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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


WINNETOU - VOL. III / Karl May
WINNETOU - VOL. III / Karl May

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

WINNETOU

Volume III 

 

Sans-ear

Desde a manhã daquele dia, eu vencera um bom trecho do caminho. Estava fatigado e a abafada soalheira atormentava-me. Em vista disso, resolvi fazer uma parada, a fim de descansar, e fazer a minha refeição. A campina estendia-se, diante de mim, ondulada, quase a perder de vista. Já há cinco dias, desde que o nosso grupo fora desbaratado por um bando de indígenas da tribo dos ogellallahs, que eu vinha viajando sozinho, sem encontrar um só vestígio de gente ou de animais.

Na zona em que agora me achava, não havia um arroio, um córrego ou qualquer outra espécie de aguada, muito menos ainda algum bosque, macegal ou cousa parecida. Apeei-me, maneei o cavalo e me abanquei numa elevação do terreno, de onde podia descortinar tudo o que se passasse em torno de mim, na amplidão da savana.

Havia motivos para eu agir com cautela. Partíramos em um grupo de doze homens, com destino ao Texas. Nessa mesma ocasião, as diversas tribos dos sioux deixavam as suas aldeias, em expedição de guerra, tomando o mesmo rumo nosso. Vários guerreiros dessa tribo haviam sido assassinados, e ela, segundo o costume nativo, ia tomar vingança. Ao termos conhecimento desse fato, tomamos todas as precauções possíveis; mas, não obstante tudo isso, nos chocamos com os vermelhos. Depois de um combate renhido e sangrento, no qual tombaram cinco dos nossos bravos companheiros, fomos desbaratados, e, seguindo os restantes, por diversas direções, nos extraviamos na campina, sem sabermos mais notícias uns dos outros.

Pelas minhas pegadas, os índios notaram, sem dúvida, que me encaminhara em direção ao sul e era bem fácil que me perseguissem para matar-me. Eu supunha que também os companheiros sobreviventes se tivessem dirigido para o sul, embora por outros caminhos. Em vista disso, precisava tomar toda precaução, sob pena de amanhecer, um belo dia, sem escalpo, a caçar, tranqüilamente, pelas Eternas Campinas dos indígenas...

Tirei da maleta um pedaço de xarque de búfalo, temperei-o, não com sal, mas com pólvora e saciei a fome, deitando-me, em seguida, para dormir um pouco. Não fazia muito que me deitara, quando, casualmente, olhando para trás, divisei no horizonte um ponto negro que se movimentava na minha direção. Graças à ondulação da campina, eu não podia ser visto. Assim pois, fiquei de alcatéia; notei depois que o ponto tomava a forma e as proporções de um cavaleiro, que atravessava a campina.

Quando o avistei pela primeira vez, ele se achava distante de mim cerca de milha e meia. Seu cavalo caminhava tão lerdo, que gastou meia hora para vencer uma milha. Continuando com os olhos fixos no horizonte, vi, com espanto, que, por trás do cavaleiro, mais quatro pontos, que não eram senão outros quatro cavaleiros, haviam surgido, e que se movimentavam também e seguiam as pegadas do primeiro. Este fato despertou-me vivamente a atenção. O cavaleiro da frente era um pele-branca conforme podia reconhecer pelo seu traje. Seriam os outros, talvez índio? Que o perseguiam? Assestei o binóculo: minha previsão fora acertada. Os vermelhos cada vez mais se aproximavam e daí a pouco, com o auxilio das lentes, verifiquei, pelas armas que conduziam, tratar-se de quatro ogellallahs, uma das mais ferozes tribos dos sioux. Estavam excelentemente montados, ao passo que o cavalo do pele-branca, parecia ser um animal de má qualidade. O pele-branca se aproximara já tanto de mim que o podia observar em seus mínimos detalhes.

Era de estatura baixa e esguia; à cabeça trazia um chapéu de feltro, sem abas, circunstância que aqui nas campinas não chamaria a atenção, mas que a mim me caiu na vista sem que o soubesse por que. Notei depois que o homem não tinha orelhas. No seu lugar, havia grandes cicatrizes, prova de que lhe tinham sido cortadas violentamente, com toda a certeza por inimigos.

Um enorme manto cobria-lhe o corpo de modo que mal se viam as suas pernas. Calçava um par de botas tão originais, que na Europa provocaria riso ao indivíduo mais casmurro. Era uma espécie de botas que os gaúchos da América do Sul fabricam e usam. Tira-se o couro da pata de um cavalo morto e, quente ainda, enfia-se o mesmo nos pés e ali se deixa esfriar. O couro cola-se à perna e aos pés, e, desse modo, se obtém um calçado muito cômodo, com o qual se tem a impressão de estar pisando com a própria sola dos pés. Ao serigote se achava preso um objeto que devia ser uma espingarda, mas que se assemelhava a um porrete. A sua montaria era uma égua que mais se parecia com um camelo do que com um exemplar da raça cavalar... Não tinha cauda, a cabeça era desproporcionalmente grande e as orelhas enormes causavam pavor. O animal parecia reunir naquela figura desconchavada características próprias de burro e dromedário...

Noutra circunstância, devido à minha inexperiência, teria achado graça da figura ridícula tanto do cavalo como do cavaleiro. Mas diante desse tipo original logo imaginei tratar-se de um daqueles caçadores das campinas bravias, aos quais é necessário primeiro conhecer-se de perto para apreciá-los no seu verdadeiro valor. Ele talvez não tivesse a menor idéia de que estava sendo perseguido por índios, os mais encarniçados inimigos dos campineiros, porque do contrário não teria cavalgado tão morosa e descuidadamente. Teria, antes, se virado de vez em quando para observar se o caminho estava “limpo”, como se costuma dizer no oeste.

Quando se aproximou de mim, à distância de uns cem passos, descobriu as minhas pegadas. Aliás, não sei dizer quem as descobriu primeiro, se foi ele ou o animal. Vi apenas que a égua parou por si, baixou a cabeça e depois agitou nervosamente as suas enormes orelhas. O cavaleiro ia apear a fim de examinar detidamente as minhas pegadas, quando, para poupar-lhe esse serviço, que lhe demandaria algum tempo, na ocasião precisa para se preparar, a fim de receber os índios que o seguiam bradei-lhe:

— Alô, camarada! Aproxime-se e se ponha de guarda, pois atrás do senhor vem o perigo vermelho!

Eu mudara de posição, de modo que ele agora me podia avistar. Também a égua ergueu a cabeça, olhou para mim, bateu os queixais como se quisesse engolir as minhas palavras e começou a sacudir o pedaço de rabo que ainda lhe restava.

— Alô, Mr.! — respondeu. — Para outra vez, não fale em voz alta. Nas campinas a gente nunca está seguro. Por trás de cada ondulação da planície, pode haver um inimigo oculto. Vamos “Tony”!

A essa voz de comando, a égua galopou para perto de mim e parou. Era um desses animais fiéis, tão comuns no oeste bravio, e que só servem e atendem ao seu dono.

— Eu sei muito bem até que ponto posso falar em voz alta — respondi-lhe. — De onde vem e para onde pretende ir?

— É um assunto, creio eu, que pouco lhe deve interessar! — retrucou bruscamente.

— Acha? O senhor é muito polido. Posso passar-lhe este atestado desde já, com toda consciência, embora só haja conversado com o senhor poucas palavras! Afianço-lhe, todavia, com sinceridade, que estou acostumado a obter resposta, quando pergunto alguma cousa a alguém!

— Hum! Pelo seu aspecto, parece ser um cavalheiro fino e de maneiras distintas! — disse, lançando-me um olhar depreciativo. — E é por isso que vou dar-lhe as informações que pediu. Acenou, ironicamente, para a frente e depois para trás, dizendo: — Vim de lá e vou para lá!

O homem começava a inspirar-me simpatia. A julgar pela sua atitude, eu estava sendo tomado por um desses caçadores domingueiros, como se costuma dizer no oeste bravio, referindo-se aos que praticam a caça por esporte ou aos que, embora profissionais, andam trajados com relativa distinção. O verdadeiro homem do oeste, porém, não dá valor nenhum à indumentária; todos desconfiam logo dos caçadores “almofadinhas” que encontram pelas savanas. “Ou são ladrões” ou “imbecis”, costumam dizer. Ora, eu me suprira, no forte Wilkers, de trajes novos e, de acordo com velho hábito, trazia as armas reluzentes, exterior que não me recomendava aos olhos dum legítimo explorador das savanas. Em vista disso, não tomei a mal o modo brusco, para não dizer grosseiro, com que o estranho personagem me acolhera.

— Pois então continue “para lá”! Mas acautele-se dos quatro índios que lhe vêm seguindo as pegadas! Não os notou ainda?

— Ele fixou-me os olhos, admirado, e respondeu:

— Não os notei?! Hihihihi! Quatro índios a me seguirem e eu não os notar! O senhor me parece um portento!... Aquela boa gente desde cedo que me vem escoltando, para que nada me suceda pelo caminho... Nem sequer me dei até agora ao trabalho de virar-me para observá-los. Conheço bem o sistema desses vermelhos: se conservarão distantes de mim enquanto fôr dia e, depois que eu tomar pouso, expedirão um batedor para observar-me. Por fim me assaltarão. Mas garanto-lhe que eles hoje errarão o cálculo. Vou cavalgar num círculo, de modo que quando eles menos esperarem, estou por trás deles. Se já não fiz, foi porque não encontrei ainda um terreno apropriado para essa manobra. Aqui, com essas ondulações nas campinas, não é nada difícil pôr em prática o meu plano. Convido-o a ficar aqui e esperar uns dez minutos: o senhor irá ver como um velho e experimentado campineiro prega uma peça aos canalhas dos peles-vermelhas! Come on, Tony!

Sem se preocupar mais com a minha presença ali, tocou a égua que galopou por entre as ondulações da campina, desaparecendo dentro de três minutos.

O seu plano era excelente e eu, no seu lugar, o adotaria também: cavalgaria em círculo e, antes que o inimigo percebesse a sua tática, já estaria sendo atacado pela retaguarda.

A proporção era de quatro contra um; talvez eu estivesse na iminência de fazer uso de minhas armas. Examinei-as e fiquei à espera do desenrolar dos acontecimentos.

Os índios cada vez se aproximavam mais, cavalgando, como é hábito seu, um atrás do outro. Já estavam bem próximos do local onde as pegadas do homenzinho original se confundiram com as minhas, quando o que vinha à frente parou o cavalo e virou-se para os outros. Parecia estranhar o fato de não ver mais o pele-branca a cujo encalço andavam. Realizaram uma breve conferência, durante a qual se reuniram em círculo. Eu poderia atingi-los facilmente com uma bala de minha “Mata-Ursos”. Mas não foi preciso. Dentro de instantes, detonou um tiro e em seguida outro. Dois índios caíram mortos de seus cavalos e, ao mesmo tempo, soava um longo brado de guerra: o... hi... hi... hiiii!

Mas esse brado de triunfo não fora proferido pelos índios e sim pelo homenzinho — permitam os leitores que assim o chame, pois ele ainda não se dignara a declinar-me o nome... — que surgiu logo em seguida de uma ondulação da campina. Daí a pouco desaparecia à minha frente. Fingiu fugir logo depois dos seus dois tiros. Sua égua era bem outra então. Não galopava, voava. Cavalo e cavaleiro pareciam identificados um com o outro. E o cavaleiro, mesmo a galope, tornou a carregar a espingarda com uma agilidade e segurança que eram de pasmar. Demonstrava com isso não ser a primeira vez que se achava numa situação dessas.

Por trás dele ouviu-se o estampido de dois tiros: os dois índios atiraram contra ele; erraram o alvo, porém. Os índios proferiram brados raivosos e, sacando das suas machadinhas, correram, furiosamente, ao seu encontro. O caçador, a esta altura, já havia carregado a arma e virado a égua. Tinha-se a impressão de que o animal percebera a intenção do cavaleiro, pois se espichou e se conservou imóvel e dura, como se fosse um cavalête de madeira. O homenzinho assestou a arma e bateu o gatilho. Ambos os índios tombaram, com as cabeças varadas por uma bala. Eu estava com a arma na mão, mas não fiz uso dela, pois o campineiro não chegou a necessitar do meu auxílio. Quando ele se apeou do cavalo para examinar os mortos, fui até lá para felicitá-lo.

— Então, sir, viu agora como se prega uma peça aos canalhas dos peles-vermelhas? — perguntou-me triunfante.

— Sim, mestre. Meus parabéns! Com o senhor pode-se aprender alguma cousa!

— Thank you!

As minhas felicitações e o meu riso pareceram-lhe duvidosos, pois olhou-me com energia e disse:

— Quem sabe se o senhor já não é afeito a manobras de guerra como a que acabo de praticar?

— Sou de opinião que não seria necessário o senhor fazer um círculo para atacar os índios. Num terreno como este, todo cheio de ondulações, em que a gente se pode esconder, basta que se tome uma boa dianteira ao inimigo, para chegar ao resultado a que o senhor chegou com menos tática. Um círculo seria aconselhável se se tratasse de campina rasa, sem obstáculo de espécie alguma.

— Pois não é que fala com acerto! Mas quem é o senhor?

— Sou um escritor.

— O senhor é escritor? Escreve livros? — Dizendo essas palavras, deu um passo para trás e olhou-me com um misto de espanto e de dó. — O senhor está doente?

A essas palavras levou a mão à testa, de modo que percebi logo a que espécie de doença ele se referia.

— Absolutamente não, sir! — respondi.

— Não? Então não o compreendo. Quando mato um búfalo é porque preciso de sua carne para o meu sustento. E o senhor por que motivo escreve livros?

— Para que eles sejam lidos!

— Sir, não me leve a mal! Mas é a maior tolice do mundo escrever-se livros. Aquele que quiser ler que escreva o seu livro! Eu também não mato búfalos para os outros. Sim, senhor! O senhor então é um “escrevinhador”! Que lástima! Um rapaz tão jovem e já tão doido! Mas, diga-me, que veio então fazer aqui nas savanas do oeste bravio? Pretende escrever aqui os seus livros?

— Não, isso só o farei depois de ter voltado para a pátria, quando relatarei tudo o que vi e vivi. Milhares de pessoas lerão os meus livros e por eles virão, a saber, o que se passa nas savanas, sem que seja necessário vir até cá.

— Então vai contar também alguma cousa a meu respeito?

— Claro que sim.

Recuou espantado mais um passo; depois, solene e grave, chegou-se mais para junto de mim, pôs a mão direita no cabo de sua faca e a esquerda no meu braço e disse:

— Sir, lá está o seu cavalo; monte-o e bata o pó dos sapatos, se não quiser experimentar algumas polegadas de lâmina fria entre as costelas! Perto do senhor não se pode pronunciar uma só palavra e nem mover com um braço, sem que o mundo inteiro venha a saber. Retire-se e já!

O homem mal alcançava-me até o ombro e no entanto falava-me com uma arrogância de pasmar. Longe de me encolerizar, divertia-me intimamente com aquela cena.

— Mas, devagar! Prometo escrever exclusivamente cousas bonitas a seu respeito! — esclareci-lhe.

— Retire-se! Já lhe ordenei e quero ser obedecido!

— Então dou-lhe minha palavra que não escreverei cousa alguma a seu respeito.

— Não acredito! Aquele que se senta a uma mesa para escrever livros para os outros é um doido varrido e um doido varrido não cumpre com a sua palavra. Retire-se, já lhe disse, e não espere que se esgote a minha paciência!

— E que sucederia então?

— Já o verá!

Olhei, rindo, para os seus olhos enfurecidos e disse tranqüilamente.

— Bem, pois quero ver! Não me retirarei!

— Então olhe! Que tal lhe parece esta lâmina?

— Não é má; disso vou dar-lhe uma prova.

Num abrir e fechar de olhos, agarrei-o, segurei-lhe o braço para trás e apertei-o com uma tal força que ele foi obrigado a gritar e a largar a faca. Essa agressão inesperada deixou o homem tão perplexo, que consegui amarrar-lhe as mãos às costas com a cinta de minha cartucheira, antes que ele se lembrasse de fazer o mais leve movimento para reagir.

— Com os diabos! — exclamou depois. — Que lhe deu na veneta? Que pretende fazer comigo?

— Alô, Mr.! Para outra vez não fale em voz tão alta — respondi-lhe valendo-me de sua expressão ao me dirigir a palavra pela primeira vez.

Apanhei a faca que se achava no chão, enquanto ele se esforçava, debalde, para libertar as mãos.

— Deixe disso! Para que esse esforço inútil? O senhor só conseguirá libertar-se quando eu quiser — exclamei. — Quero apenas provar-lhe que um “escrevinhador” está habituado a responder no mesmo tom às pessoas descorteses. O senhor quis agredir-me armado de faca, sem que eu o tivesse ofendido, ou prejudicado na menor coisa, e, por conseguinte, de conformidade com as leis das savanas, posso agora fazer do senhor o que quiser. Ninguém tinha o direito de me censurar se eu o fizesse “experimentar algumas polegadas da lâmina fria desta faca, entre as costelas”, em vez de fazer nas minhas, conforme me ameaçou há pouco.

— Pois faça-o! — disse com ar sombrio. — Folgaria muito se o senhor liquidasse duma vez com a minha vida, pois Sans-ear não sobrevive à vergonha de ser dominado e amarrado por um só homem, em campina aberta e em luta leal, frente a frente!

— Sans-ear? O senhor é o Sans-ear?! — exclamei.

Eu já ouvira falar muito desse afamado homem do oeste, que nunca foi visto em companhia de outros, por não considerar ninguém digno de ser seu companheiro. Há muito anos, num combate com os navajos, ele perdera as orelhas. Daí a sua alcunha de Sans-ear — que quer dizer “sem orelhas”; por esse nome era muito conhecido em todas as campinas bravias dos Estado Unidos e do México.

Ele não respondeu à minha pergunta e só depois que eu a repeti é que disse:

— O meu nome não é da sua conta! Se não fôr um bom nome, não será digno de ser pronunciado e se fôr um nome honrado, cabe-me, ante a inominável vergonha atual, ocultá-lo!

Aproximei-me dele e desatei as cordas.

— Aqui tem a sua faca e a sua espingarda: está livre. Vá para onde quiser.

— Deixe de pilhérias tolas! Devo partir, levando comigo a vergonha de haver sido dominado e amarrado por um greenhorn, que, por fim, ainda me dá de presente a vida?

— Agora, se eu tivesse sido vencido pelo cacique Winnetou, ou por um escoteiro da força de “Mão de Fogo” ou “Mão de Ferro”, aí sim, não seria vergonha, pois ser vencido por eles significa...

O velho causava-me pena: o meu golpe ferira-lhe, de fato, o amor próprio. Cabia-me consolá-lo, pois ele acabava de citar o nome pelo qual eu era conhecido em todas as fogueiras dos brancos e aldeias de indígenas.

— O senhor chama-me greenhorn?! — perguntei, interrompendo-o. — Então acha que um novato nas campinas seria capaz de lavrar um tento com o célebre Sans-ear?

— Mas quem é o senhor senão um greenhorn? O seu aspeto é de quem acaba de sair da loja de um alfaiate londrino, as suas armas estão reluzentes como se tivessem sido brunidas para uma representação teatral, ou para completar a indumentária de uma farra carnavalesca!

— Mas são excelentes armas! Disso, já lhe vou dar uma prova. Preste atenção!

Peguei de uma pedra do tamanho da moeda de um dólar e arrojei-a para o ar. Em seguida alvejei-a com minha arma, que acertou o alvo.

— Heavens! Mas que tiro certeiro! Atira sempre com tanta segurança?

— De vinte tiros, talvez não me falhe um.

— Então é um portento. Como se chama?

— “Mão de Ferro”.

— Não é possível! “Mão de Ferro” (*) deve ser muito mais velho do que o senhor, pois do contrário não o chamariam de “velho”.

— Mas se esquece de que no oeste bravio a palavra “velho” nem sempre significa ser idosa a pessoa a quem ela é aplicada.

— Tem razão! Mas, não me leve a mal, sir. “Mão de Ferro”, de uma feita, quase que ia sendo dominado por um urso cinzento com o qual lutava: antes de vencer a fera, ela arrancou-lhe uma boa parte dos músculos da espádua. Mesmo que a ferida sarasse radicalmente, ainda no local ficaria uma enorme cicatriz.

Abri o meu jaquetão e, depois, a camisa, dizendo-lhe:

— Pois então olhe aqui!

— Oh! Como a fera devia estar furiosa! Foi um milagre o senhor se ter escapado.

— Foi de fato. A luta com a fera deu-se lá embaixo no rio Red. Mesmo depois de vencê-la, estive estirado no solo durante duas semanas e teria perecido se Winnetou, o cacique dos apaches e cujo nome o senhor citou há pouco, lá não aparecesse para salvar-me.

— Então o senhor é de fato o célebre “Mão de Ferro”! Hum! Vou dizer-lhe uma cousa. Em primeiro lugar, diga-me cá: considera-me um indivíduo imbecil?

— Nem por sombra. O senhor cometeu apenas o erro de tomar-me por um greenhorn. Nada mais. E por persistir nesse erro é que o senhor deu a rata. Sim, um novato não estaria à altura de vencê-lo. Só se pode vencer Sans-ear de emboscada.

— Oh! Mas o senhor venceu-me em luta face a face e não de emboscada! Deve haver bem poucos homens que possuam força de búfalo como o senhor. Ser subjugado pelo senhor não é vergonha. Meu verdadeiro nome é Sam Hawerfield, e se me quiser fazer um obséquio trate-me por Sam!

— E o senhor, trate-me por Carlos, como me chamam todos os amigos, Aqui tem minha mão! Sejamos camaradas!

— Com muito prazer, sir! Se bem que Sam não é homem que aperte facilmente a mão de alguém. Mas, com o senhor, a cousa é outra. Mas, um favor: não vá quebrar minhas falanges, pois elas ainda terão que me prestar muitos serviços! Preciso delas, na verdade!

— Não tenha receio, Sam! Essa mão ainda vai prestar-me, talvez, muitos obséquios, da mesma forma como as minhas estarão sempre prontas para servi-lo. Bem; agora permita-me que eu repita a pergunta de há pouco: de onde vem e para onde pretende ir?

— Venho descendo do Canadá, onde estive prestando meus serviços a uma sociedade de madeireiros, e pretendo agora seguir para o Texas, e de lá, para o México, onde dizem que há atualmente muitos canalhas cujas facas e espingardas estão causando pavor!

— Pois é exatamente o meu caminho! Também me destino ao Texas e de lá

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(*) Em inglês, diz-se Old Sbaterband, que significa “Velho Mão de Ferro”.

 

seguirei para a Califórnia; não me fará, pois grande diferença se nesta viagem eu cavalgar também um pouquinho sobre o solo mexicano. Permite que eu o acompanhe?

— Se permito?! Oh! Com que alegria! O senhor já andou lá pelo sul e é portanto justamente o companheiro que me serve. Mas diga-me com. sinceridade: é de fato “escrevinhador”?

— Sim.

— Hum. Se os livros são escritos por “Mão de Ferro” o caso é diferente. Quanto a mim, afianço-lhe que preferia cair na caverna de um urso do que escrever livros. Em toda a vida não conseguiria escrever a primeira palavra. Mas, passando de um pólo a outro, como teriam vindo esses índios parar aqui? São ogellallahs, com os quais não se pode facilitar!

Contei-lhe o que sabia a respeito.

— Hum! — fêz então. — Nesse caso a zona não anda segura. Topei ontem com as pegadas de uns sessenta cavaleiros. Com toda certeza esses quatro vermelhos pertenciam àquele bando, e andavam em reconhecimento. Tem estado aqui por mais vezes?

— Não.

— A vinte milhas daqui a campina perde essas ondulações e a dez milhas mais para a frente existe uma aguada, para onde devem ter seguido os sessenta índios a fim de darem de beber aos cavalos. Nós nos desviaremos, naturalmente, mais para o sul, para evitarmos, deste modo, trilhar o mesmo caminho que eles, embora só vamos encontrar aguada amanhã à noite. Se partirmos já, atingiremos esta noite a linha férrea, recentemente construída ligando a cidade ao oeste bravio. Se lá chegarmos a tempo, teremos o prazer de ver a passagem dum trem.

— Estou pronto para a partida. Mas que faremos do corpo desses índios?

— Ora! Deixaremos aqui abandonados! Antes, porém, vou cortar-lhes as orelhas.

— É conveniente que os sepultemos, pois, se forem encontrados, darão logo pela nossa passagem por aqui.

— Deixe que os achem! É exatamente o que desejo.

Ele conduziu os cadáveres para um cômoro da campina, onde os enfileirou um ao lado do outro. Cortou-lhes as orelhas e as pôs nas mãos dos mortos.

— Agora sim! Os companheiros desses índios, quando os encontrarem, saberão logo que foram mortos por Sans-ear. Afianço-lhe que é bem desagradável quando no inverno o vento nos açoita a cabeça e não temos. orelhas para impedir que o frio penetre no ouvido. Tive de uma feita a inabilidade de me deixar pegar pelos vermelhos. Eu já havia morto muitos; a um, porém, cortara apenas a orelha, em vista de ter errado o alvo com a machadinha. E para castigo cortaram-me as duas orelhas, antes de me conduzirem ao poste do martírio de onde, por felicidade, consegui escapar. Portanto ficaram com as minhas orelhas, mas não com a vida! Para me desforrar, desse dia em diante, não tenho poupado ao inimigo orelhas que a minha faca pode alcançar. Quer ver? Conte! — E me mostrou a sua espingarda cheia de entalhes: cada um deles, me disse, representava a vida de um indígena tirada por ele.

Depois, fez quatro novos entalhes e explicou:

— Estes aqui são os de peles-vermelhas. Cá mais em cima estão mais oito entalhes, que representam as vidas de canalhas peles-brancas, apagadas ante a ação de minhas balas. A causa por que assim procedo contar-lhe-ei oportunamente. Falta-me ainda agarrar dois. Quando os encontrar, ficará satisfeita a minha vindita. Trata-se de pai e filho, os maiores canalhas que Deus pôs sobre a terra!

Seus olhos umedeceram-se subitamente, e a sua fisionomia assumiu uma expressão angustiosa...

— “Tony”! — chamou Sam.

A égua pastava ali perto. A esse chamado, ela aproximou-se, a galope, do cavaleiro e colocou-se de modo a facilitar a montada, pois era só pôr a mão ao pescoço e pular no serigote.

— Sam, o senhor monta um excelente animai! Quem vê a sua égua pela primeira vez é capaz de não dar um dólar por ela; no entanto, aquele que a observar bem, notará logo que o senhor não a vende nem por mil.

— Mil? Diga milhão. Conheço veios auríferos, por essas montanhas, dos quais, se quisesse, eu poderia tirar ouro aos montes; se um dia eu encontrar alguém que tenha feito jus à amizade de Sam Hawerfield, a este revelarei todo o segredo, tornando-o um homem riquíssimo. Portanto, não preciso desfazer-me de minha “Tony” para ganhar dinheiro. O senhor precisa saber que este a quem hoje chamam Sans-ear já foi outro homem bem diferente do que é hoje. Era feliz e a vida sorria-lhe com suas lindas manhãs de sol e prados verdejantes e floridos. Eu era um jovem granjeiro, tinha uma esposa, pela qual seria capaz de sacrificar mil vidas, e um filho que valia um sacrifício de dez mil. Costumava levar minha esposa para casa, montada numa égua chamada “Tony”. Esta égua depois pariu uma cria fêmea, ágil, inteligente prestativa como a mãe. Por que então não lhe havia eu de dar também o nome de “Tony”?

— É claro! — respondi-lhe, tocado pela inflexão de sentimentalismo com que inesperadamente passou a me falar.

— Well! Depois a potrilha criou dentes. Um bando de buscheadores tornava, naquela época, intranqüila a nossa zona. Esses indígenas queimaram minha quinta, assassinaram-me mulher e filho. Depois, mataram-me a égua a tiros, porque ela não permitia que estranhos a montassem. A potrilha escapou à sanha dos bárbaros, porque, no momento, se achava extraviada na mata. Quando voltei das caçadas, encontrei apenas essa potrilha, como única testemunha da minha felicidade de outrora. Que devo lhe contar mais? Oito dos bandoleiros tombaram varados pela bala de minha espingarda; os dois restantes ainda hei de pegar, pois aquele a quem Sans-ear segue a pista, nas mãos lhe cairá; poderá fugir até a Ásia, mas não me escapará. E é justamente por causa desses dois canalhas que pretendo seguir para o Texas e o México. É verdade! O jovem e esperançoso granjeiro de outrora transformou-se num sinistro corredor das campinas que só anseia por sangue e vingança; a potrilha transformou-se, depois, num monstrengo, que mais parece um bode do que cavalo. Mas é minha companheira inseparável e assim continuaremos até que uma seta, um tiro ou um golpe de machadinha venha abater um de nós. O sobrevivente, seja a égua ou eu, não resistirá por muito tempo à dor da separação.

 

ASSALTO FRUSTRADO A UM TREM

Saltando para o lombilho, continuou:

— Estou falando muito sobre cousas passadas. O senhor é o primeiro a quem relato os temporais da minha vida, embora o veja hoje pela primeira vez. Foi o primeiro e, creio, será também o último. O senhor deve ter ouvido falar muito em mim e com certeza também já lhe disseram que eu dificilmente permaneço sentado perto duma fogueira, junto com esta ou aquela pessoa. Menciono-lhe esta circunstância para comprovar-lhe que não o considero estranho. Mas um favor lhe peço. Esqueça-se de que hoje me atacou de surpresa, subjugando-me! Contudo, daqui por diante, lhe provarei que Sam Hawerfield não é nenhum fraco e que sabe, em ocasião de perigo, usar com vantagem, de sua grande destreza física... Também sei lutar.

Montei a cavalo e partimos. Sam Hawerfield dissera, antes, que tomaríamos o rumo do sul, no entanto agora seguia na direção do oeste. Não quis perguntar-lhe pela causa, pois ele deveria ter motivos para alterar a nossa rota. Da mesma forma não o inquiri sobre as razões que o levaram a apossar-se das quatro lanças dos indígenas mortos. Aquela figura fazia lembrar, com muita saudade, o meu velho amigo Sam Hawkens, de quem aliás era xará.

Havíamos cavalgado uma boa distância sem pronunciarmos uma só sílaba, quando Sam parou o cavalo. Apeou-se e fincou uma das lanças no cume de uma ondulação da campina. Agora eu sabia para que fim o meu companheiro trazia consigo aquelas armas: para guiar os índios pelo caminho que os devia conduzir aos companheiros mortos; além disso, ainda viriam a saber que o desejo de vingança de Sans-ear exigia novas vítimas.

Depois tirou da maleta oito panos de tecido reforçado e os repartiu comigo, dizendo:

— Apeie e com eles envolva os cascos de seu cavalo; assim enrolados   não imprimirão o menor vestígio no solo e os índios hão de pensar que por aqui passamos pelos ares... Agora o senhor prossiga viagem só, em direção ao sul, e espere-me na linha férrea de que lhe falei há pouca.  Primeiro vou fincar essas três lanças e depois lhe seguirei. Havemos de nos encontrar, mas se porventura nos perdermos: durante o dia o grito do gavião e durante a noite o uivo do coiote será o sinal convencionado.

Cinco minutos depois não nos avistávamos mais. Segui, pensativo, na direção que me fora indicada. Os panos nos cascos do cavalo impediam-no de andar ligeiro. Em vista disso, quando já cavalgara umas cinco milhas, apeei e desenrolei os cascos do animal. Os panos, aliás, destinavam-se apenas a ocultar nossas pegadas nas redondezas, onde se achavam as lanças cravadas no chão.

Agora o meu poldro poderia andar desembaraçadamente. A campina tornava-se cada vez mais plana; aqui e ali erguia-se uma nogueira ou cerejeira silvestre. O sol ainda se achava no horizonte, quando notei uma linha que, partindo do leste, seguia para o oeste.

Seriam os trilhos da via férrea citada por Sans-ear? Cavalguei naquela direção e vi que minha suposição fora acertada. Os trilhos se achavam sentados sobre dormentes da altura de um homem.

Senti uma sensação original ao ver aquela via férrea. Ao passar o trem, bastaria um sinal, para embarcar nele e voltar ao mundo civilizado.

Depois de amarrar o cavalo, saí pela campina à procura de lenha para a fogueira. Sobre o leito da linha havia um galho seco. Ao agarrá-lo, vi, com espanto, que ali se achava um martelo no solo. Devia ter sido abandonado havia bem pouco tempo, pois tinha ainda a cabeça reluzente, sinal de recente uso. Logo, naquele dia ou no dia anterior, alguém estivera lá!

Examinei o leito da linha, nada encontrando de suspeito. Em seguida avistei um gramado nas imediações, circunstância que despertou-me a atenção, por ser raríssima naquela zona. Além disso, sobre a grama, havia um rasto de homem. A pegada era ainda nova, podia ter, quando muito, umas duas horas; fora produzida por uma sapatilha indígena. Andaria alguma tropa de peles-vermelhas pelas imediações? Que relação teria a presença de índios com o martelo que ali encontrara? Mas refleti: muitos brancos usam também sapatilhas indígenas. Podia muito bem tratar-se dalgum operário que ali tivesse estado a consertar a linha e que usasse aquela cômoda espécie de calçado. Contudo, eu não podia ficar tranqüilo: precisava desvendar o mistério!

Um exame do local seria empresa arriscada. Nos macegais que beiravam a linha de ambos os lados, podia achar-se uma tropa de índios à espreita. Noutra circunstância, o martelo não me deixaria tão intranqüilo e eu teria empreendido um reconhecimento da zona, sem indecisão. Mas agora eu precisava ter toda cautela, pois sabia que os ogellallahs se achavam nessa região. Pus a espingarda a tiracolo e engatilhei o revólver. Rastejando pelos macegais, fiz o reconhecimento de um bom trecho da zona, sem resultado porém. Voltei pelo outro lado; também em vão. Esse reconhecimento eu efetuara ao oeste do local, onde deixara o meu cavalo, tendo depois me dirigido para o leste, onde, de começo, não encontrei igualmente nada de anormal. Dispus-me então a atravessar cautelosamente o leito da linha férrea; por isso arrastei-me de gatinhas sobre os trilhos. Tive então a impressão de que havia tocado com os dedos em solo úmido. Notei, também, não obstante a regular distância, que no solo havia uma figura em forma de círculo, que teria sido feita por alguém com algum fim. Examinei a figura com a mão e quase recuei espantado: tingi-me de sangue A figura era feita de areia que o sangue ainda úmido avermelhara. Examinei, depois, detidamente o local e verifiquei que uma poça de sangue havia sido encoberta com areia.

Nesse local ocorrera, sem dúvida, um assassinato; se fosse sangue de algum animal, ninguém teria necessidade de ocultá-lo. Mas quem era a vítima e quem era o assassino? Não havia pegadas na campina, pois em terreno duro, como era o da zona, não seria possível deixar vestígios. No entretanto, olhando para um gramado nas imediações, descobri sinais de alguém que arrastara algum corpo de pessoa, pelo local onde me achava.

Era extraordinariamente perigoso encaminhar-me para o local de onde partiam os ditos sinais. Do fato de estar ainda úmido o sangue e de serem recentes os vestígios, que eu percebera, podia-se concluir, sem receio de errar, que o crime fora praticado havia pouco tempo e que o assassino, ou os assassinos, ainda deviam encontrar-se pelas imediações. Descrevi, por isso, uma grande curva, para chegar ao gramado de onde partiam os vestígios.

Essa manobra foi feita com morosidade, pois eu precisava conduzir-me com toda a habilidade, ocultando-me o mais possível e evitando toda c qualquer espécie de ruído, a fim de não ser a minha presença notada. Felizmente, no lugar por onde descrevi a curva, havia numerosos arbustos que me encobriam; através deles eu poderia também avistar grande distância à frente, antes de ser visto por alguma pessoa. Mais adiante notava-se um grupo de cerejeiras silvestres, rodeadas de outros arbustos e de alguns macegais. Tive a impressão de que, debaixo daquelas cerejeiras, jazia qualquer cousa parecida com um corpo humano. Parecia estar o vulto encoberto com ramagens; o comprimento era o de uma pessoa. Estaria lá escondido o cadáver da vítima? Também podia ser um dos assassinos que, perpetrado o crime, ali se deitara a dormir. Fiquei ansioso por averiguar o que de positivo havia em tudo aquilo.

Mas, afinal, por que me ia expor a um tal perigo? Eu podia muito bem esperar Sam e com ele prosseguir tranqüilamente a jornada! É que um corredor das campinas tem necessidade de saber que espécie de inimigos tem por trás de si; o campineiro pesquisa tudo e anota até com os mínimos detalhes aquilo que vê ou desconfia ver nas savanas que atravessa. Essa precaução, que um professor de academia ou qualquer outro intelectual acharia ridícula, tem salvo a vida a muitos homens do oeste. Muitas vezes um campineiro, que costuma cavalgar de quarenta a cinqüenta milhas inglesas diariamente, não consegue sair do lugar, pois as pegadas e outros indícios que encontra, obrigam-no a meticuloso exame do caminho, o que embaraça sobretudo a rapidez da viagem. Ainda mesmo que nem sempre lhe aproveite o minucioso exame, trará, sem dúvida, grandes vantagens para outros, a quem encontra, enriquecendo a narração, que então lhe faz, com as suas observações muito lógicas e sensatas.

Tomei de um galho seco, em cuja extremidade coloquei o chapéu à guisa de bandeira, e encaminhei-me para o grupo de cerejeiras fazendo propositadamente um ruído de maneira a ser ouvido pela pessoa que lá se achasse. Apesar disso, ninguém se moveu no referido local: ou não havia inimigo algum ali, ou eu tinha diante de mim um tão astuto e inteligente, que fingia não me ouvir para surpreender-me com mais êxito.

Resolvi, então, arriscar tudo. Mais do que ser morto não me seria possível acontecer. De um pulo cheguei-me até as cerejeiras, de faca em punho, pronta para entrar em ação caso fosse necessário. Debaixo daquelas árvores havia um homem, disso eu não tinha agora a menor dúvida. Aproximei-me mais e certifiquei-me de que estava sem vida. Chegando-me até o cadáver, retirei os ramos que o cobriam. Vi então um quadro horrível! O homem estava com todo o corpo tinto de sangue, que lhe escorria da cabeça: fora escalpelado. Nas costas tinha cravada a ponta de uma flecha de guerra. Deduzi, pois, que o malfeitor ou os malfeitores haviam sido peles-vermelhas, que se achavam ainda — era fora de dúvida — pelas cercanias. Os indígenas, conforme atestava a ponta de flecha que vitimara aquele pele-branca, se achavam em expedição de guerra e não em caçada.

Onde se teriam eles metido? Precisava descobri-lo. As suas pegadas eram visíveis e, saindo do leito da via férrea, seguiam para a campina. De macega em macega, acompanhei aquelas pegadas, sempre pronto a receber de um momento para outro um flechaço de algum pele-vermelha oculto por ali, ou a usar de minha faca. Tratava-se de quatro peles-vermelhas, dois homens maduros e dois jovens, conforme se depreendia das pegadas. Nem tiveram o cuidado de apagar os sinais que deixaram no solo, motivo por que era de supor que se consideravam absolutamente seguros.

O vento soprava do sudoeste, rumo para onde seguiam as pegadas. Daí a pouco ouvi o relincho de um cavalo. Não me assustei, pois esse bufido ainda não denunciaria a minha presença. Prossegui, rastejando ou caminhando nas pontas dos dedos e dos pés, como se fosse um lagarto, até atingir o lugar de onde viera, uma vez que julguei haver notado tudo o que desejava saber. Foi quando vi, diante de mim, dentro de um macegal, sessenta cavalos, todos, com exceção de dois, arreados à indígena; estavam sem os serigotes, com certeza para os índios, que se achavam acampados próximos deles, se servirem como banco ou travesseiro. Junto aos animais se achavam duas sentinelas, ainda bem jovens. Um deles calçava umas amplas botas que, sem dúvida, haviam pertencido ao morto, pois encontrei este completamente despido. É que seus trajes e mais haveres, como de praxe entre os nativos, foram distribuídos entre os guerreiros. Este jovem fizera parte do grupo daqueles quatro cujas pegadas eu seguira.

O indígena mantém muitas vezes relações com brancos cuja língua não compreende. Em vista disso, entre peles-brancas e peles-vermelhas, foi adotada uma linguagem mímica. Em geral, todos os que percorrem o oeste bravio conhecem essas mímicas e o seu significado. Acontece que muitas vezes, tratando-se de pessoas de temperamento nervoso ou quando se discute calorosamente, essas mímicas se fazem acompanhar das palavras que a elas correspondem, palavras que naturalmente o interlocutor não compreende. Os dois guardas discutiam calorosamente por meio de mímica fazendo acompanhar os seus gestos das palavras que lhes correspondiam. Apontavam para o oeste, faziam o sinal de fogo e de cavalo. Referiam-se, pois, à locomotiva que os indígenas tratam de “cavalo de fogo”; erguiam os arcos e com eles faziam sinais de cavar a terra e de desferir marteladas, apontavam como para significar tiros, e faziam os movimentos de punhaladas e de golpes de machadinha. Enfim... eu já vira o bastante. Voltei pelo mesmo caminho, tomando a precaução de apagar o mais possível todos os sinais que deixara no solo. Devido a isso, demorei muito a chegar ao local onde deixara o meu cavalo. Este, nesse meio tempo, recebera visita, pois ao seu lado pastava a égua de Sam, que com ele fizera boa camaradagem. Sans-ear se abancara comodamente por trás dum macegal, e mastigava um enorme pedaço de carne de búfalo.

— De quantos índios se compõe o bando? — foi ele logo perguntando.

— Que bando?

— O que se acha nas imediações.

— Como chegou a essa conclusão?

— Parece que o senhor toma o velho Sans-ear por um greenhorn, tal qual o fiz há pouco com o senhor! Mas asseguro-lhe que está redondamente enganado, hihihihi!

Era uma risada característica de que ele sempre se servia para exprimir a certeza de vencer alguém em qualquer plano ou ponto de vista. Nisso ele muito se assemelhava ao velho Sam Hawkens, meu velho amigo e “professor”, do qual os leitores certamente ainda se lembram.

— Mas não o compreendo, Sam!

— Então quer que eu lhe diga? Que faria o senhor se, ao chegar aqui, encontrasse aquele martelo ao lado do meu cavalo?

— Esperaria pelo senhor.

— Realmente? Não estou muito inclinado a acreditar. Pois bem, o senhor aqui não se achava quando cheguei. Receando ter-lhe sucedido alguma cousa, saí-lhe ao encalço.

— Mas, reflita, eu poderia estar metido numa empresa que o senhor me embaraçaria com a sua chegada. Além disso, não precisava ter receio algum, pois “Mão de Ferro” nada empreende, sem tomar antes todas as precauções que o caso exige. Até que altura me seguiu as pegadas?

__Andei ziguezagueando por aí até chegar ao local onde os nativos mataram aquele pobre homem. Pude fazer o meu reconhecimento com relativa rapidez, pois eu sabia que o senhor se achava à minha frente, já tendo reconhecido a zona. Depois de haver examinado o morto, concluí de suas pegadas que havia saído a fazer um reconhecimentozinho e, então, para não o atrapalhar, voltei tranqüilamente para aqui onde tranqüilamente me vê a saborear este apetitoso xarque de búfalo. Portanto, vê que procedi da mesma forma que o senhor procederia, se estivesse em meu lugar. Mas afinal de quantos vermelhos se compõe o bando?

— De sessenta.

— Veja só! Deve ser o mesmo cujas pegadas encontrei ontem. Acham-se em caçadas ou em expedição de guerra?

— Em expedição de guerra.

— Acamparam por pouco tempo?

— Tiraram os aperos dos animais, deixando-os apenas com o bucal.

— Como veio a ter conhecimento desse plano?

— Observando-os.

— Mas como? Compreende a linguagem dos ogellallahs?

— Compreendo. Aliás, não os ouvi em seu idioma. Os dois guardas da cavalhada, perto dos quais estive, comentavam o assalto que iam realizar servindo-se de mímicas bastante inteligíveis.

— Isto às vezes não regula. O senhor pode ter-se enganado. Descreva-me os gestos que fizeram!

Descrevi o que vira. O homenzinho ergueu-se de um salto; dominou, porém, logo a sua agitação e tornou a sentar-se.

— Se foi assim — disse depois — o senhor os compreendeu muito bem e é dever nosso auxiliar os ferroviários. Mas não nos precipitemos. Essas cousas merecem ser feitas com toda a calma e reflexão. Primeiro combinaremos tudo, até os mínimos detalhes. São em numero de sessenta, não é assim? Hum! A minha espingarda tem lugar, quando muito, para mais dez entalhes. Onde farei depois os outros?

Apesar da situação de gravidade em que nos achávamos, tive um incontido desejo de dar uma gostosa gargalhada. O meu companheiro tinha diante de si sessenta indígenas, e, em vez de considerar essa enorme superioridade numérica, preocupava-se tão somente com a falta de lugar na espingarda para fazer os seus entalhes!

— Mas, afinal, quantos deles pretende abater?

— Isto eu mesmo ainda não sei. Mas creio que no máximo uns dois ou três, pois eles fugirão espavoridos ao dar com a presença de trinta a quarenta peles-brancas.

Ele contava, pois, também como eu, com o pessoal do trem para enfrentar os indígenas.

— O principal é sabermos qual o trem que pretendem assaltar — observei. — Seria uma espiga para nós se “tomássemos o trem errado”. Pode muito bem acontecer que saiam ao encontro do trem em rumo bem oposto ao de onde ele vem.

— Segundo as mímicas descritas pelo senhor, eles se referiam ao trem que procede das montanhas, e isso causa me admiração. Este trem traz mercadorias, por assim dizer, sem serventia. O do leste, sim; este constituiria excelente presa para os indígenas. Creio que o único meio de evitar um golpe em falso é dividirmo-nos. Eu seguirei a linha férrea por um rumo, o senhor por outro. Um de nós há de encontrar-se com o trem.

— Somos, realmente, obrigados a fazer isso. A não ser que tivéssemos absoluta certeza de qual seria o trem. Se ao menos soubéssemos como e quando chega o trem!...

— Quem poderia dizer-nos? Eu, em toda a minha vida, ainda não andei metido num troço daqueles, a que dão o nome de vagão, dentro do qual a gente, de medo, não sabe onde pôr os pés. Salve, pois, as campinas bravias e a minha boa “Tony”! Não encontrou ainda os índios no “serviço”?

— Não. Aliás, vi só os cavalos e as duas sentinelas. Mas de tudo se depreende que estão bem ao par da hora em que por aqui passará o trem. Por isso, pois, penso que antes da noite eles não farão o “serviço”. Daqui a uma hora, o mais tardar, começará a escurecer. Rastejaremos então até onde estão os nativos e saberemos de tudo.

— Well! Façamos assim.

— Talvez fosse aconselhável um de nós ficar aqui junto da linha. É bem possível que eles escolham exatamente este local para a depredação e o assalto.

— Não é necessário! Veja a minha “Tony”. É um animal astuto e de faro apurado. Aliás, o senhor já viu algum cavalo de campina não relinchar à aproximação de inimigos? Não. Pois fique sabendo que há um único que não relincha e este é a minha “Tony”. O bufido denuncia não só a presença do cavaleiro, mas também o local onde esse se acha. Por isso, desabituei “Tony” de relinchar à aproximação de algo de anormal Quando saio a pé, em reconhecimento, deixo-a sempre solta e o animal, assim que pressente o perigo, corre para o local onde me acho a prevenir-me, o que faz tocando-me com as narinas.

— Mas se ela não notar cousa alguma, conforme sucedeu hoje?

— O vento sopra justamente da zona onde os índios estão acampados e que fica muito próxima daqui. Dou, porém, o meu pescoço a cortar, se “Tony” não denunciar, a uma distância de mil metros, todo o pele-vermelha que aparecer! Ao demais, esses canalhas têm excelente acuidade visual e é bem possível que mesmo de longa distância, distingam o senhor deitado de barriga à beira dos trilhos. Portanto, se os vermelhos vierem destruir a linha aqui, “Tony” correrá a me avisar.

— Tem razão. Vou confiar tanto na “Tony” como no senhor. Conheço-o de hoje, mas tenho a impressão de que se pode fiar no senhor.

 

UMA ORIGINAL FÁBRICA DE CHARUTOS

Puxei um charuto de “fabricação própria” e o acendi. Sam arregalou os olhos e escancarou a boca. Suas narinas se dilataram e aspiravam avidamente o odor das folhas que ardiam, ao mesmo tempo que uma expressão de entusiasmo passava-lhe pelo semblante. O homem do oeste raramente tem ensejo de provar um bom fumo; no entretanto é, em via de regra, um fumador apaixonado.

— Wonderful...! Será possível? O senhor tem charutos?

— Claro! Creio que ainda há na maleta algumas dúzias. Aceita um?

— Venha, venha, venha com ele! O senhor é um homem a quem se deve dispensar toda espécie de consideração! Esplêndido!

Ele acendeu o seu charuto no meu, engoliu, segundo o hábito indígena, algumas baforadas, e depois as expeliu pela boca e pelo nariz. A sua fisionomia iluminou-se como se tivesse galgado o sétimo céu de Maomé.

— Que delícia! Quer que adivinhe a qualidade?

— Adivinhe, se fôr capaz! É conhecedor de charutos?

— Pelo menos tenho a pretensão de ser.

— Bem, então diga!

— É goosoot do legítimo da Virgínia ou Maryland!

— Enganou-se.

— Quê? Então é a primeira vez que não acerto. Não, tenha paciência! É goosoot, pois conheço-lhe o odor e o gosto.

— Não é!

— Então é charuto feito do legítimo fumo brasileiro, o melhor fumo do mundo!

— Também não.

— É sim, senhor! E fabricado com fumo da Bahia! A mim ninguém engana tratando-se de fumos!

— Afianço-lhe que não.

— Então que charuto é?

— Examine-o bem!

Puxei um do bolso, abri-o e dei-o para examinar.

— Mas é até um crime o senhor estragar o charuto deste jeito. É um artigo tão bom que qualquer caçador de castores, que não tenha fumado algum tempo, é capaz de lhe oferecer cinco ou seis peles por ele!

— Daqui a uns três dias terei maior quantidade.

— Daqui a... três dias? Maior quantidade? De onde a receberá?

— De minha fábrica.

— Queeê?! O senhor possui uma fábrica de charutos?

— Sim.

— Mas onde?

— Lá.

Apontei para o meu cavalo.

— Olhe, vou lhe pedir um favor! Não faça caçoadas de mau gosto comigo.

— Não é caçoada, não! Estou dizendo a verdade.

— Hum! Se eu não tivesse a certeza de ser o senhor o célebre “Mão de Ferro”, diria agora que não era bem certo da cachola!

— Sim, mas examine primeiro o fumo — disse eu, passando-lhe o charuto aberto.

Ele o fêz com todo o cuidado.

— Não conheço. Nunca vi semelhante qualidade. Mas é do bom! Excelente fumo!

— Bem, agora vou mostrar-lhe minha fábrica.

Dirigi-me ao cavalo, afrouxei-lhe a cincha e tirei de sob o serigote uma espécie de almofada, que abri.

— Aí tem. Ponha a mão dentro.

Ele meteu a mão dentro do saquinho e puxou-a cheia de folhas.

— Não me faça de tolo! São puras folhas de cerejeiras e figueiras!

— Exatamente! Misturadas com um pouco de cânhamo; e a capa dos charutos faço com as folhas de uma erva  campineira a que dão o nome de “pata de vaca”. Pois esta almofada é de fato a minha fábrica de charutos. Sempre que encontro dessas folhas, junto-as em quantidade necessária e as ponho na almofada debaixo do serigote. Em contato com o calor, as folhas fermentam. Eis aí a minha arte de fabricar charutos.

— Parece incrível!

— Não revele esse segredo a pessoas que ainda não estiveram no oeste! Pensarão que o senhor pertence a uma tribo da África, cujo paladar exige que se besuntem os seus artigos de fumar com pixe.

— Isto é me indiferente, contanto que o charuto me agrade. De resto, nem eu sei onde fica esta tal de África!

 

ESPIONANDO OS OGELLALLAHS

Ele não se deixou perturbar no seu prazer de fumar, com a revelação do meu sistema de fabricar charutos. Fumou o seu charuto até quando apenas podia apertar entre os dedos um toquinho já molhado, que mal podia pegar e pôr nos lábios.

Nesse meio tempo o sol desaparecera no ocaso. Começou a escurecer tão depressa que já devíamos pensar em executar o nosso plano.

— É agora? — perguntou Sam.

— Sim.

— Como começaremos?

— Iremos juntos até a cavalhada dos peles-vermelhas; depois nos separaremos para observar o seu acampamento e nos juntaremos de novo por trás deles.

— Bem. E se acontecer alguma cousa que nos obrigue à fuga, ocasião em que seria fácil perdermo-nos um do outro, fica combinado que iremos encontrar-nos lá no sul, na aguada. Há ali uma mata virgem que vai entestar com a campina, formando uma figura idêntica a uma cabeça de tartaruga. Junto à cabeça da tartaruga será o ponto de nosso encontro. O que chegar primeiro espera pelo outro.

— Está combinado. Avante, pois!

— Eu não tinha receio de que nos extraviássemos, mas em todo caso foi boa a idéia da combinação do encontro, pois desse modo estaríamos mais seguros.

Partimos.

Já escurecera tanto, que podíamos, sem risco nenhum, atravessar a linha férrea, andando em posição vertical. Depois quebramos para a esquerda, trazendo sempre a faca pronta para a eventualidade de uma luta. A vista do campineiro habitua-se facilmente a enxergar no escuro; enxergaríamos a muitos passos, à nossa frente, qualquer índio que de nós se aproximasse. Passando pelo corpo da vítima dos indígenas, encaminhamo-nos até o local onde os índios haviam deixado a cavalhada. Esta ainda ali se achava.

— Agora, o senhor pela esquerda e eu pela direita — cochichou Sam; feito o que, rastejou à minha frente.

Cortando uma curva por trás da cavalhada, cheguei a uma clareira do macegal onde vi os vultos escuros dos indígenas. Não haviam acendido fogueiras e conservavam-se tão silenciosos que eu ouviria o zumbido dum inseto perto deles. A um dos lados, um pouco distante do grosso da tropa, vislumbrei sentados três vultos de vermelhos, que, a palpite meu, se entretinham em palestra, porém em voz muito baixa ou por mímicas. Arrastei-me até lá com toda cautela.

Quando estava a uns seis passos deles, vi com espanto que um era pele-branca. Que é que este pretendia dos índios? Não se tratava dum prisioneiro, via-se logo pela regalia de que gozava. Tratava-se, talvez, dum desses troca-tintas das savanas, que ora se põem ao lado dos brancos, ora dos vermelhos, conforme as conveniências do momento, que lucram tanto em sua atividade de ladrões como de malfeitores. Também podia ser um dos peles-brancas aprisionados pelos índios, e que, para se salvarem, tomam por esposa uma mulher da tribo, de que passam então a fazer parte. Mas neste caso o seu traje, que eu divisava bem, deveria ser mais à indígena do que era.

Os outros dois eram caciques, conforme reconheci pelas penas de corvo que traziam ao alto da cabeça. Parecia tratar-se de duas tribos ou aldeias diversas que se tivessem aliado para realizar o mesmo propósito. Os três estavam sentados na orla do macegal, de onde me foi possível aproximar tanto, que podia escutar-lhes a conversa.

Depois de uma breve pausa, perguntou um dos caciques ao pele-branca, no linguajar misto (indígena e inglês) de que sempre se servem os brancos na conversação com os índios:

— Mas o meu irmão pele-branca tem absoluta certeza de que o “cavalo de fogo” que aí vem transporta uma tão grande quantidade de ouro?

— Tenho toda a certeza — respondeu o interrogado.

— Quem lhe disse?

— Um dos homens que mora nas baias do “cavalo de fogo”.

— E o ouro provem de Waikur? (*)

— Sim, senhor.

— E se destina ao pai dos peles-brancas (**) a fim de cunhar dólares?

— Sim.

— Pois afianço-lhe que o pai dos peles-brancas não receberá desse ouro nem o suficiente para cunhar meio penny! Viajarão muitos homens no “cavalo de fogo”?

— Isto eu não sei. Mas mesmo que venham muitos, meus irmãos peles-vermelhas hão de vencê-los totalmente!

— Os guerreiros ogellallahs vão colher muitos escalpos e as suas mulheres e filhas dançarão a dança da alegria. Acha que os cavaleiros do “cavalo de fogo” trazem muitas mercadorias de utilidade para os peles-vermelhas? Vestuário, armas, calicós?

— Trazem tudo isso e muito mais ainda. Mas os irmãos peles-vermelhas darão ao seu irmão pele-branca o que prometeram?

— Meu irmão pele-branca receberá todo o ouro e toda a prata que o “cavalo de fogo” trouxer. Nós não precisamos desses metais, pois em nossas montanhas há minas auríferas inesgotáveis, com as quais nem nos preocupamos. Ha-wo-mien, o cacique dos ogellallahs, — dizendo isso apontara para si próprio — veio um dia a conhecer um pele-branca inteligente e bravo, que lhe afirmou que o ouro não passava de um pó mortífero, lançado na terra pelo Mau Espírito, a fim de tornar os homens ladrões e assassinos.

_______________

 (*) Califórnia.

(**) Presidente dos Estados Unidos.

 

— Esse pele-branca de que fala era um grande idiota. Como se chamava?

— Não era nenhum idiota, não, mas um moço muito inteligente e um valente guerreiro. Os filhos dos ogellallahs achavam-se reunidos no Broad-forck a fim de tirar os escalpos de um grande número de escoteiros que haviam pegado muitos castores no seu território. Entre os caçadores de castores havia um pele-branca, que era considerado idiota porque colecionava insetos e plantas; tinha-se reunido aos escoteiros com o fim exclusivo de conhecer o oeste bravio. Mas na cabeça daquele branco morava a sabedoria e nos seus braços a força; a sua espingarda nunca errava o alvo e a sua faca não temia sequer os ursos gigantescos das montanhas rochosas. Ele tentou incutir no cérebro daqueles canalhas que procedessem com brandura com os peles-vermelhas. Mas riram-se dele e por isso todos foram mortos e os seus escalpos ainda hoje enfeitam a aldeia dos ogellallahs. Não obstante isso, não quis abandonar seus irmãos de raça e matou muitos indígenas; mas os vermelhos eram em maior número e o dominaram, embora com a sua machadinha, ele fosse como um carvalho que, quando tomba na mata, arrebenta tudo o que alcança. Foi aprisionado e conduzido para a taba dos ogellallahs. Estes não o mataram porque se tratava dum guerreiro corajoso e muitas filhas dos ogellallahs queriam ir para sua cabana tornar-se sua esposa. Ma-ti-ru, o maior dos caciques ogellallahs, quis dar-lhe a cabana de sua filha, e se ele não aceitasse a proposta teria que morrer. Mas ele desprezou a mais linda flor da campina, que era a filha daquele cacique, roubou o cavalo, as armas que lhe haviam sido tomadas ao ser aprisionado, matou vários guerreiros e fugiu.

— Que tempo faz isso?

— O sol, depois disso, venceu quatro invernos.

— E como se chamava esse tal pele-branca?

— O seu punho tinha a força da pata dum urso gigantesco; com ele conseguiu arrebentar o crânio de muitos vermelhos e também dalguns brancos; e em vista dessa sua força deram-lhe o nome guerreiro de “Mão de Ferro”.

De fato era uma de minhas antigas aventuras que Ka-wo-mien relatava naquele momento. Só então é que o reconheci e também o cacique que se achava a seu lado, o mesmo Ma-ti-ru que me aprisionara, de uma feita. O cacique falava a verdade, mas eu o censurava, em silêncio, por ter elogiado exageradamente a minha força e valentia.

— “Mão de Ferro”? Oh! Conheço-o — respondeu o pele-branca. — Ele se achava na colônia de caçadores de “Mão de Fogo” quando eu, à frente de um grupo de homens decididos, o assaltei em busca de peles e peliças. Do nosso grupo só consegui escapar eu com dois companheiros; eu teria muita vontade de encontrar novamente aquele canalha pelo caminho. Devolver-lhe-ia o seu capital acrescido de bons juros...

Reconheci também este. Era um chefe de bandoleiros peles-brancas que assaltaram uma vez o acampamento de “Mão de Fogo”, mas que tiveram uma tal recepção de nossa parte, que só conseguiram escapar apenas três homens. Era um desses ladrões das campinas a quem devemos temer mais do que aos indígenas mais selvagens, pois eles reúnem em si todas as más qualidades de ambas as raças.

Ma-ti-ru, que até então ainda não havia falado, ergueu a mão.

— Ai dele se cair novamente nas mãos dos vermelhos! Será amarrado ao poste dos martírios e Ma-ti-ru lhe cortará lentamente todos os músculos e tendões. Aquele maldito pele-branca matou vários guerreiros dos ogellallahs, roubou o cavalo do cacique e as suas armas, tornou a matar outros guerreiros, desprezou o coração da mais formosa filha das savanas e fugiu.

Aqueles três homens jamais imaginariam que a pessoa que tanto eles ameaçavam se achava ali a poucos passos deles!

— Os peles-vermelhas jamais o pegarão, pois ele atravessou as grandes águas e se dirigiu para as longínquas terras onde o sol queima como fogo onde o areal é mais vasto do que as savanas, onde urra o leão e onde aos homens é permitido ter muitas mulheres.

Algumas vezes, conversando à luz da fogueira, disse que pretendia visitar o deserto de Saara. De fato, fiz essa excursão e agora na minha presente jornada pelas campinas do oeste via, com surpresa, que a notícia dela corria celeremente, indo até as tabas dos indígenas. Concluí daí que no oeste, com as armas na mão, a gente se torna mais célebre do que na pátria, manejando a pena.

— Mas ele voltará — opinou Ma-ti-ru. — Aquele que respirar uma vez o ar puríssimo das savanas ansiará por ela durante todo o tempo em que Manitu o conservar com vida.

Nesse ponto o cacique tinha razão. Assim como os montanheses nas baixadas definham, saudosos dos alpes, onde viveram, e o marinheiro nem pela “Mão de Deus Padre” abandona o mar, também o campineiro não se dá bem a não ser na amplidão da savana. E eu de fato já me achava de volta às campinas!

Naquela ocasião Ka-wo-mien apontava para as estrelas:

— Meus irmãos peles-brancas queiram contemplar o céu! Está em tempo de nos dirigirmos para o caminho do “cavalo de Fogo”. O martelo que os meus guerreiros tomaram ao criado pele-branca do “cavalo de Fogo”, é suficiente para destruir os ferros por onde ele caminha?

Esse diálogo fez me saber quem era a vítima que eu encontrara lá debaixo das cerejeiras. Era um empregado da viação férrea, que percorria a linha para a examinar e consertar.

— O martelo é mais forte do que as mãos de vinte peles-vermelhas — respondeu o branco.

— E o meu irmão pele-branca sabe manejá-lo?

— Sim. Queiram os meus irmãos vermelhos acompanhar-me! Dentro de uma hora o trem chegará. Mas torno a lembrar-lhes: todo o ouro e prata que o “cavalo de Fogo” conduzir me pertence!

— Ma-ti-ru não costuma mentir! — assegurou o cacique com orgulho, erguendo-se. — O ouro é seu, e todo o mais, inclusive os escalpos dos peles-brancas, pertencem aos valentes guerreiros dos ogellallahs.

— E o senhor me fornecerá mulas para o transporte do ouro e os homens que forem necessários para defender-me durante a viagem para O Canadian?

— Receberá as mulas que precisar, e os guerreiros dos ogellallahs o acampanharão até as fronteiras do México, onde seu filho o esperará, conforme nos disse.

 

DESTRUINDO A LINHA FÉRREA

O cacique deu voz de comando a todos os guerreiros, que se levantaram. Retrocedi. Próximo ao local onde eu estava, percebi um leve ruído, como se uma fraca brisa agitasse algum galhinho de arbusto.

— Sam!

Eu pronunciei essa palavra como que cochichando, e, não obstante a distância de alguns passos, o vulto do meu companheiro ergueu-se do solo:

— Carlos!

Rastejei até junto dele.

— Que observou? — perguntei-lhe.

— Não muito; apenas os índios, tal como o senhor.

— E os ouviu?

— Nada, nem uma só palavra. E o senhor?

— Ouvi tudo. Mas, venha! Eles levantaram acampamento e vão seguir na direção do oeste; precisamos apressar-nos a fim de alcançarmos os nossos cavalos.

Prossegui de rasto acompanhado por Sam. Atingimos a linha e, saltando os trilhos, chegamos ao outro lado, onde estavam os nossos animais.

— Sam, monte e cavalgue meia milha ao longo da linha e lá espere por mim! É melhor eu não perder os indígenas de vista antes de me achar seguramente orientado.

— Mas não posso também eu me encarregar dessa tarefa de observar os índios? Até agora o senhor fez tão importantes espionagens que eu estou quase a me envergonhar de não haver ainda feito nada.

— Não é possível, Sam. Comecei eu esse serviço e é bom que também eu o conclua. Não faltará ocasião para o senhor trabalhar também, esteja certo disso!

— Dou-lhe razão. Seguirei para o local combinado!

Ele saiu a pé, rumo do oeste, ao longo da linha. Seria tarefa supérflua apagar os vestígios que seus pés largavam no solo. Quando Sam apenas havia desaparecido na escuridão, avistei os índios que cavalgavam, um a um, do outro lado da linha.

Segui-os de maneira a caminhar sempre paralelo a eles. Próximo ao local, onde se achava o martelo abandonado, os índios fizeram alto e subiram para a linha férrea. Dei volta e escondi-me num macegal; daí a pouco ouvi o ruído das marteladas sobre os trilhos. Os bandoleiros haviam dado início à obra nefanda de destruição da linha férrea.

Bem, agora chegara o momento de entrarmos verdadeiramente em ação. Abandonei o teatro da luta em perspectiva, e voltei. Dentro de cinco minutos alcancei Sam.

— Estão trabalhando nos trilhos? — perguntou-me o companheiro.

— Sim.

— Eu os ouvi. Pondo-se os ouvidos aqui sobre os trilhos, ouve-se toda a martelada que os bandidos desferem.

— Agora, avante, Sam! Dentro de três quartos de hora o trem chegará e eu preciso alcançá-lo antes que os selvagens avistem as luzes.

— Mas, ouça: não vou junto!

— Por quê?

— Se abandonarmos o lugar, perderemos depois muito tempo com novos reconhecimentos; assim, se me dirigir para perto dos nativos, estarei apto para lhe dar, na sua volta, informações seguras a respeito da marcha dos acontecimentos.

— Tem razão. E a sua “Tony”?

— Deixo-a aqui. Ela não sairá do lugar até a minha volta.

— Está bem! Estou certo de que o senhor não nos porá fora a partida!

— Eu não. Disso poder ter a certeza. Ande depressa. Encontrar-me-á, depois, aqui neste mesmo local.

 

PLANO DE COMBATE MAL CONCEBIDO

Montei e cavalguei tão depressa quanto a escuridão o permitia, em busca do trem. Era preciso alcançá-lo a uma distância tal que os índios não percebessem haver ele parado. As estrelas lançavam uma tênue claridade sobre a campina, de modo que se podia distinguir os objetos a uma distância de uns dez passos. Por isso consegui cavalgar ininterruptamente e com relativa rapidez até haver vencido três milhas.

Aí parei e maneei o cavalo a fim de evitar que, com o barulho do trem, ele se assustasse e saísse em disparada.

Juntei tanto capim seco quanto me foi possível e fiz uma tocha na qual despejei pólvora; depois sentei-me à beira do trilho, à espera do trem. De vez em quando punha os ouvidos nos trilhos a fim de escutar se já vinha perto.

Dez minutos depois, ouvia um rodar leve que aumentava de segundo em segundo. Avistei depois, muito ao longe, um ponto luminoso que parecia um estrela a tremeluzir no horizonte, mas que não podia ser estrela, pois que aumentava com rapidez. Era o trem que se aproximava.

Depois o ponto luminoso dividiu-se em dois. Estava em tempo. Acendi o monte de capim que fizera no solo e logo se ergueu uma enorme fogueira que foi, certamente, vista do trem. O ruído deste cada vez aumentava mais e eu já avistava o quebra-luz por cima da locomotiva. Dentro de um minuto o trem me alcançaria.

Acendi a tocha e levantei-a em forma de sinaleira por várias vezes. O maquinista reconheceu logo que se tratava de um sinal para parar, e por isso atendeu imediatamente: três apitos fizeram-se ouvir um atrás do outro, os freios foram arriados ruidosamente sobre as rodas e a locomotiva veio parar bem à minha frente. O maquinista baixou-se para mim e perguntou:

— Alô! Que pretende avisar com esse sinal? Quer embarcar?

— Não, sir! Pelo contrário, os senhores é que terão que desembarcar!

— Ora essa! É só o que faltava!

— Mas tenho a certeza de que desembarcarão, pois lá na frente há um bando de indígenas destruindo a linha.

— Que está dizendo? Um bando de índios? Está falando a verdade, homem?

— Não tenho motivos para proceder de outro modo!

— Que quer o senhor? — perguntou-me o chefe do trem que descera e viera ter comigo.

— Diz ele que há perigo vermelho na zona — respondeu o maquinista.

— Mas é verdade? Viu os indígenas?

— Sim, não só os vi como também os observei. São da tribo dos ogellallahs.

— Os mais ferozes que existem! De quantos se compõe o bando?

— De cerca de sessenta.

— Com os diabos! Neste ano já é o terceiro assalto de trem empreendido por esses canalhas; mas já os havemos de rechaçar. De há muito que eu estava à espera de uma oportunidade para tocá-los com a mão. . . A que distância estão daqui?

— Cerca de três milhas.

— Neste caso, cubra as luzes, maquinista! Esses bandoleiros têm vista aguçada. Ouça, o senhor fez jus à nossa eterna gratidão por nos haver prevenido do perigo! É um campineiro, conforme se vê pelo seu traje, não é assim?

— Cousa parecida. Tenho um companheiro comigo que está espreitando os vermelhos, enquanto os vim avisar.

— Foi boa a idéia. Mas faça espaço, pessoal! A cousa não é tão preta como parece à primeira vista; iremos, pelo contrário, passar por momentos de grande prazer!

A nossa conversa fora ouvida nos vagões e todos os passageiros desceram e se juntaram a nós, alvejando-nos com perguntas e mais perguntas! Mas àquela voz do chefe do trem restabeleceu-se a calma.

— Os senhores conduzem um carregamento de ouro e prata? — perguntei.

— Quem lhe disse?

— Observando os índios, ouvi-os dizer. Os nativos foram induzidos ao assalto por um desses malfeitores peles-brancas que cruzam as campinas praticando toda espécie de assalto e roubos. A este caberá, em partilha, todo o ouro e prata e aos índios as outras mercadorias que os senhores conduzem e também os escalpos do pessoal do trem e passageiros.

— Ah! Mas como veio o canalha a ter conhecimento desse transporte?!

— Parece que por intermédio de um funcionário ferroviário; em que circunstância este lhe revelou, não consegui saber.

— Já haveremos de descobrir tudo se o tal bandoleiro pele-branca nos cair vivo nas mãos, para o que faremos todos os esforços. Mas diga-me o seu nome e o de seu companheiro, para que a gente possa chamá-los por eles.

— Meu companheiro chama-se Sans-ear e eu...

— Sans-ear? Trata-se de um herói que vale por doze vermelhos! E o senhor?

— A mim tratam-me aqui nas campinas por “Mão de Ferro”

— “Mão de Ferro”, que há três meses lá na Montana, perseguido por mais de cem sioux desceu a Serra Nevada, sem deixar vestígios de sua passagem?

— Sim, sou eu mesmo.

— Sir, já ouvi falar muita cousa do senhor e sinto-me deveras feliz com este encontro! Mas, singular! O senhor já não salvou, há tempos, um trem que ia ser destruído pelos ponkas chefiados pelo cacique branco Parranoh?

— Exatamente. Acompanhava-me daquela feita o meu velho amigo Winnetou, o mais célebre indígena de todas as campinas bravias. Mas, sir, faça-me o favor! Tome, afinal, uma resolução! Não podemos perder tempo com mais explicações. Os índios sabem muito bem a que horas deve chegar o trem e podem suspeitar dalguma cousa se nos demorarmos muito por aqui!

— Sim, o senhor tem razão. Antes de tudo, eu desejaria saber que posição vão tomar os nativos. Quando se vai atacar um inimigo é preciso conhecer-se quais as disposições tomadas por ele.

— O senhor fala como um grande general, sir; infelizmente, porém, não lhe posso de momento dar outras informações a não ser as que já lhe prestei. Para preveni-los do perigo, eu não podia esperar até que os inimigos já estivessem com o “trabalho” feito e com posição tomada. Dessa missão encarregou-se o meu companheiro que, quando lá chegarmos, nos fornecerá maiores detalhes dos acontecimentos posteriores à minha vinda para aqui. Quando lhe pedi para tomar uma resolução, eu quis com isso me informar se estava ou não disposto a atacar os índios, fazendo com que o tiro lhes saísse pela culatra. Nada mais!

— Naturalmente que pretendo atacá-los e fazer gorar-lhes o plano macabro. Tenho obrigação de fazer esta gente perder de uma vez toda a sua criminosa cobiça pelos nossos carregamentos. O senhor e o seu camarada apenas não são suficientes para atacar os sessenta indígenas e nem se devem arriscar a...

— Cale! — redargüi-lhe. — Sabemos o que devemos e podemos arriscar melhor do que ninguém. Sans-ear ainda hoje de dia claro, abateu, sozinho, quatro peles-vermelhas que pretendiam agredi-lo; afianço-lhe mais que nós dois sozinhos mandaremos algumas dúzias de ogellallahs caçar nas “Eternas Campinas” sem que para isso necessitemos do auxílio do senhor e do seu pessoal! Aqui o que voga não é o número, mas outros elementos mais decisivos que se guardam no cérebro e no punho cerrado... Quando na escuridão da noite eu alvejar os índios com a minha espingarda de repetição sistema Henri, com a qual dou vinte e cinco tiros consecutivos sem carregá-la, os peles-vermelhas não sabem se lutam com dois ou com vinte inimigos. Ouça, pessoal, há entre os senhores alguém que conduza armas consigo?

Essa pergunta era, aliás, supérflua. Eu sabia muito bem que toda aquela gente usava armas. Mas o chefe de trem parecia alimentar o propósito de assumir o comando da “força” e isso eu não podia consentir de forma alguma. Para dirigir um ataque noturno a um bando de índios são necessárias mais qualidades de organização e execução do que era possível atribuir àquele funcionário, por mais valente e empreendedor que fosse. Como resposta ouvi um sim uníssono de todo o trem, ao que o chefe acrescentou:

— Trago como passageiros dezesseis trabalhadores de linha, armados de facas e espingardas; sabem manejá-las com admirável destreza; e mais vinte soldados que se dirigem para o forte Palwieh, armados de facas, espingardas e revólveres; além disso, alguns cavalheiros que viajam no trem não deixarão passar esta oportunidade para ministrar uma lição de mestre a esses bandoleiros das campinas. Vamos, pessoal, quem nos acompanhará?!

Todos, sem exceção, declararam-se prontos para tomar parte no ataque. Mesmo que entre eles houvesse algum que não estivesse disposto a isso, não manifestaria a sua recusa, a fim de não ser tomado por covarde. Gente desta marca, é claro, não nos seria de muita utilidade e, por isso, eu preferiria que ela ficasse no trem. Por isso declarei:

— Ouçam: os senhores são homens valentes e decididos, não há dúvida; mas nem todos poderão participar do combate; isto deverão reconhecer. Vejo aí algumas senhoras que aqui não poderemos deixar sem defesa. Mesmo que sejamos vencedores, sobre o que não tenho a menor dúvida, alguns índios desbaratados poderão fugir e, na fuga, passar por aqui e investir contra o trem abandonado; é preciso, pois, que deixemos aqui alguns cavalheiros denodados para a defesa do trem e das senhoras em qualquer eventualidade.

Realmente, oito homens se apresentaram prontos para “sacrificarem as suas preciosas vidas” defendendo o trem e as mulheres que nele viajavam. Eram os maridos de três das senhoras e mais cinco viajantes que me causavam a impressão de entenderem mais de preços de ferragens, louças, secos e molhados, fumos, etc, do que de manejo de armas, durante uma luta. Quanto aos primeiros eu não podia estranhar sua “bravura”. Tinham mais direito do que qualquer outro de estar ao lado das esposas, na ocasião de perigo. Quanto aos cinco outros...

Mas o trem não pode também ficar aqui sem funcionário. Quem o guarnecerá? — perguntei ao chefe.

— O maquinista e o foguista — foi a resposta. — Estes assumirão também o comando dos oito cavalheiros abnegados que aqui ficarão prontos para investirem contra os inimigos, se estes por aqui passarem. Eu, naturalmente, irei com o senhor e dirigirei o ataque.

— Está na sua vontade, sir! Com certeza já tem dirigido muitos combates semelhantes, não é assim?

— Não. Nunca tomei parte em combate algum. Mas isso não é preciso. Esses yambarikos (*) só sabem assaltar e dizimar os seus antagonistas, colhendo-os de emboscada. Num combate franco e em campo raso, porém, eles invariavelmente procuram salvação na fuga desordenada. A nossa tarefa será facílima!

— Não sou da mesma opinião, sir. Aqui se trata dos ogellallahs, os mais sanguinários indígenas da tribo dos sioux e são comandados pelos célebres caciques Ka-wo-mien e Ma-ti-ru.

— Creio que não quer dizer com isso que devo temê-los! Somos ao todo mais de quarenta homens, circunstância que sobremodo nos facilitará a vitória. Mandei encobrir as luzes para que os peles-vermelhas não notem que fui prevenido do assalto. Agora, porém, mudaremos de tática. Tiraremos a colcha que encobre os faróis, subiremos ao trem e o maquinista conduzirá a combinação a toda velocidade até o local em que eles destruíram a linha. Chegando lá, saltamos dos vagões e assaltaremos inopinadamente o inimigo, matando a todos sem que se escape um só deles, exceto o pele-branca que desejo aprisionar com vida. Depois recolocaremos os trilhos e prosseguiremos viagem. Tudo isso não nos causará um atraso maior no horário de que uma hora.

— Confesso que o senhor possui uma técnica admirável, mas de comandante de um regimento de cavalaria; nunca, porém, para dirigir um assalto a pé e nas circunstâncias do que temos em vista. Com o plano que acaba de expor, irá lançar os seus comandados numa morte certa e eu, francamente, serei obrigado a me abster de tomar parte na sua execução.

— Como? O senhor não pretende auxiliar-nos? Isto é covardia de sua parte ou se acha despeitado por não lhe ser confiada a direção do combate?

— Covardia? Se é verdade que o senhor tem ouvido contar muitas cousas de mim, constitui uma leviandade sua falar-me nestes termos, pois “Mão de Ferro” é muito homem para perder as estribeiras e com o seu punho provar-lhe que ele usa esse nome de guerra com honra e dignidade! E quanto ao despeito de que fala, declaro-lhe que não tenho dúvida em desinteressar-me pelo caso, sendo-me indiferente a quem daqui a pouco irão pertencer o trem e os escalpos de seu pessoal e dos seus passageiros. Quanto ao meu, saberei defendê-lo sozinho. Tenho certeza de que ninguém ousará tocar nele e ainda hei de usá-lo por muito tempo, se Deus quiser! Passem bem, senhores!

Virei-me para retirar-me. O chefe do trem pegou-me pelo braço.

— Pare! Isto também não é assim! Eu assumi o comando de todos, e o senhor terá que obedecer às minhas ordens. Não cometerei a tolice proposta pelo senhor de deixar o trem aqui a esta distância, pois sou responsável por tudo que nele conduzo. O meu plano fica de pé: o senhor nos guiará até o ponto onde estão os ogellallahs e só depois de lá chegarmos é que o trem partirá daqui. Um comandante de tropa precisa ter em vista todas as eventualidades de uma luta e os vagões poderão servir de esconderijo de onde resistiremos a luta, até que um trem vindo do leste ou do oeste nos traga reforço. Não estão de acordo com esse plano, pessoal?

Todos os passageiros concordaram com o chefe. Entre eles não havia um único homem do oeste, por isso acharam o seu plano excelente sob o ponto de vista prático.

____________

(*) Nome depreciativo que os brancos dão aos vermelhos.

 

 O chefe do trem ficou radiante com a solidariedade dos seus passageiros e ordenou-me arrogante:

— Portanto, embarque, senhor!

— Bem. O senhor ordena e eu obedeço!

Como um relâmpago pulei no lombo do meu poldro, que eu soltara durante a discussão.

— Oh! Não. Ordenei que embarcasse... mas no trem!

— Mas eu prefiro embarcar no meu poldro, onde me sinto mais em segurança... Também neste ponto as nossas opiniões divergem.

— O senhor não pode ter opiniões. Ordeno que apeie imediatamente!

Toquei o cavalo para perto dele, baixei-me e retruquei:

— O senhor parece que nunca tratou com um verdadeiro explorador do oeste, pois do contrário não me falaria nesse tom. Pois agora é o senhor mesmo que embarcará na locomotiva!

A essas palavras, agarrei-o pelo peito e puxei-o para cima. Fiz pressão no lombo do cavalo que se encostou à locomotiva; no mesmo instante o estrategista ferroviário voou como se fora um saco de pena para dentro da máquina e eu saí a galope.

A noite tornara-se tão clara que até o menor arbusto eu divisava ao longe, de modo que pude cavalgar com toda rapidez e dentro de um quarto de hora estava com Sam.

— E então? — perguntou-me, quando apeei. — Pensei que o senhor voltasse acompanhado de gente.

 

INCÊNDIO NA CAMPINA E O ESTOURO DA CAVALHADA

Narrei-lhe o ocorrido e ele disse:

— Fez bem, fez muito bem! Um ferroviário de meia-cara como aquele, julga-se mais do que nós, porque não nos penteamos três vezes por dia e nem usamos perfumes. Naturalmente, eles agora tentarão executar o famoso plano. Mas vão ter muitas surpresas, hihihihi!

Ao soltar essa risada ele fez a mensão de quem estivesse a tirar o escalpo a alguém. Depois continuou:

— Mas o senhor ainda nem me contou dos índios e do que observou na sua ida.

— Ah! Ka-wo-mien e Ma-ti-ru são os caciques dirigentes dos nativos.

— Oh! Mas então vai correr muito sangue.

— Junto com o bando anda um pele-branca que os avisou de que o trem trazia um carregamento de ouro e prata.

— Com toda certeza estes metais lhe pertencerão depois; o resto, inclusive os escalpos, aos índios.

— É isto mesmo o que combinaram.

— Era de prever, pois os indígenas não se importam com ouro e prata. Mas esse branco deve ser um desses malfeitores que perambulam pelas savanas praticando toda sorte de crimes!

— Sim. Conheço-o até. De uma feita assaltou com seu bando o acampamento de “Mão de Fogo”, mas foi forçado a abandonar a luta e desistir da “colheita”.

— Como se chama?

— Não sei; também nem nos deve interessar, pois esta laia de gente anda todo o dia a mudar de nome. Fez o senhor algum reconhecimento?

— Sim. Eles se dividiram e colocaram-se em ambos os lados da linha, no espaço compreendido entre a linha destruída e o local onde deixaram a cavalhada. Mas agora que faremos? Auxiliaremos os ferroviários ou vamos embora?

— É nosso dever sairmos em seu socorro, Sam. Ou, quem sabe, é de outra opinião?

— Absolutamente não! O senhor diz bem. É nosso dever ajudar aquela gente, não obstante a idiotice do chefe do trem. Além disso, não esqueça que os índios me devem as duas orelhas que me cortaram e essa dívida ainda não está toda saldada. Aposto minha “Tony” contra qualquer sapo vagabundo, que ao romper do dia o senhor encontrará muitos índios estirados ao longo da linha com as orelhas cortadas! Mas como começaremos?

— Dividimo-nos também e iremos postar-nos em ambos os lados da estrada de ferro entre os índios e a sua cavalhada.

— Bem! Mas me lembrei duma cousa. Que acha o senhor de um “estouro” da cavalhada?

— Hum! O melhor seria estarmos com o nosso plano bem estudado, a fim de evitar o extermínio completo dos índios. Mas, no caso presente, eu desaconselharia o “estouro”. Os ferroviários é que assaltarão os índios e a nós nada mais resta do que esperar o outro trem para preveni-lo também, ou dar um tal susto aos nativos que eles fujam espavoridos. Em ambos os casos os indígenas, no fim, se retirariam daqui. Mas se lhes soltarmos a cavalhada para que ela “estoure” em todas as direções da campina, teremos o inimigo sempre nas imediações. Nunca ouviu falar, Sam, que há ocasiões em que precisamos construir pontes de ouro para o inimigo atravessar?

— Não entendo essa linguagem! São palavras de domingos e dias santos que um campineiro desconhece. Eu até agora só conheci pontes de ferro, pedra e madeira. Mas... compreendi muito bem e concordo com o seu ponto de vista; mas quando me lembro da cara que iriam fazer os vermelhos no momento em que pretendessem montar a cavalhada e esta já andasse longe... Além disso, não lhes causaria pânico se fizéssemos a cavalhada “estourar” exatamente contra eles e atravessar pelo meio do bando em doida disparada?

— Sim, neste caso, sim; contudo aguardemos primeiro o desenrolar dos acontecimentos.

— Está certo. Mas num ponto terá que concordar comigo em qualquer dos casos!

— Em qual?

— Que eu elimine os dois guardas da cavalhada, mandando-os caçar tranqüilamente nas “Eternas Campinas”.

— Sou contra todo derrame inútil de sangue, mas aqui estou de acordo com o senhor. A morte dos dois guardas é necessária, pois, deste modo poderemos facilmente tomar conta da cavalhada. Vamos primeiro pôr os nossos animais em lugar seguro e, depois, avante!

Cavalgamos um trecho da campina e nos embrenhamos num macegal, onde amarramos bem os nossos cavalos, pois no caso de um estouro a cavalhada poderia passar por aqui e levar também os nossos juntos.

Então, descrevendo uma curva, voltamos para a retaguarda dos indígenas. Os faróis da locomotiva ainda não davam sinal de si. Ou o plano do condutor do trem encontrara opositores ou ainda não se haviam decidido a empreender o ataque sem a minha indicação.

Dirigimo-nos aos cavalos dos nativos, onde os dois guardas patrulhavam também as imediações. Um deles aproximava-se lentamente da moita por trás da qual nos achávamos. Quando passou por nós, a lâmina da faca de Sam cravou-lhe no coração e ele caiu morto sem proferir um ai. O outro teve a mesma sorte quando, depois, por ali passou. Quem não conhece as campinas não pode nem formar uma idéia da exasperação com que as duas raças se degladiam e de como os representantes dessas raças são sedentos pelo sangue do adversário.

Com o movimento que fiz a fim de não ver tombar a segunda vítima, os meus olhos deram com um cavalo que se achava ali perto. Estava ensilhado com serigote espanhol de estribos em forma de sapato, conforme se usa na América Central e do Sul. As demais peças de arreiamentos não eram também sistema indígena. Seria o animal de montaria do pele-branca, que induzira os índios ao assalto do trem? Aproximei-me. No serigote havia duas maletas estreitas, cujo conteúdo examinei. As mesmas continham alguns papéis e duas bolsas; eu não podia agora examinar o que havia dentro destas últimas. Apossei-me de tudo e guardei no bolso.

— E agora? — perguntou Sam.

— Dividimo-nos. Eu sigo para a direita e o senhor para a esquerda. Mas... pare! Olhe para a frente!

— O trem, é o trem, que se aproxima! Fiquemos agora aqui, para ver o que acontecerá.

Não havia dúvida que o plano do chefe do trem fora aceito integralmente. A locomotiva se aproximava lentamente, pois tinha necessidade de verificar o local onde a linha fora arrancada. Os dois faróis estavam acesos. O trem cada vez se aproximava mais até que parou justamente onde a linha havia sido destruída.

Como não deviam os vermelhos estar furiosos por verem a principal parte do seu plano burlada! Com certeza, concluíram que os ferroviários haviam sido prevenidos. Quanto a estes, o mais acertado seria se eles se conservassem calmamente no interior dos vagões. A princípio, pensei que iriam proceder deste modo, mas logo vi que me enganara, pois as portas foram abertas e os passageiros saltaram dos vagões prontos para o assalto. Dentre em breve reconheceriam o erro desse plano. Jogando-se uns de encontro aos outros, chegaram para frente dos faróis; melhor alvo os selvagens não poderiam desejar. Ouviu-se uma descarga, depois outra e o brado de guerra dos selvagens ecoou pela amplidão da campina.

Com as armas deflagradas os nativos se aproximaram do local, mas apenas encontraram os mortos e os feridos, pois os demais recuaram num instante a fim de alcançar o interior dos vagões. Alguns índios curvaram-se diante dos cadáveres a fim de lhes tirar o almejado escalpo, mas foram obrigados a desistir da idéia, pois foram alvejados do vagão.

A única salvação seria tocar para trás a locomotiva a todo vapor. Não tomaram, porém, essa medida. Talvez o maquinista e o foguista se tivessem refugiado com os companheiros dentro dos vagões.

— Agora vai haver um verdadeiro sítio — disse Sam.

— Creio que não. Os vermelhos sabem que só dispõem de tempo até a chegada do próximo trem. É provável que tentem assaltar o vagão.

— E nós? É difícil chegarmos a uma resolução.

— Uma resolução só será boa se a tomarmos no momento e a executarmos instantaneamente. Iremos até o local onde guardamos os nossos animais e depois cavalgaremos um trecho da campina a que atearemos fogo. Antes, porém, soltamos a cavalhada para que ela “estoure” a fim de evitar que o inimigo efetue o ataque iminente, e desse modo ficarão desprovidos de meios de fuga. Para a presente situação não há solução melhor.

— Com mil raios! Mas deste modo incendiaremos também os vagões.

— Absolutamente não! Isto é, não sei se o trem conduz inflamáveis e explosivos, mas o madeiramento dos vagões é bastante espesso para resistir ao fogo produzido por capim seco. Os índios, na iminência de serem atingidos pelas chamas, empreenderão a fuga ou combaterão o fogo com fogo.

— Mas já pensou no tempo que iremos gastar em acender fogo com auxílio de punks? Não podemos utilizar tochas, pois com elas denunciaríamos nossa presença ao inimigo.

— O campineiro está sempre preparado para tudo. Guardo e conservo para ocasião dessas uma boa quantidade de fósforos. Tome alguns!

— Bravos! Agora, primeiro o “estouro” da cavalhada e, depois, corramos em direção dos nossos cavalos.

— Pare, Sam. Notei agora que ia agindo com imperdoável imbecilidade! Nós nem precisamos dos nossos animais quando os índios possuem uma quantidade mais do que suficiente para o nosso uso. Eu vou lançar mão deste zaino.

— E eu deste alazão. Agora, cortemos os laços que prendem os demais, e o “estouro” se dará com a grandiosidade do seu espetáculo.

Corremos de cavalo em cavalo e os soltamos; em seguida, pusemos fogo nuns macegais secos que havia perto deles como também na grama, e saímos a galope. As chamas haviam atingido por enquanto a altura de umas duas polegadas, não podendo por isso serem vistas ainda pelos índios; podíamos, pois, completar a obra sem sermos vistos pelos nativos,

— Onde nos encontraremos depois? — perguntou Sam.

— Lá do outro lado da linha, no local não atingido pelo fogo; lá os índios não poderão ter chegado tão depressa, pois vão a pé.

— Está bem! Portanto, go on, alazão velho!

Com as rédeas soltas, a cavalhada dos índios se achava um tanto agitada; não tardou muito que os animais, ao sentir o cheiro do fogo, bufassem repetidamente. Muitos já alçavam a cola. O “estouro” estava para se dar a cada instante. Eu cavalguei pela direita da campina e Sam pela esquerda. Descrevi na savana uma curva com um raio de cerca de uma milha, apeando cinco vezes durante o trajeto, para atear fogo no capim. Encontrava-me à beira da linha quando me lembrei que não havíamos pensado num detalhe que possivelmente nos iria trazer algum transtorno: tínhamos esquecido os nossos cavalos.

Imediatamente dei de rédeas e galopei na direção do local onde os amarráramos. O círculo de fogo que envolvia a campina já iluminava todos os obstáculos em torno de nós. Ouvia-se, lá ao longe, o barulhão de cascos produzidos pelo “estouro” da cavalhada; nas proximidades ouvia-se um berreiro ensurdecedor de pavor, como só as gargantas selvagens sabem produzir. Debaixo dos vagões ardiam brandas chamas. Conforme eu previra, e dissera a Sam, os índios procuravam salvar-se com um contra-incêndio. À esquerda, lá em cima, achava-se o meu poldro ao lado da “Tony”; e mais além... sim, mais além vinha Sam galopando como flecha. Ele também no último momento dera pelo lamentável esquecimento.

Mas também as nossas montarias haviam sido notadas pelos indígenas; um grande número de vermelhos dirigia-se para elas, achando-se já dois deles a alguns passos do meu poldro e da “Tony”. Apertei mais a bandoleira da espingarda e, erguendo-me no serigote, saquei da machadinha de guerra. Com saltos de tigre, o animal que montava aproxima-se do local, chegando eu ao mesmo tempo que os dois nativos. Ao primeiro relance, conheci-os: eram os dois caciques.

— Para trás, Ma-ri-tu! Os cavalos são meus! O cacique virou-se e me reconheceu.

Sacou da faca e dum salto se achou ao lado do meu poldro. Ia apunhalá-lo; mas, nesse instante, foi atingido pela minha machadinha que o fez tombar ao solo. O outro saltou no serigote, mas não notou que meu cavalo estava amarrado.

— Ka-wo-mien, tu há pouco falavas de mim como traidor pele-branca! Agora vou eu, em pessoa, falar contigo!

Ele viu que, montado no cavalo amarrado, estava perdido; apeou-se ligeiro e ia desaparecer por trás dumas moitas, quando um golpe da minha machadinha o atingiu na cabeça na altura onde se achava espetada a pena de águia, caindo ele ao solo. Apeei depressa e apontei a espingarda de repetição para os demais peles-vermelhas. Três tiros fizeram tombar sem vida três nativos. Nesse meio tempo, o incêndio tomara proporções tais e já se aproximara de tal modo, que não restava mais tempo para continuarmos na luta. Cortei o laço que prendia meu poldro, montei-o e saí a galope. O zaino que eu montara antes já havia desaparecido.

— Carlos, vamos para aquela clareira do bosque!

Ao mesmo tempo que dizia essas palavras, Sam cortava as rédeas da “Tony” e tocava para o rumo citado. Quanto ao alazão, meu companheiro o saltara na campina, donde o animal conseguira fugir do fogo.

Atravessamos com felicidade a campina, sem sermos atingidos pelo fogo. e chegamos à clareira. O local onde então nos achávamos era o mesmo em que eu ateara o terceiro fogo. O solo estava carbonizado, mas já havia refrescado. À nossa frente havia uma vasta linha escura: era o caminho por onde eu viera há pouco. Nos flancos, porém, havia uma verdadeira onda de fogo que tornava o ar quase irrespirável.

Daí a pouco, porém, começou a melhorar de minuto em minuto e refrescava à proporção que o fogo se ia afastando de nós. Um quarto de hora após, apenas o horizonte se apresentava envolto em chamas. Ao nosso redor estava tudo tão escuro que não se podia ver a três passos, pois havia densas nuvens de fumaça.

Tive a impressão de estar sendo cozido numa das caldeiras do inferno — disse Sam. — É de admirar se o trem não sofreu danos.

— Creio que não. Os vagões já são construídos para resistir ao fogo, pois não raro o trem é obrigado a atravessar as chamas num incêndio das savanas.

— E, agora, que faremos? Os inimigos já nos viram e hão de sair ao nosso encalço.

— Ainda nos devem estar vendo, pois nos achamos entre eles e o horizonte rubro de fogo. Precisamos simular que nos vamos embora. Talvez suponham que fazemos parte dalgum grupo de caçadores contratados e que agora nos apressamos em juntar-nos a eles, a fim de buscar reforço. Tomaremos o rumo norte e depois, descrevendo uma curva, voltaremos para cá.

— Sou do mesmo parecer e acho que tudo isso ainda vai acabar, e alguns peles-vermelhas perderão suas orelhas. A sua machadinha agiu há pouco com perícia, hein?! Nunca pensei que fosse tão hábil no lançamento dessa arma.

— E não obstante, os alvejados não morreram! — respondi sem entusiasmo.

— Não morreram? Mas como?

— Não os alvejei com o intuito de matá-los. Quis apenas fazer-lhes perder os sentidos.

— Apenas fazer-lhes perder os sentidos? Pois foi uma asneira, fique sabendo! Eles estão sedentos do seu sangue. Poupou-lhes a vida e amanhã ou depois cairá nas mãos deles, que não o pouparão! Tome nota do que lhe estou dizendo!

— Tive razões para proceder assim; o senhor as conhece muito bem.

— Não sei de cousa alguma! Não vejo razão para o senhor praticar uma tolice dessas. Calculo que se tratava dos dois caciques e exatamente estes não deveriam ser poupados.

— Outrora fui prisioneiro deles. Poderiam ter-me morto; não o fizeram, porém. E pretende o senhor que eu fosse agora pagar-lhes a generosidade com ingratidão?! Lancei-lhes as machadinhas apenas com a metade da força, para que eles ficassem somente sem sentidos.

— Não me leve a mal, mas, repito, foi uma grande imbecilidade de sua parte! Como se esses vermelhos conhecessem gratidão! Estão lá agora a rir-se do senhor, dizendo que não tem força suficiente para arrebentar o crânio de um pele-vermelha. Tenho, todavia, uma esperança: talvez o fogo tenha completado a sua obra!

 

NA PISTA DE UM BANDIDO

Enquanto assim falávamos, galopávamos campina afora. A “Tony” mantinha o mesmo galope do poldro. Haviam passado apenas alguns minutos, quando, já descrita a curva, chegávamos novamente à linha férrea. Apeamos, amarramos os animais e rastejamos até o local do assalto.

A atmosfera estava saturada de cheiro de capim queimado e a vasta campina coberta de cinzas. Víamos distintamente os dois faróis da locomotiva. Mas em nenhum dos lados da linha se avistava um vulto sequer de selvagem. Aproximamo-nos e aguçamos mais a vista. O que eu previra antes, sucedera. Para fugir à ação do fogo, os vermelhos se refugiaram debaixo dos vagões. Lá estavam eles deitados uns ao lado dos outros e não se animavam a sair com receio de serem atingidos pelas balas do pessoal do trem.

Ocorreu-me então uma idéia. A sua execução era difícil, mas o efeito seria extraordinário.

— Sam, volte para os cavalos, a fim de que os vermelhos não se apoderem deles!

— Eles dão graças a Deus por estar em lugar “enxuto”!

— Pois eu vou enxotá-los dali!

— Com a espingarda?

— Não.

Esclareci-lhe meu plano e ele meneou a cabeça em sinal de aprovação.

— Well! Excelente idéia. Mas suba depressa para não ser surpreendido por eles. Na hora decisiva, aqui estarei com os cavalos, hihihihi! Depois passaremos por cima deles como búfalos sobre coiotes.

Sam rastejou para trás e eu para frente, sempre de faca entre os dentes para me defender, na eventualidade dum ataque. Alcancei, sem ser pressentido, o ponto da linha férrea onde se achava a locomotiva. Não pude ver se também debaixo desta estavam os nativos escondidos. Ergui-me lentamente e em dois pulos subi ao “cavalo de fogo”.

Um brado estridente se fez ouvir por baixo de mim. Pus a mão na chave e toquei a locomotiva para trás. Ouvi, então, muitos gritos, alguns de dor e outros de susto, que partiam de sob os vagões. Quando havia tocado a máquina uns trinta passos para trás, manobrei-a novamente para diante até o local donde saíra.

— Cão! — ouvi então alguém dizer ao lado. Olhei e vi um vulto que, armado de faca, procurava galgar a locomotiva.

Era um pele-branca. Desferi-lhe um violento ponta-pé que o fez cair ao solo.

— Aqui! — ouvi alguém exclamar. — Depressa, depressa!

À minha esquerda estava Sans-ear montado em sua “Tony” e trazendo o meu poldro pelas rédeas, ao passo que com a outra mão se defendia de dois selvagens que investiam contra ele; à minha frente vi alguns indígenas, que não haviam sido atingidos pelas rodas do trem, correndo para o local onde se achava a cavalhada. Os imbecis julgavam que, apesar do terrível incêndio, os animais ainda lá permaneciam.

Parei imediatamente a máquina, pulei para baixo e corri em direção do grupo. Os dois índios que lutavam com Sam, à voz deste, tiveram a sua atenção voltada para mim e fugiram a toda velocidade. Dois minutos depois eu alcançava o grupo de selvagens. A minha tarefa não era tão difícil, como à primeira vista possa parecer. Os índios estavam muito agitados pelo susto e quando viram que a cavalhada havia desaparecido, desandaram a fugir desordenadamente em todas as direções.

Nessa altura ouvi Sam dizer em altos brados:

— Chegou o dia do nosso ajuste de contas! Com os diabos! Aí está Fred Morgan! Para o inferno, contigo, Satanás! Afinal, olhei para a zona de onde partia o brado e vi, à luz do fogo que ainda ardia no horizonte, que o meu companheiro desferira um violento golpe contra o seu antagonista que, não tendo sido por ele atingido, desapareceu no burburinho dos fugitivos.

Sam esporeou a sua égua que saltava à maneira de um tigre para alcançar o inimigo. Não pude ver mais nada, pois um grupo de vermelhos, que de mim se acercou, deu-me bastante trabalho! Afinal, os índios não tiveram mais que fazer senão fugir.

Não os persegui. Já fora derramado bastante sangue e eu estava seguro que os índios, depois da lição que levaram, não se animariam a voltar. A fim de significar a Sam que ele deveria desistir da perseguição, imitei estridentemente o uivo do coiote e voltei para o trem.

O pessoal havia descido dos vagões e, enquanto o maquinista examinava a locomotiva, tratava dos mortos e feridos. O condutor entre eles blasfemava. Quando me avistou, berrou-me com fúria:

— Que lhe deu na cabeça de lançar mão da locomotiva e enxotar os vermelhos, quando nos seria fácil exterminá-los até o último?!

— Cale-se! Esteja satisfeito com a retirada deles, pois em vez dos senhores matá-los, eles é que os matariam.

— Quem ateou fogo na campina?

— Fui eu.

— Está louco? Também a mim teve a audácia de agredir. Sabe que tenho poderes para prendê-lo e entregá-lo à justiça?

— Não, não sabia, mas com prazer lhe dou licença para agarrar “Mão de Ferro”, prendê-lo no vagão e entregá-lo à justiça. Estou curioso por saber como o senhor conseguiria começar esta manobra!

Sentiu-se até certo ponto desconcertado.

— Não tive a menor intenção de tratar com aspereza — respondeu com inflexão de bondade na voz. — O senhor cometeu uma grande imprudência, é verdade, mas estou pronto para perdoá-lo.

— Obrigadíssimo, sir! Fico profundamente comovido, sempre que vejo os poderosos da terra inclinarem-se na prática de atos de generosidade como este... Que pretende fazer agora?

— Que mais poderei fazer do que restabelecer a linha e continuar a viagem interrompida? Ou, quem sabe, nos pretende prevenir da iminência de um segundo assalto?!

— Creio que não, sir. O seu plano foi tão bem ideado e tão excelentemente executado, que o inimigo nem sonha mais em aparecer aqui!

— Pretende mofar de mim, sir? Proibo-o terminantemente! O meu plano foi de fato excelente, mas que culpa tenho se eles eram tão numerosos e estavam tão bem preparados para nos receber?

— Como não, se o preveni de tudo?! Agora o senhor viu! Os ogellallahs sabem manejar as armas. Senão veja. Dos dezesseis trabalhadores da linha e dos vinte milicianos, nove caíram no campo da luta. Não sou o responsável por essas mortes. E se o senhor levar em conta que eu e meu companheiro sozinhos fizemos com que todos os índios fugissem, chegará à conclusão de quão outro teria sido o resultado se tivesse ouvido as minhas sugestões em vez de seguir a voz de sua vaidade!

Ele parecia ter muita vontade de me rebater; mas os outros se aproximaram e me deram toda a razão. Chegando-se a mim, perguntou-me à meia voz:

— Os senhores ainda ficam aqui até estarmos prontos para partir?

— É claro! Um homem do oeste nunca faz o serviço pela metade! Agora, ponham mãos à obra; acendam algumas fogueiras para alumiar a linha. Galhos secos ainda há suficientes por aí, poupados pelas chamas. Destaque também algumas sentinelas para nos prevenirem, no caso, pouco provável, aliás, de voltarem os vermelhos.

— Quem sabe se o senhor nos fará o favor de se encarregar desse serviço, sir? Ficar-lhe-íamos muito gratos.

— Que serviço?

— O de vigilância, pelas proximidades do trem.

— Era só o que faltava. Já trabalhei para os senhores! Arrisquei a minha vida, ao passo que os senhores se aboletaram, durante o perigo, em lugar bem seguro. Organize lá o seu serviço de vigilância que, a julgar pela sua estratégia, deve ser impecável...

— Mas não temos os sentidos da vista e da audição tão finos como o senhor.

— Apurem esses órgãos, que verão e ouvirão tão bem como eu! A prova disso já lhes vou dar. Silêncio! Apliquem o ouvido lá para a direita! Não percebem nada?

— Sim. O trotar dum cavalo. Com certeza é um selvagem que volta!

— Então julgam que um índio faria tal ruído antes de os assaltar? É o meu companheiro e eu os aconselho a fazer-lhe uma recepção cortês. Trata-se de Sans-ear, com quem não se brinca.

Era de fato Sam que chegava, aliás, com a atitude de quem queria estrangular o mundo inteiro.

— Ouviu o meu sinal? — perguntei-lhe.

Meneou apenas com a cabeça, em sinal de afirmação, e se dirigiu ao chefe do trem:

— É o senhor o homem que concebe tão esplêndidos planos de guerra?

— Sim, sou eu! — respondeu o homem com a maior ingenuidade deste mundo. Tive que fazer um grande esforço para conter uma gargalhada.

— Meus parabéns! Minha “Tony” tem mais inteligência do que o senhor! Sim, se continuar nessa marcha, virá a ser ainda um grande homem! Acautele-se, pois um dia ainda são capazes de elegê-lo presidente da república! Bem, “Tony”, fica aí que eu já volto!

O pobre ferroviário ficou desconcertado com a ironia de Sam e não sabia o que dizer. Mesmo que tivesse encontrado palavras, não lhe seria possível proferi-las, pois Sam havia desaparecido na escuridão da noite. Por que teria voltado Sam tão mal-humorado? Não seria devido ao encontro com Fred Morgan? Este, talvez, não era senão o mesmo bandoleiro pele-branca que eu havia derrubado da locomotiva. Daí a minutos o meu companheiro voltava. Eu me sentara na relva escassa que ali havia e apreciava os homens a trabalhar na reparação da linha destruída. Sam sentou-se a meu lado. Ainda não estava calmo. Pelo contrário, parecia ainda mais. enfurecido.

— Que há, afinal? — perguntei-lhe.

— Que há? — trovejou-me.

— Eles morreram?

— Se eles morreram?! Isto até é ridículo! Como podem dois caciques morrer se o senhor apenas coçou-lhes a cabeça com a machadinha, num local onde nem uma mosca os incomodava! Lembra-se do que eu disse há pouco ao chefe do trem?

— O quê?

— Que minha “Tony” tinha mais miolos na cabeça do que ele.

— E que mais?

— O resto é com o senhor. Tire lá as conclusões que bem lhe aprouver! A “Tony”, por exemplo, não faria o serviço pela metade. Mataria os caciques em vez de só deixá-los sem sentidos. Agora eles se foram batendo o pó dos sapatos!

— Oh! Quanto folgo com isso!

— Folga com isso?! Mas isso é uma tolice sem nome. Deixar que dois canalhas daqueles se escapem, quando os seus escalpos já estavam, por assim dizer, em nossas mãos.

— Já lhe expus as razões que me levaram a proceder assim, Sam; portanto deixe de tocar na mesma tecla. Diga-me antes que foi que o deixou tão mal-humorado?

— Ah, sim! Tinha-me esquecido disso. Sabe quem era aquele patife que há pouco conseguiu fugir-me?

— Sei, era Fred Morgan.

— Quem lhe disse?

— O senhor, ao reconhecê-lo, pronunciou o seu nome bastante alto para ser ouvido por mim.

— Ah, é?! Não me lembro disso. Adivinha quem é aquele sujeito!? A essa pergunta, e dada a agitação nervosa do velho, ocorreu-me uma lembrança.

— Não será porventura o assassino de sua esposa e de seu filho?

— Naturalmente! Quem havia de ser mais?

Ergui-me de um salto.

— Mas isto é demais! O senhor o pilhou?

— Fugiu, espavorido, o bandido! O canalha deitou a correr por vales e montanhas! Oh! Estou com tanta raiva que seria capaz de arrancar minhas orelhas se ainda as tivesse!

— Mas vi que o senhor o perseguiu a cavalo, abrindo brecha no meio da indiada fugitiva!

— Não adiantou nada. Perdi-o logo de vista, no meio da escuridão. Talvez ele se tenha atirado ao chão, de modo que passei por ele sem que o tivesse visto. Mas aquele cão ainda me cairá nas mãos. As pedras rolando se encontram, quanto mais os homens! A cavalhada se extraviou completamente; seguiremos os rastos e assim poderemos dentro em breve deitar-lhe a mão.

— Será tarefa dificílima, se bem que o rasto de um branco distingue-se perfeitamente do de um pele-vermelha. Mas quem nos garante que ele não tenha tido a inteligência de imitar o andar do indígena? Além disso, nem todos os terrenos podem recolher impressões de pés humanos.

— Tem razão. Mas que hei de fazer então?

Meti a mão na maleta e dela tirei as duas bolsas e os papéis que a mesma continha. Essa maleta, como os leitores devem estar lembrados, tirei-a do cavalo do pele-branca, na ocasião em que fomos soltar a cavalhada.

— Talvez encontremos aqui um ponto de partida para o propósito que visamos!

Abri as bolsas. Bem próximo de nós ardia uma fogueira que alumiava a linha em conserto; a sua claridade iluminava bem os objetos que tinha na mão, de modo a distingui-los perfeitamente.

— Pedras preciosas e das legítimas e um enorme diamante de alto quilate! Sam, eu tenho na mão uma grande fortuna! — exclamei tomado de surpresa. — Mas onde esse salteador conseguiu essas pedras e para que as conduzia consigo nas campinas? Com certeza não as adquiriu por meios lícitos, e a mim compete agora procurar o legítimo dono e devolver-lhe a fortuna.

— Diamante? Mostre-me! Em toda a minha vida não tive ainda a sorte de segurar nas mãos uma só pedrinha de tamanho valor.

Passei o diamante a Sam.

— É um diamante brasileiro! Contemple-o! — disse-lhe eu.

— Mas como os homens são criaturas singulares! Não é mais do que uma pedra, nem sequer possui um pouco de brilho. Não acha?

— Sim, no fundo não passa de um pedaço de carvão!

— Carvão, coque ou seja lá o que for; o caso é que eu não daria nem a minha velha espingarda por este troço! Que pretende fazer desse diamante?

— Devolvê-lo ao legítimo dono.

— Quem é ele?

— Não sei; mas já haveremos de saber, pois um tão formidável prejuízo ninguém suporta em silêncio: todos os jornais irão anunciar o desaparecimento dessa preciosa pedra.

— Hihihihi! Já amanhã vamos tomar assinaturas dos jornais? — perguntou o homem com inflexão irônica na voz.

— Talvez não seja necessário; é possível que encontremos nesses papéis a chave do enigma.

Examinando-os, encontrei dois mapas dos Estados Unidos e uma carta cujo envelope faltava. A missiva rezava:

 

“Galveston,...

Meu prezado pai:

Preciso de ti com urgência; vem imediatamente, quer te tenhas saído bem da aventura do diamante quer não. De qualquer modo, vamo-nos tornar homens ricos. Em meados de agosto, encontrar-me-ás em Sierra Rianca, no ponto em que o rio Pecos passa por entre os montes Shetel e Head-Pick. O resto verbalmente. Não deixes de vir!

Do teu — Patrik”.

 

A data desta carta não se podia ler, pois o papel estava rasgado logo depois da palavra “Galveston”; eis por que eu não me podia certificar de quando fora escrita. Li-a para Sam.

— Céus! — exclamou este, depois que terminei a leitura. Combina tudo, pois o filho daquele grandiosíssimo canalha chama-se Patrik e também é canalha como o pai. São exatamente esses dois que ainda estão me faltando para completar os dez entalhes de peles-brancas em minha espingarda. Mas diga-me: como se chamam os dois montes citados?

— Shetel e Head-Pick.

— Conhece-os?

— Um pouco.

— Conhece também o rio Pecos?

— Muito bem até.

— Então o senhor é o homem de que preciso. O nosso roteiro terminaria nos Texas e no México; não nos faria diferença, se déssemos mais alguns passos para a frente. Demais, eu ia seguir para aquelas regiões, por julgar que aqueles dois “bons amigos” lá se achavam. Mas como agora eles tiveram a gentileza de nos escrever informando onde podemos encontrá-los, precisando até a data, eu seria indelicado se continuasse a seguir o mesmo roteiro. Acompanhar-me-á se amanhã cedo não encontrarmos a pista daquele Fred Morgan?

— Naturalmente! Preciso apanhá-lo, pois dele é que poderei saber com exatidão quem é o dono desse diamante raríssimo.

— Então guarde novamente essa pedra e vamos ver o que estão fazendo esses famosos ferroviários!

O chefe do trem, seguindo o meu conselho, estabelecera um serviço de vigilância ao redor da linha em reparo. Os funcionários do trem auxiliavam os trabalhadores da linha nos serviços de recolocação dos trilhos; os passageiros, uns assistiam aos trabalhos e outros cuidavam dos mortos e feridos. Outros ainda entreolhavam-se enquanto estivemos a palestrar, mas não se animaram a vir interromper-nos. Só depois que calamos, vieram ao nosso encontro a fim de nos agradecer por lhes termos salvo a vida, fazendo com que os índios fugissem. Foram mais corretos do que o chefe do trem: perguntaram-nos se permitíamos que nos demonstrassem o seu reconhecimento com um presente. Pedi-lhes que me vendessem pólvora, chumbo, fumo, pão e fósforos, desde que trouxessem consigo provisões desses artigos. A essas palavras todos correram às suas malas e daí a pouco voltavam trazendo o que pedimos em grande quantidade. Deste modo estávamos supridos para muitos dias de viagem. Recusaram o pagamento que lhes queríamos fazer, não obstante a nossa insistência.

Assim se passou o curto espaço de tempo necessário para o conserto da linha. A ferramenta foi novamente recolhida à locomotiva e o chefe do trem aproximou-se de nós dizendo:

— Querem embarcar, senhores? Leva-los-ei, com prazer, até onde quiserem.

— Obrigado. Em vista do nosso roteiro, de nada nos adiantará. Não ficaremos no país!

— A quem pertencem os troféus da luta?

— De conformidade com as leis das savanas, pertencem todos os haveres dos vencidos aos vencedores.

— Nós fomos os vencedores, conseqüentemente temos o direito de nos apoderar de tudo o que os índios traziam consigo. Agarre, pessoal. Cada um de nós deve levar um objeto que nos recorde este memorável dia!

Nessa altura, Sam aproximou-se dele e disse:

— Quer ter a fineza de nos mostrar os índios a quem os senhores venceram e mataram, sir?

O homem olhou-o até certo ponto perplexo.

— Que pretende dizer com isso?

— Que, se o senhor matou algum índio, tem o direito de se apoderar de seus haveres. Do contrário, não.

— Sam, deixe-lhe este prazer! — exclamei. — Nós não necessitamos de coisa alguma que pertenceu aos indígenas.

— Se o senhor assim opina, concordo. Mas os escalpos, nestes os senhores não tocam! E o guarda-linha, que está morto lá debaixo daquelas cerejeiras, levarão também junto. Isto é sua obrigação. Pobre homem, morreu no cumprimento do seu dever!

Imediatamente a ordem foi atendida. Depois tiraram as armas e mais haveres dos índios que jaziam mortos no solo. Colocaram, em seguida, os corpos dos brancos num vagão e a locomotiva reencetou viagem a todo vapor. Ficamos de novo sozinhos, no silêncio da vasta savana.

— E agora, o que faremos? — perguntou Sam.

— Dormiremos.

— Não acha que os índios são capazes de voltar, agora que aqueles heróis ferroviários se retiraram do teatro das operações de guerra?

— Penso que não.

—- Pois é de admirar que aquele Fred Morgan não torne aqui, a fim de reaver a sua montaria e o valioso diamante!

— É pouco provável. Quem se dá ao trabalho inútil de procurar um cavalo que estourou numa campina incendiada? Além disso, ele sabe muito bem que, além dos ferrovários, há aqui outras pessoas diante de cujos olhos não pode aparecer, sob pena de se expor a graves perigos.

— Ele me reconheceu tão bem como eu a ele; e com que prazer, se lhe fosse possível, não me teria mimoseado com uma bala ou com uma punhalada!...

— Por hoje, estamos em segurança. Em todo caso, vamo-nos afastar um pouco da linha, para termos a certeza de que não seremos importunados.

— Well, então vamos!

Montamos a cavalo e galopamos uma milha, campina afora, rumo oeste. Aí chegados, apeamos, amarramos os animais e deitamo-nos, enrolados em nossas colchas.

Eu estava realmente fatigado e adormeci logo. Mais tarde, como se fora um sonho, ouvi o trem que procedia do leste rodar sobre os trilhos; e porque estivesse em modorra, adormeci logo de novo.

Quando acordei, o dia estava clareando. Sam se achava sentado ao meu lado e fumava um dos charutos que havíamos recebido dos passageiros.

— Bom dia! Há uma grande diferença entre essas ervas e o seu charuto patenteado, cuja fábrica o senhor mantém lá debaixo do serigote. Fume também um e depois vamos pôr mão à obra. Somos forçados a renunciar à merenda matinal, até encontrarmos aguada.

— Gostaria que não tardássemos a encontrá-la. Os cavalos estão sem forragem. Posso saborear o charuto em viagem. Vamos!

Desamarramos os animais.

— Iremos daqui em linha reta até a via férrea, pois assim não nos escapará nenhuma pegada,

— Cavalgaremos ao lado um do outro?

— Não. Iremos afastados. Avante!

As cinzas das savanas deviam ter recolhido com nitidez as pegadas dos ogellallabs, mas o vento que soprara à noite as desfizera por completa Chegamos à linha férrea, sem havermos encontrado algo de anormal.

— Viu alguma cousa? — perguntou Sam.

— Não.

— Também não vi nada. Mil raios levem o vento que sempre costuma chegar quando dele não precisamos. Não tivesse o senhor encontrado aquela carta, e estaríamos agora aqui de braços cruzados sem saber o que fazer.

— Então, avante, para o rio Pecos!

—  Bravos! Antes, porém, preciso dizer àqueles índios a quem eles devem a farra de ontem.

Apeou-se e eu virei o rosto para não ver aquela cena horrível. Daí a pouco, todos os índios, ali tombados mortos na véspera, estavam com as orelhas cortadas e presas às próprias mãos.

— Bem, agora vamos — disse Sam. — Para atingirmos a primeira aguada, precisamos cavalgar um bom trecho e eu estou ansioso por ver quem resistirá melhor, se o seu poldro ou a minha “Tony”.

— O seu animal conduz menos peso, pois o senhor é mais franzino do que eu.

— Sou mais franzino, mas tenho mais inteligência! Homem, ainda não me posso conter de indignação, por me haver escapado aquele Fred Morgan. Agora, só perdoarei a sua leviandade de haver poupado a vida aos dois caciques, no dia em que me ajudar a capturar os dois Morgan.

 

No Llano Estacado

Entre o Texas, Arizona, Novo México e o território Indiano, onde se erguem as serras Ozar, de Guadalupe e as montanhas dos Gualpes, cercadas estas pelos montes que envolvem, lá no alto, o curso do rio Pecos e as nascentes dos rios Red, das Sabinas, Trindade, Brazos e Colorado, existe uma vasta e árida extensão de território a que bem se poderia dar o nome de “Saara dos Estados Unidos”.

Desertos e imensos trechos de areal ardente sucedem-se a solos pedregosos e também ardentes que não permitem a existência, ainda que efêmera, da mais miserável vegetação. Rigorosas e inflexíveis noites frias sucedem dias de sol escaldante; nem um solitário oásis ou uma palmeira verdejante quebra, como no Saara, a monotonia do deserto morto; nem um regato de águas cristalinas umedece aqueles terrenos sáfaros; por toda a parte a morte com seu vulto pavoroso, de garras aduncas, está à espera de presas. Apenas aqui e acolá — e isso mesmo não sei por que força sobre-humana são criadas e mantidas — erguem-se algumas moitas solitárias de uma plantas de forma hirsuta; pés de cactos silvestres isoladamente ou em grupos aparecem, enigmaticamente, rebentando do solo adusto. Mas tais plantas não nos alegram a vista nem tampouco nos dão uma sensação de alívio naquela canícula sufocante; tostadas são as suas folhas e sem estética a sua forma; estão em geral cobertas de areia trazida pelos tufões. Ai do cavalo cujo cavaleiro ousar tocá-lo para esses oásis de cactos! Ficarão com as patas de tal modo feridas pelos espinhos duros como aço, que jamais conseguirão andar. O cavaleiro terá que ficar a pé e o animai perecerá à míngua, se o seu dono não lhe desfechar um tiro de misericórdia que lhe ponha termo aos atrozes sofrimentos.

Pois, apesar do aspecto tétrico deste deserto, há gente que se aventura a atravessá-lo. Nele há estradas para Santa Fé, Forte União, Passo do Norte e para as campinas e matas do Texas, onde há abundantes aguadas. Mas essa palavra estradas não se deve tomar na acepção estrita do termo. Não se trata aqui das lindas rodovias que cortam os países civilizados, facilitando o intercâmbio material e cultura entre os povos. É verdade que muitas vezes um cavaleiro destemido as trilha como se fosse uma flecha, ou um grupo de índios por elas cavalga como se o fizesse em campina aberta; é verdade ainda que muitas vezes nelas se encontrara carroças puxadas a bois, arrastando-se com a vagarosidade de uma lesma, (por entre os obstáculos, pois um verdadeiro trilho orientador do rumo não existe nestas estradas, a exemplo do que se dá com as existentes no areal de Brandenburgo, ou no deserto de Linenburgo. Cada viandante trilha pelo caminho que descobriu e por ele vai seguindo enquanto encontra os obstáculos que o orientam. Mas esses obstáculos, mesmo para as pessoas de excelente acuidade visual, pouco a pouco foram-se tornando sem significação, de modo que foi conveniente colocar marcos nesses lugares.

Entretanto, esse deserto, relativamente à sua extensão, exige o sacrifício de mais vítimas do que o do Saara. Corpos humanos, cadáveres de animais, fragmentos de arreios e viaturas jazem pelo caminho, narrando uma história muda que os ouvidos não percebem, mas que os olhos compreendem com todo cortejo de seus horrores. Pelos ares voejam bandos enormes de urubus, que acompanham qualquer movimento de ser vivo durante o caminho todo, como se tivessem à certeza de ir ao encalço de presa segura.

Mas como se chama este deserto? Os habitantes dos territórios limítrofes dão-lhe diferentes denominações, inglesas umas, francesas e espanholas outras; ele, porém, é mais conhecido pelo nome de Llano Estacado, devido às estacas fincadas pelas estradas a assinalar o rumo aos viajantes.

Por esse deserto cavalgavam dois homens cujos animais se achavam horrivelmente esfalfados. Os pobres cavalos estavam tão magros que pereciam arrimados pelos ossos; assemelhavam-se a um pássaro doente dentro de uma gaiola, prestes a morrer. Arrastavam as pernas cambaleantes, dando a impressão de que iam cair a todo momento ao solo para não se levantar nunca mais. Os olhos ensangüentados, a língua para fora da boca, onde não se via o menor vestígio de espuma, os lombos enxutos de suor, tudo isso vinha ressaltar a precária situação orgânica em que se encontravam as duas pobres cavalgaduras.

Esses dois cavalos era a “Tony” e o meu poldro; por conseguinte, os cavaleiros não podiam ser senão eu e Sam.

Durante cinco longos e intermináveis dias, viajamos pelo Llano Estacado, onde só encontramos algumas gotas de água estagnada num regato ressequido, no primeiro dia. Depois a água faltou-nos completamente e eu vinha pensando como seria prático introduzir-se camelos para o serviço de transporte por este deserto. Lembrava-me dos versos de Uhland:

 

Os cavalos estavam tão cansados

que os cavaleiros, pacientemente,

ao invés de montar — eram montados...

 

Mas nós não podíamos proceder da mesma forma que os cavaleiros do poeta, pois nos achávamos nas mesmas condições de miséria dos animais.

Sam, minúsculo, estava dependurado da sua égua, como se a ela ainda se achasse preso por um mero e feliz acaso. A sua boca conservava-se permanentemente aberta e os olhos exprimiam já o horror da inanição que se avizinhava. Quanto a mim, a língua pesava-me como chumbo; a garganta estava tão seca, que eu nem me animava a pronunciar uma palavra com medo de arrebentá-la ao menor esforço; as veias ardiam-me como se nelas houvesse derramado cobre derretido. Senti que daí à uma hora, quando muito, cairíamos desfalecidos dos cavalos para logo depois perecermos à míngua.

— Á... gua... á... gua! — gemia Sam.

Levantei a cabeça. Que deveria responder? Continuei em silêncio. De repente, meu cavalo estremeceu e ficou parado; envidei todos os esforços, mas não consegui fazê-lo caminhar. A velha “Tony” seguiu no mesmo instante, o exemplo do meu poldro.

— Apeemos! — exclamei. Cada sílaba dessa palavra causou-me dores horríveis. Parecia que a laringe, desde os pulmões até os lábios, estava espetada com alfinetes.

Desci e, com pernas trêmulas e hesitantes, caminhei para a frente puxando o animal pelas rédeas; este aliviado da carga, seguia-me lentamente. Sam também trazia o seu rocinante pelas rédeas. O meu pobre companheiro parecia ainda mais aniquilado que eu. Cambaleava e parecia a cada passo que ia cair. Deste modo arrastamo-nos, por assim dizer, a uma distância de meia milha, quando ouvi por trás de mim gemidos angustiosos. Olhei para trás. Meu bom companheiro Sam jazia no areal com os olhos cerrados. Cheguei-me para ele e sentei-me ao seu lado, onde me conservei mudo. Palavras não modificariam a nossa triste situação.

Então isso ia ser o fim de minha vida, a meta final da minha jornada! Ia pensar nos meus pais e irmãos que deixara lá na velha Alemanha; tentei concentrar o meu pensamento e orar. Mas não me foi possível, pois o cérebro me fervia. Éramos vítimas do mesmo deserto que já roubara a vida de tantos.

Procedentes de Santa Fé e do Paso del Norte, numerosos grupos de garimpeiros voltavam felizes para as suas cidades no leste, ansiosos por estreitar nos braços os entes amados dos quais há tanto tempo se achavam afastados. Haviam sido felizes em suas empresas e com o produto de seu trabalho iriam agora usufruir uma vida tranqüila no recesso do lar. Mas eram forçados a atravessar o Llano Estacado onde exatamente os espreitavam os maiores perigos de toda a sua jornada; estes perigos não eram apenas os de ordem climatéria, pois ao lado deles havia outros ainda muito maiores. Indivíduos que não obtiveram êxito em sua vida de garimpeiros e que perderam a vontade de se dedicar ao trabalho honesto, que tanto enobrece o homem, indivíduos moralmente decaídos, que cruzam o oeste praticando toda sorte de crimes e que são os representantes autênticos de todas as corrupções, fizeram das cercas do Llano Estacado o ponto de parada, a fim de matar e roubar os garimpeiros que regressam para as suas casas. Mas como os procuradores de ouro são em geral homens fortes, afeitos a todos os perigos, habituados a repelir com indômita bravura bandos de salteadores que os atacam nas minas para lhes roubarem o produto de seu trabalho, tornara-se empresa arriscada para os bandoleiros, — em geral covardes, pois só sabem vencer atacando de emboscada.

Em vista disso, esses malfeitores tiveram uma idéia como mais cruel não é possível conceber-se: arrancaram os marcos orientadores dos caminhos e os colocaram noutro rumo, de maneira que os garimpeiros se transportassem para as regiões ainda mais perigosas do deserto e se atirassem à morte pelo mais cruel dos meios — a inanição.

Depois, sim, os bandoleiros livres de perigo e sem terem necessidade de fazer o menor esforço, equipavam-se devidamente, levando tudo de que careciam para a jornada infernal, seguindo logo em procura dos mortos, a fim de se apossarem calmamente dos seus haveres. Daí, pois, a razão de se acharem, lá no deserto, expostas na areia às ossadas de centenas de homens honestos e trabalhadores, cujas famílias em vão esperam, talvez até hoje, pela sua volta, sem nunca mais saberem notícias deles.

De princípio, havíamos seguido confiadamente os marcos, e só agora, ao meio-dia, é que percebemos que eles nos conduziam por caminho errado. Eu não podia saber onde e nem desde quando nos afastáramos do verdadeiro caminho; não podíamos pensar em voltar, pois isso poderia ser pior, visto que a nossa debilidade física e a dos nossos animais não o permitiam. Sam estava impossibilitado de continuar a viagem, e também creio que eu não conseguiria caminhar mais nem uma milha inglesa, mesmo que dispendesse o resto de forças que ainda tinha. Uma coisa era certa: embora ainda vivos, já nos achávamos na sepultura se, sem perda de tempo, algum feliz imprevisto não nos viesse salvar.

Foi quando por sobre minha cabeça percebi um pio estrídulo. Olhei para cima e um urubu que, segundo me pareceu, levantara naquele instante vôo do solo dali das redondezas. A ave descreveu um círculo sobre nós, como se nos estivesse a contemplar como presa inevitável. Ali pelas imediações devia fazer alguma vítima do ardil armado pelos “bandoleiros do deserto”, como eram chamados os bandidos que operavam no Llano Estacado. Percorri com os olhos a zona ao redor de mim para ver se divisava algum vestígio.

Apesar do calor abrasante, da febre causada pelo sangue que me escorria dos olhos, produzindo-me horríveis dores, pude enxergar a uma distância de uns mil passos alguns pontos que não podiam ser nem pedras, nem qualquer outra elevação de terreno. Tomei de minha espingarda de dois canos e fiz um esforço para avançar.

Não tinha ainda vencido metade da distância citada, quando distingui três coiotes e vi, logo mais adiante, um pequeno bando de urubus. Notei que os coiotes se achavam em torno de um corpo, que devia ser de algum quadrúpede ou talvez de um homem, e que ainda não estava bem morto, do contrário aqueles animais carnívoros já teriam dilacerado a presa. A presença dos coiotes trouxe-me um raio de esperança, visto que esses animais não podem passar muito tempo sem água; logo não se teriam aventurado a se afastar muito do local onde houvesse algum arroio ou cousa que o valha. Primeiramente eu precisava certificar que espécie de corpo era o que eles cercavam; ia continuar o caminho, quando me ocorreu uma idéia que me levou a assestar a espingarda.

Estávamos próximos da inanição; pelas redondezas não havia água, mas o sangue daqueles bichos não nos poderia aliviar os sofrimentos ou, quiçá, salvar-nos? Eu estava tão enfraquecido que não podia assestar a arma com firmeza. Deitei-me, apoiei os braços no solo e desfechei os dois tiros. Dois coiotes rolaram no solo. Esse sucesso fez-me recuperar, em parte, as forças e saí correndo naquela direção. Um dos lobos das campinas fora atingido na cabeça. O outro tiro, porém, fora alvejado com tanta imperícia que dele me teria envergonhado se me achasse noutra situação. A bala arrebentara as duas pernas dianteiras do animal, que, berrando, rolava-se na areia.

Puxei da faca, abri a jugular do coiote morto, pus os lábios nessa veia e suguei-lhe o sangue com uma sofreguidão tal como se tratasse de um nectar olímpico. Depois de haver bebido bastante sangue, tirei uma caneca de couro que trazia à cinta, enchi-a e levei-a para o homem que, como morto, jazia na areia. Era um negro e apenas pus os olhos no seu rosto, não só preto como também sujo, quase deixei cair a caneca de tão estupefato que fiquei.

— Bob! — chamei.

A essa palavra, ele abriu um pouco os olhos.

— Água! — gemeu.

Ajoelhei-me diante dele, levantei-lhe o tronco e levei-lhe a caneca aos lábios.

— Bebe!

Ele abriu os lábios, mas a sua garganta ressequida quase que o impossibilitava de engolir. Demorou bastante tempo até eu conseguir fazer o asqueroso líquido descer-lhe garganta abaixo. Em seguida ele deixou cair novamente o tronco.

Agora eu precisava acudir Sam. Eu tirara primeiro o sangue do coiote morto, deixando o outro ainda com vida, para que Sam recebesse o líquido mais fresco.

Agarrei-o, pelo pescoço, não obstante o animal furioso me pregar os dentes, e conduzi-o para junto do meu companheiro. Lá apertei-o de encontro ao solo para que não pudesse mexer-se e abri-lhe a jugular.

— Sam, beba!

Ajudei meu pobre companheiro a sentar-se.

— Quer dar-me de beber? Oh! Oh!

Com ansiedade, pegou da caneca e a esvaziou de um trago. Tomei-a de suas mãos e a enchi de novo. Sam a esvaziou pela segunda vez.

— Sangue! oh! É bem mais saboroso do que muita gente pensa. Suguei as poucas gotas que o animal ainda tinha, e corri para o ponto em que estava o negro. O terceiro dos coiotes que havia fugido voltara e, não se preocupando com a presença de Bob, começara a devorar o próprio companheiro. Carreguei minha arma e abati-o também. Com o auxílio do seu sangue fiz o negro recuperar os sentidos e a faculdade de locomoção.

O viajante tem, às vezes, encontros admiráveis. Era um destes o que eu acabava de ter com este negro, meu velho conhecido. Quando estive em Louisville fui acolhido com cativante hospitalidade pelo seu amo, um joalheiro de nome de Marshall. Por essa ocasião vim a estimar ao negro fiel e respeitoso. Tomei então parte numas caçadas, em companhia dos dois filhos do joalheiro, os quais depois me acompanharam até o Mississípi. Eram dois belos rapazes de quem me tornei amigo. Mas como viera parar Bob, o lanudo negro, aqui no Llano Estacado?

— Está agora melhor, Bob? — perguntei.

— Mió, muito mió. Agora é que ele parecia me reconhecer. — Mas, mestre, será pussivi? O sinhô não é o mestre Carlo, aquele valente caçadô? Oh! nêgo Bob tá contente por tê encontrado bom mestre. Mestre salvo mestre Bem, que se não fosse o sinhô estaria agora morto, de verdade!

— Bernhard? Onde está Bernhard? Apontando para o sul!

— Está lá. Ou então ali; ali, ou ali — rodando sobre os calcanhares, indicou todas as direções. Ele mesmo não sabia onde andava o seu jovem amo.

— Mas que faz Bernhard aqui no Llano Estacado?

— Bob não sabe; Bem continuo viaje com us outro mestre.

— Quem é a gente com quem ele viaja?

— Os mestre são caçadô, são negociante são... oh! Bob não sabe bem o que todos os mestre são.

— Para onde pretendem eles seguir?

— Pra Califórnia, pra São Francisco, pra casa do jovem mestre Allan.

— Então Allan está em S. Francisco?

— Mestre Allan em S. Francisco compra muito ouro pro meu mestre Marshall, mas mestre Marshall não pricisa mais de ouro porque mestre Marshall morreu.

— Mas o senhor Marshall faleceu? — perguntei surpreendido, pois o velho joalheiro ainda gozava de perfeita saúde, quando eu estivera em sua casa.

— Sim, mas não morreu de doença, foi morto por um bandido.

— Foi assassinado? — perguntei com inflexão dolorosa na voz. — E por quem?

— Bob não sabe e ninguém sabe quem foi o miseráve matadô do meu bom patrão. Assassino veiu de noite, fincou faca no peito de mestre Marshall, levou toda pedra preciosa, toda jóia e ouro e tudo que era do meu patrão. Quem era o bandido e pra onde ele foi isso não sabe nem o xerife, nem o júri, nem mestre Bem e nem Bob.

— Quando se deu o crime?

— Já feis cinco méis; mestre Bern tá muito pobre; mestre Bem escreveu uma carta pro mestre Allan em Califórnia, mas não recebeu risposta, por isso resorveu í em pessoa até lá precurá mestre Allan.

Era uma horrível notícia que eu recebia. Um assassinato, tendo por móvel o saque, havia roubado a tranqüilidade daquela família que vivia tão feliz; o seu chefe tombara à bala do bandido e os dois rapazes haviam sido reduzidos à extrema pobreza. Teriam mesmo desaparecido todas as jóias?

Instintivamente lembrei-me do diamante de que me apoderara de Fred Morgan. Não teria ele relações com o doloroso acontecimento que o negro acabava de me relatar? Mas o que levaria, neste caso, o criminoso a seguir de Louisville para a campina?

Que roteiro os senhores vêm seguindo? — perguntei.

— De Memphis ao forte Smith e de lá subimo as montanha e nos fumo pra Preston. Bob caminho, cavalgo e ando di carroça até chega maldito Estacado, onde não tem água pra bebê. Bob fico com muita sede até que caiu du cavalo que continuo a caminha sozinho deixando Bob atirado no chão. Bob teria murrido de sede se mestre Carlo não o salvasse, dando sangue pra Bob bebê... Oh! mestre salvou Bob e Bob gosta du mestre mais que do mundo intêro.

Continuei nas perguntas.

— De quantos homens se compunha à expedição de Bernhard?

— Novi home e Bob.

— Daqui para onde iam seguir?

— Bob não sabe. Bob sempri cavalga atrais e não ouviu o que os muito mestre faláro.

— Usa uma faca e uma espada. Os outros também se acham todos armados?

— Tudo tá armado de muitas espingarda, muitas faca, muitos revorvis e pistola.

— Quem dirige a expedição?

— Um home que se chama William.

— Faça um esforço para se lembrar para onde eles seguiram, quando caiu do cavalo!

— Não mi alembro.

— Em que dia e a que hora caiu do animal.

— Era já quasi noite. Oh!... Agora Bob si alembra: os mestres seguiro na direção du sol, quando Bob caiu.

— Está bem. Pode andar?

— Bob já corre outra veis como um viado. Sangue é bom remédio pra sede.

Realmente o líquido imundo havia me reanimado também de tal modo, que me desaparecera toda a febre; ao meu lado já se achava o meu companheiro Sam, em quem se operara a mesma transformação.

O grupo em que se achava Bernhard Marshall deveria estar tão esfalfado como nós, pois do contrário o jovem e bondoso joalheiro não teria deixado o seu fiel criado ao abandono no meio do deserto. Com certeza estavam com os intestinos e demais órgãos de tal modo ressequidos que não atinavam mais com o que se passava. Pela indicação de Bob, concluí que eles haviam tomado a direção do oeste, aliás a mesma que seguimos nós; mas como segui-los, como levar-lhes auxílios se também nós nos achávamos desprovidos de recursos e nem podíamos utilizar-nos de nossos cavalos?

Dirigi-me a Sam.

— Fica aqui junto dos cavalos, que talvez se reanimem, podendo, depois andar mais uma milha. Se dentro de duas horas eu não estiver de volta, segue as minhas pegadas.

— Está bem, Carlos. Mas não te afastes muito, pois o sangue dos coiotes não terá efeito muito prolongado.

Agora já nos tratávamos por “tu” e não por “senhor”, como ocorreu no primeiro dia do nosso encontro.

Examinei o solo e vi que as pegadas de Bob partiam de onde ele jazia para o rumo norte. Seguindo este vestígio, cheguei, dez minutos depois, a um ponto em que as pegadas de dez cavalos seguiam do leste para o oeste. Bob cavalgava a uma boa distância do grupo, razão por que, de certo, não foi visto, quando tombou do animal. Continuei a examinar as pegadas e notei que os animais estavam esfalfadíssimos, pois a cada passo cambaleavam, o que se concluía dos rastos de escorregões deixados na areia.

Essa circunstância tornava as pegadas ainda mais visíveis e eu as podia seguir com relativa rapidez.

 

BANCANDO O “MANDACHUVA”

Havia caminhado uma milha, quando alcancei um aglomerado de pés de cactos que se estendiam em linha até formarem uma verdadeira floresta que se perdia no horizonte. Estavam tão ressequidos que haviam adquirido uma cor amarelada.

Naturalmente que as pegadas por mim seguidas não se dirigiam para a perigosíssima floresta, mas a contornavam; continuei a segui-las, mas não por muito tempo, pois, de súbito, me veio uma idéia, que logo me dispus a executar.

Quando nas ardentes baixadas da península da Flórida o calor sufocante absorve a água até a última gota, os homens e animais ficam ameaçados de perecer de inanição e a terra, coberta por um céu de cobre, arde como chumbo derretido, não se vislumbrando na abóbada celeste o menor vestígio de uma nuvem salvadora a acenar com o refrigério de uma chuva providencial, os viajantes costumam atear fogo nos juncais e em todos os macegais secos e, daí a pouco, a chuva salvadora vem. Por duas vezes observei este fato, e quem está identificado com a natureza, conhecendo-lhe os mais recônditos segredos, está apto a considerar explicável esse fenômeno, dispensando quaisquer discussões científicas em torno do assunto.

Lembrei-me disso e achei o local apropriado para nele aplicar aquele processo de fazer chover. Cortei alguns galhos secos, acendi-os e pus fogo no macegal. Alguns minutos depois, no bosque de cactos, ardia um fogo de chamas vivas que cada vez mais aumentavam até que se ergueu um verdadeiro mar flamejante cujos confins não se podiam mais divisar.

Eu já assistira a muitos incêndios violentos nas campinas, mas nenhum deles apresentava o aspeto de belo-horrível que este me ofereceu à contemplação. Os troncos do cactos produziam um estrondo tamanho, que davam a impressão de ali se haverem concentrado numerosos exércitos para uma batalha. As labaredas pareciam querer alcançar o céu e a atmosfera se achava saturada de vapores chamejantes de permeio com gravetos secos a arder, que o calor jogava para o ar como flechas. O solo tremia-me debaixo dos pés e nos ares havia um barulhão semelhante ao do estrondo de uma batalha.

Era este o melhor socorro que, de momento, me era possível levar a Bernhard Marshall e aos seus companheiros de expedição. Voltei tranqüilo, não me preocupando com a circunstância de que iria, depois achar ou não as pegadas que ia seguindo. A esperança de salvar aquele amigo redobrou as minhas forças e dentro de meia hora eu chegava ao local de onde saíra há pouco.

Os meus companheiros já vinham ao meu encontro, montados nos cavalos que tentavam caminhar mais um trecho.

— Zounds, Carlos, que aconteceu lá na frente? De princípio julguei que nos achávamos diante de um terremoto e agora, ao que me parece, a areia deste malfado deserto pegou fogo.

— A areia não, Sam, mas os cactos que lá adiante se erguem em densas e enormes florestas.

— Mas como podiam pegar fogo? Quero crer que não foste tu quem o ateou!

— Por que não?

— Então foste tu, realmente! Mas dize-me com que fim?

— Para vir chuva.

— Chuva? Não me leves a mal, Carlos, mas enlouqueceste ou, para distrair-te, retiraste algum parafuso dessa cachola!

— Não sabes que entre determinadas tribos de selvagens os loucos é que são considerados como as pessoas mais sensatas?

— Espero que com isto não queiras afirmar haveres praticado uma ação sensata, metendo fogo nos cactos! O calor é agora duas vezes mais sufocante do que há pouco.

— O calor subiu para o ar e com ele vai desenvolver-se a eletricidade.

— Não me chegues perto com a tua eletricidade! Não a posso comer, não a posso beber e nem sei que espécie de criatura ela é.

— Não tardarás a ouvi-la, pois dentro em pouco, teremos aqui um lindo temporal, acompanhado dalguns trovões.

— Agora, pára, pobre Carlos! Estás completamente doido! Que pena, um rapaz tão moço!

Olhou-me de um modo tão apreensivo, que eu não podia ter a menor dúvida de que não pilherava. Apontei para o ar, dizendo:

— Não vês aqueles vapores que se condensam na atmosfera?

— Com todos os diabos, Carlos! Não és, no fim, tão louco como eu pensava.

— Eles estão formando uma nuvem que irá descarregar com violência.

— Carlos, se for assim como dizes, eu sou o maior asno e tu o homem mais inteligente dos Estados Unidos, ou, aliás, do mundo inteiro.

— Não exageres, Sam. Eu observei quando, em Flórida, aplicaram este processo e agora nada mais fiz do que imitá-lo, pois acho que uma chuva, por pouca que seja, não nos fará mal algum. Olha, lá está a nuvem formada! Assim que o bosque de cactos queimar completamente ela estourará. E se não me quiseres acreditar, espia a tua “Tony” como sacode o toco de rabo que ainda lhe resta, e, de narinas arreganhadas, fareja o ar. Também o meu poldro está sentindo cheiro de chuva, que não se estenderá muito além da zona dos cactos queimados. Vamos, pois, para lá para que a possamos aproveitar bem na ocasião oportuna!

Caminhamos a pé, mas bem que poderíamos ter montado, pois os animais mostravam-se tão dispostos quanto as suas forças o permitiam e caminhavam com passos firmes para a frente. O seu instinto previa o refrigério próximo.

A minha profecia cumpriu-se. Meia hora depois, a nuvem atingira um volume tal que sobre as nossas cabeças o firmamento escurecera. Depois caiu a chuva e com tanta intensidade, que produzia um ruído como se vinte punhos cerrados nos estivessem a bater nas costas; dentro de um minuto estávamos tão molhados como se houvéssemos caído nalgum rio. Os dois cavalos, de boca aberta, procuravam aproveitar as grossas gotas d’água. Passaram depois a cabriolar, e não tardamos a observar que haviam recuperado todas as forças perdidas. Nós mesmos sentíamos uma grande sensação de bem estar. Estendemos nossos lençóis de oleado, apanhamos a água e com ela enchemos os nossos cantis, depois de havermos bebido com fartura, é claro.

Bob estava radiante de alegria. Arreganhava a alva dentuça e fazia toda sorte de caretas. Pulava como um macaco.

— Mestre, oh mestre! que augua boa. Bob está com saúde, com saúde, com saúde! Bob está forti pra cavalgá e corrê até a Califórnia, sem pará! Mestre Bern também ganhô augua?

— Creio que sim, pois não acredito que ele esteja muito distante do bosque de cactos. Mas beba, beba mais ainda porque a chuva não tarda a cessar.

Tomou do chão o seu chapéu de abas largas, encheu-o e abriu os grossos lábios para beber.

Realmente, daí a instantes cessava a chuva, com o último trovão. Havíamos saciado a nossa sede, portanto, não tinha importância que a chuva parasse. Além disso, os nossos cantis estavam cheios do precioso líquido.

— Agora vamos comer alguma cousa, disse eu. — Depois prosseguiremos sem perda de tempo a ver se ainda alcançamos Marshall.

 

PRIMEIRO CONTATO COM OS “BANDOLEIROS DO DESERTO”

Levamos poucos minutos para fazer a nossa refeição, que constituiu, de um pedaço de xarque de búfalo. Depois montamos e continuamos viagem. Bob revelou-me um tão excelente corredor que acompanhava pari-passu o tranco dos nossos cavalos.

As pegadas dos expedicionários haviam sido desfeitas pela chuva; mas isto não nos trouxe transtorno algum, pois eu sabia em que direção a caravana seguira. Não demorou muito, encontramos uma capa de vime de garrafão, abandonada no deserto; havia sido atirada ali, sem dúvida por um dos expedicionários. O bosque de cactos era muito grande, pois o trecho carbonizado não tinha fim. Alegrava-me com isso, pois assim eu podia deduzir que a expedição fora também atingida pela chuva salvadora. Finalmente, atingíamos a extremidade da mata de cactos queimada, e logo depois divisei ao longe um grupo escuro que devia ser formado por homens e animais. Assestei o binóculo e contei nove homens e dez cavalos. Oito dos cavaleiros se achavam sentados ao solo, um, porém, montado a cavalo, se separara do grupo. Através das lentes, reconheci que era Bernhard Marshall. Nesta ocasião parou o cavalo, talvez por ter notado a nossa presença. Percebi o seu propósito. Ele se achara, em conseqüência do esgotamento físico e moral, num grande estado de indiferença que nem deu pelo desaparecimento do seu fiel criado; refeitas as suas forças com a chuva que caiu, readquiriu o seu vigor espiritual e só então se lembrou do negro, a quem agora ia procurar. Isto também se deduzia pelo cavalo de Bob que ele trazia pelo cabresto. Não me agradou a atitude dos seus companheiros, conservando-se sentados em vez de acompanhá-lo; eu estava em apostar como eram todos ianques que não dão valor algum à vida de um preto.

Virando-se, disse algumas palavras; de súbito, todos se ergueram, montaram a cavalo e pegaram das armas.

— Vá para frente Bob, para que eles te reconheçam! — disse o negro para si mesmo e deitou a correr; nós o seguimos a trote. Quando Marshall reconheceu o criado, ficou tranqüilo. Os companheiros apearam de novo e nos esperavam em atitude pacífica. Bob nos tomara apenas uma pequena dianteira, de modo que ouvimos bem quando ele avisou:

— Não atire, mestre, não atire! Vai fica munto contente! É mestre Carlo que só mata índio e bandido, mas dexa vivê Bob e seu patrão!

— Carlos?! Mas será possível? — exclamou Bernhard surpreendido fixando-me.

Quando eu estivera em sua casa trajava-me elegantemente. Naquela époça eu usava um simples cavanhaque e agora minhas barbas cerradas vinham quase até o meio do peito. Além disso, nunca me vira em trajes de escoteiro e por tudo isso não o levei a mal por não me haver reconhecido de longe. Quando me achava a uns trinta passos distante, ele viu então que Bob lhe prestara informação certa. De um salto, veio ao meu encontro, estendeu-me a mão, e, emocionado, perguntou:

— Mas, Carlos, que estou vendo? É o senhor mesmo? Eu pensei que pretendia seguir para o forte Benton e de lá para a Serra Nevada. Como veio parar aqui no sul?

— Estive realmente naquelas zonas, Bernhard. Lá, porém, fazia muito frio e resolvi empreender uma excursãozinha por esta região. Afinal, como vê, acho-me no celebérrimo Llano Estacado. Quer apresentar-me os seus companheiros?

— Naturalmente, Carlos! Afianço-lhe que um milhão de dólares não me seriam tão bem-vindos como a sua presença aqui! Apeie-se e aproxime-se.

Após a apresentação dos companheiros, atordoou-me com uma saraivada de perguntas, a que fui respondendo à medida do possível. Observando a comitiva, verifiquei compor-se de homens que se diziam caçadores de uma companhia de peles, e estavam tão singularmente vestidos e embaraçados com incômodas armas, que impossível seria tomá-los por homens do oeste. Eram os caçadô, de que me falara Bob, mas que eu tachara de aventureiros que se dirigem para o oeste com o fim de tentar a sorte, seja por caminhos honestos ou não. O mais velho dos caçadores que me apresentaram com o nome de William, era o dirigente da caravana. Depois de haver eu respondido às perguntas que me fizera Marshall, ele se dirigiu a mim. Sam parecia não haver tido boa impressão do homem.

— Agora já sabemos mais ou menos quem é o senhor e de onde vem; precisamos também saber para onde vai!

— Talvez para o Paso del Norte ou quem sabe para outra zona, sir, desde que assim o exija o nosso objetivo.

Achei necessário não lhe dizer mais nada por enquanto. Eu ainda não sabia bem quem era e, ademais, parecia um indivíduo mau.

— E qual é o objetivo que visam nesta jornada?

— Conhecer um pouco o mundo.

— É um trabalho que não causa tédio, e que não tem pressa de ser concluído. Com que então, deve ser um homem abastado, um milionário como revelam suas armas reluzentes!

Não me agradou a sua pergunta e principalmente o olhar perscrutador que me dirigiu nessa ocasião, bem como o tom de ironia com que pronunciou essas palavras. O homem era inexperiente, pois com tal atitude provocava-me maiores suspeitas. Resolvi não lhe dar muita confiança e por isso respondi-lhe secamente:

— Ricos e pobres aqui no Llano Estacado são iguais!

— Tem razão, sir. Ainda há meia hora estávamos arriscados a morrer todos de inanição, se não fôssemos salvos maravilhosamente. Foi um milagre como nunca se deu igual no deserto.

— Que milagre foi?

— O da chuva repentina, sir. Ou vêm dalguma zona que não foi beneficiada por ela?

— A chuva nos alcançou, pois foi exatamente nós que a provocamos.

— Provocaram? Que pretende dizer com isso, sir?

— Que, achando-nos tão ameaçados de morrer de insolação, como os senhores, reconhecemos como único meio de nos salvar, a provocação de nuvens, raios e trovões, com o corolário desejado: a chuva.

— Olhe, o senhor é um prosa! Fique sabendo que não somos gente a quem o senhor faz de tolo. Se está com essa intenção, afianço-lhe que arriscará a sua pele. Com toda certeza andou lá pelas margens do Utah, junto com os adventistas do sétimo dia, que afirmam conseguir fazer milagres semelhantes.

Deixei passar em julgado essas palavras pouco gentis e respondi:

— Sim, já andei por lá. Hoje, porém, não me preocupa o sétimo dia, mas sim o atual, hic et nune. Permite que nos juntemos ao seu grupo?

— Por que não? O senhor é amigo de Marshall e só essa circunstância já bastaria para não recusarmos o que pede. Como se aventuram a atravessar, em dois apenas, o Llano Estacado?

Desconfiado como eu estava do homem, passei a fingir-me de leviano e inexperiente para deste modo poder observá-lo melhor.

— Aventurar? Mas que há por aqui de perigoso? O caminho está demarcado e nele se entra para chegar, sem novidade, ao destino.

— Como o senhor encara a coisa com facilidade! Nunca ouviu falar nos “bandoleiros do deserto”?

— Que espécie de bandidos são estes?

— Aí está uma prova de sua inexperiência e leviandade! Não vou falar daquela estirpe de bandidos, pois dizem que não se deve pintar o diabo na parede. Mas uma cousa lhe afianço: para se arriscar a atravessar o Llano Estacado em dois, só mesmo tendo a bravura e combatividade dos célebres “Mão de Fogo” e “Mão de Ferro” e a inteligência de um Sans-ear, o perseguidor dos indígenas. Já ouviu um dia falar nesses homens?

— É possível, mas com certeza não dei grande atenção aos seus feitos. Que tempo precisamos cavalgar para sairmos deste deserto?

— Dois dias.

— E vamos trilhando por caminho certo?

— Por que haveríamos de tomar estradas erradas?

— Porque tive a impressão de que os marcos de um momento para o outro se dirigiram para o sudeste em vez do sudoeste.

— O senhor pode ter tido essa impressão, mas não um velho e experimentado viajante como eu. Conheço o Estacado como a palma de minhas mãos!

As minhas suspeitas se avolumavam. Se ele fosse de fato um viajante antigo e conhecedor da zona como afirmava, deveria ter notado que nos havíamos enveredado por um rumo bem diferente. Resolvi auscutá-lo melhor. Por isso perguntei-lhe:

— Por que motivo a companhia os destaca para as paragens longínquas do sul? Sempre ouvi dizer que no norte havia roedores de peles mais finas do que aqui.

— Oh, como é inteligente! Pois pele é pele! Além disso por aqui há maior quantidade de ursos do que lá no norte. E, depois, pretendemos aproveitar o outono em que se dá a migração dos búfalos, para abater milhares deles e tirar-lhes o couro.

— Oh! Mas eu sempre fui de opinião que lá em cima, nos parques e em suas redondezas, era muito mais fácil de caçar búfalos do que aqui! Bem, o senhor como prático deve saber melhor do que eu, que sou novo na terra. Sei que dos índios não precisam ter medo, pois a companhia aproveita os caçadores ao mesmo tempo para o serviço de estafetas e a carta de estafeta, dizem, é o melhor talismã contra as hostilidades dos indígenas. Será verdade?

— É a pura verdade. Em vez da sua hostilidade podemos contar com o auxílio dos índios em qualquer emergência.

— Então o senhor viaja provido de uma dessas cartas de estafeta?

— Naturalmente. Basta-me exibir o invólucro para que todo o índio me dispense a sua proteção.

— O senhor me está deixando curioso, sir. Não me podia mostrar a sua carta?

Notei que o homem se achava em apuros, que procurou disfarçar, fazendo um semblante carregado.

— O senhor não sabe o que é sigilo de correspondência, homem?! Tenho licença de exibir esta carta exclusivamente a índios.

— Mas não pedi para ler o conteúdo da carta. O senhor, pelo gesto, que faz, parece não estar provido nem com um documento que ateste a sua identidade perante um pele-branca, quanto mais perante um indígena!

— Perante um pele-branca, o meu documento de identidade é a espingarda! Tome nota disso para seu governo!

Portei-me como se me sentisse dominado por ele e calei-me, fingindo-me estar desconcertado. Sam não olhou para mim porque este gesto poderia dar na vista, mas olhou para a sua égua com uns olhares de aprovação que compreendi logo. Estava de acordo com a minha atitude. Virei-me depois para Marshall e lhe disse:

— Bob contou-me, Bernhard, para onde vão e qual o objetivo desta viagem. Não possuem pista alguma do assassino que tudo lhes roubou?

— Nem um vestígio. O crime hediondo deve ter sido perpetrado por mais de uma pessoa.

— Onde está Allan?

— Em S. Francisco. Pelo menos as suas últimas cartas eram datadas de lá.

— Well! Então os encontrarão com facilidade. Pretendem continuar viagem ou tomar pouso aqui?

— Ficou resolvido pousarmos aqui.

— Neste caso, vamos desencilhar os nossos animais.

Tiramos os arreios e mais equipamentos dos nossos cavalos e demos-lhe alguns grãos de milho. Evitamos trocar palavras durante esse serviço. Também nem era necessário, pois as nossas idéias combinavam. Quando dois caçadores cruzam juntos as planícies por algumas semanas, compreendem-se pelo olhar. Também com Marshall isoladamente não falei e nem lhe fiz secretamente o menor gesto. Assim, passou-se o resto do dia por entre palestras banais. Quando anoiteceu, eu disse a William:

— Distribua o serviço de vigilância, sir, pois estamos cansados e queremos dormir, mas antes precisamos saber que quarto nos tocará,

Ele atendeu ao meu pedido e verifiquei que não escalou nenhum dos caçadores para estar ao mesmo tempo de guarda junto comigo, Sam ou Marshall.

— Procure dormir no meio deles para ouvir o que falam durante a noite! — cochichei a Marshall, que me lançava uns olhares misteriosos, em face da distribuição original da guarda, feita por William.

Como não havia pastagem, os cavalos se deitaram no areal. Deitei-me ao lado do meu poldro, ao passo que os demais companheiros formaram um círculo. Eu tinha razões para não ficar no meio do grupo. Sam estava deitado em posição de poder enxergar todos os sinais que eu lhe fizesse. Os caçadores deste modo só poderiam conversar sobre assuntos secretos, quando de sentinela.

 

TIRO PELA CULATRA

As estrelas haviam surgido, mas envoltas num manto nebuloso, assim que sua luz não produzia a mesma claridade de outras noites. O primeiro quarto tocou a dois dos três comerciantes que, em caminho, se haviam também incorporado à comitiva, e correu sem que algo de anormal se registrasse. O segundo, William reservara para si e para o mais moço dos caçadores. Quando lhes tocou a vez ainda não haviam adormecido. Ergueram-se e cada um passou a rondar o seu meio círculo; observei-os e divisava nitidamente os dois pontos negros onde eles se encontravam. O local era próximo do cavalo do negro Bob. Folguei com isso. Com certeza não haviam entregue ao negro um desses excelentes corcéis das campinas cujos instintos denunciam invariavelmente a aproximação de qualquer pessoa ou animal.

Quando os dois guardas se encontravam, quedavam-se por alguns instantes a conversar. A permanência nas savanas me apurara os sentidos, por isso não me foi difícil concluir logo que estávamos no meio de homens, mal-intencionados.

Saí caminhando de gatinhas em direção ao cavalo de Bob. Minha previsão fora acertada. Tratava-se de um cavalo muito manso que não denunciou a minha aproximação nem com o mais leve movimento. Cheguei no momento em que os dois guardas se encontraram de novo naquele ponto. Antes deles se separarem, ouvi nitidamente o chefe da caravana dizer ao companheiro:

— Eu cuido dele e tu do negro. Não perceberão a nossa manobra. Daí a pouco se encontraram de novo e eu ouvi:

— Psiu! O sem orelhas é pequeno, e com um braço só executarás o serviço. O outro, porém, é corpulento, é preciso matá-lo quando estiver dormindo.

Não havia mais dúvida: eles planejavam a nossa eliminação do rol dos vivos! Qual o móvel de tal plano eu não podia saber. Voltaram novamente e William disse:

— Creio que os companheiros estarão de acordo em fazermos o “serviço” nos outros três também. É melhor assim. Estaremos livres desses importunos.

Com que então os três comerciantes que viajavam na caravana iam ter a mesma sorte que nós. Se eu não tivesse tido a idéia de os espreitar, os “caçadores” nos teriam morto sem grande trabalho. Agora os dois bandoleiros se encontraram outra vez.

— Bem, está tudo combinado! Não percam um só minuto! — concluiu William.

Portanto o interessante diálogo estava findo. As últimas palavras referiam-se à hora da execução do crime. Mas, para que hora fora combinado? Não era necessário sabê-lo porque era lógico que esperariam até ferrarmos no sono. Como eles ainda tinham um quarto de hora de guarda, resolvi antecedê-los no golpe sem perda de tempo.

Preparei-me para agarrá-los. Chegaram-se de novo até perto de mim e desta vez não pronunciaram uma só palavra. Ambos viraram-se ao mesmo tempo. Mas, ao passar por mim, agarrei William pelo pescoço e desferi-lhe violento soco na região temporal, que ele tombou ao solo sem pronunciar um gemido. Prossegui em seu lugar na ronda. Do outro lado encontrei-me com o outro. Peguei-o logo pela garganta e o arrojei também no chão sem sentidos. Os dois bandidos continuariam desacordados por uns dez minutos, disso tinha eu certeza. Por isto corri ao acampamento. Apenas dois estavam acordados: Sam, naturalmente, e Bernhard; a quem os meus sinais fizeram perder o sono.

Desamarrei o laço do serigote e Sam fez o mesmo.

— Apenas os três “caçadores” — conchichei-lhes. Em seguida bradei:

— Levantem, pessoal!

Todos se ergueram de um salto e ao mesmo tempo a nossa laçada segurava dois dos “caçadores” pelo tronco. Amarramo-los tão seguros que não se puderam mais mover. Bernhard segurou o terceiro, até que eu, desembaraçado dos outros dois, amarrei-o com o seu próprio laço. A cena foi tão rápida que tudo já estava concluído, quando um dos comerciantes, se acordando do espanto, comandou.

— Traidores no acampamento! Tomem das armas! Sam soltou uma gargalhada sarcástica.

— Deixa o teu “pau furado” em paz, meu jovem; tanto este como os outros estão sem o ouvido, hihihihi!

O meu companheiro fora tão previdente, que durante o tempo em que estive fazendo o reconhecimento tirara de todas as armas o ouvido, por onde se comunica o fogo à carga. Deste modo às espingardas estavam inutilizadas, enquanto não lhes recolocassem aquela peça. Este fato prova o quanto o companheiro me compreendia bem, sem que para isso fosse necessário eu lhe dizer uma só palavra.

— Estejam tranqüilos, cavalheiros, pois nada lhes sucederá! — acalmei-os. — Estes homens haviam planejado a nossa morte e a dos senhores também; por isto é que resolvemos imobilizá-los.

Apesar da escuridão notava-se o pavor de que se achavam tomados. Também o negro Bob de nós se aproximou dizendo:

— Patrão, patrão, eles também queriam mata Bob?

— Também a ti, Bob.

— Então têm que morre inforcado no “estacado” e num poste bem arto!

Os prisioneiros não pronunciaram uma só sílaba. Contavam talvez com a ajuda dos dois guardas...

— Bob, ali adiante jaz William e um pouco além o seu companheiro da guarda. Traga-os para cá! — ordenei ao preto.

— Eles já tão morto? — perguntou o criado.

— Não, mas sem sentidos.

— ]á vô busca!

O negro espadaúdo carregou um e depois o outro aos ombros e os depositou no solo perto de nós. Agora a calma já estava um tanto restabelecida e pude falar e esclarecer a minha atitude aos três negociantes. Depois do meu relato, eles se exaltaram e exigiram a execução imediata dos “caçadores”. Opus-me energicamente a isso.

— Estão enganados! — exclamei. — A savana também possui as suas leis. Se os tivéssemos surpreendido de armas na mão para tirar-nos a vida, cabia-nos o direito de matá-los no próprio local. Mas, nas circunstâncias em que foram surpreendidos, a lei não nos dá este direito. Precisamos antes de tudo formar um júri, para resolver o destino que lhes deveremos dar.

— Oh! Um júri! — exclamou o negro contente. — Depois do júri Bob vai enforcá todos cinco num poste bem arto!

— Não podemos instalar o júri já. Não acendemos fogueira e precisamos esperar primeiro o romper do dia. Cinco de nós podem dormir sossegadamente e dois montarão guarda para vigiar os prisioneiros.

Custou-me muito fazer prevalecer o meu ponto de vista, mas, finalmente, consegui que os cinco se deitassem, ao passo que com um dos comerciantes me encarreguei da vigilância dos prisioneiros. Depois de uma hora fomos rendidos naquele serviço. O último quarto, Sam o vigiou sozinho, pois àquela hora a aurora começava a romper e dois olhos eram suficientes para velar pelo nosso sono.

Durante toda à noite os prisioneiros conservaram-se em absoluto mutismo. Quando, porém, nos levantamos, verifiquei que William e seu companheiro começavam a acordar-se. Primeiramente tomamos a nossa refeição matinal. Aos cavalos foram distribuídas rações de milho e agora estávamos prontos para reencetar as negociações tendentes a combinar o fim a ser dado aos prisioneiros. Sam apontou para mim e disse:

— Este será o xerife e dará imediatamente início à instalação do júri.

— Não, Sam. Eu não assumo de modo algum a presidência dos trabalhos. Esta função compete a ti.

— A mim? Que idéia absurda! Não, aquele que escreve livros está mais na altura do cargo do que eu, pobre mísero e matuto campineiro analfabeto!

— Não sou cidadão norte-americano e não estou há tanto tempo nas savanas como tu. Se não aceitares a missão, sou obrigado a confiá-lo a Bob.

— Bob? Um negro como xerife? Isto seria a atitude mais ridícula que tomaríamos dentro deste maldito areal! Portanto, já que não há outro remédio eu... Aceito o cargo.

Ditas essas palavras, ele sentou-se, grave e circunspeto, dando a impressão de que os juizes nos tribunais das savanas sabiam portar-se com a mesma dignidade que os dos meios civilizados.

— Tomem seus lugares no círculo, meus senhores. Servirão de membros do júri e Bob, o negro, conservar-se-á de pé, desempenhando as funções de meirinho.

Bob apertou o cinturão de onde pendia a espada e procurou dar à fisionomia uma expressão de dignidade.

— Meirinho, tire as cordas aos prisioneiros, pois nos achamos num país de amplas liberdades, onde os próprios assassinos serão conduzidos livres à presença dos juizes!

— Mas si esses bandidos fugi todos cinco? — arriscou o negro.

— Obedeça! — trovejou-lhe Sans-ear. — Nenhum deles fugirá, pois tiramo-lhes as armas e antes de darem dez passos já as nossas balas os atingiriam.

As cordas foram desamarradas e os prisioneiros levantaram-se, conservando-se sempre em silêncio. Cada um de nós tinha as espingardas nas mãos; por conseguinte, numa fuga, os prisioneiros não podiam pensar.

— Tu te apresentas como William — começou Sam. — É este o teu verdadeiro nome?

O interrogado replicou raivosamente:

— Não darei uma única resposta! Os senhores próprios é que são assassinos, os senhores nos agrediram covarde e traiçoeiramente. Portanto os senhores é que deveriam ser entregues à justiça das savanas!

— Faze o que quiseres, meu jovem. És livre, podes falar ou calar à vontade. Mas uma cousa é certa: tomaremos a falta de resposta como confissão tácita do crime que premeditaram. Agora, dize-me: és realmente caçador duma companhia de peles?

— Sim.

— Prova-o! Onde está a carta de identidade?

— Não a tenho.

— Bem, meu jovem, isto basta para sabermos quem és. Queres ter a fineza de dizer-me o que falaste e resolveste com o teu companheiro, ontem à noite, no seu posto de guarda?

— Nada. Não falamos uma só palavra.

— Mas este cidadão aqui, por todos os títulos digno de fé, teve a feliz idéia de os espreitar e ouviu nitidamente o que combinaram. Tu não és nem nunca foste um campineiro, pois se assim fosses, terias organizado o plano com mais inteligência.

— Não somos campineiros? Com todos os diabos, termine a representação de sua comédia porque queremos provar-lhes que não tememos os senhores! Quem são afinal os senhores? Uns greenhorns que nos assaltaram quando dormíamos, com o fim de nos roubarem!

— Não te alteres desta forma, meu filho! Já vou dizer-te quem são estes greenhorns que não trepidam em arriscar as suas vidas quando o edifício da justiça se ameaça de abalo e quando as suas vidas correm perigo! Este homem aqui, depois de te haver observado e descoberto o plano criminoso que arquitetaste, arrojou-os, bem sozinho, ao solo com um soco e fez o serviço tão bem feito que ninguém deu pela coisa! E o dono deste valente punho que os fez tombar chama-se “Mão de Ferro”. Agora, tem a bondade de olhar para mim! Nunca ouviste falar num campineiro a quem os navajos tiraram as orelhas? Não se chamava ele Sans-ear? Pois aqui está ele em carne e osso, — e batendo no peito — sou eu, sou eu em pessoa! Pois fomos nós os dois que nos aventuramos sozinhos a atravessar o Llano Estacado e também fomos nós que ontem fizemos vir àquela chuva! Oh! Só mesmo nós! Ou talvez já ouviste falar que algum dia chovesse naturalmente no Llano Estacado?

Os homens ficaram visivelmente alarmados com esta nossa apresentação. William tomou em primeiro lugar a palavra. Ele refletira sobre a gravidade da situação e ao ouvir pronunciar os nossos nomes, concluíra que seria improfícua qualquer tentativa de violência.

— Se os senhores são realmente os homens que dizem ser, estamos serenos e tranqüilos, pois temos certeza de que agirão, segundo os ditames da justiça. Em vista disso, vou-lhes dizer toda a verdade. Eu, antigamente, não me chamava William. Resolvi, depois, trocar o nome, mas isto não constitui crime porque os verdadeiros nomes dos senhores também não são “Mão de Ferro” e Sans-ear! Cada um pode adotar o nome que bem entender.

— Perfeitamente. Mas não é pela troca do nome que és acusado perante o júri!

— E de assassino também não poderão acusar-me; não praticamos nenhum assassinato aqui contra os senhores e nem havíamos planejado praticá-lo. É verdade que ontem à noite estivemos arquitetando um plano para eliminar alguém do mundo. Mas citamos por esta ocasião o nome dos senhores?

O bom Sam, meio desnorteado, conservou-se por algum tempo cabisbaixo e pensativo e depois disse com inflexão de aborrecimento na voz:

— Não, realmente não citaram; mas das palavras que pronunciaram não se podia concluir outra cousa!

— Uma conclusão não é uma prova concreta. O tribunal das savanas é uma instituição digna de encômios e para que permaneça no nível elevado em que se acha, mister se torna que seus juizes procedam com justiça, baseando-se em provas materiais e não em meras suposições. Acolhemos com carinho “Mão de Ferro” e Sans-ear em nossa caravana e em paga dessa nossa hospitalidade pretendem eles matar-nos. Esta injustiça correria mundo, desde as campinas do oeste bravio até as cidades do Mississípi, desde o Golfo Mexicano até o lago dos Escravos; e todos haviam de dizer que os dois célebres caçadores não eram aqueles homens nobres e justiceiros, conforme rezam as tradições, mas sim bandidos e ladrões vulgares!

Confesso que o canalha defendia-se com brilhantismo. Sam, surpreendido pela formidável lógica desenvolvida pelo pseudo caçador, ficou a tal ponto emocionado que se ergueu de um salto e exclamou:

— ‘s death, isto ninguém dirá porque não os condenaremos. Sou de opinião que os senhores devem ser restituídos à liberdade. Qual a opinião dos demais juizes?

— Concordamos com os senhores. Devem ser postos em liberdade, pois não cometeram crime algum, são inocentes! — exclamaram os três comerciantes em coro.

Aliás, esses comerciantes, desde o começo, não estavam lá muito convencidos da culpabilidade dos criminosos.

— Também eu, pelo que sei deles, nada posso deduzir que concorra para a sua condenação, — declarou Bernhard, a quem a defesa desenvolvida pelo bandido havia impressionado também. — As suas verdadeiras profissões e os seus verdadeiros nomes não são da nossa conta, creio eu. Nem nos fica bem andarmos aí a fazer perguntas indiscretas. E quanto ao crime pelo qual iríamos julgá-los, deles só temos suposições e nenhuma prova concreta.

Bob, o negro fez uma cara decepcionada; vira, dum momento para outro, frustrada sua esperança de enforcar os bandidos. Quanto a mim, nada mais me restava do que me conformar com a maioria do júri. Este desfecho eu já o previra, razão por que não só adiara o julgamento para quando se tornasse dia como também entregara a presidência do tribunal a Sam. Como velho caçador, ele era de uma sagacidade rara; mas não sabia, por meio de um interrogatório inteligente e astucioso, conduzir um criminoso à confissão do crime. Nas planícies nunca se tem à vida segura; por que, pois, eliminar a vida de cinco homens que não chegaram a perpetrar o crime premeditado? Quiséssemos agir desta forma e teríamos que matar todo o indivíduo suspeito que a cada passo se encontra pelas savanas. Aliás, eu não tinha o menor interesse em executar aqueles homens; o que me interessava, isto sim, era a nossa segurança pessoal e para garanti-la, daqui por diante me seria fácil tomar as medidas mais eficientes. Mas uma pequena desforra eu resolvera tirar de Sam. Ele sempre me censurava os gestos de humanidade e, no entanto agora procedera do mesmo modo. Assim, quando ele se dirigiu a mim, a fim de ouvir a minha opinião, perguntei-lhe:

— Conheces ainda, Sam, a maior das vantagens da tua “Tony”?

— Qual? Ela tem tantas!

— Ora aquela que me expuseste no dia em que fiz os índios tombarem apenas sem sentidos!

— Não me recordo.

— Ora, pois vou te dizer: A sua vantagem maior é possuir mais inteligência do que tu!

— Oh! Recordo-me agora e tu mostras que também tens boa memória para estas coisas! Mas que culpa tenho eu de ser um simples campineiro e não um jurisconsulto? Talvez tu, em meu lugar, levasses esta gente a confessar o crime que premeditaram; por que não te fizeste de xerife conforme eu propusera? Enfim eles agora estão livres, pois o que o tribunal resolve não pode ser revogado.

— Claro. A minha opinião não influiria mais no veredicto do tribunal. Estão livres da acusação da tentativa de morte que lhes fizéramos, mas livres de todo ainda não. Mr. William, vou agora fazer-lhe uma pergunta e de sua resposta dependerá o modo por que os havemos de tratar daqui por diante! — disse eu ao “caçador”. — Qual a direção que se toma, para chegar mais depressa ao rio Pecos?

— A do oeste, em linha reta.

— Que tempo se gastará na viagem?

— Dois dias.

— Eu os considero “bandidos do deserto”, embora o senhor tivesse tido ontem a sagacidade de me prevenir contra essa casta de salteadores que atuam no Estacado. O senhor com o seu bando conduziu esta gente pela rota errada. Pois bem, ficarão todos os cinco nossos prisioneiros durante estes dias. Se dentro desse prazo não atingirmos aquele rio, ai dos senhores! Serão sumariamente executados. Então eu, em pessoa, dirigirei os trabalhos do tribunal! Agora já sabem o que lhes espera, se nos faltarem com a verdade!

E dirigindo-me aos meus companheiros, ordenei:

— Amarrem-nos aos cavalos e avante!

— Oh! Ah! Munto bem, isto sim, patrão mestre! — exclamou radiante Bob. — Se nois não chega ao rio, Bob enforca bandidos!

Daí a um quarto de hora achávamo-nos em caminho. Os prisioneiros amarrados nos cavalos iam no meio, escoltados por nós. Bob parecia não querer largar mais o seu cargo de meirinho; não deixava os prisioneiros, conservando-os à vista. Sam governava o grupo de trás e eu, com Bernhard, seguia na frente.

Os acontecimentos da véspera constituíam o tema de nossa palestra, mas achei de bom aviso não me estender em mais amplas considerações em torno do caso. Por fim, afastando-nos um pouco dos “caçadores”, perguntou-me ele:

— É verdade a afirmativa de Sans-ear de haver sido o senhor quem fez chover?

— Sim.

— Custa-me crer, embora eu saiba que o senhor só diz a verdade.

— Fiz chover para salvá-los.

Expliquei-lhe então o processo de que lancei mão para provocar a chuva, processo de que os profetas e homens da “medicina” de muitas tribos usam e granjeiam com ele uma auréola de divindade entre as suas tribos.

— Assim como diz, o processo é simples, não há dúvida. Mas muito poucos o conhecem. E nós todos lhe devemos a vida. Se não viesse aquela chuva, teríamos perecido de inanição no local em que nos encontrou.

— Não teriam morrido de inanição, não, mas assassinados! Senão, olhe para os arreios desses supostos “caçadores” das campinas! Eles não sofreram e nem sofreriam a menor sede. Se eu não tivesse verdadeiro pavor em ver o derrame de sangue humano, os teria fulminado a tiros. Como se chama o mais jovem deles que ontem esteve de guarda junto com William?

— Meercroft.

— Por certo que é também um nome suposto. Este rapaz, apesar de sua pouca idade, é o que mais suspeita me desperta e tenho uma vaga idéia de já ter visto uma cara parecida em situação pouco recomendável. Ai deles se no dia esperado não atingirmos o rio! Agora, relate-me os pormenores do assassinato e saque do seu pobre pai!

— Não há abundância de pormenores no caso. Allan seguira para S. Francisco, a fim de efetuar compra de ouro. Estávamos em casa na companhia apenas de Bob e da governanta; éramos, pois em quatro, visto que os trabalhadores moram fora. Papai costumava sair sempre à noite, conforme o senhor deve estar lembrado, e uma manhã encontramo-lo morto em frente à porta, e todas as jóias de valor que se achavam na loja e nas oficinas roubadas. Ele sempre trazia consigo uma chave que abria todas as portas. Tiraram-lhe, depois de morto essa chave geral e com seu auxílio penetraram em todos os compartimentos e fizeram o roubo calmamente, sem que ninguém os embaraçasse no ato criminoso.

— Não suspeitam de ninguém?

— Há apenas um dos auxiliares que conhecia o segredo da chave geral, mas as diligências policiais nada apuraram contra ele. Os auxiliares, depois da triste ocorrência, tiveram que ser todos despedidos e se encaminharam para diversas direções em busca de trabalho. Havia entre as jóias roubadas muitas de elevado valor. Fui obrigado a indenizá-las todas e mal sobraram-me recursos para empreender esta viagem em procura do meu irmão, do qual repentinamente deixamos de receber notícias.

— Não alimentam, pois, esperanças de descobrir o assassino ou assassinos e receberem a restituição, pelo menos da parte das jóias roubadas?

— Absolutamente nenhuma. Os criminosos, de posse do roubo já devem ter desaparecido de há muito do país. Embora tenhamos colocado anúncios nos principais jornais da América e da Europa, fazendo a descrição detalhada das jóias, creio que não colheremos resultado algum, pois os malfeitores sempre acham esconderijos seguros para ocultarem o produto de seus crimes.

— Eu teria vontade de ler um desses anúncios!

— Pois poderá lê-lo já. Trago sempre um número do Morning Herald comigo, para qualquer eventualidade.

 

SUSPEITA QUE SE CONFIRMA

Tirou do bolso o exemplar do jornal e me alcançou. Li toda a descrição das jóias com visível interesse e tive um arrepio pelo corpo como que a confirmar uma coisa que previra. Lembrei-me logo do diamante e mais jóias que tirara a Fred Morgan. Quando terminei a leitura, dobrei o jornal e o entreguei novamente ao dono, dizendo-lhe:

— Que diria o senhor se eu lhe descrevesse com exatidão os autores ou, pelo menos, um dos autores do crime?

— O senhor, Carlos? — perguntou ele apressado.

— E se além disso, o auxiliasse a recuperar pelo menos uma parte dos valores roubados?

— Não faça pilhérias, Carlos! O senhor estava nas savanas, quando se deu o assalto. Como então pretende ter descoberto o que outros que se achavam na cidade e estavam mais a par dos acontecimentos, não conseguiram?

— Bernhard, eu me tornei um homem um tanto rude. Mas feliz daquele que conserva, quando se torna homem prático, a crença que na juventude lhe incutiram no espírito! Há dois olhos que velam por tudo no mundo e uma mão invisível que, embora às vezes por caminhos que nos pareçam maus, nos guia para finalidades boas. E as savanas e Louisville não podiam deixar de estar ao alcance desta mão. Senão veja! Tirei a bolsa da maleta e lhe alcancei. Ele agarrou-a com agitação febril e, quando a abria, vi que sua mão tremia. Mal pôs os olhos dentro da bolsa, proferiu uma exclamação de alegria.

— Graças, meu Deus! O nosso diamante! Sim, é ele mesmo! Mas, Carlos, como conseguiu...

— Pare! — interrompi-o. — Domine-se! Os bandidos que vêm aí atrás não precisam saber do que estamos falando! Se o diamante e as outras pedras são as suas, do que, aliás, estou firmemente convencido, fique com elas! Para que o senhor não me tome por um dos bandidos, vou narrar-lhe as circunstâncias em que me apossei desses valores.

— Mas Carlos, que injustiça! Que pensa de mim? Como pode o senhor desconfiar que eu, de leve que fosse...

— Pare, pare! O senhor já nem fala, grita como se lá na Austrália precisassem saber do que estamos falando!

Ele estava louco de alegria. Alegrava-me de coração com o seu contentamento e doía-me não me ser possível restituir-lhe, com a parte das jóias roubadas, a vida do seu bom e extremoso pai.

— Conte, Carlos, conte! Estou ansioso por saber como as minhas pedras lhe vieram parar às mãos! — suplicou-me o pobre rapaz.

— Quase que também cheguei a prender o assassino e ladrão. Ele esteve tão perto de mim, que com um pontapé derribei-o da locomotiva e Sam saiu em seu encalço; em vão, porém. Mas espero apanhá-lo ainda, e isso o mais breve possível lá do outro lado do rio Pecos. Para lá ele se dirigiu a fim de praticar outro crime idêntico, do qual já temos notícia e vamos seguindo a pista.

— Conte, conte, Carlos!

Contei-lhe o assalto ao trem empreendido pelos ogellallahs, com todos os seus pormenores, e li-lhe também a carta que Patrik escrevera a Fred Morgan. O jovem ouviu-me com toda a atenção e, ao terminar o meu relato, exclamou:

— Nós o pegaremos, Carlos, e dele saberemos onde foi parar o resto das jóias.

— Não desande novamente a gritar, Bernhard! Estamos a poucos passos dos malfeitores que vamos conduzindo; além disso, no oeste devemos ser discretos mesmo em face das cousas mais simples, a fim de evitar que indivíduos mal-intencionados, que possam estar acoitados por aí, tirem partido de nossa verbosidade.

— Mas o senhor me entrega as pedras, sem mais formalidades, sem mais condições?

— Claro, pois lhe pertencem!

— Carlos, o senhor é o homem mais... contudo atenda-me um pedido que lhe faço com empenho!

Pôs a mão na bolsa e de lá tirou um brilhante.

— Faça-me o favor de aceitar esta jóia como lembrança minha!

— Era só o que faltava, Bernhard! O senhor não pode desfazer-se de cousa alguma. Não tem o direito de presentear nada, pois esses valores não são só seus, pertencem também ao seu irmão.

— Allan aprovará este meu ato!

— É bem possível; estou, mesmo, convencido disso. Mas reflita que essas pedras estão muito longe de constituírem os valores todos que lhes foram roubados. Fique, pois, com esse brilhante e, quando nos separarmos, dê-me algum objeto qualquer que não lhe custe nada e terá para mim grande valor estimativo, servindo-me de lembrança que conservarei com o maior carinho. Agora, porém, continue a cavalgar nesta direção, que eu vou esperar por Sam!

Deixei-o entregue à sua alegria e parei o cavalo, a fim de deixar passar a caravana e unir-me a Sam que cavalgava na retaguarda.

— De que assunto extraordinário estava a falar lá na frente, Carlos? — perguntou-me o companheiro.

— Sabes quem é o assassino do pai de Bernhard?

— Quem? Não acredito que tenhas descoberto?

— Como não!

— Well done! És um homem de muita sorte. Tu estás mesmo em condições de obter dormindo qualquer cousa por que outros lutam anos a fio. Espero que desta vez não te tenhas enganado! Afinal quem é o assassino do pai daquele rapaz?

— Fred Morgan.

— Hein? Fred Morgan?! Carlos, acredito muito em ti, porém, tudo, menos isso! Morgan é um canalha do oeste bravio que não se arrisca a pisar em cidades do leste, onde não se pode deixar ver pela polícia, que o tem fichado.

— Seja como quiseres. As pedras, porém, são as mesmas roubadas ao velho Marshall, depois de haver sido assassinado. Já as devolvi ao filho, um dos legítimos donos, como herdeiro que é do pai.

— Ah! Se fizeste isto é porque tens provas seguras de que lhes pertenceram de fato. Como o pobre rapaz deve estar satisfeito! Bom, isto constitui mais um motivo para eu procurar aquele Morgan e dizer-lhe algumas palavras confidenciais... Espero, em breve, fazer na minha espingarda o entalhe que lhe diz respeito!

— E que faremos depois de encontrá-lo e com ele justarmos contas?

— Que faremos depois disso? Hum! Por causa dele eu vim ao sul e teria ido ao México, ao Brasil e até à Terra do Fogo. Talvez que depois me disponha a seguir para a Califórnia onde, dizem, a gente vive sensacionais aventuras!

— Neste caso, te acompanharei até lá. Ainda tenho algum tempo e não gostaria de deixar o Bernhard fazer esta longa viagem sozinho.

— Muito bem! Estamos combinados, conto contigo! Antes de tudo, vamos ver se saímos com o pêlo intacto deste maldito areal e daquela não menos maldita cáfila de bandidos que vamos tocando por diante! Eles me agradam agora ainda menos do que hoje de manhã e muito especialmente aquele jovem que ontem montou guarda com William. Ele tem uma cara de bandoleiro como igual nunca vi na vida. Se não me engano, já o avistei uma ocasião praticando qualquer ação criminosa!

— Pois também eu tenho uma vaga idéia de já havê-lo encontrado nas mesmas circunstâncias. Vou puxar pela memória; é possível que me venha ainda a recordar de quem se trata.

Continuamos a cavalgar sem interrupção até o anoitecer, quando acampamos; tratamos dos cavalos, tomamos a nossa refeição que consistiu de xarque de búfalo, e nos deitamos a dormir. Os prisioneiros dormiram amarrados e de sentinela à vista. Pela manhã continuamos a cavalgada e, ao meio-dia, verificamos que o solo se tornava menos estéril. Os bosques de cactos que encontrávamos tinham mais seivas, e aqui e acolá erguiam-se pequenos lençóis de relva verde-amarelada que os nossos animais pastavam até deixar o solo nu. Pouco a pouco iam surgindo pequenos arbustos aglomerados. O deserto adquiria a feição de um prado e éramos obrigados a parar para satisfazer os nossos cavalos, que se deliciavam com o pasto verde que se lhes deparava. Não devíamos deixá-los comer demasiadamente e por isso amarramo-los de modo que só podiam pastar até o ponto em que os laços que os seguravam lhes permitiam alcançar. Agora podíamos ter a certeza de que, dentro em pouco, encontraríamos uma aguada qualquer e por isso já não mais poupávamos muito a água que trazíamos nos cantis.

 

NA CAVERNA DOS BANDOLEIROS

Comentávamos, satisfeitos, o fato de já se achar o fatídico Llano Estacado por trás de nós, quando William, aproximando-se, me perguntou:

— Sir, acredita agora que lhe falei a verdade?

— Sim, acredito. Reconheço a zona. Estamos próximos do rio Pecos.

— Então nos devolva as armas e nos solte. Nada lhes fizemos e temos o direito de fazer-lhe esta exigência.

— É possível que lhes assista este direito. Como, porém, não sou eu o único a quem cabe dispor sobre os senhores, vou consultar os companheiros.

Sentamo-nos na relva para deliberarmos. Abri a sessão com as seguintes palavras:

— Meus senhores, já saímos do deserto e entramos em território seguro; agora precisamos saber se continuaremos a viagem juntos. — E dirigindo-me aos negociantes, perguntei:

— Para onde pretendem os senhores seguir?

— Para o Paso del Norte, — foi a resposta.

— Nós os quatros seguiremos para Santa Fé; portanto o nosso caminho é outro, teremos que nos despedir. Antes, porém, resolvamos sobre o destino a ser dado a esses cinco prisioneiros.

Este assunto daí a pouco estava solucionado com a resolução unânime de se dar imediatamente liberdade aos “caçadores”. Aliás, essa resolução em nada prejudicava o meu plano. Devolvemos-lhes tudo o que lhes pertencia e eles se puseram logo em caminho. Ao serem perguntados para onde tencionavam seguir, William respondeu que iam seguir o curso do Rio Pecos até o Rio Grande del Norte em caçadas de búfalos. Mal se passara meia hora, que eles se haviam retirado, quando os comerciantes partiram também, e daí a instantes ambos os grupos desapareciam no horizonte.

Desde que os homens haviam partido, nós nos conservamos sentados imersos em profundo mutismo. Sam rompeu então o silêncio, perguntando-me:

— Que achas dos “caçadores”, Carlos?

— Que não vão seguir o curso do rio Peco até o rio Grande em caçadas de búfalos, conforme declararam.

— Well, sou da mesma opinião. Fizeste bem em dar-lhes pista  errada, declarando que seguiríamos para Santa Fé, hihihihi! Afinal, que faremos agora? Ficamos aqui ou continuaremos?

— Decido-me pelo primeiro dos casos. Persegui-los seria de maus resultados, pois eles estão certos de que tomaremos tal medida e se porão em guarda. Assim, o mais acertado será permanecermos aqui para descansar e deixar os animais pastarem até amanhã cedo.

— Mas se aqueles bandoleiros voltarem para nos agredir? — ponderou Marshall.

—Teremos, então, razão para liquidar com eles independentemente da realização de um júri. De resto, vou agora fazer um pequeno reconhecimento. Encarrego-me disso porque o meu cavalo é o que está menos cansado. Fiquem aqui até o entardecer, hora em que voltarei.

Não liguei importância às insistências de Sam para que fosse ele fazer o reconhecimento; montei a cavalo e segui as pegadas dos “caçadores”. Estes se dirigiam para o sudoeste por solos verdejantes, ao passo que os comerciantes se encaminhavam mais para o sul.

Segui as pisadas a trote. Os “caçadores” haviam começado a viagem a passo lento, porém, mais adiante, cavalgaram com mais velocidade, pois demorou meia hora até eu avistá-los. Eu sabia que eles não traziam binóculos consigo e, deste modo, poderia segui-los de maneira a conservá-los sempre ao alcance das lentes.

Algum tempo depois, vi, com surpresa, que um deles se separava do grupo e se dirigia em linha reta para o oeste. Vislumbrei naquela altura um pequeno bosque que tinha, no meio da campina, o formato de uma península. Lá devia haver algum arroio ou outra qualquer corrente d’água. Que fazer agora? Qual deles devia eu seguir? Os quatro ou aquele que se desviou da rota? Intimamente desconfiava de que este último tinha algum plano em vista, plano que se relacionava com o nosso grupo. O destino que os quatro tomavam era nos indiferente, o mesmo não se dando com o outro. Era de grande vantagem para nós conhecer o propósito que aquele cavaleiro concebera. Por isso decidi-me e segui-o.

Depois de três quartos de hora, vi-o desaparecer entre os macegais. Fiz o meu poldro galopar e descrevi um arco pelo caminho, a fim de não ser visto no caso do “caçador” voltar pela mesma vereda. Pouco distante do ponto, onde o bandoleiro do deserto se embrenhou no bosque, chegava eu dentro de alguns minutos. Entrei no bosque a cavalo e alcancei uma pequena clareira rodeada de pequenos arbustos. A clareira estava coberta por verdejante relva e era cortada por um poético regato, que já ao longe se fazia ouvir no murmúrio de suas águas argentinas. Apeei e amarrei o cavalo, de forma que ele pudesse beber e pastar. Debrucei-me à beira do regato e bebi de sua água, que era cristalina e fresca como se brotasse de uma rocha. Depois, me encaminhei para o rumo onde esperava encontrar as pegadas do cavaleiro.

Isto sucedeu logo depois e, pasmado, descobri que por ali havia passado maior número de cavaleiros, como descobri ainda que no meio do bosque havia também um caminho secreto com sinais de ser atravessado constantemente. Não seria aquele bosque o esconderijo dalguma quadrilha de salteadores? Evitei caminhar por ele. Era bem possível que em suas margens estivesse postado algum guarda, e a todo o momento eu poderia ser mimoseado com um “grão de azeitona” na cabeça! Peguei outro rumo paralelo a ele e, pouco depois, tive a minha atenção despertada por um relincho de cavalo.

Ia mesmo contornar uma touceira de arbustos para observar o cavalo que bufara, quando fui obrigado a recuar apressado. No meio de um macegal, do outro lado, se achava postado um homem com os olhos fixos na estrada, de forma que poderia ver quem por ela passasse. Era o guarda de cuja presença eu desconfiara. De sua presença ali podia deduzir-se que havia pelas redondezas um grupo de gente.

O homem nem me viu, nem me ouviu. Voltei, tomei novo rumo por uma curva, passando por trás dele, e dentro de pouco tempo eu havia reconhecido todo o terreno.

Voltei para a clareira e examinei bem o denso macegal que se erguia na sua orla, a ver se por ele não havia alguma entrada secreta que conduzisse a alguma caverna. Nada descobri. Mas devia existir e ali mesmo. Com certeza estava tão disfarçada, que difícil seria dar com os olhos nela. Essa minha suposição confirmava-se minutos depois, visto que ouvi altas vozes denunciarem a presença de alguns homens lá dentro.

Deveria arriscar um reconhecimento, ou não? Era perigoso, mas resolvi efetuá-lo. Abeirei-me do macegal e, depois de muito examiná-lo, descobri-lhe a entrada. Continuei, e, mais adiante, através da folhagem, divisei outra clareira. Na sua orla achavam-se amarrados nada menos de dezoito cavalos. Bem perto do local, onde me achava de gatinhas, vi sentados dezessete homens, ao lado dos quais havia grande número de objetos cobertos com peles de búfalos. Tive a impressão de se tratar da caverna de um bando de salteadores, onde eles guardavam os valores roubados para depois os repartirem entre si.

No momento, um dos homens falava aos demais. Era William. Eu podia compreender tudo o que dizia:

— Um deles deve ter-me espreitado, pois recebi, repentinamente, um soco na cabeça que me fez rolar ao solo, sem sentidos.

— Ah! Foste espreitado? — perguntou um com inflexão enérgica na voz. Tinha o sotaque e os trajes de mexicano. — Pois és um imbecil, que já não nos serve mais de nada. Como te foste deixar espreitar e logo no Llano Estacado, onde não há o menor acidente de terreno ou macegal para o observador se ocultar?!

— Não sejas tão severo, capitão! — disse William. — Se soubesses quem me observou, concordarias que até tu cairias na armadilha.

— Eu? Queres que te dê um tiro? E não só foste observado, como também arrojado ao solo com um simples soco, como uma criança, como uma múmia.

William enrugou a testa.

— Tu bem sabes, capitão, que não sou múmia. Aquele que desferiu o golpe, também te arrojaria ao solo, de uma só pancada.

O capitão deu uma gostosa gargalhada.

— Bem, continua na narrativa de tua desastrada missão.

— Também Patrik, que agora passou a chamar-se Meercroft, foi derrubado com um murro por aquele homem.

— O Patrik? Com toda a sua testa de búfalo? E o que mais? William contou-lhe o resto de sua aventura até o ponto em que os “caçadores” foram postos em liberdade.

— Caramba! Não sei onde estou que não te fulmino com um tiro. Sair acompanhado de quatro dos mais corajosos dos meus homens e se deixar dominar e prender por um canalha qualquer, por uma simples ave de arribação! Até pareces uma criança que nunca saiu do rabo da saia da mãe!

— Com mil raios, capitão! Sabes lá quem eram os nossos dois antagonistas, que se apresentaram um com o nome de Carlos e o outro com o de Sam Hawerfield! Se estes dois sujeitos, de espingardas na mão e de facas presas à cinta entrassem agora aqui, muitos dos presentes hesitariam em resistir ou em se entregar voluntariamente a eles. Eram “Mão de Ferro” e o pequeno Sans-ear!

O chefe do bando levantou-se apressado.

— Vil mentiroso! Com isto pretendes justificar a tua covardia e a dos teus companheiros!

— Pois, mata-me, capitão! Não contrairei um único músculo da face! Mas, por Deus que te estou dizendo a pura verdade!

— Mas não te terias enganado? — perguntou o capitão, já mais calmo.

— Absolutamente! Tenho toda a certeza.

— Se for verdade, por todos los santos, ambos terão que morrer, juntamente com o ianque e o seu negro. Do contrário, estes dois caçadores não descansarão enquanto não nos descobrirem e nos liquidarem.

— Nada nos farão, pois ouvi quando disseram continuar a jornada para Santa Fé.

— Cala-te! És mil vezes mais asno do que eles e, no entanto, não serias capaz de dizer-lhes a verdadeira direção que tomarias. Conheço muito bem os hábitos e costumes desse caçadores do norte. Se resolveram procurar as nossas pegadas, eles as acharão, mesmo que houvéssemos atravessado aos ares. Não estamos nem livres de sermos neste momento ouvidos por um deles, que se ache escondido aí pelo macegal!

Essas palavras tiraram-me um pouco a tranqüilidade. Mas o orador continuou:

— Sim, conheço muito bem o sistema de agir daquela gente, pois estive durante um ano inteiro junto com o famigerado Florimont, que era conhecido pelo nome de Track Smeller (*) entre os brancos, e As-ko-lab (**) entre os índios; com ele estudei o seu sistema de fazer reconhecimentos caminhando de gatinhas e a tática de lutar que usam para sempre saírem vencedores. Afianço-lhes que eles não seguirão para Santa Fé e nem abandonarão hoje o seu acampamento. Eles sabem muito bem que amanhã ainda encontrarão as pegadas de vocês e, além disso os seus cavalos, depois da estafante travessia do Estacado, precisam de descanso. Amanhã, porém, eles nos sairão ao encontro e conseguirão alcançar-nos. E, depois, embora saiamos vencedores, eles abaterão a metade do nosso bando. São valentes e têm boas armas! Ouvi dizer que aquele “Mão de Ferro” possui uma espingarda com a qual atira durante uma semana inteira, ininterruptamente, sem que seja preciso carregá-la. O diabo fabricou aquela arma para ele em troca de sua alma. Por isto e por outros motivos, temos que os assaltar hoje mesmo, à noite; esperaremos a hora em que “Mão de Ferro” e Sans-ear dormirem. São apenas quatro pessoas, e por isso não se servirão de mais de uma sentinela. Conheces bem o lugar onde estão acampados?

— Conheço — respondeu William.

— Então, preparem-se! À meia-noite em ponto, precisamos estar lá; iremos a pé, ficando os cavalos aqui. Aproximar-nos-emos de gatinhas e os assaltaremos de surpresa, de maneira que eles não tenham tempo de resistir.

O famoso capitão não nos conhecia tão bem como afirmou, pois do contrário teria tomado providências bem diversas. Nas campinas ocorre o mesmo que nos centros civilizados. Por toda parte perambulam homens com tendência para exagerar as cousas, fazendo de “uma pulga um elefante”, conforme se costuma dizer na gíria. Quando um campineiro se porta uma ou duas vezes com galhardia em face do inimigo, manejando com maestria as suas armas e tirando o máximo partido de sua sagacidade, já os seus feitos são depois relatados de fogueira em fogueira. E, consoante o velho ditado de “quem conta um conto, aumenta um ponto”, todos acrescentam por conta própria, para não ficarem calados, um episódio a mais; de modo que, dentro em pouco, aquele campineiro é considerado um herói sem igual, cujo nome, ao ser pronunciado, produz depois o efeito de uma arma. Como viram os leitores, até o diabo chegou a fabricar uma arma para mim, com a qual eu poderia atirar ininterruptamente uma semana inteira sem carregá-la... Essa arma miraculosa não era senão a minha espingarda de repetição sistema Henri, com a qual, é verdade, eu atirava vinte e cinco vezes sem carregar.

— Onde está o Patrik e os demais? — perguntou o chefe da quadrilha.

— Cavalgaram para o Head-Pick, onde Patrik vai encontrar-se com seu pai, conforme já te avisara. Eles assaltarão também os três comerciantes que conduzem

____________________

(*) — Farejador de sendas.

(**) — Coração de urso.

 

lindas armas e uma boa soma em dinheiro. Talvez que a esta hora já tenham até terminado este “serviço”.

— E depois Patrik me remeterá o dinheiro e as armas roubadas?

— Sim, por intermédio de dois dos homens. O outro o acompanhará até o Head-Pick.

— Melhores armas, porém, que as dos comerciantes, nos vai render o assalto que planejamos aos dois caçadores. Ouvi dizer que Sans-ear possui uma espingarda com a qual se pode alvejar numa distância de mil e duzentos metros.

Neste instante ouviu-se ao longe o uivo de um cão lebreiro. Fora um sinal muito mal convencionado, pois não existe desses cães nesta zona. Era para despertar a suspeita do menos atilado inimigo.

— É Antônio que chega com os marcos, que vamos fincar no Estacado — disse o capitão. — Dize-lhe para não descarregar lá fora, mas para trazê-los cá para dentro. Desde que estes dois caçadores andam pelas redondezas, toda cautela é pouca.

Agora eu não podia ter a menor dúvida de que me achava diante de uma quadrilha de bandoleiros do deserto, que aqui havia estabelecido o seu quartel general. Os objetos cobertos por peles de búfalos eram o produto que haviam tirado aos pobres viajantes depois de mortos de inanição no Llano Estacado. Neste instante, três cavaleiros entraram na clareira trazendo à garupa enormes feixes de varas que iam ser transformadas em marcos.

A chegada desses cavaleiros desviara de tal modo a atenção dos bandidos, que me era possível retirar-me calmamente sem ser visto; não quis fazê-lo, porém, sem deixar ali uma lembrança minha. O chefe da quadrilha, o tal “capitão”, que se afastara com o bando, um pouco do lugar, deixara no solo a sua cinta de onde pendiam uma faca e duas pistolas de dois canos e de cabo niquelado. Achava-se aquela peça de equipamento tão próxima de mim, que com o braço podia alcançá-la. Agarreia e tornei para o local onde ficara a minha montaria, tendo o cuidado de desfazer todos os vestígios que eu deixara pelo caminho. Desamarrei o animal, montei e voltei, desviando-me de tal modo da vereda primitiva, que impossível seria aos bandidos me avistarem.

Quando cheguei ao nosso acampamento, estava escurecendo. Notei nas fisionomias dos companheiros que estes se achavam tomados de cuidado por mim e esperavam com ansiedade o meu regresso.

— Oh! Aí vem o mestre! — exclamou o preto, com tal inflexão na voz, que eu podia deduzir não estar ele muito satisfeito comigo. — Oh! Bob tava com munto medo e também os meus companheiros tavam com cuidado em Carlo!

Os outros camaradas mostraram-se menos zangados. Deixaram-me apear e tomar lugar ao lado deles, antes de Sam começar as suas perguntas:

— E afinal? Que viu? Que observou?

— Os comerciantes foram mortos e saqueados!

— Isso eu já esperava. Estes “caçadores”, que não passam de bandoleiros do deserto, não deixariam de se desviar da rota que levavam para voltar por uma curva e assaltar os negociantes, à noite, se é que o não tivessem feito de dia.

— Adivinha quem é aquele Meercroft?

— Já muitas vezes tenho-te dito que prefiro lutar com um urso cinzento do que adivinhar alguma cousa!

— Meercroft era um nome suposto; o seu verdadeiro nome é...

— Nem tão tolo seria eu para crer que se tratava de nome verdadeiro.

Concluí a minha frase interrompida:

— ...Patrik.

— Pa... trik Mor... gan! — exclamou Sam, com a fisionomia tão sombria como nunca o vira desde que com ele fizera relações. — Patrik Morgan! Mas será possível! Oh! Sam Hawerfield, velho burro! Como foste idiota, tendo aquele bandido nas mãos, presides um júri reunido para julgá-lo e depois o mandas calmamente embora! Mas, Carlos, tens plena certeza de que é ele mesmo?

— Absoluta certeza; e agora eu sei por que eu tinha uma vaga idéia de já o haver visto. O jovem bandoleiro é muito parecido com o pai.

— Ali right, agora mil luzes iluminam-me o cérebro. Bem eu dizia que já o havia pilhado de uma feita praticando algum crime. Mas onde está ele?

— A esta hora deve estar massacrando os três comerciantes e depois seguirá acompanhado de um dos bandidos do Estacado para o Head-Pick, onde se encontrará com o pai.

— Então, de pé minha gente! Partiremos já em sua perseguição.

— Devagar, Sam! Não vês que já é noite e no escuro não lhe poderemos seguir as pegadas e, além disso, temos de nos preparar para receber uma visita mui honrosa?

— Uma visita? Mas quem nestas miseráveis paragens se lembrará de nos visitar?

— Aquele Patrik pertence a uma quadrilha de bandidos, que possui o seu reduto lá adiante no interior de um bosque. O chefe da quadrilha é um mexicano, a quem eles tratam de “capitão”, o qual na companhia do velho Florimont, não adquiriu tão má escola, não! Observei os salteadores, no momento em que William lhes relatava a nossa aventura. À meia-noite em ponto eles pretendem efetuar o ataque contra nós.

— Então pensam que vamos ficar acampados aqui?

— Pelo que ouvi, sim.

— Pois agora mesmo é que não mudaremos de acampamento. Serão recebidos aqui mesmo. Quantos homens são?

— Vinte e um.

— É um efetivo um pouco grande para nós quatro. Que achas, Carlos? Acendemos uma fogueira e colocamos nossos trajes em frente dela, de modo que eles suponham que somos nós; ao mesmo tempo nos postamos lá adiante, de maneira que eles ficarão colocados entre nós e a fogueira. Assim dispostos, se tornarão alvo seguro para as nossas espingardas.

— O plano é bom — opinou Marshall — é, aliás, o único com viabilidade de execução para o momento.

— Bravos! Então vamos colher lenha — acrescentou Sam, erguendo-se do solo.

— Fica sentado! — retruquei-lhe. — Então achas que com este plano rechaçaremos vinte e um assaltantes?

— Por que não? Aos primeiros tiros, eles desandarão a fugir, pois não sabem o que têm pela frente, supondo, talvez, que nesse meio tempo o nosso grupo tenha aumentado com a chegada de amigos.

— Mas se aquele “capitão” tiver inteligência bastante para perceber o nosso truque? Então a nossa situação se tornará insustentável e seremos esmagados pelo inimigo.

— Realmente. Esta eventualidade o caçador experimentado precisa levar sempre em conta, quando organiza um plano.

— E se formos mortos, tu não tirarás vindita aos Morgans!

— Tens razão! Então opinas que nos retiremos, antes que eles ponham mãos à obra?

— Era só o que faltava! Concebi outro plano, a meu ver mais exeqüível.

— Então desembucha!

— Enquanto nos procuram, invadiremos o seu esconderijo e nos apoderamos de sua cavalhada e dos haveres que lá estão ocultos.

— Boa idéia! Mas tu falas em apreender-lhes a cavalhada; achas que eles vêm a pé?

— Foi o que combinaram, e, daí, concluo que abandonarão o reduto duas horas antes da meia-noite, tempo que precisam para, a pé, chegarem até aqui.

— Mas tens confiança no êxito do teu plano?

— Certamente. Se os esperarmos aqui, poremos as nossas vidas em jogo; e se lhes tirarmos os cavalos, as munições e as provisões, eles não poderão, por algum tempo pelo menos, continuar no seu banditismo e nós não teremos necessidade de deflagrar um só tiro.

— Mas eles deixarão o reduto guarnecido por um guarda.

— Conheço bem o lugar onde se posta a sentinela.

— Mas depois nos perseguirão.

— Isto também farão se ficarmos aqui, quando tivermos de bater em retirada.

— Bem, concordo contigo. Quando partiremos?

— Podemos fazê-lo dentro de quinze minutos, quando já estiver bem escuro.

— Oh! vai sê munto bom! — disse o negro. — Bob vai junto e traiz tudo o que os ladrões roubaram. É mió do que fica aqui e os bandidos mata Bob.

Escureceu de tal forma que não víamos a dez passos à nossa dianteira. Partimos. Eu cavalgava à frente e os outros me seguiam, um a um, como fazem os indígenas.

Naturalmente que não nos dirigimos em linha reta para a caverna dos bandidos. Cortamos um enorme semicírculo e fizemos alto a uma milha do esconderijo. Aí amarramos os cavalos e a pé nos encaminhamos para o esconderijo. Embora Marshall e o negro não estivessem práticos em andar de gatinhas, não tardou que chegássemos ao macegal onde estivera a sentinela. Uma luz bruxuleante vista no esconderijo denotava que neste fora acesa uma fogueira ou talvez uma simples tocha. Em torno de nós, porém, estava tão escuro que podíamos caminhar de pé e descuidadamente na clareira. Chegamos ao ponto de onde ouvi toda a conversa entre o “capitão” e William e ouvimos de novo, antes que nos tivéssemos baixado, a voz do chefe da quadrilha. Avancei um trecho e vi que todos se achavam no meio da clareira armados e prontos para partir. O “capitão” ainda falava:

— Se estivéssemos encontrado a menor pegada, eu diria que um dos caçadores já esteve aqui a nos observar. Onde foram, pois, parar as pistolas? Ah! Talvez eu as tenha perdido na cavalgada da manhã. Bem, Hoblyn, avistaste, realmente, todos quatro sentados juntos?

— Sim, todos quatro. Três brancos e um negro, e os cavalos pastavam ao lado. Um dos animais não tem rabo e se parece com um bode sem chifres.

— É a velha égua de Sans-ear, tão célebre quanto ele. Não te notaram?

— Não; eu cavalguei com William até determinado ponto e depois me arrastei pelo solo até onde pude ver tudo com nitidez.

O discípulo do velho Florimont foi tão inteligente e precavido, que mandou um batedor observar-nos. Por sorte que isto se deu quando eu já havia regressado e me achava sentado junto com os companheiros.

— Bem, então tudo vai calhar às mil maravilhas. Tu, William, estás cansado e por isto ficarás aqui no Hide Spot, e tu, Hoblyn, farás a guarda da estrada; os restantes, porém, avante!

 

EXTINGUINDO A CAVERNA DOS BANDOLEIROS

Pela luz escassa da fogueira vi dezenove homens saírem da caverna, onde só haviam ficado dois. Mal haviam transposto a clareira, eu já estava junto de Sam.

— Em que pé estão os acontecimentos? Ao que parece, eles vão indo.

— Sim. Dois apenas ficaram na caverna. Um guarnecerá a estrada e o outro, que é William, ficará no reduto. William está desarmado, mas o guarda tem a espingarda na mão. Por enquanto nada faremos, pois eles podem ter esquecido alguma cousa e um deles voltará ao esconderijo.

Depois, o guarda foi ocupar o seu lugar. Caminhava despreocupadamente de um lado para outro, dando demonstrações de que se achava convencido de que nada de perigoso ocorria pelas cercanias. Agora não precisávamos mais recear que algum dos bandidos voltasse e não podíamos adiar por mais tempo o nosso propósito.

Esgueiramo-nos por uma touceira de moitas, Sam por um lado e eu. por outro. Quando a sentinela passou por nós, Sam agarrou-a rapidamente pela garganta, apertou-a fazendo-a perder os sentidos sem pronunciar uma palavra Rasguei de seu velho jaquetão de pano umas tiras, fiz uma mordaça e pus-lhe na boca. Em seguida, com o próprio laço que ele trazia à cintura, amarramos-lhe as mãos e os pés.

— Agora o outro! — comandei. Penetramos na caverna. William estava sentado junto à fogueira e assava um pedaço de carne. Achava-se de costas viradas para mim e assim pude aproximar-me sem que ele visse.

— Segure a carne mais para o alto, William, do contrário ela se queimará — disse-lhe eu.

Levantou-se e virou. Quando deu com os olhos em mim e me reconheceu, ficou mudo e inerte, tal o susto que levou.

— Ah! Sim! Boa-noite! Ia quase me esquecendo de saudá-lo. Peço-lhes desculpas por este meu gesto descortês — continuei.

— “Mão.. -. de... Fer... ro” — balbuciou arregalando os olhos. — Que quer aqui?

— Vim devolver a pistola do “capitão”, que levei comigo hoje de tarde quando aqui estive fazendo-lhe uma visitinha, no momento em que o senhor lhe relatava a nossa aventura.

Espalhando as pernas como se estivesse se preparando para um salto, olhou em torno à procura de sua espingarda. Apenas a sua faca de campanha estava ao seu lado.

— Fique sentado sossegadamente, meu caro e mui honrado bandoleiro do deserto. Qualquer movimento seu de reação lhe custará a vida. Em primeiro lugar, estas pistolas do seu chefe estão carregadas e, em segundo, basta o senhor lançar um olhar para a saída da caverna para ser alvejado por uma bala.

Ele olhou para trás e deu com os olhos em Sam, que lhe apontava a espingarda.

— Com mil raios! Estou perdido!

— Talvez não, desde que se sujeite às nossas determinações. — Bernhard e Bob venham!

A este meu chamado em voz alta, apareceram os dois companheiros que se achavam do lado de fora da clareira.

— Lá naquele serigote está preso um laço. Desprende-o, Bob, e amarra este homem!

— Céus e infernos! Pretendem prender-me de novo! Mas só o conseguirão depois de eu morto!

Ao dizer isso, o bandoleiro cravou a faca de campanha no seu próprio coração e tombou pesadamente ao solo.

— Deus de misericórdia! Salvai a sua alma! — exclamei instintivamente e em tom de prece.

— Este canalha carrega talvez mais de cem vidas humanas na consciência! — exclamou Sam com inflexão abafada na voz. — Não pode ter havido uma punhalada mais merecida!

— Ele justiçou-se a si próprio — retruquei. — Graças a Deus que nós não fomos forçados a fazê-lo.

Depois, mandei Bob buscar Hoblyn. Daí a minutos, o negro voltou com ele e o depositou no solo ao nosso lado. Tiramos-lhe a mordaça c o prisioneiro tomou profunda inspiração. Cheios de horror, os seus olhos divagavam pelo corpo do companheiro de banditismo.

— Serás um homem morto, tal qual este aí, se te negares a responder com a verdade as perguntas que te vamos fazer.

— Direi tudo! — prometeu o prisioneiro atônito.

— Dize-me onde está escondido o ouro?

— Está enterrado ali na orla da clareira, por baixo duns sacos de farinha.

Primeiramente, afastamos as peles de búfalos e passamos a examinar os objetos que elas cobriam. Ali havia uma formidável fortuna constituída de todos os valores que são transportados através do Llano Estacado: armas de todas as qualidades e sistemas, pólvora, chumbo, cartuchos, laços, arreiamentos, bolsas, cobertores, trajes completos de viagem e de caçadores, colares, imitação de pérolas, que os indígenas muito apreciam, instrumentos diversos, ferramenta, grandes provisões de carnes secas e outros mantimentos; todos estes objetos, pelos vestígios que apresentavam, demonstravam que haviam sido roubados. Por detrás deste monte havia alguns sacos de farinha, que Bob afastou com tanta facilidade como se estivesse lidando com uma bolsinha, e passamos a cavar o solo. Em pouco tempo desenterramos uma tão grande quantidade de pós e grãos de ouro, que precisaríamos de um cavalo-cargueiro para transportá-la.

Um calafrio de morte me correu a espinha ao me lembrar que numerosos garimpeiros haviam perdido a vida por causa daqueles objetos. Os garimpeiros, quando terminam a exploração de minas, conduzem para as suas casas apenas uma pequena quantidade do precioso metal colhido. O resto convertem em dinheiro ou cheques bancários nos próprios locais das minas, onde seguidamente aparecem mercadores que se dedicam a esse ramo de negócio. Os que morreram na cilada armada pelos bandoleiros do deserto conduziam, é fora de dúvida, aqueles papéis consigo no momento em que tombaram no Estacado para morrer de inanição. E onde foram parar aqueles títulos de valor?

— Onde estão o dinheiro e os cheques bancários que vocês tomaram às vítimas?

— Num outro esconderijo distante daqui. O “capitão” resolveu não os ocultar nesta caverna, porque fazem parte do nosso bando alguns indivíduos em quem ele não confia muito.

— Neste caso, só ele é que conhece o lugar do esconderijo?

— Sim, só ele e o “tenente”.

— Quem é o “tenente” da quadrilha?

— Patrik Morgan.

Esclareceu-se-me um ponto da carta que tomara ao velho Morgan. “De qualquer maneira vamos nos tornar homens ricos” dizia-lhe o filho naquela missiva. Teria ele concebido uma traição aos seus camaradas de rapinagem?

— Não tens ao menos uma pálida idéia do local?

— Ao certo, não sei. Mas, ao que parece, o “capitão” não tem muita confiança no “tenente”. Este, na companhia de mais um camarada, seguiu hoje para o rio Pecos, e amanhã eu, com mais dois homens, iremos segui-lo e observá-lo secretamente.

— Ah! Mas o “capitão”, neste caso não lhe descreveu o local com toda a precisão?

O interrogado calou-se, embaraçado.

— Responde! Se não o fizeres, serás um homem morto, já te disse.

Se, porém, disseres a verdade, seremos indulgentes para contigo, embora todos, sem exceção, mereçam ser sumariamente fuzilados.

— O senhor acertou. O “capitão” fêz-me a descrição exata do local.

— E onde fica?

— Era para eu seguir daqui em linha reta e matar o “tenente” a tiros, no momento em que ele fosse se aproximando do esconderijo. Este fica num pequeno vale, que conheço muito bem, pois lá já estive de uma feita. Ao senhor a descrição pouco interessará, pois, mesmo de posse dela, não encontrará o esconderijo.

— Mas ele te descreveu apenas o vale ou também o local onde estão enterrados os valores?

— O “capitão” não seria tão tolo em me descrever este local. A ordem que recebi foi de matar o “tenente”, assim que ele se aproximasse do vale, e nada mais!

— Bem, serás poupado, com a condição de que nos acompanhes até o vale referido.

— Estou pronto a isso.

— Mas, toma nota: estarás perdido, no momento em que descobrirmos que nos conduzes por caminho errado. Não irás conosco como homem livre, mas como prisioneiro.

— Well, disse Sam. Terminamos as nossas pesquisas aqui. Afinal que faremos agora?

— Levaremos apenas o ouro, e do resto, somente aquilo de que carecemos: armas, munição, fumo, mantimentos e também um pouco daquelas pérolas imitadas para presentearmos os índios que encontrarmos pelo caminho. Vão separando tudo enquanto eu vou dar uma chegada até os cavalos dos bandidos, a fim de examiná-los.

Escolhi quatro excelentes cargueiros mexicanos e três poldros de montaria. Eram melhores do que os animais montados por Bernhard e Bob. Dois deles podiam ser trocados pelos dos dois companheiros; o terceiro eu o destinara a Hoblyn.

Entre as presas que fizemos aos bandidos, havia várias cangalhas para transporte de cargas. Apossei-me do número suficiente para conduzir o que levávamos. Do resto da mercadoria de que não quisemos nos apoderar, fizemos um monte, e despejando pólvora em cima, ateamos fogo. Deste modo os bandidos ficavam sem recursos para continuar, pelo menos durante algum tempo, nas suas pilhagens.

— E que faremos do resto da cavalhada? — perguntou Sam.

— Bob soltará na campina. A medida não é muito aconselhável, mas doi-me matar os pobres animais que culpa nenhuma têm em servir a bandoleiros. Dêm início a viagem, que ainda ficarei aqui para atear fogo nas mercadorias.

— Por que não faz logo para irmos juntos?

— O fogo será visto ao longe. Os bandoleiros do deserto, não nos encontrando no acampamento e vendo o fogo, voltarão a toda pressa, e, apesar da escuridão, poderão nos perseguir e alcançar. Assim, é melhor que eu os deixe tomar uma dianteira e depois cavalgarei velozmente atrás, por outra vereda, a fim de preveni-los para que se ocultem ou tomem novo caminho.

— É boa a idéia! Então, vamos minha gente! — comandou o velho campineiro.

Ele ia à frente levando os cargueiros pelo cabresto, e Marshall e Bob escoltando Hoblyn fechavam a pequena caravana. Enterrei o cadáver de William, pus fogo na pólvora e fiquei parado ao lado do meu animal à espera dos acontecimentos. Assim se passou um quarto de hora; resolvi partir, pois os bandidos poderiam voltar a cada instante e me surpreenderiam ainda ali. O fogo atingira proporções assustadoras e, devido à grande quantidade de cartuchos lá deixados e que não nos fora possível levar, produzia estrondo semelhante ao de uma batalha. Montei e esporeei o meu poldro para sair do alcance da claridade produzida pelas chamas. O fogo destruiu todos os haveres roubados pelos “bandoleiros do deserto”.

 

Na pista dos dois criminosos

Lá nos confins do Texas, Arizona e Novo México, à margem dos afluentes do Rio Grande del Norte, erguem-se as montanhas das serras Rianca e Guadalupe, onde caminhos íngremes serpenteiam em derredor de elevações bravias e selvagens. Ao lado destes caminhos estendem-se grandes matas virgens alternadas de alguns bosques limpos de macegal, de precipícios horríveis a desprender a toda hora enormes blocos de rochas, de vales disformes formando cavernas e furnas, por onde perambula o urso cinzento, o monstro das montanhas, que, por onde passa, espalha o terror e a morte.

Apesar do tétrico dessa zona, por ela ainda encontram passagens manadas de milhares de bisões, que por lá empreendem a migração da primavera; por lá ainda surgem peles-brancas e peles-vermelhas, que, se desaparecem de um momento para o outro, ninguém sabe dizer para onde foram ou o fim que levaram, pois as montanhas, as rochas e a mata virgem são mudas e jamais poderão contar às histórias que se desenrolam naquela região povoada de perigos.

O caçador audaz, que atravessa esta região, em mais nada deve confiar do que na sua espingarda. Nesta região encontram refúgio os egressos da civilização, que por qualquer motivo não se podem deixar avistar pela polícia dos meios civilizados; nesta região perambulam os indígenas que declararam guerra a toda raça branca, porque a raça branca pretende exterminá-los. No meio da mata vislumbra-se, através das ramagens, de quando em vez, ora o boné de pêlo de castor dum escoteiro possante, ora o sombrero de amplas abas dum mexicano, ora o pericote dum indígena. Que faz essa gente aqui? Por que veio para essa triste zona sem contato com o resto do mundo? Só pode haver uma resposta a esta pergunta: veio compelida pelas suas más ações, pelo ódio e pelo desejo de vingança, ou ainda por outros motivos que nem merecem uma referência!

A vasta zona de caça dos apaches e dos comanchos estende-se pelas campinas, indo até o sopé das montanhas, onde confina. Nas fronteiras dessa zona registram-se lances heróicos, dos quais nenhum tratado de história faz menção. Em conseqüência dos contínuos e sangrentos entrechoques daquelas duas tribos, sucede muitas vezes que hordas de indígenas desbaratadas refugiam-se naquelas serras, onde a cada passo são obrigadas a lutar com violência em defesa da vida.

Em suma, é uma das regiões mais perigosas dos Estados Unidos. Há apenas um vale, na serra, por cujo desfiladeiro se consegue descer para a savana.

Havíamos alcançado este vale, que, aliás, por diversas vezes eu já atravessara, mas em companhia de numerosos e valentes companheiros. Agora éramos apenas quatro, e, além disso, estávamos tresnoitados pela vigília constante a que nos obrigava o prisioneiro que trazíamos, que podia, de um momento para outro, rebelar-se e fugir, embora se mostrasse obediente e dócil.

Ele cavalgava no meio de nós, ao lado de Bob. Sam ia à frente com os cargueiros e eu o seguia em companhia de Marshall, que, durante essa longa viagem, se revelou um bom cavaleiro.

Era de manhã e o sol já havia atingido o cume da montanha que nos ficava em frente, do outro lado do rio. Embora estivéssemos em meados de agosto, os seus raios nos beneficiavam, pois nessas paragens montanhosas o rei dos astros costuma desaparecer logo depois do meio dia. As noites eram bem frias, e as manhãs, além de frias, muito úmidas, de tal forma que éramos obrigados a conservar os cobertores aos ombros durante algumas horas.

Durante o dia, Hoblyn cavalgava sempre desamarrado no meio do grupo; de noite, porém, nós o amarrávamos. Ele tinha a sua vida empenhada para garantir a verdade de suas indicações.

— Ainda temos que cavalgar muito para a Shetel e Head-Pick? — perguntou-me Marshall.

— Amanhã alcançaremos a montanha, informou-me Hoblyn, se não tivermos que nos desviar pela direita.

— Não seria melhor dirigirmo-nos diretamente à montanha, onde nos encontraremos com Fred Morgan?

— Mesmo assim não devemos dirigir-nos diretamente para lá, pois ele nos poderia avistar. O bandido sem dúvida já se acha no local convencionado, pois estamos hoje a catorze de agosto. Mas Patrik cavalgou na direção do vale e eu acho que onde está o pai, está também o filho. Demais, Patrik nos leva uma dianteira quando muito de algumas horas, pois temos lhe acompanhado permanentemente as pegadas. Esta noite ele acampou a umas seis milhas daqui e partiu à mesma hora que nós, isto é, ao romper do dia; estará, no máximo, três horas à nossa frente.

— Cuidado! — exclamou, neste instante, Sam lá na frente. — Ali na orla do mato ainda há um galhinho verde de arbusto no solo. Ele não pode ter prosseguido viagem há muito tempo: por aqui passou alguém há pouco!

Aproximamo-nos do galhinho e Sam apanhou-o, examinou-o e passou-me, dizendo:

— Examina bem isto, Carlos!

— Hum! Aposto que este ramo foi colhido há uma hora, quando muito.

— Sou do mesmo parecer. Não estás vendo aqueles rastos? Baixei-me.

— São de dois homens. Deixa-me examiná-los bem.

Tirei do bolso dois gravetinhos com os quais eu medira os rastos de Patrik, na noite em que o observei no Llano Estacado.

— São dele. As medidas combinam! Não devemos continuar viagem, por enquanto, Sam!

— Tens razão. Ele não deve perceber que alguém o vem acompanhando. Mas se os bandoleiros apearam-se aqui, o fizeram certamente levados por algum propósito. Ali deixaram os cavalos, que pisotearam todo o solo, e por aqui cruzaram a pé, dirigindo-se para o mato. Vamos dar uma olhadela.

Deixamos os companheiros à nossa espera e nos entranhamos pelo mato. Caminhamos um bom pedaço quando Sam, que ia à frente, ficou parado. Bem diante dele havia um trecho do solo socado e sobre ele uma nesga de musgo frouxo replantada recentemente. O aspeto era o de ter sido ali enterrada alguma cousa, tendo sido depois recalcados os musgos. Baixei-me e arranquei-os.

— Uma enxada! — exclamou Sam.

— Realmente aqui está o vestígio de uma enxada.

Debaixo dos musgos, ao lado da terra frouxa, havia um sinal nítido de uma enxada, que ali estivera guardada por algum tempo.

— Esta ferramenta foi retirada daqui. Quem a teria escondido? — perguntou Sam.

— Este enigma é muito fácil de decifrar. Quando o “capitão”, acompanhado do “tenente”, escondeu o tesouro no vale, a enxada, depois de algum tempo de viagem, tornara-se lhes incômoda para transportar e a esconderam aqui. Agora Patrik a retirou de novo, pois precisa dela para desenterrar o tesouro. É bem provável que lá fora encontremos vestígios de que a levou. Deixaram algum sinal convencionado naquela árvore, para que um fique sabendo que o outro está no vale.

Cobri novamente o vestígio da enxada com musgo e voltei para a orla da mata. Realmente, no tronco duma árvore que ali se erguia, havia três entalhes recentes e uns galhinhos quebrados lançados ao chão.

— Que se conclui de tudo isso? — perguntou Sam.

— Ora, é muito simples. Que Patrik se dirigiu para o vale.

— É preciso que lá cheguemos antes. Resta agora saber se ele se encaminhará diretamente para o vale ou se primeiro pretende encontrar-se com o pai.

— Saberemos isso já.

Aproximei-me dos nossos companheiros e me dirigi a Hoblyn:

— Fica muito longe o caminho que nos conduz deste rio ao vale?

— Não, quando muito duas horas de viagem, se não me falha a memória.

— Então toquemo-nos para o vale. Se ele seguiu por este caminho, irá diretamente ao esconderijo, mas, se dele se desviar, é porque primeiro foi ao encontro do pai. Conforme a direção que tenha tomado, disporemos as coisas. Deve-se ter demorado muito aqui, pois se retirou no máximo há uma hora. Em vista disso, é conveniente retardarmos um pouco a nossa partida, visto que ele, por este ou por aquele motivo, pode ter feito algum alto pelo caminho e notará a nossa chegada.

— Allright, Carlos! Esperemos um pouco. Mas não seremos tão imprevidentes, como ele, deixando nossos cavalos no campo. Puxemos os animais para o meio daquelas árvores debaixo das quais podemos sentar-nos para fazer a nossa refeição. Desde o amanhecer que não ponho um pedaço de carne na boca.

 

ENCONTRO COM WINNETOU

Seguimos o seu alvitre e nos abancamos debaixo das árvores, na relva verdejante. Apenas nos havíamos acomodado, Hoblyn proferiu um leve brado e apontou para umas árvores adjacentes.

— Olhem para lá! Naquele desfiladeiro pareceu-me ver algum objeto luminoso semelhante à ponteira de uma lança.

— Impossível — disse Sam. — Como pode distinguir-se, a esta distância, uma ponteira de lança?!

— Ele tem razão — Sam — disse-lhe eu. — Se o olhar cair casualmente no ponto onde surge a ponteira, é bem possível distingui-la. Mas essas armas só índios as usam, e neste caso... Realmente, agora também vi o reluzir da ponteira. São índios e demo-nos por felizes por termos ficado aqui. Se houvéssemos continuado viagem, os nativos nos teriam percebido, pois o sol bate contra nós.

Tirei o binóculo do bolso e assestei-o contra o desfiladeiro. O que vi bastava para me deixar apreensivo.

— Aqui, Sam! Contempla aqueles sujeitos mais de perto. São no mínimo cento e cinqüenta.

O meu companheiro tomou do binóculo e, depois de observar, passou-o para Bernhard, dizendo:

— Veja a cara daqueles peles-vermelhas! Já se encontrou algum dia com estes comanchos?

— Não. Então são comanchos?

— Sim. Tendo em vista a zona, também poderiam ser apaches; mas estes usam o pericote da cabeleira diferente do daqueles que lá vêm descendo. Não notou a tinta vermelha e azul com que pintaram as caraças? É um sinal de que se acham em expedição de guerra. Em vista disso, afiaram bem as ponteiras das lanças e trazem as aljavas repletas de flechas envenenadas, com as quais, pelo menos eu, não estou muito disposto a entrar em contato.

— Fatalmente nos verão.

— Ainda se pudéssemos sair daqui para apagar nossas pegadas lá fora e levantar os galhos verdes lançados ao chão por Patrik! Mas isso não é possível.

— Também de nada adiantaria, Sam. Eles encontrariam as nossas pegadas ali e por certo que as seguiriam.

— Disso sei eu; a questão é que, enquanto isso, poderíamos continuar viagem e tomar-lhes uma dianteira, que nos pusesse a salvo de sua sanha,

— Tens razão. Mas talvez eu possa retirar os galhos sem sairmos daqui! As pegadas dos cavalos estão ali tão perto!

Fiz um gancho dum galho de árvore e pesquei os arbustos do solo. Depois agarrei folhas secas com que cobri as pegadas, sem pisar no caminho.

— Vamos ver se isto nos serve de alguma coisa — disse Sam. — A mim é que tu não enganarias com este processo de encobrir vestígios!

— Por que não?

— Existe algum pinheiro à margem do caminho?

Ele tinha razão. Entre a folhagem, que espalhei pelo caminho marginado de árvores, havia alguns espinhos de pinheiro. Este erro não era mais possível corrigir. Os índios haviam descido o desfiladeiro e pararam. Depois de uma curta deliberação, expediram alguns guerreiros para fazer reconhecimentos.

— Heigh-day, não vêm para cá! — exclamou Sam, contente.

— Como sabe disso? Não vejo nada que me leve a ter a mesma opinião — disse Bernhard.

— Explica-lhe isso, Carlos, já que o tomaste como discípulo.

— É muito simples — declarei, atendendo ao apelo de Sam. — Dos três guerreiros destacados para o reconhecimento, dois, beirando a montanha, desceram o curso do rio, e o outro se dirige diretamente a este em procura dum passo, por onde os indígenas possam vadeá-lo a nado. Pretendem, pois, atravessar o rio e não virão para cá, pois se assim não fosse, os batedores subiriam o curso do rio. Os outros dois saíram em procura de pegadas a ver se a zona está livre de perigos.

Pouco tempo depois voltaram os três batedores. Pareciam nada haver encontrado de anormal, pois o bando pôs-se logo em movimento na direção do rio. Agora podíamos contá-los a olho nu e concluir que o seu número havia excedido ao meu cálculo. O bando, em sua totalidade, estava constituído de indígenas jovens e possantes, que deviam pertencer a duas tribos diversas ou a duas aldeias, visto que eram chefiados por dois caciques, que marchavam à frente.

— Aqueles dois com as penas de águia no pericote são os caciques? — perguntou Bernhard, curioso.

— Sim.

— Ouvi dizer que costumavam montar tordilhos, o que não sucede com estes!

— Tordilho! Hihihihi! — exclamou Sam, rindo-se gostosamente.

— Neste caso, foi mal-informado, Bernhard! — esclareci. — Lá nas cidades, é possível que os generais montem um tordilho de sua predileção; aqui, com os caciques, dá-se o contrário. O indígena só em extrema necessidade monta um cavalo de pêlo claro. Numa caçada, os cavalos de pêlo claro espantam as caças, e numa expedição de guerra são avistados ao longe pelo inimigo. Um tordilho só é de grande vantagem num combate debaixo de neblina e mesmo assim, o cavaleiro tem que se trajar de branco para não ser distinguido em cima do cavalo. De uma feita, tomei parte num combate nessas condições com ótimos resultados.

Nesse meio tempo, o bando atingira a margem do rio e o vadeava.

Respiramos, aliviados, pois não nos achávamos mais na iminência do perigo. Sam passou a mão pelo pescoço de sua égua e perguntou:

— Que achas de tudo isso, “Tony”? E se aqueles indígenas nos apanhassem e me cortasse as orelhas e a ti a cauda? Que prejuízo seria o nosso, hein? Ora, não se ria “Tony”, pois já não nos aconteceu isso um dia?! Mas, Carlos, que vai ser agora de Patrik e do outro bandoleiro do deserto, que o acompanha? Os índios descobrirão com certeza as suas pegadas.

— Nada sofrerão — respondeu Hoblyn.

— Não? Por quê?

— Porque o conhecem. São comanchos, da tribo dos racurroh, com os quais ele e o capitão fumaram o cachimbo da paz. Conseguiram esta aliança de amizade porque trocaram com aquela tribo muitas mercadorias que lhes sobravam.

— Isto é grave, pois é bem provável que Patrik obtenha a sua adesão contra nós.

— Esperemos primeiro o desenrolar das coisas, Sam — disse eu consolando-o. — Patrik não será tão tolo para levar os índios ao vale. No caso de se encontrarem, fará um pequeno alto, fumará o calumet com os caciques e depois será novamente senhor de suas ações e se separará dos indígenas.

Aproximei-me do bosque e olhei na direção do rio para observar os nativos. Haviam atravessado o rio e desapareciam na curva da montanha. Quando ia voltar para o grupo, lancei instintivamente o olhar na direção do desfiladeiro, de onde vieram os nativos, e ocultei-me imediatamente, convidando os companheiros a fazerem o mesmo. Sam perguntou:

— Que há? Que há? Chegam outros índios?

— Parece que sim. Pelo menos um está postado lá na saída do desfiladeiro.

O escoteiro ainda estava com o meu binóculo na mão e o pôs nos olhos.

— Zounds, é mesmo! É um só, mas atrás dele, por certo, está o bando. Mas que vejo?! Não é comancho! O que está lá parado é um apache autêntico!

— Divisaste-o bem?

— Sim, e por sinal que é um cacique. Usa cabeleira que lhe vem até o lombo do cavalo que monta. Está cavalgando em direção ao rio.

— Dá-me o binóculo!

Não pude mais vê-lo, pois o índio já se achava no rio e encoberto por uma elevação do solo.

— Sabes o que há em tudo isso, Carlos? — perguntou Sam. — Aqueles comanchos estão sendo, sem o saberem, seguidos pelos apaches, e este cacique veio para frente a fim de conservá-los sempre à vista. O cacique está procedendo com rara inteligência; não vê que não seguiu pelas pegadas dos comanchos, mas desviou-se do caminho a fim de tomar-lhes dianteira e depois observá-los na margem da vereda? Sai daí, Carlos, esses índios têm as vistas muito aguçadas. Voltando, poderá enxergar-te. Tapem as narinas dos cavalos. Estes costumam relinchar à aproximação de nativos, Minha “Tony”, não, ela é mais inteligente do que qualquer cavalo! Agora, todo o silêncio é pouco: ele vem chegando.

Não podíamos vê-lo, porque nos achávamos escondidos num denso macegal que circundava a árvore; mas nem haviam transcorrido cinco minutos depois que Sam havia pronunciado as últimas palavras, ouvimos o ruído de cascos de cavalos.

O índio chegava devagar, medindo o terreno. Teria visto algum galho de arbusto ou as nossas pegadas? Neste instante, ele se achava na minha frente e dera com os olhos nos espinhos de pinheiros que eu espalhara pelo chão para encobrir as nossas pisadas.

Como um relâmpago, sacou da machadinha de guerra, pois suspeitou que algo havia dentro do macegal.

— Fogo, Carlos! — comandou Sam.

Eu, porém, mais depressa do que ele, saí do macegal e corri-lhe ao encontro.

— Winnetou! Pretende o grande cacique dos apaches matar o seu irmão?

Ele largou imediatamente a machadinha e os seus olhos se marejaram de lágrimas. Cessada a estupefação do primeiro momento, o apache exclamou cheio de alegria:

— Carlos!!!

Apenas pronunciou este nome; a inflexão que deu à voz dizia, entretanto, eloqüentemente da alegria e do entusiasmo que lhe inundavam a alma, sentimentos a que um índio de nobreza prefere não dar expansão, guardando-os no coração. Depois abraçou-me e apertou-me de encontro ao peito. Eu me alegrei imensamente com aquele encontro.

— Que faz meu irmão neste ponto do rio Pecos? — perguntei-lhe. O meu grande amigo pôs primeiro a machadinha na cinta, e depois respondeu:

— Os canalhas dos comanchos abandonaram suas aldeias para entregar seu sangue aos apaches. O Grande Espírito está a dizer que Winnetou vai tirar-lhes os escalpos. E que faz o meu irmão aqui neste vale? Não me havia dito, há varias luas atrás, que ia voltar para a casa de seus pais e irmãos? De lá não pretendia seguir para o grande deserto, que é mais pavoroso ainda do que o Mapimi e o Estacado?

— Visitei meus pais e meus irmãos e já estive no deserto do Saara. Mas a fada Savana constantemente me aparecia de dia e de noite em sonhos. Resolvi, então, atender ao seu chamado, e aqui estou novamente.

— Meu irmão pele-branca fez muito bem. O coração das campinas é grande e nobre e todo aquele que sente uma vez a sua pulsação poderá ir embora mas não tardará que volte. Howgh!

Puxou o seu cavalo pelas rédeas, entrou comigo no macegal e pusemo-nos debaixo das árvores. Foi aí que ele deu com os olhos nos meus companheiros; embora nada lhe tivesse dito sobre a presença dos mesmos, o cacique não se mostrou surpreendido: simulou que não os notara.

Tirou o cachimbo da maleta do serigote, encheu-o de fumo e sentou-se solenemente junto de nós.

— Winnetou vem do norte, onde foi buscar argila santa para o seu calumet e Carlos será o primeiro a fumá-lo.

— Há aqui outros campineiros que se sentirão honrados se fumarem também o calumet com o meu irmão pele-vermelha.

— Winnetou só fuma com homens valentes, em cujos corações não se aninhem falsidades e em cujos lábios more a verdade! Estou tranqüilo, porém, porque sei que meu irmão só aceita por companheiros homens de tal envergadura moral.

— O grande cacique dos apaches ouviu falar em Sans-ear, o valente e inteligente explorador das campinas?

— Winnetou o conhece através das suas proezas; nunca teve oportunidade de vê-lo. Sans-ear é astucioso como uma serpente, inteligente como a raposa e valente como a jaguar. Bebe o sangue dos homens de pele-vermelha e assinala suas mortes na coronha da espingarda; mas os homens de pele-vermelha mataram-lhe a mulher e o filho. Sans-ear é uma alma nobre, um homem que só diz a verdade e só mata os peles-vermelhas maus. Vejo o seu cavalo; porque não se aproxima ele de Winnetou, a fim de fumar o calumet com o cacique dos apaches?!

Sam ergueu-se e aproximou-se do meu grande amigo. Notei que se sentia até certo ponto acanhado na presença do homem conhecido como o guerreiro mais nobre e valente de todas as savanas.

— Meu irmão de pele-vermelha disse bem — balbuciou Sam lacrimejante. — Sans-ear só mata os maus; os bons, porém, está sempre pronto para defender em qualquer emergência, mesmo com risco de vida!

Acenei também para Bernhard, e disse ao cacique, antes que ele respondesse a Sam:

— Queira também o cacique dos apaches ter um olhar para este outro meu companheiro. Era um homem muito rico; os bandoleiros peles-brancas, porém, assassinaram-lhe o pai e roubaram-lhe todos os diamantes e todo o dinheiro. O assassino acha-se aqui no rio Pecos e há de morrer varado pelo punhal do filho da vítima!

— Winnetou é seu irmão e o ajudará a pegar o assassino do seu pai. Howgh!

Eu conseguira pois para Bernhard um aliado, um protetor como melhor ele nem podia desejar. O apache acendeu o cachimbo. Depois de soprar três baforadas para o céu e três para a terra, expeliu-as na direção dos quatro pontos cardeais, e passou-me o calumet. Segui a mesma cerimônia e dei o cachimbo para Sam que, depois de fumá-lo seguindo o mesmo ritual indígena, deu-o a Bernhard. Quando este terminou a cerimônia, devolveu-o a Winnetou. Depois Sam perguntou ao apache.

— O meu irmão pele-vermelha está com muitos guerreiros aqui nas imediações?

— Uff!

Essa interjeição era sinal de surpresa. Sam ainda não conhecia os hábitos e costumes dos apaches e, como só recebera aquela resposta, julgou que o cacique o havia entendido mal; por isso repetiu a pergunta:

— O meu irmão pele-vermelha está com muitos guerreiros aqui nas imediações?

— Uff! Queira meu irmão dizer-me quantos ursos são precisos para amassar mil formigas?

— Apenas um.

— E quantos crocodilos para engolir cem sapos?

— Basta um.

— E quantos caciques dos apaches são precisos para esmagar essas moscas de racurroh! Quando Winnetou desenterra o machado da paz, não costuma sair acompanhado dos seus guerreiros, mas sozinho; ele não é o cacique de uma tribo isolada, mas o rei de todos os apaches; basta estender a mão em qualquer direção, milhares de guerreiros atendem ao seu chamado para cumprir-lhe as ordens. Tem muitas línguas que lhe contam o que fazem os filhos dos comanchos, e possui muitas facas e machadinhas de guerra para exterminar os seus inimigos da terra!

Depois, dirigindo-se a mim:

— Queira meu irmão dizer o que pretende desses homens que o acompanham!

Fiz-lhe um sucinto, porém completo relato dos acontecimentos que nos levaram ao rio Pecos. Ouviu-me atentamente e depois ficou por algum tempo meditativo. Deu uma última tragada, botou o cachimbo no bolso e levantou-se:

— Queiram meus irmãos peles-brancas acompanhar-me! Desamarrou o seu cavalo, puxou-o para fora e montou-o. Coloquei-me ao seu lado e cavalgamos a galope, prosseguindo pelo mesmo caminho em que viéramos. Montava um baio ossudo que eu já conhecia de há tempo. O cavalo tinha o aspecto de um animal de tração esfalfado; só um conhecedor como Winnetou é que se decidiria em tomá-lo para montaria. Era invencível no galope, calmo no trotar e possuía uma formidável resistência. A sua sagacidade em nada ficava a dever à égua de Sam, e por mais de uma vez com suas patas fez lobos cinzentos, inclusive o puma, se porem em fuga. Quando Winnetou o montava, pareciam identificar-se cavalo e cavaleiro. O animal conhecia todos os desejos e resoluções do dono e nas marchas mais forçadas nunca faltaram às forças do incomparável corcel.

Quando alcançamos as pegadas dos comanchos, percebemos que a horda seguira certa de pisar terreno seguro, pois não tivera o menor trabalho de disfarçar de leve que fosse os vestígios que deixava após a sua passagem. Cavalgamos durante uma hora e parávamos em todas as curvaturas de matas, a fim de reconhecer o terreno em nossa frente. Achávamo-nos ao canto de uma mata e dispúnhamo-nos a contorná-la, quando Winnetou fez parar o seu cavalo.

Com a mão direita apontou para a frente e com a esquerda fazia o sinal para nos conservarmos em silêncio. Estiquei a cabeça e agucei as vistas e os ouvidos, mas não consegui divisar ou ouvir cousa alguma que me chamasse à atenção.

O apache desprendeu a espingarda da sela, pôs a faca de campanha à frente, e desapareceu mata adentro sem nos dizer uma só palavra.

— Que haverá, Carlos? — perguntou Sam.

— Não sei.

— É um esquisito este apache! Então não nos podia ter dito do que se tratava!

— Ele prefere agir a falar. Viu algo de suspeito e foi ver de que se trata. Isto devias ter notado pelo seu gesto; razão por que ele não precisava perder tempo com palavras.

— Mas podia dizer-nos, ao menos, que espécie de objeto lhe despertou desconfiança.

— Isto já veremos.

— Mas ao menos saberíamos agora que atitude tomar.

— Já sabemos, sem que fosse necessário o apache nos dizer uma palavra. Cabe-nos esperar aqui até a sua volta ou até ele dar um sinal para nos aproximar.

— Mestre, oh mestre! Tou ovindo uma coisa! — disse Bob interrompendo a nossa discussão.

— Que está ouvindo?

— Grita um homi.

— Onde?

— Lá, atrais do canto.

Olhei para os outros interrogativamente, mas ninguém tinha ouvido coisa alguma. Entretanto o negro podia ter razão.

Ressoou neste instante — agora todos ouvimos — o piar de uma gralha. Todos tomariam aquele grito como proferido por uma gralha autêntica, mas eu sabia muito bem que ele partira dos lábios do apache, pois este sinal era antigamente por nós adotado em nossas jornadas.

— Uma gralha aqui! — exclamou Sam. — Eu queria saber onde se encontra esta espécie de bicho!

— A “espécie de bicho”, que proferiu aquele grito, tu viste hoje, pela primeira vez. Não é outro senão Winnetou, que nos chama. Para frente: lá está ele na orla da mata!

 

A HISTÓRIA DE UM CRIME

Cavalguei levando o animal de Winnetou pelas rédeas, e os companheiros me acompanharam. O cacique se achava parado a uns cem metros de distância à beira do mato e desapareceu assim que notou havermos percebido o seu sinal. Chegados ao local, apeamos e nos embrenhamos na floresta. Pouco adiante, debaixo de uma árvore, encontramos Winnetou e aos seus pés jazia amarrado com a sua própria cinta um jovem. Dirigia os olhares atônitos para o apache e gemia na surdina.

— Múmia!

Apenas esta palavra pronunciou o apache, afastando-se desdenhosamente do prisioneiro. Este era um pele-branca. Quando me avistou, suspirou, aliviado. Julgou talvez que como eu era da sua raça podia interceder em seu favor. Esta esperança cresceu, quando logo apareceu Sam.

— Um branco, um ianque por que o trata meu irmão pele-vermelha como inimigo?

— Ele tem olhos de bandido — respondeu Winnetou.

De repente, por trás de nós, ecoou um brado estridente. Virei-me e vi Marshall com olhar espantado contemplando o prisioneiro.

— Mas Holfert! Por Deus, como veio parar aqui?

— Marshall, Marshall! — balbuciava o jovem, de onde se deduzia tratar-se de algum conhecido do joalheiro. Mas queria me parecer que o prisioneiro não se agradou muito da presença do meu companheiro.

— Quem é este homem? — perguntei.

— É de Denoxville e chama-se Holfert. Era um dos auxiliares de nossa joalheria — respondeu Bernhard.

Um auxiliar de Marshall, aqui nas proximidades do local, onde esperávamos encontrar Morgan! Isso me trouxe desconfianças.

— Quando liquidaram o negócio, ele ainda estava na casa?

— Sim.

Dirigindo-me ao prisioneiro:

— Mr. Holfert, de há muito que andamos a sua procura. Queira agora ter a bondade de nos dizer onde se acha presentemente o seu bom amigo Fred Morgan!

O homem assustou-se.

— É um detetive, sir?

— Quem sou, saberá a seu tempo. Contudo devo dizer-lhe que eu não desejaria agir judicialmente contra o senhor, pois estou inclinado a acreditar que tenha sido induzido por outrem. Portanto, responda! Onde está Morgan?

— Solte-me primeiro. Depois lhe direi tudo.

Bernhard fez cara de quem estivesse ouvindo algo inacreditável.

— Não faltava mais nada senão soltá-lo! Todavia permito que lhe afrouxem um pouco a cinta. Bob, afrouxa um pouco a cinta que prende este homem!

O negro se aproximou e acocorou-se diante do ex-empregado de Marshall.

— Bob, até tu? — exclamou Holfert estupefato.

— Bob também tá aqui, yes! Onde tá mestre Bern, também tá nego Bob. Por que não quis fica em Louisville e veiu pra montanha? Por que te amarrar o?

O criado afrouxou-lhe a cinta de modo que ele pudesse ficar de pé. Continuei o interrogatório:

— Bem, pela terceira vez lhe pergunto: onde está Morgan?

— Em Head-Pick.

— Durante quanto tempo esteve agora com ele?

— Mais de um mês.

— Em que ponto se encontrou com Morgan?

— Ele me mandou chamar em Austin e eu me dirigi para aquela cidade, onde estivemos juntos.

— Mandou chamá-lo? Então já eram velhos conhecidos? O interrogado calou-se. Saquei do revólver.

— Mire este objeto aqui, Holfert! Sei muito bem quem é o senhor. Espero, porém, que não se negará a contar-me alguns detalhes acerca do assassinato do seu patrão e do saque da sua joalheria. Se se conservar nesse mutismo ou se me responder com informações mentirosas, esvasiarei esta arma sobre o seu corpo de patife! Aqui no oeste pune-se um bandoleiro sem processo, sumariamente; não é como lá nas cidades.

— Eu não sou nenhum bandoleiro! — gaguejou o homem tomado de pavor.

— Eu já lhe disse que sei muito bem quem o senhor é! Resta-nos agora averiguar se é um criminoso induzido ao crime ou se é um bandoleiro consciente. Portanto responda: conhece Morgan há mais tempo?

— Aquele homem é meu parente chegado.

— E algum dia ele foi visitá-lo em Louisville?

— Sim.

— Conte o resto. Não estou nada disposto a formular-lhe uma infinidade de perguntas! Vá dizendo tudo o que sabe! Pense no revólver!

— Se Marshall se retirar daqui, narrar-lhe-ei toda a verdade.

Fui obrigado a levar em consideração a lamentável perturbação de espírito em que se achava o criminoso, tão inesperadamente pegado por nós.

— A sua vontade será satisfeita!

Fiz um sinal, e Bernhard desapareceu. Como eu já supunha, descreveu uma curva e voltou postando-se do outro lado de modo a não ser visto pelo interrogado.

Eu quisera naquele momento ler o que lhe ia no espírito.

— Bem, prossiga, Bernhard já se retirou!

— Morgan visitou-me muitas vezes. Fui fraco; acedi aos seus constantes rogos e tornei-me seu parceiro no jogo.

— Ele o visitava em sua residência particular?

— Sim, nunca no negócio. Nas primeiras paradas, eu ganhava e tornei-me um jogador viciado. Depois passei a perder. E fui perdendo cada vez mais até que lhe fiquei a dever mil dólares no jogo. Não me era possível satisfazer-lhe o pagamento daquela vultosa soma e ele ameaçou-me com a justiça, pois eu lhe fornecera letras com a assinatura falsificada do meu patrão. Não me podia salvar e não tive outro remédio senão dizer-lhe onde se achava a chave principal que abria todos os compartimentos da loja e oficinas.

— E sabia qual o propósito que alimentava?

— Sim. Combinamos dividir os valores roubados e depois seguir para o México. Antes disso, porém, tínhamos que nos separar, a fim de não chamar a atenção da polícia, evitando deste modo sermos perseguidos e presos. Combinamos um encontro em Austin para mais tarde.

— Foi o senhor que lhe disse que o falecido Marshall trazia sempre a chave geral consigo?

— Fui eu sim, porém nunca supus que ele fosse assassinar o meu patrão. Disse-me que ia apenas fazê-lo perder os sentidos. Espreitamos o meu chefe, mas Morgan, em vez de desferir-lhe uma pancada na cabeça, cravou-lhe a lâmina do punhal no coração. Abrimos a porta e largamos o cadáver em frente ao balcão. Esvaziamos a loja e oficinas do que havia de valor e dividimos logo o produto do roubo.

—Ele ficou com os brilhantes e o senhor com o resto, não é assim?

— Foi assim mesmo. Como sou profissional, não me foi difícil converter, em dinheiro, embora com prejuízo, a parte que me tocou...

— Continue! Ah! Já percebi. O dinheiro apurado Morgan lhe roubou agora, na sua última permanência com ele!

— Acertou!

— O senhor foi tão tolo em acreditar que um indivíduo perverso como aquele procederia lealmente com o senhor? Isto logo podia compreender que, atraindo-o para as selvas, o seu companheiro de crime o fez com o propósito de se apoderar do produto total do roubo, sem risco de ser pilhado pela polícia! De que forma lhe roubou agora o dinheiro?

— Ele esteve ontem à noite de guarda. Eu dormia. Senti que me tocavam no corpo e acordei-me. Morgan já me havia desarmado e tirado a carteira. Colocou-me a faca no peito pronta para apunhalar-me. O medo deu-me forças. Arrojei-o ao solo, corri para o mato e fugi. Ele saiu em minha perseguição, mas como estava muito escuro consegui escapar. Caminhei toda à noite, pois eu estava convencido de que ao amanhecer ele haveria de seguir as minhas pegadas. Há pouco é que me aventurei a esconder-me aqui para dormir um pouco, mas não me foi possível, devido a um bando de indígenas que passou. Em vista desse encontro, eu desisti do repouso e ia continuar a viagem, quando avistei este pele-vermelha e me escondi novamente; ele, entretanto, me achou.

O homem estava visivelmente fatigado. Talvez precisamente esta circunstância o levou a confessar, sem rebuços, o crime, pois o seu timbre de voz não denunciava o menor vestígio de remorso ou agitação íntima.

Dirigindo-me a Bernhard, disse:

— Este homem é seu! Que pretende fazer dele?

Não me respondeu. No seu coração travara-se a luta entre o desejo de vingar a morte do pai e o sentimento de compaixão. Fez, depois, algumas perguntas ao prisioneiro e se dirigiu em seguida a nós:

— O canalha mereceria morrer. Contudo, vamos perdoá-lo, deixando-o livre. Deus há de justiçá-lo.

— Isto constitui um castigo ainda maior do que se o condenássemos a uma morte rápida. Completamente desarmado, sem cavalo, enfim sem recursos de espécie alguma e, além de tudo, um inexperiente nas campinas selvagens, o homem pereceria dentro de pouco.

— Neste caso, leva-lo-emos conosco até que se nos ofereça oportunidade de soltá-lo.

— Mas isto nos embaraçaria sobremodo, pois já temos um prisioneiro conosco, com quem seria capaz de fazer causa comum.

— Se tal acontecer, seremos quatro contra dois.

— Não me refiro à sua força física. Quero dizer que é muito possível surgirem outros imprevistos em virtude dos quais eles estariam em condições de nos proporcionar grandes transtornos. Também não quero ser o seu julgador. Poderíamos fornecer-lhe um dos nossos animais cargueiros e algumas armas para ele poder retirar-se. Consulte Winnetou sobre o que devemos fazer!

Winnetou se achava ao lado e ouvia todas as nossas negociações. Aproximou-se e tirou a cinta que manietava Holfert e ordenou:

— Levante-se!

O prisioneiro ergueu-se. Winnetou apontou para a sua mão:

— O pele-branca lavou o sangue que lhe manchava esta mão?

— Sim — respondeu o prisioneiro, espantado com o tom em que o cacique lhe falava.

— Com isto confirma que tomou parte na execução do crime hediondo. O sangue de uma mão homicida não se lava com água, mas com o sangue do próprio criminoso. Assim quer Manitu e assim quer também o Grande Espírito das savanas. O pele-branca está vendo aquele ramo verde, lá na margem do rio?

— Sim.

— Vá buscá-lo! Se conseguir apanhá-lo, será perdoado e conservará a vida, pois o ramo verde é o símbolo da paz e da indulgência.

Nós todos estávamos tomados de surpresa em face da singular condição imposta por Winnetou ao prisioneiro. Holfert encaminhou-se para a margem do rio, que distava de nós uns quatrocentos passos. A condição que lhe fora imposta era facílima de cumprir, pois o ramo não se achava no leito mas na beira deste, na margem do rio e numa posição bem acessível. Alcançou-a e estendeu o braço para apanhar o ramo. Nesse instante Winnetou apontou a sua espingarda de prata; o tiro deflagrou e Holfert tombou no rio com a cabeça varada por uma bala.

Com calma e sangue frio, o apache carregou novamente o cano deflagrado.

— O pele-branca não trouxe o ramo verde: teve que morrer. O Espírito da Savana é justiceiro e complacente. Não indulta ninguém para depois de indultado se atirar à ruína certa. Aquele bandido pele-branca, se lhe déssemos liberdade, seria morto pelos comanchos ou pelos bandidos do deserto e devorado pelos abutres.

Em seguida montou a cavalo e continuou viagem sem olhar para nós, que o acompanhávamos, silenciosos e sérios.

As pegadas dos comanchos continuavam visíveis. Como já disse, não tomaram providência alguma para, ao menos, disfarçá-las. Que eles andavam em expedição de guerra, provava-o a pintura de suas caras. Com toda certeza o objetivo de sua expedição ficava muito distante, porque do contrário marchariam com mais precaução. Winnetou conhecia o objeto da expedição dos comanchos; mas era demasiadamente reservado para fazer declarações, a não ser que julgasse vantajoso fazê-las. Ia pôr-me a seu lado quando adiante de nós ouvimos um, dois e três estampidos de espingarda.

Fizemos imediatamente alto. Winnetou fez sinal para recuar-mos e voltou até uma curvatura do mato. Ali paramos. O cacique apeou-se e se entranhou pelo mato, de onde voltou em seguida, fazendo-nos um sinal para que nos aproximássemos dele.

— Comanchos e dois peles-brancas!

Ditas essas palavras, o apache entrou novamente no mato e nós três o seguimos. Bob ficou para vigiar Hoblyn e os cavalos.

Diante de nós, o vale do rio estendia-se numa esplanada, onde vimos um quadro surpreendente. Os dois caciques dos comanchos haviam fincado suas lanças na margem direita do rio, tendo encostado nelas os seus escudos. Debaixo de uma frondosa árvore estavam sentados e fumavam o “cachimbo da paz” com dois pe!e- brancas, que haviam tomado lugar ao lado deles. Os animais dos quatro homens pastavam nas imediações. Aos nossos olhos desenrolava-se uma cena guerreira e selvagem, embora com caráter pacífico: os indígenas se entregavam a exercícios de combate simulado, nos quais costumam pôr em relevo a sua destreza no manejo de armas e agilidade em montar e governar os cavalos. Os nativos se achavam a uma distância regular, de modo que não se podiam distinguir-lhes as feições. Apelei para o binóculo e passei a examiná-los. Em seguida disse a Sans-ear:

— Sam, vê quem são aqueles peles-brancas! Passei-lhe o binóculo que ele assestou com ansiedade.

— ‘s death, não é outro senão o tal Fred Morgan com o seu filho! Como vieram a se encontrar aqui e juntar-se com os índios?

— É facilmente explicável. Patrik vinha cavalgando à nossa frente e o velho Morgan procedia de Head-Pick em perseguição de Holfert. Deste modo tinham que se encontrar. Dos índios, eles não precisam se ocultar, conforme ouviste Hoblyn dizer.

— É isto mesmo. Mas aquele encontro com os comanchos não nos é nada vantajoso.

— Por quê?

— Mas é claro; como retiraremos aqueles bandidos do meio dos peles-vermelhas?

— Eu espero que os dois ladrões não continuem por muito tempo juntos com os indígenas; não são tolos para deixarem os selvagens descobrirem o tesouro que pretendem desenterrar.

— Então o melhor seria ficarmos aqui para observá-los.

— Sim, aqui é de momento o lugar mais seguro para nós, pois não acredito que um deles venha até aqui.

— Mas é provável que Morgan se lembre de dar uma batidazinha por aqui, a fim de procurar Holfert, a cujo encalço anda — opinou Marshall.

— Também acho pouco provável. Tanto os comanchos como o filho o informaram, com certeza, não o haver encontrado e Morgan suporá então que o seu cúmplice haja tomado outro rumo. Não seria melhor levar os nossos animais para algum esconderijo?

Winnetou meneou a cabeça em sinal de aprovação e eu saí do macegal para dar execução à minha proposta. Descarregamos os animais cargueiros, pois estávamos em perspectiva de uma parada mais prolongada, e mandei que conduzissem as nossas montarias para os fundos da mata. Quando Hoblyn avistou a esplanada do vale, estendeu o braço e disse:

— Sir, lá em cima, à direita, está o desfiladeiro por onde teremos que seguir depois.

— Lá? Mas nos será fatal!

— Por que, Carlos? — perguntou Sam.

— Porque não poderemos atingi-lo antes daqueles dois canalhas. Deves ter em vista que os mesmos, assim que os comanchos levantarem acampamento, prosseguirão viagem para lá.

— Não tenha receio, sir — atalhou Hoblyn. — Este caminho só é conhecido por mim e pelo “capitão”. O “tenente”, porém, seguirá por outro que sobe o curso de um afluente do Pecos.

— Bom, se for assim nada precisamos temer e podemos ficar aqui tranqüilamente a observá-los.

Os comanchos se haviam dividido em dois grupos e faziam exercícios de combates simulados, tanto em ordem unida como em ordem aberta, e revelavam uma resistência e tenacidade que causariam admiração a qualquer observador europeu. Os animais que montavam não estavam ensilhados e nem buçal traziam. Eles costumam estender sobre o lombo do animal uma capa de lona ou de pele; em cada lado dessa capa está costurada uma corda muito forte e larga, que é enrolada pelo corpo do animal e serve para o cavaleiro nela enfiar os braços numa das extremidades e os pés na outra. Este apero original permite ao cavaleiro transformar, em qualquer emergência, o cavalo em couraça, de que se serve na ofensiva contra o inimigo, deste modo, entrincheirado por trás do cavalo, maneja as armas. Os guerreiros são tão exercitados nessas manobras que, como um raio, saltam ora para um ora para outro lado, desferindo flechaços ou descarregando as espingardas contra o antagonista. E mesmo cavalgando durante esses combates, terçam armas com firmeza e precisão tal, que raramente uma flecha ou uma bala por eles deflagrada erra o alvo.

Toda a nossa atenção se achava voltada para os exercícios dos comanchos, tendo eu apenas uma vez olhado para o macegal de onde viéramos. Foi a nossa sorte, pois nessa ocasião avistei dois cavaleiros que vinham» examinando, com cuidado, as pegadas dos comanchos.

— Cuidado, minha gente! Lá vêm dois cavaleiros! Todos olharam para o rumo indicado e Hoblyn exclamou:

— Arre! É o “capitão” em companhia de Conchez.

— Apaguemos, imediatamente, as pegadas que deixamos na mata!

Em dois minutos fizemos este serviço. Todos voltaram para o primitivo local. Apenas Winnetou e eu nos conservamos próximos da estrada, num ponto de onde podíamos observar bem o chefe dos bandidos e o seu comparsa.

Já vinham bem próximos e teriam dobrado a curvatura do mato se, naquele instante do acampamento dos comanchos, não ressoasse um ensurdecedor brado de guerra, que mais parecia um berreiro em coro de mil feras. Agacharam-se e conduziram a cavalhada para o local, onde antes tínhamos os nossos animais. Voltamos de gatinhas para perto de nossos companheiros de jornada.

Por trás dos dois bandidos havia dois pinheiros, um ao lado do outra. Consegui dirigir-me de gatinhas para aquele ponto, a fim de ouvi-los. Saquei da machadinha de guerra para o caso de precisar defender-me.

— São comanchos! — exclamou o “capitão”. Não precisamos recear coisa alguma. Precisamos, porém, descobrir quem são os dois peles-brancas que se acham em sua companhia.

— A distância é grande e não podemos distinguir as pessoas.

— Examinemo-lhes os vestuários. Um deles não conheço e o outro está encoberto pelo cacique. Esperemos até que este saia de sua frente.

— Mas “capitão”, olhe aquele alazão no meio da cavalhada. Um animal daqueles é raro aqui nas savanas!

— Caramba! É a montaria do “tenente”!

— Também acho, e então aquele branco que está por trás do cacique não é outro senão o “tenente”.

— É ele mesmo. Agora deu um passo à frente. Que faremos?

— Sim, se eu ao menos soubesse o que o senhor pretendia dele, poderia, talvez, dar-lhe um conselho!

— Bem, agora chegou o momento de revelar-te o que me leva a segui-lo. É que nesta zona e não no Hide Spot, conforme consta entre os companheiros, ocultei a parte mais importante dos nossos tesouros. Tomei tal resolução porque há membros em nossa quadrilha, nos quais não posso confiar. O local exato, onde está enterrado o tesouro, ninguém mais sabe senão eu e o “tenente”. Este esperou o pai, e, em vez de marcar o encontro na nossa caverna, combinou realizá-lo aqui no rio Pecos; esta sua atitude confirma as desconfianças que de há muito venho tendo dele, e como, por ocasião de sua última cavalgada ao Llano Estacado, de lá se dirigiu diretamente para aqui, sem antes procurar falar comigo, mais se fortaleceu em mim a suspeita de que ele tinha em vista roubar-nos o tesouro. Aquele encontro com os índios se deu por mera casualidade. Agora resta-nos resolver se iremos diretamente ao acampamento dos comanchos infligir o castigo que merece o canalha traidor, ou se o seguiremos para apanhar ambos em flagrante, cometendo a traição.

— Eu opino pela última das atitudes. Se o procurarmos lá com os índios, não conseguiremos provar-lhe que estamos senhores do seu plano de traição. Ele rebaterá a nossa asserção, procurando provar, com lógica e argumentos, que aqui veio simplesmente para receber o pai. Depois disso, quem sabe se ainda lhe restará um caminho para atingir o seu fim? Somos dois como eles; mas não podemos garantir que os índios não encampem a sua causa. Com os peles-vermelhas nunca se pode contar!

Conchez esforçava-se por fazer prevalecer o seu ponto de vista; tinha, pelo que eu concluí, grande interesse em conhecer o ponto exato do esconderijo, onde se achava enterrado o tesouro.

— Afinal, sou obrigado a concordar contigo. Os racurrohs andam em expedição de guerra e não se demorarão aqui mais do que uns quinze minutos. Em seguida, Patrik seguirá para a zona do tesouro. Terá que andar um bom trecho até chegar à curva por onde se segue para o esconderijo; eu, porém, conheço um outro caminho, pelo qual lá chegaremos antes dele. Não conseguirá desenterrar coisa alguma se é que... o tesouro ainda está enterrado lá.

— Se o tesouro ainda está enterrado lá? Quem o poderá ter roubado se só os senhores dois conhecem o esconderijo.

— Hum! Sans-ear e “Mão de Ferro”, que nos pregaram aquela formidável peça!

— Aqueles? Mas como poderiam descobrir o segredo?

— De modo muito simples. Eu ia mandar Hoblyn seguir secretamente Patrik e cometi a imprudência de ministrar-lhe antes disso as necessárias instruções neste sentido. Pois Hoblyn desapareceu sem deixar vestígio e não me sai da idéia que ele tenha feito causa comum com os dois caçadores a fim destes lhe pouparem a vida.

— Hum! Neste caso, seria preferível que nós...

— Nós o quê? — atalhou o “capitão”, nervosamente.

— ... nos dirigíssemos diretamente aos comanchos.

— Para comunicar-lhes o nosso segredo, a fim de que nos roubem o tesouro?!

— Não! De resto, temos ainda tempo para combinar um plano decisivo, pois, ao que vejo, os peles-vermelhas vão fazer ainda uma refeição!

Se Conchez se levantasse para se dirigir aos cavalos teria dado com os olhos em mim; por este motivo recuei um trecho; se me houvesse demorado mais um segundo, não escaparia do alcance de suas vistas.

Voltei para junto dos companheiros e comuniquei-lhes o resultado da minha observação.

— Não falaram nada dos três “caçadores” que seguiram os comerciantes? — perguntou Sam. — Um deles deve ter acompanhado Patrik.

— Não falaram cousa alguma a esse respeito. É provável que Patrik o tenha assassinado, a fim de poder atuar com mais desembaraço. Mas agora que faremos daqueles dois bandidos que lá estão em companhia dos índios?

— Nada. Deixa-los-emos em paz, Carlos! Winnetou sacudiu a cabeça.

— Queiram meus irmãos de pele-branca ter em vista que só possuem um escalpo! Ou quem sabe têm algum sobressalente...?

— Mas quem nos tiraria o escalpo? — perguntou Sam.

— Os canalhas dos racurrohs.

— Jamais conseguirão. Não tardarão em partir, pois se acham em expedição de guerra.

— Meu irmão é um caçador valente e possui raros dotes de inteligência e sagacidade, mas não conhece o caminho que vão seguir os comanchos; esses homens de pele-vermelha se dirigem na presente expedição às montanhas, para a sepultura do seu finado cacique Tschu-ga-chat (*) conforme procedem todos os anos no dia em que

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(*) O “Fumaça Negra”.

 

transcorre um ano em que ele foi morto por Winnetou, o cacique dos apaches.

Finalmente, explicava-se a razão por que o apache seguia aquele bando de comanchos.

— Dará no mesmo, — redargüiu Sam. — Se eles se acham no caminho para tal fim, não se darão ao trabalho de perder tempo por nossa causa ou por causa dos bandidos.

— Eu também sou contra o derramamento inútil de sangue — ponderei.

— Meus irmãos de pele-branca façam lá o que melhor lhes aprouver — disse o apache. — Eles poupam um inimigo que é assassino e ladrão. E em recompensa desse ato de indulgência, irão eles próprios cair nas mãos dos bandidos. Howgh!

Causava-me pesar ter que contrariá-lo. Eu já vira há pouco jorrar o sangue de um semelhante; sinto-me revoltado com o uso de armas contra inimigos indefesos, embora se trate de bandoleiros; só justifico este ato num caso de legítima defesa.

Achava-me mergulhado nessas meditações, quando, do acampamento dos comanchos, partiu novamente um brado que denotava alguma ocorrência imprevista. Este brado foi respondido do rio e, dentro de poucos minutos, os guerreiros formaram um círculo em torno dos dois caciques e dos dois peles-brancas. Em seguida montaram todos a cavalo e partiram. Eu, que havia avançado, um trecho, voltei.

— Que houve? — perguntou Bernhard.

— Encontraram alguma cousa no rio; talvez o corpo de Holfert. Winnetou se pôs a escutar. Se se confirmasse a minha suposição, a nossa presença estaria denunciada.

— Acha o meu irmão que as águas conduzem um cadáver à tamanha distância?

— Em certos casos, sim. O rio nesta altura é fundo e tem muita correnteza.

Sem dizer mais palavras, o apache ergueu-se e desapareceu pela esquerda por entre as árvores. Encoberto pela mata, seguiu rio acima até que não o avistamos mais. Por certo que se dirigira para o rio, onde a nado foi procurar o que havia despertado a atenção dos comanchos.

Embora eu o conhecesse como um excelente nadador, considerava perigosa a tarefa de que se incumbira. Em primeiro lugar, era provável que o “capitão”, levado pela curiosidade, se dirigisse também para o mesmo local do rio, e em segundo, os comanchos poderiam facilmente deduzir que onde há um cadáver com um ferimento produzido por bala, por perto deve também estar a pessoa que ocasionou tal ferimento. Por isso, era de admitir que a sua retirada fora apenas simulada e que não demorariam a voltar a fim de reconhecer a zona.

Daí a um quarto de hora o “capitão” se dirigiu para o rio. Cumprira-se a minha previsão. Não podíamos retê-lo.

Cavalgaram até o acampamento dos comanchos e de lá para o rio. Winnetou com certeza se despira e depusera as armas, levando apenas a faca consigo. Competia-me correr em seu socorro, pois o meu amigo se achava na iminência de um grande perigo. Agarrei a espingarda.

— Não arredem o pé daqui!

Dizendo isso, saí do nosso esconderijo e corri para o rio, onde o Holfert tombara. Ainda não havia alcançado aquele ponto, quando o “capitão” postado à margem detonou a sua espingarda na direção das águas. Não atingira o alvo. Eu conhecia quanto Winnetou era exímio mergulhador. Aproximei-me um instante e logo vi o apache voltar à tona, nadar para a margem e se atracar em luta corporal com o tal “capitão”. Conchez ergueu então a carabina. Eu não tinha outro remédio senão alvejá-lo com a espingarda e isto de modo que apenas o ferisse, pois queríamos agarrá-lo com vida. Com a rapidez de um raio, Winnetou, tendo conseguido soltar um dos braços, segurou o cano da carabina de Conchez no momento que este ia bater o gatilho. O tiro deflagrou para o ar. Desvencilhou-se completamente do “capitão”, arrancou a carabina da mão de Conchez e teve tempo ainda de dar um pulo para o lado, pois o “capitão” neste meio tempo desferira-lhe um coronhaço, que foi bater no solo.

Dispunha-se a se atracar com os dois, quando por trás dele ecoou um berreiro dos demônios. Eram os comanchos que chegavam a galope. Eu tivera razão quando supus que a sua retirada fora apenas simulada. Haviam voltado e agora acudiam ao tiro do “capitão”.

Mas Winnetou percebera o tropel dos inimigos, tomou a espingarda do “capitão”, que por sorte era de um cano só, jogou o carabineiro n’água e atirou-se no rio; com verdadeiro salto de pantera enfurecida, nadou pelo seu curso acima. Daí a dez minutos o apache chegava ao local onde deixara a roupa e, embrenhando-se pelo mato, que o ia ocultando, chegou ao local do nosso esconderijo. Eu havia sido notado pelos inimigos e corri em direção dos companheiros.

— Ergam-se depressa! Temos que fugir!

— All devils! Para onde? — perguntou Sam. — Pois lá vêm os comanchos e no meio deles os dois peles-brancas!

— Isto é uma sorte. Eles passarão por nós e, quando chegarem lá em cima terão muito que fazer, entregando-se à tarefa de procurar as pegadas de Winnetou. Depressa para os cavalos! Assim que os comanchos tiverem passado, montem e galopem para a margem do rio, seguindo as pegadas dos comanchos para que eles depois não as distingam. Eu ficarei aqui para cobrir a retirada e esperar a volta do apache.

— Well, avante, pois! — exclamou Sam.

Os comanchos passaram. O mato erguia-se entre eles e o nosso esconderijo, de modo que não fui visto. Eu estava ocupado em apagar os vestígios de nossa parada naquele ponto, quando percebi um leve ruído no macegal contíguo. Winnetou dele saiu e se postou na minha frente.

— Uff! Os chacais dos comanchos procuram as pegadas do apache. Onde estão os companheiros do meu irmão pele-branca?

— Cavalgaram na frente.

— As idéias do meu irmão são sempre ótimas. Os seus companheiros não precisarão nos esperar muito tempo! Iremos já.

Vestiu-se apressadamente, pois ainda trazia o seu vestuário na mão, e saímos da tocaia. Um olhar lançado para a frente nos convenceu da ausência completa de comanchos.

— Que encontrou o meu irmão no rio?

O corpo do pele-branca. Winnetou por duas vezes procedeu hoje como um menino desajuizado. Mas ele de nada receia e os seus irmãos peles-brancas vão desculpá-lo!

Era uma confissão que o orgulhoso apache certamente não fazia a nenhum outro a não ser a mim. Nada pude lhe responder, pois o seu corcel voava como uma flecha dando trabalho ao meu poldro para acompanhá-lo.

Lá, onde o caminho conduz, à direita, para a montanha, as pegadas dos comanchos se desviaram e os nossos ali haviam parado. Sam apeara para enrolar os cascos dos cavalos com panos. Para este fim foi cortado um dos cobertores que tomáramos aos “bandidos do deserto”. Depois prosseguimos pelo desfiladeiro. Winnetou seguia atrás de nós a pé, a fim de apagar algumas pegadas que, apesar de enrolados os cascos, os animais ainda deixavam no solo.

Quando passamos pela primeira curvatura do desfiladeiro, fiz parar o cavalo.

— Que pretendes fazer, Carlos? — perguntou Sam.

— Fazer um alto a fim de observar a atitude que vão tomar os peles-vermelhas.

— Well, é boa a idéia! Deste modo saberemos se eles vêm em nosso encalço.

Os companheiros continuaram a cavalgar e eu me meti no mato. Não me achava muito tempo na tocaia, quando percebi tropel de cavalos. Os comanchos voltavam, mas não o bando todo, porém, metade. Onde ficara o resto? Os dois Morgans vinham junto e o “capitão” e Conchez não se achavam no grupo. Os nativos cavalgavam morosamente e de vistas voltadas para o chão. Lá onde apeáramos para envolver com pano os cascos dos animais, eles, pararam. O cacique que dirigia aquele bando apeou rapidamente e apanhou do chão um objeto, que não pude divisar o que era. O citado objeto foi exibido aos nativos e o solo mais detidamente examinado. Feito o que, combinaram qualquer coisa e o cacique e os dois peles-brancas se separaram do bando e penetraram a pé no desfiladeiro.

Examinando minuciosamente os mínimos detalhes do desfiladeiro, os homens se aproximavam; momentos perigosos para mim! Graças, porém, às precauções que tomáramos, eles não descobriram o menor vestígio de nossa presença.

Ao passarem por mim, vi o objeto que o cacique apanhara do chão. Eram alguns fios de lã que caíram ao solo ao cortarmos o cobertor com que enrolamos os cascos dos animais. Fora um descuido lamentável: a nossa vida estava agora presa por aqueles fios!...

Caminharam mais um pouco pelo interior do desfiladeiro e depois regressaram ao ponto de partida. Convenceram-se de que ninguém, nem a pé, nem a cavalo, havia andado pelo desfiladeiro. Julgando-se por isso bem seguros, descuraram do silêncio que se deve manter quando se faz qualquer reconhecimento.

— Por aqui não andou ninguém! — ouvi Morgan dizer. — Aquelas pegadas eram dos nossos próprios cavalos.

— Mas quem era aquele índio e os dois peles-brancas que não conseguimos mais encontrar? — perguntou-lhe o filho.

— Já havemos de saber. É possível que eles nos tenham escapado. O indígena estava nu, razão por que não pudemos ver a que tribo pertencia.

— Mas que excelente serviço nos prestou aquele índio, se é que o cadáver era o de Holfert, conforme afirmas.

— Era dele sim. Mas como passou o indígena pelo local onde estávamos parados, sem que o avistássemos? Ele já se acharia lá quando chegamos, ou veio depois disso?

— Eu penso que...

Mais não pude ouvir, pois já se haviam afastado muito. Pelo diálogo, porém, podia ter a certeza de que nos achávamos fora de perigo, pelo menos por enquanto. O “capitão” certamente achara de melhor aviso não se apresentar aos nativos. Assim procedeu, por certo, porque, só deste modo, poderia surpreender o “tenente” na prática da traição. Era óbvio que eu punha em dúvida a hipótese de conseguirem eles escapar à vista aguçada dos comanchos.

Neste momento os três batedores se juntaram de novo ao bando, que, a uma voz do cacique, fez meia volta e desapareceu por entre as árvores. Tendo conseguido o meu objetivo, apressei-me em alcançar os companheiros que já haviam avançado tanto, que só daí a meia hora os alcancei. Winnetou olhou-me interrogativamente e eu relatei-lhe tudo o que vira.

— Well! — exclamou Sam. — Conseguimos então pregar uma linda peça àqueles peles-vermelhas!

— Os filhos dos comanchos têm olhos e não vêm e os seus ouvidos estão entupidos de tal modo, que não percebem os passos dos inimigos. Queiram os meus irmãos peles-brancas tirar as “sapatilhas” dos cavalos!

Com satisfação cumprimos a determinação de Winnetou, pois com os cascos assim enrolados os pobres animais eram obrigados a fazer um grande esforço para atravessar o escabroso caminho.

Era uma cavalgada penosa a que estávamos realizando. O desfiladeiro estava serpenteado por blocos de rocha e por árvores que já haviam resistido aos temporais das duas idades... Quanto mais avançávamos, mais bravia se tornava a zona; e à noitinha, chegávamos ao sopé de uma montanha que, paralela com a Serra do Norte, se estende para o sul. Subimos a serra, e quando o sol entrou havíamos topado com um excelente local para pousarmos.

A noite decorreu debaixo de toda a calma e tranqüilidade. Uma pequena cavalgada que eu fizera de manhã bem cedo, de retorno ao nosso caminho, deu-me a certeza de não havermos sido perseguidos.

Continuamos na jornada. Pouco a pouco, iam cessando os matos, pois começava a escassez de aguadas. Havia pela região uma imensidade de riachos de leitos secos. Todos esses leitos estavam eivados de sulcos profundos, dando um testemunho vivo de quão violentas eram as águas que por eles haviam corrido.

Prosseguindo sempre para frente, rumo do oeste, depois de uma longa caminhada, vimos diante de nós a Serra Branca.

Ao sopé desta serra, encontramos novamente uma imensidade de correntes d’água, que afluíam para o rio Pecos. Mais adiante se achava o vale de um dos principais rios tributários do Pecos. Tinha a extensão de milha e meia e uma largura que só se poderia atravessar em meia hora de cavalgada. Ao derredor, erguiam-se montanhas cobertas por matos, e à beira do rio havia verdejantes pastagens. Infelizmente não nos era possível soltar os nossos cavalos ali, pois a nossa presença seria denunciada. Este vale não era outro senão o procurado por nós, isto é, o vale onde se achava guardado o tesouro dos “bandoleiros do deserto”.

— Mas este vale é de fato o que pretendemos alcançar? — perguntei a Hoblyn, pois seria possível que ele se houvesse enganado.

— Conheço-o muito bem, sir. Lá em baixo, onde se erguem aquelas frondosas árvores, acampei pela primeira vez em companhia do “capitão”.

Propus procurar um dos vales mais próximos, a fim de ali deixar as nossas montarias. Lá ficaria um do grupo montando-lhe guarda e deste modo poderíamos agir sossegadamente.

— A idéia não é má, não há dúvida; mas não pode acontecer que repentinamente tenhamos necessidade de nossas montarias? Não permito que minha “Tony” fique a uma distância muito grande!

— Well, então vamos procurar um ponto seguro aí nesse mato para os animais. Eu seguirei por este lado com Bob; Winnetou seguirá pelo outro. Quanto aos senhores, aqui ficarão até a nossa volta.

Apeei, tomei da minha espingarda e, juntamente com o negro, penetrei na mata. Este trecho era bastante íngreme na direção da montanha e o solo estava atulhado de árvores derribadas e blocos de rochas, que se desprendiam da montanha. Difícil seria trazer os cavalos para cá. Subitamente, Bob, que caminhava paralelamente e a alguma distância de mim, proferiu um alto brado.

— Mestre, mestre, vem cá ligêro!

Atendi imediatamente ao seu chamado e notei que ele lançava mão de um pedaço de pau, que se achava no solo e se preparava para desferir um golpe.

— Que houve, Bob?

Mestre, vem ligêro acudí nego Bob! Não, não vem é mió corre lá em baixo chama os ôtro mestre prá ajuda a mata a fera.

Não precisei perguntar-lhe a que fera se referia, pois vi sair do mato cerrado um urso cinzento, um daqueles ursos gigantes das montanhas Rochosas, que constituem o terror dos exploradores do oeste bravio.

Eu viera recentemente da África. Ouvira o leão soltar nas selvas bravias aquele urro a que os árabes chamam de rad, que significa trovão; ouvira o berro do tigre de Bengala, e o coração, embora as mãos não me tremessem por essas ocasiões, pulsava descompassadamente! Mas o bufido abafado dessa qualidade de ursos, o seu tamanho desproporcionado, as suas unhas agudas e suas presas terríveis, fazem, mesmo tratando-se do mais atilado caçador, correr-lhe um calefrio de morte por todo o corpo.

A oito passos, quando muito, na minha frente, o monstro se pôs em pé sobre as patas traseiras e abriu as garras e presas para mim. Um de nós era demais no mundo. A sorte havia de decidir se era ele ou eu! Apontei a arma para um dos seus olhos e bati o gatilho. Conservando, como sempre me acontece em situações dessas, a presença de espírito, detonei-lhe outro tiro. Abrindo o macegal, desviei-me para o lado e saquei da faca à espera do urso para apunhalá-lo. A fera, como se nem fosse atingida, correu em linha reta para o ponto onde me postara primeiro. Cravei-lhe a faca precisamente no momento em que erguia uma das patas dianteiras para me apanhar. Atingida pela minha faca, ficou parada por um instante e cambaleou; deu um bufido que se assemelhava mais a um uivo, e caiu pesadamente no chão, onde ficou estirada. Uma das balas atingira-lhe os miolos e a outra o coração. Uma pantera ou um jaguar com aqueles balaços teriam logo tombado.

— Oh, muito bem mestre, — exclamou Bob, aboletado no topo de uma árvore. — O urso tá bem morto, mestre?

— Está. Pode descer!

— Mas vê bem, mestre, se tá morto mêmo, sinão ele come Bob!

— Está bem morto. Pode vir!

Com a mesma agilidade que subira, o negro desceu da árvore. Mas quando se aproximou, hesitou em chegar-se à fera. Eu próprio cheguei-me ao monstro com toda a precaução e cravei-lhe novamente a faca no coração.

— Oh! este urso é mais grande que nego Bob! Mestre, dá pra se come a carne da fera?

— Sim. As patas e o lombo são até um petisco!

— Oh! mestre, dá também pro nego Bob um pedaço da pata e do lombo, Bob também gosta muito de petisco!

— Como os demais companheiros, receberás a tua parte também. Agora, fica aqui, que eu não me demorarei!

— Pra eu espera aqui? Mas mestre, si o animal torna a vive?

— Subirás de novo à árvore!

— Então é mió eu subi antes de mestre saí daqui.

Realmente, o negro subiu depressa a uma árvore, antes que eu me retirasse. E, no entanto, posso afirmar que o bom negro não era nenhum covarde. Num combate, numa guerrilha corpo a corpo, homem e homem, era destemido. Mas entre combate com homens e uma luta com uma fera monstro como aquela, vai uma grande diferença. Além disso, nunca havia encontrado um urso cinzento, e, por isso eu não devia estranhar aquele seu excesso de precaução. Dei primeiro uma batida pelas proximidades a ver se não havia por ali algum outro exemplar daquela fauna ou talvez uma família inteira dela. Mas felizmente nada encontrei. Havia apenas as pegadas da que eu abatera, e por isso eu podia estar descansado. Ao demais, eu e Bob não íamos ficar muito tempo a sós, pois os companheiros, tendo ouvido o deflagrar dos tiros, correram para o lado de onde haviam partido, ignorando a espécie de inimigo que eu tinha pela frente.

Foram unânimes em declarar ser o maior exemplar que até então haviam visto, e Winnetou baixou-se a fim de besuntar a sua “bolsa de medicina” no sangue da fera.

— Meu irmão pele-branca atirou com maestria e manejou a faca com destreza. A alma da fera deve estar a esta hora grata ao senhor, pois não lhe proporcionou agonia longa, antes a fez desprender-se quase que repentinamente do corpo. Ela agora está nas “Eternas Campinas” ao lado dos seus antepassados!

É crença entre os indígenas que todo o urso cinzento tem a alma de um célebre guerreiro ou caçador, que na terra foi obrigada a ficar a fim de purgar algumas de suas faltas terrenas. Ele auxiliou-me a esfolar o urso e cortar-lhe os pedaços mais apetitosos da carne. O resto cobrimos com musgos e folhas secas para evitar algum bando de urubus, que facilmente orientariam algum provável inimigo que andasse perto de nós, no vale.

O apache encontrara um local apropriado para ocultarmos os nossos animais, local que eu fui examinar. Como ainda era dia claro, arriscamo-nos a acender uma fogueira para assar as saborosas patas do urso. A nossa refeição constituiu nesse dia um verdadeiro banquete de gente rica...

Quando escureceu e já estando os cavalos acomodados, enrolamo-nos em nossos cobertores, a fim de dormir. A guarda já fora distribuída. À noite e à manhã seguinte se passaram sem novidade.

Havíamos guarnecido a entrada do vale. Chegou a vez de Sam entrar de sentinela. Pouco depois de ter rendido o seu antecessor, voltou.

— Eles aí vêm! — avisou.

— Quem? — perguntei.

— Ah! Isto não posso afirmar com precisão, pois estão ainda muito longe e não posso distingui-los.

— Quantos são?

— Dois a cavalo.

— Deixa ver!

Corri para a entrada do vale e reconheci, através das lentes do meu binóculo, que se tratava dos dois Morgans, os quais teriam que andar ainda uns quinze minutos para chegarem ao vale. Felizmente todos os vestígios de nossa presença haviam sido desfeitos, e como possuíamos superioridade numérica sobre eles, poderíamos esperá-los com toda a calma.

Ia retirar-me na companhia de Sam, quando ouvi um estalido dentro do macegal. Seria outro urso cinzento? Pusemos-nos a escutar e concluímos tratar-se de duas criaturas que desciam a montanha.

— Com os diabos, Carlos! Que será?

— Tratemos de averiguar. Penetremos depressa no macegal! Escondemo-nos de tal modo que, embora as macegas nos tapassem completamente, estávamos prontos para nos defender com as armas nas mãos, se a isso fôssemos levados. Talvez fossem duas feras. Alguns minutos mais tarde, porém, vimos que não se tratava de feras nem de caça, mas de dois homens que puxavam os cavalos pelas rédeas. E esses homens não eram outros senão o “capitão” e Conchez. Os seus animais mostravam-se esfalfadíssimos e também os cavaleiros davam mostras de haver feito uma viagem bastante penosa.

Bem perto de nosso esconderijo fizeram alto; dali eles podiam descortinar o vale ao longe.

— Finalmente! — exclamou o “capitão” com um suspiro de alívio. — Foi uma cavalgada como igual tão cedo não pretendo empreender! Mas ainda chegamos a tempo. Ninguém esteve ainda aqui.

— Baseado em que faz o senhor essa afirmação? — perguntou Conchez.

— O esconderijo onde está enterrado o tesouro acha-se intacto; vejo-o daqui. Portanto os Morgans ainda não chegaram e quem mais se aventuraria a se atirar para paragens tão longínquas?!

— Talvez o senhor tenha razão. Quer dizer que nem pensa em Sans-ear e “Mão de Ferro”?

— Não. Só se eles seguiram os Morgans, mas neste caso topariam com os comanchos que lhes embargariam a viagem.

— Mas quem era aquele índio nu que encontramos no rio Pecos e de quem era aquele cadáver de pele-branca que boiava no rio?

— É um assunto que pouco nos interessa. Ninguém nos poderá fazer nada, pois temos os comanchos a nosso favor contra qualquer um que nos tenha seguido.

— Mas tem absoluta certeza de que os índios vêm vindo aí?

— Tão certo como estar aqui a seu lado. Se o índio era algum dos seus inimigos — o que não creio, visto que um apache não teria o arrojo de se tocar para lá — eles o mataram e depois nos seguiram. Com a pressa que trazíamos, deixamos-lhes pegadas mais nítidas que um rebanho de búfalos deixaria no solo.

— E se eles nos encontrarem aqui?

— Não faz mal, são nossos amigos. Poderão quando muito se admirar de não nos termos dado a conhecer, pelo que lhes exporei, a seu tempo, as razões que nos induziram a proceder assim. Contar-lhes-ei o que desconfio do “tenente”... Caramba! Dou o meu pescoço a cortar se não é ele que lá vem!

— É ele mesmo!

— Vai às mil maravilhas! Vou mostrar-lhe o que significa iludir o seu “capitão” e camaradas de quadrilha.

— Eles vêm só, o que prova que os comanchos estão em caminho. Mas, diga-me, “capitão”, pretende desenterrar hoje o tesouro na... minha presença?

— Sim.

— E a quem pertencerá depois?

— A nós.

— A nós?! Explique-se melhor, “capitão”. Este nós pode significar toda a quadrilha e também nós dois tão-somente.

— Qual dos casos preferiria?

— Isto é mais fácil de pensar do que de dizer, “capitão”. Em vista da situação reinante na caverna de nossa quadrilha, seria conveniente que não voltássemos mais lá. Depois de tanto tempo de luta e trabalho estafante, a gente também faz jus ao descanso e comodidade; creio que nesse esconderijo o senhor tenha o suficiente para levar daqui por diante vida folgada, sobrando ainda alguma coisa para mim, que também sou filho de Deus!

— Fala como um iluminado! Não posso deixar de lhe dar razão. Mas antes de mais nada, precisamos pôr as mãos em cima daqueles dois canalhas. Vamos, subamos mais um trecho! Há lá um ponto como melhor não poderíamos desejar e fica bem pertinho do tesouro.

Ocorreu-me uma idéia. O “capitão” não se teria referido ao local que escolhêramos para acampamento? Eles tomaram aquela direção puxando os cavalos e nós os seguimos.

Iam tão despreocupados e certos de não estarem sendo vigiados, que nem deram pelos sinais que eu me esquecera de apagar na orla da mata. Os meus companheiros desconfiaram logo que algo de anormal havia e se ergueram. Ainda hoje não me posso esquecer da cara desenxabida que os dois patifes fizeram ao deparar no acampamento com o índio que viram no rio Pecos. Quase soltei uma gargalhada.

— Hoblyn! — exclamou Conchez, reconhecendo o seu companheiro de banditismo.

— Hoblyn? — perguntou o “capitão”. — Realmente! Como vieste parar aqui em Serra Branca e quem são estes teus companheiros?

Eu, que me achava por trás do grupo, aproximei-me dele, bati-lhe no ombro e lhe disse:

— Tudo é gente conhecida, “capitão”! Aproxime-se, sem-cerimônia, sente-se e ponha-se à vontade!

— Quem é o senhor? — perguntou-me.

— Primeiro vou-lhe apresentar esses cavalheiros. A mim deixarei por último. Este pele-preta chama-se Bob e foi um dos melhores amigos de um tal Marshall, a quem o senhor também deve ter conhecido. Este senhor é um filho de Marshall, de Louisville, do qual lhe falei há pouco e que pretende dizer algumas palavras em segredo a mister Morgan e seu filho, que projetam roubar-lhe hoje os ovos do ninho... Este cavalheiro bronzeado é Winnetou. Creio que já ouviu falar nele, dispensando-me de mais detalhadas declarações. Aquele outro cavalheiro chamam Sans-ear e, finalmente, a mim costumam chamar-me de “Mão de Ferro”.

O homem ficou perplexo que nem atinou em pronunciar uma só palavra; apenas conseguiu gaguejar:

— Será... possível?

— Como não, sir? Sente-se e ponha-se tão à vontade como eu quando o observei em sua caverna, nas proximidades do Llano Estacado. Estive naquela ocasião comodamente deitado por trás do senhor e levei ainda as suas duas pistolas como recordação. Anteontem ainda estive perto do senhor, no momento em que desabafava as suas mágoas com este seu companheiro de “trabalho”. Bob, guarde as armas desses dois cavalheiros e amarrem-nos um pouquinho, para que fiquem mais a gosto.

— Senhor! — urrou o “capitão”.

— Não se altere! Falamos com os senhores no tom em que se deve falar a bandidos. Não tente qualquer resistência porque será esforço baldado. Antes que os dois Morgans alcancem o vale os senhores estarão amarrados, amordaçados ou... mortos se ousarem reagir.

Tudo ocorreu tão repentinamente que eles nem tempo tiveram para pensar em reação.

— Diga-me, “capitão”, onde fica o esconderijo que os Morgans pretendem esvasiar sorrateiramente? — perguntei-lhe.

— O tesouro não pertence ao senhor!

— Como queira; mas talvez ainda venha parar em nossas mãos. Não pretendo forçá-lo a confessar o seu segredo, mas espero que a uma outra pergunta que eu lhe fizer não se negará a responder. Que é feito daqueles célebres “caçadores” que atravessaram o Estacado com o “tenente” e que fim levaram os três comerciantes que os acompanharam?

— Os comerciantes... hum! não sei, pois...

— Well, compreendo. E os “caçadores”?

— Dois deles devem ter voltado para a nossa caverna, e o terceiro foi assassinado em caminho pelo “tenente”. Encontramos o seu corpo.

— Logo pensei! Agora ponham, sem-cerimônia, essa mordaça à boca. Assim procedemos para que não dêm sinais de nossa presença àqueles patifes que vêm vindo lá adiante.

Logo que terminamos a nossa tarefa de amarrar e amordaçar os dois bandoleiros, os Morgans surgiram na entrada do vale. Ficaram parados por um instante e percorreram as imediações com o olhar. Em seguida, Patrik, esporeando o animal, chegou a trote, seguido do pai. Pareciam não tencionar demorar muito no vale. A uns vinte passos do nosso acampamento erguiam-se umas touceiras de amoreira silvestre. Para lá se tocaram os dois bandidos.

— É aqui, papai!

— Mas que lugar esplêndido! Quem diria que um formidável tesouro está aí oculto?!

— Sim, mãos à obra! Não sabemos quem eram aqueles dois peles-brancas que apareceram lá no rio a lutar com o “capitão” e nem sabemos também se os comanchos conseguiram prendê-los.

Apearam e amarraram os cavalos à margem do regato. Os animais saciaram a sede e depois começaram a pastar. Enquanto eles pastavam, os dois ladrões, depondo as armas, deram início à obra, começando por arrançar, munidos de facas, a touceira de amoreiras. Depois cavaram a terra que se achava solta.

— Ei-lo aqui! — disse Patrik, depois de admirar por alguns minutos um pacote feito de pele de búfalo.

— É só isso?

— É; e é mais que suficiente. São papéis-moeda, cheques bancários e outros títulos de alto valor. Agora fechemos o buraco e batamos o pó dos sapatos, enquanto é tempo.

— Ainda é cedo! Fiquem mais um pouco a nos alegrar com a sua amável visita!

Estas palavras foram pronunciadas por Sam, ao mesmo tempo que eu, num pulo, me cheguei aos bandidos de espingarda apontada.

Sam se achava diante dos.dois homens qual tigre enfurecido, pronto para se atirar à presa. No primeiro momento, os bandoleiros ficaram estupefatos, mas refizeram-se logo do susto e tentaram apanhar as armas. Apontei-lhe o revólver, dizendo:

— Não arredem um pé! Qualquer movimento para fugir ou pegar em armas custa-lhes a vida.

— Quem são os senhores? — perguntou o velho Morgan.

— Pergunte ao seu filho, que agora se deu ao esporte de chamar-se Meercroft!

— Quem lhes dá o direito de nos assaltar?

— Nós mesmos, da mesma forma que os senhores se arrogaram o direito de assaltar e roubar homens de bem como o senhor Marshall, de Louisville, de assaltar os trens com o fim de matar e roubar os passageiros e funcionários, de assaltar a granja de Sam Hawerfield, matando-lhe a esposa e o filho! Façam-nos a fineza de se deitarem ao solo!

— Era só o que faltava!

— Hão de fazer imediatamente, bastando para isso declinar-lhes os nossos nomes. Aqui está Winnetou, o cacique dos apaches; este é Sans-ear, que outrora se chamava Sam Hawerfield; quem eu sou, o seu filho já lhe deve ter dito. Portanto, vou contar até três, e se então não se deitarem, os eliminaremos a tiros, como se fossem dois míseros coiotes. Um... dois...

Com os punhos cerrados e rangendo os dentes os bandoleiros obedeceram a ordem.

— Bob, amarre esses canalhas!

— Bob vai amarra bandido bem amarrado, mestre! declarou o preto e cumpriu com a palavra, pois amarrou-os de tal modo que eles, amordaçados, rolavam de dor pelo chão.

Bernhard até agora montara guarda ao prisioneiro. Quando Sam o rendeu, ele se aproximou do assassino do seu pai. Quando Fred Morgan o viu, arregalou os olhos como se tivesse um fantasma diante de si.

— Marshall!

Este lançou-lhe um rápido olhar e não disse uma só palavra. Mas o olhar dizia mais do que palavras. O pobre rapaz estava tomado da idéia firme de vingar a morte do pai!

— Bob, traga os outros dois prisioneiros. Vamos realizar um júri rápido para julgar esses homens. Não temos muito tempo a perder com bandidaços.

O negro trouxe o “capitão” e Conchez. Também Hoblyn veio acompanhando-os. Até aqui ele havia mantido melhor conduta do que era de se esperar dum bandido.

— Quem usará da palavra? — perguntou Bernhard.

— Carlos, assume tu a presidência do júri! — apelou Sam.

— Não. Todos nós tomamos parte no processo. O único neutro é Winnetou. Além disso, ele é o cacique das campinas e ninguém está tanto à altura do cargo quanto ele.

Todos concordaram com a minha proposta. O cacique meneou a cabeça acedendo.

— O cacique dos apaches está ouvindo a voz do Espírito das Savanas; ele será um juiz às direitas no julgamento desses peles-brancas. Queiram os meus irmãos depor as armas, pois só homens pacíficos podem atuar como juizes.

Obedecemo-lo.

— Como se chama este pele-branca?

— Hoblyn — respondeu Sam.

— Qual o crime de que é acusado?

— Trata-se de um bandoleiro do deserto.

— Os meus irmãos viram-no matar um seu semelhante?

— Não.

— Ele confessou espontaneamente que era um assassino?

— Não.

— Ao lado de quem esteve ele ultimamente? Dos bandoleiros do deserto ou dos meus irmãos?

— Do nosso.

— Então queiram os meus irmãos julgá-lo com o coração e não com a espingarda! Winnetou deseja que este homem seja posto em liberdade, com a condição de regenerar-se, deixando completamente a vida de bandido. É uma criança ainda; só Manitu sabe que circunstâncias superiores, de que ele nem é talvez culpado, o arrastaram para o meio daqueles bandidos!

Todos concordaram com o ponto de vista do apache; a sua sentença me tocou de tal modo o coração, pois eu tinha a mesma opinião a respeito de Hoblyn de quem passara a ter pena, que agarrei a espingarda e a faca que pertenceram ao velho Morgan e as dei a Hoblyn. Deste modo ele passara de prisioneiro a homem livre e, absolvido da culpa, começou a ser tratado por nós como igual.

— Agarre essas armas! É de novo um homem livre e pode andar armado! — disse-lhe.

— Obri.. .ga.. .do... meu bom sir — gaguejou o rapaz banhado em pranto. — Winnetou... tem... razão! Vou provar-lhes... como — não se enganaram... comigo. Nunca cheguei a... matar ninguém e nem... roubar. Estava há poucos... dias na caverna. O “capitão” me encontrou na... cidade e me levou dizendo que era para me ensinar a arte de caçador. Escolheu-me para matar o “tenente” porque não tinha confiança em mais ninguém do bando. Eu não ia matar o “tenente”, mas fugir. Por duas vezes eu quis voltar para casa e o “capitão” me ameaçou de morte se eu o fizesse.

— Está bem, meu rapaz! — disse Winnetou, fazendo um esforço supremo para conter a sua comoção. — Meus senhores, continuemos o interrogatório: quem é este outro pele-branca?

— O chefe da quadrilha dos bandoleiros do deserto.

— Isto basta. Condenemo-lo à morte! Ou os meus irmãos são de outro parecer?

Ninguém o contrariou, passando a sentença em julgado.

— E aquele ali?

— Conchez.

— É um nome que só usam os homens falsos do sul. Qual a sua profissão?

— Bandoleiro do deserto.

— Que queria ele aqui? Roubar os seus próprios irmãos de banditismo. Também morrerá.

Como anteriormente, todos concordaram com a sentença. Winnetou continuou:

— Mas não serão mortos pelas mãos de um homem de bem! Como se chama este último?

— Patrik.

 —Tirem-lhe as cordas. Ele lançará estes bandidos, amarrados como estão para não poderem nadar, dentro do rio. Nenhuma arma tocará o corpo desses criminosos perversos. Não são dignos disso!

Bob tirou as cordas de Patrik. E enquanto o vigiávamos com os canos de nossas espingardas, o bandido executou a ordem de Winnetou com uma solicitude e sangue frio tais, que só de um bandido era de se esperar. Patrik estava perdido, e visível era a sua satisfação em poder, antes de ser executado, servir de carrasco aos seus antigos companheiros de caverna. Estes se achavam tão fortemente amarrados que não lhes era possível tentar a menor resistência. Tive que desviar deles os meus olhos. Não me era possível assistir a uma execução que, embora dez vezes merecida era crudelíssima.

Dentro de dois minutos tudo estava consumado. Patrik deixou-se amarrar novamente.

— E quem são estes dois peles-brancas? — perguntou Winnetou.

— São pai e filho.

— De que delito os acusam os meus irmãos?

— Acuso-os de haverem assassinado a minha mulher e o meu filho! — respondeu Sam.

— E eu os acuso de haverem morto meu pai e roubado todos os valores que existiam na sua loja e oficina de joalheria! — acrescentou Bernhard.

— Eu denuncio o pai como cabeça do assalto e saque de um trem. e assassinato de um funcionário ferroviário. Acuso o filho de haver tentado contra minha vida e a dos meus companheiros. É o bastante, nem precisamos levar em conta outros crimes hediondos praticados anteriormente pelos acusados.

—- Meu irmão disse bem: é o bastante e eles terão que morrer. O pele-preta queira executá-los!

— Pare — exclamou Sam. — Não devo abrir mão dos meus direitos. O crime praticado por eles ajudando a matar minha mulher e meu filhinho é o mais antigo; venho-os seguindo já há anos e anos e eles agora me pertencem; a mim pertencem as suas vidas e os entalhes que se referem a esses facínoras terão que ser feitos na minha espingarda! Feito isso, Sans-ear estará satisfeito e então estará pronto para dormir com a sua “Tony” o sono da morte nos precipícios das montanhas ou lá fora na campina, onde os esqueletos de milhares de caçadores se acham expostos ao sol!

— A exigência do meu irmão pele-branca é razoável. Queira ele tomar os assassinos das mãos dos demais.

— Sam, — sussurei-lhe ao ouvido, não manches as tuas mãos com o sangue desses vis criminosos, matando-os amarrados e indefesos como estão. Confia essa tarefa ao negro! Uma vingança dessas deslustra os sentimentos de cristão e constitui um pecado!

O rude caçador olhou-me absorto e emudeceu. A fim de dar-lhe tempo para refletir, encaminhei-me junto com Bernhard para o cavalo de Fred Morgan. Encontramos na maleta do serigote algumas pérolas que Bernhard reconheceu serem de sua propriedade. Nada mais havia ali. Examinamos depois os seus bolsos, onde encontramos finalmente, costurado ao forro de uma camisa de pele de búfalo, um invólucro feito com couro de cervo. O referido pacote continha regular importância em dinheiro corrente. Indubitavelmente era a parte de Holfert roubada por Morgan na vésperas. Bernhard tomou posse do invólucro.

 

ENTRE OS COMANCHOS

Naquele instante ouvi partido do local onde se achavam os nossos cavalos, um angustioso relincho. Pareceu-me que era do meu poldro. Toquei-me imediatamente para lá e vi que o meu animal, com a cauda no ar, as crinas eriçadas e o olhar faiscante, fazia um esforço inaudito para arrebentar a corda que o prendia. Ou havia algum animal feroz ali por perto ou de nós se aproximava algum bando de indígenas. Proferi um brado de advertência que não pôde ser ouvido, pois no mesmo instante ressoou um ensurdecedor berreiro como se mil diabos estivessem a gritar em desafio.

Precipitei-me para o local, onde antes deixara os companheiros, e olhei através das ramagens. O que minhas vistas descortinaram era horrível. Uma onda de indígenas escurecia o local. Três ou quatro ajoelhavam-se sobre Sam, que tinha sido arrojado ao solo; dois ao mesmo tempo se haviam lançado contra Winnetou a quem no momento derrubavam no chão. Hoblyn, com o crânio arrebentado, jazia sobre uma poça de sangue e Bernhard nem se reconhecia no meio de tantos nativos que se achavam atracados com ele. Não pude ver onde estava Bob.

Portanto, os racurrohs haviam de fato seguido o “capitão”, e durante o júri se aproximaram imperceptivelmente do nosso acampamento e assaltaram tão inesperadamente os meus companheiros, que pensar numa reação seria verdadeira loucura. Que podia eu fazer por eles? Nada; a única cousa que me restava era pôr-me a salvo. Fácil me seria, é verdade, eliminar uma dúzia de selvagens, mas que adiantaria? A não ser Hoblyn, nenhum dos outros haviam ainda tombado sem vida.

Eu conhecia os hábitos e costumes dos comanchos: eles prenderiam os meus companheiros com vida a fim de conduzi-los para a sua aldeia e lá executá-los com todas as formalidades, no poste dos martírios. Voltei, pois, para junto de meu cavalo, desamarrei-o e, puxando-o pelas rédeas, subi a montanha com a rapidez que me era possível. Os índios viram-me entrar no mato e não tardariam a procurar-me.

A sensível elevação da montanha dificultava-me sobremodo a subida, levando o cavalo pela rédea. Quando, porém, atingi a crista de serra, cessou a mata que me embaraçava também. Montei e cavalguei pelo dorso da serra com uma velocidade como se todo o bando de indígenas estivesse a me perseguir. Mais adiante a serra descia para outro vale. Não tive a menor preocupação em desfazer as pegadas que deixava por trás de mim na louca disparada que levava. Eu sabia que os nativos as encontrariam facilmente e haviam de segui-las, e por isso eu queria confundi-los com uma cavalgada a esmo.

Deste modo cavalguei ininterruptamente durante uma grande parte do dia, seguindo sempre o rumo do oeste, até chegar a uma vertente d’água, que de muito serviria para o objetivo que eu tinha em vista. Puxei o meu cavalo para o regato, que corria sobre um leito rochoso em que não se podem deixar pegadas e, depois, cavalguei leito acima até uma distância que julguei cansar o inimigo de tanto me procurar, pelos vestígios. Em seguida, envolvi os cascos do animal com pano e voltei para o ponto de partida da minha fuga.

O sol, já muito baixo, não tardaria a desaparecer, quando atingi a serra, em cujo sopé se achava o vale tremendo. Para diante eu não podia continuar; procurei um solo musgoso para nele acampar. Meu cavalo, tendo andado com as patas envoltas em pano, se achava tão fatigado que nem teve disposição para pastar e deitou-se ao meu lado.

Quão depressa mudara a situação! Mas eu não estava inclinado a me entregar a meditações de ordem sentimental; no caso presente só ações é que nos podiam valer, e para eu agir com êxito precisava da calma indispensável em circunstâncias dessas. Fiz a minha oração e adormeci para acordar-me quando o sol já brilhava alto no firmamento. Era raro eu dormir tanto.

Procurei, em primeiro lugar, uma zona oculta onde houvesse pastagens para o animal. Depois de amarrá-lo ali, dirigi-me para o local da catástrofe de ontem. Era uma tarefa bastante perigosa, mas era preciso empreendê-la em benefício dos meus companheiros.

Quando já havia quase atingido a base da serra, ouvi um sinal por trás de mim:

— Psit!

Olhei para trás, mas nada pude distinguir.

— Psit! Tornei a olhar.

— Psit, mestre!

Ah! Lá em cima havia um pau ôco de onde surgia a cabeça de Bob, que me olhava risonho, pondo à mostra a sua alva dentuça.

— Espera mestre, Bob já vai!

Daí a minutos, o negro se aproximou de mim e disse:

— Mestre, convido o sinhô pra descansa um pôco naquela minha sala de visita. Nenhum índio ha de encontra o inteligente nego Bob e seu bom mestre Carlo!

Embrenhei-me mais na mata e, minutos depois, me achava ao pé da árvore ôca cuja abertura era encoberta por barbas de pau.

— Que sorte! Como foste encontrar este esplêndido esconderijo? — perguntei-lhe.

— Um bicho disparo de Bob, entrou nesta grande casa e dispois olho pela janela. Matutei: bicho não é mió do que eu e Bob enxoto bicho e se aboleto na sua casa tal como faizem os branco enxotando índio de suas terra!

— Que espécie de bicho era, Bob?

— Bob não conhece. Tinha quatro perna dois óio e um rabo. Calculei tratar-se de um desses ursos não ferozes, que habitam essas paragens.

— Quando descobriste esta árvore?

— Logo que os índio chegáro.

— Com que então, desde ontem estás metido no ôco desta grossa árvore?! Que viste e ouviste durante todo esse tempo?

— Bob viu e ouviu muntos índio.

— E que mais?

— Nada.

— E os índios não estiveram aqui?

— Estivéro aqui e procuraro Bob. Dispois fizero fogo e assaro o lombo do urso que nóis, não, o mestre mato. Fiquei com raiva porque eles comem o nosso urso!

A indignação do negro era bem justificável, não há dúvida, mas não havia possibilidade de mudar a situação!

— E que mais?

— Quando foi de manhã os índios todo se retiraro.

— Para onde?

— Bob não sabe porque não pôde í junto, mas muntos índio saíra do vale. Da pequena janela lá de cima Bob pôde vê tudo. Junto cos índios satro também mestre Bern mestre Winnetou e mestre Sam, todos tinham muntas cordas no corpu.

— E que mais? E depois?

— Dispois? índio andou caminhando gatinha aqui ocalá a procura Bob, mas Bob é nego inteligente!

— Quantos índios ficaram ainda aqui?

— Bob não sabe; mais sabe o lugâ onde eles tão.

— Onde?

— Lá no urso morto. Bob pode enxerga eles pela janela.

Olhei para cima. A árvore era accessível, pois Bob lá estivera oculto. Tentei subi-la e consegui. Penetrei no ôco e pelo orifício a que Bob dava o nome de “janela” podia relancear os olhos em torno de todo o vale. Realmente, no local onde deixáramos o urso, divisei a figura de um índio acocorado. O bando se retirara e deixara secretamente no vale uma guarnição para nos prender quando voltássemos, hipótese que era fácil de admitir.

Que atitude devia eu tomar? Desci da árvore.

— Lá junto do urso só está um índio, Bob — disse-lhe eu.

— Nalgum outro logá deve está mais dois.

— Espera-me aqui, de onde não deves arredar o pé!

— Mestre quê procura outros índio? Não é mió mestre ficá aqui com Bob.

— Vou salvar os companheiros!

— Sarvá mestre Bern. Oh! mestre Carlo, isto é bom e munto bonito, Bob cada vez tá gostando mais do mestre Carlo. Bob vai também junto pra sarvá mestre Bern, mestre Sam e mestre Winnetou.

— Não, Bob. O melhor serviço que nos podes prestar de momento é ficares muito quietinho aqui mesmo para que os índios não te surpreendam.

Abandonei a árvore. Alegrava-me imensamente por saber que ao menos um dos meus amigos estava salvo, embora este fosse o negro! Jamais cogitei de cores ou raças quando se achava em jogo a vida de um homem! Fora inteligente a idéia dos índios postando guardas em torno do urso.

A sua carne poderia nos servir de ponto de atração, o que facilitaria o nosso aprisionamento.

Uma hora depois me achava distante uns cinco passos do índio que guardava o urso. O indígena estava sentado imóvel como uma estátua, apenas movendo a mão direita com a qual brincava com um apito feito de bambu, que lhe pendia do pescoço. Eu sabia que com esse apito o nativo podia assobiar; quem sabe se um assobio com aquele instrumento seria algum sinal convencionado entre os guerreiros que guarneciam o vale?

O nativo era ainda jovem: podia ter, quando muito, uns dezoito anos de idade. Talvez fosse a primeira expedição de guerra em que tomava parte. O asseio de suas vestes e o bem cuidado de suas armas me faziam supor que se tratava do filho de algum cacique. Devia matá-lo? Possuía o direito de destruir aquela vida jovem e esperançosa? Não!

Aproximei-me, peguei-lhe pela garganta e desferi-lhe um dos meus socos na região temporal, deixando-o sem sentidos. Amarrei-o e coloquei-lhe uma mordaça. Feito o que, prendi-o ao tronco de uma árvore, cercada de arbustos, de forma que ele não podia ser visto. Tomei-lhe o apito feito com bambu e com ele dei um assovio. Imediatamente ouvi um ruído na mata, ao lado, donde saiu correndo um índio já idoso. Um coronhaço de minha espingarda fê-lo cair ao chão. Não pretendia matá-lo, mas apenas tirar-lhe os sentidos. Devia haver mais de três ou quatro índios no vale. Apitar, chamando toda essa gente e matá-la um a um, seria uma inominável crueldade contra a qual reagia a minha alma de cristão. Antes de tudo, precisava averiguar o lugar onde os ocupantes do vale haviam guardado os animais de montaria. Era um empreendimento arriscado. Imitei o curto relincho de um cavalo e no mesmo instante, do local de onde saíra o índio, vários animais me responderam.

Agora precisava confiar na minha sorte; amarrei o velho com sua cinta e outras cordas que trazia consigo, peguei o jovem aos ombros e saí, protegido pelas árvores e pela curva do vale, onde se achavam os cavalos dos indígenas. Lá se achavam seis cavalos; uma prova de que devia haver mais nativos pelas redondezas. Estes indubitavelmente deveriam se achar lá na frente, na entrada do vale. Desse modo, pois, me sobrava muito tempo a fim de preparar-me para o que desse e viesse.

Voltei para a “sala de visitas” de Bob. Este havia galgado a árvore c se refugiara novamente no ôco. Olhava pela “janela”; quando me viu de longe, desceu logo e pôs-se a me olhar através das ramagens da mata.

— Oh mestre pego índio, mato índio?

— Não. Quero conservá-lo simplesmente como prisioneiro. Queres ajudar-me a salvar Bernhard?

— Oh, Bob seria feliz si pudesse sarvá mestre. Que devo fazê pra isso?

— Toma este índio e o conduz serra abaixo até a entrada do vale. Chegando lá, coloca-o no chão e espera por mim.

— Bob vai fazê como manda mestre Carlo.

— Mas não mexas nas cordas. Se ele consegue livrar-se, tu estarás perdido.

— Bob não deixa índio escapa.

— Então, anda!

O possante negro pôs o indígena às costas e com ele desceu a serra. Voltei para os cavalos dos comanchos. Era tarefa penosa conduzir os animais serra abaixo, devido ao terreno acidentadíssimo. Mas sozinho, seria mais fácil desobrigar-me da empresa, do que apelando para o auxílio de Bob. Os cavalos dos indígenas têm verdadeiro horror de negros; deixam-se montar por eles, é verdade, mas logo depois empacam, não havendo nada que os faça sair do lugar.

O que eu há pouco supusera, confirmara-se: os nossos haveres, inclusive os que trouxéramos da caverna do Llano Estacado, estavam perdidos. O ouro é um pó mortífero: de cem, que para a sua conquista lutam nas jazidas e nas campinas, noventa encontram morte certa. O brilho e o som do cobiçado metal despertam demônios sinistros e só ao poder destes é que ele se curva.

Tomei das cordas que ali havia em grande quantidade e amarrei uns aos outros pela cauda, de modo que os animais marchassem em linha. Peguei o da frente pelas rédeas e puxei a cavalhada serra abaixo. Passei um trabalhão enorme para trazer os animais. Os quatro índios restantes deveriam achar-se a uma grande distância para não perceber o tropel e os bufidos da cavalhada semi-selvagem. Contudo, eu atingira com felicidade a entrada do vale e os índios se achavam agora a pé, não lhes sendo possível, deste modo, alcançar o grosso do bando em busca de reforço. Ao mesmo tempo falhara-lhes o objetivo principal, que era prender a mim e ao negro Bob.

O negro se achava debaixo de uma árvore na entrada do vale e guardava o prisioneiro. A sós com o prisioneiro, êle devia ter passado um mau quarto de hora, receando que a cada momento surgisse do mato algum pele-vermelha para tirar-lhe a presa e matá-lo. A sua fisionomia, pois, iluminou-se de satisfação quando me viu. Respirou profundamente aliviado.

— Oh! Que bom que chego mestre Carlo; índio fazia olhares de tinhoso, uivô ronco como um bicho. Bob deu um bofetão no fucinho do vermeio que ele teve que cala a boca!

— Não deves bater no prisioneiro, Bob! Isto não é próprio de cavalheiro e além disso constitui um insulto do qual os índios só se desagravam matando o ofensor. Se ele for solto e te encontrar um dia, tu estarás perdido!

— Nego Bob perdido? Oh, oh! mestre! Então vô mata logo índio duma vêis pra que não fuja.

Realmente ele puxou de seu enorme canivete de campanha e colocou a ponta no peito do indígena.

— Que é isso, Bob? Não admito que o mates! Deixando-o viver, teremos muito mais vantagens. Ajuda-me a amarrá-lo no cavalo.

Desamordacei o índio.

— Meu irmão pele-vermelha queira respirar, mas fica proibido de falar a não ser quando eu lhe perguntar alguma cousa.

— Ma-ram falará quando bem lhe aprouver — replicou o pele-vermelha. — O pele-branca, quer eu fale, quer eu fique calado, irá matar-me e cortar-me o escalpo.

— Ma-ram conservará a sua vida e o seu escalpo; “Mão de Ferro” mata somente o inimigo em combate.

— O pele-branca é o “Mão de Ferro”? Uff! Uff!

— Estou dizendo a verdade. Ma-ram não é mais meu inimigo, mas meu irmão. “Mão de Ferro” vai reconduzi-lo à cabana de seu pai, na aldeia dos comanchos.

— O pai de Ma-ram é To-kei-chun, o grande cacique dos comanchos, que governa os guerreiros dos racurrohs; mas ele matará Ma-ram porque se deixou aprisionar pelo pele-branca.

— Meu irmão quer ser de novo livre? O indígena olhou-me admirado.

— Se o meu jovem irmão pele-vermelha prometer que não foge e se me acompanhar à aldeia de sua tribo, o desamarrarei e lhe darei um cavalo; também as suas armas que lá estão presas ao serigote lhe serão devolvidas.

— Uff! “Mão de Ferro” tem um punho forte e um coração grande! Não é como os demais peles-brancas. Mas não tem duas línguas?

— Não! Sempre falo a verdade. Promete o meu irmão obedecer-me até chegarmos à presença de To-kei-chun?

— Ma-ram promete!

— E cumpre a promessa?

— Sim. Manitu não quer que Ma-ram minta!

— Então receba de minhas mãos o fogo da paz. Este fogo o devorará se ousar quebrar a palavra!

Fui até o local onde estavam guardadas as nossas montarias. Do serigote tirei três charutos dos “havaneses” de minha fabricação. Acendi-os e fumamos com as formalidades do ritual indígena.

— Os peles-brancas não têm um Grande Espírito que lhes forneça argila santa para o fabrico de seus cachimbos? — perguntou o jovem nativo, finda a cerimônia.

— Os peles-brancas têm um espírito maior do que todos os outros, que lhes forneceu com abundância argila santa para o preparo do cachimbo; mas só o fumam em suas cabanas. Fora de lá, usam esses charutos que são mais cômodos de carregar.

— Uff! Charutos?! O Grande Espírito dos peles-brancas é inteligente! Esses charutos são mais leves de conduzir do que o cachimbo.

Bob arregalava os olhos admirado de me ver agora fumar, displicentemente, nas imediações de tão ferozes inimigos e na companhia de um índio, a quem antes mandara amarrar ao cavalo.

— Mestre, também Bob qué fuma a páiz!

— Aqui tens um charuto, mas fuma-o montado, pois partiremos imediatamente.

O comancho escolheu dentre a cavalhada apreendida a sua montaria e subiu ao lombo do animal. Segundo observações que colhera nas minhas longas jornadas pelo oeste bravio, desde o momento em que fumei o charuto com o indígena não precisava mais recear que ele fugisse. Bob montou um dos cavalos indígenas, mas depois de ingentes esforços. Os demais foram conservados amarrados, como se achavam, pela cauda um do outro a fim de tocá-los por diante. Em seguida, montei no meu poldro e começamos a viagem.

À saída, o vale desenvolvia-se numa planície a perder de vista no horizonte. Por ela cavalgamos, procurando as pegadas do grosso dos comanchos. Atingimo-las daí a pouco tempo e isso sem sermos notados pelos índios que ficaram no vale. De repente, estes se fizeram ouvir em brados furiosos que ecoavam ao longe. Não nos importamos, naturalmente, com o berreiro e prosseguimos calmamente na cavalgada. Ma-ram conservou o domínio de si próprio a tal ponto, que nem sequer contraiu um músculo da face e nem se deu ao trabalho de olhar para trás.

Sem trocarmos uma palavra, continuamos seguindo as pegadas até o anoitecer, quando atingimos outro trecho do rio Pecos e encontramos um local apropriado para tomarmos pouso. Num saco, costurado à capa que cobria o cavalo do comancho, havia uma regular provisão de xarque. Desse modo, não passaríamos fome, nem nos daríamos ao trabalho de abater caças. Havíamos tomado uma tão grande dianteira dos quatro comanchos, que eles não nos alcançariam durante a noite.

Ma-ram deitou-se logo a dormir e eu me revesava com Bob no serviço de vigilância. Quando começou a amanhecer, tirei a capa e os freios aos cavalos que conduzimos e os enxotei para o rio. Os animais o atravessaram a nado e desapareceram depois na mata, que se erguia na margem oposta. O índio assistiu a tudo sem dizer uma só palavra.

As pegadas, cuja trilha continuávamos, eram bem visíveis, prova de que os comanchos se consideravam perfeitamente salvos da perseguição de qualquer inimigo. Cavalgaram seguindo sempre a margem direita do rio Pecos, seguindo-o até o ponto em que o mesmo confina com a serra Guadalupe. Nesta altura, constatei com surpresa, que as pegadas se dividiam. A maior parte dos selvagens se dirigira para a serra, ao passo que os demais continuavam ininterruptamente pelo mesmo caminho.

Apeei-me a fim de examinar o caminho. No meio das pegadas dos que prosseguiram pelo mesmo rumo, encontrei com toda nitidez as de “Tony”, cujo sinal dos cascos eram por mim demasiadamente conhecidos sem que me pudesse enganar. Um pouco antes encontramos vestígios de acampamento. Dirigi-me a Ma-ram:

— Os filhos dos comanchos subiram a serra, em romaria, com o fim de visitar o túmulo do seu cacique?

— Meu irmão acertou.

— E estes outros aqui — apontei para as pegadas dos demais — seguiram para a frente, a fim de conduzir os prisioneiros à taba?

— Assim o determinaram os dois caciques dos racurrohs.

— Os filhos dos racurrohs conduzem também os tesouros dos dois peles-brancas?

— Os tesouros continuam no seu poder, por não saberem a qual dos peles-brancas pertencem.

— E onde fica a taba mais próxima dos racurrohs?

— Na savana situada entre este rio e aquele outro a que os peles-brancas dão o nome de Rio Grande del Norte.

— Quer dizer na savana que fica entre as duas serras?

— Tal qual diz o meu irmão.

— Então desistiremos de seguir as pegadas; cavalgaremos diretamente para o sul.

— Meu irmão fará naturalmente como melhor achar; mas deve ter em vista que por aquelas bandas não há água para beber.

— Eu já sei por que o comancho não quer seguir o rumo por mim alvitrado!

— Queira o meu irmão dizer-me!

— Os filhos dos comanchos cavalgam com os seus prisioneiros ao longo do rio, em cujo trajeto terão que fazer uma grande curva; e se nós cavalgarmos em linha reta para o sul, alcança-los-emos antes de sua chegada à taba.

Emudeceu. Ele percebera que eu penetrara no seu pensamento. Contei as pegadas dos que seguiram rumo acima e verifiquei que eram de dezesseis animais. Winnetou, Bernhard e Sam haviam sido, pois, escoltados por treze nativos. Deviam estar amarrados com todo o cuidado, e se os alcançasse, eu os libertaria melhor por meio de astúcia do que com o emprego de violência.

Enveredei-me para o sul e deixei que os cavalos empregassem todas as suas forças.

Foi uma cavalgada fastidiosa e difícil, pois eu não conhecia a região e não poderia obter de Ma-ram os dados suficientes. Perto de nós, brilhavam agora as águas do Pecos, que alcançávamos novamente.

O mato descia conosco serra abaixo e acompanhava-nos costeando o rio, savana adentro. Num regato que afluía para o Pecos, encontramos novamente a senda dos comanchos. Era do dia anterior, provavelmente deixada ao meio-dia; não muito distante dali, num segundo regato, os vermelhos haviam feito uma parada, por certo para deixar minorar o calor do dia.

Também eu resolvi que descansássemos um pouco aí, escolhendo, porém, um local para isso que não ficasse muito perto do rio, mas mais afastado, num bosque que nos oferecia a necessária defesa contra algum inimigo que eventualmente nos surgisse durante o descanso. Esta medida de precaução foi bem aplicada, pois mal me havia abancado no solo ao lado de Ma-ram, voltou Bob, que fora até o rio tomar banho com o seu cavalo, e me preveniu:

— Oh, mestre, ali adiante vem cavaiêros, um, dois, cinco e seis. Vamos fugí ou mata?

De um salto caminhei para a orla do capão e avistei, de fato, seis cavalos, que vinham em nossa direção, a toda velocidade. Dois dos que vinham atrás pareciam conduzir pacotes amarrados ao lombo. Num dos da frente, que se achavam mais próximos, distingui um cavaleiro. Tínhamos, pois, apenas dois inimigos pela frente, se é que se tratava de inimigos; não obstante a grande distância, vi que o cavaleiro não era um indígena, mas um pele-branca.

Mas por trás do grupo, vinham cinco cavaleiros, em louca disparada; eram índios que dentro de cinco minutos apanhariam os dois fugitivos. Só poderia tratar-se de uma perseguição; a fim de resolver qual a atitude a tomar, assestei o binóculo para ambos os grupos.

— Zounds! — saiu-me instintivamente dos lábios, pois o da frente não era outro senão o velho Morgan e no grupo de trás, cavalgava o seu filho Patrik.

Deveria matá-los ou apanhá-los com vida? Não, com o sangue desses salteadores eu não desejava macular as mãos! Mas em todo caso, levei a espingarda em posição de atirar e parei para aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Eles disparavam rente ao rio e os nativos já se achavam a uns quinhentos passos. Eu já ouvia os relinchos dos seus cavalos e agora ali vinham os fascínoras e iam passar por nós. Resolvi apertar o gatilho e o fiz por duas vezes. As balas atingiram os animais na cabeça, caindo logo. Os demais cavalos de montaria, que não se achavam montados, vinham presos a estes e, com os estampidos se assustaram, tentando desprender-se das cordas que os seguravam. Os cavaleiros haviam sido jogados ao solo a uma grande distância. Preparava-me para investir contra eles.

— O hi... hi... hihiiiiii! — ecoou o brado de guerra dos selvagens que se aproximavam, com o qual Ma-ram fez coro, e no mesmo instante eu estava sitiado. Três machadinhas de guerra e duas facas reluziram sobre minha cabeça.

— Cha! — bradou Ma-ram, ao mesmo tempo que fazia um sinal para parar. — Esse pele-branca é amigo de Ma-ram!

Imediatamente me largaram, mas as conseqüências de sua agressão não podiam ser corrigidas: os dois salteadores jogados ao solo tiveram tempo de se reerguer e fugir para o mato próximo. Os cavalos, com a gritaria dos índios, haviam estourado e se lançaram ao rio. Eram os nossos animais cargueiros. Traziam carga pesada e em vista disso, logo que se atiraram ao rio, foram ao fundo.

Quatro dos índios pularam em perseguição dos fugitivos, o quinto ficou comigo.

— Queira o meu irmão pele-vermelha dizer-me por que motivo perseguem os peles-brancas?

— Os dois brancos têm boca como cobra e as suas línguas têm duas pontas. Apesar de se dizerem nossos amigos, assassinaram durante a noite o guarda e fugiram depois com os tesouros que lhes apreendêramos.

— Com o ouro também?

— Levaram os metais e os “talismãs de papel”, que se achavam enrolados numa pele de búfalo.

Deixou-nos parados e apressou-se em acompanhar os seus companheiros. Pelo que se depreendia, os dois Morgans tiveram receio de que os comanchos não lhes devolvessem mais os tesouros e, por isso, resolveram eliminá-los, para deles se apossarem. Com as palavras “talismã de papel” o nativo queria referir-se ao dinheiro em papel e cheques bancários que já havíamos tomado aos salteadores.

O rio, no local onde os cavalos se atiraram, descrevia uma curva, formando deste modo fortes redemoinhos, que nos tiraram todas as esperanças de readquirir o pó mortífero!

Que nos restava agora fazer? A preocupação com os prisioneiros nos falava mais alto do que o desejo de deitarmos novamente as mãos sobre os salteadores. Estes, aliás, tinham por trás de si os cinco comanchos aos quais poderíamos deixar confiadamente a sua captura.

— Por que atirou o meu irmão pele-branca nos cavalos e não nos cavaleiros? — perguntou Ma-ram. — “Mão de Ferro” não aprendeu a fazer miras?

— Por que “Mão de Ferro” não matou Ma-ram em cujo peito já tinha colocado a ponta de sua faca? Matou os cavalos porque desejava falar com os cavaleiros.

— O meu irmão não se aflija, porque falará ainda com eles, pois vai ajudar os cinco irmãos comanchos a procurá-los.

— Não sairei em sua perseguição. Os guerreiros comanchos são sábios e valentes; eles prenderão aqueles malfeitores peles-brancas e os conduzirão à sua taba, Queira Ma-ram montar o seu cavalo e acompanhar-me!

Os acontecimentos haviam-me tirado toda a vontade de descansar e, além disso, uma idéia fixa me atormentava o cérebro: os nossos amigos se achavam escoltados por treze comanchos. Descontados os cinco que vieram em perseguição dos criminosos e mais o que se achava de sentinela e que fora assassinado pelos Morgans, só restavam sete peles-vermelhas que constituíam a escolta. Nessas condições, seria mais fácil promover a sua libertação.

Forcei agora mais os cavalos do que dantes. Até o escurecer, havíamos vencido um trecho tal que, examinando as pegadas com todo cuidado, concluí que o pequeno contingente de vermelhos havia passado recentemente por aí ao meio-dia. A fuga dos Morgans, o assassínio do pele-vermelha que dava sentinela e mais a convicção de que não se achava ninguém no seu encalço, fizeram que eles demorassem a viagem.

Embora Ma-ram se achasse ansioso por acampar, foi obrigado a acompanhar-me mais quatro milhas inglesas, até que escureceu de tal forma, que não era mais possível enxergar as pegadas. Então ordenei que apeasse para tomar pouso. Quando amanheceu o dia, partimos logo. Agora as pegadas saíam da margem do rio e entravam pela savana, seguindo sempre para o sul. Aqui e ali topamos com trilhos feitos por manadas de búfalos, pelos quais seguíamos, e, à medida que eu examinava as pegadas, via que cada vez mais nos aproximávamos dos comanchos. Já eu pensava em alcançá-los ao meio-dia, quando dei com as vistas num ponto pisoteado por animais, e daqui em diante as pegadas de, no mínimo, uns quarenta cavaleiros seguiam também para o sul.

— Uff! — exclamou Ma-ram.

Não disse mais nada, mas seus olhos se iluminaram de contentamento e sua fisionomia tornou-se depois risonha. A escolta que conduzia os nossos companheiros havia topado com uma tropa de comanchos, que a protegera e acompanhara até a aldeia.

— Qual é a distância daqui até o acampamento dos comanchos? — perguntei ao índio.

— Os racurrohs não têm acampamento; eles construíram uma aldeia na savana ainda maior do que as cidades dos peles-brancas. Se meu irmão cavalgar ligeiro, a alcançará antes do sol desaparecer por trás das campinas.

Ao meio dia fizemos um pequeno alto e, realmente, à tardinha, surgiu uma linha negra no horizonte; com o auxílio do binóculo verifiquei grandes fileiras de cabanas.

Por causa das próximas caçadas de búfalos, os índios haviam estabelecido aqui uma aldeia consideravelmente grande e pareciam tão absorvidos pela recepção dos prisioneiros, que não encontramos um índio pelas imediações e conseguimos aproximar-nos bastante da taba.

Fiz parar o cavalo.

— É lá a aldeia dos comanchos? — perguntei.

— É lá mesmo — respondeu Ma-ram.

— O cacique estará na taba?

— O pai de Ma-ram está sempre com os seus filhos.

— Quer ter a fineza de ir na frente avisá-lo de que “Mão de Ferro” pretende fazer-lhe uma visita?

Olhou-me um tanto surpreendido de soslaio.

— Mas “Mão de Ferro” não receia tantos inimigos? Ele mata búfalos e urso cinzento, o monstro das montanhas, mas não conseguirá matar os comanchos que são tantos quantos são as árvores das matas.

— “Mão de Ferro” mata as feras das selvas, mas não os seus irmãos peles-vermelhas. Ele nunca temeu os sioux, os kiowas, os apaches e nem os comanchos, pois é amigo de todo o guerreiro valente e leal; desfecha sua espingarda somente contra os maus e os traidores. Meu irmão queira ir ter com seu pai e eu o espero aqui.

— Mas Ma-ram é seu prisioneiro; e se lhe fugir?

— Ma-ram já não é mais meu prisioneiro; tragou comigo a fumaça da paz; está solto!

— Uff!

A essas palavras esporeou o cavalo e galopou para a aldeia. Apeei-me juntamente com Bob; sentamo-nos na relva e deixamos que os animais pastassem. O bom negro fazia uma fisionomia profundamente apreensiva.

— Mestre que vão os índio fazê do nego Bob, se mestre leva Bob junto pra sua ardeia?

— Isso só depois veremos.

— Dispois tarveis seja tarde. Dispois os índio matam Bob e queimam Bob vivo debaixo dum posti.

— Talvez não te aguarde nada de perigoso. Somos obrigados a entrar na aldeia dos comanchos para salvar o teu patrão Bernhard.

— Oh sim! Nego Bob vai sarvá seu bom patrãozinho Bern; ele deixa os índio esfolá, cosinhá e come Bob desde que sórtem mestre Bern!

O negro fez acompanhar a sua decisão heróica dum arreganho de dentes, que por certo tiraria o apetite a qualquer índio que pretendesse devorá-lo. Em seguida, tomou de um pedaço de xarque de búfalo, a fim de antes de sua morte pelo martírio, alimentar-se um pouco...

Não foi preciso esperarmos muito tempo pelo resultado que teria o aviso de nossa chegada, pois, pouco tempo depois, uma tropa de cavaleiros se dirigia ao nosso encontro. Foram-se desviando para os lados até que nos fecharam num círculo, círculo que debaixo dum berreiro dos demônios e o reluzir de armas cada vez se apertava mais, parecendo que os peles-vermelhas queriam derrubar-nos a patas de cavalos. Um grupo de quatro caciques se dirigiu para nós, mas depois continuou para frente. Bob se atirou ao chão; eu, porém, continuei sentado e não movi a cabeça nem para a direita e nem para a esquerda.

— Oh, índio vai mata mestre e Bob a pata de cavalo! — berrava o negro, levantando a cabeça a fim de verificar se a situação ainda não estava mudada.

— Isso nem lhes passa pela idéia. Querem apenas experimentar se somos corajosos ou se os tememos.

— Experimenta nois? Que venha índios excomungados, Bob vai mostra como não tem medo de ninguém.

Tornou a sentar-se e isso foi a tempo, pois os caciques haviam apeado e se encaminhavam para nós. O mais velho deles tomou a palavra:

— Por que não se levanta o pele-branca à aproximação do cacique?

— Porque com isso quer significar que o cacique lhe é bem-vinda Os meus irmãos peles-vermelhas queiram tomar lugar ao meu lado!

— Os caciques dos comanchos só se sentam ao lado de um cacique. Onde está a aldeia do pele-branca e onde os seus guerreiros?

Agarrei a machadinha de guerra com a mão direita.

— Um cacique deve ser forte e valente. Se os peles-vermelhas não acreditarem que sou um cacique, queiram se dignar a lutar comigo; então verão se falei a verdade ou não.

— Como se chama o pele-branca?

— Os guerreiros vermelhos e brancos e os caçadores chamam-me “Mão de Ferro”.

— Esse nome não lhe deram, o pele-branca mesmo o adotou pretensiosamente.

— Se os caciques peles-vermelhas aceitarem o meu desafio, que tomem logo da machadinha ou da faca; eu, porém, lutarei apenas com os meus braços. Howgh!

— O pele-branca diz essas palavras para se engrandecer; permitiremos que dê uma prova de sua coragem. Queira montar a cavalo e acompanhar os guerreiros dos racurrohs!

— Os guerreiros fumarão o cachimbo da paz comigo?

— Primeiro decidirão se podem fazê-lo.

— Podem fazê-lo sim, pois os procuro com espírito de paz! Montei a cavalo e Bob subiu também para a sua cavalgadura indígena.

Ninguém dos peles-vermelhas parecia preocupar-se com ele. O índio é ainda mais orgulhoso em face da raça negra do que da branca. Eu, porém, fui conduzido no meio dos caciques e a todo galope seguimos para a aldeia. Galopamos por entre as fileiras de cabanas, até chegarmos a uma maior, onde fizemos alto e apeamos.

Não vi mais o negro Bob. Eu me achava cercado por todos os guerreiros que me foram receber. O cacique, que há pouco usara da palavra, pegou na minha espingarda.

— Queira o pele-branca entregar-nos as suas armas!

— Conservar-me-ei armado, pois vim ter com os senhores voluntariamente e não como prisioneiro!

— Contudo o pele-branca terá que nos entregar as armas até que os peles-vermelhas saibam com que fim os procurou.

— Os peles-vermelhas temem o pele-branca? Aquele que exigiu que eu lhe entregue as armas é porque tem temor.

O cacique sentiu ofendida a sua honra de guerreiro e dirigiu aos outros três um olhar interrogativo; deve ter lido nos seus olhos alguma resposta tranqüilizadora, pois continuou:

— Os guerreiros dos comanchos não sabem o que é temor. Queira o pele-branca conservar as suas armas!

— Como se chama o meu irmão pele-vermelha?

— “Mão de Ferro” está falando com To-kei-chun, diante de quem tremem os mais destemidos inimigos!

— Peço ao meu irmão To-kei-chun que me destine uma cabana para descansar, até que os comanchos resolvam conceder-me a honra de uma conferência mais demorada!

— O pele-branca teve boa idéia. O cacique vai indicar-lhe uma cabana, onde pode descansar até findar o conselho deliberativo que os racurrohs vão realizar a fim de resolver se fumarão ou não o cachimbo da paz com ele.

Acenou-me com a mão e saiu andando; eu o acompanhei, levando o meu poldro pelas rédeas. Os indígenas haviam formado uma espécie de rua entre as fileiras de cabanas, pela qual passamos; notei muitas caras jovens e idosas de mulheres nativas a dirigir-me olhares furtivos através das janelas. Muitas delas se aventuraram a chegar até o buraco, a que davam o nome de porta. Felizmente essa tribo de comanchos não era aquela que Winnetou de uma feita derrotou no Mapimi.

As cabanas estavam levantadas com o mesmo sistema usado pelos indígenas do norte. Seguiam também em certos pontos os mesmos usos e costumes. O trabalho da ereção das cabanas era entregue exclusivamente às mulheres, como, aliás, todo e qualquer outro serviço interno por mais pesado que fosse. Os homens se entregavam exclusivamente à guerra, à caça e à pesca.

As mulheres, depois de curtirem as peles dos animais, com um pedaço de carvão, desenham sobre a mesma a forma da parede de uma cabana; depois cortam a pele por esses desenhos e as costuram com finos fios de couro. Também o madeiramento destinado às cabanas é buscado pelas mulheres no mato e depositado no local destinado a erigir a aldeia.

A cabana para a qual o cacique me conduziu, era pequena e se achava desabitada. Amarrei o meu poldro do lado de fora, abri o cortinado da porta, constituído de duas meias peles, e entrei sem dar mais atenção ao cacique, que, aliás, também pouco me ligou, visto que nem se deu ao trabalho de acompanhar-me até o interior da cabana.

Não me achava ainda dois minutos no interior da cabana, quando se abriu o cortinado e uma índia muito velha entrou trazendo um leito feito de estacas e o largou a um canto. Desapareceu depois para voltar em seguida trazendo uma panela de barro, já rachada. A panela continha água e um ingrediente que não pude ver o que era. A indígena colocou-a ao fogo para ferver.

Eu me havia deitado e a olhava sem dizer uma palavra. Eu sabia muito bem, que, segundo os costumes e hábitos dos nativos, desceria muito de minha dignidade se mantivesse uma palestra com uma mulher velha. Além disso, percebi que me achava num “posto de observação” e que era possível estar sendo observado por vários olhos, através de qualquer buraco ou fenda.

A panela começou a ferver e pelo cheiro vi logo que a velha me ia servir uma refeição de carne de rês. Realmente, daí a uma hora colocou a panela fervendo diante de mim e abandonou a cabana para que eu pudesse jantar à vontade.

Jantei e confesso que a coxa de búfalo estava de lamber os dedos. Não desprezei igualmente o angu, muito embora o asseio da panela muito deixasse a desejar e o angu estivesse preparado sem sal, que para os nativos é um tempero intragável.

Para fazer justiça, devo dizer que os comanchos me estavam dispensando uma bem cativante hospitalidade, e ainda hoje sou capaz de apostar a minha cabeça como a panela de barro em que me serviram o jantar era  a única existente em toda a taba!

Terminada a refeição, deitei-me sobre o leito trazido pela velha, e utilizei o meu cobertor como travesseiro. Pela fresta do cortinado verifiquei que haviam forrageado o meu animal e que dois nativos patrulhavam, a minha cabana, caminhando de um lado para o outro. Mais tarde apagou-se o fogo que ardia na cabana e eu adormeci tranqüilo. Achava-me em vésperas de importantes acontecimentos, mas de nada me adiantaria-passar uma noite em claro. Na manhã seguinte, acordei com um ruído crepitante: abri os olhos e vi a velha que acendera novamente o fogo e sobre o mesmo colocara a panela a ferver.

Ela cumpria com a sua tarefa sem me dirigir sequer um olhar e eu nem por sombra me achava magoado com aquela falta de atenção. Tomei a refeição matinal com o mesmo apetite da véspera e decidi ir um pouco para a frente da cabana. Mas, mal havia eu levantado o cortinado, um dos guardas ameaçou-me com a ponta de sua lança como se pretendesse abrir-me o ventre debaixo para cima.

Não devia deixar passar tal atitude sem uma enérgica reação, sob pena de ver decaída de uma vez por todas a minha fama de guerreiro intrépido. Agarrei a lança pela ponta, dei com ela um empurrão no índio que a empunhava e depois puxei-a de novo de volta. Com o movimento violento que imprimi na arma, o indígena caiu no chão bem diante dos meus pés deixando a lança na minha mão.

— Uff! — berrou erguendo-se do solo como um tigre e sacando de sua faca.

— Uff! — exclamei também eu, puxando da faca e com a mão esquerda atirando a lança conquistada para o interior da cabana.

— Queira o pele-branca devolver-me imediatamente a minha lança!

— Queira o pele-vermelha ir buscá-la, se quiser!

A isso ele não se animava, conforme se depreendia visivelmente de sua fisionomia. Mas não tardou em receber reforço, pois o outro guarda que rondava por trás da cabana veio em socorro, pondo-me a lança em frente ao rosto, urrando:

— Queira o pele-branca entrar para a cabana!

Repetiu-se a mesma cena anterior, e desta vez os dois índios rolaram, no chão ao mesmo tempo. Agora acharam que era demais! Proferiram um brado com o qual alarmaram toda a aldeia.

Enfrente à minha cabana, havia outra, consideravelmente alterosa, em cuja parede se achavam costurados três escudos. Ao brado dos guardas, à janela daquela cabana assomou um rosto feminino, a fim de verificar a causa do rebate. Dois olhos negros e faiscantes repousaram em mim e a cabecinha desapareceu novamente. Daí a pouco, daquela cabana saíram os quatro caciques que se dirigiram diretamente a mim. A um sinal dado por To-kei-chun os guardas se afastaram.

— Que está fazendo o pele-branca aqui diante da cabana?

— Creio que não ouço bem! O pele-vermelha com certeza quer é perguntar o que fazem esses guardas em frente à residência que me foi reservada!

— Destaquei os guardas para vigiar a sua cabana a fim de que nada de desagradável lhe suceda e, por isso, o pele-branca deve permanecer no interior da sua residência!

— Mas então To-kei-chun tem homens maus entre a sua tribo ou o seu povo tem em tão baixa conta as suas ordens que são precisos guardas para fazer cumpri-las? “Mão de Ferro” dispensa o auxílio de patrulhas e arrebentará com o seu punho o crânio de todo aquele que dele se aproximar com propósitos mentirosos e hostis! Os meus irmão peles-vermelhas podem recolher-se tranqüilamente à sua cabana; eu agora vou dar um passeiozinho pela sua taba, e depois voltarei, a fim de falar com os senhores.

Entrei na minha cabana, para buscar a espingarda que não deveria deixar lá; quando, porém, queria sair fui obstado por uma dúzia de lanças apontadas contra mim. Portanto, me achava aprisionado! Deveria reagir ou não? Voltei e com o auxílio da machadinha de guerra fiz um buraco aos fundos da cabana, por onde saí. Quando surgi pelos fundos, deparei primeiro com fisionomias alteradas; logo depois levantou-se um berreiro infernal como se centenas de ursos se levantassem desprendidos das correntes que os amarravam. Os caciques que haviam regressado para a sua cabana, voltaram de novo e em vertiginosa carreira, o que não ficava bem à sua dignidade de chefes de tribos. Como se sabe, os caciques em geral costumam, quando se dirigem aos seus súditos ou a estranhos, caminhar com passos lentos e comedidos. Invadiram a horda de nativos entre os quais abriam caminho e pareciam querer atracar-se comigo.

Não me era possível usar das armas, porque então estaria perdido e comigo os meus companheiros. Usei então de um estratagema: agarrei o binóculo e bradei:

— Acalmem-se, do contrário estarão perdidos todos os filhos dos comanchos!

Não conheciam com certeza aquele instrumento de ótica. E mesmo que o conhecessem ignoravam o mal que provavelmente com o auxílio dele se poderia ocasionar.

— Que pretende o pele-branca fazer? — perguntou To-kei-chun. — Por que não fica na sua cabana?

— “Mão de Ferro” é um grande feiticeiro entre os peles-brancas — respondi. — Ele vai mostrar aos peles-vermelhas como é capaz de matar as almas de todos os comanchos.

Pus o binóculo no bolso e agarrei a espingarda de repetição.

— Queiram os peles-vermelhas olhar para o poste que se ergue lá diante daquela cabana!

Apontei para uma estaca fincada defronte a uma das cabanas mais distantes. Apontei a arma e deflagrei o tiro. Acertei na estaca bem na ponta, fazendo um orifício na mesma; ouviu-se então um murmúrio de aplausos gerais. O selvagem aplaude os atos de valentia e habilidade mesmo quando demonstrados pelos inimigos mais figadais. O segundo tiro acertou uma polegada abaixo do primeiro; o terceiro foi alvejado também uma polegada abaixo do segundo. Ao terceiro tiro não se ouviu, porém, aplauso algum, pois os índios pensavam que existiam apenas armas de dois canos e nunca ouviram falar numa espingarda nas condições da minha, com a qual se atiram vinte e cinco vezes consecutivamente sem carregá-la. Ao quarto tiro, a onda efervescente e burburinhante de indígenas parou de súbito e ficou imóvel, como que estarrecida. Dei vinte tiros e os projetis atingiram todos a estaca de madeira que de alto a baixo, de polegada em polegada, ficou com um orifício produzido pela bala. Coloquei a espingarda ao ombro e disse calmamente:

— Viram agora os peles-vermelhas como “Mão de Ferro” é um grande feiticeiro? Aquele que lhe fizer algum mal terá fatalmente que morrer! Howgh!

Atravessei então a multidão de nativos sem que um deles ousasse embargar os meus passos. Em ambos os lados das fileiras de cabanas, mulheres e moças se achavam paradas à porta e contemplavam-me com profundo respeito e admiração, como se eu fosse um ente sobrenatural. Podia estar satisfeito com a impressão que causara aos selvagens.

Mais adiante, defronte de uma cabana, se achava postada uma sentinela. Lá devia estar recolhido um dos prisioneiros. Qual deles seria? Eu ainda refletia se deveria perguntá-lo ao guarda ou não, quando ouvi uma voz muito minha conhecida dizer:

— Mestre, oh, mestre! Sorta o nego Bob duma veiz! Índio prendeu Bob e vão mata e come Bob.

Aproximei-me da cabana, abri o cortinado e soltei o negro. O guarda estava tão estupefato que não opôs nenhuma resistência ao meu ato; o mesmo sucedendo com a enorme multidão de nativos que me acompanhavam curiosos.

— Foste logo metido aqui quando chegamos à aldeia? — perguntei ao preto.

— Sim, mestre índio tirou Bob do cavalo e meteu ele naquele rancho intê agora!

— Vem e conserva-te por trás de mim!

Havíamos passado apenas por mais quatro cabanas quando os quatro caciques, com um grande acompanhamento, vieram ao nosso encontro; por outro rumo, contornaram as fileiras de cabanas, com o fim de interromper o meu passeio. Levei logo a mão na coronha da espingarda, mas To-kei-chun já de longe, por meio de um aceno, deu-me a entender que não vinha com propósitos hostis. Parei e fiquei à sua espera.

— Onde pretende ir o meu irmão pele-branca? Queira ter a bondade de acompanhar-nos ao local do conselho deliberativo, pois os caciques desejam falar-lhe!

Anteriormente, chamavam-me simplesmente pele-branca, agora, porém, “irmão pele-branca”. Como eu subira no conceito daqueles nativos!

— Antes, preciso saber se os irmãos peles-vermelhas estão dispostos a fumar o calumet comigo!

— Primeiro vão falar com o irmão pele-branca e se as suas palavras forem sinceras, será considerado como um filho dos comanchos!

— Então queiram os meus irmãos ir na frente. “Mão de Ferro” os seguirá!

Retrocedemos, passando pela minha cabana. Num descampado que havia mais para o alto deparei com a “Tony”, e os cavalos de Winnetou e Bernhard Marshall. Os prisioneiros, porém, não se achavam ali por perto, pois do contrário eu teria visto guardas patrulhando a prisão.

Afinal, chegamos ao ponto em que as cabanas se estendiam e formavam um campo em forma de círculo. Por certo era este, o local dos conselhos deliberativos.

Os caciques se encaminharam para o meio do círculo e se abancaram na relva. Muitos nativos se aproximaram do chefe; todos se sentaram defronte ao mesmo, formando um semi-círculo. Não fiz cerimônias e sentei-me também, acenando para Bob tomar lugar por trás de mim. Essa minha atitude pareceu desagradar ao caciques.

— Por que se sentou o pele-branca? Não sabe então que vamos realizar um conselho a seu respeito?

Fiz um sinal de escárnio.

— Como ousam os peles-vermelhas se abancar cinicamente no solo? Então não sabem que “Mão de Ferro” vai realizar um conselho a seu respeito?

Percebi que minha resposta os surpreendera.

— O pele-branca tem uma linguagem ousada! Contudo permitiremos que continue sentado. Mas por que cargas d’água e com licença de quem ele soltou o pele-preta e comete ainda o abuso de trazê-lo para o recinto do conselho? Então não sabe que um negro nunca deve estar sentado junto de peles-vermelhas?

— O pele-preta é meu criado; se lhe ordenar que se sente onde eu bem entender, ele senta, embora na roda estejam abancados mais de mil caciques! Estou pronto, podem começar com esse tal de conselho!

Eu sabia muito bem que só por meio de audácia é que me seria possível salvar. Quanto mais atrevido eu me portasse, sem no entanto ofendê-los diretamente, tanto mais me impunha diante de seus olhos. Uma obediência passiva seria a minha desgraça.

To-kei-chun acendeu o calumet, que correu a roda; a mim, porém, não passaram o cachimbo. Quando findou essa cerimônia, o cacique levantou-se e deu início à sua oração. Na presença de estranhos, os índios costumam manter-se em mutismo; mas quando numa reunião desandam a falar, o ambiente em nada fica a dever ao das reuniões das sociedades alemãs. Há caciques entre os peles-vermelhas, que, devido ao seu talento de oratória, adquirem fama que corre as savanas. Possuem a mesma habilidade e a mesma retórica de grandes oradores dos tempos antigos e modernos. O seu tom de oratória faz lembrar o dos povos orientais. O cacique começou o seu discurso como em geral costumam os peles-vermelhas fazer quando se delibera a respeito de um representante da raça civilizada: fazendo uma brutal acusação contra a raça branca.

— O pele-branca queira ouvir, pois To-kei-chun, o cacique dos comanchos, vai falar! Já lá vão muitos sóis, os peles-vermelhas moravam bem sozinhos nas terras entre as duas grandes águas. Construíam cidades, plantavam árvores, caçavam bisões. A eles pertenciam os raios do sol, as águas da chuva, as gotas do orvalho; a eles pertenciam os mares, os rios, os regatos; a eles pertenciam as florestas, as montanhas e as campinas deste vasto país. Eles tinham mulheres e filhos, irmãos e irmãs e viviam felizes, protegidos por Manitu e o Grande Espírito das savanas. Vieram depois os peles-brancas, cujas faces possuem a cor da neve, mas cujos corações são mais negros do que as manchas produzidas pela fumaça. A princípio vieram em pequeno número, e, como se fossem Manitu em pessoa, os acolhemos em nossas cabanas, nada lhes deixando faltar para o seu conforto moral e físico. Mas eles trouxeram consigo as espingardas e a “água de fogo”; trouxeram consigo outros deuses e outros sacerdotes, trouxeram consigo, junto com a traição inominável e a mentira sarcástica sempre a lhes sorrir nos lábios, muitas doenças que ocasionaram a morte de milhares de peles-vermelhas. Cada vez em maior número atravessavam as grandes águas e se dirigiam para cá. As suas línguas eram falsas e suas facas pontiagudas; os peles-vermelhas neles acreditaram, mas se enganaram. Foram forçados a lhes entregar as terras em que se achavam as sepulturas de seus antepassados; foram enxotados de suas tabas e de seus territórios de caça e expulsos, cada vez mais para longe; sempre que resistiam a essa injustiça, eram mortos aos montes, como se fossem manadas de búfalos, ou bandos de urubus. Para poder vencê-los com mais facilidade, os brancos semearam a discórdia entre as tribos vermelhas, que se matam umas às outras como coiotes nas campinas. Malditos os brancos! Que a maldição caia sobre eles na mesma quantidade das estrelas do céu e das árvores das matas!

Uma estridente aclamação coroou o preâmbulo da oração do cacique, que falava em voz tão alta, que era ouvido ao derredor e também a alguma distância da taba. Depois o orador prosseguiu:

— Pois um desses peles-brancas, a que me referi há pouco, procurou a taba dos comanchos. Este homem tem a cor dos mentirosos e a linguagem dos traidores. Os guerreiros dos comanchos ouvirão, porém, a sua defesa e procederão com justiça a seu respeito. Queira o pele-branca toma a palavra!

O orador sentou-se e os demais caciques levantaram-se, um após outro, pronunciando discursos mais ou menos no mesmo tom e se referindo ao mesmo assunto. Durante as orações, eu tirara do bolso o livro de notas e traçara a caricatura dos caciques, orando na minha frente, cercados pelos seus guerreiros.

Quando o quarto cacique terminou de falar, To-kei-chun acenou para mim e perguntou:

— Que esteve o pele-branca a fazer, enquanto os caciques dos comanchos falavam?

Rasguei a folha do caderno, levantei-me e a entreguei para ele.

— Uff — exclamou pondo os olhos no papel.

— Uff! Uff! Uff! — ecoou depois quando os três caciques olharam para a caricatura. To-kei-chun acrescentou:

— É um grande feitiço! O pele-branca “enfeitiçou” as almas dos comanchos neste pedaço de pele. Aqui está To-kei-chun e os seus três irmãos, e, mais para cima, os seus guerreiros e as cabanas! Que pretende o pele-branca fazer com isso?

— Os peles-vermelhas já verão.

Tomei-lhe depressa a folha de papel da mão e deixei os guerreiros que se achavam por trás de mim lançar o olhar sobre a mesma. Não ficaram menos espantados do que os seus chefes. Em seguida amassei o papelzinho, transformei-o numa pílula e coloquei-o no cano da espingarda.

— To-kei-chun, tu mesmo disseste que eu havia “enfeitiçado” a alma dos comanchos no papel; agora coloquei essas almas no cano de minha espingarda. Querem ver como dou um tiro para o ar e o vento estraçalha horrivelmente todas as almas, de modo que elas jamais chegarão às “Eternas Campinas” para o descanso e conforto eterno?

A impressão causada por esta fanfarronada foi mais drástica do que eu esperava. Os quatro caciques levantaram-se apavorados e, ao meu redor, ouvi um berreiro de angústia que causava dó. Apressei-me a acalmá-los:

— Queiram os peles-vermelhas se sentar para fumar o calumet comigo! Se me tratarem como irmão, devolverei suas almas.

Os nativos mais que depressa retomaram os seus lugares e To-kei-chun pôs fumo no calumet. Veio-me, naquele momento, uma idéia com a qual talvez eu tornaria aquela gente ainda mais complacente. Um dos outros três caciques tinha pregado ao seu jaquetão, manufaturado de pele de búfalos, dois botões de latão do tamanho de um pfenig. Aproximei-me e lhe falei:

— O meu irmão pele-vermelha quer ter a fineza de me emprestar essa jóia; devolverei em seguida.

Antes que ele tivesse tempo para recusar a minha solicitação, já eu lhe tinha arrancado os dois botões do casaco e recuei calmamente alguns passos, sem me importar com a sua estupefação.

— Os meus irmãos de pele-vermelha estão vendo estes botões em cada uma de minhas mãos. Agora tenham a bondade de prestar bem atenção!

Fiz como se tivesse atirado os botões para o ar e apresentei-lhes as mãos espalmadas, completamente vazias.

— Queiram agora os meus irmãos olhar: onde estão os botões?

— Desapareceram! — disse o dono, com mal contida cólera.

— Sim, desapareceram lá em cima, sol adentro. O meu irmão se quiser reaver aquela relíquia derrube-a de lá com um tiro!

— Isso não consegue um pele-vermelha, nem branca e nem mesmo um feiticeiro por mais milagroso que seja!

— Não?! Pois eu consigo. Prestem bem atenção, que os botões vão cair do céu!

Tomei, não de minha espingarda, mas da velha espingarda de dois canos, que se achava do lado de To-kei-chun, apontei-a para o ar e bati o gatilho. Alguns segundos em seguida caiu ao meu lado um objeto de certa dureza. O dono, munido de uma faca, cavou a terra e desenterrou o botão.

— Uff! É de fato um dos meus talismãs.

Aproveitando a confusão dos nativos, coloquei o outro botão no cano da arma e apontando-a em linha reta para cima deflagrei o tiro. Todos os olhares se dirigiram para o ar. De repente, Bob proferiu um brado agudo e começou a esfregar um dos ombros, exclamando:

— Mestre, mestre acerto em Bob, bem no ombro dele!

Realmente, o botão caíra-lhe sobre um dos ombros e se achava no chão ao seu lado. O cacique correu a juntá-lo e recolocou os dois botões no jaquetão, com uma expressão fisionômica de quem esta disposto dali por diante a não permitir mais que suas relíquias fossem dar um girozinho pelo sol... Esse simples estratagema, que qualquer criança, depois de nele se exercitar, conseguirá fazer com toda facilidade, impressionou extraordinariamente os selvagens. Eu havia atirado dois botões para o sol e depois de lá os arrancara a tiros! Realmente, eu jogara os botões para o ar, pois do contrário um deles não teria penetrado tão fundo na terra e o preto não teria recebido um golpe tão violento que o obrigou ainda a fazer caretas que causariam pavor a uma criança travessa. Os caciques estavam imóveis, sentados nos seus lugares, visivelmente desconsertados, sem saber como se conduzirem daí por diante; a assistência aguardava com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos. Resolvi tirar os caciques do apuro: agarrei um calumet que se achava no chão, enchi-o com kinikinik, cuja bolsa se achava também ali perto, e tomei a palavra:

— Meus irmãos acreditam no meu Grande Espírito e com toda a razão, pois o seu Manitu é também o meu Manitu; Ele é o Senhor do Céu e da Terra, o Pai de todos os povos e deseja que todos vivam em paz e em concórdia! O número de peles-vermelhas não excede ao da grama que circunda esta cabana; os peles-brancas, porém, são mais numerosos do que os arbustos que vicejam em todas as montanhas e planícies. Eles atravessaram as grandes águas e aqui vieram para enxotar os peles-vermelhas; procederam muito mal. Mas por que os vermelhos hostilizam todos os peles-brancas indistintamente? Então os meus irmãos peles-vermelhas ignoram que existem muitas nações de peles-brancas e que apenas três delas os enxotaram de seus territórios de caçadas? Os filhos dos comanchos pretendem ser injustos, odiando os inocentes juntamente com os culpados? “Mão de Ferro” pertence à formidável e poderosa tribo de peles-brancas que edificaram suas tabas na Germânia. As tribos da Germânia fizeram algum mal ao peles-vermelhas? Os grandes caciques da Germânia odeiam os caciques das três nações más que perseguem os indígenas; portanto, os guerreiros da tribo da Germânia são amigos dos peles-vermelhas! Queiram os meus irmãos olhar para “Mão de Ferro”! Pende de sua cinta algum escalpo de indígena? A sua sapatilha, o seu jaquetão e a sua facha estão ornadas com cabelos dos seus irmãos peles-vermelhas? Quem pode afirmar que ele algum dia mergulhou sua mão no sangue dos homens da raça vermelha? “Mão de Ferro”, juntamente com os seus amigos, estava sesteando no mato, quando os guerreiros dos racurrohs fumaram o cachimbo da paz com dois de seus inimigos; e, no entanto, tocou ele num cabelo que fosse dos racurrohs? Ele aprisionou Ma-ram, o filho do grande cacique To-kei-chun, mas não o matou: devolveu-lhe as suas armas e o conduziu à cabana de seu pai. Ele não poderia ter morto os seis guerreiros dos racurrohs? Não o fez, porém amarrou simplesmente um deles para que, encontrado pelos companheiros, pudesse ser solto. “Mão de Ferro” não desfechou a sua espingarda contra os dois peles-brancas que assassinaram o guarda e fugiram com o ouro? Não tem ele a alma dos seus irmãos peles-vermelhas dentro do cano de sua espingarda? Entretanto, não deseja deflagrar a arma para que as almas não se percam. Não tem ele poder para atirar todos os talismãs dos comanchos para o sol e depois deixá-los lá? Sim, ele podia fazer tudo isso, e, no entanto, não o faz; antes deseja ser irmão dos comanchos e com eles fumar o calumet. Os caciques dos comanchos são valentes, sábios e justiceiros, e aquele que duvidar disto será morto pela arma que “Mão de Ferro” possuí e que deflagra mil tiros sem parar. Em vista dessas excelsas virtudes dos racurrohs, vou fumar com eles o calumet!

Acendi o cachimbo de barro, que nesse meio tempo se apagara, dei duas fumaçadas, para o céu e para a terra, e quatro em direção dos pontos cardeais, passando depois o calumet a To-kei-chun. Eu conseguira de fato pegá-lo de sopetão. Ele tomou do cachimbo, tirou as suas seis fumaçadas e passou-o adiante. Depois de haver tocado a vez do último cacique, este me devolveu o cachimbo. Só então me sentei no meio dos quatro chefes dos comanchos.

— Afinal, irá o meu irmão pele-branca devolver-nos agora as nossas almas? — perguntou, apreensivo, um dos cinco caciques.

Eu precisava responder com toda precaução.

— Preciso saber antes disso se afinal sou considerado agora como um filho dos comanchos!

— “Mão de Ferro” está agora em liberdade. Vou escolher-lhe para residência uma das mais confortáveis cabanas e daqui por diante poderá fazer o que lhe aprouver e ir para onde quiser.

— Qual a cabana que me vai ser destinada?

— “Mão de Ferro” é um grande guerreiro. Receberá a cabana que escolher.

— Então queiram os meus irmãos acompanhá-lo na escolha de sua residência!

Levantaram os quatro caciques para acompanhar-me. Segui pela fileira de cabanas até encontrar uma, diante da qual se achavam postados quatro guardas. Pus a mão à boca, imitei o uivo do coiote e imediatamente do interior daquela cabana o uivo foi respondido. Encaminhei-me apressadamente até a porta.

— Aqui será a residência de “Mão de Ferro”!

Os caciques olharam perplexos um para o outro, pois essa circunstância não fora prevista por eles.

— Esta cabana não pode ser concedida a meu irmão pele-branca.

— Por quê?

— Porque nela moram os inimigos dos comanchos.

— E quem são esses inimigos?

— Dois peles-brancas e um pele-vermelha.

— Como se chamam?

— O pele-vermelha chama-se Winnetou e é cacique dos apaches, e um dos peles-brancas é o célebre Sans-ear, o assassino dos indígenas.

Mas eles não saberiam que eu era o companheiro dos prisioneiros? Realmente eu não falara com Ma-ram nenhuma palavra a esse respeito; mas Patrik não lhes teria dito?

— “Mão de Ferro” quer ver esses homens!

Dita essas palavras, fui logo entrando cabana a dentro e os caciques acompanharam-me instintivamente.

Os meus amigos jaziam no solo com as mãos e pés amarrados, e além disso ainda se achavam presos a uma viga da cabana. Haviam reconhecido a minha voz, mas não manifestaram nem com o menor gesto a sua satisfação por me ver no acampamento dos comanchos.

— Que fizeram esses homens aos comanchos? — perguntei.

— Mataram-nos alguns guerreiros.

— E meu irmão pele-vermelha viu quando eles mataram?

— Não, mas os guerreiros dos racurrohs viram.

— Os guerreiros dos racurrohs terão que apresentar provas disso. Quanto a esta cabana pertencerá a mim, e estes cavalheiros de agora em diante serão meus hóspedes!

Puxei da faca para cortar as cordas que prendiam os prisioneiros; um dos caciques segurou-me, então, o braço.

— Estes homens estão condenados à morte no poste das torturas. O meu irmão pele-branca não os terá como hóspedes!

— E quem ousará proibir-me?

— Os quatro caciques dos racurrohs!

— Eles que arrisquem!

Coloquei-me entre os quatro comanchos e os prisioneiros. Nesse meio tempo, Bob entrara também na cabana.

— Bob, corte essas cordas! Comece pelas de Winnetou!

Bob primeiramente ia dirigir-se ao seu patrão, mas obedeceu em seguida a minha ordem, com certeza porque teve a mesma idéia que eu, isto é, que Winnetou, depois de livre, poderia nos prestar mais serviços no momento do que Bernhard.

— O pele-preta que embainhe sua faca e já! — trovejou o mesmo cacique que comigo falava; mas já era tarde, pois Bob num instante terminara de cortar as cordas de meu grande amigo.

— Uff! — exclamou o indígena quando viu a sua ordem desacatada pelo negro. Tentou lançar-se sobre Bob no momento em que este se ajoelhara para soltar Sans-ear.

Pulei em socorro do negro e o cacique investiu contra mim armado de faca, atingindo-me o braço por me ter desviado para o lado. Não teve tempo de tirar a faca do meu corpo, pois desferi-lhe um valente pontapé que o prostrou; fiz o mesmo com o outro cacique. Em seguida agarrei outro pela garganta, ao passo que Winnetou, apesar dos braços inchados pela pressão das cordas, se encarregava de To-kei-chun. Segundos depois, os quatro chefes dos racurrohs estavam imobilizados no chão.

Do lado de fora se achavam os guardas; contudo éramos os senhores da cabana e os caciques estavam, daí a pouco, amarrados e amordaçados.

— Heavens, que foi socorro em tempo! — exclamou Sans-ear, enquanto fazia massagens nos braços doloridos pelo estancamente de sangue. — Carlos, agora conta-me como conseguisse fazer toda essa diabrura!

— Mais tarde, Sam. Agora, porém, armem-se, antes de mais nada. Tirem as armas desses quatro caciques!

Carreguei, para qualquer eventualidade, a espingarda de repetição. Durante este tempo ministrei algumas instruções a respeito da atitude que deveríamos tomar. No caso de sermos agredidos, determinei que desacordássemos com coronhaços os quatro caciques, assim que estes voltassem a si. Em seguida saí da cabana. Os guardas, em atenção à permanência na mesma dos quatro caciques, se haviam distanciado um pouco e mais adiante se achava um bando enorme de indígenas, que nos havia seguido por curiosidade. Dirigi-me aos guardas.

— Meu irmão pele-vermelha já sabe que “Mão de Ferro” foi declarado um cacique dos comanchos?

O baixar dos olhos significava uma resposta afirmativa.

— Os guerreiros peles-vermelhas guardarão rigorosamente a cabana e não deixarão ninguém nela penetrar, seja quem for; salvo se os meus colegas resolverem o contrário.

Depois me dirigi ao bando e falei:

— Os meus irmãos irão imediatamente convocar os guerreiros que se acham na taba para um grande conselho deliberativo que se realizará daqui a minutos!

Os nativos se espalharam em todas as direções e eu me encaminhei para o citado local.

Aquele que estiver a par dos costumes indígenas, classificará a minha atitude de uma temeridade medonha; mas seria injusto tal conceito. O indígena não é de modo algum o “selvagem”, conforme nô-lo descrevem. Ele possui os seus costumes e as suas leis invioláveis. Quem souber tirar partido desses costumes e dessas leis, corre pouco perigo no seu meio. Ao demais, aqui se tratava de uma questão de vida ou de morte, e mais do que a vida eu não poderia pôr em jogo.

Em caminho consegui desfazer os vestígios do insignificante golpe de faca que eu levara do cacique. Chegado ao local das reuniões, sentei-me no mesmo lugar que ocupara antes. Dentro de dez minutos, todo o círculo estava tomado pelos guerreiros dos comanchos. No centro ficou um lugar livre, ocupado há pouco pelos caciques. As assembléias das coletividades alemãs nunca têm início sem um prévio vozeiro dos participantes. Aqui, porém, entre estes “selvagens” notava-se um silêncio por assim dizer religioso. Todos chegavam com passos graves e sem pronunciar uma só sílaba; procuravam os seus respectivos lugares, onde sentavam e se conservavam imóveis. No lugar destinado aos caciques haviam tomado assento quatro índios já idosos, que deviam ser sub-caciques.

Fiz um aceno aos substitutos dos caciques, que se aproximaram e se sentaram à minha frente.

— “Mão de Ferro” foi agraciado com a dignidade de cacique dos comanchos. Não ouviram os meus irmãos dizer tal?

— Sim, ouvimos — respondeu um por todos.

— Foi-lhe confiada a escolha de uma cabana para sua moradia e ele escolheu aquela onde se achavam recolhidos os prisioneiros. Desde então essa cabana era ou não de sua propriedade?

— Sim, pertencia a “Mão de Ferro”!

— E, no entanto, negaram-lhe o direito de propriedade sobre a dita cabana! São os caciques dos comanchos uns mentirosos vulgares que a cada passo estão a quebrar a palavra empenhada? Os prisioneiros pediram e “Mão de Ferro” lhes dispensou a sua proteção. Era me permitido negar essa proteção?

— Não.

— Pois bem, “Mão de Ferro” tomou os prisioneiros debaixo de sua proteção e declarou-lhes que os trataria como hóspedes. Não era permitido a “Mão de Ferro” fazer essa concessão?

— Não só lhe era permitido como também era seu dever fazê-lo.

Mas lá por isso não lhe assiste direito algum de arrancá-los à ação da justiça; cabe-lhe, em vista da atitude que tomou, protegê-los e depois... morrer com eles no poste dos martírios!

— Bem, era-lhe proibido cortar as cordas que prendiam os prisioneiros?

— Absolutamente não!

— Então “Mão de Ferro” agiu no exercício dos direitos que lhe assistiam: mas, não obstante essa circunstância, um dos caciques dos comanchos tentou assassiná-lo. Desviei-me, porém, e sua faca atingiu-me o braço. Que faz o comancho quando alguém invade a sua cabana?

— Mata o invasor atrevido.

— E também a todos os seus coniventes?

— A todos!

— Meus irmãos são sábios e justiceiros. Os quatro caciques do racurrohs pretenderam assassinar-me; não os matei, mas apenas os arrojei sem sentido ao solo; estão amarrados no interior de minha cabana e se acham vigiados pelos meus hóspedes. Sangue por sangue, clemência por clemência. Exijo a liberdade dos meus hóspedes em troca da liberdade dos caciques! Queiram os meus irmãos deliberar nesse sentido e eu aguardarei o resultado da deliberação. Mas não se aventurem a molestar os meus hóspedes, porque então estes matarão os caciques. Outro não poderá penetrar na cabana, além de “Mão de Ferro”.

Nenhum traço em suas fisionomias demonstrava a impressão que o meu relato deveria causar-lhes. Afastei-me a uma distância tal que não me era possível ouvir o que deliberavam. Aqueles índios pelo que me foi dado observar agora, constituíam o conselho dos sábios que se reúne sob a presidência do cacique mais idoso. Ao seu aceno, aproximaram-se deles alguns nativos que receberam a incumbência de transmitir aos guerreiros o novo estado de cousas. A enunciação do fato causou uma certa agitação na assistência, sem que eu notasse algo contra a minha pessoa. A deliberação continuou por muito tempo ainda, até que três dos conselheiros se encaminharam para mim. Um deles usou da palavra.

— O nosso irmão pele-branca considera os caciques como seus prisioneiros em sua cabana?

— Claro que sim!

— Neste caso pediríamos que nô-los pusesse à disposição para realizarmos um conselho a fim de julgá-los pela falta cometida!

— Meus irmãos esquecem-se de que não lhes cabe realizar reuniões de conselhos para julgar caciques, a não ser quando estes se revelam réprobos e covardes num combate? Os caciques dos racurrohs quiseram matar “Mão de Ferro”, estão presos na cabana deste e só ele tem o direito de puni-los?

— E que pretende fazer deles?

— Mata-los-á se não obtiver a liberdade de seus hóspedes.

— Mas estes hóspedes são seus conhecidos?

— Sim.

— Considere que no meio deles está Sans-ear, o assassino de peles-vermelhas!

— Os meus irmãos já o surpreenderam matando um pele-vermelha?

— Não. E Winnetou, o Pimo (*), que já assassinou centenas de comanchos!

— E no meio desses comanchos havia algum racurroh?

— Não. E quem é o terceiro pele-branca?

— Um nortista que nunca brigou com um guerreiro indígena.

— Se o meu irmão matar os caciques responderá por esse crime. Matá-lo-emos também, juntamente com os seus hóspedes.

— Os meus irmãos estão a troçar! Quem se aventuraria a matar “Mão de Ferro”?! No momento que quiser, ele põe a alma de todos no cano de sua espingarda.

Viram-se em dificuldades e passaram a refletir. De forma alguma poderiam louvar a atitude dos seus chefes.

— Queira meu irmão esperar até que voltemos!

Afastaram-se de mim e realizaram nova reunião do conselho. Tanto quanto eu podia alcançá-los com as vistas, em nenhuma atitude dos nativos havia demonstração de ódio ou raiva contra mim. Eu me conservava altaneiro e falava-lhes em termos discretos e comedidos. Portanto não se julgavam diminuídos em manter negociações

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(*) Palavra injuriosa com que os comanchos insultam os apaches, seus inimigos figadais.

 

comigo. Depois de meia hora, os três emissários vieram novamente ter comigo.

— “Mão de Ferro” será atendido. Recuperará a sua liberdade e a dos seus companheiros durante a quarta parte do tempo de um sol.

Ahn! Concluíram pelo velho sistema indígena de soltar os prisioneiros para depois numa caçada interessante e cheia de lances tornar a prendê-los. E em paga do “presente grego” exigiam a liberdade absoluta dos seus caciques! Um quarto de sol, denominação que os nativos dão ao dia, seriam seis horas apenas, tempo que nos dariam de dianteira para em seguida sair ao nosso encalço. Seria um tratado unilateral. Seis horas era muito pouco tempo. Mas se o prazo passasse a ser contado antes da noite, a nossa dianteira se prolongaria; poderíamos cavalgar a noite toda sem que eles nos pudessem perseguir, visto que à noite não enxergariam as nossas pegadas. Eu seria um tolo se nas circunstâncias atuais não concordasse com o que propunha o indígena. Contudo deveria manifestar-me ainda com certa reserva.

— “Mão de Ferro” aceita a proposta desde que os racurrohs devolvam aos seus hóspedes as armas que lhes tomaram.

— Serão devolvidas.

— Bem como tudo o mais que lhes pertencia?

Referia-me especialmente aos objetos de valor que Bernhard trazia consigo e os quais eu ignorava se os indígenas lhes haviam tomado ou não.

— Devolveremos tudo o que lhes tiramos!

— Meus hóspedes foram aprisionados pelos racurrohs sem que nada lhes tivessem feito de mal; os caciques, no entanto, deverão ser soltos, embora tenham atentado contra a minha vida.

— Que outras condições exige o meu irmão?

— Esta punhalada que recebi no braço custará aos caciques três cavalos, escolhidos por mim entre a cavalhada dos racurrohs; em troca dar-lhes-ei três dos nossos.

— Meu irmão é manhoso como a raposa; sabe que os seus animais estão esfalfados. No entanto estamos prontos a satisfazer essa exigência. Quando soltará os caciques de sua cabana?

— Quando me retirar.

— E nos devolverá então as nossas almas que se acham no cano de sua espingarda?

— Sim.

— Então pode ir para onde quiser. “Mão de Ferro” é um grande guerreiro e um chacal astuto; os espíritos dos caciques estavam conturbados quando com ele fumaram o cachimbo da paz! Howgh!

As negociações estavam encerradas e eu podia retirar-me. A passos lentos dirigi-me para a minha cabana. Eu estava sendo aguardado com ansiedade pelos companheiros e o fato de eu penetrar só na cabana constituía para eles uma prova de que nada de grave sucedera.

— E afinal? — perguntou Bernhard que não pôde conter a sua curiosidade.

— Os indígenas lhe tiraram as jóias e o dinheiro?

— Não. Por quê?

— Porque se lhe tivessem tomado, iriam devolvê-las agora. Estamos em liberdade por seis horas!

— Em liberdade, mestre! — exclamou Bob. — Oh! Livre Bob e mestre Bem!

— Well — disse Sam. Também é tudo o que podemos desejar. Mas em que pilhada fomos cair! Que será feito de minha “Tony”?

— Ser-te-á devolvida juntamente com tudo que te tiraram. Os nossos animais restantes estão demasiadamente esfalfados para resistirem a cavalgada forçada que seremos obrigados a empreender. Resolvi, pois, embora me desfaça com mágoa do meu poldro, trocá-los por outros três que escolherei na cavalgada dos comancbos.

— Que maravilha, Carlos — disse Sam, rindo-se; seis horas de dianteira e cinco bons cavalos, isto basta para nos pôr a salvo. Sim, espero que não escolhas três bodes em lugar de três boas montarias!

Contei-lhes sucintamente as minhas aventuras depois que deles me separei. Não havia ainda terminado o meu relato, quando do lado de fora ressoou um brado. Cheguei à porta e dei com os olhos na velha que me preparara as duas refeições.

— É para o pele-branca ir até lá!

— Lá onde?

— Para junto de Ma-ram.

Era um chamado singular. Entendi-me primeiro com os meus companheiros e saí em companhia da velha. Ela me conduziu a uma cabana fronteira, a que eu ocupara ontem. Diante da mesma havia dois cavalos ensilhados, um dos quais montava Ma-ram.

— Queira meu irmão pele-branca acompanhar-me para escolher os cavalos.

Montei e seguimos para a savana, onde encontramos uma numerosa tropa de cavalos amarrados. O jovem guia conduziu-me diretamente a um lindo puro sangue, amarrado um pouco distante da manada.

— É a melhor montaria dos racurrohs! Ma-ram recebeu-o de presente de seu pai, agora presenteia-o ao seu irmão “Mão de Ferro”, em troca do escalpo que lhe poupou!

Eu me senti surpreendido com aquela valiosa e quase generosa dádiva, pois montando aquele corcel jamais comancho nenhum me alcançaria. Naturalmente que aceitei o presente e escolhi para Bernhard e Bob, dois bons animais, com os quais podiam estar satisfeitos.

Voltamos para a taba, onde Ma-ram parou defronte da sua cabana.

— Queira meu irmão apear e entrar!

Não me ficava bem recusar o convite. O jovem ofereceu-me um bolo preparado pelos indígenas. Provei-o e achei-o saboroso. Depois despedi-me de Ma-ram. Quando me ia retirando, vi a indiazinha de olhos negros que me fitara com tanto interesse pela manhã. Ela fazia um pacote com provisões e corou ao avistar-me.

— Quem é esta filha dos racurrohs? — perguntei a Ma-ram.

— É Hi-lah-dih, (*) filha do cacique To-kei-chun. Ela pede que aceite o que lhe vai oferecer em sinal de reconhecimento por haver o senhor poupado a vida de seu pai e de seu irmão Ma-ram.

Estendi a mão à indígena.

— Manitu que lhe dê a graça de uma vida longa e farta de venturas, minha flor mimosa das savanas. Os seus olhos são expressivos e puros como as águas cristalinas de um poético regato e a sua tez é mimosa como o arminho! Que a menina seja ditosa

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(*) Fonte límpida

 

em sua existência toda!

Montei a cavalo e conduzindo os demais, galopei para a cabana onde estavam os meus companheiros. Todos ficaram entusiasmados com o cavalo que escolhi.

— Carlos, — disse Sam — é um corcel quase tão bom como a minha “Tony”; a única diferença é que esta tem o rabo um pouco mais curto e as orelhas um pouco mais compridas. Felizmente os peles-vermelhas nos devolveram tudo o que nos haviam tirado. Agora faltam exatamente seis horas para anoitecer. É preciso, pois, que partamos.

— E veremos se esses peles-vermelhas nos alcançarão.

Pusemos nos cavalos o que nos pertencia, desprendemos as cordas aos-prisioneiros e lhes tiramos as mordaças.

— Mestre, — disse Bob — agora vamo a galope pros índio não nos persegui.

Os caciques não se moveram, enquanto permanecemos na cabana. Montamos e saímos. As ruas das tabas estavam desertas; não se via um indígena. Indubitavelmente, porém, a nossa partida foi observada por todos. Apenas na cabana de To-kei-chun tive a impressão de ver uns olhinhos muito negros e muito expressivos a fitar-me. Os corações de centenas de guerreiros batiam naquele instante, sem dúvida, em expectativa ansiosa para nos capturar mais tarde. Mas, pelo menos, dois havia naquela taba, que pediam a Manitu que nos livrasse de cair novamente nas mãos dos comanchos.

 

Nova pista dos bandidos

Atravessáramos o rio Colorado e já havíamos transposto o território de Pautas, quando atingimos a desembocadura oeste da serra Nevada e fizemos uma parada para descansar à margem de um dos lagos de Mona. Era um local já bem distante do território dos comanchos. Havíamos cavalgado por savanas aparentemente sem fim, por entre montanhas, cujos cumes pareciam atingir o céu e por enormes trechos desertos; por mais resistentes que sejam os cavalos e os cavaleiros, em viagem tão escabrosa, têm que se deixar vencer pelo cansaço.

E o que nos levara a empreender tão longa cavalgada até termos Califórnia em nossa frente? Primeiramente, Marshall pretendia procurar o irmão naquela região e depois, éramos de opinião que os dois Morgans, após haverem perdido no rio Pecos, tão repentinamente, o tesouro roubado, haviam seguido para lá que é onde existem veios auríferos inesgotáveis.

E tínhamos razões para admitirmos aquela hipótese.

Depois de deixarmos a aldeia dos comanchos, com seis horas de liberdade, cavalgamos durante toda a tarde e a noite inteira, de forma que ao meio-dia já tínhamos a serra Guadalupe muito por trás de nós. A égua de Sam e o cavalo de Winnetou, apesar da viagem forçada, estavam em admiráveis condições de resistência; os outros animais de nossas montarias não demonstravam também o menor sinal de esfalfamento. Durante toda a viagem não percebemos o menor vestígio de estarmos sendo perseguidos e alguns dias depois, quando transpusemos o Rio Grande del Norte, estávamos completamente a salvo do “perigo comancho”.

A oeste do rio, as cordilheiras de Sonora se elevam em várias montanhas na direção do norte; atingimo-las sem termos aventuras dignas de registro.

Acampamos para a refeição do meio-dia num passo situado no cume duma elevação. Winnetou se postara de vigia numa rocha, que se erguia perto de nós e de onde se descortinava tudo ao derredor, numa grande distância.

— Uff! — exclamou ele subitamente; deitou-se no solo e arrastou-se para baixo, na direção do nosso acampamento.

Tomamos naturalmente de nossas armas e nos erguemos.

— Lá vêm uns peles-vermelhas.

— Quantos?

— Muitos!

Levantou as mãos estirando oito dedos.

— Oito! E de que tribo?

— Winnetou não pôde distinguir, pois os peles-vermelhas despiram as insígnias.

— Andam em expedição de guerra?

— Não estão com as caras besuntadas de tinta e areia, mas vêm armados com armas de guerra.

— A que distância ainda se acham?

— Dentro de um quarto de hora estarão aqui. Os meus irmãos vão agora se dividir. Winnetou com Sans-ear marchará para a frente, Marshall com o pele-preta para a retaguarda, ocultando-se ambos por trás da rocha, e meu irmão Carlos ficará aqui junto dos cavalos.

Tendo dito isto, o apache puxou os cavalos para trás dum montão de pedras a fim de ocultá-los, e se escondeu. Os três companheiros tomaram as posições indicadas pelo jovem cacique. Eu permaneci sentado, virado para o rumo de onde vinham os nativos.

Mal havia transcorrido o quarto de hora, percebi um tropel de cavalos; fiz como se nada tivesse ouvido, conservando, porém, os oito vultos de peles-vermelhas à vista. Estes haviam notado a minha presença e pararam os cavalos. O solo rochoso não recolhia pegadas: portanto não podiam saber se eu me achava acompanhado.

Levantei-me lentamente com a espingarda na mão; os nativos avançaram e pararam novamente uns dez passos à minha frente. O que vinha à vanguarda perguntou:

— Que está fazendo o pele-branca aqui nas montanhas?

— Descansando de uma longa jornada.

— De onde vem?

— Das margens do rio Grande.

— E para onde pretende seguir?

— Uff! — exclamou um dos outros, antes que me fosse possível responder à última pergunta. — Os guerreiros dos comanchos viram este pele-branca nas margens do Pecos. Estava na companhia de Ma-ram, o filho do cacique, e descarregou a sua espingarda contra os dois peles-brancas, que os meus irmãos perseguiam.

Aquele índio portanto pertencera à escolta dos cinco que, por me haverem agredido, deixaram os dois Morgans fugir. Não o reconheci porque daquela feita ele tinha o rosto pintado com as cores de guerra, tendo-me sido possível apenas um rápido olhar para os guerreiros.

— Para onde seguiu depois o pele-branca com Ma-ram? — perguntou-me o chefe do contingente, após esse esclarecimento.

— Para a taba dos comanchos.

— Como o pele-branca se encontrou com Ma-ram?

— Eu o aprisionei no vale, onde ele ficou, quando os guerreiros dos comanchos se retiraram levando presos Winnetou, Sans-ear, um pele-branca e um negro.

A essas palavras os comanchos sacaram das facas.

— Uff! — exclamou o chefe. — Ele aprisionou Ma-ram! E onde ficaram os demais peles-vermelhas?

— Não lhe fiz mal algum. Um deles amarrei e os outros quatro não tiveram olhos e nem ouvidos para ver e ouvir que eu aprisionara o filho de To-kei-chun.

— Mas Ma-ram estava solto, quando o vimos na companhia do pele-branca — observou o índio que há pouco fizera aquele esclarecimento.

— Logo depois de prendê-lo, restituí-lhe a liberdade, pois prometera acompanhar-me pacificamente à taba dos comanchos.

— Uff! Que pretendia o pele-branca lá?

— Libertar o cacique dos apaches e Sans-ear. Aprisionei os quatro caciques dos racurrohs e só os soltei em troca da liberdade dos meus amigos. Consegui retirar-me com eles, dando-me os comanchos o prazo de um quarto de sol para fugir a salvo de perseguição.

— E os prisioneiros fugiram?

— Fugiram!

Causava-me prazer enfurecê-los um pouco com esse relato.

— Neste caso o pele-branca terá que morrer!

O chefe do bando pegou de sua espingarda. Era o único que possuía essa arma. Os demais estavam armados apenas com arcos, flechas e facas.

— Os peles-vermelhas morrerão antes de erguerem as armas, pois não temo oito indígenas! Mas os guerreiros dos comanchos nada me farão se eu lhes assegurar que ainda hoje poderão prender Winnetou, Sans-ear, o matador de índios, e o outro pele-branca com o seu preto.

— Uff! Onde?

— Aqui mesmo! — Apontei para a direita e para a esquerda, — Lá está Winnetou com Sans-ear e ali o pele-branca com o preto.

De um lado e do outro vinham os meus companheiros avançando para a frente com as espingardas em riste. Foi quando recuei um passo e apontei a espingarda para o chefe.

— Os peles-vermelhas que se considerem deste momento em diante nossos prisioneiros; queiram descer imediatamente dos cavalos! — ordenei-lhes.

Homem contra homem, sobravam ainda três índios; mas as nossas espingardas os dominariam. Os nativos não podiam fugir nem pela direita, nem pela esquerda e os flancos estavam rodeados de montanhas intransponíveis. Não era de admirar, pois, que o chefe dos indígenas descansasse a sua espingarda e me perguntasse:

— Não vêm os peles-brancas que não nos achamos numa expedição de guerra?

— E no entretanto quiseram matar-me! Mas o pele-branca não quer derramar o sangue de seus irmãos da raça vermelha; queiram, pois, apear, e fumar o calumet da paz conosco!

O nativo hesitou a princípio em atender o meu convite, julgando haver nele um ardil.

— Como se chama o meu irmão pele-branca? — perguntou o índio.

— Chamam-me “Mão de Ferro”.

— Uff! Se é o “Mão de Ferro”, podemos ter fé nas suas palavras. Queiram os meus irmãos peles-vermelhas apear!

Tirou o calumet do arreio e sentou-se ao meu lado. Seus comandados o acompanharam nesse gesto. Os meus camaradas se aproximaram também, e todos fumamos o calumet com as cerimônias do ritual indígena. Bernhard cometeu a grave falta de passar o cachimbo também a Winnetou, Este o recusou, dizendo:

— O cacique dos apaches está sentado ao lado dos comanchos porque o seu irmão deseja viver em paz com eles. Mas o calumet ele não fuma com os racurrohs! Poderão falar tranqüilamente com o seu irmão pele-branca, mas depois de se separarem evitem encontrar-se com Winnetou pelo caminho, sob pena dele os mandar fazer companhia aos chacais mortos nos desertos!

Bernhard deveria ter previsto esta cena desagradável. Os comanchos fizeram como se não tivessem ouvido aquelas frases do apache. Para desanuviar o ambiente carregado, mudei de assunto, perguntando ao chefe dos comanchos:

— Os peles-vermelhas continuaram a perseguir os dois peles-brancas?

— Sim.

— E não os prenderam?

— Não. Os traidores penetraram no território dos inimigos dos comanchos e estes tiveram que recuar.

— Mas como conseguiram escapar, pois ficaram sem as montarias?

— Roubaram dois cavalos dos comanchos.

— Ah! Mas estes não tinham olhos para ver os ladrões e nem ouvidos para perceber os seus passos?

— Os racurrohs, em romaria, se haviam dirigido para o túmulo do cacique morto e, quando voltaram, encontraram o guarda assassinado e a falta de dois de seus melhores animais.

Realmente, fora este o único caminho para os Morgans se porem a salvo; mas para assim procederem era preciso uma audácia fora do comum. Os bandoleiros eram dois homens arrojados, com quem o inimigo nunca poderia facilitar. Mas em nossas mãos eles haveriam de cair, embora tivéssemos que dar a volta ao mundo. Por isso este encontro com os comanchos fora de incalculáveis vantagens para nós.

Os peles-vermelhas se demoraram pouco e, antes que partissem, perguntei ao chefe:

— Onde viu o meu irmão pele-vermelha o último vestígio daqueles dois caçadores?

— A dois sóis daqui. Pretende meu irmão continuar na sua perseguição?

— Sim. E se os encontrar, estarão irremediavelmente perdidos!

— Uff! O pele-branca fala ao coração dos comanchos. Que siga sempre o curso do sol até atingir um enorme vale que está situado entre o norte e o sul. Lá chegado, vá em direção do sul, onde encontrará vestígios de duas fogueiras acesas pelos dois canalhas. Até lá estiveram os comanchos, sendo, porém, obrigados a retroceder porque ali começa o território dos navajos.

— A que distância se achavam os meus irmãos dos bandidos, quando tiveram que retroceder?

— Quase a meio sol. Os comanchos teriam continuado na perseguição, mas avistaram no vale uma nova aldeia dos seus inimigos, onde fatalmente teriam encontrado a morte.

— Os guerreiros dos comanchos poderão dizer ao cacique To-kei-chun que Winnetou, Sans-ear e “Mão de Fogo” vão perseguir os dois traidores. Diga a Ma-ram que se lembre sempre de “Mão de Ferro”, porque este sempre pensa nele. É meu bom amigo!

Winnetou se havia afastado e não ouvia a nossa palestra.

— Winnetou, o apache, sairá agora em nossa perseguição?

— Não; ele é meu amigo e os comanchos fumaram o calumet comigo e os companheiros; por isso o cacique os deixará em paz.

Montaram a cavalo e se foram. Fizemos o mesmo. Os comanchos seguiram para o oeste para levar a notícia de que nos haviam encontrado, e nós, para o sul, levando conosco a certeza de ainda capturar os Morgans.

 

APRISIONADOS POR UM RANCHEIRO

Encontramos tudo de conformidade com a descrição do chefe do grupo de comanchos. Como os apaches viviam em paz e em boas relações de amizade com os navajos, chegamos com Winnetou até a sua aldeia. Aí soubemos que os nossos fugitivos haviam estado apenas algumas horas junto com os navajos, tendo-se informado do caminho para o Colorado. Também citaram o lago de Mona, e, embora tivessem passado vários dias, as pegadas dos fugitivos ainda se acham bem visíveis, robustecendo este fato a nossa convicção de conseguirmos deitar-lhes a mão.

Chegamos à serra Nevada e cavalgamos por uma extensa planície trilhada por pegadas recentes de tropas de búfalos. Tínhamos grande interesse em nos encontrarmos .com algum desses animais; já há vários dias que vínhamos alimentando-nos com xarque, e, embora a nossa provisão ainda desse para alguns dias de viagem, uma coxa daquela rês ou um filé constituiria naquele momento verdadeiro maná para nós.

Com este propósito, atalhei, na companhia de Bernhard, que nunca tomara parte em caçada de búfalos, pela direita, direção que, pela vegetação do lugar, nos fazia supor alguma aguada, para onde indubitavelmente se havia dirigido alguma manada daquelas reses.

Estávamos em pleno meio-dia, de sol ardente, hora em que os animais gostam de se refrescar nas aguadas e pastar em suas imediações.

Realmente, não foi baldada a minha esperança, pois surgiram nos no horizonte quatro daqueles animais, a cujo encontro galopamos imediatamente. Infelizmente, porém, os búfalos não tardaram a nos avistar, obrigando-nos a tocar os cavalos em disparada a fim de não perdê-los de vista, pois já fugiam. O meu cavalo deu uma demonstração cabal de sua resistência e velocidade, voava como se o seu montador fosse um jóquei, tendo deixado o animal de Bernhard muito atrás. Essa caçada deu lugar a que eu verificasse possuir um animal de resistência própria para as savanas. Avistei em boa posição um búfalo que, em vez de abater a tiros, resolvi laçar. O meu laço não estava dotado de uma rodela de couro como o dos indígenas, mas sim de uma argola de metal, por onde a corda desliza com mais facilidade.

Na planície alcancei as reses. Eram um macho possante e três fêmeas, das quais escolhi a de pêlo mais liso e lustroso por me parecer de carne mais macia. Apartei-a dos outros búfalos, passei para o seu lado e atirei-lhe a laçada. O meu animal portou-se com brilhantismo: assim que atirei o laço, ele calçou as quatro pernas no solo e ficou imóvel, duro como se fosse um cavalete fincado ao chão. A laçada atingira o pescoço do búfalo que deu um arranco capaz de me derrubar o cavalo se este não fosse tão forte. O búfalo fêmea caiu ao solo e eu apeei depressa para sangrá-lo: depois dei um coronhaço tão violento na nuca, que lhe quebrei o pescoço. O cavalo acompanhou-me com os olhos, e, logo que viu a minha tarefa concluída, deu uns passos para a frente, afrouxando o laço. Cheguei-me ao bravo animal e o amimei passando a mão pelas ancas e pelo pescoço; ele, grato por aquela carícia, esfregou a cabeça nas minhas espáduas.

Tirei a laçada da cabeça do búfalo e me dispunha a carneá-la quando Bernhard chegou:

— Cheguei tarde! — disse ele com inflexão de queixa na voz. — Devo sair em perseguição dos outros que fugiram?

— Não. Esta rês nos basta e terá que me ajudar a carneá-la.

Ele apeou-se e ajudou-me a virar a rês para o outro lado. Notamos então, que ela trazia uma marca feita a fogo no quarto.

— Ah! Era um búfalo manso e pertencia, sem dúvida, ao rebanho de alguma estância, fazenda ou rancho.

— E era nos permitido neste caso abater esta rês?

— Sim. As reses nesta região têm apenas o valor que possui o seu couro. Todo o viajante tem o direito, conforme uso corrente, de abater um animal destes para a sua alimentação, ficando apenas com a obrigação de entregar o couro ao dono da rês.

— Neste caso teremos que procurar o dono desta!

— Também não. Encontrando algum estabelecimento pastoril aqui pela imediações, basta que o procuremos a fim de dizer o local onde deixaremos o couro. Durante as grandes matanças anuais é muito comum os fazendeiros abaterem alguns gados que não lhes pertencem e que se extraviaram pelo seu campo. Se isto ocorre, devolvem o couro ou fazem a permuta no caso do outro também ter abatido, nas mesmas condições, alguma rês do primeiro.

A rês se achava a uns cinco passos de uma moita. Mal havíamos terminado de carnear o animal, percebi um ruído a que Bernhard acompanhou com um brado de susto. Olhei para ele e vi que fora preso por um laço que lhe atiraram da moita. Peguei da espingarda que se achava ao meu lado, transpus a moita e notei um cavaleiro em trajes mexicanos que galopava arrastando Bernhard pelo laço.

Eu não podia hesitar, pois do contrário com aqueles arrastões dentro em pouco Bernhard estaria morto. Apontei a espingarda, mirei o cavalo do mexicano e desfechei o tiro. O cavalo deu mais alguns passos e tombou ao solo, morto. Corri até lá, o cavaleiro fora atirado ao solo e já se havia levantado. Quando me avistou, tentou fugir, o que pôde fazer, pois eu não podia segui-lo uma vez que em primeiro lugar me competia atender Bernhard. A laçada havia-lhe preso de tal modo que o rapaz não podia mover-se. Afrouxei o laço e vi logo que não fora ferido, pois começou a andar com o mesmo desembaraço de sempre.

— Arre, mas que valente arrastão! Que queria, afinal, este sujeito comigo?

— Também não sei.

— Por que não alvejou o canalha em vez do cavalo?

— Primeiro, porque ele é um ser humano e o cavalo não. Em segundo lugar, porque a sua morte de nada lhe adiantaria, pois não vê que o laço estava preso ao serigote? O cavalo continuaria na disparada.

— É mesmo! — disse examinando o seu corpo para ver se nada havia sofrido.

— Voltemos para junto da rês, a fim de terminarmos quanto antes a sua carneação. Receio que algo de mais grave ainda nos possa suceder aqui!

— Creio que estamos no meio de perigos permanentes, visto que aos achamos em território indígena!

— Está muito enganado. Achamo-nos, não em território indígena, mas numa daquelas regiões perigosas, onde perambulam, em vez de los índios bravos, como os tratam os espanhóis, toda a casta de salteadores mexicanos e ianques, gatunos que cometem as mais inimagináveis tropelias. Não tardará, talvez, a vê-los e ouvi-los!

Separamos os melhores pedaços da rês, que colocamos sobre o cavalo; logo depois nos pusemos a caminho para nos encontrarmos com os companheiros. Logo os encontramos, pois haviam feito alto à nossa espera. Quando Bob viu a provisão de carne fresca, que trazíamos, gritou ainda de longe:

— Oh! Lá vem o mestre com um bom bife. Bob vai come até não pude mais! Nego Bob vai logo apanha lenha pra assa a coxa do búfalo.

O negro juntou logo às palavras a ação, e, enquanto ele assava com rara perícia, a coxa do búfalo, eu ia contando a nossa aventura há pouco vivida. Logo que o assado ficou pronto, causou pasmo a todos o enorme pedaço que desapareceu no meio dos grossos lábios do negro. Estava tão absorto na sua mastigação que nem ouviu quando Sam preveniu:

— Lá ao longe são cavaleiros que se aproximam ou cavalos que estão pastando?

Olhei com o binóculo para a zona indicada.

— São oito cavaleiros.

— Ter-nos-ão avistado?

— Naturalmente. De há muito que já devem ter notado a fumaça.

— E que espécie de cavaleiros são?

— Pelos chapéus de abas largas e pelos serigotes de cabeça alta, que usam, podemos concluir que são mexicanos.

— Neste caso, por precaução, empunhemos as nossas armas: é possível que essa visita se relacione com o cavaleiro, cujo cavalo acabas de matar.

O grupo cada vez se aproximava mais de nós e, quando chegou bem perto, parou. Eram todos mexicanos, um fazendeiro e sete peões, conforme as aparências. Num dos peões reconheci o cavaleiro que há pouco perdera a sua montaria ferida pela minha espingarda. Conferenciaram primeiro, tendo depois se dividido pelos dois flancos para envolver-nos num cerco.

— Parece que pretendem falar conosco, hihihihi! — cochichou Sam — Eu sozinho posso repeli-los!

O cerco cada vez se apertava mais; não tardou que o fazendeiro se aproximasse de nós. Falou-nos naquele dialeto, misto de espanhol e de inglês:

— Quem são os senhores?

Sam respondeu por nós:

— Somos mormons, viemos das cidades dos lagos salinos e nos dirigimos para a Califórnia, em missão de nossa seita.

— Pois afianço-lhes que irão fazer maus negócios! E quem é aquele indígena?

— Não é indígena e sim um esquimó da Nova Holanda, o qual vamos exibir, mediante pagamento de entradas, no caso de realmente não sermos bem sucedidos em nossos negócios.

— E o negro?

— Não é negro, é um advogado de Kamtschatka, que vai a S. Francisco tratar de um processo.

O pobre mexicano devia possuir parcos conhecimentos geográficos, como, aliás, a maioria de seus patrícios! Disse então:

— Esplêndida caravana! Três missionários mormons e um advogado e alienígena roubam-me uma rês e tentam ainda assassinar o meu vaqueiro! Vou mostrar-lhes o que significa essa violação de nossas leis! Os senhores estão presos: acompanhem-nos ao meu rancho.

Sam com fisionomia manhosa virou-se para mim e perguntou:

— Vamos, Carlos? Quem sabe se no rancho dele há alguma cousa melhor para a gente comer!?

— Sim, vamos experimentar! Se o homem não for um fazendeiro possuidor de inúmeros capatazes e peões, mas um simples e pobre rancheiro, nada conseguirá fazer-nos!

— Well, vamos divertir-nos um pouco com essa gente! Sam se dirigiu novamente ao mexicano:

— Mas pretende realmente nos molestar por causa daquela ninharia, señor?

— Não sou um señor, mas um Don, sou um poderoso, um fidalgo e costumam chamar-me de Don Fernando de Venango e Colona de Molynares de Gajalpa e Rostredo, tomem nota disso!

— Heigh-day, como é um grande Senhor! Neste caso somos obrigados a obedecê-lo; estamos, porém, certos de que mereceremos a graça de sua indulgência!

Não fizemos o menor movimento de reação; erguemo-nos, apagamos o fogo e montamos a cavalo. Bob riu-se satisfeito:

— Oh, que bom! Nego Bob virô advogado de... Bob não se alembra mais! No rancho deve te munta comida boa e também qualqué coisa de mió pra bebê do que água. Bob vai mora no rancho como num palácio!

 

UM TRIBUNAL PITORESCO

Em seguida, formando um quadrado, tocamos a galope porque doutro modo não sabem cavalgar os mexicanos, campo afora. Por esta ocasião tive ensejo de observar mais de perto as vestimentas dos mexicanos. São lindas, românticas como raramente se encontram em qualquer outro país. O chapéu, sombrero como o tratam, com amplas abas e copa bem baixa, é feito de feltro marrom ou de palhinhas também conhecidas na Europa, pois delas é que se fazem os custosos chapéus de Panamá. O chapéu de um señor, seja este señor de fazenda, estância ou rancho ou ainda de uma quadrilha de bandoleiros, em geral tem a aba levantada num dos lados e presa por um pregador de latão, ornado de pedras preciosas ou de vidro fantasia; isto vai de acordo com as posses de quem o usa.

O mexicano usa casaco curto e aberto, com mangas largas. As mangas, as costuras das costas e a frente são abundantemente ornadas com fios de fina lã, algodão ou seda. Também costumam bordá-las e enfeitá-las com fios dourados, prateados, etc.

Ao pescoço usam um lenço preto, cujas pontas amarram na frente com um nó. As pontas desse lenço desceriam até a cintura, se não as atirassem sobre os ombros; isso concorre para dar um pitoresco aspecto ao cavaleiro.

As calças são de um modelo especial; presas por uma larga cinta à cintura, bem apertadas nos quadris, das pernas para baixo cada vez vão se alargando mais. As costuras das calças são também bordadas com fios de cores vivas, em vez de botões, como as bombachas dos gaúchos. Até as botas feitas de couro envernizado são bordadas. Completa-as um par de esporas de tamanho descomunal. Estas são, em geral, de prata, de aço ou latão ordinário; alguns as usam até de chifre, dotadas de uma ponteira mais do que suficiente para produzir ferimentos profundos na barriga dos pobres animais. O tamanho dessas esporas excede o das usadas na Idade Média. Com as rosetas medem, em média, dez polegadas, das quais, no mínimo, seis mede o dispositivo, onde se acham presas as rosetas. Estas são do tamanho de um dobrão! A espora toda pesa duas libras, e, às vezes, até mais.

O mexicano, em geral, anda montado em animais possantes, capazes de resistir às mais duras correrias e às mais penosas viagens, tanto nas campinas como através de terrenos acidentados. Além disso, o mexicano é adestrado em todas as armas por eles usadas, armas que nem à noite, quando dorme, abandona.

Uma das armas mais em voga é uma pistola de cano comprido, com a qual, em qualquer emergência, consegue transformar em espingarda curta e desferir coronhaços mortais no inimigo. Com essas pistolas ele dá um tiro certeiro a uma distância de cento e cinqüenta passos. Outra arma, não menos perigosa, constitui o laço que eles manejam com invulgar maestria, tanto contra animais como contra homens.

Depois de cavalgarmos mais de meia hora, surgiu diante de nós, a uma distância regular, um conjunto de casinhas, que supomos logo ser o rancho. Lá chegando, entramos para o terreiro e apeamos.

— Señora Eulalia, señorita Alma, venham, venham ver quem vem comigo! — disse o rancheiro em voz alta, dirigindo-se para a casa principal.

A esse chamado, duas criaturas vieram correndo para a porta com tanta velocidade, que instintivamente tive que me lembrar dos versos de Schiller:

 

Surgiram à porta escancarada, rapidamente,

Duas figuras feminis de olhar candente.

 

Sim, eram duas damas, uma señora e uma señorita, conforme declarara o rancheiro; mas a criada de baias de um camponês de Linneburg teria, perto delas, a aparência de uma grande dama. Ambas se achavam descalças e de cabeça descoberta. Não pude distinguir bem se a horrível enroscadura, que traziam à cabeça, era pericoté dos cabelos ou não. Um vestido curto cobria-lhes as coxas, e dos joelhos para baixo, até o tornozelo, usavam um calçado imundo, semelhante a um cano de botas com joelheira. O tronco era protegido por uma espécie de blusa que, em épocas remotas, fora, talvez, de tecido branco, mas que agora tinha a aparência de haver sido utilizada para a limpeza de uma chaminé.

Como eu estava dizendo, as duas damas vieram à porta, depois saíram para a rua em vertiginosa carreira e ficaram boquiabertas, com os olhos arregalados postos em nós.

— Quem nos trás o senhor aí, Don Fernando de Venango e Colona? — perguntou a velha rangendo os dentes enfurecida. — Que trabalhão enorme vai me dar se esses homens completamente estranhos pretenderem, como hóspedes nossos, comer, beber, jogar, dormir e cuspir aqui em casa. Isso eu não admito, antes prefiro sair a correr campo fora e deixar o senhor sozinho neste triste rancho, na companhia dessa sua tropa de bagaceira que arrebanhou, sabe lá Deus onde! Antes eu nunca tivesse me fiado em sua lábia, abandonando o meu lindo S. José, onde eu vivia tranqüila e com todas as comodidades! E além disso...

— Mas, mamãe, a senhora não vê que aquele Don ali, o mais moço deles, é muito parecido com o nosso bom Don Allano! — atalhou a moça, apontando para Bernhard Marshall.

— Que seja parecido, mas não é ele! — replicou a velha visivelmente enraivecida por haver sido interrompida em sua veemente verborragia. — Quem, são, afinal esses homens? Já basta o serviço que tenho para manter a arrumação do rancho e cozinhar para nós e para toda essa cáfila de peões e capatazes, que vivem a me aborrecer a paciência! Muitas vezes chego a não saber se tenho cabeça ou não, e, além disso, ainda me encarregam dos trabalhos de hospedar cinco pessoas estranhas...

— Mas señora Eulalia, eu não trouxe esses homens como hóspedes! — atalhou o rancheiro.

— Não trouxe como hóspedes? Mas como então Don Venango e Colona?

— Como prisioneiros, señora Eulalia.

— Como prisioneiros? Por que os prendeu Don Fernando de Venango de Molynares?

— Eles nos mataram uma vaca e três vaqueiros, prezada señora Eulalia! Era interessante ver o cinismo com que o rancheiro exagerava a nossa culpa!

— Uma vaca e três vaqueiros! — exclamou a velha com as mãos imundas postas para o céu e num gesto tão intempestivo, que assustou os nossos cavalos, deixando-os de orelhas levantadas e crinas eriçadas. — Mas isto é horrível... tão horrível que está a bradar ao trono de Deus! O senhor pegou-os em flagrante delito, Don Fernando de Venango de Gajalpa e Rostredo?

— Não só na prática de um, mas na de todos os crimes, señora Eulalia. E esses canalhas não só mataram as vítimas como ainda as assaram e comeram!

D. Eulalia arregalou novamente os olhos:

— Assaram e comeram? A vaca ou os três vaqueiros, Don Fernando de Gàjalpa e Rostredo?

— Primeiramente a vaca, señora Eulalia.

— Primeiramente! E depois, Don Fernando Rostredo e Venango?

— Depois? Nada mais, pois os interrompemos de modo que tiveram que desistir de continuar na prática de tão hediondo delito. Prendemo-los e os conduzimos para aqui, señora Eulalia.

— Prenderam os homens e os trouxeram para aqui! Oh! Todo o mundo sabe como os senhores são valentes ginetes! Afinal quem são esses homens, Don Fernando de Molynares e Colona?

— Estes três brancos são missionários das cidades do mormons, e se dirigem para S. Francisco da Califórnia para converter aquela região ao seu credo.

— Socorro! Socorro! Missionários que roubam e matam vacas e que come vaqueiros assados! Don Fernando de Rostredo e Venango!

— Este preto, que se parece com um negro, é um advogado de... de... de lá das regiões onde moram os habitantes da Terra do Fogo! Ele pretende apoderar-se indebitamente de uma herança, em nome do seu constituinte, señora Eulalia!

— Apoderar-se indebitamente? Mas isso não significa roubar, Don Fernando de Venango de Molynares?

— Mais ou menos, señora Eulalia!

— Oh! Então não é de admirar que ele também se apodere indebitamente de vacas e vaqueiros! E o último deles, Don Fernando de Colona e Gajalpa?

— O seu aspecto é semelhante ao de um indiano bravo(*), mas é um hotentote da... Groenlândia. Os missionários pretendem exibi-lo mediante pagamento de entradas, señora Eulalia.

— Oh! Oh! Oh! E que pretende fazer dessa gente, Don Fernando de Molynares de Gajalpa e Venango?

— Enforcá-los ou fuzilá-los. Reúna todo o meu pessoal, señora Eulalia!

— Todo o seu pessoal? Mas já está todo aí na sua companhia menos a crioula Bety que lá vem vindo pé por pé! Mas agora é que me ocorreu uma cousa: vejo que não falta ninguém do seu pessoal e no entanto o senhor afirma que lhe mataram três vaqueiros? Como se explica isso, Don Fernando Rostredo de Colona?

— Já encontrará a explicação, señora Eulalia! E dirigindo-se aos peões:

— Fechem todas as porteiras e cancelas, señores, para que os prisioneiros não possam fugir! Eu vou imediatamente realizar um júri que os punirá com todos os rigores das leis!

_______________

(*) Nome que os mexicanos dão aos índios ferozes.

 

No modesto estabelecimento pastoril havia, aliás, uma única cancela, ou ainda, projeto de cancela. Esta foi fechada com um forte cadeado; mas mesmo assim qualquer criança poderia galgá-la.

— Bem, — continuou o rancheiro. — Traga-me agora uma cadeira, señora Eulalia! Amarrem os cavalos aos moirões que aí estão e depois começaremos o júri!

Não nos opusemos à execução das ordens dadas pelo tal Don Venango. Com o afastamento dos cavalos, adquirimos maior espaço e naturalmente não tínhamos o menor temor do curso e resultado final do júri.

Em vez de uma trouxeram, porém, três cadeiras. Na do meio tomou lugar Don Fernando, e a seu lado, a señora Eulalia e señorita Alma, com os seus “trajes talares” há pouco descritos. Quanto a nós nos reuníramos a um grupo no meio de um quadrado formado pelos vaqueiros.

— Começarei o interrogatório, tomando nota dos nomes dos réus. — declarou o rancheiro, abrindo a sessão. — Como te chamas?

— Bob — respondeu o negro a quem a pergunta era dirigida.

— Verdadeiro nome de ladrão! E tu?

— Winnetou.

— Winnetou? Um nome roubado, pois assim chama-se o maior e o mais célebre cacique de todas as tribos indígenas. E tu?

— Marshall.

— Veja, tem o mesmo nome do outro! — apressou-se a moça em dizer, dirigindo-se à señora Eulalia.

— Um nome ianque. Nenhum ianque presta! E tu?

— Sans-ear.

— Também um nome roubado, pois assim se chama um velho caçador das campinas, que é conhecido até nas mais longínquas regiões como o mais valente dos campineiros e o mais célebre inimigo dos indígenas! E tu?

— “Mão de Ferro”.

— Outro nome roubado! Não são apenas ladrões; são ainda mentirosos e embusteiros!

Avancei uns passos de modo a ficar bem ao lado do vaqueiro que laçara Bernhard e o arrastara.

Fixei o rancheiro energicamente e retruquei:

— Não estamos mentindo! Quer que o prove?

— Pois prove!

De chôfre o meu punho cerrado entrou em contato com a cabeça do vaqueiro e este tombou ao solo sem proferir um ai!

— Está convencido agora de que não uso um nome roubado? Em vista do golpe a que assistiu, não está agora convencido de que de fato sou o “Mão de Ferro”?

— Üúú... úúú... ú... úúúúúú! Alma, segura-me, estou desmaiando! Estou atacada de mareo ou de tétano! — gritava a señora Eulalia, abrindo os braços para se atirar de encontro ao peito de Don Fernando. Este quis pular, mas a carga que se recostava ao peito impedia-o de fazer qualquer movimento e ele não se animou a se desembaraçar da mesma. O rancheiro urrava como um leão e ameaçava-nos com céus e infernos, fazendo coro com ele a señorita Alma. O mexicano a cavalo luta com verdadeiro denodo, mas a pé é um mau combatente e os vaqueiros que nos cercavam, não se achavam fora dessa regra. Quando nós os cinco, logo depois do meu soco de guerra, pegamos das espingardas e apontamos para eles, ficaram visivelmente desconsertados. Tomei, então, a palavra:

— Não tenham receio, señores. Não lhes faremos nenhum mal, desde que se portem com sensatez. Queremos apenas chamar-lhes a atenção para um engano em que incidiram e depois disso, estarão livres de fazer de nós o que entenderem.

Aproximei-me mais até chegar às três cadeiras, onde fiz uma inclinação respeitosa.

— Señora Eulalia, eu sou um grande admirador da beleza e excelsas virtudes femininas. Permita que lhe peça para acordar-se e conceder-me a graça de um olhar?

— Ahhh!

Com este profundo gemido de alívio, ela abriu os seus pequenos olhos de basilisco (*) e deu à sua fisionomia amarelada uma expressão que poderia ser de desprezo, mas que se assemelhava mais a temor e desconsêrto.

— Linda dama, talvez já tenha ouvido falar em cours d’amour, das cortes amorosas dos tempos idos em que a dama mais admirada presidia os júris e todos se inclinavam ao seu veredicto! O júri que Don Fernando está realizando para nos julgar deve ser considerado insubsistente, pois ele faz também parte do processo e portanto não pode, por justiça, funcionar como juiz. Pedimos a D. Fernando para passar os poderes, de que está investido, às vossas níveas e delicadas mãozinhas. Assim ficaremos certos de que a senhora julgará e punirá realmente os verdadeiros culpados!

— É este realmente o seu desejo, señor? — perguntou-me a dama gaguejando e num tom de voz semelhante ao ruído produzido por uma escova quando é esfregada num assoalho que se lava...

— É, sim; não só o nosso desejo, mas também o nosso anelo! Aliás, não estamos devidamente paramentados para falar a uma dama de sua distinção, mas deverá levar em conta que nos achamos já há meses em jornada pelo oeste bravio, onde não se pode cuidar da indumentária. A bondade, porém, é um dos maiores ornamentos da alma feminina, e assim esperamos ser perdoados como também atendidos no pedido que lhe fazemos com fervor!

— Os senhores realmente são os homens cujos nomes citaram há pouco?

— Somos, sim senhora, D. Eulalia!

— Está ouvindo, Don Fernando de Venango e Gajalpa? Estes afamados señores me investiram das funções de juíza para julgar a sua causa O senhor sabe muito bem que não admito que me contrariem! Concorda com essa indicação?

O rancheiro mostrou uma fisionomia de azedume, mas, ao que parecia, era completamente dominado por D. Eulalia; além disso, ficou talvez satisfeito em poder respirar com mais alívio; por isso, respondeu-lhe:

— Sim, assuma a presidência do júri, señora Eulalia! Estou convencido de que mandará enforcar esses homens.

— Segundo o crime que cometeram, será a minha sentença, Don Fernando de Colona e Molynares!

Depois se dirigiu a mim:

— Fale, señor! Concedo-lhe a palavra!

_____________

(*) Lagarto fabuloso, a que se atribuía o poder de matar com a vista.

 

— D. Eulalia, se a senhora se achasse em viagem há longos dias e, dada à falta de recursos que há nas savanas, estivesse com fome e encontrasse numa campina a pastar uma vaca bem gorda, não lhe era permitido abater esta rês para a sua alimentação contanto que se dispusesse a reservar o couro para o seu dono?

— Naturalmente. Em toda parte a lei dá esse direito!

— Não, em toda parte, não!

— Pois o... o rancheiro tentou impedir-me,

— Silêncio! Silêncio, Don Fernando!! Quem está agora com a presidência do júri sou eu e o senhor só poderá falar quando eu lhe conceder a palavra! Está ouvindo?! — disse ela no momento em que D. Fernanda se levantou para protestar.

O rancheiro resignadamente tornou a sentar-se na sua cadeira. Também pelo semblante dos vaqueiros podia concluir-se que D. Eulalia é quem. tinha verdadeiramente a voz de mando no rancho.

— Pois este foi o nosso crime, D. Eulalia — continuei. — Veio depois o vaqueiro que aí está estirado no solo, laçou o meu companheiro Bernhard Marshall e tê-lo-ia morto se eu não desfechasse um tiro no cavalo fazendo-o tombar sem vida!

— Marshall! Este nome me é muitíssimo caro! Um señor Allano Marshall morava na casa de minha irmã em S. Francisco.

— Allano Marshall. Não era de Louisville nos Estados Unidos? — perguntei admirado.

— Naturalmente, naturalmente é este mesmo e não outro! Conhece-o?

— Claro. Este meu companheiro que se chama Bernhard Marshall e mora em Louisville, onde possui uma joalheria, é seu irmão.

— Santa Lauretta! Sim, tudo combina! Joalheiro também era Allano e disse que tinha um irmão que se chamava Bernhard. Alma, o coração não te enganou. Venha aos meus braços, señor Bernhard, pois usted é bem-vindo nesta casa!

Embora Bernhard estivesse radiante de alegria por ter sabido ao menos, notícias de seu irmão, apenas levou a mão da dama à altura onde deviam estar situados os seus lábios e diplomaticamente evitou dar-lhe ou receber um abraço.

— Eu vim aqui, — disse ele depois — somente com o fim de procurar o meu irmão. Onde se acha ele agora, D. Eulalia?

— Alma, minha filha, esteve recentemente em visita à minha irmã. Quando ela voltou, Allano se preparava para seguir para as minas auríferas. Estes señores são todos seus amigos, señor Bernhard?

— Todos! Devo-lhes muito, devo-lhes a minha liberdade e a própria vida! Este cavalheiro aí chama-se “Mão de Ferro”, salvou-me de morrer de inanição na unha dos bandidos do Llano Estacado e depois libertou-me da aldeia dos comanchos, onde me achava preso e ia ser executado no poste dos martírios.

Tornou novamente a erguer as mãos postas para o ar.

— Será isso possível? Tais aventuras viveu o senhor? Oh, terá que nos contar todas elas! Mas como se explica ser o senhor um mormon quando o seu irmão não o era?!

— Não somos mormons, D. Eulalia! Dissemos aquilo ao rancheiro por exclusivo espírito de pilhéria.

Mais do que depressa a dama virou-se para o rancheiro dizendo-lhe:

— Está ouvindo, Don Fernando de Venango e Gajalpa! Esses homens não são mormons, nem assassinos e ladrões! Absolvo-os, e são considerados a partir de agora, nossos hóspedes de honra e ficarão nesta casa durante o tempo que quiserem! Alma, corra até a cozinha e traga a garrafa com “Basilikjulep”! Precisamos beber em regozijo pela chegada desses nobres cavalheiros.

Ao ouvir pronunciar a palavra “Basilikjulep”, a fisionomia do rancheiro readquiriu a sua vivacidade costumeira. Pelo que deduzi, só lhe era permitido pela sua governanta ingerir aquela bebida em ocasiões solenes, e por isso, não era de estranhar que também ele agora estivesse a bendizer o momento em que abatemos uma rês no seu campo. Percebi ainda que, graças ao “julep” ele ia reconciliar-se conosco.

A señorita Alma saiu correndo — estou quase a dizer que as sujeiras que lhe cobria os pés encardidos chegavam a rachá-los — e voltou em seguida trazendo na mão uma garrafa bojuda e alguns copos de considerável tamanho. Todo aquele que conhece a espécie de bebida a que os ianques chamam de “julep”, está agora a dizer que nós, por dever de cortesia, apenas tocamos com os lábios nos copos e que as damas não lhe quiseram sentir nem o cheiro. Quanto a nós, a suposição é acertada; quanto às damas, porém, devo dizer que esvaziaram os seus copos com uma sofre-guidão tal, como se estivessem a sorver néctar divino... Winnetou não tomou uma só gota daquela bebida infernal, pois, por princípio, repudiava toda e qualquer espécie de “água de fogo”. O rancheiro foi repetindo os tragos até que a sua resoluta governanta lhe arrancou intempestivamente a garrafa da mão.

— Não beba demais, Don Fernando de Venango e Rostredo! O senhor sabe muito bem que tenho apenas duas garrafas desta excelente marca. Conduza esses cavalheiros à sala de visitas. Nós, as damas, vamos primeiro nos preparar para depois irmos todos tomar uma refeição. Venha, Alma! Adios, señores!

As damas sumiram-se por trás de um armário; lá deveria estar, sem dúvida, o seu vestiário; nós, porém, fomos conduzidos a um compartimento a que D. Eulalia dera o pomposo nome de “sala de visitas” mas que em outra qualquer parte se chamaria eira. Uma mesa e alguns bancos feitos de madeira tosca havia na “sala de visitas” e por isso fomos logo nos acomodando. Notamos então que os vaqueiros tomaram apressadamente conta dos nossos cavalos e pressurosamente examinavam os conteúdos de nossas maletas e sacos de viagem presos aos arreios. Em virtude desse gesto, saí para a rua a fim de pôr a nossa “bagagem” em segurança, pois é sabido que o melhor vaqueiro é, via de regra, o melhor gatuno... Determinei que Bob ficasse junto dos cavalos, a fim de vigiá-los na pastagem fronteira à casa, onde eles se achavam.

— Mestres vão come agora cumida munto boa lá na sala de janta. Pruquê nego Bob não pode cume também em veiz de cuida dos cavalo?! — exclamou o negro um tanto contrafeito.

— Porque és mais forte e valente do que Winnetou e Sans-ear e, assim, posso ter confiança em ti que cuidarás de nossos bons cavalos!

— Oh! Ah! O mestre tem razão em dizê isso! Bob é forte e valente e vigiará com todo cuidado os anima dos mestre!

Eu conseguira com aquela minha tirada harmonizar as cousas com o negro. Voltando à “sala de visitas”, lá mantivemos uma palestra bastante monossilábica, até que chegaram as damas da casa. Contrastando com a aparência há pouco apresentada, elas se achavam vestidas com toda a elegância e usavam uma indumentária idêntica às do mundo elegante da Alameda, no México.

Os trajes das senhoras mexicanas, com exceção de um ou outro detalhe, acompanham a moda européia. Chapéus e boinas não são adotados e nem mesmo as lojas de modas mais exageradas tentaram jamais um esforço em introduzi-los. No seu lugar, as mexicanas usam o rebozo, um chalé de dois metros de comprimento e que cobre ao mesmo tempo a cabeça. Em sociedade, as damas o usam em geral nos ombros tal qual as damas européias. Mas quando saem à rua, seja para visitar uma amiga ou seja para passear, o rebozo é sempre colocado na cabeça com as pontas caídas para as costas de modo a deixar o rosto descoberto. Como é feito de tecido tênue serve também para cobrir não só a cabeça e as costas, como também serve de véu que envolve, neste caso, não só a cabeça, o rosto e os ombros, mas também todo o busto.

O rebozo de uma mexicana de distinção deve ser tecido por mão de mulher indígena. E como se trata de um trabalho todo feito à mão, leva dois anos para ser executado; daí ser muito elevado o preço que pedem por aquela peça de vestuário feminino. Há rebozos que custam até uma fortuna.

Foi ostentado o rebozo que se nos apresentaram as duas damas. Haviam lavado as mãos e os pés, que estavam agora metidos em sapatos e finas meias. Se não as tivesse visto antes em suas vestes caseiras, ou, para melhor me expressar, rancheiras, pelo menos a jovem me teria causado uma impressão satisfatória.

 

CARDÁPIO INFERNAL

Tomaram lugar à mesa, a fim de fazerem as “honras da casa”; a crioula encarregou-se do serviço de mesa. Deu na vista a insistência das damas em falar sempre a respeito do señor Allano e em vista disso, suspeitei que o jovem e simpático joalheiro tivesse sido cortejado pela señorita Alma, que ainda hoje por ele se achava enamorada.

O cardápio era bem a la mexicana: carne de rês com arroz corado por muita pimenta espanhola com que fora temperado; angu com alho em abundância; hortaliças secas com bastante cebolas; carne de carneiro coberta com pimenta do reino; frango condimentado com muita pimenta, alho e cebola. A boca ardia-me horrivelmente; como estivesse com garganta acebolada e estômago entupido de alhos, logo me lembrei do poeta:

 

Mal o manjar satânico ingerira

e eis que me senti em convulsões mortais:

A Averno pareceu-me que engolira,

com os seus milhões de numes infernais...

 

As delicadas damas, porém, pareciam menos sensíveis do que “Mão de Ferro”, pois em valentes bocados se deliciaram com o “manjar satânico”, fazendo-o acompanhar do “julep”, também não menos infernal. Depois seguiu-se o indispensável cigarillo, fumado também por D. Eulalia e señorita Alma. Para que Bob não ficasse atrás, um dos vaqueiros conduziu-lhe para a pastagem, numa velha e pisoteada esteira de palha, a sua refeição. Levou-lhe também um vidro vazio de remédio cheio de “julep”. Talvez que em caminho a terrível aguardente misturada com alguns restos de remédio se transformasse num específico miraculoso contra os carbúnculos ...

Nem cogitávamos de prosseguir a nossa viagem durante aquele dia. A señorita Alma, como ostra em rochedo, se apegara a Bernhard, parecendo não o querer largar mais com suas perguntas a respeito de Allano; eu, pobre caçador das campinas, era obrigado a suportar a massada de assistir, cortês e atento, à rechonchuda señora Eulalia. O quanto fora intempestiva no nosso primeiro encontro, agora se desmanchava em amabilidades para comigo. De “Mão de Ferro” subi para o tratamento titular de Don Carlos; finalmente, ao nos levantarmos da mesa, ela perguntou o que o seu “querido Carlos” ia levar de lembrança da viagem para a sua esposa ou noiva na Alemanha. Eu não podia, naturalmente, responder a essa pergunta de sentido oculto, manhosamente feita, dizendo-lhe uma inverdade. Por isso assegurei-lhe que não me assistia o menor direito de levar um souvenir de voyage para noiva ou esposa na Alemanha, visto que na lista de registro civil da minha pátria, como nas de todos os países do mundo, eu figurava como solteiro e nem me lembrava ainda de mudar de estado. A fim de não a estorvar por mais tempo em seus afazeres domésticos, pedi-lhe licença para dar um passeio pelas imediações e inspecionar durante o mesmo os nossos cavalos. Dirigi-me para a pastagem fronteira, onde com os animais se achava Bob.

Este estava deitado de barriga para o chão e com os braços e pernas fazia toda sorte de movimentos para mim até então desconhecidos. Dir-se-ia que ele estava a ensaiar uma ópera de Wagner num aklony. (*)

— Bob!

A este meu chamado o negro ergueu a cabeça.

— Oh, mestre, mestre!

— Que há?

— Oh, mestrêêêêêêê. Bob foi come toda aquela droga e agora Bob ta queimando por dentro como fogo. Mestre acuda o nego Bob senão o mêgo Bob vai morre!

Era a conseqüência da carga dupla de pimenta, alho e cebolas que o negro ingerira. O vidro de remédio estava completamente vazio. Precisava socorrê-lo imediatamente, pois o pobre do negro fazia uma cara de quem estava, realmente, prestes a morrer.

— Precisas beber alguma cousa para aliviar as dores e a ardência, meu pobre Bob! Que preferes: água, leite ou Basilikjulep?

Como um raio, ele se ergueu do solo e fitou-me agradecido.

— Mestre, oh! mestre! Leite e água não ajuda nada; só o “julep” poderá sarvá o pobre nego Bob!

— Então corre até a casa e diga a D. Eulalia que morrerás se ela não te der um pouco de “julep”!

O preto saiu em desabrida correria e voltou realmente daí a pouco — fiquei pasmado quando o vi — trazendo meia garrafa daquela aguardente na mão. Recebera o resto da provisão de “julep” que ainda havia.

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(*) Instrumento constituído de vinte e quatro peças de bambus e que pesa 50 libras.

 

— Miss Eulalia de primêro não quis dá “julep” pro nego Bob, mas quando Bob disse que vinha mandado du mestre Carlo, ela deu toda a garrafa. Que bom!

— Então beba! Ficará melhor!

O jantar nos foi servido na mesma sala. A señora Eulalia sentou-se ao meu lado. Durante a refeição ela cochichou-me:

— Don Carlos, tenho um segredo para revelar-lhe!

— Então tenha a fineza de dizer! Qual é?

— Não direi aqui! Depois do jantar vá esperar-me naqueles três plátanos lá fora.

 

OUTRA PISTA SEGURA

Uma entrevista! Não devia recusá-la, pois talvez ela tencionasse fazer-me alguma comunicação importante. No decorrer do jantar os vaqueiros conduziram os nossos animais para as baias, mas deixaram a porteira aberta. Transpu-la e fui deitar-me debaixo de um dos plátanos. Tive, porém, que abandonar pouco depois aquela cômoda posição, pois D. Eulália não tardou a chegar. Ela deu início à entrevista.

— Don Carlos, muito obrigada pela sua atenção! Pedi-lhe esta entrevista porque tenho um importante segredo a confiar-lhe. Eu poderia ter-lhe dito lá na sala, mas escolhi este local porque...

— Porque estávamos sentado ao lado um do outro e a senhora teve facilidade de combinar o encontro, não é assim? — fui logo atalhando por causa das dúvidas...

— É isso mesmo. Eu precisava lhe falar a respeito do señor Allano e dos dois bandidos que o perseguem. Estes estiveram em nosso rancho.

— Ahn! Quando? — perguntei com inflexão de alívio na voz. Ficara não só satisfeito por que ia conhecer talvez outros pormenores sobre Allano, como também por me haver certificado de que o segredo que a dama ia confiar-me não se tratava dalguma declaração de amor.

— Anteontem bem cedo eles se foram embora.

— Para onde?

— Pela serra Nevada, para S. Francisco. Falei muito a respeito do señor Allano e eles resolveram fazer-lhe uma visita.

Era uma importante comunicação a que a dama me estava fazendo. Compreendi logo todo o enredo da história. D. Eulalia gostava muito de falar a respeito de Allano a quem quer que fosse. Em palestra com os dois bandoleiros, citara sem dúvida o nome do jovem joalheiro; os fascínoras então depararam com uma oportunidade futura para se vingar de Bernhard que lhes tomara os haveres roubados; saqueariam o irmão, que viajava com apreciáveis valores.

— Mas a senhora sabe com certeza que realmente eram os dois bandidos, D. Eulalia?

— Eram sim, os mesmos bandidos que o senhor me descreveu hoje ao meio-dia na mesa do almoço, com a diferença apenas dos nomes, pois aqui deram outros bem diferentes.

— Fizeram eles muitas perguntas a respeito de Allano e da sua irmã?

— Sim. Pediram-me até que lhes desse um sinal, para poder provar depois na casa de minha irmã que eles estiveram aqui. Não percebendo nada de mal, atendi-lhes o pedido.

— Qual foi esse sinal?

— Uma carta que o marido de minha irmã me escrevera, um dia para S. José.

— Seu cunhado ainda vive?

— Sim. É o proprietário do Hotel Valladolid, situado na Sutters-treet; chama-se Enrico Gonzales.

— Desde quando a sua filha Alma voltou da casa do seu cunhado?

— Há três meses.

— Quer a senhora ter a fineza de me descrever rigorosamente o tipo desses dois homens?

D. Eulalia o fêz e eu fiquei certo de que realmente os homens não eram outros senão os dois Morgans. Essa comunicação ela podia ter feito na mesa à vista de todos, contudo, dada a relevância do assunto, eu não a censurava por me haver coagido a dar este passeiozinho ao ar livre. Por este motivo apresentei-lhe meus agradecimentos pelo interesse que tomou pela causa, e ela deixando-me, foi para casa.

 

O DORMITÓRIO DUM RANCHO

Ao entrar na sala, um pouco mais tarde, estava sendo esperado. Os companheiros queriam dormir e antes precisávamos sortear a guarda, medida que mesmo aqui no rancho não dispensávamos. Feito isso, procuramos o dormitório que nos fora reservado.

Para se ter uma idéia das condições do nosso dormitório é preciso conhecer-se o interior de um desses ranchos. Em geral, eles se compõem de um único compartimento, que a señora Eulalia qualificou de “sala de visitas”. Aí moram e dormem todos os de casa, em patriarcal comunidade com os hóspedes eventuais. Por “todo os de casa” compreendem-se também as vacas leiteiras, animais de montaria, ovelhas, cabritos, porcos, galinhas, cães e gatos. Assoalho não existe nessas casas, sendo o solo socado, pelo que adquire quase a dureza de uma pedra. Sobre este costumam espargir grama e musgos secos para servir de leito, gramas e musgos que constituem, às vezes, uma permanente moradia de escorpiões, aranhas, centopéias e muitas outras castas de insetos venenosos. O poncho serve de cobertor.

À mesma organização obedecia o rancho em que estávamos hospedados. Don Fernando de Venango, señora Eulalia, señorita Alma, a negra, os vaqueiros e finalmente nós os cinco deitamo-nos todos ao lado um do outro, como num albergue alemão, no qual, mediante a paga de três pfenigs, tem-se o direito de passar a noite estirado num monte de capim, tendo o encosto de uma cadeira quebrada por travesseiro. Eu gostaria mais de dormir do lado de fora. ao ar livre, mas isso seria menosprezar a hospitalidade que nos concedera D. Eulalia. Seria, mesmo, considerado uma ofensa se tal eu fizesse.

Na manhã seguinte, bem cedo, partimos com os melhores votos de boa viagem de todos os moradores do rancho; mesmo o vaqueiro a quem eu arrojara ao solo com um soco, teve que nos apresentar os seus votos de boa viagem, não sei se para ser agradável à D. Eulalia ou se espontaneamente.

Don Fernando de Venango e Colona de Molynares de Gajalpa e Rostredo acompanhou-nos um bom pedaço do caminho, regressando somente ao meio-dia. O amável rancheiro parecia não querer mais separar-se dos “missionários mormons”, embora por causa destes se tivesse esgotado toda a sua provisão de “Basilikjulep” que havia em casa.

 

NA CALIFÓRNIA

Em vista das informações confidenciais de D. Eulalia, não nos era mais necessário seguir à risca o nosso roteiro, por isso atingimos os lagos de Mona, fizemos aí uma parada muito mais rápida do que antes tencionáramos fazer; os nossos animais haviam descansado no rancho quase um dia inteiro.

Depois dessa parada, continuamos a cavalgada subindo a serra Nevada e de lá, em linha reta para S. Francisco, que era a meta de nossa jornada.

A cidade fica situada na extrema ponta do cabo, tendo o mar a oeste, e, a leste, a maravilhosa baía, cuja entrada fica ao norte. O porto de S. Francisco é talvez o mais lindo e seguro do mundo e ocupa uma área tão grande que nela seria possível reunir as frotas de todos os países. Por toda parte o vaivém da atividade múltipla e variada de uma população laboriosa. Nas ruas, uma multidão efervescente e burburinhante de gente de todos os tipos e nacionalidades. Com os americanos e europeus convivem já numerosos peles-vermelhas meio civilizados, que vêm ao mercado trazer as suas caças; é aí que pela primeira vez recebem pelo produto do seu trabalho um preço que se pode qualificar de ínfimo e enganoso. Ali cruza o orgulhoso mexicano ostentando os seus trajes característicos, entre o suabo cordato, o monótono inglês e o francês dinâmico; o hindu de vestes brancas em promiscuidade com o sujo e imundo judeu polonês; o dandy elegante com o comerciante que efetua transações com os garimpeiros, dos quais arrancam, por seus preços extorsivos os olhos da cara, como se diz na gíria. Mais adiante o persa, o nativo e o chinês em boa camaradagem com o mongol dos confins da Ásia.

E toda esta gente o que veio fazer na Califórnia? Tentar a vida, ganhar dinheiro, ficar rico, e isso no menor espaço de tempo possível! Todos sabem que tempo é ouro e que aquele que detém o outro para uma conversa inútil, é um indivíduo nocivo à comunidade, e por isso tenta-se logo desviá-lo do caminho.

No meio desse burburinho, atravessamos, sem sermos molestados sequer com os olhares curiosos, até chegarmos ao Hotel Valladolid. Era um hotel ao estilo da Califórnia, instalado num amplo prédio de madeira de um só andar, idêntico aos bares das sociedades de tiros alemãs.

Entregamos os nossos animais ao encarregado das baias, que os conduziu a uma pequena estrebaria; quanto a nós, passamos para o bar do hotel, que, apesar de bem espaçoso, estava tão repleto que a muito custo conseguimos uma mesa. O garçom veio logo nos atender. Cada um de nós mandou vir o que lhe apetecia e, depois de servidos, comecei a pedir as minhas informações.

— Ser-me-á possível falar com Mr. Gonzales?

— Yes, sir. Quer falar com ele mesmo?

— Se for possível, sim.

Minutos depois, um cavalheiro de estatura alta apresentou-se em nossa mesa dizendo ser o señor Enrico.

— Tenha a bondade de nos informar se um senhor Allano Marshall ainda se acha hospedado no seu hotel! — pedi

— Não sei, señor, não o conheço, não conheço ninguém e nem me preocupo, já por hábito e princípio, com o nome dos meus hóspedes. Isto são atribuições de minha senhora! Cada um no seu ofício — é o lema cá de casa.

— E poderei falar com a señora?

— Também não sei. Pergunte a uma das caixeiras!

Pronunciando essas palavras, o hoteleiro se retirou sem mais formalidades. Parecia que a sua posição em face da señora era a mesma que a do rancheiro em relação à D. Eulalia. À sala chegava o cheiro de um apetitoso assado; devíamos, pois, nos achar nas proximidades da cozinha. Comecei a percorrer a sala com o olhar, com o fim de ver de onde vinha o agradável odor e, por esta ocasião, notei uma figura esbelta de mulher que, trazendo algum utensílio na mão, procurava passar às pressas no acanhado espaço que havia entre a nossa e a mesa vizinha. Detive-a, pegando-a delicadamente no braço.

— Onde está a señora, minha pequena?

— Vous êtes un âne!

Ah! Uma francesa! Puxou indignada o braço que eu segurava e se foi embarafustando-se pela primeira porta a dentro. Levantei-me e percorri a sala a ver se encontrava alguém que com mais solicitude me fornecesse a informação de que eu carecia. Na ponta de uma fileira de mesas, encontrei outra moça. Perguntei-lhe:

— Mademoiselle, quer ter a fineza de informar-me se poderei falar à señora!

— I am not mademoiselle!

E lá se foi a moça salão afora. Portanto tratava-se de uma inglesa ou de uma norte-americana! Mas se seu andasse por toda a sala a perguntar às serviçais, que encontrava, pela sua nacionalidade, anoiteceria sem que me fosse possível avistar-me com a dona da casa! Afinal, lá num ângulo da sala estava uma moça que parecia acompanhar-me, interessada» com o olhar. Continuei a andar e, mal havia avançado um pouco no salão, pareceu-me ser aquela fisionomia já minha conhecida. Quem seria? Encaminhei-me diretamente para a moça e quando dela me aproximei, a pequena, de braços abertos, me veio ao encontro numa atitude de quem pretendia jogar uma luta romana comigo.

— Mas, vizinho, será possível? Quase que não o reconheci! Por que anda assim com uma barba tão longa?! Como está diferente!

— Oh! A Gustavinha, filha do senhor Eberbach! Também eu quase que não a ia reconhecendo, pois já está moça feita, e que linda moça! Mas como saiu da Alemanha e veio parar na América, e aqui na Califórnia?

— Mamãe faleceu pouco depois de ter o senhor vindo para a América. Dias depois, esteve um agente em nossa casa e papai deixou-se convencer por ele. A cousa aqui tornou-se bem diferente do que nós pensávamos. Papai e os meus irmãos se dirigiram para as montanhas, onde dizem haver ouro em profusão, e me deixaram aqui, onde sou bem tratada, até o seu regresso.

— Depois conversaremos com mais calma, Gustavinha! Agora, porém, diga-me onde posso encontrar a dona do hotel! Já perguntei a mesma cousa a duas colegas suas e elas me responderam com grosserias.

— Explica-se o motivo. Ninguém nesta casa deve consentir que se trate a patroa por señora, mas sim por Dona, de preferência Dona Elvira.

— Vou tomar nota disso! Afinal, conseguirei falar com ela?

— Vou perguntar. Onde está sentado?

— Lá na segunda mesa daquela fileira.

— Então volte para lá; vou anunciá-lo à Dona Elvira.

 

AUDIÊNCIA PROTOCOLAR

Era mais um dos encontros inesperados que tenho assinalado nesta obra. Meu pai e o daquela moça eram vizinhos e compadres. Agora o mestre marceneiro — tal fora a profissão do senhor Eberbach — estava metido nas minas de ouro a tentar a sorte! Os seus dois filhos o haviam acompanhado, e a filha, quem diria que eu havia de encontrá-la aqui, na primeira estalagem em que cheguei! Mais uma vez se confirma o velho axioma de que as pedras rolando se encontram, quanto mais os seres humanos! Fiquei satisfeito em rever a Gustavinha, a irrequieta Gustavinha que, quando criança de colo, tanto se afeiçoara a mim e travessamente, ao carregá-la, punha a minha basta cabeleira em desalinho, soltando risadas inocentes. Bem me lembro de que ela acariciava o meu rosto com seu narizinho. Naquela época jamais poderia pensar em encontrá-la, um dia, na Califórnia.

A moça, daí a instantes, voltava.

— A senhora o receberá, embora não seja hora de audiência.

— Hora de audiência?! Uma hoteleira dando-se ao luxo de possuir horas designadas para audiências, Gustavinha?!

A moça encolheu os ombros, rindo-se zombeteiramente, e disse:

— Pelo menos a deste hotel se dá a este luxo, Carlos! As suas audiências são duas vezes por dia, pela manhã, das onze ao meio-dia e à tarde, das seis às sete. Quem quiser falar com ela depois desta hora, só poderá mediante uma recomendação muito especial!

Acabando de dizer isso, a minha vizinha fixou-me uns olhares significativos e deu uma risadinha.

— Ah! Compreendi a razão por que a hoteleira me fez exceção. Muito obrigado, Gustavinha! Muita gente mal sabe de quanto nos vale uma boa e gentil vizinha.

— É isso mesmo, Carlos! Não fiz mais do que meu dever! Bem, deixemos disso e venha comigo até a presença da patroa!

A impressão que me causava aquilo tudo era a de que ia ser recebido em audiência por uma alta personalidade da política ou da administração do país. Fui conduzido a um pequeno compartimento contíguo, que se achava mobiliado quase que no mesmo estilo das salas de espera dos palácios governamentais e onde, por indicação de Gustavinha, tomei lugar até que o porteiro, postado na porta ao lado, tocasse a campainha para eu entrar para a sala das audiências.

Achei tudo muito interessante e tive que esperar meia hora até que o porteiro fez o esperado sinal. Passei então para outra sala atapetada, onde havia coleções de mobiliários e outros utensílios de decoração a entupir quase que por completo o compartimento. Dessa sala passava-se para o quarto de Dona Elvira, ricamente mobiliado e decorado. A hoteleira estava sentada num sofá, com as mãos apoiadas num mapa; ao colo tinha um violão, ao lado um trabalho de crochê começado e na frente um painel, com a observação nota bene, colocado entre o sofá e a janela de modo que tirava toda a luz do quarto; no painel viam-se duas pinturas principiadas; uma delas, se é que não me enganei, representava a cabeça de um gato ou a de uma mulher velha, sem o barrete de dormir...; a outra figura devia ser, também, a de um animal, cuja espécie não pude decifrar.

Inclinei-me respeitosamente diante da grande dama. Ela parecia não haver notado a minha presença e continuou, absorta, com os olhares fixos em um ponto do plafond, onde aliás, nada divisei. Finalmente ergueu rapidamente a cabeça e perguntou:

— A que distância fica a lua da terra?

Não me surpreendeu aquela pergunta, pois eu já esperava por um gesto extravagante daquela senhora. Respondi-lhe:

— A vinte e cinco mil milhas, aliás, às segundas-feiras; aos sábados, porém, ela dista da superfície da terra cinqüenta mil milhas.

— Acertou!

A dama passou a estudar novamente aquele ponto do plafond. Depois, repentinamente, virando-se de novo, para mim, perguntou-me:

— De que são fabricadas as passas de uvas?

— De uvas, é claro!

— Muito bem!

Voltou outra vez a contemplar o citado ponto, para depois perguntar-me:

— Que é Poil de chèvre?

— Uma peça de vestuário, hoje pouco em moda!

— Muito bem! E agora seja bem-vindo, señor! Gustavinha intercedeu junto a mim em seu favor; contudo tenho por hábito, antes de me dirigir às pessoas que me procuram, submetê-las primeiro a um exame. Os alemães são conhecidos pelo seu vasto saber e em virtude disso, escolhi as questões mais difíceis no domínio das ciências humanas, a fim de argüi-lo. O senhor saiu-se brilhantemente deste exame! É um moço de alta cultura. Gustavinha contou-me que o senhor cursou várias academias e viajou por todo o mundo a fim de conhecer os costumes dos diferentes povos. Tenha a bondade de sentar-se, señor.

— Muito agradecido, Dona Elvira de Gonzales! — respondi, sentando-me, modestamente, ao canto de uma poltrona.

— O senhor tenciona hospedar-se na minha casa?

— Sim.

— Concedo-lhe permissão para isso, porque vejo que é um cavalheiro muito gentil e culto; e se tiver um pouquinho de boa vontade, poderá também mudar de indumentária, a única cousa que não lhe recomenda lá muito bem... Esteve na Espanha?

— Sim, Dona Elvira.

— Que diz deste mapa de minha pátria, por mim traçado? Passou-me o mapa. Tratava-se de cópia dum original muito ordinário que a dama fizera, através de um papel de seda.

— Fidelíssimo, Dona Elvira de Gonzales!

Ela recebeu o meu elogio como sendo muito natural e merecido e respondeu toda cheia de si:

— Sim, nós mulheres, finalmente, resolvemos nos emancipar e o nosso maior triunfo tem sido no campo da ciência e das belas artes, onde hoje dominamos os homens. Senão, atente para esses dois quadros; são incomparáveis na grandiosidade da harmonia do seu conjunto artístico. A sensibilidade de suas linhas, a sua perspectiva, o seu reflexo de luz são simplesmente adoráveis! O senhor é um artista, mas, não obstante, preciso submetê-lo ainda a um exame. Que lhe representam esses quadros?

Eu teria sofrido uma derrota verdadeiramente ignominiosa, se não estivesse agora mais próximo do quadro do que dantes. Por isso, respondi-lhe com a maior audácia deste mundo:

— Uma hidra marinha!

— Muito bem! É a primeira pessoa de talento artístico que contemplou esse quadro, pois nenhuma outra soube dizer o que ele representava. É verdade que a figura não é lá muito parecida com uma hidra marinha, mas do mesmo modo como o espírito do explorador audaz penetra regiões que antes jamais conseguira atingir, também ao artista é dado conceber vultos que os seus olhos jamais viram. E o que representa este desenho aqui?

— É o gorila do célebre Du Chailly.

— Muito bem! O senhor é o homem mais culto que tenho visto na minha vida, pois, antes do senhor, ninguém reconheceu tão ligeiro nos meus quadros a hidra marinha e o gorila.

O orgulho que senti àquelas palavras laudatórias, produziram-me no espírito o mesmo efeito que à via gástrica ocasionaram-me aquelas toneladas de pimenta, cebola e alho que continham as refeições servidas pela bondosa D. Eulalia, no rancho de Don Fernando. A sua genial irmã, apontando para a porta de entrada, disse:

— Dirijo o meu estabelecimento sem que minhas mãos de artista tenham o mínimo contato material com as cousas de sua administração. Os hóspedes primeiramente são recebidos por mim em audiência, ocasião em que julgo da conveniência ou não de aceitá-los. Sim, porque aqui não é qualquer um que se hospeda. O senhor é digno dessa distinção. Inscreva o seu nome no registro de hóspedes, que se acha sobre aquela mesa. Ali há também pena e tinta.

Fi-lo e depois perguntei-lhe:

— Permite que também inscreva os nomes dos meus companheiros de viagem?

— Mas o senhor tem companheiros?

— Sim.

— Quem são eles? Comecei pelo preto.

— Bob, o meu criado, de cor preta.

— Logo vi, pois um homem que possui o dom artístico para reconhecer logo ao primeiro golpe de vista a minha hidra marinha, deve viajar acompanhado de criado! Mas o nome deste não deve ser registrado. E quem mais?

— Winnetou, o cacique dos apaches.

A mulher fez um movimento de surpresa.

— O célebre Winnetou?

— Ele em pessoa!

— Preciso vê-lo. O senhor terá a fineza de apresentá-lo a mim. Inscreva depressa o seu nome. É uma honra para nós tê-lo como hóspede.

— Também está em minha companhia, Sans-ear o...

— Já sei: o matador de índios!

— Ele mesmo.

— Inscreva-o, inscreva-o! O senhor viaja em muito boa companhia. E quem mais?

— E finalmente, Bernhard Marshall, um joalheiro de Louisville, em Kentucky.

Ao enunciar-lhe o nome de Bernhard, a matrona quase que se ergueu de um salto do sofá.

— Que me está dizendo! Um joalheiro Marshall de Louisville!

— Sim, ele tem um irmão de nome Allano, que teve a sorte de obter permissão para hospedar-se no seu hotel, Dona Elvira de Gonzales!

— Logo vi que eram irmãos. Inscreva o seu nome também e em letras bem grandes! Aos senhores vou destinar o melhor e mais confortável dormitório. O Hotel Valladolid não tem propriamente quartos, para alugar, pois os hóspedes dormem todos juntos em vastos alojamentos coletivos situados nos fundos da casa uns e no sótão outros. Mas os senhores irão ficar muito satisfeitos e desde já ficam convidados a jantarem comigo no meu refeitório particular!

— Muitíssimo agradecido, Dona Elvira! Afianço-lhe que costumo apreciar no devido alcance uma tão cativante hospitalidade! Ando em jornada com o fim de colher dados para a publicação de um livro e neste não deixarei de mencionar, de maneira muito especial, o importante estabelecimento, que é o luxuoso Hotel Valladolid!

— Faça-o, senhor, peço que o faça, se bem que o seu traje não me dá a menor impressão de vê-lo um dia sentado a uma escrivaninha. Não tem algum objeto a pedir-me? Oh, quão feliz eu me sentiria se pudesse servi-lo.

— Um objeto propriamente não, mas preciso de algumas informações.

— Quais?

— Allano Marshall ainda se acha hospedado no seu hotel?

— Não. Deixou a minha casa há uns três meses.

— E para onde se dirigiu?

— Para as jazidas auríferas do Sacramento.

— Depois disso, soube notícias suas?

— Apenas uma vez. Mandou dizer-me o local para onde deveria eu enviar as cartas que recebêssemos destinadas a ele.

— E lembra-se qual o local que o jovem joalheiro indicou?

— Muito bem até, pois ele indicou a casa de um conhecido de nosso estabelecimento: Mr. Hobley em Yellow-water-ground, um negociante em cuja casa de negócio os garimpeiros encontram à venda tudo de que necessitam.

— Depois de sua partida, chegou alguma carta para ele?

— Algumas, que eu sempre remetia na primeira ocasião que encontrava. E, recentemente, aqui estiveram dois homens à procura do señor Allano. Eram fregueses seus que tinham muita urgência em falar-lhe. Também a estes indiquei o novo endereço daquele meu distinto hóspede.

— Quando partiram esse dois homens?

— Ontem, pela manhã.

— Um deles era idoso e outro ainda jovem?

— Exatamente. Pareciam ser pai e filho. Vieram recomendados pela minha irmã, que lhes dispensou hospedagem ao passarem por lá.

— Ah! Quer dizer pelo rancho de Don Fernando de Venango Colona de Molynares de Gajalpa e Rostredo?

— O que, o senhor conhece esse homem?

— Muito bem até a sua irmã D. Eulalia, também; estivemos em sua casa e D. Eulalia espontaneamente teve a gentileza de dar-me uma carta de recomendação para a senhora, Dona Elvira de Gonzales.

— Mas será possível?! Conte, señor, conte tudo!

Relatei-lhe, omitindo naturalmente os pormenores desagradáveis, o nosso encontro com D. Eulalia e Don Venango e a dona do hotel ouviu-me com toda atenção. Quando terminei, ela declarou:

— O senhor é o primeiro alemão que soube tratar uma dama espanhola de alta linhagem, com a cortesia da pragmática. Já estou antevendo horas deliciosas de arte por que irei passar durante o jantar de hoje. À hora do ágape mandarei avisá-lo. Adiós!

Fiz uma inclinação respeitosa que, por certo, não harmonizava muito com o traje que ostentava, e retirei-me do quarto; passando pela sala contígua, fui novamente para o bar. Quando entrei nessa dependência, os olhares curiosos dos garçons, garçonetes e camareiras não se desviaram de mim. Gustavinha Eberbach veio logo ao meu encontro.

— Mas que sucesso, meu bom vizinho! O senhor está com sorte! Tanto tempo! Nunca ninguém esteve tanto tempo em audiência com a Dona. Deve ter-lhe caído muito na graça!

— Ao contrário — respondi rindo-me. — Ela permite que me hospede em sua casa, somente com a condição de mudar de indumentária. A Dona disse que com este vestuário eu me parecia com um chimpanzé dos confins da África.

— Hum! Aliás ela não deixa de ter a sua razão. Vou conduzi-lo ao meu quarto e arrumar-lhe tudo de que necessita para adquirir uma aparência externa mais decente: aparelho de barba, água, sabão, enfim tudo, tudo!

— Não será necessário, Gustavinha, pois a Dona vai mandar conduzir-nos ao nosso alojamento.

— Não creia nisso. Tenho ordens de ir saber dela qual o quarto que lhes será destinado, somente às oito horas, nem mais nem menos.

— Iremos receber o melhor dos alojamentos. Onde fica ele? Todos os alojamentos do hotel ficam lá em cima, no sótão. Os senhores, por certo, vão alojar-se no mais arejado deles. Neste instante soou a campainha do lado.

— É ela, vizinho, que me chama. Preciso ir logo atendê-la, pois quando me chama fora de horas é porque há algo de extraordinário e tem algumas instruções reservadas a ministrar-me.

Ela saiu quase correndo e eu voltei para a mesa onde me esperavam os companheiros; estes, não obstante o aparecimento de um indígena ou caçador das campinas em S. Francisco ser cousa banalíssima, tinham todas as atenções dos freqüentadores do bar voltadas para si. Principalmente o porte majestoso, a distinção das maneiras e os gestos discretos e comedidos de Winnetou, atraíam os olhares curiosos de todos. Também a falta de orelhas de Sam deveria convencer aquela gente de que o meu companheiro havia vivido uma série infindável de aventuras sensacionais.

— Afinal, que arranjou? — perguntou-me Bernhard.

— O seu irmão partiu daqui há três meses e a dona do hotel só uma vez recebeu notícias suas, procedentes de Yellow-water-ground. As suas cartas lhe foram remetidas para aquele destino.

— Onde fica este lugar?

— Tanto quanto me recordo, trata-se dum rio afluente do Sacramento, onde foi encontrado muito ouro. Ao que dizem, o vale esteve por algum tempo tumultuante de garimpeiros; estes, porém, tempos depois, subiram o rio, visto que as probabilidades de êxito no vale não haviam correspondido à expectativa do começo.

— Não teria ele depositado nada aqui na cidade?

— Não me lembrei de perguntar à Dona Elvira.

— Seria conveniente perguntar ainda hoje.

— Teremos logo ocasião para isso, pois a Dona convidou-nos a todos para jantar em seu refeitório particular.

— Oh, foi muito amável! Além disso, vou pedir informações ao banco com o qual trabalhamos nesta cidade. Talvez Allano tenha estado lá.

Nesse momento minha amável vizinha se dirigia para nós.

— Fui chamada por sua causa. O jantar é às nove e devo mostrar-lhe já o seu quarto.

— Quarto? Mas eu pensava que o hotel não dispunha de quartos propriamente ditos!

— Bem aos fundos há uma construção nova que dispõe de alguns compartimentos, entre os quais duas salas de que a Dona só lança mão quando recebe visita de parentes.

— Neste caso, D. Alma quando aqui esteve, alojou-se lá?

— Ouvi dizer que sim. Naquele tempo eu ainda não estava aqui.

— Não ouviu também dizer se D. Alma conheceu um senhor Allano Marshall que naquele tempo se achava hospedado aqui?

— Oh, sim! Falou-se e riu-se muito a esse respeito. Ela procurou fazer-lhe a corte com uma insistência tal, que o pobre rapaz nem se podia mexer dentro de casa. Mas, deixemos a vida alheia e venha ver o quarto. A dona já me entregou a chave.

Levantamo-nos e acompanhamo-la. Os dois compartimentos que nos foram destinados, em relação às demais instalações da casa, mereciam ser qualificados de confortáveis e luxuosos; um deles foi ocupado por Winnetou e Sans-ear e o outro por mim e Marshall. Bob ficou alojado num galpão asseado que havia no pátio e destinado aos peões.

A solícita filha do meu vizinho na Alemanha arranjou-nos tudo de que necessitávamos para dar ao nosso exterior uma aparência mais “civilizada”. Em vista disso, daí a pouco estávamos em condições de dar uma volta pela cidade; Winnetou não quis acompanhar-nos no passeio, pois era demasiadamente orgulhoso para servir de objeto de curiosidade pública nas ruas e praças. Também Sam preferiu ficar no hotel, descansando, estirado na cama.

— Que vou fazer na cidade? — perguntou ele. — Sei andar, graças a Deus, e em vista disso não preciso exercitar-me nas ruas de S. Francisco. Casas e gente também tenho visto muitas. Faça com que saiamos depressa desse ar abafado da cidade, para as savanas, do contrário de tanto tédio e monotonia, as orelhas são capazes de crescer-me novamente... e então eu era uma vez... Sans-ear!

O bom Sam se achava em S. Francisco havia apenas um quarto de hora e já sentia nostalgia da savana. Qual será então o estado d’alma do nativo que, depois de ter reagido contra o branco que o vence e enxota dos seus territórios de caça, onde também se acham os túmulos de seus antepassados, é metido numa cela escura e mal arejada das prisões de Filadélfia e Ambur!

Saímos, Marshall e eu; acompanhei o meu amigo até o estabelecimento bancário com que mantinha transações. Fomos informados de que Allano lá estivera por várias vezes e depois se dirigiu para as minas, onde pretendia demorar pouco tempo, voltando a S. Francisco, em seguida. Havia levantado todos os fundos dos Marshall, depositados no banco, para com os mesmos fazer aquisição de ouro.

Depois disto, perambulamos sem rumo pela cidade até que Marshall me conduziu a um estabelecimento comercial, onde havia expostos à venda trajes de todos os estilos. Nessa loja podia-se adquirir desde o mais fino e requintado traje mexicano, até a roupa mais simples de campeiro. A cada estilo de traje correspondia um armário envidraçado; eram vestimentas completas.

O propósito de Bernhard era fácil de se perceber. Os nossos trajes, embora manufaturados com tecidos e couros resistentes, haviam sofrido tanto, na viagem acidentada que vínhamos fazendo, que estavam em mísero estado de conservação. Já não eram trajes, mas verdadeiros andrajos. É verdade que nos havíamos barbeado e aparado o cabelo um ao outro. A nossa aparência já não era mais a mesma de horas antes. E assim, precisávamos completar a transformação do nosso exterior, com trajes mais decentes. Durante a compra, observei que Bernhard tinha muito bom gosto. Comprara para si um traje meio mexicano e meio indígena, que lhe assentava muito bem. Os preços eram altos, mas correspondiam também à situação de S. Francisco, onde a vida naquela época era caríssima.

— Chegou a sua vez, Carlos. Compre também uma fatiota e as demais peças de vestuários de que precisa! — disse o meu companheiro, depois de já completamente transformado. Vou ajudá-lo a escolher.

Realmente eu tinha necessidade de adquirir algumas roupas, mas os preços por que ali eram oferecidas, não estavam bem de acordo com as minhas posses. Nunca pertenci àquela classe de gente infeliz, que de toda parte onde mete a mão consegue tirar uma bota de cem marcos e que conduzem por onde viajam um saco cheio de “lembranças” das cidades e lugares já visitados... Eu pertencia, sim, à invejável classe de gente que esposa o princípio de ganhar hoje para adquirir o que necessita amanhã para a sua subsistência. Em vista disso, talvez, é que fiz uma fisionomia resignada ao ver que Marshall, logo depois de pronunciadas essas palavras, começou a escolher roupas para mim.

Escolheu-me as seguintes peças de vestuário: uma camisa de caçador, de couro branco de cervo, bordada a capricho por mãos de alguma indígena; um jaquetão de campineiro, trabalhado em couro búfalo; um par de botas feitas de couro de urso e cujos canos, em forma de fole, eu podia puxar até a altura das coxas, e, finalmente, um boné de castor enfeitado com pele de cascavel. Não tive outro remédio senão passar para um vestiário contíguo e vestir toda aquela roupa; quando voltei, Bernhard já havia pago também o que escolhera para mim. Quis zangar-me com o meu companheiro, mas não me foi possível.

— Deixe de escrúpulos comezinhos, Carlos! Devo-lhe muito, muito mais ainda do que isso e se não quiser aceitar essa minha oferta, debitar-lhe-ei a despesa e na primeira oportunidade faremos ajuste de contas.

Também para Sam pretendia Bernhard adquirir alguma cousa; desaconselhei-o, porém, porque eu sabia muito bem quanto inseparável era o homenzinho de sua roupa de escoteiro, roupa de que ele não se desfazia por dinheiro e nem por cousa alguma. Além disso, Sam tinha uma estatura invulgar para a qual não havia na loja traje algum que servisse.

Quando regressamos para o Hotel Valladolid, Bob ficou muito satisfeito ao ver-me com vestimenta nova.

— Oh! mestre Carlo tá agora com estampa mió. Tá tão fino como Bob, se Bob também arrecebesse uma fatiota nova di presenti!

Olhei-o agradecido pela bondosa comparação do negro, que eu sabia dotado de boa alma.

 

O BANDITISMO NAS REGIÕES AURÍFERAS

Sam Hawerfield não pôde suportar por muito tempo o acanhamento das quatro paredes do quarto. Veio para o bar, onde sozinho tomou lugar a uma das mesas. Chamou-me com um aceno, quando me viu entrar.

— Ouça-me! — disse Sam à meia voz. — Aí na mesa do lado, há uma conversa que pode talvez nos ser de algum interesse.

— Em que sentido?

— Registraram-se lá em cima, nas minas, fatos nada agradáveis. Perambula por lá uma infinidade de “selvagens”, que não são índios, mas peles-brancas, conforme se depreende da palestra, os quais assaltam os garimpeiros de emboscada para tirar-lhes os haveres e alguma cousa mais... Aquele que ali está sentado, por um triz não caiu nas mãos dos bandidos. Está agora a contar a sua odisséia. Ouça-o!

Numa mesa ao nosso lado estavam vários cavalheiros, que denotavam haver conhecido bem de perto os perigos e as vicissitudes da vida. Um deles relatava um episódio de sua vida e os outros o ouviam com visível ansiedade.

— Well, — prosseguiu o narrador — sou um homem, como todos sabem, afeito aos perigos da vida. Tanto nas savanas, como no amor ou na terra, nas montanhas e nos vales do oeste bravio, vivi episódios que muitos, talvez, não acreditarão. Conheci bem de perto os piratas do Mississipi e os bandoleiros das campinas e por mais de uma vez com eles tercei armas, em combates sangrentos e renhidos; acho possível, por isso, muitas aventuras contadas por campineiros e das quais muitos duvidariam, considerando-as inverossímeis. Mas, cenas como as que se estão passando lá em cima e no meio de uma zona habitada, não me entrariam pela imaginação se eu não as tivesse assistido bem de pertinho!

— E mesmo assim, soa como se fosse uma peta — replicou um dos ouvintes. — Era uma caravana de quinze homens para enfrentar oito apenas; não seria vergonhoso para os senhores, se o que diz fosse verdade?

— Sim, o senhor diz muito bem e é mesmo capaz das maiores bravatas sendo assaltado como nós o fomos, mas... sentado nas mesas dos botequins e cafés. Vá, porém, lá para aquela zona! Éramos, não há dúvida, quinze homens ao todo, seis tropeiros e nove garimpeiros. Se o senhor se fiar nos tropeiros, estará perdido, e dos nove garimpeiros, três estavam atacados de febre e tão depauperados, que mal se sustinham no serigote, de modo que não estavam em condições de desfechar um tiro e nem sequer uma facada certeira. Então, nessas condições, insiste ainda em zombar, dizendo que éramos quinze contra oito?!

— Bem, se foi assim, modifico a minha opinião; aliás, não tive a menor intenção de zombar do amigo, desculpe-me. Mas naquela estrada há sempre grande movimento de cavaleiros, carroceiros e mesmo pedestres, e a qualquer hora devia haver gente nas imediações para socorrê-los!

— Ah! É? Quem impede os bandoleiros de escolher para a realização de suas façanhas exatamente uma hora em que não há movimento de tráfego na estrada? Talvez o senhor?...

— Bem não duvido do que está a nos contar. Mas o senhor faz uma confusão dos diabos. Quer reatar o fio da narrativa para que vejamos a seqüência natural dos fatos e para que melhor o possamos compreender?

— Pois não, farei o que pede, homem! Como estava dizendo, encontramos nos lagos das Pirâmides uma zona como outra mais rica em ouro não havia, de modo que oito semanas depois cada um de nós havia extraído cem quilogramas de ouro granulado. Não nos foi possível continuar na exploração, pois o solo era úmido e três dos companheiros foram atacados de reumatismo articular agudo, em conseqüência do frio que apanharam. Não é tarefa agradável estar-se de manhã à noite dentro d’água até acima da cintura extraindo o ouro. Retiramo-nos, pois, da mina e fomos para Yellow-water-ground, onde vendemos o ouro colhido a um ianque que por ele nos pagou uma soma bem maior do que a que nos ofereciam os comerciantes gananciosos, que a peso de ouro limpo nos forneciam uma libra de farinha deteriorada ou meia de fumo ordinário. Todavia, o ianque fez ainda um bom negócio; se me não falha a memória, chamava-se ele Marshall e viera de Kentucky.

Bernhard virou-se ligeiro, perguntando-lhe:

— Ele ainda se acha no mesmo local?

— Não sei, nem isso é da minha conta! Deixe-me em paz com perguntas inúteis; se querem que eu relate os fatos, seguindo a sua seqüência natural, conforme me pediu este senhor aqui, não devo ser interrompido! Mas, este Marshall, Allano Marshall, lembro-me agora, adquiriu-nos todo o ouro que havíamos extraído. Se fôssemos previdentes, nos teríamos retirado imediatamente da zona. Mas, primeiramente, queríamos descançar do trabalho esfalfante a que nos entregáramos, além de que os companheiros doentes precisavam de tratamento, e, finalmente, não havíamos encontrado uma boa oportunidade para empreender essa longa viagem. Murmurava-se por toda parte sobre assaltos e saques havidos no trajeto da rodovia, citando-se até nomes de garimpeiros que nunca mais voltaram a Sacramento e nem a S. Francisco.

— Mas esses assaltos e saques se deram realmente?

— Um momento, chegarei até lá! Em vista de tudo isso, resolvemos adiar a partida para algumas semanas mais tarde; mas os preços dos artigos de consumo lá nas minas são de arrancar os olhos da cara, e como todos sabiam que agora as nossas algibeiras já não se achavam mais vazias, a nossa distração durante esse tempo todo, foi esquivar-nos com desculpas diplomáticas dos jogadores trapaceiros e de muitas outras castas de parasitas de que Sacramento está infestado. Finalmente, os companheiros ficaram melhor do reumatismo e nós resolvemos não retardar mais a viagem, juntando-nos a uma caravana de cinco garimpeiros que desistiram de trabalhar naquela zona. Éramos, pois, nove pessoas; alugamos alguns muares e isso deu lugar a que o grupo fosse acrescido de seis tropeiros. Estávamos muito bem armados e o nosso aspeto era o de que cada um se achava em condições de combater com dez contendores. A viagem, no seu começo, não foi cercada de perigo, mas os companheiros tornaram a ficar atacados de febre. De resto, com as chuvas, a estrada tornara-se tão barrenta que nos dificultava sobremodo a viagem. Vencíamos, num dia inteiro, quando muito, oito milhas inglesas, e, mesmo à noite, no interior de nossas barracas, não estávamos seguros de ser açoitados pelas trombas d’água que caíam. Com a chuvarada, o estado de saúde de nossos companheiros agravou-se, aumentando a febre. Por fim, para podermos transportá-los, fomos obrigados a amarrá-los aos serigotes.

— Mau, mau! — sussurrou um dos presentes. — Já fiz uma viagem dessas condições e sei quanto ela tem de penosa!

— Well! Havíamos já vencido a terça parte do caminho, quando anoiteceu; fomos procurar um local próprio para o nosso acampamento. Cessara de chover desde cedo. Estávamos ocupados em armar as barracas depois de ter acendido uma fogueira que iluminava o nosso derredor como se fosse dia claro. Eis que, subitamente, ouvimos uma salva de tiros em torno de nós. Eu me achava deitado de ventre no solo a amarrar um dos prendedores da barraca à estaca fincada no chão, motivo por que não fui avistado logo. Ergui-me logo e ainda em tempo de ver os seis tropeiros montar a cavalo e porem se em fuga desordenada. Mas fizeram a “retirada” com tamanha passividade que os bravos (*) teriam tempo para fuzilá-los umas dez vezes. Dispunha-me a tomar da espingarda, mas o que vi me fez desistir disso. As balas dos oito salteadores foram tão certeiras, que os cinco companheiros que estavam sãos tombaram todos sem vida e lá ficaram estirados no solo! Eles estavam à luz da fogueira, e, exatamente, no instante em que eu ia assestar a minha espingarda, os três enfermos caíram também sem vida. Fui eu o único que escapou da morte. Que fariam os senhores no meu lugar?

— Damn! Eu investira contra os bandidos e faria o que estivesse em minhas forças — opinou um.

— Eu varreria alguns deles a bala! — assegurou outro.

— Muito bem. Isto os senhores dizem, mas não o teriam feito. Atracar-me com os   bandoleiros   seria   verdadeira   loucura;   e   alvejá-los   à   bala   seria      também

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(*) Bandidos.

 

desaconselhável, pois se assim agisse eu estaria perdido. Não devia ficar com vida uma só testemunha do assalto, é lógico que assim tencionavam os salteadores e, para conseguir essa finalidade, eles me teriam perseguido até que me pilhassem; além disso, mais do que dois ou três não me seria possível matar.

— Mas, afinal, que fez então?

— Trazia o meu dinheiro no bolso, em moeda corrente; minha mula se achava distante do teatro do massacre. Enquanto os bandidos varejavam as barracas, arrastei-me até o local em que ficaram as mulas e desamarrei a minha montaria. Neste momento, um dos salteadores proferiu uma casquinada seguida dum ensurdecedor assovio e... adivinhem o que sucedeu!

— O quê?

— Os tropeiros voltavam para as barracas. Haviam feito causa comum com os bandoleiros e vinham receber a parte que lhes tocava por nos haverem traído. Os canalhas haviam aumentado o efetivo: eram agora catorze. Enquanto os tropeiros transacionavam com os seus companheiros, eu, montando na mula, saí a galope, batendo o pó dos sapatos. Por sorte minha, o animal era dócil e não uma dessas mulas obstinadas que, quando empacam, não há nada que as faça sair do lugar. A mula não galopava, voava como uma flecha. Ouvi por trás de mim vozes a me praguejar e logo depois o tropel de animais. Estava, porém, muito escuro e eu consegui escapar sem ser visto e pilhado pelos bandidos.

— E depois?

— Continuei viagem a galope para S. Francisco, onde, creio eu, estão me vendo agora! Dou graças a Deus haver conseguido escapar incólume e estar agora aqui a saborear esta deliciosa cervejinha.

— Não os reconheceu?

— Usavam máscaras pretas. Apenas um deles, o chefe da quadrilha, segundo me pareceu, retirou a máscara para, depois da casquinada, proferir um assovio ensurdecedor, o que fez pondo a mão à boca. Tenho a sua fisionomia gravada na memória e o reconheceria imediatamente se um dia ele me caísse diante dos olhos. Era um mulato e tinha uma cicatriz na face, abaixo do olho direito, proveniente certamente de um ferimento por faca.

— E os tropeiros?

— Poderia reconhecê-los também, mas nunca mais voltarei para aquele inferno, onde o diabo esparge e funde o seu ouro com o fim de atrair as almas à morte, à ruína!

— Como se chamavam os muleiros (*)? É sempre bom saber-se o nome de tais “cavalheiros”.

— Um deles se chamava Sanchez; mas antes disso já deve ter usado muitos outros nomes. Calculo que a maior parte desses canalhas pertence aos Hounds (**) que se espalharam por todos os distritos auríferos, disfarçados em agentes comerciais, tropeiros, muleiros, a preparar o caminho para a ação da quadrilha, encaminhando as vítimas para as emboscadas. Os mineiros deviam, a exemplo do que já se fez em outros tempos, organizar uma comissão de vigilância, que se encarregaria de perseguir

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(*) Tocador de mulas cargueiras.

(**) Assim eram denominados os salteadores que, em bandos numerosíssimos, dominavam as regiões auríferas da Califórnia, constituindo um cancro social que só foi extirpado pela população que se congregou para esse fim.

 

e dizimar essas hordas de bandidos, que infestam os distritos auríferos, até não haver mais um só deles! Só assim a ordem e a segurança públicas estariam consolidadas. No atual estado de coisas não é possível explorar-se aquela região! Bem, — terminei a minha história, que contei seguindo a seqüência natural dos fatos!

— Agora, o senhor permita-me — disse-lhe Bernhard — que lhe faça algumas perguntas a respeito de Allano Marshall, de quem o senhor falou há pouco; ele é meu irmão.

— Seu irmão? Realmente parece-se muito com ele! Estou pronto a prestar-lhe as informações que puder.

— Que tempo faz que o viu pela última vez?

— Bem, umas cinco semanas.

— Ele ainda se encontra em Yellow-water-ground?

— Não sei. Lá nas minas, hoje se está aqui, amanhã ali.

— O meu irmão não me escreveu mais, apesar de haver recebida as minhas cartas.

— Não esteja tão certo disso! Atente para o que há pouco acabei de dizer. Há correio daqui para as minas? Sim, mas isto a que o senhor dá tal denominação, não é correio. Afianço-lhe que muitas cartas são remetidas para lá e de lá para cá sem que nunca tivessem chegado às mãos dos destinatários. A primeira casa a que se chega lá em cima é uma taverna, cujo dono pertence aos Hounds; depois, há um estabelecimento comercial, cujo proprietário faz parte dos Hounds. Se o senhor, para se distrair, joga cartas com três parceiros, pelo menos dois, senão os três, são dos Hounds; se o senhor trabalhar de sociedade com algum garimpeiro que por lá encontrar, nalguma mina, o seu sócio é membro dos Hounds e lhe roubará a sua parte em ouro colhido; se o senhor for um homem possante, com o qual é possível sair-se mal numa luta corporal, ele o denunciará aos “bravos”, consócios seus, que cruzam a zona para o assaltarem, depois de ser o senhor atraído pelo seu próprio sócio a uma emboscada; tiram-lhe então todos os haveres, inclusive a própria vida. Do conselho distrital fazem parte Hounds disfarçados em qualquer profissão honesta, o guarda da estrada é Hounds; os almocreves e os arrieiros são Hounds; os donos de bares são Hounds; os “médicos” são Hounds; enfim, quase todos são Hounds! E por que não podem os encarregados dos correios ser Hounds também? Senão muita correspondência não seria extraviada, sem nunca chegar ao seu destino.

Era uma explanação pouco tranqüilizadora a que ouvíamos a respeito da situação reinante nas jazidas auríferas.

— Pretende seguir para lá em procura do seu irmão?

— É este o único fim de minha viagem.

— Well, então vou dar-lhe um conselho. Se o senhor o aceitar ou não, é lá com o senhor! Daqui de S. Francisco partem dois caminhos que conduzem para as diferentes jazidas auríferas; um para o sul, por uma cadeia de montanhas, denominada Nova Almada, onde se encontram grandes minas de mercúrio e cinábrio em estado natural, o outro, quase que diretamente para o norte, apenas com uma pequena inclinação para o oeste, conduz para o distrito de Sacramento. Sabe onde, neste último distrito, fica situado o Yellow-water-ground?

— Sei apenas que ele forma um vale pedregoso do Sacramento; nada mais.

— O caminho costeia três quartas partes da baía de S. Francisco, atravessa depois o rio S. Joaquim, em direção ao vale do Sacramento. Basta subir sempre por este e qualquer caminhante ou em qualquer mina onde o senhor tocar, o informará com toda a precisão onde fica situado o ponto e lá será o termo de sua viagem. Se não tiver muita bagagem consigo, atingi-lo-á dentro de cinco dias. Desaconselho-o, porém, a tomar este caminho.

— Por quê?

— Primeiro, porque, embora seja o mais cômodo, não é o mais curto. Em segundo lugar, a referida estrada está cheia de Hounds que tornam insegura a vida de um viajante. É verdade que eles preferem os viajantes que vêm aos que vão para as minas, mas pode muito bem ser que eles desconfiem que o senhor carrega valores consigo e o atacarão para roubá-lo. E, finalmente, em terceiro lugar, a estrada é em todo o seu trecho pavimentada à custa dos dólares que esfolam de todos os que nela viajam, cobrando-lhes impostos extorsivos. Nos hotéis, por onde o senhor passar, a civilização já anda de tal forma que os hoteleiros extraem contas de hospedagem. Mas uma dessas contas é mais fácil de ler do que de pagar... A conta vem assim discriminada: Aluguel da cama, um dólar; aluguel do quarto, um dólar, aluguel da casa onde está instalado o quarto, um dólar; aluguel do terreno onde está edificada a casa com o quarto, um dólar, luz consumida, um dólar — cobram-lhe a luz e, no entanto o seu quarto é iluminado pela lua, pois o que eles chamam de quarto é o pátio da casa e a cama é um monte de palhas já servidas para este fim, há longos anos. Pelo serviço do garçom, um dólar, pelo lavatório, um dólar — e, no entanto, para andar limpo, o senhor tem necessidade de recorrer às águas do Sacramento —, pela toalha, um dólar — e o senhor enxuga-se na manga do casaco; a única cousa que se paga ali e que realmente se recebe é: formulário desta conta, um dólar. Que tal lhe parece isso, Mr. Marshall?

— É, não é mau... para o hoteleiro!

— Sou da mesma opinião. Em virtude disso, vou ensinar-lhe um outro caminho melhor do que aquele pelo qual, se andar bem montado, alcançará Yellow-water-ground em quatro dias. O senhor toma a barca e atravessa a baía e de lá segue sempre rumo do San John, depois contorna para o leste e quando chegar ao rio Sacramento terá atingido o seu objetivo, ou pelo menos estará bem perto dele. Este caminho é abundante em correntes d’água.

— Muito obrigado, sir, seguirei o seu conselho!

— Well! E se o senhor encontrar-se em Sacramento com um mulato que tenha uma cicatriz abaixo do olho direito, faça-o provar a sua faca ou uma bala de sua espingarda; garanto que desse modo o senhor terá praticado uma boa ação!

 

JANTAR À ESPANHOLA

Nesse permeio, chegara à hora do jantar e Gustavinha nos veio chamar. Ela conduziu-nos a uma sala onde havia uma mesa coberta com tanto luxo como se nela se fosse realizar um jantar em honra dalgum grande da Espanha. O hoteleiro nem deu um ar de sua graça... Dona Elvira recebeu em pessoa os hóspedes, que eu lhe ia apresentando com a enunciação de seus respectivos nomes e com um ar de quem realmente falava a uma alta personalidade em audiência.

Como o desejo de Dona Elvira era impressionar os presentes, dirigiu ela, mas de um modo ridículo, a palestra para o campo das ciências e das artes e nós a ouvíamos com interesse. Quando se sentiu suficientemente lisonjeada por nós, passou a interessar-se também pelas nossas personalidades, pedindo que lhe narrássemos as aventuras por nós vividas na presente jornada.

Quando a hoteleira deu por terminado o ágape, declarou:

— Señores, creio haver-lhes provado quanto sei tratar com distinção os meus hóspedes prediletos e espero por isso que ficarão durante muito tempo hospedados no meu estabelecimento que, no gênero, não há similar nos Estados Unidos.

— Dona Elvira de Gonzales, sentimo-nos honrados pela sua fidalga hospitalidade, que agradecemos com abundância de coração. Pretendemos nos demorar durante muito tempo em seu hotel, porém, não agora, pois somos obrigados a fazer uma pequena excursão amanhã bem cedinho.

— Para onde?

— Para o Sacramento, a fim de procurar Allano, que traremos conosco para se hospedar na sua casa.

— Muito bem, meus señores! Ponho à sua disposição tudo de que necessitarem; a conta apresentar-lhes-ei mais tarde, e se tiverem ainda algum desejo, exponham-no à Gustavinha, que está encarregada de atendê-los. Espero que me dirão adiós amanhã cedo, antes de partirem.

Dito isto, saiu da sala e nós a acompanhamos, seguindo depois para as cavalariças a fim de ver os nossos cavalos; logo depois, recolhemo-nos aos nossos quartos para dormir. Na manhã seguinte, tomamos a barca e atravessamos a baía de S. Francisco.

 

NO SACRAMENTO

Seguimos a direção exata que nos ensinara o garimpeiro e, na noite do terceiro dia, atingimos a serra de San John, de lá seguindo rumo do nascente. No dia seguinte, ao meio-dia, cavalgamos pelo rio Sacramento abaixo, e a cada passo encontrávamos vestígios do febril afã dos garimpeiros, que por toda parte haviam revolvido a terra em procura do “pó mortífero”, cujo brilho fascina os olhos, confunde os espíritos e anestesia os corações!

Já se tem falado e escrito tanto a respeito dos trabalhos nas jazidas auríferas, que me abstenho de fazer qualquer referência a esse respeito; direi apenas que a febre do ouro é contagiosa até para o homem menos ambicioso, uma vez que ele se ache rodeado de homens de olhos fundos nas órbitas, vestidos, a maior parte das vezes, com mulambos e que sacrificam a sua saúde e até a vida no afã de se tornarem ricos. Pobres riquezas que muitos desbaratam tão depressa quando a alcançam! Estes pobres homens trabalham às vezes durante meses consecutivos, de sol a sol, sem auferirem a mínima parcela de resultados apreciáveis que compensem o seu árduo labor. Pragas e maldições acompanham em geral cada golpe por eles dado nas jazidas; o terrível fantasma da fome, da miséria, do desespero deles se aproxima a passos rápidos e os pobres garimpeiros desanimam e querem desistir para entregar-se a outras tarefas... É então quando ouvem um boato de que em tal ou qual lugar alguém descobriu enormes e inesgotáveis veios auríferos, que estão fazendo a fortuna de muitos garimpeiros ativos. Imediatamente pegam da bátea (*) e seguem o novo rumo, a fim de se tornarm vítimas imbeles da espantosa epidemia: a sede do ouro!

À noite chegávamos ao Yellow-water-ground. Era um extenso e estreito vale onde corria um pequeno regato, tributário do Sacramento. De alto a baixo, as margens do regato estavam cheias de vestígios de jazidas auríferas. A terra por toda parte estava revolvida. Passávamos por numerosas barracas; contudo, era palpável o sintoma de que a época áurea dos exploradores de minas de ouro já passara...

No meio do vale levantava-se uma casa de madeira, baixa, mas larga e espaçosa. Na porta, escrito a giz, lia-se o convidativo letreiro: Stop on boarding-house of yellow-water-ground. O dono deste estabelecimento comercial, hotel e bar, devia estar em condições de dar-nos as informações de que precisávamos. Apeamos, pois; deixamos Bob junto dos cavalos e entramos.

Os bancos feitos de madeira tosca estavam tomados em parte por figuras rústicas e em parte, por figuras em cujos semblantes lia-se a descrença, a miséria, o desespero; eram homens meio vencidos que nos contemplavam com curiosidade.

— Novos mineiros, disse um, proferindo uma casquinada. Deixai-os! Talvez tenham mais sorte do que nós... Venha cá, oh! pele-vermelha, tome um trago comigo!

Winnetou fez como se nem tivesse ouvido o convite. Nisso o homem levantou-se do seu lugar com o copo na mão e aproximou-se provocadoramente do apache.

— Maroto, então não sabe que é um insulto lançado à face de um mineiro, quando se recusa a sorver um trago com ele? Responda-me se quer ou não tomar um trago comigo e pagar também outro para bebermos à minha saúde?!

— O guerreiro pele-vermelha não ingere “água de fogo”, mas com isso não pretende insultar o pele-branca! — respondeu Winnetou enérgica, mas cortesmente.

— Então, tome e vá para o diabo!

A essas palavras, o garimpeiro decaído atirou o copo com o seu conteúdo no rosto de Winnetou e sacou logo da faca, num salto, para cravá-la no coração do cacique dos apaches; mas foi infeliz na sua investida: Winnetou num salto de tigre rebateu o golpe e fez o agressor tombar ao solo com o coração atravessado pela lâmina da sua faca. Imediatamente ergueram-se os demais de faca em riste. Mas as nossas espingardas já estavam apontadas para eles; também Bob, que da rua vira o movimento, postara-se na porta com a espingarda pronta para o tiro.

— Parem! — exclamou o hoteleiro, dirigindo-se aos mineiros. Procederam muito mal, pois o atrito não foi com os senhores, e deveria ser resolvido entre Jim e o índio. Por que se meteram onde não foram chamados?!  Nell, retira daí o corpo do pobre Jim!

Os garimpeiros tornaram a sentar-se. As nossas espingardas assestadas produziram neles o mesmo efeito que as palavras do hoteleiro. O garçom saiu detrás do balcão, agarrou o morto às costas e conduziu-o para os fundos, a fim de colocá-lo numa escavação abandonada e cobri-lo com um pouco de terra, conforme ordenou depois o dono da casa. Aquele Jim viera para cá a fim de procurar ouro e achou a morte por sua própria culpa. Quantas cenas idênticas se registram nas minas!...

Sentamo-nos a uma mesa distante da dos demais.

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(*) Peneira para joeirar ouro

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— Que pretendem tomar? — perguntou, solícito, o hoteleiro.

— Cerveja — respondeu Bernhard.

— Porter ou Ale?

— A melhor delas!

— Então tomem Ale, pessoal! É uma cerveja muito boa, de Burton, em Staffordshire.

Eu estava curioso por provar a cerveja que o hoteleiro pretendia ter importado da Inglaterra e até da cidade mundialmente afamada por sua excelente cerveja, para o vale do Sacramento... Foram nos servidas cinco garrafas, das quais levei imediatamente um para Bob, que continuava a cuidar dos cavalos. O preto meteu o gargalo na boca, parecendo que ia engolir toda a garrafa, e bebeu-a duma só vez. Mas mal tirara a garrafa da boca, arregalou assustadoramente os olhos e abriu a boca numa careta pavorosa; proferiu um gemido idêntico ao do náufrago, que, à tona d’água, pela última vez avista a terra.

— Que te aconteceu? — perguntei supondo que se houvesse ferido com o gargalo.

— Mestre, me acódi senão Bob vai morre. Bob tomou veneno di rato.

— Veneno? Mas não era cerveja inglesa Ale?

— Ale? Não, oh, não! Bob conhece Ale. Bob tomo veneno. A boca e as tripa de Bob estão ardendo como arsênico.

Bob evidentemente não conhecia cerveja. Como podia aquela deliciosa bebida transformar-se em arsênico! Voltei para o bar e cheguei ainda em tempo de ouvir a observação do hoteleiro:

— Mas, antes de mais nada, preciso saber se estão em condições de pagar o que bebem!

Bernhard, visivelmente ofendido, pôs a mão no bolso para tirar o dinheiro.

— Deixe, Bernhard! Esta conta é comigo! — atalhou Sam. — Quanto custa a cerveja?

— A três dólares a garrafa, importa em quinze dólares.

— É barato, homem; ainda mais com a garrafa, não é assim?

— Claro, a garrafa está incluída no preço.

— Mas a deixaremos aqui, pois homens como nós que conhecemos minas inexgotáveis de ouro, onde basta nos baixar para retirar grandes quantidades, não fazem questão de um pedaço de vidro! Traga a sua balança aqui para a mesa!

— Quer fazer o pagamento em ouro?

— Sim.

Sam tirou de sua bolsa tiracolo alguns nuggets, dos quais um tinha o tamanho dum ôvo de pomba.

— Com mil raios, homem, onde encontrou estas peças de ouro? — perguntou o hoteleiro.

— Nas minhas jazidas.

— Onde estão elas situadas?

— Mais ou menos na América. Não tenho boa memória e por isso não me recordo de momento do local exato. Só me lembro disso quando preciso de ouro.

O hoteleiro teve que se conformar com esta recusa; os seus olhos, porém, brilhavam de ganância quando pesou uma das peças de ouro e devolveu o troco em dinheiro. Ele calculou o ouro por um preço ínfimo e a sua balança devia também estar viciada... Sam, porém, embolsou o troco com um ar de quem não se preocupa com uma onça a mais ou uma onça a menos. Ele trazia, sem que os companheiros o soubessem, uma boa soma em ouro no meio da munição e agora me lembrei do que me dissera quando foi do nosso primeiro encontro: que sabia um local onde havia ouro suficiente para tornar riquíssimo o homem que se revelasse seu verdadeiro amigo.

Passamos então a provar a cerveja. Se tivéssemos vindo diretamente da savana para cá, podia ser que pudéssemos tragá-la! Mas como no Hotel Valladolid, Dona Elvira nos servira boa cerveja, não nos foi possível beber aquela sem náuseas. Era evidente que o homem cozinhava ele mesmo a sua cerveja com certas ervas e outros ingredientes e depois a engarrafava nas garrafas rotuladas de Ale, vendendo-as à razão de três dólares apenas. Além disso, o hoteleiro, esquecendo-se da atitude esquiva de Sam, sentara-se conosco à mesa e voltara de novo a perguntar onde se achavam situadas as suas jazidas auríferas.

— As minas que o senhor conhece ficam muito distantes daqui, sir?

— Qual delas? Conheço umas quatro ou cinco?

— Quatro ou cinco? Impossível! Do contrário o senhor não se abalançaria a vir até este triste vale onde já desenterraram todo o ouro que havia...

— Se o senhor acredita ou não, isto é lá com o senhor, acho eu!

— E o senhor retira apenas a quantidade de ouro de que precisa?

— Claro.

— Que leviandade, que imprevidência! E se agora vierem outros e tirarem aquilo que o senhor poderia ter posto em seguro?

— Isto nunca se dará.

— Pois eu lhe compro uma dessas minas, sir!

— Não tem dinheiro para efetuar essa transação. Seria capaz de dispor de uma soma suficiente para pagar em dólares ou cheque bancário uns seis mil quilos de ouro?

— Com os diabos! Tanto assim? Neste caso eu arranjaria um sócio e até dois ou três; para isso me serviria aquele Allan Marshall que por aqui chegou trazendo uma bonita soma em dólares e se retirou levando consigo uma considerável fortuna. Aquele, sim, conhecia o seu ofício!

— Como?

— Tinha um auxiliar que demitiu por que o roubou. Este depois me contou tudo. O seu patrão converteu em dinheiro o ouro em pó e os nuggets maiores enterrou na sua cabana. De repente, porém, ele desapareceu sem que ninguém saiba para onde foi.

— Tinha cavalos consigo?

— Apenas um de montaria. Ontem ainda ele foi procurado aqui.

— Ah! Por quem?

— Por três homens, dois brancos e um mulato, que me pediram notícias dele. Também os senhores parecem conhecê-lo!

— Sim, e pretendíamos também procurá-lo. Para onde se dirigiram os três?

— Saíram em procura do lugar onde esteve a sua barraca; depois voltaram e estiveram durante muito tempo lendo uns papéis que lá encontraram. Um deles consegui ver: tratava-se dum mapa.

— E depois:

— Perguntaram onde ficava o vale do Short Rivulet. Ensinei-lhes o caminho e eles se dirigiram para lá.

— Mas com uma simples descrição do caminho eles dificilmente terão encontrado o vale Short Rivulet!

— Conhece-o?

— Estive uma vez lá. O senhor não nos poderia mostrar o local onde esteve armada a barraca de Allan?

— Pois, não; daqui o senhor pode avistá-lo. É lá à direita daqueles espinhais. Quando chegar lá, verá logo as cinzas no local do fogo e outros vestígios mais.

— E como se chama o homem que foi o auxiliar dele?

— Fred Buller. Está agora trabalhando na segunda jazida à esquerda de quem desce a estrada.

 

UMA “CONFERÊNCIA” REMUNERATIVA

Fiz um sinal para Bernhard, deixamos o bar e nos encaminhamos regato acima. Na jazida mencionada paramos. Apenas dois homens trabalhavam no arroio.

— Good day, cavalheiros! Querem ter a fineza de me informar qual dos senhores é Fred Buller? — perguntei.

— Yes, sir; sou eu — respondeu um dos garimpeiros.

— Dispõe de tempo para responder algumas perguntas que pretendo fazer-lhe?

— Talvez, desde que isso me renda um bom lucro. Aqui no trabalho das minas, todo o minuto vale dinheiro!

— Quanto o senhor cobra por dez minutos de tempo?

— Três dólares.

— Aqui os tem! — disse Marshall, passando-lhe a importância pedida.

— Obrigado, sir! Pelo que vejo, os senhores são muito generosos!

— Talvez lhe demos ainda maior prova de nossa generosidade, desde que responda bem às nossas perguntas — assegurei-lhe para aguçar a sua ganância.

— Well, sir; então faça as perguntas!

Os olhos daquele homem eram os de um refinado ladrão. Qual seria a melhor maneira de começar com ele? Meditei um segundo e decidi fingir-me de canalha, como ele, para melhor captar-lhe a confiança.

— Não lhe seria possível acompanhar nos ali para o lado para que possamos falar mais confidencialmente?

— Com os diabos, sir, os senhores, pelo que vejo, conduzem excelentes armas! Não seria essa atitude arriscada para mim?

— Ah! O homem não estava com a consciência tranqüila!

— Sim, excelentes armas para os nossos inimigos, mas também muito dinheiro para os nossos amigos. Venha sem receio!

Ele titubeou ainda um pouco, mas por fim resolveu atender-nos.

— Bem, vá lá que seja!

Saiu de dentro do arroio e nos acompanhou para um dos lados.

— Não estiveram anteontem três homens com o senhor?

— Sim.

— Dois brancos e um mulato?

— Justamente. Por quê?

— Os brancos eram pai e filho?

— Isso mesmo. O mulato é meu conhecido e também dos dois cavalheiros.

— Ah! — não sei como me ocorreu no momento esta idéia, — O mulato também eu conheço. Tinha uma cicatriz na face direita?

— Exatamente. Onde conheceu o meu amigo cap... isto é, de onde conhece sir Shelley?

— Fizemos de uma feita um negócio e agora eu precisava muito falar lhe. Para onde seguiu ele?

— Não sei, sir.

Dizia a verdade: via-se lhe nos olhos.

— Que queriam aqueles homens do senhor?

— Sir, os dez minutos já se passaram!

— Ainda não! Sei muito bem que lhe vieram perguntar pelo paradeiro do seu antigo patrão, Marshall, sir! Contudo lhe daremos mais cinco dólares para responder às nossas perguntas até o fim.

Bernhard pagou-lhe adiantadamente, como da primeira vez, aquela soma.

— Obrigado, sir! Os senhores são bem outros homens do que aqueles tais de Morgans e o sir Shelley, e por isso vou fornecer-lhes informações mais detalhadas do que as que prestei àqueles. Como o senhor já fez um negócio, com ele deve saber também quanto Shelley é sovina. Quer tudo de graça. Dizem que teve um procedimento nada recomendável com um companheiro de Sid...

O homem gaguejou, espantado, à palavra cujas primeiras letras acabava de pronunciar.

— Sidney-Coves, vá logo dizendo! Conheço também aquela história.

— Também? Então o senhor sabe muito bem quanto pode valer às vezes uma informação aparentemente sem importância. Para onde aqueles três sujeitos foram eu não sei; vi apenas que deram uma rigorosa busca lá no local da barraca do meu ex-patrão, onde acharam um papel. Oh! Se o sir Shelley tivesse falado comigo com “voz mais sonora”, como os senhores estão fazendo, eu lhes teria dado papéis de muito maior importância.

— E de que forma deveremos continuar a falar com o senhor para recebermos esses papéis de que fala?

Ele riu-se canalhamente e acrescentou: já lhes dei a entender... Portanto, por meio de uma conferência paga a dólares! Era de fato um sujeito refinadíssimo.

— Que espécie de papéis são os que o senhor possui?

— Várias correspondências.

— De quem e dirigidas a quem?

— Oh! sir! Como lhe poderei responder esta pergunta, sem saber antes se os senhores estão dispostos a falar comigo no meu “idioma”?!

— Pois faça preço!

— Cem dólares.

— Não me leve a mal a franqueza! O senhor se apossa da correspondência do seu ex-patrão para entregá-las ao “capitão” dos bravos e, como este não lhe quis dar a importância exigida, fica com ela, porque é de parecer que aquilo que podia trazer vantagens ao “capitão” nenhum mal lhe fará. Pois afianço lhe que essa atitude pode lhe acarretar más conseqüências. Amanhã ou depois, quando as cousas tiverem tomado novo rumo, já ninguém mais se interessará por essa correspondência e nada receberá mais por ela; além disso, em que posição ficará o senhor perante a nossa organização?

Eu arriscaria a dizer-lhe estas palavras baseadas tão somente no que até agora ouvira falar a respeito dos Hoands. Não tinha certeza nenhuma do que estava dizendo. Contudo, pela fisionomia do canalha, vi logo que eu tivera uma feliz idéia. O sujeito aceitou logo a minha oferta.

— Agora me convenci de que realmente o senhor já teve uma “transação” com o “capitão” pois sabe de tudo e é senhor dos segredos de nossa agremiação. Por isso não hesito mais em entregar-lhe os papéis mediante a remuneração de cinqüenta dólares.

— Onde tem essa correspondência?

— Acompanhem-me até a nossa barraca!

Seguimo-lo até onde estava localizada aquela coisa que ele tratava de “nossa barraca”. Era quatro paredes de barro, cobertas com uma lona toda furada. No interior da barraca devia chover como na rua! A um canto se achava uma trouxa de roupa, de onde Buller trouxe um pacote amarrado com farrapos de pano. Abriu-o e passou-me duas cartas. Eu ia agarrá-las, mas o homem puxou ligeiro a mão dizendo:

— Calma, sir, não se afobe! Primeiro dê-me o dinheiro!

— Não lhe pagarei sem que ao menos me seja dado ler os endereços.

— Bem, concordo, mas segurando eu as cartas e o senhor lendo a certa distância. Estou muito “escovado”. Não caio mais tão facilmente em “embrulhos”!

Buller recuou uns passos e à distância nos exibiu os envelopes que lemos.

— Realmente! Bernhard dá lhe o dinheiro!

As cartas eram endereçadas ao pai de Bernhard que Allan ainda não sabia ter sido assassinado. Bernhard tirou apressadamente o dinheiro do bolso; entretanto, percebeu o olhar que eu lhe dirigia e compreendeu ser singular ele pagar uma tão elevada soma por duas cartas, cujo seqüestro tantos prejuízos lhe haviam causado! Mas mesmo assim, pagou ao ladrão, que agarrou o dinheiro com volúpia. Quando o estava guardando naquele pacote imundo, vimos reluzir alguma cousa semelhante a ouro e Bernhard, nervosamente, avançou contra Buller arrebatando-lhe o pacote de onde tirou um relógio de ouro.

— Que pretende fazer com o meu relógio? — perguntou o meliante.

— Abrir-lhe a capa que cobre o mostrador a fim de ver que horas são.

— Não está com corda — replicou tentando, reapossar-se do objeto. — Devolva-me!

— Calma — retruquei segurando-lhe ambos os braços. — Mesmo que esteja parado poderemos ver a que horas cessou a corda!

— Mas é o relógio de Allan! — exclamou Bernhard.

— De fato? Como se apoderou desse relógio? — trovejei ao gatuno

— O senhor tem alguma cousa com isso? — respondeu-me tentando desprender-se de minhas mãos.

— Tenho, sim, senhor! Este cavalheiro é irmão da pessoa a quem este relógio pertenceu. Portanto responda já de que maneira veio a possuir esse objeto!

— É um presente do meu ex-patrão.

— Está mentindo! — replicou-lhe Bernhard. — Veja esses brilhantes, Carlos! — Um relógio fino como este, que vale no mínimo uns trezentos dólares, não se presenteia a um auxiliar de categoria modestíssima como foi este homem junto de meu irmão.

Eu segurava Buller pelos dois braços. O gatuno fazia um esforço inaudito para se desprender, mas debalde.

— Quem são os senhores? Quem lhes dá o direito de varejar a minha barraca? Vou bradar por socorro e mandar linchá-los! — exclamava o homem fora de si.

— Não cometa tolices, homem; do contrário, Linch se encarregará de executar a sua própria pessoa! Ao primeiro grito que proferir apertar-lhe-ei a garganta com um pouquinho mais de força.

Eu passara a segurar-lhe ambos os braços com a mão esquerda, e com a direita ameaçava-lhe a garganta na altura da carótida. Estava completamente dominado por mim.

— Não achei mais nada — declarou Bernhard, concluindo a busca.

— Pois então solte me e me devolva o relógio! — disse Buller em tom de desafio.

 

— Tome cuidado! — respondi-lhe. — Segura-lo-ei até resolvermos o que faremos do senhor? — Que faremos dele, Bernhard?

— Está convencido de que ele roubou o relógio de meu irmão?

— Claro.

— E ele está disposto a restituí-lo?

— Que remédio!

— E que castigo lhe daremos?

— Seremos indulgentes com ele. De nada nos adiantará o seu linchamento. Pelo crime que praticou, devolverá gratuitamente o relógio e as cartas.

— Gratuitamente? Mas, como fazer se já recebi o dinheiro?

— Muito simples. Restituir-nos-á imediatamente e sem vacilar os cinqüenta, os cinco e os três dólares que nos extorquiu há pouco, julgando-se senhor da situação. É uma sentença muito benigna, dê graças aos céus! Bernhard. Tire lhe o dinheiro do bolso!

Bernhard atendeu-me, não obstante o homem haver esperneado um pouco; depois soltei o ladrão. Mal se viu livre, pulou para fora e desandou a correr pela estrada embarafustando-se porta adentro lá no bar, onde antes estivéramos.

Seguimo-lo lentamente e já de longe percebemos berreiros enfurecidos. Redobramos os passos. Os nossos cavalos estavam defronte à porta, mas não víamos Bob. Entramos apressadamente no bar aonde nos vimos num campo de luta. Num dos ângulos da casa estava Winnetou segurando o ladrão do relógio com a mão esquerda pela garganta e com a direita, erguia a espingarda para desferir-lhe o golpe; ao seu lado Sans-ear atracado em luta corporal com alguns hóspedes. A um outro ângulo se achava Bob, a quem no momento arrancaram a espingarda, defendendo-se como um leão de faca em punho. Conforme depois vim, a saber, Buller convidara os mineiros que se achavam na taverna para lincharem a mim e a Bernhard, tendo Sans-ear embargado-lhe os passos. Como os garimpeiros estivessem furiosos ainda com a morte de Jim e o taverneiro convencido de que Sam não aceitaria a sua proposta para a compra da mina aurífera, estabeleceu-se, sob o seu patrocínio, aquele charivari que teria custado a vida aos nossos três companheiros, se nós os dois não houvéssemos chegado ainda a tempo.

Winnetou e Sam ainda podiam se manter na luta; precisaríamos em primeiro lugar acubir Bob.

— Atirar, só em caso de absoluta necessidade! Ponha a espingarda em posição de desfechar um coronhaço, Bernhard! — comandei.

Dizendo isso, fui logo investindo contra os garimpeiros e não demorou nem um minuto o negro já estava ao nosso lado, de espingarda na mão. Como um tigre que se tivesse soltado da jaula, o preto pulou contra os inimigos. Estes não possuíam armas de fogo. Foi a nossa sorte.

— Ah! Carlos — exclamou Sam. — Abandonemos as coronhas e lancemos mão das machadinhas de guerra! Arrazemos tudo duma vez!

 

DOIS CASTIGOS ORIGINAIS

Obedecemo-lo. Mas aquilo já não era mais um embate, era antes um brinquedo. Mal reluziram as nossas machadinhas e mal dois ou três garimpeiros foram atingidos levemente por elas, toda a horda saiu porta afora em desordenada fuga. Ocorrera tudo isso em dois minutos. Logo depois nos achávamos a sós com o taverneiro e Buller.

— Roubaste realmente dinheiro e um relógio deste homem, Carlos? — perguntou Sam.

— Epa! Antes ele é que se apoderou indebitamente de duas cartas de Allan dirigidas ao pai e roubou-lhe o relógio.

— E cometeram a imprudência de soltá-lo! Bem, isto não é da minha conta. Mas irá receber agora a sua paga por ter irritado esses zangões auríferos contra nós.

— Creio que não pretendes matá-lo, Sam!

— Isto ele nem merece! Prenda-o, Winnetou!

O apache segurou tão fortemente o homem que este não se podia mover. Sam puxou da faca. Um ligeiro corte, um grito de dor proferido por Buller... Sam cortara-lhe a ponta do nariz.

— Agora sim, meu bravo rapaz! Fique sabendo que não é louvável provocar-se o linchamento de honrados homens do oeste. Quando se mete o nariz em assuntos tão graves, perde-se em geral a sua ponta... E o nosso mestre taverneiro das dúzias? Ah, lá está ele! Venha até aqui, meu caro, e deixe-me ver quantas polegadas de excesso de nariz possui!

O taverneiro pareceu não se ter agradado do convite. Aproximou-se, hesitante, apenas uns passos.

— Eu espero que, cavalheiros como parecem ser, não me vão pagar desta forma a acolhida hospitaleira que lhes dispenso! — disse o hoteleiro, trêmulo.

— Acolhida hospitaleira? Chama de acolhida hospitaleira cobrar  três dólares por uma garrafa de um cozimento imundo que nem o demônio seria capaz de tragar?!

— Bem, lhes devolverei imediatamente o dinheiro, meus senhores!

— Não, fique com o dinheiro e não tenha medo! Quem daqui por diante fabricaria Ale e Porter se o mandássemos desta vida para melhor?... Agora vamos, companheiros, pois os vermes auríferos são muito capazes de voltar e seremos então obrigados a liquidar com uma dúzia deles!

Com esta resolução, porém, Bob não estava satisfeito.

— 0 que, mestre Sam; já quê í embora? Não. Por quê não castiga primêro tavernêro por ter dado pra Bob bebê veneno de rato. Bob vai se cobra deste desaforo!

O preto agarrou uma das garrafas cheias que se achavam sobre a mesa, pois não as havíamos bebido, e deu ao dono da casa.

— Toma, tu mêmo, essa porcaria, bandido! Ligêro senão Bob mata a tiro semvergonha di tavernêro!

O hoteleiro, negociante e taverneiro foi forçado a beber aquela mistura nauseante. Mas mal havia ingerido aquela garrafa, já Bob lhe apresentava outra.

— Toma também esta!

Não teve o homem outro remédio senão ingerir também aquela.

— Agora toma mais essa. Si não fizé, Bob mata bodeguêro!

Desta forma o homem foi obrigado a beber as quatro garrafas que havíamos deixado sobre a mesa e era tragicômico ver a careta que fazia ao engolir o infernal cozimento.

— Ohn, ohn! — exclamou o preto, segurando a barriga de tanto rir. — Agora hotelêro bebeu quatro veiz treis dolars e está com a barriga cheia de gaizes azuis!

Estávamos despachados. Winnetou soltou o ladrão que, com a carótida premida, não pudera antes soltar um só gemido; agora, porém passou a berrar com grande furor; montamos a cavalo e nos fomos. E não foi fora de tempo, pois nas proximidades da casa vimos os garimpeiros se reunindo armados de armas de fogo. Felizmente, porém, havia ainda pequeno número deles e por isto alcançamos o rio Sacramento sem sermos importunados.

— Onde fica o vale Short Rivulet? — perguntou Bernhard.

— Por enquanto cavalgaremos rio acima — respondeu Sam.

 

NA SENDA DE ALLAN MARSHALL

Prosseguimos a trote rápido até atingirmos uma distância, em que nos consideramos fora do alcance dos garimpeiros.

— Agora vamos apear! — ordenou Bernhard. — Preciso ler as cartas. Apeamos e sentamo-nos na relva. Bernhard abriu as cartas e as leu.

— São as duas últimas cartas escritas por Allan — declarou ele. — Meu irmão queixa-se amarguradamente por não lhe respondermos as cartas e numa das missivas faz uma observação que nos é de grande interesse. Ei-la:

“... de resto, estou fazendo aqui melhores negócios do que antes supunha. O pó e as granulações de ouro remeti-os por portador de confiança para Sacramento e S. Francisco, onde alcançam muito melhor preço do que aquele que me pagam aqui. Deste modo consegui dobrar a soma que se achava à nossa disposição no Banco. Agora, porém, vou deixar Yellow-water-ground onde não há mais nem a quarta parte do movimento de explorações das jazidas de antes, e, além disso, os caminhos que conduzem para S. Francisco e Sacramento estão de tal modo infestados por salteadores, que a gente não pode mais se arriscar a fazer alguma remessa de ouro para lá. Desconfio até, em vista de certas cousas que me chegaram ao ouvido e outras por mim vistas, que os bravos projetam visitar o meu acampamento. Para despistá-los vou sair inesperadamente desta localidade sem deixar de mim o menor vestígio. Deste modo, os bandoleiros não conseguirão seguir-me, para assaltar-me de emboscada, como costumam fazer. Sairei daqui com destino ao vale Short Rivulet levando comigo mais de cem libras de nuggets. Soube que naquele vale estão explorando várias jazidas auríferas e assim, lá encontrarei negócios que talvez ocuparão a minha atividade durante um mês inteiro. Depois disso, transpondo o Lynn, seguirei para o porto de Humboldt, onde espero encontrar vapor que me conduza a S. Francisco.

— Tudo combina! — atalhou Sam. — Não é isso singular, Carlos? Pois os Morgans sabiam de tudo. E quem lhes contou, hein?

— Talvez os papéis que os dois bandidos acharam na barraca de Allan faziam alguma referência a respeito.

— É possível — disse Bernhard. — Há aqui um tópico que talvez nos sirva de ponto de partida. Ouçam!

“... embora eu não viaje em numerosa companhia. Não preciso sequer de um guia, pois baseado no último mapa editado, organizei um roteiro de viagem pelo qual me poderei dirigir com segurança...”.

— Teria ele perdido este roteiro ou inadvertidamente posto fora o seu bosquejo? — perguntei.

— É bem provável — opinou Sam. — Um homem do oeste Allan não é, e por isso ignora, talvez que muitas vezes no mais insignificante descuido, a gente, quando viaja pelo oeste bravio, põe a vida em jogo. E mesmo que ele tenha chegado incólume até lá, resta saber de que forma se arranjou com os indígenas-serpentes que possuem lá a sua aldeia e o seu território de caça, que se distende para o Lewis-Sued-Fork.

— São tão ferozes como os comanchos? — indagou Bernhard, tomado de cuidados.

— São como os indígenas em geral: nobres para com os amigos e terríveis para com os inimigos ou com os que supõem sê-lo. Nós, por exemplo, não precisamos receá-los, porque já estive várias vezes como hóspede em sua taba e todo indígena-serpente conhece Sans-ear, senão pessoalmente pelo menos através do nome.

— Serpente? — perguntou Winnetou. — O cacique dos apaches conhece os shoshones (*) que são seus irmãos. Os guerreiros dos shoshones são valentes e leais; eles vão alegrar-se por tornar a ver Winnetou com quem fumaram tantas vezes o calumet.

 

TRÁGICO DESENLACE

Bem, duas prováveis dificuldades estavam removidas. Tanto Sans-ear como Winnetou mantinham boas relações com aquela tribo e ambos conheciam também a região, onde estava situado o vale do Short Rivulet. Ambos nos serviriam agora de guias.

O terreno pelo qual tínhamos que cavalgar era muito montanhoso, pois havíamos deixado o rio Sacramento e nos dirigíamos para o sêrro de S. José. Era íngreme este caminho, mas, mesmo assim, o mais facilmente acessível ao nosso objetivo, que era o de apanhar os dois salteadores. É verdade que estes nos levavam uma dianteira de dois dias, mas haviam tomado um outro caminho sem dúvida mais longo do que este. Sim, porque por este, que trilhávamos, eles não passaram, do contrário teríamos dado com as suas pegadas.

Do sêrro de S. José desviamo-nos para o noroeste. Depois de transcorrida uma semana de nossa partida de Yellow-water-ground, topamos com uma cadeia de montanhas onde havia uma elevação que ultrapassava as demais pela grande altura do seu cume; ao sopé levantava-se uma floresta de árvores que perdem as folhas no outono, floresta que se ia desenvolvendo cada vez mais cerrada até converter-se numa verdadeira mata virgem. Em cima, no planalto da  montanha  colossal,  havia  um  lago

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(*) Shoshones é o nome que os nativos dão à tribo da serpente ou snake.

 

que, devido ao seu aspecto sombrio e ao conjunto taciturno do local, denominavam Black-eye (*). Nele desaguava o Short Rivulet, cujas nascentes procediam do oeste.

Cavalgamos vagarosamente montanha acima até chegarmos ao seu planalto. Daqui por diante, o caminho melhorava sensivelmente, e um pouco antes de escurecer, chegávamos ao braço sul do Black-eye, de tal profundidade que as águas pareciam um enigma, cuja decifração trazia consigo a morte certa.

Nos vales das montanhas havia sombra, mas em cima o sol brilhava prestes a desaparecer no poente. Poderíamos muito bem cavalgar mais um trecho pela margem do lago, a fim de examiná-lo mais detidamente.

— Prosseguiremos viagem? — perguntou Bernhard, ansioso e esperançado talvez por ver o irmão ainda naquele dia.

— Não. Os meus irmãos e o cacique dos apaches acamparão hoje aqui neste local — disse o cacique no seu laconismo proverbial.

— Well — concordou Sam. — Aqui há musgos para nos servirem de leito e os animais encontrarão pastagem em abundância no vale do rio. E se encontrarmos algum matinho ou outro esconderijo qualquer, poderemos acender uma fogueira de fogo lento, como as dos indígenas, para assarmos a caça que Bob abateu hoje.

Sim, Bob pela primeira vez abatera naquele dia uma caça e ele se orgulhava em poder com isso comprovar mais uma vez quanto ele era um membro útil da caravana. Depois de algumas pesquisas da zona, encontramos um lugar como Sam desejara.

Pouco depois o fogo ardia e Sam assava a caça. Neste meio tempo anoitecera e o fogo iluminava apenas um insignificante perímetro da zona em que nos achávamos. Sam serviu-nos o seu saboroso quitute e nos deitamos a dormir até de manhã cedo.

Logo que acordamos, levantamos acampamento e não demoramos a chegar ao vale do Short Rivulet. O arroio era pobre de água e, ao que parecia, na estação estival secava completamente.

Encontrávamos pelo caminho barracas fragmentadas, terras revolvidas, palhoças destruídas, enfim, inúmeros outros vestígios do trabalho estafante dos garimpeiros, que ali estiveram a explorar a zona, e de um formidável e renhido combate que ali se devia ter travado.

Evidentemente, os garimpeiros haviam sido assaltados pelos bandoleiros. Não encontramos, porém, nenhum cadáver no teatro da luta.

De pesquisa em pesquisa, divisamos mais para o alto em plena mata, uma enorme barraca destruída e que fora levantada debaixo de uma árvore frondosa. Não havia ali vestígio de espécie alguma, um único objeto que nos levasse a descobrir quem ali estivera instalado.

Oh! que decepção sofrerá Bernhard que estava convicto de encontrar o seu irmão.

— Nesta enorme barraca morou Allan — afirmou com voz trêmula. O pobre rapaz teve esse pressentimento, pressentimento que muitas vezes não engana! Cavalgamos ao redor do vale cercado por mata cerrada e nessa cavalgada encontramos as pegadas dos bandoleiros, que se retiraram para o oeste na direção da montanha gigantesca.

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(*) Olho negro

 

— Allan daqui tencionava seguir para Lynn e de lá para o porto de Humboldt. Com certeza tomou de fato aquele rumo e os bandidos o seguiram! — disse Bernhard visivelmente apreensivo.

— Precisávamos primeiro averiguar se de fato ele chegou a seguir aquela rota. A circunstância de não encontrarmos cadáveres aqui não comprova que os garimpeiros assaltados tenham escapado da morte. Penso que os bandoleiros lançaram os cadáveres no lago.

E era mesmo bem possível que no fundo das águas do Black-eye estivessem agora sepultados aqueles que haviam sonhado com a deusa Fortuna. O demônio do ouro os arrancara talvez do sonho de riqueza, fortuna e bem-estar para arrojá-los à realidade da morte...

— E quem teriam sido os bandoleiros? — perguntou Marshall, indignado.

— O mulato e os dois Morgans que de há muito nos vêm fugindo, embora tenhamos seguido as suas pegadas.

— Mas desta vez eles hão de nos cair nas mãos! — assegurou Sans-ear. — E então não pertencerão a mais ninguém senão a Sam Hawerfield que tem uma velha conta a ajustar com eles!

— Bem, para a frente em sua perseguição!

As pegadas por enquanto não estavam bem visíveis para podermos contá-las; depois, porém, quando chegamos mais embaixo, vimos que cada cavaleiro seguia o seu trilho. Eram vinte. Durante um bom trajeto examinei minuciosamente os vestígios no solo e o resultado a que cheguei foi o seguinte: era uma caravana de dezesseis cavaleiros que tocavam quatro cargueiros pela frente. Portanto, a viagem devia ser vagarosa e poderíamos alimentar a esperança de pilhá-los antes de alcançarem Allan.

Ao meio-dia alcançamos o lugar onde a caravana fizera a sua primeira parada. Continuamos a cavalgar até a noite quando não enxergávamos mais os vestígios. Acampamos então e dormimos algumas horas. Mal rompeu o dia, prosseguimos nas pegadas, e, antes do meio-dia, alcançamos o seu segundo acampamento noturno. Portanto, eles nos levavam uma vantagem apenas de um dia. Até a noite queríamos alcançar a parte extrema do Sacramento, mas em caminho deparamos com um sintoma alarmante. É que as pegadas se haviam dividido. Naquele ponto o rio descreve um arco, no meio do qual nos achávamos agora. As pegadas de seis cavalos de montaria e dos quatro animais cargueiros, desviaram-se para a esquerda e as dos demais prosseguiram pela mesma rota de antes.

— All devils, isto é fatal! Será plano de guerra ou mero acaso? — disse Sam.

— Em relação a nós talvez seja acaso — respondi.

— Mas por que cargas d’água haviam eles de se dividir? — perguntou Bernhard.

— Tudo isso é bastante compreensível — observei. — Os cargueiros que transportavam as presas colhidas pelos bandoleiros no Black-eye, estorvavam-lhes a marcha rápida; por isso foram conduzidos para algum esconderijo seguro e os demais se tocaram com redobrada marcha para a frente a fim de alcançar Allan o mais depressa possível. Combinaram neste caso algum ponto no Sacramento onde depois de saquearem Allan, irão encontrar-se todos para dividir as presas.

— Well, neste caso deixemos que os cargueiros sigam para onde quiserem e galopemos para frente. A minha “Tony” já de há muito que se acha zangada por estarmos fazendo uma viagem de lesma!

— Viagem de lesma?! Arre! Se assim classificas as nossas últimas cavalgadas, não sei o que é viajar apressado! Ao demais, Sam, há aqui outro ponto a considerar: qual dos dois Morgans pretendes para ti?

— Zounds, que pergunta, Carlos! Pois sabes muito bem! Os dois, naturalmente!

— Hum, isto não vai dar certo!

— Por quê?

— Pois não vês que Fred Morgan mandou tocar os cargueiros para ramo diferente do caminho que seguimos? E sabes a quem ele confiou esses cargueiros?

— A quem?

— Naturalmente que a ninguém mais senão ao seu filho!

— É mesmo! Ora, nisso não havia pensado eu? Que faremos agora?

— Qual dos dois preferes apanhar primeiro?

— O velho!

— Bem, se é assim, partamos já e sempre em linha reta.

À noite atingimos realmente a parte alta do Sacramento, em cujas margens acampamos. Pela manhã continuamos sempre rente às pegadas, que estavam bem nítidas. Ao meio-dia, chegávamos a uma planície onde os vestígios dos que perseguíamos eram tão recentes, que eles não deviam se achar a mais de cinco milhas distantes de nós.

Esporeamos os cavalos para alcançarmos quanto antes possível a caravana de bandoleiros. Devíamos chegar tão perto deles que, à noite, nos pudéssemos aproximar, de gatinhas, do seu acampamento. Encontrávamos nos num estado de agitação febril. Tínhamos, finalmente, diante de nós os bandidos que vínhamos perseguindo há tanto tempo, em luta com toda a sorte de peripécias. O meu cavalo galopava velozmente e, ao seu lado, o animal de Winnetou o acompanhava. Que é isso aqui? Pegadas de cem cavalos no mínimo. O solo apresentava vestígios de nele haver sido ferida uma luta. Numa folha verde de um arbusto viam-se mesmo gotas de sangue!

Examinamos bem a zona. À esquerda, havia as pegadas de três cavalos que se dirigiram para a planície, ao passo que um largo trilho feito com cascos de cavalos seguia em linha reta.

Continuamos por este trilho a galope. Os cavaleiros deviam ser indígenas, pois os animais não eram ferrados e, como Allan não podia andar muito longe dali, com certeza defrontara-se com os peles-vermelhas. Não havíamos cavalgado nem uma milha, quando se descortinou diante de nossas vistas uma enorme aldeia indígena.

— Shoshones! — exclamou Winnetou.

— Os índios-serpentes! — acompanhou Sam.

Cavalgamos sem parar rumo à taba.

No meio da aldeia estava reunido um grupo de cem guerreiros e entre eles se achava um cacique. Quando nos viram, abriram o círculo e tomaram de suas espingardas e machadinhas de guerra.

— Ko-tu-cho! — exclamou Winnetou, galopando em direção do cacique como se o quisesse esmagar a patas de cavalo; a um só passo diante dele parou subitamente o animal.

O cacique dos shoshones, não obstante a arriscada prova de equitação realizada por Winnetou, ficou parado e não contraiu nem um músculo da face. Ao reconhecer Winnetou, estendeu-lhe a mão cheio de alegria:

— Winnetou, o cacique dos apaches! Está em festa a taba dos shoshones! Nas cabanas dos guerreiros reinará hoje grande alegria e o coração do cacique vai ter o conforto de uma convivência que tanto aprecia! Oh! Ko-tu-cho estava saudoso por tornar a ver o seu jovem e valente irmão!

— E a mim — atalhou Sam — o cacique dos “serpentes” não conhece mais? Sou o seu amigo Sans-ear!

— Oh! Se não conhece! Ko-tu-cho nunca se esquece dos seus bons irmãos e amigos! Sejam bem-vindos na taba dos nossos guerreiros!

Nisso ouço ali perto um brado lancinante. Virei-me e vi Bernhard ajoelhado diante de uma figura de homem tombada ao solo. Corri para junto dele. Aquele ao lado de quem se achava o nosso companheiro, estava morto, com o peito varado por uma bala. Era um branco e tão parecido com Bernhard, como um irmão se pode parecer com outro. Compreendi tudo! Eu mal resistia ao quadro chocante!

Os demais também se aproximaram. Ninguém conseguiu pronunciar uma só palavra, pois, todos esforçavam-se para sufocar o pranto prestes a rebentar. Bernhard também não dizia uma só palavra. Beijava os cabelos, as faces, os lábios do morto. Enlaçou, depois, o irmão pela cintura e caiu em convulsões. Cerca de uma hora depois, ergueu-se e, esforçando-se por aparentar serenidade, inquiriu:

— Quem o matou?

O cacique dos shoshones respondeu:

— Ko-tu-cho enviara os seus guerreiros ao campo para fazerem exercícios; nisso os guerreiros avistaram três peles-brancas e atrás deles mais catorze em atitude de quem os vinha perseguindo. Quando catorze homens perseguem três apenas é porque os primeiros não são valentes e nobres. Em vista disso, os meus guerreiros galoparam a socorrer os três cavaleiros que vinham na frente. Mas não puderam impedir que os perseguidores fizessem uma carga contra os três peles-brancas e este que aí está foi atingido. Depois os guerreiros prenderam onze dos assassinos e três conseguiram escapar. Este pele-branca, porém, morreu, e nada, pois, pudemos fazer para salvar-lhe a vida. Os outros dois que o acompanhavam estão descansando no leito do cacique.

— Preciso vê-los. Este morto é meu irmão, filho de meu pai — acrescentou, lembrando-se do significado diferente que para os indígenas tem a palavra irmão.

— O meu irmão pele-branca chegou na companhia de Winnetou e Sans-ear, irmãos e amigos dos shoshones, e por isso Ko-tu-cho o atenderá no que pede. Queira acompanhar-me!

Fomos conduzidos a uma grande cabana onde os prisioneiros se achavam amarrados e estirados ao solo. Entre eles estava o mulato, com a cicatriz na face direita. Os dois Morgans não se achavam entre os prisioneiros.

— Que pretendem os meus irmãos peles-vermelhas fazer desses bandoleiros brancos? — perguntei.

— O meu irmão os conhece também?

— Sim! São assassinos que têm a morte de muita gente na consciência!

— Então os meus irmãos de pele-branca queiram julgá-los! Troquei com os demais um olhar de entendimento e respondi:

— Eles mereceram a morte, mas falta-nos o tempo para submetê-los a júri. Confiamos essa tarefa aos nossos irmãos peles-vermelhas.

— Meu irmão faz muito bem!

— Mas onde estão os dois brancos que estavam na companhia do morto?

— Iremos até lá. Queiram os meus irmãos seguir-me!

Fomos levados a uma segunda tenda onde dois homens dormiam; estavam vestidos de tropeiros. Foram despertados, mas as informações que nos prestaram de nada nos adiantaram. Via-se que eram simples serviçais de Allan e que não se achavam em condições de nos fornecer nenhum dado elucidativo sobre todo o desenrolar dos acontecimentos. Voltamos para perto do morto.

Bernhard, nesses últimos meses, havia passado por uma escola áspera; tornara-se tanto física como sentimentalmente mais duro. No entretanto, suas mãos tremiam quando ele se aproximou do morto, para examiná-lo. Retirou dos bolsos tudo o que o irmão trazia consigo. Contemplava minuciosamente todos os objetos que já conhecia e, quando enrolou tudo num lenço e juntou também as duas cartas, beijou-as e sentiu-se atacado de uma crise nervosa. Eu, que me achava ao seu lado, também não pude conter as lágrimas que me rolavam pela face.

Assistiam a cena comovente os shoshones, cujo cacique fazia uma fisionomia de menosprezo quando nos contemplava. Winnetou não suportou aquela atitude e, apontando para nós, esclareceu:

— Não pense o cacique dos shoshones que estes homens são uns fracos, uns covardes. O irmão deste morto combateu com bravura contra os “bandoleiros do deserto” e contra os comanchos. E quanto a esse outro, o meu irmão já o deve conhecer pelo nome: é o célebre “Mão de Ferro”.

Um leve murmúrio correu pela fileira dos shoshones e o seu cacique se aproximou de nós estendendo-nos a mão.

— O dia de hoje será festejado em toda a aldeia dos shoshones. Os meus irmãos serão hospedados em nossas cabanas; alimentar-se-ão de nossas provisões e fumarão comigo o calumet; depois irão assistir aos exercícios dos nossos guerreiros.

— Nós nos consideraremos hóspedes dos irmãos peles-vermelhas, mas não hoje; voltaremos ainda aqui. Agora, porém, confiamos aos nossos irmãos shoshones a guarda do corpo e dos haveres aqui deixados pelo morto, pois partimos imediatamente à procura dos assassinos fugitivos — declarei.

— Sim, deixo aqui o corpo de Allan e não esperarei mais um só segundo! Precisamos capturar os covardes assassinos! Quem me acompanha na perseguição?

— Todos nós, naturalmente! — respondemos em coro. Winnetou e Sam montaram a cavalo. Ko-tu-cho deu uma ordem à meia voz aos seus guerreiros e daí a pouco um deles trouxe-lhe um fogoso corcel arreiado.

— Ko-tu-cho acompanhará os seus irmãos. Os haveres do morto serão guardados na cabana do cacique e as mulheres e filhas de nossas tribos entoarão os cânticos de lamentações junto ao cadáver do pobre moço!

 

CAPTURA DE UM DOS BANDIDOS

Fora realmente uma visita curta e comovente esta que fizemos aos valentes e nobres shoshones. Partimos ao encalço dos bandidos.

As suas pegadas eram bem visíveis. Levavam uma vantagem de mais de duas horas sobre nós.

Os animais, porém, pareciam conhecer o nosso propósito. Corriam com tanta velocidade que produziriam faísca se o solo fosse de pedra. Apenas a montaria de Bob mostrava-se um tanto esfalfada, mas o negro tocava-a com tamanha violência que o animal era forçado a galopar parelho com os nossos.

A metade da tarde já se passara e precisávamos alcançar os fugitivos antes da noite. Assim decorreram-se três horas. Apeei para examinar melhor as pegadas. Os facínoras podiam estar, quando muito, a uma milha de nós.

Tomava de vez em quando o binóculo para olhar o horizonte no rumo das pegadas. Finalmente divisei três pontos que pareciam movimentar-se lentamente para a frente.

— Lá estão eles!

— Para frente então — exclamava Bernhard fora de si, tocando ainda mais o cavalo.

— Parem! Assim não podemos capturá-los; precisamos cercá-los de ambos os lados. O meu animal e o do cacique dos shoshones estão em melhores condições. Eu irei pela direita e Ko-tu-cho pela esquerda, e dentro de vinte minutos os patifes estarão em nossas mãos. Nem perceberão a nossa chegada.

— Uff! — exclamou o cacique dos shoshones, e, como se fosse de mola, tomou logo à esquerda, executando minha ordem. Segui pela direita e em dez minutos havia perdido de vista os meus companheiros, embora eles também cavalgassem com velocidade. Eu já devia me achar paralelamente aos perseguidos. Quinze minutos depois, atalhei pela esquerda e, com o auxílio das lentes, vi os três assassinos por trás de mim e, mais adiante, o cacique dos shoshones atalhando pela esquerda. Ele galopou na direção dos malfeitores e eu fiz o mesmo.

Não tardaram a nos avistar. Olhando para frente, depararam comigo, e para trás viram-se seguidos pelo cacique.

Continuávamos, o cacique de um lado e eu do outro, a cavalgar pelos flancos de encontro aos bandidos que já estavam bem perto. Nisso, um deles, em quem reconheci Fred Morgan, assestou a espingarda e desfechou um tiro contra Ko-tu-cho; no mesmo momento, o cacique e mais o cavalo tombaram no chão. Julguei que o tiro houvesse morto um dos dois, mas me enganara, pois, um segundo depois, o cavaleiro galopava com mais garbo ainda e sacava da machadinha de guerra, a terrível arma em que os indígenas são tão treinados. Portanto, fora um dos estratagemas nos quais os índios são tão exercitados. Numa circunstância dessas, uma leve pressão das coxas sob o lombo do animal basta para este se atirar ao solo levantando-se em seguida. Nesse meio tempo a bala sibilou por sobre a cabeça de ambos.

Quando me aproximei, Ko-tu-cho já havia derrubado um e investia contra o outro, ao passo que eu avancei como um leão contra Fred Morgan. Queria apanhá-lo com vida e não prestei atenção ao fato de estar ele armado de espingarda de dois canos, um dos quais ainda estava carregado. Ele assestou a arma contra mim; mas como o seu cavalo corcoveasse, o tiro veio de raspão, furando-me apenas a manga do jaquetão de couro.

— Hurrah! Aqui está “Mão de Ferro”! — bradei.

Atirei o laço, o meu animal retrocedeu a galope; senti um arrancão e, olhando para trás, vi que a laçada pegara o bandido pelo tronco imobilizando-lhe ambos os braços. Ao mesmo tempo vi Sam atingir o local com os dois companheiros. O terceiro salteador descarregou a espingarda contra Bernhard, mas não foi bem sucedido: caiu atingido pelo tiro de Sans-ear e pela machadinha do cacique.

Apeei. Finalmente, havíamos apanhado Fred Morgan! Este perdera os sentidos em virtude da queda do cavalo, quando a laçada o segurou. Tirei-lhe o meu laço e o amarrei com o seu. Nisso, os dois companheiros se aproximaram do assassino. Bob foi o primeiro a apear. Puxou da faca e disse:

— Oh! Bob vai mata ben devagarinho salteadô infame qui mato meu patrão e mestre Allano!

— Pare! — exclamou Sam segurando-lhe a mão. — Este homem me pertence.

— Os outros estão mortos? — perguntei.

— Todos dois — respondeu Bernhard, com o sangue a escorrer de sua coxa direita.

— Está ferido!

— Apenas de raspão.

— Mesmo assim é grave; temos ainda uma longa cavalgada a fazer, pois precisamos seguir os que conduziram os cargueiros. Que faremos de Morgan?

— Isto é comigo! — disse Sam. — Pertence-me e a mim compete justiçá-lo. Vou entregá-lo a Bernhard e Bob, para conduzi-lo à aldeia dos shoshones até a nossa volta. Bernhard está ferido, precisa velar o corpo do seu irmão; Bob ficará com ele. Creio que nós os quatro somos mais do que suficientes para liquidar com a outra parte dos patifes.

— O plano é bom, para frente, pois!

Morgan foi cuidadosamente amarrado ao seu cavalo e conduzido à taba por Bernhard e Bob. Nós esperamos ainda um pouco para que os animais descansassem e pastassem.

— Não devemos demorar muito — ponderei. — Precisamos aproveitar o resto do dia enquanto ainda enxergamos as pegadas para ganharmos terreno.

— Para onde pretendem os meus irmãos peles-brancas seguir?

— Para o rio Sacramento, entre os montes S. João e S. José.

— Então, estejam descansados. O cacique dos shoshones conhece palmo a palmo o caminho que conduz para lá. Não temos, pois, necessidade de seguir pegadas e assim cavalgaremos à noite. Deixe os animais pastar sossegadamente.

— Não devíamos ter mandado aquele Morgan para a taba antes de submetê-lo a um interrogatório — disse Sam.

— Isso faremos mais tarde — respondi — aliás, poderemos muito bem prescindir desta formalidade. Será executado sem interrogatório e outras delongas. A sua culpa está mais do que dez vezes comprovada.

— Mas, ao menos podíamos saber dele onde estão os outros com os cargueiros!

— Psiu! Julgas por acaso que ele nos teria dito alguma cousa?

— Talvez sim.

— Não. Nada o faria confessar o local onde se acham o filho e os haveres roubados; ele sabe muito bem que com isso não melhoraria a sua sorte.

— Meu irmão Carlos tem razão! — confirmou Winnetou. — Além disso, os olhos dos peles-brancas e dos dois peles-vermelhas são bastante aguçados para descobrir o paradeiro dos ladrões e assassinos.

— A quem procuram os meus irmãos? — perguntou o cacique dos shoshones, fazendo uma exceção aos seus hábitos indígenas de nunca se mostrarem curiosos diante de estranhos. Na ocasião ele se achava no meio de homens em quem confiava e por isso talvez resolvera abandonar a sua proverbial reserva.

— O resto do bando de salteadores chefiados pelo prisioneiro.

— Quantos ainda faltam?

— Seis.

— A estes os meus irmãos matarão, um a um. Nós os encontraremos e os conduziremos para junto do outro.

Antes de anoitecer e depois de haverem os animais pastado bastante, partimos guiados pelo cacique dos shoshones que ia à frente. Cavalgamos durante toda a noite e ele demonstrou conhecer de fato aquele caminho palmo a palmo. A vereda era cortada por savanas, vales, montanhas, etc. Pela manhã, atingimos o vale do rio Sacramento.

Descemos pelo mesmo e mais adiante deparamos com uma casa de madeira, rebocada de barro, em cuja porta se lia o convidativo letreiro “Hotel”. O proprietário do estabelecimento fora feliz na escolha do local para se estabelecer; era um ponto de muito movimento e a casa freqüentadíssima. Defronte do hotel achavam-se paradas muitas carroças e carretas e inúmeros animais de montaria que estavam amarrados aos postes e árvores; o interior da casa parecia não comportar os freqüentadores todos, pois haviam sido colocadas algumas mesas do lado de fora, as quais se achavam também tomadas.

— Vamos entrar para colher algumas informações? — perguntou Sam.

— Ainda tens nuggets para pagar Ale de Burton, em Staffordshire? — retruquei-lhe rindo.

— Sim, ainda tenho alguns daquela qualidade.

— Então, entremos!

— Entrar, não; chegaremos apenas até lá para ver se conseguimos um lugar do lado de fora. Nada me faz tanto bem como um punhado de ar puro. Não suporto o ambiente viciado de um botequim.

Apeamos, amarramos os nossos cavalos e sentamo-nos no interior de uma armação de madeira a pique, com paredes apenas de um metro de altura. Assim podíamos aspirar ali o ar puro e ver o que se passava do lado de fora. O compartimento que trazia o pomposo nome de “varanda”, era atendido por um garçom solícito que logo veio perguntar o que desejávamos beber.

— Cerveja. Quanto custa?

Ah! Sam foi agora mais precavido do que daquela vez em Yellow-water-ground.

— Tanto Porter como Ale, meio dólar.

— Então sirva-nos Porter.

 

A PRISÃO DE PATRIK MORGAN

Ele nos trouxe quatro garrafas daquela cerveja, e, apesar de achar o garçom afobado, às voltas com a freguesia, Sam ia começar as suas indagações, quando olhando eu casualmente para o lado de fora, deparei com alguma cousa que me obrigou a fazer um leve aceno para o meu companheiro desistir das indagações. Descendo por um vale adjacente, chegavam seis cavaleiros trazendo dois deles quatro animais cargueiros. O que vinha na frente não era outro senão Patrik Morgan. Chegaram ao hotel, amarraram os animais e sentaram-se do lado de fora, bem debaixo do nosso avarandado, numa posição em que não nos podiam ver. Melhor não poderíamos desejar. Assim conseguiríamos ouvi-los de nossa mesa sem sermos importunados!

Mas porque estavam os cargueiros aliviados das cargas que haviam transportado? Evidentemente, haviam guardado tudo nalgum esconderijo e agora se dirigiam ao ponto combinado para o encontro com os companheiros.

Mandaram vir aguardente e começaram a palestra que ouvíamos toda, palavra por palavra.

— Acha que encontraremos logo o “capitão” e o seu pai? — perguntou um deles.

— Creio que sim. Estavam em condições de cavalgar mais depressa do que nós e a eliminação daquele Marshall deve ter sido tarefa facílima. O joalheiro só tinha dois peões consigo.

— Mas que homem imprevidente! Conduzir consigo tantos valores e viajar apenas com dois tropeiros!

— Tanto melhor para nós! Ele parece que sempre foi um sujeito imprevidente ou mais do que isso — leviano, do contrário não teria jogado fora aquele plano de viagem que organizou em Yellow-water-ground. Mas, com mil diabos, que é aquilo?

— Quê?

— Mas olhem para aqueles quatro cavalos ali amarrados!

— Três possantes corcéis e o quarto um animal originalíssimo. Que homem idiota utilizará um miserável matungo daqueles para montaria numa zona perigosa como esta?

Sam, ao ouvir estas palavras, cerrou os punhos.

— Pois estás enganado. Aparentemente pode ser um miserável matungo, mas trata-se de um dos mais afamados cavalos que têm cruzado o oeste bravio. Sabem a quem pertence?

— A quem?

— A Sans-ear.

— Com mil demônios! Realmente dizem que este tem por montaria um cavalo parecido com um bode.

— Quer dizer que aquele indivíduo se acha aqui no hotel. Esvaziem os copos! Já tive de uma feita um encontro com ele e não desejo ser reconhecido agora.

— Mas desta vez não me escaparás! — sussurrou Sam. Os seis bandidos montaram e continuaram vale abaixo.

— São aqueles os homens em cujo encalço andamos — declarei ao shoshone. — Os meus dois irmãos peles-vermelhas irão à frente e eu os seguirei a uma pequena distância. Em seguida os cercaremos usando do mesmo estratagema com que capturamos os outros bandidos, nas proximidades da sua taba.

— Uff! — fez o cacique, e se ergueu num salto de tigre. Ele e Winnetou montaram imediatamente a cavalo, enquanto Sam pagava as cervejas que eram, de fato, boas; depois cavalgamos sempre na retaguarda dos dois caciques, mantendo todos uma posição que impossível seria aos bandoleiros nos avistar, no caso de olharem para trás. O solo se desenvolvia cada vez mais em campina e, quando atingimos um ponto em que não havia mais uma elevação do terreno ou um arbusto para nos encobrir dos perseguidos, resolvemos efetuar o ataque, fazendo galopar os cavalos a toda velocidade. Alcançamos os celerados antes que supusessem que a cavalgada se dirigia contra eles. Depois de descrever o arco, Winnetou e Ko-tu-cho pararam bem defronte deles, ao mesmo tempo que nós.

— Good day, mister Meercroft — saudou-o Sam. — Esses animais ainda são os mesmos que roubaram aos comanchos?

— ‘s death! — praguejou o facínora, agarrando rapidamente a espingarda para atirar; foi, porém, arrancado do cavalo, antes que chegasse a bater o gatilho: Com o laço de Winnetou foi Patrik imediatamente amarrado: estava aprisionado, finalmente. Como pintos à aproximação do gavião, os demais cinco salteadores se debandaram e saíram correndo em fuga para diferentes rumos. Os dois caciques fizeram fogo contra eles e iam sair-lhes no encalço.

— Parem, deixem-nos! Já aprisionamos o principal salteador. Os outros não nos interessam tanto!

Os companheiros, porém, não me obedeceram logo e mais dois tiros foram descarregados, sendo que o último por Ko-tu-cho que ia a cavalo.

— Mas o que estão fazendo?! — trovejei a Sam. — As suas pegadas nos teriam conduzido ao ponto de encontro, primeiro, e, depois, ao esconderijo, onde estão guardados os valores roubados!

— Este Morgan será obrigado a nos dizer!

— É quase certo que não arrancaremos dele uma só palavra, neste sentido.

Daí a pouco vimos que eu tivera razão. Apesar de todas as ameaças, Patrik nada absolutamente nos esclareceu. O ouro pelo qual tanta gente foi obrigada a dar a vida, estaria perdido nalguma caverna da mata, onde talvez jamais alguém encontraria.

Amarramo-lo ao cavalo, tal qual fizéramos com o pai, e, para não passar pelo hotel, atravessamos o rio Sacramento num ponto onde era vadeável, atingindo logo as montanhas do outro lado.

Também, durante todo o caminho, mau grado os nossos esforços, o prisioneiro não pronunciou uma só palavra. Somente quando atingimos a aldeia dos shoshones é que ele, ao avistar-se com Bernhard, proferiu uma blasfêmia obcena através de suas densas barbas em desalinho. Levamo-lo para a cabana, onde ainda se achavam os demais prisioneiros. Também o seu pai lá estava amarrado.

— Mr. Morgan, aqui apresento-lhe o seu dileto filho, do qual já devia estar com muitas saudades! — disse-lhe eu.

O velho fulminou-me com olhares de raiva, mas não disse uma palavra. Já estava prestes a anoitecer quando chegamos à aldeia; portanto o júri para julgar os prisioneiros tinha que ser adiado para o dia seguinte. Como hóspedes de honra do cacique Ko-tu-cho, fizemos a nossa refeição com ele em sua cabana e fumamos depois o calumet. Depois disso, cada um de nós se dirigiu para a cabana que lhe foi destinada, a fim de repousar.

 

A MORTE DOS CELERADOS

Adormeci logo. As lutas desses últimos dias haviam-me fatigado sobremodo. Aqui na taba de uma tribo amiga eu podia descansar sossegadamente, o que por certo não sucederia se estivesse dormindo na campina. Mas... era sonho ou realidade? Eu me achava em luta com muitos vultos, que me haviam cercado ameaçadoramente; a todos eu derrubava, mas os inimigos às dúzias levantavam-se do solo aumentando o efetivo. O suor me escorria da testa, eu via chegar a minha derradeira hora e pela primeira vez me senti tomado da ânsia da morte. Era sonho, e o meu estado de agitação acordou-me logo; ainda meio acordado, percebi do lado de fora um infernal alvoroço.

Pulei do leito, tomei das armas e, ainda não bem vestido, corri para fora. Os prisioneiros, por um estratagema que nem mais tarde se conseguiu descobrir, se haviam desprendido das cordas e tentado subjugar a guarda, felizmente numerosa, que os vigiava.

De todas as cabanas surgiram vultos bronzeados armados de espingardas uns, de faca outros e de machadinha muitos. No momento chegava também Winnetou que, à luz da fogueira da guarda, avistara a cena. Cerquem a aldeia — trovejou uma voz de comando no meio da balbúrdia, ao mesmo tempo que uns indígenas a obedeciam.

Reconheci que minha participação na luta seria desnecessária. Os prisioneiros não possuíam armas de fogo e os nativos eram em número de dezesseis mais do que eles. Também quando ouvi a voz de Sam no meio do caos, fiquei descansado. E realmente, daí a minutos, ressoou o brado de morte do último dos prisioneiros. Reconheci-o de longe: era Fred Morgan que tombava cem a faca de Sam cravada no peito.

Sam abandonou em seguida o morto e veio caminhando lentamente para cima. Ao avistar-me, perguntou:

— Carlos! Por que não estiveste na luta?

— Porque julguei que, para vencê-los, tu e os outros eram mais do que suficientes.

— E tinhas razão! Mas se eu mesmo não estivesse sentado diante da cabana dos prisioneiros, eles teriam fugido com facilidade. Estive a ouvi-los com o ouvido encostado à parede da cabana; percebi então um ruído anormal e preveni a guarda para ficar mais atenta.

— Fugiu algum deles?

— Nenhum! Contei-os. Mas eu esperava ajustar contas com os Morgans de uma maneira bem diferente!

Ajoelhou-se na minha frente e fez na espingarda os dois entalhes há tanto tempo ansiosamente desejados.

— Bem, agora os meus estão vingados, Carlos! É me indiferente daqui por diante, morrer hoje, amanhã ou depois. A minha missão está cumprida.

— Sam, como cristãos, acrescentaremos a tudo isso essas palavras: Que Deus seja um juiz indulgente para com os criminosos!

— Well, Carlos! O meu ódio não os acompanha à sepultura. Perdôo-os agora mesmo!

E a passos lentos entrou na sua cabana.

No dia seguinte efetuou-se uma triste solenidade: o enterro de Allan Marshall. Devido à falta de um caixão fúnebre, o seu corpo foi colocado em várias peles de búfalo costuradas. Os shoshones haviam aberto uma sepultura que revestiram internamente de uma parede de pedras, onde o cadáver foi colocado. Depois esta parede foi levantada mais, até constituir uma pirâmide que se erguia a alguns metros do solo. No topo da pirâmide, coloquei o símbolo da salvação, uma cruz trabalhada em madeira tosca, dada à falta de ferramentas adequadas. Bernhard pediu-me que fizesse algumas orações fúnebres e rezasse um Padre-Nosso. Fi-lo profundamente comovido e notei, satisfeito, como um bom cristão, que todos os índios, que com fisionomias tristonhas assistiam às cerimônias, formando um grande círculo ao redor do túmulo, haviam seguido o nosso exemplo e se achavam de mãos postas, ouvindo as orações com religioso interesse.

Findas as cerimônias fúnebres, ficamos ainda uma semana inteira como hóspedes dos shoshones. Distraíamo-nos tomando parte em caçadas, assistindo aos exercícios dos guerreiros e a outras diversões a que aquela tribo se entregava. Depois disso, voltamos para S. Francisco.

 

O parque de Yellowstone

 “O Senado e a Câmara dos Representantes da República dos Estados Unidos da América do Norte decretam:

 

Artigo 1.° — A partir da data deste decreto fica interditado aos estabelecimentos de núcleos coloniais, a alienação de qualquer porção da zona territorial compreendida entre Montana e Yellowstone-Rivera, pretexto de exploração de jazidas ou de qualquer outro intento, devendo toda aquela extensão ser transformada num parque destinado a logradouro público. Toda a pessoa que, contrariando este decreto, ali se estabelecer, será punida com os rigores da lei e expulsa sumariamente.

Artigo 2.° — O parque será incorporado ao patrimônio do Ministério do Interior que fica autorizado a nele fazer as instalações necessárias ao fim a que se destina, bem como cuidar de sua conservação, uma vez concluída a obra.

Artigo 3.° — Revogam-se as disposições em contrário.”

 

Ao ter conhecimento desse decreto, fiquei agradavelmente impressionado com o gesto magnânimo do Congresso Norte-Americano, que, com a promulgação da referida lei, além de pôr fim às explorações desenfreadas e à sede de lucros de uma malta de especuladores inescrupulosos, fazia um grande benefício ao povo de que era representante.

Milhares de pessoas, certamente, ao lerem esse decreto, não compreenderam devidamente o seu grande alcance. Muitos até acharam ridícula a resolução legislativa reservando 9.500 quilômetros quadrados de uma área territorial inculta, serpenteada de inacessíveis montanhas rochosas cujos cumes pareciam querer galgar os céus; de extensas e intermináveis matas virgens; de lagos imensos cuja profundidade parecia estar à espera de vítimas, a fim de destinar a um parque de diversões e retiro para o povo. O futuro, porém, se encarregaria de comprovar, como de fato já o tem feito, que se tratava de uma medida de patriotismo e que revelava o carinhoso afã com que cuidavam do bem público, afã de que não se encontra exemplo em parte alguma do mundo. A resolução foi, pois, digna de aplausos e terá durante séculos afora a gratidão imorredoura de milhões e milhões de pessoas.

O parque de Yellowstone fica situado dentro de uma área cheia de maravilhas que já hoje adquiriram reputação mundial. Dificilmente será descoberta uma área igual no mundo. As primeiras notícias lendárias a respeito desse parque, recebeu-as o general Warren, em 1810, o que o levou a equipar uma expedição para explorar a zona. Esta expedição, porém, não logrou chegar ao objetivo. Só dez anos mais tarde é que outros exploradores audazes conseguiram levantar pequena parte, apenas, do véu que encobria aquelas maravilhas, cujas notícias pasmaram o mundo inteiro. No verão de 1871, o professor Haydn conseguiu percorrer toda a região, e o seu relatório, sóbrio embora, despido de quaisquer atavios, impressionou de tal modo os membros do congresso que os levou a decretarem a referida lei.

Do outro lado das campinas, distantes ainda das elevações das Black Hills, se erguem as formidáveis montanhas Rochosas, cujos cumes parecem perder-se no céu. Dir-se-ia que aqui trabalharam não as mãos, mas os punhos cerrados do Criador. Que ciclopes seriam capazes de abrir na rocha aqueles formidáveis bastiões? Que titãs conseguiriam elevá-los até bem perto das nuvens? Quem poderia cobrir com eternas neves e blocos de gelo aqueles ápices alterosos? Não; aqui o Criador erigiu um monumento ao seu poder prodigioso, monumento que não poderia ser mais possante e impressionante!

Lá por detrás daquelas inexpugnáveis muralhas, borbulha e fumega ainda hoje água fervente, saída do seio da terra; ali, é uma tênue camada da crosta terrestre que racha à pressão dos sopros, vindos do interior da terra, acolá, se ouve o troar dos vapores sulfúricos desprendidos do solo, troar semelhante aos de uma batalha de artilharia. O mundo subterrâneo, de minuto em minuto, abre as suas presas para vomitar o fogo digerido no seu ventre e ingerir com sua goela bramidora as criaturas que se acham sobre a crosta terrestre.

Aqui, todo o passo é dado com perigo de vida. O pé está suscetível de fraturar-se juntamente com a crosta terrestre; o viandante fatigado pode a qualquer momento ser presa das cataratas chamejantes, que joguem para os precipícios blocos enormes de terra, juntamente com o viajor que nele estiver acampado. Mas os campos da morte dessa zona são continuamente atravessados por milhares de pessoas que procuram nas suas fontes termais e nos seus ares ozonizados, lenitivos para os seus sofrimentos físicos.

Uma questão de negócios chamara-me a Hamburgo, onde me encontrei com um conhecido, cuja presença me veio reviver todas as minhas recordações. Ele era de S. Luís, e, nos banhados do Mississipi, efetuáramos juntos muitas caçadas. Tratava-se de um homem rico, muito rico mesmo, que me ofereceu passagem gratuita, desde que eu lhe quisesse proporcionar a alegria de acompanhá-lo até S. Luís. Naquele instante, a nostalgia das campinas pareceu convulsionar-me o corpo; aceitei o oferecimento e telegrafei logo para casa, pedindo que me mandassem as armas e todo o meu equipamento para Hamburgo. Cinco dias depois, saíamos do Elba, singrando em direção ao grande oceano.

Chegados ao nosso destino, embrenhamo-nos durante algumas semanas nas matas do baixo Missouri; depois ele teve que voltar e eu continuei rio acima, rumo de Omaha City, para, de lá, com o trem da “Pacific”, continuar para o oeste bravio.

Eu tinha razões para tomar exatamente aquela rota. Conhecia as montanhas das nascentes do rio Frazer até o Hell Gate Pass, do Paso del Norte até o deserto do Mapimi. O trecho, porém, compreendido entre o Hell Gate Pass até o Nordpark, eu não conhecia. E justamente aí é que ficam situados os mais interessantes trechos do grande parque: os três-tritões, o Windriver e o Paso del Sul, e as principais nascentes de Yellaw-stone, rio das Cobras e Columbia.

Naquela zona, além do índio de passos lentos e indecisos e do escoteiro fugitivo, ninguém mais ousou pisar, o que constituía mais uma razão para que de mim se apoderasse o desejo incontido de penetrar nas inóspitas paragens, onde existiam, segundo lendas indígenas, precipícios e cavernas onde morava o Mau Espírito.

Naturalmente que isso não foi tão fácil de empreender como, agora, de relatar. Quantos preparativos estafantes e complexos fazem os suíços antes de empreender a subida dos Alpes! E que representa aquela empresa ante a que se aventura o homem do oeste, sozinho e isolado, confiando tão somente nas suas próprias forças e na eficiência da sua espingarda, a ir ao encontro de perigos de que o displicente turista europeu não faz a menor idéia? Mas são esses perigos precisamente o que encanta e atrai os homens do oeste. Os seus músculos parecem ser de ferro e os seus tendões de aço; o seu físico não conhece cansaço e esgotamento, e o seu espírito, depois de longos e rigorosos exercícios adquire uma energia e agudeza tal; que, mesmo nos momentos de maiores perigos, encontra um meio de salvação. Daí não se adaptarem esses homens ao meio civilizado, onde não podem sequer desenvolver as suas atividades: o seu lugar é lá fora nas savanas bravias, lá nos fatídicos precipícios das montanhas, onde quanto mais os ameaçar o perigo, tanto mais eles se sentirão integrados no seu elemento; e quanto mais aumenta a coragem, tanto mais cresce a confiança em si mesmos, e tanto mais se arraiga neles a convicção de que, isolados e sós, a sua ação é guiada por uma força muito mais forte do que todas as violências terrenas.

No que se refere a mim, posso afirmar que me achava preparado para a empresa a que me propusera. Faltava-me apenas um elemento, sem o qual impossível se tornaria manter-me no dark and bloody grounds: um cavalo resistente e de confiança. Mas essa falta não me dava que pensar. O velho Walah, que montara até Omaha, eu vendera quando tomei o trem, na convicção de que, assim que me fosse necessário, encontraria um bom animal para comprar.

Antigamente havia naquela linha férrea trechos que o trem só podia andar até certo ponto. Por isso, em muitos lugares viam-se turmas de trabalhadores ocupados em consertar os trilhos, pontes e viadutos, a fim de restabelecer a linha. Aquelas turmas acampavam em barracas armadas ao longo da linha, desde que não trabalhassem nas proximidades de algum núcleo colonial, que, naquela época, no oeste bravio, nasciam como cogumelos no campo. Os acampamentos, em geral estavam dotados de forti-ficações provisórias. Esta medida era de grande necessidade, devido aos índios que consideravam as construções de linhas férreas como um atentado aos seus direitos, tudo fazendo para impedi-las.

Mas outros inimigos perambulavam também pela zona, espalhando os terrores entre os ferroviários, inimigos bem mais ferozes do que os mais selvagens aborígines.

É que as campinas andavam infestadas de indivíduos perversos, recrutados entre os elementos segregados do mundo civilizado, elementos que fracassaram na vida, que nada mais esperavam dela senão aquilo que poderiam obter no oeste bravio, praticando toda espécie de crimes. Esses elementos se congregam ora para este, ora para aquele fim criminoso e são mais temíveis do que os mais terríveis indígenas. Ao tempo das novas construções ferroviárias, os salteadores haviam voltado, de um modo muito especial, as suas vistas para os numerosíssimos núcleos coloniais que se estabeleciam ao longo das vias férreas. Não é de admirar, pois, que o governo, por fim, mandasse fortificar esses núcleos, aconselhando os colonos, que se entregavam aos trabalhos agrícolas e pastoris, que se armassem até os dentes.

Devido à ação desenvolvida pelos facínoras, que, em geral, consistia em destruir uma parte da linha a fim de fazer o trem parar para saqueá-lo, os americanos denominaram-nos Railtroublers (interruptores de trens) ou melhor “salteadores de trem”. Todos estavam com os olhos voltados para eles, de modo que já não conseguiam empreender os seus assaltos senão reunidas as diferentes quadrilhas numa só, o que os tornava suficientemente numerosos. Além disso, a indignação dos colonos e ferroviários contra os salteadores de trens era tanta, que todo aquele que lhes caísse nas mãos, não escaparia de ser linchado sem mais formalidades. Os bandidos também massacravam sem distinção de idade e sexo, não merecendo, por isso, que se tivesse contemplação com eles.

 

UMA PERSONAGEM SINGULAR

Ao meio-dia tomei o trem e deixei Omaha. Entre os passageiros não havia um sequer que me tivesse despertado mais que uma atenção passageira. Somente no dia seguinte, às doze horas, embarcou em Fremont um passageiro que me chamou logo a atenção. Como ele tivesse tomado lugar num banco próximo ao meu, tive oportunidade de observá-lo bem.

O seu aspecto tinha algo de cômico; um observador superficial não conteria talvez o riso diante do homem. Eu, porém, estava já habituado a encontros daquela natureza e mantive-me em atitude circunspeta. Não me seria possível julgar o homem sem primeiro conhecê-lo bem. Os leitores ainda devem estar lembrados do modo errôneo com que julguei Sam Hawkens, quando foi do nosso primeiro encontro na casa daquela família de cujos filhos eu era preceptor! O passageiro era de estatura baixa, mas em compensação tão obeso que quase se assemelhava a uma bola. Cobria-se com um casacão de pele de ovelha, cuja parte áspera tinha voltada para cima. Esta parte áspera outrora tivera lã, agora já quase toda caída, havendo um único floco no meio como um oásis no Saara. Antigamente era possível que aquele casacão se ajustasse ao corpo do cavalheiro, mas encolhera-se de tal modo à ação da neve, chuva e calor, que não descia mais nem ao meio da coxa; as mangas mal chegavam ao cotovelo. Debaixo do capote vestia um jaquetão de flanela vermelha e um par de calças de tecido que, por certo, em outros tempos, fora de cor preta, mas que agora possuía todas as cores do arco-íris e parecia servir ao dono tanto de peça de vestuário, como de lenço, toalha de mesa, de rosto e de esfregão de cozinha... Por baixo dessas calças antediluvianas via-se o tornozelo nu e azulado pelo frio; calçava, por fim, uns sapatos que podiam durar toda a eternidade. Eram fabricados de couro de boi, tendo aos solados pregos tão fortes que com eles poder-se-ia esmagar um crocodilo. À cabeça usava um chapéu que já não possuía mais abas. Na região a que outrora se dava o nome de cintura, mas que agora se desenvolvia parelha com o ventre, estava apertado um pedaço de chalé que já perdera a cor; aí estavam metidas uma pistola antiquíssima e uma faca de campanha. Ao lado dessas armas, pendiam a patrona, a bolsa de fumo, um pequeno espelho, que na Alemanha se compra nas feiras anuais por dois pfenigs, um cantil, quatro ferraduras patenteadas, as quais se parafusavam aos cascos dos cavalos para tirar-se novamente nos acampamentos noturnos e nos períodos de folga, e, finalmente, um pacote que não pude descobrir o que continha, senão posteriormente: nada mais que apetrechos completos de barba.

O que mais se admirava naquele homem era o rosto, que estava tão liso como se ainda há pouco houvesse saído de um salão de barbeiro. As maçãs do rosto eram tão salientes que o nariz arrebitado quase desaparecia no meio delas e os dois olhinhos vivazes encontravam dificuldade em olhar, pois estavam a bem dizer encobertos. Sempre que ele abria a boca, mostrava duas fileiras de dentes alvíssimos que logo suspeitei serem postiços. No queixo tinha uma enorme verruga que contribuía para dar ao seu possuidor aspecto ainda mais jocoso. Estava sentado na minha frente com uma velha espingarda entre as pernas cruzadas; a espingarda era parecida com o porrete de fogo que usava o meu antigo companheiro de savana Sam Hawkens.

De repente, com um simples good day, o homem tomou lugar ao meu lado, parecendo não se preocupar mais comigo daí por diante. Só uma hora mais tarde, perguntou-me se eu permitia que ele fumasse o seu cachimbo ao meu lado. Este seu gesto caiu-me na vista, pois o verdadeiro caçador das campinas não cogita de quem está ao seu lado quando lhe toca estar à vontade e fumar o seu cachimbo.

— Fume à vontade! — respondi-lhe. — Vou fazer-lhe até companhia. Aceita um dos meus charutos?

— Obrigado, sir! — respondeu. — Esta droga a que dão o nome de charuto é demasiadamente distinta para um homem como eu. Prefiro o meu inseparável cachimbo.

Ele trazia pendente ao pescoço, conforme hábito dos escoteiros, o seu cachimbo curto e sarrento. Quando o encheu de fumo, apressei-me a dar-lhe a caixa de fósforos; ele, porém, meneando a cabeça negativamente, levou a mão ao bolso e de lá tirou o punks, usado nas campinas para acender fogo.

— Também constitui uma descoberta demasiadamente fina para as savanas esses tais de fósforos. Lá eles não têm grande utilidade — observou o homem. — Além disso, não devemos nos habituar a certas comodidades para depois não estranharmos o nosso ambiente das campinas.

Com essas palavras o diálogo foi encerrado e ele nem se mostrava inclinado a entabular nova conversação. Do seu cachimbo exalava um odor semelhante ao produzido por folhas de nogueira queimadas, despertando com isso a atenção de todos os passageiros. Assim chegamos à estação de Nordplatte, no ponto onde confinam as correntes do Nord e Suedplatte. Aqui ele desceu por um momento, parecendo ter ido a um dos outros vagões, onde havia qualquer cousa que o interessava muito. Vi depois que era o vagão de animais e que lá estava um cavalo que devia ser o de sua montaria.

Quando voltou e o trem se pôs novamente em movimento, observou o mesmo mutismo de antes e só à tarde, quando alcançamos a estação de Black Hills, perguntou-me:

— O senhor fará baldeação aqui e seguirá para Denver, sir?

— Não — respondi-lhe. — Continuarei no mesmo trem.

— Well, então seremos companheiros de viagem.

— Vai viajar muito neste trem da “Pacific”? — perguntei.

— Hum! Sim e também não... conforme me der na veneta. E  o senhor?

— Pretendo viajar apenas até Ogden City.

— Ah, pretende conhecer a cidade dos Mormons?

— De passagem, sim; depois, porém, pretendo subir a montanha do Yellowstone Park para contemplar as suas maravilhosas belezas naturais.

O meu interlocutor mediu-me com um olhar incrédulo e ponderou.

— É uma excursão que só consegue realizar um arrojadíssimo homem do oeste. Tem alguma comitiva pelo caminho a que o senhor pretende se encorporar?

— Não.

Foi então que os seus olhinhos me fitaram admirados e dos seus lábios brotou um sorriso irônico. Perguntou:

— Mas sozinho pretende subir aos três tritões?! Não sabe que o parque é atravessado por sioux e ursos cinzentos?! Já ouviu algum dia dizer o que significam os sioux e o urso cinzento?

— Creio que sim.

— Ah! Hum! Permita que lhe pergunte pela sua profissão?

— Pois não! Sou Writer.

— Writer? Quer dizer escritor? Hum! Então é fazedor de livros?

— Isto mesmo.

Foi quando a sua fisionomia se tornou completamente risonha. Tal qual se dera daquela feita com Sans-ear, ele achava graça de haver um escritor concebido a idéia de bem sozinho e sem o auxílio de espécie alguma, galgar a parte mais perigosa das montanhas Rochosas.

— Está muito bem! — disse rindo-se. — Pretende então escrever uma obra a respeito dos três tritões, meu caro mestre?

— É possível que sim.

— Já viu algum dia um livro que trouxesse a figura dum indígena e de um urso cinzento?

— Já li diversos — respondi, com fisionomia grave.

— E só por isso julga que está em condições de atravessar uma região inculta e cheia de peripécias como aquela?

— Creio não ser coisa do outro mundo.

— Aquele embrulho ali junto de sua bagagem é a sua espingarda?

— Ela mesma.

— Vou dar-lhe um bom conselho, sir! Desembarque na primeira estação e no primeiro comboio, que passar, volte para casa! É um homem robusto e corpulento, mas não tem aparência alguma de estar em condições de poder alvejar com segurança nem um esquilo, quanto mais um daqueles ursos cinzentos, os maiores espécimes da raça, até hoje vistos no mundo. As leituras emaranharam-lhe o cérebro. Não vá atrás do que aquela classe de gente, que nem sabe para que bandas ficam as savanas, escreve! Seria uma grande lástima o senhor, moço e cheio de vida, morrer de convulsões ao deparar com uma jaguatirica. Entre as obras que manuseou, figura, sem dúvida, alguma do escritor Cooper?

— Li vários trabalhos seus.

— Logo vi! Tudo aquilo não passa de pura fantasia. Já ouviu falar também de corredores das campinas que se tornaram célebres pelas suas aventuras?

— Li, sim — respondi modestamente.

— De Winnetou, “Mão de Fogo”, “Mão de Ferro”, do gorducho Walker ou de Hilgers, um caçador alto como o gerivá?

— Conheço-os a todos através do nome e de suas façanhas.

— Evidentemente esses livros são perniciosos, porque contagiam os espíritos irrequietos. Tudo neles é empolgante, os lances emocionantes se sucedem numa seqüência infinita. Mas, perdoe-me a franqueza, mestre, tenho dó do senhor! Esse Winnetou é um cacique da tribo dos apaches que, realmente, será capaz de lutar com mil contendores; o “Mão de Fogo” possui um tiro tão certeiro que acertará, uma a uma, as moscas todas de um enxame, e “Mão de Ferro” não erra um tiro e com o seu punho, que lhe valeu o cognome, reduz as cabeças mais possantes dos aborígines a mingau. Quando um desses valentes campineiros diz que pretende subir até os três tritões, o que mesmo assim constitui uma temeridade, pode-se acreditar no seu êxito; mas o senhor... um fazedor de livros! Psiu! Onde está o seu cavalo?

— Não tenho.

Então não se conteve mais e explodiu numa estridente gargalhada.

— Hihihihi, hihihihi! Quer então subir a pé aos três tritões! O senhor enloqueceu, sir?

— Creio que não.

— Mas o sintoma não nega! Como pretende subir até aquela região a pé?!

— Nem pretendo fazê-lo. Por não conduzir cavalo para subir ao parque, não se deve concluir logo que sou um desequilibrado! Não me será difícil comprar um no momento preciso ou, talvez, até pegar um bom animal.

— Pegar onde?

— Onde melhor me convier.

— Mas o senhor mesmo pretende pegá-lo?

— Certamente.

— Mas isto é divertido, sir! Tem, é verdade, um laço na bagagem. Mas não logrará laçar nem uma mosca, quanto mais um poldro bravio!

— Por que não?

— Ora, muito simples: porque o senhor é um caçador domingueiro como se costuma dizer!

— Afinal, diga-me, o que o autoriza a me tomar por um desses caçadores?

— Mas é claro, homem! Tudo no senhor é distinto e asseado. Olhe para um ativo homem do oeste e compare o exterior desse com o que o senhor apresenta! As suas botas de cano alto são ainda novas e recentemente lustradas! As suas calças feitas com a mais fina pelica e o seu jaquetão de caça, uma obra prima confeccionada sem dúvida por mãos de alguma indígena; o chapéu que ostenta deve ter custado, no mínimo, uns doze dólares e a sua faca e os dois revólveres saíram há pouco da fábrica e com elas ainda não molestou ninguém! Em suma, o senhor é um caçador que atravessa as campinas por mero espírito esportivo. Ou, falarei mais claro, sem que de leve vá nisso o menor intuito de molestar-lhe: o senhor é um perfeito “almofadinha”, e os “almofadinhas” não resistem às durezas desta vida do oeste bravio! O senhor sabe atirar, sir?

— Sim, um pouco. De uma feita, num torneio de tiro ao rei fui classificado em primeiro lugar! — respondi então, procurando dar-me importância.

— Tiro ao rei? Então deve ser da Alemanha, pois neste país é que se costumam realizar tais certames!

— Claro que sou!

— Hum! Atirou numa figura inanimada de homem e acertou várias vezes no ponto negro do centro, sendo proclamado o rei? Assim são esses alemães! É verdade que, segundo consta, “Mão de Ferro” era também alemão. Mas isso constitui uma exceção da regra! Sir! Peço-lhe, volte da primeira estação para a casa, do contrário perecerá nas savanas. Lá não há reis de papelão para o senhor alvejar, não!

— Bem, vamos ver primeiro se perecerei! Mas onde está agora este “Mão de Ferro” do qual me falou há pouco?

— Oh! Ninguém sabe. Quando estive pela última vez no Fox-Head, encontrei-me lá com o célebre Sans-ear que fora seu companheiro de jornada. Este disse me então que “Mão de Ferro” partira para sua pátria com a idéia de fazer depois uma excursão por aquelas paragens insípidas a que chamam desertos do Saara. A esta hora deve andar por lá em luta com os indígenas, aos quais dão o nome de árabes. Aquele campineiro foi agraciado com o nome de guerra de “Mão de Ferro”, porque com a mesma facilidade com que nós pegamos um palito ele arrojava ao solo, com um só golpe de seu punho cerrado, o inimigo mais forte. Agora confronte as suas níveas mãozinhas com o punho de ferro daquele seu patrício! As suas mãos estão tão bem tratadas e alvas como se fossem de moça. Logo se vê que outra coisa nunca fez na sua vida senão lidar com papéis e que nunca empunhou outra arma a não ser a pena de ganso. Aceite o meu conselho que lhe é dado com a mais pura das intenções: sir, volte para a sua Germânia. O nosso oeste não é uma região para cavalheiros da distinção do senhor!

Com isso ele terminou o diálogo e eu não me dei ao trabalho de reatá-lo. De fato, eu dissera a Sans-ear que pretendia mais tarde jornadear pelo Saara.

Passamos pela estação Sherman e logo depois anoiteceu. A primeira estação, que avistamos pela manhã à luz do dia, foi a de Rawlins. Por trás dessa localidade começa uma região deserta, cheia de solos montanhosos, cuja única vegetação se compõe de bosques de artemísias, isenta de rios e córregos; uma verdadeira Montanha-Saara que não conhece nem um miserável oásis que lhe venha quebrar a monotonia. Aqui, o solo alcalino torna dolorosamente ofuscados os olhos do viajor cansado, mais além, o deserto se desenvolve numa extensão infinita e melancólica, semeada de arbustos secos e de montanhas íngremes e solitárias, estraçalhadas pelos temporais e faíscas elétricas.

Nessa zona insuportável fica situada a estação Bitter Bach (Arroio Amargo), mas no local não há o menor vestígio de arroio, e água para a serventia pública tem que ser transportada de uma distância de umas sete milhas. Contudo, esta zona está fadada a um futuro promissor, visto que há ali inesgotáveis minas carboníferas, que, por si sós, garantirão o futuro do deserto.

 

SAQUE NUM TREM E TRUCIDAMENTO DO PESSOAL

O comboio prosseguia a toda velocidade, passando pelas estações Carbon e Rio Verde, situada a 846 milhas de Omaha, pelo rumo oeste. Cessara o triste aspecto do deserto; começava de novo a vegetação e as montanhas adquiriam um colorido mais animador. Havíamos atravessado um maravilhoso vale e íamos entrar na savana aberta, quando a locomotiva se fez ouvir em três apitos prolongados, anunciando a presença de perigo. Erguemo-nos de chôfre do banco; os freios caíam sobre as rodas e, finalmente, parou o trem; saímos do vagão a ver do que se tratava.

Deparamo-nos com um quadro horrível. Um comboio de trabalhadores e forragens havia sido assaltado neste ponto e pelo solo jaziam os escombros dos vagões carbonizados. O assalto fora realizado durante a noite. Os salteadores haviam arrancado os trilhos e em vista disso, o comboio descarrilara e tombara para fora da linha que ficava a uma boa altura do terreno da savana. O que sucedeu depois do desastre podia calcular-se facilmente. Restavam só os destroços do trem assaltado. Depois de haverem saqueado tudo o que conduzia o trem, os bandidos atearam fogo a cada vagão e, no meio das cinzas, encontramos os corpos mutilados de numerosos trabalhadores vitimados pelo descarrilamento ou em conseqüência da queda dos carros, ou mesmo assassinados pelos facínoras. Ao que parecia, nenhum deles havia escapado com vida.

Foi uma sorte para nós, uma vez que se tratava de campina aberta, ter o maquinista podido ver em tempo o desastre que nos ia suceder; do contrário também nós seríamos arrojados linha abaixo. A locomotiva parará apenas a alguns metros da linha destruída.

Tanto os passageiros como os funcionários do trem ficaram alarmadíssimos ao deparar o quadro. Impossível seria registrar aqui as imprecações e ameaças que se ouviam em torno de nós. Revolveram-se os escombros que ainda ardiam, mas nada foi possível salvar. Depois da constatação do fato, nada mais havia a fazer senão tratar de restabelecer a linha, sem perda de tempo; para estes reparos os trens norte-americanos conduzem sempre a necessária ferramenta e aparelhos. O chefe do trem declarou-nos depois que, com relação ao desastre lhe cabia apenas comunicá-lo na próxima estação; o resto, como seja a perseguição dos criminosos e a sua captura, ficaria afeto à polícia ferroviária.

Enquanto os demais passageiros se davam ao trabalho inútil de revolver os destroços do trem, eu achei mais acertado procurar as pegadas dos bandidos. O terreno era em geral raso, interrompido apenas aqui e ali por pequenos aglomerados de arbustos. Voltei um bom trecho beirando a linha e depois descrevi um semicírculo à direita do local do assalto. Deste modo nada me podia escapar.

A uma distância de uns trezentos passos do teatro do desastre, dentro de umas moitas, a grama estava amassada, deixando perceber que ali havia acampado uma comitiva numerosa, e as pegadas, ainda visíveis na relva, conduziam para outro ponto, onde haviam sido deixados os cavalos. Examinei cuidadosamente aquele ponto a fim de descobrir o número dos cavalos e para que os haviam utilizado.

Depois continuei nas pesquisas e nesse afã cheguei à beira dos trilhos, onde me encontrei com o obeso companheiro de viagem. Tivera a mesma idéia que eu e fora reconhecer a zona pelo outro lado. Olhou-me admirado e perguntou:

— O senhor aqui, sir? Que está fazendo?

— O que todo o homem do oeste faria se estivesse na mesma situação: à procura das pegadas dos salteadores.

— O senhor? Ah! Deve ter encontrado boas pistas! Então não vê logo que eram homens astutos como costumam ser todos os bandidos dessas paragens! Devem ter apagado o mais possível os vestígios que deixaram no solo. Eu, que não sou de hoje nas campinas, não pude encontrar um ponto de apoio para descobrir-lhes o paradeiro; irá então descobri-lo o senhor, que afinal é um greenhorn, nas savanas?!

— Mas olhe que, talvez, o greenhorn tenha tido vistas mais apuradas do que o senhor! — repliquei-lhe a sorrir. — Por que anda aqui à esquerda à cata de vestígios? O senhor pretende ser um atilado explorador do oeste bravio e, no entanto, não notou que à direita o terreno se presta mais para um acampamento do que à esquerda, onde não há sequer um tufo de moitas ou a menor elevação de terreno de que os bandidos se servissem para evitar serem vistos por algum viajor ou viajores eventuais que os denunciariam?

O homem olhou-me visivelmente surpreendido e disse:

— Hum! O seu ponto de vista não é nada mau! Vejo agora que também os fazedores de livros são capazes de conceber uma boa idéia. Mas, afinal, encontrou alguma coisa que se possa aproveitar?

— Encontrei — respondi-lhe secamente.

— Encontrou o quê? Diga, homem!

— Lá adiante, por trás daquelas moitas de cerejeiras, eles estiveram acampados e um pouco adiante, no interior de um tufo de aveleiras, estiveram amarrados os seus cavalos.

— Neste caso, irei até lá, porque o senhor não tem as vistas exercitadas para concluir, das pegadas, quantos animais foram!

— Como não?! Afianço-lhe que eram vinte e seis.

Novamente olhou-me tomado de surpresa.

— Vinte e seis? — perguntou incrédulo. — Como chegou a tal conclusão?

— Naturalmente que não olhando para as nuvens, mas para as pegadas no solo, sir! — redargüi-lhe sorrindo triunfalmente. — Dos vinte e seis, oito apenas eram ferrados. Entre os cavaleiros, havia vinte e três brancos e três indígenas. O chefe da quadrilha era um branco, coxo da perna direita; o seu cavalo era um poldro de pêlo zaino e o cacique dos índios montava um corcel de puro sangue. Calculo que eram índios sioux, da tribo dos ogellallahs.

A expressão com que o gorducho então me olhou era indescritível. Estava boquiaberto e de olhos arregalados como se tivesse um fantasma na sua frente. Por fim, exclamou:

— Com todos os diabos! Acaso, está fantasiando?

— Pois então vá o senhor até lá — respondi secamente.

— Mas como veio a descobrir que se tratava de vinte e três brancos e três nativos?

— Já lhe pedi para ir em pessoa até o local! Depois veremos quem tem as vistas mais exercitadas, se eu, o greenhorn ou o senhor, o homem do oeste que “não é de hoje nas campinas”!

— Well! Vou verificar! Venha junto, sir! Sim, senhor! Um greenhorn e adivinhar quem e quantos eram os bandidos!

Ainda a rir encaminhou-se apressado para o ponto referido e eu o segui lentamente.

Quando o alcancei, ele estava tão absorvido no estudo das pegadas que nem deu pela minha presença. Só depois de haver pesquisado minuciosamente a redondeza é que veio até mim e disse:

— Realmente, em parte tem razão, sir! Ali estiveram vinte e seis cavalos e dezoito deles estavam sem ferraduras. Acamparam aqui e depois se retiraram por aquele rumo. O resto é tolice! Nada mais do que isso se pode concluir dos vestígios!

— Well! Vou verificar! Venha junto, sir! Sim, senhor! Um homem do oeste que não é de hoje nas campinas, não descobriu coisa tão simples! — exclamei eu agora, parodiando a sua frase de há pouco. — Vou mostrar-lhe as tolices que os olhos do greenhorn viram!

— Well, estou curioso! — declarou com expressão de triunfo na fisionomia.

— Examine com mais atenção esses sinais dos cascos dos cavalos! Dois dos animais não foram amarrados na parte fronteira, na orla do tufo, como os demais; estiveram, sim, aloujados pelo lombo; esses eram, sem dúvida, os cavalos dos indígenas.

Baixou-se para examinar mais minuciosamente os vestígios. A relva estava úmida e as pegadas ainda bastante visíveis para um campineiro reconhecê-las no seus mínimos detalhes.

— By-God! Não é que o senhor tem razão! — exclamou pasmado.

— Estas pegadas são de cavalos indígenas.

— Agora vamos dar uma chegada até aquela poça d’água! Aqui os índios lavaram os rostos para pintá-los novamente com as cores de guerra. A tinta estava misturada com sebo de urso. Atente para as manchas aí na relva! Ali depuseram o alguidar das tintas, que estavam quentes e por isso bem dissolvidas a ponto de gotejar no chão. Não está enxergando uma gota preta, uma vermelha e duas azuis aí defronte ao seu nariz?

— Yes! Realmente!

— E não são estas as cores de guerra dos ogellallahs?

O homem apenas acenou. A sua fisionomia espantada, porém, dizia-me tudo o que os lábios silenciavam. Continuei:

— Agora vamos para frente! Quando o bando por aqui passou, parou ao lado da poça lodosa; se vê isto pelas impressões dos cascos. Dois cavalgaram na frente, os dois caciques, sem dúvida, que iam reconhecendo o caminho e os demais seguiram atrás. Veja aquela pegada no tremedal! Um dos animais era ferrado e outro não; o último pisou mais forte com as patas traseiras do que com as dianteiras; montava-o, pois, um nativo. O outro cavaleiro, porém, era um pele-branca, o que denuncia o sinal da ferradura e a pisada mais forte que deu com os casos da frente. O senhor deve conhecer a maneira diferente de montar por que se distinguem os índios dos brancos!

— Sir, eu só queria saber de que forma o senhor...

— Está bem — interrompi-o. — Agora preste atenção! Seis passos adiante houve cavalos que se morderam uns aos outros. Isto só fazem garanhões, principalmente tendo feito antes uma cavalgada tão prolongada.

— Como deduz que se morderam?

— Primeiramente, pelas impressões dos cascos no solo. O cavalo do nativo chegado àquele ponto, atacou o do branco a dentadas; quanto a isso, sem dúvida, o senhor não deixará de concordar comigo. E depois, veja esse monte de cabelos que juntei do solo! Achei-o há pouco quando examinava as pegadas antes de me encontrar com o senhor. São crinas de cavalo zaino, que o animal do indígena arrancou ao do pele-branca. Mais adiante encontrei cabelos pretos da cauda; essas crinas, junto com o solo pisoteado, levaram-me com segurança à segunda dedução, isto é: o cavalo do índio mordeu o do branco nas crinas, e este desforrou-se mordendo-o na cauda. Vamos adiante! Aqui o pele-branca apeou-se para subir a linha férrea. O seu rasto sobre a areia macia ainda está bem nítido. Nota-se que com um dos pés ele pisou muito mais forte e com mais segurança do que com o outro. Era coxo, pois. De resto, esses bandoleiros procederam muito inadvertidamente. Não se deram ao menor trabalho de desfazer, ao menos, parte dos vestígios que deixaram em sua passagem; julgavam-se, portanto, a salvo de qualquer perseguição e à tal suposição os levaram dois motivos.

— Quais?

— Ou estavam aptos a vencer hoje ainda uma enorme dianteira dos seus eventuais perseguidores, os que, aliás, é pouco provável, pois pelas pegadas os animais davam mostras de se acharem bem esfaliados, ou, então, havia uma grande quadrilha nas imediações que, em caso de emergência, os viria socorrer, engrossando-lhes as fileiras. Esta última hipótese julgo a mais provável. Como três índios apenas raramente se juntam a um bando de mais de vinte brancos, concluo que lá pelas bandas do norte deve estar postado um numeroso bando de ogellallahs, aos quais neste instante, também se acham reunidos os vinte e três salteadores de trens.

Era divertido ver o modo singular com que o homem obeso me contemplava dos pés à cabeça, desconfiado.

— Homem! — exclamou, afinal — Diga-me, com franqueza, quem é o senhor?

— Já lhe disse!

— Mas não me disse tudo. O senhor não é um greenhorn e nem um simples rabiscador de livros, embora tal pareça devido às suas botas lustradas e ao seu equipamento domingueiro. O senhor está tão irrepreensívelmente trajado que numa peça teatral, onde houvesse um papel a ser desempenhado por um explorador das campinas, poderia pisar imediatamente no palco; contudo, de cem homens do oeste, talvez não haja um só que decifre pegadas com tanta precisão como fêz o senhor agora. By-God, até há pouco, eu supus que me seria possível prestar algum serviço neste sentido aos ferroviários, mas adiante do senhor devo calar-me.

— Não obstante isso, sou um escritor, afianço-lhe sob a minha palavra de honra! Mas há tempos medi essas velhas campinas de norte ao sul e do leste até o longínquo oeste, e por essa ocasião tive oportunidade de me aperfeiçoar um pouco na leitura de pegadas.

— E pretende de fato subir até as montanhas do parque de Yellow-stone?

— Pretendo e o mais depressa possível.

— Mas, sir, aquele que se aventurar a uma jornada desta natureza, precisa ser alguma coisa mais do que um simples decifrador de pegadas; ao senhor, portanto, faltam outros requisitos indispensáveis a essa jornada.

— Mas quais, afinal?

— Em primeiro lugar, uma caminhada dessas ninguém se abalança a fazer a pé e olhando para o azul do infinito, como o senhor vem fazendo. Antes de mais nada, precisa-se possuir um bom cavalo.

— Pois vou adquirir um.

— Onde?

— Ora, um cavalo compra-se em qualquer estação desta linha, embora seja um animal de tração. Depois de estar montado, fácil me será laçar, nalgum rebanho que passar, um bom poldro bravio.

— O senhor? Ah, então deve ser um hábil mestre de equitação! Está em condições de domar um poldro bravio? E acha que naquela zona há poldros?

— O senhor esquece-se de que estamos justamente na época das migrações dos búfalos e poldros bravios para o norte. Estou certo de encontrar daqui até os tritões uma tropa deles.

— Hum! Então é um bom cavaleiro. Sabe também atirar?

— Pretende submeter-me a um exame? — perguntei-lhe, rindo.

— Sim, tenho cá os meus motivos para isso!

— Posso saber quais?

— Agora não, só mais tarde.

 

SUBMETENDO-ME AO EXAME

Essa sua atitude divertiu-me. Eu poderia dizer simplesmente àquele homem que eu era o “Mão de Ferro”, e me pouparia ao trabalho de submeter-me à sua arguição. Preferi, porém, ocultar a minha identidade. Voltei para o vagão, a fim de buscar as colchas nas quais estavam as minhas armas enroladas. Este ato meu foi notado e os passageiros acompanharam-me, fechando um círculo em torno de mim e do gordo. O americano, e muito especialmente o morador do oeste, raramente deixa passar ocasiões de assistir a um exercício de tiro.

Desenrolei as armas.

— Behold, uma espingarda de repetição, sistema Henri! De quantos tiros, sir?

— De vinte e cinco.

— Que colosso! É uma arma terrível! Homem, invejo esta espingarda.

— No entanto eu prefiro esta outra. Eu me referia à “Mata-ursos”.

— Sim, uma arma lisa e bem brunida! — observou o gorducho em tom desprezível. — Eu gosto mais de uma velha espingarda enferrujada ou então da velha arma que me acompanha há tantos anos.

— Mas veja ao menos a firma que fabricou a arma! — disse-lhe exibindo os letreiros da “Mata-ursos”.

— Desculpe-me, sir! A arma é bem outra do que eu pensava. Dessas espingardas não há muitas. Ouvi dizer que “Mão de Ferro” também possuía uma da mesma marca. Mas como veio o senhor obter essa excelente arma? Ou quem sabe se se trata de uma simples imitação? Sim, deve ser isso, porque o aspecto dessa arma não é o de que já prestou muitos serviços.

— Vamos experimentá-la, sir! Indique-me o alvo que quiser!

— Abata o passarinho que está pousado no galho daquele arbusto!

— A distância é muito grande! — alegou um dos passageiros.

— Veremos! — redargüi-lhe.

Agarrei o pince-nez que me pendia ao pescoço e coloquei-o sobre o nariz. A esse gesto o gorducho soltou uma gostosa gargalhada.

— Hahahaha! Atira de óculos! Ora, ora, esse fazedor de livros vem às campinas caçar com os óculos no nariz... Hahahaha!

Os outros também riam; eu, porém, retruquei-lhe com fisionomia grave:

— De que estão rindo, meus senhores? Quando se esteve curvado durante trinta anos sobre os livros, a visão se torna fatalmente fraca. É  melhor dar-se um bom tiro de óculos do que um mau sem eles!

— Está certo! — disse ainda rindo-se o gordo. — Mas eu quisera ver o senhor inesperadamente assaltado pelos peles-vermelhas! Antes de limpar os vidros dos óculos, eles já lhe teriam tirado dez vezes o escalpo... Olhem só: nem no passarinho ele poderá atirar, pois durante o tempo que levou para colocar as cangalhas, o bichinho bateu asas e voou...

— Indique-me, neste caso, outro alvo! — repliquei com sangue frio. De fato, o passarinho estava pousado a uns duzentos passos do cano da arma. Seria, portanto um tiro facílimo de acertar. Enquanto punha os óculos, ouvira o trinado de uma cotovia voando alto por cima de nós e olhei para o alto.

— Estão vendo aquela cotovia lá no ar, meus senhores? — perguntei

— Pois vou derrubá-la!

— Ninguém conseguirá, menos ainda o senhor! — replicou o gordo.

— Desista da prova, porque seria gastar munição inutilmente. Nem mesmo Sans-ear ou “Mão de Fogo” livrariam esse tento!

— Pois veremos!

Ergui a arma e bati o gatilho.

— Eu não disse? A avezinha assustou-se do tiro e fugiu!

— Acha? Pois irá ver agora de quanto vale um par de óculos! Atravesse o leito da via férrea, ela caiu lá; mais ou menos a uns oitenta passos daqui.

Apontei com a mão para o local e imediatamente alguns dos presentes correram naquela direção. Voltaram depois trazendo a cotovia que tivera o corpo varado. O gorducho olhava ora para mim, ora para o pássaro; depois disse:

— Acertou, realmente acertou o tiro! E não com uma carga de chumbo, mas à bala!

— Pretende o senhor atirar com carga de chumbo a uma altura daquela, sir? Um legítimo corredor das savanas se pejaria de utilizar carga de chumbo. Isto são coisas de crianças ou de caçadores de urubus!

— Mas, sir, foi um tiro como igual ainda não vi em toda a minha vida! — exclamou admirado. — Foi por mero acaso ou não?

— Indique-me neste caso outro alvo. Não tenho dúvida em submeter-me a outras provas!

— Absolutamente, sir. Acredito no senhor! De tudo o que hoje sucedeu, chego à conclusão de que o senhor se dispôs a representar uma comédia comigo! Mas não faz mal. Sir, faça o favor!

 

DETETIVE DISFARÇADO EM CAMPINEIRO

Levou-me para o lado, a uma distância dos espectadores, onde as pegadas dos facínoras estavam bem visíveis. Puxou do bolso um papel e nele tirou a medida de uma das pegadas.

— Sir, diga-me: o senhor pode dispor de algum tempo, ou pretende seguir diretamente para os três tritões? Não lhe seria possível antes disso empreender uma pequena cavalgada por outro rumo?

— Sou senhor de meus atos e posso empreender o que bem quiser.

— Bem, já ouviu falar algum dia no gorducho Fred Walker?

— Muito até. Dizem que é um experimentado homem do oeste. Ouvi dizer que é um dos mais hábeis escoteiros das montanhas e que fala os diferentes dialetos dos indígenas.

— Pois sou eu, o Fred Walker, sir!

— Bem o desconfiara. Aqui tem a minha mão. Alegro-me muito por tê-lo encontrado.

— O mesmo digo eu! Creio que daqui por diante nos iremos conhecendo melhor. Mas, como lhe ia dizendo, preciso falar umas palavras em segredo com um tal de Haller que, ultimamente, era o chefe de uma quadrilha de salteadores de trem e ladrões de gado, sem falar noutras ações criminosas cujo remorso, já antes desse tempo, ele vinha carregando na consciência. Neste papel, como o senhor viu, tirei as medidas exatas das pegadas dianteiras daquele cavalo. Combinam perfeitamente com as do animal de montaria do celerado, que é coxo da perna direita. Portanto era ele o chefe da quadrilha que operou aqui.

— Haller? — perguntei. — Como é o seu primeiro nome?

— Sam ou Samuel. Não obstante, ele costuma usar diversos nomes.

— Samuel Haller? Ah! Já ouvi falar nele. Não foi em algum tempo guarda-livros do “príncipe do petróleo” Rallow? Desapareceu do escritório do seu patrão, levando consigo uma considerável soma em dinheiro!

— Justamente! Induziu o caixa a esvaziar o cofre e a fugir com ele. Depois assassinou o cúmplice e ficou com todo o produto do roubo. Perseguido pela polícia, matou dois soldados destacados para sua prisão. Alcançado em Nova Orleans, no momento em que tomava um vapor, foi preso, mas conseguiu também fugir à justiça, matando o carcereiro. Depois disso, embrenhou-se pelo oeste bravio. Não lhe restava outra cousa, pois ao ser preso lhe tiraram os haveres roubados. De lá para cá tem continuado a sua vida criminosa e já está em tempo de se deitar mão nele.

— E o senhor é que tenciona prendê-lo?

— Vou prendê-lo vivo ou morto!

— Tem, sem dúvida, uma dívida de sangue a ajustar com o bandido? Ficou pensativo por um instante e depois respondeu:

— Não gosto de falar nisso, sir. Talvez ainda lhe conte tudo, quando nos conhecermos melhor, o que não tardará, tenho absoluta certeza. Foi um providencial acaso que me fêz embarcar neste trem. Eu não teria encontrado as pegadas do bandido se não fosse o senhor. Jamais eu descobriria que o chefe da quadrilha de salteadores era coxo da perna direita e que montava um garanhão zaino; no entanto, constitui isto um detalhe de máxima importância para mim. Está disposto a acompanhar-me, sir?

— Eu? O greenhorn? — repliquei-lhe rindo.

— Psiu! Não deve zangar-se por lhe haver assim classificado. O seu exterior todo é de quem vai comparecer a um salão de baile e não empreender uma jornada nas savanas. Nunca na minha vida deparei com um homem que no meio da campina, põe óculos para atirar num passarinho que nesse meio tempo, consegue escapar. Enganei-me com o senhor, é verdade, e peço-lhe desculpas! Agora, diga-me, sir: está disposto a desembarcar comigo?

— Será uma honra para mim. Mas, não seria melhor unirmo-nos na próxima estação, à patrulha que vai sair ao encalço dos bandoleiros?

— Não. Nem me fale em patrulhas como aquelas! Um homem do oeste pesa mais na balança do que aqueles desperdiçadores de munição. Sinceramente falando, devo dizer-lhe que não é empresa isenta de perigo pôr-se em perseguição daqueles canalhas; a vida da gente, numa diligência dessas, está muitas vezes presa por um fio. Mas acho que o senhor anda a cata de aventuras e nem poderia desejar uma mais cheia de lances emocionantes do que esta que lhe proponho.

— Não há dúvida. Mas sempre tive por princípio não me envolver com os assuntos alheios. Nada tenho a ver com aquele Samuel Haller. Além disso, não estou na altura de tomar parte numa expedição com um homem do oeste de seu valor.

Ele  olhou-me chistosamente através de seus olhinhos vivazes.

— O senhor talvez queira dizer bem o contrário. Eu é que não estou na altura de tomar parte numa expedição na companhia de um homem do seu valor. Pode ficar certo de que o gorducho Walker não é homem que faça logo camaradagem com o primeiro campineiro que encontra. Prefere andar sempre só, e uma vez que se junta a outros é porque estes passaram a lhe merecer toda a confiança; não é com qualquer um que se mistura! Compreendeu agora?

— Neste ponto, procedo sempre como o senhor. Prefiro também andar sempre só. Aqui no oeste bravio nunca se é suficientemente precavido na escolha de companheiros. Encontra-se um com quem se faz camaradagem e causa comum para uma jornada; acampa-se à noite com ele e quando é de manha está se morto! O camarada, porém, prossegue calmamente a jornada levando consigo os haveres do defunto.

— Zounds! Então o senhor me toma por um patife desses, sir?

— Não, senhor! Sei muito bem que é um homem honrado. Sei ainda mais que o senhor até faz parte da polícia, e esta, sem dúvida, não arregimenta patifes.

O homem assustou-se, mudando de cor.

— Sir! — exclamou. — Que idéia é essa? Eu da polícia?!

— Calma, mestre Walker! É claro que o seu traje nada tem de policial e justamente por isto é que o senhor se revela um hábil detetive. O senhor tomou-me por um novato, mas penetrei seu pensamento. Para o futuro seja mais previdente! Se pelas campinas se espalhar a versão de que o gordo Walker a percorre como detetive a fim de capturar um desses “cavalheiros” foragidos à ação da justiça, o senhor terá deflagrado o último tiro na carreira policial!

— Afianço-lhe, caro sir, que o senhor tomou a nuvem por Juno, — retrucou Walker, procurando convencer-me.

— De vagar! A aventura, que o senhor me propõe, atrai-me irresistivelmente e eu não me negaria a acompanhá-lo a fim de ministrar uma lição àqueles salteadores de trem; nenhum perigo seria capaz de me deter, pois os perigos estão à nossa espreita em toda a campina, até nos seus mais recônditos confins. Mas exatamente por estar o senhor aí a brincar de esconder comigo, é que sou levado a desistir da empresa. Quando me uno a uma pessoa, é preciso que esta seja sobretudo sincera comigo. Devo conhecer com toda a precisão a sua origem e finalidade.

— Está muito bem, sir! Vou declarar-lhe sinceramente a minha origem e finalidade. O senhor, apesar de suas armas brunidas e o seu exterior elegante, tem algo que capta a confiança de um velho campineiro. Observei-o durante a viagem e, sinceramente, agradou-me bastante. Em geral, como já lhe disse, não sou muito afeito a companhias, porém, o senhor eu desejaria ter durante mais algum tempo comigo, por isso vou falar-lhe com toda franqueza. Sim, sou um funcionário do Corpo de Detetives Particulares do Dr. Sumter, em S. Luís. A minha tarefa consiste em perseguir os criminosos que fogem e se embrenham pelas selvas virgens, montanhas abruptas e campinas do oeste bravio. Naturalmente, trata-se de penosa missão que procuro desempenhar com risco de vida. Porque a desempenho com todo o ardor da minha mocidade, dir-lhe-ei mais tarde. Trata-se de uma triste história. Afinal, está agora disposto a acompanhar-me?

— Sim, senhor! Aperte-me a mão. Sejamos camaradas leais e prestativos e junto dividamos as agruras e vicissitudes da vida, Mr. Walker!

Com fisionomia risonha apertou-me a mão.

— Pode crer na minha incondicional solidariedade em tudo que nos atravessar pelo caminho! Sou-lhe muito grato por ter aceito o meu convite. Estou certo de que nos daremos muito bem. Mas deixe-se de Mr. Walker e trate-me por Fred! É um nome mais curto e menos fastidioso. Como se chama o senhor?

Declinei-lhe o meu nome todo e acrescentei:

— Mas trate-me por Carlos, isso basta. Olhe: os trilhos já foram arranjados.

 

PERSEGUINDO OS SALTEADORES DE TREM

— É mesmo. Vou buscar o meu “Victor”. Não precisa assustar-se com ele. Tem a aparência de um matungo, mas não o troco pelo melhor cavalo do mundo. Já me vem conduzindo durante doze longos anos. Tem ainda alguma coisa no vagão?

— Não. Mas devemos esclarecer o nosso propósito ao pessoal e passageiros do trem.

— Não lhes diremos coisa alguma; quanto menos souberem a nosso respeito, tanto mais segurança para nós.

Aproximou-se do vagão de animais e mandou abri-lo. O terreno não se prestava para o desembarque de animais e não havia também aparelho para aquele fim. Mas o desembarque foi feito com mais facilidade do que eu esperava.

— “Victor”, come on!

A essas palavras do escoteiro, o animal meteu a cabeça para fora da porta para examinar o terreno e, num salto previamente medido, veio parar no campo, fora do leito ferroviário que era de regular altura. Todos os presentes que assistiram à manobra do animal, saudaram-no com uma salva de palmas. O animal pareceu compreender, pois sacudia a cauda e as orelhas, desprendendo alegres relinchos.

A aparência do cavalo não correspondia ao nome “Victor” (vencedor). Era um alazão, muito magro, de pernas compridas, devendo contar, no mínimo, uns vinte anos de idade. As crinas lhe haviam caído completamente; a cauda possuía aqui e ali alguns restos de cabelos e as orelhas eram, em proporção, das dimensões das orelhas de um coelho. Mas, apesar disso, o animal me inspirou logo grande respeito. Vi quando tentou morder um passageiro que lhe ia passando a mão. “Victor” se parecia, como se vê, um tanto com a “Tony” do meu velho amigo Sans-ear. Estava ensiIhado e enfreiado. Walker saiu do vagão e pulou do leito da linha sem dedicar a menor atenção aos passageiros que prosseguiam. Também eles não se importaram conosco. Eramos-lhes estranhos e pouco se importavam com o nosso desembarque.

Depois de pular da linha, Walker observou-me:

— Agora o senhor está vendo, Carlos, como seria bom se tivesse também um cavalo!

— Não demorarei muito a obter um. Com o auxílio do seu “Victor” pegarei facilmente um poldro na passagem da manada.

— O senhor? Não! Eu é que vou pegar-lhe um, pois dou-lhe minha palavra que não conseguirá montar “Victor”! Ele não permite que ninguém lhe suba ao lombo, a não ser eu.

— Oh! Veremos!

— Não conseguirá montá-lo, afianço-lhe. Poderíamos, revezarmo-nos no cavalo, para que não ficasse muito cansado com a caminhada. Mas tenho certeza de que o animal o arrojará ao solo. Assim o senhor está condenado a marchar até encontrarmos uma tropa de poldros e eu lhe pegar um. E isto é um transtorno para nós, pois teremos que viajar muito vagarosamente com apreciável perda de tempo. Olhe! O trem vai partir.

A locomotiva entrou a funcionar e o comboio prosseguiu na linha do oeste. Momentos depois, o trem perdia-se de vistas.

— Coloque as suas pesadas espingardas no meu serigote — disse Walker.

— Um bom caçador jamais se separa de suas armas — ponderei-lhe. — Muito obrigado. Agora vamos!

— Cavalgarei lentamente, Carlos.

— Deixe o “Victor” dar passos largos. Sou bom caminhador e o acompanharei.

— Well, então, avante!

Pus a colcha que enrolava as espingardas às costas e levei a de repetição a tiracolo e a “Mata-Ursos” aos ombros, enquanto tocava sempre ao lado do cavaleiro. Começara a perseguição aos salteadores.

Suas pegadas estavam tão nítidas que não precisávamos nos dar ao trabalho de procurá-las. Dirigiam-se quase que ao rumo norte e a seguimos ininterruptamente até meio-dia, quando fizemos um pequeno alto para “Victor” pastar e tomarmos também nós uma refeição. Esta compunha-se do pouco que casualmente ainda trazíamos, pois não quiséramos nos sujeitar a alimentarmo-nos com as parcas e caríssimas provisões do trem. Enquanto o homem das savanas estiver de posse duma espingarda e munição, não tem necessidade de passar fome. Neste ponto, não me viria em apuros, pois os bolsos de minha vestimenta estavam cheios de cartuchos.

O solo, por onde passávamos, possuía muitas elevações. As pegadas subiam a margem de um riacho, margem ora arenosa, ora coberta de densa relva. À tarde, matei um pequeno urso dos comuns, que constituiu para nós um excelente petisco. Ao escurecer, paramos no desfiladeiro de uma rocha, encoberta por matagal onde acampamos. Sentiamo-nos tão seguros naquele local, que achamos desnecessário organizar um serviço de vigilância. Depois de Fred haver forrageado o seu animal, deitamo-nos a dormir.

 

FELIZ ENCONTRO COM WINNETOU

Na manhã seguinte, bem cedo, continuamos viagem e, ao meio-dia, chegamos ao local em que os salteadores haviam acampado durante a noite. Haviam acendido várias e enormes fogueiras como que a desafiar qualquer perseguição de que se julgavam livres. A noite chegamos, beirando o mesmo rio, a uma planície e paramos num ângulo onde a mata confina com a savana. Tínhamos o inimigo com um dia à nossa frente e sentíamo-nos muito seguros, porque não topávamos pelo caminho com pegadas de outra gente senão dos bandidos que se achavam distantes. Alcançamos mais um ângulo do mato na savana e íamos dobrá-lo quando subitamente recuamos. Vimos diante de nós um indígena que, precisamente naquele instante, dobrava do outro lado o ângulo. Montava um cavalo preto e puxava um cargueiro carregado. No mesmo instante em que nos viu, parou o cavalo e apontou a espingarda para nós. Esta manobra do indígena foi tão rápida que não pude examinar-lhe bem as vestes.

Fred saltou ligeiro do cavalo, por trás do qual entrincheirou-se, e eu embrenhei-me de relâmpago no mato e tomei posição atrás de uma árvore. Mal me havia abrigado, o índio bateu o gatilho indo a bala se alojar no tronco da árvore. Se me tivesse demorado mais um segundo, seria atingido pelo projétil. O aborígene reconhecera, pois, que eu era muito mais perigoso do que Fred; tratou logo de me eliminar, o que seria mais fácil fazer a Fred que se achava mais a descoberto, bastando dar uns passos de lado para surpreendê-lo por trás do cavalo.

Já quando corri para a mata havia erguido a arma para o tiro; agora, porém, depois que ouvi o estampido, desisti de detoná-la. Por quê?

Todo experimentado campineiro sabe que cada espingarda tem o seu estampido próprio. É difícil, porém, em geral, distinguir-se os tiros de duas espingardas disparadas ao mesmo tempo; mas a vida nas selvas e nas campinas agrestes apura de tal modo os sentidos, que aquele que ouve seguidamente o estampido de uma espingarda, a reconhece logo, mesmo que seja disparada juntamente com mais cem. Daí o caso bastante vulgar de caçadores amigos que não se avistavam há muito tempo, se conhecerem de longe pelo troar da arma.

Foi o que me sucedeu naquele momento. O estampido da espingarda com a qual o indígena atirara, eu nunca esqueceria em toda a minha vida. Já de há muito que não ouvia o seu tiro abafado, mas o reconheci prontamente. Pertencia a Winnetou. Era ainda ele que a usa, ou passara para outras mãos? No idioma dos apaches bradei detrás do tronco da árvore:

— Toselkhita, shi shteke. — Não atire, sou seu amigo!

— Tho titsa tá ti. Ni peniyil. — Não sei quem é. Saia então da mata! — respondeu o índio.

— Ní Winnetou, natan shis inté? — Não é Winnetou, o cacique dos apaches? — perguntei-lhe, para poder sair com segurança do meu esconderijo.

— Ha-au. Sou, sim — respondeu.

Saí de trás da árvore e corri em vertiginosa carreira ao seu encontro. Ele  me abriu os braços e me abraçou com efusão.

— Schar-üh, shi shteke, shi nta-ye, mancebo, nobre, meu amigo, meu irmão — continuou ele quase a chorar de alegria. — Shi intá ni intá, shi itchi ni itchi. — Os meus olhos são os seus olhos e o meu coração o seu coração!

Também eu me achava tão emocionado com aquele inesperado encontro, que não podia conter as lágrimas que me rolavam pelas faces. Não podia haver acontecimento feliz igual, para mim, ao de encontrar aqui o meu grande amigo. Olhava-me e tornava a me olhar com seus olhos úmidos de lágrimas; apertava-me sempre ainda de encontro ao peito, até que se lembrou de que não nos achávamos sós, e voltou à atitude sóbria a que como cacique de uma tribo é obrigado.

— Ti ti ute? — Quem é este homem? — perguntou, apontando para Walker.

— Aguan ute nshó, shi sbteke ni shteke. — É um bom homem, meu amigo e, portanto, também teu.

— Ti tenlyê aguan? — Como se chama êle?

— The thick Walker — respondi, citando em inglês o nome do meu companheiro.

Estendeu em seguida a mão também a Walker e saudou-o:

— O amigo do meu amigo meu também é! Quase que nos trucidamos um ao outro, mas Carlos reconheceu o estampido da minha arma como eu também teria reconhecido o da sua. Que estão os meus irmãos peles-brancas fazendo por estas paragens?

— Perseguimos os inimigos, cujas pegadas está vendo aí no solo — respondi.

— Avistei-os apenas há uns minutos. Venho do leste, seguindo este riacho. De que raça são esses inimigos?

— São brancos e também alguns ogellallahs.

A essas últimas palavras, Winnetou franziu o sobrecenho. Pôs as mãos na reluzente machadinha de guerra que pendia da cinta e disse:

— Os filhos dos ogellallahs são como sapos; assim que saírem do seu banhado, esmagarei a todos. Permite que me reuna aos irmãos peles-brancas para ver os ogellallahs?

Nada mais auspicioso para nós do que aquele pedido; Winnetou juntando-se conosco, seria o mesmo que se aliassem ao nosso grupo vinte caçadores do oeste bravio. Sabia também que, depois de uma tão longa ausência, o apache não se separaria tão facilmente de mim; mas o fato dele mesmo pedir para nos acompanhar, provava que a expedição, que empreendíamos, interessava-lhe também. Respondi-lhe:

— O grande cacique dos apaches chegou-se a nós como os raios solares em manhãs de inverno. Que a sua machadinha de guerra se confunda com a nossa numa aliança indestrutível!

— Minhas mãos serão as suas mãos e a minha vida as suas vidas. Howgh!

No que se refere ao meu obeso companheiro Fred, nele era visível a profunda impressão que lhe causara o apache. O mesmo sucederia a qualquer outro, pois a figura insinuante de Winnetou impunha-se onde quer que ele estivesse e provocava a admiração e simpatia de todos. Usava ainda os mesmos trajes de antigamente, quando estivemos no rio Pecos e antes de nos separarmos na aldeia dos shoshones. Assim, como agora estava diante de nós, sempre eu o vira. Era o mesmo Winnetou. Porte nobre e cavalheiresco, simples, mas asseado e elegante no seu modo de vestir.

O obeso Fred estava admiradíssimo de ver o indígena de porte tão distinto e de trajes tão asseados, onde não se divisava o menor vestígio de manchas. Os seus olhinhos pasmados repousavam ora em mim, ora na figura do meu inolvidável amigo. Descobri logo que estava traçando um paralelo entre nós dois.

— Queiram os meus irmãos sentar para fumar o cachimbo da paz em minha companhia! — convidou o apache.

A essas palavras, abancou-se na relva e pôs fumo no calumet. Era indispensável a realização daquela cerimônia, pois ela solidificava ainda mais o laço de amizade que nos unia. Aliás, eu tinha certeza de que, se eu propusesse a dispensa daquela formalidade, em virtude de já havermos até ingerido mutuamente o sangue da confraternização, o apache não me atenderia e nem falaria antes da cerimônia realizada, uma só palavra sobre o plano de nossa jornada.

Depois de soprar a fumaça para o céu, para a terra e na direção dos quatro pontos cardiais, ele sentou-se, passando-me o cachimbo e disse:

— Grande Espírito, ouve o meu juramento! Os meus irmãos são para mim como se fosse eu. Somos amigos e aliados!

Tomei do calumet ergui-me e, obedecendo ao mesmo ritual, declarei:

— O grande Manitu, a quem honramos, reina no céu e domina as estrelas; somos irmãos e estaremos ao lado um do outro em todos os perigos. O cachimbo da paz renovou a nossa aliança de amizade!

Passei o cachimbo a Walker que, depois de soprar fumaças nas seis direções conforme o ritual, disse:

— Estou vendo o grande Winnetou, cacique dos mescaleros, mimbrenjos e apaches! Fumo a paz no seu cachimbo e sou seu irmão. Os seus amigos são meus amigos e os seus inimigos são os meus inimigos. Jamais será destruída esta aliança!

Tornou a sentar-se e devolveu o cachimbo ao apache que continuou a fumar. Agora estava terminada a formalidade e podíamos falar com toda a franqueza.

— O meu irmão Carlos queira contar-me as aventuras que viveu depois que nos separamos e as causas que o levaram a seguir a pista dos ogellallahs! — pediu Winnetou.

Fiz-lhe um relato sucinto, mas completo de tudo o que ele desejava saber. Quando terminei a narrativa, perguntei:

— Agora conte-me, meu irmão Winnetou, tudo o que viveu depois de nossa separação e também o que o fêz deixar a sua taba e vir para tão longe, para o território de caças dos sioux!

O apache depois de expelir uma longa fumaçada do cachimbo, respondeu:

— O tempo faz cair a água das nuvens e o sol as reconduz para cima. A mesma coisa sucede com a vida do homem. Os dias chegam e desaparecem. Um cacique dos sioux-dakota ofendeu-me; persegui-o e tirei-lhe o escalpo; os seus guerreiros perseguem-me e eu apago os vestígios de minha passagem e retorno à aldeia do meu povo. Da aldeia inimiga venho de volta agora trazendo o símbolo da vitória no cavalo do cacique. Lá está ele.

Com estas poucas palavras o apache relatava um feito heróico, que outro gastaria uma hora para narrar. Era deste feitio o cacique dos apaches. De pouca conversa e muita ação. Acabava de perseguir um inimigo desde as margens do Rio Grande, no sul, até lá em cima no Milk-river no norte, embrenhando-se por matas virgens e atravessando desfiladeiros e savanas, até encontrá-lo e numa luta leal em campo aberto, vencê-lo. Depois aventurou-se a entrar sozinho na taba do inimigo e de lá retirar os troféus que conduzia. Fora um feito de que, talvez, nenhum outro seria capaz. E com que modéstia o jovem cacique fazia a sua narrativa!

— Os meus irmãos andam em perseguição dos peles-brancas a que deram o nome de “salteadores de trem”. Para essa empresa é necessário montar-se bons cavalos. Quer o meu irmão Carlos montar o cavalo do cacique dos dakotas? Possui as melhores qualidades de um cavalo indígena e estou certo de que Carlos o montará como nenhum outro pele-branca!

Já de uma feita Winnetou me presenteara um excelente corcel; fiquei constrangido em aceitar novamente um tão valioso presente e por isso respondi:

— Peço licença ao meu irmão para não aceitar a oferta. Vou pegar um poldro na primeira tropa que encontrar. O cavalo do dakota é necessário para a condução dos troféus.

Ele  sacudiu a cabeça e replicou:

— Por que pretende o meu irmão esquecer-se de que tudo que me pertence lhe pertence também? Por que pretende gastar tanto tempo em pegar um poldro bravio? Quer que esse ato vá denunciar a nossa presença aos ogellallahs? Acha que Winnetou continuará a transportar aqueles troféus depois de haver topado com a pista dos sioux? Winnetou enterrará os troféus em qualquer lugar e o cavalo ficará disponível. Howgh!

Não me era possível contrariá-lo; tive que aceitar mais este presente. Aliás, desde o princípio que eu contemplava o animal com admiração.

— Mas e o arreiamento? — observou Fred. — O senhor não pode montar numa albarda.

— Isto é o de menos — respondi. — Nunca viu um indígena transformar uma albarda em arreio de montaria? Não viu ainda um experimentado campineiro fazer do couro de uma caça morta um excelente arreio? Pois verá que amanhã estarei provido de um arreio tão cômodo, que todos o cobiçarão.

— Winnetou encontrou, não muito longe daí, numa aguada, os vestígios de um lobo. Antes do pôr do sol estaremos de posse de seu couro e de sua carne. Os meus irmãos já fizeram a sua refeição do meio-dia?

Ao lhe responder afirmativamente, ele continuou:

— Então queiram acompanhar-me na caçada daquele lobo e na procura dum local adequado para passarmos a noite. Assim que clarear o dia, seguiremos a pista dos salteadores. Eles destruíram uma “carroça” do “cavalo de fogo”, mataram muitos de seus irmãos peles-brancas e os roubaram. O Grande Espírito fêz baixar a sua cólera sobre os bandidos e no-los entregará nas mãos, pois eles, de acordo com as leis das savanas, incorreram na pena de morte.

Abandonamos o ponto do feliz encontro e pouco depois encontrávamos o lobo em seu esconderijo. Abatemo-lo para a refeição da noite.

Na madrugada do dia seguinte, enterramos os troféus conquistados por Winnetou; eram armas indígenas, talismãs, etc. Assinalamos o lugar para mais tarde encontrá-lo novamente. Depois continuamos no encalço dos celerados que, por certo, ririam a bandeiras despregadas se soubessem que três homens apenas iam enfrentá-los para puni-los.

 

Avistando o acampamento dos ogellallahs

O cavalo que Winnetou me oferecera, um poldro baio, revelava-se um excelente animal. O cavaleiro que não conhecesse o sistema de equitação indígena não teria ficado um momento na sela. Comigo, porém, o poldro se ia identificando pouco a pouco. Parece que isso me elevou ainda mais no conceito de Fred. Notei que ele, de quando em quando, me contemplava com olhar desconfiado. Não podia, talvez, compreender a distinção com que Winnetou me tratava. Admirava-se de como o cacique dos apaches se havia tornado tão grande amigo de um caçador das campinas completamente estranho ao meio selvagem.

O “Victor” portava-se também admiravelmente e por isso a cavalgada prosseguia velozmente. Ao meio-dia, alcançamos o local do último acampamento dos malfeitores. Estávamos, pois, a meio-dia deles.

A pista que seguíamos deixara o riacho e se desviara para um vale adjacente, pelo qual corria um pequeno regato. Observei que Winnetou examinou o solo com mais atenção do que antes; também os seus olhos procuravam seguidamente a orla da mata, que descia das paredes laterais até a entrada da planície do vale. Cavalgávamos um atrás do outro, ao sistema indígena; como Winnetou ia na ponta, virou-se para mim, pois eu era o segundo, e exclamou:

— Uff! Que diz meu irmão Carlos desse caminho?

— Conduz até o espigão da serra.

— E depois?

— Do outro lado deve ser o ponto visado pelos salteadores.

— E onde fica esse ponto?

— Sem dúvida nos campos de pastagens dos ogellallahs-sioux. O apache meneou a cabeça satisfeito.

— Meu irmão Carlos conserva os seus olhos de águia e tem ainda a astúcia da raposa. Pois não é que chegou admiravelmente a uma conclusão acertada! — disse, e continuou a cavalgar.

— Como? — perguntou Walker. — Os campos de pastagens dos ogellallahs?

— Já uma vez lhe perguntei se o senhor achava plausível que três índios se reunissem a um grupo de peles-brancas sem finalidade muito especial! — respondi. — No oeste bravio há mais peles-vermelhas do que brancas e o mesmo se dará, aqui, no nosso caso.

— Não o compreendo, Carlos! Fale mais claro!

— Aqueles três ogellallahs foram destacados para vigiar a ação dos peles-brancas; isto é mais claro que água, homem.

— Continuo na mesma. Vigiar por que e a troco de quê?

— Hum, estou vendo que se inverteram os papéis, meu caro Freid. Estou quase a chamá-lo de greenhorn, como o senhor já me classificou.

— Heigh-ho! Mas por quê?

— Então acha que uma quadrilha composta de mais de vinte salteadores pode exercer aqui a sua sanha sem ser percebida pelos indígenas?

— Claro que não! E que tem isso?

— Pois então não compreendeu ainda por que os três indígenas os foram vigiar?

— Ah! Já percebi. Os bandoleiros estão debaixo do protetorado dos ogellallahs.

— Justamente. E os ogellallahs protegerão os celerados sem compensação nenhuma?

— Ah! isso não! Terão que pagar.

— E com quê?

— Com aquilo que possuem os salteadores: objetos roubados.

— Afinal compreende agora o que Winnetou e eu queríamos dizer?

— Ah! Agora sim! Os brancos assaltaram o trem e por este assalto terão que pagar um tributo aos ogellallahs; aqueles três indígenas foram os encarregados da respectiva cobrança. Sim, senhor, compreendo!

— Não é, talvez, bem assim. O certo, porém, é que agora os brancos se juntaram a uma tropa mais numerosa de vermelhos. E acha que quando os bandidos se juntam assim com os indígenas é para trocar mútuas finezas e se deitarem a dormir o dia inteiro?

— Ah, isto é que não!

— Sou da mesma opinião. Pode estar certo de que não tardarão a empreender outra façanha, tanto mais que se saíram bem da primeira.

— De que poderia constar esta façanha?

— Hum! Tenho cá as minhas conclusões.

— Agora é demais! De onde conclui o senhor estarem aqueles bandoleiros, aos quais nem ainda viu, preparando uma nova façanha? Afianço-lhe, Carlos, que, ultimamente, o senhor se impôs ao meu respeito. Mas dessa conclusão atual, creio que nada sairá.

— Veremos! Convivi suficientemente com os índios para conhecer-lhes bem os hábitos e costumes. E sabe o senhor o modo por que se adivinha mais facilmente o que outrem pretende fazer?

— Não. Qual?

— Quando a gente se coloca na posição da pessoa cujo propósito se quer conhecer. Quer ver como terei a ousadia de adivinhar tudo?

— Desembuche! Estou curioso!

— Onde o pessoal do nosso trem comunicou o assalto?

— Na próxima estação.

— Pois de lá será remetido pessoal ao local do assalto para perseguir os criminosos. Não será assim?

— Sem dúvida.

— Com a remessa de pessoal, a estação ficará deserta ou parcamente guarnecida e nessas circunstâncias pode ser assaltada facilmente.

— Agora percebo o que pretende dizer.

— As estações nesta zona são muito distantes umas das outras. E aquela onde foi avisado o desastre não poderá, com a rapidez que o caso exige, esperar que venha reforço para iniciar as diligências.

— Carlos, a sua conclusão pode ser bem acertada. Os salteadores de trem e os peles-vermelhas sabem tão bem como nós que, nessas circunstâncias, a estação ficará abandonada.

— E acrescente-se a isso que os ogellallahs, tendo desenterrado o machado da paz, e pintado os rostos com as cores de guerra, certamente estão com algum propósito hostil; e esse propósito tem, sem dúvida, por objetivo a estação de Echo-Cannon. Veja, ali é a nascente do arroio. Agora o caminho é íngreme, serra acima, portanto não temos tempo para estar a conversar inutilmente! Avante!

Cavalgamos, através de altas e copadas árvores, por um trecho da serra. O terreno era de difícil acesso, obrigando-nos a todas as precauções. No alto, o solo se desenvolvia num planalto e baixava depois novamente para o vale, onde em seguida topamos com uma fonte donde jorrava excelente água potável, bem como um arroio que dirigia a sua corrente para leste.

Neste ponto os piratas das campinas haviam feito alto para o almoço, dirigindo-se depois para o norte. Passamos por diversos vales menores, por uma infinidade de desfiladeiros insignificantes, e a pista pouco a pouco se ia tornando mais recente, de modo que éramos obrigados a redobrar de precaução.

Finalmente, alcançamos, quase ao anoitecer, o cume de uma extensa serra, e já íamos dobrar uma curva para descê-la, quando o apache parou o cavalo e com a mão espalmada significou que algo de estranho havia à frente.

— Uff! — exclamou, mas desta vez com a voz abafada.

Paramos imediatamente os cavalos e olhamos para a direção indicada.

À nossa direita, em baixo, estendia-se uma planície de uma légua de circunferência mais ou menos. Era rasa e coberta de verdejante relva. Nela deparamos com uma populosa aldeia de indígenas, na qual se agitavam os nativos no vaivém burburinhante de seus afazeres. Uma grande tropa de cavalos pastava na relva e ao derredor estavam os indígenas entregues ao preparo de xarque. Um pouco distante da taba jaziam no solo as carcaças de alguns búfalos. No chão estavam fincadas numerosas estacas com varas donde pendia carne retalhada para secar.

— Ogellallahs! — exclamou Fred.

— Vê agora como eu tive razão! — observei-lhe.

— Trinta e duas cabanas — acrescentou o apache.

Winnetou continuou de olhos fixos na planície, e depois me disse:

— Naki gutesnontin nagoiya. — Duzentos guerreiros!

— Também os brancos estão com eles! — assegurei. — Contemos o número de cavalos. Assim chegaremos mais facilmente a uma conclusão acertada.

A planície se descortinava no seu todo diante dos nossos olhos. Contamos duzentos e cinco cavalos que pastavam na mesma. A carne que faziam era pouca para se admitir que andassem os nativos em caçadas. Mesmo o vale não era próprio para uma rendosa caçada daquele gado selvagem; estávamos, pois, diante de um acampamento de índios em expedição de guerra, o que, aliás, se depreendia dos escudos. A barraca maior estava levantada um pouco distante das demais e a pena de águia na frente denotava morar nela o cacique ou os caciques.

— Que acha, meu irmão Carlos? Aqueles sapos ogellallahs continuarão por muito tempo acampados na planície? — perguntou Winnetou.

— Acho que não.

— Baseado em que diz isso? — perguntou Fred. — Trata-se de uma questão dificílima e de importância para nós. Creio que a sua resposta foi um tanto precipitada.

— Olhe então mais atentamente para aquelas carcaças de búfalos. Elas confirmarão a minha resposta, Fred.

— Ah! Sim, mas como?

— Os ossos já estão alvacentos; acham-se, portanto, no mínimo, há uns quatro ou cinco dias expostos ao sol. A carne que estão charqueando, pois, já deve estar quase seca. Não acha também?

— Sim, e que tem isso?

— Que tem isso?! Mas Fred, acha que os índios, depois de pronto o xarque, ficarão lá na planície a jogar uma partida de xadrez ou de damas?

— Está se tornando mordaz, sir. Eu quis apenas conhecer a sua opinião. Ah! Lá vem saindo um da barraca. Quem será?

O apache pôs a mão no bolso e tirou um binóculo. Sem dúvida, tratava-se de um instrumento raro nas mãos de um indígena. Fred Walker ficou pasmado! Mas Winnetou conhecia bem as cidades do mundo civilizado e lá adquirira aquele instrumento óptico. O cacique abriu o binóculo e o assestou na direção da planície a fim de examinar detidamente o nativo a que Fred se referia. Sua fisionomia estava contraída ao me passar o binóculo.

— É Ko-itse, o vil mentiroso e traidor! — disse indignado. — Vou plantar a minha machadinha na cabeça daquele canalha!

Olhei atentamente através das lentes, examinando o ogellallah cujo nome acabava de ser declinado. Ko-itse, quer dizer “Boca de Fogo”. O portador deste nome era conhecido como um notável orador, um guerreiro audacioso e um inimigo feroz e irreconciliável que assolava toda a savana. Se tencionássemos combater com ele, precisávamos tudo empreender para sermos vencedores. Do contrário, estaríamos perdidos. Passei o binóculo também a Fred e observei-lhe:

— Creio ser medida aconselhável ocultarmo-nos. Avistamos maior número de cavalos do que de guerreiros; mas, mesmo que muitos destes estejam deitados ou ocupados no interior das suas barracas, não devemos desprezar a hipótese de se encontrar um outro bando daquela tribo mais além.

— Queiram meus irmãos esperar-me — atalhou o apache. — Winnetou vai procurar um local próprio para se ocultar com os seus irmãos peles-brancas.

Desapareceu no meio da mata e voltou muito tempo depois. Conduziu-nos a um ponto cerrado da floresta, localizado no chapadão da serra. Ali estávamos bem ocultos e havia lugar tanto para nós como para as nossas montarias, que amarramos às árvores em vez de maneá-las. O apache voltou depois para desfazer as pegadas que deixamos à nossa passagem. Lá ficamos, até se tornar noite escura, metidos dentro do mato e sempre prontos para saltar e tapar as narinas dos animais a fim de evitar que estes, percebendo algo de estranho, relinchassem, denunciando assim a nossa presença. Winnetou saiu depois rastejando, para voltar em seguida com a notícia de que os selvagens haviam acendido várias fogueiras.

— Estes homens estão certos de sua segurança — declarou Fred. Ah! Se soubessem que estamos tão próximos deles!

— Mas calculam, sem dúvida, que vão ser perseguidos. Julgam mesmo que a guarnição da estação ferroviária já se acha no seu encalço. Aquela aparente tranqüilidade justifica-se, porque julgam que a coluna, que lhes vem ao encalço está ainda muito distante. Daí, pois, a certeza que tenho de amanhã bem cedo levantarem eles o acampamento. Precisamos tentar ouvir deles alguma cousa.

— Winneou irá observá-los — declarou o apache.

— E eu irei junto — assegurei. — Fred se encarregará da vigilância dos cavalos. As armas ficam aqui; elas nos embaraçariam no caminha. As facas e as machadinhas são suficientes, e, no caso de extrema necessidade, temos os revólveres.

O rotundo Fred concordou logo em ficar. Era bastante corajoso, mas se não fosse de absoluta necessidade, preferia não expor a vida a graves riscos. E uma grande arriscada era, sem dúvida, descermos o vale para observar os nativos. Aquele que fosse pilhado, podia contar na certa que estava perdido.

 

ESPREITANDO OS FACÍNORAS

Estávamos há uns três ou quatro dias da lua nova. O firmamento estava envolto em densas nuvens e nele não cintilava uma só estrela; a noite, porém, prestava-se admiravelmente para a execução do nosso propósito. Saímos da mata cerrada e caminhamos até o local em que havíamos parado à tarde.

— Winnetou segue pela direita e o seu irmão Carlos pela esquerda! — sussurrou-me o apache, e no mesmo instante desaparecia na densidade da selva, sem pronunciar mais uma só palavra.

Segui a indicação do meu amigo e caminhei recurvado para a esquerda, descendo por um precipício. Alcancei sem ser notado a planície e defrontei-me com as fogueiras do acampamento. Pus então a faca de campanha entre os dentes lancei me ao solo e, qual um lagarto, rastejei na direção da barraca do cacique, que ficava a uns duzentos passos distante de mim. Diante da mesma, ardia uma enorme fogueira, mas a sombra da barraca me encobria.

Fui avançando de polegada em polegada, tendo o vento contrário, não precisando por isso ter receio de que os cavalos me denunciassem com os seus angustiosos relinchos. Winnetou, neste particular, tinha mais dificuldades a remover do que eu.

Assim se passou mais de meia hora até que eu vencesse os duzentos passos. Achei-me, então, por trás da barraca do cacique, feita com peles de búfalos; os homens estavam sentados na sua frente e se achavam a poucos metros de mim. Palestravam com muita animação em idioma inglês e, quando arrisquei a levantar a cabeça para observá-los melhor, notei que se tratava de cinco peles-brancas e três peles-vermelhas.

Estes últimos falavam muito lacônicamente. Em geral, só os brancos falam em voz alta em torno da fogueira de um acampamento, ao passo que os monossilábicos nativos, por força do hábito, se entendem mais por meio de sinais do que de palavras. O fogo também era vivo e não ao sistema indígena.

Um dos peles-brancas usava barbas longas e tinha na testa uma cicatriz produzida, ao que parecia, por um golpe de faca. Ele é que estava com a palavra, e, pelo modo com que se dirigia aos demais, deduzia-se que se tratava de uma pessoa de respeito entre os piratas das campinas, ou aliás, salteadores de trem. Eu podia ouvir, palavra por palavra, a palestra daquela gente.

— E que distância fica daqui a Echo-Cannon? — perguntou um dos peles-brancas.

— Cerca de trezentas milhas inglesas — respondeu o barbudo. — É fácil de alcançá-la em três dias de viagem.

— Mas se os nossos cálculos falharem, ou se o pessoal do trem desistir de nos seguir ou ainda, se encontrarmos a estação guarnecida?

O barbudo riu-se debochadamente e replicou:

— Que tolice! Seremos perseguidos, isto é certo. Já muito de propósito, deixamos-lhes um rasto bem visível. Tombaram uns trinta ferroviários no assalto e nós colhemos valiosas presas; ora, dado o valor dos objetos de que nos apoderamos, o pessoal da estação não deixará de ao menos fazer uma tentativa para reavê-los! Isto é mais do que claro, homem!

— Se fôr assim, o nosso golpe será bem sucedido — opinou o outro. — Quantos trabalhadores residem em Echo-Cannon, Rolim?

— Perto de cento e cinqüenta, todos bem armados e municiados. Além dos haveres desses, existem os de várias casas de negócio muito bem sortidas, e há algumas tavernas, que também possuem haveres apreciáveis. Pelas redondezas deve haver, ainda, uma caixa destinada ao custeio de novas construções e à manutenção da linha. Que campo fértil para a nossa ação, hein? Ouvi dizer que aquela caixa é destinada a financiar as despesas de um enorme trecho de linha de umas duzentas milhas de extensão. Deve, portanto, estar à nossa espera recheadíssima de dólares.

— Que bela colheita! E acha que conseguiremos, daqui em diante, despistar os nossos perseguidores?

— Claro. E muito facilmente até. Calculo que chegarão aqui, amanhã ao meio-dia. Nós partiremos de manhã bem cedo e cavalgaremos primeiramente um trecho para o norte e depois nos dividiremos por diferentes rumos, em tantos grupos, que eles ficarão atarantados sem saber qual a senda a seguir. Mais adiante, cada grupo desfaz as pistas que fôr deixando e nos encontraremos todos depois lá em baixo no Greenfork. De lá em diante, evitaremos cavalgar por qualquer campo descoberto; em quatro dias alcançaremos a estação Echo-Cannon.

— Não seria melhor expedirmos batedores na frente?

— Lógico que sim! Seguirão esta madrugada diretamente para a estação e nos esperarão no Painterhill. Já está tudo combinado. Mesmo que os trabalhadores não tenham deixado a estação para nos sair ao encalço, não precisamos recear pelo êxito de nossa “batida”. Somos mais numerosos e, antes de se lembrarem de armas, já teremos morto a maior parte deles.

Eu não poderia ter desejado momento mais propício para fazer a minha observação. O que eu ouvira excedera a toda minha expectativa anterior. Deveria continuar a ouvi-los? Não. Muita cousa mais não me era possível talvez averiguar e estava sujeito a ser a cada momento pilhado. Recuei, pois, lentamente.

Fi-lo sempre de gatinhas e para trás , porque precisava apagar os vestígios a fim de não serem descobertos de manhã cedo. Isto constituiu uma tarefa morosa, e só uma hora depois atingia eu a orla do mato, lá em cima. Agora me achava em segurança.

Levei a mão à boca e imitei o guisar da cobra do banhado, sinal convencionado entre mim e Winnetou para o reencontro. Aos índios este sinal não cairia na vista, pois o solo úmido da região atraía muitas daquelas cobras, principalmente àquela hora da noite.

Julguei de necessidade dar aquele sinal. O apache talvez ainda andasse às voltas com o fim de descobrir alguma coisa e aquilo, que eu sabia, já era mais do que suficiente.

Prossegui, apagando sempre os vestígios e respirei aliviado quando alcancei o nosso acampamento.

— Então, como se foi? — perguntou Fred.

— Espere até voltar Winnetou.

— Por quê? Estou ardendo de curioso.

— Então continue a arder. Nunca se deve falar superfluamente. Se atender ao seu pedido, terei que falar duas vezes: uma ao senhor e outra, a Winnetou.

Assim, o gordo teve que se conformar e demorou andar muito até voltar o apache.

Finalmente, ouvimos um ruído na mata, próximo de nós. O cacique chegou e se abancou logo ao meu lado.

— Foi o meu irmão Carlos que proferiu o sinal convencionado? — perguntou.

— Sim.

— Nesse caso o meu irmão foi feliz na sua observação?!

— Fui. O que conseguiu averiguar o cacique dos apaches?

— Absolutamente nada. Levei um tempo enorme para poder transpor a cavalhada e no momento em que me aproximava da barraca, ouvi o sinal. Em vista disso, fui obrigado a voltar, apagando os vestígios por trás de mim. Que viu e ouviu o meu irmão?

— Tudo o que precisávamos saber.

— O meu irmão sempre é feliz quando observa um inimigo. Queira relatar-me tudo!

Narrei-lhe o resultado de minha espionagem. Quando concluí, opinou Fred:

— Com que então a sua conclusão de há pouco era acertada, Carlos! Mais uma vez dou a mão à palmatória. Vão, então, assaltar a próxima, estação!

— Não era difícil chegar-se à tal conclusão. E também não me foi difícil ouvir tudo — disse eu, por fim, dirigindo-me ao apache.

— Que aparência tem aquele pele-branca de estatura alta? Não tem uma cicatriz na testa? — perguntou Fred.

— Justamente.

— E usa barba longa?

— Sim.

É ele mesmo. Antigamente não usava barbas. Aquela cicatriz é proveniente de um ferimento que recebeu no assalto a uma granja, lá pelas  bandas de Leawenwort. E como o chamavam? Não conseguiu descobrir?

— Rolim.

— Esta circunstância devemos anotar. É já o quarto nome suposto que usa. Mas que faremos agora, sir? Capturá-lo hoje não nos é possível!

— É evidente que não! E, de resto, não podemos nos limitar a castigar exclusivamente ele. Os demais salteadores de trem não são menos perniciosos do que o barbudo. Afianço-lhe, Fred, que em todas as aventuras em que me vi envolvido, evitei o quanto me foi possível derramar inutilmente sangue humano. Antes, preferi sofrer graves danos a apelar para um golpe mortal, e se tal sucedia, era só em momentos de graves perigos e em defesa própria. E mesmo nestas ocasiões, prefiro sempre deixar o inimigo imobilizado e fora de combate a exterminá-lo!

— Ah! — atalhou o gordo. — Então o senhor cultiva os mesmos sentimentos de “Mão de Ferro”. Dizem que este também só em extrema necessidade mata um índio ou qualquer outro inimigo. A caça costumava ele alvejar nos olhos; mas ao inimigo, do qual se defendia, alvejava ou numa perna ou num braço, ou ainda o arrojava ao solo com o seu valente soco, que lhe valeu o apelido pelo qual é conhecido em todo o oeste bravio.

— Uff!

Foi Winnetou que, em voz um tanto abafada, proferiu este brado de admiração. Só agora é que notou que Walker ainda não sabia que estava acompanhado de “Mão de Ferro”. Fiz que não ouvira aquela interjeição e prossegui no meu relato há pouco interrompido:

— ... Mas, embora tenha por norma esse modo de proceder, não posso deixar que se escape um malfeitor ou uma horda de malfeitores como aquela, sem mais nem menos! Não podemos tirar aquele Haller, transmudado em Rolim, hoje, do meio do acampamento. Isto seria rematada loucura. Ter-me-ia sido fácil, há pouco, eliminá-lo com um tiro, livrando a gente honesta desta zona de sua sanha. Mas não quero ser um assassino, embora, pelos seus crimes, mereça ele morrer. Julgo que o mais acertado, aliás, é deixá-los seguir para a estação de Echo-Cannon.

— E nós?

— Isto nem se pergunta. Partiremos já para tomar-lhes a dianteira e prevenir o pessoal da estação, bem como a população que mora nas adjacências.

— Well, este plano me agrada. Talvez nos seja viável prendermos essa horda de bandidos com vida. Mas não são muito numerosos?

— Nós três, apenas, os vamos seguindo sem temê-los, e creio que os temeríamos ainda menos se a nós se juntassem os trabalhadores e o povo da Echo-Cannon.

— Oh! Não conte muito com aqueles aliados, pois encontraremos muito pouca gente lá. A maior parte do pessoal está em perseguição dos celerados.

— Tomaremos providências para que eles fiquem ao par do estado das coisas e voltem imediatamente para a estação.

— Mas de que forma?

— Escrevo um bilhete, que coloco no tronco de uma árvore, avisando a todos de tudo o que se passa e determinando que nos sigam as pegadas.

— Julga que acreditarão no bilhete? Podem tomá-lo como um ardil dos salteadores de trem para desviá-los da perseguição.

— Devem ter sabido, por intermédio do chefe do trem, que dois passageiros haviam desembarcado e também encontrarão as nossas pegadas. Ao demais, vou escrever o bilhete em termos tão convincentes que não hesitarão em crer na sinceridade do aviso. Além disso, avisar-lhes-ei do propósito dos facínoras e os concitarei a evitar o Greenfork e Painterhill, pois no primeiro dos pontos se juntarão os grupos divididos, perambulando no segundo os batedores. A estes o contingente ferroviário não deve avistar — o que conseguirá, voltando pelo rumo sul.

 

INICIANDO A EXECUÇÃO DO NOSSO PLANO DE GUERRA

— Uff! — exclamou Winnetou. — Os meus irmãos peles-brancas vão partir já comigo!

— Agora já? — perguntou Walker.

— Sim, devemos estar já muito longe ao nascer o sol.

— E se descobrirem amanhã cedo os nossos vestígios?

— Aqueles cães dos ogellallahs seguirão imediatamente para o norte e nem subirão a serra. Howgh!

O cacique ergueu-se e aproximou-se de sua montaria para desamarrá-la. Acompanhamo-lo e montamos, voltando pelo mesmo caminho que nos conduzira à serra. Desistimos de dormir naquela noite.

A escuridão era densa, e só mesmo um atilado homem do oeste seria capaz de cavalgar por terrenos tão penosos, seguindo as pegadas ali deixadas anteriormente e que agora nem se podiam enxergar. Um cavaleiro europeu teria apeado para puxar o animal pelas rédeas através da mata; o sertanejo, porém, sabe que o seu cavalo enxerga mais do que ele. Foi aqui, que Winnetou revelou mais uma vez ser o grande conhecedor do oeste bravio. Cavalgava na frente, transpondo resolutamente desfiladeiros, arroios, blocos de rochas, enfim todos os difíceis obstáculos sem ter um momento que fosse de dúvida a respeito do rumo certo por que nos estava conduzindo. O meu baio portava-se com rara bravura e também o “Victor” de Fred, bufindo de quando em vez, e mantendo uma marcha parelha com a dos nossos animais.

Quando raiou o dia, estávamos uma dez milhas distantes do acampamento dos ogellallahs e salteadores de trem. Deixamos os cavalos descançar um pouco, enquanto eu escrevia o bilhete, que meti entre as cascas, no tronco de uma árvore, de modo que todo aquele que viesse do sul o pudesse avistar. Depois quebramos mais para a direita, rumo do sudoeste.

Ao meio-dia chegávamos ao Greenfork, mas num ponto muito distante do combinado para o encontro dos grupos de ogellallahs e bandoleiros. Estes eram obrigados, na sua marcha, a evitar o caminho por campos abertos, e cavalgariam através de matas e desfiladeiros. Nós, porém, podíamos seguir calmamente em linha reta; não cessamos de cavalgar até que o sol começou a se aproximar do poente.

Durante o dia, havíamos cavalgado mais de quarenta milhas inglesas, e era de admirar como “Victor” acompanhou os nossos cavalos admirávelmente, não ficando um só segundo para trás. Cavalgamos por entre duas serras, em busca dum ponto apropriado para acampamento. Inesperadamente, demos com um grande vale onde, no meio da planície, havia um lago. Este era alimentado por um arroio que para ele corria, vindo do leste e, depois de deixar o lago, prosseguia para o oeste, correndo pela saída da planície.

 

O CRISTIANISMO NO OESTE BRAVIO

Ao avistarmos aquele vale, paramos os cavalos, surpreendidos. A surpresa fora causada não pelo vale, mas por outra cousa. A serra que circundava o vale estava despida de matos e se desenvolvia num planalto agrícola, ao passo que na planície pastavam tropas de cavalos, bois, vacas, ovelhas e cabritos. Ao sopé da serra levantavam-se cinco casas de madeira, tipo fortim, e um sem número de cabanas semelhantes às adotadas pelos colonos na Alemanha. Lá, bem ao alto da colina, erguia-se uma igrejínha em cuja frente se elevava uma cruz com o símbolo de Jesus crucificado, esculpido em madeira.

Ao lado dessa capela havia numerosas pessoas que pareciam não nos ter avistado.

Olhavam para o poente, onde o sol mais e mais se sumia, colorindo admiravelmente a monumental visão panorâmica que apresentava o vale, Quando alcançamos o arroiozinho, repicou lá no alto o sino da capela.

Aqui, em pleno oeste bravio, nos confins do sertão, o símbolo de Jesus Crucificado! No meio dos marcos de guerra dos indígenas, uma capelinha! Tirei o chapéu e me pus, contrito, a rezar. Fui, porém, interrompido por Winnetou.

— Ti-ti. — Que é aquilo?

— Algum núcleo colonial que se estabeleceu aqui, sem dúvida — respondeu Walker por mim, à meia voz.

— Uff! Winnetou está vendo o núcleo colonial; mas que sino é aquele?

— O da capelinha. É hora do Ângelus e o sino toca a Ave-Maria!

— Uff! — fêz o apache admirado. — Que significa hora do Ângelus? Que é Ave-Maria?

— Espere um momento, depois lhe direi! — disse Fred, vendo que eu me achava de mãos postas.

Quando o sino cessou de repicar, subitamente se fêz ouvir um cântico sacro a quatro vozes. Fiquei abismado por ouvir naquelas paragens um cântico de igreja e no idioma alemão. Mas, mais admirado ainda fiquei quando compreendi o cântico. Era uma Ave-Maria.

Ei-la:

 

Despede-se da terra a luz do dia

e a noite sobre a terra, aos poucos, desce...

ah! se a pungente dor que nos crucia

passasse como a luz que desfalece!...

Ponho todas as súplicas ardentes

a teus pés, rumo a Deus, pura alegria,

e ajoelho no fervor feliz dos crentes...

Ave, Maria!...

 

Mas eu estaria sonhando? Era uma Ave-Maria de minha própria lavra a que estavam cantando! Como veio ela parar aqui no oeste bravio? Fiquei perplexo; mas quando os seus acordes harmoniosos, quais invisíveis ondas divinas, ecoaram colina abaixo, todo o meu ser parecia transportar-se para os céus e lágrimas abundantes rolavam-me pelas faces.

Achando-me de uma feita em Chicago, um amigo, que era professor de música, pediu-me que escrevesse uns versos com três estrofes para uma Ave-Maria de sua composição. Atendi-o solicitamente e, dias depois, em um concerto a ouvi cantar pela primeira vez e me convenci dos acordes melodiosos de sua música, que empolgaram de tal forma o auditório, a ponto de ter sido a Ave-Maria repetida por diversas vezes.

Agora, aqui na solidão da campina bravia, longe do meio civilizado, ouvi, pela segunda vez, com o coração sangrando de nostalgia, aqueles divinais acordes que nos envolviam todo o ser de misticismo! E, além disso, cantada por um quarteto tão afinado! Quando os últimos acordes daquela música divina se foram perder nas quebradas da montanha e na vastidão das campinas, num gesto impulsivo, detonei para o solo as duas cargas de minha espingarda e, dando de esporas no cavalo, galopei em doida carreira vale em fora, atravessei o arroio como uma bala e cheguei às casas, estilo fortim, sem olhar uma só vez para trás a fim de ver se os companheiros me seguiam.

Os meus dois tiros despertaram a vida no vale. As portas das casas se entreabriam e vultos apreensivos surgiam para ver que significavam aqueles estampidos. Quando se avistaram com um branco, trajado pouco mais ou menos como se usa nos meios civilizados, tranqüilizaram-se.

 

A COLÔNIA HELLDORF

Diante da porta da casa mais próxima, achava-se parada uma velhinha, uma terna velhinha. Tive ímpeto de apear e correr a abraçá-la e beijá-la! Uma verdadeira vovozinha, das que conservamos saudosa lembrança, desde a nossa meninice. A sua vestimenta era simples e muito asseada; o seu exterior todo denotava uma vida de agitada atividade. A sua fisionomia, emoldurada de cãs respeitabilíssimas, denotava uma existência de constantes trabalhos; era de uma doce expressão e abria os lábios num sorriso bondoso com que parecia acolher o netinho, depois de uma travessura. A sua aparência, enfim, era no seu todo de uma criatura que viveu e espera morrer segundo os ensinamentos da lei de Deus.

— Boa-noite, minha vovozinha! — exclamei com voz trêmula e os olhos ainda cheios de lágrimas. Por piedade, não se assuste! Somos gente honesta que desejamos viver em paz com todo o mundo!

Ela meneou suavemente a cabeça e respondeu:

— Seja bem-vindo, sir! Em nome de Deus, apeie e aproxime-se. A nossa casa está sempre franqueada à gente honesta! Ah! Lá vêm o meu marido e o meu filho Willy, que os acolherão também com o mesmo carinho que eu. Estamos à sua disposição para auxiliá-lo no que precisar, na medida de nossas forças!

Os cantores tiveram a sua atenção despertada pelos meu tiros e, apressados, desceram a colina e dirigiam-se para as suas casas. Os dois, a que a velhinha se referia, eram um ancião rústico e circunspeto e um jovem de aparência tão simpática, que se impunha à estima logo à primeira vista. Por trás deles, caminhava mais um grupo de cavalheiros. Todos ostentavam trajes de sertanejos. Todas as pessoas que haviam chegado à porta, uniram-se ao grupo. O velho estendeu acolhedoramente a sua mão direita, em sentido horizontal, e disse:

— Seja bem-vindo, sir, à colônia Helldorf! É para nós sempre uma grande alegria receber visitas em nossa povoação. Mais uma vez, seja bem-vindo!

Saltei do cavalo e correspondi à sua saudação.

— Obrigado, sir! Nada no mundo nos alegra tanto, como uma acolhida hospitaleira. É possível conseguir-se na colônia pouso para três pessoas?

— Ora essa! Então não havíamos de ter lugar para gente a quem desejamos boas-vindas, sir?!

Até agora faláramos inglês. De repente, porém, o jovem, que acompanhava o ancião, deu um passo para frente e exclamou, contemplando-me com visível interesse:

— Papai, o senhor pode falar alemão com esse cavalheiro! Hurra! Como isso nos alegra e nos honra! Então não o conhece mais?

O velho dirigiu-me olhares admirados e perguntou:

— O quê?! Trata-se de um patrício nosso? Conhece-o?

— Conheço-o, sim, mas primeiro preciso lembrar-me quem é. Ah! Mil vezes bem-vindo, senhor! Não é o senhor o poeta da Ave-Maria que acabamos de cantar há pouco?

— Tem razão, respondi. De onde me conhece?

— De Chicago. Eu era sócio da sociedade de cantores do professor Balding, o mesmo que musicou os seus versos. Lembra-se ainda do concerto no qual essa composição foi cantada pela primeira vez? Naquela época eu cantava no coro como tenor, agora, aqui na igreja, como baixo. Decaí um pouco na voz...

— Um alemão, um conhecido de Willy, o poeta de nossa Ave-Maria! Foi a exclamação uníssona que em torno de mim proferiram homens e mulheres, mocinhas e crianças que ali se achavam reunidas. Muitas mãos se estenderam para apertar a minha e muitas vozes me apresentavam boas-vindas, sem cessar. Foi para mim um momento de alegria, como raramente vivi.

Nesse meio tempo, Winnetou e Fred me haviam alcançado. À vista do primeiro, aquela boa gente começou a se tomar de cuidados; procurei, porém, tranqüilizá-la, dizendo:

— Apresento-lhes, aqui, Fred Walker, um caçador das planícies e Winnetou, o cacique dos apaches, do qual não precisam ter o menor receio!

— Winnetou? Mas será possível! — perguntou admirado o velho Hillmann — assim se chamava o ancião — contemplando o cacique. Já ouvi falar muito a seu respeito e sempre com elogios à sua nobreza de caráter. Nunca que eu esperava receber visita tão honrosa! Meus senhores, a vinda desse homem constitui um acontecimento auspicioso para a nossa colônia! Este homem é mais afamado e respeitado do que um príncipe, lá em nossa velha pátria.

Tirou o boné de sua cabeça encanecida, estendeu a mão ao apache e disse:

— I am your servant, sir. Sou seu servo, sir!

Confesso que essa atitude do velho, em face do nativo, provocou-me um leve sorriso; mas a sua intenção era sincera. Winnetou conhecia e falava muito bem o inglês. O cacique sacudiu amavelmente a cabeça, apertou a mão do velho e respondeu:

— Winnetou is your friend; he loves the whites if they are good. — Winnetou é seu amigo; ele estima os brancos, quando são homens de bem.

Depois disso surgiu uma animada discussão entre os colonos, discussão para nós muito honrosa e gentil. Cada um queria nos alojar em suas casas. Hillmann pôs fim à disputa, dizendo resolutamente:

— Apearam-se todos os três diante da minha casa; portanto todos são meus hóspedes e os senhores nada têm com eles! Mas para que também possam gozar dessa amável companhia, convido-os a todos para nos reunirmos esta noite lá em casa. Por agora, no entanto, deixem meus hóspedes em paz! Devem estar fatigados da viagem.

Todos concordaram e se dirigiram para suas casas. Os nossos animais foram pelo jovem Hiller conduzidos a uma estrebaria, e nós, acompanhados pelo velho entramos na casa. Recebeu-nos uma linda e jovem senhora, a esposa de Willy. A boa gente nos cercou de todo o conforto possível e, durante uma pequena merenda, que nos serviram, merenda que precedia o jantar que naquela noite, segundo notamos, ia ter o caráter de um grande banquete, viemos a conhecer a situação daquele pequeno núcleo colonial.

Todos os colonos haviam residido antes em Chicago.

Eram lapidários alemães, naturais dos Alpes bávaros, e em Chicago estiveram sempre juntos e unidos, ganhando dinheiro para a aquisição de uma granja. Eram ao todo cinco famílias. Reunido o dinheiro necessário para aquele fim, foi lhes difícil a escolha do local onde estabeleceriam a sua nova pátria. Nesse ínterim, um velho escoteiro falou-lhes dos três tritões e das riquezas acumuladas naquela região ainda não explorada. O campineiro lhes assegurara com todo o entusiasmo de sua convicção que o solo ali era riquíssimo em jazidas de opalas, calcedônias e outras pedras preciosas. Hillmann era um velho lapidário e esta notícia o entusiasmou. O seu entusiasmo contagiou também os demais e assim ficou resolvido que se estabeleceriam naquele local, onde os fomos encontrar. Mas aqueles alemães inteligentes foram bastante precavidos em não confiar tão cegamente nas riquezas do subsolo daquela região. Escolheram, pois, um local que se prestava também para o estabelecimento de uma granja, e só depois que esta estivesse em franco progresso, resolveriam sair à procura das riquezas do solo, descritas pelo campineiro. O velho Hillmann saíra em companhia de dois camaradas e encontrara aquela ubérrima planície do vale, em cujo planalto ficava o lago. O local prestava-se admiravelmente para o fim visado. Ali estabeleceram-se e agora, depois de três anos de trabalho, viam florescer o estabelecimento.

— E já esteve lá em cima nos três tritões? — perguntei ao velho.

— O meu Willy e o Bill Meinert, que o conhecem de Chicago, tentaram de uma feita escalá-los; atingiram, porém, apenas o lago de John Grays; dali por diante acharam a zona muito selvagem e íngreme. Não conseguiram ir adiante.

— Disso foram eles mesmos os culpados; não são homens do oeste — observei.

— Oh! senhor, penso que sim! — atalhou Willy.

— Perdoe-me declarar que mantenho a minha opinião. Com três anos apenas de estadia aqui, qualquer pessoa pode tornar-se um bom granjeiro, mas não um homem do oeste. O senhor quis alcançar os tritões indo daqui em linha reta e isso é humanamente impossível. E nem mesmo daqui a milênios ninguém conseguirá chegar aos tritões por esse rumo, muito menos agora, em que tudo está por desbravar. Como pretendia atravessar matas virgens intransponíveis, povoadas de ursos gigantescos e lobos ferozes, e precipícios onde em ponto algum conseguirá firmar o pé; por cannons, onde por detrás de toda rocha pode estar um indígena à sua espreita? Deveria, ao sair daqui, procurar primeiro atingir o Salt River e John Grays River. Ambos confluem para o Snake River, cujo curso depois seguiria. Mais adiante encontraria a montanha do Snake River, depois o Tritão Pass Mountain e, finalmente, a cadeia de tritões, numa extensão de mais de cinqüenta milhas inglesas. Dois apenas, dificilmente poderão levar a cabo uma tão perigosa viagem de exploração.

— Acharam algum diamante?

— Algumas ágatas e mais nada.

— Quero vê-las! Winnetou conhece todos os recantos das montanhas rochosas. Vou perguntar-lhe algo sobre aquela região.

 

O INÍCIO DA CONVERSÃO DO ÍNDIO AO CRISTIANISMO

Como eu sabia que o indígena só raramente, e contra a vontade, falava sobre jazidas de ouro e pedras preciosas, cuja existência conhecia, fiz a pergunta a Winnetou no dialeto dos apaches. Mesmo assim eu estava quase certo de que ele se negaria a me fornecer toda e qualquer informação.

— Pretende o meu irmão Carlos se entregar agora ao mau costume de procurar jazidas de ouro e diamantes? — perguntou-me o apache apreensivo.

Esclareci-lhe a causa por que lhe formulara a pergunta. Ele ficou pensativo; depois passeou o olhar nos presentes e finalmente perguntou:

— E aqueles homens satisfarão um desejo ardente de Winnetou?

— Qual?

— Se eles cantarem mais uma vez aquela canção que Winnetou ouviu, há. pouco, lá daquela colina, onde está a capela, lhes direi onde há minas inexgotáveis de diamantes.

Fiquei espantado no mais alto grau. Aquela Ave-Maria empolgara de tal modo o indígena que, para ouvi-la novamente, seria capaz de revelar os segredos das montanhas!

— Eles atenderão solicitamente ao seu desejo. Disto pode estar certo.

— Então que procurem a montanha de Grande Ventre. A zona é rica em jazidas auríferas. E no vale do rio Beaverdam, que deságua ao sul do rio Yellowstone, há inexgotáveis jazidas das pedras que aqueles peles-brancas procuram.

Quando eu transmitia aos granjeiros a resolução de Winnetou e indicava-lhes os locais das jazidas, entravam os primeiros convidados da noite, e tivemos que interromper a palestra.

Pouco a pouco, a casa se foi enchendo e festejamos uma noite como raramente acontece nas campinas. Os convivas sabiam de cor ainda todas as canções que entoavam lá na velha pátria. Como legítimos alemães, gostavam de cantar, e, num instante, formaram e ensaiaram um quarteto duplo. Mesmo o velho Hillmann possuía uma sofrível voz de baixo e assim os intervalos das palestras eram preenchidos por canções populares alemãs.

O apache ouvia em silêncio. Finalmente, aproximou-se de mim e perguntou-me no seu idioma:

— Quando cumprirão esses homens a promessa que me fizeram por seu intermédio?

Prontamente lembrei ao velho Hillmann a promessa feita a Winnetou e o quarteto começou a Ave-Maria. Mal haviam começado, o apache estendeu a mão para significar que parassem e exclamou:

— Não; aqui dentro de casa não produz o mesmo efeito. Quero ouvi-la cantada lá no alto da colina, como há pouco!

— Winnetou tem razão — opinou Bill Meinert. — Essa Ave-Maria produz mais efeito quando cantada ao ar livre. Vamos para fora!

Os cantores subiram um trecho da colina. Nós outros ficamos no vale. Nisso, os acordes maviosos da Ave-Maria encheram a planície, podendo-se entender bem a sua letra:

 

Despede-se da terra a luz do dia

e a noite sobre a terra, aos poucos, desce...

ah! se a pungente dor que nos crucia

passasse como a luz que desfalece!...

Ponho todas as súplicas ardentes

a teus pés, rumo a Deus, pura alegria,

e ajoelho no fervor feliz dos crentes...

 Ave, Maria!...

 

Ouvimos absortos e imersos em profunda devoção. A escuridão ocultava os cantores e o local onde eles se achavam. Era como se o cântico fosse entoado no céu. O compositor não tivera preocupações de imprimir ao trabalho modulações tendentes a introduzir efeito exagerado, nenhuma repetição e transposição, não desenvolvera forçadamente os motivos. A composição fora formada de acordes doces e a melodia era tão simples como qualquer melodia de um cântico de igreja.

Finda a vocalização, estivemos ainda absortos, parados na campina, e só o regresso dos cantores nos lembrou que devíamos voltar para a sala. Winnetou, porém, não nos acompanhou. Passou-se mais de uma hora sem que ele voltasse. Como nos achávamos numa zona de perigos, passei a temer pela sua sorte; pus a espingarda ao ombro e saí à sua procura. Antes, porém, pedi para os convivas não me seguirem e só virem em meu auxílio quando ouvissem o detonar de um tiro. Pressenti logo o que levara o apache à solidão.

Seguindo a direção onde o vira desaparecer, cheguei ao lago, à beira do qual se erguia uma rocha que avançava por sobre as águas. Sobre esta rocha vi o vulto do apache. Estava sentado e imóvel como uma estátua. A passos lentos me aproximei e sentei-me a seu lado, onde permaneci imerso também no mais religioso silêncio.

Passou-se muito tempo sem que ele se movesse e continuava meditativo a contemplar a serenidade das águas do lago; por fim, ergueu lentamente o braço e, indicando o lago, disse, como que saindo, aos poucos, de um êxtase profundo:

— Ti pa-aou-shi itchi — Este lago é como o meu coração!

Não lhe respondi, e ele voltou ao silêncio primitivo. Depois de uma longa pausa, disse:

— Ntch-nha Manitu nsho; shi aguan t’enese. — Manitu é bom; amo-o!

Eu sabia que, com uma resposta, iria interromper um sentimento que se lhe desenvolvia n’alma; por isso também agora não lhe respondi. Em vista do meu mutismo, o apache continuou:

— Meu irmão é um grande guerreiro e um homem sábio no conselho; minh’alma é como a sua, mas nunca mais o irei ver, quando morrer e seguir para as “Eternas Campinas”!

Ao pronunciar estas palavras o seu semblante se envolveu de uma tristeza mortal; era mais uma prova de quanto o apache se sentia unido a mim, pelos laços do coração; eu lhe respondi:

— Meu irmão Winnetou possui o meu grande coração; a sua alma vive nos meus atos; mas também eu nunca mais o tornarei a ver quando morrer e chegar ao paraíso dos cristãos!

— Onde fica o paraíso do meu irmão?

— E onde as “Eternas Campinas” do meu amigo? — atalhei-o emocionado.

— Manitu é senhor de todo o mundo e de todas as estrelas! — declarou.

— Por que concede o grande Manitu tão pequena parte do seu reino aos filhos peles-vermelhas e tudo aos filhos peles-brancas? Que é a “Eterna Campina” dos nativos comparada com o céu esplendoroso onde morarão, depois de mortos, os peles-brancas justos? Manitu, porventura, estima menos, os seus filhos vermelhos do que os brancos? Não! Os meus irmãos peles-vermelhas adotam uma crença que constitui uma formidável mentira. A religião dos peles-brancas diz: O bom Manitu é o Pai de todos os seus filhos indistintamente, tanto dos que estão na terra, como nos céus! A religião dos peles-vermelhas, porém, diz: “Manitu é apenas pai dos peles-vermelhas e ordena a estes que matem os peles-brancas! O meu irmão Winnetou é justiceiro e sábio; compare, pois, as duas crenças e tire as suas conclusões. O Manitu dos vermelhos não é também o Manitu dos brancos? E por que, então, lesa ele os direitos dos seus filhos peles-vermelhas? Por que deixa que eles desapareçam da face da terra, ao passo que permite aos brancos se multiplicarem aos milhões e dominarem o planeta? Ou quem sabe se o Manitu dos vermelhos não é o mesmo dos brancos? Neste caso, o Manitu dos brancos é mais poderoso e dotado de bondade mais excelsa do que o dos vermelhos! O Manitu dos brancos concede a estes toda a Terra com suas alegrias e esplendores, e nela os deixa dominar com a bênção dos céus, até a eternidade! O Manitu dos vermelhos concede aos seus filhos, apenas, as savanas bravias e incultas e as montanhas sáfaras, os animais das selvas e uma seqüência infinita de perigos e morticínios, e depois da morte, ainda os transfere para as “Eternas Campinas” onde continuam as caçadas e o morticínio! Os vermelhos acreditam nas palavras dos seus feiticeiros ou “homens de medicina” que pregam o princípio de que, depois dessa vida terrena, os guerreiros irão para as “Eternas Campinas” e lá exterminarão com as almas dos brancos! Logo, pois, no momento em que Winnetou se encontrar com o seu irmão Carlos, naquelas sangrentas campinas, terá que matá-lo, segundo os mandamentos de sua religião!

— Uff! — acudiu o apache nervosamente. — Winnetou defenderá a alma do seu irmão contra a investida dos peles-vermelhas! Howgh!

— Medite, meu irmão, e diga-me depois conscienciosamente se os feiticeiros dos indígenas não pregam uma religião que constitui uma formidável mentira!?

Ele ficou pensativo e eu me excusei de apressar a sua resolução, entrando em outras considerações de ordem religiosa.

Conheciamo-nos já de anos. Unidos, arrostáramos as mais duras vicissitudes, os perigos mais terríveis da vida, com estoicismo e espírito fraternal admiráveis. Mas nunca, satisfazendo-lhe um pedido, que fervorosamente me fizera, eu lhe falara de coisas de religião; nunca lhe procurei demonstrar que o seu credo religioso não era o verdadeiro, e muito menos ainda o converter ao cristianismo. Eu sabia muito bem que esta minha atitude mais ainda me elevava no seu conceito, e por isso a minha investida de agora nele produziria, sem dúvida, um efeito extraordinário.

Depois de uma pausa perguntou-me:

— Por que não são todos os peles-brancas como o meu irmão Carlos? Se possuíssem a alma boa e nobre como ele, Winnetou acreditaria nos seus sacerdotes, teria fé e se converteria à sua religião!

— E por que não são todos os peles-vermelhas como o meu irmão Winnetou? — respondi-lhe convincentemente. — Entre peles-branca como entre peles-vermelhas, há bons e maus. A terra é extensa milhares de dias de viagem. Meu irmão dela conhece uma pequena parte apenas. Em todo o mundo domina o pele-branca, mas, justamente na zona onde vive o meu irmão, nas savanas bravias, refugiam-se os peles-brancas que são obrigados a se escapar das leis do Bem. Por isso é que se arraigou em Winnetou a convicção de que a maioria dos peles-brancas são maus. Meu irmão erra pela solidão das campinas e montanhas; nessa digressão, caça os bisões e mata os seus inimigos. De que modo, pois, pode encontrar alegria? Não está a morte por trás de toda a árvore e de todo o tufo de moita a espreitá-lo? Algum dia pôde ter toda confiança, pôde dedicar toda a sua amizade incondicional a um pele-vermelha? Toda a sua vida até agora não tem sido de contínuos trabalhos, de apreensões, de vigílias e de decepções? Encontrará, porventura, paz e lenitivo para sua alma no meio dos escalpos da taba ou nas aldeias traidoras das selvas? O Salvador dos homens brancos, porém, disse: “Venham a mim os aflitos e desesperados, porque deles é o reino dos Céus!” E por que também o meu querido irmão Wínnetou não vai ter com ele?!

— Winnetou não conhece esse Salvador! — ponderou.

— Quer que eu lhe fale nele?

O apache baixou a cabeça e só depois de uma longa pausa respondeu:

— O meu irmão disse bem! Winnetou até hoje não pôde estimar ninguém a não ser o seu irmão Carlos; Winnetou nunca pôde confiar em ninguém a não ser neste grande amigo, que é um pele-branca e cristão. Meu irmão conhece os países da Terra e os seus povos; conhece todos os livros e ensinamentos dos brancos; é audaz na luta, sábio nos conselhos dos indígenas e quando necessário, implacável em face do inimigo. Ele estima os homens peles-vermelhas e é bem intencionado com eles. Nunca enganou o seu irmão Winnetou e tambem agora estou certo de que falou a verdade. As palavras de meu irmão valem mais para mim do que todos os ensinamentos de nossos “homens de medicina” reunidos e do que os ensinamentos de todos os peles-brancas. Os peles-vermelhas, quando praticam os seus deveres religiosos, urram e gritam; mas os peles-brancas entoam uma divinal música, que vem dos céus e se evola para o coração de Winnetou, deixando-o docemente embevecido! Queira o meu irmão traduzir-me as palavras cantadas hoje por aqueles brancos!

Traduzi-lhe e comentei-lhe o texto da Ave-Maria. Falei-lhe na religião dos peles-brancas, procurando expôr-lhe a atitude dos peles-brancas em face dos peles-vermelhas, com perspectivas menos sombrias; não apelei, para isso, para o prestígio de dogmas e sofismas, falei-lhe em termos despidos de atavios, num tom suave e convincente que penetrou no coração do ouvinte, deixando-o convicto; aceitara o ensinamento espontaneamente.

Winnetou ouviu-me em silêncio. Tive a impressão de haver iniciado a conversão sublime de uma alma nobre, digna de ser redimida do barbarismo das selvas e das campinas bravias. Quando terminei, ele ainda continuou mudo e imerso em profundas meditações. Não o interrompi, deixando que no seu espírito se desenvolvesse, em toda a sua plenitude, o efeito salutar de minhas palavras. Afinal, o cacique ergueu-se lentamente e me estendem a mão:

— Meu irmão disse-me palavras que jamais se apagarão de minha alma! — falou, respirando com alívio. — Winnetou jamais se esquecerá do bondoso Manitu dos peles-brancas, filho do Criador que por nós foi crucificado, e da Virgem que mora no céu e que ouviu a música dos colonos! A fé dos peles-vermelhas prega o ódio e a morte; a fé dos peles-brancas prega o amor e a vida. Winnetou vai refletir sobre o que escolherá: a morte ou a vida. Meu irmão, muito agradecido! Howgh!

Voltamos para a casa do colono, onde já estavam apreensivos pela nossa demora. Falavam, no momento, dos salteadores de trens e dos ogellallahs. Adverti aquela boa gente para fortificarem a sua colônia. Compreenderam o alcance de minha advertência e ficou resolvido ali mesmo tomar já no dia seguinte as necessárias providências nesse sentido. Era claro que a colônia até agora ainda não fora assaltada, devido à sua grande distância e posição privilegiada que não permitira ainda aos batedores peles-vermelhas darem com os olhos nela. Os catorze homens, que constituíam a colônia, estavam, é verdade, supridos de boas armas e munições, e também as mulheres, como as crianças mais desenvolvidas, possuíam coragem para empunhar uma arma e enfrentar os assaltantes; mas a zona era atravessada por hordas enormes de indígenas ferozes e de salteadores que poderiam se reunir em grande número para a realização dos seus criminosos objetivos! Eu, no lugar daquela gente, não teria construído as casas naquele local exposto, em um descampado, mas bem à margem do lago, de modo que a aldeia colonial só pudesse ser assaltada de um lado.

O caminho que os salteadores de trens pretendiam tomar passava justamente por aqui e seguia muito além; por isso preveni os colonos da necessidade de estarem alertas e de reforçarem os seus frágeis entrincheiramentos.

Já era tarde quando saiu o último dos convivas e nós nos deitamos para dormir. Dormimos, em camas fofas, postas à nossa disposição pelos Hillmans, aliás as próprias camas dos de casa, que nos cederam num rasgo elevado de gentileza e hospitalidade. Na manhã seguinte, nos despedimos daquela gente que tanto havia granjeado a nossa estima. Os homens acompanharam-nos até um trecho do caminho e nos obrigaram a prometer-lhes passar novamente uma noite na colônia, no caso da nossa jornada nos conduzir novamente pela zona.

Antes de se despedirem, os cantores se reuniram e vocalizaram a Ave-Maria para o apache. Quando terminaram, Winnetou estendeu a mão a todos, dizendo:

— Winnetou jamais se esquecerá da música maviosa e divinal que cantaram os irmãos peles-brancas! Jurei nunca mais tirar o escalpo a um pele-branca, pois os peles-brancas são filhos do bom Manitu que também ama os peles-vermelhas!

Essa resolução era o primeiro fruto de nosso colóquio da noite anterior e eu estava convencido de que minhas palavras iriam também produzir maiores efeitos daqui por diante. A palavra de Deus é a semente cujo germe se desenvolve ocultamente; mas, quando rebenta, rompe as crostas mais rijas e cresce rapidamente, florindo com abundância para produzir os mais deliciosos frutos!

Os nossos animais haviam descansado toda a noite da viagem puxada que tinham feito. Os habitantes da colônia Helldorf (Helldorf Settlement), nome este também de uma aldeia bávara, de onde os colonos eram naturais, seguidamente viajavam para a estação Echo-Cannon e nos descreveram detalhadamente o caminho mais curto para atingi-la. Assim é que, devido ao estado de nossos animais, esperávamos alcançá-la ainda naquele dia.

Winnetou, durante todo o dia, conservou-se num mutismo ainda maior do que de costume, e algumas vezes, quando se aproximava mais um pouco de nós, parecia que eu o ouvia entoando, em surdina, a música da Ave-Maria. Essa circunstância deixava-me admirado, pois o indígena, em geral, não possui ouvido para música.

Ao meio-dia, a serra se mostrava íngreme. Entramos por um labirinto cheio de admiráveis e embaraçosos desfiladeiros, até que, de um planalto, avistamos a meta de nossa viagem: a estação Echo-Cannon com a sua linha férrea e a gente, que íamos salvar, entregue à faina do trabalho.

 

Um funcionário em apuros

Por cannon entende o americano um profundo precipício de montanha. Isto dá uma idéia exata do local que agora atingíramos. O trem de há muito que já passava por Echo-Cannon, mas o assentamento dos trilhos fora feito provisoriamente; para a construção completa da linha havia tantas dificuldades a remover, que era necessário empregar naquele serviço numerosos trabalhadores.

Um pequeno desfiladeiro adjacente permitiu-nos descer e quando chegamos em baixo, encontramo-nos com os primeiros trabalhadores ocupados em fazer explodir uma enorme rocha. Dois estranhos, armados até os dentes e na companhia de um nativo, constituíam uma aparição que lhes despertava suspeita, razão por que largaram logo o serviço e empunharam as armas.

Acenei-lhes com a mão para não nos recearem e galopei até o local onde eles se achavam.

— Good day — saudei-os. — Larguem sossegadamente as espingardas. Somos de paz!

— Quem são os senhores? — perguntou um deles.

— Somos caçadores e trazemos uma notícia muito importante para os senhores. Quem está com a chefia, aqui, na Echo-Cannon?

— O chefe propriamente é o engenheiro coronel Rudge. Mas esse não está presente, e terão que se dirigir a Ohlert, o pagador da linha.

— Onde foi o coronel Rudge?

— Saiu chefiando uma expedição ao encalço de uma horda de salteadores de trem, que acaba de assaltar um comboio completo.

— Ah! E onde está o pagador Ohlert?

— Lá na frente, no campo; mora na tenda maior.

Dirigimo-nos para o local indicado e os trabalhadores nos acompanharam, curiosos, com os olhares. Depois de cavalgarmos cinco minutos, chegamos ao acampamento. Compunha-se de várias casas de madeira e de duas de alvenaria reconstruídas provisoriamente para atender às necessidades do momento. Cercava o grupo de casas um muro de pedra de cinco pés de altura, com um pesado portão que, naquele momento, estava escancarado.

Como não vi tenda alguma, perguntei a um trabalhador, que descansava apoiado ao muro, onde ficava a do pagador da linha. Este indicou-nos uma das casas de alvenaria. Na estação não se viam muitos trabalhadores e os poucos que ali se achavam, estavam ocupados em descarregar um vagão. Apeamos e entramos na casa. O seu interior compunha-se de um único compartimento, atulhado de caixões, bordalezas e sacos, prova de que também a casa servia de depósito de provisões. Estava presente uma única pessoa, um homenzinho baixo e esquelético que, à nossa entrada, se ergueu, de um caixão no qual estava sentado.

— Que deseja? — perguntou-me em voz débil e fixando-me olhares agudos. Depois deu com os olhos em Winnetou e recuou espantado. — Um índio, santo Deus!

— Não precisa temê-lo, sir. — acudi. — Procuramos Mr. Ohlert, o pagador?

— Sou eu! — respondeu-me com um olhar espantado que se coava pelos vidros dos seus óculos.

— Aliás, procuramos o coronel Rudge; mas como este se acha ausente e o senhor está respondendo pela chefia, permita-me que lhe diga, sir, a que vimos a esta estação.

— Fale — disse o homem olhando para a porta, prevenindo-se para a qualquer perigo, sair por ela...

— O coronel anda em perseguição de uma horda de salteadores de trens?

— Sim.

— Quantos homens levou consigo?

— É isso da sua conta?

— Bem, se não quiser dizer, não precisa. Quantos homens ficaram aqui?

— Também isso, creio, não é da sua conta!

— Está bem, vou dizer-lhe, então, a razão que me leva a perguntar-lhe. Tive que suspender a palavra, pois ali já não havia mais ninguém para eu falar... O pequeno e esquelético Ohlert, com alguns saltos originais e rápidos, passara por nós e saíra, porta a fora, em vertiginosa carreira. Fechou antes a porta com tanta violência, que as travas de ferro ritiniram. Estávamos aprisionados.

Olhei para os dois companheiros. Winnetou, em geral tão circunspecto, mostrava a sua dentadura de marfim rindo a bandeiras despregadas, o rotundo Fred fazia caretas como se tivesse ingerido alúmen com açúcar e eu também me ria a bom rir com a inesperada atitude do homem.

— Prisioneiros! — exclamou Fred. — Não é que o homem nos tomou por ladrões!?

Lá fora soou um apito e, ao me aproximar de uma janela tipo seteiras, vi os trabalhadores, ocupados na descarga do vagão, entrarem pelo portão que fecharam novamente. Eram dezesseis homens. Pareciam receber instruções do pagador; depois se dividiram em grupos dirigindo-se para as casas de madeira, sem dúvida em busca das armas.

— O ataque vai começar logo; que faremos? — perguntei aos companheiros.

— Acendamos um charuto para fumá-lo tranqüilamente — respondeu Fred.

Dizendo isso, agarrou uma caixa de charutos que se achava sobre um caixão e tirando um, começou a fumar fleumaticamente. Segui-lhe o exemplo. Winnetou, porém, não nos imitou.

Pouco depois, a porta foi cautelosamente entreaberta e a voz do pagador se fêz ouvir numa prevenção:

— Não atirem, canalhas! Do contrário serão fuzilados todos ao mesmo tempo!

Entrou, depois, à frente da turma de trabalhadores que se postaram de armas apontadas perto da porta, ao passo que ele, entrincheirando-se por trás dum fardo, nos apontava também o cano fino de uma espingarda de caça.

— Quem sãos os senhores? — perguntou com voz já segura, uma ver que, devido ao reforço dos trabalhadores, se julgava inatacável.

— Tolice! — exclamou Fred. — Há pouco nos tratava de canalhas e agora nos pergunta quem somos? É boa! Saia de trás desse fardo e só então falaremos com o senhor?!

— Era só o que faltava eu abandonar a minha trincheira! Mas, vamos depressa, quem são os senhores?!

— Caçadores das planícies do oeste bravio.

Como Fred parecia querer encarregar-se das respostas, conservei-me calado.

O pagador continuou:

— Como se chamam?

— Não é da sua conta!

— Ah! querem tornar-se renitentes! Já vou desprender-lhes a língua da abóbada palatina, disso podem estar certos. Que vieram fazer aqui na Echo-Cannon?

— Preveni-los!

— Prevenir-nos? De quê?

— Dos índios e salteadores de trem que projetaram o assalto desta estação.

— Psiu! Não se exponha ao ridículo, homem! Então não se vê logo que fazem parte da horda de salteadores e aqui vieram para, manhosamente, nos atrair a uma emboscada?! Mas, garanto-lhes, desta vez erraram o pulo. Nesta estação, os senhores tomaram o trem errado!

E dirigindo-se à sua gente:

— Agarrem esses malfeitores e os amarrem.

— Espere um momento! — acudiu Fred.

O campineiro levou a mão ao bolso. Calculei logo que ia exibir os documentos que o acreditavam como detetive, e disse-lhe com voz retumbante:

— Não é necessário, Fred. Deixa isto no bolso! Veremos se esses dezessete ferroviários são homens para vencer três legítimos campineiros! Todo aquele que contrair apenas um dedo contra nós será cadáver!

Dizendo isso, fechei o semblante o mais possível, pus a espingarda a tiracolo e tomei um revólver em cada mão. Winnetou e Fred me acompanharam no gesto. Um momento depois dessa demonstração de coragem, o “valente” pagador, saindo de trás do fardo que o abrigava, acocorou-se atrás de outro fardo, aparecendo apenas o cano da espingarda, apontada para o ar.

Quanto aos trabalhadores, esses não pareciam querer por nada censurar, com uma investida contra nós, o gesto covarde do seu chefe. Antes, descansaram as armas e formaram duas filas, deixando-nos passar tranqüilamente por entre elas.

Arre! Era essa a gente a que pretendíamos nos aliar para rechaçar o ataque dos ogellallahs e bandoleiros das campinas! Era uma triste história a que se poderia contar no dia seguinte!

Declarei aos “valentões”:

— Seria fácil prendê-los agora; não o faço, porém. Convidem o denodado Mr. Ohlert a sair do seu abrigo, para que possamos conversar calmamente. Assim é preciso, se não quiserem ser todos mortos pelos ogellallahs.

 

A SITUAÇÃO SE ESCLARECE

Depois de algum esforço, foi possível aos trabalhadores encontrar o chefe. Contei-lhe então tudo o que se passava, com todas as minúcias, não esquecendo nem os mínimos detalhes da situação que se avizinhava. Quando terminei o relato, o pagador, mortalmente pálido, continuou perplexo, sentado sobre uma mó de moinho, onde se abancara. Por fim, disse com voz indecisa:

— Agora creio no senhor, pois me lembro que o chefe de trem declarou que haviam desembarcado dois passageiros para abater uma cotovia. Então esse cavalheiro é Winnetou? Oh! quanta honra, sir!

A essa palavra, o raquítico ferroviário fêz uma profunda e respeitosa inclinação diante de Winnetou e prosseguiu:

— E o outro cavalheiro é o Mr. Fred Walker, conhecido por “gorducho Walker”? Oh! Quanta honra, sir!! E o senhor como se chama? Desejo também conhecê-lo!

Dei-lhe, naturalmente, o meu nome de família e não o de guerra, pelo qual eu era conhecido em todas as planícies do oeste bravio.

— Oh! Com que honra, sir! — repetiu outra vez, inclinando-se respeitosamente diante de mim. Depois prosseguiu: — Acham os senhores que o coronel encontrou o bilhete e resolveu voltar a toda pressa?

— Assim o presumo.

— Seria uma sorte para mim, creia-me! Dou-lhe minha palavra, juro-lhes até que folgaria muito se ele já estivesse de volta!

— Acredito, sem que seja necessário o senhor jurar e dar a sua palavra ...!

— Disponho apenas de quarenta homens, dos quais a maior parte estão fora trabalhando na linha. Não seria melhor abandonarmos a estação e nos tocarmos com tudo para a estação anterior?

— Mas que idéia, sir? Então o senhor é uma lebre que se espanta ao primeiro latido dos galgos? Que pensariam os seus superiores, senhor? Seria talvez imediatamente e sem mais formalidades exonerado, a bem do serviço público, do cargo que exerce!

— Quer saber de uma cousa, sir? Prezo mais a minha vida do que o cargo que exerço! Compreendeu?

— Compreendo muito bem, sim!... Quantos homens levou o coronel?

— Cem homens; os mais valentes e destemerosos.

— Logo vi que os valentes e destemerosos haviam acompanhado o coronel!...

— E de quantos indígenas se compõe a horda, sir?

— De mais de duzentos, fora os salteadores do trem.

— Ai, Jesus! Seremos esmagados ao primeiro golpe! Não vejo outro meio de salvação senão a fuga!

— Qual é a estação mais populosa desta zona?

— A de Pommery. Lá estão em serviço cerca de trezentos trabalhadores.

— Telegrafe então para lá e mande vir cem homens bem armados e municiados!

Olhou-me de boca aberta, estarrecido; depois se ergueu num salto e esfregou as mãos de contentamento, exclamando:

— Realmente, disso não me havia lembrado!

— Sim, o senhor, ao que parece, é um formidável gênio de estrategista! Os cem homens que tragam reservas de munições e provisões para nos servirmos, no caso de se exgotar o estoque aqui existente! E, sobretudo, tome nota do seguinte: essa remessa de pessoal deve ser feita debaixo do mais absoluto sigilo, pois do contrário os batedores que já devem andar perto, compreenderão que o seu plano foi descoberto. Frize isso no telegrama! Que distância há daqui até Pommery?

— Noventa milhas.

— Haverá lá uma locomotiva com vagões disponíveis?

— Sim, há permanentemente.

— Bem, neste caso, o senhor telegrafando já, o reforço aqui poderá chegar amanhã, ao romper do dia. Os batedores chegarão amanhã à noite; até lá temos muito tempo para reforçarmos a nossa posição. Providencie logo para que os trabalhadores aumentem de alguns pés a altura do muro que cerca o acampamento. O pessoal vindo de Pommery poderá ajudá-los amanhã nesse serviço. O muro deve ficar tão alto que os índios não possam olhar cá para dentro e ver quantos somos.

— Não adianta nada, pois avistarão tudo lá da montanha, sir!

— Não avistarão, não! Irei ao encontro dos espiões dos ogellallahs, e assim que der com os olhos neles, dar-lhe-ei um sinal. Ao sinal, todos se esconderão nas casas e os nativos julgarão que vão enfrentar menor número do que realmente somos. Ainda hoje fincaremos estacas ao derredor do muro, na parte interna; e nestas estacas pregaremos tábuas formando bancos donde a nossa gente poderá fazer fogo por cima do muro contra os atacantes. Se não falhar a minha previsão, o coronel com sua gente estará de volta amanhã pelo meio-dia. Então, juntos ao reforço que nos vem da Pommery, seremos duzentos e quarenta homens para enfrentar os duzentos sitiantes. Estaremos cobertos pelas paredes do muro; os peles-vermelhas, porém, não disporão de abrigos e não cantam com a violência de nossa reação. É possível que nós, já na primeira salva, os façamos retroceder de modo que nunca mais voltem.

— Em seguida os perseguiremos! — disse o esquelético homenzinho jubiloso, pois as minhas determinações o fizeram criar coragem.

— Isto veremos depois! Agora, porém, vá executar as medidas que lhe propus. Não se esqueça de que terá de fazer três cousas: arrumar-nos uma refeiçãozinha e um dormitório para a noite, telegrafar para Pommery e fazer o seu pessoal dar início ao trabalho do muro!

— Vou correndo, sir! Era só o que faltava eu fugir desses peles-vermelhas! E quanto aos senhores, servir-lhes-ei um almoço e um jantar com que hão de ficar satisfeitos. Eu, antigamente, já trabalhei de cozinheiro. Compreendeu?...

 

PREPARANDO A CONTRA-OFENSIVA

Para abreviar o caso: tudo foi disposto conforme a minha sugestão. Os nossos cavalos foram excelentemente forrageados e a nós foi servida uma suculenta refeição. Ohlert parecia de fato um perfeito conhecedor da arte culinária; era mais cozinheiro do que combatente... Os homens trabalhavam com febril atividade na elevação das paredes do muro. Trabalharam mesmo durante toda a noite, e, quando despertei de manhã cedo, me admirei de quanto adiantado estava o serviço. Ohlert enviara ainda, pelo trem, que passara à noite pela estação, verbalmente, a notícia para Pommery, mas o seu telegrama já fora recebido e o pedido satisfeito, pois, pela manhã do dia seguinte, chegou um comboio conduzindo os cem homens com tudo que havia sido solicitado.

— O pessoal passou imediatamente a tomar parte nos trabalhos de elevação do muro e, ao meio-dia, os mesmos estavam concluídos. Depois disso, determinei ainda que enchessem d’água todos os barris, bordalezas, enfim o que houvesse de vasilhame. Havia muita gente para se abastecer do precioso líquido e era bem possível que tivéssemos que resistir a um cerco de alguns dias, ou então algum incêndio a apagar, ateado pelos bandoleiros.

As estações vizinhas estavam prevenidas de tudo, mas, não obstante, tinham ordem de fazer trafegar os trens ordinariamente, a fim de uma interrupção voluntária do tráfego não despertar a atenção dos inimigos.

Ao meio-dia, depois do almoço, Winnetou, Walker e eu deixamos a estação para ir observar os espiões que deveriam chegar. Assumimos nós esta missão porque assim podíamos estar mais tranqüilos de ser desempenhada na devida forma. Aliás, nenhum dos ferrocarris se ofereceu para tomar parte nessa trabalhosa e perigosíssima tarefa. Ficou combinado que aquele de nós que voltasse com a notícia de haverem sido avistados os batedores, desfechasse defronte da estação um tiro de festim.

Tivemos que nos dividir em diferentes direções. Os indígenas viriam do norte, e naquela banda havia três rumos por onde podiam eles chegar. Eu segui pelo oeste da planície, Winnetou pelo meio e Walker pelo este, que era a mesma senda que nos trouxe à Echo-Cannon.

Depois de caminhar um trecho da planície, escalei as paredes de rochas, penetrei, em cima, na mata virgem e segui pela orla de um desfiladeiro adjacente, sempre pelo rumo norte. Após um quarto de hora, cheguei a um ponto que parecia haver sido feito especialmente para o propósito que eu tinha em vista. Em meio da mata virgem elevava-se uma gigantesca azinheira e ao seu lado um esguio pinheiro. Trepei neste até onde pude, e passei à azinheira onde, de ramo em ramo, e exercitando-me em malabarismos e em toda espécie de ginástica, subi o mais alto que me foi possível.

A densa copa da azinheira ocultava-me tão bem, que não podia ser visto; diante dos meus olhos, porém, a zona se descortinava ao longe e eu podia divisar os menores acidentes da planície. Aboletei-me o mais comodamente possível a um dos galhos da árvore.

Assim estive horas a fio sem que algo de anormal avistasse; mas esse jogo de paciência não desanimou o meu espírito de vigilância. Finalmente divisei ao norte, na mata, um bando de gralhas voando do cimo de umas árvores. Podia ter-se dado aquilo por mero acaso; mas as aves não levantaram vôo em bando unido como costumam fazer quando têm de tomar uma direção certa e uniforme. Ergueram-se espalhadas e voejavam indecisas por cima das árvores, indo depois, cautelosamente, pousar numa outra árvore mais adiante. Haviam sido, sem dúvida, espantadas por alguém, que chegava.

O fato se repetiu segunda, terceira e quarta vez. Agora já eu não podia ter mais dúvidas: chegava alguma criatura, rastejando pela mata e rastejando exatamente na minha direção. Desci apressadamente da azinheira e saí ao encontro daquele ponto, caminhando cautelosamente e desfazendo todos os sinais que deixava à minha passagem.

Assim cheguei a um bosque de faias, para cujo interior me dirigi sempre rastejando. Aí me deitei no solo e fiquei à espera. Não demorou muito, vi passar pelo meu esconderijo seis indígenas rastejando um atrás do outro. Os seus pés tocaram num galhinho seco produzindo ruído.

Eram os batedores dos ogellallahs. Vinham pintados com as cores de guerra.

Apenas eles haviam passado, saí, do esconderijo. Era claro que procurariam as mais densas matas para caminho; também deviam examinar cuidadosamente o solo para atravessá-lo. Isso tudo demandava-lhes muito tempo. Eu, porém, podia agora tomar em linha reta, a direção de Echo-Cannon, procurando abrigar-me em todos os acidentes do terreno. Podia, pois, tomar-lhes uma grande dianteira. Um quarto de hora depois, eu descia a parede da rocha e me encaminhava para a estação, ou melhor, para o acampamento dos ferroviários, que servia ao mesmo tempo de estação. Caminhava por sobre os trilhos quando, com surpresa, deparei com Winnetou que descia a montanha. Esperei-o e perguntei-lhe quando se aproximava de mim:

— O meu irmão pele-vermelha chega ao mesmo tempo que eu. Viu alguma coisa?

— Winnetou voltou porque não tinha mais nada a fazer. O meu irmão Carlos descobriu os batedores!

— Ah! Mas como soube disso, Winnetou?

— Winnetou estava aboletado no cimo de uma árvore e de binóculo nos olhos. Nisso, avistou longe, no oeste, uma árvore, ricamente copada. Lá era a zona do meu irmão e, como ele é um guerreiro sábio, logo calculei que se tivesse utilizado daquela árvore para sua espionagem. Depois de algum tempo, Winnetou divisou vários ponto negros no ar. Eram aves que se haviam espantado dos espiões. Isso deve também ter notado o meu irmão Carlos que, com este sinal, foi observar os batedores. Por isso o cacique dos apaches voltou para o acampamento, visto que os batedores ogellallahs chegaram.

Era mais uma prova de como o apache tinha os sentidos apurados.

O acampamento apresentava agora mais vida do que há pouco quando nos retiramos. Bem se via haver chegado mais pessoal. Quando ainda não havíamos atingido a planície fronteira à estação, veio um homem ao nosso encontro, um homem que ainda não tínhamos visto.

— Ah, os senhores vêm chegando da observação! O meu pessoal os viu descer a rocha e me avisaram. O meu nome os senhores já conhecem. Sou o coronel Rudge e venho trazer-lhes os meus agradecimentos por tudo o que vêm fazendo por nós. Eu quisera que...

— Deixemos isso para depois, coronel — fui logo atalhando. — Agora, em primeiro lugar, cabe-nos desfechar o tiro de festim para que o nosso camarada fique prevenido. Dê também as necessárias ordens para que o pessoal se recolha, pois dentro de um quarto de hora os batedores aqui estarão a nos observar.

— Well, seja assim. Vão entrando que não demorarei a ir ter com os senhores!

Momentos depois, estourou o festim e com tamanho estrondo, que Walker o teria ouvido. Em seguida os trabalhadores se recolheram às casas, de modo que se notava o vaivém apenas de poucas pessoas, ocupadas simuladamente nos trabalhos cotidianos da construção definitiva da linha.

Rudge nos procurou em seguida no depósito das provisões.

— Mas, antes de tudo, que observou na sua exploração, sir? — perguntou-me o coronel.

— Seis ogellallahs que são os batedores da horda.

— Well, já tomamos todas as providências para que o triunfo lhes saia às avessas! Mas, ouça: todos nós assumimos para com o senhor e seus companheiros uma grande dívida de gratidão. Diga-me qual a melhor forma de lhes demonstrarmos nosso reconhecimento?

— De um modo muito simples. Não nos falando em gratidão, sir! Encontrou o meu bilhete?

— Encontrei, sim.

— E seguiu as minhas instruções?

— Tanto prova que retrocedemos imediatamente. Do contrário não poderíamos já estar aqui. Quando pensa o senhor que chegarão os ogellallahs e salteadores de trem?

— Amanhã à noite, impreterivelmente.

— Ah! Até lá teremos tempo mais que suficiente para nos conhecermos bem, sir! — disse o velho militar, rindo-se. — Venha e traga consigo o amigo pele-vermelha! Os senhores serão meus hóspedes de honra!

Ele conduziu nos a uma outra casa de alvenaria, dividida em diversas seções. Uma delas constituía o seu alojamento e nela havia suficiente lugar para nós todos. O coronel Rudge era de uma natureza rija e eu tinha a impressão de que ele não recuaria, à investida dos mais ferozes indígenas. Conquistamos rapidamente a confiança um do outro; Winnetou, cujo nome já há muito o coronel conhecia, pareceu por sua vez agradar-se do militar.

— Vamos agora abrir o gargalo de uma garrafa, meus amigos, — disse o simpático engenheiro. — Temos muito tempo ainda para esperar os selvagens. Ponham-se à vontade e façam de conta que estão em suas próprias casas! O rotundo Walker quando chegar nos fará também companhia.

Tínhamos agora certeza de que fôramos avistados do alto da montanha. Baseavamo-nos nisso para a chegada dos indígenas. Fred não demorou a voltar; nada encontrara, mas ouvira o tiro de festim.

Enquanto era dia, não tínhamos nada que fazer; mas nem por isso se tornou monótona a tarde, pois o coronel vivera muitas aventuras e possuía uma boa palestra. Quando anoiteceu e os índios nada mais podiam ver do que se passava na estação, a fortificação do acampamento foi completada. Fiquei satisfeito em ver que todas as medidas por mim propostas mereciam a aprovação do coronel.

Assim passou-se a noite e também o dia que se seguiu. Estávamos em plena lua nova e a noite estendia o seu manto escuro por sobre os desfiladeiros. Depois, porém, surgiram as estrelas que enviavam uma tal claridade, que podíamos divisar tudo num vasto perímetro diante do muro.

 

RESISTÊNCIA VITORIOSA

Cada trabalhador, estava armado de uma espingarda e de uma faca. Muitos possuíam também revólveres. Como os indígenas só costumam levar a efeito os ataques depois da meia-noite, pouco antes do clarear do dia, destacamos para os bancos apenas algumas sentinelas, enquanto alguns outros caminhavam pela relva a palestrar com simulada despreocupação. Lá fora não soprava a menor brisa. Depois da meia-noite o pessoal se levantou e foi ocupar as posições indicadas. Eu, com Winnetou, me achava oculto no portão entreaberto e com a espingarda de repetição em riste. Distribuímos o pessoal em partes iguais pelas quatro faces do muro. Eram ao todo duzentos e dez homens, pois trinta foram destacados para uma posição oculta, a fim de vigiar os cavalos que lá se achavam guardados. O tempo corria como que carregado por uma lêsma. Muitos dos combatentes deveriam já supor que todos os nossos preparativos de defesa tinham sido em vão! Mas... ouçam! Lá adiante produziu-se um leve ruído que, ao ouvido menos ensaiado, poderia parecer o sopro de uma fagueira brisa: eram os inimigos que se aproximavam.

— Alerta! — sussurrei aos trabalhadores próximos de mim, que foram passando a palavra adiante, de modo que, dentro de um minuto, a ordem correra os quatro lados do muro. Vultos furtivos, sombras como se fossem espíritos, cruzavam-se no solo. Não se ouvia o menor som. Os indígenas nos cercavam. Estavam agora a seis passos das paredes do muro. Nisso, ressoou, no silêncio da noite, uma voz alta e sonora:

— Selkbi ogellallahs! Ntsagé sisi Winnetou natan Apaches! Shne ko. — Morte aos ogellallahs! Aqui está Winneou, o cacique dos Apaches. Fogo!

O apache detonou a sua espingarda de prata a cujo estampido um clarão rasgou o espaço ao derredor do muro. Para mais de duzentos tiros foram deflagrados. Apenas eu não atirara; eu queria esperar o efeito da nossa salva, que, como um aviso do céu, ressoara repentina e inesperadamente contra o inimigo. Durante um minuto fêz-se silêncio sepulcral. Mas depois reboaram aqueles ensurdecedores gritos de guerra dos selvagens, gritos que ameaçam arrancar-nos os nervos e moer os ossos. O inesperado de nossa salva havia tirado a palavra aos índios. Agora, porém, urravam com redobrada fúria.

— Mais uma vez, fogo! — comandou o coronel, com voz que se ouvia distintamente a despeito da ensurdecedora gritaria.

Uma segunda salva troou, e então comandou o coronel Rudge:

— Para fora, e uma carga de coronhaços!

Como uma bala, os trabalhadores saltaram o muro e investiram contra os atacantes. Mesmo os que antes se amedrontaram, lutavam agora como leões enfurecidos. Nenhum dos índios teve tempo de tentar a escalada do muro.

Eu fiquei no meu posto. Lá fora desenvolvia-se uma luta de vindita, que não podia durar muito tempo, pois os sitiantes haviam sofrido tantas perdas, que os sobreviventes só encontrariam salvação na fuga. Eu via os vultos negros correrem desordenadamente, sem rumo... Ah, ali vai um pele-branca! Depois outro! Os salteadores de trem que se haviam mantido a uma distância do teatro da luta, agora passavam pela minha frente.

Só agora apontei a espingarda Henri. Atirar vinte e cinco vezes ininterruptamente sem carregar a arma era para mim agora de grande vantagem. Dei oito tiros e depois não encontrei mais alvo para as minhas balas. Os inimigos, que não foram feridos, fugiram; os demais ou jaziam no solo, ou procuravam arrastar-se dali; mas não conseguiam, pois se não se rendessem incondicionalmente, seriam mortos.

Pouco tempo depois ardiam várias fogueiras lá fora, diante do muro e era de ver a farta colheita que a Parca ceifadora fizera naquela noite! Os meus olhos não resistiam à visão do quadro! Virei-me e me dirigi para os aposentos do coronel. Apenas lá entrei e me sentei, chegou Winnetou. Olhei-o admirado.

— O meu irmão pele-vermelha já de volta? Onde estão os escalpos dos seus inimigos, os sioux-ogellallahs?

— Winnetou não tirará jamais escalpo a pessoa alguma — respondeu. — Depois que ouvi aquela música cantada na colina, mato o inimigo, mas deixo-lhe o cabelo. Howgh!

— Quanto inimigos abateu o apache?

— Winnetou já não conta mais os seus inimigos que tombam em combate! Por que há de contar se o seu irmão Carlos não quis matar nenhum deles?

— Quem lhe disse que não?

— Por que não atirou a espingarda de meu irmão, até o momento em que passaram os bandoleiros peles-brancas em desordenada fuga? Só a estes Winnetou contou. São mais de oito. Jazem lá fora, não estão mortos, mas tão feridos que não podem locomover-se para continuar a fuga.

O número era exato. Portanto, eu acertara o alvo e alcançara o meu objetivo, que era pegar alguns salteadores de trem com vida ainda. Talvez entre estes estivesse Haller. Os demais eu nem queria ver, pois eu era uma criatura humana e um cristão.

Pouco depois, chegou Walker.

— Carlos, Winnetou, vamos lá fora! Ele agora está em nossas mãos, o canalha! — exclamou o gordo.

— Ele, quem? — perguntei.

— Ora, o Haller, aquele monstro de bandido!

— Ah! Quem o prendeu?

— Ninguém. Saiu ferido e não pôde continuar na fuga. É singular!” Oito salteadores saíram feridos e todos na mesma região do corpo: no tornozelo, de modo que não puderam mais caminhar.

— Realmente, é singular, Fred!

— Nenhum dos ogellallahs feridos se rendeu, preferiram morrer no campo da luta. Mas aqueles oito brancos suplicaram perdão! É uma vergonha!

— São graves os seus ferimentos?

— Não se sabe. Quem havia de ter tempo até agora para examinar os feridos! Por que está sentado aqui? Venha comigo lá para fora! Escaparam-nos no máximo uns oitenta inimigos.

Era horrível essa notícia! Portanto mais de cento e vinte indígenas, homens como quaisquer outros, cento e vinte vidas, muitas delas ainda novas e esperançosas, se evolaram! Mas merecia aquela gente outra sorte? Eles receberam naquela noite uma lição de que os sobreviventes nunca se esquecerão e contarão em muitas fogueiras! O quadro, que se via ao derredor do muro, tão dantesco era que pena alguma conseguirá descrever. E é melhor mesmo! Na manhã seguinte, ao olhar para os montes de cadáveres estirados, fui obrigado a retirar-me do local. Lembrei-me das palavras de um jovem intelectual de que “o homem é o maior animal de presa que existe no mundo!”.

Só com o trem da tarde chegou um médico que examinou os feridos. Ouvi-o dizer que Haller, atacado de tétano, não tinha mais salvação. O bandido, nem mesmo ao ouvir que o seu ferimento o levaria fatalmente à morte, não deu a menor mostra de arrependimento dos crimes que cometera. Walker esteve presente naquele instante. Veio correndo como um gamo, apesar de sua rotundidade, para junto de mim e exclamou:

— Carlos, levante-se! Precisamos sair já.

— Para onde?

— Para a colônia Helldorf, onde pernoitamos estes dias.

— Que houve lá?

— A colônia vai ser assaltada pelos ogellallahs.

— Deus de Misericórdia! Será possível? De onde soube essa notícia, Fred?

— Aquele Haller contou. Estive perto dele, sentado ao lado do coronel. Por essa ocasião referi ao chefe militar a acolhedora hospitalidade que recebêramos naquela colônia. Haller então soltou uma risada sardônica dizendo que semelhante acolhida nunca mais iríamos gozar naquela colônia. E, apertando-o, contou-nos que na volta dos ogellallahs a colônia ia ser atacada.

— Deus do céu, tomara que isso não seja verdade! Fred chame depressa Winnetou e mande buscar os nossos cavalos. Enquanto isso, vou ter com aquele Haller.

Eu ainda não vira o homem a não ser no dia em que o observei. Quando penetrei na casa de madeira, onde se achavam recolhidos os fétidos e prisioneiros, o coronel estava justamente junto dele. Mortalmente pálido, jazia sobre uma colcha ensangüentada e olhou-me com olhares de escárneo.

— O senhor chama-se Rolim ou Haller? — perguntei-lhe.

— Que tem o senhor com isso? — retrucou-me.

— Mais do que o senhor pensa! — assegurei-lhe.

Eu sabia muito bem que por meio de um interrogatório direto nada arrancaria dele; precisava conduzir a coisa por outro rumo.

— Não sei por que! O melhor é o senhor fazer a sua trouxa e ir dando o fora!

— Calma! Ninguém talvez tenha aqui tanto direito de lhe fazer uma visita como eu! — ponderei-lhe. — A bala que se acha alojada no seu corpo partiu da minha espingarda.

A estas palavras ele arregalou os olhos. O sangue subiu-lhe às faces de modo que a sua cicatriz entumeceu-se e ele berrou:

— Cão, está dizendo a verdade?

— A pura verdade!

A blasfêmia proferida então pelo bandoleiro contra mim não pode ser reproduzida aqui, tamanha a sua obcenidade; permaneci aparentemente calmo em face da mesma e respondi:

— Quis apenas feri-lo e agora, quando soube que em conseqüência da ferida iria morrer, tive compaixão do senhor e em silêncio recriminei-me pelo ato praticado. Agora, porém, como vejo que de fato é um indivíduo de sentimentos baixos, fico novamente com a consciência tranqüila. Prestei um grande serviço às pessoas de bem, ao mundo enfim, ferindo-o gravemente. O senhor e os ogellallahs não assaltarão e nem matarão mais pessoas honestas!

— Acha? — perguntou escancarando as longas dentuças como um animal carnívoro aprisionado. — Pois vá ao núcleo Helldorf e verá se é assim como diz!

— O núcleo colonial Helldorf está fortificado.

— Fortificado? Lá, dentro em breve, não existirá mais uma pedra sobre outra! Eu em pessoa fiz o reconhecimento desse excelente local e depois ficou combinado saquearmos primeiro a Echo-Cannon e, na volta, a colônia Helldorf. Aqui falhou o nosso plano, mas lá ele será executado na sua plenitude e os colonos terão que pagar com mil torturas aquilo que os senhores nos fizeram a nós e aos ogellallahs, nesta maldita estação!

— Está muito bem! Era exatamente isto o que eu desejava saber. Haller, o senhor é criminoso, mas ao mesmo tempo um grande imbecil! De posse dessa sua valiosa informação, cavalgaremos imediatamente para Helldorf a fim de salvar o que ainda é possível. E se os colonos foram aprisionados e arrastados para o acampamento dos ogellallahs, a fim de serem torturados, fique sabendo que penetraremos no mesmo para arrancá-los de lá! Isto tudo, no entanto, não nos seria possível realizar, se o senhor não tivesse dado largas à língua.

— O senhor poderá arrancar o diabo de lá, mas não os prisioneiros! — exclamou o bandido furioso.

Nesse ponto do diálogo, um companheiro de crime, um ferido que jazia ao seu lado, ergueu a cabeça e disse:

— Acredite Rolim! Este é muito capaz de, mesmo sozinho, arrancar os prisioneiros do acampamento dos ogellallahs. Conheço-o bem. É “Mão de Ferro”!

— “Mão de Ferro”! — exclamou então Rolim. — Com todos os diabos, por isso é que foram deflagrados oito tiros consecutivos! Pois então desejo que...

Virei-me e saí apressado para não ouvir o praguejar daquele malfeitor. O coronel acompanhou-me e perguntou tomado de admiração:

— Mas é verdade que o senhor é “Mão de Ferro”, sir?

— Sim. Aquele homem com certeza se encontrou alguma vez comigo nas minhas expedições de caça. Mas, coronel, o senhor terá que pôr pessoal à minha disposição. É preciso que sigamos sem perda de tempo para a colônia Helldorf a fim de ver se ainda é possível salvar aqueles pobres e laboriosos colonos.

— Hum! Meu caro sir, isto será difícil! Se fosse só por mim, eu estaria pronto a seguir imediatamente e levar todo o meu pessoal; mas sou funcionário ferroviário e, como tal, cabe-me cumprir com os deveres inerentes ao cargo.

— Mas, sir, então deixará, impassível, aquela pobre gente morrer nas mãos dos ferozes ogellallahs? Seria um gesto que lhe pesaria eternamente na consciência!

— Mas seja razoável, sir! Eu não devo abandonar o meu posto, a não ser numa emergência, como os últimos acontecimentos, me obriga a agir no interesse da viação férrea! Fora disso, também não me é permitido assumir o comando do meu pessoal e tampouco determinar-lhe que o acompanhe na expedição. Agora, uma coisa eu posso fazer e farei de todo o coração: dou-lhe licença para falar com os trabalhadores. A todo aquele que se dispuser a demitir-se do serviço da estrada para acompanhá-lo, eu não criarei dificuldade. Aos homens que o acompanharem fornecerei ainda cavalos, armas, munições e provisões com a condição de que os animais e as armas sejam mais tarde devolvidas a esta estação.

— Esta bem, fico lhe muito obrigado, sir! Estou convencido de que realmente é a única coisa que lhe é possível fazer. Não me leve a mal não me despedir agora do senhor. Tenho muita pressa. Se voltarmos, as nossas despedidas serão depois festejadas na devida forma.

 

A DESTRUIÇÃO DA COLÔNIA HELLDORF

Duas horas depois galopávamos Winnetou, Walker e eu à frente de quarenta homens bem armados e municiados, pelo mesmo caminho que nos trouxera a Echo-Cannon.

Winnetou não pronunciava uma só sílaba, mas os seus olhos faiscantes falavam mais eloqüentemente do que palavras. Se de fato aqueles jovens colonos fossem assaltados, ai dos atacantes!

Não fizemos uma única parada e cavalgamos a noite inteira. Conhecíamos perfeitamente o caminho. Creio que durante a longa viagem eu não pronunciei sequer cem palavras.

No dia seguinte, à tarde, chegávamos à orla da planície do vale, onde ficava situada a colônia Helldorf. Logo à primeira vista constatamos que Haller não havia mentido e que talvez já chegássemos tarde! As casas de madeira, que serviam de residências dos colonos, estavam reduzidas a escombros, onde apenas as cinzas ardiam!

— Uff! — exclamou Winnetou, apontando para a colina. — A casa onde rezavam os filhos do bom Manitu dos peles-brancas também foi destruída! Hei de esmagar esses chacais de ogellallahs!

Realmente, também a capelinha fora incendiada e destruída, e o crucifixo lançado ao solo! Invadimos a planície e cavalgamos direito aos escombros onde apeamos. Neste local deixei os ferroviários para que eles não me apagassem a senda dos salteadores. Apesar das longas e minuciosas buscas a que me entreguei, não descobri um único vestígio, um único sinal de ser humana. Chamei o pessoal para ajudar-me a revolver os destroços ardentes. Não encontramos nenhum cadáver, o que nos consolou bastante. Winnetou, logo ao apear-se, subiu à colina. Desceu logo trazendo o sino na mão.

— O cacique dos apaches encontrou a voz do céu — disse. -— Ele vai enterrá-la aqui até voltar vencedor desta expedição!

Enquanto Winnetou enterrava o sino, eu percorri com Walker todas as margens do lago para ver se os selvagens não tinham lançado ali os cadáveres dos colonos mortos. A busca foi sem resultado. Uma pesquisa minuciosa permitiu-nos concluir que o núcleo colonial fora assaltado à meia-noite; depois de consumado o ataque, os vencedores, conduzindo os prisioneiros e os haveres saqueados, se dirigiram para as fronteiras do Idaho e, de lá, para Wyoming.

— Ouça, minha gente: não devemos perder um só minuto de tempo! — exclamei. — Não podemos descansar ainda, pois é preciso que sigamos imediatamente a senda enquanto é dia e a podemos enxergar. Só à noite acamparemos para o repouso. Avante!

A essas palavras tornei a subir no cavalo e os demais me seguiram, sem titubear. O apache cavalgava na ponta e não tirava os olhos da senda dos celerados. Seria mais fácil matá-lo do que desviá-lo da pista, uma tal raiva e desejo de vingança agitavam-lhe todo o ser e também a nós todos! Éramos quarenta homens para enfrentar oitenta inimigos, mas na disposição de espírito em que nos achávamos, não se fazia conta do número do inimigo a enfrentar.

Ainda tínhamos umas três horas de dia claro e neste tempo vencêramos um tão grande trecho do caminho, que podíamos estar satisfeitíssimos com a contribuição de nossos cavalos para o êxito da empreitada. Depois disso acampamos a fim de repousar das longas fadigas de que estavam dominados cavalos e cavaleiros.

No dia seguinte, constatamos que nos achávamos próximos dos ogellallahs três quartos de dia de viagem, e mais adiante vimos que eles haviam cavalgado a noite inteira. O motivo dessa viagem apressada era mais do que óbvio. Winnetou, por ocasião do assalto à estação, bradara o seu nome na quietude da noite; eles sabiam, pois, muito bem, que seriam perseguidos; sabiam ainda que o apache estava no seu encalço, circunstância que só por si justificava a sua marcha forçada.

 

NA FURNA MACABRA

Como os nossos animais até então houvessem dado o máximo de suas forças, não nos convinha picá-los muito; da conservação de suas forças dependia em grande parte o êxito de nossa expedição. Daí o motivo de, em dois dias de viagem, não havermos nos aproximado mais dos perseguidos.

— O tempo passa — ponderou Walker — e nós chegaremos novamente tarde!

— Chegaremos ainda em tempo — repliquei. — Os prisioneiros serão conservados presos para serem depois submetidos ao poste das torturas, e isso só se dará quando os ogellallahs chegarem à sua aldeia.

— Onde se acha, agora, a aldeia daqueles nativos?

— Lá em cima, no Quacking-as-Ridge, — respondeu Winnetou — e nós alcançaremos os bandoleiros muito antes de chegarem ao seu destino.

No terceiro dia tivemos um grande transtorno: os vestígios se dividiram. Uma parte dos guerreiros se dirigiu para o norte e a outra, para o oeste. A primeira era mais numerosa.

— Pretendem nos despistar — argumentou Fred.

— Os meus irmãos peles-brancas queiram fazer alto. Os vestígios não devem, por enquanto, ser apagados.

Em seguida, fêz-me um aceno que compreendi logo. Eu devia examinar as pegadas que se desviavam para a esquerda e ele as da direita. Seguimos as nossas respectivas direções e os demais tiveram que nos esperar.

Cavalguei bem um quarto de hora. Era difícil averiguar o número de cavalos que por aqui passaram, pois cavalgaram um no rasto do outro, como é hábito entre indígenas, para confundir os perseguidores. Mas pela pressão no solo eu calculei que não poderiam ter sido mais de uns vinte animais. Durante as pesquisas notei uma pequena mancha azulada no chão e, ao lado, uma separação original dos grãos de areia, parecendo que naquele ponto fora esfregado algum objeto no solo. Voltei a galope e encontrei Winnetou que me esperava.

— Que encontrou meu irmão? — perguntei-lhe.

— Nada mais do que rastos de cavalos.

— Então avante pelo caminho de onde vim agora!

— Uff! — exclamou o apache.

Ele admirou-se da minha atitude resoluta e dela depreendeu que eu havia encontrado algum sinal positivo de por ali haverem sido transportados os prisioneiros. Quando alcancei aquele ponto, parei e perguntei ao rotundo Walker:

— Mestre Walker, o senhor é um velho campineiro. Examine esses vestígios, aí e responda-me o que eles significam!

— Vestígios? — perguntou o gordo. — Onde?

— Aí ao pé do seu cavalo!

— Ah! Que vestígio devia ser! Um redemoinho que agitou a areia, nada mais!

— Pois aposto com o senhor que Winnetou, desse sinal quase invisível, faz a mesma dedução que eu. Queira o meu irmão examinar o vestígio!

O apache apeou-se e examinou cuidadosamente a pegada. Depois respondeu:

— O meu irmão Carlos escolheu o caminho certo, pois por aqui passaram os prisioneiros.

— De que forma chegaram a tal conclusão? — perguntou Fred, meio incrédulo e meio encolerizado, por não possuir suficiente agudeza de espírito para concluir com acerto.

— Pois meu irmão que olhe atentamente para este vestígio — acudiu o apache. — Essa mancha azulada é de sangue, e aqui na frente é o sinal das mãos e adiante, do corpo de uma criança...

— Que caiu do cavalo, sangrando o nariz — acudi eu.

— Ah! — exclamou o gordo.

— Oh, isto é fácil de se deduzir! Mas aposto que encontraremos outros vestígios muito mais difíceis e trabalhosos de resolvermos! Avante!

Eu tinha razão. Não havíamos cavalgado nem dez minutos, quando chegamos a um solo pedregoso no qual cessaram todos os sinais da passagem dos ogellallahs com os prisioneiros.

Os trabalhadores tiveram que estacionar para não nos embaraçarem nas pesquisas. Não demorou muito que o apache proferisse um brado de alegria e me mostrasse um fio de tecido amarelo.

— Que diz desse fio, Fred? — perguntei-lhe.

— Trata-se do fio de uma colcha, nada mais!

— Sim, é um fio de colcha, ou antes de cobertor. Cortaram-no e com os pedaços envolveram os cascos dos animais para que não deixassem, rastos no solo. Agora é que precisamos concentrar os sentidos e apurá-los, bem!

Continuamos nas pesquisas e mais adiante encontramos um rasto mal apagado, produzido por uma sapatilha indígena. A posição do pé indicava nos o rumo tomado pelos nativos.

Seguimos por essa direção, e, depois, fomos encontrando outros pontos, de partida, até finalmente constatarmos que a horda por aí passara morosamente. Depois de muito tempo, as pegadas tornavam-se cada vez mais visíveis. Haviam livrado os pés dos animais daquela atadura, e, por fim, verificamos com precisão que, ao lado das alimárias, os indígenas caminharam a pé.

Essa atitude dos nativos era singular e deu-me na vista. Subitamente Winnetou parou o cavalo e, olhando ao longe, fêz um gesto de quem se tinha recordado de alguma cousa.

— Uff! — exclamou. — Lá está o cume da montanha que os brancos, chamam de Hancok.

— Que há de particular naquela montanha? — perguntei.

— Winnetou agora descobriu tudo! Na furna daquela montanha costumam os sioux oferecer os prisioneiros em holocausto ao Grande Espírito? Aqueles ogellallahs se dividiram. A coluna mais numerosa cavalgou pela esquerda a fim de trazer o resto da tribo para a furna do sacrifício, e a coluna menor conduz os prisioneiros para lá. Vários prisioneiros foram amarrados aos cavalos, razão por que os índios caminharam a pé.

— A que distância fica aquela montanha?

— Chegaremos lá à noite.

— Impossível! A montanha de Hancok fica situada entre o extremo alto do rio das Cobras e o rio Yellowstone.

— O meu irmão não deve se esquecer de que existem duas montanhas com o mesmo nome de Hancok!

— Conhece, Winnetou, a verdadeira?

— Sim. É aquela.

— E também a sua furna?

— Sim. Winnetou celebrou nela uma aliança de amizade com o pai do cacique Ko-itse, aliança que o atual cacique rompeu. Os meus irmãos terão que abandonar agora a senda e seguir confiadamente o caminho pelo qual os vai conduzir o cacique dos apaches!

A essas palavras, esporeou o cavalo e seguiu a galope; nós o acompanhamos. Atravessamos vales e desfiladeiros até que a montanha subitamente se abriu à nossa frente e se desenvolveu uma planície, que parecia confinar novamente com a montanha, no horizonte longínquo.

— Ali fica a “Planície Sangrenta”, — J-akom akono — no dialeto dos teuas — declarou Winnetou, sem fazer o animal diminuir o galope.

Estávamos, pois, diante da infernal “Planície Sangrenta”, de que tanto eu ouvira falar! Neste local, as tribos reunidas dos dakotas soltavam os prisioneiros e estabeleciam as coisas de tal maneira, que eles se engalfinhavam numa terrível luta corpo a corpo. Naquela planície maldita milhares e milhares de inocentes foram sacrificados no poste das torturas, tendo morte a fogo lento, e sofrendo ainda uma série infindável de outros martírios. Para esta zona não se aventura o índio mais audaz de uma tribo estranha e muito menos ainda elementos da raça branca. Nós, porém, cavalgávamos agora pela planície da maldição com uma fleuma idêntica a de quem ia caçar perdizes... O nosso guia a essa zona nefasta não podia mesmo ser outro senão um Winnetou!

— Esta é a montanha de Hancok! — observou o apache.

— E a furna? — perguntei.

— Fica situada do outro lado da montanha. Dentro de uma hora, o meu irmão a avistará. Queira acompanhar-me, mas deixe aqui a sua espingarda.

— Apenas eu?

— Sim, só o meu irmão. Achamo-nos agora na região da morte! “Só mesmo homens muito afeitos ao perigo é que conseguirão resistir. Os demais irmãos peles-brancas queiram ocultar-se debaixo das árvores!”.

A montanha, em cujo sopé nos achávamos, tinha uma configuração vulcânica, e a sua largura era talvez a de três quartos de hora a cavalo. Depus as duas espingardas e acompanhei Winnetou, que tomou o rumo oeste da montanha a fim de escalá-la. A escalada foi penosa e o meu guia realizava-a com uma precaução admirável, como se por detrás de qualquer arbusto houvesse um inimigo a espreitá-lo. Assim durou mais de uma hora até chegarmos ao cume.

— O meu irmão queira ficar silencioso e se ocultar! — sussurrou-me, enquanto deitava-se de ventre em terra e rastejava por entre uns tufos de arbustos.

Acompanhei-o e quase retrocedi espantado, pois, quando meti a cabeça entre a ramagem dos arbustos, topei com o precipício escarpado de uma cratera, cuja orla eu podia alcançar com o braço. O referido despenhadeiro estava encoberto apenas por uns pequenos tufos de vegetação e tinha a profundidade mínima de cento e cinqüenta pés. Em baixo, formava uma esplanada de cerca de quarenta pés de perímetro e lá se achavam com os braços e pés amarrados os... colonos de Helldorf por nós procurados. Dominei o espanto e passei a contar os prisioneiros. Não faltava nem um; mas estavam vigiados por numerosas sentinelas ogellallahs. Examinei os mínimos detalhes da cratera para ver se por ela se podia descer. Sim, com um pouco de audácia seria tarefa viável e mais viável ainda seria o nosso propósito se descobríssemos um meio de imobilizar as sentinelas. Havia vários blocos de rocha pela escarpa, que nos poderiam servir de ponto de apoio para a descida.

Neste momento Winnetou retrocedeu e eu o acompanhei.

— Esta é a furna da montanha? — perguntei.

— Sim.

— Onde fica a sua entrada, propriamente dita?

— No flanco leste. Mas ninguém a conseguirá forçar.

— Então vamos descer por aqui. Estamos supridos de laços e os ferroviários possuem muitas cordas.

Ele acenou e nós começamos a descida da montanha a fim de voltar para junto dos companheiros. Eu não podia conceber a razão por que os índios não guarneciam o flanco oeste da montanha. Se o fizessem, pois, ser-nos-ia difícil, senão impossível, aproximarmo-nos sem sermos vistos.

Quando chegamos em baixo, o sol ia desaparecendo no ocaso. Demos início aos nossos preparativos. Reunimos todas as cordas e, amarrando umas às outras, formamos um enorme laço. Winnetou escolheu vinte dos trabalhadores ferroviários mais arrojados; os demais ficariam de sentinela junto aos cavalos. Dois deles, ficaram com a incumbência: primeiro de montar a cavalo, depois de transcorridos três quartos de hora de nossa partida; em segundo de, descrevendo um semicírculo, em torno da montanha, acender uma fogueira lá ao longe na planície, mas de modo que esta não incendiasse. Depois disso, deviam voltar em desabrida marcha. Essa fogueira tinha por fim desviar de nós a atenção das sentinelas.

 

A COMOVENTE E DERRADEIRA DESPEDIDA DE WINNETOU

O sol ia desaparecendo e o poente coloria-se de tintas rubras, que pouco a pouco se transformavam em púrpuras sombrias, as quais por sua vez se desbotavam até serem completamente apagadas pela escuridão da noite. Winnetou deixara o local onde nos achávamos. Nesta última hora ele estava mudado; era diferente do Winnetou de sempre. O seu olhar firme e sereno transformara-se num original pestanejar contínuo e nervoso. A sua fronte sempre tão lisa, achava-se enrugada, como que a dar mostras de preocupações dolorosas. Perturbara-se o equilíbrio do seu interior, sempre tão sereno e tranqüilo. Acabrunhava-o alguma coisa e eu não só tinha o direito como também o dever de perguntar pela causa de sua transmutação. Por isso segui-o para falar-lhe a sós.

Fui encontrá-lo na orla da mata, apoiado ao tronco de uma árvore; com olhos esbugalhados olhava para o horizonte, onde há pouco o sol desaparecera, e contemplava o panorama pitoresco a transformar-se em densa sombra. Não obstante haver eu caminhado muito de leve e não obstante também achar-se ele imerso em dolorosa meditação, ouviu os meus passos e descobriu logo quem lhe vinha falar.

— O meu querido irmão Carlos veio para ver o seu irmão Winnetou. Fêz muito bem, pois não tardará que não o veja mais!...

O cacique pronunciou essas palavras com inflexão dolorosa e triste na voz.

Pus-lhe a mão sobre o ombro e respondi-lhe:

— O espírito de meu irmão Winnetou está povoado de imagens sombrias? Dissipe, por piedade, essas imagens! Quero vê-lo ainda durante longos anos!

Ele ergueu o braço e apontou para o poente:

— Lá, ainda há pouco, ardia e flamejava o fogo da vida; agora o fogo apagou-se e tudo ficou envolto em sombras. Vá até lá! Ser-lhe-a possível dissipar as que estão caindo?

— Não; mas a luz tornará a surgir na aurora e o dia romperá de novo cheio de vida e esplendor!

— Sim, amanhã começará um novo dia para a montanha de Hancok, mas não para Winnetou! O sol, que me ilumina a vida, desaparecerá no seu ocaso, tal qual desapareceu aquele lá, mas para nunca mais ressurgir aqui neste mundo! A primeira aurora que eu defrontar me sorrira no Além!

— São pressentimentos fúnebres a que meu querido irmão jamais se deve entregar! Sim, esta noite será memorável em perigos para nós, não há dúvida. Mas quantas e quantas vezes, unidos, temos enfrentado a morte, olhando-lhe nos olhos, face à face, e no entanto não a temos sempre repelido de nós? Afaste esses pensamentos sombrios que lhe acabrunham a alma! Há a sua razão de ser que é unicamente devido às fadigas e agitação que nos têm proporcionado estes últimos dias.

— Não! Winnetou jamais se entregou à fadiga e à agitação de espírito! Não houve até hoje agitação de espírito capaz de roubar-lhe a alegria e a tranqüilidade íntimas! Meu irmão, meu amigo sincero de tantos anos, “Mão de Ferro”, sabe que eu estava outrora sedento pela água da sabedoria. Ele, dela me fêz beber com fartura. Estudei e aprendi muito, muito mais mesmo do que todos os meus irmãos peles-vermelhas; entretanto não deixei de ser o que era antes, um pele-vermelha, um selvagem, como dizem os peles-brancas! O pele-branca se assemelha ao animal doméstico que dominou os instintos; o indígena, ao animal selvagem que não só conservou apurados os seus sentidos, como também consegue ouvir e cheirar com a alma. O animal selvagem sabe muito bem quando a morte dele se aproxima; não só a pressente, como também sente que ela vem chegando e, por isso, embrenha-se no mais denso recanto da mata, para, ali, esperá-la tranqüilamente. E esse pressentimento e esse estado d’alma dominam, neste instante, todo o ser de Winnetou.

Apertei-o de encontro ao meu peito e respondi-lhe:

— E mesmo assim, esse pressentimento e esse estado d’alma não passam de uma ficção. Já teve alguma vez semelhante pressentimento?

— Não.

— Portanto é hoje a primeira vez que o tem?

— Sim.

— Como então pode conhecê-lo? Como então pode saber que se trata de um prenuncio da morte que se avizinha?!

— É tão certo, tão certo! Uma voz íntima está constantemente a me dizer que Winnetou morrerá hoje com o peito varado por uma bala. Sim, só mesmo uma bala traiçoeira conseguirá matar Winnetou; um golpe de faca ou de machadinha o cacique facilmente desviará de si! O meu irmão pode crer-me: irei hoje para as “Eternas Camp...”

Suspendeu a frase. Ao dizer “Eternas Campinas” ainda estaria com a crença dos selvagens. Que coisa o conteve de pronunciar a frase toda? Eu bem sabia: o apache, com o meu convívio, tornara-se intimamente um cristão, embora viesse sempre guardando reserva sobre essa conversão. Depois, colocando-me fraternalmente o braço sobre o ombro, retificou a frase que ia proferindo:

— Irei hoje para onde seguiu o Filho do bom Manitu, a fim de nos preparar a moradia na casa de seu Pai, para onde o meu querido irmão “Mão de Ferro” me seguirá, um dia! Lá nos tornaremos a ver e então não haverá mais distinção entre os filhos peles-brancas e peles-vermelhas do nosso Pai, que a todos dedicará o mesmo amor, o mesmo carinho! Reinará paz eterna entre peles-brancas e peles-vermelhas! Lá ninguém exterminará uma raça que foi boa e nobre, recebendo os primeiros peles-brancas que aparecem em suas tabas com uma consagração quase divina, mas que, em paga disso, foi enxotada cada vez mais para longe, e por fim exterminada da terra! Lá o bom Manitu, o Pai de nós todos, empunhará a balança de sua justiça a fim de pesar as ações dos peles-brancas e peles-vermelhas e o sangue inocente que foi derramado. Winnetou, porém, estará ao lado do Pai nosso a clamar por indulgência e compaixão para os assassinos das nações peles-vermelhas, que, afinal, são também seus irmãos!

Apertou-me novamente de encontro ao peito e conservou-se num profundo mutismo. Eu me achava profundamente consternado, pois uma voz íntima também estava constantemente a me dizer: “O seu instinto não o engana hoje, como nunca o enganou; o que ele está dizendo é a pura verdade!” Entretanto, dominei a comoção e disse:

— O meu irmão Winnetou pensa ser mais forte do que realmente é. Não há dúvida, ele é o mais valente e poderoso guerreiro da sua tribo, mas, no fundo, um homem como qualquer outro. Nunca o vi dominado pelas fadigas e agitado pelas tempestades da vida. Hoje, porém, pela primeira vez, se viu acossado pela fúria daqueles elementos perturbadores da nossa tranqüilidade moral e física. Também esses últimos dias e essas últimas noites exigiram demasiadamente de nossas forças! Tudo isso concorre para oprimir-nos a alma, para enfraquecer em nós a confiança que em nós próprios temos. O seu cérebro está acabrunhado por nuvens sombrias que dissiparão assim que o seu físico recuperar a energia um tanto abalada pelo cansaço. Queira o meu irmão repousar um pouco. Queira deitar-se junto às sentinelas que, ao sopé da montanha, ficarão guarnecendo os nossos cavalos!

Ele sacudiu lentamente a cabeça e respondeu:

— O meu irmão Carlos não está dizendo isto a sério.

— Como não? Pois já vi a furna da montanha e a medi com os olhos; estou em condições de dirigir, sozinho, o ataque.

— E eu não devo estar presente?

— Já fêz muito. Agora tem direito a um repouso!

— E tu também não fizeste muito, muito mais ainda do que eu e do que qualquer dos outros? Pois aqui eu não fico! — respondeu resoluto e com os olhos faiscantes.

Pela primeira vez o meu inolvidável amigo tratava-me por tu.

— Mesmo que te suplique para que fiques, mesmo que eu exija este sacrifício em nome de nossa velha amizade?

— Não, nem assim! Queres que digam haver Winnetou, o cacique dos apaches, temido a morte?

— Ninguém se aventurará a afirmar semelhante infâmia!

— E mesmo que todos silenciassem em torno dessa ignomínia, um ainda restava perante o qual minhas faces se cobririam de vergonha diante de semelhante covardia!

— Mas perante quem?

— Perante mim mesmo! Eu ouviria dia e noite imprecações contra aquele Winnetou, que se deitou a dormir calmamente enquanto o seu irmão Carlos arrastava todos os perigos sem temer a morte! Esta voz me chamaria de covarde, de indigno da honra de ser cacique do meu povo. Não, não me fales em ficar aqui! Então pretendes tu, meu irmão Carlos, ainda que em silêncio, me classificar de coiote? Queres que Winnetou se despreze depois a si mesmo? Não; mil vezes, milhões de vezes a morte!

Tive que me cingir ao seu desejo, porque, realmente, Winnetou, após se convencer de não haver procedido conforme determinava o seu instinto de guerreiro, sucumbira, ralado de dores! Depois de uma pausa, ele prosseguiu.

— Muitas vezes já estivemos perto da morte e o meu irmão esteve sempre pronto para morrer, tendo escrito no livro de notas o que deveria eu fazer depois que tombasse num combate. Logo depois era para eu lhe tirar o livro do bolso e executar aquilo que lá estivesse escrito. Isto os peles-brancas tratam de testamento. Winnetou também fêz o seu testamento, mas até agora não disse nada a ninguém. Hoje, porém, como pressente a morte próxima, terá que falar nele! Queres ser meu testamenteiro?

— Sim! Embora eu saiba que o teu pressentimento não se realizará e que ainda viverás muitíssimos anos, cheio de vida e saúde; mas, se morreres antes que eu e eu estiver de posse de tua última vontade, será para mim dever sagrado executá-la religiosamente!

— E mesmo que a satisfação de minha última vontade te demande os maiores perigos?

— O meu irmão Winnetou não está perguntando isso a sério? — Mande-me diretamente ao encontro da morte, que irei!

— Sei disso, Carlos! Por minha causa, serias capaz de pular até na boca de um dragão. Tu farás o que te peço, por assim dizer in extremis Tu, só tu serás capaz de executar a minha última disposição testamentária.

Lembra-te ainda de quando falamos, ao tempo em que não nos conhecíamos tão bem como agora, a respeito de riquezas?

— Lembro-me muito bem.

— Percebi daquela feita, pela inflexão de tua voz que talvez pensavas diferente do que me falaste. O ouro tinha então grande valor para ti. Não adivinhei bem?

— Pelo menos não te enganaste de um todo... — confessei.

— E agora? Falar-me-ás com toda franqueza sobre o assunto?

— Todo o pele-branca conhece o valor de uma riqueza, de uma fortuna, seja de que forma fôr, adquirida por meios honestos. Contudo, não anseio por valores inanimados e gozos materiais. A verdadeira felicidade a que o homem pode aspirar está nos tesouros que se acumulam no coração e não nos que se guardam nas arcas de ferro ou madeira!

— Eu sabia que hoje tinhas esse modo de pensar. Tu sabes muito bem que conheço numerosos lugares onde há ouro, tanto em grão como em pó, que bastaria indicar-te um deles para te tomares um homem muito rico; em compensação, porém, não serias mais... um homem feliz. O bom e generoso Manitu não te criou para navegares no meio de riquezas. A tua robustez física e a tua alma de arminho estão destinadas a finalidades mais elevadas. És um homem nobre e um homem nobre deves continuar; por esta razão sempre estive resolvido a não te revelar nenhuma das minhas jazidas auríferas. Zangas-te com essa minha atitude?

— Não — respondi e desta vez sinceramente. Achava-me diante do maior amigo que encontrei na vida; ele sentia a morte aproximar-se e confiava-me as suas últimas disposições. Como podia eu demonstrar, sem remorsos, ser um ambicioso por possuir ouro, ouro que o meu amigo, por princípio e instinto, repudiava?!

— Entretanto, irás saber onde há ouro, muito ouro mesmo! — continuou o cacique. — Mas... este ouro eu não o destino a ti. Quando eu morrer, procura logo a sepultura do meu pai; tu sabes onde está ela situada. Quando chegares ao pé dela, justamente em direção ao oeste, cava a terra e encontrarás ali enterrado o testamento de Winnetou, que então já não mais estará ao lado do seu querido irmão e amigo “Mão de Ferro”! Nesse testamento estão as minhas últimas disposições. Cumpre-as.

— A minha palavra vale como um juramento! — assegurei-lhe, com os olhos rasos de lágrimas. — Nenhum perigo, por maior que seja, me impedirá de cumprir ou fazer cumprir a tua derradeira vontade!

— Agradeço-te, meu querido irmão! Estamos combinados. Não sobreviverei ao combate de hoje. Chegou, pois, o momento de nossa despedida, meu irmão, meu querido Carlos! O bom Manitu há de pagar-te o muito e muito que fizeste pelo teu irmão Winnetou! O meu coração neste momento sente muito mais do que podem dizer as minhas palavras! Não choremos, Carlos, sejamos homens até o fim! Sepulta-me nas montanhas do Grande Ventre, à margem do rio Metsur. Enterra-me montado no meu cavalo com todas as armas, inclusive a espingarda de prata que não deverá passar a outras mãos. E quando voltares para o meio daquela gente, onde ninguém neste mundo jamais te estimará tanto como te estimou o teu amigo e irmão Winnetou, pensa sempre em mim. Agora te abençôo também, porque para mim fôste sempre uma bênção dos céus!

Ele, o indígena, o “selvagem”, pôs a mão sobre a minha cabeça. Percebi o esforço inaudito que ele fazia para conter os soluços; não pude mais: apertei-o contra meu peito e caí num convulsivo pranto. Depois, com a voz embargada pelos soluços, exclamei com desespero:

— Winnetou, meu querido Winnetou, isso é apenas um pressentimento vão, uma nuvem passageira! Tens que ficar comigo, não podes morrer, não quero que morras!

— Eu vou morrer, sim! — disse baixinho e resolutamente; desvencilhou-se, com esforço, de mim, procurando dominar a sua comoção, e saiu correndo para o lugar onde ficaram os companheiros.

Ao seguir-lhe, em vão tentei conceber um meio eficaz de fazê-lo abster-se da luta em perspectiva; não encontrei, porque de fato não havia meio algum que o fizesse desistir do seu firme propósito. Oh! Quanto eu teria dado e quanto daria ainda hoje se me tivesse sido possível afastá-lo daquele combate.

 

TRISTE PRESSENTIMENTO QUE SE REALIZA

Eu estava profundamente agitado e ele também. Apesar do formidável poder que dispunha para abafar comoções, não conseguira dominar o seu estado d’alma, decorrente da dor de nossa despedida. Percebi que sua voz estava trêmula, quando comandou o pessoal:

— Agora já está completamente escuro e vamos partir sem perda de tempo! Meus irmãos queiram acompanhar-me a mim e a meu irmão e amigo “Mão de Ferro”!

Escalamos, uns atrás dos outros, a montanha, pelo mesmo local onde há pouco eu estivera com Winnetou. A escalada agora no escuro tornava-se mais difícil do que antes. Gastamos mais de uma hora até atingirmos a beira da cratera. Em baixo ardia uma grande fogueira e, à luz da mesma, distinguíamos os prisioneiros e as sentinelas. Nenhuma palavra, nenhum som subia até nós.

Prendemos o laço, que era suficientemente comprido, num bloco de rocha e esperamos pela fogueira que o nosso companheiro ia acender lá fora na planície. Daí a pouco, divisamos lá no citado local uma, duas e três chamas que se assemelhavam bem a uma fogueira lenta de acampamento. Agora tínhamos os nossos ouvidos atentos para baixo, no precipício da cratera. Não falhara o nosso plano. Pouco depois apareceu um selvagem, correndo, que transmitiu um aviso aos outros. Estes se ergueram imediatamente e desapareceram através das sebes da montanha para ir observar lá na beira do cume a fogueira que ardia.

Chegara a nossa vez de agir. Peguei do laço para ser o primeiro a descer, mas Winnetou arrebatou-o violentamente de minha mão.

— O cacique dos apaches é quem dirige o combate — disse ele, ainda com a voz trêmula. — O meu irmão virá depois dele!

Dispusemos as cousas de tal maneira que na corda só poderiam estar dependurados quatro homens de cada vez. Winnetou foi o primeiro a chegar, junto comigo, Fred e um dos trabalhadores. A descida foi mais rápida do que esperávamos. Foi uma sorte ter o laço resistido admiravelmente a descida.

Como era natural, na descida derrubamos uma porção de pedras; estava tão escuro que não pudemos evitar esse inconveniente. Uma das pedras pareceu haver atingido uma criança, pois ela começou a gritar. Imediatamente à luz da fogueira surgiu um indígena. Percebeu o ruído das pedras que caíam quando desciam os últimos homens, olhou para a escarpa e bradou o alarma.

— Avante, Winnetou! — exclamei. — Do contrário, tudo estará perdido!

Mal os últimos homens chegavam em baixo, deflagraram vários tiros. Winnetou caiu varado por uma bala!

— Winnetou, meu amigo! — exclamei já quase chorando. — Fôste ferido?

— Winnetou vai morrer! — respondeu o apache.

Apossou-se, então, de mim uma fúria que não consegui dominar. Olhei para Walker.

— Winnetou está morrendo! — exclamei desesperado.

Nem me lembrei de tomar da espingarda de repetição e, como um doido, investi de punho cerrado contra os cinco indígenas que avançavam contra nós. O da frente era o cacique; reconheci-o logo.

— Ko-itse, vá para o inferno! — bradei.

Um soco meu atingiu-lhe a região temporal. Ele tombou como um cepo de pau. O indígena que o acompanhava brandia a machadinha contra mim; de repente a luz da fogueira iluminou-me o semblante. Os selvagens de susto deixaram cair as machadinhas.

— Ka-ut-akamasti — “Mão de Ferro”!

— Sim! Aqui está “Mão de Ferro”, vão todos para o inferno! — bradava eu fora de mim. Eu mesmo já não me conhecia mais. O meu segundo golpe atingiu o outro indígena de tal maneira que ele caiu desfalecido.

— Ka-ut-akamasti! — bradavam os demais indígenas.

— “Mão de Ferro”! — exclamou também Walker. — Mas o senhor é o “Mão de Ferro”? Oh! Agora compreendo tudo. A partida está ganha. Avante!

Recebi um golpe de faca no ombro, mas nem senti a ferida. Dois selvagens tombaram aos tiros de Fred e o terceiro arrojei ao solo, desmaiado ou morto, não pude ver. O resto deixei entregue aos companheiros. Dirigi-me a Winnetou e ajoelhei-me ao lado do seu corpo estirado no solo.

— Onde foi o meu irmão atingido? — perguntei.

— Ntsage tche — Aqui no peito — respondeu baixinho, deitando-se do lado direito. Do peito, ao lado esquerdo, jorrava sangue em abundância.

Puxei da faca e cortei-lhe o manto. Sim, a bala atingira o pulmão, Senti uma dor tão profunda como nunca sentira na vida!

— Ainda tenho esperanças de salvar-te, meu querido irmão — consolei-o.

— Meu amigo Carlos, põe-me no teu colo, para que eu possa ver a posição do combate! — suplicou-me.

Fiz como pediu e ele pôde ver que todos os índios que voltavam da planície eram abatidos à estreita entrada da gruta. Daí a pouco, todos os indígenas haviam tombado no campo da luta! Os prisioneiros foram libertados das cordas e se fizeram ouvir num uníssono brado de alegria e gratidão. Eu não dava atenção a nada disso; preocupava-me tão sòmente com o ferido, com o amigo moribundo, cuja ferida cessara de sangrar.

Previ logo que o meu amigo iria sucumbir a uma hemorragia interna e perguntei-lhe:

— O meu querido irmão tem mais algum desejo?

Tinha os olhos cerrados e não respondeu: eu segurava a sua cabeça nos meus braços e não me movia do lugar.

O velho Hillmann e os demais companheiros libertados, pegaram das armas dos indígenas e correram para a entrada da furna, auxiliando a matar os últimos nativos que chegavam. Tudo vim a saber depois. No momento, toda a minha atenção estava concentrada no agonizante querido com quem ia morrer também um pedaço do meu coração! Mais tarde Walker veio ter comigo. Sangrava também e disse-me:

— Morreram todos os canalhas!

— E este meu pobre amigo também irá morrer! Todos aqueles nada valem diante deste meu bom amigo!

 

AMPLA E SUBLIME CONVERSÃO

O apache continuava como que inanimado nos meus braços. Os denodados ferroviários, que se haviam portado com uma bravura indômita, e mais os colonos libertados formaram um cerrado círculo em torno de mim. Finalmente Winnetou abriu os olhos.

— O meu querido irmão tem mais um desejo? — perguntei-lhe.

— Queira o meu querido irmão guiar aqueles peles-brancas do Helldorf até a montanha Grande Ventre. Nas margens do Metsur há grandes jazidas daquelas pedras que eles tanto procuram! Eles bem o merecem!

— E que mais, meu querido Winnetou?

— Desejo que meu irmão nunca se esqueça do seu amigo apache! Peço que reze por mim e implore para mim a graça do grande e generoso Manitu! Esses prisioneiros, apesar de feridos, conseguirão subir a escarpada até lá em cima?

— Podem, sim — respondi, embora notasse quanto os seus membros haviam sofrido com as cordas que os haviam prendido.

— Então Winnetou pede que eles de lá de cima lhe cantem a musica da Rainha do Céu, santa e formosa!

Os colonos ouviram essas palavras do moribundo. Sem mais esperar, subiram pela corda e foram-se postar num banco formado pela rocha, perto do seu cume. O apache acompanhou-os com os olhos que se fecharam quando os colonos já se achavam lá em cima. Tomou de minhas mãos, que apertou com fervor, ao ser dado início à vocalização da Ave-Maria:

 

Despede-se da terra a luz do dia

e a noite sobre a terra, aos poucos desce...

ah! se a pungente dor que nos crucia

passasse como a luz que desfalece!...

Ponho todas as súplicas ardentes

a teus pés, rumo a Deus, pura alegria,

e ajoelho no fervor feliz dos crentes...

Ave, Maria!...

 

Quando começou a terceira estrofe, ele abriu docemente os olhos e num sorriso melancólico fixou-os no céu. Depois, apertou-me fervorosamente a mão, que retinha entre as suas, e sussurrou-me.

— Não é, Carlos?! Agora vêm os versos que falam na morte?

Chorando, meneei afirmativamente a cabeça, e a estrofe começou:

 

Despede-se da terra a luz do dia

e a noite sobre a terra, aos poucos desce...

A alma quer se elevar da terra fria

e tem de se morrer sem uma prece!...

Santa, deponho em tuas mãos trementes

a divina oração que me alivia...

Dá-me a ressurreição das almas crentes,

Ave, Maria!...

 

Quando os últimos ecos da divinal música se quebraram pelas escarpadas da furna, o inditoso apache quis falar, mas já não o conseguia. Coloquei o meu ouvido nos seus lábios e, num último esforço, sussurrou-me:

— Carlos... eu... cre... io em... Je...  sus... Cristo... nos... so... Sal... va... dor! Winnetou morre cris... tão! Gra...ças a... Deus! Meu... que... rido... irm... ão, adeus!

Uma convulsão violenta sacudiu-lhe o corpo; o sangue passou a jorrar-lhe aos borbotões da boca; o cacique dos apaches, num supremo esforço, apertou ainda com fervor a minha mão e estirou os membros. Depois os seus dedos se foram desprendendo pouco a pouco dos meus: — morrera o meu querido, o meu maior amigo no mundo!

Que devo relatar mais? A verdadeira dor que nos martiriza a alma não comporta palavras para expressá-la! Apressa-se a chegar o tempo em que se lera essas histórias de sangue como uma simples lenda!

Por inumeráveis vezes víramos o espectro da morte com garras aduncas em nossa frente; as planícies do oeste bravio exigem que o homem que por elas jornadeia, esteja sempre pronto para exalar o seu derradeiro suspiro. Portanto, a minha tempera enrijecera naquelas paragens. Contudo, o coração parecia despedaçar-se-me ao contemplar ali pálido, a dormir o sono da morte, o amigo mais fiel que encontrei na vida. Achava-me num estado d’alma impossível de se descrever. Que excelente criatura tinha sido ele! E afinal tão prematuramente roubado ao meu convívio! O mesmo sucederá dentro de pouco tempo com toda a raça da qual foi ele o mais nobre e lídimo representante.

Estive toda a noite de vigília, mudo, com os olhos a querer saltar-me das órbitas. Ele ainda jazia em meus braços na mesma posição em que exalara o último suspiro. O que pensava eu e o que sentia naquele instante? Quem seria capaz de descrevê-lo?! Oh! Se fosse possível que ele me acompanhasse por mais algum tempo! Eu daria de bom grado metade de minha existência em seu favor, para que junto pudéssemos compartilhar das alegrias e das agruras deste vale de lágrimas! Assim como eu o tinha morto agora nos braços, ele tivera o seu mestre inesquecível, Klekih-pêtra, e a sua formosa irmã Nscho-tschi.

O seu triste pressentimento confirmara-se, pois; e ele, inteligentemente, dispôs, enquanto era tempo, tudo acerca do lugar onde queria ser sepultado. Como os lapidários alemães estavam de posse do segredo das jazidas de pedras preciosas, que ficavam situadas exatamente no local onde ia ser erigida a sepultura do jovem apache, se dispuseram a acompanhar todos o enterro. Esta circunstância facilitou-nos o transporte do morto.

De manhã bem cedo abandonamos a montanha, pois era de recear que a cada momento ali chegasse o grosso dos selvagens. O corpo do apache foi envolto em várias colchas e preso a um cavalo. Daqui até a montanha do Grande Ventre eram dois dias de viagem; para lá nos dirigimos, e, na viagem, tomamos todas as precauções possíveis apagando cuidadosamente todos os vestígios que deixávamos em nossa passagem.

Na noite do dia seguinte alcançávamos o vale do rio Metsur. Lá sepultamos o nobre indígena, com o ritual cristão e com as honras a que fêz jus, como grande estadista que era entre a sua raça. Foi colocado na sepultura a cavalo e com todos os seu ornamentos de guerra. O animal, depois de estar coberto de terra, e cercado por um muro de pedra, foi morto. Sobre a sepultura não colocamos escalpos como se vêem em todos os túmulos de caciques indígenas, mas três cruzes, símbolo do cristianismo. No areal do vale foram encontradas não só as pedras preciosas indicadas por Winnetou, mas também, num outro local, apreciável quantidade de ouro em pó. Este foi distribuído aos ferroviários como recompensa material por nos terem auxiliado tão bravamente no combate. Alguns deles resolveram estabelecer, no vale daquele rio junto com os colonos, uma aldeia que teria o mesmo nome de Helldorf. Os demais voltaram para a Echo-Cannon, onde souberam que Haller havia morrido em conseqüência do ferimento que recebera. Os demais prisioneiros foram severamente castigados.

O sino enterrado por Winnetou foi conduzido para o novo núcleo colonial, onde os colonos construíram uma nova capelinha. Quando ele repica chamando os fiéis e estes vocalizam a Ave-Maria, todos se lembram sempre do infeliz apache, convictos de que o Altíssimo atendeu o pedido que ele, no momento supremo da morte, fêz pelos lábios dos cantores:

 

Despede-se da terra a luz do dia

e a noite sobre a terra, aos poucos desce...

A alma quer se elevar da terra fria

e tem de se morrer sem uma prece!...

Santa, deponho em tuas mãos trementes

a divina oração que me alivia...

Dá-me a ressurreição das almas crentes.

Ave, Maria!...

 

O testamento dos apaches

Winnetou morreu! Estas duas palavras já encerram em si o estado d’alma que me atormentava naquela época. Era me penoso ter que me separar de sua sepultura. Durante os primeiros dias estive sentado ao seu lado, imóvel e imerso na mais profunda dor, vendo a azáfama dos homens ocupados na fundação do novo núcleo colonial. Digo que via, mas, para dizer mesmo a verdade, eu não via cousa alguma. O meu espírito andava errante. A minha situação era idêntica à do homem que, recebendo uma forte pancada na cabeça, fica meio desfalecido e ouve tudo como que ao longe e vê as cousas como que através de uma vidraça embaçada. Foi uma sorte que os ogellallahs não descobriram a nossa senda e, portanto não deram com o nosso atual paradeiro! Eu não seria, naqueles dias de tristeza, o homem capaz de enfrentá-los.

Aquela boa gente tudo fazia para me interessar nos seus trabalhos, conseguindo bem pouco. Transcorreu meia semana até que me animei a levantar e auxiliá-los um pouco nos trabalhos. Os efeitos benéficos dos exercícios físicos, a que então me entreguei, não se fizeram esperar; de começo, os companheiros arrancavam com dificuldade algumas palavras dos meus lábios, mas dentro de pouco a energia de sempre tornou a voltar-me e eu me tornei o homem cuja palavra e cuja orientação todos seguiam.

Assim se passaram duas semanas, quando disse de mim para comigo que não me era permitido demorar-me por mais tempo ali. O testamento de Winnetou levava-me ao Morro do Ouro, onde, como os leitores devem estar lembrados, ficavam os túmulos de Intschu-tschuna e sua filha. Era também dever meu seguir para o rio Pecos e levar à taba dos apaches a triste notícia da morte do mais célebre, do mais nobre dos seus caciques. Eu sabia muito bem quão célere uma notícia sensacional como aquela corria as planícies e podia muito bem suceder que os apaches dela soubessem antes de minha chegada à sua aldeia; contudo, eu não podia deixar de procurar aqueles índios, pois, testemunha ocular como fui da triste cena, era eu o seu narrador mais fiel. Os colonos não tinham absoluta necessidade de minha presença, e se precisassem dos conselhos de um atilado corredor das planícies, poderiam recorrer ao Walker, que estava resolvido a permanecer algum tempo com eles. Depois de uma cordial despedida daquela brava gente, iniciei a viagem no meu baio, que se achava bem descansado.

Qualquer outro em meu lugar procuraria quanto possível tocar em zonas mais populosas, durante esta jornada; eu procedi de modo contrário evitando o contato com centros povoados; não queria ver ninguém, queria curtir sozinho a dor de meu luto.

Esse desejo me foi satisfeito até o Beaver-Errek, do Canadian norte, onde tive um encontro perigosíssimo com To-kei-chun, o cacique dos comanchos, o mesmo a quem, daquela feita, conseguíramos escapar com tanta felicidade. Enquanto lutávamos com os sioux no norte, os comanchos no sul desenterravam o machadinho da paz e To-kei-chun à frente de setenta guerreiros, expedicionava para o Makik-Natum, a fim de dançar a dança da guerra ao redor dos túmulos de vários caciques, que lá ficavam situados e, ao mesmo tempo, consultar as profecias do “homem de medicina”.

Nessa expedição, vários brancos já lhe haviam caído nas mãos; a todos aguardava o poste das torturas. Tive a ventura de arrancá-los dos ferozes nativos, inimigos por índole de todos os elementos da raça branca. Este episódio, como nada tem a ver com Winnetou, relatarei noutra oportunidade. Conduzi os brancos, que libertara, até as fronteiras do Novo México, onde podiam sentir-se seguros. Dali eu me podia ter dirigido com mais facilidade diretamente à taba dos apaches, no rio Pecos. Mas o testamento de Winnetou tinha para mim uma importância tão transcendente, que não me era possível conter a impaciência em que me achava para abri-lo. Deste modo, dirigi-me para sudoeste a fim de alcançar o Morro do Ouro.

Este caminho era arriscadíssimo, pois atravessava o território de caça dos comanchos, meus inimigos mortais, e também dos kiowas, diante dos quais principalmente não podia me apresentar. Topei realmente com diversas sendas e outros vestígios, tomei todas as precauções e cheguei sem novidade até as proximidades do rio Gualpa. Lá encontrei sinais de cascos de cavalos que seguiam a mesma direção que eu levava. Eu não queria ser visto pelos peles-vermelhas e nem tampouco me unir aos peles-brancas, no caso de serem destes as impressões; portanto, deveria desviar-me daquela senda. Mas isso me alongaria demasiadamente o caminho e era importante para mim averiguar se por ali haviam passado peles-vermelhas ou peles-brancas. Com esse propósito, segui a senda que fora deixada quando muito havia uma hora.

 

NA PISTA DE SANTER

Os animais caminharam no rasto uns dos outros, conforme o uso indígena, para despistar o inimigo e causar-lhe confusão quanto ao número de cavaleiros. Prosseguindo na cavalgada, depois de minuciosas pesquisas, constatei que se tratavam de três cavaleiros, e mais adiante cheguei a um ponto onde eles haviam feito alto. Um deles apeara para, com certeza, apertar uma das cordas, que se afrouxara. A impressão do pé, deixada no solo, denunciava que o cavaleiro usava botas e, portanto só poderia ser um pele-branca. E como eu não estivesse inclinado a admitir que um pele-branca por ali andasse acompanhado de dois índios, a conclusão a que cheguei é que por ali haviam passado três peles-brancas.

Julguei que por causa deles não deveria afastar-me da direção que levava e prossegui tranqüilamente pela senda. Eu não era, aliás, obrigado, no caso de um encontro, a permanecer na sua companhia. Cavalgavam morosamente aqueles peles-brancas, e daí a duas horas eu os avistava. Ao mesmo tempo, divisei os outeiros entre os quais o rio descia.

Era quase noite, e eu tencionava acampar à margem do rio; não precisava desistir do meu propósito, em face do encontro com os três cavaleiros. Era até provável que estes houvessem escolhido a mesma zona para tomar pouso; se tal sucedesse, eu não era também obrigado a fazer-lhes companhia. Logo depois que eles desapareceram por trás das ramagens que cobriam um dos outeiros, eu o atingia também e vi mais adiante que os viajantes já estavam ocupados em desencilhar os cavalos. Estavam bem montados e excelentemente armados; a sua aparência, logo à primeira vista, despertava desconfiança.

Assustaram-se quando me viram assim tão de repente, mas acalmaram-se depressa, corresponderam à minha saudação e, quando fiquei parado à distância, vieram ao meu encontro.

— Mas, homem, que susto nos pregou o senhor! — disse um deles.

— Não estão com a consciência limpa para se assustarem deste moda com a minha simples presença? — perguntei.

— Temos a consciência serena e tranqüila. Mas o oeste é uma zona perigosa e, quando em nossa frente surge um estranho, a primeira cousa que se deve fazer é tomar das armas. Permite que lhe pergunte de onde vem?

— Da margem oposta do Beaver Fork.

— E para onde pretende seguir?

— Para o rio Pecos.

— Então vai para mais longe do que nós, que só iremos até o Mugworthill.

Aquela resposta me provocou suspeita, pois Mugworthill era o mesmo nome que se dava ao grupo de montanhas, uma das quais recebera do pai de Winnetou o nome de Morro do Ouro. Que pretendiam aqueles três. homens fazer lá? Era para onde eu também me dirigia. Precisava averiguar qual a finalidade que os levava àquela zona. Por isso perguntei-lhes;

— Mugworthill? Que região é essa?

— Uma linda região. Lá existem grandes extensões de artemisilas. Artemisila, em inglês, diz-se também Mugworthill; daí o nome dado à região. Não são só artemisilas que se encontram lá, encontram-se também coisas de muito mais valor.

— Quê?

— Hum! Se o senhor soubesse, imediatamente se dispunha a nos acompanhar até lá.

— Tagarela! — repreendeu-o um dos companheiros. — Deixe de conversar fiado!

— Psiu! Aquilo em que se pensa prazeirosamente tem-se sempre na ponta da língua! Quem é o senhor afinal? — perguntou-me depois de uma breve pausa.

É fácil de imaginar que aquela saída do homem, deixou-me um tanto preocupado. Ele falava realmente no Morro do Ouro; eu vira de fato duma feita grandes extensões de artemisilas que lá existiam; as palavras daquele homem tinham uma inflexão misteriosa. Resolvi, pois, à vista do que ouvira, fazer companhia aos homens e não lhes dizer, porém, quem eu era. Respondi-lhes:

— Sou caçador de castores e outros roedores de peles de valor. Têm os senhores alguma coisa contra a minha profissão?

— Absolutamente não! E como se chama? Ou quem sabe pretende ocultar o nome?

— Não. Todos podem conhecê-lo, pois é um nome sem jaça: chamo-me Jones.

— Nome singular, extraordinariamente singular! — disse o meu interlocutor, rindo-se. — Não sei se nos será possível retê-lo na memória. Onde estão armados os seus alçapões?

— Foram roubados pelos comanchos, juntamente com o produto da caça de dois meses.

— Foi um desastre para o senhor!

— E um grande desastre! Não obstante, porém, ainda dou graças a Deus de não me haverem aqueles selvagens pilhado também a mim!

— Acredito. Os selvagens daquela tribo não poupam a vida de nenhum pele-branca que lhes cai nas unhas, principalmente agora!

— E os kiowas não são também inimigos encarniçados dos peles-brancas?

— Oh! sim!

— E como se arriscam a atravessar seu território de caça?

— Conosco a cousa é diferente. Contamos até com o seu apoio nesta jornada. Trago uma excelente recomendação para os kiowas. Mr. Santer é amigo do cacique Tangua.

Santer! Imagine-se só quanto a enunciação deste nome me eletrizou. Fiz um esforço inaudito para ocultar a minha surpresa, fazendo um ar de indiferença.

Aquela gente conhecia Santer e eu ia me unir à sua caravana. Outro Santer não podia ser senão aquele que por duas vezes nos escapara das mãos, pois ele era realmente amigo do cacique Tangua.

— Então esse Santer deve ser um homem de grande influência! — exclamei.

— Pelo menos naquela tribo, sim. Mas, não deseja apear-se? A noite se aproxima e o senhor não encontrará melhor local para acampar do que este. Há água e abundante pastagem para o seu cavalo aqui neste rio.

— Hum! Não os conheço e o senhor mesmo acabou de dizer há pouco que aqui no oeste se deve ter toda precaução com estranhos.

— Temos aspecto de canalhas?

— Não digo isso; mas os senhores me perguntaram uma porção de coisas e ainda nem se dignaram a me dizer como se chamam.

— Dir-lhe-ei já. Somos caçadores do oeste bravio e ora nos entregamos a este, ora àquele serviço. A gente se defende como pode! O meu nome é Gattes, este ao meu lado é Clay e aquele lá, Summer. Esta satisfeito agora?

— Yes.

— Então apeie ou continue viagem duma vez, como quiser!

— Se me permitem, acamparei com os senhores; nessa região está se mais seguro quando a gente se une a camaradas decididos.

— Well, estou certo de que não lhe desagradará a nossa companhia. O nome Santer basta para nos pôr a salvo de qualquer perigo dos peles-vermelhas que nos ameaçar.

— Afinal, que espécie de cavalheiro é este Santer, de que tanto o senhor fala? — informei-me, apeando-me e maneando o cavalo.

— Um cavalheiro na verdadeira acepção do termo. Principalmente se o resultado desta nossa jornada fôr de fato o que ele nos prometeu; se nos der o que prometeu, aquele homem fará jus à nossa imorredoura gratidão.

— Conheçe-o há muito tempo?

— Não. Vimo-lo e conhecemo-lo pela primeira vez há bem pouca

— Onde?

— No forte Arkansas. Mas por que pergunta com tanto interesse por ele? É seu conhecido?

— Então se eu o conhecesse estaria aqui a perguntar por ele, Mr. Gattes?

— Hum! Tem razão.

— O senhor afirmou que só a enunciação do seu nome nos punha a salvo de qualquer perigo dos peles-vermelhas, e, como estou acampado em sua companhia, acho-me, portanto também debaixo da proteção de Mr. Santer. Não é justo, neste caso, que me interesse pela sua pessoa?

— Yes. Sente aqui conosco e ponha-se à vontade! Traz provisões?

— Apenas um pedaço de carne.

— Nós temos mais. Se esse pedaço não fôr suficiente, a nossa provisão está a seu dispor.

De princípio, eu tomara aqueles homens por bandoleiros das planícies; agora, porém, depois de observá-los melhor, pouco a pouco eu me ia convencendo de que eram homens de bem, isto é, no sentido que no oeste dão a esta palavra: um meio termo entre homem de bem propriamente dito e um vagabundo das planícies. Enchi o cantil no rio e comi a minha ração. Enquanto isso, os homens me observavam dos pés à cabeça. Depois Gattes, que parecia o chefe da comitiva, me disse:

— Com que então perdeu os seus alçapões! É lamentável! E agora de que forma vai viver!

— Por enquanto de caças.

— São boas as suas armas? Como vejo, tem até duas espingardas!

— São sofríveis. Esta velha espingarda é carregada com chumbo e esta outra com balas.

Eu omitira o nome de minhas armas com intenção preconcebida. Tivesse eu dito: “Mata-ursos” e espingarda de repetição sistema Henri, eles saberiam logo quem eu era.

— Que grande caçador é o senhor! Conduz consigo duas espingardas, uma para carga de chumbo e outra para balas. Não vê que isso estorva numa jornada!? Aqui nas planícies costuma-se conduzir uma espingarda de dois canos, sendo uma para carga de chumbo e o outro para bala. E mais prático.

— Tem razão. Mas eu me habituei tanto a esses velhos porretes de fogo, que não me animo mais a abandoná-los.

— E que pretende fazer lá no rio Pecos, sir?

— Nada de extraordinário. Escolhi aquele rumo por ter ouvido dizer que a zona é mais abundante em caças fáceis do que aqui.

— Se o senhor acha que os apaches o deixarão caçar no seu território, a informação foi boa. Mas não creia nessa tolice! Aqui o senhor perdeu apenas os alçapões e as peles colhidas durante dois meses. Lá, porém, o senhor perderá a sua própria pele. Mas há alguma circunstância que o obrigue a seguir impreterivelmente para lá?

— Absolutamente não.

— Então siga conosco!

— Com os senhores? — fingi-me de espantado.

— Sim, conosco.

— Para o Mugworthill?

— Claro.

— Que vou fazer lá, Mr. Gattes?

— Hum! Não sei se lhe devo dizer. Que acham, Clay e Summer? Os outros dois se entreolharam interrogativamente e Clay declarou:

— A coisa é ainda duvidosa. Mr. Santer nos proibiu de falar no assunto e, no entanto, nos declarou que quanto mais reforçássemos em caminho a caravana, tanto mais segurança de êxito teria a jornada. Faça lá o que melhor achar!

— Well — disse Gattes, meneando a cabeça. — Se Mr. Santer nos encarregou de contratar mais pessoal poderemos muito bem reforçar a nossa comitiva com mais um elemento. O senhor não está ligado a compromisso algum, de momento, Mr. Jones?

— Não — respondi.

— E dispõe livremente do seu tempo?

— Faço e tomo a resolução que bem entender.

— Estaria disposto a tomar parte numa empresa que lhe pudesse render dinheiro, muito dinheiro?

— Por que não? Todos gostam de ganhar dinheiro e se ainda por cima se trata de muito dinheiro, não vejo razão para eu recusar o convite. Mas antes eu precisaria saber de que se trata.

— Lógico! Aliás, é um segredo, mas o senhor caiu-nos em graça. O senhor tem uma fisionomia tão leal e sincera, que, estou certo, não seria capaz de nos trair.

— Sim, um homem leal e sincero, garanto-lhe que sou! Pode estar certo disso.

— Acredito. Pois bem, o nosso objetivo nessa jornada é procurar nuggets (ouro granulado) no Murgworthill.

— Nuggets! — exclamei. — Existe lá alguma jazida?

— Mas não grite dessa forma! Entusiasmou-se com essa declaração, não é? Há, sim, e muito!

— Quem lhe contou isso?

— Justamente Mr. Santer, de quem já tanto lhe falei.

— E ele viu essas jazidas auríferas?

— Claro que não, pois neste caso não seria tão tolo em nos encarregar desse serviço. Exploraria ele só as minas.

— Então é uma mera suposição de sua parte. Hum!

— Uma suposição, não, mas uma certeza quase que absoluta. Ele conhece mais ou menos a zona onde estão as minas, mas não o ponto.

— É singular!

— Singular, mas certo e verdadeiro. Vou repetir-lhe fielmente a narração que sobre o assunto nos fêz Mr. Santer! Já ouviu falar num tal de Winnetou?

— O cacique dos apaches? Sim.

— Conhece também um tal “Mão de Ferro”?

— Não, mas já ouvi falar nele.

— Pois esse dois são íntimos amigos e de uma feita estiveram na Mugworthill. O pai de Winnetou e mais uns peles-vermelhas e peles-brancas estiveram juntos, por aquela ocasião. Mr. Santer os espionou e ouviu deles que Winnetou e o seu pai iam dirigir-se para o morro a fim de buscar ouro para uma viagem à cidade dos peles-brancas. E se lhes era possível buscar com tanta facilidade, é porque a mina é quase inexgotável, pois já se encontra o precioso metal à flor da terra. Não acha também?

— Claro.

—: Agora ouça o resto: Mr. Santer se pôs depois à espreita, a fim de seguir os dois apaches e descobrir a mina. E não é censurável a sua atitude, pois que irão os peles-vermelhas fazer de tanto ouro que para eles não tem serventia alguma?! Não têm habilidade estes índios para lidar com um metal tão cobiçado!

— E conseguiu descobrir?

— Infelizmente, não. Seguiu-os quando se dirigiam para as minas.

A irmã de Winnetou ia também junto. Mr. Santer foi obrigado a se cingir à sua senda e isso demanda, como deve saber, muito tempo. Quando chegou perto da mina, eles já vinham de volta e o nosso chefe nada pôde descobrir. Foi uma grande maçada!

— Maçada nenhuma!

— Por quê?

— Ora, bastava que Mr. Santer deixasse passar os indígenas e, seguindo-lhes a senda, fosse diretamente ao local da mina.

— Com todos os diabos! O senhor tem razão! Pelo que vejo não é lá muito inábil e nos pode ainda ser muito útil nesta jornada! Mas, infelizmente, o resultado da espionagem de Mr. Santer foi bem diferente. Ele acreditou, e com razão, que os indígenas trouxessem grande quantidade de ouro consigo, e fêz fogo contra eles a fim de lhes tirar os seus haveres.

— E acertou? Morreram os índios?

— O velho e a filha, sim; tanto que as suas sepulturas estão lá no mesmo local. Também Winnetou teria caído ao seu tiro, mas Santer foi obrigado a fugir porque, subitamente, “Mão de Ferro” apareceu no campo da luta. Este, depois disso, à frente de um bando de peles-brancas e peles-vermelhas, perseguiu Santer até a aldeia dos kiowas, onde Santer fêz então amizade com o cacique Tangua. Depois disso, o nosso chefe esteve inúmeras vezes no Mugworthill, ficando quase cego de tanto procurar minas de ouro. Tudo debalde! Agora, porém, concebeu ele a feliz idéia de contratar gente para auxiliá-lo na procura. Muitos enxergam, sem dúvida, mais do que um só! E os seus contratados somos nós os três e, se o senhor aceitar a proposta, passará também a fazer parte de nossa caravana.

— E tem esperanças de obter êxito nessa empreitada?

— E muito grande. Os apaches, daquela feita, voltaram tão depressa da mina, que esta não pode ficar muito distante do lugar onde Mr. Santer os encontrou. Basta pesquisar um pequeno trecho, e, leve nos o diabo, se não descobrirmos a jazida ou as jazidas. Temos tempo suficiente para isso. Poderemos procurar durante semanas e meses a fio sem sermos importunados por ninguém. Que acha de tudo isso?

— Hum! A falar a verdade não me agrada muito.

— Por quê?

— Ora, porque por causa daquelas minas já foi derramado inutilmente sangue humano, o que muito me repugna!

— Ora, não seja tolo! Fomos nós ou o senhor que derramamos? Cabe, porventura, a nós ou ao senhor a culpa direta ou indireta daquela tragédia? Ao demais, que se perdeu com a eliminação da vida de dois elementos da raça pele-vermelha? De qualquer maneira, toda a raça pele-vermelha será exterminada pouco a pouco. Não passam de uns selvagens a entravar o progresso da humanidade. E que temos nós a ver com o que já sucedeu? Nada de cogitações dessa ordem! Procuramos as jazidas, dividimos o ouro entre nós e depois viveremos à tripa forra, como Astor e outros grandes milionários, a cujos dólares todas as portas se abrem e todos se curvam!

Arrependera-me de haver, momentos antes, suavizado o mau juízo que formara daquela gente. Não pertencia propriamente à baixa espécie de indivíduos, com os quais, por tantas vezes, eu tivera que terçar armas nas planícies. Mas se continuassem a desenvolver aquele sentimento, não tardariam a chegar até lá. A vida de um indígena para essa gente era igual à de um animal de caça a que todos têm o direito de abater. Eram ainda jovens, e, por isso, justificava-se a sua lamentável leviandade confiando me um segredo importante e convidando me para companheiro de caravana, a mim, um homem completamente estranho, a quem viam pela primeira vez.

É excusado dizer quanto me surpreendeu e me agradou ao mesmo tempo aquele providencial encontro. Eu estava de novo na pista de Santer! Desta vez, sim, ele não me escaparia! Não deixei, porém, perceber a mínima coisa, meneei a cabeça como se estivesse duvidando se aceitava ou não a proposta, e respondi depois:

— Sim, eu gostaria muito se ajudasse a descobrir algum veio aurífero cheio de nuggets; mas o diabo é a dúvida que agora me deixa indeciso. Tenho um pressentimento de que, mesmo que descubramos a mina, nada receberemos.

— Mas como? Se descobrirmos a mina, será nossa: repartiremos entre nós e Mr. Santer. É verdade que primeiro teremos de explorá-la.

— Mas explorá-la por quanto tempo?

— O tempo que bem entendermos. Provavelmente até não mais encontrar ouro no seio da terra. Nenhum de nós será tão tolo que abandone a jazida.

— Ela, porém, nos será tomada.

— Por quem?

— Por Santer.

— Oh! O senhor não tem inteligência bastante para conceber as coisas. Pode confiar em Mr. Santer!

— Mas o senhor o conhece?

— O suficiente para não lhe atribuir semelhante ignomínia.

— Mas como? Não acabou de dizer que o conhecia de há pouco tempo?

— Trata-se de um homem honrado. Basta olhar-se para ele, para não se duvidar da sua honestidade. Além lisso, todos a quem no forte solicitamos informações sobre ele, fizeram-lhe referências elogiosas.

— Mas onde está Mr. Santer?

— Separou-se ontem de nós; enquanto seguimos diretamente para Mugworthill, ele cavalgará rumo ao Salt Fork, confluente do Red River, onde fica a aldeia dos kiowas, chefiados por Tangua.

— Que foi fazer lá?

— Levar uma notícia muito importante para Tangua, como foi para ele mesmo: Winnetou morreu.

— Como? Morreu Winnetou?

— Sim. Tombou em combate com os sioux. Era um inimigo mortal de Tangua, de modo que este, de alegria, ficará fora de si. Por isso Mr. Santer resolveu desligar-se temporariamente de nossa comitiva e seguir para aquele destino. No Mugworthill nos encontraremos novamente. Ele é um cavalheiro, um nobre, que está animado do mais firme propósito de nos tornar a todos homens ricos. Tenho certeza de que se agradará dele logo à primeira vista.

— Assim espero, mas não deixarei de tomar as minhas cautelas.

— Com relação a Santer?  

— Certamente.

— Afianço-lhe que não há o menor motivo para desconfiar dele!

— E eu lhes afianço que estou resolvido a aceitar a sua proposta, mas estarei sempre de olho aberto. O homem que por haver suposto que duas pessoas conduziam algum ouro consigo, matou-as friamente, o mesmo poderá fazer conosco se acharmos a mina!

— Mr. Jones, então o senhor... acha... que...

Não concluiu a frase e olhou-me estarrecido. Também Clay e Summer ficaram subitamente perplexos.

— Sim, — continuei — não suponho apenas, mas tenho absoluta certeza até de que ele os contratou com o firme propósito de, após os senhores terem ajudado a achar a mina, riscá-los à bala ou à facada, do rol dos vivos!

— O senhor até parece que está delirando!

— Não estou delirando, não! Falo com consciência do que digo. E se os senhores encararem o conjunto dos acontecimentos anteriores com ânimo sereno, sem se exagerarem numa confiança cega sobre a honorabilidade e moralidade de Santer, concordarão comigo. Basta os senhores levarem em conta que ele é amigo de Tangua, o maior e o mais irreconciliável inimigo da raça pele-branca! Ora, odiando desta forma os peles-brancas como foi Tangua aceitar a sua amizade? Deve haver em tudo isso um detalhe que os senhores não conhecem e que em nada recomendará Mr. Santer. Sabem de onde veio esta amizade?

— Não, nós não sabemos de nada.

— Não é preciso saber-se; basta que se raciocine com calma para se chegar a uma conclusão acertada.

— Mas que conclusão tira o senhor de tudo isso?

— Aquele que conquista a amizade de um inimigo ferrenho da raça pele-branca, é lógico que já demonstrou a este que também não dá valor nenhum à vida de um pele-branca seu semelhante; em vista disso, deve-se tomar todas as precauções com ele! Tenho razão ou não?

— Sim, pelo menos a conclusão não é das mais inadmissíveis. Há mais algum detalhe a respeito de Santer, que lhe desperte suspeitas?

— Sim, aquele sobre o qual já dei minha opinião há pouco.

— O fato de haver ele morto ao indígena e sua filha?

— Sim.

— Ah! Mas isso eu nem lhe levei a mal. Não constitui motivo bastante para diminuí-lo diante de meus olhos e para tomá-lo como um canalha.

— Mas então o senhor não sente que, com este modo de falar, dá provas pouco recomendáveis de sua própria moral?

— Como assim?! Os indígenas são todos uns canalhas que merecem ser aniquilados da terra!

— São homens como qualquer outro e que possuem os seus direitos, que devem ser respeitados!

— O senhor está falando com demasiado humanitarismo! Mas mesmo que o senhor tivesse razão, eu não me conformaria com a sua atitude de considerar uma falta imperdoável o morticínio de dois peles-vermelhas!

— Não...?!

— Não. Precisamos encarar tudo pelo lado prático. Creio que o senhor terá o necessário alcance mental para compreender que a raça pele-vermelha, mais hoje, mais amanhã, terá que perecer toda!

— Infelizmente não posso contrariar essa afirmativa.

— Pois bem, se eles tiverem que desaparecer da terra e já se acham irremediavelmente perdidos, é indiferente que dois deles pereçam alguns dias antes do que lhes estava destinado. É este o lado prático em que apoio o meu modo de pensar, segundo o qual, aquele que assassinou o indígena e a sua filha, não deve ser qualificado de assassino, pois apenas antecipou a obra do destino implacável!

— Muito singular essa sua moral prática! Não acha também? Diga-me em consciência!

— Talvez seja singular, mas em nada sairia prejudicado se a adotasse também.

— Bem, pois então vou colocar-me no seu ponto de vista. Mas mesmo baseado nele, o procedimento de Santer não é condenável?

— De modo algum!

— Afianço-lhe que sim! Admitamos mesmo não ser um crime o assassínio do cacique e de sua filha. Mas agora vamos ao ponto primordial da questão: por que assassinou ele os dois indígenas?

— Apenas com o fim de descobrir o local onde se achavam situadas as minas auríferas.

— Não foi só por causa disso!

— Não? Por que mais?

— Para descobrir a mina, Santer não teria necessidade de assassinar ninguém. Se ele tivesse deixado os indígenas se retirarem calmamente e depois tivesse seguido pela sua senda, descobriria fatalmente as minas. Ele mesmo lhe disse que os peles-vermelhas haviam voltado muito ligeiro das jazidas. Com a pressa que levavam os peles-vermelhas, não dispuseram de tempo para desfazer bem os vestígios que deixaram no solo. E nem lhes passara talvez pela mente tomar tanta cautela, pois se supunham só no Mugworthill. Por que, no entanto, cometeu o assassinato?

— Nada disso que o senhor expôs modifica o meu ponto de vista. O senhor mesmo, creio, não o conseguirá vencer com argumentos mais positivos.

— Não? Pois então ouça: ele matou os dois representantes da raça vermelha não com o fim de descobrir a jazida aurífera, o que seria absurdo, mas para tomar-lhes o pouco de ouro que os mesmos haviam buscado para a sua viagem ao meio civilizado.

— Mas tudo é uma e a mesma cousa.

— Para ele talvez; mas para nós, não!

— Por que não?

— Que quantidade de ouro acha o senhor que contem a jazida? Pequena?

— Muito, muitíssimo grande até! Claro que não posso provar esta afirmativa, mas é fácil de imaginar.

— Mas eu posso provar.

— O senhor? — perguntou ele admirado.

— Sim. Basta apenas um pouquinho de reflexão. Mesmo que a gente não conheça o Mugworthill, pode admitir que naquela região não há uma mina de ouro propriamente dita. Os grãos e pós auríferos, que ali existem, foram acumulados pelos indígenas num esconderijo. E se os nativos se deram ao trabalho penoso de transportar ouro para aquela zona, não o fizeram por causa de uma quantidade insignificante.

— Claro que não! Nesse ponto o senhor tem razão.

— Por conseguinte, deve ter muito, mas muito ouro acumalado no referido esconderijo. O de que Winnetou e seu pai se supriram constituía apenas uma partícula mínima do depósito. Não acha?

— Perfeitamente.

— E por causa de uma insignificância, de uma ninharia, Mr. Santer matou duas pessoas a tiros!

— Hum! Mas agiu praticamente! Queria se apoderar também daquela partícula mínima.

— Mas ainda não compreendeu o que pretendo dizer? Esse ponto de vista “prático” com que o senhor pretende justificar o ato de Santer, pode conduzir-nos à fatalidade, à ruína!

— À fatalidade? À ruína? De que forma?

— Arre! Suponhamos que, chegando ao Mugworthill, e, depois de longas pesquisas, encontramos não a mina aurífera, que esta não existe, mas o esconderijo onde os índios guardaram o ouro que transportaram para ali de outras zonas. Depois chega Mr. Santer e...

— Distribuirá imediatamente o tesouro conosco! — acudiu o homem apressado.

— Sim, distribuirá conosco... Quanto acha o senhor que nos tocará?

— É difícil de responder. Primeiro precisaríamos saber qual a quantidade de ouro acumulada no esconderijo.

— Mesmo assim, o senhor não poderia saber a quantidade que lhe tocaria em partilha, pois neste ponto Mr. Santer disporia da situação a seu bel prazer, dando-nos o que bem entendesse e ficando com quase tudo para si.

— Não, disso ele não seria capaz. O senhor engana-se com ele.

— Não me engano, não!

— Oh! sim! O achado será equitativamente dividido, não tocando mais a um do que a outro.

— E Santer não levaria vantagem na distribuição?

— Não!

— Combinou isso com os senhores?

— Sim, não só nos prometeu verbalmente, como confirmou a promessa com um aperto de mão.

— Oh! então ele foi gentil!

— Naturalmente; é o homem mais gentil e decente que se pode imaginar.

— E os senhores são os três espíritos mais infantis com que até hoje deparei nesse mundo!

— Por quê?

— Ora, porque dão fé àquela promessa.

— E por que não haveríamos de acreditar nas suas palavras?

— Mas realmente querem que eu fale com mais clareza ainda?

— Sim! Até agora pouco ou nada percebemos do que esteve a dizer.

— Todo aquele que assassina duas pessoas para se apoderar de um pouco de nuggets, é demasiadamente ganancioso para repartir com outrem o produto da descoberta de um veio aurífero.

— Mas naquela ocasião tratava-se de dois selvagens!

— E que eram gente como todos nós, e, além de tudo, que em nada o haviam prejudicado! E se em vez de peles-vermelhas fossem dois peles-brancas, teriam estes a mesma sorte!

— Hum! — murmurou, incrédulo.

— Garanto-lhe. Garanto-lhe ainda mais. Ele prometeu-lhes partes iguais nos valores do esconderijo. Pois estou a dizer que...

— Que ele cumprirá a sua palavra, dando-nos o que prometeu! — acudiu o homem nervosamente.

— É possível que assim proceda, pois sabe muito bem que tornará a reaver tudo!

— Por que nos roubará depois?

— Sim. A parte que nos tocará é bem cem vezes mais do que o ouro que conduzia Intschu-tschuna e Winnetou. A ânsia do ouro o levou a agredi-los a tiros; assim sou capaz de jurar que, do momento em diante em que nos víssemos de posse de nossa parte, a nossa vida a cada minuto correria perigo.

— Esperemos, Mr. Jones! Demos tempo ao tempo!

— Sim, que remédio temos senão esperar e dar tempo ao tempo!

— Há uma grande diferença entre matar um indígena e matar uns pele-branca!

— Mas um homem atacado da febre de ouro não faz essa distinção! Pode estar certo disso.

— Hum! Mesmo que em tudo o senhor tivesse razão, não o teria nesse ponto! Mr. Santer não é nenhum assassino, mas um cavalheiro, no verdadeiro sentido da palavra.

— Ficarei satisfeito que os senhores não tenham uma desilusão com ele!

— Aposto que o senhor, Mr. Jones, logo ao primeiro golpe de vista considerará aquele homem digno de sua amizade e de sua confiança!

— Well. Estou curioso pelo momento de nosso encontro!

— O seu cérebro está anuviado por dúvidas e suspeitas. Se realmente acha que sua vida vai correr perigo, é fácil desviar-se dele.

— Não os acompanhando ao Mugworthill, não é assim?

— Justamente. É livre de fazer o que quiser. Ninguém aqui pretende obrigá-lo a se encorporar à nossa comitiva. Não sei mesmo se Mr. Santer ficará satisfeito que o levemos conosco. Apresentei-lhe a proposta, visando unicamente fazer-lhe um favor.

Falava-me num tom quase de recusa; levara-me a mal o ter eu duvidado das boas qualidades de Santer, qualidades que ele insistia em ressaltar. Respondi -lhe:

— E realmente com a sua proposta prestava-me um favor, aliás, um grande favor, pelo qual lhe devo ser grato.

— Então demonstre sua gratidão de outro modo do que caluniando a um cavalheiro a quem nem sequer chegou a ver! Bem, não discutamos mais e evitemos tocar novamente no assunto!

Com essas palavras estava o debate encerrado. Passamos a falar de outros assuntos, e com minha palestra logrei desfazer a má impressão que minhas desconfianças e suspeitas produziram naquela gente.

Eu estava certo de que, se falasse com franqueza e lhes contasse tudo o que eu sabia, eles logo teriam confiado nas minhas palavras! Mas eu não podia aventurar-me a tanto. Eram homens inexperientes e de boa fé e de quem eu só podia esperar, no caso de confiar-lhes tudo, mais danos do que vantagens.

Mais tarde deitamos a dormir. Julguei suficientemente seguro o local que escolhêramos para acampamento, mas antes tive o cuidado de fazer um reconhecimento pelas redondezas. Nada tendo encontrado de anormal, propus-lhes revezarmo-nos no serviço de sentinela ao acampamento.

Aqueles homens eram tão ingênuos que nem haviam se lembrado desta providência acauteladora.

Na manhã seguinte partimos, rumo a Mugworthill, sem que eles suspeitassem de leve que fora este também o meu primitivo destino.

Durante todo o dia estive permanentemente em sobressaltos. Os companheiros sentiam-se seguros, pois acreditavam que bastava citar o nome de Santer para serem tratados como irmãos pelos kiowas, ao passo que eu estava convencido de que seria imediatamente reconhecido por aqueles peles-vermelhas. Os meus companheiros consideravam supérflua toda e qualquer medida de precaução e eu não devia contrariá-los para não incorrer na sua desconfiança ou má vontade. Felizmente, durante o dia todo não encontramos nenhum ente humano pelo caminho.

 

CHEGANDO A MUGWORTHILL

À noite acampamos na planície aberta. Os homens teriam prazer em acender uma fogueira, mas na planície não havia o necessário material, falta com a qual me alegrei intimamente. Nem havia motivo para acender-se uma fogueira, pois não fazia frio e não tínhamos nenhuma provisão para assar. Na manhã seguinte, consumimos, antes de levantar acampamento, o resto de xarque que trazíamos. De agora em diante, precisávamos recorrer à caça para a nossa alimentação. Neste particular, Gattes fêz-me baixinho a seguinte observação:

— O senhor é armador de alçapões, mas não caçador, meu caro Mr. Jones. É verdade que me disse saber atirar. Mas isso veremos primeiro! É capaz de acertar numa lebre quando esta passar pelo senhor a cem passos de distância?

— A cem passos? Hum! A distância é um pouco grande! Não acha?

— Eu já esperava por essa resposta. Não a acertaria. Além disso, conduz duas armas que são verdadeiros canhões. Com uma espingarda dessas pode destruir a torre de uma igreja, mas não se abate uma caça miúda. Mas não precisa ter preocupação quanto a isso, caçaremos também para o senhor.

— Acha que o senhor possui melhor pontaria do que eu?

— Isto logo deve perceber. Nós somos corredores das planícies, caçadores adestrados, ao passo que o senhor é amador de alçapões, compreendeu?

— Mas isso não basta!

— Então que nos falta?

— A caça. Por melhor atirador que o senhor seja, se não houver caça por aqui teremos que passar fome.

— Não se impressione! Já havemos de achar uma caça, e uma caça bem apetitosa!

— Aqui na savana? Aqui só há antílope, que não nos deixa aproximar para o tiro.

— Fala como se fosse um técnico! Aliás, não disse uma asneira. Mas no Mugworthill encontraremos mato e caça em abundância. Foi o que Mr. Santer disse.

— Quando chegaremos lá?

— Perto do meio-dia, desde que sigamos por caminho certo. Ninguém melhor do que eu na caravana sabia que estávamos trilhando pelo caminho certo e que alcançaríamos Mugworthill lá pela volta do meio-dia! Eu me fazia de guia sem que os companheiros notassem. Eles cavalgavam na minha companhia e não eu na deles.

O sol não havia atingido o zênite, quando avistamos ao sul as montanhas cobertas de mata se erguerem na planície. Era o ponto final de nosso objetivo.

— Será lá o Mugworthill? — perguntou Clay.

— É lá mesmo! — confirmou Gattes. Mr. Santer descreveu minuciosamente; explicou-me a sua configuração e a sua vista quando a ela se chega pelo norte. E o que lá avistamos combina com a descrição. Dentro de meia-hora estaremos no fim de nossa viagem.

— Ainda não — replicou Summer.

— Como não?

— Esqueceste que o Mugworthill pela face norte é inacessível a cavalo; não se pode passar lá.

— Sei disso e muito bem até. Eu disse apenas que dentro de meia-hora chegaríamos ao grupo de montanhas. Depois de as contornarmos, chegaremos ao vale situado entre elas.

Pelo que eu ouvia, Santer havia-lhes ensinado muito bem o caminho. Para ver até que ponto ele fora minucioso, informei-me:

— É neste vale que ele vai encontrá-lo, Mr. Gattes?

— Não, mas no cume do morro.

— Mas subiremos até lá a cavalo?

— Claro!

— Há um caminho até o cume?

— Um caminho propriamente não, mas o leito de um arroio. Montados, naturalmente não podemos subir. Temos que apear e puxar os animais pelas rédeas.

— Mas para quê? Não podíamos muito bem ficar cá em baixo?

— Não, porque o local onde iremos procurar a jazida ou esconderijo, como quiser, fica no cume do morro.

— Mas poderíamos ao menos deixar os cavalos cá em baixo.

— Tolice! Logo se vê que não passa de um armador de alçapão! Vamos levar talvez muitas semanas até encontrarmos lá em cima o que procuramos. E podemos deixar durante todo esse tempo os animais no vale? Só se permanentemente eles fossem vigiados por uma sentinela; lá em cima, porém, poderemos tê-los pelas imediações e não precisamos destacar sentinelas com o fim especial de vigiá-los. Então não compreende isso?

— Agora, sim! Creio que é permitido fazer perguntas quando não se conhece a zona!

— Além disso, lá é mais interessante do que aqui, pois, como já lhe disse, ali ficam situados os túmulos do apache e de sua filha.

— É junto dessas sepulturas que vamos acampar?

— Sim.

— Também durante a noite?

Eu tinha sólidas razões para fazer aquela pergunta. Eu precisava cavar a terra junto do túmulo de Intschu-tschuna, a fim de desenterrar o testamento de Winnetou, o que teria de fazer sem ser visto. E agora ouvia que iríamos acampar justamente no referido local. Era um transtorno para mim. Talvez que, devido ao medo supersticioso que a gente simples das planícies sentia ao dormir nas proximidades de túmulos, levasse os homens a transferir o acampamento para um local um pouco mais distante e assim ao menos à noite, poderia eu me desincumbir da missão confiada pelo meu inesquecível amigo. Mas mesmo assim, o local dos túmulos se me tornaria inacessível. À noite, eu nada podia enxergar e assim podia cometer alguma falta irremediável. E embora me fosse dado achar e desenterrar o testamento, no escuro seria impossível apagar, com o cuidado que o caso exigia, os vestígios da escavação.

— Também durante a noite — repetiu Gattes, admirado da minha pergunta. — Por que faz tal pergunta?

— Hum! Porque dormir durante a noite perto de túmulos é cousa que faz eriçar o cabelo a muita gente boa!...

— Ah! Então está com medo?

— Medo, propriamente, não!

— Como não! Estão ouvindo, Clay e Summer? Mr. Jones tem medo dos mortos! Está com pavor daquelas duas criaturas peles-vermelhas. Ele julga que os indígenas se levantarão da sepultura e lhe pularão nas costas, hahahaha!

Ele ria a bandeiras despregadas e os dois companheiros também. Eu fiquei quieto em face daquelas risadas; convinha-me deixá-los na crença de que eu me apavorava das sepulturas, do contrário, eles teriam suspeitado da minha pergunta. Depois, em tom irônico, mas tranqüilizador, Gattes me respondeu:

— O senhor é supersticioso, sir? Isto é uma grande asneira. Os mortos não voltam mais e principalmente aqueles dois não hão de ser tão tolos que abandonem as “Eternas Campinas”, onde vivem no meio de assados de cervos e búfalos e cheios de júbilo. E se e!es lhe aparecerem, o que aliás não é lá muito inadmissível, basta o senhor apelar para nós, que imediatamente sairemos em seu socorro.

— Obrigado, não é preciso! Apesar de não ter medo de mortos, posso também ir dormir noutro local sem ser perto das sepulturas, onde repousarei tão bem como lá.

Durante este diálogo havíamos chegado já tão perto da elevação, que tivemos que nos desviar para o oeste a fim de contorná-la por este lado. Chegados à face sul, dobramos à esquerda e alcançamos o vale, pelo qual seguimos. Mais adiante nos defrontamos com os desfiladeiros paralelos, um dos quais subimos. Um pouco além, a mata tornava-se mais aberta, deixando a descoberto a clareira de que falei no primeiro volume desta obra.

— Acertamos bem — exclamou Gattes. — Esse é o morro chamado pelos indígenas de Morro do Ouro e ali estão os túmulos dos dois apaches, Agora só falta chegar Mr. Santer!

— Sim, ele tinha razão! Chegáramos ao nosso destino. Ali se erguia o túmulo de Intschu-tschuna, o outrora cacique dos apaches, e ao seu lado o de sua formosa filha, que ora dormia o sono eterno. Durante as minhas jornadas com Winnetou, estivera muitíssimas vezes em visita a esse lugar santo, a fim de homenagear a memória dos dois mortos queridos, e desta vez vinha sem a companhia do meu inesquecível amigo, que fora também se juntar aos seus antepassados na mansão celestial. Durante o tempo em que eu excursionava por outros países, Winnetou estivera também seguidamente, sozinho, na campa dos seus mortos amados. Quantos pensamentos não teriam torturado o seu cérebro, quantos sentimentos não lhe teriam atormentado o coração! Diante de si, sem dúvida, via sempre a figura hedionda de Santer, o ladrão da sua tranqüilidade, e no jovem apache aumentava ainda mais o desejo de vingar a morte de seu pai e de sua querida irmã!

Não conseguira o pobre apache vingar a morte daquelas pessoas amadas antes de morrer. Agora estava eu ali à espera do assassino! Não era eu como que o único herdeiro, espiritual embora, do meu amigo, e por conseguinte, também o herdeiro legítimo daquela vingança? Esse desejo, aliás, também não esteve sempre latente em mim? Não seria um agravo à memória do meu amigo e à dos dois mortos se eu poupasse Santer, depois que ele me caísse nas mãos? Mas nesta cadeia de pensamentos, ouvi em espírito as derradeiras palavras de Winnetou: “Carlos, creio em Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador! Winnetou morre cristão, graças a Deus!” Infelizmente, porém, em seguida soou outra voz aos meus ouvidos, era a voz de Gattes, que dizia enérgico:

— Que está aí a olhar estarrecido para os túmulos? Já está a ver os espíritos que tanto o apavoram? Se isso já sucede de dia claro, que dirá de noite, quando ficar escuro como breu!

Não lhe respondi uma palavra. Levei o meu cavalo para a orla da clareira, desencilhei-o e depois deixei-o a pastar. Em seguida, conforme era hábito inveterado meu, saí a fazer um reconhecimento pelas redondezas. Quando voltei, os companheiros haviam-se posto à vontade, à beira dos túmulos, exatamente no lugar onde eu pretendia escavar a terra.

— Onde andava o senhor até agora? — perguntou Gattes. — Já esteve por certo à procura de nuggets. Deixe-se disso! Só saímos em pesquisas todos juntos, para que não suceda um só encontrar o terreno aurífero e silenciar, para depois vir retirar o ouro só para si!

A sua arrogância não me agradou. Eles não sabiam quem eu era, mas naquele tom não se devia falar a pessoa alguma, por mais estranha que fosse. Por isso respondi-lhe com energia, mas evitando ofendê-lo:

— O senhor fêz-me tal pergunta por curiosidade ou por julgar exercer o comando sobre mim? Seja qual fôr a sua intenção, tenho a observar-lhe que de há muito passei da idade de um menino de escola, ouviu Mr. Gattes?

— Menino de escola? Mr. Jones, que pretende o senhor dizer com isso?

— Que me considero um homem independente, livre de fazer o que bem entender!

— Pois está muito enganado! É justamente o que o senhor não é! A partir do momento em que se juntou a nós, passou a ser membro de nossa comitiva e nenhum membro dela pode considerar-se independente!

— Mas lá por isso não precisa deixar-se dominar por outro!

— Como não? É preciso que numa caravana haja um chefe ao qual todos os demais obedeçam!

— E o senhor considera-se este chefe?

— Sim, senhor!

— Pois está redondamente enganado! Se entre nossa caravana há um que tem direito de assumir a chefia sobre nós, outro não pode ser senão Santer.

— Mas ele ainda não está presente. Na sua ausência, respondo pela chefia.

— Mas não sobre a minha pessoa. Por enquanto não admito chefes! Lembre-se de que ainda nem vi Santer e muito menos ainda fui contratado por ele. Portanto não faço ainda, propriamente, parte da caravana.

— Se não faz parte da caravana, deixe ao menos de andar examinando a zona. Se se considera desligado de nós, não lhe assiste direito para isso.

— Sobre este ponto é melhor não discutirmos, sir! Tenho o direito de me dirigir e caminhar para onde bem me aprouver. Não ouvi ainda dizer que os senhores tenham adquirido por compra esta área territorial. E se o fizeram, que é do título de posse? A demais, afastei-me dos senhores, com o fim de verificar se o local é seguro para nele estabelecermos o acampamento. Se os senhores pretendem de fato ser uns atilados homens das planícies, como se pavoneiam, deveriam saber que nunca se acampa no interior de um mato sem saber se não há mais alguém pelas redondezas e sem averiguar se se trata de amigos ou inimigos. Não tomaram, no entanto essa providência e agora, em vez de me ser reconhecido por haver eu me encarregado disso, recebe me aí como se eu fosse um menino de colégio, ou um imbecil com quem se pode gritar estupidamente! Não admito que reincida nesta falta para comigo!

— Ahn! O senhor esteve à procura de pegadas?

— Já lhe disse que sim!

— Mas se as encontrasse saberia decifrá-las?!

— Se não soubesse não iria procurá-las!

— Ora, e eu que pensei que o senhor já tivesse saído à cata de ouro!’

— Não sou tão tolo como pensa!

— Por que tolo?

— Sei lá eu em que lado e em que direção fica a jazida ou esconderijo! Isto só Santer sabe, se é que por aqui há ouro, o que duvido muito!

— O senhor de tanto suspeitar e desconfiar, está até perdendo o uso da razão. Seria mesmo melhor que o tivéssemos deixado lá onde o encontramos!

— Acha? Pois se houvesse ouro aqui, seria eu talvez o único que está em condições de encontrá-lo. Mas todo o precioso metal já foi retirado daqui.

— Quem lhe disse?

— Ninguém. Eu é que sei!

— Mas como pode saber?

— Depois de uma reflexão sensata não se poderá chegar à conclusão diferente; e é de admirar que os senhores, que se blasonam de hábeis corredores das planícies, já não tivessem percebido isso há muito tempo!

— Não fale por enigma! Use, antes, de termos claros e inteligíveis! Temos certeza absoluta de que aqui havia terrenos auríferos ou então um esconderijo onde os indígenas guardavam ouro transportado de outras zonas!

— Acredito.

— Mas então quem teria retirado o precioso achado aqui?

— Winnetou.

— Ahn! Como chegou a conceber tal idéia?

— Eu preferia perguntar como os senhores ainda não a conceberam! Baseado no que ouvi dizer de Winnetou sei que ele era não só o mais valente dos guerreiros peles-vermelhas, mas também o mais inteligente e astuto!

— Não conta novidade! Todos sabemos disso.

— Pois então tenham a bondade de raciocinar um pouco, homens! “Winnetou aqui viera em busca de ouro e por esta ocasião foi assaltado; inteligente, como era, percebeu depois que o seu segredo iria ser pesquisado e talvez desvendado. Ele devia ter admitido que Santer, depois de haver fugido, voltaria aqui mais tarde a fim de dar uma busca em todas as redondezas. Que fariam os senhores no lugar do jovem cacique? Deixariam o ouro aqui depositado?”.

— Com todos os diabos! — acudiu o meu interlocutor, boquiaberto.

— Bem, responda-me!

— Isso não passa de uma idéia, aliás de uma idéia infantil!

— Bem, se os senhores julgam que Winnetou foi um idiota, procurem ouro, nada tenho a ver com isso! Mas não me ofendam com a suspeita de que eu esteja sorrateira e deslealmente à procura de nuggets. Não admito que me julguem tamanho imbecil!

— Então é de parecer que nada encontraremos nesta zona?

— Estou convencido disso!

— Mas por que então aceitou o meu convite e acompanhou a nossa comitiva?

Como não me era possível dizer-lhe a verdade, respondi-lhe:

— Porque só agora é que me foi possível chegar à tal conclusão.

__ Ah! Então até agora o senhor foi tão tolo quanto nós! Concordo que, talvez em parte, a sua opinião seja verdadeira, mas noutros pontos ela é muito discutível.

— Em quais pontos?

— Vou rebater apenas um: o esconderijo era tão oculto que Winnetou não precisava nutrir receio de alguém encontrá-lo. Não acha também?

— É possível que sim.

— Bem, eu poderia rebater outros pontos, mas prefiro desistir. Esperemos até a chegada de Santer, cuja opinião veremos!

— Quando pensa que ele estará aqui?

— Hoje, não, mas amanhã, com toda a certeza.

— Amanhã? É impossível. Acontece que conheço o Salt Fork para onde ele seguiu. Mesmo que ele faça uma viagem muito apressada, chegará aqui, quando muito, depois de amanhã, à noitinha. E com que preencheremos o tempo até lá?

— Com caçadas. Precisamos de carne.

— Hum! E acham que devo acompanhá-los nas caçadas?

Formulei esta pergunta com segunda intenção: eu queria que eles seguissem e me deixassem só. Infelizmente, porém, não obtive o resultado almejado, pois Gattes respondeu:

— O senhor nos estorvaria por certo. Não precisamos do senhor; ficará aqui na companhia de Summer.

 

O APRISIONAMENTO DE SANTER E A SUA LIBERTAÇÃO PELOS KIOWAS

Ou outros dois tomaram de suas espingardas e se entranharam na floresta. Teria adotado Gattes, em reserva, a política de não me deixar andar senão acompanhado por um dos membros da comitiva? Neste caso ele me devia ter atribuído um pouquinho mais de sagacidade! E se de fato estava convencido de que eu os estorvaria na caçada, então me julgava com pouco mérito, sem notar que isso constituía uma falta grave de sua parte, pois eu bem poderia estar me fingindo de inábil para alcançar certo fim. Gattes sempre pronunciava armador de alçapão com visível pouco caso, e com isso dava mostras de sua inexperiência nas planícies do oeste, pois um armador de alçapão nada consegue, se não souber manejar bem as suas armas e se não fôr um homem do oeste, no verdadeiro sentido do termo. Na companhia de Clay andou ele toda a tarde pelo mato e o resultado da caça foi uma única e miserável lebre, com a qual deviam alimentar-se quatro pessoas... Na manhã seguinte ele saiu na companhia de Summer; a sua colheita toda consistiu nalgumas pombas, de carne tão dura, que com dificuldade se podia mastigar.

— Andamos sem sorte, mas mesmo sem sorte! — desculpou-se o homem. — Não há meio de se encontrar uma caça que preste.

— Realmente, se pudéssemos assar e comer a falta de sorte dos senhores, não passaríamos mais privações. Essas pombas, ao que parece, são do tempo de Matusalém; e foi pena terem que morrer tão prematuramente ...!

— Pretende divertir-se à minha custa, sir?

— Absolutamente não. Acha o senhor que o meu estômago anda disposto a permitir que eu faça pilhérias?

— Pois então vá caçar coisa melhor, se fôr capaz!

— Well, agora vou buscar caça para nós todos!

— Não conseguirá abater caça alguma.

— Ora, uma lebre ou algumas pombas antediluvianas hei de encontrar...

Dizendo isso, agarrei as minhas armas e me entranhei pelas selvas. Afastando-me lentamente ouvi-os a rir e exclamar:

— Lá se vai ele arrastando os seus dois canhões, hahahaha! Há de destruir alguns troncos de árvores, mas não abaterá caça alguma.

Não ouvi mais. Oh! Se eu pudesse ficar lá para escutá-los sem ser pressentido! Talvez ouvisse alguma cousa de capital importância para mim. Como vim, a saber, mais tarde, eles realmente estavam convencidos de que eu não conseguiria matar a mais insignificante caça. Estavam combinados para me darem um formidável “trote” e provar-me a sua perícia de caçadores, exibindo-me uma farta colheita. Para isso, logo depois de minha retirada, embrenharam-se os três mata adentro, por outro rumo. O campo estava, pois, livre e eu poderia, então, escavar a terra em busca do testamento. Eu teria achado o testamento, lido e guardado no bolso tranqüilamente, e ainda poderia estar certo de encontrar depois uma caça apetitosa. Mas não tinha de acontecer!...

Nas caçadas anteriores, eles haviam descido o caminho que nos conduzira ao morro. Haviam, pois, enxotado todas as caças para o norte. Nessa convicção, tomei aquele  rumo,   chegando   à   zona   onde   daquela   feita   atraímos   os  kiowas  numa

emboscada, conforme os leitores devem estar lembrados (*). Esta zona já há anos não era mais atravessada por gente, razão por que eu esperava fazer excelente colheita. Mas já era meio-dia, hora imprópria para caçadas e por isso mais alegre ainda fiquei quando daí a uma hora abati duas gordas galinhas turcas. De posse dessas aves, voltei para o acampamento.

Quando lá cheguei, encontrei-o abandonado. Onde estariam metidos os três companheiros? Teriam se escondido para espreitar o que eu trazia? Ou haviam saído também todos os três para caçar? Chamei, ninguém me respondeu.

Oh! Se tivessem eles de fato saído para caçar! Mas eu devia agir com cautela e fiz primeiro um reconhecimento na zona. Isso deu me a certezas de não se acharem os companheiros por perto. Agora, depressa à ação!.

Puxei da faca e com ela escavei a terra ao lado oeste, junto do túmulo de Intschu-tschuna. Trabalhei com febril agilidade, pois a todo o instante poderiam os homens chegar. De quando em quando me punha a escutar se se aproximava alguém. Escavei, escavei até que a ponta da faca bateu numa pedra. Afastei-a e depois encontrei uma outra, debaixo da qual havia um pequeno compartimento seco, com paredes de seixos. Nesse compartimento estava oculto um pacote, quadrado, de couro: era o testamento do meu amigo e irmão Winnetou. No mesmo instante coloquei-o no bolso e apressei-me a cobrir o buraco e desfazer o mais possível os vestígios. Coloquei depois a minha colcha sobre o ponto escavado e por cima as duas caças, de modo a não provocar suspeitas nos companheiros. Estes, mesmo que encontrassem a terra escavada, acreditariam na minha desculpa de que limpara a terra para acender uma fogueira.

Feito o que, me pus novamente a escutar. Os homens nada de voltarem! Graças a Deus, tudo conseguido! O embrulho estava fechado em forma de envoltório. Devia deixá-lo no bolso, ou lê-lo em seguida? Não havia motivos para receios. Se os companheiros voltassem e me surpreendessem lendo, que desconfiança lhes poderia despertar essa minha atitude? Sabiam eles do que se tratava? Supunham ser alguma carta ou qualquer outro manuscrito vulgar que comigo trouxesse há tempos. Nem sequer tinham o direito de perguntar-me que papel estava eu a ler. E se o fizessem, eu lhes poderia dar a resposta que bem me aprouvesse. Pensando assim, rasguei o envólucro e febrilmente passei a ler o que Winnetou havia escrito. Escrito, sim! Winnetou sabia ler e escrever. Aprendera com Klekih-pêtra. Apenas o adorável apache não encontrara ocasião na vida para desenvolver aqueles conhecimentos. Fizera uma observação no meu livro de notas. Era me fácil, pois, confrontar as letras. A sua caligrafia não era bonita, não era aperfeiçoada, mas bem característica. Era semelhante à caligrafia de um menino de colégio, de catorze anos de idade.

Não pude conter-me. Sentei-me e passei a examinar as laudas de papel. Sim, era realmente a letra de Winnetou. As letras não eram escritas, mas desenhadas num conjunto uniforme. Onde teria ele escrito aquela imensidade de linhas e que tempo teria levado para desenhá-las! Meus olhos marejaram-se de lágrimas. Enxuguei-as e li:

“Meu querido e bom irmão!

Tu ainda vives e Winnetou, que tanto te estimou neste mundo, morreu. Entretanto a sua alma ainda está junto de ti; tu a tens em tuas mãos, pois ela está gravada nestas páginas. Deixa-a repousar no teu coração!

___________________

(*) Vide 1.° volume

 

Vais agora conhecer os últimos desejos do teu irmão pele-vermelha e ler muitas palavras que te ficarão gravadas para sempre na memória. Ele só te dirá, porém, aqui, o que fôr indispensável. Não lerás nessas folhas o único testamento de Winnetou, pois também hás de ler um outro para os seus guerreiros ouvirem, este aí é só para ti, meu querido, meu único amigo e irmão!

Hás de ver muito ouro e dele fazer o que o meu espírito agora te vai ditar. Esse ouro esteve primeiramente oculto no Morro do Ouro, mas Santer, o bandido, andava em pesquisa para descobri-lo. Por isso Winnetou o transferiu para Deklil-to (*), onde, de uma feita, estiveste em sua companhia. Sobe o Indeltsche-tschil (**) até Tse-tschosch (***), no local em que começa o rio Laapeias e...” Havia lido até esse ponto quando ouvi uma voz por detrás de mim:

— Good day, Mr. “Mão de Ferro”! Está, ao que parece, exercitando-se na soletração?

Virei-me e descobri que havia há pouco cometido a maior negligência de toda a minha vida. Na leitura me havia afastado demasiadamente da caça, junto da qual abandonara as minhas armas. Achava-me virado para os túmulos, portanto de costas para o caminho que conduzia ao vale. Devido à ânsia de conhecer o testamento de Winnetou, cometera a leviandade de tomar uma posição descautelosa. Deste modo, não pude ver que aquele que neste momento me dirigia a palavra, viera rastejando, se postara junto de minhas armas que agora eu não podia alcançar, e tinha os dois canos de sua espingarda apontados para mim. Dei um pulo de espanto, pois quem estava por trás de mim a me falar não era outro senão Santer!

Instintivamente levei a mão à cintura, para puxar o revólver! Sim, fora esta a minha intenção. Mas, há pouco, para escavar a terra, tirara a cinta em que ele estava, porque me embaraçava no serviço. Sentia-me tão a salvo de qualquer ataque, que nem me lembrei da precaução que, por princípio, adota todo o homem do oeste: jamais se separa de suas armas. Portanto, no momento achava-me completamente desarmado. Santer percebeu os meus movimentos inúteis em procura de armas e, rindo-se sardônicamente, ameaçou-me:

— Nem um passo mais, nem um movimento em busca das armas, senão será um defunto fresco! Estou falando seriamente, não se iluda!

Os seus olhos faiscavam de tal modo, que logo divisei neles a certeza de que ele uniria logo a ação às palavras, se eu ousasse desobedecê-lo. Assim como subitamente o seu aparecimento me surpreendera, depressa também recuperei a minha habitual calma e sangue frio.

— Afinal, está difinitivamente nas minhas mãos, hein?! — prosseguiu o celerado. — Está vendo os meus dedos sobre o gatilho? Ao menor movimento que nele imprimir, uma bala irá fazer uma visitazinha ao seu crânio! Convença-se disso! Não mova um só membro, senão o mandarei de presente ao diabo, que de há muito anseia pela sua alma! De você a gente não se pode descuidar. Creio que não me esperava, não é?

— Não o esperava, não! — respondi calma e ironicamente.

— Sim, pelas contas, que fêz, julgava que eu só chegaria amanhã à noitinha, mas o seu cálculo falhou!

______________________

(*) Águas Escuras. (**) Pinheiral. (***) Montanha ou rocha do urso.

 

Estava ao par disso! Portanto, antes de sua chegada, se havia encontrado com os meus companheiros. E onde estavam eles? Estivessem eles, aqui, no momento, eu me teria tranqüilizado, se já não estivesse tranqüilo. Podiam ser o que fossem, mas bandidos não eram; assim eu tinha certeza de que não seria assassinado na sua presença. A única cousa, pois, que me restava, era não irritar Santer de momento. Continuei, pois, em postura imóvel enquanto ele com a inflexão de um ódio irreconciliável na voz, continuou:

— Pretendia seguir para o Salt Fork a fim de levar a notícia a Tangua, de que o apache, o mais asqueroso dos cães abjetos, havia morrido finalmente; mas em caminho encontrei-me casualmente com uma horda de kiowas e deste modo consegui chegar aqui antes. Lá em baixo me encontrei com Gattes e ouvi dele que havia contratado um tal Jones. Disse-me que este Jones conduzia duas pesadas espingardas, uma pequena e outra grande; este detalhe despertou-me uma suspeita. Mandei que ele me descrevesse minuciosamente a figura do tal sujeito e logo vi de quem se tratava. Apesar de aparentar uma certa imbecilidade, concluí logo que não era outro senão o canalha “Mão de Ferro”. Subi então ao morro, a fim de observá-lo e prendê-lo quando voltasse da caça. Tive, porém, a sorte de encontrá-lo já de volta ao acampamento. Você andou escarafunchando na terra e nós a observar os seus movimentos. Que papel é este que você há pouco lia?

— É uma conta do alfaiate! — respondi canalhamente.

— Cão! Não se aventure a mofar comigo! Diga a verdade e já!

— Uma conta do alfaiate, já lhe disse! Venha até aqui, para se convencer de que lhe estou a falar a verdade!

— Ah! Quer que me aproxime de você descuidadamente? Era só o que faltava! Preciso tê-lo primeiro mais seguro! Que anda fazendo aqui no Mugworthill, a que os apaches chamam também de Morro do Ouro?

— Desenterrando tesouros.

— Ah! Logo calculei!

— Mas, infelizmente, encontrei apenas contas do alfaiate.

— Espere, eu já examinarei essas “contas”. Você é encontrado em toda a parte onde não devia andar! Desta vez, porém, o diabo o conduziu por um caminho acertado. Não escapará de minhas unhas! Um de nós é demais no mundo!

— Talvez seja você o que está sobrando e não eu... Talvez, não, tenho certeza até, pois eu não sou um bandido, um assassino! Você de há muito que já devia estar ardendo nas caldeiras do inferno!

— Insolente! Um cão leproso, late mesmo no momento de morrer! Não pense que essa risada atrevida o salvará! Repito: desta vez não escapara de uma excursãozinha ao inferno! E os grãos de ouro que você ia desenterrar daqui levaremos conosco!

— Pois leve-os e com eles faça o seu próprio sarcófago!

— Não deboche, cão! Não tente iludir-me. Você mesmo já afirmou que aqui não havia mais ouro algum. Mas o papel que ainda tem na mão nos dirá, certamente, para onde ele foi transferido.

— Pois então venha buscá-lo! Está ao seu inteiro dispor!

— Acha que sou tão idiota para cair nessa cilada? Apossar-me-ei desse papel, sem o seu oferecimento, já vou provar-lhe daqui a pouco. Ouça mais uma vez o que lhe vou dizer: ao menor movimento, à mais insignificante desobediência, baterei o gatilho. Com outro, isto talvez não passasse de ameaça. Mas com você, um canalha tão perigoso, preciso agir seriamente!

— Oh! Sei bem disto. Não me diz nenhuma novidade!

— É bom que reconheça. Venham, camaradas! Amarrem este cão. Essas palavras foram pronunciadas pelo bandido, dirigindo-se para um dos flancos da mata. Lá estavam Gattes, Clay e Summer escondidos por trás do tronco de uma árvore.

Saíram de sua posição defensiva e se encaminharam lentamente para mim. O primeiro, munindo-se de umas cordas, disse-me à guisa de escusa:

— Sir, com surpresa viemos, a saber, que não se chama Jones, mas que é o célebre “Mão de Ferro”. Por que nos mentiu daquela forma? Pretendia enganar-nos; agora somos obrigados a prendê-lo. Não tente uma resistência, que será em vão! De nada lhe adiantaria derrubar ou matar um de nós, pois no mesmo instante cairia varado por um tiro de Mr. Santer!

— Deixe de tagarelice! — acudiu Santer!

E dirigindo-se a mim:

— Largue o papel e dê as mãos para amarrar!

O facínora estava convencido de me ter seguro; mas agora eu estava convencido de que, ao contrário, ele é que cairia fatalmente nas minhas mãos. Era só eu aproveitar a situação depressa e com firmeza.

— Vá, ande depressa, do contrário detono a espingarda! — ordenou-me Santer. — Largue já o papel!

Deixei cair o testamento.

— Dê-me as mãos, imediatamente!

Simulando obediência incondicional, estendi as mãos a Gattes, mas de tal modo, que quando ele se dispusesse a atá-las, ficasse entre mim e Santer.

— Afaste, afaste! — berrou este. — Não vê que está defronte de minha espingarda? Se eu desfechar o tiro não acertarei naquele canalha, mas. . .

Não pôde continuar, pois foi interrompido de um modo pouco delicado por mim. Em vez de me deixar amarrar, peguei Gattes pelos quadris e arrojei-o violentamente em cima de Santer, que tentou ainda desviar-se, mas foi tarde. O bandido foi arrojado ao solo e a espingarda voou para longe dele. Com a rapidez dum relâmpago, ajolhei-me defronte dele. Um violento soco na região temporal o fêz desmaiar por algum tempo. Ergui-me depressa e trovejei para os três:

— Eis a prova de que realmente sou “Mão de Ferro”! Quiseram brincar comigo! Afastem as armas senão mato a todos! Agora sou eu que vou agir seriamente com vocês, cáfila de ladrões!

Eu havia arrancado o revólver do cinturão de Santer e o apontava para os três “atilados homens do oeste”, que imediatamente obedeceram à minha intimação.

— Sentem-se lá na beira do túmulo do cacique, já e sem pestanejar! Andem depressa!

Sentaram-se no local determinado. Indiquei-lhes aquele local porque o mesmo ficava longe das armas que haviam lançado ao solo.

— Agora, fiquem sentados muito quietinhos! Nada lhes sucederá porque estou convencido de que foram ludibriados por aquele celerado, talvez o maior ladrão e bandido das planícies do oeste bravio. Uma tentativa de fuga ou resistência, porém, custar-lhes-á a vida!

— Aquilo foi horrível! — exclamou Gattes, esfregando o corpo. — Voei como uma bola. No mínimo fraturei uma dúzia de ossos!

— A culpa foi sua. E cuide-se para não lhe suceder ainda muito pior! Onde arrumou essas cordas?

— Mr. Santer me deu.

— Possui mais algumas?

— Yes.

— Então passe para cá.

O homem meteu, trêmulo de medo, a mão no bolso e me passou uma infinidade de cordas. Com elas atei os pés de Santer e as mãos às costas.

— Bem, este está seguro! — exclamei triunfante. — Querem que os amarre também?

— Obrigado, sir — respondeu Gattes. — Já sofri bastante; comprometo-me a ficar aqui por toda a eternidade, se quiser, sem mover nem um músculo. Mas não faça mais violências com minha pessoa. O meu corpo não é de ferro como o seu punho.

— E faz muito bem, pois, como viu, não suporto brincadeiras!

— Eu agradeço essas brincadeiras! E nós fomos tão idiotas em tomá-lo por um armador de alçapão!

— Aliás, esta rata não foi das maiores! Um armador de alçapão, no verdadeiro sentido do termo, precisa ser também um caçador exímio. Como se foram de caça? Abateram alguma?

— Nem um pardal encontramos.

— Veja aquelas duas galinhas turcas! Foram abatidas por mim. Se os senhores se portarem bem, poderão assá-las depois e saboreá-las na minha companhia. Espero que não tardarão em convencer-se de que este Santer é um refinado larápio, um bandido e não um homem de bem como pensavam. Não há patife maior neste mundo! Não tardarão ouvi-lo dos seus próprios lábios, pois vejo que está recuperando os sentidos.

Santer movia lentamente os membros. Finalmente abriu os olhos. Viu-me depois à sua frente ostentando o seu cinturão. Viu também os seus três companheiros desarmados e sentados à beira do túmulo do cacique.

Exclamou, apavorado:

— Que é isto? Eu... estou... amarrado?

— Sim, está amarrado — respondi-lhe. — A situação mudou calmamente, sem maiores lutas, e sem que fosse necessário morrer alguém. Creio que o senhor nada tem a opor a essa mudança, Mr. Santer!

— Cão! — exclamou, rangendo os dentes.

— Pst! — fiz. — Não complique a sua sorte!

— Vá para o diabo, patife! Você não passa de um cão!

— Previno-o novamente! Há pouco deixei passar o jeito com que me tratou em tom de menosprezo, porque a prudência assim exigia. Agora porém, o senhor é que será prudente, se me tratar com mais cortesia!

Dirigiu olhares perscrutadores aos camaradas sentados à beira do túmulo e gritou-lhes:

— Vocês andaram dando com a língua nos dentes?

— Não — respondeu Gattes.

— Ainda bem!

— “Dar com a língua nos dentes” sobre o quê?

— Nada. Não é da sua conta!

— Oh! Desembuche já tudo! Se não fizer, abro-lhe a boca!! Vamos!

— Sobre os nuggets que aqui se acham guardados! — respondeu forçado.

— Que há com os nuggets?

— É que eu lhes ensinara o lugar onde os mesmos devem estar escondidos e agora julguei que eles lhe tivessem revelado tudo.

— É verdade o que esse bandoleiro está dizendo? — perguntei a Gattes.

— Sim — respondeu o interrogado.

— Mas também o senhor não está mentindo agora?

— Não, senhor!

— Seja sincero que lucrará mais! Previno-os a todos de que uma mentira ou uma traição lhes custará a vida!

Gattes hesitou, por instantes, e depois disse:

— Pode estar certo, sir, que estou dizendo a verdade. Era sobre aquele assunto que Mr. Santer me perguntou.

— Entretanto, não acredito em suas palavras. Procurou dar um tom sincero às suas palavras, mas fingiu muito mal. Na fisionomia desse ladrão anda à espreita a traição. Intimo-o pela última vez a me falar a verdade, Mr. Gattes! Santer não lhe falou dos kiowas, quando o encontrou lá em baixo no vale?

— Sim.

— Ele veio só?

— Veio.

— E realmente se encontrou com uma horda de peles-vermelhas no caminho?

— Sim.

— E em virtude disso desistiu de prosseguir para o Salt Fork?

— Sim, Mr. Santer não esteve lá.

— E a horda era numerosa?

— Compunha-se de sessenta guerreiros.

— Quem os comanda?

— Pida, o filho do cacique Tangua.

— E onde está aquele bando agora?

— Voltou para a aldeia.

— Mas não está mentindo, Mr. Gattes?

— Não, senhor, falo a pura verdade!

— Seja como quiser, Mr. Gattes! O homem muitas vezes, por teimar, vai parar no inferno! Se me pregou uma mentira, mais tarde se arrependerá amargamente disso. Anote o que lhe estou dizendo! Quanto ao ouro afianço-lhes que perderam a viagem! Aqui não encontrarão um só grão dele. Foi todo transferido para outra zona.

Agarrei do chão o testamento de Winnetou, coloquei-o novamente dentro do envólucro de couro e o guardei no bolso.

— Mas, Mr. Santer deve saber melhor do que o senhor, sir! — retrucou Gattes.

— Ele sabe tanto quanto nada.

— E o senhor sabe para onde foi transferido este tesouro dos apaches?

— Pelo menos tenho a pretensão de sabê-lo.

— Diga-nos então!

— Estou proibido de revelar tal segredo a quem quer que seja.

— Aí está, sir. Trouxemo-lo só para nos dar prejuízo, em vez de lucro.

— O ouro não pertence aos senhores! Por que então está aí a reclamar, feito um tolo?!

— Mas passará a nos pertencer, pois, Mr. Santer vai nos mostrar o esconderijo onde está e depois repartirá conosco o seu produto.

— Aquele ali, que agora é meu prisioneiro?

— Que lhe poderá fazer o senhor? Ele recuperará a sua liberdade.

— Dificilmente. Antes irá pagar os seus crimes com a própria vida! A essa altura, Santer proferiu uma gargalhada atrevida e provocadora.

Virei-me para ele e lhe disse:

— Daqui a pouco não rirá com esta desenvoltura com que está rindo agora! Que acha que vou fazer agora do senhor?

— Nada! — disse esbravejando.

— E quem me impede de mandar-lhe uma bala aos miolos?

— O senhor mesmo! Todo mundo sabe que “Mão de Ferro” treme de pavor quando tem de matar um homem.

— Tem razão, não sou um assassino! Se o tivesse encontrado semanas atrás, tê-lo-ia morto a bala. Mas Winnetou morreu como cristão e com ele devem também ser sepultados todos os desejos de vingança!

— Deixe de discursos bombásticos e sentimentais; isto não pega! O senhor não se vinga porque é um poltrão! Esta é que é a verdade!

Era uma infâmia que transpunha todos os limites. Eu só podia atribuí-la à sua insensibilidade de bandido, pois ignorava ainda o sentido oculto que tinham as suas palavras. Respondi-lhe calmamente:

— Ofenda-me sempre! Um homem de seu jaez é capaz de todas as coragens! Não devemos levar a sério o que diz. Persisto, porém, em afirmar que com Winnetou desapareceu também o desejo de vingar o morticínio dos seus entes amados, morticínio perpetrado fria e covardemente pelo senhor com o móvel único de roubar um pouco de ouro que os indígenas traziam. Mas, atente bem, entre vingança e castigo vai uma grande diferença! O cristianismo desconhece toda e qualquer vingança, mas exige que todo o crime seja severamente punido. Não vou, pois, vingar a morte do pai e irmã do meu falecido amigo, mas não posso soltá-lo sem infligir-lhe o castigo que merece por aquele ato ignominioso!

— Quer o senhor dê o nome de castigo ou vingança tudo no fim é a mesma coisa! Ridículo! Não pretende vingar-se de mim, e sim castigar-me, com certeza, matando-me. Vá pavonear os seus sentimentos de cristianismo para onde quiser, mas não para o meu lado!

— Pois engana-se! Nem por sombra pretendo macular minhas mãos no seu sangue! Não me confunda com os bandidos de sua laia! Levá-lo-ei agora preso para o forte ou fortaleza mais próxima e lá o entregarei à justiça!

— Ah! é isso o que pretende fazer?

— Sim, é isso mesmo!

— Mas como pretende executar esse seu propósito?

— Isso é comigo!

— E comigo também, pois creio que, por essa ocasião, não poderei estar ausente... Talvez que os papéis se invertam: que eu o transporte daqui preso, ao invés do senhor a mim! E então, como não sou um cristão fervoroso como “Mão de Ferro”, não renunciarei à desforra que me cabe tomar! Oh! eles já estão aí. Veja, lá vêm os meus amigos!

Essas últimas palavras o celerado as proferiu gritando jubiloso, e de fato tinha razão para rejubilar-se, pois o final de sua frase foi abafado pelo grito de guerra característico dos nativos, quando dão início a um assalto. De todos os lados dos bosques surgiram figuras de kiowas, que até ali haviam chegado rastejando. Traziam as caras pintadas com as cores de guerra e logo me fecharam dentro de um círculo ao mesmo tempo que libertavam o bandido.

Como se vê, Gattes me havia mentido: Santer realmente trouxera os kiowas para o Morro do Ouro. Aqueles selvagens ferozes, ao terem conhecimento da morte de Winnetou deliberaram festejá-la, para o que escolheram o local onde ficavam os túmulos de seu pai e de sua irmã. Era uma comemoração caracteristicamente indígena e se adaptava perfeitamente aos sentimentos do assassino, que teria a sua satisfação aumentada pela circunstância de encontrar junto aos túmulos, o amigo inseparável de Winnetou.

 

O MEU APRISIONAMENTO

O ataque embora repentino e insperado, não me roubou a presença de espírito; nos primeiros momentos, decidi defender-me e empunhei os revólveres; mas quando me vi cercado por sessenta guerreiros, pus novamente as armas no coldre. A fuga seria impossível e a resistência não daria resultado satisfatório, só podendo concorrer para agravar mais ainda a minha situação. A única cousa que me restou fazer foi empurrar de mim o primeiro nativo que se aproximou e, estendendo os braços, bradar:

— “Mão de Ferro” rende-se aos guerreiros dos kiowas. Está aí o seu jovem cacique? A ele, porém, e só a ele, me entregarei voluntariamente!

— Voluntariamente? — zombou Santer. — Este patife, que usa o pomposo nome de “Mão de Ferro”, a falar em rendição voluntária! Que remédio: se não se entregar, será esmagado pelo nosso punho! Não facilitem, pancada nele!

Ele, porém, se esquivava de aproximar-se de mim. Os kiowas obedeceram-lhe e investiam contra mim, mas não com as armas e sim com os punhos cerrados; não pretendiam matar-me, mas apanhar-me com vida. Defendi-me com violência derrubando muitos deles; não teria, porém, resistido à grande superioridade em número, se Pida neste instante não comandasse:

— Alto! Ele já se dispôs a se entregar voluntariamente a mim. Portanto esses ataques são injustificáveis!

Os selvagens se afastaram então de mim e Santer bradou furioso:

— Mas por que pretende poupar aquele cão? Ele merece tantas pancadas e pontapés quantos sãos os braços e pés dos guerreiros presentes!

O jovem cacique aproximou-se então dele e disse-lhe num tom não muito amável:

— Pretendes comandar aqui?! Não sabes então quem é o chefe dos guerreiros?

— Sei, és tu!

— E quem és tu para dar ordens?

— Um amigo dos kiowas que, acho, tem também o direito de dizer alguma cousa quando se trata do interesse dessa tribo! Não só sou amigo dos kiowas como eles também são meus amigos.

— Nós, teus amigos? Quem te disse semelhante disparate?

— O teu pai.

— Não é verdade! Tangua, o cacique dos kiowas, jamais usou da palavra amigo ao se referir a ti! Não passas de um miserável pele-branca como qualquer outro e és apenas tolerado por nós!

Tive vontade de me aproveitar daquela troca de palavras um tanto violenta e animada, para escapar-me; e talvez tivesse conseguido, pois os peles-vermelhas haviam voltado a sua atenção mais para Santer e Pida do que para mim. Eu teria, porém, neste caso, que abandonar minhas armas e isso não me convinha. Por fim, Pida chegou-se a mim e disse:

— “Mão de Ferro” rendeu-se com a condição de só se entregar a mim. E me entregará voluntariamente tudo que conduz consigo?

— Sim, entregarei.

— E também deixa-se amarrar?

— Sim.

— Então dê-me as suas armas.

Eu estava intimamente satisfeito com aquela sua atitude, pois provava que me temia. Entreguei-lhe o revólver e a faca. Santer tomou a espingarda de repetição e a “Mata-ursos” e apossou-se delas. Pida notou-o e perguntou-lhe:

— Com que direito pegas essas armas? Larga-as já no lugar de onde as agarraste!

— Era só o que faltava! Essas espingardas agora são minhas!

— Elas pertencem por enquanto aos kiowas.

— Aos kiowas, não; a mim é que elas pertencem.

— São de propriedade de “Mão de Ferro” que acaba de se entregar voluntariamente. Portanto pertencem a mim e não a ti!

— E a quem deves a sua prisão? A mim, exclusivamente a mim. E!e já se achava em meu poder; como prisioneiro, pertence, pois, a mim, e, com ele, tudo o que conduz. Não estou nada inclinado a renunciar aos meus direitos, nem sobre a sua pessoa e nem sobre essa admirável espingarda de repetição, sistema Henri!

Pida perdeu a calma e, levantando a mão trovejou:

— Larga já essas armas!

— Não largo!

— Prendam-no! — ordenou o jovem cacique.

— Pretendem agredir-me?! — perguntou Santer, tomando ares de quem está disposto a se defender.

— Já disse: aprisionem esse embusteiro! — tornou a gritar com mais energia para os guerreiros.

Quando Santer viu que ia ser preso atirou as armas no chão e declarou:

— Aí as tens, mas não julgues que vais ficar por muito tempo com elas. Vou queixar-me a Tangua!

— Pois vai já, e vai correndo! — respondeu Pida com desprezo.

Um dos guerreiros trouxe-lhe as duas espingardas e eu tive que estender ambas as mãos para serem amarradas. Enquanto me amarravam, Santer se aproximou e disse a Pida:

— Fica, em nome do diabo, com estas espingardas, mas o resto eu quero para mim, principalmente o que ele traz aqui no bolso...

Dizendo isso, o bandido foi logo mexendo no bolso onde eu guardava o testamento de Winnetou.

— Para trás! — rugi-lhe.

Ele assustou-se do meu tom e recuou aterrorizado, mas refêz-se do susto e exclamou:

— Mas que sujeito atrevido! Está preso, sabe que esta é a sua última jornada e ainda pretende gritar comigo! É tal qual um cão acorrentado. Eu quero saber o que você desenterrou há pouco.

— Experimente mexer outra vez nos meus bolsos!

— Ora, por que não? Eu gostaria de ver você indignado por estar eu de posse do segredo, que me assegurará a posse de um grande tesouro!

Aproximou-se novamente de mim e passou a revistar-me os bolsos com ambas as mãos.

Eu ainda não estava completamente amarrado. Apenas uma das mãos se achava com um nó para ser ligada à outra. Desvencilhei-me dos que me amarravam e desferi um soco na cabeça de Santer, que ele caiu ao solo desfalecido.

— Uff! Uff! Uff! — exclamaram os guerreiros.

— Bem, agora podem amarrar-me — declarei aos indígenas encarregados desse serviço.

— “Mão de Ferro” sabe honrar o seu nome! — exclamou Pida. — Que pretende este Santer do senhor?

— Um papel escrito — respondi-lhe.

Qual a natureza do papel eu não podia revelar-lhe.

— Mas ele falou num tesouro!

— Ele ainda nem sabe do que trata este papel. De quem sou prisioneiro, seu ou de Santer?

— Meu, é claro!

— Por que então tolera que ele me reviste os bolsos?

— Sim, porque os guerreiros peles-vermelhas apenas se interessam pelas suas armas; o resto não tem serventia nenhuma para nós.

— E isto é um motivo para os demais haveres que me pertencem passarem àquele sujeito? Então “Mão de Ferro” é um menino em cujos bolsos qualquer vagabundo se arroga o direito de mexer? Rendi-me voluntariamente e me entreguei prisioneiro nas suas mãos, honrando assim a sua qualidade de guerreiro; e pretende agora esquecer-se de que também sou um guerreiro, do qual este tal de Santer só pode esperar pontapés e socos?

O indígena admira a coragem e o amor próprio, mesmo em se tratando do seu maior inimigo. Eu não era conhecido nas vastas planícies do oeste bravio como uma múmia e tratara Pida, quando o arrebatara da aldeia dos kiowas para libertar Sam Hawkens, com toda a humanidade; agora, na situação em que me achava, eu contava com ele, que já era um moço feito. E não me enganara com o jovem cacique, pois ele respondeu-me, fixando-me um olhar em cujo brilho não havia a menor aparência de ódio ou raiva:

— “Mão de Ferro” é o mais valente e nobre dos caçadores peles-brancas! Aquele, porém, a quem o senhor arrojou ao solo, é um homem de duas línguas e de duas caras! Ele a toda hora está contando as coisas de modo diferente: ora está do lado deste, ora daquele partido. Ele que experimente tocar daqui por diante no seu bolso!

— Muito obrigado, Pida! O senhor é digno da investidura de cacique e está fadado a se tornar ainda um dia o mais célebre dos guerreiros dos kiowas. Um guerreiro nobre mata o inimigo, mas não o humilha!

Era de ver como o rapaz ficou orgulhoso com as minhas palavras e por isso a sua voz tinha uma inflexão quase que de tristeza, quando me respondeu:

— Sim, mata o inimigo! “Mão de Ferro”, infelizmente, terá de morrer; sofrerá antes disso torturas cruéis!

— Torture-me e mate-me: não ouvirão de meus lábios o menor sinal de queixa; mas afaste aquele sujeito para longe de mim!

Quando eu estava com as mãos atadas tive que me deitar para que me amarrassem também os pés um ao outro. Nesse meio tempo, Santer recuperou os sentidos. Ergueu-se e, aproximando-se de mim, aplicou-me um pontapé, e bradou:

— Teve a ousadia de bater-me, cão! Vai me pagar. Vou estrangulá-lo e já.

Ajoelhou-se aos meus pés pronto para pegar-me pelo pescoço.

— Retira-te! Não toques neste homem! — bradou-lhe Pida. — Proibo-te de aproximar-te dele!

— Tu não tens o direito de proibir-me coisa alguma! Esse canalha é meu inimigo de morte e ousou bater-me; agora ele vai conhecer a força de...

Não pode concluir, pois, sem que ele esperasse, ergui o joelho e com o pé que ainda não estava amarrado, desferi um golpe que o atirou longe. Agora o bandido urrava de raiva, como uma fera. Quis erguer-se para atirar-se contra mim, mas não conseguiu; o corpo doía-lhe todo. Levantou-se apenas depois de passado algum tempo e assim mesmo não renunciou à sua represália; sacou do revólver e apontou-me, bradando:

— Cão, chegou o seu derradeiro momento! Vá para o inferno para onde já deveria ter seguido há muito!

Um dos nativos que se achavam ao seu lado, agarrou-o pelo braço, fazendo o tiro errar o alvo.

— Por que ousa embaraçar-me? — trovejou ao nativo. — Tenho o direito de fazer o que quiser com este cão, que me bateu por duas vezes; ele terá que morrer!

— Não, tu não podes fazer o que quiseres; estás muito enganado! — replicou-lhe Pida aproximando-se dele e pondo-lhe a mão ameaçadoramente sobre o ombro. — “Mão de Ferro” é meu prisioneiro e ninguém, a não ser eu, tem o direito de dispor dele. A sua vida agora me pertence e ninguém o tocará.

— Mas o direito que possuo sobre a sua vida é mais antigo.

— Nada tenho a ver com isso! Prestaste, é verdade, alguns servicinhos ao meu pai, o cacique, e é esta a razão por que ele tolera ainda a tua presença em nosso meio. E só! Não abuses das regalias que, por comiseração, ainda te dispensamos. Afianço-te, porém, que se tocares novamente no corpo de “Mão de Ferro”, tu é que morrerás e morrerás agora, no próprio local, tombado pela bala de minha espingarda.

— Mas afinal, o que pretende então fazer com “Mão de Ferro”? — perguntou o bandido, desconcertado.

— Isso depende do júri que reunirmos.

— Para que reunir júri? A atitude que te cabe tomar em relação a esse homem ressalta logo aos olhos de todos, dispensando delongas com deliberações inúteis.

— Mas que atitude?

— Ora, matá-lo.

— É isso mesmo o que lhe vai acontecer.

— Sim, mas quando? Tu vieste para o Morro do Ouro com os teus guerreiros, a fim de comemorar a morte de Winnetou, o teu maior inimigo. Essa comemoração aumentará de brilho e significação se na mesma hora executares aqui mesmo “Mão de Ferro”, o melhor amigo daquele cacique!

— Não me cabe este direito.

— Por que não?

— Porque precisamos transportá-lo para a nossa aldeia.

— Para a aldeia? Mas para quê?

— A fim de entregá-lo a Tangua, meu pai. “Mão de Ferro” deixou-o aleijado de ambas as pernas e, portanto pertence-lhe agora. A Tangua é que cabe escolher o modo por que será o prisioneiro executado.

— Tolice! Conduzi-lo para a aldeia é a maior asneira que podes cometer!

— Cala-te! Pida, o jovem cacique dos kiowas, não pratica asneiras!

— Mas desta vez praticará! E sabe por quê?

— Não.

— Pois nunca ouviste dizer quantas vezes este tal de “Mão de Ferro” já esteve aprisionado? E toda às vezes por meio de ardis conseguiu fugir. Se não o matares logo e te dispuseres a transportá-lo durante um tão longo e escabroso caminho, quando menos esperares o canalha desaparecerá.

— Ele não nos fugirá. Havemos de tratá-lo, é verdade, como merece ser tratado um guerreiro valente e cheio de nobreza, mas nem por isso afrouxaremos a nossa vigilância, de modo a tornar impossível a sua fuga.

— Com todos os diabos! Ainda mais essa! Tratá-lo como a um guerreiro de renome! Não pretendes também enfeitá-lo com berloques e ornar-lhe o peito com medalhas e comendas?

— Pida não compreende estas tuas palavras; ele não sabe que são berloques e muito menos ainda medalhas e comendas. Mas uma coisa Pida sabe: que “Mão de Ferro” merece de nossa parte um tratamento bem diverso que merecerias tu se fosses nosso prisioneiro! Compreendeste?

— Está bem, está bem! Agora sim, sei a quantas estamos! Tenho também os meus direitos sobre aquele malandro e direitos tão sagrados quanto os dos kiowas; eu estava resolvido a renunciar a esses direitos em benefício teu; tu é que disporias da sua vida. Mas, em vista de tua declaração, a coisa vai mudar de figura. O prisioneiro pertence a mim tanto quanto aos kiowas, e se estes pretendem dispensar àquele biltre as honras de uma “personalidade de destaque”, encarregar-me-ei eu de lhe tornar um pouco amargoso o curto cativeiro que precederá a sua morte. A ti ele pode enganar; de tuas mãos ser-lhe-á fácil escapar. Mas eu estarei sempre alerta para que ele receba o castigo que há muito merece, não só por patifarias feitas a mim como a muitas outras pessoas. Desta vez ele não se esquivará como de outras vezes de ajustar as contas que tem comigo! Portanto, já que estás decidido a transportá-lo para a taba, eu estou também decidido a acompanhar-te.

— Não tenho o direito de impedir que vás em nossa companhia. Mas uma coisa repito: se tocares novamente no corpo de “Mão de Ferro”, tu é que morrerás e morrerás no momento, no próprio local, tombado pela bala de minha espingarda! Vou reunir o conselho a ver o que resolvemos a respeito do prisioneiro.

— Não é necessário reunir o conselho. Vou dizer-te já a resolução que deves tomar.

— Tu não pertences ao conselho dos velhos e sábios e nem tens o direito de ditar ordens a quem quer que seja aqui em nosso acampamento. Além disso, a tua palavra não vale coisa alguma!

A essa atitude enérgica de Pida, o celerado retirou-se de sua presença e procurou os mais idosos dos guerreiros, sentando-se com eles na relva a palestrar. Os demais nativos acocoraram-se em torno de mim e cochichavam palavras que não me foi possível ouvir. Todos estavam orgulhosos de haverem aprisionado “Mão de Ferro”. Sabiam que iam torturar-me até a morte, isso era para eles grande honra e lhes traria uma fama através das planícies, de tal forma que muitas tribos haviam de invejá-los.

Fiz como se nem os observasse, mas examinava secretamente cada uma das fisionomias. Nelas não havia o menor resquício de ódio ou ressentimento. Daquela feita, quando eu ainda não possuía um nome nas planícies, quando feri, gravemente, o seu cacique, que ficou aleijado, daquela feita sim, o seu ódio para comigo não conhecia limites e ai de mim se lhes caísse então nas unhas! Mas, depois disso, passaram-se muitos anos e aquele ódio irreconciliável se abrandara; além disso, tornara-me conhecido nas campinas do oeste e dera inúmeras provas de que considerava o homem pele-vermelha no mesmo nível do homem pele-branca. Isso atraiu para mim as simpatias de todas as tribos. Apenas Tangua ainda me tinha o mesmo ódio de antigamente, uma conseqüência natural, aliás, da deformidade física que eu lhe proporcionara. Que ele próprio fora o culpado daquele meu ato, disso não se queria convencer o velho cacique!

O fato de eu haver daquela vez aprisionado Pida e, não obstante a inimizade irreconciliável que reinava entre mim e aquela tribo, tê-lo tratado com todas as considerações, deveria pesar alguma cousa na balança em meu favor; os kiowas, sem dúvida, veriam agora em mim mais o “Mão de Ferro” do que o pele-branca que aleijou o seu cacique, o único culpado, aliás, do sucedido. Isso eu via pelos olhares que me dirigiam, olhares que estava quase a qualificar de respeitosos. Mas isso não constituía razão para eu ter ilusões a respeito de minha atual situação. Por mais considerações que eu lhes merecesse, não podia esperar indulgência da parte deles. A um outro, talvez, eles teriam perdoado mais facilmente do que a mim, cujo aprisionamento faria inveja a todas as demais nações peles-vermelhas do oeste. Aos seus olhos eu incorrera na pena de morte inevitável, o poste das torturas, e olhavam-me agora com a mesma ânsia que um espectador assiste ao desfecho de uma peça teatral da lavra de um grande autor. Todos estavam ansiosos por ver de que forma “Mão de Ferro” se portaria no poste dos martírios, ao encontro do qual marchava.

Apesar de estar mais do que certo da ruína irremediável que me esperava, não me atormentava o menor receio, não tinha a menor preocupação pela minha pessoa. Quantos e quantos perigos eu soubera enfrentar na minha vida, e perigos, muitos deles, de maior significação ainda do que aquele! O meu estado de alma nem de leve era o de um homem que está nas vésperas da morte. Era como se eu pressentisse não ser ainda desta vez que iria ter contato direto com o tétrico poste de torturas dos indígenas! Sim, o homem não deve perder as esperanças até o último momento, mas deve também contribuir com o máximo de suas energias para que se concretizem essas esperanças. Quem assim não procede, estará perdido! “Ajuda-te, que Deus te ajudará!”.

Santer sentara-se depois, junto dos meus ex-companheiros de jornada e falava-lhes baixinho e animadamente. Calculei logo qual o objeto de sua palestra. Também eles por muitas vezes ouviram falar em “Mão de Ferro”; nunca ouviram dizer que eu fosse um canalha e assim a sua atitude, em relação a mim, de forma alguma podia tê-los impressionado bem. A isso seguiu se talvez o reconhecimento da falta cometida. Por causa de Santer me haviam não só mentido como ocultado a circunstância de estar uma horda de guerreiros peles-vermelhas, prestes a chegar. Assim, consideravam-se eles os culpados pelo meu aprisionamento e isso os intranquilizava certamente, pois, como já tenho frisado, não eram homens maus. E agora lá estava Santer a expor-lhes a situação, naturalmente que com argumentos tendenciosos, para que não incorresse na ira dos seus “contratados”.

 

TRANSPORTADO PARA A ALDEIA DOS KIOWAS

A sessão do conselho foi rápida. Os peles-vermelhas, que dela participaram, ergueram-se do solo e Pida anunciou à sua gente o resultado das deliberações:

— Os guerreiros dos kiowas não ficarão aqui; voltarão imediatamente para a taba, assim que tiverem feito a sua refeição. Portanto, eles que se preparem para a partida.

Eu já esperava por esta resolução. Santer, porém, que não conhecia os hábitos e costumes dos indígenas, como eu, julgava que outra seria a deliberação do conselho. O bandido soergueu-se, surpreendido, aproximou-se de Pida e perguntou:

— Como? Resolveram partir já? Mas não combinamos demorar-nos por alguns dias neste local?!

— Creio não ser uma coisa tão extraordinária modificar-se uma resolução anteriormente tomada! — respondeu secamente o cacique.

— Mas aqui vieram para comemorar a morte de Winnetou!

— E nem deixaremos de comemorá-la. Não é preciso ser hoje! Não vejo inconveniente nenhum em adiar a comemoração para mais tarde.

— Para quando?

— Isto Tangua é que determinará.

— Mas que razões os fizeram tomar subitamente resolução diferente?

— Não tenho que te dar satisfações do meu ato; mas em vista de “Mão de Ferro” estar presente, vou dizer-lhe, e se quiseres, podes ouvir!

E virando-se para mim, disse:

— Quando para aqui viemos, com o fim de comemorar a morte de Winnetou, o cacique dos cães dos apaches, não supúnhamos que seu melhor amigo, “Mão de Ferro”, nos iria cair nas mãos. Esse grande acontecimento duplica a nossa alegria. Winnetou era nosso inimigo, sim, mas não deixava de ser um pele-vermelha. “Mão de Ferro” também é nosso inimigo e, além disso, um pele-branca. A sua morte, pois, deve constituir para nós motivo de maior alegria do que a de Winnetou. Os filhos e filhas dos kiowas vão festejar ambas as mortes num dia só. Aqui se encontra apenas uma pequena parte de nossos guerreiros e eu ainda não possuo suficiente autoridade para determinar a maneira pela qual faremos morrer “Mão de Ferro”. Para isso é necessário uma assembléia geral de toda a tribo, perante a qual Tangua, o maior dos caciques, fará erguer a sua voz e dará ordens neste sentido. Por isso não devemos continuar aqui, mas tocar a toda pressa para a aldeia, pois nunca é cedo demais para os meus irmãos e irmãs ouvirem a auspiciosa notícia.

— Mas não pode haver local mais apropriado para a execução de “Mão de Ferro” do que este onde nos encontramos! Ele morreria junto dos túmulos daqueles por causa dos quais se tornou inimigo dos kiowas!

— Sei muito bem disso. Não me contas novidade! Mas alguém disse ser coisa resolvida executá-lo noutro local que não neste? Achas que não podemos voltar novamente até aqui?

— Não são sensatas essas medidas, pois Tangua, que deve estar presente às solenidades, não pode montar e assim ficará impedido de acompanhá-los!

— Isso não constitui obstáculo, pois ele pode ser transportado para aqui. Seja qual fôr a deliberação que meu pai tomar, aqui será o túmulo de “Mão de Ferro”.

— Mesmo que ele seja executado no Salt Fork?

— Mesmo assim.

— Então seu corpo será depois conduzido para cá?

— Claro que sim.

— E por quem?

— Por mim.

— É incompreensível! Que motivos poderão induzir um guerreiro sensato a dar-se ao trabalho de conduzir o cadáver de um cão pele-branca a tal distância?

— Pois vou esclarecer-te para que venhas a conhecer melhor Pida, o cacique dos kiowas, e para que “Mão de Ferro” se convença de quanto lhe sou grato por me haver poupado a vida, quando fui seu prisioneiro!

E virando-se novamente para mim, declarou:

— “Mão de Ferro” é nosso inimigo, mas um inimigo nobre e leal. De uma feita poderia ter morto Tangua no rio Pecos, mas não o fêz, limitando-se a deformá-lo fisicamente; todos os homens peles-vermelhas conhecem este caso e por isso distinguem o caráter de “Mão de Ferro”. A sua morte agora é inevitável. Mas morrerá como um grande herói, suportando torturas que até agora ainda não infligimos a prisioneiro algum, com um estoicismo admirável, sem pronunciar um só gemido, sem contrair um só músculo da face. E depois de morto, o seu corpo não será lançado ao rio, a fim de ser devorado pelos peixes, ou jogado à planície para servir de pasto aos coiotes, lebreiros e urubus. Um guerreiro heróico e sincero como ele, um cacique nobre e altivo será sepultado num túmulo alteroso, sobre o qual se levantará um monumento, com todas as honras dignas de um grande homem, o que reverterá em nossa própria honra, pois somos os seus vencedores! E onde serão erigidos o túmulo e o monumento? Pida ouviu dizer que Nscho-tschi, a formosa filha do cacique, amava “Mão de Ferro” com pureza d’alma. Por isso ele deve ser enterrado ao seu lado para que sua alma, quando chegar às “Eternas Campinas”, se una para sempre àquela formosa e prendada filha de Intschu-tschuna! Deste modo Pida terá oportunidade de pagar com gratidão a sua vida poupada por “Mão de Ferro”, quando foi seu prisioneiro. Meus irmãos ouviram minhas palavras, queiram responder se concordam com elas!

— Howgh! Howgh! Howgh! — ouviu-se unissonamente dos lábios dos sessenta indígenas.

Evidentemente, aquele jovem kiowa era um homem invulgar, e, relativamente à sua qualidade de selvagem, de caráter bom! A circunstância de falar tão convictamente da minha morte no poste dos martírios, não alterou de modo algum os meus nervos. Mas ao fato de tencionar proporcionar-me morte heróica, infligindo-me torturas nunca vistas nas tabas de sua tribo e depois sepultar-me junto de Nscho-tschi e Intschu-tschuna, eu lhe devia ser grato, porque isso, segundo o hábito dos nativos, era uma prova de consideração que a bem poucos os peles-vermelhas dispensam. Enquanto os índios proferiam o howgh, Santer riu-se gostosamente e gritou-me:

— Então, está de parabéns! Festejar, logo ao chegar nas “Eternas Campinas”, as bodas com uma formosa índia, é uma felicidade que nem todos os mortais alcançam. Eu quisera assistir ao casamento, ao menos como convidado, já que não posso ser o noivo... Não me convida para as festas do seu enlace?

Eu nem deveria responder-lhe, entretanto repliquei:

— Não é preciso convidá-lo, pois você lá chegará muito antes do que eu!

— Acha? Pensa, portanto, em fuga? É bom que use de tal franqueza; hei de capturá-lo, disso pode estar certo!

Os indígenas se reuniram e montaram a cavalo para descer o vale. Desprenderam me os pés e me amarraram pondo me entre dois guerreiros; foi como tive que marchar. Pida pôs minhas duas espingardas a tiracolo. Santer seguia atrás com os três companheiros, levando os animais pelas rédeas. A minha montaria era conduzida por um indígena.

Depois de havermos descido o morro, acampamos ao sopé. Os nativos acenderam vários fogos e assaram caças que traziam. Também conduziam provisões de xarque sobre animais cargueiros. Serviram-me uma refeição excelente e tão abundante, que de princípio, julguei não a comer toda. Comi, porém, pois a minha nova situação exigia que continuasse com as minhas forças vigorosas. Para que eu pudesse comer, desataram-me as mãos, porém colocaram sentinelas em torno de mim. Fui tão bem vigiado que nem me passou pela mente a idéia de fuga. Depois da refeição, amarraram-me ao cavalo, e a viagem para a aldeia dos kiowas começou.

Quando alcançamos a planície, olhei para trás a fim de dirigir um olhar de despedida ao Morro do Ouro. Eu tornaria a ver os túmulos de Nscho-tschi e Intschu-tschuna? Talvez sim! Mas não como cadáver, caso em que, é claro, não os poderia ver jamais!...

O caminho que daqui conduz para o Salt Fork já é conhecido dos leitores. Abstenho-me, pois, de descrevê-lo novamente. Durante a viagem, nada sucedeu que mereça referência. Os peles-vermelhas vigiavam-me severamente, e mesmo, se tal não se desse, a fuga me seria impossível, porque Santer, sempre alerta, daria o alarma. Ele tudo fêz para me tornar a viagem mais escabrosa; procurava irritar-me sempre que podia e esforçava-se por induzir os peles-vermelhas a tratar-me com menos distinção. Quanto às suas tentativas de irritar-me, era tempo perdido de sua parte, porque eu não lhe dava o prazer de me irar com suas impertinências e picardias. Cavalguei sempre de viseira erguida e nunca o honrei com uma resposta às suas investidas. E os seus demais propósitos eram sempre e invariavelmente repelidos com energia por Pida, que tudo fêz para proporcionar-me uma viagem o mais cômoda possível.

Os indígenas pouca importância davam a Gattes, Summer e Clay; estes tinham que limitar sua camaradagem a Santer. Notei ainda que os meus ex-companheiros gostariam de palestrar amistosamente comigo, do que talvez Pida não os tivesse proibido, mas Santer sempre os embaraçava nisso. Ele queria, por certo, evitar que eu encontrasse oportunidade para esclarecer-lhes a sua verdadeira situação de criminoso abjeto! Além disso, o facínora não os tratava como bons camaradas. Tivessem-no ajudado a procurar o ouro e, estou certo disso, depois de achá-lo, o bandido os assassinaria para não fazer a partilha prometida. Um bandoleiro sanguinário como aquele não trepidaria cometer um triplo assassinato! Agora, porém, a situação mudara completamente. Os companheiros lhe transmitiram haver eu declarado que Winnetou retirara todo o ouro oculto no Mugworthill; as folhas de papel que viu em minhas mãos reforçaram-lhe a convicção de que eu dissera a verdade. Portanto Clay, Gattes e Summer não passavam agora de uns fardos onerosos, dos quais preferia aliviar-se quanto antes possível. Mas de que forma? Poderia ele despedi-los sem mais nem menos? Tinha que levá-los consigo, embora a sua intenção fosse a de despachá-los na primeira oportunidade.

Daqui por diante todos os seus pensamentos e ações convergiam para os papéis que eu trazia no bolso, dos quais queria se apossar houvesse o que houvesse. Arrebatá-los do meu bolso não lhe era possível, devido à ordem de Pida. Restavam-lhe, apenas, dois caminhos para o seu objetivo: ou roubar-me o documento enquanto eu dormisse ou então aguardar a nossa chegada à aldeia dos kiowas para induzir Tangua a lhe dar os papéis. O testamento, eu ainda o guardava no mesmo bolso. Onde mais poderia guardá-lo? Em qualquer outra parte do meu vestuário? Isso eu só poderia fazer secretamente, quando estivesse só. Mas de que forma se eu estava permanentemente amarrado? O facínora havia prestado alguns serviços ao cacique, pelos quais este lhe era grato. Seria fácil, pois, levar Tangua a me tirar os papéis e dar-lhe. Isso causava-me preocupação. Pela minha vida, pela minha integridade física eu não temia. Mas a missão, que me confiara Winnetou, era para mim a coisa mais sagrada do mundo!

 

NA PRESENÇA DE TANGUA

A aldeia dos kiowas estava situada na mesma posição de quando eu a invadi, isto é, na confluência do rio Red com o Salt Fork. Precisávamos transpor o primeiro daqueles rios e o fizemos num ponto onde as águas estavam baixas. Depois de havermos cavalgado um trecho, Pida mandou guerreiros à frente, para avisar a próxima chegada dos guerreiros à taba. Quanto júbilo, quanta alegria, quanta festa não haveria, ao saberem os peles-vermelhas que a horda trazia “Mão de Ferro” aprisionado!

Estávamos em planície aberta e ainda não havíamos avistado os matos que cobriam ambas as margens do rio, quando uma tropa de guerreiros, em linha de três, nos veio ao encontro. Eram os kiowas, e cada qual queria ser o primeiro a ver “Mão de Ferro”.

Nenhum deles deixou de saudar os que chegavam com uma algazarra caracteristicamente indígena e de me dirigir olhares perscrutadores. Depois se enfileiraram na retaguarda da tropa que me trazia preso. Não me vi acossado e premido por uma multidão de curiosos como acontece nos meios civilizados, em casos idênticos. Aqueles peles-vermelhas eram demasiadamente orgulhosos para dar demonstrações do interesse ou da agitação que lhes sacudia.

Deste modo a tropa aumentava de minuto em minuto, sem que eu fosse importunado na mínima coisa; e quando chegamos aos matos marginais do rio, eu já ia escoltado por uma legião de quatrocentos kiowas, todos guerreiros maduros. A aldeia devia ter aumentado muito, dada à densidade de sua população.

Por entre árvores despidas de macegais, estavam levantadas as tendas da taba, onde não devia ter ficado um só guerreiro, pois não vi ninguém sair à porta ou à rua para assistir à chegada triunfal dos expedicionários. Havia apenas uma multidão burburinhante de mulheres e raparigas, crianças de várias idades e de ambos os sexos. Estas não eram obrigadas a uma atitude reservada e comedida como a dos altivos guerreiros. E elas usavam e abusavam de suas regalias em tão grande escala, que eu taparia os ouvidos aos gritos de entusiasmo, se não estivesse manietado. Berravam, riam, diziam chacotas, em suma faziam um escândalo que me convencia fartamente de quanto a minha chegada era bem-vinda àquela tribo.

Nisso, porém, Pida ergueu o braço e o tumulto cessou como que por encanto. A um segundo sinal seu, a legião de cavaleiros formou um meio círculo, entre o qual eu era conduzido, ao lado de Pida e de mais dois guerreiros cuja única tarefa era não se arredarem de mim. Santer intrometeu-se e chegou ao nosso lado. O jovem cacique fêz como se nem o tivesse visto.

Cavalgamos direito à grande tenda enfeitada com pernas de águia: era a tenda do cacique. À frente, em posição meio sentada e meio ereta, se achava Tangua. Estava extraordinariamente envelhecido, magro como um esqueleto; os seus olhos, afundados nas órbitas, fixaram-me com a agudeza de um punhal e com a expressão de mortal e irreconciliável inimizade, como só Tangua a podia sentir.

Pida saltou do cavalo, seus guerreiros fizeram o mesmo, mas apertando-me cada vez mais no semicírculo. Todos queriam ouvir as palavras com que Tangua me receberia. Desprenderam-me do cavalo e tiraram-me as cordas dos pés para que eu pudesse caminhar. Eu próprio não estava menos curioso pelas palavras com que iria ser acolhido pelo velho nativo, mas tive que esperar muito tempo por elas.

O cacique contemplou-me de alto a baixo e de baixo ao alto, durante muitos minutos; dirigiu-me olhares de tigre, capazes de amedrontar a criatura mais destemerosa. Depois fechou os olhos. Ninguém falava; reinava um silêncio verdadeiramente sepulcral, interrompido apenas pelo ruído produzido pelos cascos dos cavalos estacionados. Agradava-me aquele mutismo e dispunha-me justamente a quebrá-lo, quando Tangua começou a falar-me lenta e solenemente, sem abrir os olhos:

— A flor anseia pelo orvalho e este tarda em cair; ela então baixa, a fronte e murcha. Já está a, fenecer, quando ele cai!

Seguiu-se um breve silêncio; depois começou novamente:

— O búfalo com as patas rompe a neve, quando debaixo dela não encontra relva. Dá mugidos medonhos à primavera que não quer chegar, emagrece; secam-lhe os regatos que lhe mitigam a sede, suas forças diminuem e ele não tarda a aniquilar-se. Nisso, sopra uma brisa acalentadora e, já prestes a morrer, pressente ainda a primavera.

Silenciou um momento.

Oh! Como o homem é uma criatura singular e incompreensível! Este índio havia outrora me magoado, ofendido e me exposto ao pelourinho do vilipendio; odiara-me como ninguém até agora me havia odiado no mundo e nele era latente a sede de me tomar vindita, ainda que tivesse que se afogar ele mesmo no meu sangue. E como correspondera eu àquele seu ódio mortal? Com indulgência. Ao invés de matá-lo a tiros, me limitara apenas a alvejá-lo nas pernas e isso mesmo em extrema necessidade. E agora que ele se achava face à face diante de mim, transformado numa ruína de homem, num escombro de guerreiros; ao vê-lo que era só pele e osso, cambaleante, indeciso, naquela postura, a falar-me com uma voz quase tumular, brotou-me do peito a compaixão por aquele homem e me sentia mil vezes arrependido de lhe haver alvejado quando no rio Pecos me desafiou, para um duelo de morte, depois de tudo fazer para eu morrer no poste das torturas dos apaches! E eu nutria esse sentimento para com aquele nativo, consciente de que ele ainda se achava sedento de vingança e de que fechava os olhos apenas no auge da alegria e do entusiasmo, por ver finalmente, embora talvez nos últimos arrancos de sua existência prestes a se apagar, que ia saciar a sua sede de vingança no meu sangue. Sim, o homem é um ser originalíssimo neste ponto.

Agora o velho me falava novamente movendo apenas os seus lábios pálidos, já sem a menor gota de sangue:

— Tangua é a flor, é o búfalo sedento, em agonia. Ele ansiava e urrava por vingança; e a vingança não lhe era proporcionada. Cambaleante, arrastava o seu triste fado e passavam-se os dias e as semanas. E esse dia abençoado tardava cada vez mais, parecendo não vir nunca. Já me aproximava da morte pela velhice, mas aí está este grande dia, que para mim é como a primavera do búfalo, como o orvalho da flor.

Ditas essas palavras, Tangua arregalou subitamente os olhos encovados, pôs-se em posição ereta tanto quanto as suas forças e suas pernas aleijadas permitiam, estendeu ambas as mãos de dedos esqueléticos e gritou desvairadamente.

— Sim, a minha primavera veio, ela veio! Ela já está aí, bem pertinho de mim. Eu a vejo, eu a apalpo até. Cão vais morrer! E que morte te espera, miserável!

Deixou-se cair visivelmente fatigado e tornou a cerrar os olhos. Ninguém ousava interromper o silêncio, nem mesmo Pida, seu filho, que permanecia mudo e quieto. Só depois de algum tempo é que o velho descerrou as pálpebras e perguntou:

— Como veio este cão asqueroso cair-te nas mãos? Preciso saber! Santer aproveitou incontinenti a oportunidade. Sem esperar que Pida, a quem a pergunta fora dirigida, falasse, acudiu pressuroso:

— Eu sei melhor do que qualquer outro. Quer que lhe conte?

— Fale!

Santer falou, não deixando, porém, de ressaltar os serviços relevantes que com a minha captura prestara aos kiowas. Ninguém o interrompeu. Pida era demasiadamente orgulhoso para isso e a mim era indiferente o que ele dissesse. Quando chegou ao fim, acrescentou ainda:

— Como é fácil de se concluir, o senhor deve a mim, tão somente a mim, a alegria que no último quartel de sua vida irá ter, vingando-se deste refinado patife! Não concorda com isso?

— Sim — disse o velho com voz quase sumida.

— E em paga dessa minha dedicação, está disposto a prestar-me um serviço?

— Se depender de mim, por que não?

— Depende, sim.

— Então exponha o seu pedido!

— “Mão de Ferro” traz consigo um documento do qual preciso muito.

— Ele lhe roubou o referido documento?

— Não.

— E a quem pertence o “papel falante”?

— Não é dele. Apenas o achou. Mas eu fiz esta viagem para o “Mugworthill, expressamente para procurar tal documento. Infelizmente, ele chegou antes de mim e o encontrou”.

— Pois então é seu. Tire-lhe o documento!

Santer não se continha de satisfação por haver obtido aquele resultado; aproximou-se de mim. Não pronunciei uma só sílaba e nem fiz o menor movimento; contemplei-o, porém, com olhar ameaçador. Ele amedrontou-se e hesitou em tocar-me nos bolsos.

— O senhor ouviu a ordem do cacique, sir?

Desta vez ele não me tratou por você, em tom depreciativo. Não lhe respondi. Por isso o celerado acrescentou:

— Mr. “Mão de Ferro”, é melhor para o senhor, não se recusar a cumprir a ordem do cacique. Resigne-se, pois. Vou tocar-lhe agora nos bolsos.

Ele aproximou-se mais e ia estendendo o braço, quando eu com as mãos manietadas embora, desferi-lhe um golpe debaixo do queixo, fazendo-o cair ao chão.

— Uff! — exclamaram alguns peles-vermelhas, gozando com a cena. Tangua, porém, era de outra opinião, pois bradou encolerizado:

— Este cão defende-se, não obstante estar manietado! Amarrem-no de tal maneira que não se possa mover mais e tirem-lhe o documento!

Foi então que Pida, pela primeira vez, tomou a palavra:

— Meu pai, o grande cacique dos kiowas é sábio e justiceiro. Ele vai ouvir a voz do seu filho!

Até aquele momento o velho falara como que absorto; quando, porém, o filho se manifestou, seus olhos readquiriram um pouco de vivacidade; fitou-o e a sua voz também era já mais clara, quando lhe respondeu:

— Por que fala meu filho deste modo? É injusto o que pede o pele-branca Santer?

— É sim, papai!

— Por quê?

— Não foi Santer que prendeu “Mão de Ferro”, mas os nossos guerreiros, sob o meu comando. Aliás, ninguém efetuou propriamente a sua prisão, foi ele que se entregou voluntariamente. Portanto, pergunto ao grande cacique dos kiowas: “Mão de Ferro” é meu prisioneiro ou de Santer?

— É teu.

— A quem pertence, pois, suas armas, seu cavalo e tudo o mais que ele traz consigo?

— A ti.

— Eu fiz uma grande, uma importante prisão e colhi presas de alto valor. Com que direito Santer ousa apoderar-se do documento que possui o nosso prisioneiro?

— Porque pertence a ele, que o havia perdido, talvez.

— Onde está a prova disso?

— No fato de haver viajado para Mugworthill, a fim de procurá-lo. Portanto deve tê-lo perdido antes. “Mão de Ferro”, porém, lá chegou antes e achou o papel.

— Bem, se ele perdeu o papel, deve também saber o que nele está escrito. Queira meu pai dizer se esta lógica é verdadeira ou não?

— Tens toda razão, meu filho!

— Então Santer que diga, e já, as palavras que estão escritas naquele papel!

— Sim — respondeu o velho. — Ele que diga! Se acertar, o documento é dele.

Esta exigência feita a Santer deixou-o em não pequenos apuros. Ele podia calcular, é verdade, que o papel se referia ao local para onde Winnetou transferira o seu depósito em ouro; mas se fizesse tal afirmativa e depois se descobrisse que o documento se referia a assunto bem diferente, não passaria de um mentiroso, de um embusteiro aos olhos dos indígenas. E mesmo que ele acertasse, convinha-lhe que os nativos conhecessem a natureza do documento? Não ficariam todos os que ali se achavam conhecendo o segredo? Por isso ele tentou remediar a sua situação por meio de evasivas, dizendo:

— O assunto de que trata aquele papel não é de interesse para mais ninguém, exceto para mim. Que me pertence, prova-o ter-me dirigido sozinho para Mugworthill por sua causa. “Mão de Ferro” lá esteve e o achou por mera casualidade.

— Falou com sabedoria — disse Tangua. — Entregue o documento a Santer; ele é o seu legítimo dono!

Agora tocara-me a vez de dizer também algumas palavras, pois vi que Pida estava inclinado a cessar a sua resistência.

— Sim, falou com sabedoria, mas mentiu despudoradamente! Santer absolutamente não seguiu para Mugworthill por causa desse papel.

Ao som de minhas palavras o velho deixou-se sentar, como alguém que se assustou de algum perigo iminente. Olhou-me com olhar venenoso e disse entre dentes:

— O cão asqueroso começa a latir; mas de nada lhe adiantarão esses latidos!

— Pida, o jovem e denodado cacique, ainda há pouco afirmou que Tangua é sábio e justiceiro — prossegui. — Se isso fôr verdade, o senhor não julgará tendenciosamente o caso.

— Sim, Pida falou a verdade — exclamou o cacique orgulhoso e já mais calmo.

— Então, diga-me: o senhor me acha capaz de lhe dizer uma mentira?

— Não. “Mão de Ferro” é o mais perigoso dos cães peles-brancas e o meu maior inimigo, mas mentiroso ele não é. Nunca possuiu duas línguas, para ora dizer uma cousa, ora outra! Justiça lhe seja feita!

— Pois então afianço-lhe que ninguém, senão eu, sabia da existência desse documento e também sou eu o único conhecedor do que nele está escrito. Santer não tem a menor idéia do que se trata e não eu, mas ele é que chegou casualmente no instante em que eu desenterrava o papel. Espero que o senhor creia nas minhas palavras!

— Tangua sabe muito bem que “Mão de Ferro” não mente. Santer, porém, afirma haver também dito a verdade. Como vou agora resolver essa questão com justiça e imparcialidade?

— Muito fácil. Antes de proferir a sua decisão, reflita, com a inteligência e o espírito de justiça, que lhe são peculiares, sobre o conjunto dos acontecimentos! Santer esteve por diversas vezes em Mugworthill à procura de ouro, sem que tivesse achado; disso Tangua deve estar ciente, pois deu lhe permissão para fazer tais pesquisas e explorações. E foi com este mesmo fim que desta vez voltou ao Mugworthill, e não para procurar um documento, como mentirosamente afirma!

— Você é que está mentindo! — urrou-me Santer.

— Estou dizendo a verdade! — retruquei-lhe. — Tangua que abra uma sindicância entre os seus três companheiros. Santer os levara consigo para auxiliá-lo na procura de ouro.

O velho aceitou a minha sugestão e interrogou Gattes, Clay e Summer, que não puderam negar a veracidade de minha afirmativa. Nessa altura, Santer, encolerizado, queimou o último cartucho:

— Mesmo assim, continuo afirmando que lá estive exclusivamente em busca do documento! Realmente, quis aproveitar a ocasião e pesquisar mais uma vez a zona em procura dalguma mina ou esconderijo de ouro. Para este último serviço é que contratei aqueles homens, aos quais nem sequer falei no papel que havia perdido, porque isto era um assunto reservado.

Esta sua atitude desconcertou novamente o cacique que exclamou, contrariado:

— Como se vê, os dois têm razão! Que vou fazer agora?

— Agir com inteligência. — respondi. — Santer que lhe diga se o papel tem valor para ele ou não!

— Naturalmente que tem! — declarou o facínora. — E aliás, muito valor, do contrário, não estaria aqui a insistir pela sua devolução!

— Bem, então diga: é uma só folha de papel ou são diversas?

— Diversas — respondeu. Por certo, isto ele notara quando me surpreendeu a ler o testamento, à beira do túmulo.

— Diversas? Quantas? Duas, três, quatro, cinco?

O celerado silenciou. Se agora ele não acertasse o número, perderia a partida.

— Não me lembro mais. Quem se dá ao trabalho de anotar esses pequenos detalhes?

— Se o documento tem para o senhor a importância que diz, deveria saber com toda precisão o número de folhas e até de páginas que o mesmo contém. E, admitindo-se mesmo que se tenha esquecido deste pormenor, ao menos saberia dizer se foi escrito a lápis ou a tinta.

E dirigindo-me ao cacique:

— Aposto como ele não saberá dar nem este esclarecimento!

Eu tinha a certeza de que o bandoleiro não acertaria com a resposta, pois no oeste bravio encontra-se tinta somente nos fortes e é muito comum conduzirem lápis consigo, os corredores das planícies. Esta minha previsão fora acertada, pois ele respondeu à minha pergunta irônica, afirmando em tom convincente:

— Ah! Naturalmente que me lembro, pois fui eu mesmo que o escrevi! Nunca uso tintas quando faço as minhas escritas. O documento está escrito a lápis!

— Queira Tangua perguntar-lhe se por acaso ele não está enganado! — perguntei novamente para evitar dúvidas posteriores.

— Não estou enganado, não! — acudiu San ter. — Está escrito a lápis. Já disse que nunca escrevo com tinta!

— Muito bem. Queira Tangua designar alguns guerreiros ou um só, como quiser, que sabe distinguir tinta de escrever de lápis, a fim de exa minar o papel.

Havia alguns guerreiros que sabiam fazer a distinção pedida. De resto, ali também se achavam Gattes, Summer e Clay que, eu estava certo, dariam os seus pareceres com sinceridade. Como Tangua estivesse indeciso, dirigi-me a Pida:

— Queira o jovem cacique tirar o documento do meu bolso e mandar examiná-lo. Não mostre, porém, a Santer!

Pida atendeu-me designando os três companheiros de Santer para examinar o documento, exibindo-os, porém, de modo que eles apenas examinassem a letra e não conseguissem ler o testamento. Afirmaram, unânimes, que fora escrito à tinta, com o que também concordaram Tangua e Pida, se bem que não entendessem lá muito dessas coisas!

— Idiotas! — urrou Santer a Gattes. — Antes nunca os tivesse arrancado da miséria em que se achavam, para trazê-los comigo. Vocês nem sabem distinguir uma letra escrita a lápis de uma à tinta!

— Oh! Tão tolos como o senhor nos faz, nós não somos! — replicou Gattes. — Aquilo está escrito à tinta e à tinta ficará!

— Sim! E vocês estão metidos naquela tinta e delas não conseguirão mais se desprender! — retrucou ameaçador.

Ele falou por metáfora, porque não lhe era possível dizer-lhes que deveriam ter mentido. Pida, depois de pôr o testamento no envólucro de couro, dirigiu-se ao pai:

— “Mão de Ferro” venceu. Agora, papai, já sabe que Santer não possui o menor direito de reclamar tal documento para si.

— Sim, porque pertence a “Mão de Ferro”! — declarou o velho sen-tenciosamente.

— Portanto, papai, dê-me a mim esse documento, pois “Mão de Ferro” é meu prisioneiro e a mim pertencem todos os seus haveres. Como os homens disputaram a sua posse com tanto ardor, deve ser um papel muito importante e eu vou guardá-lo cuidadosamente junto com as minhas “medicinas”.

O filho de Tangua guardou o documento provisoriamente na sua “bolsa de medicina”. Aquela resolução agradava-me e desagradava-me ao mesmo tempo. Desagradava-me porque, dada à importância do documento, preferiria guardá-lo eu mesmo, para não ir parar em outras mãos. Como me seria possível apoderar-me dele, num caso de fuga? E agradava-me porque eu não precisava mais ter receios de Santer. Ele bem poderia tirar-me o testamento quando eu dormisse ou então, arrancar-me por meio de violência, depois que me amarrassem bem e me atassem ao tronco de uma árvore, como costumam os indígenas segurar os prisioneiros. Assim era melhor estar no poder do jovem cacique, de quem, era fora de dúvida, o facínora não se animaria a tirar. Este dirigiu-se a Pida e disse-lhe num tom de quem passara a se desinteressar pelo documento:

— Pois bem, fica com ele! Não terá nenhum valor para ti, pois não sabes ler. Aliás, eu precisaria muito daquele papel, mas posso dispensá-lo, por saber de cor e salteado todo o seu conteúdo. Bem, não podemos continuar aqui na rua. Vou ver se consigo um alojamento onde eu e meus companheiros possamos descançar um pouco os ossos.

Afastou-se acompanhado de Gattes, Clay e Summer e ninguém mais se importou com eles. A questão do documento estava resolvida, e agora, eu esperava que os caciques passassem a se ocupar de minha pessoa. E tive razão de assim pensar, pois o velho, dando início à palestra, perguntou; ao filho.

— Como foi isso? “Mão de Ferro” ainda estava de posse do “papel falante” a que os peles-brancas tratam de documento! Então não lhe esvaziaste os bolsos, quando ele se rendeu?

— Não! — respondeu Pida. — É um grande guerreiro! Vamos executá-lo, é verdade, mas jamais desrespeitaremos a sua tradição de guerreiro-valente e leal, humilhando-o com uma revista nos bolsos! Tomamos-lhe as armas e isto basta! O resto, de qualquer forma, ele deixará para mim, quando morrer.

 

AMARRADO À “ÁRVORE DA MORTE”

Esperei que o velho não concordasse com esse gesto do filho, mas enganei-me, pois lançou um olhar cheio de orgulho e quase que amoroso ao seu rebento, dizendo:

— Pida, o jovem cacique dos kiowas é um guerreiro nobre: poupa mesmo os inimigos mais ferrenhos. Mata-os, mas não os enxovalha, nem os humilha! Vai ser um guerreiro ainda mais afamado e respeitado do que Winnetou, cacique dos cães apaches. E como recompensa do teu gesto nobre, permito-te que craves a tua faca bem no coração de “Mão de Ferro”, antes que ele sucumba aos suplícios que lhe infligiremos. Pida terá depois o orgulho de poder dizer que o mais valente, o mais respeitado e o mais perigoso dos peles-brancas morreu varado pela sua faca! Agora convoca, imediatamente os velhos para o conselho. Vamos deliberar já sobre o dia dos suplícios com que morrerá este cão pele-branca. Enquanto isso amarra-o ao tronco da “árvore da morte”.

Que espécie de árvore era essa, iria eu ver daí a pouco. Fui conduzido a um tronco de pinheiro agreste, ao redor do qual estavam fincadas estacas, cujo fim à noite eu iria conhecer. Este pinheiro era a tal “árvore da morte” e nele amarravam os prisioneiros condenados à tortura. Nos galhos inferiores estavam penduradas as cordas necessárias para prender o prisioneiro. Fui amarrado ao tronco daquele pinheiro nas mesmas condições de Winnetou e seu pai, daquela feita em que caíram prisioneiros dos kiowas, com quem nos aliáramos simuladamente, passando eles, por isso, para as nossas mãos. (*)

Dois guerreiros possantes, armados até os dentes e sentados em ambos os lados da árvore, montavam-me sentinela. Defronte, bem perto, ficava a tenda do cacique, onde Tangua naquele instante estava reunido com os velhos em conselho, formando um semicírculo. Deliberavam sobre a sorte que eu iria ter, ou melhor, uma vez que isso já era coisa mais do que deliberada, combinavam os martírios a que me iam submeter antes da morte. Antes de começar o conselho, Pida chegou até a árvore e examinou as cordas que me prendiam. Estavam fortemente atadas de forma que o sangue parecia jorrar-me pelos poros. O jovem afrouxou a um pouco e observou as sentinelas:

— A ordem é vigiá-lo severamente, mas não maltratá-lo. Não permitam que os peles-brancas, que aqui se acham também, o maltratem! É um grande cacique dos caçadores peles-brancas, que nunca proporcionou, inutilmente, sofrimentos aos peles-vermelhas!

Depois se afastou a fim de participar dos trabalhos do conselho.

Eu me achava ereto, amarrado ao tronco da árvore e contemplava a multidão de mulheres e moças que por curiosidade me vinham ver. Queriam todas conhecer o guerreiro pele-branca, do qual tanto já haviam ouvido falar e cuja morte iria prodigalizar-lhes um espetáculo tão cruel e tétrico como jamais haviam visto em sua vida.

Entre a multidão, chamou-me a atenção uma jovem índia, de uns dezesseis anos quando muito. Ao notar que eu olhava para ela, afastou-se para o lado e depois me dirigiu uns olhares furtivos. Não era propriamente bonita, estava, porém, longe de ser feia. Uma criatura adorável pela expressão suave de sua fisionomia de um bronze sedoso. Os seus olhos faziam-me lembrar os de Nscho-tschi, embora aquela moça não tivesse outros traços que a tornassem parecida com a formosa filha do cacique dos apaches. Seguindo-lhe um dos gestos momentâneos, acenei-lhe com a cabeça e a mocinha enrubesceu e se afastou para mais longe; depois ficou parada por um instante a contemplar-me e desapareceu na entrada de uma das melhores tendas.

— Quem era aquela jovem filha dos kiowas, que esteve parada sozinha lá adiante e agora entrou naquela tenda? — perguntei a uma das sentinelas.

Não estavam proibidos de palestrar comigo e por isso respondeu-me:

— Era Kakho-oto (**), a filha de Sus-homascha, que, menino ainda, teve a honra

de ser investido do cargo de cacique. Agrada-te a moça?

— Sim — respondi, se bem que me parecesse original aquela pergunta partida de um pele-vermelha e feita a um homem nas minhas conduções.

— A mulher do nosso jovem cacique é irmã dela — acrescentou o guarda.

— A esposa de Pida?

— Sim.

— Então é cunhada de Pida?

— Sim. O seu pai é aquele guerreiro que está lá sentado no conselho, com a grande pena de águia no pericote.

Com essas palavras, terminou-se o curto diálogo. A reunião do conselho prolongou-se por mais de duas horas: depois vieram buscar-me para ouvir a minha sentença. Ouvi primeiramente um formidável libelo contra a raça pele-branca para depois conhecer a sentença que me condenava à morte no poste das torturas. Tangua desenvolveu um relatório, que parecia não querer ter fim, a respeito do nosso atrito no rio Pecos, atrito que tivera por desfecho ficar ele aleijado das duas pernas. Não deixou

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(*) 1.° volume.  (**) “Cabelos Negros”.

 

de mencionar também que, para libertar Sam Hawkens, eu havia agredido e raptado o seu filho Pida. Em suma, ouvi um libelo cerrado a meu respeito, segundo o qual não podia eu esperar a menor indulgência dos indígenas. Mas, mais extensa do que o relatório dos meus “crimes” e da acusação desenvolvida à raça pele-branca, era a lista das torturas a que eu ia ser submetido antes de morrer. Eu podia estar extraordinariamente orgulhoso desta lista, pois a mesma constituía uma prova da alta conta em que eu era tido por aquela amável gente. O único de consolável em tudo aquilo era o prazo fixado para início dos martírios. Havia motivos para essa adiação. Uma parte dos guerreiros se achava ausente em expedição, e a esta não se queria tirar a honra e o gozo que a grandiosidade do espetáculo da execução de “Mão de Ferro” lhe ia proporcionar.

Durante a leitura da minha sentença, portei-me com o sangue frio do homem que não teme a morte. Respondi-lhes tudo que me perguntaram, e, como era natural, evitei por todos os modos de fazer a mais leve ofensa aos meus julgadores peles-vermelhas.

Depois, quando fui reconduzido à “árvore da morte”, passei pela tenda que servia de residência a Sus-homascha. Sua filha estava parada na entrada. Sem que nisso me animasse outro propósito além do de distrair-me, fiquei parado e perguntei-lhe:

— A minha jovem irmã pele-vermelha deve também estar satisfeita com a morte que vai ter este homem mau que se chama “Mão de Ferro”, não é assim?

Ela corou e, depois de hesitar um pouco, respondeu:

— “Mão de Ferro” não é mau!

— Como sabe disso?

— Todos dizem.

— E por que então vão matar-me?

— Porque aleijou Tangua e já não é mais um pele-branca e sim um apache.

— Sou pele-branca e sempre hei de ser.

— Não, por que Intschu-tschuna o encorporou aos seus guerreiros agraciando-o até com a dignidade de cacique. Não tomou o senhor o sangue da confraternização com Winnetou?

— Claro que tomei, não nego; mas nunca fiz nada a um kiowa a não ser defender-me de suas agressões. Não se esqueça disso, a minha jovem e simpática irmã Kakho-oto!

— Como? “Mão de Ferro” sabe o meu nome?

— Perguntei-o ao sentinela, pois soube dele que a minha irmã era filha dum célebre guerreiro. Que Manitu lhe dê tantos anos de vida quantas as horas que me restam para ser executado!

Retirei-me. Os guardas não se opuseram a que eu falasse com a moça; qualquer um outro prisioneiro não seria tratado com tanta regalia. Isto era não só conseqüência dos sentimentos de nobreza de Pida, mas também do fato de ter Tangua com a idade mudado muito de caráter. Isto era não só conseqüência dos sentimentos de nobreza de Pida, mas do filho não deixaram também de ter a sua influência preponderante sobre o espírito do velho.

Quando fui novamente amarrado, afastaram-se de mim não só os guerreiros, que ali se aglomeravam, mas também as mulheres, moças e crianças; com certeza, foram expedidas ordens neste sentido e eu fiquei satisfeito com a medida, pois não é nada agradável estar se amarrado a uma árvore e servindo de objeto da curiosidade pública.

Mais tarde vi “Cabelos Negros” sair de sua tenda; trazia um vazilhame de barro na mão e se dirigia para o meu lado.

— Papai deu-me licença para eu lhe oferecer esta refeição. Aceita?

— Gostosamente, minha pequena! — respondi-lhe com amabilidade. — Mas infelizmente não me posso utilizar das mãos porque estão algemadas.

— Não se incomode. Eu terei muito prazer em servir-lhe a refeição.

Trouxera-me carne de búfalo assada e cortada em fatias. Com uma faca espetava as fatias que me punha à boca. Era adorável de ver! “Mão de Ferro” alimentado por uma jovem índia, como se ele fora uma criança. Eu, não obstante a minha situação, quase dei uma gostosa gargalhada. Não precisava acanhar-me, visto que a moça não era uma pele-branca “melindrozinha”, mas uma índia kiowa já familiarizada com essas cenas.

Os dois sentinelas mostravam uma fisionomia séria, entretanto, pelo que desconfiei, a muito custo continham o riso. Quando a índia me pôs a última fatia de carne na boca, um deles entendeu de recompensar a boa moça, dizendo-lhe:

— “Mão de Ferro” disse-nos, hoje, que se agradou muito de “Cabelos Negros”.

Ela olhou-me perscrutadoramente e creio que enrubeci tanto quanto ela; depois virou-se para se retirar. Ao dar, porém, poucos passos, voltou-se para mim e perguntou-me:

— E verdade o que aquele guerreiro disse, “Mão de Ferro”?

— Ele perguntou-me se a senhorinha me agradava e eu respondi que sim — disse-lhe, aliás, a verdade.

Mais tarde vi Gattes que errava por entre as fileiras de tendas.

— Permite-me que fale com aquele pele-branca? — perguntei aos meus guardas.

— Pode, sim. Mas não devem falar em fuga!

— Quanto a isso, pode o meu irmão pele-vermelha estar tranqüilo. Chamei Gattes e este aproximou-se moroso e hesitante, como quem não tem a consciência limpa.

— Venha sem receio! — exclamei. — Ou proibiu-lhe Santer de falar comigo?

— Sim, tem razão. Não me proibiu propriamente, mas não gostaria de me ver na sua companhia — confessou.

— Ele lhe disse alguma cousa?

— Sim, fêz-nos ver que a sua companhia não é conveniente.

— Logo calculei! Ele receia que eu lhe vá contar todo o seu passado de crimes.

— O senhor continua a fazer juízo errôneo a respeito de Mr. Santer.

— Não sou eu, mas os senhores, compreendeu?

— Mr. Santer é um cavalheiro.

— O senhor não sabe o que está dizendo! Em reforço desse juízo o senhor não será capaz de argumentar com um só fato que o recomende, ao passo que eu, para provar-lhe o contrário, estou em condições de lhe citar uma série infindável de crimes praticados pelo celerado a que está aí querendo elevar ao céu.

— Nem me sujeito a ouvir tais infâmias! O senhor é inimigo gratuito dele e por isso tudo faz para o indispor com Deus e o mundo.

— Não o hostilizo debalde. Procuro apenas prevenir as pessoas de bem e de boa-fé, que se acautelem contra a lábia daquele biltre. Não sou homem capaz de nutrir inimizade gratuita contra quem quer que seja e não admito que o senhor torne a me fazer tal acusação! Se sou seu inimigo é porque ele é um bandido capaz dos maiores crimes para atingir os seus fins desonestos. E ele que tenha cuidado comigo!

— Com o senhor? Hum! Sir, desculpe-me a franqueza, mas ao senhor ninguém precisa mais temer!

— Porque irei morrer aqui neste tronco de árvore?

— Justamente.

— O mundo dá muitas voltas e por enquanto ainda não fui executado, compreende? Já um sem número de vezes estive em situação idêntica, e, no entanto, ainda não morri... Então o senhor acredita que “Mão de Ferro” é um sujeito tão mau como afirma Santer?

— Eu não acredito nem no senhor, nem nele: os senhores são inimigos. Não me interessa saber quem está com a razão: se ele ou o senhor! Os senhores são brancos, que se arranjem!

— Então, pelo menos, não me iluda com mentiras, ouviu?

— Quando lhe menti?

— No Mugworthill ao me ocultar que os kiowas se achavam no morro. Se o senhor tivesse sido sincero, eu não estaria agora aprisionado.

— Quem sabe o senhor foi mais sincero conosco?

— Então os enganei alguma vez?

— Como não?

— Mas quando e como?

— O senhor nos deu o nome de Jones!

— Mas a isso o senhor chama embustear, Mr. Gattes?

— Mas é claro! De que forma então devo tachar o seu procedimento? De leal?

— Embustear é engendrar-se uma mentira artificiosamente para ocasionar males a outrem. E isso nunca fiz. Ao fato de lhes ter dado um nome trocado não pretendo nem sequer dar o nome de ardil, porque tomei tal atitude honestamente e num caso de necessidade. Santer é assassino várias vezes, o maior embusteiro e ladrão que cruza as planícies do oeste, um indivíduo perigosíssimo, capaz dos crimes mais hediondos e cruéis. É meu inimigo mortal e os senhores eram os seus companheiros. Devia eu então nessas circunstâncias dizer-lhes quem eu era e que pretendia dirigir-me a Mugworthill?

— Hum! — murmurou o meu interlocutor.

— Hum, não! O senhor ainda tem dúvida sobre quem está com a razão, se eu ou Santer? Não o compreendo, Mr. Gattes!

— Apesar de tudo o que pondera, o senhor deveria ter-nos dado o seu nome verdadeiro. Era dever seu, se é que é o homem de bem de que faz tanto alarde!

— Eu não tinha absolutamente deveres para com os senhores, compreende? Os senhores são uns homens inexperientes, uns levianos e por isso eu precisava agir com toda reserva e discrição. Além disso, eram contratados de Santer, ao qual elevavam aos cornos da lua. E em face disso, eu era forçado a ocultar o meu verdadeiro nome.

— Se não tivesse ocultado, agora acreditaríamos nas suas palavras.

— Não creio.

— Pode crer.

— Não. Já vou provar-lhe.

— Com quê?

— O senhor, ainda agora, depois de saber que eu sou o “Mão de Ferro”, ainda não dá crédito às minhas palavras.

— Disso o senhor mesmo é culpado. Por que nos enganou e mentiu ao nos encontrar pela primeira vez?

— Desculpas! Os senhores sabem muito bem que eu tive motivos poderosos para ocultar o meu nome, pois viram a maneira por que me tratou Santer.

— Mas ele não pretende fazer-lhe nenhum mal.

— Quem lhe disse?

— Ele mesmo.

— Quando?

— Ainda há pouco tornou a dizer-me.

— Com isso ele pretende enganá-los. Aquele bandoleiro das planícies está sedento pela minha vida!

— Não! Santer não mente e nem é um impostor!

— Veja como ainda se conservam fiéis a ele, desconfiando sempre de mim, que lhes estou a dizer a pura verdade! E muito pior ainda seria se no Mugworthill lhes tivesse eu falado com toda franqueza. Tentei mesmo com empenho convencê-los de que ele não tivera propósitos honestos ao contratá-los para o seu serviço. Ainda agora quando me vêem diante da morte, quando seria um gesto de humanidade confortar-me com a sua solidariedade, aí estão ao lado dele, daquele miserável que constitui o terror da gente honesta das savanas!

— Psiu! Mr. Santer nos disse que ia salvá-lo.

— Mentiras e mais mentiras! Já vi que os senhores são inabaláveis na sua excessiva boa-fé com aquele facínora. Ele os seduziu e os senhores só se convencerão da verdade, que insistentemente lhes estou a dizer, quando caírem também nas malhas do criminoso.

— Não faça essa injustiça! Com o senhor, o procedimento dele foi este, porque o perseguiu antigamente por várias vezes e tentou matá-lo. Conosco, porém, ele está bem intencionado e pretende nos fazer uns homens ricos.

— Então persistem na esperança de encontrar ouro?

— Claro que sim.

— Mas em Mugworthill não existe o ouro que procuram.

— Sei disso. Mas existe noutra parte.

— Onde?

— Ainda não sabemos, mas descobriremos muito breve.

— Quem lhes dirá?

— Ninguém. Santer já anda em boa pista.

— Em que consiste essa pista? Disse-lhes ele alguma cousa a respeito?

— Não.

— Eis aí mais uma prova de que tenho razão quando lhes digo que se trata de um assassino, ladrão e embusteiro. Não vêem então que já não está procedendo lealmente para com os senhores?

— Como? Ele não nos pode dizer uma cousa que nem ele ainda sabe ao certo!

— Ele sabe, sim. Sabe até o modo por que descobrirá com facilidade o local para onde foi transferido o ouro que estava escondido no Mugworthill!

— Se o senhor afirma tal coisa com tanta certeza é porque também conhece o esconderijo!

— Naturalmente que conheço!

— Diga-me então!

— Era só o que faltava!

— Ah! Mais uma prova da sua hipocrisia. E quer que nos fiemos nas suas palavras!

— Eu seria franco, se me pudesse fiar nos senhores. Não têm o direito de me censurar, porque os senhores mesmos é que me obrigaram a me calar em torno do segredo. Onde se alojaram?

— Numa cabana que Santer escolheu para nós todos.

— E ele mora junto?

— Sim.

— Onde fica essa cabana?

— Ao lado da de Pida.

— Singular! E foi ele mesmo que a escolheu?

— Sim. Tangua deu-lhe licença para se instalar na tenda que quisesse.

— E ele foi logo se aboletar ao lado de Pida. Hum! É muito fácil suceder que num belo dia ele desapareça e os abandone aqui no meio dos kiowas. Tomem cuidado, porque se acontecer o que prevejo, os peles-vermelhas mudarão fatalmente de atitude em relação aos senhores?

— Como?

— Mas está visto, homem! Por enquanto eles os toleram na sua taba, mas depois tratá-los-ão como inimigos, pois são peles-brancas. E não sei se então estarei em condições de interceder em favor dos senhores.

— O senhor interceder em nosso favor? — gaguejou o homem pasmado. — “Mão de Ferro” fala como se estivesse em liberdade e fosse um grande amigo dos kiowas!

— Tenho motivos para isso, pois...

— Com os diabos. Neste instante Santer me viu aqui a falar com o senhor!

Santer, realmente surgira no meio das filas de tendas e, avistando o seu companheiro, dirigiu-se com passos apressados para a “árvore da morte” onde me achava amarrado.

— Arre, mas o senhor tem um grande pavor deste homem, ao qual, não obstante, defende com tanto fervor! — disse-lhe eu ironicamente.

— Pavor, não, mas ele nos proibiu de falar com o senhor.

— Então corra a pedir-lhe perdão do pecado cometido, Mr. Gattes!

— Que perdeu o senhor aqui, Mr. Gattes — trovejou-lhe Santer ainda de longe. — Quem lhe deu licença de falar com esse homem?

— Mr. Santer, desculpe; eu ia casualmente passando por aqui quando ele falou comigo — respondeu Gattes.

— Não admito casualidades. Raspe-se já daqui! Não, espere: venha comigo! Do contrário, irá cometer outra asneira.

— Mas, Mr. Santer, eu não sou nenhuma criança para o senhor estar aí a...

— Cale-se e venha comigo! Ande, vamos!

Agarrou-o pelo braço e arrastou-o do lugar. Quanto não teria ele mentido àqueles três homens inexperientes e de excessiva boa fé, para que eles obedecessem tão cegamente, não obstante o trato grosseiro que recebiam! Estavam dominados completamente pela lábia do bandido!

Naturalmente que eu continuava vigiado por dois guardas e ambos conheciam o idioma inglês; portanto, compreenderam tudo o que eu havia falado. Eu devia gozar de muito melhor conceito perante eles do que Santer, pois quando este se afastava com Gattes, um dos indígenas disse para mim, rindo:

— Aquilo é uma ovelha que se deixa dominar pelo lobo; este a devorará assim que estiver faminto. Por que aqueles idiotas não levam em consideração o que diz “Mão de Ferro”, que está tão bem intencionado com eles?

Pouco depois Pida veio ter comigo, a fim de examinar-me as cordas e ao mesmo tempo para saber se eu tinha alguma reclamação a fazer.

— “Mão de Ferro” já deve estar cansado de tanto estar de pé: durante a noite poderá dormir deitado num leito que lhe vou arranjar. Quem sabe se prefere deitar-se já?

— Não; ainda suporto um pouco.

— Bem, depois do jantar, será desamarrado da árvore e poderá logo se deitar. Tem o valente e nobre guerreiro mais algum desejo? Exponha-o sem cerimônia!

— Sim, tenho um pedido a fazer-lhe.

— Sou todo ouvidos. Se estiver em meu alcance, atendê-lo-ei com muito prazer.

— Acautele-se com Santer! É este o meu pedido.

— Santer? Para Pida, o filho do cacique, ele não passa de um parasita imundo!

— Tem razão; mas também dos parasitas precisamos nos acautelar para que eles não nos tomem o corpo e não nos ocasionem males às vezes irreparáveis! Ouvi dizer que o biltre se aboletou numa cabana situada ao lado da sua. É verdade?

— Sim. Era uma das cabanas que, casualmente, se achavam desocupadas.

— Pois tome cuidado, porque ele é bem capaz de entrar sorrateiramente na sua tenda! Ao que parece, tem tal propósito.

— Pô-lo-ei para fora a pontapés se tiver tal arrojo.

— Isso poderá fazer se ele entrar, francamente. Mas como será se o patife, de noite, rastejar para o interior de sua cabana, sem o senhor notar?

— Não se aflija. A sua aproximação não me passará despercebida, seja a que hora fôr!

— E se por acaso não estiver presente quando ele entrar?

— Estará a minha mulher que o repelirá.

— O biltre está ansioso por se apoderar do papel que o senhor guardou.

— Não lhe darei.

— Disso sei eu. Mas se ele o roubar?

— Mesmo que ele conseguisse penetrar secretamente em minha tenda, não encontraria o documento, pois está muito bem guardado.

— Neste caso, estou tranqüilo. Outra coisa: ficar-lhe-ia muito agradecido se me permitisse ver novamente aqueles papéis!

— Mas o senhor já os leu!

— Não todos.

— Então poderá lê-los na íntegra; faço-lhe prazeirosamente essa concessão; agora, porém, não, pois já está escuro. Deixemos para amanhã cedo

— Muito agradecido, Pida. Previno-o mais que ele aspira apoderar-se não só do documento, como também das minhas duas espingardas. Nas mãos de quem estão elas agora?

— Nas minhas.

— Então guarde-as bem!

— Estão muito bem guardadas, “Mão de Ferro”. Mesmo que ele penetrasse na minha tenda de dia claro, não as veria. Enrolei-as em dois cobertores de lã e coloquei-as debaixo do meu leito. Pertencem a mim daqui por diante. Serei o sucessor de “Mão de Ferro”, com a honra de possuir uma espingarda sistema Henri, se ele me fizer um grande favor que lhe vou pedir.

— Se estiver em mim, com muita satisfação!

— Examinei bem aquelas espingardas. O manejo da “Mata-Ursos” descobri logo; mas o daquela de repetição não há forma de eu compreender. Poderá fazer-me o favor de me explicar, antes de sua morte, no poste das torturas?

— Terei grande prazer em explicar-lhe todo o seu manejo!

— Muito obrigado, “Mão de Ferro”! O senhor não teria obrigação de revelar-me tal segredo e se não me revelasse, a espingarda não teria utilidade alguma para mim. Em vista de mais essa prova de sua grande nobreza, tomarei todas as providências para que, até o dia em que tiverem início as suas torturas, lhe sejam atendidos os mais insignificantes desejos!

Dito isso, o jovem se retirou. Ele jamais poderia imaginar quanta esperança aquelas suas palavras vieram trazer-me.

A falar com franqueza, eu esperava tirar partido da presença de Gattes, Clay e Summer no acampamento dos inimigos. Mesmo que eles se esquivassem de fazer amizade comigo, eram peles-brancas e portanto estavam no dever de se interessar pelo meu caso. Se eles se dispusessem a me auxiliar, deveriam arranjar um modo de me libertar por instantes do tronco da “árvore da morte” e das cordas que me ligavam os pés. Apenas manietado, eu era homem para proezas as mais arriscadas e ninguém seria capaz de conter-me. Mas, infelizmente, tive que desistir desse plano, pois das palavras de Gattes depreendi que para a sua execução eu não podia, contar com ele e nem com os seus dois companheiros.

Portanto, agora só podia confiar nas minhas próprias forças. Eram demasiadamente parcos, não há dúvida, os elementos de que eu dispunha. Mas mesmo assim, não desanimei. Eu tinha que fugir à morte pelas torturas, custasse o que custasse; uma idéia salvadora havia de me socorrer. Oh! Se me livrassem por um instante que fosse as mãos e me dessem uma faca! E isto não era impossível e nem difícil! Oh! Agora me ocorreu uma idéia! A formosa índia “Cabelos Negros” mostrava-se interessada por mim e eu já ouvira falar muito de brancos que se aproveitaram de uma inclinação dessa natureza para empreender a fuga. Bem, houvesse o que houvesse, eu precisava fugir, embora fosse obrigado a lançar mão pouco antes da morte no poste das torturas, de recursos violentíssimos, no auge do desespero!

Pida pedira-me que lhe ensinasse o manejo da espingarda! Cousa melhor eu nem podia desejar. Para mostrar-lhe como se carregava a arma e todos os outros manejos, ele era forçado a desamarrar-me as mãos. Estender a mão para a sua cintura, arrancar-lhe a faca e cortar as cordas que me uniam os pés, seria obra de um instante e eu não seria mais um prisioneiro! Estaria liberto e armado com uma espingarda de vinte e cinco tiros. Naturalmente que isso constituía uma empresa violentíssima. Enfim não arriscaria mais do que a vida, e esta mesmo a perderia, de qualquer forma, se não tentasse aquele recurso extremo.

É verdade que seria mais acertado se o acaso me proporcionasse um ensejo de fugir ardilosamente, sem terçar-armas com os peles-vermelhas. Mas até agora não me ocorrera ainda uma idéia para chegar àquele objetivo. Talvez que a mesma me viesse mais tarde. Ainda havia tempo.

Conforme concessão de Pida, era me permitido dormir deitado, à noite.. Ao redor da árvore estavam fincadas dezesseis estacas, em grupos de quatro. Quando deitavam o prisioneiro, amarravam-lhe os pés a duas delas e os braços, na altura dos ombros, às outras duas, de modo que o prisioneiro ficava esticado sem poder mover com os membros. Era, aliás, uma posição muito incômoda, que não permitiria ao mortal, por mais fatigado que estivesse, conciliar o sono, mas em compensação dava aos peles-vermelhas a certeza de se achar o prisioneiro seguro, por isso não o vigiavam com sen-tinelas.

Enquanto me entregava a essa ordem de pensamentos, anoiteceu. Defronte às tendas, foram acesos os fogos nos quais as índias preparavam o jantar. “Cabelos Negros” trouxe a minha refeição e também um pote com água. Desta vez não nos falamos. Apenas, quando ela se retirou, agradeci-lhe a gentileza. Em seguida, os meus sentinelas foram rendidos por outros dois, que não se portaram com menos humanidade e atenção do que os primeiros. Perguntei-lhes quando me seria permitido deitar e um deles respondeu-me que Pida não tardaria a chegar para estar presente a esse ato.

 

ORIGINAL PROPOSTA DE CASAMENTO

Daí a pouco, porém, em lugar do jovem cacique, um guerreiro, homem bem maduro, chegou a passos lentos, caminhando cheio de dignidade. Era Sus-homascha, pai de “Cabelos Negros”. Parou na minha frente e contemplou-me durante bem um minuto. Depois ordenou as sentinelas:

— Queiram os meus irmãos se afastar daqui até que os chame novamente. Preciso falar a sós com este pele-branca.

Ele foi prontamente obedecido. Devia gozar de muito prestígio na sua tribo; isto se notava pela solicitude com que as sentinelas o atenderam. Passado um instante, ele começou em tom solene:

— Os peles-brancas moravam do outro lado das grandes águas e tinham suficientes terras para viver; entretanto, vieram para cá a fim de roubar as nossas montanhas, os nossos vales, os nossos prados e as nossas planícies.

Depois disso, fêz uma pausa. As suas palavras constituíam, segundo o sistema indígena, um intróito pelo qual se concluía que o nativo ia falar-me em assunto de importância. Que seria? Eu estava quase a adivinhar! Esperava por certo uma resposta minha; conservei-me mudo e ele depois continuou:

— Foram acolhidos carinhosamente e com cativante hospitalidade pelos peles-vermelhas e esta hospitalidade eles pagaram depois com roubos, saques e morticínios!

Outra pausa.

— Hoje, ainda, os move o propósito arraigado de nos enxotar cada vez mais para longe, até que não tenhamos mais lugar para nos mexermos e morramos todos, conosco se extinguindo a raça pele-vermelha. E se tal não conseguem por meio de sagacidade, apelam para o emprego da violência.

Nova pausa.

— Quando um pele-vermelha enxerga um pele-branca, pode estar certo de ver um inimigo mortal na sua frente. Ou quem sabe se há algum pele-branca que não seja inimigo da raça pele-vermelha?

Percebi logo onde o índio queria chegar. Como eu hesitasse um tanto em responder, ele perguntou-me diretamente, sem mais preâmbulos:

— “Mão de Ferro” nega-se a me responder? Não é verdade que a raça pele-branca nos persegue?

— Sim, Sus-homascha tem razão — concordei.

— Não são os peles-brancas inimigos nossos?

— São, sim.

— Haverá entre eles alguns que não sejam hostis à raça peles-vermelha?

— Há muitos.

— Queira “Mão de Ferro” citar-me os seus nomes!

— Eu poderia citar diversos, muitíssimos mesmo. Mas isso seria fastidioso. Vou referir-me a um apenas e o seu nome não preciso citar, pois se Sus-homascha olhar bem, o verá na sua frente.

— Na minha frente vejo apenas “Mão de Ferro”.

— Pois é a este que me refiro.

— Então se considera um pele-branca que não é tão inimigo nosso como os demais de sua raça?

— Não!

— Não? — perguntou espantado, pois não compreendera bem o alcance de minha resposta.

— O meu irmão pele-vermelha usou de palavras que não exprimem com precisão os meus sentimentos.

— Quais foram?

— Perguntou-me se eu me considerava um pele-branca que “não é tão inimigo dos peles-vermelhas como os demais”, e eu absolutamente não sou inimigo dos peles-vermelhas, nem nunca fui.

— Nunca matou ou feriu alguns deles?

— Sim, mas só em necessidade extrema e em defesa própria. Porque, de resto, eu sou um amigo sincero da raça pele-vermelha. E isso provei muitas vezes. Sempre que pude, estive ao lado dos peles-vermelhas, quando estes lutavam pelos seus direitos conspurcados contra os peles-brancas, e ajudei a rechaçar muitos ataques de canalhas peles-brancas, feitos contra legiões ou tabas de indígenas. Se o senhor quiser ser justiceiro terá que reconhecer isso.

— Sou justiceiro!

— Lembre-se de Winnetou! Fomos tão amigos, que parecíamos irmãos. Não era Winnetou um pele-vermelha?

— Era, se bem que um ferrenho inimigo de nossa tribo.

— Ele não era inimigo de sua tribo, mas os kiowas é que fizeram dele um inimigo. Ele estimava a todos os índios sem distinção, com o mesmo ardor e devotamento com que estimava os seus apaches. Procurou sempre viver em paz com todas as tribos, mas estas preferiam destruir-se em lutas inglórias. Ninguém mais sentia a alma despedaçar-se do que ele, ao ver a permanente discórdia entre as nações peles-vermelhas. Garanto-lhe até que essa dor o acompanhou até o túmulo. E assim como ele sentia e pensava, pensava e sentia também eu. Todos os nossos atos eram fundados no amor e na solidariedade que nos prendiam às nações peles-vermelhas.

Eu falei também lenta e solenemente, como ele havia falado. Quando cheguei ao fim, o índio baixou a cabeça e permaneceu pensativo por alguns minutos; depois prosseguiu:

— “Mão de Ferro” disse a verdade. Sus-homascha é justiceiro mesmo com relação ao inimigo. Se todos os peles-vermelhas fossem como Winnetou, se todos os peles-brancas se guiassem pelos exemplos de “Mão de Ferro”, peles-brancas e peles-vermelhas viveriam como irmãos, se auxiliariam mutuamente, e na terra haveria lugar para todos. Mas é perigoso dar exemplos a quem não quer segui-los. Winnetou tombou à bala do inimigo e “Mão de Ferro” caminha para a morte no poste das torturas.

Agora ele conduzia a palestra para o ponto a que queria chegar. Achei melhor não o contrariar e calei-me. O nativo continuou:

— “Mão de Ferro” é um herói; mas suportará com estoicismo e resignação os mais cruéis martírios que se viram nas tabas dos kiowas e a que vai ser submetido? Será bastante forte para resistir a esses suplícios que o levarão a uma agonia lenta? Não irá proporcionar aos seus verdugos a alegria de vê-lo acovardar-se e gemer de dores?

— Não. Se eu tiver que morrer, irei ao encontro da morte como um homem que quer fazer juz a um monumento em virtude do seu heroísmo.

— Se tiver que morrer? Ainda considera a sua execução como uma cousa duvidosa?

— Sim, penso que não é ainda desta vez que me vá familiarizar com este fúnebre poste!

— “Mão de Ferro” é de uma franqueza de pasmar!

— Manifestei-lhe minha opinião. Preferia, então, que eu mentisse?

— Não. Mas considero essa franqueza uma audácia de sua parte!

— “Mão de Ferro” jamais se acovardou na sua vida!

— Então alimenta a idéia de fuga?

— Não só alimento a idéia, como tenho plena certeza de que conseguirei fugir!

Essa minha confissão pasmou-o ainda mais do que a anterior.

— Uff! Uff! — exclamou, pondo as mãos à cabeça. — Até agora o senhor gozou de todas as regalias. Daqui em diante, porém, não podemos mais ser condescendentes com o senhor. Será tratado com todo o rigor.

— “Mão de Ferro” não se amedronta com rigores e só mesmo ele será capaz do desassombro de confessar aos seus algozes francamente que pretende evadir-se dum acampamento indígena, onde se acha preso. Nenhum outro seria talvez capaz desta coragem!

— Tem razão. Só mesmo “Mão de Ferro” é capaz de tamanha coragem! Isto até já nem é mais coragem, é temeridade.

— Engana-se. Um temerário, em geral, age com imprudência, e, percebendo que está perdido, joga a última cartada! A minha franqueza, porém, é de um cunho diferente e visa uma finalidade muito especial.

— Que finalidade visa a sua franqueza?

— Não lhe posso dizer. Ao senhor compete adivinhar ou concluir.

O que não lhe podia dizer era o seguinte: Ele procurara-me com o propósito preconcebido de salvar-me da morte, oferecendo-me a sua filha por esposa. Se eu aceitasse sua oferta, não só seria indultado da pena de morte, como também imediatamente posto em liberdade, com a condição, porém, de casar-me com a índia e de tornar-me um kiowa autêntico. Essa proposta, pois, eu não podia de forma alguma aceitar, e daí a razão de minha franqueza que pasmou Sus-homascha a ponto de me chamar de temerário. Se eu tivesse recusado a sua proposta, o indígena não só se sentiria profundamente ofendido, como também via na minha recusa mais um motivo para tomar uma vindita contra mim. E para evitar mais essa complicação, disse-lhe eu claramente que estava animado do mais firme propósito de evasão. Isso era tanto como se eu quisesse dizer: “Não me ofereça sua filha por esposa, pois me salvarei sem que me torne marido duma nativa”. Se ele percebesse o cunho de minha franqueza, não chegaria a fazer-me a proposta, não se sentiria ofendido e nem se animaria de sentimentos de ódio e vingança contra mim. Entrou a matutar, mas infelizmente não compreendeu o objetivo de minha sinceridade, pois disse no seu tom astuto e refletido:

— “Mão de Ferro” apenas visa nos preocupar o espírito, pois sabe muito bem que não conseguirá evadir-se. O seu desmedido orgulho, a sua louvável altivez o impedem de confessar-se derrotado. Mas Sus-homascha é bastante sensato para perceber tudo isso. O senhor sabe muito bem que desta vez está perdido, irremediavelmente perdido,

— Eu sei muito bem é que hei de fugir!

— O senhor morrerá no poste das torturas!

— Insisto: hei de fugir!

— É impossível! Se eu julgasse viável a sua evasão, sentar-me-ia em pessoa aqui a vigiá-lo; fugir repito, o senhor não conseguirá. Mas há um outro meio muito mais brando e também mais nobre e digno do senhor livrar-se com honra da morte pelo martírio.

— Qual? — perguntei, batendo já em retirada, pois não havia forma do homem compreender o meu esforço para impedir que me tocasse no assunto delicado.

— Colocando-se debaixo de minha proteção.

— Dispenso proteções!!

— O senhor é ainda muito mais altivo do que eu pensava! Arre! Quem, por mais valente que seja, dispensa uma proteção, quando se trata de salvar a vida?

— Todo aquele que está consciente de que pode dispensá-la, porque pode salvar-se por si mesmo!

— Essa altivez mais o dignifica ainda! Vejo que prefere morrer a dever gratidão a alguém. Mas afianço-lhe que jamais considerarei uma dívida de gratidão a minha interferência no sentido de salvar-lhe a vida! É, mesmo, o meu mais ardente desejo vê-lo libertado. Sabe que “Cabelos Negros” tem estado aqui a lhe servir?

— Sim, ainda há pouco me trouxe o jantar.

— Pois ela é minha filha e se compadece muito de sua sorte.

— Oh! então “Mão de Ferro” deve ser um indivíduo digno de comiseração e não um valente guerreiro! Para um guerreiro que se preza, ter-se compaixão dele significa ofendê-lo!

Usei dessas expressões ásperas com o fim de demovê-lo de seu propósito. Mas nem assim! O cacique declarou-me em tom brando:

— Não tive a menor intenção de ofendê-lo. Antes de minha filha vê-lo, já havia ouvido falar muito no senhor. Ela sabe que “Mão de Ferro” é o mais valente e bondoso guerreiro pele-branca e se sentiria muito feliz salvando-o da morte.

— Vê-se logo que “Cabelos Negros” tem bom coração; mas que ela possa salvar-me, isso é impossível!

— Não lhe é impossível, não! Ser-lhe-á até muito fácil. O suor escorria-me em bagas pelo rosto.

— O senhor está enganado! — respondi-lhe, continuando a fingir que não percebia o seu intuito.

— Não estou, não! O senhor conhece os hábitos e costumes dos peles-vermelhas. Um deles, porém, pelo que se depreende de suas palavras, ignora ainda. E estou certo de que se alegrará muito em conhecê-lo, pois o senhor mesmo disse que se agradava de “Cabelos Negros”.

— É outro equívoco de sua parte. Eu não fiz essa declaração a “Cabelos Negros”!

— Ela, porém, me confessou que sim! Minha filha até hoje nunca me mentiu!

— Não digo que ela houvesse mentido! Qualquer pessoa é suscetível de incorrer num equívoco, e isto foi o que se deu com sua filha. A sentinela é que me perguntou se eu me agradava dela e eu respondi que sim. Esta é que é a verdade.

— Mas isso é a mesma cousa; que o senhor tenha dito ao guarda ou a ela diretamente, não importa. O principal é que o senhor se agradou dela. Não sabe que todo o pele-branca que tomar indígenas por esposa, ficará incorporado à tribo com as mesmas regalias e honras dos peles-vermelhas autênticos?

— Sei disso muito bem!

— Mesmo que tenha antes sido um inimigo e prisioneiro dessa tribo?

— Sei também!

— E que depois do casamento e da incorporação, a sua pena será perdoada?

— Sei de tudo!

— Uff! Então já me deve ter compreendido!

— Sim, compreendi-o mesmo antes de me tocar no assunto!

— O senhor se agrada de minha filha e ela se agrada do senhor! Quer tomá-la por esposa?

— Não!

Seguiu-se um profundo silêncio. Por esta ele não esperava! Eu era um candidato ao poste das torturas, ao qual já me achava amarrado; no entretanto, a moça mais prendada dos kiowas, a filha do mais valente e respeitado guerreiro da tribo, me era oferecida em casamento e eu a recusava! Seria possível?!

Finalmente ele perguntou-me, mas mui secamente:

— Por que não?

Podia eu dizer-lhe o verdadeiro motivo? Que um europeu jamais aniquilará a sua existência casando-se com uma pele-vermelha? Que de tal união não nasce o bem-estar moral e material que dela seria de desejar? Que “Mão de Ferro” não pertencia àquela classe de gente que toma por esposa uma jovem indiana por conveniências do momento e mais tarde a abandona? Ao rol dos biltres que, em cada tribo que aparecem, casam-se com uma de suas moças? Poderia dizer-lhe estas e outras razões que não estavam à altura de sua compreensão? Eu precisava apresentar uma outra razão que estivesse ao alcance de sua inteligência e por isso respondi-lhe:

— O próprio irmão pele-vermelha disse que considerava “Mão de Ferro” um grande guerreiro, mas não é esse conceito que demonstra ter de minha pessoa!

— Como não? Eu falei sinceramente!

— E entretanto, pretende que minha vida seja salva pelas mãos de uma mulher. Não seria isso covardia? Acha que não disponho de coragem suficiente para me defender ou para morrer com honra? Que vale mais: morrer com dignidade ou viver na convicção eterna de ter que agradecer a vida a uma frágil mulher? O senhor, no meu lugar, aceitaria essa proposta, que constitui um agravo à altivez de um guerreiro denodado?

— Uff! — exclamou Sus-homascha.

Ficou a olhar para o chão. O meu argumento pareceu iluminar-lhe o espírito, pois, depois de algum tempo, respondeu:

— Que julga “Mão de Ferro” de Sus-homascha?

— Que é um guerreiro audaz e valente, experimentado em todas as vicissitudes das refregas, um sábio no seio do conselho, enfim um homem em quem toda a tribo pode confiar cegamente!

— O senhor não se negaria a ser meu amigo?

— Absolutamente não! Pelo contrário, essa distinção muito me orgulharia!

— E que diz de “Cabelos Negros”, minha filha?

Eu estava realmente sem sorte! Comecei a suar de novo!

— É a mais linda e a mais mimosa flor dos kiowas!

— Acha-a digna de esposar um guerreiro valente e de grande coração?

— O guerreiro a quem o senhor conceder a mão de sua filha, pode ficar orgulhoso da esposa que terá!

— Quer dizer então que se recusa a casar-se com ela não porque a despreze como também a mim?

— Nem por sombra! Estou longe disso. O que pretendi significar com a minha recusa é que “Mão de Ferro” é muito homem para com suas próprias forças defender a sua vida, ao invés de recebê-la misericordiosamente das mãos de uma mulher, por mais linda e virtuosa que esta seja!

— Uff! Uff! — exclamou, baixando os olhos.

— Então acha que “Mão de Ferro” seria capaz de cometer essa vilania, para que depois nas fogueiras de todos os acampamentos fosse objeto de palestras menos lisonjeiras, fazendo com que todos lhe devotassem desprezo e asco?

— Não!

— Quer que se diga de “Mão de Ferro” que ele fugiu covardemente da morte e para salvar-se lançou-se aos braços de uma jovem índia a suplicar-lhe clemência e salvação?

— Não!

— Não tenho o dever de zelar pela minha honra e pelas minhas tradições de guerreiro sem jaça?

— É um dever sagrado!

— Então, agora, penso que afinal compreendeu o meu gesto! Mas tanto ao senhor como à formosa “Cabelos Negros” os meus mais efusivos agradecimentos! Eu quisera que me fosse possível demonstrar a ambos a minha gratidão pelo gesto nobre e sublime que tiveram! Façamos de conta que eu aceitei a sua proposta, que, talvez, noutras circunstâncias aceitasse realmente, e não tenham o menor ressentimento de minha pessoa!

— Uff! Uff! “Mão de Ferro” é um homem às direitas! É pena que vai morrer! O que lhe propus constituía o único meio de salvá-lo; mas reconheço que um guerreiro cioso de sua honra e de sua hombridade, não pode aceitar isso. Quando relatar tudo à minha filha, também ela não lhe ficará querendo mal.

— Asseguro-lhe de coração que eu ficaria muito sentido se ela julgasse que eu me recusei de ser seu esposo por não achá-la digna de usar meu nome ou por menosprezar o seu pai!

— Não. Ela o ficará amando e venerando ainda mais do que dantes! E quando estiver o senhor sofrendo os atrozes suplícios do poste das torturas, enquanto todas as mulheres entusiasmadas assistirem ao espetáculo, ela se recolherá à quietude do mais escuro compartimento da tenda e encobrirá o rosto. Howgh!

Após essa exclamação, o índio se retirou, sem tornar a dizer-me que se encarregaria ele próprio de vigiar-me, em virtude de minha confissão de querer fugir. As sentinelas, depois que ele se afastou, tomaram novamente a sua posição.

Graças, Deus meu! Afinal, saíra-me feliz do enredo!! Aquele assunto era para mim um rochedo no qual eu podia bater e naufragar; tivesse eu incorrido na sua ira, no seu ódio, na sua ânsia de vingança, ele montaria guarda ao pé de mim, noite e dia, tornando-se para mim uma sentinela mais perigosa do que qualquer outra.

Logo depois chegou Pida e eu tive que me deitar. Estaqueado, recebi um cobertor de lã por travesseiro e um outro para cobrir-me.

Após se haver Pida retirado, recebi uma outra visita, com a qual fiquei muito contente. A do meu baio que, pastando pelas imediações, não quis se unir aos outros animais; de pastagem em pastagem, veio depois parar ali e quando me viu aproximou-se de mim, acariciou-me com suas narinas, desprendeu alegres relinchos e deitou-se ao meu lado. Os guardas não fizeram o menor movimento para impedi-lo de me fazer companhia. Tinham razão: o cavalo não poderia cortar-me as cordas e facilitar-me a fuga.

O meu fiel animal era me de um valor incalculável. Se eu conseguisse evadir-me, fá-lo-ia por certo à noite. E se o animal se habituasse a fazer-me companhia, o que era fora de dúvida, eu estaria logo montado e não perderia tempo em pegar um outro cavalo para fugir, o que talvez fizesse fracassar o meu projeto.

Aconteceu o que eu previra: não me era possível conciliar o sono. As pernas e os braços esticados nas cordas começaram a doer-me atrozmente até que adormeceram. Mal eu entrava numa pequena modôrra, acordava-me de novo. Para mim seria um alívio quando, ao romper do dia, fosse novamente amarrado ao tronco da árvore sinistra.

Se isso durasse assim por muito tempo eu teria que definhar, apesar dos bons e abundantes alimentos que recebia dos peles-vermelhas; mas não era possível me queixar, porque se “Mão de Ferro” se queixasse de insônia, expôr-se-ia ao ridículo perante os indígenas e decresceria muito no seu conceito.

Eu estava curioso por ver quem agora me traria as refeições. Continuaria a ser “Cabelos Negros”? Ante a insistência de seu pai, foi com dificuldade que eu recusei a proposta de me casar com ela! Mas me enganara: A simpática índia não desistira daquele encargo. Ela serviu-me os alimentos matinais, sem pronunciar uma só palavra. Na sua fisionomia não li a menor expressão de cólera, antes de tristeza pela minha sorte.

Quando Pida veio para me amarrar de novo ao tronco do pinheiro, disse-me que ia sair à frente de uma legião de guerreiros, para caçar, só voltando à tarde. Vi mesmo, depois, o bando de cavaleiros sair para a planície.

 

O ROUBO DO TESTAMENTO E A FUGA DO BANDOLEIRO

Passaram-se algumas horas. De repente, vejo Santer surgir por entre umas árvores. Trazia o seu cavalo pelas rédeas e a espingarda a tiracolo e se enveredou direito a mim. Parou na minha frente e disse zombeteiramente:

— Vou também à caça e julguei de meu dever avisá-lo, Mr. “Mão de Ferro”! Talvez encontre-me com Pida lá fora, aquele Pida que morre de dores por você e que a mim pouco suporta.

Pareceu esperar por uma resposta; mas eu fiz como se nem o tivesse visto ou ouvido.

— Você está surdo, homem, é?

Não lhe respondi.

— Oh! Está surdo mesmo! Isso é uma espiga não só para você como para mim!

Passou-me a mão pelo braço numa carícia irônica.

— Retira-te, biltre! — urrei-lhe.

— Oh! Pode falar mas ouvir não! Eu pretendia fazer-lhe uma pergunta.

Olhava-me desaforadamente na cara. A sua tinha, naquele instante, uma expressão singular, direi até satânica e triunfal. Tinha alguma intenção oculta, isso era fora de dúvida!

— Sim, queria perguntar-lhe uma coisa — repetiu. — Teria interesse em ouvir a minha pergunta?

Olhou-me ansiosamente, para ver se agora eu lhe responderia. Quando percebeu que não receberia resposta, declarou, rindo-se canalhamente:

— Hahahahaha! Que quadro empolgante! “Mão de Ferro”, o grande, nobre e altivo “Mão de Ferro”, amarrado ao poste das torturas, e Santer o canalha e... sei lá eu mais o que, um homem livre! A liberdade, oh! como adoro a liberdade! Mas o melhor vem agora. Ouça: Você conhece, Mr. “Mão de Ferro”, uma floresta, isto é, uma floresta de pinheiros bravios, e que os apaches dão o nome de Indeltsche-tschil?

Essas palavras eletrizaram-me. Estavam escritas no testamento de Winnetou. Fulminei-o com o olhar.

— Oh! Aí está esse “herói” a me olhar, como se na cara, em vez de olhos, tivesse espadas! — declarou mofando. — Sim, sim há um mato com este nome, conforme há bem pouco vim a saber!

— Canalha, onde soube isso?

— Na mesma fonte onde conheci também o Tse-tschosch! Sabe, por acaso, onde fica este lugar?

— Com todos os diabos! Eu hei de...

— Espere, espere! — interrompeu-me o patife. — Que cousa singular é esta, um Deklil-to, ou como se chama? Eu quisera...

— Canalha! — exclamei. Exclamei não, gritei. — Roubou os papéis que entreguei a...

— Sim, estão agora no meu poder! — acudiu com uma gargalhada triunfante.

— Roubou-os de Pida!

— Roubei? Tolices, idiotices! Apenas lancei mão do que me pertencia de fato. E a isso se chama roubar? Estou de posse dos papéis e de toda aquela embalagem onde o mesmo se achava guardado.

— Segurem-no, prendam-no! — bradei às sentinelas, quase fora de mim.

— Prender a mim? — perguntou desdenhosamente. — Experimentem!

— Não o deixem escapar! — urrei. — Ele roubou Pida; ele não deve escapar!

As outras palavras, que pronunciei, afogavam-se-me na garganta, tal a agitação em que me achava. Parecia que me queria desprender do tronco do pinheiro. Santer montou e se foi a galope. Os guardas que se achavam sentados ergueram-se e nada mais fizeram do que olhar com olhos arregalados para o bandido que se afastava.

O testamento de Winnetou! As últimas disposições do meu grande amigo! Winnetou fora roubado! Lá fora ia o ladrão já alcançando a planície e ninguém fazia menção de persegui-lo.

Quase perdi o uso da razão. Contorcia-me todo, forçava violentamente as cordas que me seguravam à “árvore da morte”. Não me lembrava de que aquelas cordas eram fortíssimas e que mesmo conseguindo arrebentá-las, não me seria possível sair da taba em perseguição do criminoso. Já não sentia mais as dores que me causavam os sulcos feitos pelas cadeias nas juntas das mãos e dos pés. Forcei, forcei, de repente caí ao solo. As cordas haviam cedido à força desenvolvida por mim.

— Uff! Uff! — exclamaram as sentinelas. — Ele está solto, ele está solto!

Agarraram-me para prender.

— Larguem-me, larguem-me! — urrava eu. — Não tenciono fugir; quero apenas me livrar para perseguir e capturar Santer! Ele roubou ao seu jovem cacique Pida.

A minha gritaria alvoroçou toda a aldeia. Todos acorreram ao local para me segurarem. Isto era lhes relativamente fácil, pois ainda tinha os pés nas cadeias e mais de cem mãos procuravam agarrar-me. Mas a cena não serenou sem umas boas dúzias de socos e pancadas de parte à parte. Os peles-vermelhas esfregavam depois as regiões contundidas pelos meu murros mas nem por isso pareciam zangados com as pancadas recebidas, mostravam-se antes pasmados por eu conseguir romper aquelas fortes cadeias que me prendiam ao tronco do pinheiro.

— Uff! Uff! Uff!... arrebentou... mas isso nem um búfalo conseguiria fazer! Até... parece incrível! — ouvia-se de todos.

Agora eu já sentia as fortes dores nas juntas, pois as cordas, antes de se arrebentarem, cortaram-me as carnes até os ossos.

— Que estão aí a me olhar atarantados? Não compreenderam ainda o que lhes disse? Santer invadiu a tenda de Pida e roubou-lhe vários objetos, inclusive as “medicinas”! Montem já a cavalo e persigam-no! — comandei.

Ninguém me obedecia, porém. Fiquei como que alucinado e gritei tanto, até que de mim se aproximou um indígena mais sensato do que os outros. Era Sus-homascha. Abrindo ala entre os guerreiros, chegou-se e perguntou-me o que sucedera. Relatei-lhe tudo.

— Então o “papel falante” pertencia agora a Pida? — perguntou-me superfluamente.

— Naturalmente, naturalmente! O senhor mesmo esteve presente quando lhe foi entregue!

— E tem certeza de que Santer o roubou e fugiu com ele?

— Sim, sim!

— Então temos que consultar primeiro Tangua a respeito das providências a tomar. Ele é o cacique-mor da taba.

— Pergunte, por mim; mas não percam tempo com delongas! Andem ligeiro, ligeiro, ligeiro, ligeiro!

Ele, porém, hesitou ainda em ir consultar Tangua. Viu as cordas arrebentadas no solo, baixou-se para examiná-las e perguntou aos peles-vermelhas que enchiam o local:

— São estas as cordas arrebentadas pelo prisioneiro?

— Sim.

— Uff, Uff! Bem mostra que é o “Mão de Ferro”! Pena que este homem esteja condenado à morte! Por que não é ele um guerreiro pele-vermelha, um kiowa, em lugar de um pele-branca?!

Só depois disso é que se retirou levando os pedaços de corda, enquanto os demais, exceto as sentinelas, evacuaram também o local.

Fiquei à espera, louco de ansiedade e impaciência para saber quando iria começar a perseguição do larápio. Não se via nem sinal disso. Dentro de poucos minutos a vida do acampamento indígena retomava a sua tranqüilidade anterior. Pedi aos meus guardas que se informassem das demarches da conferência de Sus-homascha com Tangua. Não puderam atender-me. Era-lhes proibido abandonar o posto. Eles chamaram, porém, um indígena, que passava, e este informou-lhes que Tangua determinara deixar Santer se retirar em paz. Nada perdiam com o “papel falante”, pois Pida não o sabia ler e, portanto não lhe traria nenhuma vantagem.

É fácil de se imaginar a minha raiva, o estado de nervosismo que me agitava em face daquela resposta. Eu rangia os dentes e estava inclinado a romper novamente as cordas que me prendiam, não obstante as horríveis dores que me atormentavam; os guardas vigiavam-me cheios de cuidados. Por fim, não tive outro remédio que me render às circunstâncias. Dominei a agitação íntima em que me achava, procurando tranqüilizar-me. Mas a primeira oportunidade para a fuga eu estava resolvido a aproveitar, por mais perigosa que esta fosse.

 

“RESSURREIÇÃO” DE UMA INDÍGENA

Assim se passaram cerca de três horas, quando ouvi uma voz feminina. Há pouco eu vira, mas não ligara importância ao caso, que “Cabelos Negros” saíra de sua cabana e se afastara. Agora ela voltava gritando e desaparecia novamente na sua tenda, de onde voltou depois com o seu pai que, gritando também, com ela desapareceu no meio das cabanas. Todos os que se achavam pelas imediações seguiram-nos. Deve ter sucedido algo de grave. Quem sabe se aquele alarma não se referia ao roubo do testamento?

Não demorou muito, Sus-homascha, a passos rápidos, encaminhou-se diretamente para a “árvore da morte”, onde me achava amarrado. De longe, já veio dizendo:

— “Mão de Ferro” entende de tudo. É também médico?

— Sim — respondi esperançoso por ser conduzido à presença de algum doente, para o que teriam que me desamarrar.

— E sabe curar um doente?

— Claro que sim, homem!

— E ressucitar um morto também?

— Morreu alguém? Quem?

— Minha filha.

— Sua filha? “Cabelos Negros”? — perguntei espantado.

— Não, mas a sua irmã, a mulher do cacique Pida. Jaz no chão algemada e não dá sinal de si. O nosso “homem de medicina” a examinou e declarou que morreu de um golpe recebido de Santer, o ladrão do “papel falante”. “Mão de Ferro” quer ter a fineza de chamá-la novamente à vida?

— Conduza-me, então até a sua tenda!

Fui desamarrado da árvore. Embora manietado e com os pés amarrados, por cordas compridas para que me pudesse locomover, fui levado à cabana de Pida. Foi de grande vantagem para mim conhecer a sua posição, pois lá se achavam guardadas as minhas duas espingardas. Ao local afluíra um verdadeiro formigueiro de indígenas, guerreiros, mulheres, moças e crianças, que abriram alas à minha passagem.

Entrei na companhia de Sus-homascha na cabana e deparei com “Cabelos Negros” e um indígena acocorado perto da mulher desfalecida: era o bruxo ou o “homem de medicina”, como o tratam os peles-vermelhas. Ambos se levantaram quando me viram entrar. Percorri com o olhar todo o compartimento num meticuloso exame. Ah! ali, a um dos ângulos da tenda, estavam o meu arreiamento, os dois revólveres e a faca de campanha! Aqueles objetos se achavam ali porque passaram a pertencer ao dono da tenda logo depois de eu ter sido preso e condenado à morte. Imaginem a minha satisfação ao ver aqueles objetos ali!

— Queira “Mão de Ferro” examinar a morta! — pediu-me Sus-homascha. — Será possível chamá-la novamente à vida?

Ajoelhei-me ao lado da mulher, e, embora manietado, passei a examiná-la. Depois de algum tempo, descobri que o sangue ainda lhe circulava nas veias. O seu pai e a sua irmã tinham os olhos fitos em mim, em ansiosa expectativa.

— Está morta e ninguém possui o condão de ressucitar os mortos! — declarou o bruxo, já meio despeitado.

— “Mão de Ferro” possui este condão! — afirmei orgulhoso.

— Possui? Realmente? — acudiu Sus-homascha a perguntar-me satisfeito.

— Desperta-a, desperta-a, sim? — suplicava-me “Cabelos Negros”, pondo ambas as mãos sobre o meu ombro.

— Sim, possuo tal condão e vou ressucitá-la! — repeti. — Mas depois que ela voltar a si ninguém, a não ser eu, poderá ficar à sua cabeceira.

— Todos nós teremos que nos retirar? — perguntou o pai.

— Sim.

— Uff! Compreende o alcance dessa sua exigência?

— Não — respondi, se bem que eu soubesse o que significava a imposição que fizera.

— Aqui estão as suas armas. No momento em que o senhor se apoderar delas, estará livre. Promete-me então não tocá-las e continuar preso sob sua palavra?

É fácil de compreender quão difícil me era responder sinceramente. Com a faca ser-me-ia fácil cortar as algemas. E uma vez retomado os meus revólveres e a faca, eu queria ver quem ali seria capaz da ousadia de me enfrentar. Mas, longe de mim tal atitude! Eu arrastaria com isso facilmente os indígenas a uma refrega, o que precisava ser evitado; além disso, repugnava-me explorar o desmaio de uma mulher para aquele fim. Sobre um bastidor, vi diversos utensílios de trabalho manual feminino, como agulha, cravador, etc, e ainda duas faquinhas das usadas para cortar fortes fios de couro. Essas minúsculas lâminas, em geral, são afiadíssimas, quase como navalhas. Bastaria agarrar uma daquelas faquinhas e eu estaria em liberdade. Por isso, respondi, resignado:

— Prometo. Para que fiquem mais seguros de que não fugirei, levem as armas daqui.

— Não. É dispensável essa medida, pois “Mão de Ferro” costuma sempre cumprir com a sua promessa! Além disso, se quisesse quebrar a palavra empenhada, a medida sugerida de nada adiantaria.

— Por quê?

— O senhor seria muito homem para, sem o auxílio daquelas armas, evadir-se, usando de outros recursos. Promete-me, porém, não fugir de forma nenhuma?

— Prometo!

— E também deixar-se amarrar novamente à “árvore da morte”, depois de socorrer minha filha?

— Dou-lhe minha palavra de honra que sim!

— Então saiam todos daí e deixem “Mão de Ferro” só, em companhia da morta! Este nobre guerreiro pele-branca não é um mentiroso como Santer! Podemos ter toda confiança nele.

Quando todos saíram e eu fiquei só, o meu primeiro cuidado foi empurrar uma daquelas faquinhas para dentro da manga da camisa; só depois disso é que tratei da doente.

Seu marido estava ausente, em caçadas. Santer se aproveitara dessa circunstância para invadir a tenda. Já havia passado bastante tempo depois dessa invasão e a mulher ainda estava ali desacordada. O desmaio não podia, portanto, ser uma conseqüência do susto, mas de algum golpe violento na cabeça. Examinando bem, notei que a região temporal se achava intumescida. Ao apalpar o lugar, a mulher proferiu um gemido doloroso. Apertei a contusão e tornei a apertá-la até que a doente abriu os olhos e fixou-me inconscientemente. Depois, porém, sussurrou o meu nome: “Mão de Ferro”!

— Conhece-me? — perguntei-lhe.

— Sim.

— Seja forte! Não torne a desmaiar, porque depois não se acordará mais. Que lhe aconteceu?

A minha declaração de que desmaiando não tornaria mais a si, pareceu encorajar a índia. Moveu-se um pouco e depois, com um grande esforço, sentou-se, auxiliada por mim, levando as mãos à região contundida.

— Eu estava sozinha na tenda; ele a invadiu e exigiu que lhe entregasse as “medicinas” do meu marido; não o atendi e o malvado matou-me com um soco.

Por “medicina”, designam os índios as suas relíquias.

— Onde estavam as “medicinas”. Ele as levou?

A índia olhou para uma vara que atravessava a tenda, perto do teto, e com voz ainda fraca proferiu um grito de terror.

— Uff! Uff! Foram roubadas. Ele as levou. Quando me bateu na cabeça, caí morta; do resto não me lembro.

Lembrei-me de que Pida me dissera que havia guardado o documento muito bem guardado juntamente com os seus troféus. E hoje, antes de fugir, Santer blasonou de estar de posse não só do testamento de Winnetou, mas de toda a embalagem onde o mesmo se achava oculto. Portanto, levara o testamento e mais os troféus que estavam escondidos com ele. Era um prejuízo irreparável o que acabava de sofrer Pida. Ele tudo faria para reaver os objetos sagrados e sairia, pois, imediatamente ao encalço de Santer.

— Já está suficientemente forte para ficar acordada? Ou prefere dormir um pouco? Parece querer desmaiar novamente!

— Eu não desmaio, não! — respondeu-me. — O senhor me fêz recuperar a vida! Muito obrigada!

Em vista dessas palavras, ergui-me e abri a porta formada por duas peles curtidas. O pai e a irmã estavam ali perto e os demais habitantes da aldeia reunidos à distância.

— Façam o obséquio de entrar! — convidei a ambos. — A “morta” ressuscitou.

É escusado dizer a alegria que essas minhas palavras causaram. Pai e filha, como também mais tarde todos os kiowas, estavam convictos de que eu operara um milagre. E eu não tinha o menor interesse em fazer-lhes pensar o contrário. É claro que prescrevi apenas compressas frias à doente, mostrando-lhes como deviam ser aplicadas. Se grande foi a alegria por ver a doente salva, maior foi depois o ódio pelo desaparecimento das “medicinas”. O fato, por certo, foi comunicado a Tangua, porque este depois expediu algumas legiões de guerreiros em perseguição do ladrão e também vários emissários em procura de Pida. Sus-homascha conduziu-me novamente para a “árvore da morte”, onde fui amarrado. Ele não poupava louvores e não ocultava a sua gratidão por lhe ter eu salvo a filha, gratidão, porém, ao sistema indígena.

— Agora, — asseverou Sus-homascha — vamos aumentar-lhe ainda mais as torturas para que morra como um grande herói, conforme merece! É digno dessa distinção. Sofrerá tantos martírios como jamais prisioneiro algum sorreu. Deste modo, quando chegar às “Eternas Campinas”, “Mão de Ferro” será o maior e o mais respeitado pele-branca que lá dominará.

“Bonito consolo! Agradeço esta distinção! — pensei de mim para comigo. Em voz alta, porém, respondi:”

— Se o senhor tivesse mandado imediatamente perseguir Santer, conforme sugestão minha, a esta hora as “medicinas” de Pida estariam salvas. Agora, porém, é bem provável que ele consiga escapar.

— Não. Nós havemos de capturá-lo e muito breve! A sua senda ainda deve estar bem visível.

— Se me fosse possível persegui-lo, sim, eu teria certeza de que ele nos cairia nas mãos.

— Mas por que não o persegue?

— Eu? Como, se estou aprisionado e algemado!

— Soltá-lo-emos para acompanhar Pida, uma vez que nos prometa voltar com ele para se submeter à execução pelas torturas, a que foi condenado! Aceita a minha proposta?

— Não! Se fôr para eu morrer, então quero morrer o mais depressa possível; estou mesmo ansioso por isso!

— Sim, é um herói! Disso eu sabia, e, agora, mais uma vez confirmou-se o meu juízo a seu respeito, pois só mesmo um herói é capaz dessas palavras! Todos nós lamentamos não ser o senhor um kiowa!

Ele se retirou e eu fui suficientemente generoso para não lhe dizer que o lamento dos kiowas não encontrava eco no meu coração! Eu, aliás, estava já resolvido a deixar, na noite daquele mesmo dia, toda aquela gente sem me despedir dela...

 

DISCORDANDO DE PIDA

Os emissários encontraram logo Pida, que entrou depois aldeia adentro como se quisesse derrubar todas as tendas a patas de cavalo. Primeiro se encaminhou para a sua cabana, depois para o do pai e por fim para a “árvore da morte” para falar comigo. Estava já aparentemente calmo, mas com que esforços inauditos continha a sua agitação!

— “Mão de Ferro” queira aceitar os meus agradecimentos por haver salvo a mulher que amo! Tanto mais agradeço quanto sei que ela já estava morta! Sabe já do que sucedeu?

— Sim. Como vai a sua esposa?

— Dói-lhe ainda a cabeça, mas aqueles panos com água fazem-lhe muito bem. Não tardará a ficar boa. Mas minha alma está doente e só pode sarar se eu recuperar as minhas “medicinas”.

— Por que não levou a sério a minha prevenção?

— “Mão de Ferro” sempre tem razão! Se ao menos os guerreiros o tivessem obedecido e perseguido logo o ladrão, este a esta hora já estaria preso.

— Não pretende persegui-lo?

— Sim. Preciso apressar a perseguição e aqui vim apenas para me despedir do senhor. Agora a sua tortura, bem como a execução, tem que ser outra vez adiada, embora “Mão de Ferro” prefira morrer o mais cedo possível, conforme declarou a Sus-homascha. Terá de esperar até minha volta!

— Esperarei com prazer!

Era uma resposta sincera, mas ele, no seu modo de pensar indígena, tomou-a de modo diverso e consolou-me:

— Não é nada agradável estar-se a ver a morte durante tanto tempo diante dos olhos! Mas eu já ordenei que durante a minha ausência lhe sejam dispensadas todas as regalias. Melhor, porém, para o senhor seria aceitar a proposta que lhe vim fazer.

— Que proposta? Faça-a!

— Está disposto a ir comigo no encalço de Santer?

— Sim.

— Uff! Que bom! Neste caso estou certo de que agarraremos aquele ladrão covarde! Imediatamente vou soltá-lo e lhe devolver as armas!

— Pare, não se apresse! Irei com o senhor, mas sob certas condições...

— Quais?

— Só o acompanharei como homem livre!

— Uff! Impossível!

— Então ficarei aqui!

— Será, entretanto, homem livre enquanto durar a nossa diligência; depois voltará comigo e será novamente considerado nosso prisioneiro. Exijo apenas que o senhor dê a sua palavra que não foge durante a expedição.

— Eu sei que me levará com o senhor apenas porque sou um hábil decifrador de sendas e nenhum vestígio me escapa aos olhos. Por nada mais! Pois agradeço essa distinção! “Mão de Ferro” não se presta para galgo farejador de pegadas, ouviu?

— Mas não irá mudar de resolução?

— Não.

— Mas, reflita! Se não fôr comigo, é possível que eu não consiga deitar mão no ladrão de minhas “medicinas”.

— Se o assunto me dissesse respeito, aquele patife não me escaparia! Cada um que faça por si tudo para reaver o que lhe roubaram!

Sacudiu decepcionado a cabeça, sem me haver compreendido.

— Bom, eu o levarei com prazer comigo por haver salvo a minha mulher. Mas não quer... É pena!

— Se, realmente, o senhor me fosse grato, conforme está aí a dizer-me, não se negaria a atender um pedido que lhe tenho a fazer.

— Qual é?

— Refere-se aos três peles-brancas que vieram com Santer. Onde estão eles?

— Por enquanto, na cabana, ao lado da minha.

— Como homens livres?

— Não. Já os algemamos. Eram amigos do ladrão das minhas “medicinas”.

— Entretanto, eles são inocentes.

— Isto afirmam eles; mas Santer agora é nosso inimigo, de quem eles são amigos. Os amigos dos meus inimigos, são meus inimigos. Vão ser amarrado à “árvore da morte” e executados juntamente com o senhor.

— No, entretanto, eu lhe afianço que eles nem sequer estavam a par do plano de Santer!

— Não temos nada com isso! Antes tivessem ouvido as suas palavras! Sei que o senhor os preveniu!

— Queira Pida, o jovem e valente cacique dos kiowas, ouvir o que lhe vou dizer: estou condenado à morte pelas torturas e até aqui nada pedi para mim; mas em favor daqueles três homens tenho um pedido a fazer-lhe.

— Uff! Qual é o pedido?

— Liberte-os!

— Deixá-los ir embora com os seus cavalos e suas armas? Como é possível?

— Solte-os em nome da mulher que ama!

Afastou-se um pouco de mim. Travara-se uma luta no seu íntimo; depois voltou e declarou:

— “Mão de Ferro” não é como todos os outros peles-brancas, aliás, como todos os homens. A gente não pode compreendê-lo! Se tivesse pedido para si, seria bem possível que lhe proporcionássemos um meio de se livrar da execução; dar-lhe-íamos permissão para bater-se em duelo com um dos mais valentes dos nossos guerreiros. No entanto, ele não faz questão nenhuma de que lhe façamos concessões. Mas para os outros está aí a pedir.

— Para os outros eu suplico e até torno a repetir a súplica que lhe fiz!

— Bom, serão soltos, mas neste caso também eu imponho uma condição.

— Qual?

— Ao senhor nenhuma concessão mais faremos. Pela salvação de minha mulher reclamou a nossa gratidão fazendo este pedido que atenderemos. Estamos, pois, quites!

— Perfeitamente. Estaremos quites, depois da libertação dos três homens!

— Neste caso, vou libertá-los já. Mas terão que se expor às chacotas da aldeia. Não lhe acreditavam e lhe não ouviam as palavras; agora terão que vir até aqui e agradecer-lhe de viva voz. Howgh!

Retirou e entrou na taba de seu pai que estava à espera da resposta que eu devia dar à sua proposta. Logo depois voltou e desapareceu entre as árvores. Quando o jovem cacique voltou, veio acompanhado dos três peles-brancas a cavalo. Apontou para mim, indicando-me aos mesmos, mas esquivou-se de acompanhá-los. Gattes, Clay e Summer chegaram-se a mim com verdadeira fisionomia de condenados.

— Mr. “Mão de Ferro”, — disse o primeiro — já sabemos de tudo. Mas é um fato tão grave para os indígenas o desaparecimento dum saco com relíquias em sua maior parte sem valor algum?

— Esta pergunta mais uma vez confirmou o juízo que até então vinha fazendo a respeito dos três: não percebem coisa alguma da vida das savanas. Perder a sua “medicina” é o maior terror que pode acontecer a um indígena. “Medicina” perdida, honra perdida! Se fossem uns velhos campineiros, como se pavoneiam, deviam conhecer esse costume indígena!

— Well! Por isso é que Pida estava tão furioso e por isso é que fomos logo algemados! Então Santer irá passar maus quartos de hora, se eles conseguirem prendê-lo!

— E não merece mesmo outra coisa! Estão convencidos agora de que ele deixou também os senhores em maus lençóis, conforme eu previra e os prevenira?

— A nós? Que temos a ver com as tais “medicinas” que Santer roubou?

— Muita coisa! Junto com as “medicinas” estava o papel que ele tanto ambicionava.

— E que temos nós com aquele papel?

— Nele se acha a descrição exata do local onde estão escondidos os nuggets que procuravam.

— Com os diabos! É verdade?

— Certamente!

— Quem sabe se o senhor está equivocado?

— Não. Li o papel.

— Então conhece também o local?

— Sim.

— Diga-nos, Mr. “Mão de Ferro”, diga-nos! Perseguiremos aquele canalha e tiraremos o ouro de diante de seu nariz!

— Não! Em primeiro lugar os senhores não são homens para tal proeza, e em segundo, até agora não acreditaram nas minhas palavras e daqui por diante não precisam também acreditar! Santer contratou os senhores como simples cães lebreiros para ajudá-lo a caçar as lebres de ouro; depois da caça em suas mãos, ele os teria morto a tiros, para maior comodidade sua! Agora, porém, ele dispensa o auxílio de cães para aquela caçada e os deixou aqui, por saber que os índios fariam dos senhores, fatalmente, o bode espiatório do crime por ele praticado!

— Mil raios! E se estamos vivos, agradecemos exclusivamente ao senhor! Pida nos contou tudo!

— Sim, o destino que os esperava era a morte juntamente comigo no poste dos martírios!

— E o senhor pediu por nós? E não pediu para o senhor? Que será então do senhor?

— Torturado e morto, simplesmente!

— Torturado e morto?

— Yes.

— Sentimos, sentimos imensamente com isto, sir! Não haveria uma forma de nós podermos salvá-lo?

— Muito obrigado, Gattes! Toda tentativa de me salvar será vã. E quando se encontrarem com alguém, quer nas planícies, quer nos meios civilizados, dêem a notícia de que “Mão de Ferro” não vive mais e que foi morto no poste das torturas pelos kiowas.

— Uma notícia triste, uma notícia tristíssima! Eu quisera ser portador de mensagem bem mais agradável a seu respeito!

— E seria, se lá no Mugworthill não me houvesse mentido, ocultando a aproximação dos indígenas. Tivesse o senhor falado com sinceridade e eu agora não seria prisioneiro dos kiowas. O senhor é o culpado pela morte hedionda, pavorosa que me espera! Essa acusação eu posso fazer contra o senhor e espero que de agora em diante abram mais os olhos, despertando do sono em que sempre estiveram. E agora retirem-se, andem!

De tão desconcertado, o homem não sabia o que responder; Clay e Summer, que até então haviam ficado silenciosos, estavam ainda em piores condições de se desculparem; em virtude disso, acharam de melhor aviso bater o pó dos sapatos. Aliás, nenhum deles agradecera o bem que eu lhes fizera, mas corrigiram a falta dirigindo-me, depois de já se acharem a uma distância, uns olhares de tristeza.

Eles ainda não haviam desaparecido no horizonte da planície, quando Pida, montando um fogoso cavalo saiu campina em fora, sem ao menos se dignar dirigir-me um olhar. E tinha razões, pois... estávamos quites! O jovem kiowa estava convencido de me encontrar ainda na sua volta e eu de revê-lo, talvez, pelas alturas do rio Pecos ou então na Sierra Rita... Quem no fim teria razão, ele ou eu?

 

UMA ADESÃO VALIOSA

— Quando, ao meio-dia, “Cabelos Negros” me serviu o almoço, perguntei-lhe pelo estado de saúde da sua irmã e ela me informou haverem cessado todas as dores de cabeça, estando a doente quase restabelecida. A boa menina me trouxe tanta carne assada, que não pude comer toda, e, antes de se retirar, contemplou-me, compadecida, com os olhos rasos de lágrimas. Percebi que ela tinha algo no coração a me dizer, mas não se animava a expandir-se!

— Pretende a minha irmãzinha comunicar-me alguma coisa? Eu gostaria de ouvi-la!

— “Mão de Ferro” foi injusto! — disse com certo acanhamento.

— Em que ponto, minha menina?

— Em se ter negado a acompanhar Pida.

— Eu tinha os meus motivos.

— Creio! Mas também não deixo de crer que se é honroso para o guerreiro pele-branca morrer no poste sem proferir um gemido, ou sem fazer uma contração de músculo, não menos honroso é viver desde que para isso não haja a menor quebra de brio e dignidade!

— Mas Pida exigia que, depois de finda a diligência, para aqui eu voltasse, a fim de morrer da mesma forma!

— Pida no momento era obrigado a fazer cavalo de batalha dessa condição, mas, no fim, a coisa iria ser bem diferente. Seria bem possível que Pida permitisse depois que “Mão de Ferro” se tornasse seu irmão e amigo e com ele fumasse o cachimbo da paz.

— Sim, mas a um irmão e amigo com que se fuma o cachimbo da paz, não se deixa morrer depois no poste das torturas! A menina não concorda comigo neste ponto?

— Concordo.

— Portanto a minha irmãzinha tem razão, mas eu também não deixo de tê-la. Gostaria que eu não morresse?

— Muito até — confessou francamente a nobre índia. — O senhor salvou a vida de minha irmã!

— Isto é que é o principal. Quando à minha vida, não tenham dores de cabeça por causa dela! “Mão de Ferro” costuma saber o que faz!

Ela olhou absorta para o chão e depois dirigiu uns olhares furtivos para os guardas, fazendo em seguida um movimento nervoso com o braço. Compreendi-a: ela desejava falar-me nas probabilidades de uma fuga e, no entanto não podia. Quando ergueu novamente os olhos para mim, acenei-lhe afirmativamente e lhe disse:

— O olhar de minha jovem irmã é claro e penetrante. “Mão de Ferro” neles pode ler até o recôndito do coração! Percebi o seu pensamento.

— Realmente?

— Sim, e o seu desejo será cumprido, esteja tranqüila! .

— Quando? — perguntou nervosa e feliz.

— Breve.

— Tomara que aconteça o que diz! “Cabelos Negros” se sentirá então muito feliz e contente!

Essa breve palestra lhe havia aliviado o coração e retemperado o ânimo. Quando trouxe a ceia, arriscou um pouco mais... Àquela hora já ardiam as fogueiras debaixo das árvores da aldeia. Dava-me na boca, com a ponta da faca, as fatias de carne; por isso estava bem próxima de mim e não era ouvida pelos guardas. Pisou-me então significativamente no pé a fim de chamar-me a atenção para o que me ia dizer em seguida:

— “Mão de Ferro” está hoje com bastante apetite e essa porção de carne não o satisfez... Quer mais alguma cousa...? Arranjar-lhe-ei com muito prazer...

As sentinelas estavam muito longe de perceberem os sentidos daquelas palavras da gentil indiazinha. Eu, porém, compreendi-as logo. Deveria dar-lhe uma resposta, citando, é verdade, qualquer espécie de alimento e ela atinaria logo com o que eu precisava para a fuga. Respondi-lhe, sublinhando as palavras.

— Obrigado, minha boa irmãzinha! Estou satisfeito com a refeição e tenho tudo de que careço. Como vai passando a esposa do jovem cacique dos kiowas?

— A dor, conforme já lhe disse hoje, desapareceu. Ela continua, porém, a pôr panos molhados na cabeça.

— Faz bem. É um remédio muito bom e ela ainda precisa de algum tratamento para ficar bem restabelecida? Quem lhe serve de enfermeira?

— Eu.

— Também, durante esta noite, estará de vigília à sua cabeceira?

— Sim.

— Como é solícita! Sim, esta noite ela precisa, impreterivelmente, de alguém à sua cabeceira e essa pessoa não pode ser outra senão a minha irmãzinha!

— Estarei na sua tenda até o clarear do dia.

Sua voz tornara-se trêmula. Ela compreendera-me.

— Então, até amanhã. Amanhã nos veremos outra vez.

— Sim, nos veremos!

Ela retirou-se. Às sentinelas passara despercebida a ambigüidade do nosso diálogo.

Agora eu poderia me dirigir, depois de solto, à tenda de Pida, a fim de buscar as armas e os outros objetos que me pertenciam. Depois desta palestra, eu tinha certeza de lá me encontrar com “Cabelos Negros” à minha espera. Aquilo causava-me imensa alegria, mas me despertava também preocupações bastante justificáveis. Se eu me apossasse dos meus objetos na presença das duas irmãs, estas, no dia seguinte, seriam acremente censuradas. Para não me denunciarem elas seriam obrigadas a conservar-se impassíveis diante da minha fuga e no entanto os seus deveres exigiam-lhes que dessem o alarma. Como poderia conciliar essa situação? Só havia um caminho: elas deixariam, voluntariamente, que eu as algemasse. Depois, quando eu me houvesse retirado, poderiam gritar à vontade e dizer que subitamente invadi a tenda e as derrubei com um soco, algemando-as antes de me retirar. Ninguém duvidaria da verdade dessa afirmativa, pois a minha audácia já era por demais conhecida no reduto dos kiowas. Eu não tinha a mínima dúvida de que a irmã de “Cabelos Negros”, levada por esta, tivesse aderido ao meu plano de evasão. Ela acreditava que eu lhe salvara a vida.

Preocupava-me uma coisa: estaria ainda na residência de Pida a minha espingarda de repetição? Ele temendo, talvez, uma segunda invasão de sua residência, podia muito bem tê-la levado consigo. Mas era discutível essa hipótese, pois ele não sabia manejá-la. Acalmei-me. Soada a hora, eu veria isso com calma. Claro que se a espingarda lá não estivesse, eu renunciaria, provisoriamente, ao projeto de fuga, pois talvez que sem aquela arma me fosse mais difícil ou talvez impossível capturar Santer e reapossar-me do testamento de Winnetou.

Chegou a hora de render a guarda. A substituição foi feita sob as vistas de Sus-homascha. Estava sério, porém, amável. Ele próprio me desamarrou, temendo — disse ele — que os demais não o fizessem de modo a não machucar os ferimentos que eu recebera ao arrebentar as algemas. Deitei-me entre as quatro estacas e puxei, sem que ele notasse, a faquinha de dentro da manga da camisa.

— Cuidado ao amarrar amanhã novamente o prisioneiro! — recomendou as sentinelas. — “Mão de Ferro” vai morrer, é verdade, mas as suas torturas ainda não começaram. Levam em consideração os seus ferimentos!

Depois de examinar-me um pouco, disse:

— Qualquer outro dia, vá lá, mas hoje podemos estar sossegados, porque “Mão de Ferro” com esses ferimentos nem sonhará em fuga! Não lhe será possível repetir a proeza de hoje, arrebentando as cordas.

Ditas essas palavras, o indígena se retirou e os dois guardas se acocoraram aos meus pés.

 

A FUGA

Há homens que, em momentos decisivos como estes, não podem dominar os nervos; eu, ao contrário, me achava calmo, mais calmo ainda que de ordinário. Passou-se uma hora e mais outra. As fogueiras já estavam extintas, ardendo ainda apenas a que ficava fronteira à residência do jovem cacique. Esfriou o tempo e os guardas deitaram-se e se encolheram. Sendo a posição incômoda, resolveram deitar-se completamente, pondo a cabeça, para o meu lado. Essa posição era me bastante vantajosa. Soara o momento de agir. Um movimento imperceptível, porém, violento, e eu arrebentei as cordas que me manietavam. Peguei a faquinha e cortei o resto. Estava com as mãos livres! — Já me sentia salvo.

Agora, os pés! Mas como? Para alcançá-los eu era obrigado não só a me erguer no leito, como também a esticar o braço naquela direção e as cabeças dos guardas se achavam próximas dos meus pés! Estariam eles, vigilantes? Para averiguá-lo, movimentei-me por diversas vezes. Os indígenas continuavam imóveis. Estariam talvez dormindo?

Estejam ou não, pensei, é melhor agir depressa do que morosamente. Descobri-me, ergui-me e aproximei-me um pouco dos homens. Era verdade: dormiam a sono solto. Dois socos nos seus temporais, foi o bastante para deixá-los sem sentidos. Dois cortes nas cordas, que me prendiam os pés, e eu estava completamente desembaraçado das algemas. Cortei-uns retalhos da colcha e com eles amordacei os guardas para que não pudessem gritar ao tornarem a si. Convém frisar que o meu cavalo, como de costume, estava deitado ao meu lado.

Levantei-me então e espichei os ombros. Oh! como aquilo me fazia bem! Depois lancei me ao solo e lentamente rastejei para frente, por entre as árvores e as cabanas. Reinava um silêncio profundo na aldeia e eu cheguei, feliz, até a tenda do jovem cacique Pida. Eu já ia afastar lentamente uma das duas peles que serviam de porta, quando percebi que alguém me tocava levemente na mão esquerda.

— “Cabelos Negros”! — disse eu em cochicho.

— “Mão de Ferro”! — respondeu a menina. Ergui-me do solo e lhe perguntei:

— Mas por que não me esperou no interior da tenda?

— Não há ninguém lá. Devido ao roubo de Santer e por estar a minha mana doente, foi ela transportada para a cabana de meu pai. Compreendeu? ...

Oh, sagacidade feminina!

— E as minhas armas estão ainda aqui? — perguntei-lhe.

— E no mesmo lugar onde as viu hoje.

— Sim, os revólveres e a faca. Mas as duas espingardas?

— Debaixo do leito de Pida! Já tem o seu cavalo?

— Está à minha espera. “Cabelos Negros” é tão boazinha para mim! Eu nem sei como agradecer-lhe!

— “Mão de Ferro” também é bonzinho para todo o mundo! Voltará ainda um dia aqui?

— Espero que sim; virei com Pida que então já se terá tornado meu irmão e amigo.

— Pretende segui-lo?

— Sim, e tenho certeza de alcançá-lo.

— Então não conte nada disso, faça o favor! Ninguém, a não ser minha irmã, deve saber o que fiz!

— Esteja descançada, minha querida irmãzinha! Fêz muito por mim e sei que faria ainda muito mais! Aceite o meu aperto de mão em sinal de agradecimento, formosa flor das savanas! Manitu há de guiá-la em toda a sua vida, pois a menina tem um coração nobre e generoso!

Ela estendeu-me prontamente a mão e acrescentou:

— Desejo-lhe muitas felicidades! E não retarde a fuga! Eu preciso retirar-me. Minha mana deve estar preocupada com a minha demora.

Antes que eu a impedisse, ela levou a minha mão aos lábios e beijou-a; em seguida, retirou-se apressadamente, ocultando-se por trás das árvores e tendas. Continuei de olhar fixo na boa menina. Oh! Indígena mimosa e de coração de ouro! Com a tua bondade d’alma bem podias servir de exemplo a muita mulher pele-branca! És digna de melhor sorte!

Fiz ponto final nessas e noutras meditações e entrei na cabana. Debaixo da cama de Pida encontrei de fato as duas espingardas enroladas num cobertor. Agarrei-as, desenrolei-as e coloquei-as a tiracolo. Peguei da cinta com os revólveres e a faca e afivelei-a à cintura. Não havia transcorrido nem cinco minutos, quando rastejando por entre as árvores e as cabanas eu estava de volta à “árvore da morte” e ensilhava o meu baio. Feito o que, baixei-me para os guardas. Haviam acordado.

— Os guerreiros dos kiowas não têm sorte com “Mão de Ferro”! — disse-lhes eu em voz baixa. — Eles jamais me verão morrer no poste das torturas. Cavalgarei agora ao encontro de Pida, para ajudá-lo a capturar Santer; vou tratar o jovem cacique como irmão e amigo. Talvez eu volte na sua companhia. Digam isso a Tangua; digam mais que não tenha cuidado com o filho, pois eu estarei ao seu lado para protegê-lo e defendê-lo contra todos os perigos! Os filhos e filhas dos kiowas dispensaram-me um tratamento carinhoso; apresente a todos os meus sinceros agradecimentos, dizendo lhes que jamais me esquecerei deles! Howgh!

 

RUMO À ALDEIA DOS APACHES

Levei o baio pelas rédeas devagarinho para fora da aldeia. Se o montasse poderia facilmente despertar a taba. Chegado à campina, subi ao serigote que os kiowas julgavam nunca mais eu montar, e toquei-me para o rumo sul das planícies.

Resolvi seguir para o sul, embora na escuridão da noite não me fosse possível ver as pegadas de Santer e as dos kiowas que lhe saíram ao encalço. Eu não tinha necessidade da senda e nem a iria procurar. Eu sabia bem que Santer cavalgara para o rio Pecos e isso me bastava.

E quem me disse que o facínora havia tomado aquele rumo? O testamento de Winnetou.

Eu consegui ler nele três nomes de lugares escritos em apache. Um deles, a Indeltsche-tschil, eu conhecia; Tse-tschosch e Deklil-to eram palavras estranhas. E mesmo que Santer as compreendesse, não saberia onde ficavam situadas a “Montanha do Urso” e as “Águas Escuras” como designavam tais palavras. Ficava muito além da Sierra Rita e nesses dois locais eu estivera uma única vez com Winnetou. Foi aí que demos aqueles nomes à montanha e à aguada em referência. Portanto, ninguém sabia o significado daquelas palavras a não ser nós e mais dois apaches que nos acompanhavam naquela ocasião. Estes, já envelhecidos, não abandonavam mais a taba do rio Pecos. Santer era, pois, obrigado a se dirigir à taba dos apaches. Mas teria ele temeridade para isso? Sim, ele era capaz de todas as coragens. Sobejas provas já dera disso. Mas quem lhe forneceria lá as informações de que carecia? Estavam ainda vivos muitos apaches que o conheciam e sabiam muito bem que ele fora o inimigo mortal de Winnetou e o assassino de Intscho-tschuna e Nscho-tschi! Nessas condições, repito, seria ele capaz de procurar os apaches?

Acho que sim. Um homem como ele, cego pela ânsia do ouro, seria capaz dos gestos mais tresloucados para atingir o seu objetivo. Por fim, era capaz de usar de um expediente qualquer para lograr escapar à sanha dos peles-vermelhas. E este expediente se basearia, sem dúvida, no testamento de Winnetou. No envólucro estava desenhado um pergaminho com a assinatura do jovem apache. Ele contaria uma longa história, terminando talvez por acalmar os apaches, dizendo que circunstâncias extremas o tinham aproximado do cacique, antes deste tombar em combate.

O meu projeto, pois, consistia em chegar antes do que ele ao pueblo dos apaches, para pô-los ao corrente de tudo. Em vista disso, eu podia facilmente prescindir de sua senda e seguir diretamente para o Pecos.

Infelizmente, porém, o meu animal já no dia seguinte começou a mancar, sem que eu descobrisse a causa. Só no terceiro dia é que descobri um intumescimento no casco, produzido por um longo e duro espinho, que lhe extraí. Essa circunstância, porém, retardou de muito a minha viagem e eu já não tinha mais esperanças de chegar à aldeia dos apaches, antes do bandido.

Eu ainda não havia atingido o Pecos, quando na planície sem relvas surgiram dois cavaleiros que galopavam exatamente em linha reta, na minha direção. Como eu estava sozinho, eles não temeram prosseguir tranqüilamente na cavalgada. Quando nos aproximamos, um dos ginetes colocando a arma que já tinha à mão a tiracolo, consoante costume nas planícies quando se encontram desconhecidos, enunciou, entusiasmado, o meu nome e galopou ao meu encontro. Era Yato-Ka, um guerreiro apache meu conhecido. Ao outro eu nunca vira. Depois dos cumprimentos do estilo, perguntei-lhe:

— Ao que vejo, os meus irmãos não se acham nem em caçadas e nem em expedição de guerra. Para onde pretendem seguir?

— Para a montanha “Grande Ventre” a fim de homenagear a memória de Winnetou, junto de seu túmulo — respondeu Yato-Ka.

— Ah! então já souberam de sua morte?

— Soubemos há bem poucos dias. Em seguida, os apaches fizeram suas lamentações que ressoaram por vales e montanhas!

— E souberam que estive presente na hora de sua morte?

— Sim. “Mão de Ferro” assumirá o nosso comando quando sairmos em expedição de guerra, para vingar a morte do nosso cacique!

— Sobre isso falaremos mais tarde. Creio que não saíram sozinhos para empreender uma tão longa viagem para o norte?

— Não. Saímos à frente, em reconhecimento, por que os cães dos comanchos desenterraram a machadinha da paz contra nós. O grosso dos nossos guerreiros está a uma grande distância daqui.

— De quantos guerreiros se compõe a legião?

— De cinco vezes dez.

— Quem os conduz?

— Til-lata (*), que para esse encargo foi designado.

— Conheço-o. É o verdadeiro homem para dirigir esta expedição. Não viram algum cavaleiro estranho por aí?

Um apenas.

— Quando?

— Ontem. Era um pele-branca que perguntou onde ficava Tse-tschosch. Mandamos que se dirigisse ao nosso pueblo e que perguntasse a Inta.

— Uff! À procura deste homem ando eu. É o assassino de Intschu-tschuna e Nscho-tschi. Quero aprisioná-lo.

— Uff! Uff! — exclamaram os dois peles-vermelhas, estarrecidos. — E nós que não sabíamos! Não o prendemos!

— Não importa. Basta que o tenham visto. Não poderão continuar viagem e terão que retroceder agora. Depois os levarei ao “Grande Ventre”. Venham!

Continuei pela mesma vereda.

— Sim, retrocedamos — concordou Yato-Ka. — Precisamos pegar o bandido!

Horas depois, chegávamos ao rio Pecos; transpusemo-lo e depois continuamos, do outro lado, pelo mesmo rumo. Durante a viagem relatei aos apaches o meu encontro com Santer no Morro do Ouro e as demais proezas na aldeia dos kiowas.

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(*) Mão sangrenta.

 

— Então Pida, o jovem cacique dos kiowas, está perseguindo o assassino? — perguntou Yato-Ka.

— Sim.

— Ele sozinho?

— Ele saiu à procura do bando de guerreiros que seu pai mandara em expedição, e deve tê-lo encontrado logo.

— Não sabe de quantos guerreiros se compõe esse bando?

— Ao que parece, eram dez homens e com Pida, portanto, onze.

— Uff! Os filhos dos apaches vão passar horas memoráveis, pois vamos prender Pida com seu bando e executá-los no poste das torturas!

— Não farão isso! — respondi secamente.

— Não? Acha então que eles não nos cairão nas mãos? O assassino Santer dirigiu-se para o nosso pueblo e eles o seguiram para prendê-lo; portanto, terão que se aproximar de nossa aldeia e nessa ocasião os aprisionaremos.

— Disso também estou convencido. Mas não serão executados no poste das torturas!

— Não? Mas se eles, os kiowas, são nossos inimigos!

— Dispensaram-me ótimo tratamento e Pida, não obstante ter sido eu condenado à morte pela sua tribo, é agora amigo meu.

— Uff! — exclamou o apache admirado. — “Mão de Ferro” é ainda o mesmo guerreiro nobre de sempre: toma os inimigos debaixo de sua proteção. Mas Til-lata concordará com essa sua proteção?

— Certamente!

— Mas lembre-se de que Til-lata foi sempre um valente guerreiro, tendo sido recentemente elevado a cacique! Esse novo encargo obriga-o a provar que é digno de exercê-lo. Assim, ele não pode mostrar-se complacente em face do inimigo.

— Mas não sou também um cacique dos apaches?

— Indiscutivelmente!

— Não fui elevado à dignidade de cacique muito antes dele?

— Muitos sóis antes.

— Então cabe lhe acatar as minhas ordens! Se os kiowas lhes caírem nas mãos, ele nada lhes fará, porque é esta a minha vontade.

Ele  ainda teria continuado a me contrariar, se a nossa atenção não fosse naquele momento despertada por um rasto que vinha do rio, à direita, e depois seguia para a mesma direção que levávamos. Apeamos para examinar as pegadas. A senda era de diversos cavaleiros que marchavam um no rasto do outro a fim de confundir e desnortear algum provável perseguidor. Era uma providência que denotava estarem os cavaleiros cientes de que pisavam território inimigo. Tive logo quase a certeza de que se tratava de Pida com os seus guerreiros, embora pelos rastos não pudesse precisar o número de cavaleiros que por ali haviam passado.

Mais adiante chegamos a um local onde eles pararam e se espalharam um pouco. Pude então contar os vestígios de onze cavalos; portanto a minha previsão fora acertada. Informei-me de Yato-Ka:

— Os seus guerreiros vêm seguindo por direção oposta a esta?

— Sim, e irão chocar-se com os kiowas, que são onze apenas, enquanto o grosso dos nossos se compõe de dez vezes cinco.

— A que distância daqui está a sua gente?

— Quando nos separamos, estavam a meio dia de viagem.

— E os kiowas, conforme se depreende de suas pegadas, vão apenas meia hora em nossa frente. Precisamos alcançá-los, antes que se encontrem com os apaches. Cavalguemos mais depressa!

Esporeei o meu animal porque o encontro com as duas tropas inimigas, que eu tencionava tornar amigas, podia se dar a cada instante. Pida merecia que eu zelasse por sua vida!

Pouco depois, o rio fazia uma curva para a esquerda, curva que os kiowas conheciam, pois não seguiram por ela e continuaram em linha reta, a fim de cortá-la.

Pouco depois, deparamos com um grupo de cavaleiros que seguiam uns atrás dos outros. Não nos notaram porque nenhum deles se virou.

De repente, eles fizeram alto subitamente; hesitaram um pouco e depois retrocederam a galope, mas não em nossa direção.

— Por que voltam aqueles guerreiros? — perguntou Yato-Ka.

— Por certo que viram os apaches e certificaram-se de que vêm com efetivo muito superior ao seu. Nós, porém, somos três e eles crêem não nos precisar temer.

— É isto mesmo! Mais adiante vêm os apaches. Vê-os? Avistaram os kiowas e vêm a galope perseguindo-os.

— Vão na frente e digam a “Mão Sangrenta” que nada empreenda sem a minha chegada.

— Por que não quer acompanhar-nos?

— Preciso falar com Pida. Vão! Avante!

Obedeceram às minhas ordens. Eu, porém, me desviei pela esquerda para encontrar os kiowas. Estavam ainda muito distantes para me reconhecerem. Quando, porém, me aproximava deles, viram logo quem eu era. Pida proferiu um brado de angústia e picou o cavalo para intensificar o galope; eu, porém conduzi o meu, de modo que ele não pudesse passar por mim e lhe bradei:

— Queira Pida parar, pois vou protegê-lo contra os apaches!

Não obstante o susto, ele parecia ter cega confiança em mim, porque parou imediatamente o cavalo e ordenou à sua gente que fizesse o mesmo. Apesar da atitude discreta a que um indígena é obrigado em ocasiões tais, vi que era com esforço inaudito que disfarçava a impressão que o meu súbito aparecimento lhe causara. O mesmo se dava em relação aos guerreiros que comandava.

— “Mão... de... Ferro”! — exclamou o índio. — “Mão de Ferro”... solto! Quem o libertou?  

— Ninguém — respondi-lhe. — Fui eu mesmo!

— Uff! Uff! Uff! Não é possível!

— Para mim foi possível! Eu sabia que conseguiria fugir; por isso é que não quis vir com o senhor, não aceitando nenhuma concessão que me propôs, dizendo-lhe ainda, sinceramente, que cada um mesmo procurasse reaver aquilo que lhe roubaram. Não precisa assustar-se. Sou seu amigo e vou dispor as coisas de tal modo que os apaches nada lhes façam.

— Uff! Está realmente animado deste propósito de concórdia?

— Sim. Dou-lhe minha palavra.

— Não precisa, o que “Mão de Ferro” diz, costuma também fazer.

— Claro, pode ter a certeza disso! Olhe para trás! Lá, já pararam os apaches, ao encontro dos quais expedi os meus dois companheiros. Estão à minha espera. Mandei suspender a perseguição até que eu lhes falasse. Encontrou a senda de Santer?

— Sim, mas infelizmente não conseguimos ainda alcançá-lo.

— O bandido se dirigiu para o pueblo dos apaches.

— Logo calculamos, pois naquela direção seguem as suas pegadas que viemos acompanhando.

— Uma grande temeridade de sua parte, Pida! Todo o encontro com os apaches pode ocasionar-lhe morte certa!

. — Eu sabia disso; mas tenho que arriscar a vida para reaver as minhas “medicinas”. Iríamos rondar o pueblo até Santer se retirar de lá.

— Isso agora vai lhe ser muito mais fácil porque conseguirei aplacar o ódio dos apaches contra o senhor. Mas só o protegerei, depois que formos irmãos. Apeie! Fumaremos já o cachimbo da paz.

— Uff! “Mão de Ferro”, o grande guerreiro que conseguiu sem quaisquer auxílios de outros fugir de nossa prisão, acha me digno de fumar com ele o calumet?

— Claro que sim. Apresse-se para que os guerreiros dos apaches não se impacientem de tanto esperar!

Apeamos e fumamos o cachimbo com as cerimônias usuais. Depois disso, ordenei que Pida ali permanecesse com sua gente, enquanto eu ia ter com os apaches de quem, depois dum sinal meu, se aproximasse. Os apaches já estavam informados por Yato-Ka do meu propósito. Com os animais pelas rédeas formavam um semicírculo, no meio do qual estava Til-lata, ou “Mão Sangrenta”.

Eu conhecia muito bem aquele cacique. Fora em toda a vida um guerreiro ambicioso, mas comigo sempre moderara tal sentimento e me acatava as ordens, razão por que eu sabia que não iria criar dificuldades, ao que lhe ia sugerir em relação a Pida. Estendi-lhe a mão e o cumprimentei com algumas palavras amáveis, acrescentando:

— “Mão de Ferro” vem só, sem a companhia do seu amigo Winnetou, o cacique dos apaches. Os meus irmãos peles-vermelhas hão de querer ouvir outros detalhes sobre a morte do grande cacique e eu vou relatar-lhes tudo. Antes, porém, preciso falar-lhe a respeito desses kiowas, que lá esperam por minha resposta.

— Já sei o que pretende “Mão de Ferro”, Yato-Ka me disse! — falou “Mão Sangrenta”.

— E que resolveu a respeito?

— “Mão de Ferro” é um cacique dos apaches, e as suas ordens são sempre acatadas. Os dez guerreiros kiowas que se retirem imediatamente para a sua taba, pois nada lhe faremos.

— E Pida, o jovem cacique dos kiowas?

— Eu o vi fumar o cachimbo da paz com “Mão de Ferro”. Ele que venha conosco: será nosso hóspede durante o tempo que o senhor quiser; depois, porém, será novamente inimigo nosso como dantes.

— Bem, concordo. Agora os guerreiros dos apaches retrocederão para, em minha companhia, capturar o assassino de Intschu-tschuna e Nscho-tschi. Depois disso, iremos em romaria ao túmulo de Winnetou. Howgh!

Dito isso, chamei Pida com um aceno. Este imediatamente aceitou as condições de “Mão Sangrenta”, ordenando a volta dos guerreiros para a taba. Feito o que, continuamos a jornada rio Pecos acima, até anoitecer, quando acampamos.

Como nos achássemos em território dos apaches, poderíamos sem perigo acender uma fogueira. Deitamo-nos em torno da mesma e fizemos a nossa refeição. Relatei-lhes depois minuciosamente como se dera a morte de Winnetou. O meu relatório causou funda impressão aos ouvintes, que estiveram depois durante muito tempo em silêncio. Findo este, passaram a relembrar inúmeros feitos e proezas do seu falecido e estimado cacique. Eu, após a narrativa, tinha a impressão de ainda naquele mesmo dia haver assistido à morte daquele amigo. Custou-me a conciliar o sono. Pensava no testamento e no ouro cuja existência ele me revelava naquele documento. Depois sonhei com aquele ouro. Foi um sonho horrível! O precioso metal se achava à borda escarpada de uma montanha íngreme e Santer tentava jogar-me por este precipício abaixo. Eu lutava como leão para me defender, sem conseguir dominá-lo. Nisso, estoura o solo debaixo de nossos pés; eu recuei e Santer com todo o ouro se precipitou num lago fervente. Acordei banhado em suor. Durante todo o dia seguinte o pensamento desse sonho não me queria abandonar. Custava-me a convencer de que fora um sonho como qualquer outro.

 

MAIS UMA TEMERIDADE DE SANTER

Cavalgamos vertiginosamente e, ao meio-dia, fizemos uma parada muito curta, para não chegarmos demasiado tarde ao pueblo, pois a demora de Santer ali, não poderia ser prolongada.

À tardinha aproximamo-nos da taba dos apaches. Avistei a sepultura de Kleki-pêtra, onde se erguia ainda a cruz que nela colocáramos. À esquerda, era o local do rio, onde daquela feita, nadei em desafio com Intschu-tschuna, salvando-me. Quantas e quantas vezes, depois disso, ali estivera eu sentado com Winnetou, a relembrar aquele dia aziago para mim!

Depois, entramos num vale adjacente e avistamos logo o pueblo, onde vim a conhecer Winnetou e toda a sua gente. Já anoitecia quando atingimos a taba, e, pela fumaça que subia aos ares, vimos que a população já preparava o jantar. Avistaram-nos e Til-lata pôs as mãos à boca e bradou estridentemente:

— Aqui vem “Mão de Ferro”, “Mão de Ferro”!! Apressem-se, oh! Guerreiros, em recebê-lo!!

Essa exclamação provocou uma grande gritaria no pueblo dos apaches. As escadas foram arreadas e quando subi à pirâmide, centenas de adultos e crianças estendiam-me as mãos numa saudação de boas-vindas, saudação tristíssima, aliás, pois pela primeira vez eu chegava sem a companhia de Winnetou, que jamais veria esse local tão querido para ele!

Conforme já relatei no primeiro volume desta obra, o pueblo, isto é, a monumental pirâmide de cantaria de vários andares, que servia de aldeia aos apaches, embora muito espaçosa, não era suficiente para alojar todos os guerreiros de que se compunha aquela nação pele-vermelha. Muitos outros residiam com suas famílias em tendas e palhoças construídas nas proximidades. No pueblo moravam os guerreiros mais chegados a Winnetou, pelos laços do coração. Daí as milhares de perguntas com que, após os cumprimentos, fui alvejado. Adiei as respostas para mais tarde e perguntei:

— Inta está no pueblo? Preciso falar-lhe.

— Está no seu quarto. Vamos buscá-lo.

— Não. Ele já está velho e alquebrado; irei falar com ele.

Fui conduzido a um compartimento, onde o velho se achava sentado. Ele mostrou-se alegremente surpreendido ao ver-me e deu início a um discurso que prometia ser longo, razão por que o interrompi:

— Deixemos isso para mais tarde! Esteve algum pele-branca estranho aqui na taba?

— Sim — respondeu o velho.

— Quando?

— Ontem.

— O homem declinou-lhe o nome?

— Não. Afirmou que Winnetou proibira-lhe de dar seu nome aqui na taba.

— E já se foi embora?

— Sim.

— Quanto tempo permaneceu aqui?

— Uma hora, mais ou menos.

— E esteve aqui com o propósito de falar com o senhor?

— Sim. Pediu que o conduzissem à minha presença e mostrou-me a assinatura de Winnetou, dizendo que recebera desse, na hora da morte, uma incumbência.

— E que ele queria do senhor?

— A descrição do lago, a que os senhores daquela vez deram o nome de Deklil-to.

— E o senhor atendeu ao seu pedido?

— Fui obrigado a isso, pois se tratava de uma ordem de Winnetou.

— E descreveu minuciosamente a zona?

— A zona e também o caminho que conduz para lá.

— O pinheiral, as rochas e o lago?

— Sim, tudo.

— E também o caminho secreto que conduz àquela enorme rocha?

— Tudo, tudo; confortava-me, nesta ocasião poder falar a respeito de lugares onde outrora eu estive com “Mão de Ferro” e Winnetou, o cacique dos apaches, que hoje está nas “Eternas Campinas”, onde não tardarei a revê-lo!

Não se podia censurar aquele velho; ele ao ver a assinatura do seu extinto cacique, não podia, com sua mentalidade indígena, pensar que se tratava de um ardil levado a efeito por um refinado patife, a fim de auferir vantagens incalculáveis. Perguntei-lhe ainda:

— E o cavalo daquele pele-branca estava muito esfalfado?

— Absolutamente não. Quando ele o montou para prosseguir viagem, o animal galopou com tamanha velocidade, como se há dias viesse descansando.

— Fêz ele alguma refeição aqui?

— Apenas uma refeição frugal, pois devido à urgência que tinha em cumprir o último desejo de Winnetou, não podia perder muito tempo, fornecemos-lhe alguns estopins, que nos pediu.

— Para que precisava ele dos estopins?

— Não nos disse. Tivemos que lhe fornecer também pólvora, muita pólvora.

— Pólvora? Para sua espingarda?

— Não, para destruir qualquer cousa que não me lembro mais.

— Não viu onde ele meteu depois o papel com a assinatura de Winnetou?

— Numa “bolsa de medicina”, de que fiquei muito admirado, pois sei muito bem que os peles-brancas não usam esse talismã.

— Uff! Uff! — exclamou Pida, que se achava a meu lado. — Ainda está com ela! É a minha “bolsa de medicina” que o biltre roubou.

— Roubou? — perguntou Inta, admirado. — Então aquele homem era um ladrão?

— Pior ainda do que ladrão!

— E, não obstante, Winnetou distinguiu-o com sua assinatura?

— Aquela assinatura foi também roubada por ele. Aquele sujeito era Santer, o assassino de Intschu-tschuna e Nscho-tschi.

A essas palavras o velho, de tão estupefato que ficou, parecia uma estátua. Pálido e imóvel, não se animou a abrir os lábios. Deixamo-lo entregue ao seu susto e nos retiramos.

Ao que se vê, não nos foi possível, conforme eu já esperava, chegar ao pueblo antes de Santer; nem sequer conseguimos aproximar-nos dele. Isso era desagradável e por isso “Mão Sangrenta” propôs:

— Começaremos imediatamente a perseguição. Talvez o alcancemos antes de atingir “Águas Escuras”!

— Pensa que conseguirá isso, sem primeiro descansar? Partiremos à noite, pois poderemos viajar porque há, agora, esplêndido luar.

— Não preciso de descanso!

— E Pida?

— Eu não descanso enquanto não estiver novamente de posse de minhas “medicinas”! — respondeu o kiowa.

— Bom, então faremos uma refeição e continuaremos viagem, mas com outros animais, porque os nossos estão muito cansados. Deixarei o meu baio aqui. Não podemos perder tempo. O fato de haver o celerado pedido pólvora e estopim, prova que tem em vista explodir qualquer coisa de modo que depois me embarace o caminho para chegar ao ponto indicado pelo testamento de Winnetou. Precisamos, portanto, nos apressar.

Os moradores do pueblo, como era natural, pediram insistentemente que ficássemos; queriam que eu lhes falasse em Winnetou, contando-lhes as suas últimas aventuras até a sua morte. Consolei-os com a promessa de fazê-lo na minha volta. Duas horas depois, montados em fogosos cavalos e supridos de provisões e do mais de que necessitávamos, partimos. A nossa expedição compunha-se de Til-lata, Pida, eu e mais vinte guerreiros apaches. Til-lata fêz questão de levar essa numerosa legião de guerreiros, embora não fosse necessário, porque não precisávamos recear perigos, visto que toda à zona por onde iríamos passar pertencia aos mimbrenjos, aliados dos apaches.

Para atingirmos “Águas Escuras”, precisávamos cavalgar uma distância no mínimo de sessenta milhas, passando, uma boa parte do caminho, por trechos escabrosos, cheios de rochas. Quando muito, poderíamos vencer cinco milhas diárias, de modo que levaríamos doze longos dias para atingir o nosso objetivo.

Não nos preocupamos em procurar a senda de Santer. Isto só nos acarretaria perda inútil de tempo. Seguimos logo pelo caminho que eu viera a conhecer nas jornadas que fizera em companhia de Winnetou; supúnhamos, aliás, que Santer seguira pela mesma vereda, pois Inta não conhecia outra para ensinar-lhe. Se o bandido dela se desviasse, seria vantajosíssimo para nós.

A jornada correu banalíssima até que, no undécimo dia, tivemos um encontro. Dois peles-vermelhas cavalgavam em rumo oposto ao nosso; eram pai e filho, o primeiro dos quais, meu conhecido. Tratava-se de mimbrenjos, que quando da nossa última jornada nos suprira de carne. Também o velho me reconheceu logo, parou o cavalo e exclamou:

— “Mão de Ferro”! Mas será possível! Então não morreu, não morreu, não?

— Disse-lhe alguém que eu tinha morrido?

— Sim, tombado num combate com os sioux.

Logo percebi que ele se encontrara com Santer. Por isso, perguntei-lhe logo:

— Quem lhe disse?

— Foi um pele-branca que nos contou as circunstâncias em que o grande “Mão de Ferro” e o célebre cacique Winnetou caíram, em combate sangrento, lutando titânicamente até exalarem o último suspiro. Não pude deixar de acreditar nas suas palavras, porque ele era portador da assinatura de Winnetou e também de sua “medicina”.

— Pois, apesar disso, ele lhe disse uma formidável mentira, pois o senhor mesmo está vendo que, graças a Deus, ainda não morri.

— Então Winnetou também não morreu?

— Este, infelizmente, já não vive mais! Como e onde veio a encontrar-se com aquele pele-branca?

— Em nossa taba. Ele queria trocar o seu cavalo cansado por outro em boas condições de resistência e pediu também que lhe puséssemos um guia à disposição, com o fim de guiá-lo às “Águas Escuras”. Ele, sem dúvida, errara o nome, pois queria se referir ao lago que nós tratamos de Schisch-tu. Ofereceu-me como lembrança a “medicina” de Winnetou, em troca do cavalo, e eu aceitei o negócio. Depois eu e este meu filho o acompanhamos a Schisch-tu, que ele logo reconheceu ser o lago que procurava.

— Pois ele os ludibriou! Tem a “medicina” consigo?

— Sim, aqui está,

— Mostre-me!

O velho tirou as relíquias da maleta do serigote. Pida proferiu uma. exclamação de alegria e tentou apoderar-se dos objetos. O mimbrenjo relutou em atendê-lo e estabeleceu-se então uma violenta troca de palavras, na qual pus termo, dizendo:

— Essa “medicina” pertence aqui ao jovem cacique dos kiowas. Winnetou nunca teve esses objetos sagrados nas mãos.

— O senhor deve estar enganado! — exclamou o mimbrenjo.

— Tenho absoluta certeza do que estou dizendo!

— Mas eu fiz a longa jornada, de onde venho de volta, exclusivamente para obter essa “medicina”. Além disso, ainda lhe dei o melhor cavalo que possuía!

— O pele-branca necessitava desse cavalo, porque se sabia perseguido por nós; impingiu-lhe então essa desavergonhada peta para dispô-lo a fazer a troca!

— Se não fosse “Mão de. Ferro” que estivesse a me falar, eu não acreditaria em tal afirmativa. Acha que devo entregar a “medicina” a esse jovem?

— Claro, como guerreiro que preza a sua honra, não poderá proceder de modo diferente!

— Bom, neste caso devolverei, mas voltarei imediatamente para pegar aquele ladrão; pagar-me-á com a vida o embuste que me fêz!

— Então venha conosco, porque também nós pretendemos matá-lo! O velho concordou e juntamente com o filho uniu-se à nossa caravana.

Durante a cavalgada contei-lhe quem era Santer e disse-lhe os crimes que tinha na consciência. O nativo sentia-se arrependido de haver fornecido um bom cavalo ao bandido, pois em vista disso, ele nos tomara uma enorme dianteira.

Pida sentia-se felicíssimo em estar novamente de posse de suas relíquias, que se achavam ainda intatas. Alcançara o objetivo de sua jornada. — E eu podia dizer o mesmo de mim?

No dia seguinte, chegávamos ao lago, mas era já noite e nada podíamos empreender. Acampamos silenciosamente debaixo dumas árvores e não acendemos fogo de espécie alguma, a fim de não denunciar a nossa presença a Santer. Este não dissera ao mimbrenjo o fim de sua viagem e dispusera tudo de modo que os dois nativos retrocedessem logo que chegassem.

 

DESTRUIÇÃO DO TESTAMENTO DE WINNETOU

O nosso caminho nos conduzira do rio Pecos em linha reta, através do Novo México; achavamo-nos, pois, em terras do Arizona, onde os territórios de caça dos gilenjos confinam com os dos mimbrenjos. Também os gilenjos pertencem à tribo dos apaches e obedeciam ao governo geral do cacique-mor Winnetou, sucessor de Intschu-tschuna. Aquela zona, em geral, é árida e tristonha. Rochas e mais rochas, pedregulhos e mais pedregulhos! Mas onde há aguada, em geral há vegetação que, entretanto, não se estende para muito além das margens do rio, arroio, ou lago. Era o que sucedia aqui. O sol queimava tudo o que a umidade, que a custo penetrava na terra, não podia acudir de pronto. Havia apenas algumas pequenas matas.

No ponto, porém, onde estávamos acampados, a natureza fizera uma exceção.

Era a planície dum vale, que possuía várias vertentes d’água; estas formavam um lago, cujas águas corriam para o oeste. Estávamos em sua margem leste. As paredes do vale encobertas por denso matagal, fechavam-se em torno da planície numa elevação imensa, dando às águas um aspecto muito escuro. Essa circunstância é que nos levara, daquela feita, a denominar o lago de “Águas Escuras”. A parede do norte era a mais alta. Essa parede partia de dentro das águas e elevava-se nua de rochas em forma de uma flecha. Por trás dela acumulava-se a umidade e depois uma cachoeira que, qual chafariz, jorrava com abundância num grande perímetro, sobre a vegetação. Ali eram as “Águas Caídas”, a que Winnetou se referia no seu testamento. Justamente, por trás desta cachoeira, havia uma caverna na rocha, que não conseguimos galgar, quando lá estiveramos. Mas Winnetou, mais tarde, deve ter encontrado fácil acesso para a citada caverna. E sobre a caverna, o chapadão de rocha tinha um formato de telhado, que devia ser tão pesado que era de admirar não haver desmoronado há muito tempo.

À direita desta rocha, havia uma outra, na qual matamos naquele tempo um dos gigantescos ursos cinzentos. Por isso chamava-a Winnetou de Tse-tschosch, isto é, a “Rocha do Urso” ou “Montanha do Urso”.

Estávamos em vésperas do momento decisivo e por isso não me foi possível dormir, durante a noite. Mal clareou o dia, erguemo-nos do leito e saímos em procura de algum provável vestígio de Santer. Não achamos o menor sinal que nos denunciasse a sua presença. Em vista disso, resolvi galgar a rocha onde, com certeza, ele devia estar à procura do tesouro oculto. Levei Til-lata e Pida comigo. Seguimos os pinheirais silvestres, citados por Winnetou, até que nos achamos na “Rocha do Urso”. “Lá apeia do cavalo e sobe”... mais, eu não pude ler no testamento, quando em Mugworthill fui surpreendido pelo cano da espingarda de Santer. Para onde devia eu subir? Sem dúvida que para a caverna, lá em cima. Tentei a escalada. A escarpada era escabrosíssima. Subimos, porém, até que nos achamos debaixo da caverna. Adiante não podíamos galgar. Se para lá houvesse um caminho, não seria aquele que agora tomávamos. O testamento com certeza esclarecia tudo. Íamos já voltar para continuar as pesquisas por outros pontos, quando detonou um tiro e o projétil atingiu a rocha bem do meu lado. Em seguida, gritou uma voz de cima:

— Cão! Estás outra vez em liberdade! Julguei ter por trás de mim apenas os kiowas! Vai para o Diabo que está à tua espera!

Deflagrou outro tiro que também errou o alvo. Olhamos para cima e vimos Santer debruçado à borda da caverna.

— Vieste buscar o testamento e o tesouro dos apaches? — exclamou, rindo-se zombeteiramente caverna abaixo. — Pois chegas tarde. Eu já estou aqui e o estopim está a arder. Nada ganharás.

Proferiu uma formidável casquinada e prosseguiu:

— Ao que vejo, não conheces bem o caminho! Nem aquele do outro lado, que desce para o vale! Por lá conduzirei agora o tesouro sem que me impeças. Fizeste debalde uma longa e penosíssima jornada. Desta vez sou eu o vencedor. Sou o verdadeiro César, Vini, Vidi, Vici! Hahahahaha!

Que havia a fazer? Ele estava lá em cima de posse do tesouro e nós cá em baixo impossibilitados de subir devido à forte escarpada. Talvez que ainda viéssemos a encontrar o verdadeiro caminho, mas então já seria tarde: o bandido, a essa hora, estaria longe com o tesouro. Ele falara num segundo caminho! Não havia tempo para hesitações. Eu precisava alvejá-lo com minha espingarda. Na posição em que nos achávamos, porém, era difícil atirar para o alto: ele que atirara de cima, numa posição muito mais vantajosa, errara o alvo! Desci um pouco até encontrar um ponto onde a rocha formava uma espécie de pequena sacada e assestei a arma.

— Oh! O cão pretende alvejar-me! — exclamou o facínora. — Não vês, idiota, que isso é .impossível? Vou tomar uma posição mais favorável para a tua espingarda.

Ditas essas palavras, o bandidaço desapareceu, mas pouco depois surgiu de novo em cima do “telhado” da caverna. Veio caminhando sempre até chegar à beirinha. Quase tive uma vertigem, pois o celerado segurava uns papéis nas mãos.

— Olha para cima! — gritou ele. — Aqui está o testamento. Já o sei de cor e salteado e não preciso mais dele. Vou jogá-lo ao lago. Não te apossarás jamais desses papéis, hahahahaha!

Rasgou o documento em pedacinhos e lançou-o no lago. Lá se fora o documento mais caro para mim! O que senti não era propriamente cólera, também não era raiva: sentia era ferver-me o sangue nas veias.

— Canalha! — gritei para cima. — Ouve-me um momento só!

— Pois não! Sou todo ouvidos! — respondeu o biltre.

— Intschu-tschuna te mandou lembranças!

— Obrigado!

— Nscho-tschi também!

— Obrigado, muitíssimo obrigado!

— E em nome de Winnetou, mando-te esta bala! Não precisas agradecer-me mais, não!

Desta vez apontei a “Mata-ursos”; sendo a carga de chumbo, eu estava mais certo de alvejá-lo. A pontaria não me levou um segundo de tempo, mas... que havia? Estava indeciso o meu braço? Ou era Santer que se mexia? Seria a rocha que se mexia? Não pude firmar a pontaria. Baixei a arma para ver o que se passava.

Santo Deus! A rocha imensa balanceava de um lado para outro! Percebi um estrondo abafado e da caverna o desprender-se de fumaça. Como que acionada pelos punhos de um gigante invisível, a rocha ia soçobranda cada vez mais com Santer no cume. Santer de mãos postas bradava por socorro. Depois o gigantesco bloco de pedra perdeu o equilíbrio e precipitou-se dentro do lago! Em cima, a um canto do resto de pedra, que ficara, ainda ardiam os restos do material que explodira. Eu me conservava mudo.

— Uff! — bradou Pida, levantando os braços para o ar. — O Grande Espírito o justiçou fazendo ruir a rocha por baixo dos seus pés!

Til-lata apontou para baixo para as águas espumantes do lago, que no momento apresentava o aspecto de um enorme caldeirão de água a ferver, e disse empalidecendo:

— O Mau Espírito o atraiu para as águas ferventes e de lá não o tirará até o fim do mundo. Está amaldiçoado!

Eu não queria dizer nada e nada mesmo podia dizer. Meu sonho, meu sonho! O ouro lá estava no fundo do lago! E que fim trágico tivera Santer! No último instante, a Providência Divina poupara-me de dar-lhe um tiro; ele justiçara-se a si mesmo, ou, antes, executara-se a sentença a que o condenara uma potência que nada deixa passar sem o merecido castigo! Ele próprio fora o seu carrasco, pois acendera o estopim para fazer explodir a rocha!

Em baixo, na margem do lago, estavam os vinte apaches que gesticulavam assombrados. Os dois caciques desceram apressados a ver se ainda viam alguma cousa de Santer. Debalde! O lago o sepultara cobrindo-o com o imenso bloco de rocha!

Eu, em geral tão forte e que dificilmente perdia o domínio de mim mesmo, senti-me fraco e tive que me sentar um pouco. Sobreviera-me uma vertigem. Fechei os olhos e ainda assim via a rocha se despenhar, soando-me ainda aos ouvidos os brados angustiosos de Santer a clamar por socorro.

Mas, como fizera ele tudo aquilo? Certamente que em virtude de alguma medida de precaução de Winnetou. A mim tal não teria sucedido. Ele explodira a rocha, para encontrar o tesouro, nalgum ponto onde não devia explodi-la. E era compreensível o seu equívoco. Winnetou redigira o documento de tal modo que talvez só eu o compreendesse bem. Creio que o próprio Winnetou ali colocara a mina para que o usurpador provável do tesouro fatalmente tivesse que acender enganado, entregando-se assim à própria ruína. Mas que foi feito do tesouro, isto é, do ouro guardado no seio da rocha? Estava ainda oculto lá por cima ou viera abaixo junto com a rocha?

Se estivesse no fundo do lago, junto com o bloco de rocha, pouco me preocupava; mais do que o ouro eu desejaria possuir o testamento do meu inditoso amigo. Santer o rasgara momentos antes da catástrofe e aquele prejuízo era para mim irreparável. Não me fora possível executar as últimas disposições que o morto idolatrado me revelara, quando momentos antes previra a morte. Depois de algum tempo, passou-me a vertigem. Lancei-me no lago em procura do testamento rasgado. Colhi muitos pedaços que, longe da catástrofe, estavam ainda à tona d’água. Coloquei-os ao sol a secar e depois tentei coordená-los. Uma concatenação completa era, naturalmente, impossível. Eu queria apenas formar idéia vaga daquilo que não me fora possível ler. Unidos os pedacinhos li, depois de muitos esforços:

... a metade apenas... por que mereces e és pobre... explodirás a rocha, mas com muito cuidado... acenderás o estopim mais para cima, de modo que não se comunique com a outra parede que fica meio distante aliás... Cristão, sim!... distribuirás... quero que cesse o costume dos peles-vermelhas se vingarem...

Pude salvar apenas este pouco, pouco que para mim era tudo. Assim, ao menos, me foi possível conhecer alguns dados para chegar a uma conclusão, embora vaga, do conteúdo do testamento. Estes pedacinhos de papel ainda hoje guardo carinhosamente como uma relíquia sagrada.

Depois, quando readquiri o equilíbrio psíquico, entreguei-me a outras pesquisas. Uma parte dos apaches foi expedida ao redor do lago em procura do cavalo de Santer; devia estar amarrado pelas proximidades e, se não o soltássemos, morreria de fome e sede o pobre animal, que não tinha culpa dos propósitos criminosos do seu ex-dono. Os demais subiram comigo à procura do caminho da caverna que lá já não estava mais. Procuramos até cansar sem nada de positivo haver achado. Passei novamente a ler os pedaços do testamento para ver se chegava a uma conclusão mais clara. A última frase de uns pedaços, que achei depois, dizia: ...cavalo e sobe. Ocorreu-me uma idéia. Com a palavra subir não designaria ele que eu subisse a uma rocha íngreme como aquela; podia ser também subir a alguma árvore. Não seria esta a interpretação verdadeira? Examinamos a rocha fatídica e nela descobrimos um pinheiro silvestre que, muito esguio, se erguia a um enorme altura beirando a escarpada e ia terminar a um canto de rocha. Subi pela árvore. Exatamente! Aquele era o caminho. Ali sobre o cume novo da rocha havia uma infinidade de pedras lançadas pela explosão, que certamente, haviam despenhado o tesouro.

Determinei que os apaches, que estavam em baixo me esperando, subissem também para me ajudar a procurar. Erguemos todas as pedras, todas as pedrinhas e não encontramos o menor vestígio que nos servisse de ponto de partida para uma conclusão acertada. Todos nós éramos homens habituados a chegar a decifrações acertadíssimas, partindo do mais insignificante detalhe. Mas, desta vez, os nossos sentidos apurados de nada nos adiantavam. Quando à noite voltamos à margem do lago para dormir ali, no mesmo instante voltavam os apaches expedidos para procurar a montaria de Santer. Acharam o animal. Examinei as maletas do serigote, nada encontrando.

Estivemos quatro longos dias acampados nas margens do lago das “Águas Escuras” e tudo fizemos por encontrar algo que me permitisse executar as últimas disposições testamentárias de Winnetou. Estou convencido de que teríamos encontrado o tesouro se ele ainda estivesse na rocha. Mas o ouro todo que constituía o referido tesouro estava no fundo do lago, juntamente com aquele que estivera prestes a encontrá-lo e roubá-lo. Voltamos para o rio Pecos, sem havermos obtido resultado algum de nossa jornada. Trouxemos apenas a convicção de que a morte de Intschu-tschuna e Nscho-tschi fora finalmente vingada!

Assim desapareceu o testamento do apache, do mesmo modo como desapareceu o seu autor e desaparecerá ainda toda a raça vermelha, — sem poder cumprir a sua finalidade na terra! Assim como os farrapos do testamento levados pelo vento desapareceram no lago, da mesma forma o pele-vermelha, perseguido pelo branco, desaparecerá da face da terra.

Mas quem, no ponto compreendido entre a montanha de Grande Ventre e o rio Metfur, parar diante do túmulo do apache, dirá instintivamente: “Aqui jaz Winnetou, um pele-vermelha, mas um grande homem!”.

E quando mais tarde, tal qual os últimos farrapos do testamento, a raça vermelha perecer no turbilhão das lutas e dos morticínios que lhe movem os brancos, as montanhas e a amplidão das planícies do oeste serão povoadas por uma geração de espíritos mais adiantados, e de sentimentos mais altruísticos, que erigirão um monumento aos índios com a inscrição: “Aqui jaz a raça vermelha, que não se tornou grande porque não lhe deram oportunidade”.

 

                                                                                            Karl May

 

 

                      

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