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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROTEIRO PARA UM PASSEIO NO INFERNO / Doris Lessing
ROTEIRO PARA UM PASSEIO NO INFERNO / Doris Lessing

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ROTEIRO PARA UM PASSEIO NO INFERNO

 

HOSPITAL CENTRAL DE INTERNAMENTO

Folha de Admissão

Sexta-feira, 15 de agosto de 1969
 

Endereço... Desconhecido

Observações Gerais

À meia-noite a polícia encontrou o paciente errando pelo Embankment, perto de Waterloo Bridge. Levaram-no para a delegacia, pensando estar ele embriagado ou dopado. Descrevem seu estado como divagador, confuso e tratável. Trouxe­ram-no de ambulância às 3h. Ao ser internado, tentou várias vezes deitar-se na mesa, como se esta fosse um barco ou uma jangada. A polícia está verificando os portos, navios, etc. Estava bem vestido, mas havia algum tempo que não trocava de roupa. Não parecia estar com muita fome nem sede. Trajava calça e suéter, mas não tinha documentos, carteira, dinheiro, ou qualquer identificação. A polícia acredita que tenha sido roubado. É um homem instruído. Tomou um cal­mante, mas não dormiu. Falava em voz alta. Foi removido para a pequena enfermaria de observação, pois estava pertur­bando os outros pacientes.

 

ENFERMEIRA DA NOITE, 6 h

O paciente passou o dia todo acordado, divagando, alucinado e agitado. Calmantes de três em três horas. A polícia não tem informações. Roupas enviadas para pesquisas, mas não suscetível de dar bons resultados: suéter e camisa de lojas popu­lares. Calça italiana. O paciente continua sob a impressão de estar em alguma viagem. A polícia' diz que possivelmente será um amador ou iatista.          

DR. Y., 18h

 

Preciso de vento. Um bom vento forte, O ar está parado. A corrente deve estar a uma boa velocidade. Mas não a sinto. Onde está minha bússola? Sumiu há dias, não se lembra? Preciso de vento. Um bom vento forte. Vou assobiar para chamá-lo. Um vento de leste, bem nas minhas costas. Talvez eu ainda esteja muito perto da costa. Depois de tantos dias no mar, estarei perto da costa? Quem sabe, vaguei à deriva e voltei para a margem? Ah, não, não. Vou tentar remar. Os remos se foram, não se lembra? Desapareceram há dias. Não, você deve estar mais perto da terra do que imagina. As lhas de Cabo Verde estavam a estibordo — quando? Na semana passada. Passada quando! Aquilo não foi semana, foi minha mulher. O mar aqui é mais salgado do que perto do litoral. Um mar salgado, salgado, a salmoura saltando da queixada do cavalo para a minha. No meu rosto, grossas crostas de sal. Sinto seu gosto. Lágrimas, água do mar. Saboreio o sal do mar. Do deserto. O mar deserto. Cavalos-marinhos. Dunas. O vento faz Voar a areia da crista das dunas, faz girar a crista das ondas. A areia se move e ondula, devagar. Devagar. O olho que pudesse medir o andar dos cavalos de areia como eu olho o galope dos cavalos-marinhos seria um olho e tento. É mes­mo. É. Poderia pegar um cavalo, talvez, e montá-lo, mas um cavalo-marinho, não um de areia, pois o meu tempo é o tempo do homem, enquanto que para os desertos o tempo é o de Deus. Alguns montam golfinhos. Muitos já testemunharam. Posso largar minha balsa que afunda e agarrar-me ao pescoço de um cavalo-marinho, para ir até à Jamaica e à coitada da Nancy do Charlie, ou, se a corrente me mandar para o sul, para o litoral onde me espera o pássaro branco.

Vou dando voltas e mais voltas, a Costa dos Diamantes, as Ilhas Canárias, um mergulho pelo Trópico de Câncer, subindo, atravessando com um grito para as Antilhas, onde Nancy espera o seu pobre Charlie, dando a Volta, evitando o Mar de Sargaços, a estibordo, com a Flórida florescente a bombordo, rodando, rodando, no balanço da corrente do golfo, rodando, com os Açores pouco além da dobra do meu cotovelo e, para baixo, passando pelas costas de Portugal, onde me espera Conchita, por Madeira, pelas Canárias, sempre en passant, novamente para a Costa dos Diamantes, rodando, ro­dando sem parar, para todo o sempre, a não ser que a cor­rente me empurre para o sul. Mas essa corrente nunca pode­ria levar-me para o sul. Toda corrente é inexorável como um itinerário de ônibus. A corrente dos mares do norte tem de me carregar, carregar, a não ser... Podem desviar-me um pouco. Sim, farão isso, dirigindo-me com uma peninha de suas asas brancas para o sul, através das correntes furiosas junto do Equador. Mas então, são e salvo, eu encontraria a equa­torial do sul afinal, a salvo de todos os Sargaços, Silas e Caribes, eu deslizaria, linda e levemente, vagando com as doces correntes do sul pela borda das montanhas do Brasil às Águas da Paz. Mas preciso de vento. O sai faz estrias na madeira, a velha balsa joga nas ondas e estou doente. Estou tão doente que me sinto morrer. Portanto, levantar ferros, rapazes, le­vantar ferros — não, foram-se todos, mortos e enterrados, prenderam-me a um mastro e uma grande onda levou-os para longe e estou só, preso à corrente equatorial do norte, sem qualquer terra por que possa ansiar nos caminhos de todo esse mar agitado.

Nenhuma novidade da polícia. Não há notícia de barcos pequenos, iates ou nadadores desaparecidos. Paciente continua a falar alto, cantando, balançando-se para a frente e para trás da cama. Está excessivamente fatigado. Amanhã: Amital Sódio. Sugiro uma semana de narcotismo.

11 de agosto

Dr. Y

Discordo. Proponho terapêutica de choque.

 

18 de agosto       

Dr. X

Muito calor. A corrente joga e balança. Rápida. Está tão quente que a água derrete. A água está mais rala do que de costume. Portanto, o balanço é fino e rápido. Como ondas de calor. O brilho é forte. Luz. Diversas consistências de luz. Há a luz que Conhecemos. Isto é, a luz comum, digamos, de Um dia nublado. Depois, a luz do sol, que é uma dança amarela somada à primeira. Em seguida, as ondas faiscantes do calor, ondas de calor, fazendo luz quando a luz as faz. Depois, a luz interior, trêmula, como neve suspensa no ar. Luz trêmula mesmo de noite quando não há lua, sol ou luz. Luz trêmula do vento solar. Sim, é isso. Ah, vento solar sopra, sopra, sopra o meu amor para mim. Está muito quente. O sal encrustou-se em meu rosto. Se esfregar meu rosto sentirei o sal puro do mar. Estou na calmaria, num mar leve, iluminado, delirantemente encantador, pois, com o calor, a água ficou rala e es­corregadia, leve. Preciso de vento. Ah, vento solar, vento do sol. SOL No fim de Espectros ele disse: o Sol, o Sol, o Sol, o Sol. E no fim de Quando Nós, os Mortos, Despertamos, o Sol, para os braços do Sol através do vento solar, rodando, rodando, rodando, rodando...

Paciente muito perturbado. Perguntaram seu nome: Jasão. Está numa balsa no Atlântico. Três cápsulas de Amital Sódio esta noite. Vou vê-lo amanhã.

Dr. Y

 

Dr. Y — Dormiu bem?

Paciente — Fico adormecendo, mas não devo, não devo.

Dr. Y — Por que não? Quero que durma.

Paciente — Eu cairia nas ondas profundas.

Dr. Y — Não cairia, não. Essa cama é muito confortável e você está num quarto bom e sossegado.

paciente — Leito do mar. Leito do mar profundo.

Dr. Y — Você não está numa balsa. Não está no mar. Não é marinheiro.

Paciente — Não sou marinheiro?

Dr. Y — Você está no Hospital Central de Internamento. Esta­mos cuidando de você. Precisa descansar. Queremos que durma.

Paciente — Se eu dormir, morro.

Dr. Y — Como se chama?

PacienteJonas.

Dr. Y — Ontem era Jasão. Não pode ser nenhum dos dois.

Paciente — Somos todos marinheiros.

Dr. Y — Eu não. Sou médico.

Paciente — Se não sou marinheiro, você não é médico.

Dr. Y — Muito bem. Está se cansando muito. Deite-se. Descanse. Procure não falar tanto.

Paciente — Não estou falando com você, estou?

 

Rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando e... Enfermeira — Você deve estar tonto. Há horas que está rodando, rodando e rodando, sabia disso?

Paciente — Horas?

Enfermeira — Estou de serviço desde as oito horas, e cada vez que passo aqui para vê-lo, está rodando e rodando.

-Paciente — O turno.

EnfermeiraRodando e rodando em volta de quê? Onde?

Pronto, vire-se.

PacienteEstá muito quente. Não estou longe do Equador. Enfermeira Então ainda está na balsa?

PacienteNão é você que está!

EnfermeiraNão disse que estava.

PacienteEntão, como pode estar falando comigo?

EnfermeiraProcure deitar sossegado. Não queremos que

se canse. Estamos preocupados com você, sabia?

PacienteBem, está nas suas mãos, não é?

EnfermeiraMinhas mãos? Como assim?

Paciente Você. Disse Nós. Conheço esse «Nós». É o coletivo categórico. Seria tão fácil para você fazê-lo.

EnfermeiraMas o que quer que eu faça?

Paciente Você como Nós. Não você como você. Levante-me, levante-me, levante-me. Deve ser fácil. Obviamente. É só usar a sua força ou seja o que for. Faça-me explodir ali.

EnfermeiraPara onde?

PacienteVocê sabe muito bem. Mande-me para o sul Coma sua asa branca.

EnfermeiraAsa branca! Gostei disso.

PacienteVocê não pode ser um deles. Se fosse saberia. Estáme enganando.

EnfermeiraSinto muito que pense assim.

PacienteOu talvez você esteja me pondo à prova. Sim, é

uma possibilidade.

EnfermeiraTalvez seja isso.

Paciente é só uma questão de sair da corrente equatorialdo norte para a do sul.  

EnfermeiraSei.

PacienteBem, e por que não o faz?

EnfermeiraNão sei como.

Paciente é questão de alguma senha? Quem era o homem

que esteve aqui ontem?

EnfermeiraQuer dizer o Dr. Y? Veio vê-lo.

PacienteEle está por trás de tudo isso. Ele sabe. Um homem muito bondoso e contumaz.

Enfermeira É bondoso, mas não diria que seja contumaz. Paciente Eu o digo, por que você não há de fazer o mesmo?

EnfermeiraO Dr. X veio anteontem.

PacienteNão me lembro de nenhum Dr. X.

EnfermeiraO Dr. X virá aqui mais tarde.

PacienteAqui onde?

EnfermeiraProcure ficar sossegado e dormir.

PacienteSe dormir, estarei morto e liquidado. Certamente sabe disso, ou então não é uma marinheira.

EnfermeiraSou Alice Kincaid, Já lhe disse isso. Lem­bra-se? Na noite em que se internou?

PacienteSeja qual for o seu nome, se dormir, morrerá.

EnfermeiraBem, não importa. Calma. Pronto, coitado. Você está num estado... Deite-se e... pronto, pronto. Psiu, sossegue. Não, fique quieto. Psiu.., pronto, isso, isso, durma. Du-uuuuurma. Du-urma.

 

Paciente angustiado, fatigado, ansioso, iludido e aluci­nado. Experimentar outro calmante? Isso, ou o choque.

 

21 de agosto       

Dr. X

Dr. YBem, a enfermeira me disse que você hoje é Simbad.

PacienteSim bato. Sino bato. Bato o sino.

Dr. Y— Conte-me a respeito. De que se trata?

PacienteNão.

Dr. YPor que não?

PacienteVocê não é um Deles.

Dr. YQuem?

PacienteOs Grandes.

Dr. YNão, acho que sou do tamanho comum.

PacientePor quê?

Dr. YQuem eram os Grandes?

PacienteEram gigantes, naqueles tempos.

Dr. YVocê lhes contaria?

PacienteNão seria preciso.

Dr. YEles já sabem?

PacienteClaro.

Dr. YBem, e contaria ao Dr. X?

PacienteQuem é o Dr. X?

Dr. Y — Ele esteve aqui ontem.

Paciente — Aqui e ali. Aqui e ali. Aqui e ali.

Dr. Y — Achamos que seria bom se falasse com alguém. Se não lhe agrado, temos o Dr. X, caso prefira.

Paciente — Preferir? Preferir o quê? Não o conheço. Não o vejo.

Dr. Y — Você me vê?

Paciente — Claro, você está aqui.

Dr. Y — O Dr. X não está aqui?

Paciente — Não sei de quem está falando.

Dr. Y — Muito bem. E a enfermeira? Gostaria de falar com ela? Precisamos saber mais a seu respeito. Você ajuda­ria, se falasse. Mas procure conversar com mais clareza e devagar, para podermos ouvi-lo direito.

Paciente — Você é da polícia secreta?

Dr. Y — Não. Sou médico. Este é o Hospital Central de Internamento. Você está aqui há quase uma semana. Não sabe nos dizer o seu nome nem onde mora. Queremos ajudá-lo.

Paciente — Não há necessidade. Não preciso de vocês. Preciso Deles. Quando os encontrar, saberão quais são minhas ne­cessidades sem que eu Lhes diga nada. Não sei quem você é. Uma ilusão, imagino. Depois de tanto tempo nessa balsa, sem dormir ou comer, devo estar vendo miragens. Vozes. Visões.

Dr. Y — Sinta isso. É a minha mão. É uma ilusão? É uma mão bem sólida.

Paciente — As coisas não são o que parecem. Outras mãos já surgiram das trevas, para tornar a desaparecer. Por que não a sua?

Dr. Y — Escute bem. A enfermeira vai ficar aqui, ouvindo sua história. E quero que lhe diga quem é, onde está, e lhe fale sobre a balsa, o mar e os gigantes. Mas você deve explicar-lhe tudo alto e claramente. Quando resmunga desse jeito, não podemos ouvi-lo. E é muito importante ouvir­mos o que está falando.

Paciente — Importante para você.

Dr. Y — Quer tentar?

Paciente — Se me lembrar.

Dr. Y — Bom. Aqui está a enfermeira Kinoaid.

Paciente — Sei quem é. Ela me enche de escuridão.

Dr. Y — Tolices. Mas se não quiser a enfermeira, podemos dei­xar aqui apenas um gravador de fita. Sabe o que é um gravador de fita, não?

Paciente — Uma vez tentei usar um, mas me inibia.

Dr. Y — Tentou? Para quê?

Paciente — Ora, uma besteira de conferência ou coisa assim.

Dr. Y — Você faz conferências? De que tipo? Sobre o quê?

PacienteSimbad, o Marujo. Os cegos conduzindo os cegos.

Rodando, rodando, rodando, rodando, rodando e...

Dr. Y — Pare com isso! Por favor. Não recomece. Por favor.

Paciente — Rodando, rodando, rodando, rodando, rodando e...

Dr. Y — Rodando em volta de quê? Onde?

Paciente — Não estou indo. Estou sendo levado. A corrente. A corrente equatorial da norte, do litoral da África do Norte, através do oceano, pelas Antilhas até a corrente da Flórida, passando pela Flórida em volta do mar de Sar­gaços, para a corrente do golfo, rodando, pelas ilhas de Cabo Verde, rodando, rodando, rodando, rodando...

Dr. Y — Muito bem. Mas como vai sair disso?

Paciente — Eles. Eles conseguem.

Dr. Y — O que acontece quando se encontra com eles?

 

Ele faz conferências. Escolas, universidades, rádio, televi­são, política? Que tipos de Sociedades? Exploração, Ar­queologia, Zoologia? Simbad. «Sino bate». Sugiro uma hi­pótese absurda. Talvez o paciente tenha cometido um crime e esteja tomado por um sentimento de culpa fora do comum.

DR. Y

 

Aceito hipótese. Que crime?

DR. X

 

Partindo da Costa dos Diamantes, primeiro temos a corrente litorânea rumo ao sul, de onde tenho de sair. Ao deixar a Costa dos Diamantes, a corrente litorânea nos arrastou demais para o sul, chegando mesmo à vista daquela curva africana que nas levaria, indefesos, à corrente da Guiné, jogando-nos em terras desconhecidas e não desejadas. Mas sempre conse­guimos virar o navio a tempo para oeste, sendo Trinidad a nossa próxima parada. Isto ê, a não ser que Os encontremos. Rodando e rodando. Queremos encontrar um porto. Nancy es­pera o pobre Charlie em Porto Rico, George tem o seu velho amigo John em Cabo Canaveral, e depois que o navio virar bem para a terra, espero ver Conchita sentada no alto do pe­nhasco negro, e ouvi-la cantar. Quando já houve tantos cumpri­mentos e despedidas, eles, como nós, querem que tudo isso acabe. As canções foram ouvidas tantas vezes, mas os can­tores não são mais Nancy, sozinha, o pobre Charlie, sozinho, nem nenhum de nós. Nas últimas viagens em que passamos pelo jardim onde Nancy espera, ela estava acompanhada por todas as moças de sua cidade. Ficaram junto ao muro sbbre o mar, olhando-nos, e cantaram aquilo que tantas vezes atraíra o pobre Charlie e sua tripulação.

 

Sob a minha mão carne de flores

Sob a minha mão paisagem quente

Você me devolveu o meu mundo,

Em você a terra respira sob a minha mão.

Meus braços estavam cheios de ramos crestados,

Meus braços estavam cheios de areia dolorosa.

Hoje oscilo em florestas verdejantes,

Dissolvo-me em florestas pujantes,

Sou o osso, as flores na carne.

Ah, agora o alcançamos — agora, agora!

O centro sibilante do mundo.

É como se Deus fizesse girar um remoinho,

Erguesse um novo continente.

Mas nós homens nos postamos em fila no convés e can­tamos para elas:

Se os pássaros ainda cantassem em terra,

Se houvesse cavalos galopando a noite toda,

Amor, eu podia virar para você e dizer

Arrume a cama, Acenda a luz.

A noite toda ficaríamos deitados, ouvindo

As ondas baterem, baterem,

Se ainda houvesse pássaros nas dunas,

Se os cavalos ainda corressem selvagens pela praia.

 

E depois acenávamos, nossas lágrimas minguando com cada circuito, pois nos preparávamos para vê-los pela primeira vez, e elas, as mulheres, esperavam conosco, pois de nós de­pendia sua libertação, já que eram prisioneiras naquela ilha.

Nessa viagem havia 12 homens a bordo, eu como capitão. Da última vez fui tripulante e George era capitão. Estávamos há quatro dias ao largo da costa, a corrente nos levando com facilidade, o vento norte à direita, quando Charles, que estava de vigia, nos chamou para a proa. Ah, lá estavam. Mas se me perguntarem como sabíamos, então não conseguem compreen­der que nossa imaginação aguardava exatamente aquele mo­mento. E isso deve significar que vocês ainda não aprenderam que nessa espera por Eles reside toda a esperança. Não, não é verdade que nós imaginamos aquilo justamente daquela forma. Nunca dissemos, nem pensamos: Eles terão forma de pássaros ou de luz caminhando sobre 'as ondas. Mas se você algum dia já alimentou grandes esperanças que finalmente se realizam, saberá que esperar algo implica encontrá-lo. Se você mentalizou um monstro de oito pernas com olhos enor­mes, então, se houver uma criatura dessas no mar, você não verá nem mais nem menos do que esse tipo de coisa. Podem aparecer exércitos de anjos das ondas, mas se você estiver esperando um gigante de um olho só, poderá navegar bem no meio deles e não sentir nada além de um frescor no ar. Assim, embora não tivéssemos dado uma forma determinada ao nosso pensamento, não esperávamos o mal ou o medo, mas sim um auxílio, uma explicação de nossos seres e pensamentos. Tínha­mos sido preparados como barómetros. Sabíamos que atingi­ríamos uma coisa mais alta e sensível do que nós mesmos, e por isso percebemos logo que era isso que procurávamos, ro­dando, rodando, rodando e rodando, por tantos ciclos, que se poderia até dizer que esperar por Eles se tornara um circuito em nossas mentes, bem como no oceano.

Nós os conhecemos primeiro por uma sensação no ar, um silêncio cristalino, acompanhado de uma espécie de cansaço em nós, pois não estávamos afinados com aquilo que esperávamos.

O mar estava encapelado e o ar cheio de espuma. Pai­rando acima dessas ondas fortes e a uns 200 metros de dis­tância, havia um disco brilhante. Devia ser transparente, pois os olhos absorviam primeiro o brilho, como de vidro ou cristal, sendo conduzidos para o que estava por trás do brilho. Este, no entanto, não era refletido: a substância das paredes do disco era em si uma espécie de luz. O dia estava um tanto nublado, o céu metade nuvens, metade sol, e todo o cenário ao redor era esse misto de ondas agitadas, espuma, borrifos voando, luz em movimento. Esperávamos que estranhos saíssem do disco e baixassem, segundo os costumes da humanidade, um barco qualquer, de modo que nós, de pé junto à beira do convés, agarrados aos cabos e mastros, pudéssemos vê-los se aproximando, avaliá-los e adaptar as nossas idéias e ma­neiras à ocasião. Mas não apareceu ninguém. O disco aproxi­mou-se mais, embora imperceptivelmente, como parte do mo­vimento geral agitado do azul e branco. Estava pousado no ar logo acima das ondas, a alguns passos de distância, quando com­preendemos, com um desânimo repentino, que não devíamos esperar nada tão cômodo quanto o abrir de uma porta, o descer de uma escada, um barco, e braços movimentando os remos. Mas continuávamos sem esperar nada de especial quando já tinha chegado sobre nós. O quê? O que sentimos a princípio foi estranho. Numa febre, num grande esforço exaustivo, ou no ato do amor, todos os recursos do corpo se expandem e vibram mais alto do que em outras tarefas da vida comum. Bem, sentíamos uma vibração maior do que qualquer outra que experimentáramos, acompanhada de uma nota alta e estri­dente no ar. O disco — que estivera a alguns metros de dis­tância, um objeto entre outros, embora mais forte, mais obliterante — pareceu aproximar-se e invadir os nossos olhos. Estou descrevendo a sensação, pois não posso dizer que fosse um fato. O certo é que o disco ergueu-se um pouco acima das ondas, ficando ao nível do nosso convés, e depois passou sobre nós, ou através de nós. No entanto, não parecia agora ser um disco, com uma forma, era mais um bater apressado do ar, uma vibração sonora. Foi intolerável, enquanto durou, como se duas substâncias diversas estivessem em conflito, sem qualquer dúvida quanto ao resultado. Mas não durou mais do que um momento, e quando meus olhos perderam a sensação de estarem cheios de luz-som e meu corpo de ter sido invadido ou se expandido, como se a luz (ou o som) tivesse a capaci­dade de passar através de nossos tecidos, mas numa forma tão diluída quanto a nossa, olhei para ver se George, que estava perto de mim, ainda vivia. Mas ele se fora, e ao me virar, apavorado, para procurá-lo e os outros, não encontrei nin­guém. Ninguém. Nada. O disco, que se tornara de novo um disco de cristal, pairando sobre as ondas do outro lado do navio, erguia-se ao céu. Tinha varrido, devorado ou absorvido meus companheiros, deixando-me sozinho. Todo o navio esta­va vazio. Eu estava aterrorizado. E pior. Durante esses sé­culos andaram navegando, rodando, rodando, rodando e rodan­do unicamente para encontrá-Los, e agora, afinal, estivera com Eles no mesmo espaço de ar, mas fora largado para trás. Corri desesperado, agarrei-me a um dos corrimãos do navio e tentei gritar. Posso mesmo ter gritado um pouco, ou feito um barulho fraco, mas para o que ou para quem? Para um disco pra­teado e brilhante que, erguendo-se no ar, parecia ser trans­parente, mas não era? Não tinha olhos para ver-me, nem como responder aos meus gritos. Nada. E dentro dele estavam onze homens, meus amigos, que eu conhecia melhor do que a mim mesmo. Então, olhando para o cenário azul, branco e pra­teado, que se agitava, espumava, sacudia, dançava e brilhava, o mar e o ar misturados, percebi que o disco desaparecera. Não era mais que a forma de uma célula em minha retina. Nada.

Senti-me doente com aquela perda, com a idéia de uma frieza imprevisível de parte Deles. Levar os outros e dei­xar-me? Em todas as nossas viagens nunca imaginamos que poderíamos ser simplesmente apanhados como uma ninhada de cachorrinhos ou gatinhos. Queríamos instruções, auxílio, precisávamos saber como sair desses círculos intermináveis e passar para a corrente do sul. Isso não acontecera. Não tinham sido dadas instruções nem informações; houvera apenas uma espécie de seqüestro, o que me levou a desejar gritar contra a frieza e a crueldade Deles, como um gatinho que, escondido pela dobra da manta no fundo de um cesto, mia de solidão, ao tatear às cegas, procurando os companheiros perdidos com o focinho e os sentidos.

Fiquei na beira do convés. Embora o navio precisasse ser governado e as velas aprumadas, e, ao que eu soubesse, já tivéssemos mudado de rumo, não podia manejar aquele barco. Ibéria que abandoná-lo, a não ser que resolvesse viver a bordo sozinho, esperando a remota possibilidade de que o Disco vol­tasse, descendo e desembarcando meus Companheiros, do mes­mo modo que os carregara. Mas não acreditava que isso pu­desse acontecer. E tinha medo de ficar.

Era como se aquele Disco, ou Cristal, em sua rápida pas­sagem através ou pelo navio, através ou por mim, tivesse mu­dado a atmosfera do navio e a mim. Tremia, gelado de medo. Mal podia manter-me de pé. Agarrei-me a um cabo. Quando o tremor pareceu parar, comecei a trincar os dentes, espe­rando que o calor da vida me voltasse. Mas logo os tremores recomeçaram, como um ataque de malária, embora aquilo fosse uma espécie de fraqueza, e não febre. Agora tudo no navio me era hostil, como se o bafo do Disco tivesse apodrecido sua matéria. Dizer que estava apavorado seria muito banal. Não, algo alheio me atingira; eu respirara profunda­mente um ar insuportável. Eu não era mais eu, e o meu novo pavor era em si uma moléstia. Enquanto isso as velas se agi­tavam, adejavam, se enfunavam ou jaziam inertes sobre a minha cabeça. O navio estremecia e balançava a cada mudança no vento caprichoso. Fora assaltado e largado para morrer.

Comecei a fazer uma balsa, utilizando madeiras do depó­sito de carpintaria. Trabalhei febrilmente, na ânsia de sair dali. Nunca me passou pela cabeçal ficar, tal era o meu medo. No entanto, sabia que partir sozinho numa balsa oferecia maior perigo do que continuar a bordo. O navio me suprimia de água, alimentos e abrigo até afundar ou se espatifar nos rochedos. Mas eu não podia ficar.

Ter sido ignorado, deixado para trás, longe de todos os meus velhos companheiros, era uma espécie de praga. Eu fora marcado junto com meu navio.

Trabalhei durante muitas horas e quando a luz do dia se foi, amarrei um lampião a um mastro e continuei a traba­lhar noite adentro. Fiz uma balsa de uns três metros e meio por três e meio. Amarrei-lhe um escaninho cheio de rações e uma barrica de água. Pus uma vela de pano no meio da balsa. Separei três pares de remos e prendi dois deles firmemente às madeiras, para servir como reserva. No centro da pequena embarcação fiz uma plataforma de tábuas de um metro e pouco de largura. Trabalhei o tempo todo apavorado e com um frio doentio, sendo intermitentemente acometido de acessos de tremedeira, a ponto de ter que me dobrar como se estivesse com cãibras e agarrar-me a algum suporte, com medo de me arrebentar de tanto tremer.

De madrugada a balsa estava pronta. O céu ficou rubro à minha frente, de modo que percebi que o navio já mudara de rumo e voltava, preso pela corrente da Guiné, para os Camarões e o Congo. Precisava desembarcar o mais depressa possível, e remar rápido o suficiente para sair dessa corrente mortífera que puxava para a terra e retomar a equatorial. Vesti todas as roupas que encontrei. Deixei a balsa cair no mar, onde ficou flutuando como uma rolha. E, com o céu em chamas ao nascer do sol, desci pôr uma corda e saltei para a balsa no momento em que esta já ia sair de meu alcance. Ainda en­xuto, embora já começasse a ficar molhado com os borrifos, comecei a remar de costas para o sol nascente. Fiz isso Como se estivesse caminhando para a salvação. Quando o sol chegou a uns três ou quatro palmos acima do horizonte, num céu claro, como névoa de verão, as velas do navio eram um enxame branco baixinho, como um bando de borboletas pousadas nas ondas, bem atrás de mim. Continuei rumando para oeste. Quando tornei a virar a cabeça, era difícil dizer se estava olhando para o brando das velas ou para a espuma numa vaga distante. Pois o mar mudara, a meu favor, e estava apenas ondulado, e não mais agitado. Assim, remei todo aquele dia e a maior parte da noite seguinte. Remei, remei e remei até que meus braços pareciam estar separados do corpo. Conti­nuavam a trabalhar sem eu saber que Os comandava. E então um tarde — creio que foi três dias depois que vi pela última vez as velas de meu navio desaparecendo a leste — choveu de repente, minhas roupas ficaram ensopadas e perdi meus remos de reserva. Dois dias depois, um mar pesado arrancou-me os últimos remos e desde então estou entregue à cor­rente que dobra para beste e para o norte. Agora tenho todo o tempo do mundo para refletir que continuo na mesma cor­rente, rodando, rodando e rodando, sendo as Antilhas a pri­meira terra à vista, bem como Nancy do pobre Charlie, e a sua canção, tal e qual como se eu tivesse ficado no navio com os meus companheiros. E depois do canto das mulheres, como antes, rodando, rodando e rodando, passando pelo mar de Sar­gaços, rodando na corrente do golfo, rodando no balanço do mar ao passar pelas costas de Portugal e da Espanha, rodando, rodando, rodando. Mas agora não estou mais num grande navio com velas como borboletas brancas e sim numa balsa, sozinho, rodando, rodando. E tudo está igual, rodando, rodando, com apenas uma ligeira mudança na forma de minhas esperanças, e para pior: será que Eles — ou o Disco, ou a Coisa de Cris­tal — em sua próxima descida, serão capazes de distinguir o pontinho que é a minha balsa no mar? Será que me verão e terão a bondade de me dar uma palavra ou um grito em res­posta, quando lhes perguntar: “Como posso sair desta cor­rente? Amigos, ponham-me no rumo para aquela outra costa, por favor”.

Sim, eu os chamarei, claro, se bem que agora um novo frio em meu coração me previna de um medo que antes não tinha. Jamais pensara, em todos aqueles ciclos, círculos e cir­cuitos, rodando, rodando, que Eles pudessem simplesmente não me notar, como um homem poderia deixar de notar um gatinho dormindo ou um cachorrinho cego escondido sob a dobra de sua manta malcheirosa. Por que haveriam de notar uma balsa no mar imenso? Mas não há nada a fazer senão continuar, sem remo, sem leme, sem dormir, exausto. Afinal, sei que seria bon­dade aportar na praia de Nancy e dizer-lhe que seu Charlie afinal encontrou algo — mas o quê? Eles, suponho, embora nem mesmo possa lhe dizer comb se sentiu ao ser absorvido por aquela coisa brilhante, Ela me cantará sua canção, eu em minha balsa, passando à deriva; as mulheres se alinharão pelos muros dos jardins de verão cantando, e então cantarei que é passado o tempo do amor? E depois encontrarei o amigo de George e lhe gritarei que George — o quê? E onde? E depois adiante e adiante, até tornar a ver minha Conchita me esperando, vestida de freira, levada a isso por todas as minhas viagens e navegações.

 

O homem, como uma grande árvore,

Ressente as tormentas.

Braços, joelhos, mãos,

Muito duros para o amor,

Como uma árvore resiste ao vento.

Mas desperta devagar,

E no bosque escuro

O vento parte as folhas

E a fera negra arremete da caverna.

Meu amor, quando dizes:

«Aqui esteve a tormenta,

Aqui esteve ela,

Aqui, a fera fabulosa»,

Dirás também

Que primeiro nos beijamos de lábios fechados, temerosos,

E tocamos nossas mãos, temerosos,

Como se um pássaro dormisse entre elas?

Dirás:

«Foi o passarinho branco que me prendeu?»

E assim ela canta, cada vez que passo, rodando, rodando, e continuando sempre.

 

Dr. X — Então, como está?

Paciente — Rodando, rodando, rodando...

DR. X — Queria que soubesse que acredito que poderia sair desse estado no momento em que quisesse.

Paciente — Rodando, rodando, rodando...

Dr. X — O Dr. Y não estará aqui neste fim-de-semana. Vou

lhe dar um remédio novo. Vamos ver qual o efeito.

Paciente — Para dentro e para fora, para fora e para dentro.

Para dentro e para fora, para fora e para dentro.

Dr. X — Meu nome é Dr. X. Qual é o seu nome?

PacienteRodando e...

Acho bem possível que ele tenha voltado aos onze ou doze anos. Era nessa idade que eu gostava de histórias do mar. Está muito pior, em minha opinião. O fato é que nem percebeu a minha presença. O Dr. Y diz que o paciente reage a ele.

24 de agosto       

Dr. X

 

Dr. y — Hoje qual é o seu nome?

paciente — Podia ser Ulisses?

dr. y — Mas certamente o Atlântico não era o mar em que Ulisses navegava, certo?

paciente — Mas agora podia ser, não podia?

dr. y — Bem, então, qual o próximo?

paciente — Talvez a Jamaica. Estou um pouco mais para o sul do que de costume.

dr. y — Há dias que vem falando quase sem parar. Sabia disso?

paciente — Você me disse para falar. Não me importo de pensar, em vez de falar.

dr. y — Bem, seja o que for que faça, lembre-se disso: você não está numa balsa no Atlântico. Não perdeu os seus amigos para um disco voador. Nunca foi marinheiro.

paciente — Então por que penso que sou?

dr. y — Qual o seu verdadeiro nome?

paciente — Ladino.

dr. y — Onde você mora?

paciente — Aqui.

dr. y — Como se chama a sua mulher?

paciente — Tenho uma mulher? Como se chama?

dr. y — Diga, por que nunca fala com o Dr. X? Ele está meio

magoado com esse negócio. Eu também ficaria.

paciente — Já lhe disse, não consigo vê-lo.

dr. y — Bem, estamos ficando um pouco preocupados. Não sabemos o que fazer. Já se passaram quase duas semanas desde que foi internado. A polícia não sabe quem você é. Só temos certeza de uma coisa; você não é marinheiro, nem profissional nem amador. Leu muitas histórias de navegações, em menino?

paciente — Homem e menino.

dr. y — Qual o sobrenome de George? E o de Charlie?

pacienteEngraçado, não consigo lembrar-me... sim, cla­ro, todos tínhamos o mesmo nome. O nome do navio.

dr. yQual era o nome do navio?

pacienteNão me lembro. Afundou ou se destroçou há muito tempo. E a balsa nunca teve nome. A gente não dá nome a uma balsa.

dr. Y Por que não haveria de batizar a balsa? Dê-lhe um nome agora.

pacienteComo posso dar um à balsa se nem sei o meu nome? Eu me chamo,.. o quê? Quem me chama? O quê? Por quê? Você é o Dr. Por Que, e eu me chamo Por Que é isso, foi o navio Por Que que afundou na corrente da Guiné, deixando Quem na balsa escorregadia e...

dr. yUm momento. Vou viajar durante uns quatro ou cinco dias. O Dr. X vai tomar conta de você na minha ausência. Virei vê-lo assim que voltar.

pacientePara dentro e para fora, para fora e para dentro. Para dentro e para fora...

Novo tratamento. Calmantes e soporíferos.

29 de agosto       

Dr. X

 

O mar está mais forte. Quando a balsa sobe pelo lado de uma onda, vejo os peixes girando acima de minha cabeça e quando as ondas caem sobre mim os peixes e as algas também o fazem, resvalando pelo meu rosto para juntar-se ao mar outra vez. Quando a embarcação está por sobre a crista os peixes me Olham, cara a cara, da parede de água. Lá está aquela criatura do ar, pensam, antes de passarem sobre meu rosto e meus ombros. Penso, quando me tocam, que são cria­turas da água, pertencem ao molhado. A onda se enrosca e dobra em seus remoinhos perfeitos, contendo em si três pei­xes das águas profundas que subiram para ver o céu um deles tão pequeno que cabe em potes de geléia ou poços e o brilho vivo do pJancto, que não é nem visível nem invi­sível, e sim um vivo rangido na imaginação. Se os homens são criaturas do ar e os peixes, grandes ou pequenos, habi­tantes do mar, então o que são as criaturas do fogo? Ah, sim, eu sei, mas Vocês não me viram, me desprezaram, agarra­ram meus companheiros e me deixaram ficar ganindo dentro da dobra da manta malcheirosa. Onde estão os meus amigos? Ministrando a justiça, talvez, das dobras do fogo, Olhando para mim cara a cara das frondes farfalhantes e ondulantes do fogo. Olhem, lá está um homem, uma criatura do ar, respirando chamas amarelas como nós respiramos o H2O. Há alguma coisa naquele olhar arquejante, pensam eles — George? Pobre Charlie — que merece ser reconhecido. Mas eles estão agora além do ar e de seus habitantes. São lançadores de chamas. Tempestades de fogo. Pensam que a justiça é bon­dosa? Não, ela arrasa, abate. As ondas são tão profundas, quebram tão depressa e com tal fúria que fico mais por baixo que por cima. Estão ensinando aos homens — os homens en­sinando aos homens — a ter pulmões de peixe, a respirar a água. Se aspirar a água profundamente, meus pulmões se adaptarão no espaço da queda de uma onda e gritarão. «Sim, sim, você aí, marinheiro, respire fundo e 0 carregaremos na água como o carregamos no ar.»? Afinal, Eles devem ter tido de ensinar meus amigos George, Charles, James e os outros a respirar fogo a plenos pulmões. Não vão me dizer que quando o remoinho do Crista] nos envolveu respiramos o ar comum. Não, era um fogo frio, o bafo do sol, o vento solar. Mas há pulmões ligados aos homens que ficam adormecidos como Os de um bebê no ventre, esperando que o vento solar os encha como as velas. Pulmões de ar para o ar, mas órgãos feitos de som cristalino, de luz cantante, para o vento solar que soprará o meu amor para mim. Ou me levará para o meu amor. Ah, as ondas se erguem tão altas, arremessando-se, crescendo e dominando; estou mais embaixo do que em cima; minha balsa é uma rolhinha no mar e estou doente, ah, tão doente, lançar e sacudir, sacudir e lançar, minha pobre ca­beça e meus pulmões, se eu ficar nesta balsa grossa, pesada, escorregadia, que está gritando e repuxando enquanto o mar revolto estronda, vou vomitar a alma e cair desmaiado nas vagas profundas. Vou deixar a balsa, então.

Ah, não, não, não, larguei o meu navio, o bom navio Por que, e agarrei-me Como uma ostra ao meu novo leito duro, a balsa, e agora como posso partir, girando e descendo para as florestas do mar como um pássaro doente. Mas se encon­trasse um rochedo ou uma ilhota? Tolo, não há rochedos, ilhotas, ilhas Ou portos no meio do vasto Oceano Atlântico, a 45 graus no Equador. Mas a balsa está se arrebentando. Ela se quebra. Só havia cordas marítimas comuns para amar­rar as varas da balsa lado a lado. Que cordas poderia encon­trar que mantivessem firme no mar essa desajeitada coleção de traves? É uma tempestade. É um tufão. O céu está negro, prometendo trovões, e com um branco doentio e amarelado nas bordas das nuvens; as ondas são azuis e escuras, mais altas do que a torre da igreja, o mundo inteiro é molhado e frio e meus ouvidos zumbem como num acesso de sezão.

E lá se vai a minha balsa, rachando-se debaixo de mim como palhinhas no torvelinho de um ralo de cozinha. Lá vai ela e flutuo, procurando agarrar palhinhas ou mesmo uma espinha de peixe. Estou todo molhado, me afogando e com frio, ah, tanto frio! Estou frio onde deveria estar guardado todo o meu calor interno e vital, na minha espinha e minha barriga, mas é frio, frio como a lua. Descendo e descendo, mas o mar agitado me levanta para a luz de novo, e sob a minha mão há uma pedra, um porto na tormenta, um rochedo preto e saliente que nenhum grande marinheiro tocou antes de mim, nem os mapas mostraram, apenas uma pedra negra de ba­salto, o pico mais alto de uma grande montanha de uns dois ou três quilômetros de altura, cujas encostas inferiores são todas florestas grandes e ondulantes em que pastam os búfa­los do mar. E aqui me agarro até a tempestade passar e a luz aparecer de novo. Afinal, posso ficar quieto, a pedra está quieta, tendo-se erguido do leito do mar há milhões de anos, bem acostumada a se manter firme nas borrascas do Atlântico. Há uma fenda comprida no rochedo, uma concavidade, onde me ajeitarei até de manhã. Ah, agora sou novamente uma criatura da terra, e tenho direito a um sono tranqüilo. Eu e a pedra, que é o pico de uma montanha, formamos um corpo sólido, e agora é o mar que se move e derrama. Calma. Quieto. A tempestade acabou e o sol saiu sobre um mar plano, calmo, com sua superfície suavemente ondulada, não mais voando por toda parte como se quisesse se fazer em mil pe­daços. Um mar quente, cantante, salgado, despejando-se para oeste, passando por mim com as Antilhas como próxima pa­rada, mas eu continuava preso no rochedo. Dormindo pro­fundamente. Dormindo. Profundamente.

 

enfermeira — Acorde. Acorde, seja bonzinho. Vamos, não,

assim. Sente-se. Está bem. Eu o seguro.

paciente — Por quê? Para quê?

enfermeira — Você precisa comer alguma coisa. Está bem, pode voltar a dormir daqui a pouquinho. Você dorme um bocado, não é?

paciente — Por que me fazem dormir se ficam me acordando?

enfermeira — Não deve dormir tanto. Precisa descontrair-se

e ficar calmo, mas você dorme mesmo.

paciente — Quem não deve? Quem me deu esses comprimidos?

enfermeira — Sim, mas... não importa. Tome isso.

paciente — Está horrível.

enfermeira — é sopa. Uma sopa gostosa e quentinha.

paciente— Deixe-me em paz. Vocês me dão comprimidos e

depois me acordam.

enfermeiraAcordam você? Eu não. É como tentar despertar uma pedra. Está com calor?

pacienteO sol saiu, o sol...

Quem nunca se deitou encravado na pedra quente, Debruçado ao som frouxo e preguiçoso da água, Imerso no som como quem ouve o estrondo Das marés vertendo-se numa concha, ou sangue Nas cavernas internas da carne, mas agarradas como o homem que afunda à visão do sol, Agarradas ao sol distante ou vozes chamando?

enfermeiraUm pouco mais, por favor.

pacienteNão estou com fome. Aprendi a respirar a água. É cheia de plancto, sabe. Pode-se alimentar os pulmões como se faz com o estômago.

enfermeiraÉ mesmo, meu bem? Não vá muito adiantecom isso. Terá que respirar o ar de novo.

pacienteEstou respirando o ar agora. Estou numa pedra.

Veja-o então como o pássaro poderia ver Quem oscila como um navio amarrado no ar quente e rude, Vindo dos campos para as vagas do oceano Que, empinando, lançam massas sobre massas gigantescas Pacientes e lentas contra a terra obstinada, Procurando alcançar a estranha inversão Daquele nascimento monstruoso quando por um trabalho de séculos apareceu um membro manchado de ervas, Uma cabeça, por fim o corpo da terra Atormentada e desgastada para sempre por um marmaternal. Um mar ciumento que ama sua dor passada.

enfermeiraPor que não vai sentar-se um pouco na sala de estar? Não se sente cansado de ficar na cama o tempo todo?

pacienteUm ciúme que ama. Sua dor.

enfermeiraEstá com dor? Onde?

pacienteEu não. Você. Com ciúmes, amando e acalentando a dor.

enfermeira — Não estou com dor alguma, lhe asseguro. paciente — Ele flutua em asas preguiçosas por léguas de espuma. E ali embaixo o pequeno vulto esparramado Agarrado à rocha negra como um afogado, Que sente o grande pássaro sobrevoando e sabe Que não pode guardar vozes, asas ou ventos Que segue hipnotizado por abismos cristalinos, Seus ouvidos trovejantes apagados pelo dilúvio. enfermeira — Tome esses comprimidos, meu bem.

paciente — Que não afundou como o afogado, através de camadas cheias de sol onde a curva inferior das ondas balouçantes contém a luz como a luz no vidro, Onde um peixe enfeitado passa como um pássaro, E depois as profundezas médias onde tudo é apagado

Uma luz difusa como as profundezas de um solo de floresta. Ele cai, cai, passando por braços apreensivos,

Queixadas espinhentas e traiçoeiros poços de morte,

Até que por fim repousa no leito do oceano. Aqui as pedras têm tufos de fetos iluminados e os peixes

Nadam fosforescentes no meio das algas E massas de luz esvoaçam piscando pelos olhos, Aqui toda a lógica curiosa da noite. Será esta uma doce afogada flutuando em seus cabelos?

Os parasitos pulam como sapos na pálida superfície da pedra. É isto um brilho de carne opalescente? As grandes válvulas fecham-se como portas brancas se cerrando. Estendendo-se e tremendo como a face de quem é realçado

Pelo clorofórmio, o rosto sorridente Daquela há muito meio esquecida, um dia amada, Ergue-se como a fina lua por faixas aquosas, E passa de olhos gázeos como a lua há muito morta.

Ele está armado da indiferença do sono do mar profundo E flutua imune por raízes do mar alimentadas com carne, Onde os esqueletos se apinham contra os tetos das cavernas Como bandos de aranhas esbranquiçadastremendo, Enquanto as máquinas agachadas encrustadas de algas pálidas, Seus eixos e pistões oscilando no meio do verde...

enfermeira — Ora, vamos, meu bem. Ah, meu Deus, você está aborrecido, não está? Todo mundo tem maus mo­mentos, todo mundo se aborrece de vez em quando. Eu também. Pense nisso.

paciente — Nem todos conheceram essas profundezas Os poços negros e incalculáveis do mar, Onde qualquer lampejo do dia morre bem acima, E a água estagnada lenta, grossa e fétida.

enfermeira — Não adianta cuspir os seus comprimidos. paciente — Fétida, imunda, imundície, toda imunda... enfermeira — Um gole grande, pronto, acabou.

paciente — Você me acorda e me faz dormir, Você me acorda e depois me empurra para o fundo. Vou acordar agora. Quero acordar.

enfermeira — Sente-se, então.

paciente — Mas o que é isso, o que são esses comprimidos, como posso acordar se Você... quem é aquele homem que me empurra para o fundo, que me faz afundar como um afogado?...

enfermeira — O Dr. X acha que esse tratamento lhe fará bem.

paciente — Onde está o outro, o lutador?

enfermeira —- Se está se referindo ao Dr. Y, ele volta logo.

paciente — Preciso sair do fundo do mar. Tenho de enfrentar a superfície do mar, com ou sem tempestade, pois Eles nunca me encontrarão lá embaixo. Já é bem mau esperar que venham para o nosso ar pesado, todo enfumaçado e poluído como é, mas esperar que cheguem ao fundo do mar, com todos os navios naufragados, não, isso não é razoável. Não. Devo subir e dar-Lhes a oportunidade de me ver, encravado na pedra quente.

enfermeira — Sim, está bem. Mas não se debata assim... pelo amor de Deus.

pacienteIsso é outro assunto. Tenho de acordar. Preciso.

É necessário vigiar. Senão nunca vou sair e ir embora.

enfermeiraBem, não sei mesmo. Talvez esse tratamento não seja o que lhe convém. Mas é melhor deitar-se. Isso mesmo. Vire-se. Enrosque-se. Isso. Pssluuu, Psssiuuuuu. Psssssssiuuuu.

pacienteDorme, neném

embalado pela tormenta se você não lhe fizer mal ela não lhe fará mal.

Roubaram-me a razão. Deixaram-me sem recursos. Tornei-me inflexível num fluxo. Quando estava no bom navio Lollipop estava seguro pelo vento e o mar. Quando estava na ba1sa, não havia ninguém, só eu. Neste rochedo estou seguro. Preso. Não posso fazer mais que segurar-me. E esperar. Ou mergulhar até o leito do oceano, escuro como a goela de um peixe, onde só há um lugar para onde se ir: a superfície. Mas tenho uma alternativa. Posso arranjar uma carona, não posso? Agarrar-me à cauda de um pássaro Ou um peixe. Se os cães são os amigos do homem, quem são os amigos do marinheiro? As toninhas. Elas nos adoram. Os semelhantes se juntam, dizem, se bem que nunca vi toninha matar um homem e nós já matamos tantas, só de curiosidade, nem mesmo pela comida ou por esporte. Uma toninha me levará ao meu amor. Uma toninha preta, de costas lisas, lustrosa, com olhos ternos e bico comprido. Agüente aí, toninha pobre toninha em seu mar envenenado, cheio dos detritos fedorentos dos intestinos do homem e os despejos da mente assassina humana não morra ainda, resista, agüente-me, tire-me dessa corrente do norte gelado e leve-me para a corrente terna que corre para o sul e as plagas desejadas. Isso. Por baixo d1água, se for pre­ciso, posso respirar, mas pela superfície se possível, para que eu possa chamar, de passagem, um amigo que tenha tomado a forma de uma língua de fogo ou umai réstea de luz. Então, toninha, sou uma criatura bondosa? .Amiga e bondosa? Le­ve-me para o sul, para a corrente mais quente, ah, agora está difícil, pulamos e balançamos como na Grande Tormenta, quando minha balsa se despedaçou feito palha, mas agora sei que esse é um bom trecho da travessia, é criativo, ah, que tensão terrível, que esforço, e agora para fora, sim, para fora, estamos bem para: fora, e ainda nadando para oeste, mas su­doeste, mas no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, enquanto que antes era para Oeste com o relógio e sem des­tino, a não ser as Antilhas e a Flórida, passando pelo mar de Sargaços, a corrente do golfo, o rumo do Vento Oeste, a corrente das Canárias, rodando, rodando, rodando, rodando, mas agora, ah, toninha, nessa delicada bolha de sabão, a nossa Terra, girando azul, verde e iridescente, onde o ar e a água para o norte giram na direção do tempo, da esquerda para a direita, grandes espirais de respiração, luz e água, agora, ah, toninha amiga cantante, estamos na outra pista, vou agar­rar-me, vou segurar e agarrar até o último alento de sua pa­ciência, sendo também paciente, até você me deixar naquela praia, pois, ah, toninha, precisa me levar para lá, me fazer aportar bem, afinal, não pode deixar que eu vá muito para o sul, trago a corrente do Brasil em minha mente, não, deixe que eu salte com cuidado de seu dorso escorregadio para as areias prateadas das costas brasileiras onde, levantando os olhos, erguem-se os píncaros azuis e verdes das Montanhas Brasileiras. Lá, lá está o meu verdadeiro destino e o meu amor, portanto, não deixe de manter o rumo.

Pronto, já vejo a terra. E agora mais que nunca temos de manter a nossa rota. Aqui não há rochedos, bancos de areia nem recifes, toninha, para machucar seu focinho deli­cado ou arranhar suas costas lisas e negras, mas lá está a costa cintilante, e de todos os perigos do Cruzeiro do Sul é este o pior; se mantivermos os olhos naquela bela margem, desejando alcançá-la, então a Corrente nos envolverá para diante em nosso ciclo de esquecimento rodando, rodando, rodando e rodando novamente para o litoral da África, acompa­nhados por montinhos de gelo do sul; agüente firme, toninha, e concentre-se no seu trabalho, mas nunca se permita pensar naquela areia prateada e nas florestas profundas de lá, pois se o fizer suas forças minguarão e você vai deslizar para o sul como um peixe morto ou moribundo.

Pronto. Cá estamos, bem próximos; o estrondo da arrebentação está dentro de nós. Mas tape Os ouvidos, toninha, não escute nem olhe, que os seus pensamentos sejam todos no sentido de um puxão forte. Para dentro. E para dentro. Com a esteira da corrente que puxa para o sul, fria em seu flanco esquerdo. Para dentro. Sim, também não estou olhando, que­rida toninha, pois se não alcançasse essa margem agora e se tivéssemos de cair para o sul, rodando, rodando de novo e de novo, acho que lhe pediria para tratar-me como os homens às toninhas, retalhando-me todo apenas por curiosidade. Assim, mais perto. Mais perto. Agora estamos tão próximos que as árvores da praia e a terra que se ergue além pairam sobre nós como as árvores sobre um manso rio interior. Quer vir comigo, dividindo a sua cauda macia e brilhosa em pernas, para juntos caminharmos até as montanhas? Não, bem, então adeus, toninha, adeus. Volte para o seu mar brincalhão e seja feliz, viva, respire, até que o veneno que o homem fabrica para todas as criaturas vivas a encontre e a mate enquanto nada. Vou rolar de cima de seu dorso amigo, obrigado, obri­gado, bom peixe, meus pés estão agora firmes sob meu corpo, na areia rangente, com a maré batendo fresca em meus tornozelos.

Ao sair do mar, onde andei rodando e rodando por tantos séculos — a tal ponto que Os círculos do Tempo estão registrados em minha mente como os depósitos nas conchas ou o passar dos anos no tronco das árvores — piso na areia seca e salgada, sacudindo o corpo como um cão molhado.

Eram cerca de dez horas da manhã. O sol caía em minhas costas indicando o meio da manhã. O céu, sem nuvens, era de um azul cheio e profundo. Estava numa praia larga, de areias brancas, que se estendia de ambos os lados por uns três quilômetros, antes de dobrar a perder de vista por trás de um terreno alto e rochoso. Ã minha frente uma floresta cerrada chegava até a areia. Uma brisa leve soprava do mar, provocando um movimento vivo nos galhos das árvores. As folhas cintilavam. O mar também. A areia brilhava. Era uma paisagem de calma, fartura e tranqüilidade, mas ao mesmo tempo havia uma confusão de luz. Fiquei contente ao sair da claridade da praia para o frescor das árvores. O mato ras­teiro facilitava a caminhada. A terra erguia-se rapidamente a alturas que pareciam planaltos rodeados de rochedos. Procurei um caminho, andando para oeste sob as árvores frondo­sas, e por fim vi uma trilha que parecia levar às terras altas. Foi uma jornada tranqüilizante. O barulho na arrebentação ali formava um silêncio pesado. Acima, os galhos continham um peso de silêncio acentuado por mil pássaros. E logo ouvi um estrondo tão alto quanto o das ondas deixadas a cinco ou seis quilômetros atrás. Estava nas margens de um rio que cascateava por entre pedras e caía num outro rio mais baixo e mais largo, que corria, brilhante, para lançar-se ao mar. A trilha subia ao lado do riacho e tornava-se uma vereda es­treita entre pedras junto à cachoeira. Eu seguia devagar, mo­lhado por borrifos que dissolveram o sal amargo do mar de meu rosto. Quando cheguei ao topo da cachoeira e olhei para trás, vi uma queda abrupta na terra até o litoral. O rio, no lugar em que se alargava e acalmava suas águas, depois de uma descida longa e pedregosa, ficava a quase dois quilôme­tros de onde me encontrava. Tinha uma visão perfeita de quilômetros de terra para o norte e para o sul, por cima do topo das árvores em meio às quais passara, e, além da floresta, do oceano azul que morria no azul do céu numa faixa de nuvens brancas arrepiadas como espuma celestial. Virei-me, e as montanhas que observara da praia ainda se erguiam altas à minha frente, pois a cadeia onde eu estava era apenas inter­mediária. E encontrei-me novamente numa floresta, um pouco menos alta e cerrada, onde o tojo e a urze começavam a se espalhar. Aquela floresta tinha um ar mais vivo e íntimo db que a inferior, pois era cheia de pássaros e do tagarelar de bandos de macacos. Senti um perfume forte. Vinha de uma árvore que parecia um castanheiro, mas com flores grandes e de um rosa arroxeado, como magnólias. A brisa suave tinha espadado esse perfume por todas as árvores e arbustos. Ali não havia qualquer sentimento de hostilidade para com o intruso.

Pelo contrário, me sentia bem-vindo, como se aquela fosse uma terra onde a aversão ainda não tivesse nascido. Enquanto subia, um animal grande e pintado, como um leopardo, saiu de uma moita de bambus, me olhou pensativo e depois se agachou ao lado do caminho, para ver o que eu faria. Tinha uma cara alerta, mas benigna, e seus Olhos verdes não piscavam. Não me ocorreu que devesse temê-lo. Segui adiante, até em­parelhar com ele. O animal estava a uns seis passos e me parecia extremamente grande e forte. Agachado, sua cabeça não ficava abaixo da minha. Olhei-o com uma espécie de cumprimento, pois achei que um sorriso não bastaria, e então, como um gato doméstico que deseja reconhecer a sua pre­sença, mas é muito preguiçoso ou orgulhoso para mexer-se, aquele leopardo, puma ou seja o que for apenas semicerrou os olhos e ronronou um pouco. Prossegui. O animal continuou me fitando por certo tempo; seguiu-me alguns passos e depois meteu-se dentro de umas moitas grandes nas margens do rio, quê brilhava e reluzia com uma luz iridescente: cem teias de aranha refletiam a luz do sol. Subi mais um pouco. Já era de tardinha e o sol brilhava incomodamente diante de meus olhos. Olhando para trás, pareceu-me ter percorrido metade da distância entre a praia e O meu objetivo, o planado cercado de pedras, mas a grande fenda ou deslizamento por onde su­bira, junto à cachoeira, não aparecia de todo: via apenas um declive comprido e contínuo até a praia; apenas algumas plu­mas de névoa cinzenta mostravam onde caía a água. A queda da terra era mais marcada pelo barulho, o trovejar das águas que ainda se ouvia. Se não tivesse visto pessoalmente aquela fenda, não teria acreditado em sua existência, o que signi­ficava que poderia perfeitamente haver outros declives, agora engolidos e alisados pela floresta. Aqui o rio corria entre mar­gens altas. Era um paraíso para pássaros e macacos, e, quando parei para aliviar meus olhos do brilho do sol sob as árvores, vi na margem oposta, num trecho de areia branca, vários veadinhos descerem para beber água. Resolvi descansar. En­contrei uma subida de relva, onde o sol batia através de ca­madas de folhas que se agitavam suavemente é adormeci na­quela luz mosqueada. Quando acordei vi que a fera dourada e pintada estava estendida ao meu lado. Já escurecia. Tinha dormido mais do que pretendia. Resolvi passar a noite onde estava, pois achei que meu amigo, o grande felino, me prote­geria. Tendo encontrado uma árvore carregada de frutas cor de laranja arroxeada, parecidas com a ameixa, fiz delas o meu jantar. Sendo esta a primeira comida de terra que pro­vava desde muito, experimentei a sensação de quem come frutas pela primeira vez na vida, e cada bocado era bastante agradável. Depois sentei-me e esperei, enquanto a luz desaparecia da natureza entristecida por causa do sol que sumia. A fera amarela aproximou-se, e deitou-se com a cabeçorra sobre as patas estendidas, olhando para o outro lado do rio com seus olhos verdes; senti que estava contente por ter minha companhia, enquanto o sol deixava o nosso lado da terra e a noite chegava vinda do mar. Ficamos juntos, observando tudo desaparecer: primeiro o rio profundo, depois as árvores da outra margem, em seguida os arbustos mais próximos e, por fim, folhas de capim isoladas que eu destacara como guias, procurando fixar suas formas — como se á pesada invasão da noite pudesse ser retardada por sentinelas tão pequenas, O som chegava com maior volume no escuro. O estrondo da arrebentação das praias, agora a léguas de distância, conti­nuava a frisar o silêncio; o rolar espiralado do rio em seu leito servia de acompanhamento para suas chapinhadas e corredei­ras na superfície e os pássaros noturnos começavam a se mo­vimentar e a tagarelar nos galhos que se estendiam muito baixos acima de mim. A grande fera ergueu a cabeça e rugiu, e o ruído ressoou em ecos abafados de um lado para outro, em encostas e escarpados que eu não via. Ouvi um movimento no mato e pensei que talvez meu amigo tivesse ido caçar ou viajar, mas quando espiei no escuro espesso e doce, vi que havia dois animais estendidos lado a lado, o recém-chegado lamben­do delicadamente a cara do primeiro, que ronronava.

O escuro pesava, mas não fazia frio. O ar estava cheio de um calor úmido que aspirei em meus pulmões, os quais aos poucos se livravam do sal que os havia impregnado. Somente agora a respiração voltava a ser função de uma criatura da terra em vez de um ser marinho. Depois o escuro brilhou com uma luz íntima e, olhando à esquerda, vi a vereda encher-se de luar e o rio mostrar o seu curso em linhas de luz corrente. A lua ainda não era visível, mas logo surgiu acima das árvo­res que pareciam próximas do centro do céu. As estrelas apa­garam-se, ou pareciam querer mostrar-se por sob a água cin­tilante. As duas feras amarelas, agora não mais amarelas, seus desenhos de luz manchada de escuro tendo-se tornado como o rastro de um animal aparecendo negro na terra prateada do orvalho, lambiam-se e ronronavam, irrequietas. Ao pensar nisso, resolvi continuar minha jornada de noite. Levantei-me, deixando, com pesar, a clareira perfumada; e continuei a su­bida para as montanhas; os dois grandes felinos me acompa­nharam a certa distância, os olhos verdes brilhantes ao luar. Procurava, a todo momento, certificar-me de sua presença, pois se moviam em tal silêncio que era como ser seguido por duas sombras prateadas.

A noite pareceu muito curta. Pouco tempo se passou até que a lua surgisse bem defronte de mim no céu de beste e seu brilho solene enchesse meus olhos. A manhã tingia o céu de rosa e ouro sobre o mar. Mas minhas duas feras amigas haviam desaparecido. Eu estava só. O rio à minha esquerda, agora cinzento com a luz que vem antes do nascer do sol, não era mais um deslizar cheio e constante, e sim mais largo e raso, rompido por pedras, cascatinhas e ilhas. Adiante, corria, fugindo de outra cachoeira; a trilha por onde eu seguia era íngreme; as árvores tinham a bravura contorcida e obstinada dos que são obrigados a viver no ar da montanha e numa encosta onde o solo é continuamente diluído pela chuva. A essa altura o cansaço era muito, mas achei melhor continuar a subir até o sol brilhar novamente sobre meu rosto. Continuei, sim, mas aí o progresso era lento, pois a trilha virara um caminho, às vezes não mais do que lugares onde pôr os pés, bem afastados e muitas vezes escorregadios.

Prossegui, meio atordoado Com o barulho das águas e com os ventos fortes que pareciam soprar de todos os cantos, deixando-me arquejante. No entanto, senti-me revigorado, de modo que tudo à minha volta tornava-se duplamente distinto — por meu estado de lucidez e pela luz fresca e sem sombras da aurora. A borda do planalto e suas pedras agora pareciam tão próximas, que se a terra ou as pedras deslizassem, me esmagariam. Mas continuei a subir, usando como apoio galhos e moitas e até mesmo tufos de caniços altos, que cortaram minhas mãos e braços. Se o vento não tivesse varrido de minha cabeça todos os pensamentos lúcidos, poderia a essa altura ter desanimado mas, embora ficasse pessimista com o que viam os meus olhbs, continuei, como um robô. Pois era óbvio que à minha frente havia uma fissura estreita, talvez muito perigosa para eu usar em minha subida, e acima se eu chegasse até lá — erguia-se um rochedo perpendicular, liso como vidro, até à borda da escarpa. Parecia não haver meio de rodear as fissuras. Num dos lados da rocha, as águas cascateavam, caindo mais pelo ar do que por algum leito rochoso. Desse meu lado eu só via massas de água, a maior parte de borrifos. Do outro lado havia uma subida muito íngreme e argilosa, sob a qual havia um precipício. Eu não conseguiria atravessar para a direita sobre essa encosta, pois até mesmo uma pedrinha atirada por ela provocava uma avalancha que eu ouvia desmoronar-se até à floresta. No entanto, a trilha acompanhara o rio até aquela altura, alguém ou alguma coisa usara aquela trilha e seu destino parecia ser, de fato, essa reentrância na rocha à minha frente. Assim, continuei a subir até ela. O sol da manhã era um brilho no céu azul acima de minha cabeça, pois eu estava encerrado numa semi-escuridão, que cheirava a morcegos. Então, tive de contorcer-me para subir, os pés numa das paredes, minhas costas e ombros en­costados na outra. Era um processo lento e penoso, mas afinal consegui chegar a uma prateleira estreita junto a um paredão. Olhando para baixo, contemplei uma paisagem de florestas majestosas, através das quais o rio corria numa faixa verde lus­trosa. Além das florestas, o círculo de areias brancas e mais dis­tante ainda um horizonte de mar. Lá em cima todo o ar era um cheiro pungente de borrifos do rio e dos perfumes de flores das florestas abaixo. A fissura malcheirosa pela qual eu passara parecia não ter representado um papel real em minha viagem, pois sua escuridão e aperto pareciam alheios ao espaço vasto e claro do caminho em que eu estivera mas isso não era verda­de, eu não podia esquecer. Sem a subida penosa pela fissura eu não estaria onde estava e de onde estava não poderia Con­tinuar a subir, era o que me parecia. Eu tinha de subir, já que não havia mais nada a fazer, mas não podia subir. O re­bordo onde eu me encontrava tinha cerca de meio metro de largura, desaparecia no ar logo em seguida, conforme verifi­quei quando o explorei até às extremidades de ambos os lados. Na frente havia aquela rocha lisa e escura, como vidro, que eu espiei como espiara os lados das ondas lustrosas no mar.

Só que aqui não havia peixes olhando para mim, mas apenas o vago reflexo de um rosto cabeludo, com uma barba de várias semanas, Eu não sabia o que fazer. Era impossível escalar aquele rochedo. Tinha de seis a nove metros de altura e eu não via nenhuma fresta nem aspereza a que pudesse me agarrar. Sentei-me, olhando para leste, para o sol da manhã, para o caminho por onde viera, e pensei que tanto podia morrer ali quanto em qualquer outro lugar. Nesse momento, vi um mo­vimento na fissura e a cabeça da fera amarela subindo caute­losamente, pois era uma subida difícil até mesmo para ela — devia ser estreita demais para ela, tal como fora larga demais para mim. Atrás dela vinha seu amigo. Afastei-me para que os animais se acomodassem na prateleira, mas eles não fica­ram ao meu lado. Primeiro um e depois o outro se viraram e olharam-me demorada e firmemente, com seus olhos verdes. Suas grandes cabeças amarelas, quadradas e tufadas, delinea­vam-se contra o azul profundo do céu. Depois, um após outro continuaram a subir pelo rochedo vítreo, em alguns saltos ágeis. Vi as duas cabeças, ainda delineadas conto o céu azul, espiando-me por sobre as pedras, a uns dez metros acima. Le­vantei-me e fui para a prateleira de onde aqueles dois acaba­vam de saltar, sem poder acreditar no que vira. Notei que na superfície lisa e vítrea havia uma faixa mais áspera, como um caminho, somente visível quando a luz batia em certo ângulo. Não era tão áspero quanto o tronco de uma árvore de casca grossa, mas como o granito desgastado pelo tempo. Sem o exemplo das duas feras eu não teria nem pensado em tentar trepar como uma mosca por aquela faixa de pedra áspera. Naquele momento espichei-me todo, estendi as palmas mais e mais para cima, e verifiquei que, se não pensasse na coisa terrível e perigosa que estava fazendo, minhas mãos e pés se agarrariam àquela superfície pedregosa da rocha. Vi que tinha chegado ao topo do rochedo intransponível e espelhado, e caí de bruços entre as pedras na borda do planalto que queria atingir. Tornou-se logo evidente que aquelas alturas, ponto máximo de meus objetivos desde que chegara à praia distante, na véspera, eram a planície que servia de base parai as montanhas que se erguiam a oeste, num horizonte longínquo, provavelmente a 80 quilômetros dali. CThando para baixo, para o caminho assustador que eu tinha percorrido, ele não parecia ser grande coisa, e o cume vítreo e aguçado que eu considerara impossível vencer não era mais alarmante do que qualquer outra coisa que se tivesse feito, aparentemente com facilidade. O rio largo era uma faixa prateada e reluzente. As quedas mais baixas, a 15 ou 20 quilômetros de distância, onde o ter­reno todo, com seu revestimento de florestas, caía abruptamente, não era mais que uma linha de sombra pelo topo das árvores. Uma nuvem branca pairando sobre a floresta era a cachoeira de quilômetros de comprimento. As quedas mais altas, junto àquela escarpa, cujos borrifos chegavam quase ao cume, não passavam de um ruído, pois aquela queda comprida e revoltosa não era completamente visível.

Todo o litoral se abria para mim, inclusive o oceano azul, mais além. E era como se não houvesse mais ninguém no mundo fora eu mesmo. Não havia navio algum no mar, nem canoa no rio, as florestas extensas jaziam quietas abaixo de mim, e naquelas léguas de árvores não havia nem uma co­luna de fumaça que pudesse revelar uma casa ou um viajante cozinhando.

No planalto era que eu estava a vegetação era diferente. Ali encontravam-se as árvores mais claras, mais alegres, em camadas, com seus capins verdes e altos que logo ficariam dourados. Quando olhei para oeste, para as montanhas cujos picos agora estavam azuis, ouvi o barulho de água à minha esquerda. A cerca de um quilômetro para o sul, em terreno bastante plano, descobri a fonte do barulho. O rio, cujo curso eu acompanhara desde o mar até ali, corria rápido num leito rochoso mais raso. Era um córrego, um córrego largo e esparramado, Com a estridência de pássaros e enseadas suaves e praias em que uma criança poderia brincar em segurança. Mas aquele rio não caía rugindo por sobre a borda da escarpa, por aquelas margens lisas que pareciam mesmo terem sido em algum tempo alisadas pela água. Não, a cerca de um quilômetro da borda do penhasco havia uma brecha! de uns 200 metros de largura em seu leito. A grande massa de água des­lizava para dentro dela, quase sem barulho e desaparecia na terra. Podia-se ver onde fora o leito do rio, há milhares de anos atrás, pois do outro lado da brecha ainda existia o antigo leito, um canal bastante raso, que se alargava em direção ao penhasco onde desembocava agora coberto de mato e muito pedregoso. O canal estava mais desgastado de um lado, a água fora obrigada a se desviar, como acontece Com os rios que, por sua natureza, não podem ter um curso reto, e cujos corpos desenham espirais e voltas e mais voltas, pressionando primei­ro uma das margens e depois a outra. Mas a água não sabia do mergulho que teria de dar por cima do penhasco que ficava logo em frente e que tornaria inúteis seus preparativos para uma volta: lançara-se diretamente por sobre a borda e ao olhar dali para baixo, vi que o caminho gasto e liso do riacho, quando era uma queda-d'água ainda aparecia entre as pedras amontoadas abaixo do espigão liso pelo qual eu tinha achado impossível subir. O rio aparecia de repente, uns 30 metros abaixo, depois de sua escura passagem pelas rochas. Aparecia reluzente, límpido e barulhento Como era acima, antes de ter provado o ar subterrâneo. Depois de emergir lançava-se e mergulhava e rugia e se despedaçava como eu vira naquele dia de manhã, enquanto subia ao seu lado.

Voltei para olhar para o buraco na planície onde o rio descia tão arrumado como a água do banho que escorre pelo ralo, e vi que sobre o grande abismo o ar fazia um remoinho de borrifos iridescentes. Eu estava mais uma vez olhando para oeste, para o sol poente, e naquela noite tinha de encontrar um lugar para dormir. Recordando meus dias e noites, não me lembrava de uma ocasião em que havia podido dormir com tranqüilidade. Não dormira desde que pisara aquele litoral amigo não considerava aquela meia hora roubada, enquanto o sol se punha e a fera amarela vigiava Como uma noite dor­mida. Nem no dorso da toninha, nem no rochedo, nem na balsa. O tempo estendia-se pelo passado, profusamente ilumi­nado, ofuscante, perigoso e uniforme sem as fatias precisas de trevas sobre ele. Pois geralmente quando olhamos para trás é como se o caminho fosse coberto de intervalos regu­lares por sombras negras e definidas intercaladas por espaços de luz de sol ou de luar. Eu passara a crer que era agora uma criatura que não precisava mais do sono e isso me encantava.

Resolvi assistir ao pôr-do-sol junto de meus amigos, as feras enormes e coloridas. Voltei, num mundo tingido pelo crepúsculo, para o local em que me haviam mostrado como subir pela pedra intransponível. Mas não estavam lá. Mais uma vez o ar encheu-se da solidão da hora do crepúsculo. Eu es­tava tão melancólico que tinha vontade de chorar, ou esconder minha cabeça sob uma coberta se tivesse uma e deslizar Com minha tristeza para uma regressão da luz. Mas a cena era magnífica demais para não ser apreciada, pois o sol caía abruptamente atrás dos picos azuis à distância e as trevas desciam primeiro sobre o mar e depois sobre as florestas, subindo aos poucos até onde eu estava, sentado, encostado a uma árvore que ainda era bastante pequena e elástica para eu poder sentir o tronco se mexendo quando a brisa noturna começou a soprar. E mais uma vez vi o nascer da lua, se bem que naquela noite eu estivesse numa altura tão elevada que pri­meiro vi um clarão prateado no céu de oeste e depois um brilho prateado sobre o oceano distante. A primeira fatia da lua prateada emergia das águas. E mais uma vez a noite foi tão suave e leve quanto a da véspera. Fiquei ali sentado vendo passar a noite e esperando por minhas feras maravilhosas. Mas elas não apareceram. Não apareceram! E nunca mais vieram. Não tornei a vê-las, se bem que às vezes, quando fico bem na beira do planalto rodeado de pedras e olho para baixo, através dos topos das árvores da floresta, imagino ver uma mancha amarela mexer-se no escuro, ou imagino que junto de um rio, que daqui é uma faixa sinuosa, verde-azulada, distingo um ponto amarelo: a fera agachando-se para beber. E, às vezes, o barulho forte da tosse de algum animal, ou um rugido mais forte que todo o barulho das águas que caem me fazem pensar neles — e esperar que eles ajudem o próximo viajante que por acaso aporte, depois de muita demora, nessas mara­vilhosas costas.

Novamente a noite foi curta. Fosso ter dormido um pouco, mas se dormi foi um sono tão ofuscado pela luz que batia em cheio em minhas pálpebras que de manhã o que ficou atrás de mim até à hora do nascer do sol foi um espaço de tempo vasto uniformemente cheio de um prateado fresco e refrescante. Pensei que talvez devesse tentar chegar às montanhas distantes quando o sol estivesse brilhando forte, mas quando a luz apareceu — quando a bolhinha da Terra se virou e deixou que o ponto em que eu estava olhasse para a face do sol — vi que a árvore na qual eu me encostara a noite toda nascia de uma fenda e essa fenda estava numa rocha grande e plana e esta...

Agora tenho de ter cuidado para anotar com precisão o movimento de minha mente. De repente ela ultrapassara aquela engrenagem em que o tempo é mais lento — como quando, ao cair de uma escada, a pessoa tem tempo de pensar: vou cair bem ali, e tenho de virar no ar para que a minha espinha não bata contra aquela borda aguçada. E vira mesmo no ar e tem tempo para pensar; essa queda pode machucar-me gravemente, haverá alguém em casa para ajudar-me? — e assim por diante. Tudo isso num espaço de tempo normalmente muito curto para qualquer pensamento. Mas estamos errados quando separamos o maquinismo da mente do maquinismo do tempo; são a mesma coisa. Somente nesses momentos definidos e enfáticos é que po­demos reconhecer esse fato. Ao olhar para a rocha plana, que, sem dúvida, fora preparada, pois eu via marcas feitas pelo ho­mem em suas bordas, minha mente diminuiu de ritmo enquanto que o tempo se apressava, ou o tempo ia mais devagar enquan­to a minha mente se apressava — usando o nosso meio normal de avaliação. Fosse qual fosse o processo, de repente fiquei muito alerta e entusiasmado, chegando a levantar-me sem saber que o tinha feito, e estava contemplando as fundações de uma grande casa, Ou templo, ou edifício público, que agora podia ver claramente a uns 200 metros de mim, sobre a relva fresca e verde. Mas, na véspera, eu não vira nada a não ser uma savana de relva com algumas pedras espalhadas entre árvores baixas. Agora as fundações em ruínas eram inconfundíveis. Era como se o conhecimento do que me seria revelado me levasse a ver o que, de outro modo, eu não veria — eu já estava come­çando a acreditar que a minha visão criara o que estava vendo. Era tão difícil crer que, ainda na véspera, eu tinha subido por sobre a borda da escarpa, pronto para aceitar qualquer coisa que viesse, desde cidades povoadas até homens com um olho no meio da testa, e no entanto não tinha visto o que se podia ver tão claramente. Aquela cidade, aldeia ou fortaleza era feita de pedra. À minha volta, por toda parte, os pisos e as fundações eram bem visíveis. Havia pilastras, colunas e pedras de verga. Caminhei um pouco para o norte: naquela direção parecia não haver dúvidas de que os homens haviam habitado aquele lugar. Caminhei para oeste: a cidade continuava bem além do ponto em que me cansei. Virei para o sul, as lajes, nacos e pisos de pedra continuavam até à margem do rio por onde eu andara na véspera — sem ver ruína alguma. E estendiam-se até à borda do penhasco. Um dia existira ali, na borda daquela es­carpa, dominando o mar e as florestas, uma cidade muito grande e bela.

Não me foi mais possível sair daquele lugar. Antes do sol nascer, eu pretendia continuar a viagem até às montanhas, mas agora aquele lugar antigo me atraía. Não conseguia deixá-lo. E, no entanto não parecia haver lugar algum que pudesse me servir de abrigo. Andei de um lado para outro por algum tempo, enquanto o sol se elevava depressa sobre o Ocea­no azul-verde. Na minha cabeça havia o pensamento meio for­mado de que eu poderia encontrar uma casa ou um quarto ou alguma coisa que me pudesse abrigar caso chovesse ou ventasse demais. E foi o que aconteceu. Num lugar por onde eu tinha andado — ou supunha ter passado, já que parecia difícil dizer exatamente por onde eu me movimentara, em tantas idas e vindas — vi que umas ruínas se erguiam da terra e quando me dirigi para elas, vi a massa de pedras que um dia fora uma casa muito grande, ou um local de reuniões "ou depó­sito. As paredes de pedra seca estavam inteiras, erguendo-se a uma altura de uns 15 metros mais ou menos. A escolha e o trabalho de cantaria, de pedras, que eram de um amarelo-terra cor de argila endurecida pelo tempo, era muito bom e bem feito, Com muitos desenhos entalhados. O piso, apenas ligeiramente coberto de terra e detritos soprados pelo vento, era de um mosaico azul, verde e dourado. Eu me encontrava numa grande sala central e havia portas nos cantos que davam para os quartos menores, Com paredes mais baixas. Mas não havia telhados nem tetos. Andei de um lado para outro pelo chão desenhado, entre as muitas paredes. O lugar estava in­tacto, a não ser o telhado ausente, em cujo lugar primeiro havia o azul límpido e brilhante e depois o próprio sol, derramando-se, de modo que o interior se transformava em som­bras negras e definidas e manchas de luz dourada. Não havia nenhuma pedra solta ou caída das paredes, nem um centíme­tro de mosaico perdido do vasto piso. No entanto, eu não tinha visto aquele prédio ali, sossegado, no meio do capim colorido. Fui até a porta e olhei para fora, e não me surpreendi ao ver que estava rodeado pelas ruínas de uma cidade de pedra, que se estendia até onde minha vista alcançava. Entre os prédios cresciam árvores, e ali havia vestígios de jardins, por toda parte via-se uma grande variedade de plantas perfumadas e florescentes e de casa em casa havia veios d’água, seus fres­cos leitos de pedra ainda bastante intactos, como que Conser­vados por operários invisíveis. Agora, eu podia até escolher entre os prédios de todo tipo aquele que me serviria de mora­dia, mas nenhum possuía telhado. Será que tinham tido te­lhados de sapé? Será que aquele capim novo e tenro se torna­ria ao envelhecer, o caniço rijo que o homem usa para fazer o sapé? Que espécie de cidade era aquela, tão bem conservada que parecia ser habitada por fantasmas amigos e trabalha­dores — e, no entanto não tinha telhados? E uma cidade de pedra daquele tamanho e suntuosidade teria tido telhados de sapé?

Escolhi uma casa menor do que a maioria, com um rosei­ral e água correndo por todo lado. Ficava quase na borda da escarpa e dali eu via o mar e o céu, a vista fazia um circuito lento, desde as quedas rochosas sob o topo vítreo, até às águas cascateantes, às florestas profundas e sombreadas, as praias, o oceano, o céu, e depois voltava pelo caminho do sol até parar bem para cima, os olhos piscando devido à imensa claridade do sol, e baixava de novo aos meus pés, postados na borda do penhasco.

Com que eu deveria cobrir a minha nova casa? Essa per­gunta respondia à minha outra: o que teriam os moradores primitivos usado como cobertura? A resposta era a argila. Entre as pedras das velhas fundações, e os canais e regos de pedra,, a terra apresentava-se argilosa. Quando despejei água sobre ela, formou-se imediatamente em minha palma aquela matéria grossa e pesada que os oleiros usam. Um dia aquela cidade tivera telhados feitos de telhas fabricadas com aquela argila e, sendo a argila mais vulnerável do que a pedra, com o efeito do tempo tinham-se dissolvido nas chuvas pesadas ou nos ventos que deviam soprar furiosamente, provocando estra­gos, naquela borda alta e exposta, sempre que havia tempes­tades. Não havia gente. Onde estavam as pessoas? Por que toda aquela cidade estava abandonada e vazia? Por que, quan­do era um lugar tão perfeito para uma comunidade se insta­lar? Tinha bons materiais de construção bem à mão, tinha casas de todo tipo praticamente intactas, a não ser a ausência dos telhados, tinha uma água boa e impoluta e um clima em que cresciam todas as flores e verduras. Teriam os habitantes morrido de alguma epidemia? Teriam sido expulsos pela ameaça de a'gum terremoto? Teriam sido todos mortos em alguma guerra?

Não havia meio de descobrir isso, resolvi então, não pensar mais a respeito. Ficaria ali por algum tempo. E não me daria ao trabalho de fazer um telhado numa casa para mim. As paredes me abrigariam suficientemente do sol. Ainda não estávamos na estação das chuvas, mas mesmo que estivéssemos, a chuva lbgo se esgotaria naquelas alturas, e não era um lugar que ficasse úmido nem frio.

Encontrei uma árvore com uma folhagem aromática, pa­recida com o eucalipto, mas com folhas mais finas. Arranquei braçadas das folhagens e levei-as. Com elas fiz uma cama funda e quente, onde eu poderia afundar se a noite esfriasse. Apanhei umas frutas rosadas e doces, com a aparência de pêssegos, que cresciam em pencas sobre um rego-d'água. Bebi água e percebi que as minhas necessidades como animal estavam satisfeitas. Bastava-me apanhar frutas e folhagens frescas quando murchassem as que me serviam de cama. Quanto ao mais, podia ficar sentado na borda do penhasco e olhar as nuvens se juntarem sobre o mar, ver a manhã surgir e desaparecer e equilibrar o ritmo de meu sono e meu despertar com o escurecer e o clarear do dia.

Não havia necessidade de ficar solitário, pois aquela ci­dade, como já disse, tinha o ar de cidade habitada. Mais que isso, era como se fosse uma pessoa, ou tivesse alma, ou um ser. Parecia conhecer-me. As paredes pareciam saudar-me, quando eu passava. E quando a lua apareceu pela terceira vez, desde que eu chegara àquele litoral, eu passeava pelas ruas e avenidas de pedras como se estivesse entre amigos.

Muito tarde, quando a lua já estava baixa sobre as monta­nhas, deitei-me em meu leito de folhas deliciosamente perfu­madas e dormi por ialgum tempo. Foi um sono leve e agradável, do qual não foi difícil despertar. Estava conversando com meus velhos companheiros do navio, George e Charlie, James e Stephen e Niles e os outros, e naquela conversa en­traram Conchita e Nancy, que cantavam suas canções e riam. Quando acordei e o sol apareceu brilhando do mar azul-esverdeado, vi claramente que tinha uma coisa a fazer. Meus amigos me rodeavam, eu sabia disso, e de certo modo eles faziam parte da matéria daquela pedra quente e terrena, e do próprio ar, mas para mim não bastava viver ali e respirar aquele ar. Levantei-me imediatamente, impelido por aquela idéia de que tinha um trabalho a fazer, e fui lavar meu rosto e minhas mãos no filete d’água mais próximo. Admirei minha bela barba de marinheiro e meus braços e rosto rijos e morenos, cres­tados pelo sal, comi mais uma das frutas parecidas com pês­segos e saí por entre as casas descobertas para ver o que encontrava... era mesmo muito estranho eu não ter notado uma coisa antes: entre as Construções, num lugar que bem poderia ter sido a praça central, havia uma extensão de pedra lisa, não interrompida por flores nem filetes d’água. A praça teria talvez uns 70 ou 100 metros de lado e dentro dela havia um circulo de cerca de 50 metros de diâmetro. Estava um pouco rachada onde a terra se acamara e o mato crescia entre as frestas, mas era quase plana e esperava pelo que eu tinha a fazer. Percebi, então, o que era. Eu tinha de preparar aquele círculo naquele quadrado, limpando toda a terra solta e arran­cando O mato. Dei início ao trabalho. Demorou mais do que devia porque eu não tinha ferramenta alguma. Arranquei um galho resistente e usei-o como vassoura. Depois que varri toda a terra e arranquei o mato, levei água dos córregos próximos utilizando minhas mãos em concha, espalhando-a pelo lugar. Mas esta operação demorava muito. Procurei algo que me faci­litasse e encontrei uma pedra côncava, que um dia poderia ter servido de almofariz para amassar cereais, e usei-o para car­regar a água. Levei quase uma semana para limpar e prepa­rar aquele círculo no meio da cidade, trabalhando o dia todo e até de noite, quando nascia a lua. Parava para repousar entre o pôr-do-sol e o nascer da lua e continuava a trabalhar ao luar. Descansava de novo entre o pôr da lua e o nascer do sol.

Não me cansei. Nenhum sinal de cansaço apesar de todo o trabalho. Nem mesmo esperava qualquer coisa em especial. Só sabia que era isso que eu tinha a fazer e só podia supor que os meus amigos me tivessem dito aquilo, pois foi depois que sonhei com eles que soube.

Agora a lua estava no quarto minguante e formando um triângulo — sol,, terra e lua — ao passo que quando cheguei àquelas costas ela estava cheia. Sentado na borda do planalto e olhando bem para a face redonda da lua eu ficava de costas para o sol, do outro lado da terra, e o sol olhava comigo para a lua. Assim, as atrações, antagonismos e tensões entre o sol e a lua estavam em linha reta através da terra, que se intu­mescia, o solo e os mares, em grandes bojos de atração en­quanto a terra rolava sob a lua e o sol: mas agora a tensão do sol e da lua se exerciam nesse triângulo, e as marés do oceano eram baixas, e o céu imenso agora estava cheio de uma luz diferente, um luar mais fraco e mais azul e as estrelas faiscavam. Não sei por que eu tinha aquela idéia, mas pas­sara a crer que eu estava esperando a próxima lua cheia.

Passei minha cama de folhas meio seoas para a periferia do círculo. Agora que toda aquela extensão de pedra estava lavada e limpa viam-se desenhos brilhando nela, desenhos geo­métricos contínuos, sugerindo flores e jardins e sua corres­pondência com os movimentos no céu. Mesmo no luar mais fraco os desenhos apareciam, leitosos, aos meus olhos, enquan­to eu ficava deitado, apoiado no cotovelo, em meu monte de folhas. Ficava ali no luar minguante, ouvindo o vento no ca­pim, o borbulhar da água que corria invisível em seus leitos, e às vezes, ouvia o farfalhar duro quando uma das folhas secas de meu leito esvoaçava saltando pelo chão de pedra, enquanto eu vigiava a noite toda, na possibilidade de eu estar enganado e o Cristal visitante descer naquela hora, no quarto minguan­te. Quando me aprontava para dormir, ficava deitado de costas, com um dos braços estendido sobre a pedra que guar­dava o calor do dia e fechava os olhos, deixando que o luar e a luz das estrelas encharcassem o meu rosto. Meu sono era ordenado pelos tempos da lua. Eu estava obcecado com ela, por seu nascer e pôr, ou melhor, por seus círculos erráticos em voltas e elipses alucinadas em tomo da Terra. Às vezes ela ficava mais para o norte e às vezes circulava mais baixo sobre a minha cabeça, a 15 graus sul, às vezes mais baixo ainda, de modo que com a cabeça para o norte e os pés apon­tando para o Antártico o caminho parecia estar no nível de meus joelhos. Nas trevas do espaço havia um clarão de gás branco e no invólucro luminoso dessa lâmpada algumas mi­galhas de matéria esvoaçavam, mas as migalhas mais afasta­das do clarão central eram matéria liquefeita ou tênue, gases girando em suas órbitas, e algumas dessas migalhas, ou pe­daços diminutos de água que giravam, tinham outras migalhas ou gotículas menores girando nelas numa dança, uma dança e um brilho. Alguém que olhasse ou chegasse do espaço veria essa grande lâmpada ardente e seus companheiros de órbita como uma só unidade; uma unidade como um clarão central e companheiros de gravitação, e se esse visitante tivesse olhos e sentidos determinados por um relógio diferente, essa unida­de, o Sol e companheiros, poderia parecer um esplendor cen­tral rodeado de trilhas de fogo ou luz, pois o caminho de um planeta por uma escala de tempo diferente poderia formar uma unidade com esse planeta e esse Viajante Celeste com seus sentidos sintonizados diferentemente poderia perfeitamente ver a faixa que envolve a Terra e sua Lua como uma coisa só, um planeta duplo, uma faixa envolvente que às vezes se mostrava dupla, como quando os fios de um pincel de pintor se sepa­ram, fazendo dois traços de uma pincelada só. O Viajante também veria as tensões e atrações das saliências ou gotas em suas órbitas em volta do sol num desenho constantemente va­riado de emoções sutis, e correntes e medidas do movimento no desenrolar externo do vento solar e poderia até vislumbrar, na migalhinha de matéria que é a Terra, as atrações e puxões atravessados da lua e do sol, em ângulos retos, estando a lua em quarto minguante e as marés da água e da terra baixas.

A lua me prendia, brincava comigo, ela e eu parecíamos respirar como um só, pois eu acordado e dormindo, ou melhor, eu acordado e depois sonhando, o que não é a mesma coisa, eram determinados pela pressão direta da lua sobre os meus olhos. E depois, quando ela minguava, por meu conhecimento da presença dela, uma esfera escura com sua fração mais es­treita de luz solar refletida, e por fim os dois dias da escuridão em que a lua, entre a terra e o sol, ficava de costas para nós e apresentava sua face iluminada para dentro, para o sol, de modo que o grande sol e a diminuta lua se olhavam direta­mente. A luz do sol, suas substâncias refletidas, refletiam-se de volta à vasta face do sol, e nós não recebíamos nada, não está­vamos banhados nas substâncias solares de duas direções, vindas do sol, e refletidas pela lua. Não, a lua estava de costas para nós, como um amigo que se foi. Nos poucos dias em que a lua ficava escura, em que a Terra só era aquecida e alimen­tada pelo sol, somente a parte da Terra exposta aos raios do sol recebendo sua luz, eu sentia uma tristeza e um fraquejar de meus propósitos. Durante o dia eu caminhava entre os prédios daquela cidade e via a rotação da Terra nas sombras que se encurtavam e alongavam. De noite, sentava-me junto à beira do grande quadrado de pedra onde ficava o círculo, brilhando — sim, mesmo à luz das estrelas ele mostrava uma leve emanação de cores — e vivia esperando a volta da lua, ou melhor, aguardando que ela girasse até o ponto em que refletisse a luz do sol sobre nós.

A minha cabeça, quando subi a última parte do caminho para o planalto, enchera-se do barulho da água cascateando e o torvelinho dos ventos da montanha, a ponto de eu não conseguir pensar. Agora também ela estava cheia de luz e de es­curo, cheia da lua e de seu brilho branco — agora, infelizmen­te, refletido para fora, de volta ao sol, ao espaço — e meus pensamentos e movimentos eram determinados por ela, não pelo Sol, pai e criador do homem. Tudo em mim era determi­nado pela lua, e eu não conseguia afastar meus pensamentos dela, enquanto ela girava em volta da terra em sua dança de loucas figuras.

Eu estava aluado, adoidado. Para ver a sua face plena disparei, em minha imaginação, até ver-me deitado no espaço como num mar, e de costas para o sol olhava a lua, mas ao mesmo tempo eu estava no planalto, olhando para as costas da lua que eram escuras, sua face sendo contemplada pelo sol e por mim.

Comecei a imaginar que a lua me conhecia, que linhas sutis de simpatia corriam de um lado para outro entre nós. Comecei a pensar nos pensamentos da lua. Um homem ou uma mulher caminhando por uma rua não demonstram o que pen­sam, e, no entanto seus pensamentos brincam em volta deles em sutis correntes de substância. Mas uma pessoa comum não pode ver esses pensamentos sutis em movimento. Vemos um animal vestido de roupas, seus músculos faciais frouxos, ou fazendo uma careta. Os olhos corporais vêem os corpos, a carne. Se olharmos para a lua ou para o sol vemos a matéria, terra ou fogo, como se fossem pessoas andando pela rua. Não podemos ver a consciência da lua ou do sol. Não há nada na Terra, nem perto dela, que não tenha sua própria Consciência, nem Pedra, Árvore, Cão ou Homem. Olhando para um espelho ou para o lado lustroso de uma onda que vira, ou uma pedra reluzente, como o espelho, alisada pela água, vemos as formas da carne, a carne no tempo, Mas a consciência ou percepção que vê aqusle rosto, aquele corpo, aquelas mãos, pés, não está dentro da mesma escala de tempo. Uma criatura olhando para sua imagem, como um macaco ou um leopardo debruçado sobre um poço para beber água vê seu rosto e seu corpo, vê uma dança da matéria no tempo. Mas aquilo que vê essa dança tem memória e expectativas, e a própria memória está num outro plano de tempo. Portanto, cada um de nós, andando, sentado ou dormindo, tem pelo menos duas escalas de tempo envolvi­das, como a gema e a clara de um ovo, e quando uma criança cuja alma acaba de se manifestar, ou um adulto que nunca teve pensamentos que não fossem animalescos, ou um adoles­cente apaixonado, ou um velho que se defronta com a morte, ou mesmo um filósofo ou um astrólogo — quando qualquer um deles, ou você ou eu nos questionamos, com todo o peso de nossas vidas, por trás da pergunta, O que sou eu? O que é esse Tempo? O que é a prova para um Tempo que não é mortal como uma folha no outono? Então a resposta é que Aquilo que faz a pergunta está fora do tempo do mundo... eu olhava para o corpo da lua, agora um globo escuro, com o segmento que refletia o sol alargando-se noite após noite, eu olhava para aquela migalha de matéria e via que ela pos­suía pensamentos, se é essa a palavra certa, pensamentos, sen­timentos, um conhecimento de sua existência, tal como eu, um homem deitado num rochedo no escuro, suas costas na pedra que conservava o calor do sol.

 

Lua deformada,

Tirana,

Trabalhando em círculos,

Refletindo o calor,

Refletindo o frio,

Por que não voa e encontra outro planeta?

Vénus, talvez, ou mesmo Marte?

Terra assimétrica

Oscilando e arfando.

Girando loucamente.

Qual o cordel e qual o pião?

Não temos escolha senão nos emparceirarmos

Rodando, rodando, rodando, rodando, rodando...

 

Os pensamentos da lua são muito frios e famintos, sei disso agora. Mas, enamorado e obcecado, eu apenas ansiava. Ficava deitado e deixava-me embriagar. Aquela migalha fria que valsa e canta tão loucamente em volta de nós é grande bebedora das mentes do homem. Quando chegou o quarto cres­cente, quando a lua novamente percorrera um quarto de sua viagem em volta da Terra e faltava uma semana para a lua cheia e o pouco esperado de meu visitante de cristal, fiquei realmente lunático. Não dormi, ah, não, não consegui dormir. Andava, fazia caminhadas, me deitava, me ajoelhava ou me sentava, o pescoço encravado nos músculos de meu pescoço, olhando para cima, para cima, para cima, as células das órbitas de meus olhos tiniam com a luz como os ouvidos de um homem febril.

Este som tornava-se estridente e mais forte, e uma noite, bem tarde, quando o meio disco estava bem acima de mim, escutei, misturado a esse, um outro ruído, terreno, e vi que o que quer que fosse estava lá na planície, além das ruínas da cidade, entre a cidade e as montanhas distantes. Caminhei no meio das casas em ruínas, que pareciam tão íntimas, tão próximas, mas que agora tinham se separado de mim, tinham se virado. Quando me aproximei de uma saliência da parede, ou no canto de um prédio, minhas mãos se cerraram e meus olhos iam, por sua própria vontade, para cada lugar que pudesse servir de abrigo a um inimigo. No entanto, desde que aportara ali, eu nunca pensara em inimigos ou em perigo, nem uma só vez.

Andei por uma rua larga e calçada que dava respostas ressonantes aos meus passos e cheguei à borda da cidade, estreitada. Vi, sob as estrelas brilhantes e a lua cujo brilho aumentava, uma boiada pastando na planície. Eram milhares de reses, todas de um branco leitoso ou levemente douradas àquela luz, todos eram animais grandes, bem alimentados e calmos, e não havia ninguém tocando-os, Todos tinham a vas­tidão da planície como lar e moviam-se juntos, num único im­pulso, uma só mente, às vezes abaixando a cabeça para pastar, no caminho, e às vezes mugindo. Fora aquele barulho que me levara do centro à periferia da cidade. Enquanto Observava, houve um movimento súbito e assustado na orla daquele reba­nho espectral, e vi uma sombra escura avançar correndo de uma ruína na beira da cidade e depois agachar-se no solo. Nesse instante, um dos grandes animais caiu morto e de repente um cheiro forte e enjoativo de sangue penetrou no ar que, eu sabia, embora não tivesse provas, nunca tivera cheiro de sangue.

E então compreendi como eu era decadente quando desembarcara, apenas três semanas antes, numa terra que nunca conhecera a morte. Eu sabia que tinha chegado expurgado e areado pelo sal e sem culpa, mas que entre aquele momento e o atual eu atraíra o mal para o meu ambiente, para dentro de mim, e sabia, como se fosse minha própria mão que tivesse puxado aquele arco e soltado aquela seta, que eu havia cau­sado a morte do animal reluzente, branco e leitoso. Caí de joelhos, enquanto o rebanho, alertado, passou num estrondo, desaparecendo de vista, mugindo e parando de vez em quando para cheirar o ar que lhes enviava mensagens de morte e medo. Em pouco tempo fiquei ali sozinho ao luar fraco, com mais uma pessoa, um rapazinho, talvez, ou uma moça vestida de homem, que fora até junto da carcaça e estava debruçada pu­xando a seta para fora. Sem olhar para ver quem era, embora soubesse que poderia reconhecer aquela pessoa se me aproxi­masse o suficiente, nem me importar em ser visto por ele ou por ela, cai no chão de bruços e chorei. Jamais conhecerei tal tristeza, nunca mais conhecerei tanta dor. Oh, não posso su­portar tudo isso! Não quero viver, não quero tomar consciên­cia do que fiz e do que sou e do que virá não, não, não, não, não, não, não, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando, rodando...

Devo registrar meu total desacordo com este tratamen­to. Se fosse o indicado, o paciente a essa altura já mos­traria sintomas de melhora. Tampouco concordo com a idéia de que o fato dele dormir quase continuamente seja, em si, prova de que necessite de sono. Aprovo a inter­rupção deste tratamento e um debate sobre as alterna­tivas.

 

Dr. Y

dr. y — Como vai passando hoje? Está dormindo muito, não? paciente — Nunca dormi tão pouco em minha vida.

dr. y — Já devia estar bem descansado. Gostaria que tentasse ficar mais acordado, se puder. Sentar-se, falar com os outros pacientes, coisas assim.

paciente — Tenho de mantê-lo limpo. Tenho de mantê-lo pronto.

dr. y — Não, não. Temos gente para limpar as coisas. O seu

trabalho é melhorar.

paciente — Eu estava melhor. Acho. Mas agora estou pior.

É a lua, sabe. É um fato real.

dr. y — Ah, bem. Você vai dormir de novo.

paciente — Não estou dormindo, já lhe disse.

dr. y — Bem, então boa-noite!

paciente — Você é burro! Enfermeira, mande-o embora. Não o quero aqui. Ele é burro. Não entende nada.

Não concordo. O paciente obviamente está melhorando. Mostra muito menos sintomas de perturbação. Sua cor e aspecto geral demonstram uma melhora. Tenho muita experiência com esse medicamento. Não é a primeira vez que um paciente reage com sonolência. Pode levar até três semanas para que o efeito geral se faça notar. Comple­tamos agora uma semana de tratamento. É essencial que se continue.

Dr. X

Não esperei para ver retalharem o animal. Voltei corren­do para o local de pouso e tentei sepultar os meus receios no sono. Não sei o que temia, mas o fato de eu ter medo fazia diferença entre o momento presente e a época anterior, eu sabia que era um novo estado para mim. Sentia a minha diferença. Agora eu tinha medo do nascer da lua e do seu rápido crescimento até a lua cheia. Queria esconder-me em algum lugar, de alguma maneira, mas esconder-me numa perpétua luz do dia até que chegasse aquela noite de Lua Cheia em que tinha certeza o Cristal desceria ao meu campo de pouso, agora varrido e enfeitado. Mas a luz do dia não era propicia para a gente se esconder. Empilhei uns galhos em cima de minha cabeça e deitei-me de bruços, os olhos apaga­dos, e me obriguei a dormir, apesar de não estar precisando dormir. Mas meu sono não era o sono do homem comum, em morar num lugar ou país diferente. Eu sabia muito bem que estava vivendo outra vida, mas na terra, muito longe da vida de um maruja, e era uma vida tão pesada e triste e alheia a mim que adormecer era como entrar numa cela de prisão; não obstante, o meu novo pavor da noite e sua traiçoeira luz devo­radora bastava para me levar a preferir aquela vida de nativo ao Luar. No entanto eu acordava, e embora não quisesse, e tivesse resolvido ficar onde estava, vigiando os céus para per­ceber a Descida, não pude deixar de me levantar e caminhar pela cidade agora escarninha e distante. Dessa vez fui para o norte, e além da cidade vi grandes árvores, e embaixo das árvores um brilho de fogo vermelho. Caminhei livremente, sem me disfarçar nem procurar não fazer barulho, por entre as malhas de luar-e-sombra das veredas da floresta, até alcançar uma pequena elevação e olhar para baixo, para uma depres­são cercada por árvores, teixos, azevinhos e olmos. E lá eu os vi. Estavam a cerca de 50 metros, e a distância entre nós era preenchida de sombras negras definidas e manchas de luar brilhante. As sombras saltitantes e rápidas do fogo brincavam por toda a cena, de modo que eu não via muito claramente. Era um grupo de pessoas, três adultos e outros rapazes meio crescidos, e ao me debruçar para a frente a fim de olhar fixa­mente e adaptar a vista à confusão de luzes e sombra, vi que estavam assando pedaços de carne sobre o fogo, enquanto can­tavam, gritavam e riam. Uma curiosidade terrível e nauseante tomou conta de mim — uma curiosidade estonteante feito enfiar os dedos numa ferida dolorosa. Eu sabia perfeitamente quem eram eles, ou melhor, sabia que caras eu ia ver, embora houvesse uma brecha em minha memória, que apagava a recordação exata de como essas pessoas se encaixavam em minha vida passada. Elas se viraram, como se o barulho de meus passos as tivesse alertado, e as três caras, caras de mulher, todas iguais, ou melhor, variações do mesmo rosto, riram e exultaram e o sangue se espalhava por suas bocas estendidas e escorria-lhes pelo queixo. Três mulheres, íntimas, semelhan­tes, irmãs, talvez, ligadas a mim por uma experiência que eu não me lembrava de todo. E havia três meninos, sim, os me­ninos também estavam lá, e um bebê deitado perto do fogo, aparentemente esquecido na orgia, pois estava chorando em suas cobertas apertadas, o rosto vermelho. Corri para tirar a criança do caminho daqueles pés hostis e arrasadores. Quis recriminar aquele ato, mas Felicity enfiou um pedaço de carne meio queimado pela minha boca, ainda cru e sangrento — ati­rei-me à carne junto com os outros, arrancando nacos de um pedaço que estava espetado em paus sobre o fogo, paus que abaixavam ao se incendiarem, deixando a carne descer até às chamas. Toda a floresta fedia a carne queimada, Eu engolia pedaços inteiros, e ao mesmo tempo ria e cantava com as três mulheres:

 

«Sob a minha mão,

carne de flores

Sob a minha mão

paisagem quente

Devolve-me o meu mundo,

Em ti a terra respira sob a minha mão...

Agora o alcançamos, agora agora,

Agora o alcançamos, agora agora agora,

Agora o alcançamos, agora,

Agora agora agora agora agora agora agora agora...»

e os três meninos, meus filhos, que estavam tão bêbados de sangue e alucinados como as mães, dançavam uma dança sapateada e cantavam:

«Agora o alcançamos, agora, agora», repetindo isso muitas vezes. Todos riam de mim, riam com um prazer maldoso porque eu me juntara àquele festim sangren­to. Mais tarde, vi que tinha acabado, as mulheres se afastavam sóbrias, deixando o fogo ardendo e os montes de carne san­grenta e malcheirosas. Procurei o bebê, mas ele não estava ali. Então vi que estava morto e tinha sido lançado sobre o monte de carne que estava esperando ali, abertamente, na cla­reira, de um vermelho roxo e sangrento, para o festim daquela noite. O bebê agora estava despido, um bebezinho vermelho e recém-nascido, sujo de sangue, e seus órgãos genitais, os órgãos inchados de um bebê recém-nascido, expostos sobre o monte sangrento. Percebi que eu estava nu. Não consegui lem­brar-me de quando tinha perdido as roupas com as quais dei­xara o navio. Supunha que tivesse desembarcado nu na praia, saltando do dorso da toninha, nunca cogitara de estar vestido ou despido, mas agora tinha de cobrir-me. O couro ensan­güentado da vaca morta estava jogado em suas dobras grossas num dos lados da clareira, onde as mulheres e os meninos o tinham jogado. Corri para ele, e já ia me envolvendo sem considerar que estava ainda molhado e nu, quando por acaso olhei para cima e vi que o sol estava sobre as árvores: a lua traiçoeira desaparecera. E com ela o fogo, o monte de carne, o bebê morto — tudo. Não havia prova alguma da dança assas­sina daquela noite.

Voltei pela floresta, que agora estava cheia de uma cátaa luz da manhã, e depois pelos pastos, e depois para os subúrbios da cidade vazia e arruinada até chegar à praça central. Exa­minei-a ansiosamente para ver se aquela noite a afetara em alguma coisa. Mas não, lá estava ela, exposta e tranqüila sob a luz do sol, não havia barulho a não ser o correr da água invisível, e o canto dos pássaros.

Eu estava com muito medo da noite seguinte. Tinha medo das assassinas risonhas e suas canções. Sabia que quando a lua nascesse naquela noite eu nada poderia fazer contra seus venenos. Tentei pensar em maneiras de me amarrar, me pren­der, tornar-me imune ao Luar, mas o homem não pode se amarrar, não com laços que não possam ser desfeitos — isto é, não pode a não ser que se mate. Não há meios de alguém tornar-se imune ao outro ser que possa surgir nele a qualquer momento — e que não conheça as leis de seu hospedeiro. Mas eu já estava começando a duvidar se sabia quem era o mais forte, quem era o hospedeiro, quem era eu mesmo e quem um rebento perverso.

Por fim, cheguei à conclusão de que se eu caminhasse o mais depressa possível, afastando-me da cidade, e continuasse a caminhar até a lua nascer naquela noite, a distância seria grande demais para eu voltar à floresta antes do sol nascer e expulsar as bruxas e seu festim. Enquanto eu era eu mesmo, filho do sol, teria a força de vontade de me afastar daquilo a que a noite me levaria. E assim caminhei, de fato, num passo firme e apressado, em direção ao sul, margeando o rio, passando entre o grande precipício e a borda do penhasco, atra­vessando o seu leito seco e depois seguindo pela campina du­rante todo aquele dia quente. Quando a lua nasceu eu estava a 30 quilômetros de distância num ar mais alto e mais seco, onde havia poucas árvores e mesmo essas retorcidas e mir­radas. Olhei para trás, por sobre a planície, onde via rebanhos de gado pastando, mas, daquelas alturas e distância, eram tufinhos de luz movendo-se no verde-lua do capim. Eu também via, mas ao longe, o lugar pequeno e escuro que era a orla dia floresta em que deviam estar as mulheres. Faltavam três dias para a Lua Cheia. Eu estava em desespero. Sabia que prefe­ria continuar a caminhar a noite toda, em frente, sempre em frente, para longe da atração daquela floresta, mas não o fiz. Virei e voltei, descendo daquelas montanhas raras, em que o ar era puro e fino, descendo, e quando a lua estava no meu lado esquerdo, baixa sobre as montanhas que eu a essa altura já teria alcançado e compreendido se não tivesse sido assal­tado pela cidade em ruínas, encontrava-me nos arredores da cidade. Corri como louco para atravessá-la, evitando o centro, a praça com seu círculo, pois não queria ver a reprovação daquele campo de pouso limpo, à espera, e depois corri pelbs subúrbios do outro lado e para dentro da floresta e ali, exata­mente como as havia visto na noite da véspera, estavam as três mulheres, os três meninos, o bebê, morto e apodrecendo no monte de carne. Mas era tarde;, a lua estava baixa e em breve o sol nasceria. As mulheres já iam embora. Eu me sal­vara caminhando tão depressa na direção oposta. Todos foram-se embora, para o meio das árvores, sem Olhar para mim e um dos meninos pulou para cima de um novilho que ele arreara pelos chifres e foi galopando naquele animal alucinado pela clareira, chutando as brasas do fogo, os montes de carne, o cadáver do bebê, espalhando tudo por ali. E depois saiu cor­rendo, enquanto a rês bramia e berrava. Mais uma vez a cla­reira apareceu limpa e vazia à luz do sol da manhã.

Voltei para a praça, agradecido por me ter salvo. Eu sabia que agora estava muito cansado para poder fugir pela segunda vez seguida da festa que se aproximava. E sabia que ainda havia duas noites de uma lua forte antes da Lua Cheia. Dei­tei-me e dormi junto à praça — e naquela noite participei do banquete sangrento sob as árvores, e dessa vez eles tinham matado o novilho meio crescido e toda a clareira fedia de sangue, vísceras e matança. Soube, então, que nunca mais faria aquilo, pois enchi-me de forças com o meu sono do dia e com a carne da festa, e naquele dia caminhei 30 quilômetros para o sul, como já tinha feito, e virei quando a lua nasceu — voltei, de noite, sem correr, nem querendo voltar para a flo­resta, e não voltei mesmo, pois quando cheguei à cidade, era muito tarde. O sol nascera de um céu vermelho sobre o oceano, e era o dia da Lua Cheia, Porém,, eu estava cansado. Tão can­sado! Não tinha comido nada naquela noite, caminhara 60 quilômetros. Lavei-me com muito cuidado, usando o maior dos córregos, mergulhando nele, a água me chegava à cintura. Penteei minha barba e meus cabelos como pude, com os dedos, e fiquei vendo a imundície escorrer de mim com a água. Bebi e bebi toda a água que consegui, esperando que sua limpeza lavasse a carga de carne sangrenta que ainda podia sentir da noite da antevéspera do interior de meu corpo. Deitei-me para descansar e esperar. No calor daquele dia, a despeito de tudo o que pudesse fazer, adormeci. Dormi um sono pesado e terrí­vel, sonhei com aquela outra vida numa terra úmida e sem sol na qual viver era um fardo de trabalho a todas as horas, todos os minutos. Quando acordei já passava muito da hora do nascer da lua, embora eu pretendesse acordar bem antes disso; era meia-noite. Perdera a descida do Cristal, pois lá es­tava ele agora.

Mas eu não o podia ver.

Um luar pleno e branco banhava uniformemente a cidade vazia e o chão quadrado de pedra em cuja borda eu estava sentado, muito pesado de sono e pressentimentos. O círculo no quadrado continuava limpo e com suas cores, brilhando vaga­mente, embora algumas folhas tivessem esvoaçado para cima dele nesses últimbs dias de abandono. O fato de que o Cristal estava presente, ali, bem perto, a alguns metros de mim era evidente porque... eu sabia que estava. Quando olhei parecia que a luz ali era mais pesada — não, isso não, não era um peso, era mais uma intensidade. Bem ali, no centro, era difícil ver até os prédios do outro lado — não era impossível, não, mas eles tremiam e pareciam pendurados no ar como as pedras no ar trêmulo que sobe da areia ou pedras muito quentes. E, mais que pela vista, soube foi por meio de meus ouvidos, pois eles cantavam e zumbiam de forma tão estridente que me obrigava a ficar sacudindo a cabeça para livrar-me do som. Era um som por demais alto e fino para ser suportável. Se eu fosse um cão, teria uivado e fugido. O esforço de olhar fixamente foi quase demais para mim. Meus olhos queriam fechar-se, pois o que quer que fosse que eu não conseguia ver mas que estava ali pertencia a um plano de existência que os meus olhos não eram suficientemente evoluídos para ver. Mais que isso, todo o meu corpo e o plano de vida contido nele es­tava sofrendo. Daquele ponto central vinham ondas de uma substância mais fina, de um plano mais elevado, que me assal­tavam porque eu não estava sintonizado com elas. Lembrei-me de que, quando estava no convés do navio observando a forma reluzente de cristal, o disco, que ao mesmo tempo estava num movimento incrivelmente rápido e estacionário, um espiralar plano e invisível, avançou para mim e depois envolveu-me, e foi como se o meu ser inteiro sofresse um movimento que o arrancava de seu plano próprio. Senti o mesmo naquele mo­mento. Sentia-me doente, abatido e abalado, esgotado com o esforço de ver o que não podia ver de verdade, e ouvir o que poderia ouvir com ouvidos diferentes, e por isso ouvir aquilo Como uma nota insuportavelmente estridente. Levantei-me com dificuldade e cambaleei para o centro. Quando me apro­ximei, o ruído aumentou, meus olhos latejavam e ardiam e todo o meu corpo sentia-se arrasado e vazio. Eu sabia que o que estava fazendo era inútil. Sabia que tinha perdido a minha oportunidade — pela segunda vez, pois a primeira fora a bordo do velho navio quando o Cristal levara os meus amigos, mas me deixara para trás. Embora soubesse que era uma tentativa vã, pois não contava com a confiança que é em' si um sinal ou condição do êxito, tinha de fazê-la. O vazio estava em mim e em tudo o que me cercava. Afastando os meus olhos daquela compulsão central, para repousá-los, Olhei em volta para as casas sem telhado, sossegadas, espalhadas ali e vi, antes de tudo, sua pacata confiança, à espera. Um vazio muito dife­rente da minha fome frenética. Porém elas estavam viradas para dentro, para o centro; era uma cidade que encontrara o seu âmago, seu lugar de repouso, naquele remoinho de inten­sidade que a reivindicara e lhe disparara vezes e mais vezes as suas próprias matérias superiores, como uma idéia pode dominar um homem e mudar tudo nele. Ah, para o mal assim como para o bem, como eu recentemente aprendera. Olhan­do para as casas e depois para a presença espiralante no cen­tro, e tornando a desviar o olhar, para aliviar-me, consegui ficar a 15 metros da coisa — não consegui aproximar-me mais. Novamente fiquei ali olhando de muito perto para uma parede ou lâmina de uma substância reluzente em que havia cria­turas presas por sua natureza, assim como eu estava preso no ar que tinha de respirar. De perto assim, e não Olhando dire­tamente, mas pelos cantos dos olhos, como os observadores de estrelas olham as estrelas, paradoxalmente com uma visão mais delicada e perfeita, eu a via pulsando ali, uma forma de luz; e (quase vistas, mais sentidas, conhecidas, reconhecidas) as criaturas que pertenciam àquele estado na natureza. Como as sombras de chamas que correm líquidas numa parede de fogo, como o reflexo de água quebrada numa queda-d’água, dentro daquela luz latejante eu via, com o canto do olho, a cristalização da substância que eram as suas funções, seu mo­tivo de ser, suas criaturas. Lá estavam eles, seres separados de mim como os peixes numa parede de água são separados do homem a 15 centímetros de distância no ar, mas eles me eram conhecidos, eu os conhecia, senti que devia deslizar para lá, de algum modo, pensando de modo diferente, respirando aquela vibração que girava rápida — mas eu não podia apro­ximar-me mais e sabia que era porque eu me deixara ser le­vado para a floresta com as mulheres que bebiam sangue, e porque eu dormira como um cão ao sol quente. Tentei for­çar-me a ir para aquele lugar, embora as leis de minha den­sidade me prendessem. Sentia-me mal demais para sequer ficar de pé. Num último esforço de vontade, que eu sabia ser errado e inútil, caí desmaiado, meus olhos faiscando luz ao se extin­guirem pelo escuro. Quando tornei a acordar era de manhã, o sol quente me cercava por todo lado e eu sabia que Cristal se fora. A praça e o círculo dentro dela estavam vazios. Eu tinha vomitado e meu nariz tinha sangrado. Estava deitado no meio do sangue e do cheiro do vômito. No lugar em que eu estivera deitado o cheiro era horrível. Ao me sentar e olhar para dentro, para a minha perda terrível, tornei à saber o que já soubera no convés: do navio, quando todos os meus amigos desapareceram com o visitante luminoso; eu tinha ficado para trás. Não fora levado. Eu fracassara dia um modo terrível e por minha culpa. Não tivera nada a fazer senão esperar cal­mamente o momento da Lua Cheia, mantendo-me leve, alerta e desperto. Mas eu não o fizera.

Levantei-me e olhei para a cidade que parecia estar mu­dada, se bem que eu não soubesse de que maneira. Havia nela uma sensação nova, sua paz e silêncio tinham-se esvaído. Tinha um ar de frivolidade, uma espécie de embriaguez. Se uma cidade, ou um prédio, ou uma forma de pedra pudessem dar risada, então era isso: uma risada tola e calada, uma infantilidade, uma vulgaridade. Era como aquele momento em que as mulheres se viraram para mim à luz do fogo sob as árvo­res, mostrando seus rostos sujos de sangue, mas com um sorriso nos lábios como se nada de mais estivesse acontecendo com elas, ou comigo.

Arrastei-me em direção ao rio, para banhar-me e me re­frescar de novo. Mas parei, pois na praça de pedra apareceu... eu não sabia o que era. A princípio pensei que seria um ho­mem, pois ele ali estava: da altura de um homem; tinha os ombros e braços e pernas de um homem, embora apresentasse uma forma puxada e distorcida. Mas a cabeça... seria algum tipo de macaco que caminhou até o quadrado de pedra e depois foi até o centro? Naquele pónto ele agachou-se e olhou em volta. Mas o corpo era todo coberto por um couro compacto e fino, como o de um cão, e a cabeça parecia a de um cão, com orelhas finas e retas e o focinho de cão. No entanto, tinha algo de rato. A criatura tinha o rabo comprido e escamado do rato. Tive medo. Era maior e muito mais forte do que eu. Pensei que ele poderia atacar-me. Porém, ao caminhar em sua dire­ção, ele me olhou sem muito interesse. Pensei, então, que eu deveria atacá-lo e matá-lo, pois o achava repugnante e feio, agachado ali, exatamente no mesmo lugar em que na véspera Cristal tinha estado, reluzindo e vibrando. Pensei que se eu o matasse a cidade teria de ser novamente purificada. Apro­ximei-me dele. A criatura olhou par,a mim, à toa, e para outro lado, movendo-se, coçando as pulgas, cheirando o ar com seu focinho pontudo, de cão ou de rato. Percebi que provavelmente não me estava vendo ou que, se via, eu não lhe interessava em absoluto.

Fiquei onde estava. A criatura também, Eu detestava tudo nela, era uma criatura estranha a mim em todos os sentidos. No entanto, pensei que alguém que estivesse a uns 100 metros de distância poderia dizer, depois de um olhar rápido, que ele e eu éramos da mesma espécie, pois tínhamos quase a mesma altura, a cabeça no mesmo lugar e aproximadamente os mesmos braços e pernas. Se esse observador chegasse mais perto poderia ver que eu não tinha pêlos, enquanto aquele animal tinha um couro... bem, não propriamente sem pêlos. Eu agora tinha cabelos castanhos, grossos e encaracolados, que me che­gavam aos ombros, uma barba crespa e castanha até à cintura e cabelos castanhos grossos no peito e do umbigo à virilha. Cabelos castanhos escuros na pele tostada, bronzeada pelo vento e pelo sol. Eu estava coberto e decente! Enquanto que aquele bicho... eu estava por demais enojado para ficar ali fazendo comparações. Afastei-me da praça e quando saí a cria­tura lançou um grito agudo que foi respondido por outros gritos, meio latidos, meio guinchos agudos de rato e para a praça correram, arrastando-se e saltando, uma dúzia ou mais dessas criaturas. Eram todos machos. Tinham os órgãos ge­nitais de cães grandes, testículos grandes, globulares, e pênis como varas, pois todos pareciam estar num estado de exci­tação sexual. Mais tarde percebi que isso neles era mais oumenos permanente. Quando se punham de pé, tinham o aspecto de cães de pêlo curto quando se manda que fiquem de pé nas patas traseiras, a parte inferior da barriga só órgãos genitais. Ficaram de pé no centro, de costas um para o outro. Estavam de pé nas pernas traseiras. Nas mãos tinham paus ou pedras e estavam vigilantes. Depois vi outros aproximando-se em tropas pelas avenidas. Corri para fora, até à borda da escarpa, onde me lancei ao chão e fiquei olhando para a terra que descia pelas florestas velhas e profundas até o oceano azul. Fiquei deitado ali, com o sol batendo em mim, sabendo que teria de esperar mais um mês até a lua ficar cheia de novo e que a cidade em que eu tinha morado bem, sozinho, agora estava cheia daqueles odiosos ratos-cães. Eu ouvia seus lati­dos e assobios e suas lutas por toda a cidade.

Achei que não suportaria viver ali, esperar, acompanhado por aqueles seres. Fiz todo tipo de planos loucos voltar de novo para o litoral e construir uma jangada de madeira jo­gada à praia pelo mar, ir até às montanhas e lá construir um novo campo de pouso e esperar que o Cristal se compadecesse de mim e descesse lá, ou voltar àquela terra fria e úmida, onde eu parecia viver de vez em quando, e passar os meus dias trabalhando lá, desistindo de toda a esperança de ver Cristal... mas eu sabia muito bem que ficaria ali. Tinha de ficar. Afinal, sabendo que eu não tinha alternativa a não ser fazer exata­mente o que estava fazendo, fui até o rio, com cuidado para ficar longe das vistas dos ratos-cães, lavei-me e banhei-me. Colhi umas frutas, cortei ramos frescos do arbusto aromático e coloquei-os na borda da escarpa, de frente para a cidade com seus moradores irrequietos e barulhentos. Dormi. Enquanto dormia, um ou mais dos ratos-cães foram me examinar, pois vi seus rastros e excrementos quando acordei. Não me moles­taram. Sonhei com eles, gritei e me debati, dormindo, imagi- nando-me prisibneiro deles.

Agora o problema era arrumar as coisas de modo a poder durar um mês sem ma tornar escravo da lua e ser forçado a voltar ao ritual sangrento na floresta, ou ser vítima da curiosidade daqueles invasores nessa cidade que eu considerara minha.

Durante os três ou quatro dias em que a lua passava de cheia a minguante, um número cada vez maior daqueles ra­tos-cães acorreram à cidade. Como eles não me molestavam, resolvi meter-me no meio deles e observá-los. Não pareciam ter normas estabelecidas em suas vidas. Alguns andavam em grupos mistos, machos e fêmeas juntos, com ou sem as crias. Esses grupos tendiam a ter um animal dominante, macho ou fêmea, mas nem sempre isso ocorria. Discutiam e brigavam sem parar e alguns dos indivíduos iam para outros grupos, de modo que os grupos é que eram contínuos e não os indivíduos que os formavam. Alguns se separavam formando grupos menores, em casais, e estes se apropriavam de quartos separados nas casas. Muitos deles eram solitários e não pareciam ter nenhuma função especial em grupo algum, grande ou pequeno, mas procuravam juntar-se a grupos ou casais e, embora de vez em quando fossem tolerados por algum tempo, a maior parte das vezes eram expulsos ou ignorados. Esses seres soli­tários às vezes se reuniam no que pareciam ser tentativas de aliviar sua solidão e ficavam sentados em grupos de dois ou três, olhando para os grupos maiores. Mas em sua maior parte eles se movimentavam, espiando, e isso constituía um reflexo desagradável do que eu estava fazendo, e imaginei ver em suas posições desanimadas e em seus olhos muito críticos, mas ávidos, a imagem do que eu devia ser para eles quando olha­vam para mim. Aquela espécie, porém, parecia extremamente ocupada o dia todo, ou melhor, ocupada e absorta em si. Esta­vam sempre se mexendo, nunca paravam para colher e comer as frutas, passando de quarto em quarto e de prédio em prédio, instalando-se num deles por um dia ou uma hora e depois pas­sando a outro, falando com seus guinchos roucos de um modo que sugeria que a maior parte da conversa era para aliviar a pressão da energia, das disputas e brigas e da atividade sexual. Aqueles animais pareciam ter uma sexualidade extre­mamente elevada, mas talvez isso fosse devido a terem sempre os órgãos genitais à mostra. Os machos já foram descritos. As fêmeas tinham fendas de bordos vermelhos desde o ânus à parte inferior do ventre. Os machos ficavam excitados cada vez que se aproximavam de uma fêmea, de qualquer idade, e as fêmeas eram quase igualmente sensíveis. Grande parte do tempo de1 es se passava em exibições sexuais, em atrair a aten­ção uns dos outros, em se apossarem dos companheiros sexuais dos outros e em assistir ao comportamento sexual dos outros animais. Quando um par se juntava e concordava em se aca­salar, ia para trás de uma parede ou uma moita, para um ato meio particular, nos moldes das cópulas humanas. Outros iam assistir ao ato sexual e soltavam ganidos e guinchos agu­dos e excitados e, estimulados ao máximo, assaltavam-se uns aos outros e se retiravam para arbustos próximos ou Outros locais abrigados. Assim, um acasalamento podia provocar um frenesi que podia durar metade do dia. Notei que essa sexua­lidade era mais forte quando a lua estava mais próxima da Lua Cheia, diminuindo quando as noites se tornavam mais es­curas. Mas os acasalamentos eram tão comuns durante o dia quanto de noite. Parecia que aqueles animais tinham medo do escuro, congregando-se mais quando caía a noite, e esse medo foi a primeira coisa que despertou em mim um pouco de pena ou afeto por eles, pois pareciam realmente seres desampara­dos e corajosos: juntavam os animais mais jovens quando o sol se punha, montavam guarda sobre as paredes altas, me­xiam-se com olhares temerosos por sobre os ombros. Mas eu não conseguia ver inimigo algum. E, agora que nutria um sentimento de companheirismo por eles, comecei a olhá-los com mais simpatia e a ter menos aversão. Por exemplo, tornou-se evidente para mim que aqueles animais só recentemente tinham começado a caminhar nas pernas traseiras, o que explicava o seu andar cambaleante, passando de uma posição de equilíbrio precário à outra, a cada passo, como faz um grande cão, quando obrigado a ficar de pé em suas pernas traseiras. E isso explicava outra Coisa: o seu gesto mais las­timável e característico. Como os seus olhos, como os de um rato ou um cão, fossem feitos para serem usados quando eles caminhassem de quatro, agora que estavam de pé os seus fo­cinhos pontudos tendiam a apontar para cima, para o céu, enquanto seus olhos apertavam-se para baixo e para os dois lados, no esforço de obterem uma visão clara, E eles ficavam abaixando a cabeça para baixo e para o lado, primeiro de um lado e depois de outro, enquanto caminhavam ou cambaleavam, enquanto procuravam forçar para baixo os músculos de seu pescoço. Colocando-me na posição deles, vi que eles deviam ter uma visão do mundo como sendo dois semicírculos diferentes, um de cada lado. E ao contrário dos homens, que são cegos nas costas, de modo que precisam continuamente virar as ca­beças para um lado e depois para o outro, a maior parte num eixo horizontal e, não obstante, são cegos em dois terços de um possível âmbito de visão, aqueles animais estavam sempre olhando para cima, para o céu, e seus movimentos de cabeça e de pescoço eram muito rápidos, para corrigir isso, e esses contínuos movimentos de cabeça contribuíam para seu aspecto de agitação geral. Os mais jovens e de músculos mais flexíveis é que conseguiam, aparentemente, conservar um campo de visão bastante amplo, sacudindo rapidamente seus focinhos, apontados para o céu, sendo cada movimento lateral uma in­terrupção num movimento geralmente diagonal. Esses movi­mentos de cabeça davam o efeito das fotografias estáticas de um filme antigo, ou um cartaz, que não se uniam com bastante rapidez.

Reparei ainda que quando estavam cansados, ou pensa­vam estar sozinhos, punham-se de quatro e corriam assim por algum tempo. E corriam muito depressa e com eficiência, pois era assim que seus corpos foram destinados a se mover. Porém quando um indivíduo ou um grupo se comportava assim por muito tempo, os outros Começavam mostrar sinais de irrita­ção, começavam, então, a fazer barulhos zangadas e críticos, enquanto os culpados assumiam um ar de desafio, depois de culpa e mais cedo ou mais tarde voltavam à posição de pé.

Quando se juntavam em seus quartos sem teto, ou nas pedras da praça, de noite quando não havia lua, ficavam sen­tados como cães ou macacos, acocorados, os membros dian­teiros esticados à frente, para apoiá-los, e no escuro andavam muito mais de quatro. Pareciam tão diferentes, nesses dois estados: o seu cambalear desajeitado nas pernas traseiras, com sua visão espasmódica e deficiente que lhes dava aquele as­pecto de pomposidade e importância, e as correrias de quatro, que chegavam a parecer duas espécies diversas. Suponho que inconscientemente eu pensasse neles como tais, pois recordo-me muito bem que, ao ver os macacos pela primeira vez, não reagi logo com alarma diante de uma nova invasão, mas pensei vaga­mente que talvez os ratos-cães estivessem se movendo ainda de uma terceira maneira.

Esses macacos eram de uma espécie conhecida por nós, humanos. Eram uma variedade de chimpanzé, porém maiores do que os que vemos nos jardins zoológicos. Chegaram à cidade balançando-se, pelas árvores ou pelas paredes, e quando viram os ratos-cães, sua reação não foi do tipo que eu pudesse interpretar imediatamente. Embora tivessem parado e se agru­pado, não pareceram estar com muito medo, nem tampouco satisfeitos. Confabularam entre si na parte norte da cidade, até haver uns 200, mais ou menos, agrupados ali. Enquanto isso, os ratos-cães, virando seus olhos vesgos para um lado e para outro, na direção dos recém-chegados, também se jun­taram, sem fazer qualquer ato agressivo, enquanto os macacos foram entrando e se espalhando pela cidade, encontrando can­tos e quartos não habitados. Houve muita arenga e reclama­ção, quando os recém-chegados quiseram apossar-se de lugares já ocupados, mas parecia que ambas as espécies reconheciam o direito da outra de morar naquele lugar. Mais e mais ma­cacos foram entrando pela cidade, que estava apinhada de animais. Parecia que a primeira espécie, os ratos-cães, consi­deravam os macacos inferiores, e que estes concordavam, ou estavam preparados para concordar. Faziam pequenos servi­ços para os animais grandes e cambaleantes, e procuravam sair do caminho deles. No entanto para mim, como homem, os ma­cacos eram mais simpáticos, talvez porque eu os conhecesse. Eu não sentia nenhuma antipatia forte, como continuava a sentir pelos ratos-cães, a despeito da pena que cada vez mais eu sentia por eles. E parecia-me que os olhos dos macacos mostravam simpatia por mim, uma certa compreensão, se bem que nem eles fizessem qualquer tentativa para se aproximar de mim nem me molestassem, deixando-me de lado a maior parte do tempo, como faziam os outros. Os olhos do macaco, tão tristes, tão sabidos, são olhos que falam aos olhos de um ser humano. Sentimos que são olhos humanos. E que espécie de auto-lisonja é essa? Pois os Olhos da maioria dos seres humanos são aguçados, sagazes, espertos e vaidosos, como os olhos dos ratos-cães. A profundidade que há nos Olhos de um macaco de modo algum está por trás dos olhos de todos os homens. Descobri então que me movia por aquela cidade povoada, barulhenta, briguenta e suja, evitando os grandes ratos-cães sempre que podia e encontrando com alívio os maca­cos que pareciam tão mais humanos. Mas havia cada vez mais elementos de ambas as espécies, a cidade estava cheia, e os dias se passavam, de modo que somente metade da face da lua iluminada aparecia em nossa terra, e depois mais de uma outra face escura do que a iluminada, e estava escuro, tudo escuro, e eu sabia que breve, não muito mais que dali a duas semanas, eu tinha de preparar-me para a descida do Cristal. No entanto, toda a praça central estava sempre cheia de animais, como antigamente devia ter estado cheia de gente que se encontrava para falar Ou comerciar ou trocar, e todos os cantos estavam cheios de cascas de frutas, esterco, pedras, pe­daços de galhos, paus ou folhas secas. Parecia que eu nunca limpara o lugar.

O escuro da lua nova mantinha a cidade asfixiada e mal­cheirosa, e todos os animais estavam apinhados, olhando a foicinha de luz no céu, com sentinelas postadas nas paredes e nas árvores por toda parte. Estavam mais quietos do que de costume. Não era um bom sossego. Na grande praça havia principalmente ratos-cães, a não ser os macacos que queriam tratar deles ou se fazer de engraçados para distraí-los. Fui corajosamente à praça de tardinha ao pôr-do-sol, pensando que talvez naquela hora triste, em que todas as criaturas parecem ficar pensativas, aquelas criaturas estivessem dispostas a es­cutar e compreender. Fiquei ali como um tolo e lhes disse, na fala humana: «Meus amigos, só temos 14 dias. Duas semanas, é só o que temos. Pois eles virão, e vão pousar aqui, neste círculo no centro da praça. Mas não pousarão num lugar imun­do e cheio de lixo, portanto, por favor, por vocês, bem como por mim, por todas as criaturas que vivem nesta pobre terra doen­te, vamos limpar este lugar, vambs varrê-lo com galhos, e depois trazer água e lavar as manchas da sujeira que está aqui.» Mantive a voz firme e sorri, e procurei mostrar por gestos o que tínhamos a fazer, mas eles se mexiam, enquanto eu falava, ou viravam seus focinhos pontudos para o lado e para baixo, de modo que um de seus dois planos de visão me incluíssem, e os macacos servis saltaram mais para perto e me olharam com seus olhos tristes, procurando compreen­der — mas naturalmente não podiam compreender, como po­deriam? Talvez eu esperasse que o significado de minhas pa­lavras se comunicasse àqueles cérebros concebidos de modo tão diverso, devido à minha necessidade desesperada de que isso se desse.

A escuridão veio de repente do oceano, e da floresta, envolvendo o planalto e a cidade fervilhante, e eu me afastei para a borda da escarpa e ali sentei-me, olhando as estrelas e escutando o barulho variado mas abafado dos animas atrás de mim, que também olhavam os céus, onde a face oculta da lua era um círculo escuro com um fiapo de luz de um lado.

Talvez fosse o medo que tinham do escuro. Talvez esse medo impedisse uma exuberância normal de movimentos e de vozes, deixando-os cheios de uma energia armazenada; ou talvez fosse apenas o fato de que a cidade tivesse ficado cheia demais para que a polidez deles continuasse — fosse o que fosse, naquela noite começou a luta. Tomei conhecimento disso primeiro pelo cheiro — e cheiro de sangue, que a essa altura eu já conhecia tão bem, Houve escaramuças repentinas, muito mais alto do que de costume, gritos e berros. Estes pareciam os das mulheres alucinadas pelo sangue, em Volta de sua fo­gueira na floresta, e de manhã, depois de uma noite escura, comprida e abafada, entrei na cidade e vi cadáveres espalha­dos na praça central e também pelas casas. A maioria desses mortos eram macacos, embora houvesse um ou dois ratos-cães. As duas raças se haviam separado, a não ser alguns dos ma­cacos que tinham preferido ficar como criados ou palhaços dos grandes animais que os toleravam. A cidade estava mais ou menos dividida e agora as sentinelas nas árvores e sobre as paredes se vigiavam, viradas para dentro em vez de para fora.

A manhã passou devagar, naquela nova tensão quente e de desconfiança, Não tornou a irromper luta alguma, e quando o sol estava a pino parecia que uma trégua havia sido decla­rada nos latidos e guinchos e papagueados que eu ouvira, mas não compreendia. Cada um dos exércitos enviou seus delega­dos e os corpos foram arrastados dali. Estes não foram enter­rados, e sim arrastados pela cidade e depois por seus subúrbios e lançados ao grande buraco por onde o rio mergulhava na terra. Eu lhes gritei: «Não, não, não», para que não poluíssem o grande rio e depois o mar, mas lembrei-me de que os homens tinham envenenado todos os oceanos e os rios, de modo que os animais e peixes morriam ali e, então, sentindo-me doente e desanimado, afastei-me, pensando que os corpos que conse­guissem sair dos escuros canais fluviais no meio da terra para as quedas-d’água e cataratas e dali para o rio largo e plano e por fim para o mar — esses corpos pelo menos seriam detri­tos mais limpos do que a imundície letal que os homens lançam às correntes marítimas.

Ao anoitecer, quando a luz se apagou tristemente num céu tinto de rubro, a luta irrompeu de novo. Lutaram a noite toda. Fiquei sentado na borda do meu penhasco, procurando não ouvi-los nem acompanhar muito de perto a carnificina com a minha imaginação. Faltavam 13 dias para a lua cheia e eu sabia que não tinha meios de limpar a cidade, nem esperança da vinda do Cristal, a não ser que, por alguma sorte que eu não tinha motivos de esperar, os animais tornassem a aban­donar a cidade, aparentemente tão sem motivo como tinham chegado.

No dia seguinte, havia montes de mortos e toda a cidade cheirava a sangue. Aqueles animais, cujo alimento era constituído de frutas e água, estavam agrupados em volta das pilhas de cadáveres, arrancando nacos de carne peluda e comendo-a. Quando me aproximei para olhar, pela primeira vez tive medo daquelas feras, macacos e ratos-cães. Agora eu era, como eles eram uns para os outros, carne em potencial. Eles não me deram atenção, embora eu estivesse a nem 20 metros de dis­tância, até que vi que três deles tinham notado a minha pre­sença e estavam virando para mim os seus focinhos pontudos, com seus dentes brancos e pontudos manchados de vermelho, e vi o sangue pingando como vira pingar do rosto das mulhe­res. Voltei para a borda da escarpa e entreguei-me ao deses­pero. Nesse momento perdi as esperanças. Sabia que a luta havia de continuar e tornar-se pior. Eles agora matariam para comer. Sabia que estava correndo perigo e não me importei. Nesse estado de espírito há muitos argumentos que podemos encontrar para sustentar a sabedoria do desespero. Os advoga­dos que a humanidade tem encontrado para argumentar pela causa do desespero sempre foram mais poderosos do que aque­las outras vozes pequeninas. Deitei-me na beira da escarpa e olhei para baixo, para as florestas profundas que tinham levado tantos séculos para crescer, onde deviam estar as minhas belas feras amarelas e onde pássaros com o mesmo colorido vivo do pôr-do-sol seguiam as curvas de vidas breves comO a minha. Adormeci. Queria passar o tempo dormindo para que o fim viesse mais depressa.

Quando acordei, a tarde já estava avançada e, embora o sol ainda brilhasse sobre o oceano distante, abaixo de mim, sobre a floresta, já era quase noite. A luta ainda continuava. Eu ouvia os animais se perseguindo a poucos metros de dis­tância nas casas que chegavam quase até à escarpa. Não quis virar a cabeça para olhar, pois pelo canto do olho vi um ani­mal rato rolando e guinchando e levantando tufos de pó em sua luta de morte. Olhei para a frente e novamente sobre a floresta, onde a Onça, o Papagaio e o Lagarto faiscavam e ardiam, mais velhos do que o homem, e então vi parado no ar diante de mim um grande pássaro branco que, em vez de passar por mim em sua corrente de ar, à última hora virou-se e pousou ao meu lado na borda do penhasco, suas grandes asas conduzindo-o a um poleiro seguro. Não era uma espécie de pássairo que eu conhecesse. Tinha cerca de l,20m pousado ali com sua plumagem branca, e possuía uma faixa reta de bico amarelo que lhe dava um aspecto severo. Pensei, com inveja, que num instante ele se deixaria levar numa onda do ar quente da tarde, como um nadador desliza de uma pedra quente para o mar revolto. Enquanto eu estava pensando, ele virou-se para mim e olhou-me firmemente com seus olhos redondos e dou­rados. Cheguei perto e ele se agachou, como uma galinha insta­lando-se com as asas abertas protegendo seus ovos. Deslizei para o seu dorso e assim que me instalei ali seguramente ele deslizou pelo ar e estávamos descendo leves pelo morro rocho­so e escorregadio, as cachoeiras e depois a floresta cerrada, agora silenciosa com a aproximação da noite. O dorso do pás­saro, a envergadura de suas asas, tinha de três a três metros e meio. Fiquei sentado reto, agarrado a um punhado de penas para me equilibrar, mas um vento do mar quase me derrubou por cima dos topos das árvores, de modo que deitei-me de bruços, com os braços dos dois lados do pássaro, logo acima da junção das asas. As elevações de penas brancas ainda guar­davam o calor do sol, eram lisas e tinham um cheiro limpo e saudável como ovo de galinha fresco. O sol se refletia das penas brancas logo abaixo de meus olhos como o sol num campo de neve. Virei o rosto e o encostei num dos lados, olhan­do para baixo, passando pelo pescoço e ombros do pássaro e voamos para o mar, correndo ao longo das cristas das ondas que, embora toda a terra entre a praia e a borda do planalto estivesse mergulhada em sombras, continuavam a refletir a luz do sol poente. Era um sol vermelho num céu rubro, combi­nando com a carnificina na cidade logo abaixo que eu podia apenas vislumbrar, muros e colunas brancas em miniatura, a quilômetros de distância, no alto, no ar que escurecia. Nós seguíamos por sobre as ondas e eu respirava grandes golfadas de ar frio e salgado que limpavam meus pulmões do Pó e do sangue. Continuamos até que a praia e o continente mais além diminuíssem a uma fímbria escura contra um céu cheio de nuvens reluzentes, e então, quando o meu pássaro baixou uma das asas para dar a volta, exclamei: «Não, ainda não, con­tinue», e o pássaro continuou, enquanto o ar assobiava em meus ouvidos que ardiam com o frio e eu sentia o gosto dos borrifos salgados em meus lábios e minha barba. Continuamos e depois virei-me com cuidado, ficando de costas, com os bra­ços dobrados para trás e agarrados às penas mais finas nas cavernas quentes sob as asas do pássaro, que se batiam ou equilibravam, e olhei para um céu pontilhado de estrelas, onde a lua estava de costas para a Terra e mostrando uma fatia de sua borda, um dedo mais largo do que na véspera, para lem­brar-me de minha tristeza e meu fracasso. E agora em nossa frente estava o litoral de Portugal e lá estava Conchita em seu promontório olhando para o mar. Atrás dela, a mancha vermelha de subúrbios novos espaihava-se como sarampo e abaixo o mar se encapelava e empinava. Ela estava cantando, entoando ou mesmo falando pois era uma canção vacilante, difícil, bloqueada, que mostrava que a pobre Conchita era tão pouco destinada à sua condição de freira quanto fora feliz em meus braços.

«Venha, gritei!» disse o sol de bronze, O mar de pavão berrava azul, as casas vermelhas, Sol e mar, desafiavam «Venha!» A terra cantava, mas eu estava muda.

Devagar, devagar, meus pés descendo espessas dunas de

[areia,

Conchas enroscadas lembrando velhas canções do mar

Cortavam meus pés lentos até sangrarem,

«Quem não pode dançar tem de sangrar» disseram elas.

Nem macaco, nem Deus, balançando de árvore em árvore,

Ou pedindo ao mar para parar de ter medo de mim,

Dividido, diminuído, coisa remendada no meio,

Olhei o céu extinguir-se, a relva brilhar com um verde

[mais profundo.

Cantar! Cantar!

Espremer a tarde chamejante

Como fruta quente em minha mão!

Depois lançá-la

[afinada!

Tomar as ondas, a liberdade de seu quebrar,

E dançar isso em pés ensinados pelo mar.

Mas o sangue e os nervos são crucificados demais

Para eu encontrar um doce alívio no canto.

Não cabe a mim cantar livre como passarinhos

Minha garganta só forma palavras humanas.

Renunciar ao mar, às areias cantantes,

Meu sossego, não comprado por pés e mãos libertos,

Nem amor que dobra a mente de dor,

Para fazer a carne tornar a brilhar intacta.

Estes ainda me pertencem, mas apenas nas extensões

[longas e

Frias onde a mente se prepara forte

Para criar com paciência o que os membros lentos, Presos, conheciam apenas como canção, mas faz muito

[tempo.

Chamei-a «Conchita, Conchita», mas ela não me ouviu, olhava para o mar ao longe. O meu pássaro tinha dado a volta, estava regressando e em breve tínhamos passado pela beira do mar onde eu desembarcara e depois sobre as florestas e estávamos novamente na borda do penhasco. O pouso daquele grande pássaro branco assustou um bando de macacos que es­tavam escondidos por entre arbustos cerrados. Os animais fugiram guinchando e eu tomei a sentar-me no meu lugar de sempre. O pássaro ficou ali um pouco comigo, quieto, depois tornou a voar com suas asas brancas para a escuridão da noite.

Passou-se assim aquela noite, com os gritos e ruídos da luta continuando atrás de mim, embora eu estivesse menos deprimido devido ao vôo demorado e refrescante que fizera no dorso quente do grande pássaro, e ao meu velho amor Conchita gaguejando o seu fracasso no seu litoral distante.

Não tomei a penetrar no centro da cidade durante três dias, fiquei no penhasco, esperando ver o pássaro, mas ele não apareceu, por fim aventurei-me a ir, a luta continuava e tantos tinham sido mortos que os outros não podiam nem devorar nem dispor dos cadáveres, que estavam amontoados por toda parte. Todos os animais estavam exaustos da longa luta que se tornara ainda, mais terrível, desesperada e mecânica. Estavam agora alucinados, com os olhos injetados, o pêlo e o couro sujo e grosso. Os ratos-cães não tentavam mais ficar de pé, corriam de quatro, matando os macacos a esmo, mordendo-os com suas afiadas presas. Mais uma vez não me deram atenção quando atravessei a praça para ver como poderia prepará-la para a lua cheia, que seria dentro de pouco mais de uma se­mana. Não vi nada que me desse esperanças. Voltei para o meu penhasco. Abandonei, então, o meu sonho de preparar o campo de pouso e em vez disso sonhei em voltar para o mar, em deixar-me deslizar para o sal fresco como um pássaro no ar. Fiquei ali sentado enquanto os dias e noites vinham e pas­savam, os olhos fixos no oceano distante e, desejando ter sal­tado das costas do pássaro para o mar saudável, e deparando com alguma prancha, mastro, ou peixe, ou algo flutuante a que eu ma pudesse agarrar como urna craca, até que, talvez, o Cristal se apiedasse de mim e finalmente me apanhasse. Sen­tado ali, de manhã, três dias antes da Lua Cheia, sem saber se devia escorregar pela pedra lisa abaixo, e correr para baixo e para o mar, o pássaro branco voltou e sentou-se ao meu lado, cumprimentando-me com seus olhos simpáticos e ama­relos. Tornou a agachar-se para eu sentar em seu dorso e novamente voou por sobre as florestas para o mar e nova­mente fez um círculo ali bem acima da arrebentação. Nesse momento entendi por que o pássaro me fora buscar, o mar não era mais o poço fresco e salgado de sanidade que fora. Havia uma preguiça em seu movimento, como se ele tivesse adqui­rido mais consistência. Havia traços de deterioração. Vi cen­tenas de cadáveres da guerra no planalto boiando nas ondas. Tinham sido lançados no grande abismo e carregados pelo riacho, quedas-d'água e cataratas até à beira do mar. Por toda parte eu via peixes e criaturas marinhas flutuando, de barriga para cima, e sobre o mar havia manchas de óleo es­curo e com cheiro de minério. Sobre o mar, em manchas, havia uma fosforescência pálida, como uma podridão oculta que se revela eram os gases venenosos que se haviam libertado dos recipientes em que os homens os haviam afundado no fundo do mar e em outros lugares havia lençóis de luz como um vago fogo elétrico, que era a radioatividade de fábricas e usinas nas praias, separadas dali por oceanos ou continentes. O pássaro levou-me através de léguas de oceano sob um sol abrasador, obrigando-me a olhar para a morte do mar. En­quanto voávamos por ali toda a superfície do mar ficou sufo­cada de morte, peixes mortos e algas e mariscos e toninhas e golfinhos e baleias mortos, peixes grandes e pequenos, todas as plantas do mar, pássaros e cobras marinhos e focas. Depois, o meu belo pássaro branco ergueu-me mais e mais no céu e voltou por sobre as árvores para o planalto. Desta vez, esvoa­çou em circulo por sobre a cidade com seus prédios sem te­lhado, obrigando-me a ver que embaixo de mim a cidade toda, todos os prédios, estavam conspurcados pela guerra, e que por toda parte havia os montes de cadáveres, e que em cada rua os grupos de animais lutavam uns contra os Outros, já tão alucinados e fatigados que lutavam contra sua própria espé­cie, sem ter nem a desculpa de uma diferença de pêlo ou couro, ou a forma de um focinho ou olho. Lutavam macaco contra macaco, ratos-cães contra ratos-cães. A luta se tornara a sua própria justificativa e eles não conseguiam parar. Sob todos os arbustos e nos cantos de todas as casas jaziam os feridos, gemendo e lambendo suas feridas. No momento em que baixamos numa volta final, a menos de 20 passos da minha borda do penhasco, vi uma fêmea dos ratos-cães, com seu couro cas­tanho reluzente toda ensangüentada e lanhada, sentada de costas para uma parede, defendendo-se de dois ratos-cães machos, e ao mesmo tempo parindo. Os cãezinhos saíam de sua fenda vermelha num jorro de sangue e tecido, enquanto ela lutava por sua vida. As duas saliências redondas de seus pei­tos estavam inchadas e tinham sido dilaceradas, de modo que o leite e o sangue jorravam juntos. Seu focinho pontudo mos­trava um pedaço de carne peluda dependurada de seus dentes e, enquanto ela atacava e mordia os dois machos altos e cambaleantes que a ameaçavam, ficou tão alucinada pelo medo e pela necessidade de ajudar o nascimento de seus filhotes que, na luta, dava uma mordida fatal para a frente, num adver­sário, e depois mordia para baixo, suas crias. Depois outra mordida desesperada e a esmo num inimigo seguida de outra arremetida contra os filhotes, e de novo contra os inimigos que a cercavam. Parecia que ela estava lutando contra os filhotes tanto quanto os dois machos, tão alucinados como ela com aquela luta prolongada. Apesar de estarem tentando matá-la (ou pelo menos agindo de tal modo que ela tinha de se defen­der) e conseguindo alcançar o objetivo ela caiu em seu próprio sangue, quando passamos pelos grupos — seus órgãos sexuais estavam intumescidos, de excitação, e um deles tentou acasa­lar-se enquanto ela morria. A fêmea morreu num espasmo de parto e de morte.

Na borda do penhasco saltei das costas fortes e quentes do pássaro e deitei-me de bruços, chorando. Começava a acreditar que tudo se acabara, que não havia esperança em parte alguma nem para o homem nem para os animais da Terra.

Por fim, quando me levantei, o pássaro branco continuava ali, contemplava-me com seus olhos dourados, seu bico reto e amarelo curvado em minha direção, com seu modo severo, mas bondoso. Parecia querer que eu lhe desse atenção, e quan­do me refiz de todo e me aprumei, ele começou a caminhar pelas casas da cidade, na direção do centro. Ergui os olhos e vi que a lua devia estar quase cheia, a réstea prateada sobre o mar estendia-se para o céu, onde a lua nasceria. Eu queria que o pássaro parasse, pois receava que aquela criatura mara­vilhosa fosse morta pelas feras engalfinhadas. Mas eles pare­ciam estar mais sossegados. A guerra chegara ao fim. As disputas e brigas continuavam: pares ou grupinhos ainda lutavam. Mas havia bandos de ratos-cães e de macacos sentados, se lambendo, ganindo e gemendo. Embora tivessem lutado uns contra os outros havia dias, pareciam indiferentes à presença uns dos outros, os macacos lambiam os ferimentos dos ratos- cães e os ratos-cães aceitavam aquilo como homenagem ou submissão.

O pássaro levantou vôo e foi rasando pelas ruas, em dire­ção à praça. Eu o acompanhei. Lá, o pássaro pousou, dobrou as asas, ficou reto, com seu bico amarelo estreito abaixado duro. E, no momento em que o meu coração disparou de medo que ele fosse morto, vi que todos os animais tinham-lhe medo. Por toda parte, na grande praça de pedra, os animais recuavam, os macacos guinchando e fazendo caretas, os ratos-cães, novamente de pé, recuando, espiando por um dos lados do focinho e depois pelo outro até se sentirem a salvo, então puse­ram-se de quatro e fugiram.

O pássaro ficou quieto, no meio do círculo. Compreendi que ele estava ali para proteger-me. Comecei o trabalho de arrastar Os animais mortos para o mais longe que podia. Quando fiz isso, ,ambas as espécies de animais foram até junto dos montes e levaram seus mortos, provavelmente para o abismo onde o rio mergulhava, ou talvez para uma última festa de canibalismo embora parecesse que tivessem novamente perdido o gosto pela carne e estivessem experimentando as frutas, como se fosse uma sensação nova e não a sua alimen­tação normal. Mas eu tinha muita coisa a fazer e não podia mais ficar olhando para eles. Quando a praça ficou limpa dos animais mortos, tornei a arrancar alguns galhos e a varri. Depois, tive de desentupir os veios d’água que estavam api­nhados de folhas, terra e esterco. Por fim tornei a carregar água na pedra cavada que tinha sido um almofariz, despejei-a por toda parte, varrendo-a depois com ramos cheirosos. Tra­balhei a noite toda sob a lua branca e brilhante e todo o dia seguinte sob um sol abrasador. Lá estava o pássaro amigo, branco e lustroso, seus olhos dourados vigilantes, o bico ama­relo severo apontado na minha direção. A princípio, alguns animais se aproximaram, pretendendo reivindicar a praça, porém a o verem o pássaro, recuavam. Afinal cheguei à con­clusão de que não estavam mais à vista. Passei a não ouvi-los mais. Tinham ido embora de vez do centro da cidade. Talvez até tivessem a deixado por completo. No fim daquele dia a praça e o círculo lindamente desenhado e colorido que ela encerrava estavam limpos, o ar tinha o aroma de água e folhas perfumadas e, parado ali no crepúsculo, eu ouvia a água cor­rendo sob os meus pés em seus canais de pedras. O ar estava cheio do perfume de flores. Um último passarinho cantou de uma árvore próxima.

A Lua Cheia nasceu diretamente do mar, lançando uma luz prateada sobre a Terra, desde a beira-mar até às monta­nhas altaneiras. A lua foi subindo por entre as estrelas, o pássaro branco levantou as asas e voou para cima, para o alto, alto, de volta para a lua.

Caminhei da periferia da praça para o centro, postando-me numa posição de espera na borda externa do círculo, olhando para o centro.

Espero que agora se reconheça que esse medicamento é contra-indicado nesse caso. Depois de uma ausência de cinco dias, fiquei chocado ao ver a piora do paciente. Quando o vi hoje de manhã, tornou-se evidente que ele tem menos noção da realidade do que quando foi inter­nado. Pelo que a enfermeira diz, meu diagnóstico é que ele passa grande parte do tempo em coma.

Dr. Y

Este caso foi completamente esgotado na conferência de quinta-feira a qual você não compareceu. Os efeitos desse medicamento muitas vezes não se fazem sentir total­mente antes de três semanas, como já procurei explicar. O paciente está seguindo esse tratamento há 12 dias.

Dr. X

Havia uma pressão de silêncio que me levou a uma imensa calma. Eu estava dentro do Cristal, cujo vértice tinha absorvido toda a sensação, como um remoinho de pó atrai a terra e folhas de metros em volta, ou como a água do banho, espi­ralando ao descer pelo cano exerce sua atração sobre todas as partículas da água na banheira. Olhando para fora, não restava nada do que ali estivera antes — ou era o que parecia a princípio, pois o princípio de minha absorção no Cristal foi uma escuridão mental aliada a uma limpidez de sentidos que só lentamente consegui equilibrar. Parecia que o Cristal es­tava encontrando dificuldade em absorver a minha rudeza rela­tiva. Esse conflito travou-se dentro de mim, bem como nele, durante os primeiros momentos. Mas a primeira coisa de que tive consciência foi que o tempo tinha mudado de ritmo e vibrava de modo diferente. Foi esse o primeiro assalto ao meu padrão habitual de matéria. A meus olhos parecia que eu estava num mundo de vidro límpido, ou melhor, talvez, de uma névoa cristalina. Meu corpo sentiu uma náusea, que só tive consciência exata quando ela começou a passar, pois me dominara numa totalidade básica — da qual não se tem noção. Por exemplo, ao respirarmos o ar comum, os nossos pulmões estão adaptados para absorver um gás venenoso (venenoso para outras criaturas visitantes, ou talvez para nós mesmos, um dia) chamado ar. A náusea parecia um torno apertado, trancando-me numa tensão contra ela. Afinal passou, e uma leveza deliciosa apossou-se de mim. A dor pesada da gravidade desa­parecera: aquela dimensão era livre e deliciosa como a patina­ção, ou o vôo entre as asas de um pássaro da guarda. No en­tanto eu tinha um corpo. Mas era de uma substância diferente, mais leve, mais fino, tênue, embora eu reconhecesse a sua semelhança com a minha forma normal da matéria. Aos poucos os meus sentidos, os meus sentidos novos, foram-se estabili­zando. Eu estava dentro de uma luminosidade colorida, o meu novo corpo, e essa luminosidade fazia parte, como uma chama no fogo, do giro do Cristal e este ardia branco, uma dança invisível, onde estivera o centro do círculo na praça e ainda estava, pois eu via seu esboço., era o espectro de seu esboço. Agarrando-me ao princípio ou centro de minha visão, ou melhor, sentimento, deixei que essa visão — ou talvez a palavra fosse Compreensão — se movesse para fora e rodasse. Ou talvez fosse mais preciso dizer que permiti que ela se expandisse, como a luz se propaga, e vi que aquela cidade naquele planalto realmente existia na nova dimensão, ou plano de vibração. Mas, como o meu corpo agora era uma forma na luz, embora não uma luz tão bela e elevada quanto a substân­cia do próprio Cristal, assim também era a cidade: era como se a cidade de pedra e argila se tivesse dissolvido, deixando uma cidade espectral, feita de luz, como uma névoa iluminada que contém sombras ou ecos. No entanto, a cidade que se erguia por toda parte à volta de mim na mesma forma da cidade que eu conhecia tão bem era mais fina, mais esparsa. Era um lugar mais delicadamente enquadrado. Isso não quer dizer que as casas ou prédios públicos delicadamente esboça­dos, como um traçado numa vidraça gelada, desenhos de es­trelas ou hexágonos, fossem menos firmes e distintos do que as formas da cidade sólida, construída de pedra, e sim que havia menos casas e prédios nessa cidade de sombras do que na terrena. Como se aquela cidade tênue, que eia o padrão, a chave e a planta para a cidade externa, só se adaptasse a certas partes ou zonas ou prédios individuais na cidade exter­na. Parecia que a cidade delicadamente bela se «encaixava» melhor sobre certos prédios públicos e algumas casas. Entre estas, havia zonas em que a névoa aparecia vazia, sem formas construídas nela. E, no entanto eu sabia perfeitamente — pois àquela altura eu conhecia muito bem a verdadeira cidade em que eu tinha caminhado, vigiado e esperado durante sema­nas — que aquela «verdadeira» cidade de pedra tinha casas e prédios aqui e ali e aqui e ali — enquanto que não estavam presentes no modelo interno, ou gabarito. Começava a com­preender, em minha nova forma espiritual, que as zonas da cidade em que o modelo interno não era suficientemente forte para se impor eram aquelas em que havia um peso e impene­trabilidade exagerada em sua substância. Enquanto que as partes da cidade refletidas na planta interior traziam, por assim dizer, embutida dentro das pedras uma amostra ou parte daquela bela luz ou substância interna.

Tornou-se evidente para mim que, quando eu andara em minha forma normal pela cidade de pedra, e percebera, como tanta gente percebe de vez em quando, um ar mais fino nesta ou naquela casa, salão ou prédio público, o que eu estava regis­trando eram os lugares ou Zonas em que o modelo interno estava vibrando em seu pensamento tecido por si.

Pensamento... eu estava pensando... o Cristal era um pensamento que pulsava e girava. Minhas simpatias tornaram a se expandir, minha mente foi lavada, e então vi nos arredores daquela cidade pontos de luz que se móviam. Estavam em grupos ou manchas e se afastavam da cidade. Vi que eram as tropas dos ratos-cães e macacos, mas novamente eram menos numerosos do que eu me lembrava, assim como essa nova cidade delicada era mais fina e mais esparsa do que a externa. Naquela atmosfera interior, apenas alguns dos animais eram refletidos. Minha mente se movia por eles como um pássaro com suas asas. Percebi que, dentre aqueles pobres bichos presos em suas necessidades, alguns às vezes respira­vam aquele ar mais fino, mas que a maioria não o fazia. A maioria era tão grossa, pesada e sem redenção possível quanto o volume da pedra e terra que não tinham em sua massa o ar cristalino. No entanto, alguns possuíam alguma luz dentro de si. Esta luz não parecia condizer com qualquer qualidade moral de grupo ou de bando. Por exemplo, um ponti­nho triste de uma luz vagamente vibrante, que, não obstante, era mais brilhante do que a maioria em sua constelação, era a de um animal que consegui reconhecer e ele era um dos mais violentos, enérgicos e ativos de todos; e outro pertencia a um macaco palhaço e brincalhão. Outro ainda marcava uma macaca bem diferente dos dois outros, referia-se a uma ma­caca que era muito obcecada por seus dois macaquinhos, ela era um animalzinho atarantado e rabugento, e no entanto sua estrela reluzia tão forte quanto as dos dois machos agressivos. Esses bandos de luzes móveis, ou pingos iluminados, como glóbulos de umidade reluzente no remoinho de uma névoa lu­minosa, afastaram-se e desapareceram. Percebi que se eu fosse movimentar-me lã fora naquele momento, com minhas pernas normais, sujeitas à gravidade, a cidade se tornaria límpida de novo. Os animais que brigavam e se matavam tinham pas­sado dos subúrbios da cidade, mesmo além da floresta onde eu vira as mulheres na Orgia. Passei, então, a explorar aquela floresta com os tentáculos de meus novos sentidos e encontrei um paraíso de plantas, folhas e desenhos de ramagens, tudo estruturado na luz. Uma cena no mundo normal que mais se aproximaria daquilo seria a de uma floresta depois de uma leve nevada quando é a forma essencial dos galhos e das árvo­res que nos é apresentada, bem delineada, brilhante e branca aos olhos acostumados a uma confusão de detalhes verdes, luxuriantes, ternos e vivos. Naquela floresta paradisíaca Feli­city, Constance e Vera não eram representadas de todo, e no entanto, quando os meus pensamentos se detiveram sobre a recordação do que estivera lá, uma compulsão ou pressão ou necessidade intrometeu-se neles: uma exigência dos excluídos, uma reivindicação. A recordação das noites em que eu bebera o sangue e comera a carne com as mulheres sob a lua cheia acudiu à minha nova mente, houve um abalo e depois um reacerto em sua estrutura, enquanto eu aceitava e mantinha a recordação. Fui mais adiante nos meus pensamentos, mas agora as mulheres estavam alojadas em minha mente, minha nova mente. Eu sabia, embora vagamente, naquela ocasião pois vim a «saber» tanto depois que aquelas noites ter­ríveis em que eu fora atraído para longe do centro da cidade, para junto das mulheres assassinas, se haviam tornado uma página em meu passaporte para aquele estágio na viagem. Quando esse pensamento apareceu, apareceu mais outro — ou, como já disse, os primórdios de uma idéia, tudo era primor­dial, As mulheres agora estavam facetadas em minha mente nova como células numa colméia, raios de luz colorida, os meus companheiros que eu vira piscando, faiscando e fluindo dentro do brilho branco maior do Cristal, também estavam facetados comigo, e eu com eles, nessa estrutura interna, eu compreen­dera isso desde o momento em que o Cristal me absorvera para si, e era por isso que eu esquecera de buscá-los. Naquela dimensão, as mentes estavam lado a lado, peixes num car­dume, células numa colméia, chamas no fogo, e juntos formá­vamos um todo, uma unidade em que era quase impossível definir onde começava Charles, onde John ou Miles ou Felicity ou Constance terminam. Enquanto em minha mente se processava essa nova expansão para a compreensão, um movimento para o exterior, para a compreensão, somente possível devido à minha fusão com as pessoas que eram amigas, Com­panheiras, amantes ou associados, um todo porque eu estava preso como um pedacinho de vidro num mosaico, em algum lugar perto, havia um grande peso de frio. Percebi que todo o tempo houvera esse peso, essa pressão de um frio gélido, mas que eu não tomara Conhecimento dele, como, de início, eu não tomara conhecimento da náusea que me comprimia. Isso fora total, e não se podia isolar de meio estado geral. Esse terror de frio era assim. Foi aí que tomei conhecimento dele, ou assim creio, pela primeira vez, pois como já disse, só depois pude seguir os fios a um determinado broto ou início em meu pensa­mento naquelas primeiras explorações de meu novo modo de sentir. Mas não havia dúvida de que a essa altura esse conheci­mento alojou-se firmemente em minha cabeçal: o peso frio, uma compulsão, uma necessidade, como se fosse uma ameaça manti­da à distância pela humanidade e sempre esperando ali, as mandíbulas do crocodilo sempre ali, logo abaixo da superfície. Era uma dor e um medo antigos demais para mim, era uma tris­teza criada na essência da raça. Saudei-a e passei adiante, pois, como a náusea envolvente, anterior, isso era parte de minha vida, trabalhada dentro de minhas fibras, uma necessidade como a respiração e associada a ela: esse frio, esse peso, essa atração, arrastamento e compulsão. Era um ímã velho demais para um indivíduo combater, ou mesmo conhecer e localizar com precisão. Estava ali.

O mundo girava como a bolha de matiz mais delicado, todo luz. Era a mente da humanidade que eu via, mas esta não devia ser separada da mente animal, que se casava e fun­dia com ela por toda parte. Tampouco era uma questão de mais elevado ou mais baixo, pois assim como o fato de eu ter bebido o sangue e comido a carne com as pobres mulheres tinha sido uma porta, uma chave e uma abertura — pois todo o conhecimento compreensivo tem de ser isso, essa fusão como uma teia cujos fios são todos ligados e vibram com os outros — o bote de uma águia sobre um camundongo, a exultação fria da águia e o pavor do camundongo constituem uma combi­nação na natureza, e essa harmonia funciona numa pulsação mais forte na teia interior de que faz parte. Assisti a um espiralar pulsante de todo o ser, mudando continuamente, movendo-se, dançando uma dança controlada e impelida, mantida dentro de seus limites pela sua natureza. Parte dessa neces­sidade era a junção do padrão interno na luz com o mundo exterior de pedra, folha, carne e luz comum.

Nessa grande teia envolvente de uma luz sempre em mudança moviam-se as chamas, os tons, as emoções de luz que cantavam e ressoavam, em notas mais profundas e mais agu­das, de modo que o que vi, ou melhor, aquilo de que eu fazia parte, não era nem luz nem som, porém a região em que essas duas identidades se tornam uma só. A bola de luz ou som pulsante estava encaixada no mundo terreno que envolvia e —• como eu já vira no caso dos prédios da cidade e os bandós de animais, aqueles pobres animais destruidores — por toda parte no mundo terreno havia as rachaduras e junções de uma substância mais elevada, um ritmo mais refinado no tempo ou na luz ou no som que formava canais para que a esfera envolvente superior se alimentasse da inferior. Deitado lá fora, no espaço, eu via, através das membranas coloridas e rodopiantes, como vemos através das paredes rodopiantes de uma bolha de sabão pendurada de um tubo fino seguro nos lábios que sopram o ar para dentro dela, que o mundo colorido que conhecemos, o mar e a terra, as montanhas e o deserto, tudo estava num rodopio de pressão de matéria, e aquela criatura pendurada lá no espaço, envolta por seu delicado invólucro exterior, à primeira vista, e a um olhar bem demorado, era vazia, pois a humanidade só era visível quando se chegava perto, onde suas provas, cidades e aglomerações e obras apa­reciam como os piolhos aparecem nas junções e frestas. A hu­manidade era uma minúscula crosta cinzenta aqui e ali na Terra. Dentro de manchas que pareciam estacionárias, imóveis, as partículas diminutas se moviam, porém em padrões deter­minados, de tal maneira que olhando para baixo, para um fragmento dessa crosta de matéria, menor do que o menor dos grãos de areia, poeira ou pólen, até a curva parecia feita pela viagem de um grupo dessas coisas de um continente para outro como um piscar de uma oscilação numa grande teia de modelos de oscilações e estremecimentos.

A Terra estava dependurada em seu peso, colorida e ma­tizada aqui e ali, a maior parte com o tom azulado da água... os grandes oceanos se haviam tornado nada mais que uma névoa de uma substância escorregadia, cobrindo parte da su­perfície do globo. Sim, todo aquele drama dos profundos mares azuis que encerravam sua vida secreta ainda desconhecida, e as tormentas e vagas estrondosas e marés provocadas pela lua se haviam tornado uma mancha tênue de uma substância escorregadia num globo áspero de matéria, e humanidade, vida animal e vida dos pássaros e dos répteis e dos insetos — tudo isso eram variações numa pequena crosta nesse globo. Inse­tos, micróbios. E, no entanto — era principalmente ali que a teia envolvente de luz sutil tocava o globo terrestre. Na maio­ria, era por meio dos átomos e partículas da humanidade. O que, visto do ponto privilegiado da teia de luz envolvente (interior ou exterior, como se preferisse considerá-la), esses entes não viam em absoluto uma questão de entes individuais, e sim uma questão de Todos, grandes e pequenos, pois os grupos e bandos e tropas e multidões formavam os entes, formavam os Todos, funcionando como Todos. Aproximando-me mais na teia da compreensão, que era a natureza desse sino envolvente de luz, vi como os desenhos de luz, as cores, as contexturas, as vibrações de luz fraca ou forte não eram apenas semelhança, mas identidade. Por todo o globo corriam essas vibrações ou linhas, ligando os grupos de indivíduos, grupos que não eram necessariamente nações ou países — em certos momentos eu via que uma mancha de líquen brilhava num esplendor de cor (ou som) e isso era uma guerra civil ou uma manifestação de emoção nacional, porém mais freqüen­temente, quando uma região de cor se movia e concentrava, cantando em sua própria nota, era composta de partes de nações de países que se haviam separado ou destacado de seus grupos de origem e estavam-se guerreando — notava-se que a conflagração de uma pequena região era muitas vezes a junção de dois fragmentos ou pulsações, que então se torna­vam da mesma cor, o mesmo som. Mas as linhas ou pulsações que corriam e passavam por toda parte nesse globo, que era o mais consistente, não eram as conflagrações da guerra, e sim as que representavam as várias profissões, de modo que os legisladores sobre a terra não só estavam no mesmo «com­primento de onda», como eram os mesmos, parte do mesmo órgão, ou função, mesmo que estivessem em países em guerra ou inimigos, e assim também com os juízes e fazendeiros e funcionários públicos e soldados e oradores e financistas e es­critores — cada uma dessas categorias era uma, e daquele ponto privilegiado era divertido ver como desapareciam com­pletamente os ódios, as rivalidades e concorrências, pois os átomos de cada uma dessas categorias eram um só, e os frag­mentos diminutos que constituíam cada pulsação ou batida separada (cor, som) eram um, portanto não havia vários juízes, e sim apenas o Juiz, nem soldados, mas Soldado, nem artistas, mas Artista, mesmo que eles se imaginassem estar num total desacordo. E nesse mapa ou plano que mostrava como milhares de identidades ridiculamente pretendendo ser importantes eram reduzidas a apenas algumas, havia outro padrão diferente, mas em alguns pontos condizentes, de uma luz (ou som) mais forte e mais rara que variava e pulsava e mudava como o resto, mas se ligava diretamente, fazia um elo e uma ponte, um canal de alimentação, entre a teia externa (ou interna, dependendo de como a pessoa olhava para ela) de pensamento ou sentimento, a bolha pulsante de cor sutil e envolvente, e o globo sólido terreno e aquoso do Homem. Não apenas um elo ou uma ponte, já que essa parte da humanidade era aberta como tantos recipientes são abertos à chuva, mas parte da teia cintilante de ser fluido e alegre, que era o motivo por que os pedacinhos de humanidade apressada, rixenta, luta­dora, inquieta e necessitada, as crostas de liquens ou fungos que cresciam aqui e ali no globo, os filhos do mar, estavam, despeito de sua distância da teia cintilante exterior, ainda assim sempre ligados a ela, pois a cada momento a tensão brilhante da luz cantante os inundava, no globo terrestre, ba­tendo em seu próprio pulso delicioso de alegria e criação. A teia exterior de luz musical criava a teia interior terrena e a mantinha lá em sua dança de tensão. E um punhado de pessoas, um fio delas, uma tensão leve como teia de pessoas por toda parte no globo, eram os canais por onde o ar ia para dentro da terra, alimentando-a e mantendo-a viva. Essa trama delicada imposta a (ou mais forte do que) outros padrões pulsantes não tinha nada a ver com a ética ou os códigos da humanidade, a moral do bando, de modo que às vezes esse ritmo mais alto e mais veloz cantava na vida de um soldado, às vezes na de um poeta, às vezes na de um político e às vezes na de um homem que estudava e traçava as estrelas, ou na de outro que estudava e traçava os pulsos fluidos infinitesi­mais que constituem o átomo, átomo esse que estava tão dis­tante dos átomos que constituem aquele molde ou crescimento, a humanidade, quanto a humanidade está das estrelas. E os itens dessa trama de conexão e alimentação (como uma grelha elétrica de humanidade) eram um só; assim como não existem soldados, e sim Soldado, e não funcionários e sim Funcionário, e Jardineiro e Professor. Pois, como qualquer categoria em qualquer parte sempre pulsa em seu próprio comprimento de Onda de som/luz, não podia haver indivíduos na teia de ali­mentação. Juntos formavam uma única pulsação na grande dança, uma nota na canção. Por toda parte e em todos os planos os pequenos indivíduos formavam todos, tocavam notinhas, formavam tons de colorido. Em todos os planos; até mesmo eu e meus amigos que o Cristal absorvera num todo, mosquitos sem importância, e minhas mulheres e meus filhos e todos os que eu tinha conhecido na vida — até alguém que eu tivesse encontrado numa esquina e a quem tivesse sorrido um dia — tocavam uma nota, formavam um todo. Era essa a verdade que dava à total insignificância dessas partículas o seu significado; na grande dança cantante, tudo se ligava e se movia junto, Minha mente era a faceta de uma mente, como células numa colméia. Deixando a minha mente repousar sombria, ali, inerte, um espelho para a luz, eu podia sentir, ou reconhecer um pulso de individualidade que um dia conhecera como o pobre Charlie, ou Felicity, ou James ou Thomas. Os pulsos da mente ficavam batendo e absorvendo ao lado do meu pulsinho, e juntos formávamos um todo, juntando-nos nesse todo com os milhares de todos diferentes que cada uma dessas pessoas tinha formado em suas vidas, estavam conti­nuamente em formação cada vez que respiravam, e por meio dessa teia, dessas teias, passava uma pulsação mais refinada, como a água corria por toda parte na cidade de pedra pelos veios d’água cortados ou construídos na pedra por homens que conseguiam classificar a elevação ou a queda da terra.

No entanto, enquanto eu observava, sentia tudo isso, compreendia tudo, tomava consciência daquele peso antigo, muito velho, o frio da tristeza de que eu tomara conhecimento togo depois de minha absorção naquela nova região de ser. Lá es­tava ele, quase à vista, mortífero e castigador, pois seu pulso era o de um peso frio, tinha de ser um contrapeso à alegria. Lá estava, perto, sempre — eu o reconhecia e, ao fazê-lo, me movia para fora e para diante, pois agora tudo estava aberto para mim e eu flutuava deliciosamente, como uma bolha na espuma ou domo se estivesse deitado à vontade no meio das asas estendidas de um pássaro.

A Terra física, como uma pedra redonda, revolvia erraticamente a uma distância em que se ouviria um grito. Girava devagar, muito bamba. Essa rotação fazia aparecer na super­fície do globo um sistema de traços, marrons, azuis e brancos, mas eu sabia que esses traços eram Os mares, continentes e calotas polares em movimento. O globo estava rodeado por seu invólucro de luz vibrante, mas através dele eu podia enxer­gar, como se estivesse espiando através de uma nuvem fina e opalescente. Eu via a Terra girar num tempo que não era o tempo da humanidade. Em algum lugar atrás de mim, ou na minha lateral, estava o vasto esplendor branco do sol, e nesse brilho constante a Terra girava. Eu estava ali firme, um minúsculo planeta do sol, olhando a Terra em sua rotação. Dia e noite não eram visíveis, a não ser num leve lampejo. A violenta oscilação para frente e para trás, que constitui as nossas estações, parecia um colorido verde que passava num piscar de olhos, e um espessamento momentâneo dos traços brancos nos pólos norte e sul. Àquela velocidade só o que eu podia ver era um girar em torno de seu eixo e um rodopiar em volta do sol e também ali estava o peso da tristeza fria, a compulsão, não lhe dei atenção, pois enquanto pensava na velocidade do planeta ele começou a diminuir o ritmo, depois estava girando com a velocidade necessária para que eu pu­desse absorver um desenho de terra e água, antes do desenho desaparecer de vista. Eu estava agora mais afastado do que antes, por isso quando o mapa de impulsos saltitantes se mos­trava eu não podia examinar os detalhes, mas podia ter mais perspectiva e reparar como o invólucro iluminado em volta da Terra vibrava e brilhava e mudava e estremecia em sua dança. Via muito claramente como esse invólucro que se agar­rava à superfície da Terra, como uma névoa branca de verão se agarra numa manhã quente, se combinava e falava com as regiões abaixo dele. Um continente, eu vi, dava a mesma sutileza de sombra — não totalmente uniforme, é óbvio, mas o suficiente para ser uma base reconhecível para quaisquer outras correntes que então corriam e dançavam por ela em sua teia de movimentos concordantes. Parecia haver alguma coisa, eu não sabia o que era, que fazia com que, digamos, a massa de terra que chamamos Rússia, a Rússia Européia, desse um fulgor que não mudava e esse tom era diferente do tom que dominava a massa que chamamos Ásia, e estas eram diferen­tes, mas firmemente diferentes, de outras regiões no mundo. Cada parte da superfície do globo tinha seu tom físico característico: era a sua vegetação (ou ausência dela), sua flora, fauna. Tudo era claramente diferenciado como o são a floresta e o deserto, o pântano e a montanha. A luz que pairava acima no mapa aéreo era seu espelho e seu irmão — seu gover­nante. Nesse mapa das correntes da mente — simpatias e sen­timentos — os países eram destacadas e continham o que lhes era necessário ou apropriado. Importava muito se um con­ceito de «nação» se coadunava com a região física abaixo dele. Quando estes não concordavam havia uma dissonância na luz e som. Eu tinha uma velha idéia (ou melhor, uma velha idéia foi transplantada para cima, para o ar mais intenso e rápido desse reino) de que, fossem quais fossem as mudanças de go­verno, ou os nomes que se dessem ao sistema de organização de uma nação, permaneceria sempre o mesmo sabor ou reali­dade naquele lugar, país, ou região — visto de onde eu estava, onde o tempo corria tão depressa, uma revolução do globo era como uma lenta respiração humana, eu estava assistindo a grandes movimentos de fatos humanos, como se pudesse, como ser humano, assistir por uma hora à mudança, cresci­mento e destruição repentina de um formigueiro. Olhei bem para a pequenina Inglaterra, tendo uma visão rápida quando ela passou girando. Vi como conservava sua, própria pulsação, era uma cor, um estado, um som — pois todos os países, cada um deles, cada pedacinho ou parte da humanidade, estava cheio de leis que não podia modificar. Eram manipulados por cima (ou por baixo) por forças físicas que por enquanto nem chegavam a suspeitar — ou que não suspeitavam naquele momento do tempo porque fazia parte do estado daquele peque­nino organismo descobrir e esquecer e descobrir e esquecer — aquele era um momento em que tinham esquecido e estavam novamente prestes a descobrir.

Pensei que eu gostaria de ver a Terra apressar um pouco o seu ritmo, mas não tanto quanto antes, quando a volta de um ano em torno do sol parecia o rodopio de uma moeda. De fato, ela acelerou, e então vi outros desenhos de luz, ou de cor, se acentuarem e desbotarem e se casarem e fundirem e moverem, e quando pensei que todos esses desenhos não passavam de um Composto das pulsações individuais mais lentas e das correntes que eu vira antes, e que estavam constituindo a névoa brilhante e colorida que era o invólucro do globo, ocorreu-me que o invólucro brilhante do globo parecia estar sustentado ou seguro por outra coisa, assim como ele, em seu lugar, continha os ritmos da Terra, a nossa Terra. A minha mente tornou a fazer um movimento para fora, querendo se expandir em direção à compreensão. Vi, então, como as linhas e forças e correntes de força e entendimento e de antagonismo dançavam numa teia que era o sistema dos pla­netas em volta do Sol, tanto que uma parte do Sol, com seu brilho espalhado por toda parte no espaço, mantinha os planetas intimamente ligados como se eles fossem apenas crista­lizações ou endurecimentos de sua matéria vaporosa, momen­tos de densidade no vento solar. E essa teia era um ferro, uma necessidade tremenda impondo o seu desenho.

Olhei enquanto a Terra girava depressa, mas ainda de modo que eu podia ver a modificação e crescimento e desaparecimento dos desenhos, e, enquanto os planetas se moviam e entrelaçavam e se alteravam e se aproximavam uns dos outros e tornavam a afastar-se — exercendo uma pressão de forças uns sobre os outros que os prendia a todos na Terra as pequenas crostas de matéria que eram os homens, que eram a humanidade, se modificavam e se moviam. Assim como as águas, os oceanos (lum pequeno véu de matéria fluida sobre a superfície do grande globo) se moviam e oscilavam sob a atração do Sol e da Lua, assim também o fazia a vida do homem, oscilando em sua teia de necessidade, em seu lugar na vida dos planetas, uma crosta diminuta na superfície de um espessamento do hálito do Sol, que se tornava visível e se chamava Terra. A humanidade era uma pulsação na vida do Sol, que lá estava ardendo numa vasta explosão branca de vários tipos de luz, ou som, alguns mais fortes e mais es­pessos, outros tênues, mas em todas as forças cujo fluido ema­nava para o espaço abraçando todas essas migalhas e gotas e chaminhas numa dança e a força que as mantinha lá cir­culando e girando em sua dança era o Sol, a energia do Sol, e era esse o governante controlador de todos, perto de cuja força todas as leis subsidiárias e as necessidades não eram nada. A terra, alma, coração e centro desse pequeno sistema solar era a luz e o pulso e o canto do Sol, o Sol era rei. Se bem que essa força central esse centro majestoso de nossa teia, fosse uma essência de todo o sistema, via-se que mais para fora e longe do centro, onde se movia o pobre Plutão escuro, talvez pudesse ocorrer que a atração e puxão e pressão dos planetas parecessem mais imediatos, talvez lá fora, ou mais longe a noção de que o Sol ainda é a profunda nota de órgão, que é a base de todo o ser, esteja esquecida mais esquecida ainda do que na terra, girando ali tão torto e triste e cala­mitoso, com seu peso de necessidade fria tão próximo. E tal­vez, foi o que pensei ao ver a dança do Sol e seus companhei­ros, Mercúrio, o companheiro mais próximo do Sol, fosse o único que pudesse conservar firmemente a consciência do canto básico do Sol, sua necessidade, sua intenção, Mercúrio cujo nome também era Thot, e Enoch, Buda, Idris e Hermes e muitos outros estilos ou títulos nas histórias da Terra, Mer­cúrio, o Mensageiro, que levava as novas, ou informações do sol, o disseminador de leis do centro cantante de Deus.

Sim, mais longe ainda, no terceiro planeta girando tortuosamente, é mais difícil conservar essa sabedoria, a sanidade e simplicidade do grande Sol e, na verdade, a pobre Terra está longe da graça, portanto era fácil ver, pois naquele ritmo de rotação que me permitia assistir claramente o casamento dos fatos na Terra e no resto de seus planetas irmãos, vi como as guerras e fomes e terremotos e desastres, inundações e ter­rores, epidemias e pragas de insetos e ratos e objetos voadores vinham e iam de acordo com as pressões das combinações dos planetas e do Sol — e da Lua. Pois uma nuvem de gafanhotos, uma epidemia de vírus, como a vida da humanidade, é coman­dada de outro lugar. A vida do homem, aquela migalhazinha de matéria, nem mesmo visível até a pessoa descer bem perto, como um pássaro desce e sobe para um exame rápido de um reluzente cardume que enruga o flanco largo da onda, aquela intensidade e tamanho e saúde daquela pulsação são estabele­cidos por Mercúrio e Vênus, Marte e Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão, e seus movimentos, e o centro de luz que os alimentava a todos. O homem, essa centelha de vida, tinha seu número reduzido, ou se multiplicava, era pacífico ou assas­sino — na servidão. Pois quando irrompia uma guerra, envol­vendo a metade das massas terrestres do globo, ou quando a população da Terra dobrava num punhado de anos, e pela primeira vez na história conhecida, ou quando, em todos os lugares em que vivia o homem eles se amotinavam ou briga­vam e discutiam e berravam e matavam e choravam o seu destino, tudo isso era porque o equilíbrio dos planetas tinha mudado, ou um cometa se aproximava demais — ou a lua falava, dando voz ao frio, à compulsão. Então, aproximando-me o mais que poderia ousar, para espiar, vi como a Terra e sua Lua giravam e seguiam suas órbitas e que tanto a terra como a água pulsavam e se intumesciam e vibravam na Terra, como a matéria se intumescia e se movia e vibrava na lua, na Lua fria, na Lua fria e morta, a irmã fria da Terra quente, a enteada, a Lua terrível que suga e se agarra à terra quente que tem vida, pois a Lua queria viver, a Lua havia de viver, a Lua parecia um pobre bebê que nasce morto, mas o bebê queria viver, lutava para viver, como Os ovos sugam o visgo dos ossos da galinha e os fetos puxam a vida de suas mães, a Lua sugava como sanguessuga e era como um ímã de neces­sidade que era o primeiro metrônomo na dança dos planetas, pois era a mais próxima, era a gêmea destituída e meio famin­ta, o outro ser da terra, a Necessidade.

Ali estava o terrível peso frio do desgosto que pairava na borda de minha mente desde que eu fora absorvido pelo Cristal — o conhecimento da Lua e sua necessidade. Tão próxima era a Lua, ela fazia parte da terra, era a terra — vistas daquela distância reduzida elas pareciam duas irmãs, sempre movimentando-se em volta uma da Outra. A Lua estava tão próxima, a força sempre presente que é mais fácil não notar quando a pequenina mente humana busca razões e respostas. Muito mais fácil olhar para fora — bem para fora, além mesmo das órbitas mais longínquas de Urano e Plutão — para Riga, até para aquele outro espelho, a distante Andrômeda e, além disso para...

Ah, sim, é isso que a nossa mente faz com maior facili­dade, mas bem aqui, pertinho, tão perto que está enlaçada conosco numa dança que move as águas e a terra nas marés duas vezes por dia, e corre em nossas veias e artérias e as marés do pensamento em nossa mente — perto, carne de nossa carne, pensamento de nosso pensamento, a Lua, enteada da Terra, determinando o nosso tamanho, o nosso crescimento, alimentando os apetites e criando-os. A Lua girando mais perto da Terra torna os animais e as plantas desse e daquele tamanho e a Lua perdida ou desintegrada ou errando mais para longe modifica os animais, as plantas, a altura das marés e provavelmente o movimento das massas de terra e de gelo, modifica a vida de modo tão draconiano como uma chuvarada repentina no deserto muda as coisas da noite para o dia. Na superfície da pequenina Terra, uma película verde, e comb parte integrante dessa película, alimentada por ela, a crosta dos micróbios, a humanidade, louca, enlouquecida pela lua, lu­nática. Aos olhos celestiais, vista como um caldo de micróbios, sempre guerreando e destruindo, essa escória de micróbios pensa, pode-se ver, começa lentamente a sentir que é uma coisa só, uma função, uma nota na harmonia, e é este o seu problema e função, e onde a película da escória se supera, aqui e só aqui, e nunca onde esses micróbios malucos dizem Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, pois dizer Eu, Eu, Eu, Eu é a sua loucura, é aí que eles enlouqueceram, enlouquecidos pela lua, na curva, malucos, pois esses micróbios são um todo, formam uma unidade, têm uma só mente, um só ser e nunca podem dizer Eu, Eu, sem fazer com que os observadores celestiais riam às gargalhadas ou chorem de compaixão — já que, suponho, tenhamos a liber­dade de supor que existam a compaixão e o escárnio nos guardiões dós micróbios ou pelo menos temos a liberdade de não imaginar outras coisas — sendo a compaixão e o diverti­mento as nossas qualidades, mas quem sabe que tipo de cor ou de riso provocam as lágrimas, lá, naquele ar mais puro?

Algum tipo de divórcio houve em algum ponto do longo caminho desta raça de homens entre o «Eu» e o «Nós», uma espécie de terrível discordância e eu (que não sou eu, e sim parte de um todo composto de outros seres humanos, comb eles são de mim) pairando aqui, como que entre as asas de um grande pássaro branco, sinto-me como se estivesse rodopiando de volta (se bem que possa ser rodopiando para a frente, quem sabe?), sim, rodopiando de volta para uma voragem de terror, como um nascimento ao contrário, e é em dire­ção a uma catástrofe, sim, foi aí que os micróbios, o pequeno caldo que é a humanidade foi derrubado, sem sentidos, per­dendo a sua compreensão real, de modo que desde então a maioria tem dito Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, e não pode, salvo alguns, dizer Nós.

Sim, mas qual foi esse terrível golpe ou pancada? O que nos desequilibrou, afastando-nos do doce juízo de Nós? Dentro de um momento eu saberei, estou sendo sugado de volta como uma partícula revolta no turbilhão da água do banho, girando para a corrida, voltando, voltando, e depois, Pam! O Cometa, ele vem lançando-se do espaço tenebroso, dá à Terra uma pan­cada no estômago e, desviado do seu rumo, torna a disparar para dentro das trevas, levando consigo parte da atmosfera e deixando a Terra não mais rodando com firmeza e segu­rança, e sim balançando para frente e para trás, girando como um pião e toda torta, foi aí que nasceram as estações, amadas dos poetas, mas pior, o ar mudado, o ar que respiravam, que os mantinha sãos e sadios dizendo NÓS no amor e compreen­são pelo órgão que se desenvolvia num corpo celeste que eles eram. O ar que fora o alimento da compreensão sã e cari­nhosa tornou-se um veneno mortal, os pulmões desses pobres animaizinhos lutavam e mudavam e se adaptavam e seus po­bres cérebros, todos atrapalhados e aturdidos, esforçavam-se para trabalhar e trabalhavam mal. Uma máquina toda retor­cida, mas sempre perseguida e atormentada por uma estra­nha, quase recordação dos tempos de antes deles se terem envenenado e estragado, sem poder pensar, e se odiando em vez de se amando. E lá estava a pobre Terra, uma vítima, toda errada, mas logo eles se esqueciam, seu ar, recentemente enve­nenado tornava-se sua normalidade, um esquecimento pela vaidade, e..., mas, Colisão, veja, estou do outro lado da Catástrofe, estou antes dela. Embora também seja livre para dizer «depois», já que, como «para cima e para baixo», é mu­tável e depende inteiramente de como se olha para ela, da sua posição, assim como para frente e para trás. Mas como ho­mem, como micróbio, sou de antes da Colisão e num ar doce e carinhoso que ressoa de harmonia, é a harmonia. É, sim, e cá estou eu, viajante, Ulisses rumando para casa afinal, o explorador em águas conhecidas, tendo derrotado o vingativo Netuno, tendo a filha de Júpiter por amiga e guia.

Todos os homens fazem cavernas de sombras para os olhos, Com chapéus e mãos, órbitas, pestanas, testas, Para as delicadas pupilas ousarem olhar para a luz.

Nas terras do norte também onde a luz não tem sombra O homem ergue a mão para proteger a vista; È coisa que já vi fazerem no luar forte.

Diante de qualquer clarão muito forte, essa mão vigente Corre ao seu posto, fazendo um escuro; Como os do gato, os olhos do homem ficam grandes e

[suaves de noite.

São olhos novos, ainda não habituados a ver. Absorvendo facetas, individuais,

Ainda sem habilidade para os usarem redondos e certos.

Pensem: animais de quatro nós éramos, baixos,

Com o olhar horizontal bem guardado

Daquela claridade vibrante, chamejante de arder os olhos.

Porém tinha de vir esse dia inevitável Um animalzinho valente ergueu a pata ao galho, Puxou-se para cima — e cambaleou à sua altura.

Nossos bebês humanos nos mostraram como foi.

Eles escalam; nós, vigilantes,

Deixamos que aprendam a loucura de seu susto.

Naquela primeira aventura, a luz desceu em saudação, De igual a igual, um faiscar na mente, E o animal pensou ser «anjo» — como bem podíamos.

Uma pata, livre da terra, agarrava-se ao galho liso; A Outra, liberta, esperava, enquanto os olhos Erguiam-se afinal às aves e nuvens voando.

E assim ele se equilibrou ali, um anima] de pé. E o anjo, poupando o que ele mal ganhara, Levantou aquela mão inerte para proteger sua vista, Naquele gesto mais comum que é feito. O homem não pode olhar diretamente para seu sol.

Tenho de usar palavras quando falo com você. Provavel­mente aquela seqüência de palavras, «Tenho de usar palavras» é uma definição de toda a literatura, vista de uma perspectiva diferente.

Enredado como uma harmonia em Bach, parte de um disco de um colorido tão raro como uma água-viva, tudo har­monias vibrantes, o disco sendo uma voluta ou espiral, for­mada do sol e dos planetas e planetas, bebês e todos os seus agregados, também enredados no tempo de Andrômeda, no tempo da Galáxia, no tempo da Lua (Ah, que pena!) olhando para a coisa de qualquer ponto de vista que não o Tempo da Terra, é possível que uma mudança de ênfase de Saturno a Júpiter implicando uma mudança em todas as condições na Terra e levando séculos (nosso tempo) talvez possa ter sido obrigada a encontrar a sua mensagem assim: Que Júpiter lutou contra Saturno (ou Zeus contra Cronos) lealmente em luta mortal (ou imortal) e — não O matou — derrotou-o, e depois disso Júpiter foi Deus da Terra. Mas aqui está uma idéia e não pela primeira vez — claro que não, não há pensamento pela primeira vez — por que Deus? O mais vasto, mais majes­toso e, dizem, mais benévolo dos planetas cujos raios envolvem a Terra com justiça e igualdade (ao que dizem) e tocando em certas partes da humanidade, aquele mofo verde lutando para sobreviver em sua escória verde, se debatendo, mais especialmente do que outras partes. E no Monte Olimpo o Júpiter barbado dominava os outros deuses — não sem certa imper­tinência magnífica. Mas por que Pai? Por que Pai dos Deuses e Homens? Pois quem é o nosso Pai? Quem? Ninguém mais senão o Sol, cujo nome é a corda profunda sob todas as outras. Pai Sol, Amém, Amém, como os cristãos ainda rezam. Por que não o Pai Sol, como Senhor no Olimpo, por que Júpiter ou Zeus? Pois naquela montanha Febo Apolo era um deus como os outros, entre os outros — muito estranho, isso! Natural­mente, o homem não pode olhar diretamente para o seu Sol. Os deuses andam disfarçados, ainda hoje, como antes eram, ou poderiam ser, Pilares de Fogo — Campos de Força, Com­primentos de Onda, Presenças. Ê possível que o Sol, como outros monarcas, precise de delegados, e quem mais apto do que Júpiter, que é como um modesto espelhinho para o Sol, sendo, como o Sol, uma espiral de gases coloridos e tendo, como o Sol, sua coleção de planetinhas. Afinal de contas, o Sol é um elemento no enxame celeste numa base de igualdade com as Outras estrelas, badalando afinado com elas, e tendo seus principais assuntos com elas — pois isto não é mais que um universo hierárquico, quer queiram quer não, amigos de­mocratas. O Sol provavelmente pode ser considerado, embora para qualquer mortal pensar assim seja difícil, na verdade, um crime de lesa-majestade, como um átomo numa escala de tempo-e-movimento diferente, tendo camaradagem com outros átomos iguais, sendo todos unidades da galáxia, enquanto as galáxias são unidades e galáxias em outro nível, onde os sóis poluíam pequeninos como os homens (aquele caldo de micró­bios) aparecem pequeninos aos planetas. Bonecos russos, caixas chinssas! — e é por isso que não é irrazoável imaginar o Grande Sol dizendo displicentemente a Júpiter: «Seja meu delegado, meu filho! Tenho de tratar de negócios mais impor­tantes, nos meus círculos!»

Por que só Júpiter, quando um dia Saturno ocupava aquele lugar? — ou pelo menos é o que sugerem os velhos mitos. Mas por que é absurdo supor que os planetas, como, aliás, as estre­las — como as pessoas — mudam de natureza, se um planeta velho e responsável em sua maturidade pode dar contas de si de modo muito diferente da mesma criatura irrequieta quando jovem? Talvez Júpiter tenha sido promovido ao cargo, Senhor dos Deuses (como os mordomos são senhores nas copas, estan­do o Patrão e a Patroa muito longe para contar), um Deus delegado, enquanto Saturno ficou muito mal-humorado para o cargo. Afinal de contas, Saturno devorou seus filhos. Dizem que os anéis de Saturno são os restos esmagados de antigos planetas.

Quem sabe se o nosso sistemazinho é um sistema infeliz, e especialmente vulnerável a cometas visitantes e visitas intermitentes de vários tipos? Ou talvez todos Os astros, os planetas dos planetas dos planetas sejam tão sujeitos às calamidades súbitas quanto o são os homens, e o governo e administração corretos de um astro e seus planetas, ou, aliás, uma galáxia e seus sóis, seja um equilíbrio e economia prudentes das pro­babilidades e substâncias? Quem sabe se os seres não são movimentados nos planetas, numa ou outra forma, como as plantas são movimentadas num jardim, ou mesmo levadas para dentro, quando se espera uma geada? Quando aquele cometa veio disparado das trevas além de Plutão e colidiu contra a pobre Terra, talvez então houvesse avisos enviados por Júpiter (ou Saturno, se fosse seu reinado) — «Cuidado, Terra!» po­deria ter sido a mensagem. Ou ainda: «Pobre Terra, gostaria de mandar-nos alguns de seus habitantes para morar por umas cento e tantas gerações como Nossos convidados, até passa­rem os efeitos tristes da Colisão. Não em Nós, claro: chama pura é o que Somos, gás ardente, como o nosso Pai, o Sol — mas um de nossos planetas serviria bem, com um pouco de adaptação de sua parte.» Pois podemos supor, tenho certeza, que os Planetas são muito mais delicados e mais humanos do que a pobre fera Homem, que ergue seu focinho sangrento ao seu céu lúgubre, para uivar a sua desgraça e sua exaustão entre as batalhas com sua própria espécie.

E quem transmitiria essas mensagens? (Eles têm de usar palavras quando falam conosco.) Pois pode-se imaginar que Hermes ou Mercúrio (ou Tot ou Buda), o planeta mais próximo do sol, nosso Pai, possa transmitir mensagens dos deuses pelo fato de seu estado, o movimento e engrenagem dos pla­netas, fazendo com que ele (em certas ocasiões) mande à Terra substâncias tão invisíveis aos sentidos da Terra (porém não aos seus nOvos e a serem inventados ou reinventados instru­mentos) quanto o vento solar. Mas por que Mercúrio por que Mercúrio mensageiro de Júpiter... aqui há uma idéia de duplo, de substituição, como Júpiter com o Sol. Pois conside­rem como Atenéia, Minerva, é tão mensageira quanto Mer­cúrio, o filho mais próximo do Sol. Podembs acalentar a idéia — por que não? Mosquitos podem cantar para os reis e suas canções têm de ser adivinhações. Os mosquitos estão certos se terem idéias próprias, no segundo em que duram suas vidas. Mas talvez Minerva, filha de Júpiter, tenha a mesma posição vis-à-vis de Júpiter, que tem Mercúrio com o Sol. O nosso grande torrão de Lua fria como um anel de vidro, planeta de nossa planetície, tem relações bastante íntimas conosco, e as de Júpiter com os seus agora são doze? subsidiários? Talvez que a maior de todas, garota sadia, saltitante, meio mandona, mas bem bonita com seus olhos faiscantes, dê os recados do pai. Uma pulsação corre à terra, da filha de Júpiter, uma sincronização no mecanismo de Júpiter, os outros plane­tas, seus planetas, e faz um impulso que se transforma em pensamentos nas mentes dos homens.

Ou, as palavras tendo de servir como pulsações, impulsos, disparos, influências, matéria estelar, ventos estelares, ela se levanta, aquela Filha mais velha responsável, e diz a Júpiter: «Pai, não está na hora de você se lembrar um pouco daquela pobre humanidade e sua sorte, o pobre Ulisses sofrendo lá nos braços da feiticeira e só desejando voltar para casa. Você ainda não o castigou o bastante?»

Eu? pergunta o Pai. Você é sempre tão parcial, meu bem, tão emotiva. Em primeiro lugar, eu tenho tanto a ver com as harmonias cósmicas quanto qualquer outro. E em segundo lugar, não fui eu em absoluto, por certo você se lembra que era Netuno que o odiava? Ele desagradou ao mar, esse seu favorito.

Quem era Netuno, quando Homero vivia e cantava? Ah, o mar, claro... mas então, como agora, os mares como todas as outras forças e elementos, tinham seus planetas preferidos. Netuno, o planeta, é uma descoberta nova, ou é o que pensamos. Seja como for, Ulisses, o valente viajante, era odiado por alguma força ligada ao mar, o oceano em seu torpor, sua lou­cura limar, sempre acompanhando a lua. Foi ao Oceano que Ulisses desagradou, com quem não conseguiu ficar em har­monia, o oceano, criatura e escravo de nossa lua.

Netuno não tinha sido descoberto, foi descoberto por nós, o homem moderno. É o que sabemos, positivamente.

Há cem anos, mais ou menos (tempo da terra) os teólo­gos, historiadores e arqueólogos de todo tipo declararam categoricamente que o mundo foi criado há uns quatro mil e poucos anos e quem não concordasse com essa tese se via em maus lençóis, conforme mostram tão tristemente as memórias, bio­grafias e histórias do período. Que grande passo à frente, em matéria de sanidade e raciocínio real foi dado em tão curto espaço de tempo: eles hoje concordam que a idade do mundo físico é mais do que isso — ah, bastante mais, alguns milhões. Cem anos de pensamento erudito aumentou em milhões a idade da terra. Mas esses mesmos teólogos, arqueólogos e eruditos hoje pensam como pensavam há cem anos, quando se trata da idade das civilizações; não podem nem começar a conceder que as civilizações possam ter histórias muito velhas. Admite-se que a Terra tenha milhões de milhões de anos de idade, porém o aparecimento da civilização continua a ser marcado por volta dos dois mil e quatro mil antes de Cristo, dependendo do preconceito da escola arqueológica e da definição da civiliza­ção. Nós, hoje, somos a civilização, somos o máximo da huma­nidade, o pináculo que era o alvo de toda a evolução anterior, o homem do computador é o tal e dotado de uma sabedoria que aqueles bárbaros de antigamente não possuíam: de nossas alturas o homem regride ao barbarismo e dali ao estágio de macaco. Dizem (ou cantam) que a escrita foi inventada no terceiro milênio A.C.; a agricultura tem tal idade; a mate­mática tal idade e a astronomia é datada exatamente como o resto, tendo-se tornado científica no momento em que se divorciou da astrologia e da superstição. E tudo é datado e conhecido por coisas, fragmentos de coisas. Os filhos de uma sociedade obcecada com as possessões, os objetos, têm de pensar nas civilizações anteriores dessa maneira: escravos de seus próprios artefatos, eles sabem que os antigos bárbaros também o eram.

Cada vez que se escava uma nova cidade, as fronteiras (no tempo) são recuadas, com relutância — talvez uns du­zentos anos, ou meio milênio. Num planalto na Turquia foi exposta parte da camada superior de uma cidade, o que faz recuar uma forma elevada de vida humana (não se ousa dizer civilização) dez mil anos, e sob aquela camada há várias outras camadas, ainda não escavadas..., mas acham que os especia­listas dizem: «Não podemos fazer declaração alguma sobre a história humana, porque o nosso conhecimento (ou os nossos palpites) se limita ao último lugar que escavamos (parcial­mente)? Não, não, em absoluto, o que é o seu conhecimento atual — é o conhecimento, pois é assim que eles agem sem­pre, parece que têm de fazê-lo, é dessa forma que os seus infelizes cérebros se constituem.»

Bem, é pelo menos possível que os astrônomos de dez mil ou mesmo vinte mil, ou mesmo trinta mil anos atrás fossem tão inteligentes quanto os nossos o são; pelo menos é possível que a prova disso seja facilmente encontrada nas cidades facilmente escavadas — facilmente para pessoas cujas mentes estejam menos cerceadas pelos preconceitos de nossa época.

Podemos supor que os antigos astrônomos não acredita­vam necessariamente que o mundo tenha sido criado em certo dia há quatro mil e tantos anos antes de sua época, e pessoalmente por Deus.

Que compreendiam que as palavras tinham que ser usa­das em seu proveito — e compreendiam o que as palavras simbolizavam.

Que muito antes dos deuses romanos e os deuses gregos e os deuses egípcios e os deuses peruanos e os deuses babilô­nios, os astrônomos ouviam Júpiter e sua família, ou Saturno, e sabiam que Thot (qualquer que fosse o seu nome então) servia a Amon, o Pai (e aqui temos novamente a idéia de delegação, de substituição, pois Thot criou o mundo com uma palavra); e que havia nomes para os planetas, os sóis, as estrelas, e os grãos, glóbulos e gotas de terra e fogo e água; e que o seu padrão de sons e cores era compreendido e se contavam histórias sbbre eles, discorrendo sobre as Épocas e Fatos — por que não? Pois ninguém sabe o que se encontra sob as areias dos maiores desertos do mundo. Ninguém sabe quantas vezes a pobre Terra sofreu os golpes dos cometas, perdeu ou captu­rou luas, modificou seu ar, sua própria natureza. Ninguém sabe o que já existiu e desapareceu irrecuperavelmente, provas do número de vezes que o homem compreendeu e tornou a es­quecer que a sua mente e carne e vida e movimentos são feitos do material das estrelas, do sol, dos planetas; que o ser do Sol é o dele, e que tipos de acontecimentos se pode esperar, devido ao enredamento dos planetas — e como uma economia inteligente dos recursos da humanidade pode ser realizada, baseada sobre as previsões mais peritas e sensíveis por aqueles cujas mentes são instrumentos que gravam a dança celeste.

— Pai — diz a filha eficiente e mandona de Júpiter — por que você não manda Mercúrio descer e fazer alguma coisa por aquele pobre viajante, dopado, perdido ali em sua ilha? Ele podia pedir a Netuno para ser menos severo. Não é direito, sabe. Não é justo.

Bom, então trate disso, filha — disse Júpiter, o de­legado do Sol, que era muito ocupado, e com todos aqueles filhos levados, puxado de um lado para outro como uma dona-de-casa atarefada ou uma mãe cheia de filhos. — Veja o que pode fazer, mas olhe, lembre-se de que Nós, de Júpiter, não somos a única influência sobre a viagem do viajante. Não, é uma harmonia, é um padrão, o bom e o mau, tudo por sua vez, tudo espiralando — mas sim, é o momento oportuno para uma visita de Mercúrio. É exatamente o momento — Obrigado por me lembrar.

Saber quando é o momento é tudo — murmura Mi­nerva, dos Olhos Faiscantes, apressando-se em busca de Thot, ou Hermes, e encontrando-o girando em volta do sol numa órbita tão ofuscante e animada e alegre e, sobretudo, com tantas facetas e perfeição que era difícil acompanhá-lo.

Ah — diz ele — já está na hora de novo, está? Eu estava pensando mesmo que devia ser.

Você parece relutante — diz Minerva.

Estive visitando Vênus.

Todos sempre a preferem — diz Minerva, secamente. — Como todos sabem, ela e eu não nos damos. Ela é tão boba — é o que não posso compreender. Dizem que tenho ciúmes. Nada disso. O que não posso tolerar é aquele raio de falsidade, aquela tremenda hipocrisia. Nunca pude compreender como é que homens inteligentes podem suportar aquilo. E não vim aqui para falar de Afrodite. Estou aqui para falar da Terra, a pobre viajante!

O seu bom coração lhe fica bem. Mas não se esqueça, em parte a culpa foi deles.

Por ter roubado o fogo?

Claro. Se aquele sujeito não tivesse roubado o fogo, eles nunca conheceriam o estado terrível em que se encontram.

Você, Mercúrio, Deus das letras e da música e do — resumindo — o progresso, reclamando disso! Você não havia de querer que eles ficassem naquele estado primitivo e tenebroso, não é?

Eles não sabem utilizá-lo.

Isso é o que resta saber.

O que estou dizendo é que o conhecimento leva consigo a sua penalidade — claro, ele demonstrou iniciativa — como se chama mesmo, Jasão, Prometeu, aquele sujeito — no lugar dele eu poderia ter feito a mesma coisa. Comer a fruta quando mandaram que não a comesse...

Roubar o fogo — diz Minerva, sempre com uma ten­dência para o pedantismo.

— Ora vamos, não leve as coisas tão ao da letra, isso é equiparar-se a eles — diz Mercúrio.

E há outra Coisa — diz Minerva, meio severa. Diante do tom de sua voz, Mercúrio começou a irritar-se. Minerva também era metida a letrada e sabichona; suas idéias de justiça e direito (consideradas infantis por certos deuses, que se consideravam mais adiantados, filosoficamente) geralmente a levavam ao problema dos direitos da mulher e da vaidade dos homens.

Está bem entendido — disse Mercúrio.

Mas estará mesmo? — pergunta ela, severa. — A mãe dele era uma mulher terrena, certamente, mas quem era o pai? Então?

Ora, não comece, por favor — diz Mercúrio. — Você é mesmo enjoada, quando começa com isso.

Justiça — diz ela. — Eqüidade. Sou filha do meu pai. E quem era o pai dele? Com aquele sangue, ou melhor, fogo nas veias, não se podia esperar que ele vivesse na terra como uma toupeira, sabendo que a Luz existe e nunca tentando apanhá-la.

Não havia motivo para crer — diz Mercúrio — que ele estivesse nisso o tempo todo. Ele passeava pelo Jardim com Deus.

E depois comeu o que não devia. Roubou a Maçã, caro Deus dos Ladrões. E pagou por isso.

— E em resumo tudo está saindo como se esperava e segundo o plano, e com o Nosso auxílio.

Era preciso ver o progresso para poder fazê-lo.

Está bem, estarei pronto para partir quando chegar o Momento Oportuno,

Está bem seguro de sua atribuição?

Minha cara Minerva! É diferente, dessa vez?

É sempre a mesma Mensagem, claro...

Sim. A de que existe uma Harmonia e que se eles qui­serem prosperar têm de se manter na linha e obedecer às suas Leis. Isso mesmo.

Mas dessa vez as coisas estão bem piores mesmo. As estrelas em sua marcha, sabe...

Lutam do lado da Justiça.

À longo prazo, sim. Mas como o prazo lhes deve pare­cer longo, coitadas.

Em parte por culpa delas.

— Você hoje está muito severo. Às vezes chegamos a pa­recer que trocamos um pouco os papéis, não é? Você deve lembrar-se de que é o Deus dos Ladrões porque inspira, se não é que provoca, a curiosidade e o desejo do crescimento, em atos como roubar o fogo ou comer frutos proibidos ou cons­truir torres que pretendem chegar ao Céu e aos Deuses. Atos puníveis. Atos que, aliás, já foram punidos.

Talvez nem sempre seja fácil aceitar a responsabilidade por nossa prole. Será, cara Minerva? Pois os atos podem ser nossos filhos... Diga-me, é fácil para o nosso Pai, ou para você, reconhecer como parentes e amigos os atos de justiça que são de fato produtos de sua influência — e que podem, de certo modo, ser considerados como vocês, embora naturalmente por extensão? A Justiça continua a ser a Justiça, quando se condena um ladrão à prisão — e o ladrão roubou livros por não ter dinheiro para comprá-los. Num drama desses, tanto você quanto eu somos representados — e não é difícil saber qual o que aparece como mais simpático? Tem certeza de que não está achando o meu papel celeste mais interessante do que o seu, e que é isso que explica o seu interesse — que eu muito prezo, naturalmente.

Eu já devia saber — diz Minerva. — Só um idiota discute com o Mestre das Palavras. Pois bem, não posso real­mente desejar-lhe uma visita agradável, quando as coisas têm corrido tão mal.

Mas espera-se que elas tenham o potencial do bom em proporção ao mal — pois é assim que as coisas tendem a equilibrar-se.

O tipo do comentário que Costumo fazer, se me per­mite dizê-lo, e que parece irritá-lo, caro Mensageiro. Mas tem razão. Essa determinada combinação de planetas será, na verdade, tão poderosa — o equivalente a vários séculos de evo­lução, tudo em uma década, mais ou menos. Não creio estar me excedendo em minhas atribuições se disser que realmente existe certa ansiedade. Afinal de contas, ninguém pode dizer que eles jamais se tenham destacado por sua coerência, ou mesmo bom senso.

Estou certo de que a ansiedade está justificada. Imagi­no que haja os poucos que escutarão. Isso basta.

— É o que esperamos.     

E se o pior acontecer, podemos passar sem eles. O Jardineiro Celeste terá apenas de podar aquele galho e fazer outro enxerto.

Admiravelmente bem expresso! Aliás, quase tranqüili­zador, dito assim! Mas já se teve tanto trabalho e esforço com aquele planeta. Os mensageiros foram enviados lá várias vezes. O interesse de Nosso Pai (e naturalmente, transmitido a nós pelo Regente dele, o meu próprio Pai) certamente se exprime pela longa história do Nosso interesse, não? E houve aquele Pacto — o fato deles sempre o infringirem não é motivo para abandoná-los completamente. Afinal de contas, considerando-se tudo...

Você está se referindo diplomaticamente àquele negó­cio de antepassados de novo? Bem, seja qual for a natureza calamitosa das configurações celestes esperadas para breve e sejam quais forem as regressões do homem, o fato de que estou prestes a descer de novo (sim, reconheço que digo isso com um suspiro) mostra que os nossos respectivos pais estão bem a par da situação. E o que é mais — que há confiança no resultado.

Estou contente por vê-lo com esse bom espírito.

Cara Minerva, pode falar, Você quer dar-me bons conselhos, não é isso?

É só que... bem, afinal de Contas, o fato é que exis­tem mesmo uma dúzia ou mais de nós, filhos de Júpiter, e a família está crescendo, e alguns de nós não somos tão diferentes da Terra e, como irmã mais velha você deve compreen­der que já tive tanta experiência e...

Cara, cara Minerva.

Ah, bom, eu não queria irritá-lo. Vou embora, então.

Sim, vá, adeus.

E Minerva sai Voando.

Quanto a Mercúrio, o Mensageiro, ele se divide sem es­forço em uma dúzia de fragmentos, que caem suavemente pelo ar sobre a Terra, e os Batalhões do Progresso se fortalecem para a Luta.

Ah, sim, tudo muito extravagante. Sim, de fato, a maneira contemporânea é muito preferível, a saber; que a Terra deve receber uma série de impulsos do planeta mais próximo do Sol, o planeta mais próximo na espiral a partir do Sol. Conseqüentemente o Quadro Permanente na Terra é reforçado e a Conferência foi convocada para Vênus, e teve delegados até dos longínquos Plutão e Netuno, que normalmente pedem que lhes enviem transcrições. A essa altura, todos no sistema solar seriam afe­tados. O próprio Sol foi representado. Mas sua Presença era difusa; a luz brilhou com mais força depois de certo ponto e fez-se silêncio por um momento — só isso. Mas todos sabiam como esse fato era raro, e aumentou a sensação de urgência.

Minha Erve presidia. Mulher dominadora e animada, com olhos especialmente impressionantes, ela era a escolha natural, como filha mais velha do Chefe dos Delegados.

A conferência já estava quase terminando, e não faltava muita coisa a não ser o Sumário. Aqueles que não estavam na Descida já se levantavam e juntavam suas Coisas.

Minna Erve continuava a falar.

— Em resumo, isto é o pior de tudo. Os computadores já verificaram e tornaram a verificar. Isso por conselho lá de Cima (e aí a Luz vibrou, em reconhecimento), mas não há dúvida. O equilíbrio de forças planetárias exerce fortes pres­sões adversas, que alcançarão um máximo dentro de dez ou quinze anos. Anos deles, claro. Antes de partirem, eu gostaria que assistissem ao segundo filme, Previsão (Detalhes).

Os delegados se entreolharam, mas tornaram a se sentar. Minna podia ser conscienciosa demais, mas era bem verdade que, até a maioria deles chegar ali e notar a atmosfera daquela conferência especial, não tinham realmente percebido a urgência.

Já tinham visto o Filme da Previsão, mostrando a Terra como uma peça em seu lugar no sistema solar. A Terra demons­trara estar sob pressão, ao se mover, como os outros planetas, para as posições esperadas, antes de tudo pelo aumento de atividade na sua superfície. A princípio, era pouca coisa, mas cada vez mais se faziam notar os terremotos, maremotos e movimentos excessivos de todo tipo. O clima, sempre inóspito à vida naquele planeta, tornou-se mais rigoroso. As calotas polares derreteram-se ligeiramente, provocando o caos nas orlas marítimas. O Cometa acrescentou a sua cota de distúr­bios ao equilíbrio já bem delicado entre a Terra e seus vizi­nhos. Os representantes de Marte e Vênus tinham ficado sen­tados, com caras especialmente sérias. O que acontecia em qualquer parte do Sistema e, naturalmente, além dele, afe­tava a todos, mas os vizinhos mais próximos o sentiam pri­meiro: da última vez que a Terra teve uma crise, tanto Marte como Vénus tinham sofrido, e a recordação daquela época ainda era forte. Mas não fora possível a nenhum dos delegados, nem mesmo os de Plutão e Netuno, para quem os habitantes da Terra eram realmente alheios, assistirem ao fim do Filme da Pre­visão sem se assombrarem.

Mas esse agora era Previsão (Detalhe), a Terra em close-up, sozinha, sem nem mesmo a Lua. O filme anterior, que mostrava a Terra e a Lua como — por assim dizer — um átomo da molécula, demonstrara primeiro a modificação nas estações, o clima, a atividade da crosta, a vegetação. Esse Outro filme, numa escala menor e mais lenta, mostrava o aumento drástico da população, enquanto as florestas e a vida vegetal e animal diminuíam e os desertos se espalhavam, Pois à medida que diminuía a vida animal e das aves, os seres humanos se multiplicavam, para conservar o equilíbrio. A vida orgânica, necessária ao equilíbrio cósmico, tinha de ser mantida na Terra, e à medida que os seres humanos matavam e des­truíam a vida orgânica de que eles eram parte, o seu próprio aumento mantinha o equilíbrio. Mas sua agressividade e irra­cionalidade aumentava constantemente. Como sempre, era um processo total — uma faceta ou fator não se podia separar de outro. Não que a agressividade e a irresponsabilidade humanas aumentassem devido à explosão populacional, e que essa explo­são fosse devida aos movimentos planetários, não, tudo isso era parte de um único processo.

Os delegados assistiam com uma amargura cada vez mais acentuada às cenas que mostravam que as guerras, antes mantidas razoavelmente locais, se tomavam piores e se alastra­vam. No final, a destruição deixava de ter aquela pretensão à coerência. Em uma década, nações que haviam sido inimi­gas na década anterior se tomavam aliadas; inimigos que antes dedicavam todos os recursos técnicos à matança mútua de repente se tomavam aliados. Porém, os dispositivos técnicos estavam descontrolados; os instrumentos do massacre em massa e da destruição dominavam. Ao se alcançar aquela posição planetária que era então designada em todo o sistema como EMERGÊNCIA DE PRIMEIRA CATEGORIA, a atmosfera cada vez mais venenosa da Terra, as emanações da Morte e Medo em massa refletiam-se e afetavam — primeiro, Marte e Vênus — e seu desequilíbrio por sua vez se alastrava aos outros planetas e, como em demonstrado pela presença do Próprio Sol, ao Próprio Sol.

Quando os planetas saíssem da posição de Perigo, deveriam ocorrer modificações em todas as partes do Sistema, as quais naquele momento mesmo os computadores em milhões de labo­ratórios estavam ativamente prevendo.

O penúltimo estágio mostrado por Previsão (Detalhe) era mais violento do que o último. A Terra se agitava, arquejava e silvava, sob saraivadas de pedras, chamas e líquidos ferven­tes que caíam, e convulsionada por terremotos. Os homens lutavam. Havia movimentos em massa de formas de vida animal inferior, insetos, gafanhotos, ratos, camundongos. Havia epi­demias súbitas. Nações inteiras morriam nessas epidemias à medida que o ar e água envenenada chegavam às suas regiões do planeta. Tão grande foi a mortandade animal e humana que parecia que o globo se aquietara, se acalmara. Um vazio terrível marcava o estágio final. Parecia que não restava mais vida alguma. Mas enquanto fervilhava aquele caldeirão de veneno, era possível ver-se o início de outra coisa — alguns dos seres humanos se ocupavam de modo diverso. Enquanto as convulsões da Terra começavam a passar, terminada a Emergência planetária, eles tornaram a reconstruir, a recriar — e, como se tornou evidente por sua atividade cada vez mais significativa, a crise no planeta dera origem a uma nova raça. Era uma mutação. Embora não fosse muito diferente em as­pecto do ser humano anterior, o novo ser humano tinha maio­res poderes de percepção, uma estrutura mental diferente. Esse resquício de uma raça antiga, ou princípio de uma raça nova, tinha como herança toda a experiência acumulada da raça humana, e, dessa vez, mais o equipamento mental para utilizá-la.

A Previsão (Detalhe) terminou, e os delegados partiram. Quando só restavam a Equipe da Descida e Minna Erve, aque­les cento e poucos esperaram educadamente que o Sol partisse, se Ele o desejasse, mas o brilho dourado e difuso continuava firme. Houve quem achasse que ele chegou a brilhar um pouco mais, e se encorajaram com isso, pensando que fosse uma men­sagem de esperança e de fé nos poderes que eles teriam para realizar o que todos se tinham oferecido para fazer.

Então Merk Ury juntou-se a Minna Erve na plataforma.

Minna disse:

— Merk lhes dará as instruções. Devo lembrar-lhes, po­rém, que o Tempo se faz curto.

Merk disse:

Obrigado, Minna. Eu já havia decidido limitar isto aos pontos principais, especialmente, é claro, depois que você esta­beleceu as premissas com tanta eficiência.

O primeiro ponto é o seguinte embora não subesti­mando as dificuldades do segundo e terceiro pontos: cada um de vocês nesta sala naturalmente já viajou muito Pelo Sistema alguns talvez até fora dele e não preciso dizer-lhes que ouvir a descrição de um lugar não é a mesma coisa que experimentá-lo. E este é outro motivo para abreviar estes comentários.

Ora, todos vocês provavelmente sabem que a princípio havia dúvidas de que pudesse existir vida na Terra, de todo, depois da Crise anterior, que alterou a atmosfera. Mas a Na­tureza tem recursos infinitos, transformando as deficiências em virtudes. Pensávamos que não houvesse nada que pudesse viver naquele planeta tempestuoso, instável, cheio de erupções e sujeito a acidentes, mas o fato é que as formas de vida se adaptaram, mas a maior parte só Consegue viver em certas regiões secas da Terra e Onde a temperatura é mais ou menos regular. A maior parte das regiões do planeta são frias demais, ou quentes, úmidas ou geladas ou montanhosas ou secas de­mais. Mas todos conhecem a criatura dominante que ali evo­luiu, cuja característica física mais impressionante é seu sis­tema de bombeamento do ar e líquidos. Em outras palavras, distingue-se por órgãos que criou para poder viver num ar especialmente difícil e venenoso. Mas por enquanto é uma adaptação ineficiente e os processos mentais das criaturas são deficientes.

Ora, o Quadro Permanente na Terra sempre teve uma tarefa principal, que é a de manter viva a noção de que a humanidade, com seus companheiros de criação, os animais e as plantas, constituem um todo, são uma unidade, têm uma função no sistema todo como um órgão ou organismo. O trabalho de nosso Quadro Permanente é sempre extremamente difícil, pois o traço principal desses seres humanos, confbrme sua constituição atual, é sua incapacidade de sentir, ou com­preenderem a si mesmos, de qualquer outro modo a não ser por seus impulsos ou funções. Ainda não evoluíram para uma compreensão individual de si como parte de um todo, primeiro da humanidade, sua própria espécie, e muito menos têm uma noção consciente da humanidade como parte da Natureza, plantas, animais, pássaros, insetos, répteis, todos juntos for­mando uma pequena corda na Harmonia Cósmica.

Nesse ponto houve um aplauso discreto, ligeiro e não totalmente aprovador. Pois Merk tinha laivos de literato. Merk deu um sorrizinho, ao ouvir aquilo. Sabia perfeitamente que alguns dos presentes achavam que, como ele era um técnico, não devia estar se entregando às artes inexatas. Alguns deles tinham a afetação de usar o vocabulário técnico, desprezar a literatura e se armarem com uma jocosidade desembaraçada ao tratar de assuntos sérios.

Cada indivíduo dessa espécie está trancado dentro de seu próprio crânio, de sua própria experiência pessoal ou assim acredita e, embora grande parte de seus sistemas éticos, religiosos, etc. estabeleça a Unidade da Vida, até mesmo a religião mais recente, que, por ser a mais recente, é a mais poderosa, chamada Ciência, tem apenas vislumbres ocasionais e muito ineptos da percepção do fato de que a vida é Uma. Aliás, o traço principal dessa nova religião, e o motivo por que se tem revelado tão inadequada é sua insistência em dividir, classificar, catalogar, e um desses sintomas mais lamentáveis é a sua desconfiança e falta de jeito com as palavras. Ele então tornou a sorrir, com bastante encanto. Alguns riram.

Resumindo esses breves comentários: a nossa tarefa, a do Quadro Permanente, é sempre inculcar e manter uma verdade que, por enquanto, essas criaturas só conseguem fingir aceitar, o que exprime o seu piór defeito, a incapacidade de ver as coisas a não ser como facetas e uma de cada vez. A ver­dade é que Nós naturalmente, falando em nossos papéis como delegados (e ai a Luz difusa acentuou-se um momento, como se reconhecesse os serviços deles), só podemos tolerá-los enquanto eles obedecerem às instruções, resolverem seus ne­gócios, sua vida em comum, de modo a adaptar-se às necessi­dades do Sistema. Mas eles parecem não conseguir guardar por muito tempo essa verdade simples, embora isso lhe tenha sido repetido várias vezes, e isso por causa de outra característica muito poderosa do pensamento deles, que é que tudo o que lhes dizem é distorcido para se adaptar a seus próprios pre­conceitos pessoais ou de grupo, e depois acrescentado como mais uma pedrinha, ao monte de meias-verdades que eles já cultivam. Portanto, esperamos, confiantes ou poderíamos esperar no passado, antes dessa grande e atual (perdoem outro lapso na literatura) passo à frente, sob a influência do Vento Solar da Mudança (e nesse ponto a Luz intensificou-se e pa­receu sorrir) esperamos que tudo o que tivermos a dizer só se mantenha em sua forma pura por pouco tempo e por poucas pessoas, pois na natureza das coisas, ou melhor, faz parte da natureza delas, o simples fato o dever humano como parte da Harmonia estará correndo como um cão danado, estará distorcido completamente, logo se tornará a propriedade de cem seitas em luta, cada qual alegando que a sua versão é a correta. Mas esse tempo já passou, ou quase. A capacidade de ver as coisas como elas sãO, em suas múltiplas relações em outras palavras, a Verdade será parte do novo equipamento da humanidade, que em breve será criado. Graças, naturalmente, não a Nós, mas a...

A Luz intensificou um acorde, e o manteve. Todos demonstraram que estavam conscientes, junto com Merk Ury, de que b ponto nevrálgico, a questão principal, fora abordada. Houve uma animação generalizada e uma afirmação de suas atmosfe­ras, campos de força ou auras individuais.

Conforme todos aqui sabem, já lhes tendo sido marte­lado desde o momento em que se apresentaram como Volun­tários não se trata em absoluto do problema de descer ao inferno envenenado e não ser afetado. Cada um de nós tem sua vida nas mãos. Pbis essas criaturas são, em sua maioria, maldosas e assassinas por natureza, só capazes de tolerar os outros se se assemelharem a elas, capazes de se massacrarem devido a pequenas diferenças na pigmentação da pele ou no aspecto. Além disso, não toleram as pessoas que não pensam como elas. Embora saibam perfeitamente, em teoria, que a superfície do globo habitado é dividida em milhares de zonas, cada qual com seu sistema de crença religiosa ou científica, e embora saibam perfeitamente que é por acaso que algum indivíduo entre eles nasce nesta ou naquela zona, esta ou aquela zona de crença, esse conhecimento teórico não os impede de odiar os estrangeiros em sua determinada região e, se não os molestam, então os isolam de todos os modos possíveis. Isto significa que, a não ser que possamos aperfeiçoar a nossa própria adaptação a eles, eles nos atacarão, a nós, membros da Equipe. Isso devemos esperar. Além disso, devemos esperar que as colônias na Terra que resultaram de Descidas anterio­res tenham adquirido e muitas terão adquirido essas mesmas qualidades de separativismo e desarmonia e hostili­dade para com os outros. Ou, conservando naquela mistura venenosa que chamam de ar apenas a recordação de que não deviam permitir-se serem afetados, eles dedicam todas as suas energias à organização de sistemas cuja função um dia fora mantê-los sãos, mas que agora se tornaram a sua própria justificativa.

Ora, como sabem, esta não será a minha primeira Descida.

Mais uma vez houve trocas de olhares. Dessa vez, para se consolarem e apoiarem mutuamente. Nenhum dos presentes desconhecia as histórias dramáticas de algumas das Descidas anteriores. Ou as que estavam documentadas — pois a maioria não estava, tinham sido destinadas a permanecerem desconhe­cidas dos habitantes da Terra. Mas em todo o Sistema Solar, as histórias das várias Descidas eram contadas e recontadas — como fábulas, no entender da maioria. Mas para os poucos que sabiam que elas eram literalmente verdadeiras, pareciam bas­tante sinistras. A primeira Lei que tinham de cumprir todos os filhos do Sistema, por ordem do Pai, era amar-se uns aos outros, isto é, respeitar as leis da Harmonia. E, no entanto, tão pró­xima deles, sua vizinha, integrando o mesmo todo que eles, pulsação de sua pulsação, energia de sua energia, estava a Terra, cujos habitantes não só não respeitavam a Lei, comb ainda tinham tendências a matar e perseguir, quando não igno­ravam, aqueles que iam lembrar-lhes a Lei. E essa regressão e afastamento de parte de vizinhos tão próximos tendia a tor­ná-los inseguros com relação à sua própria segurança e sani­dade mental — pois, afinal, todos sabiam muito bem que os acidentes podiam acontecer em qualquer lugar, que a admi­nistração das casas e propriedades planetárias era, e tinha de ser, subordinada a uma estrutura da Lei muito maior do que a do Sistema Solar. Em resumo: também eles podiam tornar-se vítimas; se não fosse a Luz, poderiam estar naquela outra situação.

Merk continuou:

— Quando chegar a hora, caberá a nós despertar aqueles de nós que já se esqueceram por que foram para lá; bem como recrutar habitantes da Terra que sejam adequados — isto é, aqueles que guardaram um potencial para evoluírem para seres racionais, e reforçar de modo geral e defender as nossas co­lônias na Terra para a realização de seu trabalho. Isso sempre foi assim, claro. Mas dessa vez será tudo isso e mais ainda — será um auxílio ao povo da Terra por meio da Emergência Planetária em que toda a vida se pode perder. Porém isso já foi debatido antes da conferência.

Mesmo arriscando-me a aborrecê-los, devo repetir — repetir, reiterar, frisar de novo — não se trata apenas de vocês chegarem ao Planeta Terra, ao saírem daqui. Vocês perderão quase toda a recordação de sua existência passada. Cada um de vocês voltará a si, talvez a sós, talvez em companhia uns dos outros, porém apenas com uma vaga sensação de reconhe­cimento, e provavelmente dissociados, desorientados, doentes, desencorajados e sem poderem acreditar, quando lhes disse­rem qual é realmente o seu trabalho. Vocês despertarão, por assim dizer, mas haverá um período, enquanto estão desper­tando, que será como a convalescença de uma doença, ou como sair de um ar envenenado para um ar puro. Alguns de vocês poderão preferir não despertar, pois o despertar será tão dolo­roso, e o conhecimento de seu estado e do estado da Terra tão agonizante que vocês serão como viciados em drogas. E depois que compreenderem que estão no ato de despertar, que têm de fazer alguma coisa, terão absorvido tantas características dos terrenos que serão desconfiados, intratáveis, rabugentos. Serão como um afogado que afoga o seu salvador, tal a violência da luta que travarão em seu terror pânico.

E, quando despertarem para o seu verdadeiro estado e se refizerem da vergonha ou constrangimento por verem até onde chegaram, então começarão a tarefa de despertar os outros, e verão que estão na situação do salvador de uma pessoa afogada, ou um médico numa cidade que está sob uma epidemia de loucura. O afogado quer ser salvo, mas não pode deixar de se debater. A pessoa louca tem fases intermitentes de sanidade, mas entre elas comporta-se como se o médico fosse seu inimigo.

E assim, meus amigos — é isso. É esta a minha men­sagem para vocês. Vai ser difícil. Tão difícil quanto vocês es­peram que seja.

O que leva ao último ponto. Que ê: não haverá Instru­ções. Como poderia haver? Vocês certamente esqueceriam todas as palavras que ouvissem aqui. Não, levarão Ordens Seladas.

Então, quando alguns olharam em volta, sem querer, procurando onde estariam, Merk pilheriou:

—- Ora, vamos, o que acham? Um rolo de microfilme? Talvez um manuscrito qualquer, que Vocês teriam de mastigar e engolir num momento de perigo? Não, claro que não, não chego a esse ponto — impressões cerebrais, claro.

Diante disso, ficaram todos obviamente muito aliviados, e tranqüilizados, pois as impressões cerebrais, afinal, não passavam de impressões cerebrais.

Aliás, vocês já se submeteram a isso, graças a...

A Luz intensificou-se por um momento — intensificou-se e continuou assim.

— Sim. Temos a certeza Absoluta de que a nossa impres­são cerebral foi da melhor qualidade possível. Verão que está tudo ali, quando precisarem dela... (o brilho se intensificava mais, e ouvia-se o zumbido de uma vibração constante, que estava tendo o efeito de encorajá-los e firmá-los a todos).

Como acreditavam alguns, era a pressão final da Impres­são. Mas então todos viram que chegara a Hora. Minha Erve, os olhos faiscando de lágrimas, embora tentada a permanecer com eles, afastou-se sem despedidas cerimoniosas, enquanto Merk Ury descia da plataforma e sentava-se tranqüilamente no salão com os outros. Todos ficaram sentados ali quietos, ajustando seu equipamento respiratório. Reinava um silêncio profundo e macio, sublinhando o zumbido possante. Cada qual mantinha sua mente firme no pensamento: «Não se esqueça, guarde a recordação deste momento, guarde-a firme...» Mas o rodopiar dourado do momento varreu todo o espaço que eles ocupavam num turbilhão de Luz ressonante, em que passaram a ser átomos girando. A pressão aumentou. O Som tomou-se mais alto. Era como uma flauta. A Luz era então uma explosão cor de laranja, que se acentuou e passou a vermelho, que vi­brava e batia. O gemido agudo e estonteante do Ruído fora absorvido no pulsar constante do brilho vermelho-escuro. Agora cada um estava só, e todo o seu conhecimento de si, sua compreensão, estava absorvida em seus ouvidos, onde batia constantemente o pulso vermelho-escuro.

Tragado para dentro do som, tragado para dentro do mar, um mar balançante, bum, shhh, bum, shh, buuum... pam, pam, pam, pam, pam, pam, pam, para dentro e para fora, para dentro e para fora, sim, não, sim, não, sim, não. Preto e branco, vindo e indo, fora e dentro, para cima e para baixo, não, sim, não, sim, não, sim, um, dois, um, dois, um, dois, e o três sou eu, o três sou eu, O TRÊS SOU EU. Eu nó escuro. Eu no escuro vibrante, agachado, eu agarrado, segurando bem, buuum, shh, buuum, shhh, balançando, balançando, algum lugar por trás do portão, algum lugar diante da porta, e uma luz vermelho-escuro empastada e pressão e dor e depois para FORA numa luz branca e plana onde as formas se movem e as coisas faíscam e reluzem.

Ê um bebê bonzinho, fioi um parto bom e sossegado e ele adormeceu logo.

Ah, doente e enjoado, só boca e o cheiro do enjôo, um estômago balançando como o bebê, ah, tão enjoado, e muito cheio e muito vazio, e com fome e molhado e cheiros e ah, cheiros, e escuro e claro, escuro e claro, um e dois, o três sou eu.

É um bebê bonzinho, dorme o tempo todo.

Eu me debato agarrando e lutando para longe do estômago que balança. Enjôo, o cheiro do enjôo, eu luto e agarro e rolo e urro imerso num inferno de necessidade, tenho de ter, tenho de ter, tenho de ter, ah, levante-se em suas duas pernas então, tenho de levantar e andar, andar de qualquer modo e de qual­quer jeito de qualquer jeito e para cima e para longe disso eu tenho, eu quero, mas eles me embalam, psssiuu, eles me ninam, psssiu, eles me batem na cabeça com coisas para dormir, cal­mantes, xaropes, remédios e drogas.

Seja bonzinho, bebê, vá dormir.

Ah, eu durmo, embaixo, no meio dos mortos, enrolado em casulos de calor, só barriga e bunda molhada e fedorenta, tenho de acordar, tenho de acordar, sei que há uma coisa mais acordada do que isso, sei que tenho de estar acordado e ser, mas

Seja bonzinho, bebê, eu te nino para você dormir.

Ele é um bebê bonzinho, sempre dormiu muito.

Ê um bebê bonzinho, não dá trabalho.

Ê um bebê bonzinho e sempre dormiu a noite toda.

Corro e me arrasto e o mundo é a minha concha. Toco e ponho o dedo e cheiro e provo e uma mancha de pó no chão é uma maravilha e a luz do sol em minha pele é um continente e a claridade é, o escuro é, e o escuro é para lembrar, atrás dele há uma porta, eu entrei por ali, pulsando, pulsando, um e dois e eu faço três, e agora é uma luz de mil matizes mudando quando o dia muda, luz, a maravilha, a luz saindo do escuro, e ah, deixe que eu cheire e cresça e encontre e lute mas

Seja bonzinho e fique quieto bebê

Ele ê tão levado, me deixa exausta,

Durma, bebê, pelo amor de Deus!

Você não pode ficar quieto nunca?

Antes era um bebê tão bonzinho!

Empurrado de volta ao sono quando luto para sair dele, empurrado como se afoga um gatinho, ou uma criança que luta para acordar, empurrado por vozes e canções de ninar e engodos e mandões, castigado por tons de vozes e por silêncios, agarrado e lançado ao sono por remédios e xaropes e chupetas e drogas.

Ainda assim eu luto, desesperado, como um gatinho que tenta sair do balde de zinco escorregadio em que foi jogado, um gato indesejável, não necessário, a ser afogado, melhor morto do que vivo, melhor dormindo do que acordado, mas eu luto, para cima e para cima, para a luz, vendo o escuro agora como uma terra diferente, uma consistência diferente, um es­tado diferente da Luz, deito-me no escuro e reconheço a Noite mas

Dorme, filho, por que não está dormindo?

Ele me dá trabalho, nunca quer dormir.

Mas estou levantado e de pé e correndo e uma descoberta dos tons e sons da Luz é o meu dia com o sono e a cama esperando para pegar-me pelo meu calcanhar e arrastar-me para baixo baixo baixo e de dia eles dizem, quando eu me enraiveço irritado e agitado, com o cansaço o inimigo vencendo a desco­berta a maravilha e o prazer

Deite-se e durma, deite-se e descanse.

Seja bonzinho, durma um pouco.

E quando chega a noite e fico zangado de novo, o can­saço me desarma, de novo e de novo, ou com raiva porque ainda estou acordado e ainda tenho muito que andar, o brilho da luz numa folha um sinal e o pingar da chuva o tambor mais possante

Ah, vá dormir agora, bebê, está na hora de dormir

Pelo amor de Deus me dê um pouco de paz e sossego,

Pelo amor de Cristo durma.

E sozinho no escuro e fora do caminho grito e sacudo minhas grades e afinal durmo para me amarem, durmo, aprendo a dormir.

Ele é um menino tão bonzinho, está dormindo bem.

Agora não me dá mais tanto trabalho, parou de ficar

[acordado tanto tempo.

Graças a Deus, está dormindo.

Estou indo à escola deles agora e estou aprendendo a ser bom.

Agora sou um bom menino, sou sossegado e bom.

Um e um são dois.

E o terceiro sou Eu.

Eu meio surrado de volta ao escuro, eu sossegado, regu­lado, num horário, um aborrecimento domado, eu o dormente obedientemente.

Mas de volta, no escuro no fundo de minha mente é onde sei muito bem que está a porta, atrás ou na frente, para cima ou para baixo, além do buuum, shhh, o buum eterno, a pulsa­ção, o bater, o um e dois, o um e dois, por ali, quem sabe qual ou Onde — eu sei. Eu sei. Eu me lembro. Será que me lembro? Sim, lembro-me. Tenho de lembrar. Ali. Onde?

Os diazinhos brancos lampejam mais depressa mais de­pressa, lampeja lampeja lampeja acende e apaga, branco com as fatias de escuro no meio, os dias para viver e as noites para

Dormir

Ele não dorme bem, doutor} precisa de um comprimido.

Os diazinhos lampejam e as noites são mortas com comprimidos. Mas ele dorme bem, é saudável e regulado e bom.

E agora a maior droga de todas, o doce sonho, doces sonhos da noite e mais doces sonhos do dia. Sonho com Jeannie de cabelos castanhos claros e pernas bem afastadas como braços amorosos.

E agora estou crescido e me fui, e trabalho e brinco todo regulado ordenado e social e correto, e agora durmo menos do que jamais dormi na vida durante esse espaço de tempo curto e rápido e feliz, longe daquela cama a família, antes que eu me torne aquela cama de plumas a família, e sou jovem e meus sonhos e vida são tudo a mesma coisa, braços brancos em volta de meu pescoço e eu me afogo, afogo, ela e eu, ele e eu, para baixo entre os mortos, Para baixo.

Ah, doutor, pode dar-me um comprimido para me fazer dormir, ah, estou trabalhando demais e ah, estou preocupado com o meu casamento e ah, estou preocupado com o meu em­prego, e ah, não suporto o que penso. Ah, dê-me um compri­mido e dê-me uma bebida e dê-me um cigarro e dê-me drogas,, dê-me tanta comida que eu fique abobado, dê-me agora tudo o que eu tinha quando era bebê, dê-me o que me treinou para precisar antes mesmo de eu falar ou andar, dê-me o que quiser, mas deixe-me DORMIR, pois no escuro onde antes es­tava a porta (mas estará ainda?) é o único lugar em que posso tolerar estar vivo de todo. Nunca aprendi a viver acordado. Fui treinado para dormir. Ah, deixe-me dormir e dormir a minha vida toda. E se a pressão da verdadeira memória me acordar antes do necessário, se a urgência do que eu deveria estar fa­zendo penetrar em meu sono, então pelo amor de Deus, doutor pelo amor de Deus mesmo, dê-me drogas e me faça sonhar de novo.

E agora a vida vai-se esvaindo e quando ela vai chegando ao fim as drogas estão-se esvaindo, menos vida para amar, menos lugar para a comida, menos estômago para a bebida, e o sono é mais difícil de conseguir e mais raro, e dormir não é mais a queda no poço negro de todo o esquecimento até o despertar, não, o sono é ralo e interrompido e cheio de recor­dações e lembretes e o escuro nunca é bastante escuro e

Dê-me comprimidos, dê-me mais comprimidos, TENHO DE DORMIR.

Não, não gosto de minhas noites lendo, pensando falando e apenas estando vivo, não, quero dormir, tenho de dormir.

Numa enfermaria comprida e estreita onde sessenta velhos de pijamas de caridade são levados para a cama como bebês às nove horas da noite por enfermeiras da instituição, a enfermeira faz a volta, com sessenta doses de SONO.

DURMA BEM

Nos pacientes externos de um milhão de hospitais, nos consultórios de um milhão de milhão de médicos, um milhão de milhão de milhão de mãos se estendem

Doutor dê-me comprimidos para me fazer dormir.

DURMA BEM

Enquanto a Terra faz sua rotação, uma metade sempre no escuro, da metade escura ergue-se um gemido. Ah, não posso dormir. Quero dormir, não durmo bastante, mas dê-me comprimidos para me fazer dormir, dê-me álcool para me fazer dormir, dê-me sexo para me fazer dormir.

DURMA BEM

Nos hospícios, onde estão os milhões que enlouqueceram, os comprimidos são como pelotas de comida lançadas nos comedouros de galinha movidos a pilha, DURMA, as agulhas se enfiam nos braços estendidos, DURMA, pingam os tubos de borracha presos aos braços, DURMA.

DURMA, pois você ainda não morreu.

Tenho de acordar.

Eu me sinto debatendo-me e lutando como se estivesse afundado mais de um quilômetro numa água espessa, que me arrasta, mas bem acima de minha cabeça, nos lugares rasos junto à superfície vejo ondas raiadas de sol onde os peixes reluzentes dançam e nadam, ah, deixe-me subir, deixe-me subir à superfície como uma rolha ou uma toninha saltitante para a luz. Deixe-me voar Como um peixe-voador, um peixe de luz.

Eles me prendem para baixo, põem-me no berço, me fazem calar e me ninam, DURMA e logo ficará bom.

Luto para levantar-me, debatendo-me como se estivesse a mais de um quilômetro debaixo da terra preta e pesada e amarga e acima da terra lajes de pedra, luto tanto e grito não, não, não, não, não façam, não vou, não quero, deixe-me acordar, tenho de acordar, mas

Psssssiu, cale-se, DURMA, e a agulha é enfiada no fundo e lá desço eu para as profundezas frias escuras pretas onde o leito do mar é uma terra de minúsculos esqueletos, detritos de continentes desgastados, escamas de peixes e plantas mor­tas, nova terra para crescer. Mas eu não, eu não cresço, não broto, fico refastelado como um gatinho afogado, a cabeça rolando enquanto bóio e o negrume passa por cima de mim, escuro e pesado.

Ele está dormindo bem, doutor, sim, está descansando bem, sim, está muito quieto, sim, não dá trabalho algum.

Mias tenho de acordar.

Mas estou amarrado, de pés e mãbs, estou embrulhado muitas vezes em fios de algas do Mar de Sargaços e rolo inde­feso no leito do mar, no fundo, entre os homens mortos e meus olhos estão tapados, o sono pesa mais em mim e a necessidade é de acordar e lutar.

Tenho de acordar.

Doutor ele agora está muito fraco. Sim, fica agitado entre as injeções. Sim, parece confuso, aturdido, não conse­gue comer sozinho, parece querer voltar a dormir, não quer acordar, ficou zangado quando eu lhe disse: achamos que você agora devia acordar.

Enfermeira, como posso acordar quando você me faz caiar, calar, calar, pssssiu, psssiu, estou no fundo com os homens mortos e o doce sono tem sonhos que a luz do dia nunca conheceu, é melhor dormir onde os sonhos podem chegar para visitar, doces sonhos promissores, maravilhados visitantes de que sabem e contam que atrás (ou adiante) e em­baixo (ou acima) está a porta para cima e para fora na doce luz do dia.

Então, como vai passando?

Passando?

Gostaríamos de saber quem você é. É?

Você dormiu bem e achamos que agora que você já des­cansou devia poder lembrar-se de quem é.

Quem é você? Sou o Dr. Y.

Nunca conheci ninguém com esse nome.

Não se lembra de mim?

Não é disso que tenho de me lembrar.

Não. Se não quiser. Mas quem é você?

Por que, não está me vendo?

Eu o vejo muito bem até.

Estão pronto.

Talvez agora você possa lembrar-se do seu nome? Meu nome! Mas já tive tantos nomes.

Sabe, já descobrimos um pouco a seu respeito, mas seria melhor se você se lembrasse por si. Pode tentar?

Posso.

Então?

Há alguma coisa que eu devia estar fazendo. Sei disso. Sim, sei disso.

O quê?

Não isto, não aqui. Lá.

Lá? Onde? Pode lembrar-se? Sim, lembrando. O quê? Não, quem.

Sim, é isso que quero dizer,

Foi lá, sei que foi. Precisamos. Precisamos lembrar-nos. Nós?

É a lei de Deus.

Ah, sei. Bem, bem. Bem, descanse um pouco, agora. Você não está mal para a primeira vez que está realmente acordado.

Ah, mas já estive muito mais acordado do que isto. Isto não é nada acordado.

Ah, bom, bom.

É saber. Harmonia. A lei de Deus. Ê isso que é. Dei­xe-me... deixe-me... Tenho de... deixe-me levantar-me.

Agora, vamos, pssssiuu, não se excite, seja bonzinho. En­fermeira, pode chegar aqui um instante? Bom. Então até amanhã, professor.

Amanhã? Não, ê muito tarde. Tenho de levantar-me.

Durma, bem. Isso mesmo, durma. Seja bonzinho.

Ele é o Professor Charles Watkins, Letras Clássicas, Cambridge. Casado, dois filhos. Idade 50. Uma carteira encontrada na rua em Parliament Square com fotos da família, restante do conteúdo desaparecido. Polícia com­parou a foto com a foto tirada por eles na delegacia na noite em que ele foi encontrado. Esposa recebeu comu­nicação de que marido está aqui. Falei com ela ao tele­fone. Sugeri que esperasse até ele se lembrar de quem seja. Agiu sensatamente. Descobrir por que esposa não comunicou desaparecimento dele. Sondei, mas encontrei algo de evasivo nesse ponto. Vi paciente hoje pela manhã.

Está obviamente repousado, não fala mais sozinho, em resumo, melhor. Não reagiu ao nome. Sugiro experimen­tar meia dúzia de choques elétricos.

Dr. X

Diante de graves dúvidas sobre se o tratamento de fato beneficiou o paciente, sugiro aconselhável adiar choques elétricos por alguns dias. Escrevi à Sra. Watkins. Certa­mente deviam contar mais a ela do que poderia ser pos­sível num telefonema.

Dr. Y

Bem, como está passando hoje?

É hoje?

É segunda-feira,. dia 15 de setembro.

Eu devia estar fazendo alguma coisa. Devia estar.

Uma conferência? Uma aula? Um discurso?

Sim sim sim. É isso. Eles me disseram. Disseram que seria. Mas eu devia... tenho de me levantar.

Você ainda não está muito forte.

Então estou doente?

Não fisicamente.

Então por que não estou doente? Estou fraco?

Professor Watkins, o senhor perdeu a memória.

Quem é Professor Watkins? É esse o nome do outro?

Não, É o seu nome.

Meu? Ah, não!

É, sim.

O que é que ensino?

Grego. Latim. "Esse ramo.

Não ensino não. Ramo? Isso não é palavra para isso! Eu devia ser... devia estar... diga-me, você também estava lá?

Onde, professor?

Na conferência? Nas instruções?

Ah, então recebeu instruções?

Sim, sim, eu me lembro, sim. E Ele,claro ... e — quem? Uma porção de nós, sim...

Continue.

A Emanação. Sim. A luz. É isso, claro. Deus o Pai, Amém, Amém, Amém, e nós éramos, sim, era isso que éramos e é por isso que estou aqui, mas perdi o caminho naqueles campos.

Perdeu a sua memória, professor, e foi encontrado pas­seando na beira do rio.

Ah, meu Deus, espero que ele, a essa altura, já esteja límpido de novo.

Não era limpo?

Cheio de cadáveres, sabe.

Ah, com certeza não estava. O Tâmisa pode não ser o riacho mais cristalino, mas não junta muitos cadáveres.

O Tâmisa? O Tâmisa?

Sim, o senhor estava no Embankment. A polícia encon­trou-o.

Não me lembro de nada disso.

Bem, vou ajudá-lo. Parecia que o senhor não ia para cama havia muito tempo.

Bem, claro que não!

O senhor tinha comido, eles acharam, mas estava muito fatigado...

Comido, ah, meu Deus, sim, ah, ah, não —

E era a Lua Nova...

Pelo contrário, era Cheia.

Bem, bem.

O Tâmisa, o senhor diz. È um rio de maré. Não é como aquele outro. O rio entra e sai, entra e sai, uma maré, um e dois e eu fazem três. Três. Um rio de maré é como respirar, alimentando a terra com peixe e... Quem? Quem?

Professor, por favor. Não pense nisso. Não recomece a divagar. Por favor, procure lembrar-se.

Deus. Eu acho. Tenho de usar palavras quando falo com você. Eliot. Tenho de usar palavras. Mas se não Deus, o quê?

Então o senhor também é Deus, é?

Você também.

Não tenho essa pretensão, posso garantir-lhe.

Estúpido. Você não tem escolha.

Bem, bem. Descanse um pouco. Vou dizer ao Dr. X que acho que o senhor vai indo bem. Amanhã o verei. Vou tomar conta do senhor por uns dias. O Dr. X vai sair de férias.

Dr. X?

Ele o viu ontem. O senhor disse que o viu.

Não se pode vê-lo. Já lhe disse. Ele não está aí.

Pode ver-me, não pode?

Ah, sim, com muita clareza até.

Mas não o Dr. X?

Não, ele é todo sólido. É só um animal sem luz. Nenhuma luz. Nem Deus. Nem sol.

Eu não diria isso, sabe?

Você sabe? Pode ver? Dali, onde está a luz? De lá o Dr. X não existiria. Só os que têm luz podem ser vistos da terra da luz. Você seria visto lá, sim. A sua luz arde, é uma luzinha firme.

Que luz?

Luz de estrelas.

Bem, obrigado. Mas acho que está sendo injusto com o coitado do Dr. X. Ele procura ajudá-lo. Segundo as luzes dele.

Aí está, é o que eu disse. Não importa o que ele diga ou faça. Não está em existência. Não consigo vê-lo, se não me esforçar muito.

Ah, bom, até amanhã, então.

Paciente tem delírios de religião. Paranóico. Desassociado. Mas creio que está mais coerente. Ainda não tive notícias da Sra. Watkins.

Dr. Y

Prezado Dr. Y,

Obrigada por ter tido a bondade de me escrever, expli­cando a situação do meu marido. Fiquei um pouco perturbada com o telefonema do Dr. X, pois sou meio ignorante em re­lação à saúde mental e ele não me disse muita coisa. Mas compreendo que, se meu marido perdeu a memória, não há muito o que contar. Não sei de nenhum motivo especial por que o meu marido devesse estar «sob tensão», como diz o senhor. Não mais que de costume. Mas não sou eu, necessaria­mente, que devo saber. Não me meto na vida de meu marido, portanto, não saberia se houve algo que o aborreceu muito, ou coisa parecida. O motivo por que não comuniquei à polícia quando não tive notícias dele é que ele às vezes faz coisas sozinho e havia de ficar ressentido se eu interferisse. Acho que seria melhor se o senhor se dirigisse a Jeremy Thorne, à Rose Road 122, Little Minchener, Cambridge, pois ele sabe muito mais acerca dos planos de meu marido do que eu. Creio que o Sr. Thorne ainda não deve estar de volta, pois esteve na Itália, passando as férias de verão. Mas deve voltar breve.

Sinceramente,

FELICITY WATKINS

P. S. O senhor indaga sobre o meu marido com relação aos filhos. Quando ele está aqui, a família é muito feliz. Pergunta sobre cartas que possam ter perturbado o meu marido. Há umas cartas que chegaram pouco antes dele partir para Londres, porém, a não ser que seja necessário, prefiro não lê-las. Eu as mandarei ao senhor, se achar que podem ajudar.

Bem, professor, está com um aspecto muito melhor. Como está se sentindo?

Por que não me deixa tornar a dormir? Ficam-me acor­dando.

Ontem o senhor estava zangado conosco porque o fazía­mos dormir.

Estava?

Sim, xingou-nos de todo jeito e disse que estávamos que­rendo mantê-lo confuso.

Confuso. Cooonnnfuso. Confffuso. Con... essa palavra pa­rece o que diz. Estranho. Palavras... sons. Uma palavra pesa­da. Conf. Pom, pom, pom, pom, pom, pom, pom. Pom, pom, pom. Sua cor é. O quê? Eu sabia. Mas agora não. Som isso é importante... sim...

Acho que o senhor está muito melhor. Está com boa cor, está visivelmente mais forte e seus olhos estão límpidos.

Os olhos azuis. Os olhos faiscantes. Ah, não, tenho de dormir de novo, onde Eles estão. Desperto é dormindo.

Não, professor. Sente-se. Acho que não podemos permi­tir que tome a dormir. Já dormiu bastante.

Por que me chama sempre de professor?

Professor Charles Watkins.

15 Acácia Road, Brink. Perto de Cambridge.

Mas não quero isso. Não o aceitarei.

Creio que não tem escolha, professor. Sabemos quem o senhor é.

Mas sei que não sou.

Ou será que está começando a lembrar-se, embora não queira admitir?

Por que diz Ott? E é mais a palavra. Engraçado, acabei de notar. As palavras dizem Ou isso Ou aquilo por causa do pom, pom, pom, pom, para dentro ou para fora, preto e bran­co, sim e não, um e dois, ou vem disso, o batido, o pom pom no sangue, mas não é nada ou isso ou aquilo, é e,e,e,e,e,e.

Seja como for, professor, o senhor tem de aceitar a pessoa que é. Estou-lhe dizendo a verdade. Aceite isso... e procure partir daí.

Mas se eu partisse, queria dizer que eu teria começado. Tudo isso não significa nada para mim. Não é nada meu. É um sonho.

Meu caro professor, é a sua vida.

Uma vida de sonho. Uma vida que é um sonho. Um sonho...

Não, creio que ainda não vou deixá-lo dormir novamente.

Ah, tenho de dormir. Quero dormir. Não aqui. Lá. O que eu disse antes não é o que eu teria dito se soubesse o que sei agora, posso passar a vida dormindo. Sim. Passamos a vida dormindo. Sim. E você.

Professor Watkins, compreende que já está aqui há um mês? Neste hospital? É o Hospital Central de Internamento. O senhor estava em estado de choque quando foi internado. Tinha andado vagando por aí e a polícia encontrou-o no Embankment. Estava divagando, aturdido e falando sozinho. Nós lhe demos sedativos. Depois, quando não pareceu estar muito melhor, experimentamos um remédio para ajudá-lo a lembrar-se de quem era — muitas vezes deixa as pessoas sonolentas, mas no seu caso, o senhor ficou com muito sono mesmo. Se isso é bom ou não é uma questão de opinião. Mas o fato é — vou dizer-lhe de novo, para que não esqueça — que o senhor está no hospital há um mês. Acabamos de desco­brir o seu nome, sua profissão, seu endereço e sua situação. Sabemos mais um pouco, se quiser saber... Bem? Vamos, tente.

O que você diz é só o que sabe. Você me diz que é assim. Mas se eu lhe disser o que sei, não concorda.

Então conte-me o que sabe. Então, por que está rindo? Sabe que nunca riu antes? É a primeira vez que o vejo rir.

Doutor, não posso falar com o senhor. Compreende isso? Todas essas palavras que diz caem num poço, não são eu nem você. Nada você. Eu o vejo. é uma luzinha. Mas uma luz boa. Deus está em você, doutor. Você não é essas palavras.

Bem, bem. Descanse, então. Deite-se e descanse. Mas antes de dormir, procure lembrar-se: o senhor é Charles Walkins. Há anos que mora e trabalha em Cambridge. Ensina letras clássicas. Faz conferências. E não mora sozinho em absoluto. Amanhã o verei.

E como vai passando hoje? Ah calma, andou so­nhando, é?

Estou sonhando agora.

Não, agora está acordado. Está falando comigo, Dr. Y.

Isto não é diferente. Um sonho, assim.

Ah, é diferente sim. Isto é a realidade. O outro é sonho.

Como sabe?

Acho que terá de acreditar em mim.

Se eu tivesse, teria medo. Não posso aceitar as palavras para nada. As palavras saem de sua boca e caem ao chão. Pa­lavras em troca de quê? É isso? Seus sonhos ou a vida. Mas não é ou, é essa a questão. É e. Tudo é. Os seus sonhos e a vida. Pode falar lá, falar. Sonho no que quer que eu faça, deitado ou acordado.

Bem, bem, professor. Até amanhã. Talvez tenhamos de experimentar um novo tratamento.

Este paciente não está melhor do que quando o deixei na semana passada. Não vejo outra alternativa que não os choques elétricos.

Dr. X

Sugiro confrontá-lo com a esposa, ou se pudermos loca­lizá-los, alguns amigos.

Dr. Y

Se não houver mudança nos próximos dois ou três dias teremos de transferi-lo para North Catchment, em Higginhill. Desejo lembrar-lhe que isso aqui é só para internamento.

Dr. X

Não é fora do comum prolongar-se a rotina de seis se­manas por mais três semanas. Sugiro que o façamos.

Dr. Y

Somente se chegarmos a um acordo sobre os choques. O que seria um motivo para o prolongamento.

Dr. X

Não sou contra os choques. Mas como proposta provisó­ria: retirar todos os medicamentos, inclusive soporíferos, e ver o que acontece.

Dr. Y

Muito bem.

Dr. X

Como está passando hoje, professor?

Como pode ver.

Está muito mais animado.

Há 24 horas que não me dão medicação alguma.

Achamos que isso poderia ajudá-lo a lembrar-se.

A enfermeira me disse que estive dopado desde que fui internado.

Já lhe disse, nós lhe demos vários sedativos. Depois ten­tamos um tratamento ao qual o senhor reagiu de modo muito pessoal — dormindo quase continuamente. Por isso, paramos o tratamento antes do tempo normal, com aquele determinado medicamento.

Estou pensando com mais clareza. Dr. Y?

Professor!

Tenho que lhe fazer uma pergunta séria.

Às ordens.

A sua atitude para comigo é esta: tenho de fazê-lo lem­brar-se do que sei ser a verdade a respeito dele.

Sim, isso mesmo. Claro que é.

Mas isso quer dizer que o senhor não me leva a sério, a mim. Nunca me levou a sério.

Como resposta, só posso dizer que lhe dediquei mais tempo e cuidados, pessoalmente, do que a qualquer paciente que tenho, há meses.

Não, não estou falando disso. Estou-lhe dizendo, não sou quem o senhor diz que sou. Sei disso. Não sou o Professor Charles Watkins, seja o que for. Ou, se nominalmente eu for isso, não é o que interessa. Mas o senhor fica falando a vida toda, preso a esse ponto só.

Vá, explique-se. Estou ouvindo.

Eu podia ser qualquer outra coisa. Podia ser...

O quê? Deus, talvez?

Quem disse isso?

Foi o senhor.

Eu podia ter morrido na guerra.

Ah, então esteve na guerra.

Como todo mundo.

Alguns mais do que outros.

Todos estivemos.

O que estava fazendo na guerra?

Se sabe o que eu ensino, não sabe contra quem eu lutei?

Não, a sua senhora não disse. Tenho de perguntar a ela.

Tenho mulher?

Tem. Chama-se Felicity... isso é engraçado?

Ah, ah, ah, eu me ausentei de Felicity. Ah, ah, ah.

Também sou casado.

Felicity.

E tem dois filhos.

Se sou professor posso ter uma esposa, mas o que sei é que bem posso ser um marinheiro com uma mulher nas Anti­lhas. O nome dela é Nancy.

Ah, então é marinheiro de novo, é? Foi marinheiro na guerra?

Não, eu era espectador e aí o Cristal chegou. Eles luta­ram. Eles se devoraram.

Ah, agora sei que você quer me ajudar. Se não é Charles Watkins, quem é então?

Acho que sou meus amigos. E eles são em nome de Cristal. Sim. Uma unidade. Unidade.

Seu nome é Cristal?

Isso é cristalino. Ah, ah, ah, ah.

Está muito alegre hoje.

As palavras são tão engraçadas. Feíicitosamente engra­çadas.

Sei. Bem, amanhã passo aqui para conversarmos. Não vamos dar-lhe mais sedativos nem medicamentos. Por algum tempo, pelo menos. Provavelmente terá maior dificuldade para dormir. Mas procure agüentar. E talvez pudesse procurar ver se se lembra de alguma coisa sobre a sua família. Dois filhos. Dois meninos.

Meu filho morreu.

Posso assegurar-lhe que nenhum dos dois morreu. Estão bem vivos. Vi a foto deles. Gostaria de vê-la? Amanhã eu a trarei.

Prezado Dr. Y,

Obrigada pela sua carta.

Resolvi mandar-lhe duas cartas que encontrei no paletó que meu marido estava usando pouco antes de perder a me­mória. Não sei se ajudarão em alguma coisa. Uma é escrita por ele, mas ele não a pôs no correio, por algum motivo. Não creio que o meu marido tenha tido algum esgotamento ner­voso. Mas não sei bem o que seja isso. Creio que ele é o con­trário do tipo de pessoa que tenha esgotamento. Sempre foi muito ativo e faz muita coisa. Sempre dormiu muito menos do que Os outros. Logo que nos casamos eu me preocupava com isso, mas depois me acostumei. Ele às vezes dorme quatro ou cinco horas por noite durante várias semanas seguidas, e às vezes só duas ou três horas. Mas isso é no verão. No in­verno dorme um pouco mais. Diz ele que é porque os animais têm de hibernar. Não creio que ele tenha trabalhado mais do que de costume, este ano. Sempre trabalha muito. Faz parte da natureza dele. Andou meio mal-humorado e ranzinza em meados deste ano. No princípio do verão ele sempre fica mais difícil, mas é porque é O período dos exames. Na primavera ele estava gaguejando muito, coisa nova para ele, mas nosso clínico deu-lhe uns sedativos e a gagueira parou. Durante certo tempo constituiu problema bem sério, a ponto de levá-lo a cancelar umas conferências que ia fazer.

Cordialmente, FELICITY WATKINS

Prezado Professor Watkins,

Ficou combinado que eu lhe escreveria. O senhor não me conhece, isto é, não conhece o meu nome. Mas nós nos conhe­cemos, brevemente, depois de sua palestra. Espero que se lem­bre, pois foi uma coisa que o senhor disse que pmvocou tudo. Foi um catalisador, tocou numa mola, uma coisa assim, O quê? Bem, nada de comum ou óbvio, e é esse o problema em lhe escrever. Tudo é intangível. Caso não se lembre, ainda será verdade que aquilo que o senhor disse naquela noite deu ori­gem em mim a um processo notável e isso coincidiu com um processo semelhante num íntimo amigo meu e, conforme estamos começando a observar, em mais de uma pessoa das que nos são mais próximas. No entanto, é realmente difícil defini-lo. Para mim, foi positivamente ouvi-lo falar. Ficamos pensando se seria possível que b senhor não se lembrasse? Um fermento pode deixar de saber que é um fermento? Imagino que sim. Ou talvez não seja nada disso pode ser que um homem que fale num tablado, de maneira especialmente inspi­rada, possa coincidir com alguém que o escute, e que tenha ido escutá-lo sem qualquer expectativa especial, e isso de maneiras sobre as quais sabemos muito pouco. Mas, ao lhe escrever, esse ato de sentar para juntar as palavras, na espe­rança de que as palavras sejam tão fortes quanto as usadas pelo senhor naquela noite, parece a expansão de um fermento ou de algum produto químico que começou a agir em um lugar e depois saiu dali, alimentando e incitando e depois tornou a voltar para o ponto de partida. Esta carta é como um lagarto engolindo sua cauda. A essa altura o senhor verá que não tem importância não me conhecer, pois não sou im­portante individualmente. Nem o senhor, claro. Escrevo por­que tenho mais tempo do que os meus amigos. Sou aposentada. Professora. Meus filhos são crescidos e sou viúva. Talvez ti­vesse de ser eu por causa de eu ter estado lá naquela noite e ter voltado como se me tivessem tirado de um devaneio a bofetadas. Também estivemos pensando sobre os outros que estavam lá naquela noite. Será que alguns se retiraram com uma sensação de terem sido impregnados com uma nova es­pécie de inteligência? Ou fui eu a única? O senhor provavel­mente não sabe. Mas acho isso difícil de acreditar. Já ouvi muitas conferências em minha vida — infelizmente. E até mesmo já as fiz. Para mim não é uma idéia nova que a quali­dade de uma conferência ou do conferencista não tem neces­sariamente muita coisa a ver com as palavras que ele use. Não, não quero dizer que eu admire o demagogo e o orador inspirado, em absoluto. Mas há uma outra qualidade, é uma que o senhor mostrou naquela noite. É possível imaginar o que o senhor disse naquela noite sendo ouvido de modo muito desinteressante. As palavras eram interessantes, sim. Mas não é esse o problema. A essência do que aconteceu na sala naquela noite, e do que tenho aprendido desde então, é que palavras pronunciadas normalmente numa sala vizinha, uma música conhecida ouvida com uma atenção especial, um trecho num livro que a pessoa normalmente consideraria comum, até mesmo o som da chuva nos galhos, ou um raio riscando um céu de noite, barulhos e coisas comuns como um dia qualquer podem encerrar essa mesma qualidade que hoje percebo ser a mais valiosa para mim. E para outros.

E se o senhor não sabe a que me refiro — então temos de aceitar como verdade a sugestão inacreditável de que não só um pássaro, o raio, música, chuva, as palavras de uma cantiga de roda, mas também um homem falando num salão de confe­rências meio feio podem ter essa qualidade, sem o saber. Assim como um pássaro pode cantar o verão inteiro sem nunca saber que os sons que faz ficarão a vida toda nos ouvidos de uma criança, nas ruas manchadas Como a cristalização da promessa de uma primavera que volta.

Se o senhor não sabe de que estou falando, e não reco­nhece nada, então...

Foi no princípio da primavera, este ano. Eu estava pas­sando o fim-de-semana com amigos perto de Cambridge, ex-alunos meus. Eles têm filhos pequenos. Estavam muito entusiasmados, cheios de planos para um novo tipo de escola — não, não para substituir a educação comum, dada pelo Estado, mas para complementá-la, Uma escola de fim-de-semana com ênfase no ensino individual não ortodoxo. Enquanto es­crevo, tenho uma sensação de tédio e ranço — e, no entanto, hoje, como antes, sinto-me atraída por essas idéias. É que já fui atraída por elas tantas vezes!

O senhor devia falar diante de uns vinte e poucos pais, porque havia algum tempo estava metido com projetos semelhantes. A idéia de passar a noite numa sala de conferências quase me fez ficar em casa, mas acredito que esses esforços individuais para educar, animar e provocar são vitais — que qualquer país fica sonolento sem esses esforços. Mais ainda, que qualquer democracia depende deles. Fui, portanto, e en­contrei-me, como imaginava, num espaço retangular, coberto de estuque pintado de cinza, ainda fresco — era um salão novo. O aquecimento era precário. Numa extremidade havia um ta­blado de madeira, onde ficava o orador — o senhor. Filas de indivíduos sentados, atentos, diante do senhor. As cadeiras eram retas e duras. É esse o ambiente pouco inspirador que nós nos fornecemos para os projetos e debates dos sonhos que temos para um mundo melhor! O auditório da aldeia. O audi­tório local. O salão da igreja. Nós consideramos isso normal, claro. Um homem ou uma mulher fica de pé num tablado baixo, com uma mesa ao lado, com um copo d’água sobre ela e talvez um microfone e defronte dele uma porção de pessoas sentadas, levantando o rosto para ouvir o que ele, ou ela, tem a dizer. Por este processo surgem melhores escolas, hospitais, uma nova sociedade. Podemos achar isso normal, mas como poderia parecer, visto de fora? Muito estranho, com certeza. De qualquer forma, naquela noite, a pessoa era o senhor, um homem de meia-idade, acostumado a pisar os tablados, bem- dotado e de maneiras elegantes, de modo a não aborrecer nem ofender a sua platéia. Isto não é uma critica, embora possa parecer assim. Lembro-me que, sentada ali enquanto o senhor começava a falar, pensei que tinha uma atitude perfeita no tablado, assim como os médicos têm a atitude própria com os doentes.

Eu estava inquieta e irritadiça — extraordinária e irrazoavelmente — com tudo aquilo. E estava zangada comigo mes­ma por estar assim. Eu gostava das coisas que estavam sendo ditas. Gostava do fato de todos aqueles jovens pais estarem dispostos a despenderem tempo e dinheiro para educar os filhos de modo que o nosso sistema educacional comum não podia ou não queria fazer. Aprovava o senhor, orador, tanto quanto se podia ver como o senhor era, por trás de sua preleção profissional. No entanto, eu estava fervilhando de rebe­lião, de emoção por que é que a gente teria siempre de sentar-se em cadeiras duras, num salão sem graça para ouvir idéias sendo debatidas, por que, quando a gente quer ser um cidadão e agir com os outros, tem sempre de ser assim — e por que sempre tinha de haver esse fenômeno, as pessoas cansadas e irritadas com o que a sociedade fornece, por que achávamos aquilo natural — que sempre era assim, sempre fora, sempre teria de ser? Por que é que o que acontece, o que é fornecido, é sempre tão maçante e chão e desprezível comparado com o que qualquer pessoa comum na rua pode imaginar como sendo possível e desejável — quanto mais esses jovens pais profis­sionais no salão, todos bastante instruídos. Vinte anos antes eu fizera parte de um grupo de jovens pais como aquele, por causa dos meus filhos. Havia pouco tempo, novamente, por causa de filhos de amigos. Mas aquilo que tínhamos sonhado, e depois discutido, e depois planejado e depois tentado exe­cutar não tomara a forma de nossos sonhos originais. Nem de longe... Houve resultados, mas nada que se aproximasse daquilo que sabíamos ser possível. Por quê? O que houve de errado? O que sempre dava errado?

Eu estava sentada muito quieta entre meu anfitrião e a mulher dele, fervendo de exasperação e revolta e impaciência, emoções bastante impróprias para uma diretora de escola apo­sentada, quando o senhor disse aquilo que me afetou tão pro­fundamente. Lembro-me exatamente do que disse, porque eu estava concentrada no que dizia, a despeito de minha agitação física.

— Todos nesta sala acreditam, sem o saber, ou talvez sem o ter formulado, ou pelo menos agem Como se acreditassem, que as crianças até a idade de sete ou oito anos são de uma espécie diferente da nossa. Vemos as crianças como criaturas prestes a serem apanhadas e corrompidas pelo que nos apanhou e corrompeu a nós. Nós nos referimos a elas, nós as tra­tamos como se fosse possível fazer acontecerem coisas quase inimagináveis. Falamos delas como seres que poderiam crescer para tornar-se uma raça inteiramente superior à nossa. E esse sentimento está presente em todo mundo. É por isso que o ramo da educação é sempre tão amargurado e encarniçado e o motivo pelo qual nunca ninguém, em país algum, se contenta com o que é oferecido às crianças — a não ser nas ditaduras, onde o futuro das crianças é subordinado às necessidades do Estado. No entanto, nós nos acostumamos a isto e não com­preendemos como é extraordinário, e o que esse fato repre­senta. Pois devia ser suficiente ensinar aos jovens da espécie a sobreviver, a aproximar-se das habilidades dos mais velhos, a adquirir técnicas modernas. No entanto, cada geração parece soltar um grito de angústia, em certa altura, como se tivesse sido traída, vendida, enganada. Cada geração sonha com algo melhor para suas crianças, cada geração recebe a passagem de sua infância à idade adulta com uma decepção profunda e se­creta, mesmo que essas crianças fossem paradigmas em todos os aspectos, do ponto de vista da sociedade. Isso deve-se à crença forte mas não reconhecida de que é possível algo melhor do que nós mesmos. É como se as jovens criaturas da huma­nidade crescessem para a idade adulta numa espécie de corrida de obstáculos, cheia de perigos, enquanto os adultos tentam, inútil, mas valentemente, fornecer algo melhor. Alcançada a idade adulta, os que acabam de crescer se juntam aos mais velhos, seus pais, ao se voltarem e olharem para a sua própria infância. Olham para a infância de seus próprios filhos com a mesma angústia inútil. Podemos evitar que essas crianças sejam apanhadas e estragadas como nós fomos, o que podemos fazer?... Quem não olhou pelo menos uma vez nos olhos de uma criança e viu ali a expressão de crítica, uma hostilidade, a expressão zangada e sabida de um prisioneiro? Isso acon­tece com os pequeninos, antes de a criança ser obrigada a tor­nar-se igual aos pais, antes de sua própria individualidade ser coberta pelo que os pais dizem que ela é. O «isso é certo, isso é errado, veja as coisas do meu modo», Esta reunião dessa noite, de jovens pais que se juntam para tentar dar alguma coisa melhor, uma «educação» melhor, não era nada mais nem menos do que esse fenômeno que se repete a cada geração. Todas as pessoas sentadas ali em cadeiras duras na sua frente sentiam que o seu potencial não fora utilizado. Alguma coisa dera errado. Algum processo doloroso e errado tinha se com­pletado, deixando-as, mesmo depois de uma instrução dispen­diosa — a maior parte das pessoas eram da classe média — deficientes, não-realizadas, quando não deformadas. E assim estávamos fazendo apenas o que cada geração fizera; estáva­mos olhando para os nossos filhos como se estivesse neles ser

isto é, se conseguíssemos saber qual a «educação» certa a lhes dar criaturas bem diferentes de nós. Podiam ser melhores, mais valentes, mais alegres. Ah, e mais, muito mais

pensávamos neles quase como se fossem crias de outra espécie, uma espécie livre, destemida, cheia de potencialidade, cheia daquela qualidade que todos reconhecem mas nunca é definida, a qualidade que todos os adultos perdem e sabem que perdem.

Foi isso que o senhor disse e mais.

É estranho que eu mal me lembre da sua expressão, ao falar. Sei que eu estava bem acordada mas mesmo assim, não tinha a energia suficiente para absorver o que o senhor dizia, e para acalmar a minha própria agitação, e para obser­vá-lo de perto. No entanto, era uma noite em que eu estava cheia de energia, vitalidade, interesse justamente porque estava zangada (se é essa a palavra certa) por estar ali de novo. O que o senhor disse explicava a sensação de igual­dade, o de novo. No entanto as palavras que o senhor usou, a energia que pôs nelas, o que sentia em tudo isso e era o que também nós sentíamos, pois os jovens pais estavam ani­mados e acordados e enquanto se debruçavam em suas cadei­ras para olhar e escutar, olhando uns para os outros, até para pessoas que nem conheciam direito, para bater a cabeça e sorrir, como quem diz: sim, sim, é isso, é tremendamente ver­dade e não podemos falhar, dessa vez temos de vencer... tudo isso, a emoção do reconhecimento no auditório de repente nos fazia sentir vivos. A igualdade desaparecera. Os nossos seres de todo dia estavam afastados por um momento, enquanto o senhor falava: «A educação só significa isso; a curiosidade animada, alerta e destemida das crianças deve ser alimentada, deve ser mantida viva. Isso ê a educação.» E, escutando aquilo, nós éramos animados e alertas e destemidos. Cada um de nós ficou embebido dessas qualidades, pór certo tempo. Ainda esti­mulados, os meus amigos e eu voltamos para a casa. Ao en­trarmos na sala, ainda quente e enfumaçada do princípio da noite, antes de irmos para a palestra, começamos a bocejar. O estímulo já passara. Uma das crianças chorou, dormindo, e o pai subiu, enquanto a mãe dizia que devia levar o filho ao médico, pois estava dormindo mal, estava agitado e tinha pesadelos. Compreendi que não havia relação alguma entre o que estava acontecendo então pai indo acalmar filho, mãe falando de médicos e remédios, e o que aqueles mesmos pais tinham sentido e almejado nem meia hora antes, ou alguns minutos antes, no carro. Estava tudo acabado. O momento de estar desperto, receptivo, enérgicose consumira. Não temos muita energia. As suas palavras ou melhor, o que o senhor pôs nas palavras nos alimentara, nos despertara, nos fizera reconhecer partes de nós geralmente bem escondidas e cobertas... e pronto. A noite terminou como come­çara, alguns adultos numa sala, conversando, bebendo e fu­mando, discutindo sobre a projetada escola de fim-de-semana para as crianças, mas como se fosse apenas mais uma de suas inúmeras tarefas e encargos.

Mas eu estava desperta. Estava cbmo que desperta por uma aguilhoada. Não dormi. E fiquei sentada junto à janela naquela noite, pensando; não deixe isso escapar, não o esqueça. Alguma coisa extraordinária realmente aconteceu. Tal­vez que durante aquela noite, enquanto eu ficava sentada olhando para um jardim suburbano, fui como uma criança de três, quatro ou cinco anos, uma criatura bem diferente da pessoa que ela estava destinada a ser. Certamente eu me lem­brei daquilo que fora quando pequenina. Lembrei-me de coisas que tinham ficado esquecidas durante anos. Antes daquelas «cortinas da prisão» terem baixado. Antes da armadilha se ter fechado.

E quando voltei ao meu apartamento em Londres, aquilo ficou comigo. O que ficou? Não as palavras que o senhor usou. Foi a sensação da qualidade do que o senhor disse. Era como um reconhecimento, como se eu tivesse sido lembrada de algo que conhecia muito bem. Fui acometida de um medo febril de que eu tornaria a me esquecer, a largar aquilo que fora em criança. Era a mesma sensação que se tem ao acordar de um sonho vivido que se sabe que tem importância para si, bu para um amigo. Você acorda lutando para conservar o sonho, seu sabor, sua consistência. Mas depois de alguns minutos des­perto, aquele país dos sonhbs se foi, seu gosto e realidade se esgotaram na vida real. Só o que resta é uma convicção inte­lectual contida numa série de palavras. Você quer lembrar-se. Tenta lembrar-se. Tem uma série de palavras para oferecer a seu amigo, ou para repetir para si. Mas a realidade foi-se, evaporou-se.

Mas eu estava me lembrando. Era como se a qualquer momento do dia em que eu quisesse revivê-lo, havia uma ponte entre aquele momento exaltado em que o senhor falava coisas sobre as crianças, sobre todos nós, e o pulso do tempo em que eu estava. Comecei conscientemente a olhar em volta de mim para encontrar essa qua1 idade em outros momentos da vida. Como um metal com butro, tocando uma substância em outra, aparentemente dissemelhante. Eu fora estimulada para desper­tar por aquela noite, e agora estava inquieta, procurando, e estava nervosa com medo de que essa inquietação pudesse es­correr-se como o reflexo de um lindo sonho, deixando-me nova­mente tranqüila e morta.

Então, depois de várias semanas, aconteceu outra coisa. Gostaria de poder escrevê-lo, mas não posso fazer mais que anotar as palavras. Mas foi Outro lampejo de reconhecimento, de alegria, de «sim, é isso», e novamente, essa qualidade de combinar, de tocar junto, das substâncias em harmonia, que apaireceu nesse incidente, exatamente como aparecera naqueles cinco ou dez ou trinta minutos quando o senhor falava de con­servar a animação e vigilância nas crianças, ao mesmo tempo que enchia uma sala de pessoas de animação e vigilância. Mesmo que fosse apenas por alguns minutos.

Como já disse, eu tinha estado meio inconscientemente, procurando, observando, tentando tornar a encontrar aquela «qualidade» novamente. A qualidade à qual eu denominara de «comprimento de onda». Pois era como tocar de repente num fio de alta tensão. Ou estar de repente numa corrente diferente, alta, vibrante, em que o conhecido se torna transparente. Bem, e quando isso aconteceu, não o reconheci imediatamen­te, pois eu talvez já tivesse feito um verdadeiro fetiche da­quele momento na sala de conferências eu queria que acon­tecesse a mesma coisa. Quando aconteceu, foi comum, tal como fora com o senhor, falando de educação numa palestra rotineira. E, naturalmente, eu não o estava esperando exata­mente ali, e o momento já quase se passara antes que eu o reconhecesse, e eu poderia até, se não tivesse de repente sido estimulada a prestar atenção, tê-lo perdido completamente.

E mais uma vez, suponho que não pareça grande coisa quando o escrevo. Às vezes, quando se lê um livro ou uma história, as palavras estão mortas, você luta para terminá-lo ou largá-lo, a sua atenção vagueia. Em outra ocasião, exatamente com o mesmo livro ou história, ele parece cheio de significado, cada frase ou mesmo palavra parece vibrar com mensagens e idéias, ao lê-lo você parece estar-se enchendo de adrenalina.

Experiências comuns, de todo dia, podem ser assim.

Eu estava caminhando pela rua, junto à Universidade de Londres. Era de tardinha. Creio que era em maio; pelo menosainda não estávamos no verão. Tinha chovido. As coisas reluziam nas luzes da rua. Não acha que quando o sol se põe o mundo fica mais brilhante, e mais intenso? E às vezes muito triste. Especialmente quando choveu. Bom, vou continuar —sei que ambientes ou cenas que comovem uma pessoa não dizem nada a outras. Eu estava andando depressa, para me aquecer, era um típico dia de primavera inglês, frio como no inverno! Junto da entrada da universidade, por onde passo freqüentemente, pois moro perto, diminuí o ritmo e comecei a olhar para dentro, para as grandes colunatas e a pompa cerimonial do local, e pensei que essa impersonalidade e formalidade são o meio mais fácil de identificar um local de ensino — escola, universidade, faculdade — e que esse ambiente em si deve provocar um estado de pensamento no jovem que é educado ali. Vi um homem descendo aquela escada, mas era hora das pessoas irem para casa, e havia um fluxo cons­tante de gente vindo para os portões. Eu estava olhando para essas pessoas, à toa, pensando como aqueles seres humanos pareciam pequeninos e sem importância junto dos prédios grandiosos e frios que passavam por seus servos, e que ne­nhum jovem que estudasse ali podia jamais acreditar que os seres humanos são mais importantes do que suas instituições. As palavras, os mestres, os compêndios podiam dizer uma coisa: o próprio prédio gritava o oposto.

Eu observava aquele homem por algum motivo, e pen­sando que, parada ali, eu estava ficando com frio. Foi aquele o meu pensamento mais forte: estava com frio. Ao mesmo tempo, pensei que conhecia aquele homem. De repente avolumou-se em mim uma forte sensação de que eu o conhecia — não, não era apenas amizade, e lembre-se de que tenho 60 anos, e não sou nenhuma mocinha romântica, Não posso dizer mais do que isso; não me lembro de ter jamais sentido tanta afinidade com alguém, como se realmente conhecesse alguém completamente e estivesse profundamente ligada a ele. Quan­do essa sensação foi passando, deixando-me meio surpresa e até divertida — percebi que naturalmente eu o conhecia: era Frederick Larson. Talvez o senhor conheça o nome? Não, ele não é uma pessoa muito conhecida, mas não creio que seja uma pergunta realmente tola. Para começar, quantas vezes a gente não diz a um amigo ou conhecido: «Você conhece Fulano?» e ele conhece — o que não era provável. Mas neste caso, há mais que isso. Parece que quando nós — explicarei o «nós» daqui a pouco — nos encontramos, e nos atraímos, na verdade já estamos na mesma órbita, se posso falar assim. Nós nos conhecemos, ou temos amigos comuns. O encontro real não é mais que a confirmação de um laço que já existe. De qualquer forma — Frederick o conhece de nome, e o seu trabalho, e diz que chegou a conhecê-lo, mas havia outras pessoas presentes outra conferência; duvido que se lembre do nome dele, se algum dia já ouviu falar nele.

Quando ele chegou ao portão e me viu parada ali, disse, sorrindo:

E agora conte-me sobre você.

Vou explicar. É uma velha brincadeira. A primeira vez que ouvi falar dele foi por intermédio de minha irmã Marjorie. Ela estava na Grécia com o marido. Ele era arqueólogo. Envenenou-se e ficou doente muito tempo, antes de morrer. Durante esse tempo, Frederick Larson, velho amigo dele, foi-lhe muito dedicado e a Marjorie. Ele também era arqueó­logo. Tirou uma licença para poder acompanhar o amigo, meu cunhado, quando este morreu. Minha irmã estava muito sozinha e triste e me escrevia cartas compridas, duas ou três vezes por semana. Contou-me a respeito daquele amigo maravilhoso do seu marido moribundo, da bondade e paciência do amigo e de seu carinho, e assim por diante. Contou-me tudo sobre ele, sua mocidade, suas lutas, sua instrução tudo. Em resu­mo, eu sabia de tudo sobre ele e ele sabia de tudo sobre mim, pois não havia aparentemente nenhum motivo por que devês­semos nos conhecer. Nós éramos um para o outro mais como os personagens de uma novela comprida, em que a história vai sendo escrita à medida que a lemos. Sabíamos as coisas mais íntimas a respeito um do outro. Não foi a primeira vez nem a última que tive esse tipo de relacionamento com pessoas que não conhecia pessoalmente. Mas hoje natural­mente eu me pergunto se essa extraordinária intimidade de segunda mão não significará que um dia teremos de nos en­contrar. Pois bem, um dia, numa festa, eu estava ao lado de um americano que não conhecia e que, no entanto, me parecia conhecido. Eu não entendera o nome dele, quando nos apre­sentaram. E ele sentiu a mesma coisa a meu respeito. Come­çamos a nos contar coisas que sabíamos um sobre o outro, de brincadeira, sem dizer nossos nbmes. Nós nos conhecíamos extremamente bem sabíamos mais a respeito um do outro do que muitas pessoas que se vêem todos os dias. Bom, afinal dissemos os nossos nomes e tudo ficou explicado. O começo de uma bela amizade? Não então, pelo menos. Ele estava de partida para umas escavações na Turquia, eu ia levar um de meus filhos de férias, nossas vidas estavam em faixas muito diferentes. Pilheriamos dizendo que não adiantava sermos amigos, pois já sabíamos tudo o que havia a saber e não podia haver surpresas. Depois disso, volta e meia nos encontrávamos no meio da rua, ou em casa de amigos. Naturalmente, muitas vezes ele estava viajando no exterior, e, quando meus filhos já estavam mais crescidos, nós os levávamos em viagens. Antes de partirmos em viagem eu apostava com meu marido, de brincadeira, que havíamos de encontrar Frederick em algum lugar. E encontramos, mais de uma vez. Quando nos encontrá­vamos, um ou o outro diria: «E agora conte-me sobre você.» Muitas vezes já sabíamos — amigos comuns tinham mantido a novela em dia.

Dessa vez, ao chegar onde eu estava, ele virou-se e olhou para dentro, para o pátio — mas é grande demais para ser chamado pátio — onde as pessoinhas se afastavam depressa do edifício imenso. Ele deve ter visto o que eu estava vendo, pois disse:

Há edifícios grandes como esse que têm escadarias proporcionais ao seu tamanho.

Não compreendi.

Há um edifício no México, por exemplo. Tem escada­rias que não poderiam ser usadas por seres humanos do nosso tamanho. Imagine esse prédio aí com uma escadaria na mesma escala que ele — degraus do tamanho de um homem. O mo­tivo por que esse edifício nos reduz tanto em tamanho é devido às proporções dos degraus e do edifício em si. São as pro­porções.

Mas então seria um edifício para gigantes — disse eu.

Ele citou, rindo:

Mas naqueles tempos havia gigantes.

Eu estava ficando com muito frio e já atrasada para uma visita que ia fazer. Enquanto pensava nisso, ele disse:

Bom, imagino que nos encontraremos de novo.

Eu já tinha me despedido e ia me afastando quando fui obrigada a voltar. Parecia uma sensação de pânico, um aviso, a sensação de possibilidades perdidas, de oportunidades que iam desaparecer. Em minha mente surgira a recordação do senhor falando naquele tablado sem graça. Frederick também tinha voltado, depois de ter dado alguns passos.

Ele disse:

— Passei o verão passado trabalhando numa escavação na Turquia. Cerca de 1/4 de hectare de uma cidade já foi exposto. Devia medir vários quilômetros de largura. Parece que sob a camada de cima há várias outras camadas. Seres humanos viveram naquele local durante muitos milhares de anos. Provavelmente o clima modificou-se nesse tempo, modi­ficando tudo, a vegetação, os animais, as pessoas. Baseados num trabalho de um verão e naquele pedaço descoberto, sa- berilos tudo sobre aquela civilização — suas crenças, seus ri­tuais, seus hábitos, sua agricultura. Trabalhos eruditos estão sendo escritos às dúzias. Eu mesmo já escrevi três. Ontem não estava passando muito bem e fiquei em casa, assistindo à televisão entre as quatro e sete horas. Baseado nessa expe­riência, estou preparado para concluir o seguinte sobre a ci­vilização na Grã-Bretanha em 1969. Antes de tudo, a caracte­rística mais notável de uma civilização extraordinária: todos os fatos são igualmente importantes, seja a guerra, um jogo, o tempo, a arte de cultivar plantas, um desfile de modas, uma caçada policial.

«Outro traço, incrível para nós, é sua capacidade de con­ciliar uma variedade tão grande de crenças incompatíveis. Os britânicos são uma sociedade técnica altamente desenvolvida, mas também acreditam era bruxas, fadas, super-homens, magia de todos os tipos, e dão-se ao trabalho de inculcar essas cren­ças nas crianças, junto com técnicas científicas.

«Ao mesmo tempo têm uma divindade superior aos deuses subsidiários, mas essa divindade é mais atrasada do que eles, e menos poderosa — pois os deuses secundários, como os super-homens, de fato usam técnicas modernas como a levitação e viagens espaciais. A divindade superior é propiciada ou invo­cada por meio de cânticos, diante de sacerdotes que usam roupas muito enfeitadas, como parte de um cerimonial reali­zado em prédios muito ornamentados, porém obsoletos e ar­caicos. Esses sacerdotes, provavelmente como parte de um ritual mágico, usam o som de todo modo, cantando, entoando, em cantochão, e assim por diante.

«O uso que fazem do som é totalmente desafiador e enigmático. Embora se comuniquem uns com os outros verbalmente, em geral por meio de palestras — um homem ou uma mulher falando extensamente sobre algum assunto iso­lado — pouco acreditam na eficácia da palavra em si, pois essas palestras, ou conferências, são apresentadas, acompa­nhadas, interrompidas, concluídas por uma variedade de sons, geralmente musicais. Acredito que o uso que fazem da música assim, se o compreendêssemos, seria a chave para a civilização deles. Provavelmente tem algo a ver com o doutrinamento ou a impressão cerebral. Para mim não há explicação para a na­tureza inteiramente arbitrária, fortuita, fragmentária dessa música de ênfase ou de acompanhamento a não ser que deva fazer parte da técnica usada por um sacerdote oculto com uma casta tecnicamente superior para controlar a plebe. Se é esta a explicação correta, então essa cultura é notavelmente adian­tada em certos sentidos, embora muito atrasada em outros.

Já mencionei que é uma cultura profundamente animista, acre­ditando que os animais e as plantas têm características huma­nas e às vezes mágicas... Sim, posso assegurar-lhe que isso é bem semelhante aos nossos métodos na Turquia ou na África Ou em qualquer outro lugar. Ora, se eu tivesse assistido à tele­visão entre as oito horas e meia-noite, minhas conclusões te­riam sido bem diferentes, mas, naturalmente, igualmente enfáticas...

Fomos a um bar ali por perto, onde telefonei para a pessoa que estava à minha espera para desculpar-me, pois não ia fazer a visita. Não podia deixar Frederick naquela hora. Na verdade, ele estava num estado de grande perturbação. Descobrimos que durante as últimas semanas, tínhamos tido a mesma experiência. No caso dele, ele não podia lembrar-se de um princípio definido para tudo. Não podia dizer: «tudo começou porque uma noite eu estava sentada num frio auditório escutando um entusiasta da educação». Não, mas um dia percebeu que estava num estado de espírito diferente. Mas ele não conseguia defini-lo. O trabalho — que ele ama e geral­mente coloca acima de tudo, antes mesmo da mulher e da fa­mília, conforme ele mesmo confessa — esse trabalho se tor­nara uma rotina, uma coisa a ser feita. Pensou que podia estar doente. Chegou a ir consultar um médico, que lhe deu um tônico. Verificou que estava dormindo mal. Descreveu isso como o tipo de sono que a gente dorme antes de uma viagem, em que se tem de sair muito cedo, e a pessoa fica acordando com medo de dormir demais.

Ofereceram-lhe a oportunidade de fazer um trabalho num local no Sudão e, embora tivesse vontade de voltar a trabalhar na África, ele recusou. Mas sabia que isso era bobagem e que poderia ser uma decisão de que ele mais tarde se arrependeria.

Por fim, disse consigo mesmo que estava meio doido e talvez aquilo se devesse à descoberta de que ele estava sem dúvida na meia-idade! Parou, no entanto, de se importar com os porquês e para quês. Disse que tudo lhe aparecia mais ní­tido e vivo, e que era como estar apaixonado, aquele estado em que, durante horas, dias e semanas tudo fica encharcado da personalidade da outra pessoa. Mas ele não estava apaixonado. E não havia outra pessoa. Disse que era como se tudo — as pessoas, os lugares, as árvores, as plantas, as casas — fosse cheio de riquezas, promessas, e, no entanto, tudo lhe dava as costas quando ele se aproximava.

— Era como se eu me aproximasse de um espelho e visse que ele não refletia nada.

Conheço essa sensação; o senhor não? Contei-lhe as mi­nhas experiências na «noite das crianças» (que é hoje o título que dou à coisa). Ficamos conversando até o bar fechar, e depois fomos para o meu apartamento, pois ambos tínhamos a mesma sensação — cada um de nós, para o outro, era um pote cheio de possibilidades, mas um pote fechado, selado. Mas se conversássemos bastante, alguma revelação apareceria, alguma indicação.

Um problema era que as nossas vidas tinham sido tão diferentes, ele sempre viajando, sempre encontrando novos lu­gares e cidades, e eu, professora e dona-de-casa e mãe, que raramente tinha saído da Inglaterra. Mas tínhamos essa coisa em comum, o termos passado a um estado extraordinariamente desperto. As reações das outras pessoas pareciam lentas. Elas pareciam meio adormecidas. No entanto, essa condição tam­bém era um mal, pois era um esforço e uma dificuldade, um desafio ao qual era difícil a gente corresponder.

Escrevi detalhadamente sobre esse encontro com Frederick porque foi como «a noite das crianças». Agora vou resu­mir as coisas, e procurar pôr um pouco de ordem nelas.

Frederick e eu nos encontramos quase todos os dias — estamos agora no princípio do verão, fins de maio, princípios de junho. Como já disse, estou aposentada, e ele estava sem com­promissos. É um homem ativo e não gosta de ficar à toa. Re­solveu fazer umas conferências sobre as escavações na Turquia. Ele já fez muitas conferências. Uma noite foi me procurar, por volta das dez horas da noite, dizendo que quando se levantara para falar, umas duas horas antes, na primeira conferência, começara a gaguejar tanto que não conseguira prosseguir. Não podia pronunciar as palavras. Foram apresentadas desculpas, alegando-se que ele estava trabalhando demais, e assim por diante. Desculpas, muito constrangimento. Ele foi me pro­curar, espantado, chocado e bastante atemorizado. Estava no­vamente pensando que podia estar doente. No entanto, embora ele não tivesse conseguido articular duas frases seguidas — não pronunciara uma palavra sem gaguejar — comigo não gaguejou nada. Estava normal. De repente ele lembrou-se de que aquilo já lhe acontecera antes, uns dez anos atrás. Mas a coisa fora tão desagradável que ele a tirara da cabeça. Ele disse:

— Foi uma coisa tão bizarra, quando sou tão fluente e falador, que não consegui associar aquilo com a minha pessoa: realmente parecia estar acontecendo com outra pessoa.

Ele tinha terminado o trabalho de um ano em escavações numa ilha grega. Estava fazendo preleções sobre a Ilíada e a Odisséia, ligadas a certas descobertas que ele e os colegas tinham feito. Começara a gaguejar. Lutou para continuar, pois era uma coisa que nunca lhe acontecera, mas depois de alguns minutos foi acometido de um acesso da gagueira tão forte que não conseguiu continuar, e teve de encerrar a conferência. Pa­recia, disse ele, que sua língua fora adormecida ou congelada. Ele foi para casa e lá terminou a conferência que pretendera proferir para a platéia. Fez isso com facilidade, com a sua fluência normal. Mas observou que, à medida que ele falava, outro fluxo de palavras surgia, paralelamente ao das palavras que ele estava de fato usando, e esse fluxo paralelo exprimia opiniões não exatamente opostas às que ele usava, como um eco ou uma imagem num espelho — o que, disse Frederick, teria feito sentido, psicologicamente — mas sim opiniões meio disparatadas e ele podia jurar que não eram opiniões que ele tivesse lido, nem ouvido falar. Eram loucas, doidas, birutas, excêntricas. Mas ele não podia impedir que aquele fluxo con­tinuasse, bem distintamente, enquanto ele fazia a sua preleção organizada e sensata. Ele disse que achava que se afrouxasse a vigilância ou a censura por um momento, sua língua come­çaria a exprimir esse outro fluxo maluco e ele ficaria inde­feso como um boneco de um ventríloquo.

Bem, ele cancelou a série de conferências e tirou umas férias com a família. Tomou sedativos receitados pelo médico e quando terminaram as férias partiu em outra expedição, e em breve tinha esquecido completamente que algum dia tinha gaguejado.

Estou descrevendo essa gagueira com mais detalhes do que faria normalmente porque na «noite das crianças» o senhor disse, de passagem, que tinha tido problemas de gagueira.

Frederick cancelou a série de conferências sobre a Turquia. Foi consultar um psiquiatra, que não conseguiu descobrir nenhum problema pessoal. Frederick insistia em dizer que era feliz com seu trabalho, sua vida, seus hábitos, a mulher e os filhos — já crescidos. Depois ele falou ao médico sobre seu estado mental nas últimas semanas, e descobriu que está sofrendo da andropausa e está num estado maníaco-depressivo. Achou isso interessante, mas que não trazia nenhuma ajuda. Ocorreu-lhe a idéia de que ir ao médico tinha feito com que mais uma trilha paralela aparecesse «como uma linha ferro­viária», na sua vida. As conversas com o médico a respeito de seu estado prosseguiam concomitantemente com esse estado, sem afetá-lo de modo algum, nem o que realmente lhe inte­ressava — que eram e são as conversas comigo e com mais uma ou duas pessoas. Vou dizer apenas, nesse ponto, que pouco depois de meu encontro com Frederick, nós dois tivemos outros encontros, do mesmo tipo. Esses foram esparsos e fortuitos, e, no entanto o amigo de Frederick conhecia o meu amigo e tinham, de fato, o tipo de relacionamento que eu e Frederick temos tido há anos — a novela que não termina. Se o senhor chegar a nos conhecer, e espero que esta carta tenha o efeito de conseguir isso, então vai conhecer a mim, Frederick e mais duas pessoas. Todos tivemos nossas vidas modificadas nos últi­mos meses, porém de um modo difícil de descrever, tão ligei­ras e imperceptíveis são essas modificações externamente. Mas voltando ao Frederick. Depois de meia dúzia de consultas ao psiquiatra, ele continuava a gaguejar sempre que abordava qualquer aspecto de sua vida profissional, sendo bastante fluen­te e falando facilmente sobre qualquer outro assunto.

O psiquiatra sugeriu-lhe vários tratamentos, todos eles de natureza química, mas Frederick desistiu dele e arranjou um especialista em gagueira, não um médico, uma pessoa fora da profissão médica. Esse homem usa um método que cura a gagueira fazendo a pessoa falar muito devagar, pronunciando todas as letras, com pausas medidas entre as palavras. Os sons produzidos são sem emoção, sem o fluxo e movimento comuns à fala. É uma fala de máquina. Mas o método realmente cura algumas pessoas. Frederick chegou a ir a uma meia dúzia de aulas, mas então ocorreu-lhe que o método era um meio de se bloquear a espontaneidade, a criatividade da pessoa. O mé­todo era uma censura. Vigiar todas as sílabas que chegam à nossa língua significa mais do que focalizar a atenção total sobre a nossa fala, significa colocar o censor mais para trás, para dentro de nossa mente. Escolher as palavras que já che­garam à ponta de nossa língua já é tarde. Não, a escolha devia ser feita antes, na mente. Frederick descobriu que estava fi­cando muito apto nisso. Na aula, parecia uma pessoa que es­tava acabando de aprender a falar e que tinha de praticar todas as frases antes de usá-las. Ou como alguém que vivesse sob uma ditadura e que tivesse de vigiar a língua. Mas quando ele rompia numa gagueira incontrolável, era tão ruim quanto antes, embora menos freqüente. Abandonou as aulas, e resolveu não voltar ao psiquiatra. Tinha compreendido isso: devia haver alguma coisa que ele começava a compreender.

Juntos revimos várias vezes o período imediatamente an­terior ao primeiro acesso de gagueira, mais de dez anos antes. Era a época do trabalho na Grécia, que teve como resultado um livro chamado, creio, New Light on Homer (Novas Luzes Sobre Homero) ou coisa parecida. Mas verificamos que isso não foi o princípio. Antes da Grécia, ele tinha feito viagens pela África. Visitara uma tribo cuja vida se baseia nos movimentos de um rio. O rio tem cheias todos os anos e uma grande planície desaparece sob a água. Na planície há montes em que são construídas as aldeias. Quando a cheia atinge certa altura, o povo das aldeias toma barcos e vai morar nas margens, até as águas tornarem a voltar ao seu leito. Ora — e é essa a questão — Frederick teve a seguinte idéia: e se num certo ano as águas subissem mais três metros do que o normal, inundassem as aldeias e o povo resolvesse não voltar mais a eles e sim ir viver noutro lugar. Dentro de muito pouco tempo, talvez não mais de dois ou três anos, seria impossível saber que seres humanos tinham vivido ali. As cabanas eram de madeira e barro. Os telhados de sapê. A maior parte dos utensílios era de madeira. A cerâmica não era cozida, e sim seca ao sol e feita para ser usada e logo abandonada. A tribo era pacífica há algum tempo — as armas, lanças eram de ferro e ritualísticas. A água e as formigas podiam destruir todas essas coisas em alguns meses. Os únicos objetos nessas aldeias que poderiam sobreviver eram os utensílios modernos de lata e as coisas de plástico. Mas aquela sociedade poderia ter existido mais de mil vezes, naquelas elevações, com cheias periódicas, sem que nada restasse, mas nada mesmo. No en­tanto, disse Frederick, se julgarmos uma sociedade pela har­monia, a responsabilidade para com seus membros e falta de agressão para com seus vizinhos, esta era uma sociedade de alto nível. E — e era isso que impressionava Frederick — era uma sociedade mais integrada com a natureza do que qualquer outra de que ele se lembrasse, e com relação a África isso é dizer muito. Não só a vida dessa tribo se centralizava na cheia e na vazante do rio, como ainda era muito ritualizada quanto às estações, os ventos, o sol, a lua, a Terra. Porém, na antro­pologia convencional é o mesmo que dizer que uma sociedade é bárbara e atrasada quando dizemos que ela é «animista», ou ligada à natureza.

Frederick saiu dali muito perturbado. Sua visita àquela tribo, e os pensamentos que lhe vieram afetaram sua confiança como arqueólogo — foi assim que ele sentiu a experiência. Tinha o equivalente às «dúvidas» de uma pessoa religiosa. Viu que era preciso dissipá-las antes de poder continuar. A idéia principal era a de que a nossa sociedade era dominada por coisas, artefatos, possessões, máquinas, objetos, e que julgávamos as sociedades anteriores pelos artefatos — coisas. Não havia meio de conhecer as idéias de uma sociedade antiga salvo através da barreira das nossas.

O efeito dessa experiência sobre ele, em sua opinião, foi «pouco saudável» e «mórbida».

Estou certa de que a essa altura o senhor já terá compreendido que Frederick é e sempre foi homem de grande vitalidade e segurança, e que nunca teve medo de exprimir suas opiniões nem tomar partido.

Se ele tivesse menos confiança em si, provavelmente o efeito daquela visita à África tivesse sido muito menor.

No entanto, ele venceu aquele desânimo temporário e começou suas palestras sobre a Grécia, que teve de abandonar devido ao seu primeiro acesso de gagueira.

Mas, chegando ao período imediatamente anterior ao dia em que ele e eu nos encontramos junto ao portão da Universidade de Londres.

Houve um pequeno incidente, aparentemente insignificante... ele estava visitando um velho colega, que fazia umas escavações em Wiltshire. Tinha passado a noite numa hospe­daria do lugar, e de manhã tinha ido a pé visitar o velho ami­go. Era o meio da manhã, e o trabalho estava em franca ati­vidade. O professor, alguns amadores que estavam lá pelo amor à arte e dois estudantes de arqueologia. Tinha sido exposta uma trincheira cheia de escombros soltos. O professor não sabia que Frederick estava ali. Estava dizendo que o tipo de trincheira indicava que as fundações eram de um edifício de pedras que estavam misturadas aos escombros e teriam sido re­tiradas para construções posteriores. Diante disso, um dos estudantes timidamente observou que tinha estado na África, havia pouco, e observara que numa aldeia que visitara as pessoas estavam Construindo uma cabana de varas, massa de barro e sapê. O primeiro estágio do processo era cavar uma trincheira, o segundo fincar as varas das futuras paredes na trincheira, o terceiro amontoar escombros pedregosos em volta das varas. O professor não fez comentários. Afastou-se e Fre­derick acompanhou-o e anunciou-se. O professor mostrou as escavações a Frederick e quando chegou à trincheira cheia de escombros, disse:

Em minha opinião, estas são as fundações de uma casa de madeira e não de pedra, pois, afinal, certos povos primi­tivos sabiam construir cabanas de madeira cavando... — etc., e assim por diante. Mas se não houvesse um estudante de volta de uma viagem a África, a voz do professor teria proclamado com toda a convicção que aquele prédio devia ter sido de pedra. E é assim que se chega aos pronunciamentos enfáticos da arqueologia. Foi esse incidente sem importância que fez Frederick lembrar-se de certas inquietudes que ele sofrera na Turquia, no verão anterior. Se é que «inquietude» é a palavra certa para isso.

Durante todo o verão na Turquia, ele pensou em sua vi­sita à sociedade dominada pelo rio, na África, mais de dez anos antes. Não conseguia livrar-se dessa recordação, embora os dois lugares tivessem tão pouca coisa em comum, um es­tava debaixo d’água durante meses do ano, o outro era bem alto, seco e exposto. Ele não conseguia libertar-se dos pensa­mentos sobre as bases da moderna arqueologia, que normal­mente ele aceita como nada mais que coisas incômodas, sobre as quais não há nada a fazer. Especialmente nas finanças que o financiamento de uma escavação era sempre a chave para ela, especialmente se ela se faria por completo. Certas pessoas tinham mais facilidade de conseguir dinheiro do que outras. Algumas não conseguiam todo o dinheiro, ou então só com muita dificuldade. Alguns países eram fáceis, quanto a se conseguir dinheiro para suas escavações, outros não. Havia países que tinham um período de popularidade, ficavam na moda algum tempo, e depois «saíam» de moda, como acontece com o vestuário. Ele, Frederick, estava trabalhando naquela determinada escavação e não numa que ele quisesse porque conseguira dinheiro para aquele local de uma fonte america­na um museu que estava em falta de um certo tipo de arte­fatos que se sabia haver em quantidade naquela região.

Certas idéias eram aceitas, por vezes durante decênios ou séculos, dominando toda a arqueologia. De repente, duvidava-se delas. A premissa de que a «Grécia era a mãe da civi­lização ocidental e Roma o pai» dirigiu a arqueologia e as escavações durante muito tempo no entanto ele, Frederick, poderia apresentar o argumento de que os árabes, mouros e sarracenos eram os pais da civilização «ocidental», a fonte de suas idéias, sua literatura, sua ciência, um argumento baseado no mesmo tipo de provas que nos torna herdeiros legítimos de Grécia e Roma... esse argumento não seria forçosamente mais verdadeiro, mas suas bases seriam igualmente poderosas.

Durante todo o verão ele distraiu-se preparando, um após outro, trabalhos que descreviam a civilização que ele estava descobrindo do ponto de vista de civilizações que não as nossas romana, grega, asteca, etc. Levando a coisa pelo lado irô­nico, ele elaborou várias versões do trabalho que provavel­mente publicaria a respeito de seu trabalho do verão.

Esse trabalho começaria, ou terminaria, com a frase ritual de que naturalmente as conclusões a que se chegava eram tentativas, devido à falta de conhecimento, falta de dinheiro, falta de tempo, e porque apenas uma parte daquele plano do local fora escavado, sem falar em todos os planos abaixo. Mas, tendo concedido esse bocado à dúvida, o restante seriam afirmações e declarações. O trabalho atrairia a crítica de professores, es­colas e teorias adversos. Daí resultariam compêndios para uni­versidades e escolas. Estes poderiam conter declarações tais como: a escrita só foi descoberta no Oriente Próximo por volta de 2000 A.C. Os sumerianos acreditavam nisso e naquilo. Os astrônomos dos acádios acreditavam nisso e naquilo. Os egíp­cios mumificavam seus faraós-deuses porque queriam que os corpos durassem muito tempo. O mundo foi criado por Deus há 4.000 anos. As civilizações africanas anteriores ao apareci­mento do homem branco eram não-existentes / bárbaras / abundantes / atrasadas / escassas ou fosse qual fosse a idéia do mo­mento. E assim por diante. Frederick partiu da Turquia, per­turbado. O que associou ao seu estado de espírito anterior, depois de sua viagem à África. Aconteceu que ele deparou com um livro que descrevia uma crise de dúvidas de um clérigo vitoriano sobre a existência de Deus. A personalidade do clé­rigo pareceu-lhe semelhante à sua: enérgico e confiante. O homem ficara perturbado por causa de dúvidas quanto à data exata da criação do mundo por Deus. Ao ler aquilo, Frederick achou que o estado de espírito do homem se parecia muito com o seu próprio. O clérigo já estava a ponto de decidir que era seu dever moral abandonar a Igreja, pois não poderia permanecer nela, honestamente, quando a sua décima filha ficou noiva de um religioso. O casamento era muito promissor, e a essa altura já tinham desistido de casar a moça, que tinha quase 30 anos e já era considerada solteirona. O pai sabia que a moça não conseguiria casar-se se ele, o pai, revelasse suas dúvidas e abandonasse a Igreja. Pois se fizesse isso, haveria um escândalo que envolveria a família toda e 0 noivo da filha era um homem convencional, que tinha de zelar pelo seu fu­turo. A crise do pai tornou-se então um belo exercício de equi­líbrio de responsabilidade: sua consciência, ou o futuro da filha. Muito angustiado, ele adiou a resolução até depois do casamento. Isso significou que ele teve de casar a filha (ele mesmo oficiando a cerimônia) como clérigo enquanto estava com a cabeça cheia de Dúvidas. Porém, ao fazer um exame de consciência depois da cerimônia, verificou que suas Dúvidas estavam muito reduzidas. Assim como se o ato de ter realizado a cerimônia as tivesse aliviado. «Foi o meu amor pela minha pobre Filha: meus receios por seu futuro sem conforto; minha angústia de que a minha própria aflição e confusão envene­nasse a Outros — foi isso que me levou a agir, como achei então, com Desonestidade. Graças a Deus que em Sua Grande Misericórdia me conduziu, através de meu Vale de Sombras, de volta a Ele...» Em resumo, aquela crise vitoriana passou. Frederick ficou com duas idéias. Uma, que esse conflito ter­rível, doloroso e muito real se passara cerca de cem anos antes, que não representava nada, mesmo no padrão de tempo hu­mano. Tinha sido um conflito bastante comum, aliás. Algumas das melhores inteligências vitorianas tinham passado por tor­mentos, e até entrado em colapso. Carreiras tinham sido des­truídas, famílias destroçadas, vidas desperdiçadas. Mas depois de alguns decênios, essas Dúvidas pareciam ridículas. (Em ter­mos de religião, as Dúvidas pareciam cômicas, pois em nossos dias Os Gritos de Dúvidas são experimentados mais notada­mente no contexto político.) A segunda idéia foi que o seu estado de espírito depois da viagem à África, seu estado de espírito devido a ter visitado o local das escavações na Turquia, era idêntico ao do clérigo vitoriano em seu conflito religioso. Mas o vitoriano não tivera as vantagens da moderna psicolo­gia. (Se bem que pudesse ter se lembrado de que a mão do artífice está sujeita à sua arte.) No entanto, não havia des­culpa alguma para que ele, Frederick, não olhasse calmamente para o que lhe estava aborrecendo, que não era mais, infe­lizmente, do que Dúvidas Profundas sobre o que se passava com a Arqueologia, Dúvidas quanto aos seus fundamentos, premis­sas, métodos e, acima de tudo, seus preconceitos inconscientes.

Se ele fosse fazer o que aquele pobre vitoriano fizera, de­veria aceitar o trabalho no Sudão, pois se não o fizesse, a mulher teria de passar sem a viagem de recreio à Madeira, que ela tanto desejava, e não era justo que ela pagasse por sua crise de confiança. Mas se ele fizesse isso, já que a Mente do Trabalhador é condicionada pelo seu Trabalho, em breve se esqueceria de suas Dúvidas, que começariam a parecer tolas e pouco saudáveis. Por sorte, a mulher de Frederick é uma mulher sensata, cuja atitude para com a arqueologia sempre foi que ela possibilitava férias interessantes, para ela e os filhos, e a Frederick ela disse apenas que não podia propriamente queixar-se por não ir à Madeira quando já tinha po­dido viajar tanto. Foi, então, passar uns tempos com uma amiga na Espanha, deixando Frederick em Londres.

E agora, um fato psicológico interessante... num relato que, espero concorde, não é falho nesse ponto. Frederick esqueceu-se completamente de suas Dúvidas provenientes de sua viagem africana o que não é de surpreender, já que acon­teceu há dez anos. Mas também esqueceu-se de suas Dúvidas do ano passado, depois das escavações na Turquia. Esqueceu-se completamente até há pouco tempo, depois de uma viagem a Wiltshire, em que fez um esforço propositado para lembrar-se de coisas que ele poderia ter enterrado por serem dolorosas. Ele passou então a um estado de espírito Eufórico, ou de An­dropausa, ou Maníaco-Depressivo (escolha à vontade), que muito apreciou. Se é que apreciar é a palavra para esse prê­mio. Passeou por Londres, divertindo-se, indo a museus e olhando para panelas, lanças e pedras e coisas, e inventando teorias tão poderosas e convincentes quanto as que são cor­rentemente aceitas, a respeito das sociedades anteriores. E ago- rea chego ao fim do que me propuz escrever-lhe. Se tudo o que disse não significa nada para o senhor, então é que eu me enganei, mas acho difícil acreditar nisso. Não sei por que, mas tenho certeza de que há de compreender. Gostaria de pro­curar-me, da próxima vez que estiver em Londres? Eu teria o maior prazer, e Frederick e os outros também.

Quanto à gagueira de Frederick, caso isso lhe interesse, ele a curou permitindo que se exprimisse aquele «fluxo para­lelo» de idéias, ou palavras, que o inibiam ao dizer as coisas convencionais: ele escuta e depois as pronuncia. Em voz alta. Ou para si mesmo, num gravador, ou para mim. Os resultados são surpreendentes...

Espero notícias suas.

Cordialmente,

ROSEMARY BAINES

Prezada Srta. Baines,

Acho que nunca me senti tão lisonjeado. Que grandes resultados de uma coisa que, receio ter de confessar, para mim não passou de um fato rotineiro. Para meus pecados, faço muitas conferências fora do meu ramo de atividade. Minha mulher diz que tenho energia demais. Talvez ela tenha razão. Receio que as observações que a impressionaram tão exagera­damente se posso ter essa franqueza! sejam um de meus artifícios normais. Quando me falta assunto, ou inspiração, tenho alguns recursos velhos, de reserva, para poder recome­çar. Sim, claro que acho que a educação não é o que deveria ser. Mas há pouca gente que não ache isso. Suponho que tenho de confessar que o que antes era uma certa mania, já esfriou um pouco. Quanto aos seus amáveis comentários sobre a ga­gueira, naturalmente eu lhe agradeço muito. Tenho trabalhado demais, ou é o que me diz o médico, e adquiri uma tendência para gaguejar. Creio que não gaguejei na conferência. Mas a senhora parece lembrar-se de tudo com tantos detalhes. Talvez a brincadeira que fiz sobre a gagueira tivesse tido um efeito profilático? Verifico que isso se dá. Quanto a Frederick Larson, parece-me que conheço o nome, mas só isso. Acredito na pa­lavra dele, se diz que nos conhecemos. Creio que ele está dando uma importância demasiada à gagueira. A minha foi aliviada quando me obriguei a falar com muito cuidado e devagar, especialmente quando estava cansado e, acima de tudo, não esquecendo de tomar os comprimidos receitados pelo médico. Sinto muito ter de decepcioná-la, respondendo de modo tão grosseiro à sua carta extraordinariamente extensa. Mas infe­lizmente ainda não me aposentei, e o meu tempo não me per­tence. E isso tem o objetivo de servir como desculpa por não aceitar o gentil convite de conhecê-la e ao Sr. Larson. Vou muito raramente a Londres e quando vou o meu tempo é todo tomado pelas entrevistas e visitas ligadas ao meu trabalho.

Atenciosamente,

CHARLES WATKINS

 

 

Prezado Dr. Y,

O Prof. Watkins veio consultar-me na primavera, este ano, por causa de um problema de gagueira. Receitei Librium e umas férias. Também lhe dei o endereço de um terapeuta da palavra, quando a gagueira não passou. Ele é meu cliente há cinco anos. Estou com esta clínica desde 1964. Desde então ele não ficou doente, a não ser de uma gripe no ano passado. Em março, pareceu-me estar em bom estado de saúde. Disse que tinha emagrecido. Quando recebi sua carta pedi que a esposa dele viesse falar comigo. Conheço-a um pouco melhor do que a ele, pois trato dos filhos. Ela não parece poder esclarecer muita coisa. Mas, por ela, sugiro que veja o marido dentro de pouco tempo. Naturalmente, não passo dessa coisa antiquada, um médico de família, e não sei tanto quanto devia a respeito da sanidade mental. Mas a Sra. Watkins está so­frendo uma pressão bem forte.

Cordialmente,

Dr. Z.

Alô, Charles. Você é... Sou sua mulher.

Não quer sentar-se?

Sinto muito! não sei o que dizer.

Mas, Charles, não é possível que você não me conheça!

Sinto muito.

Mas não posso...

Então Felicity...

Como é que você sabe que o meu nome é Felicity? Eles me disseram. Disseram que você podia vir aqui hoje. Então não pediu para me ver?

Não.

Charles, você fica sentado aí me dizendo... ah, não, não posso acreditar. Ah! estou com tanta pena.

Diga-me, então?

Dizer o quê?

Por exemplo, há quanto tempo estamos casados? Há quinze anos.

O doutor disse que tem outros casos. Não sou o primeiro, de modo algum. Por que está rindo?

Você sempre fala assim, «de modo algum».

Falo?

Quando me disseram que você vinha, tinha esperança de que se eu a visse, me lembraria...

E não se lembra?

Não. Você está tão zangada. Não esperava que você esti­vesse zangada.

Zangada? Claro que não estou zangada. Que coisa engra­çada você dizer isso. Não é sua culpa ter perdido a memória. Isso acontece com as pessoas. Sinto muito por Você. De verdade.

Não, você está zangada.

Bem, se estivesse zangada... isso é tão seu, Charles. O tempo todo, desde que eu soube que você tinha perdido a memória, não podia deixar de pensar, isso é tão do Charles.

Mas por quê? Já perdi a memória antes?

Não. Bem, ao que eu saiba. Você nunca me contou se perdeu. Mas você não me conta as coisas, não é?

Pronto, eu disse que você estava zangada.

Ah, não, agora estou errada de novo. Não posso acre­ditar...

Não chore.

Nós vivemos juntos há quinze anos. Quinze anos, Charles.

Sinto muito. Sinto muito mesmo, Felicity. E agora você está ainda mais zangada.

Não estou zangada, mas não posso deixar de chorar. Você não choraria?

Vá embora, por favor. Você tem de ir embora. Não a conheço, sabe, Felicity.

Paciente hoje foi visitado pela esposa. Visita terminou a pedido do paciente. Esposa histérica, melhor ser mantida afastada do paciente por enquanto, em minha opinião.

Dr. X

Dr. X, tenho de falar com o senhor.

Ah, Sra. Watkins, pensei que a senhora tivesse voltado para casa. Bem, sente-se. Muito prazer em vê-la. Em que posso servi-la?

Em que pode servir-me I Dr. X, ele já está aqui há quase dois meses.

É, receio que sim. Mas está melhor, achamos.

Como é que o senhor julga as melhoras, então? Como? O senhor diz que ele não sabia quem era quando chegou aqui. E continua sem saber. Então por que está melhor?

Está melhor. Mais repousado.

Repousado? Estava doente, quando foi internado?

Não, não estava com gripe, nem bronquite.

Sei que sou muito burra, doutor. Sei disso. Mas não me ajuda nada o senhor fazer sarcasmo. O senhor diz que ele está melhor. Mas nunca o vi tão mal. Nunca. Está tão magro. E parece trêmulo e fraco.

É muito natural que a senhora esteja perturbada.

Ah, obrigada. Muito obrigada.

Pense no assunto do nosso ponto de vista. O seu marido foi trazido para cá há quase dois meses, pela polícia, num estado de choque, tendo sido roubado, sem documentos, di­nheiro, nem qualquer noção de quem fosse. Falava sozinho, estava alucinado, tinha visões religiosas e estava paranóico. Fizemos o que pudemos para ele ficar melhor, só isso.

E o senhor diz que ele está melhor?

Em minha opinião ele está melhor.

Posso falar com o Dr. Y?

Por certo, mas ele hoje não está aqui.

Também não estava aqui ontem. Ele me escreveu sobre o meu marido, sabe.

Ele trabalha dois dias por semana em outro hospital.

Quando é que ele estará aqui?

Amanhã.

Posso falar dom ele, então?

Por certo. Quando sair, diga que a senhora voltará ama­nhã e peça para marcarem uma hora.

Ah, por favor, não pense que quero ser grosseira, doutor. Não quero, não.

Em absoluto. Estamos acostumados com isso, Sra. Watkins.

Ah, Dr. Y, fiquei na cidade para poder falar com o senhor.

E estou muito contente com isto, Como achou o seu marido?

Como vou saber? Como possb saber? Ah, acho que ele está péssimo, péssimo... Não entendo como é possível!

Ah, isso acontece.

Não, não quero dizer isso. Que as pessoas percam a me­mória. Mas... o senhor é casado, doutor?

Sou, sim.

Há quanto tempo?

Há nove anos. Não, há dez.

Imagine que uma noite o senhor entre no seu quarto e sua mulher esteja lá, e que fale como sempre fala, e de repente ela diga que não sabe quem o senhor é?

Sim, Sra. Watkins, já tentei imaginar isso. Já tentei mesmo.

Mas... Não é disso que me queixo. Parece que não con­sigo me fazer entender. É esse... então como é que o senhor pode dizer que ele perdeu a memória?

Não estou entendendo... cigarro? Vão trazer um chá daqui a pouco.

Se ele perdeu a memória, então por que é que ele fala como fala sempre? As mesmas frases. Tudo o mesmo.

Ah, agora compreendo.

Se ele tivesse perdido a memória, se não soubesse real­mente quem ele era, então devia ser como um... recém-nascido.

Em cortas coisas, receio que seja.

Não, não creio que seja. Se o que ele era antes estiver anulado, varrido, mais vale, então, ele voltar para nós como — ah, nem sei, um habitante dos Mares do Sul ou um alemão ou um marciano, ou coisa que o valha.

Entendo o seu ponto de vista. Entendo mesmo. Ah, aqui está o chá.

Obrigada. Portanto, não é o fato dele ter perdido a me­mória. Ele continua a ser a mesma pessoa. É só que ele não se lembra — de mim. Nem dos filhos.

Diz ele que não se lembra de coisa alguma. Nem da in­fância. Nem dos pais. De nada.

E no entanto, Dr. Y, quando o senhor lhe diz: lembra-se da sua infância? ele responde: não, não me lembro de minha infância. Não diz — ah, nem sei — gabladeduca, ou urra urra urra urra. Ah, não estou querendo ser engraçada, posso lhe assegurar. Estou longe de querer ser engraçada. Ah, Deus, sei que é burrice chorar.

Sra. Watkins, a senhora gostaria de tornar a falar com ele — isto é, se ele concordar? Pode ser que ajude.

Se quem concordar?

Sei, entendo o que quer dizer. Mas sabe, estou tão no es­curo quanto a senhora. Mais ainda. A senhora o conhece bem e eu não, Se a senhora tornasse a falar com ele, deixando que ele se acostume com... e, não se zangue com o que vou dizer, se procurar não chorar...

Doutor, peguei na mão dele, e ele é o meu marido, lem­bre-se, e ele parecia — parecia um homem com quem uma mulher está flertando e ele não sabe bem se está gostando.

Escute. Vou fazer uma sugestão. Tome mais urna xícara de chá e fume mais um cigarro. Vá lavar o rosto — ali há uma pia. Vou mandar chamá-lo para tornar a falar com a se­nhora. Mas não entre se não conseguir parar de chorar. En­tende por quê? Se ficar muito emotiva,, isso pode ter o efeito de bloqueá-lo — procure ficar descontraída e natural e as coisas podem voltar ao que eram.

Vou tentar, doutor.

Então, Charles, conversei com o Dr. Y. Sim.

Gosto dele. Eu o vejo. Vê?

Há uns que não se pode ver de todo.

Ah, sim

Não entendi isso, não adianta fingir que entendi. Mas quero perguntar-lhe uma coisa. É difícil para mim, Charles. Por favor, não se zangue...

Não creio que me tenha zangado. Não tenho sentido nada. Mas vejo as emoções no seu rosto e nas fisionomias dos médicos e das enfermeiras.

Mas você me pediu para ir embbra. O que você sentiu naquela hora?

Senti, não venha com isso outra vez, não venha com isso de novo.

O quê?

Você me perguntou o que eu senti. Foi isso que senti — se é que isso é sentir. Eu não queria isso. Não quero isso, sabe.

Charles, estou muito calma, e não estou chorando nada. Mas quero que você olhe para mim e que me responda. Quando você me vê sentada aqui, eu lhe pareço igual — ah, nem sei — às enfermeiras ou aos médicos?

Igual?

Quero dizer, você não me conhece mais? Eu a conheço, eu a conheço muito bem. Conhece — ah, então... Eu também os conheço. Ver é conhecer.

Ah, sei.

Vocês são todos muito...

Muito o quê?

Vocês são todos tão. .. grandes. Muito vivos. Muito quen­tes e claros. Comprimem as minhas órbitas. Comprimem os meus olhos. É demais.

Você tem medo de mim, Charles?

A sua raiva...

Charles, quando você diz que não se lembra de nada, está falando sério? Nem de mim, nem das crianças, nem da sua casa?... Nem da sua mãe nem do seu pai? Você gostava do seu pai, Charles, gostava muito dele, não se lembra?           

Minha cabeça está cheia de recordações.

Ah, está — mas os médicos dizem. ..

Não me lembro das coisas de que você fala.

De que se lembra, então? Charles?               Você não me responde... Diga-me, aquilo de que você se lembra pode ter uma relação com a verdade.

Verdade é uma palavra engraçada, não é?

Ah, Charles, você não costumava ser filosófico!

Filosófico? O que...

Por que é que algumas palavras você conhece perfeita­mente, e outras não lhe dizem nada?

Vou-lhe dizer, se quiser. Algumas palavras combinam. Uma palavra sai de sua boca e combina com alguma coisa que eu conheço. Outras palavras não se casam com o que posso ver.

Mas o que é que você vê? Charles? Diga-me?         

Felicity fale comigo. Conte-me o que pensa. Conte o que sabe. Você é minha mulher? Bem, então conte-me sobre isso.

Charles! Muito bem, então. Vou tentar, Nós nos casamos em Londres, no Cartório de Kensington. Em fevereiro. Em 1954. Era um dia muito frio. Depois... fomos passar a lua-de-mel numa fazenda no País de Gales. Não tínhamos muito dinheiro. Passamos três semanas lá. Estávamos muito felizes... Charles? Quer que continue? Depois disso fomos para um apartamento em Cambridge. Depois alugamos uma casa. Concebi Jimmy em Wales. Jimmy é o nosso filho mais velho. Te­mos sido muito felizes.

Por que você é tão mais moça do que eu?

Mas... bem, você se apaixonou por mim, Charles.

E não me admira.

Charles, pelo amor de Deus, não flerte comigo. Não su­porto isso. Sou sua mulher.

Desculpe.

Você se preocupava, dizia que 15 anos é muita diferença. Mas eu disse que era tolice e eu tinha razão, não fez diferença alguma. Eu era sua aluna.

Ah, é, estão sempre a me dizer que eu ensino. Ensinar. É uma palavra engraçada...

Quer que eu continue?

Acho que vou embora agora, Charles, se você não se importa. Quer que eu volte? Não amanhã, pois Tia Rosa está com as crianças e ela tem de voltar para ficar com Tia Anna, porque Tia Anna não está muito bem, está com bronquite de novo e naturalmente não posso largar os meninos sozinhos, mas eu poderia voltar daqui a uns quatro ou cinco dias, se conseguir que a Sra. Spence vá ficar lá uns dois dias.                Vou telefonar para o médico. Adeus Charles.

A Sra. Watkins passou uma hora com o paciente hoje.

Diz que ele não se lembrou nada dela. Em minha opinião

a visita ajudou o paciente e devia ser repetida brevemente.

Dr. Y

Discordo. Devíamos tentar os eletrochoques.

Dr. X

O paciente teve uma noite muito perturbada com a volta das alucinações. Receitei calmante.

Dr. Y

Prezado Dr. Y,

Em sua primeira carta o senhor me pedia para ver se me lembrava de qualquer coisa em meu casamento que me tivesse parecido estranha, na ocasião. Não creio que eu saiba mais o que significa estranho — depois de ter visto Charles nesse estado. Mas, depois de ter passado a noite em claro, para pensar com cuidado, estou-lhe enviando a primeira carta que meu marido me mandou. Eu a achei bastante estranha na ocasião, porque ele nunca me havia falado nada de amor por mim, se bem que eu tivesse sido aluna dele durante sete meses e meio. Eu tinha apenas 18 anos, naquela época. Mais tarde não a achei estranha, quando concordei em casar-me com ele, talvez eu me tivesse acostumado a ele. Não sei se o senhor a consi­derará uma carta estranha. As circunstâncias eram que eu nunca pensara nele nesse sentido. Naturalmente, eu o admi­rava muito. Uma tarde, depois de uma aula, ele me levou para tomar chá e falou. Achei os modos dele meio esquisitos, mas, também, a gente se apaixonar é meio estranho. Quando recebi a carta não sabia o que havia de pensar, especialmente porque estava começando a sentir-me tão feliz e vaidosa. E mais tarde, quando resolvemos nos casar esqueci de achar que ele era estranho, e mesmo hoje nem sei o que pensar. Por favor, de­volva-me a carta depois de lê-la. É uma das coisas mais pre­ciosas que possuo.

Cordialmente, FELICITY WATKINS

Ah, meu Deus, Felicity, não durmo desde que te vi — ontem? — não sei — fico vendo o seu rosto — os seus cabelos são claros demais para Os meus olhos, Primeiro foi o seu ca­belo — sempre procuro a sua cabeça rebrilhando na turma escura — Você é uma luz num mundo malvado — sim, e basta olhar — tocar também — Isso seria prazer demais — E, no entanto se posso olhar e tocar poderia ser muito — para nós dois? — Como ouso pensar? — e, no entanto ontem com você eu vi que não — e você também — não dormi — Sou velho, Felicity — trinta e cinco. Você dezoito? Um bebê! Mas as moças não têm idade — brilham nos cantos escuros — se você pudesse — fico pensando em você numa grande floresta em algum lugar com o sol brilhando pelos galhos sobre você e você com sua cabeça clara e brilhante e sorrindo para mim sorrindo quer? ah, não sei nem sei se mando esta carta uma coisa é sentar aqui pondo as palavras num papel e passando, pelo menos, cinqüenta pensamentos para cada palavra portanto de que vale mandá-la se não posso man­dar os pensamentos um em cinqüenta — tão diluídos va­lerá sequer a sua atenção? Quem sabe você podia tomar a palavra pelo eu te amo. Sim, é isso, eu sei você nunca me manteria preso como um porco no seu chiqueiro não, estou certo. Ela também tinha cabelos louros e olhos azuis, devia ter mas é a alma que conta. Não como aquela mo­rena, cabelos negros e dentes brancos e lábios rubros essas são as cores dos criadores de porcos. E na guerra também O claro e o escuro. Mas a de cabelos amarelos trancou-o no chiqueiro dela e lhe deu palhas para comer. Mais tarde um bezerro gordo? Mas não ouso Sim. Você quer nunca ousei, fiquei só com medo disso. Ela morreu, portanto nunca poderia trancar-me no seu chiqueiro. Tenho de ter medo de você? Felicity Felicity Felicity Felicity você tem um nome como a luz clara do sol combinando com o seu cabelo. Se eu a vir sorrindo amanhã, saberei. Eu a amo. Felicity Felicity Felicity Felicity Felicity Felicity Felicity.

Prezado Dr. Y,

Não posso dizer-lhe da minha tristeza ao saber que Charles Watkins está doente no hospital, sob seus cuidados. Sim, claro que terei prazer em ajudar como puder. Acontece que soube da doença dele ao voltar da Itália ontem à noite, quando minha mulher telefonou para Felicity Watkins.

Não, não creio que Charles tenha demonstrado estar sob alguma tensão excepcional, este ano, mas ele não é do tipo de pessoa que demonstrasse alguma coisa, se se excedesse; mas receio que não possa explicar isso sem entrar em muitos de­talhes a respeito de nosso relacionamento. Não que eu seja «superior» a ele, longe disso será que Felicity Watkins disse isso? Se disse, considero isso tristemente significativo nãb por causa de Felicity, mas por causa de Charles. Ele é, e tem sido, o astro, desde que entrou para o nosso Departamento Clássico, mesmo quando eu estava nominalmente acima dele, e em teoria o Chefe do Departamento. Espero que isso nãb pareça uma crítica. As cartas são coisas traiçoeiras e certa­mente eu teria preferido conversar a respeito com o senhor, mas amanhã começam as aulas, e infelizmente, temos as nossas obrigações.

Não sei se esse tipo de comentário ajuda em alguma coisa, mas há pouco tempo sentei-me para começar a escrever um relato de minha vida, uma espécie de folha de balanço. Pareceu-me uma coisa útil fazer isso aos 50 anos, bem depois da metade da vida. Porém quando o reli, tratava mais de Charles Watkins do que de mim. Sempre tive consciência da influência que Charles exercia sobre mim, mas talvez não exatamente até que ponto. Naturalmente, tudo isso está além do meu alcance, sobretudo quando chega ao ponto de esgotamentos nervosos e esse tipo de coisa, mas a essência, de meu ponto de vista, é o seguinte: eu jamais gostei de Charles. Creio que não o admiro, nem o aprovo. No entanto, ele certamente foi a maior influência em minha vida.

O senhor pergunta a respeito do princípio da vida dele.

Nossos pais eram amigos. Eles nos descreviam como «muito camaradas» quase desde que nascemos. Acho que Charles pensa nisso com a mesma ironia que eu desde então. Fomos colegas no primário. Nenhum de nós se destacou de modo especial. Ficávamos juntos por uma questão de saudade de casa uma aliança defensiva e de auxílio mútuo, se quiser. Minhas idéias sobre aquela época não coincidem em absoluto com as de Charles, conforme fica evidente;, um tanto triste­mente, sempre que conversamos sobre o assunto. Em resumo, acho que ele era meio vigarista. Mas não conscientemente. Mas vou pular por cima de tudo isso e escolher um incidente típico, ocorrido em Rugby, onde estudamos juntos. No verão em que os dois tínhamos 16 anos, o nosso professor de turma convidou seis de nós para passar o verão velejando, com base na Ilha de Wight. Ftii um dos seis esco^idos. Os convites não eram «pessoais», e sim feitos todos os anos, nas férias, numa espé­cie de sistema de rodízio bastante regular e justo. Esse pro­fessor era um homem bondoso, a melhor influência na minha infância, sem dúvida, e imagino que também na de Charles. O motivo por que eu fui convidado naquelas férias e Charles não, foi simplesmente porque eu era um pouco mais velho do que ele. Ora, eu já tinha velejado bastante, por motivos vários, e os meus pais tinham mais recursos do que os de Charles. Eu sabia que ele não estava ansioso por ir para casa naquelas férias, por várias razões. Resumindo, sugeri ao pro­fessor que convidasse Charles em vez de mim. Mais uma vez, devo pedir-lhe para manter em mente que não era possível Charles ignorar o fato de que aquilo era um verdadeiro sacrifício de minha parte. O professor da turma ficou surpreendido e comovido. Não, não foi por isso que fiz aquilo. Era apenas que, dadas as circunstâncias, seria de esperar que Charles demonstrasse uma consciência qualquer. Quando Wentworth lhe disse que eu tinha renunciado em favor dele, Charles limi­tou-se a bater a cabeça em reconhecimento. Wentworth ficou tão espantado que repetiu o que tinha dito — eu tinha me oferecido a ceder meu lugar — e Charles disse: «Sim, obrigado, eu gostaria muito». Eu não toquei no assunto, já que ele também não tocou. Ora, aquele foi um verão especialmente bom, e fiquei preso com um pessoal bem maçante, e acho que realmente passei muito tempo pensando na turma que estava no mar e na atitude extraordinária de Charles. Mas nunca toquei no assunto. Não podia fazê-lo, pois aquilo me doía mui­to. Até anos depois, depois da guerra, aliás. Eu disse a ele detalhadamente — talvez eu esperasse tirar o rancor da lem­brança — tudo o que sentira naquelas férias de verão. Ele olhou-me e disse: «Bom, ninguém mandou você fazer aquilo, não foi?»

E, naturalmente, ninguém mandara mesmo.

Estou certo de que isso parece uma coisinha! insignificante e muito mesquinha, e que fica muito mal para mim mencioná-la. Mas é que o senhor me pediu para dizer o que achava e que «qualquer coisa que lhe pudesse contar ajudaria».

Esse incidente, para mim, representa alguma coisa em Charles.

Devo dizer agora que as nossas relações estavam forma­lizadas, quando tínhamos nove anos, da seguinte maneira: Charles era o original e excêntrico, e Jeremy era o firme e de confiança. Sempre agi como se fosse isso mesmo. Não há outro jeito, parece. Mas quando digo a Charles e aos outros que o que admiro nele é a sua originalidade e audácia de pen­samento, e assim por diante, não é nada disso que tem impor­tância. Pois na1 verdade, há algo de muito displicente, quase negligente, na «originalidade» dele. Imagino que ele seja meio anarquista. Naturalmente, a experiência dele tendeu a tor­ná-lo assim.

O seu pai era negociante e deu-se mal com a crise. Char­les começou a trabalhar, enquanto que eu fui para a universidade. Ele fez tudo quanto era trabalho, e falaram que ele ia para a Guerra Civil na Espanha, mas não foi. Depois veio a guerra e ele afastou-se logo. Fui aviador na guerra e Charles estava na infantaria e depois nos tanques. Nós nos encontra­mos uma ou duas vezes. Eu sabia um pouco da vida dele, por amigos comuns. Mais de uma vez ele recusou a patente de oficial. Isso era tão típico. Perguntei-lhe por que e ele come­çou a dar gargalhadas, dizendo que tinha recusado para abor­recer as pessoas. Na ocasião achei aquilo como acho agora um afetação. E pouco convincente. Disse isso a ele. Eu pode­ria dizer que «isso provocou um constrangimento», mas, quan­do ia escrever isso, percebi que pode ter causado constrangi­mento em mim, mas não creio que afetasse Charles. Não brigamos, embora reconheça, por fim, que eu teria gostado de brigar com ele.

Quando terminou a guerra, Charles foi para a universi­dade. Fez o curso bem e com facilidade. Ele possui uma habi­lidade que não é rara, uma memória quase fotográfica. Estu­dava para um exame noite e dia durante o mês anterior, tinha notas fenomenais e três meses depois esquecia quase tudo. Ele mesmo conta isso de si.

Muito bem. Quando ele estava em condições de poder trabalhar, eu já estava dando aulas havia quatro ou cinco anbs. Estava em condições de mexer os pauzinhos ou pelo menos ajudar um pouco. Havia mais de dez candidatos ao lugar e Charles era o mais moço e o menos experiente. Pois bem, ele conseguiu o lugar, e por meu intermédio mas não é isso que importa. O importante é o seguinte: na semana crítica, quando as coisas estavam perigando, ele foi visitar-me. Estava desma­zelado, exagerado tudo como sempre. Nada demais não como os nossos estudantes atuais, longe desse tipo de exibicio­nismo, mas bastante irritante. Eu disse a ele que tinha de cuidar mais de seu aspecto e que estava me colocando numa posição difícil. Ele escutou mas não disse muita coisa. Quando tornei a vê-lo, ele tinha conseguido o lugar e estava parecido comigo. Tenho de explicar isso. Fisicamente somos diferentes, mas tenho alguns tiques. Não que eu sóubesse deles antes de Charles me mostrar! Ele se munira de um velho paletó meu — pediu-o a minha mulher, que ia jogá-lo fora. Tinha adquirido um cachimbo, que ele nunca fumara na vida, e mandara cortar o cabelo como o meu. Da primeira vez que o vi assim, pensei que era uma pilhéria monstruosa. Mas em absoluto. Imagina que isso servisse de brincadeira entre nós? Ou pelo menos um problema? Não, nem se falou nisso, por muito tempo. No entanto, todo mundo notou e comentou. Quando eu entrava numa sala ou o via do outro lado da rua, era como se estivesse vendo uma monstruosa caricatura de mim.

Quando afina] alguém o mencionou (acontece que foi minha mulher) e olhei para ele, esperando ouvir algum comentário, ele apenas bateu a cabeça, meio impaciente, mas não muito. Com a testa franzida, como quem diz: ah, isso, que detalhe!

Suponho que também lhe possa parecer um detalhe. Mas posso acrescentar que hoje, anos depois, as pessoas tendem a achar que eu é que imitei Charles, que me modelei por ele. E esse fato diz tudo sobre o modo por que nos julgam aos dois. E, sim,, isso dói.

Agora um episódio do verão passado. Acontece que eu e minha mulher estávamos passando por um período difícil. Eu estava trabalhando demais e ela também. Concordamos em passar o verão separados. Sabíamos que estávamos na ladeira escorregadia para o divórcio. Tínhamos brigado e conservado e feito cenas, as coisas de sempre, e imagino que estivéssemos muito esgotados emocionalmente. Ela resolveu ir para a casa da mãe, na Escócia, deixando as crianças com amigos — por acaso, os Watkins. E ambos foram verdadeiras fortalezas em todo esse episódio. Charles levou Nancy de carro à casa da mãe. Nancy estava bastante histérica, e é a primeira a reconhecer isso. Ora, acho difícil descrever o que aconteceu de modo a mostrar a importância que teve. Charles, longe de portar-se mal, agiu exatamente de modo oposto. Diz Nancy que ele foi bondoso e que a ajudou. Mas antes mesmo deles terem chegado à Escócia, ela estava muito perturbada com a atitude dele — parecia demonstrar que achava tudo aquilo pouco importante. Ele tinha toda a certeza de que ela voltaria para mim antes do fim do ano — mas que se não voltasse, e daí? Agora devo falar sobre Felicity, esposa dele. Tenho um relacionamento precioso com ela. Conheço-a desde que era pequenina. Não, não a amo, nem nunca amei, mas sempre soubemos que éramos íntimos, e que se nenhum de nós dois fosse casado, poderíamos nos dar bastante bem. Minha mulher sempre soube disso e Charles também, não há nada a ocultar.

Antes de Charles deixar Nancy em casa da mãe, ele ficou lá ainda uns dois dias, e nesses dias comportou-se de modo impecável, apoiando Nancy contra a mãe dela, que estava rea­gindo muito, e levando-a para passeios a pé e essas coisas. Mas ele a estava deixando pior por causa de sua atitude — não levando o drama na brincadeira de propósito, mas isso estava implícito em sua atitude. Ela me disse que ele passou uma tarde inteira mostrando que ele poderia ter-se casado com ela, e eu com Felicity, e teria sido a mesma coisa, e que nós todos levávamos tudo aquilo de modo muito pessoal. Sim, «nós levávamos tudo aquilo de modo muito pessoal». Afinal de contas, ele estava falando sobre o casamento. Afinal, não somos hotentotes. Em todo caso, Nancy ficou quase alucinada, por causa de Charles. Ela descreveu as sensações que teve como sendo de quem vê toda a sua vida aparecer como uma tolice, e que ela não era mais importante do que uma gata ou uma cadela. Bom, ela realmente estava num estado bastante emo­tivo. No fim, ela gritou com ele para que fosse embora e a deixasse em paz. Naturalmente, depois ela desculpou-se, insisti nisso, pois ele tinha sido muito gentil, bem como Felicity. Depois, minha mulher me disse que a verdadeira crise naquele verão não foi o fato dela me ter deixado, para nós dois po­dermos descansar, e sim os quatro ou cinco dias que ela passou em companhia de Charles. Se ele demorasse mais com ela, ela se teria suicidado, diz ela, ou poderia suicidar-se se pudesse crer que era importante ela fazê-lo ou não.

Escolhi este último incidente porque, mais uma vez, ilus­tra algo de muito básico em Charles, é que ele nem mantém as aparências de respeitar os sentimentos comuns. Talvez eles não sejam tão importantes quanto pensamos. Mas talvez eu o respeitasse mais em sua atitude se achasse que havia algum conflito no caso, se ele tivesse pensado sobre isso, ou mesmo sofrido com isso, em vez de ser essa a sua natureza.

Agora, um incidente final. Na primavera deste ano houve uma noite em nossa casa que me impressionou de modo muito desagradável, mas acho que estou acostumado a me sentir mal, quando se trata de Charles. Estávamos eu e minha mulher, Nancy, Charles e Felicity, mais uns dois membros de nossa equipe — como gosto de chamá-la! — e um visitante ame­ricano. Ora, não gosto de pensar que temos de nos desdobrar quando há estrangeiros presentes, mas, por outro lado, existe uma coisa chamada diplomacia. O nosso visitante americano estava visitando o nosso país pela primeira vez e esperava — e pode ser que ainda consiga — passar um ano conosco. Charles comportou-se de um modo abominável. Pensei que ele estivesse embriagado, embora ele não seja de beber, é mais simples dizer que ele comportou-se como um colegial, se me permite essa comparação antiquada, mas eu não sou dos que se orgulham de lisonjear a mocidade. Charles não estava nem mesmo espirituoso, coisa que ele muitas vezes é. Foi grosseiro e mal-educado, de um modo tolo. Os clássicos eram uma «por­caria» e a série de aulas que tínhamos preparado para ele eram «um lixo». E assim por diante. Acho que os epítetos dele eram bastante reduzidos, mas é esta a natureza do humor dos colegiais.

Ora, se eu fosse um reacionário e impermeável às idéias novas, seria mais fácil compreender isso, mas não sou. Não me lembro de ter jamais recusado ouvir Charles ou qualquer outra pessoa que tivesse alguma nova idéia. Mas dizer que tudo o que se ensina sob o título de clássicos é porcaria do principio ao fim, e que nunca passou disso, e que nunca tivemos a menor idéia do que ensinavam Platão ou Sócrates ou Pitágoras — e etc., esse tipo de coisa — bem, o fato é que eu lhe dei umas boas respostas mais de uma vez, naquela noite, e ele foi para casa cedo. Felicity, mulher dele, ficou aborrecida, e não saiu junto com ele.

Ora, no dia seguinte ele me apareceu pedindo autorização para organizar o trabalho do período letivo seguinte segundo idéias que, na verdade, não vejo muito motivo para explicar — mas basta dizer que o ponto de vista dele é condenar gerações inteiras de erudição, assim, de cara. Disse ele, que mal há nisso? E que era uma coisa Comum na história que as idéias válidas durante séculos possam desaparecer da noite para o dia. Devo dizer que Charles gosta muito de falar em séculos, se não em milênios, o que é sempre sintoma de uma mente preguiçosa, para o meu modo de pensar. No entanto, perguntei-lhe o que lhe dava a autoridade — ou terei dito con­vencimento? — para falar do trabalho de estudiosos infinita­mente melhores do que ele naqueles termos. Será que ele não tinha mesmo nenhum escrúpulo? Ele disse que não, que era «perfeitamente óbvio a um espírito sem preconceitos» que ele tinha razão.

Tenho de admitir que tivemos uma discussão violenta. Creio que foi a primeira briga que tivemos — o que é espan­toso. Ele foi insultuoso e escarninho. Em geral, claro, ele é meio apático, ou aparenta indiferença. Fui paciente — na ver­dade, sou um homem paciente. Ele se foi tornando cada vez mais desagradável. Compreende, o tempo todo havia a insi­nuação oculta de que devia ser evidente que ele tinha razão e que eu veria isso se não fosse burro. Por fim, pedi-lhe que fosse embora, antes que eu perdesse a calma.

No dia seguinte Charles me telefonou — como se nada tivesse acontecido. Nenhuma explicação. A atitude dele, como sempre, era a de que se encerrara um incidente sem importância. Não que ele não tivesse razão, não. Nem mesmo que eu estivesse rigidamente enganado e que ele se tivesse obri­gado a obedecer aos meus padrões — embora eu suponha que isso estivesse implícito. Não, a atitude era que não tinha ocor­rido nada de importante. Mas isso era intolerável, pois o que ele de fato fizera, e na frente de um colega americano que ainda pode vir a trabalhar conosco, fora maldizer não apenas a nossa equipe e seu trabalho, e naturalmente as nossas respectivas carreiras, inclusive a dele, como ainda toda a erudi­ção em nosso ramo, até os dias de hoje. Ou a maior parte dela.. E, tendo feito isso, e tendo-se comportado com uma grosseria escandalosa, ele agora estava calmamente querendo combinar encontrar-se comigo para conversar sobre uma série de confe­rências públicas que ainda na véspera ele se recusara a con­siderar e sobre as quais ele se mostrara excessivamente insul­tuoso. À maneira dele parecia estar dizendo: desculpe eu ter estado um pouco diferente ontem à noite, mas estava com dor de cabeça.

Não sei se estou conseguindo transmitir-lhe o sabor desse incidente.

Não creio que lhe possa contar mais, embora haja uma escolha infinita desses exemplos.

Neste momento estou no meu estado de espírito normal, quando penso em Charles — ele me obriga a perguntar-me o que significa gostar ou desgostar de uma pessoa. Nossas vidas, sempre estiveram enredadas. Temos amigos comuns. È minha opinião ponderada que Charles Watkins seja uma pessoa destruidora. Negativa, talvez seja runa palavra melhor. Acho-a desagradável, e até mesmo, muitas vezes, maçante. De tudo isso deduzo que não sabemos muita coisa sobre os relacionamentos humanos.

Sinceramente, JEREMY THORNE

P.S.

Espero que me comunique se há mais alguma coisa que eu possa fazer para ajudar. Espero que não seja preciso dizer que eu faria qualquer coisa por Charles. Ocorreu-me uma idéia: não sei se o senhor entrou em contato com Constance Mayne, se é que o nome dela apareceu de todo? Ela foi aman­te de Charles, ou talvez ainda o seja. Foi aluna dele. Não, não tenho nada a reclamar do procedimento dele, pois ela só se tomou amante dele depois que não era mais sua aluna. E não sou moralista. Estou-lhe contando isso porque creio que Feli­city, esposa dele, não saiba da existência da outra. Se o senhor acha que isso pode ajudar, é só me dizer e eu lhe consigo o endereço dela. Da última vez que tive notícias dela, estava em Birmingham.

Prezado Dr. Y,

Se posso ajudá-lo a «reabilitar» Charles Watkins? Não sei. Sim, eu o conheço, muito bem até. Como o senhor é fino. Fui amante dele, O senhor deve saber disso, do contrário não me escreveria. Eu gostaria de saber quem foi que lhe contou, mas não creio que me conte. Bem, sobre Charles... ele perdeu a memória? Não se lembra de quem é? Sinto muito saber disso, mas o que isso tem a ver comigo? Não, não pense que estou sendo desonesta. Eu gostaria que tivesse a ver comigo, mas acontece que acho que o senhor devia perguntar à mulher dele. Felicity Watkins. Imagino que deva ter perguntado. Ela lhe disse para entrar em contato comigo? Se disse, era o que eu esperaria de parte dela. O que quero dizer com isso é que seria tão desgraçadamente superior, acima de todas as emoções hu­manas normais, tal e qual Charles. Tenho certeza de que essas coisas pegam. Dizem que as pessoas casadas vêm a se asseme­lhar, mas naturalmente, eu não posso saber.

Depois de (pode acreditar) pensar bem, estou simples­mente lhe enviando a carta anexa. É uma carta que escrevi a Charles. Essa carta também foi escrita depois que pensei bem. Durante anos. O que quero dizer é que eu poderia ter escrito essa carta antes, mas fui uma idiota e não escrevi.

Mandei essa carta (a anexa) a Charles para a casa dele. Não por despeito, mas porque eu não tinha outro endereço. Ele me procurou a toda pressa. Quando digo a toda pressa, quero dizer, para ele. Passaram-se uns dez dias. Ele veio de trem a Birmingham. Trouxe minha carta consigo. Foi, como bem poderia ser, uma visita de cordialidade. Ele passou a noite aqui. Por que não? Os velhos hábitos custam a morrer. Quando ele partiu de manhã, a carta estava sobre a minha mesinha de cabeceira. A questão é mas não espero que o senhor veja isso como a questão que ele não a deixou ali de propósito, nem para ser comentada depois da partida, pois tínhamos fa­lado sobre seu conteúdo na véspera. Pelo menos. Nãb, ele a esqueceu. Saiu totalmente da cabeça dele. Portanto, aproveito a oportunidade para devolvê-la a ele, por seu intermédio. Ele pode querer refrescar a memória quando a tiver de volta.

Desculpe não poder ajudar.

Atenciosamente,

CONSTANCE MAYNE

Caro Charles,

Não se assuste, esta não é uma daquelas cartas chorosas que lhe escrevi quando você resolveu que já estava farto de mim. De jeito nenhum. Estou bem longe disso agora. Acordei hoje de manhã e pensei que neste mês de junho fazia três anos desde que você me deixou.

A sua imagem

Tão doce e fiel

Nos tristes anos

Tem sido buu huu

Buu huu, buu huu, buu huu. BUU!

Ocorreu-me que, longe de estar num buu huu, longe disso, eu estava mas é com raiva, uma fúria. Ocorreu-me, Charles Watkins, que o que sinto por você não é nada disso, eu o odeio. Mais do que isso, não consigo engolir o seu caráter tão despropositado.

Vou contar-lhe uma história.

Era uma vez uma estudante jovem e idealista, do curso de Letras, que foi assistir a uma aula, que Deus a ajude, sobre uma Introdução à Grécia Antiga, e ouviu um professor maluco dizer que só havia uma literatura e uma língua, a saber, o grego (Antigo, não o Moderno). E tal foi a força de sua persuasão que aquela burra daquela estudante largou a sua bela e útil literatura e o francês e espanhol e italiano e passou-se para o Grego Antigo Inútil, só porque o professor mandou. Passaram-se três anos, enquanto aquela estudante burra se esforçou e tirou distinção, só para ganhar um ou dois sorrisos aprovadores do Professor Maluco. No dia em que ela soube que tinha conseguido o seu diploma de bacharel, vejam, acontece que aquela Estudante Tola está em Londres e o Professor Maluco está fazendo uma conferência na televisão sobre a Grécia, o Berço da Civilização Européia. Isto intelectual e aquilo moral e assim por diante, mas, ocorreu à Estu­dante Tola, nem uma palavra sobre as mulheres, quanto mais Os escravos, naquele paraíso de Superioridade Moral, a Grécia Antiga. A Estudante Burra pegou um táxi, quando a confe­rência na televisão estava acabando, e foi para a BBC, e quando ele saiu do edifício, com um aspecto tão Clássico e Encasacado, de tweed grosso, cachimbo, um encanto rústico, tudo isso, ela disse a ele. «Em tudo aquilo não ouvi uma só palavra sobre as mulheres nem os escravos». Ao que o Professor Ma­luco respondeu: «Ah, é você, Connie? Muito bem! Parabéns por suas notas! Então, está preocupada com as mulheres e escravos, está? O que você está fazendo a respeito?» A Estu­dante Burra levou cinco segundos estonteantes e ofuscados para entender de que ele estava falando, e depois disse: «Certo, tem razão». E então ela se recusou a voltar para a universidade, para conseguir o seu mestrado e provavelmente doutorado e assim por diante, ad infinitum,e em vez disso foi para Bir­mingham, arranjou um emprego numa fábrica, com mulheres, fabricando recipientes de plástico para detergentes, verificou que elas eram realmente Escravas, embora fossem Mulheres, e fez escândalos e criou problemas para a gerência, tornou-se chefe de departamento e comunista e três anos depois foi a Cambridge, para enfrentar o Professor Maluco com a notícia. «Pois muito bem, já o fiz», exclamou ela, contando-lhe a história, três anos duros, mas muito duros, mas muito, muito duros, um trabalho danado, duro, penoso e intolerável pelas mulheres de Birmingham que fabricavam recipientes de plástico e ele tirou o cachimbo da boca e disse: «Muito bem!», e depois: «Vamos para a cama».

Sim, sei se devo rir ou chorar. Hoje estou rindo e Deus sabe que já não é sem tempo.

Então, assim começa o romance do século, a maior parte do tempo em Birmingham, mas um professor de Letras Clás­sicas ocupado e popular dom mulher e dois filhos não tem assim tanto tempo de sobra para se divertir e a Chefe de Departamento Tola quase não vê o seu Amor. Enquanto isso essa mesma Chefe de Departamento Tola tem um namorado, um amor Fiel e Firme, que é o Chefe do Departamento Masculino do Andar de Peças, onde os Homens fabricam recipien­tes de plástico para rádios transistores, pois como são Homens, e portanto mais adiantados e evoluídos, podem colocar aqueles botões e parafusos e cabos e coisas difíceis, muito mais com­plicados do que os recipientes para detergentes. Esse namo­rado fiel e amoroso leva o fora da Chefe Tola por causa do Amor do Século. Triste e solitária, ela diz: «Buu huu, buu huu, case comigo», e ele diz, o Professor Maluco: «Não seja absurda». «Mas e as suas juras, o seu amor, a sua paixão?» exclama ela. Ele diz: «Quem acreditar em alguma coisa que alguém diz na cama merece o que recebe.

Que tal isso, para um professor?

Mas duas vezes já modifiquei toda a minha vida por sua causa — exclama ela, soluçando, chorando, gemendo.

Ninguém lhe pediu para fazer isso — diz ele, tirando o cachimbo da boca para falar.

O que vou fazer? — geme a Tola. — Perdi o meu verdadeiro amor leal, o Chefe de Departamento, e não posso ter você, a minha vida está vazia e quero uma família.

Ao que ele responde:

E o que é que a impede?

Seria de supor que a pequena tivesse aprendido, a essa altura? Seria, não seria?

Pois bem. Você há de se lembrar desse período, se tiver tempo para se lembrar de tudo, como representado por uma porção de cartas muito choramingas de minha parte. Mas na verdade o que estava acontecendo é que eu estava pensando, bem, e o que é que me impede? Pois acontece que eu estava grávida, mas não tinha certeza.

De modo que voltei a Birmingham e tive um filho forte e robusto, de 3,600 kg, continuando a trabalhar quase o tempo todo, com o auxílio de algumas empregadas bondosas e carinhosas do departamento de recipientes plásticos e — isso foi há dois anos.

Buu huu, buu huu, o tempo todo.

Sim, o menino tem dois anos e chama-se Ismael, que tal isso?

Não, não quero coisa alguma de você. Nada. Se quiser ver o menino, ótimo. Se não quiser, ótimo.

Não me importo.

Posso me haver sozinha, muito obrigada.

Ocorre-me que é verdade, sim, e muito obrigada, estou falando sério. Não preciso de ninguém, não, eu não.

Vou embora de Birmingham no mês que vem, para passar o verão com uma tia bondosa na Escócia, e vou ensinar grego a uns idiotas desorientados que fariam melhor se aprendessem o italiano, mais útil, ou o francês ou espanhol. Mas idiomas que, infelizmente, não estou preparada para ensinar a ninguém, graças mil vezes a você. Não, não o culpo, pois sim que não.

Ontem uma ex-colega me disse que você anda por aí di­zendo que os clássicos são uma engabelação e que todo o ensino atual é completamente engabelado e que ninguém compreende de que se tratava mesmo. Salvo, naturalmente, você.

Parabéns. Ah, parabéns. Não me surpreendo que você tenha perdido a voz — é o que me disse um passarinho? — e não pode falar!

Já lhe disse, você é despropositado.

Com ódio. Estou falando sério.

CONSTANCE

Prezado Dr. X,

É muito fácil responder à sua pergunta: sim, Charles Watkins realmente procurou-me em meados de agosto. Tarde da noite. Creio que numa quarta-feira, mas receio que não me lembre exatamente.

Cordialmente, ROSEMARY BAINES

Prezado Dr. Y,

Depois de ter enviado minha carta — na verdade, duas cartas — lembrei-me de uma coisa a respeito de Charles que talvez o senhor deva saber.

Trata-se da última guerra. Naturalmente, para mim é meio antigo, mas quase desde o principio, quando comecei a conhecer Charles bem mesmo, vi que a guerra não lhe tinha feito muito bem. Um dia conheci um amigo de Charles (com Charles) que disse que uma vez Charles lhe disse que ele — isto é, Charles — chegara ã conclusão, no princípio da guerra, de que não ia sobreviver. Correu grandes perigos. Os amigos dele, isto é, os homens que lutavam com ele, por duas vezes foram todos mortos em volta dele. Por duas vezes Char­les foi o único sobrevivente de um grupo de camaradas. Uma vez no Norte da África e outra vez na Itália. Quando acabou a guerra ele nem podia acreditar que ainda estivesse vivo. Teve de aprender a acreditar que ia viver, disse esse homem, que se chama Miles Bovey. Vou escrever o endereço dele, pois talvez o senhor deva perguntar a ele. Miles disse que no fim da guerra Charles passou muito tempo sem querer come­çar a viver. Nessa época ele bebia. É o que disse Miles, mas eu nunca vi Charles beber mais do que o normal. Depois Char­les voltou à universidade. Charles um dia me disse uma coisa de que me lembro. Disse que depois da guerra, não podia mais acreditar que as pessoas realmente achassem importantes as coisas que diziam achar importantes. Disse que tivera de aprender a «fazer o jogo». Disse que Miles Bovey era «a única pessoa que jamais o compreendeu realmente». Perguntei-lhe que joguinhos eram esses e ele disse: «Todo esse raio de fer­vura». Não é preciso dizer que perguntei: «O amor também?» Não me lembro de sua resposta.

Cordialmente, CONSTANCE MAYNE

Prezado Dr. Y,

Obrigada por sua carta amável e esclarecedora. Não con­segui deduzir muita coisa da carta do Dr. X.

Sim, imagino que se possa dizer que Charles Watkins não «estivesse em si» naquela noite, mas deve lembrar-se de que, até aquela data, o que eu sabia dele reduzia-se às conferências que eu tinha ouvido e alguns comentários por amigos comuns.

Não Lhe posso dizer se aquela preleção foi importante para ele. Certamente foi importante para mim. Escrevi-lhe uma carta comprida, contando que era importante e por quê. Talvez tenha feito mal em escrevê-la, mas, em retrospecto, não me arrependo. Às vezes temos de nos arriscar a constranger as pessoas, exigindo mais do que querem dar ou do que podem dar. Minha carta foi uma exigência. Claro que eu sabia disso. Pode perguntar: o que eu dizia nela? Mas responder a isso seria escrever a mesma carta. Basta dizer que eu o ouvi falar, e as Coisas que ele disse me fizeram pensar de outro modo. Ou sentir de outro modo. Naturalmente, não de algum modo externo e dramático. Não tive resposta à minha carta. Uma ou duas vezes pensei em tornar a escrever, na suposição de que a primeira carta não o tivesse encontrado, mas não havia motivo para supor isso. Cheguei à conclusão de que minha carta tivesse sido pouco diplomática, ou extemporânea, e que nunca teria resposta alguma dele.

Mas uma noite eu estava num restaurantezinho grego em Gower Street, onde vou muito. Frederick Larson estava comigo — o arqueólogo. De repente apareceu Charles Watkins, que se sentou conosco, dizendo:

— Pensei que os encontraria aqui.

Isso não foi assim tão estranho quanto possa parecer. Para começar ele sabia onde moro, pois tinha realmente recebido a minha carta, e tinha ido ao meu apartamento para saber se eu estava em casa. Quando viu que não, andou pelas ruas vizinhas para ver se eu estava em algum bar ou restaurante. E estava mesmo.

Mas a sua chegada pouco convencional estava bem de acordo com a esquisitice geral de seu comportamento. A prin­cipio, tanto Frederick quanto eu pensamos que ele estivesse embriagado. Depois, que podia ser maconha ou coisa pior. Depois Frederick começou a insistir par,a que ele Comesse alguma coisa e, alertada por isso, percebi que as roupas dele tinham aquele aspecto especial e pouco convincente de imundície que têm as roupas sujas que são obviamente roupas que geralmente estão bem cuidadas. Como ele não é o tipo de pessoa que se pudesse esperar que usasse roupas com que tivesse dormido, isso a princípio me impediu de ver que tudo o que ele estava usando tinha uma camada de fuligem e que ele tinha marcas de fuligem nas mãos. E estava com um cheiro cansado, de sujeira e mofo.

A princípio ele recusou-se a comer, ou melhor, parecia não ouvir quando lhe ofereciam alguma coisa. Depois come­çou a comer uns pães que estavam na mesa e Frederick resol­veu pedir alguma coisa para ele comer, sem tornar a pergun­tar se ele queria, e quando a comida chegou vimos que ele estava faminto. Falava o tempo todo de um modo desconexo. Não sei bem a respeito de quê. Fazia sentido, enquanto ele falava. Ficou ali conversando como se fôssemos os dois velhos amigos e entendêssemos todas as referências que ele fazia a pessoas e lugares. O que tornava isso menos extraordinário ê que nós dois realmente achávamos que éramos velhos amigos, pois tínhamos falado muito sobre ele. Ele se referia a alguma viagem que estava pretendendo fazer e parecia até pensar que iríamos com ele. Naturalmente, a essa altura tínhamos percebido que ele não estava nada «normal» — como diz o senhor.

Quando acabamos de comer, nós o convidamos para ir ao meu apartamento. Nós três fomos a pé. Não eram mais que uns 200 metros. No meu apartamento, ele não se sentou. Estava irrequieto e ficou andando de um lado para outro o tempo todo, examinando os Objetos com muita atenção, examinando as superfícies das paredes e assim por diante. Mas tive a im­pressão de que ele perdia o interesse pelo objeto que acabava de examinar com tanto cuidado assim que o largava. Isso con­tinuou por umas duas ou três horas. Ele falava em escapar da armadilha, fugir da prisão, escapar — esse tipo de conver­sa. E não nos pareceu tão esquisito quanto o senhor possa pensar que deveria parecer, pois os nossos próprios pensa­mentos seguiam mais ou menos a mesma direção — ou é o que parecia, mas tenho certeza de que o senhor já deve ter repa­rado muitas vezes que a gente pode conversar durante horas, ou dias, ou uma vida inteira, com um amigo e depois descobrir que as palavras que usa representam coisas muito diferentes.

Não posso saber até que ponto naquela noite eram verdadeiras para Charles as prisões, as redes, as jaulas e armadi­lhas de que ele falava. Se é que se pode chamar de «falar» a um fluxo de palavras tão desconexas e disparatadas. Mas eu e Frederick Larson temos significados muito positivos para essas palavras. Mas e Charles? Não posso dizer. Em certo mo­mento, em que Charles tinha saído da sala (de repente notara que estava com as mãos sujas e fora lavá-las) nós discutimos se devíamos ou não chamar um médico, mas resolvemos que não. Ele não nos pareceu incapaz de se cuidar. Talvez tivés­semos agido mal — afinal, tínhamos ali a prova de suas roupas sujas e sua evidente necessidade de alimento e a sensação geral de tensão e exaustão. Mas sou da opinião de que não se deve querer suprimir as crises de outras pessoas, nem disfarçá-las com drogas, nem um sono forçado, ou a ilusão de que não existe uma crise, ou que, se existe uma crise, ela deveria ser escondida, disfarçada ou desprezada. Tenho certeza de que outras pessoas, e as pessoas que um médico poderia achar res­ponsáveis, teriam providenciado para que um médico assumis­se a custódia de Charles — perdoe-me por falar assim. Mas o estado de espírito dele — ao que eu podia ver — não parecia muito diferente do meu, em ocasiões de minha vida que veri­fiquei serem muito esclarecedoras e valiosas.

Além disso, eu queria continuar a escutá-lo.

Embora seus comentários fossem dispersivos, havia neles uma lógica íntima, um fio da meada, que a princípio parecia uma repetição de certas palavras ou idéias. Por vezes parecia que o som, e não o sentido de uma palavra ou sílaba numa frase é que dava origem à frase ou palavras seguintes. Quando isso acontecia, dava a impressão de superficialidade, daquilo ser desmiolado ou demente. Mas talvez tenhamos de começar a pensar na relação entre o som de uma palavra e o seu signi­ficado. Claro que os poetas fazem isso sempre. E os médicos? Os sons, a função dos sons na fala... ainda não temos meios de saber — temos? — de que modo uma corrente verbal pode commrar-se a uma realidade interna, sons exprimindo uma condição? Mas talvez esse tipo de pensamento não seja considerado útil pelo senhor.

Por volta da meia-noite tornou-se óbvio que a organiza­ção da vida quotidiana faria uma pressão sobre Charles. Sem ela, ele não teria tomado nenhuma iniciativa. Frederick tinha de ir para a casa dele. A resolução dele ir embora fez Charles notar que já era meia-noite. Ele foi com Frederick. Foi uma coisa mecânica. Tanto podia ter ficado. Na rua, disse a Fre­derick: «Eu o verei da próxima vez» e foi-se embora. E foi só isso que soubemos de Charles até que recebi uma earta do Dr. X, do seu hospital.

Espero que esse relato um tanto impreciso daquela noite possa ajudar em alguma coisa. Sinto muito saber que ele está tão doente. Mas sinto certa inveja dele. Há muita coisa em minha vida que eu esqueceria de bom grado. Será que eu poderia visitá-lo? Eu gostaria, se isso o ajudasse.

Atenciosamente, ROSEMARY BAINES

Prezado Dr. X,

Naturalmente, tenho muito prazer em ajudar no que for possível.

Conheci Charles Watkins esporadicamente, em nossos tempos de colégio. Estudávamos em escolas diferentes. Quando começou a guerra, nós dois fomos para a África do Norte. Charles esteve mais no cenário da guerra do que eu. Eu estava no Serviço Secreto e naquela fase tinha menos atividade. Nós nos encontramos de vez em quando, mas depois fui para a Iugoslávia e ele foi para a Itália. Sim, ele passou por expe­riências difíceis na guerra, porém mais no sentido de ter expe­rimentado a dureza da infantaria primeiro e depois os tanques. Depois só nos vimos quando terminou a guerra. Em 1945 tor­namos a nos encontrar e passamos alguns meses juntos. Está­vamos Os dois bastante abalados e precisávamos da companhia de uma pessoa que compreendesse aquilo. Pessoalmente, não creio que as pessoas se «modifiquem» com a tensão. Em minha experiência, certas características são acentuadas, ou se fazem notar. Nesse sentido, não achei que Charles Watkins se tivesse «modificado» com a guerra. Mas certamente ele esteve doente depois dela. Eu gostaria de visitá-lo se for possível. Creio que o oficial-comandante dele poderá ajudá-lo. Era o General-de- Divisão, Brent-Hampstead, de Little Gilstead, Devon.

Atenciosamente,, MILES BOVEY

Prezado Dr. X,

Charles Watkins serviu sob o meu comando durante quatro anos. Mostrou-se satisfatório em todos os sentidos, responsável e firme. Durante bastante tempo ele recusou-se a receber a patente de oficial, embora eu o tenha pressionado nesse sen­tido, por causa de amigos de quem não queria separar-se. Compreensível, mas fiquei satisfeito quando ele mudou de idéia, no final da guerra. Foi durante a campanha da Itália. Ele terminou como tenente, creio,, mas estamos falando de coisas que ocorreram há 25 anos. Sinto muito saber que ele não está muito bem.

Sinceramente,

PHILIP BRENT-HAMPSTEAD

doutor yEu queria que o senhor experimentasse outra coisa, professor. Queria que o senhor se sentasse e se descontraísse e procurasse escrever qualquer coisa que lhe ocorrer.

pacienteQue tipo de coisa?

doutor yQualquer coisa. Qualquer coisa que possa nos

dar alguma indicação.

pacienteO fio de Ariadne.

doutor y— Exatamente. Mas esperemos» que não haja nenhum minotauro.

pacienteMas será que também ele não acabaria sendo um velho amigo?

doutor yQuem sabe? Bom, vai tentar? Uma máquina de escrever? Gravador? Ouvi dizer que o senhor é muito bom conferencista.

pacienteQuantos talentos eu tenho, de que nem sei nada.

Prazo do paciente termina no fim deste mês. Não vejo motivo por que ele não seja transferido para North Catchment, como já foi sugerido anteriormente.

Dr. X

Como o paciente está muito tratával e dócil e coopera, dis­posto a ajudar com outros pacientes, sugiro que essa me­lhora seja consolidada por uma estada mais longa nas condições atuais. Há precedentes para um prolongamen­to por mais três semanas.

Dr. Y

Prezado Dr. X,

Obrigada por sua carta. Fico satisfeita por saber que o meu marido está tão melhor. Já se lembra de mim e da família?

Sinceramente,

FELICITY WATKINS

pacienteSim, estou tentando, mas não sei sobre o que escrever.

doutor yQue tal a guerra?

pacienteQue guerra?

doutor yO senhor esteve na última guerra, no exército, no norte da África e na Itália. Serviu com um General Brent- Hampstead. Tinha um amigo chamado Miles Bovey.

pacienteMiles? Milos? Milos, sim, acho que eu... mas ele morreu.

doutor yPosso garantir-lhe que não está morto.

pacienteTodos foram mortos, de um modo ou de outro. doutor yEu gostaria de ler a respeito. Quer tentar?

As instruções foram dadas na barraca do Oficial-Comandante. Até chegar lá eu não sabia o que esperar. Tinham-me dito que eu fora escolhido para uma missão especial, mas não qual era a missão. Certamente eu não tinha idéia alguma de que seria na Iugoslávia.

Os Aliados estavam apoiando Mihailovich. Já havia alguns meses corria o boato de que Mihailovich estava apoiando Hitler e que Tito era a verdadeira oposição a quem devíamos dar todo o auxílio que pudéssemos. Mas Tito era comunista. Sa­bia-se pouco sobre ele. E as coisas na Iugoslávia estavam con­fusas, e antigas rivalidades provinciais e religiosas estavam sendo resolvidas sob o disfarce da luta entre Tito e Mihailovich.

A campanha para o apoio a Tito surgiu primeiro da Es­querda, que alegava que a Grã-Bretanha se recusava a ajudar Tito porque ele era comunista e que isso se coadunava com a estratégia mais ampla de querer continuar como aliado da URSS enquanto se procurava reprimir ou destruir os movimentos comunistas locais. Por fim Churchill resolveu o negó­cio, passando por cima dos «milieos» e dando ouvidos aos con­selhos esquerdistas mais bem informados sobre a Iugoslávia. Resolveu-se estabelecer uma ligação com Os Guerrilheiros de Tito e levá-los a confiar em nós, os Aliados, especialmente a Grã-Bretanha, convencendo-os de que não mais apoiaríamos Mihailovich nem qualquer Outro movimento orientado pelos nazistas. Ofereceríamos aos Guerrilheiros armas, homens e equipamentos. Mas naquela ocasião não se sabia ao certo o que eram os Guerrilheiros. Resolveu-se que desceríamos em grupos nos locais em que se pensava estarem Os Guerrilheiros.

Havia vinte de nós na barraca do Oficial-Comandante, naquela noite. Tínhamos sido escolhidos por uma variedade de especialidades. Mas todos falávamos francês ou alemão, ou ambos bs idiomas. Todos sabíamos esquiar e, na vida civil, podíamos passar por atletas. De modo geral, não nos conhecíamos. Sentei-me junto de um homem que, durante aquele período de treinamento, tornou-se meu amigo íntimo. Chama-se Miles Bovey.

Durante b mês seguinte nos exercitaram de todo jeito, enrijecendo-nos fisicamente, ensinando-nos o pára-quedismo, a utilização de equipamento de rádio e dando-nos um conhecimento preciso da história do país, com referências especiais aos conflitos religiosos e regionais que devíamos encontrar.

Nas instruções finais, estávamos reduzidos a 12. Dois homens tinham morrido em saltos de pára-quedas. Outro enlouquecera e estava sendo cuidado pelos psiquiatras. Havia outras faixas, bastante sem importância, um tornozelo torcido, um membro deslocado, mas o suficiente para desqualificar o sujeito )ara o salto e as provações que se seguiriam.

Miles Bovey e eu devíamos ficar juntos. Iam nos largar sobre as montanhas da Bósnia, para entrarmos em contato com os Guerrilheiros.

As instruções finais visavam principalmente mostrar-nos como sobreviver se não entrássemos logo em contato com os Guerrilheiros. E também instruir-nos no caso de sermos captu­rados pelos alemães ou pelos grupos de quislings locais. Essas instruções eram muito simples, diante do que hoje considera­mos normal em termos de torturas, preparativos para suportar a tortura, drogas, métodos psicológicos. Cada um de nós re­cebeu duas cápsulas de veneno, para serem tomadas em caso de necessidade extrema. Mas em nossas últimas instruções estava implícita a noção de que devíamos resistir à tortura. Se fôssemos capturados, que a enfrentássemos. Ainda não fazia parte dos conhecimentos gerais a idéia de que os seres hu­manos não podem enfrentar a tortura ou os métodos psicoló­gicos, nem se deve esperar que o façam. Não me lembro que essa idéia tivesse sido expressa, ou sequer insinuada a qual­quer momento durante o tempo em que lutei na guerra. Eu não me teria permitido entreter tal pensamento, e se tivesse ouvido outra pessoa exprimi-lo, teria ficado escandalizado. E, no entanto a tortura tinha sido e estava sendo levada ao seu auge atual de sofisticação, por toda a parte em que a guerra se espalhara ou poderia espalhar-se. Estávamos na situação de camponeses numa sociedade tecnológica. Ainda acreditávamos no poder do heroísmo acima de quaisquer cir­cunstâncias. Sei que os homens continuam a resistir à tortura em circunstâncias incríveis, porém pressões tremendas aumen­taram a compaixão: todo soldado que hoje possa ter de en­frentar a tortura tem consigo a noção de que, se não conseguir suportá-la, se fraquejar, não é um covarde nem poltrão e que ninguém, em parte alguma, o julgará tal. Progresso.

Lembro-me muito claramente de minhas fantasias daque­les poucos dias de espera, os devaneios que são a preparação mais útil para a tensão ou o perigo que se aproxima. Os meus devaneios — ou planos — poderiam ter saído de uma história de aventuras para meninos, ou de Beau Geste, A sordidez, a maldade de porão sujo, a torpeza psicológica da tortura moderna me teriam tomado completamente de surpresa se eu tivesse tido a pouca sorte de ser capturado.

Eu e Miles Bovey fomos largados juntos numa noite escura e muito fria numa escuridão total. Podíamos estar caindo no deserto ou no mar — ou para cima, no nada do espaço — em vez de nas montanhas em que sabíamos haver aldeias, cheias de grupos de homens em luta, os guerrilheiros e seus adversários, os Chetniques.

Bovey saltou primeiro. Ele sorriu para mim, ao saltar — e foi o último contato humano que ele teve. Nem cheguei a ver o branco de seu pára-quedas embaixo de mim, enquanto eu caía no escuro. O brilhozinho do avião fugiu para o negrume em cima, e fui caindo e caindo até que algo preto foi subindo — por pouco escapei do topo de um alto pinheiro e caí num montão, num espaço entre pedras afiadas. Machuquei um pouco a perna. Eram quatro horas da manhã, e ainda era noite. O céu estava nublado; eles tinham esperado por uma noite nublada. Não ousei chamar Miles. Empilhei o pára-quedas atrás de uma pedra, onde a sua brancura ficaria escondida, e sentei-me sobre ele. Estava muito frio. Fiquei ali sentado até que a luz apareceu, filtrada através das altas coníferas. Eu estava na encosta de uma montanha. Ainda estava escuro debaixo das árvores, quando o céu foi iluminado pela luz ro­sada da aurora. Vi um brilhozinho branco no alto, a uma dis­tância de uns 100 metros, e fiquei ali sentado sem me mexer até poder verificar que era, ao que pensava, o pára-quedas de Miles. Mas poderia ser uma camada de neve num galho. O pára-quedas estava dependurado de um galho alto, agitando-se ao vento da madrugada. Saí de trás de minha pedra com cuidado e, perto da árvore em que estava preso o pára-quedas, encontrei Miles, bem morto. Não tinha levado um tiro, como pensei a princípio, ao ver a mancha escuna de sangue na testa dele. Tinha caído sobre o pinheiro alto. Seu pára-quedas ficara preso na árvore. Ele ficara ali pendurado como uma mosca numa teia de aranha. Tentando livrar-se, caíra e batera Com a cabeça numa pedra. A queda não fora de muito mais de dez metros, e em volta da pedra em que ele batera o solo da floresta era macio, cheio de humo de folhas e folhas de pinheiro. Aquilo devia ter acontecido poucos minutos antes de eu pisar em terra. Ele tivera tanto azar quanto eu tivera sorte.

O pára-quedas estava refletindo a luz, formando um farol que poderia ser visto a léguas. Eu tinha de subir naquela ár­vore para puxá-lo dali. O tronco erguia-se reto, sem nenhum galho, por uns seis metros, mas tinha várias partes salientes e aguçadas. Consegui trepai- agarrando-me com os braços e as pernas, procurando evitar os pedaços aguçados, e também procurando estar alerta no caso de aparecer alguém querendo investigar aquela mancha alta, de um branco reluzente, Tinha chegado ao nível do primeiro galho quando ouvi um barulho que podia ser o estalar de um graveto ou o disparo de uma carabina, e fiquei imóvel, indeciso, até que refleti que nada podia ser mais perigoso para mim do que aquele pedaço de pano branco. Subi o resto do tronco o mais depressa que pude e, deitando-me de bruços sobre o galho que prendia o pára- quedas, arrastei-me até ele. Tinha acabado de agarrar a seda e estava puxando e sacudindo-a para soltá-la dos galhinhos que a prendiam quando vi descerem a encosta da montanha cinco soldados, com as espingardas apontadas para mim. Eu não tinha meio de saber se eram Guerrilheiros ou Chetniques. Portanto fiquei ali sentado naquele galho, como um garoto apanhado ao roubar maçãs, e continuei a mexer no pára-quedas para soltá-lo. Vi que o segundo soldado era uma moça. Eira a moça mais linda que jamais eu vira. Tinha tranças pretas e grossas que lhe caíam pelas costas, sob o boné, olhos negros de oriental e um rosto de Afrodite.

Vi a Estrela Vermelha no peito deles e disse:

Sou soldado britânico.

O líder disse alguma coisa aos outros, que abaixaram as armas.

Ele disse, em francês:

Nós o estávamos esperando.

Eu disse:

Só vou soltar esse pára-quedas. — E, quando acabei de falar, ele soltou-se e caiu ao chão da floresta.

O sol nascera. A floresta estava cheia de uma luz dourada. Os pássaros cantavam. Os cinco embaixo de mim estavam olhando para cima. Estavam sorrindo. Eu disse:

Mas meu amigo foi morto.

Eles não tinham visto Miles; a atenção deles estava toda voltada para mim.

A moça foi diretamente para junto dele, verificar se es­tava mesmo morto. Era estudante de medicina que fazia as vezes de médico para seu grupo de Guerrilheiros. Direi aqui que se chamava Konstantina e que a amei desde aquele pri­meiro momento, e ela a mim.

Quando desci da árvore, ela já tinha acabado de exami­nar Miles e então examinou minhas mãos, arranhadas pelo tronco áspero da árvore, e a minha perna,, que estava doendo muito do baque forte que levara quando bati no chão. Os outros já estavam cavando uma cova na floresta. O primeiro momento do meu encontro com os Guerrilheiros, com o meu amor por Konstantina, foi um enterro. Eles cavavam o solo macio e humoso com as mãos, as facas dos cintos, os cantis. Antes de colocarmos Miles na cova, tiramos o equipamento dele, muito precioso para aqueles soldados improvisados e mal equipados, e eu tirei as cápsulas de veneno de onde sabia que ele as tinha escondido, no cinto.

Nós seis o deixamos ali e fomos para um vale Onde um riacho estava cheio com a neve derretida, e atravessamos o riacho e subimos para um pico da montanha, onde a neve ainda estava grossa, como no inverno, se bem que o sol da prima­vera já tivesse calor suficiente para nos fazer carregar, junta­mente com as mochilas, os nossos sobretudos. Lá, logo abaixo da linha da neve, havia umas cavernas, onde estava instalada a sede temporária daquele grupo de Guerrilheiros: eles nunca ficavam em lugar algum mais do que algumas noites.

Em outros países ocupados pelos nazistas, havia sempre o quadro das pessoas que lutavam contra eles e aqueles que colaboravam com eles por simpatia natural ou devido à crença de que deviam vencer. Em alguns países, esse quadro era muito simples. As pessoas que moravam numa cidade ou aldeia sa­biam que fulano de tal era nazista e que sicrano não era. Os países do norte pareciam ser mais sinceros do que os do sul. A Noruega, por exemplo, ou a Holanda. Às vezes chegavam notícias da Holanda, dizendo que os nazistas tinham enforcado ou fuzilado ou aprisionado 12 membros da Resistência; que certos membros da Resistência tinham cometido tais e tais atos de sabotagem. Mas na Iugoslávia, as coisas estavam no extremo oposto. As informações não eram de que os alemães ti­nham invadido tal aldeia e morto 20 membros da Resistência iugoslava; mas sim de que «os colaboradores croatas tinham entrado em tal aldeia sérvia e exterminado todos os habitantes» ou «tropas muçulmanas massacraram todos os habitantes da aldeia de...» ou «os Guerrilheiros, at> entrarem em tal aldeia depois de lutas encarniçadas, encontraram todos os habitantes assassinados pelos croatas» ou mas era interminável, com os católicos, muçulmanos, mbntenegrinos, herzogovinos, croa­tas, sérvios, e assim por diante.

Quando saí da floresta cerrada para o espaço cercado de pedras fora da caverna, avistei uma dúzia de soldados, todos vigiando a nossa aproximação do lugar em que estavam comiam a primeira refeição, pão com salsichas. Eram todos jo­vens e alguns eram garotas. Minha presença foi explicada em algumas palavras. Deram-me um pedaço de pão. Uma lata de água estava sendo passada pelo pessoal. Para mim aquele foi um momento de grande emoção, eu estava ingressando nas fileiras dos famosos Guerrilheiros, cujos atos eram comentados por toda parte. O heroísmo deles tinha a simplicidade dos tempos antigos, uma franqueza limpa, como a dos heróis junto às muralhas de Tróia. Essa gente era como aquela outra. Quando tive tempo para olhar em volta e examinar suas armas e equipamento, vi que aquela luta devia ser muito dura e sim­ples. Quando tinham fardas, eram as que tinham sido tiradas dos inimigos mortos, de modo que as botas, os bonés, casacos e cintos eram de todo tipo. Alguns não tinham farda alguma, e usavam qualquer coisa que lhes pudesse servir de proteção naquelas montanhas agrestes, botas de camponeses, gorros de estudantes, de tricô de lã grossa. A Estrela Vermelha nos bonés ou no peito era o que os unia.

Aquele grupo de jovens soldados continha sérvios, croatas, montenegrinos, católicos e muçulmanos. Somente naquelas mon­tanhas, entre aqueles soldados, aqueles camaradas, seria possí­vel duas pessoas se encontrarem, apertarem as mãos, se cha­marem pelo nome, Miro, Milos, Konstantina, Slobo, Vido, Edvard, Vera, Mitra, Aleksa... tomarem a Estrela Vermelha como vínculo e esquecerem o resto.

Hoje, recriando na minha imaginação aquele momento, em que saí da floresta com aquele grupo, e sentei-me com todos eles para comer o pão dos camponeses e beber a água fria da montanha, o que mais me impressiona é algo que na ocasião achei natural a extrema juventude deles. Ninguém tinha mais de 25 anos. Nem eu mesmo. Entre eles, e entre os outros que conheci nas montanhas nas semanas seguintes, havia homens e mulheres que depois da guerra tornaram-se os governantes da nova Iugoslávia, uma nação disputada e criada pelos muito jovens.

Acredito que um homem que lutou com aqueles jovens e que hoje tenha de postar-se num tablado num grande audi­tório para fazer uma conferência ou dar uma aula deve muitas vezes, um quarto de século depois, olhar para os rostos dos estudantes, virados para cima (que são rebeldes e emburrados e críticos e indisciplinados e que em todos os países do mundo rejeitam o que a sua sociedade lhes oferece...) esse homem, um professor, talvez, com responsabilidade, vim lugar na socie­dade, olha para aquelas caras e pensa que jovens exatamente como eles, «crianças» para os mais velhos, lutaram contra o exército mais perverso e apavorante da história, o de Hitler, e lutaram sem armas, sem agasalhos, muitas vezes sem ali­mentação, sempre em minoria numérica lutaram e venceram e criaram uma nova nação.

Fiquei com eles durante eu diria três meses. Somente no amor e na guerra é que escapamos do sono da necessidade, da jaula da vida comum, para um estado em que todos os dias são uma grande aventura, cada momento cai nítido e límpido como um floco de neve esvoaçando devagar por uma pedra escura e reluzente, ou como uma folha caindo ao chão de uma floresta. Três meses de uma vida comum pódem não ser muito mais do que o esforço de virar de um lado para outro num sono especialmente pesado e incômodo. Aquele período nas monta­nhas com aquele bando de soldados jovens é como se eu me lembrasse de todas as vezes que respirei. A lembrança da­queles tempos é como a sensação que se tem quando os olhos de um amigo pousam com uma curiosidade carinhosa em nosso rosto, que se abre num sorriso devido ao calor que os dois geram...

O bando continha entre 12 e 30 membros. Um homem ou uma moça às vezes entrava no acampamento, em silêncio, com um aperto de mão, um sorriso, tirava das costas a mochila e a carabina e se tornava um dos nossos. Ou então alguém partia calado para levar uma mensagem ou para fazer uma exploração, ou para voltar a alguma aldeia natal para buscar alimentos ou provisões. Ficamos naquela encosta de montanha, do lado de fora das cavernas, não mais que dois dias. Eu tinha de ser levado ao Quartel-General dos Guerrilheiros, para trans­mitir mensagens e apanhar as mensagens e notícias deles para levar de volta ao norte da África. Tínhamos de nos movimen­tar com cuidado, pois as montanhas estavam formigando não só de Chetniques, como também de aldeões comuns, que tinham fugido de suas casas para levar uma vida de foragidos, até que as neves do inverno os obrigassem a descer de novo, para enfrentar a morte ou a servidão sob os alemães ou os Chet­niques.

Ficar no alto de uma crista de montanha e olhar para baixo e em volta, para centenas de quilômetros de montanhas e vales, rios e morros: era a cena mais agreste do mundo, e nada se movia em todo aquele espaço a não ser um pássaro pendurado no ar, ou, muito longe., a fumaça erguendo-se de uma aldeia distante demais para se ver se era a fumaça de alguma pilhagem ou de uma lareira comum. Vazio. O vazio. O mundo como era antes do homem enchê-lo e conspurcá-lo. Mas, quando se ficava ali, esperando e vigiando, uma idéia diferente apoderava-se de nossa mente. Na encosta de uma montanha do outro lado de um saltitante riacho de montanha, havia o brilho de metal, que,, por mais que se olhasse e espias­se, não se repetia: o sol tinha refletido o brilho de um cano de carabina ou uma faca. As árvores a três quilômetros de distância, tintas pela primavera de amarelo e verde-crOmo e azul-cinza, tinham em si algo de indistinto que era — uma árvore de brotação nova,, um verde espalhado tão de leve sobre a estrutura dos ramos que parecia cinza? — ou seria a fumaça da fogueira de Guerrilheiros? Os binóculos traziam para den­tro dos olhos o morro do outro lado, e o borrão era mesmo fumaça, não folhagem nova, mas as pessoas sob as árvores, que tinham feito a fogueira, estavam com roupas cinza e indis­tintas, e era difícil dizer se eram aldeões, Chetniques ou Guer­rilheiros. Ou, de noite, mantendo o nosso fogo de cozinhar baixo sob um monte de terra ou uma pilha de galhos cortados, fazendo as chamas fortes e vivas, para impedir a vista da fu­maça a algum inimigo numa encosta próxima, uma língua rubra se dissolvia de novo no escuro em frente e sabíamos que a um quilômetro mais ou menos de distância, outro fogo fugira à proteção da terra empilhada, ou dos galhos ou mato, e fora apanhado e novamente dominado — mas por quem, amigo ou inimigo? Um de nós então, com um sorriso e um gesto de cabeça, ou a severa dedicação dos muito jovens, cuja noção do dever proíbe os sorrisos e a leveza, saía de nosso círculo de luz da fogueira e ia para o meio das árvores, reapa­recendo uma hora, ou cinco horas depois dizendo; «Gente da aldeia» ou «croatas». Ou então, com ele (ou ela) das árvores viria um grupo de soldados com a Estrela Vermelha, cumprimentado-nos com o aperto de mão que era a promessa da vida que todos iríamos viver depois da guerra, quando acabasse a luta.

Aquelas vastas montanhas, em que nos movíamos como os primeiros habitantes da Terra, descobrindo as riquezas em cada clareira da floresta, flores, frutas, bandos de pombos, veados, córregos de água corrente e espumante cheia de peixes, essas montanhas abrigavam cem, não, mil grupos, todos movendo-se sossegadamente, sob as grandes árvores, os olhos sempre alertas para os inimigos, gente que dormia com a mão sobre a carabina, e que sabia reconhecer um amigo tanto pela sensação instantânea de companheirismo quanto pela Estrela Vermelha.

Quando terminasse essa guerra, todos sabíamos e as nossas mãos confiantes, os nossos sorrisos, a nossa dedicação prometiam isso aquela terra que era tão rica e tão bela floresceria numa harmonia amorosa que seria tanto uma recordação quanto um sonho para o futuro. Era como se cada um de nós tivesse vivido assim, um dia, em outra época, numa terra como aquela, com um ar doce e pungente e gigantescas árvores intactas, no meio de um povo que descendia de uma realeza natural, aqueles para quem a maldade e o ódio são estranhos. Estávamos todos presos e ligados por uma outra época, outro ar. Tudo que fosse mesquinho e ignóbil era fora da lei. Só nos lembrávamos da nobreza.

Se digo tudo isso e ponho o meu amor em segundo plano é porque era um amor que floresceu do tempo e do lugar. Não, claro que não estou dizendo que se eu a tivesse conhecido de um modo normal, em tempo de paz, nós não nos teríamos reconhecido. Mas o nosso amor naquelas semanas foi um aspecto da bela e elevada camaradagem do grupo, em que os indivíduos não importavam, pois o indivíduo só podia ser importante por ser uma garantia para o futuro, e em que os indivíduos iam e vinham e eram sempre os mesmos, sendo, pelo espírito de colaboração, elevados e belos, alheios à consciência da feiúra da raça Ou região ou uma religiosidade hostil. O nosso amor era levado ou contido pelo grupo, um fruto dele, e isso apesar de alguns dos camaradas não o aprovarem, achando e dizendo que uma guerra daquele tipo não era lugar para o amor. Mas essas críticas eram feitas dentro de um espírito de camara­dagem, com uma franqueza simples, sem despeito nem a ne­cessidade de magoar. Não havia nada que não pudéssemos nos dizer uns aos outros. Não havia crítica que não pudéssemos fazer e que, meditada e aceita ou recusada, não se tornasse um desenvolvimento consciente que isso era suposto por todos nós era a nossa maior contribuição para aquela guer­ra que era uma guerra não apenas contra o mal em nossa própria nação (enquanto eu estive com eles, eu sentia com eles, eu me sentia iugoslavo): os colaboradores, Chetniques, os ricos egoístas, mas também contra todo o mal do mundo. Na­quelas altas montanhas nós lutávamos contra o Mal, e tínhamos certeza de vencer, pois as estrelas em seus rumos estavam do nosso lado. Essa vitória viria afinal quando os pobres e hu­mildes herdassem a Terra e o leão se deitasse com o cordeiro e uma harmonia amorosa predominasse sobre a Terra. Sabía­mos de tudo isso porque era como se nos lembrássemos disso, E além disso, não vivíamos assim agora, amando-nos uns aos outros e a todo o mundo? De carabina na mão, granadas nos bolsos, explosivos nas mochilas, movendo-nos furtivamente como gatunos entre as árvores altaneiras daquelas florestas majestosas, sabíamos que éramos garantia do futuro e estávamos destituídos de qualquer importância pessoal, pois como indivíduos não podíamos ter importância, e, além disso, já estávamos praticamente mortos. Dos homens e mulheres cOm quem convivi e lutei, durante aqueles meses, muitos foram mortos, a maioria como sabiam que seriam. Não importava. O que se derramava, não se podia perder, pois afinal o amor viera a nascer no homem,, o comunismo e a sua Estrela Ver­melha da esperança brilhavam para todos os pobres que tra­balhavam, para todos os sofredores por toda parte, para que a vissem e seguissem. Com aquele Amor geral, eu e a moça Guerrilheira nos amamos. Quase nem falávamos disso, rara­mente ficávamos a sós, éramos soldados, pensando os pensa­mentos de soldados. Quando ficávamos juntos e a sós, não era porque o tivéssemos planejado. Um acidente de nossa vida no grupo nos tinha feito ir procurar comida em alguma aldeia abandonada, ou então nos punham juntos em serviço de guar­da. Mas estávamos de serviço e portanto tínhamos de ser res­ponsáveis. Não me lembro da primeira vez que a beijei, mas lembro-me de que brincávamos, rindo de termos levado tanto tempo para nos beijar. Dormimos juntos uma vez, no frenesi de tristeza depois que me disseram que dentro de uma se­mana minha missão estaria concluída e assim terminava para mim a Iugoslávia — e Konstantina,

Isso foi depois de me terem levado ao quartel-general de Tito, e de eu ter dado e recebido as informações de ter feito o que fora fazer ali. Surgiu então o problema de como eu po­deria sair dali. Não podia ser de avião. Já era bastante peri­goso lançar os pára-quedistas, mas naquela fase era impossí­vel as aeronaves pousarem. Eu tinha de chegar até o litoral. Assim o fiz e de lá fui levado num barquinho por um pescador até uma ilha, onde me encontrei com outros que tinham estado em missões na Grécia e na Iugoslávia. E como voltamos de lá para o norte da África já é outra história.

As semanas antes de eu estabelecer contato com o guia que me levaria até a costa foram cheias de lutas perigosas. O nosso grupo fez explodir uma estrada de ferro, destruiu umas pontes, lutou em duas batalhas sangrentas com grupos de Chetniques muito mais numerosos do que os nossos. Depois desses combates, ficamos enfraquecidos e desfalcados. Alguns ficaram feridos. Vido, o líder, morreu, e Milos, ex-colega de Konstantina, tornou-se o líder do grupo. Ela passou a ser a segunda em comando depois dele e passou a ficar mais ocupada ainda do que antes. Havia muito mais a fazer, e muito menos gente para fazer tudo. Mas sempre chegava gente nova. Lembro-me de uma noite em que estávamos na encosta de uma montanha sobre uma aldeia que sabíamos estar ocupada por tropas ale­mãs e croatas. Era uma aldeia em que Milos tinha amigos ou melhor, tinha tido amigos. Ele estava dizendo que no dia seguinte poderia esgueirar-se até lá, com uma das moças, e ir até a aldeia, disfarçado. O problema era arranjar uma roupa comum de camponês, e um lenço de cabeça. Vera, uma das moças, tinha uma roupa dessas, mas a perdera nos últimos conflitos. Enquanto estávamos ali sentados, aquela noite, falan­do em cochichos, amontoados, com muita fome e frio, pois não ousávamos acender uma fogueira, vimos duas pessoas saírem do mato e se aproximarem. As carabinas foram imediatamente erguidas, mas MilOs gritou um nãoe justo a tempo. Dois rapazes adiantaram-se correndo pela grama, sorrindo. Milos abraçou-os. Eram da aldeia, tinham sabido de nossa presença nas montanhas, e tinham ido juntar-se a nós. Eram irmãos, de 16 e 17 anos. Nenhum jaimais segurara numa carabina. Ti­nham levado consigo dois velhos revólveres da guerra de 1914. Também um pouco de pão e salsichas ainda mais bem-vindos do que as armas. Naquela noite começamos a treiná-los na arte da guerrilha e dentro de duas semanas aqueles dois garotos eram tão hábeis e tinham tantos recursos quanto qualquer de nós. Se as recordações dos tempos de guerra são assustadora­mente valiosas, o motivo principal é que nesse tempo tornamos a aprender aquilo que em tempo de paz nunca deveríamos es­quecer: o fato de que «qualquer cozinheiro pode aprender a governar o Estado». Em tempos de guerra, todo funcionariozinho, toda dona-de-casa limitada aprende aquilo de que ele ou ela é capaz. Em tempo de paz aqueles dois estudantes teriam se tornado o que a mesquinhez da vida da aldeia lhes permitiria tornar-se. Na Inglaterra, meninos daquela idade, ou certamen­te os da classe média, são crianças mimadas. Na guerra, no nosso grupo de guerrilha, eles eram rastreadores, atiradores exímios, espiões brilhantes, ladrões e larápios, capazes de fa­zerem marchas de 24 horas seguidas e continuarem animados e alertas, capazes de encontrar framboesas, cogumelos, raízes comestíveis, de rastejar um veado ou faisão e os matar silen­ciosamente, sem desperdiçar a preciosa munição. O que pode­ria acontecer-lhes na vida depois da guerra a eles e aos milhões Como eles, nos países em que funcionavam as guerrilhas e os movimentos clandestinos — que se comparasse ao que eles receberam na guerra? Isto é, a não ser que fossem para a prisão (onde muitos ainda continuam) e aprendessem um tipo diferente de resistência especializada. No espaço de menos de mês, em que estive com os dois garotos, eu tornara a aprender o que já compreendera no meu primeiro dia com os Guerrilheiros: que qualquer ser humano, em qualquer lugar, pode florescer e ter cem dotes e capacidades inesperadas, se ao menos tiver a oportunidade de utilizá-los. Ambos os garotos sobreviveram à guerra. Ambos ocupam altos cargos no go­verno do seu país. Sua educação foi feita com as guerrilhas nas montanhas e nas florestas.

Não foram os únicos a chegarem em segredo das aldeias. Com esse tipo de recrutamento, o nosso grupo novamente atin­giu quase a casa dos 30, e cada vez parecia estar mais jovem. Os «velhos» pilheriavam com «as crianças». Milos era «o velho». Tinha 24 anos.

Embora fosse verão, sempre nos faltavam alimentos, e os nossos suprimentos médicos estavam reduzidos. Konstantina via-se reduzida a algumas ataduras e ungüento. Ficou resolvido que ela e eu iríamos a uma aldeia onde morava uma tia dela, para tentar conseguir suprimentos. O plano era chegarmos à orla de um campo acima da aldeia, onde as mulheres deviam estar trabalhando nos campos de milho. Konstantina conhecia bem a aldeia, e os costumes do povo. Sabia que tinham sim­patia por nós, e que odiavam os croatas que ocupavam o ter­ritório. As mulheres trariam uma saia, uma blusa e um lenço e Konstantina vestiria, juntando-se às mulheres no trabalho; depois voltaria com elas para a aldeia ao meio-dia e iria para a casa da tia. Lá pediria à tia para arranjar ataduras, desinfetantes, remédios e alimentos. Só havia um ponto perigoso, em nossas previsões: era que nessa época do ano muitas vezes as mulheres não voltavam para casa para almoçar ao meio- dia, levando o almoço para o campo, onde comiam enquanto trabalhavam. Mas uma delas podia ir até a aldeia e chamar a tia de Konstantina para que fosse encontrar-nos da floresta. Ou, se tudo isso fosse muito perigoso, se as tropas de ocupação fossem muito vigilantes, então teríamos de ficar na orla do campo sobre a cidade e uma das mulheres levaria o recado para a tia, sendo os suprimentos levados até onde estivéssemos.

Mas tudo foi muito simples. Deixamos os nossos amigos cedo, antes do nascer do sol, e chegamos à aldeia no meio da manhã. Rastejamos de bruços até a orla do campo. Os campos abertos eram guardados. Mas, aparentemente, a cena era pacata e agradável. As mulheres estavam cavando no meio dos pés de milho altos, conversando e rindo. Konstantina chamou uma das mulheres, que levantou os olhos, assustada, e então mos­trou a lição que aprendera com a guerra compreendeu logo a situação, fez um único gesto, mostrando que «compreendo, fiquem quietos», e foi se aproximando de nós devagar, en­quanto continuava a conversa com outra mulher, a dez metros de distância. Quando ela nos alcançou, ela e Konstantina con­versaram em voz baixa, uma do campo, a outra do mato cer­rado que o cercava. Os lábios da mulher quase não se moviam. Nisso e na rapidez e cuidado dela vimos perfeitamente o es­tado daquela aldeia sob as tropas de ocupação. Ela disse que junto com as mulheres no campo estava a mulher de um ho­mem que se sabia ser simpatizante dos alemães. Era preciso inventar um plano para se livrarem dela. Mas a sorte nbs protegia. Depois de ficarmos escondidos, deitados entre as moitas por não mais de uma hora, espiando as mulheres ani­madas trabalhando, essa mulher perigosa, por sua livre e es­pontânea vontade, foi para casa. Disse que tinha de assar um pão. Depois disso, tudo correu depressa. Uma das mulheres deu uma fugida até em casa e buscou uma trouxa de roupas, que foi jogada ao mato onde estávamos. Em alguns minutos Konstantina se transformara de soldado em mocinha. Ela saiu do meio das árvores de saia rodada azul e uma blusa branca e lenço branco e juntou-se às mulheres, curvando-se e fazendo os movimentos de quem está segurando e usando uma enxada. Alguns minutos depois todas as mulheres foram juntas para a aldeia, e Konstantina no meio delas.

O campo que descia até a aldeia estava bem vazio. Os pés de milho estavam de um verde forte e viçoso. Todas as árvo­res e arbustos em volta do campo estavam na plenitude verde­jante do princípio do verão, O céu era de um azul profundo. Estava um pouco quente. Os pés de milho tinham atingido o seu pleno crescimento, mas pareciam ainda estar sofrendo o impulso da seiva para crescerem mais. Eram muito retos e as hastes rijas como a cana-de-açúcar. O pendão de cada pé tinha acabado de embranquecer. Os alqueires de plantas altas e ver­des estavam encimados por pendões trançados, brancos e es­voaçantes, mas ainda de um branco esverdeado. As espigas que se estofavam das hastes ainda não estavam cheias, e a palha macia que caía da ponta de cada espiga era fresca e nova. Nenhuma estava seca. Cada espiga tinha a sua língua de palha vermelha e brilhante, um intumescimento de um vermelho suave. Tinha chovido, naquela manhã. Das pontas das folhas arqueadas e dos fios avermelhados pendurados pingavam gotas de chuva reluzentes. A terra tinha um perfume doce e fresco. Um vapor forte se emanava do campo. Tudo naquele campo estava no auge de uma vitalidade jovem, mas madura. Mesmo uma semana depois, a curva já teria mudado, começando a cair, com as folhas arqueadas começando a amarelar, as cris­tas das plantas muito duras e brancas, o vermelho escuro dos pendões secando e se encaroçando. Era como olhar para uma onda no momento antes de ela se dobrar e arrebentar.

Na aldeia uma fumaça subiu para o azul. Não se via nin­guém. O silêncio era absoluto. No entanto a aldeia estava ocupada e sabíamos que duas semanas antes uma dúzia de pessoas tinham sido fuziladas na rua principal. Tinham man­dado suprimentos para os guerrilheiros, e por aquela aventura daquele dia outras pessoas poderiam morrer, se nós fracassássemos. Mas as coisas continuaram a correr bem.

Dali a pouco algumas das mulheres vieram da aldeia para o campo, com todo o vagar. Apanharam as enxadas onde as haviam largado. Konstantina agora tinha um enxada, e trabalhava com as outras. Eu podia jurar que ela estava trabalhando por puro prazer, recordando os tempos de paz e a vida na aldeia. Ela trabalhou lentamente com a enxada até chegar à orla do campo e num minuto largou a enxada e rolou para junto de mim. Debaixo de suas saias amplas estavam pendu­rados pacotes de pão, carne, salsichas e até ovos. A tia dela passou por nós, a enxada erguendo-se e abaixando; um pacote voou dentro do mato onde estávamos escondidos e estendi o braço para pegar os preciosos suprimentos médicos dos galhos, como se fosse uma fruta. A essa altura Konstantina já tirara os trajes de camponesa e já era novamente soldado. Ela atirou a trouxa de roupas para dentro do campo e depois de um breve adeus, adeus entre ela e a mulher que trabalhava com a en­xada a menos de dois metros de distância, nós partimos dali. A incursão fora um sucesso. Não houve conseqüências para Os aldeões. E antes de chegar o inverno, os nossos expulsaram os inimigos e a aldeia voltou a ser o que era.

Nós repartimos os suprimentos com cuidado. Agora estávamos muito carregados e era difícil pisar de leve, o que éra­mos obrigados a fazer. Tínhamos de percorrer cerca de 15 quilômetros antes de nos encontrarmos com o nosso grupo, que sabíamos estar se encaminhando para um pico que víamos bem na nossa frente. Mas entre nós e esse pico havia montanhas mais baixas, rios e vales. Não eram 15 quilômetros fáceis.

Depois de termos percorrido cerca de metade do caminho, paramos no flanco da montanha, que ficava na frente daquela para onde nos dirigíamos. Já era o meio da tarde. O sol estava em nossa frente e brilhava nos nossos olhos. O céu continuava sem nuvens, e era tudo um brilho ofuscante de luz do céu, folhas,, capim e pedras. Resolvemos repousar uns minutos. Não que estivéssemos dispostos a relaxar a nossa vigilância, ou a nos descuidarmos. Mas tínhamos terminado a nossa tarefa e acreditávamos que não tivéssemos posto em perigo os nossos aliados na aldeia. Ficamos sentados de costas para uma pedra grande, de mãos dadas, como crianças. Diante de nós havia uma vereda que ia dar no meio de árvores muito grandes e velhas na encosta do morro. Num dos lados da vereda havia umas pedras, onde a luz amarela estava pontilhada. Uma arvorezinha no fim da vereda era uma nuvem de flores rosadas, onde se apinhavam as borboletas. Estava tudo muito quieto.

Nessa cena de uma paz perfeita e silvestre apareceu um veado. Ou melhor, a questão era perceber que o veado estivera ali, havia algum tempo, olhando para nós. Estava a uns 20 metros de distância, perto do monte de pedras. A luz estava pontilhada sobre as pedras, as plantas e o veado, por isso não o tínhamos visto antes. Foi difícil, então, entender por que não o havíamos visto. Era uma coisa bonita, um bicho dourado, com seu pêlo quente, rico e ensolarado, e seus chifrezinhos aguçados, apontados para a frente, pretos e reluzentes. Nós nos levantamos. Eu estava pensando que, se com tanta facili­dade nós não tínhamos visto um veado que estava tão próxi­mo, podíamos também ter deixado de ver um inimigo. Prova­velmente ela estava pensando a mesma coisa. Eu fiquei pen­sando um instante se devia matar o animal e levá-lo conosco para o acampamento. Mas era sempre um perigo atirar. Não sabíamos quem mais estaria naquela encosta de montanha — talvez nos vigiando, assim como fizera o veado, antes de o vermos. E estávamos muito carregados. A idéia de atirar nele passou. Fiquei contente por poupá-lo. Pois era tão bonito, ali, a cabeça levemente abaixada, olhando-nos de lado. Era um veado pequeno, não muito mais alto do que a cintura de Konstantina. De repente, senti-me incrivelmente feliz. O apareci­mento daquele animal lindo pareceu-me um coroamento da­quele dia bem-sucedido. Olhei para Konstantina, para parti­lhar o prazer, mas ela não estava sorrindo. Estava séria, se­vera. Havia em sua testa uma pequena ruga, que eu conhecia bem; aparecia quando ela estava intrigada, na dúvida. Ela es­tava olhando para aquele veado com um ar de dúvida. O animal estava muito mais próximo. Lembro-me que pensei que talvez nos tivéssemos aproximado dele sem saber, assim como nós tínhamos levantado mecanicamente depois que o vimos, aler­tados por ele, como se ele fosse de fato um inimigo. Pensei que os movimentos elegantes, saltitantes do veado eram muito ligeiros e delicados para ele ter avançado tão depressa. E ai o veado estava muito próximo. Estava fazendo sempre o mes­mo movimento, um movimento leve, sacudido e semicircular, com os chifres, e achei que tinha de observar esse movimento, pois era tão gracioso. E então, quando me passou pela cabeça a idéia de que aquele animalzinho bonito poderia ser perigoso, Konstantina fez um barulho agudo, de aviso, e postou-se na minha frente, no momento em que o animal dava um salto para a frente, dando o bote com seus chifres pretos e aguçados.

Não aconteceu nada. O veado ficou ali de pé, o sangue pingando de seus chifres, agora abaixados, bem defronte de Konstantina, que estava de pé entre mim e ele. Ela, então, começou a deslizar para baixo. Parecia que tinha resolvido dei­xar afrouxar os joelhos. Eu a sustentei, minhas mãos sob suas axilas.

Eu disse:

— Konstantina — assombrado, ou até advertindo-a. Eu ainda não tinha compreendido que aquela criatura linda a tinha ferido.

O peso dela arrastou-a ao solo da floresta e virei seu rosto para cima. Vi que seus olhos estavam fechados e que o sangue pingava de seu estômago. Ela estava de um branco esverdeado.

Então compreendi. Seguiram-se minutos de uma incompetência impotente e angustiada. Num pacote que estava a meio metro dela havia suprimentos médicos, mas não havia nada que pudesse estancar uma ferida daquelas. Mais tarde compreendi que não importava, que não seria possível salvá-la. Puxei o casaco dela para cima, abaixei suas calças de soldado, expus seu estômago. O chifre do veado, aguçado comb um esti­lete de cirurgião, tinha-lhe cortado as entranhas. Não pensei que ela tomasse a abrir os olhos. Acreditei que ela morreria logo, pois o pulso quase desaparecera e o rosto mirrara com a morte. Procurei a minha cápsula de veneno, pois não queria que ela sentisse a dor daquele ferimento atroz, mas antes de encontrá-la, ela abriu os olhos, sorriu, tomou a fechá-los e morreu.

Eu a deitei no chão da floresta. Vi que 'o veado tinha re­cuado um pouco; estava junto das pedras, onde eu o avistara. Tornei a pensar se devia matá-lo, e dessa vez sabia que se o fizesse, seria por vingança. Não me ocorreu que ele ainda pu­desse ser perigoso. Ele matara Konstantina porque ela se postara na minha frente para salvar-me daqueles chifres cor­tantes. Ele ainda poderia aproximar-se e matar-me. Mas nem pensei nisso. Esqueci do veado.

Eu sabia que tinha de sepultar Konstantina. Não tinha nada com que cavar uma cova, Mas a essa altura eu já aju­dara em muitos enterros na floresta. Ajoelhei-me e comecei apanhar as folhas com as mãos. A luz estava muito forte, ama­rela e brilhante. Lançava uma pátina amarela sobre o rosto de Konstantina.

Continuei a cavar. Era muito fácil. O humo das folhas era obra de muitos outonos. O solo rico, esfacelado, de cheiro doce que era a carne das folhas da floresta erguia-se em grandes punhados. Trabalhei com afinco e método, procurando fazer aquilo depressa e bem feito. Pois sabia que se eu e Konstantina não aparecêssemos às dez horas naquela noite, o nosso pessoal mandaria grupos para procurar-nos. Sabiam que andaríamos mais devagar e que estaríamos mais vulnerá­veis do que de costume — e o que carregávamos era precioso.

Dali a pouco seria noite... e então já era noite. Eu já cavara um buraco no humo de folhas de um metro e meio de fundo por um metro de largura. Eu a fiz deslizar para dentro da cova, de modo a ficar deitada reta nela, deitei-me de bruços na borda da cova e cobri seu rosto com folhas verdes e frescas. Pus suas mãos no peito. Tornei a jogar o humo de folhas sobre ela. Estava suando e chorando o tempo todo, mas em silêncio; mais tarde descobri que tinha mordido os lábios até sangrar. Dali a pouco o lugar em que ela estava deitada na floresta só aparecia por uma aspereza na superfície das folhas do outro passado. Então não pude marcar sua sepul­tura. Ao lado dela, escolhi três árvores cujas linhas se entre­cruzavam ali. Cortei grandes lascas de casca das árvores, e depois esfreguei terra nas feridas brancas, para que um ini­migo não pudesse notá-las.

Quando terminou a guerra, tomei um avião para Belgra­do, um trem para a aldeia que tínhamos visitado naquele dia, e caminhei com um amigo para as montanhas. O amigo era então um funcionário do governo, e tinha sido membro de nosso grupo — mas depois que eu parti. Nós nos conhecemos em Londres. Juntos encontramos aquele lugar nas montanhas, por meio das feridas já velhas nas três árvores, pusemos ali uma lápide simples, com a seguinte inscrição:

Konstantina Ilibar

Guerrilheira

Ela deu sua Vida pela Humanidade

É, claro, por mim.

Quando consegui sepultá-la, o sol poente estava bem sobre o pico que eu tinha de alcançar antes do nascer da lua. A ve­reda agora estava inundada com a luz amarela da noite. E, quando apanhava os pacotes e embrulhos de cómida e re­médios, procurando tornar os fardos de duas pessoas algo pos­sível de ser carregado por uma, percebi que durante todo aquele tempo, duas ou três horas, ou mais até, o veado ficara ali, a uns 20 passos, no meio das pedras. Acho que foi o ba­rulho das patas dele batendo na pedra que me fez levantar os olhos. Ele continuava a olhar para mim, e a cabeça dele começou novamente a fazer delicados movimentos laterais, quando me aproximei um pouco para passar por ele. Em um dos chifres havia uma mancha — o sangue de Konstantina, que bem poderia ter sido o meu. Fiquei parado, olhando para o animal. Não compreendia. Não podia compreender por que é que, tendo atacado e matado, ele não fugia, simplesmente. Não entendia como podia ficar ali, vigiando-me em meu tra­balho de cavar o solo da floresta e depois enterrar Konstan­tina, sem se aproximar ou se fazer notar de todo. A essa altura eu estava naquele estado de alheamento e devaneio que se segue a um excesso de emoção. Aquele bichinho reluzente ali de pé, com seus belos chifres abaixados, aparentemente espe­rando, sem motivo algum, só acentuava a ausência de foco da cena.

Postei-me diante do animal e fiquei olhando para ele. Es­tava a uns 15 passos dele. Dessa vez, vi que era uma fêmea. E que tinha um aspecto de frouxidão, meio cambaleante — exaustão. Percebi que tinha parido havia pouco. Depois vi o corcinho.

Acriaturinha estava deitada junto às pedras, de frente para o sol poente. Seu pêlo, com um brilho suave, era cheio de saúde. Por cima dele, como que montando guarda, havia uma planta alta, de folhas claras e brilhantes, que se armava em leque e se espalhava em volta do veadinho, de modo que ele estava como que debaixo de um repuxo. O bichinho era perfeito, um triunfo, espetacular, como se aquelas vastas mon­tanhas e florestas tivessem eleito aquele animalzinho na ve­reda ensolarada para representá-las, a cena estava impregnada de significado e beleza.

Vi que em seu couro havia alguns fios secos do líquido da parição, e em sua barriga leitosa estava o gordo cordão umbilical, vermelho, fresco e reluzente. Três ou quatro dias depois o cordão secaria e desapareceria e o couro do corço estaria lambido e limpo, e ele, como uma criança humana ou como os pés de milho que eu vira naquela manhã, no auge da promessa e perfeição. Mas presenciar um nascimento é ser admitido à oficina da natureza, e ali a vida e a morte trabalham juntas. Aquele cordão, o pêlo ainda não lambido impe­diam que a criaturinha fosse patética e a restituíam à sua verdadeira vulnerabilidade, à sua fraqueza terrível. No entanto, seus olhos me olhavam quietos, sem receio. Pois entre mim e ele estava a mãe. Creio que o corço ainda não se pusera de pé. Provavelmente os dois soldados, entrando na vereda, ti­nham interrompido a cena do nascimento, de algum modo ha­viam perturbado a mãe e o bebê no ritual que tinham a cumprir, tinham desequilibrado as coisas. E lá estava a corça, e só agora vi que ela estava ali trêmula, pois suas pernas tra­seiras tremiam de fraqueza, plantadas no capim macio.

Caminhei a uma distância cautelosa da mãe e da cria, os olhos fixos no animal exausto que se mexia lentamente para manter os chifres abaixados apontados para mim. Atrás dela, o corço estava deitado, à luz brilhante, sob a planta, que provavelmente era um pé de erva-doce ou de endro.

Eu só podia movimentar-me devagar. Estava carregando quase 90 quilos de alimentos e medicamentos. Quando cheguei ao fim da vereda, olhei para trás e vi que o corço estava a ponto de tentar pôr-se de pé em suas pernas compridas, esguias e frágeis, como hastes. A corça continuava a olhar para mim. E assim saí da vereda com sua nova cova, onde a mãe-corça me apontava um chifre manchado de sangue e o veadinho se punha de pé sob o seu repuxo verde e reluzente.

Prezado Dr. Y,

Não. Tenho absoluta certeza de que Charles Watkins nunca esteve na Iugoslávia. Não posso explicar a insistência dele em dizer que esteve lá durante a guerra. Quando voltei da guerra, estava bastante mal. Era isso que eu e Charles tínhamos em comum. Passamos alguns meses juntos numa casinha que eu tinha em Cornwall. Nós dois falamos muito sobre as nossas experiências e isso provavelmente curou-nos a ambos. Mesmo depois de todo este tempo, eu poderia fazer-lhe um relato bas­tante detalhado da guerra de Charles, que para mim é quase tão vívida quanto a «minha» guerra. Acho que as recordações de minhas duas descidas à Iugoslávia são as mais nítidas de minha vida. Se me esquecesse daqueles meses, estaria esque­cendo fatos e pessoas que basicamente mais contribuíram para a minha formação do que quaisquer outras. Acho que posso ser considerado um felizardo. Sei que Charles acha — ou achava que eu era sortudo. A «minha» guerra foi bem dife­rente da dele. Não fosso dizer que eu tenha gostado da «minha» guerra, mas certamente era como estar num sonho muito colo­rido, enquanto receio que a guerra de Charles deva ter sido como um pesadelo comprido e monótono. Ele suportou bem mais do que sua quota de dureza repetida e monótona, se puder concordar que o perigo pode ser maçante.

Se posso acrescentar uma nota pessoal, que provavel­mente vai além do que o senhor me pede, direi que acho o momento atual assustador porque mais uma vez grandes quan­tidades de jovens, sejam a favor ou contra a guerra, aceitando ou não a convocação, não sabem que a pior coisa; da guerra é que ela pode ser tão maçante. Eu nunca poderia acreditar que um espaço de tempo tão curto — 25 anos — poderia tornar possível novamente que a guerra fosse encarada como uma coisa interessante. O caso é que a «minha» guerra foi isso, sabe, pelo menos durante algum tempo. Enquanto que Charles dizia que a sorte da guerra «dele» era o máximo de trabalho duro e rotineiro, o máximo de desconforto físico, o máximo do tédio e doses bastante constantes de perigo e morte. Isso não se aplica necessariamente a todos os homens que tiveram aquele destino determinado — Dunquerque, Norte da Africa, Itália, Segunda Frente. Alguns tiveram extensos períodos de alívio e até mesmo de prazer. Mas a sorte de Charles foi dife­rente. Aliás, chegávamos a pilheriar sobre isso, ao rememorar os fatos da carreira dele, pois ele sempre parecia perder as possibilidades de uma licença, ou uma transferência para algum lugar mais suave. Nós dizíamos que ele tinha lutado uma guerra moderna durante cinco anos — quero dizer, moderna para aquele tempo, ele lutava na Segunda Guerra Mundial — mas que eu regredira a um estilo de guerra muito mais primitivo. Naturalmente, essa é uma generalização bastante pouco satis­fatória quando se pensa na contribuição que as guerrilhas apresentaram para vencermos a guerra.

Se Charles pensa que morri, será que poderia ajudar se ele me visse?

Cordialmente,

MILES BOVEY

Prezado Dr. X,

Terei muito prazer em visitar Charles a qualquer mo­mento, s9 isso lhe fizer bem. Mas não quero levar James e Philip para ver o pai. Não creio que se deva impor isso a eles. Devo dizer que me surpreende que o senhor sugira isso. Sei que Charles está doente, mas as outras pessoas da família são tão importantes quanto ele. Claro que não tem importância eu achar doloroso ver Charles no estado em que se encontra, mas os meninos estão com 14 e 15 anos e nessa idade merecem ser poupados dessas coisas. Portanto, acho que vou recusar-me a levá-los.

Cordialmente, FELICITY WATKINS

Prezado Dr. Y,

Claro que estou disposta a receber o meu marido em casa a qualquer momento. Será muito doloroso para nós todos, mas eu daria tudo para ajudá-lo a ficar bom, se o senhor acha que isso adianta. Estou certa de que, depois que ele estiver em casa, com a família e suas coisas cercando-o, ele se lembrará de quem é.

Cordialmente, FELICITY WATKINS

Eram dez horas da manhã. Num grande salão no andar térreo, que dava para uns canteiros regulares, no momento revolvidos e deixados livres para suportar as primeiras gea­das, e umas duas faias com seu colorido do fim de ano e algu­mas roseiras de floração atrasada, estavam sentadas, ou à vontade, umas 40 ou 50 pessoas. Ninguém olhava pelas janelas. Eram pessoas de todas as idades, tamanhos, tipo e de ambos os sexos. Mas predominavam as de meia-idade e especialmente as mulheres de meia-idade. Algumas assistiam à televisão, ou melhor, já que o programa ainda não começara, olhavam para a imagem-teste, de água correndo sobre pedras, sob as árvo­res da primavera em flor. Algumas faziam tricô. Outras conversavam. Seria fácil pensar que se tinha entrado no saguão de um hotel de segunda categoria, ou provinciano, não fosse o odor característico dos remédios.

Havia mesas, bem como poltronas, espalhadas pelo salão, e a uma mesa bem no centro, onde estava espalhada uma paciência muito complicada, estava uma mocinha, sozinha. Era morena, de tipo mediterrâneo. Tinha cabelos escuros e lisos, grandes olhos negros, pele azeitonada. Era esguia mas com curvas, porém não excessivas, adaptando-se assim tanto às atuais idéias de beleza nas mulheres quanto à moda do momento. Estava com um vestido de seda preta, que delineava bem seu busto e quadris. As mangas eram compridas e justas. O decote era fechado. O vestido tinha punhos brancos de linho e uma gola branca redonda. Estes estavam ligeiramente sujos. Esse vestido seria próprio para uma governanta, uma secretá­ria perfeita ou uma moça vitoriana que fosse passar a manhã com os contadores, se não terminasse dez centímetros abaixo do topo das coxas. Em outras palavras, era uma minissaia especialmente exagerada. Seria difícil imaginar um tipo de vestido mais espantoso como minissaia. O contraste entre a sua severidade, seu formalismo e as pernas compridas e des­pidas era especialmente chocante: escandalizava. As pernas da pequena não estavam nuas. Ela estava com uma meia-calça muito fina, cinza claro. Mas não estava de calcinhas. Estava sentada de pernas esparramadas de uma maneira que sugeria que ela se esquecera delas, ou que já era muito trabalho con­trolar a metade superior de seu corpo e não podia se preocupar Com as pernas e o sexo. Suas partes íntimas estavam à mostra como uma mancha escura e peluda e essa exibição dava a ela um aspecto ingênuo, tocante e atraente.

Havia duas enfermeiras sentadas entre as pacientes. Ambas eram mulheres pobres, mal pagas, das classes trabalhadoras, e só estavam ali porque os maridos não ganhavam o suficiente para manter uma família de acordo com os padrões que a televisão promete à nação ser o seu direito. Aquelas mulheres olhavam mais vezes para a mocinha do que para qualquer outro paciente. Olhavam com um ressentimento que nem um salário dez vezes maior do que o que ganhavam bastaria para aliviar.

Ambas tinham filhas adolescentes e conheciam bem as brigas por causa de rnaquilagem e vestidos. Uma das mulheres gostava de ver a filha com vestidos muito curtos e muita maquilagem, e a outra não, mas essa divergência entre elas desa­parecera sob a pressão de uma inquietude mais profunda. Esta devia-se às discussões violentas que as duas tinham com aquela moça, Violet, cujas minissaias eram ainda mais curtas do que pedia a moda, e que ambas achavam revoltantes, mesmo sem se considerar o fato de que ela se recusava a usar calcinhas. E as acusações que a moça fazia a elas, às enfermeiras (vultos de mãe-e-autoridade, como ambas tinham sido bem treinadas para compreender) que elas eram antiquadas, detestavam as moças, detestavam o sexo, eram velhas, e assim por diante, e eram exatamente as mesmas, palavra por palavra, que as usadas pelas filhas em suas discussões com elas. O fato de Violet ser maluca e de usar os argumentos de suas próprias filhas para não usar calcinhas, tendo sempre um aspecto pro­vocador e sendo fonte de perturbação para os pacientes homens já desequilibrados, era uma insubordinação contra o quadro da moral comum. Naturalmente, o quadro de uma das enfer­meiras era muito mais liberal a que deixava de bom grado a filha usar minissaia e maquilar os olhos com cílios postiços e montes de pintura do que o da outra; mas ambas eram obrigadas a reconhecer várias vezes por dia que esses pontos de vista, um liberal e outro antiquado, pontos de vista de que ambas as mulheres se orgulhavam, tornavam-se sem impor­tância e mesmo ridículos diante da Srta. Violet sentada ali de pernas abertas, mostrando tudo o que tinha. E por princípio. Em nome da liberdade, os direitos da juventude e o progresso da mulher. Ambas as mulheres tinham confessado a si mesmas, uma à outra e aos médicos que, de todos os pacientes a seu cargo, era diante de Violet que elas tinham mais dificuldade de se controlar. Estavam dispostas a dizer que a detestavam, atitude que alguns dos médicos deploravam por demonstrar falta de percepção e controle, e outros aprovavam, por demonstrar uma honestidade e franqueza libertadoras liber­tadoras para a paciente, bem como para elas. Ambas sabiam perfeitamente que a atitude de Violet, sentada ali, vestida num arremedo de roupa de governanta, com o sexo de fora, era um desafio à sanidade delas. Além disso, ela não se lavava como devia (sinal muito conhecido de sua doença) e cheirava mal, além do cheiro doentio das drogas.

Ela também era linda, de um modo exótico e nada bri­tânico.

Ficava sentada sozinha, pois sabia que sempre estivera só. Jogava paciência pbrque é um jogo de cartas que se joga sozinho. Em volta dela, se ao menos as pessoas tivessem olhos para ver, havia um espaço em que faiscavam e saltavam as chamas do ódio, um fogo perverso. Ela estava isolada por essa aura de ódio, que só ela conhecia. Sabia que as duas mulheres de meia-idade a vigiavam mais do que abs outros mas não as via como eram, pobres mulheres fazendo um trabalho desagradável porque não tinham capacidade para trabalhos mais bem pagos. Ela as via como tendo três vezes o tamanho que tinham, arbitrariamente poderosas, perigosas, assustadoras. Ella as detestava de todo o coração porque eram de meia-idade, mal vestidas, cansadas, suburbanas, pobres e porque naqusla manhã, como nessa semana toda, elas lhe haviam dito que ela tinha de vestir calcinhas, além da meia-calça, e que ela estava nojenta, e que elas já tinham bastante trabalho para fazer com que os homens não ficassem excitados por causa dela, e que ela era egoísta, anti-social e desobediente.

Quando ela olhava para as enfermeiras, ficava tomada de pavor de uma pessoa jovem, de estar olhando para o seu próprio futuro, pois acontece que sua vida lhe ensinara muito cedo que é muito fácil, e comum mesmo a pessoa ser jovem, bonita e alegre e logo depois passar à meia-idade, com o cansaço e o abandono.

Em alguns dos primeiros quadros de Goya, não os que descrevem a guerra ou a loucura, mas os quadros alegres e vistosos, há algo que perturba, mas não se sabe o que seja. Não a princípio, é porque em todo grupo daquelas pessoas, encantador, o formal, o pastoral, o essencialmente civilizado, há sempre uma que olha diretamente para fora do grupo, para fora da tela, para os olhos da pessoa que contempla o quadro. Essa pessoa que se recusa a conformar-se com as convenções do quadro em que o artista a colocou, interpela e de fato destrói a convenção. É como se o artista dissesse consigo mesmo: «Imagino que eu tenha de pintar esse tipo de quadro, esperam isso de mim — “hei de mostrar-lhes», E, se você ficar ali olhando para dentro, todo o resto do quadro desaparece, os encantadores com seus sorrisos e babados, os heróis, a civilização, tudo isso se dissolve devido àquele olhar prolongado e direto daquele que olha para fora da tela e diz, calado, que ele ou ela sabe que é tudo um monte de asneiras. Ele está ali para dizer-lhe que é isso.

Os olhos de Violet Stoke tinham o mesmo efeito, o de negar o resto de seu aspecto — e talvez dizer a mesma coisa.

Como se não bastasse, como desafio, o contraste chocante entre o seu vestido preto comportado e a nudez inferior, os cabelos lisos de dançarina e o tufínho úmido e triste de baixo, a posição social da «jogadora de cartas» e o isolamento espalhado em volta dela por seu medo e ódio, como se isso não bastasse (ao que se deve acrescentar o comentário social e talvez menos importante que constituíam o preço de seu vestido, sapatos, bolsa, e qualquer deles seria uma semana de or­denado para as pobres enfermeiras) havia ainda este outro contraste. Os olhos negros da moça olhavam diretamente para fora do quadro, e se você acompanhasse aquele olhar, e se deixasse deslizar para dentro, para dentro da cabeça dela, você se tornaria parte não da violência do ódio, e sim de um poço de lágrimas, e de lágrimas de menininha, ainda por cima: ah, ama-me, segura-me, perdoa-me e nunca me deixes, não me obrigues a crescer. O que ela sentia por dentro daquela fachada de contrastes perturbadores era o que uma menina muito pe­quenina sente quando é espancada Ou maltratada por um pai ou mãe poderoso e ela sabe muito bem que isso tomará a acontecer da próxima vez que o pai ou mãe estiver zangado (a) ou bêbado (a) ou assustado (a). Ela era toda vítima, traída, atormentada, vulnerável e sedenta de amor.

Ela estava sentada ali, jogando paciência de um modo que era um grito: «Por que vocês todos me fazem ficar sozinha assim?» quando na sala entrou um homem alto, bonito, de seus 50 anos. Tinha cabelos grisalhos escuros, ondeados, que tinham sido pretos, olhos azuis, um bonito sorriso.

Ao contrário dos outros que tinham entrado enquanto ela estava ali, dizendo, calada, duvido que você venha sentar comigo, e que tinham ido sentar em outro lugar, ele foi direta­mente até junto dela, sentou-se e foi logo tirando um cachim­bo do bolso e começando a enchê-lo e acendê-lo. Ele estava com um paletó esporte e um suéter azul-marinho por baixo. Parecia um homem que tinha sido atleta amador.

Ele era o Professor Charles Watkins, e ele e Violet eram amigos.

Então, sem perguntar nada a ele, ela juntou as cartas e começou a dar as cartas para uma partida de pôquer, favorito deles, o que significava que cada um jogava três mãos, com sete cartas em cada mão, e quatro cartas como coringa. Ela quase sempre ganhava essas partidas, não porque fosse mais esperta do que o professor, mas porque se interessava mais.

Ternos, quinas, setes, valetes, coringas — declarou ela, numa voz simpática de menina.

Eles jogaram. Ela ganhou.

Ela embaralhou e perguntou:

Você o viu hoje?

Sim, o Dr. X está fora.

— O que foi que ele disse?

Disse que tenho de ir para algum outro lugar. Não posso continuar aqui do jeito que estou.

Por que não pode? Ah, é demais!

Ele fica dizendo que isto é um hospital de interna­mento e que não pode mais infringir os regulamentos.

Então não os deixe mandá-lo para o North Catch- ment, aconteça o que acontecer.

Não se preocupe, não deixarei.

Ela deu as cartas.

Duques e senas e damas e coringas — disse ela.

Eles jogaram calados. Ela ganhou.

Você não tem dinheiro nenhum? — perguntou ela, uma criança petulante e voluntariosa, como se estivesse pe­dindo uma nova boneca, ou um vestido.

Dizem que o professor é cheio da nota — disse ele. — Mas isso não me ajuda muito, não é?

Eu podia arranjar um emprego e ganhar dinheiro. Já tive empregos. Mas nunca por muito tempo.

Tenho certeza de que também eu poderia fazer isso. Afinal, tenho muito jeito nas enfermarias. Poderia lavar pra­tos num restaurante ou trabalhar num bar.

Nós ganharíamos o suficiente para viver?

Podíamos tentar.

Ah, vamos. Por favor.

Sim... nós não nos obrigaríamos um ao outro. Não nos imporíamos.

— Não. Nós nos ajudaríamos, tenho certeza disso.

Eia deu as cartas. Cinco cartas.

Vamos jogar direito, do jeito clássico e calmo — disse ela.

Jogaram. Ela ganhou.

— Você não está roubando nada? — perguntou ele.

Isso significava perguntar se ela não estaria se identifi­cando mais do que era inevitável com uma ou outra mão que jogavam, pois naquela versão pessoal do pôquer que eles tinham inventado, as diversas mãos representavam aspectos deles mesmos. Poderiam saber ou não o que representavam as diversas mãos respectivas. Mas ele já sabia que quando ela dava as cartas para o jogo clássico, isso significava que ela estava se sentindo mais calma e controlando melhor suas diversas personalidades do que quando dava três mãos para cada e com tantas cartas. E assim por diante. Na manhã da vés­pera, ela o deixara ganhar a primeira partida, deixando bem claro que era porque ela sabia que ele tinha passado mal a noite.

Eu estava trapaceando? Estava com ar de quem está fazendo isso? Estava era tentando não roubar.

Bem, talvez eu também estivesse, um pouco.

Mas eu ganhei — declarou ela, com energia, — Fui eu que ganhei, não fui?

Ganhou, sim, Violet. Você ganha sempre.

É, ganho, não é?

Ela tornou a dar, três mãos para cada, cinco cartas.

Eles jogaram, ela ganhou.

Seus filhos vêm visitá-lo?

Não. Ela não quer trazê-los.

Não se importe. Oh, por favor, não se importe. Vou fazer um chá para você. Gostaria?

Gostaria de um chá, sim, mas não me importo que eles não venham. O que me importa é que eu não me importo quando eles têm tanta certeza de que eu devia importar-me. Mas quem são eles? Eu conheço você. Suponho que Você seja minha filha. Dizem que nunca tive filhas.

— Ah, quem me dera ser sua filha. Ah, queria tanto ser. Mas imagino que você seria como os outros.

Talvez fosse. Como vou saber se sou bom pai para os meus filhos? Mas isso é então. Você é agora. Sou bom para você. Sou?

Sim, mas você gosta de mim, sabe. Minhas famílias não gostam.

Sim, gosto de você, Violet. Muito.

Ela foi até a cozinhazinha usada pelos pacientes, para prepararem chá, chocolate, torradas, sanduíches. Quando voltou com duas xícaras de chá, uma paciente se sentara perto do professor bonitão e alinhado, mas, diante dos Olhares furiosos de Violet, retirou-se apressadamente.

Ouvi o Dr. X dizer que o Dr. Y o tratava especial­mente bem, injustamente até,

É, o Dr, Y também me disse isso.

E o Dr. X disse à enfermeira Black que achava pos­sível que você estivesse fingindo.

Que eu de fato me lembro das coisas?

Que você se lembra de mais coisas do que admite.

As coisas de que me lembro eles não querem, de jeito nenhum, é esse o meu problema.

O Dr. X disse que no ano passado houve um caso em que um homem continuou a fingir que não se lembrava da mulher, mas depois o Dr. X apanhou-o e ele teve de voltar para casa.

Não me lembro de minha mulher nem de minha aman­te. Sou muito atraente para as mulheres, isso está bem claro. As duas me odeiam.

Não acho muita graça nisso, se é que você acha.

Desculpe.

Eu não o detesto.

Não, mas você não é mulher.

Não. Ah, não, não sou. Ah, não, não.

Você se parece muito com a minha pequena, a que morreu na Iugoslávia.

Você nunca esteve na Iugoslávia.

Mas eu... ah, bem. Não vejo por que você há de se importar com isso.

Mas me importo. Eles sabem que você não esteve na Iugoslávia.

Assim mesmo, você se parece com ela, sim.

Talvez eu seja a primeira pessoa que pertence à sua nova memória. Quero dizer, as pessoas da enfermaria e eu e o Dr. Y e 0 Dr. X, somos o que forma a sua nova memória?

Não o Dr. X!

Ah, não sei, acho que ele não é tão ruim assim. Quero dizer, por que nós todos detestamos o Dr. X? Eles não são assim tão diferentes, são?

São. Ah, são sim.

Bom, está bem, desculpe, por favor, não se zangue.

Está bem.

Mas quando você começar a se lembrar de todas as pessoas em sua vida o que vai acontecer comigo? Quero dizer, eu estava pensando ontem que agora eu sou uma pessoa importante em sua cabeça...

Você é, é sim, eu lhe garanto, Violet.

Mas quando tudo voltar, eu serei uma entre... centenas?

Talvez não volte.

Quando voltar, você quer ser meu amigo?

Tenho certeza de que sim.

Mas ela não.

Tem certeza disso?

Sim. Eu a vi de ambas as vezes em que veio vê-lo. Fui eu que a levei até você e mostrei o caminho e tudo. Foi quando eu estava cooperando e sendo tratável,

Ela é muito bonita. Ele tem bom gosto, o professor.

Ela é o que você escolheria agora, não acha?

Eu não me importaria. Não me importaria nada, se pudesse ir embora com ela, ou se acabasse de conhecê-la.

Mas você acaba de conhecê-la.

Quando estou com ela sei que ela está me contando a verdade. Ela me detesta, sabe.

Detesta sim. Mas não é tanto a você que ela detesta. Ela detesta a vida dela.

Tem certeza disso?

Sim. Vi a cara dela. Olhei bem de perto, ambas as vezes. Eu sabia o que ela estava sentindo.

Então me conte.

Ela parece a minha mãe.

Mas talvez todas se pareçam?

Não. Porque se isso for verdade, quer dizer que você parece com meu pai, e você não parece, não e não.

Então não chore.

Nunca choro. Nunca. Ou, se choro, não sou eu que estou chorando. Posso me ver chorando — não vale nada, não é como a tristeza de verdade... ela estava chorando a valer, da última vez.

Dizem que perdi a memória porque me sinto culpado.

— E se sente?

Acho que me sinto culpado porque perdi a memória. Sinto muito profundamente que é uma irresponsabilidade a gente perder a memória.

Se acha isso, não perdeu a memória, só perdeu alguns fatos, alguns acontecimentos.

Ah, sim, eu me digo isso. Mas há outra coisa. Sim. Há algo de que tenho de me lembrar. Tenho.

Mas não se aflija, só vai piorar.

Já estou aqui há mais de dois meses, Violet.

Não deixe que o mandem para aquele lugar. Não deixe.

Mas se eu me recusar a ir dirão que vou ter de fazer o tratamento de choques.

Os dois, o homem de meia-idade e a moça bonita, viraram-se para olhar para uma pessoa, uma mulher, sentada numa cadeira ali perto, assistindo à televisão. O programa co­meçara, afinal. Depois olharam para outra pessoa, um homem de meia-idade, e depois para outra, e assim por diante, dando a volta da sala. As pessoas que eles assim isolavam com o olhar tinham feito tratamento de choques, e algumas estavam sendo submetidas a esse tratamento.

Mão havia nenhum outro método de tratamento que provocasse mais emoções e mais medo nas enfermarias. No en­tanto, entre as pessoas naquela sala, mais da metade tinha tido corrente elétrica ligada em seus cérebros. Se bem que alguns dos novos medicamentos que estavam sendo usados fossem tão fortes quanto os choques elétricos, e embora se soubesse tão pouco sobre os seus efeitos quanto se sabia sobre o tratamen­to de choque, esses novos medicamentos não provocavam nem de longe tantos comentários e conjeturas temerosas.

Brian Smith diz que sabe com antecedência de uma semana quando terá de vir tomar outra série de choques — disse ela,

A Sra. Jones me disse que não podia suportar a idéia de viver sem eles — concordou ele.

Fez-se um silêncio prolongado.

— Roger vai ter alta na semana que vem — disse ela, por fim. — Diz que vai procurar um apartamento para dividir cóm alguém. Diz que podemos ir morar com ele, se quisermos, até encontrarmos um lugar para nós.

Ah, que bom. É muita gentileza dele. Sim, tenho cer­teza de que isso seria o melhor para nós dois.

Então, professor?

Então, Dr. Y?

Consegui mais duas semanas para o senhor. Mas não foi fácil e acho que é o último adiamento que conseguirei. Seria tudo tão mais fácil se o senhor não demonstrasse tão flagrantemente a sua antipatia pelo Dr. X. É bem irracional, sabe. Sei que entre os pacientes eu sou o bonzinho e ele é o malvado. É coisa de colegial.

Não desgosto dele.

Mas nunca fala nada com ele,

Não há nada que eu possa dizer. Ele não está presente.

Bom, bom.

Dr. Y, o senhor pensou no que sugeri?

Ora, vamos, professor!

Eu tomaria conta dela. Nem imagina... Eu a com­preendo. Ela só precisa que permitam que ela se comporte como menininha.

O senhor se vê no papel de babá?

Ou de pai dela.

Não importa o que eu pense, de qualquer forma. Não seria possível. Ela tem dois pais, duas mães, três irmãs e um irmão. Eu que o diga.

Mas isso não é ilegal?

Não. Mas o senhor veria toda essa gente zunindo em volta de vocês dia e noite. Não, é melhor que ela fique aqui, Onde pode ser menininha sem os parentes por perto.

Isso me parece muito estranho, Dr. Y. O senhor diz que gostaria muito se eu fosse morar com Miles Bovey. Ou com Rosemary Baines.

Ambos disseram que terão prazer em tê-lo com eles, du­rante o tempo necessário. O Sr. Bovey tem uma casinha no País de Gales, diz ele. Seria tranqüilo para o senhor. E a Senho­rita Baines parece uma mulher razoável.

E no entanto não conheço nenhum dos dois.

O senhor diz que se lembra de ter andado vagando sozi­nho naquela noite em que se encontrou com a Srta. Baines?

Um pouco. Não muito. Não é 0 vagar que é importante. Não. O importante é que havia alguma coisa de que eu tinha de me lembrar. Tenho de me lembrar. Sei disso. Eu estava procurando alguma coisa. Alguém.

O senhor mesmo?

Palavras. Isso é uma palavra. Para o senhor, significa uma coisa, mas para mim é diferente.

Acha que se lembrará se morar num apartamento com Violet?

Não sei. Mas, entende, ela é agora — compreende? Ela não é como uma pessoa num sonho. Não pode de repente transformar-se em outra coisa — e fazer um passado para mim.

Não creio que Miles Bovey nem a Srta. Baines inventariam um passado para o senhor. E, acima de tudo, não seria uma pressão emocional, como seria se o senhor voltasse para casa muito depressa.

Não sei por que nunca consigo fazê-lo compreender. Posso fazer Violet compreender tudo o que digo.

Tem certeza de que ela não está se comportando como uma menininha agiria brincando de gente grande?

Tenho certeza de que às vezes é isso mesmo. Mas ela não é apenas uma menininha, Dr. Y. Emocionalmente, sim, claro. Mas em outras coisas ela entende coisas que o senhor não entende.

Bom, sinto muito. O que quer que eu faça? Posso dizer-lhe que concordo que possa ajudar ao senhor e a Violet passarem um período de convalescência juntos. Poderia dizer isso. Mas estou seguro de que haveria outras opiniões. Sobretudo da parte da família dela. Todos os quatro.

Ela já tem 21 anos.

Legalmente.

Então é isso.

Se o senhor e Violet saíssem daqui amanhã e montassem casa juntos, não seriam impedidos fisicamente. Mas garanto que ela voltaria correndo para cá dentro de uma semana.

Para proteger-se contra mim?

Contra os sentimentos que tem pelo senhor, em primeiro lugar. E, sobretudo por causa da família dela.

Mas como iam saber?

É muito fácil descobrir onde as pessoas se encontram, hoje em dia. Há uma indústria que faz exatamente isso.

Está bem, doutor. Então tenho uma escolha a menos. E vou acabar mesmo é com a minha mulher e família.

No final, sim. Porque é lá o seu lugar.

Diga-me, em sua vida houve algum período que se viu numa verdadeira encruzilhada? Poderia ter preferido fazer outra coisa?

Não, creio que a minha vida foi bastante traçada para mim pelas circunstâncias.

Mas quando o senhor pensa em si, certamente não pensa em si como suas circunstâncias?

Claro que eu poderia ter feito outras coisas. Mas tenho sido a mesma pessoa.

Então por que é que eu tenho de ser o Professor Fulano de Tal? E não sou marido de Felicity nem pai de James nem de Philip. Suponhamos que eu tivesse voltado à Iugoslávia depois da guerra e me casado com Vera? Ela era amiga íntima de Konstantina.

Olhe, professor, não importa se eu o compreendo ou não, sabe. Há certos caminhos que lhe estão abertos. Quero tornar a esboçá-los, certo?

Por que não entende?

O senhor pode voltar para casa. Sua mulher diz que ficará feliz a qualquer momento em que o senhor resolva voltar. Nós achamos que isso seria um erro, no estado em que o senhor está atualmente. Não sabemos, mas achamos possível que tenha sido o seu lar ou a sua esposa ou seus filhos que o tenham perturbado inicialmente.

Não teve nada a ver com Felicity. Teve a ver com...

Vamos, apanhe isso — a ver com o quê?

Foi-se. Como é que posso não me lembrar? Como? Está logo ali, sempre. Sinto que eu poderia pegá-lo se ao menos vi­rasse a cabeça, está tão perto. Como uma sombra, do canto do meu olho.

E não é sua esposa nem o seu lar?

Não. Conheço a natureza da coisa muito bem. Estou sem­pre lhe dizendo isso. O tipo de coisa que é... sei disso. Mas não exatamente o quê. Há outra coisa que eu devia estar fazendo. Alguma coisa diferente. Sei disso, e tenho de...

Vou continuar com as alternativas. A segunda é que o senhor poderia passar uns tempos com um amigo, ou Miles Bovey ou Rosemary Baines, já que ambos ofereceram...

Mas o senhor diz que não conheço Rosemary Baines, eu a vi uma vez numa reunião pública e ela me escreveu aquela carta que me mostrou. Às vezes penso que haja alguma coisa para mim ali. Da última vez que li a carta dela, sim, pensei mesmo — mas como posso ter certeza? É tão fácil ficar preso. Estou preso aqui. Poderia achar aquilo outra prisão e...

Vou continuar. Mas este é o meu conselho: experimente ficar com um amigo por algum tempo. São menos exigentes do que as famílias e...

Amigos. Amigos, sim. Amigos de verdade. Os amigos não servem para consolar nem para um lamber o focinho do outro e dizer como você é simpático e bonzinho. Os amigos servem para lutar, para...

Vou continuar. Se resolver não voltar para casa, e tam­bém não ficar com algum amigo, temos o Hospital North Catchment em Higginhill, daqui a duas semanas. E lá o senhor encontraria as mesmas condições que aqui...

Todos dizem que é muito pior.

As mesmas, quero dizer, para as suas opções. Porque se quisesse sair de lá, estaria exatamente na mesma situação em que está agora. As mesmas alternativas.

Não é uma questão de alternativas. É uma questão de me lembrar.

Vou continuar. Ou então o senhor pode concordar em submeter-se ao tratamento de choques. Já examinei os prós e os contras muito detalhadamente. Terá de ser o choque, pois o senhor não reagiu aos remédios que seriam a outra escolha.

Conte-me.

Em minha opinião, em essência, é que não creio que lhe fizesse mal algum e poderia ter o efeito de fazê-lo lembrar-se.

Lembrar-me de que, é esse o problema!

Ou então poderá deixá-lo exatamente como está agora.

Quando se aplica o tratamento de choque elétrico às pes­soas, não se sabe de verdade o que acontece.

Não. Mas sabemos que há milhares, provavelmente mi­lhões, a essa altura, de pessoas que ficariam por demais depri­midas para continuar a viver sem ele.

Não estou deprimido, doutor. Não estou.

Bom, bom.

E se o senhor estivesse em meu lugar, se submeteria ao tratamento de choques?

Sim, faria isso. O senhor provavelmente fará isso, no fim. É a minha opinião. É também a Opinião do Dr. X. O senhor já tomou a medicação que usamos em vez dos choques. Nada deu resultado. Nada. O senhor tinha perdido a memória quan­do foi internado e continua sem memória. Portanto, o que vamos fazer?

Mas ainda tenho duas semanas aqui?

Tem.

Naturalmente, eu poderia recuperar a memória, nesse meio tempo.

Poderia, sim. Quer experimentar escrever de novo? Um gravador?

O meu quarto na faculdade dá para um pequeno pátio. O pátio é quadrado e tem paredes brancas. Há várias plantas em tinas e vasos. A parede defronte da minha porta é o muro de sustentação do jardim acima. A madressilva cai sobre essa parede, vinda daquele jardim. No verão passado, a madressilva lançou duas gavinhas compridas, lado a lado, mas a uma distância de cerca de um metro uma da outra. Os dois ramos pendurados ficam bonitos na parede branca, É da natureza da madressilva procurar um apoio, um muro ou uma treliça ou outra planta. Naquela parede não há nada onde ela possa agarrar-se. Mas há um pé de camélia num vaso num dos cantos. Reparei que a gavinha de madressilva mais próxima da camélia se balançava de um lado para outro em movimentos mais amplos do que a, mais distante. A princípio pensei que, por algum motivo, o vento Ou uma brisa alcançassem essa ga­vinha, fazendo-a mover-se mais do que a outra. Isso, porém, parecia pouco provável, pois a gavinha do lado externo da pa­rede, perto da entrada, é que era mais vulnerável ao vento que passava. Ou pelo menos seria razoável pensar assim. Mas não havia dúvida alguma de que era a gavinha interna que se movia mais depressa e em movimentos mais largos, em seus esforços para alcançar e agarrar-se à camélia. No verão pas­sado eu costumava sentar-me ali muitas vezes, observando. Era realmente uma coisa notável. Depois de olhar alguns minutos, a gavinha que se movia mais depressa começou a parecer um braço ou parte de um animal marinho, balançando para diante e para trás, procurando alcançar a camélia. Os dias foram-se passando, mas por mais que a gavinha da madressilva tentas­se, não conseguiu alcançar a camélia. Então mudei a posição do vaso com o pé de camélia um pouquinho para dentro e sen­tei-me para ver como a madressilva afinal conseguia agar­rar-se, ajudada por uma brisa suave.

Depois mudei novamente o pé de camélia para o canto, embora a essa altura eu estivesse tão interessado nos esforços da madressilva para encontrar um apoio que era como arrancar o alimento de uma criatura. Marquei o comprimento da madres­silva com giz na parede. Mas já era outono, e a planta parara de crescer naquele ano.

Uma tarde, levantei Os olhos de minha secretária e vi que a madressilva se estendera o suficiente para lançar uma gavi­nha apertada num dos galhos do pé de camélia. Tinha sido uma noite de tempestade. E a gavinha ou braço da madressilva mais afastado tinha sido levantado pelo vento, para além da gavinha que queria a camélia, até agarrar-se numa treliça no alto do muro. Portanto, as duas gavinhas estavam presas e formavam belas laçadas verdes na parede. Mas poucos dias depois houve outra ventania e a gavinha externa perdeu seu apoio na tre­liça e caiu. Então, pendurada sozinha, ela começou um ba­lanço lento e resoluto para alcançar a sua irmã gavinha pen­durada na parede, mas curvada para fora, pois esta interna continuava agarrada ao pé de camélia. Enquanto eu estava olhando, uma tarde, vi que uma pequena brisa levou essa gavi­nha externa a se prender na interna, mas o peso conjunto das duas foi demais para a pega ainda precária da gavinha no pé de camélia, e então ambos os pendões caíram ficando pendu­rados na parede.

Estávamos de volta à estaca zero.

Ambos recomeçaram o seu balanço lento, de um lado para o outro, de lá para cá, mais ou menos de acordo com o vento. Mas nunca ficavam completamente paradas. Mesmo nos dias sem vento, os pendões estavam num perpétuo movimento ligeiro, e a gavinha mais próxima do pé de camélia movendo-se mais do que a outra.

Eu ficava sentado olhando e me perguntava se as folha­gens da madressilva se «lembravam» de que uma delas tinha conseguido alcançar a treliça alta na noite da ventania, e a outra tinha encontrado uma hospedagem no Pé de camélia. Afinal, o gênero madressilva «lembra-se de que tem de se agarrar a alguma coisa, e sabe que tem de se balançar de um lado para Outro dentro da atração de outra planta que se torna seu hospedeiro. E o pé de camélia? Ele se inclina o mais que pode para ajudar a madressilva a alcançá-lo? Certamente a camélia não pode ser indiferente aos esforços da madressilva!

Quando terminou o outono, a ramagem da madressilva tinha alcançado o pé de camélia várias vezes, com o auxílio de brisas ligeiras, e várias vezes tinha sido novamente arran­cada, ou por uma brisa forte demais ou porque a gavinha sua irmã juntava seu peso ao dela.

E em todos os intervalos, quando a gavinha interna não estava presa ao pé de camélia, ficava ali pendurada, tremendo levemente, sempre num movimento sutil, esperando o vento, enquanto se balançava, como um surfista ajusta o equilíbrio do corpo para uma onda esperada.

Às vezes, olhando, eu sentia o processo naquela parede como uma unidade: o movimento da ramagem da madressilva, o pé de camélia à espera, e a brisa que não era visível de todo, salvo quando levantava a ramagem da madressilva para cima e para perto do pé de camélia.

Não era: a ramagem de madressilva balança e alcança a camélia.

Não era: o vento sopra a ramagem até o seu hospedeiro.

As duas coisas são iguais.

Só quando chegou a primavera é que a ramagem de madressilva alongou o seu comprimento e alcançou um movimen­to mais amplo, tendo a certeza de uma peça realmente sólida no pé de camélia.

Agora vejo uma terceira parte do processo.

Não apenas: o movimento da ramagem a fez alcançar o pé de camélia.

Ou: o vento a soprou de modo que ela pôde alcançar a camélia.

E sim: o crescimento da madressilva possibilitou que ela alcançasse a camélia.

Mas o elemento em que este processo existe é — o Tempo.

O Tempo é o que importa. Cronometragem.

O surfista na onda. A planta balançando ao vento. E é a mesma coisa com — bem, com tudo, e é isso o que tenho a dizer, doutor. Por que não pode ver isso?

Eram dez horas da noite numa enfermaria ou quarto em que dormiam o professor e mais três homens. A enfermaria era aconchegante, com suas cortinas cor-de-rosa puxadas. O professor estava lendo o Times daquele dia. Lá fora a noite estava tempestuosa, cheia do barulho do vento.

Dos três outros pacientes, dois já estavam dormindo, as luzes de cabeceira apagadas, e um estava escutando o rádio, com os fones de ouvido.

Uma moça entrou na enfermaria. Estava com pijama estampado de flores, de menina, e um roupão peludo, branco. Seus cabelos de senhorita estavam soltos do coque formal, mas ela os puxara para trás, amarrando-os na nuca, fazendo deles uma moita castanha bem presa por um laço de fita cor- de-rosa. Ela era tudo o que há de certinho e direito, mas, coitadinha, não podia evitar, e então o choque inerente na presença da Srta. Violet Stoke era que a menina tinha uma cara triste e experiente de mulher. Ela sentou-se na cama do professor e baixou a voz, para dizer, furiosa:

— É verdade?

— Acho que sim.

— Mas por quê? Não o faça. Por favor, não. Ah, por favor, por favor, não.

Naquele dia circulara o boato de que o Professor Charles Watkins voluntariamente concordara em submeter-se ao tratamento dos choques elétricos. Alguns dos pacientes ficaram indiferentes, mas não muitos. A maioria ficou agitada diante da noticia. Ele se tornara quase um símbolo. Pois o professor, ao contrário de muitos deles, tivera uma opção. Ele não fora submetido ao tratamento de choques, num caso em que muitos teriam sido, porque o Dr. Y se opusera, no caso dele. Mas agora, quando ele já estava em si (a não ser o fato dele não poder concordar com a versão que lhe davam de seu passado), dissera ao Dr. Y e ao Dr. X que experimentaria o tratamento.

Ia ser submetido ao primeiro choque na manhã seguinte.

Alguns dos pacientes reagiram como se estivessem numa prisão e um deles se tivesse apresentado para ser eletrocutado.

O professor, homem de meia-idade, simpático, sorridente, de cabelos grisalhos que lhe davam um ar distinto e uns Olhos azuis e bondosos, pegou a mão da menina e disse:

Sinto muito que você esteja aborrecida. Mas sinto-me meio perdido. Para começar, nem querem ouvir falar em partilharmos um apartamento. Mas imagino que isso foi pouco realista.

Só foi pouco realista porque nós não insistimos nisso. O que vou fazer agora? Para onde vou? Não tenho ninguém.

Bem, se, como espero, eu vier a me lembrar das coisas, então é que estarei bom e você poderá vir passar uns tempos com Felicity e comigo e os meninos.

Um silêncio furioso.

Depois ele disse.

Desculpe. Sei que isso é desonesto. Ou podia ser. Mas suponho que se eu for o tal Professor Fulano de Tal e tiver uma casa, então posso convidar as pessoas para se hospeda­rem lá?

Você se conformou com isso. Por que, por que, por quê?

O professor examinou os dois homens que dormiam nas camas em frente a dele e depois o homem do mesmo lado do quarto que ele, que estava sentado na cama, sorrindo de prazer e às vezes rindo alto, ouvindo o programa de rádio.

O professor disse:

Só há uma coisa em que todos parecem estar de acor­do. É que os choques elétricos podem abalar-me e fazer com que eu me lembre.

Pode ser que sim e pode ser que não. Você sabe tão bem quanto eu como é que alguns deles ficam. São como sombras. Como zumbis.

Mas alguns ficam perfeitamente bem e melhoram.

— Mas você está se arriscando.

Ouvia-se o barulho de passos no corredor que levava àquele quarto e uma voz animada dizendo «boa noite, boa noite, boa noite» e as luzes se apagando nas enfermarias que davam para o corredor.

Mas suponhamos que eu me lembre das coisas de que quero lembrar-me? Eles têm certeza de que me lembrarei da­quilo que querem que eu recorde. E é muito urgente que eu me lembre, isso eu sei. É tudo uma cronometragem, sabe. Também sei disso. São as estrelas em seus rumos, o tempo e o lugar. Eu estava pensando e pensando... Fiquei deitado, acordado, a noite passada e a outra antes dessa e a outra ainda... eu estava resolvendo alguma coisa. Por que tenho essa sensação de urgência? É conhecida. Não é coisa que eu só tenha desde que perdi a memória. Não. Já a tive antes. Agora acho que sei o que é. E não apenas isso. Há uma porção de coisas em nossa vida de todo dia que são sombras. Como coincidências, ou sonhos, o tipo de coisas que não se coadunam com a vida comum, está me entendendo, Violet?

Ela fez que sim. Seus tristes olhos de mulher olhavam para a porta, onde a enfermeira estaria dentro de alguns mi­nutos. Aquela era a última enfermaria daquela série.

O importante é isso — lembrar que algumas coisas se estendem para nós daquele plano de vida, até aqui. A ansiedade é uma delas. O sentido de urgência. Ah, eles a transfor­mam em doença, eles a enfeitiçam e expulsam, com suas drogas mágicas. Mas não é à toa. Não é sem ligação. Eles fa­lam em «estado de ansiedade» como falam em paranóia, mas todas essas coisas têm um significado, são reflexos daquela outra parte de nós, e aquela parte de nós sabe de coisas que não sabemos.

E então — disse a enfermeira, chegando e vendo o homem e a moça batendo papo na hora de dormir. — Já é hora de estar na cama dormindo, Srta. Stoke.

Já estou indo — disse Violet, imediatamente transfor­mada numa garota de três anos, emburrada.

A enfermeira estava apagando as luzes centrais da en­fermaria.

O meu sentido de urgência é muito simples — disse o professor. — Lembrei-me disso, pelo menos. O que preciso recordar tem a ver com o tempo se expirando. E isso é a ansie­dade, em muita gente. Elas sabem que têm de fazer alguma coisa, deviam estar fazendo outra coisa, não apenas vivendo o dia-a-dia, pintando o rosto e decorando suas cavernas e pre­gando peças maldosas em seus competidores. Não. Sabem que têm de fazer alguma outra coisa antes de morrerem... e assim os hospícios estão cheios e os farmacêuticos prósperos.

Quer um comprimido para dormir, professor?

Não, obrigado, enfermeira.

Devo lembrar que não pode comer nada pela manhã. Coopere, sim? Tomará o café da manhã depois do tratamento.

— Vou desligar a luz daqui a um minuto. Posso? — perguntou a moça, mandona, os olhos brilhando e fazendo beici­nho, experimentando seus poderes de três anos de idade.

Está bem, Srta. Stoke. Mas por favor, o professor hoje precisa dormir bastante, e você também, meu bem.

Ela saiu.

Meu bem, uma ova — murmurou a moça.

Os dois, então, ficaram sentados juntos, na semi-escuridão. O homem sentado na cama escutando o rádio riu alto, pren­deu a respiração, aguardando uma piada, e tornou a rir.

E é por isso, entende, Violet. O choque pode me fazer lembrar do que quer que seja que sei estar aí, a sombra que posso ver do canto do meu olho.

Mas pode acontecer que você seja apenas o Professor Charles Watkins?

— Sei que estou me arriscando. Sei disso muito bem. Talvez o choque me faça esquecer aquilo que já sei. Que eu devia estar levando uma vida bem diferente.

Sim, mas como? Nós todos dizemos isso, vivemos di­zendo isso. Sei que isso é O problema de tudo, mas como?

— Há alguma coisa que preciso alcançar. Tenho de contar às pessoas. As pessoas não o sabem, mas é como se elas estivessem vivendo num ar envenenado. Não estão acordadas. Leva­ram uma pancada na cabeça, há muito tempo, e não sabem que é por isso que estão vivendo como zumbis e se matando uns aos outros.

— Como Eliza Frensham depois de um choque.

Ou como eu amanhã, depois do meu. Sim, eu sei.

Mas Como podemos ser diferentes? Como podemos sair disso? Se você descobrir, virá aqui para levar-me com você?

É tudo cronometragem, sabe. Às vezes é mais fácil a gente sair dessa do que de outras...

Srta. Stoke! — disse a enfermeira da porta.

Já vou — disse a moça. — Disse que ia e vou. Certo?

Ela desceu da cama e ficou junto do travesseiro do ho­mem idoso.

Há pessoas no mundo o tempo todo que sabem — disse o professor. — Mas elas se calam. Movimentam-se caladas, salvando as pessoas que sabem que estão na armadilha. E depois, para as que saem, é como voltar a si depois de uma anes­tesia com clorofórmio. Compreendem que passaram a vida dormindo e sonhando. E depois é a vez delas aprenderem o regulamento e a cronometragem. E elas tornam-se as pessoas quietas que vivem no mundo, tal como poderiam viver os seres humanos, se só houvesse alguns seres humanos num planeta que tivesse macacos como habitantes, mas os macacos tives­sem a possibilidade de aprender a pensar como seres humanos. Mas nos cérebros atrofiados dos pobres macacos tristes existe um conhecimento, meio sepultado. Eles às vezes pensam que se ao menos soubessem, se pudessem lembrar-se direito, então poderiam escapar da prisão, podiam deixar de ser zumbis. É uma coisa assim, Violet. E tenho de me arriscar.

Estarei pensando em você amanhã de manhã.

Boa noite, meu bem.

Boa noite, Charles.

Boa noite, professor.

Boa noite, enfermeira.

Ah! meu querido Charles,

O Dr. Y telefonou-me ontem dizendo que você voltou ao seu normal. Vou buscá-lo na quinta-feira. Ah! meu querido, querido, querido, queridíssimo amor! E os meninos estão tão contentes! Esperando tão ansiosos! Não posso escrever... só queria dizer que estarei aí na quinta-feira às quatro horas com o carro.

FELICITY

Caro Charles,

Felicity contou-me que você se restabeleceu. Não é pre­ciso dizer que estou muito contente. Pretendia dar a série de conferências que você tinha organizado para este período bem como agüentar a mão por você em vários outros setores. Mas terei imenso prazer em lhe devolver a responsabilidade. A primeira é o Epíteto Homérico, Parte I, A Ilíada. É de segunda-feira a uma semana. Se você não se sentir bem o bastante não tem importância. Favor avisar-me.

JEREMY

Caro Jeremy,

Obrigado por tudo. Sinto muito ter sido tão aborrecido. Parece que estou de novo na plena posse de minhas faculdades. Lembro-me de tudo sobre a série de conferências. Sinto-me bastante bem para poder assumir o encargo.

Seu,

CHARLES

Caro Miles,

Quero agradecer-lhe o seu interesse enquanto estive doente. Mas já estou bem melhor. Pretende vir a Londres este inverno? Caso venha, podíamos jantar juntos? Avise-me se vier. Ou um fim-de-semana em família em Cambridge?

Seu,

CHARLES

Caia, Srta. Baines,

Estou certo de que gostará de saber que estou comple­tamente restabelecido, portanto espero não abusar mais do seu bondoso interesse. Aliás, devo agradecer-lhe por sua paciência na noite em que impingi minha companhia à senhora de um modo tão impertinente. Por favor, apresente as minhas des­culpas ao Sr. Larson.

Como devo estar de volta a Cambridge e muito ocupado, receio que não possa aceitar o seu amável convite para jantar.

Sinceramente,

CHARLES WATKINS abril, 1970

 

APENSO, OU PAPEL FINAL

Uma Reminiscência Pequena e Importante

Há alguns anos escrevi uma história para um filme. Essa história era o resultado de uma amizade íntima com um homem cujos sentidos eram diferentes dos de uma pessoa normal.

Blake pergunta:

Como sabes se cada pássaro que corta a estrada aérea

Não é um imenso mundo de prazer fechado por seus cinco sentidos?

Conhecer muito bem e por muito tempo uma pessoa que sente tudo de modo diferente das pessoas «normais» encerra a mesma pergunta.

O argumento desse filme era que a percepção e sensibili­dade extra do herói ou protagonista devia ser uma desvanta­gem numa sociedade organizada como a nossa, que favorece os conformados, os medíocres, os obedientes.

O script foi mostrado a vários produtores cinematográ­ficos, e vários cogitaram por muito tempo da idéia de produ­zi-lo como é do feitio daquela indústria mas todos faziam a mesma pergunta: o que há de errado com o homem do filme?

Ora, não me ocorrera pensar nisso antes. Em parte por­que, em minha cabeça, a maneira como eu escrevera aquilo tornava a pergunta irrelevante, e em parte porque, na vida, o original do herói (ou personagem principal) tivera diagnósticos tão variados e contraditórios pela profissão médica, du­rante tantos anos, que um raciocínio desse tipo não parecia resolver nada.

Além disso, é preciso que se tenha um treinamento espe­cial para se achar que pôr uma etiqueta num sentimento, um estado de espirito, uma coisa; ou encontrar uma nova série de palavras ou uma frase; ou, em resumo, descrever esta palavra ou frase é o mesmo que compreendê-la e experimentá-la. Esse treinamento é a educação obrigatória dada em nossas escolas, e a maior parte dessa educação é dedicada a ensinar às crian­ças como devem usar as etiquetas, a escolher as palavras, a definirem.

Pensei em fazer uma coisa. Mandei o script a dois médi­cos. Um era o Psiquiatra-Consultor num hospital de clínicas anexo a uma grande universidade um homem que treinava futuros médicos e tratava dos pacientes. O outro era um neurologista que trabalhava num grande hospital de clínicas em Londres e que tinha uma clínica em Harley Street.

Em resumo, esses homens eram expoentes em sua pro­fissão.

Pedi que eles lessem o script e me dissessem o que havia de errado com o homem, tão friamente quanto se ele fosse um paciente que comparecesse aos seus consultórios ou aos depar­tamentos dos ambulatórios.

Eles tiveram a fineza de fazer o que pedi, despenderam trabalho com aquilo e gastaram tempo.

Porém seus diagnósticos de peritos, embora abalizados, eram bem diferentes um do outro. Não concordavam em nada.

 

                                                                                            Doris Lessing

 

 

                      

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