Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
WINNETOU
Volume II
De volta a S. Luís
Apenas lançado aos vendavais da publicidade o primeiro volume de “Winnetou”, recebia eu numerosas cartas de leitores perguntando-me pela continuação dos acontecimentos. Estes tomaram, depois, feição bem diferente da que eu esperava.
Após uma cavalgada forçada, chegávamos à embocadura do rio Boxo de Natschitosches, onde pensávamos encontrar um apache (*) ali deixado por Winnetou, a fim de esperar-nos. Malograda esperança. Encontramos apenas indícios de ali haver estado gente, mas que indícios: os cadáveres dos dois mercadores que nos haviam prestado informações sobre a aldeia dos kiowas. Tinham sido assassinados por Santer, conforme mais tarde me informou Winnetou.
Tão vigorosas haviam sido as remadas de Santer, que atingira a embocadura do rio, ao mesmo tempo que os mercadores, embora estes houvessem deixado a aldeia dos kiowas muito antes dele. Obrigado a desistir da idéia de procurar a mina aurífera de Winnetou, ficara sem meios de subsistência. Tentaram-nos as valiosas mercadorias que os dois mercadores conduziam. Com facilidade, matou-os a tiros talvez traiçoeiramente. Em seguida, retirou-se, tocando os animais cargueiros. Winnetou descobriu tais fatos pelas pegadas deixadas no teatro da cena. O assassino não empreendera tarefa muito fácil: é muito trabalhoso, para uma só pessoa, conduzir animais cargueiros através das savanas. Acrescente-se a isso, a grande pressa que tinha, pois se sabia perseguido pelo inimigo.
Infelizmente a chuva, que caiu nos dias seguintes, apagou todas as pegadas do facínora, de modo que Winnetou era forçado a longas e penosas investigações. Era de se supor que, para inverter o roubo em dinheiro, Santer tivesse tocado nalgum dos estabelecimentos do caminho, os quais Winnetou teria que percorrer um por um.
Só após alguns dias de infrutíferas pesquisas foi que descobriu em uma feitoria a pista do criminoso. Santer ali estivera, vendera toda a mercadoria roubada, adquirira um bom cavalo e nele cavalgara para as cidades do leste.
Com o dinheiro apurado poderia levar, por algum tempo, uma cômoda existência.
Ignorávamos onde Winnetou se achava. Nenhuma notícia deixara em Natschitosches. Assim, era-nos impossível segui-lo. Dirigimo-nos, por isto, a S. Luís. Quanto pesar me fazia a ausência do bom amigo! Não podia, porém, remediar o mal.
(*) Apache — nome próprio dos peles-vermelhas que erram pela América do Norte e pelo México, célebres pelos seus ardis de guerra.
Chegamos a S. Luís já de noite. É claro que procurei imediatamente o velho Mister Henry. Quando entrei na oficina, ele trabalhava com o torno, à luz bruxuleante de um velho lampião. Estava tão distraído que não se apercebeu da minha chegada.
— Boa noite, Mr. Henry! — cumprimentei-o, com tanta naturalidade, como se ontem ainda tivesse estado com êle. — Já terminou de fazer sua nova espingarda?
Ao dizer essas palavras, fui logo me sentando ao torno, tal como o fazia antigamente. Deu um pulo, contemplou-me por um instante e exclamou, com efusão:
— O senhor...! O senhor! O senhor, já de volta!? O preceptor... o... agrimensor... o... diabólico “Mão de ferro”!
Abraçou-me e beijou-me fraternalmente, puxando-me de encontro ao peito.
— “Mão de ferro”! De onde conhece esse nome? — perguntei-lhe, quando acalmara o ímpeto daquela alegria.
— De onde? Ainda pergunta? Em toda parte se fala agora no senhor, seu maganão! Tornou-se um homem do oeste no verdadeiro sentido da palavra! Mr. White, o engenheiro da secção vizinha, foi o primeiro a trazer notícias suas; falou elogiosamente a seu respeito! Mas foi Winnetou quem colocou a coroa sobre sua cabeça.
— Como?
— Contou-me tudo!
— O que?! Ele esteve aqui?!
— Naturalmente.
— Quando?
— Há três dias. O senhor lhe falara a meu respeito, contando-lhe a procedência da velha “mata-ursos” e êle não podia vir a esta cidade, sem visitar-me. Contou-me que homem do oeste, o senhor se tornou! Bisão, urso acinzentado, e coisas semelhantes! Foi até distinguido com a dignidade de cacique, hein?
E nesse tom continuou ainda por algum tempo, sem que me fosse possível desviá-lo do assunto. Abraçava-me, reabraçava-me, com orgulho e alegria quase infantis, por ter-me apontado o caminho e guiado meus primeiros passos para o oeste bravio.
Winnetou não perdera a pista de Santer e, seguindo-a, chegara a S. Luís, de onde prosseguira para Nova Orleans. Mandara dizer-me por Mr. Henry que seguisse para a última daquelas cidades, caso desejasse. Resolvi logo aceitar a sugestão.
Antes, porém, tinha que desincumbir-me da missão que me levara ao oeste, o que fiz na manhã do dia seguinte. Bem cedo, achava-me sentado junto daquela mesma porta de vidro, no mesmo lugar onde me haviam submetido a exame sem consultar-me. Comigo estavam Hawkens, Stone e Parker e o meu velho Mister Henry que não se furtara ao prazer de acompanhar-me. Apresentado verbalmente o relatório, os chefes concluíram que a minha secção fora a que mais importantes serviços realizara e a que mais se expusera ao perigo. Dela, era eu o único agrimensor sobrevivente!
Sam esforçou-se por conseguir-me o abono de uma gratificação especial, mas debalde. Recebemos imediatamente os nossos honorários, porém, nem um dólar a mais. E... confesso sinceramente, que foi com insofrida raiva que lhes entreguei as segundas vias dos desenhos e o relatório escrito, que voluntariamente guardara com tanto carinho. Os chefes haviam contratado cinco agrimensores e só pagavam os honorários de um, recebendo embora o serviço completo, graças ao meu interesse e exclusivo esforço!
Sam, indignado, deitou a discursar com energia. Conseguiu, apenas, a intimação de retirar-se do escritório junto com Dick e Will que também exprobravam a ganância dos diretores da empresa. Eu naturalmente acompanhei-os, batendo o pó dos sapatos. Ademais, os honorários que recebera, relativamente à época, constituíam uma boa soma para mim.
VIOLENTO TEMPORAL NO MISSISSÍPI
Podia, agora, procurar Winnetou. Por dever de amizade e de cortesia, convidei Sam e seus dois companheiros para acompanhar-me. Preferiram, porém, ficar em S. Luís, para descansar das fadigas da última jornada. Não levei a mal a recusa. Muni-me de roupa branca, de alguns objetos indispensáveis, bem como de uma fatiota nova e atirei-me ao meu destino. O que não me era possível carregar, deixei em S. Luís, inclusive a pesada “mata ursos”, que ficou com Henry. Deixei também o baio. Não precisava mais dele. Todos, aliás, estávamos convencidos de que seria curta a minha ausência.
Mas não aconteceu como pensávamos. Campeava a guerra civil. Degladiavam-se os cidadãos do norte com os do sul. Precisamente agora, o norte, pela mão do famoso almirante Tarragut, recuperava o Mississípi e o abria à navegação. Contudo a partida do vapor em que eu viajava fora muito retardada, por terem de tomar certas medidas indispensáveis, devido à situação anormal que atravessava o país. Por causa disso, ao chegar a Nova Orleans, já não encontrei Winnetou. No hotel, informaram-me que o cacique partira, na véspera, para Bicksburgo, em perseguição de Santer. Aconselhava-me, porém, a que não o seguisse, pois levava itinerário incerto, mas que esperasse notícias suas em S. Luís, na casa de Mr. Henry.
Que fazer agora? A saudade apontava-me a estrada da pátria, onde os meus reclamavam o meu amparo.
Voltar para S. Luís e esperar por Winnetou? Não. Quem me asseguraria que lhe seria possível voltar?
Aproveitando as tréguas momentâneas dos combatentes, um vapor pretendia seguir para Cuba. Esse me servia. De lá fácil talvez me fosse regressar à Alemanha ou, pelo menos, à Nova Iorque. Decidi-me e embarquei.
A prudência me aconselhava a que depositasse os meus haveres num banco. Em que banco, porém, de Nova Orleans, podia eu confiar naquela época de tanta agitação política? Onde aliás buscar tempo para efetuar o passe se me resolvera a tomar passagem, apenas minutos antes da partida? Trazia, pois, todo o meu dinheiro comigo, no bolso.
À noite, um furacão nos surpreendeu. A tarde estivera ventosa. Densas nuvens escureciam o céu, mas nada fazia prever a violência do temporal que nos açoitou durante a noite.
Como os demais passageiros, deitara-me tranqüilo e tranqüilamente adormecera. À meia-noite, porém, a borrasca rebentou, quebrou-se o ritmo embalador das ondas e eu acordei sobressaltado. Saltei do beliche no momento em que o navio recebia um choque formidável. O camarote, que eu e mais dois passageiros ocupávamos, rangeu, desmoronou-se e tudo foi abaixo... Em tais momentos, quem se lembra de pensar em outra cousa senão na conservação da vida? Estava pobre! Com o casaco lá se tinha ido o meu dinheiro.
Corri para a coberta do navio. O balanço era horrível.
Lá fora, uma escuridão completa; nada se divisava!
Caí e um vagalhão passou por cima do meu corpo inerme. Chegavam-me aos ouvidos vozes angustiosas a clamar por socorro, que eram logo abafadas pelo clamor mais forte dos ventos e dos trovões. Só quando os relâmpagos começaram a riscar de fogo o céu, foi que pude ver a situação a que estávamos reduzidos: um clarão à frente anunciava a proximidade da terra e o navio adernado, preso entre os escolhos, arrebentava-se pelo embate violento e contínuo das ondas.
Perdidos! De um momento para outro, o navio se desarticularia e seríamos tragados pelas águas. Já não havia escaleres. Como salvar-nos? A nado! Novo relâmpago mostrou-me passageiros na outra extremidade da coberta, agarrados aos cabos para não serem arrastados pela correnteza. A mim me parecia, ao contrário, que a salvação, ainda que incerta, estava na possibilidade de alcançar terra a nado.
Assim pensava e ia pôr-me em ação, quando vi erguer-se em direção ao navio uma onda gigantesca. Um estrondo tremendo reboou pelos ares. Despedaçava-se o navio.
Tive a impressão de que me suspendiam à altura de uma torre. Onda sobre onda enrolava-me num redemoinho infernal, tal como se eu fora presa dos caprichos de uma criança.
Imobilizado pela força das águas, abandonei-me ao destino, espreitando o momento propício para tentar a salvação. Assim me achava, quando novo vagalhão me arremessou à grande altura e a enorme distância, em meio duns rochedos, em águas mais calmas.
Graças a Deus! Agora, podia defender-me. Nadei com incrível im-petuosidade, como nunca fizera antes.
Já não lutava com vagalhões colossais, é verdade, mas as marés inutilizavam os meus esforços, arrastando-me de uma para outra direção, como folha morta agitada pelo vento. Lutava heroicamente por atingir a terra que avistara aos primeiros relâmpagos, benditos relâmpagos sem os quais estaria desorientado e perdido. Tinha, pois, a vantagem de saber para onde nadar. Lutando desesperadoramente, ferozmente, contra a fúria dos elementos, poderia atingir a costa ambicionada.
Porém, uma treva intensa envolvia mar e terra, tornando-me impossível distingui-los. Arrojado a uns escolhos, desfaleci.
Quanto tempo permaneci desacordado, não sei.
Quando recuperei os sentidos, o temporal ainda não amainara de todo.
Mais que as fortes dores que sentia na cabeça, preocupava-me a circunstância de ignorar onde me achava. Estaria em terra firme ou nalgum rochedo isolado? Não devia afastar-me, sob pena de me arriscar a ser novamente tragado pelas ondas, que, de vez em quando, parecia quererem recair na fúria anterior.
A pouco e pouco, porém, a calma se foi restabelecendo, até que a tempestade amainou completamente e o céu se cobriu de estrelas.
Pela tênue claridade das estrelas, pude, então, orientar-me. Achava-me diante duma ilha, na costa. Atrás estavam os penhascos e à frente a vegetação. Nadei para a margem da ilha. Algumas árvores haviam resistido ao furacão; outras, menos firmes, foram desenraizadas impiedosamente e jaziam por terra, abatidas para sempre. Ao longe, avistei uma luz bruxuleante.
Devia ser de gente que ali acampara. Apressei-me em tomar aquela direção.
Eram os habitantes das casas mutiladas pelo temporal.
Ao ver-me, aquela pobre gente encheu-se de pasmo e não se recobrava do espanto em que a pusera a minha aparição inesperada.
Um fantasma não lhes causaria maior terror.
Quis apresentar-me, mas o mar fazia tamanho ruído, que era preciso gritar para ser ouvido.
Eram pescadores. O temporal arrojara o nosso vapor contra a ilha em que se achava o forte Jefferson. Nesta fortificação achavam-se recolhidos os prisioneiros de guerra da Confederação Americana.
Os pescadores acolheram-me cordialmente, fornecendo-me roupa e vários objetos de que carecia.
Ao mesmo tempo tocavam a rebate. Urgia percorrer a costa: outros náufragos provavelmente ali viriam dar. E deram. Ao amanhecer, encontraram-se dezesseis, dos quais treze já eram cadáveres. Quando rompeu o dia, vi a praia coberta de destroços do navio.
De fato, eu era um náufrago. Todo o meu dinheiro jazia sepultado no fundo do rio. Ficava-me, porém, a vida. De tantos, só quatro tinham sido poupados à sanha da borrasca e eu fora um deles. Graças, Deus meu!
COMO DETETIVE
A sorte me sorria.
O comandante do forte encarregou-se de nos conseguir transporte e o mais de que necessitávamos.
Parti para Nova Iorque, mais pobre do que quando lá aportara da primeira vez.
Coragem e energia para recomeçar não me faltavam. Por que me dirigira a Nova Iorque e não a S. Luís, onde tinha, ao menos, relações e podia contar com o auxílio de Mr. Henry? Porque a folha de débito que contraíra com o bom armeiro ia já muito adiantada. Se tivesse a certeza de lá encontrar Winnetou...!
Sua jornada em perseguição de Santer poderia demorar muitos meses e, até, muitos anos; onde deveria procurá-lo nesse meio tempo? Estava firmemente resolvido a encontrar-me novamente com êle; mas, para isso teria de seguir rumo ao oeste, para o rio Pecos, onde estava situada a aldeia dos apaches. Para empreender a viagem, faltavam-me os meios indispensáveis.
Onde buscá-los? Como consegui-los? Para reerguer-me da ruína financeira não havia melhor centro que a cidade de Nova Iorque.
A sorte me protegia. Travei logo conhecimento com Josy Tailor, honrado diretor de um então afamado corpo de detetives particulares e fui admitido em sua corporação. Quando soube quem eu era e o que fizera nesses últimos tempos, concordou em fazer uma experiência, embora eu fosse alemão. Ele não julgava os alemães muito hábeis e aproveitáveis na atividade policial.
Mais por sorte que por faro policial, obtive alguns sucessos que me impuseram à confiança do chefe. E esta foi crescendo a tal ponto, que me eram confiadas as mais arriscadas e bem remuneradas diligências, e com cujo êxito se podia contar.
UMA DILIGÊNCIA SENSACIONAL
Um dia o chefe chamou-me ao gabinete.
Lá se achava um velho de fisionomia contristada e ar apreensivo.
Era o banqueiro William Ohlert que requisitava os nossos serviços para a solução dum caso particular. Era um caso doloroso para o seu coração de pai e perigoso para os seus interesses comerciais.
Possuía um único filho, moço de vinte e cinco anos. Chamava-se também William.
William não herdara as tendências comerciais do pai. Tanto pelo lado paterno como pelo lado materno, descendia de alemães. Mais sonhador do que homem prático, preferia sempre as obras científicas e de metafísica, ao Diário e ao Razão. Fizera-se cientista e poeta. Publicara algumas produções literárias nos jornais alemães que se editavam em Nova Iorque.
Ultimamente se metera a escrever uma tragédia, cujo protagonista seria um poeta louco. Para bem criar e interpretar a personalidade do seu herói, William mergulhou na leitura de tratados de psiquiatria de que adquirira numerosos exemplares. A conseqüência terrível dessa fantasia foi que, apaixonando-se pela própria criação, de tal modo se foi identificando com ela que passou a viver realmente o seu personagem, para desventura de seus desditosos pais. Há pouco se pusera em contato com indigitado psiquiatra, que se dizia assistente de afamados especialistas e que pretendia fundar um hospital para o tratamento de moléstias mentais. De tal forma captou a confiança do banqueiro, que este lhe confiou a cura do filho.
Estreitos laços de amizade se estabeleceram, então, entre o médico e o poeta.
Inesperadamente desapareceram ambos.
De pesquisa em pesquisa, o banqueiro vem, depois, a saber que o tal “médico” não passava de um charlatão, de um vil embusteiro, dos muitos que, impunemente, exercem sua atividade nos Estados Unidos.
Quando Tailor declarou o nome e a residência do “médico”, verificamos tratar-se de um velho conhecido de nossa corporação, em virtude de outro caso suspeito, que me obrigou a guardá-lo sob as vistas durante muito tempo.
Eu possuía até uma fotografia sua, a qual exibimos a Ohlert, que a reconheceu imediatamente.
Tratava-se de Gibson, refinado cavalheiro de indústria, que praticara múltiplas falcatruas, tanto nos Estados Unidos como no México. O banqueiro estivera no hotel onde Gibson se hospedara e ali fora informado de que o “ilustre psiquiatra” partira, para rumo ignorado. O poeta levara consigo boa soma de dinheiro e, agora, uma casa bancária telegrafara a Tailor informando-o de que o filho ali estivera e levantara a importância de cinco mil dólares e que de lá seguira para Louisvile, a fim de buscar a noiva.
Em tudo isto havia apenas uma verdade: o levantamento dos cinco mil dólares. O mais não passava de insinuação, para despistar o banqueiro.
Tudo fazia crer que o “alienista” seduzira o seu “cliente”, para apoderar-se de dinheiro. William Ohlert era um dos mais fortes banqueiros da época e o filho muito conhecido nos estabelecimentos bancários, onde estava autorizado a requisitar qualquer quantia, sem grandes formalidades.
Urgia que se efetuasse a prisão do criminoso e se reconduzisse o doente à casa paterna. Confiaram-me a diligência.
EM PERSEGUIÇÃO DOS FUGITIVOS
Muni-me dos documentos necessários e da fotografia de William Ohlert Júnior e parti para Cincinnati.
Na minha bagagem não faltava o material de disfarce, com que me tornaria irreconhecível a Gibson.
Em Cincinnati procurei o banco que emitira o cheque. Realmente, Ohlert Júnior ali estivera em companhia de Gibson. Em seguida, procedendo a indagações minuciosas, consegui apurar que Gibson e sua vítima haviam tomado passagem para S. Luís.
Sem demora lancei-me, também, para S. Luís. Ali, com o auxílio do infatigável velho Henry, após longas e pacientes diligências, consegui descobrir apenas os indícios da passagem dos fugitivos. Não foi sem espanto que Mr. Henry me viu virado em detetive! Muito se compungiu com a narração, que lhe fiz, do naufrágio e do prejuízo que sofrerá. Fêz-me prometer-lhe que voltaria para o oeste, mal me desincumbisse do compromisso assumido. Desejava que experimentasse, na minha segunda jornada pelas savanas, a sua nova espingarda para vinte e cinco tiros. Até lá guardaria, também, a “mata-ursos”, que levaria igualmente comigo.
Ohlert e Gibson haviam seguido para Nova Orleans. Possuía uma relação dos estabelecimentos comerciais, com os quais o banqueiro mantinha transação. De passagem por Louisvile e S. Luís, os fugitivos tinham levantado grandes somas daqueles estabelecimentos. Em Nova Orleans, novas transações em duas outras casas. Cuidei, então, de pôr os demais clientes de Tailor ao corrente dos fatos e pedi-lhes que me avisassem, logo que “médico” e o “paciente” lá aparecessem.
Achava-me, agora, de braços cruzados em meio do burburinho da gente que se entrecruza constantemente nas ruas de Nova Orleans.
Tendo requisitado o auxílio da polícia local, devia esperar pelo resultado de seu trabalho. Não era, porém, do meu temperamento dinâmico permanecer inativo. Comecei a perambular entre a multidão na esperança de que o acaso me apresentasse um vestígio, um indício qualquer.
Nova Orleans é uma cidade de aspeto característicamente sulino, principalmente nos seus recantos mais antigos, cortados de ruas estreitas e sujas, cheias de construções de mau gosto e anti-higiênicas.
É a zona onde se refugia a parte da população que receia o ar e a luz do dia. Ali, às janelas e às sacadas, vê-se uma gama completa de fisionomias, desde o pálido doentio, do branco combalido pela moléstia e pelo vício até o negro retinto das costas da África. Aqui, mascates de todas as nacionalidades; trovadores e guitarristas ambulantes, ébrios, mulheres tagarelas e esganiçadas, vozes de todos os timbres formam uma música infernal que agride os ouvidos do passante, ameaçando romper-lhe o tímpano; ali, em pleno passeio, um marinheiro encolerizado puxa violentamente a trança dum chinês, estirando-o no chão; lá, dois negros empenham-se em renhida luta de boxe, estimulados por uma multidão de curiosos que ri e aplaude; acolá, numa esquina, dois cargueiros, depois de colocarem os fardos no chão, travam luta corporal, em que um terceiro intervém, conciliador, e recebe dos contendores as pancadas reunidas de ambos. Toda esta gente, diversa nas feições e nos costumes, constitui uma população polimorfa e sem estabilidade.
Muito outra é a impressão que nos fica de uma peregrinação pelos pitorescos arrabaldes, com ruas limpas e construções modernas, com lindos jardins, onde florescem numa policromia festiva, as mais variadas plantas, e aprazíveis pomares.
Aí a população laboriosa procura a tranqüilidade e a paz.
O local de vida mais intensa da cidade é naturalmente o porto. Embarcações de diferentes calados ali carregam e descarregam mercadorias. Enormes fardos de lã, bordalesas e caixas de todas as dimensões, são acionados pelos braços vigorosos de centenas de trabalhadores. Parece um dos mercados algodoeiros das índias.
OLD DEATH
Perambulei por todas essas zonas da cidade com os olhos fixos na turba. Em vão. Era meio-dia e fazia um calor asfixiante. Achava-me em Common-Street, onde a placa duma casa de chope alemão me caiu sob as vistas: um Pilsen duplo, nesse dia ardente, não seria nada mau. Entrei.
Podia-se ver como a cerveja alemã era apreciada, já naquela épocas pelos numerosos fregueses que enchiam o bar. O único lugar vago que havia, era a um canto, uma mesinha para duas pessoas. Ocupava uma das cadeiras um indivíduo cuja aparência não era de molde a inspirar grande confiança. Por isso aquele lugar estava vazio. Encaminhei-me para lá; pedi licença ao estranho personagem, para tomar o meu chope em sua companhia.
Aflorou-lhe aos lábios um sorriso quase apiedado. Mediu-me com olhar perscrutador e, com ar de desprezo, perguntou-me:
— Traz dinheiro consigo, Mr.?
— Naturalmente! — respondi-lhe admirado da pergunta.
— Então está em condições de pagar a cerveja e também o lugar que vai ocupar?
— Penso que sim.
— Pois bem! Por que então me pede licença para sentar-se? Concluo daí que o senhor é um greenhorn cá na terra. Diabos me levem, se alguém se aventurar a impedir-me de sentar onde bem me aprouver! Sente-se, moço! Descanse os ossos e parta a dentuça de quem lhe impedir de sentar.
Meus nervos vibraram. Senti o sangue subir-me ao rosto. Rigorosamente o homem me ofendia com aquela brutalidade.
— Se me tomou por um alemão, o senhor acertou, Mr; mas se repetir a expressão “lambote”, porei em prática imediatamente o seu conselho, provando-lhe que não sou greenhorn. Pedi-lhe permissão para sentar-me por mera cortesia. Pode-se muito bem aliar a polidez à valentia e astúcia.
— Ora! — disse com indiferença. — O senhor em nada me parece um homem astuto. Não se dê ao trabalho de zangar-se; não conseguirá cousa alguma com isso. Não tive, aliás, a menor intenção de ofendê-lo; mas afianço-lhe que não sei de que modo me provaria que não é um greenhorn! Contudo reconheço que me entendeu mal. Por isso faço de conta que não lhe ouvi as últimas palavras. Espero que aprecie essa minha atitude na devida forma. Sim, por que Old Death não é homem que se deixe intimidar por ameaças.
Old Death! Oh! esse homem era Old Death! Ouvira falar tantas vezes nesse afamado e valente caçador das campinas! A sua fama era cantada ao redor de todas as fogueiras do oeste, ultrapassara o Mississipi e corria pelas cidades de leste. Se uma décima parte, apenas, das aventuras que lhe atribuíam fossem verdadeiras, bastava para merecer o respeito e a consideração de todos.
Passara a existência no oeste, enfrentando mil perigos e jamais fora ferido. Os supersticiosos até afirmavam que êle trazia consigo um breve que lhe defendia o corpo, encouraçando-o contra as balas.
Ninguém conhecia seu legítimo nome. Old Death era o seu nome de guerra. Devia-o a sua esquelética figura. Old Death quer dizer “velha morte”!
Agora que me achava sentado à sua frente compreendia a razão por que assim o cognominavam.
Era alto e pálido. Pálido, não, macilento é que ele era. O corpo parecia constituído apenas de pele e ossos. As calças de couro, enfiadas nas pernas, pareciam um saco, e o seu jaquetão de caça encurtara tanto que as mangas mal alcançavam o antebraço; as mãos também se assemelhavam muito às de um esqueleto.
Da gola do jaquetão, emergia um pescoço comprido e muito magro, coroado por uma cabeça calva. Os olhos estavam afundados nas órbitas. As maçãs salientes, o nariz adunco e o queixo agudo e movediço completavam aquela figura macabra.
Exalava um mau cheiro tão penetrante de amoníaco e enxofre, que seria capaz de perturbar o apetite do mais valente glutão.
Seus pés estavam metidos num pedaço de couro de cavalo costurado à guisa de botas. Usava esporas, cujas rosetas eram feitas de pesos (moedas) mexicanos.
A seus pés estava um arreamento completo e uma espingarda antiquíssima, modelo muito raro. O seu singular equipamento completava-se com uma faca e dois grandes revólveres, que trazia à larga cinta, donde pendiam numerosos escalpos (*) tomados aos índios vencidos.
O garção trouxe o chope. Quando levava o copo aos lábios, o caçador tocou-o com o seu dizendo:
— Alto! Não se apresse, rapaz! Toquemos os copos e bebamos à nossa saúde.
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(*) Troféu guerreiro dos indígenas da América, formado da pele craniana dos inimigos, (do inglês scalp).
Ouvi dizer que isto é costume lá na sua terra
— É verdade; porém, só entre camaradas — respondi-lhe, retardando em aceitar o convite.
— Ora, deixe-se de cerimônias! Estamos sentados à mesma mesa e não precisamos incomodar-nos com ninharias. Faça de conta que somos velhos conhecidos. Toque, moço! Não sou nenhum espião e nem tampouco nenhum caçador de camponeses (**). Pode, sem receio, tentar comigo uma boa camaradagem, pelo menos de um quarto de hora!
Mudara o tom. Toquei-lhe o copo e, por minha vez, falei:
— A explicação foi supérflua, sir; sei muito bem que, estando com Old Death, não me acho em má companhia.
— Com que, então, me conhece?! Quem é o senhor? Por que veio, afinal, aos Estados Unidos?!
— Pelo motivo que todos vêm: tentar a sorte.
— Creio! Lá na Europa pensam que, aqui, basta abrir os bolsos, para que neles chovam os dólares. Se um europeu é bem sucedido, logo os jornais exploram o caso, publicam artigos de légua e meia, entoando hinos à fortuna. Dos milhares, porém, que tombam na luta, ninguém fala. O senhor já encontrou a sorte ou, ao menos, a sua pista?
— A sua pista, parece-me que sim.
— Então aguce a vista e não a deixe escapar! Eu bem sei quanto é difícil retê-la! O senhor deve já ter ouvido falar que sou um dos mais antigos caçadores das campinas, contudo, até agora, tenho corrido, em vão, atrás da sorte! Centenas de vezes, pensei tê-la nas mãos, mas... quando queria agarrá-la, desvanecia-se como uma visão. A sorte, moço, só existe na imaginação dos homens.
Falava com tom amargurado e, quando calou, tinha o olhar vago de quem faz revelações a si mesmo.
Após alguns momentos de silêncio, continuou:
— O senhor não sabe por que lhe falo assim. A explicação é simples. Fico sempre penalizado de ver um estrangeiro, especialmente um jovem, atirar-se a essa vida penosa e incerta da aventura, para mais tarde ter de lamentar a perda de muitas esperanças! Minha mãe era alemã, sua conterrânea. Dela aprendi a sua língua. Apraz-lhe conversarmos em alemão? A pobre! Se lhe tivesse ouvido os conselhos, talvez tivesse encontrado o caminho da felicidade... Considerei-me, porém, mais inteligente e afastei-me da direção que ela me traçara. Jovem, seja prudente! Sinto que o senhor poderá ter a mesma sorte que tive.
— Realmente? Como?
— O senhor é muito fino. Usa um lindo penteado e perfumes esquisitos. Quando um índio sentir este aroma, cairá desmaiado. Sua roupa é excessivamente cuidada. Não é com tal elegância e tais perfumes que se tenta a sorte no oeste.
— Nem me passa pela idéia procurá-la aqui. Venho em busca de meios para encontrá-la, depois, na minha própria pátria.
— Sim? Quer ter, então, a bondade de dizer-me que posição ocupa e qual a sua profissão?
— Estudei.
(**) Membro do partido escravagista.
O orgulho com que pronunciei esta simples palavra fê-lo sorrir levemente. Meneou a cabeça e disse:
— Estudou? Ah! então estudou? Ai do senhor! Considera isto bastante para conseguir a felicidade? Pois olhe, justamente as pessoas desta categoria, são as menos aptas para encontrá-la. Falta-lhes a voz da experiência. Tem algum emprego?
— Sim, em Nova Iorque.
— Que faz?
A sinceridade da pergunta levou-me a responder-lhe, embora com uma meia-mentira, pois era-me vedado relatar a verdade inteira.
— Estou contratado por um banqueiro e aqui me encontro a seu serviço.
— Banqueiro? Ah! Então o seu caminho é muito mais plano do que eu julgava. Segure-se, sir! Um banqueiro de Nova Iorque só manda ao sul pessoa em quem confia cegamente. Folgo muito em me haver enganado com o senhor, sir! Com que então é uma questão de dinheiro que o senhor veio desembaraçar?
— Cousa parecida.
— Oh! Hum!
Lançou-me novamente um olhar perscrutador, deu uma risadinha e prosseguiu:
— Acho que adivinhei o verdadeiro objetivo de sua viagem até aqui.
— Duvido.
— Pode duvidar. Não me oponho a isso. Mas um conselho vou dar-lhe, menino. Se não quer que descubram que o senhor anda à procura de alguém, conduza-se com maior prudência e discrição. O senhor observou todos aqui, com visível atenção, e desde que está sentado não desvia o olhar da porta, ou da janela a vigiar os que passam na rua. Procura uma pessoa. Não adivinhei?
— Sim, Mr. Procuro encontrar uma pessoa, cujo paradeiro nesta cidade ignoro.
— Dirija-se, neste caso, aos hotéis!
— Já o fiz, inutilmente, e inúteis foram, também, as investigações da polícia.
Soltou nova risada e disse:
— Mr., apesar de tudo, o senhor é um greenhorn. Não me leve a mal; é a pura verdade.
Compreendi que falara demais.
Sem me dar tempo, continuou:
— O senhor encarrega-se de uma missão parecida com uma questão de dinheiro, conforme declarou. O homem, a quem precisa encontrar, no desempenho da sua missão, está sendo, por solicitação sua, procurado pela polícia. O senhor mesmo percorre as ruas e os bares à procura desse homem; ora... precisava não me chamar Old Death, para não descobrir, com dados tão claros, a solução do problema. Sei com quem falo.
— Então diga! Com quem?
— Com um detetive. Um agente particular, a quem foi confiada uma diligência de natureza mais privada do que criminal.
Que perspicácia! Devia concordar que êle acertara? Não.
— Honra à sua sagacidade e espírito de penetração, sir; mas... desta vez enganou-se, como qualquer mortal.
— Não creio!
— Garanto-lhe.
— Bem! Se concorda ou não, que eu tenha acertado, isso é lá com o senhor. Não devo, nem quero obrigá-lo a confessar. Mas se não lhe convém que adivinhem o seu pensamento, deve ensaiar uma cara mais impenetrável. A sua é transparente, moço. Trata-se de uma questão de dinheiro. E este assunto foi confiado a um greenhorn! Bem se vê que o interessado não deseja agir com energia. Quer ver que o senhor é membro da família do próprio lesado? Há, sem dúvida, algo de criminoso em tudo isso. Do contrário a polícia não o ajudaria. Estou quase a afirmar que se trata de um sedutor que conserva em seu poder a pessoa seduzida, para extorquir-lhe dinheiro. Sim, sim, olhe-me, sir! Admira-se de minha imaginação? Um homem do oeste constrói com dois rastos uma longa estrada.
— O senhor, em todo caso, possui uma formidável imaginação criadora, Mr.!
— Negue, negue sempre e sempre! A mim isso não prejudica. Sou conhecidíssimo aqui e poderia dar-lhe indicações e conselhos que lhe fôssem talvez de grande valia para o seu objetivo. No entanto se acha que, agindo por conta própria, chegará mais depressa ao fim, é louvável sua atitude. Digo louvável e não inteligente.
Levantou-se, tirou do bolso uma velha carteira de couro e pagou o seu chope.
Senti tê-lo magoado e por isso procurei reparar a grosseria:
— Há negócios, Mr., que nem a íntimos devemos confiar e, muito menos, a estranhos, embora, logo à primeira vista, nos tenham inspirado simpatia e confiança. Não tencionava ofendê-lo, nem sequer...
— Ah! Ah! — interrompeu-me — E, depositando uma moeda sobre a mesa, disse: — Ninguém aqui falou ou pensou em ofensa. Falei-lhe com boa intenção, pois possui alguma coisa que me desperta simpatia.
— Talvez ainda nos encontremos?
— Dificilmente. Vou hoje para o Texas e de lá para o México. Suponho que sua excursão não siga a mesma rota e, portanto... Adeus, sir! E lembre-se, na ocasião oportuna, de que lhe chamei greenhorn! De Old Death pode aceitar essa designação, pois ele não a lança como uma ofensa. Demais, é sempre conveniente que um novato forme conceitos modestos a respeito de si mesmo.
Pôs o chapéu de abas largas, pegou dos arreios, e colocou-os às costas, agarrou a espingarda e afastou-se. Ao terceiro passo, virou-se e disse-me:
— Não me leve a mal, sir! Eu também... Estudei e lembro-me, ainda hoje, cheio de satisfação de quanto era tolo naquela época. Passe bem!
Saiu do restaurante.
Acompanhei, com o olhar, aquela figura ridícula, objeto de riso dos passantes, até vê-la confundir-se à distância, na multidão.
O meu amor próprio bradava-me: ele te desprezou!
Mas debalde procurava motivos de cólera contra ele. Não podia revoltar-me. De tanto ouvir Sam Hawkens chamar-me greenhorn, habituara-me a aceitá-lo sem repulsa. O seu exterior despertara-me uma profunda compaixão; as suas palavras eram ásperas, mas a voz suave e convincente, bondosa e sincera. Apesar de sua assustadora fealdade, agradou-me. Por isso revelei-lhe, involuntariamente, o fim de minha viagem à Nova Orleans. Entretanto tinha a intuição de que o homem me seria útil. Por que não lhe contara que já vivera no oeste bravio?
UM TROTE INESPERADO
Meditava nestas coisas, quando surgiu à porta Gibson, Gibson em pessoa! Parou à entrada, passou um olhar interrogativo pela sala e continuou imóvel.
Se me reconhecesse?
Troquei de lugar com toda a naturalidade, colocando-me de costas para a porta, na cadeira ocupada, pouco antes, por Old Death.
Já antegozava o susto que minha presença ia causar a Gibson, quando se sentasse à minha frente. Era o único lugar vago.
Mas êle não chegava. Ouvi o ruído da porta que se fechava. Gibson me reconhecera. Gibson fugira. Em dois tempos, paguei a despesa, pus o chapéu e corri para a rua. Lá, à direita, Gibson esforçava-se por desaparecer no meio de uma multidão. Voltou-se, viu-me e apressou os passos. Segui-o com a mesma velocidade. Enquanto atravessava a multidão, ele desapareceu numa rua transversal, que alcancei no momento exato em que ele, mais adiante, dobrava a esquina. Antes, porém, abanou-me ironicamente com o chapéu. Fiquei indignado e, sem me preocupar com o riso dos passantes, comecei a correr pela rua afora. Não havia um policial nas imediações. Apelar para os particulares seria uma tentativa vã, pois ninguém atenderia ao meu apelo.
Quando cheguei à esquina, achei-me diante duma pracinha. De um lado havia casas pequenas e do outros aprazíveis vilas. A praça regorgitava de povo; mas não encontrei Gibson. Desaparecera. À porta duma barbearia um negro estava recostado. Bem podia ser que lhe tivesse despertado a atenção a figura de Gibson a fugir.
Cheguei-me para êle, cumprimentei-o e perguntei-lhe cortesmente se não vira um homem passar com jeito de quem era perseguido. Arreganhou os dentes compridos e amarelados, e respondeu-me:
— Sim, sinhô! Vi u homi. Corre muito. Entrou naquela casa ali.
E indicava-me uma vilazinha. Agradeci-lhe e apressei-me para a vila. O portão de ferro que dava acesso ao jardim estava fechado à chave. Toquei a campainha. Passaram-se cinco minutos até que um homem, também negro, veio abrir-me o portão. Disse-lhe o que desejava. O negro bateu-me com o portão no nariz dizendo-me:
— Primêro eu vô preguntá pro patrão. Se dá licença eu abro, se não dá licença, não abro.
Foi e eu fiquei esperando, por dez minutos, num braseiro vivo. Finalmente voltou com a resposta.
— Num abro. O patrão proíbe. Não, homi ninhum entra hoje na casa. Portão fechado sempre. Vancê vá imbora ligero; patrão vai usá o revorvi se vancê pula a cerca.
Que fazer? Cruzar os braços? Entrar à força? Impossível. Nada mais me restava, pois, do que dirigir-me à polícia.
Quando já me havia afastado um bom trecho, um menino veio correndo chamar-me. Trazia um bilhete na mão.
— Senhor, senhor, espere! — disse êle. É pro senhor me dar dez cêntimos por este bilhete.
— Quem o mandou?
— Um senhor que saiu há pouco dali. Não apontava para a vila, mas na direção oposta. — O homem mostrou-me o senhor e escreveu ligeiro o bilhete. Dê-me os dez cêntimos e tome lá.
Dei-lhe a gorjeta e agarrei o bilhete. O menino retirou-se correndo. No maldito papel, uma folha dum livro de notas, estava escrito:
“Meu caro greenhorn. Veio talvez à Nova Orleans por minha causa? Acho que sim, pois está a perseguir-me. Sempre o tive na conta de um bobalhão; mas nunca pensei que fosse tão tolo e pretendesse capturar-me. Quem não tem mais de umas poucas miligramas de massa encefálica, não deve lançar-se a uma empresa dessas. Volte, conformado, para Nova Iorque e dê lembranças minhas a Mr. Ohlert. Já tomei as medidas necessárias para que ele jamais se esqueça de mim, e espero também que, quanto ao senhor, o nosso encontro de hoje lhe seja inolvidável, encontro que nenhuma glória trouxe ao seu faro policial! Gibson”.
Pode-se calcular, a “satisfação” que tive ao ler esse amável bilhete. Amassei o papel, coloquei-o no bolso e continuei a caminhar. Estaria sendo observado por Gibson? Não queria oferecer-lhe o espetáculo da minha decepção.
Lancei um olhar ao redor da praça. Nem Gibson, nem o negro da barbearia, nem o menino. Ninguém.
Enquanto me achava no portão da vila, à espera de ser introduzido, Gibson tivera tempo de escrever-me calmamente aquela missiva. O negro me havia iludido. O menino fizera mesmo uma expressão de quem gozava com o formidável trote que eu estava levando.
Minha situação era crítica. Expusera-me ao ridículo e nem ao menos devia revelar à polícia que vira o fugitivo, para não me expor a motejos. Enguli silenciosamente a afronta.
No caminho não cessava de passar em revista os transeuntes, porém, infrutiferamente. Ora, Gibson sabendo-se perseguido, não se exibiria nas artérias de grande movimento. Era quase certo que se valeria da primeira oportunidade para pôr-se a salvo, retirando-se de Nova Orleans.
Nesse dia, dois vapores levantariam ferro. Dirigi-me para o porto, fazendo-me acompanhar de dois policiais à paisana. Diligência improdutiva. A raiva de ser assim grosseiramente ludibriado fêz-me perambular até horas tardias da noite por todos os restaurantes, bares, tavernas, etc, à procura de Gibson. Afinal a fadiga obrigou-me a recolher-me ao hotel e pedir repouso ao sono reparador.
Em sonhos, vi-me transportar para um hospital de alienados. Centenas de dementes, que se diziam poetas, apresentavam-me calhamaços de manuscritos e exigiam que eu os lesse. Naturalmente todos haviam escrito uma tragédia, na qual figurava como protagonista um poeta louco. Fui forçado a ler todas, pois Gibson, postado na minha frente de revólver em punho, ameaçava detoná-lo se eu fizesse uma pausa durante a leitura. Eu lia e lia e o suor me escorria em bagas pelas faces. Para enxugá-lo, tirei o lenço do bolso. Neste momento suspendi, por um segundo, a leitura e fui alvejado por Gibson.
O detonar do tiro acordou-me. Mas a detonação não fora apenas sonho. É que, na ânsia de defender-me de Gibson, levantara-me da cama e derrubara um lampião que se achava sobre o criado mudo, perto do leito. O hoteleiro cobrou-me, pelo prejuízo, apenas oito dólares...
EM PISTA SEGURA
Banhado em suor, acordei. Era dia claro. Tomei chá e corri à praia, onde tomei um banho que me refrescou o corpo e as idéias. Em seguida, prossegui na diligência. Esta me levara novamente à casa alemã de chope, onde, na véspera, encontrara Old Death. Entrei. A freqüência diminuíra muito. Enquanto no dia anterior não se obtinha um jornal, agora havia sobre as mesas várias folhas abandonadas. Peguei o Deutsche Zeitung, o melhor da época, e que hoje ainda existe; passei os olhos por ele. A primeira coisa que me chamou a atenção foi uma poesia ali estampada. Aliás, quando leio jornais, deixo por último os versos, isto quando os leio. A poesia intitulava-se: “Noite pavorosa”. O nome dramático não a recomendava. Ia passar adiante, quando dei com as duas letras que assinavam a poesia: W. O. As iniciais de William Ohlert! Eureca! Ohlert Júnior tinha-se na conta de poeta. Teria ele, durante a sua estada em Nova Orleans, publicado suas rimas no jornal? Talvez o acolhimento da produção tivesse custado muito dinheiro ao autor. Se essas minhas suposições viessem a ser confirmadas, talvez eu estivesse na pista segura. Resolvi ler a poesia.
NOITE PAVOROSA
Conheces tu, acaso, a noite pavorosa
que com os uivos do vento, tenebrosa,
a terra envolve?... E o céu, turvo e profundo
que, como um negro véu cobre a face do mundo?
Essa noite abismal, — furna, onde o Medo moral?...
Mas deita-te e descansa: há de nascer a aurora!...
Conheces tu a noite, essa noite pavorosa,
assassina da vida, hedionda e tenebrosa?
Ela, o reino da Morte — alta potestade,
— voz por onde esbraveja a voz da Eternidade?
Dorme, porém, tranqüilo e de alma descuidada,
porque a noite da Morte há de ser a alvorada!...
Conheces tu a Noite atroz que invade a mente
e apaga a Consciência, inexoravelmente?...
Noite escura, sem luz, sem ar, sem calma,
— venenosa serpente a enlaçar-nos a alma —
Oh! levanta, e por sobre os teus escombros, chora,
porque essa noite cruel nunca há de ter aurora...
W. O.
Confesso que a leitura desses versos comoveu-me profundamente. Podiam, literariamente, nada valer; o fundo, porém, era o grito de desespero de um homem, que lutava em vão, com a violência da loucura. Dominei, logo, a minha comoção, pois precisava agir. Estava convencido de que William Ohlert Júnior fora o autor daqueles versos; procurei no cabeço do jornal o endereço da redação e para lá me toquei.
Redação, gerência e expedição achavam-se instaladas no mesmo prédio. Comprei na expedição um exemplar do jornal e fiz-me anunciar; recebido, colhi as informações desejadas. Um tal William Ohlert ali estivera e solicitara a publicação urgente dos tais versos. Como o redator se negasse a publicá-la, o poeta depositara na gerência a importância de dez dólares, com a condição de serem os versos publicados na edição do dia e que lhe mandassem as provas para a revisão. Embora se conduzisse com correção, nele se notava algo de anormal; repetira, muitas vezes, que aqueles versos haviam sido escritos com o sangue do seu coração. Deixara o endereço, para a remessa da prova. Morou ou morava ainda numa pensão particular de primeira ordem, situada na parte nova da cidade.
ROMANCE DE AMOR MAL CONTADO
Dirigi-me à referida pensão, depois de disfarçar-me. Busquei dois policiais a quem determinei que se postassem em frente da casa enquanto eu estivesse lá dentro.
Estava mais ou menos convencido de que conseguiria deitar mão no aventureiro e sua vítima. Foi, pois, quase com entusiasmo, que toquei na sineta da casa onde se lia na placa: Pensão de 1ª classe para senhoras e cavalheiros.
Prédio e pensão pertenciam a uma senhora. Fui atendido pelo porteiro a quem pedi que me anunciasse à dona da casa. Entreguei-lhe um cartão de visita, com nome suposto. Fui conduzido à sala de visitas. Daí a pouco veio a dona da casa, uma senhora elegante que aparentava uns cinqüenta anos de idade. Os cabelos um tanto encarapinhados tinham qualquer coisa da raça negra. Recebeu-me com toda a cortesia.
Apresentei-me como redator do folhetim literário do Deutschen Zeitung, mostrei-lhe o exemplar que estampara a poesia de Ohlert e disse-lhe que desejava falar com o autor; que a poesia causara um tal sucesso, que eu vinha trazer os honorários do poeta e solicitar-lhe nova colaboração.
Ouviu-me calmamente, observou-me com toda a atenção e depois disse:
— Então aquele senhor mandou imprimir uns versos no seu jornal? Pena que eu não entendo alemão, senão lhe pediria que os lesse para mim. São bons?
— Excelentes! Já tive o prazer de dizer-lhe que agradaram imensamente aos nossos leitores.
— Isso interessa-me extraordinariamente. Aquele homem causou-me boa impressão. Vê-se logo que se trata de um cavalheiro culto e de muito fina educação. Infelizmente fala pouco e não convive quase com ninguém. Saiu apenas uma vez, talvez no dia em que foi entregar esses versos ao seu jornal.
— Como? Na breve palestra que mantive com o poeta deu-me a entender que fizera levantamento de dinheiro. Logo deve ter saído mais de uma vez.
— Só se o fêz na minha ausência ou talvez encarregasse disso seu secretário.
— Tem um secretário? Disso não me falou. Deve ser então algum ricaço.
— Claro! Paga bem e alimenta-se de iguarias finas. Seu secretário, Mr. Clinton, dirige a sua finança.
— Clinton! Então é um cavalheiro com o qual me encontrei no clube. Veio de Nova Iorque e é um excelente companheiro. Encontramo-nos, ontem, ao meio-dia...
— Exatamente — concordou a mulher. — Ele saiu àquela hora.
— E fizemos logo tão boa camaradagem — continuei — que ele me ofereceu sua fotografia. Não pude retribuir-lhe de pronto a fineza, porque não tinha nenhum retrato comigo. Mas prometi-lhe um para hoje, pois vamos encontrar-nos novamente. Eis a sua fotografia.
Mostrei-lhe o retrato de Gibson que sempre trazia comigo.
— É este mesmo! — disse ela depois de ver o retrato. Infelizmente, porém, o senhor não se encontrará com ele e nem obterá outros versos do senhor Ohlert, eles partiram.
Que má sorte! Dominei a raiva que me invadia e disse:
— Lamento-o sinceramente. Então resolveram partir à última hora?
— Sim. É uma história tocante, muito tocante a desse moço. É claro que nada soube dele mesmo. Não se toca numa ferida a sangrar. O seu secretário, porém, contou-me tudo, em segredo, já se vê. Convém que o senhor saiba que sempre conquisto logo a confiança dos meus hóspedes.
— Creio. A distinção de suas maneiras, o seu trato amável e delicado inspiram, logo à primeira vista, confiança e simpatia — fui dizendo à queima-roupa.
— Oh! meu senhor — disse, quase contrafeita, porém, sensivelmente lisonjeada. A história do pobre moço — prosseguiu — comoveu-me até as lágrimas e muito me alegrarei, se ele conseguir escapar a tempo.
— Escapar? Isso significa que o perseguem!
— Acertou.
— Oh! Interessante! Um poeta tão sublime e genial e perseguido! Como jornalista, e, até certo ponto, colega, estou ansioso por conhecer pormenorizadamente essa história. A imprensa é uma grande potência. Quem sabe, me seria possível tomar a sua defesa? Pena é que essa história tão interessante lhe tenha sido revelada debaixo do mais rigoroso e absoluto sigilo...
A senhora enrubesceu. Tomou de um lenço, não muito limpo, para tê-lo à mão, no caso de necessidade, e disse:
— Como aqueles senhores prosseguiram viagem, não tenho mais compromisso formal com eles de guardar discrição sobre o caso. De resto, sei que a imprensa é poderosa; talvez o senhor consiga defender o pobre rapaz.
— Farei o que puder. Mas para empreender a defesa preciso conhecer minuciosamente o caso.
Confesso sinceramente que tive de fazer grande esforço para dominar a rninha agitação.
— O senhor vai conhecê-lo. O coração me diz que o senhor é digno de saber tudo. É um romance de amor tão sincero, quão infeliz.
— Ah! minha senhora, um amor infeliz é o mais atroz dos sofrimentos, a mais cruel das torturas.
Que conhecia eu do amor naquele tempo?
— Sabe-o de experiência própria?
— Não.
— Então é um homem feliz. Por mim não posso afirmar o mesmo. Sofri tanto em minha pobre vida! Não sei como não me aniquilou a minha dor. Minha mãe era mulata. Sendo noiva do filho de um colono francês, vi a minha felicidade destruída pelo orgulho implacável do pai que não podia conceber a idéia da entrada de uma “morena” na sua família. Imagine quanto me comoveu a sorte do pobre poeta, pela afinidade que existe entre a sua e a minha página de amor.
— Apaixonou-se por alguma mulata?
— Sim. O pai não só se opôs a essa união, mas ainda conseguiu arrancar da moça a renúncia ao casamento em declaração escrita e reconhecida por notário.
— Que pai desalmado! — exclamei em tom amargurado, o que me valeu um olhar bondoso de minha interlocutora.
Gibson soubera inteligentemente fazer vibrar a sensibilidade da melancólica senhora. Sem dúvida, a parladora dama contou-lhe o seu romance de amor e êle arquitetara outro semelhante, a fim de despertar-lhe a compaixão e justificar a partida repentina. De toda a conversa, uma coisa importante conseguira apurar: o nome que usava, agora, o meu herói.
— Sim um pai verdadeiramente desalmado! — concordou a dona da pensão. — Mas William jurou-lhe amor eterno e com ela fugiu até aqui, onde a colocou numa pensão.
— Mas não posso compreender, entretanto, por que motivo abandonou Nova Orleans, assim, de improviso.
— Porque o seu perseguidor aqui chegou.
— O pai mandou persegui-lo?
— Sim e por um alemão; oh, esses alemães! Como eu os odeio! Dizem-se um povo de pensadores. Pensadores podem ser, mas não sabem amar. Esse miserável alemão, munido de uma escritura, anda de cidade em cidade, perseguindo o rapaz. (Tive de rir-me intimamente da raiva da ilustre matrona contra o homem com quem, aliás, conversava tão cordialmente ). — Êle é um policial e está encarregado de prender William e reconduzi-lo a Nova Iorque.
— O secretário não lhe descreveu o tipo?
— Sim, e com exatidão. Provavelmente virá até aqui, em busca do paradeiro de William. E... tomara que venha! Vou fazer-lhe uma recepção como nunca teve outra em toda a vida. Já tenho na ponta da língua tudo o que vou dizer àquele intrujão. Ele não descobrirá para onde foi William. Indicar-lhe-ei uma direção bem oposta.
Pintou-me o policial, o bárbaro, com as mais negras tintas e citou-me o seu nome... que era o meu. A descrição estava certa, embora em termos pouco lisonjeiros para mim.
— Espero-o a cada instante — continuou ela. — Quando me anunciaram o senhor, pensei que fosse ele. Mas, felizmente, me enganara. O senhor não se presta para perseguir dois amantes, para destruir a doce felicidade alheia. Isto se vê logo, pelos seus olhos bondosos. Estou certa de que escreverá um artigo em defesa do infeliz fugitivo.
— Sim, com grande satisfação, minha senhora; mas me é indispensável conhecer o paradeiro atual de William Ohlert.
— Posso informá-lo, mas não garanto que ainda lá se encontre. Ao policial alemão vou dizer que se encaminhou para o noroeste; ao senhor, porém, digo a verdade. O poeta seguiu rumo do sul, para o Texas. Era seu propósito primitivo embarcar para o México, aportando em Vera Cruz. Mas não havia no porto vapor nenhum da linha. A pressa de fugir ao perigo iminente, fê-lo partir no Delfim, com destino a Quintana.
— Mas a senhora tem certeza disso?
— Absoluta. Mal houve tempo de transportar as malas para bordo. Meu porteiro se encarregou desse serviço e falou com diversos marinheiros, os quais o informaram de que o Delfim ia, realmente, até Quintana, com escala por Galveston. Com esse navio, foi-se o senhor Ohlert. O meu porteiro viu o vapor zarpar.
— O secretário e a noiva acompanharam-no?
— Naturalmente. Isto é, a dama, o porteiro não viu; com certeza, achava-se recolhida no camarote das senhoras. Também não perguntou por ela. Costumo habituar os meus serviçais à discrição e cortesia para com os hóspedes. Ora, é lógico que William não partiria, abandonando a noiva à sanha do famigerado alemão, arvorado em Sherloke Holmes. Estou antegozando a cena que se vai passar aqui entre mim e ele. Procurarei primeiramente falar-lhe ao coração e depois, se ousar rir-se à minha custa, depois... veremos. Ele que não se envolva comigo...
A boa senhora estava, realmente, nervosa. Tomara a questão a peito. Gesticulava, sacudia a cabeça, por fim ergueu-se da poltrona, cerrou os punhos, e batendo na porta, disse:
— Venha, venha, seu alemão diabólico... Estou à sua espera. Os meus olhares o fulminarão! As minhas palavras hão de esmagá-lo.
Ouvira o bastante. Podia retirar-me. Não o fiz. Não queria deixar aquela senhora no engano. Parecia-me dever de consciência, esclarecê-la. Não queria que continuasse, por mais tempo, a considerar um canalha como um homem de bem. Por isso disse-lhe:
— Creio que não terá ocasião de fulminá-lo, nem esmagá-lo com seus olhares e suas palavras.
— Por quê?
— Porque a cousa é bem diferente do que a senhora pensa. Tampouco lhe dará pista errada. Ao contrário, esse alemão se tocará diretamente para Quintana, onde efetuará a prisão do tal secretário e de William.
— Impossível! Ele não sabe o paradeiro dos fugitivos.
— Como não? A senhora, em pessoa, lhe disse.
— Eu? Impossível! Quando acha que eu fiz isso?
— Agora, neste instante.
— Senhor, não o compreendo! — disse espantada.
— Vou ajudá-la a compreender. Permita-me, apenas, que eu opere uma transformaçãozinha em mim.
Em seguida, tirei a peruca preta, as barbas postiças e os óculos. Ela assustada recuou.
— Pelo amor de Deus! — exclamou — O senhor não é jornalista? O senhor me iludiu!
— Fui constrangido a isto: a senhora já estava iludida. Essa história da mulata, de começo ao fim, não passa de invenção. Abusaram de sua boa fé e divertiram-se com o seu bom coração. Esse Clinton não é secretário de William. O seu verdadeiro nome é Gibson e trata-se dum embusteiro, dum refinado velhaco ao qual estou encarregado de prender.
Meio desfalecida, afundou na poltrona e disse quase sem voz:
— Não, não! É impossível. Aquele homem, tão amável, tão fidalgo, não pode ser tão canalha. Não acredito!
— A senhora há de acreditar. Ouça-me. Deixe-me falar!
À medida que lhe mostrava a verdade do fato, a sua simpatia pelo secretário tão “amável” e tão “fidalgo” decrescia, para transformar-se em cólera violenta. A pobre reconhecia que fora vítima de grosseiro ludibrio; mostrava-se agradecida por ter eu usado daquele estratagema para arrancar-lhe a verdade.
— Se o senhor não se tivesse disfarçado, — disse ela — não ouviria de mim a verdade e partiria para Nebraska ou Dakota. A atitude de Gibson ou Clinton está a exigir imediata punição. Espero que o senhor sairá sem demora, em sua perseguição, e peço-lhe que ao chegar a Quintana, me escreva, informando-me se conseguiu deitar mão naquele impostor. Peço-lhe também que, de passagem para Nova Iorque traga-o até aqui, para que lhe diga de cara à cara, como o detesto e desprezo.
— Não é empresa fácil, no Texas, apossar-se de um homem e conduzi-lo a Nova Iorque. Ficarei satisfeitíssimo se conseguir arrancar-lhe William Ohlert e salvar, ao menos, uma parte do dinheiro esbanjado pelo caminho. Por enquanto eu ficaria muitíssimo satisfeito se suavizasse um pouco o conceito que forma, dos alemães, “um povo de bárbaros que não sabe amar”. Sinto-me mal quando julgam assim os meus patrícios.
VIAJANDO PELO COLORADO
Ela articulou uma desculpa, assegurando-me que mudara já de opinião. Despedimo-nos cordialmente. Avisei, então, os dois policiais que trouxera, de que o caso estava solucionado. Deslizei-lhes uma gorjeta na mão e fui-me.
De lá me dirigi ao porto.
Andava de azar. O vapor que partia, era direto para Tampico. Passava de largo por Quintana.
Vapor para esta cidade, só daí a dias.
Salvou-me a situação um cargueiro que se fazia de vela para Galveston, naquela mesma tarde.
Em Galveston contava encontrar condução para Quintana. Liquidei depressa os meus negócios e embarquei.
Infelizmente falhou a minha esperança: de Galveston partia um único navio e diretamente para Matagorda, à desembocadura do Colorado, donde, segundo asseveravam, era-me fácil encontrar condução para Quintana. Aproveitei o conselho e disso não me arrependi
Naquela época, a atenção do gabinete de Washington voltava-se para o sul, isto é, para o México; este país se debatia no caos sangrento da luta entre republicanos e monarquistas.
Os Estados Unidos haviam reconhecido a Benito Juarez como presidente da república e o prestigiavam, esforçando-se por mantê-lo no governo, contra Maximiliano, o imperador. O governo norte-americano considerava Maximiliano um usurpador e entrou a exercer tal pressão sobre o imperador francês (Napoleão III), que o forçou àquela declaração de retirada das tropas invasoras do México.
Depois, o triunfo da Prússia, na guerra franco-germânica, constrangendo o imperador francês ao cumprimento da palavra, veio determinar a queda de Maximiliano.
O Texas, desde a irrupção da guerra civil da abolição, se declarara secessionista, colocando-se, ao lado dos estados do sul, os escravagistas. O restabelecimento da paz com a derrota dos sulinos não restituíra ainda à população uma calma absoluta. E os rancores da luta recente, que não estavam ainda extintos, alimentavam um espírito de hostilidade à política dominante, que era a do norte.
A população do Texas era, afinal, na grande maioria, republicana e simpática a Juarez, “o herói indiano”, que não trepidara em fazer frente a Napoleão e ao imperador Maximiliano, rebento da poderosa casa dos Habsburgos. Como, porém, o governo de Washington estava com Juarez, conspirava-se contra o herói. Isso trazia profundas divergências no seio da população do Texas. Uma parte era francamente solidária com Juarez; a outra era-lhe contrária, não por convicção mas por mero espírito de resistência. Essas discórdias constituíam sério perigo para quem, como eu, precisava viajar pelo país.
Não se admitia a neutralidade. Todos tinham de definir-se. O lema parecia ser: ou estão comigo ou contra mim.
Mesmo os estrangeiros não escapavam à arregimentação partidária. Os alemães, como súditos da casa prussiana, olhavam com certa simpatia a causa de Maximiliano; mas os seus brios patrióticos se sentiam melindrados, por ter vindo Maximiliano para o México, sob a égide de Napoleão. Haviam já respirado suficiente ar republicano, para perceberem o objetivo da invasão dos franceses na terra de Montezuma. Os alemães, domiciliados no Texas, consideravam-na uma flagrante injustiça ditada exclusivamente por uma ambição insaciada de glória e renome, para desviar a atenção do povo francês da política viciosa e malsã que campeava no seu próprio país. Por isto, os alemães se mantinham em silêncio, alheios a quaisquer demonstrações políticas, mormente por terem confraternizado, na guerra de Secessão, ao lado dos estados do norte, ajudando a lutar contra os barões do sul.
Tal era a situação de Matagorda quando lá chegamos.
O meu primeiro passo foi informar-me de quando partiria o primeiro vapor para Quintana. Só daí a dois dias, sairia um veleiro. Era obrigado, pois, a esperar e estava indignado com o avanço de quatro dias que me levava Gibson, que assim poderia desaparecer sem deixar indício. Restava-me apenas o triste consolo de haver empenhado toda a minha boa vontade e os meus esforços para desincumbir-me conscienciosamente do encargo que me fora confiado.
Agora, era esperar pacientemente pela saída do navio. Não me restava senão retirar a bagagem e recolher-me a um hotel.
Matagorda era, então, uma localidade muito menor que hoje. Estava situada ao oeste e constituía um porto de menor importância do que Galveston, insalubre e malsã como toda a costa do Texas. O medo de contrair alguma febre me tornava mais ansioso pela partida.
Meu hotel podia comparar-se a uma estalagem alemã de quarta ou quinta classe; o quarto era do tamanho de um beliche de um vapor pequeno e a cama tão curta, que era obrigado a dormir com as pernas ou a cabeça pendente.
Depois de acomodar as malas no hotel, saí para conhecer a localidade. Para chegar à escada fui obrigado a passar diante de um quarto, cuja porta aberta deixava ver estendidos no assoalho um par de arreios e um freio com o arreame. Ao canto estava uma velha garrucha de pé. Tudo me fez lembrar Old Death. Seria a equipagem do velho caçador?
Saí e comecei a percorrer, vagarosamente, as ruas da localidade. Ao dobrar a esquina, levei um encontrão dum homem que vinha em sentido oposto.
— Com mil raios! — exclamou ele — Tenha mais cuidado, senhor.
— Arre! mas é ainda mais descuidado do que eu!... Parece que vai salvar alguém da forca — respondi-lhe sorrindo.
Ele recuou um passo, olhou-me e exclamou:
— Oh! Eis o “lambari” alemão que negou ser um detetive! Que anda fazendo por aqui, sir? Procura alguém já sei...
— Mas não ao senhor, mestre Death! Esteja sossegado!...
— Disso sei eu! O senhor parece pertencer àquela classe de gente que nunca acha o que procura e que vivem a esbarrar, a todo passo, com as pessoas que não lhes interessam... Em todo caso, deve estar com fome e sede. Venha comigo; vamos “ancorar” num local onde haja boa cerveja. A cerveja de sua pátria em toda parte faz quartel. Até aqui nesta biboca se encontra. É, aliás, o melhor produto que se pode obter dos alemães. Onde se hospedou?
— Lá embaixo, no hotel Tio Sam.
— Também me arranchei por lá!
— Seu quarto não é aquele onde se acha um par de arreios e uma garrucha?
— Acertou. Deve saber que nunca me separo daqueles objetos. São para mim relíquias. Um bom cavalo encontra-se em toda parte, mas não um bom par de arreios. Mas... venha, sir. Há pouco, estive numa bodega onde se bebe cerveja bem fresquinha. Estou disposto a tomar mais alguns copos.
Conduziu-me a um barzinho onde se vendia cerveja, aliás por bom-preço. Éramos os únicos fregueses. Ofereci-lhe um charuto, que não aceitou. Cortou, porém, um naco de fumo e começou a mascá-lo.
— Bem, — disse, por fim — agora estou a seu dispor. Estou ávido por saber que ventos o tocaram até cá. Favoráveis?
— Ao contrário!
— Então quer dizer que nem pretendia vir até cá?
— Não. Tencionava seguir para Quintana. Como não encontrei condução vim para cá onde, disseram-me, seria fácil tomar um vapor que me levasse ao porto desejado. Infelizmente, para consegui-lo, sou forçado a permanecer aqui dois longos dias.
— Espere com paciência, sir! E console-se com a doce convicção de que é um desastrado!
— Bonito consolo!
— Aliás comigo não ocorre cousa melhor; perambulo por aqui, por castigo de minha morosidade. Pretendia seguir para Austin e, de lá, para diante, talvez até o Rio Grande del Norte. A época é propícia. Choveu e o Colorado está cheio. Os navios de fundo chato podem correr facilmente, o que não lhes acontece durante a maior parte do ano, pela escassez de água.
— Ouvi dizer que uma barra impede a navegação.
— Não é, propriamente, uma barra mas uma formidável barreira de Oito milhas inglesas, formada das madeiras que as marés foram acumulando ali. Vencido o obstáculo, a navegação torna-se franca dali para diante.
— Mas como vencê-lo?
— Transportando-se até lá, a cavalo ou a pé. Era o que eu pretendia fazer. Mas a cerveja alemã não me permitiu; bebi e bebi, retardei-me em Matagorda. Quando atingi a barreira, o navio ia saindo. Tive de voltar com os arreios às costas, para esperar até a madrugada, pela partida do próximo barco.
— Então, somos companheiros de infortúnio... E o senhor deve resignar-se. Console-se comigo, certo de que é também... um desastrado!
— Absolutamente! Alto lá! Não ando perseguindo ninguém e para mim é indiferente chegar a Austin hoje, amanhã ou daqui a uma semana. O que me enraiveceu foi ter servido de divertimento àquele miserável. Da coberta pôs-se a rir ironicamente, quando me viu parado à margem, com os arreios ao ombro. Mal o encontre, seja onde fôr, hei de esbofeteá-lo, com muito mais vigor, que da nossa última viagem.
— Com que, então, andou envolvendo-se em desordens, sir?
— Desordens? Que pretende dizer com isso, sir? Old Death nunca foi desordeiro. Mas no Delfim, onde viajei para aqui, havia um indivíduo que não perdia vasa de mofar de minha figura. Perguntei-lhe de que se ria e ele me respondeu que era o meu esqueleto que o trazia em constante bom humor. Vibrei-lhe então um sopapo que o arremessou ao solo. Quis reagir, investindo contra mim, de revólver em punho; mas o capitão do navio o conteve, fazendo-o desistir da represália. Fora bem feito, disse o comandante. Quem o mandou zombar dos passageiros? Foi por isso que aquele maroto zombou de mim quando viu que fiquei “a ver navios”. Fêz-me pena um rapaz que o acompanhava. Parecia um cavalheiro distinto; anda, porém, sempre tão triste e contemplativo! Dá a impressão, às vezes, de um alienado.
As suas últimas palavras despertaram-me a atenção.
— Um doente mental? — perguntei. — Sabe, por acaso, o seu nome?
— O capitão chamava-lhe Mr. Ohlert.
Foi como se houvesse recebido um golpe na cabeça. Prossegui avidamente nas perguntas:
— Hum! E seu companheiro como se chamava?
— Clinton; se não me falha a memória.
— Será possível?! Será possível? — exclamei erguendo-me da cadeira. — E esses dois homens viajaram com o senhor no mesmo navio?
Old Death olhou-me espantado e perguntou:
— Que tem o senhor? Está possesso? Levantou-se da cadeira como um foguete! Interessam-lhe esses dois homens?
— Muito! Muitíssimo! São exatamente os homens que procuro.
O seu rosto tornou a iluminar-se com aquele sorriso de amabilidade que repetidas vezes eu notara.
— Bravo! Bravo! — disse meneando a cabeça. — Afinal, confessa que anda no encalço de alguém? E precisamente desses dois viajantes? Hum! O senhor é, na realidade, um greenhorn, sir! O senhor mesmo é culpado de lhe haver fugido a presa.
— Como assim?
— Por que não foi sincero comigo, quando nos encontramos em Nova Orleans?
— Não me era permitido — respondi-lhe.
— Tudo é permitido, desde que conduza a um objetivo sério. Tivesse o senhor me falado com franqueza, e aqueles homens estariam agora em seu poder. Eu os teria reconhecido, logo que embarcaram, e os prenderia ou mandaria prender. Reconhece, agora, que procedeu mal?
— Não há dúvida; mas quem adivinharia que o senhor iria encontrar-se com eles, em tais circunstâncias? De resto, eles não se dirigiram para Matagorda e sim para Quintana.
— Isso foi o que eles disseram. Nem sequer desceram naquela localidade. Seja inteligente e conte-me, afinal, toda essa história. Talvez possa auxiliá-lo na captura dos fugitivos.
O homem era bem intencionado. Não tinha o propósito de enganar-me, e por isso sentia-me intimamente envergonhado. Ontem negara-me a contar-lhe o caso e hoje as circunstâncias constrangiram-me a fazê-lo. Tirei do bolso as duas fotografias, passei-as às mãos de Old Death.
— Antes de tudo, veja esses retratos! São essas as pessoas a quem O senhor se referiu?
— Sim, sim! São elas mesmas! — exclamou, depois de lançar um olhar sobre os retratos. — Não tenho a menor dúvida!
Então, contei-lhe, sinceramente todo o caso. Finda a narrativa, sacudiu a cabeça e disse:
— Compreendi tudo. Mas, diga-me cá, esse William Ohlert é totalmente desequilibrado?
— Não entendo nada de doenças mentais, mas acho que se trata apenas dum caso de monomania, pois, excetuada a mania de ser poeta, é um indivíduo perfeitamente equilibrado.
— Neste caso, é incompreensível como se deixa arrastar, pela influência de Gibson. Parece obedecer-lhe em tudo. O patife, então, aproveita-se largamente da monomania do seu pobre companheiro. Espero, porém, que nos seja ainda possível pôr fim a esse abuso, esse crime.
— Está, então, convencido de que eles se acham em caminho para Austin? Ou quem sabe tencionam desembarcar nalgum outro porto de escala?
— Ohlert, pelo menos, declarou ao comandante que seguiam para Austin.
— É de admirar. Ele não poderia dizer o destino certo que ia tomar.
— Por quê? Ohlert talvez nem saiba que está sendo perseguido. Talvez ignore mesmo que está trilhando caminho errado. Em sua boa fé, pensa estar procedendo com sensatez. Vive para a sua idéia e o resto deixa a cargo de Gibson. Nessas circunstâncias não julgou imprudente dizer ao capitão a localidade para onde viajava. Que pensa agora fazer?
— Naturalmente, prosseguir na diligência e isso sem perda de tempo.
— Calma! Não se impaciente! Só amanhã cedo é que poderá seguir. Antes não há vapor.
— Quando chegaremos lá?
— Com a atual baixa das águas, só depois de amanhã.
— Que tempo enorme!
— Mas tenha em vista que, em virtude do mesmo embaraço, também os fugitivos lá chegarão mais tarde. É bem possível até que o vapor tenha encalhado pelo caminho; se isso sucedeu, há sempre muita demora em fazê-lo safar-se novamente.
— Se a gente soubesse até onde pretende Gibson arrastar Ohlert!
— É um enigma. O dinheiro que até agora embolsou bastaria para fazê-lo abastado. Ser-lhe-ia, pois, fácil, desaparecer com todas as importâncias e abandonar simplesmente a sua vítima, em qualquer lugar. Se isso não faz é porque pretende continuar a explorá-lo. Interesso-me sobremodo por este caso. E, como vamos seguir pelo mesmo caminho, ponho-me à sua disposição, para auxiliá-lo, no caso de necessitar dos meus serviços.
— Aceito o seu oferecimento profundamente reconhecido, sir. Inspira-me muita confiança. Grande é a sua bondade e estou certo de que muito me valerá.
Apertamos as mãos e esvaziamos os copos.
Por que desconfiara do homem?
REPELINDO OS DESORDEIROS
O garção acabava de encher novamente os copos, quando se ouviu lá fora uma algazarra. Eram vozes humanas de mistura com latidos de cães. A algazarra cada vez se aproximava mais. A porta se abriu aos encontrões e por ela entraram seis homens que, a julgar pelos gestos, já deveriam ter ingerido boa dose de álcool. Eram rústicos; vestiam roupas leves de verão e usavam lindas armas. Cada um deles estava armado de espingarda, faca e revólver ou pistola. Além disso traziam, pendente do cinto, um enorme chicote e cada um conduzia numa forte corda um cão enorme. Eram animais de tamanho muito grande, dos que se utilizavam no sul para a caça de escravos fugidos e que denominavam-se “cães sangrentos” ou “pega-homens”.
Os do bando não nos cumprimentaram. Foram logo nos dirigindo olhares provocadores. As cadeiras rangeram, tal a força com que se sentaram. Atiraram os pés para cima das mesas, onde batiam com o salto das botas. Em altos brados, chamaram o dono do bar.
— Homem, tens chope? — perguntou-lhe um deles gritando. — Chope alemão?
O dono da casa, amedrontado, respondeu afirmativamente.
— Então queremos bebê-lo. Mas és também alemão?
— Não.
— É tua sorte! A cerveja dos alemães é boa e gostamos dela. Mas esses abolicionistas, que auxiliaram os estados do norte, são os culpados de havermos perdido os nossos empregos; eles hão de morrer nas fornalhas do inferno.
O taverneiro retirou-se apressado para traz do balcão, a fim de atender o mais depressa possível aos impertinentes fregueses. Eu me havia voltado a fim de olhar para o que falava. Estou convencido de que nem ao movimento e nem ao olhar eu imprimira a menor expressão de ofensa; mas o homem, ao que parecia, não estava disposto a se deixar ver ou tinha saudade de lutar, pois berrou em minha direção:
— Que está a me olhar? Não falei, talvez, a verdade?
Retornei à posição primitiva, sem lhe responder.
— Tome cuidado! — cochichou-me Old Death — São amotinadores da pior espécie: os antigos feitores de escravos, cujos patrões, com a abolição, abriram falência e tiveram de despedi-los; agora reuniram-se em bandos e praticam as maiores tropelias e desordens. É melhor não lhes darmos importância. Tomemos depressa a nossa cerveja e retiremo-nos.
Precisamente esse cochicho não agradou ao homem. Tornou a gritar em nossa direção:
— Que tem a falar em segredo, maldito magricela? Se é de nós, fale alto, porque do contrário, nós lhe abriremos a boca!
Old Death levou o copo aos lábios e bebeu, também, o insulto. O dono da casa trouxe-lhes a cerveja, e eles a provaram. Era de fato boa; mas os homens estavam, mesmo, ávidos de desordens. Pegaram dos copos e derramaram a cerveja no chão. Aquele que há pouco tomara a palavra e que empunhava ainda o copo cheio, olhando-nos exclamou:
— Não no solo! Ali estão dois sujeitos a quem um banhozinho de cerveja não faria mal.
Ergueu-se e juntou o ato à palavra. Old Death calmamente enxugou, com a manga do casaco, o líquido que lhe atingira as faces; eu, porém, não pude conter-me diante de tal insolência. Meu chapéu, colarinho, casaco, tudo estava molhado. Virei-me e disse:
— Sir, peço que não repita essa façanha.! Faça troça com os de sua roda. É favor deixar-nos em paz!
— Ahn! Que faria se eu lhe fizesse uma segunda lavagenzinha?
— Experimente!
— Vou experimentar. Oh! taverneiro, mais um chope! Os demais riam e aplaudiam.
Animado, estimulado, ele ia repetir a ofensa.
— Por amor de Deus, sir, não se envolva com essa gente! — advertiu-me Old Death.
— Tem medo deles? — perguntei-lhe.
— Não faltava mais nada! Mas eles são a maioria e estão armados. Contra uma bala traiçoeira nada pode o homem, por mais corajoso que seja. Além disso, tenha em conta os cães.
Os cães estavam atados às pernas da mesa. Para não ser alvejado pelas costas, mudei de posição, sentando-me de modo que desse a direita aos bandoleiros.
— Oh! Toma posição! — disse rindo-se o nosso agressor. — Pretende, talvez, reagir. Mas assim que fizer o menor movimento, soltarei Pluto contra êle. Está mesmo amestrado para lutar com homens.
Desamarrou o cachorro, que segurava, agora, pela corda.
O taverneiro ainda não lhe trouxera a cerveja encomendada. Tínhamos tempo bastante para pagar a conta e safar-nos dali. Mas eu estava certo de que o bando não nos deixaria sair em paz e, além disso, repugnava-me uma fuga diante de indivíduos tão desprezíveis. De resto, todo fanfarrão é em geral, no fundo, covarde.
Levei a mão aos bolsos e preparei o revólver. Para uma luta corporal tinha confiança em mim; estudava agora um meio de subjugar o cão. Já lidara com animais dessa espécie e, neste particular, pois, também levava alguma vantagem.
Eis que chega o taverneiro com a cerveja. Depôs os copos sobre a mesa e, em tom de súplica, pediu:
— Cavalheiros, a vossa visita me é bastante honrosa; mas, peço-vos, não provoqueis aqueles dois senhores. Eles também são meus fregueses!
— Canalha! — berrou-lhe um deles — Queres dar-nos lição de boas maneiras? Espera, que já acalmaremos tuas manias de bom tom.
E o conteúdo de dois ou três copos foi despejado no taverneiro, que julgou mais prudente abandonar a sala.
— Agora liquidemos contas com aquele prosa! — bradou o meu contendor.
Segurando o cachorro com a mão esquerda, com a direita tomou do copo e arremessou a cerveja para o meu lado. Levantei-me da cadeira, desviando-me, de modo que o líquido não me atingiu. Ergui o punho a fim de avançar contra ele e dar-lhe uma boa lição. Mas ele avançou e veio ao meu encontro.
— Pluto, go on! (Pega) — exclamou, soltando o animal.
Tive ainda tempo de me encostar à parede; o animal deu um salto, semelhante ao do tigre. Estava a uns cinco passos de mim. Noutro salto me estrangularia, se eu permanecesse parado. Mas, exatamente, quando deu o bote, eu me afastei para o lado e ele foi bater com o focinho na parede de pedra. O seu salto foi tão violento que caiu no chão, desacordado; rapidamente, agarrei-o pela cauda e o arrojei de encontro à parede, partindo-lhe a cabeça.
Ouviu-se, então, uma algazarra dos diabos. Os demais cães uivavam e tentavam desprender-se dos pés da mesa, arrastando-a a alguma distância; os bandoleiros blasfemavam e o dono do cão morto tentava agredir-me. Nessa altura, porém, Old Death ergueu-se e, apontando seus dois revólveres para os bandoleiros, bradou:
— Basta! Mais um passo ou menção de sacar das armas e eu atiro. Os senhores enganaram-se conosco. Eu sou Old Death, o escoteiro. Penso que já ouviram falar em mim. E esse jovem é meu amigo e tampouco os teme. Sentem-se e tomem, com modéstia, as suas cervejas! Não levem as mãos aos bolsos, senão atiro!
Essas palavras foram dirigidas a um dos feitores que levava a mão ao bolso, para sacar do revólver. Também eu empunhava meu revólver. Nós os dois possuíamos dezoito tiros. Antes que um chegasse a sacar da arma, tombaria, debaixo de nossas balas. O velho escoteiro transfigurou-se. Erguera o busto quase sempre curvado. Os olhos brilhavam e sua fisionomia estava iluminada por uma energia tão grande, que parecia não temer resistência. Era de admirar como a arrogância do bando se transformara em medo. Falavam baixinho e nem o dono do cão que eu matara, se animava a vir até a porta.
Empunhávamos, ainda, os revólveres, ameaçadoramente, quando entrou outro freguês. Um índio.
Ostentava um traje de couro branco curtido, revestido de bordados de fios vermelhos. A brancura da roupa não era maculada por mancha alguma, nem pela mais leve poeira. Calçava finíssimas sapatilhas indianas, e ao pescoço trazia o calumet e a “bolsa da medicina”. O colar era de dentes e garras de urso cinzento. À cintura trazia dois revólveres e uma faca. Na mão direita, uma arma de dois canos, cujo madeiramento estava todo revestido de pregos de prata. Trazia a cabeça descoberta e nos lindos, cabelos negros, caídos até os ombros, não se via a pena de águia, insígnia do cacique; no entanto, já à primeira vista, esse jovem dava a impressão de ser um cacique, um famoso guerreiro. O leitor já deve ter percebido quem era esse índio. Não era outro senão Winnetou, o cacique dos apaches. Ficou, por um instante, parado à porta. Percorreu com o olhar a sala e os presentes. Entrou, depois, e sentou-se a uma mesa próxima da nossa, um pouco afastado dos bandoleiros.
Já me ia erguendo a fim de correr ao seu encontro e abraçá-lo com efusão, mas ele fêz que não me via, embora eu estivesse convencido de que me reconhecera, desde a porta. Devia ter motivos para assim proceder, por isso, contive-me e mostrei-me indiferente.
À sua entrada, seguiu-se um silêncio sepulcral na taverna. Esse silêncio convenceu o taverneiro de que o perigo passara. Meteu a cabeça pela fresta de uma porta e, só depois de certificar-se de que a calma se restabelecera, foi que voltou para a sala.
— Dê-me um copo de cerveja! — disse o índio com voz sonora e num inglês fluente.
Isto causou estranheza aos ex-feitores. Começaram a falar em voz baixa. Nos olhares furtivos que, de vez em quando, lançavam ao índio, percebia-se que boa coisa não tramavam contra ele.
Trouxeram-lhe a cerveja. Ergueu o copo contra a luz da janela, examinou-a como conhecedor e, depois, tomou-a.
— Well! (Bem!) — disse ao dono do botequim, depois de haver bebido. — A sua cerveja é boa. O grande Manitou dos peles-brancas ensinou-lhes muitas ciências. Entre estas, o fabrico da cerveja ocupa lugar de relevo.
— Parece incrível que aquele homem seja índio — disse eu baixinho a Old Death, fazendo como se Winnetou me fosse desconhecido.
— Sim, é um índio e que índio! — respondeu-me baixinho, mas sublinhando as palavras.
— Conhece-o? Já o viu alguma vez?
— Jamais o tinha visto. Mas conheço-o pela figura, e pela elegância do vestir e, principalmente, pela sua espingarda, a célebre “espingarda de prata”, que nunca errou o alvo. O senhor teve agora a sorte de conhecer o mais afamado chefe indígena dos Estados Unidos, Winnetou, o cacique dos apaches. O seu nome corre de palácio em palácio, de cabana em cabana, de fogueira em fogueira. Justiceiro, inteligente, leal, fiel, orgulhoso, altivo, valente em extremo, mestre no manejo de todas as armas, um amigo e defensor dos fracos e necessitados, sejam brancos ou vermelhos, o seu nome é pronunciado em toda parte com profundo respeito.
— Mas como aprendeu ele a língua inglesa e adquiriu aquelas maneiras distintas de cavalheiro?
— Freqüenta muito as cidades do leste e diz-se que um cientista alemão, caindo prisioneiro dos apaches, fora por estes tão bem tratado, que resolveu ficar definitivamente com eles, a fim de civilizá-los. Esse cientista foi o professor de Winnetou, mas não conseguiu generalizar na taba os seus sentimentos filantrópicos, degenerando-se ele mesmo, a pouco e pouco.
Falávamos muito baixinho; mal podia compreendê-lo. No entanto o índio, voltando-se para o meu amigo, falou:
— Old Death engana-se. O cientista pele-branca procurou os apaches e foi acolhido com hospitalidade. Foi professor de Winnetou e ensinou-lhe a ser justiceiro e a distinguir a verdade da mentira. Nunca degenerou e foi sempre estimado e respeitado por toda a tribo. Quando morreu, foi-lhe erigido um túmulo e sobre ele plantado um carvalho. Partiu para as eternas savanas verdejantes, remanso dos justos, onde não se conhece distinção de raças e cores. Lá Winnetou ainda há de vê-lo, um dia.
Old Death sentia-se feliz por ter sido reconhecido pelo índio. Seu rosto iluminou-se de satisfação, quando lhe perguntou:
— Como, senhor, conhece-me?!
— É a primeira vez que o vejo; mas conheci-o logo, quando aqui entrei. Seu nome corre por todo o oeste e seus feitos são cantados em todas as fogueiras, até além de Animas.
Ditas essas palavras, o índio silenciou e ficou com o olhar contemplativo e vago.
Os malfeitores continuaram a cochichar, entreolhando-se como a ultimar um acordo. Não conheciam aquele índio nem conseguiram depreender, pela palestra de há pouco, quem era. Estavam ávidos por vingar-se no índio da derrota que lhes infligíramos pouco antes. Queriam fazê-lo sentir quanto consideravam desprezível um pele-vermelha. Ao concertarem o plano, julgaram, por certo, que Old Death e eu não nos colocaríamos ao lado de Winnetou. Um deles, o mesmo que me insultara momentos antes, levantou-se e encaminhou-se lentamente, e em atitude provocadora, para o cacique. Tirei do bolso o revólver e coloquei-o na mesa diante de mim, para tê-lo à mão.
— Não é preciso, — murmurou Old Death — Winnetou sozinho esmaga-os, embora sejam duas vezes mais numerosos.
O desordeiro plantou-se diante do cacique, pôs as mãos nos quadris e, mirando-o com desdém, perguntou:
— Que perdeste, aqui, em Matagorda, vermelho imundo? Não toleraremos a presença de um selvagem em nossa companhia.
Winnetou nem se dignou olhá-lo. Levou o copo aos lábios, bebeu e, estalando a língua, colocou-o de novo sobre a mesa.
— Não ouviste o que te disse, pele-vermelha excomungado?! Quero saber o que pretendes aqui? Andas por aí a espionar-nos? Os peles-vermelhas colocaram-se ao lado de Juarez, o canalha cujo couro é também vermelho. Nós, porém, somos partidários do imperador Maximiliano e enforcaremos todo o pele-vermelha que encontrarmos pelo caminho. Se não gritares, já e já, “Viva o imperador Maximiliano!”, te poremos a corda no pescoço!
Também a essa invectiva o cacique não respondeu. Nem sequer contraiu um músculo da face.
— Não me compreendes, cão?! Responde, anda! — bradou-lhe, levantando o punho fechado.
O índio ergueu-se, então, de chôfre:
— Para trás!! — bradou em tom de comando — Não tolero que um coiote me uive aos ouvidos.
Coiote é um lobo das campinas, muito covarde e considerado animal desprezível. É grave ofensa dar-se esse nome a um homem.
Os índios usam essa expressão sempre que desejam ferir o adversário.
— Coiote! — exclamou o ex-opressor de escravos — Este insulto me pagarás com a vida e já!
Sacou do revólver e... no mesmo instante, ocorreu o que não se esperava: o apache arrancou-lhe a arma da mão, segurou-o pelos quadris, ergueu-o e atirou-o de encontro à janela a qual, juntamente com o desordeiro, voou para a rua em estilhaços
Cena rápida. O ruído dos estilhaços da vidraça, o uivar dos cães e o blasfemar dos demais produziam um barulho infernal, que Winnetou dominou com sua voz sonora. Chegou-se aos companheiros do seu antagonista e disse:
— Também algum dos senhores quer voar? É só dizer, não façam cerimônia!
O cacique aproximara-se demasiadamente de um dos cães. O animal tentou abocanhá-lo, mas o apache desferiu-lhe um pontapé que o fêz recuar grunhindo, para baixo da mesa. Os ex-feitores recuaram intimidados e silenciaram. O índio nem sequer puxou de uma arma. Impunha-se por si mesmo. Nenhum ousou responder-lhe. Parecia um domador de feras, que dominou a selvageria de um tigre, apenas com o olhar.
De repente, a porta abriu-se aos encontrões e o feitor que voara pela janela apareceu. Tinha o rosto levemente ferido. Sacou da faca e, urrando como um leão, investiu contra Winnetou. Este afastou-se um pouco e, num salto, agarrou a mão que empunhava a faca, fazendo-a cair ao solo. Pegou o agressor, como da primeira vez, e arrojou-o ao solo, onde ficou estirado, sem sentidos. Nenhum dos demais fêz um movimento em defesa do companheiro. Em seguida, Winnetou tornou a sentar-se à mesa e, calmamente, como se nada houvesse ocorrido, continuou a tomar sua cerveja. Depois chamou o taverneiro com um aceno, puxou do bolso uma bolsinha de couro, donde tirou um objeto amarelo, que colocou na mão do dono da casa, dizendo:
— Fique com isto pela cerveja e pela janela que despedacei. Vê, pois, que o “selgavem” costuma pagar suas dívidas. Faço votos que consiga também receber o seu dinheiro daqueles “civilizados”. Eles não querem tolerar a presença de um pele-vermelha em sua companhia. Winnetou, o cacique dos apaches, vai retirar-se. Não por temor dessa corja, mas porque dela sente repugnância.
Tomou da espingarda de prata e abandonou o local, sem dirigir um só olhar aos que enfrentara. A mim também não olhou.
O bando dos ex-feitores reanimou-se. Estavam, porém, mais curiosos do que encolerizados, envergonhados e apreensivos com a sorte do companheiro, que jazia sem sentidos no solo. Perguntaram primeiro ao taverneiro o que lhe dera Winnetou.
— Um bloco de ouro — respondeu-lhes o dono da casa, mostrando uma peça de ouro do formato de uma avelã. — Um bloco de ouro que vale no mínimo uns doze dólares. Pagou-me generosamente. A janela não valia nada. Estava velha e já caía aos pedaços. Ele tem a bolsinha recheada.
Os ex-feitores deram demonstrações de raiva, ao ver que um pele-vermelha possuía tanto ouro. A peça de ouro passou de mão em mão e todos procediam à sua avaliação. Aproveitamos a ocasião para pagarmos nossas despesas e retirar-nos.
— Afinal, que diz daquele apache? — perguntou Old Death, quando já nos achávamos na rua. — Acha que existe outro igual? Os canalhas fugiram dele espavoridos, como pardais à aproximação do falcão. Pena é não tornarmos a vê-lo! Devíamos tê-lo seguido, pois eu gostaria de saber que anda a fazer por aqui, se está acampado nos arredores da cidade, ou se tomou pouso nalguma estalagem. Deve ter deixado o cavalo por perto. Apache nunca abandona o corcel. E quanto ao senhor, meu caro sir, agradou-me muito a sua valente atitude. Cheguei a temer pelo senhor, pois é sempre um perigo lutar com gente daquela espécie; a astúcia com que enfrentou o cão, deixa prever que não será, por muito tempo, um greenhorn. Estamos chegando ao nosso hotel. Vamos recolher-nos? Um velho campineiro, como eu, não ama a solidão das quatro paredes de um quarto; prefiro ter sobre mim este belo céu azul. Vamos vagar mais algum tempo, por essa “linda” Matagorda. Não vejo outro modo de matar o tempo. Ou prefere jogar?
— Não. Não sei jogar, nem tenciono aprender.
— Faz muito bem, caro jovem! Aqui, porém, quase todo mundo joga. E o jogo está ainda mais em voga no rumo do México. Ali se joga tudo e as facas nunca estão firmes à cinta... Vamos, então, deleitar-nos com um passeiozinho pela cidade. Depois disso iremos dormir. Aproveitemos a ocasião. Nesta santa terra a gente nunca sabe como e onde vai descansar os ossos, na noite seguinte...
— Acho que a situação não é tão grave.
— Não se esqueça, sir, de que está no Texas, cuja situação ainda não se normalizou. Tencionamos, por exemplo, seguir para Austin. Mas não sei se chegaremos até lá. Os acontecimentos no México tiveram também a sua repercussão nesta zona. Além disso, como estamos perseguindo Gibson, é possível que tenhamos de ficar nalgum porto de escala, onde o sedutor, desistindo de ir a Austin, tenha desembarcado.
TRAJADO DE CAMPINEIRO
— Como descobriremos que ele ficou pelo caminho?
— Indagando. A navegação, aqui no Colorado, não é tão rápida, como no Mississipi. Os vapores sempre ancoram durante algum tempo nos portos de escala. Assim disporemos de um quarto de hora para as nossas investigações. Podemos até, em muitas localidades, descer à terra e sindicar.
— Mas quem cuidará das minhas malas?
Soltou uma gargalhada.
— Malas, malas! — exclamou depois. — Levar consigo malas, quem viaja por essa zona! De resto é hábito antediluviano! Qual o homem sensato que, numa viagem acidentada, como esta, conduz tal fardo? Se em todas as minhas jornadas eu houvesse levado comigo tudo de que necessitasse, jamais teria avançado. Leve apenas o que fôr indispensável, o mais compre na ocasião em que necessitar. Que há de importante naquelas caixas velhas?
— Fatiotas, roupa branca, objetos de toucador, peças para disfarces, etc.
— São objetos bonitos e úteis, não há dúvida, mas que podem ser adquiridos em qualquer parte. Usa-se uma camisa, até ficar imprestável. Depois compra-se outra. Objetos de toucador!? Não me leve a mal, sir, mas escovas de cabelo e de unhas, pomadas, cosméticos e cousas semelhantes, são objetos que só servem para envergonhar um homem. Peças para disfarce? Elas de muito lhe poderiam servir nos lugares de onde veio; mas para onde vamos agora, esses objetos já não têm mais serventia. Por aqui, nada lhe adianta uma cabeleira postiça. Essas tolices românticas não o conduzirão ao objetivo visado. Aqui o lema é: “mãos à obra”. Patacoadas para nada servem. Além disso...
Parou, olhou-me de alto a baixo e prosseguiu:
— Com esse traje, o senhor está em condições de penetrar num salão ou num teatro, por mais elegantes e exigentes que sejam. O Texas, porém, em nada se parece com um salão de recepções ou camarote de teatro! É bem fácil acontecer que, dum momento para o outro, a sua linda fatiota esteja em frangalhos e o seu chapéu cilindro adquira o formato de uma gaita de foles. Sabe para onde foi Gibson? Naturalmente, para o Texas. É obrigado a fugir e terá que atravessar as fronteiras dos Estados Unidos. Pela rota que vai levando, conclui-se que pretende fugir para o México. Com o caos que vai por esse país, fácil lhe será refugiar-se e ninguém, nem mesmo a polícia, nos ajudará a prendê-lo.
— Talvez o senhor tenha razão. Mas sou de opinião que, se pretendesse fugir para o México, tomaria logo um vapor que o conduzisse diretamente a um dos portos daquele país.
— Tolice! Foi obrigado a abandonar Nova Orleans apressadamente e embarcou no primeiro vapor que apanhou sem cogitar do destino. Além disso, os portos mexicanos estão em poder dos franceses. E sabe o senhor se ele está nas boas graças dos ocupantes? O fato é este: o fugitivo não se demorará nos grandes centros, para não ser visto e preso, e empreenderá a fuga, por terra, em direção à fronteira. Não tocará, portanto, em Austin e desembarcará nalgum porto intermediário. Daí seguirá, a cavalo, até Rio Grande del Norte. E pretende o senhor arrastar toda a sua bagagem por caminho tão acidentado? Pretende, em viagem, ostentar esse traje finíssimo e esse cilindro? Afianço-lhe que se expõe ao ridículo!
Eu sabia muito bem que ele tinha razão. Mas, para me divertir um pouco mais, comecei a contemplar a minha fatiota como se me despedisse dela com pesar. Ele, então, pôs-se a rir e, colocando as mãos sobre meus ombros, disse:
— Não tenha tanta pena de sua indumentária; separe-se duma vez dessa vestimenta incômoda. Venda o fato e todas as bugigangas que estão a embaraçar-lhe os movimentos, a um desses negociantes que se encontram às dúzias, por aqui; adquira vestimenta mais apropriada. O senhor vai precisar de uma roupa de escoteiro. Penso que dispõe de meios para adquiri-la, não é assim?
Acenei afirmativamente e ele prosseguiu:
— Então?! Fora com estas futilidades! O senhor sabe cavalgar e atirar! Necessita de um cavalo, mas aqui no litoral não convém comprá-lo. A cavalhada aqui é cara e péssima. Nas campinas é fácil adquirir-se um bom animal. O mesmo não acontece em relação ao serigote. Deve comprá-lo aqui.
— Devo andar como o senhor, de lombilho às costas?
— Por que não? Constrange-se disso? Tem vergonha do povo? É da conta de alguém que ande de serigote às costas? Absolutamente não! Se eu quiser, carrego até um sofá comigo para nele descansar, quando jornadeio pelas campinas ou pela mata virgem. E ninguém tem nada com isso. E se alguém mofar de mim, dou-lhe um murro nas narinas, que verá as estrelas ao meio-dia. A gente só se deve envergonhar de cometer ações indignas. Se Gibson desembarcou e se dirigiu a cavalo para a fronteira, o senhor verificará quantos serviços relevantes lhe prestará um serigote carregado às costas. Bem! É independente. Faça lá o que quiser. Porém, se pretende que eu o acompanhe, siga minha orientação! Decida depressa!
Porém, sem esperar a minha decisão, tomou-me pelo braço e arrastou-me para um estabelecimento onde se lia: Store for ali things.
Ali chegado, empurrou-me, por assim dizer, porta a dentro.
O letreiro correspondia, de fato, à realidade. A casa dispunha de va-riadíssimas mercadorias.
A cena que se seguiu foi única no seu gênero. Eu me assemelhava ao menino que o pai severo leva a uma casa para supri-lo de roupa: não se pode manifestar. É obrigado a conformar-se com o que fôr escolhido pelo pai. Old Death foi logo impondo as suas condições. O comerciante compraria a fatiota que eu ostentava e todos os objetos que possuía dentro de minhas malas. A proposta foi aceita e o negociante expediu logo um carregador em busca da minha bagagem. Quando este voltou, todos os objetos foram avaliados e o meu companheiro começou a fazer-me as compras. Adquiriu um par de calças de couro preto, um par de botas de cano alto, um par de esporas, uma camisa de lã encarnada, um colete do mesmo tecido, com uma infinidade de bolsos, um jaquetão de caça, um cinturão, cachimbo, fumo, bússola e um sem-número de outras miudezas, bem como um bom serigote. Depois comprou o armamento: uma faca de campanha e um velho rifle, com o qual, depois de demorado exame, apontou para o descampado fronteiro, contra um obstáculo que lá havia. Acertou o objetivo.
— Well — disse satisfeito. — Só essa arma vale mais do que todas as bugigangas de que acaba de se desfazer. Foi fabricada por mão de mestre. Espero que saiba honrá-la. Compremos, agora, a munição e estamos prontos.
Depois disso fui obrigado a recolher-me a um compartimento contíguo, onde despi a roupa que agora já era do negociante e vesti a de escoteiro. Quando voltei, o velho olhou-me de alto a baixo, com orgulho. Tinha a esperança de que, quando saíssemos, ele carregasse o meu serigote; não o fêz, entretanto. Colocou todas as coisas nas minhas costas e convidou-me a retirar-nos.
— Então, — disse-me, quando já estávamos na rua — precisa envergonhar-se de alguma coisa? Todo homem sensato o tomará por um cavalheiro ajuizado. Agora, quanto ao que do senhor pensam os insensatos, não lhe deve interessar!...
Não tive outro remédio senão conduzir, pacientemente, toda a carga para a estalagem. Old Death caminhava a meu lado, cheio de satisfação.
NOVO ENCONTRO COM WINNETOU
Quando chegamos ao hotel, ele deitou-se logo e adormeceu. Eu, porém, saí à procura de Winnetou. Pode-se bem imaginar como ansiava por tornar a vê-lo. Foi-me penoso conter-me e não abraçá-lo, logo que entrara na taverna. Que estaria fazendo ele em Matagorda? Por que fingira não conhecer-me? Sem dúvida, deveria ter motivo para isso, mas que motivo seria esse?
Winnetou estava tão ansioso como eu, para falar-me. Como conhecia bem os seus hábitos, não me foi difícil encontrá-lo. Com certeza observou-nos e nos viu entrar no hotel. Devia procurá-lo, pois, nas imediações. Encaminhei-me para um descampado existente por detrás da estalagem. Acertei. Vi-o recostado a uma árvore, a uns cem passos distante. Quando me viu, deixou o seu posto e encaminhou-se lentamente para o mato próximo. Segui-o.
Quando me aproximei do apache, ele veio correndo ao meu encontro:
— Carlos, meu prezado irmão Carlos! Que imensa alegria o nosso encontro inesperado proporcionou-me ao coração! Foi como uma linda manhã de sol depois de uma noite escura!
Apertava-me ao peito e beijava-me fraternalmente.
— Que ventos o trazem a esta cidade? — prosseguiu o jovem cacique. — Anda a serviço, ou desembarcou para ir à nossa taba, no rio Pecos?
— Foi-me confiada uma tarefa e o seu desempenho trouxe-me até aqui.
— Meu irmão pode dizer qual a tarefa? Espero que me dirá, ainda, tudo o que lhe sucedeu depois que nos separamos lá no rio Vermelho.
Puxou-me para um trecho mais interno da mata, onde nos sentamos. Contei-lhe, então, tudo o que ocorrera comigo, ultimamente.
— Ajudamos a demarcar o caminho para o “cavalo de fogo” a fim de que pudesse receber os honorários que lhe eram devidos; o furacão levou esse dinheiro. Se tivesse permanecido junto dos guerreiros apaches que o estimam, nunca teria necessidade daquele dinheiro. Fêz bem em não ter seguido para S. Luís, para a casa de Mr. Henry. Não irei lá.
— Meu irmão conseguiu capturar o bandido Santer?
— Não. O mau espírito o protege e Manitou permitiu que ele me escapasse. Passou-se para as forças dos estados do sul, onde entre milhares de soldados, desapareceu sem deixar sinais. Mas hei de encontrá-lo e, então, não me fugirá! Voltei para o rio Pecos, sem conseguir capturá-lo. Meus guerreiros durante todo o inverno choraram a morte de Intschu-tschuna e minha irmã. Depois, fui obrigado a empreender longas cavalgadas em visita às diversas tribos dos apaches, a fim de contê-las numa resolução precipitada que iam tomar. Queriam partir para o México, a fim de tomar parte na revolução que lá irrompeu. Meu irmão já ouviu falar em Juarez, o presidente pele-vermelha?
—Já.
— Quem está com a razão, ele ou Napoleão?
— Juarez.
— Meu irmão tem sempre o mesmo pensamento que eu! Peço que não me pergunte a que vim! Mesmo a “Mão de Ferro” não devo confiar a minha missão, porque prometi a Juarez, com o qual me encontrei no Paso del Norte. Apesar de me haver encontrado aqui, meu irmão continuará a perseguir aqueles dois peles-brancas?
— Sou forçado! Quanta alegria para mim se Winnetou me acompanhasse! Não será possível?
— Não! Tenho um dever a cumprir, que é tão sério como o do meu irmão. Hoje ainda permanecerei aqui. Amanhã, porém, seguirei de vapor para La Grange, de onde, passando pelo forte Inge, partirei para Rio Grande del Norte.
— Viajaremos, então, no mesmo vapor; só não sei ainda até onde. Amanhã estaremos, então, ainda juntos.
— Absolutamente não.
— Não? Por quê?
— Porque não pretendo envolver “Mão de Ferro” nos meus assuntos; exatamente por isso e por causa de Old Death é que há pouco fiz que não o conhecia.
— Por quê? Que tem Old Death?
— Ele sabe que é o “Mão de Ferro”?
— Não. Nem tocamos nesse nome.
— Mas, certamente, já ouviu falar nele. O senhor esteve até agora, no leste, e não sabe quanto, no oeste se tem falado a seu respeito. É provável que Old Death, não o conhecendo, o tome por um greenhorn.
— E é isso justamente o que ele me considera.
— Será então, mais tarde, uma grande surpresa para ele, quando souber quem é este greenhorn; e eu não desejo estragar esse prazer de meu irmão. Por isso, no vapor, nos portaremos como estranhos. Depois que encontrar Ohlert e seu perseguidor, teremos oportunidade de estar juntos, por mais tempo, pois espero que nos procurará, na taba do rio Pecos!
— Procurarei os meus irmãos! Disso pode estar certo.
— Então, vamos despedir-nos, meu irmão. Ali adiante há uns peles-brancas à minha espera.
Levantou-se. Não perguntei pela sua missão, porque devia respeitar o seu segredo. Despedi-me dele, mas por pouco tempo.
SAINDO DE MATAGORDA
Na manhã seguinte, alugamos duas mulas para nos transportarmos até a barreira de onde o vapor partia. Encilhamos os animais e nos tocamos para lá.
Havia já numerosos passageiros a bordo. Quando, com os serigotes às costas, entramos no vapor, ouviu-se uma voz alta que dizia:
— Ali vêm duas bestas encilhadas. E bestas com duas pernas! Já se viu uma cousa dessas? Abre espaço, pessoal, para que possam ser conduzidas ao brete! Esperemos que essas cavalgaduras não viajem na companhia de cavalheiros!
Conhecemos logo aquela voz. Vimos que o melhor lugar, situado debaixo de uma coberta de vidro, estava tomado pelos ex-feitores que conhecêramos no dia anterior. Era o mesmo gritão da véspera que agora nos acolhia com insultos. Guiei-me por Old Death. Como ele não ligasse para a afronta, fiz o mesmo. Tomamos lugar vis-a-vis aos desordeiros e colocamos os serigotes debaixo do banco.
O velho pôs-se à vontade. Sacou de seu revólver, destravou-o e colocou-o à frente, pronto para entrar em ação. Segui-lhe o exemplo. O pessoal do bando encolheu-se todo, falou baixinho e ninguém mais se atreveu a dirigir-nos frases ofensivas. Traziam consigo os cães, exceto um, é claro. O contendor nosso da véspera dirigia-nos olhares hostis. Achava-se curvado, em conseqüência talvez de sua luta comigo e Winnetou. O rosto estava cheio de talhos produzidos pelos estilhaços da vidraça.
Quando o comissário veio informar-se do nosso destino, declaramos-lhe que íamos para Colombo, até onde havíamos pago passagem. Lá poderíamos, se quiséssemos, tomar nova passagem para o próximo porto. Old Death estava convencido de que Gibson não seguiria até Austin.
O sino de bordo já havia dado o segundo sinal de partida, quando chegou mais um passageiro: era Winnetou. Montava um lindo e fogoso garanhão aperado à moda indígena, e, com ele, entrou a bordo atravessando a prancha. Depois de apear, levou o animal para a popa onde havia um brete destinado à condução de animais. Em seguida tomou lugar na coberta, junto dos demais passageiros. Os bandoleiros contemplavam-no provocadoramente. O índio não lhes dedicava a mínima atenção. Simulava nem vê-los, mau grado os sapateados e tosse que provocavam para chamar-lhe a atenção. Estava sentado com as mãos apoiadas na espingarda e parecia surdo ao mundo exterior.
Soara o último sinal de partida e o vapor levantava ferros.
A viagem se iniciou com calma e parecia ir calmamente terminar. Em Wharton só um homem desembarcou; mas novos e muitos passageiros entraram. Old Death desceu até a barranca, onde se achava o agente da companhia, a fim de saber por ele notícias de Gibson. Obteve daquele funcionário a informação de que os dois homens não haviam desembarcado naquele porto. E o mesmo soube em Colombo, razão porque tomamos passagem até La Grange. No trajeto de Matagorda a Colombo o vapor havia gasto umas dez horas. Durante esse tempo, Winnetou abandonara; seu lugar uma vez apenas, e para dar água e forragem ao cavalo.
Os bandoleiros pareciam ter esquecido o antigo rancor contra Winnetou e contra nós. Durante o trajeto, tentaram entabular relações com os novos passageiros, mas em vão. Pavoneavam-se com suas idéias secessionistas e a todos perguntavam pelo seu credo político, ofendendo os adversários de suas crenças. Expressões como “republicano excomungado”, “negreiro amaldiçoado”, “capacho dos ianques”(*) jorravam de seus lábios em verdadeiras torrentes.
Eis por que todos os evitavam. Aliás, fora esse o motivo, talvez, por que não nos haviam provocado até ali. É que em qualquer arruaça que empreendessem, não podiam contar com a simpatia de ninguém. Houvesse, porém, maior número de anti-abolicionistas entre os passageiros, e era certo que eles perturbariam a paz da travessia.
DISTÚRBIOS A BORDO
Em Colombo desembarcaram numerosos passageiros, todos pessoas pacatas, que não se preocupavam com o entrechoque político do momento. No seu lugar, porém, embarcaram muitos outros com idéias extremadas.
Entre estes havia um bando de uns vinte ébrios, que foram recebidos por entre manifestações de júbilo pelos ex-feitores. Má aliança. Que sucederia? Outros passageiros recém embarcados juntavam-se aos desordeiros e o mau elemento não tardou a dominar. Promoviam algazarra e saltavam sobre os bancos, sem se importar com o agrado ou desagrado dos demais passageiros, em muitos dos quais, nas suas correrias, davam encontrões, sem ao menos se desculparem. Tudo, enfim, faziam para mostrar que eram os senhores da situação. O comandante julgou mais prudente não censurá-los. Contanto que não o embaraçassem na direção, o mais era com os próprios passageiros. O capitão não tinha a menor aparência de ianque. Era de corpo cheio, como raro se vê entre americanos, e nos lábios havia sempre um sorriso bonacheirão. Apostaria como era descendente de alemão, em linha reta.
A maior parte dos secessionistas passaram a copo para onde se transferira o tumulto. Garrafas e copos voavam pelos ares e iam quebrar-se no solo; mesas e cadeiras eram despedaçadas pelos arruaceiros. Daí a pouco um negro, aos gritos, encaminhou-se correndo, para a ponte de comando, a fim de levar sua queixa ao capitão. Ouvi-o apenas dizer que havia sido chibatado pelos sessionistas, que o ameaçavam, também, de enforcá-lo, num dos mastros.
O comandante refletiu e, depois de certificar-se de que o navio ia seguindo sua rota, desceu para o restaurante. O comissário veio-lhe ao encontro bem perto de nós. Ouvimos o que falavam:
— Capitão, — comunicou o comissário — não podemos continuar de braços cruzados. Aquela gente planeja o diabo. É prudente largar o índio em terra, pois o bando pretende enforcá-lo. Ele se atracou, ontem, com um deles, em luta corporal, segundo afirmam. Além disso, pretendem linchar dois dos nossos passageiros, que tomaram parte na luta de ontem. Dizem que se trata de dois espiões a serviço de Juarez.
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(*) Nome que os do sul davam aos do norte, durante as lutas da abolição.
— Com todos os diabos! A cousa está ficando complicada. Quais serão esses dois passageiros?
A essas palavras percorreu o convés com o olhar.
— Somos nós, sir — respondi-lhe, indo até os dois interlocutores.
— Os senhores? Não. Esta gente está enganada. É mais fácil o meu navio voar do que os senhores serem espiões de Juarez — exclamou, depois de medir-nos com o olhar.
— Não me presto para isso! Sou alemão e não me envolvo com a política do seu país.
— Alemão? Então somos patrícios. Sou de Neckar. Não devo permitir que o agridam. Vou encostar o vapor na barranca para que o senhor se refugie em lugar seguro.
— Discordo. Não posso perder tempo.
— Realmente! Isso é desagradável. Espere, então, um pouco! Aproximou-se de Winnetou e disse-lhe algumas palavras. O apache sacudiu a cabeça em tom de desprezo e virou-se para o outro lado. O capitão voltou aborrecido.
— Já esperava. Os vermelhos são teimosos. Também não quer desembarcar. E, que farei eu, com uma tripulação reduzida, contra esse bando de malfeitores?!
UM “BANHO” IMPREVISTO
Meditou por instantes e, depois, sorrindo:
— Vou pregar uma peça a esses secessionistas, da qual se lembrarão por muito tempo. Os senhores façam o que eu determinar. Sobretudo não utilizem armas. Coloquem as espingardas debaixo do banco, junto com os arreios. Se reagirem, a situação se agravará.
— Com os diabos! Devemos, então, calmamente deixar que nos linchem, capitão? — perguntou Old Death com azedume.
— Absolutamente! Mantenham-se em resistência passiva! No momento decisivo, o meu plano os salvará. Vamos dar um banho nesses arruaceiros para que acalmem os nervos. Confiem em mim. Agora não me resta tempo para maiores explicações. Eles lá vêm.
De fato, o bando vinha subindo do restaurante. O capitão separou-se de nós e, em voz baixa, deu algumas ordens ao comissário. Este correu ao patrão que era, também, o mestre de porão. Logo depois ouvi dar, em voz baixa, instruções aos passageiros mais calmos. Não pude perceber do que se tratava, porque minha atenção e a de Old Death foram desviadas pela aproximação dos secessionistas. Notei, apenas, que os passageiros pacíficos se reuniam no convés.
Assim que os anti-abolicionistas ébrios deixaram o restaurante, fecharam-nos num círculo. Segundo instruções do capitão, havíamos deposto as espingardas debaixo do banco.
— É este! — exclamou o provocador da véspera, apontando para mim. — Um espião dos estados do norte, um adepto de Juarez. Ontem trajava com elegância e hoje ostenta a vestimenta de um campineiro. Por que se disfarça assim? Porque é espião. Ele matou meu cão e ambos nos ameaçaram com os revólveres.
— Um espião! Um espião! — bradavam os demais da tropilha. — Prova-o o disfarce do vestuário. E além disso é alemão. Formemos um júri! Merece a forca! Abaixo os estados do norte! Morram os ianques e todos os seus partidários!
— Que é isso aí?! — bradou o capitão da janela da cabine de comando. — Quero paz e ordem a bordo! Deixem os passageiros tranqüilos!
— Cale-se, sir! Paz e ordem queremos nós e havemos de obtê-las! — bradou um dos bandoleiros. — Tem permissão para conduzir espiões a bordo do seu navio?
— Tenho permissão para conduzir pessoas que hajam pago as suas passagens. Conduzo abolicionistas, como anti-abolicionistas, desde que se portem com correção. E se persistirem nessas tropelias, faço-os desembarcar ali na barranca e, depois, se quiserem, prossigam a pé ou a nado até Austin.
Como resposta, ouviu-se uma gargalhada geral. Apertaram-nos, a Old Death e a mim, tanto que não podíamos mais nos mover. Protestávamos, naturalmente, mas os nossos protestos eram abafados pela gritaria. Íamos sendo empurrados cada vez mais para perto da chaminé fumegante, onde devíamos ser enforcados.
Old Death fazia um esforço brutal para se conter; por mais de uma vez ia levando a mão à cintura, para tirar o revólver. Mas assim que dava com os olhos no capitão desistia da reação.
— Bem, — disse-me em alemão — vou tentar ainda um pouco obedecer às suas instruções. Mas, se isto durar muito tempo, despejaremos sobre eles as vinte e quatro balas que temos nos revólveres. Quando eu começar, acompanhe-me na fuzilaria.
— Estão ouvindo? — exclamou o feitor que nos provocara na véspera. — Está provado que são alemães e patrícios dos canalhas que tanto apoiaram os estados do norte. Que pretendem eles, aqui, no Texas? São espiões e traidores. Liquidemos com eles de uma vez!
A proposta foi aceita por entre um vozerio dos demônios. O capitão admoestou-os, severamente, porém, foi de novo correspondido com chacotas. Em seguida levantaram a preliminar, se deviam submeter o apache a júri antes de nos enforcar, ou se deveriam executar-nos em primeiro lugar. Decidiram pela primeira. O “presidente” do “júri” destacou dois homens, a fim de conduzirem o índio perante o “tribunal”.
Como estivéssemos cercados, não podíamos ver Winnetou. Ouvimos apenas uns brados ensurdecedores. O cacique havia arrojado ao solo sem sentidos um dos emissários, e lançado nágua outro. Em seguida o índio pulara para dentro da cabine do comissário, a qual ficava ao lado, e da janelinha víamos agora os dois canos de sua espingarda de prata apontados, para os inimigos. Como era de esperar, redobrou a gritaria já reinante. Todos correram até a amurada do navio e, em altos brados, pediam ao capitão que arreasse o escaler, para salvar o homem. Ele atendeu à solicitação e minutos depois um bote foi recolher o homem, que, por sorte, sabia nadar e conseguira suster-se à tona dágua.
Agora achava-me sozinho com Old Death, pois se desfizera o círculo. Víamos os olhos do patrão sempre fixos no comandante; este, com um aceno, nos chamou para mais perto e disse com voz abafada:
— Prestem atenção. Agora vou dar-lhes o banho. Conservem-se, porém, tranqüilamente a bordo que nenhum perigo correm. Façam o maior barulho possível!
O navio desviava-se lentamente da rota, seguindo mais para a direita. Naquela direção havia um banco de areia de pequena importância. O rio ali não era fundo. A um sinal do comandante, o prático, com um sorriso imperceptível nos lábios, levou o vapor de encontro ao banco, encalhando-o. Com o encalhe, o navio estremeceu. E os passageiros neutros, de antemão instruídos, deram o alarme, pedindo socorro, em brados aflitivos, como se estivessem na iminência da morte. Os rowdies fizeram coro, porém, realmente assustados. De repente, o prático chegou correndo e exclamou, em voz alta, ao comandante:
— O navio está fazendo água no porão; dentro de dois minutos o barco afundará!
— Estamos perdidos! — bradou o comandante. — Salve-se quem puder!
E, ao mesmo tempo, descia da ponte de comando, despia a túnica, atirava o gorro ao chão, descalçava as botas e lançava-se no rio. A água chegava apenas até o pescoço.
— Atirem-se no rio, depressa! Salvem-se enquanto é tempo. Daqui a pouco será tarde. Serão sepultados com o navio.
Os anti-abolicionistas estavam apavorados, atiraram-se no rio e nadaram apressadamente, em direção à margem, sem notarem que nesse meio tempo o comandante fazia arrear a escada e voltava para bordo.
Quando o último dos “sobreviventes do naufrágio” subira a barranca da margem, o capitão ordenava o desencalhe do vapor. A manobra foi executada rapidamente e com toda facilidade, não havendo o navio sofrido a menor avaria.
Trêmulo com sua túnica à guisa de bandeira, o comandante bradou ao bando:
— Adeus, cavalheiros! Se ainda estiverem dispostos a organizar um júri, façam-no e enforquem-se mutuamente. Os objetos que lhes pertencem e que estão aqui serão entregues em La Grange, na agência. Se quiserem, podem procurá-los.
É fácil calcular a impressão que essas palavras produziram nos desordeiros.
Gritavam furiosamente. Parecia que a barranca ia desabar. Intimavam o capitão a recolhê-los novamente; ameaçavam-no com a morte e outras represálias, e até dispararam os revólveres apesar de molhados. Um deles, no auge da fúria, bradou:
— Cão! ficaremos aqui à espera de tua volta e te enforcaremos na chaminé do teu próprio navio.
— Muito bem, sir! Vou esperá-los, então, a bordo. Antes, porém, permitam-me que vá cumprimentar os generais Meja e Marquez!
Em ordem e em paz as máquinas intensificaram a marcha, e nós recuperamos facilmente o tempo perdido.
Ku-Klux-Klan
As palavras acima constituem, ainda hoje, um enigma, que tem encontrado diferentes interpretações. Uns julgavam que o nome da famosa, organização secreta kukluxklan ou Ku-Klux-Klan fosse onomatopéia própria do engatilhar de armas. Outras procuravam a sua etimologia nas palavras: cuc — prevenção, cluc — cacarejar, e clan — bando, tropilha, etc Os próprios sócios do Ku-Klux-Klan ignoravam como se formara esse nome; era-lhes, também, indiferente sabê-lo. A um deles, com certeza, ocorrera tal palavra, pronunciara-a e os demais aceitaram-na, sem cogitar de conhecer-lhe o sentido.
Os fins, porém, dessa comunidade secreta eram por todos conhecidos. A sociedade teve origem nalguns condados de Carolina do Norte e divulgou-se rapidamente, pela Carolina do Sul, Geórgia, Alabama, Mississipi, Kentucky e Tenessee, cidade em que sua atuação se fazia sentir. A entidade acolhera em seu seio um numeroso núcleo de inimigos ferozes, dos estados do norte; a tarefa dos agremiados era perturbar, por todos os meios, alguns criminosos, a ordem e a paz interna, restabelecidas após a conclusão da guerra civil. E, realmente, os kukluxeres, durante muitos anos, trouxeram os estados do sul em constante agitação, o que tornava insegura a propriedade e tolhia o desenvolvimento comercial e industrial; mesmo as medidas mais enérgicas postas em prática, para fazer cessar a ação nefasta de tal associação, não produziam resultados.
A organização secreta surgira em virtude das medidas de reconstrução que o governo fora obrigado a adotar em relação aos estados do sul, vencidos na guerra civil; compunha-se na maior parte de adeptos da escravatura, mas inimigos da União e do Partido Republicano. Os agremiados eram obrigados, por juramento e ameaça de morte, a guardar absoluta reserva sobre os propósitos secretos da sociedade. Os kukluxeres não vacilavam em praticar as maiores violências, inclusive o assassínio e o incêndio; reuniam-se regularmente e, na prática dos seus crimes, usavam disfarces; tanto agiam a pé, como montados. Matavam a tiros os padres no púlpito e os juizes em pleno exercício de suas funções; assaltavam cidadãos pacatos nos próprios lares e espancavam-nos, violentamente, à vista da família. Todos os arruaceiros e assassinos juntos, não constituiriam, talvez, uma horda tão perigosa como aquela organização secreta; tão violentas e perturbadoras da ordem pública eram as suas tropelias, que o governador da Carolina do Sul se viu na contingência de solicitar do presidente Grant o auxílio de forças armadas para combatê-la; doutra maneira, acrescentava o citado governador, não seria possível reprimir os sanhudos monstros encapuzados, cujos atos de vandalismo tomavam proporções assustadoras. Grant submeteu o pedido do governador à consideração do Congresso e este votou uma lei repressora do Kukluxklan, a qual conferia ao executivo poderes ditatoriais, para promover a extirpação daquele cancro social. De como esta se tornara um grave perigo, tanto aos cidadãos isolados, como para toda a nação, prova-o a votação destas medidas draconianas. De uma feita, um padre pedia do púlpito aos fiéis que orassem pela alma dum cidadão morto pelos associados. No seu ardor religioso, comparou a ação dos kukluxerianos, com a luta dos filhos do demônio contra os filhos de Deus. Nesse momento, surge diante dele um indivíduo encapuzado e prostra-o a tiros. Antes que os fiéis se acalmassem do espanto que neles produziu a cena violenta, o assassino havia desaparecido.
NO RESTAURANTE “AO GAVIÃO”
Quando o nosso vapor atracou em La Grange, já era noite e o comandante nos declarou que, em vista do perigo a que estava sujeita a navegação noturna, devido à pouca água existente, só prosseguiríamos viagem ao clarear do dia. Éramos, pois, forçados a pernoitar em La Grange. Winnetou montou a cavalo e atravessou a prancha, desaparecendo na escuridão da noite.
O agente achava-se no porto, a fim de tomar as medidas atinentes ao seu cargo. Old Death dirigiu-se imediatamente a ele:
— Sir, tenha a bondade de informar-me se os passageiros do último navio que aqui chegou, procedente de Matagorda, desembarcaram todos.
— O último navio — respondeu o agente — chegou anteontem a esta mesma hora. Todos os passageiros desembarcaram, pois o navio só continuou viagem na manhã seguinte.
— E o senhor aqui esteve, quando os passageiros reembarcaram?
— Naturalmente, sir.
— Procuramos dois amigos que viajavam nele, e que também devem ter desembarcado aqui. Desejaríamos saber se reembarcaram ou ficaram!
— Hum! Não é fácil saber. Estava muito escuro e os passageiros premiam-se a bordo, de forma que se tornava difícil divisar as pessoas isoladamente. Sei apenas de um que aqui ficou. É Mr. Clinton.
— Clinton? Ahn! É a este exatamente que procuramos. Tenha a fineza de chegar aqui mais à luz. Este amigo vai mostrar-lhe uma fotografia e lhe peço dizer se é da pessoa a que se refere.
Depois de ver o retrato, o agente confirmou a informação.
— Não sabe onde ele está hospedado? — perguntou Old Death.
— Ao certo, não. Mas é provável que esteja na casa do señor Cortésio, pois a gente deste é que veio buscar suas malas a bordo. Trata-se de um agente de tudo e de todas as cousas... É espanhol de nascimento, mas se diz mexicano. Desconfio que ele agora está envolvido no fornecimento secreto de armas para o México.
— E um cavalheiro distinto?
— Homem, hoje em dia, todo o mundo se jata de ser cavalheiro distinto, mesmo os que andam com os arreios às costas...
Referia-se a nós que conduzíamos nossos arreios. Mas por pilhéria sem intenção de magoar-nos. Old Death prossegiu na mesma afabilidade:
— Existe nesta cidade, tão parcamente iluminada com essas lanternas de querosene, alguma estalagem onde se possam descansar os ossos por uma noite, sem ser molestado por homens e outros bípedes?
— Aqui há um único hotel. E, como o senhor se demorou muito a tagarelar comigo, não encontrará mais cômodos, que por certo foram tomados pelos outros passageiros.
— Isso é o diabo! — disse Old Death. — Onde vamos então passar a noite? De particulares não se pode contar com hospitalidade, não é assim?
— Acho que não. Quanto a mim, não lhes posso oferecer hospedagem, porque minha casa é pequena. Mas tenho um amigo que não se negaria a agasalhá-los, visto que os senhores são homens honestos. É um alemão, ferreiro de profissão, que transferiu residência de Missouri para cá e...
— Esplêndido! — atalhou o meu companheiro. — Este jovem aqui é também alemão e eu sei falar este idioma. Não somos ladrões. De resto podemos e queremos pagar a nossa hospedagem. Portanto, não vejo inconveniente, em entrarmos num acordo. Quer ter a bondade de ensinar-nos o caminho?
— Não é necessário. Eu mesmo os acompanharei; antes, porém, preciso acabar o meu serviço no vapor. De qualquer forma, Mr. Lange — assim se chama o meu amigo — não está agora em casa. A essa hora, em geral, vai ao restaurante saborear um copo de cerveja. É hábito alemão transplantado e enraizado entre nós. Se tiverem pressa, porém, dirijam-se ao bar do hotel. Basta perguntar por Mr. Lange; e diga a este que foi o agente que os recomendou! O hotel é nesta mesma direção; dobrando a esquina, a segunda casa. Conhecerão logo pelos candeeiros. Ainda estão acesos.
Dei úma gorjeta ao homem, e fomos para o hotel.
Este se conhecia, não só pelos candieiros, mas também pela algazarra que vinha do interior. À porta, havia uma placa, na qual se achava pintada uma figura parecida com um crocodilo monstro, mas que, no entanto, possuía asas e duas pernas. Por baixo da figura, o letreiro Hawks in. Logo o crocodilo era uma ave de rapina... e a casa chamava-se “Bar e Restaurante ao Gavião”...
Quando abrimos a porta, uma nuvem densa de fumaça de tabaco nos veio ao encontro. Os fregueses da casa deviam possuir pulmões bem resistentes; não sufocavam com aquela fumaceira; ao contrário, sentiam-se muito bem no meio dela. Outra prova evidente da resistência de seus pulmões era a altura com que falavam. Não falavam, gritavam uns com os outros. Parecia que ninguém fazia uma pausa, de segundo que fosse, para ouvir o companheiro. Notamos, também, que havia duas salas. Uma, a maior, destinada à freguesia comum; outra, a menor, mais arranjada com melhor gosto, reservada a pessoas de distinção. Uma instalação dessas, nos Estados Unidos, constitui sério perigo para o proprietário, pois o espírito democrático da população não admite distinções morais ou sociais.
REVIVENDO UM EPISÓDIO DA GUERRA CIVIL
Como na sala da frente, destinada à freguesia mais modesta, não houvesse um único lugar desocupado, dirigimo-nos para a outra sala, que atingimos sem chamar a atenção. Havia apenas duas cadeiras vagas, as quais ocupamos, depois de haver colocado os serigotes a um canto. Na mesma mesa, estavam sentados vários homens, que tomavam cerveja e palestravam em alemão. Lançaram-nos apenas um olhar perscrutador. Tivemos a impressão de que, à nossa chegada, haviam mudado de assunta Dois dos convivas eram muito parecidos. Notava-se, logo à primeira vista, que eram pai e filho. Ambos corpulentos e musculosos, tez tostada pelo sol ou pelo fogo, punhos grossos e fortes, denotando tudo estarem afeitos ao labor pesado e contínuo. Tinham o aspecto de homens probos e pacatos. Estavam, porém, agitados, como se algo de desagradável estivessem a discutir.
Quando nos sentamos, os presentes chegaram-se mais para a direita, de modo que entre eles e nós ficou um regular espaço. Essa atitude esquiva, provava que não desejavam a nossa companhia.
— Podem ficar sentados cavalheiros! — foi logo dizendo, entre brusco e pilhérico, o meu companheiro. — Viajamos todo o dia de hoje sem nos alimentar, é verdade; mas não pretendemos comê-los. É possível que nesta casa encontremos uma refeição menos indigesta...
O mais velho, que eu tomara por pai do rapaz, piscou o olho e respondeu sorrindo:
— De qualquer modo, não lhe seria fácil uma tal refeição. Não só por sermos um tanto indigestos, como também porque haveria de encontrar resistência; a luta talvez não lhe fosse favorável, não obstante a sua figura ser a encarnação perfeita de Old Death.
— Old Death? — perguntou o meu companheiro. Quem é esse homem?
— Um cavalheiro, apesar da semelhança, muito hais heróico do que o senhor, que nem lhe chega aos pés. É um afamado escoteiro, que num mês de atuação, conta maior número de feitos heróicos, do que milhares de colegas seus em toda a vida. Meu filho Will já o viu.
O seu filho contava talvez uns vinte e seis anos de idade; era trigueiro e robusto. Podia enfrentar uma meia-dúzia de homens. Old Death olhou-o de soslaio e perguntou:
— Foi esse quem o viu? Onde?
— Em Arkansas, no ano de 1862, pouco antes da batalha de Pea Ridge. Não adianta citar outros pormenores, pois o senhor não conhece os acontecimentos que então se desenrolaram.
— Quem lhe disse? Estive sem-número de vezes em Arkansas e, em 1862, não andei muito distante de lá.
— É?! Diga-me, então, ao lado de quem se colocou o senhor, naquela época! A situação de hoje é tal que é conveniente conhecermos com precisão a côr política de quem se senta à mesa conosco.
— Não tenha cuidados. Suponho que o senhor é adversário dos traficantes e exploradores de escravos; e sendo assim pode considerar-nos seus correligionários. Que não pertenço a esse partido opressor, prova-o o fato de falar o idioma alemão!
— Seja bem-vindo, pois! Mas quanto ao idioma alemão, não se iluda, sir. Há muita gente do partido dos opressores que se vale da nossa língua materna, com o intuito de nos captar a confiança e depois, melhor nos espionar. Tenho amarga experiência disso. — Mas, voltemos a Old Death e Arkansas. Como o senhor sabe, ao irromper a guerra civil, esse estado quis colocar-se ao lado da União. Numerosos elementos laboriosos e independentes, que não suportavam o regime da escravatura e, menos ainda, os baronatos que se iam formando ao sul, congregaram-se e se declararam contra a separação. A canalha de que esses barões faziam parte apoderara-se do poder e tolhia a ação dos bons elementos, que muita falta fizeram às tropas libertadoras. Arkansas caiu em poder das tropas do sul. Ora, isso gerou profundo descontentamento, principalmente entre a população de origem germânica. Eu morava em Missouri, no Poplar Bluf, perto das fronteiras de Arkansas. Meu filho, que aí está diante do senhor, incorporou-se num regimento formado de elementos teutos. Antes de partir para Arkansas em auxílio dos unionistas, esse regimento enviou uma seção para a fronteira, a fim de fazer reconhecimentos. Will fazia parte dessa seção. A seção foi atacada pelas tropas contrárias e, depois de uma resistência tenaz, caiu, finalmente, em poder do inimigo.
— Como prisioneiro de guerra?! Foi um perigo. Todos sabemos como os estados do sul trataram os seus prisioneiros! De cem, oitenta pereciam. Mas, contudo, a vida de seu filho não esteve em perigo, não é assim?
— Oh! Engana-se. Os bravos soldados portaram-se com grande bravura. Depois de haverem esgotado a munição, lutaram a coronhaços e arma branca; essa resistência ocasionou sensíveis perdas à força separatista. Indignados com isso, resolveram executar todos os prisioneiros da seção. Will é meu único filho varão e eu estive bem perto de perdê-lo. Salvou-se, porém, graças a Old Death.
— Como? O senhor está despertando extraordinariamente a minha curiosidade. Então aquele campineiro atreveu-se, com um corpo de escoteiros, a tentar a libertação dos prisioneiros?
— Se fizesse isso, chegaria tarde, pois os nossos soldados já estariam mortos quando lá chegasse. Não. Agiu como um bravo e valente homem do oeste. Ele, em pessoa, foi libertar a nossa gente.
— Com os diabos! Que aventura formidável!
— Oh, se foi! Arrastou-se até o acampamento dos inimigos a fim de espreitá-los, tal como se espreitam os índios no oeste bravio, favorecido pela chuva torrencial que caía e apagara as fogueiras do arraial. Para atingi-lo, entretanto, teve de apunhalar algumas sentinelas. Os separatistas estavam acampados numa granja. Era um batalhão completo. Os oficiais, naturalmente, estavam alojados nas casas próximas e os soldados se arranjaram como melhor puderam. Os prisioneiros, porém, em número de vinte, haviam sido encerrados num engenho de cana de açúcar. Eram vigiados por quatro sentinelas, postadas uma em cada ângulo da casa. No dia seguinte iam ser fuzilados. À noite, logo depois da rendição da guarda, perceberam um ruído no telhado, ruído estranho que se distinguia perfeitamente do da chuva. Puseram-se a escutar. De repente ouviram um estouro. O telhado, que era de tabuinhas, fora arrombado. O rombo ia aumentando. Depois, um silêncio de dez minutos. Em seguida começou a descer do teto um enorme toro. Os prisioneiros subiram por êle até o telhado, que era pouco alto. Em seguida desceram. Viram então as sentinelas desacordadas nos postos. O salvador, habilmente, conduziu, depois, os prisioneiros para fora do acampamento e depois ao caminho da fronteira, que todos conheciam. Só ali souberam que o escoteiro que arriscara a própria vida para salvá-los era Old Death.
— E acompanhou os rapazes até a fronteira? — perguntou Old Death.
— Não. Alegou ter tarefa importante a realizar e desapareceu por entre a escuridão da noite chuvosa, sem dar tempo a que os rapazes lhe agradecessem. A noite estava tão escura, que era impossível reconhecer quem quer que fosse. Will pôde ver apenas o vulto do seu salvador, que era alto e esguio. Mas conseguiu falar com ele e ainda hoje se lembra de todas as palavras que o bom homem lhe disse. Oh! Se um dia encontrasse Old Death, eu lhe mostraria quanto nós, alemães, cultuamos a gratidão.
— Não seria necessário mostrar-lhe. Ele com certeza já sabe disso. Acho que seu filho não foi o único alemão que ele encontrou na sua vida! Mas, sir, o senhor que deve conhecer todos os moradores daqui, não sabe se Mr. Lange, de Missouri, está aqui?
O seu intelocutor afilou os ouvidos e perguntou:
— Lange? Que quer dele?
— Receamos já não encontrar acomodação aqui, no “Ao Gavião”; quando desembarcamos, o agente informou-me que esse homem nos daria talvez hospedagem por uma noite. Mandou que eu lhe dissesse que vínhamos recomendados por ele e aconselhou-nos a procurá-lo, aqui no hotel onde aquele cavalheiro costuma estar, a esta hora.
O homem tornou a dirigir-nos um olhar perscrutador e disse:
— Teve razão em mandá-lo aqui, sir, pois eu mesmo em pessoa sou Mr. Lange. Como o agente o recomendou, e tenho-o na conta de um homem de bem, será bem-vindo à minha choupana. Oxalá não vá eu, depois, ter uma decepção! Quem é este seu companheiro?
— Um patrício seu, saxão de nascimento, um moço estudado e que veio para a América, a fim de tentar a sorte.
— Oh! Aquela boa gente do outro lado do oceano julga que aqui é fácil e que por toda parte florescem aos milhões a árvore do dólar — Afianço-lhe, sir, que a luta pela vida aqui é muito mais árdua do que na velha Europa, e as decepções não se fazem esperar pelos recém-chegados. Mas não desanime e nem julgue mal estas palavras. Desejo-lhe de coração toda sorte de felicidades. Seja bem-vindo também!
Finalmente apertou-me a mão, e, novamente, a de Old Death, que lhe disse:
— E, para dissipar qualquer dúvida que porventura lhe paire no espírito, deixe-me falar com seu filho, que lhe dirá se sou ou não digno da sua confiança.
— Com meu filho? — perguntou Lange, tomado de surpresa.
— Sim, com ele mesmo. O senhor, há pouco, afirmou que ele conversara com Old Death e que se recorda, ainda das palavras por ele proferidas. E — dirigindo-se ao rapaz — pode dizer-me a respeito de que falaram? Interesso-me vivamente por saber.
Will respondeu com entusiasmo:
— Quando Old Death nos conduziu ao caminho da fronteira, marchava à nossa frente. Eu sofrerá no braço um balaço de raspão. A ferida causava-me fortes dores, pois não fora atada e a manga da túnica grudara nela. Atravessamos uma capoeira. Old Death, limpando o caminho, atirou para trás um galho que atingiu a minha ferida. O golpe causou-me uma dor horrível e eu tive de gemer...
— E o escoteiro chamou-lhe, então, burro! — interrompeu Old Death.
— Como sabe? — perguntou o rapaz. Old Death prosseguiu sem responder:
— ... e, em seguida, o senhor ponderou-lhe que estava ferido e ele lhe aconselhou a despregar, com água, as mangas da camisa e pôr na ferida compressas de “Way-bread”.
— Isso mesmo! Mas, como soube de tudo isso? — perguntou o moço, pasmado.
— Ainda pergunta? Porque fui eu, em carne e osso, que lhe chamou burro e lhe deu este conselho. Seu pai ainda há pouco disse que eu era parecido com Old Death. E tinha razão, pois neste mundo não pode haver pessoa mais parecida com o escoteiro do que eu mesmo.
— Como? Oh... oh! O senhor é o próprio Old Death? Que está dizendo! — exclamou o moço erguendo-se da cadeira, radiante, e de braços abertos para Old Death. Mas o pai não lhe deixou dar expansão à alegria, e, afastando-o do escoteiro, disse:
— Calma, rapaz! — Tratando-se dum abraço de gratidão, cabe ao pai a prioridade. Caberia a mim, em primeiro lugar, apertar em meus braços o teu nobre e heróico salvador. Mas todos sabemos da atmosfera de intranqüilidade que respiramos, em virtude da agitação dos ânimos; uma demonstração pública de afeto, num local destes, poderia ser interpretada de outra forma e nos acarretaria complicações. Fica, pois, sentado! E dirigindo-se a Old Death, continuou: — Não leve a mal essa atitude, sir.
Tenho motivos que a justificam. Vivemos num regime de opressão e desrespeito à liberdade. Nesta boa terra, não se tem já nem o direito de pensar. Uma desconfiança basta para que soframos as mais atrozes perseguições. Tenho para com o senhor uma dívida de gratidão, que jamais poderei resgatar. Mas, justamente por isto, sou forçado a evitar qualquer demonstração que ponha sua pessoa em perigo. O senhor é conhecido como partidário dos abolicionistas, ao lado dos quais combateu. Durante a guerra civil teve atuação heróica e decisiva como condutor de tropas abolicionistas, acarretando sensíveis perdas para os estados do sul. Não nos cansamos de cantar seus feitos épicos. No sul, porém, consideravam-no e consideram-no, um espião. Deve saber como por aqui andam agora as cousas; assim que fôr surpreendido por um grupo de separatistas, será provocado e correrá o perigo de uma luta desigual.
— Sei disso, Mr. Lange, mas não me importo — respondeu Old Death com indiferença. — Já fui, por diversas vezes, ameaçado de forca, e até agora não passou de ameaça. Ainda hoje um bando de arruaceiros quis enforcar-me na chaminé do vapor e também não o conseguiu.
Old Death contou-lhe, com todos os pormenores, a ocorrência do vapor. Ao concluir, o ferreiro disse:
— Foi um belo gesto o do capitão, contudo poderá acarretar-lhe perigo. O barco ficará até amanhã cedo em nosso porto, e os desordeiros terão tempo de chegar aqui ainda esta noite. E a desforra contra o comandante possivelmente não faltará. Em relação aos senhores, a represália será, talvez, ainda mais violenta.
— Ora! Não temo essa meia-dúzia de homens. Já enfrentei, com êxito, outra casta de gente!
— Não esteja tão seguro, sir! Os ex-feitores de escravos contam nesta localidade com apreciável auxílio. Nesses últimos dias, La Grange vem apresentando um aspecto misterioso. De toda a parte, chegam pessoas desconhecidas, que por aí andam aos magotes a conferenciar em atitude suspeita. A negócios não anda essa gente, pois nenhum dos seus atos denotam esse propósito. Agora estão ali naquela sala, bebendo e discutindo em voz alta. Já descobriram que somos alemães, e procuram irritar-nos. Se correspondermos à sua provocação, vai haver morte. Não estou disposto a ficar aqui por mais tempo e vou conduzi-los à minha casa. Devem estar fatigados e necessitam de repouso. O jantar que lhes vou oferecer é pobre, mas terá o mérito de valer pela intenção. Sou viúvo e levo uma vida de solteiro. Almoço sempre, ao meio-dia. Além disso, vendi, há dias, minha casa. Pretendo retirar-me daqui.
— Este lugar já não me agrada — prosseguiu ele. — Não me refiro ao seu povo. Este é o mesmo de toda a parte, mas a sangrenta guerra civil terminou recentemente e as suas conseqüências estão aí a pesar sobre a população. E, lá do outro lado, no México, a situação é ainda mais grave. Continua a luta fratricida. O nosso estado na fronteira do México sofre por isso a repercussão dos acontecimentos de lá. Em vista disso, resolvi vender o que me pertence e ir morar com minha filha. O marido dela assegurou-me uma excelente colocação. O comprador de minha casa, pagou-me à vista. Anteontem entregou-me o dinheiro. Assim, posso ir-me embora, quando bem me aprouver. Transfiro-me para o México.
— Diabos o levem, sir! — exclamou Old Death.
— A mim? Por quê?
— Ainda há pouco dizia que a situação do México é ainda pior que a daqui e agora diz, com a maior sem-cerimônia deste mundo, que pretende ir para lá!
— Não há outro remédio, sir. Afinal, no México, a coisa é diferente de região para região. Na zona para onde pretendo ir, um pouco aquém de Chihuahua, extinguiu-se a guerra civil. Juarez foi forçado a refugiar-se em El Paso, donde marchou para frente, obrigando os franceses a recuar para o sul. Os seus dias estão contados. Não tardarão a ser enxotados do país e o pobre Maximiliano é quem pagará o pato. Lamento-o profundamente, pois sou alemão e desejava-lhe melhor sorte. A luta recrudescerá agora na capital e circunvizinhanças. As províncias do norte serão poupadas. Numa destas mora meu genro, com quem vou residir, juntamente com Will. Ali tudo teremos, pois meu genro é um homem abastado, proprietário de minas de prata. Está, há um ano e meio, no México, e na sua última carta participou-me haver-lhe nascido um “reizinho” da prata, que vive a chorar noite e dia, ansioso por ver o vovô... Acha então que devia permanecer aqui? Tanto eu como meu filho teremos um bom emprego nas minas. Nas horas vagas ensinarei à “sua majestade” o Padre Nosso e a tabuada de multiplicar até nove e tudo em alemão. Não, a mim nada mais segura aqui. O lugar do avô é junto do netinho. Se não fosse, tudo estaria perdido. Portanto, vou para o México e, se lhes fôr do agrado, venham comigo. Oh! quanto folgaria com isso!
— Hum! — murmurou Old Death. — Não caçoe, sir! Pode bem acontecer que o peguemos pela palavra!
— Como? Então pretendem também seguir para o México? É esplêndido! Resolva logo, sir! Vamos todos juntos.
Dizendo isso Lange estendeu a mão ao meu companheiro.
— Devagar! Devagar! — disse Old Death, sorrindo. — Eu quis dizer apenas que talvez seja possível seguirmos para o México; não é, porém, certo. E mesmo que tomássemos tal resolução, não sabemos ainda que ramo tomaremos.
— Se é por isso, sir, eu seguirei com os senhores, seja qual fôr a direção que escolheram. Todos os caminhos que daqui partem para aquele país, nos conduzem, no fim, para Chihuahua e, para mim, tanto faz seguir hoje como amanhã. Gosto de aproveitar-me de todas as oportunidades que se apresentam. O senhor é um bravo homem do oeste e hábil investigador de pegadas. Se viajar em sua companhia, sei que chegarei ao outro lado são e salvo. Quando decidirão?
— Depois que falarmos com o señor Cortésio. Conhece esse homem?
— Se conheço! La Grange é tão pequena que todos se conhecem. Além disso é exatamente ele o comprador da minha casa.
— Mas, antes de falar-lhe, eu desejaria saber se se trata dalgum canalha ou homem de bem.
— O último, o último, sir. Sua côr política naturalmente não lhe interessa. Se é monarquista ou republicano, pouco importa, contanto que seja honesto. Está em comunicação constante com o outro lado da fronteira. Já observei, durante várias noites, que ele expede grandes tropas de animais carregados de caixotes; que em sua casa há reuniões secretas, às caladas da noite, e que as pessoas que tomam parte nessas reuniões seguem, depois, para Rio Grande del Norte. Daí achar eu acertada a suposição de que remete armas e munições às tropas de Juarez, e também gente que se vai alistar nas cortes libertadoras. Na situação atual, isso constitui uma empresa arriscada, a que só se pode aventurar, quando se está convencido de que, mesmo sofrendo algumas perdas, sobra ainda algum lucro altamente compensador.
— Onde mora o homem? Preciso falar-lhe ainda hoje.
— Às dez horas da noite, poderá encontrá-lo. Eu tinha uma entrevista marcada com ele, para hoje, mas o assunto se resolveu; de modo que já não preciso procurá-lo. Tínhamos um encontro às dez horas.
— Tinha visitas, quando esteve com ele? — perguntei-lhe.
— Sim. Eram dois cavalheiros, um jovem e outro de meia-idade.
— Declinaram os nomes? — perguntei com ansiedade.
— Claro. Estivemos sentados juntos, a conversar quase uma hora, tempo mais do que suficiente para se saber o nome do interlocutor. O mais moço chamava-se Ohlert e o outro Gavilano. Parece-me que o último é um velho conhecido do señor Cortesio, pois falavam num encontro que tiveram, no México, anos atrás.
Gavilano? — pensei. Teria Gibson adotado agora esse nome? Tirei do bolso as fotografias e mostrei-as ao ferreiro. Reconheceu-as logo e confirmou:
— São eles mesmos, sir. Esse trigueiro é o señor Gavilano e o outro Mr. Ohlert, que me deixou, com sua conversação, em sérios apuros. Levou todo o tempo a falar-me em cavalheiros que não conheço, nem nunca os vi e nem deles ouvi falar! Falou-me, por exemplo, num negro chamado Othelo, numa jovem de Orleans de nome Joana, a qual primeiro pastoreava ovelhas e depois se meteu na guerra; numa infeliz lady Maria Stuart, da Inglaterra, de uns sinos que cantavam os versos de Schiler, dum poeta chamado Ludwig Uhland, que amaldiçoou a dois cantores, a quem uma rainha, no auge da comoção, atirou uma rosa que trazia ao peito, etc, etc. Alegrou-se por me saber alemão e desandou a me falar numa série interminável de nomes, versos, poesia, história de teatros, que me deixou a cabeça tonta. Parece ser uma criatura boa e inofensiva, mas aposto que sofre um pouco da cachola. Finalmente, puxou do bolso umas tiras de papel com umas rimas, que leu-me de começo ao fim. Falava numa noite pavorosa, em que, por duas vezes consecutivas, rompeu a aurora e que, pela terceira vez, ficou escura para sempre... Falou em tempo tormentoso, em estrelas, em nebulosidades, em eternidade, em sangue das veias, de um espírito que clamava por libertação, de um diabo no cérebro, de uma viscosa serpente a enlear a alma de alguém que também não conheço; em suma, num amontoado de cousas confusas e desordenadas. Eu, realmente, não sabia se devia rir ou chorar.
Não podia haver dúvida. Eram William Ohlert e Gibson que, pela segunda vez, mudara de nome. Também Gibson devia ser nome suposta Que era trigueiro sabia eu, pois o vira em Nova Orleans. Talvez fosse mexicano de nascimento e o seu verdadeiro nome fosse, realmente, Gavilano, pelo qual o conhecia o señor Cortesio. Gavilano quer dizer gavião, designação que, aliás, lhe assentava muito bem. Eu precisava saber, agora, com que pretexto Gavilano viajava com Ohlert, pretexto que deveria ser muito atraente para o pobre enfermo, que continuava na idéia fixa da tragédia. Para certificar-me, indaguei do ferreiro:
— Que língua falava o jovem?
— Alemão. Falou-me muito numa tragédia que pretendia escrever. Antes disso, porém, precisa viver, ele mesmo, tudo o que contará na sua obra.
— É incrível! Não conseguirá!
— Oh! Sou de outra opinião. Um louco tudo consegue porque se atira a empresas de que um homem sensato não seria capaz. Este, por exemplo, a todo o instante me falava numa tal Felísia Perilla que, com o auxílio de seu companheiro, ia seduzir, para com ela viver a sua tragédia.
— Mas isso é uma verdadeira loucura! Quando um poeta pretende viver mesmo toda uma tragédia, é sinal de que não está são. E, neste caso, cabe às pessoas de juízo que o cercam, impedir que se consuma o ato tresloucado. Ainda estão em La Grange?
— Não. Partiram ontem. Foram em companhia do señor Cortesio à Granja Hopkins e de lá prosseguirão para o Rio Grande del Norte.
— É o diabo! Precisamos segui-lo e, se possível, ainda esta noite Pode informar-me onde conseguirei comprar dois bons cavalos?
— Na casa do próprio señor Cortesio. Ele sempre tem animais para vender; com isso tem feito bom negócio com a gente que manda a Juarez. Mas eu não lhes aconselharia tal medida. Aventurar-se, assim, à noite... Não conhece o caminho e necessitaria de um guia que, hoje, não encontrará.
— Talvez encontre. Faremos todo o possível para empreender viagem hoje mesmo. Antes de tudo, porém, temos que falar com o señor Cortesia. Já passa das dez. Poderia prestar-me o obséquio de indicar-me o caminho?
— Com todo o prazer. Se quiserem, vamos!
UMA RETIRADA ESTRATÉGICA
Quando nos esgueiramos para sair, ouvimos o bater de cascos de cavalos e, logo em seguida, novos hóspedes entraram na sala da frente. Com grande estupefação reconheci neles os arruaceiros separatistas que o comandante largara no rio, à tarde. Pareciam ser conhecidos de muitos dos presentes, pois eram festivamente saudados. Pelo diálogo então travado entre eles, notamos que os desordeiros estavam sendo esperados. As demonstrações de amizade com que eram acolhidos não lhes deixou tempo para se aperceberem da nossa presença. Folgamos com isso, pois não era mesmo desejo nosso que nos vissem. Para melhor passarmos desapercebidos, sentamo-nos novamente. Se saíssemos agora, expunhamo-nos a ser vistos e agredidos. Quando explicamos a Lange quem eram os recém-chegados, ele empurrou levemente a porta, de modo que podíamos ouvir, sem sermos vistos. Trocamos também de lugar, sentando-nos de costas para a entrada.
— É bom que eles não os reconheçam, — disse o ferreiro. — Que tal não suceda! Permaneçamos agora aqui, até passar o perigo.
— É boa a idéia, não há dúvida — disse Old Death. — Mas acha que estamos dispostos a ficar sentados até que eles resolvam retirar-se? Não temos tempo para isso. Precisamos falar com o señor Cortésio.
— Pode fazê-lo, sir. Sairemos às escondidas. Old Death percorreu a sala com o olhar e disse:
— Por onde? A única saída é pela frente.
— Engana-se. Esta saída aí é muito mais cômoda. Ele apontou para a janela.
— Fala sério? — perguntou-lhe o escoteiro. — Parece até que está com medo! Acha, então, que vamos retirar-nos à francesa como ratos que, à aproximação do gato, somem-se em qualquer buraco? Como não haviam de rir-se de nós!
— Medo é cousa que não conheço. Mas um velho ditado alemão diz que o mais inteligente cede. Proponho essa medida não por medo, mas por prudência. Olhe para a sala e veja que são em formidável maioria. Depois, esses malandros estão arrogantes e com raiva. Não nos deixariam passar sem insultar-nos e, como não sou homem que leve desaforos para casa, e creio que os senhores são também da mesma tempera, o barulho estaria formado, barulho que facilmente degeneraria em morticínio. Se a luta fosse a soco, a golpes de cadeira ou mesa, eu não recearia a superioridade numérica, pois sou ferreiro e também sei malhar cabeças. O diabo é o revólver, a maldita arma de fogo, com a qual o maior covarde está em condições de liquidar o homem mais valente. Portanto, a prudência nos aconselha a pregar-lhes uma peça, retirando-nos, secretamente, por aquela “porta” e batendo o pó dos sapatos. Ficarão ainda mais indignados com essa atitude do que se lhes quebrássemos algumas cabeças e saíssemos com os narizes quebrados ou cousa pior.
Concordei tacitamente com o ferreiro. Old Death, depois de refletir um momento, disse:
— Sua idéia não é de todo má. Vou aceitá-la, safando-me junto com os senhores. Não vá eu ficar preso por uma das minhas compridas pernas. Não sou perito em escalar janelas. Ouçam como berram! Creio que estão a relatar a aventura do vapor.
Tinha razão. Falavam do sucedido à tarde, contando-lhes a peça que lhes pregara o capitão. Não chegavam, porém, a um acordo, quanto à vingança que nos infligiriam. Uns queriam aguardar lá no local do logro, à espera da volta do vapor; ao passo que outros não estavam dispostos, ou não tinham tempo para esperar tanto.
— Não podíamos ficar eternamente sentados na barranca, à espera daquela barcaça, — dizia um. Éramos esperados aqui. Foi uma sorte termos encontrado aquela quinta nas imediações, onde nos emprestaram alguns cavalos, a fim de prosseguir até aqui.
— Emprestaram? — perguntou um, rindo.
— Tomamos de empréstimo, naturalmente segundo a nossa praxe. Contudo não foram suficientes, pois tivemos que montar dois em cada animal. No caminho, porém, encontramos outras fazendas e, no fim, cada um possuía a sua montaria.
Uma gargalhada ressoou coroando a história do roubo de cavalos.
— E aqui tudo está em ordem? Acharam os homens? — perguntou o que acabava de falar.
— Sim, achamos todos.
— E as vestimentas?
— Trouxemos dois caixotes com o necessário.
— Então vai ser uma pândega! Mas o comandante e os dois espiões a que me referi devem, também, receber o seu quinhão. O vapor passará a noite de hoje neste porto; será fácil, portanto, encontrarmos tanto o capitão, como o índio e os outros dois espiões. Os dois últimos facilmente se descobrirão, pois um veste uma roupa nova de escoteiro e ambos conduzem às costas um serigote, sem no entanto trazerem cavalo consigo.
— Serigote?! — ressoou num tom de íntima satisfação. — Mas aqueles dois que por aqui passaram há pouco e estão sentados lá na outra sala, traziam os serigotes ao...
— Está na hora! — exclamou o ferreiro. — Raspemo-nos sem perda de tempo. Em um minuto aqui estarão. Saiam pela janela e eu lhes alcançarei, depois, os serigotes.
Pulamos janela afora e o ferreiro nos alcançou os arreios e as espingardas e, com seu filho, nos acompanhou, depois, na manobra.
Estávamos num jardinzinho. Dali vimos, então, que os fregueses que conosco se achavam na sala, também fugiam pela janela. Com certeza não esperavam passar horas mais agradáveis do que nós.
— Afinal! — exclamou Lange. — Eu gostaria de ver os olhos arregalados com que vão ficar quando derem pela fuga da presa. Foi a melhor solução!
— Mas, para os nossos brios, uma solução ridícula — retrucou-lhe o escoteiro. — Parece que estou ouvindo a estrondosa gargalhada que vão soltar diante da nossa covardia.
— Deixe-os rir! Riremos por último: quem ri por último ri melhor. Deus queira que tenha ensejo de provar ao senhor que não os temo. Mas não sou muito afeiçoado às desordens em casas públicas.
EM CASA DO SEÑIOR CORTÉSIO — ADESÃO SIMULADA
Os dois ferreiros pegaram nossos serigotes, dizendo-nos não consentirem que seus hóspedes carregassem semelhantes fardos. Depois de caminharmos um pouco, achavamo-nos entre duas casas. A da esquerda estava imersa na escuridão; na da direita, bruxuleava uma escassa luz pela fresta da janela.
— O señor Cortésio está em casa — disse Lange. — Mora ali, onde vêem luz na janela. Basta bater à porta que ele os atenderá. Depois de se entenderem, venham para minha casa que é a da frente, a que está às escuras, enquanto lhes preparo alguma coisa para o jantar.
Os ferreiros dirigiram-se para a sua residência e nós nos encaminhamos para a casa do señor Cortésio. Batemos. A porta apenas se entre-abriu e uma voz perguntou:
— Quem bate aí?
— Dois amigos — respondeu Old Death. — O señor Cortésio está?
— Que qui qué do sinhô?
— Queremos propor-lhe um negócio.
— Que? Um negócio? Então, podi entra. Vou preguntá.
— Diga-lhe que vimos recomendados por Mr. Lange.
— Mr. Lango? Istá bom, homi. Esperi um pouco!
Pelo modo de falar, a pessoa que nos atendeu devia ser um negro; não pudemos distinguir distintamente por causa da escuridão e da porta semicerrada.
Voltou em seguida e nos fêz entrar. Era de fato um negro.
— O sinhô manda dizê qui vai atende as visita!
Passamos por um estreito corredor, a uma saleta que devia servir de escritório, pois estava mobiliada com uma escrivaninha, uma mesa e algumas cadeiras. Com a face voltada para a porta, achava-se sentado à escrivaninha um homem de corpo esguio. O rosto não negava a raça: era bem espanhol.
— Buenas tardes — respondeu ele ao nosso cumprimento. — São recomendados por Mr. Lange? Posso saber a que devo a honra de sua visita, señores?
Eu estava curioso pela resposta de Old Death. Pedira-me, ainda na rua, que o deixasse falar. O velho respondeu:
— Talvez um negócio e talvez um pedido de informação, señor. Não sabemos ainda bem ao certo.
— Veremos! Queiram sentar-se e aceitar um cigarrillo.
Apresentou-nos a cigarreira e fósforos, de que não podíamos deixar de nos servir, sob pena de nos mostrarmos descorteses. O mexicano, ou espanhol, não dispensa um cigarrinho durante a palestra. Old Death, a quem seria mil vezes mais agradável mascar um naco de fumo, aceitou um daqueles cigarros fininhos, acendeu-o, e, mal dera umas tragadas, já o cigarro estava terminado. O meu durou mais um pouco.
— O que nos traz à sua presença — começou Old Death — não é de uma significação extraordinária. Vimos aqui fora de hora porque soubemos que, mais cedo, não o encontraríamos em casa. E, mesmo, não pretendemos prolongar esta entrevista porque a situação local não nos convida a uma longa permanência. Tencionamos seguir para o México e oferecer nossos serviços a Juarez. Mas essas atitudes a gente não gosta de tomar ao léu. Por isso, de indagação em indagação, viemos a saber que aqui, em La Grange, havia uma pessoa que se encarregava de encaminhar voluntários para o México e citaram-nos o seu nome. Em vista disso, señor, resolvemos procurá-lo e, agora, tenha a bondade de dizer-me se essa informação corresponde à verdade!
O mexicano não respondeu logo. Contemplou-nos com olhar investigador. Parecia satisfeito comigo. Era jovem e robusto. Old Death, por certo, não lhe agradou tanto. A sua figura esquelética, de tronco recurvado, não lhe parecia em condições de suportar as vicissitudes de uma luta armada. Fêz uma pausa e respondeu:
— Mas quem lhe indicou meu nome, señor?
— Um cavalheiro que encontramos a bordo — mentiu Old Death. Logo ao desembarcarmos, Mr. Lange nos informou que poderíamos encontrá-lo às dez horas em casa. Somos nortistas descendentes de alemães e lutamos contra os estados do sul. Possuímos preparo militar e, portanto, a nossa colaboração pode tornar-se de alguma valia para o presidente do México.
— Hum! Tudo isso é muito nobre, sir; mas, francamente, tenho a impressão de que o senhor não está talhado para os sacrifícios que lhe vai exigir a luta pela libertação mexicana. Parece-me fraco e doente.
— É realmente muito franco, sir — disse o velho sorrindo. — No entanto basta que lhe decline meu nome para convencê-lo de que sou um homem aproveitável, señor. Sou conhecido por Old Death, que é meu nome de guerra.
— Old Death!! — exclamou Cortésio espantado. — Será possível? Então é o famoso escoteiro que tantas perdas infligiu às tropas do sul?
— Em carne e osso! Minha figura que o ateste.
— Realmente, señor! Agora noto a sua figura. Tenho que agir com muita cautela. Não devo apresentar-me publicamente, como agente de Juarez, principalmente agora que a repercussão da guerra civil mexicana agitou os ânimos desta zona. Mas como é Old Death, posso falar-lhe com franqueza. Sim, a informação que lhe prestaram é verdadeira. Estou pronto a encaminhá-los para o México e conseguir para o senhor até um posto, pois um homem do seu valor não deve ser soldado raso.
— É o que desejo, señor. E quanto a este meu companheiro, mesmo que ele entre como simples soldado, estou certo de que não tardará a galgar postos elevados na hierarquia das tropas de Juarez. Nas tropas abolicionistas, apesar de sua pouca idade, chegou ao posto de capitão. Seu nome é Müler e, com certeza, já ouvir falar nele. Servia, como tenente, nas tropas de Sheridan e na famosa marcha dos flancos sobre o Mississípi-Ridge, comandou a vanguarda. O senhor sabe quanto foi arrojada aquela marcha! Müler era o predileto de Sheridan, que nele depositava toda a confiança, encarregando-o das tarefas mais importantes e perigosas. Foi ele o oficial de cavalaria que libertou Sheridan, quando este caiu prisioneiro, no sangrento combate de Five Forks. Não lhe parece uma excelente aquisição para Juarez?
Como mentia o velho! Que fazer? Desmenti-lo? Sentia o sangue subir-me às faces; Cortésio, porém, supôs que eu enrubescia de modéstia, pois estendeu-me a mão e disse, mentindo, também, como um político:
— Não core a esse elogio bem merecido, señor Müler. Eu já ouvira falar em seu nome e nos seus gloriosos feitos. Seja bem-vindo! Terá igualmente um posto em nossas tropas e já vou adiantar-lhe, em dinheiro, uma soma suficiente para adquirir tudo de que necessitar.
Vi que Old Death já ia concordar com a oferta. Percebi-o pelos gestos; por isso apressei-me em responder:
— Não é necessário, señor. Não pretendemos que o senhor nos forneça equipamento. De resto, precisamos apenas de dois cavalos, que poderemos comprar aqui. Os arreios possuímos.
— Muito bem! Tenho dois excelentes animais e se realmente é intenção dos senhores pagá-los, cederei os animais ao preço de custo. Levá-los-ei amanhã cedo às baias, onde poderão vê-los. São os melhores que tenho. Já arrumaram pouso para hoje?
— Sim. Mr. Lange convidou-nos para pernoitarmos em sua casa.
— Estão bem acolhidos. Se não fora isso, eu os convidaria a ficarem aqui em minha casa, se bem que sejam muito modestas as suas instalações. Querem liquidar o resto já ou deixamos para amanhã?
— Liquidamos imediatamente. Quais as formalidades a preencher?
— Por enquanto nenhuma. Como vão adquirir tudo por conta própria, só prestarão juramento quando forem incluídos no corpo. Preciso apenas supri-los dos salvos-condutos e de uma carta de recomendação que lhes assegure um posto. É melhor escrever já esses documentos. Aqui nunca se sabe o que pode suceder de um momento para outro. Tenham, pois, paciência e esperem um pouco. É rápido. Ali estão os cigarrillos e vou-lhes oferecer um trago de uma bebida que nunca ofereço a ninguém. Possuo uma só garrafa desse saboroso néctar.
Pôs a cigarreira diante de nós e trouxe-nos uma garrafa de vinho. Em seguida, sentou-se à escrivaninha para preparar os nossos papéis. Old Death fez-me, às costas do mexicano, uma careta pela qual concluí que estava satisfeito. Depois que encheu um copo com vinho esvaziou-o de um sorvo à saúde de señor Cortésio. Quanto a mim, não me achava tão satisfeito, pois o nome dos meus fugitivos nem havia citado ainda. Cochichei isto ao velho. Respondeu-me com um aceno significativo que, em seguida, entraria no assunto.
Decorrido um quarto de hora, Old Death sozinho esvaziara a garrafa do vinho e o señor Cortésio terminara seu serviço. Leu-nos a carta de recomendação com a qual ficamos muito satisfeitos. Em seguida, deu a cada um de nós duas sobrecartas. Ao abri-las vi, pasmado, que eram dois. salvo-condutos, um escrito em francês e outro em espanhol; o primeiro estava assinado por Bazaine e o último por Juarez. Cortésio deve ter notado a minha surpresa, pois, com uma expressão de sagacidade, disse:
— Vê, o senhor, que estamos aparelhados para defendê-los contra todas as eventualidades. A maneira por que consegui apoderar-me desses autênticos passes franceses é segredo meu. Os senhores não sabem quem vão encontrar pelo caminho; e assim é bom tomar-se todas as precauções. Não forneço esses passes a qualquer um; só em casos excepcionais como este, em que estou convencido de que se trata de pessoas de confiança. O pessoal comum, que encaminho para o México, nem os supro de salvo-conduto.
Old Death aproveitou a ocasião para fazer a pergunta por mim tão ansiada:
— Quando transportou o último contingente?
— Ontem. Eram ao todo uns trinta recrutas que acompanhei até a Granja Hopkin. Ao contingente agregaram-se também dois particulares.
— Então encarrega-se, também, do transporte de particulares? — perguntou o velho admirado.
— Não. Fiz apenas uma exceção, porque um dos cavalheiros é velho conhecido meu. Como vão bem montados, se partirem cedo é possível que ainda alcancem o contingente, antes que este atravesse o rio Grande.
— Em que parte do rio pretende a sua gente atravessá-lo?
__ Vão na direção do Eagle Pass. Mas como não se devem deixar ver ali, vão atravessá-lo um pouco mais para o norte. Entre o rio Neures e o rio Grande, cortarão a estrada de muares que vem de Santo Antônio, passando pelo forte Inge; mas neste, também, não se podem deixar ver e por isso cavalgarão por entre os afluentes Las Moras e Moral, em direção, ao Rio Grande, onde há um passo transponível, conhecido de nosso guia. Daí tomarão rumo do oeste, para atingir finalmente Chihuahua, depois, de passarem por Baía, Cruzes, São Vicente Tabal e São Carlos.
Não compreendi essa complicada nomenclatura. Old Death, porém, meneou a cabeça, repetindo os nomes, como se fosse perfeito conhecedor de toda essa zona.
— Alcançaremos o contingente, se formos bem montados e a montaria do pessoal não fôr muito boa. Mas teremos permissão para nos juntarmos a ele?
Cortésio respondeu afirmativamente e entusiasmado. Mesmo assim, meu amigo prosseguiu nas perguntas:
— Mas os dois cavalheiros, que viajam particularmente, aceitarão, também, a nossa companhia?
— É lógico. Eles não têm o direito de mandar em coisa alguma. Devem, ainda, dar graças a Deus, por lhes ter permitido viajarem sob a proteção do destacamento. De resto, posso garantir-lhe que são boas pessoas, a quem deverão tratar como cavalheiros. Um deles, mexicano de nascimento e chamado Gavilano, é velho conhecido meu. Com ele passei lindas horas na capital mexicana. Tem uma irmã, mais jovem do que ele, de rara beleza e que punha a bailar a cabeça de todos os señores.
— Então, também ele, deve ser um belo homem.
— Absolutamente não. Nem são parecidos, visto serem irmãos apenas por parte de mãe. Ela se chama Felísia Perilla e, como cantora excelente e hábil bailarina, freqüenta a alta sociedade. Depois disso desapareceu e, agora, seu irmão informa-me que ela ainda mora nos arredores de Chihuahua. De momento, ele não pôde dar-me informações exatas, pois só depois de chegar lá é que ia informar-se com precisão sobre o seu paradeiro e modo de vida.
— Posso saber que profissão exerce esse cavalheiro?
— É poeta.
Old Death fez uma fisionomia de pasmo e menosprezo, que obrigou Cortésio a acrescentar:
— Señor Gavilano é poeta mas por diletantismo; não vive da poesia, possui uma considerável fortuna e não tem necessidade de vender as suas produções.
— É um homem invejável.
— Sim, e a inveja não tardou realmente a persegui-lo. Por causa dos invejosos, isto é, da perseguição que estes lhe moveram, foi obrigado a abandonar este país. Volta, agora, para sua pátria em companhia dum ianque, que deseja conhecer o México, e que pediu-lhe para encaminhá-lo na arte da poesia. Além disso pretendem ambos construir um teatro no México.
— Que sejam felizes! Mas Gavilano sabia que o senhor atualmente se achava em La Grange?
— Não. Achava-me, casualmente, no porto, quando o vapor atracou a fim de passar a noite aqui. Eu o reconheci logo e, naturalmente, convidei-o, juntamente com o companheiro, para se hospedarem na minha casa. Soube, então, que eles pretendiam viajar até Austin, para, de lá, prosseguir em direção à fronteira; procurei, então, facilitar-lhes a viagem, de modo que o fizessem com segurança e rapidez. Sim, para um estranho e, principalmente, quando este não é adepto dos secessionistas, constitui grave perigo permanecer em nosso país. No Texas perambula atualmente uma horda de “pescadores de águas turvas”, elementos perigosos, que a gente não sabe de onde vieram e nem para onde vão. Ouve-se a cada passo falar em atentados, assaltos e crueldades, sem motivos justificados, nem mesmo conhecidos. Os autores somem-se, sem deixar pista, e a polícia fica de braços cruzados, impotente.
— Não serão cousas da Ku-Klux-Klan? — perguntou Old Death.
— Esta suposição se está generalizando, nestes últimos dias; e foram feitas algumas descobertas que levaram a polícia à conclusão de que se trata realmente daquela nefasta associação secreta. Ainda anteontem, em Halletsville, encontraram dois cadáveres, sobre os quais havia um papel com a legenda Yankee-Hounds. Do outro lado, em Schelby, uma família quase foi morta a chibatadas, porque o seu chefe servira sob as ordens do general Grant. E hoje eu soube que, lá, em Lyon, foram encontrados dois capuzes, feitos de dois pedaços de fazenda, costurados em forma de lagarto.
— Com todos os diabos! Os kukluxerianos usam essas máscaras?
— Sim, eles enfiam carapuças pretas com sinais brancos. Cada agremiado usa uma figura pela qual é reconhecido, pois, nem eles entre si devem saber o nome uns dos outros.
—- É de prever, pois, que a Ku-Klux-Klan estenda, também, até aqui o seu raio de ação. E tome cuidado, Don Cortésio. Eles estiveram, primeiro, em Halletsville, e o capuz foi encontrado em Lyon. A última das localidades é a mais próxima daqui.
— É isso mesmo, señor. Tem razão. Vou pôr, hoje, fechaduras duplas nas portas e nas janelas de minha casa e de agora em diante terei minha arma carregada e sempre à mão.
— Faz bem. Esses indivíduos não devem ser poupados. Eles não poupam ninguém. Ilude-se todo aquele que se entrega a eles, sem resistir, contando com os seus sentimentos de humanidade. A minha eloqüência é de pólvora e chumbo. Lá no hotel, o ambiente já não está muito tranqüilo; vimos ali cavalheiros que não nos inspiraram confiança. Seria medida de prudência, se o senhor ocultasse muito bem a sua identidade e o seu encargo. Faça isso hoje mesmo! Cautela nunca é demais. É preferível prudência excessiva a ser chibatado, ou morto a tiros, por um insigficante descuido. Por enquanto, acho que estamos entendidos. Amanhã cedo nos veremos. Ou tem mais alguma cousa a nos recomendar?
— Não, señores. Por hoje, estamos entendidos. Folguei imensamente em conhecê-los e espero ouvir mais tarde boas notícias suas. Estou convencido de que, com Juarez, irão encontrar a sorte e fazer carreira muito depressa.
NA IMINÊNCIA DE UM ASSALTO
Com essas palavras, estávamos despachados. Cortésio estendeu-nos amavelmente a mão, e nos retiramos. Quando a porta se fechou atrás de nós e nos encaminhávamos para a residência de Lange, não me contive e dei um empurrão nas costelas do velho dizendo:
— Mas, mestre! Como conseguiu impingir tudo aquilo ao señor. É hábil na arte de mentir... Nós guerrearmos no México, ao lado de Juarez!
— Oh! São coisas que ainda não pode compreender, sir! Era possível que o homem nos repelisse e, por isso, foi preciso fazer crescer-lhe o interesse pelas nossas pessoas.
— Arre! Até o dinheiro que quis pôr à nossa disposição o senhor ia aceitar! Isso seria roubo legítimo.
— Não, nada lhe pedimos. Por que não haveria eu de aceitar aquilo que espontaneamente me oferecia?
— Porque não pretendíamos fazer jus àquele dinheiro.
— Como? Neste momento não temos, é claro, este propósito. Mas pode garantir que não iremos ter oportunidade de servir à causa de Juarez? Poderemos, até, ser obrigados a isso. Não obstante, dou-lhe razão. Foi bom que não lhe aceitássemos o dinheiro. Com essa recusa, conquistamos-lhe a confiança e foi exclusivamente devido a este nosso gesto que ele nos muniu dos dois passes. Mas o melhor de tudo foi descobrirmos o paradeiro de Gibson e sua vítima. Conheço muito bem o caminho por ele descrito. Partiremos a tempo e tenho certeza de alcançá-los. Em vista de nossos documentos, o comandante do contingente não hesitará um só segundo em nos entregar os fugitivos.
Não foi necessário batermos quando chegamos à casa de Lange. O ferreiro se achava na porta, à nossa espera, e nos conduziu para a sala. Esta tinha três janelas e estavam fechadas com três grossas colchas.
— Não se admire dessas cortinas — foi ele logo dizendo. — Eu as adaptei de popósito, pois os kukluxerianos não precisam ouvir o que dizemos.
— Mas já viu esses canalhas por aqui?
— Sim, pelo menos os seus batedores.
— Enquanto estiveram lá com señor Cortésio, isto aqui ficou monótono; saí então, a fim de esperá-los, para que não precisassem bater à porta. Vi logo um vulto que, curvado, se encaminhava para cá, vindo dos lados do hotel. Fechei a porta, deixando aberta apenas uma fresta, pela qual pude observar o que ocorria. Três homens se aproximaram da porta, onde ficaram parados. Não obstante a escuridão, vi que usavam bombachas, casaco largo e um capuz enfiado na cabeça. Este último era feito de tecido preto ornado de figuras claras.
— Ah! É o disfarce dos kukluxerianos!
— Justamente. Dois deles ficaram parados à porta, o terceiro, sempre curvado e de leve, dirigiu-se para a janela, pela qual procurou olhar. Depois voltou, informando os demais que na sala se achava sentado apenas um jovem, que deveria ser o filho do velho Lange; que este ainda não chegara, mas não devia tardar, pois a mesa já estava posta. Respondeu, então, um dos outros, que iríamos jantar e, em seguida, dormir; que pretendiam rondar a casa, a fim de verificar um meio mais fácil de nela penetrar. Em seguida, desapareceram na esquina e os senhores chegaram justamente quando coloquei aquelas “cortinas” nas janelas. Não tomei outras medidas, porque, por causa desses canalhas, não devo esquecer que os senhores são meus hóspedes. Apresentar-lhes-ei uma mesa de pobre; mas o pouco que tenho ofereço-o de coração. Poderemos, durante a ceia, falar do perigo que me está ameaçando.
— E é escusado dizer, que não o abandonaremos neste perigo! — disse Old Death — Onde está seu filho?
— Quando os senhores apareceram, à porta do señor Cortésio, ele saiu sorrateiramente, para tomar providências. Tenho alguns amigos, alemães, com os quais posso contar. Mandei que fosse, secretamente, buscá-los. Dois deles os senhores já conhecem. Estiveram sentados conosco lá no hotel.
— Mas esses seus amigos tentarão entrar aqui sem serem vistos? É de toda vantagem para nós deixarmos os kukluxerianos na suposição de que irão assaltar apenas o senhor e seu filho.
— Não se preocupe. Eles já sabem como agir e, além disso, dei as necessárias instruções a Will.
A ceia compunha-se de presunto, pão e cerveja. Mal nos sentamos à mesa, ouvimos latidos dum cão.
— Eis o sinal — disse Lange, levantando-se. — O meu pessoal está aí.
Saiu para os fundos, e daí a pouco voltou em companhia do filho e de mais cinco homens, que estavam armados de espingardas, revólveres e facas. Silenciosamente, sentaram-se, como puderam: as cadeiras eram escassas. Nenhum deles pronunciou palavra; limitaram-se a olhar as janelas para ver se estavam bem encortinadas. Eram os verdadeiros homens: de poucas palavras e muita ação. Entre eles havia um homem já idoso, de cabelos e barbas grisalhos, que não tirava os olhos de Old Death. Foi o primeiro a falar. Dirigiu-se ao meu companheiro, dizendo-lhe:
— Perdão, mestre! Will disse-me quem eu encontraria aqui e alegrei-me imensamente com esse encontro, pois creio que não é o primeiro.
— É possível! — respondeu-lhe o escoteiro. — Já me tenho encontrado com muita gente na minha vida.
— Mas não se lembra de mim?
Old Death olhou bem para o seu interlocutor e respondeu:
— Sei que já estivemos juntos um dia, não me recordo, porém, onde?
— Há uns vinte anos na Califórnia, no quarteirão chinês. Dê tento à memória! Jogava-se muito, ao mesmo tempo que se fumava ópio. Eu havia jogado todo o meu dinheiro, cerca de mil dólares. Possuía uma única moeda; e esta não queria jogar; reservava-a para umas baforadas de ópio e, depois, ia meter uma bala na cabeça. Eu era um jogador inveterado e havia perdido todos os meus haveres. Veio, então, o senhor e...
— Está bem, está bem! Lembro-me agora — interrompeu-o o velho. — Não é necessário contar o resto!
— Oh! Como não?! O senhor salvou-me. Estava de sorte e me ganhou a metade do que eu perdera. Chamou-me de lado, devolveu-me o dinheiro e conseguiu de mim, em troca de tanta generosidade, a promessa formal de nunca mais jogar e renunciar para sempre ao prazer do ópio. Fiz-lhe esta promessa e a cumpri à risca, embora de começo isso me fosse duro. O senhor é o meu salvador, repito-o. Trabalhei e quase enriqueci. Sou um homem abastado e se deseja proporcionar-me uma grande satisfação, aceite agora a devolução daquela soma. É, de fato, sua, pois o senhor a ganhou.
— Não sou tão tolo — respondeu Old Death, rindo-se. — Estive durante muito tempo orgulhoso de, ao menos um dia, haver praticado uma boa ação, e não vou trocar esse orgulho pelo seu dinheiro. Quando morrer, o único argumento poderoso que tenho para atenuar minhas faltas é este.
Como posso, então, agora, vendê-lo? Não. Fique com o seu dinheiro. Falemos de outras cousas. Preveni-o, então, contra dois demônios que, infelizmente, eu conhecia bem. À sua força de vontade, exclusivamente a ela, deve o senhor a sua salvação! Não falemos mais nisso!
A essas palavras do escoteiro, esclareceu-se um pressentimento que eu tivera. Dissera-me que sua mãe lhe traçara o caminho da felicidade, e que se havia desviado dele. Agora, confessava-se conhecedor de dois dos mais terríveis vícios, o jogo e o ópio. Poderia ter adquirido este conhecimento por observação? Acho muito difícil. Tinha, agora, quase a certeza de que ele fora ou era, ainda, um jogador viciado. Quanto ao ópio, a sua figura esmirrada, esquelética, atestava cabalmente o uso que dele fizera em outros tempos. Quem sabe se não tomava, ainda, secretamente, o mortífero narcótico?! Talvez não: o fumador de ópio necessita de tempo para satisfação do seu vício, tempo de que, por certo, não dispõe um escoteiro em atividade. Entretanto a sua figura estava a denunciar a prática do terrível vício. Passei a contemplar o velho de outro modo. Boa parte do respeito que me inspirara transformava-se, agora, em compaixão. Quanto não teria lutado contra esses dois demônios! Que físico robusto, que espírito esclarecido não devia ter possuído outrora, pois o narcótico não conseguira ainda, destruí-los completamente. Que valiam todas as aventuras que vivera nas campinas, a luta titânica contra os gentios, em face da batalha íntima, das cenas dolorosas que se desenrolavam no seu interior? Lutava, talvez, tão desesperadoramente contra o vício inexorável e invencível, como os peles-vermelhas lutavam contra os brancos em defesa da existência de sua raça, condenada ao extermínio. Convencera-se de que cada fase da luta terminava com a sua derrota e, contudo, resistia ainda, embora estirado ao solo e dominado pelo inimigo cruel. Old Death estava condenado a uma decadência, de que só a morte poderia livrá-lo.
As suas últimas palavras “Não falemos mais nisso” foram pronunciadas num tom tão decisivo, que o velho alemão desistiu de contrariá-lo.
— Pois sim, Old Death! Vou fazer-lhe à vontade. Aliás, estamos agora diante de um inimigo não menos sanhudo e inexorável do que o jogo e o ópio. Felizmente, porém, é mais fácil agarrá-lo, e havemos de agarrá-lo! O Ku-Klux-Klan é um inimigo do elemento germânico, devemos defender-nos mutuamente contra ele. É uma sociedade secreta que conta com milhares de associados e qualquer reação que lhes opusermos, se não fôr bem sucedida, terá como resultado uma vingança. Devemos mostrar-nos inexoráveis, desde o primeiro assalto que os “capuzes” nos fizerem. Se o Ku-Klux-Klan conseguir fixar-se aqui, estaremos perdidos. Investirão contra nós e nos estrangularão, um a um. Por isso sou de opinião que devemos preparar-lhes, para hoje, uma recepção tal, que jamais se animem a voltar aqui. Espero que todos concordem comigo.
Os demais o apoiaram.
— Bravo! — continuou ele, já que lhe deixaram a palavra por ser o mais velho. — Então, cabe-nos agora começar os preparativos, para que nossa reação não falhe. É preciso que o feitiço se vire contra o feiticeiro.
Alguém dos senhores tem uma proposta a fazer? Aquele que tiver uma boa idéia, que faça o obséquio de expô-la.
Os olhares de todos voltaram-se para Old Death. Como velho pioneiro do oeste bravio, este conhecia, como nenhum dos presentes, o meio de enfrentar semelhante inimigo. O escoteiro leu em todas as fisionomias em expectativa o convite mudo para que se manifestasse. Fêz uma de suas carantonhas, meneou levemente a cabeça e disse:
— Como os outros permanecem silenciosos, sou obrigado a dizer algumas palavras. A única coisa que sabemos é que pretendem efetuar o assalto, quando mestre Lange se recolha a dormir. De que modo são fechadas as portas dos fundos da casa? Com ferrôlho?
— Não, com fechaduras, como todas as portas de minha casa.
— Bem. Também esta circunstância eles devem conhecer. Entre eles deve haver algum serralheiro ou alguém que, pelo menos, saiba lidar com uma gazua. Que eles penetrarão aqui na casa, é fora de dúvida. Cabe a nós deliberar sobre a recepção que lhes faremos.
— Naturalmente à bala. Faremos, logo, fogo contra eles.
— Eles atirarão antes, contra nós, sir. O reluzir de nossas armas lhes indicará o alvo. Acho por isso que não devemos atirar. Seria mais sensacional, nós os prendermos sem entrarmos em contato com as suas armas.
— Acha isso possível?
— É até, relativamente, fácil. Ocultamo-nos dentro de casa e os deixaremos entrar à vontade. Assim que se acharem no seu quarto, fecharemos a porta e os prendemos. Alguns montarão guarda à porta e outros à janela. Deste modo não poderão escapar e serão obrigados a entregar-se.
O velho alemão meneou a cabeça refletidamente e, com energia, optou pela recepção à bala.
Old Death, em vista da oposição do velho, piscou um olho e fêz uma cara que provocaria a gargalhada de todos, se a situação não fosse de suma gravidade.
— Que cara é esta, sir? — perguntou Lange. — Não concorda com o plano?
ESPREITANDO OS ATACANTES
— Não concordo absolutamente. A proposta de nosso amigo, não há dúvida, parece muito prática e de execução pronta; mas os acontecimentos, calculo eu, vão desenrolar-se de forma bem diversa da que ele pensa. Se os membros da associação secreta, procedessem de acordo com o que julga o nosso camarada mereceriam, aliás, uma surra de rélho. Segundo o que ele pensa os “capuzes” desfilarão em parada, puxados por uma banda de música, para virem postar-se diante do cano de nossas armas... Se assim procedessem, seriam uns tolos. Segundo o meu raciocínio, procurarão reconhecer, primeiro, os fundos da casa e, depois, o interior desta, expedindo para isso, vários batedores. Aos dois que aqui entrarem, é claro, poderemos matar a tiros; os outros, porém, baterão em retirada para voltarem, daí a pouco, com reforço. Perdoem-me, mas o plano há pouco exposto não nos conduz ao objetivo visado. Precisamos deixar que todos entrem aqui, para, depois, prendê-los, com vida. Mesmo que o nosso plano surtisse efeito, ainda assim não concordaria com ele, pois, é contra a minha consciência transferir desta vida para a outra, algumas dezenas de cidadãos, com um tiro só, sem dar-lhes tempo de pensar nos seus pecados e a pedir perdão a Deus! Somos homens e cristãos, meus amigos! Devemos, é claro, receber os assaltantes de um modo tão enérgico que eles não se animem, nunca mais, a voltar aqui. Mas esse fim podemos também alcançar de modo menos sangrento. Se persistirem nesse plano de abater homens, como se abatem feras, executem-no; eu e meu companheiro, porém, não tomaremos parte na luta. Sairemos já à procura de outra casa que nos dê pouso para esta noite; deste modo não precisamos estar por aí com a consciência atribulada.
Falara como se tivesse auscultado o meu coração. Suas palavras produziram o efeito visado. Os homens olharam-se, acenaram com a cabeça em ar de assentimento, e o velho alemão disse:
— O que expus por último, sir, tem fundamento. Julguei que executando semelhante plano, os enxotaríamos para sempre de La Grange; não pensei, porém, na responsabilidade que, depois, pesaria sobre nós. Assim estou pronto a ser solidário com o seu plano, desde que me garanta ser de êxito seguro.
— Qualquer plano, por melhor que seja, está sujeito a fracassar. Não só constitui um ato de humanidade, mas também de prudência, deixarmos os homens entrarem aqui e depois encerrá-los, para que eles caiam com vida em nossas mãos. E, creia-me, é melhor do que matá-los a tiros. Tenha em vista que se os matássemos, contaríamos com o ódio de toda a agremiação. Longe de enxotá-los de La Grange, mais os atrairíamos para cá. Viriam, então, em bandos maiores, e a desforra seria sangrenta e de funestas conseqüências para toda a população. Peço, pois, aceitarem o meu plano! É o melhor que podem fazer. Para que não percamos tempo, vou fazer um reconhecimento ao redor da casa. Quem sabe se descobrirei algo que nos seja de vantagem.
— Não seria melhor desistir dessa tarefa, sir? O senhor mesmo disse ser possível que eles enviassem batedores para reconhecer a casa e esses batedores facilmente poderão vê-lo.
— Ver a mim?! — exclamou Old Death, rindo. Serei tão tolo para deixar ver-me, quando observo uma casa ou uma pessoa? Até hoje ninguém me julgou assim. É ridículo! Pegue o giz e faça sobre esta mesa uma planta de sua casa e do terreno, para orientar-me! Deixe-me sair pela porta dos fundos e espere-me ali até que eu volte. Não baterei; arranharei a porta com as unhas. Assim, quando ouvir bater, não sou eu, deve ser outro que não deixará entrar.
Lange tomou o giz e fêz sobre a mesa a planta solicitada. Old Death examinou o desenho e esboçou um sorriso de satisfação. Já ia saindo, junto com Lange, quando à porta virou-se e perguntou-me:
— Já observou, algum dia, secretamente, alguém, sir?
— Não, — respondi-lhe, recordando-me da combinação feita, na véspera, com Winnetou.
— Pois então, se quiser, venha. Proporciona-se, agora, uma boa oportunidade para aprender.
— Pare, sir! Seria arriscar muito, pois não vê que ele nunca fêz tal serviço?! É um inexperiente e a menor falha chamará a atenção do batedor dos klans e tudo estará perdido.
— Tolice! Embora conheça esse jovem de muito pouco tempo, sei que ele anseia por adquirir os conhecimentos necessários para tornar-se um homem do oeste. Ele se esforçará por não cometer o menor deslize. É claro que se eu fosse agora observar um cacique indígena, não o levaria comigo. Tenho certeza de que nenhum homem do oeste se rebaixará em pôr seus serviços à disposição da Ku-Klux-Klan. Por isso estou certo de que o batedor encapuzado não terá habilidade suficiente para nos surpreender a observá-lo. E mesmo que o jovem pratique um erro, Old Death estará a seu lado para saná-lo. Ao demais, quero levá-lo, e, conseqüentemente, irá comigo! Venha, sir! Mas deixe o seu sombrero aí conforme fiz com o meu. É muito volumoso e claro, e denunciará facilmente a nossa presença. Ponha os cabelos à testa e levante a gola do casaco, para que o rosto fique o mais oculto possível. Conserve-se, sempre, em minha retaguarda, e faça, exclusivamente, aquilo que eu lhe mandar. Siga minhas instruções e eu duvido que algum kukluxeriano nos veja.
Saímos pela porta dos fundos, que Lange fechou atrás de nós. Logo que saímos, Old Death agachou-se e eu fiz o mesmo. Ele parecia enxergar através da escuridão e respirava lenta e profundamente.
— A meu ver, não se acha ninguém em nossa frente — disse-me ao ouvido, indicando para o terreiro e as baias. Contudo, quero certificar-me melhor. Temos de ser precavidos. Não aprendeu a imitar o grito do grilo, soprando no canto duma folha de grama?
Respondi-lhe, baixinho, que sim.
— Ali diante da porta há grama. Apanhe uma folha e espere-me até que eu volte. Não se mexa do lugar! Mas, se ocorrer alguma coisa, imite o grilo, que correrei imediatamente em seu auxílio.
Dizendo essas palavras deitou-se no chão e arrastou-se para a frente, desaparecendo na escuridão. Passados dez minutos, voltou. Ao chegar, não o vi, realmente, mas o cheiro denunciou a sua aproximação.
— Tal qual eu pensei — disse ele. — No pátio ninguém e nas esquinas também não. Mas, na janela fronteira ao quarto de dormir, há um homem parado. Deite-se e arraste-se atrás de mim até lá! Não caminhe de barriga, como se fosse uma cobra, mas como um lagarto, sobre os dedos e as pontas dos pés. Examine o terreno com as mãos para ver se não há algum ramo seco que produza ruído ao pisar nele e abotoe o jaquetão de caça, para que não fique preso nalgum arbusto. Agora, avante!
Chegamos até o canto. Old Death parou e eu também. Depois de algum tempo, virou-se para mim e cochichou:
— São dois. Seja prudente!
Continuou a arrastar-se e eu o acompanhei de novo. Encaminhou-se na direção de uma cerca, com trepadeiras, que rodeava o jardim. Dali avistamos, a alguns passos de nós, uma pequena plantação de lúpulo e feijão em vara. Ao pé dessa plantação, ouvia-se o cochichar de pessoas. Old Death puxou-me pela gola até junto de si e disse-me ao ouvido:
— Ali estão eles! Precisamos ouvir o que falam. Eu deveria ir sozinho porque o senhor é um greenhorn, muito capaz de me pôr a corrida fora. Mas dois ouvem melhor do que um. Seria capaz de ir ouvi-los, sem ser visto por eles?
— Sim — respondi-lhe.
— Então vamos experimentar. Vou por este flanço e o senhor pelo outro. Quando chegar perto, encoste o rosto no chão para evitar que o brilho dos olhos denuncie a sua presença. Se eles o descobrirem, dada à sua respiração muito forte, teremos que imobilizá-los imediatamente.
— Matá-los? — perguntei.
— Não. Nossa ação precisa ser silenciosa, para não sermos surpreendidos pelos demais; o senhor não tem habilidade para matá-los a faca sem produzir ruído. Para o revólver, não podemos apelar: há o estampido. Adotaremos outro sistema. Logo que eles avistarem um de nós, atraco-me com um deles e o senhor com o outro. Agarre-o pelo pescoço e com a ponta dos dois polegares aperte-lhe a garganta, de modo que não possa proferir um único som. O que faremos depois, dir-lhe-ei na hora. Notei que é um moço possante, mas acha que conseguirá subjugar o canalha sem fazer barulho?
— Sim! — respondi-lhe.
— Para frente, pois, sir!
Ele prosseguiu, por um dos lados, e eu pelo outro. Daí a pouco estava eu junto de dois vultos, dos quais percebi o seguinte diálogo:
— Não tosquiaremos o comandante — disse aquele perto do qual me achava. — É verdade que ele os largou na barranca, ou melhor, os forçou a um banho. Mas, a rigor, ele cumpriu com o seu dever. Aliás, “Serralheiro”, ele é também um maldito alemão, mas nenhuma vantagem teremos, se o agredirmos. Pelo contrário, nos poderá até trazer transtornos. Pretendemos estender nosso raio de ação ao Texas e, para a boa marcha dos nossos serviços, precisamos não contar com a má vontade dos funcionários fluviais. Sobretudo este, cujo vapor toca em quase todos os portos do Colorado.
— Está bem! Seja como quer, capitão. Ao que parece, o índio nos fugiu. Nenhum indígena, aliás, toma passagem para La Grange, a fim de passar uma noite inteira aqui à espera da saída do vapor, na manhã seguinte. Mas os dois alemães que se envolveram conosco, estão ainda por aqui. Trata-se de perigosos espiões que devem ser linchados. Eles desapareceram, como por encanto, da sala do bar. Fugiram pela janela, os poltrões!
— Havemos de descobri-los. Para isso o “Lêsma” ficou no bar e não descansará, enquanto não descobrir o paradeiro deles. É um companheiro astucioso e hábil pesquisador de pistas. Foi ele quem descobriu que Lange já recebeu do mexicano o produto, em dinheiro, da venda do prédio. Vamos, pois, fazer um bom negócio e nos divertir muito. O filho lutou contra nós, como oficial, defendendo a “santa causa” dos escravos. A este enforcaremos. O velho meteu-o no uniforme e terá hoje, também, a sua paga; mas não será enforcado. Ele receberá uma surra tão forte de chicote, que a carne lhe saltará do corpo. Depois, o poremos a pontapés para a rua, e incendiaremos a casa.
— Mas com isso não sofrerá prejuízo, pois a casa não é mais sua — retrucou o outro.
— Tanto mais enfurecido ficará o mexicano que, por certo, não encaminhará mais ninguém para o Rio Grande, a fim de servir a Juarez. Depois de terminado o serviço aqui, iremos fazer-lhe, também, uma visita, da qual ele conservará imorredoura recordação. O pessoal já recebeu instruções neste sentido. Mas está, realmente, certo de que as chaves servirão, “Serralheiro”?
— Não me ofenda, capitão! Entendo do meu ofício. As portas desta casa não resistirão à minha gazua!
— Assim espero. Tomara que os homens vão dormir duma vez. O nosso pessoa] já deve estar impaciente, oculto naquelas estrebarias imundas. Ali os Lange despejaram todo o cisco e cacos de vidro que havia na casa, antes de vendê-la. Quisera que chegasse, afinal, a hora do senhor ir até lá para dar aos nossos companheiros a ordem de invadir a casa. Mas vou espreitar à janela a ver se, de fato, essas corujas alemãs ainda não se deitaram a dormir.
O “capitão”, agachado, encaminhou-se, pé por pé, à janela da casa. Era chamado “capitão” pelo companheiro; por essa designação e mais pelo diálogo que eu ouvira, concluía-se que era o chefe dos assaltantes. Ao outro o chefe chamava “Serralheiro” (em inglês, Locksmith). Talvez fosse este, de fato, o seu nome. Mas podia ser também serralheiro de profissão, pois dissera há minutos entender do ofício de lidar com gazuas. Eu ouvira o ruído de chaves que trazia num molho. Nessa ordem de pensamentos, fui interrompido por uma leve pancada na perna. Era Old Death que já se achava por trás de mim. Encostei-lhe o ouvido e ele perguntou se eu ouvira tudo. Respondi-lhe afirmativamente.
— Então já sabemos em que ponto estão as coisas. Vamos pregar uma peça a esses kukluxerianos, da qual hão de se lembrar à vida inteira! Depende só de me poder fiar no senhor!
— Pois experimente; farei tudo para merecer a sua confiança. Que deseja de mim?
— Que agarre um deles pela garganta, conforme lhe disse há pouca.
— Farei, sir! Pode contar comigo.
__ Bem! vou explicar-lhe novamente essa operação. Quando se aproximar... Ouça!
O “capitão”, depois de haver espreitado pela janela, voltava ao seu lugar, onde logo se sentou.
Old Death achou necessário continuar a ouvir os dois “encapuzados” e repetiu-me as instruções, que eu devia seguir, ao pegar um dos homens pela garganta e imobilizá-lo.
— Mas, deste modo, o homem morrerá sufocado — disse-lhe quando terminou de falar.
— Qual nada! Ninguém morre sufocado tão depressa. Além disso, esses desordeiros e bandidos possuem resistência de fera. São duros de morrer. Proceda como lhe digo que não o matará. Ou não se anima a enfrentar o homem? Receia ser mal sucedido?
— Absolutamente não!
— Portanto, mãos à obra e honre o seu mestre!
Afastou-se um pouco de mim e ambos nos preparamos para a ação. Os dois kukluxerianos prosseguiram na palestra. Estavam aborrecidos por terem, juntamente com os companheiros que se achavam nas baias, de esperar tanto para iniciar o assalto. Citaram os nossos nomes, dizendo-se esperançados de que o “Lêsma” descobriria o nosso paradeiro.
A essa altura, ouvi Old Death exclamar à meia voz:
— Já estamos aqui! Não se preocupem mais em nos procurar! Rapidamente investi contra o capitão, agarrando-o pela garganta e apertando-o com os dois indicadores, conforme as instruções de Old Death; o encapuzado não emitiu um só gemido contorcendo-se todo, convulsamente; o escoteiro, que já havia imobilizado o outro, surgiu, acocorado, diante de mim e, desferindo um golpe com o cabo do revólver na cabeça da minha presa, disse:
— Agora largue-o, senão o estrangulará de fato! Saiu-se muito bem da prova. Se continuar assim, tornar-se-á ainda, ou um bandidaço, ou um homem do oeste. Ponha o homem aos ombros e vamos!
CILADA PROVIDENCIAL
Agarramos os kukluxerianos, pusemo-los aos ombros e voltamos para a porta dos fundos, na qual Old Death fêz o sinal convencionado. Lange abriu-a logo.
— Que trazem aí? — exclamou, quando, na escuridão, notou que trazíamos fardos às costas.
— Já verá. Feche a porta e venha para a claridade.
Os homens ficaram estarrecidos, quando deitamos nossas presas no assoalho.
— Com todos os diabos! — exclamou o velho alemão. — São dois kukluxerianos! Estão mortos?
— Penso que não — respondeu o escoteiro. — Vejam como andei acertado, levando este jovem comigo! Portou-se bravamente, dominando o chefe da horda.
— O chefe? Oh! Mas isto é esplêndido! Onde estão os outros e por que trazem esses dois cá para dentro?
— É preciso dizer-lhes? Então não concluíram logo? Eu e este jovem vamos, agora, enfiar a roupa destes dois canalhas e, assim disfarçados, conduziremos a tropa que está nas baias, para aqui.
— Estão doidos?! Arriscam demasiadamente a vida! E se descobrirem que são falsos kukluxerianos?
— Não descobrirão — retrucou o velho com energia. — Old Death é um sujeito astucioso e este jovem não é tão tolo como parece.
O velho relatou, em seguida, o que ouvíramos dos nossos prisioneiros e expôs o seu plano. Eu, com o capuz do “Serralheiro”, deveria ir até as baias a fim de conduzir os kukluxerianos, que lá se achavam, para o interior da casa. Ele vestiria o disfarce do “capitão”, que era da mesma estatura, e fingiria de chefe.
— É claro, — acrescentou o escoteiro, — que falaremos cochichando: no cochicho todas as vozes são iguais.
— Bem, — disse Lange, — se querem arriscar, arrisquem! Não é o nosso couro que está em jogo e sim o dos senhores. E que faremos nós, neste ínterim?
— Vão buscar alguns barrotes para calçar as portas e janelas para que não possam ser abertas pelos prisioneiros. Em seguida apagarão as luzes e se esconderão dentro de casa. É só o que lhes compete fazer, por enquanto. O resto veremos depois.
Pai e filho dirigiram-se para o pátio a fim de buscar os barrotes. Enquanto isso, despojamos os prisioneiros de suas vestes. Eram de tecido preto e sobre elas traziam costurados distintivos de côr branca. O disfarce do “capitão” trazia um punhal costurado na frente, nas costas e nos fundilhos. O punhal era, pois, a insígnia de chefe; o do “Serralheiro” trazia uma chave costurada nos mesmos pontos. O kukluxeriano que se achava no bar, a fim de descobrir o nosso paradeiro, chamava-se “Lêsma”. Devia, pois, ostentar a figura desse animal, desenhado no capuz. Quando despíamos as calças do capitão, este despertou. Olhou apavorado ao redor e fêz um movimento para se erguer de um pulo, ao mesmo tempo que levava a mão à cintura, supondo que ali ainda se achasse o revólver. Old Death apertou-o rapidamente contra o assoalho, pôs-lhe a faca ao peito, dizendo:
— Calma, meu rapaz! Assim que soltar um grito ou fizer um movimento, esta linda faca lhe entrará inteirinha no peito!
O subjugado era um homem de uns trinta anos e usava barba aparada, ao sistema militar. As feições revelavam o homem do sul. Passou as mãos pela cabeça dolorida, onde há pouco Old Death desferira o golpe de revólver, e perguntou:
— Onde estou? Quem são?
— Aqui mora Lange, a quem pretendiam assaltar, rapaz! Eu e este jovem somos os dois alemães, cujo paradeiro “Lêsma” está encarregado de sindicar. Veja, pois, que se acha exatamente no local onde desejava estar! O homem mordeu os lábios e lançou um olhar sinistro em torno. Neste momento chegavam Lange e o filho, conduzindo enormes barrotes e uma serra.
— Temos material suficiente para amarrar vinte homens? — perguntou Old Death ao ferreiro.
— Sim.
— Então dê-nos, por enquanto, apenas o necessário para amarrar estes dois.
— Não me deixarei amarrar — exclamou o “capitão”, tentando novamente erguer-se. Mas, imediatamente, Old Death pôs-lhe de novo a faca no peito, dizendo:
— Não se atreva a fazer um só movimento! Esqueci-me de dizer-lhe quem sou: chamam-me Old Death e deve saber o que isto significa. Ou quem sabe julga que sou amigo dos kukluxerianos e dos senhores de escravos?
— Old... Death!! O senhor!! — exclamou o prisioneiro, tomado de pavor.
— Sim, meu rapaz, em carne e osso. E espero que, em vista disso, renunciem à bravata que planejaram. Sei muito bem que pretendem enforcar o filho de Lange, quebrar os ossos deste e, por fim, incendiar esta casa. Se ainda espera alguma indulgência, só poderá obtê-la, entregando-se a nós.
— Old Death! Old Death! — repetia o encapuzado mortalmente pálido. — Então estou perdido!
— Ainda não! Não somos assassinos como os senhores. Nós os pouparemos desde que se entreguem sem resistência. Se não o fizerem, os cadáveres dos senhores serão amanhã lançados no rio. Tome nota do que lhe estou dizendo. Se seguirem o meu conselho, poderão deixar o Texas para não mais voltar. Se não me obedecerem, porém, serão todos liquidados. Vou buscar o seu pessoal que será, também, aprisionado. Ordene-lhe que se entregue. E se não o fizer, descarregaremos as armas contra a horda encapuzada, como se fora um bando de pombas que se deseja abater.
O capitão foi amarrado e amordaçado. O outro, nesse meio tempo, recuperara igualmente os sentidos, mas achara de melhor aviso ficar calado e imóvel. Puseram-lhe também as cordas e a mordaça. Em seguida, foram levados para as camas do ferreiro e do filho. Amarraram-nos ainda mais para que não se pudessem mexer e os cobriram até o pescoço.
— Agora sim! — disse Old Death, rindo-se! — Pode começar a comédia. Como vão ficar admirados quando reconhecerem nesses homens que dormem tranqüilamente os seus próprios companheiros! Vão divertir-se muito! Mas, diga-me, Mr. Lange, de onde se pode, depois, falar com os prisioneiros, e observá-los, sem que nos vejam e alcancem.
— Hum! — fêz o interrogado apontando para cima. — A coberta compõe-se apenas de uma junção de tábuas. Podemos desprender uma delas.
— Bem, saiam todos daqui e levem as armas. Subam as escadas e fiquem lá em cima, até chegar à hora. Antes, porém, providenciem para que tenhamos suficiente madeira, a fim de calçar as portas e janelas.
Foram serrados os barrotes, nas dimensões adaptáveis ao fim visado e, depois, calçados às aberturas da casa. Vesti as calças e o capuz de “Serralheiro”, enquanto Old Death fazia o mesmo com os do “capitão”. Coloquei nos bolsos uma velha argola com chaves falsas.
— Não vai necessitar delas — disse Old Death. — Não é serralheiro, nem ladrão arrombador e, devido à sua inabilidade no manejo destes “instrumentos”, pode provocar a suspeita dos meliantes. Leve, pois, consigo, as verdadeiras chaves. Depois finja que abre a porta com a gazua. Ponhamos nossas facas e revólveres à cintura; nossas espingardas, porém, ficarão com esses senhores que, enquanto desempenhamos nossa tarefa lá fora, subirão à coberta, a fim de desprender uma tábua. Feito isso acenderão as luzes.
Essas instruções foram cumpridas à risca. Saímos, fechando a porta dos fundos. Levei as chaves desta, da sala e do dormitório. Quando ouvimos o ruído produzido pelo desprender da tábua, separamo-nos. Ele se dirigiu para o jardim, onde se achavam os feijoeiros e o lúpulo, e eu para as baias em busca do “meu” pessoal. Não caminhei muito de leve, pois desejava ser ouvido e interpelado; assim, evitaria complicações. Quando ia dobrar um ângulo da casa, ergueu-se um vulto:
— Stop! — exclamou o vulto. — És o “Serralheiro”?
— Yes. É para os senhores virem, mas com vagar, sem fazer ruído.
— Vou avisar o “tenente”. Espere aqui.
Retirou-se. Havia também um “tenente” no bando! A Ku-Klux-Klan até parecia uma organização militar. Não havia esperado um minuto, quando se me aproximou outro vulto. Em voz baixinha disse:
— Demoraram muito! Os malditos alemães já se recolheram, afinal, a dormir?
— Sim, afinal! Mas foi melhor assim. Tomaram entre os dois um púcaro inteirinho de aguardente.
— Então a tarefa vai ser facílima. Como estão as portas?
— Tudo em ordem!
— Então vamos. Passa da meia-noite e não demora a começar o baile lá do outro lado, na casa do tal señor Cortésio. Está marcado para a uma hora.
Por trás deles ergueram-se então numerosos vultos que nos seguiram. Quando chegamos perto da casa, veio ao nosso encontro Old Death, cujo vulto, no escuro, era igual ao do “capitão”.
— Tem alguma outra ordem a dar-me, “capitão”? — perguntou o “tenente”.
— Não — respondeu o velho. — Veremos, primeiro, o que nos sucederá no interior da casa. “Serralheiro”, experimente a porta.
Dirigi-me à porta, com a chave na mão. Contudo fingi que nela experimentava outras chaves. Quando a abri, fiquei parado com Old Death, a fim de deixar os da horda entrarem. Também o “tenente” ficou junto de nós. Quando todos já estavam no interior da casa, ele perguntou:
— Vamos acender as lanternas?
— Apenas a sua, por enquanto.
Entramos também; fechei de novo a porta, porém não à chave, e o “tenente” tirou do bolso das calças uma lanterninha. Seu disfarce era enfeitado com uma faca de campanha. Contamos, ao todo, quinze encapuzados. Cada qual usava distintivo diferente; globo, meia-luz, cruz, cobra, estrela, sapo, roda, coração, tesoura, passarinho, quadrúpedes e muitas outras figuras. O tenente parecia gostar de exercer o comando. Enquanto os demais se mantinham imóveis, ele alumiou em derredor, e perguntou:
— Uma sentinela aqui à porta?
— Para que? — disse Old Death. Não é necessário. O “Serralheiro” fechará a porta, e então ninguém poderá entrar.
Fechei, em seguida, a porta, para ganhar a confiança do “tenente”. Deixei, porém, a chave na fechadura.
— Temos que entrar todos no quarto — disse Old Death. — Os ferreiros são homem possantes.
— Mas está diferente de sempre, capitão!
— Porque a situação é também diferente! Avante! Empurrou-me para a porta da varanda, onde repeti a manobra de há pouco. Fiz como se não achasse logo a chave respectiva. Em seguida, entramos. Old Death tomou a lanterna da mão do “tenente” e alumiou o corredor que conduzia à porta do quarto de dormir.
— Por este corredor! — comandou. — Mas pisem leve, bem de leve! Silêncio!
— É para os homens tirarem as lanternas do bolso, capitão?
— Não. Só quando penetrarem no quarto.
Com essa ordem, Old Death visava impedir que os homens que “dormiam o sono tranqüilo” fossem reconhecidos antes do tempo. Havia lugar no quarto para os quinze. A questão era encaminhar a cousa com diplomacia, sem despertar suspeitas. Cheguei-me à porta do quarto, com todo o cuidado a abri, levando algum tempo nesse serviço. Old Death alumiou o quarto e disse:
— Dormem.
E ordenou com decisão:
— Entrem já todos! O “tenente” à frente!
Nem deu tempo que este lhe fizesse alguma ponderação; foi empurrando-o logo para dentro. Os demais, seguiram-no, na ponta dos pés e rapidamente. Mal o último entrara, fechei a porta à chave e a calçamos com os toros. Nem a força de vários elefantes seria agora capaz de arrombá-la. Feito isso corri para a escada.
— Estão ainda aí? — gritei para cima. — Eles caíram na cilada. Venham!
Os nossos companheiros vieram correndo, escadas abaixo.
— Estão todos “acomodados” no quarto de dormir. Ligeiro corram três para o lado de fora e calcem a janela com os barrotes. Todo aquele que tentar a fuga, receberá uma bala!
Abri de novo a porta dos fundos e três companheiros correram para a janela da prisão. Os demais acompanharam-me até a sala. Neste meio tempo, ouviu-se no quarto um vozerio infernal. Os arruaceiros compreenderam que se achavam aprisionados, tiraram do bolso as lanternas e reconheceram nos que dormiam as pessoas do seu próprio chefe e do “Serralheiro”. Berravam, blasfemavam e batiam com os punhos cerrados contra a porta e a janela.
— Abram! Abram! Do contrário demoliremos tudo! — ressoava no interior do quarto. Quando viram que tais ameaças não surtiam efeito, tentaram arrombar a porta, mas esta, calçada pelos barrotes, não cedia. Ouvimos, depois, que haviam aberto as vidraças e procuravam arrombar a janela.
— Não cede também! — ouvimos uma voz colérica dizer. — Calçaram-na do lado de fora.
Ouvimos, então, a voz ameaçadora de um dos três companheiros dizer:
— Afastem-se da janela! Estão presos! Aquele que arrombá-la receberá logo uma descarga!
— É isso mesmo! — bradou Old Death. — Também a porta está ocupada. Há gente suficiente aqui, para remetê-los ao reino do inferno! Perguntem ao “capitão” o que devem fazer!
E baixinho para mim:
— Subamos ao desvão. Traga a lanterna e a sua espingarda! Os demais que acendam a luz aqui!
Subimos. Havia um desvão por cima do quarto dos prisioneiros. Encontramos logo a tábua solta. Depois de tirarmos os capuzes, levantamos, de leve, a tábua e pudemos ver o que se passava no quarto, iluminada pelas lanternas dos desordeiros.
Estavam premidos. Haviam tirado as cordas e a mordaça dos dois prisioneiros e o “capitão” falava baixinho, mas, ao que parecia, autoritário com o pessoal.
— Oh! -— exclamou alto o “tenente”. — É para nós nos entregarmos?! Mas quantos adversários temos para enfrentar?
— Mais do que o suficiente para exterminá-los dentro de um segundo! — exclamou Old Death de cima.
Todos os olhares se ergueram, ao mesmo tempo. Ouvimos vários estampidos lá fora.
— Estão ouvindo? — prosseguiu o velho. — Os seus companheiros, que atacaram o señor Cortésio estão sendo, igualmente, repelidos à bala. Toda La Grange é contra os senhores. Todos sabíamos que os senhores se achavam nesta localidade, razão por que lhes preparamos uma recepção, tão brilhante, como nunca esperavam. Não precisamos da Ku-Klux-Klan. Na sala, ao lado dos senhores, acham-se postados doze homens; do lado de fora, em frente à janela, seis, e, aqui em cima, somos também seis. Chamo-me Old Death, compreenderam? Dou-lhe o prazo de dez minutos. Se depuserem as armas, os trataremos com brandura; do contrário, os fuzilaremos. Nada mais tenho a dizer-lhes, é a minha última palavra. Reflitam!
Colocou de novo a tábua no lugar e disse-me, à meia voz:
— Agora, desçamos depressa, e corramos em auxílio de Cortésio. Buscamos dois homens da sala, onde Lange e seu filho tinham ficado, e mais dois do lado de fora e fomos. Quando nos aproximamos da casa do mexicano, vimos, diante da mesma, uns cinco tipos encapuzados. Outros tantos vinham correndo dos fundos e um deles gritou, mais alto talvez do que desejava:
— Nos fundos, também há gente armada que nos repele a tiros. Não conseguiremos entrar.
Eu me deitara e me arrastara mais para a frente, ocasião em que ouvi outro responder:
— Que espiga! Quem adivinharia isso? O mexicano, com os seus tiros, está acordando toda a população. Em todas as casas se acendem as luzes. Ali atrás já se ouvem passos. Dentro de alguns minutos estarão no nosso encalço; apressemo-nos, pois. Arrombemos a porta a coronhadas. Concordam?
Não esperei a resposta, mas arrastei-me ligeiro para junto dos companheiros e disse:
— Pessoal, assaltemos, depressa, a horda a coronhaços. Eles pretendem arrombar a porta.
— Well, Well, pau neles! — foi a resposta geral, ao mesmo tempo que as coronhas de nossas espingardas faziam sentir sua ação sobre o bando encapuzado. Fugiram espavoridos, com exceção de quatro, os quais ficaram tão feridos que não lhes era possível correr. Foram desarmados. em seguida, Old Death bateu à porta do señor Cortésio.
— Quem é? — perguntou uma voz de dentro.
— Old Death, señor. Acabamos de repelir os bandidos, no momento em que iam assaltá-lo. Fugiram. Abra!
A porta foi, cautelosamente, aberta. O mexicano reconheceu o escoteiro embora este ainda ostentasse as calças e o capuz do “capitão”, e perguntou:
— Mas fugiram realmente?
— Sim, señor Cortésio! Quatro estão aqui presos. O senhor atirou?
— Sim. Foi uma sorte o senhor me ter prevenido da presença desses indivíduos! Atirei na frente da casa e o meu negro nos fundos, de modo que eles não puderam entrar. Vi, depois, que os senhores os atacavam.
— Sim, nós o salvamos. Venha, agora, conosco! Aqui eles não voltarão mais. Temos do outro lado quinze desses sujeitos presos, os quais não devemos deixar fugir. Enquanto isso, seu negro correrá casa por casa, e dará o alarme. Toda La Grange deve estar despertada, para que conheçam esses arruaceiros.
— Perfeitamente. Em primeiro lugar, ele deve chamar o xerife. Ouça, lá vem gente. Sem demora, estarei do outro lado, sir.
Ele tornou a entrar em casa. À direita, se encaminharam para nós dois homens, armados de espingarda, e nos perguntaram que significavam os tiros há pouco disparados. Quando lhes expusemos o que havia, imediatamente se puseram ao nosso lado. Mesmo a população secessionista de La Grange estava longe de ser solidária com os kukluxerianos, cujas tropelias deviam repugnar aos partidários de qualquer partido. Pegamos dos quatro prisioneiros, pela gola, e os arrastamos, por assim dizer, até a casa de Lange, onde os fechamos na sala. O ferreiro nos comunicou, então, que os quinze encapuzados haviam-se portado com calma durante a nossa ausência. O señor Cortésio veio logo e não tardaram a chegar, pouco a pouco, outros habitantes da localidade, de modo que daí a pouco a casa do ferreiro estava apinhada de gente até a rua. Isso ocasionava uma confusão de vozes, um vaivém de passos, que fácil foi aos kukluxerianos concluírem do estado de coisas. Old Death levou-me de novo até o desvão, situado sobre o quarto onde se achavam presos os encapuzados. O escoteiro desprendeu de novo a tábua para podermos olhar para baixo. Os prisioneiros se achavam todos cabisbaixos.
— Afinal, — disse Old Death — já se escoaram os dez minutos! Que resolveram?
Ninguém lhe respondeu. Apenas um deles proferiu uma blasfêmia.
— Não respondem? Portanto, suponho que não desejam entregar-se; vamos, pois, iniciar o tiroteio.
Apontou a arma e eu o acompanhei. Singularmente, nenhum deles se animou a sacar do revólver, que trazia à cintura. É que os canalhas eram covardes e sua coragem consistia apenas em exercer violências contra criaturas inermes.
— Vamos, respondam ou eu atiro! — ameaçou o velho. — É minha última palavra.
Não obteve resposta. Old Death cochichou-me:
— Atire também. Precisamos atingi-los; do contrário não lhes imporemos o respeito. Mire a mão do “tenente” e eu a do “capitão”.
Os nossos tiros deflagraram ao mesmo tempo. As balas atingiram o alvo. Os dois “oficiais” gritaram desesperadamente e logo os demais fizeram coro com o berreiro. Os nossos tiros foram, como era natural, ouvidos em toda a casa. Os presentes julgavam que nos achávamos em luta com os membros da Ku-Klux-Klan; por isso os nossos companheiros, postados diante da porta e da janela do quarto-prisão, detonaram as armas, indo os projéteis ferir vários prisioneiros. Todos, então, atiraram-se ao solo, onde se sentiam mais seguros e gritavam, como se estivessem sendo assados vivos, no poste dos martírios. O “capitão” ajoelhou-se diante da cama, enrolou a mão baleada num pano e exclamou para cima:
— Parem! Nós nos entregaremos!
— Muito bem! — respondeu Old Death. — Afastem-se todos das camas. Ponham as armas sobre as mesmas, e depois a porta será aberta para saírem. Mas ai daquele, no poder do qual fôr depois encontrada uma arma! Será sumariamente morto. Lá fora há centenas de pessoas. Só a rendição incondicional poderá salvá-los.
A situação em que se achavam os membros da organização secreta era, de fato, crítica. Em fuga não podiam pensar. Que conseqüências lhes traria a rendição? Resistir? Impossível! Assim, decidiram, finalmente, obedecer a Old Death. Depuseram as facas e os revólveres sobre a cama.
— Está bem, pessoal — disse-lhe o escoteiro. — Previno-os, ainda, de que será fuzilado, daqui de cima, todo aquele que, ao abrir-se a porta, voltar para retomar uma arma. Agora, esperem um momento.
QUEM NÃO QUISER SER LOBO, NÃO LHE VISTA A PELE
Mandou-me descer a fim de transmitir a ordem a Lange. Mas o desempenho dessa incumbência não foi tão fácil, como eu pensava. A casa, como já disse linhas acima, estava apinhada de povo que, ao alarme, acorrera ao local. Eu ostentava ainda o capuz, e o povo tomou-me por um membro autêntico da organização secreta e investiu furiosamente contra mim. Nem davam atenção às minhas palavras de justificativa. Recebi socos, empurrões e pontapés pelo corpo, tantos e tão violentos, que ainda dias depois as regiões ofendidas me doíam horrivelmente. Que brincadeira! Resolveram carregar-me para a frente da casa e linchar-me.
Achava-me, pois, em sérios apuros. Os meus agressores não me conheciam, pois era a primeira vez que pisava em La Grange. Assim, mesmo tirando o capuz, tomariam-me por um kukluxeriano. Dentre a multidão, sobressaía, nas investidas contra mim, um cidadão corpulento e espadaúdo, que me aplicava com verdadeira volúpia o seu punho fechado. Por fim, começou a empurrar-me, porta fora, bradando:
— Para fora, para fora! As árvores possuem galhos, lindos galhos, bons galhos, fortes galhos que, por certo, não quebrarão ao suster pelo pescoço uma linda imagem dessas!!
E assim falando, empurrava-me na direção da porta dos fundos.
— Mas, sir — gritava-lhe eu — não faço parte da Ku-Klux-Klanl Pergunte a Mr. Lange!
— Lindos galhos! Bons galhos! Fortes galhos! — respondia-me o homem, dando-me novos pontapés.
— Exijo que me conduza até a sala onde se acha Mr. Lange! Vesti este traje para conseguir melhor...
—Verdadeiramente lindo! — interrompia-me o agressor. — Verdadeiramente lindo o galho da árvore. E uma boa corda encontra-se também em La Grange. E corda boa e de finíssima qualidade, feita com a melhor pita! Boa corda! Lindos galhos!
E continuava a me empurrar e desferir murros, até que minha calma e paciência se esgotaram. O homem seria capaz de irritar ainda mais os ânimos contra mim, levando o povo, ali aglomerado, a linchar-me de fato. De resto, se ele conseguisse levar-me para a porta, boa cousa não podia esperar dele.
— Senhor, — bradei-lhe já meio furioso — não admito mais essas violências! Ouça-me e acalme-se! Leve-me à presença de Lange!
— Excelentes galhos! Incomparável corda! — gritava ele ainda mais alto que eu, enquanto me empurrava e esmurrava.
Numa dessas, o soco atingiu-me as costelas. Era demais. Ferveu-me o sangue. Cerrei o punho e desferi-lhe um soco violentíssimo debaixo do nariz. O homem teria rolado no chão, não fora à aglomeração de povo que ocupava todo o espaço. Vibrando socos, à direita e à esquerda, consegui abrir caminho, por entre a multidão e chegar até a sala, onde estava Lange. Mas a ala que eu abria fechava-se logo por trás de mim e os socos e pontapés do povo eram-me desferidos à larga. O tal homem, então, parecia um leão agredido. Conseguiu, também, abrir caminho e, gritando como um suíno quando é sangrado, foi em minha perseguição para a sala. Quando Lange o avistou, disse:
— Mas, por Deus, o que houve, meu caro sir? Por que berra deste modo? Que lhe aconteceu que está com a boca sangrando?
— Ao galho da árvore com esse encapuzado! — respondeu furioso. — Quebrou-me o nariz e os dentes, dois ou três ou quatro, os únicos que eu tinha na frente. Meus lindos e alvíssimos dentes! Enforquem-no!
A sua fúria agora era ainda maior do que antes, pois o sangue lhe jorrava em borbotões.
— Este aqui? — perguntou-lhe o ferreiro, referindo-se a mim. — Mas, sir, caro sir, ele não pertence a essa maldita agremiação secreta! É nosso amigo e exatamente graças a ele é que conseguimos pegar estes bandidos. Se não fora ele, eu e señor Cortésio, a esta hora estaríamos mortos e esta casa ardendo em chamas.
O homem arregalou os olhos e abriu a boca, não obstante o sangue que vertia. Apontou para mim e perguntou, atrapalhado:
— Se não fosse... aquele ali?
O povo caiu em estrondosas gargalhadas. O homem tirou do bolso um lenço, enxugou o suor que lhe escorria no rosto e limpou a boca e o nariz do sangue que jorrava; eu fazia massagens no corpo dolorido da saraivada de murros e pontapés que apanhara.
— Está ouvindo agora, sir? — trovejei-lhe. — O senhor estava louco por me enforcar. Os meus ossos doem-me muito devido aos seus malditos murros e pontapés.
O meu contendor, confuso, não sabia o que fazer. Sem dizer uma palavra, estendeu-me a mão aberta e nela mostrou-me os seus dois únicos dentes que até há pouco ainda possuíam domicilio manso e pacífico na sua boca!... Então também eu não pude conter o riso, em face da atitude de queixa que ele tomara. Pude, enfim, transmitir as instruções de Old Death a Lange.
Por medida de previdência, todas as cordas já se achavam amontoadas, prontas para o fim a que se destinavam.
— Deixe-os sair. — determinei — porém um por um, para irem sendo amarrados. Old Death nem sabe, talvez, o motivo por que demorei tanto em transmitir a ordem. O xerife já devia estar aqui! O negro do señor Cortésio teve ordens de chamá-lo imediatamente! Por que ainda não veio?
— O xerife? — perguntou Lange, surpreendido. — Ele está aqui! Mas, afinal, o senhor não sabe a quem deve agradecer os lindos socos e pontapés que recebeu há pouco? Pois é ao próprio xerife! Ei-lo aqui.
— Com todos os diabos, sir! — exclamei dirigindo-me ao último. — O senhor é o xerife em carne e osso? O senhor, o mais alto funcionário do poder judiciário deste lindo departamento? O senhor, a quem cabe zelar pelo cumprimento rigoroso das leis, a desempenhar aqui, em pessoa, o papel de juiz Linch? Isto é escandaloso! Não é de admirar, pois, que os kukluxerianos pretendam estender até aqui a sua ação. O campo é favorável. A justiça está acéfala!
Essas minhas palavras puseram-no em sérios embaraços. Não achou outra saída senão exibir-me, novamente, os dois dentes que eu lhe partira e dizer-me:
— Perdão, sir! Enganei-me devido à sua fisionomia caracteristicamente criminosa, segundo os tratadistas.
— Muito obrigado! Ponho, porém, em dúvida os seus conhecimentos de criminalista. Espero que, pelo menos, daqui em diante, saiba cumprir o seu dever. Do contrário, tornar-se-á suspeito de ser um dos membros disfarçados da Ku-Klux-Klan. Não se pode fazer outro conceito de um magistrado que aplica a lei de Linch em homens de bem!
Essas palavras fizeram-no recuperar o orgulho funcional.
— Oh! — exclamou batendo no peito. — Eu, o xerife da muito valorosa La Grange, um membro da Ku-Klux-Klan! Vou-lhes provar imediatamente o contrário. Esses canalhas serão justiçados ainda esta noite. Recuem. Deixem passar os criminosos! Fiquem lá fora, diante da porta, mas com os canos das espingadas voltados cá para dentro, para que eles agora saibam quem é o chefe da casa. Peguem as cordas e abram a porta.
FORAM BUSCAR LÃ E SAIRAM TOSQUIADOS...
UM JÚRI ORIGINAL
A ordem foi executada e daí a pouco uma dúzia de bacamartes estavam apontados, ameaçadores, porta a dentro. Na sala ficaram o xerife, os dois Lange, Cortésio, dois dos alemães que se haviam aliado a nós, desde o começo, e eu. O povo, lá na rua, inquieto gritava pela abreviação do processo. Para acalmá-lo, abrimos as janelas a fim de que vissem que estávamos agindo. Abri então a porta do quarto, onde se achavam os prisioneiros. Nenhum dos encapuzados queria ser o primeiro a sair. Intimei a fazê-lo, primeiro ao “capitão” e depois ao “tenente”. Ambos tinham ns mãos feridas envoltas num lenço. Além destes, havia mais uns dois ou três feridos. Em cima, no vão aberto pela tábua desprendida, se achava ainda Old Death com a espingarda apontada para baixo. Os kukluxerianos tão habilmente atraídos à cilada por ele, tiveram as mãos atadas nas costas; o mesmo se fêz em relação aos quatro que prendêramos na casa do señor Cortésio. O povo aplaudia com vibrantes hurras! Tiramos o capuz, apenas do “capitão” e do “tenente”. Devido à minha insistência, compareceu ao local um homem que se dizia “médico de feridas”, que afirmava operar, atar e curar os mais graves ferimentos em poucos minutos. Examinou os feridos e expediu a metade do povo em busca de algodão, unto, sabão, emplastro, panos e outros objetos necessários ao desempenho de sua profissão filantrópica.
Depois de se acharem amarrados os kukluxerianos, levantou-se a questão de se saber para onde os conduzir, pois, em La Grange, não havia prisão para dezenove pessoas.
— Transportem-nos para o salão de baile do hotel — determinou o xerife. — Convém solucionarmos o assunto o mais cedo possível. Formemos um júri e executemos logo a sentença. Estamos diante de um caso de emergência que devemos resolver, também, com medidas de emergência.
A notícia dessa resolução correu célere por entre a multidão, que correu para o salão do hotel, a fim de ocupar os melhores lugares, no espaço destinado à assistência. Muitos que não conseguiram lugar, ficaram à porta, outros trepados nas árvores fronteiras ou parados no meio da rua. A chegada dos prisioneiros foi recebida com apupos e ameaças de toda a sorte, tornando-se a escolta quase impotente para dominar a exaltação dos ânimos. A muito custo, conseguimos atingir, com os nossos prisioneiros, o tal salão de baile, que era, aliás, um recinto acanhado. O estrado da orquestra estava tomado, mas desocupou-se logo, para ceder o lugar aos prisioneiros. Quando tiraram os capuzes deles, viu-se que nenhum era de La Grange.
Constituiu-se o júri, cuja presidência coube ao xerife. Compunha-se do promotor público, do advogado da defesa, do escrivão e dos jurados. A meu ver, o tribunal estava organizado ridiculamente, mas justificava-se, dada a situação reinante.
Como testemunhas figuravam os dois Lange, os cinco alemães nossos aliados, Old Death e eu. Como material de prova, exibiam-se as armas apreendidas aos assaltantes. Verificou-se que, das armas, nenhuma cápsula fora detonada.
O xerife declarou aberta a sessão, dizendo prescindir do compromisso protocolar, pois a condição moral dos réus a serem julgados não era de molde a importunar cavalheiros de moral inatacável e de honra impoluta com um juramento. De resto, exceto os kukluxerianos, todos os presentes eram homens cujo “espírito de justiça e acatamento às leis” estava acima de qualquer suspeita, o que ele consignava com grande orgulho e íntima satisfação. Um bravos geral abafou as suas últimas palavras, aplauso que agradeceu, fazendo uma inclinação respeitosa. Eu, porém, vi numerosas pessoas entre a assistência, as quais, pelo aspecto, não davam a menor impressão de possuírem “espírito de justiça” e dispensarem “acatamento às leis”.
A seguir efetuou-se a inquirição das testemunhas. Foi ouvido apenas Old Death. Nós outros subscrevemos o seu depoimento e a inquirição estava feita. Em seguida, foi dada a palavra ao Staatenattorney (promotor público). Referiu-se ao nosso depoimento e acrescentou a circunstância de pertencerem os acusados a uma comunidade perniciosa, cujos fins era perturbar a ordem social, destruir o fundamento do Estado, cometer toda a espécie de crimes contra a vida e propriedade alheias, crimes passíveis de pena de prisão perpétua e até de morte. Os acusados, só pelo fato de serem filiados à tal agremiação, mereciam, senão a prisão perpétua, ao menos uns vinte anos de prisão. Acrescia a isso a circunstância agravante de haverem premeditado e tentado efetuar o assassinato de dois antigos oficiais da república, o chicoteamento de dois cavalheiros de conceito elevado e, finalmente, o enforcamento de dois cidadãos honrados e pacíficos. (A essas palavras, o promotor fêz duas inclinações diante de Old Death e de mim). Prosseguindo no seu libelo, dizia o promotor que, se os réus houvessem levado a cabo o nosso enforcamento, teriam causado a ruína de La Grange, pois justamente, graças à nossa interferência, aquela localidade surpreendia e ia expulsar do seu meio os mais perniciosos elementos. Isso constituía, portanto, mais uma agravante perfeitamente caracterizada: tentativa de morte, diretamente de nossas pessoas e indiretamente de muitos outros cidadãos também pacíficos e morigerados. Assim, pois, entendia que aos acusados fossem aplicadas as penas da lei, sem consideração de qualquer espécie. Perorando, terminou, pedindo que dois dos encapuzados escolhidos pelo tribunal fossem enforcados publicamente e os demais, depois de chibatados sem dó, recolhidos à prisão perpétua, para que, de futuro, não perturbassem a paz do Estado e a dos seus cidadãos.
A assistência premiou a sua oração com retumbantes bravos a que ele correspondeu, com uma inclinação.
Em seguida falou o advogado da defesa. Depois de pigarrear algumas vezes, começou o seu discurso fazendo ressaltar a falta imperdoável cometida pelo presidente do tribunal, em não inquirir os acusados, e nem ao menos perguntar-lhes pelos nomes e preencher outras formalidades. Concitava, pois, a presidência a preencher essa lacuna, antes do prosseguimento do processo. Eram formalidades indispensáveis, pois no caso de serem os acusados condenados à morte ou à prisão, de que forma se iam extrair os atestados de óbito e outros documentos necessários?! Concordava com o ponto de vista da promotoria de que os acusados tinham premeditado e atentado concretizar propósitos criminosos. Concordava porque era amigo da justiça e da verdade. Mas nenhum desses propósitos tinham passado do terreno da simples tentativa. Portanto não seria caso de condenação à morte ou prisão. Perguntava se a simples tentativa trouxera ou poderia trazer prejuízos a alguém? Por certo que não! Logo o colendo tribunal deveria absolver unanimemente os seus constituintes, dando com isso uma prova dos seus sentimentos cristãos e do seu amor acendrado à Justiça, coluna mestra do edifício da sociedade! Poucos o aplaudiram. No entanto, ele fêz uma inclinação, em forma de semicírculo, como se o mundo inteiro o estivesse a ovacionar.
Levantou-se, de novo, o presidente. Declarou que deixara de inquerir os réus e perguntar-lhes “pelos nomes e prencher outras formalidades, por estar já de antemão convencido de que eles não diriam a verdade. No caso de serem condenados à forca, fácil seria extrair-se um sucinto e sumário atestado de óbito que assim rezaria: “Enforcados dezenove kukluxerianos por sua única e exclusiva culpa”. Concordava que os réus, em seus propósitos criminosos, não tinham passado do terreno da tentativa e, baseado nessa circunstância, iria formular os quesitos. Mas tão somente aos dois cavalheiros devia-se o fato de não se haver consumado o crime. A tentativa é meia realização e devia ser punida. Disse ainda que não dispunha de tempo para estar ali a ouvir, horas a fio, os arroubos oratórios do promotor e do advogado da defesa; demais, não condizia com a sua dignidade de magistrado íntegro e circunspeto, tratar durante muito tempo com uma horda de dezenove indivíduos bem armados e municiados, que se deixaram prender por dois únicos homens; tais heróis não deveriam merecer, nem a consideração dum canário ou dum pardal. Disse já haver afirmado, e repetia agora, não ser amigo dos kukluxerianos; que iria providencnar no sentido de infligir-lhes tal castigo que os envergonharia até o fundo da alma e os levaria a nunca mais pôr os pés em La Grange. Apresentava, pois, um único quesito aos jurados: os acusados eram ou não culpados do crime de tentativa de morte, de roubo, de ferimentos e de incêndio? Pedia que os senhores jurados não protelassem a resposta até dezembro vindouro, pois, diante do júri, havia uma assistência composta de cidadãos dignos por todos os títulos, perante os quais, não se justificava o retardamento do desfecho do processo.
Sua exposição foi acolhida com aplausos. O senhores jurados reuniram-se a um canto, onde se demoraram por dois minutos, em conferência. Em seguida, um deles comunicou a deliberação do júri ao presidente que anunciou-a em voz alta. Concluíram pela culpabilidade dos réus. Então, houve nova sessão deliberativa entre o xerife e os jurados. O presidente ordenou então que o escrivão revistasse os presos e recolhesse tudo quanto encontrasse em seus bolsos, especialmente dinheiro, o que ele fêz com sofreguidão. Cumprida esta determinação, notou-se que o presidente contava o dinheiro, com uma expressão de contentamento. Levantou-se, depois, para proceder à leitura da sentença,
— Meus senhores, — disse ele — foi reconhecida a culpabilidade dos acusados. Vou dizer, em poucas palavras, em que consistirá a pena que lhes vamos aplicar, a qual, estou certo, corresponderá aos vossos anseios de justiça. Os réus não cometeram o crime que tencionavam; por isso, levando em consideração a argumentação justa do nobre advogado da defesa, que apelou para os nossos sentimentos de humanidade e de cristãos, renunciamos à idéia de aplicar-lhes a pena máxima e a de prisão.
Os acusados respiraram aliviados. Entre a assistência ouviram-se algumas exclamações de descontentamento. O xerife continuou:
— Já disse que uma tentativa de crime traz em si o perigo. Se não castigarmos esses kukluxerianos, devemos, pelo menos, tomar medidas sérias no sentido de que eles, de futuro, não possam constituir um perigo para a nossa população. Por isso, resolvemos afastá-los de Texas e isso de um modo tão vergonhoso para eles, que não ousarão voltar aqui, algum dia. Os seus cabelos e as suas barbas serão raspados imediatamente. Aqueles que não morarem longe, que vão à casa munir-se de tesouras; o ilustre tribunal dará preferência às que forem menos afiadas.
Ecoaram estrondosas gargalhadas. Um dos assistentes abriu a janela e gritou para a rua, onde, também, havia aglomeração de povo:
— Vão buscar tesouras! Os homens serão tosquiados! Quem trouxer tesoura, terá entrada na sala,
Eu estava certo de que, daí a pouco, todos voltariam, correndo, com as tesouras pedidas. Realmente, não tardou a registar-se uma correria de doidos no interior da sala, querendo cada um ser o primeiro a chegar à porta. Era uma gritaria infernal. Sobressaía uma voz: shears for clipping trees and shears for clippin sheeps, isto é, tesouras para podar os pomares-e tesouras para tosquiar ovelhas.
— O tribunal resolveu ainda — prosseguiu o xerife — que os condenados sejam conduzidos ao vapor que há pouco chegou de Austin e, amanhã, ao clarear do dia, prosseguirão para Matagorda. Lá serão baldeados para outro vapor que não toque em porto algum de Texas. Serão conduzidos para a coberta, seja qual fôr o navio, e zarpe para onde zarpar. Antes da baldeação, não mudarão de roupa para que o público veja como nós, os texerianos, procedemos com os membros de tal agremiação. Também não lhes tiraremos as algemas. Pão e água só receberão em Matagorda. O custeio de sua deportação e alimentação será por conta do dinheiro que lhes arrecadamos e que se eleva à bonita soma de três mil dólares, que com certeza roubaram por aí. Além disso todos os objetos que lhes pertencem, inclusive as armas, lhes serão confiscados e postos imediatamente em leilão. O produto, segundo deliberou ainda o júri, destinar-se-á à aquisição de cerveja e aguardente, para que as dignas testemunhas do que ocorreu hoje, possam tomar um trago, em companhia de suas esposas e filhos. Organizaremos, depois, um baile e, ao romper do dia, acompanharemos os kukluxerianos, em marche aux flambeaux, puxada por música até o porto. A assistência tomará parte no baile. Se a defesa tiver alguma oposição a fazer contra esta sentença, estou pronto a ouvi-la, desde que tiver a fineza de falar, em síntese e concisamente. Temos muito serviço com a tosquia e o leilão. Se o advogado fizer defesa prolixa, roubará tempo ao baile.
A ovação que se ouviu era um verdadeiro berreiro infernal. A muito custo o presidente conseguiu acalmar os ânimos, para que o advogado da defesa pudesse falar.
— O que ainda tenho a dizer — continuou este — em favor dos meus constituintes é o seguinte: acho até certo ponto excessivamente severa a sentença do egrégio tribunal. No entanto, esta severidade se suaviza em vista da resolução final do júri, decretando uma festa com música, danças, cerveja e aguardente. Portanto, em nome daqueles, cujos interesses representei, declaro-me de acordo com a sentença, fazendo votos para que eles, de futuro, trilhem caminho honesto, tornando-se, pelo trabalho honrado, cidadãos úteis à sociedade. Concito-os, mesmo, a não voltarem aqui; se não atenderem ao meu apelo, não me encarregarei de sua defesa e eles jamais terão uma assistência jurídica como a que lhes prestei hoje. Sob o ponto de vista comercial, tenho ainda a dizer, que exijo dois dólares por cabeça, como remuneração dos meus serviços, no presente processo. Importa, pois, ao todo, em trinta e oito dólares, dos quais não preciso passar recibo, desde que eles me paguem aqui mesmo e imediatamente, à vista de todas essas testemunhas. Comprometo-me ainda a ficar apenas com dezoito dólares e os vinte restantes destinarei ao pagamento da luz e do aluguel do salão. A música será custeada com o produto das entradas que se cobrarão dos participantes do baile, com exceção do belo sexo, é claro, que terá entrada franca.
Sentou-se e o xerife atendeu à sua solicitação.
DEPOIS DA TEMPESTADE, A BONANÇA
Eu tinha a impressão de estar sonhando. Tudo aquilo seria realidade? Não restava dúvida. Ali estava o defensor a receber o seu dinheiro, e muitos a retirarem-se correndo para trazer ao baile a mulher e as filhas; outros já estavam de volta com as tesouras. Tive vontade de me zangar, mas não consegui, e acompanhava Old Death em suas risadas, pois o desfecho daquela aventura provocava-lhe riso. Os kukluxerianos foram, realmente, tosados. Em seguida começou o leilão. As espingardas foram logo arrematadas e alcançaram bom preço. Também os demais objetos foram muito bem vendidos. Era indescritível o movimento e a algazarra durante o leilão. Caminhavam aos encontrões, pois todos queriam permanecer no salão, muito embora este não comportasse a décima parte da assistência. Depois chegou a música: um clarinete, um violino, um pistão e um velho fagote, todos antiquados. Essa admirável orquestra foi postar-se a um dos ângulos da sala e começou a afinar os instrumentos antediluvianos; esta afinação mostrava o que poderia sair daquela famosa fanfarra. Quando chegou o elemento feminino, quis retirar-me, mas Old Death não concordou. Disse-me que depois de todos os perigos que corrêramos, não faltava mais nada, senão abter-nos, precisamente nós os dois, de tomar parte na “fuzarca”. O xerife ouviu-o e concordou entusiasticamente com ele. Seria uma ofensa a todos os cidadãos de La Grange, disse o “magistrado”, com energia, se nós, que fomos os principais combatentes na luta, cujo desfecho feliz se comemorava, não tomássemos parte na “dança da roda”. Para dançá-la, ofereceu a Old Death sua esposa e a mim, a filha, que, segundo afirmava, eram excelentes pares. Seria uma ofensa, para ele, disse ainda, se eu insistisse em retirar-me. Comprometeu-se a obter para nós uma mesa reservada. Que fazer? Infelizmente, no mesmo instante, de nós se aproximaram as duas damas, mãe e filha, que nos foram apresentadas. Não havia remédio senão dançar na “roda” e, talvez, algumas valsas e mazurcas. Era eu um dos heróis do dia e... detetive incógnito!
O xerife alegrava-se em ver-nos na companhia das deusas do seu lar. Conseguiu a mesa reservada, mas, com o grande defeito de acomodar apenas quatro pessoas; assim, éramos forçados a estar ao lado das ladies durante toda a festa. As damas eram de alta representação social, em virtude do elevado cargo que desempenhava o esposo e pai. A mãe contava uns cinqüenta anos; trouxera para o baile uma peça de roupa branca de senhora, na qual fazia um crochê; falou-me num código de Napoleão e depois fechou a boca para o resto da noite. A filhinha, que devia andar pela casa dos trinta, trouxera um volume de versos, que, não obstante a vozeria infernal da assistência, parecia ler; honrou Old Death com algumas passagens literárias de Pierre Jean de Beranger, mas quando o escoteiro lhe afirmou, sinceramente, que nunca vira e nem falara em toda sua vida com tal cavalheiro, fêz um muxoxo e recolheu-se ao silêncio. Quando foi servida cerveja, as nossas damas não aceitaram; mas, quando o xerife lhes trouxe dois copos com aguardente, suas fisionomias apáticas adquiriram um pouco de vivacidade. Então, o alto funcionário bateu-me no ombro e disse:
— Agora vem a “dança da roda”; tire o seu par!
— Mas não há perigo de sermos recusados? — perguntei-lhe. Não. As ladies estão bem informadas.
BAILARINO DESASTRADO
Levantei-me, fiz uma mesura diante da moça, murmurei-lhe alguma cousa parecida com “Tenho a honra”, “Quer dar-me o prazer” ou “Peço a preferência”, mas a moça não percebeu e, em vez de se levantar, para dançar comigo, passou-me às mãos o livro de versos que lia. Old Death foi mais prático. Levantando-se, disse claramente, à respeitável matrona:
— Pule para a roda, madame, que este seu velho dança como um pião!! Para a direita ou para a esquerda, como madame quiser, girarão minhas pernas!
De como os dois dançaram, de como os dois, no meio da sala e por várias vezes, rolaram, pesadamente, ao solo, de como decorreu a bebedeira durante o baile, prefiro não falar. Basta dizer que, ao alvorecer, se esgotara todo o estoque de bebidas que possuía o hotel. O xerife declarou, então, que ainda havia um saldo do produto do leilão; com ele, naquela noite ou na seguinte, se celebraria o “enterro dos ossos”. O avarandado e a grama em frente ao hotel estavam cheios de convivas, uns sentados, outros deitados, por causa do álcool. Porém, quando se anunciou que o préstito ia formar-se, para acompanhar os presos até o porto, os espíritos clarearam e todos se ergueram. O préstito estava assim organizado: música, membros do tribunal, kukluxerianos com seus originais trajes, testemunhas e por fim o povo, homens, senhoras e senhoritas.
O americano é um povo extraordinário. Nunca lhe falta o que necessita. Quando o corso se movimentou, todos já estavam munidos de instrumentos originais, cujo som parecia um miado de gato. O xerife deu sinal e o préstito desfilou. A orquestra, que ia à frente, e o povo a miar como gato, produziam um conjunto musical de um grotesco inenarrável. Eu tinha a impressão de me achar dentro dum enorme hospital de alienados com lotação completa... O corso seguiu a passo lento, como se fora um cortejo fúnebre. No porto, os presos foram entregues ao comandante do vapor, o qual lhes deu o destino conveniente. Não havia possibilidade de fuga: o capitão se responsabilizava por eles. Além disso, viajavam, também, alguns alemães que não deixariam de vigiá-los.
Quando o vapor zarpou, a orquestra tocou a melhor marcha do seu repertório e a “música de gatos” fêz-se ouvir novamente. Enquanto os demais acompanhavam o vapor, com o olhar, juntei-me a Old Death e aos dois Lange e fomos para casa. Lá chegados, resolvemos dormir um soninho, que prolongou-se mais do que desejávamos. Quando despertei, Old Death estava já acordado. Não pudera dormir, com fortes dores nos rins, e declarou-me, com espanto meu, que não poderia prosseguir viagem naquele dia. Conseqüência da dança. Mandamos chamar o tal “médico” que curara os kukluxerianos. Este veio, examinou o cliente e, por fim, declarou que a perna se lhe “deslocara da barriga”; por isso era necessário que o referido membro fosse “colado” no seu “verdadeiro” lugar. Tive ímpeto de espantar o charlatão. O homenzinho mexeu e remexeu, durante quase uma hora, na perna do meu companheiro, e, por fim, disse que ia colocá-la no lugar, o que produziria um leve ruído semelhante ao da respiração. Escutamos, mas em vão. Os movimentos do charlatão não causaram nenhuma dor ao escoteiro. Afastei-o do cliente e passei a examinar a região dolorida. Havia umas manchas azuis com bordos amarelados. Concluí logo que era uma contusão.
— Temos que fazer massagens com mostarda ou álcool — disse-lhe eu. Isto o curará. Mas, pelo menos, por hoje, deve ficar imóvel. Pena é se, neste meio tempo, Gibson nos foge sem deixar o rasto.
— Gibson?! — respondeu o velho. — Esteja descansado, sir! Quando se possui, como eu, o faro de um cão de caça, não se perde a pista até abocanhar a presa. Pode confiar em mim!
— Confio e muito até. Mas o diabo é que ele nos vai tomar, com William Ohlert, uma grande dianteira!
— Nós os alcançaremos. Acho que nos é indiferente apanhá-los um dia antes ou depois, contanto que os apanhemos. Levante a cabeça! Esse xerife nos causou grande transtorno, com o seu baile e mais a sua mulher. Mas, repito, esteja descansado! Chamo-me Old Death, compreendeu?
Essas suas palavras soaram consoladoramente e, como o velho era homem de palavra, esforcei-me por me tranqüilizar. Não havia, mesmo, outro remédio. Sozinho não podia prosseguir viagem. Não conhecia o caminho. Ao almoço, folguei quando Mr. Lange declarou que nos acompanharia, visto ser o seu caminho o mesmo.
— Não terão em mim e no meu filho maus companheiros — assegurou ele. — Sei governar um cavalo e manejar uma espingarda. E, se durante a jornada, nos ameaçar algum perigo “vermelho” ou “branco”, não fugiremos dele.
Mais tarde, Cortésio que se excedera no sono, veio ter conosco para mostrar-nos os cavalos. Old Death, apesar das dores que sofria, acompanhou-o. Queria ver de perto os animais!
— Esse jovem se gaba de conhecer cavalos e de ser bom cavaleiro. Não confio, porém, nos seus conhecimentos. Quando compro cavalo, escolho, em geral, o de pior aparência. De má aparência, mas de boa casta.
Obrigou-me a montar todos os cavalos que se achavam nas baias e cavalgá-los diante dele. Observava o cavalo com olhos de perito. Realmente, sucedeu como dissera: não escolheu os animais que o señor Cortésio nos destinara.
— Vale mais pela figura, que pela qualidade — disse o velho. — Em poucos dias, estarão estropiados. Não; ficamos com os alazões que são baratos, mas bons.
— Mas são verdadeiros animais de tração! — ponderou Cortésio.
— Porque o senhor não conhece cavalos, Don Cortésio, desculpe-me a franqueza. Os alazões são cavalos campineiros. Estiveram, porém, em mãos de quem não soube manejá-los. O senhor nada perderá com esta preferência, creio eu! Ficamos com esses e basta! Está feito o negócio.
Rumo às fronteiras Mexicanas
Uma semana mais tarde, achavam-se cinco cavaleiros, quatro brancos e um negro, mais ou menos no ponto em que confinam o Uvalde e a atual Countys Medina, do Texas. Os brancos cavalgavam, dois a dois, e o negro seguia-os a certa distância. Os da frente traziam roupas quase iguais; apenas a do mais moço era mais nova. Ambos montavam cavalos alazões. Estes trotavam com vivacidade. Soltavam de vez em quando alegres rinchos, o que demonstrava estarem afeitos a longas e puxadas viagens. Os outros dois cavaleiros não podiam negar serem pai e filho. Também traziam roupas iguais, que não eram de couro como as dos dois primeiros. Trajavam roupas de lã e chapéus de feltro de abas largas. Carregavam uma espingarda de dois canos, faca e revólver. O negro ostentava um traje leve de calicó (*) e um lustroso chapéu cilindro cobria-lhe a cabeça. À mão trazia um rifle de dois canos e à cintura uma faca recurvada, daquelas a que, no México, se dá preferência.
O nome dos quatro brancos são conhecidos dos leitores. Eram Old Death, Lange, seu filho e eu. O quinto cavaleiro era o negro de Cortésio, o mesmo que nos atendera, quando pela primeira vez procuráramos o mexicano, naquela noite cheia de aventuras.
Old Death levara três longos dias para restabelecer-se da contusão sofrida na queda e se envergonhava disso. Ferir-se na luta é honra; deixar-se pisotear na dança é ridículo, para um homem do oeste — dizia ele. O velho escoteiro andava aborrecido. A contusão era bem mais dolorosa do que deixara transparecer. Do contrário, por que retardaria de três dias a nossa partida? As contrações freqüentes dos músculos da face denunciavam que a dor não havia cessado de todo. No último dia Cortésio nos procurara e nos pedira que levássemos o negro Sam em nossa companhia. Aquiescemos, sem manifestar a surpresa que nos causava tal pedido. Dificilmente se encontraria, naquela época, uma pessoa que se sujeitasse a viajar com um negro que não lhe pertencesse, ou cuja missão não lhe interessasse. Cortésio esclareceu-nos: recebera importante telegrama de Washington, em conseqüência do qual era obrigado a enviar uma carta não menos importante a Chihuahua. Poderia remetê-la por nosso intermédio, mas necessitava da resposta imediata, que não nos seria possível trazer-lhe. Escolhera Sam por emissário; um negro, sim, mas que era dotado de qualidades invulgares na gente de sua côr. Servia-o há longos anos com lealdade e dedicação e já por diversas vezes fizera a perigosa travessia, das fronteiras mexicanas e sempre se portara com galhardia. Cortésio assegurara-nos ainda que Sam não nos molestaria em nada; ao contrário, durante a viagem, nos serviria como um criado solícito e fiel. Até então não nos arrependêramos da companhia do negro. Sam era excelente cavaleiro. Adquirira essa qualidade, no tempo em que pastoreava os rebanhos do amo, no México. Era ágil, serviçal e respeitoso. Parecia que se afeiçoara ao grupo, principalmente a mim, a quem dispensava um sem-número de atenções, que só se dedicam às pessoas da nossa simpatia.
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(*) Tela indiana feita de algodão branco.
Old Death achou supérfluo perder tempo em procurar a pista de Gibson e persegui-lo de lugar em lugar. Sabíamos qual a direção que tomara o contingente, ao qual ele se agregara, e por isso o escoteiro resolvera que seguíssemos diretamente para o rio Nueces, e de lá para Eagle Pass. Era bem possível que entre aquele rio e aquele passo, ou talvez já antes, encontrássemos as pegadas do bando. Este tomara-nos uma grande dianteira e por isto tínhamos de apressar-nos. Eu já não acreditava na possibilidade de alcançá-lo; mas Old Death declarou-me que o pessoal era forçado a encompridar o caminho, com as voltas que tinha de dar para não se deixar ver em certos lugares; ao passo que nós podíamos cavalgar em linha reta.
Em seis dias, havíamos vencido uma distância de duzentas milhas inglesas. Ninguém, a não ser Old Death, julgaria que os nossos alazões seriam capazes de tal puxada. Os velhos cavalos pareciam revigorar no oeste. A pastagem, o ar puro, os movimentos rápidos faziam-lhes bem; dia a dia, reviviam e se tornavam mais ágeis. O escoteiro se alegrava com a transformação que se operava nos cavalos e que ele previra.
Já havíamos transposto Santo Antônio e Castroville, atravessáramos a County Medina, rica em água, e nos aproximávamos agora da zona onde a água começa a escassear e a aparecer o areal do Texas, causa de grandes desconfortos aos que viajam entre os rios Nueces e Grande. Pretendíamos, agora, nos dirigir ao rio Leona, braço principal do rio Frio, e, depois, para a zona do rio Nueces que recebe as águas do Turkey Creek. Ao noroeste do local em que nos encontrávamos, erguia-se o morro do Leon com o forte Inge nas proximidades. Por este devia passar o destacamento, sem aventurar-se, porém, a ser pilhado pela guarnição. Podíamos, pois, alimentar esperança de encontrar, em breve, algum sinal de vida de Gibson e dos que com ele viajavam.
REPELINDO UM SARGENTO ARROGANTE
O terreno facilitava a rapidez da marcha. Atravessávamos uma vasta, campina aberta, pela qual os cavalos pareciam voar. A atmosfera estava límpida e o horizonte se apresentava claro diante de nós. Como cavalgássemos para o sudoeste, olhávamos apenas nessa direção. Eis por que não nos apercebemos, senão já um pouco tarde, de uns cavaleiros que vinham do noroeste. Old Death apontou naquele rumo com o dedo e disse:
— Olhem para lá! Que julgam ser aquilo que parece aproximar-se, lentamente, de nós?
— Hum! Fêz Lange levando a mão, em pala, aos olhos. — Aquele ponto negro que aumenta gradativamente deve ser um animal a pastar.
— Como? — perguntou Old Deatb, rindo-se. — Um animal?! E ainda por cima a pastar?! Os seus olhos parecem não querer habituar-se à perspectiva. Esse ponto deve distar umas duas milhas inglesas. Um ponto desses que se avista a essa distância não pode ser um único animal. Só se fosse um búfalo, mas um búfalo cinco vezes maior do que um elefante; nesta região, porém, não há búfalos. Pode acontecer que algum extraviado venha parar por aqui; mas isto não se dá nesta época do ano e sim na primavera, ou no outono. Demais, um animal, quando pasta, principalmente um búfalo ou um cavalo, caminha devagarinho, mansamente. Aposto, porém, como aquele ponto negro se movimenta a galope.
— Não é possível! — disse Lange.
— Bem, como os brancos não sabem concluir com acerto, vou auscultar a sabedoria dos negros. Sam, que ponto negro é aquele lá ao longe?
O negro até aqui havia permanecido, por modéstia, silencioso. Mas agora, como fosse diretamente interpelado, respondeu com certa desenvoltura:
— São cavaleiros. Quatro, cinco, ou seis.
— Sou da mesma opinião. Talvez índios, não acha?
— Oh, não sinhô! Índio nunca caminha diretamenti na direção de branco. índio s’esconde no mato p’ra observa secretamente o branco, antes de fala com ele. Aqueles cavaleiros lá vem em direção de nós, por isto são brancos!
— Acertou, meu bom Sam. Vejo, agora, que a sua inteligência é mais clara que a sua pele.
— Oh, sir! Ohl! — sorriu o negro, fazendo alvejar a dentadura. Ser elogiado por Old Death constituía uma grande distinção para ele.
— Se acham que aquela gente cavalga realmente ao nosso encontro, — disse Lange — devemos esperá-la aqui.
— Era só o que faltava! — respondeu Old Death. — Então não vê que eles não cavalgam bem em nossa direção, mas se desviam mais para o sul? Vendo que prosseguimos no nosso caminho, cortarão uma diagonal para nos vir ao encontro. Portanto, avante! Não temos tempo a perder! Talvez sejam soldados do forte Inge, que andam em reconhecimento. Se fôr assim, não será um encontro muito agradável para nós.
— Por que não?
— Porque deles receberemos notícias pouco tranqüilizadoras. O forte Inge está localizado muito longe daqui, ao nordeste. Se o comandante daquela praça de guerra destaca uma patrulha de reconhecimento, à zona tão distante, é que o ambiente está carregado. Algo de anormal houve ou está por haver nesta zona. Saberemos logo.
Prosseguimos. O ponto negro cada vez mais se aproximava, até que se destacaram seis cavaleiros. Cinco minutos após distinguiam-se os uniformes, e, pouco depois, davam-nos ordem de fazer alto. Eram um sargento de dragonas e cinco soldados.
— Por que cavalgam tão apressados? —perguntou o militar, parando o cavalo. — Não viram que vínhamos vindo?
— Sim, — respondeu o escoteiro com sangue frio — mas não vejo razão para que parássemos à sua espera!
— Precisamos saber quem são os senhores!
— Ora, somos peles-brancas que cavalgam em direção ao sul. Isso deve bastar para o objetivo que o senhor tem em vista!
— Com todos os diabos! — bradou o Sargento. — Não pensem que estou disposto a consentir que caçoem de nós!
— Ora! — exclamou Old Death rindo. — Não estou também inclinado a caçoadas! Achamo-nos aqui em campina aberta e não numa escola de meninos, onde é permitido ao senhor se fazer de professor e nos obrigar a responder-lhe às perguntas, para não sermos batidos à vara de marmelo ou à palmatória!!
— Estou cumprindo as instruções que recebi. Intimo-os a dizerem seus nomes!
— E se não estivermos dispostos a obedecer?
— Estamos armados e aptos para fazer com que nossas ordens sejam obedecidas!
— Ah! Assiste-lhes este direito? Folgo em sabê-lo! Mas aconselho-os a não se valerem dele! Somos homens livres, senhor sargento! Teríamos vontade de conhecer este homem capaz de nos obrigar, ouça, obrigar a obedecer às suas ordens! Garanto-lhe que esmagaria o canalha a pata de cavalo!
Os olhos do escoteiro adquiriram um brilho sinistro; encurtou as rédeas e, premendo o lombo do animal, fêz que este desse um formidável pinote de encontro ao cavalo do seu interlocutor. O sargento recuou depressa e quis irar-se. Old Death, porém, não lhe deu tempo para isso, prosseguindo:
— Nem quero que leve em conta que sou talvez duas vezes mais velho do que o senhor e por isso devo possuir experiência que não adquirirá em toda a sua vida! Mas, um conselho vou dar-lhe. Ameaçou-me com as armas. Pensa, talvez, que nossas facas são feitas de maçapão, o cano de nossas espingardas de açúcar e as balas de chocolate? Pois afianço-lhe que essas guloseimas lhe farão muito mal ao estômago... Afirmou que executava instruções recebidas. Well! Não me oponho a que cumpra com o seu dever de militar. Mas faz parte das instruções recebidas, desrespeitar e tratar com arrogância a um velho e honesto homem do oeste? Ordenaram-lhe que falasse com um experimentado pioneiro das campinas no tom em que, nem um general grosseiro se dirige a um recruta desleixado? Estamos prontos a falar com o senhor e facilitar-lhe o cumprimento das instruções recebidas, dando os esclarecimentos necessários; mas não fomos nós que o chamamos; os senhores é que nos vieram ao encontro. Portanto, exigimos, acima de tudo, que nos tratem com cortesia!
O suboficial encafifou. Old Death transformara-se. Não era o mesmo homem lhano do trato comum. Sua figura imponente e sua atitude enérgica não deixou de surtir o desejado efeito.
— Não se encolerize, por favor! — disse o sargento. — Por Deus que não tive a intenção de ofendê-lo e nem de ser grosseiro!
— Mas, outra cousa não inferi do tom em que me falou!
— Falei deste modo porque me acho em plena campina, numa zona em que toda sorte de gentalha exercita seus propósitos ilícitos.
— Gentalha?! E tomou-nos por gentalha?! — urrou o velho.
— Não posso responder nem sim nem não. Mas afianço-lhe que um homem de consciência limpa não se nega a dizer qual o seu nome. Há muitos desses patifes que agora cruzam esta zona, a fim de se dirigirem para as tropas de Juarez. Não se pode mais fiar em ninguém.
— Então é anti-abolicionista, partidário dos estados do sul?
— Sim; os senhores também, não é?
— Somos partidários de todo o homem de bem e adversários de todo e qualquer canalha. Quanto a nossos nomes e procedência não temos O menor motivo para ocultá-los. Procedemos de La Grange.
— Oh! São texanos. Bem, Texas foi partidária dos estados do sul. Portanto, estou falando com companheiros de ideais políticos.
— Ideais políticos?! Com todos os diabos! O senhor avança demasiado! Bem, em vez de citar os nossos cinco nomes, que facilmente o senhor esqueceria, vou dizer-lhe apenas o meu. Sou um velho pioneiro das campinas do oeste bravio e os que me conhecem costumam chamar-me Old Death.
Este nome provocou espanto. O sargento soergueu-se na sela e olhou pasmado o velho escoteiro. Os soldados não podiam também ocultar a surpresa que os dominava. Olhavam-no, mas com olhares amáveis. O sargento, porém, carregando o semblante, disse:
— Old Death! É o senhor? O espião dos estados do norte!!
— Senhor! — exclamou o velho ameaçadoramente. — Tome cuidado! Se já ouviu falar em mim, deve saber que não sou homem que suporte insultos! Arrisquei meus bens, meu sangue e minha vida, pela União, porque assim me aprouve e porque considerei e considero ainda hoje santa a causa que defendia, na gloriosa cruzada! A palavra espião tem para mim sentido bem diferente da atitude por mim, então, tomada; e se um fedelho como o senhor me atira semelhante ofensa à face, não o arrojo ao solo, porque o considero digno de compaixão um ser infeliz e miserável, um indivíduo abjeto, em cujo sangue um homem honesto não deve macular as mãos. Old Death não teme seis dragões, nem dez, nem mesmo muito mais. Felizmente verifico, com prazer, que os seus subordinados são homens mais sensatos, portanto mais dignos do que o senhor! Eles que digam ao comandante do forte Inge que o senhor encontrou-se com Old Death, perante o qual portou-se como um menino mal educado. Estou certo de que o comandante o punirá de tal modo, que jamais se atreverá a exibir sua bravura quixotesca.
As últimas palavras de Old Death produziram o efeito almejado. O comandante do forte era, por certo, homem mais ajuizado do que o seu subordinado. De suas investigações, o sargento tinha de apresentar minucioso relatório. Desta vez, cumpria-lhe citar o encontro que conosco tivera e o seu resultado. É sempre de grande vantagem, para um comandante de forte, entrar em contato com um grande e experimentado homem do oeste, porque pode trocar idéias, ouvir conselhos e observações úteis ao serviço militar. Homens do oeste, como Old Death, são sempre tratados pelos oficiais de igual para igual, com as maiores provas de estima e consideração.
Que observações e conselhos nossos poderia transmitir ao comandante este sargento, que tratava Old Death com tamanha sobranceria? Disso ele agora parecia se ter lembrado, pois corava de confuso e não sabia o que dizer. Old Death continuou:
— Honra à sua farda, mas lá por isso o meu casaco de escoteiro não vale menos! Moço e inexpeiente como é, não lhe faria mal algum a honra de receber alguns conselhos de Old Death. Quem é; agora, o comandante do forte Inge?
— O major Webster.
— Aquele que, há dois anos, servia no forte Ripley, como capitão?
— Este mesmo.
— Bem, dê-lhe lembranças minhas. Muitas vezes nos divertimos juntos, fazendo exercícios de tiro. Queira dar-me o seu diário que nele quero escrever umas linhas para o comandante! Vai alegrar-se em saber que um dos seus comandados chamou a Old Death espião.
O sargento não encontrava saída para o apuro em que se via. Mastigou, mastigou e, por fim, com visível esforço, conseguiu dizer:
— Mas, sir, garanto-lhe que não tinha realmente intenção de ofendê-lo! Para nós, nem todos os dias são santificados. Temos os nossos aborrecimentos e, por isso, não é de admirar que, às vezes, falemos em tom mais áspero.
— Oh! Oh! Agora sim! Isto soa melhor! Está, pois, combinado: o nosso encontro começa agora. Concorda? Os senhores, no forte Inge, estão abastecidos de cigarros?
— Não. O estoque esgotou-se.
— Isto é grave! Um soldado sem fumo vale apenas meio-soldado. Meu companheiro traz a maleta do serigote cheia de charutos. Talvez lhes dê alguns.
Os olhos do sargento e dos soldados dirigiram-se súplices para mim. Tirei um punhado de charutos da maleta e distribuí-os entre eles, fornecendo-lhes, também, fogo. Ao puxar a primeira baforada, o rosto do sargento mudou de expressão, iluminando-se. Sacudiu a cabeça, em sinal de agradecimento, e disse:
— Um charuto desses representa um verdadeiro cachimbo da paz. Eu seria capaz de perdoar ao inimigo mais ferrenho, se ele, aqui na campina e após a abstinência de várias semanas, me presenteasse um desses charutos.
— Se um charuto tem para o senhor mais força do que uma inimizade, parece-me um indivíduo inofensivo!... Pelo menos, incapaz de rancor. — disse Old Death, rindo-se zombeteiramente.
— Claro que sim! Mas, sir, temos que prosseguir e grato lhe ficaríamos se nos prestasse algumas informações. Viu por aí pegadas de índios ou outras assim perigosas?
AGRESSÃO COVARDE E BRUTAL
Old Death respondeu-lhe negativamente e perguntou se lhe parecia provável um encontro com índios, naquela zona.
— Claro que sim! — respondeu. — E temos razão para assim pensar, pois esses patifes já desenterraram de novo o machado da paz.
— Com todos os diabos! Isto é grave! Mas que tribos estão em guerra?
— A dos comanchos e a dos apaches.
— Os dois povos mais perigosos! E nós nos encontramos, exatamente, entre os seus redutos. Quando se fecha uma tesoura, mais sofre o que está entre as lâminas.
— Sim, cuidado! Nós já nos preparamos para o que acontecer e enviamos emissários em busca de provisões e reforços. Dia e noite, patrulhamos as cercanias em todas as direções. A todos que encontramos, consideramos suspeitos, até provarem que são pessoas de bem. Eis por que deve perdoar a minha atitude de há pouco!
— Já passou e está esquecido. Mas por que razão os peles-vermelhas quebraram a paz?
— Disso é culpado esse maldito Juarez. Perdão, sir, talvez o senhor seja doutra opinião. O senhor, sem dúvida, já ouviu falar que Juarez vira-se forçado a refugiar-se em El Paso, sendo perseguido pelos franceses até Chihuahua e Cohehuela. Fugiu das tropas gaulesas, como a raposa acuada pelo cão. Os franceses enxotaram-no até o rio Grande e o teriam, finalmente, aprisionado se o nosso presidente, em Washington, não se mostrasse tão imbecil, proibindo a sua captura. Juarez já não contava com partidários nem entre os índios a cuja raça pertence.
— Inclusive entre os apaches?
— Não, isto é, não eram amigos nem inimigos. Mantiveram-se neutros. Essa atitude tomaram a conselho de Winnetou, seu jovem mas já afamado cacique. Deste modo mais fácil se tornou aos agentes de Bezain conseguir a adesão dos comanchos que, em bandos, atravessaram as fronteiras mexicanas, a fim de se unirem às tropas francesas contra Juarez.
— Hum, para roubar, assassinar e incendiar, quer o senhor dizer?! Os comanchos nada têm a ver com o México. Possuem taba e território de caça no lado de cá e não no lado de lá do rio Grande. Para eles é indiferente se quem governa no México, é Juarez ou Maximiliano ou Napoleão. Mas se os franceses os chamam para atirá-los de encontro à gente pacífica, não é de admirar que, como selvagens, não deixem passar a oportunidade, para enriquecer. A responsabilidade não lhes cabe e isto também não pretendo sindicar.
— Bem! Nada tenho com isso. Mas, como ia dizendo, de caminho para o México, os comanchos tiveram um choque com os apaches. Eles são os mais ferozes inimigos dos apaches. E em vista disso assaltaram uma aldeia destes; os que resistiram foram mortos e os outros foram aprisionados. Os assaltantes carregaram as barracas e a cavalhada.
— E depois?
— E depois, sir? Os prisioneiros masculinos, como é costume entre os índios, morreram no poste dos martírios.
— Que infâmia e brutalidade! Mas a responsabilidade cabe inteira aos franceses. A vingança dos apaches não se fêz esperar, não?
— Qual. São uns covardes!
— É a primeira vez que ouço tal afirmativa. Por que os trata assim? São guerreiros valentes. Que fizeram, então, depois da covarde agressão dos comanchos?
— Expediram alguns guerreiros, a fim de resolverem a questão com o mais idoso dos caciques dos comanchos. As negociações efetuaram-se no nosso forte.
— No forte Inge? Por que lá?
— Por tratar-se de terreno neutro.
— Bem. É compreensível. E os caciques dos comanchos compareceram?
— Sim! Cinco caciques e vinte guerreiros.
— E quantos apaches?
— Três.
— Sem serem acompanhados de guerreiros?
— Sim.
— E o senhor afirmou há pouco que eles são covardes! Três homens arriscaram-se a atravessar um território inimigo e vir encontrar-se com vinte e cinco contendores! Senhor, se conhece os índios deve concordar que estes tiveram um gesto de heróis! E que desfecho tiveram as negociações?
— Em nada pacificador. Pelo contrário, as hostilidades se agravaram. Por fim, os comanchos atacaram os três apaches. Dois deles foram mortos e o outro, embora ferido, conseguiu montar a cavalo e, transpondo uma cerca de três varas de altura, escapar. Os comanchos o perseguiram, mas não o alcançaram.
— E isso tudo ocorreu num terreno neutro, no interior de um forte e à vista dum major das tropas da União? Que falta de lealdade! É, então, de admirar que os apaches hajam desenterrado o machado da paz? O apache que conseguiu escapar voltou, sem dúvida, à taba a relatar o ocorrido. Amanhã sairão às centenas para tomar desforra. E, como a morte dos emissários foi praticada dentro do forte dos peles-brancas, contra estes, também, voltarão às armas. Que atitude tomarão conosco os comanchos que encontrarmos?
— Amistosa. Assegurou-nos o cacique, antes de deixar o forte que combateriam apenas os apaches; aos peles-brancas, porém, consideravam amigos.
— Quando se realizaram estas negociações que culminaram com desfecho tão sangrento?
— Segunda-feira.
— Hoje é sexta, quer dizer que há quatro dias. Quanto tempo se demoraram os comanchos no forte, depois da fuga do apache ferido?
— Pouco tempo. Partiram uma hora depois.
— E os senhores consentiram? E deixaram-nos infrigir impunemente a lei dos estados? Deixaram-nos ir pacificamente, tendo cometido o duplo crime de traição e assassinato? Competia ao major prendê-los e comunicar o fato a Washington. Não compreendo por que não o fêz.
— Nesse dia saíra à caça e só regressou à noite.
— Para não ser testemunha das negociações e da traição. Compreendo bem essas coisas! Se os apaches vierem, a saber, que os comanchos saíram livremente do forte, sem resistência, ai dos peles-brancas que lhes caírem nas mãos! Não pouparão um só!
— Sir, não se exalte desta forma! Foi até uma sorte para os apaches, termos deixado os comanchos se retirarem; se os tivéssemos retido, uma hora depois, os apaches teriam a lamentar a morte de outro cacique!
Old Death fêz um movimento de surpresa.
— A morte de outro cacique?! Ah! Já sei. Faz quatro dias. Possui um excelente cavalo e cavalgou mais depressa do que nós. É ele, nem pode ser outro!
— Ele quem? — perguntou o sargento surpreendido.
— Winnetou.
— É isto mesmo! Mal os comanchos haviam desaparecido no oeste, vimos surgir um cavaleiro na direção do rio Frio. Tocou no forte, a fim de comprar pólvora, chumbo e cartuchos para revólveres. Não trazia as insígnias de sua tribo e não o conhecemos. No decorrer da compra, ele soube dos acontecimentos. Casualmente o oficial de dia se achava presente na ocasião. A este dirigiu-se o índio.
— Deve ter sido interessante. Quisera estar junto, no momento. Que disse ele ao oficial?
— Apenas estas palavras: “Muitos brancos hão de sofrer as conseqüências de haverdes permitido que se perpetrasse, em pleno recinto do forte, um crime tão hediondo sem ao menos castigardes os criminosos!” Depois retirou-se do forte e montou a cavalo. O oficial seguiu-o, admirando o garbo do corcel que o indígena montava. O índio voltou-se então e lhe disse: “Quero ser mais leal do que vós. Aviso-o de que está declarada a guerra entre os peles-brancas e os guerreiros das tabas apaches. Fomos arrancados da paz de nossas cabanas, pelos comanchos, que nos atacaram traiçoeiramente, roubando-nos as mulheres, os filhos e o gado, destruindo-nos as cabanas, trucidando muitos dos nossos guerreiros e conduzindo outros ao poste dos
martírios. Mesmo assim, os sábios pais dos apaches (*) ainda ouviram a voz do Grande Espírito: não desenterraram logo o machado da paz. E enviaram emissários para parlamentar com os comanchos e resolver a pendência, sem derramamento de sangue. Esses emissários, porém, na vossa própria presença foram atacados e mortos. Vós destes, depois, liberdade aos assassinos e com isto provastes que sois inimigos dos apaches. Todo sangue que correr de hoje em diante, cairá sobre vós e não sobre a nossa tribo”.
— Oh! É como se eu o estivesse ouvindo! — exclamou Old Death — Que lhe respondeu o oficial?
— Perguntou-lhe quem era e o vermelho respondeu “Winnetou, cacique dos apaches”. Imediatamente o oficial de dia ordenou que fechássemos o portão. “Prendam-no” disse o oficial, “ele acaba de nos declarar guerra e não se achava aqui como parlamentar”. A essas palavras, o pele-vermelha soltou uma gargalhada sardônica, cavalgou para nós derrubando alguns ao solo, inclusive o oficial e, em vez de passar pelo portão, fêz o cavalo saltar a cerca, tal como o fizera o outro apache. Sem perda de tempo foi expedida uma patrulha ao seu encalço, mas esta já não o avistou mais.
— Aí está! É o diabo! Ai do forte e da guarnição, se os comanchos não saem vencedores! A nenhum os apaches pouparão a vida. Não tiveram outras visitas?
— Uma única, anteontem, à noitinha. Era um cavalheiro, que se destinava a Sabinal. Chama-se Clinton, lembro-me bem. Eu estava de sentinela no portão, quando ele chegou.
— Clinton! Hum! Vou descrever-lhe o tipo. Veja se é este.
E fêz a descrição de Gibson. O sargento reconheceu pelos sinais dados o visitante do forte.
— Pois os senhores se deixaram enganar pelo homem — disse Old Death —Ele não de destinava a absolutamente a Sabinal; é um espião e veio certificar-se do que havia no forte. Pertence àqueles de quem o senhor, há pouco, falava. Além disso, nada mais tem havido de importante?
— Que eu saiba não.
— Então estamos entendidos. Diga ao major que me encontraram. É seu subordinado e não deve contar-lhe o que penso dos sangrentos sucessos desenrolados no forte. Mas, esteja certo: o comandante do forte teria evitado muita ruína, muito derramamento de sangue, se, no cumprimento de seus deveres, não houvesse procedido com tamanha indiferença. Good-by, boys!
AS PEGADAS DE WINNETOU
Old Death afastou-se para o lado e prosseguiu viagem. Despedimo-nos dos dragões, que tomaram rumo norte, e galopamos, em silêncio, grande trecho do caminho. Old Death, de cabeça inclinada, dava livre curso às idéias. No ocidente o sol se aproximava do ocaso. Daí à uma hora seria noite. No entanto, no horizonte, ao sul,
( * ) Conselho dos velhos.
apenas se divisava uma tênue linha, sinal de que muito distávamos ainda do rio Leona, cujas margens, cobertas de matos, deviam anunciar-se por uma linha mais densa no horizonte. Old Death fustigava o cavalo, sempre que este retardava a marcha. Assim, quando o sol ia desaparecendo, avistamos, no horizonte, uma linha escura, que ganhava em nitidez à proporção que avançávamos. O solo, pouco antes, batido e nu, apresentava-se agora coberto de relva. Finalmente distinguimos as árvores, cujas copas nos acenavam de longe. Old Death apontou para o mato, consentiu que o cavalo moderasse a andadura e disse:
— Onde há mato, há água próxima. Ali deve estar o rio Leona, em cuja margem acamparemos.
Atingimos afinal a mata. Formava uma estreita nesga de bosque em ambas as margens do rio. O leito era largo, mas de pouca água. Não obstante, o ponto a que chegáramos não podia ser vadeado. Eis por que cavalgamos, lentamente, margem acima. Depois de algum tempo, chegamos a um lugar onde a água era rasa e o leito formado de seixos reluzentes. Metemos os cavalos nágua e atravessamos o rio. Old Death cavalgava a frente. Precisamente quando o seu cavalo ia pisar na água, ele o fêz parar, apeou-se e olhou para baixo a fim de observar, detidamente, o leito do rio.
— Well! — disse ele. Bem me parecia! Cá está a pista! Ainda não tinha aparecido porque até aqui os seixos são dos que não guardam pegadas. Observem com cuidado o fundo do rio!
Apeamos e vimos, partindo da margem para o rio, várias depressões pequenas do solo.
— Isto é uma pegada? — perguntou Lange. — Tem razão. É talvez, dum cavalo, isto é, dum cavaleiro.
— Vamos, Sam. Examine o rasto e dê-nos a sua opinião!
O negro, reservado, conservara-se atrás de nós. Veio para frente, examinou os sinais e disse:
— Aí esteve dois homes qui andam a cavalo e atravessara o rio.
— Por que dois cavaleiros? Não podiam também ter sido dois cavalos desmontados ou dois poldros extraviados do rebanho?
— Porque cavalo que tem ferro nos pé não pode sê poldro selvage; são cavalos amansado e carregaro no lombo gentlemen. Também, o rasto tá munto fundo; os cavalo carregava peso; e o peso é o do home. Cavalo não caminha nágua do lado um do outro, sim atrás um do outro. Pára na marge pr’a bebê no rio, antes de atravessa ele. Aqui eles não ficaro parados, mas correro diretamente pr’a outra marge; correro do lado um do outro, prova que ero governados pelas rédea. Onde tem rédea, tem serigote onde senta cavaleiro!
— Acertaste lindo! — desfechou Old Death à queima-roupa. — Eu mesmo não decifraria a charada com maior acerto. Estão vendo, meus senhores, como há casos em que um branco muito pode aprender de um negro? Mas esses dois cavaleiros deviam ter muita pressa, pois nem tempo deram aos pobres animais para matarem a sede. E com que sede não estariam! Os homens do oeste têm o maior carinho para com o seu cavalo. Calculo que só do outro lado é que lhes foi permitido matar a sede. Quais seriam as razões que levaram os dois viajores a impedir que os animais bebessem nesta margem? Havemos de descobri-las.
Enquanto examinávamos as pegadas, os animais saciavam a sede, à vontade. Montamos de novo e atravessamos o rio, que era tão raso que nem os estribos alcançaram a água. Mal nos achamos em seco, disse Old Death, a cuja perspicácia nada escapava:
— Eis a razão. Vêem essa tília da altura de um homem? Reparem que a casca foi esgarçada! E que é isto aqui no chão?
Apontava para o chão, onde havia duas fileiras de finas estacas, que não tinham maior comprimento e resistência do que um lápis.
— Que significam essas estacas? — prosseguiu o velho. — Que relação têm elas com as cascas tiradas às tílias? Com elas os índios costumam curar ferimentos, fazendo ataduras. Os dois cavaleiros eram, pois, índios e não se demoraram depois do curativo. Queira o meu amigo, em vista dessas explicações, dizer o que significa esta pista.
— Vou tentar — respondi-lhe. — Mas não deve mofar de mim, se não acertar!
— Era só o que faltava! Considero-o meu discípulo e dum discípulo não se pode esperar uma opinião amadurecida.
— Sendo cavalos de índios, os donos devem pertencer a alguma tribo vermelha. Ora, faça uma associação com os acontecimentos no forte Inge: um dos apaches conseguiu escapar, mas foi ferido. Winnetou saiu, também, apressado daquela praça de guerra. Seguiu o primeiro, sem se deter e alcançou-o rapidamente, graças à sua excelente montaria.
— Não vai mal! — disse Old Death. — E depois?
— Depois? Sim.
— Os apaches precisavam reunir-se o quanto antes a seus irmãos de tribo e pô-los ao corrente do ultraje sofrido pela sua gente, no forte Inge, e do assalto dos comanchos. Daí a pressa que levavam. Por isso, mal pensaram a ferida, puseram-se de novo em marcha.
— É assim mesmo! Estou satisfeito com a sua conclusão. É provável que Winnetou estivesse aqui, com o emissário ferido. Que pena estar já escuro, senão iríamos no seu encalço; mas é fácil calcular qual a direção que tomaram. Precisavam atravessar o rio Grande, e tomaram aquela direção em linha reta, tal e qual nós vamos fazer. Assim, encontraremos, mais adiante, outros sinais seus. Por enquanto, vamos procurar um local apropriado para acamparmos, pois amanhã bem cedo teremos que prosseguir viagem.
Não tardou que seus olhos aguçados encontrassem local para o nosso pouso. Era um descampado bem resguardado por moitas, com excelente pastagem para os animais. Desencilhamos os cavalos e os maneamos. Depois sentamo-nos e, com o resto das provisões, começamos o jantar. A minha pergunta se não acenderíamos uma fogueira, Old Death fêz uma fisionomia irônica e disse:
— Já esperava do senhor esta pergunta, sir. Leu as lindas histórias de Cooper e outros escritores, sobre a vida dos índios? Agradaram-lhe tais narrativas?
— Muito.
— Hum! Não é de admirar; é tão bom e cômodo ler-se semelhantes livros, estirado num sofá ou numa poltrona, de cachimbo ou de charuto a boca! Nada melhor! Mas... vá para o oeste bravio e verá logo que tudo é bem diferente do que está escrito nos livros. Cooper é um excelente romancista, não há dúvida; até eu já li suas narrativas; mas no oeste ele nunca esteve. Teve muita habilidade em combinar a poesia com a realidade; mas no oeste, ou nos sertões, só a última existe. Naquelas obras vêem-se fogueiras, onde se assam suculentos quartos de búfalos e contam-se truculentas façanhas. Mas, em verdade, lhe digo, se neste momento acendêssemos, aqui, uma fogueira, o cheiro do fogo atrairia o índio que andasse num perímetro de duas milhas inglesas.
— Quase à uma hora de distância? Será possível?
— Ainda virá a saber que faro possuem os índios! E, se eles não perceberem, perceberão seus cavalos que possuem, neste particular, um faro admirável e denunciam a aproximação das fogueiras e das pessoas, com os seus fatais rinchos, que já têm custado à vida a muitos peles-brancas. Por isso, parece-me que devemos renunciar ao romantismo de uma fogueira, por esta noite.
— Oh! Não precisamos temer a presença de índios nestas cercanias; os comanchos, há quatro dias, deixaram o forte e não tiveram ainda tempo de estar de volta com um bando de guerreiros mobilizados.
— Hum! Como um greenhorn também possui opiniões acertadas! Infelizmente, porém, esqueceu-se de três pontos que destroem a sua conclusão: primeiro, não deve esquecer que nos achamos exatamente no território dos comanchos, segundo, que grande parte dos seus guerreiros transpuseram a fronteira a fim de se aliarem aos franceses. Os que ficaram devem estar em pé de guerra, prontos a entrar em combate. Quando os comanchos expediram os emissários para as negociações com os apaches, no forte Inge, era já com o propósito de fazê-las fracassar. O grosso da força estava já organizado antes mesmo da volta dos parlamentares, com as novas dos sangrentos sucessos. Ou, quem sabe se o senhor toma os comanchos por tão tolos, a ponto de premeditarem o assassinato dos apaches, sem estarem previamente preparados para a guerra? Afianço-lhe que aquela traição não foi conseqüência de uma cólera momentânea; era cousa estudada e resolvida. Calculo mais, que nas imediações do rio Grande já se acham bandos de comanchos e difícil será a Winnetou passar sem ser descoberto.
— O senhor é amigo dos apaches?
— Em reserva, sim! Foram vítimas de uma cruel injustiça. Foram atacados infamemente. Além disso, simpatizo imensamente com o cacique Winnetou. Mas a prudência nos aconselha a não tomar partido, em face dessa questão. Podemos dar graças a Deus se chegarmos incólumes, ao nosso destino. Verdade é que não tenho motivos para temer os comanchos. Conhecem-me. Nunca os molestei e muitas vezes tenho estado nas suas tabas, onde fui sempre acolhido com hospitalidade. Um dos seus caciques mais afamados, Oyo-koltsa (castor branco) fêz-se até meu grande amigo, porque lhe prestei um serviço, que prometeu jamais esquecer. Isto sucedeu lá no rio Red onde ele foi assaltado por um bando dos tschickasahs, que não lhe tiraram o escalpo e a vida, graças ao meu socorro oportuno. Esta amizade muito vale, agora, para nós. Para ela apelarei, no caso de encontrarmos hostilidade da parte dos comanchos. De resto, somos cinco e espero que cada um de nós saiba manejar as armas, no momento do perigo. Antes que um vermelho consiga tirar-me os cabelos da cabeça, uma dúzia dos seus companheiros terá comprado os bilhetes de passagem para as “eternas campinas”. Temos de estar preparados para qualquer eventualidade e como se nos achássemos em terreno inimigo. Velaremos. Enquanto quatro dormem, um montará guarda, que será substituída de hora em hora.Tomemos cinco gravetos de tamanhos diferentes e façamos o sorteio para a primeira hora de sentinela.
BATEDOR PILHADO
A mim coube o quinto quarto. Anoiteceu. Ninguém tinha sono. Acendemos os charutos e passamos a palestrar. Old Death contava-nos algumas de suas aventuras, o que nos trazia em constante hilaridade. Observei que ele escolhia para contar-nos exatamente as passagens mais instrutivas da sua vida de escoteiro. E o tempo passava célere. O relógio anunciou as vinte e três e meia. Subitamente, Old Death suspendeu a narrativa e pôs-se a escutar com atenção. Um dos nossos cavalos bufara, e com tamanha angústia, que um estremecimento nos sacudiu o corpo.
— Hum! — resmungou o velho. — Que foi isso? Tinha ou não razão, em teimar com o señor Cortésio que os nossos matungos eram excelentes cavalos de campo? Este relincho é de cavalo de explorador do oeste. Deve haver pelas proximidades qualquer coisa suspeita. Mas não se movam! Está muito escuro e é provável que o inimigo nos divise pelo brilho dos olhos. Olhem, pois, para o chão! Vou sair de chapéu sobre os olhos, para que não me denunciem. Ouçam! Outra vez, o relincho do animal! Não se mexam!
Um dos cavalos, talvez o meu, escarvava o chão desesperadamente, como se quisesse arrebentar o laço que o prendia. Emudecemos! Old Death cochichou-nos:
— Que imprudência, cessarem subitamente de falar! Se de fato anda um batedor por aqui a nos observar, ele concluirá, pelo repentino silêncio, que ouvimos o relincho do cavalo e tomamos precauções.
O negro disse-lhe, então, baixinho:
— Sam sabe, sinhô, onde está o espião. Sam viu briá dois óio na escuridão.
— Bem! Então não olhe mais para lá, senão ele verá também os seus olhos. Onde os viu?
— À direita da amexera onde Sam tem marrado o cavalo. Ali vi briá dois óio!
— Vou, então, contornar o capãozinho e surpreender o bombeiro pelas costas. É fora de dúvida que se trata de um homem apenas, porque se fossem mais, os cavalos se agitariam de outra forma. Continuem, pois, a falar em voz alta! Isso trará duas vantagens. Conservar a confiança do espião e evitar que ele ouça algum ruído que, porventura, me veja obrigado a fazer.
Lange dirigiu-me, em voz alta, uma pergunta, a que respondi no mesmo tom. Daí originou-se uma discussão, à qual procurei imprimir um colorido alegre, a fim de podermos rir. As gargalhadas convenceriam o observador de que nos achávamos despreocupados e desviaria a sua atenção da aproximação de Old Death. Will e também o negro tomaram parte na discussão. Passados dez minutos, ouvimos o escoteiro dizer:
— Alô! Não é necessário berrar como leão, por mais tempo! Já o apanhei e vou conduzi-lo até aí.
Ouvimos um ruído no lugar onde estava maneado o cavalo do negro e, em seguida, os passos pesados do velho. Ao chegar à roda deitou ao chão o fardo que carregava.
— Eis aí! — disse ele. Foi uma luta facílima, pois este índio, devido à algazarra que faziam aqui, não teria percebido nem os desmoronamentos de um terremoto.
— Um índio? Então há mais peles-vermelhas pelas redondezas?
— É possível, mas difícil. Agora precisamos de um pouco de luz, para podermos examinar o homem. Vi ali adiante uns arbustos secos. Vou buscá-los. Cuidem do homem!
— Não se move! Está morto?
— Não. Apenas os sentidos foram dar um passeiozinho — disse Old Death. — Amarrei-lhe as mãos às costas com o seu próprio cinturão. Antes de voltar a si, estarei de volta.
Old Death saiu e daí a pouco voltou carregando lenha seca. Acendemos o fogo, a cuja claridade pudemos examinar bem o prisioneiro. A lenha era tão seca que quase não produziu fumaça.
O índio usava calças indianas, com franjas, um jaquetão de caça e um par de sapatilhas, tudo de couro. Tinha a cabeça raspada e o rosto estava besuntado com as cores de guerra: um risco preto sobre fundo amarelo. As armas e tudo o que trazia à cinta, foi-lhe tirado por Old Death. Essas armas eram uma faca e uma flecha com arco de couro; estes dois últimos utensílios de guerra estavam amarrados um ao outro com uma tira de couro. Inerte, de olhos cerrados, o índio parecia morto.
— Um simples guerreiro — disse Old Death — que não traz consigo nem sequer as provas de já haver morto algum inimigo. Não usa escalpo e nem as sapatilhas são bordadas com cabelos humanos. Não usa também a “bolsa da medicina”. Portanto, ou ainda não possui nome ou perdeu-o, razão por que lhe tiraram a “bolsa da medicina”. Agora o estão aproveitando como batedor, tarefa difícil e arriscadíssima, onde pode matar um inimigo, obtendo novamente o nome perdido. Olhem, ele se move. Não tardará a recuperar os sentidos. Estejam quietos!
O prisioneiro estirou as pernas e respirou profundamente. Quando atinou que estava amarrado, uma convulsão de espanto passou-lhe pelo corpo. Abriu os olhos e fêz uma tentativa para erguer-se de um pulo, mas caiu novamente. Com os olhos vermelhos e esbugalhados, olhou-nos apavorado. Quando reconheceu Old Death, exclamou:
— Koscha-pehve!
É uma expressão da língua dos comanchos que quer dizer Old Death ou “velha morte”.
— Sim, sou eu — acenou o velho escoteiro. — guerreiro vermelho me conhece?
— Os filhos dos comanchos conhecem-no muito bem, pois diversas vezes o viram em sua aldeia.
— É um comancho. Logo o reconheci pelas cores de guerra que traz pintadas nas faces. Como se chama?
— O filho dos comanchos perdeu seu nome e jamais usará outro! Saíra para conquistar um, mas caiu nas mãos dos peles-brancas e sofrerá castigo infamante. Ele pede aos guerreiros de pele-branca que o matem de uma vez. Ele entoará a canção de guerra e dos seus lábios não ouvirão um só lamento de dor, quando o seu corpo fôr queimado no poste dos martírios.
— Não podemos atender ao seu pedido, porque somos cristãos e seus amigos. Prendi-o porque estava tão escuro, que não pude ver que se tratava de um filho dos comanchos, com os quais vivemos em paz. Terá ainda oportunidade de conquistar um nome, diante do qual tremerão os inimigos da valente tribo dos comanchos. Está solto.
O escoteiro desamarrou-lhe as mãos. Eu esperava que o índio pulasse de satisfeito, mas não o fêz; continuou deitado, como se ainda estivesse amarrado e disse:
— Contudo, o filho dos comanchos não está solto. Crave-lhe a faca ao coração!
— Não tenho inclinação e nem a menor disposição para isso. Por que hei de matá-lo?
— Porque me atraiu, ardilosamente, e prendeu-me. Quando os guerreiros dos comanchos tiverem conhecimento disso, me enxotarão do seu seio dizendo: “Primeiro perdeu a “medicina” e o nome e depois deixou-se cair nas mãos dos peles-brancas. Seus olhos que sejam cegos, seus ouvidos que sejam surdos e ele jamais será digno de usar as insígnias de guerreiro”.
Pronunciava essas palavras com uma expressão de tamanha tristeza que me compadeci dele. Aliás, não podia compreender-lhe todas as palavras, pois ele falava um misto de inglês e dialeto comancho; mas o que não compreendia, adivinhava pelo gesto.
— Nosso irmão vermelho não tem nenhuma vergonha a macular-lhe a fronte! — disse eu ligeiro, antes que Old Death pudesse responder. — Ser atraído e preso por um pele-branca afamado como Koscha-pehye não é vergonhoso. Além disso, os guerreiros dos comanchos não ficarão sabendo que foi nosso prisioneiro. Os nossos lábios farão silêncio em torno deste caso.
— E Koscha-pehye confirma esta promessa? — perguntou o índio.
— Com toda a satisfação! — exclamou o velho. — Fingiremos que nosso encontro foi natural e pacífico. Sou amigo dos comanchos e não é falta se o senhor de mim se aproximar, depois de me reconhecer.
— Meu irmão pele-branca usa palavras de alegria para mim. Confio na sua promessa e vou levantar-me certo de que não voltarei envergonhado para junto dos comanchos. Serei grato aos peles-brancas, enquanto meus olhos avistarem o sol!
Ergueu-se e respirou tranqüilo; no seu rosto, embora besuntado de tinta, notamos uma expressão de alívio. Naturalmente, mantivemo-nos em reserva, deixando a Old Death o prosseguimento da palestra. Este não se fêz esperar e disse ao índio:
— Nosso irmão pele-vermelha viu que somos bem intencionados com ele. Espero, pois, que nos considere seu amigo e nos responda com sinceridade às perguntas que lhe vou fazer.
— Koscha-pehye queira fazer as perguntas, que lhe direi a verdade!
— O meu irmão saiu só, a fim de abater um inimigo perigoso ou uma fera possante e depois voltar com um nome para taba? Ou está em companhia de outros guerreiros?
— Estou em companhia de tantos guerreiros, quantas são as gotas d’água que correm lá no rio.
— Quer dizer com isso que todos os guerreiros dos comanchos saíram de suas cabanas?
— Sim. Saíram em busca dos escalpos de seus inimigos.
— Que inimigos?
— Os cães apaches! Da tribo dos apaches partiu um mau cheiro, que invadiu a taba dos comanchos! Por esta razão os nossos guerreiros montaram a cavalo para destruir esses coiotes da terra.
— Mas antes disso, ouviram o conselho dos anciães?
— Os guerreiros idosos reuniram-se em conselho e declararam a guerra. Em seguida o “homem da medicina” consultou o Grande Espírito, e a resposta foi favorável. Desde as tabas dos comanchos até o grande rio, que os peles-brancas chamam rio Grande del Norte, pululam guerreiros nossos. O sol desapareceu quatro vezes, depois que o machado da paz foi carregada de cabana em cabana.
— E o meu irmão vermelho pertence a um desses bandos de guerreiros?
— Sim. Estamos acampados aqui nas redondezas, lá no ponto extremo do rio. Foram expedidos vários batedores, a fim de reconhecerem se a zona estava livre de perigo. Eu segui para a direita e vim ter aqui, levado pelo cheiro dos seus cavalos. Embrenhei-me pela moita, a fim de contar o número de pessoas, quando Koscha-pehye me matou por alguns instantes.
— Está esquecido e ninguém deve falar nisto. Quantos guerreiros comanchos estão acampados lá em cima?
— Exatamente dez vezes dez.
— E quem é o chefe do bando?
— Avat-vila (grande urso), o jovem cacique.
— Não o conheço e nunca ouvi falar no seu nome.
— Ele recebeu esse nome, há poucas luas, porque matou, nas montanhas, um urso e apresentou o couro e as garras da fera à tribo. É filho de Oyo-Koltsa, ao qual os brancos chamam “Castor Branco”.
— Ahn! Conheço este. É meu amigo.
— Eu sei, vi-o na sua companhia, quando foi hóspede em sua cabana. Seu filho, o “Grande Urso”, há de recebê-lo cordialmente.
— Que distância vai daqui até o local em que ele está acampado com os guerreiros?
— Meu irmão pele-branca não cavalgará o quarto de tempo a que ele dá o nome de uma hora, para chegar ao nosso acampamento.
— Então iremos até lá pedir-lhe hospedagem. Queira meu irmão vermelho acompanhar-nos.
Cinco minutos depois montávamos a cavalo e partíamos; o índio caminhava na frente. Conduziu-nos, primeiro, por entre árvores, até um descampado, onde dobrou e seguiu rio acima.
UMA RECEPÇÃO POUCO GENTIL
Depois de um bom quarto de hora, distinguimos alguns vultos escuros. Eram as sentinelas avançadas. O nosso guia trocou algumas palavras com elas e desapareceu. Nós, porém, permanecemos de fora à sua espera. Depois de algum tempo, voltou e levou-nos. O céu estava coberto de nuvens cinzentas e nele não luzia uma só estrela. Eu olhava para a esquerda e para a direita, mas não pude reconhecer nada. Por fim, tivemos de fazer novo alto.
— Os meus irmãos de pele-branca queiram parar — disse-nos o guia. — Os filhos dos comanchos não costumam acender fogueiras, durante uma expedição de guerra; mas agora, como estão convencidos de que não há perigo pelas cercanias vão acendê-la.
E afastou-se. Daí a pouco vimos um ponto chamejante do tamanho da cabeça dum alfinete.
— Isto é punk — declarou Old Death.
— Que é punk? — informei-me, como se de fato não soubesse o que era.
— Os combustíveis da campina: dois pedaços de madeira, um largo e outro fino e roliço. O largo tem um sulco que se entope com punk, isto é, com pedacinhos de madeira apodrecida. Feito isso, atritam-se até aquecê-los a ponto de se inflamarem os farelos secos. Veja!
Labaredas não muito altas ergueram-se. O índio não deixa que as fogueiras do seu acampamento iluminem ao longe. Quando as fogueiras arderam, vi onde nos achávamos. Estávamos debaixo de umas árvores cercados por índios armados. Bem poucos deles tinham espingardas. Os outros achavam-se munidos de lanças, arcos e flechas. Todos, porém, ostentavam a machadinha, a terrível arma dos índios, que, na mão de um guerreiro experimentado, é mais perigosa do que se pensa. Recebemos ordem de apear. Levaram-nos os cavalos. Estávamos sob o domínio dos vermelhos, pois a pé, naquela zona, nada poderíamos fazer. Não nos tomaram as armas. Mas que poderiam cinco contra cem?
Foi-nos permitido aproximar-nos de uma fogueira, em frente à qual estava sentado um só guerreiro. Não se podia distinguir se era moço ou velho, pois seu rosto estava coberto de tinta grossa, com as mesmas cores que trazia nas faces o batedor que aprisionáramos. Os cabelos estavam enrolados e atados no alto da cabeça, com pena de águia branca, distintivo de cacique em expedição de guerra. Do cinturão pendiam dois escalpos e, num barbante, preso ao pescoço, estava o calumet, ou cachimbo da paz, e a “bolsa da medicina”. Sobre os joelhos tinha uma antiquada espingarda do ano vinte ou trinta. Olhou-nos um por um com atenção. Fingiu não ver Sam, pois o vermelho considera o negro criatura desprezível.
— Trata-nos com orgulho! — disse Old Death em alemão, a fim de não ser compreendido pelo índio — Vamos mostrar-lhe que também somos caciques. Sentemo-nos todos junto dele e deixem-me falar-lhe.
Sentou-se defronte do cacique e nós o acompanhamos. Apenas Sam conservou-se de pé, pois sabia muito bem que arriscaria a vida se sentasse junto da fogueira do cacique.
— Uff! — exclamou o índio encolerizado, proferindo outras palavras que não compreendi.
— Compreende a língua dos peles-brancas? — perguntou-lhe Old Death.
— Avat-avila a conhece, mas não fala, porque a detesta — respondeu o cacique, conforme tradução que Old Death nos fêz.
— Mas peço-lhe que a fale agora!
— Por quê?
— Meus companheiros não conhecem a língua dos comanchos e precisam saber o que conversamos.
— Eles se acham no acampamento dos comanchos, cujo idioma deverão falar. Assim o exige a cortesia.
— Engana-se. Não podem falar num idioma que não conhecem. Isso o senhor deve reconhecer. Além disso, eles estão aqui como hóspedes dos comanchos. Portanto ao senhor é que compete, conforme exige a cortesia, falar na língua deles, pois fala o inglês corretamente. Se não fizer uso desse idioma, eles não acreditarão que é um índio instruído.
— Uff! — exclamou e prosseguiu, depois, num inglês estropiado: — Já disse que conheço o idioma inglês e não costumo mentir. E se eles não acreditarem, insultam-me e mandarei matá-los. Por que ousaram tomar lugar na minha fogueira?
— Porque na qualidade de caciques nos cabe este direito.
— Cacique de que é o senhor?
— Dos escoteiros.
— E esse? — referia-se ao velho Lange.
— O cacique dos ferreiros, que fabricam armas.
— E esse outro? — apontava para Will.
— É seu filho e forja espadas com que se abrem cabeças, e também fabrica machadinhas.
Isto parece que agradou ao índio porque disse:
— Se sabe fazer estas duas armas, deve ser um cacique muito hábil e instruído. E o outro ali? — indicou-me, espichando os lábios.
— Este famoso cavalheiro veio dum país distante, atravessando os grandes mares, a fim de conhecer os guerreiros dos comanchos. É um cacique da sabedoria e do conhecimento de todas as coisas e no seu regresso falará a milhares de pessoas da bravura dos guerreiros comanchos.
Isto pareceu ir além da expectativa do índio. Olhou-me atentamente e disse:
— Então pertence ao rol dos homens inteligentes e experimentados? Não creio. Seus cabelos não são ainda grisalhos.
— Naquele país os filhos já nascem tão inteligentes e instruídos, como aqui são os velhos.
— Então o Grande Espírito deve estimar muito esse país. Mas os filhos dos comanchos dispensam a sua sabedoria, porque são suficientemente inteligentes para saber o que é necessário para a sua felicidade. Demais, a sua sabedoria parece que não o acompanhou até aqui, pois ele ousa atravessar o nosso marco de guerra. Quando os guerreiros dos comanchos desenterram do solo o machado da paz, não toleram a presença de peles-brancas junto de si.
— Neste caso, parece que ignora o que disseram os embaixadores comanchos ao deixarem o forte Inge. Asseguraram que guerreariam exclusivamente os apaches e continuariam em paz com os peles-brancas.
— Que cumpram eles a palavra que empenharam. Eu, porém, não estive presente na ocasião e nem fui fiador dessa promessa!
O cacique falava até então em tom bastante hostil. Old Death respondia-lhe cordialmente. Porém, resolveu mudar de tom, pois, encolerizado, gritou ao comancho:
— Fala deste modo?! Quem é afinal, para falar nesse tom a Koscha-pehye? Não nos declarou o seu nome! Tem porventura algum nome? Se não tiver, decline-me ao menos o de seus pais!
O cacique pareceu entontecer de espanto, em face da ousadia do seu interlocutor. Encarou-o, por muito tempo, e respondeu, depois:
— Homem, quer que o mande matar no poste dos martírios?
— Não é homem para isso! Não temo um poltrão!
— Sou Avat-vila, o cacique dos comanchos, compreende?
— Avat-vila?! O “Grande Urso”?! — exclamou o escoteiro rindo-se com ironia, — Quando abati o primeiro urso cinzento, era ainda menino, e de lá para cá tenho abatido tantos que poderia cobrir todo o meu corpo com suas garras. Quem abateu apenas um urso não é, ainda, diante dos meus olhos, um herói!!
— Olhe, então, para os dois escalpos que trago à cintura!
— Ora! Se eu tirasse o escalpo a todos os inimigos que venci, poderia com eles enfeitar toda a sua tropa de guerreiros. Também isto não constitui suficiente prova de heroísmo!
— Sou filho de Oyo-koltsa, o grande cacique!
— Isto sim, aceito como uma recomendação. Fumei com o “Castor Branco” o “cachimbo da paz”. Juramos um ao outro que o meu amigo seria também seu amigo e vice-versa, e sempre soubemos cumprir o nosso juramento. Espero que o filho tenha a mesma correção do pai!!
— Fala com arrogância! Toma os guerreiros dos comanchos por tico-ticos, que consentem que os cães lhes latam a bel prazer?!
— Como diz?! Cão?! Considera Old Death um cão, ao qual se pode espancar, quando bem se entende?! Responda que sim, que o despacharei e já para as “eternas campinas”!
— Uff! Não fará isso, pois aqui estão cem guerreiros! — disse o cacique apontando ao redor.
— Perfeitamente! — respondeu o velho. — Mas aqui estamos nós, que valemos por mais de cem comanchos. Eles não poderão evitar que eu lhes mande uma bala na cabeça e que, depois, com eles, também, justemos conta! Veja aqui! Tenho dois revólveres com 6 balas cada um. Meus quatro companheiros estão armados do mesmo modo. São, portanto, ao todo sessenta balas, além de nossas espingardas e facas. Antes que sejamos subjugados, mais da metade de seus guerreiros estarão mortos.
Neste tom nunca ninguém ainda falara com o cacique. Era de amedrontar. Cinco homens contra cem! E nem por isso o velho se intimidou. Isso era incompreensível para os vermelhos e por isso lhe disse o cacique:
— Deve possuir uma forte “medicina”!
— Sim, possuo uma forte “medicina”, um amuleto, que até agora tem matado todos os meus inimigos. Pergunto agora: quer considerar-nos amigos ou não?
— Vou primeiro deliberar com meus guerreiros.
— Com que, então, um cacique dos comanchos precisa licença dos guerreiros para tomar uma deliberação?! Isso eu não acreditaria! Mas, como é o senhor mesmo quem diz, sou forçado a crer. Somos caciques que fazem o que bem entendem sem dar contas a ninguém; a nossa categoria é, pois, mais elevada; gozamos de mais prerrogativas, somos mais poderosos! Não devemos sentar-nos com o senhor diante da mesma fogueira, porque isto seria descer de nossa dignidade! Vamos montar a cavalo e retirar-nos.
E levantou-se, sempre com os dois revólveres nas mãos. Também nós nos erguemos. O “Grande Urso” pulou do seu assento, como se houvesse sido picado por cobra. Os olhos faiscavam e os lábios abriam-se e fechavam-se, mostrando a alva dentuça. Travava uma formidável luta íntima. No caso de combate, teríamos de pagar com a vida a ousadia do velho; mas não era menos certo que haveríamos, neste caso, de matar ou ferir muitos comanchos. O jovem cacique sabia quão perigosa arma é o revólver e que, exatamente ele, seria o primeiro atingido pela bala. Era, perante seu pai, o responsável por tudo que sucedesse e, embora entre os índios não seja obrigatório ingressar no rol dos guerreiros, uma vez nele incluído está sujeito a uma férrea desciplina e a uma lei draconiana. O pai é o primeiro a condenar o filho à morte. E, se um índio revela-se covarde, num combate, ou incapaz de dominar-se, sobrepondo o seu “eu”, isto é, a sua vaidade pessoal, ao interesse da taba, em geral, cai no desprezo da tribo. Nenhuma tribo, nem mesmo as inimigas, o acolhem no seu seio; repelido de todos, entra pelas selvas e só poderá novamente fazer nome, se, permanecendo nas imediações da tribo e submetendo-se estoicamente a suplício lento e atroz, até à morte, prova que tem coragem suficiente para suportar dores. Este é o único meio de conservar aberto o caminho que conduz às “eternas campinas”. A idéia dessa “eterna campina” impele o índio a atos heróicos que doutro modo não praticaria.
Essas considerações tumultuavam no cérebro do comancho. Devia deixar matar-nos e, depois, comunicar ao pai ou fazer-lhe saber pelos sobreviventes, que faltara aos deveres da hospitalidade, por mera vaidade de mando e falta de domínio da vontade, tratando-nos como coiotes? Com essa reflexão contava Old Death. A sua fisionomia não denunciava o menor cuidado. Mantinha-se calmo diante do jovem cacique com o dedo no gatilho dos revólveres e a contemplar-lhe os olhos faiscantes de cólera.
— Quer retirar-se? — exclamou o índio. — Onde estão os seus cavalos? Não os receberão! Estão cercados!
— E o senhor conosco! Lembre-se da cara que fará o “Castor Branco”, se minha bala o vitimar. Não cobrirá a cabeça para entoar o cântico da morte do filho, mas dirá: “Nunca tive um filho. Aquele que foi morto a tiros por Old Death foi um menino inexperiente que não soube respeitar o meu amigo e só obedeceu à voz da sua insensatez”. A sombra daqueles que matarmos juntos com o senhor, impedirão a sua entrada nas “eternas campinas”; as mulheres velhas abrirão a boca desdentada para mofar do cacique, que não poupou a vida dos guerreiros que lhes foram confiados, por não saber dominar-se. Veja como estou aqui! Nota-se em mim algum temor? Insisto, não levado pelo medo, mas pela circunstância de ser o filho do meu irmão de pele-vermelha, que desejo tenha nele um motivo de alegria. Agora decida! Uma palavra aos seus guerreiros, um movimento suspeito e eu atiro. Começará a luta!
FUMANDO AFINAL O CALUMET
O cacique permaneceu indeciso e imóvel. Não se descobria o que lhe ia na alma, porque a tinta lhe escondia a expressão. Subitamente, porém, desprendeu do pescoço o calumet e disse:
— O “Grande Urso” vai fumar o “cachimbo da paz” com os peles-brancas.
— Faz bem. Aquele que vai enfrentar as legiões dos apaches, não deve conquistar também a inimizade dos peles-brancas.
Sentamo-nos.
O “Grande Urso” pôs kinnikinnik no “cachimbo da paz”, acendeu-o e levantou-se; proferiu um ligeiro discurso, de que já me esqueci; lembro-me apenas de que falou em paz, amizade, irmãos de pele-branca, etc; fêz seis inclinações e expeliu a fumaça para o céu e para a terra, na direção dos quatro pontos cardiais, e passou o cachimbo a Old Death. Este também pronunciou um discurso cheio de amabilidades e fêz as mesmas inclinações, expelindo a fumaça nas mesmas direções; passou, em seguida, o cachimbo a mim com a observação de que falara por nós todos e que deveríamos apenas imitar o que eles haviam feito. Passei depois o calumet a Lange e seu filho. Deixamos Sam fora da roda, pois boca de índio nunca mais tocaria o cachimbo, se um negro nele fumasse. Contudo, o preto estava incluído na nossa aliança. Quando terminou a cerimônia, os índios sentaram-se ao redor de nós e o batedor foi chamado, a fim de relatar as circunstâncias do nosso encontro. Apresentou o seu relatório, não referindo-se porém ao fato do seu aprisionamento. Quando o batedor se retirou, mandei Sam trazer-me charutos. Naturalmente, não os ofereci a nenhum dos comanchos, com exceção do cacique; pois se me portasse com excessiva cordialidade com os guerreiros simples, depreciaria aos próprios olhos destes a minha dignidade de cacique. “Grande Urso” parecia saber o que era um bom charuto. Os olhos se arregalaram, quando lhe ofereci um e ao puxar a primeira fumaça soltou um grunhido de satisfação. Depois, perguntou-nos, mas num tom cordialíssimo, sobre o fim da nossa viagem. Old Death achou desnecessário falar-lhe a verdade, dizendo apenas que tínhamos urgência em alcançar alguns homens que seguiam para o rio Grande del Norte, a fim de se transportarem para o México.
— Então, meus irmãos de pele-branca poderão ir conosco — disse o vermelho. — Partiremos assim que descobrirmos a pegada de um apache, à procura do qual andamos.
— De que direção deve ter vindo este pele-vermelha?
— Esteve no mesmo local onde os guerreiros dos comanchos falaram com os urubus apaches. Os brancos dão a este lugar o nome de forte Inge. Era para ser morto, mas conseguiu fugir. Contudo, na fuga recebeu alguns ferimentos, de modo que não deve ter podido agüentar-se por muito tempo nos arreios. Deve estar escondido nesta zona. Não viram, por acaso, os irmãos de pele-branca, alguns vestígios?
Era lógico que se referia ao apache que Winnetou conduzira, através do rio e no qual fizera curativos. A respeito de Winnetou ignoravam tudo, pois este chegara após os sangrentos sucessos, quando os emissários comanchos já se haviam retirado do forte.
— Não; — respondeu Old Death e com isso também não mentia, pois não encontráramos propriamente pegadas de homens, mas sim a impressão de casco de cavalos. Demais, não tínhamos a menor intenção de trair Winnetou.
— Então aquele cão está metido nalgum esconderijo rio abaixo, na margem de lá. Mais longe não terá ido com os ferimentos recebidos, e, mesmo, os guerreiros dos comanchos estavam espalhados pela margem de cá, para atacar os apaches, se eles nos fugissem do forte Inge.
Arre! Isso soava perigoso para Winnetou. Eu estava convencido de que os comanchos não encontrariam mais as pegadas dos apaches apagadas pelas dos nossos cavalos; mas, como os comanchos durante esses quatro dias montavam guarda nesta margem do rio, era de recear que os dois apaches houvessem caído no poder de um dos seus destacamentos. Que o “Grande Urso” ainda não o soubesse não constituía prova de que tal não tivesse sucedido. O velho escoteiro, que em tudo pensava, observou:
— Se meus amigos peles-vermelhas prosseguirem no reconhecimento, chegarão ao local onde atravessamos o rio e descascamos uma árvore. Tinha uma velha ferida, que abriu na viagem e eu a pensei com a imbira da árvore. É um excelente meio de curar ferimentos. Queira o irmão pele-vermelha tomar conhecimento dessa receita.
— Os guerreiros dos comanchos conhecem esse remédio e o aplicam sempre que se encontram nas proximidades dalgum mato. O meu irmão pele-branca não me contou novidade.
— Bem. Então, resta-me fazer votos para que os guerreiros dos comanchos não tenham necessidade de aplicar tal receita... Desejo-lhe fama e vitórias, pois sou seu amigo, e por isso lamento não poder permanecer a seu lado. Eles por aqui ficarão à procura da pista; nós, porém, temos de apressar-nos, a fim de alcançar os dois peles-brancas.
— Neste caso os meus irmãos vão encontrar o “Castor Branco”, que se alegrará em vê-los. Vou destacar um guerreiro para acompanhá-los até o local onde ele se acha.
— Onde está acampado seu pai, o afamado cacique?
— Para responder a Old Death, preciso denominar o local, tal qual o chamam os peles-brancas. Se os meus irmãos saírem daqui, em direção ao ocidente, chegarão ao afluente do Nueces, que se chama Turkey-Ereek. Depois terão de atravessar o Chico-Ereek, de onde se estende um enorme deserto até Elm Ereek. Nesse deserto estão os guerreiros do “Castor Branco”, para não deixar ninguém passar pelo vão, acima do Eagle Pass, que vai além do rio Grande del Norte.
— Com os diabos! — escapou dos lábios do escoteiro, que imediatamente corrigiu-se acrescentando: — É justamente o caminho por onde temos de ir! Mas o irmão vermelho, com essa comunicação, proporcionou-nos grande alegria e sinto-me feliz por tornar a ver o “Castor Branco”. Agora, porém, vamos dormir para que amanhã cedo estejamos revigorados para a viagem.
— Então irei, em pessoa, escolher o lugar onde dormirão. Levantou-se e conduziu-nos a uma árvore bem copada, debaixo da qual deveríamos pernoitar. Mandou buscar os nossos arreios e alguns cobertores. Tornara-se outro homem, depois que fumara o calumet conosco. Quando se retirou, examinamos nossas maletas nos serigotes. Não nos faltava o menor objeto, honra lhes seja feita. Fizemos dos serigotes travesseiros e deitamo-nos, ao lado um do outro, cobrindo-nos com os cobertores. Não demorou muito e chegaram, também, os comanchos, os quais deitando-se, formaram um cerco em torno de nós.
— Essa atitude não nos deve provocar suspeitas — declarou Old Death. — Assim procedem para nos defender em caso de necessidade, e não para impedir que fujamos. Depois de se fumar o calumet com os peles-vermelhas, pode-se confiar neles. Felizmente amanhã vamos separar-nos deles. Preguei-lhes uma bonita peça a respeito de Winnetou, pois precisava desviá-los da sua pista. Mas julgo que lhe foi muito difícil atravessar o rio Grande. Só ele mesmo! Outro não o conseguiria. O que me preocupa, porém, é o fato de conduzir consigo um ferido, o emissário evadido do forte Inge. Para essas missões os índios, em geral, escolhem as pessoas mais experimentadas. O homem era idoso. Acrescente-se a isso a febre que, por certo, lhe sobreveio da ferida, em virtude, principalmente, da cavalgada forçada. E diga-me se tenho ou não razão para temer pela sua sorte e pela de Winnetou. Bem! Vamos dormir. Boa noite!
Desejou-me boa noite. Boa noite, porém, não tive eu, pois não consegui cerrar os olhos. O pensamento fixo em Winnetou não me deixou sossegado. Assim desperto vi romper o dia. Acordei os companheiros. Eles se levantaram sem fazer ruído. Não obstante, no mesmo momento, erguiam-se todos os índios que nos cercavam. Agora, à luz do dia, podia-se ver melhor os índios. Causou-me uma espécie de náusea, olhar aqueles rostos horrivelmente pintados e aqueles vultos trajados a aventureiros. Alguns estavam semivestidos; muitos só tinham frangalhos dependurados no corpo, frangalhos em que os parasitas pareciam pulularem; mas todos eram homens possantes, como costumam ser os índios da tribo dos comanchos, a qual é notável pela beleza dos seus homens. Das mulheres nada se pode particularizar: são as escravas desprezíveis dos vermelhos.
O cacique veio ter conosco e perguntou se desejávamos comer alguma coisa; trouxe, mesmo, uns pedaços de carne cheia de tendões. Agradecemos o oferecimento gentil, alegando que ainda tínhamos provisões, embora esta já estivesse no fim e consistisse apenas em uns pedacinhos de presunto. Apresentou-nos, também, o pele-vermelha que nos deveria acompanhar até o acampamento do “Castor Branco”; graças, porém, à diplomacia do velho escoteiro, desistiu de nos fazer acompanhar de semelhante guia, concordando em que seria uma ofensa aos guerreiros peles-brancas. “Isso se faz quando se trata de meninos ou homens inexperientes”.
— Nós acharemos o bando dos peles-vermelhas comandados pelo cacique “Castor Branco”, disse-lhe Old Death.
A FAZENDA DO CABALLERO
Depois de havermos enchido o cantil e amarrado alguns feixes de capim nos tentos, despedimo-nos dos comanchos e partimos. Eram quatro horas.
Cavalgamos de começo vagarosamente, para que os animais pegassem uma andadura regular. Pisávamos sobre caminho gramado o qual, porém, pouco a pouco, ia escasseando, até terminar de todo; substituiu-o, então, um terreno arenoso. Desaparecidas as últimas árvores, tivemos a impressão de nos acharmos no deserto de Sahara: era uma vasta planície arenosa e, apesar da hora matinal, já sentíamos um sol abrasador.
— Agora façamos trotar os animais; precisamos aproveitar a manhã, enquanto o sol nos bate pelas costas. De tarde, nos baterá pela frente, pois vamos para o oeste.
— Nesta monótona planície, onde não há o menor ponto de referência, nem o mínimo acidente, não é possível perder-se o rumo? — perguntei, fazendo-me de greenhorn.
Old Death sorriu penalizado e disse:
— Mais uma de suas famosas perguntas, sir! O sol é o melhor guia que existe. A nossa próxima etapa é Turkey-Ereek, mais ou menos a umas dezesseis milhas daqui. Se concordarem, havemos de alcançá-la em menos de duas horas. Portanto, sei onde nos achamos e não tenho receio de perder o rumo.
O escoteiro fêz o cavalo trotar, depois galopar, e nós o acompanhamos. Passou-se uma hora e depois outra até que diminuíssemos a marcha, para que os animais pudessem tomar fôlego.
— Consulte o seu relógio, sir! disse-me então Old Death. — Cavalgamos duas horas e cinco minutos e lá está o Nueces. Está certo ou não?
Sim, ele acertara.
— Está vendo! — prosseguiu o escoteiro. — O mostrador do relógio está, por assim dizer, nos olhos do campineiro. Este não precisa de maquinazinhas para se orientar. Sou capaz de lhe dizer que horas são, até numa noite escura, quando não há uma só estrela no firmamento. E, se me enganar, é apenas por minutos. Com boa vontade, o senhor também aprenderá isto.
Um véu negro assinalava o curso do rio Nueces; contudo não eram árvores, mas umas simples moitas. Achamos facilmente um passo para o transpormos e chegamos, em seguida, ao Turkey Ereek, que, nesta altura, desemboca no Nueces. Não tinha quase água. Dali seguimos para o Chico-Ereek, que alcançamos pouco depois das nove horas. O seu leito estava igualmente seco. Apenas, aqui e ali, se via uma poça dágua estagnada. Não havia árvores e nem macegas e a grama estava toda ressequida. Na margem oposta, apeamos e demos água aos animais. Como balde ou embornal, utilizamos o chapéu do filho do ferreiro. Os feixes de capim que conduzíamos foram também depressa devorados pelos cavalos e, depois de meia-hora de descanso, prosseguimos em direção ao Elm-Ereek, meta final de nossa viagem. Nesse último trecho, notamos que os animais estavam cansados. O breve descanso, pouco os refizera e agora éramos obrigados a cavalgar a passo.
Chegou o meio-dia. O sol ardia como chamas devoradoras e a areia, estava quente e solta, o que prejudicava sobremodo a rapidez da viagem. Pelas catorze horas, tornamos a apear, a fim de dar o resto da água aos cavalos. Nós não bebemos. Old Death não consentiu. Era de opinião que resistiríamos mais facilmente à sede do que os animais.
—: De resto, — acrescentou rindo satisfeito — os animais portaram-se com bravura. Sabem que distância vencemos até agora? Disse-lhes, pela manhã, que chegaríamos a Elm-Ereek à noite. Mas chegaremos lá daqui a duas horas. Olhem que é um trecho que dificilmente outros vencerão nesse tempo.
O velho dobrou um pouco para o sul e prosseguiu:
— É um milagre não havermos ainda topado com alguma pegada dos comanchos. Talvez se tenham postado mais próximo do rio. Que tolice, levarem tanto tempo à procura dum apache fugitivo! Se atravessassem o rio Grande em linha reta, teriam surpreendido o inimigo.
— Talvez esperem fazê-lo, — disse Lange — pois se Winnetou, com o apache ferido, não conseguiu atravessar o rio noutra zona, virá por este rumo, pois ignora talvez a presença aqui dos comanchos traidores.
— Hum! A sua conclusão não é desacertada, sir! Justamente a circunstância de não avistarmos os comanchos faz-me temer pela sorte de ambos. Talvez tenham sido capturados.
— Qual seria, neste caso, o destino de Winnetou? — perguntei fingindo-me sempre de greenhorn.
— O mais terrível que se pode imaginar. Não será morto ou martirizado, durante a expedição de guerra. Não. Aprisionar o afamado cacique dos apaches constituiria para os comanchos um acontecimento nunca visto, que eles festejariam condignamente, isto é, do modo mais pavoroso possível. Seria transportado para a taba dos comanchos, onde só estão as mulheres, as crianças e os velhos, pois os guerreiros se acham todos em expedição de guerra, uma parte contra os apaches e a outra no México com Maximiliano. Seria tratado regiamente, nada lhe faltando, a não ser, é claro, a liberdade. As mulheres haviam de ler-lhe nos olhos todos os desejos, e satisfazê-los. Mas não pensem que essa hospitalidade é filha da amizade. O prisioneiro é assim tratado e alimentado para que se conserve forte, a fim de suportar bem os martírios e ter morte mais lenta e angustiosa. É claro que se o prisioneiro estiver enfraquecido sucumbirá à primeira tortura que lhe infligirem. Afianço-lhe: Winnetou teria de morrer, mas não numa hora ou num dia. Não. Os seus algozes haviam de dilacerar-lhe o corpo com um cuidado por assim dizer científico, para que decorressem muitos dias até a morte sobrevir aos suplícios. É essa a morte digna de um cacique e estou convencido de que Winnetou não daria o menor sinal de dor; antes zombaria dos seus algozes, rindo-se da própria dor. Garanto-lhes que estou seriamente apreensivo. E, se o aprisionaram, realmente, estou pronto a arriscar minha vida para libertá-lo. Os comanchos devem estar acampados lá pelas bandas do oeste. Nós, porém, tomaremos agora rumo sul, para chegarmos à casa dum amigo meu, que nos informará sobre o que há no rio Grande del Norte. Passaremos a noite em sua casa.
— Seremos bem recebidos?
— É claro! Se eu não tivesse certeza disso, não lhe chamaria amigo. É ranchero, agricultor, um legítimo mexicano descendente em linha reta de pura estirpe espanhola. Um dos seus antepassados foi agraciado com o título de cavalheiro e por isso ele se considera também um caballero. E deu o pomposo nome de Estanzia Del Caballero à sua propriedade agrícola e pastoril. Mas, ao falar-lhe, tratem-no de señor Atanasio.
Depois dessa declaração, prosseguimos sem falar. Não conseguimos fazer os cavalos galoparem, pois enterravam-se quase até os joelhos na areia. Pouco a pouco, porém, a areia foi diminuindo e, às dezesseis horas, encontramos prazerosamente o primeiro gramado. Depois passamos para uma campina onde vaqueiros montados pastoreavam seus cavalos e reses. Os nossos animais reviveram; espontaneamente passaram a trotar. Árvores copadas erguiam-se na estrada e, daí a pouco, avistávamos um ponto branco por entre o verde da campina.
— E a Estanzia del Caballero — disse Old Death. — Uma construção original. Uma verdadeira fortaleza, o que, para esta zona, é muito necessário.
Aproximamo-nos da fazenda e agora nos era possível apreciar os detalhes da construção. Estava cercada por um duplo muro de pedra, da altura de um homem, no qual havia um portão, diante de uma ponte sobre um profundíssimo e largo fosso, então, seco. O edifício era cúbico. O andar térreo ficava totalmente encoberto pelo muro. O sobrado era rodeado por extensa galeria, coberta de linho branco. Não se viam janelas. A este andar sobrepunha-se outro do mesmo estilo, um pouco menor, de modo a formar a mesma galeria coberta de linho. Assim o edifício compunha-se de três cubos de alvenaria, superpostos e em tamanho decrescente. Tanto as paredes como o linho estavam pintados de branco, razão por que de longe se destacavam na campina. Só quando nos aproximamos bem, foi que notamos nos andares uma série de orifícios semelhantes às aberturas próprias para canhões e que serviam de janelas.
— Lindo palácio! — disse Old Death, rindo-se. — Vão admirar-se da sua instalação. Quisera saber qual o cacique que seria capaz de alimentar a presunção de assaltá-lo.
Cavalgamos sobre a ponte, direito ao portão, onde havia uma abertura. Ao lado pendia um sino, cujo som se podia ouvir, a meia-hora de distância. Pouco depois de havermos tocado, apareceram na abertura um nariz indiano e dois grossos lábios. Soou, então, em língua espanhola:
— Quem é?
— Amigos do dono da casa — respondeu Old Death — Señor Atanasio está?
O nariz e os lábios avançaram mais e surgiram também dois olhos negros.
— Oh! que satisfação, señor Death! Venham, senores. Vou anunciá-los.
Os gonzos ringiram, abriu-se o portão e entramos. O homem que nos atendera era um índio gordo, e trajava leve vestimenta de linho. Era um dos índios fiéis, isto é, dos que se converteram ao cristianismo e se adaptaram pacificamente à civilização. Fechou novamente o portão, fêz-nos uma profunda mesura e afastou-se, a fim de avisar o amo da nossa chegada.
— Temos ainda tempo de cavalgar ao redor da casa — disse Old Death. — Venham observar a grandiosidade da construção.
Seguimos Old Death. Só agora nos era possível ver e analisar o pavimento térreo. Também ali o ar penetrava por orifícios praticados na parede. O edifício estava construído num terreno cercado de muralhas. O pátio não era pavimentado e no solo vicejavam verdes gramados. Além dos orifícios, não havia outras aberturas, nem janelas nem portas. Rodeamos toda a casa, e voltamos à entrada. O índio ainda ali se achava à nossa espera.
— Mas, — perguntou Lange — como se consegue entrar na casa?
— Já o verá — respondeu Old Death.
Na galeria do pavimento térreo, um homem se curvou, a fim de ver quem chegava. Quando viu o índio, a cabeça desapareceu e, em seguida, foi arreada uma estreita escada, pela qual subimos. Pensei que no primeiro andar haveria porta, mas enganei-me; quando atingimos a galeria outra escada foi descida, pela qual continuamos a subir parede acima, em direção ao segundo andar; ali, no meio da galeria, havia uma abertura quadrada, que dava acesso a uma escada interna.
Este sistema de construção era usado já há cem anos nos pueblos indígenas. Ninguém pode penetrar no pátio. E, se algum inimigo consegue galgar, o muro, vê-se diante de paredes lisas e inacessíveis. A escada, pela qual subíramos, era imediatamente recolhida. O fazendeiro, por mais de uma vez, resistira a sítios prolongados. O inimigo tinha de perecer, mesmo antes de atingir a casa. Do alto dela divisava-se um horizonte largo, na vasta planície. Aos fundos, à pequena distância, via-se o Elm Ereek. A vegetação abundava em seus arredores. E a sua água límpida convidava a um banho restaurador.
Conduzidos por uma criado, descemos ao interior, passando do primeiro andar para o térreo, por outra escada semelhante à primeira. O acesso ao interior era incômodo, mas perfeitamente justificável. Ao chegarmos ao pavimento térreo, o criado desapareceu, para voltar em seguida, anunciando-nos que o señor capitano de caballeria se achava à nossa espera. Enquanto aguardávamos a volta do criado, Old Death observou:
— Não reparem se meu velho amigo Atanasio os receber um tanto protocolarmente. O espanhol gosta da etiqueta e o mexicano, seu descendente, conservou este hábito. Tivesse eu chegado só e ele de há muito me teria vindo ao encontro. Mas, como me acho acompanhado, vai dar uma recepção oficial. Não riam, se nos receber de uniforme! Na mocidade, serviu como capitão na cavalaria mexicana e ainda hoje gosta de ostentar o seu antigo uniforme que, de há muito, não se adota nas tropas regulares do país. No resto, é um excelente amigo!
Fomos conduzidos a um compartimento, que servia de sala de recepções. No meio da sala, achava-se parado um homem alto e magro, de cabelos e barbas grisalhas. Usava calças vermelhas com listras douradas, botas de verniz de cano alto e esporas, cujas rosetas eram do tamanho de uma moeda de cinco marcos. O dólmã era de pano azul com alamares dourados. As enormes dragonas pareciam mais corresponder a um general do que a um capitão. À cinta trazia um espadagão de bainha e copo dourados; à mão esquerda um boné de três pontas com uma borla de arminho. Parecia fantasiado. No rosto, porém, pintava-se a bondade da alma. Quando entramos, perfilou-se, bateu com os saltos, onde as esporas retiniram.
— Boa tarde, meus senhores! Sejam bem-vindos! — disse de modo bastante convencional.
Curvamo-nos, silenciosos. Old Death respondeu-lhe em inglês:
— Nossos agradecimentos, señor capitano de caballeria. Como nos achávamos nas proximidades, quis proporcionar aos meus companheiros a honra de conhecerem o valente batalhador da independência do México. Permita-me que os apresente!
A essas palavras lisonjeiras, um sorriso de satisfação iluminou a fisionomia do fazendeiro. Meneou a cabeça em sinal de assentimento e disse:
— Apresente-os, señor Death! Folgarei muito em conhecer os señores que me honram com a sua visita!
Old Death apresentou-nos e o caballero estendeu a mão a todos, inclusive ao negro, e convidou-nos a sentar. O escoteiro perguntou-lhe pela señora e pela señorita, ao que o estancieiro abriu uma porta, de onde surgiram as duas damas, que já se achavam prontas para a nossa recepção. A señora era uma elegante e vistosa matrona e a señorita uma linda moçoila, sua neta, conforme depois viemos a saber. Ambas ostentavam vestidos de seda preta, como se estivessem preparadas para comparecer a uma festa na corte. Old Death ergueu-se, correu ao encontro das senhoras e, pegando-lhes das mãos, apertou-as e sacudiu-as, com tanta efusão, que receei por elas a fratura de algum braço. Os dois Lange tentaram fazer uma inclinação respeitosa e o negro, lambendo os lábios grossos, exclamou:
— Oh! Missis, Missus! Que linda seda!
Aproximei-me da señora, tomei-lhe a mão na ponta dos dedos, curvei-me e beijei-a. A dama aceitou a minha cortesia com tanta benevolência, que me apresentou a face para o beso de cortesia, o que constituía uma grande distinção para mim. A mesma cerimônia repetiu-se com a señorita. Depois, sentamo-nos novamente. A palestra girou em torno da nossa viagem. Contamos apenas o que julgamos conveniente, inclusive o nosso encontro com os comanchos. O fazendeiro e as duas senhoras ouviam-nos com toda atenção e notei que trocavam olhares significativos. Quando terminamos, o caballero pediu-nos que lhe fizéssemos a descrição dos dois personagens no encalço dos quais nos achávamos. Tirei do bolso as fotografias e mostrei-as. Mal puseram os olhos nelas, a señora exclamou:
— São eles, eles mesmos! Não há dúvida! Não é, Atanasio?
— Tens razão! Sem tirar, nem pôr! Señores, esses homens passaram a noite de ontem, aqui em casa.
— A que horas saíram?
— Chegaram noite avançada, fatigadíssimos. Um dos meus vaqueiros os encontrou e os trouxe até cá. Dormiram até depois do meio-dia. Partiram há umas três horas.
— Bem. Havemos de alcançá-los amanhã. Não nos será difícil, talvez, seguir-lhes as pegadas.
— Claro que não, señor. Daqui, seguiram para o rio Grande, a fim de transpô-lo acima do Eagle Pass, mais ou menos entre os rios Moral e Las Moras. Além disso, ainda hoje vamos saber notícias deles. Mandei alguns dos meus vaqueiros segui-los.
— Por que mandou sua gente segui-los?
— Porque aqueles homens corresponderam ingratamente à minha hospitalidade. Iludiram a vigilância dum dos meus vaqueiros, logo que daqui partiram: encontrando-o no campo, expediram-no com um recado para mim e, na sua ausência, roubaram seis cavalos da tropa que o homem pastoreava.
— Que pouca vergonha! Então, os dois homens não se achavam sozinhos?
— Não. Andavam juntos com um bando de soldados disfarçados, que estavam encarregados de conduzir um grupo de recrutas para o México.
— Então não creio que os seus vaqueiros consigam reaver os cavalos.
— Oh! Os meus vaqueiros sabem manejar as armas com rara perícia. Escolhi os mais hábeis.
— Gibson e William Ohlert falaram-lhe de sua situação e de seus planos?
O caballero sorriu refletidamente e respondeu:
— Sim, e é muito interessante para os senhores! É que tenho escondido aqui em casa o emissário dos apaches, do qual falaram a pouco, a quem Winnetou socorreu lá no rio Leona. Trata-se do velho cacique Inda-nischo.
Inda-nischo, o “Bom Homem”, o célebre cacique ao qual este nome senta tão bem!
— Chegou aqui em penosa situação. Devo dizer-lhes que o valente e afamado Winnetou conhece-me e sempre toca em minha casa para visitar-me, quando viaja por esta região. Tem relações comigo, porque sabe que sou um homem em quem se pode ter confiança. Quando Winnetou saiu do forte Inge, conseguiu alcançá-lo. Havia recebido um ferimento no braço e outro na coxa. No rio Leona, Winnetou amarrou-lhe a ferida, prosseguindo ambos, depois. Mas o pobre cacique teve febre muito alta, e o deserto fervilhava de comanchos, que esperavam, para prendê-lo de passagem. De como Winnetou, apesar disso, conseguiu ainda trazê-lo até aqui, é um enigma. Foi uma tarefa de que só mesmo o jovem cacique seria capaz. Mas, aqui, “Bom Homem” não pôde continuar viagem, pois não podia suster-se no serigote, tão fraco estava. É homem idoso; conta uns setenta anos e perdera muito sangue.
— É inacreditável! Conseguir manter-se nos arreios, assim ferido, do forte Inge até aqui, mais de cento e sessenta milhas inglesas! Com tal idade só mesmo um pele-vermelha resiste! Perdão, continue!
— Chegaram à noite e tocaram o sino. Eu mesmo desci e reconheci Winnetou. Este relatou-me o sucedido e pediu que agasalhasse o seu irmão até que ele voltasse; tinha urgente necessidade de atravessar o rio Grande del Norte, a fim de pôr as suas tribos no conhecimento da traição e da aproximação dos comanchos. Mandei dois dos meus melhores vaqueiros acompanhá-lo, a fim de saber se conseguiu atravessar o rio, livre de perigo.
— E, afinal, — perguntou Old Death ansioso — conseguiu atravessá-lo?
— Sim, o que me tranqüilizou bastante. Foi prudente. Não escolheu o passo, lugar perigoso, de difícil travessia pela forte correnteza. Mas venceu-o a nado com os meus vaqueiros, que só o abandonaram em lugar limpo de comanchos. Agora, os apaches estão informados de tudo e se preparam para receber os comanchos. Querem acompanhar-me até onde está o cacique baleado, señores?
Todos nos levantamos. Despedimo-nos das senhoras e descemos para o pavimento térreo, passando por um estreito corredor, semelhante ao do sobrado. Entramos num quarto bem arejado e fresco. O velho estava deitado no leito. A febre havia cessado, mas a debilidade era grande; mal podia falar. Os olhos estavam fundos nas órbitas e as faces lívidas. Não havia médico na zona, mas disse-nos o caballero que Winnetou era mestre no tratamento de feridas. Envolvera as feridas com ervas medicinais e proibira terminantemente que lhe tirassem a atadura. Declarara que assim que a febre cedesse, não haveria perigo de vida para o ferido. Quando nos retiramos e íamos voltar para o sobrado, eu disse ao fazendeiro que desejava tomar um banho no rio.
— Pode sair por aqui mesmo — disse o mexicano.
— Não vejo porta!
— Oh! há sim, porém, secreta. Instalei-a para a eventualidade de uma fuga. Vou mostrá-la.
Havia um armário na parede. Afastou-o, aparecendo, então, uma abertura com saída para o pátio; essa abertura era disfarçada no exterior, por umas moitas. O caballero conduziu-me para o pátio e, apontando para outras moitas idênticas que se erguiam diante do muro, disse:
— Por ali pode-se sair para o campo sem que um estranho o perceba. É o mais curto caminho para o rio. Espere um pouco. Vou arranjar-lhe roupa mais cômoda!
Tocou o sino do portão. O caballero subiu para abri-lo e eu o acompanhei. Eram os vaqueiros que expedira em perseguição dos ladrões de cavalos, cinco figuras possantes.
— Então? — perguntou. — Não trouxeram os cavalos?
— Não — respondeu um deles. — Chegamos a estar bem perto deles. Haviam atravessado o nosso rio e pelas pegadas verificamos que, dentro de uma hora, haveríamos de alcançá-los. Mas, de súbito, encontramos rastros de numerosos cavalos que se misturaram com os deles. Haviam encontrado os comanchos. Prosseguimos e não tardou a avistarmos todos. Eram mais de quinhentos Comanchos. Como enfrentá-los?
— Fizeram muito bem. Não convinha arriscar a vida, por causa de alguns cavalos. Os comanchos trataram os peles-brancas com cordialidade?
— Não nos foi possível aproximar-nos tanto deles.
— Em que direção cavalgaram?
— Na direção do rio Grande del Norte.
— Foram-se! Nada, pois, de cuidados. Voltem para os seus rebanhos! Retiraram-se. O caballero estava muito enganado. Havia muito a recear dos comanchos, pois Gibson relatara-lhes, conforme soube mais tarde, que o apache baleado se achava na fazenda do caballero. Em vista disso, grande número de guerreiros vermelhos voltaram a galope, a fim de levarem preso o ferido e castigar o señor Atanásio, por havê-lo, asilado, demonstrando simpatia pelos apaches. O último subiu, calmamente, a escada e daí a pouco desceu um peão, que pediu que eu o acompanhasse. Conduziu-me para fora do portão, rumo ao rio. Trazia uma fatiota de linho branco no braço. Ao chegarmos num local onde o rio era fundo, o peão ficou parado e disse:
— É aqui, señor! Quando terminar o banho vista esta roupa; levo a sua comigo. Ao voltar, toque no sino que lhe abriremos o portão.
UMA “BATIDA” DOS COMANCHOS
Retirou-se com a minha roupa e eu atirei-me no rio. Depois do calor do dia e da cavalgada puxada que empreendera, era uma verdadeira delícia mergulhar e nadar naquele rio. Estive mais de meia-hora dentro d’água. Já havia enfiado a roupa de linho branco, quando meus olhos se dirigiram para a margem oposta. Por entre as árvores, onde me encontrava, pude ver na curva do rio um bando de cavaleiros, dispostos, um a um, como gostam de cavalgar os índios. Corri até o portão e toquei o sino. O peão, que me esperava, abriu-o logo.
— Depressa, avisemos o caballero! Um bando de índios cavalga em direção à fazenda.
— Quantos são?
— Uns cinqüenta.
O homem, às primeiras palavras, assustou-se visivelmente; ao informá-lo, porém, do número de índios, tranqüilizou-se.
— Apenas? — perguntou. — Então não precisamos temê-los. Estamos sempre preparados para enfrentar, em qualquer tempo e com vantagem, cinqüenta e até mais vermelhos, señor. Não posso subir para avisar o caballero, porque vou avisar os vaqueiros da aproximação dos inimigos. Aqui estão as suas roupas. Feche o portão, quando sair, e corra a prevenir D. Atanásio. Mas recolha a escada.
— Que é feito dos nossos cavalos? Estão em lugar seguro?
— Sim, señor. Estão na pastagem com os nossos e os arreios em casa. Não há perigo de lhes roubarem os animais.
O peão retirou-se apressado. Fechei o portão e subi as escadas, que recolhi, em seguida. Quando cheguei à galeria apareceram Old Death e o dono da casa. O fazendeiro, nem de leve, se espantou, quando lhe falei da próxima agressão.
— A que tribo pertencem? — perguntou-me indiferente. — Não sei. Não me foi possível distinguir as cores.
— Bem, já os veremos. Ou são apaches, que encontraram Winnetou e receberam deste ordem para virem buscar o apache ferido, ou são comanchos. Neste caso, tratar-se-á de uma simples tropa de observadores que andam em reconhecimento da zona e aqui vêm para indagar de nós se vimos o apache. Quando receberem resposta negativa, partirão imediatamente.
— Ao que parece, vêm com propósitos hostis — observou Old Death. — Aconselho-o a tomar imediatamente medidas de defesa.
— Já estão tomadas. Cada um dos meus homens sabe como proceder num caso desses. Veja, lá fora, o peão como corre para o primeiro cavalo. Vai montá-lo, a fim de galopar para o campo, em busca dos vaqueiros. Em menos de dez minutos, os rebanhos estarão reunidos. Dois dos vaqueiros, ficarão junto deles, e os demais enfrentarão os peles-vermelhas. O laço na mão deles, constitui uma arma perigosa, pois sabem manejá-lo com maior perícia do que os índios. Suas espingardas levam grande vantagem sobre as flechas e velhos bacamartes dos selvagens. Não temem cinqüenta índios. E, quanto a nós, aqui, estamos muito bem defendidos. Nenhum vermelho conseguirá galgar o muro. Além disso, creio que posso contar com os senhores, que, com o negro, são cinco homens bem armados e municiados. Acrescentem-se eu e oito peões, que guarnecem a casa, e temos um total de catorze homens. Demais, quisera conhecer o índio capaz de arrebentar o portão. Mas não encaremos a coisa por este prisma. Os índios tocarão pacificamente o sino, solicitarão a informação de que carecem e, depois, partirão sem nos molestar. Vendo catorze homens armados cá em cima, manter-se-ão à distância. A coisa é completamente isenta de perigo.
Old Death fêz uma expressão de dúvida. Meneou a cabeça e disse:
— Tenho uma idéia, que não nos poderá deixar tranqüilos. Estou convencido de que se trata de guerreiros comanchos e não apaches. Que pretendem eles aqui? Por simples reconhecimento é pouco provável. Se houvesse apaches, por aqui, as pegadas os denunciariam. Não seria, então, necessário fazer indagações a respeito. Não, o bando vem até aqui com o propósito firme de aprisionar o apache ferido.
— Mas eles ignoram que o índio está na minha fazenda! Quem os poderia informar?
— Gibson, exatamente o homem que perseguimos e que ontem pernoitou em sua casa. O senhor mostrou-lhe o apache, conforme disse há pouco. Ele traiu a sua confiança com o fim de conquistar a simpatia e a proteção dos comanchos. Se minha previsão não fôr certa, deixarei de chamar-me Old Death, señor. Tem dúvidas a respeito?
— Não. É bem possível que o senhor tenha razão. Se fôr assim, os comanchos nos obrigarão a lhes entregar o apache ferido.
— Exatamente. E o senhor os atenderá?
— De forma alguma. Winnetou é meu amigo. Confiou-me o “Bom Homem” e eu quero corresponder a essa confiança. Não entregarei o apache aos comanchos! Saberemos defender-nos!
— A sua vida e propriedade estão em perigo. A esses cinqüenta poderemos repelir; mas eles voltarão, depois, em número dez vezes maior e então estará perdido.
— Isso entrego e Deus. A palavra que empenhei a Winnetou saberei honrar, haja o que houver!
Old Death estendeu a mão ao caballero e disse:
— É um perfeito cavalheiro. Conte com o nosso auxílio! O cacique dos comanchos é meu amigo e talvez me seja possível desfazer a sua ira. Mostrou a Gibson a porta secreta?
— Não, señor.
— Fêz bem. Enquanto os vermelhos não a descobrirem, estaremos senhores da situação. Agora, desçamos em busca de armas!
Na minha ausência, haviam sido indicados aos meus companheiros, os quartos onde repousaríamos. Para lá nos dirigimos. O meu quarto dava para o campo fronteiro ao rio. Pelos orifícios da parede vi, então, os índios galopando para nós. Não urravam, como costumam fazer, ao se aproximarem duma casa, mas vinham num silêncio pouco tranqüilizador. Pelas cores reconhecemos os comanchos. Pararam, subitamente, defronte do muro, o qual era tão alto, que mal deixava ver os cavaleiros. Estavam armados de lanças, arcos e flechas. Apenas o que vinha à frente, o qual devia ser o chefe, trazia uma espingarda na mão. Muitos traziam nos tentos, objetos que, primeiro, tomei por suportes de barracas; mas enganara-me. Saí imediatamente do meu quarto e, quando cheguei ao corredor, Old Death veio ao meu encontro exclamando:
— Atenção! Galgam o muro, por meio de árvores novas que trouxeram amarradas aos tentos. Corramos para a galeria. A postos!
Mas essa manobra não pôde ser efetuada com a rapidez que era de desejar. Os peões achavam-se no subsolo, onde era o alojamento dos serviçais, e também nós não conseguimos subir rapidamente, porque, no corredor, as duas senhoras nos embargaram os passos. Levamos mais de dois minutos para subir as escadas, tempo precioso numa situação destas. A má conseqüência desse retardamento se fêz sentir, logo que chegamos na galeria. O primeiro índio conseguira chegar e seguiram-lhe outros... Estávamos com as armas nas mãos, mas não podíamos impedir-lhes a entrada a não ser que nos dispuséssemos a fuzilá-los. Munidos das árvores haviam escalado o muro e, depois de atravessar o pátio, também, transpuseram a galeria. Estávamos no meio desta e eles à borda.
— Apontem as armas! Não os deixem aproximar! — comandou Old Death. — Precisamos, antes de tudo, contemporizar.
Contei cinqüenta e dois peles-vermelhas, dos quais nenhum havia proferido um único som. Fôramos surpreendidos em toda a linha. Mas não se arriscaram até ali a nos atacar. Achavam-se postados à beira da galeria, com os arcos e as flechas na mão. Haviam deixado as lanças embaixo; seriam um empecilho à escalada. O caballero deu alguns passos à frente e perguntou-lhe num misto de espanhol, inglês e indiano, usado naquela região:
— Que pretendem os peles-vermelhas na minha casa? Como ousam entrar aqui sem o meu consentimento?
O chefe, com a espingarda na mão, avançou uns passos, e respondeu:
— Os guerreiros dos comanchos aqui entraram, porque o pele-branca é seu inimigo. O sol de hoje é o último que verá na sua vida!
— Não sou inimigo dos comanchos. Estimo todos os peles-vermelhas, sem cogitar se pertencem a esta ou àquela tribo.
— O pele-branca está mentindo. Nesta casa, acha-se oculto um cacique dos apaches. Esses cães são inimigos dos comanchos e quem acoita um apache é nosso inimigo e está condenado à morte!
— Caramba! Pretendem, por acaso, proibir-me que eu dê hospedagem na minha casa a quem eu bem entendo? Quem é dono aqui, os senhores ou eu?
— Os guerreiros dos comanchos aqui subiram e são, portanto, os senhores da casa! Entregue-nos já o apache que aqui está acoitado! Ou vai negar que ele se acha aqui?
— Não faltava mais nada! Só os poltrões mentem; eu, porém, não receio os comanchos e digo francamente que...
— Pare! — atalhou-o Old Death com voz abafada para não ser entendido pelo índio. — Não cometa uma tolice, señor!
— Acha que devo negar? — perguntou o mexicano, também em voz baixa.
— Mas é claro. Mentir é pecado, concordo; mas falar, agora, a verdade será simplesmente suicídio. Agora, pergunto-lhe, é maior pecado: mentir por necessidade ou suicidar-se estupidamente?
— Suicidar-me? Que podem esses homens contra as nossas catorze espingardas?
— Muita coisa, visto que se acham cá em cima. A maior parte deles tombaria na luta, não há dúvida, mas nós também receberíamos algumas flechas e lâminas de faca no corpo, esteja certo disso, señor! E, mesmo que saíssemos vencedores, os sobreviventes iriam buscar os quinhentos guerreiros para liquidar-nos. Deixe tudo por minha conta. Agora vou eu falar-lhe.
Dirigiu-se, a seguir, ao chefe do bando:
— As palavras do meu irmão causam-nos espanto. Como tiveram os comanchos a idéia de se achar aqui acoitado um apache?
— Eles sabem disso com certeza! — respondeu, secamente, o vermelho.
— Então eles sabem mais do que nós!
— Quer dizer que nos enganamos? Então mente!
— E o senhor disse agora uma palavra, que pagará com a vida se a repetir. Não consinto que me chamem mentiroso. Vê que nossas armas estão apontadas e prontas para o tiro. Basta em sinal meu para o senhor cair com sua gente.
— Mas os outros nos haveriam de vingar a morte! Lá mais adiante acham-se acampados quinhentos comanchos. Eles viriam para arrasar a casa com tudo o que ela tem dentro.
— Eles não passariam do muro, pois estaríamos prevenidos. Haveríamos de recebê-los daqui de cima, com uma tão formidável salva de tiros, que não escaparia um só da morte.
— Meu irmão pele-branca é um intrometido, um grande prosa! Por que me dirige a palavra? É, porventura, o dono da casa? Quem é e como se chama para se atrever a falar com o chefe dos comanchos?
Old Death fêz um sinal de desprezo retrucando-lhe:
— E quem é este chefe dos comanchos? É algum guerreiro afamado ou faz parte do Conselho dos Sábios? Não traz nos cabelos a pena de águia ou de corvo, nem qualquer outro distintivo de cacique. De que tribo dos comanchos faz parte, para ignorar quem sou? Meu nome é Koscha-pehve e fumei o “cachimbo da paz” com Oyo-Koltsa, o cacique dos comanchos. Ontem, ainda falei com seu filho Avat-vila e pernoitei com seus guerreiros. Sou um amigo dos comanchos, mas, se um deles insultar-me, responder-lhe-ei com balas.
Entre os vermelhos ouviu-se um murmúrio. O chefe virou-se e disse-lhes alguma cousa em voz baixa. Pelos olhares com que contemplavam Old Death, via-se que a enunciação de seu nome lhes causara profunda impressão! Depois de ligeira conferência, o chefe dirigiu-se de novo ao escoteiro e disse:
— Os guerreiros dos comanchos sabem que Old Death é amigo do “Castor Branco”, mas sua atitude põe em dúvida tal amizade. Por que nos oculta a verdade, dizendo não se achar aqui refugiado um apache?
— Nada lhes oculto, falo-lhes a verdade, afirmando que o apache não está aqui.
— Contudo, soubemos com absoluta certeza que Inda-nischo aqui estava asilado; contou-nos um pele-branca que pediu proteção aos comanchos.
— Como se chama esse pele-branca?
— O nome não foi feito para os lábios dos comanchos. Soa mais ou menos como Ta-hi-ha-ho.
— Gavilano, talvez?
— É assim mesmo!
— Então os comanchos cometeram um grave erro. Conheço aquele pele-branca. É um indivíduo perverso e sempre anda com a mentira na ponta da língua. Os guerreiros dos comanchos ainda se arrependerão por lhe terem dado proteção.
— Meu irmão está muito enganado. Aquele pele-branca nos falou a verdade. Sabemos que Winnetou conduziu “Bom Homem” atravessando o Avat-hono (*) e fugiu para cá. Mas, depois de prendê-lo, iremos em perseguição de Winnetou, o qual havemos de capturar, para matar no poste dos martírios. Conhecemos até o compartimento, onde está recolhido “Bom Homem”. Está ferido num braço e numa perna.
— Se sabem, então diga-me: onde é?
— Quando se desce duas vezes por aqui, até ao fundo da casa, chega-se a um estreito corredor onde há janelinhas à direita e à esquerda. Abre-se a última porta à esquerda e ali se encontra “Bom Homem”, o qual não pode mover-se no leito, em conseqüência dos ferimentos recebidos.
— Pois o pele-branca Gavilano lhes pregou uma formidável peta. Não encontrará nenhum apache no local descrito.
— Então deixe-nos descer, para averiguarmos quem mentiu, se o senhor ou aquele pele-branca.
— Isso naturalmente não devo consentir. Esta casa é dos que nela entram com autorização do seu dono e não daqueles que a assaltam com propósitos hostis.
— Após essas suas palavras, não podemos mais ter dúvidas de que o apache realmente está aqui. O “Castor Branco” ordenou-nos que o levássemos daqui e havemos de obedecer-lhe.
— Está novamente enganado! Oponho-me a que cumpra tal ordem, não porque, de fato, aqui esteja o apache que procuram, mas por causa do insulto que me lançou em face. Quando Old Death afirma, deve acreditar! Mas, se desejarem forçar a descida ao sub-solo, experimentem! Então não vê que basta um de nós para defender a entrada e, com facilidade, fuzilar a todos que se atrevam a forçar a descida? Assaltaram-nos em pé de guerra e nós os faremos recuar a tiros. Voltem lá para o portão e façam-se anunciar, como é de praxe entre homens de bem, que talvez os recebamos como amigos.
— Old Death nos dá um conselho muito bom para ele, mas, para nós, não serve. Se ele tiver a consciência limpa, que nos deixe descer ao sub-solo; do contrário daqui não arredaremos pé e expediremos um emissário em busca do grosso da tropa, dos quinhentos comanchos, que destruirão tudo o que houver aqui. Então, sim, ele resolverá deixar-nos descer, mas será tarde!
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(*) Na língua dos comanchos, Grande rio: Rio Grande do Norte
— Como são presunçosos! Mesmo que viessem mil comanchos, só poderia descer um por esta escada e este pagaria, com a vida, tão arrojada aventura. De resto, o emissário não conseguiria sair, pois, perdida a proteção, terá também perdida a vida. Disse e repito: sou amigo dos comanchos, mas estes vieram como inimigos e como tais serão tratados.
Durante todo este vaivém de negociações, as nossas armas estavam apontadas para os comanchos. Embora houvessem conseguido galgar a galeria, sua posição era desvantajosa em relação à nossa. Parece que o chefe do bando compreendeu a desigualdade de condição em que se achavam e entrou a conferenciar, novamente, em voz baixa, com os seus guerreiros. Old Death coçou a orelha e disse:
— Não há dúvida. A prudência manda que não empreguemos violência contra os comanchos. Poderão chamar o grosso da força para aqui e, então, pereceremos em suas mãos. Não nos seria possível esconder o apache ferido, de modo que não o encontrassem?
— Pode-se levar para fora! — disse eu resoluto.
— Para fora? — perguntou o velho rindo-se, com certa ironia. Vá para o diabo, sir! Que pretende fazer?
— Esqueceu-se da porta secreta? Ela está na parte dos fundos, ao passo que os comanchos estão na frente e, portanto, nada perceberão. Vou levá-lo para fora, lá para o meio das macegas que vicejam no rio.
— A idéia não é má — disse Old Death. — Não me havia lembrado dessa porta. Seria fácil levá-lo para fora. Mas se os comanchos distribuíram sentinelas pelas imediações?
— Não creio. De muito mais de cinqüenta, não se compõe o bando. Alguns deverão ficar junto dos cavalos, que estão em frente do muro. É pouco provável que tenham, também, guarnecido os fundos.
— Bem, podemos experimentar, sir. O senhor e um dos peões se incumbirão da tarefa. Vamos dispor as cousas de tal modo que eles não os vejam descer e não dêem pela falta. As damas os auxiliarão e, quando tiverem saído, que coloquem o armário novamente no lugar.
— Não deveríamos fazer que a señora e a señorita permanecessem, depois, no quarto do apache? Se os vermelhos virem que ali é um quarto de senhoras, ficarão duplamente convencidos de que nenhum índio se achava ali.
— Muito bem! — observou o señor Atanásio. — Basta colocar duas redes no quarto, para elas se deitarem. Lá existem ganchos para prendê-las. Um pouco abaixo do local, onde há pouco, tomou banho no rio, existe o melhor esconderijo para este fim. Só depois que estiverem de volta, permitiremos que os vermelhos desçam!
Desci com o peão, chamado Pedro, até o sub-solo, onde as senhoras estavam seriamente preocupadas com o desenrolar dos acontecimentos. Elas mesmas levaram as colchas e as redes para o quarto do apache. Na primeira foi enrolado o índio. Quando soube que os comanchos ali se achavam à sua procura, disse com voz fraca:
— Inda-nischo já viu muitos invernos e os seus dias estão contados. Por que razão vão os peles-brancas arriscar a vida por sua causa? Se os comanchos descobrirem tudo, os matarão; assim, ele pede que digam a verdade, mas o matem antes disso.
Respondi-lhe apenas com um enérgico sacudir de cabeça. Depois o retiramos do quarto. Saímos. O armário foi novamente empurrado para o lugar e chegamos, sem novidade, até o lado de fora do muro. Lá havia uma capoeirinha que nos servia, no momento, de escudo contra a vista do inimigo. Entre a capoeira e o rio, havia um caminho trilhado, pelo qual íamos seguir. Mas, que decepção! Lá estava um comancho sentado, no meio do caminho, com o arco e a flecha aprestados.
— Temos de voltar, señor — disse-me o peão, quando lhe mostrei o pele-vermelha. — Poderíamos matá-lo, mas isso armaria o ódio dos demais.
— Não o mataremos. Mas precisamos remover este empecilho.
— Não é possível. Não abandonará o posto, sem ser chamado.
— Contudo, tenho um plano para afastá-lo. Fique aqui escondido enquanto eu me deixarei mostrar. Quando me vir, finjo que me assusto e deito a fugir, ele sairá em minha perseguição.
— Ou o alveja com a flecha.
— Não importa; preciso arriscar.
— Não faça isto, señor! É muito arriscado. Os comanchos são tão certeiros na flecha, como nós na espingarda. Quando fugir, dará as costas ao índio e não lhe será possível desviar-se da flecha.
— Fugirei em direção ao rio. Nadando de costas, poderei vê-lo manejar o arco e mergulharei, antes que a flecha seja atirada. Ele me perseguirá a nado e eu o farei desmaiar. Fique aqui até que eu volte. Há pouco, quando nadava, vi onde se achava o bote. Vou buscá-lo e amarrá-lo aqui.
O peão esforçava-se por me demover da idéia, porém debalde; eu não via outro modo de agir. Afastei-me e desviei-me, cautamente, um tanto para o lado, contornando o muro. Surgi, então, diante do índio. O comancho não me avistou logo. Mas, no que deu com os olhos em mim, levantou-se de um pulo. Virei o rosto, para que não me fixasse as feições. Intimou-me, em altos brados, a parar. Como não obedeci, pegou do arco, armou-o e apontou. Com alguns pulos vertiginosos, alcançava o macegal do rio, antes que ele tivesse tido tempo de alvejar-me. Saltei n’água e pus-me a nadar de costas, em direção à outra margem. Minutos depois, o índio invadia também o macegal e apontava a flecha novamente para mim; mergulhei e a flecha perdeu-se no rio. Quando voltei à tona, vi que ele se achava recurvado, à margem do rio, à espera de que eu reaparecesse. Notou que não me achava ferido. Sem outras setas, arremessou o arco ao chão e lançou-se no rio, em minha perseguição. Era exatamente o que eu queria. Para atraí-lo, simulei ser péssimo nadador e o deixei aproximar-se bem. Mergulhei, então, e nadei rio abaixo. Quando voltei à superfície, achava-me próximo da margem e o pele-vermelha, mais acima, esperava-me. Eguía-se um carvalho, na margem. Saí d’água, no que fui secundado pelo vermelho. Levava-lhe, porém, grande dianteira. Passei pelo carvalho, embrenhei-me na macega e voltei a esconder-me por trás do tronco da árvore. Ele, seguindo o meu rasto, passou do carvalho. Saí-lhe, então, no encalço e derrubei-o, de surpresa, aplicando-lhe dois socos na região temporal, deixando-o desacordado. Voltei ao lugar onde deixara o apache, a nado, para que não ficassem vestígios no solo. Coloquei-o no bote, remei rio acima e ocultei o bote no meio das petunas, amarrando-o a uma raiz. Voltei, novamente a nado, e preparei-me para retomar o meu posto, na galeria.
Os dois partidos achavam-se ainda em negociações. Old Death mantinha seu ponto de vista de que uma busca na casa constituiria uma ofensa para ele e o fazendeiro. Quando participei, sucintamente, que o apache estava em segurança, ele começou a ceder, aos poucos; por fim, permitiu que cinco peles-vermelhas descessem ao sub-solo, a fim de se convencerem de que não se achava ali o índio procurado.
— Por que apenas cinco? — perguntou o chefe do bando. — Entre nós um é igual ao outro! O que um faz o outro deve também fazer. Old Death pode confiar em nós. Não tocaremos em nada. Nenhum dos guerreiros roubará coisa alguma.
— Pois bem. Vamos mostrar-lhe quanto somos generosos. Poderão entrar todos, para que se convençam de que falei a verdade. Mas exigimos que deponham as armas e aquele que desrespeitar as pessoas ou a propriedade, reteremos, aqui, para castigá-lo.
Os vermelhos, depois de uma curta conferência, aceitaram as condições. Depuseram arcos, flechas e facas e desceram um a um. Quando, pouco antes, saíra com Pedro, vira, lá fora, na planície, os vaqueiros bem montados e armados. Mantinham-se ainda na expectativa, porque o amo não lhes dera o sinal de ataque.
Old Death e o fazendeiro abriram todos os compartimentos aos comanchos. Dois dos nossos companheiros permaneceram na plataforma e os demais no corredor, de armas na mão, para reagir contra qualquer violência. Eu montava guarda exatamente defronte do quarto, em que estivera Inda-nischo. Foi o primeiro revistado. Era de ver a cara desapontada com que ficaram os índios ao darem não com “Bom Homem” mas com as duas damas que liam, deitadas nas redes.
— Uff! — exclamou o chefe, decepcionado — Aí estão as mulheres.
— Não é o apache? — perguntou Old Death, rindo-se. — Veja como aquele pele-branca mentiu. Mas entre e examine melhor o quarto.
O comancho percorreu-o com o olhar e respondeu:
— Um guerreiro não entra no quarto das mulheres. Aí não tem apache; se tivesse, os olhos do comancho o descobririam.
— Então procure-o nos outros quartos!
Assim fêz. Mais de uma hora durou a busca. Não tendo encontrado o mais leve indício do adversário, voltaram para o quarto. As senhoras tiveram de abandoná-lo. Examinaram tudo minuciosamente. Verificaram se não havia abertura no assoalho, levantaram as colchas e os colchões.
Finalmente convenceram-se de que, realmente, o índio não se achava oculto na fazenda. Quando o chefe manifestou tal convicção, disse Old Death:
— Eu lhe dizia, mas não quis dar crédito às minhas palavras. Confiou mais na palavra de um mentiroso do que no que lhe afirmava eu, que sou amigo dos comanchos. Quando falar com o “Castor Branco”, hei de levar-lhe a minha queixa.
— Pretende meu irmão pele-branca procurá-lo? Neste caso poderá ir conosco.
— Não é possível. Meu cavalo está cansado. Só poderei viajar amanhã e os meus irmãos vermelhos seguirão hoje.
— Não. Pernoitaremos aqui. O sol já vai desaparecendo e não cavalgamos à noite. Partiremos ao alvorecer e meu irmão pode acompanhar-nos.
— Está bem; mas não irei só. Tenho quatro companheiros.
— Esses também serão bem recebidos pelo “Castor Branco”. Creio que meus irmãos peles-brancas consentirão que pousemos aqui!
— Não me oponho a isso, — respondeu o “caballero” — pois lhe disse, há pouco, que sou amigo de todo o pele-vermelha, se ele me procura com espírito pacífico. E para lhes provar o que digo, vou presentear-lhes uma rês, para carneá-la. Queiram acender fogo e assar a carne!
Esse oferecimento impressionou muito bem os comanchos e convenceram-se de que haviam sido injustos conosco. Não tocaram em objeto algum e deixaram, em seguida, o recinto da casa, sem que a isso fossem intimados. Muito contribuiu para esse desfecho a consideração em que Old Death era tido entre aquela tribo. As escadas haviam sido arreadas e por ela desceram. Alguns peães armados ficaram de guarda. Não obstante a mudança que se operara no ânimo da indiada, não descuidamos em tomar precauções. Descemos com os comanchos, e os vaqueiros, postados na planície, vieram-nos ao encontro e receberam do señor Atanásio ordem de laçar uma rês para os índios. Todos os cavalos dos comanchos achavam-se à frente do muro. Eram vigiados por três guardas, os quais foram chamados a reunir-se ao bando. Um deles era o tal com quem eu lutara. Seus andrajos ainda se achavam molhados. Havia regressado para o seu posto e ainda não tivera tempo de avisar o chefe do ocorrido. Era o momento de fazê-lo e não deixou para depois. Parecia haver terminado a sua comunicação, quando seus olhos caíram em mim. Fêz, então, um movimento de cólera, apontou-me e disse ao chefe algumas palavras indianas, cuja significação eu não entendi. O último fixou-me com olhares ameaçadores, dirigiu-se a mim e disse:
— O jovem pele-branca andou nadando, há pouco, no rio, e arrojou este guerreiro ao solo?
Old Death comprou-me a parada, dando um passo à frente do chefe e perguntando-lhe que pretendia significar com suas palavras. O interrogado expôs-lhe o que se passava e Old Death, rindo-se, disse:
— Os vermelhos parecem não saber distinguir as fisionomias dos brancos!
— É este — exclamou a sentinela, em tom decisivo. — Vi-lhe o rosto, quando nadava de costas, com essa mesma roupa.
— Como? Nadou vestido? A sua fatiota está ainda molhada, logo a dele deveria estar também. Apalpe-o, porém, e verá que está bem enxuto.
— Ele tirou a roupa molhada e vestiu outra seca.
— Como poderia ele ter entrado? Não guameceram os guerreiros comanchos o portão? Ninguém pode entrar ou sair da casa sem ser por aquela escada, onde se achavam todos os peles-vermelhas. Como poderia, pois, o meu companheiro entrar ou sair da casa?
Os índios concordaram, inclusive a sentinela agredida. Quando o fazendeiro declarou que perambulava pela zona um bando da ladrões de cavalos, ao qual deveria pertencer o agressor, ficou o assunto completamente esclarecido. Apenas achava enigmática a circunstância de não haver o ladrão deixado pegadas na passagem. Para decifrar o enigma o chefe e o agredido deram uma batida pelas redondezas. Felizmente, porém, começava a escurecer, de modo que não lhes foi possível um exame minucioso do local. Old Death e eu fomos dar um passeio na praia. Chegamos até o local onde se achava escondido o bote com o índio. Old Death falou então a Inda-nischo, tão baixo que só eu e o apache podíamos ouvir:
— Aqui está Old Death com o jovem pele-branca que o ocultou. Conhece-me o cacique apache pela voz?
— Sim — respondeu Inda-nischo baixinho.
— Os comanchos estão crentes de que “Bom Homem” não se acha na fazenda. Ao romper do dia partirão. Mas meu irmão resistirá toda a noite dentro do bote?
— O apache resistirá, pois o perfume das águas o alivia e a febre já não voltará. Inda-nischo desejaria muito saber, que tempo Old Death e seu companheiro ficarão ainda aqui.
— Partiremos amanhã com os comanchos.
— Uff! Por que se unem com nossos inimigos?
— Andamos à procura de alguns peles-brancas que estão asilados no seu acampamento.
— E meus irmãos peles-brancas vão procurar, também, os guerreiros dos apaches?
— É bem possível.
— Desejo então dar ao jovem que arriscou a vida para salvar-me, um pergaminho, com o qual será sempre bem-vindo a nossas aldeias. Assim que anoitecer, tragam-me uma faca e um pedaço de couro branco. Antes do amanhecer poderão vir buscar o pergaminho.
— Satisfaremos o seu pedido. Deseja mais alguma cousa?
— Não. O apache está satisfeito. Que Manitou os proteja em todos os caminhos.
Regressamos. Ninguém desconfiara que estiváramos alguns minutos ao rio. O velho declarou-me:
— É caso raro receber um pele-branca um pergaminho dum índio. Tem muita sorte, sir. O pergaminho do “Bom Homem” pode lhe ser de muita utilidade.
— E o senhor se arriscará a levar-lhe a faca e o couro? Se os comanchos o surpreenderem, condena tanto a sua vida como a do apache.
— Tolice! Toma-me por algum colegial? Sempre sei o que posso e o que não posso arriscar!
O chefe do bando voltara. Não encontrara a pista do “ladrão de cavalos”.
A noite passou-se, sem novidades. Bem cedo, fui despertado por Old Death. Deu-me um pedaço de couro branco. Examinei-o e nada notei nele que se parecesse com letras ou quaisquer outros caracteres. Os dois lados estavam lisos.
— É isto o tal manuscrito? — perguntei. — Nada descubro nele.
— Também não é necessário. Mostre-o ao primeiro apache que encontrar e ele o decifrará. É um verdadeiro tesouro que tem nas mãos. As letras estão invisíveis porque “Bom Homem” não possuía tinta. O apache a quem o exibir porém, tingirá o couro e os caracteres aparecerão nitidamente. Evite a todo o custo, que os comanchos ponham os olhos sobre este couro! Tomá-lo-ão por amigo dos apaches. Agora vista a roupa de escoteiro e desça. Os comanchos, dentro de poucos minutos, estarão prontos para a viagem.
Os índios tomavam a refeição matinal, constituída do resto da carne que sobrara da véspera. Em seguida, levaram os cavalos ao rio para fazê-los beber, felizmente, porém, muito abaixo do local onde o apache estava escondido. Apareceu o fazendeiro com as senhoras. Quando viu nossos cavalos trazidos pelos vaqueiros, disse a Old Death, meneando a cabeça:
— Não são montarias para os senhores. Devem saber o valor que tem um bom cavalo! Nada tenho a ver com este señor Lange e seu filho, e muito menos ainda com o negro. O senhor, porém, é meu velho amigo, e, como esse jovem lhe caiu no coração e tomou-o à sua proteção, considero-o, também, como velho camarada. Vou presentear-lhes dois bons animais.
RUMO A RIO GRANDE DEL NORTE
Reconhecidos aceitamos o presente do estancieiro. Por sua ordem, os vaqueiros pegaram dois redomãos, os quais montamos em substituição aos nossos. Despedimo-nos, então, do señor Atanásio e das senhoras e partimos com os comanchos.
O sol ainda não surgira no horizonte e já havíamos atravessado o Elm-Ereek e nos dirigíamos a galope rumo oeste. Íamos à frente com o chefe dos comanchos. Eu cavalgava meio apreensivo, era como se a cada momento fosse receber um golpe de lança ou uma flecha nas costas. Confiei a Old Death os meus cuidados e este me tranqüilizou. Ainda não se falara a respeito de onde e quando encontraríamos o acampamento dos comanchos. Sabíamos tão somente que o chefe dos cinqüenta tinha ordem de aprisionar Inda-nischo, e entregá-lo a dez guerreiros para o conduzirem à aldeia, onde o esperava o poste dos martírios. Os quarenta restantes deveriam cavalgar, sem descanso, em direção ao rio Grande e lá seguir as pegadas do grosso da tropa, a fim de nele se incorporar. Como o “Castor Branco” soubesse por Gibson que Winnetou conseguira escapar vadeando o rio, concluíra que ele iria mobilizar a tribo; resolveu, em vista disso, atacar os apaches, antes de poderem eles tomar posição defensiva. A nós interessava, acima de tudo, surpreender Gibson ainda no acampamento dos comanchos.
Depois de duas horas de viagem chegamos ao local onde o grupo se separara na véspera. Ao sul do rio Grande del Norte estava o Eagle-Pass, com o forte Dunkan, que os vermelhos tinham de evitar. Duas horas depois atingíamos o deserto de Nueces, onde topamos com as pegadas dos comanchos; essas pegadas ainda não haviam sido atravessadas por outras e seguiam em linha reta; os comanchos não haviam sido percebidos. O solo, a pouco e pouco, apresentava-se com relva e finalmente vimos o mato do oeste emergir do horizonte, denunciando a proximidade do rio Grande del Norte.
— Uff! — exclamou o chefe do bando, como que aliviado. — Não encontramos um só pele-branca e atravessaremos o rio sem empecilhos de espécie alguma. Os cães apaches não tardarão em receber nossas visitas e vão ganir de susto ao avistar os nossos guerreiros.
Cavalgamos durante algum tempo sob plátanos, freixos, seringueiros, etc, e por fim atingimos o rio. O “Castor Branco” conduzira muito bem o seu bando. As pegadas seguiam sempre em linha reta até o ponto onde havia um passo. O rio Grande era muito largo, nesta zona; mas estava com pouca água. Bancos de areia movediça espalhavam-se pelo leito, dificultando a travessia e tornando-a perigosa.
Na margem havia sinais certos de que ali haviam acampado, na noite anterior. E quanta prudência não lhes custara a travessia! Ali estavam assinalados os pés dos guerreiros que tiveram de deixar o cavalo e vencê-la a nado; acolá ramos de arbustos a marcar os pontos acessíveis entre as dunas traiçoeiras. As canseiras dos viajantes da véspera poupavam-nos, agora, o trabalho de demarcar o caminho. Assim transpusemos o rio e entramos a percorrer uma estreita faixa de terra cercada de árvores e arbustos, depois da qual vinha um pouco de campo e, depois, novamente areal. Entramos então na zona compreendida entre o rio Grande e Bolson de Mapimi, região muito apropriada para os peles-vermelhas. Vasta planície arenosa, quebrada apenas, aqui e ali, por algumas touceiras de catos. Por ela continuaram as pegadas dos comanchos que se dirigiam para o oeste, com leve inclinação para o sul. Mas se eu alimentasse a esperança de alcançar os comanchos, ainda naquele dia, ter-me-ia enganado. Perto do meio dia atravessamos uma estreita, baixa e inculta cadeia de colinas, a qual era sucedida por idêntica planície arenosa.
Admirava-me da resistência dos cavalos indígenas. Passava já do meio-dia e eles não mostravam o menor sintoma de cansaço. Os animais dos Lange e do negro, penosamente, conseguiam acompanhar-nos. Ameaçava anoitecer, quando vimos, com espanto, que as pegadas, subitamente, mudavam de curso. Havia um quarto de hora, cortáramos a estrada que conduzia a S. Fernando; agora a pista seguia para o sul. Por quê? Old Death esclareceu-nos. Pela impressão dos cascos dos cavalos, via-se que os comanchos haviam feito alto ali, onde se lhes vieram reunir dois guerreiros. O velho apeou-se a examinar as pegadas e disse:
PEGADAS SUSPEITAS
— Aqui, dois homens índios, vieram ter com os comanchos. Trouxeram-lhes uma notícia, que fêz os guerreiros do “Castor Branco” mudarem de rumo. Nada mais nos resta que segui-los.
O chefe do bando apeou-se também, examinou as pegadas e concordou com o velho. Até o escurecer cavalgamos pelo rasto dos guerreiros comanchos. Depois, quando entrou a noite, fizemos alto. O meu cavalo bufou e quis adiantar-se, talvez por pressentir a proximidade de água. Daí a minutos, chegávamos, realmente, a um rio, onde paramos.
Depois da marcha do dia, era realmente um alívio para cavaleiros e cavalos, encontrar uma boa aguada. Em pouco tempo estava escolhido o local para o acampamento; os vermelhos distribuíram a guarda e deixaram os cavalos pastarem, sob vigilância. Nós, os brancos, sentamo-nos juntos. Old Death dava tento à memória, a fim de identificar o rio e chegou à conclusão de que era o Morelos que deságua no rio Grande, na altura do forte Duncan. No dia seguinte, descobrimos que nos achávamos num excelente curso dágua, o qual, pouco acima, os comanchos haviam atravessado, fazendo os cavalos nadar. Fizemos o mesmo, seguindo-lhes a pista. Ao meio-dia, vimos para o oeste, elevarem-se vários morros. Old Death quedou-se pensativo. Interrogado por mim, respondeu:
— Esta história não me agrada. Não posso compreender como o “Castor Branco” se aventurou a vir para esta zona. Sabe, o senhor, que linda região é esta?
— Sim; é a Bolson de Mapimi.
— E conhece o tal deserto?
— Não.
— Este Mapimi é o reduto mais perigoso desta região. Cheio de ciladas, perambulam constantemente hordas e hordas de selvagens que se empenham em luta encarniçada. Lá em cima, ao norte, entre o rio Grande e o Pecos, está um território dos apaches, que dominam, também, a vasta zona compreendida do Gila para o noroeste. Os comanchos vão cair numa armadilha da qual não escaparão.
— Ai de nós! Iremos de roldão.
— Não tenho muito receio dos apaches. Nada lhes fizemos e espero que não nos tratarão com hostilidade. Em caso de necessidade, apelará para o seu pergaminho.
— Mas não é nosso dever avisar os comanchos?
— Experimente, sir! Diga dez vezes a um tolo o que ele é e ainda não acreditará. Expus, há pouco, o meu modo de pensar ao chefe do bando e ele escarneceu do conselho e quase, direi, zangou-se comigo. Disse que era dever seu seguir as pegadas do “Castor Branco” e, se não o quiséssemos acompanhar, que cavalgássemos para onde bem entendêssemos.
— Grosseiro!
— Claro. Os comanchos não freqüentaram, como o senhor, aulas de bom tom... Sabe lá o que não está preparado para nós lá em cima no reduto dos apaches! Atravessamos as fronteiras. Se voltaremos só Deus sabe!
Atravessando o Mapimi
Eu, que estava firmemente convencido de capturar Gibson ainda no território dos Estados Unidos, era, agora, obrigado a persegui-lo no México e numa das mais perigosas regiões. O caminho que tencionávamos primeiramente, tomar, a fim de chegar a Chihuahua, passava pelo norte do deserto de Mapimi e era constituído, em sua maior parte, de campo livre. Mas, agora, que nos desviáramos para o sul, aguardavam-nos perigos talvez invencíveis. Com os pensamentos sombrios, veio também a fadiga física, a qual, aliás, até os comanchos pareciam não poder resistir. Desde que saíramos da Hacienda del Caballero, viajáramos em verdadeira marcha forçada. Os vermelhos haviam esgotado a carne que formava a sua provisão e a nós pouco restava do que o caballero nos dera para a viagem. O terreno cada vez se elevava mais. Atingíamos os morros avistados ao meio-dia. Tudo era pedra e nenhuma planta ali vicejava. Cavalgávamos sempre para o sul. O calor era ainda mais intenso do que nas planuras que antes atravessáramos. Os cavalos tornavam-se cada vez mais lerdos. Conforme evidenciavam as pegadas, as tropas do “Castor Branco” por ali também passaram muito vagarosamente. Acima das nossas cabeças voejavam urubus, que já nos acompanhavam há horas, como se esperassem que o nosso esgotamento lhes proporcionasse alguma presa. A uma curva do caminho, ao sul, o horizonte apareceu mais escuro. Pareciam morros cobertos de mata. Os animais aceleraram o passo e a fisionomia de Old Death reanimou-se.
— Agora, descobri onde estamos — disse ele. — Calculo que nos vamos aproximando do rio Sabina, que desce pelo Mapimi. Se os comanchos resolveram subir-lhe o curso, a miséria vai ter um fim. Onde existe água, existe mato, relva e caça, mesmo se tratando duma zona tristíssima como esta. Vamos esporear os cavalos. Quanto mais se esforçarem agora, tanto mais cedo conseguirão descansar.
As pegadas agora se dirigiam para leste. Alcançamos um pequeno e estreito desfiladeiro e, quando o atravessamos, vimos diante de nós um vale verdejante banhado por um arroiozinho. Galopamos a toda brida para o arroio. Depois que os animais beberam montamos novamente. O arroio desaguava, pouco adiante, num arroio maior e cujo curso acompanhamos. Este nos conduziu a uma campinazinha, onde vicejavam alguns arbustos. Anoitecia. Urgia acampar. O chefe do bando dos comanchos achou que devíamos cavalgar um pouco mais, até encontrarmos árvores. E nós nos submetemos à sua vontade. O caminho pedregoso martirizava os cascos dos pobres animais. Estava já quase escuro, quando subitamente ouvimos uma voz a que o chefe respondeu amavelmente, pois a pronúncia era comancho. Fizemos alto. Old Death, com o condutor do bando, cavalgaram para a frente, e o escoteiro voltando, em seguida, disse-nos:
— Os comanchos estão acampados pouco adiante. Pelas suas pegadas ainda não contávamos encontrá-los. Mas não se abalançaram a continuar, sem reconhecer a zona. Por isso acamparam aqui e expediram os batedores, que ainda não voltaram. Avancem. Verão logo as fogueiras.
— Mas, numa expedição de guerra, os índios não costumam acender fogueiras, quando acampam — observei.
— No caso presente, não há perigo; o terreno elevado oculta as chamas. Demais, como expediram batedores e estes ainda não regressaram, têm certeza de que não há inimigos pelas cercanias.
NO ACAMPAMENTO DOS COMANCHOS
Avançamos. Atravessamos um desfiladeiro, na saída do qual acampava o exército dos comanchos. Umas dez fogueiras cercavam o acampamento, fogueiras de fogo brando, como é hábito dos vermelhos fazerem, quando se acham em terreno suspeito. O pouso dos comanchos ficava na esplanada dum vale cercado de elevações, circunstância vantajosa para a sua segurança.
Os peles-vermelhas galoparam diretamente ao acampamento, ao passo que a nós ordenaram que esperássemos, até que alguém nos viesse acompanhar. Enfim veio um pele-vermelha, a fim de conduzir-nos à presença do cacique, o qual estava sentado junto à fogueira do centro, na companhia de dois guerreiros. “Castor Branco” tinha os cabelos grisalhos e compridos, vendo-se espetadas no cocô três penas de águia. Usava sapatilhas indianas, calças de pano escuro, colete e casaco claros. Tinha uma arma de dois canos ao lado, no chão, e, à cintura, uma faca e uma velha pistola. Comia um pedaço de carne, que pôs do lado. O ambiente estava saturado de cheiro de carne de cavalo assada.
Ainda nem havíamos apeado, quando já se fechara um círculo de guerreiros em torno de nós, no meio dos quais haviam diversos peles-brancas. Tomaram logo conta dos nossos cavalos, os quais retiraram do local. Como Old Death não opôs resistência a essa atitude, não a considerei perigosa para nós. O cacique levantou-se juntamente com os dois companheiros. Dirigiu-se a Old Death, a quem estendeu a mão, dizendo em tom sério, porém, amável.
— Meu irmão Old Death fêz uma surpresa aos guerreiros comanchos. Nunca esperávamos encontrá-lo nesta zona. É bem-vindo e guerreará ao nosso lado, contra os cães apaches.
Para que também nós o compreendêssemos, ele falou no dialeto misto (inglês, espanhol e comancho). Old Death respondeu-lhe:
— Manitou guia sempre seus filhos, vermelhos e brancos, por excelentes caminhos. Feliz do homem que, nessas alturas, encontra um amigo, em cuja palavra ele se pode fiar. O “Castor Branco” fumará, também, com os meus companheiros, o “cachimbo da paz”?
— Os seus amigos também são meus amigos. A quem o senhor estima, estimarei também eu. Queiram eles sentar-se a meu lado e beber a paz do calumet do cacique dos comanchos.
Old Death sentou-se e nós fizemos o mesmo. Apenas o negro se afastou para o lado, onde se sentou, na relva. Os vermelhos mantinham-se no círculo mudos e imóveis como estátuas. Não me era possível distinguir as fisionomias dos peles-brancas, dada a parca claridade produzida pela chama das fogueiras. Oyo-koltsa desamarrou o calumet que trazia pendente do pescoço, encheu-o de fumo e acendeu-o. Repetiu-se a mesma cerimônia do encontro com o filho do cacique. Só depois disso é que adquirimos a certeza de não alimentarem os comanchos propósitos hostis contra nós.
Conforme concluímos da conversa do cacique, o chefe do bando dos cinqüenta já lhe relatara o que sucedera conosco. Pediu a Old Death que contasse também ele o desenrolar dos acontecimentos na fazenda do caballero. O velho o fêz, mas de tal modo, que o cacique não pudesse desconfiar nem dele, nem do señor Atanasio.
O velho cacique ficou pensativo, por algum tempo, e depois disse:
— Tenho que crer nas palavras do meu irmão. Mesmo que eu quisesse duvidar, delas nada deduzo que comprove seu propósito em ludibriar-me. Mas também no outro pele-branca, que já há dias está em nosso acampamento, devo crer; ele não tinha nenhuma necessidade de mentir aos comanchos, procedimento, aliás, que pagaria com a vida. Há três dias que ele se acha em nosso acampamento e já se teria retirado, se nos houvesse dito uma inverdade. Assim, pois, resta-me a conclusão de que ou ele ou o meu irmão Old Death se enganou.
Com essas palavras, o cacique revelava uma extraordinária visão das cousas. Old Death deveria portar-se com muita prudência ao falar-lhe. Facilmente poderia o cacique expedir outro contingente para dar uma busca mais rigorosa na casa do fazendeiro, a qual seria assaltada de surpresa e à noite. O melhor seria inventar alguma história que robustecesse a hipótese do engano e que este houvesse partido de Gibson. Parece que do mesmo modo havia pensado Old Death, pois disse ao cacique:
— Um engano houve, é certo; mas não de minha parte e sim da parte do outro pele-branca. Old Death nunca se enganou na sua vida. O meu irmão pele-vermelha que o diga.
— Sim, mas de que modo poderia ele ter-se enganado?
— Ora, da mesma maneira como o “Castor Branco” se enganou com ele e seus companheiros, que não são amigos dos comanchos.
O cacique tornou-se sério e retrucou:
— Prove-o. Palavras não bastam! Se eles, com quem fumei o “cachimbo da paz”, enganaram-me, terão que morrer!
— Então até o calumet fumou com eles?! Se eu estivesse aqui, o impediria de fazê-lo. Vou já apresentar-lhe a prova que exige. Diga-me do lado de quem estão os comanchos? Será do presidente Juarez?
O interrogado fêz um sinal de menosprezo e respondeu:
— Juarez é um pele-vermelha descascado que mora em uma casa e leva a vida dos brancos. Desprezo-o. Os guerreiros comanchos empenharam sua valentia ao grande Napoleão que lhes dá, em paga, armas, cavalos e barracas, entregando-lhes, ainda, os apaches nas mãos! Também os peles-brancas que aqui estão conosco são partidários de Napoleão.
— Eis aí a grande mentira. Com esta falsa declaração, eles o iludiram. Vieram para o México, a fim de servirem a Juarez. Aqui estão os meus companheiros de testemunhas. Sabe a quem o “Grande Pai” (•), em Washington, deu o seu apoio?
— Sim, a Juarez.
_________________________
(•) O presidente da República.
— E sabe também que do lado de lá das fronteiras se recrutam soldados, para enviar a Juarez? Pois em La Grange mora um mexicano de nome Cortesio. Nós mesmos estivemos em sua casa e esses dois cavalheiros foram seus vizinhos e amigos. Aquele cavalheiro mesmo lhes disse, e a nós também, que ele encaminhava gente para as tropas de Juarez e que, no dia anterior, enviara esses brancos, que agora se acham aqui, para o México, a fim de servirem nas forças do “presidente indígena”. O meu irmão é inimigo de Juarez e, no entanto, fumou com seus soldados o “cachimbo da paz”, porque eles lhes mentiram.
Os olhos do cacique fuzilavam de cólera. Quis falar, mas Old Death prosseguiu:
— Agora, ouça o que me convém. Como lhe disse, esses peles-brancas são soldados de Juarez. Chegaram na fazenda do señor Atanásio, o qual tinha como hóspede, nesse dia, um comandante de tropas francesas. Se os peles-brancas tivessem reconhecido o homem, te-lo-iam morto. Por isso ele se fingiu doente e recolheu-se ao leito. Pintaram-lhe depois o rosto para dar-lhe a aparência de índio. Quando os peles-brancas o viram e perguntaram quem era, foi-lhes respondido que se tratava de Inda-nischo, o cacique dos apaches.
O velho cacique arregalou os olhos. Acreditou nas palavras do escoteiro, mas teve ainda o cuidado de perguntar:
— Mas por que deram exatamente este nome?
— Porque os apaches se colocaram ao lado de Juarez. Assim, o fazendeiro teve a inteligência de citar um nome que lhes soasse como amigo e correligionário. Acresce que o comandante francês era idoso e tinha os cabelos grisalhos, o mesmo se dando com Inda-nischo, razão por que o fazendeiro se valeu do seu nome.
— Uff! Agora compreendo tudo. Esse señor deve ser um homem muito inteligente, pois concebeu e executou um hábil ardil. Mas, onde estava o comandante francês, quando os meus guerreiros varejaram a casa do señor Atanásio? Eles não o viram.
— Já se tinha ido embora. Vê, pois, que a declaração do fazendeiro foi um mero ardil. Os peles-brancas acreditaram-no. Depois toparam com os comanchos, que sabiam ser amigos dos franceses e, para conquistar a confiança dos seus guerreiros, falsamente se deram também como tais.
— Acredito, mas preciso ter em mão outras provas de que são partidários de Juarez; do contrário não posso castigá-los, pois com eles fumei o “cachimbo da paz”.
— Apresentar-lhe-ei a prova mais segura! Antes disso, porém, devo preveni-lo de que, entre ele, há dois que precisamos prender. Portanto eles nos serão entregues.
— Prendê-los, por quê?
— São nossos inimigos e cavalgamos já há vários dias, em sua perseguição.
Foi a melhor resposta. Se Old Death houvesse contado uma história comprida a respeito de Gibson e Ohlert, não conseguiria o que obteve apenas com as simples palavras “são nossos inimigos”. O efeito se notou logo, pois o cacique respondeu apressado:
— Se eles são inimigos seus, também o serão nossos; assim que lhes anularmos os efeitos decorrentes de havermos fumado o “cachimbo da paz”, vou presentear-lhes, então, os dois.
— Bravos! Agora mande o chefe dos peles-brancas vir até cá. Quando eu falar com ele, o senhor verá que tenho razão, afirmando que são partidários de Juarez.
O cacique fêz um aceno. Aproximou-se dele um guerreiro e recebeu a necessária ordem. O vermelho afastou-se e dirigiu-se a um dos peles-brancas a quem disse algumas palavras. Depois, este último, em atitude marcial, veio ter conosco. Era uma figura possante e usava barba cerrada.
— Que há? — perguntou, dirigindo-me um olhar hostil. É que eu certamente já fora reconhecido por Gibson, que o avisara de que boas coisas não havia a esperar. Eu estava curioso por ver como Old Death descalçaria aquela bota. O velho e manhoso escoteiro encarou o homem com olhares cheios de amabilidade e respondeu com toda cortesia:
— Trouxe-lhe lembranças de D. Cortesio, de La Grange, señor!
— Conhece-o, então? — perguntou o interrogado sem suspeitar que estava beliscando num anzol perigosíssimo!
— Se o conheço?! — respondeu o velho. — Somos amigos de longos anos. Infelizmente cheguei tarde à casa dele e já não os pude acompanhar. Mas ele nos deu a direção em que os encontramos e aqui estamos.
— Realmente? Então deve ser grande amigo seu. Que direção lhe deu?
— O passo entre o Las Moras e Moral e depois por Baía e Tabal, rumo a Chihuahua. Os senhores afastaram-se um tanto dessa rota!
— Porque encontramos os nossos amigos comanchos.
— Seus amigos? Eu julguei que os guerreiros comanchos fossem adversários dos senhores!
O homem estava visivelmente contrariado; tossiu e pigarreou, a fim de dar um sinal a Old Death, mas este fêz que não o compreendia e continuou:
— Os senhores combatem ao lado de Juarez e os comanchos ao lado dos franceses.
Então o mexicano definiu-se, dizendo:
— Engana-se, señor! Também nós estamos ao lado dos franceses.
— E conduzem aí recrutas dos Estados Unidos, com destino ao México?
— Sim, mas para as tropas de Napoleão.
— Ahn! Então o señor Cortésio é agente de Napoleão?
— Naturalmente! De quem então havia de ser?
— Julgo que de Juarez.
— Absolutamente, não.
— Bem. Agradeço-lhe este esclarecimento, señor! Pode, agora, retirar-se para o seu lugar.
Os músculos de sua face contraíram-se de cólera. Deveria ele permitir que o escoteiro o tratasse como a um subordinado?
— Señor! — retrucou — Com que direito ordena nesse tom que eu me vá embora?
— É que não pode ficar aqui, pois ao redor dessa fogueira acham-se sentados exclusivamente caciques, pessoas distintas, que não se nivelam com o senhor.
— Sou oficial!
— De Juarez? — perguntou-lhe depressa Old Death.
— Sim... não, não, de Napoleão, conforme já disse.
— Oh! O senhor agora deu com a língua nos dentes. Um oficial, numa situação dessas, jamais se “enganaria” desse modo. Estamos entendidos! Pode retirar-se.
O oficial quis ainda dizer alguma coisa, mas o cacique fêz-lhe um enérgico sinal para se retirar, sinal a que não pôde deixar de obedecer.
— Afinal, que diz agora, meu irmão? — perguntou Old Death ao cacique.
— Sua fisionomia o traiu, não há dúvida. — respondeu “Castor Branco”. — Contudo, a prova ainda não é suficiente.
— Mas está convencido de que ele é oficial e que esteve na casa do señíor Cortésio, que o mandou para aqui?
— Sim, isso ele confirmou.
— Portanto deve pertencer ao partido do qual Cortésio é agente.
— É claro. Prove-me que Cortésio é agente de Juarez que me bastará!
— Eis aqui a prova!
O escoteiro tirou do bolso o passe que se achava assinado por Juarez, apresentou-o ao cacique, dizendo:
— Para nos certificarmos de que Cortésio trabalhava para Juarez e de que todo o pele-branca que o procura é do mesmo partido, procuramo-lo e nos portamos como se quiséssemos, também, nos encorporar às hostes daquele caudilho. Ele aceitou os nossos serviços e nos forneceu, a cada um de nós, um passe assinado por Juarez. Meu companheiro poderá mostrar-lhes, também, o seu.
O cacique pegou do passe e o examinou. Uma risadinha de fúria brotou-lhe dos lábios.
— O “Castor Branco” não estudou a arte dos peles-brancas de falar no papel — disse. — Mas contudo conhece muito bem esse desenho aqui embaixo; é a assinatura de Juarez. E entre os meus guerreiros, há um jovem, meio-sangue, o qual, quando menino, esteve muito tempo com os peles-brancas e sabe fazer o papel falar. Vou chamá-lo.
Chamou em voz alta. Apareceu, então, um rapaz com o rosto pintado de branco, o qual, a algumas palavras do cacique, pegou o passe, ajoelhou diante da fogueira e leu, ao mesmo tempo que traduzia o texto do passaporte. A fisionomia de Old Death estava risonha. Quando o semi-selvagem terminou a leitura, entregou o documento ao cacique, visivelmente orgulhoso de haver desempenhado tal missão, e retirou-se.
— Quer também ver o passe do meu companheiro? O cacique meneou a cabeça em sinal negativo.
— Afinal, convenceu-se o meu irmão de que esses peles-brancas lhes mentiram e que são seus inimigos?
— Agora sim! Vou reunir imediatamente os meus guerreiros para deliberarmos a respeito.
— Devo tomar parte na reunião?
— Não. Meu irmão é um conselheiro inteligente e valoroso guerreiro; mas não precisamos dele, porque já provou o que desejava provar. O que agora vai suceder, compete aos comanchos exclusivamente resolver, aos comanchos que foram infamemente iludidos.
— Mais uma pergunta. Por que os comanchos se desviaram tanto para o sul, vindo para as alturas do deserto?
— Os comanchos pretendiam cavalgar mais para o norte, mas descobriram, depois, que Winnetou, à frente duma grande horda de guerreiros, seguiu para o rio Conchos e que, em conseqüência, as aldeias dos apaches desta zona estão desguarnecidas. Desviamo-nos, então, para cá, e vamos fazer uma presa como nunca fizemos igual.
— Winnetou no rio Conchos! Hum! Tal notícia é de fonte autorizada? Quem lhe deu? Talvez os dois índios que, vindos do norte, encontraram com sua tropa fazendo-a mudar de rumo?
— Exatamente. Viram as pegadas.
— Sim; por isso pergunto. Que índios eram?
— São da tribo dos topias, pai e filho.
— Ainda estão aqui e permite-me que fale com eles?
— Permito a meu irmão fazer tudo que lhe fôr do agrado.
— E também falar com os dois peles-brancas que me vai entregar?
— Mas quem lhe impedirá de fazê-lo?
— Bem. Então mais um pedido: dá licença que eu examine o acampamento? Estamos numa zona inimiga e preciso ver se estamos suficientemente defendidos.
— Faça-o, embora seja desnecessário. “Castor Branco” tudo já empreendeu neste sentido. Está tudo em ordem. As sentinelas estão distribuídas e os batedores em campo.
FALANDO COM OS FUGITIVOS
A amizade do cacique para com Old Death devia ser sincera e grande; do contrário, ofender-se-ia por pretender o escoteiro examinar, em pessoa, as medidas de defesa por ele tomadas ao acampar. Os dois comanchos que se achavam ao lado do cacique, e que se mantiveram em silêncio todo esse tempo, ergueram-se e saíram, em atitude circunspecta, a fim de reunir os guerreiros para a deliberação. O círculo que nos cercava desfez-se e os comanchos tomaram todos lugar ao redor da fogueira. Os dois Langes e Sam sentaram-se defronte de uma das fogueiras e os comanchos lhes distribuíram três bons pedaços de carne de cavalo assada. Old Death, porém, tomou-me do braço e encaminhou-se para a fogueira, ao redor da qual estavam os peles-brancas sentados sozinhos. Quando o oficial nos viu chegar, levantou-se, deu dois passos ao nosso encontro e disse intempestivamente:
— Que significa, sir, o exame a que houve por bem submeter-me há pouco?
O velho olhou-o com amabilidade e respondeu:
— Isso lhe dirão, depois, os comanchos. Demais, entre os senhores há alguns ladrões de cavalos; não fale, pois, com arrogância a Old Death! Tenho todos os comanchos que agora são contra os senhores, do meu lado. Um leve sinal que eu lhes faça e os senhores estarão perdidos.
Ditas estas palavras Old Death afastou-se sobranceiramente do oficial, para dar lugar a que eu falasse com ele. Gibson e William Ohlert estavam, igualmente, sentados ao redor da mesma fogueira. O último se achava em deplorável estado: os trajos em frangalhos e o cabelo em desalinho. As faces estavam macilentas e os olhos fundos nas órbitas. Parecia não ver e nem ouvir o que se passava em torno. Indiferente a tudo, com o lápis pousado sobre um papel, que apoiava nos joelhos, donde não desprendia os olhos. Deste nada conseguiria saber; aproximei-me, então, de Gibson:
— Encontramo-nos, afinal, Mr. Gibson! Espero que desta vez permaneçamos por mais tempo juntos.
Ele riu-se sardônicamente e disse:
— Com quem está falando, sir?
— Com o senhor! Não há dúvida.
— Engana-se, pois não me chamo Gibson. Não é meu este nome.
— Não esteve em Orleans, onde fugiu ao avistar-me?
— O cavalheiro deve estar desequilibrado. Já lhe disse que não me chamo Gibson.
— É claro que aquele que usa tantos nomes, como o senhor, facilmente poderá renegar a um deles. Em Nova Orleans não se apresentou com o nome de Clinton? E em La Grange não disse chamar-se Gavilano?
— Este é o meu verdadeiro e legítimo nome. Que pretende, afinal, de mim? Nada quero com o senhor. Deixe-me em paz! Não o conheço!
— Sei disso! A um policial nunca se conhece, quando não se tem a consciência limpa. Com evasivas o senhor não me escapa. Agora terminou a representação do seu papel. Não me abalei de Nova Iorque até aqui, para expor-me ao ridículo. Daqui em diante, terá de acompanhar-me para onde eu quiser.
— Oh! E se me negar a fazê-lo?
— Amarrá-lo-ei, neste caso, elegantemente, ao lombo do cavalo, o qual, penso, obedecerá.
Ele então levantou-se, sacou do revólver e gritou:
— É demais. Diga-me mais uma dessas palavras, e o diabo... Não pôde continuar. Old Death, que se achava por trás dele, desferiu-lhe um coronhaço no braço, obrigando-o a deixar cair o revólver.
— Não fale com tanta arrogância, Gibson! Aqui há gente que está em condições de fazê-lo calar — disse-lhe o escoteiro.
Gibson esfregou o braço atingido, virou-se e disse:
— Senhor, pretende que lhe crave a faca nas costelas? Pensa, talvez, que por chamar-se Old Death eu o temo?
— Não, meu jovem, não deve temer-me, mas sim obedecer-me. Se disser mais uma palavra que me desagrade, mimoseá-lo-ei com uma bala da minha espingarda. E este cavalheiro que o acompanha, poderá então nos agradecer o havermos livrado da companhia dum canalha como o senhor.
A atitude do escoteiro e o tom imperioso de sua voz não deixaram de exercer influência sobre Gibson. Este respondeu muito mais calmo:
— Mas não sei, afinal, que desejam de mim! Estão me confundindo com algum outro!
— É pouco provável. O senhor tem os traços tão característicos de ladrão, que dificilmente poderá ser confundido com outro. E além disso a testemunha do seu crime está aí sentada a seu lado.
O escoteiro referia-se a Ohlert.
— Ele? Uma testemunha contra mim? — perguntou Gibson. É mais uma prova de que me confundem com outra pessoa. Interrogue-o e verá que se engana.
Coloquei a mão sobre o ombro de William e chamei-o pelo nome. Ergueu, lentamente, a cabeça, fixou-me com olhos espantados e de sua boca não saiu uma só palavra.
— Mr. Ohlert, sir William, não me ouve? — insisti com o moço — Seu pai mandou-me procurá-lo.
Continuou com os olhos fixos em mim, porém, sempre silenciosa Gibson dirigiu-se-lhe, então, ameaçadoramente:
— O teu nome. Ele quer saber! Anda, responde!!
— O rapaz virou-se para Gibson e, medroso, respondeu à meia-voz:
— Chamo-me Guillelmo.
— Qual a sua profissão?
— Poeta.
Continuei o interrogatório:
— Chama-se Ohlert? Não é de Nova Iorque? Não tem pai?
A todas essas perguntas ele respondia negativa e inconscientemente. Soube depois que perdera a memória. Era certo que, depois que caíra nas mãos de Gibson, o seu espírito mais se desequilibrara.
— Eis o que adiantou a testemunha — disse o malvado, rindo-se regozijado. — Ela comprovou que os senhores estraram em caminho errado. Portanto, tenham a fineza de não nos amolarem daqui por diante.
— Vou fazer-lhe ainda uma pergunta — disse eu. — Talvez a memória consiga vencer as fantasias de que o senhor lhe povoou o cérebro doentio.
Ocorrera-me uma idéia! Trazia ainda na carteira o recorte do jornal com a poesia de Ohlert. Li, pausadamente e em voz alta, o primeiro verso. Esperava que a leitura de sua produção literária o chamasse à realidade. Mas ele continuava a olhar fixamente diante de si. Li o segundo verso, também sem resultado. Depois o terceiro:
Conheces tu a Noite atroz que invade a mente
e apaga a Consciência, inexoravelmente?...
Noite escura, sem luz, sem ar, sem calma,
— venenosa serpente a enlaçar-nos a alma —
O’! levanta, e por sobre os teus escombros, chora,
porque essa noite cruel nunca há de ter aurora...
As duas últimas estrofes eu as lera em voz mais alta do que as anteriores. Ele olhou-me com os olhos esbugalhados, proferiu um grito ensurdecedor, e avançou contra mim para arrancar-me a folha da mão. Permiti que o fizesse. Em seguida, curvou-se diante da fogueira e leu ele mesmo a poesia, em voz alta, do começo ao fim. Depois levantou-se e gritou em tom triunfante, de modo a ecoar, longe, no silêncio do vale:
— Versos de Ohlert, de William Ohlert, meus versos! Sou eu este Ohlert e não tu; tu não, mas eu.
As últimas palavras eram dirigidas a Gibson. Uma suspeita terrível me invadiu o espírito. Teria Gibson se apossado da legitimação de Ohlert e far-se-ia passar, pela sua vítima, apesar de mais velho? Seria certo que... Minhas reflexões foram, porém, interrompidas pelo cacique que, esquecendo a sua dignidade e que o conselho estava reunido, caiu-nos como uma bomba e arrojou William ao solo, dizendo:
— Cale-se, cão! Quer que os apaches nos ouçam? Chama a luta e a morte para o nosso acampamento!
William Ohlert proferiu um incompreensível queixume e fitou o cacique com olhos esbugalhados. O pouco de lucidez de espírito que readquirira desapareceu. Tomei-lhe da mão o recorte do jornal e o guardei novamente na carteira. Talvez me servisse, ainda, mais tarde, para fazê-lo voltar outra vez à realidade.
— Não o encolerize! — pediu Old Death ao cacique. — O seu espírito está imerso nas trevas do esquecimento. Ele agora ficará quieto. Diga-me, agora, se estes aí são os dois índios topias de que me falou.
Referia-se aos dois índios que se achavam sentados junto da fogueira com os brancos.
— Estes mesmos — respondeu o cacique. — Não compreendem muito bem os comanchos. Deve falar-lhe no dialeto misto (inglês, espanhol e comancho). Mas providencie, para que o pele-branca, de espírito anormal, não torne a fazer algazarra; do contrário, sou obrigado a pôr-lhe uma mordaça.
Isto dito o comancho voltou para a fogueira, onde estava reunida a Assembléia dos Sábios. Old Death não se afastou. Encarou os dois índios com olhares aguçados e perscrutadores e perguntou ao mais velho:
— Meus irmãos vieram da aldeia dos topias? Os seus guerreiros são amigos dos comanchos?
— Sim — respondeu. — Vamos emprestar nossas machadinhas aos guerreiros comanchos.
— Mas como se explica à circunstância de procederem do norte a pegada dos meus irmãos, rumo em que, aliás, não moram os topias e sim os llaneros, que são inimigos dos comanchos?
Essa pergunta pareceu haver contrariado os índios. Depois de algum tempo, ele respondeu:
— Meu irmão faz-me uma pergunta tão fácil que ele mesmo poderá responder. Desenterramos o “machado da paz” entre nós e os apaches e estivemos no norte para fazer um reconhecimento no ponto de parada dos mesmos.
— E que encontraram lá?
— Vimos Winnetou, o maior cacique dos apaches. Ele partiu com todos os seus guerreiros em expedição de guerra para o rio Conchos. Voltamos, então, a fim de cientificarmos os nossos do fato, para que eles se apressem a atacar as aldeias dos apaches, agora que estão todas desguarnecidas. Em caminho, encontramos os guerreiros comanchos e os conduzimos para aqui, a fim de atacarem, também, os apaches, pois, próximo daqui, há uma aldeia apache.
— Os comanchos ficarão gratos por isso. Mas, desde quando deixaram os topias de serem guerreiros honestos e leais?
Era evidente que o velho suspeitava de alguma coisa. Falava-lhes cordialmente mas, dava às palavras um colorido que usava, sempre que alimentava intenção oculta de surpreender alguém. Para os dois topias, as suas perguntas estavam ficando inconvenientes. O jovem fulminava-o com olhares ferozes. O mais velho esforçava-se por dar respostas amáveis; contudo lia-se-lhe a contrariedade no semblante.
— Por que pergunta, meu irmão de pele-branca, quando deixamos de ser honestos e leais? Que motivo tem para duvidar?
— Não tenho a intenção de ofendê-los. Mas, digam-me cá: por que estão aqui isolados e não se sentam junto dos comanchos na qualidade de aliados e hóspedes que são?
— Old Death está avançando demais nas suas perguntas. Aqui nos sentamos, porque assim queremos! Não devemos dar satisfações de nossas preferências, a quem quer que seja.
— Perfeitamente. Mas, com essa atitude, dão lugar a que se suponha serem desprezados pelos comanchos. Parece que eles querem auferir vantagens dos topias, mas os tratam como inferiores.
Fora um insulto. O vermelho urrou:
— Cale-se se não quer entrar em luta. Estivemos sentados com os comanchos e depois viemos aqui para a companhia dos peles-brancas, a fim de com eles aprendermos alguma cousa. Ou é, talvez, proibido a gente informar-se do que se passa nas zonas e nas cidades dos brancos?
— Absolutamente não! Mas eu, no seu lugar, andaria com mais prudência. Os seus olhos já viram a neve de muitos invernos e, portanto, deve ter compreendido muito bem o que pretendo dizer.
— Se não compreendi, então, diga-me; fale com mais clareza — respondeu o índio com ironia.
Old Death avançou um passo, abaixou-se e disse energicamente:
— Fumaram com os comanchos o “cachimbo da paz”?
— Claro que sim!
— Então são obrigados a fazer, agora, exclusivamente aquilo que lhes fôr vantajoso.
— E acha que não o faremos?
Os dois mediram-se com orgulho. Parecia que lutavam com os olhos. Old Death respondeu:
— Noto que me compreendeu e me adivinhou o pensamento. Se o dissesse em voz alta, os dois irmãos vermelhos estariam perdidos.
— Uff! Uff! — exclamou o índio velho, levando a mão a cinta, para puxar a faca. Também seu filho ergueu-se, ameaçador, e tirou a machadinha da cintura. Old Death, porém, respondeu a essas ameaças com um grave sacudir de cabeça:
— Estou convencido de que não ficarão muito tempo junto dos comanchos. Quando voltarem para a tribo que os mandou aqui, digam que somos seus amigos. Old Death estima todo o pele-vermelha, sem cogitar da tribo a que pertence.
O velho índio perguntou-lhe entre dentes:
— Acha então que não pertencemos à tribo dos topias?
— Como é imprudente o meu irmão, fazendo-me tal pergunta! Oculto o meu pensamento, justamente para não me tornar seu inimigo. Por que trair-se a si mesmo? Tem aqui quinhentas probabilidades de morrer. A mão do vermelho movia-se com a faca, como se a quisesse cravar no seu interlocutor.
— Diga-me o que nos considera! — intimou o índio.
O escoteiro pegou o índio pelo braço, em cuja mão se achava a faca, levou-o para o lado e cochichou-lhe, de modo que eu pudesse ouvir:
— Os senhores são apaches!
O índio recuou um passo, desprendeu o braço da mão do escoteiro, preparou a faca para o golpe e disse:
— Mente, cão!
Old Death não fêz o menor movimento para se desviar do golpe, E continuou:
— Quer matar um amigo de Winnetou?
Não sei se foi a palavra ou o olhar enérgico do meu companheiro, mas o caso é que o índio desistiu logo do seu propósito, deixando cair o braço. Aproximou os lábios do ouvido de Old Death e disse, ameaçador:
— Cale-se!
CONDENAÇÃO DOS EMBUSTEIROS
Em seguida, voltou para o seu lugar e sentou-se. A sua fisionomia tornou-se serena. Não apresentava o menor indício de temor ou de suspeita. Conheceria ele tão bem a Old Death, para saber que este não o trairia? Ou sabia-se seguro? Também seu filho se acalmara. Os dois apaches arriscavam-se, colocando-se como guias à frente dos seus mortais inimigos. Arrojo admirável! Se conseguissem os seus propósitos, os comanchos lançar-se-iam à ruína certa. íamos já retirar-nos, quando um movimento dos comanchos nos deteve. A reunião deliberativa terminara. Os vermelhos, a uma ordem do cacique, abandonaram as fogueiras e formaram um apertado círculo em torno daquela em que nos achávamos. O cacique, com toda a dignidade, entrou para o círculo e com o braço fêz sinal de que ia falar. Profundo silêncio reinava em torno. Os peles-brancas estavam longe de imaginar o que ia suceder. Levantaram-se. Apenas os dois falsos topias permaneceram sentados e olhavam calmamente para diante, como se nada tivessem com todo aquele movimento. Também William Ohlert se conservou sentado e olhava fixamente para o lápis, que conservava entre os dedos.
Então, o cacique iniciou o seu discurso, lenta e monotonamente:
— Os peles-brancas vieram procurar os comanchos, dizendo serem seus amigos. Por isso foram acolhidos pelos nossos guerreiros, que, com eles, fumaram o “cachimbo da paz”. Agora, porém, os comanchos descobriram que esses peles-brancas lhes mentiram. O “Castor Branco” pesou todos os prós e contras que soube desses homens e, com os seus guerreiro mais experimentados, deliberou sobre o caso. O conselho concordou em que eles nos ludibriaram e que, em vista disso, não são mais dignos de gozar da nossa proteção pelo que fica desfeita a aliança que com eles firmamos, e a inimizade sucederá à amizade até agora existente entre eles e os nossos guerreiros.
Fêz uma pausa. O oficial a aproveitou para perguntar:
— Quem nos caluniou? Com certeza foram os quatro homens que aqui chegaram na companhia do preto. Urdiram contra nós uma intriga. Provamos que somos amigos dos comanchos. Os recém-vindos, porém, que exibam provas de que nutrem propósitos honestos em relação aos meus irmãos peles-vermelhas! Quem são eles e quem os conhece? Se falaram mal de nós, precisamos sabê-lo para que nos possamos defender. Não podemos ser julgados sem nos submeter a uma inquirição prévia! Sou oficial e, portanto, um cacique entre os meus. Posso e devo exigir que me deixem tomar parte em qualquer reunião deliberativa que se efetuar para tratar de nossas pessoas!
— Quem lhe deu licença para falar? — perguntou-lhe o cacique, enérgico e orgulhoso. — Quando “Castor Branco” fala, todos são obrigados a manter silêncio até ele terminar a sua oração. Exige que seja inquirido. Old Death já o inquiriu, há pouco, na minha presença, e dessa inquirição ficou provado que os senhores são guerreiros de Juarez. Nós, porém, somos amigos de Napoleão; conseqüentemente os senhores são nossos inimigos. Perguntou quem eram os quatro peles-brancas, há pouco chegados. Vou dizê-lo: são guerreiros valentes e leais. Conhecemos Old Death muitos invernos antes de avistar o rosto dos senhores. Exigiu que lhe facultássemos a sua participação nos nossos conselhos. Pois digo-lhe que nem a Old Death, que é nosso velho amigo, fizemos tal concessão. Os guerreiros comanchos são homens de inteligência e dispensam a assistência dos peles-brancas, para ensinar-lhes a distinguir o falso do verdadeiro. Vim agora ter com os senhores apenas para participar-lhes o resultado das deliberações. Compete-lhes ouvir e não pronunciar uma só palavra, pois...
— Fumamos o calumet com os senhores — interrompeu o oficial. — se nos tratarem com animosidade, seremos forçados a...
— Cale-se, cão! — trovejou o cacique. — Tinha agora um insulto nos lábios. Olhe que está cercado de quinhentos guerreiros e que um basta para fazê-lo engulir a ofensa! Fumaram o calumet conosco, porque nos enganaram; descoberta essa circunstância, a aliança de amizade está desfeita. Os guerreiros comanchos conhecem a vontade do Grande Espírito e obedecem aos seus ensinamentos. Vermelho é o barro com que é fabricado o cachimbo e vermelho é o fogo em que esse barro é queimado. Vermelha é também a luz do dia. Quando esta se apaga, dura à paz até surgir nova luz. Assim também será em relação a nós; quando surgir a luz do dia, a nossa amizade estará finda. Até lá serão nossos hóspedes, mas daí em diante começarão as hostilidades. Poderão aqui ficar e dormir durante toda à noite, que nada lhes acontecerá. Mas, assim que romper o dia, montarão a cavalo e partirão para o rumo de onde os trouxemos. Nós-lhes concederemos uma dianteira de cinco minutos, como os senhores chamam. Depois, porém, sairemos no seu encalço. Até lá poderão conservar tudo que lhes pertence. Quando os alcançarmos, os despojaremos das montarias e da bagagem e serão mortos. Os dois peles-brancas, que Old Death pretende capturar, serão até lá nossos hóspedes, pois com eles fumamos, também, o calumet; mas eles não partirão com os demais e aqui ficarão como prisioneiros de Old Death que com eles fará o que bem entender. É essa a resolução que lhes queria transmitir. Tenho dito!
— O que? — exclamou Gibson. — Eu prisioneiro daquele velho?! Esperem que vou...
— Fica quieto — interrompeu o oficial. — Nada mais se pode alterar na determinação do cacique. Além disso, estou quase certo de que os nossos caluniadores cairão eles próprios na urdidura que tramaram contra nós. Ainda não é dia e até lá poderá suceder muita coisa. Talvez nossa vingança esteja mais próxima do que pensamos.
Eles retomaram o lugar ao redor da fogueira. Os comanchos, porém, apagaram as suas e formaram quatro círculos em torno dos peles-brancas, de modo que estes ficassem cercados por todos os lados. Old Death retirou-se da companhia dos prisioneiros. Convidou-nos para sairmos em reconhecimento.
— Acredita que temos, afinal, Gibson nas mãos, sir? — perguntei-lhe.
— Se não sobrevier algum imprevisto, não nos escapará desta feita — respondeu-me.
— Melhor seria, talvez, que o amarrássemos.
— Não é possível. O “cachimbo da paz” que fumaram com os índios nos impede de fazermos isso. Antes do amanhecer, os comanchos não consentirão que se lhes ponham as mãos. Depois, sim.
— Falou em imprevisto. Teme alguma coisa?
— Infelizmente, sim. Creio que os comanchos se deixaram atrair a uma terrível cilada por aqueles dois apaches.
— Mas toma-os de fato por apaches?
— Corte-me o pescoço se não o são. Logo desconfiei, quando ouvi dizer que dois topias tinham vindo do rio Conchos. Essa peta podem passar a um comancho, mas não a um velho escoteiro. E, quando os vi, concluí logo que minha suspeita tinha fundamento. Os topias são índios meio civilizados. Têm uma expressão muito mais delicada. E veja a fisionomia desses dois! Principalmente, quando falam, traem logo que não são topias. E quando afirmei que era um apache, toda a sua atitude confirmou a minha afirmativa.
— Mas o senhor não pode ter-se enganado?
— Não, senhor! Ele chamou Winnetou, “o maior cacique dos apaches”. Um inimigo não usaria tal expressão. Aposto a minha vida em como não me enganei.
— O senhor tem razão para assim supor. Mas, se é como diz, essa gente é admirável. É mais que heroísmo aventurarem-se dois apaches a viajar numa horda de quinhentos comanchos!
— Oh! Winnetou conhece a sua gente!
— Acha que foi Winnetou quem lhes confiou tarefa tão arriscada?
— É claro. O señior Atanásio nos contou, quando e onde Winnetou atravessou, a nado, o rio Grande del Norte. Ora, é possível que o jovem cacique já esteja com os seus guerreiros no rio Conchos? Não; ele procedeu doutro modo: cavalgou diretamente até Bolson de Mapimi, a fim de reunir os seus apaches. Expediu logo batedores para sondar os movimentos dos comanchos e atraí-los ao deserto. Estes, supondo se acharem os seus inimigos no rio Conchos, vão atacar as aldeias desta zona, que supõem desguarnecidas. Enquanto isso se dá, Winnetou se posta no caminho para atacá-los. E o trecho do caminho escolhido para a emboscada é justamente este, onde, agora, estamos acampados. Tome nota do que lhe estou dizendo e depois me dirá se tenho ou não tenho razão!
— Com os diabos! E nós estamos metidos no perigo, pois os dois apaches nos consideram inimigos.
— Creio que não. Sabem que lhes adivinhei os propósitos. Bastaria uma palavra minha ao “Castor Branco” para que tivessem morte horrível. E como não fiz isso, consideram a minha conduta uma prova de que, não só não somos inimigos seus, mas que lhes dedicamos amizade.
— Não compreendo uma coisa, sir. Não seria dever de lealdade de sua parte prevenir os comanchos da presença dos dois inimigos seus no acampamento?
— Hum! O senhor ventila agora um ponto delicado. Os comanchos são traidores e se puseram ao lado de Napoleão. Eles assaltaram, injustamente, e em plena paz, os apaches, assassinando-os barbaramente. Tais crimes precisam ser punidos, de acordo com as leis divinas e humanas. Deveríamos proceder diretamente contra esta tribo. Mas fumamos o “cachimbo da paz”!
— Tem razão. Minha simpatia é toda de Winnetou.
— A minha também. Desejo a ele e a todos os apaches tudo o que de bom há no mundo. Não devemos, por isso, trair os seus dois batedores; mas se tal não fizermos, os comanchos estarão perdidos e ao lado destes também somos, até certo ponto, obrigados a nos colocar. Estamos, pois, diante de uma situação difícil. Que faremos? Se já estivéssemos de posse de Gibson, iríamos imediatamente embora e o caso estaria solucionado. Que os dois inimigos se arranjassem!
— Bem, procederemos assim amanhã cedo.
— Talvez não nos seja possível. É bem provável que amanhã, a estas horas, estejamos na companhia de alguns apaches e comanchos, tomando uma cerveja nas “eternas campinas” ou abatendo um bisão para nosso jantar!...
— Acha o perigo tão próximo?
— Tenho dois motivos para pensar assim. O primeiro é que algumas aldeias dos apaches não se acham muito distantes daqui e Winnetou não há de deixar os comanchos se aproximarem muito delas e o segundo, esse oficial mexicano usou de palavras, que me fazem esperar algum golpe para esta noite.
— Realmente! Poderemos, é verdade, nos fiar no calumet dos comanchos e no manuscrito de Inda-nischo; além disso, Winnetou o conhece e a mim já viu de uma feita. Mas, quando se cai entre duas mós, não se pode escapar de ser moído. Quando a maré investe contra o rochedo, quem sofre são os mariscos.
— Então, talvez ainda nos reste tempo, para nos pormos a salva Façamos um reconhecimento. Pode ser que, não obstante a escuridão, encontremos alguma coisa que me desanuvie os pensamentos. Siga-me lentamente. Se não me engano, já estive uma vez neste vale. Não me perderei por aqui!
A região era tal qual eu calculara. Um vale em feitio de caçarola, quase circular; podia-se vencer a largura, em cinco minutos. Tinha uma saída tão estreita quanto a entrada. Lá para fora haviam sido destacados os batedores. No meio do vale, estava o acampamento. As paredes da caçarola eram de rocha íngreme, alta e ereta. Passamos pelas sentinelas e rodeamos todo o vale. Depois, voltamos para o acampamento.
— É fatal! — resmungou o velho. — Estamos bem no meio da armadilha, e não encontro um meio de sairmos dela. Só se fizéssemos como a raposa, que parte uma perna com os dentes, para soltar-se do laço...
— Não nos seria possível fazer o “Castor Branco” levantar imediatamente o acampamento e procurar pouso em zona mais segura?
— É a única coisa que poderíamos tentar. Mas creio que ele não concordará com o nosso alvitre, a não ser que o avisemos da presença dos dois apaches no acampamento, o que devemos evitar.
— Talvez o senhor esteja vendo demasiadamente negra a situação, sir. É possível até que aqui estejamos bem seguros. Os dois pontos, pelos quais se consegue entrar aqui, estão guarnecidos pelos comanchos.
— Sim, e com dez sentinelas em cada um. Mas não nos esqueçamos de que os inimigos são chefiados por Winnetou! Para mim é um enigma como “Castor Branco”, em geral tão prudente e astucioso, deixou-se encurralar aqui neste perigosíssimo vale! Os dois apaches, disfarçados em topias, devem ser muito inteligentes para terem conseguido arrastar o inimigo até aqui. Vou falar com o cacique. Se ele persistir em ficar acampado e acontecer depois o que esperamos, ficaremos neutros. Somos amigos dos comanchos, mas não devemos matar um só apache. Oh! chegamos ao acampamento e lá está o cacique; venha comigo, vamos falar-lhe!
Reconhecemos o cacique pelas penas de águia. Quando nos aproximamos, o cacique disse:
— O meu irmão convenceu-se, afinal, de que estamos em segurança?
— Absolutamente não! — respondeu o escoteiro.
— Mas que viu de perigoso neste local?
— Que se assemelha a uma cilada, dentro da qual nos achamos.
— Meu irmão pele-branca está muito enganado. Este vale não se parece a uma cilada, mas a um lugar a que os brancos dão o nome de forte. Pela sua topografia, não dá acesso a inimigo algum.
— Sim, pela entrada não; esta é tão estreita que é facilmente defendida por dez guerreiros. Mas os apaches não poderão descer pelas elevações?
— Não! São muito escarpadas.
— Meu irmão vermelho certificou-se bem disto?
— Com toda a precisão. Os filhos dos comanchos chegaram aqui ainda dia claro. Examinaram tudo. Fizeram experiências de escalar as montanhas rochosas, mas não conseguiram.
— Talvez seja mais fácil descê-las do que subi-las. Winnetou é um hábil escalador de montanhas e muralhas.
— Winnetou não se acha aqui. Os dois topias afirmaram.
— Eles podem ter-se enganado; souberam-no, talvez, por alguém que não tinha certeza.
— Afirmaram convictos. São inimigos de Winnetou e por isso creio na sua palavra.
— Mas se é verdade que Winnetou esteve no forte Inge, ele não pode ter estado aqui, mobilizado os guerreiros e já se achar do outro lado do rio Conchos. Compare a escassez de tempo com o enorme caminho a vencer!
O cacique deixou pender a cabeça pensativo. Depois disse:
— Sim, dou razão ao meu amigo Old Death. O tempo foi curto e o caminho longo. Vamos perguntar novamente aos topias!
Dirigiu-se para a fogueira dos índios “aliados” e nós o acompanhamos. Os peles-brancas olharam-nos com olhares sinistros. Ao lado deles estavam os dois Lange e o negro Sam. William Ohlert, de lápis na mão, escrevia num papel sobre os joelhos, cego e surdo ao que se passava. Os dois indigitados topias apenas ergueram os olhos, quando o cacique lhes dirigiu a palavra:
— Sabem, meus irmãos, com absoluta certeza que...
OS PRIMÓRDIOS DA LUTA
Susteve a palavra. Do cimo das montanhas ouviu-se o trinado angustioso dum passarinho e logo em seguida o cântico fúnebre duma coruja. O cacique e Old Death puseram-se a escutar. Como se estivesse a brincar, Gibson tomou de um galho seco e revirou a fogueira, de modo a avivar a chama; quis repetir a manobra e sobre ele repousavam as vistas dos seus companheiros de viagem em sinal de aprovação; nessa altura Old Death deu um pulo, arrancou-lhe o galho da mão e disse ameaçadoramente:
— Deixe-se dessas manobras, sir! Não consentiremos que a repita!
— Por que? Não se pode nem mexer na fogueira? — perguntou encolerizado.
— Não; proibimo-lo de responder com este sinal ao grito da coruja lá em cima.
— Sinal convencionado, previamente? Está doido?
— Sim, senhor! Estou tão doido, que fulminarei a tiro aquele que dora avante mexer no fogo!
— Maldito! Porta-se aqui como se fosse o senhor de tudo!
— E sou de fato e o senhor é meu prisioneiro, o qual executarei sumariamente, se julgar de interesse para a nossa segurança. Não pense que conseguirá ludibriar Old Death!
— Devemos suportar esses desaforos?! — exclamou, dirigindo-se aos companheiros.
Old Death e eu estávamos com os dois revólveres apontados para o grupo e os Lange e Sam subitamente colocaram-se ao nosso lado, também de revólver em punho. Teríamos fuzilado o que cometesse a imprudência de puxar das armas. Além disso, o cacique ordenou à sua gente:
— Armar flechas!
Um segundo depois, algumas dúzias de flechas se achavam apontadas para o grupo dos peles-brancas.
— Vejam! — disse o escoteiro rindo-se. — Por enquanto ainda estão protegidos pelo calumet. Até as armas nós lhes deixamos. Mas, se fizerem um só movimento, daremos um fim à proteção de que ainda gozam!
O grito da coruja repetiu-se lá no alto, como se descesse do céu. A mão de Gibson tremeu como que em busca do galho; mas não se aventurou a repetir o gesto. Então o cacique repetiu a pergunta aos topias.
— Sabem os meus irmãos corn absoluta certeza que Winnetou se acha na margem oposta do rio Conchos?
— Sim, sabemos — respondeu o velho.
— Pensem antes de responder-me!
— Não nos enganamos. Nós nos achávamos no meio das macegas, quando o vimos passar.
O “Castor Branco” continuou nas perguntas, a que o “topia” respondia prontamente. Por fim, disse o chefe comancho:
— Essas declarações satisfizeram o cacique dos comanchos. Queiram meus irmãos virem novamente para a minha companhia!
Este convite fora dirigido a Old Death e a mim; o primeiro acenou para os dois Lange virem também. Eles obedeceram e trouxeram Sam consigo.
— Por que meu irmão chama os outros companheiros? — perguntou o cacique.
— Porque penso precisar deles muito depressa. Vamos unir-nos em face do perigo.
— Não há perigo algum.
— Está equivocado. O grito da coruja não lhe despertou a atenção? Foi proferido por homem!
— O cacique dos comanchos conhece as vozes de todos os animais e sabe distinguir a autêntica da imitada pelos lábios e garganta do homem. Aquele grito foi realmente o de uma coruja!
— Old Death sabe que Winnetou imita as vozes dos animais com uma perfeição tal que, dificilmente, se pode distingui-la da verdadeira. Aconselho-o a ser prudente! Por que aquele branco revolvia a fogueira? Era um sinal convencionado.
— Neste caso, ele teria um entendimento prévio com os apaches, o que não é possível, pois não teve tempo para isso.
— Talvez algum outro se tivesse entendido com o inimigo e depois encarregado este de dar o sinal, para que o verdadeiro traidor não fosse pegado em flagrante.
— Acha que temos traidores no acampamento? Mesmo que se confirmasse tal previsão, não precisaríamos temer os apaches; estes não conseguiriam passar pela guarda postada na entrada do vale e nem subir pelas montanhas.
— Talvez sim! Com o auxílio do laço eles descerão facilmente, porque possuem... Ouça!
O grito da coruja reproduziu-se de novo, não lá de cima, mas já mais cá embaixo.
— É uma coruja autêntica — afirmou o comancho tranqüilo. — Suas apreensões são injustificáveis.
— Não, com os diabos! Lá estão os apaches no meio do vale. Não os ouve?
À saída do vale soaram gritos estridulados e, logo em seguida, o brado de guerra dos apaches quebrou o silêncio da noite. Mal se ouviram os brados de guerra, os peles-brancas se puseram de pé.
— Lá estão os cães — disse o oficial, apontando para nós — Agarremo-los!
— É isso mesmo! — urrou Gibson — Matemo-los!
Estávamos no escuro, de modo que o alvo era-lhes muito incerto. Por este motivo resolveram não fazer fogo contra nós, mas assaltar-nos a coronhaços. Fora coisa previamente assentada, pois seus movimentos eram tão rápidos e seguros que não podiam ser fruto duma resolução súbita. Achavamo-nos, quando muito, a uns trinta passos. Old Death observou:
— Então eu tinha ou não tinha razão? Apontar armas! Esperemo-los dignamente.
Seis armas — o cacique unira-se ao nosso grupo — apontaram-se para o bando que nos assaltava e os tiros deflagraram, por duas vezes! Não tive tempo de contar o número dos que tombaram. Também os comanchos se levantaram e uma saraivada de flechas voava nas costas e nos flancos dos assaltante. Vi apenas que Gibson, apesar de berrar que nos matassem, não havia tomado parte na agressão. Achava-se na fogueira e esforçava-se por levantar William Ohlert do seu lugar, onde ainda se conservava alheio a tudo, de lápis em punho e papel sobre os joelhos. Outras observações não me foi possível fazer, pois a gritaria dos apaches cada vez mais se aproximava e, por fim, os mesmos invadiram o acampamento dos comanchos.
Como a luz das fogueiras era fraca, os apaches não puderam estimar o número do inimigo. Os comanchos continuavam reunidos em círculo, que se desfizera momentaneamente pela pressão dos assaltantes. Ouviu-se o deflagrar de tiros permeados com cargas de lanças, de flechas e golpes de machadinhas e facas! Era horrível a cena! O berreiro ensurdecedor dos combatentes e os vultos negros a moverem-se na escuridão, contribuíam para aumentar o pavor do espetáculo que se desenrolava. Dos apaches, o que vinha à frente, distinguia-se pela violência com que lutava, desferindo golpes pela direita e pela esquerda. Trazia na mão direita a machadinha e na esquerda o revólver. Enquanto cada tiro fazia tombar morto um comancho, os golpes certeiros da machadinha de guerra iam de cabeça em cabeça, ceifando vidas. Não trazia distintivo algum na cabeça e nem tinha o rosto pintado, com as cores de guerra. À tênue claridade da fogueira, reconhecemos o valente. Ainda que não o víssemos, adivinharíamos logo quem era, pela bravura indômita com que lutava e pela circunstância, rara entre os índios, de usar revólver. O “Castor Branco” o reconheceu, também, tão depressa quanto nós.
— Winnetou! — exclamou ele. — Afinal, o tenho nas mãos! Vou encarregar-me dele!
De um pulo, entrou no caos da luta. O grupo fechou-se por trás dele, de forma que não pudemos acompanhá-lo com o olhar.
— E o que faremos nós? — perguntei a Old Death. — Os apaches estão em minoria, e, se não baterem logo em retirada, estarão perdidos. Precisamos avisá-los. Vou arrancar Winnetou da luta.
Quis executar o que dissera, mas o escoteiro me deteve, segurando-me pelo braço:
— Não cometa uma tolice! Não podemos proceder como traidores, em relação aos comanchos, pois com eles fumamos o “cachimbo da paz”. Além disso, Winnetou não necessita do seu auxílio; é bastante inteligente! Não está ouvindo?
Sim, eu ouvia o meu grande amigo pele-vermelha ordenar:
— Fomos logrados! Recuem! Embora, vamos embora!
A fogueira, durante o violento combate, extinguira-se quase completamente; mas ainda assim pude ver o que sucedia. Os apaches retiraram-se. Winnetou vira que o número dos inimigos era muito superior ao dos seus. Admirei-me de, contrariamente ao seu sistema, não haver ele, antes, feito um reconhecimento no acampamento, a fim de contar os guerreiros; o motivo, porém, pouco depois eu vinha a saber.
Os comanchos tentaram persegui-los, mas foram rechaçados a bala. O detonar da espingarda de prata de Winnetou, a qual herdara de seu pai, era o que mais se ouvia no tiroteio. O cacique dos comanchos mandou reacender a fogueira, chegou-se até nós e disse:
— Os apaches nos fugiram; mas amanhã bem cedo hei de persegui-los e derrotá-los.
— Acha que conseguirá?
— Com toda certeza! E se meu irmão pensa de modo contrário, engana-se.
— Quando o preveni, há pouco, não me disse também que me enganava? Disse que este vale era uma armadilha. E estou certo de que não conseguirá sair dele.
— Deixe vir o dia. Veremos os inimigos que sobreviverem e os aniquilaremos; agora, a escuridão os protege.
— Portanto, é inútil tiroteá-los agora, como o está fazendo. Quando esgotar a munição e as flechas, que fará? Madeira não falta neste vale, para fabricá-las, mas que é das ponteiras de ferro? Não desperdice os meios de defesa dos seus guerreiros! Que é feito dos dez comanchos que guarneciam a entrada do vale? Ainda estão lá?
— Não; vieram para cá, atraídos pela luta.
— Mande-os, então, para os seus postos, para que, ao menos, fique assegurado o caminho para a retirada!
— É inútil a medida, meu irmão. Os apaches fugiram pela saída e nenhum conseguiu e nem conseguirá aproximar-se da entrada.
— Contudo, aconselho-o a guarnecê-la. Dez homens a mais pouco lhe adiantam aqui; lá, sim, são indispensáveis.
O cacique aceitou a sugestão, mais por consideração ao escoteiro, do que por achá-la útil. Não tardou muito que se justificassem as suspeitas do velho. Mal os dez guerreiros se haviam posto a caminho, da entrada do vale ouviram-se dois estampidos, seguidos de uma gritaria infernal. Daí a pouco, dois dos guerreiros voltavam, para avisar o cacique que a guarda fora recebida a tiros e flechas; os dois eram os únicos sobreviventes dos dez.
— Então, enganei-me outra vez? — perguntou o escoteiro. — A armadilha está fechada na frente e nos fundos e nós nela estamos presos.
O “Castor Branco” não encontrou resposta e perguntou-lhe, meio desanimado:
— Uff! Que devo fazer?
— Não desperdice as armas e as forças de sua gente! Coloque uns vinte ou trinta homens à entrada e outros à saída do vale. Mande os demais dormir, para que se revigorem para a luta.
Desta vez, o cacique aceitou imediatamente o conselho. Depois, passamos a contar os mortos. Só então me lembrei dos peles-brancas. Apenas os que já eram cadáveres jaziam no vale; os outros haviam fugido. Faltavam, com Gibson e William Ohlert, dez homens.
— É grave! — exclamei. — Refugiaram-se nas forças dos apaches.
— E bem recebidos terão sido, pois estiveram aliados aos dois batedores, os indigitados topias.
— Mais uma vez, Gibson nos foge das mãos!
— Ainda não! Possuímos o manuscrito de Inda-nischo e, além disso, os apaches me conhecem; receber-nos-ão amigavelmente. Depois, hei de encaminhar as coisas de tal modo, que eles nos entregarão Gibson e William Ohlert. Perdemos apenas um dia.
— E se os dois conseguirem fugir?
— Não creio. Teriam de atravessar o Mapimi e isso não lhes será possível porque... Mas, que é aquilo?
Perto de nós se aglomeravam os comanchos e do meio deles partiam gemidos. Corremos para o grupo e demos com os olhos num pele-branca — um dos soldados encaminhados pelo señor Cortésio para as tropas de Juarez — o qual não morrera e recuperara os sentidos. Recebera um golpe de lança no ventre, desferido por um comancho, quando, juntamente com os companheiros, lutava contra nós.
Old Death ajoelhou-se diante do soldado e examinou-lhe a ferida.
— Homem, — disse o escoteiro — tem, talvez, ainda uns dez minutos de vida. Desabafe o seu coração, não o sobrecarregue com mentiras para a eternidade. Estiveram ao lado dos apaches?
— Sim — respondeu o moribundo gemendo.
— Sabia que esta noite seríamos assaltados pelos guerreiros daquela tribo?
— Sabíamos. Os dois topias, com este fim, atraíram os comanchos para aqui.
— E Gibson daria, com o fogo, o sinal convencionado?
— Sim, senhor. Ele devia bater com o galho, na fogueira, tantas vezes, quantas fossem as centenas de comanchos de que se compusesse o bando. Se fossem mais de cem, Winnetou os atacaria amanhã, noutro local, pois não conta, agora, senão com este número de guerreiros. Amanhã cedo, receberá reforços das várias aldeias desta zona.
— Logo, calculei bem. O fato de não haver permitido que Gibson continuasse a mexer na fogueira, foi que levou Winnetou a atacar logo o acampamento. Agora, porém, eles ocuparam a entrada e a saída do vale. Dele não poderemos sair e, amanhã, aqui seremos abatidos aos poucos.
— Saberemos reagir! — disse o cacique entre dentes. — E, quanto a este traidor, irá já para as “eternas campinas”, como um cão sarnoso, para ser corrido pelos lobos; que a baba lhe corra sem cessar durante a eternidade.
— Que contra-senso! Para isso, não é necessário que o senhor se torne assassino.
“Castor Branco” sacou da faca e cravou-a no ferido. Então respondeu:
— Matei-o e agora sua alma é escrava da minha. Vou reunir já o conselho dos guerreiros. Os comanchos não estão dispostos a esperar que os cães apaches nos assaltem em grandes tribos. Podemos ainda hoje, à noite, forçar a entrada do vale e pôr-nos a salvo.
Sentou-se à fogueira, em companhia dos subcaciques. Old Death teve de participar da reunião. Eu estava sentado, com os dois Lange e o negro Sam, distante da fogueira, e não podia ouvir a discussão. Percebi, porém, pela gesticulação, que o escoteiro discordava da opinião dos índios. Parecia defender energicamente o seu ponto de vista, mas sem resultado. Por fim, ergueu-se, de um pulo, e disse encolerizado:
— Pois atirem-se à ruína! Repetidas vezes os preveni do perigo, sem ser ouvido. Sempre tive razão e desta vez terei também. Façam o que entenderem. Eu, porém, aqui ficarei com os meus companheiros.
— É tão covarde, que se nega a combater ao nosso lado? — perguntou-lhe um dos subcaciques.
Old Death fêz um movimento violento e ia dar-lhe uma resposta enérgica, mas conteve-se e disse calmamente:
— Meu imão deve primeiro provar a sua coragem para depois perguntar pela minha. Chamo-me Old Death e basta-me este nome!
Afastou-se, voltou para junto de nós e sentou-se. Os vermelhos continuaram ainda por algum tempo, nas deliberações. Finalmente, chegaram a uma solução e levantaram-se. Nessa altura, dentre os comanchos que se reuniram ao redor do fogo, soou uma voz:
— O “Castor Branco” que olhe para cá! Minha espingarda está ansiosa por conhecê-lo.
Todos os olhares se dirigiram para o local de onde partia aquela voz. Lá se achava Winnetou, de pé, e com os dois canos da espingarda apontados para o cacique. Os dois tiros deflagraram e o “Castor Branco” tombou aos pés de um dos subcaciques.
— Assim hão de morrer todos os mentirosos e traidores! — disse a mesma voz.
Em seguida, o apache desapareceu. Tudo decorreu tão rapidamente, que os comanchos nem se lembraram, ou, aliás, nem tiveram tempo de sair em defesa do seu chefe. Agora, porém, consumado o ato, todos correram para o local de onde o apache fizera fogo. Apenas nós, os quatro, ficamos parados. Old Death encaminhou-se para os dois caciques estavam mortos.
— Que arriscada! — exclamou Lange — Este Winnetou é um verdadeiro demônio!
— Ora! — fêz Old Death rindo-se. — O melhor ainda está por vir. Prestem atenção!
Não havia ainda terminado a frase, quando se fêz ouvir um grito ensurdecedor.
— Aí está! — disse o escoteiro. — Ele não só castigou a traição dos dois caciques, mas ainda atraiu os comanchos para o alcance dos seus guerreiros. As flechas dos apaches exigem vítimas! Ouça!
Oito detonações reboaram, consecutivamente, no vale.
— É Winnetou — disse o velho escoteiro. — Está entre os comanchos, que, com a morte dos caciques, arrastou após si.
— Está entre os comanchos — disse eu — e estes nem sequer conseguirão arranhá-lo. É um guerreiro valente e ardiloso!
Tais acontecimentos constituíam banalidades para o experimentado pioneiro das campinas bravias. A sua fisionomia estava tão serena, como se estivesse no teatro, acompanhando o enredo duma peça conhecida. Os comanchos voltaram, sem ter conseguido atingir Winnetou; em vez disso, porém, traziam aos ombros numerosos mortos e feridos. Pessoas civilizadas, num caso destes, manter-se-iam em silêncio. Os índios, porém, desandaram num berreiro dos demônios, como se estivessem sendo supliciados no poste dos martírios.
— Eu, no lugar dessa gente, apagaria a fogueira e permaneceria em completo silêncio, — disse Old Death. — Estão aí para entoar cânticos fúnebres a si mesmos.
— Que ficou, afinal, resolvido no conselho de guerra? — perguntou Lange.
— Baterem, imediatamente, em retirada para o oeste.
— Que asneira! Irão diretamente ao encontro dos apaches que estão em caminho para cá.
— Isto também não, porque eles nem sairão deste vale. Em todo o caso, mesmo que consigam sair, terão Winnetou pela retaguarda e as tropas que se acham em caminho pela vanguarda; seriam, pois, esmagados pelas duas expedições dos apaches. Mas fiam-se na inferioridade numérica dos inimigos, que pensam dizimar. Além disso, o filho do “Castor Branco”, que encontramos há dias, seguirá atrás, a fim de juntar-se às tropas do pai. Isso redobra-lhe a confiança no êxito do plano. Estão ardendo em desejos de vingança. Mas, deveriam, ao menos, esperar o romper do dia, pois, assim, poderão ver o inimigo e lutar sem obstáculos. Foi o que propuz e o alvitre não foi aceito. A nós, é claro, é indiferente o que fazem. Não os acompanharemos.
— Não nos levarão a mal essa atitude?
— Que levem! Não me oponho a isso. Old Death não está disposto a se lançar, inutilmente, numa luta desigual. Ouçam! Que foi?
Os comanchos continuavam a berrar de modo que não pudemos identificar o ruído que ouvíramos.
— Que imbecis! Winnetou é muito capaz de tirar partido da algazarra que estão a fazer, — disse Old Death. — É possível que fosse a derribada duma árvore, pois com árvores Winnetou fechará a entrada e a saída do vale. Estou a jogar que não escapará um só comancho. Castigo bárbaro, mas merecido. Por que assaltaram de emboscada e em plena paz aldeias indefesas, e por que mataram a traição, numa cilada infame, os emissários dos apaches? Se Winnetou conseguir fechar o vale, poderá recuar, e atacar os comanchos pela retaguarda.
Finalmente, terminaram as lamentações fúnebres dos índios; estes, em silêncio, se reuniram e recebiam as ordens dum subcacique que assumira o comando da tropa.
— Parece que pretendem partir já — disse Old Death. — Temos de cuidar dos nossos cavalos, para que não nos deixem a pé... Mr. Lange irá buscá-los, em companhia de seu filho, e Sam. Nós ficaremos aqui, pois presumo que o cacique ainda nos venha falar.
O escoteiro tivera razão. Quando nossos três companheiros se retiraram, o atual cacique, a passos lentos e cheio de dignidade, veio ao nosso encontro e disse-nos:
— Os peles-brancas estão tranqüilamente sentados, enquanto os comanchos tomam os cavalos. Por que não se levantam e fazem o mesmo?
— Porque ainda não sabemos o que os comanchos resolveram fazer.
— Resolvemos abandonar já o vale.
— Não conseguirão sair dele.
— Old Death é uma verdadeira gralha, que sempre anda a cantar com voz irritante! Tudo o que se atravessar no caminho os comanchos esmagarão a pata de cavalo.
— Pois eu lhe afianço que se vão esmagar a si mesmos e a mais ninguém. Nós não os acompanharemos. Resolvemos ficar aqui.
— Não é Old Death nosso amigo? Não fumou conosco o “cachimbo da paz”? Não está ele, em conseqüência disso, no dever de lutar a nosso lado? Os peles-brancas são valentes guerreiros; eles nos acompanharão e colocar-se-ão à nossa frente.
Old Death levantou-se, aproximou-se do cacique e rindo-se nas suas faces, disse:
— Meu irmão pretende usar de uma linda esperteza. Os peles-brancas irão à frente para abrir o caminho aos vermelhos e tombarem mortos no lugar deles! Não! Nesta não cairemos! Somos amigos dos comanchos, mas não somos obrigados a obedecer às ordens do seu cacique. Encontramo-los, casualmente, e não nos comprometemos de modo algum a participar de sua expedição de guerra. Somos valentes guerreiros. Com isso o pele-vermelha disse uma verdade. Auxiliaremos os nossos amigos na luta que empreenderem, mas com reflexão e prudência; mas não tomaremos parte na execução de um plano de guerra, cujo fracasso antevemos.
— Com que, então, os brancos não cavalgarão em nossa companhia? Eu os tomava por homens arrojados!
— E somos de fato. Mas também somos prudentes. Demais, aqui estamos como hóspedes dos comanchos. Desde quando é costume entre eles, em vez de asilar e proteger os hóspedes, atirá-los em aventuras, nas quais terão morte inevitável? Meu irmão é astucioso, mas nós não somos tolos. Também meu irmão é um valente guerreiro e estou convencido de que ele se colocará à frente dos comanchos e será o primeiro a atravessar o marco do perigo, onde é, aliás, o seu lugar!
O vermelho viu-se em apuros. A lógica do velho era irresistível. Depois, encolerizou-se. Abandonou a calma, com que nos falara, perguntando-nos:
— Que farão os peles-brancas, depois que os comanchos partirem? Irão porventura unir-se aos apaches?
— Como seria isto possível, se meu irmão pretende matá-los todos. Não sobrará, pois, nem um ao qual possamos unir-nos!
— Mas virão outros, depois. Não podemos consentir que os peles-brancas fiquem para trás! Terão de acompanhar-nos!
— Já lhe disse que não os acompanharemos, que ficaremos aqui.
— Se persistirem nesse propósito, seremos obrigados a considerá-los como inimigos.
— Também os consideraremos inimigos e como tais os trataremos.
— Não lhes entregaremos os cavalos.
— Já estamos de posse deles. Ali vêm.
De fato, os nossos companheiros chegavam naquele instante conduzindo os animais. O vermelho franziu o sobrecenho e disse:
— Então os brancos já iniciaram os preparativos para a traição? Vejo que não foram leais conosco. Vou mandar prendê-los.
O escoteiro soltou uma gargalhada e retrucou:
— O cacique dos comanchos engana-se. Eu já havia dito ao “Castor Branco” que ficaria aqui. Portanto a nossa atitude é filha de uma resolução tomada anteriormente e não fruto de algum propósito hostil. Não há, pois, a mínima razão para sermos presos.
— Mas eu os prenderei, imediatamente, se não nos acompanharem e se colocarem à nossa frente.
Os olhares de Old Death faiscaram. O sangue lhe fervia nas veias. Estávamos os três, de pé, na frente da fogueira. A poucos passos estavam os nossos companheiros segurando os cavalos. Nem um comancho havia por ali. Todos haviam saído em busca das montarias. Old Death disse-me, em alemão:
— Quando o abater, montemos depressa e galopemos rapidamente para a entrada do vale, pois os comanchos estão no lado oposto.
— Meu irmão, não fale nessa língua! Quero saber o que disse ao companheiro!
— O cacique irá sabê-lo já! O senhor não quis ouvir-me. Desprezou as minhas opiniões. O senhor vai ao encontro da morte certa e quer obrigar-nos, a nos lançarmos nela, também. Ao que parece, o senhor ainda não conhece Old Death. Julga talvez que me obrigará a fazer alguma cousa que não deseje? Pois previno-o de que não temo nem ao senhor e nem a todos os seus comanchos reunidos. Quer prender-nos? Então ainda não compreendeu que está em minhas mãos? Veja esta arma! Ao menor movimento, mato-o à bala!
O escoteiro apontou-lhe o revólver. O índio quis puxar a faca; mas quando viu aquela arma apontada para o seu peito desistiu.
— Tire a mão da cinta! — trovejou-lhe o velho e o índio obedeceu. Não estou gracejando, não! Revela-se um inimigo nosso e por isso o fulminarei se não me obedecer.
O cacique arregalou os olhos e, depois, olhou ao redor, mas o escoteiro acrescentou:
— Não procure o socorro dos seus! Mesmo que eles aqui se achassem, eu o mataria. As suas idéias são tão frágeis como as de uma mulher velha de cérebro ressequido! Está cercado de inimigos aos quais terá que render-se, se não quiser ser derrotado. E ainda nos quer conquistar a inimizade, que é ainda mais temível do que a dos apaches! Armados coma estamos, derrubaremos cem comanchos, antes que uma seta nos possa atingir. Se pretende conduzir sua gente à morte, faça-o. Nós, porém, não lhe obedecemos.
O índio ficou silencioso por alguns instantes. Depois disse:
— Meu irmão deve compreender que não tive o propósito de ofendê-lo. Não deve tomar minhas palavras tão ao pé da letra!
— Tomo suas palavras, conforme soam. A sua intenção não me interessa!
— Recolha a arma e continuemos amigos!
— Sim, concordo. Mas, antes de retirar o revólver do seu peito, preciso ter a certeza de que sua amizade é sincera.
— Já o disse e minha palavra basta!
— No entanto, ainda há pouco, dizia coisa diferente. Não posso fiar-me em sua palavra e em promessas suas.
— Se não confiar em mim, não lhe posso dar outra garantia.
— Como não? Exijo que, como garantia, me entregue o seu “cachimbo da paz” e...
— Uff! — exclamou o índio, interrompendo-o assustado. — O calumet do índio não sai do seu poder!
— Pois nem com essa garantia estou ainda satisfeito. Não só exijo o calumet, mas também a “bolsa de medicina”.
— Uff! Uff! Uff! É impossível!
— Não quero que me entregue esses objetos para sempre; no momento em que nos separarmos em paz serão devolvidos.
— Nenhum guerreiro deixa que lhe toquem na “bolsa de medicina”.
— E não obstante, exijo que o senhor abra uma exceção. Conheço os usos e costumes dos índios. Se eu estiver de posse daqueles objetos serei o senhor e qualquer animosidade contra mim, impedirá ao senhor e a seus guerreiros a entrada nas “eternas campinas”.
— Mas não lhe entregarei.
— Então é assunto liqüidado. Vou matá-lo e cortar-lhe o escalpo, de modo que, depois de sua morte, será o meu cão de caça e escravo. Vou erguer o braço esquerdo por três vezes. Na terceira, atirarei, se não me obedecer.
Old Death ergueu o braço pela primeira e pela segunda vez, conservando o revólver apontado para o coração do pele-vermelha. O terceiro movimento ia já em meio, quando o índio exclamou:
— Espere! Devolverá depois os dois objetos?
— Sim.
— Então entregarei.
O cacique ia desprender do pescoço o calumet e a “bolsa”, mas Old Death o interrompeu:
— Pare! Abaixe a mão, do contrário atiro! Só confiarei no senhor, quando estiver, realmente, de posse dessas relíquias. Meu companheiro os desprenderá do seu pescoço e os colocará, ele mesmo, no meu.
O comancho baixou de novo a mão. Despojei-o do calumet e da “bolsa” e os coloquei em Old Death. Este, então, abaixou o revólver que apontava para o índio.
— Agora, sim! — disse o escoteiro. — Somos outra vez amigos e o meu irmão pode fazer o que quiser. Quanto a nós, aqui ficaremos na expectativa, durante o desenrolar do combate.
Em sua vida, o cacique nunca estivera tão furioso como agora. Sua mão tremia em direção à faca, mas não se aventurava a puxá-la. Rangendo os dentes, exclamou:
— Os peles-brancas, agora, abusam, porque têm certeza de que nada lhes sucederá. Mas, assim que me devolverem minhas relíquias não reinará mais paz entre nós e havemos de persegui-los e matá-los no poste dos martírios.
Virou-se e foi embora.
— Estamos, agora, tão seguros, como no seio de Abrahão — disse o escoteiro, depois que o vermelho se retirou. — Mas, não obstante isto, não abandonemos as medidas de precaução. Não ficaremos aqui junto à fogueira. Mudemo-nos para o fundo do vale, onde aguardaremos tranqüilamente os acontecimentos. Venham comigo, tragam os cavalos.
Cada um conduziu o seu animal pela rédea. No local indicado, maneamos os animais e acampamos debaixo dumas árvores. A fogueira no acampamento abandonado ardia ainda. Em torno, reinava silêncio completo.
— Presumo que não tardará o início do baile — disse Old Death. — Os comanchos vão soltar estridentes brados de guerra ao se retirarem, mas muitos deles gritarão pela última vez! Ouçam! Tive razão ou não?
Um berreiro formidável reboou pelo vale, como se um bando de feras ali se soltasse.
— E ouvem a resposta de um só apache? Naturalmente não! — exclamou o velho. — Aqueles são prudentes, agem em silêncio.
Enquanto o eco da gritaria se quebrava nas paredes rochosas, que cercavam o vale, o detonar de dois tiros se ouviu.
— É da espingarda de prata de Winnetou! — disse o escoteiro. Os comanchos foram detidos!
Se as flechas e os golpes de lanças produzissem ruído, o vale se assemelharia a uma pista onde lutassem centenas de leões. Mas como o seu ruído é surdo, ouvia-se apenas o detonar contínuo da espingarda de prata e a vozeria dos comanchos. Daí a minutos ecoou um estridente ivivivivivivi!
— Os apaches estão contentes, Mr.! — exclamou Sam jubiloso. Sam conhece esse grito, venceram os comanchos.
E o negro tinha razão, pois ao brado de vitória, seguiu-se profundo silêncio, ao mesmo tempo que, diante da fogueira, vimos desfilar vários vultos de cavaleiros. Eram comanchos. Houve, por instantes, grande lufa-lufa em torno da fogueira. Iam e vinham guerreiros trazendo mortos e feridos e os cânticos fúnebres recomeçaram. Old Death ficou indignado pela imprudência dos comanchos e blasfemava contra os mesmos. Depois de algum tempo, cessaram os cânticos e parecia que os vermelhos se haviam sentado para uma reunião deliberativa. Depois de meia-hora, foram expedidos guerreiros, em todas as direções do vale.
A PRIMEIRA TENTATIVA DE PAZ
Um dos emissários aproximou-se de nós. Old Death tossiu.
— São os peles-brancas? — perguntou o vermelho. — É para eles chegarem até a fogueira.
— Por ordem de quem?
— Do cacique.
— Que quer de nós?
— Vai haver reunião do conselho, na qual é permitido, desta vez, os brancos tomarem parte.
— Ah! É nos permitido! Oh! Como são bondosos! Tornamo-nos, afinal, dignos de ser ouvidos pelos inteligentes guerreiros comanchos?! Estamos aqui para descansar e pretendemos dormir. Diga ao cacique! De agora em diante, a guerra dos comanchos com os apaches não nos interessa.
O vermelho, então, desandou a suplicar. Essa atitude influiu no bom coração do velho, que, afinal, disse:
— Pois bem, como os senhores, sem o nosso conselho, não encontram o caminho da salvação, vamos dar-lhe. Mas não admitimos que o cacique dos comanchos nos dê ordens. Diga-lhe que venha até aqui, se quiser falar-nos. A distância é a mesma.
— Isso não lho permite a sua dignidade de cacique.
— Mas ouça, homem: sou um cacique muito mais importante e de maior fama do que ele. Nem sequer conheço o seu nome. Diga-lhe isso!
— Mesmo que ele concordasse em procurá-lo, não poderia, porque está ferido num braço.
— Desde quando os filhos dos comanchos não caminham com as pernas, e sim com os braços? Se ele não quiser procurar-nos, que vá ficando por lá mesmo. Nós não precisamos dele e nem de todos os comanchos.
A decisão com que foram pronunciadas essas palavras, fêz que o vermelho renunciasse a insistir.
— Vou transmitir o recado de Old Death ao cacique. É provável que ele resolva vir.
— Mas diga-lhe que venha só. Não estou disposto a participar de longas e fastidiosas deliberações. Vá!
O vermelho afastou-se. Vimo-lo dirigir-se à fogueira e entrar no círculo dos guerreiros, reunidos em assembléia. Esperamos algum tempo inutilmente. Depois, finalmente, vimos, do meio do círculo dos guerreiros, que se achavam sentados, erguer-se o vulto do cacique, o qual se encaminhou diretamente para nós. Ostentava as penas de águia no coque.
— Olhem, ele tirou ao cacique morto as suas insígnias e passou a usá-las. Como não chegará arrogante!
Quando se aproximou, vimos que, de fato, trazia o braço esquerdo amarrado. Estacou diante de nós, cheio de dignidade, à espera de que lhe dirigíssemos a palavra. Old Death nada lhe disse e nós o imitamos.
— Meu irmão pele-branca mandou pedir-me que viesse ter com ele? — perguntou o vermelho.
— Old Death não tem necessidade de humilhar-se, fazendo um pedido. O senhor desejava falar comigo. Portanto, do senhor partiu o pedido. Antes, porém, peço-lhe que se digne declarar-me o seu nome, porque ainda não o conheço.
— O meu nome é conhecido e pronunciado com respeito em todo o oeste bravio. Chamo-me “Veado veloz”.
— Há longos anos que venho atravessando todo o oeste bravio e nunca ouvi falar neste nome, nem com respeito e nem sem respeito... Deve tê-lo usado com muita discrição...! Contudo, já que sei o seu nome dou-lhe permissão para sentar-se ao nosso lado.
O cacique recuou um passo. Não admitia que lhe falassem em “permissão”; mas, dada a sua situação delicada, achou conveniente dominar-se. Sentou-se, lenta e gravemente, diante do escoteiro. Esperou que déssemos início à palestra, mas enganou-se. Old Death e nós conservamo-nos indiferentes e o vermelho teve de romper o mutismo:
— Os guerreiros comanchos vão efetuar uma grande reunião e desejam que os peles-brancas tomem parte nela, a fim de dar conselhos.
— É inútil tal resolução. Já ouviram tantas vezes os meus conselhos e não os seguiram! Eu, porém, estou acostumado a ver minhas palavras acatadas. Por isso, daqui por diante, me negarei a emitir opiniões, entre os comanchos.
— Mas o meu irmão pele-branca deve reconhecer que necessitamos da colaboração do seu espírito inteligente e da sua experiência de pioneiro das campinas!
— Finalmente! Com que, então, aprenderam agora com os apaches, que Old Death é mais inteligente do que os quinhentos comanchos reunidos? Como se saíram do combate de há pouco?
— Não nos foi possível transpor o vale, pois a saída estava obstruída com blocos pesados de pedra e enormes árvores.
— Sei disso! Os apaches derrubaram-nas à machadinha e, apesar do estrondo produzido pela queda das árvores, os “inteligentes” guerreiros comanchos não se aperceberam disso, porque, no momento, estavam a entoar os cânticos e as lamentações fúnebres, que bem se poderiam adiar. Por que não apagam a fogueira? Não vêm que se expõem aos mais graves perigos?!
— Éramos obrigados a proceder conforme o que fora deliberado no conselho. Agora, porém, agiremos com mais prudência. E contamos com o seu conselho!
— Estou convencido de que continuarão a desprezá-lo.
— Afianço-lhe que o seguiremos à risca.
— Se promete isto, estou pronto a sugerir-lhe alguma solução.
— Prometo.
— Os apaches não se acham na entrada e nem na saída do vale, mas em pleno recinto. Barricaram à frente e os fundos para operarem pelos dois flancos. Expulsá-los daqui é impossível.
— Tivemos mais baixas do que eles.
— Quantos guerreiros perderam os comanchos?
— O Grande Espírito chamou muitos dos nossos para junto de si! Tombaram mais de dez vezes dez dos nossos valentes guerreiros. Também a nossa cavalhada sofreu imensamente.
— Em vista disso, não deverão empreender nenhum ataque durante a noite, porque a mesma sorte os espera. De dia, as vantagens de posição estão, também, com os apaches. Em seguida, chegarão os reforços que Winnetou espera e os comanchos serão todos esmagados. De qualquer forma, os guerreiros do meu irmão estão condenados à morte.
— É esta, realmente, a opinião do pele-branca? Seguir-lhe-emos os conselhos se eles nos conduzirem à salvação.
— Como? Fala em salvação! Reconhece, agora, que tive razão, quando classifiquei este vale de armadilha. Neste ponto a que chegamos, só vejo duas tentativas de salvação. Digo tentativas, porque nenhuma das duas é meio seguro de salvação. Ou escalar os montes rochosos, ou entrar em entendimento com os apaches. A primeira só poderia ser tentada à luz do dia, à vista dos apaches, que os aniquilariam. Resta a segunda.
— Jamais o faremos! — urrou o cacique. — Os apaches não aceitarão negociações e exigirão a nossa morte.
— E eles têm razão para procederem assim. Os comanchos, em plena paz, assaltaram-lhes as aldeias, roubaram-lhes os haveres, levaram-lhes as mulheres e filhos, mataram e fizeram morrer no poste dos martírios os seus guerreiros. Tais ações infames estão a reclamar vingança. Assim, não é de admirar que os apaches não tenham contemplações com os senhores.
Foram palavras sinceras, tão sinceras que emudeceram o cacique.
— Uff! — exclamou por fim. — O senhor tem a ousadia de dizer isto a mim... a mim, o cacique dos comanchos?!
— Dir-lhe-ia, mesmo que o senhor fosse o Grande Espírito em pessoa! Foi uma infâmia, uma ignomínia da parte dos comanchos tratar de tal modo os apaches, que nada lhes haviam feito. Que lhes fizeram os emissários dos apaches, para que os matassem traiçoeiramente? Que lhes fizeram eles agora, para que empreendam a presente expedição de guerra, cujo fim é saqueá-los e matá-los? Responda-me!
Só depois de muito tempo foi que o cacique respondeu, furioso:
— São nossos inimigos.
— Não é verdade. Eles viviam em paz com os comanchos e estes nenhum emissário lhes enviaram, avisando-os de que o “machado da paz”, entre eles e os apaches, fora desenterrado. Procederam traiçoeiramente. São uns covardes! E os comanchos compreenderam que o seu procedimento foi indigno. Tanto é verdade, que o senhor mesmo confessa que os apaches “não aceitarão negociações e que exigirão a morte dos comanchos”. Não obstante, estou certo de que ainda seria possível firmar uma paz honrosa com os apaches. É uma sorte para os comanchos, que os apaches têm como cacique a Winnetou, que não é um sanguinário. É o único dos apaches capaz de entrar num entendimento humano com os comanchos. Envie-lhe um emissário para encaminhar as negociações! Se quiser, eu próprio o procurarei, para obter a sua indulgência para os comanchos.
— Os nossos guerreiros preferirão morrer a implorar a indulgência dos apaches!
— Bem, isto é com os senhores. O meu conselho está dado. Se o aceitam ou não, me é indiferente.
— Meu irmão não acha outra solução? Fala como se fosse um apache autêntico. Deve ser amigo desses cães.
— Sou amigo de todo o pele-vermelha, desde que não me trate com animosidade. Os apaches nunca me fizeram o menor mal. Por que, pois, ser inimigo deles? Os senhores, sim, quiseram maltratar-nos. O cacique mesmo quis prender-nos. Agora, diga-me, quem faz jus à nossa amizade, eles ou os senhores?
— O pele-branca usa o meu calumet e a minha “bolsa de medicina”; em virtude disso, as suas palavras devem ser como se fossem pronunciadas por mim. Por esse motivo não lhe posso dar a resposta que merece. Recuso o seu conselho. Pretende lançar-nos nas mãos dos apaches. Nós saberemos o que fazer.
— Então por que me pede conselhos? Estamos entendidos, pois, e nada mais temos que conversar.
— Sim, estamos entendidos — concordou o comancho. — Mas pode estar certo de que é nosso inimigo. Não pode ficar com o meu calumet e a minha “bolsa de medicina”. Intimo-o a devolver-me, antes de deixarmos este lugar; depois disso, receberá a paga de sua traição.
— Well! Estou de acordo. Aguardarei tranqüilamente o castigo que os comanchos me infligirão. Por enquanto, nada mais temos a tratar. Retire-se!
— Uff! — exclamou o cacique, indignado. Ergueu-se e, a passos lentos e cheio de soberba, voltou para a fogueira.
REUNINDO-SE A WINNETOU
— Esses bandoleiros são ferrenhos! — disse Old Death. — Só poderão salvar-se pedindo paz. Mas, em vez de fazê-lo, continuam fiando-se no número dos seus guerreiros. Como estão as cousas, Winnetou sozinho vale por cem comanchos. Isto o senhor talvez não acredite, porque é um novato no oeste bravio e não calcula a eficiência que pode adquirir, em determinadas posições, um guerreiro valente. Pasmaria se soubesse das bravatas de Winnetou juntamente com o seu amigo “Mão de Ferro”. Já lhe falei nelas?
Pela primeira vez, o velho tocava em meu nome.
— Não — respondi. — Quem é esse “Mão de Ferro”?
— Tem a mesma idade talvez, mas é homem mui diverso do senhor. Arroja, ao solo, a socos, o homem mais possante; bate-se em desafio com o demônio e é astucioso, como ninguém.
Ouvimos, então, um ruído por trás de nós e uma voz abafada dizer:
— Uff! Old Death aqui? Eu não sabia. Como folgo com isso! O velho virou-se assustado, puxou ligeiro da faca e disse:
— Quem está aí? Quem ousa espreitar-me?
— Meu velho irmão pele-branca reponha a faca na cinta; creio que não deseja apunhalar Winnetou!
— Winnetou?! Com todos os diabos! Só mesmo Winnetou seria capaz de espreitar Old Death, sem ser notado. É uma obra de mestre que eu não seria capaz de imitar...!
O apache aproximou-se e respondeu, sem mostrar que me conhecia:
— O cacique dos apaches não tinha a menor idéia de que Old Death estivesse aqui; do contrário, já teria vindo conversar com ele.
— Contudo expõe-se a grande perigo. Como conseguiu iludir a sentinela? Como passará, novamente, quando voltar?
— Não foi necessário enganá-la. Não vim nem da entrada e nem da saída do vale. Os peles-brancas são meus amigos. Posso confiar neles. Esse vale está situado dentro do território dos apaches e Winnetou transformou-o numa armadilha. Atraiu aqui o inimigo e agora vem assaltá-lo. Os apaches escavaram nas montanhas um caminho da altura de vários homens. Com o laço, desce-se para este caminho e daí para o solo. Os comanchos foram atraídos para aqui pelos meus batedores.
— Está resolvido a exterminá-los?
— Sim. Winnetou ouviu, há pouco, a sua conversa com a cacique e dela concluiu que os meus irmãos peles-brancas estão do lado dos apaches. Censurou o procedimento criminoso dos comanchos e concordou que nos assiste o direito de tomar vingança.
— Mas, para vingar-se, é preciso que ondas de sangue humano corram por este vale?
— Não viu que os comanchos não querem seguir o seu conselho, seguindo o único caminho que a prudência lhes indica? Portanto que seu sangue desafronte os nossos guerreiros Os apaches lhes darão uma prova de como costumam castigar traidores. É preciso, para que crimes semelhantes não se perpetuem.
— Vou insistir com o cacique para que aceite o meu conselho.
— Recusará. Concluí de suas palavras, que está de posse de suas relíquias. Como conseguiu obtê-las?
O escoteiro relatou tudo e, quando terminou, disse-lhe Winnetou:
— Como lhe prometeu devolvê-las, cumpra a palavra já. Restitua-lhe o calumet e a “bolsa de medicina” imediatamente e venham todos para junto de meus guerreiros, onde serão recebidos como amigos.
— Já?! Por quê?
— Dentro de três horas aqui chegarão mais de seiscentos guerreiros apaches. A maior parte está armada de espingarda. Balas sibilarão por todo o vale e a vida dos meus irmãos não estará em segurança.
— Mas de que forma e por qual caminho chegaremos até junto de seus guerreiros?
— Old Death faz semelhante pergunta?
— Hum! Já sei! Montamos a cavalo e galopamos até a fogueira, onde entrego as relíquias ao cacique; em seguida galopamos a toda a pressa ao encontro dos apaches. A guarda que nos vier ao encontro derrubaremos a pata de cavalos. Depois... sim, depois, como transporemos as trincheiras que barram a saída do vale?
— Muito facilmente. Deixe-me sair e dez minutos depois partam daqui. Quando chegarem à saída do vale, ali os receberei.
Ditas essas palavras, saiu recurvado.
— Então? Que dizem a tudo isso? — perguntou, triunfante, Old Death.
— É um homem extraordinário este Winnetou! — respondeu Lange.
— Quanto a isso não há dúvida! Fora este homem um soldado branco, e chegaria a marechal. Ai da raça branca, no dia em que ele se dispuser a reunir os vermelhos para lutar pelos direitos da sua raça. Ele, porém, ama a paz e sabe muito bem que a raça vermelha tem de perecer, um dia. E esta convicção lhe amargura, em silêncio, a grande alma.
Voltou o silêncio ao vale. Os comanchos continuavam reunidos em sessão. Transcorridos dez minutos, Old Death e nós montamos a cavalo e galopamos para a fogueira. O círculo dos comanchos abriu-se e nós cavalgamos para o centro. Se os seus rostos não estivessem pintados, veríamos a expressão de espanto, que os invadia.
— Que pretendem aqui? — perguntou o cacique, levantando-se dum salto. — Por que nos procuram montados?
— Vimos a cavalo, para desfilar em continência aos comanchos.
— O conselho ainda não chegou ao fim. Apeiem-se. São nossos inimigos e não podemos consentir que permaneçam montados. Ou quem sabe vem devolver-me as relíquias?
— Não seria uma imprudência de minha parte? Afirmou, ainda há pouco, que no momento em que eu lhe devolvesse, a inimizade que reina entre nós nos levaria ao poste do martírio?!
— E assim sucederá. Disse isso e manterei a minha palavra. Perecerão ao ódio dos comanchos!
— Pois temo tanto esse ódio que romperei imediatamente as hostilidades. Eis as suas relíquias! Agora quero ver o que sucederá.
Arrancou os dois objetos do pescoço e os atirou ao solo. Esporeou o cavalo, e, saltando por cima da fogueira, abriu uma brecha no círculo dos comanchos reunidos, do outro lado. Sam foi o primeiro a segui-lo, derrubando o cacique ao chão. A seguir galopamos nós, os Lange e eu. Dez comanchos foram espezinhados a pata de cavalo. Galopamos em direção a saída do vale, perseguidos pela gritaria satânica dos nossos, até então, “bons amigos”. Quando alcançávamos a saída do vale, ouvimos alguém exclamar em voz alta:
— Uff! Parem!
Era Winnetou.
Fizemos alto e apeamos. Um grupo de apaches tomou conta dos nossos cavalos, conduzindo-os pelas rédeas. Winnetou guiou-nos além das barreiras que fechavam o vale; vimos, em seguida, uma fogueira de fogo lento, na qual dois vermelhos se ocupavam em preparar um assado. Afastaram-se respeitosamente, quando nos aproximamos. Os outros apaches retiraram-se, também, depois de haverem maneado os cavalos. Mais adiante pastava uma tropa de cavalos, vigiados por guardas. O aspecto do acampamento era militar. Os movimentos eram tão disciplinados; e seguros, que pareciam o fruto de rigorosos exercícios.
— Os meus irmãos tenham a bondade de sentar-se junto da fogueira; mandei assar uma coxa de búfalo. Queiram servir-se do assado e esperar que eu volte.
— Vai demorar? — perguntou-lhe Lange.
— Não. Tenho de voltar ao vale. Os comanchos, dada a cólera em que estão pela súbita retirada dos senhores, poderão aproximar-se dos meus guerreiros, aos quais vou distribuir munição.
Afastou-se. Old Death se plantou comodamente perto da fogueira, puxou da faca e experimentou o assado. Estava excelente! Não havíamos comido nada, pois recusáramos, por intragável, a carne de cavalo que nos distribuíram os comanchos. A coxa de búfalo foi devorada por nós. Estava de lamber os dedos! Em seguida, voltou Winnetou; olhou-me interrogativamente e eu o compreendi. Queria perguntar-me se deveria continuar fingindo que não me conhecia. Em resposta, ergui-me tomei-lhe as duas mãos e exclamei:
— Meu caro irmão Winnetou!! Vê que não me foi necessário voltar ao rio Pecos para revê-lo!
Abraçamo-nos com efusão. Old Death mal podia conter o espanto.
— Que é isso?!! Conhecem-se?!! — exclamou.
— Como não?! — disse Winnetou com olhos em que brilhavam as lágrimas. — É o meu muito querido irmão e amigo “Mão de Ferro”!
— Mão... de... Fer... ro!!! — proferiu o velho com o rosto iluminado de contentamento. — E quando, rindo, confirmei as palavras de Winnetou, ele prosseguiu fingindo-se de encolerizado:
— Então mentiu-me e iludiu-me a boa fé. Pregou uma linda peça a Old Death! “Mão de Ferro”! E portava-se como um novato, obrigando-me a chamar-lhe greenhorn!
Deixamo-lo entregue ao seu espanto, pois Winnetou muito tinha a dizer-me.
— Meu irmão soube que tive de seguir para o forte Inge, pois...
— Sei de tudo — interrompi. — Quando tivermos mais tempo do que agora, direi como soubemos de tudo. Agora, porém, preciso saber onde estão os dez peles-brancas que estavam com os comanchos e que, juntamente com os dois apaches que se fizeram passar por topias, vieram para o seu acampamento.
— Foram-se embora.
— Embora! Para onde?
— Para Chihuahua, a fim de incorporar-se às tropas de Juarez.
— Mas de fato? De fato?
— Sim, tinham grande pressa, pois foram obrigados a perder muito tempo com os comanchos; agora precisam recuperá-lo.
— Que lástima, pois entre eles achavam-se dois homens ao encalço dos quais andamos!
— Uff! Uff! Aqueles de que me falou em nosso último encontro?! Oh! se eu soubesse! Precisavam estar em época determinada em Chihuahua e haviam perdido muito tempo em viagem. Winnetou estima Juarez e por isso auxiliou-os em tudo para que pudessem partir imediatamente. Forneci-lhes boas montarias e provisões; pus-lhes, ainda, à disposição dois guias, os supostos topias, os quais conhecem perfeitamente o caminho que, atravessando o Mapimi, conduz a Chihuahua.
— Mais essa! Bons cavalos, provisões e guias de confiança! E eu que já tinha esse Gibson nas mãos! Afinal, agora, me vai escapar!
Winnetou pensou um pouco e depois disse:
— Cometi, involuntariamente, um grande erro, que vou corrigir. Gibson cairá em suas mãos! A missão que me levara a Matagorda e da qual lhe falei, está resolvida; assim que tiver castigado esses comanchos, estarei livre e acompanharei os meus irmãos peles-brancas. Terão os melhores cavalos e, se não surgir algum imprevisto, às doze horas do segundo dia, alcançaremos o contingente dos brancos.
À esta altura, um apache veio correndo do vale e avisou:
— Os cães dos comanchos apagaram a fogueira e levantaram acampamento. Ao que parece, pretendem efetuar um ataque.
— Serão repelidos como antes — respondeu Winnetou. — Se meus irmãos querem acompanhar-me, vou levá-los a um local de onde tudo poderão ouvir.
Levantamo-nos imediatamente e ele nos conduziu até bem próximo da trincheira. Ali deu a Old Death uma ponta de laço que pendia da rocha e disse:
— Suba por esta corda até a altura de dois homens. Ali encontrarão arbustos e, por trás deles, o caminho de que lhes falei. Não posso acompanhá-lo na subida, pois preciso ir ter com os meus guerreiros.
Tomou da espingarda e saiu.
— Hum! — resmungou Old Death. — Subir doze pés de altura por uma corda tão fina! Não sou macaco. Em todo o caso, experimentemos!
Saiu-se bem. Acompanhamo-lo, com alguma dificuldade. Na rocha, lá em cima, havia uma árvore, em cujo tronco estavam amarrados os laços que pendiam. Ao lado erguiam-se os macegais que ocultavam o caminho, aberto ao redor da montanha. Ali ficamos escondidos a escutar. O vale estava envolto num silêncio sepulcral. Os meus ouvidos não percebiam o menor ruído a não ser o da respiração de Old Death, a meu lado.
— Que imbecis esses comanchos! Não acha, sir? — exclamou o escoteiro. — Lá do outro lado, à direita, há cavalos em movimento, sinto-o pelo cheiro; este é diferente do de cavalos em repouso. Embora pareça singular, o homem do oeste tem desses apuramentos dos sentidos. Agora o cheiro se aproxima e o meu ouvido percebe um leve ruído de patas de cavalos. Calculo que os comanchos desfilam lentamente, com o fim de forçar a saída.
Ouvimos, então, uma voz clara:
— Ntsca-ho!
Essas palavras significam: “agora”. Momentos depois, ouvimos o detonar de dois tiros da espingarda de prata de Winnetou. Seguiram-se-lhe tiros de revólveres. Ouviu-se um vozerio ensurdecedor e o retinir de machadinhas. Iniciara-se o combate.
Este não se alongou muito. Em seguida, por entre a gritaria dos comanchos, ouviu-se o ivivivivivi! dos apaches, anunciando a vitória. Ouvimos que os comanchos haviam batido em louca retirada, em direção ao centro do vale.
— Não lhes disse? Os apaches portam-se admiràvelmente. Atiram as flechas e as lanças de esconderijo seguro. Os comanchos estão amontoados, de forma que toda a flecha, toda a bala de Winnetou atinge o alvo. E, como o inimigo recuou, os apaches são bastante inteligentes para não segui-lo; ficarão entrincheirados onde se acham, pois sabem que os comanchos não conseguirão fugir.
Após a primeira derrota, os comanchos conservavam-se em silêncio, segundo o conselho de Old Death. E, estando a fogueira apagada, o inimigo não os podia distinguir e acompanhar-lhes os movimentos. Esperamos algum tempo. Ouvimos, depois, embaixo, a voz abafada de Winnetou:
— Meus irmãos de pele-branca podem descer novamente. O combate cessou e não recomeçará agora.
Descemos pelo laço e voltamos, em companhia dos caciques, para a fogueira.
— Os comanchos sofreram novo fracasso na sua tentativa de sair da cilada — disse Winnetou. — Estão vigiados e nada poderão empreender sem que eu saiba. Os apaches seguiram-nos, quando eles se retiraram, e estão estendidos em linha, de um a outro lado do vale, a observá-los rigorosamente.
A CHEGADA DE REFORÇO
Enquanto falava, virou a cabeça para a direita, como se estivesse escutando.
— Que ouve? — perguntei-lhe.
O meu amigo apontou para ar escuridão e disse:
— Winnetou ouviu que lá alguém cavalga por estrada pedregosa. É um dos meus guerreiros que vem chegando. Ele aqui apeará para certificar-se de quem está sentado à fogueira. Por isso postei-me diante dela, para que ele me reconheça.
O seu ouvido não o enganara. Chegou, a trote, um cavaleiro, que fêz alto e apeou. O cacique recebeu-o com um olhar não muito amável. Censurava-o, em silêncio, por haver cavalgado com muito ruído.
— Eles vêm vindo — avisou o recém-chegado.
— Quantos?
— Todos. Não falta um só. Quando Winnetou chama, nenhum apache fica na aldeia com as mulheres.
— A que distância estão daqui?
— Chegarão ao romper da alvorada.
— Bem! Leve o cavalo para junto dos outros e recolha-se à guarda para descansar!
O vermelho obedeceu imediatamente. Winnetou sentou-se novamente ao nosso lado e nós tivemos de falar-lhe da nossa estada na Hacienda del Caballero e também dos acontecimentos desenrolados em La Grange. Assim se passava o tempo, pois ninguém pensava em dormir. O cacique ouvia a nossa narrativa e fazia, aqui e ali, algumas perguntas e observações. E a noite foi passando e rompeu o dia. Winnetou estendeu então o braço para o oeste dizendo:
— Vejam, meus irmãos peles-brancas, como os guerreiros dos apaches são pontuais. Lá vêm eles.
Olhei na direção indicada. A cerração cobria o oeste, como se fosse um mar ondulante. Deste mar de neblina, surgiu um cavaleiro, ao qual se seguiram muitíssimos outros, um a um, como é hábito entre os índios. Quando o da frente nos avistou, parou logo. Reconhecendo Winnetou, aproximou-se, a trote lento. Era um cacique; à cabeça tremulavam duas penas de águia. Apesar dos cavalos não trazerem freios, os guerreiros montavam com o garbo, a elegância, a ordem e a uniformidade de um regimento de cavalaria européia. A maior parte deles estavam armados de espingardas e bem poucos de lanças, arcos e flechas. O chefe falou com Winnetou e, a um sinal deste, a tropa descavalgou. A cavalhada ficou com os que não tinham espingardas; os demais subiram à montanha, rumo de onde estivéramos. Winnetou acompanhou com o olhar as manobras dos seus guerreiros; quando o último havia desaparecido, voltou-se para nós e disse:
— Como vêem, meus irmãos peles-brancas, os filhos dos comanchos, a um simples sinal meu, estarão perdidos.
— Estamos convencidos disso! — respondeu Old Death — Mas pretende Winnetou derramar, de fato, o sangue de tanta gente?
— E merecem outra cousa? Que fazem os peles-brancas, quando um deles é assassinado? Não perseguem e prendem o assassino? E, quando o prendem, reúnem-se os caciques, em conselho, e condenam o criminoso à morte. E podem recriminar os apaches por procederem do mesmo modo?
— Os apaches não procedem do mesmo modo!
— Pode meu irmão comprovar o que diz?
— Sim! Castigamos o homicida, matando-o no cadafalso. Mas Winnetou vai mandar fuzilar, também, aqueles que nem sequer tomaram parte no assalto a aldeia dos apaches.
— Eles incorreram na mesma culpa, pois concordaram com o crime. Assistiram à morte dos prisioneiros apaches, supliciados no poste dos martírios. Estes eram os maridos de nossas mulheres e os proprietários dos nossos haveres, dos nossos cavalos, que eles roubaram!
— Mas não pode classificá-los de assassinos!
— Não sei o que pretende Old Death. Entre os da sua raça outros crimes, sem ser o de homicídio, são punidos com a morte. Os homens do oeste, quando pilham um ladrão de cavalo, matam-no. Se alguém rouba a mulher ou a filha dum pele-branca, este mata ao sedutor e também aos que tiveram conivência no rapto. Lá dentro do vale estão os ladrões de nossas mulheres e dos cavalos. Pretende que os agraciemos com aquilo a que os peles-brancas chamam ordem, comenda, gran-cruz ou cousa semelhante?!!
— De forma nenhuma. Mas o senhor pode perdoar-lhes, uma vez que lhe restituam os haveres roubados.
— De cavalos aceita-se a restituição, mas de mulheres não! Perdoá-los? Meu irmão fala como os cristãos, que sempre estão a exigir de nós o contrário do que nos fazem eles. Os cristãos, por acaso, perdoam-nos? E têm eles, aliás, alguma coisa a perdoar-nos? Chegaram até nós e nos roubaram as terras. Quando, entre os cristãos, alguém arranca o marco divisório e o transfere para além, na propriedade alheia, os senhores o metem num compartimento escuro a que dão nome de prisão. Mas, que fazem estes mesmos peles-brancas em nossas campinas? Onde estão as manadas de cavalos e búfalos que nos pertenciam? Os brancos, em grandes legiões, vieram para as savanas. Até os meninos traziam espingardas para matar-nos a caça, de cuja carne carecíamos para nossa alimentação. Injustamente despojaram-nos de nossas terras. E, quando o homem vermelho defendia a sua propriedade, era considerado assassino pelos brancos e fuzilado juntamente com os que o acompanhavam. Agora, quer Old Death que eu perdoe aos nossos inimigos que tantos males nos causaram, sem que nada lhes houvéssemos feito! Por que não nos perdoam os peles-brancas a todos nós? Que lhes fizemos, para sermos eternamente perseguidos e desbaratados por eles? Se nos defendemos, não fazemos mais de que cumprir o nosso dever! E o cumprimento desse dever a sua raça castiga com o ocaso próximo e inevitável da nossa raça, que tem o mesmo direito de viver que qualquer outra. Que fariam os brancos, se os tratássemos com a mesma crueldade com que nos tratam? Se violássemos seus direitos como violam os nossos, nenhum de nós escaparia com vida. E por que não podemos nós, os órfãos do direito, atuar do mesmo modo? Se tal fizermos, o mundo inteiro dirá, como aliás diz sempre, que o pele-vermelha é um selvagem, com o qual não se pode ter indulgência e compaixão, que jamais se “civilizará” e por isso deve ser banido da terra! E, com o seu procedimento bárbaro, os brancos têm provado possuir o mais leve resquício de civilização? Querem obrigar-nos a converter-nos à sua religião. Mostre-nos, antes, que religião é esta! O pele-vermelha cultua o Grande Espírito com ritual uniforme! Mas cada um dos brancos que aqui vem, cultua a Deus de modo diferente. Cada um quer tornar-se santo a seu modo! Conheci uma fé cristã que era boa. Era-nos ensinada por virtuosos e santos padres, que nos procuraram em nossas terras, desinteressadamente, não com o fim de matar-nos e roubar-nos. Estabeleceram entre nós as suas missões e lecionavam nossos pais e filhos. Peregrinavam, em doce paz, pelas tribos dos vermelhos e lhes ensinavam tudo o que era bom e útil. Mas foram enxotados junto com os vermelhos, e repelidos pelos brancos, para mais e mais longe. Assim os vimos morrer sem conseguir substitutos para eles. No lugar daqueles santos padres, “religiosos” de todos os matizes nos têm procurado. Cada um ensina de modo diferente a religião dos peles-brancas e mutuamente chamam-se mentirosos; entontecem-nos com o seu palavrório, que não compreendemos; cada um afirma que, sem nos convertermos à sua religião, não conseguiremos entrar nas “Eternas Campinas”! E, quando cansados de ouvir tantas tolices, viramos-lhes o rosto e desistimos de escutá-los, lamentam-se, dizendo que vão “bater o pó dos sapatos”, que lavam as mãos, como o fêz um pele-branca chamado Pilatos. Retiram-se e depois voltam acompanhados de outros peles-brancas, com os quais invadem as pastagens e retiram os cavalos, que, dizem, é o preço do seu serviço religioso, serviço que, aliás, não encomendamos. E, se não consentimos que se apropriem dos animais, não tarda em recebermos ordem de transferência para longe. É a resposta que lhe tinha de dar. Sei que não lhe agradará, mas também sei que Old Death, no meu lugar, não falaria de modo diferente. Tenho dito. Howgh.
Terminado o discurso, voltou e começou a olhar ao longe. Estava agitado e queria acalmar-se. Depois voltou-se de novo para nós e disse Old Death:
— Pronunciei um grande discurso ao meu irmão. Ele me dará razão, porque é um pele-branca justiceiro e nobre. Contudo, devo confessar-lhe que tenho verdadeiro horror a atos sanguinários. Meu coração é mais delicado que as minhas palavras de há pouco. Eu esperava que os comanchos me enviassem um emissário para negociar a paz. Não o fizeram e minha consciência não me pesará pelo que aqui suceder. Não obstante, porém, vou eu, em último e supremo esforço, para evitar derramamento de sangue, enviar-lhe um emissário, a fim de negociarmos a paz.
— Oh! Quanto me alegro! — exclamou Old Death, com os olhos casos de lágrimas. — Eu sairia deste local, com o espírito acabrunhado, se não tentássemos um último esforço para salvar aquela gente. Com o espírito acabrunhado e a consciência pesada, pois em parte sou também o culpado de lhe terem os comanchos caído nas mãos.
— Desse pecado posso absolvê-lo, pois eu os venceria, mesmo sem o seu auxílio — retrucou Winnetou.
— Mas sabe que se acham em caminho mais de cem comanchos?
— Winnetou sabe. Quando escapou com Inda-nischo, conseguiu cruzar pelo bando sem ser visto. São apenas cem. Se eles não se entregarem voluntariamente, morrerão encurralados no vale, como vai suceder com os outros, se não aceitarem a proposta de paz.
— Então apresse as negociações, para estar tudo resolvido, quando chegar o reforço.
— Winnetou não os teme. Contudo vai abreviar o entendimento.
— Já escolheu o homem que dirigirá as negociações?
— O difícil é a escolha, pois os tenho de sobra, com inteligência e coragem para essa missão. Mas eu prefereria que meu irmão pele-branca se encarregasse dessa tarefa.
— Aceito, prazeroso, o encargo. Entro no vale e chamo o cacique. Que condições servirão de base para a paz?
— Cada guerreiro que mataram, no assalto, indenizarão com cinco cavalos e cada um dos supliciados no poste dos martírios com dez.
— É barato. Mas, como não é tempo de migração de poldros bravios, difícil se tornará conseguirem tantos animais.
— Quanto ao saque, tudo terão de devolver-nos; terão de nos fornecer tantas moças novas, quantas foram às esposas e filhas que roubaram aos apaches. Além disso, exigimos a devolução das crianças que carregaram. Acha duras as condições?
— Não!
— Finalmente farei a escolha dum local, onde se reunirão os caciques dos apaches e dos comanchos para concertarem uma paz que deverá durar no mínimo trinta verões e trinta invernos.
— Se aceitarem as condições, estarão de parabéns.
— Esse local será o vale, onde agora os seus guerreiros estão encurralados. Para aqui deve, também, ser trazido tudo o que nos terão de entregar. Enquanto não cumprirem as condições estipuladas para a paz, os comanchos, que serão forçados a render-se imediatamente, ficarão nossos prisioneiros.
— Acho razoáveis essas condições e vou dar, imediatamente, início à minha tarefa.
A DERROTA DOS COMANCHOS
Pôs a espingarda no ombro, quebrou um galho de arbusto, que levou na mão, como distintivo de parlamentar, e tocou-se para o vale. Não pouco perigoso lhe seria aproximar-se, agora, dos comanchos; mas o velho escoteiro não conhecia temor.
Quando Winnetou viu que o velho já estava parlamentando com o cacique dos comanchos, conduziu-nos até a cavalhada tomada destes últimos. Havia cavalos ruins, mas também excelentes animais capazes de resistirem às mais forçadas cavalgadas.
— Prometi fornecer aos meus irmãos melhores cavalos — disse o apache. — Vou, agora, escolhê-los. O meu irmão e amigo “Mão de Ferro”, porém, receberá um dos de meu uso particular.
Escolheu cinco cavalos. Fiquei deslumbrado com o esplêndido animal que me tocara. Também os dois Lange e Sam ficaram entusiasmados. Este último arreganhou os dentes e disse:
— Oh! Oh! Que cavalo ganho Sam! Preto como Sam e bom como Sam! Oh! Oh!
Três quartos de hora após a partida, voltou o escoteiro de semblante carregado. Eu estava firmemente convencido de que os comanchos aceitariam as condições impostas por Winnetou, mas a fisionomia do velho revelava o contrário.
— Meu irmão tem a me dizer exatamente o que presumo — disse Winnetou. — Os comanchos não aceitaram.
— Infelizmente é isto mesmo.
— O Grande Espírito ensurdeceu-os para que recebam o castigo de suas ações infames. Ele não quer que sejamos indulgentes com eles. Que pretexto alegaram, para recusar a proposta?
— Esperam ainda sair vencedores.
— Disse-lhes que havia chegado um reforço de mais de quinhentos apaches?
— Não me acreditaram e riram-me na cara.
— Então, não há outro caminho; estão condenados à morte, pois os guerreiros que esperam chegarão tarde.
— Fico de cabelo arrepiado, quando me lembro que tanta gente será exterminada dentro de dois ou três segundos.
— Meu irmão tem razão. Winnetou não conhece temor, mas um calafrio lhe passa pela espinha, quando se lembra que terá de dar o sinal do extermínio. Basta-me estender a mão espalmada, horizontalmente, para que soe a descarga. Vou tentar, porém, ainda um último esforço. Talvez o Grande Espírito lhes conceda um raio de lucidez. Vou aparecer ao cacique e falar-lhe. Queiram os meus irmãos acompanhar-me até junto das tropas! Agora, se eu não fôr ouvido, que não caia sobre mim a ira do Grande Espírito. Darei o sinal macabro.
Acompanhamo-lo até a encosta do vale. Sustendo-se no laço, subiu até o caminho secreto. Ainda não o havia atingido, quando lhe enviaram uma carga de flechas que, felizmente, não o atingiram, pela grande distância em que se achava. Em seguida, o novo cacique dos comanchos desfechou-lhe um tiro com a espingarda do “Castor Branco”, agora em seu poder. Winnetou continuou a caminhar na rocha, com tamanha calma, como se a bala que batera a seu lado não lhe fosse destinada, ou como se nem tivesse ouvido o tiro. Parou e ergueu a voz. Falou durante uns cinco minutos, em voz alta e convincente. No meio da oração, ergueu o braço e de todos os recantos do vale ergueram-se os guerreiros apaches de armas acestadas. Desse modo, os comanchos puderam ver que se achavam inteiramente cercados. Foi um gesto sincero de Winnetou, a sua última tentativa para fazer o inimigo entregar-se. Prosseguiu no apelo aos comanchos. Subitamente caiu ao solo, oculto entre a macega e um segundo tiro foi disparado.
— O cacique dos comanchos tornou a atirar — disse Old Death. — É a sua resposta à proposta de paz que lhe está fazendo Winnetou. Agora ele há de... Veja, veja!
Com a mesma rapidez com que se abaixara, Winnetou reergueu-se. Apontou a espingarda de prata e puxou o gatilho. Um vozerio infernal respondeu-lhe.
— Matou o cacique — declarou Old Death.
Então Winnetou estendeu a mão espalmada, horizontalmente. Todos os apaches que cercavam o vale, apontaram as armas e... detonaram mais de quatrocentos tiros.
— Vamos, pessoal — disse o escoteiro. — Não assistamos a esta cena; é demasiadamente selvagem para os nossos olhos.
Voltamos para junto dos cavalos, onde o velho examinava o animal que lhe fora designado. Ouvimos mais uma salva e em seguida os brados de vitória dos apaches: Vivivivivivi! Depois de alguns minutos, Winnetou voltou para junto de nós. O seu semblante estava extraordinariamente sério, quando disse:
— Um profundo lamento de dor será ouvido em todas as cabanas dos comanchos, pois nenhum dos guerreiros voltará. Tombaram todos! O Grande Espírito quis que nossos mortos fossem vingados. Os inimigos não quiseram doutro modo e eu também não pude proceder diferentemente; mas meus olhos não se voltarão mais para este vale fatal! O que ainda há por fazer aqui, deixo-o a cargo dos meus guerreiros; partirei imediatamente na companhia dos meus irmãos peles-brancas. Não suporto a visão deste quadro!
PROSSEGUINDO PARA CHIHUAHUA
Providos do necessário, partimos daí a meia-hora. Winnetou fêz acompanhar-se de dez apaches bem montados. Como eu estava contente por abandonar aquele triste lugar!
O Mapimi fica situado no território das duas províncias mexicanas de Chihuahua e Chohahuila e constitui uma vasta baixada do planalto, que se eleva a 1.100 metros, acima do nível do mar. É uma planície deserta, cercada de todos os lados, com exceção do norte, de rochas calcáreas. Na planície vicejam apenas plantas muito rasteiras e ressequidas e, raramente, se deparam macegais. Mas o Mapimi não é tão pobre de água, como eu pensava. Há nele lagos, que, em verdade, na estação calmosa, perdem a maior parte das suas águas; contudo a que fica é suficiente para alimentar a vegetação das margens.
A um desses lagos, o de Santa Maria, nós nos dirigíamos. Do vale, de onde começáramos a viagem, o lago distava umas dez milhas alemãs; portanto, éramos obrigados a efetuar um dia de marcha puxada, após a velada de uma noite. Cavalgávamos quase só por desfiladeiros.
Durante a maior parte do dia não víramos a luz do sol, e, quando isso sucedia, para logo, outra montanha no-la encobrir.
À noitinha atingimos a lagoa. O solo era arenoso. Onde acampáramos, não havia árvores; apenas arbustos, cujos nomes eu ignorava. Era uma bacia dágua turva cercada de escassos espinhais; depois, seguia a planície, ao oriente da qual havia algumas montanhas pouco elevadas, onde desaparecera o sol. Refrescara. Mas o solo estava tão quente, que nele se poderia cozer um bolo. À noite a temperatura baixou e, pela madrugada, soprou um vento que nos obrigou a nos enrolarmos nas colchas de lã.
Ao alvorecer, prosseguimos viagem, primeiro em direção ao oeste. Ao meio-dia, encontramos as pegadas de uns dez cavaleiros. Winnetou afirmou serem dos fugitivos. Mostrou-nos a impressão de ferradura de oito animais, que eram os dos peles-brancas, e de dois sem ferraduras, que eram os dos apaches que lhes pusera à disposição. Também Old Death era de opinião que encontráramos a pista procurada. Infelizmente, pelas pegadas, concluímos que Gibson nos tomara uma dianteira de cerca de seis horas. A sua tropa deve ter cavalgado durante a noite toda, já na suposição, talvez, de que havíamos de segui-la.
GARIMPEIROS ASSALTADOS
Ao cair da tarde, Old Death, que vinha à frente, parou. Vindas do sul as pegadas de trinta a quarenta cavaleiros encontravam-se com as que seguíamos. Os sinais que se conservavam no solo, indicavam-nos que os cavaleiros eram índios e que haviam feito junção com o grupo de Gibson. Old Death perguntou:
— Que índios seriam estes? Naturalmente não eram apaches. Não podemos considerar promissor esse encontro.
— Meu irmão pele-branca tem razão — disse Winnetou. — Apaches não são. E a não ser eles, neste Mapimi só existem tribos inimigas.
Continuamos a cavalgar e, não demorou muito, atingíamos o local, onde os vermelhos se haviam encontrado com os brancos. Compreendia-se logo, pelos vestígios, que o grupo dos peles-brancas se colocara sob a proteção dos vermelhos. Os dois guias apaches haviam sido despedidos. As suas pegadas separavam-se das demais.
Depois de algum tempo, alcançamos um morro coberto de relva, e, coisa rara, um arroiozinho. Aí os nossos fugitivos haviam parado, a fim de dar de beber aos animais. Avistava-se o curso do arroio a uma boa extensão, para o noroeste. Old Death levou a mão aos olhos, em forma de pala, e olhou naquela direção. Perguntado pelo que havia, respondeu:
— Vejo ao longe dois pontos. Calculo que sejam coiotes. Mas que perderam esses animais ali? Creio que, se o fossem de fato, já deveriam ter fugido ao nos pressentirem, pois, em todo o oeste, não existe animal mais covarde do que esse lobo das campinas.
— Queiram meus irmãos calar! — disse Winnetou — Ouço alguma coisa.
Evitamos qualquer ruído e, realmente, ouvimos um débil chamado que partia dos dois pontos divisados por Old Death.
— É um homem — disse o escoteiro. — Vamos até lá. Montamos. Quando nos aproximamos, os dois coiotes desandaram a correr e fugiram. Estavam na margem do arroio, de cujas águas emergia uma cabeça semi-encoberta por um enxame de moscas que lhe sugavam os olhos, lábios, nariz e ouvidos.
— Pelo amor de Deus, salvem-me señores! — exclamava o homem, gemendo. — Já não posso resistir!
Apeamos.
— Que lhe aconteceu? — perguntou-lhe Old Death, em espanhol. — Como foi parar aí nágua? Por que não sai daí? O arroio não tem nem dois pés de profundidade.
— Enterraram-me aqui!
— Com todos os diabos! Por quê? Quem o fêz?
— Índios e brancos.
Com a curiosidade, havíamos esquecido a pista que perseguíamos e que se prolongava até o regato.
— Este homem deve ser, imediatamente, retirado dali! Vamos, pessoal! Como não temos ferramenta, utilizaremos as mãos.
— A pá está enterrada no fundo dágua, atrás de mim.
— Uma pá?! Como lhe veio esta ferramenta parar nas mãos?
— Sou gambusino (*). Costumamos ter sempre pá e picareta conosco.
Encontrada a pá, entramos nágua e pusemos mãos à obra. O leito do rio era formado de areia fina de modo que num instante terminamos o serviço. Vimos, então, atrás do garimpeiro fincada uma lança, à qual lhe haviam amarrado a cabeça, de modo que não podia movê-la. A boca estava apenas a três polegadas da superfície da água, de forma que lhe era impossível beber uma só gota dágua. Além disso, friccionaram-lhe o rosto com carne fresca, ainda a sangrar, a fim de atrair insetos que o martiriza-vam. Com pés e mãos atadas não podia libertar-se daquele suplício. O buraco onde o enterraram tinha duas varas de profundidade. Quando o arrancamos dali e retiramos as cordas, o garimpeiro desfaleceu. Não era de admirar: das costas desnudadas, açoitadas pelos algozes, jorrava sangue.
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(*) Procurador de ouro. Principalmente o que sai em pesquisa de minas de ouro e pedras preciosas (garimpeiro).
Daí a pouco, o pobre homem recuperava os sentidos. Conduzimo-lo para o ponto onde íamos acampar. Demos-lhe alimentos e, só depois disso, o interrogamos.
— Como gambusino, estou empregando minha atividade ultimamente numa bonanza (*), que fica a um dia de viagem daqui. Tenho um companheiro, chamado Harton, o qual...
— Harton? — interrompeu-o Old Death apressado. — Como é seu primeiro nome?
— Fred.
— Sabe onde nasceu e que idade tem?
— Nasceu em Nova Iorque e deve ter uns sessenta anos.
— Nunca disse se tinha família?
— Sua esposa faleceu. Tem um filho, que exerce um ofício, em Frisko. Conhece o homem?
Old Death, ao formular as perguntas, agitara-se visivelmente. Os olhos brilhavam e o rosto encovado corara. Esforçando-se por dominar-se, respondeu em tom já moderado:
— Encontrava-me seguido com ele. Deve ter estado em excelente situação financeira. Não lhe falou nunca a este respeito?
— Falou-me e muitas vezes. Era filho de pais honrados e fêz-se comerciante. A pouco e pouco, o seu negócio desenvolveu-se e ele ganhava muito dinheiro. Mas arruinou-se por culpa de um irmão leviano que a ele se grudara como sanguessuga.
— Como se chamava o irmão? Não lhe disse?
— O seu primeiro nome era Henry.
— É isso mesmo! Espero falar muito brevemente com seu companheiro Fred Harton.
— Será difícil. Teve, talvez, morte cruel, pois os bandidos que me enterraram no arroio levaram-no consigo.
Old Death fêz um movimento como se quisesse levantar-se, mas conseguiu dominar-se e perguntar, calmamente:
— Como se deu isso?
— Tal e qual relatei, quando fui interrompido pelo senhor. Harton era comerciante, mas o seu irmão, por meios pouco dignos, surripiou-lhe toda a fortuna. Contudo, ele parece que ainda estima aquele irmão embusteiro. Quando empobreceu, foi exercer a função de vaqueiro e muitas outras, porém a sorte nunca lhe sorriu. Por último fêz-se gambusino. Mas, teve ainda pior sorte: não possuía o espírito de aventura que requer essa profissão e fracassou.
— Então deveria abandoná-la.
— Tem motivos especiais para não fazê-lo. O irmão ingrato, ao que consta, era gambusino e teve muita sorte. Talvez espere encontrá-lo!
— Isto é contraditório. Esse irmão teve muita sorte como gambusino, e assim mesmo o logrou, fazendo-o perder todos os haveres. O gambusino, cem sorte, possui dinheiro em profusão.
— Mas era um gastador incorrigível. Não havia dinheiro que lhe chegasse! Como
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(* ) Mina de ouro ou prata
ia dizendo, o meu companheiro, depois que o irmão o arruinou, fêz-se gambusino e ultimamente foi contratado pelo meu chefe. Aqui vim a conhecê-lo e a estimá-lo. Isto é coisa rara, pois, em geral, os gambusinos são invejosos uns dos outros. De lá para cá, sempre temos saído juntos à procura de minas.
— Como se chama o seu chefe?
— Davis.
— Com os diabos, señor! Fala também o inglês?
— Tão bem, como o espanhol.
— Então tenha a bondade de falar o inglês, pois há aqui dois companheiros que não compreendem o espanhol e que muito se interessarão pela sua palestra.
— Por quê? São também gambusinos?
— Saberá logo. Ouça, Mr. Lange, este homem aqui é garimpeiro e se acha a serviço de um tal Davis de Chihuahua.
— Como? Davis? — exclamou Lange — Pois este é o chefe do meu genro.
— Não se apure, sir! Pode haver mais de um Davis.
— Se este senhor se refere ao senhor Davis que se ocupa da compra e exploração de minas de ouro e prata, então é o mesmo, pois só há este em toda Chihuahua — esclareceu o gambusino.
— É isto mesmo! Conhece este cavalheiro, sir? — perguntou Lange.
— Naturalmente. Estou a seu serviço.
— E também conhece o meu genro?
— Quem é o seu genro?
— Um alemão de nome Uhlnann, que estudou em Freiberg.
— Exatamente. É o diretor dos serviços das minas. Nestes últimos meses a sua situação desenvolveu-se de tal modo, que está em vésperas de entrar como sócio nos negócios do señor Davis. Então o senhor é o seu sogro?
— Sim. Sua esposa, Agnes, é minha filha.
— Nós a tratamos por señora Ines. Ela é conhecida de todos nós, sir! Ouvi dizer que seus pais moram em Missouri. Pretendem visitá-la?
Lange respondeu afirmativamente.
—Então nem precisam ir até Chihuahua. Dirijam-se diretamente para a bonanza, a que me referi há pouco, e que dista um dia de viagem daqui. Nunca ouviu falar nesta bonanza? Pois pertence a seu genro! Ele, há tempos, fêz uma viagem de convalescença aos morros e descobriu uma mina de ouro, como não existe igual por aqui. Señor Davis pôs-lhe à disposição o pessoal e o material necessário para a exploração imediata. E, em vista dos ótimos resultados obtidos nessa mina, o señor Davis resolveu dar sociedade ao señor Uhlmann em todos os seus negócios, o que é de incalculável vantagem para ambos.
— Que está dizendo! Ouviu, Will?
Esta pergunta fora dirigida ao filho. Este nada respondeu: soluçava; eram lágrimas de alegria as que chorava.
Nós outros nos alegrávamos, também, com a felicidade de nossos dois companheiros. Old Death, porém, franziu o sobrecenho e o seu rosto tornou-se tristonho; não pude compreender a causa dessa transformação.
— Auxiliei Harton, na organização dos serviços da bonanza — prosseguiu o gambusino. — Em seguida, partimos, a fim de explorar o Mapimi. Durante três dias cavalgamos por esta zona, não encontrando, o menor sinal da existência de novas jazidas. Hoje, pela manhã, paramos neste arroio. Quase não dormíramos a noite passada, e estávamos cansados. Adormecemos involuntariamente. Quando acordamos, estávamos sitiados por um grande grupo de índios e peles-brancas.
— Que índios eram?
— Quarenta tschimarras e dez brancos.
— Tschimarras! São os mais valentes dos bandoleiros peles-vermelhas! No entanto cometeram a covardia de investir contra dois viajantes indefesos. E por quê? Vivem em estado de guerra com os brancos?
— Nunca se sabe em que situação se está perante eles. Não são nem inimigos e nem amigos dos brancos, o que é pior do que o inimigo declarado. Nunca se sabe com quem se pode contar.
— Por que os maltrataram deste modo? Os senhores os ofenderam?
— Nem de leve. O señor Davis nos suprira de tudo o que é necessário, para passarmos longos dias num deserto como este. Cada um de nós possuía dois cavalos, boas armas, munições, ferramentas e provisões.
— Hum! Isto é o suficiente para que tais facínoras cometam semelhantes atentados.
— Perguntaram-nos quem éramos e o que andávamos fazendo. Quando lhes respondemos com a verdade, eles ficaram furibundos e afirmaram que o Mapimi, com tudo o que contêm, pertence-lhes. Exigiram, depois, que lhes entregássemos os nossos haveres.
— E obedeceram?
— Eu não. Harton foi mais prudente e entregou-lhes tudo o que possuía; eu, porém, tomei da espingarda, não para alvejá-los, pois seria rematada tolice lutar contra cinqüenta; pretendi apenas amedrontá-los. Fui imediatamente subjugado, atirado ao solo e despojado de tudo o que trazia. Os peles-brancas não nos acudiram! Eles nos fizeram algumas perguntas a que me neguei a responder; espancaram-me, então, com o laço. Harton foi novamente mais prudente do que eu. Respondeu-lhes a tudo, inclusive a respeito da nova bonanza do señor Uhlmann, a qual ele foi obrigado a descrever. Interrompi-o para que ele não desse tais informações. O meu companheiro percebendo, finalmente, que os homens, de posse daquelas informações, tentariam assaltar a mim, silenciou. Então amarraram-me e enterraram-me naquele arroio. Harton recebeu, também, tantas pancadas, que foi obrigado a responder a todas as perguntas. E, mesmo assim, na suposição de que houvesse prestado informações falsas, levaram-no consigo e ameaçaram-no da mais horrível morte, se até amanhã de noite não os conduzisse à bonanza.
O rosto de Old Death tomou uma expressão terrível. Assemelhava-se a de um bandido que resolvesse assassinar a presa, sem complacência. Com a voz quase rouca, perguntou:
— E acredita que daqui seguiram para a bonanza?
— Claro. Projetam assaltar e roubar a mina. Lá existe grande quantidade de munições, víveres e objetos de alto valor para ladrões. Também existe prata no depósito.
— Com os diabos! O roubo será dividido.
— Os brancos ficam de posse dos metais e os índios do resto. Que distância vai daqui até lá?
— Um dia de viagem puxada, de forma que amanhã à noite eles chegarão lá, desde que Harton não siga o conselho que lhe dei.
— Qual?
— Aconselhei-o a conduzir os homens por um caminho mais longo. Eu esperava, como sucedeu, que alguém me viesse libertar. Neste caso, pediria ao meu salvador que cavalgasse apressadamente para a bonanza, a fim de prevenir o pessoal do assalto iminente. Eu mesmo não poderia acompanhá-lo, pois fiquei sem cavalo.
O velho quedou-se pensativo e depois disse:
— Preferia partir imediatamente, mas as pegadas são visíveis apenas de dia. Não poderá fazer uma descrição do caminho com tal precisão, que me seja possível viajar a noite inteira, sem cuidar de sinais?
O homem respondeu negativamente e nos preveniu contra qualquer cavalgada noturna. Old Death resolveu, afinal, adiar a partida para a manhã seguinte.
— Nós, dezesseis homens, temos quarenta vermelhos e dez brancos a enfrentar — prosseguiu o escoteiro; — sou de opinião que não devemos temê-los. Que armas tinham os tschimarras?
— Apenas lanças, arcos e flechas. Mas tomaram as nossas duas espingardas e os dois revólveres — respondeu o gambusino.
— Não lhes adianta muito, pois não sabem manejá-los. Além disso, procuraremos tirar partido de todas as desvantagens que se lhes apresentem. Preciso conhecer a posição em que se acha situada a bonanza. Disse que só será achada por acaso, o que não compreendo. Numa bonanza deve haver água e esta corre sempre pelo desfiladeiro; estes são fáceis de ser encontrados nesta região onde há ausência quase completa de mato. Descreva-me o local!
— É um desfiladeiro encravado bem no fundo da mata, cercado de escarpadas rochas calcáreas; estas são ricas em jazidas de prata, cobre e chumbo. Ao fundo do desfiladeiro, brota a água que forma um arroiozinho. O desfiladeiro, ou antes o vale, tem a extensão de umas duas milhas inglesas. Nem um só ponto da escarpa permite a descida para a esplanada. A entrada única é pela saída da água do vale. Ali as rochas são tão próximas, que mal permitem a entrada a dois ou três cavaleiros.
— O local é bom para resistir a um assalto?
— Claro. Segunda entrada não existe, a não ser para os atuais habitantes do vale. No meio deste é que estão instalados os trabalhos. O señor Uhlmann preparou uma subida, num local em que as rochas formam uma espécie de degrau. A subida é facilitada por troncos de árvores, que mandou derribar, e está tão oculta que poucos dos trabalhadores a conhecem.
— Oh! Aposto como descobrirei logo o vale e essa famosa escada. Os senhores mesmos se encarregaram de deixar a pista, derrubando árvores. Então não sabem que árvore derribada é sinal seguro da proximidade de gente.
— Engana-se! As árvores foram cortadas, os troncos arrancados do solo e este aterrado, de modo que desapareceu o buraco e com ele a pista. Foi tarefa penosa. Mais de trinta homens participaram do trabalho.
— Tantos trabalhadores tem o señor Uhlmann?
— Atualmente, quase quarenta.
— Então não precisamos temer o assalto. Como organizou ele a comunicação com o resto do mundo?
— Por meio de tropas de mulas que vêm, de duas em duas semanas, trazer o necessário para o abastecimento do vale, ao mesmo tempo que conduzem os metais extraídos.
— O señor Uhlmann mandou guarnecer o vale?
— Apenas à noite, quando tudo dorme. Além disso um caçador, contratado para este fim, percorre diariamente as cercanias, em busca de caça e em exploração da zona. A este nada escapará.
— Há edificações?
— Não. O señor mora numa grande barraca onde, depois do serviço, todos se reúnem. Outra barraca, armada do lado, constitui o depósito de materiais e provisões. Ambas estão encostadas à parede do vale e ao seu redor erguem-se várias cabanas feitas de galhos de árvores e que servem de moradia aos trabalhadores.
— Mas um estranho que, por acaso se poste a um dos cantos do vale, facilmente verá a iluminação das barracas.
— Absolutamente não. Estas são cobertas com lençóis de borracha escura e não de linho, como é costume fazer-se.
— Então, sim! E no tocante ao armamento?
— Cada trabalhador está armado com espingarda de dois canos, revólver e faca.
— Então que venham os tschimarras! Claro que precisaremos chegar ao vale antes deles. Amanhã forçaremos os cavalos. Por hoje só nos resta dormir. A tarefa de amanhã exige que, tanto nós como os animais, estejamos descansados.
REVELAÇÕES DOLOROSAS
Não obstante haver passado em claro a noite anterior, eu não conseguia conciliar o sono. A idéia de surpreender Gibson, agitava-me. Também Old Death velava. Virava-se e revirava-se continuamente, o que nunca o vira fazer. Ouvi-o gemer e, por diversas vezes, murmurar palavras que não pude compreender, embora me achasse deitado a seu lado. Sua atitude, ao ouvir pronunciar o nome do gambusino Harton, chamara-me a atenção. Os laços que o ligavam àquele homem seriam os de uma simples relação?
Passaram-se umas três horas. Old Death ergueu-se e escutou a nossa respiração a ver se dormíamos. Depois levantou-se e saiu, seguindo o curso do arroio. O apache, que estava de sentinela, deixou-o passar. Esperei. Passou-se um quarto de hora, outro e mais outro e o velho não voltava. Então, levantei-me e saí à sua procura.
Havia-se afastado muito. Só depois de caminhar uns dez minutos é que o avistei. Estava parado à beira do arroio, de costas para mim. Contemplava meditativo a lua. Não me esforcei por caminhar em silêncio, mas pisava forte sobre a grama. Ter-me-ia percebido logo, se os seus pensamentos não estivessem a divagar por distantes regiões. Somente no momento em que o alcancei foi que, virando-se bruscamente, sacou do revólver e disse:
— Com os diabos! Quem é?! Por que anda a espreitar-me?! Quer que o cumprimente com uma bala e...
Conteve-se. Tão distantes se achavam os seus pensamentos que só agora me reconhecia.
— Ah! É o senhor! — prosseguiu. — Realmente, quase lhe atiro; tomei-o por um estranho. Por que não dorme?
— Porque a idéia fixa em Gibson e Ohlert não me deixam dormir.
— Ah, sim! Mas não se preocupe; amanhã estarão definitivamente em nossas mãos. Oh! Se estarão! De qualquer forma, não posso continuar a persegui-los. Sou obrigado a ficar na bonanza.
— Ficar na bonanza?! O senhor?! Por que? É segredo?
— Sim!
— Então não serei indiscreto e vou deixá-lo só. Ouvi os seus gemidos e murmúrios e julguei que se tratasse dalgum sofrimento que me fosse dado suavizar, com o bálsamo da minha solidariedade. Boa noite, sir!
Virei-me para retirar-me. Deixou-me dar uns passos e depois disse:
— Não vá! Teve razão ao supor que eu padecia dalgum sofrimento profundo e doloroso; sofro horrivelmente e não encontro lenitivo para a mágoa que me despedaça o coração! Quero desabafar-me. Conheço-o. É um moço discreto e cheio de nobreza que será incapaz de julgar-me com excessivo rigor. Vou confiar-lhe a dor que me acabrunha. Não preciso dizer-lhe tudo, basta alguma coisa; o resto o senhor descobrirá.
Enfiou-me o braço e caminhamos.
— Que juízo faz de mim? — perguntou-me à queima-roupa. — Que julga do meu caráter, do... do... do Old Death sob o ponto de vista moral?
— Considero-o um homem de honra e assim aprendi a estimá-lo.
— Hum! O senhor já praticou algum crime?
— Hum! — murmurei também — Atormentei muito meus pais e professores. Pulei as cercas para furtar frutas do pomar vizinho. Espanquei os meninos que não pensavam como eu; matei gatos a pedradas, etc, etc.
— Não diga tolices! Estou falando em crimes verdadeiros, passíveis de cadeia!
— Ah! Disso em nada me acusa a consciência.
— Então é um homem feliz! Invejo-o; não há castigo mais cruel, do que ter-se a consciência carregada de crimes! Mil vezes o presídio, mil vezes o patíbulo!
A sua agitação se comunicava a mim. Sim, este homem arrastava consigo o remorso de um grave crime, do contrário não sofreria dor tão acerba. Não lhe respondi. Depois de uma pausa, ele prosseguiu:
— Não esqueça isto jamais: há uma justiça divina em confronto com a qual a humana não passa de brinquedo de criança. A justiça divina se nos apega à consciência onde, noite e dia, nos repete a sua sentença inevitável e irrecorrível! Que o diga eu!! E por que digo exatamente ao senhor? Porque, apesar de sua pouca idade, lhe tenho grande confiança e também porque tenho o pressentimento de que amanhã me sucederá uma desgraça, que me impedirá de concentrar-me e confessar os meus pecados.
— Deixe de idéias tristes, sir! Pensa morrer amanhã?!!
— É este justamente o meu pressentimento! Ouviu, há pouco, o gambusino falar num comerciante Harton? Que julga do irmão desse negociante?
Então, percebi tudo; respondi-lhe brandamente:
— Simplesmente acho que é um leviano!
— Pensa que o julgou com benevolência? Pois, em verdade lhe digo, o leviano é um indivíduo muito mais perigoso do que o mau. O mau denuncia-se de longe e o leviano, em geral, é um indivíduo amável, a blasonar sentimentos nobres. É mais perigoso que o primeiro. Mil indivíduos maus são suscetíveis de emenda nas casas de correção. Possuem algum bom caráter que, muitas vezes, está meramente adormecido, por circunstâncias de que não são culpados. Mas, entre mil levianos, talvez nem um se corrija, pois a leviandade não tem ponto onde se pegue para conduzir ao bom caminho. A leviandade não tem caracteres uniformes. Múltiplas e variadíssimas são as suas modalidades. O leviano não é indivíduo mau, é mais do que mau! Ora, mau nunca fui eu, mas fui leviano!... Um leviano, pois aquele Henry Harton que arruinou o irmão que tudo fizera por ele, aquele irmão desalmado... sou eu!
— Mas, sir, o senhor se apresentou com um nome bem diferente.
— É isso mesmo. Naturalmente. Mudei de nome, porque desonrei-o; tornei-me indigno de usá-lo. Nenhum criminoso gosta de falar nos seus crimes. Lembra-se do que lhe disse em Nova Orleans?
Que minha santa mãe me indicara o caminho da felicidade, mas que eu a fui procurar num caminho bem diferente?
— Ah! Lembro-me.
— Não quero mais usar de metáforas, falarei claro: minha mãe, já moribunda, mostrava-me, ainda, o caminho da virtude, mas eu, mais tarde, tomei o da leviandade. Queria enriquecer, possuir milhões. Especulei com imprudência e nesse afã desbaratei a herança paterna e enxovalhei a minha honra comercial. Depois de arruinado, fiz-me garimpeiro. A sorte sorriu-me e encontrei ouro em profusão, ouro que eu esbanjava com a mesma facilidade com que o encontrava, pois me tornara um jogador incorrigível! Durante meses consecutivos trabalhava na extração de ouro para, depois, perdê-lo em cinco minutos, jogando-o num só número! Desejaria jogar centenas de milhares de dólares para, assim, arrebentar os banqueiros e, como estes não aceitavam jogo franco, fui para o México, onde encontrei ouro que deitei todo fora no jogo. Esta vida me levaria fatalmente à ruína. Viciei-me no ópio. Era um homem musculoso, um gigante. Desci moral e fisicamente até a categoria de vagabundo. Ninguém mais me olhava e todos os cães me latiam aos calcanhares. Foi neste estado que me encontrei com meu irmão, que estava estabelecido com casa de negócio, em Frisko. Reconheceu-me, apesar da minha ignomínia, e levou-me para sua casa. Antes não o tivesse feito! Devia ter-me deixado perecer na miséria! Se assim tivesse feito, ter-se-ia poupado à desgraça e a mim a esse remorso terrível.
Silenciou por um instante. Estava agitadíssimo. Fazia pena! — Meu irmão, depois de algum tempo, — prosseguiu — julgou que me havia regenerado e deu-me uma colocação em seu estabelecimento. Mas o demônio do vício achava-se apenas adormecido. Não tardou a despertar e, quando acordou, pegou-me com mais violência, nas suas garras cruéis. “Avancei” na caixa para forçar a sorte! Cheguei a falsificar cheques para sacrificar o produto ao Moloch (*) do jogo. Perdi, perdi, até que não tive mais salvação e então desapareci. Meu irmão resgatou os cheques falsificados e arruinou-se. Desapareceu, também, juntamente com um filho menino, depois de haver
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(•) Moloch — Boal Moloch, deus dos cartagineses, que exigia grandes sacri-fídos anuais, fazendo inúmeras vítimas.
enterrado sua esposa, a qual, sofrendo do coração, morreu ao saber do desastre a que eu arrastara o marido. Isso soube eu, depois de muitos anos, quando arrisquei a voltar para Frisko. A impressão que me causou tal notícia conduziu-me a melhor caminho. Voltei a ser gambusino. Fui afortunado e consegui juntar a soma suficiente para ressarcir ao meu irmão; mas, quando quis fazê-lo, este havia desaparecido. Desde então procurei-o em toda parte, em vão. Essa vida nômade fêz que em mim se desenvolvessem as qualidades de escoteiro, profissão que abracei. Corrigi o mais que pude os meus defeitos. Abandonei o jogo, mas não o ópio. Não fumo ópio, mas o masco. Misturo o veneno ao fumo que uso, e o tomo em doses reduzidas. Eis a minha confissão. Cuspa-me na face e pise-me sobre o corpo! Não mereço outra cousa!
Largou-me o braço, sentou-se na relva, pousou os cotovelos sobre os joelhos e, com as faces nas mãos, conservou-se assim por muito tempo, sem pronunciar uma sílaba. Impressionado eu permanecia a seu lado. De repente, ergueu-se, fixou-me um olhar sombrio e disse:
— Ainda se conserva aqui?! — Não tem pavor deste réprobo?
— Pavor?! Não! Comove-me o seu caso! O senhor pecou muito, não há dúvida, mas sofreu e sofre imensamente e o seu arrependimento é sincero. Como posso eu, mesmo em silêncio, sentenciá-lo?! Sou, também, pecador e ainda não sei por que provações passarei na vida.
— Sofri e sofro imensamente! Tem razão, muita razão! Oh! Deus meu! Que são os clarins do mundo inteiro contra a voz da consciência de quem se sabe um grande pecador! Anseio por penitenciar-me e hei de reparar, quanto possível, o mal que fiz. Amanhã encontrarei, finalmente, o meu irmão. Isto é como se um novo sol cheio de esplendor raiasse para mim. Tenho um pedido a fazer-lhe. Promete atender-me?
— De todo o coração!
— Então ouça: tenho motivos especiais para conduzir o serigote às costas, embora, às vezes, não possua cavalo. No seu forro acham-se ocultos objetos que destino exclusivamente ao meu irmão. Se houver qualquer imprevisto, quer encarregar-se de entregá-los?
— Oh! Seu pedido é muito modesto!
— Será um grande serviço que me prestará. E com isso demonstro a confiança que lhe tenho. Tome, pois, nota: no serigote, dentro do estofamento! Agora, retire-se, sir! Deixe-me só! Tenho o pressentimento de que esta é a última noite de minha vida. Vou, por isso, dar balanço nas minhas ações. Amanhã talvez já não tenha tempo para isso. Peço-lhe, pois, que vá! Em nome de Deus, durma tranqüilamente!! Ser-lhe-á fácil, pois não tem, como eu, uma consciência pesada. Boa noite, sir!
Voltei lentamente para o acampamento, onde me deitei. Só depois de horas é que consegui adormecer e o velho ainda não havia regressado. Quando acordei, ele já estava montado, pronto para a partida, como se, tivesse pressa de ver realizado o seu fúnebre pressentimento. O gambusino declarou que, apesar de umas leves dores que sentia nas costas, se achava bem disposto. Montou na garupa de um dos apaches; em seguida partimos.
TRISTE PRESSENTIMENTO QUE SE REALIZA
Continuamos a cavalgar por sobre desfiladeiros até quase o meio-dia, Depois, porém, passamos a cavalgar em planícies relvosas, durante horas e horas, tendo sempre diante dos olhos as pegadas dos tschimarras.
O gambusino nos fêz parar e disse, tranqüilamente:
— Aqui precisamos abandonar as pegadas. Harton seguiu o meu conselho, guiando os inimigos por um caminho mais longo. Nós, porém, dobraremos à direita e seguiremos em linha reta, chegando antes deles à bonanza.
— Well! Seguiremos a sua indicação.
Ao noroeste, cuja direção tomáramos, divisavam-se blocos azulados no horizonte. O gambusino esclareceu: eram morros. Estes se achavam, porém, a uma distância tal, que, só depois de horas, foi que os distinguimos. Pouco depois do meio-dia, almoçamos. Depois prosseguimos com redobrada ligeireza. Finalmente, avistamos o primeiro arbusto, o qual, porém, estava seco; em seguida surgiram outros e outros, até que fomos obrigados a contornar alguns macegais, em meio da campina. Os nossos animais portavam-se admiràvelmente. Eram superiores aos que nos foram dados pelo señor Atanásio. Trotavam com a mesma agilidade, do início da carreira.
Os morros se aproximavam. E não era sem tempo, pois o sol estava prestes a ocultar-se por trás deles. Vimos então a primeira árvore. Erguia-se no meio da campina e achava-se quase totalmente desgalhada pelos temporais. Saudamo-la, como se fora a própria mata. Depois, vieram outras, à direita e à esquerda e, à nossa frente, surgiu um aglomerado delas, formando um pequeno bosque, cujo solo se elevava até formar um vale. Cavalgávamos pelo desfiladeiro, quando avistamos pegadas no solo.
— Pegadas! — exclamou o gambusino. — Quem teria cavalgado por aqui?!
Apeou-se, a fim de examiná-las.
— Identifico-as, sem apear-me — disse o escoteiro. — Estes sinais só podem ter sido deixados por uma tropa de uns quarenta cavaleiros. “Chegamos tarde!
— Os tschimarras?
— Tenho certeza, señor!
Winnetou apeou também. Seguiu a pista e declarou:
— Dez peles-brancas e quatro vezes mais peles-vermelhas passaram por aqui há uma hora.
— Então que diz a isso, señor gambusino? — perguntou Old Death.
— Mesmo que assim seja, poderemos chegar ainda antes deles à bonanza. Os inimigos, ao demais, farão um reconhecimento antes de efetuarem o assalto. E isso rouba tempo.
— Oh! Já terão obrigado Harton a descrever-lhes toda a zona com abundância de minúcias, a fim de evitar perda de tempo em explorações.
— Mas os índios costumam atacar, antes de romper o dia.
— Deixe de tolices! Há brancos entre os vermelhos e aqueles mandarão às urtigas os costumes indígenas. Aposto como entrarão na bonanza ainda de dia claro. Galopemos, pois, e não percamos tempo em discussões inúteis.
Esporeamos os cavalos e estes pareciam voar, campina afora. Seguíamos direção bem diferente da tomada pelos tschimarras. Harton não os conduzira para a entrada do vale, mas para um dos seus cantos. Procurávamos, pois, atingir a entrada o mais depressa possível. Infelizmente, porém, anoitecia muito ligeiro. Na planície ainda podíamos cavalgar sem embaraços. Mas não tardou a vir um trecho de mato, com terreno íngreme. Os arbustos e cipós nos batiam no rosto, o que nos obrigou a descer e puxar os animais pelas rédeas. Levávamos os revólveres destravados, às mãos, pois a todo instante podíamos topar com o inimigo. Por fim, ouvimos o murmúrio de água.
— Estamos na entrada da bonanza — cochichou o gambusino. — Tomem cuidado! À direita é o arroio. Caminhem, um a um e à esquerda, contornando a rocha.
— Bem! — exclamou Old Death. — Mas não há sentinelas por aqui?
— Agora, ainda não. Só depois que o pessoal se recolhe a dormir.
— Bela organização esta!... E ainda mais se tratando duma bonanza, Como é o caminho? A escuridão é grande.
— Sempre em linha reta. O solo é plano. Não há obstáculos desde aqui até as cabanas.
A escuridão não permitia que víssemos o solo livre do vale. À esquerda, erguiam-se rochas íngremes. À direita corria o regato. Assim continuamos, sempre puxando os animais pelas rédeas. Old Death, o gambusino e eu vínhamos à frente. Nisso pareceu-me ver um vulto semelhante a um cão correr no espaço entre nós e a parede do vale. Chamei para o fato a atenção dos companheiros. Pararam e puseram-se a escutar. Nada se ouvia.
— A escuridão ilude — disse o gambusino. — Além disso, por trás de nós está o local onde se acha a escada secreta para escalar o morro.
— Então, o vulto talvez tenha descido por ela.
— Se assim fôr, não precisamos recear cousa alguma, pois tratar-se-á de amigos. Mas um morador da bonanza nada perdeu, por aqui, a essas horas. O senhor enganou-se, señor.
Pouco depois divisamos uma luz escassa que atravessava o tecido da barraca. Ouvimos vozes. Nós os três avançamos.
— Não esperemos pelos outros — disse Old Death. — Eles que nos esperem, diante da cabana, até falarmos com o señor Uhlmann.
O ruído dos cascos de nossos cavalos devia ter sido ouvido no interior da cabana. Não obstante, não abriram a porta.
— Entremos, sir! — disse-me o velho escoteiro. — Vejamos a agradável surpresa que vamos proporcionar a esta gente.
Do lado de fora conhecia-se a porta. Old Death à frente e eu em seguida íamos entrando.
— Aí estão eles! — ouviu-se uma voz dizer. — Não deixem entrar esses ladrões!
Nem essas palavras terminaram de ser proferidas, e detonou um tiro Vi o escoteiro com mãos crispadas, procurar apoio à parede da cabana e, ao mesmo tempo, vários canos de espingarda apontados para a porta. Old Death não pôde mais suster-se e tombou ao solo.
— Meu pressentimento... Meu irmão..., perdoe-me... no seri-gote...! — gemeu ele.
— Señor Uhlmann, por Deus, não atire! — gritei eu. — Somos amigos, somos alemães! — O seu sogro e cunhado vieram conosco. Cavalgamos todo o dia para preveni-los do assalto.
— Santo Deus! Alemães! — respondeu uma voz no meio do pessoal — Mas isso é verdade?
— Sim! Não atire. Deixe-me entrar, a mim, só a mim, por enquanto.
Entrei. Ali se achavam uns vinte homens, todos armados de espingardas. Três lampiões pendentes da coberta iluminavam a cabana. Um homem ainda jovem veio ao meu encontro. A seu lado, estava um homem cujo aspecto era de miséria.
— Este faz parte do bando, Harton? — perguntou o primeiro ao segundo.
— Não, señor!
— Tolice! — exclamei. — Deixe de exames. Somos amigos, mas os inimigos aí vêm vindo. Chegarão a todo o momento. O senhor chamou a este cavalheiro de Harton. É aquele a quem os tschimarras aprisionaram e conduziram consigo?
— Sim, é esse mesmo. Conseguiu fugir-lhes. Chegou há uns dois minutos.
— Então o senhor há pouco rastejou por nós, Mr. Harton. Eu o vi. Os outros julgaram que eu me houvesse enganado. Quem atirou?
— Eu — respondeu um dos homens.
— Graças a Deus! — respirei, pois eu já supunha que um irmão houvesse morto o outro. — O senhor matou um homem inocente, o homem a quem todos aqui na bonanza devem a salvação!
Nisso entraram os dois Lange e, com eles, o gambusino, os quais não quiseram continuar lá fora. Registrou-se uma cena tocante. Genro, sogro e cunhado choravam de alegria. Tive que pronunciar um discurso, a fim de serenar os brados de contentamento. Old Death estava morto, com o coração varado por uma bala. O negro Sam trouxe o seu corpo para o interior da barraca e o depôs no solo, sob demonstrações de pesar. Duas senhoras vieram, saídas dum compartimento da cabana. Uma delas trazia uma criancinha ao colo. Era a ama seca. A outra atirou-se nos braços do pai e do irmão.
Perguntei a Harton como conseguira fugir.
— Conduzi-os por caminhos errados, trazendo-os para o fundo do vale. Ali eles acamparam, enquanto o cacique foi fazer um reconhecimento; quando escureceu, eles levantaram acampamento, deixando os cavalos, vigiados por um guarda. Aí também fiquei eu com pés e mãos amarrados. Consegui livrar as mãos e tirei as cordas dos pés e, pela escada secreta, desci aqui para a bacia do vale. Foi quando passei pelos senhores, a quem tomei pelos inimigos; corri até aqui e preveni o pessoal da iminência do assalto. O primeiro que tentou entrar foi morto.
— Pois o senhor causou uma grande desgraça, com semelhante ordem. Não percamos tempo. Segundo o que relata, seremos assaltados dum momento para outro. Precisamos preparar-nos.
TRÁGICO FIM DUM EMBUSTEIRO
Dirigi-me a Uhlmann, pondo-o apressadamente, ao par dos acontecimentos e, dentro de dois minutos, os preparativos para rechaçar o assalto estavam feitos. Os nossos cavalos foram conduzidos bem para o fundo do vale. O corpo de Old Death foi reconduzido para fora. Um barrilzinho com petróleo foi levado para o arroio; a seu lado colocou-se um homem, com a instrução de, a determinado sinal, acender o barril e despejá-lo no arroio. As chamas produzidas pelo inflamável seriam espalhadas pelas águas e iluminariam todo o vale.
Cinqüenta homens foram mobilizados e distribuídos por diversas posições. Alguns trabalhadores inteligentes e experimentados foram expedidos para a entrada do vale, a fim de nos prevenir da aproximação do inimigo.
Abrigaram-se as senhoras e a criança em lugar seguro. Uhlmann, Winnetou, os dois Lange e eu ficamos sozinhos no interior da barraca. Sam estava com os apaches. Passamos uns dez minutos de expectativa. Depois, chegou um dos batedores, avisando-nos de que dois cavalheiros desejavam fazer uma visita ao señor Uhlmann. Foram mandados entrar. Eu, porém, me escondi, juntamente com os Lange e Winnetou, num dos compartimentos da cabana.
Vi, então, que os dois cavalheiros não eram senão... Gibson e William Ohlert. Foram acolhidos com cortesia e convidados a sentar-se. Gibson apresentou-se com o nome de Gavilano e dizia-se geógrafo; no desempenho de sua profissão pretendia, com seu companheiro, fazer um levantamento topográfico da zona. Declarou que, na noite anterior, Harton estivera em seu acampamento e os informara de que aqui conseguiria pouso e cavalheiresca hospitalidade. Seu companheiro se achava doente e, por isso, pedia ao senhor Uhlmann hospedagem por uma noite.
Saí, então, do meu esconderijo. Ao avistar-me, Gibson ergueu-se espantado e olhou-me estarrecido.
— Os tschimarras que o acompanham e que não tardarão, acham-se também doentes, Mr. Gibson?! — perguntei-lhe. — Pois William Ohlert não só receberá hospedagem, como voltará, depois, comigo. Quanto ao senhor, levá-lo-ei também!
Ohlert, como sempre, conservava-se alheio a tudo, mergulhado na sua idéia fixa. Gibson, porém, ergueu-se e exclamou:
— Canalha! Até aqui persegues gente honesta?! Eu hei de...
— Cale-se, homem! — interrompi-o. — É meu prisioneiro!
— Por enquanto ainda não! — retrucou furioso. — Aceite, para começar, esta dádiva!
A essas palavras, pegou da espingarda para desfechar-me um coronhaço. Agarrei-o pelo braço e desviei o golpe, que foi atingir, em cheio, a cabeça de Ohlert, que rolou pesadamente ao solo. Neste instante, alguns trabalhadores penetrarem na cabana e apontaram as armas contra Gibson.
— Não atirem — bradei, pois eu preciso capturá-lo com vida.
Era tarde! Ouviu-se um estampido e o meu prisioneiro tombou com a cabeça varada por um balaço.
— Não se impressione, cavalheiro! — disse-me aquele que o alvejara. Ao mesmo tempo, como se um tiro fosse o sinal convencionado entre Gibson e os cúmplices, ressoou ao redor da cabana um brado ensurdecedor de indígenas.
Uhlmann correu para fora da cabana e, à sua voz de comando, detonaram-se várias descargas de espingardas e ouviram-se os gritos de homens: dos que tombavam e dos que fugiam. Eu me achava sozinho com Ohlert no interior da barraca. Ajoelhei diante dele, a fim de examiná-lo. O coração ainda pulsava. Isto me tranqüilizou e saí a fim de participar do combate.
Quando cheguei lá fora, vi logo que minha participação não era necessária. O vale achava-se completamente iluminado pelas chamas do arroio. Os inimigos tinham tido, pois, recepção bem diferente da que esperavam. A maior parte deles jazia no solo; os demais fugiam perseguidos, em direção à saída do vale. Aqui e ali, um ou outro tentava dominar a gente de Uhlmann, mas sem resultado.
Este permanecia na porta da cabana e atirava onde avistava inimigo. Aconselhei-o a mandar alguns homens para a saída do vale, a fim de segurar a cavalhada do inimigo e prender os que tentassem fugir. A minha sugestão foi aceita.
Mal transcorreram três minutos e o local estava limpo de inimigos.
Abstenho-me de fazer a descrição do aspecto macabro que apresentava o vale, após a luta. Quadros que torturam o coração humano não devem ser pintados, nem com o pincel, nem com a pena. O cristianismo manda que os vencedores jamais entoem hosanas sobre os cadáveres dos vencidos!
O grupo expedido para guarnecer o vale manteve-se na sua posição, durante toda noite. Apenas Harton voltou para a cabana. Ele não tinha a menor idéia de quem fosse o único morto de nossa gente, o qual tombara fora de combate, mas abatido por um amigo, em conseqüência dum mal-entendido. Saí com ele para o vale, que ainda se achava iluminado pelo petróleo que ardia no arroio. Conduzi-o para um recanto semi-escuro e relatei-lhe tudo.
Ao ouvir-me, chorou que dava pena. Eram lágrimas sinceras! Queria muito ao irmão, e de há muito tudo lhe perdoara e tornara-se gambusino, levado, exclusivamente, pela esperança de um dia ainda encontrá-lo. Contei-lhe tudo, desde o meu primeiro encontro com o escoteiro, até a confissão que me fizera com o coração amargurado de dor. Quando nos erguemos, para voltar à cabana, ele, súplice, pediu-me que ficasse tão seu amigo quanto o fora do irmão.
Pela manhã, abrimos o estofamento do serigote de Old Death, segundo a sua vontade. Encontramos uma carteira. Era modesta, mas continha grandes valores. O escoteiro deixava ao irmão grandes somas em notas bancárias e a descrição exata e minuciosa duma quase inesgotável bonanza que descobrira em Sonora. Em um momento, Fred Harton passava da extrema pobreza à opulência.
Não pude descobrir que plano arquitetara Gibson para continuar a seduzir Ohlert. Talvez nem sua irmã Felisia Perillo, para onde se transportava, estivesse em condições de esclarecê-lo. Em seu poder, encontrei todo o dinheiro suspendido aos bancos, descontadas as quantias dispendidas com a viagem.
Ohlert não morrera, mas continuava sem sentidos. O seu estado me obrigaria a permanecer na bonanza, por mais tempo do que desejava. Não era mau, não. Podia refazer-me da agitação que me haviam produzido as últimas aventuras e observar a vida e atividade duma bonanza, até que o estado de saúde de Ohlert permitisse que eu o conduzisse a Chihuahua, para entregá-lo aos cuidados de um médico.
Old Death foi sepultado. Erigimos-lhe um monumento com uma cruz de prata. Seu irmão desligou-se dos serviços do señor Uhlmann, a fim de recolher-se a Chihuahua, para retemperar-se das lutas cruciantes dos últimos anos.
Grande foi à felicidade de Uhlmann e sua esposa. Essa felicidade muito nos alegrava, pela bondade cativante, nobre e hospitaleira do casal. Ao despedir-me, Fred Harton convidou-me a acompanhá-lo, quando fosse procurar a bonanza, em Sonora. Não podia comprometer-me, mas prometi, quando nos encontrássemos em Chihuahua, dar-lhe uma resposta decisiva. Winnetou resolveu ficar comigo e ordenou aos seus dez apaches que voltassem para a taba. Eles foram regiamente presenteados pelo señor Uhlmann. O negro Sam partiu em companhia de Harton e soube que cumpriu, com felicidade, a sua missão. Ignoro, porém, se voltou para a companhia do señor Cortésio.
VOLTANDO À CASA PATERNA
Dois meses depois desses acontecimentos, achava-me em casa do virtuoso irmão Benito, da Congregação do Bom Pastor, em Chihuahua. A ele, o mais afamado médico da província, confiara eu o tratamento do meu paciente. Este, graças aos desvelos do bondoso irmão, já se achava completamente restabelecido. Digo completamente, porque com a saúde física voltara-lhe o equilíbrio mental. Parecia que a coronhada lhe havia matado a monomania de se tornar poeta. Estava bem disposto e, às vezes, até alegre. Tinha muitas saudades do pai. Mas eu não lhe contara que o velho estava já em caminho. A este enviara eu o relatório de tudo, terminando por pedir-lhe que, pessoalmente, viesse buscar o filho. Pedia-lhe ainda que procurasse Mr. Josy Taylor e lhe solicitasse a minha exoneração. Eu não desejava continuar como detetive, pois, dia a dia, mais crescia em mim o desejo de acompanhar Harton a bonanza, de Sonora.
Este amigo diariamente vinha visitar-nos e ao bom padre. Tornara-se meu amigo íntimo e sincero e alegrou-se, sobremodo, com o restabelecimento de Ohlert.
A respeito deste, devo registrar que se operou nele um grande milagre. O rapaz não queria mais nem ouvir pronunciar a palavra poeta. Recordava-se de todo o seu passado, menos da fase compreendida entre a fuga com Gibson e o desmaio na bonanza, que figurava como folha em branco no livro da sua memória.
Num belo dia nos achávamos, o padre, Ohlert, Harton e eu, sentados no gabinete a palestrar como bons amigos que éramos, quando o criado entra na sala conduzindo um cavalheiro a cuja vista Ohlert soltou um grito de alegria. Da amargura, da dor que causara ao pobre pai só sabia através de minhas narrações. Lançou-se, chorando, nos braços do velho. Nós nos retiramos, silenciosamente, da sala.
Mais tarde tudo se esclareceu. Pai e filho não podiam ocultar a alegria, a felicidade que lhes transbordava da alma. O primeiro trouxe-me a demissão e Harton obteve a minha palavra, de que o acompanharia à bonanza. Oh! Quanto desejaríamos que certa pessoa nos pudesse acompanhar também. Infelizmente, era impossível. O desditoso Old Death descansava lá no vale, sob a sua cruz de prata.
Uma promessa a Mr. Henry
Muito, muitíssimo poderia eu relatar a respeito do que vivi em companhia de Harton; mas como a figura central de minhas narrativas é Winnetou e este não esteve conosco, limito-me a dizer que depois de penosas pesquisas e lutas tivemos a sorte de descobrir uma bonanza. Como não estava disposto a explorar pessoalmente, vendi a parte que me tocava a Harton, que por ela pagou-me linda soma, a qual ressarciu com vantagem o prejuízo por mim sofrido, quando foi do naufrágio do navio.
Depois disso dirigi-me ao rio Pecos, a fim de visitar a taba dos apaches. Ali fui acolhido como irmão, mas não tive a felicidade de encontrar Winnetou. Este se achava numa viagem de inspeção às diferentes aldeias dos apaches.
Deixou-me dito que o esperasse; mas como a sua viagem duraria uns seis meses, resolvi dar, nesse meio tempo, uma chegada a S. Luís. Em caminho, tornou-se meu companheiro de jornada o inglês Emery Bothwell, um homem instruído, empreendedor e arrojado, que mais tarde, conforme o leitor verá, tornei a encontrar no deserto do Saara.
As aventuras todas que vivi com Winnetou, Harton e, por fim com Bothwell divulgaram-se celeremente por toda a parte, de modo que quando cheguei a S. Luís fiquei pasmado ao ouvir o nome de “Mão de Ferro” pronunciado por todos. Quando revelei essa minha surpresa ao velho Henry, este disse, no seu modo de falar:
— O senhor é um maganão! Vive no decorrer de um mês mais aventuras do que outros em vinte anos; atravessa incólume todos os perigos com a mesma facilidade com que uma bala atravessa uma folha de papel; enfrenta, como jovem greenhorn, os mais experimentados pioneiros das campinas; viola todas as cruéis e sangrentas leis do oeste bravio, poupando, contudo, a vida dos mais ferozes inimigos. E agora está aí de boca aberta por ouvir que todos pronunciam o seu nome heróico! Afianço-lhe que, no tocante à celebridade, o senhor sobrepujou até o famoso “Mão de Fogo”, que tem o dobro de sua idade. Nem imagina a alegria que me proporcionam as suas façanhas, pois fui eu quem lhe indicou o caminho da glória! Sou-lhe grato por me ter proporcionado esta satisfação. Agora, veja aqui o que tenho reservado para o senhor!
Abriu o armário de armas e dele retirou a primeira espingarda de repetição sistema Henry. Deu-me explicações sobre a sua composição e funcionamento e conduziu-me, a seguir, à sua linha de tiro para eu experimentar a arma, a fim de que lhe pudesse dar sobre a mesma o meu parecer. Fiquei entusiasmado com o novo sistema, mas como já da primeira vez, fiz ver ao seu inventor, que a difusão dessa arma traria como conseqüência o extermínio dos homens e da fauna do oeste bravio.
— Já sei, já sei — retrucou o bom velho. — Para evitar essa seivageria, vou fabricar apenas algumas dessas armas. A primeira, que é esta faço-lhe presente: é sua. O senhor têz célebre a minha “mata-ursos’ e por isso tornou-se digno do novo presente, que, espero, lhe prestará igualmente bons serviços nas jornadas pelo oeste bravio.
— Sem dúvida. Mas, neste caso, não devo levá-la já comigo.
— Por que não?
— Porque, de momento, não pretendo jornadear pelo oeste.
— Para onde irá, então?
— Primeiro regressarei à minha pátria e, depois, seguirei para a África.
— Af... Af... Af... rica?! — exclamou o meu interlocutor, esquecendo-se de fechar a boca. — O senhor perdeu o juízo? Pretende, talvez, tornar-se negro ou hotentote?
— Isso não. Prometi a Mr. Bothwel encontrá-lo na Argélia, onde ele tem parentes. De lá tencionamos empreender uma excursão pelo deserto do Saara.
— Para serem devorados pelos leões e pelos hipopótamos?
— Os hipopótamos não são animais carnívoros e nem vivem no deserto!
— Mas e os leões!
— No Saara propriamente também não há leões. Os animais carnívoros não podem viver sem água!
— Sei disso! É claro que eles não bebem areia. Mas na Argélia não se fala somente o francês?
— Sim...
— E o senhor conhece esse idioma?
— Tão bem como o da minha pátria.
— E que língua se fala no deserto?
— Árabe.
— Então o senhor ali será vendido por dez tostões de mel coado? De que modo vai entender-se com aquele povo?
— Muito bem, visto como fui aluno do maior professor de árabe da Alemanha.
— Diabos o levem! De lado nenhum a gente consegue apertá-loí Oh! Tenho outra objeção a essa sua viagem!
— Qual é?
— É que o senhor não tem dinheiro para custeá-la.
— Tenho, sim!
— Oh!
— Afianço-lhe! A bonanza rendeu-me um bom dinheiro; além disso recebi do banqueiro Ohlert uma boa gratificação, sem contar com os honorários que Josy Taylor me remeteu, por seu intermédio.
— Pois então corra, saia correndo em direção ao seu maldito Saara! — exclamou o velho, encolerizado. — Não posso compreender como há gente que sente atração por aquela zona. Lá só dá areia e bicho de pé! Aqui o senhor leva outra vida. Bem, se fôr assim, creio que nunca mais nos veremos.
O armeiro começou a caminhar de lá para cá, no interior da sua oficina; resmungando e gesticulando, de sobrecenho carregado. Mas a sua bondade não tardou em vencer a luta íntima. Henry deteve-se diante de mim e perguntou:
— Será que no deserto o senhor encontrará aplicação para a minha “mata-ursos”?
— Sim.
— E para a de repetição?
— Oh! Esta lá é que vai se tornar célebre!
— Pois leve ambas e ponha-se daqui para fora, e não me apareça mais nesta casa se não quiser passar pelo vexame de ser posto no olho da rua. O senhor não passa de um camelo: é por isso que quer procurar o deserto!
Pôs-me ambas as armas nas mãos, abriu com violência a porta e empurrou-me para fora, fechando-a atrás de mim. Porém, mal havia eu dado dois passos, o velho Henry meteu a cabeça pela janela e disse:
— Não deixe de vir cá logo à noite.
— Oh, claro! Aqui estarei bem cedinho!
— Bem! Vou preparar-lhe então uma sopa de cerveja. Será o nosso jantar. Agora safe-se!
Quando dias depois, me despedi dele, fui forçado a dar-lhe minha palavra de honra que, antes do meu regresso à Europa, dentro de seis meses, eu voltaria a S. Luís. desde que motivos de força maior não me impedissem. Pude cumprir minha palavra e, meio ano mais tarde, eu me achava novamente naquela cidade.
VIAJANDO PARA O RIO SUANCA
O velho delirou de alegria, quando soube dos inestimáveis serviços que a sua espingarda de repetição me prestou na dizimação dos bandos de salteadores. Henry avisou-me de que Winnetou, nesse meio tempo, estivera em sua casa e lhe pedira que me fizesse seguir para o rio Suanca, onde ele se achava em caçadas com uma legião de guerreiros.
Pus-me imediatamente em caminho com destino àquele rio. Para alcançá-lo gastei três dias de viagem e encontrei logo o acampamento dos apaches. Winnetou ficou entusiasmado com a “espingarda Henry”, mas não quis experimentá-la: achava que a arma devia ser um objeto sagrado para mim. Uma agradável surpresa me proporcionou esse amigo, presenteando-me um excelente garanhão, verdadeiro cavalo de guerra. O animal era amestradíssimo e logo se habituou comigo. A sua agilidade valera-lhe o nome de “Andorinha”.
Após as caçadas, Winnetou pretendia seguir para as aldeias dos navajos, a fim de entabular as negociações de paz entre estes e os nijoras, que se achavam em guerra. Eu resolvera acompanhá-lo nessa viagem, mas não me foi possível. Poucos dias antes de nossa partida, encontramo-nos com um transporte de ouro que se destinava à Califórnia e cujos componentes não puderam disfarçar o susto ao se verem, de um momento para outro, cercados de peles-vermelhas. Acalmaram-se, porém, logo que ouviram os nomes de Winnetou e “Mão de Ferro”. O bom conceito em que eram tidos esse nomes, prova-o o fato de me haver aquela gente pedido que eu a acompanhasse até o forte Scott, isto, naturalmente, mediante uma gratificação. Não desejava separar-me de Winnetou e por isso não acedi ao pedido; mas o meu amigo, orgulhoso com a confiança que em mim depositavam aqueles homens, concitou-me a prestar-lhes o serviço. Do forte Scott deveria eu cavalgar para o norte, até as campinas do oeste do Missouri, a fim de me encontrar ali com o jovem cacique dos apaches, que ia visitar o seu velho amigo “Mão de Fogo”, (*) que estava acampado naquela zona.
Muitos foram os perigos que tivemos de enfrentar durante o transporte, perigos esses que eu removia sozinho e, se não perdi a vida, foi graças à espingarda de
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(*) Old Fireband.
repetição e ao excelente cavalo que montava.
Do forte Scott, dirigi-me ao ponto combinado para o encontro com Winnetou. Passei por Kansas e Nebraska, atravessei o território dos sioux, de cuja perseguição por mais de uma vez “Andorinha” me salvou. O cacique dos apaches informara-me de que, nesse meu caminho, eu iria passar por uma nova região de petróleo, recentemente descoberta e cujo proprietário se chamava Forster; lá havia, também, um estabelecimento comercial, onde eu podia suprir-me do que necessitasse.
UM MENINO PRODÍGIO
Segundo meus cálculos, eu já deveria achar-me nas proximidades dessa região, que se chamava Nova Venango. O veio estava situado num vale à direita da campina. Mas por mais que eu cavalgasse não via sinal algum que me levasse à convicção de me achar na zona desejada. O cavalo necessitava de descanso e eu próprio me sentia fatigado. Assim sentia-me ansioso por descansar um dia inteiro e reabastecer-me de munição, pois a que possuía já estava no fim. Eu pensava nestas coisas quando “Andorinha”, levantando a cabeça, soltou um daqueles bufidos originais que denunciam a aproximação de homem, ou qualquer outro ser vivo. Fixei o olhar no horizonte e divisei, ao longe, dois cavaleiros que vinham ao meu encontro. Olhei pelo binóculo e, surpreendido, verifiquei que um dos ginetes era — cousa rara nas campinas do oeste bravio — um menino.
— Com os diabos! Uma criança na campina e ostentando trajes de escoteiro! — Foram as palavras que me saíram instintivamente dos lábios, ao mesmo tempo que eu punha no cinturão a faca e o revólver, que, previdentemente, havia empunhado.
— Será aquele cavaleiro adulto que vem na companhia do menino um ianque autêntico, capaz de todas as excentricidades — pensei eu — ou quem sabe se é até o flast ghost, o espírito da campina que, segundo crença indígena, à noite atravessa as savanas montado em corcel de fogo e, durante o dia, se disfarça de todos os modos, a fim de arrastar os peles-brancas à ruína? Não será aquele menino uma vítima do “espírito da campina”? — continuei a meditar sorrindo.
Olhei os meus trajes: o meu exterior apresentava um aspecto de indigência. As sapatilhas rasgadas, as calças de couro rotas e engorduradas, o jaquetão e o boné de castor em estado idêntico, em suma, o conjunto da minha indumentária dava-me a aparência de um espantalho fortemente maltratado pelos vendavais, em meio duma plantação...
Felizmente não me achava no camarote de um teatro, em plena temporada oficial. Ainda me preocupava com a indumentária, quando os dois cavaleiros chegaram à minha frente; o menino ergueu o cabo do chicote, em saudação, e disse, com voz argentina:
— Boa tarde, sir! Que é que procura? Por que está a se examinar com tanta atenção?
— Estive abotoando o meu colete, pois notei que os olhares perscrutadores dos senhores se fixavam em mim.
— Então é proibido olhar para o senhor?
— Oh, não! Contanto que me seja permitido fazer o mesmo com o meu jovem interlocutor.
— Oh! Pois não! Contemplemo-nos mutuamente!
— O senhor leva vantagens, pois ostenta trajes novos, apresentando assim mais aspecto de cavalheiro. Contudo, concordo.
Dizendo isto, fiz que “Andorinha” se pusesse nas patas traseiras e rodasse em torno das mesmas.
— Eis-me em todos os lados e em tamanho natural — disse eu. — Que tal lhe pareço?
— Um momento! Deixe que me apresente também! — retrucou o rapaz sorrindo, fazendo o mesmo com o seu cavalo. — Agrado-lhe?
— Agrada-me! É bem passável a sua figura, levando-se em conta o local onde vive! Que tal me acha?
— Regular! É mais temível, talvez, do que parece à primeira vista.
— O cavalo faz melhor figura do que o cavaleiro — atalhou o adulto em tom de menosprezo, contemplando “Andorinha” com admiração.
Não dei importância a essa ofensa e respondi ao menino, que, para a idade que tinha, mostrava uma inteligência bastante desenvolvida.
— Talvez tenha razão, meu rapaz. Mas assim é necessário, dada a circunstância de me achar em região bravia.
— É forasteiro nessas paragens?
— Sou. Tanto que venho cavalgando o dia inteiro sem encontrar o número da casa que procuro...
— Então venha conosco, nós lhe ensinaremos o caminho. Verá quão grande é esta região.
Dizendo isso o meu jovem interlocutor virou-se e tomou o mesmo rumo em que eu cavalgava. Depois de havermos galopado por algum tempo, o mesmo parou, exclamando admirado:
— Está excelentemente montado, sir! Não me vende esse cavalo?
— Por dinheiro nenhum, sir! — respondi, admirado da pergunta.
— Dispensemos o sir! Deixemos de cerimônias!
—Como quiser! Este poldro salvou-me a vida por diversas vezes e por conseguinte jamais o venderei.
— O animal está domado pelo sistema indígena — disse ele mostrando ser um perfeito conhecedor de cavalos. — Onde o adquiriu?
— É um presente de Winnetou, o cacique dos apaches, com o qual me encontrei no rio Suanca.
O meu interlocutor olhou-me visivelmente surpreendido.
— De Winnetou? Mas é o índio mais temível entre Sonora e Colômbia! O senhor não tem cara de possuir relações com um guerreiro tão famoso!
— Por que não? — perguntei, rindo.
— Eu o tomava por um agrimensor ou cousa parecida. Há, não há dúvida, homens direitos entre essa gente; mas para se meter no meio dos apaches, nijoras e navajos não basta isso. E o seu revólver reluzente como se naquele instante tivesse saído da loja, a finíssima faca que ostentava à cintura e aquela espingarda não o recomendavam: provavam não ser escoteiro, pois este não dispõe de tempo para andar polindo as armas.
— Confesso que sou, realmente, novo no oeste bravio; devo ser mesmo classificado não como um corredor das campinas, mas como um simples caçador domingueiro. Contudo, afianço-lhe que as armas que conduzo não são de qualidade inferior. Comprei-as em S. Luís e se o meu amiguinho fôr realmente, como pretende, um corredor das campinas não deve ignorar que naquela cidade também se compram, uma vez que se pague bom preço, excelentes armas.
— Hum! Que adiantam boas armas se estas estão nas mãos de quem não sabe manejá-las? Que acha o senhor desta minha pistola?
O menino tirou da maleta uma velha e enferrujada pistola, que mais se assemelhava a um porrete do que à arma de fogo.
— Pela aparência, deve ser antiquíssima, e pouco prática. Não obstante, porém, talvez que bem manejada tenha ainda alguma serventia! Tenho visto índios operarem verdadeiros prodígios com espingardas miseráveis.
— Então diga-me se é capaz de imitar-me no que vou fazer!
Avançou um trecho a trote, fez um semicírculo em torno de mim e, sem que eu tivesse tempo de desconfiar do seu propósito, desfechou-me sua velha pistola à queira-roupa. Senti um leve roçar na cabeça e vi logo voar por terra uma flor silvestre que ornamentava o meu boné. Respondi calmamente à sua pergunta:
— Essa bravata qualquer atirador a imita. Mas nem todos estão dispostos a oferecer o boné para alvo, pois muitas vezes debaixo dele há uma cabeça. Assim, de futuro, não seja tão afoito. É um conselho de amigo!
— Ora essa! — bradou o adulto, que cavalgava em nossa retaguarda! — A cabeça e o boné dum escoteiro vagabundo são mais do que bem pagos com um tiro de pólvora!
Aquele indivíduo parecia provocar-me a todo transe. Em atenção ao menino, seu companheiro, fiz ouvido de mercador a este segundo insulto que eu recebera.
Continuamos a cavalgar. Daí a minutos chegávamos à região petrolífera de Forster, denominada Nova Venango. O menino, subitamente, encurtando as rédeas, perguntou-me:
— O senhor pretendia seguir para Nova Venango, sir?
— Sim.
— E vem das campinas bravias?
— Claro. Logo se vê pelo meu exterior.
— Mas não é um homem do oeste?
— As suas vistas são tão aguçadas para logo reconhecer isso?
— O senhor é alemão?
— Sou. A minha pronúncia inglesa é tão má que logo denuncia não ser eu filho do país?
— Má propriamente não. Mas por ela descobre-se logo que é alemão. Se lhe fôr do agrado, vamos falar daqui por diante neste idioma!
— Como?! É também alemão?
— Meu pai sim; eu nasci em Quicourt. Minha falecida mãe era uma índia, da tribo dos assineboins.
Esclarecera-se agora o talhe singular do seu rosto e o leve bronzeado de sua cútis. Sua mãe falecera, pois, e seu pai era ainda vivo. Este menino cada vez despertava mais o meu interesse e simpatia.
— Queira olhar para lá! — disse-me erguendo o braço. — Enxerga aquela fumaça que sobe do solo?
— Oh, sim! Com que então ali é Venango! Conhece Emery Forster, o príncipe do petróleo?
— Um pouco. É o pai da esposa de meu irmão, a qual, em companhia do marido, mora em Omaha. Vim de lá, onde lhes fui fazer uma visita e agora vou pousar aqui. Tem alguma cousa a tratar com Forster, sir?
— Não. Quero apenas procurar o estabelecimento comercial que ele mantém na empresa petrolífera, a fim de fazer algumas compras. Perguntei pelo seu nome, porque, como príncipe do petróleo, deve despertar a curiosidade de quantos viajem por esta zona.
— Já o viu alguma vez?
— Nunca.
— No entanto, garanto-lhe que sim! Está vendo-o neste momento, pois ele cavalga do seu lado!
A nossa apresentação foi sem cerimônia. Justifica-se, porém: nos achávamos em campina aberta e não num salão de recepção.
— Não tem importância — respondi sem olhar sequer para o arrogante Forster.
— Como não? Tratando-se de Forster a apresentação deveria ser feita de um modo mais distinto.
— Não concordo. A campina distingue os homens não pelo peso do ouro que possuem, mas pela bravura. Ponha a pistola que manejou há pouco com tanta maestria nas mãos dum príncipe de petróleo, mande-o para o oeste bravio e verá então como o magnata arrogante sucumbe apesar de todos os seus milhões! O verdadeiro homem do oeste não se deixa fascinar pelo ouro. São em geral uns pobretes, mas ricos em valentia e nobreza, que valem mais do que os milhões desses pseudos príncipes.
Os olhos do menino brilharam e se dirigiam ora a Forster, ora a mim. Notei que eu lhe falara ao coração.
— O senhor tem, em parte, razão, não há dúvida. Mas não se esqueça de que há um ou outro homem do oeste que, embora valente e nobre, não é pobretão, pois possue fabulosas fortunas. Já ouviu falar em “Mão de Fogo”?
— Claro. Trata-se dum dos mais afamados exploradores do oeste bravio. Nunca o encontrei.
— Pois ouça: ele e Winnetou conhecem inúmeras minas de ouro quase inesgotáveis, de cuja existência só eles são sabedores. Penso, pois, que até neste particular, nenhum deles se troca por um príncipe de petróleo.
— Cuidado, Harry! — interrompeu Forster. — Não seja mordaz! O menino não respondeu e eu disse com frieza:
— Um príncipe de petróleo não descobriria tais minas e, mesmo que as descobrisse, covardão como em geral é, seria incapaz de explorá-las, pois não tem coragem para arriscar a sua própria vida. Ao demais, meu jovem, com a sua afirmativa nada mais fêz que confirmar o meu ponto de vista há pouco externado. O verdadeiro homem do oeste não troca a sua liberdade, por todas as minas do mundo. Bem. Eis a mina petrolífera e com ela o nosso destino.
— É isso mesmo, sir! E ali adiante, naquela casa, é o estabelecimento comercial, onde funciona também um hotel. Aqui mora Mr. Forster.
Quis despedir-me, pois julguei que iam entrar em casa. Forster, porém, atalhou:
— Qual nada, jovem! Iremos juntos; nós o acompanharemos à nossa cantina, pois preciso tratar de um assunto com esse senhor.
Por causa do interessante menino, folguei em poder gozar por mais um pouco a agradável companhia, mas quanto a Forster, tão pouco me interessei por ele, que nem lhe perguntei pelo assunto que comigo desejava tratar. Não foi necessário, pois assim que chegamos à cantina e apeamos, ele segurou “Andorinha” pelas rédeas e disse:
— Vou comprar-lhe este cavalo! Quanto custa?
— Não o vendo!
— Dou duzentos dólares por ele.
Ri, meneando a cabeça negativamente.
— Duzentos e cinqüenta!
— Não insista, sir!
— Trezentos!
— O cavalo não é para venda!
— Trezentos e mais os objetos que o senhor comprar aqui na cantina!”
— Pensa que um homem do oeste se desfaz do seu cavalo, sem o; qual ele talvez pereça nas campinas?
— Mas dou-lhe, ainda, o meu em troca!
— Fique com o seu. Eu não me desfaço do meu!
— Mas eu preciso desse animal! — disse já impaciente. — Ele me agrada!
— Que me importa? Não o vendo, já disse! O senhor não tem dinheiro para pagar-me esse animal!
— Não tenho dinheiro?! Mas já não ouviu dizer que sou Emery Forster? Tenho dinheiro para comprar milhares desses animais.
— O seu dinheiro não me interessa! Se está em condições de comprar um bom animal, vá ao negociante de cavalos. Deixe, porém, o meu cavalo em paz!
— É um indivíduo descarado, compreendeu? — Um miserável andrajoso que deveria dar graças a Deus por haver encontrado ocasião de fazer um negócio honesto.
— Emery Forster, afivele a língua, do contrário irá conhecer o homem cuja cabeça com um tiro de pólvora estaria bem paga!
— Oh, meu jovem! Isto aqui não é a savana bravia, onde qualquer vagabundo se arvora em homem valente e faz o que quer. Em Nova Venango sou eu o único senhor e aquele que não se entender comigo em boa harmonia, será chamado à razão por outros meios mais eficazes. Fiz a minha última oferta. Aceita o negócio ou não?
— Não! — respondi calmamente. — Solte o cavalo! Encaminhei-me para o animal que ele ainda retinha pelas rédeas.
Forster deu-me, então um empurrão no peito, que quase me derrubou e montou no meu poldro.
— Agora, sim, seu maroto. Vou mostrar-lhe que Emery Forsteí sabe comprar um cavalo, ainda que lhe seja recusado o negócio. Aí está o meu, tome conta dele, agora é seu. Pagarei depois a sua conta na cantina e os dólares pode receber a hora que quiser. Vem, Harry. Estamos despachados.
O menino não atendeu logo ao convite, deixou-se ficar ainda por algum tempo no mesmo lugar e contemplava-me com ansiedade. E como não fiz o menor gesto para reaver, ao sistema das campinas bravias, a minha propriedade roubada, pela sua fisionomia perpassou uma expressão de desprezo.
— Sabe o que é um coiote, sir? — perguntou-me.
— Sim — respondi com displicência.
— Que é?
— Refere-se aos pequenos lobos das campinas. É um animal medroso e covarde que, ao latido dos cães, foge de medo. É um animal desprezível.
— Acertou. E não é para menos, pois é um verdadeiro... coiote! Um vil e covarde que não sabe nem defender a sua propriedade! Um homem do oeste, no verdadeiro sentido da palavra, teria respondido com o bacamarte o procedimento insólito de Forster.
Fazendo um sinal de desprezo com a mão, afastou-se em companhia do “amo e senhor de Nova Venango”.
Conservei-me em silêncio, pois sabia o que estava fazendo. “Andorinha” não estava perdido e se eu o deixasse algum tempo com Forster, ser-me-ia possível rever Harry por quem tanto me interessava. Não levei a sério as palavras insultuosas que ele me havia dito.
Do interior da cantina haviam saído alguns homens, que assistiram a todo o incidente. Um deles amarrou num poste o cavalo de Forster e depois se chegou a mim. Via-se nele o tipo do ébrio: tresandava a álcool, tinha as faces intumescidas e os olhos injetados. Dirigiu-me a palavra:
— Que excelente negócio acabou de fazer, sir! Pretende demorar-se em Nova Venango?
— Não tenho vontade! É o senhor o proprietário deste famoso estabelecimento comercial?
— Sou, sim senhor! E é famoso mesmo! A casa mais sortida na gênero. O senhor talvez veio aqui em busca da sorte? É só querer.
— Como? Não o compreendo!
— Vou explicar-lhe. O senhor pode empregar-se na minha casa. Preciso, para caixeiro, de um sujeito covarde que não revide quando recebe pontapés e bofetadas da freguesia embriagada. E pelo que vi há pouco, o senhor preenche admiravelmente esses requisitos. É o homem que me serve!
Eu deveria esbofetear o sujeito ali mesmo; desisti, porém, porque tratava-se dum infeliz; a sua proposta era mais ridícula do que ofensiva. Entrei na venda, sem dar resposta, a fim de fazer as minhas compras. Quando perguntei pelos preços dos objetos que me interessavam, o negociante olhou-me admirado.
— Mas o senhor não ouviu o que disse Emery Forster? Ele cumpre a sua palavra. Fornecerei tudo o que desejar sem cobrar do senhor um só tostão.
— Obrigado! Quando compro alguma coisa, é para pagá-la e não preciso do dinheiro dum ladrão de cavalos!
Ele quis prosseguir, mas quando lhe mostrei a mão cheia de moedas de ouro, tomou atitude respeitosa e iniciou a transação com aquela ganância e astúcia peculiar em todos os negociantes dessa zona.
Finalmente nos acertamos. Adquiri um novo traje completo de escoteiro e, mediante grossa paga, supri-me de algumas provisões e munições.
INCÊNDIO NUM VALE PETROLÍFERO
Nesse meio tempo anoitecera. Densa escuridão envolvia o vale. Não era meu intuito pernoitar na venda de telhado baixo e compartimentos abafados. Dormiria ao ar livre. Antes, porém, de me deitar, encaminhei-me para a casa de Forster, a quem eu ia dar uma lição, fazendo-lhe sentir até que ponto deveria chegar o seu domínio em Nova Venango...
Pelo caminho, aconteceu algo singular. O vale era atravessado por um riacho e, à proporção que me aproximava do mesmo, mais aumentava o cheiro do petróleo; portanto o citado riacho devia conter não pequena quantidade do inflamável.
O conjunto de edificações da mina se achava às escuras. Apenas na residência de Forster bruxuleava uma luz, vinda do avarandado, onde vislumbrei logo duas pessoas. Quando me aproximei, ouvi um leve bufido, que compreendi logo: era “Andorinha” que ali se achava amarrado. O cavalo não se deixara conduzir à baia por estranhos. Rastejei para a frente até chegar próximo do avarandado. Ali vi Harry e o príncipe do petróleo deitados em redes. Discutiam. Pus a minha maleta no serigote do animal. Este nem sequer deixara que o desencilhassem. Se eu tivesse dado um assobio quando Forster o montou e veio embora, ele teria arrojado o cavaleiro ao solo e vindo ter comigo.
— É uma empresa dispendiosa e inútil, dear uncle! O senhor não fêz bem os seus cálculos! — ouvi o menino dizer.
— Pretendes porventura ensinar-me a fazer cálculos? O preço do petróleo está tão baixo exclusivamente devido à superprodução. Os veios têm fornecido quantidades superiores ao consumo. É preciso que os deixemos correr sem captar o petróleo. É uma combinação feita entre os proprietários de minas petrolíferas, e todos saberão cumprir a palavra empenhada. Se deixarmos o inflamável correr fora durante um mês, o preço subirá e faremos bons negócios. Eu já dei início ao golpe. Aquele perfurador lá em cima trabalha dia e noite e o petróleo corre para o rio Venango. Daqui a um mês encho, os meus barris e os mando para o leste e terei então ganho uma fortuna.
— Mas este negócio não é honesto. Além disso, não dá o resultado que esperam. Não se esqueça de que em outros países vizinhos há também minas petrolíferas quase inesgotáveis e que estão paralisadas devido ao consumo ser menor do que a produção. A alta do preço que pretendem provocar será, pois, vum estímulo para essas minas e os senhores irão pôr as armas nas mãos dos próprios concorrentes. Ao demais, existem em todos os mercados formidáveis estoques de inflamável, de forma que o derrame projetado talvez, nem de leve, traga aumento do preço.
— Tu não conheces nada de comércio e por isso não fazes idéia do extraordinário consumo de petróleo. De resto, és ainda muito criança para emitir opinião sobre assuntos tão sérios. Não tens a menor experiência da vida!
— Oh! Como não! Será capaz de citar um só ato meu que comprove o que diz?
— Vou citar já. Não me disseste ainda há pouco que te causou decepção aquele escoteiro ou sei lá o que ele é? Pois eu nunca pensei que um homem daqueles te agradaria para companheiro.
Vi Harry corar e responder com energia:
— Pois é exatamente essa classe de gente que me serve para companheiro, porque a ela pertenço. Passei a vida, embora curta, no oeste bravio e seria preciso que eu não honrasse meu país para desprezar os escoteiros. Entre eles, há homens que, sob o ponto de vista moral, não se trocam pelos “gentlemen da força dos senhores” que são meros “homens de valores” e não homens de valor!... Além disso, não falei em decepção e apenas disse que antes ele me parecera outro homem diferente daquele que se revelou quando o senhor lhe tirou o cavalo. Entre parecer e ser, creio que vai uma distância.
Forster quis retrucar, mas não conseguiu, pois, nesse momento, ouviu-se um estrondo, como se a terra se fosse partir pelo meio. O solo tremia e, quando olhei para o local do barulho, no extremo alto do vale, onde o perfurador estava em função, vi, estarrecido, uma onda de chamas da altura de cinqüenta pés, que, com extraordinária rapidez, ameaçava alastrar-se por todo o vale. Ao mesmo tempo um odor asfixiante de petróleo envolvia a atmosfera.
Atinei logo com o perigo, aproximei-me dos dois e bradei-lhes:
— Apaguem as luzes, depressa, apaguem as luzes! O perfurador atingiu o petróleo e os senhores se esqueceram de proibir que nas redondezas se acendessem luzes. Os gases petrolíferos inflamaram-se ao contato com as luzes. Apaguem os candieiros, do contrário, dentro de dois minutos, todo o vale estará incendiado!
Dizendo isso, eu ia apagando todas as luzes que ardiam nas proximidades da casa. Mas não consegui galgar o sótão, que era iluminado por um grande lampião; também lá na casa de negócio queimavam diversos candieiros. Nesse meio tempo, a onda de fogo já havia envolvido toda a parte superior do vale e atingira o riacho com incrível velocidade. Agora chegara o momento do “salve-se quem puder”!
— Salvem-se! Por amor de Deus, levantem-se e corram! Procurem atingir as elevações do terreno! — prosseguia eu.
Não me preocupando com mais nada, arranquei Harry de junto do “príncipe”, com ele montei no “Andorinha” e galopei rumo a um local seguro. O menino, não compreendendo o alcance do meu gesto nem tampouco a extensão do perigo, começou a espernear e a lutar, com o fim de desvencilhar-se de mim; mas, como sucede quando se está diante dum perigo, a minha força aumentou e a resistência do pequeno de nada adiantava. “Andorinha”, sem o auxílio da chibata ou das esporas, corria como uma flecha fugindo à onda sinistra.
A ladeira que ali se erguia não podia ser atingida, pois a onda, desviando-se para a direita, já havia chegado lá. Era preciso que saíssemos do vale. O perigo se avolumava de segundo em segundo. A onda de fogo alcançara os enormes galpões que serviam de depósitos de inflamáveis. Estes, ao contato com as chamas, explodiam nos barris e bordalesas, produzindo um estrondo semelhante ao de uma batalha de artilharia. Com a explosão dos barris, aumentava ainda mais a onda de fogo. O ar estava saturado de petróleo e tão quente e abafado, que mal se podia respirar. Tinha-se a impressão de estar sendo cozinhado numa panela a ferver. A atmosfera se tornava cada vez mais quente. Quase perdi a presença de espírito. Mas, num esforço supremo, consegui coordenar as idéias. Achava-se em perigo não só a minha vida, mas também a do menino.
— Vamos, “Andorinha”! Para frente, para frente, “Ando...
O calor horrível me fêz perder a voz. Nem era necessário eu gritar, pois o bravo animal corria numa velocidade incrível. Chegamos ao rio, ponto onde as chamas ainda não haviam chegado, mas não se achava outro caminho e, por isto, perguntei a Harry:
— Diga-me, não há por aqui outro caminho pelo qual possamos sair do vale?
— Não, não! — respondeu entre dentes e num esforço inaudito para se desprender de mim. — Largue-me! Não preciso do senhor! Sou bastante homem para salvar-me! Solte-me!
Naturalmente, não atendi a essa intimação e examinava as paredes do vale. Vi, então, um atalho salvador.
— Que pretende de mim? Largue-me, ou cravo-lhe esta lâmina no ventre!
Vi reluzir uma faca em sua mão. Ele tirara a minha da cintura. Não havia tempo para explicações, imobilizei-lhe ambos os braços com a mão direita, enquanto, com a esquerda, mais o apertava de encontro ao meu corpo.
A única salvação era atravessar o rio e fugir para o outro lado.
Uma leve pressão no lombo do animal e este lançou-se no rio e começou a nadar. Aproximava-se cada vez mais de nós a onda fatídica. O animal submergiu e eu fiquei à tona dágua segurando sempre o menino. Santo Deus! Mais um minuto, um segundo talvez, e seríamos devorados pelas chamas ou morreríamos afogados. Eu nadava desesperadamente. Harry desmaiara e, como um cadáver, eu o segurava de encontro ao meu corpo. Eu já não nadava, pois eram verdadeiros saltos que dava na superfície das águas, já mornas sob a ação do fogo pouco distante. Senti um calafrio mortal me perpassar pelo corpo. Achava-me perto da margem. Estava exausto. De repente, ouvi um bufido ao meu lado: “Andorinha”, meu fiel “Andorinha”, valente cavalo! Era ele que vinha salvar-me. Montei. Não podia mais nadar. Alcançamos afinal terra firme. O animal corria, e bufava. As chamas nos perseguiam e se achavam distantes de nós uns cem passos. Eu tinha a boca seca e não podia mover as pálpebras. Os olhos me pareciam metal derretido dentro das órbitas e o calor da atmosfera parecia torrar-me o cérebro. Tinha a impressão de que o meu corpo, de um momento para outro, iria virar em cinzas. O animal bufava com, desespero, mas não diminuía a carreira que levava, desafiando a onda de fogo. De repente entramos num estreito desfiladeiro e saímos do vale. Eu me escorregara para o pescoço do cavalo e segurava ainda o menino. “Andorinha” subitamente parou. Deixei-me cair ao solo. Estávamos felizmente em plena campina, fora do perigo.
O cansaço e a agitação dominou a vertigem que de mim se ia apoderando. Ergui-me, lentamente, abracei o cavalo arquejante e o beijei, debaixo de um choro convulsivo. Eram lágrimas de gratidão que me brotavam da alma.
— “Andorinha”, meu bom “Andorinha”, tu nos salvaste! Esta hora será inesquecível para nós!
Harry estava gélido e pálido e eu pensei que ele tivesse morrido afogado, quando com ele atravessei o rio, fugindo do terrível elemento. Tomei-o nos braços, fiz-lhe massagens na região temporal, enfim fiz tudo para fazê-lo recuperar os sentidos, no caso de ainda se achar com vida.
Finalmente, depois de algum tempo, um leve tremor sacudiu-lhe o corpo. Senti-lhe o palpitar do coração e o hálito. Acordou-se, arregalou os olhos e fitou-me espantado. Depois de alguns minutos soltou um grito lancinante e levantou-se de um salto.
— Está salvo! Escapou do incêndio do vale.
A essas palavras voltou-lhe completamente a lucidez.
— Incêndio?! No vale, na mina petrolífera?! Santo Deus! É verdade, o vale pegou fogo e Forster...
Agora, ao citar este último nome lembrou-se do perigo em que deixara o príncipe do petróleo; erguendo o braço ameaçadoramente exclamou:
— Senhor, é um covarde, um miserável, um coiote, conforme eu já lhe disse. Podia ter salvo todos, mas preferiu fugir como o chacal ao latido de um cão! Eu o desprezo! Eu... tenho que me ir embora, tenho que ir para junto deles.
Quis retirar-se, mas eu o segurei por uma das mãos.
— Fique aqui! Nada mais há a fazer. Estão todos perdidos e o senhor irá ao encontro da morte, da qual acaba de se salvar!
— Deixe-me. Não quero conversa com um poltrão da sua espécie. Desprendeu-se de minha mão e saiu em vertiginosa carreira campina afora, na direção do vale petrolífero. Vi que um objeto ficara-me na mão: era um anel que no arranco dado saiu-lhe do dedo.
Segui-o; mas ele já desaparecera por trás do morro. Não me podia zangar com o menino. Era ainda muito jovem e a catástrofe lhe roubara a calma indispensável para emitir uma opinião justa. Pus o anel no bolso e resolvi deitar-me, a fim de dormir e descansar da luta que havia enfrentado e, depois, ao romper do dia, ir ao vale incendiado.
Um tremor me sacudiu o corpo. A certa distância, o fogo ainda ardia, menos intensamente; mesmo assim, o vale parecia um verdadeiro inferno, do qual eu havia fugido. O velho traje caía-me aos pedaços do corpo. O novo que trazia ao serigote ficara molhado na travessia, mas mesmo assim o vesti.
“Andorinha” deitou-se próximo de mim. Ali havia relva, mas ele não quis pastar. O pobre animal estava tão agitado ou talvez ainda mais do que eu. Que teria sucedido aos habitantes do vale? Esta pergunta não me deixava conciliar o sono, embora tivesse absoluta necessidade de dormir. Passei toda à noite em claro e repetidas vezes cheguei até a entrada do vale. O fogo, como já disse, não ardia mais com a mesma violência.
O aspecto, porém, produzido por ele jamais se apagará da minha memória. Era gigantesco. Enquanto o perfurador puxava petróleo, este, em formidáveis jatos, era levado a uma altura de trinta pés e alimentava as chamas que ardiam no vale e o circundavam quase que no seu todo. Pela manhã, quando para lá me dirigi, havia cessado a atividade do perfurador e o fogo se apagara. Vi, então, que exceto uma casinha situada numa elevação do terreno, onde as chamas não atingiram, tudo no vale havia sido devorado pelo terrível elemento. As instalações, os paióis, as casas de moradia, tudo enfim fora reduzido a carvão e cinzas.
Defronte da casinha já citada, havia um grupo de pessoas, no meio das quais reconheci Harry. O afoito rapazote se aventurara, pois, a atravessar o vale ainda em chamas e chegar até lá. Foi empresa arriscadíssima. Agora, de dia, era tarefa facílima, mas não à noite, quando ele entrara naquele inferno. Notei que o jovem apontava para o meu lado, chamando a atenção dos outros para a minha pessoa. Um dos presentes entrou em casa para voltar em seguida trazendo uma espingarda. Encaminhou-se, depois, para a margem do rio, oposta de onde me achava, e bradou, dirigindo-se a mim:
— Alto lá, homem! Que está ainda a fazer em nossa localidade?! “Bata o pó dos sapatos”, se não quiser receber uma bala nas costelas.
— Ainda não me retirei, porque desejo auxiliá-los, no que me fôr possível — respondi.
— Conheço essa espécie de auxílio! — respondeu, rindo-se ironicamente.
— Além disso, preciso falar com Harry.
— Será pior!
— Mas preciso dar-lhe um objeto.
— Deixe de peta! Eu quisera saber o que um indivíduo desclassificado, um vagabundo das campinas tem para dar! Um covardão que engole uma série de desaforos sem reagir como homem e, depois, para vingar-se, põe fogo no petróleo!
Quase perdi a fala! Eu, um incendiário, um criminoso! Ele pareceu haver tomado o meu silêncio como um remorso, pois prosseguiu:
— Como está assustado! Sabemos de tudo! Retire-se, senão receberá uma bala!
Apontou-me a arma e eu bradei-lhe colérico:
— Está doido, homem! Aqui ninguém pôs fogo em coisa alguma. O incêndio originou-se exclusivamente devido ao descaso dos senhores que não apagaram as luzes quando trabalhava o perfurador. Foram vítimas do seu próprio desleixo e, principalmente, da ganância e ausência de lisura comercial do proprietário desta região petrolífera!
— Desculpas! Desculpas! Retire-se! Ou quer que eu atire?!
— Se fosse eu o autor do incêndio não teria salvo aquele menino com risco da própria vida!
— Isto é para impressionar! Se quisesse e não fosse um poltrão, fugindo do perigo, teria salvo a todos. Agora todos pereceram carbonizados pelas chamas! Eis, aí tem a sua recompensa!
Atirou contra mim. A indignação me deixou preso ao local onde me achava; não fiz, pois, movimento algum para me desviar da bala e foi uma sorte, pois o homem errou o alvo. Meus dedos agitaram-se instintivamente para responder-lhe com um tiro certeiro. Não o fiz, porém. Virei-me e saí a passo sem olhar uma só vez para trás. Montei a cavalo e retirei-me. Era demais! Quando, em vez de gratidão por se haver salvo a vida de alguém, recebe-se insultos e se é tachado de criminoso, o melhor é, realmente, bater-se o pó dos sapatos.
TENTATIVA DE ASSALTO A UM TREM
Alguns dias depois, atingia a campina de Gravel, onde tive que esperar uma semana inteira por Winnetou. Não passei fome, pois lá havia caças em abundância. De tédio também não sofri, pois, pelas redondezas, havia vários bandos de sioux; assim, sempre estive ocupado em não ser surpreendido por essa tribo. Quando Winnetou chegou e eu o preveni da presença na zona daquela tribo, ele concordou comigo em prosseguirmos viagem imediatamente.
Alegrava-me extraordinariamente com o fato de ir travar conhecimento com “Mão de Fogo”, o afamado pioneiro do oeste bravio e com quem esperava aprender ainda muita cousa. O caminho que nos conduzia para a zona desse escoteiro era muito perigoso; disso já no dia seguinte tivemos provas. Encontramos a pista dum índio que devia ter sido um observador.
Examinei cuidadosamente o solo. O cavalo do indígena estivera amarrado a uma estaca a pastar na relva semi-sêca da campina; o cavaleiro estivera deitado no chão a brincar com a aljava e, com isso, quebrara a ponta de uma flecha. Contrariamente aos hábitos de precaução dos peles-vermelhas, este observador deixara a flecha quebrada ali no chão. Agarrei os dois pedaços e os examinei. Não era flecha de caça, mas de guerra.
— Este batedor acha-se numa expedição de guerra — disse eu — é, porém, muito jovem e inexperiente, pois, do contrário, não deixaria aqui estes pedaços de flechas, reveladoras da sua passagem por aqui e do objetivo de sua missão. O rasto não é, na realidade, de uma pessoa adolescente.
Um rápido olhar pelas pegadas bastava para ver que estas eram recentes e que o índio a bem pouco deixara o local.
Seguimos a pista até que a campina pouco a pouco se foi cobrindo de sombras; começava a cair à noite e éramos obrigados a acompanhar as pegadas, para o que tínhamos de apear. Antes, porém, tomei do binóculo a fim de examinar a planície.
Estávamos parados num local da campina onde havia pequenas elevações de terreno, em forma de ondas. Essa circunstância facilitava-me a visão.
Mal pus a lente diante dos olhos, minha atenção foi despertada para uma linha reta, que, vinda do oeste, cortava o horizonte pelo norte, indo desaparecer ao longe no oeste. Cheio de satisfação passei o aparelho a Winnetou para que ele examinasse a linha em referência. Depois de olhar por algum tempo, o cacique, tirando o aparelho dos olhos, pronunciou um “uff!” e fixou-me um olhar interrogativo.
— Sabe, meu irmão, que linha é aquela? — perguntei. — Não é caminho trilhado por manadas de búfalos e menos ainda por tropas de peles-vermelhas.
— Sei disso! Os búfalos não tomam semelhante direção e nem os peles-vermelhas. Aquilo é o caminho do “cavalo de fogo” que ainda hoje haveremos de atingir.
Pôs novamente o binóculo nos olhos e examinou com interesse tudo o que se descortinava diante de si, com o auxílio das lentes. Subitamente largou o aparelho e apeou puxando o cavalo para dentro dum bosque ao lado.
Acompanhei-o. Deveria haver motivo para o meu amigo assim proceder.
— Lá no caminho do “cavalo de fogo” está acampado um bando de peles-vermelhas — disse, por fim. — Estão ocultos por trás das elevações do solo. Mas vi a cavalhada.
— Quais serão os seus propósitos?
— Destruir os trilhos do “cavalo de fogo”.
— Sou da mesma opinião. Vou observá-los lá no local. Tomando-lhe o binóculo da mão, pedi-lhe que ficasse onde estava, até eu voltar e saí curvado em direção aos peles-vermelhas.
Embora certo de que eles estavam longe de suspeitar de nossa presença, procurei, no trajeto, ocultar-me o mais possível, valendo-me de toda árvore ou arbusto e acidentes do terreno. Cheguei tão perto dos indígenas, que, de gatinhas, podia contá-los e observá-los.
Eram em trinta e todos traziam os rostos pintados com as cores de guerra e se achavam armados de espingardas, arcos e flechas. O número de cavalos era maior do que o de guerreiros e essa circunstância reforçou a minha suposição de que os indígenas tinham um assalto e roubo em vista. Além dos animais de montaria haviam trazido também os cargueiros para o transporte da presa.
De repente ouvi um leve respirar por trás de mim. Levei logo a mão à cintura em busca da faca. Mas era Winnetou que não agüentou muito tempo montando guarda aos nossos cavalos.
— Uff! — exclamou. — Foi grande arrojo de meu irmão, chegando-se tão perto dos vermelhos. São ponkas, a mais audaciosa tribo dos sioux, e lá está Parranoh, o cacique pele-branca.
Olhei-o espantado.
— O cacique pele-branca? — perguntei, afinal.
Mas meu irmão não ouviu ainda falar em Parranoh, o desumano cacique dos atabaskabs? Ninguém sabe de onde ele veio; é um guerreiro violento e foi acolhido no conselho da tribo daqueles peles-vermelhas. Quando morreu o último dos anciões, recebeu o calumet de cacique e colecionou numerosíssimos escalpos. Mais tarde, porém, deixou-se fascinar pelo mau espírito e tratava como negros os seus guerreiros. Estes ergueram-se para matá-lo e ele fugiu. Agora faz parte do Conselho dos ponkas e os conduzirá a grandes feitos.
— Conhece-o pessoalmente?
— Sim! Winnetou mediu por várias vezes a sua machadinha com ele, mas aquele pele-branca é cheio de perfídia, não combate com lealdade.
— É um traidor! Pretende atacar o “cavalo de fogo”, matar e roubar os meus irmãos!
— Os peles-brancas? — perguntou assustado. — Pois ele é da mesma cor!
— Sim!
— Que fará meu irmão?
— Esperar para ver se Parranoh destrói o caminho do “cavalo de fogo”. Se tal suceder, cavalgarei ao encontro dos meus irmãos peles-brancas para preveni-los do perigo.
Ele concordou. Antigamente não era raro destruírem os trilhos, bandoleiros tanto brancos como indígenas, a fim de saquear os trens. Sobre este assunto, farei neste livro dois relatos.
Anoitecia cada vez mais, de modo que se tornava já difícil conservar os inimigos sob as vistas. Precisávamos, porém, acompanhar todos os atos dos índios e por isso me dispus a me aproximar mais e pedi a Winnetou que voltasse a fim de vigiar os cavalos.
O meu amigo concordou, dizendo:
— Quando meu irmão estiver em perigo, imite o grito da saracura, que virei socorrê-lo.
Ele voltou e eu rastejei em direção à linha férrea. Cheguei, feliz, até junto dos ponkas e os surpreendi nos preparativos para fazer descarrilar o trem. Nestas bandas havia grandes pedras, coisa rara nas campinas, razão por que os vermelhos escolheram precisamente este ponto para a sua ação indigna. Vi os guerreiros colocarem pesadas pedras sobre os trilhos.
Não havia mais tempo a perder e, depois de retroceder um pequeno trecho de gatinhas, saí correndo até os nossos cavalos. Eu não conhecia a via férrea onde nos achávamos e nem a hora em que passaria o trem. Mas, pela atitude dos índios, concluí mais ou menos de que direção ele vinha. O trem podia chegar a todo instante e para preveni-lo do perigo era necessário cavalgar a uma boa distância.
Montamos a cavalo e seguimos a trote beirando a linha férrea na direção leste. Cavalgamos durante uma hora. Apeamos, amarramos bem os cavalos e organizamos uma tocha de capim seco, a qual, com o auxílio de pólvora, pegou logo fogo. Munidos dessas tochas deitamo-nos de braços na beira dos trilhos, à espera da chegada do trem. Depois de uma pequena espera, surgiu, afinal, muito ao longe uma luz minúscula que, aos poucos, foi aumentando cada vez mais. Em seguida ouvia-se o rolar dos vagões sobre os trilhos.
O momento era chegado. O trem se aproximava de farol aceso. Saquei do revólver e o detonei contra outros montes de capim seco, que logo arderam, erguendo-se grandes chamas. Com uma tocha na mão, fiz sinal com o outro braço para o trem parar.
O maquinista largou a trava, mas a combinação passou rodando por nós, indo parar mais adiante. Corremos para lá e, sem falar com o maquinista, atirei minha manta no farol e gritei:
— Apague as luzes!
Fui atendido prontamente. Os funcionários da linha do Pacífico são dotados de rara calma e presença de espírito.
— O que há? — perguntou alguém da locomotiva; — por que cobriu o farol, homem? Espero que não haja algum perigo lá adiante.
— Precisamos ficar às escuras, sir — respondi; — lá adiante está um bando de índios esperando o trem para fazê-lo descarrilar e assaltar os passageiros.
— Com todos os diabos! Se fôr verdade, o senhor é o homem mais bravo que perambula por esta maldita zona.
E, descendo da locomotiva, apertou-me a mão com tal violência que eu tive vontade de gritar.
Em poucos minutos, estávamos rodeados pelos poucos passageiros que viajavam no trem.
— Que há? Que aconteceu? Por que parou o trem? — ouvia-se na roda.
Em poucas palavras, expliquei ao engenheiro-chefe de trem o que havia e o meu relato deixou os passageiros agitados.
— Bem — respondeu o engenheiro. — Esse incidente nos vai prejudicar o horário; mas, em compensação, teremos oportunidade de dar uma lição a esses canalhas. Somos em poucos, mas felizmente estamos bem armados. O senhor sabe quantos são os assaltantes?
— Contei trinta ponkas.
— Well. Serão dominados. Mas que homem é aqueie lá? Santo Deus! Um pele-vermelha!
Dizendo isso sacou da faca e quis investir contra Winnetou, que se achava meio no escuro.
— Calma, sir! — exclamei. — É o meu companheiro de jornada, que muito contente ficaria em conhecer o bravo ginete do “cavalo de fogo”.
— Então, sim! Chame-o para cá! Como se chama?
— É Winnetou, o cacique dos apaches.
— Winnetou!! — exclamou alguém lá atrás, ao mesmo tempo que abria caminho entre o grupo e corria até nós. — Winnetou, o grande cacique dos apaches está aqui?
Era um homem de compleição física verdadeiramente gigantesca. Ostentava trajes de escoteiro. Colocou-se diante do apache e disse, cheio de júbilo:
— Mas Winnetou já não conhece mais a figura e a voz do seu amigo?
— Uff! — respondeu Winnetou, transbordante de alegria. — Como podia eu me esquecer de “Mão de fogo”, o maior dos pioneiros das campinas do oeste bravio, embora já há muitas luas (*) com ele não me aviste mais.
— Acredito! Esteja certo que retribuo do mesmo modo a sua amizade que muito me desvanece!
— “Mão de Fogo”! “Mão de Fogo”! — ecoou por entre os presentes e todos deram um passo para trás, a fim de melhor contemplar o herói das campinas bravias, cuja fama corria por todo o continente e seus feitos eram contados em todas as fogueiras e em todas as rodas nas cidades.
— “Mão de Fogo”! — exclamou também o engenheiro. — Por que não me declinou seu nome, quando embarcou, homem?!! Eu lhe teria indicado um lugar mais confortável no vagão!!
— Obrigado, sir! O meu lugar é bem bom! Mas não percamos tempo com palavras frívolas. Deliberemos sobre a maneira de agir contra os indígenas assaltantes.
Todos se agruparam e eu tive que relatar o ocorrido a “Mão de Fogo”.
— Então é amigo de Winnetou? — perguntou, depois que terminei a minha exposição. — Não costumo acreditar na palavra de qualquer desconhecido. Mas basta ser amigo do cacique para ter-se a certeza de que é um homem de bem. Conto com o senhor! Aperte esta mão!
— Sim, é meu amigo e irmão — declarou Winnetou. — Nós tomamos o sangue da confraternização.
— Sangue da confraternização! — exclamou “Mão de Fogo”, aproximando-se mais de mim e contemplando-me. — Com que então este homem é o... é o...
— “Mão de Ferro”, sob cujo punho tomba o homem mais possante! — completou Winnetou.
— “Mão de Ferro”! “Mão de Ferro”! — exclamaram os circunstantes, aglomerando-se em torno de mim.
— O senhor é o “Mão de Ferro”? — perguntou o engenheiro satisfeito. — “Mão de Fogo”, “Mão de Ferro” e Winnetou! Que encontro providencial! Os maiores vultos do oeste bravio, os três invencíveis! Agora nada nos falta para vencermos os vermelhos! Os canalhas estão perdidos! Meus senhores — disse dirigindo-se a nós os três — ordenem que serão obedecidos! Que devemos fazer?
— São trinta bandoleiros — disse “Mão de Fogo”. — Com eles não teremos cerimônias. Serão dizimados num só golpe. Terão que morrer, esses canalhas.
— Mas trata-se de seres humanos, sir — interrompi.
— São selvagens e selvagens no verdadeiro sentido da palavra! — retrucou. — Já ouvi muito falar a seu respeito e sei que mesmo nos maiores perigos costuma ter condescendência com o inimigo. Mas eu penso doutro modo. Se tivesse passado por que passei, creio que ninguém mais ouviria falar nas condescendências de “Mão de Ferro” para com os inimigos. E como este bando é dirigido por Parranoh, o assassino cem vezes, a minha machadinha há de devorar a todos! Tenho contas a ajustar com aquele canalha, contas que só se liquidam com sangue, muito sangue!
(*) Meses.
— Howgh! — confirmou Winnetou. Winnetou que sempre se mostrava tão calmo! Devia ter motivos sérios para aplaudir o amigo.
— O senhor tem razão, sir! — disse o engenheiro. — O inimigo não se poupa, poupá-lo, no caso presente, seria até crime. — Bem, determine o plano que devemos executar!
— O pessoal ferroviário fica no trem cuidando do mesmo. Os senhores são funcionários e não os queremos arrastar à luta. Os demais gentlemen sim, podem gozar desse prazer, dando uma lição a esses canalhas, ensinando-lhes que não é justo descarrilar e saquear um trem. Iremos curvados e rastejando diretamente daqui ao ponto onde eles se acham e ali os atacaremos. Depois de estarem dizimados, daremos um sinal luminoso, ao qual o trem seguirá, mas devagar, pois ainda não sabemos se até a locomotiva chegar lá, terá sido possível desembaraçar os trilhos.
— Vamos! Vamos! — bradaram os passageiros em coro. Nenhum queria ficar para trás.
— Tomem de suas armas e venham! Não temos tempo a perder. Os vermelhos conhecem o horário do trem e se demorarmos muito, desconfiarão.
Partimos. Winnetou e eu íamos na frente como guias. Profundo silêncio reinava na zona e nós nos esforçávamos para evitar todo e qualquer ruído, por menor que fosse. Nada denunciava que aquela paz que reinava na planície constituía o preparativo para um combate sangrento.
Quando nos achávamos próximo do local, vi numa elevação a figura dum pele-vermelha. Os ponkas haviam destacado sentinelas. Daí a minutos avistávamos o grosso da tropa; os guerreiros se achavam deitados, inertes, no solo. Logo por trás deles estava a cavalhada, circunstância que dificultava a nossa tarefa de atacar o inimigo de surpresa, pois os cavalos denunciariam a nossa aproximação. Ao mesmo tempo vimos os preparativos dos indígenas para fazer descarrilar o trem. Eram enormes pedras que, em grande número, haviam sido colocadas sobre os trilhos.
Chegamos até defronte do inimigo, e aí ficamos com a arma na mão, pronta para fazer uso dela no primeiro momento.
A primeira coisa a fazer era imobilizar a sentinela, tarefa que foi confiada a Winnetou. Ele rastejou imediatamente em direção ao guarda e daí a pouco vimos o vulto deste tombar e surgir, no seu lugar, o do apache, que lá continuou firme e imóvel. Foi um dos seus grandes feitos. Os ponkas estavam tranqüilos e o truque de Winnetou passara-lhes completamente despercebido. A primeira e mais difícil tarefa estava agora realizada e poderíamos, pois, iniciar logo o ataque.
Mas, nem o sinal para isso ainda fora dado, quando por trás de mim ouviu-se o detonar de um tiro. Era um imprudente do nosso grupo que, tocando por descuido no gatilho do revólver destravado, detonara-o. Em vista deste imprevisto, fomos forçados a iniciar logo o assalto. Os ponkas, ao nos avistarem, correram em direção à cavalhada, a fim de fugir do alcance de nossas armas e, depois, talvez voltarem para nos atacarem.
— Tenham cuidado! — exclamou “Mão de Fogo”. — Façam fogo contra os cavalos. Os canalhas cairão e os dizimaremos!
A salva de nossas armas fêz-se ouvir e logo ouviu-se a gritaria da indiada que, tombando-lhes os animais que montavam, procuravam fugir a pé. Os poucos cavalos que restavam eu os abati com a espingarda de repetição. “Mão de Fogo” e Winnetou, de machadinha em punho, atiraram-se contra os ponkas; dos companheiros que trouxéramos do trem nada podíamos esperar. Detonavam as suas armas, sem acertar, e depois fugiam vergonhosamente da luta, quando ouviam o berreiro dum ponka que contra eles tentava investir.
Quando deflagrei meu último cartucho, pus de lado a espingarda de repetição e a “mata-ursos”, saquei da machadinha e corri para junto de Winnetou e “Mão de Fogo”. Éramos nós os três, os únicos que sustentavam a luta com os ponkas!
Vi, em meio da luta, Parranoh, o cacique pele-branca entre um grupo de índios e dele procurei aproximar-me. Desviando-se de mim, ele chegara bem perto do apache, do qual tentava também afastar-se. Winnetou viu a manobra e exclamou:
— Parranoh! Pretende o canalha dos atabaskahs fugir de Winnetou, o cacique dos apaches?! A terra há de beber o sangue e as garras dos urubus dilaceraram a carne do traidor; o seu escalpo, porém, há de pender do cinturão do cacique dos apaches!
Lançou longe a machadinha, sacou da faca e agarrou o cacique pele-branca pela garganta. Este, porém, conseguiu evitar a punhalada mortal.
Quando Winnetou, há pouco, contra os seus hábitos, proferira aquela exclamação, os olhares de “Mão de Fogo” dirigiram-se logo para aquela direção. Viu então o inimigo mortal que há tantos anos procurava para com ele liquidar uma dívida de sangue.
— Tim Finnetey! — gritou o velho e, abrindo ala por entre a indiada feroz, num salto correu para junto de Winnetou, segurou a mão deste, já pronta para novo golpe, exclamando:
— Pare, meu irmão! Este homem me pertence!
Parranoh tremeu de espanto ao ouvir pronunciar o seu verdadeiro nome. Mas, quando deu com os olhos em “Mão de Fogo”, desvencilhou-se de Winnetou e fugiu em vertiginosa carreira. Neste instante, livrei-me também dos índios com os quais lutava, durante o desenrolar daquela cena, e saí em perseguição do fugitivo. Embora nenhuma conta eu tivesse s ajustar com ele, só pelo fato de ser ele o cabeça do plano de assalto do trem já merecia uma bala, além disso, eu o sabia inimigo mortal de Winnetou e, por isso, justificava-se a minha atitude.
Os dois se puseram, também, em perseguição do inimigo. Mas eu tomara-lhes a dianteira e isto foi de vantagem, pois o cacique branco era corredor e “Mão de Fogo” não estava mais na idade de tomar parte numa corrida de vida ou morte como aquela. Quanto a Winnetou, por mais de uma vez ele confessara que eu corria melhor do que ele.
Daí a pouco vi que os dois se haviam distanciado muito; eu já me achava tão perto de Parranoh que lhe ouvia a respiração. Mais adiante, ouvi ao longe a voz de Winnetou:
— Pare, meu amigo “Mão de Fogo”! Meu jovem irmão pele-branca há de capturar e matar aquele sapo abjeto de atabaskah! Ele tem agilidade e sabe correr como o vento; por isso não deixará aquele cão escapar.
Não olhei para trás, a fim de ver se o escoteiro obedecera à voz de Winnetou, pois eu não podia perder de vista o fugitivo.
Subitamente este parou e voltou-se para agredir-me e eu lhe enterrei a faca até o cabo, no ventre!
O cacique tombou com tanta violência que também me arrojou ao solo. Levantei-me depressa e vi que o meu contendor não movia mais um só dos seus membros. Respirei profundamente e arranquei-lhe a faca do ventre.
Não era o primeiro inimigo que abatera e no meu corpo várias cicatrizes demonstram que nem sempre me saíra incólume desses encontros com os experimentados moradores das estepes americanas; aqui, porém, tratava-se dum pele-branca, dum representante da raça civilizada, circunstância que mais aumentava em mim a sensação horrível da luta. Mas — meditei depois — ele merecera a morte e não era digno que dele se tivesse dó.
Ouvi, depois, passos rápidos por trás de mim: era Winnetou que tomado de cuidados por mim, me seguira.
— Meu irmão é mais veloz do que a flecha dos apaches e o seu .punhal é infalível! — exclamou depois de ver Parranoh estirado no solo.
— Onde está “Mão de Fogo”? — perguntei.
— Ele é forte como o urso, mas suas pernas vão se tornando trôpegas com o correr dos anos. Não pretende meu irmão ornamentar-se com o escalpo do atabaskah?
— Ofereço-o ao meu amigo Winnetou.
Com três cortes, o cacique separou a pele do crânio do inimigo. Oh! Quanto este índio, em geral tão filantropo, devia odiar Tim Finnetey, para escalpelá-lo daquela forma! Para não continuar a assistir àquele espetáculo horrível, virei-lhe as costas, ocasião em que notei ao longe alguns índios que corriam em nossa direção.
— Winnetou, prepare-se para defender o escalpo do cacique pele-branca — preveni-o.
Os indígenas aproximavam-se cautelosamente; eram uns seis ponkas, que andavam, talvez, em procura dos companheiros extraviados no entrevero.
Atiramo-nos ao solo para não sermos vistos. “Mão de Fogo” já há muito que deveria ter chegado; com certeza, perdera Winnetou de vista e tomara outra direção. Agora percebemos que os inimigos que de nós se aproximavam traziam os cavalos pelas rédeas; deste modo, estavam preparados para, no caso de necessidade, empreenderem uma fuga rápida. Para nós, porém, essa fuga podia tornar-se um perigo e, portanto, era preciso que nos apossássemos dos animais. Rastejando, afastamo-nos do local, descrevendo uma curva, de modo que daí a pouco estávamos na retaguarda dos inimigos. Eles não supunham encontrar um morto a essa distância e por isso proferiram um “uff! uff!”, quando viram imóvel um corpo humano diante de si. Primeiro pensaram que Parranoh estivesse apenas ferido. Mas quando certificaram-se de que estava morto, soltaram os seus habituais brados de lamentações.
Era chegado o momento de agirmos. De súbito avançamos de encontro aos cavalos, montamos dois e tocamos, a galope, os demais, para junto dos nossos. Num combate, não podíamos pensar. Fora já um arrojo, desarmados como nos achávamos, havermos tomado os cavalos aos inimigos, três vezes superiores em número, sem nada sofrermos, e ainda o havermos tirado o escalpo do cacique branco.
Com requintado gozo eu me lembrava da cara desenxabida que deviam estar fazendo os índios; também o tão circunspeto Winnetou não pôde, ao se lembrar disso, conter o seu “uff!”, acompanhado de risadas. Em seguida, começamos a temer pela sorte de “Mão de Fogo”, que, como nós, talvez se tivesse encontrado com um grupo de ponkas.
Esse cuidado aumentou, quando, ao voltarmos, não o encontramos no lugar do assalto.
O combate terminara; os peles-brancas que nos auxiliaram, ou, melhor, estorvaram na luta estavam ocupados em juntar os corpos dos ponkas. Quanto aos peles-vermelhas feridos, foram levados pelos que fugiram. No local, onde haviam sido colocadas as pedras sobre os trilhos, foram acesas duas fogueiras, que serviam de sinal para o trem avançar. Este não se fez esperar e parou diante do fogo. Os funcionários pularam dos vagões e se informaram sobre o resultado da luta. Quando eu os pus ao corrente da nossa vitória, o engenheiro-chefe usou de palavras elogiosas para conosco, prometendo, em seu relatório de viagem, exaltar os nossos nomes, dizendo que nossa fama de heróis corresse por todo o país.
— Não é preciso, sir! — retruquei. — Somos simples homens do oeste e renunciamos, com prazer, a essas propagandas e fanfarronadas. Mas se não puder deixar de mencionar essa tentativa de ataque e elogiar os participantes, então entoe hosanas à bravura desses gentlemen, que bem o mereceram. Eles gastaram muita pólvora e é justo que tenham essa recompensa...
— Está falando sério, sir? — perguntou, pois pareceu não compreender bem o tom de ironia em que eu falava.
— Claro!
— Então eles se conduziram com bravura?
— Com extraordinária bravura!
— Folgo imensamente com isso. Vou tomar-lhes os nomes e publicá-los. Mas, onde está “Mão de Fogo”? Não o vejo. Espero que não tenha caído no combate!
Winnetou respondeu:
— “Mão de Fogo” perdeu a pista de Parranoh e com certeza se chocou com outros inimigos. Eu vou, com “Mão de Ferro”, procurá-lo.
— Sim e já! — concordei. É bem possível que se ache em perigo. Esperamos que, ao voltarmos, os senhores ainda estejam aqui.
“MÃO DE FOGO” EM PERIGO DE VIDA
Winnetou e eu juntamos as nossas armas que atiráramos ao solo, na fuga de Parranoh, e saímos na direção em que havia tomado “Mão de Fogo”. Não podíamos ver à distância, pois a lua se achava encoberta por nuvens. Devíamos, pois, confiar mais nos ouvidos do que nos olhos. Os primeiros minutos, passaram-se sem resultado, porque a algazarra feita pelo pessoal do trem não permitia que ouvíssemos o menor ruído diante de nós. Quando, porém, havíamos já tomado uma grande distância do trem, parávamos de vez em quando para escutar. Mesmo assim, não conseguíamos ouvir nada. íamos retroceder, pois julgávamos que “Mão de fogo”, nesse meio tempo, voltara para o trem, quando ouvimos, ao longe, um chamado dirigido a nós.
— Deve ser o nosso irmão, — disse Winnetou — pois nenhum ponka seria tão tolo em chamar por nós.
— Sou da mesma opinião — respondi eu. — Corramos até lá.
— Sim, depressa! Ele se acha em perigo, pois do contrário não nos chamaria.
Winnetou saiu rumo norte e eu segui pelo leste.
— Por que encaminha-se meu irmão por esse rumo? O chamado partiu do norte.
— Não, foi do leste! Ouça!
O chamado repetiu-se e eu acrescentei:
— É do leste. Ouço muito bem.
— Não, a voz vem do norte. “Mão de Ferro” engana-se.
— Estou convencido de que tenho razão. Ele está em perigo e não temos tempo a perder: Winnetou segue pelo norte e eu pelo leste. Um de nós há de encontrá-lo.
— Façamos assim, pois!
— A essas palavras, ele saiu correndo e eu também. Pouco depois, vi que eu tinha razão, pois o chamado fêz-se ouvir de novo e agora muito mais perceptível; logo depois deparei com um grupo de homens que lutavam.
— Já vou, “Mão de Fogo”! Conte comigo! — gritava eu enquanto corria na direção do grupo. Pude então distinguir os combatentes. “Mão de Fogo” estava de joelhos, pois fora ferido, e defendia-se da investida de três ponkas. Três deles, ele já havia morto. Eram os seis aos quais tomáramos os cavalos, momentos antes. Qualquer golpe mal aparado custaria à vida ao escoteiro e eu ainda me achava a uns cinqüenta passos distante! Parei e apontei a (espingarda de repetição). A tênue claridade do luar fazia com que o tiro fosse perigoso, pois era fácil acertar exatamente naquele a quem eu queria salvar. Mas era obrigado a arriscar. Os três tiros consecutivos foram detonados e os três inimigos tombaram sem vida; corri para junto de “Mão de Fogo”.
— Graças a Deus! Estava mesmo na hora, mais um segundo e eu estaria perdido! — exclamou o escoteiro.
— Está ferido? — perguntei-lhe. — E gravemente?
— Mortalmente, creio que não. Dois golpes de machadinha na perna, — Esses cães não conseguiram acertar-me na cabeça e golpearam-me a perna para que eu caísse.
— Então há hemorragia. Deixe-me examiná-lo!
— Sim, sim! Mas, sir, que excelente atirador é o senhor! No escuro, por assim dizer, e acertou todos os três no meio da cabeça! Morreram todos. Isso só “Mão de Ferro” consegue fazer! Não pude acompanhá-los na perseguição a Tím Finnetey, porque um ferimento produzido por flechas impediu-me de correr. Não pude ver o seu rasto e estava à sua procura, quando diante de mim surgiram esses seis ponkas. Eu estava armado apenas com a faca e os punhos, pois para melhor correr jogara as outras armas. Golpearam-me na perna. Três eu apunhalei; os outros três me teriam liquidado, se o senhor não viesse em meu auxílio. Nunca me esquecerei que “Mão de Ferro” salvou-me a vida!
Enquanto ele assim falava eu examinava-lhe as feridas. Eram dolorosas, mas felizmente sem perigo. Daí a pouco chegou Winnetou e me ajudou a atá-las. Ele deu a mão à palmatória: o engano fora dele, eu é que tomara o rumo certo. Deixamos lá os seis cadáveres e voltamos para o trem, vagarosamente, pois “Mão de Fogo” caminhava mal. Por isso não nos admiramos de já haver o trem prosseguido quando chegamos nos trilhos; a máquina precisava tirar a diferença do tempo perdido, a fim de não prejudicar o horário; por isso o chefe do trem não nos esperou. Os cavalos que tomáramos aos inimigos estavam amarrados com os nossos. Fomos obrigados a procurar um mato com boa aguada, onde acampamos e permanecemos durante uma semana até “Mão de Fogo” se restabelecer e poder cavalgar.
Ainda o incêndio de Nova Venango
Depois de restabelecido dos ferimentos, “Mão de Fogo”, em nossa companhia, empreendeu viagem para o seu burgo. O caminho que nos conduzia até lá atravessava zonas perigosíssimas, onde perambulavam diversas tribos inimigas.
Não fizemos uso de nossas armas para abater caças, a fim de evitar que os estampidos denunciassem aos vermelhos a nossa passagem pela região. Não sofremos, entretanto, privações, pois pegávamos bastante caça com o laço. Uma noite eu estava sentado perto da fogueira, ao lado de “Mão de Fogo”. Winnetou se achava de guarda e numa de suas rondas chegou-se até junto de nós.
— Meu irmão não deseja sentar-se à fogueira? — perguntou-lhe “Mão de Fogo”. — O caminho dos raphaos não passa por aqui e, portanto, não há perigo algum a temer.
— Os olhos do apache estão sempre abertos; não confio na noite, pois ela também é mulher! — respondeu Winnetou.
Tendo dito isso, continuou a ronda.
— Ele odeia as mulheres — disse eu, dando início a uma dessas palestras confidenciais, que só se entretém debaixo do céu recamado de estrelas e que nos ficam gravadas na memória, por toda a vida.
“Mão de Fogo” encheu o cachimbo e se pôs a fumar.
— Acha? Talvez não! — respondeu.
— Pelas suas palavras de há pouco parece que sim.
— Parece, mas não é assim. Houve é verdade uma, que para possuí-la, ele teria lutado com céus e infernos; desde então, a palavra mulher lhe desperta recordações dolorosas.
— Mas por que ele não a desposou e não a levou para a sua taba?
— Ela amava a outro!
— Mas disso não cogita um selvagem, quando pretende casar-se.
— Sim; mas esse outro era seu amigo!
— E como se chamava ele?
— Agora tratam-no por “Mão de Fogo”.
Olhei-o surpreendido. Achava-me diante de uma daquelas tragédias d’alma de que é tão rico o oeste bravio, tragédias que parecem mais enrijecer os caracteres dos que nelas se vêem envolvidos. Naturalmente, já não me ficava bem continuar a fazer-lhe perguntas sobre o assunto; mas em mim a curiosidade devia ser muito visível, pois, depois de uma pausa, o velho continuou:
— Deixemos em paz o passado, sir. Quisesse eu falar nele, esteja certo, eu o faria, ao senhor, pois, não obstante a sua pouca idade, inspira-me grande confiança; aprendi a estimá-lo como verdadeiro amigo, durante o curto espaço de tempo em que nos conhecemos.
— Muitíssimo agradecido, sir. Creia que me sinto verdadeiramente feliz com essa distinção e asseguro que lhe retribuo essa amizade com abundância d’alma!
— Eu sei! Disso já deu sobejas provas, pois sem o seu auxílio decidido, eu, naquela noite, estaria perdido. Eu me ia esvaindo em sangue e não poderia resistir por mais tempo aos ataques dos ponkas. O que me enraivece é não ter conseguido ajustar contas com aquele Parranoh, aliás Tim Finnetey.
A essas palavras a sua fisionomia, em geral tão serena, tornou-se sombria e sinistra. Que ódio votava ele àquele cacique pele-branca! Que lhe teria este feito? Eu estava curioso. Não quis, porém, ser indiscreta Mais tarde, talvez, viesse a saber de tudo.
Depois de havermos atravessado a zona dos raphaos e pawnes, chegamos ao rio Mankizila, à cuja margem ficava o “burgo” ou “fortaleza” de “Mão de Fogo”. Aí este mantinha uma turma de caçadores de castor.
Eu pretendia unir-me aos caçadores e com eles viver por algum tempo, a fim de conhecer esse ramo de indústria. Depois tencionava seguir para Dakotah, atravessando a “Campina dos Cachorros”. Durante a viagem, eu ia pouco a pouco penetrando no passado de “Mão de Fogo”. De uma feita, estando com ele ao redor da fogueira, o escoteiro viu o anel brilhar-me no dedo.
— Que anel é este, sir? — perguntou-me o velho.
— É a recordação de uma das mais horríveis passagens da minha vida!
— Quer mostrar-me?
— Pois não!
Satisfiz-lhe o desejo. Trêmulo, agarrou o objeto e mal o olhou de perto, perguntou-me, empalidecendo.
— Quem lhe deu?
— Um menino, em Nova Venango — respondi-lhe.
— Em Nova Venango?! Esteve com Forster? Viu Harry? O senhor falou de uma passagem terrível de sua vida! Alguma desgraça?!
— Uma aventura, na qual eu ia morrendo carbonizado, se não fosse meu valente “Andorinha” — respondi, procurando agarrar o anel que ele ainda examinava.
— Espere! Quero saber em que circunstâncias esta jóia lhe veio parar às mãos. Tenho direitos sagrados sobre ela!
— Sente-se e esteja tranqüilo, sir! Se fosse outro que se negasse a me devolver o anel, eu o obrigaria a restituir-me. Mas ao senhor eu consinto que fique com a jóia e vou relatar-lhe o sucedido.
— Fale! Mas esteja certo de que se esse anel estivesse no dedo de uma pessoa que não me merecesse confiança, esta pagaria com a vida a audácia de usá-lo!! Bem, fale!
Ele conhecia Harry. Conhecia também Forster e o seu estado de agitação nervosa provava o interesse que estas duas pessoas lhe inspiravam. Eu precisava fazer-lhe umas cem perguntas, mas adiei-as para depois, passando a relatar-lhe o incêndio do vale petrolífero.
Com a face apoiada em ambas as mãos, ele escutava-me e a sua agitação aumentava à proporção que eu avançava na narrativa. Quando cheguei no ponto em que carregara Harry no cavalo, ele se ergueu de um pulo e gritou:
— Era o único meio de salvá-lo! Já receio à sorte do menino! Quando cheguei ao fim do relato, e ele soube que o menino escapara incólume, respirou com alívio e exclamou:
— Céus! Que momento horrível! Passei agora por um susto, como se o meu próprio corpo estivesse a arder no meio das chamas. Contudo, eu já tinha, de antemão, a certeza de que o senhor havia salvo o menino, pois do contrário ele não lhe teria feito presente do anel.
— E não o fêz! Ao desvencilhar-se de mim, o anel ficou-me na mão e ele nem deu pela perda.
— Então cabia-lhe devolver depois o objeto ao seu verdadeiro dono.
— Quis devolvê-lo e para esse fim segui-o certo trecho do caminho, tendo-o pouco depois perdido de vista. Encontrei-o na manhã seguinte junto com uma família, a única que não fora atingida pelas chamas, porque morava numa elevação do vale.
— Então falou-lhe no anel?
— Não, porque nem me deixaram aproximar dele. Receberam-me a tiros, e então resolvi seguir o meu caminho.
— Sim! Ele é desse temperamento. Odeia a covardia e o tomou por um poltrão. E que é feito de Forster?
— Ouvi, depois, dizer que somente a família, na companhia da qual se achava Harry, conseguiu escapar a voragem das chamas. Tudo o mais o fogo destruiu.
— Foi um castigo terrível à ganância de Forster, fazendo derramar o petróleo com o fim de aumentar-lhe o preço.
— Conhecia-o também, sir? — perguntei-lhe.
— Estive algumas vezes com ele em Nova Venango. Era um homem tolo, grosseiro e orgulhoso porque se julgava rico. Tratava a todos com estupidez.
— Viu também Harry na sua companhia?
— Harry?! — exclamou num riso original. — Sim, vi-o na sua companhia e também em Omaha, onde ele tem um irmão, e... talvez, também noutros lugares.
— Podia informar-me alguma cousa a seu respeito?
— Por que não?! Mas não já. A sua narrativa agitou-me de tal modo os nervos, que não tenho, no momento, a calma precisa para coordenar certos fatos. Na primeira ocasião que se nos deparar lhe falarei a respeito do menino. Ele não lhe disse o que estava a fazer em Nova Venango?
— Sim. Apenas pousava naquela localidade. Decerto prosseguiu logo viagem.
— Está bem! O senhor garante que ele ficou livre completamente do perigo?
— Garanto! Tenho absoluta certeza, pois o fogo já se apagara de um todo, quando de lá me retirei.
— Viu-o atirar?
— Como já lhe disse. É um excelente atirador. Um menino prodígio!
— É isso mesmo. Tem a quem sair. O seu pai é um velho escoteiro, cujo tiro nunca erra o alvo. E foi ele quem o adestrou.
— Onde está o seu pai?
— Ora aqui, ora ali, ora acolá e afirmo-lhe que o senhor o conhece. É possível que eu ainda lho possa mostrar...
— Eu folgaria muito com isso! Peço, pois, que não retarde a apresentação.
— Oh! Não. Pelo que fêz ao filho é digno da gratidão do pai.
— Oh! Não é para que me agradeça, que eu quero conhecê-lo!
— Compreendo, compreendo! Já o conheço bastante, sei quanto a sua alma é nobre. Mas aqui está o anel. Ponha-o de novo no dedo! Mais tarde saberá por que lho devolvo.
CHEGANDO À “FORTALEZA”
Quando atingimos a margem do rio Mankizila, que procuramos evitar por uma curva, logo se ergueu ante nós um desfiladeiro que parecia seguir o curso do rio.
— Parem! — ressoou subitamente, à beira dum capão, ao mesmo tempo que uma espingarda de dois canos era apontada para nós. — Dêem-me a senha.
— Valente!
— E que mais?
Afinal, “Mão de Fogo” enunciou a senha inteira. Depois da capoeira surgiu um homem, cuja presença me fêz soltar um grito de alegria.
Debaixo das abas de seu largo chapéu de feltro, cuja cor e cuja forma bastariam para tirar o sono ao mais perito pesquizador de antigualhas, do meio de uma densa floresta de desalinhadas barbas negras, irrompia, assustador, um nariz colossal. A densidade da barba, além do formidável nariz, nada mais deixava ver senão os dois olhos pequenos, inteligentes e perscrutadores que fixavam ora num, ora noutro de nós três.
Aquela cabeça esquisita encimava um corpo não menos esquisito. Descia-lhe até os joelhos um jaquetão de caça, destinado, sem dúvida, a uma pessoa muito mais corpulenta. O homem dava a impressão de uma criança enfiada no camisão de dormir do avô... Completava-lhe a indumentária tatona uma calcinha muito curtas e muito apertada, que lhe faziam ressaltar a fealdade das pernas cambotas, cujos pés calçavam um par de botas indianas, tão grandes que nelas o dono, em qualquer emergência, poderia encontrar esconderijo seguro. À mão trazia uma espingarda, que eu não me animaria a tocar senão com extremo cuidado. Era impossível imaginar-se uma caricatura mais completa do caçador das campinas.
— Sam Hawkens! — exclamou “Mão de Fogo”. — As tuas vistas estão turvas a ponto de exigires de mim a senha?
— Não é isso, sir! Quis apenas demonstrar que sou rigoroso no meu serviço! Sejam bem-vindos, meus senhores. Que alegria, quanta alegria. Estou tonto de entusiasmo! Quanto me sinto feliz em rever o meu único e querido greenhorn e Winnetou, o heróico cacique dos apaches! A eles, minhas barbas e peruca, em continência!! Hihihihi!
Estendeu ambas as mãos, apertou-me de encontro ao peito com tanta efusão, que o seu velho jaquetão fazia um ruído semelhante ao de uma caixa vazia. Coroou a manifestação de júbilo apontando os lábios barbados para beijar-me, carícia da qual, diplomaticamente, declinei. Os seus cabelos e barbas outrora negros, tinham-se tornado grisalhos.
— Alegro-me sinceramente em revê-lo, meu caro Sam — disse-lhe eu — Mas, diga-me cá, não disse a “Mão de Fogo” que me conhecia e que foi meu mestre?
— Naturalmente que lhe contei tudo!
— E o senhor nada me contou, não me disse que aqui eu tornaria a ver o meu velho e bom Sam?! Então isso é procedimento de amigo?!
Tal censura amistosa era dirigida a “Mão de Fogo”, que respondeu, sorrindo:
— Eu quis fazer-lhe uma surpresa. Vê agora que eu de há muito o conhecia, através do nome e dos feitos. Quantas vezes, durante horas e horas, o senhor se tornou o assunto de minhas palestras com Sam. Irá encontrar mais dois velhos amigos em minha “fortaleza”.
— Com toda certeza trata-se de Dick e Will, os dois inseparáveis amigos de Sam.
— Exatamente. Para eles, a sua vinda será também uma grande e agradável surpresa. Mas, Sam, quem do nosso pessoal ficou hoje em casa?
— Todos, com exceção de Bill Bulcher, Dick Stone e Harry Korner que saíram para fazer charque. O pequeno sir já regressou da sua jornada.
— Já sei. Houve mais novidades durante minha ausência? Apareceu algum pele-vermelha?
— Nada, nada! É pena, pois — mostrando o porrete de fogo — minha “Liddy” está ansiosa por entrar em ação!
— Ah! Essas fizeram boas colheitas. Irá ver, sir! Pegamos castores aos montes! Vai encontrar pouca água no portão.
— E as armadilhas?
Ele virou-se e foi ocupar novamente o seu posto, ao passo que nós prosseguimos.
A cena a que me referi, demonstrou que nos achávamos nas proximidades da “fortaleza”, pois Sam não iria montar guarda muito afastado dela.
Percorri, com atenção, as redondezas para ver se encontrava o respectivo portão ou cousa que o valha.
Agora, à esquerda, abria-se um estreito precipício cujas cristas eram constituídas de pedregulhos colmados por amoreiras silvestres. Por ali corria um arroiozinho, de leito rochoso, não tendo um metro sequer de largura. Este arroio ia desaguar no riacho em cujo vale estava situado o “burgo” de “Mão de Fogo”. Por esse precipício entramos e seguimos o curso do arroio. Agora eu compreendi as palavras de Sam: “Vão encontrar pouca água no portão”.
Pouco depois, as duas paredes laterais do vale iam aos poucos se juntando, parecendo não tardar a fechar-nos a passagem. Mas, com surpresa minha, “Mão de Fogo” cavalgava sempre para a frente e daí a instantes o vi desaparecer por trás da rocha. Winnetou o seguiu; quando eu alcancei o local, vi que as densas heras que ali vicejavam formavam uma espécie de cortinado não tocando, entretanto, em parede alguma. Elas cobriam uma abertura em forma de túnel muito extenso e semi-escuro.
Na semi-escuridão cavalgamos mais um bom trecho, fazendo várias curvas, até que a claridade do dia surgiu-nos de novo e daí a momentos atingíamos outro precipício semelhante ao que por onde há pouco havíamos entrado. Quando o precipício se abriu, vi, admirado, que nos achávamos na entrada da esplanada de um vale, que era rodeado de monumentais montanhas rochosas. Na chapada do vale pastavam várias tropas de cavalos e muares. No meio da cavalhada, corriam numerosos cães, parte daquela raça semelhante ao lobo, adotada pelos índios não só para a guarda de suas cabanas, mas também para o transporte de pequenas cargas; os outros eram cães menores que, por serem de fácil engorda e de carne saborosa, semelhante à da pantera, constituem um petisco excelente para os peles-vermelhas.
— Eis o meu “burgo”! Aqui se mora com mais segurança do que no próprio seio de Abraão! — disse “Mão de Fogo”, virando-se para nós.
— Há alguma abertura, lá no morro? — perguntei, apontando para o lado oposto à esplanada do vale.
— Absolutamente não! Nem um mosquito passa por ali. E galgar a montanha é tarefa quase irrealizável. Muitos peles-vermelhas já rodearam essas montanhas e nenhum deles ainda descobriu que elas encerram um lindo vale como este.
— Mas como chegou a descobrir este aprazível vale?
— Eu andava em perseguição dum urso pardo, que entrou ali na abertura, onde estão hoje as heras. Segui o animal e depois tomei posse mansa e pacífica deste local.
— Sozinho?
— Primeiramente, sim; e centenas de vezes este vale me salvou a vida, pois, perseguido pelos bandoleiros peles-vermelhas, aqui sempre encontrei esconderijo seguro. Mais tarde, porém, para aqui trouxe o meu pessoal. Caçamos castores, preparamos as peles e aqui nos refugiamos dos rigores do inverno.
Ditas essas palavras, ele deu um assobio que ressoou pelo vale indo o eco morrer nas fraldas das montanhas. Em seguida, ao nosso derredor, se abriram várias entradas na capoeira e numerosos vultos de pessoas surgiram em nossa frente.
Cavalgamos mais um trecho e paramos. Vimo-nos logo cercados pelo pessoal que demonstrava sua alegria pelo regresso de “Mão de Fogo”. Entre os presentes se achava, também, Will Parker que não pôde esconder o seu contentamento ao avistar-me.
Winnetou apeou, desencilhou o cavalo e soltou-o. O vale era rico em pastagens. Em seguida pôs os arreios às costas e saiu como se estivesse em sua taba, sem nos dizer aonde ia.
NOVO ENCONTRO COM O MENINO PRODÍGIO
Fiz o mesmo. Depois de soltar “Andorinha” na pastagem, saí também, a fim de fazer um reconhecimento no vale. Escolhi para o meu passeio, a sua face direita. Caminhei, por entre arbustos, beirando sempre as paredes da montanha. Nas mesmas, havia várias cavernas tapadas com peles. Eram entradas, sem dúvida para a residência dos moradores da “fortaleza”. Conforme vi depois, quase toda a colônia de caçadores morava em cavernas, abertas por eles nas paredes do vale.
A colônia devia ser formada de maior número de pessoas do que o que nos recebeu, dado à grande quantidade de mulheres que encontrei durante o passeio. É que a maioria dos homens andavam atarefados com a caça e só voltavam no começo do inverno, que aliás, não tardava a chegar.
Nesse meu passeio, notei que num dos penhascos, à primeira vista inacessíveis, se erguia uma cabana. Dali se podia, com certeza, avistar todo o vale com os seus mínimos detalhes; resolvi subir até lá. Após uma rápida pesquisa, encontrei não um caminho, mas rastos de pés formando uma linha reta naquela direção. Segui essa linha.
Havia vencido apenas um pequeno trecho, quando, à estreita porta da cabana, avistei um vulto que não me vira, pois nem se mexeu. Estava de costas para o meu lado e com a mão diante dos olhos, em forma de pala, olhava para a planície.
Usava um jaquetão de caça de lã escura, calças e sapatilhas à maneira dos índios. Estas eram amarradas com contas de vido e bordadas com fios encarnados. À cabeça trazia um manto em forma de turbante.
Quando pus os pés debaixo do pequeno avarandado, ele percebeu o ruído dos meus passos e virou-se. Era sonho ou ilusão? Exclamei tomado de espanto e alegria ao mesmo tempo.
— Harry! Será possível? — E a passos rápidos me encaminhei para ele. O seu olhar, porém, era frio e nem a menor expressão de sua fisionomia denunciava contentamento pela minha vinda.
— Se não fosse possível, não me encontraria aqui, sir — respondeu-me. — Mas eu é que tenho o direito de fazer-lhe esta pergunta: que circunstância lhe permitiu entrar em nosso acampamento? Estou a apostar que aqui veio como um intruso!
Merecia eu uma tal recepção da parte daquele menino? Mais frio e refletido, disse-lhe apenas:
— Cale!
Em seguida virei-lhe as costas e voltei para baixo.
Confirmava-se, pois, a minha suposição: ele era filho de “Mão de Fogo”!
Embora eu tivesse diante de mim um menino, a sua atitude, depois de todas as ocorrências havidas, já começava a causar-me indignação. A afirmativa de “Mão de Fogo” de que Harry me tomara por um poltrão, fora confirmada com o seu gesto, quando de nosso primeiro encontro, e com o de agora. Contudo, eu não podia conformar-me, pois não me recordava de um só ato meu que o levasse a formular semelhante juízo a meu respeito. Dominei o mau humor e voltei para o acampamento.
Anoitecera. No centro da esplanada ardia uma enorme fogueira, cujas chamas se elevavam a enorme altura. Ao redor dela achavam-se sentados todos os moradores da “fortaleza”. Harry lá se achava também e não tirava os olhos de mim. O seu olhar era, porém, agora, menos hostil.
Contaram uma série de aventuras, que escutei com toda atenção, até que me levantei para, conforme velho hábito meu, ir ver o meu cavalo. Abandonei a fogueira e saí pelo vale.
Um leve ruído numas moitas, chamou-me a atenção. Era “Andorinha” que, deste modo, me dava um sinal da sua presença ali. Depois que me salvou das chamas, o animal se tornara ainda mais afeiçoado a mim. Afaguei-o roçando o rosto pelo seu pescoço esguio.
Um leve bufido do animal, à guisa de advertência, fez-me olhar para o lado. Um vulto se encaminhava para nós na escuridão. Notei que a ponta do lenço que ele trazia à cabeça se agitava ao vento. Era Harry.
— Perdoe-me se o interrompo — disse com a voz agora um tanto indecisa. — Lembrei-me do “Andorinha”, o seu bravo cavalo a quem devo a vida, e dispus-me a vir cumprimentá-lo.
— Aqui está o cavalo. Não pretendo constranger esse encontro com a minha presença. Retiro-me. Boa noite!
Virei-me para retirar-me, mas mal havia dado uns dez passos, ouvi alguém chamar-me à meia voz:
— Sir!
Parei. Com passos incertos, Harry me seguia; a vibração original de sua voz denunciava o apuro indisfarçável em que se achava.
— Eu o ofendi!
— Ofendeu-me?! — retruquei-lhe calmo e com frieza. — Está enganado, sir! Considero-o digno de indulgência e, por isso, não me acho ofendido. Se tal sucedesse, de há muito que eu teria reagido na altura. O senhor não sabe o que diz, quando encolerizado e, por isso, não deve ser tomado a sério!
— Então perdoe o meu engano!
— Com prazer! Já estou habituado a perdoá-lo. Não será esta a primeira vez que o faço.
— Assim então, daqui por diante, procurarei não me valer mais da sua indulgência!
— Contudo, ela estará sempre ao seu dispor!
Já ia retirar-me, quando o jovem aproximou-se mais de mim, pôs-me a mão sobre o ombro e disse:
— Afinal, ouça-me: peço que se esqueça de nossas desinteligências pessoais. O senhor, com risco da sua própria vida, salvou a minha vida e a de meu pai; sou obrigado a ser-lhe grato, por mais que me repudie e me maltrate com palavras. Agora, há pouco, é que vim a saber de tudo quanto o senhor fêz!
— Todo homem do oeste está sempre pronto para fazer o que fiz e ainda muito mais. O que fizemos para salvar a vida de um companheiro, outros talvez já tenham feito por nós e até dez vezes mais! Constitui isso um dever de todo explorador das campinas bravias; portanto a minha atitude não deve ser levada em tamanha conta, a ponto de se considerar na obrigação de render-me preitos de gratidão! Se lhe aprouver continue, pois, calmamente a fazer o mesmo juízo temerário de antes a meu respeito; jamais o julgarei ingrato por isso! Também o seu amor filial não deve influir na opinião que forma de uma pessoa, que supõe haver salvo a vida do seu pai.
— Até há pouco era eu, agora é o senhor que se torna injusto para consigo mesmo! Quer continuar a me contrariar?
— Não!
— Então, permite-me que lhe faça um pedido?
— Faça-o!
— Zangue-se comigo; repreenda-me sempre que não proceder com justiça, mas jamais me torne a falar em indulgência, como há pouco! Quer me fazer este favor?
— Pois não!
— Obrigado! E agora voltemos para o redor da fogueira para dar boa noite aos nossos companheiros. Depois lhe vou mostrar o seu dormitório; temos que nos deitar logo, porque amanhã partiremos pela madrugada.
— Para onde e com que objetivo?
— Coloquei no Bee-fork as minhas armadilhas e pretendo levá-lo até lá, a fim de conhecer o sistema de pegar castores.
Alguns minutos depois, nos achávamos numa caverna feita na rocha, uma espécie de compartimento iluminado por um candieiro alimentado por graxa de cervo.
— Eis o seu quarto de dormir, sir. Os nossos caçadores apelam para ele, sempre que receiam apanhar reumatismo, dormindo ao ar livre. O vale é úmido e por isso deve pernoitar aqui, a fim de não apanhar aquela moléstia.
NUMA “COLÔNIA” DE CASTORES
Estendeu-me a mão, desejou-me amavelmente boa noite e retirou-se. Quando fiquei só, olhei ao redor do cubículo, que me servia de dormitório. Não se tratava de uma gruta natural, mas feita na rocha por mãos humanas. O solo estava atapetado com peles curtidas, de que as paredes também eram forradas. Aos fundos, havia uma cama feita de varas de cerejeira. Serviam de colchão peles de juta e colchas nativas feitas pelos navajos. Pelos objetos dependurados na parede, vi que Harry me cedera o seu próprio dormitório.
Só mesmo o cansaço que me dominava é que me levou a deixar o ar livre e a dormir naquele estreito catre. Todo aquele que estiver afeito a passar as noites debaixo do lindo céu do oeste bravio, dificilmente se habituará a dormir em cubículos acanhados e de ventilação escassa.
Talvez o abafamento do meu quarto contribuísse para que o sono me fosse mais pesado do que de costume, pois fui despertado, já ao clarear do dia, por uma voz que dizia:
— Acorde e levante-se, sir. O ar matinal é muito saudável! Venha para fora!
Levantei-me de um pulo e cheguei à porta. Era Sam Hawkens. Ostentava um traje de escoteiro, sinal de que nos acompanharia.
— Estarei logo pronto, caro Sam!
— Assim espero! O pequeno sir já está aí na porta.
— O senhor vai junto?
— Ao que parece, sim, hihihihi! O pequeno sir não pode carregar a “ferramenta” (*) e “Mão de Fogo” ainda menos.
Quando cheguei à porta, vi logo Harry que já me esperava. Sam agarrou um amarrado de armadilhas, pô-lo nas costas e se aproximou de nós.
— Deixaremos os cavalos aqui? — perguntei.
— Oh! Creio que o seu cavalo não aprendeu a armar um alçapão e nem pescar um castor do fundo do rio! Não! Temos que forçar nossas pernas, se quisermos chegar a tempo ao lugar a que nos destinamos. Vamos, pois, e deixem de conversas! — respondeu Sam, no seu modo de falar.
— Mas deixe ver primeiro o meu cavalo, velho Sam!
— Não é preciso! O pequeno sir já tratou dele.
Sem que tal tencionasse, Sam me contava uma boa nova. Harry, ao romper do dia, preocupara-se com “Andorinha”, sinal de que se lembrava também do dono! Certamente o seu pai lhe falara a meu respeito e explicara a minha atitude em Nova Venango, fazendo-o mudar de opinião completamente. Já estava admirado de ainda não haver enxergado “Mão de Fogo”, o madrugador, quando, no mesmo instante, ele atravessou o arroio em companhia de Winnetou.
Winnetou fêz a Harry o seu cumprimento indiano:
— O filho de Ribana é forte como os guerreiros das margens do Gila. Seus olhos hão de avistar e caçar tantos castores que seus braços não poderão com o peso de todas as suas peles.
(*) Armadilhas.
E notando o meu olhar, à procura do “Andorinha” pelo vale, declarou tranqüilizando-me:
— Pode ir descansado, meu bom amigo! Winnetou cuidará do seu cavalo, que é também estimado pelos apaches.
Partimos. Depois de havermos atravessado o precipício, dirigimo-nos para rumo oposto ao que nos trouxera na véspera; desviamo-nos, em seguida, para a esquerda e descemos o curso do arroio, até chegarmos ao ponto em que este deságua no Mankizila.
Às margens do Mankizila vicejavam densas macegas e plantas trepadeiras, obrigando-nos a abrir picadas a faca.
Sam caminhava na frente e a sua figura fazia-me lembrar os verdadeiros ambulantes de ratoeiras, que cruzam as cidades alemãs. Embora não precisássemos temer a presença de inimigos, pelas redondezas, ele tinha um extremo cuidado em não deixar pegadas no solo e percorria com os seus olhinhos astutos todas as macegas ou acidentes do terreno que pudessem servir de esconderijo a algum inimigo.
Em dada ocasião, levantou umas trepadeiras e, esgueirando-se debaixo delas, passou para o outro lado.
— Venha, sir! — disse dirigindo-se a Harry. — Aqui começa a “cidade” dos castores.
Realmente, por trás do cortinado de trepadeiras, um trilho de rastos de castores seguia em linha reta o curso do rio. Ouvimos, então, um misto de grito e assobio que partia do rio. Sam pôs a mão ao lado da boca e nos disse baixinho:
— Eles estão ali. É a guarda postada no rio que suspeitou haver algo de anormal.
Paramos e, depois de profundo silêncio, rastejamos para frente. Logo atingimos uma curvatura do rio, onde topamos com uma considerável colônia de castores, que durante algum tempo estivemos a observar.
Havia ali um largo dique, que os castores estavam reconstruindo e aumentando. Era de ver a atividade febril daquela laboriosa população de quadrúpedes! Na margem oposta, um grupo de carpinteiros com o auxílio dos dentes, serravam caibros que outros, os carregadores, transportavam para o local do dique; aqui os pedreiros os amontoavam de permeio com arbustos, servindo-se da cauda, para argamassar o bloco.
Com interesse, observava eu a azáfama daqueles “construtores”, quando a minha atenção se voltou para um enorme exemplar, que, em atitude vigilante, estava sentado sobre o dique, olhando para todos os lados. Subitamente levantou as curtas orelhas, fêz meia volta e, desprendendo o grito característico há pouco por nós ouvido, lançou-se nágua onde desapareceu.
Como um relâmpago, todos os “operários” acompanharam-no, mergulhando e dando uma pancada tão violenta na superfície do rio, que a água respingou a enorme altura.
Claro que não tivemos tempo para considerações humorísticas, pois essa interrupção inesperada dos trabalhos só poderia ser motivada pela aproximação do inimigo, e o maior inimigo desses procuradíssimos animais é o homem.
Assim, pois, mal havia o último castor desaparecido nágua, já estávamos com as armas prontas para agir. Deitamo-nos debaixo dum pinheiro à espera da importuna visita. Não demorou muito, vimos descendo a margem do rio duas figuras de índios. Um deles trazia várias armadilhas sobre os ombros e o outro conduzia considerável quantidade de peles. Ambos se achavam bem armados e, pela atitude com que caminhavam, notava-se que sabiam estar bem próximos de inimigos.
— Zounds! — exclamou Sam, entre dentes. — Estes canalhas estiveram em nossas armadilhas e colheram o que não semearam. Esperem, ladrões, minha “Liddy” já lhes dirá a quem pertencem essas armadilhas e as peles!
Agarrou a espingarda e pô-la em posição de atirar. Considerei necessário derrubar os dois índios sem ruído e, por isso, segurei o braço do escoteiro. À primeira vista, reconheci logo serem dois ponkas e, pelas pinturas dos rostos, via-se que eles não se achavam em caçada, mas sim numa expedição de guerra.
— Não atire, Sam! Puxe a faca. Eles desenterraram o machado da paz do solo, logo não andam por aqui apenas em dois.
O homenzinho retrucou:
— Sei disso! Não sou cego. Estou também convencido da necessidade de liquidá-los sem barulho, para não chamar a atenção dos outros. Mas minha faca não está afiada e temo ser mal sucedido com os dois.
— O senhor se encarrega de um e eu do outro. Vamos!
— Hum! Quatro de nossas melhores armadilhas! Custaram três dólares e meio cada uma. Folgo, porque além das roubadas, terão que nos entregar as que conseguiram por esforço próprio.
— Avante, Sam! Senão será, talvez, tarde.
Os dois índios estavam agora em nossa frente e pareciam procurar pegadas no solo. Devagarinho fui rastejando, deixando a arma no solo e levando a faca entre dentes. Nisso alguém cochichou-me ao ouvido:
— Fique aqui, sir! Irei em seu lugar. Era Harry que assim falava.
— Obrigado. Eu também sei fazer o “serviço”!
Ditas essas palavras, já eu alcançara o índio mais próximo. Ergui-me de um salto e, agarrando-o pela garganta, cravei-lhe a faca por entre as costelas, fazendo-o tombar, sem proferir o mais leve gemido. Assim fiz, naturalmente, premido pela necessidade. Eram ponkas, a quem não podia poupar, sob pena de cair-lhes nas unhas; além disso, se eles descobrissem o “forte”, todos nós estaríamos perdidos. Virei-me de lado, pronto para investir contra o outro índio, no caso de necessidade; mas este jazia no solo; Sam tirava-lhe o escalpo, cujo sangue limpava na relva.
— Bem, meu rapaz! Agora nas “eternas campinas” poderás, por mim roubar quantas armadilhas e peles quiseres, mas da nossa não precisarás lá.
— Um escalpo é meu e o outro será de “Mão de Ferro”.
— Não! — respondi-lhe. — O senhor conhece a minha opinião a respeito do uso de tirar os escalpos ao inimigo! E admiro-me de haver o senhor também adotado, agora, esse barbarismo!
— Tenhos motivos, sir! Depois que nos separamos, comi o pão que o diabo amassou. Sofri tanto, como prisioneiro dos brancos e vermelhos, que hoje não sei mais poupar os inimigos, pois estou certo de que se o poupar, mais hoje mais amanhã lhes cairei nas unhas. Eles a mim nunca trataram com indulgência. Senão olhe para minha cabeça! Onde está o escalpo que usei com tanto orgulho desde criança? Em poder dos pawnes!
Dizendo isso, tirou a peruca da cabeça, mostrando a calva cor de sangue. Não podíamos perder tempo com considerações dessa ordem, razão por que não lhe respondi mais. De um momento para outro, dos brejos ali existentes podíamos ser alvejados por flechas e, além disso, era preciso que regressássemos à “fortaleza”, para prevenir os caçadores da presença de indígenas nas cercanias. Por isso, disse a Sam:
— Bem, deixemos essas conversas para mais tarde. Vamos ocultar os corpos desses índios para que os outros não suspeitem de nossa presença aqui.
— Tem razão, sir! Mas o pequeno sir que se esconda por trás das moitas, pois eu aposto a minha peruca como daqui a pouco por aqui aparecerão outros peles-vermelhas.
Harry aceitou a observação do velho e nós escondemos os cadáveres. Por medida de precaução, não os lançamos no rio, mas os ocultamos no meio dos juncos que ali vicejavam. Quando terminamos o serviço, disse Sam:
— Agora o senhor, em companhia de Harry, vai para a “fortaleza” avisar o pessoal. Eu seguirei as pegadas desse dois índios, para certificar-me do que há.
— Não seria melhor ir o senhor avisar o papai? — perguntou Harry. — O senhor sabe conduzir as armadilhas melhor do que nós e, além disso, quatro olhos enxergam mais do que dois!
— Hum! Se o pequeno sir assim determina, sou obrigado a obedecer. Mas se suceder alguma desgraça por aqui, eu não quero carregá-la na consciência!
— Não se preocupe, sir! O senhor sabe que gosto de ser obedecido! Já tem o seu escalpo e eu vou buscar a minha parte. Vamos, “Mão de Ferro”!
Sem dizer uma palavra, Sam voltou pelo mesmo caminho que abríramos; Harry e eu continuamos para a frente, seguindo as pegadas.
Caminhamos bem uma hora, quando chegamos a uma segunda colônia de castores, cujos moradores, porém, não eram vistos do lado de fora de suas habitações.
— Aqui havíamos colocado as armadilhas que tomamos aos dois peles-vermelhas, sir, e ali adiante divide-se o Bee-fork, onde projetávamos ir. Agora, porém, o nosso itinerário terá que mudar, pois as pegadas seguem para o mato.
Dispunha-se a prosseguir, quando o contive, dizendo-lhe:
— Harry!
Parou e contemplou-me interrogativamente.
— Não seria melhor voltar e deixar o resto comigo?
— Por que pensa assim?
— Conhece o perigo que talvez nos espera ali na mata?
— Por que não hei de conhecê-lo? Maior do que aqueles que tenho desafiado e vencido não pode ser!
— Mas eu não desejaria vê-lo com um inimigo pela frente!
— Não temo o inimigo! Ou, quem sabe, pensa que tenho medo de uma cara de índio pintada?
Prosseguiu resolutamente em direção à mata e continuamos a caminhar, beirando-lhe a orla. Mais adiante as pegadas não eram já de duas e sim de quatro pessoas; daí a pouco as pegadas de duas pessoas se separavam. Harry, que ia à frente, parou.
Os dois índios por nós abatidos estavam armados até os dentes, como se costuma dizer. Era de presumir-se, pois, que pertenciam a um bando que andava em expedição de guerra. Tal expedição só poderia relacionar-se com a nossa intervenção, que frustrara o seu assalto ao trem. Sim, devia ser isso, pois por qualquer outro motivo menos importante, os ponkas não se encaminhariam a uma enorme distância como aquela, atravessando território de tribos inimigas. Fora, na certa, o desejo de vingança que os trouxera até cá!
— Que fazer, agora? — perguntou Harry. — Esta pista se dirige para o nosso “burgo” e não há dúvida de que os índios descobrirão a entrada do vale. Continuamos seguindo as pegadas, ou nos separamos, sir?
— Essas quatro pegadas procedem, naturalmente, do acampamento dos indígenas, que se esconderam à espera da volta dos seus batedores. Em primeiro lugar, precisamos procurá-los e verificar de quantos homens se compõe à horda. A entrada do “burgo” está guarnecida por uma sentinela, que tudo fará por conservar o segredo.
— O senhor tem razão! Prossigamos!
Mais adiante, percebemos que, do meio do mato, se erguiam leves nuvens de fumaça que ora diminuíam, ora aumentavam. Daí a pouco sentimos cheiro de lenha queimada.
Essa fumaça só podia ser produzida pelo fogo dos índios, que preparavam, talvez, alguma refeição. Segurei Harry e disse-lhe:
— Esconda-se por trás daquele cipoal, que eu, rastejando, irei até o acampamento dos indígenas, observá-los.
— Por que não irei eu também?
— Um basta; indo dois, há mais risco de sermos descobertos.
Ele acenou, concordando e, apagando o rasto, escondeu-se no local por mim indicado, enquanto eu, de gatinhas, segui o rumo da fumaça.
Nos fundos do mato, apertado numa pequena clareira, estava acampado um enorme bando de peles-vermelhas. Logo à entrada, imóvel como uma estátua, achava-se postado um rapaz de longa cabeleira e nos flancos, a uma certa distância da clareira, haviam sido distribuídas, também, sentinelas, às quais passou despercebida a minha passagem.
Procurei contar o número de índios, e quando isso fazia, fui obrigado a parar, mal me contendo de espanto. Vi sentado, defronte ao fogo — pasmem, letores! — o cacique pele-branca Parranoh ou Tim Finnetey, como fora chamado por “Mão de Fogo”!! Mas como era isso possível?! Naquela noite, ao clarão da lua, quando o apunhalei, vi nitidamente que era ele mesmo em pessoa! Eu estava tonto! Seria sonho? Mas não! Era ele mesmo que ali estava, defronte ao fogo, ostentando a sua linda e basta cabeleira. Mas, como? Se essa mesma cabeleira Winnetou desprendeu do crânio juntamente com a pele e desde então não deixou de usá-la um só instante à cintura?!
Nisso uma das sentinelas, na sua ronda, encaminhou-se para o local onde me achava oculto por trás dumas pedras. Fui obrigado, pois, a me afastar rapidamente, a fim de não ser visto.
Cheguei, feliz, até o esconderijo de Harry, a quem fiz um sinal para me seguir; daí nos dirigimos novamente para o ponto de onde dois, dos quatro observadores, se separaram do grupo.
Dali em diante seguimos a pista dos dois índios que haviam tomado a direção da “fortaleza”.
Tudo se esclarecera: os ponkas reforçaram o bando e nos seguiram passo a passo, com o fim de tomar vingança da derrota que lhes infligíramos. O nosso estacionamento, à espera de que “Mão de Fogo” se restabelecesse, dera-lhes tempo para se remobilizarem. Mas por que mobilizaram tantos guerreiros a fim de atacar apenas a nós três? Por que já não nos haviam atacado há mais tempo, permitindo antes que nos recolhêssemos calmamente ao “burgo”? É que — raciocinei — Parranoh sabia do estabelecimento naquela zona da colônia de caçadores e pretendia descobri-la, para assaltar a todos os seus componentes.
Os dois observadores haviam trilhado por caminhos planos, de modo que progredíamos em nossa marcha, e, assim, não tardamos a nos encontrar às portas do vale. Ouvi um leve ruído que partira dum macegal, onde se erguia uma cerejeira.
Com um movimento de mão, fiz sinal a Harry para que se escondesse e eu, lançando-me ao solo, rastejei até o local citado. Ali deparei no chão com um amarrado de armadilhas e, ao lado do mesmo, umas pernas tortas, cujos pés estavam metidos numas botas medievais. No chão um velho chapéu de feltro e um velho e remendado jaquetão de caça; em seguida, surgiu dentre o macegal um rosto coberto de barbas, de onde emergia um nariz desproporcionado e brilhavam dois olhinhos astutos.
Era Sam Hawkens. Mas como viera ele até ali, pois já o supunha de há muito no “burgo”? Ia sabê-lo já. Aproximei-me e antegozava o susto que ia dar-lhe. Devagarinho, agarrei a sua “Liddy”, que estava no chão, a seu lado, e engatilhei-a. Ao ouvir o ruído do gatilho, virou-se; quando viu sua “Liddy” apontada, começou a gritar.
— Sam Hawkens — cochichei, pois nas macegas não me vira ainda o rosto — se não calar a boca eu lhe enfio essas armadilhas garganta abaixo.
— Que susto me deu! Vá para o diabo! Arre! Eu pensava que fosse um índio e nesse caso eu...
— Teria o seu último momento de vida. Tome aí o seu “porrete de fogo”. E agora, diga-me, por que lhe veio à idéia de deitar-se aqui a dormir?
— Dormir?! Lá pelo senhor me ter surpreendido dessa forma, não quer dizer que eu durma! Eu estava com os três sentidos concentrados naquela armadilha de ratão. Não vá agora contar ao pessoal o susto que deu no velho Sam!
— Guardarei reserva em torno do sucedido.
— Onde está o pequeno sir?
— Está ali adiante. Ouvimos o ruído da armadilha e eu quis saber do que se tratava.
— Mas a armadilha produziu tamanho ruído? Sam Hawkens, como és imbecil! Estás aí para tirar o escalpo desses selvagens e fazes um barulho que se ouve no Canadá! Mas, afinal, os senhores vêm seguindo a pista dos índios?
Respondi-lhe afirmativamente e contei-lhe o que vira.
— Hum! Esta brincadeira vai custar muita pólvora, sir! Quando me retirei com as armadilhas, vi dois peles-vermelhas, na orla da mata, em serviço de espionagem. Segui-os e notei que depois se separaram. Um dirigiu-se para a direita e o outro para a esquerda, em procura, segundo parecia, do nosso vale. Vim para cá em seguida, pois quando se unirem de novo, perguntar-Ihes-ei o que encontraram...
— Acha que passarão por aqui?
— Com toda a certeza! Vá para o outro lado e eu fico aqui. Os dois canalhas nos cairão nas unhas!
Aceitei o conselho, fui ter com Harry e depois tomei a posição indicada.
Passara-se uma hora, quando ouvimos leve ruído de passos que se aproximavam. Era um dos batedores, um possante guerreiro que trazia a cinta e as calças enfeitadas com escalpos tirados aos inimigos.
Mal, porém, chegou ao alcance de minhas mãos, já estava agarrado e morto, sem proferir um ai. A mesma sorte teve o companheiro, que não tardou em aparecer. Em seguida, voltamos os três para a “fortaleza”.
Defronte do portão, procuramos a sentinela que, escondida por trás dumas macegas, devia ter visto a passagem do vermelho. A sentinela era Will Parker.
Sam olhou-o admirado.
— Agiu como um greenhorn, Will, e continuará um greenhorn até que um índio o agarre pelas barbas! Deixou passar os vermelhos, sem molestá-los! Quem sabe pensa que eles por aqui andam a procura de formigas??
— Sam Hawkens, afivele esta língua, porque do contrário faço-lhe o que deixei de fazer com os indígenas! Will Parker, um greenhorn! Esta brincadeira merecia já uns grãos de pólvora, velho impertinente! Não é bastante inteligente para saber que nunca se mata a tiros um observador, para evitar que o grosso da coluna acuda ao estampido?
— Tem razão, homem, desde que não tem coragem de manejar a faca...
Dizendo essas palavras, dirigiu-se para o arroio, mas, antes de desaparecer por trás da rocha, virou-se e disse a Parker:
— Olhe! Abra o olho! Lá no mato há uma turma de atiradores de flechas. Está arriscando a morrer! E seria pena perder uma imagem tão linda como a sua...
A PRISÃO DE PARRANOH
Ao chegarmos à “fortaleza”, reuniram-se todos os moradores para ouvir o relatório que fazíamos a “Mão de Fogo”.
Este ouviu tudo, em silêncio. Quando lhe falei, porém, de Parranoh, proferiu uma exclamação que era um misto de surpresa e contentamento.
— Mas o senhor não se teria equivocado, sir? Então, se é como diz, ser-me-á possível ainda executar o meu plano de vingança, organizado há tanto tempo!
— O que me deixa intrigado é a sua cabeleira!
— Isto não quer dizer nada. Com certeza ele adquiriu uma peruca parecida, tal como o fêz Sam Hawkens. Teve tempo de restabelecer-se da punhalada recebida, de reorganizar a tropa, seguindo-nos depois.
— E por que já não nos atacou há mais tempo?
— Não posso compreender! Ele terá os seus motivos, que haveremos. de descobrir! Está cansado, sir?
— Não.
— Preciso pessoalmente ver o tal Parranoh. Quer acompanhar-me?
— Claro! Mas devo advertir-lhe do perigo a que se vai expor. Os índios, depois de esperarem, em vão, pelos batedores, sairão à sua procura e os encontrarão mortos. Pode acontecer mesmo que sejamos avistados por eles, que nos seguirão e descobrirão esta “fortaleza”.
— Sim, isto é possível, mas o que não é possível, é eu esperar mais tempo! Preciso ver se é de fato aquele cão!
Chegara Dick Stone! Este saíra na véspera, a fim de fazer charque. Saudou-me radiante de alegria. “Mão de Fogo” perguntou-lhe:
— Ouviu há pouco aonde pretendo ir com “Mão de Ferro”?
— Sim.
— Vá buscar sua arma! Iremos caçar, não búfalos, mas peles-vermelhas!
— Sou companheiro, sir! Iremos a cavalo?
— Não. Temos que ir a pé. E — dirigindo-se a outros caçadores — os senhores fechem bem os catches (*) Não sabemos ainda o que irá suceder e se os vermelhos invadirem essas montanhas, não deverão, pelo menos, encontrar nada que tenha valor para eles. Harry, vá para a companhia de Will Parker e o senhor, Bill Bulcher, manterá a ordem no vale, durante a nossa ausência!
— Papai, deixe-me ir com o senhor — pediu Harry.
— Não poderá auxiliar-me em nada, meu filho! Descanse! Na hora precisa, terá também a parte que lhe cabe!
Harry insistiu no pedido, mas “Mão de Fogo” manteve sua resolução de não levá- __________________
(*) Esconderijos para guardar peles de alto valor.
lo. Daí a pouco nós três nos pusemos a caminho.
Winnetou, logo depois de havermos partido, pela manhã, saíra do acampamento a dar uma volta pelas redondezas e ainda não regressara. Nessa viagem, nos seria um excelente companheiro. Eu já começava a recear pela sua sorte. Era tão fácil um encontro com o inimigo, caso em que ele, não obstante sua bravura indômita, estaria perdido. Mas, mal me passara esse pensamento sombrio pelo cérebro, quando diante de nós, no meio dum macegal, surge o jovem cacique dos apaches.
— Winnetou irá com os peles-brancas fazer uma visitinha a Parranoh e aos ponkas — foi logo dizendo.
Olhei-o pasmado. Com que então já sabia da presença dos índios!
— Meu irmão pele-vermelha viu os guerreiros ponkas, os mais cruéis dos parentes dos sionsa? — perguntei-lhe.
— Winnetou tem obrigação de vigiar o seu irmão “Mão de Fogo” e o filho da formosa Ribana! Segui-os hoje de manhã e vi quando a sua faca prostrou sem vida os guerreiros peles-vermelhas. Parranoh vive ainda e acha-se nas redondezas, em expedição de guerra contra nós. A cabeleira postiça que usa agora é igualzinha à natural. Sua alma é cheia de perversidade. Winnetou vai matá-lo!
— Não consinto! O cacique dos apaches não o tocará! A mim compete ajustar contas com aquele canalha! — retrucou “Mão de Fogo”, com ardor.
— Já de uma feita abri mão daquele bandido, em favor do meu amigo “Mão de Fogo”!
— Sim, mas desta vez ele não me escapará! As minhas mãos...
Não ouvi até o fim, pois naquele momento divisei, no macegal que se erguia à beira do caminho, dois olhos faiscantes. Num salto de tigre, a pessoa que ali se achava veio para a frente e investiu contra “Mão de Fogo”.
Era Parranoh, exatamente de quem o pioneiro das campinas falava naquele instante. Saí em socorro do velho e agarrei o cacique branco pela garganta, arrojando-o ao solo. Como um relâmpago, saiu do macegal um grande número de índios ponkas, em defesa do chefe. Os meus companheiros tomaram conta dos índios e o combate estava travado. O cacique dos ponkas continuava no chão; com os joelhos sobre o seu corpo, segurava-o na garganta com a mão esquerda e, com a direita, impedia-o de tirar a faca da cinta. Assim subjugado, ele fazia esforços titânicos para desvencilhar-se de mim, porém debalde! Era uma luta renhida. O meu contendor tinha os olhos esbugalhados e a peruca de lindos cabelos se desprendera da cabeça, pondo a calva, sem o escalpo, à mostra. Espumava de raiva. Eu tinha a impressão de estar lutando com uma fera. Apertei-lhe, então, a garganta; ele revirou os olhos, deixou pender a cabeça, uma convulsão perpassou-lhe pelo corpo e estirou os membros: desmaiara, fora vencido.
Ergui-me e olhei ao meu redor. A cena que se desenrolava diante dos meus olhos era indescritível. Nenhum dos nossos combatentes usara das armas de fogo, com receio de atrair o grosso do bando para o local da luta. Brigavam à faca e machadinha. Nenhum dos meus companheiros estava de pé; rolava no solo, sobre poças de sangue.
Winnetou naquele momento ocupava-se em enterrar a lâmina de sua faca no peito dum ponka que tinha debaixo dos joelhos; não precisava do meu auxílio. “Mão de Fogo” calçava com os joelhos um adversário no solo e, com a mão, defendia-se de outro, que já lhe descarnara o antebraço. Saí em seu auxílio e prostrei o agressor sem vida, usando de sua própria machadinha que lhe caíra das mãos. Depois corri para Dick Stone que, ao lado de dois indígenas mortos, era dominado por um adversário possante que procurava matá-lo. Não o conseguiu, porém. A machadinha do seu companheiro de tribo imobilizou-o.
Stone ergueu-se, então, e alinhou as barbas e os cabelos.
— Obrigado, sir, socorreu-me ainda em tempo! Três contra um, é demais, quando não se pode fazer uso de arma de fogo. Obrigado, “Mão de Ferro” — e estendeu-me a mão. Ia falar-me, quando deu com os olhos no Parranoh.
— Jim Finnetey. Será possível? É ele mesmo. Quem lutou com ele?
— “Mão de Ferro” o arrojou ao solo — respondeu Winnetou em meu lugar: — O Grande Espírito deu a esse nosso jovem irmão a força de um búfalo, que lavra a terra com o chifre.
— Nunca vi um homem como o senhor! — exclamou “Mão de Fogo” — Mas como foi possível a Parranoh esconder-se nessas macegas, com o seu bando, se Winnetou se achava aqui?
— Ele descobriu as nossas pegadas da manhã e ali se escondeu! — respondeu Winnetou. — O grosso do bando não deve demorar e, assim, teremos que voltar depressa para o “burgo”.
— Tem razão — disse Dick Stone. — Convém nos reunirmos imediatamente à nossa gente.
— Está bem, — disse “Mão de Fogo”, de cujo braço jorrava sangue aos borbotões — mas, antes, devemos apagar quanto possível os vestígios da luta que aqui travamos. Dick, vá se postar de sentinela mais para a frente, a fim de não sermos surpreendidos no trabalho pelos inimigos.
— Irei, sir. Antes, porém, tire-me esta faca da carne, pois me está incomodando!
Um dos três contendores cravara-lhe a faca do lado e, com a luta, a lâmina mais se aprofundara nos músculos. Felizmente a ferida não fora de natureza grave.
Em pouco tempo, todos os vestígios da luta haviam sido apagados; chamamos Dick Stone para se reunir novamente ao grupo.
— Como conduziremos o nosso prisioneiro? — perguntou “Mão de Fogo”.
— Terá de ser carregado — respondi eu. — É possível que nos vá dar algum trabalho, depois de recuperar os sentidos.
— Carregá-lo? — perguntou Stone — Vou ter a honra de ser um dos condutores daquela criança loira...
Dizendo isso, foi logo cortando uns galhos de árvores que ficavam ao alcance e, rasgando a capa de Parranoh em tiras, confeccionou uma espécie da padiola.
A idéia foi aceita, e daí a instantes nos achávamos a caminho da “fortaleza”.
Na manhã do dia seguinte reinava profundo silêncio no “burgo”. O sol ainda não surgira, mas eu me levantei do leito e fui ter com Harry em sua cabana, situada ao alto da montanha.
Segundo informações dum caçador do “burgo”, que regressara na noite anterior e que, rastejando, passara pelas proximidades dos guerreiros ponkas, eram estes em muito maior número do que o espreitado por nós; havia, talvez, além da seção que observáramos, mais outra acampada nas cercanias, e com a qual era possível se achar a cavalhada.
Podíamos, pois, concluir com segurança, que a atual expedição de guerra daqueles peles-vermelhas não era dirigida contra indivíduos isoladamente, mas contra todos os componentes do “burgo”. Achávamo-nos, pois, na iminência de um assalto.
O nosso prisioneiro era conservado amarrado e severamente vigiado por um guarda.
— Bom dia, sir! Pelo que vejo passou, como eu, a noite em claro foi logo me dizendo Harry, ao avistar-me.
Correspondi-lhe ao cumprimento e respondi.
— Neste belo país, o instinto de conservação nos faz perder constantemente o sono, sir!
— Teme, porventura, esses peles-vermelhas? — perguntou-me sorrindo.
— Sei que com esta pergunta, está a gracejar comigo, pois acho que não seria capaz de formulá-la seriamente. Em todo caso, reflita: somos ao todo treze, enquanto o inimigo possui um efetivo dez vezes maior. Não estamos, portanto, em condições de enfrentá-lo em campo aberto. A nossa única tática consiste em tudo fazermos para que os ponkas não descubram o nosso acampamento.
— Oh! O senhor está encarando a situação por um prisma demasiadamente sombrio. Treze homens da nossa força vencem aqueles guerreiros de meia-tigela e, mesmo que o inimigo descubra a nossa “fortaleza”, outro resultado não terá que sair daqui com a cabeça quebrada.
— Sou de outra opinião. Os ponkas estão enfurecidos com o nosso ataque, na linha férrea, e, principalmente, pelas perdas que lhe infligimos ontem; além disso, sabem que temos o seu cacique em nosso poder.
— Neste ponto tem razão, sir. Não vejo, entretanto, motivo para receio. Conheço aquela gente. Covardes e imbecis de natureza, só sabem agir traiçoeiramente, ou então, contra pessoas indefesas. Atravessamos, já por diversas vezes, o seu território de caçadas; do Mississípi ao oceano Pacífico, do México até os lagos, nós os temos perseguido. Muitas vezes, fomos obrigados a nos ocultar, devido à sua superioridade numérica, mas, no fim, em todos os encontros, a vitória nos sorriu com facilidade, estando nós armados apenas de facas.
Fitei-o, sem responder. Ele continuou:
— Diga o que quiser, sir. O homem muitas vezes tem sentimentos a que o seu braço vigoroso é obrigado a obedecer. Tivéssemos, ontem, alcançado o Bee-forck, e o senhor avistaria uma sepultura, onde dois seres, para mim os mais queridos do mundo, dormem o sono tranqüilo da morte. Foram assassinados e desde então, o meu braço, posto à cinta, treme, sempre que vejo um escalpo; hei de fazer muito índio tombar varado pela bala certeira da pistola que assassinou minha mãe, de cujo tiro seguro o senhor teve uma prova em Nova Venango!
Sacou a arma da cintura e exibiu-a, prosseguindo:
— É um bom atirador, sir, não há dúvida, mas com esta arma não conseguirá, a uma distância de quinze passos, acertar num tronco de árvore. Creia-me, que para adquirir uma mira segura, fui forçado a longos e permanentes exercícios. Sei manejar todas as armas, mas quando se trata de verter sangue indígena, dou preferência a esta velha pistola. Jurei que com ela haveria de vingar a morte daquele ente muito amado e, estou certo, não tardarei a cumprir o meu juramento. A mesma arma que assassinou minha mãe há de servir para minha vingança!
— Recebeu-a de Winnetou?
— Ele falou-lhe a esse respeito?
— Sim.
— Contou-lhe tudo?
— Não, apenas disse-me que lhe devia essa pistola.
— Tem razão. Foi ele que me deu a arma. Mas sente-se, sir! Vou narrar-lhe toda essa triste história. É digno de sabê-la.
Tomou lugar ao meu lado, lançou um olhar para o vale e começou:
— Meu pai, na velha pátria, exercia as funções de couteiro-mor e vivia feliz, no aconchego do lar, em companhia da esposa e de um filhinho. Veio à época da agitação política, que arruinou muitíssimos homens de bem. Meu pai foi arrastado pelo vendaval, e obrigado a exilar-se. Na travessia do oceano, teve ainda a infelicidade de perder a esposa amada. Desembarcou nos Estados Unidos. Muito pobre, sem uma pessoa conhecida que lhe valesse na dura emergência, aceitou o primeiro serviço que lhe apareceu. Fêz-se caçador, dirigindo-se para o oeste bravio, tendo deixado o filho recolhido adotivamente no seio de uma família abastada.
Alguns anos mais tarde, de aventura em aventura, enfrentando os maiores perigos, ele se tornara um famoso homem do oeste, respeitado pelos brancos e temido pelos inimigos. Uma longa jornada de caça levou-o de Quicourt à taba dos assinoboins, onde, pela primeira vez, se encontrou com Winnetou, que descera o Colorado, a fim de buscar a “argila santa” destinada ao fabrico de cachimbos para os apaches. Ambos eram hóspedes do cacique Tah-tcha-tungas; tornaram-se amigos e vieram a conhecer, por esta ocasião, Ribana, filha daquele cacique. As flores silvestres invejariam a sua formosura. As suas mãos possuíam o segredo de curtir peles tão alvas que se diriam feitas de neve. Nenhuma as mulheres da sua tribo sabia, como ela, confeccionar, com tanta mestria, um traje de caça. Quando ela atravessava as campinas, em busca de lenha, a sua figura esbelta assemelhava-se à de uma rainha, bela entre todas, cujos cabelos de maravilhosos reflexos emprestavam elegância e graça àquela realeza tão natural. Era a filha predileta do Grande Espírito, e o orgulho da sua tribo! Os jovens guerreiros esforçavam-se por colher o maior número de escalpos ao inimigo para depositá-los a seus pés.
Nenhum deles, porém, obteve a graça do seu olhar, pois ela amava a um caçador pele-branca, embora fosse muito mais velho do que todos os que procuravam conquistar-lhe o coração. De todos os seus admiradores, era Winnetou o mais jovem. Também na alma do branco despertara o sentimento ardente de uma paixão sincera e pura; ele seguia as suas pegadas, vigiava-a e falava-lhe como se falasse à filha dum pele-branca. Uma noite, Winnetou foi ter com ele e lhe disse:
“O pele-branca não é igual aos demais filhos de sua raça, de cujos lábios brotam, em geral, a mentira e a falsidade. Sempre tem dito a verdade a Winnetou, o seu amigo”
“Meu irmão pele-vermelha é um guerreiro valente e o mais sábio dos conselheiros da sua tribo. Não tem sede do sangue dos inocentes, e eu com ele fiz um pacto de amizade sincera e imorredoura! Fale, meu irmão!”
“Meu irmão ama Ribana, a formosa filha de Tah-tcha-tungas?” “Amo-a com fervor! Ela constitui o farol que ilumina a minha pobre alma, no bravio oceano da vida!”
“E promete ser-lhe carinhoso, jamais falar-lhe com aspereza e tratá-la como esposa amantíssima, defendendo-a de todos os temporais da vida?”
“Eu hei de tratá-la sempre com amor e estarei ao seu lado em todas as vicissitudes da vida!”
“Winnetou conhece o céu e a linguagem das estrelas; mas a estrela da sua vida vai desaparecer e o seu coração irá tornar-se sombrio como uma noite escura. Ele pretendia tomar a rosa de Quicourt por esposa, levá-la para sua taba e ornar de flores a sua fronte! Mas os olhos de Ribana acham-se voltados para o meu irmão, o bom pele-branca, e os seus lábios falam-lhe ao coração! O apache vai retirar-se, para se dedicar no recessso de sua cabana, na aldeia do rio Pecos, ao culto desse amor puríssimo! Sou feliz com a felicidade da pessoa que amo. Nunca mais o meu coração falará a mulher alguma e a voz angélica de um filho jamais me soará aos ouvidos! Contudo voltarei quando Manitu determinar, para ver se Ribana, a prendada filha de Tah-tcha-tungas, é feliz”.
— Ditas essas palavras, virou-se e se encaminhou para fora, onde tudo se perdia na escuridão da noite. Na manhã seguinte havia desaparecido.
— Quando voltou, na primavera, viu Ribana; e pelo brilho dos seus olhos conheceu que ela era feliz! Eu tinha apenas alguns dias de idade. Tomou-me ao colo, beijou-me e, pondo-me a mão sobre a cabeça, disse:
“Winnetou há de ser para ti, como a árvore, em cujos ramos dormem os pássaros e debaixo de cuja copa encontram abrigo das intempéries os animais das matas. Que a sua vida seja a tua vida, e o seu sangue o teu sangue! Jamais Winnetou deixará de proteger o filho da rosa de Quicourt; que o orvalho da manhã banhe o caminho da tua vida e a luz do sol o ilumine, para que em ti só tenha motivos de orgulho e felicidades o seu bom irmão pele-branca!
— Passaram-se os anos e eu crescia. Mas ao mesmo tempo crescia também a saudade do pai pelo filho que deixara na cidade. Eu tomava parte nos folguedos da criançada e me achava animado de espírito guerreiro: tinha uma forte inclinação pelas armas. O papai não pôde suportar por mais tempo a saudade. Dirigiu-se para o leste e levou-me consigo. Diante de mim, no meio civilizado, e ao lado do irmão, abriu-se, então, um novo mundo, do qual, a princípio, pensei jamais me poder separar. Meu pai voltou sozinho, deixando-me na casa dos pais adotivos de meu irmão. Não demorei a sentir profunda nostalgia pelo oeste bravio. Na primeira visita que meu pai me fêz, não resisti e voltei com ele.
— Lá chegados, encontramos deserto o local de nosso acampamento. Todas as cabanas haviam sido incendiadas. Depois de muita procura, encontramos um indígena que lá deixara Tah-tcha-tungas, com o fim de nos comunicar o ocorrido, logo que regressássemos da cidade.
— Tim Finnetey, um caçador pele-branca, estivera, antigamente, por várias vezes em nossa aldeia. Quis conquistar a rosa de Quicourt para esposa; mas os assinoboins não alimentavam simpatias por ele, porque era um ladrão. Fora, pois, tolhido em sua pretensão, e se retirou jurando vingança. O meu próprio pai, que o encontrou, mais tarde, em Blak Hills, contou-lhe que se casara com Ribana. Em seguida, Finnetey procurou a tribo dos “pés pretos”, à qual propôs organizar uma expedição de guerra contra os assinoboins.
A proposta foi aceita, e a expedição chegou à nossa taba, na época em que os guerreiros haviam saído para as caçadas anuais. Assaltaram, saquearam e incendiaram a nossa aldeia. Assassinaram os guerreiros idosos, mulheres e crianças; as moças e meninas levaram-nas consigo. Quando os nossos guerreiros voltaram, dias depois, saíram logo, pelas pegadas, em perseguição dos bandidos, pois tinham ainda esperança de alcançá-los.
— Bem, agora vou ser breve. Em caminho, quando seguíamos para nos encontrarmos com os nossos guerreiros, encontramo-nos com Winnetou, que havia atravessado as montanhas, com o fim de nos visitar. Meu pai narrou-lhe tudo e eu jamais me esquecerei do olhar sombrio de ambos; Winnetou retrocedeu e acompanhou-nos.
— No Bee-fork encontramo-nos com os nossos guerreiros. Haviam alcançado os “pés pretos”, que se achavam acampados no vale do rio. A nossa gente esperava a noite para atacá-los. Determinaram que eu ficasse com a guarda dos animais; mas eu não tinha sossego e, no momento do ataque, me dirigi para o teatro da luta, chegando ao bosque precisamente na ocasião de ser detonado o primeiro tiro. Foi uma noite terrível. O inimigo possuía um efetivo de guerra superior ao nosso e nos vencera. Os brados de vitória só cessaram ao romper do dia.
— Eu via o vulto dos inimigos, os gemidos dos guerreiros feridos e moribundos. Voltei para a guarda. Esta desaparecera. Fiquei dominado de terror, pois só então é que me convenci de havermos sido vencidos.
— Estive oculto até a noite, quando arrisquei a chegar ao local, onde se desenrolara a luta.
— O local estava envolto em profundo silêncio; o clarão embaciado da lua iluminava os vultos inanimados dos cadáveres ali espalhados. Compungido, errei entre os corpos, no meio dos quais dei com os olhos no de minha mãe! Um balaço atravessara-lhe o peito e nos braços apertava, de encontro ao seio, a minha irmãzinha morta com um coronhaço na cabeça! A visão tétrica do quadro, fêz-me perder os sentidos e caí sobre o corpo de minha mãezinha.
— Não sei quanto tempo ali permaneci. Sucederam-se dias e noites; foi quando ouvi um ruído de passos nas imediações. Ergui-me e — oh! felicidade — vi papai e Winnetou com as vestes em frangalhos e com as feridas amarradas, mas com vida.
— Dada à superioridade numérica do inimigo, eles foram dominados e amarrados. Haviam, porém, conseguido livrar-se das cordas e fugir.
Fêz uma pausa, respirou profundamente e lançou um olhar cheio de tristeza para o vale na direção do Bee-forck. Depois, fixando em mim rapidamente o olhar, perguntou:
— Tem ainda mãe, sir?
— Sim, tenho!
— Que faria se alguém a assassinasse?
— Apelaria para as leis.
— Bem. Mas quando estas são frágeis como as daqui do oeste, cabe-nos fazer justiça com as próprias mãos, castigando o criminoso.
— Há uma diferença entre castigo e vingança, Harry! O primeiro é a conseqüência natural do crime e está estreitamente unido à justiça divina e humana; a segunda, porém, é injustificável, deprime o homem, nivelando-o com as feras!
— O senhor fala deste modo, porque não lhes corre nas veias uma só gota de sangue indígena. Quando um homem é de instinto mau e pratica atos próprios de feras, como tal deve também ser tratado e perseguido, até ser alvejado com a bala mortífera. Naquele dia, depois de sepultarmos os corpos dos nossos entes amados, nos nossos corações não havia outro sentimento senão o de ódio flamejante contra os assassinos, contra os roubadores de nossa felicidade; o nosso juramento foi proferido por Winnetou, sobre a campa. Disse o apache:
“O cacique dos apaches, pesquisando o solo, nele encontrou a flecha da vingança! Seus punhos estão cerrados, seus pés leves e sua machadinha afiada como um raio. Ele há de procurar e achar Tim Finnetey, o vil assassino da rosa de Quicourt, e no seu escalpo vingará Ribana, a formosa filha dos assinoboins!”
— Fora Finnetey o assassino?
— Sim, aquele covarde! Nos primeiros momentos de combate, ele, desconfiando que os “pés pretos” assim surpreendidos, fossem derrotados, matou a mamãe a tiros. Winnetou viu, investiu contra ele e o teria morto, se um grupo de “pés pretos” não o subjugasse. Conseguiu, porém, tomar-lhe a arma assassina de que depois me fêz presente, para que mais tarde vingasse minha mãe com ela. Desde então nunca abandonei esta pistola. Ela acompanha-me tanto no oeste como nas cidades.
— Devo dizer-lhe que... Interrompeu-me com um movimento de mão.
— O que pretende dizer-me, já sei e sobre isso já meditei milhares de vezes. Mas nunca ouviu falar na lenda da fada das savanas que, qual furacão, varre as planícies e extermina tudo que ousa opor-lhe resistência? Não compreendeu o espírito dessa lenda? Ela quer dizer que o desejo irrefreado terá que correr pelas savanas, como um mar em chamas, antes que aqui tome pé a ordem das cidades civilizadas. Em minhas veias, há também uma onda daquele mar e sou obrigado a acompanhar a maré, embora certo de sossobrar no fluxo das águas!
Em seguida, fêz silêncio e ficou meditativo. Esse menino pensava, falava e agia como um homem maduro! Falei-lhe, tirando-o da meditação, com palavras brandas. Ouviu-me calmamente e meneou a cabeça. Nisso ouvimos, no vale, o sibilar dum apito.
— Papai está reunindo o pessoal! Vamos para baixo. Chegou à hora de darmos destino ao prisioneiro.
Levantei-me, tomei suas mãos entre as minhas, e disse-lhe:
— Harry, quer atender-me num pedido?
— Com todo o prazer, desde que não me vá pedir algo de impossível.
— Não vá! Deixe o prisioneiro a cargo dos outros!
— O senhor pede-me exatamente o que não me é possível atender. Anseio de há muito encontrar-me cara a cara com aquele assassino. Há tanto tempo que esperava por este momento, momento supremo em que posso vingar a morte de minha mãe, desejo que constitui hoje para mim a finalidade única da minha vida. Então exige que, para atender ao seu pedido, eu renuncie ao cumprimento do dever sagrado que a consciênciame impôs? Não, não! Não atenderei jamais ao seu pedido!
— A morte de sua boa mãezinha será vingada de qualquer forma, sem que seja necessária a sua ação. O espírito humano deve aspirar finalidades mais elevadas do que essa que diz ser a única razão da sua existência. Em nome mesmo da memória daquela que lhe é tão cara, suplico, medite no que lhe digo. O seu coração, disso estou certo, é capaz de atos mais sublimes do que os ditados por um sentimento de vingança! Confie na justiça divina, que é infalível!
— Pense lá como entender, mas deixe-me com o meu ponto de vista!
— Então não me atende?
— Não é possível, embora não me falte vontade — respondeu mais calmo. — Venha, vamos descer!
Depois de haver procurado “Andorinha”, para levar-lhe minha saudação matinal, reuni-me ao pessoal do “burgo”, que formava um círculo em torno de Parranoh, que se achava amarrado ao tronco de uma árvore. Deliberava-se sobre a maneira pela qual devia ser executado.
— Esse canalha deve morrer já! — gritava Sam Hawkens. — Mas eu não desejo macular minha “Liddy”, executando com ela a sentença, hihihihi!
— Claro, ele morrerá e já! — concordava Dick Stone. — Terei imenso prazer em vê-lo dependurado no galho duma árvore! Outra coisa ele não merece. Que acha, sir?
— Muito bem! — respondeu “Mão de Fogo”. — Mas o nosso lindo vale não deve ficar manchado com o sangue desse bandido! Lá fora, no Bee-forck, ele assassinou minha esposa e minha filhinha, lá no mesmo lugar ele será justiçado! No mesmo local onde eu fiz o meu juramento, este será cumprido!
— Dá licença, sir! — interrompeu-o Stone. — Então por que me deram o trabalho de transportar esse cão até aqui?! — Acha que devo renunciar ao prazer de haver contribuído para esse ato de justiça? Não vêem que, além disso, lá fora estamos sujeitos a cair nas mãos do inimigo, que possui um efetivo superior ao nosso?
— Que acha o cacique dos apaches? — perguntou “Mão de Fogo”, levando em consideração a ponderação de Stone.
— Winnetou não teme as flechas dos ponkas; ele já traz à cinta o-escalpo desse cão dos alabaskah; o corpo, Winnetou presenteia aos seus irmãos peles-brancas. Façam dele o que entenderem!
— E o senhor? — dirigiu-se “Mão de Fogo”, agora, a mim.
— Sejam breve com ele! Creio que não precisamos temer os perigos de um ataque, ou, na melhor das hipóteses, o de denunciar aos inimigos a nossa presença aqui. Esse homem não merece que, para o executarmos, arrisquemos as nossas vidas!
— Pois fique aqui, sir! Monte guarda ao seu dormitório! — disse Harry sacudindo os ombros. — Eu, porém, exijo que executemos o assassino no mesmo local onde tombaram as suas vítimas. O próprio destino assim quis, pois nos entregou esse bandido aqui, quando poderia ter feito noutra região. Jurei sobre o túmulo de minha mãe não descansar enquanto não visse vingados os nossos mortos!
Afastei-me sem responder.
O prisioneiro se achava amarrado ao tronco da árvore e, apesar das dores que as cordas deviam produzir-lhe e a importância para ele da resolução que se realizava, não contraía um só músculo da face. Na sua fisionomia sinistra achava-se estampada toda a história tenebrosa de sua vida. A sua figura causava pavor e repulsa, principalmente quando se olhava para a cabeça cor de sangue, em virtude da ausência da pele craniana.
Depois de longos debates, nos quais me abstive de tomar parte, desfez-se o círculo e os caçadores se prepararam para partir.
A vontade do menino fora, porém satisfeita; a resolução tomada, estava certo disso, iria lançar-nos em sérios perigos. “Mão de Fogo” aproximou-se de mim, pôs-me a mão sobre o ombro e disse:
— Deixe que se proceda como ficou deliberado e não faça falso juízo a respeito de assuntos que não estejam talhados de conformidade com o seu apregoado ponto de vista cultural!
— Mas não condeno, em absoluto, a deliberação que acabaram de tomar, sir! O criminoso deve ser executado, isto é de justiça; mas espero que não se zanguem por me abster de participar da execução. Vamos para o Bee-forck?
— Vamos e, como o senhor não pretende nos acompanhar, eu folgaria se ficasse aqui, pois assim estou certo de haver entregue a segurança do nosso acampamento a uma pessoa de confiança.
— Por minha vontade, nada sucederá de desagradável. Quando voltarão?
“Mão de Fogo” reuniu-se às pessoas escaladas para, com ele, escoltar o preso. Este foi desamarrado da árvore e quando Winnetou, que saíra a fim de fazer um reconhecimento, voltou e comunicou nada haver encontrado que provocasse suspeita, puseram-lhe a mordaça e se encaminharam para a entrada do vale.
— Meu irmão vai ficar aqui? — perguntou-me o apache, antes de reunir-se ao grupo.
— O cacique dos apaches conhece o meu pensamento; não preciso dizer mais nada!
— Meu irmão é mais prudente que um caminhante que põe os pés num rio habitado por jacarés; Winnetou, porém, tem que ir para estar ao lado do filho de Ribana que tombou à bala assassina do atabaskah!
E foi; eu sabia que ele tinha a mesma opinião que eu e resolvera acompanhar o grupo, tão somente por temer que alguma desgraça acontecesse a Harry e aos demais.
Poucos caçadores ficaram no vale e entre eles Dick Stone. Chamei-o, prevenindo o de que tencionava sair, a fim de fazer um reconhecimento fora do vale, nos macegais.
— Não é necessário, sir — disse Stone. — A sentinela está apostos e, além disso, o apache saiu há pouco para fazer um reconhecimento, nada encontrando de anormal. Fique aqui e descanse! Não se preocupe: já há de encontrar o que fazer, a seu tempo!
— Que pretende dizer com isso?
— Oh! Os peles-vermelhas têm olhos e ouvidos e fatalmente descobrirão que fora do vale há, agora, presas para eles.
— Tem razão, Dick, e é por isso mesmo que resolvi dar uma batida fora do vale. Foi uma imprudência por parte de nossa gente. Eles bem podiam ter executado Parranoh aqui mesmo. Eu vou. Tome conta do “burgo” e esteja alerta. Não deixarei esperar muito por mim.
Peguei da espingarda e saí. A sentinela assegurou-me nada haver percebido de suspeito; mas, como me habituara a fiar unicamente nos meus próprios olhos, embrenhei-me pelos macegais à cata de pegadas indígenas.
Exatamente um pouco além da entrada do vale, havia um galho de arbusto quebrado e, examinando cuidadosamente o solo relvoso, encontrei vestígios de que ali estivera deitado um homem, e que, ao retirar-se, tivera a precaução de apagar o mais possível os sinais de sua presença.
Portanto, havíamos sido observados e o nosso “burgo” fora descoberto; a todo o instante, poderíamos contar com o ataque dos inimigos. Mas, como de momenro, a principal preocupação dos indígenas era libertar Parranoh, por certo eles haviam seguido as pegadas da escolta para atacá-la. Dispus-me, em vista disso, a correr a toda pressa, em procura de “Mão de Fogo”, a fim de preveni-lo da minha descoberta, ainda a tempo.
Depois de haver dado as necessárias instruções à sentinela, segui as pegadas de nossa gente, que havia seguido o curso do rio. Cheguei assim ao local do nosso encontro de véspera. Acontecera tal qual eu previra. Os ponkas encontraram os seus mortos. Pela grama pisoteada, via que grande número de guerreiros ali estivera para buscar os cadáveres de seus irmãos.
Pouco além desse local macabro, topei com novas pegadas. Procediam dumas moitas situadas do lado e se dirigiam para o mesmo caminho tomado pelos nossos caçadores. Embora com mais precaução, eu prossegui o caminho em vertiginosa carreira, de modo a chegar, pouco depois, ao ponto em que o Bee-fork deságua no Mankizila.
Como eu não conhecia o lugar escolhido para a execução de Parranoh, era, agora, forçado a caminhar com redobrada precaução, a fim de não ser surpreendido pelo inimigo, nalguma emboscada.
Mais além, o rio fazia uma curva e, na mata marginal, havia uma clareira. Nessa clareira, debaixo de umas árvores, os nossos caçadores se achavam reunidos e deliberavam em altas vozes. O prisioneiro estava amarrado ao tronco dum ipê e mostrava-se tranqüilo, como se nada lhe fosse suceder. Vi logo, um pouco adiante, um pequeno grupo de índios que espreitavam o nosso grupo. Concluí logo que o grosso do bando também ali se achava e, talvez, já cercara o nosso pessoal, para dizimá-lo num ataque de surpresa, ou então fazê-lo recuar rio a dentro.
Não se podia perder mais um só instante. Apontei a espingarda de repetição e apertei o gatilho. No primeiro momento, o tiro dado por mim foi o único ruído que se ouviu, pois o nosso pessoal cessara de falar. Em seguida ressoou o grito de guerra dos vermelhos, aturdindo-nos os ouvidos e uma saraivada de flechas cruzou os ares. Daí a instantes a clareira estava tomada pelos combatentes.
Lancei-me logo na luta e entrei na clareira no instante preciso em que um índio se atracava com Harry. Este sacara de sua pistola para matar Parranoh, no que foi impedido pelo indígena. Entrincheirados no tronco das árvores, os nossos caçadores resistiam como escoteiros de escol, que jamais souberam o que era temor; mas aqui eles lutavam com uma formidável maioria, que, fatalmente, havia de vencê-los, tanto mais que eles, achando-se em campo raso, haviam oferecido, há pouco, alvo seguro ao inimigo; quase todos já se achavam feridos.
Alguns vermelhos, no primeiro instante da luta, dirigiram-se, ao ipê para libertar o seu cacique Parranoh. “Mão de Fogo” e Winnetou tudo fizeram para impedi-los, mas foi em vão. Depois de solto, o musculoso Finnetey ergueu os braços e disse rangendo os dentes:
— Venha, cão de Pimo! Irá pagar caro o meu escalpo.
Essa ofensa era dirigida a Winnetou. Este, porém, já se achava ferido e no mesmo instante fora também atacado por outros lados, de modo que não lhe foi possível revidar o insulto. “Mão de Fogo” estava cercado de inimigos e nós também lutávamos com os indígenas que não nos davam tréguas. Nessas circunstâncias, nem podíamos pensar em nos socorrer mutuamente.
Continuar a resistir seria uma tolice, uma falsa concepção do dever de honra. Em vista disso, tomando Harry nos ombros, bradei:
— Para a água, camaradas! Lancemo-nos no rio! É a única salvação! Ao dizer essas palavras, atirei-me no rio.
Não obstante o berreiro infernal da indiada, a minha voz foi ouvida pelo pessoal e os que conseguiram desvencilhar-se do inimigo, atenderam ao meu chamado. O Fork era, embora bem fundo, muito estreito, de modo que com poucas braçadas se conseguia atravessá-lo; ainda assim não estávamos em segurança. Eu tencionava atingir um promontório situado entre o Fork e o Mankizila, com o fim de atravessar esse a nado.
Já ia tomando aquela direção, quando Sam, a nado, chegou-se a mim e avisou-me que os índios, na suposição de já nos acharmos no Mankizila, para lá se haviam dirigido.
Voltei, imediatamente, dando voz de comando aos demais companheiros para fazerem o mesmo.
— E o papai, o papai! — exclamava Harry angustioso. — Quero estar ao seu lado, não devo abandoná-lo!
— Venha, venha! — respondi, empurrando-o sempre para a frente. Não podemos mais salvá-lo, uma vez que ele mesmo não o fêz.
Em pouco havíamos atingido o denso sarçal, a margem do Fork, no local onde há pouco nos lançáramos nágua. Todos os índios haviam abandonado a clareira e se dirigido para o Mankizila. Agora, com segurança, podíamos retomar o nosso caminho para o “burgo”. Sam Hawkens perguntou-me:
— Está vendo as espingardas, sir?
— Os índios as abandonaram ao se atirarem no rio.
— Hihihihi! Que idiotas, sir! Entregaram-nos as suas armas!
— Quer juntá-las? Olhe que é tarefa perigosa!
— Perigosa? Como se Hawkens conhecesse perigo!
Em rápidos pulos, como se fosse um canguru, o homenzinho juntou todas as armas. Eu o acompanhei e destruí todos os arcos e flechas esparsos pelo chão.
Não fomos interrompidos nesse serviço, pois os peles-vermelhas jamais suporiam que alguns dos perseguidos tivessem a audácia de voltar ao tampo da luta. Sam lançou todas as espingardas no rio.
Feito esse serviço, retirei-me com Harry e Sam para o “burgo”. Apenas uma parte do bando havia lutado conosco. Era provável que a outra, valendo-se da ausência dos caçadores, tivesse assaltado o vale.
Quando já havíamos vencido um bom trecho do caminho, ouvimos um tiro, partido do “burgo”.
— Depressa, sir! — exclamou Sam, deitando a correr.
Harry, que se conservava em silêncio, nos acompanhou, correndo também. Estava apreensivo. Sim, tudo ocorrera exatamente conforme eu previra. Se ele não insistisse em querer executar Parranoh no Fork, outro nos teria sido o resultado do embate. Não o censurei, porém.
Os tiros repetiam-se e não nos restava mais dúvida de que os caçadores, que ficaram no acampamento, estavam empenhados numa luta. Eles careciam de reforço. Atingimos logo a entrada do vale, aquele arroiozinho que nos é conhecido.
Nisso ouvi ruído, num macegal. Embrenhamo-nos num outro macegal, a fim de esperarmos a pessoa que fizera tal ruído. Oh, quão grande foi a nossa alegria, quando minutos depois vimos que se tratava de “Mão de Fogo”. Por trás dele vinha Winnetou e mais dois caçadores. Harry não se pôde conter de contentamento.
— Ouviram os tiros? — foi logo perguntando “Mão de Fogo”.
— Sim.
— Então venham! Temos que nos unir aos nossos. Embora a entrada do vale seja tão estreita, que só um homem basta para defendê-la, não sabemos o que sucedeu por lá.
— Não sucedeu coisa alguma, sir — atalhou Sam Hawkens. — Os vermelhos descobriram o nosso ninho e se postaram na sua entrada com o intuito único de ver o que chocávamos!... Bill Bulcher, que está de guarda, já deve ter rechaçado o canalha.
— É possível que assim seja. Mas, não obstante, temos que apressar o passo para entrarmos no “burgo”, sem demora. Devemos, ainda, levar em conta que os nossos perseguidores dentro em pouco estarão aqui e teremos, então, um grupo de índios duas vezes maior a enfrentar.
— Mas, e o nosso pessoal extraviado? — perguntei.
— Hum! É mesmo. Precisamos toda a nossa gente a postos. Espero, porém, que não demorem a se reunir, pelo menos mais alguns deles, a nós.
— Meus irmãos peles-brancas, queiram ficar aqui! Winnetou vai ver em que árvore está dependurado o escalpo do ponka.
Sem esperar uma resposta, o apache se retirou e não nos restava mais nada senão obedecê-lo. Sentamo-nos à sua espera.
Durante esse tempo dois dos caçadores extraviados encontraram o nosso grupo. Também eles ouviram os tiros e se apressaram em vir para o vale.
Quando Winnetou voltou, vimos, pendente de sua cinta, um escalpo, a verter sangue. Portanto, havia morto silenciosamente um dos índios que atacavam o “burgo”. Agora não podíamos ficar por mais tempo em nosso esconderijo, pois se os índios descobrissem que um dos seus fora morto, concluiriam que por trás deles estavam os inimigos.
A conselho de “Mão de Fogo” formamos duas linhas paralelas, seguindo sempre pela margem do macegal, a fim de atacar o inimigo pela retaguarda e expulsá-lo do esconderijo. Minutos depois, topávamos com o inimigo e as nossas nove espingardas deram uma salva. Cada bala abateu um homem e no local fêz-se então ouvir um berreiro ensurdecedor dos indígenas apavorados.
Como a nossa linha estava bem estendida e os tiros sempre se repetiam, os índios pensaram que éramos em maior número e fugiram. Mas em vez de se retirarem pela campina, escaparam-se por trás de nós, deixando no cenário da luta os companheiros tombados.
Bill Bulcher, o sentinela, percebera a aproximação dos vermelhos e recuou, ainda a tempo, para o interior da “fortaleza”. Os inimigos seguiram-no, sendo repelidos à bala na entrada da rocha, pela própria sentinela e Dick Stone, que correu em seu auxílio. De lá os ponkas vieram se acantonar no macegal, de onde, então, os expulsamos.
Nesse instante ouvimos, subindo o vale, o tropel como que de uma manada de búfalos. Escondemo-nos e preparamos as espingardas para entrar em ação. Grande foi o nosso espanto, quando depois vimos aproximar-se de nós uma tropa de cavalos embuçalados, cavalgando à frente um pele-branca, que devido a um ferimento na cabeça, tinha o rosto banhado em sangue, de modo a não poder ser logo reconhecido. Sam exclamou:
— Deixo-me tirar a pele, como a um castor, se este não fôr Will Parker. Ninguém é perito em cair do cavalo como ele!... E a prova está aí na sua cabeça!
— Tem razão, Sam! É, caí do cavalo...
E dirigindo-se a nós:
— Oh! Bons olhos os vejam. Felizmente aí estão de volta os heróicos, combatentes das margens do Forck. Eu me demorei um pouco e afianço-lhes que caminhar é, às vezes mais seguro do que cavalgar.
— Isto é velho! Mas diga-me, que pretende com esses cavalos? — perguntou “Mão de Fogo”.
— Hum! Quando os índios se dirigiram para Mankizila, lembrei-me de sua cavalhada e fui apreendê-la. Lá chegado, tive que matar os dois guardas; foi uma luta violenta e a prova está na minha cabeça e no corpo. Depois disso, soltei os matungos na campina e trouxe os bons animais para o “burgo”. Aí estão. Tome conta deles!
— Valentão! — exclamou Dick Stone, homenageando o heroísmo de Will Parker.
Winnetou dirigiu-se para a cavalhada e passou a contemplar, com visível admiração, um lindo zaino que havia no meio dela.
— Excelente cavalo! Se fosse para escolher, não sei qual preferiria, se este ou “Andorinha”! — exclamou ele com entusiasmo.
Nesse ponto da discussão, uma flecha, sibilando pelos ares, atingiu Sam Hawkens no braço; devido, porém, à manga de couro, escorregou e caiu ao solo. Ao mesmo tempo, no interior do macegal, ressoou o brado de guerra ho — ho — hi hi! Não obstante esta demonstração bélica, nenhum guerreiro saiu do esconderijo. Sam pegou a flecha e disse:
— Hihihi! Querem furar o casaco de Sam Hawkens! Então eles não sabem que há trinta anos venho colocando um remendo sobre o outro? Isto é uma verdadeira couraça!...
Mais não ouvi, pois imediatamente pulamos para o macegal, a fim de retribuir condignamente a saudação que dali nos fora feita. Se pretendêssemos fugir para o “burgo”, devido à estreiteza de sua entrada, seríamos fuzilados um por um. Fomos obrigados a abandonar os cavalos apreendidos, pois o seu transporte nos causaria sérios transtornos, no caso dum combate.
Todo o vozerio não passou, porém, de fanfarronada dos indígenas, porque quando atingimos o macegal, não encontramos um só deles ali. Haviam-se retirado certamente para reunir-se ao grosso do bando. Aproveitamos a ocasião, e nos dirigimos para o “burgo”.
Um dos caçadores ficou de sentinela na entrada e os demais, depois de haverem curado os ferimentos, fizeram uma refeição e se deitaram para descansar.
Ao redor da fogueira, local onde se reúnem àqueles que têm idéias a trocar, a palestra estava animada. Cada um dos presentes tinha uma bravata a narrar e uma opinião a emitir. Todos eram unânimes em afirmar que não precisávamos recear novos ataques dos vermelhos. Considerável era o número de escalpos colhidos e nenhum dos nossos fora ferido gravemente. Possuíamos provisões e munições para muito tempo e, além disso, o “burgo” estava situado num local seguro; portanto, nada adiantaria aos inimigos ocupar a entrada do vale. Era esta a opinião de “Mão de Fogo”. Winnetou parecia estar em desacordo. Afastara-se do grupo e, pensativo, ficara ao lado do seu cavalo.
— Os olhos do meu irmão pele-vermelha estão anuviados e a sua fisionomia tem a expressão de quem se acha preocupado com alguma previsão sinistra. Tenho razão? — perguntei, encaminhando-me para ele.
— Sim. Os olhos do cacique dos apaches estão vendo a morte entrar pelo portão e a ruína descer pelas montanhas. O vale está flamejante e o arroio rubro de sangue dos que tombaram. Parranoh virá em busca do escalpo dos nossos caçadores. Mas Winnetou está pronto para a luta e ajudará a entoar cânticos fúnebres diante dos corpos dos seus inimigos.
— Mas como conseguirá o ponka penetrar em nosso acampamento? Ele nem sequer conseguirá atravessar o portão.
— Acha que um só homem conseguirá deter, na entrada, uma horda invasora bem armada e municiada?
Ele tinha razão. Enfrentando um grupo reduzido de assaltantes, talvez fosse possível a um homem só defender a entrada, mas não, tendo pela frente um bando numeroso como era o dos ponkas. Mesmo que os assaltantes entrassem um a um, havia do lado de cá apenas um para barrar-lhes a entrada. É verdade que muitos guerreiros ponkas perderiam a vida, mas a manobra prosseguiria até que aqui no vale não existisse um só homem para ocupar a entrada, porque todos morreriam também às balas dos ponkas.
Expus o caso a “Mão de Fogo”. Ele, porém, respondeu-me:
— Qual! Se eles se aventurarem a insistir no assalto, serão abatidos um a um, logo no desfiladeiro!
À primeira vista, essa hipótese parecia fundamentada; mas um raciocínio calmo, nos faria concluir logo quão errôneo era o ponto de vista do velho escoteiro.
À noite, como era natural, a guarda foi reforçada. Mas isso não me tranqüilizou. Resolvi não dormir e conservar-me pronto para, em qualquer momento, entrar em combate com o inimigo, pois eu estava certo de que nos assaltaria durante a noite.
“Andorinha” pastava num cercado próximo às paredes do vale. Resolvi fazer-lhe uma visita. Acariciava-o, passando-lhe as mãos pelo pescoço e conversava com ele, quando percebi um leve ruído.
O animal ergueu a cabeça. Para evitar o seu bufido, que acusaria a minha presença, tapei-lhe as narinas com as mãos.
Ao ruído, nada se seguiu de anormal nos primeiros momentos. Em seguida, porém, vi diversos vultos que desciam pela escarpada da montanha para o vale, suspensos por laços; depois notei que numerosos indígenas haviam ocupado uma regular área da esplanada.
Tivesse comigo a espingarda de repetição, ser-me-ia fácil abater alguns peles-vermelhas e, assim, dar o alarme. Vi, no meio dos assaltantes, Parranoh, que dirigia as operações. Dispus-me a voltar para o acampamento, e mal havia dado alguns passos, ouvi que uma espingarda havia detonado na entrada do “burgo”; àquela detonação seguiram-se, logo depois, muitas outras, tornando-se, por fim, uma verdadeira fuzilaria. Compreendi logo a tática dos indígenas: simulavam, primeiro, um ataque à entrada, como se a estivessem forçando. Para lá naturalmente correria o nosso pessoal e os ocupantes nos surpreenderiam, depois, pela retaguarda.
Subi, apressado, a escarpa da montanha para me dirigir ao local do acampamento, mas um bloco de rocha se desprendeu fazendo-me cair; na queda, antes de chegar ao solo, onde permaneci, por alguns instantes sem sentidos, fui batendo pelas pedras que juncavam a íngreme subida.
Quando recuperei os sentidos, vi a poucos passos distantes, vários indígenas; embora muito contundido, ergui-me dum pulo, descarreguei o meu revólver contra os índios, montei no “Andorinha” e galopei em direção à fogueira.
Os ponkas, percebendo que já havíamos dado pela sua presença no vale, se fizeram ouvir nos seus brados de guerra, anunciando o começo da batalha; feito isso, saíram correndo em minha perseguição.
Ao chegar ao acampamento, encontrei-o abandonado pelos caçadores, que se haviam concentrado na porta do vale, a fim de opor resistência ao inimigo. Ao me avistarem, vieram logo ao meu encontro, fazendo-me perguntas sobre perguntas.
— Os indígenas ocuparam o vale! Recolham-se depressa às cavernas! Nas paredes da montanha, achavam-se abertas numerosas cavernas, esconderijos quase inexpugnáveis. Era o único meio de evitarmos o nosso extermínio, dada à superioridade numérica do inimigo. Nas cavernas não só estaríamos salvos, como de lá poderíamos abater até o último dos indígenas atacantes. Por isso, corri em direção ao cubículo, que me servia de quarto de dormir. Era tarde, porém. Os vermelhos já estavam pela nossa frente e os nossos caçadores, atacados de surpresa, não poderiam reagir senão quando as armas inimigas já tivessem entrado em ação.
Talvez me tivesse sido possível alcançar o refúgio de minha caverna; mas vi Harry, “Mão de Fogo” e Will Parker seriamente ameaçados pelos indígenas; corri em seu auxílio.
— Para as cavernas! Para as cavernas! — bradava eu no auge da refrega. Essa minha atitude desorientou, ligeiramente, os vermelhos, permitindo-nos abrir espaço para atingirmos a parede do vale, onde havia uns blocos de pedras que nos defendiam as costas.
— É o único meio, hihihihi! — ouvi Hawkens dizer. O escoteiro abrigou-se numa das cavernas. Foi o único a conservar, durante a luta, presença de espírito e a aproveitar os poucos segundos para se pôr a salvo, por momentos. Daí a pouco, porém, não lhe adiantou mais o esconderijo, pois saindo, para agarrar Harry, os índios se postaram na parede. A luta recrudesceu. O efetivo dos ponkas era ainda maior do que supúnhamos. Estávamos irremediavelmente perdidos! Pensei nos meus pais na Europa? Coitados, nunca mais saberiam notícias do filho! No auge da batalha apareceu Parranoh que, mal avistou “Mão de Fogo”, bradou:
— Afinal, em minhas mãos! Pense em Ribana e morra!
Ia investir contra o escoteiro quando eu o agarrei para desferir-lhe um golpe mortal. Ao reconhecer-me, deu um pulo para trás de modo que a machadinha com que o alvejei caiu ao solo, errando o alvo.
— Também tu estás aí, cão! — berrou o cacique pele-branca. — A ti vou pegar com vida!
Passando por mim, antes que eu conseguisse apanhar a machadinha, para novo golpe, sacou da pistola e detonou-a contra “Mão de Fogo”, que tombou pesadamente ao solo, com o peito varado pelo balaço.
Foi como se aquela bala me tivesse atingido o coração, tanto me comoveu a cena. Abati o índio, com o qual lutava, e ia atacar Parranoh; mas entre este e eu surgiu Winnetou, exclamando:
— Eis o cão dos atabaskah! Aqui está Winnetou, o cacique dos apaches, para vingar a morte do seu irmão pele-branca!
— Oh! Cão de Pimo! Vais fazer uma viagenzinha para o inferno!
Mais não ouvi. A cena distraíra-me de tal modo a atenção, que descuidei-me da defesa própria. Apertaram-me, com uma laçada, pelo pescoço, e ao levar um violento golpe na cabeça, perdi os sentidos. . .
Quando acordei, tudo era escuridão e silêncio ao redor de mim. As violentas dores de cabeça, recordaram-me, finalmente, do golpe recebido e em seguida dos demais pormenores do combate. Além das dores de cabeça, eu sofria horrivelmente dores pelo corpo todo, pois me achava amarrado com tanta violência que as cordas cortaram-me a carne, de onde jorrava sangue.
Ouvi então um ruído ao meu lado.
— Há mais alguém aqui? — perguntei.
— Hum! Claro! Então Sam Hawkens não é ninguém? hihihihi!
— Oh! É Sam?! Mas, por amor de Deus, diga-me onde estamos?!
— Mais ou menos, debaixo de teto seguro, homem! Meteram-nos na caverna, que servia de depósito das peles, as peles que, antes da luta, tivemos o cuidado de esconder em lugar seguro. Esses bandidos nunca hão de encontrá-las!
— Como vão os demais companheiros?
— Sofrivelmente, sir. “Mão de Fogo” morreu. Dick Stone morreu, Will Parker morreu, Bill Bulcher morreu, Harry Korner morreu; todos, todos morreram. Apenas o senhor e o apache estão firmes... O pequeno sir também ainda vive um pouco, e Sam Hawkens, oh, este, ao que parece, ainda não o mataram de um todo, hihihihi!
— Mas tem absoluta certeza de que o pequeno Harry ainda vive, Sam? — perguntei com interesse.
— O senhor pensa que não sei o que vejo, homem?! Meteram-no ali na outra caverna, na companhia de Winnetou. Gostaria de ir ali ter com eles, mas, ao que parece, não me querem dar uma audiência...
— Como vai Winnetou?
— O corpo dele parece uma peneira, de tanto buraco! Assemelha-se ao jaquetão de caça dum cidadão chamado Sam Hawkens: remendos sobre remendos, manchas sobre manchas...
— Em fuga, não se pode, talvez, pensar. Mas como caiu Winnetou vivo nas mãos de Parranoh?
— Tal como eu e o senhor. Resistiu como um herói. Contudo foi dominado e tratado com desumanidade. Eu vou morrer no poste dos martírios. Preferia, porém, tombar na luta.
— De que valem preferências, quando não nos é possível conseguir o que desejamos?!
— Não é possível? Hum! Tiraram-nos todas as armas, esses vermelhos; até a minha querida “Liddy” o diabo levou! Mas deixaram-me, por esquecimento, a faca!
— A faca, Sam! Mas não pode utilizá-la, assim manietado?
— Claro que não. Só se me ajudar.
— Vou já aí! Veremos o que ainda se pode fazer em nosso benefício!
Ainda não começara a rolar-me em sua direção, único movimento que poderia fazer para me aproximar dele, quando a porta se abriu e Parranoh entrou na caverna, acompanhado de alguns indígenas. Segurava a tocha de modo a iluminar-nos os rostos. Não me dei ao trabalho de fingir que ainda estava sem sentidos, mas também não lhes lancei um só olhar.
— Afinal, caíste-nos nas mãos! — disse-me o cacique branco entre dentes. — Tenho uma pequena dívida para contigo, que ainda não pude saldar. Mas não me leves a mal, não passará de hoje! Conheces isto aqui?
Exibia-me um escalpo diante do rosto; era o seu, que Winnetou tirara, por ocasião do nosso primeiro combate. Ele sabia que fora eu quem o apunhalara, e, por isso, estava convencido de que fora eu também quem lhe tirara o escalpo. Não lhe respondi e ele prosseguiu:
— Pois vão agora ver todos como é bom tirar um escalpo ao semelhante. Esperem mais um pouco até romper o dia. Irão ver até que grau tenho cultivado o sentimento da gratidão. Todos irão perder o escalpo.
A empresa não lhe será fácil, como pensa! — disse Sam, que não pôde ficar calado. — Quero só ver de que modo tirarão o escalpo de Sam Hawkens.
— Zombe, zombe sempre! Hei de encontrar pele suficiente para uma raspagenzinha!
Depois de uma pausa, durante a qual examinou as cordas que nos prendiam, perguntou:
— Nunca julgaram que Tim Finnetey conhecesse esta ratoeira, hein?! Eu já estivera neste vale, muito antes do... cão “Mão de Fogo”. Maldita seja a sua alma! Descobri-o e sabia também que os senhores aqui se achavam estabelecidos. Este aqui me contou.
Puxou uma faca e exibiu o cabo de madeira a Sam Hawkens.
— Fred Owins? Hum! Toda a vida foi um canalha! Aposto que, apesar disso, caiu sob a ação dessa faca!
— Não se incomode! Sucedeu a ele o mesmo que irá acontecer aos senhores.
— Faça, por mim, o que bem entender. Sam Hawkens já fêz o seu testamento. Deixou-lhe, em usufruto, a peruca... Ela de muito lhe servirá, hihihihi!
Parranoh deu-lhe um pontapé e saiu da caverna, acompanhado dos índios.
FUGINDO DA PRISÃO
Durante algum tempo, nos conservamos em silêncio e inertes; depois, porém, quando julgamos o momento azado, rolei até Sam e, embora tendo as mãos fortemente amarradas, consegui tirar-lhe a faca de dentro da manga do jaquetão. Cortei as cordas que o amarravam e daí a pouco ambos estávamos livres.
— Bem, agora vamos nos certificar do estado de coisas aí fora, Sam! — disse-lhe eu.
— Concordo com a sua opinião, sir. Isto é o essencial.
— Mas, antes de tudo, vamos ver se conseguimos armas. O senhor ainda tem a faca, eu, porém, estou de mãos vazias.
— Já haveremos de consegui-las!
Encamínhamo-nos até a porta e levantamos as duas peles que serviam de reposteiro.
No momento alguns índios levavam os dois prisioneiros para fora e, da fogueira, Parranoh vinha-lhes ao encontro. Já o dia estava rompendo, de modo que se podia enxergar tudo o que havia na esplanada do vale. Bem próximo do portão de entrada, pastava “Andorinha”, ao lado do zaino tomado como presa, pelo pobre Will Parker. Mais adiante pastava, igualmente, o cavalo de Winnetou. Ao ver os animais, renunciei à idéia de uma provável fuga a pé. Se me fosse possível agarrar uma arma e alcançar o cavalo, a fuga me seria fácil.
— Não está vendo nada, sir? — cochichou-me Hawkens.
— Que?
— Aquele índio comodamente deitado na relva.
— Vejo, sim.
— E aquela coisa encostada às pedras?
— Também.
— Pois se aquilo não fôr minha “Liddy”, deixo de me chamar Sam Hawkens.
Não pude prestar muita atenção à alegria do homenzinho, pois os meus sentidos estavam concentrados em Parranoh. Infelizmente não pude compreender o que ele dizia aos dois prisioneiros, aos quais falou por muito tempo. Percebi apenas as suas últimas palavras:
— Prepare-se, Pimo! O poste vai ser agora fincado e você será amarrado nele, para morrer queimado. E você — dirigindo um olhar repassado de ódio a Harry — morrerá ao seu lado.
Em seguida fêz um sinal com a mão, ordenando a dois indígenas que conduzissem os prisioneiros para junto da fogueira, onde estava sendo fincado um poste. Em seguida, cheio de dignidade e com passos graves, se retirou.
Agora não havia mais tempo a perder. Uma vez conduzidos os prisioneiros para a fogueira, talvez não houvesse mais probabilidades de nos aproximarmos deles.
— Sam, posso fiar-me no senhor? — perguntei.
— Hum! Se o senhor não sabe, menos eu! Faça uma experienciazinha!
— Encarregue-se de liquidar um dos índios que conduzem Winnetou e Harry e eu me encarregarei do outro. Cortamos, depois, as cordas dos prisioneiros e partiremos!
— Sim, antes de partir, porém, vou agarrar minha “Liddy”!
— Está disposto?
— Vamos para a frente!
Com pulos leves, mas rápidos, saímos ao encalço dos dois indígenas que arrastavam os prisioneiros, conseguindo alcançá-los sem sermos vistos.
Sam apunhalou um deles com um golpe tão certeiro, que o índio tombou morto sem proferir sequer um ai; eu, que me achava desarmado, segurei o outro pela garganta, imobilizando-o, igualmente, sem lhe dar tempo de dizer uma só sílaba.
Cortamos, depois, as cordas que prendiam os prisioneiros, libertando-os; tudo isso foi realizado com admirável rapidez e sem ser notado pelos inimigos.
— Avante! Busquem armas!
Como um relâmpago, tomei ao indígena morto a sua espingarda e montei em “Andorinha”. Sam e Winnetou pularam, também, para o lombo de seus cavalos e Harry esforçava-se em vão para montar o zaino de Tim Finnetey. Segurei-o pelo braço, puxei-o para a garupa e galopamos em direção à entrada do “burgo”.
Foi um momento de profunda emoção. Os vermelhos nos descobriram, quando alcançávamos os animais; ergueram, então, um vozerio dos demônios. Ouviu-se o detonar de tiros, o sibilar de flechas pelos ares, juntamente com os relinchos dos cavalos montados pelo inimigo que vinha, célere, a nosso encalço.
Em meio do galope, olhei para trás. Não vi Sam; Winnetou dobrava uma curva olhando se eu o seguia.
Nesse instante detonou um tiro; vi Harry encolher-se, convulsivo: fora atingido.
— “Andorinha” ! “Andorinha”! Para a frente! — bradava eu a plenos pulmões. O animal, repetindo as proezas do incêndio de Nova Venango, corria como uma flecha.
Mais adiante virei-me e vi Parranoh montado no seu zaino, bem próximo de mim. Os demais inimigos eu perdera de vista, devido às curvas do caminho. Pude ver quanto enfurecido se achava o cacique branco, que empreendia os maiores esforços para alcançar-nos. “Andorinha”, porém, não corria, voava. Não demorei a tomar uma grande distância do inimigo; aproveitei essa circunstância para examinar o menino.
— Está ferido, Harry? — perguntei ainda correndo vertiginosamente.
— Sim.
— Gravemente?
O braço com que eu o segurava tingia-se do sangue que corria de sua ferida.
— Conseguirá resistir?
— Penso que sim.
Prossegui, então, com a mesma velocidade. Não era debalde que o meu corcel fora apelidado de “Andorinha”. Honrava o nome.
— Segure-se, Harry. Já estamos quase salvos.
— Não faço mais questão de viver. Largue-me, desde que o fardo de meu corpo o impede de salvar-se!
— Não, não! Há de viver! Tem direito a isso!
— Não! Papai morreu e nada mais me prende a este mundo! Seguiu-se uma pausa.
— Sou eu o culpado de sua morte! — disse o menino banhado em pranto. — Se eu tivesse aceitado o seu conselho, Parranoh seria fuzilado no vale e meu pai estaria vivo!
— Deixe o que já se passou. Preocupemo-nos com o presente.
— Não; consinta que eu me apeie! Parranoh acha-se muito longe e nós podemos respirar um pouco.
— Vou fazer-lhe à vontade.
Tendo-nos apeado, deitei Harry na relva, por trás de mim. Winnetou apeara também. Parranoh vinha longe, na campina. Quando se aproximou um pouco mais, notei que Winnetou carregava a arma. Tomei da machadinha, pronto para luta.
Parranoh, já a poucos passos de nós, manejou a sua arrernessando-a contra mim. Neste instante, Winnetou desfechou um tiro que prostrou o inimigo, simultaneamente golpeado de morte pela minha machadinha, que eu lhe havia atirado com rara felicidade.
Winnetou tocou o corpo inerte com o pé, dizendo:
— O cão dos atabaskah não insultará jamais o cacique dos apaches com o nome de Pimo, Queira “Mão de Ferro” tomar as armas desses bandidos, uma vez que lhe pertencem.
Realmente, o morto trazia todas as minhas armas. Tirei-lhe o que me pertencia e voltei para junto de Harry.
Os indígenas estavam tão próximos de nós, que suas balas poderiam atingir-nos. Subitamente, lá ao longe, à nossa esquerda, o horizonte adquiriu uma claridade invulgar; uma tropa de cavalarianos marchava ao nosso encontro, entre nós e os índios. Winnetou, a galope, atacou os índios; tendo abatido alguns a golpes de machadinha, seguiu em perseguição dos fugitivos.
A tropa era um destacamento de dragões do forte Wilke, que vinha em nosso auxílio.
Examinei o ferimento de Harry. Não era grave. Cortei uma tira de meu jaquetão e fiz-lhe uma atadura.
— Conseguirá montar, Harry? — perguntei-lhe
Ele riu-se; aproximando-se do zaino de Parranoh, num pulo o montou.
— A ferida não me causa mais dores. Vejam: lá vão os vermelhos fugindo. Galopemos em sua perseguição.
Olhei na direção indicada. Ele tinha razão. Atropelados por Winnetou e pelos dragões, os ponkas retrocederam e fugiram pelo mesmo caminho pelo qual viéramos. Provavelmente iriam procurar refúgio em nosso vale.
Partimos imediatamente ao encalço dos fugitivos. Devido à agilidade dos nossos cavalos, alcançamos logo os soldados.
Era de grande vantagem para nós não dar tempo para os vermelhos entrarem no “burgo” e, por isso, Winnetou, Harry e eu nos desviamos do destacamento e, cortando uma diagonal, através de um terreno íngreme, galopamos em direção do vale. Os selvagens, porém, nos levavam alguma dianteira; o que cavalgava na frente, quando ia entrar no precipício que servia de entrada, caiu morto por um tiro. Ao mesmo tempo cercávamos os demais e os dizimávamos.
Quem teria dado os tiros que impediram os vermelhos de entrar na “fortaleza”?! Estávamos intrigados com o fato. Mas logo tudo se esclareceu. Do macegal saiu Sam Hawkens, exclamando:
— Salve! Bons ventos os trouxeram de novo para o nosso vale!
— Mas é o senhor, Sam?! Como?! Pois o vi cavalgar em fuga.
— Cavalgar?! Qual! Com a pressa, montei o pior matungo dos inimigos. O cavalo não saía do lugar e eu então apeei e voltei para o “burgo”, que eu sabia abandonado, pois vi todos os ocupantes saírem ao seu encalço.
Entramos no “burgo” e apressamo-nos a examinar os nossos mortos. Harry, chorando convulsivamente, pôs a cabeça de “Mão de Fogo” no colo e Winnetou verificava os ferimentos do velho escoteiro. Não tinha ainda terminado o exame, quando o apache exclamou, radiante de alegria:
— Uff! Uff! Não morreu!... Ainda vive!
Esssas palavras eletrizaram-nos. Harry pulava de alegria! Alguns momentos depois “Mão de Fogo” abria os olhos. Conheceu-nos e esboçou um leve sorriso para o filho; não podia, porém, falar e não tardou a perdei novamente os sentidos. Examinei-o, também. A bala entrara-lhe no pulmão direito, tendo atravessado o peito. O ferimento era grave e ocasionava fortes hemorragias. Contudo eu era da opinião do apache: o nosso amigo, devido à sua natureza forte, se salvaria, desde que se submetesse a um rigoroso tratamento. Fizemos os curativos e o acomodamos no melhor leito que havia.
Depois tratamos de cuidar de nossas pessoas. Nenhum de nós escapara sem ao menos um ferimento. Curamo-nos, mutuamente, da melhor forma possível.
Ao meio-dia chegaram os dragões ao vale. O oficial comandante disse-nos, então, que o destacamento saíra para reprimir os ponkas em seus criminosos assaltos de trem e destruição de linhas. Em caminho soube que aquela tribo saíra em expedição de guerra, a fim de se desforrar; seguindo-lhes as pegadas o destacamento viera em nosso socorro. A fim de descansar, a tropa permaneceu durante três dias no “burgo”, tempo que aproveitamos para sepultarmos os mortos. O oficial convidou-nos a levar “Mão de Fogo” para o forte, onde encontraria mais conforto e assistência médica, logo que a sua saúde o permitisse. Como era natural, aceitamos o convite.
O velho Sam estava profundamente contristado com a morte dos seus amigos Dick Stone e Will Parker. Assegurou que, para vingá-los, dali por diante mataria todo o ponka que encontrasse pelo caminho. Eu, porém, encarava o caso por outro prisma: Parranoh era um branco e, mais um vez, confirmava-se o meu ponto de vista: o índio tornou-se o que é, hoje exclusivamente por culpa dos peles-brancas...
No rio Turkey
Já haviam passado três meses depois dos acontecimentos narrados no capítulo anterior, acontecimentos cujas conseqüências ainda sofríamos. Vimos, é verdade, realizadas as nossas esperanças de salvar “Mão de Fogo”, mas o seu restabelecimento se tornava muito moroso. Tal era o seu estado de fraqueza, que, ainda então, não conseguia erguer-se no leito. Daí o havermos renunciado à primitiva idéia de transportá-lo para o forte Wilkes. Resolvemos conservá-lo na “ fortaleza” até a sua completa cura, para o que já dispunhamos de recursos suficientes.
Os ferimentos de Harry e de Winnetou já estavam cicatrizados. Também eu me curei logo das contusões que recebera. O mais feliz de todos fora Sam Hawkens: recebera apenas arranhõezinhos que nem valem a pena mencionar.
Estava previsto que “Mão de Fogo”, mesmo depois de restabelecido, não poderia continuar logo na profissão de escoteiro, pois careceria de um longo repouso. Em vista disso, resolvera ele seguir, assim que lhe fosse possível locomover-se, para a cidade, em companhia de Harry, a fim de morar algum tempo com o seu filho mais velho. Era óbvio, apesar dessa resolução, que não podia ele deixar abandonado na “fortaleza” o estoque de peles que colecionara com sua companhia de caçadores; era necessário, pois, convertê-las em dinheiro. No forte não havia, de momento, probabilidades de vendê-las e incômoda, senão perigosa, nos seria a tarefa de transportar aquelas mercadorias a uma longa distância. Como resolver o caso? Um soldado do forte, que fora posto à nossa disposição, tirou-nos da dificuldade, dando-nos um bom conselho. Ele viera a saber que às margens do rio Turkey havia chegado um mercador que comprava tudo o que se lhe oferecia, negociando não só a troco de outras mercadorias, como também, pagando, em moeda corrente, as mercadorias que adquiria dos campineiros. Este homem se achava em condições de nos tirar do apuro momentâneo.
Mas como promover a sua vinda ao “burgo”? Não podíamos mandar um emissário para lá, pois, além do soldado, não tínhamos mais ninguém conosco. Não havia outra solução para o caso senão ir um de nós procurar o mercador. Ofereci-me para fazer essa viagem, mas fui logo informado de que a tribo dos okanadas-siona, inimigos ferozes dos peles-brancas, lá perambulava nessa ocasião, cometendo toda a sorte de tropelias. O mercador poderia estar tranqüilo, pois os indígenas raramente atacam um negociante, pois, com essa gente, eles trocam as suas mercadorias por artigos de que necessitam. Winnetou, solucionando o caso, resolveu acompanhar-me na viagem. A nossa ausência não trazia nenhum inconveniente, porque Sam Hawkens e Harry bastavam para cuidar de “Mão de Fogo”. Pusemo-nos a caminho e, como Winnetou conhecesse bem a zona, ao cabo de três dias atingíamos o rio Turkey ou Turkey-Eereck. Há muitos rios com este mesmo nome, mas este é inconfundível por se ter tornado muito conhecido, em virtude dos constantes e sangrentos combates que se ferem nas suas margens entre vermelhos e brancos.
UMA ACOLHIDA POUCO CATIVANTE
Como, agora, encontrar o negociante? Se ele se achasse entre os índios não o poderíamos procurar! Mas havia no rio, e em suas proximidades, uns núcleo de colonos peles-brancas, que tivera a coragem de ali se estabelecer há anos. Restava-nos o recurso de procurar um desses colonos e solicitar-lhes as informações de que precisávamos. Cavalgamos pela margem do rio acima, mas não encontramos o menor sinal de casas, até que antes do anoitecer atingimos uma lavoura de centeio, seguida de outras de cereais diversos. Junto a um arroio, afluente do rio, erguia-se uma casa, estilo fortim, com uma cerca de madeira ao redor. Chegando lá, apeamos, amarramos os cavalos e dispusemo-nos a nos aproximar da casa, que era arejada por seteiras em vez de janelas. Nesse ínterim, vimos em duas dessas seteiras, dois canos de espingardas apontados para nós, enquanto uma voz cavernosa nos bradava:
— Alto! Parem! Isto aqui não é casa da sogra, onde se entra e se sai à vontade. Quem é o pele-branca e o que pretende de nós?
— Sou um alemão e ando a procura do mercador que dizem achar-se atualmente nesta região — respondi.
— Então o procure onde quiser, menos aqui. Nada tenho a ver com esse homem. Retirem-se!
— Mas, sir, espero que não se recusará a me fornecer as informações de que preciso, uma vez que está em condições de dá-las! Seja razoável! Não somos canalhas para o senhor nos correr da porta!
— O exterior que apresentam não me inspira confiança e por isso os repilo!
— Que? O senhor nos toma por canalhas?!
— Sim!
— Por quê?
— Isto é comigo! Não lhes tenho que dar satisfação. O senhor mentiu dizendo ser alemão!
— É a pura verdade!
— Cale! Um alemão não se abalança em vir até aqui. Só se fosse “Mão de Fogo” que é, de fato, alemão.
— Pois é da parte dele, que vim até aqui.
— O senhor?! Hum! De onde?
— Do seu acampamento, distante três dias de viagem desta região Já ouviu falar no seu “burgo”?
— Um tal Dick Stone esteve de uma feita em minha casa e disse-me que iria levar três dias de viagem para alcançar o acampamento de “Mão de Fogo”, ao qual pertencia.
— Dick Stone já não vive mais. Era um amigo meu.
— Não duvido. Não duvido, porém não o deixo entrar. Não me inspira confiança. Viaja na companhia dum pele-vermelha, raça que, no momento atual, não devemos permitir que nos entre em casa.
— Pois será para o senhor uma honra ter este índio como hóspede. Trata-se de Winnetou, o cacique dos apaches.
— Winnetou? Com os diabos! Se fosse verdade, a coisa mudaria de figura. Ele que me mostre a sua espingarda!
O apache ergueu a arma de modo que pudesse ser vista da seteira.
— Pregos de prata! Está confirmada a verdade! E o senhor tem duas armas, uma grande e outra menor. Oh! Agora me vem uma idéia. Uma dessas armas não é própria para caçadores de ursos?
— E a outra uma espingarda de repetição sistema Henry?
— Exatamente.
— E o senhor tem um nome de guerra, conquistado no oeste?
— É isso mesmo.
— É porventura o célebre “Mão de Ferro” que, de fato, veio há pouco tempo da Alemanha?
— Em carne e osso!
— Então entrem, meus amigos. Sejam bem-vindos! Serão meus hóspedes de honra!
Os canos de espingarda desapareceram das seteiras e logo em seguida o dono da casa apareceu à porta. Era um homem já bastante idoso, de compleição hercúlea e, à primeira vista, demonstrava já haver participado de muitas lutas de morte, sem ser vencido. Estendeu-nos ambas as mãos e conduziu-nos para o interior da casa, onde nos apresentou a esposa e o filho, um rapaz robusto, que ali se achava. Disse-me que tinha mais dois filhos, os quais estavam na lavoura.
A casa compunha-se de um só compartimento e nas paredes viam-se dependuradas várias espingardas e troféus de caça. No fogão, uma panela com água a ferver, e sobre uma tábua os demais utensílios de cozinha, indispensáveis a uma família da classe média. Algumas caixas serviam de roupeiros e de despensa; no teto, à altura do fogão, estava dependurada uma quantidade de carne enfumaçada, suficiente para o consumo da família durante vários meses. Num dos ângulos da frente, havia uma tosca mesa e algumas cadeiras para onde fomos convidados a tomar lugar. Enquanto o filho tratava dos nossos cavalos, a dona da casa nos preparou um jantar que, dada a zona em que nos achávamos, nada deixava a desejar. Durante a refeição, os dois filhos voltaram da lavoura e sentaram-se à mesa, sem dizer uma só palavra. O único a falar era o velho.
— Não me devem levar a mal por tê-los tratado com aspereza, quando aqui chegaram. A nossa zona está infestada por bandoleiros peles-vermeIhas, principalmente pelos okanada-siona, que recentemente ainda assaltaram e saquearam uma casa situada a um dia de viagem daqui. Nos brancos temos que nos fiar ainda menos, pois, em geral, por aqui só aparecem os que escapam à ação da justiça nas cidades do leste. Por isso é para nós motivo de grande alegria, quando nos aparecem gentlemen como os senhores. Mas pretendem procurar o mercador? Tencionam propor-lhe algum negócio?
— Sim — respondi eu, enquanto Winnetou se conservava no seu habitual mutismo.
— Que espécie de negócio? Não pergunto por curiosidade, mas com o fito de lhes dar as informações solicitadas.
— Queremos vender-lhe peles.
— Muitas?
— Sim.
— A troco ou a dinheiro?
— Se possível, a dinheiro.
— Então é o homem que lhes serve e, aliás, o único que se encontra nesta zona. Os outros mercadores só fazem transações de permuta. Este, porém, não; traz sempre dinheiro consigo e também ouro, pois negocia muito com as bonanzas. É um capitalista abastado e não um desses pobres mascates que aonde vão conduzem todo o seu pequeno estoque de mercadoria.
— E trata-se de homem honesto?
— Oh, sim! Isto é: que entende o senhor por homem honesto? Um negociante que faz o melhor negócio possível. Agora a maneira de negociar é variável, isto é coisa sabida. Aquele, pois, que se deixa lograr pelo negociante é o único culpado. O mercador, que procura, chama-se Burton e viaja sempre com quatro ou cinco auxiliares.
— Onde poderíamos encontrá-lo?
— Saberão ainda hoje. Um de seus auxiliares de nome Rollim esteve ontem aqui à procura de negócio. Está percorrendo a nossa colônia e virá pousar aqui. Burton ultimamente não tem tido muita sorte.
— Por quê?
— Já veio à nossa colônia umas cinco ou seis vezes e sempre a encontrou despojada pelos índios, que a assaltaram dias antes. Isto ocasionou-lhe não só dispêndio de tempo como também gastos inúteis, sem contar com o perigo que afronta, viajando em zonas acossadas pelos indígenas.
— E esses assaltos têm sido efetuados perto de sua casa?
— Sim, mas levando-se, naturalmente, em consideração, que aqui no oeste bravio as palavras “perto” e “longe” têm um significado mais amplo do que noutro lugar. O meu vizinho mais próximo, por exemplo, mora a nove milhas daqui.
— É pena, pois, num caso de assalto, não se poderão reunir para enxotar o inimigo da colônia.
— Tem razão. Mas apesar disso eu não receio os índios. Com os Corner ninguém se mete! Chamo-me Corner. Nós somos suficientes para desbaratar os peles-vermelhas.
— Embora sejam apenas quatro?
— Quatro? Pode incluir também minha mulher, entre os combatentes; ela maneja as armas com rara desenvoltura; somos pois cinco!
— E se os indígenas vierem em grande número?
— Ora, eu não sou um afamado homem do oeste como os senhores, não possuo a espingarda de prata e nem a espingarda de repetição. Mas, não obstante, também sei atirar e as nossas armas são boas. Quando fecho a casa, nenhum vermelho nela conseguirá entrar e mesmo que viessem em bandos de cem, nós, das seteiras, os varreríamos à bala. Ouçam! Chega alguém. Deve ser Rollim.
Ouvimos o trotar dum cavalo defronte a casa. Corner saiu, voltando, em seguida, em companhia de um cavalheiro, que nos apresentou dizendo:
— Este é o senhor Rollim, auxiliar do mercador e do qual eu lhes falei há pouco.
E dirigindo-se ao recém-chegado prosseguiu:
— Eu lhe disse lá fora que o senhor ia ter uma surpresa, sabendo quem eram os meus hóspedes. Pois é Winnetou, o cacique dos apaches, e “Mão de Ferro”, de quem talvez já tenha ouvido falar. Eles procuram Mr. Burton, para propor-lhe a venda de uma grande quantidade de peles e peliças.
O mercador era um homem de meia-idade, de aparência vulgar, não dando o seu exterior impressão nem má, nem boa. A sua fisionomia era, mesmo, a de um inofensivo, direi quase que a de um imbecil. Contudo a indiferença com que se conduzia não me agradava! Se realmente fôssemos homens tão célebres como nos apresentou o dono da casa, ele devia alegrar-se com o nosso encontro; além disso, oferecendo-lhe nós oportunidade de fazer um bom negócio, cabia-lhe tudo fazer para captar-nos a simpatia. Não o fêz, porém. Tratou-nos com frieza e, na sua fisionomia, não se notava o menor traço de satisfação. Antes ele dava a impressão de não lhe haver agradado o nosso encontro. Contudo era bem possível que eu me tivesse enganado; a sua atitude poderia ser, talvez, devida ao seu temperamento pouco expansivo. Por isso, depois de uma pausa, decidi convidá-lo para sentar junto de nós.
Serviram-lhe o jantar e ele demonstrou estar com pouco apetite. Em seguida levantou-se e saiu para ver o seu cavalo, segundo declarara em tom de escusa. Para isso não precisaria de muito tempo e, no entanto, se passara mais de um quarto de hora e ele ainda não havia voltado. Comecei, então, a desconfiar seriamente do homem. O seu animal estava amarrado defronte da casa e ninguém o vira dirigir-se ao mesmo e nem ele próprio era visto nas imediações. O lindo luar permitiria avistá-lo se ele estivesse ali por perto. Só depois de muito tempo, avistei-o; dobrava um dos ângulos do cercado e se encaminhava para a casa. Quando me viu, ficou um instante parado, meio indeciso, prosseguindo, porém, em, seguida, a passos largos em nossa direção.
— É amigo de passeios, ao luar, Mr. Rollim? — perguntei-lhe.
— Não. Não tenho inclinações poéticas! — respondeu-me.
— Pensei que sim.
— Por quê?
— Porque saiu a passear...
— Mas não por amor ao luar! Não me sentia bem; ando com o estômago desarranjado e, além disso, com o corpo dolorido de estar montado todo o dia. Senti necessidade de fazer movimentos e saí. Eis a explicação do meu passeio, sir!
Desamarrou o cavalo, conduziu-o ao cercado, onde já se achavam os nossos. Depois voltou para o interior da casa. Que tinha eu com aquele homem? Não era ele dono do seu nariz? Por que, pois, lhe fiz as perguntas? É que o homem do oeste, devido a grandes precauções a que está obrigado, é inclinado a desconfiar de qualquer movimento que não lhe pareça bem claro. A explicação de Rollim fora plausível. Jantara muito pouco o que provava estar sofrendo, realmente, dalgum desarranjo estomacal. E quando ele entrou de novo em casa, portou-se com tanta modéstia e ingenuidade que toda a minha desconfiança se dissipou..., pelo menos naquele momento.
Palestramos sobre a cotação atual das peles, do seu tratamento e transporte, de tudo enfim que se relacionava com aquele ramo de negócio. O homem revelou-se um perfeito conhecedor do assunto e expôs as suas opiniões com tanta sensatez que Winnetou parecia haver simpatizado com ele, pois, contrariando os seus hábitos, passou a tomar parte na palestra. Narramos-lhe, depois, as últimas aventuras em que nos acháramos envolvidos e o auditório escutava-nos com visível interesse. Naturalmente que nos informamos sobre o paradeiro do mercador, sem a presença do qual não poderíamos fechar o negócio. À nossa pergunta, Rollim respondeu:
— Infelizmente não lhe posso dizer, ao certo, onde se acha o meu chefe hoje, amanhã ou depois. O meu serviço é arrecadar as mercadorias, por ele compradas e levá-las para um local, onde o encontrarei numa determinada época. Quantos dias de viagem são precisos para atingir a colônia de caçadores de “Mão de Fogo”?
— Três dias.
— Hum! Só daqui a seis dias é que Mr. Burton estará no Riffley-Joock; disporei, pois, de tempo para acompanhá-los, a fim de verificar as peles e proceder à sua avaliação. Apresentar-lhe-ei, então, um relatório e, depois, o levarei à sua presença. Naturalmente que isso só se realizará uma vez que eu achar viável o negócio e meu chefe concordar em realizá-lo.
— Claro; o senhor precisa ver a mercadoria antes de adquiri-la. Eu ficaria, porém, mais satisfeito se encontrasse o próprio Mr. Burton...
— Mas infelizmente não é possível. E mesmo que ele aqui estivesse, dificilmente teria tempo de acompanhá-los logo. As nossas transações, abrangem um círculo muito vasto, e meu chefe não pode fazer três dias de viagem, sem saber, antes, se lhe convém fazer uma oferta. Estou convencido de que ele próprio não os acompanharia, destacaria antes, para representá-lo, um de nós; e, como casualmente agora disponho de tempo para empreender esta viagem, irei com os senhores. Digam se concordam ou não com a minha proposta, para que eu possa tomar as providências necessárias!
Não havia motivos para recusar a sua proposta. Pensei representar condignamente os interesses de “Mão de Fogo” quando lhe respondi:
— Concordamos, uma vez que o senhor tem tempo para fazer a viagem; mas, neste caso, partiremos amanhã.
— Naturalmente! Não podemos perder tempo. Sairemos ao romper do dia e, em vista disso, proponho irmos logo dormir.
Também a sua resolução de nos acompanhar não podia provocar suspeita, embora mais tarde viéssemos a ter a prova de que o homem não era inofensivo como parecia! Ele levantou-se e pediu à dona da casa que lhe desse as colchas sobre as quais iríamos dormir. Depois de estendê-las no chão, indicou-nos os nossos lugares.
— Obrigado — respondi. — Preferimos dormir ao ar livre. A sala está cheia de fumaça. Lá fora temos ar puro.
— Mas, “Mão de Ferro”, os senhores não conseguirão dormir com os reflexos do luar nos olhos e, além disso, a noite está fresca.
— Estamos habituados a dormir ao ar livre em noites frias, e, quanto à lua, não nos importamos que ela olhe para onde bem entender...
Fêz mais umas tentativas para nos fazer desistir do propósito, porém, foi tudo em vão. Tempos depois, quando o viemos a conhecer, é que notamos, mas infelizmente já tarde, o quanto de suspeita tinha essa sua insistência. Antes tivéssemos continuado a desconfiar do homem!
Antes de sairmos para a rua, o dono da casa observou:
— Costumo fechar a porta a chave. Mas se desejarem, a deixarei hoje aberta.
— Por quê?
— Talvez venham a necessitar dalguma coisa.
— Não, senhor! Nada iremos desejar. Feche a porta! Nessa região, constitui loucura, dormir-se de porta aberta. Se tivermos alguma coisa a lhe dizer, falaremos através das seteiras.
Quando na rua, ouvimos, nitidamente, a porta ser fechada à chave, deitamo-nos à sombra projetada pela casa, pois a lua ia entrando e era encoberta pelo prédio. Adormeci logo.
TENTATIVA DE ASSALTO DOS OKANADA-SIOUX
Dormira talvez uma hora, quando despertei com um movimento do meu cavalo (era hábito arraigado meu, dormir fazendo do meu animal travesseiro). “Andorinha” soltou um relincho e eu ergui-me rapidamente encaminhei-me para o cercado, lugar para onde o animal olhava desconfiado. Vi, então, a uns duzentos passos um movimento no solo que cada vez mais se aproximava: eram numerosas pessoas a rastejar. Virei-me e ia sair correndo, a fim de avisar Winnetou, mas ele já se achava por trás de mim.
— O meu irmão está vendo aqueles vultos — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu. — São guerreiros peles-vermelhas.
— Trata-se, possivelmente, dos okanadas, que se preparam para assaltar a casa.
— Mão de Ferro acertou. Temos que entrar na casa.
— Sim, estaremos ao lado do dono da mesma. Mas não podemos deixar os cavalos aqui, porque os okanadas os roubarão, levando-os consigo.
— Vamos levá-los para dentro de casa. É bom que estejamos na sombra, porque, assim, os indígenas não nos verão.
Quando, trazendo os cavalos pelas rédeas, íamos acordar o dono da casa, vi que a porta se achava semi-aberta. Empurrei-a e levei “Andorinha” para a sala. Winnetou acompanhou-me conduzindo o seu animal e fechou a porta atrás de si, com o ferrôlho. O barulho dos cavalos acordou os que dormiam.
— Quem é? Que há? Cavalos na sala! — exclamou Corner levantando-se.
— Somos nós, Winnetou e “Mão de Ferro” — respondi.
— Como entraram na casa?
— Pela porta.
— Mas eu a fechei à chave.
— E no entanto estava aberta.
— Com todos os diabos! Então o ferrôlho não pegou direito. Mas por que trazem os cavalos para dentro?
— Por que não queremos que os roubem.
— Roubá-los? Por quem?
— Pelos okanada-sioux, que ai vêm rastejando para assaltá-los.
Corner fechara a porta, mas, quando ele e a família dormiam, o mercador, certamente a abrira para os índios penetrarem na casa.
A notícia da aproximação dos índios alarmou os que dormiam. Rollim fingia-se tão assustado como os demais. Todos gritavam. Winnetou ordenou:
— Silêncio! Com gritarias não se vence o inimigo. Precisamos deliberar sobre o meio de rechaçar os indígenas.
— Varremo-los simplesmente à bala — disse Corner.
— Não estou de acordo! — declarou o apache.
— Por quê?
— Porque isso importaria em grande derramamento de sangue, e isso devemos evitar.
— Evitar por quê? Esses cães peles-vermelhas merecem uma lição, da qual jamais se esquecerão os seus sobreviventes.
— Meu irmão chama os índios de cães? Lembre-se que também sou índio e conheço os meus irmãos melhor do que o senhor. Quando agridem os peles-brancas, em geral têm motivos que justificam a agressão. Ou os brancos os hostilizaram ou algum pele-branca os intrigou. Os ponkas assaltaram o acampamento de “Mão de Fogo”, industriados pelo seu cacique, o qual é de raça branca. E se os okanadas vêm saquear a sua casa, o culpado é, sem dúvida, algum pele-branca. No mínimo algum negociante os induziu ao roubo, para, depois, comprar-lhes o produto do crime.
— Não creio.
— Para mim é indiferente que creia ou deixe de crer. Sei o que estou dizendo e basta.
— E mesmo que assim fosse, os okanadas mereciam ser severamente punidos, por se deixarem induzir ao crime. Todo aquele que invade a minha propriedade, mato a tiros. Assiste-me esse direito e estou decidido a valer-me dele.
— Nada temos a ver com os direitos que lhe assistem. Exerça-os quando estiver sozinho. Atualmente, porém, aqui se acham “Mão de Ferro” e Winnetou, os quais estão habituados, num caso como o presente, a serem obedecidos. Nós assumiremos a direção da defesa e ai daquele que não acatar as nossas determinações. Preliminarmente, diga-me: de quem comprou o senhor esta colônia?
— Comprei?! Então o senhor acha que eu seria tão tolo em comprá-la?! Aqui me estabeleci, porque as terras me agradaram. Assim que eu morar nestas terras o prazo prescrito pela lei, (*) tornar-me-ei o seu legítimo proprietário.
— Portanto, ao se estabelecer aqui, não pediu o consentimento dos sioux, a quem pertence toda esta zona?
— Era só o que faltava!
— E se admira agora que eles o considerem como inimigo, como ladrão e espoliador de suas propriedades! E chama-os cães vermelhos? Por quê? Pelo fato de procurarem reaver o que lhes roubaram? Pretende varrê-los à bala? Detone só um tiro e cairá varado pela bala de minha espingarda de prata!
— Mas que devo então fazer? — perguntou o agricultor, amedrontado com a atitude do célebre apache.
— Nada, absolutamente! Eu e meu irmão “Mão de Ferro” dirigiremos, em seu nome, as negociações com os indígenas. E se o senhor se guiar por nós, nada lhe sucederá.
Durante esse diálogo, eu me chegara a uma das seteiras a ver se os okanadas se aproximavam. Não avistava nenhum deles. Com certeza fariam, antes do ataque, um reconhecimento ao redor da casa. Winnetou chegou-se a mim e disse:
— Enxerga-os?
_________________
( *) Usucapião.
— Ainda não — respondi.
— Concorda comigo que não devemos matar nenhum deles?
— Certamente! O colono roubou-lhes as terras e o seu assalto talvez vise também outro objetivo.
— Com toda certeza. Afinal, como os enxotaremos daqui sem derramamento de sangue?
— Meu irmão Winnetou já concebeu um excelente plano!
— Oh! “Mão de Ferro” adivinha os meus pensamentos. Prenderemos um deles para refém.
— É isso mesmo e precisamente o que vier espreitar pela porta. Ou acha que não?
— Concordo. Certamente virá um batedor observar o interior da casa. Prenderemos este.
Postamo-nos à porta semicerrada. Passou-se algum tempo e o observador não aparecia. Ninguém se mexia. Nisso vejo o vulto de um indígena se aproximar da porta, rastejando. Levantando o braço, examinou-a. Em dois tempos, ergui-me, agarrei-o pela garganta e apertei-a. O índio perdeu os sentidos. Conduzi-o para o interior da casa, fechando a porta com o ferrôlho.
— Acenda a luz, Mr. Corner — ordenou Winnetou. — Vamos examinar o homem.
O colono obedeceu à ordem e acendeu uma vela de sebo.
— Oh! É “Zaino”, o cacique dos okanadas! — exclamou Winnetou. — “Mão de Ferro” fêz uma boa presa.
O indígena, recobrando os sentidos, respirou profundamente e exclamou:
— Winnetou, o cacique dos apaches!
— Sim, sou eu em pessoa! Conhece-me, pois já nos vimos de uma feita. O meu companheiro, sim, o senhor nunca viu. É “Mão de Ferro”!
— “Mão de Ferro”!! Então já sei que me vão restituir novamente a liberdade.
— Tem certeza disso?
— Absoluta.
— Por quê?
— Por que os guerreiros dos okanadas não são inimigos dos apaches.
— Mas os okanadas pertencem aos sioux, e os ponkas, que há poucos meses nos assaltaram, pertencem à mesma tribo!
— Mas não temos a menor ligação com eles.
— Tem coragem de dizer isso a Winnetou? Sou amigo de todos os povos vermelhos, mas todo aquele que não procede com correção e pratica injustiças terá em mim um inimigo. E se afirma não ter o seu bando nenhuma ligação com os ponkas, diz-me uma inverdade, pois sei muito bem que os okanadas e os ponkas nunca se guerrearam e, não faz muito firmaram uma aliança ofensiva e defensiva. Portanto, não acredito no que me disse. O seu bando aqui veio para assaltar este pele-branca. E acha que “Mão de Ferro” e eu consentimos nisso?
O okanada quedou-se de olhar sinistro e, por fim, perguntou:
— Desde quando Winnetou, o grande cacique dos apaches, se tornou injusto? Sempre ouvi dizer que um dos traços característicos da nobreza de sua alma era o de estar ao lado dos órfãos da justiça! E como, agora, pretende impedir que eu exerça o meu direito?!!
— Está enganado, pois o que aqui pretendem fazer não está dentro do exercício de um direito.
— Por que não? Não nos pertencem essas terras? Não cabe a todos que nelas pretendem estabelecer-se, pedir, primeiro, o nosso consentimento?
— Perfeitamente!
— Pois então! Estes peles-brancas, porém, não o fizeram e não temos, então, o direito de enxotá-los daqui?
— Sim, e estou longe de negar-lhes tal direito; mas não concordo é com o modo por que pretendem exercê-lo. É necessário, para se livrar desses intrusos, que apelem para o saque, morticínio e incêndio?
— Os senhores, sendo os legítimos proprietários dessas terras, têm necessidade de assaltá-las à tocaia e à noite?! Eles são os ladrões e não os senhores!! Todo guerreiro valente ataca o inimigo de dia e pela frente. Os senhores, porém, vêm em bando, durante a noite, assaltar um pequeno grupo de homens! Winnetou se envergonharia de cometer uma “bravata” dessas! Ele contará em todas as fogueiras o quanto são covardes os filhos dos okanadas. Não merecem sequer que se lhes dê o nome de guerreiros!
“Zaino” quis enfurecer-se, mas, dando com o olhar de Winnetou, conteve-se e disse com humildade:
— Agi, segundo o costume de todos os povos vermelhos: o inimigo se ataca durante a noite.
— Isto quando é necessário um ataque!
— Então acha que devo falar a esses peles-brancas com humildade? Devo suplicar-lhes, quando posso ordenar-lhes?
— Não deve suplicar, mas ordenar, não há dúvida. Mas não devia rastejar para aqui à noite, como se fosse ladrão. Cabia aos guerreiros dos okanadas marchar de dia claro em direção às suas propriedades. O cacique intimaria, então, os usurpadores a abandonar a zona no prazo de um dia; e se não fosse obedecido, então enxotaria à força. Se o senhor tivesse procedido deste modo, eu o consideraria um cacique valente e nobre. Mas assim, não passa de poltrão, que não tem coragem de atacar meia-dúzia de homens, à luz do dia, cometendo antes a infâmia de fazê-lo traiçoeiramente e à calada da noite!
O okanada não respondeu. Winnetou disse-me rindo:
— “Zaino” esperava fôssemos soltá-lo! Que diz a isso, “Mão de Ferro”?
— Que ele se enganou redondamente — respondi. — Quem procede como um bandido deve ser tratado como um bandido! Ele está com a vida em perigo!
— Pretende talvez “Mão de Ferro” assassinar-me?
— Não. Não sou assassino. Há uma diferença entre matar simplesmente um homem e castigá-lo com a pena de morte!
— Então mereço ser condenado à morte?
— Claro!
— Não é verdade. Encontro-me em território que nos pertence.
— Está em casa de um pele-branca; que esta esteja edificada no seu território é cousa secundária. Todo aquele que penetrar na minha casa, sem o meu consentimento, eu matarei à bala, segundo as leis do oeste. Ninguém nos poderia censurar, se nós o matássemos agora! Mas nos conhece, e sabe que não gostamos de ver derramamento de sangue. Talvez seja possível entrarmos num acordo, pelo qual poderia salvar-se. Dirija-se ao cacique dos apaches; ele resolverá, em definitivo, o seu caso.
Viera com o bando, para justiçar os outros, e agora ele é que ia ser justiçado! Olhou para o cacique; na sua fisionomia havia um misto de expectativa e ódio, depois olhou, de um modo expressivo, para o auxiliar do mercador. Seria por casualidade ou propositadamente?A expressão do olhar parecia um apelo para que o outro saísse em sua defesa. E o mercador de fato atendeu ao olhar, dizendo a Winnetou:
— Sei que o cacique dos apaches não é sanguinário. Aqui no oeste bravio costuma-se punir atos criminosos concretizados e não os que não passaram do terreno da tentativa. Portanto, “Zaino” não incorreu em crime passível de pena.
Winnetou dirigiu-lhe um olhar desconfiado e perscrutador, respondendo:
— Não é preciso que nos diga o que “Mão de Ferro” e eu devemos resolver e executar. Não admitimos que estranhos se metam em nossos assuntos!
Por que Winnetou o repelira? Mais tarde vi o quanto ele tinha razão de desconfiar do homem. Dirigindo-se ao okanada, o cacique continuou:
— Ouviu as palavras de “Mão de Ferro”; sou da mesma opinião. Não faremos derramar o seu sangue, mas com uma condição, o de me responder com a verdade, às perguntas que lhe vou fazer. Não tente ludibriar-me, pois não o conseguirá. Diga-me, com sinceridade, qual o objetivo que levaram os ponkas a assaltar esta casa? Ou o senhor será tão covarde a ponto de negar que iam assaltar-nos.
— Uff! — exclamou o cacique. — Os guerreiros okanadas não são temerosos como o senhor há pouco disse. Não nego. Íamos assaltar esta casa!
— E, depois, incendiá-la?
— Sim.
— E que sucederia aos seus habitantes?
— Seriam mortos.
— Tomaram essa resolução de iniciativa própria, ou foram a isso induzidos por outrem?
O okanada ficou indeciso. Winnetou repetiu a pergunta e ele continuou silencioso.
— “Zaino” parece haver perdido a fala — bravejou Winnetou. — Lembre-se que sua vida está em jogo! Se pretende salvar-se, fale. Eu desejo saber se há um cabeça que não pertença à tribo dos okanadas.
— Sim, há — respondeu, afinal, o prisioneiro.
— Quem é?
— O cacique dos apaches seria capaz de trair um aliado?
— Não! — concordou Winnetou apressado.
— Então não deve zangar-se se eu me recusar a declinar o nome do meu aliado.
— Não me zangarei. Quem trai um amigo, merece ser morto a pedradas, como se fora um cão leproso! Oculte, pois, o nome do seu aliado, mas diga-me unicamente se ele é um okanada?
— Não.
— E nem pertence à outra tribo dos sioux?
— Também não!
— É um pele-branca?
— Acertou.
— O seu aliado está lá fora junto com os guerreiros?
— Está.
— Portanto é tal qual “Mão de Ferro” e eu prevíramos. Em tudo isso, há dedo de branco no meio. Bem, poremos “Zaino” em liberdade, porém mediante duas condições.
— Que exige de mim? — perguntou “Zaino”.
— Duas coisas: primeiro que se desligue do pele-branca que o induziu à prática do crime.
Essa condição não agradou ao okanada. Mas, depois, resolveu aceitá-la. Quando perguntou pela segunda, Winnetou respondeu:
— Intimará ao colono que aqui mora, de nome Corner, a pagar a propriedade por ele ocupada ou a abandoná-la. Só depois que ele se negue a cumprir uma, ao menos, das intimações é que virá aqui com os guerreiros enxotá-lo.
O indígena não relutou em aceitar essa condição. Corner, porém, dela discordou. Citou a seu favor a lei de terras devolutas, de usocapião, etc, etc. Winnetou pôs termo à sua argumentação “jurídica”, dizendo:
— Conhecemos os peles-brancas como usurpadores de nossas terras! Não nos interessam as leis, hábitos, praxes e sei lá eu o que mais dessa gente. Se, baseado nessas leis, quer insistir em roubar terras alheias, faça-o; é lá com o senhor! Mas agüente as conseqüências! Já fizemos pelo senhor o que era possível fazer. Agora “Mão de Ferro” e eu vamos fumar o calumet com o okanada, cerimônia que consolidará o nosso acordo.
O colono não ousou contrariar Winnetou. Este pôs fumo no seu cachimbo e iniciou-se a cerimônia. Eu não tinha dúvida de que o okanada, depois dessa solenidade, cumpriria fielmente o acordo celebrado. Winnetou era da mesma opinião, pois ao despachá-lo, antes de fechar a porta com o ferrôlho, disse ao cacique:
— Queira meu irmão voltar para os seus guerreiros e reconduzi-los à aldeia. Estou convencido de que cumprirá o acordo!
O okanada abandonou a casa. Nós, das seteiras e por cautela, ainda o seguimos com o olhar; ele, alguns passos adiante, ficou parado e pôs dois dedos na boca, soltando um assobio. Os guerreiros aparecerem. Ele queria, talvez, que fôssemos testemunhas de sua lealdade, pois assim falou aos indígenas:
— Queiram os guerreiros okanadas ouvir o que seu cacique lhes tem a dizer! Para aqui viemos com o fim de punir o pele-branca Corner, por se haver ele aboletado em nossas terras, sem nos pedir licença. Saí para observar a casa e assim teria feito se não me impedissem dois célebres homens do oeste que se acham no seu interior. “Mão de Ferro” e Winnetou, o cacique dos apaches, estão em nosso território e resolveram pousar na casa desse pele-branca. Fui por eles aprisionado. Não é vergonha ser-se vencido por esses homens, é antes uma honra. Para libertar-me, formei um acordo com eles e fumamos o calumet. O acordo é o seguinte: não mataremos este colono, desde que ele, ou nos pague a terra da qual se apropriou indebitamente, ou dela se retire dentro do prazo que eu designar. Isto foi resolvido entre nós e eu hei de cumprir. Winnetou e “Mão de Ferro” estão na seteira e ouvem o que estou a dizer aos meus guerreiros. Há paz e amizade entre eles e nós! Queiram meus irmãos seguir-nos, de regresso à nossa taba.
SUSPEITA QUE SE CONFIRMA
Ele se retirou e desapareceu com sua gente, na curva da cerca. Como era natural, abandonamos a casa e os seguimos durante um trecho, a observar-se de fato os indígenas haviam ido embora. Constatamos que sim, e estávamos certos de que eles não se animariam a voltar, para tentar novamente o assalto. Retiramos os nossos cavalos da sala e nos deitamos novamente a seu lado, ao ar livre. Rollim, porém, desconfiado de que os índios voltariam, seguiu-os a uma distância maior. Mais tarde soubemos que ele seguiu os indígenas com objetivo bem diferente... Não sabemos a que horas voltou; quando, pela manhã, nos levantamos, ele se achava sentado com Corner em frente a casa nuns cepos que serviam de banco.
Corner deu-nos bom dia, num tom que pouco tinha de amável. Estava indignado conosco, pois era de opinião que seria muito mais vantajoso para ele se houvéssemos morto todos os índios no momento do ataque, conforme propusera. Agora, porém, ele era obrigado a abandonar as terras de que se apossara indevidamente ou a indenizá-las aos índios. Não tive pena dele. Por que se aventurou a fixar-se exatamente neste território, à boca do lobo?! Que diriam em Illinois ou em Vermont se lá aparecesse um índio sioux e se aboletasse com sua família num lugar que lhe agradasse e depois dissesse: — “Este terreno é meu”?
Não ligamos importância ao seu humor, agradecemos-lhe a hospedagem e partimos.
O mercador nos acompanhou, conforme fora combinado. Mas ele parecia não pertencer ao nosso grupo. Cavalgava a certa distância como se fosse um subordinado que deve respeito ao seu superior. Folgamos com essa sua atitude. Assim podíamos falar à vontade sem nos preocupar com ele.
Depois de algumas horas, ele chegou ao nosso lado, a fim de falar sobre o projetado negócio. Indagou da qualidade das peles de que se compunha o estoque, que “Mão de Fogo” pretendia vender.
Nós lhe prestamos as informações, que julgamos poder prestar. Perguntou em que ponto o escoteiro nos ia esperar e também onde estavam as peles guardadas, e de que modo. Poderíamos dar-lhes também essas informações solicitadas, mas resolvemos não fazê-lo, pois não o conhecíamos e, mesmo, é hábito entre os homens do oeste nunca revelar os esconderijos em que guardam tais mercadorias de valor. Era-nos indiferente se ele levasse ou não a mal nos havermos recusado a dar as informações pedidas; afastou-se novamente de nós e continuou a cavalgar a uma distância ainda maior que antes.
Tomáramos o mesmo caminho pelo qual viéramos e, por isso, não cogitamos de fazer um reconhecimento da zona. Havia muitas pegadas no solo, mas não nos preocupávamos com elas. Perto do meio-dia, encontramos umas pegadas, que não teriam despertado a nossa atenção, se o que a ocasionou não tivesse tentado apagá-las. Apeamos e examinamos os pastos. Nesse ínterim, chegou o mercador que apeou também e começou, igualmente, a examinar as pegadas.
— Serão de gente ou de animal? — perguntou o mercador. Winnetou não respondeu; julguei ser uma descortesia deixá-lo sem resposta e retorqui:
— O senhor parece não ser muito perito em leitura de pegadas? Logo à primeira vista, se conhece que são rastos de gente.
— Não creio; então o capim estaria mais pisoteado.
— O senhor acha que por aqui há gente que se dê ao esporte de pisotear o capim, para depois ser descoberto e morto?!
— Claro que não! Mas são pegadas de cavalos!
— As pessoas que aqui estiveram não estavam montadas!
— Não estavam montadas? Isto daria na vista e provocaria suspeita. Eu penso que nesta zona, a pessoa que não ande montada, não pode existir.
— Sou da mesma opinião. Mas o senhor nunca ouviu dizer que muitas vezes, a gente, sem querer, perde o cavalo que monta?...
— Aqui, porém, não se trata duma só, mas de várias pessoas. Um só pode perder facilmente a montaria, mas...
Ele mostrava conhecimentos, embora à primeira vista parecesse um idiota. Não lhe responderia, mesmo, se Winnetou, naquele instante, não me houvesse dirigido a palavra:
— Já compreendeu o meu irmão essas pegadas?
— Sim, já!
— Três peles brancas a pé; não conduziam espingardas, mas cajados. Saíram daqui, um seguindo a pegada do outro e o último tentou apagar os rastos; ao que parece, eles se julgam perseguidos.
— O mesmo me parece. Mas não estariam eles, de fato, armados?
— Pelo menos de espingardas, não. Pois, neste caso, teriam deixado os vestígios das espingardas na relva, o que não ocorre.
— Hum! Singular! Três peles-brancas desarmados nessa região perigosa! Só é admissível a hipótese de haverem sido assaltados e despojados do que traziam.
— Meu irmão chegou à mesma conclusão que eu. Esses caminhantes. apoiavam-se em cajados, os sinais destes no solo são bem visíveis.
— Acha que devemos sair em seu socorro?
— O cacique dos apaches está sempre pronto para auxiliar os que necessitam de seus serviços, sejam peles-vermelhas ou brancas. No entretanto, no caso presente, “Mão de Ferro” que resolva. Desejo socorrer os caminhantes, mas tenho um pressentimento de que não devo fiar-me neles.
— Por que não?
— Porque é dúbia a atitude desses peles-brancas que por aqui passaram. Tudo fizeram para apagar as suas pegadas no solo e por que não fizeram o mesmo em relação às que deixaram no local, onde estiveram acampados?!
— Talvez por falta de tempo. Ou então porque nenhum inconveniente lhes acarretaria se os inimigos soubessem que eles aqui estiveram deitados; o principal era não descobrirem para onde eles se encaminharam depois.
— É possível que assim seja. Mas, neste caso, não são bons campeiros, são homens inexperientes. Vamos segui-los, a fim de socorrê-los.
— Concordo, tanto mais que, seguindo-lhes as pegadas, não nos desviamos muito de nossa rota.
Montamos. Rollim, porém, ficou indeciso por momentos e ponderou apreensivo:
— Não seria mais conveniente deixarmos aqueles homens entregues ao destino? Eles que se arranjem. É bem provável, mesmo, que o socorro que lhe iremos levar chegue já fora de tempo!
— Nós iremos; quanto ao senhor, faça lá o que entender — respondi.
— Mas com isso perderemos tempo.
— Não estamos tão apressados, a ponto de deixarmos de socorrer gente que se acha em perigo e necessita, talvez, de nossa proteção.
Pronunciei essas palavras em tom decisivo. Ele resmungou alguma coisa consigo mesmo e montou a cavalo para seguir-nos. Eu não tinha muita confiança naquele mercador.
As pegadas, saindo do mato e dos macegais, seguiam para a savana aberta, eram recentes, fazendo quando muito uma hora que haviam sido deixadas, como estivéssemos montados, não tardamos a alcançar as pessoas procuradas. Quando nos avistaram, estavam distante de nós cerca de uma milha inglesa. Uma delas se virou e, depois, comunicou aos demais a nossa aproximação. Pararam, assustados, ao que parecia; depois deitaram a correr, como se fugissem em perigo de vida. Tocamos os nossos animais e fácil nos seria logo alcançá-los; antes disso, bradei-lhes que se acalmassem, pois éramos de paz. Os fugitivos pararam, afinal.
Estavam, realmente, desarmados, completamente desarmados. Não possuíam nem uma faca para cortar os cajados, pois os haviam quebrado. Os seus vestuários estavam em boas condições. Um deles trazia um lenço enrolado na testa e o outro o braço esquerdo apoiado numa tira que lhe pendia do pescoço. O terceiro não estava ferido. Olhavam-nos desconfiados e temerosos.
— Por que correm deste modo? — perguntei-lhes quando paramos.
— Julga que sabemos quem são os senhores?
— É indiferente. Podíamos ser quem quer que fôssemos, uma vez que, de qualquer modo, haveríamos de alcançá-los. Portanto, a correria seria inútil. Mas, não tenham receio. Somos homens de bem. Descobrimos-lhes as pegadas e resolvemos ver se necessitavam de nós para alguma coisa. Calculávamos que a situação atual dos senhores não era nada invejável.
— E não se enganaram! Fomos assaltados e damos graças a Deus que ainda conseguimos safar-nos com vida.
— Lamento. Quem os agrediu? Algum pele-branca?
— Não, foram os okanadas-sioax.
— Quando?
— Ontem de manhã.
— Onde?
— No rio Turkey.
— Em que circunstâncias se operou a agressão? Ou, quem sabe, não lhes devo fazer esta pergunta?
— Por que não? Ao que parece, são homens de bem. Mas, antes, permita-me que lhes pergunte pelo nome.
— Esse gentleman pele-vermelha é Winnetou, o cacique dos apaches; a mim costumam chamar “Mão de Ferro”, e aquele é Rollim, um mercador que viaja pelo oeste bravio e que a nós se uniu, por motivos comerciais.
— Heigh-day! Então dissiparam-se as nossas suspeitas! Winnetou e “Mão de Ferro”, já os conhecemos através dos seus nomes, que inspiram simpatia e respeito em todo o oeste e nas cidades. São dois homens, cheios de bravura e nobreza, em quem a gente pode confiar. Graças a Deus, que nos mandou os senhores em nosso socorro. Precisamos de auxílio, sir, e Deus os recompensará se os senhores nos ampararem nesta situação aflitiva.
— Estamos prontos para isso; é só nos dizer em que os podemos servir!
— Primeiro precisam saber quem somos nós. Chamo-me Warton; este aqui é meu filho e aquele outro, meu sobrinho. Viemos da região do Neu-Um a fim de nos fixarmos no rio Turkey.
— Foi uma grande imprudência de sua parte.
— Infelizmente! Mas ignorávamos tudo. Descreveram-nos a zona de tal modo, que julgamos que era só a gente se fixar na terra e iniciar logo a colheita...
— E os índios? Não se lembraram deles?
— Claro. Mas nos foram pintados bem diferentes do que são na realidade. Achávamo-nos perfeitamente equipados e armados, e escolhemos um pedaço de terra do nosso agrado, quando caímos nas mãos dos indígenas.
— Dêem graças aos céus por não terem perdido a vida.
— Naturalmente, naturalmente! A coisa, a princípio, esteve muito mais perigosa do que depois. Os vermelhos só nos falavam em postes de martírio e outras penas. Depois se contentaram em nos despojar de nossos haveres, exceto as roupas, e em nos enxotar para fora de seu território. Pareciam estar às voltas com presas rendosas, e não tinham tempo de se preocuparem com a nossa execução.
— Com presas mais rendosas? Conseguiu, por acaso, saber do que se tratava?
— Não entendemos o idioma dos okanadas. O cacique falou-nos em inglês e citou-nos o nome de um senhor Corner o qual, ao que parece, ia ser o assaltado.
— É isso mesmo. Os indígenas iam atacá-lo à noite e, em vista disso, não dispunham de tempo para matá-los. A essa circunstância devem os senhores à vida!
— Sim, mas que vida!
— Como?
— Ora, isso não é vida! Estamos desarmados, não nos deixaram sequer uma faca. Assim, não podemos abater ou pegar caças para o nosso sustento. Desde ontem que nos alimentamos de raízes e frutas silvestres. Agora, aqui na campina, nem isso se encontra mais para comer. Se não os tivéssemos encontrado, iríamos morrer de fome. Sim, pois espero que nos acudam com um pedaço de carne ou qualquer outro alimento!
— Naturalmente! Mas para onde pretendem seguir agora?
— Para o forte Wilke.
— Conhecem o caminho?
— Não, mas penso que vamos trilhando rumo certo.
— Não há dúvida, o caminho é este mesmo. Têm motivos para se dirigirem precisamente àquela região?
— Temos. Já lhe disse há pouco que nós os três viéramos para o rio Turkey, a fim de escolher cearas. As nossas famílias partiram logo depois e estão no forte Wilke, à nossa espera. E, além disso, se atingirmos aquela praça de guerra, sem sermos novamente atacados, estaremos salvos e lá obteremos recursos.
— Pois estão de sorte. Nós seguimos para a mesma zona e temos muito boas relações com o forte.
— Realmente? Permite, então, que os acompanhemos, sir?
— Mas é claro, homem! Não iríamos deixá-los abandonados!
— Mas os vermelhos tomaram-nos os cavalos; teremos de caminhar, o que lhes fará perder tempo.
— Não faz mal. Sentem-se agora e descansem. Vamos dar-lhes alguma coisa para comer.
O mercador parecia não concordar com o rumo que dávamos ao caso; blasfemava e resmungava, censurando o nosso inútil humanitarismo, que lhe causava perda inútil de tempo. Não lhe demos atenção; apeamos, sentamos-nos na relva, ao lado dos caminhantes e lhes servimos uma refeição. Depois desta, prosseguimos viagem. Os nossos protegidos sentiam-se felizes por nos haverem encontrado e teriam mantido conosco uma palestra mais animada, se Winnetou e eu nos tivéssemos tornado mais expansivos.
Quanto ao mercador, os caminhantes por várias vezes tentaram entabular conversação com ele, mas em vão; o mercador estava indignado com o encontro que tivéramos e se esquivava de falar com os colonos. Essa atitude tornava-o ainda mais antipático. Passei a vigiá-lo mais severamente do que antes, naturalmente sem ele perceber. E, dessa minha medida, surtiu um efeito por que não esperava.
Observei, por exemplo, que o homem quando julgava que ninguém o via, ria, ironicamente, com uma expressão de contentamento, de vitória, que lhe iluminava o semblante. Volta e meia dirigia, também, olhares suspeitos, ora a Winnetou, ora a mim.
Notei ainda que o mercador, de vez em quando, trocava olhares significativos com os caminhantes. Seriam eles aliados? Não estaríamos a caminho dalguma emboscada?
Mas que motivos teria o mercador e os caminhantes para nos traírem? Não seria infundado o meu receio?
Winnetou, apeando-se, disse a Warton:
— Meu irmão pele-branca já caminhou bastante; queira, pois, montar no meu cavalo. “Mão de Ferro” também cederá o seu. Nós caminhamos com agilidade e acompanharemos os animais.
Warton fêz como se tentasse recusar o oferecimento, mas depois o aceitou de bom grado. Cedi “Andorinha” ao filho. Ao mercador cabia oferecer sua montaria ao sobrinho, mas não o fêz. Por isso filho e sobrinho revezavam-se em meu cavalo.
Como caminhássemos a pé, não daria na vista se nos isolássemos dos cavaleiros.
— Meu irmão, Winnetou cedeu o seu cavalo, não de pena do caminhante, mas visando um objetivo bem diferente — disse eu.
— “Mão de Ferro” sabe adivinhar as coisas — respondeu.
— Winnetou observou também esses quatros homens?
— Sim. Um deles tem a testa e o outro o braço amarrados. Dizem eles que foram ontem feridos pelos okanadas. O meu irmão acredita nisso?
— Não; acredito até que essa gente nem esteja machucada.
— E não está, de fato. Já atravessamos dois arroios e em nenhum deles os homens pararam para refrescar a ferida. E se não estão feridos, também não foram assaltados por tribo alguma. O meu irmão observou-os, quando comiam?
— Sim. Comeram muito.
— Mas não tanto e com tal sofreguidão de quem durante dois dias só se alimenta de raízes e frutas silvestres. E pretendem ter sido atacados no rio Turkey. Se fosse verdade, já poderiam eles estar aqui?
— Não sei, pois nunca estive naquela zona.
— Só poderiam vencer um trecho de caminho tão longo, se estivessem montados. Portanto, ou eles andam a cavalo ou não vieram do Turkey.
— Se andam a cavalo, a quem confiaram os animais?
— Já haveremos de saber. Considera o mercador inimigo daqueles homens, como se mostra?
— Absolutamente não. Tudo é fingimento.
— Notei-o também. São conhecidos. Talvez pertençam a um mesmo grupo.
— Mas por que ocultam essa circunstância? Qual será o objetivo que visam com isso?
— Não podemos adivinhar, mas havemos de descobrir tudo.
— Seria talvez melhor dizer-lhes, face à face, o que desconfiamos deles.
— Não, senhor!
— Por que não?
— É provável que essa atitude afete assuntos com os quais nada temos a ver. Esses homens, não obstante a desconfiança que nos inspiram, podem muito bem ser pessoas honradas. Não devemos magoá-los. Não é justo que lhes manifestemos nossas suspeitas, sem estarmos convencidos de que são, realmente, malfeitores.
— Hum! Ás vezes, envergonho-me diante de Winnetou, pois ele revela ter mais sentimentos generosos do que eu.
— Pretende com isso desaprovar-me?
— Não. Winnetou sabe muito bem que estou longe disso.
— Howgh! Nunca se deve tratar alguém com aspereza, sem ter a certeza de que merece ser tratado assim. É preferível sofrer uma injustiça do que praticá-la. Reflita o meu irmão “Mão de Ferro”. O mercador tem motivos para proceder com maldade com relação a nós?
— Nenhum, não há dúvida. Pelo contrário, tem até motivos para nos tratar com toda cordialidade.
— Pois é claro! Ele pretende ver o nosso depósito de peles e o seu chefe está em vias de fechar um bom negócio com “Mão de Fogo”. A transação falharia, porém, se fôssemos assaltados em caminho. Ninguém, neste caso, lhe diria onde se acha “Mão de Fogo” com as suas mercadorias. Portanto, mesmo que este comerciante projetasse nos fazer algum mal, ele abster-se-ia disso, enquanto não lhe mostrássemos o local onde está situado o “burgo”. Não concorda comigo?
— Plenamente.
— E, quanto a esses três homens, que se dão por colonos assaltados...
— Não são. Tudo é mentira!
— Eles são coisa bem diversa.
— Mas o que?
— Sei lá! Até agora, porém, nada descobrimos de positivo, que nos levasse à convicção de estarem planejando contra a nossa vida.
— Talvez pretendam agredir-nos, quando chegarmos à fortaleza.
— Uff! — disse rindo-se. — Mais uma vez tem “Mão de Ferro” a mesma idéia que eu.
— Não é nenhum milagre! Essa suposição, salta logo à primeira vista. A minha conclusão está feita.
— Concluiu que todos os quatros são mercadores.
— Exatamente. Corner nos disse ontem que Breveton viaja com quatro ou cinco auxiliares. É provável que Warton seja o mercador Burton. Ambos os nomes têm pronúncias parecidas. Ele se achava, ontem, nas imediações da casa de Corner, e Rollim, que durante a noite esteve ausente, foi avisá-lo do grande negócio que lhe propusemos; diante disso, ele resolveu pôr-se em caminho, na companhia de mais dois auxiliares.
— Com que propósito? Bom ou mau?
— Hum! Estou em dizer que é mau.
— Oh! Agora tenho um pressentimento nada tranqüilizador. Os homens pretendem ver as peles e delas se apossarem sem pagá-las.
— Portanto projetam roubar-nos e matar-nos?
— É isso mesmo.
— Também penso assim.
— Logo, estamos na companhia de malfeitores. Não precisamos, porém, receá-los durante a viagem. Nada nos sucederá. O assalto se realizará quando os quatro estiverem no interior do “burgo”.
— Não nos será difícil frustrar-lhes o plano. Rollim continuará a viagem conosco até o fim. Dos outros, nos despediremos, em caminho. Não cairá na vista, pois eles pretendem, segundo dizem, seguir para o forte Wilke, a fim de se reunirem às suas famílias. Parece-me ser este o meio mais seguro, se é que, em viagem, algum imprevisto não nos desfaça o plano. Por isso daqui por diante toda a cautela é pouca. Nós os vigiaremos, tanto de dia como de noite.
— É de se admitir, também, que, em caminho, haja um grupo que conduza os animais dos nossos “protegidos”. É preciso, pois, que enquanto um de nós dorme, esteja o outro de vigília. Preparemo-nos para a luta.
Terminou aqui o nosso diálogo.
As medidas combinadas, porém, não iriam produzir o efeito desejado. Tivéssemos desconfiado, de leve que fosse, qual era o verdadeiro plano dos homens, outras seriam as nossas providências.
DOMINADOS POR SANTER
Durante à tarde, não retomamos os nossos animais, apesar da insistência dos caminhantes em devolvê-los. Ao anoitecer deveríamos ter acampado em campina aberta, pois deste modo alcançaríamos com as vistas tudo o que ocorresse em derredor de nós e veríamos facilmente a aproximação de inimigos. Mas soprava um forte vento acompanhado de chuva, razão por que cavalgamos mais um trecho e acampamos num mato. Aí havia muitas árvores bem copadas, que nos abrigavam da chuva.
As nossas provisões estavam calculadas apenas para duas pessoas; mas Rollim também trazia alguma, de modo que deu para a refeição de todos; no dia seguinte, porém, teríamos que abater caças para o nosso sustento, durante o resto da viagem.
Depois do jantar, já era hora de dormir; mas os companheiros não estavam dispostos a isso. Palestravam animadamente, embora os tivéssemos proibido de falar em voz alta. Até Rollim tornara-se um parlador e contava aventuras que pretendia haver vivido em suas viagens de negócio. Desse modo, nem eu nem Winnetou podíamos conciliar o sono. Resolvemos, então, ficar ambos de vigia, embora não tomando parte na conversa.
Esta provocava-me suspeitas; eu tinha a impressão de que falavam, propositadamente, em voz alta. Teria essa atitude o fim de desviar a nossa atenção de alguma coisa nas redondezas? Winnetou estava também desconfiado disso. Trazíamos nossas armas prontas para entrarem em ação. Fingíamos que dormíamos.
A chuva cessara e o vento se tornara mais brando. Como a zona era dos sioux, tínhamos uma boa desculpa, para não permitirmos que se acendessem fogueiras. Uma fogueira denunciaria a nossa presença não só aos indígenas, como também, talvez, aliados dos nossos “hóspedes”.
Disse já que estávamos acampados num mato. Antes da meia-noite, notei que Winnetou pegava na sua espingarda de prata e a punha à altura do joelho, em posição de atirar. Vi então, no meio das folhagens, dois pontos fosforescentes. Eram os olhos duma pessoa que nos espreitava. Os olhos desapareceram em seguida e Winnetou não pôde atirar.
— É inteligente, o canalha! — disse-me no idioma apache.
— O indivíduo conhece o tiro à altura dos joelhos, do contrário não; desapareceria.
— Era um pele-branca.
Agora sabíamos que o inimigo se achava nas cercanias.
— Mas ele também já sabe que não ignoramos a sua presença na zona.
— Infelizmente. Viu que ia alvejá-lo e agora tomará toda a precaução, para não ser surpreendido.
— Não lhe adiantará nada. Irei, contudo, espreitá-lo.
— Seria muito arriscado!
— Para mim?
— O inimigo o enxergará quando daqui sair, pois, pelo que se viu, é um bandido astuto.
— Fingirei que vou dirigir-me aos cavalos. Assim não lhe cairei na vista.
— Deixe isso comigo, Winnetou. Fique aqui!
— Winnetou descobriu o inimigo antes do que “Mão de Ferro”, a ele pois cabe a primazia de espreitá-lo. Meu irmão ficará aqui e tudo fará para que o espião não desconfie que vou observá-lo.
Em vista disso, dirigi-me aos companheiros que palestravam animadamente:
— Bem, agora basta! Partiremos bem cedo e precisamos dormir. Mr. Rollim, amarrou bem o seu cavalo?
— Amarrei — respondeu, mal-humorado, por lhe haver interrompido a palestra.
— O meu está solto — disse Winnetou alto. Vou amarrá-lo lá na campina, para que durante a noite possa pastar. Se “Mão de Ferro” quiser, levarei o seu também.
— Seria um favor! — disse bem alto para ser ouvido.
Winnetou ergueu-se calmamente, pôs sua manta às costas e saiu, conduzindo os cavalos. Os demais prosseguiram na palestra. Não me agradava, pois deste modo eu nada poderia ouvir.
Passou-se uma hora e Winnetou ainda não voltara. Comecei a temer que lhe houvesse acontecido alguma desgraça. De repente, ao longe, um vulto de manta às costas caminhava na minha direção. Era o meu amigo. Ele se aproximava cada vez mais e eu continuei deitado. O seu vulto chegou por trás de mim e uma voz que não era a sua comandou então:
— Agora, esse aí!
Virei-me rapidamente; a manta era a de Winnetou, mas quem a usava não era ele e sim um indivíduo barbado que eu tinha a impressão de conhecer. Ao pronunciar essas três palavras, ele tomou da espingarda para desfechar-me um coronhaço. Rolei depressa para o lado, procurando desviar-me do golpe, mas foi tarde. A pancada não me atingiu a cabeça, mas a região ocipital, região ainda mais perigosa. Outro coronhaço na cabeça e eu perdi os sentidos.
O meu desmaio deve ter durado umas seis horas, pois quando me acordei já era dia. Não podia conservar os olhos abertos e tinha a impressão de estar morto e a ouvir, da eternidade, as palavras que alguém proferia ao meu lado. Por fim consegui ouvir:
— Este cão apache nada quer confessar e o outro creio que não se refará mais dos golpes que lhe desferi. Que pena! A sua prisão seria para mim motivo de grande alegria. Eu desejaria mostrar-lhe o que significa cair em minhas mãos!! Oh! Quanto eu gostaria se ele, em vez de ter morrido, tivesse simplesmente desmaiado!
O som desta voz, fêz-me abrir, instintivamente, os olhos; olhei espantado aquela fisionomia coberta agora por densas barbas e que, na minha perturbação de sentidos, não pude reconhecer logo. Sabem os leitores quem estava diante de mim? Santer, o assassino de Intscho-tchuna e Nscho-tschi!! Quiz fechar logo os olhos, para fingir que continuava sem sentidos, mas não consegui, os músculos se me paralisaram. Encarei-o com firmeza, até que ele me olhou. Deu um salto para a frente e exclamou, cheio de alegria:
— Ele ainda vive! Ainda vive! Vejam como tem os olhos abertos. Estarei enganado? Veremos.
Dirigiu-me algumas perguntas e, como não lhe respondesse prontamente, ajoelhou-se diante de mim e bateu-me por várias vezes com a cabeça contra o solo. Não pude reagir, pois estava fortemente amarrado, de modo que não pude mexer com os membros.
— Fale, cão! Se não me obedecer abrir-lhe-ei a boca doutro modo...
Quando Santer bateu-me com a cabeça ao solo, pude olhar para o lado. Vi, então, Winnetou, amarrado com desumanidade, perto de mim. Santer fazia-se acompanhar do indigitado Warton, seu filho e seu sobrinho. Faltava apenas Rollim.
— Afinal, resolve falar ou não? — prosseguiu Santer em tom ameaçador. — Quer que eu lhe desprenda a língua com a faca? Quero saber se me conhece, e se ouve o que eu digo!
Que me adiantava o silêncio? Com isso eu só poderia agravar a nossa situação. É claro que eu não sabia se me era possível falar. Experimentei e o resultado foi eu responder em voz quase sumida.
— Conheço, sim. É Santer!
— Muito bem, acertou! E não se alegra com o encontro? Deve estar entusiasmado por tornar a ver-me! Que surpresa agradável lhe causo, não é assim?
Como eu tardasse a responder, ele sacou da faca, pôs-me a ponta de encontro ao peito e bradou:
— Diga já um sim bem alto, do contrário morrerá!
Winnetou, apesar das dores atrozes que sofria amarrado em forma de uma bola, respondeu em meu lugar:
— “Mão de Ferro” prefere morrer a dizer sim.
— Cale-se de uma vez, cão! — berrou Santer. — Se pronunciar mais uma palavra, mandarei apertar mais as cordas para que elas te quebrem os ossos. Mas, não é verdade “Mão de Ferro”, amigo meu de todos os tempos, que estás entusiasmado por me tornar a ver?
— Sim!!! — respondi alto, não obstante a observação do apache.
— Ouviram? — exclamou Santer triunfante, dirigindo-se aos companheiros — “Mão de Ferro”, o célebre, o invencível “Mão de Ferro” tem tanto pavor de minha faca, que confessa como se fora uma criança, sentir-se feliz em tornar a ver-me!
Esqueci-me da situação em que me achava, ante aquelas frases insultuosas; esqueci-me das dores que me atormentavam e respondi, rindo-lhe na cara:
— Está redondamente enganado! Eu disse que sim, mas não apavorado de sua faca.
— Não?! Por que então?
— Porque é uma verdade! Folgo imensamente por tê-lo, finalmente, encontrado. Chegou à hora do ajuste de contas!
— Essa minha resposta desconcertou-o. Franziu o sobrecenho, dirigiu-me por instantes um olhar perscrutador e, depois, disse:
— Como? Que ouço? As pancadas que recebeu na cabeça fizeram-no perder o uso da razão? Alegra-se, realmente, em rever-me? Pensa em ajuste de contas?
— Certamente!
— Com os diabos! Custa-me a crer que este sujeito esteja a falar seriamente.
— No entanto, estou dizendo a pura verdade. Folgo imensamente em tê-lo diante de mim, para lhe aplicar o castigo a que fêz jus, pelo hediondo crime que praticou!
— Está louco, completamente louco.
— Era só o que faltava! Estou com o juízo mais perfeito do que nunca!
— Realmente? Então é um arrogante, um cínico como jamais vi igual em toda a vida! Homem, vou amarrá-lo com os membros encolhidos, como fiz a Winnetou, ou vou pendurá-lo de cabeça para baixo, para que o sangue jorre de todos os poros.
— Oh! Não se animará a fazer!
— Não me animarei a fazer? Por que não? Que motivo teria eu para renunciar a esse propósito?
— Sabe-o muito bem!
— Então está mais ao corrente das coisas do que eu!
— Cale! A mim o senhor não ilude. Enforque-me, enforque-me a seu bel prazer! Estarei, então, morto dentro de dez minutos, e veremos, então, como descobrirá o que tanto deseja saber!
Minhas palavras foram acertadas, o que notei pelo seu semblante. Trocou um olhar com Warton, meneou a cabeça e disse:
— Havíamos tomado esse canalha como morto, mas ele nem sequer estava desmaiado, pois ouviu todas as perguntas que fiz a Winnetou, sem que este patife pele-vermelha tivesse respondido uma só delas.
— Engana-se outra vez — retruquei. — Eu estava, realmente, sem sentidos. Nada ouvi. Mas “Mão de Ferro” tem inteligência bastante para perceber o seu propósito.
— Ah, é? Então diga-me, afinal qual é o meu propósito! Que desejo saber?
— Ora, deixe-se de infantilidades! O senhor nada saberá de nós. Afianço-lhe, apenas, que o encontro de hoje, por nós há tempo almejado, encheu-nos de satisfação! Até que enfim, caiu-nos nas mãos!
Olhou-me estarrecido por muito tempo, como que absorto; proferiu uma blasfêmia imoral, impossível de ser aqui transcrita, e urrou:
— Canalha, esteja satifeito que eu o tome por um louco! Pois se eu soubesse que está no uso da razão e que fala conscientemente, seria submetido a mil e um martírios, a fim de o convencer de que não sou homem de caçoadas. Quero, porém, ser indulgente e falar-lhe com toda a calma; mas se não me responder com sinceridade e boas maneiras, terá uma morte, como nunca vi alguém ter igual.
Sentou-se diante de mim, fixou-me o olhar e prosseguiu:
— Os senhores dois se consideram homens astutos, aliás, os mais astutos e inteligentes exploradores do oeste bravio; mas, na realidade, não passam de dois grandes imbecis. Como andou Winnetou, daquela feita, em minha perseguição! E conseguiu capturar-me? Depois de tal fracasso qualquer outra pessoa, no seu lugar, se pejaria de aparecer diante de gente! Pretende negar que ontem viram os meus olhos a espreitá-los, por entre o macegal da mata?
— Não nego. Vimos, de fato!
— Winnetou quis alvejar-me com sua arma?
— Sim.
— Notei-o e, naturalmente, desapareci, sem deixar vestígio de minha passagem. Depois ele saiu, para observar-me. Não foi assim?
— Perfeitamente.
— Espreitar a mim, hahahaha! Eu sabia que minha presença fora notada. Portanto pretender espreitar-me foi rematada tolice; mesmo uma criança se aperceberia da inutilidade de tal medida. Os senhores mereciam uma tunda de laço por terem agido de um modo tão tolo. Não ele, mas eu é que o espreitei e o abati a golpes de coronha, quando caminhava na minha direção. Depois, tomei-lhe a manta, na qual me enrolei para pilhar também “Mão de Ferro”. E caiu lindo na cilada! Como se sentiu quando viu que era eu e não o apache?
— Fiquei radiante de alegria!
— Folgou também, com os golpes que levou? Acredito que não! Os senhores se deixaram apanhar, como um pinto pelo gavião. Agora ambos estão debaixo do nosso domínio, sem possibilidade de se salvarem. Não é, contudo, difícil encontrarem indulgência de minha parte. Para isso basta que me forneça com sinceridade algumas informações de que preciso. Veja esses três homens aí! São meus aliados. Destaquei-os para se encontrarem com os senhores, com a incumbência de atraí-los à cilada. Diga-me, agora, por quem me toma agora? Por homem de talento, não é assim?
— Não; por um canalha, como sempre foi e ainda é hoje! Mais não preciso dizer!
— Bravo! Vou lhe dizer uma coisa: por enquanto, não revido esse insulto; mas assim que terminarmos nossa conferência, receberá o prêmio de sua arrogância, tome nota disso! Devo confessar-lhe, com sinceridade, que nós preferimos colher a semear; o semear é tarefa exaustiva, que deixamos aos outros. Quando se nos depara uma colheita que não demande muitos esforços, pomos mãos à obra, sem nos preocuparmos com os protestos de terceiros, que se dizem os donos da seara. Assim sempre procedemos e continuaremos a proceder, até possuirmos o suficiente para uma vida regalada.
— E quando pretendem alcançar esse objetivo?
— Talvez muito breve. Há, aqui bem perto, uma vasta seara, cheia de frutos sazonados que pretendemos colher!
— Meus parabéns! — respondi ironicamente.
— Obrigado! — respondeu o bandido no mesmo tom. — Como nos felicita é de admirar que esteja bem intencionado conosco; portanto contamos, também, com os seus esforços, no sentido de descobrirmos a tal seara.
— Oh! Então ainda nem sabe onde ela está situada?!
— Não. Apenas sabemos que não é muito distante daqui.
— Que pena!
— Pena nenhuma, pois podemos saber o local certo da seara.
— Hum! Duvido!
— De fato?
— Não conheço seara alguma, que lhe sirva!
— Oh, conhece, sim!
— Não conheço!
— É que ainda não me compreendeu bem. Vou ajudar a reavivar-lhe a memória. Não se trata, naturalmente, de uma seara no sentido restrito do termo, mas de um esconderijo, onde se acham depositadas mercadorias de alto valor, das quais nos queremos apossar!
— Que esconderijo é este?
— Um esconderijo de peles, pelicas, etc.
— E acha que eu o conheço?
— Claro!
— Engana-se! Não sei de nada!
— Não! Sei muito bem a quantas ando! Não será capaz de negar que estiveram com o velho Corner, no rio Turkey?
— Sim; e o que tem isso?
— Calma! O que estiveram fazendo lá?
— Uma visita, sem objetivo algum.
— Não tente iludir-me! Quando os senhores foram embora, encontrei-me com Corner e dele vim a saber qual a pessoa que os senhores procuravam.
— Pois diga a quem?
— A um mercador de nome Burton.
— Isto o velho não lhe precisava ter dito.
— Sim, mas o fato é que ele disse. Pretendiam vender ao mercador muitas peles.
— Nós?
— Não propriamente os senhores, mas “Mão de Fogo’, que dirige uma grande colônia de caçadores e conseguiu reunir um enorme estoque de peles.
— Com os diabos! O senhor está muito bem informado!...
— Não é?! — disse, rindo-se triunfante, sem se aperceber do tom sarcástico em que eu falara. — Os senhores não encontraram o mercador, mas um auxiliar seu, a quem convidaram para acompanhá-los, a fim de examinar e calcular as peles. Saímos logo em sua perseguição, para prendê-los, juntamente com o auxiliar do mercador, que, se não me falha a memória, chama-se Rollim; ele conseguiu infelizmente fugir, enquanto eu lhes deitava as mãos.
Observando-lhe os menores movimentos, vi que, ao fazer essa afirmativa, olhou ao lado, para o local onde estivéramos na véspera. Este gesto deu na vista. Estaria ali Rollim a ouvi-lo? Era preciso averiguar, mas não podia olhar para lá, pois ele notaria essa minha atitude e, talvez, com isso prejudicasse algum plano, que viéssemos depois a arquitetar. Ele continuou:
— Mas não faz mal. Tendo os senhores nas mãos, dispenso aquele tal de Rollim. Conhece “Mão de Fogo”?
— Conheço.
— E o local onde as suas peles estão ocultas?
— Sim.
— Oh! Folgo com a sua solicitude em prestar-nos informações verdadeiras.
— Por que haveria eu de negar uma verdade?!
— Pois bem, então não vou ter tanto trabalho em saber o que preciso.
— Acha?
— Sim, porque deve reconhecer que será melhor nos revelar tudo.
— Seria melhor por que?
— Porque, deste modo, teriam um destino mais suave.
— Que pretende dizer com isso?
— Ora, homem! Quero dizer que, fazendo como aconselho, terão morte mais branda. Porque não devem ignorar a nossa situação um em face do outro. Aquele que cair no domínio do outro estará perdido, terá que morrer. Eu os pilhei, portanto soou a sua derradeira hora. Fora sempre propósito meu, fazê-los morrer, debaixo dos mais atrozes martírios, numa agonia lenta. Agora, porém, como se trata de descobrir o esconderijo de “Mão de Fogo”, resolvi mudar de propósito.
— Que pretende fazer?
— Diga-me onde está o esconderijo e me descreva minuciosamente.
— E qual será a nossa recompensa?
— Terão morte suave. Dar-lhes-ei um tiro que lhe ocasione morte instantânea.
— Muito bem! É uma resolução humanitária de sua parte, porém, não procede com inteligência.
— Como assim?
— Para morrermos instantaneamente, sem grandes sofrimentos, poderemos indicar-lhes uma pista errada e fazer-lhe uma descrição falsa do local.
— Então consideram-me mais imprudente do que sou; saberei dirigir as coisas de modo a ter provas positivas se as suas revelações são falsas ou verdadeiras. Antes disso, pretendo saber se estão dispostos a levar a efeito a traição que proponho, indicando-me o esconderijo de “Mão de Fogo”?
— Traição. Calha bem o termo! Mas fique sabendo que “Mão de Ferro” não é traidor! Vejo que também Winnetou não lhe satisfará o desejo; o senhor disse há pouco que ele não lhe respondeu uma só das perguntas que lhe fêz. Acredito. Ele é muito altivo para falar com canalhas da sua estirpe. Quanto a mim, se lhe dei a honra imerecida de falar-lhe, foi tão sòmente porque nisso visei um determinado fim.
— Um determinado fim? Qual?
A essas palavras, o bandido fixou-me o olhar em ansiosa expectativa.
— Não precisa saber; mais tarde virá a saber, sem que seja necessário eu dizer-lhe.
Afinal, começou a falar-me com mais cortesia. Em dado momento, porém, disse enfurecido:
— Então se nega a dar-me as informações exigidas?
— Certamente!
— Não me dirá coisa alguma?
— Não!
— Nenhuma palavra?
— Nenhuma sílaba!!!
— Então vou amarrá-lo com os membros e o tronco encolhidos, tal como fiz com Winnetou...
— Faça-o!
— ... e martirizá-lo até a morte!
— Isso não lhe trará nenhuma vantagem.
— Acha? Pois asseguro-lhe que, de qualquer forma, encontraremos o esconderijo.
— Só se fôr por mero acaso, e então já será tarde; se não regressarmos até certa época, “Mão de Fogo” transferirá as suas peles para outro local. Assim ficou resolvido, quando partimos.
Ficou sombrio e pensativo. Passou a brincar com o cabo da faca, o que não me preocupou, pois isso não representava nenhum perigo para mim. Penetrei no seu duplo plano. A primeira parte do mesmo fracassara; agora ele tentaria executar a segunda. Fêz um esforço inaudito por ocultar o desconcerto em que se achava, mas não conseguia de um todo.
Planejara a eliminação de nossas vidas e também a apropriação da formidável fortuna de “Mão de Fogo”. O último plano falava-lhe mais alto à alma, do que o ódio mortal, que nos votava. Se não houvesse outro remédio, ele estava disposto a nos restituir, incólumes, a liberdade, a fim de se apossar do nosso segredo. Por isso não foi com o sentimento de preocupação ou de medo que encarei as suas ameaças posteriores. Finalmente ele reatou o fio de seu interrogatório:
— Está, pois, decidido a não trair “Mão de Fogo”?
— Sim!
— E se isso lhe custar à vida?
— Mesmo assim. Não temo martírios de qualquer espécie!
— Well! Veremos! Quero ver se os seus membros são tão insensíveis como os do apache.
Fêz um aceno para os três cúmplices. Estes, que se achavam sentados, ergueram-se e carregaram-me para o local, onde Winnetou jazia ao solo, preso por cordas. Durante o trajeto me foi possível examinar, com um olhar rápido, o local onde víramos na noite anterior os dois olhos a nos espreitar através das macegas. Minha previsão era acertada. Lá se achava um homem escondido. A fim de ver o que se passava, ele pôs a cabeça um pouco fora das ramagens. Pareceu-me, nessa ocasião, reconhecer a fisionomia de Rollim.
Para encurtar o caso, direi que também fui atado com os membros e o tronco recurvados de modo que o meu corpo, depois de amarrado, adquiriu o feitio duma bola. Assim amarrado estive durantte três horas ao lado de Winnetou, sem que durante este tempo tivéssemos trocado uma só palavra ou déssemos demonstrações, por meio do mais leve gemido, das cruciantes dores que nos atormentavam. De quinze em quinze minutos, Santer nos vinha perguntar se estávamos resolvidos a revelar-lhe o segredo do esconderijo de “Mão de Fogo”. Não lhe respondíamos com um só monossílabo. Parecia um desafio para ver quem tinha mais paciência, se ele ou nós. Eu sabia que Winnetou conhecia a situação e penetrara no propósito de Santer tanto quanto eu.
Perto do meio-dia, depois de haver, em vão, tentado arrancar-nos a revelação almejada, Santer sentou-se junto dos três companheiros e com eles passou a conferenciar em voz baixa. Depois de alguns minutos, ele disse alto, de modo que pudéssemos ouvir:
— Também sou de opinião que o canalha ainda esteja oculto aqui por perto, pois não conseguiu alcançar o seu cavalo. Dêem uma batida pelas redondezas! Eu ficarei aqui, para vigiar os prisioneiros.
SALVOS PELA “INTERFERÊNCIA” DE UM “AMIGO”...
O patife se referia a Rollim. Por haver falado tão alto, concluímos logo que a farsa ia começar. Quando se pretende capturar, de fato, algum fugitivo que se presume achar-se nas imediações, não se fala em voz alta para que ele ouça. Por fim, Winnetou disse-me bem baixinho:
— O meu irmão tem idéia do que vai acontecer agora?
— Sim.
— Eles vão prender Rollim e trazê-lo para aqui.
— Com toda certeza. Estão simulando que consideram o auxiliar do mercador como inimigo; depois de preso, fingirão chegar à conclusão de que se trata dum bom amigo de Santer. Rollim então intercederá, junto a este, em nosso favor...
— ... e Santer, depois de muitas “recusas”, terminará por atender ao seu pedido. Vai reproduzir-se uma daquelas cenas que se passam nas grandes casas dos peles-brancas, a que estes dão o nome de teatro.
— Justamente! E, ainda mais: este Santer não é outro senão o tal mercador Burton; por isso Rollim nos atraiu à cilada. No caso, porém, de não revelarmos o local do esconderijo das peles, são obrigados a nos pôr em liberdade, para depois eles nos seguirem e, deste modo, descobri-lo.
Por esta razão é que Rollim não ficou aqui, pois vão fazer um simulacro de sua prisão para que ele depois intervenha a nosso favor...
— Meu irmão pensa como eu. Se Santer fosse mais inteligente, não teria procedido desta forma. Deixaria que Rollim seguisse conosco e, depois, por intermédio deste, viria a descobrir o esconderijo das peles.
— Agiu com precipitação. É bem provável que ele, Santer, se achasse com os okanadas-sioux, na noite em que estes tentaram assaltar a casa de Corner. Ele é aliado daquela tribo e Rollim, o seu auxiliar, desempenha o papel de espião. Quando este soube quem éramos, avisou Santer, que resolveu, em vista de haver fracassado a agressão dos okanadas, assaltar-nos em pessoa. Rollim cavalgou conosco e os outros três cúmplices saíram a pé, em nossa frente, e Santer seguiu-nos depois. Na ânsia de nos capturar, organizaram este plano sem pé nem cabeça. Além disso, esses patifes não tiveram tempo de se lembrar que não somos canalhas para trair “Mão de Fogo”. Mas como é seu propósito firme encontrar o “burgo”, a fim de assaltá-lo e saqueá-lo, vão corrigir o plano, soltando-nos, para depois nos seguirem secretamente. Foi bom não termos feito a Rollim a descrição do “burgo”.
Trocamos essas palavras sem movermos com os lábios; Santer não notou que falávamos. Aliás, ele se achava meio desviado de nós e espreitava na mata. Depois de algum tempo ressoou um grito agudo no interior do bosque. Em seguida ouviu-se uma gritaria que cada vez mais se aproximava de nós, até vermos os três Wartons saírem do macegal que beirava o mato. Seguravam Rollim que relutava em segui-los. Tudo si-muladamente, é claro!
— Tragam-no para aqui! — bradou Santer. — Eu não disse que ele se achava por perto!? Levem-no para junto dos dois outros e amarrem-no também de...
Parou em meio da ordem, fêz um movimento de grande estupefação e continuou, cheio de contentamento:
— O queeeê??!! Quem é este prisioneiro? Que estou vendo?! É ele mesmo, ou pessoa muito parecida?!
Rollim fingiu, também, alegria, e veio correndo ao seu encontro, exclamando:
— Mr. Santer! Oh! É o senhor! Será possível?! Então tudo está em ordem, nada me acontecerá!
— Ao senhor? Não, esteja tranqüilo Mr. Rollim! Quem havia de dizer que era Rollim a quem eu mandei prender! O senhor está agora a serviço de Burton, o mercador?
— Sim. Os negócios me corriam ora bem, ora mal; agora, porém, estou satisfeito. E exatamente nesta viagem ia fazer um excelente negócio. Infelizmente, porém, fomos ontem impedidos de prossegui-la. E impedidos por...
Também ele suspendeu a frase e os dois, como velhos amigos que de há muito não se vêem, apertaram-se as mãos com efusão. Depois fêz uma cara desenxabida e disse:
— Afinal, que é isso, Mr. Santer? Foi o senhor em pessoa que nos assaltou?
— Eu em pessoa.
— Com mil raios! Fui agredido por um homem que é o meu melhor amigo e a quem tantas vezes salvei a vida! Que fim visou com este assalto? Que lhe fiz?
— Nada, homem! Eu nem o reconheci; vi apenas o seu vulto fugir rapidamente e desaparecer na escuridão.
— Isto é verdade. Achei mais acertado pôr-me em segurança, e, depois, facilitar a fuga a esses cavalheiros, aos quais me acho ligado por interesses comerciais. Por isso é que não me retirei da zona e ocultei-me ali adiante à espera da ocasião oportuna. Mas, que vejo? Os meus companheiros estão amarrados! E, além disso, de que modo! Não, isso deve cessar! Não posso contemplar impassível essa cena dolorosa! Vou soltá-los!
Deu um passo para frente, mas Santer segurou-o pelo braço dizendo:
— Pare! Que está pensando, Rollim?! Esses canalhas são meus inimigos mortais!
— Mas são meus amigos!
— E eu que tenho com isso?! Tenho uma conta com eles, que só me pagarão com a vida, por esse motivo os assaltei e os prendi, ignorando, naturalmente, que o senhor estivesse na sua companhia.
— Santo Deus! Que desagradável para mim! Mas, apesar disso, preciso socorrê-los! É alguma dívida de sangue que eles contraíram com o senhor?
— Não. Mas mais do que suficiente para eles me pagarem com a vida!
— Mas veja primeiro de quem se trata!
— Pensa talvez que não os conheço?
— Winnetou e “Mão de Ferro”! É gente que não se mata assim, sem mais nem menos. São homens que honram com sua bravura e sua nobreza o nosso oeste!
— Pois justamente por se tratar deles, é que serei implacável!
— Mas, está falando sério, Santer?
— Sério, sim, muito sério! Asseguro-lhe que ambos estão perdidos!
— Mesmo que eu lhe peça, em nome de nossa velha amizade, para poupá-los?
— Mesmo assim!!
— Mas, medite no quanto me deve, Santer! Por diversas vezes, salvei-lhe a vida!
— Sei muito bem disso e jamais hei de esquecer, Rollim:
— Lembra-se ainda do que sucedeu na última vez?
— O que?
— O senhor jurou-me que satisfaria qualquer pedido, qualquer desejo meu!!
— Hum! Tem razão, fiz-lhe este juramento!
— E se eu agora lhe fizer um pedido?!
— Não faça, pois no caso presente, não posso atendê-lo. No entanto, não desejaria faltar-lhe com a minha palavra! Deixe para mais tarde!
— Não posso. Tenho para com esse homens compromissos sagrados. Venha cá, Santer, e ouça-me!
Ele tomou o bandido pelo braço e ambos se encaminharam para um local um pouco distante, onde pararam a conversar e a gesticular. Não podíamos ouvir as suas palavras. A discussão dos dois foi tão calorosa, que nos teria convencido de sua sinceridade, se, antes, não nos apercebêssemos do seu plano. Em seguida, Rollim sozinho veio ter conosco.
— Consegui, ao menos, licença para suavizar-lhes a situação, meus amigos! Viram e ouviram quanto isso me custou! Espero que ainda me seja possível obter vossa liberdade.
Dizendo isso ele afrouxou-nos as cordas a ponto de perdermos o formato de bola. Depois voltou para junto de Santer, a fim de prosseguir, com ardor, na “defesa” de nossa causa. Depois de muito tempo, ambos voltaram e Santer nos declarou:
— É como se o diabo os quisesse proteger. Fiz, há tempos, um juramento a este amigo e agora sou obrigado a cumpri-lo. Por causa dele, vou praticar a maior tolice de minha vida! Vou soltá-los, mas tudo o que trazem com os senhores, inclusive as armas, passarão a ser de minha propriedade.
Winnetou não disse uma só palavra e eu também não respondi.
— Afinal? De admirados da minha indulgência perderam, talvez, a fala?
Também desta vez não respondemos.
— Naturalmente que emudeceram diante de tamanha generosidade! Vou soltá-los! — disse então Santer a Rollim.
Quando pegou nas cordas que me prendiam, interrompi-o.
— Pare! — disse eu. — Deixe as cordas como estão, Mr. Rollim.
— Estão doidos? Por quê?
— Ou tudo ou nada!
— Que pretende dizer com isso?
— A liberdade sem as nossas armas e tudo que nos pertence não a queremos!
— Será possível? É de pasmar!
— Pasme quanto quiser! Winnetou e eu não nos moveremos do lugar, sem nos ser devolvido tudo que nos pertence!
— Mas contentem-se com...
— Cale-se — interrompi-o. — O senhor conhece agora o nosso ponto de vista; dele não nos afastaremos.
Ele puxou de novo Santer pelo braço a uma distância e com ele iniciou nova conferência, na qual Warton também tomou parte.
— Meu irmão fêz muito bem! — cochichou-me Winnetou. — É certo que cederão à nossa exigência, pois estão convencidos de mais tarde reaver tudo.
Também eu estava certo disso. Claro que a Santer caberia simular uma relutância mais prolongada. Por fim, voltaram os três e o assassino de Intscho-tchuna e Nscho-tschi falou-nos:
— Os senhores estão hoje com muita sorte! Meu juramento obriga-me a fazer coisa que, noutra circunstância, eu tacharia de loucura. Hão de rir-se de mim, mas juro-lhes que quem vai rir-se por último sou eu. Disso irão ter prova dentro de menos tempo do que talvez pensam. Ouçam, pois, o que resolvi:
— Por esta vez, vou libertá-los e ficarão na posse de tudo que lhes pertence; mas ficarão amarrados a essas árvores até hoje à noite, a fim de que não nos possam seguir antes de amanhã ao clarear do dia. Partiremos, agora, para o local de onde viemos e levaremos Rollim conosco, a fim de que este não os possa soltar antes da hora combinada. Permitiremos, porém, que ele volte da altura do caminho que lhe permita estar aqui, ao escurecer. Dêem um jeito de pagar a dívida de gratidão que, neste momento, contraíram com ele!
Ninguém mais falou. Fomos amarrados ao tronco da árvore; trouxeram-nos tudo o que nos haviam tirado e depositaram no solo, perto de nós. Quanto fiquei contente ao ver que no meio dos objetos devolvidos se achavam as minhas armas! Feito isso, os cinco malfeitores partiram.
NA IMINÊNCIA DE CAPTURAR SANTER
Conservamo-nos uma hora em silêncio, ocupados unicamente em ouvir todo e qualquer ruído, a fim de nos certificarmos se de fato eles se haviam retirado. Depois, disse o apache:
— Eles estão aqui pelas cercanias e amanhã cedo, depois que sairmos, nos seguirão. Para não serem vistos, resolveram só nos soltar à noite.. Temos que capturar Santer. Qual o meio mais seguro para prendê-lo? Que pensa meu irmão a respeito?
— Não devemos atraí-lo para o “burgo” de “Mão de Fogo”.
— Sim. Ele não deve conhecer o vale. O melhor seria cavalgarmos toda à noite; ao amanhecer, estaríamos no “burgo”. Iremos à frente e Rollim, como de costume, nos seguirá, deixando pegadas seguras, para que o bandido e seus cúmplices nos sigam. Depois de vencido um trecho do caminho, imobilizaremos Rollim e voltaremos ao encontro de Santer. Concorda com esse plano?
— É o melhor que se pode conceber para o caso. Santer está convencido de nos deitar novamente as mãos; nós, porém, é que o prenderemos.
— Howgh!
O cacique pronunciou apenas essa interjeição; mas ela encerrava a sua íntima satisfação em poder, afinal, deitar mão naquele a quem há tanto tempo procurava.
O dia custava a passar, mas afinal escureceu e ouvimos um tropel de cavalo. Rollim chegou, apeou-se e tirou-nos das cordas. É óbvio que ele não deixou de ressaltar o seu procedimento magnânimo, dando a entender que a ele devíamos as nossas vidas. Contou-nos algumas histórias, para nos convencer de que o facínora Santer de fato havia ido embora. Acreditamos para fazer-lhe à vontade. Em seguida montamos a cavalo e partimos.
Como esperávamos, ele cavalgava atrás de nós como se fosse nossa ordenança. Notamos que para deixar vestígios nítidos de sua passagem, fazia de quando em vez o seu animal corcovear. Quando surgiu a lua, notamos ainda mais que, de tempos em tempos, ele quebrava alguns arbustos e os jogava no caminho, ou deixava outros sinais no chão...
Pela manhã fizemos uma pequena parada e, ao meio-dia, também. Esta última, porém, foi mais longa do que a da manhã: durou três horas. Visamos com isso fazer com que Santer, o qual só partira pela manhã, pois durante a noite não poderia enxergar as nossas pegadas, mais se aproximasse de nós. Em seguida, cavalgamos mais duas horas, de modo que, com outras duas horas de viagem, chegaríamos ao “burgo”. Tinha chegado o momento de nos livrarmos de Rollim. Paramos e apeamos. Isso provocou suspeita ao cúmplice de Santer, pois ele perguntou, descendo também do cavalo:
— Por que mais esta parada, senhores? Não devemos estar muito distante de “Mão de Fogo”. Não seria mais conveniente terminarmos a viagem, em vez de fazermos pouso aqui?
— Na residência de “Mão de Fogo” não entram canalhas! — respondeu Winnetou.
— Canalhas? Que pretende dizer com isso o cacique dos apaches?
— Que Rollim é um!
— Eu? Desde quando Winneou tornou-se tão injusto a ponto de insultar o salvador da sua vida?
— Salvador da minha vida? Então pensa que ludibriou “Mão de Ferro” e Winnetou?! Sabemos de tudo, de tudo: Santer é Burton, o “mercador” e tu, o seu espião. Durante toda a viagem deixou vestígios pelo caminho para que eles possam descobrir o esconderijo onde “Mão de Fogo” guarda as suas peles. Pretende nos entregar nas mãos de Santer e ainda tem o cinismo de se inculcar salvador de nossas vidas!! Desprendemos os nossos laços do serigote. Nós o observamos, sem que o notasse, mas agora chegou a nossa vez e... também a sua... Santer nos recomendou que “déssemos um jeito de pagarmos a dívida de gratidão que contraímos com Rollim”!
Estendeu a mão a Rollim. Este, compreendendo a situação, recuou e pulou para a sela a fim de fugir; com a mesma rapidez, tinha eu o seu cavalo preso pelas rédeas, e, ainda mais ligeiro, Winnetou pulara-lhe no cavalo para agarrá-lo pela nuca. Rollim vira em mim o inimigo mais perigoso; sacou da pistola, apontou-me e bateu o gatilho. Baixei-me e a bala errou o alvo; quando me reergui Winnetou já o subjugara e desarmara. Daí a minutos, ele estava amarrado e amordaçado. Amarramos o prisioneiro ao tronco duma árvore, para, depois de capturarmos Santer, vir buscá-lo. Feito isso, voltamos ao encontro de Santer, não, porém, pelo mesmo caminho, mas por outro que lhe ficava paralelo. Cavalgamos até atingirmos uns macegais; no lado oposto, ficava o caminho há pouco seguido por nós, pelo qual Santer passaria. Puxamos os nossos animais para dentro do macegal e ali ficamos a espreitar.
Os nossos perseguidores deveriam vir de oeste; naquela direção, havia uma vasta planície, de modo que avistaríamos Santer, antes que ele atingisse o lugar onde nos emboscáramos. Já se passara hora e meia, tempo mais do que suficiente para ele nos ter alcançado.
Permanecíamos calmos e silenciosos. Havíamos desprendido os laços dos serigotes; desta vez Santer não nos escaparia!
UM GESTO DESASTRADO DE SAM HAWKENS
Passou-se mais um quarto de hora; outro e outro, sem que o inimigo aparecesse. Já começávamos a nos preocupar quando, lá bem ao longe na planície, avistei um vulto que se movimentava. Winnetou ao mesmo tempo exclamava:
— Uff! Um cavaleiro lá na planície!
— É isso mesmo. Já tinha avistado.
— Uff, uff! Ele cavalga a galope, em direção ao rumo de onde deverá vir Santer. Meu irmão divisa o pêlo do cavalo?
— Parece ser um zaino.
— Sim, um zaino e zaino é o cavalo de Rollim...
— Rollim? Impossível! Como poderia ele se ter escapado?
Os olhos de Winnetou faiscavam; a sua respiração tornara-se acelerada e o seu semblante bronzeado adquirira uma côr sombria; contudo, dominou-se e disse com calma:
— Esperemos mais um quarto de hora!
Esse lapso de tempo passou-se; o cavaleiro há muito que havia desaparecido na planície e Santer não chegava.
— Queira meu irmão galopar até Rollim e trazer-me, depois, notícias suas!
— Mas se nesse meio tempo surgirem os quatro bandidos?
— Winnetou sozinho os subjugará.
Puxei meu cavalo do macegal para fora e cavalguei a galope. Depois de dez minutos, cheguei ao local onde Rollim se achava amarrado ao tronco da árvore. Ele havia desaparecido juntamente com o seu cavalo. Levei cinco minutos a examinar as suas pegadas e depois retornei para junto de Winnetou.
Como se fora de mola, Winnetou deu um salto, ao saber da fuga da nosso prisioneiro.
— Para onde fugiu o canalha? — perguntou.
— Ao encontro de Santer, a fim de preveni-lo do que ocorreu.
— Examinou as pegadas?
— Sim.
— Uff! Ele viu que voltamos para nos encontrarmos com Santer e cavalgou mais ao sul, a fim de não passar por nós. Era ele o cavaleiro que avistamos lá na planície. Mas como conseguiu ele desprender-se das cordas? Não viu nenhum vestígio que explicasse esse fenômeno?
— Vi, sim. Com ele esteve um cavaleiro vindo do leste, o qual lhe restituiu a liberdade.
— Quem teria sido? Algum soldado do forte Wilkes?
— Não. Os rastos no solo foram produzidos pelas antiquadas botas indígenas do nosso Sam Hawkens! Também reconheci, nos sinais dos cascos do cavalo, os da sua velha “Mary”.
— Uff! Talvez ainda nos seja possível prender Santer, embora ele esteja prevenido de tudo. Queira “Mão de Ferro” acompanhar-me.
Montamos, demos de esporas nos cavalos, que voaram pela campina seguindo sempre as nossas pegadas anteriores. Winnetou não dizia uma só palavra, mas eu sabia que intimamente estava agitadíssimo.
O sol já havia desaparecido no horizonte. Dentro de cinco minutos havíamos cavalgado toda a planície; três minutos depois vimos às pegadas de Rollim, que procediam da esquerda e se misturavam com as nossas; pouco depois atingíamos o ponto onde ele se encontrara com Santer e os três Warton. Haviam parado apenas uns minutos, a fim de ouvir o relatório de Rollim e depois retrocederam apressados. Se eles tivessem voltado pelo mesmo rumo que vieram, poderíamos persegui-los, durante a noite. Não necessitávamos de seguir-lhes as pegadas, pois conhecíamos o caminho. Mas notamos depois que eles tiveram a inteligência de desviar-se para outro rumo. Como este nos era desconhecido, fomos forçados, quando escureceu, a desistir da perseguição, pois já não enxergávamos mais os rastos. Cavalgamos para a “fortaleza”. Mais uma vez, Santer nos escapava das mãos. Ser-nos-ia possível capturá-lo ainda? No dia seguinte reiniciaríamos a perseguição e Winnetou tudo faria a fim de atingir o seu fim.
A lua surgia quando alcançávamos a entrada do “burgo”, o local onde sempre se acha postada, num macegal que ali se ergue, uma sentinela. Esta bradou-nos, pedindo-nos a senha. Quando foi atendido, explicou:
— Não me levem a mal, por tê-los tratado um tanto asperamente. Precisamos estar hoje mais alerta do que nunca.
— Por que? — perguntei.
— Parece que existe algo de intranqüilizador pelas imediações.
— Mas o que?
— Não sei ao certo. Mas Sam Hawkens, ao voltar de sua excursão, pronunciou um extenso discurso nos prevenindo de perigo.
— Ele saiu hoje do “burgo”?
— Sim.
— Junto com alguém?
— Não, saiu só.
Não havia dúvida. Sam, em geral tão inteligente, cometera a tolice de soltar Rollim.
Quando penetramos no “burgo”, a primeira coisa que viemos a saber foi que o estado de saúde de “Mão de Fogo” se havia agravado. Não inspirava sérios cuidados, mas cito essa circunstância porque fui por isso obrigado a me separar de Winnetou.
Este desencilhou e soltou o seu cavalo, dirigindo-se para a fogueira onde Hawkens, Harry e um oficial do forte Wilkes estavam sentados junto de “Mão de Fogo”, que se achava deitado num leito forrado de colchas.
— Graças a Deus! Já estão de volta! — saudou-nos “Mão de Fogo” com voz um tanto sumida. — Acharam o mercador?
— Achamos e tornamos a perdê-lo — respondeu Winnetou. — Meu irmão Sam Hawkens esteve hoje fora do “burgo”?
— Sim, estive a duas horas distante daqui — respondeu o homenzinho ingenuamente.
— E sabe meu irmão o que ele é?
— Um velho e experimentado homem do oeste, hihihihi!
— Pois está enganado. É o maior idiota que Winnetou viu e verá na sua vida! Howgh!
Com esta palavra de reforço, o cacique dos apaches retirou-se. As palavras do apache, em geral tão calmo e delicado, despertaram a atenção de todos. Sentei-me e narrei-lhes tudo o que se passara; a minha exposição impressionou profundamente os nossos camaradas. O pequeno Sam ficou fora de si; passava, nervosamente, a mão pela sua floresta de barbas, tirava, amassava e tornava a pôr sua peruca na cabeça, mas esses movimentos nem por isso o acalmavam. Atirou a peruca ao chão e exclamou quase chorando:
— Winnetou tem toda razão! Sou o maior idiota que o sol cobre!
— Mas por que soltou Rollim, caro Sam? — perguntei-lhe.
— Devido justamente à minha grande burrice. Ouvi a detonação de um tiro e cavalguei para o local de onde partira o estampido. Lá encontrei um homem amarrado ao tronco duma árvore, tendo ao lado o seu cavalo. Ao lhe perguntar quem era e como fora parar naquele estado, ele respondeu ser o mercador que vinha em procura de “Mão de Fogo” para comprar-lhe as peles e que fora assaltado e roubado por um bando de índios.
— Hum! Mas Sam, um golpe de vista sobre as pegadas bastaria para o senhor se certificar de que o homem estava mentindo! Então não sabe distinguir as pegadas de índios das dos peles-brancas?
— Tem razão; mas eu estive num dos meus dias de azar e o soltei crendo na sinceridade do que dizia. Quis acompanhá-lo até aqui, mas ele montou a cavalo e saiu em disparada para rumo oposto. Voltei imediatamente para o “burgo”, a fim de prevenir a nossa gente da presença, na zona, do perigo vermelho. Estou tão indignado que gostaria de arrancar os cabelos da cabeça, mas infelizmente não os tenho... Mas amanhã bem cedo vou seguir as pegadas daqueles bandidos e não lhes largarei a pista antes de capturá-los.
— Meu irmão Sam não perseguirá aqueles malfeitores! — disse Winnetou que, nesse ínterim, voltara para perto de nós. — O cacique dos apaches sozinho capturará o assassino do seu pai e da sua irmã! Os irmãos peles-brancas ficarão todos aqui, onde a sua presença é necessária. É possível que Santer volte aqui para atacar e roubar “Mão de Fogo”, ocasião em que a “fortaleza” precisa de homens inteligentes para defendê-la.
SEPARANDO-ME DE WINNETOU
Mais tarde, quando todos dormiam, procurei Winnetou. Seu cavalo pastava próximo à aguada e o cacique se deitara na relva. Quando me viu, levantou-se, pegou de minhas mãos e disse:
— Winnetou já sabe o que seu querido irmão vem dizer-lhe; pretende acompanhar-me na perseguição de Santer?
— Exatamente.
— Mas não é possível. O estado de fraqueza de “Mão de Fogo” se tem acentuado; o seu filho ainda é uma criança; Sam Hawkens está ficando velho e caduco, como tivemos uma prova hoje e os soldados do forte devem ser considerados como estranhos. “Mão de Fogo” precisa mais de meu irmão do que eu. Eu perseguirei Santer sozinho. Mas que será do “burgo” se o bandido, enquanto o persigo, reunir bandoleiros e, tomando outro rumo, vier assaltá-lo? Dar-me-á mais uma prova de amizade defendendo “Mão de Fogo”! Atenderá ao pedido de seu irmão Winnetou?
Era-me doloroso ter que me separar dele. Mas o meu amigo tanto insistiu que eu terminei por ceder. “Mão de Fogo” precisava mais de mim do que Winnetou. Mas eu não podia deixar de acompanhá-lo até um trecho do caminho. Antes de romper o dia, Winnetou partiu e eu o acompanhei. Ao clarear do dia, atingíamos as pegadas de Santer. Estavam ainda invisíveis.
— Aqui nos vamos separar — disse ele com voz trêmula, encostando o seu cavalo ao meu. — O Grande Espírito assim quer! Ele há de nos reunir dentro em breve pois Winnetou e “Mão de Ferro” são inseparáveis até a morte! A inimizade me obriga a partir, e a amizade obriga meu irmão a ficar.
Deu-me um beijo fraternal, dirigiu um brado de guerra ao seu cavalo e daí a pouco ele voava pelas campinas, com sua linda cabeleira negra balouçando ao vento. Acompanhei-o com o olhar até que ele desapareceu. Quando nos tornaremos a ver, meu querido irmão Winnetou?!...
Karl May
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