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NOITE DE PAZ / Mary Higgins Clark
NOITE DE PAZ / Mary Higgins Clark

 

 

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NOITE DE PAZ

 

            Um romance singular sobre a força do amor, e cujo enredo revela a fé e a coragem de uma criança. Tendo como pano de fundo um ambiente de ameaça e suspense de cortar a respiração, Noite de Paz constitui uma história de calor humano, que ilustra a coragem face à adversidade, a par da renovação da fé em circunstâncias em que esta acaba por ser recompensada.

 

 

            Era véspera de Natal e, lentamente, o táxi ia descendo a Quinta Avenida na cidade de Nova Iorque. àquela hora, quase cinco da tarde, o trânsito estava bastante congestionado, tal como os passeios, apinhados de pessoas que faziam as compras de Natal de última hora, de empregados de escritório que se dirigiam para casa e de turistas ansiosos por darem uma olhadela de fugida às montras primorosamente decoradas das lojas, assim como à fabulosa árvore de Natal do Centro Rockefeller.

                        Já fazia escuro e o céu mostrava-se cada vez mais carregado de nuvens, confirmando as previsões meteorológicas, que previam um Natal vestido de branco. Contudo, as luzes intermitentes, a música própria da quadra, o tinir das sinetas que os Pais Natais faziam soar pelos passeios e a atmosfera de jovialidade que, de maneira geral, irradiava da multidão imprimiam um cunho apropriadamente festivo àquela famosa avenida.

                        Catherine Dornan sentava-se direita e tensa, no banco traseiro do táxi, entre os dois filhos pequenos, mantendo os braços em redor dos ombros dos garotos. A julgar pela rigidez que sentia no corpo de ambos, soube que a sua mãe tivera toda a razão. A fisionomia carrancuda de Michael, de dez anos, e o mutismo de Brian, de sete, eram sinais inequívocos da intensa preocupação que ambos sentiam pelo estado de saúde do pai.

            No princípio dessa mesma tarde, quando ainda no hospital Catherine telefonou á mãe sem conseguir conter o choro convulsivo, apesar de Spence Crowley, o médico e velho amigo do marido, lhe ter assegurado que o período pós-operatório de Tom estava a correr muito melhor do que se esperava, chegando mesmo a sugerir que os rapazes visitassem o pai às sete da tarde desse mesmo dia, a velha senhora falara-lhe com muita firmeza.

            - Catherine, tens de controlar os nervos - dissera ela. - Os rapazes estão extremamente preocupados e assim tu não os ajudas a ultrapassar esta situação. Acho que seria boa ideia se tentasses distraí-los um pouco. leva-os até ao Centro Rockefeller para verem a árvore de Natal, e depois poderão jantar fora. O facto de eles te verem tão preocupada convenceu-os de que Tom se encontra praticamente às portas da morte.

            "Isto não pode estar a acontecer", pensou Catherine. Desejava, com todas as veras da sua alma, poder alterar tudo o que se havia passado durante os últimos dez dias, começando por aquele momento terrível em que recebeu um telefonema do Hospital Saint Mary. "Catherine, pode vir imediatamente ao hospital? Tom desfaleceu no dentista durante uma consulta de rotina."

            Quase automaticamente, ficou com a impressão de que se tratava de um engano. Os homens magros e atléticos, com trinta e oito anos, não costumavam desfalecer. Além do mais, Tom brincava constantemente, dizendo que os pediatras estavam por direito imunizados contra todos os vírus e germes de que os seus doentes eram portadores.

            Não obstante, Tom não se encontrava imunizado contra a leucemia, que exigia a excisão urgente do baço, o qual adquirira um inchaço anómalo. Quando chegou ao hospital, disseram-lhe que ele deveria ter ignorado, durante vários meses, todos os sinais de aviso. "E eu fui demasiado estúpida para não me aperceber do estado de saúde do meu marido", pensou Catherine fazendo um esforço enorme para que os lábios não lhe tremessem.

            Lançou um olhar fugaz pela janela, constatando que passavam em frente do Hotel Plaza. Há onze anos, aquando do seu vigésimo terceiro aniversário, a sua festa de casamento realizara-se no Plaza. "Supostamente, as noivas devem sentir-se nervosas", pensou. "Mas eu não estava. Praticamente desatei a correr pela nave da igreja."

            Dez dias mais tarde, tinham celebrado o Natal em Omaha, onde Tom aceitara um lugar no Serviço de Pediatria do prestigioso hospital da localidade. "Comprámos uma árvore de Natal, por acaso muito original, numa loja em liquidação", pensou Catherine, recordando-se de como Tom erguera a árvore ao alto, dizendo: "Atenção, clientes das lojas Kmart..."

            Este ano, a árvore que tinham escolhido com tanto cuidado continuava guardada na garagem tal como viera da loja, com os ramos atados. Haviam decidido que a intervenção cirúrgica devia realizar-se em Nova Iorque, onde o melhor amigo de Tom, Spence Crowley, era actualmente um cirurgião de grande renome.

            Catherine retraiu-se ao pensar quanto se afligira até que finalmente lhe permitiram que visse Tom.

            Entretanto, o táxi encostou ao lancil do passeio.

            - Aqui está bem, minha senhora? - perguntou o taxista.

            - Sim, está óptimo - respondeu Catherine, fazendo um esforço sobre-humano para aparentar uma alegria que não sentia, enquanto tirava a carteira da mala de mão. E dirigindo-se aos filhos: - Há cinco anos, por altura do Natal, vocês estiveram aqui com o pai e comigo. O Brian ainda era muito pequeno para se recordar, mas tu, Michael, não te esqueceste, pois não?

            - Ainda me lembro - confirmou o garoto mais velho, sem acrescentar mais nada e levando a mão à porta do táxi, enquanto observava Catherine, que retirava uma nota de cinco dólares do maço guardado na carteira.

            - Porque andas com tanto dinheiro, mãezinha?

            - Ontem, quando o pai foi internado no hospital, pediram-me que tirasse tudo o que ele tinha na carteira, excepto algumas notas de dólar. Quando voltei para casa da avó devia ter lá deixado o dinheiro, mas esqueci-me. - Catherine seguiu Michael, que já estava no passeio, mantendo a porta aberta para que Brian saísse. Encontravam-se em frente da Saks, próximo da esquina da Rua Quarenta e Nove com a Quinta Avenida. Viam-se filas ordeiras de gente que aguardava pacientemente a sua vez de poder admirar de perto as decorações natalícias que enfeitavam as montras da loja. Catherine conduziu os filhos para o fim de uma das filas.

            - Vamos ver as montras e depois atravessamos para o outro lado da rua, a fim de podermos ver a árvore de Natal como deve ser.

            Brian suspirou, um suspiro oprimido. Aquilo é que era um rico Natal! Detestava ser obrigado a estar à espera fosse para o que fosse - e decidiu entreter-se com uma espécie de jogo, truque a que recorria sempre que desejava que o tempo passasse mais depressa. Fingia que já tinha chegado aonde pretendia ir, que nessa noite era o quarto do hospital onde o pai fora internado. Mal conseguia conter a ânsia de o voltar a ver, pois queria oferecer-lhe o presente que, segundo a avó lhe dissera, faria com que ele ficasse melhor.

            Era tal a intensidade com que Brian desejava que as horas passassem que, quando finalmente chegou a vez de os três poderem ver as montras mais de perto, começou a andar em passos apressados, mal reparando nos flocos de neve em rodopio, nas bonecas, nos duendes e nos animais que dançavam e cantavam - e foi com uma satisfação enorme que saiu da fila com a mãe e o irmão.

            Então, quando já se encaminhavam para a esquina onde atravessariam a avenida, avistou um homem com um violino que se aprontava para tocar para algumas pessoas reunidas à sua volta. Subitamente, o ar encheu-se com os sons melódicos de Noite Feliz, canção de Natal que as pessoas entoaram em uníssono.

            Catherine, que já se encontrava à beira do passeio, retrocedeu.

            - Esperem, ouçamos por uns instantes - sugeriu ela aos dois rapazes.

            Brian apercebeu-se da comoção da mãe, vendo como ela se esforçava por conter as lágrimas. Eram raras as ocasiões em que a via chorar, até à fatídica manhã da semana anterior, quando telefonaram do hospital informando que o pai se encontrava gravemente doente.

 

            Cally percorria a Quinta Avenida num passo lento. Pouco passava das dezassete horas e estava rodeada por uma multidão que se apressava a fazer as últimas compras, já com os braços cheios de embrulhos. Em tempos passados, era possível que também tivesse partilhado de todo aquele entusiasmo, mas tudo o que sentia naquela altura era uma exaustão que quase lhe provocava dores. O trabalho não lhe dera tréguas. Durante a quadra do Natal os doentes internados no hospital só desejavam poder estar em suas casas, por conseguinte, a maior parte deles sentia-se deprimida, ou então dificultava a vida ao pessoal. As suas expressões ensombradas traziam-lhe à memória os dois últimos Natais, altura em que ela própria se sentira bastante deprimida, porque os passara na prisão feminina de Bedford.

            Passou pela Catedral de Saint-Patrick, hesitando um pouco quando se recordou da sua avó, numa ocasião em que esta a levara, assim como ao irmão, Jimmy, a visitar o presépio, mas isso acontecera há vinte anos, tinha ela dez e ele seis. Durante uns instantes fugazes desejou poder voltar atrás, regressar a essa época, alterar o curso dos acontecimentos, evitar que as coisas más tivessem acontecido, impedir que Jimmy fosse a pessoa em que posteriormente se transformara.

            Só pensar no nome do irmão fazia com que o seu corpo fosse percorrido por calafrios de temor. "Bom Deus, faz com que ele me deixe em paz e sossego", rezou ela. Ao princípio da manhã, com Bigi colada a ela, tivera de responder ao bater irritado do punho do detective Shore, que se apresentou à porta acompanhado por outro detective, que dissera chamar-se Levy; quando abriu, viu os dois homens no estreito corredor do edifício de apartamentos onde vivia, situado na junção da Rua Dez Oriente e a Avenida B.

            - Cally, deste outra vez abrigo ao teu irmão? - perguntara Shore, ao mesmo tempo que o seu olhar esquadrinhava a sala, procurando sinais da presença de Jimmy. Aquela pergunta foi a primeira indicação que Cally teve de que o irmão conseguira fugir do estabelecimento penal, na ilha Riker. - Desta vez é acusado de tentativa de homicídio na pessoa de um guarda prisional - informou-a o detective, num tom de voz lacrimonioso. - O estado clínico do guarda em questão é bastante critico. O teu irmão alvejou-o e apoderou-se do uniforme do homem. Agora passarás muito mais do que quinze meses na prisão, caso ajudes Jimmy a fugir. Pela segunda vez, serás acusada de cumplicidade e encobrimento, e trata-se de uma tentativa de homicídio... ou mesmo assassínio de um agente da autoridade. Cally, desta vez acusar-te-ão de tudo e mais alguma coisa.

            - Nunca me perdoei por ter dado dinheiro a Jimmy da última vez que veio procurar-me - dissera Cally numa voz contrita.

            - Sim, sim... E a chave do teu carro - recordou-lhe o detective. - Cally, estou a avisar-te. Desta vez não te atrevas a ajudá-lo.

            - Não tenciono encobri-lo, podem ter a certeza, além de que não estava a par de nada do que ele fez anteriormente. - Não lhe passou despercebido o olhar que ambos voltaram a lançar ao espaço atrás de si. - Estejam à vontade!

- gritou ela. - Podem procurar, ele não está aqui, e se quiserem pôr o meu telefone sob escuta, façam isso. Quero que ouçam quando eu disser ao Jimmy que se entregue às autoridades, porque é tudo o que tenho para lhe dizer.

            "Mas com certeza que Jimmy não conseguirá encontrar-me", pensou Cally enquanto passava a custo entre as pessoas que faziam compras e as que andavam a ver as montras. Daquela vez isso não aconteceria. Depois de ter cumprido a sua pena, Cally tirara Gigi da família de acolhimento e fora a assistente social quem lhe arranjara um pequeníssimo apartamento na Rua Dez Oriente, além de lhe ter conseguido o emprego de auxiliar de enfermagem no Hospital Saint Luke-Roosevelt.

            No espaço de dois anos era o primeiro Natal que passava com Gigi, e Cally só desejava ter dinheiro suficiente para oferecer à filha alguns presentes minimamente dignos desse nome. Qualquer garota de quatro anos devia possuir o seu próprio carrinho de bonecas, um novo e não aquele que Cally se vira forçada a aceitar da generosidade de alguém. A pequena colcha e almofada que comprara não conseguiam esconder o mau estado em que o brinquedo se encontrava, mas, em compensação, talvez encontrasse de novo o fulano que tinha visto, na semana anterior, a vender bonecas naquela zona. Custavam apenas oito dólares e Cally recordava-se de uma em especial, que achara muito parecida com Gigi.

            Nesse dia não levava dinheiro que chegasse, mas o homem disse-lhe que na véspera de Natal estaria entre a Quinta Avenida e as Ruas Cinquenta e Sete e Quarenta e Sete, portanto, era preciso que o encontrasse. " , meu Deus", invocou, "permite que prendam o Jimmy antes que ele faça mal a mais alguém. Existe qualquer coisa nele que não está bem. Sempre houve."

            à frente dela, um grupo de pessoas cantava Noite Feliz e, à medida que se ia aproximando, apercebeu-se de que não eram cantores de rua, mas apenas transeuntes em volta de um violinista que tocava melodias de Natal.

            "... Santo Menino, tão terno e doce..."

            Brian não fez coro com os que cantavam, apesar de Noite Feliz ser a sua canção de Natal preferida; na sua terra natal, em Omaha, fazia parte do coro infantil da igreja e era aí que gostaria de estar naquele momento, na sala da sua casa, a enfeitar a árvore de Natal com os pais e o irmão, e não em Nova Iorque - desejava ardentemente que tudo fosse como sempre costumava ser.

            Brian apreciava Nova iorque, ansiando sempre pelas visitas que fazia à avó durante o Verão, e nessas alturas divertia-se bastante. Contudo, aquela visita em especial não lhe agradava nada. Não na véspera de Natal, com o pai no hospital e a mãe tão triste, enquanto o irmão não parava de lhe dar ordens, embora tivesse somente mais três anos do que ele.

            Brian enfiou as mãos nas algibeiras do blusão. Apesar de ter calçado as luvas continuava a senti-las frias, e foi com impaciência que olhou para a gigantesca árvore de Natal do outro lado da rua, no lado oposto do rinque de patinagem no gelo. Sabia antecipadamente que dentro de um minuto a mãe diria: "Muito bem. Agora vamos ver a árvore mais de perto."

            Era muito alta, com umas luzes muito cintilantes e a estrela enorme mesmo no topo, mas naquele momento nada daquilo despertava o interesse de Brian, a exemplo do que acontecera com as montras que tinham acabado de ver. Tão-pouco lhe apetecia ouvir o homem que tocava violino, além de que não lhe agradava estar ali.

            Só estavam a perder tempo. O seu único desejo era ir ao hospital onde a mãe ofereceria ao pai a grande medalha de São Cristóvão que salvara a vida do avô durante a Segunda Guerra Mundial, em que ele participara. Usara-a até ao fim do conflito e até tinha uma mossa provocada pelo impacte de uma bala.

            A avó pedira à mãe que a oferecesse ao pai e, se bem que quase tivesse desatado a rir-se, Catherine prometera que a ofereceria ao marido.

            - Oh, mãe, a história de São Cristóvão não passa de um mito - comentara então. - Há muito que não é considerado santo, e as únicas pessoas que alguma vez ajudou foram as que se dedicavam à venda das medalhas, que muita gente costumava colar no painel de instrumentos dos automóveis.

            - Catherine, o teu pai acreditava que a medalha o tinha ajudado a sobreviver a batalhas terríveis - replicara a avó-, e isso é a única coisa que interessa. Ele acreditava e eu também. Por favor, oferece-a ao Tom e não percas a fé.

            Brian sentia-se impaciente com a atitude da mãe, pois se a avó acreditava firmemente que o pai iria melhorar se tivesse aquela medalha, então a mãe devia oferecer-lha o mais depressa possível. Tinha a certeza absoluta de que a avó é que estava do lado da razão.

            "... dorme em paz, ó Jesus". O violino calou-se, após o que a mulher que dirigira o coro formado pelos transeuntes começou a fazer uma colecta. Brian observava as pessoas que deixavam cair moedas e notas de um dólar dentro do cestinho.

            A mãe tirou a carteira da mala que trazia a tiracolo, donde retirou duas notas de dólar.

            - Michael, Brian, aqui têm. Ponham este dinheiro dentro do cestinho.

            Michael agarrou na sua nota de dólar, tentando furar por entre as pessoas, e Brian seguiu atrás do irmão, mas foi nesse momento que reparou na carteira, que ficara parcialmente fora da mala quando a mãe voltara a guardá-la. Não desviou o olhar e viu-a então cair no chão.

            Voltou-se para a apanhar, mas, antes de ter oportunidade de concretizar o seu intento, uma mão agarrou-a. Reparou que a mão pertencia a uma mulher magra que usava uma gabardina de cor escura e tinha os cabelos presos num longo rabo-de-cavalo.

            - Mamã! - gritou desesperado, mas toda a gente havia recomeçado a cantar, impedindo Catherine de ouvir o grito de alerta do filho.

            Então, ao ver que a mulher que se apoderara da carteira se escapava furtivamente por entre a multidão, Brian, numa atitude instintiva, foi no seu encalço, receando perdê-la de vista. Voltou-se ainda para trás, com a intenção de chamar uma vez mais pela mãe, mas ela também fazia coro com os outros, "Deus nos dê paz, descanso e alegria...", e todos cantavam tão alto que compreendeu que não o ouviria.

            Por breves instantes, Brian ainda hesitou, continuando a olhar para a mãe por cima do ombro. Devia voltar rapidamente atrás para lhe contar o que sucedera? Mas, uma vez mais, a medalha que faria com que o estado de saúde do pai melhorasse ocorreu-lhe ao pensamento: encontrava-se dentro da carteira e não podia permitir que fosse roubada.

            Entretanto, como a mulher estava quase a dobrar a esquina, Brian começou a correr, numa tentativa de não a perder de vista.

            "O que me terá levado a apanhar a carteira?", perguntava Cally a si mesma, enervada, enquanto num passo apressado se dirigia para leste, em direcção à Rua Quarenta e Oito, rumo à Avenida Madison. Pusera de lado a intenção de percorrer a Quinta Avenida, onde procuraria o vendedor ambulante de bonecas que lhe dissera estar naquela artéria e, em vez disso, encaminhou-se para a estação da Avenida lexington. Sabia que seria mais rápido se subisse a Rua Cinquenta e Um, onde poderia também apanhar o metro, mas sentia a carteira no bolso como se fosse um tijolo incandescente, tendo a nítida impressão de que, para onde quer que se voltasse, toda a gente teria os olhos presos nela, fitando-a com uma expressão de recriminação. Certamente que a Grand Central Station estaria à cunha e tencionava apanhar o transporte nessa estação, era mais seguro.

            Naquele momento passou por ela um carro-patrulha, na altura em que se preparava para atravessar a rua e, apesar do frio que se fazia sentir, Cally começou a transpirar.

            Provavelmente, a carteira pertencia à mulher com os dois garotos em quem tinha reparado, pois caíra no chão mesmo ao lado dela. Em pensamento, Cally reviu o momento em que a sua atenção foi despertada pela mulher esbelta,

ainda jovem, que usava um casaco comprido de uma tonalidade rosada, próprio para todas as estações do ano, cujos punhos dobrados revelavam a pele de que era forrado, sendo por de mais evidente que custara bom dinheiro, tal como as botas e a mala a tiracolo que a mulher usava. Esta tinha uns cabelos escuros e brilhantes, que lhe davam pela gola do casaco, e o seu aspecto era o de uma pessoa a quem as preocupações da vida não afectavam.

            "Quem me dera poder ter uma aparência assim", pensara Cally na ocasião. "Ela é mais ou menos da minha idade e da minha altura, e ambas temos quase o mesmo tom de cabelo. Ora bem, talvez no próximo ano eu já tenha dinheiro para poder comprar roupas bonitas para mim e para a Gigi."

            Virou a cabeça para trás, lançando um último olhar às montras da Saks. "O certo é que não a vi deixar cair nada", sentira que o pé tinha tocado em qualquer coisa, e então baixara o olhar e ganhara a carteira.

            "Porque não lhe perguntei se era dela?", interrogou-se Cally numa agonia quase excruciante. Contudo, nesse preciso momento recordou-se de uma ocasião, há muitos anos, em que a avó chegara a casa envergonhada. Tinha achado uma carteira na rua, abrira-a e ficara a saber o nome e o endereço da pessoa a quem pertencia. Depois percorrera uma distância de três quarteirões para a devolver ao seu legitimo proprietário, apesar de a artrite lhe causar tantas dores que cada passo era um martírio.

            Então, a dona da carteira inspeccionara o conteúdo e dissera que faltava uma nota de vinte dólares, o que deixara a sua avó extremamente perturbada. "Praticamente acusou-me de ser uma ladra", comentara.

            Aquela recordação agigantara-se nos pensamentos de Cally no mesmo instante em que tocou na carteira. E se, supondo que esta efectivamente pertencia à senhora do casaco cor-de-rosa, ela pensasse que Cally a tinha furtado ou que se apoderara abusivamente de algum do dinheiro que continha? Podia chamar a Polícia e descobririam que Cally estava em liberdade condicional. Depois acreditariam tanto na sua palavra como quando dissera que tinha emprestado dinheiro e o seu automóvel a Jimmy porque o irmão lhe garantira que, se não saisse imediatamente da cidade, um tipo qualquer que pertencia a outro bando de malfeitores não hesitaria em matá-lo.

            "Oh, meu Deus! Porque não deixei ficar a carteira onde estava?", perguntou-se Cally. Ainda pensou em metê-la na primeira caixa do correio que lhe aparecesse pela frente, mas não podia arriscar-se a fazer isso. Havia muitos polícias à paisana espalhados por toda a cidade durante a quadra natalícia. Assim, se fosse vista por um deles, o agente não hesitaria em perguntar-lhe o que estava a fazer. Não, iria para casa sem mais demoras. Aika, a senhora que olhava por Gigi, tal como cuidava dos seus próprios netos depois da hora de encerramento do jardim-escola, não tardaria em levar a garota a casa. Estava a fazer-se tarde.

            "Vou pôr a carteira dentro de um sobrescrito endereçado à pessoa a quem pertencer, e mais tarde metê-lo-ei numa caixa do correio", decidiu Cally por fim. "Não posso fazer mais nada."

            Chegou á Grand Central Station e, tal como esperava, a gare encontrava-se apinhada de gente que corria em todas as direcções, para os comboios e para o metropolitano, com pressa de chegar a casa para festejar o Natal. Com muita dificuldade, lá conseguiu alcançar o terminal principal e finalmente começou a descer as escadas que a levariam à entrada da estação de metropolitano, na Avenida lexington.

            Inseriu uma moeda na ranhura do torniquete e caminhou apressadamente para não perder a composição que a levaria à Rua Catorze sem dar pela presença do rapazinho, que conseguira esgueirar-se por baixo da barreira metálica e a seguia furtivamente.

 

            "...Que Deus nos conserve a alegria e permita que nada nos entristeça...", as palavras, que tão familiares lhe eram, pareciam atormentar Catherine, não lhe permitindo que se esquecesse das ameaças que ensombravam a vida plena de felicidade que ela julgara que seria a sua para todo o sempre. O marido encontrava-se numa cama de hospital com leucemia e naquela mesma manhã os cirurgiões tinham-lhe removido o baço, que inchara de forma anómala, uma precaução em face do risco que esse órgão corria de vir a sofrer uma perfuração. Embora ainda fosse demasiado prematuro ter qualquer certeza, ao que tudo indicava ele não corria perigo de vida. Mesmo assim não conseguia libertar-se do medo que lhe provocava a possibilidade de Tom morrer; a perspectiva de uma vida sem o marido a seu lado era algo que quase a paralisava.

            "Como não me apercebi de que Tom não estava bem de saúde?", interrogava-se Catherine numa agonia constante. Não lhe saía do pensamento o que se passara há apenas algumas semanas, quando, ao chegarem ao supermercado, ela lhe pedira que tirasse as compras do porta-bagagens do carro, e ele estendera a mão para o saco mais pesado, tendo hesitado por breves momentos e retraindo-se ao pegar-lhe.

            "Ontem jogaste golfe e hoje pareces um velhote. Saíste-me um atleta e peras!", dissera ela, rindo-se.

            - Onde está o Brian? - perguntou Michael quando voltou para junto da mãe, depois de ter colocado um dólar no cestinho da mulher que entoara os cânticos de Natal.

            Sobressaltada por os seus pensamentos terem sido interrompidos inesperadamente, Catherine baixou o olhar fitando o filho.

            - Brian?! - perguntou com uma expressão abstracta. - Ele estava mesmo aqui - acrescentou, olhando para o

lado, após o que o seu olhar perscrutou as proximidades. -

O teu irmão tinha uma nota de dólar na mão. Não foi contigo para a dar à mulher que esteve a cantar?

            - Não - respondeu Michael desabridamente. - O mais certo é ter ficado com o dinheiro. É um idiota chapado.

            - Pára com isso! - ripostou Catherine, que, sem ocultar o receio que subitamente a invadira, olhou, em redor. - Brian - começou a chamar. - Brian! - A canção de Natal chegara ao fim e as pessoas já tinham começado a dispersar-se. Para onde teria Brian ido? Com certeza que não se teria afastado assim sem mais nem menos. - Brian! chamou de novo, desta feita num timbre de voz mais elevado, deixando adivinhar o receio que sentia. Alguns dos circunstantes voltaram-se para Catherine com uma expressão de curiosidade. - Estou à procura de um rapazinho - explicou ela cada vez mais atemorizada. - Vestia um blusão de esqui azul-celeste e um boné de pala vermelho. Alguém viu para onde é que ele foi?

            Viu as pessoas que a rodeavam responder negativamente, enquanto os olhos perscrutavam as proximidades. Era manifesto que as pessoas desejavam ajudá-la e uma mulher até apontou para trás, indicando as filas que aguardavam a sua vez de verem as montras da Saks.

           - Talvez ele tenha ido para ali, não acham? - alvitrou, falando com um sotaque bastante acentuado.

            - Terá ido ver a árvore de Natal? Talvez tenha atravessado a rua para a ver mais de perto, não acham? - sugeriu outra mulher.

            - Talvez tenha ido até à catedral - disse outro dos presentes.

            - Não, não! Brian não se teria afastado assim sem mais nem menos. íamos visitar o pai, que está internado no hospital, e ele estava ansioso por o ver. - Enquanto proferia aquelas palavras, Catherine dava-se conta de que havia algo de terrivelmente errado naquela situação e sentiu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos, o que ultimamente sucedia com muita facilidade. Remexeu na mala à procura de um lenço, apercebendo-se então da ausência de qualquer coisa: o volume familiar da carteira. - Oh, meu Deus! - exclamou Catherine. - A minha carteira desapareceu.

            - Mãezinha! - Perante aquela situação, Michael perdeu a expressão carrancuda que adoptara para tentar disfarçar a preocupação que sentia pelo estado de saúde do pai. De súbito, voltou a ser um garoto assustado, com apenas dez anos. - Mãezinha, achas que o Brian foi raptado? - perguntou o garoto.

            - É impossível que alguém, muito simplesmente, o tenha agarrado e levado daqui. - Catherine sentiu que as pernas lhe tremiam. - Chamem a Polícia - gritou -, o meu menino desapareceu.

 

            A estação estava repleta, centenas de pessoas quase corriam em várias direcções. Todo aquele espaço fora decorado com motivos alusivos ao Natal e o ruído de fundo era intenso. Através daquela enorme nave ouvia-se toda uma variedade de sons, os quais ecoavam fortemente no alto tecto. Passou um homem com os braços cheios de embrulhos, que deu uma tremenda cotovelada num ouvido de Brian.

            - Desculpa, miúdo.

            Sentia dificuldade em acompanhar a passada da mulher que se apoderara da carteira da mãe. Perdia-a constantemente de vista e foi com grande esforço que contornou uma família com dois filhos que lhe bloqueava o caminho. Conseguiu passar, mas foi de encontro a uma senhora, que o fitou furibunda.

                        - Vê lá se tens mais cuidado! - ralhou ela com brusquidão.

                        - Peço desculpa - disse Brian com toda a cortesia, erguendo o olhar para o rosto da mulher.

                        Nessa fracção de segundos esteve prestes a perder o rasto da que perseguia, alcançando-a quando ela começou a descer um lanço de escadas, após o que percorreu, num passo apressado, um corredor bastante extenso que desembocava numa estação de metropolitano. Quando ela passou através de um torniquete, Brian entrou por baixo do que se encontrava mais próximo e seguiu-a até ela entrar no comboio.

                        A carruagem encontrava-se de tal forma apinhada que ele mal conseguiu entrar. A mulher ficou de pé, agarrada a uma barra que se estendia acima dos assentos laterais, e Brian manteve-se perto dela, seguro a um dos varões verticais. Fizeram um longo percurso até à estação seguinte e, um pouco antes, a mulher começou a furar por entre as pessoas, dirigindo-se para a porta. Havia tanta gente à frente de Brian que este mal conseguiu sair a tempo, tendo de correr até chegar junto dela. Brian manteve-se na peugada da mulher, que começou a descer um lanço de escadas que lhe daria acesso a outra gare.

                        Desta vez, a carruagem em que entraram não estava tão cheia e Brian manteve-se perto de uma senhora de idade que lhe recordava a avó. A mulher da gabardina escura saiu na segunda paragem e o garoto imitou-a, com os olhos fixos no seu rabo-de-cavalo, enquanto ela praticamente corria pelas escadas que davam acesso à rua, que registava muito movimento.

                        Os autocarros passavam a grande velocidade nos dois sentidos antes que a luz do semáforo ficasse vermelha. Brian olhou para trás de fugida e, tanto quanto lhe era dado ver, naquele quarteirão só havia prédios de apartamentos, com a luz a irradiar de centenas de janelas.

                        A mulher que tinha a carteira esperou à beira do passeio que a luz mudasse e quando esta passou a verde para os peões, Brian continuou no encalço da sua presa. Quando ela chegou ao outro lado da rua, virou á esquerda, começando a percorrer um passeio íngreme num passo apressado, e o garoto, enquanto continuava a segui-la, lançou um olhar de fugida à placa toponímica. Por ocasião da visita que haviam feito á avó no Verão anterior, a mãe engendrara uma espécie de jogo para lhe ensinar a orientar-se nas ruas de Nova iorque.

            "A avó vive na Rua Oitenta e Sete", dissera ela nessa altura. "Estamos na Rua Quinze. Quantos quarteirões faltam até chegarmos ao prédio onde ela vive?"

                        Aquela placa dizia-lhe que se encontrava na Rua Catorze e Brian disse a si próprio que não devia esquecer-se daquilo, enquanto se mantinha um pouco atrás da mulher, sem a perder de vista.

                        Sentia os flocos de neve a embaterem-lhe no rosto e começara a levantar-se vento, cujas rajadas agrestes também lhe açoitavam as faces. Olhou em volta a ver se via um polícia a quem pudesse pedir auxilio, mas não avistou nenhum por perto. Fosse como fosse, Brian sabia bem o que faria e estava determinado a ir atrás da mulher até onde ela vivia. Continuava a ter a nota de dólar que a mãe lhe entregara para dar ao homem que tocava violino na rua e tencionava trocá-la para poder telefonar à avó, a qual chamaria um polícia que haveria de recuperar a carteira da mãe.

                        "É um bom plano", pensou Brian. Na realidade, tinha a certeza disso. Era forçoso que recuperasse a carteira, assim como a medalha guardada no seu interior. Recordava-se de que, depois de a mãe ter dito que a medalha não serviria de nada, a avó colocara-lha na mão, dizendo: "Por favor, dá-a ao Tom e não percas a fé."

            A expressão que se espelhara no rosto da avó mostrava tanta serenidade e certeza que Brian se convencera de que ela tinha razão. Logo que conseguisse recuperar a medalha, e entregá-la ao pai, este começaria a melhorar. Brian sabia que isso aconteceria.

            A mulher que tinha os cabelos presos num rabo-de-cavalo começou a caminhar num passo mais apressado, e ele continuou a segui-la depois de ela ter atravessado uma rua, encaminhando-se para a extremidade de outro quarteirão. Chegada a essa esquina, virou á direita.

            A rua que começaram a percorrer não estava iluminada pelas luzes cintilantes que decoravam as montras das lojas que tinham deixado para trás. Alguns dos estabelecimentos haviam sido entaipados e as paredes de muitos dos edificios estavam "enfeitadas" com várias inscrições, além de que as lâmpadas de muitos candeeiros estavam quebradas. Um mendigo sentado no lancil do passeio e agarrado a uma garrafa estendeu a mão na sua direcção quando Brian passou por ele.

            Pela primeira vez, o garoto sentiu-se atemorizado, mas não despregou os olhos da mulher. Naquele momento, a neve caía com mais intensidade, pelo que o passeio começara a ficar escorregadio, obrigando-o a redobrar de cuidados para não cair. O esforço que tinha de fazer para se manter perto da mulher cortava-lhe a respiração. Quanto tempo lhe faltaria para chegar ao seu destino?, perguntou-se. Depois de terem percorrido mais quatro quarteirões, teve a resposta à sua pergunta. Ela aproximou-se da porta de um edificio antigo, meteu a chave á fechadura e entrou. Brian deu então uma corrida para conseguir evitar que a porta se fechasse, mas chegou demasiado tarde, o que o deixou sem saber o que fazer a seguir. De súbito viu, através do vidro da porta, que um homem se preparava para sair e quando ele a abriu, correu e conseguiu esgueirar-se para o interior do prédio.

            O átrio estava escuro e sujo, no ar pairava um cheiro a comida retardada, e á sua frente Brian ouvia o som de passos nas escadas. Engolindo em seco, numa tentativa para eliminar o temor que o assolava e esforçando-se por não fazer barulho, começou a subir lentamente o primeiro lanço. Tencionava descobrir o apartamento para onde a mulher tinha ido e, em seguida, procuraria a cabina telefónica mais

próxima. Ocorreu-lhe que talvez optasse por ligar para o cento e doze em vez de para casa da avó.

            A mãe ensinara-lhe que era isso que devia fazer caso se encontrasse realmente numa situação em que necessitasse de ajuda, o que, até ao momento, não fora o caso.

 

            - Muito bem, senhora Dornan. Faça-me uma descrição do seu filho - pediu o agente da Polícia numa voz que pretendia instilar calma.

            - Tem sete anos e é pequeno para a idade - começou Catherine a dizer, apercebendo-se do som agudo da sua própria voz.

            Encontravam-se sentados num carro-patrulha estacionado em frente da Saks, próximo do lugar onde o violinista estivera a tocar. Sentiu a mão de Michael enclavinhada na sua, num gesto que pretendia incutir-lhe confiança.

            - Qual é a cor do cabelo do seu filho? - perguntou o agente.

            - Da cor do meu - respondeu Michael -, um pouco mais arruivado. Os olhos do meu irmão são azuis. Tem sardas e falta-lhe um dos dentes da frente. Usava o mesmo tipo de calças que eu trago vestidas, e o blusão é igual ao meu, com a diferença de que este é verde. É magricelas.

            O agente da Polícia lançou a Michael um olhar de aprovação.

            - Estás a dar-nos uma grande ajuda, meu rapaz. Voltando a si, minha senhora, disse-me que deu por falta da sua carteira? Parece-lhe que talvez a tenha deixado cair, ou sentiu que alguém lhe tocou, quer dizer, acha que alguém lha roubou?

            - Não sei - respondeu Catherine - mas a carteira é o que menos me interessa neste momento. Quando dei dinheiro aos rapazes para que o fossem entregar ao violinista, o mais provável é não a ter guardado como deve ser. Estava bastante volumosa, pelo que é possível que tenha caído.

            - Por acaso, o seu filho não terá apanhado a carteira e decidido ir às compras, pois não?

            - Não, não, não! - ripostou Catherine, manifestando alguma irritação, secundada com um veemente abanar de cabeça. - Por favor, não perca tempo a pensar numa hipótese dessas.

            - Onde vive, minha senhora? Não quer telefonar? - O polícia olhou para os anéis que Catherine usava no anelar da mão esquerda. - Talvez seja melhor ligar para o seu marido...

            - O meu marido foi internado no Hospital Kettering, gravemente doente. Nesta altura já deve sentir-se inquieto, sem saber onde nós estamos. De facto, temos de ir para junto dele, espera-nos. - Catherine estendeu a mão para a porta do carro-patrulha. - Não posso ficar sentada aqui sem fazer nada. Tenho de ir á procura de Brian.

            - Senhora Dornan, é preciso que me faça uma descrição mais completa do seu filho, estamos a perder tempo. Dentro de três minutos, todos os polícias de serviço em Manhattan começarão a procurá-lo. Sabe bem que é muito provável que se tenha afastado inadvertidamente e que neste momento se sinta confuso, sem saber onde está. É uma coisa que costuma acontecer. É seu hábito vir à Baixa?

            - Em tempos, vivemos em Nova iorque, mas actualmente residimos no Nebrasca - informou Michael. - Todos os Verões visitamos a minha avó, que vive na Rua Oitenta e Sete. Viemos para cá na semana passada porque o meu pai sofre de leucemia e precisava de ser operado. Ele frequentou a Faculdade de Medicina com o médico que o está a tratar. - Havia apenas um ano que Manuel Ortiz desempenhava as funções de agente da Polícia, mas já tivera muitas oportunidades de ver de perto o desgosto e desespero das pessoas, sentimentos que via reflectidos nos olhos daquela jovem mulher. O marido sofria de uma doença grave, ao que se aliava o desaparecimento do filho. Era-lhe por de mais evidente que ela poderia entrar em estado de choque a qualquer altura. - O meu pai vai pensar que se passa qualquer coisa de anormal - acrescentou Michael, preocupado. - Mãezinha, não achas que devias ir ao hospital?

            - Senhora Doman, o que lhe parece se deixasse Michael connosco? Tencionamos ficar por aqui, não vá dar-se o caso de Brian voltar ao lugar donde saiu. Todos os nossos homens andarão à procura do seu filho. Tencionamos fazer uma busca pelas proximidades, chamando-o através de megafones, de forma a que nos contacte caso ande perdido algures próximo desta zona. Vou pedir um carro que a leve ao hospital, onde ficará à sua espera.

            - Vai permanecer aqui para o caso de ele voltar, não é verdade?

            - Com certeza.

            - Michael, vais ajudar a Polícia a procurar o teu irmão?

            - Sim, mãezinha. Ficarei de olho aberto, não vá o idiota aparecer.

            - Não lhe chames isso...

            Mas Catherine apercebeu-se da expressão no rosto do filho. "Ele tenta animar-me", pensou. "Procura convencer-me de que Brian está bem, de que não lhe acontecerá nada de mal."

            Abraçou Michael, que lhe retribuiu o gesto, embora um tudo-nada desajeitado.

            - Não desanimes, mãezinha - encorajou o garoto.

 

            Jimmy Siddons praguejava em silêncio enquanto atravessava o largo próximo da Avenida B, junto do complexo de apartamentos do Stuyvesant Town. O uniforme de guarda prisional emprestava-lhe uma aparência respeitável, embora fosse demasiado perigoso usá-lo na rua. Conseguira roubar um sobretudo imundo e um gorro de lã a um sem-abrigo e, até certo ponto, aquelas duas peças serviam para ocultar o uniforme, mas era necessário que encontrasse outras roupas, algo que fosse minimamente apresentável.

            Também precisava de arranjar um automóvel, um cujo dono não desse pela sua falta até à manhã seguinte, que não fosse utilizado durante a noite, o tipo de carro que pertencesse a um daqueles cidadãos da classe média que habitavam no Stuyvesant Town: de tamanho médio, castanho ou preto, que se parecesse com todos os outros Honda, Toyota ou Ford que se encontravam em grande número nas ruas da cidade, nada de muito sofisticado.

            Até ao momento ainda não encontrara nenhum que lhe parecesse adequado. Observara um "velhadas" que saía de um Honda e que dissera ao acompanhante: "Sem dúvida que sabe bem voltar a casa", mas tratava-se de um daqueles carros pintados de um vermelho berrante que despertava a atenção de toda a gente.

            Entretanto surgiu um rapazola, que estacionou um calhambeque a cair de podre, mas, a julgar pelo som do motor, Jimmy não quis nada com aquele automóvel. Ironicamente pensou que realmente era aquilo que lhe estava a fazer mais falta: entrar na auto-estrada e o carro avariar-se.

            Sentia frio e começava a ter fome, mas só teria de conduzir durante dez horas, disse para consigo. "E chegarei ao Canadá, onde Paige está à minha espera, e ficamos a salvo." Era a sua primeira namorada a sério e ajudara-o bastante em Detroit. Sabia que nunca teria sido apanhado no Verão passado se se tivesse mostrado mais cuidadoso durante o assalto ao posto de combustíveis, no Michigan. Não devia ter perdido de vista o tipo que se encontrava do lado de fora do escritório, em vez de se deixar surpreender por um polícia que saíra do escritório quando Jimmy apontou uma arma ao empregado do posto.

            No dia seguinte estava de regresso a Nova iorque, onde foi presente a tribunal indiciado pela morte de um polícia.

            - Boas festas - desejou-lhe sorridente um casal de idosos, ao passar por ele.

            Jimmy retribuiu a saudação com um acenar cortês de cabeça, mas começou a prestar mais atenção às palavras da mulher.

           - Ed, não posso acreditar que não tenhas guardado as prendas para os garotos no porta-bagagens. Quem é que deixa alguma coisa à vista durante a noite, dentro de um carro, nos tempos que correm? - Jimmy contornou a esquina e dirigiu-se para um jardim próximo mergulhado em trevas, mas logo voltou furtivamente atrás para poder observar o casal, que se deteve em frente de um Toyota de cor escura. O homem abriu a porta e do banco traseiro retirou um pequeno cavalo de balouço, que entregou à mulher; em seguida, agarrou em meia dúzia de embrulhos de papel de cores garridas e, com a ajuda da mulher, guardou tudo no porta-bagagens. Voltou a fechar o carro à chave e regressou ao passeio. - Imagino que o telefone fica bem guardado no porta-luvas - acrescentou a mulher, palavras que Jimmy ouviu.

            - Claro que sim - replicou o marido. - No que me diz respeito, foi um desperdício de dinheiro, mas em todo o caso estou ansioso para ver a cara do Bobby, amanhã, quando abrir estes presentes todos.

            Jimmy não perdeu o casal de vista até terem dobrado a esquina, desaparecendo do seu ângulo de visão, que significava que das janelas do apartamento onde viviam não conseguiriam ver o lugar onde haviam estacionado o carro.

            Antes de se encaminhar para o automóvel, Jimmy deixou que passassem dez minutos, enquanto á sua volta rodopiavam uns quantos flocos de neve, e decorridos mais dois, já se encontrava ao volante do carro e saía do complexo residencial, passava um quarto de hora das dezassete. Dirigiu-se então para casa de Cally, situada na junção da Avenida B e da Rua Dez, sabendo já que ela se mostraria surpreendida quando lhe batesse à porta, surpresa essa que não a faria feliz. Provavelmente estava convencida de que ele não seria capaz de descobrir o seu paradeiro, mas o que a levaria a supor que ele não arranjaria maneira de se manter a par das suas andanças, ainda que detido na penitenciária da ilha Riker? Era uma pergunta que o deixava intrigado.

            "A minha irmã mais velha", pensava ele enquanto percorria a Rua Catorze, "prometeu à avó que tomaria conta de mim! "Jimmy precisa de alguém que o oriente", dissera a avó. 'Ele anda metido com gente ruim e deixa-se influenciar com muita facilidade."" Pois bem, Cally nem sequer o fora visitar, uma só vez que fosse, à prisão na ilha Riker e, durante esse tempo, não recebera quaisquer notícias dela.

            Jimmy teria de agir com toda a cautela, pois tinha a certeza absoluta de que a Polícia andaria à sua procura nas proximidades do prédio onde Cally vivia, mas também já planeara a forma de contornar esse problema. Costumava parar por aquelas bandas, pelo que sabia muito bem como chegar, através dos telhados, até ao extremo do quarteirão e ao edificio onde ela vivia. Em duas ocasiões, quando ainda era miúdo, chegara mesmo a fazer dois "trabalhinhos" naquela zona.

            Conhecendo bem Cally, estava certo de que ela teria guardado algumas das roupas de Frank no roupeiro. A irmã enamorara-se loucamente, sem dúvida que continuava a ter fotografias dele espalhadas por toda a casa. Jamais ocorrera a alguém que ele pudesse vir a falecer antes do nascimento de Gigi.

            Mais ainda, sendo Cally precavida, teria pelo menos uns quantos dólares com que, por agora, poderia auxiliar o irmão mais novo, raciocinou Jimmy, e depois haveria de encontrar maneira de a manter caladinha até se pôr ao fresco e seguir para o Canadá, onde estaria em segurança junto de Paige.

            Paige. A imagem da rapariga atravessou-lhe a mente, loura e deliciosa, apenas com vinte e dois anos e louca por ele. Fora ela quem tratara de tudo, conseguindo fazer com que a arma lhe chegasse às mãos sem que ninguém se apercebesse. Nunca o deixara ficar mal, nem tão-pouco lhe virara as costas.

            O sorriso de Jimmy era desagradável. "Nunca mexeste um dedo enquanto eu apodrecia na prisão na ilha Riker", pensava ele, "... mas uma vez mais, minha querida irmã, vais ajudar-me a fugir, quer isso te agrade quer não."

            Estacionou o carro a um quarteirão de distância das traseiras do prédio onde Cally vivia, fingindo inspeccionar o estado de um dos pneus enquanto, sub-repticiamente, observava as redondezas. Não avistou nenhum polícia, mas, mesmo que mantivessem a casa de Cally sob observação, era pouco provável que soubessem da possibilidade de entrar no prédio através da lixeira entaipada. Quando se endireitou, Jimmy praguejou ao ver um autocolante colado no pára-choques, dava muito nas vistas: "Estamos a gastar a herança dos nossos netos", mas conseguiu descolá-lo.

 

            Quinze minutos mais tarde, Jimmy já abrira a fechadura pouco segura da porta e entrara em casa de Cally. "Grande espelunca", pensou ao olhar para as fissuras no tecto e para o linóleo gasto, mas limpo, que cobria o chão do pequeno

vestíbulo. Cally sempre fora uma mulher muito arrumada.

A um canto daquilo que tinha pretensões a sala de estar via-se uma árvore de Natal, abaixo da qual se viam dois embrulhos feitos com papel de cores garridas.

            Com um encolher de ombros, Jimmy encaminhou-se para o quarto, onde começou a remexer no armário à procura das roupas que sabia de antemão estarem lá guardadas. Depois de ter mudado de vestuário, passou uma busca à casa, tentando encontrar algum dinheiro, mas sem êxito. Com gestos bruscos abriu todas as portas da bancada que separava o fogão, o frigorífico e o lava-louças da pequena sala de estar, procurando em vão uma cerveja, pelo que se viu obrigado a satisfazer-se com uma Pepsi, após o que fez uma sanduíche.

            A acreditar no que as suas fontes de informação lhe haviam dito, Cally já devia ter chegado a casa depois de sair do emprego, no hospital, e de ir buscar Gigi à ama. Sentou-se no sofá, mantendo os olhos cravados na porta, com os nervos em franja. Já tinha gasto em comida a maior parte dos poucos dólares que encontrara nos bolsos do uniforme do guarda, e era imprescindível arranjar mais para pagar as portagens da auto-estrada, e para encher o depósito do automóvel. "Despacha-te, Cally", disse em pensamento. "Onde diabo estás metida?"

            às dezoito menos dez, Jimmy ouviu a chave rodar na fechadura. De um salto, pôs-se de pé e em três passadas largas chegou ao vestíbulo, espalmando-se contra uma parede. Esperou que Cally entrasse em casa e fechasse a porta atrás de si, e só então lhe tapou a boca com uma mão.

            - Não grites! - sussurrou ele, abafando o grito de terror que a irmã ia soltar. - Estás a perceber? - Cally respondeu com um acenar de cabeça e o seu medo era tanto que tinha os olhos arregalados. - Onde está a Gigi? Porque não veio contigo?

            Retirou a mão da boca de Cally durante o tempo suficiente para lhe permitir responder numa voz arquejante, que mal se ouvia:

            - Está em casa da ama. Hoje fica lá até mais tarde para eu poder ir às compras. Jimmy, o que vieste fazer aqui?

            - Quanto dinheiro tens contigo?

            - Toma, leva a minha carteira - replicou Cally estendendo-lha e rezando para que não ocorresse ao irmão revistar-lhe as algibeiras do casaco. "Oh, meu Deus, faz com que ele se vá embora", desejou em silêncio.

            Jimmy agarrou na carteira, fazendo-lhe uma advertência numa voz baixa e ameaçadora.

            - Cally, vou largar-te, mas não tentes nenhuma esperteza, caso contrário Gigi não terá a mamã à sua espera. Estás a compreender?

            -Sim.

            Cally esperou que ele a soltasse para poder voltar-se lentamente, olhando-o frente a frente. Não via Jimmy desde aquela noite terrível, há quase três anos, quando, com Gigi nos braços, chegara a casa vinda do trabalho num infantário, deparando-se-lhe o irmão, que a esperava no apartamento onde vivia na altura, em West Vilíage.

            "Ele não mudou nada", pensou Cally, "com a excepção do cabelo, que está mais curto, e do rosto, mais emagrecido." Nos olhos de Jimmy não se reflectia um único traço do afecto que em tempos, ainda que ocasionalmente, a levara a guardar a esperança de que talvez existisse uma possibilidade de ele vir a regenerar-se num futuro próximo. Essa esperança dissipara-se, nada restava agora do rapazinho assustado, com apenas seis anos, que se colara a ela quando a mãe os abandonou, deixando-os aos cuidados da avó, após o que desaparecera para sempre da vida dos filhos.

            Jimmy abriu a mala de mão da irmã, começando a remexer tudo o que ela continha, até encontrar a carteira e o porta moedas verde.

            - Só uns míseros dezoito dólares! - exclamou, encolerizado, depois de ter contado o dinheiro apressadamente. - Não tens mais nada?

            - Jimmy, só depois de amanhã é que recebo o ordenado - replicou Cally numa súplica. - Leva o que tenho e vai-te embora. Por favor, deixa-me em paz e sossego.

            "O depósito do carro está meio de gasolina", raciocinou Jímmy. "Este dinheiro chega para pagar mais meio depósito e para as portagens. Talvez dê até ao Canadá." Agora teria de fazer com que Cally não abrisse a boca, o que não deveria ser difícil. Só precisaria de a avisar de que, se pusesse a Polícia no seu encalço e viesse a ser apanhado, não hesitaria em jurar que fora ela quem arranjara maneira de lhe fazer chegar a arma às mãos a qual fora posteriormente usada para alvejar o guarda prisional.

            Subitamente ouviu um ruido do lado de fora, que o levou a girar sobre si mesmo, mas ao espreitar pelo ralo da porta não avistou ninguém. Então fez um gesto ameaçador em direcção a Cally, indicando-lhe silenciosamente que se mantivesse calada e, sem fazer barulho, rodou a maçaneta da porta, abrindo uma pequena fresta, que lhe permitiu ver um garotinho endireitar-se e, em bicos de pés, dirigir-se para as escadas.

            Num movimento rápido, Jimmy abriu a porta para trás e, agarrando no garoto, imobilizou-o com um braço em redor da cintura, enquanto com o outro lhe tapava a boca. Em seguida puxou-o para dentro de casa, onde o largou com brusquidão, deixando-o cair no chão.

            - Estavas a espreitar pelo buraco da fechadura, miúdo? Quem é este, Cally?

            - Jimmy, deixa-o, não lhe faças mal. Não sei quem é - gritou ela. - Nunca o vi.

            Brian sentia-se tão atemorizado que mal conseguia falar, mas o medo não o impediu de ver que o homem e a mulher estavam irritados um com o outro. Pensou que talvez ele pudesse ajudá-lo a recuperar a carteira da mãe, e por isso apontou para Cally.

            - Ela tem a carteira da minha mãe.

Jimmy fitou o garoto.

            - Ora bem, é a isso que eu chamo uma boa notícia - comentou ele, com um esgar irónico e voltando-se para a irmã. - Não te parece?

 

            Um dos polícias à paisana conduziu Catherine ao hospital numa viatura sem qualquer distintivo.

            - Vou ficar aqui à sua espera, senhora Dornan - informou o agente. - Tenho o radiorreceptor ligado; logo que Brian seja encontrado informam-nos.

            Catherine anuiu com um acenar de cabeça. "Se encontrarem Brian", foi o pensamento que lhe ocorreu imediatamente e sentiu um nó na garganta perante o terror que aquele lhe inspirava.

            O átrio do hospital fora decorado de acordo com o espírito da quadra natalícia. No centro via-se uma árvore de Natal, grinaldas de sempre-verdes estavam penduradas um pouco por toda a parte, e até o balcão da recepção havia sido enfeitado.

            Quando foi buscar o cartão de visitante, informaram-na de que Tom fora transferido para o quinhentos e trinta. Encaminhou-se então para os elevadores, entrando num que já estava meio cheio, principalmente com pessoal hospitalar

médicos de bata branca com a caneta e bloco de apontamentos a saírem do bolso, que revelavam a sua profissão, duas enfermeiras e alguns auxiliares de enfermagem com o vestuário verde próprio do bloco operatório.

           "Há duas semanas", pensava Catherine, "Tom examinava os seus doentes no Hospital Saint Mary, em Omaha, enquanto eu fazia as compras de Natal. Nesse mesmo fim de tarde levámos as crianças a comer hambúrgueres. Então, tínhamos uma vida normal, boa e divertida, dizíamos piadas a respeito das dificuldades que Tom sentiu o ano passado para conseguir colocar a árvore de Natal em cima do suporte, tendo-lhe eu prometido que compraria um novo. E, uma vez mais, lembro-me de ter pensado que ele estava com um aspecto extremamente fatigado, se bem que nada tenha feito em relação a isso."

            Três dias depois, ele fora-se completamente abaixo.

            - Não tinha carregado para o quinto piso? - perguntou-lhe alguém.

            Catherine pestanejou, despertando dos seus pensamentos.

            - Sim, carreguei, obrigada.

            Saiu do elevador, imobilizando-se por breves instantes, enquanto tentava organizar as ideias e encontrar o que procurava: uma seta na parede que apontasse para os quartos entre os números quinhentos e quinze e quinhentos e trinta.

            Ao aproximar-se da sala das enfermeiras, avistou Spence Crowley. Sentiu a boca seca, pois logo a seguir à operação, que decorrera naquela manhã, o médico assegurara-lhe que tudo tinha corrido pelo melhor, acrescentando que o seu assistente faria a ronda aos doentes durante a parte da tarde. Porque estaria ele ali, e àquela hora? Ficou preocupada. Haveria alguma coisa de anormal?

            Entretanto, Crowley reparou nela e sorriu-lhe. "Oh, meu Deus! Certamente que não sorriria caso Tom estivesse...", um outro pensamento que Catherine não foi capaz de completar.

            O médico contornou rapidamente a mesa aproximando-se dela.

            - Catherine, não estejas com esse ar preocupado! Tom está óptimo. É claro que continua sob o efeito dos analgésicos, mas os sinais vitais estão excelentes. - Ela ergueu o olhar, desejando acreditar nas palavras que ouvia, querendo confiar na sinceridade que via reflectida nos olhos castanhos por trás dos óculos de lentes sem aros. Com firmeza, ele agarrou-a pelo braço, levando-a para o cubículo atrás da sala das enfermeiras. Catherine, não é minha intenção mentir-te, tens de acreditar que há boas hipóteses de o Tom vencer este problema. Tenho alguns pacientes que, apesar de sofrerem de leucemia, continuaram a levar vidas bastante preenchidas e ricas. Existem vários tipos de fármacos que nos permitem manter esta doença sob controlo e o que tenciono ministrar a Tom é o Interferon, com o qual consegui obter resultados milagrosos em alguns dos meus doentes. Inicialmente, o tratamento obrigará a injecções diárias, mas depois de chegarmos à dosagem mais adequada ele será capaz de se injectar a si próprio. Quando estiver completamente recuperado da intervenção cirúrgica, poderá regressar ao trabalho, e posso jurar-te que isso acontecerá. - E acrescentou apressadamente: - Todavia, temos um problema. - Naquele momento, o médico mostrava uma expressão decidida.

- Ao principio da tarde, quando visitaste Tom na unidade de cuidados intensivos, tanto quanto me é dado saber, estavas muito preocupada.

            -Sim.

            Catherine esforçou-se por conter as lágrimas mas fracassou. Sentira-se tão preocupada que, quando a informaram de que o marido sobrevivera na operação, a sensação de alívio fora tal que não conseguiu dominar as suas emoções.

            - Catherine, Tom acabou de me pedir que lhe falasse com toda a franqueza. Está convencido de que eu te disse que o seu estado clínico é muito grave e já começou a não confiar em mim. Pergunta a si mesmo se lhe estarei a esconder alguma coisa e julga que a sua situação clínica talvez seja pior do que realmente é. Pois bem, Catherine, acontece que isso não corresponde à verdade, e a tua tarefa é convencê-lo de que há boas hipóteses de virem a ter ambos uma vida longa e feliz. É essencial que ele não pense que tem um tempo de vida limitado, não só porque essa ideia seria prejudicial à sua saúde, mas também porque, e isto é igualmente importante, não corresponde à verdade. Para que possa recuperar a saúde, Tom precisa de fé na possibilidade de vir a melhorar, o que, substancialmente, é da tua responsabilidade.

            - Spence, eu tinha obrigação de ter visto que ele não estava bem de saúde.

            O médico enlaçou-lhe os ombros, dando-lhe um breve abraço.

            - Ouve uma coisa - começou ele -, existe um velho ditado que diz: "Casa de ferreiro espeto de pau." Quando Tom se sentir melhor, tenciono fazê-lo suar as estopinhas por ter feito tábua rasa de alguns dos avisos que o corpo lhe fez. Mas, por agora, é pôr cara alegre e passo ligeiro para o ir ver. Tenho a certeza de que és capaz.

            Catherine esforçou-se por esboçar um sorriso.

            - Assim está bem?

            - Muito melhor - respondeu o médico. - Mantém o sorriso e não te esqueças de que estamos no Natal. Julguei que esta noite tencionavas trazer os garotos.

            Catherine não podia mencionar que não sabia do paradeiro de Brian, pelo menos por agora. Ao invés, aproveitou para ensaiar o que tencionava dizer a Tom.

            - Brian começou a espirrar e fiquei com receio de que se constipasse.

            - Uma atitude sensata. Muito bem, até amanhã, rapariga, e agora não te esqueças, continua a sorrir. Ficas um espanto, assim.

            Catherine voltou a acenar com a cabeça e começou a percorrer o corredor até ao quarto. Tentando não fazer barulho, abriu a porta. Tom dormia. Através do braço, recebia uma substância intravenosa, que pingava gota a gota, e oxigénio por uns tubos inseridos nas narinas. Estava de uma palidez de mármore e os lábios tinham uma cor entre o cinzento e o azulado.

            A enfermeira particular levantou-se da cadeira.

            - Ele tem perguntado por si, senhora Dornan. Eu espero lá fora.

            Catherine aproximou uma cadeira da cama e sentou-se estendendo a mão para a do marido, em cima da coberta da cama. Examinou o rosto de Tom, perscrutando o mais pequeno pormenor das suas feições: a testa alta, emoldurada por cabelos castanho-arruivados, precisamente a mesma cor dos de Brian; as sobrancelhas espessas, que tinham sempre um aspecto um tudo-nada hirsuto; o nariz bem desenhado e os lábios, que habitualmente esboçavam um sorriso. Catherine pensou nos olhos do marido, mais azuis do que cinzentos, na ternura e compreensão que se lia neles. "Tom incute confiança aos seus doentes", pensou ela. "Oh, Tom, quero tanto dizer-te que o nosso menino desapareceu. Queria pedir-te que ficasses junto de mim, que me ajudasses a procurá-lo."

            Tom Dornan abriu os olhos.

            - Olá, meu amor - saudou numa voz enfraquecida.

            - Olá, digo eu - replicou Catherine baixando-se para o beijar. - Peço desculpa por me ter comportado de forma tão idiota esta tarde. A minha atitude pode ser classificada de síndroma pós-menstrual ou apenas de grande alívio, à moda antiga. Sabes bem como sou capaz de ser uma sentimental toda babada. Chego ao ponto de chorar quando as coisas têm um final feliz. - Catherine endireitou as costas, olhando bem de frente para o marido. - Estás a melhorar de uma maneira assombrosa, esta é que é a verdade.

            Contudo, não lhe passou despercebido que ele não acreditava nas suas palavras. "Ainda não", pensou ela determinada.

            - Julguei que trarias os miúdos contigo - observou Tom, numa voz baixa e entrecortada.

            Catherine compreendeu que, na presença do marido, lhe seria impossível proferir o nome de Brian sem que se fosse abaixo.

            - Tive receio de que se colassem a ti, não permitindo que descansasses - optou ela por dizer rapidamente. - Pensei que seria preferível que esperassem até amanhã de manhã para te visitarem.

            - A tua mãe telefonou - redarguiu Tom numa voz

taramelada -, mas a enfermeira é que falou com ela. Disse que te tinha entregue um presente muito especial para tu me dares. De que se trata?

            - Os rapazes têm de estar presentes. Eles é que querem dar-te essa prenda.

            - De acordo, mas não te esqueças de os trazer amanhã de manhã. Quero vê-los.

            - Com certeza, mas, visto que agora estamos só nós dois, talvez eu devesse meter-me na cama contigo.

            - Assim é que é falar - replicou Tom, abrindo os olhos de novo e esboçando um sorriso agarotado antes de voltar a adormecer.

            Durante um longo momento, Catherine deixou-se ficar com a cabeça em cima da cama e só se levantou quando sentiu a enfermeira entrar em bicos de pés.

            - Não acha que ele está com um aspecto fantástico? - perguntou Catherine, com uma expressão radiante, enquanto a enfermeira tomava o pulso de Tom.

            Sabia que até mesmo naquela semi-sonolência, era possível que o marido ouvisse as suas palavras. Pouco depois, lançando-lhe um último olhar, saiu do quarto num passo apressado. Percorreu o corredor em direcção ao elevador, atravessou o átrio do hospital e encaminhou-se para o carro da Polícia que a aguardava.

            O agente à paisana respondeu à pergunta que ela não formulara.

            - Até ao momento, nada, senhora.

 

            - Eu já te disse que me dês a carteira - insistiu Jimmy Siddons num tom de voz que não augurava nada de bom.

            Cally tentou mostrar uma coragem que não sentia.

            - Não sei de que está este rapaz a falar, Jimmy.

            - Sabe, sim - atalhou Brian. - Eu bem a vi a apanhar a carteira da minha mãe. E vim atrás de si porque tenho de a recuperar.

            - Com que então és um rapazinho esperto, não é? - comentou Jimmy, escarnecedor. - Sempre atrás da massa. -     A expressão do seu rosto adquiriu um aspecto ameaçador

quando se voltou para a irmã. - Não me obrigues a tirar-te a carteira à força, Cally.

            Não valia a pena fingir que não a tinha, pois Jimmy sabia que o garoto dizia a verdade. Cally ainda não despira o casaco. Levou a mão à algibeira, donde tirou a elegante carteira de pele, e, em silêncio, entregou-a ao irmão.

            - Isso pertence à minha mãe - afirmou Brian num tom de desafio.

            Contudo, o olhar que o homem lhe lançou provocou-lhe um arrepio de medo. Estivera prestes a deixar-se levar por um impulso momentâneo, tentando apoderar-se da carteira, mas depois de ter pensado melhor, e subitamente receoso, meteu as mãos nos bolsos.

            Jimmy Siddons abriu a carteira no compartimento das notas.

            - E esta, hem... - exclamou num tom de admiração. - Cally, tu surpreendes-me, levas a palma a alguns ladrões de carteiras que conheço.

            - Eu não a roubei - protestou a rapariga. - Alguém a deixou cair no chão, onde a encontrei. Tencionava devolvê-la pelo correio.

            - Pois bem, podes pôr essa ideia de parte - retorquiu Jimmy. - Agora é minha e bem preciso dela. - Tirou um grosso maço de notas da carteira começando a contá-las. Temos três notas de cem dólares, quatro de cinquenta, seis de vinte, quatro de dez, cinco de cinco e três de um dólar. Ao todo, são seiscentos e oitenta e oito dólares. Nada mau, vai servir-me às mil maravilhas. - Com estas palavras, Jimmy atafulhou o dinheiro dentro do bolso do casaco de camurça que tirara do roupeiro do quarto, e começou a inspeccionar os vários compartimentos da carteira. - Cartões de crédito. Ora bem, e porque não? Uma carta de condução... não, duas cartas de condução: Catherine Doman e doutor Thomas Dornan. Quem é este doutor Dornan, miúdo?

            - É o meu pai. Ele está internado no hospital.

            Brian observava a cena, até que do compartimento mais fundo da carteira surgiu a medalha.

            Jimmy Siddons retirou-a, pegou-lhe pela corrente e começou a rir-se com uma expressão de incredulidade.

            - São Cristóvão! Há anos que não ponho os pés numa igreja, mas até eu sei que há já muitos anos que correram com ele. Quando me lembro de todas aquelas histórias que a avó nos costumava contar, de como ele levou Cristo aos ombros, atravessando o ribeiro ou o rio, ou lá o que era! Recordas-te, Cally?

            Numa atitude desdenhosa deixou que a medalha caísse para o chão e Brian baixou-se de imediato para a apanhar. Guardou-a dentro da mão bem fechada, após o que colocou o fio à volta do pescoço.

- O meu avô usou-a durante a guerra e voltou para casa são e salvo. Ela vai fazer com que o meu pai fique melhor. A carteira não me interessa nada, pode ficar com ela, o que eu realmente queria era esta medalha. Agora vou-me embora.

            Dito aquilo, Brian voltou-se e correu para a porta e já tinha dado a volta à maçaneta quando Siddons o alcançou, tapando-lhe a boca com a mão, ao mesmo tempo que o obrigava a retroceder com brusquidão.

            - Tu e o São Cristóvão vão ficar aqui, ao pé de mim, meu menino - disse o homem, empurrando o garoto com violência para o chão.

            Brian ficou sem respiração quando a sua cabeça embateu no linóleo rachado. Com lentidão, sentou-se, parecia-lhe que a sala andava à roda, mas ouvia a mulher que perseguira falar com o homem em tom de súplica.

            - Jimmy, não lhe faças mal. Por favor, deixa-nos em paz. Leva o dinheiro e vai-te embora.

            Brian colocou os braços à volta das pernas, esforçando-se por não chorar. Não devia ter perseguido aquela mulher, agora apercebia-se de que fora um erro. Devia ter gritado por socorro em vez de ir no seu encalço, talvez alguém a detivesse. Aquele homem era ruim, aquele homem não permitiria que regressasse a casa. Ninguém sabia do seu paradeiro, por isso não poderiam procurá-lo.

            Sentiu a medalha que pendia do seu pescoço e cerrou o punho em redor da imagem. "Por favor, permite que eu volte para junto da minha mãe", rezou em silêncio, "para que eu possa oferecer-te ao meu pai."

            Não ergueu o olhar, pelo que não reparou que era alvo da observação de Jimmy, nem sabia que os pensamentos deste lhe corriam pela mente à desfilada, enquanto avaliava a situação. O miúdo fora atrás de Cally depois de esta ter apanhado a carteira, raciocinava Siddons. Teria sido seguido? Não. Fosse esse o caso e naquela altura já teria chegado alguém à sua procura.

            - Onde apanhaste a carteira? - perguntou Jimmy à irmã.

            - Encontrei-a na Quinta Avenida, no lado oposto ao Centro Rockefeller - respondeu Cally, que naquele momento já se sentia aterrorizada. Jimmy não se deteria perante nada que pudesse impedi-lo de fugir, não hesitaria em matá-la e seria também capaz de fazer o mesmo á criança.

- A mãe dele deve tê-la deixado cair, apanhei-a junto ao lancil do passeio. Calculo que ele me tenha visto.

            - Imagino que sim - concordou Jimmy, olhando para

o telefone na mesinha junto do sofá. Então, com um esgar que pretendia ser um sorriso, sacou do telemóvel, que tirara do porta-luvas do automóvel que roubara e também de uma pistola, que apontou a Cally. - É possível que a bófia tenha colocado o teu telefone sob escuta - continuou Jimmy apontando para a pequena mesa próxima do sofá. - Passa para ali. Vou ligar o teu número e dizer-te que quero entregar-me à Polícia, e que pretendo que telefones ao advogado que o promotor público nomeou para me defender. Tudo o que tens a fazer é comportar-te de forma simpática, ainda que nervosa, tal como estás a proceder agora. Se cometeres um só erro que seja, tu e este miúdo podem considerar-se mortos. - Interrompeu-se, baixando o olhar para Brian. - Um só pio que saia da tua boca e... - deixou a ameaça no ar, sem concluir a frase. Brian esboçou um gesto que indicava ter compreendido. Estava tão atemorizado que nem sequer foi capaz de dizer que se manteria calado. - Cally, percebeste tudo o que te disse?

            A interpelada acenou que sim. "Mas que grande estúpida eu fui", pensou ela. "Fui suficientemente idiota para me convencer de que conseguia afastar-me dele. Nada feito. Até sabe o meu número de telefone."

            Jimmy acabou de marcar o número e o aparelho junto de Cally começou a tocar.

            - Estou - disse ela, numa voz baixa e ensurdecida.

            - Cally, fala o Jimmy. Ouve, estou metido num sarilho. O mais certo é já teres conhecimento do que se passa. Lamento muito ter tentado a fuga da prisão e só espero que o guarda sobreviva. Estou teso e tenho receio. - A voz dele parecia uma sucessão de lamúrias. - Liga para o Gil Weinstein, o advogado que a acusação nomeou para me defender, e diz-lhe que preciso de encontrar-me com ele na Catedral de Saint-Patrick, quando a Missa do Galo acabar. Tenciono entregar-me, mas quero que esteja ao meu lado quando o fizer. O número de telefone da sua casa é o cinco cinco cinco zero dois seis sete. Cally, lamento muito ter causado esta complicação toda. - Jimmy desligou o telemóvel e observou Cally, que o imitou. - Eles não podem descobrir a origem de um telefonema feito através de um telemóvel, sabes isso, não é verdade? Muito bem, agora liga para o Weinstein e conta-lhe a mesma história. Se os polícias estiverem à escuta, nesta altura já dão saltos de contentes.

            - Jimmy, vão pensar que eu...

            Em duas passadas largas, o irmão colocou-se ao lado dela, apontando-lhe a arma à cabeça.

            - Faz o telefonema.

            - Se calhar o teu advogado nem sequer está em casa, e é possível que se recuse a encontrar-se contigo.

            - Não, eu conheço-o bem. É um idiota chapado e quererá aproveitar a publicidade. Liga-lhe.

            Não foi preciso dizer de novo a Cally que fizesse a ligação com rapidez, e no preciso momento em que Gil Weinstem atendeu do outro lado da linha, ela começou logo a falar.

            - O senhor não me conhece, o meu nome é Cally Hunter. O meu irmão, Jimmy Siddons, acabou de me telefonar e pediu-me que lhe dissesse... - numa voz entrecortada, Cally repetiu a mensagem do irmão.

            - Estou de acordo em encontrar-me com ele - anuiu o advogado. - Fico satisfeito por Jimmy ter tomado essa decisão, mas se o guarda prisional falecer, o seu irmão enfrentará um julgamento que o pode sentenciar à pena de morte. Pelo primeiro homicídio poderia apanhar prisão perpétua, sem hipótese de liberdade condicional, mas agora... - e a voz do homem sumiu-se.

            - Estou em crer que ele se dá conta dessa possibilidade - replicou Cally, vendo o gesto que Jimmy lhe fazia. - Agora tenho de desligar. Adeus, doutor Weinstein.

            - Davas uma cúmplice e peras, irmãzinha mais velha - ironizou Jimmy, que depois baixou o olhar para o garoto. - Como te chamas, miúdo?

            - Brian - respondeu o rapazito num murmúrio.

            - Vamos embora, Brian. Vamos pôr-nos a andar daqui para fora.

            - Jimmy, deixa-o em paz, por favor, deixa-o ficar aqui comigo.

            - De maneira nenhuma! Há que não esquecer a possibilidade de ires a correr contar tudo aos chuis, apesar de tu própria estares metida numa grande alhada a partir do momento em que esse miúdo começar a falar com a Polícia. Ao fim e ao cabo, a verdade é que roubaste a carteira da mãe dele. Não, o rapaz vem comigo. Ninguém desconfiará de um tipo acompanhado de um miúdo, não te parece? Amanhã de manhã ponho-o em liberdade, quando chegar ao lugar para onde vou. Depois disso podes dizer á Polícia tudo o que te der na real gana acerca de mim, e o rapaz até estará disposto a confirmar o que disseres, não é verdade?

            Brian encolheu-se, chegando-se mais a Cally. O homem provocava-lhe tanto medo que todo ele tremia. Tencionaria obrigá-lo a acompanhá-lo?

            - Jimmy, por favor, deixa-o ficar - pediu Cally empurrando Brian, como se pretendesse ocultá-lo atrás de si.

            A boca de Jimmy Siddons contorceu-se num esgar de fúria. Agarrou a irmã por um braço, puxando-a violentamente para junto de si, e torceu-lhe o braço atrás das costas com brutalidade.

            Cally gritou, ao mesmo tempo que largava Brian e caía no chão.

            Com uma expressão no olhar que negava a existência de qualquer sentimento de afecto entre os dois, Jimmy manteve-se perto dela, voltando a apontar-lhe a pistola à cabeça.

            - Se não fizeres como te digo, podes contar com outra dose destas... e pior ainda. Nunca me hão-de apanhar vivo. Nem tu nem ninguém conseguirá enviar-me para a câmara da morte. Além do mais, tenho uma namorada que está à minha espera. Portanto, cala essa boca. Até estou disposto a fazer uma combinação contigo: tu ficas calada e eu não mato o miúdo, mas, se a Polícia tentar armar-me uma cilada, ele leva com um balázio na cabeça. É tão simples quanto isso. Percebeste bem o que te disse? - Jimmy enfiou a pistola por dentro do casaco, baixou-se e, com movimentos bruscos, levantou Brian do chão. - Tu e eu vamos ser uns verdadeiros compinchas, meu menino - disse. - Compinchas a sério - acrescentou com um ar trocista. - Boas festas, Cally.

 

            A carrinha, sem nada que a distinguisse das demais, encontrava-se estacionada junto do passeio oposto ao prédio onde Cally vivia, servindo de posto de observação aos detectives, que mantinham o prédio sob vigilância, na esperança de captar qualquer indício da presença de Jimmy Siddons. Assim, tinham dado pelo regresso de Cally um pouco depois da sua hora habitual.

            Jack Shore, o detective que a visitara da parte da manhã, retirou os auscultadores dos ouvidos, praguejou em silêncio e voltou-se para o seu parceiro.

            - O que te parece, Mort? Não, espera um pouco. Vou dizer-te qual a minha opinião. É um truque. Ele anda a tentar ganhar tempo para poder afastar-se o mais possível de Nova iorque, enquanto nós admiramos as obras de arte na catedral ao mesmo tempo que o procuramos.

            Mort Levy, vinte anos mais novo do que Shore e menos cínico, esfregou o queixo, gesto que indicava sempre que estava mergulhado nos seus pensamentos.

            - Caso seja um truque, não me parece que a irmã seja cúmplice por vontade própria. Não é preciso ser psicólogo para reparar no grau de tensão que se adivinhava no tom da voz dela.

            - Ouve uma coisa, Mort: tu estiveste no funeral de Bul Grasso. Tinha apenas trinta anos e quatro filhos pequenos quando foi alvejado entre os olhos por esse vadio, o Siddons. Se Cally Hunter não nos tivesse ocultado nada, se nos informasse de que havia dado dinheiro e as chaves do seu carro ao sabujo do irmão, Grasso saberia o que o esperava quando o mandou parar por ele não ter respeitado um sinal vermelho.

            - Eu continuo a crer que Cally acreditou na história que Jimmy lhe impingiu, quando lhe disse que andava fugido por ter participado numa luta entre malfeitores e que os do outro bando o perseguiam. Não me parece que soubesse que ele tinha ferido o empregado de balcão de uma loja de bebidas. Ele ainda não cometera delitos de grande gravidade.

            - O que queres dizer é que até essa altura não tinha sido descoberto - ripostou Shore. - É uma pena que o juiz não conseguisse mandar Cally para a cadeia sob a acusação de cumplicidade e encobrimento num caso de homicídio, em vez de a ter condenado apenas por ter ajudado o irmão a fugir à justiça. Saiu da cadeia depois de cumprir uma sentença que não ultrapassou os quinze meses de reclusão, mas o certo é que, esta noite, a viúva de Grasso está a enfeitar a árvore de Natal sem a ajuda do marido. - O rosto do detective ficou avermelhado, tal a cólera que o homem sentia. - Vou entrar no jogo dele. Temos de manter a catedral sob vigilância, não vá dar-se o caso de esse bandalho falar verdade. Fazes alguma ideia de quantas pessoas assistirão à Missa do Galo esta noite? Calcula um número...

 

            Cally sentou-se no sofá de veludo sintético já muito gasto, mantendo as mãos enclavinhadas nos joelhos e a cabeça baixa, com os olhos cerrados. Tremia como varas verdes, incapaz de chorar, de sentir fadiga. "Meu bom Deus, querido Deus, porque está tudo isto a acontecer?"

            O que deveria fazer?

            Se, por acaso, acontecesse algo de mal a Brian, Cally seria a única responsável, pois fora ela quem apanhara do chão a carteira da mãe do garoto, e por esse motivo é que ele a perseguira. Se o rapazito dizia a verdade, o seu pai encontrava-se muito doente, e ocorreu-lhe então ao pensamento a imagem da jovem mulher, de aspecto atraente, que usava um casaco cor-de-rosa, e a certeza que tivera de que tudo na vida dela devia correr na perfeição.

            Logo que Jimmy chegasse ao seu destino, cumpriria o que dissera, libertando o rapazinho? Como poderia ela agir face àquelas circunstâncias? Raciocinando concluiu que, para onde quer que Jimmy se dirigisse, a Polícia encetaria buscas nessa área. "E ainda que ele decida libertar Brian, este contará que veio atrás de mim porque me apoderei indevidamente da carteira", recordou Cally a si própria.

            Contudo, havia que não esquecer que ele ameaçara matar o garoto, se a Polícia lhe armasse uma cilada, e Cally não duvidava de que o irmão falava a sério. "Por conseguinte, se eu contar à Polícia, Brian não terá a mínima possibilidade de sair disto com vida", pensava ela. "Mas se não disser nada e Jimmy decidir libertá-lo, nesse caso poderei afirmar, com toda a sinceridade, que me calei porque Jimmy ameaçou matar a criança, se os polícias se aproximassem dele, e que eu sabia que ele não estava a brincar. Tenho a certeza de que falou muito a sério." Aquele era o pior aspecto do problema.

            A imagem do rosto de Brian não lhe saia do pensamento. Os cabelos castanho-arruivados que lhe caíam para a testa, os olhos grandes de um azul intenso, que denotavam inteligência, as sardas que lhe salpicavam as faces e o nariz. Quando Jimmy o arrastou, a primeira impressão com que ela ficou foi a de que o garoto não teria mais de cinco anos, mas, a julgar pela maneira como ele se expressava deveria ser mais velho. Mostrara-se muito assustado quando Jimmy o obrigara a acompanhá-lo - saíram pela janela e daí saltaram para as escadas de emergência - e voltara-se até para trás, fitando-a com um olhar de súplica.

            Entretanto, ouviu-se a campainha do telefone. Era Aika, a bondosa mulher de raça negra que tomava conta de Gigi, juntamente com os seus próprios netos, todas as tardes, depois de o jardim-escola fechar.

            - Decidi ligar só para saber se já tinhas chegado a casa, Cally - disse Aika numa voz melodiosamente rica e reconfortante. - Conseguiste encontrar o vendedor de bonecas?

            - Infelizmente não.

            - É uma pena. Precisas de mais tempo para ires às compras?

            - Não, vou já buscar a Gigi.

            - Não é preciso. Ela já jantou com a minha malta, e como tenho de comprar leite para o pequeno-almoço, passo perto da tua casa. Deixo-a aí dentro de mais ou menos meia hora.

            - Obrigada, Aika - agradeceu Cally pousando o auscultador.

            Só então reparou que ainda não tirara o casaco. Para além da luz do vestíbulo, a casa estava mergulhada em escuridão. Despiu-o, dirigiu-se para o quarto e abriu a porta do armário, ficando sem respiração ao constatar que Jimmy, quando fora buscar o casaco de camurça e as calças castanhas, que tinham sido do Frank, deixara as roupas que usava amarfanhadas no chão: um casaco, um par de calças e um sobretudo imundo.

            Baixou-se para as apanhar. O detective Shore dissera-lhe que Jimmy, depois de disparar contra um guarda prisional, se apoderara do seu uniforme e, na realidade, o casaco tinha vários orifícios de balas.

            Num grande frenesim, Cally enrolou tudo numa trouxa, pensando que, se os polícias fossem a sua casa munidos de um mandado de busca, jamais acreditariam nela quando lhes dissesse que Jimmy forçara a entrada no apartamento. Pelo contrário, ficariam firmemente convencidos de que ela é que dera ao irmão as roupas que ele vestira, e seria enviada outra vez para a prisão. Perderia Gigi para sempre! O que deveria fazer?

            Deu uma vista de olhos pelo interior do roupeiro, como se procurasse desesperadamente uma solução para aquele problema, e foi então que avistou a caixa, colocada na prateleira superior, onde costumava guardar as roupas de Verão, as suas e as de Gigi. Agarrou nela, pô-la no chão, abriu-a e tirou para fora tudo o que continha, colocando as peças de vestuário em cima da prateleira, sem se dar ao trabalho de as dobrar. Em seguida, meteu o uniforme e o sobretudo dentro da caixa, fechou-a e procurou debaixo da cama o papel de embrulho para os presentes de Natal que guardara aí.

            Com as mãos a tremer, denotando todo o nervosismo que sentia, começou a embrulhar a caixa, servindo-se do papel decorado com motivos alusivos à quadra natalícia, e atou-a com uma fita colorida. Em seguida, levou-a para a sala de estar, colocando-a na base da árvore. Tinha terminado aquela tarefa quando ouviu a campainha da porta da rua. Alisando os cabelos e obrigando-se a fazer um sorriso acolhedor, dirigiu-se para o intercomunicador.

            Era o detective Shore, acompanhado de outro colega que viera com ele nessa mesma manhã, e os dois homens subiram.

            - Andamos a brincar de novo, Cally? - perguntou Shore. - Espero bem que não - acrescentou em tom ameaçador.

 

            Brian encolhia-se todo no assento ao lado do condutor, enquanto Jimmy Siddons continuava a conduzir pela East River Drive. O garoto nunca sentira tanto medo na sua ainda curta vida. O homem obrigara-o a trepar pela escada de emergência até ao telhado e, em seguida, tinha sido praticamente arrastado de um telhado para o outro, percorrendo toda a extensão do quarteirão, até que, finalmente, desceram pelo interior de um edificio desocupado, saindo para a rua onde o carro ficara estacionado. Depois empurrara-o para o interior do veículo, prendendo-o com o cinto de segurança.

            - Não te esqueças de me tratar por pai, se houver alguém que nos mande parar - advertira o foragido.

            Brian sabia que o homem se chamava Jimmy, nome que a mulher utilizara ao falar com ele, e reparara também que ela se mostrara preocupada com a sua segurança. Quando Jimmy o puxou através da janela, Cally começara a chorar, o que revelava até que ponto receava pela sorte dele. Assim, como estava a par do nome dos pais de Brian, talvez decidisse chamar a Polícia. Caso o fizesse, encetariam buscas para o encontrar? Mas, por outro lado, Jimmy dissera que O mataria caso tentassem apanhá-los. Teria falado a sério'?

            Brian encolheu-se ainda mais no assento do carro, amedrontado e com fome. Precisava também de ir á casa de banho, mas tinha receio de pedir. O seu único conforto era a medalha que sentia encostada ao peito, por dentro do casaco, a que acompanhara sempre o avô durante a guerra, trazendo-o são e salvo de retorno a casa após esta ter acabado. Certamente que faria com que o estado de saúde do pai melhorasse e com que ele regressasse a sua casa sem lhe acontecer nada de mal. Não tinha a mínima dúvida quanto a isso.

            Jimmy Siddons lançou um olhar de soslaio ao seu pequeno refém. Pela primeira vez, desde que fugira da penitenciária, começava a sentir-se mais descontraído. Continuava a nevar, mas, se a neve não caísse com maior intensidade do que naquele momento, não seria motivo para preocupações. Por outro lado, Cally não se atreveria a chamar a Polícia, tinha a certeza absoluta, pois ela conhecia-o suficientemente bem para acreditar nas suas palavras quando dissera que mataria o miúdo, caso o impedissem de prosseguir viagem.

            "Não estou disposto a apodrecer na cadeia durante o resto da minha vida", pensou Jimmy, "e também não tenciono dar-lhes a oportunidade de me encherem o corpo de veneno. Ou consigo fugir, ou estará tudo acabado. Mas hei-de conseguir."

            Jimmy esboçou um sorriso sombrio. Sabia que já teria sido emitido um alerta pormenorizado em relação à sua pessoa e, consequentemente, naquela altura, todas as saídas de Nova iorque já se encontrariam sob vigilância. Não obstante, ninguém fazia a mais pequena ideia do local para onde se dirigia, e com certeza que a Polícia não desconfiaria de um pai, a viajar de automóvel acompanhado do filho, numa viatura cujo roubo ainda não fora participado.

            Já tirara do porta-bagagens todos os presentes que o casal aí guardara e, naquele momento, estavam empilhados no banco traseiro, como símbolo da alegria natalícia. Aqueles embrulhos aliados à presença do garoto no assento da frente significavam que, mesmo no caso de os cobradores nas cabinas de portagem já terem sido alertados para que se mantivessem atentos, não lançariam um segundo olhar aos ocupantes do veículo.

            Dentro de umas oito ou nove horas, Jimmy atravessaria a fronteira e chegaria ao Canadá, onde Paige estava à sua espera. Então, procuraria um belo lago de águas bastante profundas, que seria o destino daquele automóvel, assim como o de todas as prendas no seu interior, final que também estaria reservado àquele miúdo e à sua medalha de São Cristóvão.

 

            O poder extraordinário de que o Departamento da Polícia de Nova iorque dispunha entrou metodicamente em acção, enquanto se estruturavam planos que garantiriam que Jimmy Siddons não se escaparia por entre as malhas da justiça, não fosse o foragido entrar em estado de pânico no último minuto, dicidindo não se entregar depois da Missa do Galo, que seria celebrada á meia-noite.

            Assim que o sistema de escuta da Polícia começou a gravar os telefonemas que Cally recebera de Jimmy, como o que esta fizera ao advogado, Jack Shore apressou-se a transmitir essas informações. Ao mesmo tempo, dera a conhecer aos seus superiores hierárquicos, com toda a exactidão qual a sua opinião sobre a "decisão" de Siddons se "render" às autoridades.

            - É um disparate em toda a acepção da palavra - dissera ele numa voz de poucos amigos. - Vamos mobilizar umas dezenas de agentes até à uma e meia ou duas da madrugada, enquanto ele já vai a meio caminho do Canadá ou do México, antes de descobrirmos que fez de nós uns idiotas chapados.

            Contudo, o comissário adjunto destacado para aquele caso ripostara-lhe, sem meias palavras.

            - Muito bem, Jack. Todos sabemos o que pensas deste assunto, mas agora é preciso pôr mãos à obra. Ninguém o viu a rondar a casa da irmã, não é verdade?

            - Não, senhor comissário - respondeu Jack Shore, cortando a transmissão, após o que ele e o seu parceiro, Mort, fizeram uma visita a Cally. Quando regressaram à carrinha, o detective entrou outra vez em contacto com a esquadra. - Acabámos de sair do apartamento onde Cally Hunter vive, senhor comissário. Ela está bem ciente das consequências, caso decida ajudar o irmão seja de que maneira for. A ama deixou-lhe a filha em casa quando já nos vinhamos embora, o que me leva a concluir que não sairá durante o resto da noite.

            Mort Levy franziu o sobrolho ao ouvir a conversa que o colega de trabalho travava com o comissário adjunto. Detectara algo naquele apartamento que estava diferente do que vira nessa mesma manhã, embora não fosse capaz de definir o que não batia certo. Mentalmente, começou a rever a forma como o espaço da casa estava dividido: o pequeno vestíbulo, a casa de banho que dava para a entrada, o espaço estreito que abrangia a cozinha e a sala de estar, o quarto, que mais se assemelhava a uma cela, onde mal cabia uma cama de pessoa só, um divã para a garota e uma pequena cómoda com três gavetas.

            Jack perguntara a Cally se se importava que dessem outra vista de olhos pela casa, ao que ela acedera prontamente, pelo que tinham a certeza de que ali não estava ninguém escondido. Abriram a porta da casa de banho, inspeccionaram debaixo das camas e espreitaram para dentro do roupeiro. A contragosto, Levy sentiu piedade perante os esforços que Cally Hunter fizera, numa vã tentativa para imprimir uma atmosfera mais acolhedora àquela casa tão desconfortável. As paredes haviam sido pintadas de um amarelo-garrido e sobre o sofá bastante velho empilhavam-se almofadas, de um tecido florido, dispostas ao acaso. A árvore de Natal fora corajosamente decorada com toneladas de fitas cintilantes, a que se juntavam várias fieiras de pequenas luzes vermelhas e verdes. Por baixo da árvore viam-se uns quantos presentes embrulhados com papel de cores alegres.

            "Presentes?", Mort não compreendeu por que motivo aquela palavra despertara qualquer coisa no seu subconsciente e ficou a pensar por momentos, acabando por abanar a cabeça num gesto de frustração. "Esquece-te disso", disse a si próprio.

            Desejava que Jack não tivesse atormentado Cally Hunter, pois não era difícil ver que a rapariga se sentia aterrorizada com a sua presença. Mort não interviera no caso dela que fora a julgamento há mais de dois anos, mas, a fazer fé no que lhe chegara aos ouvidos, acreditava que Cally tinha pensado sinceramente que o irmão mais novo, sempre metido em problemas, participara numa rixa entre gente pouco recomendável, e que os membros do outro bando andavam à caça dele.

            "De que estarei a tentar recordar-me de ter visto no apartamento?", perguntava Mort a si mesmo. "O que me pareceu diferente?"

            Normalmente, deveriam acabar o turno às vinte horas mas naquela noite os dois detectives tinham de regressar à esquadra. A exemplo de muitos outros agentes, seriam obrigados a fazer horas extraordinárias, pelo menos até à Missa do Galo, que se realizaria na catedral. Talvez, e apenas talvez, Siddons decidisse aparecer, tal como prometera, e Levy sabia que Shore ansiava por efectuar pessoalmente aquela detenção.

            - Eu sou capaz de descobrir esse tipo, ainda que esteja disfarçado com o hábito de uma freira - não se cansava ele de repetir.

            Bateram à porta traseira da carrinha, o que significava que os homens que os substituiriam já tinham chegado. Quando Mort se pôs de pé espreguiçando-se para distender o corpo e saiu para a rua sentiu-se satisfeito por ter dado a Cally Hunter um dos seus cartões-de-visita, ao sair de casa dela.

            - Se lhe apetecer conversar com alguém, senhora Hunter - murmurara-lhe ele - aqui tem um número de telefone para onde poderá contactar-me.

 

            A multidão que enchera a Quinta Avenida estava bastante reduzida àquela hora, se bem que ainda houvesse algumas pessoas que admiravam a árvore de Natal em exposição no Centro Rockefeller e outras que continuavam em fila à espera de poderem ver as montras da Saks, além do fluir constante de visitantes que entravam e saíam da Catedral de Saint-Patrick.

            Mas quando o automóvel em que Catherine seguia parou atrás do carro-patrulha onde o agente Ortiz e Michael aguardavam, ela viu que as pessoas que faziam as últimas compras de Natal já tinham desaparecido.

            "Já estão todos a caminho de suas casas", pensou. "Preparam-se para embrulhar as últimas prendas, dizendo uns aos outros que no próximo ano não tencionam andar a correr pelas lojas na véspera de Natal.

            Deixar tudo para o último minuto, fora essa a sua maneira de proceder até há doze anos, quando um estagiário do terceiro ano, o doutor Thomas Doman, foi aos serviços administrativos do Hospital Saint-Vincent e aproximou-se da sua mesa de trabalho.

            - Você é nova aqui, não é verdade? - perguntara ele.

            Tom, um homem com quem era tão fácil lidar, o que não impedia que fosse uma pessoa muito organizada... Se fosse ela que estivesse doente, ele nunca teria atafulhado todo o dinheiro e os documentos de identificação numa carteira já de si tão cheia, nem a teria guardado de forma tão imprevidente, de maneira a que qualquer pessoa a pudesse ter apanhado do chão.

            Aquele era o pensamento que torturava Catherine enquanto abria a porta do automóvel, saía para a rua, onde a neve caía em rodopio, e dava uma pequena corrida até ao carro-patrulha. Brian nunca se afastaria assim sem mais nem menos, sem ser acompanhado, disso Catherine estava totalmente segura. Mostrara-se de tal maneira ansioso por ir visitar o pai que nem sequer quisera perder tempo a ver a árvore de Natal do Centro Rockefeller, por isso certamente se afastara tendo qualquer coisa de concreto em mente, era a única explicação plausível. Na hipótese de ninguém o ter sequestrado - o que parecia ser pouco provável - devia ter visto a pessoa que furtara ou apanhara do chão a carteira da mãe e fora em sua perseguição.

            Michael estava sentado no assento da frente, ao lado do agente Ortiz, enquanto bebia pequenos goles de um refrigerante. No chão à sua frente via-se o que restava de um hambúrguer com ketehup dentro de um saco de papel castanho. Catherine sentou-se ao lado do filho, no assento onde mal cabia, alisando-lhe os cabelos para trás.

            - Como está o pai? - perguntou ele num tom de ansiedade. - Não lhe contaste o que se passou com Brian, pois não?

            - Não, claro que não. Tenho a certeza de que Brian será encontrado dentro em pouco, pelo que não há motivo para o preocupar. Além de que ele recuperou muito bem. Falei com o doutor Crowley, que está muito optimista a respeito do teu pai. - Por cima da cabeça de Michael, Catherine lançou um olhar ao agente Ortiz. - Já passaram quase duas horas - acrescentou num tom de voz que se esforçava por parecer tranquilo.

            O polícia confirmou com um acenar de cabeça.

            - A descrição dos traços fisionómicos de Brian será dada de hora a hora a todos os agentes da Polícia, assim como aos que estão nos carros-patrulha que percorrem esta área da cidade. Senhora Dornan, Michael e eu temos estado a conversar. Ele tem a certeza de que Brian não se afastou sem que para isso houvesse uma razão.

            - Ele tem razão. Brian não faria uma coisa dessas.

            - Falou com as pessoas que estavam à sua volta quando deu pela falta do seu filho?

            - Falei - confirmou

            - E ninguém lhe disse ter reparado numa criança que fosse levada contra a sua vontade?

            - Não. As pessoas recordavam-se de o ter visto, para logo depois deixarem de o ver.

            - Vou ser muito franco consigo. Não conheço nenhum indivíduo, entre os molestadores de crianças, que tentasse raptar um garoto que estava ao lado da mãe, sendo depois obrigado a passar com ele por entre a multidão na altura aqui presente. Mas Michael acredita que talvez Brian se afastasse depois de ter visto alguém levar a sua carteira.

            Catherine concordou.

            - Tenho estado a pensar na mesma coisa. É a única hipótese que faz um mínimo de sentido.

            - Michael contou-me que, no ano passado, Brian fez frente a um rapaz de catorze anos que empurrou um dos seus colegas de turma.

            - Ele é um garoto cheio de coragem - disse Catherine.

            Contudo, só então é que a importância do que o agente acabara de lhe dizer ficou registada na sua mente. "Ele pensa que se Brian foi atrás da pessoa que se apossou da minha carteira é possível que a tenha enfrentado. Oh, meu Deus, não!"

            - Senhora Doman, caso esteja de acordo, parece-me boa ideia tentarmos obter a cooperação dos meios de comunicação social. Talvez consigamos que algumas das estações de televisão mostrem a fotografia de Brian, caso tenha um retrato dele consigo.

            - A que eu trazia estava na minha carteira - respondeu Catherine num tom de voz monocórdico.

            Pelo seu pensamento começaram a desfilar imagens de Brian fazendo frente a um ladrão. "O meu menino", pensou, "haverá alguém que tivesse coragem de fazer mal ao meu rapazinho?"

            O que estaria Michael a dizer? Naquele momento falava com o agente Ortiz.

            - A minha avó tem um monte de fotografias minhas e do meu irmão - dizia Michael. Soergueu o olhar, fitando a mãe. Seja como for, mãezinha, vais ter de telefonar à avó. Se não formos para casa daqui a pouco, com certeza que ela começará a ficar preocupada.

            "Tal pai, tal filho!", pensou Catherine. "Brian é parecido comigo enquanto Michael tem a mesma maneira de pensar do pai." Catherine fechou os olhos, tentando manter longe do pensamento o sentimento de pânico que a invadia. "Tom. Brian. Porquê?"

            Apercebeu-se de que Michael procurava qualquer coisa na sua mala, donde tirou o telemóvel.

            - Vou ligar para casa da avó - disse-lhe o filho.

 

            No seu apartamento, situado na Rua Oitenta e Sete, Barbara Cavanaugh enclavinhou os dedos no telefone, sem querer acreditar no que ouvia. Mas era impossível pôr em dúvida a terrível notícia que a voz tranquila e quase desprovida de qualquer emoção da filha lhe transmitira. Não sabia do paradeiro de Brian, que já desaparecera há mais de duas horas.

            A custo, Barbara conseguiu expressar-se numa voz a que também imprimiu calma.

            - Onde estás, minha querida?

           - Michael e eu estamos num carro da Polícia, na junção da Rua Quarenta e Nove com a Cinquenta, no mesmo local em que Brian... de súbito dei-me conta de que ele já não se encontrava ao meu lado.

            - Vou já para aí.

            - Mãe, traz as fotografias mais recentes que tiveres do Brian. A Polícia quer dar cópias às televisões e a estação de rádio que só transmite notícias vai difundir, dentro de alguns minutos, um apelo que vou fazer. E outra coisa, telefona para as enfermeiras de serviço no quinto piso do hospital e pede-lhes que não permitam que Tom ligue o televisor do seu quarto. Quanto ao rádio, não há problema, uma vez que não tem nenhum. Se ele ficar a saber que Brian desapareceu...

            Catherine interrompeu-se; faltara-lhe a voz para completar a frase.

            - Vou telefonar imediatamente, mas aqui em casa não tenho fotografias recentes. Estou a referir-me ás que tirámos o ano passado na casa de Nantucket. - Mas só lhe apeteceu morder os lábios. Há muito que pedira à filha que lhe enviasse fotografias recentes dos netos, e no dia anterior Catherine dissera-lhe que a sua prenda de Natal seriam fotos dos dois, já emolduradas, que tinham ficado esquecidas em casa, com a pressa de levar Tom para Nova iorque, onde seria operado. - levarei comigo todas as fotografias que conseguir encontrar - concluiu Barbara apressadamente. - Daqui a nada estarei aí.

            Durante alguns instantes, depois de ter telefonado para o hospital, advertindo as enfermeiras acerca da televisão, Barbara Cavanaugh deixou-se cair em cima de um cadeirão, apoiando a testa na palma da mão e pensando que toda aquela situação era de mais para os seus nervos.

            No seu subconsciente teria estado sempre presente um sentimento que lhe dizia que tudo aquilo era demasiado bom para ser verdade? O seu marido falecera quando a filha tinha apenas dez anos, e os olhos de Catherine reflectiam sempre uma vaga expressão de tristeza, que nunca os abandonava, até que aos vinte e dois anos conheceu Tom. Eram de tal maneira felizes, formavam um casal tão perfeito... "Tal como eu e Gene fomos desde o primeiro dia", pensou Barbara.

            Por instantes fugazes, essas recordações levaram-na a um momento especial, em 1943, quando, com dezanove anos, ainda caloira na universidade, fora apresentada a um jovem oficial do exército extremamente bem-parecido, o tenente Eugene Cavanaugh. Nesse primeiro instante, souberam que haviam sido feitos um para o outro. Dois meses mais tarde já estavam casados, mas só dezoito anos depois é que nasceu a filha, que seria a única.

            "Junto de Tom, a minha filha encontrou o mesmo tipo de relação com que fui abençoada", pensava Barbara, "mas agora...", de súbito, levantou-se de um salto. Tinha de ir

imediatamente para junto de Catherine. "Com certeza que Brian se deve ter perdido", disse para si própria que mãe e filho se tinham separado acidentalmente. Apesar de Catherine ser uma mulher de espírito forte, devia estar prestes a chegar ao seu limite. "Oh, meu bom Deus, permite que alguém descubra o paradeiro do meu neto", pediu Barbara numa prece.

            Atravessou o apartamento num passo apressado, agarrando nas fotografias emolduradas que tinha sobre o rebordo da lareira e em cima de várias mesas. Há dez anos que se mudara para aquela casa, vinda de Beekman Place e continuava a ter mais espaço do que precisava, uma vez que dispunha de uma sala de jantar, de uma biblioteca e de um quarto com casa de banho reservado a alguém que estivesse de visita, o que naquela altura era bastante conveniente, uma vez que quando Tom, Catherine e os netos a visitavam tinham espaço mais do que suficiente para todos.

            Barbara meteu as fotografias dentro da grande e bonita mala de mão que Tom e Catherine lhe haviam oferecido no seu último aniversário e, com movimentos apressados, tirou um casaco do cabide do vestíbulo. Depois, sem se dar ao incómodo de fechar á chave a segunda fechadura, saiu apressadamente, a tempo de carregar no botão de chamada do elevador, que naquele momento descia.

            Sam, o ascensorista que trabalhava ali havia muito tempo, abriu-lhe a porta, e o seu habitual sorriso deu lugar a uma expressão de preocupação.

            - Boas noites, senhora Cavanaugh. Boas festas. Teve mais alguma notícia sobre o estado de saúde do doutor Dornan? - Receando que, se falasse, desataria a chorar, Barbara limitou-se a um abanar de cabeça. - Os seus netos são muito engraçados. O mais pequeno, o Brian, disse-me que a senhora tinha dado à mãe qualquer coisa que faria com que

o pai melhorasse. Só desejo que isso venha a concretizar-se.

           "Também eu", tentou Barbara responder, mas os seus lábios recusavam-se a articular as palavras.

 

            - Mãezinha, porque estás tão triste? - perguntou Gigi quando se instalou no colo de Cally.

            - Não estou nada triste, Gigi - respondeu ela. - Sempre que estou contigo sinto-me feliz.

            A garota abanou a cabeça. Usava uma camisa de dormir vermelha e branca, com motivos alusivos ao Natal, uns anjos segurando candeias. Os seus olhos castanhos enormes e os cabelos ondulados castanho-dourados eram características que herdara de Frank. "Quanto mais cresce, mais se parece com o pai", pensava Cally, que, num gesto instintivo, abraçou a filha apertando-a mais contra si.

            As duas aninharam-se uma na outra, sentadas no sofá, em frente da árvore de Natal.

            - Estou muito contente por estares em casa comigo - disse Gigi numa voz onde se adivinhava algum receio. - Não vais deixar-me outra vez sozinha, pois não?

            - Não. Não foi por minha vontade que te deixei dessa vez, minha queridinha.

            - Não gostei nada de te visitar naquele lugar.

            Naquele lugar. O estabelecimento penal para mulheres.

            - Também não gostei de estar lá - concordou Cally, tentando não dar grande importância ao assunto.

            -           Os meninos devem ficar sempre junto das mães.

            -           Sim, estou de acordo contigo - disse Cally.

            - Aquele presente grande é para mim? - perguntou Gigi, apontando para a caixa que continha o uniforme e o sobretudo que Jimmy despira.

            Cally sentiu os lábios ressequidos.

            - Não, meu amor, é para oferecer ao Pai Natal. Ele também gosta de receber qualquer coisa nesta altura do ano. E agora vamos para a cama, já passa da hora de ires dormir.

            - Não quero... - começou Gigi a dizer automaticamente, mas interrompeu-se. - Se eu for já para a cama, o Natal chega mais depressa?

            -Hum... hum. Vamos lá, eu levo-te ao colo.

            Depois de ter aconchegado os cobertores á volta do corpo da filha, tendo-lhe dado a "abelhinha", um pequeno cobertor já muito usado, companhia indispensável de Gigi sempre que ia para a cama, Cally voltou à sala de estar, onde se deixou cair de novo no sofá.

            "Os meninos devem ficar sempre junto das mães..." As palavras de Gigi atormentavam-na. Deus do céu, para onde é que Jimmy teria levado aquele garotinho? Que sorte lhe reservaria? O que deveria ela fazer?

            Cally ficou a olhar fixamente para a caixa embrulhada em papel de Natal. "É para oferecer ao Pai Natal." Pelo pensamento, passou-lhe fugazmente uma recordação muito vivida de tudo o que aquela caixa continha: o uniforme do guarda prisional que Jimmy alvejara, com uma das mangas ainda peganhenta com o sangue coagulado do homem, e o sobretudo imundo - só Deus poderia saber onde teria ele encontrado, ou roubado, aquilo.

            Jimmy não tinha a mínima consciência do bem ou do mal, nem tão-pouco qualquer sentimento de piedade pelos outros. "Tens de enfrentar a situação", disse Cally a si própria, numa atitude cheia de veemência, "...ele não hesitará em matar o rapazinho, se isso aumentar as suas hipóteses de fuga."

            Ligou o rádio para ouvir o noticiário local. Eram dezanove horas e trinta minutos e a notícia de abertura referia-se ao estado de saúde do guarda prisional alvejado no estabelecimento penal na ilha Riker, cujo quadro clínico continuava a ser crítico, mas que, de momento, se mantinha estável. Com algumas reservas, os médicos mostravam-se optimistas, pensando que o homem talvez conseguisse sobreviver.

           "Se ele resistir, Jimmy não se verá a braços com uma sentença de morte", disse Cally a si mesma. "Nesta altura já não poderão executá-lo pelo homicídio do polícia, que ocorreu já há três anos. Ele é muito esperto e, certamente que não se arriscará a assassinar o garoto, desde que saiba que o guarda não morrerá. Pô-lo-á em liberdade."

            "Passando a outras notícias", anunciava o locutor, "às primeiras horas desta noite, Brian Doman, um garoto com sete anos, desapareceu de junto de sua mãe, na Quinta Avenida. A família encontra-se em Nova iorque porque o pai de Brian..."

            Permanecendo hirta em frente do rádio, Cally continuou a ouvir o locutor, que começou a descrever as caracteristicas fisionómicas de Brian.

            "E agora vamos ouvir um pedido feito pela mãe do garoto", acrescentou, "que pede a ajuda de todos os que estiverem a ouvir-nos."

            Enquanto escutava a voz baixa da mãe de Brian, que articulava as palavras com uma entoação de urgência, Cally visualizava a jovem mulher que deixara cair a carteira no chão. No máximo teria trinta e poucos anos, e os seus cabelos escuros e sedosos davam-lhe pela gola do casaco. Vira-lhe o rosto apenas de fugida, mas ficara com a certeza de que era muito bonita, elegantemente trajada e confiante em si própria.

            Agora, ouvindo-a a suplicar que fossem em seu auxilio, Cally tapou os ouvidos com as mãos e correu para o rádio, que desligou num gesto brusco, dirigindo-se depois para o quarto em bicos de pés. Gigi já adormecera, a sua respiração era suave e regular e tinha a bochecha sobre a palma da mão, como se fosse uma almofada, enquanto a outra agarrava o cobertor de bebé, já tão puído, mantendo-o junto da face.

            Cally ajoelhou-se ao lado da cama da filha. "Posso estender a mão e tocar-lhe", pensava ela, "e aquela mulher não pode acariciar o filho. O que devo fazer? Se eu decidir telefonar para a Polícia e Jimmy fizer mal ao garotinho, dirão que a culpa foi minha, tal como afirmaram que eu era responsável pela morte do polícia."

            Talvez o irmão decidisse deixá-lo num lugar qualquer. "Ele prometeu-me que faria isso. Com certeza que até mesmo Jimmy não se atreveria a fazer mal a um garoto... Vou esperar e rezar."

            Contudo, a oração que tentou dizer numa voz segredada... "Por favor, meu Deus, faz com que Brian esteja em segurança...", soou-lhe a falso, um simulacro de fé, pelo que não a terminou.

 

            Jimmy decidira que a sua melhor hipótese de fuga seria seguir pela Ponte George Washington, em direcção á Estrada Quatro, após o que apanharia a Dezassete até à auto-estrada de Nova iorque. Talvez a distância fosse um pouco maior se optasse por esse percurso ao invés de atalhar pela Bronx e seguir até à TappanZee, mas o seu instinto advertia-o de que devia sair de Nova iorque o mais depressa possível. O facto de não haver portagem na ponte era um aspecto positivo, uma vez que, se o mandassem parar, seria precisamente aí.

            Brian olhou pela janela enquanto atravessavam a ponte. Sabia que estavam a passar sobre o rio Hudson, porque uns primos da mãe viviam em Nova Jérsia, próximo da ponte, e no Verão anterior, quando ele e Michael haviam passado uma semana com a avó, depois de estarem em Nantucket, tinham ido visitar esses primos.

            Eram pessoas simpáticas, também com filhos mais ou menos da idade dele, e só de pensar nesses familiares Brian sentia vontade de chorar. Desejava poder abrir a janela e gritar: "Estou aqui. Por favor, venham buscar-me!"

            Tinha fome e necessitava urgentemente de ir à casa de banho. Ergueu o olhar mostrando uma expressão de timidez.

            -E.... Por favor, posso... Quer dizer, preciso de ir à casa de banho.

            Agora que falara sentia tanto medo de que o homem recusasse o seu pedido que o lábio inferior começou a tremer incontrolavelmente. Com rapidez, mordeu-o, com a impressão de que ouvia Michael a chamar-lhe bebé chorão. Até mesmo esse pensamento negativo lhe provocou grande tristeza. Naquele momento nem sequer se importaria que o irmão mais velho lhe dissesse isso.

            - Queres fazer chichi? - perguntou o homem, que não parecia irritado com ele. Talvez, ao fim e ao cabo, ele acabasse por não lhe fazer mal.

            - Hum... hum.

            - De acordo. Tens fome?

            - Tenho.

            Entretanto, Jimmy começara a sentir-se um pouco mais seguro. Percorríam a Estrada Quatro, o trânsito era muito, embora não houvesse paragens, e ninguém procurava aquele automóvel. Naquela altura, o sujeito que o estacionara perto de sua casa, muito provavelmente já teria vestido o pijama, estaria a ver It's a Wonderful Life pela quadragésima vez, e na manhã seguinte, quando ele e a mulher começassem aos gritos queixando-se de que lhes haviam roubado o Toyota, já Jimmy estaria no Canadá junto de Paige. Era doido por ela, em toda a sua vida a rapariga representava o que mais se aproximava de um sentimento de posse em relação a alguém.

            Jimmy ainda não queria parar para comer, mas, por outro lado, jogando pelo seguro, talvez fosse mais acertado não esperar mais para encher o depósito da gasolina. Era impossível saber quais os horários que os postos de abastecimento praticariam na véspera de Natal.

            - Muito bem - concordou Jimmy -, dentro de uns minutos vamos parar para meter gasolina e irmos à retrete, e nessa altura aproveito para comprar uns pacotes de batatas fritas e uns refrigerantes. Mais tarde paramos pelo caminho num McDonald's, onde podemos comer hambúrgueres. Mas não te esqueças de que, quando pararmos, se tentares atrair a atenção de alguém... - sem terminar, sacou da pistola que guardara no casaco, apontando-a a Brian e fazendo ouvir um estalido seco.

            Brian desviou o olhar. Seguiam na faixa do meio da auto-estrada de três vias e, quando avistaram uma placa que indicava a saída para a Avenida Forest, foram ultrapassados por um carro da Polícia, que quase roçou por eles, após o que guinou para o parque de estacionamento de um restaurante.

            - Eu não falo com ninguém, prometo - conseguiu articular Brian a medo.

            - Prometo, papá - ripostou Jimmy, desabrido.

            "Papá." Involuntariamente, a mão de Brian rodeou a medalha de São Cristóvão. Estava determinado a entregar aquela medalha ao pai, após o que o seu estado de saúde melhoraria, e em seguida, ele haveria de descobrir o paradeiro daquele fulano. o Jímmy, e dar-lhe-ia uma sova por ter sido tão mau para o seu filho. Brian tinha a certeza disso. Assim, enquanto os seus dedos percorriam os contornos da imagem em relevo da figura gigantesca que tinha ao colo Cristo em criança, disse numa voz clara:

            - Prometo, papá.

 

            Na zona baixa de Manhattan, na esquadra central da Polícia, posto de comando da caça ao homem de que era alvo Jimmy Siddons, a escalada de tensão era por de mais evidente. Toda a gente tinha a percepção de que, para levar a sua fuga a bom termo, ele não hesitaria em matar outra vez. A Polícia também sabia que estava munido de uma arma que lhe chegara ilicitamente às mãos dentro da cadeia.

            "Armado e perigoso", dizia a legenda abaixo da sua fotografia reproduzida nos panfletos que estavam a ser distribuídos por toda a cidade.

            - Na última vez, no Verão passado, recebemos duas mil pistas que não nos levaram a nada de concreto, o que não nos impediu de actuar em relação a todas, e o único motivo que nos permitiu metê-lo atrás das grades ficou a dever-se ao facto de ele ter sido suficientemente estúpido para assaltar um posto de abastecimento de combustíveis no Michigan, na mesma altura em que havia um polícia por perto - disse Jack Shore em voz baixa, dirigindo-se a Mort levy, enquanto, sem ocultar o receio que a situação lhe provocava, observava uma equipa de agentes que respondiam a um grande número de telefonemas feitos através de um número indicado especialmente para o efeito.

            Com uma expressão absorta, levy acenou a cabeça.

            - Já se descobriu mais alguma coisa a respeito da namorada de Siddons? - perguntou a Shore.

            - Há uma hora, um dos presos que estivera encarcerado no mesmo bloco celular de Siddons tinha dito a um guarda que no mês anterior este se gabara de uma namorada que se chamava Paige, que disse ser uma stripper de primeira classe a nível mundial.

            A Polícia tentava descobrir o rasto dessa mulher em Nova iorque, mas, motivado por um palpite que lhe dizia que ela talvez tivesse estado envolvida com ele no Michigan, Shore contactara as autoridades desse estado.

            - Não, até agora não sabemos mais nada. O mais certo é esbarrarmos noutro beco sem saída.

            - Um telefonema para ti, Jack, de Detroit - gritou uma voz para se fazer ouvir acima do ruído ensurdecedor que pairava na sala.

            Os dois homens voltaram-se num movimento rápido, e em duas passadas Shore chegou à sua secretária agarrando no telefone. O seu interlocutor não perdeu tempo.

            - Fala Stan Logan, Jack. Conhecemo-nos quando você veio buscar o Siddons no ano passado. É possível que eu saiba algo que lhe interesse.

            - Vamos lá ouvir o que tem para dizer.

            - Nunca chegámos a descobrir o esconderijo de Siddons antes de tentar levar a cabo o assalto na nossa zona, mas a pista sobre Paige é muito capaz de ser a resposta. Temos o cadastro de uma Paige Laronde, que se intitula dançarina exótica e abandonou a cidade há dois dias. Disse a uma amiga que não sabia se regressaria, uma vez que esperava reunir-se ao namorado.

            - Ela mencionou o local para onde tencionava ir? - perguntou Shore num tom de voz brusco.

            - Primeiro falou na Califórnia, mas depois disse que não, que ia para o México.

            - Califórnia e México! Que raio, se ele conseguir chegar ao México nunca mais o encontraremos.

- Os nossos rapazes estão a vigiar as estações ferroviárias e rodoviárias, assim como os aeroportos, por isso talvez consigamos descobrir o rasto dessa mulher. Manter-vos-emos a par do desenrolar da situação - prometeu Logan. - Daqui a pouco começaremos a enviar por fax o cadastro

dela e as fotografias publicitárías, mas não as mostrem aos vossos miúdos.

            Com um gesto brusco, Shore pôs o auscultador no descanso.

            - Se Siddons conseguiu sair de Nova iorque esta manhã, o mais certo é neste momento já ter chegado à Califórnia, ou mesmo ao México.

            - Seria extremamente difícil arranjar uma passagem aérea, assim de repente, na véspera de Natal - recordou-lhe levy cautelosamente.

            - Escuta, se alguém conseguiu passar-lhe uma arma para as mãos, essa mesma pessoa pode ter-lhe arranjado dinheiro e roupas, tal como um bilhete de avião. Provavelmente conseguiu levá-lo até um aeroporto em Filadélfia ou Boston, onde ninguém anda à procura dele. O meu palpite diz-me que Siddons já se encontrou algures com a namorada, pelo que os dois vão a caminho da fronteira no Sul do país, se é que neste momento já não estarão a comer enchiladas. E, quanto a mim, continuo convencido de que, de uma maneira ou de outra, o intermediário só pode ter sido a irmã.

            Franzindo o sobrolho, Mort levy observava Jack Shore, que se dirigia à sala de comunicações onde esperaria que os faxes fossem enviados de Detroit. O passo seguinte seria a distribuição de fotografias de Siddons e da namorada aos agentes da patrulha fronteiriça em Tíjuana, juntamente com o aviso de que deveriam manter-se alerta, caso eles aparecessem nessa região.

            "Mas continuamos a ter de vigiar a catedral esta noite, ainda que a hipótese de Jimmy decidir entregar-se às autoridades seja de uma num milhão", pensava Mort. Qualquer daquelas duas probabilidades lhe soava a falso: a hipótese

do México e a rendição. Seria aquela mulher, a Paige, suficientemente esperta para ter mentido à amiga, prevendo a possibilidade de a Polícia tentar encontrar-lhe o rasto?

            O café e as sanduíches que tinham encomendado acabavam de ser entregues e Mort aproximou-se para se servir da sua, com fiambre em pão de centeio. Duas mulheres-polícias, travavam um diálogo.

            - Continua a não haver indícios sobre o garoto que desapareceu - ouviu uma delas, Lori Martini, dizer. - Com certeza que foi raptado por um tarado qualquer.

            - De que miúdo estás a falar? - perguntou Levy, que, com uma expressão solene, prestou atenção aos pormenores do caso.

            Aquele era o tipo de investigação em que ninguém no departamento conseguia trabalhar sem se envolver emocionalmente. O próprio Mort, que tinha um filho com sete anOS, sabia bem quais os pensamentos que preencheriam a cabeça daquela mãe, além de que o pai estava tão doente que ninguém se atrevera a dizer-lhe que o filho desaparecera. E tudo aquilo durante a quadra natalícia. "Meu Deus, não há dúvida de que algumas pessoas passam efectivamente por maus bocados", pensou o detective.

            - Uma chamada para ti, Mort - gritou uma voz do outro lado da sala.

            Sem largar o café e a sande, Mort regressou à sua mesa de trabalho.

            - Quem é? - perguntou ao colega enquanto se dirigia ao telefone.

            - É uma mulher, mas não quis dizer o nome.

            - Fala o detective Levy - anunciou, levando o auscultador ao ouvido.

            Ouviu o som de uma respiração que denotava medo e, em seguida, escutou um dique, quando a comunicação foi abruptamente cortada.

 

            O repórter da WCBS, Alan Graham, aproximou-se do carro-patrulha onde tinha entrevistado Catherine Dornan há uma hora, altura em que actualizara a história.

            Eram vinte horas e trinta minutos, e a queda intermitente de neve uma vez mais dera lugar a um nevão constante, formado por flocos enormes.

            Através do dispositivo auricular, Graham ouviu o apresentador, que transmitia as últimas informações sobre o foragido que se evadira da cadeia.

            - O estado clínico de Mano Bonardi, o guarda prisional alvejado, continua a ser extremamente crítico. O presidente da câmara municipal, o senhor Giuliani, e o comissário da Polícia, o senhor Bratton, fizeram uma segunda visita à unidade de cuidados intensivos do hospital onde o ferido foi internado, depois de uma intervenção cirúrgica muito melindrosa. De acordo com o último comunicado, as forças policiais estão a seguir uma pista relativa ao agressor, Jimmy Siddons, o qual talvez tenha seguido para a Califórnia, indo ao encontro da namorada e tendo como destino final o México. A patrulha fronteiriça de Tijuana já foi alertada.

            Um dos repórteres recebera uma dica de acordo com a qual o advogado de Jimmy Siddons afirmava que o seu cliente tencionava entregar-se às autoridades depois da Missa do Galo, que seria celebrada na Catedral de Saint-Patrick. Alan Graham sentiu-se satisfeito quando alguém optou por não transmitir aquela notícia. Nenhum dos oficiais mais graduados das forças policiais acreditava realmente naquela possibilidade, e também não desejava que os fiéis, que na altura estivessem na igreja, fossem distraídos das suas devoções religiosas por aquele rumor pouco plausível.

            Naquele momento eram poucos os transeuntes que circulavam pela Quinta Avenida, e ocorreu a Graham que existia algo que quase se poderia classificar de obsceno a respeito das últimas notícias daquela véspera de Natal: um assassino de polícias a monte e um guarda prisional às portas da morte; e um garoto de sete anos desaparecido, que, naquele momento, já se desconfiava ser vitima de alguém cujas intenções não eram as melhores.

            Bateu no vidro da janela do carro-patrulha e Catherine ergueu o olhar, descendo o vidro da janela até meia altura. Ao olhá-la, o repórter perguntou a si mesmo durante quanto mais tempo seria ela capaz de manter aquela compostura deveras notável. Sentava-se no lugar da frente, ao lado do agente Ortiz, e o outro filho, Michael, estava no banco de trás, junto de uma senhora de mais idade, que tinha um braço em redor dos ombros do garoto.

            Catherine respondeu-lhe à pergunta por formular.

            - Continuo à espera - disse em voz baixa. - O agente Ortiz teve a gentileza de ficar a fazer-me companhia. Não sei porquê, mas tenho o pressentimento de que, de uma maneira ou de outra, é aqui que encontrarei Brian. - Voltou ligeiramente a cabeça para trás. - Mãe, este senhor é o Alan Graham da WCBS. Foi ele quem me entrevistou logo depois de eu ter falado contigo.

            O sentimento de compaixão que se espelhava no rosto do jovem repórter não passou despercebido a Barbara Cavanaugh, que, embora sabendo antecipadamente que, se houvesse alguma notícia, já teriam sido informadas, não foi capaz de se conter.

            - Há alguma novidade? - perguntou.

            - Não, minha senhora: Recebemos um grande número de telefonemas na estação de rádio, mas todos desejavam apenas manifestar a sua preocupação.

            - Ele levou sumiço - interveio Catherine, falando numa voz mortiça. - Embora eu e Tom tenhamos educado os nossos filhos no sentido de confiarem nos outros, também sabem como lidar com situações de emergência. Brian foi instruído de forma a procurar um polícia, caso se perdesse, e sabia como ligar para o cento e doze. Só pode ter sido levado por alguém. Quem teria raptado uma criança de sete anos, a menos que...

            - Catherine, minha querida, não te tortures dessa maneira - pediu a mãe. - Todos os que te ouviram através da rádio rezam por Brian. Não deves perder a fé.

            Catherine sentia dentro de si um misto de cólera e frustração crescentes. Sim, supostamente, devia ter "fé". "Sem dúvida que fé é coisa que não falta a Brian. Ele acreditava piamente na medalha de São Cristóvão, muito provavelmente ao ponto de ter seguido a pessoa que apanhou a minha carteira do chão. Sabia que a medalha estava lá dentro e pensou que era seu dever recuperá-la", raciocinou ela. Virou a cabeça para trás, fitando a mãe, num olhar que também abrangeu Míchael, sentado ao lado da avó. Sentiu que parte da cólera a abandonava. Nada do que acontecera havia sido por culpa da mãe. Não, a fé - até mesmo numa coisa tão improvável como uma medalha alusiva a São Cristóvão era uma coisa boa.

            - Tens razão, mãezínha - admitiu Catherine.

            Através do dispositivo auricular, Graham ouviu o locutor falar consigo.

            - Passo-te a transmissão, Alan.

            Afastando-se do automóvel, o repórter retomou a emissão.

            - A mãe de Brian Dornan, Catherine, continua de vigilia no mesmo local onde o filho foi visto pela última vez pouco passava das dezassete horas. As autoridades acreditam na teoria adiantada por ela: o garoto deve ter visto alguém roubar a carteira e foi em sua perseguição. A carteira em causa continha uma medalha de São Cristóvão, que Brian desejava ansiosamente entregar ao pai, preso à cama de um hospital.

            Graham interrompeu as suas palavras, entregando o microfone a Catherine.

            - Brian acredita que a medalha de São Cristóvão ajudará o pai a curar-se. Se eu sentisse a mesma fé que ele, teria mais cuidado com a carteira, uma vez que foi aí que guardei a medalha. Quero que o estado de saúde do meu marido melhore e desejo que o meu filho volte para junto de mim - disse Catheríne numa voz firme a despeito das emoções que lhe iam no coração. - Em nome de Deus, se alguém souber o que aconteceu a Brian, quem o levou, ou onde possa estar, por favor, por favor, peço a essa pessoa que nos contacte imediatamente.

            Graham afastou-se então um pouco do carro-patrulha.

            - Se alguém tiver alguma informação sobre o paradeiro de Brian, e que esteja a ouvir as palavras desta jovem mãe sofredora, agradecemos que nos liguem através do seguinte número...

 

            Os olhos de Cally ficaram marejados de lágrimas e, com o lábio inferior a tremer, desligou o rádio. "Se alguém tiver alguma informação sobre o paradeiro de Brian..."

            "Eu tentei", disse a si mesma cheia de veemência. "Tentei." Ligara para o número que o detective Levy lhe havia dado, mas quando ouviu a voz dele sentiu-se avassalada pela gravidade do que estava prestes a fazer. As autoridades prendê-la-iam. Retirar-lhe-iam Gígi uma vez mais, colocando-a na casa de uma família de acolhimento. "Se alguém tiver alguma informação sobre o paradeiro de Brian..."

            Cally estendeu a mão para o telefone.

            Vindo do quarto, ouviu um gemido que a levou a girar sobre os calcanhares - Gigi estava com outro pesadelo. Apressadamente, encaminhou-se para o quarto, pegou na filha ao colo e começou a embalá-la.

            - Chiiuuu, está tudo bem, dorme descansada.

            - Mãezinha - choramingou Gigi, agarrando-se a ela. - Sonhei que me tinhas deixado outra vez. Por favor, não te vás embora. Por favor, não me deixes sozinha. Não quero viver com outras pessoas, nunca mais!

            - Isso não voltará a suceder, minha querida, prometo-te. Sentiu que o corpo da filha relaxava. Com gestos suaves, voltou a deitar a criança, ajeitando-lhe a almofada e acariciando-lhe os cabelos.

            - Agora vê se adormeces, meu anjo.

            Gigi cerrou os olhos, para os abrir logo de seguida.

            - Posso ver o Pai Natal abrir o presente que lhe vais oferecer? - perguntou num murmúrio.

 

            Jímmy Siddons reduziu o som do rádio.

            - Não há dúvida de que a tua mãe está a dar em doida por causa de ti, miúdo.

            Brian teve de fazer um esforço sobre-humano para não estender a mão e tocar no rádio. A voz da mãe deixara adivinhar tanta preocupação! Tinha de regressar para junto dela. Agora, ela também acreditava no poder da medalha de São Cristóvão, tinha a certeza absoluta de que assim era.

            àquela hora, havia grande número de viaturas a circular pela auto-estrada e, apesar de nevar com bastante intensidade, tal não impedia que todos rolassem com alguma velocidade. Todavia, Jimmy seguia pela faixa mais à direita, por conseguinte, o automóvel não era ultrapassado por esse lado, e Brian começou a delinear o seu plano.

 Se ele conseguisse abrir a porta muito depressa, e depois se deixasse rolar pelo asfalto, poderia ir parar à berma da estrada. Dessa maneira, não seria atropelado por outra viatura. Apertou a medalha por breves instantes, após o que furtivamente estendeu a mão para a porta. Quando lhe aplicou um pouco de pressão, sentiu que esta se deslocava ligeiramente. Não se tinha enganado - depois de ter parado para se abastecer de gasolina, Jimmy não accionara o dispositivo central.

            Brian estava prestes a pôr em prática o seu plano quando de súbito se recordou do cinto de segurança. Teria de o soltar ao mesmo tempo que abria a porta. Com muito cuidado, para não atrair a atenção de Jimmy, colocou o dedo indicador da mão esquerda sobre o botão que libertava o cinto.

            Precisamente quando Brian estava quase a conseguir o Seu intento, Jimmy começou a praguejar. Atrás deles, aproximando-se pela esquerda, vinha um carro descontrolado que, pouco depois, os ultrapassou, quase roçando pelo Toyota. Em seguida, colocou-se à frente deles, bloqueando a faixa de rodagem e obrigando Jimmy a carregar a fundo nos travões. A viatura guinou, perdendo a direcção e começando a derrapar de traseira, enquanto simultaneamente se ouviu o barulho de chapa a embater em chapa. Brian susteve a respiração. "Um choque", implorou em silêncio, "um choque". Nessas circunstâncias, haveria alguém que iria em seu socorro.

            Contudo, Jimmy conseguiu corrigir a direcção do automóvel, contornando os que haviam embatido, e pouco depois Brian começou a ouvir o som de sirenas de várias ambulâncias, e avistou os clarões das luzes intermitentes em redor das viaturas acidentadas, pelas quais Jimmy havia passado rapidamente.

            - Tivemos muita sorte, não achas, miúdo?        - perguntou Jimmy a Brian, baixando o olhar para o garoto e sorrindo, com uma satisfação selvagem.

            Brian continuava com a mão na porta.

            - Vamos lá a ver uma coisa: por acaso não estavas a pensar em saltar se tivéssemos sido obrigados a parar lá atrás, pois não? - interrogou Jimmy, accionando o dispositivo central, que trancava simultaneamente todas as portas. - Mantém a mão afastada dessa porta. Se eu te vir a tocar-lhe outra vez, podes crer que te parto os dedos- afirmou em voz baixa, num tom ameaçador.

            Brian não teve a mínima dúvida de que Jimmy não hesitaria em pôr essa ameaça em prática.

 

            Passavam cinco minutos das dez da noite e Mort levy estava sentado à sua secretária mergulhado nos seus pensamentos. Só lhe ocorria uma explicação para a autoria do telefonema interrompido: Cally Hunter. A carrinha estacionada em frente do prédio onde ela vivia, e que mantinha o seu telefone sob escuta, confirmava isso mesmo. Caso Moit o desejasse, os agentes de serviço ofereceram-se para falar com ela.

            - Não, deixem-na em paz - ordenara o detective.

Sabia de antemão que os esforços deles seriam inúteis, Cally limitar-se-ia a repetir exactamente tudo o que lhes dissera anteriormente. "Mas o certo é que sabe qualquer coisa, está com medo de falar", concluiu o detective em pensamento. Tentara ligar-lhe por duas vezes, mas ela não atendeu o telefone. No entanto, tinha a certeza de que a rapariga estava em casa, pois, caso contrário, os agentes de vigilância na carrinha informá-lo-iam de imediato. Portanto, o que

a levaria a não atender? Deveria ir até casa de Cally? E isso serviria de alguma coisa?

            - O que se passa contigo? - perguntou Jack Shore com mostras de impaciência. - Perdeste a faculdade de ouvir?

Mort ergueu o olhar para o rotundo detective veterano, que o fitava, do alto da sua estatura, com um olhar faiscante. "Não admira que Cally tenha medo de ti", pensou Mort. recordando-se do receio que lera nos olhos da rapariga perante a cólera e hostilidade que Jack manifestara, sentimentos que este não tentara ocultar.

            - Estou a pensar - respondeu Mort sem entrar em

mais explicações, resistindo ao impulso de sugerir que Shore tentasse aquele exercício quando tivesse tempo.

            - Pois bem, acho que devias pensar juntamente connosco. Temos de rever a estratégia a adoptar para mantermos a catedral sob vigilância. - Mas então a atitude admoestadora de Shore suavizou-se. - Mort, porque não fazes um intervalo?

            "Ele não é tão duro quanto tenta aparentar", concluiu Mort de si para si.

            - Não vejo que tu faças algum, Jack - replicou.

            - Acontece que eu odeio Siddons muito mais do que tu

            Com movimentos lentos, Mort levantou-se. Os seus pensamentos continuavam concentrados numa recordação indefinível, associada a uma pista importante que lhe passara despercebida, algo que sabia encontrar-se presente, mesmo á frente dos seus olhos, mas que não conseguia vislumbrar. Haviam falado com Cally Hunter às sete horas e quinze minutos dessa mesma manhã e tinham-na encontrado já vestida para ir trabalhar. Falaram com ela outra vez mais ou menos doze horas depois e, nessa altura, ela mostrara-se desesperadamente preocupada, manifestando grande cansaço. Muito provavelmente, àquela hora já estaria na cama. mas o subconsciente de Mort dizia-lhe que era imperativo falar-lhe. Apesar de Cally o ter negado, o detective acreditava que ela detinha a chave daquele problema.

            Quando se afastava da secretária, o telefone começou a tocar. Atendeu, voltando a ouvir a mesma respiração aterrorizada. Desta feita, tomou a iniciativa.

            - Cally - disse num tom de urgência -, fale comigo. não tenha medo. Seja o que for, pode crer que tentarei ajudá-la.

            Cally nem sequer era capaz de pensar em ir para a cama Estivera a ouvir a estação de rádio, a que transmitia notícias vinte e quatro horas por dia, num misto de receio e esperança de que a Polícia já tivesse encontrado Jimmy, rezando para que o pequeno Brian se encontrasse em segurança.

            às vinte e duas horas, ligou o televisor para ver o noticiáriO local emitido pela Fox, e foi então que o coração lhe çaiu aos pés. A mãe de Brian surgiu sentada ao lado do apresentador, Tony Potts. Naquele momento o cabelo dela parecia mais solto, como se tivesse ficado na rua sujeita à chuva e ao vento, as faces estavam muito pálidas e nos seus OlhoS lia-se uma expressão de sofrimento intenso. Junto de Catherine sentava-se um rapaz, aparentando uns dez ou onze anos.

            "É possível que já tenham ouvido os apelos feitos por Catherine Dornan, pedindo que a ajudem a descobrir o paradeiro do filho Brian", dizia o apresentador. "Convidámo-la, assim como ao irmão de Brian, Michael, a estar aqui connosco. Pouco depois das cinco da tarde de hoje, grande número de pessoas circulava na Quinta Avenida e na Rua Quarenta e Nove e talvez você tenha sido uma dessas pessoas. Assim é possível que tenha reparado em Catherine, acompanhada dos seus dois filhos, Michael e Brian, pois faziam parte de um grupo que ouvia um violinista que tocava canções de Natal e cantavam em coro com outros espectadores. Foi então que Brian, um garoto de sete anos, desapareceu de junto da mãe, que necessita da vossa ajuda para o encontrar."

            Cally mantinha os olhos presos no ecrã, enquanto a fotografia do rapazinho era mostrada, e ouvia as palavras de Catherine.

            "Esta fotografia não é muito boa, por isso permitam-me que vos diga mais alguma coisa a respeito do meu filho. Apesar de ter sete anos, parece mais novo porque não é muito alto. Tem cabelos castanho-escuros, olhos azuis, sardas no nariz e...", faltou-lhe a voz.

            Cally fechou os olhos, era-lhe insuportável observar a expressão de extrema agonia que se reflectia na fisionomia de Catherine Dornan.

            Míchael colocou a mão em cima da da mãe num gesto de ternura.

            "O meu irmão usava um blusão azul-escuro de esqui igual ao meu, só que este é verde, e trazia um boné vermelho. Falta-lhe um dos dentes da frente." Não conseguiu conter uma explosão de emoção. "Ele tem de voltar para junto de nós, não podemos dizer ao meu pai que Brian desapareceu. Ele está muito doente e qualquer preocupação pode fazer-lhe mal." A voz de Michael adquiriu uma entoação ainda mais urgente, "Eu conheço o meu pai, se estivesse a par do que se passa, tentaria qualquer coisa. Com certeza que sairia da cama para começar à procura de Brian, e não podemos deixar que faça isso, está doente, muito doente."

            Cally desligou o televisor e, em bicos de pés, foi ao quarto onde Gígi adormecera finalmente. Estava com uma expressão de serenidade. Em seguida, dirigiu-se para a janela que dava acesso à escada de emergência, sentindo ainda os olhos de Brian a fitá-la por cima do ombro, um olhar que implorava o seu auxílio. Jimmy agarrara-o por uma mão enquanto o garoto mantinha a outra em redor da medalha de São Cristóvão, como se, por milagre, acreditasse que o santo o salvaria. Cally abanou a cabeça, pensando no que aquela medalha representava para Brian. Não se preocupara com o dinheiro, fora atrás dela, única e exclusivamente, porque acreditava que faria com que o pai melhorasse.

            Cally percorreu a curta distância que a separava da sala de estar num passo apressado, agarrando no cartão-de-visita que Mort Levy lhe dera.

            Quando o detective atendeu o telefone quase lhe faltou coragem para falar.

            - Cally, fale comigo - encorajou o detective numa voz cheia de simpatia. - Não tenha medo.

- Senhor Levy - disse ela atabalhoadamente -, pode vir já a minha casa? Tenho de falar consigo sobre o Jime acerca desse rapazinho que desapareceu.

 

            Tudo o que restava da comida que Jimmy comprara, quando pararam para meter gasolina, eram as latas vazias de Coca-Cola e os pacotes amachucados de batatas fritas. Jímmy arremessara o seu para o chão, à frente dos pés de Brian, enquanto este colocara o seu dentro de um saco para o lixo que estava preso abaixo do painel de instrumentos do carro. Nem sequer se recordava já do sabor das batatas fritas. Sentia-se de tal maneira esfaimado, apesar do medo que não lhe dava tréguas, que só conseguia pensar em comida.

            Sabia que Jimmy estava francamente furioso consigo desde o momento em que tinham estado prestes a envolver-se num acidente e o homem se apercebera de que ele planeava saltar do carro. De facto, mostrava-se bastante enervado, não parando de abrir e fechar os dedos que mantinha á volta do volante e fazendo ruidos secos que assustavam o garoto. A primeira vez que ouvira aquele som, Brian havia-se retraído, estremecendo de sobressalto, o que levara Jimmy a agarrá-lo pelo ombro, dizendo-lhe numa voz cavernosa que se mantivesse afastado da porta.

            Pouco antes, a neve começara a cair com maior intensidade, e à frente deles seguia um automóvel que travou, rodopiou e descreveu um circulo, após o que retomou a marcha a direito. Brian compreendeu que o motorista não tinha embatido em nenhuma das outras viaturas, porque todas as que circulavam pela auto-estrada tentavam manter uma distância segura entre si.

                        Mas mesmo assim, Jimmy começou a protestar contra tudo e todos, proferindo um chorrilho constante de obscenidades, palavras que na sua maioria Brian nunca ouvira, até mesmo da boca de Skeet, o miúdo mais malcriado da sua turma.

            O carro que fez um pião reforçou o pressentimento crescente de Jimmy de que, embora prestes a abandonar o país, algo de mau ainda poderia surgir. Pelo caminhar das coisas não lhe parecia que o guarda prisional que ele alvejara conseguísse sobreviver ao ferimento e, caso viesse a morrer...             Jimmy falara muito a sério quando disse a Cally que a Polícia não o apanharia com vida. Então, tentou incutir confiança a si próprio: encontrava-se ao volante de um automóvel de que, muito possivelmente, ainda ninguém dera pela falta, usava umas roupas decentes e levava dinheiro. "Se por acaso tivessem ficado detidos por causa do acidente que um tarado qualquer provocara havia pouco, era muito provável que o miúdo tentasse saltar do carro. Se aquele idiota que fez o pião tivesse batido contra o Toyota, o mais certo seria eu ficar ferido", pensava Jimmy. "Se eu viajasse sozinho, talvez tivesse conseguido escapar-me do acidente, mas nunca com o miúdo ao meu lado." Por outro lado, ninguém sabia que estava acompanhado pelo garoto e, além do mais, jamais passaria pela cabeça de algum polícia desconfiar de um fulano que conduzia um bom automóvel, levando no banco de trás uma série de brinquedos, além do garoto que seguia ao seu lado.

                        Já estavam muito próximos de Siracusa e dentro de três ou quatro horas atravessaria a fronteira e chegaria junto de Paige.

                        Ao seu lado direito viu um letreiro que anunciava um McDonald's a pouca distância. Jimmy sentia fome e aquele seria um bom lugar para comer alguma coisa, até porque seria última refeição até chegarem ao Canadá. Tencionava encomendar algo para os dois sem ter de sair do carro, após o que regressaria imediatamente à estrada.

            - Qual é o teu prato preferido, miúdo? - perguntou ele num tom de voz quase cordial.

            Brian, que também avistara a tabuleta do McDonald's. conteve a respiração na esperança de que aquilo significasse que iriam comer qualquer coisa brevemente.

            - Um hambúrguer, batatas fritas e uma Coca-Cola - respondeu com timidez.

            - Se eu parar no McDonald's és capaz de fingir que estás a dormir?

            - Sim, prometo.

            - Então faz isso. Encosta-te a mim e fecha os olhos.

            - Está bem.

            Obedientemente, Brian encostou-se a Jimmy e cerrou as pálpebras com toda a sua força, esforçando-se por não deixar adivinhar o temor que sentia.

            - Vamos lá a ver que espécie de actor és tu - acrescentou Jimmy. - E é melhor para ti que sejas bom.

            A medalha de São Cristóvão deslizara para o lado, mas Brian endireitou-a de forma a poder senti-la, pesada e reconfortante, encostada ao seu peito.

            O facto de estar tão perto daquele fulano assustava-o. não era o mesmo quando ia de automóvel ao lado do pai e se aninhava junto dele, sentindo a mão paterna dar-lhe pancadinhas de afecto no ombro. Jimmy ficou tenso quando viu um carro-patrulha colocar-se atrás de si, mas não tinha outra alternativa para além de se manter sossegado, tentando não atrair a atenção sobre a sua pessoa. Quando chegou a vez deles, encomendou a refeição, que pagou na mesma altura, e o empregado que o atendeu nem sequer lançou um olhar de fugida ao automóvel, mas quando parou no local onde levantaria a refeição, a empregada olhou por cima do balcão para Brian, iluminado pela luz que se projectava por trás dela.

            - Imagino que ele está ansioso por ver o que o Pai Natal lhe trará, não é verdade?

            Jimmy respondeu com um acenar de cabeça e um sorriso de aquiescência, enquanto estendia a mão para o saco com a comida.

            A mulher inclinou-se por cima do balcão, espreitando para dentro do carro.

            - Meu Deus, ele traz ao pescoço uma medalha de São

Cristóvão!? O meu pai foi baptizado com esse nome e faz

sempre um grande alarde por causa disso, mas a minha mãe

goza constantemente com ele por causa de São Cristóvão ter sido retirado do calendário dos santos. Ao mesmo tempo, o

meu pai costuma dizer que é uma pena que a minha mãe se chame Filomena, outra santa que o Vaticano disse que não existe - e soltando uma sonora gargalhada, a jovem entregou-lhe o saco com a refeição.

Quando retomaram a auto-estrada, Brian abriu os olhos. às narinas chegava-lhe o aroma dos hambúrgueres e das batatas fritas e, lentamente, sentou-se direito.

            Jimmy fitou-o com um olhar implacável, num rosto de feições endurecidas.

            - Tira o raio dessa maldita medalha do pescoço! - ordenou ohomem em voz baixa, por entre uns lábios que mal se    apartaram.

 

            Cally tinha de falar com ele a respeito do irmão e do garoto desaparecido. Depois de lhe ter prometido que iria imediatamente ter com ela, Mort Levy desligou o telefone, sentindo-se desconcertado. Que ligação poderia existir entre Jimmy Siddons e o rapazinho que levara sumiço na Quinta

Avenida? Entrou em comunicação com a carrinha que vigiava casa de Cally.

            - Gravaram esta chamada?

            -           Ela estará doida, Mort? É impossível que se esteja a referir ao garoto Dornan, não achas? Queres que a detenhamos para interrogatório?

            -           Isso é precisamente o que não quero que façam! - ripostou Levy, furioso. - Ela já está demasiado assustada. Deixem-se ficar quietos até eu chegar aí.

            Tinha de informar os seus superiores, começando por Jack Shore, acerca do telefonema que recebera de Cally Hunter. Avistou então o colega quando este saía do gabinete do chefe de detectives e, em escassos segundos, levantou-se da cadeira, atravessou a sala e agarrou-o por um braço.

            - Volta para o gabinete.

            - Eu disse-te que fizesses um intervalo - retorquiu Shore, tentando libertar-se da mão que lhe prendia o braço.

            - Recebemos mais notícias de Detroit, do Logan. Há dois dias uma mulher que se ajusta à descrição que temos da namorada de Siddons pediu boleia ao motorista de um serviço particular de automóveis e atravessou a fronteira até Windsor. Os homens de Logan estão convencidos de que a Laronde disse à amiga que talvez fosse para a Califórnia, ou para o México, a fim de despistar a Polícia. Voltaram a interrogar essa amiga e desta vez ela lembrou-se de mencionar que se tinha oferecido para comprar o casaco de peles da Laronde, uma vez que não seria preciso no México, mas a oferta foi recusada.

            "Nunca acreditei nessa história do México", pensou Mort Levy, não abrandando a força com que agarrava o braço de Shore enquanto empurrava bruscamente a porta do gabinete do chefe de ambos.

            Decorridos cinco minutos, um carro-patrulha já percorria velozmente East Side Drive, em direcção à junção da Avenida B com a Rua Dez. Transportava um Jack Shore amargamente frustrado por ter recebido ordens para esperar na carrinha de onde a casa de Cally era mantida sob vigilância enquanto Mort e o chefe de ambos, Bud Folney, subiriam ao apartamento de Cally.

            Mort sabia de antemão que Shore nunca lhe perdoaria a sua insistência para que se mantivesse afastado daquele assunto.

            "Jack, quando fomos a casa da Hunter apercebi-me de que a rapariga não nos dizia tudo o que sabia. Tu conseguiste instilar-lhe um terror extremo, ela acredita que estás disposto a fazer tudo para a voltares a pôr atrás das grades. Por amor de Deus, não és capaz de a olhar como um ser humano como os demais? Tem uma filha com quatro anos, o marido faleceu e foi acusada de tudo e mais alguma coisa, cometeu o erro de ajudar o irmão, que, para todos os efeitos, foi criado por ela."

            Mort deixou aqueles pensamentos e concentrou a atenção em Folney.

           - Não sei de que forma é que Jimmy Siddons está relacionado com o caso do garoto desaparecido, mas uma coisa é certa: sei que Cally até agora teve medo de falar. Caso se

decida a revelar-nos finalmente o que nos ocultou, será por que sente que o departamento, ou seja, o senhor... não tentaria armar-lhe uma cilada.

            Folney aquiesceu com um menear de cabeça. Era um homem magro, com quase cinquenta anos, de falas mansas e aspecto severo, que exercera a profissão de professor durante três anos numa escola do ensino secundário antes de ter compreendido que a sua vocação era a defesa da lei e da ordem. Entre as forças policiais, de uma maneira geral, todos acreditavam que um dia seria guindado ao posto de comissário. Era um dos chefes que gozavam de mais poder no departamento.

            Mort Levy sabia que, se houvesse alguém que pudesse elibar Cally Hunter, partindo do pressuposto de que ela fora forçada, sabe-se lá como, a encobrir Jimmy de novo, essa pessoa era Folney. Mas com respeito ao assunto do garoto que continuava desaparecido - como estaria Siddons envolvido naquele caso?

            Tratava-se de uma pergunta que todos desejavam ansiosamente ver respondida.

            Quando um carro-patrulha estacionou atrás da carrinha de vigilância, Shore fez um último apelo.

            - Se eu prometer ficar calado...

            - Sugiro que comeces a pôr essa sugestão em prática.

            - Exactamente, Jack - atalhou Folney. - Entra na carrinha.

 

            Pete Cruise estava a pensar dar o seu dia por terminado. Conseguira descobrir onde é que Cally Hunter vivia quando tentara entrevistá-la depois de ter saído da penitenciária, e agora mantinha a esperança de que o irmão acabasse por aparecer. Contudo, para além da neve, que ia caindo com mais ou menos intensidade, há muitas horas que nada despertava o seu interesse, apenas a queda de neve parecia ter parado de vez. A carrinha que sabia pertencer à Polícia continuava estacionada do outro lado da rua onde se situava o apartamento de Cally, se bem que, muito provavelmente, os agentes se limitassem a registar os telefonemas feitos e recebidos em casa dela. Naquele momento, as probabilidades de Jimmy Siddons aparecer de súbito à porta da irmã eram iguais às de dois estranhos com as mesmas caracteristicas genéticas no seu ADN.

            Pete concluiu que as horas que passara a vigiar o prédio onde Cally Hunter vivia eram uma perda de tempo. Desde o momento em que vira a mulher chegar a casa, pouco antes das seis da tarde, até o automóvel dos dois detectives ter estacionado, cerca das dezanove, não acontecera nada.

            Pete mantivera, durante todo o tempo de espera, o seu potente radiorreceptor ligado, mudando entre a frequência da Polícia, a da sua estação de rádio, a WYME, e a WCBS, a estação noticiosa. Nada ouvira sobre o paradeiro de Siddons. Só sabia que o garoto infelizmente continuava desaparecido.

            Quando o noticiário das vinte e duas horas começou a ser transmitido na WYME, Pete pensou pela centésima vez que a apresentadora de serviço dava a impressão de ser uma idiota chapada, mas, verdade fosse dita, ela exprimia-se com uma emoção genuína quando falava do rapaz de sete anos

que ainda não fora encontrado. "Talvez precisemos que todos dias desapareça uma criança", disse Pete para si própria com sarcasmo, mas acto contínuo sentiu-se envergonhada por ter pensado daquela maneira.

            No prédio onde vivia Cally Hunter registava-se grande movimento. Muitas das igrejas tinham antecipado a celebração

religiosa da meia-noite para as vinte e duas horas. Independentemente dessa alteração, havia gente que

continuaria a chegar atrasada, pensava Pete ao ver um casal idoso que, num passo apressado, saía de um edificio contíguo, virando em direcção à Avenida B. Possivelmente iriam

à Igreja de Saint-Emeric.

            A mulher que tinha levado a filha de Cally Hunter a casa. surgiu ao princípio do quarteirão. Iria ela ao apartamento da rapariga porque esta planeara sair?, perguntou-se Pete.

            Como resposta à sua pergunta limitou-se a um encolher de ombros. Talvez Cally tivesse um encontro marcado para uma hora tardia, ou quisesse ir à igreja. Era óbvio que aquele dia não seria o melhor para conseguir a reportagem que lhe daria fama.

            "Isso acabará por acontecer", prometeu Pete a si mesmo. "Não tenciono ficar muito tempo nesta estação." Um dos seus amigos, que trabalhava para a WNBC, adorava atazaná-lo por causa do emprego, e a sua piada preferida era dizer que o nível de audiência da WYME se limitava a duas baratas e a três gatos vadios. "Essa é a estação de rádio Porquê Eu?!", comentava ele na brincadeira.

            Pete ligou o automóvel e preparava-se para arrancar quando avistou um carro-patrulha que, depois de percorrer velozmente o quarteirão, parou em frente do prédio onde Cally habitava.

            Pete observou três homens que saíam do veículo. Reconheceu logo um deles, era Jack Shore, que atravessou a rua e entrou na carrinha. Em seguida, a luz que irradiava do átrio do edificio permitiu-lhe identificar a figura de Mort Levy. Não conseguiu distinguir com nitidez o outro homem que acompanhava o detective.

            Sem dúvida que havia qualquer coisa prestes a acontecer, por isso Pete desligou o motor, subitamente o caso voltara a despertar-lhe atenção.

 

            Enquanto esperava que Mort Levy chegasse, Cally foi buscar os presentes de Natal de Gigi ao sítio onde os escondera, atrás do sofá, e colocou-os à frente da árvore de Natal. O carrinho de bonecas em segunda mão, ao fim e ao cabo. não tinha um aspecto assim tão mau, concluiu ela, depois de o enfeitar com uma bonita colcha e uma almofada de cetim azul. Em seguida, deitou a boneca-bebé no carrinho. Comprara-a no mês anterior, por dois dólares, mas não era tão engraçada como a que quisera adquirir ao vendedor ambulante que costumava estar na Quinta Avenida, essa tinha cabelos castanho-dourados iguais aos de Gigi e um vestido azul próprio para festas. Se ela não tivesse andado à procura desse mesmo vendedor ambulante, não veria a carteira e, consequentemente, o rapazinho não iria em sua perseguição, e...

            Cally afastou aquele pensamento. Naquele momento era incapaz de sentir fosse o que fosse. Com todo o cuidado, começou a empilhar os presentes que embrulhara com papel alusivo ao Natal: um conjunto de roupa a condizer que comprara na Gap umas calças de licra e uma camisola pólo, lápis de cera e um livro com desenhos para colorir, e umas quantas peças de mobiliário para a casa de bonecas de Gigi. Tudo, até mesmo o conjunto da Gap, fora colocado em caixas separadas, com a finalidade de, pelo menos, dar a impressão de que a criança tinha uma grande quantidade de prendas para abrir.

            Tentou evitar olhar para o embrulho maior que se encontrava na base da árvore, o presente que Gigi pensava ser para oferecer ao Pai Natal.

            Por último, telefonou para casa de Aika. Como os netos da sua amiga regressavam a casa dos pais todas as noites, tinha a certeza de que ela poderia ir a sua casa, ficando a olhar por Gigi, caso os polícias a decidissem prender depois de ela lhes contar o que sabia sobre Jimmy e o garoto desaparecido.

            Aika atendeu logo ao primeiro toque.

            - Está lá? - perguntou na voz cheia de calor humano que lhe era tão característico.

            "Se ao menos eles permitissem que Gigi ficasse com Aika, caso decidam levar-me de novo para a cadeia...", pensava Cally. Antes de responder, tentou desfazer o nó que lhe embargava a garganta.

            - Aika, tenho um problema. Podes vir a minha casa dentro de meia hora? É possível que tenhas de passar a noite aqui.

            - Claro que sim - respondeu sem fazer qualquer pergunta.

                        Enquanto Cally colocava o auscultador no descanso, ouviu a campainha da porta da rua, que soou por todo o apartamento.

                        - Os telefones não param de tocar, senhora Dornan - disse Leigh Ann Winick, a produtora do noticiário das vinte e duas horas do Canal 5 da Fox, dirigindo-se a Catherine, enquanto evitava cuidadosamente pisar os cabos espalhados pelo chão, quando esta e Michael já se preparavam para abandonar a área reservada à emissão do programa. - Até parece que os nossos telespectadores querem que a senhora saiba que estão a torcer por si, rezando pelo bem-estar de Brian e do seu marido.

            - Muito obrigada - agradeceu Catherine, fazendo uma tentativa para sorrir.

            Baixou o olhar fitando Michael. O filho fizera um esforço enorme para não se deixar ir abaixo por causa da mãe e só depois de ouvir o apelo que ele fizera perante as câmaras é que teve a percepção plena do desgosto que aquela situação lhe estava a causar.

            Michael colocara as mãos nas algibeiras e tinha os ombros descaídos numa atitude que denotava tristeza, precisamente a mesma postura que Tom assumia, inconscientemente, sempre que se sentia preocupado com o estado de saúde de um doente. Catherine endireitou os seus próprios ombros e colocou o braço em redor dos do filho quando a porta do estúdio se fechou atrás dos dois.

            - As nossas funcionárias têm agradecido em seu nome a todos os que telefonam - acrescentou a produtora. - Há mais alguma coisa que gostasse que transmitíssemos aos nossos telespectadores?

            Catherine respirou fundo, apertando mais o braço em redor dos ombros de Michael.

            - Gostaria que lhes dissesse que estamos convencidos de que deixei cair a minha carteira no chão e que aparentemente Brian foi atrás da pessoa que a apanhou. A razão por que ele estava tão ansioso em recuperá-la prende-se com o facto de a minha mãe me ter dado pouco antes uma medalha de São Cristóvão, que o meu pai nunca tirou do pescoço durante a Segunda Guerra Mundial, pois acreditava que sem ela não teria regressado a casa são e salvo. Até tem uma mossa no ponto onde uma bala, que lhe poderia ter custado a vida, fez ricochete. Brian sente a mesma fé maravilhosa, acreditando firmemente que São Cristóvão, ou o que quer que seja que ele representa, uma vez mais, voltará a olhar por nós... sentimento que eu também partilho. Não duvido de que São Cristóvão trará Brian aos ombros para junto de nós, assim como ajudará o meu marido a melhorar. Não é verdade, parceiro? - perguntou Catherine ao filho, brindando-o com um sorriso.

            - Mãezinha, acreditas realmente no que acabaste de dizer? - inquiriu Michael com um olhar radiante.

            Catherine voltou a respirar fundo. "Meu Deus, como acredito, ajuda-me a crer."

            - Sim - respondeu com firmeza.

            E talvez porque se estava na véspera de Natal, pela primeira vez ela acreditou verdadeiramente.

 

            O agente da Polícia Estadual, Chris McNally, fez orelhas moucas enquanto Deidre Lenihan tagarelava incessantemente, dizendo que tinha visto uma medalha de São Cristóvão e como o pai tinha sido baptizado com esse nome. Era uma jovem cheia de boas intenções, mas todas as vezes que ele parava para comprar um café e qualquer coisa de comer naquele McDonald's, dava a impressão de que ela estava sempre desejosa por encontrar alguém com quem conversar.

            Naquela noite, Chris sentia-se demasiado preocupado e o seu grande desejo era ir para casa. Queria, no mínimo dos mínimos, poder dormir um pouco antes de os filhos se levantarem e começarem a abrir os presentes de Natal. Também tinha estado a pensar no Toyota que acabara de ver parado à sua frente. Há muito que pensava em comprar um automóvel daqueles, embora soubesse que a mulher não quereria um que fosse castanho, mas a aquisição de um carro novo traduzia-se em prestações mensais com que teria de se preocupar. Reparou no que restara de um autocolante no pára-choques do carro em questão, uma única palavra, "herança". Sabia que originalmente aquele autocolante dissera: "Estamos a gastar a herança dos nossos netos." "Não há dúvida de que algo parecido com isso me daria agora muito jeito", pensava. O meu pai disse... Chris procurou concentrar a sua atenção no que a rapariga dizia. "Deidre é simpática", pensou, "mas fala de mais." Estendeu a mão para o saco que oscilava na mão dela, embora fosse evidente que ainda não estava disposta a entregar-lho antes de dizer como o pai pensava que era uma pena que a mãe não tivesse sido baptizada com o nome de Filomena. Mesmo depois disso, ainda não acabara o que queria dizer. - Há vários anos, a minha tia trabalhava em Southampton e pertencia à Paróquia de Santa Filomena. Quando foram obrigados a dar outro nome à paróquia, o padre organizou um concurso para decidir qual o nome do santo que deveriam escolher e por que motivo. A minha tia sugeriu então que optassem por Dymphna, a santa dos loucos, pelo que se enquadrava bem, uma vez que a maior parte dos paroquianos era maluca.

            - Ora bem, eu próprio recebi o nome de São Cristóvão

- disse Chris, conseguindo apoderar-se do saco. - Um Natal feliz, Deidre.

            "E por este andar já estaremos no Natal quando conseguir dar a primeira dentada neste Big Mac", pensou o agente enquanto voltava à auto-estrada. Servindo-se de uma mão apenas abriu o saco, donde retirou o hambúrguer e, na expectativa da satisfação que sentiria, deu-lhe uma grande dentada. O café teria de esperar até chegar ao posto para onde fora destacado.

            O seu turno acabaria à meia-noite, altura em que, pensou sorrindo para si mesmo, poderia dormir um pouco, enquanto Eileen, por seu lado, tentaria manter os miúdos na cama até às seis da manhã. Desejava-lhe muita sorte, pois não o conSeguiu o ano passado, assim como não o conseguiria naquele Natal. Só se estivesse muito enganado em relação aos filhos.

            Já estava próximo da saída quarenta e conduziu o carro-patrulha até à rotunda onde poderia inverter a marcha e observar os condutores que fizessem manobras perigosas. A véspera de Natal não se comparava com a do Ano Novo no que respeita a condutores embriagados, todavia, Chris sentia-se determinado a não permitir excessos de velocidade ou ultrapassagens indevidas. Ninguém escaparia sem ser penalizado. Já testemunhara dois acidentes em que uns bêbedos haviam transformado a quadra natalícia num pesadelo para gente inocente, e isso não aconteceria naquela noite, caso estivesse ao seu alcance evitá-lo. Além do mais, a queda de neve tornava a condução muito mais perigosa.

            Enquanto retirava a tampa do copo de plástico que continha o café, franziu o sobrolho ao reparar que um Corveite seguia, pelo menos, a cento e trinta quilómetros horários, rolando velozmente pela faixa de emergência. Ligou os máximos e a sirena, meteu a primeira e o carro-patrulha arrancou a toda a velocidade em perseguição do infractor.

 

            O chefe de detectives, Bud Folney, ouvia, sem mostrar a mínima emoção no seu rosto além de uma expressão extremamente atenta, o que Cally Hunter, que tremia que nem varas verdes, dizia a Mort Levy, descrevendo-lhe a forma como encontrara a carteira na Quinta Avenida. Cally tinha abdicado dos direitos que a lei lhe conferia quanto ao manter-se calada para não dizer nada que a incriminasse.

            - Este assunto não pode ser adiado - dissera ele com mostras de impaciência.

            Folney conhecia os aspectos básicos do caso de Cally:

era a irmã mais velha de Jimmy Siddons e cumprira pena porque o juiz não acreditara na sua versão dos acontecimentos, quando afirmara ter pensado que estava a ajudar o irmão a fugir à cólera de um bando rival que queria matá-lo. Levy dissera a Folney que Cally Hunter parecia ser uma pessoa com pouca sorte havia sido criada por uma avó já idosa, a qual morrera, deixando-a com a responsabilidade de endireitar um irmão mais novo, que enveredara por maus caminhos, quando ela própria ainda era uma criança. Depois, quando estava grávida, o seu marido morreu atropelado por um condutor que se pusera em fuga.

"Deve ter mais ou menos trinta anos", pensava Folney. "e até podia ser bonita se tivesse mais alguma carne naqueles ossos." Cally continuava a exibir aquela vaga expressão mal-assombrada que ele detectara em outras mulheres que tinham estado presas, as quais traziam permanentemente consigo o horror de um dia poderem ser enviadas de novo para a cadeia.

            O chefe dos detectives olhou à sua volta. O apartamento bem cuidado, a pintura de um amarelo-vivo das paredes fendidas, a modesta árvore de Natal que, com tanta boa vontade, fora decorada, a colcha nova no carrinho de bonecas, que em tão mau estado se encontrava, tudo aquilo eram indicadores que revelavam alguma coisa sobre o carácter de Cally Hunter.

            Folney sabia que, à semelhança do que se passava consigo, Mort Levy se sentia ansioso por saber qual a ligação que existiria entre Siddons e o garoto desaparecido, informação que somente ela lhes poderia facultar. A abordagem gentil que Mort adoptara merecia a sua aprovação, pois só assim Cally Hunter os poria ao corrente do que se passara. "Foi boa ideia não termos trazido o touro furioso", raciocinava Polney. Jack Shore era um bom detective, se bem que frequentemente a sua atitude agressiva bulisse com os nervos do chefe.

            Cally Hunter descrevia como tinha avistado a carteira junto do lancil do passeio.

            - Apanhei-a sem pensar no que fazia. Fiquei com a ideia de que pertencia a essa mulher, embora não tivesse a certeza. Digo com toda a sinceridade que não sabia ao certo - justificou-se ela articulando as palavras em catadupa -,           e pensei que, se tentasse devolver-lhe a carteira, era muito provável que ela dissesse que faltava qualquer coisa. Isso aconteceu à minha avó. E então vocês recambiavam-me de novo para a prisão e...

            - Cally, por favor, acalme-se - pediu Mort. - O que aconteceu a seguir?

            - Quando cheguei a casa... - Descreveu aos detectives como tinha encontrado Jimmy no apartamento, já vestido com as roupas do falecido marido, e apontou para o embrulho grande que se encontrava na base da árvore de Natal. - O sobretudo velho e o uniforme do guarda prisional estão dentro daquela caixa - informou Cally. - Foi o único lugar que me ocorreu para guardar essas roupas, no caso de vocês decidirem voltar a minha casa.

            "Foi isso mesmo", pensou Mort. "Quando revistámos o apartamento da segunda vez, reparei em qualquer coisa diferente no roupeiro. Faltava a caixa que estava na prateleira e o casaco de homem."

            A voz de Cally perdeu a firmeza quando começou a descrever-lhes a maneira como Jimmy levara Brian Dornan e ameaçara matar o garoto caso fosse perseguido por algum polícia.

            - Cally, acha que se pode confiar em que Jimmy acabará por libertar Brian? - perguntou Levy.

            - Eu quero acreditar - respondeu ela numa voz entrecortada pela emoção. - Foi o que disse a mim própria antes de vos ter telefonado, mas sei que o meu irmão se sente desesperado e está disposto a fazer seja o que for para não voltar para a cadeia.

            - Cally, o que a levou a decidir telefonar-nos? - perguntou Jímmy por fim.

            - Vi a mãe de Brian na televisão e apercebi-me de que, se Jimmy tivesse levado Gigi, eu quereria que me ajudassem a recuperar a minha filha. - Cally enclavinhou os dedos uns nos outros e o seu corpo oscilou ligeiramente para a frente e para trás, adquirindo uma postura indicadora de grande aflição mental. - Não me posso esquecer da expressão que vi no rosto do garoto, a maneira como ele colocou o fio com a medalha à volta do pescoço, agarrando-a como se lhe pudesse salvar a vida... Se lhe acontecer alguma coisa de mal, a responsabilidade será inteiramente minha.

            Naquele momento ouviu-se a campainha da porta da rua. "Se for o Shore...", pensou Folney sem concluir o seu pensamento enquanto se levantava num gesto brusco.

            Era Aika, que entrou no apartamento e fitou os detectives com um olhar inquiridor, após o que se dirigiu apressadamente para junto de Cally, abraçando-a.

            - Minha querida, o que se passa? Aconteceu alguma coisa de mal? Porque precisas que eu fique a tomar conta de Gigi? O que pretendem estes homens?

            Muito perturbada, Cally retraiu-se.

            Aika arregaçou as mangas da blusa da amiga, pondo a descoberto as nódoas negras que os dedos de Jimmy lhe tinha feito nos braços, as quais já tinham adquirido uma tonalidade arroxeada e apresentavam mau aspecto. Quaisquer dúvidas que Bud Folney ainda tivesse em relação a uma possível cooperação entre Cally Hunter e o irmão desapareceram de imediato. Curvou-se então para ela.

            - Cally, não vai ter qualquer problema. Prometo-lhe que não. Acredito que encontrou essa carteira por acaso e que não soubesse qual a melhor atitude a tomar, mas agora é forçoso que nos ajude. Faz alguma ideia do local para onde o seu irmão possa ter ido?

 

            Dez minutos mais tarde, quando saíram do apartamento de Cally, Mort levava a volumosa caixa, embrulhada em papel com motivos natalícios que continha o uniforme do guarda prisional alvejado por Jimmy Siddons.

            Shore foi ter com os dois detectives ao carro-patrulha e, impaciente, começou logo a fazer perguntas a Mort. Enquanto seguiam a caminho da Baixa da cidade, os três detectives concordaram que as buscas a encetar, com o objectivo de descobrirem o paradeiro do fugitivo, deviam basear-se na suposição de que o homem talvez tentasse chegar ao Canadá.

            - Ele só pode ter ido de carro - concluiu Folney sem

hesitação. - É impossível que tenha optado por viajar com o garoto em transportes públicos.

  Cally confiara-lhe que Jimmy, desde os doze anos, sabia

fazer ligações directas em qualquer automóvel que pretendesse furtar, por isso estava convicta de que ele teria uma viatura estacionada perto quando foi a sua casa.

            - Tenho um palpite que o Siddons terá procurado sair do estado de Nova iorque o mais depressa possível - acrescentou Folney , - o que quer dizer que atravessou a região da Nova Inglaterra rumo à fronteira, mas é só um palpite. Também podia seguir pela auto-estrada, com destino á Interestadual Oitenta e Sete. É um percurso bastante mais rápido.

            De facto, o mais plausível seria a namorada de Siddons estar à sua espera no Canadá, pelo que todas aquelas suposições se encaixavam. Também concordaram com Cally quando ela afirmou que Jímmy Siddons jamais se deixaria apanhar com vida. - O seu último acto de vingança seria matar o jovem refém.

            Por conseguinte, viam-se confrontados com um assassino e raptor de uma criança, que possivelmente se faria transportar num veículo acerca do qual a Polícia não possuia a mínima indicação e que provavelmente se dirigia para norte no meio de uma tempestade de neve. Seria o mesmo que procurar uma agulha num palheiro. Siddons era demasiado esperto para atrair atenções, o que aconteceria, por exemplo, caso se arriscasse a exceder os limites de velocidade. Além do mais, a fronteira tinha sempre muito movimento por ocasião da quadra natalícia. Folney ditou instruções para serem transmitidas à Polícia Estadual da Nova Inglaterra, assim como à de Nova iorque, frisando que o refém corria perigo de vida.

            As deduções dos detectives levaram-nos a concluir que. como Siddons havia deixado a casa de Cally Hunter pouco depois das dezoito horas, e levando em consideração as condições em que teria de conduzir, já devia ter percorrido cerca de trezentos ou quatrocentos quilómetros. Do alerta que difundiram para a Polícia Estadual fazia também parte a última coisa que Cally lhes confiara: "É possível que o garoto use um fio ao pescoço com uma medalha de bronze de São Cristóvão do tamanho de uma moeda de dólar."

            Pete Cruise viu os dois detectives sairem do edifício onde Cally Hunter habitava, o que se verificou mais ou menos vinte minutos depois de terem chegado, e reparou que levy trazia um embrulho bastante volumoso e que Shore saltou da carrinha, juntando-se aos dois colegas.

            Daquela vez, Pete teve oportunidade de ver bem o terceiro homem, o que fez com que assobiasse em silêncio. Era Bud Folney, o chefe dos detectives, o homem indicado para assumir o cargo de comissário da Polícia, por isso devia estar prestes a acontecer algo de muito importante.

            O carro-patrulha arrancou com as luzes do tejadilho a piscarem intermitentemente e um quarteirão mais à frente a sírena foi ligada. Pete ficou imóvel por momentos, debruçando-se sobre o que fazer a seguir. Certamente que os polícias que permaneciam na carrinha o impediriam caso tentasse subir até casa de Cally, mas era evidente que se passava qualquer coisa de interessante, e o repórter estava firmemente determinado a colher o maior número de informações sobre aquele assunto, junto de quem quer que fosse.

           Enquanto colocava a hipótese de procurar uma porta nas traseiras que lhe desse acesso ao prédio, avistou uma mulher, que sabia ser a ama da filha de Cally, a sair do edificio. Com toda a rapidez, saiu do carro, seguindo no seu encalço e alcançou-a ao virar da esquina, já fora do ângulo de ViSãO dos polícias de vigia na carrinha.

            - Sou o detective Cruise - apresentou-se. - Recebi instruções para a escoltar até sua casa, queremos que chegue em segurança. Como tem passado, Cally?

            - Oh, a pobre rapariga... - começou Aika a dizer. - Senhor detective, vocês têm de acreditar no que Cally diz, ela julgou que estava a proceder da melhor maneira quando decidiu não lhes telefonar, informando-os sobre o rapto desse garoto que desapareceu...

 

            Apesar de Brian ter bastante fome, foi-lhe difícil engolir o hambúrguer, sentia-se como se tivesse alguma coisa entalada na garganta e sabia que Jimmy era a razão daquele mal-estar. Bebeu um grande gole de Coca-Cola e tentou pensar na grande tareia que o pai daria a Jimmy por este ser tão mau.

            Mas agora apenas lhe ocorriam à mente os planos que haviam feito para a véspera de Natal. O pai tencionava chegar cedo a casa e toda a família ajudaria a decorar a árvore de Natal. Em seguida iriam jantar, após o que percorreriam a vizinhança, entoando as janeiras juntamente com um grupo de amigos.

            Naquele momento, Brian só conseguia pensar no que mais desejava: queria estar em casa, junto da mãe e do pai que sorririam muito, da maneira que costumavam fazer sempre que se encontravam juntos. Quando tinham ido para Nova iorque, devido à doença do pai, a mãe dissera-lhe, assim como a Michael, que os presentes melhores, aqueles que os dois irmãos mais desejavam receber, estariam à espera deles quando regressassem a casa, e que o Pai Natal guardaria as prendas no seu trenó até saber que já iam a caminho de casa.

            - Sim, sim... está-se mesmo a ver! - comentara Michael entre dentes, dirigindo-se ao irmão mais novo.

            Brian continuava a acreditar na existência do Pai Natal. No ano passado, o pai mostrara-lhe umas marcas deixadas no telhado da garagem, no sítio onde o seu trenó tinha parado, assim como as pegadas das renas. Nessa ocasião, Michael disse ao irmão que ouvira a mãe dizer ao pai que fora uma sorte ele não ter partido o pescoço quando escorregou no telhado coberto de neve, a fim de deixar marcas por todo o lado, mas Brian não ligara importância ao que Michael lhe dissera, uma vez que não acreditou nele, tal como não se incomodava com o facto de o irmão, por vezes, o apelidar de idiota; sabia que não era verdade.

            Apercebia-se de que as coisas não corriam nada bem quando se desejava que o parvo do nosso irmão, que era capaz de ser um intrometido de primeira apanha, estivesse junto de nós, e naquele momento era precisamente isso o que mais ansiava.

                        Esforçando-se para que a sensação de ter um nó na garganta desaparecesse, o copo de plástico quase lhe saltou da mão, quando Jimmy mudou bruscamente de faixa de rodagem.

                        Mentalmente, o fugitivo começou a proferir palavras obscenas. Tinha acabado de passar por um carro-patrulha parado atrás de um automóvel de modelo desportivo, e a visão de um polícia da brigada de trânsito fez com que ficasse encharcado em suor; mas, apesar do susto, não devia ter mudado de faixa daquela maneira precipitada. Estava a ficar extremamente nervoso.

                        Pressentindo a animosidade que irradiava de Jimmy, Brian voltou a colocar o hambúrguer, que não comera, e o refrigerante no saco de papel, e movimentando-se com extrema lentidão, de forma a que o seu raptor pudesse ver todos os seus movimentos, baixou-se colocando-o junto dos pés. Em seguida, sentou-se muito direito, encostando-se bem ao assento e cruzando os braços. Depois, com os dedos da mão direita começou a procurar a medalha de São Cristóvão, que colocara ao seu lado, sobre o assento, quando abriu o saco que continha a refeição, e ao encontrá-la fechou a mão com uma sensação de alívio. Mentalmente viu a imagem do santo cheio de força, que transportava uma criança enquanto atravessava um rio de águas traiçoeiras, o santo que olhara pela vida do seu avô, que haveria de fazer com que o pai melhorasse e que...

            Brian fechou os olhos, não concluiu o seu desejo, mas em pensamento imaginava-se a ser levado aos ombros do santo.

 

            Barbara Cavanaugh aguardava por Catherine e Michael na sala de espera da estação televisiva Canal 5.

            - Vocês comportaram-se de maneira magnífica - disse em voz baixa. Mas, ao ver o cansaço que se adivinhava no rosto da filha, acrescentou: - Catherine, por favor, vamos para casa. A Polícia comunicará contigo assim que tiver alguma novidade sobre o paradeiro de Brian. A tua aparência é de quem está prestes a desfalecer.

            - Não posso fazer isso, mãe - replicou Catherine. - Eu sei que é um disparate ficar à espera na Quinta Avenida. Com certeza que Brian não voltará aí pelo seu próprio pé, mas enquanto ando na rua pelo menos sinto que estou a fazer qualquer coisa para o encontrar. A verdade é que não sei muito bem o que estou a dizer, excepto que quando hoje saí de tua casa estava acompanhada pelos meus dois filhos, e quando voltar para lá, eles também irão comigo.

            - Senhora Dornan, porque não fica aqui, pelo menos de momento? - sugeriu Leigh Ann Winick num tom decisivo.

            - Esta sala é bastante confortável. Podemos mandar vir uma sopa quente ou uma sande, ou o que lhe apetecer comer. Foi a senhora quem o disse: não adianta nada manter-se à espera de não sabe o quê na Quinta Avenida.

            - E a Polícia poderá entrar em contacto comigo para aqui? - perguntou Catherine depois de ter considerado a sugestão.

            - Com certeza - confirmou Winick, apontando para um telefone. - Agora diga-me o que quer que eu mande vir para comer.

                        Vinte minutos mais tarde, Catherine, a mãe e Michael comiam uma sopa quente e olhavam para o ecrá do televisor instalado na sala. A peça noticiosa era sobre Mario Bonardi, o guarda prisional que fora alvejado. Apesar do seu estado crítico, a situação clínica estabilizara.

            O jornalista que fazia a reportagem estava junto da mulher de Bonardi e dos filhos adolescentes, na sala de espera da unidade de cuidados intensivos. Quando lhe pediram um comentário, Rose Bonardi disse:

"O meu marido salvar-se-á. Quero agradecer a toda a

gente que hoje rezou por ele. A nossa família já celebrou muitos Natais felizes, mas este será o melhor de todos, porque ganhámos consciência do que estivemos quase a perder."

                        - Isso é precisamente aquilo que nós também diremos, Michael - atalhou Catherine com determinação. - O pai salvar-se-à e o Brian será encontrado.

            O repórter que estava no hospital acrescentou:

            "Voltamos ao estúdio para actualizarmos as notícias, Tony."

            - "Obrigado, Ted. Fico satisfeito por saber que está tudo a correr pelo melhor. Esse é o género de história de Natal que queremos noticiar." Depois, o sorriso do apresentador televisivo desapareceu-lhe dos lábios. "Continua a não haver pistas do agressor de Mano Bonardi, Jimmy Síddons, que aguardava julgamento na cadeia, acusado do assassínio de um agente da Polícia. Já tivemos oportunidade de citar algumas fontes policiais que nos disseram que, muito provavelmente, o alegado homicida iria a caminho do México, para Se encontrar com a namorada, Paige Laronde. Todos os aeroportos, estações ferroviárias e terminais rodoviários estão sob vigilância apertada. Foi há quase três anos, quando tentava fugir depois de um assalto que efectuou à mão armada, que Siddons alvejou o agente policial William Gras, ferindo-o mortalmente após este o mandar parar por ter cometido uma infracção ao código da estrada. Sabe-se que Siddons está armado e deve ser considerado extremamente perigoso."

            Enquanto o apresentador prosseguia com o noticiário, no ecrã começaram a ser mostradas fotografias de Jimmy Siddons.

            - Ele tem um aspecto mau - comentou Michael examinando atentamente os olhos de expressão fria e os lábios com um trejeito sardónico do recluso que andava a monte.

            - Não há dúvida que sim - confirmou Barbara Cavanaugh, observando o rosto do neto. - Mike, e que tal se fechasses os olhos e descansasses um pouco? - sugeriu-lhe a avó.

            -Não quero adormecer - respondeu o garoto.

            Passava um minuto das vinte e três horas e o apresentador continuava a actualizar as notícias.

            "Regressando a um dos acontecimentos do dia, continuamos sem qualquer informação acerca do paradeiro de Brian Dornan, o garoto de sete anos que ainda não foi localizado e que desapareceu pouco depois das dezassete horas de hoje. Nesta noite tão especial, pedimos aos nossos telespectadores que continuem a rezar para que Brian regresse são e salvo para junto da família; aproveitamos para lhes desejar, e aos que lhes são mais queridos, um Natal muito feliz."

            "Dentro de uma hora será Natal", pensava Catherine. "Brian, tens de voltar para junto de nós, a Polícia tem de te encontrar. É preciso que estejas comigo amanhã de manhã quando formos visitar o paizinho. Brian, volta para casa, por favor, vem para junto de nós."

            A porta da sala abriu-se e Winick entrou, acompanhada por um homem alto, que ainda não teria cinquenta anos, seguido pelo agente Manuel Ortiz.

           - O detective Rhodes deseja falar consigo, senhora Dornan - disse Winick. - Se precisarem de mim, estarei na sala ao lado.

            Catherine, ao reparar na expressão solene que se reflectia no rosto de Rhodes e de Ortiz, ficou paralisada, incapaz de falar ou de se mexer.

Ambos adivinharam o que ela estaria a pensar.

                        - Não, senhora Doman, acalme-se, não é nada do que julga - atalhou Ortiz com uma entoação de voz que pretendia tranquilizá-la.

                        - Eu venho da Esquadra Central, senhora Dornan - interveio Rhodes. - Recebemos algumas informações sobre Brian, mas permita-me que comece por lhe dizer que, tanto quanto sabemos, o seu filho continua vivo e ninguém lhe fez mal.

                        - Sendo assim, onde está ele? - perguntou Michael, numa explosão de cólera. - Onde está o meu irmão?

:i Catherine ouvia atentamente enquanto o detective Rhodes lhe explicava como a carteira tinha sido apanhada do chão por uma mulher que era irmã do fugitivo, Jimmy Sidóons. A mente dela recusava-se a aceitar que Brian tivesse sido sequestrado por um assassino, cujo rosto acabara de ver ao ecrã do televisor. "Não", pensou Catherine, "não, é impossível que isto esteja a acontecer."

                        - Acabaram de noticiar que muito provavelmente esse homem está a caminho do México - disse, apontando para O monitor. - Brian desapareceu há seis horas e neste momento já pode estar nesse país.

            - Ninguém na esquadra está convencido dessa história - explicou Rhodes. - Pensamos é que ele vai a caminho do Canadá, possivelmente ao volante de um carro roubado. É nessa direcção que concentrámos as nossas buscas.

                        Subitamente, Catherine ficou incapaz de sentir qualquer traço de emoção. Lembrou-se então de que, aquando do nascimento de Michael, experimentara a mesma sensação depois de, já na sala de partos, lhe terem dado uma injecção de Demerol, a qual fez com que, como por milagre, lhe desaparecessem todas as dores. E ela erguera o olhar para Tom, que lhe piscou o olho. O marido estivera sempre ao seu lado. "Sentes-te melhor, não é verdade, minha querida?", perguntara-lhe ele. Os seus pensamentos, que já não sentia toldados pela dor, tornaram-se muito claros.

            - Em que tipo de automóvel é que viajam?

            - Ainda não sabemos - respondeu Rhodes, sem ocultar o mal-estar que a pergunta lhe provocava. - Imaginamos apenas que ele se desloca de carro e temos quase a certeza absoluta de que o nosso palpite é correcto. Todos os agentes da Polícia de trânsito de Nova iorque e da Nova Inglaterra estão em estado de alerta, procurando um homem que viaje acompanhado de um garoto com uma medalha de São Cristóvão ao pescoço.

            - Brian pôs o fio? - exclamou Michael. - Sendo assim, nada lhe acontecerá, de mal. Avozinha, diz à minha mãe que a medalha protegerá Michael, tal como aconteceu com o avô.

            - Armado e perigoso - repetiu Catherine.

            - Senhora Dornan - acrescentou Rhodes num tom de urgência -, caso Siddons viaje de carro, o mais plausível é que tenha o rádio ligado. É um homem esperto e, agora que a vida do agente Bonardi está fora de perigo, ele está bem ciente de que não terá de enfrentar uma sentença de morte. A pena capital ainda não havia sido reintroduzida neste estado quando assassinou o agente policial, há três anos, e não devemos esquecer que ele disse à irmã que amanhã de manhã libertaria Brian.

            Catherine pensava com uma clareza extraordinária.

            - Mas o senhor não acredita nisso, pois não?

            Não precisou de ver a expressão no rosto do detective para ficar a saber que Rhodes não esperava que Jímmy Siddons viesse a libertar Brian por sua livre e espontânea vontade.

            - Senhora Dornan, se não estivermos enganados, e vindo a confirmar-se que Siddons se dirige para a fronteira canadiana, só chegará lá daqui a pelo menos umas três ou quatro horas. Embora a neve tenha parado de cair em algumas regiões, as estradas continuarão numa grande confusão ao longo de toda a noite. Assim, não lhe será possível conduzir com grande velocidade, além de que ignora que temos informações que nos permitem saber que Brian está com ele, as quais não serão reveladas aos meios de comunicação social. De acordo com a linha de raciocínio de Siddons, Brian tem uma vantagem... no mínimo até conseguir chegar à fronteira, e havemos de o encontrar antes que ele consiga concretizar os seus intentos.

            O televisor continuava ligado, se bem que com o volume reduzido, e, Catherine, que estava de costas voltadas para

 o ecrã, reparou que a fisionomia do detective Rhodes se cerrava ao ouvir uma voz que anunciava:

            "Interrompemos aqui a nossa programação habitual para transmitir um boletim noticioso. De acordo com um repórter da estação de rádio WYME, Brian Dornan, o garoto de sete anos que está desaparecido desde as dezassete horas desta noite, caiu nas mãos do alegado assassino Jimmy Siddons, o qual disse à irmã que, se a Polícia lhe armasse uma cilada, não hesitaria em meter uma bala na cabeça da criança. à medida que as notícias forem chegando, manter-vos-emos informados."

 

            Depois de Aika ter saído, Cally preparou uma chávena de chá e enrolou-se num cobertor, após o que ligou o televisor, premindo o botão que lhe retirava o som. "Deste modo, poderei saber mais notícias, assim que começarem a ser transmitidas", pensou ela. Em seguida, sintonizou o rádio numa estação que emitia música alusiva ao Natal, mas manteve o volume do som bastante reduzido.

            "Prestai atenção, os anjos anunciadores cantam..." "Lembras-te de como tu e Frank costumavam entoar esta canção em coro enquanto enfeitavam a árvore de Natal?". perguntou a si mesma. Fora há cinco anos, o único Natal que celebraram juntos. Tinham acabado de saber que ela estava grávida e Cally recordava-se dos planos que ambos haviam feito.

            - No próximo ano já teremos quem nos ajude a enfeitar

a árvore - dissera Frank.

            - Com certeza que sim, uma criança de três meses será

uma grande ajuda, não haja dúvida!       - replicara ela dando

uma gargalhada.

            Recordava-se de como Frank a erguera do chão, de forma a que ela pudesse colocar a estrela no cimo da árvore.

            Por que motivo tudo lhes correra tão mal? Não chegou a haver ano seguinte, apenas uma semana mais tarde Frank morrera atropelado por um condutor que se pusera em fuga, quando vinha a caminho de casa depois de ter ido à mercearia comprar um pacote de leite.

"Estivemos tão pouco tempo juntos", pensou, traduzindo

a amargura que sentia com um abanar de cabeça. Ocasiões

havia em que perguntava a si mesma se aqueles meses não tinham sido apenas um sonho mau. Parecia-lhe que tudo acontecera há já tanto tempo...

            "Vinde todos, plenos de fé, alegria e triunfantes... Adeste fideles." "Terá sido apenas ontem que eu me sentia tão bem ao pensar na vida que me esperava?", interrogou-se.

            - Cally, tenho ouvido muitos elogios sobre o teu trabalho - dissera-lhe a administradora do hospital. - Todos me dizem que possues todas as qualidades de uma verdadeira enfermeira. Já alguma vez pensaste em tirar um curso numa escola de enfermagem?

            Logo a seguir, a mulher começara a explicar-lhe como se conseguiam bolsas de estudo, prometendo-lhe que estudaria esse assunto mais a fundo.

            "Aquele rapazinho", pensava ela. "Oh, meu Deus, não permitas que Jimmy lhe faça mal. Eu devia ter telefonado ao detective Levy imediatamente, sei que era o que deveria ter feito. Por que razão não procedi dessa maneira?", perguntava-se, respondendo de imediato á sua pergunta. "Porque não senti receio apenas pelo bem-estar de Brian, também tive medo por causa de mim própria, o que poderá vir a custar a vida de Brian." Cally levantou-se e foi ver se Gigi estava bem. Como de costume, a garota conseguira tirar um pé fora da cama, destapando-o, todas as noites fazia a mesma coisa, embora o quarto fosse frio.

            Cally aconchegou os cobertores á volta dos ombros da filha e depois, suavemente, voltou a colocar o pequeno pé debaixo do lençol.

            - Mãezinha - resmungou Gigi sonolenta agitando-se na cama.

            - Estou aqui ao lado - sossegara-a Cally antes de voltar à sala de estar, onde ficou a olhar por momentos para o televisor, mas o que ouviu levou-a a dirigir-se apressadamente para o aparelho, aumentando o volume do som. "Não! Não!", exclamou para consigo quando ouviu o repórter noticiar que as autoridades já tinham conhecimento de que o garoto desaparecido fora raptado pelo assassino Jimmy Siddons, o homem que continuava a monte. "A Polícia julgará que fui eu quem divulgou esta noticia", pensou, sentindo-se invadida por um grande frenesim. "Vão pensar que contei a alguém. Sei que vão acreditar nisso."

            O telefone começou a tocar e, quando atendeu e ouviu a voz de Mort Levy, as emoções que até então pareciam ter estado contidas entraram subitamente em erupção.

            Não fui eu! afirmou ela a chorar. Não disse nada a ninguém. Juro, juro que não disse nada!

 

            O soerguer e baixar regular do peito de Brian indicou a Jimmy Siddons que o seu refém dormia. "óptimo", pensou, "melhor para mim." O problema era o miúdo ser muito esperto, o suficiente para saber que, se tivesse conseguido saltar do automóvel junto á berma da estrada, não seria atropelado. "Se aquele idiota não tivesse feito o pião que provocou o pequeno acidente, para mim já tudo estaria acabado", pensou Jimmy. "O miúdo conseguiria sair do carro e a esta hora a brigada de trânsito vinha em minha perseguição."

            Já passava das onze da noite. Certamente que o garoto estaria cansado e dormiria durante uma ou duas horas. Mesmo com a neve que se acumulava nas estradas, deviam chegar à fronteira dentro de, no máximo, três ou quatro horas, e "depois ainda faltarão muitas horas até ao amanhecer", deduzia Jimmy cheio de satisfação. Sabia que podia contar com Paige, a rapariga estaria á sua espera no lado do Canadá, tinham combinado previamente um ponto de encontro numa área arborizada, situada a mais ou menos cinco quilómetros do posto fronteiriço.

            Jimmy debatia consigo mesmo se deveria ou não abandonar o Toyota, pois não havia nada que ligasse a viatura à sua pessoa, desde que não se esquecesse de limpar cuidadosamente todas as impressões digitais. Talvez decidisse deixá-lo num dos bosques daquela zona...

            Por outro lado... O Niágara ocorreu-lhe ao pensamento, uma vez que era aí que tencionava fazer a travessia fronteiriça. O rio tinha uma corrente muito forte, pelo que eram poucas as probabilidades de estar congelado, e, com alguma sorte, era possível que o automóvel nunca viesse à tona de água.

            E quanto ao miúdo? Embora fizesse aquela pergunta a si mesmo, Jimmy sabia muito bem que jamais se arriscaria a que o garoto fosse encontrado próximo da fronteira, o que, a acontecer, permitiria que ele falasse do seu raptor, pois Paige dissera aos amigos que ia para o México.

            "Tenho muita pena, miúdo", disse Jimmy em pensamento, "mas é aí que eu quero que os polícias me procurem."

            Depois de ter reflectido por momentos, decidiu que o rio trataria do problema da viatura e do garoto.

            Tendo tomado aquela decisão, sentiu que parte da tensão, que não o abandonara até então, começava a libertá-lo. A cada quilómetro que percorria, maior era a sua convicção de que seria capaz de se sair bem daquela aventura. O Canadá, Paige e a liberdade eram perspectivas que se encontravam ao seu alcance, e também se sentia mais ansioso, assim como mais determinado, a fazer o que fosse preciso para conseguir os seus objectivos, tal como acontecera da última vez.

            Preparara tudo com o maior cuidado, tinha o automóvel de Cally, cem dólares no bolso e dirigia para a Califórnia, mas foi então que atravessou um cruzamento na Nona Avenida, sem respeitar a luz vermelha, e um polícia mandou-o parar. O guarda, um homem com cerca de trinta anos, dera-se ares de pessoa importante, aproximara-se da janela do lado do condutor e interpelara Jimmy num tom de sarcasmo.

            - A carta de condução e o livrete da viatura, "senhor".

            "O homem não teria necessidade de ver mais nada", pensara Jimmy na altura, recordando-se desse momento como se tivesse sido ontem, chegar-lhe-ia examinar uma carta de condução emitida em nome de James Siddons, mas ele não a tinha e assim não lhe restou outra alternativa, seria preso nesse mesmo instante. Então, levou a mão à algibeira da frente do casaco, sacou da arma e disparou. Antes de o cor po do agente ter caído por terra, ele já tinha abandonado a viatura, misturando-se com a multidão que deambulava pelas cercanias do terminal rodoviário. Depois consultara o quadro das partidas e dirigira-se à bilheteira, onde comprou um bilhete para uma camioneta que sairia dentro de três minutos, com destino a Detroit.

            Fora uma decisão bastante acertada, pensou Jimmy. Logo na primeira noite conhecera Paige, tendo-se mudado para casa da rapariga, e, em seguida, tratou de arranjar um bilhete de identidade falso, assim como um emprego numa firma de segurança um tanto rasca. Durante algum tempo, ele e Paige tinham conseguido levar uma vida que se revestia de alguma normalidade, as únicas discussões a sério que travavam entre si era só quando ela encorajava os espectadores no bar de strip tease onde se exibia. Contudo, Paige desculpava-se, dizendo que deixar esses tipos "atirarem-se" a ela fazia parte do seu trabalho. Pela primeira vez, parecia que tudo corria bem na vida de Jimmy, até ao dia em que foi suficientemente estúpido para assaltar o posto de abastecimento de combustíveis sem ter tido o cuidado de proceder previamente a um estudo do local.

            Voltou a concentrar a sua atenção no asfalto coberto por; um manto branco que se estendia à sua frente, apercebendo-se, pelo modo como o veículo se comportava, de que a camada de neve começava a transformar-se em gelo. "Ainda bem que o automóvel está equipado com pneus próprios para a neve", pensou Jimmy. De súbito, lembrou-se do casal a quem o carro pertencia - o que dissera o sujeito á mulher? Qualquer coisa a respeito de mal poder esperar para ver a cara do Bobby? "Sim, foi isso mesmo", recordou-se Jimmy, sorrindo ao imaginar a expressão embasbacada dos dois quando deparassem com um lugar vazio no sítio onde o automóvel estivera estacionado, ou vissem outro carro estacionado no mesmo local.

            Mantinha o rádio ligado, embora tivesse baixado o volume, e sintonizara-o numa estação regional para poder ouvir uma actualização das condições meteorológicas, mas agora o som era cada vez mais fraco e os ruidos provocados pela estática impediam a audição. Impacientemente, Jimmy mexeu nos botões até encontrar a estação que transmitia notícias vinte e quatro horas por dia, mas imobilizou-se ao ouvir o locutor noticiar numa entoação de urgência:

            "Com alguma relutância, a Polícia confirmou a notícia de última hora, difundida pela estação radiofónica WYME, segundo a qual Brian Doman, o garoto de sete anos que desapareceu hoje por volta das dezassete horas, caiu nas mãos do alegado homicida Jimmy Siddons, que se acredita ir a caminho do Canadá."

            Proferindo um chorrilho de palavrões, o fugitivo desligou o rádio. Cally, com certeza que fora ela quem telefonara para a Polícia. "O mais certo é a auto-estrada a esta hora já estar cheia de chuis, todos á minha procura e do miúdo", deduziu ele de cabeça perdida, olhando para a sua esquerda e observando os automóveis que o ultrapassavam. "O mais provável é já andarem por aqui dúzias de carros sem o distintivo da Polícia", pensou. "Calma, não percas a calma", disse para si mesmo.

            A Polícia desconhecia as características do veículo que conduzia e não tencionava cometer a tolice de exceder o limite de velocidade ou, pior ainda, rodar a uma velocidade inferior ao mínimo estabelecido, o que faria com que desconfiassem dele.

            Mas a verdade é que o miúdo constituía um problema. Tinha de se livrar dele sem mais demoras. Rapidamente avaliou a situação. Sairia no próximo desvio com o objectivo de tratar desse problema, descartando-se do rapaz o mais depressa possível, para logo em seguida regressar à auto-estrada. Olhou para Brian, que dormia ao seu lado. "É uma pena, miúdo, mas não existe mais nenhuma alternativa", repetiu para consigo próprio.

            à direita, avistou a placa que lhe indicava a saída seguinte. "É isto mesmo", pensou Jimmy, "vou já por aqui."

            Brian agitou-se, como se estivesse prestes a despertar, mas voltou a adormecer. Meio sonolento, imaginou que tinha ouvido o seu nome, mas concluiu que deveria ter sonhado.

 

            Rhodes observou a expressão receosa de Catherine Dornan quando esta se apercebeu das implicações que advinham do facto de Brian se encontrar em poder de Jimmy Siddons. Viu que ela cerrava as pálpebras e preparou-se para a amparar, caso desmaiasse.

            Mas pouco depois, Catherine voltou a abrir os olhos e, num gesto rápido, estendeu os braços para abraçar o filho mais velho.

            - Não nos devemos esquecer de que Brian tem a medalha de São Cristóvão - disse ela numa voz suave.

            A máscara, própria de gente adulta, que Michael afivelara ao longo de todas as adversidades daquela noite começou a desfazer-se.

            - Não quero que aconteça nada ao Brian - exclamou sem conseguir conter as lágrimas.

            - Verás que não lhe sucederá nada de mal - disse Catherine com muita calma, acariciando-lhe a cabeça. - Acredita no que te digo e não te deixes ir abaixo.

            Rhodes apercebeu-se do esforço que ela tinha de fazer para conseguir caminhar. "Quem terá informado os meios de comunicação social de que Brian é refém de Jimmy Siddons?", interrogou-se o detective, encolerizado. Sentia comichões no punho cerrado, tal a vontade que tinha de assentar um murro bem dado na pessoa que, tão descuidadamente, estava a pôr em risco a vida de uma criança, e a sua ira intensificou-se ainda mais ao compreender que, se Siddons tivesse o rádio ligado, a primeira coisa que faria seria livrar-se do garoto.

            - Mãezinha, estás recordada de como o paizinho costumava falar-nos de uma véspera de Natal especial, durante a guerra, tinha ele apenas vinte e dois anos, e de como, no auge de uma batalha feroz, levou alguns soldados da sua companhia até uma das vilas, na proximidade da linha de combate? - perguntou Catherine á mãe.

            - Haviam chegado informações sobre a actividade das forças inimigas nesse local - disse a mãe, continuando a descrever o episódio a partir dali -, mas posteriormente constatou-se que não correspondiam à verdade. No caminho de regresso ao batalhão a que pertenciam, passaram pela igreja da vila. A Missa do Galo começara naquele preciso momento e o templo encontrava-se repleto, pois, apesar do período terrível que se vivia, toda a gente abandonara a segurança de suas casas para assistir à cerimónia religiosa. As suas vozes, que entoavam em coro a Noite Feliz, chegavam até ao largo da vila e o pai disse-me que tinha sido o cântico de Natal mais belo que alguma vez lhe fora dado ouvir. - Barbara Cavanaugh sorriu ao neto mais velho. - O avozinho e os outros militares entraram na igreja. Costumava descrever-me como todos se haviam sentido reconfortados ao testemunharem a fé e coragem daquela gente. Ali estavam aqueles aldeões, no meio de uma guerra que não lhes dava tréguas, com os alimentos rigorosamente racionados, mas acreditando firmemente que, de uma maneira ou de outra, conseguiriam ultrapassar aquelas circunstâncias tão adversas. - O lábio inferior de Barbara começou a tremer, mas a sua voz era firme quando retomou a história. - O avozinho disse que foi nessa altura que soube que regressaria para junto de mim e foi também nessa mesma noite, meia hora mais tarde, que a medalha de São Cristóvão impediu que a bala lhe trespassasse o coração.

            Catherine olhou por cima da cabeça de Michael, fitando o agente Ortiz.

            - Pode levar-nos agora até à catedral? Quero assistir à Missa do Galo. Mas temos de ficar num sitio onde nos possa contactar rapidamente, se houver alguma novidade.

            - Conheço o chefe dos arrumadores, Ray Hickey - respondeu Ortiz. - Fique descansada que eu trato disso.

            Catherine olhou para Rhodes.

            - Assim que houver alguma notícia serei informada imediatamente?...

            - Com certeza. - O detective não foi capaz de resistir, acrescentando: - A senhora tem muita coragem e há uma coisa que lhe posso garantir: todos os agentes da Polícia destacados para a região nordeste empenhar-se-ão o mais possível em trazer o Brian para junto de si são e salvo.

            - Estou bem ciente disso, e assim a única maneira de poder dar o meu contributo é através das orações.

 

            - A fuga de informações não veio dos nossos homens - informou Mort Levy categoricamente, dirigindo-se ao chefe de detectives Folney. - Ao que tudo indica, um jovem repórter da WYME mantinha-se de vigia ao apartamento de Cally, ansioso por mostrar trabalho. Tendo-nos visto entrar apercebeu-se logo que se estava a passar qualquer coisa, o que o levou a seguir Aika Banks até casa. Ludibriou-a, dizendo-lhe que era um chui, e extorquiu-lhe tudo o que ela sabia sobre o assunto. Chama-se Pete Cruise.

            - Ainda bem que não foi um dos nossos. Quando tudo isto tiver terminado, tencionamos fazê-lo passar um mau bocado por se ter feito passar por um polícia - garantiu FoIney. - Mas, entretanto, ainda temos muito a fazer por aqui.

            Colocara-se em frente de um mapa ampliado da região nordeste, que fora afixado numa parede do seu gabinete. Era atravessado por diversas estradas, as quais haviam sido realçadas a várias cores. Folney pegou num ponteiro.

            - Estamos aqui, Mort. Temos de partir do principio de que Siddons tinha um carro à espera quando saiu de casa da irmã. De acordo com o que Cally disse, ele foi-se embora pouco depois das seis da tarde e, se não estivermos enganados ao presumirmos que entrou imediatamente no automóvel, isso significa que se fez à estrada há mais ou menos cinco horas e meia. - O ponteiro deslocou-se para outro ponto. - A faixa indicada a claro estende-se da cidade até às proximidades de Herkimer, na saída trinta da auto-estrada, e foi aí que caiu o mais forte nevão. Mas, mesmo assim, provavelmente, Siddons não estará a mais de quatro ou seis horas da fronteira. - Folney deu uma forte pancada sobre o mapa. - É o mesmo que procurarmos uma agulha num palheiro. - Mort esperava pacientemente. Sabia que o seu chefe, para já, não queria ouvir quaisquer sugestões - Emitimos um alerta ao longo de todo o perímetro da fronteira - continuou Folney -, mas, dada a intensidade do tráfego, é possível que Siddons consiga passar despercebido e todos nós sabemos que um individuo do calibre dele certa mente será capaz de entrar no Canadá sem passar por nenhum posto fronteiriço.

            Agora sim, chegara a altura de Mort apresentar sugestões.

            - E se encenássemos um acidente nas estradas principais, obrigando a que o trânsito só circulasse por uma faixa de rodagem, num trecho de cerca de trinta quilómetros antes da fronteira? - sugeriu.

            - Não estou a pôr essa ideia de parte, mas se montar mos um bloqueio, em poucos minutos o trânsito ficará completamente engarrafado, o que poderia levar Siddons a tentar escapar-se pela primeira saída que encontrasse. Caso adoptássemos esse plano, também teríamos de montar barreiras em todas essas saídas.

            - E se Siddons sentir que está encurralado?... - perguntou Mort Levy, hesitando. - O homem tem um parafuso a menos, chefe. Cally Hunter está convencida de que o irmão é capaz de acabar tanto com a sua vida como com a de Brian para não ser capturado, e creio que ela sabe o que diz.

            - Se ela tivesse tido a coragem de nos telefonar logo que Jimmy saiu de sua casa com o garoto, ele nunca conseguiria escapar de Manhattan!

            Os dois homens viraram-se e viram Jack Shore na ombreira da porta, olhando fixamente para Mort Levy e Bud Folney.

            - A situação alterou-se, chefe - informou ele. - Um dos agentes da brigada de trânsito, um tal Chris McNally, comprou um hambúrguer há cerca de vinte minutos na área de serviço da auto-estrada entre Siracusa, saída trinta e nove, e Weedsport, saída quarenta. Na altura não prestou muita atenção ao assunto, mas a mulher que na altura estava de serviço ao balcão onde as refeições são entregues, uma Deidre Ienihan, mencionou uma medalha de São Cristóvão que um miúdo qualquer trazia ao pescoço.

            - Onde está essa mulher, a tal Ienihan, neste momento? - perguntou Bud Folney com brusquidão.

            - O turno dela terminou às vinte e três horas e a mãe disse que o namorado tencionava ir buscá-la ao trabalho. Os nossos homens já se puseram em campo, tentando descobrir-lhes o rasto, mas se Cally Hunter tivesse telefonado mais cedo, nada disto aconteceria, haveria tempo para destacar homens para todas as áreas de serviço entre a cidade e...

            Era muito raro Bud Folney elevar a sua voz. No entanto, a frustração crescente que sentia devido às dificuldades que se lhe deparavam naquela caça ao homem, goradas que tinham sido até aí todas as tentativas para encontrar o rasto de Jimmy Siddons, fez com que explodisse numa súbita manifestação de irritação.

            - Cala a boca, Jack! Neste momento, os "se isto ou aquilo" não nos ajudam em nada. Faz alguma coisa de útil. Trata de arranjar maneira de as estações de rádio dessa área difundirem um apelo para que Deidre Lenihan telefone à mãe. Digam que se trata de uma emergência, que tem de ir já para casa... inventem qualquer coisa. E, por amor de Deus, não permitam que alguém estabeleça qualquer ligação entre ela e o caso de Siddons, ou com o desaparecimento do garoto. Está entendido?

 

                        Semioculto na berma da estrada, Chris McNally mantinha-se de olho em todos os carros que passavam. Finalmente, a neve deixara de cair, se bem que o esfalto continuasse coberto por uma fina camada de gelo. Do mal o menos, na sua opinião, pois assim os condutores guiavam cautelosamente, embora o mais certo fosse que todos se sentissem frustrados por serem forçados a seguir a uma velocidade de menos de sessenta quilómetros por hora. Desde que comprara o hambúrguer, tinha multado apenas um aspirante a piloto de corridas ao volante de um carro desportivo.

            Não obstante estar concentrado no fluxo de tráfego que rolava pela auto-estrada, não conseguia afastar o pensamento do boletim que recebera sobre o garoto desaparecido. Após ouvir o alerta relativo à criança que trazia ao pescoço uma medalha de São Cristóvão na altura em que foi sequestrada por um foragido, um assassino de polícias, CIrris telefonou imediatamente para o McDonald's onde há pouco estivera e pediu para falar com Deidre Lenihan, a empregada que o atendera. Ainda que não tivesse prestado muita atenção à conversa dela, recordava-se da sua tagarelice acerca de uma medalha e um garoto que se ajustavam àquela descrição. Agora lamentava não lhe ter dado troco, principalmente, depois de ser informado de que ela se fora embora, acompanhada do namorado.

            Apesar da natureza bastante vaga daquela pista, isso não o impediu de a dar a conhecer ao seu supervisor, que, por seu turno, a transmitiu à esquadra central do condado, tendo ficado decidido que valia a pena agir de acordo com essa informação. Assim, fizeram um pedido às estações de rádio locais para que difundissem um apelo solicitando a Deidre que entrasse em contacto com a esquadra central. Por intermédio da mãe da rapariga tinham conseguido obter uma descrição do automóvel do namorado da filha, após o que todos os agentes das brigadas de trânsito foram informados da matrícula da viatura em questão e incumbidos de tentar encontrar o casal.

            Mais ainda, a mãe de Deidre confidenciara à Polícia que aquela noite seria muito especial para a filha, uma vez que o namorado lhe confiara que a prenda de Natal que lhe ia oferecer era um anel de noivado. O mais certo seria não estarem na estrada, mas sim num outro lugar qualquer um pouco mais romântico.

            Contudo, partindo do pressuposto de que Deidre ouviria o apelo feito via rádio e ligaria para a Polícia, o que teria ela para lhes dizer? Que vira um garoto com uma medalha de São Cristóvão ao pescoço? Eles já estavam a par disso. Poderia informá-los da marca e modelo do carro? Teria reparado no número da matrícula? Com base no que Chris sabia acerca da jovem, e não obstante a sua simpatia, não podia ser considerada uma pessoa atenta a tudo o que acontecia à sua volta, mas apenas curiosa quando algo lhe despertava a imaginação. Não, era muito improvável que ela pudesse facultar-lhes mais alguma informação de relevância para o caso.

            Todas aquelas reflexões faziam com que Chris se sentisse ainda mais frustrado. "Não é de excluir que até eu próprio possa ter estado próximo do garoto", pensou o agente. "Até é possível que isso tenha acontecido na fila do McDonald's. Por que razão não reparei em mais nada?"

            Pensar que talvez tivesse chegado perto do rapazinho era

algo que o incomodava. "Neste preciso momento, os meus filhos estão em casa, nas suas camas", disse para consigo, "e o garoto que foi raptado também devia encontrar-se junto da família." O problema concluiu, rememorando a conversa que tivera com Deidre, em que ela lhe mencionara o automóvel em que vira o rapazinho era que a viatura em questão poderia ter passado pelo restaurante num período de tempo compreendido entre uns escassos minutos e uma hora antes de a rapariga lhe ter falado no assunto. Ainda assim, tratava-se da única pista de que dispunham, por conseguinte, seria preciso levá-la muito a sério.

            Entretanto, o radiorreceptor entrou em acção. Era da esquadra central.

            - Chris - disse o operador de rádio, - o chefe quer falar contigo.

            - Chris, a Polícia de Nova Iorque acredita que a tua dica é a única oportunidade que resta para tentar salvar a vida do garoto - começou o capitão a dizer, numa voz onde transparecia grande urgência. - Vamos continuar a utilizar todos os meios para descobrir essa mulher, a tal lenihan, mas entretanto quero que puxes pelos miolos. Tenta recordar-te se ela disse mais alguma coisa que possa ser importante...

            - Estou a tentar, meu capitão. Neste momento encontro-me na auto-estrada. Se concordar, gostaria de seguir para oeste, pois se esse tipo esteve na fila do McDonald's mais ou menos à mesma hora que eu, nesta altura leva-me um avanço de cerca de dez a quinze minutos. Se eu puder recuperar um pouco desse atraso sem dúvida que me agradaria muito estar por perto quando tivermos notícias de Deidre. Gostaria bastante de ajudar a apanhá-lo.

            - De acordo, vai em frente. E Chris, por amor de Deus, pensa! Tens a certeza de que ela não disse nada de mais especifico a respeito da criança com a medalha de São Cristóvão, ou mesmo acerca do automóvel em que ele seguia?

            Ocorreu-lhe então a palavra acabei, que pareceu saltar-lhe para dentro da cabeça. Era apenas imaginação sua ou Deidre teria dito: "Acabei de ver um garoto que trazia um fio ao pescoço com uma medalha de São Cristóvão"?

            O agente sacudiu a cabeça. Não se recordava com uma certeza absoluta. Todavia, sabia que o carro que estivera à sua frente na fila do McDonald's era um Toyota de cor castanha com matrícula de Nova Iorque.

            Contudo, dentro desse automóvel não seguia nenhum miúdo, ou pelo menos, não conseguira ver nenhum, disso Chris tinha a certeza absoluta.

            Mesmo assim... se Deidre tivesse dito "acabei", talvez se referisse ao Toyota. Qual era o seu número de matrícula? Não era capaz de se lembrar, mas houve algo nela que lhe despertara a atenção. O que seria?

            - Chris? - perguntou o supervisor numa voz brusca, interrompendo-lhe os devaneios.

            - Peço desculpa, meu capitão, estava a tentar recordar-me de uma coisa. Estou em crer que Deidre disse que tinha acabado de ver um garoto que usava uma medalha ao pescoço e, caso tenha falado literalmente, então, talvez se referisse ao carro que estava mesmo à minha frente, na fila. Era um Toyota castanho com matrícula de Nova Iorque.

            - Recordas-te de alguns dos dígitos?

            - Não, não me lembro de nada, os meus pensamentos deviam estar a milhas de distância.

            - E quanto a esse automóvel, tens a certeza de que viste um garoto no interior?

            - Não, não avistei nenhum.

            - Isso não serve de grande ajuda. Um em cada três carros que circulam pelas estradas provavelmente é um Toyota, para não dizer que esta noite estão todos tão sujos que é praticamente impossível distinguir uma cor das outras. O mais certo é parecerem castanhos.

            - Não, tenho a certeza absoluta de que este era mesmo dessa cor, disso, não há a menor dúvida. Quem me dera poder recordar-me das palavras exactas da rapariga.

            - Ora bem, não dês em doido a pensar nisso. Tenhamos esperança em que essa Deidre, mais cedo ou mais tarde, acabe por entrar em contacto connosco; entretanto, vou enviar outro carro-patrulha para te substituir nesse posto. Segue para oeste, tal como sugeriste. Mais tarde falaremos.

            "Pelo menos tenho a sensação de estar a fazer alguma coisa", pensou Chris enquanto dava a transmissão por terminada, após o que ligou a ignição e carregou no acelerador.

            Com um impulso brusco, o carro-patrulha pôs-se em marcha. "Uma coisa que sei fazer bem é conduzir um automóvel", disse Chris para consigo, exibindo uma expressão decidida enquanto manobrava o volante, saindo da faixa que servia de divisória central e começando a ultrapassar os condutores cautelosos que seguiam pela auto-estrada.

            Enquanto conduzia, continuava a fazer um esforço enorme para se recordar com exactidão do que vira defronte de si. Era algo que se encontrava gravado na sua mente, disso não lhe restava a mais pequena dúvida. Se ao menos lhe ocorresse à memória com clareza... enquanto se esforçava por reavivar aquela recordação, parecia-lhe que o seu subconsciente tentava gritar-lhe a informação que procurava, e daria tudo para a ouvir.

            Entretanto o tempo começava a escassear para o garoto que continuava sequestrado.

 

            Jimmy mergulhara numa grande agitação. Por causa do intenso trânsito, que avançava lentamente, precisara de meia hora para chegar à saída mais próxima. Jimmy sabia que tinha de abandonar imediatamente a auto-estrada de maneira a poder livrar-se do miúdo. Avistou uma placa que lhe disse estar a oitocentos metros da saída quarenta e um, a qual dava acesso a uma pequena cidade de nome Waterloo. Para o rapaz seria uma verdadeira batalha de Waterloo, pensou ele com uma satisfação macabra.

            A neve parara de cair, embora não tivesse a certeza se isso seria bom, porque o piso estava agora coberto por uma camada de gelo, o que lhe atrasava ainda mais o andamento. Além do mais, seria visto com maior facilidade por qualquer polícia que passasse por ele ao volante de um carro-patrulha.

            Jimmy mudou para a faixa da direita para sair da auto-estrada. Inesperadamente acenderam-se as luzes de stop no carro que seguia à sua frente e, com um sentimento de frustração e cólera crescentes, observou a traseira do automóvel, que começou a derrapar, descontrolada.

            - Mentecapto! - gritou ao outro condutor. - Mentecapto! Mentecapto! Mentecapto!

            Brian sentou-se a direito, com os olhos arregalados, completamente desperto, e Jimmy começou a praguejar, proferindo uma série sucessiva de invectivas quando se deu conta do que tinha sucedido. Quatro ou cinco carros à sua frente havia um limpa-neves que guinara para a faixa que dava acesso à saída. Instintivamente torceu o volante do Toyota, mal conseguindo evitar colidir com o carro que derrapara de traseira, e quando passou mesmo ao lado do limpa-neves o acesso já ficara para trás.

            Com o punho cerrado, deu uma forte pancada no volante. Agora seria obrigado a esperar pela saída quarenta e dois para deixar a auto-estrada. A que distância estaria?, perguntou a si mesmo.

            Ao lançar um olhar de relance pelo retrovisor, compreendeu que a sorte tinha estado do seu lado. A faixa por onde pretendera sair estava engarrafada devido a um choque em cadeia. O acidente devia ter acontecido naquele preciso momento e fora por essa razão que o limpa-neves mudara de faixa. Se tivesse tentado sair por ali, o mais certo seria ficar bloqueado durante várias horas.

            Finalmente avistou uma placa que lhe indicou que a próxima saída ficava a cerca de dez quilómetros, por isso, até mesmo àquela velocidade moderada, não precisaria de mais de quinze minutos. Apercebia-se de que os pneus aderiam melhor à estrada, deviam ter espalhado uma camada de areia por aquele troço. Jimmy apalpou a arma que guardara por baixo do casaco. Seria melhor tirá-la e escondê-la sob o assento?

            Concluiu que era preferível não fazer isso. Se algum polícia o mandasse parar, precisava de ter a arma no sítio onde a guardara. Lançou um olhar de fugida ao conta-quilómetros. Quando ele e o miúdo entraram no carro, colocara-o a zero, agora indicava-lhe que percorrera pouco mais de quatrocentos e cinquenta quilómetros.

            Ainda tinha muito caminho pela frente, mas só o facto de saber que já se encontrava tão próximo da fronteira com o Canadá, e de Paige, proporcionava-lhe uma sensação tão empolgante que quase era capaz de a saborear. Desta feita, tudo correria pelo melhor, não seria estúpido ao ponto de se deixar apanhar pelos chuis.

            Pressentiu que Brian se acomodava, tentando voltar a adormecer. "Mas que grande disparate!", pensou. "Eu devia ter-me descartado do garoto cinco minutos depois de o raptar. Se já tinha o carro e o dinheiro, para que necessitava dele?"

            Sentia uma ansiedade indescritível pelo momento em que teria oportunidade de se ver livre do miúdo, o que lhe permitiria ficar em segurança.

 

            O agente Ortiz acompanhou Catherine, Barbara e Michael até ao cruzamento da Rua Quinze que dava acesso à Catedral de Saint-Patrick, onde outro agente, que fora incumbido da segurança deles, os aguardava.

            - Reservámos lugares para si e para a sua família, minha senhora - informou o polícia, dirigindo-se a Catherine enquanto empurrava a pesada porta para trás.

            O som magnífico da orquestra, tendo como solista o organista, acompanhada pelo coro, enchia o espaço amplo da catedral, cuja nave já estava apinhada de fiéis.

            "Júbilo, júbilo", entoava o coro, versos que Catherine repetiu em pensamento. "Por favor, meu Deus, permite que esta noite acabe assim."

            Passaram pelo presépio, com as figuras de tamanho natural que representavam a Virgem, José e os pastores reunidos em redor de um monte de palha que simbolizava a manjedoura. Catherine sabia que a imagem do Menino Jesus seria ali colocada durante a missa.

            O agente que os escoltava indicou-lhes os lugares reservados na segunda fila, e Catherine insistiu com a mãe para ser ela a primeira a sentar-se.

            - Tu ficas entre nós as duas - disse ela a Michael, numa voz segredada. Preferia o lugar ao lado da coxia, de modo a estar atenta caso a porta se abrisse.

            - Senhora Doman, se tivermos alguma notícia, virei ter consigo imediatamente - prometeu o agente Ortiz, inclinando-se para ela. - Caso contrário, quando a missa terminar, o meu colega acompanhá-la-á. Estarei à sua espera no carro-patrulha.

            - Muito obrigada - agradeceu Catherine, após o que se ajoelhou de imediato.

            A música mudou para uma harmonia em turbilhão, uma apoteose, enquanto o cortejo tinha início - os acólitos, o diácono, os padres e os bispos precediam o cardeal, que levava na mão o cajado de pastor. "Meu Deus", começou Catherine a rezar, "por favor, peço-Te encarecidamente que salves o meu cordeirinho."

 

            O chefe dos detectives, Folney, continuando com os olhos fixos no mapa das estradas afixado na parede do seu gabinete, tinha a percepção de que por cada minuto que passava, as hipóteses de encontrar Brian Doman com vida eram cada vez mais ténues. Mort Ievy e Jack Shore estavam do lado oposto da secretária.

            - Canadá - comentou Folney com uma entoação enfática. - Ele vai a caminho do Canadá e cada vez está mais próximo da fronteira. - Tinham acabado de receber novidades vindas do Michigan. Paige Laronde havia encerrado todas as suas contas bancárias no dia em que saíra de Detroit, e, numa manifestação de extraordinária confiança, dissera a uma colega de profissão que contactara um sujeito, um génio a forjar documentos de identidade falsos. Acrescentara que com esses documentos, para ela e para o seu namorado, ambos podiam desaparecer de um momento para o outro. - Se Siddons conseguir passar a fronteira... rsmungou Bud Folney, falando mais consigo próprio do que com os outros. - Há alguma novidade dos rapazes destacados para a auto-estrada? - perguntou pela terceira vez no espaço de quinze minutos.

            - Nada, chefe - respondeu Mort em voz baixa.

            - Liga-lhes outra vez. Quero falar pessoalmente com eles.

            Quando o puseram em contacto com o supervisor de Chris McNally e soube que não havia absolutamente nada de novo, decidiu falar ele próprio com aquele agente da brigada de trânsito.

            - Isso há-de servir de muito - comentou Jack Shore entre dentes dirigindo-se a Mort Levy.

            Mas antes que pudessem estabelecer a ligação entre Folney e McNally, chegou outro telefonema.

            - Temos uma pista quente - anunciou um assistente, entrando apressadamente no gabinete do chefe dos detectives. - Siddons e o miúdo foram vistos por um agente da brigada de trânsito, há cerca de uma hora, numa área de serviço na Auto-Estrada Noventa e Um, em Vermont, perto da junção com White River. De acordo com esta informação, o homem ajusta-se à descrição de Siddons até ao último pormenor, e o rapaz trazia uma medalha qualquer ao pescoço.

            - Não vale a pena estabelecer ligação com o McNally - disse Folney encrespado. - Quero falar com esse agente que os viu, sem mais demoras. Liguem para a Polícia de Vermont e dêem instruções para que montem barreiras em todas as saídas a norte do local onde foram vistos. Tanto quanto nos é dado saber, é possível que a namorada esteja escondida, à espera dele, numa quinta qualquer situada neste lado da fronteira: - Enquanto Folney esperava, olhou para Mort. - Liga para casa de Cally Hunter e conta-lhe tudo o que acabámos de ouvir. Pergunta-lhe se sabe se o irmão esteve alguma vez em Vermont e, em caso afirmativo, qual o local exacto. Pode ser que exista um sítio qualquer em particular para onde se esteja a dirigir.

 

            Brian, apercebendo-se de que o automóvel seguia com mais velocidade, abriu os olhos, para logo os fechar rapidamente. Na sua perspectiva, o melhor seria manter-se aninhado, afundado no assento, fingindo que dormia, o que era preferível a tentar mostrar que não se sentia assustado sempre que Jimmy o olhava.

            O garoto também se mantinha atento às notícias que eram transmitidas pela rádio. Não obstante o volume estar bastante reduzido, ele ouvia o que era dito a respeito de Jimmy Siddons, o assassino de polícias que alvejara um guarda prisional e que tinha raptado Brian Dornan.

            A mãe andara a ler-lhe, e ao irmão, um livro intitulado Raptado e Brian gostara muito da história, mas quando foram para a cama Michael confidenciara-lhe que a achara idiota. Na altura o irmão dissera-lhe que, se alguém tentasse raptá-lo, daria pontapés e socos ao fulano e fugiria.

            "Pois bem, eu não posso fugir", pensou Brian. Além do mais estava certo de que, se tentasse esmurrar Jimmy, os seus esforços não resultariam. Desejava ter podido aproveitar a oportunidade de abrir a porta do carro, quando esta se lhe deparou, e de rolar para a berma da estrada, como planeara, enrolando-se como se fosse uma bola, tal como lhe haviam ensinado nas aulas de ginástica. Desse modo não lhe aconteceria nada de mal.

            Agora, a porta do seu lado mantinha-se trancada, sabendo que antes de poder accionar o fecho e abri-la, Jimmy agarrá-lo-ia.

            Brian mal conseguia conter as lágrimas, sentia o nariz entupido e os olhos marejados. Tentou pensar que Michael lhe chamaria bebé chorão se o visse naquele estado, e esse pensamento ajudava-o quando se esforçava por não chorar.

            Todavia, naquelas circunstâncias, aquela tentativa de nada serviu. Até mesmo Michael, numa situação daquelas, em que estivesse atemorizado e precisasse de ir outra vez à casa de banho, muito provavelmente não conseguiria evitar chorar, além de que ouvira dizer na rádio que Jimmy era um homem perigoso.

            Apesar de estar a chorar, Brian certificou-se de que não fazia o mais pequeno barulho. Sentia as lágrimas correrem-lhe pelas faces, mas não mexeu a mão para as limpar, pois se o fizesse Jimmy daria por esse movimento, ficando a saber que ele já estava acordado; por agora, era forçado a fingir que dormia.

            Para arranjar coragem, apertou a medalha de São Cristóvão, com toda a força, obrigando-se a pensar no momento em que regressariam a casa, quando o pai já estivesse capaz de fazer essa viagem, altura em que enfeitariam a sua árvore de Natal e abririam os presentes. Pouco antes de terem partido para Nova Iorque, a senhora Emerson, que vivia na casa ao lado, fora despedir-se deles, altura em que a ouvira a falar com a mãe.

            - Catherine, na noite em que vocês fizerem a vossa árvore de Natal, viremos todos cantar as janeiras debaixo da janela da vossa casa. - Em seguida, abraçou Brian, dizendo-lhe: - Eu sei qual é a tua canção de Natal preferida.

            - A Noite Feliz - dissera ele. Durante a festa de Natal da primeira classe, realizada na sua escola no ano anterior, ele entoara sozinho essa mesma canção.

            Naquele momento, Brian tentou cantá-la em pensamento para si próprio, mas não conseguiu passar de "noite feliz", e

sabia que, se continuasse a pensar naquilo, não conseguiria impedir que o seu raptor se apercebesse de que chorava.

            Pouco depois, quase deu um salto de tão sobressaltado que ficou. Através do rádio, alguém falava de novo nele e em Jimmy, dizendo que um dos agentes da brigada de trânsito de Vermont afirmara que tinha visto Jimmy Siddons, acompanhado de um garoto, num Dodge ou Chevrolet antigo, numa área de serviço da Auto-Estrada Noventa e Um, pelo que agora as buscas tinham começado a concentrar-se nessa área.

            O sorriso de Jimmy, que não augurava nada de bom, desvaneceu-se com a mesma rapidez com que se esboçara, e o primeiro baque de alívio ao ouvir aquele boletim noticioso deu lugar a uns instantes de reflexão. Teria efectivamente surgido algum idiota a afirmar tê-los avistado os dois em Vermont?, perguntou a si mesmo. Concluiu que seria possível, pois durante o tempo em que estivera escondido no Michigan, aparecera um condutor de meia-tigela a jurar a pés juntos que tinha visto Jimmy em Delaware. Depois de ser apanhado, em consequência do assalto ao posto de combustíveis, e conduzido de volta a Nova Iorque, viera a saber que as autoridades policiais haviam procedido a buscas intensivas nesse estado durante meses a fio.

            Mesmo assim, o facto de ter de percorrer a auto-estrada começava realmente a provocar-lhe engulhos no estômago. O piso e o traçado eram óptimos, permitindo-lhe conduzir a uma boa velocidade, mas quanto mais se aproximava da fronteira, maiores eram as probabilidades de encontrar agentes da brigada de trânsito pelo caminho. Assim, Jimmy decidiu que voltaria na próxima saída e, depois de se ter livrado do miúdo, retomaria a viagem através da Estrada Vinte. Como deixara de nevar, ser-lhe-ia possível prosseguir por essa via sem dificuldades de maior.

            "Segue o teu palpite", disse a si mesmo.

            A única ocasião em que não agira de acordo com essa regra tinha sido na tentativa de assalto ao posto de abastecimento de combustíveis, e ainda se recordava de que na altura algo o avisara de que as coisas não iam correr bem.

            "Depois disto, acabar-se-ão todos os problemas", pensou, olhando para Brian aninhado no assento. Então, quando ergueu o olhar, esboçou um sorriso de orelha a orelha. A placa que surgia na sua frente dizia: "Saída 42, Geneva a mil e seiscentos metros."

 

            Chris McNally passou pelo pequeno acidente que ocorrera no acesso à saída quarenta e um. No local, já se encontravam dois carros-patrulha, o que o levou a concluir que não seria necessário parar. Conduzia a uma velocidade bastante razoável e esperava já ter ultrapassado os automóveis que estavam à sua frente na fila do McDonald's, desde que, como era evidente, nenhum deles tivesse enveredado por qualquer das saídas que deixara para trás.

            Um Toyota castanho, era esse o veículo que procurava, e a única hipótese para a solução do caso seria encontrá-lo, disso estava ele bem ciente. Cerrou os dentes, procurando desesperadamente lembrar-se do que é que lhe chamara a atenção na matrícula do carro que estivera à sua frente na fila do McDonald's. Havia qualquer coisa de estranho... "Pensa, que diabo!", disse a si mesmo. "Pensa!"

            Não acreditou nem sequer por um minuto no boletim noticioso que informava terem Siddons e o garoto sido vistos em Vermont, todos os seus instintos lhe diziam que eles andavam por perto.

            A saída quarenta e dois, para Geneva, ficava a pouca distância, o que significava que a fronteira só distava mais ou menos cento e cinquenta quilómetros. A maior parte das viaturas seguia a uma velocidade média entre os oitenta e os noventa quilómetros horários, e, se Jiinmy Siddons se encontrasse nas proximidades, poderia sair do país dentro de menos de duas horas.

            Mas o que teria de especial a matrícula daquele Toyota?, perguntou-se Chris uma vez mais.

            Semicerrou os olhos e avistou então um de cor escura à sua esquerda, faixa onde os carros seguiam com maior velocidade. Acelerou um pouco, colocando-se ao lado da viatura depois de esta ter feito uma ultrapassagem, e olhou para o seu interior, rezando para que naquele carro seguisse um homem sozinho ou com um rapazinho, embora fosse somente uma hipótese de serem as pessoas que procurava. "Dá-me uma oportunidade", pediu ele com fervor.

            Sem ligar a sirena ou as luzes intermitentes do carro-patrulha, Chris ultrapassou o Toyota e conseguiu ver um casal jovem no seu interior. O rapaz guiava com uma das mãos em cima dos ombros da rapariga, o que não era muito boa ideia numa estrada naquelas condições, e, se as circunstâncias fossem outras, teria ordenado ao condutor que encostasse à berma.

            Chris carregou no acelerador. A auto-estrada estava mais desimpedida, uma vez que os automóveis mantinham uma distância maior entre si. à medida que o Canadá ia ficando mais próximo, maior era a velocidade do tráfego automóvel.

            De súbito, o seu radiorreceptor começou a transmitir uma mensagem.

            - Agente McNally?

            - Escuto.

            - Sou Bud Folney, chefe dos detectives da Polícia de Nova iorque, e estou a falar-lhe da esquadra central. Acabei de comunicar de novo com o seu supervisor, que me disse que a pista de Vermont não deu em nada. Não foi possível encontrar a mulher que procuramos, a tal Lenihan. Assim, repita com todos os pormenores a informação que nos deu anteriormente a respeito de um Toyota castanho.

            Sabendo que o seu chefe já pusera aquela hipótese de lado, Chris concluiu que aquele fulano, o Folney, devia estar a exercer uma grande pressão sobre ele.

            Começou a explicar que, se de facto Deidre mencionara um automóvel parado mesmo à frente do seu carro-patrulha, na fila do McDonald's, então só poderia tratar-se de um Toyota castanho, com chapa de matrícula de Nova iorque.

            - E você não é capaz de se lembrar do número dessa matrícula?

            - Não, senhor - admitiu Chris, sentindo uma vontade enorme de estrangular as palavras na garganta -, mas reparei em qualquer coisa de invulgar nessa mesma matrícula.

            Estava quase a chegar à saída quarenta e dois e, como se mantinha atento ao tráfego, reparou num automóvel que guinou para essa faixa de acesso. De súbito, o olhar casual com que observara a cena transformou-se num olhar fixo.

            - Meu Deus! - exclamou o agente da brigada de trânsito.

            - Agente McNally, o que se passa?

            Em Nova iorque, Bud Folney apercebeu-se instintivamente de que estava a acontecer qualquer coisa de relevante.

            - É isso mesmo! - exclamou Chris, exultante. - Não foi na chapa de matrícula que eu reparei. Foi, isso sim, no autocolante no pára-choques. Só restava um bocado que dizia "herança". Neste preciso momento, estou a seguir esse mesmo Toyota que se dirige para a faixa de acesso à saída. Pode verificar a chapa de matrícula que lhe vou indicar?

            - Não perca esse carro de vista! - ripostou Bud. - Mantenha-se colado a ele.

 

            Decorridos três minutos, o telefone começou a tocar no apartamento oito do número dez da Stuvvesant Oval, na zona baixa de Manhattan, e quem atendeu foi um Edward Hillson sonolento e ansioso.

            - Estou - disse ele, sentindo a mão da mulher enclavinhada no seu braço, numa manifestação de nervosismo.

            - O quê? O meu carro? Estacionei-o ao virar da esquina por volta das cinco da tarde. Não, não o emprestei a ninguém. Sim, é um Toyota castanho. O que me está a dizer?

            Bud Folney restabeleceu a comunicação com Chris.

            - Estou em crer que o apanhámos, mas, por amor de Deus, não se esqueça de que ele ameaçou matar o garoto, se correr o risco de ser capturado. Por conseguinte, tenha muito cuidado.

 

            Michael sentia-se ensonado, só lhe apetecia encostar-se à avó e fechar os olhos, mas ainda não podia fazer isso, não conseguiria dormir até ter a certeza de que Brian estava bem. Ao mesmo tempo esforçava-se por suprimir um temor crescente: "Porque não me chamou quando viu a mulher apanhar a carteira da mãe? Eu podia ter corrido atrás dela, ajudando-o quando foi apanhado pelo homem que o raptou."

            Naquele momento, o cardeal estava no altar, mas quando a música parou, em vez de dar início à missa, começou a falar.

            - Nesta noite de alegria e esperança...

            A alguma distância, à sua direita, Michael via as câmaras de televisão. Sempre pensara que devia ser bom aparecer no grande ecrã, mas em todas as ocasiões em que isso lhe havia ocorrido ao pensamento as circunstâncias em que se imaginava relacionavam-se com o facto de ter ganho qualquer coisa, ou por ser testemunha de um acontecimento importante. Em qualquer dessas situações teria sido muito divertido, mas naquela noite quando viu a sua imagem no ecrã ao lado da mãe não sentiu a mínima satisfação.

            Tinha sido terrível ouvi-la apelar às pessoas para que a ajudassem a encontrar Brian.

            .... num ano que tanta violência trouxe aos inocentes... Michael sentou-se mais a direito. O cardeal estava a falar deles, aludindo ao pai, que se encontrava doente, e a Brian, que continuava desaparecido, acreditando-se que era refém de um assassino em fuga.

            - A mãe de Brian Dornan - acrescentou o cardeal, - a avó e o irmão de dez anos participam connosco nesta missa. Devemos unir-nos numa oração especial, pedindo a Deus que permita que o doutor Thomas Doman recupere a saúde e que Brian seja encontrado ileso.

 

            Agora que já saira da auto-estrada, Jimmy começou a sentir algum alívio, a despeito de uma sensação que parecia morder-lhe as entranhas e que lhe dizia estar prestes a ser apanhado.

            Já tinha pouca gasolina, mas receava parar num posto de abastecimento com o miúdo no carro. Percorria a Estrada Catorze em direcção ao Sul, e dentro de mais ou menos dez quilómetros mudaria para a Estrada Vinte, que lhe permitiria chegar à fronteira.

            Naquela via, o movimento era muito menor do que na auto-estrada. Fosse como fosse, àquela hora, a maior parte das pessoas já se encontrava em sua casa, quer a dormir quer a fazer os preparativos para comemorar o Natal. Assim, era pouco provável que houvesse alguém à sua procura por ali. Apesar disso, raciocinava ele, o melhor seria manter-se afastado do centro de Geneva e procurar um lugar qualquer, como, por exemplo, uma escola, onde houvesse um parque de estacionamento, ou uma área com arvoredo, em suma, um sitio onde pudesse parar sem que ninguém reparasse na sua presença para fazer o que era preciso.

            Quando virou à direita no primeiro cruzamento que lhe apareceu, lançou um olhar pelo espelho retrovisor e teve a impressão de ver a luz de uns faróis reflectida no asfalto, quando dobrou a esquina, mas agora deixara de a ver.

            "Estou a ficar nervoso de mais", reflectiu Jimmy.

            Um quarteirão mais à frente teve a sensação de que se encontrava numa cidade abandonada. Tanto quanto lhe era dado ver, não havia nenhum carro à sua frente. Percorria uma zona residencial, sossegada e quase mergulhada numa total escuridão. Grande parte das casas não tinha qualquer luz acesa, excepto umas quantas cujas iluminações de Natal continuavam ligadas, deixando ver os seus clarões reflectirem-se, através da vegetação, nos relvados cobertos de neve.

            Jimmy não tinha a certeza de que o garoto estivesse realmente a dormir, ou se apenas a fingir, embora isso não tivesse qualquer importância. Aquele era o género de local que mais lhe convinha. Continuou a conduzir ao longo de seis quarteirões, após o que avistou o que procurava: uma escola com um longo caminho de acesso, que certamente levaria a um parque de estacionamento.

            Nada escapava ao seu olhar enquanto, com todo o cuidado, examinava o local, não fosse surgir alguém. Só depois é que parou, abrindo parcialmente a janela ao seu lado, para tentar ouvir qualquer sinal indicador de problemas. Acto imediato, o frio transformou a sua respiração em vapor de água, mas, para além do barulho em surdina do motor do Toyota nada mais ouviu, por ali reinava um silêncio absoluto.

            Mesmo assim, Jimmy decidiu contornar o quarteirão uma vez mais, com a finalidade de se certificar de que não era seguido.

            Enquanto metia o pé ao acelerador e o carro avançava com lentidão, mantinha os olhos presos no espelho retrovisor até que avistou atrás de si um carro, que rolava agora com os faróis apagados e que sem dúvida vinha no seu encalço. A escassa luz de um candeeiro de iluminação pública reflectia-se até na estrutura metálica do tejadilho.

            Um carro-patrulha, chuis! "Raios os partam!", vociferou Jimmy em pensamento. "Raios os partam! Raios os partam!", repetiu, carregando a fundo no acelerador. Possívelmente, aquela era a sua última corrida, mas tencionava certificar-se de que seria magnífica. Baixou o olhar para Brian.

            - Pára de fingir! Sei que estás acordado! - gritou ao garoto. - Raios te partam, senta-te a direito! Devia ter-me visto livre de ti assim que saímos da cidade, és um fedelho que não presta para nada!

            Jimmy continuou com o pé a fundo no acelerador. Um olhar de fugida lançado ao retrovisor confirmou-lhe que o carro que o perseguia também tinha acelerado, agora sem tentar passar despercebido. Mas, até ao momento, Jimmy tinha a impressão de que se tratava apenas de um único carro-patrulha.

            Não lhe restava a mínima dúvida de que Cally dissera à Polícia que o garoto havia sido raptado, deduziu Jimmy, e muito provavelmente, também lhes contara que ele não hesitaria em matá-lo caso tentassem detê-lo. Se o polícia que o seguia tinha conhecimento dessa sua intenção, isso explicaria a razão por que não tentava obrigá-lo a parar.

            Lançou um olhar de soslaio ao conta-quilómetros: oitenta... noventa... cento e dez quilómetros horários. Amaldiçoado fosse aquele automóvel!, praguejava Jimmy em silêncio, desejando ter um veículo com um motor mais potente do que o Toyota. Curvou-se sobre o volante. Não poderia ser mais veloz do que eles, mas talvez ainda lhe restasse uma oportunidade de lhes escapar.

            O polícia que ia em sua perseguição ainda não recebera reforços. Qual seria a sua reacção se concluísse que o garoto fora alvejado e empurrado para fora do veículo? Por certo que pararia para o tentar ajudar, raciocinou Jimmy. "É melhor não perder mais tempo e meter mão à obra, antes de ele ter tempo para pedir ajuda."

            Levou a mão ao interior do casaco onde guardara a pistola, mas nessa altura o automóvel entrou num troço do pavimento coberto de gelo, começando a derrapar. Jimmy deixou a arma cair-lhe no colo e manobrou a direcção de forma a que os pneus acompanhassem o movimento, após o que, com alguma dificuldade, conseguiu endireitar a viatura a escassos centímetros de embater numa árvore, perto da berma do passeio.

            "Ninguém conduz como eu", pensou com uma expressão sinistra. Voltou a pegar na arma e soltou o dispositivo de segurança. "Se o chui parar por causa do miúdo, nada me impedirá de chegar ao Canadá", disse como se fizesse uma promessa a si mesmo. Depois destrancou a porta do lado do passageiro, estendendo o braço pela frente do garoto aterrorizado para a abrir.

 

            Cally sabia que tinha de ligar para a esquadra a fim de se informar se haveria alguma notícia a respeito do pequeno Brian. Dissera ao detective Levy que não acreditava que Jimmy tentasse chegar ao Canadá através de Vermont.

           - Quando ele tinha mais ou menos quinze anos, foi aí que se envolveu em problemas - alegara ela. - Nunca cumpriu qualquer pena de prisão lá, mas estou em crer que houve um xerife que conseguiu aterrorizar Jimmy, dizendo-lhe que tinha muito boa memória e advertindo-o de que nunca mais voltasse a pôr os pés em Vermont. Embora isso tenha ocorrido há pelo menos dez anos, Jimmy é muito supersticioso. Acredito que se ficará pela auto-estrada. Sei que já foi ao Canadá duas vezes, fazendo sempre esse trajecto.

            Levy ouviu atentamente o que Cally lhe disse, e esta compreendia que o detective desejava confiar nela, rezando para que desta feita esse desejo não lhe saísse gorado. Também rezava para que se provasse que ela tinha razão e para que a Polícia conseguisse encontrar o garoto são e salvo, o que lhe permitiria sentir que, ainda que de maneira insignificante, dera o seu contributo.

                        O telefone foi atendido por outra pessoa que não Levy, tendo-lhe sido dito que aguardasse.

            -O que se passa, Cally? - perguntou Levy quando atendeu.

            - Só queria saber se há alguma novidade... Tenho rezado para que o que vos disse acerca de Jimmy ter optado pela auto-estrada seja verdade.

            Embora se expressasse com rapidez, a voz de Levy suavizou-se.

            - Cally, essa sugestão ajudou-nos muito, pelo que lhe estamos muito gratos. Neste momento não lhe posso dar muitas explicações, mas quaisquer que sejam as orações que saiba, continue a rezá-las.

            "Isto significa que já devem ter descoberto o paradeiro de Jimmy", pensou ela. Mas, o que teria acontecido a Brian?

            Cally deixou-se cair de joelhos. "Não interessa o que me possa acontecer", rezou ela. "Detém Jimmy antes que ele possa fazer mal a essa criança."

 

            Chris McNally apercebeu-se assim que Jimmy deu pela sua presença. O radiorreceptor ficara com um canal aberto entre ele e o quartel-general das operações, além de estar em comunicação permanente com a esquadra central de Manhattan.

            - Ele sabe que está a ser seguido - informou Chris com sobriedade. - Arrancou como se levasse fogo no rabo.

            - Não o perca de vista - instruiu Bud Folney numa voz serena.

            - Já temos uma dúzia de carros a caminho, Chrris - interveio rapidamente o supervisor da zona. - Seguem em silêncio, com os faróis desligados, e preparam-se para apoiar a tua viatura. Também já enviámos um helicóptero.

            - Eles que se mantenham fora de vista! - Chris carregou no acelerador. - Ele vai a mais de cento e dez à hora. Não andam muitos carros a circular, mas estas ruas não estão totalmente desimpedidas. Esta perseguição está a tornar-se perigosa.

            Quando Siddons atravessou velozmente um cruzamento, Chris observou, horrorizado, que foi por uma unha negra que o fugitivo não colidiu com outro automóvel. Siddons conduzia como um tresloucado maníaco e o agente sabia que a qualquer momento ocorreria um acidente.

            - Estou a passar pela Avenida Lakewood - informou ele. Dois quarteirões mais à frente, viu que o Toyota entrava em derrapagem e quase colidia com uma árvore. - O rapaz! - gritou Chris um minuto mais tarde.

            - O que se passa? - perguntou Folney num tom que exigia resposta.

            - A porta dianteira, do lado do passageiro, abriu-se. A luz do interior do carro está acesa e vejo que o rapaz se debate. Oh, meu Deus... Siddons sacou da arma. Tenho a impressão que se prepara para alvejar o miúdo.

 

            "Senhor, tende piedade de nós", entoava o coro.

"Que Deus tenha piedade", rezava Barbara Cavanaugh. "Salva o meu cordeirinho", implorava Catherine.

            "Corre, idiota, corre, foge dele!", gritava Michael em pensamento.

 

            Jimmy Siddons estava como louco. Brian nunca andara de automóvel a tal velocidade e não compreendia bem o que se passava, mas desconfiava de que alguém os perseguia.

            Durante breves instantes, o garoto desviou o olhar, que mantivera fixo no asfalto, e, fitando de relance Jimmy, viu que este empunhava a pistola e que, ao mesmo tempo, mexia no cinto de segurança, pretendendo soltar o mecanismo que o prendia. Em seguida, estendeu a mão pela frente de Brian e abriu a porta do lado deste, deixando entrar uma rajada de vento frio no interior do carro.

            Durante uns momentos, o medo que sentiu era tanto que ficou como que paralisado, mas pouco depois sentou-se direito e apercebeu-se do que estava a suceder: Jimmy preparava-se para o alvejar, após o que o empurraria para fora do automóvel.

            Brian tinha de fugir. Continuava a agarrar na medalha com quanta força tinha na mão direita. Sentiu que Jimmy lhe espetava o cano da arma no flanco direito, empurrando-o

na direcção da porta aberta, para o asfalto que dava a impressão de passar velozmente por baixo deles. Agarrando-se ao fecho do cinto de segurança com a mão esquerda, Brian começou a desferir golpes às cegas com a direita, e a medalha, presa no fio, rodopiou e embateu no rosto de Jimmy, atingindo-o no olho esquerdo.

            Siddons começou a berrar e largou o volante instintivamente, metendo travões a fundo. Quando levou a mão ao olho ferido, a arma disparou-se. A bala passou rente à orelha de Brian, enquanto o carro, desgovernado, começou a rodopiar, galgando o lancil do passeio e dirigindo-se para um relvado, até que chocou com uma sebe. Embora continuasse a rodopiar, o veículo abrandou, empurrando a sebe para a berma.

            Naquele momento, Jimmy, que proferia um chorrilho de palavrões, voltou a colocar uma mão no volante, enquanto com a outra apontava a pistola a Brian. O sangue escorria-lhe do olho ferido e da testa, espalhando-se pela cara.

            "Sai daqui. Sai daqui!", o garoto ouvia esta ordem que o cérebro lhe dava, como se alguém lha gritasse. Conseguiu esquivar-se, arremessando-se em direcção à porta e rolando para o relvado coberto de neve, precisamente no momento em que uma segunda bala lhe roçava pelo ombro.

            - Jesus Cristo, o miúdo saltou do carro! - gritou Chris, travando a fundo e fazendo derrapar o automóvel até parar atrás do Toyota. - Está a tentar levantar-se... Oh, meu Deus!

            - Ele está ferido? - gritou Bud Folney, mas Chris não o ouviu, já tinha saído do carro, correndo para o garoto.

            Entretanto, Siddons recuperara o controlo do Toyota, fazendo inversão de marcha com a intenção manifesta de atropelar Brian. Enquanto, no que deu a impressão de ser uma eternidade, mas que se limitou a uns escassos segundos, Chris atravessara a distância que mediava entre si e Brian, apanhando o rapazinho do chão.

            O automóvel dirigia-se a grande velocidade para os dois, e como o seu interior continuava iluminado, era possível ver claramente a raiva maníaca que se reflectia na fisionomia de Jimmy Siddons. Mantendo Brian apertado contra si, Chris atirou-se para o lado e rebolou por um declive atapetado de neve, precisamente no momento em que as rodas do Toyota passavam a centímetros da cabeça dos dois. Um instante mais tarde, com um ruído agudo de metal a contorcer-se e de vidros a estilhaçarem-se, o veículo rodopiou de novo, após o que capotou.

            Durante um momento fez-se um profundo silêncio até que a quietude foi de súbito quebrada pelo som das sirenas, enquanto as luzes intermitentes que irradiavam de uma dúzia de carros-patrulha iluminavam a noite escura e grande número de agentes da brigada de trânsito rodeava a viatura acidentada. Chris deixou-se ficar deitado sobre a neve durante alguns segundos, enlaçando Brian num abraço apertado, escutando os sons que convergiam para o local onde se encontrava, e foi então que ouviu uma vozinha de alívio.

            - És o São Cristóvão? - perguntou.

            - Não, mas neste momento sinto-me como se fosse, Brian - respondeu Chris com uma cordialidade que lhe vinha do fundo do coração. - Feliz Natal, meu filho.

 

            O agente Manuel Ortiz transpôs silenciosamente uma porta lateral da catedral, mas a sua presença foi imediatamente detectada por Catherine. O polícia sorriu.

            Ela levantou-se de um salto, correndo ao seu encontro.

            - Ele está?...

            - Está óptimo, vem a caminho num helicóptero. Deve chegar antes de a Missa do Galo terminar.

            Dando-se conta de que uma das câmaras de televisão estava assestada sobre eles, Ortiz ergueu a mão, desenhando um círculo com o polegar e o indicador, um símbolo que naquele momento, naquele dia, o mais especial de todos, significava que tudo correra às mil maravilhas.

            Aqueles que se encontravam sentados por perto, ao testemunharem aquela troca de sinais, começaram a bater palmas. Depois, à medida que os demais fiéis se iam voltando para trás, punham-se de pé e os aplausos começaram a estrondear num crescendo através daquela magnífica catedral. Decorreram bem cinco minutos antes de o diácono poder começar a ler a doutrina de Cristo alusiva ao Natal.

            - E assim aconteceu...

 

            - Vou informar Cally do feliz desfecho - disse Mort Levv, dirigindo-se a Bud Folney. - Chefe, eu sei que ela devia ter entrado em contacto connosco mais cedo, mas espero que...

            - Não se preocupe com isso. Esta noite não tenciono desempenhar o papel de Serooge. Ela acabou por cooperar connosco e merece uma segunda oportunidade - respondeu Folney num tom um tudo-nada brusco. - Além do mais, a lesada, Catherine Dornan, já disse que não era sua intenção apresentar queixa contra ela. - O chefe de detectives ficou a reflectir por uns momentos. - Ouça, devem ter ficado alguns brinquedos na arrecadação da esquadra. Diga aos rapazes que reúnam alguns, para oferecer à garota de Cally, e que vão ter connosco ao prédio onde ela vive dentro de quarenta e cinco minutos. Mort, você e eu vamos oferecer-lhe essas prendas. Shore, você pode ir para casa.

 

            Aquela era a primeira viagem que Brian fazia de helicóptero e, apesar de se sentir inacreditavelmente fatigado, estava demasiado entusiasmado para pensar em fechar os olhos. Tinha muita pena de que o agente McNally - Chris, nome por que este dissera que o tratasse - não tivesse podido acompanhá-lo, mas, em compensação, o agente mantivera-se junto de Brian quando levaram Jimmy Siddons sob custódia policial, altura em que o agente lhe dissera para não se preocupar, uma vez que aquele criminoso nunca mais voltaria a sair da cadeia. Em seguida, Chris tinha ido ao carro buscar a medalha de São Cristóvão, que entregou a Brian.

            Quando o helicóptero começou a preparar-se para a aterragem, dava quase a impressão de que iria pousar no rio. Reconheceu a ponte da Rua Cinquenta e Nove e os carris do eléctrico que circulava pela ilha Roosevelt. O pai já o levara a dar aquele passeio. De súbito, perguntou a si mesmo se ele teria conhecimento das peripécias por que tinha passado, e voltou-se para um dos agentes.

            - O meu pai está internado num hospital perto daqui. Tenho de ir visitá-lo. Se calhar está preocupado por causa de mim.

            - Terás oportunidade de o ver dentro em pouco, meu rapaz - replicou o agente, que naquela altura já se encontrava a par de toda a história da família Doman -, mas agora a tua mãe espera-te na Catedral de Saint-Patrick, onde foi assistir à Missa do Galo.

 

            Quando a campainha tocou no apartamento de Cally, situado na Avenida B, ela foi abrir a porta, acreditando, resignada, que estava prestes a ser presa pelas autoridades. O detective Levy telefonara para dizer apenas que ele e outro colega tencionavam passar por casa dela, mas quem se apresentou à sua porta foram dois sorridentes detectives vestidos de Pai Natal, com os braços cheios de bonecas e jogos, bem como um carrinho de bonecas de verga, novinho em folha.

            Enquanto ela olhava sem querer acreditar no que via, os dois homens colocaram os presentes em redor da árvore de Natal.

            - As informações que nos facultou sobre o seu irmão deram-nos uma ajuda incalculável - disse Bud Folney. O garoto dos Dornan está bem, já se encontra a caminho da cidade e, quanto a Jimmy, vai de retorno à cadeia. Uma vez mais, ele passou a ser da nossa responsabilidade, e posso garantir-lhe que desta feita não permitiremos que fuja da prisão. Só espero que as coisas melhorem para si a partir de agora.

            Cally sentiu-se como se lhe tivessem tirado um peso enorme dos ombros.

            - Muito obrigada - agradeceu ela num sussurro, incapaz de falar mais alto. - Muito obrigada...

            - Feliz Natal, Cally - desejaram Folney e Levy em uníssono antes de se irem embora.

            Depois de os dois homens terem saído, Cally compreendeu que finalmente poderia ir para a cama dormir um sono descansado, e a respiração regular de Gigi era a resposta a uma oração. Daquele dia em diante sabia que poderia ouvi-la todas as noites sem receio de que alguém lhe retirasse a sua filha. "A partir de agora, tudo começará a correr pelo melhor", pensou Cally. "Tenho a certeza disso."

            Antes de se entregar ao sono, o seu último pensamento foi que quando Gigi visse que a caixa grande, aquela que a garota pensara conter o presente para o Pai Natal, já não estava junto da árvore de Natal, poderia dizer-lhe, com toda a sinceridade, que ele a viera buscar.

 

            Terminada a Missa do Galo, quando o celebrante estava prestes a começar a entoar o hino, uma vez mais a porta lateral da catedral abriu-se, dando entrada ao agente Ortiz, mas desta vez não vinha sozinho. Baixou-se até à altura do rapazinho ao seu lado, apontou para determinado ponto e, antes que Catherine pudesse levantar-se do seu lugar, Brian estava nos seus braços - e sentiu a medalha de São Cristóvão, que o garoto usava ao pescoço, junto do seu coração.

            Enquanto abraçava fortemente o filho, não proferiu uma única palavra, embora sentisse as lágrimas de alívio e alegria que lhe corriam livremente pelas faces, por saber que Brian se encontrava de novo em segurança e por acreditar convictamente que agora Tom iria melhorar.

            Barbara, a exemplo da filha, também nada disse, baixando-se apenas e colocando a mão em cima da cabeça do neto, num gesto carinhoso.

            Foi Michael quem quebrou o silêncio com palavras segredadas de boas-vindas.

            - Olá, idiota - saudou ele com um sorriso rasgado.

 

DIA DE NATAL

            O Dia de Natal amanheceu frio e límpido. às dez horas, Catherine, Brian e Michael chegaram ao hospital.

            O doutor Crowley aguardava-os quando saíram do elevador, no quinto piso do edifício.

            - Meu Deus, Catherine! - exclamou o médico. - Sentes-te bem? Só quando cheguei aqui esta manhã é que tive conhecimento do sucedido. Deves estar exausta.

            - Obrigada pelo teu cuidado, Spence, mas estou óptima. - Catherine olhou para os filhos. - Estamos todos bem. E o Tom, como tem reagido? Quando telefonei esta manhã, tudo o que souberam dizer-me foi que tinha passado bem a noite.

            - O que é verdade e é um indicio excelente. Dormiu toda a noite sem qualquer problema, tenho a certeza de que a dele foi muito melhor do que a tua. Espero que não te importes, mas decidi que era melhor contar-lhe o que aconteceu com Brian. A imprensa tem telefonado insistentemente para aqui durante toda a manhã, pelo que não me quis arriscar a que ele tivesse conhecimento da situação através de um estranho. Quando o pus ao corrente, como é evidente, comecei pelo final feliz.

            Catherine sentiu-se invadida por uma vaga de alivio.

            - Fico satisfeita por ele já estar ao corrente do que aconteceu, Spence. Não sabia como havia de lhe dizer. Não tinha a certeza de como receberia a notícia.

            - Aceitou tudo muito bem, Catherine. Ele é muito mais forte do que tu possas pensar. - Naquele momento, Crowley olhou para o fio com a medalha que Brian trazia ao pescoço. - Tanto quanto me é dado saber, passaste por muita coisa para conseguires entregar essa medalha ao teu pai. Prometo-lhes que entre mim e São Cristóvão haveremos de conseguir pôr o Tom de boa saúde. - Os dois rapazes deram a mão a Catherine. - Ele está à vossa espera - disse o médico com um sorriso.

 

           A porta do quarto do Tom mantinha-se parcialmente aberta e Catherine empurrou-a mais para trás, parando a olhar para o marido.

            A cabeceira da cama estava mais elevada que os pés. Quando os viu, o rosto de Tom iluminou-se com o sorriso que lhes era tão familiar.

            Os dois rapazes correram para a cama do pai, parando cautelosamente a apenas alguns centímetros, e ambos estenderam as mãos, agarrando as dele. Catherine viu que os olhos do marido se enchiam de lágrimas quando olhou para Brian.

            "Ele está tão pálido", pensou para consigo. "Deve sentir muitas dores, mas há-de melhorar." Não foi obrigada a forçar o sorriso radiante que os seus lábios esboçaram, quando Michael retirou do pescoço de Brian o fio com a medalha de São Cristóvão e os dois garotos o enfiaram pela cabeça do pai.

            - Feliz Natal, paizinho - disseram ambos em coro.

            Quando Tom Doman olhou por cima da cabeça dos filhos e os seus lábios formaram a palavra "amo-te", surgiram outras que cantaram bem no íntimo de Catherine.

            "Tudo está sereno... tudo é alegria."

 

                                                                                            Mary Higgins Clark

 

 

                      

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