele, mas os outros três também.

-  Uff!

- Alto! - exclamou Mão de Ferro.

Enquanto soltava esta exclamação, pulou para o cavalo e empunhou sua carabina prateada, No mesmo instante também Mão de Ferro já estava montado e com a espingarda estilo Henry na mão. Então chegava já a manada acossada, em doida disparada, passando a uma distância de uns mil passos aproximadamente. Os quatro índios vinham atrás. Ouviam-se já os seus gritos com que incentivavam os cavalos.

-  Agora! - gritou Winnetou.

Ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, juntamente com Mão de Ferro, que se achava bem perto a seu lado, detonou sua arma em direção ao grupo que se aproximava. Estes estacaram ao deparar tão inopinadamente com dois cavaleiros em seu caminho.

-  Alto! - exclamou Mão de Ferro, enquanto, acompanhado pelo apache, sustinha as rédeas do garanhão. - Para onde se dirige Ka Maku com seus guerreiros?

Foi difícil aos índios fazer seus cavalos estacar em meio à desabalada corrida.   Todavia conseguiram-no, mas o cacique gritou furioso.

-  Para que nos  fazem parar?   Agora foi-se nossa carne!

-  De qualquer maneira vocês não obteriam a carne. Então caçam-se velozes gazelas como a um vagaroso lobo da Pradaria? Então vocês não sabem que  a sua carne somente se consegue  quando  se  pode cercá-las de tal maneira que, apesar de toda a sua ligeireza, não encontrem uma saída?

Só agora os índios tinham conseguido manter quietos seus cavalos, e podiam observar bem os perturbadores de sua paz.

-  Uff! - exclamou o cacique. - Mão de Ferro, o grande caçador branco, e Winnetou, o famoso cacique dos apaches!

-  Sim, somos nós. Apeiem e sigam-nos até a sombra daquela rocha onde descansávamos quando vocês chegaram.

-  Mas por que precisamos ir para lá? - perguntou então Ka Maku.

-  Precisamos falar com vocês.

-  E não podemos fazer isso aqui?

-  O sol está muito quente para nós e lá existe sombra.

-  Não querem os meus dois famosos irmãos vir comigo até o pueblo onde poderão dizer tudo o que pretendem, tão bem como aqui?

-  Sim, iremos contigo até o pueblo. Antes, porém, queremos fumar o cachimbo da paz contigo.

-  Será preciso? Já fumei-o antes com vocês.

-  Antes,  porém,   queremos  fumar o cachimbo da paz contigo.

-  Naquela época havia paz nestas cercanias, agora, porém, foi desenterrada a machadinha de guerra. Por isso, só confiamos naquele que antes tenha fumado o kalumet  conosco.  Quem   a isso se recusar, consideramos nosso inimigo. Por conseguinte resolve, mas depressa!

Enquanto isso, ele brincava de tal maneira com a espingarda estilo Henry, que o cacique amedrontou-se. Conhecia bem essa arma, que os vermelhos tinham na conta de enfeitiçada, e sabia muito bem o que significava quando Mão de Ferro a manobrava tão significativamente. Todavia esclareceu, sem dúvida num tom não muito satisfeito:

-  Meus famosos irmãos assim o desejam. Portanto, assim o faremos.

Teria preferido ir-se embora; sabia, porém, que não podia atrever-se a uma coisa dessas. Seu cavalo não tinha a ligeireza das balas de Mão de Ferro e Winnetou. Bem que ele tinha sua espingarda, e seus companheiros também estavam armados, cada um, com uma, mas tendo em conta as armas destes dois caçadores, era o mesmo que estar desarmados. Portanto apeou, no que foi imitado por seus companheiros. Dirigiram-se cada qual com seu animal a cabresto, para o rochedo, à cuja sombra se acomodaram. Ka Maku desprendeu seu cachimbo da corda em que estava preso ao seu pescoço e disse:

-  Minha bolsa de fumo está vazia. Talvez um dos meus grandes irmãos possua kmnikinnik para encher o. kalumet.

-  Temos tanto fumo quanto necessitamos - respondeu Mão de Ferro. - Antes, porém, de fumarmos contigo o cachimbo da paz e seguirmos como teus hóspedes para o pueblo, desejávamos saber quais os guerreiros que vamos encontrar.

-  Os meus.

- Nenhum outro?

-  Não.

-  Disseram-me que hospedas contigo alguns guerreiros estranhos. Irrompeu a guerra entre algumas tribos e entre os vermelhos e os caras-pálidas.  Ka Maku deve compreender que a gente deve ser prudente.

-  Se meus irmãos vierem comigo, verão que não encontram nenhum guerreiro entre nós.

-  E contudo existe um extenso rasto que vai do Rancho do Forner até o teu pueblo. Daí em diante, reduz-se apenas às pegadas de cinco cavaleiros.

Ka Maku alarmou-se. Todavia, não o deixou transparecer e disse irritado:

-  Os meus grandes irmãos devem estar enganados. Não sei de nada a respeito de tal rasto.

-  O cacique dos apaches e Mão de Ferro não se enganam jamais, quando se trata de um rasto. Eles não contaram somente as impressões dos homens e dos animais, como também sabem o nome daqueles.

-  Então os meus famosos irmãos sabem nomes que para mim são desconhecidos.

-  Não terias nunca ouvido falar em Grinley, o Rei do Petróleo?

-  Nunca.

-  Isso é mentira!

O cacique levou a mão à faca que trazia à cinta e exclamou ferozmente:

-  Pretende Mão de Ferro insultar a fronte de um honrado cacique? Minha faca lhe daria a resposta!

O caçador branco fez um leve movimento com o cotovelo e disse:

-  Por que comete Ka Maku o grande erro de ameaçar-me? Ele me conhece e sabe perfeitamente que teria a minha bala alojada em sua cabeça antes que sua faca me atingisse, ou que sua mão pudesse empunhar a espingarda para alvejar-me.

Enquanto pronunciava essas palavras, sacara rapidamente de dois revólveres cujos canos lhe apontou ao peito. Ao mesmo tempo Winnetou puxara suas duas pistolas automáticas dirigindo-as aos outros três. Enquanto isso, Mão de Ferro prosseguiu, dizendo tranqüilamente:

-  Vocês conhecem estas duas arminhas aqui na minha mão, nas quais cabem seis tiros em cada uma. Meu irmão Winnetou agora vai tirar as facas de vocês bem como as espingardas. Aquele que se opuser a isso, aquele que fizer o menor movimento de reação, levará uma bala na cabeça. Assim disse e assim será.  Howgh!

Seu olhar estava energicamente cravado nos olhos do outro, que não ousou fazer o menor movimento, quando Winnetou lhe tomou as espingardas e as facas, bem como as de seus companheiros. Depois disso, Mão de Ferro prosseguiu:

- Os homens vermelhos vêem que estão em nosso poder. Somente o esclarecimento da verdade poderá salvá-los. Ka Maku queira responder às minhas perguntas! Por que deixou alguns prisioneiros escapar com o Rei do Petróleo?

-  Não  tivemos nenhum prisioneiro - teimou o cacique  raivoso.

-  Também agora não existem prisioneiros no pueblo?

-  Não.

- Ka Maku sabe que Winnetou e Mão de Ferro não são rapazes inexperientes que se deixem lograr. Sabemos que Sam Hawkens, Parket e Stone se acham com vocês.

Um repuxar de olhos traiu o susto do cacique; todavia, não respondeu.

- Também outros dois guerreiros brancos estão presos no pueblo, chamados Frank e Droll, bem assim como mais outros homens brancos com suas mulheres e crianças.  Quer Ka Maku concordar com isso?

- Não existe ninguém lá, nem um único - foi a resposta. - Seria um desprezível, um miserável cão, se deixasse alguém falar comigo assim!

-  Pshaw! Ainda falarei de maneira muito diferente contigo! Concordam, talvez, os outros três guerreiros em desmentir o que o seu cacique com tão pouca inteligência afirma?

Esta pergunta foi dirigida aos companheiros de Ka Maku.

-  Ele falou a verdade - respondeu um deles. - Não existem prisioneiros conosco.

-  Como queiram. Iremos agora, até o pueblo para nos certificarmos disso; e para que vocês não nos possam pregar alguma peça, vamos amarrá-los.  Winnetou vai começar o trabalho em Ka Maku.

O apache tirou suas correias. Então Ka Maku ergueu-se de um pulo e gritou furioso:

-  Amarrar a mim?   Verão.. .

Não pôde prosseguir, pois Mão de Ferro, que se erguera com igual rapidez, aplicou-lhe tão poderoso murro na têmpora, que o cacique caiu logo estirado  sem sentidos. A esse punho devia o  famoso homem do Oeste o apelido. Voltou-se ameaçadoramente para os outros três:

 

...  aplicou-lhe tão poderoso murro na têmpora, que o cacique caiu logo. . .

 

- Vêem aí no que resulta se oporem a nós?  Querem também levar um murro desses na cabeça?

Esta ameaça produziu uma impressão tal nos três índios, que se deixaram amarrar sem tugir nem mugir. Depois ataram Ka Maku pelos pés e pelas mãos. Tratava-se, no caso, de índios de pueblo, que não eram nômades e não possuíam mais, em parte, seu caráter primitivo. Se se tratasse de algum bando de índios errantes, talvez a reação fosse bem diferente. A fim de que os cavalos não fugissem, foram atados a longas cordas. Depois providenciou-se para que os quatro índios ficassem tão bem atados, que não pudessem prestar auxílio uns aos outros, nem mover-se do lugar onde se achavam.  Enterraram as carabinas dos quatro longe dali na areia, e reforçaram as amarras de tal maneira que seria completamente impossível a qualquer um deles libertar-se.

Enquanto isso se passava, o cacique recuperou os sentidos. Ao verificar a penosa situação em que se achava, pôs-se a ranger os dentes. Mão de Ferro ouviu-o e disse:

-  Ka Maku tem a culpa, ele próprio, de estar sendo tratado desta maneira. Tentarei ainda uma vez saber a verdade da sua boca. Se ele prometer soltar todos os prisioneiros e devolver-lhes tudo o que lhes pertence, será imediatamente desvencilhado das cordas.

O interpelado cuspiu e não respondeu, o que para Mão de Ferro foi tão ofensivo que apenas sorriu compadecido. Depois de certificarem-se mais uma vez de que seria de todo impossível aos seus prisioneiros poderem livrar-se por mais que se esforçassem, os dois amigos montaram a cavalo e tomaram a direção do pueblo.

Ka Maku lançou-lhes olhares cheios de ódio. Ele esperava não precisar ficar muito tempo naquela situação, pois se lá no pueblo, dentro em pouco, não tivessem notícias suas, mandariam imediatamente mensageiros à sua procura.

Nesse ponto estava o cacique indubitável e redondamente enganado. Sua gente nem se lembrava de mandar alguém procurá-lo. O fato de demorarem não preocupava absolutamente a ninguém. A perseguição dos velozes antílopes pode levar os caçadores muitas vezes bem longe, muito longe, e se cai a noite, é perfeitamente explicável que o caçador adie a volta à casa para o dia seguinte.

Como o pueblo ficava ao sul da Montanha Rochosa, somente desse lado podia ser vigiado, e como Mão de Ferro e Winnetou vinham do norte, isto é, do lado oposto, tinham que fazer uma curva se quisessem atingir seu objetivo. A par disso, precisavam usar de uma prudência extrema, uma vez que a todo o momento poderia surgir algum índio, o qual podia divisá-los tão facilmente quanto eles ao índio.

O sol tinha acabado de sumir-se no horizonte, quando eles depararam com a montanha e o pueblo situado em sua encosta. Não se aproximaram dele até o limite onde alcançava a vista. Fizeram alto e Mão de Ferro tomou seu binóculo. Depois de ter olhado após alguns momentos, disse:

-  Os prisioneiros mexeram-se. Meu irmão distinguiu o buraco que existe no muro do segundo andar?

-  Sim - respondeu Winnetou. - Eles perfuraram o muro; não podem, porém, sair, porque estão sendo vigiados. Decerto também já tentaram sair pelo teto.

- Tampouco o conseguirão, pois ali também irão encontrar as sentinelas.

- Em todo o caso, quando escurecer, vão acender fogo, o que será altamente embaraçoso para nós. Entretanto, alegremo-nos por ora, por termos descoberto o buraco no muro, pois assim sabemos que sob o terraço se encontram os prisioneiros. Em baixo está encostada uma escada, provavelmente para o cacique quando voltar. Que bom se não a retirassem!

Apearam-se e sentaram-se a fim de aguardar a escuridão. Quando esta fez-se completa, distinguiram vários fogos no pueblo. Amarraram os cavalos e dirigiram-se lentamente, a passo, para o povoado, onde tinham que praticar naquela noite uma verdadeira façanha. Estes dois homens, sozinhos, pretendiam, ou por força ou por astúcia, tomar de assalto toda aquela numerosa população do pueblo!

Realmente, era um tanto cedo para levar a cabo este audacioso empreendimento, pois seria muito mais seguro se esperassem mais algumas horas, até que a maioria dos índios estivesse entregue ao descanso. Haveria então apenas algumas sentinelas para subjugar. Mas havia outros motivos muito mais poderosos que os impediam de realizar o ataque mais tarde. Em primeiro lugar, deviam lembrar-se de que sempre poderia ocorrer qualquer imprevisto que restituísse a liberdade ao cacique e aos seus companheiros, antes do tempo. Podia estar algum dos seus homens a caminho e encontrá-lo. Se Ka Maku conseguisse a liberdade e chegasse ao pueblo antes deles, a libertação do pessoal que lá se achava prisioneiro tornar-se-ia quase impossível. Em segundo lugar, não se sabia da situação em que se encontravam esses prisioneiros. Qualquer atraso talvez

 

.. . e dirigiram-se lentamente, a passo, para o povoado . . .

 

lhes fosse fatal. E em terceiro lugar, por ora, os índios ainda não estranhavam a demora da volta do cacique. Talvez isso acontecesse somente no dia seguinte. Todavia, também podia acontecer que durante a noite essa demora chamasse a atenção dos vermelhos. Nesse caso, enviariam mensageiros à sua procura e esperariam por sua volta. Isso teria como conseqüência despertar muito mais a atenção por parte dos vigias, o que, sem dúvida, prejudicaria grandemente os planos de Mão de Ferro e Winnetou, obrigando-os a precipitarem os acontecimentos. Por isso convinha, de qualquer maneira, meterem logo mãos à obra.

Quando se achavam já suficientemente próximos ao pueblo, disse Winnetou:

-  Meu irmão queira ir pela direita, que eu vou pela esquerda. No meio, ali onde se acha a escada, nos encontraremos.

Mão de Ferro percebeu-o. Precisavam primeiramente inspecionar o terreno em frente ao pueblo, para verificar se havia sentinelas, ou mesmo se havia gente preocupada com a caçada do cacique. Mão de Ferro seguiu o convite do amigo e não encontrou nada que lhe chamasse a atenção. Quando se encontraram, notaram que a escada havia sido retirada.

-  Uff! - disse o apache baixinho. - Ela foi-se.

-  Sim -- concordou Mão de Ferro. - Mas isso não nos impedirá de alcançarmos o telhado debaixo. Antes de mais nada, porém, precisamos averiguar de que maneira os adversários estão divididos e onde se encontram.

-  Ardem  duas fogueiras.

-  Com efeito.   São as  fogueiras  dos vigias.   Uma   em cima, no terraço debaixo do qual se acham os prisioneiros, e outra no andar inferior, a fim de iluminar o buraco pelo qual tentaram sair. Lá em cima há sentinelas postadas, que eu já contei. São três em cima e três em baixo. Onde, porém, se encontram os demais índios?

-  Dentro da construção. Então meu irmão não observou que havia luz no interior?

-  Sim. Os buracos de comunicação estão abertos e vê-se o reflexo da chama que brilha em seu interior. Por aí se conclui que os vermelhos com suas squaws e crianças habitam os andares superiores, enquanto que os dois andares debaixo, desabitados, servem para abrigar os prisioneiros.

-  Meu irmão acertou. Eu estive aqui há alguns anos e observei a estrutura interna do pueblo.

-  Hum! A disposição interna daquele tempo pode ter sido modificada. Temos que avançar com muita precaução. Hoje está uma noite linda e devemos admitir que nem todos os índios se achem no interior de suas habitações. É muito provável que existam alguns deitados sobre os telhados chatos dos terraços ao ar livre.

-  Deter-nos-emos por causa disto?

-  Não.

-  Então trepa no muro a fim de que eu suba em teus ombros! Mão de Ferro assim o fez e o apache subiu-lhe nos ombros.  Como dali não conseguisse alcançar a borda da primeira plataforma, sussurrou ao companheiro:

-  Levanta os braços para cima para que eu possa apoiar-me em tuas mãos!

Mão de Ferro fez isso e levantou o cacique em suas mãos, como se este fosse uma criança.

-  Ainda não dá - disse o apache.

-  Quanto falta ainda?

-  Uma distância de três mãos.

-  Não faz mal. Teus dedos são como tenazes. Se conseguires alcançar a borda, poderás agüentar-te um pouco. Depois auxiliar-te-ei com a minha mata-ursos. Conta até três e atiro-te para cima. Atenção, segura logo!  Um... dois... três!

Imprimiu então um vigoroso impulso ao apache. Este alcançou a borda e segurou-se nela como com tenazes de ferro. Rapidamente Mão de Ferro lançou mão de sua longa mata-ursos e levantou-a apoiando com ela um pé de Winnetou. Este, tendo agora um ponto de apoio, pois que Mão de Ferro levantou a arma com força, conseguiu içar-se para cima do terraço, onde, a princípio se conservou por alguns momentos completamente imóvel e em silêncio, a fim de certificar-se de que não havia ninguém por perto que pudesse vê-lo ou ouvi-lo. Estava encolhido e pronto a dar um salto de pantera sobre alguma eventual sentinela, que seria logo presa pela garganta a fim de que não desse o grito de alarma. Seus olhos perspicazes percorreram o terraço em toda a sua extensão - com exceção dele próprio, ninguém mais se achava no terraço. Um pouco além lobrigou o buraco de comunicação com o andar térreo, e bem a seu lado jazia a escada que havia sido içada para cima.

Primeiramente dirigiu-se com movimentos cautelosos, quais os de uma cobra, até o buraco, onde se pôs a escutar. Em baixo estava tudo às escuras, tudo tranqüilo. Parecia não haver ninguém lá. Voltou então até onde se achava a escada, baixando-a para Mão de Ferro, de forma que ela se achou novamente encostada ao muro, como de tarde, e aquele pôde subir sem dificuldade. Quando se acharam juntos em cima, Mão de Ferro deitou-se ao lado de Winnetou e perguntou:

- Há alguém aqui em baixo?

-  Não ouvi nada - respondeu o cacique.

-  Puxemos a escada novamente para cima?

-  Não.

-  Certo. Poderia acontecer que precisássemos bater em retirada. Vamos, pois, para o andar seguinte.

Havia uma escada para este fim, pois só tinha sido retirada a do andar debaixo. Esta, porém, não puderam utilizar porque estava encostada justamente no andar do meio onde ardia a fogueira e onde se achavam três sentinelas, vigiando o buraco aberto pelos prisioneiros na parte de fora do muro. Seriam imediatamente descobertos se utilizassem aquela escada.

A plataforma de cima teria aproximadamente uns quatro passos de largura e uns oitenta de comprimento. O fogo que ardia no meio, à maneira indiana, era reduzido e seu clarão não alcançava as extremidades do terraço. Estava bastante escuro e por lá deviam os dois libertadores subir. Restava escolher pela direita ou pela esquerda. Optaram pela esquerda e isso em conseqüência de uma questão de comodidade, que apesar de vã lhes foi de grande vantagem.

É que os três índios se achavam sentados de tal modo em redor do fogo, que dois tinham o rosto voltado para o lado do buraco que deviam vigiar, enquanto que o terceiro estava mais para o lado, mascando. O corpo deste projetava uma boa sombra para aquele lado da plataforma, o que lhes permitia se aproximarem dos três sem grande perigo de serem descobertos. Assim levaram a escada que comunicava o andar térreo com o primeiro andar, para a extremidade esquerda da plataforma. Isso precisava ser feito com muita precaução. Lá chegados, encostaram a escada à parede que levava ao terceiro andar e subiram. Uma vez lá em cima, ficaram, como da outra vez, imóveis por alguns momentos a fim de inspecionar a superfície da plataforma.

-  Os vigias estão sós - sussurrou o apache.

-  Sim, e isso é ótimo - opinou seu amigo branco. - Contudo, a coisa ainda é extraordinariamente difícil. Não existe nenhum telhado sob o qual a gente possa dissimular-se.

-  Mas existe sombra.

- Well! Mas isso não é o suficiente. Podemos nos aproximar, no máximo, até uns vinte passos deles, e se o camarada que está fazendo sombra resolver mexer-se, a luz nos atingirá em cheio e seremos forçosamente descobertos.

-  Chamaremos a  atenção deles para o outro lado.

-  Como? Com pedrinhas?

-  Sim.

-  Bem. Se forem bastante estúpidos deixar-se-ão enganar com isso. Nesse caso, porém, significa cobrir esses vinte passos em um segundo. Derrubarei aquele que está de costas para mim imediatamente. Tu te encarregas do segundo e eu do terceiro.

-  Mas sem o mínimo ruído! - advertiu Winnetou.

- Sim, naturalmente, pois do contrário atrairemos a atenção dos três sentinelas de cima. Mesmo que rastejemos, bastaria que um daqueles indígenas se debruçasse na plataforma e olhasse para baixo para sermos imediatamente vistos.

-  Neste caso, teremos que abater logo estes aqui debaixo e em seguida atacar os de cima, com a máxima rapidez. Se conseguirmos subjugá-los, estaremos senhores da passagem que nos conduzirá àqueles que pretendemos libertar.

-  Mas isso produziria muito barulho. Todo o pueblo ficaria alarmado.

-  Winnetou e Mão de Ferro, todavia, não se deixarão intimidar por isso. Apagaremos o fogo e na escuridão não poderão fazer fogo contra nós.

-  Bem!   Vejamos agora as pedrinhas!

Foi muito bom que Mão de Ferro tivesse feito aquela pergunta, pois mais tarde aconteceu realmente serem vistos pelas sentinelas, porém lhes foi possível executarem imediatamente o plano de ataque, sem precisar, antes, perder tempo precioso em deliberações. Deitaram-se então e dirigiram-se rastejando para os três vigias. Mão de Ferro tinha previsto muito bem: quando se achavam aproximadamente a uns vinte passos tiveram que fazer alto. Winnetou ergueu-se um pouco e lançou uma pedrinha para o lado oposto. Conforme haviam previsto, o ruído causado pela queda da pedrinha foi notado pelos índios, que se voltaram para o lado onde ela caíra.

-  Surtiu efeito -- sussurrou Mão de Ferro. - São suficientemente imbecis para desviarem a atenção para o ruído das pedrinhas.

Winnetou atirou mais algumas, o que teve como conseqüência que os três, julgando tratar-se efetivamente de algum ser humano ou mesmo algum inimigo, redobraram de atenção, fixando mais atentamente ainda o lado oposto.

- Agora!

Levantaram-se. Cinco, seis pulos suaves, quase silenciosos, e os dois achavam-se junto aos três vigias.  O punho do caçador branco atingiu a cabeça do primeiro com tamanha força, que este caiu sem dar um grito. No instante seguinte, tinham já os outros dois presos pelo gasganete. Um pequeno apertão, uma pancada no lado do ouvido e também estes jaziam sem sentidos. Foram rapidamente amarrados e amordaçados.

 

. . . atingiu a cabeça do primeiro com tamanha força, que este caiu sem dar um grito

 

-  Aqui fomos bem sucedidos! - sussurrou Mão de Ferro. - Agora, ligeiro, coloquemos a escada junto ao buraco que conduz ao local onde se acham os prisioneiros. Quero falar-lhes. Enquanto isso, queira meu irmão Winnetou não perder de vista o andar de cima. Poderia aparecer algum dos vigias na borda.

Puxou a escada cautelosamente do andar de baixo, colocou-a junto ao muro no qual estava situado o buraco em questão e subiu. Passando a cabeça através da abertura, gritou para dentro, mas de maneira que somente aqueles que se achassem lá o ouvissem:

-  Sam Hawkens, Dick Stone e Will Parker! Algum de vocês está ai? Calou-se e ouviu lá dentro uma voz:

-  Ouçam! Alguém falou aí fora! Tem uma pessoa junto à abertura!

- Provavelmente um daqueles patifes vermelhos! - disse um outro. - Manda-lhe uma bala!

-  Qual nada! - atalhou um terceiro. - Um índio não se atreveria a expor assim a sua cachola arriscando a vida, se não me engano. Deve ser outro. Alguém que quer salvar-nos. Talvez até seja Mão de Ferro ou Winnetou. Deixem-me passar!

Pela expressão "se não me engano", reconheceu Mão de Ferro quem falava.   Por isso perguntou:

-  Sam Hawkens, está aí?

-  Quero crer - respondeu de dentro. - Quem é, afinal?

-  Mão de Ferro.

-  Heihg-day! Será possível?

-  Yes.   Queremos tirá-los daí.

-  Queremos?   No plural?   Então não está sozinho?

-  Não.   Winnetou está comigo.

-  Thank you! Esperávamos ansiosamente por vocês. Mas será mesmo Mão de Ferro? Ou será, porventura, Sr. Grinley, o Rei do Petróleo?

-  Devia conhecer-me pela voz, velho Sam.

-  Ora, a voz! Aqui neste buraco, ainda mais você falando tão baixo, soam iguais todas as vozes. Seria uma bela história se nós confiássemos em você e depois se transformasse no Rei do Petróleo. Não sou um coon tão imbecil assim. Dê-me uma prova!

-  O quê?

-  Tem a sua espingarda estilo Henry aí consigo?

-  Sim.

-  Então passe-a para cá a fim de que eu possa apalpá-la.

-  Ei-la. Devolva-a porém, depressa, pois posso precisar dela de um momento para outro.

Passou a arma pelo buraco. Depois de alguns segundos ela foi devolvida, enquanto Sam dizia:

- Realmente é você. Graças a Deus que vieram! Não podemos sair. Talvez houvesse um meio de escapar. Mas isso significaria uma dura luta e nós queríamos evitar derramar sangue. Como pretendem tirar-nos daqui?

-  Vocês não podem subir?

-  Não, o buraco está fechado.

-  Não têm escada aí?

-  Os patifes puxaram-na para cima.

-  Têm armas?

- Temo-las, sim. Não puderam levá-las. Mais tarde contarei como caímos nesta tinta cor do céu.

-  Que “águias” foram vocês! É uma verdadeira obra-prima! Quem está aí dentro?

-  Bons conhecidos seus: eu, Stone, Parker, Droll, Hobble-Frank e assim por diante.

-  Há também crianças?

-  Infelizmente.

- Well. Então reparem bem no que digo. Primeiro alcancem-me as crianças, mas elas não devem dar nenhum pio. Depois seguirão as damas que, como espero, ficarão também quietas. Em seguida, virão aqueles que não conhecem o Oeste e têm pouca experiência. É aconselhável pôr ao ar fresco todos estes em primeiro lugar para que já estejam fora, se por acaso formos descobertos. Estavam aqui três guardas que dominamos. Acima de vocês há também três, que nos podem facilmente surpreender. Se isto acontecer deverei intervir ligeiro; subirei e os abaterei. Se eu for bem sucedido, abrirei o buraco e baixarei para vocês a escada, pela qual aqueles que ainda estiverem dentro poderão subir depressa para auxiliar-me na luta. Compreenderam tudo?

-  Tudo.

-  Então vamos começar. Fico aqui para receber primeiro as crianças.

Em curto tempo surgiu na abertura um menino. Mão de Ferro o puxou para fora e o entregou a Winnetou, que o recebeu e colocou perto da muralha. A mesma coisa foi feita com todas as crianças e depois também com as mulheres. Isto era trabalho pesado, durante o qual Mão de Ferro, de pé na escada empenhou todas as suas forças. Quando até aí tudo tinha ido bem e Sam Hawkens o informou que agora seguiriam os homens, entre os quais em primeiro lugar os imigrantes alemães, ele respondeu:

 

Em curto tempo surgiu na abertura um menino.

 

-  Estes não necessitam do meu auxílio para alcançarem a escada. Vou me afastar portanto para vigiar os três guardas que estão lá em cima.

Ele desceu até Winnetou, deu-lhe algumas explicações em voz baixa e contornou sem fazer ruído a muralha dirigindo-se à esquerda, onde estava a escada pela qual eles haviam subido a esta plataforma. Levantou a escada, encostou-a no andar seguinte a fim de subir.

Tendo chegado em cima e investigado a plataforma iluminada pelo fogo, viu as grandes pedras que haviam sido postas sobre a tampa para que os presos não pudessem sair. Ao lado das pedras havia uma escada que fora levantada para a plataforma pelos índios antes que eles tivessem fechado o buraco. Uma outra escada conduzia à plataforma seguinte. Os guardas estavam sentados de modo que dois deles lhe davam as costas. Mão de Ferro subira nesta plataforma para agir sem demora caso fossem descobertos. Se, porém, os prisioneiros conseguissem sair todos sem impedimentos, ele pretendia descer sem se deixar ver. Assim ele ficou quieto esperando. Calculava quanto tempo precisava uma pessoa para atravessar o buraco e quantos já deviam estar fora. Acabava justamente de dizer consigo que provavelmente havia chegado a vez da sexta pessoa, quando uma aguda voz de mulher passou pela noite:

-  Nosso Senhor Jesus Cristo, não se atire sobre mim, seu cantor! Os  três guardas levantaram-se logo de um pulo,  foram  à margem

da plataforma para verem o que havia em baixo. Eles viram os brancos em liberdade, viram também o apache, que estava junto do fogo de pé e ereto. Reconheceram-no e um deles exclamou, sendo ouvido pelo pueblo inteiro:

-  Akhane, akhane, arku Winnetou, nonton, chis inteh. Estas palavras significavam:

-  Acudam, acudam, Winnetou o chefe dos apaches está aqui. Apenas tinha ressoado este apelo, gritou atrás deles uma outra voz

com a mesma força:

-  E aqui está Mão de Ferro para libertar os prisioneiros. Winnetou, receba os dois.

O caçador branco havia-se levantado junto com os guardas aproximando-se deles. Enquanto exclamava essas palavras, ele abateu um deles e deu um empurrão nos outros dois, de modo que eles caíram sobre os que estavam em baixo que os receberam. Em seguida Mão de Ferro derrubou a escada que conduzia ao andar de cima para que nenhum vermelho pudesse descer. Feito isto ele rolou as pesadas pedras que seguravam a tampa da abertura, deixou descer a escada buraco adentro e exclamou:

-  Subam ligeiro.  Pode haver luta.

Depois pulou com ambos os pés sobre o fogo para apagá-lo, o que conseguiu logo, pois este era pequeno.  Ficou tudo escuro. Winnetou apagara também o fogo em baixo. Mão de Ferro agiu com tal rapidez que, desde o momento em que a imprudente voz de mulher havia exclamado, até então, nem sequer um minuto se passara. E já vinham subindo da prisão os últimos prisioneiros.

Sobre os terraços acima deles começou grande agitação. Ouviam-se perguntas em voz alta. Luzes surgiam e viam-se figuras escuras descerem pelas escadas.   Ressoou nesta altura a voz poderosa de Mão de Ferro:

-  Os homens vermelhos devem ficar em cima se não quiserem morrer. Aqui estão Mão de Ferro e Winnetou com os seus homens. Quem ousar descer será morto.

Ele não queria matar nenhum índio; tinha, porém, a obrigação de provar-lhes que estava presente. Esta prova ele lhes podia dar apenas pela sua espingarda de tiro rápido tipo Henry. Todos eles conheciam e temiam essa espingarda. Apontou para a mão de um índio que vinha descendo rapidamente com uma luz; queria acertar naquela mão e premeu o gatilho.

-  Wahi, Latah-chi - Ai, minha mão! - gritou o ferido deixando cair a luz ou a tocha. Mais três tiros em rápida sucessão e mais três luzes desapareceram.   Uma voz gritou:

-  É a espingarda encantada de Mão de Ferro. Subam, subam ligeiro!

Em cima a escuridão tornou-se completa e o silêncio tão absoluto como se não houvesse homem algum nos terraços superiores.

-  Estão todos aqui? - perguntou Mão de Ferro às pessoas ao seu lado. - Não há mais  ninguém em baixo?

-  Ninguém - respondeu Sam Hawkens.

-  Ajustem então as duas escadas e desçam para os outros pavimenteis. Acho que os vermelhos nos deixarão em paz até que tenhamos a terra firme debaixo dos pés.

Obedeceram; ele seguiu por último.

Quando alcançou a plataforma inferior, viu que o apache circunspecto já havia providenciado a respeito do necessário. Os libertados também lá estavam em descida. Winnetou nem pensou em exigir que eles se apressassem; pelo contrário: lembrava-lhes que deviam proceder com toda a calma e cautela devido às mulheres e às crianças, pois sabia que, pelo menos durante algum tempo, nada havia a recear dos índios. Os dois nomes: Mão de Ferro e Winnetou os paralisavam.

A descida foi, portanto, realizada em muito boa ordem. Todas as escadas de cima foram levadas para o chão com o fim de dificultar a descida dos índios. Quando já rodos estavam juntos ao pé do pueblo, disse Mão de Ferro:

-  Fomos bem sucedidos e foi mais fácil do que eu pensava. Agora. ..

Foi interrompido por diversos que queriam dar expressão à sua gratidão. Rapidamente cortou-lhes a palavra:

-  Calma. Nada disto agora. Primeiro devemos fazer o que for mais urgente. Mais tarde quando nos tivermos afastado daqui poderão falar à vontade.  Onde estão os seus cavalos?

-  Lá no curral à direita, atrás da muralha - respondeu Sam Hawkens.

-  Têm todas as armas?

-  Sim.

-  E as bagagens?

-  O que tínhamos nos bolsos não nos pode ser tirado; mas o que estava nas bolsas das selas os marotos vermelhos com certeza roubaram.

-  Tinham também com vocês cavalos de carga?

-  Yes.   Havia os objetos dos imigrantes para carregar.

-  Onde estão esses objetos?

-  Não sei. O temporal desabou tão violentamente sobre nós que não tivemos tempo para descarregar e para desencilhar os animais.

-  Hum! Se tudo o que pertence a vocês e a eles estivesse agora aqui, então poderíamos partir em seguida. Assim temos que obrigar os vermelhos a entregar o roubo. Que Sam Hawkens me acompanhe ao potreiro; os outros permanecerão aqui e vigiarão os terraços inferiores do pueblo. Logo que algum vermelho se deixe ouvir ou ver nele, atirem mas sem acertar, compreenderam? Basta unicamente que ele ouça a bala bater ao seu lado. Essa gente deve saber apenas que nos colocamos aqui para não permitir que eles desçam. O meu irmão Winnetou irá neste meio tempo buscar os nossos dois cavalos.

O apache afastou-se silenciosamente, como era seu costume e Mão de Ferro foi com Hawkens ao potreiro, onde foram levados os cavalos.

Quando estes três se foram, disse o cantor, naturalmente em alemão:

-  Então são estes os dois grandes heróis que eu tanto queria ver! Não se pode vê-los por causa da escuridão, mas já sua presença me agrada imensamente.   Vão ocupar papéis eminentes na minha ópera.

-  Aguarde o dia para ver bem estes dois - respondeu Hobble-Frank. - Não é exatamente como profetizei? Bastou que os dois homens famosos aparecessem para ficarmos em seguida livres.

-  É isso mesmo - aprovou Droll. - Foi um verdadeiro ato de heroísmo tirar-nos da prisão sem que perdêssemos um fio de cabelo. Teria sido ainda muito melhor se a Sra. Ebersbach tivesse calado a boca.

-  Eu? - perguntou ligeiro a Sra. Rosalie. - Talvez me atribua a culpa do grito que me escapou?

-  É claro. A quem vou atribuí-la?

-  Ao cantor e nunca a mim.

-  Por obséquio - defendeu-se o acusado. - A senhora sabe perfeitamente que sou aposentado e, portanto, cantor aposentado. Se a senhora quisesse enfim deixar de fazer sempre esta omissão! A senhora não tem nenhum direito de afirmar que fui eu quem rompeu o profundo silêncio que fora ordenado.   Pelos meus lábios não passou nenhum som, nenhum, por pianíssimo que fosse.   Foi a senhora, Sra. Ebersbach, quem gritou.

-  Absolutamente não nego isto. Mas por que gritei? Se se tivesse segurado melhor, seu aposentado; se o senhor tiver uma outra vez a vontade de cair de uma. escada, então não o faça pelo menos num momento em que uma dama esteja por baixo. Se o senhor não souber segurar melhor sua escala de tons, então sinto imensamente pela sua ópera heróica. Compreende-me?

Ela lhe deu irritadíssima as costas. Ele quis continuar a conversa, mas Hobble-Frank intimou-o enérgico:

-  Pst! Calma e silêncio. Parece-me que vi passar no primeiro andar um ser vivo. Realmente, lá anda ele de novo. Agora parou e inclinou a cabeça.  É um índio que quer saber onde estamos.

Ele levantou a espingarda, fez rápida pontaria e atirou.

-  Uff! - exclamou uma voz espantada logo depois do tiro.

Mão de Ferro acabava de voltar com Sam Hawkens.

-  Que é que há?   Quem atirou?

-  A esta pergunta terei prazer em responder. Um "signor" vermelho estava lá em cima no teto número um. Provavelmente queria saber as horas e aí lhe mostrei quantas horas poderá bater o relógio se ele não tiver cuidado. Ele logo deu o fora.

-  Foi ferido?

-  Não; apontei mais para a direita, um meio metro distante; mas se tiver orelhas de dois metros de comprimento cada uma, então há grande probabilidade de que a bala lhe tenha atravessado o lóbulo esquerdo e é de esperar que isto lhe sirva de aviso.

-  Então eles já se arriscaram a descer até o primeiro terraço. Devemos ter cuidado. Ficaremos naturalmente a uma tal distância que eles não nos vejam, pois de outro modo atirariam sobre nós. Mas eles devem saber que estamos aqui e que não os deixaremos descer. Por isto Frank e Droll devem arrastar-se até lá e deitar-se pertinho do muro. Olhando para o céu poderão ver cada cabeça que surgir nas bordas, a fim de espiar para baixo.  Aí devem mandar rapidamente uma bala para cima.

-  Mas sem dúvida sem acertar? - perguntou Hobble-Frank.

-  Sim.  Não quero destruir nenhuma vida.

-  Cuidarei bem em não atirar no ar minhas lindas balas. Prefiro não meter nenhuma no cano.

Nesta altura Chi-So aproximou-se de Mão de Ferro e pediu em alemão:

-  Senhor, permita-me tomar parte na guarda do pueblo. Seis olhos vêem mais que quatro apenas.

-  Isto é muito certo - respondeu o caçador, olhando com atenção o moço que aliás não pôde reconhecer. - Mas você parece ser ainda muito moço.  Já tem experiência?

- Sou aluno do meu pai - respondeu Chi-So modestamente.

-  Quem é seu pai?

-  Nitsas-Ini, o cacique dos navajos.

-  O quê? meu amigo, o Grande Trovão? Então será o Chi-So que esteve na Alemanha?

-  Ele mesmo.

-  Eis aqui minha mão, jovem amigo. Folgo muito de encontrá-lo por estes lados; logo que tenhamos tempo, conversaremos. Se fosse mais claro, provavelmente o teria reconhecido. Se é Chi-So sei que posso atender o seu desejo e estar tranqüilo. Vá, pois, com Frank e Droll e coloquem-se tão distantes um do outro que todo o comprimento da plataforma fique bem vigiado.

O filho do cacique afastou-se orgulhoso de ver atendido o seu pedido. Justamente quando ele se ia, voltava Winnetou com os cavalos que foram atados a estacas a uma distância suficiente do pueblo. Depois de acomodá-los, disse ele a Mão de Ferro:

-  Ouvi um tiro. Quem o deu?

O interrogado lho disse e continuou:

-  Os cavalos dos que estavam prisioneiros estão aí no potreiro; mas toda a carga e todos os arreios desapareceram.

-  Devem encontrar-se no pueblo.

-  Sim. Não podemos por isto partir. Devemos ficar até que consigamos a entrega.

-  Isto não é difícil, pois o cacique está nas nossas mãos.

-  Devemos buscá-lo. Quer o meu irmão vermelho assumir o comando aqui? Eu cavalgarei com Hawkens, Parker e Stone para trazer Ka Maku, até aqui.

-  O meu irmão pode ir; encontrará na sua volta tudo em ordem.

 A Folha de Trevo gostou da proposta de acompanhar Mão de Ferro. Foram ao potreiro para buscar os seus cavalos. Estes não tinham sela nem rédea, o que, entretanto, era perfeitamente indiferente aos cavaleiros. Montaram e saíram rumo norte. Era natural que Mão de Ferro se informasse, no caminho, como eles tinham encontrado os imigrantes e como tinham sido presos. Havia tempo para contarem tudo detalhadamente e para dar a descrição do caráter de cada participante da caravana alemã. Quando Mão de Ferro ouviu tudo, disse sacudindo levemente a cabeça.

-  Gente muito singular e por cima de tudo extremamente incauta. Vocês se interessam por eles e querem acompanhá-los?

-  Sim - respondeu Sam. - Eles necessitam de nós e para nós é indiferente se cavalgamos nesta ou noutra direção.

-  Hum! Eu queria atravessar a fronteira com Winnetou, mas acho que é meu dever interessar-me por esta gente, tanto mais que eles pretendem passar por certas regiões onde sem o auxílio de gente de experiência terão que perecer. Será necessária muita prudência. Aquele cantor aposentado pode ser perigoso.

-  Já é perigoso. Eu já quis expulsá-lo, mas não foi possível. E que diz da história do Rei do Petróleo?

-  Embuste.

-  Well. Esta é também minha opinião. O guarda-livros é alemão. Pode-se permitir que o matem?

-  De modo algum. Seguiremos este Grinley, que muito provavelmente tem ainda outros nomes. Penso que o alcançaremos a tempo. Estou curioso por saber de que modo ele fez ou ainda fará milagrosamente surgir petróleo da terra.

Haviam andado muito ligeiro e não se encontravam agora muito distante do lugar onde o cacique fora deixado amarrado com a sua gente.

Mão de Ferro contou como Ka Maku tinha caído nas mãos dele e de Winnetou e acrescentou:

-  Ele negou tudo e merece castigo. Sou, entretanto, amigo dos vermelhos e quero ver se ele ainda me faz uma confissão. Se ele os vê perceberá logo como as coisas se passaram. Assim irei na frente e vocês seguirão devagar. Prosseguindo em direção ao norte, irão dar precisamente na rocha, atrás da qual deixamos o cacique.

Estava muito escuro, mas apesar disto Mão de Ferro se orientava com admirável rapidez e habilidade naquela terra plana. Estava convencido de encontrar os quatro vermelhos na situação em que os deixara; devia, entretanto, agir com muita cautela. Eles poderiam ter encontrado de qualquer modo a possibilidade de se libertar e estar agora esperando por ele e Winnetou para se vingarem. Por isto apeou numa distância adequada, atou o cavalo e foi a pé e com todo o cuidado à rocha. Quando já as podia ver, deitou-se ao comprido no chão. Em breve a alta pedra ficou à sua esquerda. Fazendo uma pequena curva ele tinha os presos deitados diante de si. Podiam estar livres e ter continuado nesta situação por astúcia; por isto ele não se deixou ouvir ainda e arrastou-se, sem fazer ruído algum, para trás do cacique, de modo que este nada percebeu. Em seguida levantou a mão e apalpou a espingarda metida na terra como um poste, ao qual Ka Maku fora amarrado. As correias estavam na mesma posição que antes: não haviam sido soltas. Então ele se levantou e postou-se diante  dos presos como se tivesse saído da terra.

-  O tempo foi com certeza longo para Ka Maku - começou Mão de Ferro. - Tendo uma mordaça na boca, nem mesmo pôde falar com os companheiros. Vou restituir-lhe a voz.

Tirou-lhe a mordaça e continuou:

-  O cacique teve tempo para pensar. Se ele estiver agora disposto a confessar-me que no seu pueblo há prisioneiros, eu o libertarei sem que nada lhe suceda.

Destas palavras concluiu Ka Maku que Mão de Ferro não sabia ainda nada de certo e, por conseguinte, ele decidiu-se a não confessar nada. Conhecendo muito bem os costumes de Mão de Ferro, estava ele convencido de que sua vida não estava em perigo. Portanto, resolveu nada confessar e ficar ainda atado por algum tempo até que viessem os seus guerreiros libertá-lo. Ele supunha que eles o fariam logo depois do romper do dia. Onde estava Winnetou? Para sabê-lo, perguntou:

-  Por que não vem o cacique dos apaches falar comigo? Percebia-se pela sua voz que a mordaça lhe havia embargado a respiração.

-  Foi preciso que ele ficasse nas proximidades do pueblo para observá-lo.

Desta resposta concluiu Ka Maku que os esforços de Winnetou e Mão de Ferro tinham sido infrutíferos e que este teria vindo apenas para obter dele informações por meio d,e perguntas; por isto disse desdenhoso:

- Winnetou nada mais ouvirá e verá do que eu já disse: não há nenhum prisioneiro no nosso pueblo. Por que os dois homens valentes andam se arrastando secretamente em torno dele? Por que não exigem entrada para se convencerem de que falei a verdade e procedo honestamente?

-  Porque não temos confiança em ti e porque estamos firmemente convencidos de que seríamos também presos.

-  Uff! Para onde foi a inteligência de Mão de Ferro? O Grande Espírito levou o seu cérebro. Fui seu amigo; agora que ele me trata como inimigo, a faca decidirá entre ele e mim.

-  Não me oponho a isto. Então realmente não tens brancos, homens, mulheres e crianças, no pueblo?

-  Não.

-  Lembra-te de que a mim e a Winnetou não seria difícil libertá-los. Se confessares, nós nos lembraremos de que foste nosso amigo e irmão e te trataremos com clemência.

- Mão de Ferro pode pensar e fazer o que quiser. Disse a verdade e me vingarei.

-  Como quiseres.  Mas escuta.  Quem será?

Ouviu-se o tropel de cavalos que se aproximavam. Ka Maku levantou-se tanto quanto as suas amarras o permitiam e deu um grito de alegria. Os cavaleiros podiam ser somente seus homens, que o procuravam. Eles contornaram a rocha e pararam aí. O cacique não pôde reconhecer bem suas figuras, mas tinha tanta certeza de que não se enganava que exclamou:

-  Sou Ka Maku, a quem procuram. Apeiem e desatem-me. Aí respondeu Sam Hawkens rindo:

-  Que tu és Ka Maku, isto acredito facilmente; mas que eu te desatarei, isto não acredito. Mão de Ferro resolverá o que deverá acontecer. Talvez me reconheças pela voz, velho canalha?

-  Sam Hawkens! - gritou o cacique com espanta

- Sou Ka Maku, a quem procuram. Apeiem e desatam-me.

-  Sim, Sam Hawkens e Dick Stone, além de Will Parker - confirmou Mão de Ferro. - Achas sempre que o Grande Espírito me privou do cérebro? Ou estava certo o que eu disse, isto é, que não nos seria difícil libertar os prisioneiros? Viramos a lança e dirigimo-la agora contra ti: os teus prisioneiros estão livres e tu estas preso.  Nenhum dos teus guerreiros é capaz de abandonar o pueblo, pois nós o cercamos e mandaremos uma bala a cada um que tentar a fuga. Agora te ataremos sobre os cavalos e eu aconselho-te a não te defenderes contra isto, se não quiseres provar as lâminas das nossas facas.

Sam, Dick e Will apearam e pegaram sucessivamente os quatro índios que ficaram tão assombrados que nem pensaram em oferecer resistência, a qual de resto nada adiantaria. Eles foram atados sobre os seus animais que até aqui haviam estado amarrados às estacas e em silêncio foi iniciado o regresso. De volta diante do pueblo eles foram tirados de cima dos cavalos e colocados sob severa vigilância. Apesar da escuridão notaram que todos os seus prisioneiros estavam em liberdade. Não é difícil imaginar que isto lhes causou grande raiva.

Os brancos, especialmente os mais agitados, teriam com prazer passado a noite toda conversando, mas Mão de Ferro não consentiu nisto. Lembrou-lhes que no dia seguinte os aguardava uma cavalgada longa e forçada e fez com que todos se deitassem, exceção apenas das sentinelas que mudavam cada hora.

Passou a noite sem que os vermelhos ousassem abandonar o pueblo e tentar um ataque. Quando amanheceu, viu-se que eles se tinham retirado para as plataformas superiores. A maioria deles dormia; foi, porém, despertada pelas sentinelas que também eles tinham estabelecido. Reuniram-se em cima e dirigiram aos brancos que acabavam de se levantar discursos ameaçadores. Não puderam perceber que o cacique deles era prisioneiro dos mesmos.

Winnetou e Mão de Ferro estavam decididos a não admitirem longas negociações. Não se podia perder tempo se quisessem alcançar ainda em tempo o Rei do Petróleo. Por conseguinte foram ambos falar com Ka Maku. Os outros formaram um círculo para escutar a conversa, e aqueles que não compreendiam a língua vieram para assistir ao espetáculo. Visto que Winnetou se conservava calado e só costumava falar quando isto era absolutamente necessário, Mão de Ferro tomou a palavra:

-  Ka Maku está vendo que todos os seus prisioneiros estão em liberdade?

O cacique não respondia, por isso o homem do Oeste o advertiu ameaçadoramente:

-  Não costumo dar-me o gosto de falar ao vento. Tu serás tratado com toda consideração possível. Se não responderes, culpa-te a ti próprio se cedermos ao nosso desejo de vingança. Responde, pois, à minha pergunta.

-  Vejo que estão livres - resmungou ele com raiva.

-  E que os teus guerreiros são nossos prisioneiros?

-  Isto não vejo.

-  Não? Pode algum deles abandonar o pueblo, se nós não quisermos? Nem precisamos consentir que eles estejam nos tetos. As nossas espingardas atiram até à plataforma superior e podemos obrigá-los todos a fugir para o interior dos andares. Donde eles tirarão o que comer e beber? Eles não podem descer lá onde está o poço e onde estão as reservas de víveres. Além disto seguramos a ti e os teus três companheiros. Que pensas que faremos contigo?

-  Nada.

-  Ah, realmente?

-  Sim, porque não aconteceu mal nenhum a nenhum dos teus.

-  Isto têm os meus amigos a agradecer somente a mim e a Winnetou. Vocês tinham outros planos. Não quero falar muito. Falta a esta gente muitas coisas que se encontram no pueblo. Se tudo o que lhes foi levado lhes for restituído, nós os deixaremos ir e partiremos; se tu, porém, te negares a atender a esta exigência, serás fuzilado e queimaremos o teu escalpo, de modo que terás de aparecer sem ele no país da caça eterna. A mesma sorte terão os teus companheiros de prisão. Resolve. Vê, o sol está se levantando. Quando ele estiver um palmo acima do horizonte quero ter tua resposta. Não esperarei mais.

Ele se levantou e afastou-se com Winnetou, dando assim o sinal de não querer perder mais palavras. Ka Maku cravou, carrancudo, os olhos na terra diante de si. Ele conhecia os sentimentos de humanidade dos seus vencedores e não acreditava que realizassem sua ameaça. Entregar toda a presa pareceu-lhe exigência excessiva. Quando o sol avançou tanto quanto fora marcado, os dois voltaram e Mão de Ferro perguntou:

-  O que foi que Ka Maku resolveu?  Terá início a entrega?

-  Não - retrucou o cacique.

-  Well. Eu disse que não falaria mais. Levem estes sujeitos para aquela rocha. Tirem-lhes os escalpos e metam em cada um uma bala na cabeça. Não tenho vontade de perder palavras inutilmente.

Sam, Dick, Will, Frank e Droll pegaram os quatro vermelhos e os levaram à rocha indicada. Um índio que morre sem o escalpo e fica enterrado, perde as alegrias da "caça eterna". Por isto gritou o cacique, quando Hawkens o pegou com a mão esquerda pelo cabelo e com a direita quis manejar a faca:

-  Pára, pára, terão tudo...

-  Bem - assentiu Mão de Ferro. - Já era tempo; não revogues, porém, o que dizes, pois então não haverá misericórdia. Exijo que tudo seja entregue até o mínimo objeto. Tuas squaws poderão trazer estas coisas até aqui. Se algum homem aparecer, atiremos. Estás de acordo?

-  Sim - fez Ka Maku rangendo os dentes.

-  Então que este homem o diga aos teus; mas se a entrega não começar dentro de cinco minutos estarás perdido.

Ele indicou um dos prisioneiros. As amarras foram-lhe tiradas e foi-lhe concedida uma escada pela qual subiu ao pueblo. Somente por intermédio dele souberam os índios que o seu cacique estava preso. Levantaram grandes uivos e correram lá em cima para todos os lados, fazendo gestos de ameaça. Mas o mensageiro parecia ter falado seriamente com eles, pois dentro dos cinco minutos fixados já apareceram as primeiras squaws, entregando em baixo a sua carga. Cada um recebia o que lhe pertencia e reclamava o que lhe faltava. Foi exigido absolutamente que todos, mesmo os menores objetos, fossem devolvidos. Isto causou, naturalmente, muitas dificuldades; enfim, tudo apareceu, sendo distribuído convenientemente.   Por isto o cacique exclamou:

-  Está tudo assim como quiseste. Agora desatem-me e vão-se embora.

-  Estás enganado - respondeu Mão de Ferro. - Ainda não devolveste tudo.

-  Que exiges mais?

-  O tempo que perdemos.

-  Posso eu dar-lhes tempo e presentear horas? - retrucou Ka Maku.

- Sim. Por tua causa todos nós perdemos um tempo precioso, que absolutamente devemos recuperar. Alguns de nós têm maus cavalos que precisam ser substituídos. Vi no teu potreiro que tens animais muito bonitos; vamos trocar nossos cavalos maus pelos teus bons.

-  Atreves-te? - exclamou Ka Maku, com os olhos brilhando de ira.

-  Pshaw. Não haverá nisto atrevimento algum. Crês, talvez, que tenho medo de ti? Quem nos impedirá de realizar a troca? Tu estás em nosso poder e os teus guerreiros não podem arriscar uma descida para nos impedirem. Nossas espingardas atiram mais longe do que as deles. Nós acertaríamos neles e não eles em nós. Eles terão o cuidado de não se aproximarem.

-  Seria um roubo, um saque!

-  Apenas punição merecida. Vocês são ladrões e nós os castigamos. Então ficará impune o que fizeram, prendendo e roubando toda essa gente? Devemos mostrar a vocês que o desonesto é sempre vencido pelo honesto. Tua resistência de nada servirá. Convido Winnetou, Sam Hawkens e Droll para que venham comigo escolher os cavalos.

Ele foi com os três ao curral. O cacique ficou possesso. Revoltou-se e tentou romper suas amarras, comportando-se como se tivesse perdido o juízo. Neste momento a Sra. Rosalie aproximou-se dele e dirigiu-lhe, zangada, este discurso:

-  Queres tu ficar quieto, tu, eterno gritalhão! Quem és tu? Cacique queres ser? Se pensas que creio nisto, estás lindamente enganado. És um patife, um ladrão que merece a forca. Me compreendes? Devias levar muito pau, uma boa surra. Fechaste-nos numa prisão, a nós, pobres inocentes. E agora que o castigo justo veio sobre ti como a pimenta sobre a sopa, tu finges ser o mais cândido inocente. Cuida-te e não me caias nas mãos; eu te arrancaria todos os cabelos um por um. Bem, agora já sabes como estão as coisas e com quem falas. Melhor assim. Talvez seja ainda tempo. Senão a polícia te pega.

Ela lançou-lhe ainda um olhar aniquilador. Suas palavras não ficaram sem efeito, ainda que ele não tivesse compreendido nada delas. Mas interpretara bem aquele tom. Ele a contemplou espantado e calou-se. Calou-se mesmo quando os cavalos, momentos depois, foram tirados do potreiro e encilhados. Os seus melhores cavalos ali se achavam. Mas mesmo que ele nada dissesse, o seu olhar expressava perfeitamente seus sentimentos.

Quando os vermelhos viram dos andares superiores que os brancos estavam em vias de partir, começaram a descer com auxílio das escadas que lhes ficaram. Acreditaram poder ousar isso, pois os caras-pálidas tinham cessado de mostrar uma atitude ameaçadora. Nenhuma partida teria sido possível se os tivessem deixado à vontade. Por isto apontou Mão de Ferro sobre eles a sua espingarda estilo Henry e exclamou:

-  Fiquem em cima, senão atiramos.

Não obedecendo a esta ordem, ele deu dois tiros para adverti-los, mas com cuidado de não ferir ninguém. Recuaram uivando. De resto haviam os índios se escapado relativamente muito bem. A não ser aqueles que haviam carregado tochas e que haviam sido feridos nas mãos, nenhum deles sofrerá ferimento algum. Não havia mortos. Mesmo assim disse o cacique a Mão de Ferro, quando este cessou de atirar:

-  Por que atiras sobre os meus homens? Não vês que eles não têm más intenções?

-  E tu não viste que as minhas intenções também foram pacíficas? - respondeu o caçador. - Ou acreditas que eu tendo querido acertar errei o alvo?  Quando quero, minha bala acerta sempre; só os quis avisar.

-  Mas não vês que há alguns em cima com as mãos pensadas? Eles levantam as mãos para me mostrar que foram feridos.

-  Podem agradecer à minha bondade o ter atirado sobre suas mãos e não sobre suas cabeças.

-  Também chamas bondade levares nossos cavalos?

-  Claro. É este um castigo com o qual podem estar contentes Mereciam uma punição muito maior e  muito mais severa.

-  Isto dizes tu; sabes, porém, o que direi no futuro?

Mão de Ferro fez um gesto de menosprezo, deu-lhe as costas e montou no seu cavalo sem responder. Os outros já estavam a cavalo. Irritado com este menosprezo, gritou Ka Maku atrás dele:

-  A cada um que vier aqui direi: Winnetou e Mão de Ferro, que tanto se orgulham, dos seus nomes, tornaram-se ladrões de cavalos e ladrões de cavalos costumam ser enforcados.

O caçador fingiu não ter ouvido a ofensa, mas o pequeno Hobble-Frank tanto se encolerizou com isto que dirigiu o seu cavalo para onde estava o cacique e gritou-lhe furioso:

-  Cala-te, patife! Um gatuno como tu deve estar contente de não estar pendurado numa corda. Seria melhor que te amarrassem uma pedra de mó no pescoço e que te afogassem no Oceano Índico, lá onde ele tem mais profundidade.  Aí tens a minha opinião, e agora adeus.

Deu volta e foi-se embora, sem se lembrar de que Ka Maku não podia ter compreendido este sermão feito em alemão.

 

Batedores

Quando entre duas tribos de índios é desenterrada a machadinha de guerra, o que significa que daí em diante haverá entre elas uma luta de morte, são enviados de ambos os lados, antes de mais nada, batedores, que tratam de saber onde se encontra de momento a tribo inimiga e de quantos guerreiros adultos ela dispõe. Certificar-se do acampamento momentâneo é também, necessário, porque as tribos "selvagens" não têm lugar fixo, constantemente mudam de pousada, o que é verdade, dentro de certos limites.

Mas com isto ainda não está cumprida a missão dos batedores; devem eles também, e aí está a dificuldade, descobrir de que modo o inimigo pretende conduzir a guerra, se é bem munido de víveres, quando ele dará início à campanha, que caminho tomará e onde julga encontrar o adversário. Para isto são precisos homens experientes, que além da bravura, absolutamente necessária, possuem também a devida circunspeção, cautela e astúcia.

Nos casos de menos importância, e que oferecem perigos menores, empregam-se guerreiros mais moços como batedores, para que estes encontrem oportunidade de mostrarem sua coragem e habilidade e possam adquirir renome. Quando, porém, se trata de mais do que isto, são escolhidos homens de maior idade e experimentados. Pode mesmo acontecer que o próprio cacique vá servir como batedor, se ele considera a situação como sendo de importância decisiva.

Como ambos os lados mandam observadores, acontece por vezes que estes se encontram. A questão então é fazer tudo de que a audácia e a astúcia forem capazes, para neutralizar a ação dos batedores inimigos, isto é, para matá-los. Se isto for feito, fica o inimigo sem notícias, pode ser surpreendido pelo ataque e pode ser vencido com facilidade muito maior.

Compreende-se que num tal encontro de espiões, freqüentemente se faça uso de muito mais astúcia, habilidade e ousadia do que na luta propriamente dita, que vem mais tarde. Ocorrem, nesta ocasião, feitos que são transmitidos de boca em boca e lembrados depois.

Como já foi dito diversas vezes, haviam irrompido lutas muito sérias entre algumas tribos, como, por exemplo, entre os nijoras e os navajos, que moravam então ao norte da tribo dos primeiros. O afluente Chelly do Rio Colorado servia de fronteira entre estas duas tribos. A região percorrida pelo Chelly era portanto um terreno muito perigoso onde os adversários possivelmente se encontrariam, e que portanto devia, antes do encontro, ser investigado pelos batedores.

Os perigos desta região não diziam respeito somente aos índios e sim, também, aos brancos, pois ensina a experiência que, logo que os vermelhos lutem entre si, os caras-pálidas são considerados inimigos por ambos os bandos. Acham-se eles então - valendo-nos de uma imagem - entre as lâminas de uma tesoura que se podem fechar a qualquer momento.

O Lago Gloomy Water, onde o Rei do Petróleo pretendia ir, ficava nas proximidades do Rio Chelly. Grinley conhecia o perigo que ameaçava a todo homem branco que precisamente agora quisesse lá chegar; acreditava, porém, que podia arriscar a viagem, pois que nunca fora tratado como inimigo pelos membros de ambas as tribos. Não podia ele adiar a execução de seu plano. Se quisesse alcançar o seu fim devia apressar-se; não devia permitir que o banqueiro compreendesse o embuste, nem que, por qualquer  nova circunstância, este recebesse outra advertência.

Quanto a Rollins e ao seu guarda-livros, ambos haviam ouvido falar do rompimento entre os nijoras e os navajos; entretanto, não possuíam a necessária experiência nem conhecimentos adequados para saberem que perigos ameaçavam também a eles. E o Rei do Petróleo nem pensava em explicar-lhes a situação.

Os cinco homens estavam ainda aproximadamente a um dia de viagem do Rio Chelly, quando, ao atravessarem um prado aberto, interrompido às vezes por arbustos e capões, se viram repentinamente enfrentados por um cavaleiro, a quem não haviam notado antes, porque existia entre eles um capão que os ocultava. Era um branco, trazia uma mochila nas costas e cavalgava um forte pônei índio, no qual se viam os vestígios de um grande cansaço.  Os cinco pararam surpresos.

-  Alô! - exclamou o estrangeiro. -- Supus que fossem vermelhos.

-  Então o seu escalpo estaria perdido - respondeu o Rei do Petróleo, deixando ouvir um riso forçado para esconder o seu próprio embaraço, pois também ele estava espantado com o encontro súbito.

-  Ou o seu - respondeu o outro. - Não sou homem que deixe tirar-me a pele tão facilmente pelas orelhas.

-  Nem quando são cinco a enfrentar um só?

-  Mesmo que fossem vermelhos! Já tive mais do que isso contra mim e fiquei com o meu escalpo.

-  Isto nos impõe respeito diante do senhor. Pode-se saber quem é o senhor?

-  Por que não? Não tenho de que me envergonhar, dizendo-o. - E indicando sua mochila atrás de si: - Admira-me sua pergunta. Não parecem ser verdadeiros homens do Oeste. Deviam ter reconhecido que sou mensageiro.

Era um daqueles homens audaciosos, que com uma mochila cheia de cartas, e coisas parecidas, sobre os cavalos rápidos, atravessavam intimoratos os prados e as Montanhas Rochosas. Hoje em dia não se encontram mais destes correios.

-  Se somos homens do Oeste ou não, não lhe interessa - retrucou o Rei do Petróleo. - A verdade é que vi sua mochila, mas sei que por esta região ainda não havia passado um mensageiro. Esta gente costuma seguir a rota Albuquerque - San Francisco. Por que motivo abandonou essa rota?

O homem dirigiu os seus olhos inteligentes, quase com desprezo, para Grinley e respondeu:

-  Francamente, não tenho a obrigação de informá-lo e também não tenho vontade para tanto, mas vendo-os correr ao encontro da perdição, sem que a pressintam, devem saber que eu saí do meu rumo por causa dos navajos e nijoras. Eu teria que ir exatamente pela região que um homem prudente agora prefere deixar aos vermelhos, a saber, pela região do Rio Chelly. Não sabem então que precisamente agora eles estão brigando aí?

-  Julga talvez ser o único homem inteligente aqui no Oeste?

O Rei do Petróleo teria feito melhor sendo cortês, mas o susto causado pelo encontro repentino o irritou, e diante daquele homem sozinho não lhe pareceu necessário disfarçar sua natureza brutal. O mensageiro olhava atentamente de um para o outro, sem pagar a descortesia sofrida com igual moeda. Depois meneou a cabeça diversas vezes e disse num tom tranqüilo, indicando o banqueiro e o guarda-livros:

-  Eu afirmaria que pelo menos estes dois homens não viram ainda muito sangue correr. Se são tão sabidos que não precisam de conselhos, quero pelo menos prevenir esses que sejam prudentes. Talvez eles nem sequer saibam o que fazem e arriscam. Nenhum homem de juízo mete a cabeça numa prensa que deverá ser apertada sem demora.

Essas palavras graves fizeram com que o banqueiro se informasse:

-  Que quer dizer?  De que prensa fala?

- Daquela que se encontra lá no Rio Chelly. Acho que se dirigem diretamente para lá. Dêem meia volta, cavalheiros, senão ficarão entre as facas das duas tribos que se querem degolar mutuamente, e o que sobrar de vocês, bem o poderão comer os abutres e os lobos dos prados. Obedeçam-me. As minhas intenções são boas.

Um só olhar sobre seu rosto franco bastava para convencer de que ele dizia a verdade. Por isto Rollins perguntou:

-  Julga de fato que o perigo seja tão grande?

-  Sim, julgo-o. Vi pistas hoje de manhã que me mostraram que os batedores já se espionam mutuamente. Isto é sempre sinal de aviso para todo homem prudente. Devem ir agora mesmo e impreterivelmente para aquela região? Não podem adiar esta cavalgada imprudentíssima para tempos melhores e mais pacíficos?

-  Hum! podemos. Se o senhor afirma que o perigo é tão grande, acho com efeito que será melhor...

-  Nada disso - atalhou o Rei do Petróleo. - Conhece este homem? Quer dar-lhe maior crédito e maior confiança do que a nós? Se ele tem medo de uma pista na grama, isto diz respeito a ele só e não nos interessa.

- Mas os mensageiros costumam ser homens de experiência; ele parece dizer a verdade e quando se trata de salvaguardar a vida, e isto é tudo, não é aconselhável ser-se imprudente. Não faz diferença se o nosso negócio for concluído hoje ou alguns dias mais tarde.

-  Faz. Não tenho vontade de passear eternamente nestas redondezas.

-  Ah, trata-se de um negócio - sorriu o correio. - Não faço parte dele. Cumpri com o meu dever e os adverti; não se pode exigir mais de mim.

Ditas estas palavras, pegou nas rédeas e pôs novamente em movimento o seu pônei.

-  Não exigimos nada mais - gritou-lhe o Rei do Petróleo. - Nós não exigimos absolutamente nada do senhor e o senhor podia muito bem ter guardado sua opinião para si. Vá-se embora.

Também este comportamento não fez o correio perder a calma. Respondeu no tom calmo de um professor que faz uma repreensão a um aluno:

-  Nunca vi homem tão ordinário. Indivíduos bem singulares estão andando pelo Oeste.

E dirigindo-se ao banqueiro, continuou:

-  Antes que eu cumpra a ordem deste cavalheiro prepotente e me vá embora, devo dizer ainda uma coisa: quando nestas paragens se trata de um negócio, é sempre um negócio perigoso, mesmo em tempos normais e perfeitamente pacíficos; quando, porém, o negócio não pode sofrer nenhuma demora nas circunstâncias que prevalecem atualmente, não se trata mais de um negócio perigoso e sim, simplesmente, de um negócio suspeito. Cuide-se, portanto, senhor, de não perder sua cabeça nele.

Quis afastar-se, mas o Rei do Petróleo puxou da sua faca e gritou:

-  Isto foi uma ofensa, homem! Queres que te meta entre as costelas este aço afiado?   Dize-me mais uma palavra e já verás!

Então os canos de dois revólveres brilharam nas mãos do correio e ainda mais brilharam seus olhos quando ele respondeu, rindo com desdém:

-  Tente isto, my boy. Guarde a faca imediatamente, senão atiro. Há aqui  doze balas, senhores.   Naquele que mover um dedo que seja contra mim, farei um buraco pelo qual sairá a alma.   Fora com a faca, homem.  Conto até três... Um... dois...

- Guarde a faca imediatamente,  senão atiro.

Via-se que falava sério e que cumpriria a ameaça. Por isto Grinley teve a prudência de não esperar até três e colocou novamente a faca na bainha antes que ele pronunciasse aquela palavra.

-  Assim está certo - riu-se o correio. - Eu não os aconselharia a provocar-me. Por hoje basta; mas se porventura ainda nos encontrarmos, aprenderão de mim ainda muito mais.

Disse isso e cavalgou para a frente sem achar que valesse a pena olhar para trás. Grinley pegou sua espingarda para apontá-la contra ele; então Baumgarten pôs-lhe a mão no ombro e disse num tom quase severo:

-  Não faça mais tolices.  Quer matar o homem?

-  Mais tolices? - repetiu o Rei do Petróleo às palavras de Baumgarten. - Porventura já fiz algumas?

-  Naturalmente. Sua grosseria, todo o seu comportamento foi uma tolice. Evidentemente, o homem tinha boas intenções e realmente não vejo nenhum motivo que o pudesse ter levado a tratá-lo de tal maneira.

Grinley quis dar-lhe uma resposta violenta, resolveu porém outra coisa e retrucou:

-  Se fui grosseiro para com ele, você agora o é para comigo. Estas coisas se compensam. Advertindo-os da maneira como o fez, via-se que o homem era um covarde.

- Mas quando você o quis atacar com a faca ele não se comportou como tal e foi você quem teve de ceder.

-  Isso não é vergonha alguma. Até o diabo fica quieto se dois canos de seis tiros cada um forem dirigidos contra o seu peito. Porém basta de conversa. Vamos adiante.

Buttler e Poller haviam permanecido sensatamente quietos durante toda esta cena, mas era visível que o aparecimento e o comportamento do correio e especialmente suas advertências os irritaram fortemente. Ao continuarem a viagem, eles lançavam olhares investigadores a Rollins e a Baumgarten, tentando ler-lhes na fisionomia qual a impressão que aquele aviso havia causado.

O ambiente agora era muito diferente do de antes; não falavam e cada um parecia preocupado com suas próprias idéias, até que algum tempo depois o sol desapareceu e eles encontraram um lugar adequado para pouso. Não precisavam cuidar da ceia, pois o Rei do Petróleo se havia munido suficientemente de víveres no pueblo. Comiam em silêncio, e só quanto escureceu, Baumgarten arriscou a primeira palavra:

-  Acenderemos um fogo?

-  Não - respondeu Grinley.

-  Então, receia os índios?

-  Receio? Não. Conheço esta terra e os vermelhos que a habitam muito melhor do que esse mensageiro, que por aqui passou, provavelmente pela primeira vez. Nem se fala em receio ou em medo. Mas não podemos deixar de ter uma certa cautela. Se o homem viu alguma pista, não é inevitável que ela seja precisamente de batedores. Entretanto é preferível que não façamos fogo. Não me acusarão mais tarde de ter-me desleixado em qualquer coisa que pudesse aumentar nossa segurança.

-  Hum! - resmungou o banqueiro pensativo. - Está convencido de que não existe o perigo de que falou o correio?

-  Para nós não existe, disso podem estar certos. Para convencê-los, ainda que isto não seja absolutamente necessário, darei mais uma prova: enviarei amanhã Poller e Buttler para a frente.

Estes dois haviam esperado por isto; não disseram, porém, coisa alguma.

-  Para quê? Que deverão eles fazer?

- Vão servir-nos de batedores e, portanto, irão na frente a fim de averiguar se não corremos nenhum perigo. Vêem pois que todas as possibilidades foram levadas em conta e espero que se tranqüilizarão de novo.

-  Bem.  Então amanhã de manhã partiremos todos?

-  Não. Eu ficarei aqui com o senhor e com o Sr. Baumgarten. Somente Buttler e Poller partirão. Eles agirão com cautela, e, caso descubram algum perigo, logo devem voltar para nos avisar.

-  Isto me tranqüiliza, Sr. Grinley. Aquele correio meteu-me um pouco de medo.

Ele não supunha nem pressentia que o arranjo que o tranqüilizava tinha a finalidade contrária, isto é, preparar o embuste do qual ele seria a vítima.

Visto que os dois citados deviam partir cedo, não continuaram a conversa e todos se deitaram. Um de cada vez devia ficar de sentinela. A ordem estabelecida fez com que Baumgarten fosse a primeira e o banqueiro a segunda sentinela. Depois que este último despertou o Rei do Petróleo, que o devia render, e se deitou, Grinley ficou sentado, absolutamente imóvel durante meia hora mais ou menos; depois se inclinou sobre o banqueiro e o guarda-livros para saber se dormiam. Quando notou que o seu sono era profundo, despertou sem ruído Poller e Buttler. Os três se levantaram e se afastaram um pouco, tanto quanto era preciso para que não fossem vistos nem ouvidos. Tinham que falar em segredo.

-  Pensei que não nos despertarias - disse Buttler. - Que o diabo carregue o mensageiro, que facilmente nos poderia ter estragado o jogo todo. De resto deverias ter-te comportado de outro modo.

-  Queres   também  fazer-me censuras?   -  resmungou seu irmão.

- Admiras-te disso? Aquele tipo tinha cabelo nas ventas e bateu-te, como se costuma dizer, em toda a linha.

-  Oho!

- Pshaw! Deves reconhecê-lo, evidentemente. Quanto mais tu te irritavas, tanto mais calmo ele ficava. Esta impressão Rollins e Baumgarten com toda a certeza também tiveram. E depois a história com a faca. Tivemos de ficar bem quietinhos; foi um fracasso de arromba.

-  Tu também não?

-  Claro. Tive ganas de mostrar-lhe os dentes, mas ele estava perfeitamente sério. Ele teria atirado na certa. Um contra cinco. Que pensarão de nós Rollins e Baumgarten?

-  Que pensem o que quiserem. Recuperaram a confiança abalada. Falemos de coisa melhor. Eu te descrevi exatamente a situação do lago de petróleo. Poderás achá-lo?

 

Rolem os barris um por um, até a água.. .

 

-  Sem dúvida.

-  Se partires cedo e não fores detido por coisa alguma, estarás lá já de tarde. Acharás a caverna com a mesma facilidade que o Gloomy Water?

-  Naturalmente.

-  Nela encontrarás tudo o que for necessário, os quarenta barris de óleo, as ferramentas e todas as outras coisas. Agora prestem bem atenção. Deves dar início ao trabalho imediatamente depois da chegada, porque bastante tempo levará depois o trabalho de desmanchar os vestígios. Rolem os barris um por um, até a água, e quando o petróleo tiver corrido para o lago metam-nos novamente na caverna. A entrada desta fechem-na do mesmíssimo modo como a encontrarem. Mesmo o olho mais experimentado não deverá descobrir coisa alguma.   Depois apaguem todos os vestígios que houver do rolar dos barris. Espero que até a noite vocês tenham terminado tudo.

-  E quando o trabalho no lago estiver terminado, que faremos então? - perguntou Buttler.

-  Dormirão bastante e virão ao nosso encontro na manhã seguinte para dizer-nos que acharam o lago e que o caminho até lá está absolutamente livre de todo perigo. O principal em tudo isto é que vocês se mostrem entusiasmados com a descoberta do petróleo.

-  Não nos faltará entusiasmo. Faremos com que ambos se contagiem. Espero que tu também cumprirás mais tarde com o teu dever.

-  Naturalmente.

-  Quanto era mesmo que tu querias dar?

-  Receberão os dois cinqüenta mil dólares, metade para cada um. Dizendo estas palavras, pegou ele a mão do irmão e a apertou, dando assim a entender que esta promessa era apenas uma isca para Poller. Para este não era destinado dinheiro algum e sim uma facada ou uma bala. Poller de nada suspeitava, confiava nos dois embusteiros e exclamou com alegria, em voz baixa:

-  Cinqüenta mil que nós dividiremos? Receberei então vinte e cinco mil?

-  Sim - assentiu Grinley.

- É magnífico. Pertenço-lhes de corpo e alma! Se a gente pudesse receber o dinheiro imediatamente e à vista!

-  Isso infelizmente é impossível. Ele paga com um cheque sobre Frisco.

-  Iremos em seguida os três para Frisco?

-  Todos três.

-  Farei esse caminho com verdadeiro prazer. Por vinte e cinco mil dólares iria ainda muito mais longe.

-  Well. Agora mais uma observação. Não estou, no tocante aos índios, absolutamente tão tranqüilo como fingi. Cuidem-se; não se deixem ver para que cheguem com toda a segurança ao Gloomy Water e para que possam realizar os preparativos. Seria terrível se eu lá chegasse com os dois e só se visse água.

-  Isso não pode acontecer - disse Buttler - pois se nos sucedesse qualquer coisa e não pudéssemos vir ao teu encontro, tu compreenderias que a coisa não está em ordem.

-  Tens razão. Neste caso eu teria o cuidado de não levar os dois para o lago.

-  Que farias então?

-  Naturalmente procuraria auxiliá-los se fosse preciso.

- Assim o esperamos. Tu nos és necessário, assim como também precisas de nós. Não nos devemos abandonar. Agora, porém, voltemos novamente ao acampamento. Os dois poderiam suspeitar de alguma coisa se acordassem e dessem pela nossa ausência.

Quando chegaram junto de Rollins e Baumgarten, viram que estes ainda dormiam pesadamente e deitaram-se ao seu lado. A noite passou sem perturbação alguma, e, quando veio a manhã, Buttler e Poller iniciaram sua jornada.

Rollins e Baumgarten haviam acreditado que estes dois iriam apenas um pouco na frente e que eles seguiriam imediatamente, mas o Rei do Petróleo os informou diversamente.

-  Isto seria imprudente. Eles vão como batedores e, portanto, devem olhar para todos os lados e têm que ir devagar. Nós os alcançaríamos logo e estaríamos obrigados a ficar novamente atrás. Será certamente melhor que nós lhes deixemos o tempo de fazer o caminho inteiro e de examiná-lo numa cavalgada ininterrupta.

-  E quando seguiremos?

 -  Amanhã de manhã.

-  Tão tarde?

- Não é tarde demais. Os senhores mesmo exigiram que nenhuma precaução fosse esquecida. Se os dois encontrarem inimigos, voltarão para informar-nos. Se eles não voltarem até a noite de hoje, será um sinal certo de que não temos nada a recear. Então poderemos fazer amanhã a viagem até o fim, com dobrada rapidez, pois os nossos cavalos terão descansado.

O dia passou e veio a noite, sem que Buttler e Poller voltassem, o que deu aos que ficaram um ânimo alegre e confiante. Durante toda a noite não pôde o banqueiro pregar olho; achava-se numa excitação febril. Pois era no dia seguinte o grande dia em que ele devia concluir o maior e mais importante negócio de sua vida, um negócio tão esplêndido como nunca houvera sonhado. De um golpe devia ele tornar-se um Rei do Petróleo, dono de uma fonte inesgotável de ouro negro. O seu nome seria mencionado ao lado dos nomes dos maiores milionários. Sim, em pouco tempo ele faria parte dos famosos "Quatrocentos" de Nova York. Isto roubava-lhe a paz da alma. Até o raiar da manhã ele não havia feito nenhuma tentativa de fechar os olhos e despertou Grinley c Baumgarten para que apressassem a partida.

Eles se aprontaram de bom grado, e quando o sol despontou já tinham feito com seus cavalos descansados diversas milhas.

A região que atravessavam era montanhosa; nas alturas elevavam-se densas matas e os vales haviam-se ornado de capim viçoso. Neste último eles encontravam de vez em quando o rasto dos seus companheiros que haviam ido adiante. Veio o meio-dia e foi preciso dar descanso aos cavalos.

-  Em breve encontraremos um lugar que se presta a isto - disse o Rei do Petróleo - um profundo vale cujo fundo, o sol, não pode alcançar do lado sul. Lá estará fresco. Num quarto de hora lá chegaremos.

Encontravam-se então em uma ladeira íngreme; quando já a tinham atrás de si, descia o chão coberto de pinheiros num declive tão forte que eles foram obrigados a apear para poupar os cavalos.

-  Apenas mais duzentos passos - disse Grinley - e então verão o vale situado diretamente na frente. Não é espaçoso e nó meio dele há uma grande rocha ao lado da qual está uma faia vermelha, que tem diversos séculos de idade.

Quando haviam percorrido esta distância, os seus companheiros pararam surpresos e impressionadíssimos com o panorama que se lhes ofereceu. Justamente diante dos seus pés descia uma parede de pedras quase que perpendicularmente; eles estavam à margem de um profundo vale cercado de altas paredes rochosas, que tinha, entretanto, duas estreitas saídas. Eles próprios estavam numa espécie de terraço ou nicho na parede ocidental. Uma das entradas para o vale ficava do lado sul e a outra do lado norte. A parte da rocha que sustentava o terraço em que eles estavam, entrava profundamente no vale de modo que a rocha central da qual o Rei do Petróleo havia falado há pouco, não ficava muito longe deles. A faia vermelha, ao lado da rocha, era uma árvore de tamanha beleza que o seu aspecto teria causado arrebatamento a um pintor.

-  Que árvore maravilhosa! - exclamou Baumgarten. - Uma tal...

-  Silêncio! - advertiu nesta altura Grinley, pegando-o pelo braço. - Calma, não estamos sós aqui. Não vêem os dois índios do lado norte da rocha?   Além dela parecem pastar os seus cavalos.

Assim era com efeito. Dois índios estavam sentados na parte da rocha que ficava na sombra. Lá eles se protegiam dos raios quentes do sol. Estavam pintados com as cores de guerra, de modo que não se lhes podia reconhecer os traços. Um deles tinha duas penas brancas de águia na cabeça. E só agora os três observadores notaram um risco preto na grama que começava na entrada sul do vale e ia diretamente à rocha.

-  Aquele risco são as pegadas que os dois vermelhos deixaram - explicou Grinley aos seus dois companheiros. - Eles entraram do lado sul e depois de descansar sairão pelo norte.

-  Mas assim não podemos continuar a viagem e não podemos descer - observou o banqueiro receoso. - Desde a nossa prisão no pueblo não confio mais em índio nenhum.  Quem poderão ser estes dois?

-  Conheço-os e sei até o nome de um deles. É Mokachi, o cacique dos nijoras.

-  Que significa este nome? - quis saber o guarda-livros.

-  Mokachi quer dizer búfalo. Quando ainda os bisões atravessavam a savana e os desfiladeiros em grandes manadas, era este cacique um famoso caçador de búfalos. Daí o seu nome.

-  Se o conhece, talvez ele o conheça também.

-  Sim, pois estive algumas vezes na sua tribo.

-  Quais são as disposições dele para com o senhor?

- Amigáveis, pelo menos o eram antes, e em tempo de paz esta disposição não mudaria. Porém agora a machadinha de guerra foi desenterrada e não se pode ter confiança.

- Hum!    Que é que se deve fazer?

-  Realmente não sei. Se descermos, talvez ele nos receba como amigos, e talvez não. Em todo caso saberá da nossa presença e seria melhor que ele a ignorasse.

-  Não podemos  evitá-lo dando uma volta?

- Isto seria possível; mas esta volta seria tão grande que não chegaríamos hoje ao nosso lago de petróleo. Ainda muito menos encontraríamos Buttler e Poller, que provavelmente vêm vindo ao nosso encontro. É realmente muitíssimo desagradável que estes dois nijoras se encontrem exatamente aqui...  Alto! - interrompeu-se ele. - O que é isto?

Ele viu algo que devia interessar muitíssimo aos três observadores. Surgiram na entrada sul, donde vinha a pista dos nijoras, dois índios, não a cavalo e sim a pé. Também as suas faces estavam pintadas com as cores de guerra; um deles tinha uma pena de águia, não era, portanto, um cacique, mas devia ter-se distinguido pelas suas qualidades guerreiras. Estavam armados de espingardas.

-  Estes também são nijoras? - perguntou Rollins.

-  Não, são navajos - respondeu o Rei do Petróleo em voz baixa, como se os vermelhos o pudessem ouvir.

-  O senhor os conhece, talvez?

-  Aquele com pena é ainda um guerreiro jovem que ganhou esta distinção depois que estive pela última vez com os navajos.

-  Com mil trovões! Eles se deitam na grama. Por que fazem isto?

-  Não o adivinha? Eles são inimigos dos nijoras. Aqui se encontram os batedores das duas tribos. Isso vai dar sangue. Os navajos deram com a pista dos nijoras e os seguiram em segredo até aqui, vale adentro. Reparem  no que acontecerá.

Ele tremia de excitação e os seus companheiros também. O lugar onde estavam  permitia-lhes ver tudo  sem serem vistos.

Os dois navajos arrastavam-se devagar sobre as pontas das mãos e dos pés na pista dos nijoras, em direção à rocha.

 

Dois índios estavam  sentados na parte  da rocha que ficava na sombra.

 

-  Com todos os diabos! - observou o Rei do Petróleo. - Mokachi e o seu companheiro estarão perdidos se ficarem sentados mais um minuto.

-  Grande Deus! - exclamou o guarda-livros excitado. - Não podemos impedir essa luta sangrenta?

-  Não. Não... mas... mas... sim - respondeu Grinley que arquejava.. .  - devemos aproveitar a situação.

Os dois navajos encontravam-se ainda a dez passos de distância do bloco de rocha. Se eles o alcançassem, os nijoras estariam perdidos, pois que seriam atacados pelas costas.

- Aproveitar, como? - informou-se o banqueiro que não ousava respirar.

-  Já o verão.

Ele tirou da sela sua espingarda de dois canos com um movimento rápido e fez pontaria.

-  Por amor de Deus, quererá porventura atirar? - disse Baumgarten, procurando impedir sua interferência.

Mas já ressoara o primeiro tiro e, um segundo depois, mais outro. Um dos navajos, aquele com a pena, foi logo morto com um tiro na cabeça; a outra bala alcançou o segundo; ele deu ainda um salto no ar para cair em seguida.

-  Meu Deus, você os matou!... - exclamou Rollins, tomado de terror.

-  Para o meu e o seu proveito - respondeu o Rei do Petróleo friamente, abaixando a espingarda e avançando tanto na rocha que podia ser visto debaixo.

Os tiros assustaram os dois nijoras como se fosse um raio. Ao primeiro tiro ergueram-se de um pulo, logo, porém, deitaram-se na grama para oferecer um alvo tão reduzido quanto possível. Acreditavam que os tiros eram destinados a eles, pois não podiam ver os dois navajos que jaziam mortos atrás da rocha. O Rei do Petróleo exclamou, entretanto, do seu terraço:

-  Mokachi, o cacique dos nijoras, pode erguer-se sem receio, ele não precisa se esconder, pois os seus inimigos estão mortos.

Mokachi levantou  o olhar até ele, deu, ao avistá-lo, um grito de surpresa e perguntou:  

 - Uff!   Quem foi que atirou?

-  Eu.

-  Sobre quem?

-  Sobre os dois navajos!

-  Onde?

-  Atrás da rocha em que estás.   Já estão mortos!

Mas O vermelho, cauteloso, não acreditou logo e continuou arrastando-se até o canto. Espiou por trás dela, primeiro com a máxima cautela; depois, levantando cada vez mais a cabeça, puxou a faca para estar preparado para o que desse e viesse e pulou com dois saltos rápidos junto aos cadáveres. Quando viu que não havia mais sinal de vida neles, ergueu-se e exclamou para o Rei do Petróleo:

-  Tens razão, estão mortos.   Desce.

-  Não estou só; há comigo mais dois homens.

-  Caras-pálidas?

-  Sim.

-  Traze-os contigo.

-  Vamos fazer-lhe a vontade? - perguntou Rollins ao Rei do Petróleo.

-  Naturalmente - respondeu este.

-  Não há perigo?

-  Agora nem o mínimo. Salvei a vida aos dois nijoras e eles nos devem, portanto, a máxima gratidão.

-  Mas é um assassínio, um duplo assassínio!

-  Pshow! Não se impressione com isto. Dois índios tinham que morrer de qualquer modo. Se eu não disparasse nem fizesse coisa alguma, os mortos seriam os nijoras. Se eu lhes tivesse gritado uma advertência haveria luta entre os quatro e dificilmente algum deles teria sobrevivido. Os quatro se teriam despedaçado. Afastei dois nijoras da morte certa e adquiri assim a gratidão e a amizade de Mokachi. Agora não devemos ter receio algum. Nossa empresa petrolífera terá bom êxito, pois os nijoras nos protegerão.  Venham, pois, e sigam-me tranqüilos.

Assim fizeram, mas não podiam deixar de sentir horror deste homem que, por causa de um interesse especial, havia tirado a vida, sem hesitar, a dois homens, que não lhe haviam feito mal nenhum. O caminho os conduziu, por fora do vale, para a entrada sul do mesmo. Quando atravessavam esta entrada, eles não viram que detrás de um dos arbustos dois olhos brilhantes estavam dirigidos sobre eles. Desapareceram atrás desta estreita passagem e então um vermelho se ergueu nas brenhas e rangeu os dentes:

-  O magro foi o assassino. Eu não pude auxiliar meus irmãos, mas hei de vingá-los.

Agachando-se novamente, o índio desapareceu nas brenhas. Era um navajo. Com certeza tinha ficado como sentinela para garantir a retaguarda, enquanto os seus companheiros infelizes haviam penetrado no vale.

O Rei do Petróleo cavalgou em companhia de Rollins e de Baumgarten muito confiadamente em direção ao cacique que os aguardava junto à rocha. Mokachi não havia podido ver antes distintamente o rosto de Grinley, por causa da distância; agora que ele o via de perto, sua fronte se carregou sombria debaixo das cores de guerra.

-  Donde vêm os três caras-pálidas? - perguntou ele.

O Rei do Petróleo havia aguardado uma recepção muito mais cortês; por isso retrucou desapontado, apeando com os seus companheiros:

-  Nossa pista começou no Rio Gila.

-  E onde terminará?

-  Na água do Chelly.

-  Estão sós?

-  Sim.

-  Ainda mais caras-pálidas vêm atrás?

-  Não. E se algum chegar, não será nosso amigo.

-  Sabes que o cachimbo da paz foi quebrado por nós?

-  Sim.

-  E apesar disto ousas vir cá?

-  Sabemos que a inimizade de vocês é dirigida só contra os navajos e não contra os caras-pálidas.

-  Os caras-pálidas são piores que os cães dos navajos. Quando por aqui ainda não havia brancos, reinava a paz entre todos os homens vermelhos. Só  aos brancos temos  de agradecer que o tomahawk destrua as nossas vidas.  Elas não são poupadas.

-  Queres dizer com isto que são nossos inimigos?

-  Sim, inimigos mortais.

-  E entretanto, ambos devem as suas vidas às minhas duas balas. Queres assar-nos, em paga, no fogo do martírio?

Um sorriso de desprezo passou pelo rosto do cacique quando respondeu:

-  Tu falas do fogo do martírio como se já estivesses em nosso poder e, entretanto, somos só dois contra três. Pareces ter a coragem de um sapo que pula na goela da serpente se ela lhe dirige o olhar.

Esse comportamento insultuoso não era certamente uma conseqüência das circunstâncias bélicas atuais. Muito provavelmente o conceito que Grinley gozava já anteriormente junto dos nijoras era muito diferente daquele que ele contara aos seus companheiros. Ele percebeu que estes tinham forçosamente que pensar assim e quis desfazer esta possibilidade, perguntando:

-  Mokachi, o cacique valente, não me conhece mais?

- Meus olhos não esquecem nunca uma face, mesmo se a viu apenas uma só vez e por curto tempo.

-  Nunca fiz mal aos guerreiros dos  nijoras.

-  Uff! Por que falas assim? Se tivesses tocado num dos meus guerreiros só com a ponta do teu dedo, não viverias mais.

-  Por que és tão meu inimigo? Tua vida te vale tão pouco que nem mesmo saúdas ao teu salvador?

-  Dize-me primeiro: quando viste os navajos que acabas de matar e quanto tempo os perseguiste?

-  Eu os vi dois minutos antes de os matar, para salvar-te.

-  Que foi que eles te fizeram?

-  Nada.

-  Não querias vingança contra eles?

-  Não.

-  Entretanto os mataste!

-  Só para salvar-te.

-  Cão! - trovejou Mokachi, enquanto os seus olhos brilharam. - Muitos caçadores e guerreiros me devem a vida e eu não o mencionei nenhuma vez, apesar de que já passaram anos depois disto. Tu, porém, estás diante de mim faz. cinco minutos e já te intitulaste cinco vezes o meu salvador. Se tu te pagas a ti próprio de tal maneira, não podes aguardar nenhuma recompensa de mim.   Exigi eu de ti que me salvasses?

Grinley sentia-se extraordinariamente intimidado, arriscou, porém, um  aparte:

-  Não, mas sem mim não estarias agora morto?

-  Quem te disse isso? Tu vês aqui ao lado da rocha os nossos cavalos que nos trazem  a  aproximação de  todo homem  estranho. Acabávamos justamente de os ouvir bufar e já pegávamos as nossas facas quando deste os tiros. Os navajos nada te fizeram. Tu não lutaste com eles e sim mataste-os de emboscada. Não és guerreiro e, sim, assassino. Lá estão os cadáveres. Posso eu tomar os seus escalpos? Não, pois caíram sob as tuas balas traiçoeiras. Se tu não tivesses vindo, eu os teria recebido com a faca, avisado pelo bufar dos cavalos, e me poderia ornar com as madeixas do seu escalpo. Conheces aquele em cuja cabeça está a pena? Seu nome é Khasti-tinel, embora o tempo de sua vida só sejam vinte verões e invernos. Esse nome de honra ele recebeu em conseqüência da sua prudência e do seu valor. E a um tal guerreiro assassinaste! E a mim roubaste a glória de o ter vencido. E ainda exiges de mim recompensa em vez de vingança!

O Rei do Petróleo levou um enorme susto e o medo dos seus companheiros não era menor. O cacique continuou:

-  Assim como tu são todos os caras-pálidas. Quantos bons há entre vós? Contra um Mão de Ferro, em cujo coração mora o amor, há cem vezes cem outros que nos trazem a desgraça. Fiquem parados aqui até que eu volte. Se tentarem se afastar, estão perdidos!

Ele acenou ao outro nijora e foi com ele cuidadosamente contornando a pista, em direção da entrada, atrás da qual os dois desapareceram.

-  Ó meu Deus! - queixou-se o banqueiro. - Isto foi bem ao contrário do que aquilo que nós aguardávamos. Você nos preparou uma sopa tão densa que poderemos engasgar-nos com ela se formos obrigados a comê-la.

-  É assassino - concordou o guarda-livros. - O cacique tinha razão. Por que se intrometeu e atirou? Este Khasti-tine tão moço e já tão famoso!  Não sente arrepios do que fez?

-  Calem-se! - gritou-lhes o Rei do Petróleo. - É como eu disse. Salvei o cacique da morte. Aquilo do bufar dos cavalos é escapatória, é mentira.

-  Duvido. O homem dá a impressão de saber o que diz. Não estávamos na sua frente confusos como colegiais? O melhor será dar o fora antes que ele volte.

-  Não ouse fazê-lo, Sr. Baumgarten. Ele parece ter ainda mais guerreiros nas proximidades. Se nós nos afastássemos, tê-los-íamos nos nossos calcanhares e então estaríamos perdidos, enquanto que ficando, ainda é possível que nos deixem ir. Esperemos, portanto.

Passou-se mais de um quarto de hora até que os nijoras voltassem. Quando chegaram, Mokachi disse:

-  A vingança já está nas tuas pegadas e a morte te alcançará, sem que eu te ponha a mão em cima. Os navajos não eram dois e, sim, três. O terceiro ficara de sentinela na entrada e provavelmente viu tudo sem poder impedir o assassinato.   Ele porá os seus passos na tua pista e te seguirá até que sua faca te penetre o coração. Teu escalpo não está mais firme na tua cabeça que uma gota de água que o vento sacode do galho. Não tenho nada contigo nem de bem nem de mal. Por que queres ir ao Rio Chelly?   Que procuras lá?

-: Um pedacinho de terra - disse desacorçoado o Rei do Petróleo, que antes estava tão seguro de si.

________________________

1)    Velho homem.

 

- Um pedacinho de terra - disse descorçoado o Rei do Petróleo. . .

 

-  Pertence-te?

-  Sim.

-  Quem to deu?

-  Ninguém.

-  E ainda afirmas que te pertence?

-  Sim.   É um Tomahawk-Improvement.

-  Quanto me pesa ouvir isto.

-  Por quê?

-  Porque é uma palavra de banditismo e roubo. Um pedaço de terra no Rio Chelly! É teu! E aqui está Mokachi, o cacique dos nijoras, que são os donos e proprietários legítimos de toda a região do Chelly. Cães sarnosos! Que é que diriam os caras-pálidas além do grande mar se nós fôssemos lá e afirmássemos que a terra deles era nossa? Nós, porém, devemos permitir que eles nos assaltem e tirem tudo. Um pedaço de terra que te pertence, ainda que não o tenhas comprado de ninguém nem recebido de presente.  O meu punho deveria abater-te, mas ele é demasiado orgulhoso para tocar-te. Vão embora daqui para aquela nesga de terra pela qual as suas almas gritam. Sentem-se em cima e não precisarão esperar muito para que se produza uma colheita sangrenta.

Ele indicou com um gesto imponente de senhor a saída norte. Eles montaram mais que depressa nos seus cavalos, alegres no mais profundo de seus corações de poderem abandonar impunemente o lugar que lhes poderia ter sido fatal.

Para compreender as palavras e o comportamento do cacique, deve-se saber de que maneira os brancos costumavam apoderar-se de terras. Segundo a chamada lei “da fixação”, pode cada chefe de família, homem de vinte e um anos de idade, que é cidadão ou declara que tenciona tornar-se cidadão, adquirir uma parcela de terra de 160 acres, ainda não ocupada, sem pagamento algum. Ele precisa apenas habitá-la e cultivá-la durante cinco anos. Além disto, milhões de acres eram distribuídos de presente, especialmente entre as companhias de estrada de ferro.

E quanto aos Tomahawk-Improvements, era apenas preciso que alguém, que quisesse tornar-se dono de qualquer pedaço de terra que lhe agradasse, o marcasse como sendo sua propriedade dando alguns golpes de machado em algumas árvores, construindo ainda uma cabana e semeando um pouco de cereal. O que dissessem os índios, os donos destes territórios, isto ninguém indagava.

Os três brancos cavalgavam, tendo abandonado o vale longo tempo em silêncio, lado a lado, pelo mato ralo. O Rei do Petróleo estava furioso por causa do tratamento recebido do cacique dos nijoras. Meditava sobre os meios que lhe permitissem firmar o seu prestígio junto do banqueiro e do guarda-livros, prestígio que ficara abaladíssimo. Interrompendo por fim o longo silêncio, ele disse:

-  Assim são estes patifes vermelhos. Ingratos no mais alto grau. A gente pode ter vivido com eles em paz longuíssimo tempo e pode ter-lhes prestado os maiores benefícios - um belo dia eles rompem com a gente e esquecem totalmente a gratidão que nos devem.

-  Yes - assentiu Rollins. - Esta é uma difícil situação em que nos encontramos. Podemos estar contentes de termos escapado assim sem um arranhão!   Pensei até que íamos perder a vida.

-  Claro que nossas vidas correriam perigo se o cacique não me tivesse, no íntimo, dado razão, porque tinha que reconhecer forçosamente que eu era o seu salvador. Nunca mais, porém, me passará pela cabeça fazer o bem a algum índio.

-  Tens razão, estes vermelhos não valem o interesse que a gente mostra por eles.

Por estas palavras do banqueiro, via-se que ele estava pouco inclinado a condenar o Rei do Petróleo por causa da sua conduta.  Ele era um daqueles genuínos   ianques, para  quem uma vida  humana nada valia.   O perigo que ele correra havia passado e igualmente passara a impressão que o assassinato dos dois navajos lhe havia causado. De outro modo pensava Baumgarten. Como alemão, ele sentia diversamente; classificava a conduta de Grinley como um crime, não podia deixar de condená-lo e perguntou agora em um tom sério e de censura:

-  Fez você algum dia bem a um índio?

- Eu? Que pergunta! Precisamente estes nijoras me devem infinitos favores.

-  Porém o cacique não agiu como se fosse este o caso.

-  Porque ele é um bandido ingrato. De resto, parece que você me quer agora fazer censuras, em vez de se lembrar com gratidão que fui eu quem o salvou da prisão do pueblo.

-  Hum! Quero dizer-lhe sinceramente que quanto mais penso naquela questão, tanto mais perguntas encontro que não me posso responder.

Grinley lançou-lhe de soslaio um olhar investigador; ele desejaria responder zangado; resolveu, entretanto, proceder de outro modo e perguntou calmamente:

-  Que perguntas poderiam ser?   Posso conhecê-las?

-  Não acho que seja conveniente.

-  Não. É bem  provável que eu as possa responder.

-  Isso não é apenas provável e, sim, certo. Você poderia responder, mas se responderia, é o que eu duvido.

-  Se eu posso é claro que responderia, disto pode estar certo.

-  Pode ser; entretanto, não falaremos mais disto. Só porque você acentua tão insistentemente que nós lhe devemos tanta gratidão, quero dizer-lhe que ainda não chegou o fim dos dias que temos pela frente.

-  Que quer dizer com isto?

-  É muito provável que estejamos quites com você e que então não terá mais nenhuma gratidão a nos exigir.

-  Eu queria saber como isto poderia acontecer.

-  É muito simples. Quanto ao negócio que deverá ser concluído, não tem você nenhuma gratidão a exigir, pois será pago. E que nos salvasse do pueblo, foi por nós anotado no seu "Haver", mas talvez esta anotação seja em breve riscada, pois que você matou os dois navajos.

-  Em que pode influir este último fato na minha conta?

- Não pergunte como se fosse um novato. Não é impossível que nos encontremos com os navajos.

-  Que é que haveria então?

-  Eles vingariam a morte dos dois batedores.

-  Pshaw! Como  saberão do que ocorreu?

-  Como? Não ouviu por acaso o que Mokachi disse? Os navajos eram três e não só dois. O terceiro nos seguirá.

O rosto do Rei do Petróleo tornara-se sério e pensativo; porém ele forçou uma risada de escárnio e respondeu:

-  Por aí se vê que homem inteligente é você! Acredita então que Mokachi tenha dito sinceramente o que pensava?

-  Sim.

-  Realmente? Devo então dizer-lhe que nunca poderá ser um homem do Oeste de verdade. Mokachi foi como batedor contra os navajos. Que ele próprio o fez e não mandasse guerreiros comuns é um sinal de que ele dá a esta questão a mais alta importância. Ele deparou com três inimigos que também são batedores e deve tudo fazer para aniquilá-los. Dois eu matei, o terceiro vive ainda e viu os nijoras. Ele não nos seguirá e sim procurará chegar o mais depressa possível à sua tribo para anunciar-lhes que Mokachi está aqui. Este deve tratar de impedir isto por todos os modos; ele, portanto, se fixará na pista do navajo para alcançá-lo e para matá-lo. Entende isto ou não?

-  Hum ! - resmungou Baumgarten. - Talvez seja assim como diz e talvez não seja.

-  É assim mesmo e não de outra maneira; isto eu lhe asseguro e...

Interrompeu-se, fazendo parar o cavalo enquanto olhava atentamente para muito longe. Encontrando-se eles num pequeno e aberto prado, via-se daí a margem de um mato. Este mato era o fundo no qual se destacavam dois cavaleiros que haviam parado, porque também haviam vislumbrado os três.

-  Dois homens - disse Grinley. - Ao que parece são brancos. Apostaria cem contra um que temos na nossa frente Buttler e Poller. Três contra dois, não precisamos temer coisa alguma. Para a frente, portanto.

 

Grinley lançou-lhe de soslaio um  olhar investigador...

 

Continuaram a cavalgar em direção aos outros. Quando estes o viram, também apressaram a marcha dos seus cavalos para a frente. Em breve reconheceram-se mutuamente. Eram, sim, os dois citados. Quando estavam à distância de se fazerem ouvir, o Rei do Petróleo gritou-lhes:

-  São vocês?   É um bom sinal.  Encontraram o caminho livre?

-  Sim -- respondeu Buttler - tão livre como na mais profunda paz.  Não demos com o rasto de um só índio.

-   E acharam  o Gloomy Water?

-  Sim, com facilidade.

-  Bem?   E o petróleo?

- Esplêndido, simplesmente esplêndido! - respondeu o interpelado, simulando um rosto brilhante de satisfação. Ele dirigiu-se ao banqueiro e continuou: - Tenha a bondade de cheirar-nos. Que tal lhe parece o nosso aroma?   Será porventura óleo de rosas?

Exalavam naturalmente forte cheiro de petróleo em conseqüência do trabalho que haviam realizado. O rosto de Rollins mostrou imediatamente  uma expressão de encantado arrebatamento.   Ele respondeu:

-  É verdade que não é óleo de rosas, mas gosto tanto deste cheiro como se fosse realmente óleo de rosas. Quanto tempo é preciso, senhores, para que a gente consiga juntar uma libra de óleo de rosas?

-  O petróleo corre tão espontaneamente da terra, que se pode encher diariamente centenas de barris.

-  O aroma que espalham é-me muito mais agradável que todos os outros aromas do mundo.  Não lhe parece assim, Sr. Baumgarten?

-  Sim - assentiu este, cuja face tinha agora também assumido uma expressão alegre e confiante.

-  Well. Até aqui o senhor não queria acreditar bem nesta coisa. Vi freqüentemente esta desconfiança em seu rosto.   Acredita agora?

-  Não posso mais duvidar.

-  Então agora sua desconfiança transformar-se-á em certeza? Nesta altura atalhou o Rei do Petróleo:

-  Notei naturalmente também que o Sr. Baumgarten não me dava muita confiança; fui, entretanto, demasiadamente orgulhoso para sentir-me ofendido.   Agora ele reconhecerá que tem um homem de honra pela frente, que bem merece a confiança que exigiu.  Mas não fiquemos parados aqui no campo aberto. Há índios que nos poderiam facilmente ver.

-  Índios? - perguntou Buttler quando cavalgaram adiante em direção ao mato do qual ele e Poller saíram. - Porventura encontraram alguns?

-  Sim.

-  Caramba! Quando?

-  Há pouco tempo.

-  Que índios?

-  Nijoras.  Até o cacique deles.

-  E se separaram em boa amizade?

-  Sofrivelmente.  Podia ter sido pior.

Ele contou tudo e era natural que Buttler e Poller se declarassem de acordo com sua conduta. Entrementes, alcançaram eles o mato, que pôs termo à sua conversa, pois as árvores ficavam tão perto umas das outras que foi preciso que cavalgassem em coluna indiana, do que o banqueiro não gostou nada, pois ardia em desejos de saber mais detalhes sobre o lago do petróleo. Passado algum tempo terminou o mato e de novo abriu-se uma savana coberta de capim. Agora os cavaleiros puderam andar juntos e Rollins perguntou pelo Gloomy Water e por todos os pormenores. Buttler e Poller satisfizeram-lhe a curiosidade de tal modo que ficou ainda mais intrigado e na maior excitação. Quando afirmou que dificilmente poderia esperar até o momento da chegada, Buttler o acalmou comunicando-lhe:

- Quanto a isto, sua paciência não terá de passar por uma prova demasiadamente dura, pois quando muito teremos que cavalgar ainda uma hora e meia.

- Uma e meia? E faz meia hora que os encontramos; isto perfaz duas horas inteiras. Então só faz duas horas que deixaram o lago de petróleo?

-  Mais ou menos.

-  Por que não antes? Uma mensagem como a que me trouxeram, nunca se dá demasiado cedo.

Esta pergunta era muitíssimo embaraçosa, pois ele não devia saber que trabalho estafante eles tinham realizado no Gloomy Water mas Buttler tirou-se do embaraço dando a seguinte informação:

-  Foi nossa tarefa cuidar de sua segurança. Antes de tudo, devíamos inspecionar todas as redondezas do lago. Não era fácil, pois o chão é acidentado e só podíamos proceder com muita cautela. Por isto acabamos esta tarefa apenas  há poucas  horas.

-  E nada acharam que indicasse algum perigo?

-  Nada. Absolutamente nada. Não precisa ter o menor cuidado.

Rollins sentiu-se não somente tranqüilizado, mas ainda tão bem disposto, tão alegre e confiante como poucas vezes na sua vida. No lugar que ele alcançaria em pouco mais de uma hora, havia para ele um capital de muitos, muitos milhões. Ele podia ter abraçado todos os seus companheiros; contentou-se, porém, em apertar a mão ao seu guarda-livros e dizer-lhe:

- Enfim chegamos. E ademais, livres das incertezas. Não esta contente com isto?

-  Naturalmente - foi a simples resposta.

- Naturalmente - repetiu Rollins sacudindo a cabeça. - Isso parece tão frio, tão sem interesse, como se a coisa não lhe dissesse respeito.

- Não pense assim. Sabe que de todos os seus negócios sempre cuido como se fossem meus. Eu também me alegro, mas não costumo externar isto em voz alta.

-  Well, conheço-o bem, Sr. Baumgarten. Aqui, porém, pode ser um pouco mais expansivo. Ainda não lhe disse nada, mas podia ter pensado que eu tenho certos planos a seu respeito, já que o trouxe. O senhor será mais interessado nesta nova empresa do que julgou até aqui. Acha que eu tenha a intenção de abandonar Arkansas com minha família para fixar residência no Oeste bravio? Nem penso nisto. Naturalmente no início farei tudo o que seja preciso fazer aqui. Minha verdadeira e fixa residência, porém, continuará sendo nossa Brownsville. Terei que empregar engenheiros e acima deles um diretor gerente que me inspire confiança. Quem pensa o senhor que será este homem?

Contemplava o guarda-livros com um sorriso significativo, e prosseguiu quando este não respondeu logo:

-  Ou pretende permanecer em Brownsville todo o tempo da sua vida?

-  Não tive ainda motivos de pensar nisto, Sr. Rollins.

-  Well, então tenha a bondade de pensar agora. E se o diretor, de quem falei, se chamasse Baumgarten?

Aí o alemão se ergueu na sela repentinamente e perguntou:

-  Fala seriamente?

-  Yes. Sabe que em casos de tamanha importância não costumo brincar. A função será de responsabilidade e será difícil. Assim pretendo dar-lhe além do salário uma participação nos lucros.   Quer aceitar?

-  De todo o coração.

-  Então aceite.  Aqui está a minha mão. Baumgarten estendeu-lhe a sua e disse:

-  Não lhe direi muitas palavras, Sr. Rollins. O senhor me conhece e sabe que não sou ingrato. É meu maior desejo exercer bem a função que irei assumir.

-  Não se preocupe, conheço-o bem.

-  E eu desejo concordar, porém não com tanta confiança. O que o Sr. Grínley afirma tão freqüentemente é verdade: não conheço o Oeste e aqui são precisos homens que tenham cabelos nas ventas.

-  Cuidarei para que tenha colaboradores experimentados.

-  Haverá lutas. Ou julga que os índios tolerarão calmamente que nós nos estabeleçamos aqui de um modo como o exige uma grande empresa petrolífera?

-  Nada poderão fazer contra isto.

-  Hum!   Eles afirmarão que o lugar lhes pertence, e...

-  Não se preocupe sem mais nem menos - atalhou ò Rei do Petróleo. - Não ouviram o que Mokachi disse? Que eu podia ir tranqüilo tomar posse da minha nesga de terra?

-  Não disse seriamente.

-  Mas, sim!

- Lindo! Mas pertence o lugar realmente aos nijoras? Não haverá probabilidade de que também outros vermelhos, por exemplo, os navajos, levantem pretensões à sua posse?

-  O que aqueles indivíduos dizem e afirmam nos é perfeitamente indiferente. Tenho o meu Tomahawk-Improvement que cedo aos senhores. O respectivo documento está no meu bolso. Mandei examiná-lo em Brownsville: foi achado bom e válido e será seu, assim que me entregarem o cheque sobre San Francisco. Feito isto serão donos legítimos do Gloomy Water, conforme as leis dos Estados Unidos, e nenhum vermelho poderá expulsá-los de lá.

-  Muito certo.   Se, porém, os vermelhos não respeitarem essa lei? -- Serão forçados  a  observá-la.  Naturalmente o  senhor empregará  somente homens que saibam manejar a espingarda e a faca; isto imporá respeito aos índios. De resto pode estar certo de que a sua empresa logo atrairá uma povoação branca, bastante numerosa para não só repelir qualquer ataque, como ainda expulsar os vermelhos totalmente desta região. Coloquem as máquinas e os perigos terminarão logo. Sabem que a máquina é a maior e mais invencível inimiga dos índios, não?

Isto era bem verdade. Onde aparece o branco com as mãos e os pés férreos do vapor - o vermelho deve ceder: o destino cruel assim o quer.

A máquina é uma advertência invencível, mas não é tão cruel como a espingarda, a aguardente, as bexigas e outras doenças que vitimaram inúmeros índios e ainda os vitimarão como os bisões na savana, que foram tão dizimados que só poucos, e apenas a título de raridades, são conservados nos jardins zoológicos.

 

No Lago do Petróleo

Antes de esgotar-se aquela hora e meia marcada, encontravam-se os cinco cavaleiros entre colinas cobertas de um mato denso de pinheiros escuros. Só de vez em quando viam-se árvores com folhas, cujo verde-claro suavizava um pouco a impressão triste destas paragens. Quando Rollins fez uma observação a respeito, disse o Rei do Petróleo:

-  Aguardem o Gloomy Water.   Lá a escuridão  será ainda  maior.

-  Fica ainda longe?

-  Não.  O próximo desfiladeiro nos levará até lá.

Em breve o citado desfiladeiro foi alcançado e entraram nele. De ambos os lados levantavam-se rochas escuras apresentando nos seus declives e nos seus cumes árvores escuras. No solo murmurava um pequenino regato no qual boiavam manchas de gordura Grinley ao notá-lo lançou a Buttler e a Poller um olhar satisfeito. Ele não conseguira falar-lhes em segredo e perguntava a si próprio, preocupado, se eles tinham bem cumprido com sua tarefa, Agora começava a sentir-se tranqüilo. Indicando a água, disse ao banqueiro:

-  Vê aqui, Sr. Rollins? Este é o escoadouro do Gloomy Water. Que pensa que há nele?

-  Petróleo?   - perguntou o interrogado olhando para  baixo.

-  Sim, petróleo.

-  Realmente, realmente!   Que pena que escapa assim!

-  Deixe-o correr; é bem pouco. A melhor parte da minha descoberta é a circunstância de que o lago só tem este único e bem insignificante escoadouro. Mais tarde poderão providenciar para que não se escape nem mesmo esta pequena quantidade.

-  É verdade, é verdade. Mas, Sr. Grinley, não nota igualmente o cheiro?   Quanto mais avançamos, tanto mais forte está se tornando.

-  Naturalmente. Espere até que cheguemos ao lago. Terá muitos motivos para se admirar.

O cheiro do petróleo tornava-se, com efeito, mais forte a cada passo que davam. De repente as paredes do desfiladeiro se abriram e diante dos olhos admirados do banqueiro e do seu guarda-livros apareceu um vale comprido e arredondado, cujo fundo estava tão bem preenchido pelo lago do petróleo que entre as margens deste e as rochas íngremes que circundavam o vale com a parede inacessível, sobrava apenas uma fita estreita de terra na qual de densos arbustos se levantavam gigantescos pinheiros negros. Árvores da mesma espécie cobriam as rochas em redor e formavam em cima uma tolda que parecia destinada a não deixar penetrar no vale nenhum raio solar.

Reinava aqui em baixo o crepúsculo, apesar de ser dia claro. Nenhuma aragem movia os galhos; não se via nenhuma ave; nenhuma borboleta adejava sobre as flores. Toda a vida parecia ter-se extinguido. Parecia? Não só parecia, pois realmente estava extinta. No lago flutuavam inúmeros peixes mortos, cujos corpos, de um brilho embaciado contrastavam singularmente com a superfície escura do lago, brilhante de gordura oleosa. Aumentava o cheiro forte do óleo. Este lago, sem movimento e sem luz, que estava diante dos espectadores como um olho rijo de algum morto, merecia plenamente o seu nome: Gloomy Water, água tenebrosa. A impressão que seu aspecto causava era tamanha que Rollins e Baumgarten pararam longo tempo à margem sem dizer palavra.

- Ora, aí está o Gloomy Water - disse o Rei do Petróleo, interrompendo o silêncio dominante. - Que diz, Sr. Rollins, que lhe parece?

Despertado do seu assombro, como de um sonho, este respirou profundamente e respondeu:

-  Se me agrada? Que pergunta! Creio que os antigos gregos tinham uma água pela qual os mortos iam para o outro mundo. Aquela água devia ter o aspecto deste lago, certamente deste e de nenhum outro.

 

- Ora, ai está Gloamy Water - disse o Rei do Petróleo. . .

 

-  Nada sei daquelas águas gregas; queria, entretanto, afirmar que não podem ser comparadas com esta, pois não creio que lá tenha havido petróleo como aqui. Apeie e examine-o; vamos dar uma volta em torno do lago.

Os cavaleiros apearam; tinham que atar os cavalos, pois eles bufavam, batiam com as patas e queriam disparar. O penetrante cheiro de petróleo lhes repugnava. Grinley aproximou-se da água, tomou um pouco nas mãos, cheirou-a e contemplou-a dizendo em seguida triunfalmente ao banqueiro:

-  Aqui há dólares nadando aos milhões! Convença-se o senhor mesmo.

Rollins tomou nas mãos um pouco d'água, foi adiante e tomou outro pouco. Não pronunciou palavra, apenas sacudiu a cabeça e continuou sacudindo-a. Parecia ter perdido a fala, mas os seus olhos brilhavam e seu semblante denotava uma excitação extraordinária, que se apoderava da sua alma. Os seus movimentos eram apressados e incertos, quase não podia suster-se; as mãos lhe tremiam e ele parecia obrigado a concentrar toda a sua força para poder exclamar por fim com uma voz quase descontrolada:

-  Quem o imaginaria? Quem poderia tê-lo imaginado? Sr. Grinley, vejo que a sua descrição estava aquém da verdade.

-  Realmente? Isto me alegra, me alegra imensamente - ria o Rei do Petróleo. - Está o senhor enfim convencido de que sou um homem honesto e que agi sinceramente?

Rollins estendeu-lhe ambas as mãos e respondeu:

-  Dê-me as suas mãos, quero apertá-las. É um homem de honra. Perdoe-me o termos algumas vezes desconfiado de sua sinceridade. A culpa não foi nossa.

-  Sei, sei - assentiu Grinley fingindo honestidade. - Estes estranhos abalavam-lhe a confiança em mim. Não os deveria ter escutado. Mas agora tudo está bem, tudo.  Examine o óleo.

-  Já o examinei.

-  Bem, e...

-  É o mais lindo e o mais puro petróleo que se possa obter. Donde vem? Tem o lago algum afluente?

-  Não, só este pequeno escoadouro. Deve existir uma fonte subterrânea ou talvez duas: uma para a água e outra para o petróleo. Vê que basta apenas colher o petróleo da superfície e encher os barris.

Rollins não cabia em si de encantado. Baumgarten era mais sóbrio e observou:

-  Sim, basta apenas colher o petróleo, mas que haverá então quando estiver colhido? Quando e com que força voltará?

-  É claro que voltará rápido, tão rápido que não haverá nenhuma interrupção nos trabalhos.

-  Eu não quereria admitir isto sem exame. Pode afluir apenas tanto quanto escoa.  Vê agora o escoamento escasso aqui onde chegamos?   Creio que o regato nem carreia um litro de óleo numa hora; é esta a produção, toda a produção com que podemos contar.

-   Acha? Nada mais? Nada mais que um litro por hora? - perguntava o banqueiro no tom da mais amarga decepção.

De espanto a boca ficou-lhe aberta, seu rosto ficou lívido.

-  Sim,  Sr. Rollirs, é assim  mesmo -  respondeu o guarda-livros.

-  Deve reconhecer e admitir que a afluência não pode ser maior do que o escoamento. E ainda que fosse maior, dez vezes maior, cem vezes maior. O que são cem litros de óleo por hora? Nada, absolutamente nada. Calcule o valor do capital das instalações e das despesas correntes, a distância para estas redondezas, os perigos que aqui existem, a dificuldade de transportes -  e cem litros por hora!

-  Não pode ser mais?   Não é possível que você esteja enganado?

- Não, estou certo que  não.   Que  idade tem  esse lago?   Nem se pode contar os anos.   Decorreram séculos ou milênios desde sua formação -  e tão pouco petróleo apareceu! Se afluísse mais petróleo - que quantidade já devia estar amontoada sobre a água! Não há nada, absolutamente nada a buscar aqui.

-  Nada, absolutamente nada - repetiu o banqueiro, pegando a cabeça com ambas as mãos. - Então foi em vão toda esperança, toda alegria. Debalde foi feita a longa caminhada. Como suportar isso? Como suportar isso?

Também o Rei do Petróleo ficou espantado com as palavras do guarda-livros. Com quanto trabalho e correndo quantos perigos havia ele transportado até aí, e escondido, o petróleo, barril por barril! Quanto isto não lhe custara! E agora, tão perto do bom êxito da empresa, tudo seria em vão! O mundo começava a dançar-lhe diante dos olhos. Ele se sentia impotente, não pôde dizer nenhuma palavra e. dirigiu seus olhares para seu meio-irmão Buttler, procurando socorro.

Este já por diversas vezes demonstrara sua astúcia e também desta vez ficou provado que o antigo chefe dos Finders não perdia tão facilmente o domínio da situação. Ele fez um risinho curto e cheio de superioridade e disse ao banqueiro:

-  Per que está se lamentando, Sr. Rollins? Não o compreendo. Se fosse assim como pensa agora, Grinley nunca teria tido a idéia de nutrir grandes esperanças em relação a Gloomy Water.

-  Acha? - perguntou Rollins, cobrando nova energia.

-  Sim, acho. E se o óleo pudesse ser colhido simplesmente em barris ele não lhes teria oferecido o lugar. Tê-lo-ia guardado para si mesmo. A questão toda é que a extração do óleo exige algumas instalações dispendiosas e lhe faltam, provavelmente, os meios de custeá-las.

-  Instalações? Que instalações?

- Hum! Admiro-me muito de que o senhor mesmo não o possa descobrir. Estudou Física?

-  Não.

- Que pena. Não precisava dar-lhes longas explicações. Quero, no entanto, tentar uma descrição rápida. Suponhamos que o seu cavalo esteja deitado na grama e que o senhor montou na sela. Poderá ele levantar-se com o seu peso?

-  Sim.

-  Não pensa então que o seu peso é demasiado?

-  Não.  Ele se levantará.

-  Well. Suponhamos, porém, um caso diferente: que em lugar do cavalo fosse um cãozinho de regaço. Ele também levantaria?

-  Não.

-  E por que não?

-  Porque o meu peso seria demasiado para ele.

-  Pois bem, aplique isto ao petróleo.

-  De que modo? - perguntou Rollins, que não era capaz de adivinhar o que Buttler queria dizer.

-  O meu exemplo significa que um corpo pesado não se deixa levantar por um corpo leve, que lhe esteja por baixo.

-  Agora compreendo.

-  E também Sr. Baumgarten?

-  Sim - assentiu este, que havia seguido com atenção as palavras de Buttler.   Este prosseguiu:

- Agora, sabem os senhores o que é mais pesado, o petróleo ou a água?

-  A água - retrucou o guarda-livros.

-  Wery well. Então me diga quanto pesa a massa de água que se acha neste lago?

-  Milhares de quintais.

-  E no fundo do lago há uma fonte de petróleo, isto é, um pequeno buraco pelo qual o óleo quer sair; mas sobre esta abertura pesam milhares de quintais de água.  Pode o óleo sair?

-  Não.

Baumgarten deixou-se pegar. Ele era negociante; e de leis físicas compreendia pouco; não sabia que o óleo, justamente por ser mais leve, deveria subir. Grinley começava a respirar livremente. Na face de Buttler podia-se ver um sorriso que expressava segurança da vitória. Ele prosseguiu:

-  Então o óleo que quer sair da terra em torrentes não pode subir. Vemos apenas a pequena quantidade que por qualquer fendazinha escapou. Tragam, porém, para cá uma bomba e retirem a água do lago ou dêem ao óleo qualquer outra possibilidade de escoamento. Então verão um jato de óleo de cem pés de altura, ou mais, subir no ar e que encherá num dia diversas centenas de barris. Se Grinley tivesse dinheiro para um tal trabalho de bombas, ele nem pensaria em  dirigir-se  ao  senhor.

Isto deu resultado. O banqueiro se rejubilava de novo e Baumgarten não teve mais dúvidas. O petróleo existia, isto era visível; era apenas preciso dar-lhe uma saída.   Falou-se bastante, naturalmente de um modo que enganasse melhor ainda os dois compradores. Rollins resolveu fazer o negócio, quis, porém, primeiro visitar o lago em toda sua circunferência.

-  Faça-o, Sr. Rollins - disse Grinley. - Poller o conduzirá. Este afastou-se com Rollins e Baumgarten.   Quando estavam longe, o Rei do Petróleo disse aliviado:

-  Com mil diabos, que situação angustiosa foi a que atravessamos. Eles quase recuaram no último instante. Tua idéia foi excelente.

-  Sim - ria-se Buttler - se não fosse eu, tu poderias ter guardado para ti o teu lago de petróleo. Mas agora estou convencido de que eles se deixarão pegar.

- É incrível que uma tal explicação de Física seja aceita tão simplesmente.

-  Pshow! Rollins é muito tolo e o alemão é demasiadamente honesto.

-  Eles passarão junto da caverna. Espero que não verão coisa alguma.

-  Não há perigo. É verdade que o serviço nos custou muito suor. Apressa-te, em vista disso, em concluir o negocio ainda hoje. Não podemos desperdiçar nem uma hora, pois não se pode confiar nos vermelhos. No máximo, poderemos ficar aqui até amanhã de manhã. Como é que vamos liquidar com estes dois bobos, à faca ou à bala?

-  Hum!   eu queria evitar ambas estas coisas.

-  Quer deixá-los viver? Estás maluco?

- Não me compreendas mal. Apenas não quero vê-los morrer; a lembrança disso é desagradável. Que tal se nós os fechássemos na caverna?

-  A idéia não é má. Nós os ataremos e os encerraremos. Lá perecerão sem que sejamos obrigados a vê-los.  Estou de acordo.  Mas quando?

-  Logo que tenhamos nas mãos o cheque, receberá cada um deles um coronhaço na cabeça.

-  Poller também?

- Este ainda não. Provavelmente precisaremos ainda dele. Até que tenhamos atrás de nós estas paragens perigosas, é melhor que sejamos três em vez de dois.  Depois poderemos livrar-nos dele a qualquer momento.

Sim, era verdade que estas redondezas lhes eram perigosas. Eles não sabiam que eram observados. Não longe deles, lá onde o desfiladeiro dava sobre o lago, estava deitado um índio atrás dos arbustos, observando tudo o que acontecia diante dos seus olhos. Era o navajo que tivera que assistir ao assassínio dos seus dois companheiros sem poder impedi-lo. Grinley e Buttler estenderam-se na grama, deitando-se. Quando o índio notou isto, disse consigo: eles ficam aqui, eles não se afastarão ainda deste lugar. Tenho de ir buscar os nossos guerreiros.

 

. . . estava deitado um índio atrás dos arbustos, observando tudo. . .

 

Foi-se arrastando para trás, retirando-se do seu lugar e desapareceu no desfiladeiro, sem deixar no chão vestígios dos seus pés.

Algum tempo mais tarde os três brancos haviam dado a volta do lago e voltaram para junto de Buttler e Grinley.

-  Então, senhores? - perguntou este último. - Viram tudo. Que pretendem fazer?

-  Comprar - respondeu o banqueiro.

-  Estão, portanto, convencidos de que devem fazer o negócio?

-  Sim, ainda que o negócio não seja tão grande como supõe.

-  Não diga isso.   Não abaixarei nenhum dólar da minha exigência e não tenho nenhuma vontade de perder meu tempo. Pois considero perfeitamente possível que os vermelhos estejam atrás de nós e não teria prazer em lhes entregar o meu escalpo.

-  Então vamos embora quanto antes - disse Rollins medroso.

-  Sim, mas não antes de concluir o negócio. Combinamos fazê-lo aqui no lago. Logo que tenhamos assinado e trocado os documentos, partiremos.

-  Concordo inteiramente. Sr. Baumgarten, talvez o senhor tenha mais alguma dúvida?

Antes que o interrogado pudesse responder, atalhou Grinley num tom de mando:

-  Se o senhor fala ainda agora de dúvidas, devo considerá-lo realmente como ofensa.   Diga com uma só palavra se quer ou não.

Intimidado por isto declarou o banqueiro:

-  Quero, isto se compreende por si mesmo.

-  Pois bem; assim sendo, podemos concluir o negócio. Os documentos já estão redigidos há muito tempo e faltam apenas as assinaturas. Procurem tinta e pena.

Rollins tirou o necessário da sua bolsa da sela. Depois de assinar o título de propriedade e o contrato de compra, assinou em seguida o cheque, já pronto, sobre San Francisco. Quando Grinley o tomou na mão, olhou-o com cobiça e disse, deixando ouvir um riso de todo original que ia para dentro:

-  Bem, Sr. Rollins, agora o senhor é dono deste grandioso terreno petrolífero. Desejo-lhe muita felicidade. E visto que agora tudo aqui lhe pertence e eu não posso fazer mais nenhum uso disto, quero revelar-lhe um segredo, cujo conhecimento lhe será de grande utilidade.

-  Que segredo?

-  Uma caverna oculta.

-  Nada mais?

-  Ora, o senhor fala realmente como se não fosse nada. Mas esta caverna poderá servir-lhe de armazém à sua gente nos primeiros tempos e ainda de esconderijo aos assaltos dos índios. É até possível que esteja em relação com a camada subterrânea de petróleo que tem que existir por aqui.

-  Ah, camada de petróleo?   Será possível?

-  Até muito possível.  Ainda não a examinei.

-  Então diga ligeiro onde ela fica. Devo vê-la. Mandarei examiná-la mais tarde.

-  Venha, eu a mostrarei.

Seguiram um pouco a margem do lago, até onde a rocha se aproximava da água. Ao pé desta rocha havia um montão de pedras bastante grande. No cume deste montão subiram Buttler e Poller, começando a escavá-lo. Em breve ficou visível uma abertura que conduzia rocha adentro.

-  É esta a caverna, é ela mesma! - exclamou o banqueiro. - Abramos o acesso; ligeiro.   Ajude-me, Sr. Baumgarten.

Os dois se curvaram para participar do trabalho. Buttler se ergueu e olhou interrogativamente para Grinley. Este fez um sinal com a cabeça. Eles pegaram suas espingardas; cada um deles deu um coronhaço... o banqueiro e Baumgarten caíram para a frente, atingidos na cabeça; foram amarrados de pés e mãos, e, quando a entrada já estava bastante grande, foram levados para a caverna e colocados no chão, no fundo dela. Se não tivessem ficado sem sentidos, eles teriam visto os numerosos barris que enchiam a caverna.

Em seguida, o montão de pedras foi novamente arranjado de modo que não se via mais a entrada. Nem é preciso mencionar que os três assassinos tiraram das suas vítimas tudo que lhes parecia utilizável. Voltaram depois aos seus cavalos.

-  Até que enfim - disse o Rei do Petróleo. - Nenhum negócio custou-me tanto trabalho e preocupação como este. E no entanto, não está ainda levado a bom termo. Agora é preciso descontar o cheque em San Francisco. Espero que lá chegaremos com facilidade. Naturalmente partiremos em seguida?

-  Sim - respondeu Poller. - Antes, porém, devemos fazer a partilha.

-  O quê?

-  A partilha dos objetos que tiramos dos dois.

-  É necessário fazê-la já?

-  Não, mas em todo caso é melhor que cada um saiba o que lhe pertence.

Grinley teria preferido abatê-lo imediatamente, mas conteve-se pensando que o que Poller agora ia receber, mais tarde lhe seria tirado. Por isto decidiu num tom conciliatório.

- Por mim estou de acordo. Os cavalos não serão naturalmente repartidos, e quanto aos objetos restantes não haverá questão. Somos amigos c irmãos que não se desunirão por causa de ninharias.

Sentaram-se e estenderam as armas roubadas, os relógios, as bolsas e outros objetos diante de si, para avaliá-los e para reparti-los, segundo o seu valor.

Enquanto isso ocorria, aproximavam-se pelo desfiladeiro, que conduzia ao lago, oito índios nas pontas dos pés. Eram navajos. À sua frente ia, curvado, o batedor que já antes havia estado aí. Chegando na entrada do vale eles pararam e escutaram por trás dos arbustos. Viram os três brancos sentados.

-  Uff! - cochichou o mais velho deles, dirigindo-se ao batedor, - é realmente assim como nosso irmão informou: o lago está cheio de petróleo. Donde veio ele?

-  Os brancos saberão dizer - respondeu o outro.

-  Não contou o meu irmão cinco brancos?  Eu só vejo três.

-  Antes haviam cinco; faltam dois.

-  Qual deles assassinou o nosso irmão Khasti-tine?

-  Aquele que tem agora duas espingardas nas mãos. Com isto ele indicava o Rei do Petróleo.

-  Ele morrerá de má morte, mas também os outros dois irão para o poste dos martírios. Uff! Eles estão repartindo os objetos que estão diante de si. Ora um, ora outro recebe alguma coisa. O quarto e o quinto desapareceram.  Será que foram mortos?

-  Temos que saber.   Quando vamos pegá-los?

-  Agora mesmo. Eles não cuidam de nada, salvo do que roubaram: e tanto se espantarão que nem se defenderão. Os meus irmãos que me sigam ligeiro.

Ele se atirou com os sete companheiros sobre os três brancos. O assalto foi tão súbito e executado com tamanha rapidez, que eles estavam atados antes que pudessem mover um braço sequer para sua defesa.

Também os vermelhos não disseram nenhuma palavra. Cinco deles sentaram-se junto dos presos; os outros três afastaram-se a fim de dar uma busca pelo vale.   Quando voltaram um deles anunciou:

 

Ele se atirou  com  os  sete  companheiros   sobre  às três   brancos.

 

-  Os dois caras-pálidas permanecem desaparecidos. Não vimos nenhum deles.

-  Não subiram pela rocha?

-  Não, pois então teríamos visto o seu rasto.

-  Logo saberemos onde os devemos procurar.

Ele puxou sua faca, colocou-a no peito do Rei do Petróleo e ameaçou:

-  Tu és o bandido que assassinou Khasti-tine, o nosso jovem irmão. Se não me disseres imediatamente onde foram os dois caras-pálidas que estavam antes contigo, eu te meto este ferro no coração.

Estas palavras causaram um grande susto a Grinley. Se ele obedecesse, então os índios tirariam da caverna, com toda certeza, o banqueiro e o seu guarda-livros; isto não devia acontecer. Se, porém, não obedecesse, era de esperar que o vermelho realizasse sua ameaça e o apunhalasse. Que fazer?   Aí ajudou-o mais uma vez o astuto Buttler a sair da dificuldade:

-  Tu te enganas. O homem que tu queres apunhalar não é o assassino de Khasti-tine.  Somos totalmente inocentes da morte dele.

O índio deixou o Rei do Petróleo e voltou-se para Buttler:

-  Cala-te. Sabemos bem quem é o assassino.

-  Não, não sabem.

-  Este nosso irmão o viu. Ele indicou o batedor.

-  Ele se engana - afirmou Buttler, apesar disto. - Ele nos viu junto do cacique dos nijoras; mas quando os dois tiros foram dados, estávamos colocados de modo que o seu olhar não nos podia alcançar.

-  Então tu queres negar haver estado presente na ocasião do assassínio dos nossos dois irmãos?

-  Não. Ainda não menti nunca e também agora não penso em falar contra a verdade. Os dois homens brancos pelos quais perguntaste são os assassinos.

-  Uff! - exclamou o vermelho. - Não os vemos. Portanto eles se foram. Tu procuras salvar-te atirando a culpa sobre eles.

-  Dizes que eles se foram? Onde estão? Vocês são batedores, isto é, guerreiros e como tal possuem uma vista excelente. Viram os seus vestígios que com certeza seriam visíveis se eles se tivessem afastado?

-  Não queres dizer com isto que eles estão ainda aqui?

-  Sim.

-  Onde?

-  Aqui. - Ele indicou a água.

-  Uff! Eles se encontram neste lago?

-  Sim.

-  Portanto morreram afogados?

-  Sim.

-  Não mintas. Não há ninguém que entre nesta água oleosa.

-  De boa vontade, não; isto é certo. Eles não queriam entrar, mas foram obrigados.

-  Quem os obrigou?

-  Nós. Nós os afogamos.

-  Vocês... afogaram-nos? - perguntou o índio. Ele era selvagem, sentia, porém, tão grande repulsa diante de um feito destes que só gradativamente pôde  proferir as  palavras. - Afogaram-nos?   Por quê?

-  Para castigá-los.  Eles eram nossos inimigos mortais.

- E, no entanto, estavam com vocês. Ninguém costuma andar na companhia dos seus inimigos mortais.

-  Nós nada sabíamos da sua inimizade; notamos isto apenas quando chegamos aqui. Eles queriam possuir sozinhos este lago de petróleo c assassinar-nos para atingir este fim. Quando o percebemos, livramo-nos deles atirando-os n’água.

-  Não se defenderam?

-  Nós os abatemos repentinamente com coronhaços.

-  Por que não se pode vê-los?

-  Porque lhes atamos pedras aos pés: assim eles foram ao fundo.

O vermelho silenciou um momento. Depois disse:

-  Quero crer que dizes a verdade. Mas tenho horror de vocês. Afogaram filhos de sua própria raça, assim como se atira n água cães sarnentos!  Mataram-nos de emboscada sem lutar com eles. Vocês são gente má.

-  Poderíamos agir de outro modo? Devíamos esperar até que executassem o seu plano e nos atirassem pelas costas? Era isto que eles queriam fazer; nós os espiamos.

-  Não me interessa saber o que vocês pensam sobre estas coisas! Nenhum homem vermelho afoga um outro índio, ainda que seja o seu maior inimigo.   Já estiveram antes junto desta água?

-  Sim, eu - respondeu o Rei do Petróleo.

-  Quando?

-  Há vários meses.

-  Já havia então petróleo?

-  Sim. Por isto eu fui buscar mais alguns brancos a fim de mostrá-lo. Queria fundar com eles uma sociedade para explorar o petróleo. Estes dois, porém, pretendiam assassinar-nos para serem os únicos donos.

-  Uff! Antes nunca houve óleo aqui. Deve ter surgido da terra há bem pouco tempo. Mas como puderam considerar-se proprietários do lago? Ele pertence aos homens vermelhos. Os caras-pálidas são ladrões que vêm a nós para levar tudo que nos pertence. O tamahawk está desenterrado. Deviam ter ficado em casa. Tendo vindo aqui, caminharam para  a morte.

-  A morte? São vocês guerreiros honrados ou são assassinos? Nada lhes fizemos.

-  Cala-te.  Khasti-tine não foi assassinado com o seu companheiro?

-  Infelizmente, mas não fomos nós que os matamos.

-  Estiveram lá naquela ocasião.  Deviam ter impedido o assassínio.

-  Isto era impossível. Os dois indivíduos atiraram tão rápido que não tivemos tempo de dizer uma só palavra.

-  Isto não os salvará. Estiveram na companhia dos assassinos, devem morrer. Nós os levaremos ao nosso cacique; então os velhos farão conselhos para resolverem que espécie de morte vão sofrer.

-  Mas nós castigamos os dois; por isto devem-nos gratidão.

-- Gratidão? - zombou o vermelho. - Pensas ter-nos com isto prestado algum serviço? Teríamos mais prazer se eles ainda vivessem; então poderíamos ter tomado os seus escalpos e deixá-los morrer no poste dos martírios. Vocês roubaram-nos esta alegria. Querem gabar-se disto? Seu destino está decidido.   A morte os aguarda. Disse.

Ele virou as costas como sinal de que não diria mais palavra alguma. Os bolsos dos três foram esvaziados. Os índios tomaram para si tudo o que se achava neles. Só quando o chefe viu o cheque, pegou-o cautelosamente com as pontas dos dedos, meteu-o de volta no bolso de Grinley e disse:

-  Isto é feitiçaria, é um papel que fala, nenhum vermelho toma tal coisa na mão, pois ela trairia mais tarde todos os seus pensamentos, palavras e atos.

Enquanto isso o dia tinha progredido tanto que, junto do lago, a escuridão já começava a cair. Os índios teriam ficado aí naquela noite, mas o cheiro do petróleo os impeliu a se afastarem. Os presos foram amarrados a seus cavalos; depois eles cavalgaram, de volta, através do desfiladeiro e um trecho mato adentro, onde havia água. Aí apearam, ataram os presos a três árvores e fizeram preparativos para acampar. Pareciam sentir-se em completa segurança neste lugar; mas se eles soubessem o que ocorria atrás deles, com certeza teriam ido tão longe quanto possível.

Pois Mokachi, o cacique dos nijoras tinha tido a cautela de examinar mais uma vez os vestígios do batedor navajo, logo depois que os brancos o tinham deixado. Ele já havia percebido antes que, além dos dois assassinados, ainda um terceiro tinha estado lá; queria saber para onde este fora.

Depois de procurar longo tempo achou a pista. Ela dava uma volta e se encontrava depois com a dos brancos a qual ele seguia.

-  Este navajo quer se vingar dos assassinos. Ele os segue. Deve-se concluir disto que o grupo de guerreiros ao qual ele pertence se acha na mesma direção. Cavalgaremos atrás dele e faremos prisioneiros estes navajos.

Assim conjeturou o cacique e galopou adiante precisamente em direção oposta, até alcançar uma clareira bem escondida no mato, onde acampavam uns trinta guerreiros nijoras. Estes eram os batedores que precediam o grande grupo propriamente dito dos guerreiros. Com esta gente ele voltou à pista dos brancos e do navajo e seguiu-a cautelosamente. No caminho notara que aos três brancos se haviam reunido mais dois outros, que eram Buttler e Poller.

Chegaram até as proximidades do desfiladeiro que terminava no lago de petróleo. Lá se esconderam. Depois de curto tempo viram surgir do desfiladeiro um batedor navajo que se afastou de volta, correndo na maior pressa. Um dos nijoras pegou sua espingarda, como se quisesse atirar sobre ele; o cacique fez um movimento de mão impedindo-o e cochichou:

-  Deixa-o correr. Ele em breve voltará e trará outros navajos. A estes nós pegaremos então.

Decorrido um tempo relativamente muito curto viu-se que ele tinha conjeturado muito bem, pois o batedor voltou com mais sete, com os quais ele se encaminhou desfiladeiro adentro. Eles queriam apear no fim do desfiladeiro para assaltar os brancos.

Os nijoras esperaram. Mokachi não se admirou pouco quando viu os navajos saírem do estreito só com três brancos. Ele havia planejado assaltá-los no momento da sua saída do desfiladeiro, fez, porém um aceno à sua gente para que ficassem escondidos. Queria ver primeiro por que motivo faltavam dois brancos. Por isto deixou ir os inimigos e foi, depois, com alguns dos seus homens pelo desfiladeiro para a "água tenebrosa". Examinaram rapidamente, mas tão cuidadosamente quanto possível, toda a margem do lago, porém sem descobrirem vestígio dos caras-pálidas que faltavam.

-  Não podiam ter saído - disse Mokachi. - Eles não vivem mais e como não vemos seus cadáveres, foram com certeza atirados n'água.

Ele deixou o lago com os seus companheiros e voltou ao esconderijo dos outros. Lá ficaram os cavalos sob os cuidados de dois guardas. Os restantes vinte e oito nijoras tinham ido a pé atrás dos navajos. Estes não estavam, em todo caso, muito longe, pois que já era quase noite, sendo de presumir que acampariam em breve.

Estava apenas bastante claro para que fosse possível ver as pegadas; elas conduziam mato adentro, onde se perdiam. Mokachi não se incomodou com isto. Para achar aqueles que procurava, bastava seguir a direção que eles haviam tomado.

Não havia passado muito tempo, sentiu-se o cheiro de fumaça e logo depois o brilho dum pequeno fogo de acampamento índio. Ele parou e cochichou à sua gente:

 

. . . logo depois o brilho dum pequeno fogo de acampamento índio.

 

-  Estes navajos não são guerreiros, e sim rapazes sem juízo. Qual o batedor que de noite acende um fogo? Os meus irmãos os cerquem e se atirem sobre eles logo que eu deixe ouvir o grito de guerra. Temos que apanhá-los vivos para que os possamos atar ao poste dos martírios.

Os nijoras andavam atrás das árvores como sombras silenciosas. Mokachi aproximou-se, de rastos, tanto quanto possível do fogo e olhava fixamente para um navajo que ele queria pegar. Quando, passados alguns minutos, ele viu que os seus guerreiros estavam prontos, deu o grito conhecido que ressoou agudo pelo mato e pulou no meio dos navajos, para pegar aquele que ele havia escolhido. No mesmo instante os guerreiros repetiram o grito de guerra e atiraram-se de todos os lados sobre os inimigos. Estes haviam considerado totalmente impossível uma surpresa destas e estavam tão atônitos que nem pensavam em resistir. Eles foram dominados sem que um só achasse tempo de pegar a faca, a machadinha ou a espingarda.

-  Graças a Deus! - disse em voz baixa o Rei do Petróleo aos seus companheiros. - Agora estamos salvos.

-  Talvez não - respondeu Poller.

-  Oh, com certeza. Mokachi já nos deixou ir uma vez! Por que motivo ele nos prenderia agora?

- Sem nenhum motivo. Estes patifes vermelhos não esperam absolutamente por motivos.

-  Devagar. Vão ver que eu tenho razão.

Ninguém havia prestado atenção a este curto diálogo, em voz baixa. Os navajos jaziam ao solo, atados; os nijoras dividiam entre si as armas apreendidas. Mokachi, que estava de pé junto ao fogo, ordenou:

-  Os filhos dos navajos digam-me qual deles é o seu chefe.

-  Sou eu - respondeu o mais velho.

-  Como te chamas?

-  Chamam-me o Corcel Veloz.

-  Este nome talvez esteja certo. Na fuga diante do inimigo serás ainda mais rápido que o mustang dos campos.

-  Mokachi, o cacique dos nijoras, mente. Nunca um inimigo chegou a ver as minhas costas.

-  Tu sabes meu nome, então tu me conheces?

-  Sim. Já te vi. És um guerreiro prudente e corajoso. Quisera poder lutar contigo.  O teu escalpo penderia então da minha cinta.

-  Nunca um inimigo terá o meu escalpo, muito menos um como tu. O Grande Espírito te criou sem cérebro? Não sabes que os batedores dos nijoras estão a caminho contra ti, do mesmo modo que tu contra eles? Qual o batedor que atravessa o mato e pisa na grama sem cuidar das pistas dos inimigos? Um espia prudente trata em primeiro lugar de ficar escondido. Tu, porém, acendeste um fogo, como se quisesses nos atrair. É verdade que não terás nunca a oportunidade de cometer novamente estes erros, pois morrerás no poste e serás antes martirizado de tal modo, tu e os teus companheiros, que os seus gritos de dor ressoarão por todas as montanhas.

-  Martirizem-nos - retrucou Corcel Veloz. - Morreremos como guerreiros, não deixaremos ouvir nenhum gemido, nem sequer pestanejaremos. Os guerreiros dos navajos aprenderam a desprezar as maiores dores. Que farás com estes brancos?

Quando o Rei do Petróleo ouviu esta pergunta respondeu:

-  Mokachi,  o  nobre   e  famoso cacique,  nos   soltará.

Mas este nobre e famoso cacique gritou-lhe:

-  Cão! Quem foi interrogado, eu ou tu? Como podes ousar falar diante de mim ainda antes que eu tenha aberto a boca?

-   Porque sei que farás o que eu disse.

-  O que farei em breve saberás. Uma vez deixei-os ir para mostrar-lhes quanto os desprezo; mas isto não pode acontecer duas vezes. Havia cinco caras-pálidas.   Onde estão os dois que  faltam?

-  Mortos - respondeu Grinley muito mais modestamente do que antes.

-  Estão mortos?  Quem os matou?

-  Nós.

-  Por quê?

-  Porque notamos que eles queriam as nossas vidas. Queriam assassinar-nos de emboscada.

Mokachi levantou as sobrancelhas admiradíssimo e exclamou:

-  Uff! Assassiná-los Traiçoeiramente? Observei atentamente os olhos c as faces daqueles dois homens; eram homens bons e honestos; vocês, porém, são assassinos e ladrões, que devem ser exterminados como animais selvagens e venenosos. Onde se encontram os cadáveres deles? Não os vi.

-  Na água.

-  Também não vi vestígios de sangue. Então vocês não os mataram antes que fossem atirados n'água?

-  Não.

-   Foram,  pois, afogados?

-  Sim.

Custou um grande esforço ao Rei do Petróleo pronunciar este sim. 0 resultado não se fez esperar: o cacique deu-lhe um pontapé, cuspiu-lhe na cara gritando:

-  Monstro horrendo! Tu não és gente e sim um bicho repugnante e deveras morrer de uma morte que seja digna de ti. Não só abateste os teus companheiros, que não te ofenderam, mas até os afogaste! Tu os atacaste de traição, como também assassinaste traiçoeiramente Khasti-tine.

Quando Corcel Veloz ouviu isto, ergueu-se tanto quanto o permitiam as suas amarras c disse:

-  Que palavras acaba Mokachi de pronunciar? Quem foi que assassinou Khasti-tine?

-  Este cara-pálida que ousa acreditar que eu o soltarei.

-  Uff! Este miserável disse que os dois afogados eram os assassinos.

-  Mentira! Ele mesmo se jactou na minha frente de ter morto os dois batedores dos navajos. O patife covarde agora treme de medo e empurra a culpa para dois homens honestos que ele assassinou. Estes dois batedores mortos e os dois caras-pálidas assassinados, deverão ser vingados terrivelmente, embora nenhum deles pertença à minha tribo. Vejam estes três homens brancos deitados diante de nós. Ó guerreiros vermelhos! Eles terão de sofrer torturas sem poder morrer e no fim serão afogados como as suas vítimas.  Howgh,

Ele cuspiu diversas vezes na cara do Rei do Petróleo, deu a Buttler e a Poller um forte pontapé e virou-lhes as costas.

Mandaram um mensageiro buscar os cavalos. Quando estes vieram, tiraram carne seca dos bolsos das selas e foi feita a refeição. Os navajos presos também receberam de comer; os três brancos não ganharam nenhum bocado.

-  Maldita história! - cochichou Buttler a seu meio-irmão. - Esta história do afogamento nos quebra o pescoço. Talvez teria sido melhor dizer a verdade.

-  Não - retrucou o Rei do Petróleo. - Os patifes vermelhos teriam libertado o banqueiro e o alemão sem que nossa situação com isso melhorasse.   Em primeiro lugar, perderíamos o cheque.

-  Pshaw! De que nos servirá o cheque se formos assados no posados martírios?

-  Ainda não chegamos lá.

-  Tens ainda esperança?

-  Claro. Não é a primeira vez que me encontro num aperto destes e sempre escapei, flanando. E mesmo quando eu estiver arado ao poste dos martírios, ainda terei esperanças de escapar - até que me dêem o golpe mortal. Já houve vários, como sabes, que já se estorciam no poste e que entretanto escaparam.

-  Esses tinham amigos que os libertaram e quem remos nós?

-  Hum! tens razão...

-  Não temos ninguém que por amor de nós se arrisque à luta com os vermelhos. Se nós mesmos não tivermos êxito na nossa libertação, estamos perdidos.

Tinha toda razão. Se eles merecessem ter amigos, poderiam esperar auxílio nesse momento difícil, e isto muito mais depressa do que pensavam e do que poderiam supor. Havia salvadores como Mão de Ferro e Winnetou.

Desde que, depois do seu encontro, estes dois homens haviam escutado a conversa do Rei do Petróleo com os seus companheiros, tinham resolvido seguir os cinco até o Gloomy Water. Pela circunstância, porém, de serem obrigados a ir primeiro ao pueblo, para libertar aqueles que lá estavam presos, havia Grinley ganho um avanço de dois dias de viagem. É verdade que Grinley perdeu um destes dias de avanço mandando Buttler e Poller ao lago e ficando à espera um dia inteiro. E o segundo dia foi quase recuperado pelo fato de terem Winnetou e Mão de Ferro levado os melhores cavalos do pueblo. A cavalgada ia mais ligeiro do que normalmente. Além disto, não seguiram o rasto do Rei do Petróleo. O apache conhecia um caminho que conduzia mais rapidamente ao alvo, evitando-se diversas dificuldades pelos acidentes do solo. E assim aconteceu que o grupo de cavaleiros tinha, pouco antes da entrada da noite, quando muito, mais duas horas a andar para alcançar o lago. Haviam feito muita coisa, o que ainda mais merecia admiração pelo fato de haver mulheres e crianças com eles.

Desde o pueblo até aí não haviam encontrado nenhum rasto. Agora, porém, uniam-se as pegadas de Winnetou e do Rei do Petróleo. Isso aconteceu quando atravessavam uma clareira que era mais um prado no mato do que um trecho de campo. Via-se a pista dos perseguidos passar como uma linha reta, bastante larga. O grupo parou. Winnetou e Mão de Ferro apearam para examinar as marcas dos pés. Os outros ficaram sentados nas selas. Estavam acostumados a deixar as primeiras investigações aos dois homens tão famosos quanto perspicazes. Até Sam Hawkens, embora experiente è astuto, costumava ocupar-se de alguma coisa apenas quando era convidado pelos dois.

Ao que parecia, eram as pegadas muito difíceis de decifrar, pois Mão de Ferro foi adiante para segui-las. Winnetou seguiu-as em sentido contrário. Passou quase um quarto de hora antes que eles resolvessem voltar. Encontraram-se precisamente onde os cavaleiros haviam parado, de modo que os outros ouviram o que eles se tinham a comunicar.

-  Que é que diz o meu irmão vermelho sobre estas marcas? - perguntou Mão de Ferro a seu amigo. - Raramente dei com rasto tão difícil de compreender.

Winnetou olhava para o ar na sua frente, como se pudesse ler nele a explicação procurada e respondeu com a certeza que lhe  era peculiar

 

Winnetou e Mão de Ferro apearam para examinar as marcas dos pés.

 

e da qual sempre se tinha a impressão de que qualquer engano era impossível.

-  Veremos amanhã três espécies de gente: caras-pálidas e guerreiros de duas nações vermelhas.

-  Sim, também creio. Os vermelhos serão navajos e nijoras. As três espécies se encontram momentaneamente no Gloomy Water, para se assaltarem mutuamente.

-  O meu irmão branco acertou. Primeiro passaram por aqui cinco cavaleiros. Estes eram os caras-pálidas. Depois veio um cavaleiro só e mais tarde seguiu-se um grupo que podia constar de umas três vezes dez homens.

Depois destas palavras, olhou Winnetou para o ocidente para se informar quanto à posição do sol e então prosseguiu:

- Seria bastante vantajoso alcançar ainda hoje o Gloomy Water, mas o tempo é curto e o perigo grande.  Que é que meu irmão diz a isso?

-  Dou-te razão. Antes que chegássemos ao lago viria a noite e seria tarde para empreendermos alguma coisa. Não veríamos nada, seríamos, pelo contrário, notados perfeitamente pelo inimigo. E, finalmente, não devemos esquecer que o nosso grupo não se compõe de guerreiros nem só de homens.

- Muito certo. Só amanhã de manhã, quando já for dia, poderemos ir ao lago.   Portanto, acamparemos o quanto antes.

-  Onde?

- Winnetou conhece um lugar que fica a uma hora de distância do Gloomy Water. Lá poder-se-á até acender um fogo, que nem será visto nem sentido. Os meus irmãos me sigam para lá.

Com isto estava para o cacique encerrada a questão e ele se encaminhou para a frente, sem se virar para saber se os outros o seguiam. Mão de Ferro, porém, continuou parado, pois viu, com leve e bondoso sorriso de superioridade, que os homens do Oeste agora apeavam para também examinar a pista.

Eles investigavam aqui e ali, comunicavam-se em voz baixa as suas opiniões e pareciam não poder chegar a um acordo. Afinal Mão de Ferro os advertiu:

-  Terminem, senhores; Winnetou já está longe e logo desaparecerá naquele mato.

-  Yes - respondeu Droll, cocando a cabeça. - Para vocês dois é fácil, são mestres; mas qualquer um de nós não compreenderá a situação tão ligeiro como vocês, se for preciso.

-  Que é que há que não seja claro?

-  Aquilo com os dois partidos vermelhos.   Primeiro passaram cinco cavaleiros;  estes foram naturalmente o Rei  do Petróleo e a sua gentes Por fim vieram aproximadamente trinta cavalos; estes eram cavalgados por índios. Este é um dos partidos. Não é?                                                     }

-  Sim.

-  E o outro partido?

-  É o índio solitário que seguiu os brancos.

-  Não pode ele pertencer aos trinta vermelhos?

-  Não.

-  Mas ele pode ter sido enviado por eles para a frente.

-  Não, pois neste caso ele teria voltado para informá-los, o que não aconteceu. Sabemos que foi desenterrada a machadinha de guerra. Quando nesta região chegam a lutar, o desentendimento pode ser somente entre os navajos e os nijoras. Estas duas nações enviam inicialmente batedores uns contra os outros. Os trinta cavaleiros que passaram por aqui formam um grupo de batedores. Eles deram com a pista de um inimigo, o qual eles então seguiram para assaltar, bem como os companheiros.

-  Companheiros?   Terá ele companheiros?

-  Isto se compreende por si mesmo. Nenhuma nação vermelha que está em guerra, manda um espia só; os espias andam em grupos. Por qualquer motivo ele se afastou dos seus e vem agora voltando.   Eles o seguem

-  E justamente na pista dos brancos?

-  E por que não? Isto tanto pode ser acaso como de propósito. Não há batedor que possa deixar qualquer pista de lado sem lhe dar atenção; ele deve segui-la até que não tenha mais dúvidas a respeito. Eu me atreverei mesmo a determinar a que tribos estes batedores pertencem.

-  Isto também eu sei fazer - atalhou solicitamente Hobble-Frank.

-  Realmente? - perguntou Mão de Ferro. - Bem, então diga.

-  Ora, os trinta foram nijoras e o solitário foi um navajo. Se isto não for certo, não quero ser o famoso Hobble-Frank.

-  E quais são os motivos desta suposição?

-  Eles são tão claros como a aba do meu chapéu. Está provado que os navajos são valentes.  Não é?

-  Sim.

-  Mais valentes que os nijoras?

-  Possivelmente.

-  Sim, e que e que prova bravura maior? Estarem trinta aqui juntos ou quando um, sozinho, se arrisca a andar por uma região tão perigosa?

-  O último.

-  Então. Ele arriscou mais que os outros; por isto ele é um navajo e os outros são nijoras.   Está certo o raciocínio ou não está?

-  Estou também convencido de que ele é navajo e que os trinta são nijoras, mas por outros motivos. Não há, porém, tempo para apresentá-los. Não se vê mais Winnetou. Vamos tratar de alcançá-lo.

Os homens do Oeste montaram novamente e foram adiante a trote, até que alcançaram o apache. Antes que o sol tivesse desaparecido totalmente desviou-se ele da pista e penetrou no mato, onde em breve chegaram a um lugar em que o solo se afundava abruptamente como se tivesse havido ali um poço de minas desmoronado. Talvez se tratasse de uma caverna subterrânea cujo teto se houvesse fendido há muito tempo. Winnetou indicou este lugar dizendo:

- Lá em baixo acamparemos. Se colocarmos uma sentinela aqui em cima, teremos a possibilidade de acender um fogo em baixo sem que o inimigo nos possa descobrir.

 

. . . e em baixo foi aceso  o  fogo, no  qual prepararam  o jantar.

A ladeira não era muito íngreme, de maneira que os cavalos foram sem dificuldade conduzidos para baixo. Acharam eles nos galhos dos arbustos suficiente alimento para a noite. Em cima foi postada uma sentinela e em baixo foi aceso o fogo, no qual prepararam o jantar.

Naturalmente eram os prováveis acontecimentos do dia seguinte o assunto da conversa geral, que no entanto não foi prolongada, visto acharem-se todos tão fatigados com a longa viagem, que muito em breve se deitaram. Antes que Mão de Ferro e Winnetou o fizessem, tiveram eles ainda um curto entendimento.   O primeiro disse:

-  É possível que amanhã haja luta na qual não devemos expor a perigos as mulheres e as crianças. Também não desejo ver envolvidos nisto os imigrantes. Eles são inexperientes e só nos prejudicariam. Não seria melhor deixá-los aqui? O lugar é seguro e perfeitamente adequado para esconderijo.

-  Para o caso de uma luta o meu irmão tem razão. Mas se formos obrigados a abandonar rapidamente o Gloomy Water? Talvez não nos sobre o tempo preciso para voltar aqui e buscar esta gente.

-  Hum! sim. É preciso contar com a possibilidade de termos de nos apressar. Receio que os índios prendam os cinco brancos.

-  Winnetou pensa que isto já aconteceu.

- Então devemos segui-los rapidamente para libertá-los. Se fôssemos obrigados a voltar para cá antes disto, perderíamos um tempo precioso. Mas é também perigoso seguirmos diretamente para o lago com as mulheres e as crianças.

-  Existe apenas um meio de evitarmos este perigo e de não perdermos tempo.

-  Sei. Um de nós deve adiantar-se muito cedo para examinar as redondezas da "água tenebrosa".

-  É isso mesmo - concordou o apache. - E será Winnetou quem o fará. O meu irmão deve ficar aqui porque se pode entender com esta gente melhor que eu. Winnetou protegerá estas brancas squaws e os seus bebês, porque prometeu fazê-lo, mas fazer-lhes passar o tempo, com palavras, para isto falta-lhe a habilidade. Eu irei ainda antes que seja dia claro. O meu irmão depois me siga vagarosamente com os outros. Ele só precisará seguir minha pista; assim, se houver perigo, topará com os meus sinais de advertência ou então eu próprio voltarei.

As coisas ficaram nisso. Quando Mão de Ferro acordou no dia seguinte, o apache estava ausente. Talvez uma hora mais tarde foi iniciada a marcha. Os homens do Oeste cuidaram-se naturalmente de dizer aos imigrantes que a cavalgada desse dia talvez fosse perigosa. Disseram-lhes apenas para guardar o máximo silêncio.

Winnetou tivera o cuidado de deixar uma pista facilmente reconhecível. Seguiram-na devagar para deixar-lhe o tempo necessário para inspecionar e por isto chegaram às redondezas do lago depois de decorridas duas horas.  Aí viram-no aproximar-se a cavalo.

-  Com mil trovões, isto não é bom sinal! - disse Dick Stone.

-  E eu penso exatamente o contrário - declarou Hobble-Frank. - Ele nos dirá como as coisas andam, assim saberemos onde estamos metidos nesta história. Se ele não viesse, as nossas cabeças continuariam metidas nas suas conjeturas pouco claras.

-  Não. Se tudo estivesse bem ele nos esperaria no lago.

- Não resmungues tanto, urso velho. Em breve saberemos o que está certo.

Nisto o apache chegou. Todos pararam e Winnetou disse:

-  Não estou de volta por causa de nenhum perigo. Este já passou. Venho apenas porque não tinha, nada que fazer. Os meus irmãos me sigam.

Quando alguns se chegaram a ele para interrogá-lo, disse:

-  Winnetou falará  no lugar e não antes.

Foram adiante. A pista daqueles que na véspera haviam cavalgado por ali, estava ainda bem visível; somente lá onde o chão era rochoso eram necessários olhos como os do apache para ainda reconhecê-la.  Assim alcançaram a entrada do desfiladeiro, que conduzia ao lago. Aí Winnetou parou e informou:

-  É preciso atravessar este curto desfiladeiro para chegar ao lago. Winnetou já sabe o que aconteceu aqui ontem.

Ele apontou para o cimo do monte e prosseguiu:

-  Lá em cima acamparam sete batedores dos navajos. O oitavo do mesmo grupo é aquele cavaleiro solitário, cuja pista vimos ontem. Ele estava atrás dos brancos e quando estes se encontravam na margem do lago, ele foi buscar os seus sete guerreiros para prendê-los.

-  Aconteceu isto? - perguntou Hawkens.

-  Sim. Os brancos foram vencidos. Mas no meio tempo vieram os trinta nijoras e esconderam-se aqui atrás das árvores. Os meus irmãos podem ainda ver os seus vestígios distintamente. Eles esperaram até que os navajos com os prisioneiros brancos voltassem do lago, para assaltá-los depois.

-  Por que não o fizeram logo aqui? Esse lugar está como se fosse feito para um assalto.

-  Winnetou pensou sobre este ponto, sem, porém, dar com uma boa resposta. Talvez descubramos mais tarde o motivo por que os nijoras ainda esperaram. Os navajos foram com os seus presos para o mato, lá pela esquerda, até um lugar onde há água. Lá acamparam e lá foram assaltados pelos nijoras.

-  Houve então luta e sangue?

-  De sangue não puderam meus olhos descobrir nenhuma gota e uma luta verdadeira também não teve lugar. Os navajos ficaram tão surpreendidos que foram provavelmente amarrados antes que pensassem em resistência. Durante a noite os nijoras ficaram acampados com os seus prisioneiros vermelhos e brancos, no mesmo lugar, e de manhã se foram.

-  Para onde? - perguntou Sam Hawkens.

-  Isto não sei. Não pude seguir seu rasto porque tive que esperar por vocês.

-  Devemos segui-los. Não se trata do Rei do Petróleo e dos dois indivíduos que estão com ele. Por mim podem eles ser escalpados. Mas o banqueiro e seu guarda-livros devem ser libertados. Há uma coisa só que não compreendo: no lago há bastante água e alimento para os cavalos. Por que os vermelhos não ficaram lá? Por que, sendo assim, acamparam no mato, se não me engano?

Até então Mão de Ferro não tinha ainda dito coisa alguma, prestando toda a atenção às explicações do apache e ao arroiozinho raso que era o escoadouro do lago e que vinha correndo pelo desfiladeiro. Ouvindo as últimas palavras de Sam, apontou para a água e respondeu:

-  Parece-me que aqui vai correndo a explicação.

-  Como assim?

-  Não sentes nenhum cheiro? Olha a água - há nela manchas de óleo.

Todos olharam o regato, e aspirando o ar sentiram que havia cheiro de petróleo.

-  O meu irmão viu porventura óleo no lago? - perguntou Mão de Ferro ao apache.

-  Sim - assentiu este.

-  Então o Rei do Petróleo soube executar o seu plano. Entremos no desfiladeiro.  Quero ver o que há.

-  Mas com isto perderemos tempo - obtemperou Sam Hawkens. - Nós precisamos seguir os nijoras.

-  Estes não nos escaparão.  Eles serão detidos.

Dirigiu o seu cavalo para o desfiladeiro e os outros o seguiram. A cada passo tornava-se mais forte o cheiro do petróleo, até que viram o lago estendido a seus pés. O aspecto deste impressionou-os tanto que todos os olhares se dirigiram em profundo silêncio para a superfície escura e misteriosa. Somente numa pessoa a impressão era diversa: na Sra. Rosalie Ebersbach. Quando ela avistou o lago, deu um grito de admiração e deslizou do cavalo, correu para a margem, meteu um dedo n'água. olhou-o e cheirou-o exclamando:

-  Trovões de Saxônia! Esta é uma grande descoberta. Seu Hobble-Frank, cheire aqui o meu dedo e veja o que é!

Ela lhe meteu o dedo debaixo do nariz. Ele retirou a cabeça e retrucou:

-  Deixe-me em paz com o seu dedo indicador. Não preciso dele para saber onde estou. Se eu quiser cheirar alguma coisa, meterei o meu nariz no lago.  Então terei o deleite petrolífero de primeira mão.

-  Então também reconhece que é petróleo?

-  Naturalmente. Ou pensa talvez que o considero suco de framboesa? Vejo que conhece mal o meu nariz, que francamente é mais fino que eu próprio.

-  Mas tamanha quantidade, tamanha quantidade! - exclamou ela ainda totalmente fora de si. - A dizer verdade, já ouvi dizer que na América o petróleo flui da terra, mas não acreditei. Mas agora está diante dos meus próprios olhos. Eu ficarei aqui, ficarei aqui. Ninguém me tirará deste lugar. Nem dez bois conseguirão arrastar-me. Nem mesmo que o senhor os ajudasse, Sr. Hobble-Frank.

-  Sim?   E que quer fazer?

-  Começarei a negociar com petróleo. Há aqui um negócio a fazer como não pode haver maior. Aqui o óleo não custa nem um pfennig e além-mar, na Saxônia, tem que se pagar quase dois groschen pelo litro. Não retiro o que disse:   aqui me estabeleço para fazer negócio com petróleo.

 

- Seu Hobble-Frank, cheire aqui o meu dedo e veja o que é!

 

Ela juntou as mãos entusiasmada, o que significava que sua decisão era inabalável.  Frank respondeu rindo:

-  Lindo. Vá tomando posse desta bela região. Mas logo no primeiro dia virão os índios e lhe arrancarão os cabelos todos um por um. Pensa então que poderá abancar-se aqui tão comodamente como na cadeira de balanço do vovô ou no banco perto da estufa? Quer negociar? E quem lhe comprará qualquer coisa aqui? De que viverá? E a que cheirará? Se somente permanecer aqui durante três dias, sua bondosa personalidade recenderá um aroma que nem todo o Oceano Atlântico conseguirá lavar.

Esta advertência fez com que a Sra. Rosalie ficasse de ar pensativo e se voltasse para o marido para ouvir-lhe a opinião. Os outros já se tinham restabelecido de sua admiração; ajoelharam-se na margem, examinaram o óleo e se transmitiam em altos brados suas observações. Winnetou e Mão de Ferro afastaram-se dos outros para darem uma volta em torno do lago, com o fim de fazer uma busca mais minuciosa, nas suas margens, do que aquela que o apache havia realizado antes.

O homem sobre quem a suposta massa de petróleo causou a maior impressão foi o cantor. Os outros já há muito tempo se haviam restabelecido de seu assombro, e ele ainda estava parado e contemplava a água com os olhos esbugalhados e com a boca igualmente aberta. Quando Hobble-Frank notou isto, aproximou-se dele, deu-lhe um tapa nas costas e disse:

- Todo o raciocínio humano provavelmente paralisou no seu cérebro. Realmente, parece ter perdido sua língua materna. Se não puder falar, então tente pelo menos cantar alguma coisa, senhor cantor.

O músico recuperou então a fala. Respirou profundamente e respondeu:

- Cantor aposentado, por favor, Sr. Frank. Eu me sinto maravilhosamente impressionado. É um espetáculo indescritível. Assalta-me uma idéia, uma idéia tão maravilhosa como este lago, afirmo-lhe.

-  Que idéia, senhor cantor aposentado?   Posso saber?

-  Sim, ao senhor quero comunicá-la, sob a condição de que não o dirá a ninguém.

-  Oh, quanto a isto, pode ter confiança na minha discrição. É essa idéia um segredo tão importante?

- Segredo extraordinário! Se outro compositor o soubesse, ele o aproveitaria imediatamente para si. O senhor sabe bem da minha ópera heróica, não é?

-  Sim... doze atos.

-  É isto. E sabe o que farei nesta ópera?

-  Claro que sei.

-  Então o quê?

-  Fará música.

-  Naturalmente. Mas isto se entende por si. Não. Que é que farei quanto ao conteúdo da música e quanto ao cenário e o embelezamento?

-  Aí devo dizer que já me ocupei com todas as ciências, mas que a vez da cenografia musical ainda não chegou. Mas prossiga. Que é que quer fazer?

O cantor aproximou a boca do ouvido de Frank, fez com as mãos um tubo para falar e cochichou:

- Apresentarei um lago de petróleo como este...

Frank recuou perguntando:

-  No palco, talvez?

-  Sim, senhor. Ficou admirado, não? - perguntou triunfante o cantor. - O próprio Ben Akiba será vencido.

-  Ben Akiba? Por que, ele?

-  Ele afirmou que não acontece nada de novo, que já aconteceu tudo.  Mas não houve ainda nunca um lago de petróleo no palco.

-  Aquilo com o palco pode ser que esteja certo; mas esta história com Ben Akiba está absolutamente errada. Sabe quem foi que disse que já houve tudo?

-  Foi este mesmo Ben Akiba.

-  Não, senhor. O dito pertence a Benjamim Franklin, quando inventou o pára-raios e depois chegou a um depósito onde há muito tempo havia caído um raio. Ben Akiba era outro homem, era um cabo-de-guerra persa que venceu o imperador grego Granico na batalha naval de Gedeon e Ajalon.

-  Mas, caro Sr. Frank, Gedeon e Ajalon são nomes da Bíblia, vêm no livro dos juizes, onde Josuá...

-  Cale-se de uma vez! - interrompeu-o Frank ofendido. - Onde isto ocorre é comigo e não consigo: Não se imiscua na minha ciência, como eu não me meto na sua. Eu deixo ao senhor toda a liberdade. Se o senhor mete um lago de petróleo na sua ópera, ou se mete sua ópera aqui neste lago de petróleo, isto é totalmente indiferente para mim.

Indignado, ele se afastou e juntou-se a Droll, Sam, Dick Stone e Will Parker, que então começaram também a investigar como o faziam Winnetou e Mão de Ferro. Este último, percebendo-o, veio apressadamente em direção a eles e pediu:

- Cuidado, senhores, não me estraguem os vestígios. Que querem descobrir?

-  Queremos procurar o lugar onde os cinco brancos foram tomados de surpresa - respondeu Hawkens.

-  Não poderão mais descobri-lo. Os vestígios já foram apagados por nossos cavalos; eles estão lá na frente na proximidade da entrada. Nós queremos descobrir coisa diferente, de importância muito maior.

-  O quê?

-  A caverna onde foram escondidos os barris de petróleo. Aquela gente escondeu as provas extraordinariamente bem.

-  Imagine! Uma caverna na qual foram guardados tantos barris deve ser grande e ter portanto uma larga entrada. Os barris foram trazidos para fora, foram rolados até a água, e depois de esvaziados foram novamente  levados para dentro.   Tudo isto deve  ter deixado  vestígios.

-  É claro. Mas infelizmente estes vestígios foram apagados com verdadeira maestria.

-  Permita-nos ajudar na procura.   Creio que eles serão achados.

-  Bem; mas não me estraguem nada.

Os homens do Oeste, geralmente tão perspicazes, investigaram todo o vale do lago; passou-se uma hora sem que alcançassem o seu fim. Winnetou, o mestre insuperável na arte de descobrir uma pista, perdeu enfim toda a esperança e disse  a Mão de Ferro:

-  O meu irmão branco não se incomode mais. Só por um acaso poderá ser descoberta a caverna.

Mão de Ferro era mais teimoso. Zangou-se. Iriam dizer dele que era incapaz de achar um lugar cuja existência estava perfeitamente provada. Ele considerava simplesmente uma questão de honra o alcançar o seu fim, apesar de todos os obstáculos, e respondeu:

-  O que o acaso pode, nós também devemos poder. Para que aprendemos a pensar?

Fechou os olhos para não se deixar enganar por coisa alguma e ficou algum tempo tranqüilo, sem se mover.  Winnetou o observava e viu que um movimento singular passou pelo seu rosto.  Perguntou então:

-  O meu irmão achou o caminho?

-  Sim - disse Mão de Ferro, abrindo de novo os olhos - pelo menos o espero. Não pode ser muito difícil descobrir a caverna. Os barris cheios eram pesados e eram quarenta. Onde quarenta barris são rolados para cá e para lá, a grama fica amassada tão profundamente que não é possível reerguê-la com as mãos. Ela permanecerá deitada durante diversos dias. O trabalho, porém, que aqui foi realizado é de ontem ou no máximo de anteontem. A grama devia estar portanto deitada. O meu irmão vermelho reconhece isto?

-  Mão de Ferro tem razão - concordou o apache.

-  O lugar deve estar, portanto, lá onde não há grama, isto é, nenhuma grama em todo o caminho desde a margem até a rocha na qual se encontra a caverna.

-  Uff, uff! - exclamou Winnetou. Sua face bronzeada enrubesceu, talvez de alegria, mas talvez, também, de vergonha de não lhe ter ocorrido este pensamento.

-  De mais a mais - prosseguiu Mão de Ferro - ao serem esvaziados os barris, com toda a certeza derramou-se óleo e também deve ter sido prejudicada a margem do lago. Ambas estas coisas deviam ser visíveis se esta margem fosse de grama. Se, porém, naquele lugar da margem houver areia ou pedra, não terá sido difícil disfarçar. Agora veja o meu irmão vermelho toda a margem. Em toda a parte verá grama e relva, com exceção de dois lugares, que examinaremos imediatamente.

Um destes lugares não distava muito da entrada do vale. Para lá se dirigiram os dois, seguidos pelos homens do Oeste, desejosos de saberem se a perspicácia de Mão de Ferro ainda desta vez não havia falhado.

Uma faixa sem grama, de uns dois metros de largura, de terra lodosa e cheia de pedrinhas, estendia-se da rocha até a água. O caçador ajoelhou-se perto da margem e cheirou o chão.

-  Achei! - exclamou. - Aqui as pedras têm cheiro de petróleo; derramaram óleo aqui.

Esgravatou a terra com os dedos; a camada inferior estava cheia de óleo; para  escondê-lo haviam posto uma camada por cima.

-  Então é aqui que os barris foram esvaziados - disse ele. - A margem foi rapidamente posta em condições, visto que era toda de pedrinhas. Lá onde aquela faixa dá na rocha deveremos procurar a caverna. Vejamos.

Ele seguia a faixa que se perdia, junto da rocha, num montão de pedras; os outros vinham vindo de ambos os lados. Ele parou diante do monte de pedras, contemplou-o apenas um instante e declarou:

-  Sim, estamos no alvo. Atrás deste montão de pedras encontra-se a caverna.

Hobble-Frank quis ter o prazer de bancar o famoso homem do Oeste e por isto perguntou:

-  Isto o senhor está vendo com um só olhar?

-  Sim - respondeu o interrogado.

-  Eu também sei perceber estas coisas.  Posso dar uma olhada?

-  Pois não.

Frank olhava de todos os lados para o montão, não parecendo achar coisa alguma.

-  Então? - perguntou Mão de Ferro. - Que é que está vendo?

-  Um montão que é como todos os montões; isto quer dizer que vejo um montão de pedras que se compõe de pedras.

-  Então só vê as pedras?

-  Sim.  Nem a menor coisa além disto.

-  Lembre-se de que nessas circunstâncias o menor objeto pode ter a maior importância.

-  Bem, então devo procurar um objeto bem pequenino. Mas eu não vejo nada.

Também os outros que estavam ao seu lado procuravam igualmente em vão.

Só o apache deixou ouvir um leve e satisfeito: Uff! O seu olhar tinha caído sobre um cascudo morto, que ficava meio debaixo das pedras.

-  É singular - sorriu Mão de Ferro. - Somente Winnetou fez a observação que eu fiz. Frank, o senhor não está vendo o pequeno cascudo, cujo meio corpo se vê ali debaixo das pedras?

-  Sim, sem dúvida, já faz muito tempo que vi o cascudo.

-  Sim, e...

-  Sim... e...? Sim, mas o quê? É apenas um cascudo e nada mais.

-  Nada mais? Ele é muita coisa, pois é ele que me diz que estamos diante da caverna.

-  Como? Este cascudo? Que pode ele dizer? Mesmo que em tempo de sua vida ele tivesse falado uma língua compreensível, agora ele está morto.

-  Sim, está morto. E de que será que ele morreu?

-  Sei eu!   Talvez endureceu-lhe o fígado ou teve apendicite.

-  Pegue-o e olhe bem.

Frank viu-se obrigado a levantar a pedra para poder tirar o cascudo.

-  Ele foi esmagado pela pedra - explicou ele, olhando-o.

-  Perfeitamente. Mas como pôde acontecer isto? Porventura o pequeno inseto conseguiu penetrar por baixo da pedra de modo que ficasse esmagado por ela?

-  Não. Para isto não tinha o bichinho a força necessária. A pedra foi atirada em cima dele e...

Parou, pensou uns momentos, bateu então com a mão na testa e exclamou:

-  Até que enfim peguei o boi pelas guampas. Agora entendo o que houve. É quase inacreditável que um cara tão sabido como eu possa ser tão gigantescamente estúpido. Estas pedras foram todas removidas e foi aí que o cascudo perdeu sua existência terrestre. Este montão de pedras, feito de pedras, foi desfeito e depois novamente levantado. Por que e para quê?  Porque ele constitui a entrada fechada para a caverna e...

Hobble-Frank parou de novo e escutou.

-  Que é que há? - perguntou Mão de Ferro.

-  Ouvi qualquer coisa - respondeu Frank.

-  Onde?  Na caverna?

-  Sim. Um ruído como de uma voz subterrânea. Foi um som tão surdo!   Deus meu!   Talvez haja um urso lá dentro.

-  Dificilmente.

-  Mas quase soava assim.  Escute. Já o ouço de novo.

Mão de Ferro ajoelhou-se e escutou. Apenas havia feito isto levantou-se de um pulo e exclamou:

-  Por Deus, há gente lá dentro. Eles clamam por socorro. Tirem as pedras, ligeiro, ligeiro.

Imediatamente mais de dez braços estavam prontos para executar esta ordem.  Já em poucos instantes via-se o buraco.

-  Há alguém aí dentro? - perguntou Mão de Ferro em inglês.

-  Yes - responderam duas vozes ao mesmo tempo.

-  Quem são?

-  Eu me chamo Rollins, e eu Baumgarten - responderam os dois.

-  Rollins e Baumgarten! - ressoou de todas as bocas. Foi uma grande surpresa, pois havia-se acreditado que estes dois também tivessem sido presos pelos nijoras, depois de aprisionados pelos navajos. Eles estavam felicíssimos de ouvirem novamente gente e de verem a luz do dia, que penetrava até eles pelo buraco que aumentava cada vez mais. Mas também não estava excluída a possibilidade de que o Rei do Petróleo com Buttler e Poller se encontrassem fora. Por isto o banqueiro perguntou quem estava lá fora. Acrescentou Hobble-Frank, o homenzinho eternamente pronto a socorrer alguém:

-  Somos nós, os salvadores dos necessitados: Mão de Ferro, Winnetou, Droll, Sam, Dick e Will. E quem eu sou, logo verão, pois vou entrar.

Ele fez força para passar pelo buraco, pelo qual chegava um grito de alegria. Daí em diante não durou muito tempo até que todo o montão estivesse removido. A entrada tinha a altura de um homem de estatura média e era tão larga que um barril de petróleo podia ser facilmente rolado para dentro ou para fora. Quando os salvadores quiseram entrar, disse-lhes Frank:

-  Fiquem aí. Nós sairemos. Devo primeiro cortar as amarras dos pobres diabos.

Sim, eles vieram, pálidos como cadáveres e com o medo que sofreram ainda pintado nos rostos. Também as amarras e o cheiro de petróleo que predominava na caverna havia-os torturado. Eles deram as mãos aos que conheciam desde o Rancho do Forner e contemplavam então com olhares cheios de gratidão Winnetou e Mão de Ferro.

-  Tratava-se das suas vidas - disse o último. - Muito tempo procuramos a caverna em vão e já tomávamos a resolução de deixar o lago. Se fizéssemos isto, teriam morrido lentamente de fome e de sede. Têm naturalmente fome e sede, não?

-  Nem uma nem outra coisa - respondeu Baumgarten. - Agra-decemos-lhe. Não pensamos em comer e beber, e, sim, na miserável morte que teríamos, se não tivessem vindo.

-  Não tinham esperança de que os seus conhecidos os seguissem até cá?

-  Como podíamos ter esta esperança? Acreditávamos que estivessem ainda presos no pueblo. Posso assegurar que a gratidão que...

-  Não fale nisto - interrompeu-o Mão de Ferro. - Guarde a sua gratidão para mais tarde. Agora eu queria saber antes de tudo algumas coisas de importância. Espero que não estejam tão abatidos que não possam responder.

-  Oh, agora que nos encontramos novamente ao ar livre, tudo está bem.

-  Excelente! Não me são aliás de todo desconhecidos. Winnetou e eu já os vimos.

-  Ah! Quando e onde? - informou-se o banqueiro.

- A um dia de viagem do pueblo, onde, tarde da noite, estiveram sentados junto do arroio. Arrastamo-nos debaixo das árvores tão perto que podemos ouvir sua conversa.

-  Que sorte!   Então soube que se tratava de um lago de petróleo?

-  Sim.

-  E que queríamos ir para o Gloomy Water?

-  Onde não existe petróleo; sim, ouvimos isto.

-  Era sua opinião que não podia haver petróleo aqui? Por que então não se deixou ver?  Por que não nos advertiu?

-  Porque a questão era saber se os senhores nos acreditariam ou não, Tinham sido advertidos antes por outrem, sem que isto desse resultado. Não tínhamos, de resto, tempo para nos ocuparmos logo com o nobre Rei do Petróleo. Devíamos ir ao pueblo para libertar os prisioneiros.

-  Conseguiram isso, os dois sozinhos?

-  Sim, como vêem.

-  Mas não é possível! - exclamou Rollins esbugalhando os olhos. - Dois homens e mais ninguém.   Como foi que isso aconteceu?

-  Isto o senhor saberá mais tarde, Sr. Rollins. Agora queríamos saber como escaparam do pueblo e o que aconteceu até aqui. Sentem-se e contem a história.

Todo o grupo tomou lugar na relva e o banqueiro contou as aventuras dos últimos dias. Pode-se imaginar em que termos ele falou de Grinley, Buttler e Poller.

-  Não se zangue somente com eles, mas sim também um pouco consigo mesmo. Uma tal confiança concedida a esses indivíduos eu não compreendo. E - digamos - a ingenuidade com que caíram na armadilha deles é perfeitamente incompreensível

-  Considerei Grinley um homem honrado - defendeu-se Rollins sem ânimo.

-  Pshaw! Vê-se logo nos seus olhos que patife ele é. E quando se trata duma soma tão alta e duma empresa de tamanho vulto, fazem-se preparativos de outra espécie.

-  Isto ele não quis.

-  Que gente!  Deviam ter trazido pelo menos um especialista.

-  Grinley disse que por enquanto não era preciso, visto que o petróleo nadava na superfície. Era-me preciso apenas lançar um olhar para ter a prova de que o negócio era bom para mim.

-  E quando então chegaram e viram o lindo óleo a sobrenadar assim, ficaram encantadíssimos, com certeza.

-  Naturalmente. O senhor não reconhece que este é um placer extraordinário de óleo?

Mão de Ferro lançou-lhe um olhar quase atônito antes de responder:

-  Parece que mesmo agora ainda não sabe onde está a verdade. Considera este lago uma bacia natural de petróleo?

-  Sem dúvida! Quanto a isto Grinley disse a verdade. Mas depois de ter o meu cheque na mão fomos abatidos e encerrados para perecermos.   Provavelmente quererá ele agora vender o lago a um outro.

-  Não olharam em torno na caverna?

-  Como poderíamos olhar? Quando acordamos do atordoamento estava tudo escuro. Mas o cheiro do petróleo era tão forte que na caverna, creio, deve ser procurada a fonte principal.

-  Nisto o senhor tem razão; só que não se trata de uma fonte e sim de muitas fontes feitas de aduelas de madeira.

-  De aduelas?  Não compreendo.

-  Então entrem de novo na caverna e vejam bem o que lá se encontra. Conquanto eu ainda não estivesse lá dentro, creio conhecer bem o conteúdo. Antes disto queria perguntar ainda se olharam bem para o petróleo quando chegaram aqui.

-  Naturalmente, foi o que fiz.

-  E como o acharam?

-  Simplesmente excelente.

-  Sim, eu também - riu Mão de Ferro. - Ele não tem absolutamente as qualidades do petróleo cru e natural, que deve ser refinado para dar óleo para lâmpadas, graxa e gasolina, pois já está refinado.  Isto não chamou a sua atenção?

-  Não. Quer dizer porventura que não é petróleo cru?

-  Sim, é exatamente isto o que quero dizer.

-  Que é que pode ser então?

-  Esta pergunta os senhores mesmos a responderão se entrarem mais uma vez na caverna. Há quanto tempo, segundo julga, se encontra petróleo no lago?

-  Quem poderá saber?  Sem dúvida, já há séculos ou mais tempo.

-  Quem poderá saber?   Eu sei: desde anteontem.

-  An.. .te.. .on.. .tem? - repetiu o banqueiro. - Novamente não o compreendo.

-  Não? Então falarei mais claramente. Tem o senhor olhos para ver boiar essa grande quantidade de peixes?

-  Naturalmente.

-  Qual pode ser a causa da sua morte?

-  O petróleo, não há dúvida nenhuma. Nenhum peixe pode viver no petróleo.

-  Lindo!   E há quanto tempo estes animais estarão mortos?

-  Talvez dois dias, não mais, pois que, de outro modo, estariam mais atacados pela decomposição.

-  E onde estavam quando vivos? Talvez passeassem aqui debaixo das árvores? Há dois dias que os peixes estão mortos. No petróleo não poderiam  viver.   Desde quando,  pois,  há petróleo aqui  sobre   a  água?

Só então fez-se luz na cabeça do banqueiro. Ele pulou do seu assento, olhou fixamente para Mão de Ferro, passeou o olhar pelos outros e moveu os lábios como se quisesse falar. Não proferiu, porém, palavra alguma.

-  Ora, não quer dar-me resposta? Se desde anteontem existe aqui uma qualidade de petróleo que foi artificialmente refinada numa usina, então queria eu perguntar como é que se explica este caso interessantíssimo.   A resposta pode ser encontrada lá na caverna.   Entre, Sr. Rollins.

-  Vou entrar, vou entrar! - exclamou o banqueiro. - Vem-me um pensamento tão extraordinário que nem posso segui-lo até o fim. Venha comigo, Sr. Baumgarten. O senhor foi até aqui o meu companheiro e deve também estar comigo neste momento.

Ele puxou o guarda-livros, fazendo com que este se levantasse do seu assento e desapareceu com ele na caverna. Os que ficaram fora escutavam. Ouviram algumas exclamações e depois o esbarrar e rolar de barris. Em seguida o banqueiro precipitou-se para fora, exclamando em grande excitação:

-  Que gatunagem! Que ladroeira atrevida! O óleo foi trazido para este lugar expressamente para extorquir meu dinheiro!

-  É isto mesmo - confirmou Mão de Ferro. - Logo que ouvi os indivíduos falarem do petróleo que pretendiam ter achado aqui, estava convencido de que era um logro. Buttler e Poller não foram mandados para a frente com o fim de examinar a segurança do caminho e, sim, para esvaziar os barris no lago e para os esconder depois na caverna. O logro foi preparado com enormes trabalhos e desde há muito tempo, porque não é brincadeira trazer para cá uns quarenta barris de petróleo.

- Foram, porém, bem pagos, hihihihi! - riu-se Sam Hawkens. - Pretende meter o petróleo de novo nos barris ou levar consigo os barris vazios, Sr. Rollins?

-  Não riam de mim por cima de tudo isto! - exclamou este. - O meu dinheiro, o meu lindo dinheiro! Tenho que recuperá-lo de qualquer forma.   O senhor me deverá ajudar nisto, Sr. Mão de Ferro.

-  Por enquanto não se trata do dinheiro e sim do cheque - respondeu o caçador. - Acha que este será realmente pago em San Francisco?

-  Com toda certeza, se estes gatunos conseguirem escapar dos índios e alcançar Frisco. Não disse o senhor, durante a minha narrativa, que eles foram presos pelos nijoras?

-  Disse sim. Primeiro foram eles assaltados pelos navajos e em seguida foram presos pelos nijoras.

-  Provavelmente os índios roubaram tudo dos brancos, não acha?

-  Certamente.

-  E, portanto, tiraram o cheque do Rei do Petróleo? Neste caso ele não seria apresentado em Frisco.

-  Também creio que não será apresentado, mas não quero afirmar que eles lhe levem o papel. Há índios, sim, que têm progredido tanto na senda da civilização que sabem ler e até escrever. As tribos daqui, entretanto, não são assim. O índio selvagem considera feitiço qualquer escrita e não quer saber dela. Por isso é de supor que os nijoras deixarão ao Rei do Petróleo o cheque. Se ele tiver a sorte de lhes escapar, irá com toda a certeza a Frisco para cobrar o dinheiro.

-  Então o melhor seria adiantar-se-lhe. Que tal acha se eu com o Sr. Baumgarten partíssemos imediatamente para San Francisco a fim de prevenir o banco de lá?  Se o velhaco então aparecer, será preso.

-  Nas circunstâncias locais e momentâneas, o melhor será que o senhor desista disto. Não iriam longe. De modo algum seria, aliás, necessário fazer a longa viagem até San Francisco. Seria suficiente ir apenas a Prescott, informar as autoridades de lá e também de lá expedir ordens aos bancos.

-  Está certo, muito certo!   Vamos, pois, a Prescott.

-  Devagar, Sr. Rollins. Daqui a Prescott terão pelo menos dez dias a cavalgar, pois a distância em linha reta será de umas cinco milhas geográficas.  E o que é de importância capital: conhecem o caminho?

-  Não. Quem sabe se algum dos senhores que conhece o caminho quereria acompanhar-nos, mediante boa recompensa?

-  Duvido que haja alguém entre nós que queira desempenhar a função de guia pago. É preciso também não esquecer que o caminho a Prescott atravessa redondezas que, nas circunstâncias atuais, não somente são inseguras, mas devem ser consideradas perigosas. Três pessoas, os dois e um guia? Mesmo que ele fosse um homem de grande argúcia seria de supor que não chegariam vivos a seu destino.

-  Não devo então fazer coisa alguma e perder o meu dinheiro?

Nesta altura Chi-So, o moço navajo, aproximou-se de Mão de Ferro, dizendo-lhe:

-  Dá-me licença para responder à pergunta que o Sr. Rollins acaba de fazer?

-  Pois não - assentiu o caçador. Chi-So dirigiu-se ao banqueiro e disse-lhe num tom cheio de confiança:

-  O senhor não precisa ter nenhuma preocupação. O cheque ser-Ihe-á devolvido.

-  Realmente? - regozijou-se Rollins. - De que maneira?

-  Por meu intermédio. Sou navajo; os nijoras são agora nossos inimigos; eles prenderam oito guerreiros navajos, dos quais eu sou irmão. Tenho o dever de tudo tentar para libertar estes prisioneiros. Nesta ocasião, também o Rei do Petróleo cairá nas minha mãos. Tirar-lhe-ei o cheque e dar-lho-ei.

O banqueiro olhava admirado para o jovem índio que falava com tamanha decisão e segurança, e perguntou-lhe:

-  Quer libertar os navajos, meu rapaz? Sabe o número dos nijoras?

-  São apenas trinta.

-  Apenas. E você, você sozinho quer lutar com eles?

-  Não tenho medo.  De resto, eu não estarei só.   Buscarei os guerreiros da minha tribo.

-  Sabe onde estes se encontram?

-  Eles estão aqui perto. Há oito batedores navajos; daí conclui-se que os nossos guerreiros não podem estar longe.

-  Mas antes que você os encontre o tempo passaria e os nijoras o aproveitariam para escapar.

-  Eles não escaparão - atalhou Mão de Ferro. - Nós estaremos aqui.   Que é que diz o meu irmão Winnetou sobre minha decisão?

Ele não havia indicado por palavras qual era sua decisão. Entretanto respondeu o apache imediatamente, adivinhando-a:

- Buscarei os guerreiros da minha tribo.

-  É boa. Seguiremos os nijoras, libertaremos os navajos e tiraremos o papel ao Rei do Petróleo.

-  Obrigado, obrigado! - exclamou Rollins, jubiloso. - Se são os senhores que o dizem, então é certo que recuperarei o meu cheque e salvarei meu dinheiro. Mas quando partiremos? Naturalmente já, meus senhores?

-  Quanto antes - respondeu Mão de Ferro. - Primeiro vamos também ver a caverna e depois Winnetou me conduzirá ao lugar onde os nijoras acamparam com os seus prisioneiros.

Somente então foi examinado o interior da caverna. Não era artificial, era natural, criada pela erosão da umidade que, vindo de cima da floresta, atravessava a rocha e escoava para o lago. Daí o limo, a areia e as pedrinhas que numa faixa estreita iam da caverna em direção ao lago. Quarenta barris de petróleo vazios, algumas picaretas e um machado foram encontrados; nada mais. Dois destes barris foram desarmados e as aduelas deviam ser levadas, pois forneceriam excelente material para fogo, caso fossem ter a algum lugar no qual não houvesse madeira.

Depois disto Winnetou e Mão de Ferro partiram a fim de examinar o acampamento dos nijoras. Os outros acamparam na relva, esperando pela volta dos dois. Formaram aí pequenos grupos, assim como se encontravam casualmente. O assunto da conversa de todos era um só: as aventuras dos últimos dias, e que somente a Winnetou e Mão de Ferro se devia a salvação de todos. De todos os lábios vinham elogios para estes dois homens.

Especialmente Hobble-Frank sabia o que contar deles. Estava sentado junto dos imigrantes alemães e narrava, do modo veemente que lhe era próprio, alguns acontecimentos da sua convivência com Winnetou e Mão de Ferro. O cantor escutava com grande atenção e aproveitou uma pausa feita por Frank para observar:

-  Disto mesmo é que eu preciso. Tais feitos quero levar para o palco. Eles dão a impressão que desejo obter. Mas há uma dificuldade para vencer.   Talvez o senhor, Sr. Hobble-Frank, me queira ajudar.

-  Qual é a dificuldade? Gosto precisamente das dificuldades. Por uma coisa fácil é-me impossível esquentar-me. O que, porém, for difícil, o que custar trabalhos e esforços, isto será sempre minha especialidade. Portanto dirija-se tranqüilamente a mim, senhor cantor aposentado. De que dificuldade está falando?

-  Hum!   Acaso já ouviu cantar Mão de Ferro ou Winnetou?

-  Cantar?    Não.

-  Mas estes dois homens sabem cantar, ou talvez acha que não saibam?

-  Se sabem cantar! Que pergunta é esta? Não tem vergonha de pensar isto e de expressar tal dúvida? Eu lhe digo que estes dois homens sabem tudo, seja o que for, e portanto, também sabem cantar.

-  Não fique zangado, Sr. Hobble-Frank. Eu não quis dizer nada de mal.  Pensa que Mão de Ferro cantaria, se eu lhe pedisse?

-  Hum! - resmungou Hobble-Frank, fazendo uma careta de incredulidade.

-  E Winnetou?

-  Este, de modo nenhum. Ele é grande em todas as coisas e assim estou convencido de que é também um eminente cantor. Mas, para falar francamente, não posso imaginá-lo cantando.

-  Realmente não pode?

- Não posso. Imagine este célebre cacique, com as pernas escanchadas e com a boca escancarada, de pé numa sala de concertos, cantando a maviosa canção: "Boa lua, tu descambas tão tranqüila atrás da pedreira do vizinho."  Pode imaginá-lo assim?

-  O que o senhor está dizendo não deixa de ter sua razão. Mas, em todo caso, os índios cantam?

-  Naturalmente. Já ouvi diversos cantar.

-  Como era isto? O que foi que cantaram? Foi a uma voz ou a diversas vozes? É muito importante para mim saber estas coisas.

-  Escute, esta é mais uma das suas perguntas estranhas. Quando canta um só é claro que é só uma voz. Ou pensa talvez que um homem só pode cantar com oito vozes? E quando doze estão cantando, então serão doze vozes a cantar. Isto até um polícia deveria compreender. E como aquilo soava, quer saber? Ora, não inteiramente como nos grandes compositores: Mozart, Galvani e Correggio. Não é fácil descrevê-lo. Imagine uns grandes foles de ferreiro, nos quais estejam metidos um urso polar, um peru e três porquinhos. Comece então a puxar e a comprimir e ouvirá alguma coisa que se parecerá exatamente com uma genuína opereta indígena.  Compreendeu?

-  Sim, senhor.  O seu exemplo é bastante expressivo.

-  Bem, e que quer então de Mão de Ferro e de Winnetou? Por que devem estes dois cantar?

-  Porque eu queria saber que vozes eles têm.

-  Boas vozes, naturalmente, muito belas vozes até. Pois pensar o contrário seria uma ofensa para eles.

-  Eu não quero saber se suas vozes são boas ou não. Quero saber, sim, se eles cantam como tenor, barítono ou baixo.

-  Tem muita necessidade de saber isto?

-  Sim. Porque serão eles os heróis principais da minha ópera; devo pois saber a situação exata das suas vozes.

-  Absurdo! A situação de suas vozes! A voz está situada invariavelmente na garganta. Onde é que poderia estar? Não vi ainda homem nenhum que cantasse com o estômago ou com o cotovelo. O senhor que pretende "comprimir" uma ópera de doze atos deveria sabê-lo. E ainda devo censurar-lhe por querer saber tudo de antemão. Absolutamente não é preciso. Mão de Ferro e Winnetou representarão e contarão. Pois bem. Aguarde isto simplesmente e logo ouvirá se eles cantam como tenor, baixo ou barítono. Não é absolutamente preciso incomodar-se por causa disto, adiantadamente.

-  O senhor está enganado. Tudo o que deverá ser cantado, eu tenho que compor antes.

-  Naturalmente. Este é o seu dever como compositor.

-  Logo devo saber se tenho que pôr o canto no baixo ou no tenor.

-  Ponha-o na partitura; é este o seu lugar. O maestro o julgará se ele entende de música - e espero que assim aconteça.

-  Mas - declarou o cantor solícito - justamente antes que eu comece a trabalhar na partitura, devo saber da situação da voz...

-  Deixe-me em paz com a sua "situação da voz" - interrompeu-o Frank, amuado. - Eu já lhe disse que a voz fica na garganta. O senhor também possui uma espécie rara de juízo!... Nem é necessário que eu o diga duas vezes. Fique sabendo que a verdadeira sabedoria não precisa ser nunca repetida.

O cantor abriu a boca para responder, mas Hobble-Frank prosseguiu muito depressa:

-  Cale-se. Deixe-me terminar. O conselho que lhe dou é excelente e vai poupar-lhe tempo, preocupações e trabalho. "Comprima" tranqüilamente sua ópera heróica. Não se preocupe com o tenor ou com o baixo, pois quando a cortina se levantar e os atores começarem a cantar, ficará logo claro se eles servem para o tenor ou se nasceram para o contrabaixo. Deve ser exclusivamente assunto dos cantores se eles querem cantar alto ou baixo. Eu pelo menos não me deixarei impor nenhum tenor, se eu tivesse na garganta um baixo de violão. Pode acreditar nisto, senhor. Eu sou o homem apropriado para julgar estas coisas, pois quando naquele tempo eu trabalhava em Moritzburg como aprendiz de monteiro, fui membro da sociedade de canto de lá e até exercia um cargo de confiança, o de fechar sob a chave, depois da hora de exercícios, os livros de musica e a batuta, o que também tem a sua importância.

Hobble-Frank teria com prazer prolongado sua instrutiva conversa; mas neste momento voltaram Winnetou e Mão de Ferro. Este último ordenou aos acampados que se preparassem para a partida. Ele comunicou aos homens do Oeste:

-  Seguimos por muito tempo a pista dos nijoras. Eles parecem dirigir-se ao Rio Chelly, o que nos agrada muito, pois que este rio está no nosso itinerário.

 

Em Poder dos Nijoras

O grupo se pôs em movimento. Não havia nenhuma utilidade no fechamento da entrada da caverna.  Deixaram-na, pois, aberta.

Atravessado o desfiladeiro, dirigiu-se Winnetou, que ia na frente, para o mato onde os nijoras passaram a noite. A pista deles foi alcançada; e ela se dirigia para cima, até o cume, e depois descia doutro lado para um vale comprido que terminava numa savana lisa. Esta última era de dimensões tais que não se podiam ver os seus confins. A pista dos índios conduzia diretamente para esta planície.

Aí não existia o perigo de serem de improviso assaltados pelo inimigo, pois toda a aproximação era visível de longe. Por isto os chefes da caravana permitiram que os seus companheiros se movessem inteiramente à vontade e que conversassem em voz alta.

As informações prestadas por Hobble-Frank não tiveram o poder de satisfazer ao cantor, por isto este voltou para junto daquele e perguntou.

-  Sr. Hobble-Frank, não me faria o senhor um obséquio?

-  E por que não? Qual é?

-  Notei que o senhor está em boas relações com Mão de Ferro. Ao senhor ele talvez faça o favor que a mim recusaria. Peça-o para cantar uma canção, mesmo que seja uma só estrofe.   Quer fazê-lo?

-  Não, caro amigo, não quero. Não posso, de modo algum, esperar que ele o faça. Ele me daria uma recusa desagradabilíssima. Por isto será preferível que o senhor o tente sozinho, em pessoa. Não pretendo queimar-me os dedos. O senhor fala sempre apenas da música da sua ópera e não menciona o texto. Já o tem?

-  Não.

-  Mas então não há tempo a perder. Dirija-se imediatamente a um poeta que possua o necessário talento.

-  Pretendo eu mesmo compor o texto. Além do mais, eu procuraria aqui em vão por um poeta.

-  É assim? Será possível? Pensa então que não há aqui nenhum poeta?

- Sim.

-  Escute.   O senhor está sofrendo de uma ilusão da qual o devo curar.   É preciso que saiba que há entre nós um poeta.

-  Realmente? Quem será?

Hobble-Frank  apontou  então o seu dedo indicador  para si  mesmo e pronunciou com grande importância a pequena palavrinha:   EU!

-  Ah, está falando de si mesmo?   O senhor sabe fazer versos?

-  E que versos!

-  Incrível!

 

Hobble-Prank apontou então  o  seu dedo indicador para si mesmo. . .

 

-  O que, incrível? Sei tudo! Já é tempo que o senhor note isto. Diga-me uma palavra e eu lhe direi logo vinte que rimarão com ela. No máximo, com duas ou três eu lhe componho um texto de ópera de primeira. Se o senhor duvida disto, dou-lhe licença de me pôr à prova.

-  De pô-lo à prova!   O senhor me levaria a mal.

-  Que idéia! Como pode o leão ou a águia levar a mal, no mínimo que seja, a um pardal? Portanto façamos uma experiência; diga-me em confiança o assunto a versejar.

-  Pois bem, façamos uma tentativa. Imagine o primeiro ato da minha ópera. A cortina sobe: vê-se uma grande floresta virgem. No meio desta está Winnetou deitado no solo, rastejando, a fim de espiar um inimigo.   Que cantaria ele?

— Cantar? Absolutamente nada, é claro.

-  Nada? Por quê? Ele deve cantar alguma coisa. Quando a cortina sobe o público quer ouvir algo.

-  Este público é bem estúpido então. Winnetou - a rastejar para se aproximar de um inimigo - e cantar! É ótimo! Pois não vê que o inimigo o ouviria e botaria sebo nas canelas?

-  Sim, aqui no Oeste bravio. Mas nós estamos falando do palco. Ele deve cantar, deve absolutamente cantar.

-  Pois bem, se realmente deve, se for absolutamente necessário que ele deixe que sua voz ressoe - então, por mim, que cante.

-  Mas que palavras? O público não o conhece ainda, o seu canto deve portanto dizer quem ele é.

-  Lindo! Já estou pronto. Ele rasteja, pois, no chão e canta ao mesmo tempo:

"O grande Winnetou eu sou,

Na América nasci,

Arrastando-me na relva vou

De barriga por aí.

Tenho bons olhos na espreita,

Finas orelhas à esquerda e à direita,

Com meu nariz tudo farejo -

Por atacado e a varejo."

 

Depois de recitar estas rimas, lançou um olhar triunfante ao cantor, como se aguardasse o mais alto reconhecimento. Quando viu, porém, que o cantor permanecia silencioso, ele perguntou:

-  Que é que diz agora?  Está encantado, não é?

-  Não - confessou o interrogado.

-  Não? Espero que o senhor saiba apreciar o que ouviu com o devido respeito.   Dê a sua opinião.

-  Eu o ofenderia.

-  Não. Não existe criatura abaixo de mim que me possa ofender. Estou planando "espirituosamente" acima dela.

-  Bem, então saiba que esses versos não valem nada, são de pé quebrado. Que Winnetou nasceu na América, que ele tem olhos, que ele cheira tudo com o nariz e não com os ouvidos, que estes últimos se encontram ao lado esquerdo e direito da sua cabeça, que ele não rasteja de costas e sim de barriga... isto tudo é tão natural que nem é preciso dizê-lo e ainda muito menos cantá-lo. Por isto peço-lhe: faça um outro verso.

Quando Hobble-Frank ouviu esta apreciação, os seus olhos ficaram cada vez maiores, as sobrancelhas franziram-se, tossiu um pouco como se acreditasse não ter ouvido bem, abriu enfim a boca e explodiu:

-  Que é que está a dizer aí? Que coisa eu fiz? Versos de pé quebrado?

-  Sim; é assim que se costumam chamar tais versos, Sr. Hobble-Frank - respondeu o cantor despreocupadamente.

-  Versos de pé quebrado, versos de pé quebrado! Já se ouviu tal coisa? Eu, o famoso caçador das Pradarias, homem do Oeste, Hobble-Frank, fiz versos de pé quebrado! Isto é o cúmulo. Isto não me disse ainda ninguém, ninguém! Primeiro o senhor quer saber quem é Winnetou e o que ele quer, e quando então lho digo, diz o senhor que foi supérfluo. Vou dizer-lhe sinceramente: o senhor mesmo é supérfluo. Por que não exerce mais suas funções de cantor? Porque é supérfluo, porque é um apartado, segregado e fracassado. Eu, porém, encontro-me ainda na minha profissão de caçador e moro daqui em diante, para o senhor, no país dos espíritos felizes e dos companheiros dos divertimentos olímpicos, num país no qual o senhor nunca poderá chegar!

Ele fincou as esporas no cavalo e foi-se embora a galope savana adentro.

-  Pára, Frank! Aonde queres ir? - gritou atrás dele Tia Droll.

-  Quero escapar do vosso horizonte mental - respondeu aquele.

-  Então segura-te bem e não caias no outro lado do horizonte!

O pequeno e encolerizado indivíduo teria ido adiante se Mão de Ferro não lhe tivesse mandado voltar imediatamente. Ele obedeceu e foi para junto de Droll.

-  Que foi que houve? - perguntou este. - Estás com uma cara furiosa. Te zangaste de novo?

-  Cala-te. Não te insurjas contra a minha paciência e a minha infinita tolerância. Fui ridicularizado e mal compreendido de uma maneira que todos os meus cabelos se arrepiaram.

-  Por quem?

-  Pelo ex-tocador de órgão e cantor.

-  Ele te ofendeu?

-  Muitíssimo, segundo Celsius.

-  De que maneira?

-  Isto tu não precisas saber, tia velha, gorda curiosa!

Droll riu-se em voz baixa e à socapa, e calou-se. Ele sabia que o melhor era abandonar tranqüilamente Hobble-Frank à sua raiva, que costumava desfazer-se logo em fumaça.

Passada uma hora terminou a savana pela qual eles cavalgavam. Desapareceu a grama e toda e qualquer planta. Consistia agora o chão em pura rocha na qual nada podia crescer. Achavam-se num planalto do Colorado, que forma neste rio e nos seus afluentes íngremes gargantas e corredores. Aí eram necessários excelentes olhos se não quisessem perder o rasto dos nijoras.

 

Achavam-se  num  planalto do  Colorado. . .

 

Pelo meio-dia, fizeram alto por causa das mulheres e das crianças. Foi-lhes concedido um descanso de duas horas; depois seguiram para a frente até que nas proximidades da noite o apache parou e de novo apeou. Mão de Ferro fez o mesmo.

-  Por que parar aqui? - perguntou Sam Hawkens. - Vamos passar a noite neste lugar absolutamente ermo, que não é apropriado para isto?

-  Não - retrucou o apache - a cautela manda-nos esperar aqui até que esteja escuro.

-  Por quê?

-  Porque temos apenas meia hora a cavalo daqui para o Chelly. Lá há um mato no qual os nijoras provavelmente acamparão. Como o terreno é plano, eles nos veriam, ao chegarmos, e se esconderiam. Por isto é preciso que aguardemos a chegada da noite para que não nos notem.

-  Mas então também nós não os poderemos ver.

-  Nós os encontraremos, se não hoje, pelo menos amanhã com toda certeza.

Os outros apearam também e acamparam num círculo. Na parte norte do horizonte viam-se alguns abutres no ar. Davam voltas muito pequenas.  Mão de Ferro chamou a atenção para estas aves e disse:

-  Onde há abutres, há carniça ou outro alimento. Eles não se afastam, ficam no mesmo lugar. Há, portanto, lá, presa para eles. Suponho que os nijoras tenham lá, o seu acampamento.

-  O  meu   irmão  branco  calculou   bem  -  concordou   Winnetou.

-  As aves nos estão mostrando o caminho. Ainda hoje rastejaremos perto do seu acampamento.

-  Devemos, entretanto, ter muita cautela. Estes trinta nijoras fizeram a grande distância desde o Gloomy Water até o Chelly sem parar. Quando batedores fazem isto, já se sabe o que significa: eles voltaram para o lugar donde vieram. Presumo por isto que lá no Rio Chelly estão reunidos todos os guerreiros da tribo dos nijoras, para darem início à campanha contra os navajos.

-  Neste caso, os prisioneiros lhes seriam entregues e seria agora duplamente difícil e perigoso querer libertá-los - disse Sam.

-  Eles serão libertados - afirmou Winnetou com seu modo decisivo. -  Mas do nosso lado não deverá haver nenhuma imprudência.

Quando o dia já havia avançado tanto que dentro de um quarto de hora viria o crepúsculo, eles cavalgaram adiante. Ainda antes do escurecer, via-se no horizonte norte um distinto traço preto.

-  Este é o mato do Rio Chelly - declarou Mão de Ferro. - Fiquem parados  aqui.   Irei   adiante sozinho,   até  que  eu  o   possa observar com meu binóculo.  Um só cavaleiro não poderá ser visto de lá com a mesma.facilidade que um grupo inteiro.

Ele troteou afastando-se e mais adiante estacou. Via-se que ele dirigia o seu “canudo” em direção ao mato. Em seguida voltou e disse:

-  Devem saber que o Rio Chelly tem agora água. Ele corre lá para onde nos estamos dirigindo, num profundo vale, cujas paredes íngremes estão cobertas de mato. Como, porém, a umidade só pode ir até o vale e não além dele, este mato estende-se somente até a margem de cima do vale e não pela planície.  Forma este mato, em cima da barranca do rio, uma orla muito estreita que tratei de examinar com o meu binóculo. Se os nijoras estivessem acampados lá em cima, eu os deveria ter visto. Eles encontrar-se-ão, por conseguinte, no fundo do vale junto do rio. Vamos, pois, adiante.

O crepúsculo é, naquelas regiões, muito curto. Em breve estava escuro e agora podiam ter certeza de que, da margem do vale, não os poderiam perceber. Só depois de passado mais um quarto de hora percebia-se, pelo ruído que faziam os cascos dos cavalos, que o chão estava coberto de relva. Logo em seguida foi alcançada a orla do mato. Aí pararam e apearam.

Nem se podia pensar em acender fogo. Por causa da proximidade dos índios, foi necessário que ficassem na escuridão e à distância tal que, se casualmente um cavalo relinchasse, ele não pudesse ser ouvido. Por isso era naturalmente necessário que examinassem com cuidado as redondezas. Mão de Ferro e Winnetou estavam convencidos de não se encontrarem longe do lugar onde os abutres haviam voado; os índios deviam, pois, se achar bem próximos. Os dois amigos foram espiar. Eles penetraram no mato e passou-se mais de meia hora antes que um deles, isto é, Mão de Ferro, voltasse.

- Estamos exatamente no lugar preciso. É realmente admirável a perspicácia com que o apache nos conduziu. A orla do mato tem aqui apenas trinta passos de largura, depois desce para o vale. Avançamos bastante longe, o que na escuridão não é coisa fácil, e vimos então fogos; contamos três, mas é possível que ardam outros mais que não conseguimos ver. Desta quantidade de

 

. . . e vimos então fogos. . .

 

fogos, conclui-se que não somente os trinta batedores e sim todos os guerreiros dos nijoras se encontram lá em baixo. Se quisermos libertar os prisioneiros, teremos muitas dificuldades a vencer.

-  E onde está Winnetou? - perguntou Dick Stone.

-  Eu voltei para lhes prestar conta. Se ambos ficássemos ausentes por mais tempo, vocês podiam facilmente inquietar-se. O apache foi até o fundo do vale para se orientar bem. Acho que ele não voltará antes de uma hora. O terreno é dificílimo e espiar um acampamento no qual ardem tantos fogos, exige bastante prudência e muito tempo.

Não havia exagerado, pois passaram-se quase duas horas até que o apache se deixasse ver.   Ele sentou-se ao lado de Mão de Ferro e disse:

-  Winnetou viu, além dos três fogos, mais dois outros. Há, portanto, cinco fogos nos quais estão acampados possivelmente mais de trezentos guerreiros.

-  Exatamente como pensávamos.   Quem é o chefe?   Descobriste-o?

-  Sim, é Mokachi, a quem tu também conheces.

-  O Búfalo, um guerreiro que eu respeito. Se nós viéssemos como amigos ele certamente nos receberia não com inimizade.

-  Visto que queremos libertar os prisioneiros, somos seus inimigos e não nos podemos deixar ver, nem por ele, nem por sua gente. Minha vista alcançou os prisioneiros.

-  Todos?

-  Sim, oito navajos e três caras-pálidas. Eles estão deitados junto de um dos fogos e cercados por um círculo duplo de guerreiros.

-  Isso não é uma boa notícia!   Será difícil libertá-los.

- É mais do que difícil, é simplesmente impossível. Não poderemos fazer coisa alguma hoje. Temos que esperar até amanhã.

-  Concordo com o meu irmão vermelho. Seria loucura arriscar a nossa vida se o êxito é de tal modo incerto.

- Permitam-me dizer que não compreendo esta resolução - falou Hawkens. - Acreditam que amanhã será melhor do que hoje?

- Seguramente.

-  De que maneira?   As perspectivas não serão melhores que hoje.

- Como não! Não és de nossa opinião que os nijoras pretendem fazer uma expedição contra os navajos?

-  Naturalmente.

-  Julgas então que eles vão levar consigo prisioneiros que somente os poderão incomodar?

-  Hum!   É verdade que não é possível supor que eles o façam.

-  Então eles os deixarão na retaguarda, sob os cuidados de uma guarda. E nós teremos o jogo muito mais fácil que hoje.

-  Assim eu compreendo. Nem pensei nisto, se não me engano. Se a gente soubesse exatamente quando eles se vão!

-  Suponho que amanhã.

-  Seria bom. Se, porém, ficarem aqui, correremos o perigo de sermos descobertos por eles.

-  Devemos correr este risco.

-  Claro, mas isto a gente diz mais facilmente do que faz. Aqui em cima não há água. Os cavalos pouco sofrem, pois encontram grama. Mas, e nós? No Gloomy Water não pudemos beber por causa do óleo; hoje, durante toda a viagem, não se encontrou uma gota. E se também amanhã não pudermos beber? Estou preocupadíssimo pelas mulheres e pelas crianças; de nós próprios nem quero falar.

-  Oh, mas deve-se também falar de nós - atalhou nesta altura Hobble-Frank. - Por enquanto não somos ainda almas imortais e, sim, homens cuja mortalidade é um factótum provado. Todo ser mortal, porém, deve beber água, e eu confesso, de acordo como a verdade, que tenho tanta sede que pagaria com prazer três marcos por alguns goles d’água ou por um chope.

Aí o cantor não se pôde mais conter e assegurou-lhe com pesar:

-  Isso me causa enorme lástima, Sr. Hobble-Frank. Se eu tivesse água, reparti-la-ia consigo com o maior gosto.

Era um homem de ótima índole e já se arrependera há muito tempo de ter incomodado Hobble-Frank. Com este, que não era menos bondoso, ocorria a mesma coisa. Ele dizia, com os seus botões, que havia sido demasiadamente grosseiro com o cantor; estava, portanto, disposto a fazer as pazes com ele, mas não achava compatível com a sua dignidade deixá-lo perceber. Por isso respondeu:

-  Como sabe que eu aceitaria tal obséquio do senhor?

-  Assim o creio!

-  Não o creia. Por grande que seja a minha sede, o meu caráter é ainda muito maior. Mesmo que o senhor me trouxesse para cá o oceano inteiro, eu não tocaria em nenhuma gota. Saiba que com aquilo dos "versos de pé quebrado" repeliu o seu melhor amigo. Isto representa para o senhor uma perda muito grande. Isso é triste, mas é a dura realidade, e eu não posso ajudar-lhe ainda que o quisesse.

O cantor ficou de tal modo impressionado que não se pôde livrar dos pensamentos que estas palavras provocavam nele. Quando todos haviam comido e se deitado, só ele não podia dormir. Perguntava-se como seria possível agradar a Frank. Veio-lhe então uma idéia que ele considerou de todo excelente, embora não fosse possível haver uma idéia mais tola. Frank se havia queixado de sede e dissera que pagaria três marcos por alguns goles d'água. E se ele conseguisse lhe matar a sede? Isto com certeza o comoveria, tanto mais que arranjar água não era somente difícil e, sim, até perigoso. Em baixo, no vale, estava o rio e ele, o cantor, tinha um copo de couro. Estava terminantemente proibido de descer até lá. Se ele quisesse fazê-lo, teria que ser escondido. Ergueu-se um pouco e escutou. Todos dormiam, exceto Dick Stone, que estava agora de sentinela; este se encontrava de momento junto dos cavalos.

O aposentado tinha debaixo da cabeça a sela como travesseiro. No bolso da sela estava o copo. Ele o tirou e se afastou, rastejando sem ruído por entre as árvores.

Arrastando-se, afastou-se cada vez mais, até que, a certa altura, julgou que Dick Stone não o poderia mais ouvir nem ver. Então se levantou e continuou o seu caminho apalpando as árvores. O chão plano terminava, o mato abaixava-se para o vale. Só então é que começaram as dificuldades. Ele se voltou e começou a descer, de gatinhas, colocando primeiro os pés que apalpavam cautelosamente o terreno, e assim foi avançando vagarosamente. Extraordinariamente devagar. Só dava um passo quando tinha antes, com o outro pé, examinado o terreno. Havia pedras ásperas e plantas trepadeiras espinhosas, nas quais ele feriu as mãos. Isso não o preocupava. Quanto mais longe estava tanto mais crescia sua vontade de levar a cabo a empresa. Por vezes perdia o pé e escorregava um trecho. Isto não acontecia sem ruído; mas ele, de tanta solicitude nem percebia o rolar das pedras soltas nem o estalar dos galhos que se quebravam.

Já então via o aposentado os fogos arder. Ele acreditava já ter ganho a partida e descia cada vez mais apressadamente. Estava se aproximando dos fogos. Não percebia que de lá estavam atentos e que cinco ou seis índios, que ouviram o ruído, vinham silenciosamente ao seu encontro. Pararam e escutaram.  Ele respirava tão forte que eles o podiam ouvir distintamente.

-  Uff! - cochichou um deles. - Isso não é animal nenhum e sim um homem.

-  Não são vários? - perguntou um outro.

-  Não, é um só.  Peguemo-lo sem o matar.

Agora o cantor estava bem próximo deles. Eles se curvaram para tê-lo contra o fogo e diante dos seus olhos. Viram-no bem e se convenceram de que ele estava só. Estenderam as mãos. Quando se sentiu agarrado tão repentinamente, levou o cantor um susto tão terrível que não proferiu nenhuma palavra. Gritaram-lhe algumas palavras que ele, entretanto, não compreendeu. Muito melhor, porém, entendeu ele a linguagem das facas, cujas pontas, como sentia, estavam postas no seu peito. Nem pensou em defender-se; ele seguiu, quando foi puxado, sem resistência nenhuma. Pode-se imaginar que sensação sua aparência causou no acampamento. Mas foi uma sensação silenciosa. Um branco havia rastejado nas proximidades do acampamento e fora preso. Ele não podia estar só na região. Tinha que ter companheiros que estariam nas vizinhanças: era preciso evitar todo ruído.

Formou-se imediatamente em torno dele um círculo de vermelhos. Nenhum deles disse uma palavra sequer. Junto dele, no meio do círculo, estava Mokachi, o cacique. Este fez sem demora o que qualquer chefe cauteloso faria; enviou alguns batedores que deviam examinar as redondezas do acampamento. Depois ele perguntou ao preso o seu nome e quais as suas intenções. O cantor não compreendeu palavra e disse o que ele julgou necessário dizer em alemão.  O cacique concluiu:

-  Ele não conhece nossa língua e nós não compreendemos a sua. Vamos  mostrá-lo aos três caras-pálidas presos, talvez eles o conheçam.

O círculo abriu-se e o aposentado foi levado ao fogo, perto do qual os brancos acampavam. Quando estes o avistaram, exclamou Poller surpreso:

-  É o cantor alemão, aquele indivíduo maluco. O tipo deve ter escapado do pueblo no qual se achava preso.

Ele disse isto numa mistura de inglês e idioma indígena que o cantor não entendeu. Entretanto, notou este que as palavras lhe diziam respeito. Ele reconheceu o antigo guia do comboio de carretas e disse em alemão, língua que Poller falava:

-  Alô! Mas este é o nosso guia. E ainda por cima amarrado! Herr Poller, como foi que caiu nesta medonha situação? Naturalmente, folgo muitíssimo em tornar a vê-lo.

-  Estes tipos nos prenderam - respondeu o interrogado.

O cacique, porém, cortou rapidamente a conversa, ameaçando:

 

O círculo abriu-se e o aposentado foi levado ao fogo, perto do qual os brancos acampavam.

 

-  Não devem falar um idioma que não compreendo. Quererão, porventura, que enterremos nossas facas em seus corpos? Conhece este homem?

-  Sim.  É um homem da Alemanha.

-  Alemanha?   É este o país onde nasceu Mão de Ferro?

-  Sim.

-  Então ele é igualmente um famoso caçador?

-  Não. Ele não compreende o manejo de nenhuma arma. Ele quer fazer música e cantar.  Ele é louco.

Imediatamente o cacique olhou para o cantor com olhos muito apertados e hostis. Há muitos povos selvagens que não só sentem pena dos loucos e não os desprezam, mas até lhes prestam veneração. Eles são de opinião que algum espírito ou ser sobrenatural tenha tomado posse do alienado. Também diversas tribos de índios professam esta opinião e não ousam fazer mal a um louco, ainda que ele pertença a um povo inimigo. Por isso o cacique continuou a se informar:

-  Sabes com certeza que este homem não tem mais juízo?

-  Com toda certeza - respondeu Poller, a quem veio a idéia de tirar vantagem desta circunstância. - Eu viajei muito tempo com ele e com seus companheiros.

.   - Quem eram eles?

-  Também alemães, que atravessaram o mar para comprar terras que pertencem aos peles-vermelhas.

-  Isto é uma inspiração do mau espírito, pois se eles comprarem terras, estas terras nos serão roubadas, e não nós e sim os ladrões de terras recebem o dinheiro. Todo aquele que vier aqui para comprar terra é nosso inimigo.  Este homem quer também terras?

-  Não! Ele quer conhecer homens e heróis vermelhos para depois voltar à sua pátria e cantar canções sobre eles.

  Então ele não nos é absolutamente perigoso. Permitir-lhe-ei cantar quanto quiser. Mas onde estão os seus companheiros?

-  Não sei.

-  Pergunta-lhe.

-  Não posso.

-  Por quê?

-  Porque tu nos proibiste de falar o que tu não compreendes. Ele fala apenas a língua da sua terra; nesta língua eu devia pois falar com ele e então teria como resultado, como disseste, que vocês me enterrassem as facas no corpo.

-  Se isto for verdade, deves falar com ele na sua língua; eu permito.

- Nisto fazes bem, pois saberás por meu intermédio coisas muito importantes.

-  Que coisas?

- Os imigrantes, dos quais ele faz parte, não estão sós. Há famosos caçadores com eles que talvez se encontrem aqui nas proximidades. Eles devem estar aqui, pois é inconcebível que ele, que é louco e que nada compreende, possa ter vindo aqui absolutamente só.

-  Uff!   Caçadores de fama. Queres dizer caras-pálidas?

-  Sim. Sam Hawkens, Dick Stone, Will Parker, Droll, Hobble-Frank e talvez ainda outros.

-  Uff, uff, uff! Todos estes são nomes famosos. Estes homens não foram nunca nossos inimigos, é verdade, mas agora que a machadinha de guerra foi desenterrada, deve-se ser dez vezes mais cauteloso. Quero saber onde eles se encontram. Mas cuida-te de não me pregares uma mentira.   Logo que saia de tua boca uma inverdade, estás perdido.

- Não te preocupes! Tu nos trataste como inimigos; mas eu te provarei, apesar disto, que somos teus amigos. Posso até dar agora mesmo a prova da nossa amizade, dizendo-te que nos esforçamos para fazer com que estes guerreiros brancos não os pudessem prejudicar.

-  Como podias ter feito isto?

-  Nós os atraímos para o pueblo do cacique Ka Maku.

-  Ah!   Ka Maku é nosso irmão.  Eles entraram lá?

-  Sim. Ele os prendeu a todos, os caçadores brancos, os imigrantes e suas mulheres e crianças.

-  Também este louco aqui?

-  Sim.

-  E agora ele se encontra conosco! Não é possível que ele tenha feito sozinho esta longa caminhada. Quero saber que gente havia com ele e onde se acham.

-  Devo perguntá-lo?

-  Sim. Mas não me queiras enganar. Qualquer que seja a coisa que me digas, não acreditarei em nenhuma palavra tua até que possa certificar-me se não mentes.

Então Poller dirigiu-se ao cantor e o convidou a contar tudo.

Depois de resistir um pouco, este fez a narração sem se importar com a maneira de agir de Poller no passado e sem se lembrar que devia considerá-lo inimigo. O ex-guia dos imigrantes ouvia falar com assombro de Mão de Ferro e Winnetou. A narração do aposentado foi interrompida pelo cacique desconfiado, que não quis mais ouvir o longo diálogo do qual ele não compreendia nenhuma palavra. Poller, porém, o tranqüilizou com a asserção:

-  Ele está me dizendo coisas que para ti são importantíssimas. Tenho que interrogar este maluco, o que exige longo tempo, porque a razão não está inteiramente com ele. Deixa-me portanto falar; tu verás, depois, que estou agindo como teu amigo.

Por fim o cantor terminou sua narração; Poller sabia tudo e dirigiu-se ao cacique:

-  Deves saber logo a coisa mais importante: lá em cima encontram-se Mão de Ferro e Winnetou.

- Uff, uff!   Tu falas a verdade?

-  É assim como digo.  Eles vieram para te assaltar.

-  Nesse caso serão mortos. Donde vêm eles, onde estão exatamente e quantos homens há com eles?

Poller deu-lhe informações precisas, pois nem pensava em mentir ao cacique. Não pretendia enganá-lo, pois contava com a gratidão dos vermelhos. Os mais iminentes guerreiros estavam perto e ouviram as palavras de Poller. Quando este, com suas informações, chegou ao fim, ficou o cacique por algum tempo pensativo, olhando para o chão diante de si e disse depois, dirigindo-se aos índios:

-  Os meus irmãos ouviram o que disse este cara-pálida. Mas as línguas dos brancos têm duas pontas das quais uma termina com o embuste e a outra com a falsidade. Devemos primeiro nos certificar se os nossos ouvidos ouviram a verdade ou a mentira. Subirão, pois, a barranca batedores que eu escolherei.

Ele foi de fogo em fogo a fim de indicar os guerreiros que julgava capazes de se aproximarem em segredo de homens como Winnetou e Mão de Ferro. Depois estes guerreiros se afastaram cautelosamente, armados somente de facas. Em seguida voltou o cacique a Poller e disse, indicando o cantor:

-  Visto que este cara-pálida está possuído por um espírito que nada exige senão poder cantar, não lhe faremos mal nenhum. Ele poderá andar, livremente, para onde quiser; mas logo que tente fugir, receberá uma bala. Diga-lhe isto.

Poller naturalmente obedeceu. Quando o aposentado o ouviu, disse rejubilando-se:

-  O senhor vê que tive razão? Para um adepto da arte não existem perigos; as musas me protegem. Fique sabendo que nós, compositores, não somos homens comuns.

A Poller irritou esta grande presunção e respondeu:

- Nem se pode falar aqui das suas musas. Sim, o senhor está sob uma proteção especial, mas ela é muito diferente.

-  Como assim?

-  Está sob a proteção da demência.

-  De.. . mên. .. cia? - tartamudeou o grande músico. - Dá-me licença de perguntar de que está falando?

-  Por que não! Nenhum índio faz mal a um demente; por isto pode passear aqui quase que livremente.

-  Demente? Passear?   O senhor não quererá dizer que... Ele olhava fixamente o rosto de Poller.

-  Sim, quero dizer isto mesmo - assentiu este.

-  Que.. . sou considerado louco?

-  É este o caso com toda a certeza. Estes vermelhos o consideram louco.

-  Mas por quê?  Por que motivo?

-  Porque não podem conceber que um homem de juízo atravesse o mar e venha ao Oeste bravio só para fazer música sobre a gente que irá ver aí.

-  Fazer música? Mas, Sr. Poller, o senhor se serviu de uma expressão totalmente errada. Música faz um violinista num bar de chope ou então um tocador de realejo. Eu, porém, sou compositor è criarei uma ópera heróica de doze atos e o senhor terá a honra de figurar nela também.

-  Muito obrigado e peço o obséquio de me deixar fora. Os índios têm, aliás, muita razão, e, para falar francamente, terei que dizer-lhe que o senhor parece ter uma racha no cérebro, e esta racha não deve ser muito pequena.

-- Como?   Realmente pensa assim?

-  Sim; mas não precisa levar a mal isto que digo, pois entre os índios é considerado uma honra ser amalucado.

-  Agradeço essa honra; agradeço muito. Prefiro estar deitado no chão, amarrado como o senhor, mas ser considerado homem de perfeito juízo. Diga isto ao cacique.

-  Que idéia absurda! O fato de ter licença para se mover livremente pode nos ser de extraordinária utilidade. Não abuse, entretanto, desta liberdade; não tenha, por exemplo, a idéia de se afastar. Matá-lo-iam imediatamente.

-- Qual! Ninguém pensa em matar-me. Estou sob a proteção da arte.

-  Cem mil diabos, deixe a arte em paz! Por mim, pode pensar o que quiser; mas não esqueça aqueles que lhe são úteis e a quem o senhor pode ser de utilidade. Está vendo como o cacique olha para o nosso lado e como ele nos observa? Não podemos conversar muito, senão ele terá suspeitas. Repare um pouco mais tarde. Se eu lhe acenar, tenho qualquer coisa a dizer-lhe. E então o senhor se aproximará de mim tão desembaraçadamente quanto possível, mas não me olhará e ficará perto de mim até que tenha ouvido o que eu quero comunicar-lhe. Isto será de grande utilidade para os seus amigos.  Quer fazer o que lhe digo?

-  Com muito prazer, Sr. Poller. Ainda que nós, adeptos da arte, vivamos numa região superior e mais tarde pertençamos à posteridade e à História - não me orgulho absolutamente disso e quando posso ser útil a alguém na vida ordinária, não me nego nunca a descer da altura em que me encontro.

Poller teve ímpetos de responder com impropérios; reconsiderou, porém, o caso e resolveu dominar-se dizendo:

-  O senhor foi desarmado; mas arranje uma faca em segredo, bem em segredo. Espero que seja bastante esperto para poder realizar este meu desejo.

-  Esperto? Que dúvida! Um compositor sem esperteza é uma absoluta impossibilidade. Mas para que quer a faca?

Esta pergunta não demonstrava excesso de esperteza - isto Poller lhe teria dito com muito gosto; mas receava ofendê-lo e retrucou:

-  Para libertar a mim e a seus companheiros.

-  Mas eles não estão presos!

-  Isto eu sei perfeitamente, porém não se pode prever ainda o que está por acontecer. Eu informei o cacique de um modo inteiramente falso, entretanto, poderá o menor acaso pôr os batedores na pista certa. Se assim for, é bem possível que os seus amigos sejam presos, isso se não acontecer coisa pior. Só os poderíamos salvar se o senhor me arranjasse, secretamente, uma faca. Falta tempo agora para lhe explicar bem para que preciso eu a faca.   Não devemos conversar por mais  tempo.   Então, quer?

-  Sim, se eu deste modo posso ser útil aos meus amigos não discutirei e serei, por uma vez, gatuno roubando uma faca aos vermelhos.

Poller tinha razão, pois o cacique levantou-se do lugar em que estava sentado e se aproximou, a fim de separar os dois. No entanto, a sua atenção fora desviada, pois os batedores voltaram naquele momento. Eles o informaram que tudo era exatamente assim como o havia dito Poller.

-  É a sorte dele - disse o cacique. - Se ele tivesse mentido eu o mandaria matar ainda esta noite. Ele traiu os caras-pálidas e pensará ter merecido os meus favores; aí, porém, ele se engana, pois um traidor é pior do que o mais perigoso inimigo.

Ele mandou que os batedores lhe contassem detalhadamente tudo o que tinham visto e disse então:

-  Nós os surpreenderemos no sono e, portanto, provavelmente nem precisaremos lutar com eles. Dois guerreiros nossos atacarão cada um deles, Winnetou e Mão de Ferro serão dominados, cada um, por quatro guerreiros; três prenderão a sentinela para que seja dominada rápida e seguramente. Não levaremos as espingardas e, sim, apenas as facas, as machadinhas e correias para amarrá-los. Guerreiros tão grandes e famosos não se matam, pois é para nós uma grande glória levá-los presos aos nossos e para eles uma vergonha ainda muito maior terem caído nas nossas mãos, sem terem lutado e sem terem sofrido sequer uma ferida.

Escolheu os mais valentes e os mais fortes entre os seus homens e partiu com eles. O luar caía em cheio sobre o vale; a luz pálida e fraca, porém, não penetrava pelos cumes das árvores, debaixo e entre as quais o grupo dos vermelhos escolhidos desapareceu para trepar sem ruído, com todas as cautelas, a ladeira.

 

. . .  para trepar sem ruído, com todas as cautelas, a ladeira.

 

Em cima reinava o mais profundo silêncio. Chi-So havia estado de sentinela até há pouco e fora substituído por Droll. Este ia vagarosamente de um lado para outro a fim de se manter acordado depois da marcha forçada. Todos os outros dormiam a sono solto com exceção de Hobble-Frank. Este tivera um sonho excitante, no qual ele altercava com o cantor de tal maneira que se atirou sobre o aposentado para pegá-lo. Nesta altura ele acordou. Abriu os olhos, viu a lua pálida acima de si, sentiu-se contente porque a briga fora apenas sonho e não realidade. Virou-se para o outro lado para ver o aposentado, que se havia deitado não longe dele... e este não estava ali. Teria ele transferido sua "cama" para outro lugar? Isto era improvável. Frank sentou-se olhando em torno, não o via, porém. Contou os que dormiam; faltava um. Então Hobble-Frank despertou o seu vizinho que era, casualmente, Sam Hawkens e lhe cochichou:

- Não leves a mal, Sam, que te arranque do sono.. Mas não vejo o cantor.   Onde estará ele?   Devo acordar os outros?

Sam bocejou um pouco e respondeu em seguida, também falando bem baixo:

-  Despertar? Não, todos precisam dormir. Já que me despertaste c como também estás acordado, vamos resolver o caso a sós. Este incauto com certeza, mais uma vez, afastou-se um pedaço para aproveitar o silêncio e adiantar a sua famosa ópera. Vem. Vamos procurá-lo.

-  Em que direção?

- Para o mato aqui e ladeira abaixo; para onde estão acampados os vermelhos ele, em todo o caso, não arriscaria.

-  Que esperança! Seguramente ele saiu dançando pela planície, para cantar em honra do luar. Para lá vamos. Levaremos as espingardas? É de todo improvável que precisemos delas.

-  Precise ou não, um homem do Oeste não abandona nunca sua espingarda.   Levarei minha Liddy seja para o que for.

Antes que se afastassem, eles se informaram de Droll se não havia notado que o aposentado se ausentara.   Droll assegurou:

-  Ele deve ter saído antes que eu começasse o serviço; façam o possível para encontrá-lo, senão pode facilmente haver alguma encrenca.

-  Não há perigo, vamos trazê-lo, se não me engano - assentiu Sam. - Se seguirmos num semicírculo, teremos que dar necessariamente com a pista dele. É verdade que a lua não brilha muito, mas penso que vamos descobri-lo. Desta vez ele passará mal, se nós o pegarmos.

Hawkens e Frank seguiram certa distância, pela margem, em direção ocidental, para em seguida voltarem, fazendo um semicírculo em sentido contrário. O ponto central daquele semicírculo seria o acampamento deles. Eram obrigados a andar muito inclinados para poderem reconhecer a pista. Como não lobrigassem o cantor, admitiram que ele se tinha afastado a uma boa distância.

 

De  rebente sentiu duas mãos na garganta.

 

Droll seguiu-os com os olhos, até não os ver mais; ele estava preocupado por causa do cantor imprudente e, portanto, sem o querer, dirigiu toda a agudeza dos seus sentidos para a planície. Por isto não viu que três índios saíram da margem do mato e se moveram em sua direção, com passos que não faziam ruído. De repente sentiu duas mãos na garganta. Quis gritar, mas apenas produziu um curto gargarejo. Um golpe dado com as costas de uma machadinha o estendeu no chão sem sentidos.

Sam Hawkens e Hobble tinham já feito dois terços do seu caminho sem encontrar nenhum vestígio do desaparecido, quando perceberam subitamente um alto grito de guerra de Winnetou e apenas um instante depois ressoou a voz de Mão de Ferro:

-  Acordem, o inimigo chegou...

Não pôde prosseguir, as palavras terminaram num gargarejar que chegou até eles.

-  Meu Deus, agora fomos assaltados! Ligeiro para lá! - exclamou Frank e deu uma volta para se dirigir ao acampamento. Mas foi segurado por Sam.

-  Estás louco? - perguntou-lhe este com voz abafada. - Escuta. Tudo está consumado. Não podemos fazer coisa alguma.

Então ressoou um uivo triunfal dos índios.

-  Ouves? - cochichou Sam. - Os nossos amigos foram tomados de surpresa; eles jazem amarrados ali, um ao lado do outro. E se nós soubermos agir, poderemos provavelmente salvá-los.

-  Salvar? Dizes bem.  Dou minha vida para libertá-los.

-  Espero que nem seja preciso tanto. Agora me alegro por me haveres despertado para que procurássemos o cantor. Se isto não tivesse acontecido, nós também estaríamos lá deitados e amarrados junto dos companheiros. Assim, pois, estamos livres, e pelo pouco que conheço o velho Sam, ele não descansará antes que eles estejam soltos, hihihihi!

Hobble estava numa grande excitação e escutava com o corpo inclinado na direção do acampamento, como se estivesse pronto a correr em auxílio. Por isto Sam continuava segurando-o e puxou-o levemente para que o acompanhasse. Chegados ao mato, eles caminharam sorrateiramente na escuridão, ao longo da margem; aí pararam, pois ouviu-se uma ordem muito alta:

-  Uitah arku etente: - Subam os homens!

-  Alto, devemos ficar parados - cochichou Hawkens. - Os homens que o cacique está chamando subirão o declive aí e nós nos encontraremos com eles se formos para a frente. Escuta!

A voz do chefe penetrara até em baixo no vale. Em breve ouvia-se o rolar das pedras, o quebrar e estalar de galhos e o ruído de muitos passos que vinham subindo. Os assaltados de surpresa e dominados seriam levados para baixo, para o vale, com os seus objetos e cavalos, para o que eram precisos mais índios do que em cima.

Agora começou um vozerio de ordens, perguntas e respostas; depois os dois ouviram o ruído das patas dos cavalos e passos que se aproximavam. Viram passar um longo desfile de homens e cavalos; como a lua brilhava, podiam ver distintamente as diferentes figuras. Os seus amigos estavam todos amarrados, de mãos e pés. Os pés estavam de modo que apenas podiam dar pequenos passos. Não faltava ninguém, com exceção do cantor. Winnetou ia, assim como Mão de Ferro, entre quatros robustos índios.

Depois que a caravana passou, levantou Hobble-Frank o punho atrás dela e rangeu os dentes:

-  Se eu pudesse fazer tudo o que quero, estraçalharia os patifes dos vermelhos, de maneira que voariam pelos ares como serragem. Mas eu lhes acenderei uma luz nas cabeças para que saibam o que significa o Hobble-Frank quando a sua "raiva está encolerizada" e quando a sua "cólera está enraivecida". Aí se foram e nós estamos parados, como dois guarda-chuvas quebrados ou como se nossas botas se tivessem colado às nossas pernas.   Não os vamos seguir?

-  Não.

-  Por que não?

-  Porque assim daríamos uma volta. Para levar os prisioneiros e carregar as coisas devem eles escolher o caminho mais cômodo e por isso seguiram por cima, para descer num lugar apropriado. Nós, porém, desceremos, com a devida cautela, por onde eles subiram.

-  E depois?

-  Depois veremos o que será possível fazer.

-  Lindo, então para a frente, Sam. Tenho comichão em todos os dedos, tal é a vontade de surrá-los.

Desceram devagar e com cautela direito ao vale. Uma vez em baixo, verificaram que os fogos acesos lhes facilitavam a orientação. Iam ao longo do acampamento dos índios, um pouco acima dele, até que atingiram um lugar onde duas saliências de rocha, altas, planas e finas formavam uma espécie de cabana ou teto, debaixo do qual havia justamente lugar para duas pessoas. Defronte estavam dois pequenos pinheiros, cujos baixos galhos encobriam quase que inteiramente a entrada. Entraram lá de gatinhas e deitaram-se, de modo que as suas cabeças ficaram debaixo das pequenas árvores, podendo espiar por entre os troncos.

Quando já estavam comodamente instalados, deu Hobble-Frank um empurrão no companheiro e cochichou:

-  Estás vendo que o meu grande talento em profetizar não se enganou? Lá junto do fogo está sentado o tal. Então foi realmente ele quem nos traiu, este "aposentado em doze atos."

-  Sim, tens razão; foi realmente ele.

-  Mas se ele está preso por que não o amarraram?

-  A isso não sei responder.

-  Vês  quem  está deitado ali?

-  Ah, sim, o Rei do Petróleo. E os outros dois serão Buttler e Poller?

Além deles puderam os dois contar uns cento e cinqüenta índios; portanto, um número igual deles havia subido para prender os brancos e trazê-los para baixo. Junto do rio dormiam ou pastavam os cavalos; estavam sem arreios e as selas arrumadas em diversos montões. De repente os vermelhos, até então deitados, levantaram-se de um pulo; cheios de expectativa eles olhavam para cima. De lá veio um uivo triunfal, ao qual eles responderam.

Primeiro surgiu um pequeno grupo de índios; depois vieram Mão de Ferro e Winnetou. Não se via na fisionomia destes dois homens nenhum sinal de que eles se sentissem presos ou humilhados. O seu porte era orgulhoso e ereto e, com olhares francos e serenos, eles examinaram o lugar e as pessoas que estavam deitadas ou de pé diante dos fogos. Também nos homens do Oeste não se via nenhum desânimo. Porém os imigrantes alemães lançavam em redor olhares assustados e ainda mais desanimadas estavam as mulheres que tinham muita dificuldade em conter o choro das crianças. A Sra. Rosalie Ebersbach constituía uma exceção. Estava também amarrada, mas andava com orgulho e observava tudo com uma expressão de desafio.

 

De lá veio um uivo triunfal ao qual eles responderam.

 

Parecia finalmente que o cantor começava a compreender o erro que praticara; logo que se orientou um pouco na nova situação, aproximou-se de Mão de Ferro e disse:

-  O Sr. Hobble-Frank queixava-se de ter sede; por isso desci, em segredo, para cá, pensando que ele se  alegraria...

-  Cale-se! - gritou-lhe o caçador, dando-lhe   as   costas.

Alguns índios tomaram conta do aposentado, pois ele não devia falar com os seus companheiros de viagem. Os nijoras formaram um círculo em torno dos prisioneiros. O cacique deles estava no centro, acompanhado dos mais importantes guerreiros e tomou então a palavra dirigindo-se a Winnetou:

-  Winnetou, o cacique dos apaches, veio para nos matar, ele deverá por isto morrer no poste dos martírios.

-  Pshaw!

Só com esta única palavra respondeu o apache; depois ele se sentou. Era demasiado altivo para se defender. O cacique dos nijoras carregou o sobrecenho e dirigiu a palavra a Mão de Ferro:

-  Os homens brancos terão que morrer todos com o apache. A machadinha de guerra foi desenterrada e eles quiseram nos matar.

-  Quem disse isso? - perguntou o caçador.

-  Este homem. Ele indicou o cantor.

-  Ele fala uma língua que tu não compreendes; como pudeste falar com ele?

-  Através deste homem que serviu de  intérprete.

-  Então o intérprete foi um mentiroso e falso. Sabes quem sou. Pode alguém dizer que Mão de Ferro é inimigo dos homens vermelhos?

-  Não; mas agora começou a luta e todo cara-pálida é nosso inimigo.

-  Mesmo não tendo te ofendido?

-  Sim.

-  Bem, assim sabemos em que pé estamos! Ali estão esses três caras-pálidas que prendeste antes de nós. Eles são mentirosos, gatunos, ladrões e assassinos. Só para pegá-los viemos para esta região, e não para te molestar ou combater. Entrega-nos esses bandidos e seguiremos sem nos imiscuir nos teus negócios.

-  Uff! Mão de Ferro virou de repente criança! De onde te veio a idéia de nos fazer semelhante exigência? Devemos entregar-te estes três caras-pálidas? Eles nos pertencem, vão dar brilho à nossa marcha triunfal e depois morrerão no poste dos martírios. O mesmo acontecerá com Mão de Ferro e com todos os que acabamos de prender. Qual o cacique dos homens vermelhos que entrega tais prisioneiros? E se eu os quisesse entregar, Mão de Ferro exigiria ainda muito mais de nós.

-  O quê?

-  Os teus cavalos são nossa presa, assim como tudo que vocês trazem. Isto nos pertence. A coisa mais preciosa, porém, que caiu nas nossas mãos é a espingarda prateada de Winnetou, a tua famosa mata-ursos e a espingarda encantada, com a qual tu podes atirar sem carregar quantas vezes quiseres. Tu não exigirias a devolução de tudo isto se nós te deixássemos ir?

-  Sem dúvida.

-  Então vês que tenho razão. Nós não entregaremos a presa e também deteremos vocês, pois sua morte no poste das torturas dará uma tal fama à nossa tribo como jamais a teve nenhuma tribo de homens vermelhos, e, depois de mortos, ingressaremos no "país da caça eterna", onde seremos dos mais venturosos, pois as almas de vocês lá nos deverão servir.

Apesar das suas mãos amarradas, fêz Mão de Ferro um movimento de braço simplesmente inimitável e perguntou:

-  Pshaw! É esta tua firme resolução?

-  Sim.

-  Então eu também te direi minha última palavra. Escuta: tu não nos poderás prender e ainda entregarás a presa toda. As nossas almas não servirão às de vocês, pois se quisermos nós os mandaremos agora, neste instante, para a região da "eterna caça", onde vocês serão nossos servos. Disse.

Ele queria dar-lhe as costas, mas o cacique aproximou-se-lhe com alguns passos rápidos e gritou-lhe:

-  Ousas falar assim comigo que sou o supremo cacique dos nijoras? Somos nós os teus prisioneiros ou vocês os nossos? Conta os teus homens; eles estão atados e são pouquíssimos; nós, porém, somos livres e armados e contamos mais de três vezes dez vezes dez valentes guerreiros.

-  Pshaw! Mão de Ferro e Winnetou não estão acostumados a contar os seus inimigos e é-nos indiferente estarmos ou não amarrados. Nós não quisemos ser teus inimigos, queríamos ir em paz. Tu, porém, nos forçaste à luta e nós a aceitamos. Seja a machadinha de guerra desenterrada entre mim e ti. Nem o número das cabeças nem as mãos amarradas decidirão, e, sim, a excelência das armas e o poder do espírito.

Ele lançou um breve olhar a Winnetou e este inclinou a cabeça assentindo, mas era difícil percebê-lo. Os dois se compreendiam sem palavras. O cacique dos nijoras, na sua raiva, não prestou atenção a isto. Ele exclamou com uma voz que tremia de cólera:

-  Onde é que estão as tuas armas e onde está o espírito do qual falas?  As três famosas espingardas pendem aqui do meu ombro e...

-  O espírito do qual te falei vai levá-las - atalhou Mão de Ferro. No mesmo instante estava junto do cacique, ao qual abateu com um golpe das suas mãos amarradas, deixando-o sem sentidos. Winnetou já estava ao seu lado e arrancou também com as mãos presas a faca da cinta do desacordado com a qual cortou as amarras de Mão de Ferro fazendo este logo o mesmo com as de Winnetou. Agora tinham ambos as mãos livres; mais dois golpes de faca e também caíram as amarras dos seus pés. Isto acontecera com tamanha rapidez que os vermelhos não tiveram tempo de fazer um movimento sequer para impedi-lo. Eles ficaram como que petrificados de espanto por verem que dois homens ousavam agir assim, no meio de trezentos inimigos. A questão era explorar o momento e impedi-los de atacar de todos os lados. Por isso Mão de Ferro levantou, com um puxão da mão esquerda, o cacique do chão, arrancou com a direita a faca e exclamou:

-  Recuem! Se um só nijora ousar mover apenas um pé contra nós, a minha faca penetrará imediatamente no coração de seu cacique. E vejam Winnetou, o chefe dos apaches! Terá ele que lhes meter nas cabeças as balas da minha espingarda encantada?

Winnetou havia pegado a espingarda estilo Henry e a segurava nas mãos, pronto para o que desse e viesse. O poder de tais personalidades é extraordinário, sobretudo sobre homens selvagens e supersticiosos. Mas a situação era perigosíssima. Se um só nijora tivesse a coragem de atacar, ele seria morto e então a vingança certamente desencadearia a luta, que seria seguida do morticínio dos presos. Todas as faces estavam rígidas de extraordinária estupefação e ninguém ousava fazer o menor movimento: porém, num segundo, este encanto poderia ser quebrado. Foi quando surgiu um auxílio que o ousado caçador não imaginava possível, pois, por debaixo das árvores do mato, ressoou alto uma voz:

-  Para trás, nijoras! Aqui há também caras-pálidas. Se não recuarem imediatamente, nossas balas os comerão. Como aviso vamos tirar primeiro a pena do substituto do cacique. Depois, porém, atiraremos nas  cabeças   de   vocês.   Portanto,   fogo.

O substituto do cacique de quem a voz falava, estava nas proximidades

 

Recuem! Se um só nijora ousar mover apenas um pé contra nós, a minha jaca penetrará no  coração  de seu  cacique.

 

de Mão de Ferro. Como sinal da sua dignidade, trazia ele na cabeça uma pena de águia. Os olhares carrancudos, dispostos à luta, que ele lançava aos dois homens audaciosos, diziam com muita eloqüência que ele não estava com vontade de se deixar intimidar. Mas neste momento soou na escuridão do mato, lá onde estavam as duas rochas citadas, o tiro que arrancou a pena da cabeça. Isto causou um efeito instantâneo. A ameaça, que ele ouvira proferir, podia concretizar-se imediatamente: a bala lhe havia arrancado a pena; sua vida agora estava em perigo. Nem lhe veio a idéia que fossem apenas duas pessoas que estavam metidas lá na escuridão. Supunha que seriam muitos, pois que agiam tão atrevidamente. Por isto ele deu um grito de espanto e afastou-se, com um pulo, do fogo. Os outros nijoras seguiram o seu exemplo, afastando-se com a mesma rapidez.

-  Graças a Deus! - cochichou Mão de Ferro ao apache. - Ganhamos. Foi Sam Hawkens quem acabamos de ouvir. Hobble-Frank estará com ele. Cuida do cacique, eu preciso da faca para livrar os outros das amarras.

Ele deixou cair o cacique no chão. Winnetou dirigiu a espingarda sobre Mokachi, ainda sem sentidos, enquanto Mão de Ferro se voltava para os companheiros para lhes cortar as correias. Isto ocorreu com extraordinária rapidez, de modo que os índios não acharam tempo para pensarem em reação. Eles haviam trazido para baixo tudo o que fora tirado aos prisioneiros, portanto, também as armas. Os brancos precisavam só curvar-se para se apossarem das suas facas e espingardas. Estavam livres e armados antes que tivessem passado dois minutos desde o início da cena perigosa.

-  Agora os cavalos e depois atrás de mim para o mato! - ordenou Mão de Ferro.

Ele próprio pegou pela rédea o seu cavalo e o de Winnetou, enquanto o apache levantou o cacique dos nijoras para desaparecer com ele, na escuridão do mato, na direção donde haviam percebido a voz de Sam Hawkens. No lugar donde partira o tiro, não havia mais ninguém. Os vermelhos ficaram olhando para eles incapazes de compreender como se tinham deixado surpreender assim.

Os dois heróis deste feito libertador não haviam achado tempo para dar atenção a uma ocorrência que mais tarde os deveria incomodar bastante. Ao cantor aposentado havia ocorrido repentinamente a lembrança de que no bolso superior do seu colete, que não lhe haviam esvaziado, ele tinha um canivete. Quis reparar o seu erro e foi, enquanto todos os outros só tinham olhos para observar Mão de Ferro e Winnetou, para junto de Poller, sentou-se ao seu lado e disse:

-  Lembrei-me justamente agora que tinha um canivete. O senhor quer ajudar os meus companheiros? Ei-lo aqui!

-  Lindo, lindo! - respondeu Poller encantado. - Deite-se ao meu lado e corte as correias das minhas mãos, mas de modo que ninguém o note. Se depois disso o senhor me der o canivete, arranjarei o resto sozinho.

-  Mas o senhor deve então livrar os meus companheiros das amarras!

-  Naturalmente, naturalmente!   Mas corte ligeiro.

O cantor acedeu a este pedido e entregou a Poller o canivete no momento em que Mão de Ferro começava a cortar as correias com as quais os brancos estavam amarrados. Então o cantor disse:

-  Olhe para lá. Agora o seu auxílio não é mais necessário: Mão de Ferro libertará também o senhor.   Pode devolver-me o canivete.

-  Nem pense nisto! - respondeu Poller. - Vá ligeiro com a sua gente. Nós três os seguiremos em breve!

O cantor se levantou e pulou - quando viu o que os outros estavam fazendo por ordem de Mão de Ferro - para o seu cavalo, a fim de sair dali também o quanto antes.

A situação agora era tal que somente Buttler, Poller e o Rei do Petróleo ficaram deitados junto do fogo. Os índios se haviam retirado para a escuridão perto do rio, enquanto os brancos se meteram debaixo das árvores ao pé da ladeira. Deste esconderijo dirigiu-se Mão de Ferro aos vermelhos, exclamando:

-  Que os guerreiros dos nijoras se comportem calmamente. Ao menor sinal de inimizade, ou mesmo que apenas um só deles se arriscar a espiar-nos, mataremos o seu cacique. A luz do dia entraremos em entendimento com ele. Somos amigos de todos os homens vermelhos e só lhes faremos mal se formos obrigados a nos defender.

Os índios admitiam como coisa perfeitamente natural que ele cumprisse sua palavra, ainda que atacado; ele nem pensaria em cometer um assassínio. Ele considerava assassinato tirar a vida a um prisioneiro indefeso, mesmo neste caso, pois indefeso estava agora o cacique, estando com as mãos e os pés amarrados.

Sam Hawkens e Hobble-Frank tinham saído debaixo das pedras. O primeiro disse na sua maneira original de falar:

-  Os gentlemen vermelhos certamente não haviam pensado nisto. Trezentos de tais indivíduos se deixarem atemorizar mortalmente por dois homens! Nunca houve coisa parecida. Mas mesmo que isto não tivesse tido bom êxito, o resultado final teria sido igual, só um pouco mais tarde, pois aqui estávamos para libertá-los, hihihihi!

-  Sim, nós os arrancaríamos do buraco, de qualquer maneira. Não nos interessava se eram dez índios ou trezentos.

-  Sim, vocês são heróis extraordinários - admitiu Mão de Ferro meio zangado e meio divertido. - Onde estiveram? Parece que foram passear quando deviam estar dormindo?

-  Não foi bem passeio. Eu tive um sonho que pôs a minha alma em excitação; por isso acordei e notei admirado que o senhor cantor estava ausente. Aí despertei o meu amigo do peito, Sam, e fomos reconduzir o senhor ausente à nossa presença. Entrementes, ocorreu o assalto que não podemos impedir.   Escondemo-nos e vimos como vocês passaram próximo de nós. Descemos então para o vale e nos escondemos para libertá-los da prisão no momento oportuno. Foi uma sorte para nós que o senhor aposentado se afastasse, pois se não fosse isso não o teríamos procurado e também teríamos sido presos.

-  Nada disso, provavelmente, aconteceria - retrucou Mão de Ferro. - Estou convencido de que não haveria assalto se este homem dos diabos tivesse ficado tranqüilamente deitado. Onde anda ele metido agora? Não o vejo.

-  Aqui estou - respondeu o cantor, surgindo por detrás de um arbusto.

-  Lindo! Diga-me por que cargas d'água teve a idéia de se afastar do nosso acampamento?

-  Eu queria buscar água, Sr. Mão de Ferro.

-  Água, aqui em baixo, no rio?

-  Sim.

-  Será possível? Então a sua sede era tão grande que não podia dominar até amanhã?

-  Não foi para mim que eu queria a água, e sim para o meu bom amigo o Sr. Hobble-Frank. Ele se queixava da sede que sofria e eu havia altercado com ele; queria reparar isto prestando o serviço de matar-lhe a sede.

-  Que bobagem! Por causa de uma briguinha sem a mínima importância, expor o senhor a perigos a vida de todos nós! Na verdade, se não estivéssemos aqui em meio do sertão eu o mandaria embora imediatamente.  Não posso faze-lo porque então morreria com toda a certeza.

-  Eu? Não creia nisso. Quem tem a cumprir uma missão artística tão alta como a minha, que deve ter tanto como doze atos, não pode perecer.

-  Não seja ridículo. Para o futuro terei que mandar atá-lo para que não possa fazer outras asneiras. E no primeiro lugar civilizado que alcançarmos, abandoná-lo-ei à própria sorte. Então poderá procurar assunto à vontade para a sua gloriosa ópera. Conseguiu o senhor alcançar o rio aqui em baixo?

O aposentado deu uma resposta negativa e narrou as circunstâncias da sua prisão e as suas aventuras, até que chegou ao detalhe de ter ele emprestado o seu canivete a Poller.

-  Com mil trovões! - exclamou Mão de Ferro. - Que desgraça este homem nos está trazendo! Devemos providenciar quanto antes para que eles não nos escapem. Tentarei ir até o fogo para atá-los de novo. Quero crer que os nijoras não terão a idéia de me...

Ele foi interrompido por uma forte gritaria dos nijoras. Quando olhou para o fogo, pôde perceber a causa disto. Buttler, Poller e o Rei do Petróleo se haviam levantado subitamente dos seus lugares e fugiam na direção onde estavam os cavalos dos nijoras.

-  Eles estão escapando, escapando! - gritou Hobble-Frank. - Ligeiro para os cavalos e atrás deles senão...

Ele não completou sua frase, pois teve pressa em fazer seguir os atos às palavras.   Mas Mão de Ferro o segurou e lhe ordenou:

-  Fique aqui e calma! Escute-me.

Via-se e ouvia-se que os índios corriam para os seus cavalos, mas os três fugitivos foram mais rápidos, pois percebeu-se em breve, apesar do uivo de cólera dos índios, bem distintamente o tropel dos cavalos de que os três se haviam apoderado e nos quais se afastavam a galope.

-  Lá se foram, perdidos para nós para toda a eternidade - lamentava Hobble-Frank. - Eu queria segui-los.  Por que não me deixou?

-  Porque não teria adiantado coisa alguma e também por ser perigoso - respondeu Mão de Ferro.

-  Perigoso? Julga talvez que tenho medo destes patifes? Então, segundo parece, ainda não me conhece.

-  Dizendo isto pensei nos vermelhos. Ainda não nos entendemos com eles e devemos ter, portanto, muita cautela. Se quiséssemos perseguir agora os fugitivos cairíamos provavelmente nas mãos dos nijoras. Devemos ficar escondidos aqui até que tenhamos resolvido o nosso caso com eles.

-  E deixamos escapar os três canalhas?

-  Conseguiríamos pegá-los agora de noite? Se esta possibilidade existe podemos deixá-la aos vermelhos. Escutem! Eles estão seguindo os fugitivos.  Não precisamos pois incomodar-nos.

-  O quê! Cada homem deve agir por si. Estes índios não se vão esforçar muito.

- Com isto eles apenas provariam que são inteligentes. Se esperarmos até o dia poderemos seguir sua pista.

-  Mas a dianteira que eles levarão?

-  Vamos alcançá-los. Será, então, muito fácil prendê-los, porque não se poderão defender. Eles têm apenas o canivete que o nosso esperto cantor lhes emprestou e não se pode considerá-lo uma arma muito terrível e perigosa.

Todos viam que ele tinha razão e também Hobble-Frank concordou. Depois de algum tempo ouviu-se novamente o tropel de cavalos; finalmente tudo ficou quieto: os índios voltavam sem resultado da perseguição pois se tivessem agarrado os fugitivos fariam com certeza grande algazarra.

Como o dia seguinte, segundo se devia prever, seria um dia de grande atividade, todos tornaram a dormir. Porém Winnetou e Mão de Ferro ficaram acordados, para observarem os nijoras porque era possível uma tentativa deles para libertar o cacique preso. Mas durante toda a noite eles ficaram tranqüilos, e quando veio a manhã e todos acordaram, viam-se os índios sentados na margem do rio, provavelmente todos eles haviam permanecido acordados.

Até então ninguém havia trocado uma palavra com Mokachi e também ele não abrira a boca; sim, ele tinha ficado deitado tão quieto e imóvel como se o golpe de Mão de Ferro o tivesse morto.

Tu és  Winnetou, o cacique dos apaches.

Mas ele vivia e olhava em torno de si com olhos muito vivos. Era tempo de dizer-lhe o que se pretendia com ele. Por isso quis Mão de Ferro tomar a palavra. Winnetou adivinhou-o e pediu, por meio de um aceno, que ele se calasse e dirigiu-se, contrariando os seus hábitos, ao cacique Mokachi:

-  O cacique dos nijoras é um homem forte, um grande caçador e um guerreiro muito valente; ele matava os mais fortes búfalos com uma só flechada; por isto foi chamado Mokachi. Queria muito falar-lhe como seu amigo e irmão e peço-lhe como seu amigo e irmão para me dizer quem sou!

Aparentemente era este um pedido singular; mas tudo isto teve um muito bom motivo e uma finalidade precisa. Com certeza Mokachi pensou isto, pois respondeu de boa vontade:

-  Tu és Winnetou, o cacique dos apaches.

-  Falaste muito bem. Por que não mencionaste uma tribo especial dos apaches à qual pertenço?

-  Porque todas as tribos desta grande nação te reconhecem como cacique.

-  É isto. Sabes de que povo faz parte a tribo dos navajos?

-  Eles são apaches.

-  E o que são os nijoras que te chamam o seu cacique?

-  Também apaches.

-  Tua boca diz a verdade. Se,   porém,   estes   tanto  como aqueles,   pertencem  ao  grande povo dos apaches, então são irmãos. Se um pai tem diversos filhos, eles se devem amar e auxiliar em toda dificuldade, necessidade e perigo, mas não devem disputar e nem brigar. Lá em baixo, no sudeste, moram os comanches, os inimigos mortais dos apaches; os seus guerreiros saem todos os anos para combatê-los; por isto as nossas tribos deveriam estar firmemente unidas contra esses ladrões e assassinos. Mas não há tal união. Existe a luta e umas procuram aniquilar as outras. Depois, quando é preciso repelir o inimigo comum, estão enfraquecidas pelas guerras. Quando penso nisto, o meu coração fica pesado de preocupações, como uma rocha que não é possível remover. Os nijoras e os navajos me chamam cacique dos apaches. Eles são também apaches. Por isto os seus ouvidos deveriam escutar as palavras da minha boca. Tu prendeste a mim e aos meus irmãos brancos, embora não te fizéssemos nenhum mal e apesar de eu ser da mesma nação e do mesmo povo que tu. Podes dar-me algum motivo que eu deva reconhecer?

-  Sim. O teu coração está mais com os navajos do que com a minha tribo.

-  Enganas-te, sou irmão de todos.

-  Mas a tua alma pertence aos caras-pálidas, que são nossos inimigos.

-  Também isto é um engano. Amo todos os homens, não fazendo distinção entre os de cor vermelha ou de cor pálida, se eles praticarem o bem. E sou o inimigo de todos os homens maus, sem perguntar se eles são índios ou brancos. A machadinha de guerra foi desenterrada e agora vai o irmão contra o irmão, para derramar o seu próprio sangue; isto não está bem e sim mal, e eu não posso ser hoje teu amigo. Mas não deves também julgar que eu seja teu inimigo. Não ajudarei nem os nijoras, nem os navajos. Queria aconselhá-los a enterrar de novo a machadinha de guerra e deixar reinar a paz.

-  Isso não é possível! A machadinha, uma vez empunhada por mão de guerreiro, não deve descansar enquanto não tenha bebido sangue. Não damos ouvido a nenhuma boca que fale de paz.

-  Também não à minha boca?

-  Não.

-  Assim sendo, vejo e ouço que cada uma das minhas palavras seria vã; porém Winnetou não costuma falar em vão; portanto, calarei. Resolvam suas brigas com os navajos, mas evitem de imiscuir nisto a min; e aos meus irmãos brancos. Tu nos trataste como inimigos, queremos esquecer isto. Agora estás em nossas mãos, tua vida está em nosso poder. Dever-se-á contar nas tendas dos teus inimigos que Mão de Ferro e Winnetou, estes dois homens, prenderam Mokachi, apesar de ter ele consigo trezentos guerreiros?

Winnetou teve fundados motivos para formular estas perguntas. Era para Mokachi uma grande vergonha ter sido preso em tais circunstâncias e mau grado o seu grande bando de guerreiros.  Ele devia deixar ir os seus antigos prisioneiros sem os molestar e, em troca disto, ele mesmo seria posto em liberdade. Se ele não aceitasse esta proposta, então a promessa de calar a sua vergonha teria o condão de fazê-lo aquiescer. Carrancudo, ele olhava para a sua frente e não respondeu. Por isto Winnetou prosseguiu:

-  Os teus guerreiros ouviram que tu serás morto imediatamente se eles nos atacarem. Tu ouviste também quando o meu irmão Mão de Ferro o declarou para que eles ouvissem?

-  Sou guerreiro e não receio a morte. Os meus homens me vingarão.

-  Tu te enganas. Estamos aqui protegidos pelas árvores e pelas tochas e também nunca receamos o número de nossos inimigos.

-  Que então os meus homens morram comigo. Sobre eles recaia a mesma vergonha da qual falaste.

-  Se tu fores inteligente e se eles te forem obedientes, esta vergonha não pesará sobre ti.  Nós te prometemos não falar disto.

Aí os olhos de Mokachi brilharam de júbilo e ele exclamou:

-  Tu me prometes isto?

-  Sim; e traiu Winnetou algum dia sua palavra?

-  Não. Mas dize-me como te comportarás conosco se nós os deixarmos ir?

-  Assim como tu procederes conosco. Se tua gente nos seguir para nos combater, nós nos defenderemos.

-  Para onde se dirigirão?   Talvez para os navajos?

-  Devemos seguir os três caras-pálidas fugitivos. Aonde estes forem, nós também iremos. Se eles estiverem com os navajos, também nós os procuraremos lá.

-  E os auxiliarão contra nós?

-  Nós lhes aconselharemos a paz, assim como fizemos contigo. Eu já te disse que não somos teus inimigos nem inimigos deles. Decide-te ligeiro. Deveremos partir em breve, senão os três caras-pálidas terão uma dianteira muito grande.

Mokachi fechou os olhos para pesar bem os argumentos a favor e contra; depois abriu-os de novo e declarou:

-  Receberão de volta tudo que lhes pertence e poderão seguir viagem.

-  Sem que nos persigas?

-  Não pensaremos mais em vocês: mas, em troca, vocês não dirão de que modo caí em suas mãos.

-  De acordo. O meu irmão Mokachi está decidido a fumar o cachimbo da paz nestes termos?

-  Sim.  Desatem-me.                        

O seu desejo foi logo satisfeito. Soltaram-lhe as amarras e depois disto todos se sentaram onde na véspera haviam ardido os fogos. Lá encheu Winnetou o seu cachimbo da paz, acendeu-o e deixou que Mokachi tomasse as primeiras cachimbadas.   Depois o cachimbo circulou de mão em mão. Até as mulheres e as crianças tiveram que metê-lo pelo menos na boca; se não o fizessem, o acordo firmado não se estenderia também sobre eles, segundo os conceitos indianos, e poderiam ser atacados e mesmo mortos sem que por isto fosse possível acusar os índios de quebra de promessa.

Quando esta cerimônia estava terminada, deu Mokachi a todos a mão, mesmo às crianças, e foi então para o outro lado onde estava a sua gente, para lhes comunicar o acordo celebrado.

-  Eu gostaria de ter libertado também os oito navajos - disse Mão de Ferro. -- Agora devemos deixá-los nas mãos dos nijoras.

-  Que o meu irmão não se preocupe com eles, nada lhes acontecerá - assegurou "Winnetou. - Os nijoras serão obrigados a pôr em liberdade também esses prisioneiros.

-  Quem os obrigará?   Os navajos?

-  Sim.

-  Então pensas que nos dirigiremos agora diretamente para os navajos?

-  Teremos que fazê-lo, porque o Rei do Petróleo foi dar com eles.

-  Hum! Existem, sem dúvida, motivos para admitir esta possibilidade. Os três indivíduos não têm armas e não podem caçar. Faltam-lhes também meios para fazer fogo; terão que sofrer fome e serão obrigados a ir procurar auxílio junto aos homens. Porém, na região para onde foram, não há outros homens senão os navajos. A questão é saber como eles serão recebidos.

-  Bem.

-  Tenho minhas dúvidas, entretanto é possível. Se eles disserem que são inimigos dos nijoras e que foram prisioneiros destes, tendo fugido, então a recepção será sofrível.

-  Depende do que eles contarem. Mas Nitsas-Ini, o grande cacique dos navajos, é um homem prudente. Ele examinará cada palavra que ouvir, antes de acreditar nelas. Mas olha lá, os nijoras. Eles montam nos seus cavalos.

Era como ele dizia. Mokachi havia dito aos seus homens que a paz estava concluída. Eles não estavam muito satisfeitos com isto, deviam porém curvar-se, visto que a paz fora confirmada pela cerimônia do cachimbo. Estavam tão raivosos pelo final nada brilhante da aventura, que não queriam agora ver coisa alguma. Montaram, pois, nos seus cavalos e se foram embora. Entretanto, alguns ficaram e trouxeram todos os objetos que os brancos ainda podiam exigir. Faltavam ainda algumas coisas, mas tinham valor tão reduzido que nenhuma palavra foi perdida com isto. Por que lembrar estas ninharias, quando há pouco se tratava de coisas muito diversas até de vida ou morte?!

 

O Cacique dos Navajos

Passaram-se dois dias. Lá onde o Rio Chelly deságua no Rio San Juan, que tem também o nome de Rio de los Navajos, havia, na península formada por esses dois rios, um importante acampamento de índios. Ali se reuniam uns seiscentos navajos. Não era uma reunião de caça e sim de guerra, pois todos os rostos estavam pintados com as cores guerreiras.

O lugar se prestava extraordinariamente bem para um acampamento. O triângulo de terra podia somente ser atacado de um lado, pois os outros lados estavam protegidos pela água. A grama cobria o solo. Também não faltavam árvores e arbustos e havia abundância de água.

De longas correias, estendidas de árvore a árvore, pendiam finos e longos pedaços de carne, expostos para secar: a necessária munição de boca para a campanha. Os vermelhos ou estendiam-se no chão sem ocupação alguma, ou tomavam banho num dos rios. Outros amestravam cavalos e alguns exercitavam-se no manejo das armas.

No meio do acampamento havia uma cabana feita de galhos de arbustos. A longa lança, metida no solo ao lado da porta, estava ornada de três penas de águia. A cabana era, portanto, a morada de Nitsas-Ini, o chefe supremo da tribo dos navajos. Ele não estava dentro da cabana e sim sentado na frente dela. Parecia não ter ainda cinqüenta anos completos. Era de constituição forte e harmoniosa e não estava pintado com as cores da guerra, coisa que devia chamar a atenção. Por isto eram perfeitamente distinguíveis os traços do seu rosto. O resultado da observação destes traços podia ser resumido numa palavra: nobres. No seu olhar havia uma tranqüilidade contemplativa natural, uma calma e uma luminosidade que não se costuma observar nos índios. Ele não dava de modo algum a impressão de um homem selvagem ou meio selvagem. E se alguém quisesse procurar o motivo disso, bastava apenas olhar para a pessoa que estava sentada ao seu lado e que conversava com ele... uma squaw.

Era de não se acreditar! Uma squaw no acampamento de guerra e ainda ao lado do cacique! Sabe-se que mesmo a mais amada esposa de um índio não pode atrever-se a sentar a seu lado em público, se este ocupar o menor dos cargos de destaque. E aqui se tratava do próprio cacique supremo de uma tribo que ainda hoje pode reunir cinco mil guerreiros!

Mas esta squaw não era uma squaw índia e sim uma branca, e mesmo uma branca de origem alemã - em breves palavras, a mãe de Chi-So, que havia aceito como marido o cacique dos navajos e que exercia sobre ele uma influência benéfica e edificativa, como já se disse antes. Diante deles estava, apoiado na sela de seu cavalo, um homem alto, magro, que dava, porém, a impressão de ser muito forte e cuja longa barba assumira uma cor esbranquiçada brilhante. Via-se desde a primeira vista que ele não estava acostumado a ficar inativo e que, com certeza, tinha passado por mais aventuras e tinha mais experiência que mil outros. Estas três pessoas conversavam em alemão. Também o cacique se servia desse idioma, o que somente se explicava pelo fato de ser sua mulher alemã.

Uma squaw no acampamento de guerra e ainda ao lado do cacique!

-  Eu agora também começo a me preocupar - disse o da barba branca. - Já faz tanto tempo que os nossos batedores partiram, que agora já devíamos ter notícias deles.

-  Deve ter-lhes acontecido alguma desgraça - assentiu a mulher.

-  Não receio isto - disse o cacique. - Khasti-tine é o melhor espia de toda a tribo e levou nove batedores experimentados. Assim sendo, não posso ter receios. Provavelmente não deram, com os nijoras e devem passar algum tempo até que achem vestígios deles. Para cumprir esta tarefa, eles têm que se dividir para investigar em diversas direções e, em tais casos, não é fácil reunir-se novamente; pelo menos isto toma bastante tempo.

-  Esperemos que assim seja! E agora eu vou andando. Posso levar alguns  guerreiros?

-  Quantos quiseres. Quem quiser caçar antílopes não deve andar só, mas deve dispor de bastante gente.

-  Então, até à vista, Nitsas-Ini.

-  Até à vista, Maitso.

O de barba branca montou a cavalo, e, seguindo devagar, convidava alguns índios a ir com ele. Estes aceitavam o convite, pois a caça do antílope é um prazer que os índios daquelas paragens praticam com paixão. O cacique chamara-o Maitso. Este vocábulo significa "lobo" na língua dos navajos. Conclui-se daí que o nome alemão original deste homem era Wolf. Lembrando-se o leitor de que o jovem amigo e camarada de Chi-So se chamava Adolf Wolf, chega-se facilmente à conclusão de que este Maitso era o tio procurado por Adolf.

Maitso percorreu com seus companheiros índios um bom trecho da planície e conseguiram caçar alguns antílopes. Na volta notaram eles, ainda muito antes de alcançarem o acampamento, três cavaleiros que vinham do lado leste; os seus cavalos deviam ter feito uma viagem longa e esfalfante, pois já de longe se via que estavam extraordinariamente cansados.

Estes três cavaleiros, ao ver o grupo, pararam para trocar algumas palavras: depois, porém, se aproximaram. Eram eles: Poller, Buttler e o Rei do Petróleo.

-  Boa tarde, Sir - saudou o último, pois o sol já descambara bastante. - É um branco e por isto confio que nos dará uma informação verídica. A que tribo pertencem os vermelhos que estão ali?

-  Aos navajos - respondeu Wolf, fixando os desconhecidos com uma expressão pouco favorável no rosto.

-  Quem os chefia?

-  Nitsas-Ini, o cacique supremo.

-  E o senhor quem é?   Não é possível que pertença aos navajos.

-  Pshaw! Pode haver também navajos brancos. Moro já há muitos anos nas proximidades deles e me considero um dos seus.

-  Onde se encontram agora?

-  Hum!   Por que faz tal pergunta?

-  Queremos procurar Nitsas-Ini para dar-lhe uma notícia muito importante.

-  De quem?

-  Dos seus batedores.

Se o Rei do Petróleo havia pensado em engodar com isto imediatamente o velho, se enganara. Este o olhou ainda com menos confiança do que antes e disse:

-  Batedores?  Que eu saiba não temos batedores em parte alguma.

-  Não esconda. Pode ter confiança em nós. Trazemos deles realmente uma mensagem importantíssima.

-  Ora, supondo que tenhamos de fato enviado alguns batedores para esclarecer qualquer assunto e eles tivessem algo a nos comunicar, julga que lhes ocorreria a extraordinária idéia de mandar dizê-lo por três caras-pálidas?  Sem dúvida mandariam um deles.

-  Sim, se isso fosse possível.

-  E por que não o poderia ser?

-  Porque estão presos.

-  Foram presos?  Com todos os diabos! Por quem?

-  Pelos nijoras.

-  Onde?

-  A dois dias de viagem daqui, no Vale do Chelly.

-  Quantos são?

-  Oito homens.

-  Infelizmente não combina, realmente não combina.

-  Com os diabos, não seja assim tão desconfiado. Sei bem que foram dez; mas faltam dois que foram "apagados" pelos nijoras.

-  Apagados? Escute, senhor, e cuidado. Nenhum dos três tem uma cara que me possa agradar. Se nos querem dizer alguma coisa, procurem fazer com que isto seja a pura verdade, senão passarão muito mal.

-  Pode dar de ombros. Ainda nos agradecerá por virmos informá-los. Talvez conheça o Gloomy Water além do Chelly?

-  Sim.

-  Ora, não muito longe dali, Khasti-tine e mais um batedor foram mortos a tiros por Mokachi e os outros oito foram presos no lago e levados para o Chelly. Lá nós três, que também caímos nas mãos dos nijoras, conseguimos fugir.

Depois de ouvir o nome Khasti-tine, Wolf não podia duvidar mais. Assustado, exclamou:

-  Khasti-tine morto? É verdade? E os outros presos? Com os diabos, a situação deles não é boa.

-  Oh, há ainda outros que estão se vendo igualmente mal.

-  Ainda outros?  Quem são?

-  Winnetou, Mão de Ferro, Sam Hawkens e mais outros homens do Oeste; além disto, toda uma caravana de imigrantes alemães.

-  O senhor está louco? - fez Wolf a custo. - Mão de Ferro e Winnetou estão também presos?

Nesta altura também Poller tomou parte na conversa, acrescentando:

-  Ainda mais, muito mais. Chi-So está lá também; ele vem da Alemanha com  um   outro moço que se chama  Adolf  Wolf.

-  Céus! Sou o tio daquele Adolf Wolf. Ele vem morar comigo. Então ele está preso e Chi-So também? Depressa, vamos ao cacique. Deverão contar-nos tudo e depois partiremos imediatamente em seu auxílio.

Ele deu de esporas ao cavalo e afastou-se a galope em direção ao acampamento. Os três brancos o seguiram, trocando entre si furtivamente olhares satisfeitos. Por fim vinham os índios. O único objetivo de Poller, Buttler e do Rei do Petróleo junto dos navajos era arranjar armas e munições e depois seguir viagem a toda pressa. Eles naturalmente compreendiam que estavam sendo seguidos e não tinham absolutamente a intenção de se deixar pegar. Em primeiro lugar tratava-se de ganhar tempo e então aguardar uma boa oportunidade para a fuga. Podiam alcançar seu outro objetivo, impedindo o encontro dos navajos com Mão de Ferro e sua gente. Como conseguir tal coisa era o assunto das cogitações do Rei do Petróleo durante a cavalgada para o acampamento. A principio não havia jeito de dar com a solução do problema; por fim, veio-lhe uma idéia elucidativa: Mão de Ferro e Winnetou encontravam-se com os seus companheiros na margem esquerda do Rio Chelly; se ele fizesse os navajos ficarem na margem direita, então podia ter a esperança de que o seu encontro fosse atrasado de vários dias, e nesse meio tempo haveria ocasião para escapar. Por isto instruía o Rei do Petróleo os seus dois amigos com voz abafada, de modo que Wolf, que ia na frente, não os pudesse ouvir:

-  Deixem que eu fale, se formos interrogados, e lembrem-se bem de que nos encontrávamos na margem direita e não na esquerda do rio e que do mesmo lado também está Mão de Ferro com a sua gente.

-  Para que isto? - informou-se Buttler.

-  Mais tarde explicarei; agora não há tempo para isto.

Tinha razão, pois os cavaleiros aproximavam-se justamente do acampamento. Os índios, que lá se achavam, olhavam admirados para os três brancos estranhos, pois nestas paragens distantes e agora que a machadinha de guerra fora desenterrada, eles não podiam ter esperado ver caras-pálidas. Wolf cavalgou com estes até a tenda do cacique, que estava sentado, como antes, diante da entrada; apeou do cavalo e anunciou:

-  Encontrei estes homens brancos e os conduzi aqui porque eles têm uma mensagem muito importante para ti.

Nitsas-Ini franziu o sobrecenho e disse:

-  Um olhar experimentado vê logo pela casca da árvore se ela está podre por dentro. Não abriste bem os olhos.

Os três brancos não lhe produziram, portanto, boa impressão: deviam ser surdos se não concluíssem isso das suas palavras. O Rei do Petróleo aproximou-se dele e disse meio cortesmente e meio repreendendo:

-  Há árvores que por dentro são sadias, embora sua casca pareça estar doente. O Grande Trovão não nos julgue antes de nos conhecer.

As dobras na testa do cacique se aprofundaram e sua voz soou severa. Havia nela repulsa quando respondeu:

-  Passaram diversas centenas de verões desde que os brancos vieram à nossa terra. Tivemos bastante tempo para os conhecer. Houve só muito poucos entre eles que podiam ser chamados amigos dos homens vermelhos.

Estas palavras infundiram medo aos três homens. Mas o Rei do Petróleo não o deixou perceber, prosseguindo confiadamente:

-  Ouvi dizer que o Grande Trovão é um chefe sábio e justo; ele não tratará como inimigos homens que vieram salvar a ele e a sua gente.

-  Salvar-nos? - perguntou o cacique, fitando com desdém aquelas figuras. - Qual é o perigo de que nos querem livrar?

-  O perigo dos nijoras.

-  Pshaw! - exclamou ele com um movimento desdenhoso da mão. - Os nijoras são anões que esmagaremos com os pés.

-  Assim pensas tu, mas eles são muito superiores em número.

-  E ainda que eles fossem dez vezes cem, os aniquilaríamos, pois um navajo vale tanto quanto dez nijoras. E tu, que não tens armas, queres nos ajudar?  Somente um covarde pode deixar roubar a sua espingarda.

Isto era uma ofensa. Se o Rei do Petróleo a tivesse aceito, seria considerado covarde. Ele o sabia perfeitamente, e por isso respondeu encolerizado:

-  Vimos para fazer-te um bem e tu nos recompensas a boa intenção com palavras injuriosas?  Nós os abandonaremos imediatamente.

Ele voltou ao seu cavalo e fez como se quisesse montar novamente. Aí, porém, o cacique pulou do seu assento, estendeu a mão com um gesto de senhor e exclamou:

-  Venham, ó guerreiros navajos! Não deixem estes caras-pálidas afastar-se daqui!

Esta ordem foi obedecida no mesmo instante; quando os brancos estavam cercados totalmente pelos vermelhos, ele prosseguiu:

-  Pensas que se pode chegar e sair daqui como o faz a lebre do campo com a sua toca? Estás em nosso poder e não deixaras este lugar até que eu dê licença. Ao primeiro passo que derem contra a minha vontade, as balas dos meus homens os derrubarão.

Isto tinha o tom e o caráter de uma ameaça, pois muitíssimas espingardas estavam dirigidas contra os três. Porém, nem assim o Rei do Petróleo deixou que se notasse sua preocupação; ele tirou o pé do estribo e a mão da sela e disse calmamente:

-  Inteiramente como queiras. Nós reconhecemos que estamos em tuas mãos e devemos nos submeter; mas já agora todas as tuas espingardas não nos arrancarão a mensagem que pretendíamos transmitir-te.

-  Pshaw! Vocês quiseram dizer-me que os cães dos nijoras desenterraram a machadinha de guerra e que partiram de suas cabanas contra nós. Mas para isto eu não preciso de ninguém, pois enviei batedores que me informarão a tempo.

-  Nisto te enganas. Os teus batedores não te podem trazer nenhuma informação, porque foram presos pelos nijoras.

-- Isto é mentira. Escolhi os homens mais prudentes e mais experimentados, que nem por sonhos se deixarão prender.

-  E eu te digo que o chefe dos teus batedores, Khasti-tine, já está morto.

-  Uff, uff, uff!

-  Mokachi, pessoalmente, o matou a tiros, ele e mais um dos teus guerreiros; os outros oito foram presos, exatamente como nós.

-  Exatamente como vocês? Vocês também caíram nas mãos dos nijoras?

-  Sim, mas conseguimos fugir, embora sem nossas armas, que nos foram tiradas. Por isto chegamos aqui desarmados. Tu nos consideras covardes por este motivo. E como tratarás os teus batedores, que também tiveram de entregar as suas armas e não tiveram a inteligência e a energia para abrirem um caminho para a fuga?

-  Uff, uff, uff! - exclamou o cacique. - Os meus batedores presos e Khasti-tine morto! Isto pede vingança. Devemos partir imediatamente para assaltar estes cães nijoras. Nós...

Estava extraordinariamente excitado, contrariando inteiramente o costume indígena de manter calma, e queria ir para sua tenda com a intenção de buscar as suas armas. Neste instante Wolf, que até então havia estado calado, o pegou pelo braço e disse:

-  Pára por enquanto. Deves te informar onde estão os nijoras que tu queres assaltar. Estes homens te dirão. Eles sabem ainda outras coisas que são muito mais importantes.

-  Mais importantes? - perguntou o cacique, voltando-se. - Que é que pode ser mais importante do que a notícia de que Khasti-tine está morto e que os nossos batedores foram presos?

-  Chi-So está também preso.

-  Chi... Chi... Chi...

Foi tal o espanto que ele não pôde pronunciar inteiramente o nome de seu filho. Depois ficou rijo como se se tivesse transformado em pedra e apenas os seus olhares desesperados mostravam que havia vida nele. Os seus guerreiros se aproximaram mais ainda, mas nenhum deles proferia palavra. O Rei do Petróleo compreendeu que devia explorar o momento propício e confirmou em voz alta:

-  Sim, é isso mesmo: Chi-So está também preso. Ele deverá morrer no poste das torturas!

-  E o meu sobrinho Adolf, que veio com ele da Alemanha, também se encontra em poder dos nijoras - acrescentou Wolf.

Nesse instante o cacique recuperou o domínio de si mesmo. Ele se lembrou de que era indigno de sua pessoa deixar perceber quanto a notícia o abalara, por isso se obrigou a aparentar calma e perguntou:

-  Chi-So preso?   Sabes isto com certeza?

- Com toda a certeza - respondeu o Rei do Petróleo. - Não só estávamos amarrados e deitados próximo a ele, mas até falamos com ele e com todos os seus companheiros.

-  Quem estava com ele?

-  Um jovem amigo dele que se chama Wolf, diversas famílias alemãs que emigraram e depois todo um grupo de famosos homens do Oeste, de quem certamente não pensarás que se deixam prender tão facilmente.

-  Quem são estes homens?

-  Mão de Ferro...

-   Mão de... uff, uff!

-  E Winnetou.

-  O maior cacique dos apaches?   Uff, uff, uff!

- Sam Hawkens, Dick Stone, Will Parker, Droll, Hobble-Frank. Certamente são homens de que não afirmarás que sejam covardes.

Em torno ressoaram exclamações de admiração e espanto. O cacique achou assim tempo para se dominar, pois a calma quase o abandonava pela segunda vez. Ele empurrou para os lados os que estavam no seu caminho e correu para sua tenda. Ouviu-se a sua voz e a de sua mulher branca. Em seguida ambos apareceram e a última exclamou, dirigindo-se aos três caras-pálidas:

-  É possível? É verdade? Meu filho encontra-se nas mãos dos nijoras?

-  Sim - respondeu o Rei do Petróleo.

-  Então ele deve ser salvo com urgência. Contem o que sabem a respeito e digam onde se encontra o inimigo. Devemos correr, portanto falem depressa.

Ela, como mulher, podia dominar sua excitação ainda menos que o cacique. Pegara Grinley pelo braço e o sacudiu como se assim pudesse apressar a desejada informação. O Rei do Petróleo respondeu, porém, num tom calmo:

-  Sim, viemos sem dúvida para comunicar-lhes o que ocorreu, mas o cacique nos recebeu como a inimigos e assim preferimos guardar para nós o que sabemos.

-  Cão! - gritou-lhe então o Grande Trovão. - Tu não queres falar? Existem meios de te abrir a boca.

Mas a mulher pôs as mãos sobre o ombro e o braço do marido vermelho e pediu:

-  Sê cortês para com eles. Eles quiseram nos informar e, portanto, não merecem que sejam tratados como inimigos.

-  As suas caras não são de homens bons; não tenho confiança - retrucou ele carrancudo.

Mas a esposa do homem vermelho continuou a pedir e Wolf reforçou os seus argumentos, porque receava pelo destino do sobrinho. Também a ele os três brancos agradavam tanto menos quanto mais ele os observava. Mas não lhe haviam feito nenhum mal e ele podia salvar o seu parente com as suas informações. Isto era motivo suficiente para pedir por eles. O cacique não pôde resistir a este duplo cerco, embora tivesse preferido proceder severamente.   Declarou enfim:

-  Que seja como desejam: os caras-pálidas poderão dizer sem receio o que nos têm a comunicar. Falem então.

Esta solicitação era dirigida ao Rei do Petróleo. Se o cacique pensara que estes obedeceriam imediatamente, estava enganado, pois Grinley respondeu:

 

-  Antes que eu aquiesça ao teu desejo, devo saber primeiro se tu aquiesceras  aos  nossos.

-  Quais são os seus desejos?

-  Precisamos de armas. Receberemos algumas se lhes prestarmos o serviço que de nós exigem?

-  Sim.

-  Para cada um, uma espingarda, uma faca, pólvora e chumbo, como também certa quantidade de carne, pois não sabemos se encontraremos logo caça.

-  Sim, também isto lhe será dado, embora não seja necessário, pois enquanto estiverem conosco não sofrerão nenhuma privação.

-  Estamos firmemente convencidos disto, mas nós não poderemos infelizmente demorar-nos muito aqui.

-  Quando querem seguir?

-  Logo depois que te contarmos o que aconteceu.

-  Isto é impossível. Devem ficar aqui até que nos tenhamos convencido de que tudo o que nos disseram é verdade.

-  Esta é uma desconfiança que nos ofende. Há duas alternativas. Ou somos teus amigos ou inimigos. No primeiro caso, nem podemos pensar em dizer-lhes mentiras, e no último, não teríamos nunca ousado procurar o teu acampamento.

O cacique queria ainda contrariá-los; mas a sua branca squaw pediu-lhe num tom aflito:

-  Deves dar-lhes crédito, senão perdemos um tempo precioso e chegaremos tarde para salvar nosso filho.

Visto que Wolf apoiou este pedido, o Grande Trovão respondeu:

-  O vento quer seguir sua direção, mas quando ele é detido por altas montanhas deve tomar outro caminho. O vento é a minha vontade e vocês são as montanhas; que seja assim como o querem.

-  Então poderemos ir quando nos aprouver? - perguntou o Rei do Petróleo.

-  Sim.

-  Então nosso acordo é completo e queremos fumar o cachimbo da paz, para confirmá-lo.

A cara do cacique ensombreceu de repente e de novo ele exclamou:

-  Não me dás crédito?   Achas que sou mentiroso?

-  Não! Mas em tempo de guerra não se é obrigado a cumprir nenhuma promessa que seja feita sem a fumaça do cachimbo. Podes confiadamente acender o cachimbo da paz. As nossas intenções são honestas. Falamos a verdade e podemos prová-lo se o exigires.

-  Provar? Com quê?

-  Logo que tenhas ouvido a nossa narração, ficarás convencido de que cada palavra contém a verdade. Depois poderei até mostrar-lhes um papel cujo conteúdo tudo confirmará.

 

-  Um papel? Não quero saber nada desse papel, pois ele pode conter mais mentiras do que uma boca pode pronunciar. Também não aprendi a falar com os sinais que estão nos teus papéis.

-  Em todo caso, o Sr. Wolf saberá ler; ele te dirá que somos honestos e francos.   Queres agora fumar conosco o cachimbo da paz?

-  Sim - respondeu o cacique quando notou o olhar suplicante da esposa.

-  Por ti e por todos os teus?

-  Sim, por mim e por eles.

- Toma então o cachimbo, não temos tempo a perder.

O cacique tinha o cachimbo pendente do pescoço. Ele o tirou, encheu o lindo fornilho com fumo e o acendeu. Depois de ter tomado os seis tragos prescritos, ele o entregou ao Rei do Petróleo que o passou a Buttler e depois a Poller. Quando a cerimônia terminou, o Rei do Petróleo se julgou seguro. Ele nem notou que Wolf não tinha recebido o cachimbo e, portanto, não ficara ligado ao acordo.

 

O  Documento  Fatal

Sentaram-se todos no chão e Grinley começou a narrar. Ele falou da descoberta do petróleo sem, porém, mencionar o lugar, da venda das terras ao banqueiro e da sua viagem para as montanhas. Naturalmente ocultou a verdade. Ele disse que já na fazenda de Forner, em companhia de Poller e Buttler, havia encontrado os imigrantes alemães e também Winnetou, Mão de Ferro e os outros caçadores. Mais tarde todos caíram nas mãos dos nijoras e lá teriam topado com os batedores navajos presos, ouvindo deles que Khasti-tine fora morto por Mokachi.

Os navajos escutavam calados, mas é fácil imaginar que tanto o cacique quanto sua squaw não estavam tão calmos intimamente quanto aparentavam sabendo que o seu filho estava em grande perigo. Também Wolf estava suspenso dos lábios do narrador. Aí fez o Rei do Petróleo - que mentia descaradamente - uma pausa, e o cacique a aproveitou para perguntar:

-  Como foi que conseguiste fugir?

-  Com o auxílio de um pequeno canivete que os nijoras não notaram. Nossas mãos estavam atadas, entretanto pôde um dos meus companheiros meter a mão no meu bolso, tirar o canivete e abri-lo. E quando ele me cortou as amarras, eu pude fazer o mesmo com as amarras deles.

O Grande Trovão ficou olhando para o chão por algum tempo; depois levantou rapidamente a cabeça e perguntou:

-  E depois?

- Depois nos levantamos de um salto e corremos para os cavalos; montamos nos primeiros três encontrados e fugimos

-  Foram perseguidos?

-  Sim, mas não fomos alcançados.

-  Por que só libertaste estes e não também os outros?

Era uma pergunta embaraçosa, e o cacique dirigiu o seu olhar atentamente sobre o Rei do Petróleo. Este compreendeu que devia concentrar-se e respondeu:

-  Porque não achamos tempo para tudo. Um dos guardas percebeu que nos movíamos e dirigiu-se para onde estávamos. Não pudemos então fazer outra coisa senão fugir.

Ele julgava ter dado uma explicação suficiente e não pressentia por isto nenhuma armadilha.   Depois o cacique continuou perguntando:

-  Tens ainda o canivete?

-  Sim.

-  Estiveste deitado ao lado dos outros prisioneiros?

-  Sim.

Agora ele teria preferido dizer "não", mas isto não era mais possível visto que antes havia afirmado o contrário. Começava a adivinhar a intenção do Grande Trovão, e, realmente, disse este com olhos que brilhavam de cólera:

-  Se eu não tivesse fumado o cachimbo da paz, eu te mandaria agora prender.

-  Por quê? - perguntou Grinley assustado.

-  Porque ou és mentiroso ou então são vocês uns canalhas covardes.

-  Não somos nada disso.

-  Cala-te! Ou mentes agora ou se comportaram como patifes para com os seus companheiros presos.

-  Não pudemos salvá-los.

-  Podiam, sim. E se não era possível outra coisa, podiam ter dado o canivete ao que estava deitado a seu lado.

-  Para isso não chegou o tempo.

- Não mintas! E se tivessem razão, era a sua obrigação enganar os nijoras. Enquanto eles os perseguissem deviam ter voltado em segredo para libertar os prisioneiros.

-  Isto não era possível. Ainda que nos perseguissem vinte ou trinta, os restantes duzentos e setenta teriam ficado.

Apenas ele havia disto isso, já se arrependia. Imediatamente ficou evidente que ele tinha cometido um grande erro, um erro imperdoável, pois o cacique perguntou:

-  Então eles eram trezentos?

-  Sim.

-  Vês que somos muito mais e, entretanto, disseste antes que eles são muito superiores a nós em número.   Tu  tens duas línguas, cuida-te.

-  Não contei exatamente - desculpou-se Grinley.

-  Então abre melhor os teus olhos! Se tu enxergaste de noite o número dos nijoras, deves saber agora, de dia, ainda muito melhor quantos guerreiros se encontram aqui reunidos. Em que margem acampavam os nijoras?

-  Na margem direita.

-  Quando queriam dar  início à campanha?

- Só depois de alguns dias porque aguardavam a chegada de mais guerreiros - mentiu o Rei do Petróleo.

-  Descreve-nos o lugar detalhadamente.

Ele o fez tão bem quanto pôde e acrescentou depois:

-  Agora eu já disse tudo quanto sabia e espero que tu cumprirás tua palavra, dando-nos armas e deixando-nos prosseguir viagem.

O Grande Trovão balançou, pensativamente, a cabeça para um lado e outro e respondeu, depois de algum tempo:

-  Sou Nitsas-Ini, o cacique supremo dos navajos, e não faltei ainda nunca à minha palavra. E tu? Tu também provaste que as tuas palavras encerram a verdade?

-  Eu te fornecerei a prova inabalável que espalhará para todos os ventos a tua desconfiança.

Ele não notou ou não prestou atenção aos olhares de advertência que Buttler e Poller lhe dirigiam. Meteu a mão no bolso e tirou de lá o cheque que tinha recebido do banqueiro. Dando o cheque a Wolf ele disse:

- Lança um olhar sobre este documento de valor. Uma tal soma, principalmente em tais circunstâncias, é transferida apenas a um homem honesto, não acha?

Wolf examinou o documento rapidamente e leu-o em seguida para o cacique. Este meditava olhando para o chão, como já havia feito antes, e disse depois:

-  Então o teu nome é Grinley?

-  Sim.

-  Como se chamam estes dois companheiros?

-  Este aqui é Butler e este outro, Poller.

Wolf ia devolver o cheque ao Rei do Petróleo, mas neste momento o cacique lho tirou ligeiro da mão, dobrou-o assim como estava antes, meteu-o na cinta e continuou num tom como se não tivesse feito nada de singular:

-  Onde fica a fonte de petróleo que vendeste?

-  No Gloomy Water.

-  Não é verdade, não existe lá nenhuma gota de óleo.

-  Existe, sim.

-  Não me contraries. Não há por lá nenhum lugar do tamanho da minha mão que eu não tivesse pisado. Não há óleo nesta região. És um embusteiro.

-  Com mil diabos! - gritou furioso o Rei do Petróleo. - Devo permitir.. .

-  Cala-te! - cortou-lhe a palavra o cacique. - Eu logo vi que não eram homens honestos e somente fumei o cachimbo com vocês porque fui forçado a isto.

-  Então queres te desculpar para poder faltar à tua palavra?

O Grande Trovão fez um orgulhoso movimento de mão com o qual afastava esta insinuação. Ao mesmo tempo passou pela sua face um sorriso de desprezo.

-  Tratando-se de homens tais como vocês, ninguém dirá que faltei à minha palavra.

-  Forneçam-nos pois armas, munições e carne e deixem-nos ir. E devolvam-me o papel.  Por que o guardaste?

Não tenho que devolvê-lo a ti e sim aquele de quem o recebi. Tu enganaste o cara-pálida por esta soma, pois que ele comprou uma fonte de petróleo onde não há petróleo. O Lobo saberá o que ele deve fazer.

Tirou o papel da cinta e o entregou a Wolf, fazendo-lhe um sinal com a mão. Este meteu ligeiro o papel no bolso.

-  Pára! - gritou Grinley, com os olhos brilhantes de cólera. - O papel me pertence.

-  Sim - disse Wolf, esboçando um sorriso muito satisfeito.

-  Então passa ele para cá!

-  Não - respondeu Wolf com o mesmo sorriso.

-  Por que não? Queres ser ladrão, tomando-me o que é meu?

-  Não. Mas modera tuas expressões.

-  Entrega-me então o documento.

-  Não.

-  Pára!  -   gritou   Grinley   com   os   olhos brilhantes de cólera.

-  Por que estás guardando o cheque que me pertence?

-  Porque diversas coisas da tua narração não nos querem entrar bem na cabeça e porque tens tanta pressa em afastar-te daqui. Gente que escapou com tanta dificuldade à prisão e à morte, precisa de calma e de conforto. Estas coisas podem tê-las aqui, mas querem partir. Em segundo lugar, qualquer outra pessoa em sua situação se ofereceria para fazer parte da nossa campanha contra os nijoras, para se vingar. Também isto vocês não querem. O seu único desejo é afastar-se e isto o quanto antes. Naturalmente causam a impressão de que têm um medo terrível de alguém que os persegue.

-  O que pensamos e o que queremos não é da tua conta - retrucou o Rei do Petróleo arrogantemente. - Fumei o cachimbo da paz com o cacique e através dele com todos os seus. Ele deve cumprir sua promessa e não me pode ser furtada coisa alguma.

- Tens razão. O Grande Trovão cumprirá a sua palavra com toda a certeza.

-  Entrega-me então o papel.

- Eu? Nem penses nisto. Não quero roubá-lo absolutamente, e, sim, apenas guardá-lo.

-  O diabo te carregue!   Guardá-lo para quem!

-  Para aqueles que vêm atrás de ti.

E quando o Rei do Petróleo quis explodir em cólera, ele lhe cortou a palavra e lhe impôs silencio gritando:

-  Cala a boca! Não creias que és um homem por quem me deixe intimidar. Se são gente honesta podem ficar tranqüilamente conosco. Se o dinheiro lhes for pago três ou quatro dias mais tarde, isto não fará de vocês mendigos. Vou dizer o que penso de vocês. No primeiro instante, julguei que fossem honestos gentlemen, apesar das caras suspeitas. Mas depois que ouvi a tal história, minha impressão mudou.

-  Eu disse a verdade.

- Qual! Dizes que Mão de Ferro, Winnetou, Sam Hawkens e outros foram todos presos junto com vocês e que somente vocês conseguiram escapar. Sr. Grinley, isto é extraordinariamente suspeito. Referiste aqui nomes de homens que escapariam muito mais facilmente que vocês. Quem sabe não são vocês traidores que os entregaram às mãos dos nijoras? Seja isto como for: Winnetou e Mão de Ferro são homens que saberão cuidar de si. Para mim, é agora este cheque a coisa principal. Libertaremos os prisioneiros e portanto falaremos com eles; ou então eles se libertarão sós e virão atrás de vocês. De qualquer maneira estaremos com eles. Veremos naturalmente este banqueiro Rollins e vamos mostrar-lhe o cheque. Se a tua causa for honesta, poderás ficar tranqüilamente aqui, mas se são trapaceiros, então ter-se-ão esforçado desta vez inutilmente.

Aí o Rei do Petróleo saltou no chão e gritou:

-  É isto o que queres fazer? E a mim o dizes? Assim queres tratar-me? Que lhes interessa que eu queira ir adiante rapidamente? Tenho necessidade de lhes dar minhas razões? Repito: o cachimbo da paz foi fumado e ninguém me pode deter aqui.

-  Ninguém o fará - respondeu tranqüilamente Wolf.

-  E devo receber o que me foi prometido.

-  Armas, pólvora, chumbo e carne?   Sim, receberás  tudo  isso.

-  E também o meu documento.   Ele me pertence.

-  Se isto ficar provado, recebe-lo-ás de volta, é natural.

-  Não, agora, imediatamente!   Não  nos pode  ser tirada coisa  alguma, pois o cacique fumou conosco o cachimbo da paz, por si e por todos os seus.

- Está certo.  Mas também me consideras índio e navajo? Ou fumei o cachimbo contigo?

Grinley arregalou os olhos e não achou resposta.

-  Sim, é isto - disse Wolf com um sorriso de superioridade. - Pode ser que normalmente sejas uma raposa astuta; porém desta vez demonstraste o contrário. Não se anda correndo pelo bravio Oeste com um documento no valor de centenas de milhares de dólares no bolso, e, quando a gente faz, por exceção, guarda-o bem e não o mostra a ninguém. Agora já ouviste o que eu tinha a dizer: o assunto está esgotado.

Ele se levantou e quis se afastar. O Rei do Petróleo, porém, pegou-o pelo braço e gritou-lhe:

-  Entrega-me o papel ou eu te estrangulo.

Wolf livrou-se dele, afastou-o de si com uma volta súbita, puxou do revólver e ameaçou-o:

-  Ousa ainda um passo na minha direção e minha bala perfurará o teu crânio. Fiquem aqui ou vão-se embora, a mim isto é indiferente, mas este papel eu não entrego até que tenha libertado o meu sobrinho e tenha falado com o banqueiro.  Agora basta.

Ele se foi realmente. O Rei do Petróleo ficou olhando e rangendo os dentes sem poder detê-lo. Cheio de cólera dirigiu-se ao cacique; este o escutou sorrindo e respondeu então na maior calma:

-  O Lobo é um homem livre, ele pode fazer o que lhe aprouver. Se tu ficares conosco receberás o teu papel.

-  Mas eu tenho que ir-me embora.

-  Espera que o banqueiro fale contigo. Tu nos trouxeste uma mensagem e eu te dou em troca armas, munições e carne, embora tua história não seja verídica.  Não exijas mais de mim. Queres ficar conosco?

-  Não.

-  Então receberás imediatamente o que foi combinado. Depois poderás seguir.

-  O cacique foi dar as ordens necessárias, e os navajos que também ali se achavam afastaram-se deles, como pombas que deixam as gralhas no campo. Os canalhas ficaram sós. Ninguém lhes prestava atenção; por isto podiam eles dar expansão aos seus sentimentos.

-  Bandido maldito este Wolf! - rangeu os dentes Grinley. - Ele realmente não entrega o cheque.

-  Pensei logo isto, quando vi que querias mostrá-lo - respondeu Buttler. - Foste um bobalhão como não há outro.

-  Cala-te, burro! Não pude proceder de outro modo. Eles não me queriam dar crédito e eu tinha de provar o que dizia.

-  Com um documento arrancado com. trapaças. Agora estás vendo que linda prova fizeste.

-  Eu não podia adivinhar!

-  Mas eu adivinhei. Onde está agora a recompensa por todos os nossos esforços e por todos os perigos que enfrentamos? Um só instante tirou-nos tudo.

Assim continuavam as recriminações. E quando também Poller começou a fazer censuras, Grinley fê-lo calar-se com algumas grosserias e depois prosseguiu:

-  Pode ser que tenha sido incauto, mas ainda falta muito para que tudo esteja perdido. Vamos recuperar o cheque.

-  Deste Wolf? - perguntou Buttler com um riso de dúvida.

-  Sim.

-  Queres porventura ficar aqui e esperar até que venham os nijoras ou mesmo Mão de Ferro e Winnetou?

-  Que idéia!   Vamos embora.

-  Mas em tal caso desistimos do papel?

-  Não. Digo que vamos embora, mas não antes que tenhamos forçado Wolf a entregá-lo. Lembra-te de que receberemos armas.

-  Teremos pois que lutar com ele?

-  Sim, se ele nos forçar a isto.

-  E os vermelhos como se comportarão?

-  Não se meterão na coisa. Fumamos com eles o cachimbo da paz, e enquanto não abandonarmos o acampamento, não podem tomar partido contra nós em favor dele. Ele declarou abertamente que não faz parte deles. Outra coisa seria se nós abandonássemos o acampamento e voltássemos mais tarde; então o cachimbo teria perdido sua força. Vejam, aí estão nos trazendo a carne. As espingardas e as facas virão em breve e então irei procurar aquele Wolf. Tu me ajudarás?

-  Naturalmente! Por uma tal soma pode-se arriscar alguma coisa. Poderemos experimentar. Se houver perigo para nós, ainda haverá tempo para desistir da luta. Lá montam diversos vermelhos a cavalo. Onde será que eles vão.

-  A nós isto não interessa.

Grinley se enganava, pensando assim. O cacique aproximou-se com um vermelho que carregava longos e finos pedaços de carne seca.

-  Quando é que os caras-pálidas nos querem deixar? - perguntou ele.

-  Logo que tenhamos recebido o que nos foi prometido.

-  E para onde dirigirão os passos de seus cavalos?

-  Aqui, descendo o Rio de los Navajos. Queremos baixar o Colorado.

-  Então podem partir já.  Aqui está a carne.

-  E as outras coisas?

-- Sim. Também as receberão. Estão vendo os cavaleiros ali? Eles têm três espingardas, três facas, pólvora e chumbo para vocês. Eles viajarão uma hora com vocês e depois quando lhes tiverem entregue os objetos, voltarão para cá.

Desapontados, os três trocaram olhares. O cacique notou-o perfeitamente, fez, como se isto lhe tivesse escapado.

-  E por que não receberemos isto agora? - perguntou Buttler. Um sorriso muito singular passou então pelo rosto do Grande Trovão e ele respondeu:

-  Ouvi dizer que os caras-pálidas  têm o costume de dar a  seus hóspedes um acompanhamento de honra. Resolvi fazer isto com vocês.

-  Aceitamos com gratidão; mas nós mesmos sabemos carregar armas.

Quando é que os caras-pálidas nos  querem deixar?

-  Por que irão se fatigar? Agora não precisarão delas. Vejam, minha gente está partindo. Eles costumam cavalgar ligeiro. Aviem-se para segui-los, senão eles alcançarão antes de vocês o lugar onde devem entregar-lhes as armas e se não estiverem lá, não às receberão.

Ele fez com a mão o sinal de despedida e deu-lhes as costas, enquanto seus olhos brilharam maliciosamente. Ele havia cumprido sua promessa e também havia impedido a intenção dos brancos.

-  Raposa sabida este pele-vermelha - disse Grinley entre dentes. - Ele parece ter adivinhado o que pretendíamos fazer.

-  Sim - apoiou Buttler. - Agora não há mais esperança.

-  Pshaw! Ainda falta muita coisa antes que eu perca a esperança.

-  Realmente?   Achas ainda possível conseguirmos algo?

— Sim. Esperamos até que os seis vermelhos se vão e depois voltaremos.

-  Para lutar com Wolf?

-  Sim.

- Isto não seria muito inteligente, pois os vermelhos todos nos aguardariam. Foste tu mesmo que disseste que o cachimbo perderá sua força logo que sairmos do acampamento.

-  Sim, seria até uma estupidez se quiséssemos atacar abertamente.

- Sim. Podes imaginar que partirão dentro de curtíssimo tempo para libertar os supostos prisioneiros, e sabemos que eles subirão pela margem direita. Nós cavalgaremos atrás deles até alcançar o lugar onde vão acampar para pernoitar. Lá os vigiaremos em segredo e seria inacreditável se não encontrássemos oportunidade de nos aproximar do tal Wolf.

-  Talvez tenhas razão.   Esta  é uma idéia  que me dá  vida  nova.

Eles montaram e se foram, sem despedida. Ninguém parecia importar-se com eles, mas só na aparência, pois na realidade todos os olhos estavam furtivamente dirigidos sobre os três brancos.

Quando o Rei do Petróleo e os seus dois companheiros desapareceram atrás da escarpa da margem, surgiu novamente Wolf. Ele se havia retirado atrás de um grupo de árvores e ia agora em direção da tenda do cacique, diante da qual estava em assembléia uma reunião dos mais eminentes guerreiros navajos. A squaw branca estava preocupadíssima pelo seu filho e fazia tudo para que o seu marido partisse o mais cedo possível para assaltar os nijoras. Ele a tranqüilizava dizendo que Chi-So estava na companhia de guerreiros famosos, valentes e experientes.

-  E - acrescentou Wolf para acalmar a mãe - só depois de terminada a guerra e de volta às aldeias é que se matam os prisioneiros; mas a guerra ainda nem começou e assim não precisas ter receio pelo teu filho, como também eu não tenho grandes preocupações pelo meu sobrinho. Em primeiro lugar devemos pensar na coisa mais próxima. Um espia deve ser colocado rio abaixo.

-  Para que fim? - perguntou o cacique.

-  Se não me engana o meu pressentimento, os três brancos, recebidas as armas, darão meia volta e nos seguirão. Não se abandona uma soma tão alta sem ter tentado tudo para recuperá-la.

-  Achas que eles te querem forçar a entregar-lhes o papel? - perguntou o cacique.

-  Sim.

- Que venham. Eles abandonaram nosso acampamento e a fumaça do cachimbo não os poderá proteger mais. Teriam que saborear as nossas balas.

-  Se nós os víssemos, sim. Eles, porém, terão o cuidado de não se deixarem ver e nos seguirão secretamente para me assaltar, se houver uma oportunidade adequada para isto. Por este motivo devo saber, para minha segurança, se eles voltarão ou não. Peço-te, pois, para colocar, como sentinela, um batedor  a cavalo junto do rio.

-  Por que a cavalo?

- Porque partiremos daqui em breve e ele não nos poderia alcançar facilmente a pé.

O cacique aceitou o alvitre. Teve início então o conselho para tratar da urgente campanha contra os nijoras.

Não havia, no fundo, muitas questões a resolver. Era de supor-se que Grínley, Buttler e Poller não tenham dito a verdade no que se referia às suas pessoas, suas intenções e seus feitos, mas devia-se acreditar que haviam estado presos, pois não tinham armas. Também podia-se aceitar como verdade que os batedores dos navajos, Mão de Ferro junto com os seus prisioneiros tivessem caído nas mãos dos nijoras. Em todo o caso também os nijoras haviam enviado batedores e estes espiaram com certeza o acampamento dos navajos, pois não foram impedidos nisto pelos batedores contrários. Certamente os nijoras resolveram passar ao ataque e esta intenção deles fora provavelmente reforçada pela fuga dos três caras-pálidas, dos quais os nijoras podiam desconfiar que tivessem ido ter com os navajos para procurar refúgio junto deles e para os informar. Só um rápido assalto podia recompensar estas desvantagens, e, assim sendo, era de prever que os nijoras haviam partido sem demora contra os navajos. Estes últimos acreditavam, por sua vez, que não deviam aguardar o ataque, e que deviam preveni-lo ou, pelo menos, ir ao encontro do inimigo. Por isto aprontavam-se para a partida, que foi realizada justamente no instante em que voltavam os seis cavaleiros que acompanharam Grinley, Buttler e Poller. Quando foram interrogados como estes se haviam comportado, declararam que após o recebimento das armas e da munição, os três brancos haviam calmamente prosseguido na viagem, sem trair por coisa alguma que tivessem a intenção de voltar. Apesar disto ficou o batedor junto ao rio, recebendo instruções, caso os brancos voltassem, para deixá-los passar, observá-los por algum tempo e dar, depois, uma grande volta para seguir os seus camaradas.

Os navajos subiram naturalmente, pela margem direita do rio, pois haviam dado crédito à declaração do Rei do Petróleo, segundo a qual os nijoras estavam deste lado. Na realidade vinham eles, os nijoras, descendo pela margem esquerda. Quando o dia se aproximava do seu fim, veio o batedor e informou que os três brancos com efeito, voltavam e seguiam a pista dos navajos. Sabendo disso e podendo prevenir o perigo, não era preciso receá-los.

Toda a tarde e pela noite adentro continuaram cavalgando e só pela meia-noite pararam, pois que então, como supunham erradamente, a cada momento podiam dar com os nijoras. Acamparam, mas não fizeram fogo, pois que este poderia denunciá-los.

A lua estava acima das árvores que margeavam, o rio, sua luz brilhava nas águas estreitas, mas profundas. Em torno tudo era silêncio; só raramente bufava um dos cavalos ou batia com a cauda, espantando os mosquitos que havia perto do rio. Não se ouvia nada mais. Realmente nada mais? Mas sim, pois de repente ressoou, no ritmo de seis oitavos, da outra margem: Fitifitifiti, fititi, fititi, fititi, fititi, fititi, fitifitifiti, fititi, fititi, ti.

Os índios acordaram e ficaram à espreita, assombrados. Fora aquilo uma voz humana ou algum instrumento? O cacique foi à sua mulher, pisando levemente, e perguntou:

-  Ouviste? Nunca ainda ouvi uma tal coisa. Que pode ter sido?

-  Alguém imitou um violino e cantarolou uma valsa - respondeu ela.

-  Violino, valsa?   Que é isto?  Não sei.

Ela queria informá-lo, mas não chegou a fazê-lo, pois do outro lado veio:

Clililililili, lilili, lilili, clililililili, Iilili, lilili, lilili, li.

-  Isto foi diferente - cochichou o cacique.

-  Foi a clarineta que quiseram imitar.

-  Clarineta?   Não conheço.   Acho que lá do outro lado...

Trerere  te,. .te.. .te.. .trerere.. .te.. .te.. .te...!   - interromperam-no do outro lado.

-- Esta foi uma trombeta - explicou a squaw, que também não sabia o que pensar. E ainda antes que o cacique pudesse responder, os sons continuaram: Tchin tchintchin tchinbumbum tchinbubum tchinbumbum tchintchintchin tchinbubum tchinbubum bum!

-  Este foi o grande tambor com os tímpanos de bronze - disse a squaw, cujo assombro havia crescido de minuto em minuto.

-  Trombeta, tambor, tímpanos? - perguntou o Grande Trovão. - Tudo isto são palavras que eu não compreendo. Talvez um mau espírito esteja lá do outro lado?

- Não, não é nenhum espírito e sim um homem. Ele está imitando com a voz o som dos diversos instrumentos musicais.

-  Mas esta não é a música dos homens vermelhos?

-  Não, mas a dos caras-pálidas.

-  Será que é um cara-pálida?

-  É possível.

- Mas eles estão presos! Mandarei alguns batedores que deverão investigar a respeito deste ser estranho.

Um minuto mais tarde, quatro navajos atravessaram o rio a nado, mais para cima, onde não podiam ser notados pelo músico singular, treparam a margem do outro lado e vieram cautelosamente descendo ao longo do rio. Depois de curto tempo houve um grito abafado e em seguida voltaram os quatro pelo rio, sustentando um corpo humano de modo que só mergulhasse pela metade. Quando o puseram de pé, anunciou um deles ao cacique:

-  Foi este cara-pálida; ele estava encostado numa árvore e tamborilava com os dedos na barriga.

O Grande Trovão chegou-se à figura do estrangeiro, contemplou-o e perguntou:

-  Que estás fazendo aí no meio da noite? Quem és e quem são aqueles a quem pertences?

Ele falara meio inglês e meio na língua dos índios; o interrogado não o compreendia; pressentia, porém, perfeitamente o que se queria saber dele e respondeu em alemão:

-  Boa noite, meus senhores! Sou o senhor cantor aposentado, Mathaus Aurelius Hampel, de Klotzsche, em Dresde. Por que me interromperam os senhores o meu estudo? Fiquei em verdade molhado como um pinto.

Os vermelhos não compreenderam nenhuma palavra, mas pode se imaginar o contentamento e a admiração da branca squaw quando ela ouviu os sons tão seus conhecidos da língua materna. Rapidamente aproximou-se do aposentado e exclamou:

-  Fala alemão? É alemão, um cantor da região de Dresde? De que modo chegou até aqui no Rio Chelly?

Agora o assombro era todo do cantor. Ele recuou alguns passos e exclamou, por sua vez, batendo as mãos uma contra a outra:

-  Os sons da minha língua materna nesta boca! Uma índia legítima que fala alemão!

-  O senhor se engana; é verdade que sou agora a esposa de um índio, do cacique dos navajos, mas de nascimento sou alemã.

-  E tem um marido índio? Como se chama então o senhor seu esposo?

-  Nitsas-Ini, o Grande Trovão!

-  O Grande Trovão?  Estamos justamente procurando- o .

-  Realmente?  O senhor disse "nós"; então não está só?

-  Que idéia! Somos uma sociedade inteira de hábeis e valentes homens do Oeste e heróis, Winnetou, Mão de Ferro, Sam...

-  Posso saber agora onde se encontram os seus  companheiros?

-  Foram atrás dos nijoras.

-  Mas estes querem assaltar-nos!

-  Sim, se não me engano, creio ter ouvido isto.

-  O senhor está dizendo aí uma coisa de extraordinária importância. Nós vamos ao encontro dos nijoras para antecipar-lhes o assalto.

-  Como? Ao encontro deles? Creio que está em tal caso no caminho errado, prezadíssima senhora cacique.

-  Como assim?

-  Como assim? Porque eles se encontram do outro lado, à esquerda do rio.

-  E não aqui do lado direito? Será que sabe isto com certeza? Estamos muitíssimo interessados em sabê-lo exatamente. O senhor tem certeza de não se enganar?

-  Um engano é absolutamente impossível. Quando nós adeptos da arte, uma vez chegamos a saber alguma coisa, então a sabemos a fundo e bem. Acabamos de ser assaltados pelos nijoras, minha senhora.

-  Isto eu sei. Três dos seus se salvaram.

- Boa noite, meus senhores!  Sou o senhor cantor aposentado.

-  Três? Fala, segundo toda a probabilidade, em Buttler, Poller e o Rei do Petróleo.  Estes nos fugiram, infelizmente.

-  Fugiram?   Então escaparam?   Talvez do senhor?

-  Sim. Viu porventura estas três pessoas?

-  Falamos até com eles.

-  Então espero que tenham sido cautelosos!

-  Por quê?

-  Porque eles parecem ser homens nos quais não se pode ter nenhuma confiança. São gatunos natos. Sim, natos. Conseguiram até enganar a mim, a mim, que sou filho das Musas. Isto é muita, muita coisa! Ainda hei de contar-lhe tudo isto, senhora cacique.

-  Sim, mais tarde. Agora eu queria saber primeiro onde é que se encontram Mão de Ferro e Winnetou.

-  Isso, não sei.

-  Não? Mas parecia entender-se das suas palavras que o senhor sabia.

-  Pode ser. Mas de um lado eu não me preocupo fundamentalmente com tais coisas, porque a minha ópera heróica requer todos os meus pensamentos, e do outro lado os meus companheiros não são tão comunicativos para comigo, como a senhora parece supor. É esta uma consideração muito delicada da parte deles, pela qual realmente lhes devo gratidão. Não me querem sobrecarregar com estes pormenores sem importância, pois tenho coisas muito superiores a criar.

-  Quando se afastaram eles de vocês?

-  Ainda antes do meio-dia de hoje. Não levaram ninguém, exceto Chi-So.

-  Chi-So?   O quê? O meu filho?

-  Seu filho?  Como? Ele é seu filho?

- Sim.   Não sabia?

-  Não. Eu sabia que ele era filho de Nitsas-Ini, mas que ele é também seu filho, isto eu não sabia até este momento.

-  Mas eu lhe disse que sou esposa do cacique.

-  Está certo. Mas sabe, para um artista não é tão fácil compreender as relações íntimas de uma família, onde a mãe é branca e o pai da cor de bronze. Mas vou pensar nisto com muita atenção, e então é muito provável que a senhora obtenha um lugar na minha ópera, por exemplo, no papel de uma mãe heróica vermelha, pois uma branca já tenho na pessoa da Sra. Rosalie Ebersbach.

O cantor lhe pareceu um tanto singular. Ela sacudiu levemente a cabeça e informou-se em seguida:

-  Que é que estava fazendo lá do outro lado, onde se encontrava?

-  Eu compunha a marcha da entrada dos heróis para minha ópera.

-  Mas tão alto!

-  Tem que ser assim; de outro modo não dá. Eu tenho que ouvir perfeitamente como os diversos instrumentos soam.

-  Mas essa imprudência podia o senhor pagar muito facilmente com a vida!   E se houvesse inimigos nas proximidades?

-  Sam Hawkens me disse que não havia inimigos, por isto também não cuidou muito de mim e assim consegui afastar-me. Fui bastante longe para que não me ouvissem e experimentava, então, as diversas vozes da orquestra. Aí, infelizmente, me interromperam. Pegaram-me por trás, fecharam-me a garganta de modo que a composição acabou de todo e me arrastaram para cá. Espero que me levem de novo para o outro lado.

-  Isto faremos.  Fica longe o acampamento?

-  Ora, será preciso andar um bom quarto de hora, pois tive que me afastar muito para não ser ouvido.

-  Por enquanto está tudo bem; falarei com o meu marido.

Com o auxílio de Maitso, o Lobo, explicou ela aos índios o que soube do cantor e ficou resolvido que Wolf, com mais dois vermelhos, devia atravessar o rio para procurar o acampamento dos brancos.

Os três eram bons nadadores; rápida e facilmente chegaram ao outro lado, dirigindo-se então para a esquerda e seguindo o curso da água com todas as cautelas costumeiras a fim de se aproximarem do acampamento. Eles não tinham ido longe quando ouviram passos que se aproximavam. Ligeiro se esconderam atrás de alguns arbustos. As duas pessoas, que vinham, conversavam a meia voz.

-  É terrível este homem! - disse um. - Nunca fica onde deve estar. Se nós o acharmos, vamos atá-lo a uma corda. Não pensas assim, velho Droll?

-  Sim - apoiou o outro. - A ópera que ele quer fazer é uma ópera louca e ele mesmo é ainda muito mais louco. Este homem pode nos causar ainda grandíssimos prejuízos; a corda é o único remédio.

Wolf ouviu que eram alemães e saudou-os por detrás do arbusto:

-  Boa tarde, meus senhores. Folgo muito em encontrar patrícios aqui. - Mas ele já não via mais os dois, só ouvia o estalar das espingardas, preparadas para o tiro. Logo à primeira palavra que ele pronunciara, eles desapareceram como se o solo os tivesse engolido.

-  Onde entraram os senhores? - continuou ele. - Do seu comportamento e da sua eficiência vejo que são bons homens do Oeste; mas esta cautela é aqui desnecessária. Os senhores estão ouvindo que falo alemão.

-  Isto não nos impressiona - foi a resposta de dentro dum arbusto. - Aqui quase todos são bandidos, que às vezes, sabem também falar alemão.

-  Mas eu sou alemão verdadeiro e sou o tio de Adolf Wolf, a quem os senhores provavelmente conhecem.

-  Com a breca, então é bom que não nos matemos mutuamente! Não precisa andar por aí de quatro, atrás dos arbustos, seu velho Napoliuni alemão, pode sair.

-  Com todo o gosto; mas antes que eu o faça, mais uma palavra.

Há comigo dois guerreiros navajos. Como os senhores se comportarão para com eles?

- Tão cortesmente como se fossem os meus únicos dois afilhados. Pois os navajos são nossos amigos.

-  Bem, então vamos.

Ele saiu com os dois vermelhos do seu esconderijo e os outros dois também emergiram como que do seio da terra. Só poucas palavras foram trocadas e em seguida partiram rapidamente para o acampamento.

Quando o alcançaram, estavam lá apenas os imigrantes com as suas mulheres e filhos; os outros haviam ido procurar o cantor:

-  Como os chamaremos? - perguntou Frank. - Não podemos buscá-los, pois não sabemos por onde andam.

-  Dispare uma espingarda - aconselhou Wolf. - Então logo virão. Pode atirar sem preocupações. Conheço nosso acampamento e sei muito bem que não temos nada a recear.

Aceitando o alvitre, Frank deu um tiro, e, realmente, os ausentes voltaram dentro de pouco tempo, um após o outro. É fácil imaginar como ficou encantado Adolf Wolf quando o seu tio se deixou conhecer. Foi uma cena tocante de alegria na qual todos tomaram parte cordialmente.

O tempo escasso não permitia, por enquanto, muita expansão entre tio e sobrinho; por isto Wolf, a quem foram ditos os nomes de todos os presentes, dirigiu-se,.em seguida ao banqueiro:

-  Disseram-me que o senhor é o Sr. Rollins, de Arkansas. O senhor não comprou uma fonte de petróleo?

-  Infelizmente, sim, porém não era fonte e muito menos de petróleo.

-  Pensei isto mesmo. Enganaram-no.

-  E os três gatunos nos escaparam. Tenho, porém, ainda a esperança de alcançá-los.

- Hum!  Talvez queira ver isto?

Ele tirou do bolso um objeto e entregou-o a Rollins.

Quando este lançou-lhe um olhar, exclamou alegremente surpreendido:

-  O que estou eu vendo! Esta é a minha assinatura, é o cheque que eu acreditava que estivesse nas mãos de Grinley.

Wolf narrou em poucas palavras como ele tinha se apossado deste documento; e quando depois contou que Grinley, Buttler e Poller haviam voltado, Sam Hawkens exclamou:

-  Estes patifes estão talvez seguindo o senhor?

-  Naturalmente, eles querem aguardar a oportunidade de me encontrar longe dos outros para então me assaltar e recuperar novamente o papel.

-  É isto, assim o creio também. Mas não terão êxito. Eles cairão nas nossas mãos. Onde estão vocês acampados, hoje?

-  A um quarto de hora daqui, rio abaixo, do outro lado. - Pensam que eles estejam perto de vocês?

-  Não, eles só puderam seguir nossa pista durante o dia; depois tiveram que esperar. Forçosamente estão a boa distância de nós.

-  Lindo, vamos então pegá-los amanhã. Mas agora é que me lembro: não falamos ainda de Khasti-tine. Sabem que fim levou este seu batedor?

-  Sim. Foram enviados por nós dez batedores; oito estão presos e os dois restantes foram assassinados pelos níjoras.

-  Isto supõe o senhor.

-  Não supomos, sabemos, com certeza, pelo Rei do Petróleo.

-  Ah! Então foi ele quem o disse? E deram-lhe crédito?

Wolf olhou com atenção para o rosto de Sam e interrogou:

-  Por que pergunta de um modo tão singular?

-  Quero dizê-lo: não foram os nijoras que mataram os batedores, foi... o Rei do Petróleo.

-  O... Rei do Petróleo? - repetiu Wolf no tom de quem não acredita absolutamente. - Quem lhes contou esta balela?

-  Escute, Sr. Wolf, Sam Hawkens não se deixa tão facilmente contar balelas!   Falo de fatos!

-  Com mil trovões!   Fale então: quais são estes fatos?

-  Khasti-tine vinha se aproximando, de rastos do cacique dos nijoras, de maneira tão perfeita que, com toda certeza, ia cair-lhes nas mãos. Mas então veio um outro, que nada tinha com isto, e matou a ele e ao companheiro, a tiros e pelas costas.

-  E este assassino foi... foi... o tal Rei do Petróleo? Provem-no, provem-no.

-  Não há coisa mais fácil. Havia testemunhas lá, dois homens que o queriam impedir, mas não puderam, porque aconteceu com demasiada rapidez. E estas testemunhas estão aqui. São o Sr. Rolins e o Sr. Baumgarten. Interrogue-os; que eles o contem!

Wolf não queria ainda acreditar; mas quando o banqueiro lhe narrou os fatos com o luxo de detalhes, ele não pode mais duvidar e exclamou, agora duplamente enraivecido:

-  Então foi realmente este canalha o assassino! E nós o tivemos nas mãos e não pressentimos nada!

-  Armaram até essa gente, hihihihi! - ria-se Sam com o seu modo singular. - Fizeram muito bem, realmente muito bem!

-  Cale-se, Sr. Hawkens. Podia-se imaginar tal coisa? Uma audácia destas? Assassinar os nossos batedores e depois arriscar a vinda para o nosso acampamento e exigir amparo de nós? Mas nós lhe daremos caça e não descansaremos antes que os peguemos. Então é este, este o assassino de Khasti-tine!   O cacique deve sabê-lo e já.

Ele trocou algumas palavras rápidas com os seus dois companheiros vermelhos e em breve estes se afastaram silenciosamente do fogo do acampamento.

A conversa era feita até aqui em inglês, e, visto que os imigrantes alemães não dominavam este idioma, pediu a Sra. Rosalie a Hobble-Frank que lhe traduzisse as coisas mais importantes. Esse o fez em alemão, e quando Wolf o ouviu, passou a falar também em alemão, completando as explicações de Frank com as suas observações. Frank acabou sua narração com as palavras:

-  E agora mostraremos a estes nijoras que eles não são outra coisa senão simples índios de mostarda.

-  Índios de mostarda? - perguntou admirado Wolf. - Como assim?

-  Não sabe o que é isto?

-  Não, Sr. Frank, nunca ouvi falar de índios de mostarda.

- Não? Isto é o cúmulo! Existem não um e sim dois índios mostardeiros.   E não conhece realmente nenhum deles?

-  Não!

-  Nem o velho nem o moço?

-  Não. Onde é que vivem estes dois índios mostardeiros?

- Isto não influi, basta que o senhor saiba que eles estiveram em Washington na casa do "grande pai branco". Talvez saiba de quem se trata?

-  Sim. Os índios costumam chamar assim o Presidente dos Estados Unidos.

-  É isto. Segundo ouço, o senhor não está desprovido de todo de uma. inclinação para a ciência. Pois estes dois índios foram mandados a Washington pela sua tribo, a fim de levar ao "grande pai branco" alguns pedidos da tribo. Como enviados especiais que eram, deviam ser tratados com muita consideração e por isto foram convidados a jantar com o presidente. Eles se sentaram lado a lado, bem no fim da mesa, que quase vergava debaixo do peso das garrafas, das travessas e dos pratos que estavam nela. Havia comida que eles nunca haviam visto. Havia facas, garfos e colheres e eles deviam prestar atenção para saber como se deviam comportar. Aí o velho cochichou astutamente ao moço:

-  O meu irmão moço preste bem atenção: a comida da qual os hóspedes brancos menos comem é a comida mais cara e mais preciosa. Desta comida comeremos bastante! - Eles repararam bem e notaram que uma iguaria castanho-parda que estava em vidros finos, sobre pires de prata, era a menos usada. Em cada vidrinho, uma colherzinha, feita da casca da tartaruga.   Então disse o velho novamente ao moço:

-  Nestes vidros está o prato mais caro e mais precioso. O meu jovem irmão pode alcançar um destes vidros com a mão; coma primeiro desta comida.

O índio moço estendeu a mão e serviu-se, tomando logo duas colheres cheias, a segunda logo após a primeira e olhando em torno se ninguém o via. Ninguém olhava para lá. Só então começou ele a esmagar com a língua a preciosa comida e o velho observava atentamente a sua cara. Ela ficou alternadamente amarela, vermelha e azul, até verde, mas ficou rija e sem expressão, pois um índio nem deve piscar o olho, mesmo nas piores dores. Os olhos ficaram fixos e cada vez mais fixos começaram a lacrimejar, até que a água lhe correu em torrentes pelas bochechas. Então o jovem índio fez um esforço terrível para engolir - e a mostarda lhe foi para o estômago. Ele então se sentiu melhor, correndo-lhe somente a água, em regatos, dos olhos. Por isto o velho índio perguntou, cheio de curiosidade:

 

. . .e por isto foram convidados a jantar com o presidente.

 

-  Mas por que chora o meu jovem irmão vermelho?

Este por coisa alguma confessaria que a preciosa comida não passava de um travo bem amargo. Portanto respondeu:

-  Lembrei-me justamente que meu pai, há cinco anos, morreu afogado no Mississípi; por isto choro.

Com estas palavras empurrou o vidro ao velho. Este viu como o moço fora astuto e o fez de modo idêntico: uma após outra ele meteu duas colheradas cheias na boca e fechou-a ligeiro. Mas logo se lhe notaram os movimentos da boca como os de uma carpa fora da água, ou quando alguém põe na boca um bocado muito quente que não pode engolir. Depois enrugou-se a fronte do velho e na garganta houve sons suspeitíssimos. A cor da sua face mudava como a de um camaleão; o suor lhe saía de todos os poros; os olhos ficaram vermelhos e encheram-se de um mar de lágrimas, que em breve transbordou pelas faces abaixo. Vendo isto, o moço perguntou-lhe cheio de compaixão:

 

-  Por que chora o meu velho irmão vermelho?

Então o velho engoliu a mostarda, concentrando nisto toda a sua força; respirou profundamente e com um prolongado gemido, respondeu:

-  Choro de sentimento por não teres, naquela ocasião, há cinco anos, te afogado também.

-  Sim, Sr. Wolf, esta é à famosa história dos dois índios mostardeiros, que o senhor não conhecia.

Um riso geral foi a conseqüência desta narração, riso ao qual o próprio narrador ajudava com muito gosto e que, na calma da noite, podia ser ouvido a um quarto de hora de distância. Nesta altura veio da direção do rio uma voz forte que exclamou no inglês dos índios:

-  Por que os caras-pálidas riem tão alto? Atrás de cada árvore pode estar escondido um inimigo.

Era Nitsas-Ini que vinha, seguido pelo cantor e por alguns dos seus melhores guerreiros. Também trazia consigo sua mulher branca, provavelmente porque os mensageiros disseram que aí também havia mulheres. Os acampados se levantaram para saudá-lo. Ele parou diante do círculo aberto deles e examinou com o seu olhar perscrutador todos os da roda, um por um. Quando ele viu Sam Hawkens, seu rosto sério assumiu uma expressão de afabilidade e disse, dando-lhe a mão:

-  O meu irmão Sam está aqui? Agora sei que esta alegria ruidosa não nos prejudicará, pois Sam Hawkens não deixa ouvir a sua voz quando um inimigo está perto.

Também Stone, Parker, Droll e Frank ganharam o seu aperto de mão e em seguida foram-lhes ditos os nomes dos restantes. Das mulheres ele não tomou conhecimento. Ao jovem Wolf ele pôs a mão na cabeça dizendo:

-  Tu és o amigo do meu filho e o sobrinho do meu irmão branco: se bem-vindo à tenda dos navajos! Tu serás como um filho da nossa tribo.

Sentaram-se todos novamente e depois de uma pequena pausa, como o exige em tais casos a cortesia índia, dirigiu-se Nitsas-Ini a Sam Hawkens:

-  O meu irmão branco terá a bondade de me contar o que aconteceu.

Hawkens obedeceu a este convite.   Ele informou o cacique sobre tudo, porém sem gastar muitas palavras. Quando ele havia terminado, ficou Nitsas-Ini por algum tempo olhando para o chão, diante de si, e disse então:

-  Amanhã virá o castigo. Os meus irmãos brancos estão dispostos a me auxiliar?

-  Sim - respondeu Sam. - Teus inimigos são nossos inimigos e os nossos amigos, sejam também os teus.

-  Eles o são. Vamos fumar o cachimbo da paz para confirmá-lo. Ele tirou o cachimbo da fita em que o trazia suspenso ao pescoço, abriu o saquinho com fumo e encheu o cachimbo. Tendo-o aceso ele se levantou, soprou a fumaça para o céu e para a terra, depois para os quatro pontos cardeais e disse:

-  Todos os caras-pálidas, que estão reunidos aqui, serão nossos irmãos e nossas irmãs. Falo em nome de toda a tribo dos navajos. Howgh!

Depois ele entregou o cachimbo a Sam e sentou-se. Este se levantou e soprou a fumaça da mesma forma, dizendo:

-  Fumo e falo em nome dos meus irmãos brancos e das irmãs que aqui se encontram. Queremos ser filhos e filhas dos navajos e estar com eles na luta e na paz. Disse. Howg!í

Ele devolveu o cachimbo ao cacique que não o passou adiante, fumando-o até o fim. Quando terminou, pendurou-o novamente na fita e disse:

-  Amanhã correrá o sangue do assassino e dos seus dois companheiros.

- Julgas que virão aqui?

-  Sim.

- Mas não virão cavalgando abertamente e, sim em segredo. Será preciso prestar atenção para vê-los.

-  Mandarei ao seu encontro batedores que têm olhos de águia; estes me anunciarão sua chegada.

-  Hum! Naturalmente eles lhes seguirão a pista e, por conseguinte, virão ao lugar onde agora estão acampados. Precisam, apenas, abandonar este ponto e esconderem-se nas proximidades para que lhes caiam nas mãos.

-  O meu irmão falou com muito acerto. Mandarei, no entanto, os dois batedores ao encontro deles para que não me escapem e eu os pegue em qualquer caso.

-  Mas se tu não tiveres tempo para isto?

-  Quem  poderia  impedir-me?

-  Os nijoras.

-  Eles não me impedirão, pelo contrário, auxiliar-me-ão a pegar os assassinos. Eles vêm em direção ao nosso acampamento, achá-lo-ão abandonado e nos seguirão. Terão, portanto, na sua frente, os assassinos que nós temos atrás de nós.   Eles os obrigarão a vir para nosso lado. . .

-- Mão de Ferro parecia não ser desta opinião.

-  E entretanto ele se afastou para nos advertir.

-  Talvez ele tenha apenas pretextado isto, para não precisar dizer o que pensava.

O cacique meditou algum tempo sobre o que ele ouvira e perguntou então, mas com voz abafada, pois que sua perspicácia o fazia adivinhar a verdade:

- Acredita ele talvez que os nijoras não se dirigem ao nosso acampamento?

-  Parece que não - respondeu Sam, abafando também a voz.

-  Então eles têm más intenções para com outros, isto é, para com vocês?

-  Suponho que assim seja. Mão de Ferro não disse nada. Talvez não tivesse querido atemorizar os imigrantes.

Neste instante ouviu-se o grito de uma das sentinelas e logo em seguida surgiram dois homens. O primeiro era Mão de Ferro que se aproximou ligeiro e que, sem se admirar com a presença dos navajos, deu cordiais boas-vindas ao seu cacique, a Wolf e à branca squaw. A última levantou-se de um salto com a exclamação jubilosa:

-  Chi-So, minha estrela! - e foi correndo ao encontro do segundo dos que haviam chegado, levando-o, com suave energia, para o crepúsculo que reinava no mato. Não queria saudar o filho diante de tantos olhos.

Os presentes esperavam quietos, sem dizer uma palavra. O cacique estava sentado com a face imóvel. Depois de uns dez minutos ouviram-se leves passos que vinham da escuridão: a squaw trazia o filho, conduzindo-o pela mão. Quando entrou com ele no círculo de luz, largou-lhe a mão e se sentou tranqüilamente no seu lugar. Seu coração ficara satisfeito, silenciosamente, sem palavras e sem exclamações em voz alta, mas nem por isso com menor ternura; agora, porém, era preciso contentar o orgulho índio.

Chi-So dirigiu-se a seu pai e deu-lhe a mão. O cacique viu o seu filho chegar; viu sua figura cheia da força da mocidade, a face fresca, os traços inteligentes, os movimentos flexíveis. Por um momento, mas também apenas por um momento, brilharam os seus olhos de orgulhosa alegria, depois a sua face ficou de novo tão imóvel como antes; não tomou a mão oferecida pelo filho, fingindo não a ter visto. Chi-So deu meia volta e sentou-se ao lado de Adolf Wolf. Nem lhe veio a idéia de se considerar diminuído. Ele sabia quanto seu pai o amava; conhecia as regras indígenas do comportamento e sentia ter oferecido a mão a seu pai. Ele o fizera porque vinha da Europa; porém, segundo o costume de sua gente, isto não era permitido. Ele era ainda adolescente e não devia, na presença de homens, fazer coisa alguma que não fosse, na situação atual, absolutamente necessário.

Mão de Ferro assistiu a esta cena com um sorriso de satisfação. Ele sabia que nesta família havia mais felicidade e mais amor que em muitas abastadas famílias brancas, cujos membros na presença de outros se cumulam de atenção e carícias, mas depois, quando se sabem não observados, se tratam mutuamente como gatos e cachorros. Agora o cacique o interrogava:

-  O meu irmão Mão de Ferro esteve no nosso antigo acampamento?

-  Não, não fui tão longe. Mas o Rei do Petróleo esteve lá com Buttler e Poller.

-  Sim.

-  Deste-lhes armas e munições?

-  Sim.

-  Eles disseram que haviam andado conosco, que conosco foram presos pelos nijoras, mas tiveram a sorte de escapar?

-  É isto mesmo. Donde o meu irmão sabe tudo isto?

- O que acabo de dizer, supunha apenas - sorriu Mão de Ferro. - Estes assassinos precisavam de armas; eles estavam, pois, obrigados a se dirigirem a vocês, pois não havia mais ninguém de quem as pudessem obter. Para dispô-los favoravelmente, deviam mentir-lhes, dizendo-lhes que haviam sido os companheiros e protetores de Chi-So. Mesmo que eu tivesse tido tempo necessário, não pensaria em ir até o acampamento de vocês, pois soube pela tarde que o haviam abandonado.

- Por quem?

- Pelos meus olhos. Subi deste lado do rio numa árvore alta para espiar os nijoras, e vi-os quando vinham subindo pela margem oposta do rio.

-  Então os nijoras talvez nos tenham visto também.

 

...  e vi-os quando vinham subindo pela margem oposta do rio.

 

-  Não. Sei com toda certeza, pois os escutei. Chi-So esteve conosco, ele segurava os cavalos enquanto Winnetou e eu fomos nos arrastando para perto do inimigo. Voltei com Chi-So para dar notícias aos meus irmãos brancos e ir procurar os meus irmãos vermelhos; Winnetou ficou ainda para continuar observando os inimigos.

-  Eles cairão amanhã nas nossas mãos.

-  Esta é também a minha opinião, embora eu saiba que a opinião do meu irmão se apoia numa suposição falsa.

-  Mão de Ferro se engana. Penso a mesma coisa que ele. Os nijoras acharão abandonado o nosso acampamento e seguirão a nossa pista.

-  Os nijoras não irão logo ao teu acampamento e sim atacarão a nós, brancos. Eles nem supõem que os guerreiros dos navajos abandonaram o seu acampamento. Eles pensam que nós os seguimos, para procurar os navajos, e se detiveram na Água do Inverno para lá nos cercarem inesperadamente.

-  Na Água do Inverno? Este plano é muito inteligente. Essa idéia deles é excelente, pois não existe lugar que tão bem se preste para um assalto como esse. Os meus irmãos o evitarão.

-  Pelo contrário, iremos lá.

-  E lutarão?

-  Talvez nem seja preciso lutar. É possível que os nijoras tenham que se render todos, sem luta alguma. Os guerreiros dos navajos nos ajudarão nisso?

-  Sem dúvida. Mas como poderemos então pegar o Rei do Petróleo e os seus companheiros de crimes?

-  Querem pegá-los? - perguntou Mão de Ferro, em cujo rosto se via agora uma leve expressão de admiração. - Queres segui-los para vingar a morte dos batedores?

-  Quero e devo vingá-los, mas não preciso segui-los, pois que eles vem vindo atrás de nós.

-  Realmente? É singular. Eles deviam estar muito contentes de terem escapado de vocês e de nós!

Wolf imiscuiu-se aí rapidamente na conversa, mostrando uma expressão satisfeitíssima e cheia de si:

-  Sim, se eles tivessem ainda a assinatura, o cheque.

-  Não o possuem mais?

-  Não, eu o tirei deles e guardei-o.

-  Como ocorreu isto?

Wolf contou o ocorrido e depois acrescentou:

-  Nós os mandamos observar e soubemos que eles nos seguem. Queríamos, para termos plena certeza, aguardá-los amanhã e mandar dois batedores ao seu encontro.

-  Hum! Isto não é sem perigos, mas é provavelmente inevitável, pois já amanhã de manhã deveremos partir para a Água do Inverno. Antes, porém, que façamos planos, quero prestar contas do que soubemos na nossa cavalgada de patrulhamento.

 

Espreitados

Os brancos, logo que se tinham livrado das mãos dos nijoras e os últimos destes haviam ido, também partiram, seguindo na mesma direção. Não escapou nesta ocasião, aos olhos experimentados de Winnetou e Mão de Ferro, que os nijoras, cuja pista seguiam pouco a pouco, iam numa marcha muito mais lenta.  Que motivo tinham eles para isto?

Não era costume dos dois homens famosos pedir conselho ou opinião sobre qualquer assunto que eles podiam investigar pessoalmente; por isto não disseram nada sobre sua observação a ninguém, nem mesmo a Sam Hawkens. E cada vez mais se convenciam de que não se tinham enganado.

-  Que é que diz a respeito o meu irmão? - perguntou Winnetou.

-  Que não parecem ter nenhuma pressa em se aproximar dos navajos.

-  O meu irmão está pensando exatamente como eu. Eles parecem querer adiar o seu assalto aos navajos. Há apenas uma possibilidade quanto ao inimigo que eles querem combater primeiro.

-  Somos nós naturalmente.

-  Sim, mas por quê? Eles não poderiam fazer nada mais inteligente do que assaltar os navajos a quem faltam informações, pois os seus batedores foram em parte presos e em parte assassinados.

-  Mas o meu irmão Winnetou se lembre de que nós os seguimos bem de perto e que temos alguns cavalos muito bons. Nós podemos, pelo menos alguns de nós, dar uma volta e adiantar-nos a eles para informarmos os navajos da sua aproximação.

-  Uff! Será isto!

-  Sim, creio que assim é. Querem evitar que isto aconteça e querem também garantir a retaguarda. Um plano destes é bem próprio do cacique Mokachi. Por isto andam eles agora mais devagar, para que nos tenham mais perto de si e para que, se houver alguma localidade apropriada para uma emboscada, não precisem aguardar-nos muito tempo. Se esta nossa suposição estiver certa, precisaremos apenas pensar sobre o seguinte: qual o lugar perto daqui que mais se presta a um assalto.

-  Uff! - disse Winnetou após uma rápida pausa. - Há um lugar adequado que eles alcançarão ainda antes da noite de hoje: a Água do Inverno.

-  Sim, é bem possível que eles nos aguardem lá. Vamos enfrentá-los com espingardas e facas?

-  Não.  Devemos observá-los.  Mas qual de nós dois fará isso?

-  Hum! A Água do Inverno é um lugar meio complicado, que roubaria muito tempo a um só batedor, além de  fatigá-lo em demasia.

-  Então vamos nós dois.

-  Sim.  Mas devíamos levar mais alguém.

-  Por quê?

-  Caso eles nos queiram assaltar, bastamos nós dois. Mas se eles não tiverem esta intenção e forem imediatamente contra os navajos, devemos avisar estes; para isto nenhum de nós se pode afastar. Devemos portanto levar um terceiro.

-  Winnetou propõe Chi-So. Ele é cavaleiro e conhece a região melhor do que ninguém. Mas deverão os outros saber por que empreendemos a cavalgada?

-  Acha o meu irmão Winnetou que é melhor silenciá-lo?

-  Sim. Temos conosco homens que não são heróis e mulheres e crianças a quem não se deve falar de perigos, antes que isto seja absolutamente necessário.

Com a mesma rapidez com que esta decisão fora tomada, foi ela executada. Já pouco tempo depois os três iam para a frente, a galope, enquanto os outros prosseguiam no mesmo passo lento.

A região era plana. À esquerda ficava a estepe rasa e vazia. À direita, o rio, cuja margem era ladeada primeiro por uma faixa de mato e arbustos e, depois, coberta de relva, devido à umidade que lá havia. Como o ar naquelas regiões está sempre extraordinariamente límpido, podia-se ver à longa distância, a menos que o rio não fizesse uma curva para a esquerda. Não tinham pois que temer um encontro súbito com os nijoras que tivessem parado de propósito ou sem propósito.

Assim prosseguiram para a frente até tarde avançada, examinando de vez em quando a pista com exatidão. Resultava destes exames que ficavam cada vez mais perto dos índios. Eles não tinham mais que uma hora de dianteira.

À esquerda, do lado sul, delineava-se agora uma lista escura, perfeitamente reta e perpendicularmente ao rio. Esta lista na distância, bem ao sul, era formada de plantas secas de nome mezquite1, que em seguida se reuniam em grupos. Depois os arbustos se amontoavam; gradualmente ficavam mais viçosos e mais verdes; enquanto a sua cor ao sul era de um cinzento desmaiado. Quanto mais perto do rio, tanto mais densa e mais exuberante era a vegetação, da qual até sobressaíam árvores, que se iam reunir com a faixa do mato que acompanhava o rio. Esta lista de vegetação indicava o curso de Água do Inverno, se é que se podia falar de uma massa de água.

Na estação úmida, isto é, no tempo dos poucos dias de chuva, juntava-se a água nesta espécie de leito e dava às plantas um aspecto fresco durante algumas semanas, enquanto que fora desta estação elas eram secas, pobres e tristes. Quanto mais perto do rio, porém, tanto maior vitalidade havia na vegetação, até que por fim algumas árvores conseguiam conservar-se com vida o ano inteiro.

Os três cavaleiros encontravam-se agora a uma tal distância da Água do Inverno, que quase já deviam ser notados de lá. Para não serem vistos, eram pois obrigados a se moverem, daí em diante, protegidos pelo mato do rio. Apearam e procuraram um bom esconderijo para seus cavalos, junto dos quais Chi-So devia ficar. À sua guarda foram também confiadas as espingardas, porque estas só servem para atrapalhar um batedor que anda curvado sob arbustos ou que, até se arrasta pelo chão. Depois Winnetou e Mão de Ferro prosseguiram devagar, debaixo das árvores ao longo do rio, olhando com muita atenção para a frente a fim de descobrir a tempo qualquer nijora que ainda se encontrasse por aí.

Quando já tinham feito metade do caminho, pararam e Mão de Ferro disse:

-  Não devemos nos certificar primeiro se os nijoras ficaram na Água do Inverno ou se foram adiante?

-  Sim. Estas árvores são suficientemente altas.

-  E são também tão cheias de folhas que, se subirmos nelas, não poderemos ser vistos de longe.

Escolheram duas árvores com a altura necessária e tão perto uma da outra, que duas pessoas, trepadas nelas, se podiam entender sem falar em voz alta. Ambos subiram depressa. O panorama que daí se lhes oferecia era mais do que suficiente: eles podiam ver muito bem, por cima das árvores que ladeavam a Água do Inverno, a planície que se estendia além. Esta estava totalmente vazia.

-  Eles estão junto da Água do Inverno - disse Mão de Ferro a Winnetou, que estava na árvore vizinha.

- Eles estão junto da Água do Inverno - disse Mão de Ferro a Winnetou...

-  Sim. Não foram adiante, senão nós teríamos que vê-los lá fora na estepe - respondeu este. - Que o meu irmão tenha à mão o seu binóculo.

Mão de Ferro tinha-o levado, tirando-o da sela quando deixara o seu cavalo com Chi-So. Ele o dirigiu para a vegetação da Água do Inverno e ficou por algum tempo sentado, imóvel, na árvore, sem se mover. Depois tirou o binóculo e relatou ao apache:

-  Eles estão acampados além do arvoredo, bem na margem da Água do Inverno. Justamente agora muitos deles trazem os seus cavalos para lhes dar de beber.

-  Esperemos que escureça e então iremos lá para os escutar.

-  Sim, mas não esperaremos aqui em cima, e sim em baixo onde estaremos mais à vontade.

Já ia ele descer da árvore quando ouviu um uff! admirado do apache.

-  O meu irmão percebeu alguma coisa?

-  Sim, na outra margem do rio. Era como se fosse uma longa serpente de cavaleiros que andasse junto das árvores. O meu irmão espere um pouco até que eles apareçam de novo. Terão que atravessar em breve a estreita clareira que fica à nossa frente.

Os dois observadores dirigiam os seus olhares para a outra margem do rio. Apareceram então, primeiro, dois cavaleiros que iam sós; eram índios. Atravessaram a clareira a galope e começaram a dar uma busca nos arbustos do outro lado da mesma. Depois, um deles voltou e fez um aceno; eles não tinham achado nada de suspeito.

-  Que o meu irmão tome o seu binóculo; talvez possa reconhecer os rostos - disse Winnetou.

Mão de Ferro assestou então o binóculo sobre a clareira. Em conseqüência do aceno do batedor, surgiu a gente por detrás dos arbustos, numa longa fileira de cavaleiros que estavam pintados com as cores de guerra; por isto não podia Mão de Ferro reconhecer-lhes os traços. No fim do comprido desfile apareceram, entretanto, duas pessoas que eles logo souberam quem eram, isto é, Nitsas-Ini e a sua squaw branca, cujas faces naturalmente não estavam pintadas. Quando todos eles tinham desaparecido no arvoredo do outro lado da clareira, disse o apache:

-  Devem ser guerreiros apaches.   Reconheceste alguém?

-- Sim. Nitsas-Ini e sua mulher, iam no fim. Com toda a certeza estiveram acampados em baixo, na foz do rio. Por que deixaram eles aquele lugar?

-  E por que permanecem lá na outra margem?

-  Sim, isto é estranho. Eles sabem que devem procurar os nijoras deste lado do rio, pois o seu território fica aqui.

-  Posso imaginar um só motivo desta conduta: eles foram enganados pelo Rei do Petróleo.

-  Uff! Este com certeza foi ao acampamento deles para munir-se de armas a si e aos seus dois companheiros, pois não as tinham. E para ganhar tempo enviaram os navajos para o lado oposto.

Desceram das árvores. Em breve veio o crepúsculo e então os dois homens empreenderam a caminhada perigosíssima. Primeiro podia-se ver a uma distância de uns seis a oito passos, mas quando chegaram mais perto da Água do Inverno a escuridão era tal que não podiam se servir exclusivamente da vista, sendo obrigados a recorrer ao tato.

O Rio Chelly corria aí quase que exatamente de leste para oeste e já se disse que a Água do Inverno vinha do sul para o norte, formando um ângulo reto com o rio. As margens dos dois eram muito altas e ambas cobertas de mato e de arbustos. Da altura da margem até a água do Chelly podia haver uns bons sessenta pés.  Só alguns charcos havia nesta estação na Água do Inverno, que, no entanto, não embaraçavam em nada a passagem. Mas na confluência da Água do Inverno era o chão muito rochoso, e as margens tão íngremes, que não se podia descer aí a cavalo. Quem quisesse passar, devia subir um trecho da Água do Inverno até um lugar onde as suas margens se inclinavam mutuamente uma para a outra, quase planas. Este lugar era o único adequado para a passagem, estando, naturalmente, de modo igual, adequado para um assalto: pois não sendo possível passar num outro ponto, bastava que o inimigo esperasse e o êxito da cilada seria certo no momento preciso.

Os nijoras não acampavam neste passo. Eles tinham passado por lá em direção à margem oposta, e seguiram-na até a foz onde acamparam. Quem quisesse dar de beber a seu cavalo, tinha que voltar ao passo que acaba de ser descrito, descer em seguida para o leito do rio agora seco, e seguir este leito até sua foz, junto do Rio Chelly. Isto era bastante incômodo. Os nijoras teriam tido muito mais comodidades se tivessem acampado em baixo, na própria foz da Água do Inverno; mas isso seria impossível sem deixar uma pista, o que devia ser evitado.

Visto que os nijoras estavam do outro lado, também Winnetou e Mão de Ferro eram obrigados a atravessar o leito seco. Quando alcançaram a alta margem, viram brilhar os fogos do acampamento por entre as grandes rochas que por lá havia.

-  Que falta de cautela! - disse Winnetou.

- Sim - opinou Mão de Ferro. - Eles parecem considerar-se totalmente seguros.

Subiram ao longo da Água do Inverno seguindo a margem, até que encontraram o passo onde desceram para subir do outro lado. Depois começaram a descer a margem esquerda, tendo tanto mais cautela quanto mais se aproximavam do acampamento. Indo silenciosamente de árvore em árvore, de arbusto em arbusto, evitavam eles todo e qualquer lugar onde incidisse o brilho das fogueiras.

Quando já podiam distinguir as diferentes figuras, cochichou Winnetou:

-  Que o meu irmão fique aqui parado. Quero sair deste arvoredo e ver o acampamento do lado livre, para saber onde ficam os cavalos e se foram colocadas sentinelas.

Ele se foi sem ruído, como uma sombra, e passou-se bem meia hora antes que voltasse para dizer:

-  Os cavalos estão do outro lado do acampamento e não nos poderão trair, bufando. Para o lado da planície livre, há sentinelas.

-  O meu irmão vermelho teve a possibilidade de ver o acampamento do lado de fora. Ele viu talvez o cacique Mokachi?

-  Sim. Ele está sentado com três guerreiros velhos junto duma larga rocha.

-  Se nós pudéssemos alcançá-la!

-  Poderemos se formos  bem cautelosos.   Ela  fica imediatamente junto da margem e, portanto, não há nijoras atrás da rocha. Eu irei primeiro e o meu irmão que me siga.

Não puderam ir lá de pé, eretos, pois seria demasiado perigoso. Eles se deitaram, portanto, e iam se arrastando de barriga, aproveitando com prudência e habilidade cada árvore, cada arbusto, cada planta e cada pedra que lhes oferecesse proteção.

O lado deles era a rocha da qual Winnetou havia falado. Era longa, não muito larga e tinha a altura dupla de um homem. Como esta rocha estava coberta, em cima, de musgo, que facilitava a fixação das folhas caídas e a sua transformação em humo, através dos anos, sem serem levadas pelo vento, havia uma grossa camada de terra em cima da pedra e ainda mais grossa nas suas rachas e fendas. Por isto haviam podido se desenvolver alguns arbustos, dos quais pendiam galhos além dos lados da rocha.

Entre esta e a margem íngreme, havia um espaço estreito que, entretanto, bastava para a finalidade dos dois espias. Conseguiram chegar à pedra, sem serem notados, e colocar-se atrás dela. O espaço sobre o qual estavam agora deitados tinha apenas a largura de um homem, de modo que eles se encontravam bem próximo da alta margem. Se este lugar fosse de terra fofa, que cedesse ao passo dos dois homens, eles se precipitariam para a profundidade do leito. Examinaram, portanto, em primeiro lugar o chão e observaram, para sua tranqüilidade, que era rocha firme. Então se ergueram para subir na pedra. Chegando em cima e deitando-se lá, eles teriam o cacique sentado do outro lado, debaixo de si.

Havia um lugar onde se podia agarrar com as mãos. Mão de Ferro se agarrou lá com ambas as mãos, trepou nas costas do apache e subiu. Isto era uma temeridade, pois se pisasse ou pegasse em falso levaria uma grande queda. Também era preciso subir com a máxima cautela, não se expondo aos olhares dos nijoras. Chegado em cima, ele se deitou e deixou descer o laço pelo qual subiu Winnetou. Também esta subida foi realizada com êxito.

Agora estavam em cima. Mas ai deles se fossem notados! Atrás, o precipício, e na frente, o acampamento, ocupado por trezentos guerreiros: nada lhes restaria senão renunciar a toda defesa, rendendo-se.

Deitados bem rente do bloco de rocha, foram devagar para a frente até o arbusto citado e podiam agora, olhando através, dele, contemplar o acampamento inteiro. Ardiam nada menos de oito fogos, nos quais os nijoras preparavam o seu jantar. Debaixo deles, encostados à rocha, estavam sentados Mokachi e três índios de avançada idade, separados dos guerreiros comuns. Eles mantinham uma conversa em que havia pausas mais longas ou mais curtas. Como os dois ouviam, os quatro vermelhos não estavam inteiramente de acordo. Um deles, um homem velho mas ainda muito robusto, de cabelos grisalhos, disse:

- Mokachi se arrependerá de ter agido segundo sua opinião de hoje.

Devíamos ter-nos apressado em ir procurar ligeiro os cães navajos para matá-los.

- O meu irmão vermelho não considera que a diferença é apenas de um dia. Se amanhã tivermos pegado os caras-pálidas, partiremos imediatamente contra os navajos.

- A diferença é maior que um dia, pois andamos mais devagar para deixar os caras-pálidas chegar mais perto.

 

. . .   olhando   através   dele,   contemplar   o   acampamento   inteiro.

 

-  Isto não faz mal. Os chacais dos navajos não sairão das suas tocas até que venhamos. Eles não podem abandonar o seu acampamento antes que voltem os batedores que eles enviaram. Disto não se deve esquecer o meu velho irmão.

-  Não esqueço; mas o ano possui um verão e um inverno, e todas as coisas na terra têm dois lados. Assim é também aqui. Mokachi pensa que os navajos esperarão porque enviaram batedores, e eu penso que eles enviarão novos batedores porque os outros estão demorando demais. Estes novos espias nos descobrirão e denunciarão ao seu cacique. Em vez de nós surpreendermos os navajos, eles nos atacarão.

Ele falou num tom um tanto enérgico, o qual não é costume usar com um cacique.  Por isto respondeu logo Mokachi:

-  O meu irmão tem na cabeça a neve da idade. Ele viu mais invernos do que eu e tem muita experiência. Por isto pode falar sem receios, se pensar por   acaso  de outro  modo que  eu.  Mas  não é  ele o chefe, e sim eu. Ainda que eu escute as opiniões dos homens de experiência, eu resolvo e os outros têm que obedecer. O velho baixou a cabeça e disse:

-  Tens razão.  Que se cumpra tua vontade.

-  Sim, ela será feita e tu verás que será melhor assim. Ou quem sabe acreditaste que teríamos a sorte de surpreender os navajos?

-  Sim.

-  Não, isto não aconteceria. Em todo o caso eles postam sentinelas também por nossa causa. O lugar onde eles se encontram devemos descobri-lo ainda pelos nossos batedores. Com que facilidade podem estes ser vistos, pegados ou mesmo mortos, exatamente como foram presos por nós os batedores navajos! E isto não é ainda o mais importante. Há algo em que o meu velho irmão não parece ter pensado: os navajos já sabem que nos estamos aproximando.

-  Uff! - exclamou o velho. - Quem foi que os avisou?

-  Os três caras-pálidas que nos fugiram.

-  Uff, uff!

-  Isto é verdade se eles com efeito, foram ter com os navajos.

-  Com toda a certeza foram ter com eles. Talvez já os tenham achado hoje e informado sobre nós. Então os navajos partirão sem demora para virem ao nosso encontro e para nos atacar de surpresa. Mas é isto o que eu já esperava.

-  Uff, uff! O meu irmão Mokachi conhece certamente a velha regra de guerra:   que vence mais facilmente aquele que chega primeiro.

-  Eu a conheço; é ótima mas não serve para todos os casos. Os navajos que venham e que nos ataquem, mas num lugar que lhes seja funesto.   Nós os aguardaremos aqui na Água do Inverno!

-  Mas o plano primitivo não era este!

-  Não. Eu queria surpreender os navajos; isto, porém, não é mais possível agora, porque foram informados pelos três caras-pálidas fugitivos. Foi portanto necessário mudar o meu plano. Esconder-nos-emos aqui na Água do Inverno. Quando os navajos vierem, nós os deixaremos descer das altas margens e entrar no profundo leito do rio e depois os atacaremos. Eles estarão então metidos lá em baixo e não se poderão defender, porque não terão espaço para isto, ficando apertados entre as rochas.

-  Uff, uff! - exclamou o velho, enquanto seu rosto retomou a sua expressão alegre. - O novo plano de Mokachi é bom e penso que nos sairá bem se não houver algum empecilho.

-  Existe apenas um obstáculo, e este queremos justamente remover amanhã.

-  Agora compreendo. Estás falando dos caras-pálidas que estão atrás de nós?

-  Sim. Eles nos seguem; eles querem procurar os navajos. Se nós os deixássemos passar, eles trairiam nossa presença aqui.   Isto não deve acontecer.   Prenderemos, portanto, Winnetou, Mão de Ferro e toda sua gente.

-  Teremos que matá-los?

-  Sim, se eles se defenderem.

-  Mas se não se defenderem?

-  Então apenas os prenderemos e vitoriosos os levaremos conosco. Não os ataremos ao poste dos martírios, porque fumamos o cachimbo com eles, mas os deixaremos bater-se com os nossos guerreiros numa luta de vida ou de morte.

-  Uff, uff! - Os olhos do velho brilhavam intensamente de alegria, e também os outros dois romperam em entusiasmados uffs!

Mokachi, contente por ter recebido tantos aplausos, prosseguiu na sua exposição:

-  A Água do Inverno se presta como nenhum outro lugar para ficarmos de atalaia ao inimigo e para pegá-lo ou aniquilá-lo, sem grande dificuldade e sem perigo. Os meus irmãos verão amanhã com que facilidade nos cairão nas mãos os caras-pálidas, apesar de serem chefiados pelos mais famosos homens do Oeste.

Aí o velho teve novamente uma expressão pensativa de dúvida, dizendo:

-  Precisamente porque estes dois homens estão aqui, poderá a empresa facilmente fracassar.

-  Não. Eu sei que eles são homens muito inteligentes e que sabem ler os pensamentos dos outros. Mas não adivinharão o nosso plano. Eles pensam que estamos em marcha contra os navajos e que não cuidamos absolutamente deles.

-  Desejo muito que assim seja, mas penso no que aprendemos ultimamente. Nenhuma águia tem olhos tão bons, nenhum mustang orelhas tão finas e nenhuma raposa tanta astúcia como Mão de Ferro e Winnetou. Não os tínhamos já em nosso poder? Não estavam até amarrados? E entretanto, eles se libertaram!

-  Seremos mais prudentes desta vez. Já hoje fizemos tudo o que manda a prudência. Acampamos aqui em cima, em vez de em baixo junto da água, onde teríamos de deixar vestígios. Se os caras-pálidas vierem aqui amanhã, não verão lá em baixo nenhuma pista e, portanto, sem ter nenhum pressentimento seguirão o leito até a água, enquanto que nós ficaremos escondidos aqui, aguardando-os. Chegando às águas do Chelly, para dar de beber aos seus cavalos - nós os assaltaremos.

-  Achas que eles não atravessarão simplesmente o passo e que ficarão aí algum tempo?

-  Sim. Numa longa extensão da margem é este o único lugar onde se chega da parte alta tão facilmente para a água. Por isto não deixarão eles escapar a ocasião sem aproveitá-la, pois com eles estão squaws e crianças, com quem devem ter consideração. Logo que estejam em baixo, junto da água, correremos todos para baixo...

-  Todos? Deveremos deixar alguns guerreiros aqui em cima com os cavalos e com os presos.

-  Não. Ataremos os prisioneiros em árvores e amarraremos os animais. Nenhum homem dos nossos deverá faltar. Vendo os brancos nosso grande número, eles desistirão de toda e qualquer resistência. O meu velho irmão imagine em que situação eles ficarão. À direita e à esquerda eles terão as paredes íngremes do leito, que não podem ser galgadas, diante de si, a água do Chelly, e pela retaguarda, de repente, trezentos guerreiros inimigos. Seriam loucos se tivessem a idéia de se defenderem.

-  Mas se arriscassem a fuga?

-  É impossível.   Para onde se dirigiriam?

-  Para o Chelly.

-  Para a água? Nem pensarão nisto! Eles sabem, exatamente como nós sabemos, como é fácil alcançar um nadador com um tiro. E que vergonha seria para eles, se deles se pudesse contar que abandonaram mulheres e crianças cuja segurança lhes estava confiada!

-  Mokachi tem razão. Suas palavras afastaram todas as minhas dúvidas. Podemos confiadamente aguardar os caras-pálidas, pois serão obrigados a se renderem sem luta. E depois faremos a mesma coisa com os cães dos navajos.

-  Sim, nós os faremos descer para o profundo leito da Água do Inverno e não os deixaremos subir mais.

-  Uff! Que delícia, pois nós estaremos atrás das rochas, árvores e arbustos e poderemos matá-los daqui de cima, um após outro, sem que uma das suas balas nos acerte. Uff, uff, uff!

Os quatro índios se entusiasmavam cada vez mais. Se pudessem adivinhar quem estava deitado acima deles, quase podendo ser preso com as mãos e ouvindo todas as suas palavras! Winnetou recuou um pouco e puxou, então, o companheiro pelo braço.

-  Vamos embora? - interrogou este em voz baixa.

-  Sim, ouvimos bastante e não precisamos ouvir mais. Que o meu irmão venha.

Eles se arrastaram para a parte traseira da rocha, onde Mão de Ferro deixou, de novo, descer o apache pelo laço. Seguir-lhe era mais uma vez perigosíssimo, mas com o auxílio de Winnetou também esta dificuldade foi vencida.

 

. . .   onde Mão de Ferro deixou, de novo, descer o apache pelo  laço.

 

Agora a questão era deixar o lugar sem que fossem notados, como aconteceu na chegada. Arrastando-se até bem em baixo no chão, voltaram pelo mesmo caminho pelo qual vieram e também, felizmente, estavam, dentro de algum tempo, a tanta distância do acampamento que não precisavam mais arrastar-se. Ergueram-se e continuaram sua retirada em posição mais cômoda. Foram então em direção ao passo, e quando já o tinham atrás de si, encontravam-se em plena segurança na outra margem. Lá pararam e Winnetou disse:

-  Eles planejam armar-nos uma cilada e realmente acreditam que nos pegarão.

-  Sim, a armadilha é ótima, ótima e nós cairemos nela.

-  Sim. O meu irmão pensa como eu. Nós iremos buscar os navajos e eles fecharão a armadilha, aberta atrás deles, de tal modo que os próprios nijoras ficarão presos nela. Mas agora vamos voltar a Chi-So. Não é mais preciso enviar este guerreiro moço e valente aos navajos, pois nós mesmos os procuraremos.

Ele quis ir adiante, porém Mão de Ferro lhe pôs a mão no ombro e disse:

-  Que o meu irmão espere um instante. Se quisermos cair amanhã na armadilha que nos aguarda, sem que isto nos prejudique, devemos ter certeza, antes de entrarmos nela, se é a mesmíssima armadilha da qual ouvimos falar.

-  Acha o meu irmão que os nijoras poderiam ainda mudar de plano?

-  Sim. Então meteríamos a cabeça no laço sem poder escapar.

-  Justamente. Eu ficarei, então, para observar atentamente os nijoras. O meu irmão, melhor do que eu, sabe tratar com os seus homens e mulheres. Por isto ele deve ir avisá-los.

-  Bem! Mas não é necessário que fiques a noite inteira aqui, junto da Água do Inverno. Basta perfeitamente que voltes amanhã de manhã.

-  Sim, devo ir aonde está o meu cavalo, junto do qual dormirei.

-  Então vamos.

Eles se dirigiram então para o lugar donde vieram. Já não precisavam esconder-se, não podendo ser vistos por causa da escuridão. Saíram por isto para o campo aberto e avançavam assim muito ligeiro. Andando, conferenciavam sobre a maneira detalhada de executarem no dia seguinte o seu plano.

Graças à sua excelente vista acharam o caminho, apesar da escuridão. Aproximaram-se, em breve, da mataria na margem e chamaram Chi-So; ele respondeu e saiu com os cavalos dos arbustos, entre os quais estivera escondido.

-  Boa noite! - disse Winnetou, tomando o seu cavalo pela rédea e conduzindo-o de volta para os arbustos.

-  Boa noite! - respondeu Mão de Ferro montando no seu para ir-se embora.

Ambos haviam também recebido as suas espingardas de Chi-So, junto com os cavalos. Ele poder-se-ia admirar desse modo seco de se despedirem; não ousava, porém, dizer uma palavra sequer a respeito, nem formular uma pergunta. Montou, também, no seu cavalo e seguiu Mão de Ferro.

Este ia, primeiro, num curto trote, silencioso por algum tempo. Depois interrogou o moço na sua maneira afável:

-  Chi-So com certeza não sabe o que é que há.

-  Eu saberei - respondeu este cortesmente.

-  Sim, tu saberás. Se eu te quisesse dizer agora teria que contá-lo duas vezes, o que quero evitar. Mas há uma coisa que te causará alegria: vi teus pais.

- Realmente? Onde? - perguntou Chi-So, agrádavelmente surpreendido.

-  No outro lado do Chelly. Eles subiam o rio com uma grande coluna de guerreiros para procurarem o paradeiro dos nijoras.

-  Então acamparão de noite.  Se eu pudesse ir ter com eles!

-  Podes. Eu tenho que ir lá e tu me acompanharás. Acho que ainda esta noite saudaras teu pai e tua mãe. Estamos com pressa. Vamos a galope.

Uma curta palavra dele bastou para fazer o seu cavalo correr mais ligeiro e Chi-So seguiu-o, pensando, com tranqüila alegria, no encontro já próximo com seus pais.

Desta vez não precisavam de perspicácia para descobrir o acampamento dos companheiros brancos, pois o lugar fora combinado antes, com precisão, com Sam Hawkens. Depois de curta e forçada cavalgada chegaram lá onde encontraram admirados e contentes o cacique dos navajos e sua mulher branca.  Seguiu-se então a conversa que já foi descrita.

 

Na Armadilha

Em breve estavam terminados os necessários entendimentos com Nitsas-íni. Ele se declarou perfeitamente de acordo com o plano. Em seguida Mão de Ferro aconselhou aos presentes que se deitassem porque o dia seguinte seria penoso.

O cacique dos navajos não voltou com sua mulher branca para o seu acampamento, dizendo que preferia ficar ali. Enviou, entretanto, de volta, os seus vermelhos, que deviam transmitir-lhes as ordens. Sentinelas foram postas, apagaram-se as fogueiras e tudo se acalmou. Já era tarde e o tempo até a madrugada era bastante curto.

O dia começava a despontar, quando Mão de Ferro despertou os dorminhocos. Quando foram ao rio para se lavar, viram os guerreiros dos navajos, que vinham subindo pela margem em longa fileira e, ao chegarem bem defronte, impeliram os seus cavalos para a água, a fim de atravessar o rio.

 

. . . depois, a caravana se pôs em movimento, descendo o rio, indo na frente Mão de Ferro . . .

 

Os brancos aprontaram-se também ligeiro para a partida; depois, a caravana se pôs em movimento, descendo o rio, indo na frente Mão de Ferro e Nitsas-Ini. Este último dissera aos seus mensageiros, que enviara na véspera ao seu acampamento, os nomes de dois guerreiros, que não deviam vir com os outros e, sim, ir como batedores ao encontro do Rei do Petróleo, a quem deviam observar em segredo. Caso notassem que os três pretendiam escapar, eles tinham ordens de matá-los antes que deixá-los ir.

Os dois peles-vermelhas que foram destacados para esta tarefa e que eram dos mais astutos e mais hábeis da tribo, cavalgaram um bom trecho de volta sobre a pista dos navajos, para se esconderem num lugar donde eles pudessem ver, já de longe, a aproximação dos brancos.

Decorrida meia hora, notaram eles que os arbustos das margens saíam para o campo aberto, numa ponta longa e estreita. A esta ponta se dirigiram conduzindo os seus cavalos para os arbustos. Lá os ataram e se esconderam nas proximidades. A planície se estendia aberta diante deles e assim deviam ver o Rei do Petróleo e os seus companheiros quando estes ainda estivessem distantes mais de uma milha inglesa. Por isto achavam que haviam escolhido otimamente o lugar e que podiam estar perfeitamente confiantes na sua segurança.

Infelizmente, porém, não era assim.

Como já fora dito, não puderam Grinley, Poller e Buttler seguir os navajos até o acampamento, porque, nesse meio tempo, chegou a noite e não puderam distinguir a pista na escuridão. Lá onde se encontravam, desceram dos cavalos para dormir. Apenas, porém, raiou a manhã seguinte, eles já estavam a cavalo e viajaram para diante. Onde havia campo aberto eles seguiam as pegadas dos navajos; havendo arvoredo, davam uma volta para aproveitar o esconderijo. Em breve chegaram a um ponto donde avistaram a citada ponta de arbusto.

Buttler fez parar o cavalo e contemplava a ponta com os olhos pensativos, meio fechados.  Depois disse:

-  Deste lado fica uma larga planície, e segundo suponho, do lado oposto há uma outra. Nenhum local se presta tão bem como este para enxergarmos, já de longe, e, se nos armarem uma emboscada, então os patifes estarão metidos aí e em nenhuma outra parte. Vamos nós, portanto, cuidar muito bem de não nos aproximarmos destes arbustos de fora ou de deixá-los atrás de nós. Não, nós nos arrastaremos para lá e ai dos cães que se deixem encontrar aí!

Ele apeou e levou o cavalo para o rio; os outros seguiram-no do mesmo modo. Chegados às árvores da margem, eles subiram, contrariando o curso da água, sempre protegidos pelos arbustos, de modo que não se podia vê-los da ponta. Isso ia naturalmente muito devagar e levou muito tempo até que alcançassem a altura do rio, donde a ponta de arbustos avançava na planície rasa. Lá ataram os cavalos e afastaram-se da água num ângulo reto, para, seguindo a ponta, dar nela uma cuidadosa busca em procura de índios escondidos. Isto se deu poucos minutos antes que os dois navajos viessem do outro lado.

Procederam com toda a cautela necessária e possível, sem descobrirem o menor vestígio de ser humano. Tinham já quase alcançado a ponta extrema, e justamente queria o Rei do Petróleo propor que voltassem aos cavalos, quando Buttler apontou para fora por entre os arbustos, dizendo:

-  Alô! Lá vêm vindo dois vermelhos! Provavelmente são os que procuramos.  Vamos deixá-los passar em paz?

-  Passar? - respondeu Poller. - Eles não pretendem passar. Segundo me parece, estão se dirigindo direto para cá.

-  Sem dúvida.  Recuem.  Devemos observá-los.

Eles se agacharam cautelosamente. Os dois navajos se aproximaram, puxaram os cavalos para os arbustos adentro e em seguida esconderam-se igualmente. Os dois grupos não estavam nem a dez passos, um do outro. Os índios julgavam-se a sós e não achavam necessário conversar em voz baixa.   Suas palavras foram ouvidas distintamente pelos brancos.

-  Será que os caras-pálidas virão? - perguntou um.

-  Vêm. Querem recuperar o papel e por isto não demorarão - disse o outro.

-  Eles caminham para a morte.  Se seguem nossos guerreiros serão presos e torturados, e se não os seguem, por terem suspeitado de qualquer coisa, então nós os mataremos.

 

Ele próprio apontou a espingarda para o da direita  e   contou:   "Um. ..   dois...   três!"

 

-  Estás ouvindo? - cochichou o Rei do Petróleo a Buttler e Poller. - Não precisamos escutar mais.

-   Não; sabemos bastante - apoiou Buttler. - Como é?

-  Para o inferno com eles!

-   Well! Nisso eu ajudo. Toma tua espingarda e aponta para aquele da esquerda! Poller pode estar pronto para  qualquer   necessidade.

Ele próprio apontou a espingarda para o da direita e contou: "Um... dois... três!"

Os tiros ressoaram. Os arbustos, atrás dos quais estavam os vermelhos, foram sacudidos; houve um curto estertor e uns gemidos, depois tudo ficou quieto. Os brancos abandonaram o seu esconderijo e foram lá. Os vermelhos jaziam mortos com as cabeças atravessadas por balas.

-  Bem! - riu-se o Rei do Petróleo. - Estes agora não nos seguirão, nem nos matarão. Que fiquem aqui para os abutres e para os lobos. O que possamos precisar das suas coisas, vamos levar.

Os três bandidos saquearam os mortos, cujas munições de armas e boca lhes eram particularmente bem-vindas. Levaram, naturalmente, também os cavalos dos índios que lhes podiam ser de grande utilidade na fuga.

Depois continuaram os três assassinos o caminho com cinco cavalos. Não precisavam mais de tanta cautela, pois não era de esperar mais emboscadas, e assim eles deixaram os seus animais correr à vontade, até que alcançassem o lugar onde os navajos acamparam de noite. Apearam para examiná-lo, nada mais achando, porém, que a pista deixada pelos vermelhos, ao continuar a sua marcha rio acima.

Seguiram esta pista e encontraram, um quarto de hora mais tarde, o lugar onde os navajos atravessaram o rio. Fizeram o mesmo e acharam na outra margem vestígios distintos do acampamento dos brancos. Aí apearam de novo, para dar toda a sua atenção a esta localidade.

-  Aqui também houve um acampamento - disse o Rei do Petróleo. - Sabes quem esteve aqui?

-  Naturalmente Mão de Ferro com sua gente - respondeu Buttler. - Não pode ter sido ninguém, salvo eles. Olhem para o campo! A pista deles segue a margem alta em direção ao oeste.

-  Sim; os navajos vieram pelo rio e se juntaram com eles. Eles se reuniram e estão agora todos atrás dos nijoras.   Isto vai dar...

Ele parou com o seu discurso.  Via-se que estava aterrado.

-  Que é? - perguntou Buttler.

-  Raios do diabo!   Veio-me uma idéia, uma idéia medonha!

-  Qual?

-  Se for assim como penso, podemos montar já e ir-nos embora como velhos cachorros que levaram pau e nada tiveram para comer. Acabou-se a história do dinheiro, acabou-se totalmente. Não ganharemos nenhum dólar, nenhum cent.

-  Com mil bombas!  Por que não?

-  Porque o cheque se foi para o inferno. Os navajos terão contado tudo a Mão de Ferro e Winnetou, logo que se encontraram aqui!

-  Sim. É provável que lhes dissessem que estivemos com eles e que os enganamos tão lindamente.

-  Nem penses isto, porque então seremos nós os enganados. Wolf, que tinha o cheque, estava presente e viu naturalmente o banqueiro e falou com ele. E agora que achas?

-  Que ele. . . o raio que o parta! Agora te compreendo. Contaram tudo um ao outro, e então... então Wolf devolveu o cheque ao banqueiro.

-  Claro! - sibilou o Rei do Petróleo.

-  Acabou, como vejo, toda e qualquer esperança pára nós. Foi tudo, tudo em vão. Deves reconhecer, agora que asneira cometeste entregando o cheque a Wolf.

O Rei do Petróleo queria desculpar-se do seu erro e assim surgiu uma discussão tão acalorada que os dois estavam prontos a entrar em vias de fato um contra o outro.   Poller separou-os, porém, dizendo:

- Espero que não quererão quebrar-se os pescoços. Com isto não mudariam a situação. Não vejo por que deveríamos supor logo o pior e perder toda a esperança. Nem tudo está perdido!

-  Não? - gritou furioso o Rei do Petróleo. - O cheque se foi!

-  Não, ele não se foi. Primeiro era Wolf quem o tinha e agora é Rollins. Que diferença faz? É perfeitamente indiferente quem o tem, conquanto exista.

-  Isto também eu sei. Não precisa ninguém dizer-me. Mas ele não existe mais.  É claro que Rollins inutilizou imediatamente o cheque!

-  Inutilizou o cheque? Com isto queres dizer provavelmente que ele o rasgou? Aceitarei isto só se me provarem. O que se rasga não se mete cuidadosamente no bolso para guardá-lo. Bota-se fora. E onde se vê por aqui o menor pedacinho de papel que seja? Desde a noite de ontem não houve nenhum vento, nem mesmo uma aragem, que pudesse ter levado os pedacinhos; deveriam pois estar ainda aqui. Vamos dar uma busca cuidadosa, não só aqui como também nas redondezas do acampamento.

Fizeram isto com a maior solicitude, não achando coisa alguma. Então disse o Rei do Petróleo, respirando profundamente, e de novo com uma cara alegre:

-  Cobrei novo alento. O que Poller está dizendo é perfeitamente certo. Não se mete no bolso um papel rasgado, põe-se-o fora; portanto o banqueiro não rasgou o cheque e sim guardou-o.

-  Claro - assentiu Poller. - Talvez ele não o rasgasse só para ter uma lembrança das suas aventuras no Oeste bravio.

-  Sim, é também possível. Tenho nova esperança. Prefiro até que ele o tenha, em vez de Wolf. Do bolso de Wolf só seria possível tirá-lo com perigo muito grande e por um assassinato, enquanto que o banqueiro é um tipo sem experiência alguma, que nem mesmo teria a coragem de se defender seriamente.

-  Sem dúvida alguma - disse Buttler. - Com este Rollins não haverá cerimônias. Será muito mais fácil liquidar com ele do que com o outro.  Então, tomemos uma resolução!   Que é que vamos fazer?

-  Vamos adiante, atrás dos brancos e vermelhos reunidos.

-  Mas com cuidado dobrado.

-  Nem será muito necessário. Eles mandaram batedores ao nosso encontro e não sabem que nós os matamos. Acham que estamos sob vigilância e esperam receber notícias dos seus batedores, antes que cheguemos.

Montaram e foram adiante, seguindo a pista dos brancos e dos navajos e conduzindo pelas rédeas os dois cavalos dos índios.

Aconteceu como haviam previsto. Sua marcha decorreu facilmente e ninguém se lhes atravessou no caminho. Seguiam sempre próximo à alta margem do rio, ao longo da fila de árvores e arbustos, sendo o trecho que eles percorriam sempre igual, até que chegaram a um lugar onde as pegadas eram consideravelmente mais numerosas. Isto devia ter algum motivo. Pararam, pois, e apearam para examinarem aí os vestígios. Encontravam-se no lugar onde  Chi-So havia esperado entre os arbustos, com os cavalos, por Winnetou e Mão de Ferro, e onde o apache havia recebido, pela manhã, brancos e vermelhos reunidos.

-  Aqui eles pararam bastante tempo - disse Buttler. - Vê-se perfeitamente. Os cavalos não passaram correndo por sobre o solo, estiveram parados e não só batiam no chão, como ainda o escavaram. Que motivo podia haver para que parassem tanto tempo?

-  Quem poderá saber? - disse o Rei do Petróleo. - Provavelmente só saberemos mais tarde.

-  Mas eu queria sabê-lo já. Vejam, aí há um rasto que vai diretamente para os arbustos.  Vejamos o que havia lá dentro.

Deixaram os cavalos e foram em direção do arvoredo. Ouviram então uma voz clamar em alemão:

-  Socorro, socorro!   Venham, venham cá! Pararam  e escutaram.

-  Não foi em inglês - disse Buttler.- Parecia ser em alemão: mas não compreendo.

-  Eu compreendo - declarou Poller, o antigo guia dos imigrantes. - Alguém chama por socorro e nos pede que entremos lá.

-  Podemos fazê-lo, pois se alguém precisa do nosso socorro não temos nada a recear.

-  Mas se for uma simulação para nos atrair a uma cilada?

-  Não creio que seja assim.  Venham!

Eles seguiram a pista que conduzia para dentro do matagal e viram, em breve, dois cavalos encilhados e atados. Pareciam ter chegado tão perto daquele que pedia socorro que ele os podia ver, pois agora este pedia:

-  Para cá, para cá, Sr. Poller! Tenha a bondade de cortar as minhas amarras.

-  Com todos os diabos! - exclamou Poller. - Esta é a voz do cantor maluco, que quer compor uma ópera em doze atos e que comete por esta razão toda a espécie de tolices. Venham. Assim sendo, não precisamos ter medo.

-  Mas - disse cautelosamente o Rei do Petróleo - ele agora pertence à turma de Mão de Ferro e Winnetou e quem sabe se isto não é uma cilada, um laço no qual meteríamos a cabeça!

-  Muito dificilmente. Estou convencido, pelo contrário, de que ele está aí em conseqüência de uma tolice sua e que deste modo ele ficou para trás.   Venham comigo com toda a confiança.

Ele penetrou mais profundamente nos arbustos e os outros dois o seguiram. Lá verificaram que as suposições de Poller eram perfeitamente certas, pois viram o cantor que tinha as mãos amarradas e, depois, atadas ao tronco de uma árvore. Isto fora feito de uma maneira tal que ele não sofria nenhuma dor e estava numa situação perfeitamente cômoda, pois se encontrava sentado na grama macia, sendo o chão igualmente macio, e encostava-se à arvore.

-  É o senhor cantor? - perguntou Poller. - Isto é singular.

-  Cantor aposentado, por obséquio. É para sermos exatos e para que não haja dúvidas, pois um aposentado não é mais ativo, Sr. Poller.

-  É verdade que a sua situação parece ser mais passiva que ativa. Como foi que caiu nesta passividade?

-  Ataram-me aqui.

-  Isto estou vendo.  Mas quem foi?

-  Stone e Parker. O Sr. Mão de Ferro mandou-os fazer isso.

-  Por quê?

-  Isto... isto não... isto não sei dizer - disse o cantor "eclesiástico", que teve vergonha de confessar o motivo. - Não me pergunte, pois, e sim corte minhas amarras.

-  Não pode ser tão fácil e rapidamente como está pensando. Com certeza Mão de Ferro mandou amarrá-lo para o impedir de cometer alguma tolice; no entanto acho que ele foi muito injusto, deixando-o só, amarrado aqui, sem nenhuma proteção.

-  Só?  Não estou só.   Há mais alguém para vigiar.

-  Quem?

-  O Sr. Rollins, o banqueiro.

-  Ele? - perguntou Poller, passando-lhe pelo rosto algo como um deslumbramento. - Só este ou ainda mais alguém?

-  Só ele. Ele mesmo se ofereceu. Eu pedia-lhe sem cessar, por tudo no mundo, para me soltar; mas ele não acedeu a meu desejo. É um homem cruel, sem sentimentos.

Esta opinião do cantor vinha ao encontro dos desejos de Poller; por isto ele disse, reforçando-a:

-  Sim, foi sem dúvida uma crueldade da sua parte, que merece castigo bem severo. Dever-se-ia desamarrar o senhor e amarrar esse banqueiro.

-  Sim, isto seria muito justo. Eu me alegraria muito com isto e também não o desamarraria, ainda que me suplicasse. Eu o deixaria pender suspenso e seguiria os outros para a Água do Inverno.

-  Ah, os outros estão na Água do Inverno? Que é que eles querem lá?

-  Assaltar os nijoras e prendê-los. Eu não pude ir com eles porque acreditavam que eu... que eu.. . hum; por isto me ataram e o banqueiro se ofereceu para ficar comigo, pois ninguém queria ficar. Ele preferia estar aqui do que expor-se ao perigo de ser ferido ou até morto pelos selvagens.

-  Nisso ele foi muito prudente e mostrou inteligência. Mas não o vejo.   Onde estará ele?

-  Fugiu. Ele estava lá perto daqueles arbustos e viu-o chegar. Aí ficou com medo e escondeu-se.

-  Reconheceu-nos então?

-  Não. Os senhores estavam ainda muito longe. Mas visto que os senhores vinham deste lado e portanto não podiam ser dos nossos amigos, ele os considerou inimigos aos quais não se podia confiar. Preferiu não se deixar ver.

-  Então ele se foi e o senhor não conhece o seu esconderijo?

-  Oh, conheço!

-  Então diga para que possamos ir buscá-lo e provar-lhe que somos amigos dele e do senhor.

-  Amigos? - respondeu o cantor esforçando-se por dar à sua fisionomia uma expressão de esperteza. - Pensa talvez que eu dou crédito às suas palavras, prezado Sr. Poller? Nem penso nisto. A nós, adeptos da ciência, não enganam tão facilmente.

-  Esta não é absolutamente a minha intenção. O que digo é verdade: tenho boas intenções para com ele e o senhor.

-  Talvez comigo, mas não com ele. Aquela história da fonte de petróleo não era verdadeira. Queria o senhor furtar-lhe aquela grande soma.

-  Bobagem. Se ele examinar o lago minuciosamente, verá que a fonte realmente existe. Mas ele nada entende disto e deixou-se persuadir por outros, contra nós. É verdade que ele merece uma pequena recompensa: vamos atá-lo aqui um pouquinho e deixar o senhor como seu guarda. Imagine que linda cena isto dará para a sua ópera. Aquele a quem o senhor implorou em vão, terá que rogar-lhe para desatá-lo. Será este um caso de justiça formal que tudo castiga e que costuma ser o assunto principal de todas as peças teatrais.

-  Sim, sim, nisto tem razão! - exclamou o cantor encantado. - É uma cena para a minha ópera, uma esplêndida, uma magnífica cena! Primeiro eu imploro; isto dará uma área misericordiosa para barítono. Ele me nega a satisfação do meu pedido em segundo baixo. Depois o barítono é libertado e o segundo baixo será amarrado. Isto dará uma nova ária de misericórdia, seguida, por um grande dueto para segundo baixo e barítono. Será de grande efeito, imenso, imenso efeito! Fico-lhe muitíssimo grato por ter chamado a minha atenção sobre tal fato.

-  Está bem; porém, onde está Rollins?

-  Ele disse que havia aqui, atrás de nós, uma abertura estreita na rocha da margem, que esta coberta de vegetação. Lá dentro ele queria esconder-se.

Poller traduziu rapidamente a seus companheiros o conteúdo da conversa. Riam, cheios de alegria, pela sorte que tinham e pelo divertimento que iam gozar. Em breve acharam o lugar no qual estava metido Rollins, com o corpo bem encolhido. Eles tinham suas facas nas mãos e o Rei do Petróleo disse com ironia:

-  Alô, Sr. Rollins, que é que está fazendo neste buraco? Procura talvez alguma fonte de petróleo?

O banqueiro assustou-se terrivelmente ao reconhecê-lo. Ele não era nenhum herói e ali, na frente, estavam três bandidos perigosos. .

-  Tenha a bondade de sair, senhor! - intimou-o o Rei do Petróleo! - Está negligenciando totalmente o encargo que lhe foi confiado.

-  Encargo?  - respondeu ele, saindo da rocha, medroso e embaraçado.

- Sim, senhor. Tinha que vigiar o seu bom amigo, o cantor. Por que fugiu?

-  Vi chegar três homens a cavalo, mas não sabia que eram vocês.

-  Pois não!   Se nos tivesse reconhecido, não teria fugido então?

-  Não.

- Alô,  Sr.  Rollins,   que é que está jazendo neste  buraco?

-  Folgamos muito em ver que tem tanta confiança em nós. Tenha a bondade de ir conosco até onde está o cantor.

Eles o rodearam e o levaram à árvore. Lá o Rei do Petróleo lhe tirou os dois revólveres e a munição, dizendo:

-  Está debaixo duma poderosa proteção e não precisa de armas, enquanto que nós estamos pessimamente armados. Terá, por isto, com certeza, prazer em nos ajudar. E agora devo dizer-lhe uma coisa muito engraçada. O senhor não fez ao cantor, mau grado todos os seus pedidos, a vontade desatando-o...

-  Isso me foi proibido - atalhou ligeiro o outro.

-  Não nos interessa. Ele está naturalmente muito encolerizado com isto e deseja que lhe façamos sentir como é agradável estar preso a uma árvore. Nós temos sentimentos melhores do que o senhor e vamos fazer-lhe esta vontade, aliás muito modesta.

-  De que se trata? - gaguejou o banqueiro receoso. - Que significa isto?   Querem porventura...?

-  Amarrá-lo? Sim.

Ele se ergueu em toda a sua altura e esforçou-se por assumir uma atitude máscula. Mas o Rei do Petróleo bateu-lhe no ombro rindo, e disse:

-  Não se inche desnecessariamente. Nós o conhecemos perfeitamente. Queremos dar ao cantor o prazer de lhe amarrar e nada mais. Quando tivermos ido, poderá ele desatá-lo novamente. Então, que é que diz a isto?

Ele assumiu uma posição ameaçadora e brincou com a sua faca. Buttler e Poller seguiram-lhe o exemplo. O banqueiro levou um enorme susto. Dominando o terror, disse num tom como se lhe fosse facílimo tomar parte na brincadeira:

-  Que é que digo a isto? Nada. Se lhes diverte fazer a este homem louco a sua vontade ainda mais louca, então façam-na. Nem penso em brigar com os senhores por causa disto.

-  Isto é muito razoável, muitíssimo razoável da sua parte - riu-lhe na cara o Rei do Petróleo. - Poderá então começar agora a farra.

Ele desamarrou o cantor. Rollins se aproximou da árvore, estendeu as mãos e disse:

-  Tenham esse prazer barato, senhores.

Ele havia suposto que o amarrariam tão levemente quanto o estava o cantor; mas logo iria ver como era grande o seu engano. Poller pegou-o pelo braço direito e Buttler pelo esquerdo. Atiraram-no de costas contra a árvore com um puxão tão brutal, que ele deu um grito; depois estenderam-lhe os braços para trás, aos lados do tronco. Enquanto eles o seguravam assim, atava-lhe o Rei do Petróleo as mãos, dizendo:

-  Sim, Sr. Rollins. O prazer barato está começando. Mas ao senhor poderá facilmente custar muito caro. Se bem me lembro, tem no casaco uma carteira caríssima, da qual eu queria muito tirar uma pequena lembrança.

Falando, ele observava ironicamente a fisionomia do banqueiro.

Rollins empalideceu.

Rudemente pegou o Rei do Petróleo o casaco, arrancou de lá a carteira e achou nela, sem muita dificuldade, o cheque que meteu no bolso, respirando profundamente e em triunfo. Depois atirou a carteira aos pés do banqueiro.

Este gemia de cólera impotente. Queria arrancar-se da árvore, mas a correia cortou-lhe a pele, de tal modo que deu um grito estridente de dor.

-  Fique tranqüilo; acalme-se - zombava o Rei do Petróleo. - Estou apenas reavendo a propriedade que me fora negada injustamente.

O cantor, que não compreendia a língua inglesa e que estava demasiadamente preocupado com a sua ópera para entender como os acontecimentos se passavam, ficou a olhar tudo inocentemente, parecendo mesmo não poder esconder uma certa satisfação pela raiva do banqueiro. Poller: lhe disse que lhe desejava bom êxito com as planejadas árias de misericórdia ao que ele respondeu com uma reverência.  Depois os três bandidos foram   até os  cavalos,  montaram e se afastaram.     

O compositor sentou-se agora defronte ao banqueiro e o observava com olhares satisfeitíssimos. Rollins não podia compreender este comportamento; isto o enchia de cólera e gritava de raiva intimando-o a desamarrá-lo imediatamente. Empregava as expressões mais ameaçadoras que conhecia. Isto ele fazia em inglês, língua que o cantor, infelizmente, não compreendia. Antes havia este último, quando ainda atado à árvore, expressado o mesmo pedido, com o mesmo insucesso, mais de cem vezes, mas em alemão, língua que era incompreensível ao banqueiro.

Enquanto Rollins descarregava as mais enérgicas palavras inglesas, estava o compositor sentado à sua frente para estudá-lo; e assobiava entre dentes uma toada, da qual devia desenvolver-se a ária da misericórdia. O banqueiro quase espumava de raiva. E quando a sua ira tinha alcançado o auge, sucedeu à sua excitação um abatimento profundo e súbito. A conseqüência foi que ele pôde refletir com mais calma. Do seu guarda-livros Baumgarten havia aprendido algumas palavras isoladas de alemão, e o cantor havia decorado igualmente, como ele o sabia, algumas expressões inglesas. Não seria possível que eles chegassem a um acordo, baseado nestes conhecimentos? Ele tentou e começou:

-  Sr. cantor, to unbind, unbind!   (desatar!)

-  Cantor aposentado, por favor! - foi a resposta.

-  Unbind, unbind!

- Unbind? (em alemão: atar em redor, uma ferida, por exemplo) - perguntou o cantor. - Quer que lhe ate qualquer coisa? O quê?

Assim prosseguiu a conversa entre eles um bom quarto de hora. Primeiro: o cantor não compreendia o banqueiro e, segundo, não via motivo por que aquele, que o deixara preso à árvore, não pudesse também sacudir-se um pouco aí. Venceu entretanto o seu bom coração. Quando Rollins renovou os seus esforços dolorosos para livrar-se das amarras, ele, com o maior esforço, desatou os nós que propositadamente tinham sido apertados com toda a força. Acreditava ouvir agora uma palavra bondosa de agradecimento; enganava-se, porém, muitíssimo. Rollins estendeu os membros e deu no aposentado um tal murro na cabeça que este cambaleou e caiu num arbusto. Após desamarrou o seu cavalo, montou-o e foi-se embora, rumo oeste, onde sabia estarem os seus companheiros.

Devagar o cantor se levantou, tateou a parte machucada da cabeça e disse:

-  A gratidão é uma virtude rara.

E visto que tinha medo de ficar ali só, foi também ele buscar o seu cavalo nos arbustos, montou-o e se foi para o lado oeste, para onde levava o rasto dos brancos e dos navajos.

Como viera, porém, o bom do cantor a ser deixado na retaguarda e até a ser amarrado?

Naquela manhã havia este "verme infeliz" se aproximado de Hobble-Frank para interrogá-lo:

-  Sr. Frank, se estou bem informado, vamos agora contra os nijoras, não é verdade?   Segundo parece, seremos assaltados por  eles?

-  Sim - confirmou Hobble.

-  Isto me alegra muito, isto me alegra extraordinariamente.

-  Por quê?

-  Não precisa perguntar por quê! Então não sabe que quero compor uma ópera em doze atos?

-  Sim; tenho inteiramente a impressão de que o senhor já me falou uma vez disso.

-  Com toda certeza já o disse. Encontrei felizmente os heróis de que preciso para este fim; mas não os vi ainda em ação.

-  Não? Pois eu penso que eles já fizeram bastante, até aqui. Nem sei de outros que o fizessem com tanta facilidade. Por assim dizer, tendo saído de uma aventura, caímos logo voando noutra.

-  Reconheço isto com o maior prazer, mas não houve ainda ocasião na qual o heroísmo se pudesse mostrar no seu maior esplendor. Para a minha ópera, preciso de uma batalha na qual cada homem tem que enfrentar um homem e na qual um herói abate um inimigo atrás do outro. Queria presenciar uma verdadeira luta sangrenta.

-  E para quê, isto? Uma coisa destas é perigosa e portanto não se deve absolutamente desejá-la. Ainda que queira apresentar uma luta no palco, não precisa o senhor desejar uma luta de verdade, um verdadeiro derramamento de sangue.

-  Mas sim! Quando se presenciou tal coisa, quando se a viu realmente, pode-se compor muito melhor. O ruído da luta, os gritos e uivos, o estalar das espingardas, o pipocar dos tiros, tudo isto só se pode imitar por sons, quando a gente o tenha ouvido pessoalmente.

-  Mas isto poderia custar-lhe a vida e, então, adeus ópera e operetas...

-  Não creia em tal! Nós, compositores, estamos debaixo da proteção toda especial das musas. Ou talvez já ouvisse dizer que algum famoso compositor tivesse sido apunhalado ou morto a tiros pelos índios?

-  Não, isto não.

-  Então! Não me ameaça o menor perigo. Pensa que haverá luta hoje?

-  Hum! Se tudo correr precisamente como Mão de Ferro e Winnetou combinaram, então os inimigos nos cairão nas mãos, sem que para isso seja preciso dar um tiro. Mas se não for assim, então a coisa poderá tornar-se muito feia.

-  Que outras coisas podem ocorrer?

-  São diversos os casos que podem sobrevir. Nunca se sabe de antemão o que pode acontecer. Por exemplo: os nijoras só precisam notar que os navajos estão de emboscada para que a festa comece.

-  Como poderiam eles notá-lo?

-  De qualquer modo. Um tolo pergunta sempre mais do que um homem de juízo pode responder. Eu já disse que não se pode saber o que acontecerá. Basta apenas, por exemplo, o seu cavalo resolver ir para a esquerda em vez de ir para a direita, ao entrarmos no passo, e já estará tudo traído. - Hobble-Frank havia dito isto meio sério e meio brincando; mas pela cara do cantor passou uma expressão de alta satisfação e ele disse:

-  Então para a esquerda em vez, de para a direita? Compreendi bem, não é?

Ele cabeceou satisfeito e o astuto Hobble percebeu-o naturalmente. Resolveu informar a tempo Mão de Ferro e impedir os propósitos "sanguinários" do cantor. Visto, porém, que o bom cantor, no seu entusiasmo, também tagarelara com a Sra. Rosalie Ebersbach a respeito das suas intenções, ele próprio cuidou bem de que os seus belos planos fossem frustrados.

Em breve parou o grupo, pois Winnetou havia saído dos arbustos. Ele se dirigiu a Mão de Ferro e a Nitsas-Ini, relatando:

- Os nijoras não mudaram de plano nem de posição. Os meus irmãos podem, portanto, executar o que combinei ontem com Mão de Ferro.  Acho apenas necessário que seja feita uma pequena modificação.

-  Qual? - perguntou Mão de Ferro.

-  Entrarmos no passo seco e descermos para a direita, pelo leito enxuto da Água do Inverno, até que alcancemos o rio.  Depois descerão os nijoras para nos assaltar: é quando deverão ser atacados pela retaguarda pelos navajos. É, entretanto, importante que os inimigos não façam nenhum uso das suas espingardas e que não firam ou matem nenhum dos nossos. Isto alcançaremos mostrando-lhes, desde o primeiro instante, que estariam perdidos se quisessem a luta.

-  Winnetou tem razão. Nós devemos ter conosco, na frente, também navajos, para provar-lhes que caíram na sua própria cilada.

-  É isto o que eu queria dizer - assentiu o cacique dos apaches.

-  Mas estes navajos não devem vir conosco, devem estar no lugar antes de nós, sem ter sido vistos pelos nijoras.

-  O meu irmão branco adivinhou inteiramente os meus pensamentos.

-  Foi muito fácil adivinhar o que meu irmão vermelho queria dizer. Os nijoras são trezentos guerreiros, enquanto que nós temos seiscentos. Basta que lhes coloquemos quinhentos nas costas; os restantes cem devem descer da alta margem aqui para o rio e seguir sorrateiramente o seu curso até que cheguem perto da foz da Água do Inverno. Lá eles se escondem nos arbustos e nos aguardam. Logo que chegarmos e os nijoras nos queiram assaltar, eles surgem do seu esconderijo e se juntam a nós. Isto terá o efeito previsto, o inimigo parará e a nossa reserva de quinhentos homens ganhará o tempo preciso para seguir-lhes pelas costas.

-  É isto. Dou inteiro apoio às palavras de Mão de Ferro. Nitsas-Ini, o bravo cacique dos navajos, que escolha cem dos seus guerreiros para que eles se afastem e alcancem, às escondidas, a confluência dá Água do Inverno. Depois os quinhentos também irão e, logo que possamos supor que estejam no seu lugar, nós partiremos daqui.

Assim aconteceu. Foram escolhidos cem índios que penetraram no matagal da margem do rio, a fim de descer para o leito. Não podiam naturalmente levar seus cavalos; estes foram carregados pelos outros. Em seguida partiram também os quinhentos.

Quando, deste modo, os navajos todos desapareceram, explicou Mão de Ferro, mais uma vez, aos imigrantes alemães, o plano, na sua língua materna, porque antes haviam falado em inglês. Ele pediu-lhes para não se preocuparem, pois que tudo iria muito bem, e aconselhou-os com insistência a terem a máxima cautela e nada fazerem que pudesse expor a qualquer perigo o êxito do plano. Então a Sra. Rosalie lhe disse:

-  Nós, com toda a certeza, não cometeremos nenhum erro; mas conheço um que tem o firme propósito de cometer uma grande tolice.

-  Quem é?

-  Quem é? E isto ainda se pergunta? Falando-se de tolices, pode-se imaginar logo de quem se trata; do cantor, naturalmente. Ele me quis persuadir de tomar parte na tolice dele; pois ele pretende dobrar para a esquerda, na entrada, para a Água do Inverno.

-  Com mil trovões! Isto poderia estragar o nosso plano! É verdade o que a Sra. Ebersbach acaba de dizer do senhor?

Esta pergunta era dirigida ao cantor.

-  Sim - admitiu este humildemente.

-  Quer então, sem me perguntar, tomar outra direção? Qual é o motivo deste propósito?

-  Minha ópera - pronunciou, a custo, o interrogado.

-  Sua ópera! Devemos portanto ficar expostos aos maiores perigos por causa desta louca idéia fixa! De que maneira é esta famosa ópera a causa daquilo que pretende fazer?

O cantor não queria falar. Aí se intrometeu Hobble-Frank, dizendo:

-  Sei quais são os motivos assentados no livro hipotecário das suas intenções. Ele me disse, antes, que precisava de uma luta armada para a sua ópera. Quer ir para a esquerda, para que os nijoras percebam a nossa emboscada e, conseqüentemente, seja desencadeada a luta.

Todos se indignaram por causa desta intenção inconcebível.

-  É um homem terrível este cantor - zangou-se Mão de Ferro. - Mas cuidaremos para que não nos possa prejudicar. Não irá conosco. Deverá ficar aqui, neste lugar.

Isto revoltou extraordinariamente o futuro compositor. Ele recuperou a fala e respondeu:

-  Não o permitirei, Sr. Mão de Ferro. Não sou soldado, nem recruta, que deve consentir que gritem com ele e que tem de obedecer.

-  O senhor obedecerá. Ficará aqui. Deixarei alguém para vigiá-lo.

-  Vou fugir!

-  Lindo!  Então vamos atá-lo.

E foi o que aconteceu, mau grado toda a resistência. Tratava-se agora de resolver quem iria ficar com ele. O banqueiro se ofereceu, pois a idéia de ser assaltado pelos nijoras não o encantava. Mão de Ferro aceitou a oferta; deu, entretanto, instruções terminantes que não permitiam que o cantor fosse desamarrado à força das suas boas palavras. Mais tarde devia ser mandado um mensageiro para buscar os dois.

Até aí estavam ainda visíveis os quinhentos navajos, que partiram em direção sul; agora, porém, desapareceram no horizonte e devia-se supor que, em curto tempo, alcançariam o seu lugar. Por isto deu Mão de Ferro ordem de continuar a viagem interrompida.

Era realmente grande a confiança que os imigrantes alemães depositavam nele e em Winnetou. Ao lado do apache e do seu irmão branco não podia haver receios. Mão de Ferro deu a todos o conselho de aparentarem a maior despreocupação possível e de não lançarem, de modo algum, olhares investigadores ou receosos para os lugares onde se sabia que o inimigo estava escondido.

Indo ao longo do rio, aproximavam-se da Água do Inverno numa linha que formava com esta um ângulo reto. Sam Hawkens pilheriava e ria em voz alta e fazia rir os outros, para infundir aos nijoras o sentimento de segurança. Chegados ao lugar onde em baixo se achava o passo, cavalgaram devagar, descendo da margem para o leito seco. Winnetou e Mão de Ferro iam na frente. A seus olhos nada podia escapar, ainda que eles se dessem a aparência de não prestarem atenção a coisa alguma.

À sua esquerda havia alguns blocos de rocha, que, em tempo de chuva, ficavam cobertos de água. Detrás de uma delas espiava, cautelosamente, a cabeça de Nitsas-Ini.

-  Altso-ti - estamos aqui - cochichou ele aos seus amigos na sua língua e, depois, tornou a desaparecer.

O grupo dobrou para a direita e marchava sobre o leito da Água do Inverno, em direção à sua confluência com o Rio Chelly. À direita e à esquerda havia altas e íngremes rochas e, na frente, passava correndo a água do Chelly. Na sua margem havia uma fila estreita de árvores, agrupadas densamente. Foi lá que pararam.

Mão de Ferro examinou os arbustos com olhares atentos. Neste momento moveu-se um dos arbustos e o braço de um índio surgiu por um curto momento. Era este o sinal de que os cem navajos também já estavam lá. Haviam, pois, conseguido preparar duas ciladas ao inimigo.

A rocha da margem avançava um tanto do lado esquerdo, formando um ângulo. Indicando este lugar, disse Mão de Ferro:

-  As mulheres e as crianças que se retirem atrás deste ângulo; aí estarão em plena segurança de todos os perigos.

Elas obedeceram a esta ordem. Só uma pessoa constituiu exceção: a Sra. Rosalie.

-  O quê? Eu devo esconder-me? - exclamou ela. - Que pensarão então de mim os índios!

Dizendo isto, ela tomou a espingarda do seu marido, pegou-a pelo cano e manejava-a ameaçadoramente acima da cabeça.

-  Pst! Não faça isto. Largue esta espingarda! - avisou-a Mão de Ferro. - Os nijoras estão nos observando e poderiam concluir deste movimento o que irá acontecer. Uivando e gritando, eles virão correndo. Então cada um apontará sua espingarda sobre eles, mas sem atirar. Só se não se deixarem deter por isto, deveremos nos defender. Neste caso mandarei fazer fogo; peço, porém, que lhes poupem as vidas e só lhes atirem nas pernas. Agora sentem-se e façam como se não tivessem absolutamente nenhuma idéia de sua proximidade.

Este convite foi obedecido. Todos se sentaram de modo que davam ao Chelly as costas e enfrentavam o leito seco da Água do Inverno. Assim eles veriam a chegada dos nijoras.

Mão de Ferro e Winnetou estavam juntos e se entretinham aparentemente de maneira despreocupada. A Água do Inverno havia trazido consigo em cada enchente, muitos pedaços de rocha, depondo-os na confluência ou nas proximidades dela. Atrás destas pedras podia-se ter abrigo e cobertura e era de esperar que a vanguarda dos nijoras viria sorrateiramente, aproveitando esta proteção natural.

Assim foi, com efeito, pois Winnetou notou um movimento atrás de uma destas pedras, olhou para lá com atenção durante um momento e disse, então, a Mão de Ferro:

-  Atrás do grande bloco triangular está um inimigo. O meu irmão o viu?

-  Sim, vi-o quando se arrastava atrás da rocha. É Mokachi, o próprio cacique.

-  Então chegou o momento. Não acha melhor o meu irmão que não esperemos até que eles nos ataquem?

-  Sim, mais surpresos ficarão. Queres falar com eles?

-  Não, que meu irmão o faça. Tu tens a espingarda que eles consideram encantada. A tua voz, portanto, terá maior efeito do que a minha.

-  Bem, então vamos começar.

Ele disse algumas palavras à meia voz em direção dos arbustos, onde estavam metidos os cem navajos, e disse aos brancos:

-  Os nijoras estão aí. Levantem-se e olhem para eles.

Em seguida ele deu alguns passos para a frente, segurando nas mãos a espingarda, pronta para o tiro e exclamou, então, em direção ao mencionado pedaço de rocha:

-  Por que se esconde Mokachi, o cacique dos nijoras, quando nos quer visitar? Que venha aqui abertamente. Sabemos que ele está aqui com os seus trezentos guerreiros.

-  Uff, uff! - ressoou então detrás da pedra e Mokachi se levantou.

-  Os cães brancos sabem que estamos aqui e apesar disto vieram? O Grande Espírito queimou-lhes os cérebros para que eles, tão poucos, ousem lutar aqui conosco!

-  Nós nada ousamos, pois o cacique dos nijoras engana-se muitíssimo. Não vê ele os meus homens em pé, prontos para receberem o inimigo com as espingardas? E não vê na minha mão a espingarda encantada?

-  Viremos tão rapidamente contra Mão de Ferro que ele só terá tempo de atirar duas ou três vezes; depois será derrubado pela multidão dos meus guerreiros. Os caras-pálidas têm apenas a escolha de se renderem ou serem impelidos para a água e mortos. Que vejam que estão cercados.

 

E não vê na minha mão a espingarda encantada?

Ele levantou alto a sua mão e a este sinal levantaram-se os nijoras detrás de todas as pedras. Outros, que não haviam encontrado lugar, vieram pulando e iniciaram um uivo de guerra, que ia até a medula dos ossos. Não atacavam, porém. Permaneciam parados atrás do seu cacique, porque este também não se adiantava. Ele levantou de novo a mão; o uivar silenciou num instante. Gritou para Mão de Ferro ouvir:

-  Os caras-pálidas estão vendo que estão perdidos se lutarem. Se quiserem ser inteligentes, render-se-ão a nós.

-  Nós, poucos caras-pálidas, não temos medo de trezentos nijoras; entretanto, não estamos sós. Quando Mokachi levantou a mão, apareceram os seus guerreiros. Agora também eu levanto a minha.

Ele estendeu o braço para cima; imediatamente os cem navajos pularam dos arbustos, formaram com a rapidez do relâmpago uma fileira dupla e dirigiram suas espingardas contra os nijoras. Estes soltaram um uivo de surpresa. Nenhum deles havia arriscado apontar sua espingarda contra um dos brancos, pois estes haviam levantado antecipadamente as espingardas e estavam portanto com vantagem. Quem se adianta ao inimigo abate-o logo que ele faça um movimento de ameaça. Mão de Ferro fez um sinal significando que pretendia continuar a falar e os uivos pararam.

-  Por que o cacique dos nijoras está olhando somente para cá, para o nosso lado? Que ele olhe também para trás de si!

Mokachi se voltou e os seus guerreiros fizeram o mesmo. Eles haviam dirigido toda a sua atenção para a frente, sem reparar no que se passava às suas costas. Então viram, apenas a vinte passos de distância, os quinhentos navajos que preenchiam toda a largura do leito seco da Água do Inverno, e que estavam formados em oito a dez fileiras, uma atrás da outra. Na sua frente parou o cacique deles e gritou a Mokachi:

-  Aqui estão quinhentos guerreiros dos navajos e na tua frente mais cem, ao lado dos caras-pálidas que são invencíveis. Deseja o cacique dos nijoras que demos início à luta?

Os nijoras uivaram de terror como animais bravios. Os navajos, que eram em número dobrado, uivaram ainda mais alto, mas os deles eram uivos de alegria. Então deu Mão de Ferro sinal para que se acalmassem e num instante voltou o silêncio. Falava em voz alta:

-  Pergunto a Mokachi, exatamente como perguntou Nitsas-Ini: devemos iniciar a luta? Mais de seiscentas balas varrerão o grupo reduzido dos nijoras. Quantos deles sobrarão? Nenhum!

Mokachi não respondeu logo. Sombrio, ele olhava para. o chão diante de si; disse, depois, rangendo os dentes:

-  Morreremos, mas cada um de nós matará antes pelo menos um navajo.

-  Isto tu dizes, mas tu mesmo não o crês, pois logo que só um dos teus levante a espingarda, atiraremos em todos. Estavas tão cego e surdo que não ouviste nem viste que Winnetou esteve ontem comigo no teu acampamento para os escutar? Tu estavas sentado com os guerreiros velhos, junto duma rocha que fica bem na margem, e nós estávamos deitados em cima desta rocha. Lá ouvimos o que disseram. Não sabes quanta cautela é necessária quando está desenterrada a machadinha de guerra?

-  Uff, uff! - exclamou Mokachi atônito. - Winnetou e Mão de Ferro estiveram deitados na pedra, junto da qual nós estávamos sentados?

-  Sim. Escutamos o vosso conselho que discutia a maneira de nos assaltar aqui. Porque fazes teus inimigos homens de quem sabes que não receiam todos os guerreiros da tua tribo inteira?

Nesta altura Mokachi depôs a sua espingarda no chão e disse:

-  O grande Manitu esteve contra nós; ele não quis que nós ganhássemos. Que Mão de Ferro ou Winnetou venham para cá lutar. Aquele de nós que matar o outro, dará a vitória à sua tribo.

-  Crês que poderás vencer a Winnetou ou a mim? Ouviste jamais dizer que algum de nós dois fosse vencido por um inimigo? Tua proposta em nada poderá mudar o teu destino. Mas não somos amigos de derramamento de sangue e queríamos evitar a luta.

-  De que modo poderá ela ser evitada? Pela nossa rendição incondicional, talvez?

-  Não, pois guerreiros valentes não se rendem assim e os nijoras são valentes guerreiros. Conheces tão pouco a Winnetou e Mão de Ferro que desconfias de uma tal exigência que, cumprida, teria que envergonhar eternamente a ti e aos teus descendentes?

Aí Mokachi respirou profundamente, aliviado.

-  Como é possível então que evitemos a luta sem que as nossas mulheres e os nossos filhos nos apontem com os dedos e zombem de nós?

-  Para resolver isto, vamos formar conselho. Que Mokachi e Nitsas-Ini venham cá, junto de mim e Winnetou. Que Mokachi traga as suas armas, pois não se rendeu ainda e é homem livre.

-  Irei.

Ele levantou novamente sua espingarda do chão e veio em direção a Mão de Ferro; lá chegado, sentou-se com todo o garbo de um cacique. O caçador branco tomou assento a seu lado, Winnetou também. Nitsas-Ini veio igualmente. Ele tinha que atravessar as fileiras dos nijoras. Eles lhe deram passagem. Seguiram-no muitos olhares inimigos, mas ninguém ousava tocá-lo ou dizer-lhe uma palavra descortês.

Poderia ter começado o conselho, imediatamente, pois aqueles que eram necessários para tanto já estavam juntos. Mas, segundo o costume indígena, ficaram eles sentados um bom quarto de hora sem que fosse proferida uma palavra. Cada um estava preocupado com os seus pensamentos. Winnetou e Mão de Ferro dirigiram os seus olhares sobre os outros dois, examinando-os e como se quisessem adivinhar os seus pensamentos mais secretos; depois trocaram um curto olhar entre si. Foi Winnetou o primeiro que falou, entretanto, apenas para fazer uma breve pergunta:

-  Estão sentados aqui, para formarem conselho, quatro guerreiros. Qual deles deverá falar?

De novo reinou por longo tempo profundo silêncio; depois respondeu Nitsas-Ini:

-  Nosso irmão Mão de Ferro não quis derramar sangue; que fale ele.

-  Howgh! - disseram os outros para expressar o seu consentimento.

Mão de Ferro também esperou por algum tempo a fim de que as suas palavras tivessem depois um peso ainda maior. Depois disto ele começou:

- Os meus irmãos sabem que sou amigo dos homens vermelhos. Ao índio pertence toda a terra desde um mar até o outro; aí veio o branco e tomou-lhe tudo, dando-lhe em troca as suas doenças. O índio tornou-se um homem pobre e doente, que muito em breve desaparecerá. O branco o venceu, principalmente, atiçando uma tribo contra a outra e semeando a discórdia entre os povos vermelhos. Os homens vermelhos eram tão pouco inteligentes que permitiram que isso fosse feito e, até o dia de hoje, não se tornaram ainda mais espertos. Eles se liquidam mutuamente, apesar de que, ainda agora, poderiam alcançar grandes coisas se deixassem morrer o ódio recíproco e se fossem entre si o que eles deveriam ser e para o que nasceram: irmãos. Tenho razão?

-  Howgh! - ressoou na roda.

-  Sim, tenho razão, pois que é assim mesmo como estou dizendo; provam-no também as duas tribos do grande povo dos apaches, que se enfrentam aqui como inimigos. O meu irmão Nitsas-Ini que me diga: por que iniciou ele a campanha contra os nijoras?

-  Porque eles desenterraram a machadinha de guerra contra nós!

- Bem. Então agora me diga também Mokachi: por que motivo ele conduziu os seus guerreiros contra os navajos?

-  Porque eles desenterraram contra nós a machadinha de guerra!

- Não basta isto para que se compreenda o que eu quero dizer? Eu queria ouvir as causas dessa briga e não me puderam apresentar nenhum motivo e mencionaram apenas o fato de terem sido desenterradas reciprocamente as machadinhas de guerra. Não se parece tudo isto exatamente como entre crianças que se arrancam mutuamente os cabelos sem terem nenhum motivo verdadeiro para fazê-lo?

Ele fez uma pausa para deixar que suas palavras tivessem efeito e depois prosseguiu:

-  O meu irmão vermelho, Nitsas-Ini, não é somente um guerreiro famoso e valente, mas também um chefe circunspecto e prudente de sua tribo. Ele compreendeu que o homem vermelho terá que morrer se ele continuar assim como é hoje. Por isso ele tomou e executou sábias resoluções. Ele tomou como esposa uma branca squaw que ele ama e a quem tem muito, muitíssimo que agradecer, coisas que sem ela ele nem sequer conheceria. Ele mandou o seu filho além dos mares para que este aprendesse como se faz de um deserto uma terra fértil. Ele sabe que a guerra só traz desgraças e que a felicidade só medra com a paz. Será que ele, subitamente, se transformou e que deseja hoje o sangue dos seus irmãos vermelhos?

-  Uff, uff! Não o quero! - exclamou o navajo.

-  Eu já sabia e pensava isto. Se não fosse assim, eu não seria mais o teu amigo e irmão. Como, porém, pensa Mokachi, o cacique dos nijoras? Ele deu início à campanha sem ter um verdadeiro motivo para a guerra e não alcançou nenhuma vantagem sobre seus inimigos. Deve até reconhecer que se encontra neste instante numa situação muito perigosa. Concorda?

-  Howgh! - assentiu Mokachi, que começava a compreender os propósitos, eminentemente pacíficos, que animava Mão de Ferro.

-  É possível que um homem inteligente, que está em tais apuros, continue desejando a morte dos seus adversários que têm a vida dele segura em suas mãos?

-  Não.

-  Pois bem, somos então todos da mesma opinião. Nem Nitsas-Ini, nem Mokachi desejam a continuação das hostilidades. Trata-se, portanto, por enquanto, apenas do sangue que correu até aqui e qual a vingança que deverá ser tomada por isto. Perdeu Mokachi um dos seus guerreiros e tem que tomar vingança por ele?

-  Não.

-  Dirijo então agora a mesma pergunta ao meu irmão Nitsas-Ini.

-  Khasti-tine e seu companheiro foram mortos - disse este gravemente.

-  Pelos nijoras?

-  Não, pelo cara-pálida que se chama Rei do Petróleo.

-  Tens então a vingar nos nijoras a morte destes dois guerreiros?

-  Não.

-  Logo há também neste ponto perfeita igualdade de ambos os lados. A desigualdade consiste no fato de que os nijoras estão agora cercados de tal modo que seu sangue correria, caso houvesse luta. Mas Nitsas-Ini declarou que ele não quer derramar sangue. Uma outra desigualdade está representada pela circunstância de que Mokachi prendeu oito guerreiros navajos. Não se compensarão estas duas coisas? Os nijoras entregam os prisioneiros e os navajos abrem o cerco no qual aqueles se encontram. Em seguida serão enterradas as machadinhas de guerra. Espero que os meus irmãos aceitarão  esta proposta; por  isso faço o que agora verão.

Ele tomou da cinta o saquinho com fumo e tirou o cachimbo da paz da fita que lhe pendia do pescoço, encheu-o e depôs na sua frente. Depois ele perguntou a Mokachi:

-  O cacique dos nijoras aceita a minha proposta?

-  Sim - respondeu este, intimamente contentíssimo por ver-se salvo, por tão baixo preço, do perigo e até do aniquilamento certo.

-  E que diz a respeito o cacique dos navajos?

Este não aceitou imediatamente os termos da paz, mas disse:

-  O meu irmão Mão de Ferro falou mais em favor dos nijoras do que em favor dos navajos. Os nijoras estão em nosso poder e não há vantagem para eles no fato de que fizeram oito prisioneiros, pois estes prisioneiros estão novamente quase nas nossas mãos. Preciso mandar que alguns dos meus guerreiros subam ao acampamento dos nijoras para desamarrar estes presos. Diga-me, portanto, se foi justo para conosco?

-  Sim, pois eu te pergunto: a quem deves a boa situação na qual te achas?

-  A ti e a Winnetou - respondeu Nitsas-Ini sinceramente e de acordo com a verdade.

-  Sim, é a nós que a deves. Eu não o digo para me jactar e sim para te convencer a ser bom para com os teus irmãos vermelhos. Que é que diz Winnetou sobre minha proposta de paz?

-  Foi feita como se eu pronunciasse as tuas palavras - retrucou o apache.

-  Então falta apenas a palavra de Nitsas-Ini.

Este passou um olhar demorado pela posição da sua gente e a dos inimigos. Sentia muito ter que renunciar assim a uma vantagem tão grande; mas a influência que a sua branca squaw pouco a pouco ganhou sobre ele, venceu também desta vez. De um índio selvagem se havia transformado num cacique ponderado e pacífico. Ele hesitou ainda por algum instantes.  Por fim declarou:

A machadinha de guerra será enterrada. Estamos fumando o cachimbo da paz!

-  Que o meu irmão Mão de Ferro tenha razão. Não será prolongado o cerco dos nijoras.

-  Estás pronto a fumar o cachimbo da paz com Mokachi?

- Sim.

Então Mão de Ferro se levantou, dirigiu-se aos índios e exclamou em voz muito alta:

-  Que os guerreiros dos navajos e dos nijoras dirijam para cá os seus olhares para verem o que os seus caciques resolveram.

Ele acendeu o fumo e deu o cachimbo a Nitsas-Ini. Este se levantou, tomou seis tragos, soprou a fumaça para o céu, para a terra e para os pontos cardeais e exclamou, de modo que todos os presentes ouvissem:

-  A machadinha de guerra será enterrada. Estamos fumando o cachimbo da paz. Os nijoras entreguem os prisioneiros e são nossos irmãos. Isto fumo e digo eu por todos os meus guerreiros. Vale, portanto, como se eles próprios o tivessem dito e tivessem fumado o cachimbo para confirmá-lo. Disse. Howgh!

Os navajos não estavam, segundo toda a probabilidade, muito satisfeitos com o resultado das negociações. Eles tinham considerável vantagem à qual não era tão fácil renunciar. Mas a disciplina férrea impediu-os de desobedecer, tanto mais que o costume do cachimbo da paz lhes era tão sagrado, que não queriam pôr em dúvida a decisão do seu cacique.

Este deu o cachimbo da paz a Mokachi, que também se levantou, tomou os tragos idênticos e depois anunciou com a voz tão alta como a de Nitsas-Ini:

-  Ouvi, ó guerreiros dos navajos e nijoras. A machadinha de guerra foi novamente enterrada. Os homens dos navajos abrem o círculo no qual eles nos fecharam e são por isso nossos irmãos. Eu o confirmei com o cachimbo da paz e é como se os meus guerreiros o tivessem dito e como se eles tivessem fumado o cachimbo. Disse. Howgh!

Os nijoras mostraram-se cortentíssimos. Não haviam considerado possível uma saída tão feliz para uma situação tão perigosa. Como testemunhas do acordo concluído, deviam também Winnetou e Mão de Ferro tomar os seis tragos do cachimbo, porém, sem mais palavras.

Agora a sessão estava terminada e o ambiente, antes tão hostil, transformou-se num ambiente pacífico. Os navajos soltaram os nijoras do cerco, e visto que, lá em baixo, faltava espaço, amigos e inimigos subiram juntos para o acampamento dos nijoras para lá celebrarem a festa da paz e para libertarem, em primeiro lugar, os prisioneiros, Winnetou, Mão de Ferro e Wolf também subiram, pois a sua presença era lá necessária; os outros brancos ficaram ainda em baixo, contentes por terem as hostilidades terminado de maneira tão feliz.

 

O Castigo

Em breve estavam todos envolvidos em vivas conversas que tinham por assunto os acontecimentos recentes. Especialmente Frank e a Sra. Rosalie conversavam animadamente, tomando também parte na conversa o jovem Adolf Wolf, mas por curto tempo. Separou-se ele dos dois para ir ter com o seu tio, que estava em cima sobre a margem alta, no acampamento dos nijoras. Quando chegou ao vau ele encontrou os navajos, que haviam buscado os seus cavalos do esconderijo e que os queriam levar ao acampamento. O cacique deles dirigia este trabalho; Winnetou e Mão de Ferro, estavam com ele. Neste momento surgiu um cavaleiro em cima, na margem do passo. Ele viu os dois e gritou para baixo:

-  Sr. Mão de Ferro, bem que o vejo!   Posso descer aí?

-  Sr. Rollins! - respondeu o interpelado. - O senhor aqui? Devia ter ficado com o cantor até que eu enviasse um mensageiro. Por que veio embora?

-  Logo o direi.

Ele desceu devagar a cavalo, apeou e exclamou num tom excitado:

-  Tivesse eu antes vindo convosco e não ficado lá! Se soubessem o que me aconteceu!

-  O que foi?

-  Coisa terrível! O Rei do Petróleo levou novamente o meu cheque!

-  O Rei do Petróleo? Com todos os trovões! Conte-me isto depressa. O banqueiro relatou o ocorrido.

- Homem! - exclamou então Mão de Ferro. - Você foi muito inteligente, mas muito!   Por que não inutilizou aquele papelucho?

- Sim perfeitamente, tem razão. Queria guardá-lo como lembrança. Agora arrependo-me amargamente. Consiga-me novamente o papel. Rogo-lhe!

- Sim, primeiro comete os erros e depois eu devo remendá-los! Viu para onde se dirigiram esses indivíduos?

- Subiram o rio, para lá donde vieram...

-  Subiram o rio, para lá donde vieram e donde também nós viemos.

-  Então eles seguiram realmente a pista dos navajos, para assaltarem Wolf e tirar-lhe o papel. Por uma casualidade qualquer, realizaram eles o seu intento com muita facilidade. Quanto tempo faz isso?

-  Faz muito tempo. O cantor não me quis desatar.

-  Devemos então partir imediatamente!

-  Rio acima? - perguntou Nitsas-Ini.

-  Sim, pois não devemos de modo algum perder-lhes a pista. Mas com certeza eles desceram mais tarde o rio.

-  Nesse caso teriam que passar por aqui.

-  Não, eles foram para o outro lado do rio.

-  Uff! Tem o meu irmão motivo para pensar assim?

-  Sim. Eles têm o papel e querem seguir para San Francisco. Por isto devem descer em direção ao Colorado, exatamente o mesmo caminho que seguiam quando estiveram em seu acampamento. Por aqui não podiam passar, porque souberam pelo cantor que nós estávamos aqui. Portanto eles recuaram rio acima, até onde acampamos ontem e depois atravessaram o rio. O meu irmão vermelho que desça depressa com um grupo de seus guerreiros ao longo do rio até encontrar um lugar onde ele possa atravessá-lo. Se já estiver na outra margem, procurará a pista deles e poderá ver então se eles já deixaram estas paragens.

-  Terão se afastado com toda a certeza!

-  Não. Deve-se supor que eles estão metidos e escondidos em qualquer parte do outro lado, para verem o resultado do assalto aqui. O meu irmão que lhes corte o caminho tão largamente quanto possível, para que eles não possam passar.

-  E que fará Mão de Ferro?

-  Irei com Winnetou rio acima para seguir-lhes a pista; se é que esta fica em cima da nossa, será dificílimo vê-la e, por isto, queremos nós mesmos fazer este caminho. Naturalmente, não iremos sós e levaremos também companheiros.

-  Mas eu enviei batedores ao encontro desses cães. Não foram então notados por eles.

-  Também outra hipótese é possível. Ou se enganaram ou mesmo os mataram. Que o meu irmão vermelho parta o quanto antes e que não se descuide de coisa alguma.

Neste instante mais um cavaleiro apareceu acima do passo: era o cantor que vinha descendo com plena consciência da sua inocência.

-  Aqui estou de novo - disse ele, sem pressentir coisa alguma.

-  Folgamos muito em vê-lo - respondeu Mão de Ferro zangado. - E para que nada aconteça ao senhor e a nós, vamos mandar atá-lo logo.

-  Isto eu não tolero. O senhor não tem autoridade sobre mim.

-  Tenho até muita autoridade. Vou prová-lo já.

Disse poucas palavras a alguns dos navajos, palavras que o cantor não compreendeu. Os índios o seguraram assim como a seu cavalo, levando-os para cima ao acampamento onde, apesar de toda sua resistência, o cantor foi de fato amarrado, recebendo em breve uma explicação não muito amável sobre os seus pecados.

Pouco tempo depois partiu Nitsas-Ini com vinte cavaleiros, a toda velocidade rio abaixo. Mokachi, o seu atual amigo, juntou-se a ele com mais vinte nijoras. Winnetou, Mão de Ferro e Sam Hawkens foram, pelo contrário, rio acima com dez navajos. Os outros homens do Oeste também quiseram ir, mas Mão de Ferro persuadiu-os a ficarem para cuidarem da ordem no acampamento.

Os imigrantes estavam ainda em baixo, junto da água. A branca squatv estava com eles. Falavam do seu futuro e dos seus planos. Neste momento Wolf desceu da margem para procurá-los. A squaw que o tratava de senhor quando falava com ele em alemão, e que lhe dizia tu quando falava no idioma dos índios, fez-lhe um aceno para que ele se aproximasse e disse:

-  Estamos falando dos planos futuros destes nossos patrícios. Eles vieram para cá para fundar um novo lar. Meios eles não possuem. Só os Ebersbach têm dinheiro e querem auxiliar os outros. Que diz a respeito? Falarei com o meu marido logo que ele tiver tempo.

-  Não é preciso - sorriu ele.

-  Por quê?

-  Porque eu já o fiz.

-  E o que foi que ele disse?

-  Ele quer lhe dar um prazer ficando com os alemães no seu território.

-  Excelente! Isto me alegra muito. Em todo caso, sei que ele teria atendido o meu desejo; mas que ele nem tenha aguardado o meu pedido, é me duplamente agradável.  Como imaginou o senhor esse plano?

-  Muito simplesmente. Esta gente receberá terra de presente, tanto quanto precisam. Há mais do que o necessário: mato, campo e pastagens. Depois faremos uma viagem à Guayolote ou La Tinajo, onde obteremos instrumentos de lavoura e todas as ferramentas necessárias. Também os proveremos de cavalos, vacas e outros animais de pasto e todos nós, homens e mulheres, os ajudaremos na construção das suas casas, de modo que muito em breve estarão instalados. É verdade, porém, que o plano se choca com uma dificuldade.

-  Uma dificuldade? Realmente? - perguntou ela um pouco inquieta.

-  Sim, um obstáculo sério, muito sério - sorriu ele de novo. - Que é que adianta se eles, podendo receber tudo de nós, não quiserem aceitar nada? Que me dizem disto?

Esta pergunta era dirigida aos alemães. Estes responderam naturalmente com um sim satisfeito. A Sra. Rosalie, que gostava de falar em nome dos outros, estreitou contra o peito a branca squaw, deu a mão a Wolf  e exclamou:

-  Que agora alguém me diga que os selvagens não são melhores que a gente culta lá da nossa terra. Ninguém dos nossos, além-mar, é tão caridoso a ponto de fazer um presente destes, e ainda tão grande assim, a um pobre-diabo. Daqui em diante sou partidária dos índios e não dos brancos. Espero que o cantor não queira ficar. Porque então toda a nossa felicidade iria por água abaixo.

-  Não, este nós afastaremos - assegurou Wolf. - Esta ave de mau agouro só nos traria desgraça. Vocês se sentirão muito bem entre nós. Temos grandes planos civilizatórios e chegaram perfeitamente a tempo. Agora, mais facilmente, compreenderão nossa magnanimidade. Chi-So e o meu sobrinho deverão mais tarde levar a cabo a obra que começamos. Provaremos que o homem vermelho poderá ser igualado ao branco. Mas escutem. Que acontece além do rio? Parece o grito de morte de um homem. Estará o Rei do Petróleo lá doutro lado, com os seus dois camaradas, já em luta com os nossos? Mas isto não é possível.

O Rei do Petróleo havia cavalgado com os seus dois companheiros exatamente como Mão de Ferro o havia presumido, rio acima, até o último acampamento dos navajos e lá atravessaram o rio. O plano deles era nesse ponto seguir o curso do rio para chegar ao Colorado; mas depois se lembraram de que talvez fosse aconselhável saber qual das duas tribos vencera a luta. Ficaram, portanto, nas proximidades da margem, e quando chegaram do outro lado da foz da Água do Inverno, procuraram um lugar donde pudessem observar os acontecimentos na outra margem, sem serem percebidos.

Mas tiveram que dar uma grande volta na qual perderam tanto tempo que, quando lá chegaram, já era tarde. A decisão, isto é, o congraçamento das duas tribos já estava feito; os vermelhos tinham-se retirado para o acampamento em cima, onde não podiam ser vistos do outro lado, e, assim, os três bandidos notaram apenas as mulheres brancas e os homens que estavam sentados à beira do rio, tagarelando. Por isto tiveram a impressão de que nada haviam decidido ainda e ficaram lá, por mais tempo do que o permitia a sua segurança. Eles não pressentiram que Mão de Ferro já estava atrás deles e que Nitsas-Ini lhes havia embargado o caminho com quarenta cavaleiros.

Como já foi dito antes, haviam o Rei do Petróleo e Buttler se servido apenas de Poller para os seus fins e queriam livrar-se dele mais tarde por um assassinato. Só não haviam combinado quando o fariam e procuravam agora uma oportunidade para se entenderem a respeito. Mas Poller não era mau observador e também sentia que havia no ar qualquer perigo para ele. Por isto notou que ambos se afastaram dele ao mesmo tempo. Por baixo dos arbustos ele se arrastou atrás deles e viu-os de pé, um perto do outro falando em voz baixa. Conseguiu chegar tão perto que ficou só a dois passos deles; mas não podia compreender as suas palavras até que o Rei do Petróleo disse, numa voz um pouco mais alta:

-  Agora é a melhor ocasião. Ele receberá uma facada quando menos esperar e ficará por aqui mesmo. Se os brancos o acharem, pensarão que ele foi apunhalado pelos vermelhos.

Poller ficou tão indignado com esta traição que esqueceu as precauções e se levantou subitamente diante deles.

- O quê? Querem me apunhalar, canalhas! - gritou-lhes. - É este o agradecimento pelo que...

Não pôde continuar. Eles se entenderam por um simples olhar. Então Grinley o segurou rápida mas fortemente e Buttler lhe meteu a faca no peito. A lâmina acertou tão bem que ele só deu um grito, caindo logo sem vida. Eles o saquearam e o deixaram lá mesmo, para observarem, depois disto, por mais uma hora, a foz da Água do Inverno.

Grinley o segurou rápida mas fortemente e Buttler lhe meteu a faca no peito.

Quando viram que do outro lado nada acontecia, pareceu-lhes perigoso esperar. Por isso, montaram, pegaram as rédeas dos três cavalos livres e se dirigiram para fora, para a planície aberta. Seguiram rapidamente.

Só cinco minutos mais tarde vieram Winnetou, Mão de Ferro e os outros. Esses venceram todos os obstáculos seguindo a pista até aí, ainda que ela se baralhasse com as marcas velhas. Viram os vestígios e também o cadáver.

-  Meu Deus, é Poller! - exclamou Mão de Ferro aterrado, examinando-o logo. - Assassinaram-no para se livrarem dele. Está morto e recebeu assim a sua recompensa. Eles se deitaram aqui para nos observar na outra margem...

-  Que o meu irmão não se demore - interrompeu-o Winnetou. - Faz apenas cinco minutos que eles se foram. Aqui segue o rasto para a planície aberta. Ligeiro atrás deles.

Eles puxaram os cavalos atrás de si e montaram-nos quando os arbustos ficaram para trás, para seguir os dois assassinos a galope. Decorridos dez minutos eles os viram diante de si na planície livre. Casualmente Buttler olhou para trás e notou os perseguidores.

-  Meu Deus! Mão de Ferro e Winnetou, com brancos e vermelhos! -  exclamou ele. - Vamos! Vamos! Rápido!

Eles esporearam os cavalos, mas os perseguidores se aproximavam rapidamente.

-  Assim não dá! Eles nos alcançarão! - gritou o Rei do Petróleo!

- Aqui no campo não escaparemos. Temos que ir para os arbustos.

Dirigiram-se para a esquerda em direção a uma ponta de arbustos que entrava na planície como uma língua verde. Era o mesmo matagal no qual haviam assassinado os batedores vermelhos.

Nesse meio tempo havia Nitsas-Ini ocupado a planície com os seus vermelhos. Como os perseguidos podiam também descer perto do rio, debaixo das árvores, penetrara no arvoredo com alguns guerreiros e subia com eles vagarosamente. Haviam deixado os cavalos atrás, pois dificultavam os movimentos. Foram ter, assim, na ponta dos arbustos e acharam os vestígios ainda visíveis. Seguindo-os, descobriram os cadáveres dos seus dois batedores.

Uma grande cólera apoderou-se do cacique. Neste momento ele ouviu o bater de cascos de cavalo. Na frente dos seus homens ele correu para a margem dos arbustos, vendo os perseguidos caçados pelos perseguidores.

Em grandes saltos chegou perto deles, e num instante já estava sentado na sela detrás do Rei do Petróleo.

-  Estou vingando Khasti-tine! - exclamou ele com voz retumbante, derrubando-lhe de um golpe o chapéu. - O teu escalpo é meu!

Antes que, horrorizado, o Rei do Petróleo se pudesse defender, descreveu a faca afiada um círculo sobre sua cabeça. Nitsas-Ini atirou fora a arma e, enquanto com a mão esquerda ele segurava-lhe a nuca, como tenazes, arrancou-lhe, com a outra mão, o couro da cabeça.

O Rei do Petróleo berrou desesperado. Buttler, cujo cavalo tinha-se adiantado por vários pulos neste curto tempo, olhou para trás cheio de terror e viu quase a cair sob a dupla carga o cavalo de seu irmão. De um arranco ele aprontou a espingarda, fez pontaria sobre Nitsas-Ini e apertou o gatilho. Neste instante, porém, o escalpado, de dor e de mortal terror, empinou-se repentinamente, fazendo-se ele próprio de alvo para o tiro: a bala lhe atingiu mortalmente o pescoço, e, com um gargarejar sufocado, caiu para a frente.

-  Peguem-me o outro! - exclamou o cacique. - Vamos torturá-lo no poste.

Com pavor ouviu Buttler esta terrível ameaça. Viu-se perdido e desistiu da luta. Com um último grito de raiva e de desespero, arrancou a faca da cinta e meteu-a, ele próprio, no peito até o cabo. Moribundo, caiu do cavalo.

Quando Winnetou e Mão de Ferro chegaram, estava Nitsas-Ini parado na maior calma ao lado dos cadáveres.

-  Que pena! - disse ele. - Isto passou-se tão rápido. - Depois dirigiu-se aos seus guerreiros e ordenou: - Levem os nossos irmãos assassinados e atem-nos sobre os cavalos; eles serão enterrados lá em cima, onde estamos acampados, como filhos valentes dos navajos. Estes cães brancos, porém, que fiquem aqui no chão, para que sejam estraçalhados pelos abutres.

Sam Hawkens cochichou então a Mão de Ferro:

- Mais tarde viremos aqui, em segredo, e os enterraremos, se não me engano. Eram criminosos, mas mesmo assim eram homens.

Uma inclinação de cabeça mostrou que o caçador compartilhava esta opinião.

Foram chamados todos os outros vermelhos. Depois o grupo todo se movimentou com os dois cadáveres, transpôs o rio num lugar conveniente e foi em direção ao acampamento. Lá, a presença dos mortos transformou a festa da paz e de alegria numa festa fúnebre. Surdos lamentos ressoaram até que, pela tarde, dois altos montículos de pedras se erigiram em cima dos mortos, cobrindo-os.

As tribos dos navajos e dos nijoras ficaram ainda dois dias juntas; depois elas se separaram. Os brancos foram naturalmente junto com os primeiros, subindo com eles até o Rio do Chaco, onde a tribo tinha suas cabanas e suas tendas.

- Quando é que os veremos de novo?

E que aconteceu depois? Sobre isto poder-se-ia escrever mais livros. Nitsas-Ini cumpriu a palavra. As quatro famílias receberam tudo o que Wolf lhes havia prometido na foz da Água  do Inverno.   O seu bom entendimento com os navajos não foi nunca mais perturbado, pois o velho Nitsas-Ini tinha uma mulher branca, alemã; e o jovem cacique Chi-So podia ser considerado antes alemão do que índio. Os homens do Oeste demoraram-se lá bastante tempo, a fim de ajudar os quatro casais, na medida do possível, com conselhos e atos. Despediram-se depois dos amigos brancos e vermelhos, mas, naturalmente, não para sempre. Eles cavalgaram até a Califórnia e tiveram nesta viagem diversas aventuras singulares. Em San Francisco separaram-se os outros de Tia Droll e de Hobble-Frank, pois estes acreditavam que era seu dever acompanhar até a sua casa o cantor inexperiente e tagarela. Na despedida, perguntou Sam Hawkens:

-  Quando é que os veremos de novo? Vocês, os dois maiores heróis do Oeste bravio, hihihihi?

-  Quando tiveres criado juízo, velho brincalhão - respondeu Hobble. - Logo que notes algum indício, escreve-me uma carta para o meu "palácio" Toucinho de Urso. Então, voltarei!

E a ópera heróica em doze atos? Assim que os primeiros três atos estiverem prontos, logo vos informarei.

 

                                                                                            Karl May

 

 

                      

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