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MUNDO SEM FIM - P3 / Ken Follett
MUNDO SEM FIM - P3 / Ken Follett

 

 

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MUNDO SEM FIM

Parte III 

 

janeiro de 1349 - janeiro de 1351

Quando Godwyn partiu, levou todos os bens valiosos do tesouro dos monges e todos os cartulários. Isso incluía os cartulários das freiras, que elas nunca haviam conseguido retirar de sua arca trancada. Ele levou também as relíquias sagradas, inclusive os ossos de St. Adolphus, em seu relicário de valor inestimável.

Caris descobriu isso na manhã seguinte, o primeiro dia de janeiro, a Festa da Circuncisão de Cristo. Foi com o bispo Henri e a irmã Elizabeth até o tesouro, junto do transepto sul. A atitude de Henri em relação a ela era de formalidade total, o que era preocupante, mas, como se tratava de um homem rabugento, era possível que ele fosse assim com todas as pessoas.

A pele esfolada de Gilbert de Hereford ainda continuava pregada na porta, pouco a pouco mais dura e amarelada, ainda exalando um cheiro inconfundível, embora fraco, de podridão.

Mas a porta não estava trancada.

Eles entraram. Caris não estivera ali desde que o prior Godwyn roubara as cento e cinqüenta libras das freiras para construir seu palácio. Depois disso, as freiras haviam construído seu próprio tesouro.

Ficou evidente no mesmo instante o que havia acontecido. As pedras que cobriam os cofres no chão haviam sido removidas e deixadas fora do lugar. A tampa da arca reforçada com ferro continuava aberta. Os cofres e a arca estavam vazios.

Caris sentiu nesse instante que todo seu desprezo por Godwyn era justificado. Um médico preparado, sacerdote e líder dos monges, ele fugira no momento em que o povo mais precisava de sua ajuda. Agora, sem a menor sombra de dúvida, todos compreenderiam sua verdadeira natureza. O arquidiácono Lloyd ficou indignado.

- Ele levou tudo!

Caris declarou para Henri:

- E esse é o homem que queria anular minha eleição.

O bispo Henri soltou um grunhido neutro. Desesperada, Elizabeth tentou encontrar uma desculpa para o comportamento de Godwyn.

- Tenho certeza de que o lorde prior levou as coisas de valor para guardar em lugar seguro.

O comentário irritou o bispo.

- Isso é bobagem - disse ele, incisivo. - Se um servo esvazia sua bolsa e desaparece sem avisar, não é para guardar o dinheiro num lugar seguro, mas sim para roubá-lo.

Elizabeth tentou um ângulo diferente.

- Creio que a idéia foi de Philemon.

- O vice-prior? - Henri assumiu uma expressão desdenhosa. - E Godwyn quem tem o comando, não Philemon. Godwyn é responsável.

Elizabeth não disse mais nada.

Godwyn devia ter se recuperado da morte da mãe, pelo menos temporáriamente, pensou Caris. Era um feito e tanto persuadir todos os monges a acompanharem-no. Especulou para onde teriam ido. O bispo Henri pensava a mesma coisa, porque indagou:

- Para onde os covardes miseráveis foram?

Caris recordou que Merthin tentara persuadi-la a partir. Para Gales ou Irlanda, dissera ele. Uma aldeia remota em que um estranho não apareça de um ano para outro. Ela disse ao bispo:

- Eles foram se esconder em algum lugar isolado ao qual ninguém jamais vai.

- Descubra para onde exatamente ele foi.

Caris compreendeu que toda a oposição à sua eleição desaparecera com Godwyn. Sentia-se triunfante e teve de fazer um esforço para não parecer muito satisfeita.

- Farei algumas indagações na cidade. Alguém deve tê-los visto quando partiram.

- Faça isso - disse o bispo. - Seja como for, acho que eles não voltarão tão cedo. Portanto, você terá de cuidar de tudo sem a participação dos homens. Continue os serviços da maneira mais normal possível com as freiras. Chame um padre paroquial para celebrar as missas na catedral, se puder encontrar algum ainda vivo. As freiras não podem celebrar missas, mas podem ouvir confissões... Há uma autorização especial do arcebispo por causa da morte de tantos clérigos.

Caris não podia deixar passar a oportunidade de tratar de sua eleição.

- Está me confirmando como prioresa?

- Claro - respondeu Henri, irritado.

- Neste caso, antes que eu aceite a honra...

- Não tem que tomar decisão nenhuma, madre prioresa - declarou ele, indignado. - É seu dever me obedecer.

Ela queria o posto desesperadamente, mas resolveu simular o contrário. Tinha de fechar um acordo difícil.

- Vivemos em tempos estranhos, não é mesmo? As freiras recebem autorização para ouvir confissões. Abreviaram o período de preparação dos padres, mas já me disseram que isso não foi suficiente para compensar as perdas causadas pela peste.

- Sua intenção é explorar as dificuldades que a Igreja enfrenta para promover algum propósito pessoal?

- Não. Mas há uma coisa que precisa fazer para que eu possa cumprir suas instruções.

Henri suspirou. Era evidente que não gostava de ser pressionado dessa maneira. Mas, como Caris desconfiara, o bispo precisava dela mais do que o inverso.

- Está bem. O que é?

- Quero que convoque um tribunal eclesiástico especial e reabra meu julgamento por heresia.

- Por quê?

- Para me declarar inocente, é claro. Até que isso aconteça, pode ser difícil para mim exercer autoridade. Qualquer pessoa que discordar de minhas decisões pode muito bem alegar que eu continuo a ser uma mulher condenada.

A mente meticulosa do arquidiácono Lloyd gostou dessa idéia.

- Seria ótimo se essa questão fosse resolvida de uma vez por todas, milorde bispo.

- Está bem.

- Obrigada. - Caris sentiu um fluxo de prazer e alívio. Baixou a cabeça, com medo de que o triunfo transparecesse em seu rosto. - Farei o melhor que puder para honrar minhas obrigações como prioresa de Kingsbridge.

- Não perca tempo para descobrir o paradeiro de Godwyn. Eu gostaria de ter uma resposta antes de deixar a cidade.

- O regedor da guilda da paróquia é amigo de Godwyn. Se alguém sabe para onde os monges foram, deve ser ele. Vou procurá-lo.

- Imediatamente, por favor.

Caris se retirou. O bispo Henri era sisudo, mas parecia competente. Caris concluiu que poderia trabalhar com ele. Talvez fosse o tipo de líder que tomava decisões baseado nos méritos de cada caso, em vez de ficar do lado de quem percebesse como aliado. O que seria uma mudança agradável.

Ao passar pela Bell, ela sentiu-se tentada a entrar e dar a boa notícia a Merthin. Mas pensou que era melhor falar com Elfric primeiro.

Na rua, na frente da Holly Bush, ela avistou Duncan Dyer estendido no chão. Sua esposa, Winnie, sentava no banco na frente da taverna, chorando. Caris pensou que o homem estava ferido, mas Winnie explicou:

- Ele está bêbado. Caris ficou chocada.

- Ainda nem é a hora do almoço!

- O tio dele, Peter Dyer, pegou a peste e morreu. A esposa e os filhos também morreram. Duncan herdou o dinheiro, mas gasta tudo em vinho. Não sei o que fazer.

- Vamos levá-lo para casa - propôs Caris. - Eu a ajudarei.

Cada uma pegou um braço de Duncan, e elas conseguiram levantá-lo. Meio amparando-o, meio arrastando-o, desceram pela rua até sua casa. Deitaram-no no chão e estenderam um cobertor por cima. Winnie disse:

- Ele fica assim todos os dias. Diz que não vale a pena trabalhar, porque vamos todos morrer da peste. O que devo fazer?

Caris pensou por um momento.

- Enterre o dinheiro no jardim enquanto ele dorme. E quando Duncan acordar, diga que ele perdeu tudo no jogo para um mascate que já deixou a cidade.

- Farei isso.

Caris atravessou a rua para a casa de Elfric e entrou. Encontrou a irmã, Alice, sentada na cozinha, costurando meias. Não eram muito ligadas desde que Alice casara com Elfric. O pouco que restava do relacionamento fora destruído pelo testemunho de Elfric contra Caris no julgamento por heresia. Forçada a optar entre a irmã e o marido, Alice fora leal a Elfric. Caris podia compreender, mas a irmã acabara se tornando uma estranha para ela. Quando a viu, Alice largou a costura e levantou-se.

- O que veio fazer aqui?

- Todos os monges desapareceram - disse Caris. - Devem ter partido duran te a noite.

- Então foi isso! - exclamou Alice.

- Você os viu?

- Não, mas ouvi um bando de homens e cavalos. Não faziam barulho... na verdade, agora que penso a respeito, pareciam se esforçar para manter silêncio. Mas não se pode manter cavalos em silêncio, e homens fazem barulho só de andar pela rua. Acordaram-me, mas não levantei para ver... fazia muito frio. Foi por isso que você entrou em minha casa pela primeira vez em dez anos?

- Não sabe para onde eles fugiram? i

- Foi isso que eles fizeram... fugiram? Por causa da peste?

- Presumo que sim.

- Não pode ter sido. De que adianta ter médicos que fogem da doença? Alice mostrava-se perturbada pelo comportamento do patrono de seu marido. Não posso entender.

- Fico imaginando se Elfric sabe alguma coisa a respeito.

Se sabe, não me contou.

- Onde posso encontrá-lo?

- Em St. Peter. Rick Silvers deixou algum dinheiro para a igreja, e o padre . decidiu pavimentar a nave.

- Vou perguntar a ele. - Caris perguntou-se se deveria fazer uma tentativa de ser cortês. Alice não tinha filhos seus, mas tinha uma enteada. - Como está Griselda?

- Muito bem e feliz.

Havia um tom de desafio na voz de Alice, como se ela pensasse que Caris pudesse preferir o contrário.

- E seu neto?

Caris não foi capaz de usar o nome do menino, que era Merthin.

- Adorável. E há outro neto a caminho.

- Fico satisfeita por ela.

- Ainda bem que ela não casou com seu Merthin, pelo que aconteceu depois. Caris recusou-se a ser atraída para uma discussão.

- Vou falar com Elfric.

A igreja de St. Peter ficava no lado oeste da cidade. Ao se encaminhar para lá, pelas ruas sinuosas, Caris encontrou dois homens brigando. Gritavam imprecações um contra o outro e se esmurravam com a maior violência.

Duas mulheres, que deviam ser as esposas, gritavam insultos, enquanto os vizinhos assistiam. A porta da casa mais próxima fora arrombada. No chão, ali perto, havia uma gaiola de juncos, com três galinhas vivas. Caris foi se interpor entre os dois homens.

- Parem com isso, agora mesmo. Eu ordeno, em nome de Deus.

Não foi necessária muita persuasão. Era bem provável que os homens já tivessem descarregado sua ira com os primeiros golpes, e poderiam até se sentir gratos por um pretexto para interromperem a briga. Recuaram e baixaram os braços.

- O que aconteceu? - perguntou Caris.

Os dois puseram-se a falar ao mesmo tempo, junto com as esposas.

- Um de cada vez! - exclamou Caris.

Ela apontou para o maior dos dois, um homem de cabelos escuros, cuja boa aparência era desfigurada pelo olho inchado.

- Você não é Joe Blacksmith? Explique.

- Peguei Toby Peterson roubando as galinhas de Jack Marrow. Ele arrombou a porta.

Toby era menor, mas com a arrogância de um galo de briga. Falou através dos lábios sangrando:

- Jack Marrow me devia cinco shillings... tenho direito a essas galinhas! Joe protestou:

- Jack e toda a sua família morreram da peste há duas semanas. Venho alimentando suas galinhas desde então. Estariam mortas se não fosse por mim. Se alguém deve ficar com elas, esse alguém sou eu.

- Ambos têm direito às galinhas, não é? Toby por causa da dívida, e Joe porque as manteve vivas à sua própria custa.

Os dois pareciam atordoados diante da perspectiva de que ambos podiam estar certos.

- Joseph, tire uma galinha da gaiola - ordenou Caris. Toby interveio:

- Ei, espere um pouco...

- Confie em mim, Toby - disse Caris. - Sabe que eu não seria injusta com você, não é?

- Não posso negar isso...

Joe abriu a gaiola e pegou pelos pés uma galinha magricela, de penas marrons. A galinha olhava para um lado e outro, como se estivesse espantada por ver o mundo de cabeça para baixo.

- Agora, entregue a galinha à esposa de Toby.

- O quê?

- Acha que eu o enganaria, Joseph?

Relutante, Joe entregou a galinha à esposa de Toby, uma morena bonita e mal-humorada.

- Aí está, Jane.

Jane pegou a galinha com a maior satisfação. Caris lhe disse:

- Agora, agradeça a Joe.

Jane exibiu uma expressão petulante, mas disse:

- Obrigada, Joseph Blacksmith.

- Agora, Toby, entregue uma galinha a Ellie Blacksmith - ordenou Caris. Toby obedeceu, com um sorriso envergonhado. A esposa de Joe, Ellie, com

uma enorme barriga de gravidez, também sorriu e disse:

- Obrigada, Toby Peterson.

Eles começavam a voltar ao normal, compreendendo a insensatez do que haviam feito.

- E a terceira galinha? - perguntou Jane.

- Já vou chegar nela. - Caris olhou para os espectadores e apontou para uma menina de onze ou doze anos, que parecia bastante sensata. - Qual é o seu nome?

- Sou Jesca, madre prioresa... a filha de John Constable.

- Leve a outra galinha para a igreja de St. Peter e entregue ao padre Michael. Diga que Toby e Joe vão procurá-lo para pedir perdão pelo pecado da cobiça.

- Está bem, irmã.

Jesca pegou a terceira galinha e afastou-se. A esposa de Joe, Ellie, disse:

- Pode estar lembrada, madre Caris, que ajudou a irmã caçula de meu marido, Minnie, quando ela queimou o braço na forja.

- Claro que lembro. - Fora uma queimadura terrível. - Ela está bem?

- Tão bem quanto a chuva, por sua causa e pela graça de Deus.

- Fico contente em saber disso.

- Não gostaria de entrar em minha casa para tomar uma cerveja, madre pri oresa?

- Eu adoraria, mas tenho pressa. - Caris virou-se para os homens. - Deus os abençoe e não briguem mais.

- Obrigado - murmurou Joe. Caris afastou-se. Toby gritou:

- Obrigado, madre. » Ela acenou, sem olhar para trás.

Notou pelo caminho que havia várias outras casas com a porta arrombada. Presumiu que haviam sido saqueadas depois da morte dos ocupantes. Alguém devia tomar providências, pensou ela. Mas com Elfric como regedor e um prior desaparecido, não havia ninguém para tomar a iniciativa.

Ela chegou a St. Peter e encontrou Elfric na nave, com vários calceteiros e seus aprendizes. Havia blocos de pedra empilhados por toda parte. Os homens preparavam a área, espalhando areia e alisando-a com galhos. Elfric verificava se o terreno estava plano, usando um dispositivo complicado, uma estrutura de madeira com um cordão pendendo, um peso de chumbo pendurado na extremidade. Parecia uma forca em miniatura, e lembrou a Caris que Elfric tentara promover seu enforcamento, dez anos antes. Ficou surpresa ao descobrir que não sentia qualquer ódio por ele. Era um homem muito mesquinho e tacanho para merecer seu ódio. Ao fitá-lo, ela não sentiu nada além de desprezo. Esperou que ele acabasse sua verificação, antes de perguntar, abruptamente:

- Sabia que Godwyn e todos os monges fugiram?

Ela tencionava surpreendê-lo, e teve certeza, por sua expressão de espanto, que ele não tinha conhecimento prévio.

- Por que eles...? Quando...? Ahn... na noite passada?

- Você não os viu.

- Ouvi alguma coisa.

- Mas eu vi - disse um calceteiro. Ele apoiou-se na pá. - Eu saía da Holly Bush. Estava escuro, mas eles tinham tochas. O prior da a cavalo, mas os outros seguiam a pé. Levavam muita bagagem: barris de vinho e rodas de queijo, não sei mais o quê.

Caris já sabia que Godwyn esvaziara as despensas dos monges. Não tentara levar os suprimentos das freiras, que eram guardados em separado.

- A que horas foi isso? .

- Não era muito tarde... nove ou dez horas.

- Falou com eles?

- Apenas para dizer boa-noite.

- Alguma idéia do lugar para onde eles podem ter ido? O calceteiro sacudiu a cabeça.

- Eles passaram pela ponte, mas não vi para que lado seguiram em Gallows Cross.

Caris virou-se para Elfric

- Tente se lembrar dos últimos dias. Godwyn lhe disse alguma coisa que possa ter alguma relação com isso, em retrospectiva? Mencionou lugares... Monmouth, York, Antuérpia, Bremen?

- Não sei de nada.

Elfric parecia furioso por não ter sido avisado com antecedência, o que levou Caris a pensar que ele dizia a verdade.

Se Elfric estava surpreso, era improvável que qualquer outra pessoa tivesse conhecimento do que o prior planejava. Godwyn fugia da pest;, e era evidente que não queria que ninguém o seguisse, levando a doença. Saia cedo, para bem longe, e se mantenha distante por muito tempo, dissera Merthin. Godwyn poderia estar em qualquer lugar.

- Se tiver notícias dele, ou de qualquer dos monges, avise-me, por favor pediu Caris.

Elfric não disse nada.

Caris elevou a voz, para que todos ouvissem, ao acrescentar:

- Godwyn roubou todos os ornamentos preciosos da catedral.

Houve murmúrios de indignação. Os homens sentiam-se como co-proprietários dos ornamentos da catedral; afinal, os artesãos mais ricos haviam ajudado a pagar alguns.

- O bispo quer os ornamentos de volta - continuou ela. - Qualquer um que ajudar Godwyn, mesmo que seja apenas ocultando informações sobre seu paradeiro, é culpado de sacrilégio.

Elfric estava aturdido. Baseara sua vida em se insinuar nas boas graças de Godwyn. Agora, seu patrono desaparecera.

- Pode haver uma explicação absolutamente inocente...

- Se há, por que Godwyn não contou a ninguém? Nem sequer deixou uma carta?

Elfric não pôde pensar em nada para dizer.

Caris compreendeu que teria de falar com todos os principais mercadores da cidade; e quanto mais cedo, melhor. Ela olhou para Elfric

- Eu gostaria que você convocasse uma reunião. - Ela pensou numa maneira mais persuasiva de fazer o pedido, e acrescentou: - O bispo quer que a guilda da paróquia se reúna hoje, depois do almoço. Por favor, comunique aos membros.

- Está bem.

Todos compareceriam, pensou Caris, levados pela curiosidade.

Ela deixou St. Peter e voltou para o priorado. Ao passar pela taverna White Horse viu uma coisa que a fez parar. Uma garota conversava com um homem mais velho, e havia algo na interação entre eles que a deixou toda arrepiada. Caris sempre sentia com a maior intensidade a vulnerabilidade das meninas... talvez porque se lembrasse de si mesma quando adolescente, talvez por causa da filha que nunca tivera. Ela recuou para um vão de porta e ficou observando.

O homem era malvestido, exceto por um dispendioso gorro de pele. Caris não o conhecia, mas calculou que era um trabalhador e que herdara o gorro. Tantas pessoas haviam morrido que havia uma sobra de trajes de luxo. Por isso, uma cena estranha como aquela se tornara bastante comum. A garota devia ter em torno de quatorze anos e era bastante bonita, com um corpo de adolescente. Ela tentava ser coquete, percebeu Caris, com desaprovação; embora não se mostrasse muito convincente. O homem tirou algum dinheiro da bolsa, e os dois pareciam estar discutindo. Depois de um momento, o homem acariciou o seio pequeno da garota.

Caris já vira o suficiente. Avançou para os dois. O homem lançou um olhar para o hábito de freira e afastou-se apressado. A garota parecia ao mesmo tempo culpada e ressentida.

- O que está fazendo... quer vender seu corpo? - indagou Caris.

- Não, madre.

- Diga a verdade! Por que deixou que ele acariciasse seu seio?

- Não sei mais o que fazer. Não tenho nada para comer, e agora você o afugentou.

Ela desatou a chorar. Caris podia acreditar que a garota estava faminta, de tão magra e pálida.

- Venha comigo - disse Caris. - Eu lhe darei alguma coisa para comer. Ela pegou a garota pelo braço e começou a levá-la para o priorado.

- Qual é o seu nome?

- Ismay.

- Qual é sua idade?

- Treze anos.

Chegaram ao priorado, e Caris levou Ismay para a cozinha. O almoço das freiras estava sendo preparado sob a supervisão de uma noviça chamada Oonagh. A cozinheira, Josephine, fora vitimada pela peste.

- Dê um pouco de pão com manteiga a esta criança - disse Caris a Oonagh. Ela sentou e observou a garota comer. Era evidente que Ismay não se alimentava há dias. Comeu quase um quilo de pão antes de parar com a voracidade. Caris serviu-lhe um copo de sidra.

- Por que estava passando fome?

- Toda a minha família morreu da peste.

- O que seu pai fazia?

- Era alfaiate. Sei costurar muito bem, mas ninguém está comprando roupas... as pessoas podem pegar o que quiserem nas casas dos mortos.

- Então é por isso que você tentava se prostituir.

A garota baixou os olhos.

- Sinto muito, madre prioresa. Eu sentia fome demais.

- Foi a primeira vez que você tentou? Ismay sacudiu a cabeça e não quis olhar para Caris.

Lágrimas de raiva afloraram aos olhos de Caris. Que tipo de homem seria capaz de ter uma união sexual com uma garota faminta de treze anos? Que tipo de Deus levaria uma garota a tamanho desespero?

- Você gostaria de ficar aqui, com as freiras, e trabalhar na cozinha? Teria o suficiente para comer.

A garota levantou os olhos, na maior ansiedade.

- Ah, madre, eu gostaria muito!

- Pois então pode ficar. E comece por ajudar a preparar o almoço das freiras. Oonagh, aqui tem uma nova ajudante para a cozinha.

- Obrigada, madre Caris. Preciso mesmo de toda ajuda que puder obter. Caris deixou a cozinha e seguiu pensativa para o serviço da Sexta na catedral.

A peste não era apenas uma doença física, ela começava a compreender. Ismay escapara da doença, mas sua alma estivera em perigo.

O bispo Henri conduziu o serviço, deixando Caris livre para pensar. E decidiu que na reunião da guilda da paróquia não se limitaria a falar sobre a fuga dos monges. Era tempo de organizar a cidade para lidar com os efeitos da peste. Mas como?

Ela refletiu sobre todos os problemas durante o almoço. Por todos os tipos de razões, aquele era um momento para tomar grandes decisões. Com o bispo ali para apoiar sua autoridade, poderia impor medidas que de outra forma teriam grande oposição.

Aquele era também um bom momento para conseguir o que quisesse do bispo. O que era um pensamento com muitas perspectivas...

Depois do almoço, ela foi conversar com o bispo na casa do prior, onde ele se instalara. Henri sentava à mesa junto com o arquidiácono Lloyd. Haviam sido alimentados pela cozinha das freiras. Agora, tomavam vinho, enquanto um servo do priorado tirava a mesa.

- Espero que tenha gostado de seu almoço, milorde bispo - disse ela, formal. Ele estava um pouco menos rabugento do que o habitual.

- Estava ótimo, obrigado, madre Caris... um lúcio muito saboroso. Alguma notícia do prior fugitivo?

- Ele parece ter tomado o cuidado de não deixar qualquer pista sobre seu destino.

- O que é desapontador.

- Enquanto percorria a cidade, fazendo indagações, testemunhei vários incidentes que me perturbaram: uma menina de treze anos se prostituindo; dois cidadãos que costumam respeitar as leis brigando por causa da propriedade de um morto; um homem completamente embriagado ao meio-dia.

- São os efeitos da peste. Vêm acontecendo por toda parte.

- Creio que devemos agir para acabar com esses efeitos.

O bispo elevou uma sobrancelha. Parecia que não pensara em entrar em ação.

- Como?

- O prior é o suserano de Kingsbridge. Ele é quem deve tomar a iniciativa.

- Mas o prior desapareceu.

- Como bispo, é tecnicamente nosso abade. Acho que deve ficar em Kingsbridge e assumir o comando da cidade.

Na verdade, essa era a última coisa que Caris queria. Por sorte, havia bem pouca possibilidade de o bispo concordar: ele tinha muita coisa para fazer em outros lugares. Ela apenas tentava acuá-lo no canto.

Henri hesitou. Por um instante, Caris preocupou-se, achando que poderia ter feito um julgamento errado e que ele poderia aceitar sua sugestão. Mas, depois de um momento, o bispo disse:

- Isso é impossível. Todas as cidades na diocese enfrentam os mesmos problemas. A situação em Shiring é ainda pior. Tenho de tentar manter a estrutura do cristianismo por toda parte, enquanto meus padres estão morrendo. Não tenho tempo para me preocupar com bêbados e prostitutas.

- Mas alguém deve agir como o prior de Kingsbridge. A cidade precisa de um líder moral.

O arquidiácono Lloyd interveio:

- Milorde bispo, há também a questão de quem vai receber os dinheiros devidos ao priorado, manter a catedral e outros prédios, administrar as terras e os servos...

- Terá de fazer tudo isso, madre Caris - declarou Henri.

Ela fingiu considerar a sugestão, como se já não tivesse pensado a respeito.

- Eu poderia cuidar de todas as tarefas menos importantes... administrar o dinheiro dos monges e suas terras... mas não seria capaz de fazer a mesma coisa que o senhor, milorde bispo. Não poderia desempenhar os sagrados sacramentos.

- Já conversamos sobre isso - declarou ele, impaciente. - Estou criando novos padres tão depressa quanto posso. Mas você pode fazer todo o resto.

- Quase parece que está me pedindo para agir como o prior em exercício de Kingsbridge.

- É exatamente o que eu quero.

Caris teve o cuidado de não demonstrar sua exultação. Parecia bom demais para ser verdade. Seria como o prior de Kingsbridge para todos os propósitos, exceto por aqueles pelos quais não se importava. Haveria empecilhos ocultos em que ela não pensara?

- É melhor me deixar escrever uma carta para esse efeito, caso ela precise impor sua autoridade - propôs o arquidiácono Lloyd.

- Se quer que a cidade acate seus desejos, talvez seja necessário demonstrar a todos que é a sua decisão pessoal - disse Caris. - Uma reunião da guilda da paróquia está prestes a começar. Se estiver disposto, milorde bispo, eu gostaria que comparecesse e fizesse o comunicado.

- Está bem. Vamos embora.

Eles deixaram o palácio de Godwyn e seguiram pela rua principal até a casa da guilda. Todos os membros esperavam para saber o que acontecera com os monges. Caris começou pelo relato do que sabia. Várias pessoas haviam visto ou ouvido o êxodo no dia anterior, depois do escurecer, embora ninguém percebesse ou nem sequer desconfiasse de que todos os monges estavam partindo.

Ela pediu que todos se mantivessem alertas a informações de viajantes sobre um grupo grande de monges na estrada, levando muita bagagem.

- Mas temos de aceitar a probabilidade de que os monges não voltarão tão cedo. E em relação a isso, milorde bispo tem um comunicado a fazer.

Ela queria que o aviso viesse direto do bispo. Henri limpou a garganta.

- Confirmei a eleição de Caris como prioresa e também a designei para prior em exercício. Peço que todos, por favor, a tratem como minha representante e suserana de vocês em todas as questões, exceto as que são reservadas a padres ordenados.

Caris observava os rostos. Elfric ficou furioso. Merthin sorriu, adivinhando que ela manobrara para alcançar aquela situação. Mostrou-se satisfeito, por ela e pela cidade, mas a contração pesarosa dos lábios indicava que também sabia que isso a manteria longe de seus braços. Todos os outros pareciam contentes. Conheciam-na e confiavam nela; e Caris conquistara ainda mais lealdade ao permanecer em Kingsbridge, enquanto Godwyn fugia. Caris decidiu que devia tirar o máximo de proveito da situação.

- Há três problemas que eu quero enfrentar logo no meu primeiro dia como prior em exercício - declarou ela. - Primeiro, a embriaguez. Hoje vi Duncan Dyer caído na rua, inconsciente, antes da hora do almoço. Creio que isso contribui para o clima de devassidão na cidade, que é a última coisa de que precisamos durante esta crise terrível.

Houve murmúrios altos de aprovação. A guilda da paróquia era dominada pelos mercadores mais velhos e mais conservadores da cidade. Se alguma vez eles bebiam pela manhã era em casa, onde ninguém podia vê-los. Caris continuou:

- Quero providenciar um ajudante extra para John Constable e instruí-lo a prender qualquer um que encontre bêbado à luz do dia. Ele poderá metê-los na cadeia até que voltem a ficar sóbrios.

Até mesmo Elfric acenou com a cabeça em concordância.

- O segundo problema é a questão das pessoas que morrem sem deixar herdeiros. Esta manhã encontrei Joseph Blacksmith e Toby Peterson brigando por causa de três galinhas que pertenciam a Jack Marrow.

Houve risos ao pensamento de homens adultos brigando por causa de coisas tão insignificantes. Caris já pensara numa solução para o problema.

- Em princípio, essas propriedades revertem para o senhor do solar, que no caso dos moradores de Kingsbridge significa o priorado. Mas não quero que os prédios do mosteiro fiquem abarrotados de roupas velhas. Em vez disso, os dois vizinhos mais próximos devem trancar a casa, para se ter a garantia de que nada será tirado; em seguida, o padre da paróquia fará um inventário dos bens e também ouvirá as reivindicações de possíveis credores. Onde não há padre, poderão me procurar. Depois que as dívidas forem pagas, os bens pessoais do falecido... roupas, móveis, alimentos, bebidas... serão divididos entre os vizinhos. Qualquer dinheiro será entregue à igreja da paróquia.

Houve também uma aprovação geral para essa proposta, a maioria das pessoas acenando com a cabeça e murmurando em concordância.

- Finalmente, encontrei uma órfã de treze anos que tentava vender seu corpo na frente da White Horse. Seu nome é Ismay, e ela fez isso porque não tinha nada para comer. - Caris correu os olhos pela sala com uma expressão desafiadora. Alguém pode me dizer como é possível que isso aconteça numa cidade cristã? Toda a família da garota havia morrido... mas eles não tinham amigos ou vizinhos? Quem permite que uma criança passe fome?

Edward Butcher interveio, em voz baixa:

- Ismay Taylor é uma menina malcomportada. Caris não aceitaria qualquer desculpa.

- Ela tem treze anos!

- Só estou querendo dizer que podem ter oferecido ajuda e ela recusou.

- Desde quando permitimos que crianças tomem decisões por si mesmas? Se uma criança é órfã, todos temos o dever de cuidar dela. O que a religião de vocês significa que não isso?

Todos pareciam envergonhados.

- No futuro, sempre que uma criança ficar órfã, quero que os dois vizinhos mais próximos a levem para mim. As que não puderem ir para a casa de uma família amiga ficarão no priorado. As meninas podem viver com as freiras, e o dormitório dos monges será o lugar para os meninos. Eles terão aulas de manhã e um trabalho apropriado à tarde.

Houve aprovação geral para isso também. Elfric indagou: -Já acabou, madre Caris?

- Acho que sim, a menos que alguém queria discutir os detalhes do que acabei de sugerir.

Ninguém disse nada. Os membros da guilda começaram a se remexer em seus assentos, como se a reunião estivesse encerrada. Mas Elfric tornou a se manifestar:

- Alguns dos homens aqui podem se lembrar que me elegeram para regedor da guilda.

Sua voz transbordava de ressentimento. Todos se remexeram ainda mais, impacientes. Ele continuou:

- Temos agora o prior de Kingsbridge acusado de roubo e condenado sem julgamento.

O comentário pegou muito mal. Houve protestos de divergência. Ninguém achava que Godwyn era inocente. Mas Elfric ignorou o clima na sala.

- E sentamos aqui como escravos, deixando que uma mulher determine as leis da cidade. Pela autoridade de quem os bêbados devem ser presos? Dela. Quem será o supremo juiz das heranças aqui? Ela.

Quem decidirá o que fazer com os órfãos da cidade? Será ela. O que vocês se tornaram? Não são mais homens?

- Não - disse Betty Baxter. Os homens riram.

Caris decidiu não interferir. Era desnecessário. Ela lançou um olhar para o bispo, especulando se ele falaria contra Elfric Mas percebeu que ele se recostava, de boca fechada: era evidente que o bispo também compreendera que Elfric travava uma batalha perdida. Elfric elevou a voz:

- Digo que devemos rejeitar uma mulher como prior, mesmo que seja apenas como prior em exercício. E também devemos negar à prioresa o direito de comparecer às reuniões da guilda da paróquia e nos dar ordens!

Vários resmungaram palavras de revolta. Dois ou três levantaram-se, como se estivessem prestes a sair, em repulsa. Alguém gritou: -Já chega, Elfric! Mas Elfric insistiu:

- E ainda por cima é uma mulher que foi julgada por bruxaria e condenada à morte!

Todos os homens ficaram de pé agora. Um deles se encaminhou para a porta e saiu.

- Volte! - berrou Elfric. - Ainda não encerrei a reunião! Ninguém lhe prestou mais qualquer atenção.

Caris juntou-se ao grupo na porta. Seguiu o bispo e o arquidiácono. Foi a última a se retirar. Virou-se na saída e olhou para Elfric. Ele sentava sozinho na frente da sala.

Ela saiu.

Doze anos se haviam passado desde a visita de Godwyn e Philemon à célula de St.-John-in-the-Forest. Godwyn lembrava-se de ter ficado impressionado com os campos bem cuidados, as sebes aparadas, as valas limpas, as macieiras em linhas retas no pomar. Era a mesma coisa agora. Obviamente, Saul Whitehead também não mudara.

Godwyn e sua caravana cruzaram um tabuleiro de campos congelados, a caminho do agrupamento de prédios do mosteiro. Ao se aproximarem, Godwyn constatou que havia muitas coisas diferentes. Doze anos antes, a pequena igreja de pedra, com seu claustro e dormitório, era cercada por algumas pequenas estruturas de madeira: cozinha, estábulo, leiteria, padaria. Agora, os frágeis anexos de madeira haviam desaparecido, enquanto o complexo de construções de pedras ligadas à igreja havia crescido de uma maneira considerável.

- O mosteiro está mais seguro do que antes - comentou Godwyn.

- Creio que é por causa do aumento dos bandos de foras-da-lei, formados por soldados que voltaram das guerras francesas - sugeriu Philemon.

Godwyn franziu o rosto.

- Não me recordo de terem pedido minha permissão para o programa de construção.

- Porque ninguém pediu. -Ahn...

Infelizmente, ele não podia se queixar. Alguém poderia indagar como era possível que Saul tivesse realizado aquele programa sem o conhecimento de Godwyn... a não ser que Godwyn tivesse negligenciado seu dever de supervisão.

Além do mais, convinha a seus propósitos agora que o lugar pudesse ser fechado à presença de intrusos.

A viagem de dois dias acalmara-o um pouco. A morte da mãe lançara-o num frenesi de medo. Tinha certeza de que morreria a cada hora que permanecia em Kingsbridge. Fora por pouco que conseguira controlar suas emoções para falar na reunião na casa do capítulo e organizar o êxodo. Apesar de sua eloqüência, uns poucos monges demonstraram apreensões pela fuga. Felizmente, todos haviam feito o juramento de obediência, e prevalecera o hábito de fazer o que era mandado. Mesmo assim, Godwyn só começara a se sentir seguro depois que o grupo atravessara a ponte dupla, as tochas acesas, afastando-se pela noite.

Ainda se sentia com os nervos à flor da pele. De vez em quando remoía algum problema e decidia pedir a opinião de Petranilla, só para se lembrar em seguida que nunca mais ouviria seus conselhos. Nessas ocasiões, o pânico subia como bílis por sua garganta.

 

Estava fugindo da peste... mas deveria ter feito isso três meses antes, quando Mark Webber morrera. Seria tarde demais agora? Ele fez um esforço para reprimir o terror. Não se sentiria seguro enquanto não estivesse trancado e isolado do mundo.

Ele forçou os pensamentos a voltarem ao presente. Não havia ninguém nos campos naquela época do ano, mas num pátio de terra batida, na frente do mosteiro, avistou um punhado de monges trabalhando: um ferrava um cavalo, outro consertava um arado, e um pequeno grupo virava a alavanca de uma prensa de sidra.

Todos pararam o que faziam e ficaram olhando, atônitos, para a multidão de visitantes que se aproximava: vinte monges, meia dúzia de noviços, quatro carroças e dez cavalos de carga. Godwyn não deixara ninguém para trás, exceto os servos do priorado.

Um dos homens na prensa de sidra desligou-se do grupo e adiantou-se. Godwyn reconheceu-o como Saul Whitehead. Haviam se encontrado nas visitas anuais de Saul a Kingsbridge, mas Godwyn notou agora, pela primeira vez, os toques de cinza nos cabelos louros quase brancos.

Vinte anos antes haviam estudado juntos em Oxford. Saul era o astro entre os discípulos, rápido para aprender e ágil nos argumentos. Também era o que tinha mais devoção religiosa entre todos. Poderia ter se tornado prior de Kingsbridge se fosse menos espiritual e pensasse em sua carreira em termos estratégicos, em vez de deixar essas questões para Deus. Por esse motivo, quando o prior Anthony morreu e a eleição foi realizada, Godwyn conseguira engambelar Saul com a maior facilidade.

Apesar disso, Saul não era um fraco. Tinha uma veia de integridade obstinada que Godwyn temia. Aceitaria agora, obediente, o plano de Godwyn. ou criaria problemas? Mais uma vez, Godwyn fez um esforço para reprimir o pânico e manter a calma.

Estudou com todo cuidado o rosto de Saul. O prior de St. John estava surpreso ao vê-lo... e visivelmente insatisfeito. Sua expressão controlada era uma recepção polida, mas não havia qualquer sorriso.

Durante a campanha da eleição, Godwyn fizera todos acreditarem que e próprio não queria o cargo, mas eliminara um a um todos os outros candidatos razoáveis, inclusive Saul. Será que Saul desconfiava de que fora enganado?

- Bom-dia, padre prior - disse Saul, ao chegar perto. - Esta é uma bênção inesperada.

Portanto, sua hostilidade não seria ostensiva. Não podia haver a menor dúvida de que pensaria que esse comportamento conflitava com seu voto de obediência. Godwyn ficou aliviado.

- Deus o abençoe, meu filho. Já faz muito tempo desde que visitei minhas crianças em St. John.

Saul olhou para os monges, os cavalos, as carroças abarrotadas de suprimentos.

- Parece ser mais do que uma simples visita.

Ele não se ofereceu para ajudar Godwyn a descer do cavalo. Era como se qisesse uma explicação antes de convidá-los a entrar... o que era um absurdo: ele não tinha o direito de rejeitar seu superior. Mesmo assim, Godwyn descobriua explicar:

- Já ouviu falar sobre a peste?

- Apenas rumores. Há poucos visitantes para nos trazer notícias.

O que era ótimo. Fora a falta de visitantes que atraíra Godwyn a St. John.

- A doença matou centenas de pessoas em Kingsbridge. Temi que pudesse exterminar todo o priorado. Foi por isso que trouxe os monges para cá. Pode ser a única maneira de garantir nossa sobrevivência.

- É bem-vindo aqui, qualquer que seja a razão para a visita.

- Nem precisava dizer.

Godwyn sentiu-se furioso por ter sido pressionado a oferecer uma justificativa. Saul estava pensativo.

- Não sei onde todos dormirão...

- Eu decidirei - declarou Godwyn, asseverando sua autoridade. - Pode nos mostrar tudo, enquanto a cozinheira prepara nosso jantar.

Ele desmontou sem ajuda e entrou no mosteiro. Saul viu-se na obrigação de segui-lo.

Tudo ali era limpo mas despojado, mostrando como Saul levava a sério o voto monacal de pobreza. Mas hoje Godwyn estava mais interessado em verificar como o lugar poderia ser fechado a forasteiros. Por sorte, a fé de Saul na ordem e controle levara-o a projetar prédios com poucas entradas. Havia apenas três acessos ao priorado: através da cozinha, do estábulo, ou da igreja. Cada entrada tinha uma porta resistente, que podia ser trancada com barras.

O dormitório era pequeno, com espaço para abrigar apenas oito ou nove monges. Não havia quarto separado para o prior. A única maneira de acomodar mais vinte monges era deixar que dormissem na igreja.

Godwyn pensou em se apropriar do dormitório, mas não havia espaço ali para esconder os tesouros da catedral, e ele queria mantê-los perto. Por sorte, a igreja tinha uma pequena capela lateral, que podia ser isolada. Godwyn decidiu que ali seria seu quarto. Os outros monges de Kingsbridge espalhariam palha sobre o chão de terra batida e tratariam de se acomodar da melhor forma possível.

A comida e o vinho foram para a cozinha e a adega, mas Philemon levou os ornamentos para a capela-quarto de Godwyn. Philemon estivera conversando com os monges de St. John.

- Saul tem sua maneira típica de dirigir o mosteiro - informou ele. - Exige uma obediência rigorosa a Deus e à regra de São Bento. Mas dizem que ele não se põe num pedestal. Dorme no dormitório, come a mesma coisa que os outros. De um modo geral, não reivindica privilégios. É desnecessário dizer que gostam dele por isso. Mas há um monge que é punido com freqüência... irmão Jonquil.

- Lembro dele.

Jonquil sempre tivera problemas quando era noviço em Kingsbridge... por atraso, desleixo, preguiça e ganância. Não tinha o menor autocontrole, e provavelmente fora atraído para a vida monástica como uma maneira de arrumar alguém para exigir o cumprimento do comedimento que era incapaz de impor a si mesmo.

- Ele não hesitará em mudar de lado, se tiver meia oportunidade - garantiu Philemon. - Mas não tem qualquer autoridade, e ninguém o seguirá.

- E eles não têm queixas contra Saul? Ele não dorme tarde, não se esquiva das tarefas desagradáveis, nem fica com o melhor vinho?

- Aparentemente não.

- Hum...

Saul continuava tão íntegro quanto antes. Godwyn ficou desapontado, mas não muito surpreso.

Durante a Véspera, Godwyn notou como os homens de St. John eram solenes e disciplinados. Ao longo dos anos, ele sempre mandara para St. John os monges problemáticos: os rebeldes, os que tinham doenças mentais, os que eram propensos a questionar os ensinamentos da Igreja e se interessarem por idéias heréticas. Saul nunca se queixara, nunca mandara ninguém de volta. Parecia que era capaz de transformar esses homens em monges exemplares.

Depois do serviço, Godwyn mandou a maior parte dos homens de Kingsbridge para jantar no refeitório, ficando apenas com Philemon e dois monges jovens e fortes. Assim que ficaram a sós na igreja, ele disse a Philemon para ficar de guarda na porta de acesso ao claustro, e depois ordenou que os jovens deslocassem para o lado o altar de madeira todo esculpido e cavassem um buraco em sua posição normal.

Quando o buraco se tornou bastante profundo, Godwyn trouxe os ornamentos da catedral que guardara na capela, para serem enterrados por baixo do altar. Mas antes que o trabalho fosse concluído, Saul apareceu na porta da igreja. Godwyn ouviu Philemon dizer:

- O lorde prior deseja ficar sozinho. A voz de Saul soou em seguida:

- Então ele pode me dizer isso pessoalmente.

- O prior me pediu para dizer. . Saul elevou a voz: i>q

- Não serei excluído de minha própria igreja... muito menos por você!

- Vai usar de violência contra mim, o vice-prior de Kingsbridge?

- Eu o jogarei na fonte se continuar a barrar minha passagem.

Godwyn interveio. Teria preferido manter Saul na ignorância, mas isso não era mais possível.

- Deixe-o entrar, Philemon.

Philemon afastou-se para o lado, e Saul entrou na igreja. Viu a bagagem. Sem pedir permissão, abriu um saco e espiou o que havia dentro.

- Por minha alma! - exclamou ele, tirando uma galheta de altar feita de ouro e prata. - O que é tudo isso?

Godwyn sentiu-se tentado a lhe dizer para não interrogar seus superiores. Saul poderia até aceitar a repreensão: acreditava na humildade, pelo menos em princípio. Mas Godwyn não queria deixar o fermento da suspeita na mente de Saul.

- Eu trouxe comigo os tesouros da catedral. Saul fez uma careta de desagrado.

- Sei que essas coisas são consideradas apropriadas numa grande catedral, mas ficarão deslocadas numa humilde célula na floresta.

- Não terá de vê-las, pois tudo ficará escondido. Não há mal em você saber onde, embora eu pretendesse poupá-lo do fardo desse conhecimento.

Saul parecia desconfiado.

- Por que trouxe tudo?

- Para guardar em segurança.

Saul não se deixava persuadir com facilidade.

- Estou surpreso que o bispo estivesse disposto a permitir que você trouxesse tudo.

O bispo não fora consultado, é claro, mas Godwyn não disse isso.

- No momento, a situação é tão crítica em Kingsbridge que não temos certeza se os ornamentos estão seguros até mesmo no priorado.

- Mas não estariam mais seguros do que aqui? Afinal, estamos cercados por bandidos, como sabe. Graças a Deus não os encontrou na estrada.

- Deus vela por nós.

- E pelas jóias que você trouxe, eu espero.

A atitude de Saul eqüivalia quase a uma insubordinação, mas Godwyn não o censurou, temendo que uma reação exagerada sugerisse culpa. Mas observou que a humildade de Saul tinha limites. Talvez, no final das contas, Saul soubesse que fora enganado há doze anos. Agora, Godwyn disse:

- Por favor, peça a todos os monges para permanecerem no refeitório depois do jantar. Falarei com eles assim que terminar aqui.

Saul aceitou ser dispensado e saiu. Godwyn enterrou os ornamentos, os cartulários do priorado, as relíquias do santo, e quase todo o dinheiro.

Os monges taparam o buraco, calcaram a terra, e puseram o altar de volta no lugar. Restava um pouco de terra solta, que eles levaram para fora e espalharam.

Depois, foram para o refeitório. A pequena sala estava lotada agora, com o acréscimo dos homens de Kingsbridge. Havia um monge no pódio, lendo uma passagem do evangelho de Marcos, mas ele calou-se quando Godwyn entrou. Godwyn gesticulou para que o leitor sentasse e tomou seu lugar.

- Este é um refúgio sagrado. Deus nos mandou essa terrível peste para nos punir por nossos pecados. Viemos até aqui para expurgar esses pecados bem longe da influência corruptora da cidade.

Godwyn não tencionava provocar uma discussão, mas Saul indagou:

- Que pecados em particular, padre Godwyn? Godwyn tratou de improvisar:

- Os homens têm desafiado a autoridade da santa Igreja de Deus; as mulheres se tornaram lascivas; os monges não conseguiram se afastar por completo da sociedade feminina; as freiras estão recorrendo à heresia e bruxaria.

- E quanto tempo levará para que esses pecados sejam expurgados?

- Saberemos que triunfamos quando a peste desaparecer.

Outro monge de St. John se manifestou. Godwyn reconheceu Jonquil, um homem grande e sem coordenação muscular, com um brilho desvairado nos olhos.

- Como fará para se expurgar?

Godwyn ficou surpreso ao constatar que os monges ali sentiam-se em liberdade para interrogar seus superiores.

- Pela oração, meditação e jejum.

- O jejum é uma boa idéia - disse Jonquil. - Não temos muita comida de sobra.

Houve alguns risos ao comentário.

Godwyn ficou preocupado com a possibilidade de perder o controle da audiência. Bateu no pódio para pedir silêncio.

- Daqui por diante, qualquer pessoa do mundo exterior que vier até aqui será um perigo para nós. Quero que todas as portas permaneçam trancadas por dentro, dia e noite. Nenhum monge poderá sair sem a minha permissão pessoal, que só será concedida em emergências. Todos os visitantes serão repelidos. Vamos ficar isolados até que essa terrível peste acabe.

- Mas o que acontece se...

Godwyn não deixou Jonquil continuar:

- Não pedi comentários, irmão. - Ele correu os olhos pela sala, intimidando todos a se calarem. - Vocês são monges, e têm o dever de obedecer. E, agora, vamos rezar.

A crise chegou no dia seguinte.

Godwyn sentiu que suas ordens haviam sido aceitas por Saul e os outros monges em caráter provisório. Todos haviam sido apanhados de surpresa, e não foram capazes de pensar em grandes objeções no momento inesperado; e assim, na falta de uma razão forte para a rebelião, eles obedeceram instintivamente a seu superior.

Mas Godwyn sabia que chegaria o momento em que teriam de tomar uma decisão concreta. Só que não esperava que fosse tão cedo.

Cantavam o ofício da Prima. Fazia um frio enregelante na pequena igreja. Godwyn estava com o corpo todo dolorido de uma noite desconfortável. Sentia saudade de seu palácio, com suas lareiras e camas macias. A claridade cinzenta de um amanhecer de inverno começava a aparecer nas janelas quando soaram batidas fortes na porta oeste da igreja.

Godwyn ficou tenso. Gostaria de ter mais um dia ou dois para consolidar sua posição.

Sinalizou para que os monges ignorassem as batidas e continuassem com o serviço. As batidas passaram a ser acompanhadas por gritos. Saul levantou-se para ir até a porta, mas Godwyn fez sinais com as mãos para que ele sentasse. Depois de um momento de hesitação, Saul obedeceu. Godwyn estava determinado a fazer com que todos continuassem sentados. Se os monges nada fizessem, era provável que os intrusos fossem embora.

Mas Godwyn começou a compreender que persuadir as pessoas a não fazerem nada era extremamente difícil.

Os monges logo ficaram perturbados demais para se concentrarem no salmo. Passaram a sussurrar uns para os outros, a olhar para a porta oeste. O canto foi se tornando irregular e descoordenado, até que definhou, restando apenas a voz de Godwyn.

Ele ficou irritado. Se acompanhassem sua orientação, poderiam ignorar o distúrbio. Enfurecido pela fraqueza dos outros, Godwyn finalmente saiu de seu lugar, e atravessou a curta nave até a porta.

- Quem está aí? - gritou ele.

- Deixe-nos entrar! - foi a resposta abafada.

- Vocês não podem entrar - gritou Godwyn em resposta. - Vão embora! Saul apareceu ao seu lado.

- Está mandando embora pessoas que procuram a igreja? - indagou ele, horrorizado.

- Já disse que não haverá visitantes - declarou Godwyn. As batidas recomeçaram.

- Deixem-nos entrar!

- Quem são vocês? - gritou Saul. Houve uma pausa antes da resposta:

- Somos homens da floresta. Philemon interveio:

- Bandidos.

Saul protestou, indignado:

- Pecadores como nós, e também filhos de Deus.

- Não há razão para deixar que eles nos matem.

- Talvez seja melhor descobrir se eles são mesmo o que alegam.

Saul foi até a janela à direita da porta. A igreja era um prédio baixo, com o peitoril da janela logo abaixo do nível do olho. Nenhuma tinha vidro. Eram fechadas contra o frio por telas translúcidas de linho. Saul levantou a tela e ficou na ponta dos pés para olhar.

- Por que vieram até aqui? Godwyn ouviu a resposta:

- Um dos nossos está doente. Godwyn disse a Saul:

- Eu falarei com eles. Saul fitou-o, irritado.

- Afaste-se da janela - acrescentou Godwyn. Relutante, Saul obedeceu. Godwyn gritou:

- Não podemos deixá-los entrar. Vão embora. A expressão de Saul era de total incredulidade.

- Vai mandar embora um homem doente? Somos monges e médicos!

- Se o homem estiver com a peste, não há nada que possamos fazer para ajudá-lo. E se o deixarmos entrar, estaremos nos matando.

- Isso está nas mãos de Deus.

- Deus não permite que cometamos suicídio.

- Não sabe o que há de errado com o homem. Ele pode ter quebrado um braço.

Godwyn abriu a janela correspondente no lado esquerdo da porta e olhou para fora. Avistou um grupo de seis homens rudes, parados em torno de uma padiola que haviam largado no chão, na frente da porta da igreja. As roupas eram caras, mas sujas, como se eles tivessem dormido com os melhores trajes dominicais. Isso era típico dos bandidos, que roubavam boas roupas dos viajantes e logo faziam com que parecessem velhas e ensebadas. Os homens estavam bem armados, alguns com espadas de boa qualidade, adagas e arcos, o que sugeria que podiam ser soldados desmobilizados.

Havia um homem na padiola, suando muito embora fosse uma manhã gelada de janeiro - e sangrando pelo nariz. Subitamente, sem desejar, Godwyn viu em sua imaginação a cena no hospital, a mãe agonizante, o filete de sangue no lábio superior que sempre voltava, por mais que a freira o enxugasse. O pensamento de que poderia morrer daquele jeito deixou-o tão transtornado que teve vontade de se jogar do telhado da catedral de Kingsbridge. Seria muito melhor morrer num breve instante de dor insuportável, em vez de sofrer ao longo de três, quatro ou cinco dias de delírio enlouquecido e sede alucinante.

- Esse homem tem a peste!

Godwyn percebeu um tom de histeria na própria voz. Um dos bandidos adiantou-se.

- Conheço você. É o prior de Kingsbridge.

Godwyn fez um esforço para se controlar. Olhou com medo e raiva para o homem que era obviamente o líder. Tinha um porte de segurança arrogante, como um nobre; devia ter sido outrora bonito, mas sua aparência fora desfigurada por anos de vida árdua. Godwyn perguntou:

- E quem é você, que bate na porta de uma igreja no momento em que os monges cantam os salmos para Deus?

- Alguns me chamam de Tam Hiding.

Houve murmúrios de espanto dos monges. Tam Hiding era uma lenda viva. Irmão Jonquil gritou:

- Eles vão matar todos nós! Saul virou-sc para Jonquil.

- Fique calado. Todos nós morreremos quando Deus quiser, mas não antes.

- Está bem, padre.

Saul tornou a se virar para a janela e disse:

- Vocês roubaram nossas galinhas no ano passado. ,, ,

- Sinto muito, padre - respondeu Tam. - Mas estávamos famintos. ,

- E agora vem pedir minha ajuda.

- Porque sempre prega que Deus perdoa. Godwyn interveio, decidido:

- Deixe-me cuidar disso.

A luta interna de Saul era evidente em seu rosto, alternadamente envergonhado e rebelde. Mas ele acabou baixando a cabeça. Godwyn disse a Tam:

- Deus perdoa aqueles que se arrependem para valer.

- O nome desse homem é Win Forester e ele se arrepende sinceramente de todos os seus muitos pecados. Gostaria de entrar na igreja para rezar pela cura... ou, se isso não for possível, para morrer num lugar sagrado.

Um dos outros bandidos espirrou.

Saul veio de sua janela e parou na frente de Godwyn, com as mãos nos quadris.

- Não podemos impedi-lo de entrar! Godwyn fez um esforço para manter a calma.

- Ouviu aquele espirro... não compreende o que significa? - Ele virou-se para o resto dos monges, pois queria ter certeza de que ouviriam o que diria em seguida. - Todos eles estão com a peste!

Houve um murmúrio coletivo de medo. Godwyn queria mesmo assustá-los, pois assim o apoiariam, caso Saul decidisse desafiá-lo.

- Mas devemos ajudá-los, mesmo que eles tenham a peste - insistiu Saul. Nossas vidas não nos pertencem, para serem protegidas como ouro escondido debaixo da terra. Nós nos entregamos a Deus, para que nos usasse como quisesse, e ele encerrará nossas vidas quando for conveniente para seus sagrados propósitos.

- Deixar esses bandidos entrarem aqui seria suicídio. Eles matarão todos nós!

- Somos homens de Deus. Para nós, a morte é o feliz reencontro com Cristo. O que temos a temer, padre prior?

Godwyn compreendeu que parecia assustado, enquanto Saul falava de uma maneira racional. Ele forçou-se a parecer calmo e filosófico.

- É um pecado procurar a própria morte.

- Mas se a morte vem ao nosso encontro, no curso de nosso sagrado dever, nós a aceitamos com alegria.

Godwyn compreendeu que poderia debater durante o dia inteiro com Saul sem chegar a qualquer lugar. Não era a maneira de impor sua autoridade. Ele fechou a janela.

- Feche a sua janela, irmão Saul, e venha até aqui.

Depois de um momento de hesitação, Saul obedeceu. Godwyn perguntou:

- Quais são os seus três votos, irmão?

Houve uma pausa. Saul sabia o que estava acontecendo. Godwyn recusava-se a tratá-lo como um igual. A princípio, Saul deu a impressão de que poderia se recusar a responder, mas seu treinamento prevaleceu.

- Pobreza, castidade, obediência.

- E a quem deve obedecer?

- Deus, a regra de São Bento e meu prior.

- E seu prior se encontra agora na sua frente. Você me reconhece?

- Reconheço.

- Pode dizer ”Reconheço, padre prior”.

- Reconheço, padre prior.

- Agora, direi o que deve fazer e você obedecerá. - Godwyn olhou ao redor.

- Todos vocês... voltem a seus lugares.

Houve um momento de silêncio e imobilidade. Ninguém se mexia, ninguém falava. Podia seguir para qualquer lado, refletiu Godwyn: obediência ou motim, ordem ou anarquia, vitória ou derrota. Ele prendeu a respiração.

Finalmente, Saul se mexeu. Baixou a cabeça e virou-se. Percorreu a curta nave e retomou sua posição, de frente para o altar.

Todos os outros fizeram a mesma coisa.

Soaram mais alguns gritos lá fora, mas pareciam gritos de pessoas se afastando. Talvez os bandidos tivessem compreendido que não poderiam obrigar um médico a tratar de seu companheiro doente.

Godwyn também retornou ao altar e virou-se para os monges.

- Vamos terminar o salmo interrompido - disse ele, voltando a cantar.

Glória ao Pai

E ao Filho

E ao Espírito Santo.

O canto ainda era irregular. Os monges estavam excitados demais para adotarem a atitude apropriada. Mesmo assim, haviam retornado a seus lugares e seguiam a rotina. Godwyn prevalecera.

Como foi no princípio

E agora

E sempre será

Um mundo sem fim

Amém.

- Amém - repetiu Godwyn. Um dos monges espirrou.

Pouco depois da fuga de Godwyn, Elfric morreu da peste. Caris lamentou por Alice, sua viúva; mas, além disso, mal podia deixar de se regozijar. Elfric oprimira os fracos e bajulara os fortes; as mentiras que dissera em seu julgamento quase haviam-na levado à forca. O mundo era um lugar melhor sem ele. Até mesmo seu negócio de construção seria melhor dirigido pelo genro, Harold Mason.

A guilda da paróquia elegeu Merthin para regedor no lugar de Elfric. E Merthin comentou que era como assumir o comando de um navio afundando.

A medida que as mortes continuavam, as pessoas enterrando seus parentes, vizinhos, amigos, clientes e empregados, o constante horror começou a brutalizar muitas, até que nenhuma violência ou crueldade parecia chocante. Pessoas que pensavam estar prestes a morrer perdiam todo e qualquer comedimento, e passavam a seguir seus impulsos, independentemente das conseqüências.

Juntos, Merthin e Caris empenhavam-se em preservar alguma coisa parecida com a vida normal em Kingsbridge. O orfanato foi a parte mais bem-sucedida do programa de Caris. As crianças sentiam-se gratas pela segurança do convento, depois da provação de perderem os pais para a peste. Cuidar delas e ensinar a ler e a cantar os hinos despertaram os instintos maternais há muito reprimidos de algumas freiras. Havia comida de sobra, com menos pessoas disputando as reservas para o inverno. E o priorado de Kingsbridge foi povoado pelos sons das crianças.

Na cidade, as coisas eram mais difíceis. Persistiam as disputas violentas pelos bens dos mortos. As pessoas simplesmente entravam nas casas vazias e pegavam o que queriam. Crianças que herdavam dinheiro, ou depósitos abarrotados com tecidos ou milho, eram às vezes adotadas por vizinhos inescrupulosos, impulsionados pela ganância de se apoderarem dos legados. A perspectiva de obter alguma coisa por nada trazia à tona o pior das pessoas, pensava Caris, desesperada.

Caris e Merthin tiveram apenas um êxito parcial na luta contra o declínio do comportamento público. Caris ficou desapontada com os resultados da ação repressiva de John Constable contra a embriaguez. Havia muitos viúvos e viúvas recentes ansiosos em encontrar novos parceiros; por isso, não era incomum ver pessoas de meia-idade absorvidas em abraços ou carícias, nas tavernas ou num vão de porta. Caris não tinha grandes objeções a esse tipo de coisa por si mesma, mas descobriu que a embriaguez e a licenciosidade pública levavam a brigas com freqüência. Só que Merthin e a guilda da paróquia não conseguiam conter esse comportamento.

E no momento em que os habitantes da cidade precisavam fortalecer sua determinação, a fuga dos monges causara o efeito oposto. Desmoralizara todo mundo. Os representantes de Deus haviam partido; o Todo-Poderoso abandonava a cidade. Alguns diziam que as relíquias do santo sempre haviam trazido sorte; e agora que os ossos não se encontravam mais ali, a sorte acabara. A falta de crucifixos e castiçais preciosos nos serviços dominicais era um lembrete de que os monges haviam considerado que Kingsbridge estava condenada. Então por que não se embriagar e fornicar na rua?

De uma população aproximada de sete mil pessoas, Kingsbridge perdera pelo menos mil até meados de janeiro. Outras cidades sofriam a mesma coisa. Apesar das máscaras propostas por Caris, o número de mortes era mais alto entre as freiras, sem dúvida porque elas mantinham um contato constante com as vítimas da peste. Havia antes trinta e cinco freiras, que agora estavam reduzidas a vinte. Mas ouviam falar de lugares em que quase todos os monges e freiras haviam morrido, deixando uns poucos ou apenas uma pessoa para continuar o trabalho; por isso, elas se consideravam afortunadas. Caris decidiu abreviar o noviciado e intensificar o treinamento, para contar com mais ajuda no hospital.

Merthin contratara o barman da Holly Bush e lhe entregara o comando da Bell. Também contratou uma jovem de boa índole, de dezessete anos, Martina, para cuidar de Lolla.

Até que a peste pareceu definhar. Depois de enterrar cem pessoas numa semana, na altura do Natal, Caris descobriu que o número caiu para cinqüenta em janeiro, e depois vinte em fevereiro. E permitiu-se acalentar a esperança de que o pesadelo se aproximava do fim.

Uma das pessoas desafortunadas que caíram doentes durante esse período foi um homem de cabelos escuros, na casa dos trinta anos, que outrora devia ter sido bonito. Visitava Kingsbridge pela primeira vez.

- Pensei ontem que tinha um resfriado - disse ele, ao passar pela porta. - Mas agora o nariz começou a sangrar e não pára mais.

Ele segurava um pano ensangüentado contra as narinas.

- Arrumarei um lugar para você deitar - disse Caris, através da máscara de linho.

- É a peste, não é? - Caris ficou surpresa ao ouvir a resignação calma em sua voz, em vez do pânico habitual, enquanto ele acrescentava: - Pode fazer alguma coisa para me curar?

- Podemos deixá-lo confortável e rezar por você.

- Isso não vai adiantar. Mesmo que não acredite, posso garantir. Ela ficou chocada pela facilidade com que ele lia seu coração.

- Não sabe o que está dizendo - protestou ela, sem muita disposição. - Sou uma freira. Devo acreditar.

- Pode me dizer a verdade. Em quanto tempo morrerei?

Caris fitou-o nos olhos. O homem sorria, um sorriso encantador, que ela imaginou que já devia ter derretido muitos corações femininos.

- Por que não está com medo? - perguntou ela. - Todo mundo fica apavorado.

- Não acredito no que me dizem os padres. - Ele sorriu, astuto. - E desconfio que você também não acredita.

Caris não tinha a menor intenção de entrar nesse tipo de discussão com um estranho, por mais encantador que ele fosse.

- Quase todo mundo que pega a peste morre no prazo de três a cinco dias disse ela, bruscamente. - Umas poucas pessoas sobrevivem, ninguém sabe por quê.

Ele aceitou sem revolta.

- Como eu pensei.

Pode deitar aqui.

O homem ofereceu de novo o sorriso de menino levado.

- Deitar-me vai adiantar alguma coisa?

- Se não deitar em breve, acabará caindo.

- Está bem. Ele deitou no colchão de palha indicado. Caris deu-lhe um cobertor.

- Qual é o seu nome?

- Tam.

Ela estudou o rosto. Apesar do charme, podia sentir uma veia de crueldade. Era um homem que podia seduzir as mulheres, pensou Caris, mas também era capaz de estuprá-las se não conseguisse nada com a conversa. A pele era curtida pela vida ao ar livre, e tinha o nariz vermelho de um bebedor. As roupas eram caras, mas sujas.

- Sei quem você é - disse ela. - Não tem medo de ser punido por seus pecados?

- Se eu acreditasse nisso, não os teria cometido. E você... tem medo de arder no inferno?

Era uma questão de que ela normalmente se esquivava, mas sentiu que aquele bandido agonizante merecia uma resposta sincera.

- Acredito que tudo aquilo que eu faço se torna parte de mim. Quando sou brava e forte, cuido das crianças, doentes e pobres, eu me torno uma pessoa melhor. E quando sou cruel, covarde, digo mentiras, ou me embriago, viro uma pessoa menos digna, e não posso me respeitar. E essa a retribuição divina em que acredito.

Tam fitou-a com uma expressão pensativa.

- Eu gostaria de tê-la conhecido há vinte anos. Ela soltou um grunhido depreciativo.

- Eu teria doze anos.

O homem elevou uma sobrancelha, sugestivo.

Já era demais, decidiu Caris. Ele começava a flertar... e ela começava a gostar. Virou-se.

- É uma mulher corajosa para fazer esse trabalho. Provavelmente vai matá-la.

- Sei disso. - Caris virou-se para fitá-lo de novo. - Mas esse é o meu destino. Não posso fugir das pessoas que precisam de mim.

- Seu prior não parece pensar assim.

- Ele desapareceu.

- As pessoas não podem desaparecer.

- O que estou querendo dizer é que ninguém sabe para onde foram o prior Godwyn e os monges.

- Eu sei.

O tempo ao final de fevereiro era ensolarado e ameno. Caris deixou Kingsbridge num pônei alazão, a caminho de St.-John-in-the-Forest. Merthin a acompanhava, montando um cavalo preto. Em circunstâncias normais, as pessoas estranhariam o fato de uma freira partir em viagem em companhia apenas de um homem. Mas aqueles eram tempos estranhos.

O perigo dos bandidos quase havia cessado. Muitos haviam morrido da peste, informara Tam Hiding antes de morrer. Além disso, a súbita queda na população proporcionara um excesso de alimentos, vinho e roupas... todas as coisas que os bandidos costumavam roubar. Os bandidos que haviam sobrevivido à peste podiam entrar em cidades fantasmas e aldeias abandonadas para pegarem qualquer coisa que quisessem.

Caris a princípio sentira-se frustrada ao saber que Godwyn não se afastara de Kingsbridge por uma distância maior que dois dias de viagem. Imaginara-o num lugar tão distante que nunca mais voltaria. Mas também ficara contente pela oportunidade de recuperar o dinheiro e os objetos valiosos do priorado, em particular os cartulários do convento, vitais sempre que havia uma disputa sobre propriedade ou direitos.

Quando e se fosse capaz de confrontar Godwyn, exigiria a devolução do patrimônio do priorado, em nome do bispo. Tinha uma carta de Henri para apoiá-la. Se ainda assim Godwyn recusasse, isso provaria acima e além de qualquer dúvida que ele estava roubando, em vez de guardar tudo aquilo em lugar seguro. O bispo poderia então iniciar uma ação judicial para recuperar tudo... ou simplesmente seguir para St. John com uma força de homens de armas.

Embora desapontada porque Godwyn ainda não saíra para sempre de sua vida, Caris apreciava a perspectiva de confrontá-lo com sua covardia e desonestidade.

Ao deixar a cidade, ela recordou que sua última longa viagem fora para a França, com Mair... uma aventura de verdade, em todos os sentidos. Sentia-se desconsolada ao pensar em Mair. Entre todas as pessoas que haviam morrido da peste, era de Mair que ela sentia mais saudade: o rosto lindo, o coração gentil, seu amor.

Mas era uma alegria ter Merthin só para ela durante dois dias inteiros. Seguindo pela estrada através da floresta, lado a lado, em seus cavalos, conversavam sobre qualquer coisa que aflorava a suas mentes, como acontecia no tempo em que eram adolescentes.

 

Merthin, como sempre, continuava a ter muitas idéias brilhantes. Apesar da peste, vinha construindo lojas e tavernas na ilha do Leproso. Contou que planejava demolir a taverna que herdara de Bessie Bell e reconstruí-la duas vezes maior.

Caris achava que ele e Bessie haviam sido amantes... por que outro motivo ela lhe deixaria sua propriedade? Mas Caris sabia que era a única culpada por isso. Era a única mulher que Merthin realmente queria, com Bessie em segundo lugar. As duas sabiam disso. Mesmo assim, Caris sentia ciúme e raiva quando pensava em Merthin na cama com aquela taverneira roliça.

Pararam ao meio-dia e descansaram à beira de um córrego. Comeram pão, queijo e maçãs, os alimentos que todos os viajantes levavam, exceto os mais ricos. Deram alguns cereais aos cavalos: pastar não era suficiente para uma montaria que tinha de transportar um homem ou uma mulher durante o dia inteiro. Depois de comerem, deitaram ao sol por alguns minutos. Mas o terreno estava muito frio e úmido para o sono, e eles logo se levantaram e seguiram viagem.

Retomaram num instante a intimidade afetuosa da juventude. Merthin sempre fora capaz de fazê-la rir, e ela bem que precisava se animar, com pessoas morrendo todos os dias no hospital. Logo ela esqueceu a raiva por causa de Bessie.

Aquele caminho era percorrido pelos monges de Kingsbridge há centenas de anos. Passaram a noite no ponto intermediário do percurso, a taverna Red Cow, na pequena cidade de Lordsborough. Jantaram rosbife, com uma cerveja forte.

A essa altura, Caris já ansiava por ele. Os últimos dez anos pareciam ter desaparecido da memória, e ela tinha vontade de abraçá-lo e fazer amor, como acontecia no passado. Mas isso não aconteceria. A Red Cow tinha dois quartos, um para os homens, outro para as mulheres... e sem dúvida era por isso que os monges sempre a escolhiam para passar a noite. Caris e Merthin separaram-se no patamar. Caris ficou acordada, escutando os roncos da esposa de um cavaleiro e a respiração chiada de uma vendedora de condimentos, acariciando-se e desejando que a mão entre suas coxas fosse a de Merthin.

Acordou cansada e desanimada. Comeu automaticamente o mingau que era servido pela manhã. Mas Merthin se mostrava tão feliz por sua companhia que ela logo se reanimou. Ao partirem de Lordsborough estavam outra vez conversando e rindo, tão alegres quanto no dia anterior.

A viagem no segundo foi através de uma floresta densa. Não encontraram outros viajantes durante toda a manhã. A conversa foi se tornando mais pessoal. Caris soube mais sobre a vida que ele levara em Florença, como conhecera Silvia, o tipo de pessoa que ela era. Caris queria perguntar: Como era fazer amor com ela? Era diferente de mim? De que maneira? Mas se conteve, sentindo que essas perguntas violariam a privacidade de Silvia, embora ela já tivesse morrido. Mas podia adivinhar muita coisa pelo tom de voz de Merthin. Ele fora feliz na cama com Silvia, dava para perceber, mesmo que o relacionamento não tivesse a intensidade de sua ligação com Caris.

As horas a cavalo a que não estava acostumada deixavam-na dolorida, por isso ela ficou aliviada quando desmontou do pônei, ao pararem para almoçar. Depois de comerem, sentaram no chão, encostados no tronco largo de uma árvore, para descansar e deixar a comida assentar, antes do recomeço da viagem.

Caris pensou em Godwyn e no que encontraria em St.-John-in-the-Forest, quando compreendeu subitamente que ela e Merthin estavam prestes a fazer amor. Não podia explicar como sabia - nem sequer se tocavam -, mas não tinha a menor dúvida. Virou-se para fitá-lo e percebeu que ele também sentia a mesma coisa. Merthin sorriu, triste, e em seus olhos ela viu dez anos de esperanças, pesares, angústias e lágrimas.

Merthin pegou a mão de Caris e beijou a palma, depois levou aos lábios a parte interna e macia do pulso, fechando os olhos.

- Posso sentir sua pulsação - murmurou ele.

- Não dá para descobrir muita coisa através da pulsação - balbuciou Caris. Terá de fazer um exame mais meticuloso.

Ele beijou-a na testa, pálpebras, nariz.

- Espero que não se sinta embaraçada por eu ver seu corpo nu.

- Não fique zangado... mas não vou tirar as roupas com esse frio. Os dois riram.

- Talvez queira fazer a gentileza de levantar a saia para que eu possa continuar o exame.

Caris estendeu as mãos e pegou a bainha do hábito. Usava meias que subiam até os joelhos. Levantou o hábito devagar, deixando à mostra os tornozelos, os joelhos, a pele branca das coxas. Sentia-se alegre, mas no fundo de sua mente especulava se ele perceberia as mudanças que haviam ocorrido em seu corpo durante os últimos dez anos. Estava mais magra, mas sua bunda se expandira. A pele se tornara um pouco menos lisa e flexível. Os seios já não eram mais tão firmes e empinados. O que Merthin pensaria? Ela reprimiu a preocupação e se absorveu no jogo.

- Isto é suficiente para os propósitos médicos?

- Ainda não.

- Mas não estou usando roupas de baixo... tais luxos são considerados impróprios para freiras.

- Nós, médicos, somos obrigados a ser meticulosos, não importa quantas coisas desagradáveis possamos encontrar.

- Ah, que pena! - Ela sorriu. - Neste caso...

Sem desviar os olhos do rosto de Merthin, ela levantou o hábito até a cintura. Ele contemplou seu corpo com a respiração pesada.

- Ora, ora... é um caso muito grave. Na verdade... - Ele levantou os olhos para fitá-la, engoliu em seco, e disse: - Não posso mais brincar.

Caris abraçou-o e puxou seu corpo, apertando com toda força, como se ele a estivesse salvando do afogamento.

- Faça amor comigo, Merthin... agora... depressa...

O priorado de St.-John-in-the-Forest parecia tranqüilo à luz da tarde... um sinal seguro de que havia alguma coisa errada, pensou Caris. A pequena célula era tradicionalmente auto-suficiente em alimentos, cercada por campos, úmidos da chuva, precisando ser arados. Mas não havia ninguém trabalhando ali.

Ao chegarem mais perto, viram que o pequeno cemitério ao lado da igreja tinha uma fileira de sepulturas recentes.

- Parece que a peste já chegou tão longe - comentou Merthin. Caris acenou com a cabeça em concordância.

- Portanto, o covarde plano de fuga de Godwyn fracassou.

- E me pergunto se ele próprio se tornou vítima.

Caris descobriu-se a torcer para que isso tivesse acontecido, mas sentiu-se envergonhada demais para admitir.

Ela e Merthin contornaram a cavalo o mosteiro silencioso, até o que era obviamente o pátio do estábulo. A porta estava aberta. Os cavalos haviam sido soltos e pastavam numa campina próxima, em torno de um pequeno lago. Mas ninguém apareceu para ajudar os visitantes a desencilharem os cavalos.

Passaram pelas baias vazias, num estranho silêncio. Caris especulou se todos os monges teriam morrido. Encontraram uma cozinha, que Caris achou que não estava tão limpa quanto deveria. O forno da padaria permanecia frio. Seus passos ecoaram pelas arcadas cinzentas e frias do claustro. Ao se aproximarem da entrada da igreja, depararam-se com irmão Thomas.

- Vocês nos encontraram! - exclamou ele. - Graças a Deus!

Caris abraçou-o. Sabia que os corpos das mulheres não representavam uma tentação para Thomas.

- Fico contente que ainda esteja vivo.

- Caí doente, mas me recuperei.

- Não são muitos os que sobrevivem.

- Sei disso.

- Conte-nos o que aconteceu.

- Godwyn e Philemon planejaram tudo muito bem. Não houve qualquer aviso prévio. Godwyn falou no capítulo, e relatou a história de Abraão e Isaque, para demonstrar que Deus às vezes nos pede para fazer coisas que parecem erradas. E depois nos disse que partiríamos naquela noite. A maioria dos monges sentiu-se contente em escapar da peste, e os que tinham apreensões foram exortados a se lembrarem de seus votos de obediência.

Caris balançou a cabeça.

- Posso imaginar. Não é difícil obedecer a ordens que parecem nos beneficiar.

- Não me orgulho do que fiz.

Caris tocou no coto do braço esquerdo.

- Não falei como uma censura a você, Thomas. Merthin interveio:

- Seja como for, estou surpreso porque ninguém revelou o destino.

- Porque Godwyn não nos disse para onde íamos. A maioria não sabia mesmo depois que chegamos... tivemos de perguntar aos monges locais que lugar era este.

- Mas mesmo assim a peste alcançou-os.

- Viram o cemitério. Todos os monges de St. John estão ali, com exceção do prior Saul, que foi enterrado na igreja. Quase todos os homens de Kingsbridge também morreram. Uns poucos fugiram depois que a doença irrompeu aqui... só Deus sabe o que aconteceu com eles.

Caris recordou que Thomas sempre fora muito ligado a um monge em particular, um homem de natureza meiga, alguns anos mais jovem. Hesitante, ela perguntou:

- E irmão Matthias?

- Também morreu.

Thomas falou num tom brusco. As lágrimas afloraram a seus olhos, e ele virou o rosto, embaraçado. Caris pôs a mão em seu ombro.

- Sinto muito.

- Muitas pessoas sofreram perdas.

Caris decidiu que seria mais gentil não continuar a falar de Matthias.

- O que aconteceu com Godwyn e Philemon?

- Philemon fugiu. Godwyn está vivo e bem... não pegou a doença.

- Tenho uma mensagem do bispo para Godwyn.

- Posso imaginar.

- É melhor me levar até ele.

- Godwyn está na igreja. Instalou uma cama numa capela lateral. Ficou convencido de que foi por isso que não caiu doente. Venham comigo.

Atravessaram o claustro e entraram na pequena igreja. Cheirava mais como um dormitório. O quadro na parede leste, mostrando o Dia do Juízo Final, parecia sombriamente apropriado agora. Havia colchões de palha e cobertores na nave, como se uma multidão dormisse ali. Mas a única pessoa presente era Godwyn. Estava deitado de barriga para baixo no chão de terra, na frente do altar, os braços estendidos para os lados. Por um momento, Caris pensou que ele havia morrido, mas depois compreendeu que era apenas uma posição de extrema penitência.

- Tem visitantes, padre prior - anunciou Thomas.

Godwyn permaneceu na posição. Caris teria presumido que aquilo não passava de exibição, mas alguma coisa em sua imobilidade levou-a a pensar que ele procurava sinceramente pelo perdão.

Depois, Godwyn levantou-se, devagar, e virou-se.

Estava pálido e magro, parecia abatido e ansioso.

-Você...

- Foi descoberto, Godwyn.

Caris não tinha a menor intenção de chamá-lo de padre. Era um homem desonesto e ela o desmascarara. E sentia por isso uma profunda satisfação.

- Suponho que Tam Hiding me denunciou - disse Godwyn. Ele continuava tão perceptivo quanto antes, pensou Caris.

- Você tentou escapar da justiça, mas fracassou.

- Nada tenho a temer da justiça - declarou ele, em tom de desafio. - Vim para cá na esperança de salvar as vidas de meus monges. Meu erro foi partir tarde demais.

- Um homem inocente não foge às escondidas na calada da noite.

- Tinha de manter meu destino em segredo. Frustraria meu propósito se permitisse que alguém nos seguisse até aqui.

- Não precisava roubar os ornamentos da catedral.

- Não roubei. Trouxe-os para que ficassem guardados em segurança aqui. Vou devolvê-los ao lugar a que pertencem assim que for seguro.

- Então por que não avisou a ninguém que da levá-los?

- Mas avisei. Escrevi para o bispo Henrí. Ele não recebeu minha carta? Caris começou a experimentar um crescente senso de consternação. Godwyn não podia escapar impune, não é?

- Claro que não. Nenhuma carta foi recebida, e não acredito que tenha sido enviada.

- Talvez o mensageiro tenha morrido da peste antes de entregá-la.

- E qual era o nome desse mensageiro desaparecido?

- Eu nunca soube. Foi Philemon quem o contratou.

- E Philemon não está mais aqui... muito conveniente - comentou Caris, sarcástica. - Bom, pode dizer o que quiser, mas o bispo Henri acusa-o de roubar o tesouro. Mandou-me até aqui para exigir sua devolução. Tenho uma carta ordenando que me entregue tudo, imediatamente.

- Isto não será necessário. Eu mesmo levarei tudo para o bispo.

- Não é isto o que seu bispo ordena que faça.

- Serei o juiz do que é melhor.

- Sua recusa é prova do roubo.

- Tenho certeza de que posso persuadir o bispo Henri a ver as coisas de uma maneira diferente.

O problema, pensou Caris, desesperada, era que Godwyn podia muito bem fazer isso. Conseguia ser bastante plausível; e Henri, como a maioria dos bispos, preferia em geral evitar uma confrontação, sempre que possível. Ela tinha a sensação de que o troféu da vitória escapulia de seus dedos.

Godwyn sentiu que invertera a posição contra ela, e permitiu-se um pequeno sorriso de satisfação. Isso enfureceu-a, mas não tinha mais o que dizer. Tudo o que podia fazer agora era voltar e relatar ao bispo o que acontecera.

Mal podia acreditar. Godwyn voltaria mesmo a Kingsbridge para retomar seu posto de prior? Como poderia manter a cabeça erguida na Catedral de Kingsbridge? Depois de todos os estragos que causara no priorado, na cidade e na igreja? Mesmo que o bispo o aceitasse, os habitantes da cidade se revoltariam, não é mesmo? A perspectiva era horrível, mas coisas mais estranhas já haviam acontecido. Onde estava a justiça?

Ela fitou-o. A expressão de triunfo de Godwyn, pensou, devia encontrar uma equivalência em sua expressão de derrota.

E foi nesse instante que ela percebeu uma coisa que outra vez inverteu a situação.

No lábio superior de Godwyn, logo abaixo da narina esquerda, havia um filete de sangue.

Na manhã seguinte, Godwyn não saiu da cama.

Caris pôs a máscara de linho e foi cuidar dele. Lavou seu rosto com água-de-rosas e deu vinho diluído sempre que ele pedia para beber. E depois que o tocava, sempre lavava as mãos com vinagre.

Além de Godwyn e Thomas, só restavam dois monges, ambos noviços de Kingsbridge. Também estavam morrendo da peste; por isso, ela trouxe-os do dormitório para a igreja, e cuidou deles também. Circulava pela nave mal iluminada como uma sombra, enquanto da de um homem agonizante para outro.

Perguntou a Godwyn onde estavam os tesouros da catedral, mas ele se recusou a responder.

Merthin e Thomas revistaram o priorado. Procuraram debaixo do altar em primeiro lugar. Alguma coisa fora enterrada ali há pouco tempo, como se podia perceber pelo fato de a terra não estar compacta. Mas quando abriram um buraco Thomas cavava surpreendentemente bem com uma só mão - nada encontraram. Qualquer coisa que tivesse sido enterrada ali já havia sido removida.

Verificaram em todos os cômodos do mosteiro deserto, até mesmo no forno frio da padaria, nos tanques secos da cervejaria, mas não descobriram as jóias, relíquias e cartulários.

Depois da primeira noite, Thomas se retirou discretamente do dormitório sem que lhe fosse pedido -, deixando Merthin e Caris a dormirem sozinhos ali. Não fez qualquer comentário, não cutucou Merthin sugestivamente, nem sequer deu uma piscadela. Agradecidos por sua discreta conivência, eles se aconchegaram sob uma pilha de cobertores e fizeram amor. Depois, Caris permaneceu acordada. Uma coruja vivia em algum lugar do telhado, e ela ouviu seus pios noturnos; de vez em quando, ouvia também os gritos de um animal pequeno apanhado por suas garras. Caris especulou se ficaria grávida. Não queria renunciar à sua vocação... mas também não podia resistir à tentação de deitar nos braços de Merthin. Por isso, apenas se recusou a pensar no futuro.

No terceiro dia, quando Caris, Merthin e Thomas almoçavam no refeitório, Thomas sugeriu:

- Quando Godwyn pedir para beber, recuse qualquer coisa até que ele conte onde escondeu o tesouro.

Caris pensou a respeito. Nada mais justo. Mas também seria o equivalente a uma tortura.

- Não posso fazer isso. Sei que ele merece, mas mesmo assim não posso fazer. Se um homem doente pede para beber, tenho de dar. Isso é mais importante do que todos os ornamentos cobertos de pedras preciosas da cristandade.

- Você não lhe deve compaixão... ele nunca demonstrou nenhuma com você.

- Transformei a igreja num hospital, mas não deixarei que se torne uma câmara de tortura.

Thomas deu a impressão de que poderia continuar a argumentar, mas Merthin dissuadiu-o com um balanço de cabeça.

- Pense um pouco, Thomas - disse ele. - Quando você viu as coisas pela última vez?

- Na noite em que chegamos. Estavam em bolsas de couro e caixas, em dois cavalos. O tesouro foi descarregado ao mesmo tempo em que as outras coisas, e acho que foi levado para a igreja.

- O que aconteceu depois?

- Nunca mais tornei a ver nada. Mas depois da Véspera, quando todos fomos jantar, notei que Godwyn e Philemon ficaram na igreja, com dois outros monges, Juley e John.

- Pelos meus cálculos, Juley e John eram jovens e fortes - sugeriu Caris.

- Isso mesmo.

- Portanto, essa deve ter sido a ocasião em que enterraram o tesouro, por baixo do altar. Mas quando eles tornaram a abrir o buraco?

- Tinha de ser quando não havia ninguém na igreja, e só podiam ter essa certeza na hora das refeições.

- Eles se ausentaram de outras refeições?

- De várias, provavelmente. Godwyn e Philemon sempre agiam como se as regras não se aplicassem a eles. As ausências em refeições e missas eram tão frequentes que não posso me lembrar de casos específicos.

- Lembra se Juley e John também se ausentaram em outra ocasião? - indagou Caris. - Godwyn e Philemon poderiam precisar de ajuda outra vez.

- Não necessariamente - disse Merthin. - É muito mais fácil reescavar um terreno que já foi afofado. Godwyn tem quarenta e três anos, e Philemon está com apenas trinta e quatro. Poderiam ter feito tudo sem ajuda, se quisessem.

Naquela noite, Godwyn começou a delirar. Algumas vezes citava a Bíblia, às vezes fazia uma pregação, ou apresentava desculpas. Caris prestava atenção, à espera de pistas.

- A Grande Babilônia caiu e todas as nações beberam da ira de sua fornicação; e do trono saíram fogo e trovoadas; e todos os mercadores do mundo haverão de chorar. Arrependam-se, todos vocês, arrependam-se todos os que cometeram fornicação com a mãe das rameiras! Tudo será feito para um propósito superior, tudo será feito pela glória de Deus, porque o fim justifica os meios. Dê-me alguma coisa para beber, pelo amor de Deus.

O tom apocalíptico do delírio era provavelmente sugerido pelo quadro na parede, com sua descrição vigorosa das torturas no inferno. Caris levou um copo à sua boca.

- Onde estão os ornamentos da catedral, Godwyn?

- Vi sete castiçais de ouro, todos cobertos com pérolas e pedras preciosas, envoltos pelo melhor linho, purpura e escarlate, numa arca feita de cedro, sândado e prata. Vi uma mulher montada numa besta escarlate, com sete cabeças e dez chifres, com todos os nomes de blasfêmia.

A nave ressoava com o som de sua voz. Os dois noviços morreram no dia seguinte. Naquela tarde, Thomas e Merthin enterraram-nos no cemitério ao norte do priorado. Era um dia frio e úmido, mas os dois ficaram suados do esforço de escavar. Thomas celebrou os serviços fúnebres. Caris postou-se ao lado de Merthin. Quando todo o resto desmoronava, os rituais ajudavam a manter um arremedo de normalidade. As sepulturas de todos os outros monges espalhavam-se ao redor, exceto as de Godwyn e Saul. O corpo de Saul fora enterrado no pequeno coro da igreja, uma honra reservada apenas aos priores mais respeitados.

Depois, Caris voltou à igreja e ficou olhando para a sepultura de Saul no coro. Aquela parte da igreja estava coberta por lajes de pedra. Era evidente que as lajes haviam sido removidas para que a sepultura pudesse ser escavada. Ao ser posta de volta, junto com as outras pedras, uma delas fora polida e recebera uma inscrição.

Era difícil se concentrar com Godwyn delirando no canto sobre bestas de sete cabeças.

Merthin notou a expressão pensativa e acompanhou seu olhar. Adivinhou no mesmo instante o que ela pensava, e disse, horrorizado:

- Não é possível que Godwyn tenha escondido o tesouro no caixão de Saul Whitehead, não é?

- É difícil imaginar monges profanando uma sepultura. Por outro lado, os ornamentos não teriam de deixar a igreja.

- Saul morreu uma semana antes da chegada de vocês - informou Thomas. Philemon desapareceu dois dias depois.

- Portanto, Philemon pode ter ajudado Godwyn a escavar a sepultura.

- É possível.

Os três trocaram olhares, tentando ignorar os murmúrios alucinados de Godwyn.

- Só há uma maneira de descobrir - declarou Merthin.

Merthin e Thomas pegaram suas pás de madeira. Levantaram a laje memorial e as outras pedras ao redor. Começaram a cavar.

Thomas desenvolvera uma técnica de usar a única mão. Empurrava a pá na terra com o braço bom, inclinava-a, depois descia a mão pelo cabo até quase a base e levantava. O braço direito tornara-se bastante musculoso em decorrência desse tipo de adaptação.

Mesmo assim, levou bastante tempo. Muitas sepulturas eram rasas hoje em dia, mas para o prior Saul haviam cavado por sete palmos completos. A noite caía lá fora, e Caris acendeu velas. Os demônios no quadro da parede pareciam se movimentar às chamas oscilantes.

Tanto Thomas quanto Merthin estavam dentro do buraco, com apenas as cabeças acima do chão da igreja.

- Espere um instante - disse Merthin. - Tem alguma coisa aqui.

Caris viu um material branco enlameado que parecia com o linho oleado às vezes usado para mortalhas.

- Vocês encontraram o corpo - disse ela.

- Mas onde está o caixão? - indagou Thomas.

- Ele foi enterrado num caixão?

Os caixões eram apenas para a elite: os pobres eram enterrados em mortalhas. Thomas respondeu:

- Saul foi enterrado num caixão... eu vi. Há muita madeira aqui, no meio da floresta. Todos os monges foram enterrados em caixões até que o irmão Silas caiu doente... ele era o carpinteiro.

- Esperem um pouco - disse Merthin.

Ele empurrou a pá através da terra além dos pés da mortalha e removeu a terra. Bateu com a ponta da pá na terra. Caris ouviu o baque surdo de madeira em madeira.

- Aqui está o caixão, por baixo da mortalha.

- Como o corpo saiu? - perguntou Thomas.

Caris sentiu um calafrio de medo. No canto, Godwyn elevou a voz:

- E ele será atormentado com fogo e enxofre, à vista dos santos anjos, e a fumaça de seu tormento se elevará para todo o sempre.

Thomas olhou para Caris.

- Não pode fazer com que ele fique calado?

- Não trouxe as drogas necessárias.

- Não há nada de sobrenatural aqui - garantiu Merthin. - Meu palpite é de que Godwyn e Philemon tiraram o corpo... e encheram o caixão com os tesouros roubados.

Thomas recuperou o controle.

- Neste caso, é melhor examinarmos o caixão.

Primeiro, tinham de remover o corpo amortalhado. Merthin e Thomas se abaixaram, agarraram-no pelos ombros e joelhos e levantaram.

Quando o ergueram até o nível dos ombros, só podiam ir mais longe jogando-o no chão. Caiu com um baque surdo. Os dois ficaram assustados. Até mesmo Caris, que não acreditava muito no que diziam sobre o mundo dos espíritos, sentiu-se apreensiva pelo que eles faziam. Descobriu-se a olhar para trás, muito nervosa, esquadrinhando os cantos escuros da igreja.

Merthin removeu a terra de cima do caixão, enquanto Thomas da buscar uma barra de ferro. Levantaram a tampa do caixão.

Caris estendeu duas velas sobre a sepultura, para que eles pudessem ver melhor.

Havia outro corpo amortalhado dentro do caixão.

- Mas isto é muito estranho! - exclamou Thomas, a voz trêmula.

- Vamos pensar nisto de uma maneira objetiva. - Merthin parecia calmo e controlado, mas Caris, que o conhecia muito bem, podia perceber que a compostura exigia um enorme esforço. - Quem está no caixão? Vamos descobrir.

Ele abaixou-se, pegou a mortalha com as duas mãos, e abnu-a ao longo da costura na cabeça. O cadáver estava morto há uma semana. Exalava um cheiro horrível, mas não se deteriorara muito na terra fria sob a igreja sem aquecimento. Mesmo à luz precária das velas que Caris segurava sobre a sepultura, não podia haver a menor dúvida sobre a identidade do morto: a cabeça era orlada pelos cabelos louro-brancos característicos.

- É Saul Whitehead - disse Thomas.

- Em seu legítimo caixão - murmurou Merthin.

- Então de quem é o outro corpo? - indagou Caris.

Merthin fechou a mortalha em torno da cabeça de Saul e tornou a tapar o caixão.

Caris ajoelhou-se ao lado do outro corpo. Já lidara com muitos cadáveres, mas nunca tirara nenhum da sepultura. Suas mãos tremiam. Mesmo assim, abriu a mortalha e expôs o rosto. Para seu horror, os olhos estavam abertos e pareciam fitá-la. Forçou-se a fechar as pálpebras frias.

Era um monge jovem e grande que ela não reconheceu. Thomas ergueu-se na ponta dos pés, ainda dentro da sepultura, para dar uma olhada.

- É o irmão Jonquil. Ele morreu um dia depois do prior Saul.

- E foi enterrado...? - murmurou Caris.

- No cemitério... pelo menos foi o que pensamos.

- Num caixão?

- Isso mesmo.

- Só que ele está aqui.

- Seu caixão era bastante pesado. Ajudei a carregá-lo...

- Posso imaginar o que aconteceu - declarou Merthin. - Jonquil ficou aqui na igreja, em seu caixão, antes do enterro. Enquanto os outros monges almoçavam, Godwyn e Philemon abriram o caixão e tiraram o corpo. Cavaram o túmudo de Saul e jogaram o corpo de Jonquil em cima do caixão. Taparam a sepultura. Puseram os tesouros da catedral dentro do caixão e fecharam-no.

- Agora, temos de cavar na sepultura de Jonquil.

Caris levantou os olhos para as janelas da igreja. Estavam escuras. A noite caíra enquanto abriam o túmulo de Saul.

- Podemos deixar para amanhã.

Os dois homens ficaram em silêncio por um longo momento, até que Thomas disse:

- Vamos acabar logo com isso.

Caris foi até a cozinha e pegou duas achas na pilha de lenha. Acendeu-as no fogo, e voltou à igreja. Ao saírem, os três ouviram Godwyn dizer:

- E a prensa de lagar da ira de Deus foi pisoteada fora da cidade, e das uvas saiu sangue, e a terra foi inundada até a altura das rédeas dos cavalos.

Caris estremeceu. Era uma imagem assustadora da Revelação de São João, o Divino. Deixou-a angustiada. E ela tentou removê-la de sua mente.

Seguiram em passos rápidos para o cemitério, à claridade avermelhada das tochas. Caris sentiu-se aliviada por ficar longe do quadro na parede, sem ouvir os delírios alucinados de Godwyn. Encontraram a lápide de Jonquil e começaram a cavar.

Os dois homens já haviam aberto duas covas para os noviços e tornado a sepultar Saul. Era a quarta vez que escavavam a terra desde a hora do almoço. Merthin parecia cansado e Thomas suava muito. Mas trabalharam obstinados. Pouco a pouco, o buraco foi se tornando mais profundo e a pilha de terra ao lado, mais alta. Até que finalmente uma pá bateu em madeira.

Caris entregou a alavanca de ferro a Merthin e se ajoelhou à beira do buraco, segurando as duas tochas. Merthin removeu a tampa do caixão e jogou-a para fora da cova.

Não havia nenhum cadáver ali.

Em vez disso, havia caixas e sacos de couro. Merthin abriu um saco e tirou um crucifixo cravejado de pedras preciosas.

-Aleluia... - murmurou ele, cansado.

Thomas abriu uma caixa para revelar rolos de pergaminho, bem apertados, como peixes num caixote: os cartulários.

Caris sentiu que um pesado peso de preocupação era removido de seus ombros. Recuperara os cartulários do convento.

Thomas enfiou a mão em outro saco. E tirou um crânio. Soltou um grito de medo e largou-o.

- St. Adolphus - murmurou Merthin, muito calmo. - Peregrinos viajam centenas de quilômetros só para tocar no relicário que guarda seus ossos.

Ele pegou o crânio, tornou a guardá-lo no saco, e acrescentou:

- Sorte nossa.

- Posso fazer uma sugestão? - indagou Caris. - Temos de levar essas coisas para Kingsbridge numa carroça. Por que não deixamos no caixão? Já está tudo arrumado, e o caixão pode servir para assustar os assaltantes.

- Boa idéia - concordou Merthin. - Basta tirar o caixão da sepultura. Thomas foi ao priorado para buscar cordas. Tiraram o caixão da cova.

Prenderam a tampa de volta e amarraram cordas em torno, a fim de arrastá-lo pelo chão até a igreja.

Já iam partir quando ouviram um berro.

Caris soltou um grito de medo.

Todos olharam na direção da igreja. Um vulto corria para eles, o olhar fixo, o sangue escondido pela boca. Caris sofreu um momento de absoluto terror, quando acreditou subitamente nas superstições insensatas que sempre ouvira sobre o mundo dos espíritos. Mas depois compreendeu que olhava para Godwyn. De alguma forma, ele encontrara forças para se levantar de seu leito de moribundo. Deixara a igreja cambaleando, vira as tochas, e agora corria nessa direção, em sua loucura.

Ficaram observando-o, paralisados.

Ele parou, olhou para o caixão, depois para a sepultura vazia. Caris percebeu um vislumbre de compreensão no rosto todo contraído. Pareceu perder as forças, e arriou. Caiu sobre o monte de terra ao lado da sepultura vazia de Jonquil, rolou para a cova aberta.

Os três se adiantaram para ver.

Godwyn estava estendido de costas, a fitá-los com olhos abertos, mas que nada viam.

Logo depois que voltou a Kingsbridge, Caris decidiu viajar de novo. A imagem de St.-John-in-the-Forest que permanecia em sua mente não era a do cemitério, nem dos cadáveres que Merthin e Thomas haviam desenterrado, mas sim dos campos sem ninguém para cuidá-los. Enquanto voltava a cavalo, com Merthin a seu lado e Thomas conduzindo a carroça, observara muitas outras terras na mesma situação e previra uma crise.

Os monges e as freiras recebiam a maior parte de seus rendimentos da ocupação das terras. Os servos mantinham plantações e criavam animais nas terras que pertenciam ao priorado; em vez de pagarem a um cavaleiro ou a um conde pelo privilégio, pagavam ao prior ou à prioresa. Tradicionalmente, levavam uma parte de sua colheita para a catedral - uma dúzia de sacos de farinha de trigo, três ovelhas, um bezerro, uma carroça cheia de cebolas -, mas agora a maioria pagava em dinheiro.

Se ninguém cultivava a terra, ninguém pagaria o arrendamento, é claro. E, neste caso, o que as freiras comeriam?

Os ornamentos da catedral, o dinheiro e os cartulários recuperados em St.- John-in-the-Forest foram guardados em segurança no tesouro novo e secreto que madre Cecilia incumbira Jeremiah de construir, num lugar que ninguém poderia encontrar com facilidade. Todos os ornamentos haviam sido encontrados, menos um, o castiçal de ouro doado pela guilda dos fabricantes de velas de Kingsbridge. Esse desaparecera.

Caris realizou uma missa dominical triunfante, apresentando os ossos resgatados do santo. Pôs Thomas no comando dos meninos no orfanato; alguns já eram bastante crescidos para exigirem uma forte presença masculina. Mudou-se para o palácio do prior, pensando com prazer que o falecido Godwyn ficaria transtornado se soubesse que ele seria ocupado por uma mulher.

Depois, assim que acertou todos esses detalhes, partiu para Outhenby.

O vale de Outhen era fértil, com um solo argiloso, a um dia de viagem de Kingsbridge. Fora dado às freiras há cem anos por um velho cavaleiro iníquo, que fizera uma última tentativa de conquistar o perdão para uma vida inteira de pecados. Havia cinco aldeias, a intervalos, ao longo das margens do rio Outhen. Nos dois lados, havia extensos campos cultivados, até as encostas das colinas.

Os campos eram divididos em faixas, aos cuidados de diferentes famílias. Como ela receara, muitos não estavam sendo cultivados. A peste mudara tudo, mas ninguém tivera a sagacidade - ou talvez a coragem - de reorganizar o cultivo à luz das novas circunstâncias. A própria Caris teria de fazer isso. Tinha uma idéia aproximada do que era necessário, e determinaria os detalhes ao longo do caminho.

Era acompanhada pela irmã Joan, uma freira ainda jovem que saíra há pouco do noviciado. Joan era inteligente e fazia Caris se lembrar de si mesma dez anos antes... não na aparência, pois ela tinha cabelos pretos e olhos azuis, mas na mente inquisitiva e no ceticismo permanente.

Seguiram direto para a maior das aldeias, Outhenby. O bailiff para todo o vale, Will, vivia ali, numa enorme casa de madeira, ao lado da igreja. Ele não estava em casa, mas encontraram-no no campo mais distante, semeando aveia; era um homem enorme, de movimentos lentos. A faixa seguinte estava alqueivada, com relva e ervas daninhas aflorando da terra, umas poucas ovelhas pastando.

Will Bailiff visitava o priorado várias vezes por ano, em geral para levar os rendimentos das aldeias, por isso, conhecia Caris. Mas ficou desconcertado ao ser procurado em seu território.

- Irmã Caris! - exclamou ele, ao reconhecê-la. - O que a trouxe até aqui?

- Sou madre Caris agora, Will, e vim verificar se as terras das freiras estão sendo devidamente cuidadas.

- Ahn... - Ele balançou a cabeça. - Fazemos o melhor possível, mas perdemos tantos homens que é muito difícil.

Os bailiffs sempre diziam que os momentos eram difíceis... mas naquele caso era verdade. Caris desmontou.

- Venha andando comigo e me fale a respeito.

A poucas centenas de metros de distância, na suave encosta de uma colina, ela avistou um camponês arando a terra, com a ajuda de oito bois. Ele parou para observá-la, curioso. Caris passou a seguir em sua direção. Will já começava a recuperar o controle. Sempre a acompanhá-la, ele disse:

- Não se pode esperar que uma mulher de Deus saiba muito sobre os cuidados com a terra, e farei tudo o que puder para esclarecer os pontos mais delicados.

- Agradeço a gentileza.

Caris já se acostumara a ser tratada com condescendência por homens do tipo de Will. Descobrira que era melhor não desafiá-los, mas sim atraí-los para um falso senso de segurança. Dessa maneira, ela podia descobrir mais.

- Quantos homens perdeu para a peste?

- Muitos.

- Quantos?

- Deixe-me pensar... William Jones e seus dois filhos... Richard Carpenter e a esposa...

- Não preciso saber dos nomes - protestou Caris, contendo a irritação. Quantos, em termos aproximados?

- Eu teria de pensar a respeito.

Alcançaram o arado. Conduzir um grupo de oito bois exigia habilidade, e os homens que faziam isso costumavam se situar entre os aldeões mais inteligentes. Caris se dirigiu ao jovem homem e lhe perguntou:

- Quantas pessoas em Outhenby morreram da peste?

- Cerca de duzentas, eu diria.

Caris estudou-o. Ele era baixo mas musculoso, com uma barba loura. Tinha uma expressão arrogante, como os jovens exibem com freqüência.

- Quem é você?

- Meu nome é Harry, e meu pai era Richard, santa irmã.

- Sou madre Caris. Como chegou a esse total de duzentas mortes?

- Há quarenta e dois mortos aqui em Outhenby, pelos meus cálculos. A situação foi igualmente ruim em Ham e Shortacre, o que dá cerca de cento e vinte. Longwater escapou por completo, mas todos em Oldchurch morreram, com exceção do velho Roger Breton; cerca de oitenta pessoas, o que eleva o total para duzentas mortes.

Caris virou-se para Will.

- Entre quantas pessoas, em todo o vale?

- Deixe-me pensar...

- Quase mil, antes da peste - disse Harry Plowman.

- É por isso que me vê semeando em minha faixa de terra, o que deveria ser feito por trabalhadores... mas não tenho mais trabalhadores - disse Will. - Todos morreram.

- Ou foram trabalhar em outros lugares, por salários mais altos - acrescentou Harry.

Caris ficou atenta.

- É mesmo? E quem paga os salários mais altos?

- Alguns dos camponeses mais ricos do vale seguinte - informou Will, indignado. - A nobreza paga um penny por dia, que é quanto os trabalhadores sempre receberam e devem receber. Mas há algumas pessoas que pensam que podem fazer o que quiserem.

- Mas suponho que eles conseguem fazer com que suas colheitas sejam semeadas.

- Mas há o certo e o errado, madre Caris - insistiu Will.

Caris apontou para a faixa de terreno alqueivado em que as ovelhas pastavam.

- E o que me diz daquela terra? Por que não foi arada?

- Pertencia a William Jones - respondeu Will. - Ele e os filhos morreram. A esposa foi morar com a irmã em Shiring.

-Já procurou por um novo arrendatário?

- Não consigo encontrar nenhum, madre. Harry tornou a interferir:

- Pelo menos não nos antigos termos.

Will lançou-lhe um olhar furioso, mas Caris perguntou:

- Como assim?

- Os preços caíram, embora seja a primavera, quando costumam estar altos. Caris acenou com a cabeça. Era assim que os mercados funcionavam, todos sabiam: se havia menos compradores, os preços caíam.

- Mas as pessoas devem viver de alguma forma.

- Não querem mais cultivar trigo, cevada e aveia... mas devem cultivar o que mandam, pelo menos neste vale. Por isso, um homem à procura de terra prefere ir para outro lugar.

- E o que conseguiria em outro lugar?

Will interrompeu de novo, ainda mais furioso:

- Querem fazer o que lhes agrada. Harry respondeu à pergunta de Caris:

- Querem ser arrendatários livres, pagando o arrendamento em dinheiro, em vez de servos que trabalham um dia por semana na terra do senhor; e querem ter liberdade para cultivar colheitas diferentes.

- Que colheitas?

- Cânhamo, linho, maçãs, ou peras... coisas que sabem que podem vender no mercado. Talvez uma colheita diferente a cada ano. Mas isso nunca foi permitido em Outhenby. - Harry pareceu se lembrar de quem eram as pessoas com quem falava, e apressou-se em acrescentar: - Sem ofensa para sua sagrada ordem, madre prioresa, nem para Will Bailiff, um homem honesto, como todo mundo sabe.

Caris compreendeu a situação. Os bailiffs eram sempre conservadores. Nos bons tempos, não tinha muita importância: os velhos costumes bastavam. Mas agora enfrentavam uma crise. Ela assumiu sua atitude de autoridade.

- Muito bem. Quero que me escute com toda atenção, Will, pois vou lhe dizer o que deve fazer.

Will ficou surpreso: pensava que seria consultado, não que receberia ordens. Caris continuou:

- Em primeiro lugar, deve parar de arar as encostas. Não faz sentido, quando temos uma boa terra plana sem ser cultivada.

- Mas...

- Fique calado e escute. Ofereça a cada arrendatário uma troca, acre por acre, de terra boa no fundo do vale, em vez de terrenos nas encostas.

- E o que faremos com as encostas?

- Converta em pastagens, bois pastando nas partes mais baixas e ovelhas nas mais altas. Não precisa de muitos homens para isso. Bastam alguns meninos para tomar conta dos rebanhos.

- Hum...

Era evidente que Will queria argumentar, mas não podia pensar de imediato numa objeção válida. Caris continuou:

- Depois, qualquer terra no fundo do vale que sobrar deve ser oferecida como um arrendamento livre, com pagamento só em dinheiro, para quem quiser ocupá-la.

Um arrendamento livre significava que o ocupante não era um servo e não tinha de trabalhar na terra do senhor, nem obter sua permissão para casar ou construir uma casa. E tudo o que tinha de fazer era pagar o arrendamento.

- Está se afastando de todos os costumes antigos.

Caris tornou a apontar para a faixa de terreno abandonada.

- Os antigos costumes estão deixando minhas terras desperdiçadas. Pode pensar em outra maneira de evitar que isso aconteça?

-Bom...

Houve uma longa pausa, até que Will sacudiu a cabeça, sem dizer mais nada.

- Em terceiro lugar, ofereça salários de dois pennies por dia para qualquer um que trabalhe na terra.

- Dois pennies por dia?

Caris sentiu que não podia confiar em Will para pôr em prática as mudanças com o devido vigor. Ele resistiria e inventaria desculpas. Ela virou-se para o arrogante jovem do arado. Faria com que ele se tornasse o defensor de suas reformas.

- Harry, quero que visite todos os mercados do condado durante as próximas semanas. Espalhe a notícia de que qualquer um disposto a mudar pode se dar bem em Outhenby. Se há trabalhadores à procura de bons salários, quero que venham para cá.

Harry sorriu e acenou com a cabeça. Will ainda parecia um pouco atordoado.

- Quero que providencie para que toda esta boa terra esteja com colheitas neste verão - declarou Caris para ele. - Fui bem clara?

- Foi - respondeu Will. - Obrigado, madre prioresa.

Caris examinou todos os cartulários com irmã Joan, anotando a data e o assunto de cada um. Decidira mandar copiá-los, um a um... a idéia que Godwyn propusera, embora apenas fingisse fazer as cópias, usando isso como um pretexto para mantê-los longe das freiras. Mas era uma boa iniciativa. Quanto mais cópias existissem, mais difícil seria o desaparecimento de um documento valioso.

Ela ficou intrigada com um documento de 1327, que concedia aos monges uma grande propriedade perto de Lynn, em Norfolk, que tinha o nome de Lynn Grange. A doação fora feita com a condição de que o priorado aceitasse, como um monge noviço, um cavaleiro chamado Sir Thomas Langley.

Caris foi levada de volta à infância, ao dia em que se aventurara pela floresta com Merthin, Ralph e Gwenda, quando viram Thomas sofrer o ferimento que causara a perda de seu braço. Ela mostrou o cartulário a Joan, que deu de ombros

e comentou:

- É comum fazer essa doação quando alguém de uma família rica se torna um monge.

- Então, veja quem é a doadora. Joan deu outra olhada.

- A rainha Isabella! - Isabella era a viúva de Edward II e a mãe de Edward III.

- Qual o interesse dela em Kingsbridge?

- Ou em Thomas?

Poucos dias depois, Caris teve uma oportunidade de descobrir. O bailiff de Lynn Grange, Andrew, foi a Kingsbridge em uma das duas visitas anuais. Nascido em Norfolk, com mais de cinqüenta anos, ele cuidava da propriedade desde que esta fora doada ao priorado. Estava agora gordo e de cabelos brancos, o que levou Caris a acreditar que a Grange continuava a prosperar, apesar da peste. Como Norfolk ficava a dias de viagem, a propriedade sempre pagava o que devia ao priorado em dinheiro, em vez de conduzir gado e carroças com produtos por um longo percurso. Andrew trouxe o dinheiro em nobres de ouro, a moeda nova, que valia um terço de libra, com a imagem do rei Edward no convés de um navio. Depois de contar o dinheiro e entregar a Joan para guardar no novo tesouro, Caris perguntou a Andrew:

- Sabe por que a rainha Isabella nos entregou essa propriedade, há vinte e dois anos?

Para sua surpresa, o rosto rosado de Andrew ficou branco. Ele fez várias tentativas de responder, até que conseguiu balbuciar:

- Não cabe a mim questionar as decisões de Sua Majestade.

- Tem toda razão - disse Caris, tranqüilizadora. - Só estou curiosa sobre jo motivo.

- Ela é uma santa mulher que fez muitos atos de caridade. Como assassinar o marido, pensou Caris; mas ela disse:

- Mas deve haver uma razão para que ela fizesse isso em benefício de Thomas.

- Ele solicitou um favor à rainha, como centenas de outros, e ela generosamente o atendeu, como as grandes damas às vezes o fazem.

- Em geral quando têm uma ligação com o solicitante.

- Tenho certeza de que não há nenhuma ligação.

A ansiedade de Andrew deixou Caris com a certeza de que ele mentia e que jamais lhe contaria a verdade. Por isso, abandonou o assunto e mandou Andrew jantar no hospital.

Na manhã seguinte, foi abordada no claustro pelo irmão Thomas, o único monge que restava no mosteiro. Irritado, ele perguntou:

- Por que interrogou Andrew Lynn?

- Porque estava curiosa - respondeu ela, surpresa.

- O que está tentando fazer?

- Não estou tentando qualquer coisa.

Caris sentia-se ofendida com a atitude agressiva, mas não queria discutir. Para atenuar a tensão, sentou no muro baixo na beira da galeria. Um sol de primavera brilhava no pátio. Ela perguntou em tom coloquial:

- Afinal, qual é o problema?

- Por que está me investigando?

- Não estou. Apenas examinava os cartulários, para relacioná-los e copiá-los, e encotrei um que deixou perplexa.

- Está se envolvendo em problemas que não são da sua conta. Ela se empertigou.

- Sou a prioresa de Kingsbridge e o prior em exercício... nada aqui pode ser secreto para mim.

- Se começar a remexer em coisas antigas, posso garantir que vai se arrepender. Parecia uma ameaça, mas Caris decidiu não pressioná-lo. Tentou uma abordagem diferente.

- Sempre pensei que éramos amigos, Thomas. Você não tem o direito de me proibir de fazer qualquer coisa, e me sinto desapontada que tenha tentado. Não confia em mim?

- Não sabe em que está se envolvendo.

- Pois então me esclareça. O que a rainha Isabella tem a ver com você, comigo, ou com Kingsbridge?

- Nada. Ela é uma velha agora, vivendo em isolamento.

- Ela tem cinqüenta e três anos. Depôs um rei e talvez possa depor outro, se assim o quiser. E tem uma antiga ligação secreta com meu priorado, que você está determinado a esconder de mim.

- Para o seu próprio bem. Caris ignorou o comentário.

- Alguém tentou matá-lo há vinte e dois anos. Foi a mesma pessoa que, depois de não conseguir eliminá-lo, pagou o seu ingresso no mosteiro?

- Andrew voltará para Lynn e contará a Isabella que você fez todas essas perguntas... compreende isso?

- Por que ela se importaria? Por que as pessoas têm tanto medo de você, Thomas?

- Tudo será esclarecido quando eu morrer. Nada mais vai importar depois. Ele virou-se e afastou-se. O sino para o almoço tocou. Caris foi para o palácio, absorta em pensamentos. O gato de Godwyn, Arcebispo, estava sentado na porta. Ela afugentou-o, apesar do olhar furioso do gato. Não admitia que ele entrasse no palácio.

Adquirira o hábito de almoçar todos os dias com Merthin. Tradicionalmente, o prior almoçava com o regedor, embora fosse excepcional fazê-lo todos os dias... mas aqueles eram tempos excepcionais. Isso, de qualquer forma, seria uma desculpa, se alguém a questionasse; mas ninguém o fazia. Os dois aguardavam ansiosos por uma desculpa para fazerem outra viagem, a fim de poderem ficar a sós de novo.

Ele entrou enlameado das obras na ilha do Leproso. Parara de pedir a Caris para renunciar a seus votos e deixar o priorado. Parecia se contentar, pelo menos por enquanto, em vê-la todos os dias e torcer por oportunidades futuras de mais intimidade.

Um empregado do priorado serviu ensopado de presunto com vagens. Depois que o empregado se retirou, Caris contou sobre o cartulário e a reação de Thomas.

- Ele conhece um segredo que pode prejudicar a velha rainha se vazar.

- Acho que deve ser isso mesmo - murmurou Merthin, pensativo.

- No Dia de Todos os Santos, em 1327, depois que fugi, ele pegou você, não é?

- É verdade. Ele me fez ajudá-lo a enterrar uma carta. Tive de jurar que guardaria segredo... até sua morte. Depois, deveria desenterrar a carta e entregá-la a um padre.

- Thomas me disse que todas as minhas perguntas seriam respondidas quando ele morresse.

- Creio que a carta é a ameaça que ele mantém contra seus inimigos. Devem saber que o conteúdo será revelado quando ele morrer. Por isso, temem matá-lo... mais do que isso, cuidaram para que ele permanecesse vivo e bem ao ajudaremno a se tornar um monge em Kingsbridge.

- Ainda é importante?

- Dez anos depois que enterramos a carta, comentei que nunca revelara o segredo a ninguém, e ele disse: ”Se tivesse contado, estaria morto.” O que me deixou mais assustado do que o juramento.

- Madre Cecilia me disse que Edward II não teve uma morte natural.

- Como ela poderia saber?

- Meu tio Anthony lhe contou. Presumo que o segredo é o fato de que a rainha Isabella mandou assassinar o marido.

- Metade do país já acredita nisso. Mas se houvesse uma prova... Cecilia contou como ele foi morto?

Caris fez um esforço para se lembrar.

- Não. E agora que penso a respeito, lembro que ela disse apenas: ”O velho rei não morreu de uma queda.” Perguntei se ele fora assassinado... mas ela morreu sem responder.

- Seja como for, por que inventar uma falsa história sobre a morte dele se não fosse para encobrir um crime?

- E a carta de Thomas deve mesmo provar que houve um crime e a rainha estava envolvida.

Eles terminaram o almoço num silêncio pensativo. No dia do mosteiro, a hora depois do almoço era para o descanso ou leitura. Caris e Merthin costumavam prolongar a conversa por mais algum tempo. Naquele dia, no entanto, Merthin estava preocupado com a instalação do telhado da nova taverna, The Bridge, que estava construindo na ilha do Leproso. Beijaram-se, famintos, mas ele se desvencilhou para voltar à obra. Desapontada, Caris abriu um livro intitulado Ars Medica, uma tradução para o latim de uma obra do antigo médico grego Galeno. Era a pedra fundamental da medicina ensinada nas universidades, e Caris decidira ler para descobrir o que os sacerdotes aprendiam em Oxford e Paris, embora tivesse encontrado muito pouco que pudesse ajudá-la. A empregada veio tirar a mesa.

- Peça ao irmão Thomas para vir falar comigo, por favor - disse Caris. Antes da chegada de Thomas, houve uma comoção lá fora. Ela ouviu vários

cavalos e gritos do tipo que indicavam que um nobre queria atenção. Poucos momentos depois a porta foi aberta, e Sir Ralph Fitzgerald, lorde de Tench, entrou no palácio. Ele parecia furioso, mas Caris fingiu não notar.

- Olá, Ralph - disse ela, tão jovial quanto podia. - É um prazer inesperado. Seja bem-vindo a Kingsbridur.

- Não perca tempo com isso - resmungou Ralph. Ele se aproximou do lugar em que Caris sentava. Permaneceu de pé, numa proximidade agressiva. - Já pensou que está estragando os camponeses de todo o condado?

Outro homem entrou no palácio, mas parou na porta. Era grande, com a cabeça pequena, e Caris reconheceu o antigo comparsa de Ralph, Alan Fernhill. Os dois estavam armados com espadas e adagas. Caris lembrou que estava sozinha no palácio. Tentou acalmar a situação.

- Não quer um pouco de presunto, Ralph? Acabei de almoçar. Ralph não se deixaria desviar.

- Está roubando meus camponeses!

- Camponeses ou faisões?

Alan Fernhill riu do trocadilho em inglês, peasants ou pheasants. Ralph ficou vermelho e pareceu ainda mais perigoso. Caris desejou não ter feito a brincadeira.

- Se quer se divertir à minha custa, juro que vai se arrepender - declarou Ralph.

Caris serviu cerveja num copo.

- Não estou rindo de você. Diga-me exatamente qual é o problema.

Ela ofereceu a cerveja. Sua mão trêmula traía o medo. Mas Ralph ignorou o copo e sacudiu um dedo para ela.

- Os trabalhadores estão desaparecendo das minhas aldeias... e quando pergunto, descubro que foram para aldeias que pertencem a você, onde recebem salários mais altos.

Caris acenou com a cabeça.

- Se você estivesse vendendo um cavalo e dois homens quisessem comprá-lo, não o venderia a quem oferecesse o melhor preço?

- Não é a mesma coisa.

- Acho que é. Tome a cerveja.

Com um movimento brusco, ele arrancou o copo da mão de Caris. Caiu no chão, a cerveja se derramando pela palha.

- Eles são meus trabalhadores.

Caris sentiu a mão machucada, mas tentou ignorar a dor. Abaixou-se, pegou o copo, e o pôs no aparador.

- Não é bem assim. Se eles são trabalhadores, isso significa que você nunca lhes deu qualquer terra. Portanto, os homens têm o direito de ir para outros lugares.

- Mas ainda sou o senhor deles! E tem mais! Ofereci um arrendamento para um homem livre outro dia e ele recusou, alegando que podia conseguir uma oferta muito melhor do Priorado de Kingsbridge!

- A mesma coisa, Ralph. Preciso de todas as pessoas que puder obter, e por isso estou dando o que querem.

- Você é mulher e não pensa direito. Não percebe que tudo isso acabará com todos pagando mais pelos mesmos camponeses.

- Não necessariamente. Salários maiores podem atrair alguns dos que não trabalham no momento... como os bandidos, por exemplo, ou os vagabundos que vagueiam de um lado para outro vivendo do que encontram nas aldeias esvaziadas pela peste.

Há alguns que são agora trabalhadores; podem se tornar arrendatários, e trabalhar mais porque cultivam sua própria terra.

Ele bateu na mesa com o punho, e Caris piscou ao súbito estrondo.

- Você não tem o direito de mudar os costumes antigos!

- Acho que tenho.

Ralph agarrou-a pela frente do hábito.

- Não vou admitir!

- Tire as mãos de mim, seu idiota!

Foi nesse momento que irmão Thomas entrou no palácio.

- Mandou me chamar... mas o que está acontecendo aqui?

Ele atravessou a sala em passos rápidos. Ralph largou o hábito de Caris como se ele tivesse pegado fogo de repente. Thomas não estava armado e só tinha um braço, mas já predominara sobre Ralph uma vez antes; e Ralph tinha medo dele.

Ralph deu um passo para trás, e depois compreendeu que revelara seu medo, o que o deixou envergonhado.

- Já acabamos aqui! - gritou ele, virando-se para a porta.

- O que estou fazendo em Outhenby e em outros lugares é absolutamente legítimo, Ralph - declarou Caris.

- É uma interferência na ordem natural!

- Não há lei contra isso.

Alan abriu a porta para seu amo.

- Espere e verá! - exclamou Ralph, antes de sair.

Em março daquele ano, 1349, Gwenda e Wulfric foram com Nathan Reeve ao mercado no meio da semana na pequena cidade de Northwood.

Trabalhavam para Sir Ralph agora. Gwenda e Wulfric haviam escapado da peste até agora, mas vários trabalhadores de Ralph haviam morrido. Por isso, ele precisava de ajuda. Nate, o bailiff de Wigleigh, propôs contratá-los. Podia pagar os salários normais, enquanto Perkin os punha para trabalhar apenas pela comida.

Assim que eles anunciaram que iam trabalhar para Ralph, Perkin descobriu que podia agora lhes pagar salários normais... mas já era tarde demais.

Naquele dia, eles levavam uma carroça de toras da floresta de Ralph para vender em Northwood, uma cidade que tinha um mercado de madeira desde tempos imemoriais. Os meninos, Sam e David, os acompanhavam: não havia mais ninguém para cuidar deles. Gwenda não confiava em seu pai, e a mãe morrera dois anos antes. Os pais de Wulfric há muito estavam mortos.

Havia várias outras pessoas de Wigleigh no mercado. O jadre Gaspard fora comprar sementes para sua horta, enquanto Joby, o pai de Gwenda, queria vender os coelhos que matara pouco antes.

Nathan, bailiff, era um homem pequeno, com um problema nas costas, e não podia levar as toras. Negociava com os clientes, enquanto Wulfric e Gwenda se encarregavam de carregar tudo. Ao meio-dia, ele lhes deu um penny para pagar o almoço na Old Oak, uma das tavernas em torno da praça. Compraram bacon cozido com alho-poró e partilharam com os meninos. David, aos oito anos de idade, ainda tinha o apetite de uma criança, mas Sam, aos dez anos, em processo de crescimento, sentia uma fome perpétua.

Enquanto comiam, eles ouviram uma conversa que atraiu a atenção de Gwenda.

Havia um grupo de jovens de pé num canto, tomando cerveja em enormes canecas. Todos estavam malvestidos, exceto um, com uma barba loura cerrada, que usava as roupas superiores de um camponês próspero ou um artesão de aldeia: calça de couro, botas de boa qualidade, chapéu novo. A frase que atraiu a atenção de Gwenda foi a seguinte:

- Pagamos dois pennies por dia para os trabalhadores em Outhenby.

Ela ficou ouvindo, na tentativa de descobrir mais, mas só conseguiu captar algumas palavras esparsas. Ouvira que alguns empregadores estavam oferecendo mais do que o tradicional penny por dia, por causa da escassez de trabalhadores causada pela peste. Hesitara em acreditar nessas histórias, que pareciam boas demais para serem verdadeiras.

Não disse nada no momento a Wulfric, que não ouvira as palavras mágicas, mas seu coração passou a bater mais depressa. Ela e a família haviam sofrido muitos anos de pobreza. Seria possível que a vida pudesse melhorar para eles?

Tinha de descobrir mais.

Depois que comeram, os dois sentaram num banco lá fora, observando os meninos e algumas outras crianças correrem em torno do tronco enorme do carvalho que dava o nome à taverna.

- Wulfric, o que aconteceria se pudéssemos ganhar dois pennies por dia... cada um?

- Como?

- Indo para Outhenby.

Gwenda relatou o que ouvira e arrematou:

- Pode ser o começo de uma vida nova para nós.

- Quer dizer que nunca vou recuperar as terras que pertenceram a meu pai? Ela teve vontade de agredi-lo com um pedaço de pau. Será que Wulfric ainda pensava mesmo que isso seria possível? Até que ponto ele podia ser insensato? Gwenda tentou tornar a voz tão gentil quanto podia:

- Já se passaram doze anos desde que você foi deserdado. Durante esse tempo, Ralph tornou-se mais e mais poderoso. E nunca houve o menor sinal de que ele poderia ter abrandado sua atitude em relação a você. O que você acha que são suas chances?

Wulfric não respondeu a essa pergunta.

- Onde viveríamos?

- Deve haver casas em Outhenby.

- Mas Ralph nos deixará partir?

- Ele não pode impedir. Somos trabalhadores, não servos. Você sabe disso.

- Mas será que Ralph sabe?

- Não vamos dar a ele a chance de levantar objeções.

- Como poderíamos fazer isso?

- Bom... - Gwenda não havia pensado nisso, mas refletiu agora que deveriam ser rápidos. - Podemos partir hoje, daqui.

Era uma perspectiva assustadora. Ambos haviam passado suas vidas inteiras em Wigleigh. Wulfric nunca sequer mudara de casa. E agora cogitavam viver numa aldeia que nunca tinham visto, sem sequer voltarem para se despedirem.

Mas Wulfric preocupava-se com outra coisa. Apontou para o bailiff corcunda, que atravessava a praça na direção da loja do fabricante de velas.

- O que Nathan diria?

- Não vamos contar a ele o que estamos planejando. Inventaremos alguma história... por exemplo, queremos passar a noite aqui, por alguma razão, e só voltar para casa amanhã. Assim ninguém saberá onde estamos. E nunca mais voltaremos a Wigleigh.

- Nunca mais voltaremos... - repetiu Wulfric, desolado.

Gwenda controlou sua impaciência. Conhecia o marido. Depois que Wulfric assumia um curso determinado, não havia mais como detê-lo; mas ele sempre demorava um pouco para se decidir. Mais cedo ou mais tarde, aceitaria a idéia. Não tinha a mente fechada, apenas era cauteloso e deliberado. Detestava tomar decisões às pressas... enquanto Gwenda achava que essa era a única maneira.

O jovem de barba loura saiu da Old Oak. Gwenda olhou ao redor. Não havia ninguém de Wigleigh à vista. Ela levantou-se e abordou o homem.

- Ouvi você dizer alguma coisa sobre dois pennies por dia para trabalhadores?

- É isso mesmo. No vale de Outhenby, a apenas meio dia de viagem para sudoeste. Precisamos de todos que quiserem trabalhar.

- Quem é você?

- Sou o arador de Outhenby. Meu nome é Harry.

Outhenby devia ser uma aldeia grande e próspera para ter seu próprio arador, raciocinou Gwenda. A maioria dos aradores trabalhava para um grupo de várias aldeias.

- E quem é o senhor do solar?

- A prioresa de Kingsbridge.

- Caris!

Era uma notícia maravilhosa. Caris merecia toda confiança. Gwenda ficou na maior animação.

- Isso mesmo. Ela é a atual prioresa. Uma mulher muito determinada.

- Sei disso.

- Ela quer que os campos sejam cultivados para poder alimentar as irmãs e não aceita desculpas.

- Vocês têm casas em Outhenby para trabalhadores morarem com suas famílias?

- Várias, infelizmente. Perdemos muitas pessoas para a peste.

- Você disse que ficava a sudoeste daqui.

- Pegue a estrada para o sul até Badford, depois siga o rio Outhen correnteza acima.

Gwenda recuperou a cautela.

- Eu não vou.

- Claro.

Era evidente que Harry não acreditava nela.

- Só perguntei para um amigo.

- Diga a seu amigo para ir o mais depressa que puder... ainda temos de terminar a aradura e semeadura da primavera.

- Está bem.

Ela sentia-se um pouco tonta, como se tivesse bebido um vinho forte. Dois pennies por dia - trabalhando para Caris - e a quilômetros de distância de Ralph, Perkin e da leviana Annet! Era um sonho. Foi sentar de novo ao lado de Wulfric

- Ouviu tudo o que ele disse?

- Ouvi. - Wulfric apontou para alguém parado na porta da taverna. - E ele também.

Gwenda olhou. Era seu pai.

- Pode atrelar o cavalo - disse Nathan para Wulfric, no meio da tarde. - É tempo de voltar para casa.

- Vamos precisar de nossos salários da semana até agora - declarou Wulfric.

- Receberão no sábado, como sempre - respondeu Nathan, desdenhoso. Atrele logo o cavalo.

Wulfric não se mexeu.

- Tem de pagar hoje. Sei que tem o dinheiro, porque vendeu toda aquela madeira.

Nate virou-se para fitá-lo e perguntou, irritado:

- Por que acha que deve receber antes do tempo?

- Porque não voltarei com você para Wigleigh esta noite. Nate ficou aturdido.

- Por que não? Gwenda interveio:

- Vamos para Melcombe.

- O quê? - Nate estava indignado. - Pessoas como vocês não têm o que fazer em Melcombe!

- Conhecemos um pescador que precisa de tripulantes a dois pennies por dia. Gwenda inventara essa história para despistar. Wulfric acrescentou:

- Transmita nossos respeitos a Sir Ralph, e que Deus possa estar com ele no futuro.

E Gwenda arrematou:

- Mas esperamos não vê-lo nunca mais.

Ela disse isso só para ouvir o doce som das palavras: nunca mais ver Ralph. Nathan protestou, indignado:

- Ele pode não querer que vocês partam!

- Não somos servos, não temos terra. Ralph não pode nos proibir.

- Você é o filho de um servo - insistiu Nate.

- Mas Ralph negou minha herança. Não pode agora exigir minha fidelidade de vassalo.

- É sempre perigoso para um pobre defender seus direitos.

- É verdade - admitiu Wulfric - Mas farei isso assim mesmo. Nate sentiu-se derrotado.

- A coisa não vai parar aqui.

- Gostaria que eu atrelasse o cavalo à carroça?

Nate amarrou a cara. Não poderia fazê-lo pessoalmente. Por causa das costas, tinha dificuldades com as tarefas físicas mais complicadas; além disso, o cavado era mais alto do que ele.

- Claro que quero.

- Terei o maior prazer. Mas pode fazer a gentileza de nos pagar primeiro? Furioso, Nate pegou a bolsa. Contou seis pennies de prata.

Gwenda pegou o dinheiro e Wulfric atrelou o cavalo. Nate foi embora sem dizer mais nada.

- Pronto, está feito!

Gwenda olhou para Wulfric. Ele exibia um sorriso largo. Ela perguntou:

- O que foi?

- Não sei... Mas tenho a sensação de que usava uma canga há anos, e agora foi subitamente tirada.

- Isso é ótimo. - Era assim que Gwenda queria que o marido se sentisse. - E agora vamos procurar um lugar para passar a noite.

A Old Oak ocupava uma posição privilegiada na praça do mercado e cobrava preços altos. Circularam pela cidade, à procura de um lugar mais barato. Foram parar na Gate House, onde Gwenda negociou acomodações para os quatro

- jantar, um colchão no chão e a primeira refeição - por um penny. Os meninos precisariam de uma boa noite de sono para poderem andar durante toda a manhã seguinte.

Gwenda mal conseguiu dormir de tanto excitamento. E também porque se sentia preocupada. O que estava fazendo com sua família? Tinha apenas a palavra de um homem, um estranho, sobre o que encontrariam quando chegassem a Outhenby. Devia ter procurado uma confirmação antes de se comprometer.

Mas ela e Wulfric eram prisioneiros num buraco há dez anos, e Harry Plowman de Outhenby fora a primeira pessoa a oferecer uma saída.

A primeira refeição da manhã foi mínima: um mingau ralo e sidra aguada. Gwenda comprou um pão grande para comerem na estrada, e Wulfric encheu o cantil de couro com água fresca de um poço. Passaram pelo portão da cidade uma hora depois que o sol nasceu, e seguiram para o sul.

Enquanto andavam, Gwenda pensou em Joby, seu pai. Assim que soubesse que ela não voltara para Wigleigh, ele se lembraria da conversa que ouvira, e adivinharia que a filha fora para Outhenby. Não se deixaria enganar pela história sobre Melcombe: era um mentiroso consumado, experiente demais para se iludir com uma artimanha tão simples.

Mas alguém pensaria em perguntar a ele para onde Gwenda fora? Todos sabiam que ela nunca falava com o pai. E se perguntassem, ele diria do que desconfiava? Ou algum vestígio de sentimento paternal o levaria a protegê-la?

Mas não havia nada que ela pudesse fazer a respeito, e por isso tratou de tirar Joby de seus pensamentos.

Fazia um bom tempo para viajar. O solo estava macio, com a chuva recente, e não havia poeira; mas hoje era um dia seco, com o sol aparecendo a intervalos, nem quente nem frio. Os meninos cansaram depressa, especialmente David, o mais jovem, mas Wulfric era bom em distraí-los com cantigas, indagações sobre nomes de árvores e plantas, jogos de números, histórias.

Gwenda mal podia acreditar no que haviam feito. Aquela mesma hora, no dia anterior, parecia que a vida deles nunca mudaria: trabalho duro, pobreza e aspirações frustradas; aquilo seria seu destino para sempre. Agora, estavam a caminho de uma vida nova.

Ela pensou na casa em que vivera com Wulfric por dez anos. Não deixara muita coisa para trás: umas poucas panelas, uma pilha de lenha recém-cortada, meio pernil e quatro cobertores. Ela não tinha outras roupas além das que usava, e o mesmo acontecia com Wulfric e os meninos. Não tinha jóias, fitas, luvas ou pentes. Dez anos antes, Wulfric tinha galinhas e porcos em seu quintal, mas pouco a pouco haviam vendido tudo, ao longo dos anos de penúria. Seus bens escassos poderiam ser repostos com os salários de uma semana prometidos por Outhenby.

De acordo com as instruções de Harry, eles foram pela estrada para o sul até o vau lamacento do Outhen, depois viraram para oeste e seguiram rio acima. A medida que avançavam, o rio foi se estreitando, até que a terra se tornou um funil entre duas serras.

 

- Um solo fértil - comentou Wulfric. - Mas precisará ser bem arado.

Ao meio-dia, alcançaram uma aldeia grande, com uma igreja de pedra. Foram para o solar de madeira ao lado da igreja. Com a maior apreensão, Gwenda bateu na porta. Estava prestes a ser informada de que Harry Plowman não sabia o que dizia, e que não havia trabalho ali? Obrigara sua família a caminhar durante a metade do dia por nada? Seria humilhante ter de retornar a Wigleigh e suplicar que Nate Reeve os aceitasse de volta.

Uma mulher de cabelos grisalhos abriu a porta. Fitou Gwenda com o olhar furioso e desconfiado que os aldeões por toda parte dispensavam aos estranhos.

- O que vocês querem?

- Bom-dia - disse Gwenda. - Aqui é Outhenby?

- É, sim.

- Somos trabalhadores à procura de trabalho. Harry Plowman nos disse para vir até aqui.

- Ele disse isso?

Havia alguma coisa errada, especulou Gwenda, ou aquela mulher era apenas uma velha rabugenta? Ela quase fez a pergunta em voz alta, mas se conteve a tempo.

- Harry mora nesta casa?

- Claro que não. Ele é apenas um arador. Esta é a casa do bailiff. Havia algum conflito entre o bailiff e o arador, adivinhou Gwenda.

- Neste caso, seria melhor conversar com o bailiff.

- Ele não está em casa. Paciente, Gwenda pediu:

- Poderia fazer a gentileza de nos dizer onde podemos encontrá-lo?

A mulher apontou através do vale.

-North Field.

Gwenda virou-se para olhar na direção indicada. Quando se virou de volta, a mulher havia desaparecido dentro da casa. Wulfric comentou:

- Ela não pareceu muito satisfeita em nos ver.

- As mulheres mais velhas detestam mudanças - explicou Gwenda. - Vamos procurar esse bailiff.

- Os meninos estão cansados.

- Poderão descansar daqui a pouco.

Partiram através dos campos. Havia muita atividade nas faixas de terra. Crianças tiravam pedras dos campos arados, mulheres espalhavam sementes, e homens levavam estrume em carroças. Gwenda avistou os bois a distância, oito animais poderosos pacientemente arrastando o arado através do solo úmido.

Aproximaram-se de um grupo de homens e mulheres que tentavam mover uma grade puxada por cavalo que ficara entalada numa vala. Gwenda e Wulfric foram ajudar. As costas largas de Wulfric fizeram a diferença, e logo a grade ficou solta.

Todos os aldeões se viraram para Wulfric. Um homem alto, com uma antiga marca de queimadura desfigurando um lado do rosto, declarou, cordial:

- É um homem útil... quem é você?

- Sou Wulfric e esta é minha esposa, Gwenda. Somos trabalhadores à procura de trabalho.

- É justamente quem precisamos, Wulfric. Sou Carl Shaftesbury. - Ele estendeu a mão para um aperto. - Seja bem-vindo a Outhenby.

Ralph apareceu oito dias depois.

Wulfric e Gwenda haviam se instalado numa casa pequena mas bem construída, com uma chaminé de pedra e um quarto em cima, onde podiam dormir separados dos meninos. Tiveram uma recepção cautelosa por parte dos aldeões mais velhos e mais conservadores... em particular de Will Bailiff e sua esposa, Vi, que fora tão grosseira no dia em que chegaram. Mas Harry Plowman e os mais jovens mostravam-se animados com as mudanças e contentes por mais ajuda nos campos.

Receberiam dois pennies por dia, como prometido, e Gwenda aguardava ansiosa o final da primeira semana completa, quando cada um receberia doze pennies - um shilling -, o dobro da quantia mais alta que já haviam recebido. O que fariam com tanto dinheiro?

Nem Wulfric nem Gwenda jamais haviam trabalhado em qualquer outro lugar que não Wigleigh, e ficaram surpresos ao descobrirem que nem todas as aldeias eram iguais.

A suprema autoridade ali era a prioresa de Kingsbridge, e isso fazia uma diferença. As normas de Ralph eram pessoais e arbitrárias; apelar para ele era sempre um risco. em contraste, os moradores de Outhenby pareciam saber o que a prioresa haveria de querer, e podiam resolver as disputas ao calcularem o que ela diria se fosse instada a decidir.

Uma pequena disputa desse tipo estava acontecendo no momento em que Ralph apareceu.

Voltavam dos campos ao pôr-do-sol, os adultos cansados do trabalho, as crianças correndo na frente, e Harry Plowman na retaguarda com os bois desatrelados. Carl Shaftesbury, o homem do rosto queimado, um recém-chegado como Gwenda e Wulfnc, pegara três enguias ao amanhecer para o jantar de sua família, já que era sexta-feira. A discussão era para determinar se os trabalhadores tinham os mesmos direitos dos arrendatários de pegar peixes no no Outhen para o dia do jejum. Harry Plowman disse que o privilégio estendia-se a todos os residentes de Outhenby. Vi Bailiff argumentou que os arrendatários deveriam pagar taxas ao senhor, o que não acontecia com os trabalhadores; portanto, quem tinha deveres extras também deveria ter privilégios extras.

Will Bailiff foi chamado a dar uma decisão, e decidiu contra a esposa.

- Acho que a madre prioresa diria que se a Igreja deseja que as pessoas comam peixe, então se deve fornecer peixe para que possam comer.

Todos aceitaram sua decisão. Ao olhar para a aldeia, Gwenda avistou dois cavaleiros.

Houve uma súbita rajada de vento frio.

Os visitantes estavam a pouco menos de um quilômetro de distância, seguindo para a aldeia em ângulo com o curso dos aldeões. Dava para perceber que eram homens de armas. Montavam cavalos enormes e as roupas eram volumosas... homens acostumados à violência em geral usavam casacos reforçados. Ela cutucou Wulfnc

- Já os vi - murmurou ele, sombrio.

Homens assim não apareciam em aldeias por acaso. Desprezavam as pessoas que cultivavam as colheitas e cuidavam dos animais. Em circunstâncias normais, só visitavam as aldeias para tirarem dos camponeses as coisas que eram orgulhosos demais para proverem para si mesmos, como pão, carne e bebida. Sua opinião sobre as coisas a que tinham direito, ou quanto deveriam pagar, sempre diferia da dos camponeses; por isso, invariavelmente havia problemas.

Nos dois ou três minutos seguintes, todos os trabalhadores os viram, e pararam de falar. Gwenda notou que Harry mudou um pouco o rumo dos bois e levou-os na direção da outra extremidade da aldeia, embora não pudesse atinar de imediato qual era o motivo.

Gwenda teve certeza de que haviam vindo à procura de trabalhadores fugidos. Descobriu-se a rezar para que fossem os ex-empregadores de Carl Shaftesbury ou de um dos outros recém-chegados. Mas quando os aldeões chegaram mais perto dos cavaleiros, ela reconheceu Ralph Fitzgerald e Alan Fernhill. Sentiu um frio no coração.

Aquele era o momento que temera. Já sabia que havia uma chance de Ralph descobrir para onde eles haviam ido: o pai podia dar um bom palpite, e era impossível confiar que ele ficaria de boca fechada.

E embora não tivesse o direito de levá-los de volta, Ralph era um cavaleiro e um nobre, e os homens assim costumavam fazer o que bem queriam.

Era tarde demais para fugir. O grupo seguia por uma trilha entre os campos arados: se alguns se afastassem e fugissem, Ralph e Alan os veriam no mesmo instante e partiriam em perseguição; e depois Gwenda e sua família perderiam toda e qualquer proteção que pudessem obter da companhia dos outros aldeões. Estavam acuados em campo aberto. Ela chamou os meninos.

- Sam! David! Venham para cá!

Eles não ouviram, ou não quiseram ouvir, e saíram correndo. Gwenda correu atrás, mas eles pensaram que era uma brincadeira e se distanciaram ainda mais. Estavam quase na aldeia agora, e ela descobriu que sentia-se cansada demais para alcançá-los. Quase em lágrimas, ela gritou:

- Voltem!

Wulfric assumiu a perseguição. Passou correndo por ela e alcançou David com alguma facilidade, suspendendo-o nos braços. Mas era tarde demais para alcançar Sam, que corria rindo entre as casas esparsas.

Os cavaleiros haviam parado junto da igreja. Quando Sam se aproximou, Ralph levou seu cavalo para a frente, abaixou-se da sela, e pegou o menino pela camisa. Sam soltou um grito de medo.

Gwenda também gritou.

Ralph sentou o menino no cavalo, à sua frente.

Wulfric, carregando David, parou na frente de Ralph.

- Seu filho, eu presumo - disse Ralph.

Gwenda estava consternada. Tinha medo pelo filho. Seria abaixo da dignidaie de Ralph agredir uma criança, mas podia haver um acidente. E havia outro perigo.

Ao ver Ralph e Sam juntos, Wulfric podia compreender que eram pai e filho.

Sam ainda era um menino, é claro, com o rosto e o corpo de uma criança, mas tinha os cabelos densos e os olhos escuros de Ralph, os ombros ossudos eram largos e quadrados.

Gwenda olhou para o marido. A expressão de Wulfric não oferecia nenhuma indicação do que era óbvio para ela. Ela observou os rostos dos outros aldeões. Pareciam alheios à verdade evidente... exceto por Vi Bailiff, que fitava Gwenda com um olhar fixo. A velha megera podia ter percebido, mas ninguém mais o fizera... ainda. Will adiantou-se e disse aos visitantes:

- Bom-dia, senhores. Sou Will, o bailiff de Outhenby. Posso perguntar...

- Cale a boca, bailiff. - Ralph apontou para Wulfric. - O que ele está fazendo aqui?

Gwenda sentiu que a tensão dos outros aldeões diminuía um pouco, ao compreenderem que não eram o alvo da ira do senhor. Will respondeu:

- Milorde, ele é um trabalhador, contratado pela autoridade da prioresa de Kingsbridge...

- Ele é um fugitivo e tem de voltar para casa - declarou Ralph. Will se calou, assustado. Carl Shaftesbury perguntou:

- E com que autoridade faz essa reivindicação?

Ralph fitou-o atentamente, como se quisesse memorizar seu rosto.

- Tome cuidado com a língua, ou vou desfigurar o outro lado de seu rosto. Will interveio, nervoso:

- Não queremos ver sangue derramado.

- Muito sensato, bailiff- comentou Ralph. - Quem é esse camponês insolente?

- Não importa quem eu sou, cavaleiro - disse Carl, bruscamente. - Sei quem você é... Ralph Fitzgerald. Vi quando foi declarado culpado de estupro e condenado à morte no tribunal de Shiring.

- Mas não estou morto, não é?

- Deveria estar. E não tem direitos feudais sobre os trabalhadores. Se tentar usar a força, aprenderá uma dura lição.

Várias pessoas deixaram escapar exclamações de espanto. Era uma maneira temerária de falar com um cavaleiro armado.

- Fique quieto, Carl - disse Wulfric. - Não quero que seja morto por minha causa.

- Não é por sua causa - respondeu Carl. - Se permitirmos que esse celerado o leve, alguém virá à minha procura. Temos de permanecer unidos. Não estamos desamparados.

Carl era grande, mais alto que Wulfric, e quase tão largo. Gwenda compreendeu que ele falava sério. Ficou apavorada. Se começassem a lutar, haveria uma terrível violência... e seu Sam continuava sentado no cavalo com Ralph.

- Iremos com Ralph - disse ela, frenética. - Será melhor.

- Não será, não - protestou Carl. - Vou impedi-lo de levar vocês, quer queira ou não. Será melhor para mim.

Houve murmúrios de concordância. Gwenda olhou ao redor. A maioria dos homens carregava pás ou enxadas, e muitos pareciam dispostos a usá-las, embora também estivessem apavorados. Wulfric virou as costas para Ralph e disse, em voz baixa e urgente:

- Vocês, mulheres, levem as crianças para a igreja... depressa!

Várias mulheres pegaram as crianças pequenas no colo e seguraram as mais velhas pelo braço. Gwenda permaneceu onde estava, assim como algumas das mulheres mais jovens. Os aldeões se agruparam num impulso instintivo, ombro a ombro.

Ralph e Alan pareciam desconcertados. Não esperavam enfrentar uma muitidão de cinqüenta ou mais camponeses beligerantes. Mas como estavam a cavado, poderiam escapar a qualquer momento em que quisessem.

- Talvez eu leve apenas este garoto para Wigleigh - sugeriu Ralph. Gwenda soltou um grito de horror. Ralph acrescentou:

- Assim, se os pais o quiserem de volta, poderão voltar ao lugar a que pertencem.

Gwenda estava fora de si. Ralph segurava Sam, e poderia se afastar a qualquer momento. Ela fez um esforço para reprimir um grito histérico. Se Ralph virasse o cavalo, decidiu Gwenda, trataria de se jogar em cima dele, para tentar derrubá-lo da sela. Ela deu um passo à frente.

E foi nesse instante que ela viu os bois aparecerem por trás de Ralph e Alan. Harry Plowman conduzia-os através da aldeia, vindo do outro lado. Os oito animais maciços pararam na frente da igreja, olhando ao redor, aturdidos, sem saberem para onde seguir. Harry parou por trás. Ralph e Alan se encontravam numa armadilha triangular, acuados entre os aldeões, os bois e a igreja de pedra.

Harry planejara aquela manobra para impedir que Ralph levasse Wulfric e ela, percebeu Gwenda. Mas a tática também servia para aquela situação.

- Ponha a criança no chão e vá embora em paz, Sir Ralph - disse Carl.

O problema era o fato de que agora se tornara difícil para Ralph recuar sem perder a autoridade, refletiu Gwenda. Ele teria de fazer alguma coisa para não parecer um tolo, o que era o supremo horror para os orgulhosos cavaleiros. Viviam falando sobre honra, mas isso nada significava... eram absolutamente desonrosos quando lhes convinha. O que prezavam de fato era sua dignidade. Preferiam morrer a serem humilhados.

A cena foi de absoluta imobilidade por longos momentos: o cavaleiro e o menino no cavalo, os aldeões amotinados, e os bois atordoados.

Depois, Ralph baixou Sam para o chão.

Lágrimas de alívio afloraram aos olhos de Gwenda.

Sam correu para ela, passou os braços em torno de sua cintura, e começou a chorar.

Os aldeões relaxaram, os homens baixando as pás e enxadas.

Ralph puxou as rédeas do cavalo e gritou:

- Eia! Eia!

O cavalo empinou. Em seguida, ele cravou as esporas e galopou direto para a multidão, que se dispersou. Alan seguiu em seu encalço. Os aldeões, desesperados, jogaram-se para os lados, acabando em pilhas emaranhadas no solo lamacento. Foram pisoteados uns pelos outros, mas não pelos cavalos, milagrosamente.

Ralph e Alan riam às gargalhadas ao deixarem a aldeia, como se tudo não tivesse passado de uma enorme brincadeira.

Mas, na verdade, Ralph fora envergonhado.

E isso, Gwenda tinha certeza, significava que ele voltaria.

Earlcastle não mudara. Doze anos antes, recordou Merthin, ele fora convidado a demolir a antiga fortaleza e construir um palácio novo e moderno para um conde num país pacífico. Mas recusara, preferindo projetar e construir a nova ponte em Kingsbridge. Desde então, ao que parecia, o projeto fora abandonado, pois ali estavam a mesma muralha em forma de oito, com duas pontes levadiças, e a torre antiquada em que a família vivia, na parte superior, como coelhos assustados no fundo de uma toca, sem saber que a raposa não oferecia mais nenhum perigo. O lugar devia ser quase igual ao que era no tempo de lady Aliena e Jack Builder.

Merthin acompanhava Caris, chamada até ali pela condessa, lady Philippa. O conde William caíra doente, e Philippa achava que o marido tinha a peste. Caris ficara consternada. Pensara que a peste havia acabado. Ninguém mais morria disso em Kingsbridge há seis semanas.

Caris e Merthin haviam partido imediatamente. Mas o mensageiro levara dois dias para viajar de Earlscastle a Kingsbridge, e eles levaram o mesmo tempo para chegar ali. Portanto, a probabilidade era a de que o conde estivesse agora morto, ou quase.

- Tudo o que poderei fazer é lhe dar alguma essência de papoula para atenuar a agonia final - comentara Caris, durante a viagem.

- Você faz mais do que isso - assegurara Merthin. - Sua presença conforta as pessoas. É calma e sabe das coisas. Fala de uma maneira que todos entendem, sobre inchação, confusão e dor... não tenta impressionar com jargão sobre humores, o que só contribui para que as pessoas se sintam ainda mais ignorantes, desamparadas e assustadas. Quando você está presente, elas sentem que tudo o que é possível está sendo feito, e é isso o que querem.

- Espero que você tenha razão.

Mesmo que não tivesse razão, Merthin atenuava a realidade. Mais de uma vez, testemunhara uma mulher ou um homem histérico mudar, depois de uns poucos momentos tranqüilizadores com Caris, passando a ser uma pessoa sensata, capaz de aceitar qualquer coisa que tivesse de lhe acontecer.

O talento inato de Caris aumentara, desde o advento da peste, e ela contava com uma reputação quase sobrenatural. Todos por quilômetros ao redor sabiam o que Caris e suas freiras haviam feito nos cuidados com os doentes, apesar dos riscos para si mesmas, até depois da fuga dos monges. Muitos pensavam que ela era uma santa.

O clima no castelo era de desolação. Os que tinham tarefas rotineiras não deixavam de cumpri-las: buscar lenha e água, alimentar os cavalos e cuidar das armas, fazer pão e preparar a carne. Muitos outros - secretários, homens de armas, mensageiros - sentavam sem fazer nada, à espera de notícias do quarto do doente.

As gralhas grasniram uma recepção sarcástica quando Merthin e Caris atravessaram a ponte interna para a torre. O pai de Merthin, Sir Gerald, sempre alegara ser um descendente direto do filho de Jack e Aliena, conde Thomas. Enquanto contava os passos para o grande salão, pondo os pés com todo cuidado nas depressões lisas, gastas por milhares de botas, Merthin não pôde deixar de pensar que seus ancestrais deviam ter pisado também naquelas velhas pedras. Para ele, essas noções eram fascinantes, mas triviais. Em contraste, seu irmão, Ralph, era obcecado pela restauração da família em sua antiga glória.

Caris seguia à sua frente. A maneira como ela requebrava os quadris, enquanto subia a escada, fez seus lábios se contraírem num sorriso. Sentia-se frustrado por não poder dormir com ela todas as noites, mas isso fazia com que as raras ocasiões em que podiam ficar a sós se tornassem ainda mais emocionantes. No dia anterior, haviam passado uma amena tarde de primavera fazendo amor numa clareira na floresta, ao sol, enquanto os cavalos pastavam próximos, indiferentes à paixão dos dois.

Era um estranho relacionamento, mas também ela era uma mulher extraordinária: uma prioresa que duvidava de muito do que a Igreja ensinava; uma curandeira aclamada que rejeitava o tipo de medicina praticada pelos médicos; e uma freira que fazia um amor ardente com seu homem sempre que podia. Se eu quisesse um relacionamento normal, dizia Merthin a si mesmo, deveria ter escolhido uma mulher normal.

Havia muitas pessoas no salão. Algumas trabalhavam, espalhando palha limpa, acendendo o fogo, preparando a mesa para o jantar, enquanto outras apenas esperavam. Na extremidade do salão comprido, sentada perto da escada que subia para os aposentos pessoais do conde, Merthin avistou uma garota bem vestida, em torno dos quinze anos. Ela levantou-se e adiantou-se com um andar altivo. Merthin compreendeu que devia ser a filha de lady Philippa. Como a mãe, ela era alta, com um corpo de ampulheta.

- Sou lady Odila - disse ela, num tom de altivez que era típico de Philippa. Apesar do controle, a pele em torno dos olhos jovens estava vermelha e vincada de chorar. - Deve ser madre Caris. Obrigada por ter vindo cuidar de meu pai.

Merthin disse:

- Sou o regedor de Kingsbridge, Merthin Bridger. Como está o conde William?

- Muito doente. Meus dois irmãos também estão de cama.

Merthin recordou que o conde e a condessa tinham dois filhos homens, em torno dos dezenove e vinte anos, enquanto a garota acrescentava:

- Minha mãe pede que a prioresa cuide deles imediatamente.

- Claro - respondeu Caris. Odila subiu a escada. Caris tirou da bolsa uma máscara de linho, prendeu sobre o nariz e a boca, e foi atrás.

Merthin sentou num banco para esperar. Embora aceitasse o sexo pouco frequente, isso não o impedia de procurar por oportunidades extras. Inspecionou o prédio, com os olhos atentos, calculando quais seriam as disposições para a noite. Infelizmente, a casa era tradicional. O vasto salão era o lugar em que quase todos comiam e dormiam. A escada devia levar ao solar, onde haveria um quarto para o conde e a condessa. Os castelos modernos tinham todo um conjunto de aposentos para a família e os hóspedes, mas ali parecia não haver esse luxo. Merthin e Caris poderiam deitar lado a lado naquela noite, no chão do salão, mas não poderiam fazer mais do que dormir, não sem causar um escândalo.

Depois de algum tempo, lady Philippa saiu do solar e desceu a escada. Entrou no salão como uma rainha, consciente de que todos a observavam, como Merthin sempre pensara. A dignidade da postura só realçava os atraentes contornos dos quadris e o busto orgulhoso. Naquele dia, porém, o rosto normalmente sereno estava inchado, e os olhos estavam vermelhos. Os cabelos empilhados no alto da cabeça, ao estilo em voga, se encontravam um pouco tortos, algumas mechas escapando da touca, o que aumentava ainda mais a impressão de distração glamorosa.

Merthin levantou-se e fitou-a, em expectativa. Ela disse:

- Meu marido tem a peste, como eu receava; e meus dois filhos também. As pessoas ao redor murmuraram palavras de desalento.

Podia ser apenas o final da epidemia, é claro; mas também podia ser o início de uma nova erupção... que Deus nos livre, pensou Merthin.

- Como o conde se sente? - perguntou ele. Philippa sentou no banco, ao seu lado.

- Madre Caris atenuou sua dor, mas diz que ele está próximo do fim.

Os joelhos dos dois quase se encostavam. Merthin podia sentir o magnetismo de sua sensualidade, embora ela estivesse dominada pela dor e ele, cheio de amor por Caris.

- E seus filhos?

Philippa baixou os olhos para o colo, como se estudasse o padrão de fios de ouro e prata no vestido azul.

- Nas mesmas condições do pai.

- Sei que enfrenta uma situação muito difícil, milady. Philippa lançou-lhe um olhar cauteloso.

- Você não é como seu irmão, não é?

Merthin sabia que Ralph fora apaixonado por Philippa, à sua maneira obsessiva, por muitos anos. Será que ela compreendia isso? Merthin não sabia. Mas Ralph escolhera bem, pensou ele. Se você quer ter um amor sem esperança, pode muito bem escolher uma mulher excepcional.

- Ralph e eu somos muito diferentes - respondeu ele, em tom neutro.

- Lembro de vocês quando jovens. Era você quem tinha mais atrevimento... disse-me uma ocasião para comprar uma seda verde que combinaria com meus olhos. E depois seu irmão começou uma briga.

- Às vezes penso que o mais jovem de dois irmãos tenta deliberadamente ser o oposto do mais velho, apenas para ser diferente.

- Isso acontece com certeza com meus dois filhos. Rollo é determinado e assertivo, como o pai e o avô, enquanto Rick sempre teve uma natureza doce e cortês. - Ela começou a chorar. - Oh, Deus, acho que vou perder todos!

Merthin pegou a mão da condessa.

- Não pode ter certeza do que vai acontecer - murmurou ele, gentilmente. Peguei a peste em Florença e sobrevivi. Minha filha não pegou.

Ela levantou os olhos para fitá-lo.

- E sua esposa?

Merthin baixou os olhos para as mãos entrelaçadas. A mão de Philippa era mais enrugada do que a sua, embora a diferença na idade fosse de apenas quatro anos.

- Silvia morreu.

- Peço a Deus para pegar a peste também. Se todos os meus homens morrerem, também quero partir.

- Não pode desejar isso.

- O destino das mulheres da nobreza é casar com homens que não amam... mas tive sorte com William. Ele foi escolhido para mim, mas amei-o desde o início. - A voz começou a tremer. - Não poderia ter outro homem...

- Sente-se assim agora, o que é natural.

Era estranho ela falar daquela maneira quando o marido ainda estava vivo, pensou Merthin. Mas ela sentia-se tão desesperada com a dor que não se preocupava com as sutilezas e dizia apenas o que havia em sua mente. Mas Philippa logo recuperou o controle.

- E você? - perguntou ela. - Casou de novo?

- Não. - Merthin não podia explicar que tinha um relacionamento amoroso com a prioresa de Kingsbridge. - Mas acho que poderia se a mulher certa estivesse... disposta. Talvez mais tarde você venha também se sentir assim.

- Você não compreende. Como viúva de um conde, sem herdeiros, teria de casar com alguém que o rei Edward escolhesse para mim. E o rei não daria a menor importância a meus desejos. Sua preocupação seria apenas com quem deve ser o próximo conde de Shiring.

- Entendi...

Merthin não pensara nisso. Podia imaginar que um casamento arrumado talvez fosse detestável para uma viúva que fora sinceramente apaixonada pelo primeiro marido.

- É terrível de minha parte falar de outro marido enquanto o primeiro ainda está vivo. Não sei o que deu em mim.

Merthin afagou sua mão, compadecido.

- É compreensível.

A porta no alto da escada foi aberta e Caris saiu, enxugando as mãos num pano. Merthin sentiu um súbito constrangimento por estar segurando a mão de Philippa. Teve vontade de afastá-la, mas compreendeu que isso faria com que parecesse culpado e resistiu ao impulso. Sorriu para Caris e indagou:

- Como estão seus pacientes?

Os olhos de Caris fixaram-se nas mãos dadas, mas ela não disse nada. Desceu a escada, desatando a máscara de linho. Philippa retirou a mão, sem pressa. Caris tirou a máscara.

- Lamento ter de lhe dizer, milady, mas o conde William morreu.

- Preciso de um novo cavalo - disse Ralph Fitzgerald.

Sua montaria antiga, Griff, estava envelhecendo. Seu fogoso palafrém baio sofrera uma torção na perna traseira esquerda que levara meses para curar, e agora estava manco de novo, da mesma perna. Ralph sentia-se triste. Griff era o cavalo que o conde Roland lhe dera quando era um jovem pajem, e o acompanhava desde então, até mesmo viajando para as guerras francesas. Poderia ainda servi-lo por mais alguns anos, para passeios sem pressa de aldeia em aldeia, dentro de seus domínios. Mas seus dias de caçada haviam terminado.

- Podemos ir ao mercado de Shiring amanhã para comprar outro - propôs Alan Fernhill.

Os dois estavam no estábulo, examinando o boleto de Griff. Ralph gostava de estábulos. Apreciava o cheiro de terra, a força e a beleza dos cavalos e a companhia de homens de mãos calejadas, empenhados em tarefas físicas. Aquilo levava-o de volta à juventude, quando o mundo parecia um lugar mais simples.

Ele não respondeu a princípio à sugestão de Alan. O que Alan não sabia era que Ralph não tinha dinheiro para comprar um cavalo.

A peste a princípio o enriquecera, através da taxa de herança: a terra que normalmente passava de pai para filho em uma geração trocara de mãos duas vezes ou mais em poucos meses. A cada vez, ele recebia um pagamento, tradicionalmente o melhor animal, mas com freqüência uma quantia fixa, em dinheiro. Mas depois a terra começara a ficar em desuso, por falta de pessoas para cultivá-la. Ao mesmo tempo, os preços agrícolas haviam despencado. O resultado era que a renda de Ralph, em dinheiro e produtos, caíra de forma drástica.

A situação era lamentável, pensou ele, quando um cavaleiro não tinha condições de comprar um cavalo.

E depois ele se lembrou de que Nate Reeve deveria aparecer em Tench Hall naquele dia, trazendo o tributo trimestral de Wigleigh. Toda primavera, aquela aldeia era obrigada a fornecer ao senhor vinte e quatro ovelhas de um ano. Poderiam ser levadas para o mercado de Shiring e vendidas. O dinheiro resultante seria suficiente para comprar um palafrém, se não um cavalo de caça.

- Vamos ver se o bailiff de Wigleigh já chegou - disse Ralph a Alan. Entraram no salão. Aquela era uma zona feminina, e Ralph sentiu um desânimo imediato. Tilly sentava ao lado do fogo, amamentando o filho de três meses, Gerry. Mãe e filho gozavam de boa saúde, apesar da juventude de Tilly. O corpo esguio de menina mudara por completo: ela agora tinha os seios intumescidos, com mamilos grandes e ásperos, em que o bebê mamava com voracidade. A barriga era murcha como a de uma velha. Ralph não deitava com ela há muitos meses, e provavelmente nunca mais o faria.

Ali perto sentava o avô, em cuja homenagem o bebê fora batizado, Sir Gerald, em companhia de lady Maud. Os pais de Ralph estavam agora velhos e frágeis, mas todas as manhãs caminhavam de sua casa na aldeia até o solar, para ver o neto. Maud dizia que o bebê parecia com Ralph, mas ele não percebia a menor semelhança.

Ralph ficou satisfeito ao constatar que Nate também se encontrava no salão. O bailiff corcunda levantou-se do banco de um pulo.

- Bom-dia, Sir Ralph.

Ele exibia uma expressão de derrotado, observou Ralph.

- Qual é o problema, Nate? Trouxe minhas ovelhas?

- Não, senhor.

- Por que não?

- Não temos nenhuma, senhor. Não restam mais ovelhas em Wigleigh, exceto por umas poucas mais velhas.

Ralph ficou chocado.

- Alguém as roubou?

- Não. Mas alguém já lhe deu algumas para pagamento do heriot quando seus donos morreram. Depois, não conseguimos arrumar ninguém para ficar com as terras de Jack Shepherd, e muitas ovelhas morreram durante o inverno. Como não havia ninguém para cuidar das crias na primavera, perdemos a maioria, assim como algumas das mães.

- Mas isso é inadmissível! - berrou Ralph, furioso. - Como os nobres podem viver se seus servos deixam os animais morrerem?

- Pensamos que a peste havia acabado, quando diminuiu em janeiro e fevereiro, mas agora ela parece estar voltando.

Ralph reprimiu um estremecimento de terror. Como todo mundo, vinha agradecendo a Deus por ter escapado da peste. Ela não podia voltar, não é?

- Perkin morreu esta semana - continuou Nate. - A esposa Peg, o filho Rob e o genro Billy Howard também morreram. Restou Annet, com todos aqueles acres para cuidar, o que ela não tem condições de fazer.

- Neste caso, deve haver um heriot sobre a propriedade.

- Haverá assim que eu encontrar alguém para assumir a terra.

O Parlamento estava em vias de aprovar uma nova legislação para impedir que os trabalhadores rurais vagueassem pelo país, à procura de melhores salários. Assim que isso se tornasse lei, Ralph imporia o cumprimento e traria seus trabalhadores de volta. Mesmo assim, no entanto, como ele compreendeu agora, teria a maior dificuldade para encontrar arrendatários.

- Imagino que já ouviu falar da morte do conde - comentou Nate.

- Não é possível!

Ralph ficou chocado de novo.

- O que aconteceu? - interveio Sir Gerald. - O conde William morreu?

- Da peste - explicou Nate.

- Pobre tio William... - murmurou Tilly

O bebê sentiu o ânimo da mãe e começou a chorar. Ralph indagou, acima do barulho:

- Quando isso aconteceu?

- Há apenas três dias - respondeu Nate.

Tilly tornou a dar o mamilo ao filho, que se calou no mesmo instante.

- Portanto, o filho mais velho de William é o novo conde - disse Ralph, pensativo. - Ele não deve ter mais do que vinte anos.

Nate sacudiu a cabeça.

- Rollo também morreu da peste.

- Então o filho mais novo...

- Também morreu.

- Os dois filhos!

O coração de Ralph disparou. Sempre acalentara o sonho de se tornar o conde de Shiring. Agora, a peste lhe oferecia a oportunidade. E a peste também melhorara as suas possibilidades, ao eliminar muitos candidatos ao título.

Ele fitou o pai nos olhos. O mesmo pensamento ocorrera a Sir Gerald.

- Rollo e Rick mortos... é horrível! - balbuciou Tilly, começando a chorar. Ralph ignorou-a. Tentou pensar nas possibilidades.

- Quantos parentes sobreviventes existem? Gerald perguntou a Nate:

- A condessa também morreu?

- Não, senhor. Lady Philippa ainda vive. Assim como a filha, Odila.

- Portanto, quem o rei escolher terá de casar com Philippa para se tornar o conde - ressaltou Gerald.

Ralph ficou atordoado. Desde rapaz sonhava em casar com lady Philippa. Agora, havia uma oportunidade de realizar suas duas ambições ao mesmo tempo. Mas ele já era casado.

- Isto é tudo - murmurou Gerald, o excitamento desaparecendo tão depressa quanto surgira.

Ralph olhou para Tilly, amamentando o filho e chorando ao mesmo tempo. Com quinze anos de idade e apenas um metro e meio de altura, ela erguia-se como a muralha de um castelo entre ele e o futuro pelo qual Ralph sempre ansiara.

Ele a odiava.

O funeral do conde William foi realizado na Catedral de Kingsbridge. Não havia monges, à exceção do irmão Thomas, mas o bispo Henri conduziu o serviço e as freiras cantaram os hinos. Lady Philippa e lady Odila, ambas veladas, seguiram o caixão. Apesar da dramática presença das duas, vestidas de preto, Ralph achou que a ocasião carecia do sentimento momentoso que costumava acompanhar o funeral de um magnata, a noção do tempo histórico passando como a correnteza de um grande rio. A morte estava por toda parte, todos os dias, e até mesmo a morte de nobres era agora corriqueira.

Ele especulou se alguém na congregação estaria infectado, e naquele momento mesmo espalhava a doença através da respiração, ou pelos raios invisíveis de seus olhos. O pensamento deixou Ralph trêmulo. Enfrentara a morte muitas vezes, e aprendera a controlar o medo na batalha; mas contra aquele inimigo não havia como lutar. A peste era uma assassina que cravava o punhal comprido nas pessoas pelas costas, para depois escapulir, antes de ser percebida. Ralph estremeceu e tentou não pensar a respeito.

Ao lado de Ralph estava Sir Gregory Longfellow, um advogado alto que se envolvera em processos judiciais relacionados a Kingsbridge. Gregory era agora membro do conselho do rei, um grupo de elite de assessores técnicos que orientava o monarca... não sobre o que ele deveria fazer, pois para isso havia o Parlamento, mas sobre como poderia fazer.

Os comunicados reais eram feitos com freqüência nas missas, em particular nas cerimônias importantes como aquela. O bispo Henri hoje aproveitaria a oportunidade para explicar a nova Ordenação dos Trabalhadores. Ralph calculou que Sir Gregory trouxera a notícia e ficara para verificar como seria recebida.

Ralph estava atento. Nunca fora convocado para o Parlamento, mas conversara sobre a crise do trabalho com o conde William, que sentava com os lordes, e com Sir Peter Jeffries, que representava Shiring na Câmara dos Comuns; por isso, sabia o que fora discutido.

- Cada homem deve trabalhar para o senhor da aldeia em que vive, e não pode se mudar para outra aldeia ou trabalhar para outro amo, a menos que seja liberado pelo senhor - disse o bispo.

Ralph regozijou-se. Sabia que a decisão já fora tomada, mas ficou exultante porque finalmente ela se tornava oficial.

Nunca houvera escassez de trabalhadores antes da peste. Ao contrário, muitas aldeias tinham mais do que precisavam. Quando homens sem terras não conseguiam arrumar trabalho remunerado, às vezes se entregavam à caridade do senhor... o que era sempre um embaraço para ele, quer os ajudasse ou não. Por isso, se queriam se mudar para outra aldeia, o senhor ficava aliviado; e é claro que não havia necessidade de legislação para mantê-los onde estavam. Agora, os trabalhadores tinham o controle... uma situação que obviamente não se podia permitir que continuasse.

Houve um murmúrio de aprovação da congregação ao comunicado do bispo. A população de Kingsbridge não era muito afetada, a não ser as pessoas ali que vinham dos campos ao redor. A predominância na congregação era de empregadores, em vez de empregados. As novas regras haviam sido idealizadas por eles e para eles. O bispo acrescentou:

- É agora crime exigir, oferecer ou aceitar salários mais altos do que aqueles que se pagavam para trabalho similar em 1347.

Ralph acenou com a cabeça em aprovação. Até mesmo os trabalhadores que permaneciam na mesma aldeia vinham exigindo mais dinheiro. Isso acabaria com a extravagância, esperava ele. Sir Gregory fitou-o e disse:

- Vejo que acena com a cabeça. Aprova a decisão?

- É o que queríamos. Começarei a impor a determinação nos próximos dias. Há dois fugitivos de meu território que quero muito trazer de volta.

- Irei com você, se não se incomoda. Gostaria de verificar o que pode acontecer.

O padre de Outhenby havia morrido da peste, e não havia serviços na igreja desde então. Por isso, Gwenda ficou surpresa quando o sino começou a tocar na manhã de domingo.

Wulfric foi verificar e voltou para informar a chegada de um sacerdote visitante, o padre Derek. Gwenda lavou os rostos dos meninos, e todos foram para a igreja.

Era uma bela manhã de primavera. O sol banhava as velhas pedras cinzentas da pequena igreja. Todos os aldeões compareceram, curiosos para ver o padre recém-chegado.

O padre Derek era um clérigo da cidade, bem-falante, muito bem vestido para uma igreja de aldeia. Gwenda especulou se sua visita tinha algum significado especial. Haveria alguma razão para que a hierarquia da Igreja lembrasse de repente da existência daquela paróquia? Ela disse a si mesma que era um péssimo hábito sempre imaginar o pior, mas ainda assim sentiu que havia alguma coisa errada.

Gwenda ficou de pé na nave, com Wulfric e os meninos, observando o padre efetuar o ritual. O senso de tragédia, porém, foi se tornando mais e mais forte.

De modo geral, um padre olhava para a congregação enquanto rezava ou cantava, a fim de enfatizar que tudo aquilo era para seu benefício, não uma comunicação pessoal entre ele próprio e Deus; mas o olhar do padre Derek projetava-se acima de suas cabeças.

Ela logo descobriu por quê. Ao final do serviço, ele anunciou uma nova lei, aprovada pelo rei e o Parlamento.

- Os trabalhadores sem terra devem trabalhar para o senhor em sua aldeia de origem, se assim for exigido.

Gwenda ficou indignada.

- Como isso é possível? - gritou ela. - O senhor não está obrigado a ajudar o trabalhador em momentos difíceis... sei disso. Meu pai era um trabalhador sem terra, e passávamos fome quando não havia trabalho. Então como um trabalhador pode dever lealdade a um senhor que não lhe dá nada?

Houve murmúrios de concordância, e o padre teve de elevar a voz:

- Foi isso o que o rei decidiu, e o rei foi escolhido por Deus para reinar sobre todos nós. Portanto, devemos fazer tudo o que ele deseja.

- O rei pode mudar o costume de centenas de anos? - insistiu Gwenda.

- Estes são momentos difíceis. Sei que muitos de vocês vieram para Outhenby nas últimas semanas...

- A convite do arador - interrompeu Carl Shaftesbury, o rosto cheio de cicatrizes lívido de raiva.

- Convidados por todos os aldeões - reconheceu o padre. - E eles foram gratos a vocês por terem vindo. Mas o rei, em sua sabedoria, decidiu que isso não pode continuar.

- E os pobres devem permanecer pobres - resmungou Carl.

- Deus assim ordenou. Cada homem em seu lugar. Harry Plowman interveio:

- E Deus ordenou como vamos cuidar de nossos campos sem ajuda? Se todos os recém-chegados forem embora, nunca conseguiremos realizar todo o trabalho.

- Talvez nem todos tenham de ir embora - ressaltou Derek. - A nova lei diz apenas que eles devem voltar se assim for exigido.

Isso aquietou a congregação. Os imigrantes tentavam calcular se o antigo senhor conseguiria encontrá-los, enquanto os locais especulavam quantos trabalhadores restariam em Outhenby. Mas Gwenda sabia o que seu futuro reservava. Mais cedo ou mais tarde, Ralph viria buscá-la e à sua família.

A essa altura, no entanto, decidiu ela, já teriam ido embora.

O padre retirou-se e a congregação se encaminhou para a porta.

- Temos de sair daqui - disse Gwenda a Wulfric, em voz baixa. - Antes que Ralph volte para nos buscar.

- Para onde iremos?

- Não sei... mas talvez seja melhor assim. Se nós mesmos não soubermos onde estamos, ninguém mais saberá.

- Mas como poderemos sobreviver?

- Encontraremos outra aldeia onde precisem de trabalhadores.

- Será que há muitas outras na mesma situação?

Ele sempre tinha o pensamento mais lento do que Gwenda.

- Deve haver inúmeras - garantiu ela, paciente. - O rei não aprovou essa ordenação apenas para Outhenby.

- Tem razão.

- Devemos partir hoje - declarou Gwenda, decidida. - É domingo, e assim não vamos perder qualquer dia de trabalho.

Ela olhou para as janelas da igreja, calculando a hora do dia.

- Ainda não é meio-dia... podemos cobrir uma boa distância antes do escurecer. Quem sabe não estaremos trabalhando em uma nova aldeia amanhã de manhã?

- Concordo - disse Wulfric - Não há como prever com que rapidez Ralph poderá entrar em ação.

- Não diga nada a ninguém. Vamos para casa agora, pegaremos o que quisermos levar, e partiremos em seguida.

- Está bem.

Eles chegaram à porta da igreja e saíram para o sol... e Gwenda descobriu que já era tarde demais.

Seis homens a cavalo esperavam na frente da igreja: Ralph, seu comparsa Alan, um homem alto com roupas de Londres e três homens sujos, cheios de cicatrizes, do tipo que podiam ser contratados por uns poucos pennies em qualquer taverna de quinta categoria.

 

Ralph olhou para Gwenda e deu um sorriso triunfante.

Gwenda olhou ao redor, desesperada. Poucos dias antes, os homens da aldeia haviam se unido contra Ralph e Alan... Mas aquilo era diferente. Enfrentariam seis homens, não dois. Os aldeões estavam desarmados ao saírem da igreja, enquanto antes voltavam dos campos com instrumentos nas mãos. E, ainda mais importante, naquela ocasião acreditavam que tinham o direito de seu lado, enquanto hoje já não havia mais tanta certeza.

Vários homens fitaram Gwenda, e se apressaram em desviar os olhos. Isso confirmou o que ela já suspeitava. Os aldeões não lutariam hoje.

Gwenda ficou tão desapontada que se sentiu fraca. Com medo de cair, encostou-se na coluna de pedra do pórtico da aldeia. O coração transformou-se numa massa pesada, fria e úmida, como um torrão de terra de uma sepultura escavada no inverno. Uma sombria desesperança dominou-a por completo.

Haviam sido livres por uns poucos dias. Mas fora apenas um sonho. E agora o sonho acabara.

Ralph atravessou Wigleigh a cavalo, lentamente, puxando Wulfric por uma corda no pescoço.

Chegaram ao final da tarde. Para não perder tempo, Ralph deixara que os dois meninos pequenos viessem a cavalo, partilhando os animais de dois dos homens contratados. Gwenda vinha atrás, andando. Ralph não se dera o trabalho de amarrá-la. Tinha certeza de que ela acompanharia os filhos.

Porque era domingo, a maioria dos habitantes de Wigleigh se encontrava fora de casa, desfrutando o sol, como Ralph previra. Todos ficaram olhando num silêncio horrorizado para a sinistra procissão.

Ralph esperava que a humilhação de Wulfric pudesse dissuadir outros de ir embora à procura de salários mais altos.

Chegaram ao pequeno solar que fora a residência de Ralph antes de sua mudança para Tench Hall. Ele soltou Wulfric e mandou-o ir com a família para sua antiga casa. Pagou os homens contratados, e foi com Alan e Sir Gregory para o solar.

O solar era mantido limpo e preparado para suas visitas. Ele mandou que Vira trouxesse vinho e preparasse o jantar. Era tarde demais agora para continuar até Tench: não conseguiriam chegar lá antes do anoitecer.

Gregory sentou e esticou as pernas compridas. Parecia um homem capaz de ficar à vontade em qualquer lugar. Os cabelos lisos escuros eram agora grisalhos, mas o nariz comprido, com as narinas dilatadas, ainda lhe proporcionava uma aparência arrogante.

- Como acha que vai acontecer daqui por diante? - perguntou ele.

Ralph estivera pensando sobre a nova ordenação durante toda a viagem, e não hesitou ao responder:

- Não dará certo.

Gregory elevou as sobrancelhas.

- É a sua opinião?

- Concordo com Sir Ralph - declarou Alan.

- Razões?

- Em primeiro lugar, é muito difícil descobrir para onde os fugitivos foram disse Ralph.

- Foi só por sorte que encontramos Wulfric - acrescentou Alan. - Alguém ouviu quando ele e Gwenda planejavam para onde ir.

- Em segundo lugar, recuperá-los cria muitos problemas. Gregory acenou com a cabeça.

- Isso nos ocupou o dia inteiro.

- E ainda tive de contratar desgraçados e providenciar cavalos. Não posso gastar meu tempo e dinheiro perseguindo esses trabalhadores fugitivos por todo o país.

- Eu entendo.

- Em terceiro lugar, o que os impede de fugir de novo na semana seguinte?

- Se ficarem de boca fechada sobre o lugar para onde vão, talvez nunca os encontremos - acrescentou Alan.

- A medida só daria certo se alguém pudesse ir a uma aldeia, descobrisse quem são os migrantes, e os punisse - declarou Ralph.

- Ou seja, está falando sobre uma espécie de Comissão de Trabalhadores disse Gregory.

- Exatamente. Escolham um grupo em cada condado, de uma dúzia de homens, para ir de aldeia em aldeia e descobrir os fugitivos.

- Está querendo que outros façam o seu trabalho.

Era uma ironia, mas Ralph teve o cuidado de não se mostrar irritado.

- Não necessariamente... e serei um dos comissários, se o desejar. Acontece apenas que é a maneira certa de fazer o trabalho. Não se pode cortar um capinzal por uma haste de cada vez.

- Interessante... - murmurou Gregory.

Vira trouxe um jarro e copos. Serviu vinho para os três homens.

- É um homem perceptivo, Sir Ralph - comentou Gregory. - Não é um Membro do Parlamento?

- Não, não sou.

- Uma pena. Creio que o rei acharia suas opiniões bastante úteis. Ralph fez um esforço para não se mostrar radiante de prazer.

- É muito gentil. - Ele inclinou-se para a frente. - Agora que o conde William morreu, há uma vaga...

Ele viu a porta se abrir e parou de falar. Nate Reeve entrou.

- Bom trabalho, Sir Ralph, se me permite dizer! Wulfric e Gwenda voltaram ao rebanho, os dois melhores trabalhadores que nós temos.

Ralph ficou irritado com Nate por interrompê-lo num momento tão crucial.

- Espero que a aldeia possa pagar agora o que é devido.

- Claro, senhor... se eles ficarem.

Ralph franziu o rosto. Nate apontara a fraqueza da situação. Como ele poderia manter Wulfric em Wigleigh? Não podia acorrentar um homem ao arado durante todo o dia e toda a noite.

- Tem alguma sugestão a fazer ao seu senhor, bailiff? - perguntou Gregory.

- Tenho, sim, senhor.

- Foi o que pensei.

Nate considerou o comentário como um convite. Virou-se para Ralph e disse:

- Há uma coisa que pode fazer para garantir que Wulfric permaneça em Wigleigh até o dia de sua morte.

Ralph sentiu uma armadilha, mas não podia deixar de dizer:

- Continue.

- Devolva as terras que pertenciam ao pai dele.

Ralph teve vontade de gritar, mas não queria causar má impressão em Gregory. Controlou sua raiva e disse, firme:

- Não acho uma boa idéia.

- Não consigo arrumar ninguém para ficar com a terra - insistiu Nate. Annet não pode cuidar, e não tem mais parentes vivos do sexo masculino.

- Não me importo. Ele não pode ficar com a terra.

- Por que não? - indagou Gregory.

Ralph não queria admitir que ainda acalentava um ressentimento contra Wulfric por causa de uma briga que ocorrera doze anos antes. Gregory já formara uma boa opinião a seu respeito, e Ralph não queria estragá-la. O que o conselheiro do rei pensaria de um cavaleiro que agia contra seus próprios interesses por causa de uma desavença na adolescência? Ele procurou por uma desculpa plausível. Acabou dizendo, depois de um longo momento:

- Pareceria uma recompensa a Wulfric por ter fugido.

- Não concordo - disse Gregory. - Pelo que Nate diz, você estaria lhe dando uma coisa que ninguém mais quer.

- Mesmo assim, enviaria o sinal errado para os outros aldeões.

- Acho que está sendo escrupuloso demais. - Gregory não era o tipo de homem que tinha o hábito de guardar as opiniões para si mesmo. - Todos devem saber que você está desesperado para obter arrendatários. É o que acontece com a maioria dos proprietários. Os aldeões compreenderão que está agindo apenas de acordo com seu próprio interesse, e que Wulfric é o afortunado beneficiário.

- Wulfric e Gwenda trabalharão duas vezes mais se tiverem sua própria terra

- acrescentou Nate.

Ralph sentiu-se acuado. Estava desesperado para causar uma boa impressão em Gregory. Iniciara mas não terminara a conversa sobre o condado. Não podia pôr isso em risco por causa de Wulfric.

Tinha de ceder.

- Talvez você tenha razão. - Ralph percebeu que estava quase rangendo os dentes, e fez um esforço para parecer despreocupado. - Afinal, ele foi trazido de volta e humilhado. Isso pode ser suficiente.

- Tenho certeza de que é.

- Está bem, Nate. - Por um momento, as palavras ficaram entaladas em sua garganta, de tanto que detestava satisfazer o sonho de Wulfric. Mas havia coisas mais importantes. - Diga a Wulfric que pode ficar com as terras que eram de seu pai.

- Farei isso antes do anoitecer. Nate se retirou. Gregory perguntou:

O que você da dizer sobre o condado? Ralph escolheu as palavras com todo cuidado.

- Depois que o conde Roland morreu na batalha de Crécy, pensei que o rei poderia me considerar para ser o novo conde de Shiring, ainda mais porque salvei a vida do jovem príncipe de Gales.

- Mas Roland tinha um herdeiro legítimo... que também tinha dois filhos.

- Exatamente. E agora os três estão mortos.

- Hum... - Gregory pegou o copo e tomou um gole. - É um bom vinho.

- Veio da Gasconha.

- Imagino que foi importado através de Melcombe.

- Isso mesmo.

- Uma delícia.

Gregory bebeu mais um pouco. Parecia prestes a dizer alguma coisa, e por isso Ralph permaneceu calado. Gregory levou um longo tempo para escolher as palavras.

- Em algum lugar nas proximidades de Kingsbridge há uma carta que... não deveria existir.

Ralph ficou espantado. O que viria agora? Gregory continuou:

- Durante muitos anos esse documento esteve em poder de alguém em quem se podia confiar, por várias razões complicadas, que o manteria seguro. Ultimamente, no entanto, foram feitas algumas perguntas, sugerindo que o segredo pode correr o risco de ser revelado.

Tudo aquilo era enigmático. Ralph disse:

- Não estou entendendo. Quem andou fazendo perguntas embaraçosas?

- A prioresa de Kingsbridge.

- Ahn...

- E possível que ela tenha apenas ouvido alguma insinuação e que suas perguntas sejam inofensivas. Mas os amigos do rei receiam que a carta possa de alguma forma ter caído em suas mãos.

- O que diz a carta?

Mais uma vez, Gregory escolheu as palavras com a maior cautela, como se atravessasse um rio na ponta dos pés, tomando todo cuidado para só pisar nas pedras.

- Alguma coisa envolvendo a amada mãe do rei.

- A rainha Isabella.

A velha bruxa ainda estava viva, levando uma vida de esplendor em seu castelo em Lynn. As pessoas diziam que passava os dias lendo romances em francês, sua língua nativa.

- Em suma, preciso descobrir se esta carta está ou não em poder da prioresa

- acrescentou Gregory. - Mas ninguém deve saber do meu interesse.

- Ou você tem de ir ao priorado e revistar os documentos das freiras... ou os documentos devem vir para suas mãos - sugeriu Ralph.

- A segunda das duas opções.

Ralph acenou com a cabeça. Começava a compreender o que Gregory queria que ele fizesse.

- Fiz algumas perguntas discretas, e descobri que ninguém sabe onde fica exatamente o tesouro das freiras - acrescentou Gregory.

- As freiras devem saber, ou pelo menos algumas.

- Mas não vão dizer. Mas também ouvi dizer que você é um especialista em... persuadir as pessoas a revelarem segredos.

Portanto, Gregory sabia do trabalho que Ralph realizara na França. Não havia nada de espontâneo naquela conversa, compreendeu Ralph. Gregory devia ter planejado tudo. E era bem provável que tivesse sido esse o motivo de sua presença em Kingsbridge.

- Posso ajudar os amigos do rei a resolver esse problema...

- Ótimo.

- ... se me for prometido o condado de Shiring como recompensa. Gregory franziu o rosto.

- O novo conde terá de casar com a velha condessa.

Ralph decidiu ocultar sua ansiedade. O instinto lhe dizia que Gregory teria menos respeito por um homem impelido pelo desejo por uma mulher, mesmo que apenas em parte.

- Lady Philippa é cinco anos mais velha do que eu, mas não tenho nenhuma objeção a ela.

Gregory assumiu uma expressão inquisitiva.

- Ela é uma linda mulher. O escolhido pelo rei, quem quer que seja, deve se considerar um homem afortunado.

Ralph compreendeu que fora longe demais, e apressou-se em dizer:

- Não desejo parecer indiferente. Ela é de fato muito bonita.

- Mas pensei que já era casado - disse Gregory. - Cometi um erro?

Ralph olhou para Alan, e percebeu que ele estava curioso em ouvir sua resposta. Ralph suspirou.

- Minha esposa está muito doente. Não vai viver por muito mais tempo.

Gwenda acendeu o fogo na velha casa em que Wulfric vivera desde que nascera. Pegou uma panela, encheu com água do poço, e jogou algumas cebolas dentro, o primeiro passo para fazer um ensopado. Wulfric trouxe mais lenha. Os meninos saíram felizes para brincar com seus antigos amigos, alheios à profundidade da tragédia que se abatera sobre a família.

Gwenda ocupou-se das tarefas domésticas, enquanto a tarde escurecia. Fazia um esforço para não pensar. Tudo o que aflorava a sua mente só fazia com que se sentisse pior: o futuro, o passado, o marido, ela própria. Wulfric sentou, o olhar perdido nas chamas. Nenhum dos dois falava.

O vizinho, David Johns, apareceu com um jarro de cerveja. Sua esposa morrera da peste, mas a filha crescida, Joanna, o acompanhava. Gwenda não ficou feliz ao vê-los: queria se sentir miserável em particular. Mas eles tinham as intenções mais gentis, e era impossível menosprezá-los. Sombria, Gwenda tirou o pó de alguns copos de madeira. David serviu cerveja para todos.

- Lamentamos tudo o que aconteceu, mas estamos contentes por tê-los de volta - comentou David, enquanto bebiam.

Pouco depois, Aaron Appletree e a esposa Ulla também vieram visitá-los. Ela trazia uma cesta com pequenos pães.

- Eu sabia que não teriam pão para comer, e por isso resolvi trazer - explicou ela.

Ela ofereceu os pães. A casa ficou impregnada do aroma apetitoso. David Johns serviu-lhes cerveja, e eles sentaram.

- De onde vocês tiraram a coragem para fugir? - indagou Ulla. - Eu morreria de medo!

Gwenda começou a contar a história de suas aventuras. Jack e Eli Fuller vieram do moinho, trazendo um prato de peras cozidas no mel. Wulfric comeu bastante e bebeu muito. O clima começou a desanuviar. Gwenda ficou um pouco mais animada. Mais vizinhos vieram, trazendo mais presentes. Quando Gwenda contou como os aldeões de Outhenby enfrentaram Ralph e Alan, com suas pás e enxadas, todos caíram numa gargalhada exultante.

Depois, vieram os acontecimentos daquele dia, e Gwenda tornou a mergulhar no desespero.

- Tudo estava contra nós - murmurou ela, amargurada. - Não apenas Ralph e seus rufiões, mas também o rei e a Igreja. Não tínhamos a menor chance.

Os vizinhos acenaram com a cabeça, sombrios.

- E depois, quando ele pôs uma corda em torno do pescoço de meu Wulfric... Gwenda foi dominada por um lúgubre desespero. A voz tremia, e ela não foi capaz de continuar. Tomou um gole de cerveja e tentou de novo.

- Quando ele pôs uma corda em torno do pescoço de Wulfric... o homem mais bravo e mais forte que já conheci... que todos nós já conhecemos... e o levoucomo um animal, aquele brutal cruel Ralph segurando a corda... eu queria que o céu caísse sobre nossas cabeças e matasse todo mundo.

Eram palavras fortes, mas os outros concordaram. Entre todas as coisas que os nobres podiam fazer com os camponeses - deixá-los passar fome, enganá-los, agredi-los, roubá-los -, a pior de todas era a humilhação. Jamais esqueceriam.

Subitamente, Gwenda queria que os vizinhos fossem embora. O sol já mergulhara no horizonte, e era o crepúsculo lá fora. Ela precisava deitar, fechar os olhos, ficar a sós com seus pensamentos. Não queria conversar nem mesmo com Wulfric. Já da pedir a todos para irem embora quando Nate Reeve entrou.

Houve um súbito silêncio.

- O que você quer? - perguntou Gwenda.

- Trago boas notícias - anunciou ele, jovial. Ela fez uma careta.

- Não pode haver boas notícias para nós hoje.

- Eu discordo. Ainda não ouviu o que eu tenho a dizer.

- Está bem. O que é?

- Sir Ralph disse que Wulfric pode ficar com as terras que eram de seu pai. Wulfric levantou-se de um pulo.

- Como um arrendatário? Não apenas para trabalhar nelas?

- Como um arrendatário, nas mesmas condições de seu pai.

Nate falava expansivo, como se ele próprio estivesse fazendo a concessão, em vez de apenas transmitir uma mensagem. Wulfric ficou radiante de alegria.

- Mas isso é maravilhoso!

- Você aceita? - indagou Nate, ainda mais jovial, como se isso fosse uma mera formalidade.

- Não aceite, Wulfric! - exclamou Gwenda.

Ele fitou-a, aturdido. Como sempre, era lento para perceber além do imediato.

- Discuta as condições! - exortou Gwenda, em voz baixa. - Não seja um servo como seu pai. Exija um arrendamento livre, sem obrigações feudais. Nunca mais terá melhores condições para barganhar. Negocie!

- Negociar? - Wulfric ainda hesitou por um momento, mas depois cedeu à felicidade da ocasião. - Este é o momento pelo qual venho esperando nos últimos doze anos. Não vou negociar.

Ele virou-se para Nate, ergueu o copo, e acrescentou:

- Eu aceito. Todos aplaudiram.

O hospital estava outra vez lotado. A peste, que parecera recuar durante os três primeiros meses de 1349, voltou em abril com uma virulência redobrada.

No dia seguinte ao Domingo de Páscoa, Caris olhou cansada para as fileiras de colchões, dispostos como espinhas de peixe, tão juntos que as freiras mascara das tinham de tomar o maior cuidado ao circularem. Andar ao redor, no entanto era um pouco mais fácil, porque havia muito menos parentes para acompanhar os doentes. Sentar com um parente agonizante era perigoso - a pessoa podia contrair a peste -, e por isso as famílias haviam se tornado impiedosas. Quando a epidemia começara, todos ficavam com as pessoas amadas apesar dos riscos: mães com filhos, maridos com esposas, pessoas de meia-idade com pais idosos; o amor superando o medo. Mas isso mudara. Os mais poderosos laços de família haviam sido corroídos de forma implacável pelo ácido da morte. Agora, o paciente típico era trazido por mãe ou pai, marido ou esposa, que depois da embora, ignorando os gritos patéticos que os acompanhavam. Só as freiras, de máscara no rosto e mãos lavadas com vinagre, desafiavam a doença.

Surpreendentemente, Caris não carecia de ajuda. O convento tivera um fluxo de noviças para substituir as freiras que haviam morrido. Isso acontecia em parte por causa da santa reputação de Caris. Mas o mosteiro também experimentava o mesmo tipo de recuperação, e Thomas tinha agora uma turma de noviços para treinar. Todos procuravam pela ordem num mundo que enlouquecera.

Desta vez a peste atacou alguns dos mais eminentes cidadãos que haviam escapado antes. Caris ficou consternada com a morte de John Constable. Jamais gostara muito da maneira rude com que ele fazia justiça - que era a de bater na cabeça dos arruaceiros com uma vara e fazer perguntas depois -, mas sabia que seria difícil manter a ordem sem a sua ajuda. A gorda Betty Baxter, padeira de bolos especiais para todas as festividades da cidade, inquisidora astuta nas reuniões da guilda da paróquia, também morreu, e seu negócio foi partilhado entre quatro filhas que viviam brigando. Dick Brewer fora outro que morrera, o último remanescente da geração de Edmund, um grupo de homens que sabiam como ganhar dinheiro e como aproveitá-lo.

Caris e Merthin conseguiram diminuir a disseminação da doença ao cancelarem as grandes reuniões públicas. Não houve a grande procissão da Páscoa na catedral, e não seria realizada a Feira do Velocino na semana de Pentecostes. O mercado semanal passou a ser realizado fora das muralhas de Kingsbridge, no Lover’s Field, os moradores comparecendo cada vez menos. Caris queria aplicar essas medidas quando a peste atacara pela primeira vez, mas Godwyn e Elfric haviam se oposto. Segundo Merthin, algumas cidades italianas haviam fechado seus portões por períodos de trinta a quarenta dias, chamados de trintena ou quarentena. Era agora tarde demais para impedir a entrada da doença, mas Caris ainda assim achava que as restrições salvariam vidas.

Um problema que ela não tinha era o de dinheiro. Mais e mais pessoas legavam suas riquezas às freiras, por não terem parentes sobreviventes. Além disso, muitas freiras noviças traziam terras, rebanhos, pomares e ouro. O convento nunca fora tão rico.

Era pouco conforto. Pela primeira vez em sua vida, ela sentia-se cansada, não apenas do trabalho árduo, mas também pelo esgotamento da energia e pela deficiência de força de vontade, enfraquecida pela adversidade. A peste era pior do que nunca, matando duzentas pessoas por semana, e ela não sabia como poderia continuar.

Os músculos doíam, o coração palpitava, a visão parecia turva. Onde acabaria?, especulava ela, desolada. Todos morreriam?

Dois homens passaram cambaleando pela porta, ambos sangrando. Caris adiantou-se apressada. Antes de chegar à distância de tocá-los, sentiu o cheiro desagradável de bebida. Estavam quase caindo de tão embriagados, embora ainda não fosse a hora do almoço. Ela gemeu de frustração; aquilo era comum demais.

Conhecia os homens vagamente: Barney e Lou, dois jovens fortes que trabalhavam no matadouro de Edward Slaughterhouse. Barney tinha um braço pendendo inerte, possivelmente quebrado. Lou tinha horríveis ferimentos no rosto, o nariz quebrado, um olho transformado em massa ensangüentada. Ambos pareciam bêbados demais para sentirem qualquer dor.

- Foi uma briga - balbuciou Barney, a voz engrolada, as palavras quase incompreensíveis. - Eu não tinha a intenção de machucá-lo. Ele é meu melhor amigo. Eu o amo.

Caris e irmã Nellie puseram os dois bêbados em colchões adjacentes. Nellie examinou Barney, e disse que seu braço não estava quebrado, mas apenas deslocado. Mandou uma noviça chamar Matthew Barber, o cirurgião, que tentaria repôdo no lugar. Caris lavou o rosto de Lou. Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar seu olho; saltara para fora, como um ovo cozido.

Esse tipo de coisa a deixava furiosa. Os dois não sofriam de uma doença, nem de ferimentos acidentais: haviam machucado um ao outro pelo excesso de bebida. Depois da primeira onda da peste, ela conseguira mobilizar os habitantes da cidade para restaurar a lei e a ordem; mas a segunda onda fizera alguma coisa terrível com a alma das pessoas. Quando ela clamara de novo pelo retorno a um comportamento civilizado, a reação fora apática. Não sabia o que fazer agora, e por isso sentia-se cansada.

Enquanto contemplava os dois homens feridos, deitados no chão, lado a lado, ela ouviu um estranho ruído lá fora. Por um instante, retornou por três anos ao passado, até a batalha de Crécy, ao som estrondoso e assustador das novas máquinas de guerra do rei Edward, que disparavam balas de pedra contra as fileiras inimigas. Um momento depois, o barulho soou de novo. Ela compreendeu que era um tambor... vários tambores, na verdade, sendo batidos sem qualquer ritmo determinado. Depois, ouviu flautas e sinos, cujas notas não conseguiam formar uma melodia. Soaram relinchos de cavalos, gemidos e gritos, que poderiam indicar triunfo ou agonia, se não as duas coisas ao mesmo tempo. Não era muito diferente do barulho de uma batalha, mas sem o zunido das flechas mortíferas e sem os gritos de cavalos feridos. Com o rosto franzido, ela saiu para descobrir o que era.

Um bando de cerca de quarenta pessoas entrara no pátio gramado da catedral, dançando uma jiga antiga e frenética. Alguns tocavam instrumentos musicais, ou melhor, usavam-nos para fazer barulho, sem qualquer melodia ou harmonia. As roupas de cores claras estavam rasgadas e sujas. Havia algumas pessoas seminuas, expondo as partes íntimas do corpo com a maior indiferença. As pessoas sem instrumentos empunhavam chicotes. Uma multidão de moradores de Kingsbridge acompanhava o bando, com curiosidade e espanto.

Os dançarinos eram liderados por frei Murdo, mais gordo do que nunca, mas dançando com o maior vigor, o suor escorrendo pelo rosto imundo e pingando da barba desgrenliada. Ele seguiu até a porta oeste da catedral, onde virou-se para o bando.

- Todos nós pecamos! - berrou ele.

Seus seguidores responderam, com gemidos e gritos estridentes e inarticulados.

- Somos imundos! - berrou ele, arrebatado. - Sempre nos espojamos na lascívia, como porcos no chiqueiro. E cedemos, tremendo de luxúria, aos desejos carnais. Merecemos a peste!

- Isso mesmo!

- O que devemos fazer?

- Sofrer! - gritaram as pessoas. - Devemos sofrer!

Um dos seguidores se adiantou apressado, brandindo o chicote, com três tiras, pedras presas em nós nas extremidades. Jogou-se aos pés de Murdo e começou a açoitar as próprias costas. O chicote rasgou o tecido fino da túnica e arrancou sangue da pele. Ele gritou de dor, e os outros seguidores de Murdo gemeram de compaixão.

Uma mulher se adiantou. Baixou a túnica até a cintura e virou-se, expondo os seios para a multidão; depois, açoitou as costas nuas com um chicote similar. Os seguidores gemeram de novo.

A medida que se adiantavam, sozinhos ou aos pares, para se açoitarem, Caris notou que muitos tinham equimoses e talhos mal curados: já haviam feito aquilo antes, alguns várias vezes. Circulavam de cidade em cidade, apresentando o espetáculo? Por causa do envolvimento de Murdo, ela tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde alguém começaria a pedir dinheiro.

Uma mulher na multidão de espectadores saiu correndo para a frente de repente, gritando:

- Eu também devo sofrer!

Caris ficou surpresa ao ver que era Mared, a jovem e tímida esposa de Marcel Chandler. Caris não podia imaginar que ela tivesse cometido muitos pecados, mas talvez tivesse finalmente encontrado uma maneira de tornar sua vida dramatica. Ela tirou o vestido e se postou nua diante do frade. Sua pele não tinha qualquer marca; em vez disso, era de grande beleza. Murdo fitou-a em silêncio por um longo momento, antes de ordenar:

- Beije meus pés.

Ela ajoelhou-se, expondo o traseiro obscenamente para a multidão, e baixou o rosto para os pés imundos do frade.

Ele tirou o chicote de outro penitente e estendeu-o para Mared. Ela se açoitou, gritou de dor. Marcas vermelhas apareceram no mesmo instante na pele branca.

Vários outros espectadores se adiantaram, quase todos homens. Murdo repetiu o ritual com cada um. Não demorou muito para que o frenesi fosse total. Quando não estavam se açoitando, as pessoas batiam nos tambores, tocavam os sinos, ou dançavam a jiga alucinada.

As ações tinham um abandono louco, mas o olhar profissional de Caris notou que os açoites, embora dramáticos e sem dúvida dolorosos, não pareciam infligir danos permanentes. Merthin apareceu ao seu lado e perguntou:

- O que você acha disso? Ela franziu o rosto.

- Por que faz com que eu me sinta indignada?

- Não sei.

- Se as pessoas querem se açoitar, por que eu deveria ter alguma objeção? Talvez isso faça com que se sintam melhor.

- Mas concordo com você. Há em geral algo fraudulento em qualquer coisa com que Murdo esteja envolvido.

- Não é só isso.

O clima ali não era de penitência, decidiu Caris. Os dançarinos não recordavam suas vidas contemplativos, sentindo pesar e arrependimento pelos pecados cometidos. As pessoas que se arrependiam sinceramente tendiam a ser quietas, pensativas e discretas. O que Caris sentia no ar ali era muito diferente. Era excitamento.

- Isso é devassidão.

- Só que em vez de bebida estão se espojando na auto-aversão.

- E há uma espécie de êxtase.

- Mas sem sexo.

- E só dar mais algum tempo.

Murdo liderou a procissão; na saída do terreno do priorado Caris notou que alguns flagelantes tinham tigelas na mão e pediam moedas aos espectadores. E calculou que eles passariam daquela maneira pelas principais ruas da cidade. Provavelmente acabariam em uma das tavernas grandes, onde as pessoas lhes pagariam comida e bebida. Merthin tocou em seu braço.

- Está muito pálida. Como se sente?

- Apenas cansada - respondeu ela, em tom brusco.

Tinha de continuar a trabalhar de qualquer maneira, independentemente do que sentisse, e não ajudava ser lembrada de seu cansaço. Mas era gentil Merthin notar, e ela abrandou a voz para acrescentar:

- Venha comigo até a casa do prior. Está quase na hora do almoço.

Os dois atravessaram o pátio, enquanto a procissão desaparecia. Entraram no palácio. Assim que ficaram a sós, Caris abraçou-o e beijou-o. Sentia um súbito anseio físico, e enfiou a língua na boca de Merthin, como sabia que ele gostava. Em resposta, Merthin elevou as mãos para os seios e acariciou-os. Nunca se beijavam daquela maneira dentro do palácio, e Caris especulou vagamente se alguma coisa na bacanal de frei Murdo enfraquecera suas inibições normais.

- Sua pele é tão quente... - murmurou Merthin em seu ouvido.

Ela queria que Merthin tirasse seu hábito e chupasse os mamilos. Sentiu que começava a perder o controle, e que poderia se tornar temerária, fazendo amor ali mesmo, no chão, onde poderiam ser surpreendidos com facilidade. Foi nesse momento que uma voz de menina balbuciou: ’

- Não tive a intenção de espionar.

Caris ficou chocada. Afastou-se de Merthin com um pulo, dominada pel sentimento de culpa. Virou-se para ver quem falara. No outro lado da sala, sentada num banco, havia uma jovem com um bebê no colo. Era a esposa de Ralph Fitzgerald.

- Tilly! - gritou Caris.

Tilly levantou-se. Parecia exausta e assustada.

- Lamento muito ter dado um susto em você.

Caris sentiu-se aliviada. Tilly cursara a escola das freiras e permanecera no convento por muitos anos. Gostava de Caris. Merecia confiança, como alguém que não falaria sobre o beijo que testemunhara. Mas o que ela fazia ali?

- Você está bem? - perguntou Caris.

- Estou um pouco cansada.

Ela cambaleou e Caris segurou-a pelo braço. O bebê chorou. Merthin pegouo no colo e embalou-o.

- Calma, calma, meu pequeno sobrinho...

O choro definhou para um murmúrio de descontentamento. Caris perguntou a Tilly:

- Como veio até aqui?

- Vim andando.

- Desde Tench Hall? Com Gerry no colo?

O bebê tinha agora seis meses, e não era nada leve.

- Levei três dias.

- Oh, Deus! Aconteceu alguma coisa?

- Fugi.

- Ralph não veio atrás de você?

- Veio, com Alan. Escondi-me na floresta quando eles passaram. Gerry foi muito bom e não chorou.

Ao imaginar a cena, Caris sentiu um aperto na garganta.

- Mas... - Ela engoliu em seco. Mas por que você fugiu?

- Porque meu marido quer me matar.

Tilly desatou a chorar. Caris fez com que ela sentasse, e Merthin trouxe um copo de vinho. Deixaram-na soluçar. Caris sentou no banco, ao seu lado, e passou o braço por seus ombros, enquanto Merthin cuidava do bebê. Quando Tilly finalmente parou de chorar, Caris perguntou:

- O que Ralph fez? Tilly sacudiu a cabeça.

- Nada. É apenas a maneira como ele olha para mim. Sei que ele quer me assassinar.

Merthin murmurou:

- Eu gostaria de poder dizer que meu irmão é incapaz de fazer isso, mas não posso.

- Mas por que ele haveria de querer fazer uma coisa tão terrível?

- Não sei - respondeu Tilly, angustiada. - Ralph esteve no funeral de tio William. E se encontrou ali com um advogado de Londres, Sir Gregory Longfellow.

- Eu o conheço - disse Caris. - É um homem inteligente, mas não gosto dele.

- Começou depois disso. Tenho o pressentimento de que é tudo por causa de Gregory.

- Você não teria andado tanto, com um bebê no colo, apenas por causa de uma coisa que imaginou.

- Sei que pode parecer fantasioso, mas ele senta e fica me olhando com raiva, cheio de ódio. Como um homem pode olhar sua esposa dessa maneira?

- Veio para o lugar certo. Estará segura aqui.

- Posso ficar? - suplicou Tilly. - Não vai me mandar de volta, não é?

- Claro que não.

Caris olhou para Merthin. Sabia o que ele estava pensando. Seria precipitado oferecer qualquer garantia a Tilly. Os fugitivos podiam encontrar refúgio em igrejas, como regra geral, mas era muito duvidoso se um convento tinha o direito de abrigar a esposa de um cavaleiro e mantê-la afastada do marido indefinidamente. Além disso, era certo que Ralph teria o direito de obrigá-la a renunciar ao bebê, seu filho e herdeiro. Mesmo assim, Caris imprimiu tanta confiança quanto possível à voz quando disse:

- Pode ficar aqui por tanto tempo quanto quiser.

- Muito obrigada.

Caris rezou silenciosamente para que fosse capaz de cumprir a promessa.

- Arrumarei um dos quartos especiais no segundo andar do hospital para voce. Tilly continuava apavorada.

- E se Ralph quiser me levar à força?

- Ele não ousaria. Mas se isso a faz se sentir mais segura, pode ficar no antigo quarto de madre Cecilia, no final do dormitório das freiras.

- Seria ótimo.

Uma empregada do priorado entrou para pôr a mesa do almoço. Caris disse a Tilly:

- Eu a levarei até o refeitório. Pode almoçar com as freiras, e depois deitar no dormitório e descansar.

Ela levantou-se. Sentiu uma súbita vertigem. Pôs a mão na mesa para se firmar. Merthin, com Gerry ainda no colo, perguntou, ansioso:

- O que você tem?

- Ficarei bem num instante. Estou apenas cansada. E, no instante seguinte, Caris caiu no chão.

Merthin sentiu um maremoto de pânico. Por um momento, ficou atordoado. Caris nunca estivera doente antes, nunca se mostrara desamparada... era ela quem cuidava dos doentes. Ele não podia imaginá-la como uma vítima.

O momento passou num piscar de olhos. Com um esforço para controlar o medo, ele entregou o bebê a Tilly, com todo cuidado.

A empregada parara de pôr a mesa e olhava em choque para o corpo incons ciente de Caris no chão. Merthin, com uma voz calma e deliberada, mas num tom de urgência, disse a ela:

- Corra até o hospital e avise que madre Caris está doente. Traga a irmã Oonagh. Vá logo, o mais depressa que puder!

A empregada saiu apressada. Merthin ajoelhou-se ao lado de Caris.

- Pode me ouvir, querida?

Ele pegou a mão de Caris e afagou-a. Tocou em seu rosto. Levantou uma pálpebra. Ela havia desmaiado.

- Ela tem a peste, não é? - murmurou Tilly.

- Oh, Deus!

Merthin envolveu-a com os braços. Era um homem pequeno, mas sempre fora capaz de erguer objetos pesados, pedras de construção e vigas de madeira. Levantou-a com facilidade e deitou-a na mesa, gentilmente.

- Não morra... - sussurrou ele. - Por favor, não morra.

Ele beijou-a na testa. A pele estava quente. Sentira isso quando haviam se abraçado, alguns minutos antes, mas na ocasião estava excitado demais para se importar. Talvez fosse por isso que ela se mostrara tão ardente: a febre podia ter esse efeito.

A irmã Oonagh entrou. Merthin sentiu-se tão grato por vê-la que as lágrimas afloraram a seus olhos. Era uma freira jovem, que saíra do noviciado há apenas um ou dois anos, mas Caris tinha em alta conta sua habilidade como enfermeira e preparava-a para um dia assumir a responsabilidade pelo hospital.

Oonagh prendeu uma máscara de linho sobre a boca e o nariz, dando o nó atrás do pescoço. Encostou a mão na testa e no rosto de Caris.

- Ela espirrou?

Merthin limpou seus olhos.

-Não.

Ele tinha certeza de que notaria, pois um espirro era sempre um péssimo sinal.

Oonagh baixou a frente do hábito. Para Merthin, Caris parecia vulnerável demais, com os seios pequenos à mostra. Mas sentiu-se contente ao constatar que não havia manchas purpuras em seu peito. Oonagh levantou o hábito. Examinou as narinas de Caris.

- Não há hemorragia.

Ela pegou o pulso de Caris, pensativa. Depois de alguns momentos, olhou para Merthin.

- Pode não ser a peste, mas parece uma doença grave. Ela está febril, a pulsação acelerada, a respiração superficial. Leve-a para cima, deite-a, lave seu rosto com água-de-rosas. Quem cuidar dela deve usar uma máscara e lavar as mãos como se ela estivesse com a peste. Isso inclui você.

Ela entregou uma máscara de linho a Merthin. As lágrimas rolavam pelo rosto dele enquanto prendia a máscara. Levou Caris para o andar de cima, deitou-a em seu quarto, ajeitou suas roupas. As freiras trouxeram água-de-rosas e vinagre. Merthin transmitiu as instruções de Caris em relação a Tilly. Levaram a jovem mãe e o bebê para o refeitório. Merthin sentou ao lado de Caris, passando por sua testa e faces um pano molhado em água-de-rosas, rezando para que ela recuperasse os sentidos.

O que finalmente aconteceu. Ela abriu os olhos, franziu o rosto em perplexidade, depois assumiu uma expressão ansiosa e perguntou:

- O que aconteceu?

- Você desmaiou. Ela tentou sentar.

- Fique deitada. Você está doente. Provavelmente não é a peste, mas tem uma doença grave.

Ela devia estar se sentindo bastante fraca, pois recostou-se nos travesseiros sem protestar.

- Descansarei apenas por uma hora.

Caris permaneceu na cama por duas semanas.

Depois de três dias, os brancos de seus olhos adquiriram a cor de mostarda. A irmã Oonagh disse que ela estava com icterícia. Preparou uma infusão de ervas adocicada com mel, que Caris tomava quente, três vezes por dia. A febre diminuiu, mas Caris permaneceu fraca. Todos os dias perguntava por Tilly, ansiosa. Oonagh respondia às perguntas, mas recusava-se a discutir qualquer outro aspecto da vida no convento, para não cansar a prioresa. Caris sentia-se fraca demais para protestar.

Merthin não deixou o palácio do prior. Durante o dia, sentava lá embaixo, bastante perto para ouvi-la chamar. Seus empregados vinham lhe pedir instruções sobre os vários prédios que estavam construindo ou demolindo. À noite, ele deitava num colchão ao lado de Caris, o sono leve. Acordava cada vez que a respira ção de Caris mudava, ou quando ela se virava na cama. Lolla dormia no quarto ao lado.

Ao final da primeira semana, Ralph apareceu.

- Minha esposa sumiu - disse ele, ao entrar no palácio do prior. Merthin levantou os olhos do desenho que fazia numa lousa grande.

- Olá, irmão.

Ralph parecia apreensivo, ele notou. Era evidente que tinha sentimentos contraditórios em relação ao desaparecimento de Tilly. Não gostava dela, mas por outro lado nenhum homem ficaria satisfeito se sua esposa fugisse.

Talvez eu também tivesse sentimentos contraditórios, pensou Merthin, cul pado. Afinal, ajudara a esposa a deixá-lo. Ralph sentou num banco.

- Tem vinho? Estou morrendo de sede.

Merthin foi até o aparador e serviu vinho de um jarro. Passou por sua mente dizer que não tinha a menor idéia do paradeiro de Tilly, mas o instinto rebelou se contra a idéia de mentir para o próprio irmão, ainda mais em um assunto tão importante. Além disso, a presença de Tilly no priorado não podia ser mantida em segredo: muitas freiras, noviças e empregadas já haviam-na visto ali. Era sempre melhor ser honesto, pensou Merthin, exceto numa emergência extrema. Ele entregou o copo a Ralph e disse:

- Tilly está aqui, no convento, com o bebê.

- Foi o que pensei.

Ralph levantou o copo com a mão esquerda, mostrando os três cotos dos dedos cortados. Tomou um longo gole do vinho.

- O que ela tem?

- Tilly fugiu de você, Ralph

- Deveria ter me avisado.

- Eu me sinto mal por isso, mas não poderia traí-la. Ela está com pavor de você.

- Por que tomar o lado de Tilly contra mim? Sou seu irmão!

- Porque eu conheço você. Se ela está apavorada, deve haver uma razão.

- Isso é um absurdo!

Ralph tentava parecer indignado, mas a encenação não era convincente. Merthin especulou o que ele sentia de fato.

- Não podemos expulsá-la - explicou Merthin. - Ela pediu santuário.

- Gerry é meu filho e herdeiro. Não pode mantê-lo longe de mim.

- Não, não indefinidamente. Se você iniciar uma ação judicial, tenho certeza de que vencerá. Mas não tentaria separá-lo da mãe, não é mesmo?

- Se Gerry voltar para casa, ela também voltará.

O que provavelmente era verdade. Merthin procurava outro argumento para persuadir Ralph quando o irmão Thomas entrou, trazendo Alan Fernhill. Com a única mão, Thomas segurava o braço de Alan, como se quisesse impedi-lo de fugir.

- Eu o encontrei bisbilhotando - disse ele.

- Eu queria apenas dar uma olhada no mosteiro - protestou Alan. - Pensei que estivesse vazio.

- Como pôde verificar, não está - declarou Merthin. - Temos um monge, seis noviços e duas dúzias de órfãos.

- Só que ele não estava no mosteiro, mas sim no claustro das freiras - informou Thomas.

Merthin franziu o rosto. Podia ouvir um salmo cantado à distância. Alan calculara bem a incursão: todas as freiras e noviças estavam na catedral para o serviço da Sexta. A maioria dos prédios do priorado se encontrava vazia àquela hora. Alan devia ter circulado sem ser interpelado durante algum tempo.

Não parecia mera curiosidade ociosa.

- Felizmente, um ajudante de cozinha o viu e foi me chamar na catedral acrescentou Thomas.

Merthin se perguntou o que Alan estaria procurando. Tilly? Ele não ousaria seqüestrá-la do interior de um convento em plena luz do dia. Merthin virou-se para Ralph.

- O que vocês estão tramando? Ralph desviou a pergunta para Alan.

- O que você pensava que estava fazendo? - indagou ele, furioso, embora Merthin percebesse que a ira era simulada.

Alan deu de ombros.

- Apenas dava uma olhada ao redor enquanto esperava por você.

Não era plausível. Homens de armas ociosos esperavam por seus senhores em tavernas e estábulos, não em claustros.

- Bom... não faça mais isso - disse Ralph.

Merthin compreendeu que Ralph insistiria na história. Fui franco com ele, mas ele não é franco comigo, pensou Merthin, desolado. Ele voltou ao assunto mais importante.

- Por que não deixa Tilly aqui por algum tempo? Ela ficará muito bem. K depois de algum tempo, talvez ela compreenda que você não quer lhe causar nenhum mal, e volte para casa.

- É vergonhoso demais - alegou Ralph.

- Nem tanto. Uma mulher da nobreza às vezes passa umas poucas semanas num convento, se sente a necessidade de se afastar do mundo por algum tempo.

- Em geral se fica viúva, ou quando o marido vai para a guerra.

- Mas nem sempre.

- Quando não há razão óbvia, as pessoas sempre dizem que a mulher quer escapar do marido.

- Até que ponto isso é ruim? Você pode gostar de passar algum tempo longe de sua esposa.

- Talvez você tenha razão.

Merthin se surpreendeu com a resposta. Não esperava que Ralph se deixasse persuadir com tanta facilidade. Levou um momento para superar o espanto, antes de dizer:

- Então estamos combinados. Dê três meses a Tilly, depois volte e converse com ela.

Merthin tinha a impressão de que Tilly nunca mudaria de idéia, mas pelo menos a proposta adiaria a crise.

- Três meses - repetiu Ralph. - Combinado.

Ele levantou-se para ir embora. Merthin apertou sua mão.

- Como estão o pai e a mãe? Não os vejo há meses.

- Envelhecendo. O pai não sai mais de casa.

- Irei visitá-los assim que Caris melhorar. Ela está se recuperando de uma icterícia.

- Transmita os meus votos de rápida recuperação.

Merthin foi até a porta, e ficou observando Ralph e Alan se afastarem. Sentia-se profundamente perturbado. Ralph tramava alguma coisa, e não era apenas levar Tilly de volta.

Ele voltou ao seu desenho e ficou olhando para a lousa sem ver nada por um longo tempo.

Ao final da segunda semana, era evidente que Caris iria melhorar. Merthin estava esgotado, mas feliz. Aliviado, ele pôs Lolla na cama cedo, e saiu pela primeira vez. Era um final de tarde ameno na primavera. O sol e o ar fragrante deixaram no inebriado. Sua própria taverna, a Bell, estava fechada para reforma, mas o Holly Bush tinha um movimento grande, com clientes sentados em bancos no lado de fora com suas canecas.

Havia tantas pessoas aproveitando o tempo bom que Merthin parou e perguntou se era um feriado, pensando que poderia ter perdido a noção da data.

- Cada dia é um feriado agora - respondeu um dos homens. - De que adianta trabalhar quando vamos todos morrer da peste? Tome um copo de cerveja com a gente.

- Não, obrigado.

Merthin seguiu em frente. Notou que muitas pessoas usavam roupas de luxo, chapéus elaborados e túnicas bordadas, que em circunstâncias normais não teriam condições de comprar. Presumiu que haviam herdado esses trajes, ou simplesmente tiraram de cadáveres de ricos. O efeito era um pouco de pesadelo: gorros de veludo sobre cabelos imundos, fios de ouro e manchas de comida, calções rasgados e sapatos com pedras preciosas.

Ele encontrou dois homens em roupas de mulher, de vestidos que iam até o chão e toucas. Caminhavam pela rua principal de braços dados, como esposas de mercadores ostentando sua riqueza... mas eram inconfundivelmente homens, com mãos e pés enormes, cabelos no queixo. Merthin começou a se sentir desorientado, como se não fosse possível confiar em mais nada.

Enquanto o crepúsculo se tornava mais escuro, ele cruzou a ponte até a ilha do Leproso. Construíra uma rua de lojas e tavernas ali, entre as duas partes da ponte. O trabalho já acabara, mas os prédios estavam desocupados, com tábuas pregadas nas portas e janelas para impedir o acesso de vagabundos. Ninguém vivia ali além dos coelhos. As instalações continuariam vazias até que a peste acabasse e Kingsbridge voltasse ao normal, calculava Merthin. Se a peste nunca mais fosse embora, os prédios nunca seriam ocupados; mas, neste caso, a locação de propriedades seria a menor de suas preocupações.

Merthin voltou à cidade velha no momento em que o portão estava sendo fechado. Parecia haver uma imensa festa na taverna White Horse. Estava toda iluminada e a multidão derramava-se pela rua na frente do prédio.

- O que está acontecendo? - perguntou ele a um homem com uma caneca de cerveja na mão.

- O jovem Davey pegou a peste e não tem herdeiros para ficar com a taverna. Por isso, resolveu distribuir toda a cerveja. - O homem exibia um sorriso de satisfação. - Pode beber à vontade. É de graça.

Ele e dezenas de outros vinham aplicando esse princípio, e já havia muitos bêbados. Alguém batia um tambor e vários dançavam. Merthin viu um círculo de homens e espiou por cima de seus ombros para descobrir o que encobriam. Uma mulher completamente embriagada, em torno dos vinte anos, estava inclinada sobre uma mesa, enquanto um homem a penetrava por trás. Vários outros homens esperavam sua vez. Merthin virou-se, em repulsa. Ao lado do prédio, meio escondido entre os barris vazios, avistou Ozzie Ostler, um rico negociante de cavalos, ajoelhado na frente de um homem mais jovem, chupando seu pênis. Isso era contra a lei e passível de pena de morte, mas era evidente que ninguém se importava. Ozzie, um homem casado e membro da guilda da paróquia, avistou Merthin, mas não parou; ao contrário, continuou com mais entusiasmo, como se ficasse excitado por ser observado.

Merthin balançou a cabeça, atordoado. Perto da porta da taverna havia uma mesa com alimentos parcialmente comidos: pedaços de carne assada, peixe defumado, pastelões e queijos. Havia um cachorro em cima da mesa comendo um pernil. Um homem vomitava o ensopado que comera. Ao lado da porta estava Davey Whitehorse, sentado numa enorme cadeira de madeira, segurando um enorme copo de vinho. Espirrava e suava, o filete de sangue característico escorria de seu nariz, mas ele olhava ao redor e exortava os bebedores. Parecia querer se matar de bebida antes que a peste o liquidasse.

Merthin sentiu-se nauseado. Deixou o local e voltou apressado ao priorado.

Para sua surpresa, encontrou Caris de pé e vestida.

- Estou melhor, e voltarei ao trabalho amanhã. - Ao ver a expressão cética de Merthin, ela acrescentou: - Irmã Oonagh disse que eu poderia voltar.

- Se está aceitando ordens de outra pessoa, isso significa que ainda não voltou ao normal.

Caris riu. A cena trouxe lágrimas aos olhos dele. Ela não ria há duas semanas, e houve momentos em que Merthin tivera dúvidas se algum dia voltaria a ouvir aquele som.

- Onde você estava? - perguntou Caris.

Ele relatou seu passeio pela cidade e as imagens chocantes que testemunhara.

- Não havia um sentimento de maldade no que as pessoas faziam. Mas não posso deixar de pensar no que acontecerá em seguida. Quando todas as inibições desaparecerem, as pessoas passarão a se matar?

Uma empregada da cozinha trouxe uma terrina com sopa. Caris tomou alguns goles com a maior cautela. Durante muito tempo, toda e qualquer comida deixavaa nauseada. Mas agora ela pareceu achar a sopa de alho-poró apetitosa e tomou uma tigela inteira. Depois que a criada tirou a mesa, Caris disse:

- Enquanto estava doente, pensei muito na morte.

- Não pediu um padre.

- Quer eu tenha sido boa ou má, não creio que Deus se deixe enganar por uma mudança de ânimo no último minuto.

- O que pensou então?

- Perguntei a mim mesma se havia alguma coisa de que realmente me arrependia.

- E havia?

- Muitas coisas. Não fui amiga de minha irmã. Não tive filhos. Perdi aquele casaco escarlate que papai deu a mamãe no dia em que ela morreu.

- Como o perdeu?

- Não tive permissão para trazê-lo quando entrei no convento. Não sei o que aconteceu com o casaco.

- Qual foi seu maior arrependimento?

- Na verdade, foram dois: não ter construído meu hospital e ter passado muito pouco tempo na cama com você.

Merthin alteou as sobrancelhas.

- O segundo pode ser retificado com a maior facilidade.

- Sei disso.

- O que me diz das freiras?

- Ninguém mais se importa. Você viu o que acontece na cidade. Aqui, no convento, estamos ocupadas demais a lidar com a morte para nos preocuparmos com as antigas normas. Joan e Oonagh dormem juntas todas as noites num dos quartos no segundo andar do hospital. Não importa mais.

Merthin franziu o rosto.

- É estranho que elas façam isso, mas mesmo assim continuem a comparecer aos serviços na catedral durante a noite. Como conciliam as duas coisas?

- O Evangelho de São Lucas diz: ”Aquele que tem dois casacos que ajude quem não tem nenhum.” Como acha que o bispo de Shiring concilia isso com suas incontáveis roupas? Todo mundo usa o que gosta dos ensinamentos da Igreja, e ignora as partes que não são convenientes.

- E você?

- A mesma coisa. Mas sou honesta a respeito. Por isso, vou viver com você, como sua esposa. E se alguém questionar, direi que estes são tempos estranhos. Ela levantou-se, foi até a porta, e trancou-a. - Você vem dormindo aqui há duas semanas. Não precisa mais sair.

- Não há necessidade de me trancar - disse Merthin, rindo. - Ficarei voluntariamente.

Ele abraçou-a.

- Começamos uma coisa poucos minutos antes de eu desmaiar. Tilly nos interrompeu.

- Você estava febril.

- Sob esse aspecto, ainda estou.

- Talvez devêssemos recomeçar do ponto em que paramos.

- Podemos ir para a cama primeiro.

- Está bem.

De mãos dadas, eles subiram a escada.

Ralph e seus homens estavam escondidos na floresta ao norte de Kingsbridge, esperando. Era o mês de maio e o entardecer foi longo. Quando a noite caiu Ralph exortou os outros a tirarem um cochilo, enquanto ele permanecia sentado, vigilante.

Com ele estavam Alan Fernhill e quatro mercenários, soldados desmobilizados do exército do rei, guerreiros que não haviam conseguido encontrar seu lugar em tempos de paz. Alan os contratara no Red Lion, em Gloucester. Não sabiam quem era Ralph, e nunca o haviam visto à luz do dia. Fariam o que lhes fosse mandado, receberiam seu dinheiro, e jamais fariam perguntas.

Ralph ficou acordado, observando a passagem do tempo, automaticamente, como fazia quando lutava com o rei na França.

Descobrira que se tentasse com muito afinco descobrir quantas horas haviam-se passado, acabava em dúvida; mas se apenas adivinhasse, o que aflorava a sua cabeça era sempre certo. Os monges usavam uma vela acesa, marcada com círculos, para indicar as horas, ou uma ampulheta com areia ou água escorrendo por um funil estreito; mas Ralph tinha uma medida melhor em sua cabeça.

Sentava imóvel, encostado numa árvore, olhando para o fogo baixo que haviam acendido. Podia ouvir o sussurro dos pequenos animais entre as moitas, o pio ocasional de uma coruja predadora. Nunca se sentia tão calmo quanto nas horas de espera que antecediam a ação. Havia sossego e escuridão, tempo para pensar. O conhecimento do perigo iminente, que deixava nervosa a maioria dos homens, na verdade o tranqüilizava.

O maior perigo naquela noite, a bem da verdade, não vinha dos riscos do combate. Haveria alguma luta corpo a corpo, mas o inimigo consistiria de gordos habitantes da cidade ou monges flácidos. O verdadeiro perigo era a possibilidade de Ralph ser reconhecido. O que estava prestes a fazer era chocante. Seria comentado com indignação em todas as igrejas da Inglaterra, talvez da Europa. Gregory Longfellow, por quem Ralph faria aquilo, seria o mais clamoroso na condenação. Se algum dia vazasse a informação de que fora o culpado, Ralph seria enforcado.

Mas se tivesse êxito, ele se tornaria o conde de Shiring.

Quando calculou que passavam duas horas da meia-noite, ele acordou os outros.

Deixaram os cavalos amarrados, saíram da floresta, e seguiram para a cidade pela estrada. Alan carregava o equipamento, como sempre fazia quando lutavam na França. Levava uma escada, um rolo de corda e um croque, que usavam quando atacavam muralhas de cidades na Normandia. Tinha em seu cinturão uma talhadeira e um martelo. Podiam não precisar das ferramentas, mas haviam aprendido que era sempre melhor estar bem preparados.

Alan também levava vários sacos grandes, enrolados bem apertados, e amarrados com um cordão para formar uma trouxa.

Ao chegarem à vista da cidade, Ralph distribuiu sacos com fendas para os olhos e boca. Todos os puseram. Ralph também usava uma luva na mão esquerda, para esconder os cotos denunciadores dos três dedos que perdera em combate. Estava completamente irreconhecível... a menos, é claro, que fosse capturado.

Todos meteram os pés em sacos de feltro, amarrados nos joelhos, para abafar os sons dos passos.

Há centenas de anos Kingsbridge não era atacada por um exército. Por isso, a segurança era relaxada, ainda mais desde o advento da peste. Mesmo assim, a entrada sul da cidade fora fechada. No lado que dava para a cidade da grande ponte de Merthin havia uma casa da guarda de pedra, com espesso portão de madeira. Mas o rio defendia a cidade apenas pelos lados sul e leste. Ao norte e a oeste não havia ponte, e a cidade era protegida apenas por uma muralha, em lamentável estado de conservação. Era por isso que Ralph se aproximava da cidade pelo norte.

Residências humildes amontoavam-se fora das muralhas, como cães nos fundos de um açougue.

Alan efetuara o reconhecimento do percurso vários dias antes, quando os dois visitaram Kingsbridge para perguntar por Tilly. Agora, Ralph e os mercenários seguiam Alan, esgueirando-se entre as choupanas tão silenciosamente quanto possível. Até mesmo os pobres nos subúrbios poderiam dar o alarme se fossem acordados. Um cachorro latiu. Ralph ficou tenso, mas alguém gritou e o animal silenciou. Mais um momento e alcançaram um trecho em que a muralha desabara. Poderiam subir com facilidade pelas pedras caídas.

 

Desceram para uma viela estreita no outro lado, por trás de alguns armazéns. Vinha direto do portão norte da cidade. Ralph sabia que ali, junto do portão, havia um homem de sentinela, numa guarita. Os seis homens adiantaram-se silenciosamente. Embora estivessem agora dentro das muralhas, um homem de sentinela os interrogaria se os visse, e gritaria por socorro se não ficasse satisfeito com as respostas. Para alívio de Ralph, no entanto, o homem estava num sono profundo, sentado num banco, encostado no lado da guarita, um toco de vela pingando na prateleira ao seu lado.

Ainda assim, decidiu Ralph, era melhor não correr o risco de o homem acordar. Ele se adiantou na ponta dos pés, inclinou-se pela guarita e cortou a garganta do homem com uma faca comprida. O homem acordou e tentou gritar de dor, mas só sangue saiu por sua boca. Quando ele arriou, Ralph estendeu os braços e segurou-o por uns poucos momentos, o tempo necessário para que perdesse os sentidos. Depois, encostou o corpo na parede da guarita.

Limpou a lâmina ensangüentada na túnica do morto e tornou a guardar a faca na bainha.

O portão que barrava a passagem tinha uma porta menor, que dava para apenas um homem de cada vez. Ralph removeu a tranca dessa porta menor, deixando-a pronta para uma fuga rápida mais tarde.

Os seis foram caminhando sem fazer barulho pela rua que levava ao priorado.

Não havia lua - Ralph escolhera aquela noite justamente por esse motivo -, mas havia uma tênue iluminação da luz das estrelas. Ele observava, ansioso, as janelas do segundo andar nas casas dos dois lados. Se pessoas insones por acaso olhassem para fora, veriam a cena inegavelmente sinistra de seis homens mascarados. Por sorte, não fazia bastante calor para que as casas ficassem com as janelas abertas à noite. Mesmo assim, Ralph puxou o capuz ainda mais, e seguiu em frente tão depressa quanto era possível, na esperança de manter o rosto oculto e evitar que percebessem a máscara; e sinalizou para que os outros fizessem a mesma coisa.

Aquela era a cidade em que passara sua adolescência, e por isso as ruas eram familiares. Seu irmão Merthin ainda vivia ali, embora Ralph não soubesse onde exatamente.

Desceram pela rua principal, passaram pela Holly Bush, fechada e trancada para a noite horas antes. Aproximaram-se da catedral. A entrada tinha portões altos de madeira, reforçados com ferro, mas eles permaneciam sempre abertos. Há anos não eram fechados, as dobradiças enferrujadas e emperradas.

O priorado estava às escuras, exceto por uma claridade mínima nas janelas do hospital. Ralph calculava que aquela era a hora em que monges e freiras dormiam um sono mais profundo. Dentro de uma hora, mais ou menos, seriam acordados para o serviço da Matina, que começava e terminava antes do amanhecer.

Alan, que fizera também o reconhecimento do priorado, levou os homens para o lado norte da catedral. Passaram em silêncio pelo cemitério e pelo palácio do prior, para depois seguir pela estreita faixa de terra que separava a extremidade leste da catedral da margem do rio. Alan apoiou sua escada pequena numa parede sem janelas e sussurrou:

- O claustro das freiras. Sigam-me.

Ele subiu pela parede até o telhado. Seus pés quase não faziam barulho nas telhas de ardósia. Por sorte, não precisou usar o croque, o que poderia causar um estrépito alarmante.

Os outros subiram atrás, Ralph por último.

Lá dentro, pularam do telhado e caíram com um mínimo de barulho no gramado do claustro. Ali, Ralph olhou cauteloso para as colunas de pedra das galerias ao redor. As arcadas pareciam observá-lo, como vigias, mas não havia qualquer movimento. Ainda bem que monges e freiras não tinham permissão para ter cachorros de estimação.

Alan levou-os por um caminho nas sombras. Passou por uma pesada porta ao final.

- A cozinha - sussurrou ele. O lugar era um pouco iluminado pelas brasas numa lareira enorme. - Tomem cuidado e andem devagar, para não esbarrarem em panelas.

Ralph esperou um pouco, deixando que seus olhos se ajustassem. Não demorou muito para poder divisar os contornos de uma mesa grande, vários barris e uma pilha de utensílios de cozinha.

- Encontrem algum lugar para sentar ou deitar e tentem ficar confortáveis disse ele aos homens. - Ficaremos aqui até todas as freiras se levantarem e irem para a catedral.

Uma hora depois, espiando da cozinha, Ralph contou as freiras e noviças que deixavam o dormitório, arrastando os pés, atravessavam o claustro e seguiam para a catedral. Algumas carregavam lampiões, que projetavam sombras extravagantes no teto das arcadas.

 

- Vinte e cinco - sussurrou ele para Alan.

Como Ralph já esperava, Tilly não estava entre elas. As mulheres da nobreza em visita não precisavam comparecer aos serviços durante a madrugada.

Depois que todas desapareceram, ele se adiantou. Os outros ficaram para trás.

Só havia dois lugares em que Tilly poderia estar dormindo: o hospital e o dormitório das freiras. Ralph calculara que ela se sentiria mais segura no dormitório, e seguiu para lá primeiro.

Subiu em passos suaves pelos degraus de pedra, os pés ainda envoltos pelos sacos. Deu uma espiada no dormitório. Era iluminado por uma única vela. Torcia para que todas as freiras estivessem na catedral, pois não queria que outras pessoas atrapalhassem seus planos. Tinha medo de que uma ou duas pudessem ter ficado ali, por doença ou apenas por preguiça. Mas o dormitório estava vazio...

nem mesmo Tilly se encontrava ali. Ele já da se retirar quando avistou uma porta na outra extremidade.

Atravessou todo o dormitório, pegou a vela e passou pela porta, sem fazer qualquer barulho. A chama mínima da vela iluminou a cabeça de sua jovem esposa num travesseiro, os cabelos desarrumados em torno do rosto. Parecia tão inocente e bela que Ralph experimentou uma pontada de remorso. Teve de lembrar a si mesmo o quanto a odiava por se interpor no caminho de seu sucesso.

O bebê, seu filho Gerry, estava num berço ao lado da mãe, os olhos fechados, a boca entreaberta, num sono sereno.

Ralph chegou mais perto. Com um movimento rápido, usou a mão direita para tapar a boca de Tilly; acordou-a, ao mesmo tempo em que a impedia de fazer qualquer ruído.

Tilly arregalou os olhos e fitou-o com pavor.

Ele largou a vela. Trazia no bolso uma variedade de coisas úteis, inclusive pedaços de pano e tiras de couro. Meteu um pedaço de pano na boca de Tilly, para mantê-la calada. Apesar da máscara e da luva, teve a impressão de que ela o reconhecera, embora não tivesse falado coisa alguma. Talvez Tilly fosse capaz de sentir seu cheiro, como uma cachorra. Não tinha a menor importância. Ela não contaria a ninguém.

Ele amarrou suas mãos e os pés com as tiras de couro. Ela não se debatia agora, mas haveria de fazê-lo mais tarde. Ralph verificou se a mordaça estava segura. Depois, acomodou-se para esperar.

Podia ouvir o canto que vinha da catedral: um coro forte de vozes femininas, e umas poucas vozes masculinas tentando acompanhá-las. Tilly continuava a fitá-lo, com olhos enormes e suplicantes. Ele virou-a para não ter de olhar para seu rosto.

Tilly já adivinhara que ele da matá-la. Lera seus pensamentos. Devia ser uma bruxa. Talvez todas as mulheres fossem bruxas. De qualquer forma, ela já percebera sua intenção antes, quase no instante mesmo em que ele tomara a decisão. Começara a vigiá-lo, especialmente à noite, os olhos amedrontados seguindo-o por toda parte, quando estavam juntos, não importava o que ele fizesse. Mantinha-se rígida e alerta ao seu lado à noite, enquanto ele dormia; e pela manhã, quando ele acordava, Tilly invariavelmente já estava de pé. Depois de uns poucos dias assim, ela desaparecera. Ralph e Alan haviam-na procurado sem sucesso, até ouvirem o rumor de que Tilly se refugiara no Priorado de Kingsbridge.

O que por acaso se ajustava a seus planos com perfeição.

O bebê fungou no sono, e ocorreu a Ralph que ele poderia chorar. E se as freiras voltassem nesse momento? Ralph pensou a respeito. Uma ou duas provavelmente viriam até o quarto para perguntar se Tilly precisava de ajuda. Ralph decidiu que as mataria. Não seria a primeira vez. Já matara freiras na França.

Finalmente ele ouviu as freiras voltando ao dormitório.

Alan estaria observando da cozinha, contando-as ao retornarem. Quando todas estivessem no dormitório, Alan e os outros quatro homens desembainhariam as espadas e entrariam em ação.

Ralph pôs Tilly de pé. Ela exibia o rosto molhado de lágrimas. Ele virou-a de costas. Passou o braço por sua cintura e levantou-a para seu quadril. Ela era leve como uma criança.

Ralph sacou sua adaga comprida. Ouviu um homem dizer no dormitório:

- Silêncio ou morrerão!

Era Alan, ele sabia, embora a máscara distorcesse a voz.

Aquele era um momento crucial. Havia outras pessoas no priorado - freiras e pacientes no hospital, os monges em seus aposentos -, e Ralph não queria que aparecessem para complicar a situação.

Apesar da advertência de Alan, houve vários gritos abafados de choque e gritos estridentes de medo... mas, pensou Ralph, não muito altos. Até agora, tudo bem.

Ele abriu a porta e saiu para o dormitório, carregando Tilly no quadril.

Podia ver a cena à luz dos lampiões das freiras. Na outra extremidade do dormitório, Alan segurava uma mulher, a faca em sua garganta, na mesma pose de Ralph com Tilly. Mais dois homens se postavam por trás de Alan. Os outros dois mercenários estariam montando guarda ao pé da escada.

- Prestem atenção, todas vocês!

Quando Ralph falou, Tilly estremeceu convulsivamente. Reconhecera sua voz. Mas isso não importava, desde que ninguém mais reconhecesse. Houve um silêncio apavorado.

- Qual de vocês é a tesoureira? - perguntou Ralph. Ninguém respondeu.

Ralph encostou a beira da lâmina na pele da garganta de Tilly. Ela começou a se debater, mas era pequena demais, e ele podia dominá-la sem qualquer dificuldade. Agora, pensou Ralph, agora é o momento de matá-la; mas ele hesitou. Já matara muitas pessoas, inclusive mulheres, além de homens, mas subitamente parecia terrível enfiar uma faca no corpo quente de uma mulher que ele abraçara e beijara, uma mulher com quem dormira e que gerara seu filho.

Além disso, ele decidiu, o efeito sobre as freiras seria mais chocante se uma delas morresse.

E Ralph acenou com a cabeça para Alan.

Com um movimento firme, Alan cortou a garganta da freira que estava segurando. O sangue esguichou do pescoço para o chão.

Alguém gritou.

Não foi apenas um grito abafado ou estridente, mas um berro fortíssimo, de puro terror, capaz de despertar os mortos. O grito prolongou-se até que um dos mercenários acertou um poderoso golpe na cabeça da mulher com seu porrete. Ela caiu no chão, inconsciente, o sangue escorrendo pelo rosto. Ralph perguntou de novo:

- Qual de vocês é a tesoureira?

Merthin acordou por um breve instante quando o sino tocou para a Matina e Caris saiu da cama. Como sempre, ele virou para o outro lado e caiu num cochido leve. Assim, quando ela voltou, parecia que estivera ausente apenas por um ou dois minutos. Caris estava gelada ao deitar, e ele puxou-a e envolveu-a em seus braços.

Muitas vezes ficavam acordados por algum tempo, conversando, e em geral faziam amor antes de tornarem a dormir. Era o momento predileto de Merthin.

Caris comprimiu-se contra ele, os seios esmagados em conforto no seu peito. Merthin beijou-a na testa. Assim que ela esquentou, ele estendeu a mão para tocar nos cabelos macios entre suas pernas.

Mas ela estava com vontade de conversar.

- Ouviu o rumor que circulou pela cidade, de que havia bandidos na floresta, ao norte de Kingsbridge?

- Parece um pouco improvável.

- Não sei, não... As muralhas estão decrépitas naquele lado.

- Mas o que eles querem roubar? Podem pegar qualquer coisa que quiserem. Se precisam de carne, há milhares de ovelhas e vacas vagueando pelos campos, sem ninguém para reivindicar a posse.

- É isso que torna a situação muito estranha.

- Roubar hoje em dia é se inclinar por cima da cerca para respirar o ar do vizinho.

Caris suspirou.

- Há três meses eu pensava que essa peste terrível já havia terminado.

- Quantas pessoas mais já perdemos?

- Enterramos mil pessoas desde a Páscoa. Parecia mais ou menos certo para Merthin.

- Ouvi dizer que outras cidades estão em condições similares.

Ele sentiu os cabelos de Caris roçarem em seu ombro quando ela acenou com a cabeça no escuro.

- Creio que cerca de um quarto da população da Inglaterra já morreu.

- E mais da metade dos padres.

- Isto acontece porque eles fazem contato com muitas pessoas cada vez que celebram uma missa. É muito difícil escapar.

- E por isso metade das igrejas está fechada.

- O que é uma boa coisa, se perguntar minha opinião. Tenho certeza de que as multidões espalham a peste mais depressa do que qualquer outra coisa.

- Seja como for, a maioria das pessoas perdeu o respeito pela religião. Para Caris, isso não era uma grande tragédia.

- Talvez elas parem de acreditar na medicina de superstições, e comecem a pensar sobre que tratamentos fazem uma diferença.

- Você diz isso, mas é difícil para as pessoas comuns saberem o que é uma cura genuína e o que é um falso remédio.

- Eu lhe darei quatro regras.

Merthin sorriu no escuro. Ela sempre tinha uma lista.

- Está bem.

- Uma: Se há dezenas de remédios diferentes para uma doença, você pode ter certeza de que nenhum deles funciona.

- Por quê?

- Porque se um deles funcionasse, as pessoas esqueceriam o resto.

- Lógico.

- Duas: Só porque um remédio é desagradável não significa que é bom. Miolos crus de cotovia não servem de nada para uma garganta dolorida, embora façam você vomitar; por outro lado, uma boa xícara de água quente e mel serve para aliviar a garganta.

- É bom saber disto.

- Três: Esterco humano e de animal nunca fizeram bem a ninguém. Ao contrário, em geral fazem com que as pessoas piorem.

- Fico aliviado em saber disso.

- Quatro: Se o remédio parece com a doença... por exemplo, as penas cheias de pintas de um tordo para a varíola, ou a urina de ovelha para icterícia... provavelmente não passa de uma besteira imaginativa.

- Você deveria escrever um livro sobre isso. Caris soltou um grunhido desdenhoso.

- As universidades preferem os textos gregos antigos.

- Não seria um livro para estudantes da universidade. Em vez disso, seria para mulheres como você... freiras e parteiras, para os barbeiros, as curandeiras.

- As curandeiras e parteiras não sabem ler.

- Algumas sabem, e outras têm pessoas que podem ler para elas.

- Suponho que as pessoas podem gostar de um livro pequeno que diga o que fazer em relação à peste.

Caris ficou pensativa por um momento. No silêncio, soou um grito.

- O que foi isso? - indagou Merthin.

- Parecia um musaranho apanhado por uma coruja.

- Não, não foi.

E Merthin levantou-se.

Uma das freiras adiantou-se para falar com Ralph. Era jovem - quase todas eram jovens -, de cabelos pretos e olhos azuis.

- Por favor, não faça mal a Tilly - suplicou ela. - Sou a irmã Joan, a tesoureira. Nós lhe daremos qualquer coisa que quiser. Mas, por favor, não cometa mais nenhuma violência.

- Sou Tam Hiding - disse Ralph. - Onde estão as chaves do tesouro das freiras?

- Estão aqui em meu cinto.

- Leve-me até lá.

Joan hesitou. Talvez sentisse que Ralph não sabia onde ficava o tesouro. Em sua expedição de reconhecimento, Alan examinara o convento com o maior cuidado, antes de ser descoberto. Determinara o caminho para entrar, identificara a cozinha como um bom esconderijo, e localizara o dormitório das freiras. Mas não conseguira descobrir o tesouro. Era evidente que Joan não queria revelar sua localização.

Ralph não tinha tempo a perder. Não sabia quem poderia ter ouvido o grito. Comprimiu a ponta da faca contra a garganta de Tilly, até tirar sangue.

- Quero ir até o tesouro.

- Está bem. Só peço que não machuque Tilly. Mostrarei o caminho.

- Era o que eu esperava.

Ralph deixou dois mercenários no dormitório, para manter as freiras quietas. Junto com Alan e levando Tilly, desceu a escada para o claustro, atrás de Joan.

Lá embaixo, os outros dois mercenários detinham mais três freiras, sob a ameaça de facas. Ralph calculou que eram freiras de serviço no hospital, que tinham vindo examinar o grito. Ficou satisfeito: outra ameaça fora neutralizada. Mas onde estavam os monges?

Ele mandou as três freiras para o dormitório. Deixou um mercenário ao pé da escada, e levou o outro em sua companhia.

Joan seguiu na frente, através do refeitório, que ficava no térreo, diretamente por baixo do dormitório. Seu lampião tremeluzente iluminou mesas de cavaletes, bancos, uma plataforma e uma parede pintada com a cena de Jesus num banquete de casamento.

Na outra extremidade do refeitório, Joan afastou uma mesa para revelar um alçapão no chão. Tinha uma fechadura, como uma porta vertical comum. Ela virou a chave ali e levantou o alçapão. Dava para uma estreita escada de pedra em espiral. Ela desceu pela escada. Ralph deixou o mercenário de guarda e desceu atrás, carregando Tilly, meio sem jeito. Alan seguiu-o.

Ralph chegou ao pé da escada e olhou ao redor, com uma expressão satisfeita. Ali era o santuário dos santuários, o tesouro secreto das freiras. Era uma apertada sala subterrânea, como uma masmorra, mas melhor construída: as paredes eram de pedra de cantaria, lisas e quadradas, como as da catedral, o chão pavimentado com lajes de pedra bem ajustadas. O ar era frio e seco. Ralph largou Tilly no chão, toda amarrada, como uma galinha.

A maior parte da sala era ocupada por uma enorme caixa com tampa, parecendo um caixão de gigante, acorrentada a uma argola cravada na parede. Não havia muito mais ali: dois bancos, uma escrivaninha e uma prateleira com rolos de pergaminho, presumivelmente as contas do convento. Num gancho na parede havia dois casacos grossos de lã. Ralph calculou que eram para a tesoureira e sua assistente quando trabalhavam lá embaixo nos meses mais frios do inverno.

A caixa era muito grande para ter descido pela escada. Devia ter sido trazida em pedaços e montada no local. Ralph apontou para o fecho, e Joan abriu-o com outra das chaves em seu cinto.

Ralph deu uma olhada. Havia mais dezenas de rolos de pergaminho, obviamente todos os cartulários e títulos que provavam a propriedade e os direitos do convento sobre seu patrimônio; uma pilha de bolsas de couro e lã que continham com certeza ornamentos cravejados de pedras preciosas; e outra caixa, menor, em que devia haver dinheiro.

A esta altura, ele tinha de ser sutil. Seu objetivo era se apoderar dos cartulários, mas não queria que isso se tornasse evidente. Tinha de roubá-los, mas sem dar a impressão de que essa era sua intenção exclusiva.

Ele ordenou que Joan abrisse a caixa menor. Continha umas poucas moedas de ouro. Ralph ficou perplexo ao descobrir como havia pouco dinheiro. Talvez houvesse mais escondido em algum lugar daquela sala, possivelmente por trás de pedras nas paredes. Mas ele não se deteve a ponderar a respeito: só estava fingindo que se interessava por dinheiro. Despejou as moedas na bolsa em seu cinto. Enquanto isso, Alan abria um saco enorme e começava a meter ali os ornamentos da catedral.

Depois de deixar que Joan visse isso, Ralph mandou-a subir.

Tilly continuou lá embaixo, observando tudo, com olhos arregalados e aterrorizados. Mas não importava o que ela visse, pois nunca teria a oportunidade de contar a ninguém.

Ralph abriu os sacos e começou a jogar neles os rolos de pergaminho, tão depressa quanto podia.

Depois que encheram os sacos, Ralph disse a Alan para quebrar as caixas de madeira com a talhadeira e o martelo. Tirou os casacos de lã dos ganchos, fez uma trouxa e aproximou a chama da vela. A lã pegou fogo no mesmo instante. Ele empilhou os pedaços de madeira por cima dos casacos de lã em chamas. Não demorou muito para que a fogueira se tornasse intensa. A fumaça ardia na garganta de Ralph.

Ele olhou para Tilly, estendida no chão, desamparada. Sacou a faca. E, mais uma vez, hesitou.

Uma porta pequena levava direto do palácio do prior para a casa do capítulo, que por sua vez tinha também uma ligação direta com o transepto norte da catedral. Merthin e Caris seguiram por esse caminho, à procura da origem do grito. A casa do capítulo estava vazia, e eles passaram para a catedral. A única vela acesa não dava para iluminar o vasto interior, mas eles pararam na interseção, escutando com o máximo de atenção.

Ouviram o estalido de uma fechadura.

- Quem está aí? - indagou Merthin, envergonhado do medo que fazia sua voz tremer.

- Irmão Thomas.

A voz vinha do transepto sul. Um momento depois, Thomas apareceu. Um tênue círculo de luz projetado pela chama da vela.

- Tive a impressão de ouvir alguém gritar - disse ele.

- Também pensamos ter ouvido um grito. Mas não há ninguém aqui na catedral.

- Vamos verificar em outros lugares.

- Onde estão os noviços e os meninos?

- Mandei que eles voltassem a dormir.

Eles atravessaram o transepto sul e entraram no claustro dos monges. Mais uma vez, não viram ninguém e não ouviram nada. De lá, seguiram por uma passagem através das despensas até o hospital. Os pacientes estavam deitados, como era normal, alguns dormindo, outros se agitando na cama e gemendo de dor... mas, Merthin percebeu depois de um momento, não havia freiras ali.

- Isso é estranho - murmurou Caris.

O grito poderia ter partido dali, mas não havia sinal de emergência, ou de qualquer outro tipo de perturbação.

Foram para a cozinha, que se encontrava deserta, como era de se esperar. Thomas fungou fundo, como se sentisse algum cheiro.

- O que foi? - perguntou Merthin, descobrindo-se a sussurrar.

- Os monges são limpos - murmurou Thomas em resposta. - Alguém sujo passou por aqui.

Merthin não foi capaz de sentir qualquer cheiro fora do normal.

Thomas pegou um cutelo, do tipo que os açougueiros costumam usar para cortar carne e osso.

Foram até a porta da cozinha. Thomas levantou o coto do braço esquerdo num gesto de advertência. Eles pararam. Havia uma claridade mínima no claustro das freiras. Parecia vir de um recesso na extremidade próxima. Era o brilho refletido de uma vela distante, adivinhou Merthin. Podia vir do refeitório das freiras, ou da escada de pedra que levava ao dormitório, se não mesmo dos dois lugares.

Thomas tirou as sandálias e adiantou-se, os pés descalços não fazendo qualquer barulho nas lajes de pedra. Ele desapareceu nas sombras do claustro. Merthin mal pôde divisá-lo quando ele se aproximou do recesso.

Um cheiro fraco mas penetrante alcançou o nariz de Merthin. Não era o cheiro de corpos sujos que Thomas captara na cozinha, mas sim algo diferente e novo. Um momento depois, Merthin identificou-o como fumaça.

Thomas devia ter percebido também, pois ficou imóvel de repente, encostado na parede.

Alguém invisível soltou um grunhido de surpresa. No instante seguinte, uma figura saiu do recesso para a galeria do claustro, claramente delineado, a luz fraca mostrando um homem, com alguma espécie de capuz que cobria a cabeça e o rosto. O homem virou-se para a porta do refeitório.

Thomas golpeou.

O cutelo faiscou por um instante no escuro, depois houve um baque assustador quando afundou no corpo do homem. Ele soltou um grito de terror e dor. Enquanto caía, Thomas golpeou de novo. O grito transformou-se num gorgolejo horrível, que parou de repente. Ele bateu nas pedras da pavimentação com um barulho sem vida.

Ao lado de Merthin, Caris soltou um grito abafado de horror.

Merthin correu para a frente.

- O que está acontecendo?

Thomas virou-se para ele, fazendo sinais com o cutelo para que recuasse.

- Quieto! - sussurrou ele.

A luz mudou numa fração de segundo. Subitamente, o claustro foi iluminado pelo brilho intenso de uma chama.

Alguém veio correndo do refeitório, em passos pesados. Era um homem grande, carregando um saco em uma das mãos e uma tocha acesa na outra. Parecia um fantasma, até que Merthin compreendeu que usava um capuz tosco, com buracos para os olhos e a boca.

Thomas postou-se na frente do homem correndo, e ergueu o cutelo. Mas assumiu a posição num momento tarde demais. Antes que pudesse golpear, o homem esbarrou nele, jogando-o para longe.

Thomas bateu numa coluna. Houve um estrondo, que parecia ser da cabeça se chocando com uma pedra. Ele arriou no chão, sem sentidos. O homem correndo perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos.

Caris passou apressada por Merthin e foi se ajoelhar ao lado de Thomas.

Vários outros homens apareceram, todos encapuzados, alguns segurando tochas. Merthin teve a impressão de que alguns vinham do refeitório, enquanto outros desciam da escada para o dormitório das freiras. Ao mesmo tempo, ele ouviu o som de mulheres gritando e gemendo. Por um instante, a cena era de caos.

Merthin correu para o lado de Caris e tentou protegê-la, com seu corpo, da debandada.

Os intrusos viram seu companheiro caído e pararam de repente, chocados. A luz das tochas, podiam ver que ele estava indubitavelmente morto, o pescoço cortado quase por completo, o sangue se derramando abundante pelo chão de pedra do claustro. Olharam ao redor, as cabeças se deslocando de um lado para outro, espiando através dos buracos nos capuzes, como peixes num rio.

Um deles avistou o cutelo de Thomas, vermelho de sangue, caído ao lado de Thomas e Caris. Apontou-o para os outros. Com um grunhido de raiva, desembainhou a espada.

Merthin ficou apavorado por Caris. Adiantou-se, atraindo a atenção do atacante. O homem avançou para Merthin e ergueu a espada. Merthin recuou, afastando-o de Caris. A medida que o perigo para ela diminuía, ele se sentiu mais assustado por si mesmo. Foi andando para trás, trêmulo de medo, e escorregou no sangue do morto. Perdeu por completo o equilíbrio e caiu de costas no chão.

O atacante parou à sua frente, a espada erguida para matá-lo.

Foi nesse instante que um dos outros interferiu. Era o mais alto dos intrusos, e movimentou-se com uma surpreendente rapidez. Com a mão esquerda, agarrou o braço levantado do atacante de Merthin. Devia ter alguma autoridade, pois não precisou falar: limitou-se a sacudir a cabeça de um lado para outro, em negativa, para que o atacante baixasse a espada, obediente.

Merthin notou que seu salvador usava uma luva na mão esquerda, mas não na direita.

A interação durou apenas o tempo suficiente para que um homem contasse até dez, e terminou tão abruptamente quanto começara. Um dos homens encapuzados virou-se para a cozinha e desatou a correr, logo seguido pelos outros. Deviam ter planejado a fuga por aquele caminho. Merthin compreendeu o motivo: a cozinha tinha uma porta que dava para o pátio gramado da catedral, a saída mais rápida. Todos desapareceram; e sem o clarão de suas tochas, o claustro voltou a ficar na escuridão total.

Merthin permaneceu imóvel, sem saber o que deveria fazer. Era melhor correr atrás dos intrusos, subir até o dormitório para saber por que as freiras estavam gritando, ou procurar o incêndio? Ele ajoelhou-se ao lado de Caris e perguntou:

- Thomas está vivo?

- Acho que ele bateu com a cabeça e ficou inconsciente, mas continua a respirar e não há sangue.

Por trás dele, Merthin ouviu a voz familiar de irmã Joan:

- Socorro! Ajude-me, por favor!

Ele virou-se. Joan estava parada na porta do refeitório, o rosto grotescamente iluminado pela chama do lampião de vela em sua mão, a cabeça envolta por fumaça, como se fosse um elegante chapéu.

- Pelo amor de Deus, venha depressa!

Merthin levantou-se. Joan desapareceu de volta no refeitório, e Merthin correu atrás dela.

O lampião projetava sombras confusas, mas ele conseguiu evitar qualquer esbarro nos móveis, enquanto a seguia até a extremidade do refeitório. A fumaça saía de um buraco no chão. Merthin constatou no mesmo instante que o buraco era obra de um construtor meticuloso: era perfeitamente quadrado, com as beiras bem acabadas, e uma impecável porta de alçapão. Adivinhou que era o tesouro secreto das freiras, construído em sigilo por Jeremiah. Mas os ladrões haviam-no descoberto naquela noite.

Ele respirou a fumaça e tossiu. Especulou sobre o que estaria ardendo lá embaixo e por quê, mas não tinha a menor intenção de descobrir... parecia perigoso demais. Foi nesse momento que Joan gritou para ele:

- Tilly está lá dentro!

- Santo Deus!

Desesperado, Merthin desceu a escada. Teve de prender a respiração. Espiou através da fumaça. Apesar do medo que sentia, o olho de construtor notou que a escada de pedra em espiral era bem-feita, cada degrau exatamente do mesmo tamanho e formato, cada um no mesmo ângulo para o seguinte; por isso, ele pôde descer com confiança, mesmo sem ver onde pisava.

Alcançou num instante a câmara subterrânea. Podia ver as chamas perto do meio. O calor era intenso, e ele compreendeu que não poderia ficar ali por mais que uns poucos instantes. A fumaça era densa. Ainda prendia a respiração, mas agora seus olhos começaram a ficar marejados de lágrimas, a visão se tornando mais e mais turva. Ele enxugou os olhos com a manga, e esquadrinhou a escuridão. Onde estava Tilly? Não dava para ver o chão.

Ele ficou de joelhos. A visibilidade melhorou um pouco: a fumaça era menos densa perto do chão. Merthin engatinhou ao redor, tateando com as mãos onde não podia ver.

- Tilly! - gritou ele. - Onde você está?

A fumaça ardeu em sua garganta, e ele sofreu um acesso de tosse que teria abafado qualquer resposta.

Não podia agüentar por mais tempo. Tossia convulsivamente, mas cada respiração parecia sufocá-lo com mais fumaça. Os olhos aguavam demais, a tal ponto que estava quase cego. Em desespero, ele se aproximou tanto do fogo que as chamas começaram a chamuscar sua manga. Se tivesse um colapso e perdesse os sentidos, morreria com certeza.

E foi então que sua mão tocou em carne.

Ele segurou-a. Era uma perna humana, uma perna pequena, uma perna de garota. Puxou-a em sua direção. As roupas estavam fumegando. Mal podia ver o rosto, e não tinha como saber se ela estava consciente.

Mas as mãos e os pés haviam sido amarrados com tiras de couro, e por isso ela não podia sair dali por si mesma. Com um esforço para deixar de tossir, Merthin enfiou os braços por baixo do corpo e levantou-o.

Assim que ficou de pé, a fumaça se tornou mais densa e ofuscante. Súbitamente, Merthin não pôde mais se lembrar da direção em que ficava a escada. Cambaleou para longe das chamas e esbarrou na parede, quase largando Tilly Para a direita ou esquerda? Ele foi para a esquerda e chegou a um canto da parede. Mudou de idéia e voltou.

Tinha a sensação de que se afogava. Quase sem forças, caiu de joelhos. Isso o salvou. Mais uma vez, descobriu que podia ver melhor perto do chão. Um degrau de pedra surgiu, bem à sua frente, como uma visão do paraíso.

Desesperado, com o corpo inerte de Tilly em seus braços, ele se adiantou de joelhos até a escada. Com um último esforço, levantou-se de novo. Pôs um pé no degrau mais baixo e subiu; depois, conseguiu escalar o degrau seguinte. Com uma tosse incontrolável, forçou-se a continuar a subir, até que não havia mais degraus. Cambaleou, caiu de joelhos, largou Tilly, e arriou na porta do refeitório.

Alguém debruçou-se sobre ele. Merthin balbuciou:

- Feche o alçapão... pare o fogo!

Um momento depois, ele ouviu uma batida forte, quando a pesada porta de madeira foi fechada.

Ele foi agarrado pelos braços. Abriu os olhos por um momento, e se deparou com o rosto de Caris, virado para baixo; sua visão se tornou turva. Ela arrastouo pelo chão. A fumaça se tornou menos densa, e ele passou a aspirar grandes quantidades de ar para os pulmões. Sentiu a transição de um lugar fechado para o ar livre. Saboreou o gosto do ar noturno limpo. Caris largou-o. Merthin ouviu seus passos voltando ao refeitório, correndo.

Ofegou, tossiu, ofegou, tossiu de novo. Lentamente, a respiração foi se normalizando. Seus olhos pararam de aguar, e ele viu que o dia amanhecia. A tênue claridade mostrava um bando de freiras de pé ao seu redor.

Ele sentou. Caris e outra freira arrastaram Tilly para fora do refeitório. Puseram-na ao lado de Merthin. Caris inclinou-se sobre ela. Merthin tentou falar, mas tossiu. Tentou de novo, e conseguiu perguntar:

- Como ela está?

- Ela foi apunhalada no coração. - Caris começou a chorar. - Já estava morta antes de você alcançá-la.

Merthin abriu os olhos para o dia claro. Dormira até tarde; o ângulo dos raios do sol passando pela janela indicava que era a metade da manhã. Ele recordou os acontecimentos da noite anterior, como um pesadelo; e, por um momento, acalentou a esperança de que pudesse ter sido isso mesmo. Mas o peito doía quando respirava, e a pele do rosto estava dolorosamente chamuscada.

O horror do assassinato de Tilly aflorou à sua mente. E da irmã Nellie também... duas jovens inocentes. Como Deus podia permitir que coisas assim acontecessem?

Ele compreendeu o que o despertara quando seus olhos fixaram-se em Caris, pondo uma bandeja na mesinha perto da cama. Ela estava de costas para ele, mas Merthin percebeu, pela posição dos ombros e a inclinação da cabeça, que Caris sentia-se furiosa. O que não era surpreendente. Ela lamentava por Tilly, enfurecida porque a santidade e a segurança do convento haviam sido violadas.

Merthin levantou-se. Ela puxou dois bancos para a mesinha, e ambos sentaram. Ele estudou afetuosamente o rosto de Caris. Havia linhas de tensão em torno dos olhos. Merthin especulou se ela havia dormido. Uma mancha cinza destacava-se em sua face esquerda, e ele lambeu o polegar para limpá-la, com extrema gentileza.

Ela trouxera pão fresco e manteiga, junto com um jarro de sidra. Merthin descobriu que estava com muita fome e sede, e começou a comer. Caris, reprimindo sua fúria, não comeu nada. Com a boca cheia de pão, Merthin perguntou:

- Como Thomas se sente esta manhã?

- Está deitado no hospital. A cabeça ainda dói, mas ele fala de uma maneira coerente e pode responder a perguntas. Portanto, é provável que não haja lesões permanentes no cérebro.

- Ainda bem. Terá de haver um inquérito sobre as mortes de Tilly e Nellie.

- Já mandei uma mensagem para o xerife de Shiring.

- Provavelmente vão atribuir a culpa a Tam Hiding.

- Tam Hiding morreu.

Merthin acenou com a cabeça. Sentira-se mais animado com a comida, mas agora tornava a cair em depressão. Sabia o que estava para vir. Ele engoliu em seco e empurrou o prato para o lado. Caris continuou:

- Quem quer que esteve aqui ontem à noite queria esconder sua identidade, e por isso disse uma mentira... sem saber que Tam morreu em meu hospital há três meses.

- Quem você acha que pode ter sido?

- Alguém que conhecemos... por isso eles usaram as máscaras.

- É possível.

- Os salteadores não usam máscaras.

Era verdade. Como viviam de qualquer maneira à margem da lei, não se importavam com quem soubesse sobre eles e os crimes que haviam cometido. Os intrusos da noite passada eram diferentes. As máscaras sugeriam que eram cidadãos respeitáveis que tinham medo de ser reconhecidos. Caris continuou, com uma lógica implacável:

- Mataram Nellie para obrigar Joan a abrir o tesouro... mas não precisavam matar Tilly: já estavam dentro do tesouro a essa altura. Queriam Tilly morta por outro motivo. E não se contentaram em deixá-la ali, para ser sufocada pela fumaça e arder até a morte. Também fizeram questão de apunhalá-la no coração. Por alguma razão, queriam ter certeza de sua morte.

- O que isso lhe diz?

Caris não deu uma resposta direta.

- Tilly achava que Ralph queria matá-la.

- Sei disso.

- Um dos homens encapuzados estava prestes a matar você.

Caris sentiu que a voz ficava presa na garganta, e teve de parar de falar. Tomou um gole da sidra de Merthin, para recuperar o controle, antes de conseguir continuar:

- Mas o líder deteve-o. Por que ele faria isso? Já haviam assassinado uma freira e uma nobre... por que o escrúpulo para matar um simples construtor?

- Você acha que foi Ralph.

- Você não?

- Também acho que foi ele. - Merthin deixou escapar um suspiro profundo.

- Reparou na luva?

- Para esconder a falta dos três dedos.

- Não posso ter certeza, e não seríamos capazes de provar qualquer coisa, mas tenho uma terrível convicção a respeito.

Caris levantou-se.

- Vamos verificar os danos.

Foram para o claustro das freiras. As noviças e as órfãs estavam limpando o tesouro, subindo pela escada de pedra em espiral com sacos de madeira queimada e cinzas. Entregavam tudo o que não fora completamente destruído à irmã Joan, e levavam o resto para fora.

Numa mesa no refeitório, Merthin viu os ornamentos da catedral: castiçais de ouro e prata, crucifixos e vasos, tudo bem lavrado e cravejado de pedras preciosas. Ele ficou surpreso.

- Não levaram esses ornamentos?

- Levaram... mas parecem ter mudado de idéia e largaram-nos numa vala fora da cidade. Foram encontrados esta manhã por um camponês que vinha vender seus ovos na cidade. Por sorte, ele era honesto.

Merthin pegou uma aquamanile de ouro, um jarro usado para lavar as mãos, no formato de um galo, as penas do pescoço esculpidas com perfeição.

- É difícil vender uma coisa assim. Só umas poucas pessoas teriam dinheiro para comprar, e a maioria adivinharia que era roubada.

- Os ladrões poderiam derreter e vender o ouro.

- Obviamente, decidiram que daria muito trabalho.

- Talvez.

Caris não estava convencida. Nem Merthin: sua própria explicação não se ajustava. Era evidente que o assalto fora planejado com todo cuidado. Então por que os ladrões não haviam decidido antes o que fazer com os ornamentos? Ou levá-los, ou deixá-los no convento?

Caris e Merthin desceram a escada para a câmara subterrânea. Merthin sentiu um frio de medo no estômago ao recordar a terrível provação da noite anterior. Mais noviças limpavam as paredes e o chão com esfregões e baldes.

Caris mandou as noviças subirem e descansarem um pouco. Quando ficou a sós com Merthin, ela pegou um pedaço de madeira numa prateleira e usou para levantar uma das lajes no chão.

Merthin não notara antes que a pedra não estava tão justa quanto as outras, pois havia um espaço estreito ao redor. Ele viu agora que havia um buraco grande por baixo, contendo uma arca de madeira. Caris inclinou-se para o buraco e tirou a arca. Abriu-a com uma chave que levava no cinto. Estava cheia de moedas de ouro. Merthin ficou surpreso.

- Eles não encontraram isso!

- Há mais três cofres escondidos. Outro no chão e dois nas paredes. Eles não abriram nenhum.

- Não devem ter procurado direito. A maioria dos tesouros tem esconderijos. Todo mundo sabe disso.

- Especialmente os ladrões.

- Portanto, talvez o dinheiro não fosse a maior prioridade.

- Exatamente.

Caris trancou a arca e guardou-a de volta no cofre.

- Se eles não queriam os ornamentos, e não estavam tão interessados em dinheiro a ponto de procurar os esconderijos com mais empenho, por que vieram até aqui?

- Para matar Tilly. O assalto foi um disfarce. Merthin pensou por um momento.

- Não precisavam para isso de uma história de cobertura elaborada. Se tudo o queriam mesmo era matar Tilly, poderiam liquidá-la no dormitório, e fugir antes de as freiras voltarem da Matina. Se fossem cuidadosos... por exemplo, sufocando-a com um travesseiro de penas... nem sequer teríamos certeza de seu assassinato. Teria parecido que ela morreu no sono.

- Então não há explicação para o ataque. Acabaram sem quase nada... apenas com umas poucas moedas de ouro.

Merthin correu os olhos pela câmara subterrânea.

- Onde estão os cartulários?

- Devem ter queimado. Não tem importância. Tenho cópias de tudo.

- Pergaminhos não queimam muito bem.

- Nunca tentei queimar nenhum.

- Um pergaminho arde um pouco, encolhe, fica distorcido, mas nunca se queima por completo.

- Talvez os cartulários tenham sido retirados dos detritos.

- Vamos verificar.

Eles subiram a escada em espiral. No claustro, Caris perguntou a Joan:

- Encontrou algum pergaminho entre as cinzas? Joan sacudiu a cabeça.

- Absolutamente nenhum.

- Podem ter escapado à sua atenção?

- Creio que não... a menos que estivessem reduzidos a cinzas.

- Merthin diz que os pergaminhos nunca queimam completamente. - Caris virou-se para ele. - Quem poderia querer nossos cartulários? Não têm qualquer utilidade para outras pessoas.

Merthin seguiu a meada de sua própria lógica, só para verificar até onde poderia levar.

- Vamos supor que haja um documento em seu poder... ou que você poderia ter... ou que outras pessoas pensam que está em suas mãos... e queriam se apossar.

- O que poderia ser? Merthin franziu o rosto.

- Os documentos são feitos para serem públicos. Só faz sentido escrever alguma coisa para que as pessoas possam ver no futuro. Um documento secreto é uma coisa estranha...

E foi nesse momento que ele se lembrou de uma coisa. Afastou Caris de Joan. Foram andando pelo claustro até um ponto em que ninguém poderia ouvi-los, antes de ele murmurar:

- Conhecemos um documento secreto.

- A carta que Thomas enterrou na floresta.

- Isso mesmo.

- Mas por que alguém haveria de imaginar que estaria no tesouro do convento?

- Pense um pouco. Aconteceu alguma coisa ultimamente que poderia despertar suspeitas?

Uma expressão de consternação estampou-se no rosto de Caris.

- Oh, meu Deus! - exclamou ela.

- Houve alguma coisa.

- Já lhe contei que Lynn Grange nos foi doada pela rainha Isabella por aceitarmos Thomas, há muitos anos.

- E você falou a respeito com alguém?

- Falei... com o bailiff de Lynn. E Thomas ficou furioso por eu ter feito isso. Disse que haveria terríveis conseqüências.

- Portanto, alguém tem medo de que a carta secreta de Thomas esteja em seu poder.

- Ralph?

- Não creio que Ralph tenha conhecimento da carta. Fui o único que viu Thomas enterrá-la. Tenho certeza de que ele nunca contou nada a ninguém. Ralph deve estar agindo por conta de outra pessoa.

Caris parecia assustada.

- A rainha Isabella?

- Ou o próprio rei.

- É possível que o rei tenha ordenado que Ralph invadisse um convento?

- Não pessoalmente. Ele teria usado um intermediário, alguém leal, ambicioso, e absolutamente sem escrúpulos. Encontrei muitos homens assim em Florença, quando freqüentava o palácio do doge. São a ralé do mundo.

- Eu gostaria de saber quem foi.

- Acho que posso adivinhar - murmurou Merthin.

Gregory Longfellow encontrou-se com Ralph e Alan dois dias depois, em Wigleigh, no pequeno solar de madeira. Wigleigh era um lugar mais discreto do que Tench. Havia pessoas demais em Tench Hall acompanhando todos os movimentos de Ralph: os criados, inúmeros servidores, os pais.

Ali em Wigleigh os camponeses tinham muito trabalho extenuante para fazer, e ninguém questionaria Ralph sobre o conteúdo do saco que Alan carregava.

- Imagino que tudo correu conforme o planejado - comentou Gregory.

A notícia sobre a invasão do convento espalhara-se num instante por todo o condado.

- Não tivemos nenhuma dificuldade - respondeu Ralph.

Ele ficou um pouco decepcionado com a reação contida de Gregory. Depois de todos os problemas que enfrentara para se apossar dos cartulários, era de se esperar que Gregory demonstrasse alguma exultação.

- O xerife já anunciou que fará um inquérito, como não podia deixar de ser

- disse Gregory, ainda sóbrio.

- Atribuirão a culpa a salteadores.

- Vocês não foram reconhecidos?

- Usávamos capuzes.

Gregory fitou Ralph com uma expressão estranha.

- Eu não sabia que sua esposa estava no convento.

- Uma coincidência útil - murmurou Ralph. - Permitiu-me matar dois coelhos com uma só cajadada.

A expressão estranha tornou-se ainda mais intensa. O que o advogado estava pensando? Fingiria estar chocado por Ralph ter assassinado a própria esposa? Se assim fosse, Ralph estava pronto para ressaltar que Gregory era cúmplice de tudo o que acontecera no convento... ele fora o instigador. Não tinha o direito de julgar. Ralph esperou que Gregory se manifestasse. Mas depois de algum tempo, o advogado limitou-se a dizer:

- Vamos examinar esses cartulários.

Mandaram a serva, Vira, sair para um longo serviço. Ralph pôs Alan de vigia na porta, para despachar qualquer visitante inesperado. Depois, Gregory derramou na mesa os cartulários que estavam no saco. Sentou da maneira mais confortável e começou a examiná-los. Alguns pergaminhos estavam enrolados e presos com cordoes; outros, alisados e amontoados, um por cima do outro, uns poucos costurados em brochuras. Ele pegou um, leu algumas linhas, à luz forte do sol que entrava pelas janelas abertas, depois jogou o cartulário de volta no saco, e pegou outro.

Ralph não tinha a menor idéia do que Gregory procurava. Ele só dissera que o documento poderia criar embaraços para o rei. E Ralph não imaginava que tipo de documento Caris poderia ter em seu poder e que fosse capaz de produzir esse efeito. Ele logo se cansou de observar Gregory ler, mas não queria se retirar. Entregara o que Gregory queria, e continuaria sentado ali até que o advogado confirmasse a outra metade do acordo.

Gregory continuou a examinar os documentos, com a maior paciência. Um deles atraiu sua atenção, e ele leu até o fim, mas depois jogou-o também no saco, junto com os outros.

Ralph e Alan haviam passado a maior parte da última semana em Bristol. Não era provável que alguém lhes pedisse explicações sobre seus movimentos, mas mesmo assim eles haviam tomado todas as precauções. Beberam em tavernas todas as noites, exceto na noite em que foram a Kingsbridge.

Seus companheiros se lembrariam da cerveja de graça, mas era provável que não se recordassem de que numa noite daquela semana Ralph e Alan haviam se ausentado... ou se lembrassem, com certeza não saberiam se fora na quarta-feira depois da Páscoa, ou na quinta-feira antes de Pentecostes.

Finalmente a mesa ficou vazia e o saco, cheio de novo. Ralph perguntou:

- Não encontrou o que procurava? Gregory não respondeu.

- Você trouxe tudo?

- Tudo o que estava lá.

- Ótimo.

- Quer dizer que não encontrou?

Gregory escolheu suas palavras com todo cuidado, como sempre fazia:

- O item específico não está aqui. Mas encontrei um documento que pode explicar por que... esta questão foi levantada em meses recentes.

- Portanto, está satisfeito - insistiu Ralph.

- Estou.

- E o rei não precisa mais ficar preocupado. Gregory mostrou-se impaciente.

- Não deve se interessar pelas preocupações do rei. Deixe que eu cuido disso.

- Neste caso, posso esperar minha recompensa imediatamente.

- Pode, sim. Será o conde de Shiring até a próxima colheita.

Ralph sentiu um ímpeto de satisfação. O conde de Shiring... finalmente. Conquistara o prêmio pelo qual sempre ansiara, e o pai ainda estava vivo para ouvir a notícia.

- Obrigado.

- Se eu fosse você, iria cortejar lady Philippa.

- Cortejá-la? - indagou Ralph, surpreso. Gregory deu de ombros.

- Ela não tem opção neste caso, é claro. Mas ainda assim as formalidades devem ser observadas. Diga a ela que o rei lhe concedeu permissão para pedi-la em casamento. Diga também que espera que ela venha a amá-lo tanto quanto a ama.

- Ahn... Está bem.

- E leve um presente - aconselhou Gregory.

Na manhã do enterro de Tilly, Caris e Merthin encontraram-se no telhado da catedral ao amanhecer. Era um mundo à parte. Calcular a área das telhas de ardósia era um permanente exercício de geometria na classe de matemática avançada da escola do priorado. Os trabalhadores precisavam de constante acesso para reparos e manutenção, e por isso havia uma rede de caminhos e escadas ligando as encostas e cristas, cantos e depressões, calhas e gárgulas.

A torre da interseção ainda não fora reconstruída, mas a vista do alto da fachada oeste era impressionante.

O priorado já estava bastante movimentado. Seria um funeral importante. Tilly não fora ninguém em vida, mas agora era a vítima de um assassinato notorio, uma mulher da nobreza morta num convento. Seria lamentada por pessoas que nunca haviam lhe dirigido sequer três palavras. Caris preferia desencorajar o comparecimento das pessoas, por causa do risco de disseminar ainda mais a peste, mas não havia nada que ela pudesse fazer.

O bispo já estava em Kingsbridge, hospedado no melhor quarto do palácio do prior... e era por isso que Caris e Merthin haviam passado a noite separados, ela no dormitório das freiras e ele com Lolla, na Holly Bush. O viúvo enlutado, Ralph, fora para um aposento particular no segundo andar do hospital. Seu filho, Gerry, continuava sob os cuidados das freiras. Lady Philippa e a filha, Odila, os únicos outros parentes sobreviventes da jovem morta, também estavam hospedadas no hospital.

Nem Caris nem Merthin haviam falado com Ralph quando ele chegara, no dia anterior. Não havia nada que pudessem fazer, nenhum meio de obter justiça pela morte de Tilly, pois nada podiam provar: mas mesmo assim eles sabiam a verdade. Até agora, não haviam contado a ninguém sobre o que acreditavam: não havia sentido. Durante o funeral hoje, teriam de fingir um comportamento normal com Ralph. O que seria bastante difícil.

Enquanto as personalidades importantes dormiam, as freiras e os empregados do priorado trabalhavam no preparo do almoço para o funeral. A fumaça se elevava da padaria, onde dezenas de pães de trigo compridos, pesando um quilo, já eram assados no forno. Dois homens rolavam um enorme barril de vinho para o palácio do prior. Várias noviças arrumavam bancos e uma mesa de cavaletes no pátio gramado.

Enquanto o sol surgia além do rio, projetando uma claridade dourada enviesada sobre os telhados de Kingsbridge, Caris estudou as marcas deixadas na cidade por nove meses de peste. Lá de cima, podia ver as falhas nas fileiras de casas, como dentes arrancados. Os prédios de madeira estavam sempre desmoronando, por causa de incêndios, danos causados por chuvas, construções incompetentes, ou apenas a passagem do tempo. O que era diferente agora era o fato de que ninguém se dava o trabalho de reconstruí-los. Se sua casa desabava, bastava se mudar para uma das casas vazias na mesma rua. A única pessoa que decidira construir alguma coisa era Merthin, que era considerado como um otimista desvairado, com dinheiro demais.

No outro lado do rio, os coveiros já haviam começado a trabalhar em outro cemitério recém-consagrado. A peste não dava nenhum sinal de que poderia diminuir. Onde acabaria? As casas continuariam a desmoronar, uma de cada vez, até que não restasse mais nenhuma, e a cidade fosse um monte de escombros, com telhas quebradas e madeiras calcinadas por toda parte, com uma catedral deserta no meio de um cemitério de uma centena de acres?

- Não vou permitir que isso aconteça - declarou ela.

Merthin a princípio não entendeu.

- Está se referindo ao funeral? - indagou ele, o rosto franzido. Caris fez um gesto amplo, para abranger a cidade e o mundo além.

- Tudo. Bêbados mutilando uns aos outros. Pais abandonando as crianças doentes na porta de meu hospital. Homens entrando em fila para fornicar com uma mulher bêbada em cima de uma mesa na frente da White Horse. Animais morrendo nos pastos por falta de cuidados. Penitentes seminus se açoitando e depois cobrando pennies de espectadores. E, acima de tudo, uma jovem mãe assassinada aqui, em meu convento. Não me importo se todos vamos morrer da peste. Enquanto ainda estivermos vivos, não vou deixar que o mundo desmorone.

- O que vai fazer?

Ela sorriu, agradecida a Merthin. A maioria das pessoas lhe diria que ela era impotente para lutar contra a situação, mas ele estava sempre disposto a acreditar nela. Ela olhou para os anjos de pedra esculpidos num pináculo, os rostos indefinidos por duzentos anos de vento e chuva; e pensou no espírito que impulsionara os construtores da catedral.

- Vamos restabelecer a ordem e a rotina aqui. Vamos obrigar a população de Kingsbridge a voltar ao normal, quer goste ou não. Vamos reconstruir esta cidade e sua vida, apesar da peste.

- Está certo.

- Este é o momento de agir.

- Porque todos estão furiosos com a morte de Tilly?

- E porque se sentem apavorados ao pensamento de que homens armados podem entrar na cidade à noite e assassinarem quem quiserem. Acham que ninguém mais está seguro.

- O que pretende fazer?

- Direi a todos que isto nunca mais deve acontecer.

- Isto nunca mais deve acontecer! - gritou Caris.

Sua voz ressoou pelo cemitério e ecoou nas velhas paredes cinzentas da catedral.

Uma mulher nunca podia falar como parte de um serviço na igreja, mas a cerimônia à beira do túmulo era uma área neutra, um momento solene que ocorria fora da igreja, uma ocasião em que leigos - como pessoas da família do faleci do - às vezes faziam discursos ou diziam orações em voz alta.

Mesmo assim, Caris se expunha ao fazer isso. O bispo Henri oficiava a cerimônia, ajudado pelo arquidiácono Lloyd e o cônego Claude. Lloyd era membro da diocese há muitos anos, enquanto Claude fora colega de Henri na França. Em companhia clerical tão eminente, era uma audácia para uma freira fazer um discurso não previsto.

Só que essas considerações, é claro, nunca eram importantes para Caris.

Ela falou no momento em que o pequeno caixão era baixado para a sepultura. Várias pessoas da congregação começaram a chorar. Havia pelo menos quinhentas pessoas ali, mas todas se calaram ao som de sua voz.

- Homens armados entraram em nossa cidade à noite e mataram uma jovem no convento... e não vou mais admitir que isso aconteça!

Houve um rumor de concordância da multidão. Caris elevou a voz mais ainda:

- O priorado não vai admitir... o bispo não vai admitir... e os homens e mulheres de Kingsbridge nunca mais vão admitir que isso aconteça!

O apoio se tornou mais clamoroso, as pessoas começando a berrar:

-Nunca mais!

E ainda: on. )b jntEj sb

- Amém.

- As pessoas dizem que Deus mandou a peste. Eu digo que quando Deus nos manda a chuva, procuramos abrigo. Quando Deus nos manda o inverno, acendemos o fogo. Quando Deus nos manda as ervas daninhas, nós as arrancamos pelas raízes. Devemos nos defender!

Ela olhou para o bispo Henri, que parecia confuso. Ele não recebera qualquer aviso prévio sobre aquele sermão; e se fosse solicitado a conceder permissão, teria recusado. Mas podia perceber que Caris tinha o povo do seu lado, e não teve coragem para interferir.

- O que podemos fazer?

Caris olhou ao redor. Todos estavam voltados na sua direção, em expectativa. As pessoas não tinham idéia do que fazer, e queriam que ela oferecesse uma solução. Aplaudiriam qualquer coisa que ela lhes dissesse, se ao menos proporcionasse um pouco de esperança.

- Devemos reconstruir a muralha da cidade! - gritou ela. Todos rugiram em aprovação.

- Uma muralha nova, mais alta, mais forte, e mais comprida do que a antiga que desmoronou! - Ela olhou para Ralph. - Uma muralha que mantenha os assassinos fora da cidade!

A multidão bradou:

- Faremos isso! Ralph desviou os olhos.

- E devemos eleger um novo constable, o homem que vai comandar o policiamento da cidade, com uma força de ajudantes e sentinelas, para manter a lei e a ordem, para impor o bom comportamento!

- Apoiado!

- Haverá uma reunião da guilda da paróquia esta noite para determinar os detalhes práticos. As decisões da guilda serão anunciadas na catedral no próximo domingo. Obrigada e que Deus abençoe todos vocês!

No banquete do funeral, no grande salão de jantar do palácio do prior, o bispo Henri sentou à cabeceira da mesa. A sua direita ficou lady Philippa, a condessa viúva de Shiring. Do outro lado dela sentou o principal enlutado, o viúvo de Tilly, Sir Ralph Fitzgerald.

Ralph exultou por ficar junto de Philippa. Podia admirar seus seios enquanto ela se concentrava na comida. Cada vez que Philippa inclinava-se para a frente, ele podia dar uma espiada pelo decote quadrado do vestido leve de verão.

Ela ainda não sabia, mas não estava longe o dia em que Ralph lhe ordenaria que tirasse as roupas e ficasse nua na sua frente. Poderia então contemplar aqueles seios magníficos em sua totalidade.

O jantar providenciado por Caris foi abundante, mas não extravagante, ele notou. Não havia cisnes dourados ou torres de açúcar, mas havia bastante carne assada, peixe cozido, pão fresco e frutas da primavera. Ele serviu Philippa da sopa de carne de galinha moída e leite de amêndoa. Ela lhe disse:

- Esta é uma terrível tragédia. Você pode contar com a minha mais profunda compaixão.

As pessoas se mostravam tão compadecidas que às vezes, por uns poucos momentos, Ralph pensava em si mesmo como a vítima desesperada de uma terrível perda, e esquecia que fora ele quem cravara a faca no jovem coração de Tiliy.

- Obrigado - respondeu ele, solene. - Tilly era muito jovem. Mas nós, soldados, estamos acostumados à morte súbita. Um dia um homem salva sua vida, e você jura eterna amizade e lealdade; e no dia seguinte ele é abatido por uma flecha do inimigo que atinge seu coração, e você logo o esquece.

Philippa lançou-lhe um olhar estranho, que o fez se lembrar da maneira como Sir Gregory fitara-o, com uma mistura de curiosidade e repulsa; e não pôde deixar de especular sobre o que havia em sua atitude em relação à morte de Tilly que pudesse provocar aquela reação.

- Você tem um filho - disse Philippa.

- Gerry. As freiras estão cuidando dele hoje, mas vou levá-lo para Tench Hall amanhã. Arrumei uma ama-de-leite. - Ralph achou que era a oportunidade para fazer uma insinuação. - Mas é claro que ele precisa dos cuidados de uma nova mãe.

- Tem razão.

Ele lembrou a perda recente de Philippa.

- Mas você sabe o que é perder o cônjuge.

- Fui afortunada em ter meu amado William durante vinte e um anos.

- Deve estar se sentindo solitária agora.

Aquele podia não ser o momento apropriado para o pedido de casamento, mas Ralph pensou em levar a conversa para esse assunto.

- É verdade. Perdi meus três homens... William e nossos dois filhos. O castedo parece bastante vazio.

- Mas talvez não por muito tempo.

Philippa fitou-o aturdida, como se não pudesse acreditar em seus próprios ouvidos. Ralph compreendeu que dissera uma coisa ofensiva. Philippa virou-se para falar com o bispo Henri, em seu outro lado. A direita de Ralph sentava a filha de Philippa, Odila.

- Gostaria de provar um pouco desse pastelão? - perguntou ele. - É de pavão e lebre.

A jovem acenou com a cabeça e Ralph cortou uma fatia.

- Que idade você tem?

- Este ano completarei quinze anos.

Ela era alta e já tinha o corpo da mãe, busto e quadris largos de mulher feita.

- Parece mais velha - comentou ele, olhando para os seios.

Sua intenção era fazer um elogio - os jovens em geral queriam parecer mais velhos -, mas Odila corou e desviou os olhos.

Ralph baixou os olhos para seu prato de madeira e espetou um pedaço de carne de porco cozida com gengibre. Pôs-se a comer de mau humor. Não era muito bom no que Gregory chamava de cortejar.

Caris sentava à esquerda do bispo Henri, com Merthin, como regedor, de seu outro lado. Ao lado de Merthin estava Sir Gregory Longfellow, que viera para o funeral do conde William três meses antes e ainda não deixara a região. Caris tinha de fazer um esforço para reprimir sua repulsa por sentar à mesma mesa que o assassino Ralph e o homem, quase com certeza, que o instigara. Mas tinha um trabalho a fazer naquele jantar. Elaborara um plano para a recuperação da cidade. A reconstrução da muralha era apenas a primeira parte. Para a segunda parte, precisava contar com o bispo Henri do seu lado.

Serviu-lhe uma taça do melhor vinho tinto gascão. O bispo tomou um gole longo, limpou a boca e comentou:

- Você fez um bom sermão.

- Obrigada. - Ela percebeu a censura irônica que havia por trás do elogio. A vida nesta cidade estava degenerando para a desordem e devassidão. Se queremos endireitar, precisamos inspirar as pessoas. Tenho certeza de que concorda.

- É um pouco tarde demais para perguntar se eu concordo com você. Mas eu concordo.

Henri era um pragmático que não se empenhava em batalhas perdidas. Caris contava com isso. Serviu-se de garça assada com pimentão e cravo, mas não começou a comer: ainda tinha muito a dizer.

- Há mais em meu plano do que apenas as muralhas e a nova guarda.

- Era o que eu pensava.

- Creio que deve ter, como cardeal de Kingsbridge, a catedral mais alta da Inglaterra.

Ele elevou as sobrancelhas.

- Eu não esperava por isso.

- Há duzentos anos, este era um dos priorados mais importantes da Inglaterra. Deve voltar a ser. Uma nova torre da catedral simbolizaria o renascimento... e sua eminência entre os bispos.

O bispo deu um sorriso irônico, mas sentia-se satisfeito. Sabia que estava sendo lisonjeado, e gostava.

- A torre também serviria à cidade - acrescentou Caris. - Seria visível à distância, e ajudaria os peregrinos e mercadores a encontrarem o caminho até aqui.

- Como pagaria por isso?

- O priorado é rico.

Henri ficou surpreso de novo.

- O prior Godwyn sempre se queixava de problemas de dinheiro.

- Ele não era um bom administrador.

- Parecia-me bastante competente.

- Dava essa impressão para muitas pessoas, mas sempre tomava as decisões erradas. Logo no início, ele se recusou a consertar o moinho de fulling, que lhe daria um bom rendimento; mas gastou dinheiro neste palácio, que nada rendeu.

- E como as coisas mudaram?

- Dispensei a maioria dos bailiffs, e pus em seu lugar homens mais jovens, dispostos a promover mudanças. Converti metade da terra em pasto, que é mais fácil de administrar nestes tempos de escassez de trabalhadores. E também nos beneficiamos da taxa de herança e dos legados de pessoas que morreram sem herdeiros por causa da peste. O mosteiro é agora tão rico quanto o convento.

- Todos os arrendatários são livres?

- A maioria. Em vez de trabalharem um dia por semana na terra do senhor, guardarem suas ovelhas nos redis do senhor, e vários outros serviços complicados, eles simplesmente pagam o que devem em dinheiro. Todos preferem assim, o que torna a nossa vida mais simples.

- Muitos proprietários de terras, os abades em particular, condenam esse tipo de ocupação. Dizem que estraga os camponeses.

Caris deu de ombros.

- O que perdemos com isso? O poder de impor variações mesquinhas, favorecer alguns servos e perseguir outros, manter a todos subservientes. Monges e freiras não devem tiranizar os camponeses. Eles sabem que colheitas semear e o que podem vender nos mercados. Trabalham melhor quando tomam as decisões.

O bispo ainda parecia desconfiado.

- Acha então que o priorado tem condições de pagar por uma nova torre? Henri esperava que ela lhe pedisse dinheiro, adivinhou Caris.

- Acho, sim... com alguma ajuda dos mercadores da cidade. E é nesse ponto que você pode nos ajudar.

- Pensei que devia haver alguma coisa.

- Não estou pedindo dinheiro. Desejo sua ajuda numa coisa que vale mais do que dinheiro.

- Estou intrigado.

- Quero solicitar ao rei uma carta de burgo.

Ao dizer as palavras, Caris sentiu que suas mãos começavam a tremer. Voltou à batalha que travara com Godwyn dez anos antes, que terminara quando ela fora acusada de bruxaria. Quase morrera na luta pela carta de burgo. As circunstâncias agora eram completamente diferentes, mas nem por isso a carta de burgo era menos importante. Ela largou os talheres e cruzou as mãos no colo, para mantê-las sob controle.

- Entendo... - murmurou Henri, neutro. Caris engoliu em seco e continuou:

- É essencial para a recuperação da vida comercial da cidade. Kingsbridge foi mantida em atraso por muitos anos pelo poder de mão-morta do priorado. Os priores são cautelosos e conservadores, e instintivamente dizem não a qualquer mudança ou inovação.

Os mercadores vivem pela mudança... estão sempre à procura de novos meios de ganhar dinheiro, ou pelo menos os melhores. Se quisermos que os homens de Kingsbridge ajudem a pagar nossa nova torre, devemos lhes conceder a liberdade de que precisam para prosperar.

- Ou seja, uma carta de burgo.

- A cidade teria seu próprio tribunal, faria seus próprios regulamentos, e seria dirigida por uma guilda apropriada, em vez da guilda da paróquia que temos agora, que não conta com um poder de fato.

- Mas o rei concordaria?

- Os reis gostam de burgos, que pagam muitos impostos. No passado,, o prior de Kingsbridge sempre se opôs a uma carta de burgo.

- Acha que os priores são conservadores demais.

- Tímidos. O bispo soltou uma risada.

- A timidez é uma coisa de que você nunca será acusada. Caris insistiu em sua argumentação:

- Acho que uma carta de burgo é essencial se queremos construir a nova torre.

- Eu entendo.

- Quer dizer que concorda?

- Com a torre, ou com a carta de burgo?

- As duas coisas estão juntas.

Henri parecia estar achando engraçado.

- Está me propondo um acordo, madre Caris?

- Se estiver disposto.

- Está bem. Construa a torre, e eu a ajudarei a obter a carta de burgo.

- Não. Deve ser o inverso. Precisamos da carta de burgo primeiro.

- Para isso, devo confiar em você.

- É tão difícil assim?

- Para ser franco, não.

- Ótimo. Então estamos de acordo.

- Estamos.

Caris inclinou-se para a frente e olhou além de Merthin.

- Sir Gregory?

- Pois não, madre Caris? Ela forçou-se a ser polida.

-Já experimentou este coelho com molho de açúcar? Eu recomendo. Gregory aceitou a travessa e serviu-se.

- Obrigado.

- Deve recordar-se de que Kingsbridge não é um burgo.

- Claro que sim.

Gregory usara esse fato, há mais de dez anos, para prevalecer sobre Caris no tribunal, na disputa sobre o moinho de fulling.

- O bispo acha que é tempo de pedirmos uma carta de burgo ao rei. Gregory acenou com a cabeça.

- Creio que o rei pode ser favorável a esse pedido... ainda mais se for apresentado da maneira correta.

Na esperança de que a aversão que sentia não transparecesse em seu rosto, Caris sugeriu:

- Talvez queira fazer a gentileza de nos aconselhar.

- Podemos conversar sobre os detalhes mais tarde?

Gregory exigiria um suborno, com toda certeza, embora preferisse dizer que seriam honorários de advogado.

- Claro - respondeu ela, controlando um estremecimento.

Os criados começaram a tirar a comida. Caris baixou os olhos para seu prato de madeira. Não havia comido nada.

- Nossas famílias são aparentadas - disse Ralph a lady Philippa. Uma pausa e ele se apressou em acrescentar: - Não intimamente, é claro. Mas meu pai descende do conde de Shiring, que era o filho de lady Aliena e Jack Builder.

Ele olhou através da mesa para o irmão Merthin, o regedor de Kingsbridge.

- Creio que herdei o sangue dos condes, e meu irmão, o sangue dos construtores.

Ele fitou Philippa para verificar sua reação. Ela não parecia impressionada.

- Fui criado no círculo de seu falecido sogro, o conde Roland.

- Lembro de você como pajem.

- Servi sob o comando do conde no exército do rei na França. E na batalha de Crécy salvei a vida do príncipe de Gales.

- Uma atitude magnífica - comentou ela, polida.

Ralph tentava fazer com que Philippa o considerasse um igual, a fim de que parecesse mais natural quando anunciasse que ela deveria se tornar sua esposa. Mas parecia não estar surtindo qualquer efeito. Philippa apenas se mostrava entediada e um pouco perplexa com o rumo da conversa.

As sobremesas foram servidas: morangos açucarados, bolachas com mel, tâmaras com passas e vinho temperado. Ralph esvaziou um copo e serviu-se de mais vinho, na esperança de que isso o ajudasse a relaxar no contato com Philippa. Não sabia por que sentia tanta dificuldade para conversar com ela. Porque aquele era o funeral de sua esposa? Porque Philippa era uma condessa? Ou porque fora perdidamente apaixonado por ela durante anos, e ainda não pudesse acreditar que agora ela se tornaria sua esposa?

- Quando sair daqui, voltará para Earlscastle? - perguntou Ralph.

- Isto mesmo. Partimos amanhã.

- Permanecerá ali por muito tempo?

- Para onde mais eu poderia ir? - Ela franziu o rosto. - Por que pergunta?

- Irei visitá-la, se me permitir.

A reação de Philippa foi de frieza.

- Com que finalidade?

- Quero tratar de um assunto que não seria apropriado discutir aqui e agora.

- Como assim?

- Irei visitá-la nos próximos dias.

Ela estava nervosa agora. Elevou a voz ao perguntar:

- O que pode ter para me dizer?

- Como eu disse antes, não seria apropriado falar a respeito hoje.

- Porque é o funeral de sua esposa?

Ele acenou com a cabeça, em confirmação. Philippa empalideceu.

- Oh, meu Deus! Não pode estar sugerindo...

- Já disse que não quero tratar do assunto agora.

- Mas eu preciso saber! - gritou ela. - Está planejando me pedir em casamento? Ralph hesitou, deu de ombros, e acenou com a cabeça.

- Mas por que essa pretensão? Afinal, precisaria da permissão do rei!

Ele fitou-a e alteou as sobrancelhas por um breve instante. Philippa levantouse abruptamente.

- Não!

Todos à mesa se viraram para ela, que fitou Gregory.

- Isso é verdade? O rei quer me casar com ele?

Ela sacudiu o polegar para Ralph, num gesto desdenhoso. Ele sentiu-se apunhalado. Não esperava que Philippa demonstrasse tanta repulsa. Ele seria mesmo tão repelente? Gregory lançou um olhar de censura para Ralph.

- Este não era o momento para tratar do assunto.

- Então é verdade! - exclamou Philippa. - Que Deus me ajude!

Ralph olhou para Odila. Ela o fitava com total horror. O que ele fizera para merecer tamanha aversão?

- Não posso suportar - acrescentou Philippa.

- Por quê? - indagou Ralph. - O que há de errado? Que direito você tem de me desprezar e à minha família?

Ele correu os olhos pela companhia: seu irmão, seu aliado Gregory, o bispo, a prioresa, os nobres menores e os cidadãos eminentes. Todos mantinham-se em silêncio, chocados e aturdidos com a explosão de Philippa.

Ela ignorou-o. Dirigiu-se a Gregory:

- Não farei isso! Está me entendendo? Não farei isso!

Philippa estava pálida de raiva, as lágrimas escorrendo pelas faces. Ralph pensou no quanto ela era linda, até mesmo quando o rejeitava e humilhava de uma maneira tão angustiante.

- A decisão não é sua, lady Philippa, muito menos minha - disse Gregory, friamente. - O rei fará o que achar melhor.

- Você pode me obrigar a usar um vestido de noiva e a marchar pela nave até o altar. - Philippa apontou para o bispo Henri. - Mas quando o bispo perguntar se aceito Ralph Fitzgerald como meu marido, não direi sim! Nunca, mas nunca

mesmo!

Ela saiu furiosa da sala, acompanhada por Odila.

Quando o banquete acabou, os moradores da cidade voltaram para suas casas, enquanto os hóspedes importantes iam para seus aposentos, a fim de dormirem um pouco. Caris supervisionou a limpeza. Sentia pena de Philippa, um pesar profundo, ainda mais por saber - ao contrário de Philippa - que Ralph matara a primeira esposa.

Mas estava mais preocupada com o destino de toda uma cidade, não apenas de uma única pessoa. Sua mente se concentrava nos planos para Kingsbridge. As coisas haviam corrido melhor do que ela imaginara. Os habitantes da cidade haviam-na aplaudido, e o bispo concordara com tudo o que ela propusera. Talvez a civilização voltasse a Kingsbridge, apesar da peste.

Além da porta dos fundos, havia uma pilha de ossos com fragmentos de carne e de cascas de pão. Ela avistou ali o gato de Godwyn, Arcebispo, banqueteando-se na carcaça de um pato. Tratou de afugentá-lo. O gato afastou-se por uns poucos metros, parou em seguida, a cauda de ponta branca erguida numa pose arrogante.

Absorvida em seus pensamentos, Caris subiu a escada do palácio, pensando na maneira como começaria a pôr em prática as mudanças acertadas com Henri. Sem qualquer pausa, abriu a porta do quarto que partilhava com Merthin e entrou.

Por um momento, ficou desorientada. Havia dois homens no meio do quarto, e ela pensou: Devo estar na casa errada. E depois: Devo ter entrado no quarto errado. Só depois se lembrou que seu quarto, sendo o melhor do palácio, fora naturalmente cedido ao bispo Henri.

Os dois homens eram Henri e seu assistente, o cônego Claude. Caris levou um momento para compreender que os dois estavam nus, enlaçados, beijando-se.

- Oh! - balbuciou ela, chocada.

Eles não haviam ouvido a porta ser aberta. Até que ela falou, não sabiam que eram observados. Quando ouviram a exclamação de surpresa, ambos se viraram. Uma expressão de culpa e horror estampou-se no rosto de Henri.

- Desculpem! - murmurou Caris.

Os dois se separaram, de um pulo, como se esperassem que isso pudesse negar o que estava acontecendo; e depois se lembraram que estavam nus. Henri era o mais gordo, barrigudo, braços e pernas roliços, cabelos grisalhos no peito. Claude era mais jovem e mais esguio, com poucos pêlos no corpo, exceto por um triângulo castanho na virilha. Caris nunca antes vira dois pênis eretos ao mesmo tempo.

- Perdão! - exclamou ela, mortificada pelo embaraço. - Engano meu. Eu esqueci.

Ela compreendeu que balbuciava e que os dois homens estavam atordoados. Não importava: nada que qualquer um dissesse poderia melhorar a situação. Caris recuperou o controle, recuou, saiu do quarto, e bateu a porta.

Merthin deixou o salão do banquete em companhia de Madge Webber. Gostava daquela mulher pequena e roliça, com seu queixo projetando-se para a frente e o traseiro, para trás. Admirava a maneira como ela se comportava depois que o marido e os filhos haviam morrido da peste. Mantivera o negócio, fazendo tecido e tingindo-o de acordo com a receita de Caris. Ela comentou agora:

- Caris está certa, como sempre. Não podemos continuar desse jeito.

- Você continuou normalmente, apesar de tudo.

- Meu único problema é encontrar as pessoas para fazer o trabalho.

- Todos estão na mesma situação. Também não consigo arrumar trabalhadores.

- A lã crua é barata, mas os ricos ainda pagam altos preços pelo tecido escarlate - comentou Madge. - Eu poderia vender mais se produzisse mais.

Merthin pensou um pouco.

- Vi um tipo de tear mais rápido em Florença... um tear de pedal.

- É mesmo? Ela fitou-o com uma curiosidade alerta. - Nunca ouvi falar. Ele pensou na melhor maneira de explicar.

- Em qualquer tear, você estica vários fios sobre a armação, para formar o que se chama de urdidura, e depois se passa outro fio na transversal através da urdidura, por baixo de um fio e por cima de outro, por baixo e por cima, de um lado a outro e de volta, para formar a trama.

- É assim mesmo que os teares mais simples funcionam. Os nossos são melhores.

- Sei disso. Para tornar o processo mais rápido, vocês prendem cada segundo fio na urdidura a uma barra móvel, chamada liço. Ao se levantar o liço, esses fios são afastados do resto. Assim, em vez de passar por cima e por baixo, por cima e por baixo, você pode passar o fio da trama direto, através do espaço, num movimento fácil. Depois, você baixa o liço para o retorno da urdidura.

- Isso mesmo. E já que está falando a respeito, posso informar que o fio da urdidura se chama canilha.

- Cada vez que você passa a canilha através da urdidura, da esquerda para a direita, tem de baixá-la, usar as duas mãos para deslocar o liço, pegar a canilha e levá-la da direita para a esquerda.

- Exatamente.

- Num tear de pedal, você move o liço com os pés. Assim, nunca tem de largar a canilha.

- É mesmo? Incrível!

- Não acha que faria uma grande diferença?

- Uma enorme diferença! Seria possível tecer duas vezes mais depressa!

- Foi o que eu pensei. Quer que eu faça um tear de pedal para você experimentar?

- Quero, sim, por favor!

- Não me lembro direito como era. Acho que o pedal operava um sistema de roldanas e alavancas... - Merthin franziu o rosto, pensando. - Seja como for, tenho certeza de que posso descobrir.

Ao final da tarde, quando passava pela biblioteca, Caris deparou-se com o cônego Claude saindo, com um pequeno livro na mão. Ele fitou-a e parou. Os dois pensaram no mesmo instante na cena com que Caris se deparara uma hora antes. A princípio, Claude mostrou-se embaraçado, mas logo um sorriso elevou os cantos de sua boca. Ele ergueu a mão para o rosto, na tentativa de ocultá-lo, obviamente pensando que era um erro achar engraçado. Caris lembrou-se de como os dois homens nus haviam ficado surpresos, e também sentiu um riso impróprio aflorar. Num súbito impulso, ela disse o que estava pensando:

- Vocês dois pareciam tão engraçados!

Claude riu, contra a vontade. Caris também não pôde mais se controlar. A situação se tornou ainda pior, até que os dois caíram nos braços um do outro, as lágrimas escorrendo pelas faces, às gargalhadas.

Ao anoitecer, Caris levou Merthin para o canto sudoeste do terreno do priorado, onde havia uma horta, à beira do rio. O ar era agradável, e a terra úmida exalava uma fragrância de vegetação em crescimento. Caris podia ver cebolas e rabanetes aflorando no solo.

- Então seu irmão será o conde de Shiring - murmurou ela.

- Não se lady Philippa puder interferir.

- Uma condessa tem de fazer o que o rei determina, não é mesmo?

- Todas as mulheres devem ser subservientes aos homens, em teoria - comentou Merthin, com um sorriso. - Mas algumas desafiam as convenções.

- Não entendi o que você está querendo dizer com isso. Ele mudou de assunto abruptamente.

- Que mundo! Um homem assassina a esposa, e depois o rei o eleva ao posto mais alto da nobreza.

- Sabemos que essas coisas acontecem. Mas é chocante quando ocorrem em nossa própria família. Pobre Tilly.

Merthin esfregou os olhos, como se quisesse apagar visões.

- Por que me trouxe até aqui?

- Para falar sobre o elemento final em meu plano: o novo hospital.

- Eu já me perguntava...

- Pode construí-lo aqui? Merthin olhou ao redor.

- Não vejo por que não. É um terreno inclinado, mas todo o priorado foi construído numa encosta. Além do mais, não estamos falando sobre outra catedral. Um ou dois andares?

- Um só. Mas quero que o prédio seja dividido em cômodos de tamanho médio, cada um contendo apenas quatro ou seis camas. Dessa maneira as doenças não vão se espalhar tão depressa de um paciente para todos os outros no hospital. Deve ter sua própria farmácia, uma sala grande e bem iluminada, para o preparo de medicamentos, com uma horta de ervas do lado de fora. E uma latrina espaçosa e arejada, com água encanada, bastante fácil de manter limpa. O mais importante, porém, é que deve ficar a pelo menos cem metros do resto do priorado. Temos de separar os doentes dos sadios. Esta é a característica fundamental.

- Farei alguns desenhos pela manhã.

Caris olhou ao redor. Beijou-o ao constatar que não eram observados.

- Compreende que isso será a culminação do trabalho de minha vida?

- Você tem trinta e dois anos... não é um pouco cedo para falar sobre a culminação do trabalho de sua vida?

- Ainda não aconteceu.

- Não deverá levar muito tempo. Começarei a executar o projeto quando estiver fazendo as escavações para as fundações da nova torre. E assim que o hospital for concluído, posso mandar os pedreiros trabalhar na catedral.

Eles começaram a voltar. Caris podia perceber que o maior entusiasmo de Merthin era pela torre.

- Que altura terá?

- Cento e vinte e quatro metros.

- Qual é a altura de Salisbury?

- Cento e vinte e três metros.

- Então será o prédio mais alto da Inglaterra.

- Pelo menos até que alguém construa outro ainda mais alto.

O que significava que Merthin também realizaria sua ambição, pensou ela. Caris passou o braço pelo dele, enquanto se encaminhavam para o palácio do prior. Sentia-se feliz. O que era estranho, não é mesmo? Milhares de pessoas de Kingsbridge haviam morrido da peste e Tilly fora assassinada, mas Caris estava esperançosa. Porque tinha um plano, é claro. Sempre sentia-se melhor quando tinha um plano. A nova muralha, a força da guarda, a torre, a carta de burgo, e acima de tudo o novo hospital: como encontraria tempo para organizar tudo isso?

De braço dado com Merthin, ela entrou no palácio do prior. O bispo Henri e Sir Gregory estavam ali, absorvidos em conversa com um terceiro homem, de costas para Caris. Havia alguma coisa desagradavelmente familiar no recém-chegado, mesmo de costas. Caris teve um tremor de apreensão. Depois, o homem virou-se e ela viu seu rosto: sardônico, triunfante, desdenhoso, cheio de maldade.

Era Philemon.

Obispo Henri e os outros convidados deixaram Kingsbridge na manhã seguinte. Caris, que vinha dormindo no dormitório das freiras, voltou ao palácio do prior, depois do desjejum, e subiu para o seu quarto. Encontrou Philemon ali.

Era a segunda vez, em dois dias, que ela era surpreendida pela presença de homens em seu quarto. Mas Philemon estava sozinho e vestido, parado junto da janela, olhando para um livro. Ao vê-lo de perfil, ela percebeu que as provações dos últimos seis meses haviam-no deixado mais magro.

- O que está fazendo aqui? - perguntou Caris. Ele fingiu estar surpreso com a pergunta.

- Esta é a casa do prior. Por que eu não deveria estar aqui?

- Porque não é o seu quarto!

- Sou o vice-prior de Kingsbridge. Nunca fui afastado deste posto. O prior morreu. Quem mais deveria viver aqui?

- Eu, é claro.

- Você nem sequer é monge.

- O bispo Henri me fez prior em exercício... e ontem à noite, apesar de sua volta, não me dispensou do posto. Sou superior a você, e deve me obedecer.

- Mas você é uma freira e deve viver com as freiras, não com os monges.

- Há meses venho vivendo aqui.

- Sozinha?

Subitamente, Caris compreendeu que se encontrava num terreno difícil. Philemon sabia que ela e Merthin viviam mais ou menos como marido e mulher. Eram discretos, sem ostentar o relacionamento, mas as pessoas adivinhavam essas coisas, e Philemon tinha o instinto de um animal selvagem pelas fraquezas alheias.

Ela pensou por um momento. Podia exigir que Philemon deixasse o prédio imediatamente. Se necessário, poderia mandar expulsá-lo: Thomas e os noviços obedeceriam a ela, não a Philemon. Mas o que aconteceria em seguida? Philemon faria tudo o que estivesse ao seu alcance para atrair as atenções para o que ela e Merthin faziam no palácio. Criaria uma controvérsia e levaria as pessoas da cidade a tomarem partido. A maioria apoiaria Caris, independentemente do que ela fizesse, tamanha era a sua reputação; mas haveria alguns que censurariam seu comportamento. O conflito enfraqueceria sua autoridade e afetaria tudo o que ela quisesse fazer. Seria melhor admitir a derrota.

- Pode ficar com o quarto, mas não deve usar a sala. Uso-a para reuniões com os cidadãos mais eminentes da cidade e com autoridades visitantes. Quando não estiver nos serviços na catedral, ficará no claustro, não aqui. Um vice-prior não tem um palácio.

Ela se retirou sem lhe dar a chance de argumentar. Salvara as aparências, mas ele vencera.

Caris fora lembrada na noite anterior de toda a astúcia de Philemon. Interrogado pelo bispo Henri, ele parecia ter uma explicação plausível para tudo o que fizera de desonroso. Como justificava o abandono de seu posto no priorado e a fuga para St.-John-in-the-Forest? O mosteiro corria perigo de extinção, e a única maneira de salvá-lo era seguir o ditado popular: ”Parta cedo, vá longe, e permaneça a distância por muito tempo.” Ainda era, pelo consenso geral, a única maneira segura de evitar a peste. O único erro que havia cometido fora o de permanecer por tempo demais em Kingsbridge. Por que então ninguém informara ao bispo sobre esse plano? Philemon lamentava muito, mas ele e os outros monges apenas obedeciam às ordens do prior Godwyn. Então por que ele fugira de St. John quando a peste os alcançara ali? Fora chamado por Deus para cuidar das pessoas de Monmouth, e Godwyn lhe concedera permissão para partir. Como o irmão Thomas não tinha conhecimento dessa permissão, e até negava firmemente que ela tivesse sido concedida? Os outros monges não haviam sido informados da decisão de Godwyn pelo receio de que isso pudesse acarretar ciúmes. Por que então Philemon deixara Monmouth? Encontrara frei Murdo, que lhe dissera que o Priorado de Kingsbridge precisava dele, o que considerara como mais uma mensagem de Deus.

Caris concluíra que Philemon fugira da peste até compreender que devia ser uma daquelas pessoas afortunadas que não eram propensas a contraí-la.

Soubera por Murdo que Caris dormia com Merthin no palácio do prior, e percebera no mesmo instante como podia aproveitar a situação para restaurar sua posição. Deus nada tinha a ver com tudo aquilo.

Mas o bispo Henri acreditara na história de Philemon. Afinal, Philemon tomava o cuidado de parecer humilde ao ponto da subserviência. Henri não conhecia o homem, e não era capaz de ver abaixo da superfície.

Ela deixou Philemon no palácio e foi para a catedral. Subiu pela longa e estreita escada em espiral na torre de noroeste. Encontrou Merthin no sótão do pedreiro, fazendo desenhos no chão de projetos, à luz das janelas altas viradas para o norte.

Caris estudou com interesse o que ele havia desenhado. Era sempre difícil decifrar plantas, ela já sabia. As linhas delgadas traçadas na argamassa tinham de ser transformadas, na visão do observador, em largas paredes de pedra, com janelas e portas.

Merthin fitou-a em expectativa, enquanto ela estudava seu trabalho. Era evidente que ele esperava uma reação entusiasmada.

A princípio, Caris ficou aturdida com o desenho. Não parecia nem um pouco com um hospital.

- Mas você desenhou... um claustro!

- Exatamente. Por que um hospital tem de ser uma sala comprida e estreita como a nave de uma igreja? Você quer que o lugar seja claro e arejado. Por isso, em vez de comprimir os quartos juntos, preferi dispô-los em torno de um quadrângulo.

Ela visualizou a construção: o jardim central, o prédio ao redor, as portas dando para quartos com quatro ou seis camas, as freiras circulando de um para outro ao abrigo da galeria coberta.

- É mesmo inspirado. Eu nunca teria pensado nisso, mas parece perfeito.

- Pode cultivar as ervas no jardim, onde as plantas terão sol, mas ficarão protegidas do vento. Haverá uma fonte no meio do jardim, para fornecer água fresca, que pode ser drenada através da latrina ao sul até o rio.

Caris beijou-o, exultante.

- Você é tão inteligente!

Mas depois ela se lembrou da notícia que tinha para lhe dar. Merthin devia ter percebido que seu rosto murchava, pois perguntou:

- Qual é o problema?

- Temos de sair do palácio. - Caris relatou a conversa com Philemon e por que tivera de ceder. - Prevejo grandes conflitos com Philemon... e não quero ser intransigente logo nessa questão.

- Faz sentido.

O tom de voz era razoável, mas ela sabia pela expressão de Merthin que ele estava furioso. Olhava para o desenho, mas sem pensar realmente a respeito.

- E há mais uma coisa - acrescentou Caris. - Estamos dizendo a todas as pessoas que elas devem viver tão normalmente quanto possível... ordem nas ruas, um retorno à vida familiar, não mais orgias embriagadas. Devemos dar exemplo.

Ele acenou com a cabeça.

- Uma prioresa vivendo com seu amante é uma coisa tão anormal quanto muitas outras.

Mais uma vez, o tom sereno de Merthin era contestado pela expressão furiosa.

- Sinto muito - murmurou ela.

- Eu também.

- Mas não queremos arriscar tudo o que ambos desejamos... sua torre, meu hospital, o futuro da cidade.

- Não, não queremos. Mas para isso estamos sacrificando nossa vida em comum.

- Não por completo. Teremos de dormir separados, o que é angustiante, mas ainda assim teremos muitas oportunidades de ficar junto.

-Onde?

Caris deu de ombros.

- Aqui, por exemplo.

Um ímpeto de malícia dommou-a. Ela afastou-se de Merthin, levantando o hábito devagar, e foi até a porta no alto da escada.

- Não vejo ninguém subindo - murmurou Caris, levantando o hábito até a cintura.

- Pode ouvir de qualquer maneira - disse Merthin. - A porta lá embaixo faz bastante barulho quando alguém a abre.

Ela inclinou-se, fingindo olhar para baixo, pela escada.

- Pode ver alguma coisa fora do comum do lugar em que você se encontra? Merthin? Quase sempre ela podia tirá-lo da fúria com seu comportamento jovial.

- Posso ver uma coisa piscando para mim - disse ele, rindo de novo.

Caris voltou para junto dele, ainda com o hábito levantado até a cintura, um sorriso triunfante.

- Não precisamos renunciar a tudo.

Ele sentou num banco e puxou-a. Caris passou as pernas pelos lados de suas coxas e sentou em seu colo.

- É melhor você trazer um colchão de palha aqui para cima - murmurou ela, a voz rouca de desejo.

Merthin acariciou os seios.

- Como eu explicaria a necessidade de uma cama no sótão do pedreiro?

- Basta dizer que os pedreiros precisam de um lugar macio para meter suas ferramentas.

Uma semana depois, Caris e Thomas Langley foram inspecionar a reconstrução da muralha da cidade. Era um trabalho grande, mas simples. Depois de tudo definido, o trabalho podia ser realizado por jovens pedreiros e aprendizes inexpenentes. Caris sentia-se contente pelo fato de o projeto ser iniciado tão depressa. Era necessário que a cidade fosse capaz de se defender em momentos de crise... mas ela tinha um motivo mais importante. Convencer as pessoas a se precaverem contra ameaças do exterior levaria naturalmente, ela esperava, a uma nova consciência da necessidade de ordem e bom comportamento dentro das muralhas.

Ela achava profundamente irônico que o destino a levasse a assumir esse papel. Nunca fora alguém que obedecesse às normas. Sempre desprezara a ortodoxia e desafiara as convenções. Achava que tinha o direito de criar suas próprias regras. Agora, era obrigada a reprimir as pessoas que só queriam se divertir. Era um milagre que ninguém a tivesse chamado de hipócrita até agora.

A verdade era que algumas pessoas floresciam num clima de anarquia, o que já não acontecia com outras. Merthin era um daqueles que exibiam o melhor quando não havia restrições. Ela recordou a escultura em madeira que ele fizera das virgens sábias e das insensatas. Era diferente de qualquer outra coisa que qualquer pessoa já vira antes... e por isso Elfric inventara aquela desculpa para destruí-la. Os regulamentos só serviam para prejudicar Merthin. Mas homens como Barney e Lou, os trabalhadores do matadouro, precisavam de leis para impedir que mutilassem um ao outro em brigas embriagadas.

Mesmo assim, ela sabia que sua posição era precária. Quando se tentava impor a lei e a ordem, era difícil explicar que as regras não se aplicavam a você pessoalmente.

Ela pensava a respeito ao voltar para o priorado com Thomas. Fora da catedral, encontrou a irmã Joan andando de um lado para outro, na maior agitação.

- Estou furiosa com Philemon - explicou Joan. - Ele alega que você roubou o dinheiro dele, e que tenho de devolvê-lo.

- Procure se acalmar.

Caris levou Joan para o pórtico da catedral. Sentaram num banco de pedra.

- Respire fundo e me conte o que aconteceu.

- Philemon foi me procurar depois da Terça e disse que precisava de dez shillings para comprar velas para o santuário de St. Adolphus. Eu disse que teria de falar com você.

- E isso mesmo.

- Ele ficou irritado, e gritou que era dinheiro dos monges, que eu não tinha o direito de recusar. Exigiu que eu lhe entregasse minhas chaves e acho que tentaria arrancá-las de mim se eu não ressaltasse que elas seriam inúteis, pois ele não sabia onde ficava o tesouro.

- Foi uma boa idéia manter a localização em segredo - comentou Caris. Thomas estava parado ao lado delas, escutando.

- Ele escolheu um momento em que eu não estava aqui... o covarde.

- Joan, você tinha todo o direito de recusar, e lamento muito que ele a tenha pressionado - disse Caris. - Thomas, vá procurá-lo e leve-o para conversar comigo no palácio.

Ela deixou-os. Atravessou o cemitério, absorvida em seus pensamentos. Era evidente que Philemon queria criar problemas. Mas ele não era do tipo valentão arrogante, a quem ela podia subjugar com facilidade. Era um adversário astucioso, e ela teria de tomar o maior cuidado.

Quando abriu a porta do palácio do prior, Caris encontrou Philemon na sala, sentado à cabeceira da mesa comprida. Ela parou na porta.

- Você não deveria estar aqui. Eu lhe disse expressamente...

- Eu estava à sua procura.

Caris compreendeu que teria de trancar o prédio. De outra forma, Philemon sempre encontraria uma maneira de escarnecer de suas ordens. Ela fez um esforço para controlar sua raiva.

- Veio me procurar no lugar errado.

- Mas encontrei-a agora, não é mesmo?

Caris estudou-o. Ele fizera a barba e cortara os cabelos depois que chegara, e usava um hábito novo. Era um membro típico do priorado, calmo e autoritário. Ela disse:

- Conversei com irmã Joan. Ela ficou muito aborrecida.

- E eu também.

Caris compreendeu que Philemon sentava na cadeira grande, enquanto ela estava de pé. Era como se ele estivesse no comando, e ela não passasse de uma suplicante.

- Se precisa de dinheiro, deve me pedir.

- Sou o vice-prior!

- E eu sou prior em exercício, um posto superior. - Caris elevou a voz. Portanto, a primeira coisa que você deve fazer é se levantar quando falar comigo!

Ele estremeceu, chocado com o tom de Caris, mas logo se controlou. Com uma lentidão insultuosa, ele saiu da cadeira.

Caris sentou em seu lugar e deixou-o ficar de pé. Philemon parecia inabalável.

- Soube que está usando o dinheiro do mosteiro para pagar a nova torre.

- Isso mesmo, por ordem do bispo.

Um lampejo de irritação passou pelo rosto de Philemon. Era evidente que ele esperara se insinuar nas boas graças do bispo e convertê-lo em seu aliado contra Caris. Até mesmo quando menino ele já bajulava as pessoas com autoridade. Fora assim que obtivera o ingresso no mosteiro.

- Devo ter acesso ao dinheiro do mosteiro - declarou Philemon. - É meu direito. Os bens dos monges devem ficar sob meus cuidados.

- Você os roubou na última vez em que ficaram aos seus cuidados. Ele empalideceu: a flecha acertara direto no alvo.

- Um absurdo! - exclamou Philemon, tentando encobrir seu embaraço. - O prior Godwyn levou tudo para guardar em segurança.

- Ninguém vai levar nada para ”guardar em segurança” enquanto eu estiver no cargo de prior em exercício.

- Deve pelo menos me entregar os ornamentos. São jóias sagradas, que devem ser cuidadas por padres, não por mulheres.

- Thomas tem cuidado dos ornamentos, levando-os para as missas e devolvendo-os ao tesouro depois.

- Não é satisfatório...

Caris lembrou-se de uma coisa e interrompeu-o:

- Além do mais, você não devolveu tudo o que levou.

- O dinheiro...

- Estou falando dos ornamentos. Há um castiçal de ouro desaparecido, presente da guilda dos fabricantes de velas. O que aconteceu com esse castiçal?

A reação de Philemon surpreendeu-a. Esperava por outra negativa veemente, mas ele se mostrou embaraçado e murmurou:

- Sempre foi guardado no quarto do prior. Ela franziu o rosto.

- E o que aconteceu?

- Eu o mantive separado dos outros ornamentos. Caris ficou atônita.

- Está me dizendo que você ficou com o castiçal durante todo esse tempo?

- Godwyn me pediu para cuidar do castiçal.

- E por isso você o levou em suas viagens para Monmouth e outros lugares?

- Era o desejo dele.

Era uma história absolutamente implausível, e Philemon sabia disso. O fato é que ele roubara o castiçal.

- Ainda está com você?

Ele acenou com a cabeça, contrafeito. Nesse momento, Thomas entrou na sala.

- Então é aqui que você está!

- Thomas, suba e reviste o quarto de Philemon - pediu Caris.

- O que devo procurar?

- O castiçal de ouro perdido.

- Não precisa procurar - interveio Philemon. - Vai encontrá-lo no prie-dieu. Thomas subiu. Voltou pouco depois com o castiçal. Entregou-o a Caris. Era pesado. Ela examinou-o, curiosa. Os nomes dos doze membros da guilda dos fabricantes de velas estavam gravados na base, em letras pequenas. Por que Philemon levara o castiçal? Não fora para vender, ou derreter o ouro, sem dúvida: ele tivera bastante tempo para se desfazer do castiçal, mas não o fizera. Parecia que queria apenas ter seu próprio castiçal de ouro. Ficava olhando e acariciando o castiçal quando estava sozinho em seu quarto? Ela fitou-o e viu lágrimas em seus olhos.

- Vai tirá-lo de mim? - perguntou Philemon. Era uma pergunta estúpida.

- Claro. Pertence à catedral, não a seu quarto. Os fabricantes de velas deram o castiçal de presente para a glória de Deus e o embelezamento dos serviços da catedral, não para o prazer particular de um monge.

Ele não argumentou. Parecia desconsolado, mas não penitente. Não compreendia que fizera uma coisa errada. Sua dor não era de remorso por um erro cometido, mas de pesar pelo que lhe fora tirado. Philemon não tinha o sentimento de vergonha, ela compreendeu.

 

- Creio que isto encerra nossa conversa sobre o seu acesso aos bens do priorado - disse Caris a Philemon. - Pode se retirar agora.

Ele saiu. Ela entregou o castiçal a Thomas.

- Leve-o para a irmã Joan e diga a ela para guardá-lo. Avisaremos aos fabricantes de velas que o castiçal foi encontrado, e será usado no próximo domingo.

Thomas também saiu.

Caris permaneceu onde estava, pensando. Philemon a odiava. Ela não perdeu tempo a especular por quê: ele fazia inimigos mais depressa do que um mascate podia fazer amigos. Mas era um inimigo implacável e completamente sem escrúpulos. Era evidente que estava determinado a criar problemas para ela em todas as oportunidades. Cada vez que o superasse nessas pequenas escaramuças, a maldade de Philemon arderia com mais intensidade. Mas se o deixasse vencer, ele seria encorajado em sua insubordinação.

Seria uma batalha sangrenta, e ela não podia nem imaginar como acabaria.

Os flagelantes voltaram ao final de uma tarde de sábado, em junho.

Caris estava no escritório, escrevendo seu livro. Decidira começar pela peste e como enfrentá-la, e depois passar para as doenças menores. Descrevia as máscaras de linho para o rosto que introduzira no hospital em Kingsbridge. Era difícil explicar que as máscaras eram eficientes, mas não ofereciam uma imunidade total. A única salvaguarda segura era deixar a cidade antes de a peste chegar e permanecer longe até que ela fosse embora, mas isso nunca seria uma opção para a maioria das pessoas. A proteção parcial era um conceito difícil para pessoas que acreditavam em curas milagrosas. A verdade era que algumas freiras mascaradas ainda pegavam a peste, mas não tantas quanto se poderia esperar de outro modo. Ela decidiu comparar as máscaras com escudos. Um escudo não garantia que um guerreiro sobrevivesse ao ataque, mas com certeza lhe proporcionava uma valiosa proteção. Por isso mesmo, nenhum cavaleiro partia para a batalha sem levar seu escudo. Ela escrevia isso, numa folha de pergaminho nova, quando ouviu os flagelantes. Soltou um grunhido de consternação.

Os tambores soavam como passos de bêbados, as gaitas-de-foles eram como uma criatura selvagem experimentando os tormentos da dor, e os pequenos sinos mais pareciam a paródia de um funeral. Ela saiu do escritório no momento mesmo em que a procissão entrava no priorado. Havia mais pessoas desta vez, setenta ou oitenta, e pareciam ainda mais desvairadas do que antes: os cabelos compridos e desgrenhados, as roupas em farrapos, os gritos estridentes mais lunáticos. Já haviam circulado pela cidade e atraído uma extensa esteira de espectadores, alguns olhando por diversão, outros participando, rasgando as roupas e se açoitando.

Caris não esperava vê-los de novo. O papa, Clemente VI, condenara os flagelantes. Mas ele estava muito longe, em Avignon, e cabia a outros impor o cumprimento de suas decisões.

Frei Murdo liderava os flagelantes, como antes. Quando ele se aproximou da fachada oeste da catedral, Caris descobriu espantada que as enormes portas estavam escancaradas. Não autorizara isso. Thomas não as abriria sem lhe perguntar. Portanto, Philemon devia ser o responsável. Ela recordou que Philemon encontrara-se com Murdo em suas viagens. Adivinhou que Murdo informara Philemon com antecedência de sua visita, e que os dois haviam conspirado para garantir o acesso dos flagelantes à catedral. Não restava a menor dúvida de que Philemon argumentaria que era o único sacerdote ordenado no priorado, e por isso tinha o direito de decidir que tipo de serviços religiosos seriam realizados na catedral.

Mas qual era o motivo de Philemon? Por que ele se importava com Murdo e os flagelantes?

Murdo levou a procissão para a nave da catedral. Os moradores da cidade entraram em seguida. Caris hesitou, não querendo se envolver numa manifestação daquele tipo. Mas sentia a necessidade de saber o que estava acontecendo, e por isso também entrou, relutante, atrás da multidão.

Philemon estava no altar. Frei Murdo juntou-se a ele. Philemon ergueu as mãos para pedir silêncio, antes de dizer:

- Viemos aqui hoje para confessar nossa iniqüidade, para nos arrependermos de nossos pecados, e fazer penitência em propiciação.

Philemon não era um orador, e suas palavras não despertaram muita reação; mas o carismático Murdo assumiu o comando em seguida.

- Confessamos que nossos pensamentos são lascivos e nossos atos são sórdidos! - gritou ele.

As pessoas explodiram em aprovação. Os procedimentos foram os mesmos da ocasião anterior. Levadas ao frenesi pela pregação de Murdo, as pessoas se adiantavam, berravam que eram pecadoras, e se açoitavam. Os moradores da cidade assistiam, quase que hipnotizados pela nudez e violência. Era uma encenação, sem dúvida, mas os golpes eram reais. Caris não podia deixar de estremecer com os cortes e vergões nas costas dos penitentes. Alguns já haviam feito aquilo muitas vezes antes e eram cobertos de cicatrizes. Outros tinham ferimentos recentes, que foram reabertos pelos novos açoites.

Alguns moradores da cidade logo se juntaram à flagelação. Ao se adiantarem, Philemon estendia uma tigela de coleta. Caris compreendeu que a motivação dele era o dinheiro. Ninguém podia confessar e beijar os pés de Murdo enquanto não pusesse uma moeda na tigela de Philemon. Murdo estava de olho na coleta, e Caris compreendeu que os dois dividiriam as moedas mais tarde.

Houve um crescendo dos tambores e gaitas, à medida que mais e mais moradores da cidade se adiantavam. A tigela de Philemon logo ficou cheia. As pessoas ”perdoadas” dançavam frenéticas, ao som da música alucinada.

Depois de algum tempo, todos os penitentes estavam dançando, e mais ninguém se adiantou. A música chegou a um clímax e parou abruptamente. A esta altura, Caris notou que Murdo e Philemon haviam desaparecido. Presumiu que tinham saído pelo transepto sul, a fim de contar seus lucros no claustro dos monges.

O espetáculo terminara. Os dançarinos caíram no chão, exaustos. Os espectadores começaram a se dispersar, saindo pelas portas abertas para o ar puro do final da tarde de verão. Não demorou muito para que os seguidores de Murdo encontrassem forças para deixar a catedral. Caris também saiu. Ela percebeu que a maioria dos flagelantes seguia para a Holly Bush.

Foi com alívio que voltou ao sossego e frescura do convento. Enquanto o crepúsculo caía no claustro, as freiras compareceram à Véspera, e jantaram em seguida. Antes de deitar, Caris foi verificar a situação no hospital. O lugar estava lotado; a peste continuava, sem qualquer indicação de que poderia diminuir.

Encontrou pouca coisa passível de crítica. A irmã Oonagh adotava os mesmos princípios de Caris: máscaras no rosto, nada de sangrias, higiene meticulosa. Caris já da se retirar quando um dos flagelantes foi trazido para o hospital.

Era um homem que desmaiara na Holly Bush e batera com a cabeça num banco. Suas costas ainda sangravam, e Caris calculou que a perda de sangue era tão responsável quanto o golpe na cabeça pela perda da consciência.

Oonagh lavou os ferimentos com água salgada enquanto ele estava inconsciente. Para fazê-lo recuperar os sentidos, ela ateou fogo ao chifre de um cervo e pôs a fumaça pungente debaixo de seu nariz. Depois, fez o homem beber dois copos de água misturada com cravo e açúcar, para substituir o líquido que o corpo perdera.

Mas ele foi apenas o primeiro. Vários outros homens e mulheres foram trazidos para o hospital, sofrendo de alguma combinação de perda de sangue, excesso de bebidas fortes e ferimentos sofridos em acidentes ou brigas. A orgia de flagelação multiplicou por dez o número normal de pacientes da noite de sábado. Havia também um homem que se flagelara tantas vezes que tinha as costas pútridas. Finalmente, depois de meia-noite, trouxeram uma mulher que havia sido amarrada, açoitada e estuprada.

A fúria foi aumentando em Caris enquanto ela trabalhava com as outras freiras para cuidar desses pacientes. Todos os seus ferimentos derivavam de noções pervertidas de religião apregoadas por homens como Murdo. Diziam que a peste era a punição de Deus pelo pecado, e que as pessoas poderiam evitar a peste se punissem umas às outras daquela maneira. Era como se Deus fosse um monstro vingativo empenhado num jogo com regras insanas. Caris acreditava que o senso de justiça de Deus devia ser mais sofisticado que o do líder de uma gangue de meninos com doze anos de idade.

Ela trabalhou até a Matina na manhã de domingo, depois foi dormir por duas ou três horas. Quando se levantou, saiu para conversar com Merthin.

Ele vivia agora na mais imponente das casas que construíra na ilha do Leproso. Ficava na praia ao sul, no meio de um extenso jardim, recém-plantado, com macieiras e pereiras. Contratara um casal de meia-idade para cuidar de Lolla e da casa. Seus nomes eram Arnaud e Emily, mas chamavam um ao outro de Arn e Em. Caris encontrou Em na cozinha, e foi orientada para o jardim.

Merthin mostrava a Lolla como seu nome era quando escrito, usando uma vareta de ponta fina para desenhar as letras na terra. Fez a filha rir quando desenhou um rosto no ”o”. Ela tinha quatro anos; era uma linda menina, de pele azeitonada e olhos castanhos.

Ao observá-los, Caris sentiu uma pontada de pesar. Dormia com Merthin há quase meio ano. Não queria ter um bebê, pois isso acarretaria o fim de todas as suas ambições; contudo, uma parte dela lamentava não ter engravidado. Sentia-se dividida, e era provavelmente por isso que assumia o risco. Mas tal não acontecera. Ela especulava se perdera a capacidade de conceber. Talvez a poção que Mattie Wise lhe dera para abortar a gravidez, dez anos antes, tivesse afetado o útero de alguma forma. Como sempre, ela gostaria de saber mais sobre o corpo e seus problemas.

Merthin beijou-a. Deram uma volta pelo jardim, com Lolla correndo à frente, brincando em sua imaginação, num jogo elaborado e impenetrável, que envolvia conversar com cada árvore. O jardim parecia inacabado, todas as plantas novas, a terra trazida de outros lugares para enriquecer o solo pedregoso da ilha.

- Vim conversar com você sobre os flagelantes. - Caris relatou o que acontecera no hospital na noite anterior. - Quero bani-los de Kingsbridge.

- Boa idéia. Todo o espetáculo é apenas um meio para Murdo ganhar mais dinheiro.

- E Philemon também. Era ele quem segurava a tigela da coleta. Pode conver sar com a guilda da paróquia?

- Claro.

Como prior em exercício, Caris assumia o papel de senhor do solar. Teóricamente, podia tomar a iniciativa de banir os flagelantes, sem ter de consultar ninguém. Mas o pedido de carta de burgo já fora apresentado ao rei, e ela esperava entregar em breve a administração da cidade à guilda da paróquia; por isso, considerava a atual situação como uma transição. Além do mais, era sempre sensato obter apoio antes de tentar impor o cumprimento de uma norma.

- Eu gostaria que o constable levasse Murdo e seus seguidores para fora da cidade antes do serviço do meio-dia.

- Philemon ficará furioso.

- Ele não deveria abrir a catedral para aquela gente sem consultar ninguém. ( Caris sabia que haveria problemas, mas não podia permitir que o medo da reação de Philemon a impedisse de fazer a coisa certa para a cidade.

- Temos o papa do nosso lado - acrescentou ela. Se cuidarmos do problema com discrição e rapidez, poderemos resolvê-lo antes mesmo que Philemon levante para a primeira refeição.

- Está bem - concordou Merthin. - Tentarei reunir os homens da guilda na Holly Bush.

- Eu me encontrarei com você ali dentro de uma hora.

A guilda da paróquia estava bastante desfalcada, como todas as outras organizações na cidade, mas um punhado de eminentes mercadores sobrevivera à peste, inclusive Madge Webber, Jack Chepstow e Edward Slaughterhouse. O novo constable, Mungo, filho de John, também compareceu. Seus ajudantes ficaram lá fora, aguardando as instruções.

A discussão não foi prolongada. Nenhum dos cidadãos eminentes participara da orgia e todos desaprovavam aquelas exibições públicas. A decisão do papa foi o fator fundamental. Formalmente, Caris, no posto de prior em exercício, promulgou uma norma que proibia os açoites nas ruas e a nudez pública. Os violadores seriam expulsos da cidade pelo constable, a pedido de qualquer membro da guilda. A guilda aprovou em seguida uma resolução de apoio ao novo regulamento.

Depois, Mungo subiu e tirou frei Murdo da cama.

Murdo não se deixou levar sem protestos. Ao descer a escada, debateu-se, gritou, chorou, orou e praguejou. Dois ajudantes de Mungo agarraram-no pelos braços e quase o carregaram para fora da taverna. Na rua, ele se tornou mais clamoroso. Mungo seguiu na frente, e os homens da guilda foram atrás. Alguns adeptos de Murdo apareceram para protestar, mas também foram levados sob escolta. Uns poucos moradores da cidade acompanharam o grupo, descendo a rua principal a caminho da ponte de Merthin. Nenhum dos cidadãos levantou qualquer objeção ao que estava sendo feito, e Philemon não apareceu.

Até mesmo alguns dos que haviam se açoitado no dia anterior não disseram nada agora, parecendo um pouco envergonhados.

A multidão ficou para trás quando o grupo começou a atravessar a ponte. Com uma audiência reduzida, Murdo se tornou mais quieto. Sua indignação virtuosa foi substituída por um rancor fumegante. Solto na outra extremidade da ponte dupla, ele se afastou cambaleando, sem olhar para trás. Alguns discípulos seguiram-no, indecisos.

Caris teve o pressentimento de que nunca mais tornaria a vê-lo.

Ela agradeceu a Mungo e seus homens, e voltou ao convento.

No hospital, Oonagh estava dando alta às vítimas de acidentes durante a noite, a fim de abrir espaço para os novos doentes com a peste. Caris trabalhou no hospital até meio-dia, depois saiu, agradecida, liderando a procissão que seguiu até a catedral para a missa principal do domingo. Descobriu que aguardava ansiosa por uma ou duas horas de salmos e orações, com um sermão tedioso: seria repousante.

Philemon exibia uma expressão irada quando entrou com Thomas e os monges noviços. Era evidente que já tomara conhecimento da expulsão de Murdo. Sem dúvida considerara os flagelantes como uma fonte de renda pessoal, independente de Caris. Essa esperança fora destruída, e ele estava furioso.

Por um momento, Caris especulou o que ele faria em sua raiva. Depois, pensou: Deixe-o fazer o que quiser. Se não fosse por isso, seria por outra coisa. Qualquer coisa que ela fizesse deixaria Philemon furioso, mais cedo ou mais tarde. Não havia sentido em ficar se preocupando com isso.

Ela cochilou durante as orações, mas despertou quando ele iniciou o sermão. O púlpito parecia acentuar sua falta de charme, e seus sermões eram em geral mal recebidos. Naquele dia, porém, ele atraiu a atenção da audiência desde o início, ao anunciar que seu assunto seria a fornicação.

Ele tomou como texto um versículo da primeira carta de São Paulo aos primeiros cristãos de Corinto. Leu o texto em latim e depois traduziu, com voz retumbante:

- Agora eu escrevo para que vocês não mantenham a companhia de alguém que é um fornicador!

Ele discorreu de uma maneira tediosa sobre o significado de manter companhia.

- Não comam com essas pessoas, não bebam com essas pessoas, não convivam com essas pessoas, não falem com essas pessoas.

Mas Caris especulava ansiosa sobre onde ele queria chegar com o sermão. Ele não ousaria atacá-la diretamente do púlpito, não é mesmo? Ela olhou através do coro para Thomas, no outro lado, com os monges noviços, e percebeu que ele estava preocupado.

Tornou a olhar para o rosto de Philemon, sombrio de ressentimento, e compreendeu que ele era capaz de qualquer coisa.

- A quem isso se refere? - indagou ele, retórico. - Não aos forasteiros, o santo escreve expressamente, pois cabe a Deus julgá-los. Mas ele diz também que vocês são os juizes daqueles em sua companhia.

Philemon apontou para a congregação.

- Vocês! - Ele tornou a baixar os olhos para o livro e leu: - Afastem de vocês essa pessoa iníqua!

A congregação manteve silêncio. Todos sentiam que aquilo não era uma exortação generalizada para um comportamento melhor. Philemon tinha uma mensagem.

- Devemos olhar ao nosso redor - continuou ele. - Em nossa cidade... em nossa igreja... em nosso priorado! Existem fornicadores aqui? Se existem, devem ser postos para fora!

Não havia mais qualquer dúvida na mente de Caris de que Philemon se referia a ela. E todos os habitantes da cidade mais espertos já deveriam ter chegado à mesma conclusão. Mas o que ela podia fazer? Não havia como se levantar e contestá-lo. Não podia sequer sair da catedral, pois acentuaria o argumento de Philemon e deixaria óbvio, até para os membros mais estúpidos da congregação, que ela era o alvo daquela diatribe.

Por isso, ela limitou-se a escutar, mortificada. Philemon falava bem, pela primeira vez em sua vida. Não hesitava nem tropeçava nas palavras, enunciava com clareza e projetava a voz, conseguia variar o tom monótono habitual. Para ele, o ódio era uma inspiração.

Ninguém da expulsá-la do priorado, é claro. Mesmo que fosse uma prioresa incompetente, o bispo a manteria no cargo, quanto menos não fosse por causa da escassez crônica de clérigos. Igrejas e mosteiros por todo o país estavam fechando porque não contavam com ninguém para oficiar os serviços ou cantar os salmos. Os bispos sentiam-se desesperados para designar mais padres, monges e freiras, não para dispensá-los. De qualquer forma, os moradores da cidade se revoltariam contra qualquer bispo que tentasse se livrar de Caris.

Mesmo assim, o sermão de Philemon era pernicioso. Agora seria mais difícil para os líderes da cidade fecharem os olhos à ligação de Caris com Merthin. Esse tipo de coisa abalava o respeito das pessoas. Perdoavam um homem por um pecadilho sexual mais depressa do que a uma mulher. E, como ela tinha uma angustiante percepção, sua posição convidava à acusação de hipocrisia.

Ela continuou sentada, rangendo os dentes, durante toda a peroração, que foi a mesma mensagem, só que transmitida em voz ainda mais alta, e pelo restante do serviço. Assim que freiras e monges deixaram a catedral, em procissão, Caris foi para sua farmácia, e sentou para escrever uma carta ao bispo Henri, solicitando a transferência de Philemon para outro mosteiro.

Em vez disso, Henri promoveu-o.

Duas semanas haviam se passado desde a expulsão de frei Murdo. Estavam no transepto norte da catedral. O dia de verão era quente, mas no interior da catedral estava sempre fresco. O bispo sentava numa cadeira de madeira toda esculpida, enquanto os outros se acomodavam em bancos: Philemon, Caris, o arquidiácono Lloyd e o cônego Claude.

- Estou designando-o para prior de Kingsbridge - disse Henri a Philemon.

Philemon sorriu de satisfação e lançou um olhar triunfante para Caris.

Ela ficou consternada. Duas semanas antes oferecera a Henri uma longa lista de sólidas razões para que Philemon não tivesse permissão para permanecer numa posição de responsabilidade ali... a começar pelo roubo de um castiçal de ouro. Mas parecia que sua carta surtira o efeito oposto.

Ela abriu a boca para protestar, mas Henri lançou-lhe um olhar furioso e ergueu a mão. Por isso, Caris decidiu se manter calada, para descobrir o que ele tinha a dizer. O bispo continuou a se dirigir a Philemon:

- Estou fazendo isso apesar... não por causa... de seu comportamento desde que voltou para cá. Tem sido maldoso e criado problemas, e se a Igreja não estivesse tão desesperada por pessoas, eu não o promoveria nem em uma centena de anos.

Então por que fazê-lo agora?, especulou Caris.

- Mas precisamos ter um prior e simplesmente não é satisfatório que a prioresa assuma esse papel, apesar de sua indubitável capacidade.

Caris teria preferido que ele designasse Thomas. Mas Thomas recusaria, ela sabia. Ficara com muitas cicatrizes da luta encarniçada pela sucessão do prior Anthony, doze anos antes, e jurara que nunca mais se envolveria numa eleição no priorado. Era bem possível que o bispo já tivesse conversado antes com Thomas, sem o conhecimento de Caris, e soubesse de tudo isso.

- Mas há várias condições para sua designação - continuou Henri, olhando para Philemon. - Primeiro, não será confirmado no posto até que Kingsbridge tenha obtido a carta de burgo. Você não é capaz de administrar a cidade, e não tenho a menor intenção de deixá-lo nessa posição. Durante a espera, portanto, madre Caris continuará como prior em exercício. Você viverá no dormitório dos monges. O palácio será trancado. Se você se comportar mal durante esse período de espera, sua nomeação será revogada.

Philemon parecia furioso e magoado por isso, mas se manteve de boca fechada. Sabia que vencera e não pretendia argumentar sobre as condições.

- Segundo, terá seu próprio tesouro, mas o irmão Thomas será o tesoureiro. Nenhum dinheiro será gasto nem qualquer objeto precioso será retirado do tesouro sem o seu conhecimento e consentimento. Além disso, ordenei a construção de uma nova torre e autorizei os pagamentos de acordo com a programação preparada por Merthin Bridger. O priorado fará esses pagamentos dos fundos dos monges, e nem Philemon nem qualquer outra pessoa terá o poder de alterar essa disposição. Não quero a metade de uma torre.

Merthin pelo menos teria seu sonho realizado, pensou Caris, agradecida. Henri virou-se para ela.

- Tenho mais uma ordem a dar, e envolve você, madre prioresa. O que será agora?, pensou Caris.

- Houve uma acusação de fornicação.

Caris olhou aturdida para o bispo, pensando no momento em que o surpreendera com Claude, os dois completamente nus. Como ele ousava levantar esse assunto?

- Não direi nada sobre o passado - continuou Henri. - Para o futuro, no entanto, não é possível que a prioresa de Kingsbridge tenha um relacionamento com um homem.

Ela teve vontade de dizer: Mas você vive com seu amante! Só que notou subitamente a expressão de Henri. Era um olhar suplicante. O bispo implorava para que ela não fizesse uma acusação que o denunciaria como hipócrita. Ele sabia que era injusto o que fazia, compreendeu Caris, mas não tinha opção. Philemon forçara-o a essa posição.

Mesmo assim, ela sentiu-se tentada a pressioná-lo com uma censura. Só que de nada adiantaria. Henri estava acuado contra a parede e fazia o melhor que podia nas circunstâncias. Caris decidiu não falar nada. Henri acrescentou:

- Posso ter sua garantia, madre prioresa, que deste momento em diante não haverá absolutamente a menor base para essa acusação?

Caris olhou para o chão. Já passara por isso antes. Mais uma vez, sua opção era renunciar a tudo por que trabalhara - o hospital, a carta de burgo, a torre ou se afastar de Merthin. E, mais uma vez, ela optou pelo trabalho. Ergueu a cabeça e fitou o bispo nos olhos.

- Pode, milorde bispo. Tem minha palavra.

Ela conversou com Merthin no hospital, os dois cercados por outras pessoas. Tremia toda e estava à beira das lágrimas, mas não podia vê-lo em particular. Sabia que sua determinação enfraqueceria se ficassem a sós, que o abraçaria e diria que o amava, prometeria deixar o convento e casar com ele. Por isso, mandou um recado, pedindo que ele viesse ao seu encontro. Recebeu-o na porta do hospital, falou em tom descontraído, os braços cruzados com toda força sobre o peito, a fim de não se deixar levar pela tentação e estender a mão, num gesto afetuoso, para tocar no corpo que tanto amava.

Quando acabou de relatar o ultimato do bispo e sua decisão, Merthin dava a impressão de que poderia matá-la.

- Esta é a última vez - declarou ele.

- Como assim?

- Se fizer isso, será permanente. Não vou mais esperar, na esperança de que um dia você se torne minha esposa.

Caris teve a sensação de que ele a agredira. Merthin continuou, desferindo outro golpe a cada frase:

- Se fala mesmo sério, vou tentar esquecê-la agora. Estou com trinta e três anos. Não tenho toda a eternidade... meu pai está morrendo aos cinqüenta e oito anos de idade. Casarei com outra mulher, terei mais filhos, e serei feliz em meu jardim.

A imagem descrita por Merthin torturou-a. Caris mordeu o lábio, tentando controlar sua dor, mas lágrimas quentes escorriam por suas faces. Ele se mostrou implacável.

- Não vou desperdiçar minha vida amando você - disse Merthin, fazendo-a sentir que fora apunhalada. - Deixe o convento agora, ou fique para sempre.

Caris tentou fitá-lo com firmeza.

- Não o esquecerei. Sempre o amarei.

- Mas não o suficiente.

Ela permaneceu calada por um longo momento. Não era isso, ela sabia. Seu amor não era fraco ou inadequado. Apenas acarretava opções insuportáveis. Mas parecia que de nada adiantaria argumentar.

- É nisto que você realmente acredita? - indagou ela.

- Parece óbvio.

Caris acenou com a cabeça, embora não concordasse com a posição de Merthin.

- Lamento muito - murmurou ela. - Lamento mais do que em qualquer outra ocasião de minha vida.

- Eu também.

E Merthin virou-se e deixou o prédio.

Sir Gregory Longfellow voltou para Londres, mas retornou com uma rapidez surpreendente, como se fosse uma bola quicando na muralha da grande cidade. Apareceu em Tench Hall na hora do jantar, com uma aparência perturbada, a respiração forte através das narinas dilatadas, os cabelos grisalhos emaranhados e úmidos de suor. Entrou com algo menos do que o seu ar habitual de quem tinha o comando de todos os homens e animais que cruzavam seu caminho. Ralph e Alan estavam de pé junto da janela, examinando um novo tipo de adaga, de lâmina larga, conhecido como basilardo. Sem dizer nada, Gregory arriou o corpo alto na cadeira toda lavrada de Ralph: independentemente do que pudesse ter acontecido, ainda era importante demais para esperar por um convite para sentar.

Ralph e Alan fitaram-no em expectativa. A mãe de Ralph torceu o nariz, numa expressão de censura: não gostava de maus modos. Gregory finalmente declarou:

- O rei não gosta de ser desobedecido. Isso assustou Ralph.

Ele olhou ansioso para Gregory, enquanto se perguntava o que fizera que poderia ser interpretado como desobediência pelo rei. Não se lembrou de nada. Nervoso, ele murmurou:

- Lamento que Sua Majestade esteja insatisfeito... espero que não seja comigo.

- Você está envolvido - disse Gregory, com uma vaguidão irritante. - E eu também. O rei acha que há um mau precedente quando seus desejos são frustrados.

- Concordo plenamente.

- É por isso que você e eu sairemos daqui amanhã, iremos a Earlscastle para conversar com lady Philippa e obrigá-la a casar com você.

Então era isso. Ralph sentiu-se aliviado. Não podia ser considerado responsável pela recalcitrância de Philippa, com toda justiça... não que a justiça fizesse alguma diferença para os reis. Mas lendo nas entrelinhas, ele compreendeu que a pessoa que arcara com a culpa era Gregory.

Por isso, Gregory estava agora determinado a salvar o plano do rei e redimir-se. Havia fúria e rancor na expressão de Gregory quando ele acrescentou:

- No momento em que eu acabar com ela, prometo que lady Philippa estará suplicando para casar com você.

Ralph não podia imaginar como isso seria possível. Como a própria Philippa ressaltara, podia-se levar uma mulher a desfilar pela nave, mas não havia como obrigá-la a dizer ”Eu aceito”. Ele disse a Gregory:

- Alguém me contou que o direito de uma viúva a recusar o casamento é garantido pela Magna Carta.

Gregory lançou-lhe um olhar irritado.

- Não me lembre. Cometi o erro de mencionar isso para Sua Majestade. Neste caso, especulou Ralph, que ameaças ou promessas Gregory planejava usar para dobrar Philippa à sua vontade? Ele próprio não podia pensar em qualquer outro meio para obrigá-la a casar que não fosse seqüestrá-la pela força, e levá-la para alguma igreja isolada, onde um padre generosamente subornado se mostraria surdo aos seus gritos de ”Não, nunca!”.

Eles partiram na manhã seguinte, bem cedo, com uma pequena comitiva. Era a época da colheita. No North Field, os homens ceifavam os talos altos de centeio, enquanto as mulheres seguiam atrás, prendendo as hastes em feixes.

Ultimamente, Ralph passara mais tempo preocupado com a colheita do que com Philippa. Isso acontecia não por causa do tempo, que era favorável, mas por causa da peste. Ele também tinha poucos arrendatários e quase nenhum trabalhador. Muitos lhe haviam sido roubados por senhores inescrupulosos, como a prioresa Caris, que seduziam os homens de outros proprietários com a oferta de salários altos e arrendamentos vantajosos. Em desespero, Ralph concedera arrendamentos livres a alguns de seus servos, o que significava que não tinham qualquer obrigação de trabalhar em suas terras pessoais... uma disposição que o deixara com uma escassez de pessoal na época da colheita. Em conseqüência, era provável que uma parte de suas colheitas apodrecesse nos campos.

Mas ele achava que seus problemas poderiam acabar se conseguisse casar com lady Philippa. Teria dez vezes mais terra do que controlava agora, mais a receita de uma dúzia de outras fontes, inclusive tribunais, florestas, mercados e moinhos. E sua família recuperaria sua legítima posição na nobreza. Sir Gerald seria o pai de um conde antes de morrer.

Ele se perguntou de novo o que Gregory tinha em mente. Philippa assumira uma posição difícil, ao desafiar a formidável determinação e as poderosas ligações de Gregory. Ralph não gostaria de estar em seus sapatos de seda cheios de contas.

Chegaram em Earlscastle pouco antes de meio-dia. O som das gralhas escarnecendo das ameias sempre lembrava Ralph do tempo que ele passara ali como pajem, a serviço do conde Roland... os dias mais felizes de sua vida, ele pensava às vezes. Mas o castelo estava muito quieto agora, sem um conde. Não havia pajens empenhados em jogos violentos no primeiro círculo, nem cavalos de guerra relinchando e batendo com os cascos no solo, enquanto eram tratados e exercitados fora dos estábulos, nem homens de armas jogando dados nos degraus da torre.

Philippa estava no antiquado salão, em companhia de Odila e de um punhado de mulheres de sua corte. Mãe e filha trabalhavam juntas numa tapeçaria, sentadas lado a lado, num banco na frente do tear. Tudo indicava que seria uma cena de floresta quando ficasse pronta. Philippa cuidava dos fios marrons para os troncos das árvores, enquanto Odila usava os fios verdes brilhantes para as folhas.

- Muito bonito, mas precisa de mais vida - comentou Ralph, com uma voz que procurou tornar jovial e cordial. - Faltam umas poucas aves e coelhos, talvez alguns cachorros perseguindo um veado.

Philippa manteve-se imune a seu charme, como sempre. Levantou-se e recuou, afastando-se dele. A jovem fez a mesma coisa. Ralph notou que mãe e filha tinham a mesma altura.

- Por que veio até aqui? - indagou Philippa.

Seja como você quiser, pensou Ralph, ressentido. Ele virou de lado para Philippa.

- Sir Gregory tem uma coisa para lhe dizer.

Ralph foi até uma janela e olhou para fora, como se estivesse entediado.

Gregory cumprimentou formalmente as duas mulheres. Disse que esperava não estar incomodando-as. Era uma mentira, pois ele não estava nem um pouco preocupado com a privacidade delas, mas a cortesia pareceu abrandar Philippa, que o convidou a sentar.

- O rei está aborrecido com você, condessa - anunciou Gregory. Philippa baixou a cabeça.

- Lamento muito ter desagradado Sua Majestade.

- Ele deseja recompensar seu leal servidor, Sir Ralph, tornando-o conde de Shiring. Ao mesmo tempo, estará lhe proporcionando um jovem e vigoroso marido, um bom padrasto para sua filha. - Uma pausa e Gregory acrescentou, ignorando o estremecimento de Philippa: - O rei está surpreso com seu obstinado desafio.

Philippa parecia assustada, como não podia deixar de ser. As coisas seriam diferentes se ela contasse com um irmão ou um tio para se levantar em sua defesa. Mas a peste exterminara sua família. Como uma mulher sem parentes do sexo masculino, ela não tinha ninguém para protegê-la da ira do rei.

- O que ele vai fazer? - indagou ela, apreensiva.

- O rei não mencionou a palavra ”traição”... ainda.

Ralph não tinha certeza se Philippa poderia ser legalmente acusada de traição, mas mesmo assim a ameaça fê-la empalidecer. Gregory continuou:

- Ele me pediu, em primeira instância, para argumentar com você. Philippa disse:

- O rei, é claro, considera o casamento como uma questão política...

- E é mesmo uma questão política - interrompeu Gregory. - Se sua linda filha aqui tivesse a fantasia de se apaixonar pelo filho encantador de uma criada da cozinha, você diria a ela, como eu digo a você, que as mulheres da nobreza não podem casar apenas com quem desejam; e você a trancaria em seu quarto e mandaria açoitar o rapaz na frente da janela, até que ele renunciasse à sua filha para sempre.

Philippa parecia afrontada. Não gostava de ouvir preleções sobre os deveres de sua posição de um mero advogado.

- Compreendo as obrigações de uma viúva aristocrática - declarou ela, altiva. - Sou uma condessa, minha avó era condessa, e minha irmã também foi condessa até morrer da peste. Mas o casamento não é apenas política. Também é uma questão de coração. Nós, mulheres, ficamos à mercê dos homens que são nossos senhores e amos, e que têm o dever de decidir sabiamente nosso destino; e suplicamos que não seja ignorado por completo o que sentimos no coração. Essas súplicas são em geral ouvidas.

Ela estava transtornada, Ralph podia perceber, mas ainda assim mantinha o controle, mostrava-se competente. O uso da palavra ”sabiamente” tinha uma insinuação de sarcasmo.

- Em tempos normais, talvez você tivesse razão, mas estes são dias estranhos

- respondeu Gregory. - Em geral, quando o rei olha ao redor à procura de alguém que esteja à altura de um condado, sempre encontra uma dúzia de homens sábios, fortes e vigorosos, leais a ele e ansiosos em servi-lo de todas as maneiras que puderem. O rei poderia designar qualquer um para o título com absoluta confiança. Mas agora que muitos dos melhores homens foram abatidos pela peste, o rei é como uma dona de casa que vai ao peixeiro no final da tarde... obrigada a aceitar qualquer coisa que ele ainda tenha disponível.

Ralph entendeu a força do argumento, mas também se sentiu insultado. Preferiu, no entanto, fingir que não notara.

Philippa mudou de rumo. Acenou para uma criada e pediu:

- Traga um jarro do melhor vinho gascão, por favor. E Sir Gregory almoçará aqui. Comeremos ovelha com alho e alecrim.

- Pois não, milady.

- E muito gentil, condessa - murmurou Gregory.

Philippa era incapaz de ser coquete. Fingir que era apenas hospitaleira, sem qualquer outro motivo, da além de sua índole. Voltou direto ao assunto.

- Sir Gregory, tenho de lhe dizer que meu coração, minha alma e todo o meu ser se revoltam contra a perspectiva de casar com Sir Ralph Fitzgerald.

- Mas por quê? - indagou Gregory. - Ele é um homem como qualquer outro.

- Não é, não.

Os dois falavam sobre Ralph como se ele não estivesse presente, de uma forma que ele achou profundamente ofensiva. Mas Philippa estava desesperada, e diria qualquer coisa que pensasse; e Ralph sentia-se curioso, querendo saber o que havia nele que ela tanto detestava. Philippa fez uma pausa, ordenando os pensamentos.

- Se eu dissesse estuprador, torturador, assassino... as palavras pareceriam abstratas demais.

Ralph ficou atordoado. Não pensava em si mesmo dessa maneira. Claro que torturara pessoas, a serviço do rei. Também estuprara Annet. Assassinara vários homens, mulheres e crianças em seus dias como salteador...

Pelo menos, consolou-se Ralph, Philippa não parecia ter adivinhado que fora ele o homem encapuzado que matara Tilly, sua própria esposa. Philippa continuou:

- Os seres humanos têm dentro deles algum elemento que os impede de fazer essas coisas. É a capacidade... não, a compulsão para sentir a dor de outra pessoa. Não podemos evitar. Você, Sir Gregory, não poderia estuprar uma mulher, porque sentiria sua dor e agonia, sofreria com ela, e isso o compeliria a se conter. Não poderia torturar ou assassinar pelo mesmo motivo. Alguém que carece da capacidade de sentir a dor de outra pessoa não é um homem, muito embora possa andar sobre duas pernas e falar inglês.

Ela inclinou-se para a frente e baixou a voz, mas ainda assim Ralph pôde ouvi-la com toda clareza:

- E eu não irei para a cama com um animal. Ralph explodiu:

- Não sou um animal!

Ele esperava que Gregory o apoiasse. Em vez disso, Gregory pareceu ceder.

- Esta é sua palavra final, lady Philippa?

Ralph estava espantado. Gregory deixaria o comentário passar sem resposta, como se fosse no mínimo uma meia verdade?

- Preciso que volte ao rei e diga que sou sua súdita leal e obediente, que desejo conquistar seu favor, mas que não posso casar com Ralph mesmo que o arcanjo Gabriel me ordene.

- Entendo. - Gregory levantou-se. - Não ficaremos para o jantar.

O que significava tudo aquilo? Ralph esperava que Gregory apresentasse sua surpresa, uma arma secreta, algum suborno ou ameaça irresistível. Será que o esperto advogado não tinha nenhuma carta escondida debaixo da elegante manga de brocado?

Philippa também se mostrou surpresa pelo súbito encerramento da discussão.

Gregory encaminhou-se para a porta. Ralph não tinha opção que não seguido. Philippa e Odila ficaram olhando para os dois, sem saber o que deduzir daquela saída fria. As damas de companhia permaneceram em silêncio.

- Por favor, suplique ao rei para ser misericordioso - murmurou Philippa.

- Ele será, milady - garantiu Gregory. - Autorizou-me a informá-la que, diante de sua obstinação, não a obrigará a casar com um homem que detesta.

- Obrigada! - exclamou Philippa. Salvou minha vida!

Ralph abriu a boca para protestar. Havia uma promessa. Cometera sacrilégio e assassinato por aquela recompensa. Não podiam lhe tirar tudo agora, não é mesmo?

Mas Gregory falou primeiro:

- Em vez disso, a ordem do rei é para que Ralph case com sua filha. - Ele fez uma pausa. Apontou para a jovem alta de quinze anos parada ao lado da mãe e acrescentou, como se houvesse necessidade de enfatizar de quem estava falando:

- Odila.

Philippa soltou uma exclamação de espanto e Odila gritou. Gregory fez uma reverência.

- Bom-dia para as duas.

- Espere! - balbuciou Philippa. Gregory não lhe deu atenção e saiu. Atordoado, Ralph seguiu-o.

Gwenda estava exausta quando acordou. Era a época da colheita, e ela passava todas as horas dos longos dias de agosto nos campos. Wulfric deslocava a foice de um lado para outro, incansável, do amanhecer ao anoitecer, ceifando o trigo. O trabalho de Gwenda era formar os feixes. Durante o dia inteiro ela se abaixava e pegava os caules ceifados, abaixava e pegava, até que as costas pareciam arder em dor. Quando ficava escuro demais para ver qualquer coisa, ela cambaleava de volta para casa e caía na cama, deixando a família se alimentar com qualquer coisa que encontrasse no armário.

Wulfric despertou ao amanhecer, e seus movimentos penetraram no sono profundo de Gwenda. Ela fez um esforço para se levantar. Todos precisavam de uma primeira refeição substancial, e ela pôs na mesa carne de carneiro fria, pão, manteiga e cerveja forte. Sam, de dez anos, levantou-se logo, mas Davy, que tinha apenas oito anos, teve de ser sacudido e puxado para se levantar.

- Esta terra nunca foi cultivada apenas por um homem e sua esposa - resmungou Gwenda, enquanto comiam.

Wulfric respondeu de uma forma positiva irritante.

- Você e eu fizemos a colheita sozinhos no ano em que a ponte desabou comentou ele, jovial.

- Eu era doze anos mais jovem na ocasião.

- Mas é mais bonita agora.

Ela não estava com a menor disposição para galanteios.

- Mesmo quando seu pai e irmão eram vivos, vocês contratavam trabalhadores na época da colheita.

- Não tem importância. É nossa terra, semeamos tudo, e vamos nos beneficiar com a colheita, em vez de ganharmos apenas salários de um penny por dia. Quanto mais trabalhamos, mais ganhamos agora. Não é o que você sempre quis?

- Eu sempre quis ser independente e auto-suficiente, se é disso que você está falando. - Gwenda foi até a porta. - Um vento oeste e umas poucas nuvens no céu.

Wulfric ficou preocupado.

- Precisamos torcer para que não chova por mais dois ou três dias.

- Acho que não choverá antes. Vamos, meninos, é hora de ir para o campo. Vocês podem comer enquanto andam.

Ela estava fazendo uma trouxa com pão e carne para o almoço quando Nate Reeve passou pela porta.

- Oh, não! - exclamou Gwenda. - Não hoje! Estamos quase terminando a nossa colheita!

- O senhor também tem uma colheita para ser feita - declarou o bailiff. Nate foi seguido por seu filho de dez anos, Jonathan, conhecido como

Jonno, que no mesmo instante começou a fazer caretas para Sam.

- Dê-nos mais três dias para cuidarmos de nossa própria terra - pediu Gwenda.

- Nem se dê o trabalho de discutir comigo a respeito. Vocês devem ao senhor um dia de trabalho por semana, e dois na época da colheita. Hoje e amanhã vão colher a cevada dele em Brookfield.

- O segundo dia é normalmente perdoado. Essa é a prática há muito tempo.

- Era mesmo assim nos tempos de trabalho abundante. O senhor está desesperado agora. Tantas pessoas negociaram arrendamentos livres que quase não há mais ninguém para cuidar de suas colheitas.

- Então as pessoas que negociaram com você e exigiram ser liberadas de seus deveres costumeiros são recompensadas, enquanto pessoas como nós, que aceitaram as condições antigas, são punidas com o dobro de trabalho nas terras do senhor.

Ela lançou um olhar acusador para Wulfric, recordando como ele a ignorara quando lhe dissera para negociar as condições com Nate.

- É mais ou menos isso - confirmou Nate, indiferente.

- Que inferno! - exclamou Gwenda.

- Não pragueje - disse Nate. - Terão almoço de graça. Haverá pão de trigo e um novo barril de cerveja. Não é uma coisa ótima?

- Sir Ralph alimenta com aveia os cavalos que pretende montar durante o dia inteiro.

- Não demorem - recomendou Nate, saindo.

Seu filho, Jonno, mostrou a língua para Sam, que tentou agarrá-lo. Mas Jonno se esquivou e correu atrás do pai.

Gwenda e sua família arrastaram-se pelos campos até o lugar em que a cevada de Ralph esperava para ser colhida, balançando ao vento. Começaram a trabalhar. Wulfric ceifava e Gwenda formava os feixes. Sam seguia atrás, recolhendo os caules que ela esquecia, até ter quantidade suficiente para um feixe, quando os entregava à mãe para amarrar. As outras famílias que ainda trabalhavam nas condições antigas de arrendamento também estavam no campo, enquanto os servos mais espertos cuidavam de sua própria colheita.

Quando o sol alcançou o ponto mais alto no céu, Nate apareceu numa carroça, com um barril atrás. Cumprindo a palavra, forneceu o delicioso pão fresco de trigo a todas as famílias. Depois de comerem, os adultos deitaram à sombra para descansar, enquanto as crianças brincavam.

Gwenda cochilava quando ouviu uma erupção de gritos infantis. Percebeu no mesmo instante, pela voz, que não era nenhum dos seus filhos que gritava. Mesmo assim, levantou-se de um pulo. E viu seu filho Sam brigando com Jonno Reeve. Embora fossem mais ou menos da mesma idade e tamanho, Sam derrubara Jonno e o esmurrava e chutava sem piedade. Gwenda encaminhou-se para os meninos, mas Wulfric foi mais rápido, puxando Sam com uma das mãos.

Gwenda olhou consternada para Jonno. O menino sangrava pelo nariz e boca, tinha o rosto machucado em torno de um olho, já começando a inchar. Comprimia as mãos contra a barriga, gemendo e chorando. Gwenda já vira muitas brigas entre meninos, mas aquela era diferente. Jonno levara uma tremenda surra.

Ela ficou olhando para seu filho de dez anos. Não havia qualquer marca no rosto de Sam: ao que parecia, Jonno não conseguira acertar um único soco. Sam não exibia nenhum sinal de remorso pelo que fizera. Em vez disso, sua expressão era arrogante e triunfante. Era uma expressão vagamente familiar, e Gwenda vasculhou a memória à procura da recordação. Não demorou muito para se lembrar de quem ela já vira com aquela expressão depois de surrar alguém.

Vira a mesma expressão no rosto de Ralph Fitzgerald, o verdadeiro pai de Sam.

Dois dias depois que Ralph e Gregory visitaram Earlscastle, lady Philippa foi a Tench Hall.

Ralph estivera considerando a perspectiva de casar com Odila. Era uma linda jovem, mas podiam-se comprar lindas jovens por uns poucos pennies em Londres. Ralph já tivera a experiência de ser casado com alguém que era pouco mais que uma criança. Depois que passara o excitamento inicial, ele se sentira entediado e irritado.

Especulara por algum tempo se poderia casar com Odila e ter Philippa também. A idéia de casar com a filha e ter a mãe como amante fascinara-o. Podia ter as duas juntas ao mesmo tempo. Fizera sexo uma ocasião com uma dupla de mãe e filha, ambas prostitutas, em Calais, e o elemento de incesto criara um senso excitante de depravação.

Mas, pensando bem, ele sabia que isso não aconteceria. Philippa jamais consentiria. Poderia procurar meios de coagi-la, mas ela não se deixava intimidar com facilidade.

- Não quero casar com Odila - declarara ele a Gregory, ao voltarem a cavado de Earlscastle.

- Nem precisará casar - assegurara Gregory, que se recusara a explicar. Philippa chegou com uma dama de companhia e um guarda, mas sem Odila.

Ao entrar em Tench Hall, pela primeira vez ela não parecia orgulhosa. Nem mesmo parecia bonita, pensou Ralph: era evidente que não dormia há duas noites.

Haviam acabado de sentar para jantar: Ralph, Alan, Gregory, um punhado de pajens, um bailiff. Philippa era a única mulher na sala.

Ela foi até Gregory.

A cortesia que ele demonstrara antes fora esquecida. Não se levantou, e fitou-a de uma maneira grosseira de alto a baixo, como se tivesse à sua frente uma serva com alguma queixa.

- E então? - indagou ele, depois de um longo momento de silêncio.

- Casarei com Ralph.

- É mesmo? - A expressão de surpresa era zombeteira. - Por que se decidiu agora?

- Eu mesma casarei com ele, para não ter de sacrificar minha filha.

- Milady, parece pensar que o rei a levou a uma mesa cheia de pratos e a convidou a escolher o que mais gosta - disse ele, sarcástico. - Está enganada.

O rei não pergunta qual é o seu prazer. Ele ordena. Você desobedeceu a uma ordem, e por isso ele deu outra. Não lhe deu uma opção. Philippa baixou os olhos.

- Lamento muito por meu comportamento. Por favor, poupe minha filha.

- Se dependesse de mim, eu recusaria seu pedido, como punição por sua intransigência. Mas talvez seja melhor suplicar para Sir Ralph.

Ela olhou para Ralph. Ele viu a raiva e o desespero nos olhos de Philippa. E sentiu-se excitado. Era a mulher mais altiva que já conhecera, e conseguira dobrar seu orgulho. Queria deitar com ela agora, imediatamente.

Mas ainda não acabara.

- Tem alguma coisa para me dizer? - indagou ele.

- Peço desculpas.

- Venha até aqui.

Ralph sentava à cabeceira da mesa. Ela aproximou-se e parou ao seu lado. Ele acariciou a cabeça de um leão esculpido no braço da cadeira.

- Continue.

- Sinto muito tê-lo rejeitado antes. Gostaria de retirar tudo o que eu disse. Aceito sua proposta. Casarei com você.

- Mas não renovei meu pedido. O rei ordena que eu case com Odila.

- Se pedir ao rei para voltar ao plano original, tenho certeza de que será atendido.

- E é isso o que você me pede para fazer.

- É, sim. - Ela fitou-o nos olhos e engoliu em seco, na humilhação final. Estou pedindo... suplicando. Por favor, Sir Ralph, faça-me sua esposa.

Ralph levantou-se, empurrando a cadeira para trás.

- Pois então me beije.

Philippa fechou os olhos. ,

Ele estendeu o braço esquerdo por seus ombros e puxou-a. Beijou-a nos lábios. Philippa submeteu-se, sem reagir. Com a mão direita, Ralph apertou seu seio. Era tão firme e cheio quanto ele sempre imaginara. Desceu a mão pelo corpo, estendeu-a entre as pernas. Ela se encolheu, mas não ofereceu qualquer resistência ao abraço. Ralph comprimiu a mão contra a bifurcação das coxas. Envolveu toda a elevação triangular com a mão.

Depois, mantendo essa posição, rompeu o beijo e correu os olhos pelos companheiros.

Na mesma ocasião em que Ralph tornou-se o conde de Shiring, um jovem chamado David Caerleon foi elevado a conde de Monmouth. Tinha só dezessete anos, e seu parentesco com o falecido era apenas distante, mas todos os herdeiros do título mais próximos haviam sido eliminados pela peste.

Poucos dias antes do Natal daquele ano, o bispo Henri realizou uma missa na Catedral de Kingsbridge para abençoar os dois novos condes. Depois, David e Ralph foram os convidados de honra no banquete oferecido por Merthin na casa da guilda. Os mercadores também celebravam a concessão de uma carta de burgo a Kingsbridge.

Ralph considerou que David fora extraordinariamente afortunado. O jovem nunca estivera fora do reino nem lutara em qualquer batalha, mas mesmo assim era conde aos dezessete anos. Ralph marchara por toda a Normandia com o rei Edward, arriscara a vida em uma batalha depois de outra, perdera três dedos e cometera incontáveis pecados a serviço do rei, mas ainda assim tivera de esperar até os trinta e três anos de idade.

Mas finalmente conseguira, e sentou à mesa ao lado do bispo Henri, usando um custoso casaco de brocado, com fios de ouro e prata. Era apontado a estranhos pelas pessoas que o conheciam; mercadores ricos lhe davam passagem e inclinavam a cabeça respeitosos; a mão da criada tremia de nervosismo ao servir vinho em seu copo. Seu pai, Sir Gerald, confinado ao leito agora, mas se apegando à vida com a maior tenacidade, comentara:

- Sou o descendente de um conde e o pai de um conde. Estou satisfeito.

Era tudo profundamente gratificante. Ralph precisava conversar com David sobre o problema dos trabalhadores. Diminuíra temporariamente, agora que a colheita terminara e a aração do outono fora concluída: naquela época do ano, os dias eram curtos e o tempo era bastante frio, por isso não se podia fazer muito trabalho nos campos. Infelizmente, assim que a semeadura da primavera começasse, com o solo macio o suficiente para que os servos espalhassem as sementes, o problema voltaria: os trabalhadores tornariam a criar agitações para obterem salários mais altos; e se fossem recusados, fugiriam ilegalmente para empregadores mais perdulários.

O único meio de parar com isso era a nobreza assumir uma posição coletiva firme, resistir às exigências de pagamentos maiores e se recusar a contratar fugitivos. Era isso o que Ralph queria dizer a David.

O novo conde de Monmouth, no entanto, não demonstrou a menor disposição para conversar com Ralph. Estava mais interessado na enteada de Ralph, Odila, mais próxima de sua idade. Já haviam se encontrado antes, Ralph podia apostar: Philippa e o primeiro marido, William, haviam sido hóspedes freqüentes no palácio no tempo em que David era um jovem pajem a serviço do velho conde. Qualquer que fosse a história anterior, os dois eram amigos agora: David falava animado e Odila absorvia cada palavra que ele dizia... concordava com suas opiniões, deliciava-se com suas aventuras, e ria de seus gracejos.

Ralph sempre invejara os homens que eram capazes de fascinar as mulheres. Seu irmão possuía essa capacidade, e em conseqüência podia atrair as mulheres mais lindas, apesar de ser baixo e feio, com cabelos ruivos.

Mesmo assim, Ralph sentia pena de Merthin. Desde o dia em que o conde Roland escolhera Ralph para seu pajem e condenara Merthin a ser um aprendiz de carpinteiro, o irmão era um condenado. Embora Merthin fosse o mais velho, era Ralph quem estava destinado a ser o conde.

Agora sentado do outro lado do conde David, Merthin tinha de se conformar em ser um mero regedor... e em ter charme.

Ralph não era capaz sequer de seduzir a própria esposa. Philippa mal falava com ele. Tinha mais a dizer para seu cachorro.

Como era possível, Ralph perguntava a si mesmo, um homem desejar tanto uma coisa, quanto ele desejara Philippa, e depois se sentir insatisfeito ao conseguir? Ansiara por ela desde que era um pajem, aos dezenove anos. Agora, depois de três meses de casamento, sonhava com toda força do coração em poder se livrar dela.

Mas era difícil para ele se queixar. Philippa fazia tudo o que uma esposa era obrigada a fazer. Cuidava do castelo com a devida eficiência, como vinha fazendo desde que o primeiro marido se tornara conde, depois da batalha de Crécy. Os suprimentos eram pedidos, as contas, pagas, as roupas, costuradas, a lenha nas lareiras era acesa, a comida e o vinho eram servidos à mesa sem qualquer falha. E ela se submetia às atenções sexuais de Ralph. Ele podia fazer qualquer coisa que quisesse: rasgar suas roupas, enfiar os dedos nela sem a menor gentileza, possuí-la de pé ou por trás... ela nunca se queixava.

Mas não retribuía suas carícias. Seus lábios nunca se mexiam no contato com os dele, sua língua jamais entrava pela boca de Ralph, as mãos não o acariciavam. Philippa mantinha sempre à mão um frasco de óleo de amêndoa e lubrificava o corpo indiferente sempre que ele queria fazer sexo. Permanecia tão imóvel quanto um cadáver enquanto ele grunhia por cima. No momento em que Ralph rolava para o lado, ela se levantava e da se lavar.

A única coisa boa no casamento era o fato de Odila gostar do pequeno Gerry. O bebê despertava o nascente instinto maternal da jovem. Ela adorava conversar com Gerry, entoar cantigas infantis, e niná-lo para dormir. Proporcionava o tipo de cuidado maternal afetuoso que o menino nunca teria de uma ama.

Apesar de tudo, porém, Ralph sentia-se desapontado. O corpo voluptuoso de Philippa, que contemplara com tanto anseio por muitos anos, era-lhe agora repulsivo. Não a tocava há semanas, e provavelmente nunca mais o faria. Olhava para os seios cheios e os quadris arredondados, e desejava as pernas mais esguias e a pele mais jovem de Tilly. A mesma Tilly que ele apunhalara, com uma faca comprida e afiada, que subira por baixo das costelas e alcançara o coração ainda batendo. Era um pecado que não ousava confessar. Durante quanto tempo, ele especulava angustiado, sofreria por isso no Purgatório?

O bispo e seus colegas ficariam no palácio do prior enquanto a comitiva de Monmouth ocupasse os quartos de hóspedes no hospital. Por isso, Ralph, Philippa e seus servidores estavam alojados numa estalagem. Ralph escolhera a Bell, a taverna reformada que pertencia agora a seu irmão. Era a única casa de três andares em Kingsbridge, com uma sala enorme e aberta no térreo, dormitórios para homens e mulheres por cima, e o último andar com seis quartos de hóspedes individuais, que custavam bastante caro. Quando o banquete terminou, Ralph e seus homens foram para a taverna, onde se instalaram na frente do fogo, pediram mais vinho, e começaram a jogar dados. Philippa ficou para trás, para conversar com Caris e acompanhar Odila e o conde David.

Ralph e seus companheiros atraíram uma multidão de admiradores rapazes e moças, que sempre se reuniam em torno de nobres que gastavam generosamente. Pouco a pouco, Ralph esqueceu seus problemas, na euforia da bebida e na emoção do jogo.

Notou uma jovem loura que o observava com uma expressão ansiosa, enquanto ele perdia alegremente pilhas de moedas de pennies no rolar dos dados. Chamou-a para sentar ao seu lado no banco, e ela informou que se chamava Ella. Em momentos de tensão, a jovem apertava a coxa de Ralph, como se dominada pelo suspense, embora devesse saber com precisão o que fazia... as mulheres quase sempre sabiam.

Pouco a pouco, ele perdeu o interesse pelo jogo e transferiu sua atenção para Ella. Seus homens continuaram a apostar, enquanto ele aprofundava o conhecimento da jovem. Ela era tudo o que Philippa não era: feliz, sensual e fascinada por Ralph. Tocava-o e a si mesma a todo instante: afastava os cabelos do rosto, acariciava o braço de Ralph, levava a mão à garganta, batia de leve no ombro dele. Parecia muito interessada nas experiências de Ralph na França.

Para irritação de Ralph, Merthin entrou na taverna e sentou-se com ele. Merthin não dirigia a Bell pessoalmente - alugara-a para a filha mais jovem de Betty Baxter -, mas se interessava em ajudar para que a arrendatária tivesse sucesso. Perguntou se Ralph estava satisfeito com tudo. Ralph apresentou sua companheira, e Merthin disse, num tom desdenhoso que não costumava usar com ninguém:

- Já conheço Ella.

Aquela era apenas a terceira ou quarta vez em que os irmãos se encontravam desde a morte de Tilly. Nas ocasiões anteriores, como o casamento de Ralph com Philippa, quase não haviam tido tempo para conversar. Mesmo assim, Ralph sabia, pela maneira como o irmão o fitava, que Merthin desconfiava de que fora ele o assassino de Tilly. O pensamento tácito era uma presença constante, nunca expresso, mas impossível de ignorar, como a vaca na choupana apertada de um só cômodo de um camponês pobre. Se fosse mencionado, Ralph calculava que seria a última conversa entre os dois.

Por isso, naquela noite, como se fosse por consentimento mútuo, eles se limitaram, mais uma vez, a trocar algumas trivialidades sem importância. Depois, Merthin se retirou, alegando que tinha trabalho a fazer. Ralph especulou por um instante que trabalho ele poderia ter num crepúsculo em dezembro. Não tinha a menor idéia de como Merthin passava seu tempo. Ele não caçava, não reunia uma corte, não acompanhava o rei. Seria possível que passasse o dia inteiro, todos os dias, fazendo desenhos e supervisionando construtores? Uma vida assim levaria Ralph à loucura. E ele também sentia-se surpreso com todo o dinheiro que Merthin parecia ganhar de seus empreendimentos. O próprio Ralph tivera problemas de dinheiro mesmo depois que se tornara o senhor de Tench. Merthin, porém, parecia ter sempre dinheiro disponível.

Ralph tornou a concentrar sua atenção em Ella.

- Meu irmão é um pouco mal-humorado - disse ele, à guisa de desculpa.

- Isso acontece porque ele não tem mulher há meio ano. - Ella riu. - Ele costumava transar com a prioresa, mas ela teve de expulsá-lo depois que Philemon voltou.

Ralph fingiu estar chocado.

- As freiras não deveriam transar.

- Madre Caris é uma mulher maravilhosa... mas ela tem a coceira, dá para perceber pela maneira como anda.

Ralph ficou excitado pela conversa tão franca de uma mulher.

- É horrível para um homem passar tanto tempo sem ter uma mulher comentou ele, entrando no jogo.

- Também acho.

- Deixa o homem... duro.

Ella inclinou a cabeça para o lado e alteou as sobrancelhas. Ele olhou para seu próprio colo. A jovem acompanhou seu olhar.

- Parece muito desconfortável...

A jovem estendeu a mão para o pênis ereto. Nesse momento, Philippa entrou.

Ralph ficou imóvel. Sentia-se culpado e assustado, e ao mesmo tempo furioso consigo mesmo por se importar se Philippa via ou não o que ele fazia.

- Vou subir e... oh...

Ella não soltou Ralph. Ao contrário, apertou o pênis, gentilmente, ao mesmo tempo em que olhava para Philippa com um sorriso triunfante.

Philippa ficou vermelha, o rosto registrando vergonha e repulsa.

Ralph abriu a boca para falar, mas não sabia o que dizer. Não estava dispôsto a pedir desculpa para aquela megera que era sua esposa, achando que ela própria atraíra aquela humilhação. Mas também sentia-se um tanto idiota, sentado ali, com aquela meretriz de taverna segurando seu pênis, enquanto sua esposa, a condessa, parava na frente dos dois, embaraçada.

A cena durou apenas um momento. Ralph deixou escapar um som estrangulado, Ella deu uma risadinha, e Philippa soltou de novo uma exclamação de espanto, impregnada de exasperação e nojo. Depois, Philippa virou-se e afastou-se, com a cabeça erguida, numa posição fora do normal. Encaminhou-se para a escada larga e subiu, tão graciosa quanto uma corça numa encosta, desaparecendo sem olhar para trás.

Ralph sentiu ao mesmo tempo raiva e vergonha, embora argumentasse para si mesmo que não precisava sentir qualquer das duas coisas. Mas seu interesse por Ella murchou por completo, e ele tratou de afastar a mão da mulher.

- Tome mais um pouco de vinho - disse ela, servindo do jarro na mesa. Mas Ralph começava a sentir uma dor de cabeça, e empurrou para o lado o copo de madeira. Ella pôs a mão em seu braço e disse, a voz rouca e sugestiva:

- Não me deixe na corda bamba agora que me pôs... toda excitada. Ralph empurrou a mão da jovem e levantou-se. Ela endureceu o rosto.

- É melhor me dar alguma coisa como compensação.

Ele meteu a mão na bolsa e tirou um punhado de pennies de prata. Sem olhar para Ella, largou o dinheiro na mesa. Não queria saber se era muito ou pouco. A mulher se apressou em recolher o dinheiro. Ralph deixou-a e subiu.

Philippa já estava na cama, sentada, encostada na cabeceira. Continuava vestida, apenas tirara os sapatos. Fitou Ralph com uma expressão acusadora quando ele entrou.

- Você não tem o direito de ficar zangada comigo! - berrou Ralph.

- Eu não estou zangada. Mas você está.

Ela sempre dava um jeito de torcer as palavras dele, para que parecesse certa e ele, errado. Mas antes que ele pudesse pensar numa resposta, Philippa perguntou:

- Não gostaria que eu o deixasse?

Ralph ficou atônito. Era a última coisa que esperava.

- Para onde você iria?

- Viria para cá. Não me tornaria uma freira, mas mesmo assim poderia viver no convento. Traria poucas pessoas: uma criada, uma secretária, meu confessor. Já conversei com madre Caris, e ela está disposta a me aceitar.

- Minha última esposa fez isso. O que as pessoas vão pensar?

- Muitas mulheres da nobreza retiram-se para conventos, em caráter temporário ou permanente, em algum momento de suas vidas. As pessoas pensarão que você me rejeitou porque passei da idade para conceber crianças... o que provávelmente é verdade. Seja como for, desde quando você se importa com o que as pessoas dizem?

Passou por um instante pela mente de Ralph o pensamento de que detestaria ver Gerry perder Odila. Mas a perspectiva de se livrar da presença orgulhosa e desaprovadora de Philippa era irresistível.

- Está bem. O que a impede? Tilly nunca pediu permissão.

- Quero ver Odila casada primeiro.

- Com quem? Ela fitou-o como se ele fosse um idiota.

- Ahn... - acrescentou Ralph. - Com o jovem David, eu suponho.

- Ele está apaixonado por Odila, e acho que vão combinar muito bem.

- Ele é menor de idade... terá de pedir permissão ao rei.

- É por isso que levantei o assunto com você. Pode procurar o rei e declarar seu apoio a esse casamento? Se fizer isso por mim, juro que nunca mais lhe pedirei qualquer coisa. Eu o deixarei em paz.

Philippa não estava lhe pedindo para fazer qualquer sacrifício. Uma aliança com Monmouth só poderia ser benéfica para Ralph.

- E deixará Earlscastle para viver no convento?

- Assim que Odila casar.

Era o fim de um sonho, refletiu Ralph, mas um sonho que se transformara numa realidade azeda e desolada. Era melhor reconhecer o fracasso e recomeçar mais uma vez.

- Está bem - disse ele, sentindo pesar misturado com libertação. - Negócio fechado.

A Páscoa veio cedo no ano de 1350. Havia um fogo enorme ardendo na lareira de Merthin na noite da Sexta-feira da Paixão. A mesa estava posta, com um jantar frio: peixe defumado, queijo macio, pão fresco, peras e um jarro de vinho da Renânia. Merthin vestia roupas de baixo limpas e uma túnica amarela nova. A casa fora varrida, e havia narcisos num pote no aparador.

Merthin estava sozinho. Lolla fora para a casa de seus criados, Arn e Em. Eles moravam num chalé no final do jardim, e Lolla, com cinco anos de idade, adorava passar a noite ali. Dizia que era uma peregrinação, e levava um saco de viagem com a escova de cabelos e a boneca predileta.

Merthin abriu uma janela e olhou para fora. Uma brisa fria soprava através do rio, passando pela campina no lado sul. A última claridade do final da tarde se desvanecia, a luz parecendo despencar do céu e cair na água, onde sumia na escuridão.

Ele visualizou um vulto encapuzado saindo do convento. Viu a pessoa atravessar em diagonal o pátio gramado da catedral, passar apressada pelas luzes da Bell, e descer pela rua principal lamacenta, o rosto nas sombras, sem falar com ninguém. Imaginou-a alcançando a praia. Olhava para o lado, contemplava o rio frio e negro, e se lembrava por um momento do desespero tão intenso que chegara a gerar pensamentos de autodestruição? Se assim era, a recordação era prontamente descartada, pois a pessoa logo avançava pelo leito com calçamento de pedras de sua ponte. Cruzava o vão e descia na ilha do Leproso. Ali, desviava-se da estrada e passava entre moitas baixas, por uma campina com a vegetação sempre mantida baixa pelos coelhos, e contornava as ruínas do antigo lazareto, até alcançar a praia de sudoeste. E, depois, batia na porta de Merthin.

Ele fechou a porta e esperou. Não houve nenhuma batida. Ainda era cedo.

Merthin sentiu-se tentado a tomar um pouco de vinho, mas não o fez: um ritual se desenvolvera, e ele não queria alterar a ordem dos acontecimentos.

A batida só ocorreu alguns momentos mais tarde. Ele abriu a porta. A mulher entrou, jogou o capuz para trás, deixou o grosso manto cinza escorregar de seus ombros.

Era mais alta do que Merthin três ou quatro centímetros, e uns poucos anos mais velha. Seu rosto era orgulhoso e podia ser altivo, embora naquele momento o sorriso irradiasse um calor tão intenso quanto o sol. Usava uma túnica do escarlate de Kingsbridge. Ele abraçou-a, comprimindo aquele corpo voluptuoso contra o seu. Beijou-a na boca e murmurou:

- Minha querida... Philippa...

Fizeram amor imediatamente, ali mesmo, no chão, mal se despindo. Merthin estava faminto de amor, e ela, de qualquer coisa, ainda mais ansiosa. Ele estendeu o manto sobre a palha, Philippa levantou a túnica e deitou. Agarrou-se a Merthin como alguém que se afogava, as pernas a envolvê-lo, os braços esmagando-o contra seu corpo macio, o rosto comprimido em seu pescoço.

Ela lhe dissera que depois de deixar Ralph e se mudar para o priorado, pensara que ninguém jamais tornaria a tocá-la, até que as freiras preparassem seu corpo frio para o enterro. O pensamento quase fazia Merthin chorar.

Por sua vez, ele amava tanto Caris que sentia que nenhuma outra mulher jamais tornaria a despertar sua afeição. Para ambos, portanto, aquele amor fora uma dádiva inesperada, uma fonte de água fresca borbulhando ao sol escaldante do deserto... e os dois beberam como se estivessem morrendo de sede.

Depois do amor, ficaram deitados ao lado do fogo, enlaçados, ofegantes. Merthin recordou a primeira vez. Logo depois de se mudar para o priorado, ela demonstrara interesse pela nova torre. Uma mulher prática, tinha dificuldade para preencher as longas horas que deveria passar em oração e meditação. Gostava da biblioteca, mas não podia ler durante o dia inteiro. Foi procurá-lo no sótão dos pedreiros, e ele explicou seus desenhos. Philippa adquiriu o hábito de visitá-lo todos os dias, conversando enquanto ele trabalhava. Merthin sempre admirara sua inteligência e determinação. Na intimidade do sótão, passou a conhecer o espírito afetuoso e generoso que havia por trás da atitude imponente. Descobriu que Philippa tinha um senso de humor animado, e aprendeu como fazê-la rir. Ela respondia com uma risada sonora e gutural, que o levou a ter vontade de fazer amor com aquela mulher. Um dia, Philippa fez-lhe um elogio:

- Você é um homem gentil. Já não há muitos assim.

A sinceridade dela deixou-o comovido. Beijou sua mão. Era um gesto de afeição, mas que ela podia recusar, se assim quisesse, sem qualquer drama: bastava retirar a mão e dar um passo para trás. Merthin saberia então que fora longe demais. Mas ela não o rejeitara. Ao contrário, pegara a mão de Merthin e fitara-o com uma expressão nos olhos que parecia ser de amor. Ele abraçou-a e beijoua nos lábios.

Fizeram amor no colchão que havia no sótão. Merthin só se lembrou mais tarde que havia sido Caris quem o encorajara a levar o colchão lá para cima, com um gracejo sobre os pedreiros precisarem de um lugar macio para guardar suas ferramentas.

Caris não sabia sobre ele e Philippa. Ninguém sabia, exceto a criada de Philippa, Arn e Em. Ela da para a cama no andar superior do hospital logo depois do anoitecer, na mesma ocasião em que as freiras se retiravam para seu dormitório. Escapulia enquanto elas dormiam, usando a escada externa que permitia que os hóspedes importantes entrassem e saíssem sem passar pelos alojamentos das pessoas comuns. Voltava pelo mesmo caminho antes do amanhecer, enquanto as freiras cantavam a Matina. Aparecia no refeitório para a primeira refeição como se tivesse passado a noite inteira em seu quarto.

Merthin ficara surpreso ao descobrir que podia amar outra mulher menos de um ano depois de Caris tê-lo deixado pela última vez. Claro que não esquecera Caris. Ao contrário, pensava nela todos os dias. Sentia o impulso de lhe falar sobre alguma coisa engraçada que acontecera, ou pedir sua opinião sobre algum problema difícil, ou relatar que se descobrira a realizar alguma tarefa da maneira como ela gostaria que fosse feita, como lavar com todo cuidado o joelho esfolado de Lolla com vinho quente. Além disso, encontrava-se com ela quase todos os dias. O novo hospital estava quase pronto, mas a torre da catedral mal começara, e Caris acompanhava atenta os dois projetos.

O priorado perdera o poder de controlar os mercadores da cidade, mas ainda assim Caris se interessava pelo trabalho que Merthin e a guilda realizavam para criar todas as instituições de um burgo, como novos tribunais, planejamento de uma bolsa de lã, e o estímulo às guíldas de artesãos para codificar padrões e medidas. Mas seus pensamentos sobre Caris sempre tinham um ressaibo desagradável, como a amargura deixada no fundo da garganta por cerveja azeda. Ele a amara totalmente, mas no final Caris o rejeitara. Era como recordar um dia feliz que terminara com uma briga.

- Acha que me sinto particularmente atraído por mulheres que não são livres? - perguntou ele a Philippa.

- Não. Por quê?

- Parece estranho que depois de doze anos amando uma freira e nove meses de celibato, eu acabasse me apaixonando pela esposa de meu irmão.

- Não me chame assim - protestou Philippa. - Não era um casamento. Fui obrigada a casar contra a minha vontade. Partilhei sua cama por não mais que uns poucos dias, e ficarei feliz se nunca mais encontrá-lo.

Ele apertou o ombro de Philippa, como se pedisse desculpa.

- Mas ainda assim temos de guardar segredo, como acontecia com Caris.

O que ele não disse foi que um homem tinha o direito de matar a esposa se a surpreendesse cometendo adultério. Ao que Merthin soubesse, isso nunca acontecera, não na nobreza, mas o orgulho de Ralph era uma coisa terrível. Merthin sabia - e contara a Philippa - que Ralph matara a primeira esposa, Tilly.

- Seu pai amou sua mãe sem qualquer esperança por um longo tempo, não é mesmo?

- É verdade.

Merthin quase esquecera essa história antiga.

- E você se apaixonou por uma freira.

- E meu irmão passou anos ansiando por você, a feliz esposa de um nobre. Como dizem os padres, os pecados dos pais passam para os filhos. Mas já chega dessa conversa. Quer jantar?

- Daqui a pouco.

- Há uma coisa que você quer fazer primeiro?

- Você sabe.

Merthin sabia. Ajoelhou-se entre as pernas de Philippa, beijou sua barriga e coxas. Era uma peculiaridade dela: sempre queria gozar duas vezes. Ele começou a excitá-la com a língua. Philippa gemeu, segurou a cabeça dele com as duas mãos, e puxou-o.

- Sabe como eu gosto disso, ainda mais quando estou cheia de seu sêmen murmurou ela.

Merthin levantou a cabeça.

- Eu sei.

E ele tornou a baixá-la para fazer o que tinha de fazer.

A primavera trouxe uma trégua na peste. As pessoas ainda morriam, mas havia menos gente contraindo a doença. No Domingo de Páscoa, o bispo Henri anunciou que a Feira do Velocino seria realizada como de hábito naquele ano.

No mesmo serviço, seis noviços fizeram seus votos e se tornaram monges. Todos haviam tido um noviciado extraordinariamente curto, mas Henri estava ansioso em aumentar o número de monges em Kingsbridge; e garantiu que a mesma coisa vinha acontecendo por todo o país. Além disso, cinco padres foram ordenados - também se beneficiando de um programa de treinamento acelerado e foram enviados para substituir vítimas da peste na região rural ao redor. E dois monges de Kingsbridge vieram da universidade, depois de receberem diplomas de médico em três anos, em vez dos cinco ou sete de praxe.

Os novos doutores eram Austin e Sime. Caris lembrava-se deles um tanto vagamente: era mestra de hóspedes quando eles haviam partido, três anos antes, para cursarem o Kingsbridge College, em Oxford. Na tarde da segunda-feira da Páscoa, ela mostrou-lhes o novo hospital, quase pronto. Não havia ninguém trabalhando na obra, já que era um dia santo.

Os dois tinham a autoconfiança arrogante que a universidade parecia incutir em seus graduados, junto com as teorias médicas e uma atração pelo vinho gascão. Mas os anos lidando com pacientes também haviam proporcionado confiança a Caris, e ela descreveu com segurança as instalações do hospital e a maneira como planejava dirigi-lo.

Austin era um jovem magro e sério, os cabelos louros já ralos. Ficou impressionado com a disposição inovadora dos quartos, em forma de claustro. Sime, um pouco mais velho e de rosto redondo, não parecia interessado em aprender com a experiência de Caris, que notou que ele sempre desviava os olhos quando ela falava.

- Acho que um hospital deve ser sempre limpo - declarou ela.

- Com base em quê? - indagou Sime, condescendente, como se perguntasse a uma menina por que sua boneca tinha de levar algumas palmadas.

- A higiene é uma virtude.

- Ahn... por isso. Então não tem nada a ver com o equilíbrio dos humores no corpo.

- Não faço a menor idéia se tem a ver ou não. Não prestamos muita atenção aos humores. Esse sistema fracassou de maneira espetacular contra a peste.

- E varrer o chão deu certo?

- No mínimo, um quarto limpo melhora a disposição do paciente. Austin interveio:

- Você deve admitir, Sime, que alguns dos mestres em Oxford partilham as novas idéias da madre prioresa.

- Um pequeno grupo dos heterodoxos.

- O ponto principal aqui é separar os pacientes que sofrem do tipo de doença que é transmitida dos doentes para os saudáveis, isolando-os do resto.

- Com que finalidade? - perguntou Sime.

- Para restringir a disseminação das doenças.

- E como elas são transmitidas?

- Ninguém sabe.

Um pequeno sorriso de triunfo contraiu os lábios de Sime.

- Posso perguntar como você sabe então as maneiras de restringir a disseminação?

Ele pensava que a deixara acuada com seu argumento - era a coisa principal que aprendiam em Oxford -, mas Caris sabia como responder.

- Pela experiência. Um pastor não compreende o milagre pelo qual um cordeiro cresce no útero de uma ovelha, mas sabe que não acontecerá se mantiver o carneiro fora do pasto.

-Hum...

Caris detestou a maneira como ele murmurou ”Hum”. Era um homem astuto, pensou ela, mas sua astúcia nunca explicava o mundo. Sempre se impressionava pelo contraste entre aquele tipo de intelectual e o tipo de Merthin. Os conhecimentos de Merthin eram amplos, e o poder de sua mente de apreender as complexidades era excepcional... mas sua sabedoria nunca se desviava das realidades do mundo material, pois ele sabia que seus prédios desabariam se errasse. Seu pai, Edmund, fora assim, esperto mas prático. Sime, como Godwyn e Anthony, apegava-se à sua fé nos humores do corpo: não fazia a menor diferença se seus pacientes viviam ou morriam.

Austin exibiu um sorriso exultante.

- Ela pegou-o de jeito nesse ponto, Sime - disse ele, num divertimento evidente por seu presunçoso amigo não ter conseguido prevalecer sobre uma freira sem instrução formal. - Podemos não saber exatamente como as doenças se espalham, mas não deve fazer mal algum separar os doentes dos saudáveis.

Irmã Joan, a tesoureira das freiras, interrompeu a conversa:

- O bailiff de Outhenby está pedindo para lhe falar, madre Caris.

- Ele trouxe os bezerros?

Outhenby tinha a obrigação de entregar às freiras, todos os anos, na Páscoa, uma dúzia de bezerros de um ano.

- Trouxe.

- Ponha os animais no cercado e peça ao bailiff cata vir até aqui, por favor. Sime e Austin se retiraram. Caris foi inspecionar o chão ladrilhado das latrinas. O bailiff encontrou-a ali. Era Harry Plowman. Ela dispensara o antigo bailiff, que era muito lento para reagir às mudanças, e promovera ao posto o jovem mais brilhante da aldeia.

Ele apertou a mão de Caris, o que era um excesso de familiaridade de sua parte. Mas Caris gostava dele e não se importou.

- Deve ser um estorvo ter de conduzir uma manada por todo o caminho até aqui, ainda mais quando a aração da primavera já começou - comentou ela.

- É mesmo.

Como a maioria dos aradores, Harry tinha ombros largos e braços musculosos. Havia necessidade de força, além de habilidade, para conduzir a equipe de oito bois da comunidade à frente do pesado arado, através do solo argiloso úmido. Ele exibia a aparência saudável da vida ao ar livre.

- Não prefere fazer um pagamento em dinheiro? - perguntou Caris. - A maior parte das dívidas com o solar é paga em dinheiro hoje em dia.

- Claro que seria mais conveniente. - Os olhos de Harry se contraíram, com a astúcia de camponês. - Mas quanto?

- Um bezerro de um ano costuma valer de dez a doze shillings, no mercado, embora os preços tenham caído este ano.

- É verdade... pela metade. Podem-se comprar doze bezerros por três libras.

- Ou seis libras, num bom ano. Ele sorriu, apreciando a negociação.

- Aí está o problema.

- Mas você prefere o pagamento em dinheiro.

- Se pudermos chegar a um acordo sobre a quantia.

- Vamos acertar em oito shillings.

- Mas neste caso, se o preço de um bezerro cair para cinco shillings, onde os aldeões vão conseguir o dinheiro extra?

- Já sei o que podemos fazer. No futuro, Outhenby pode pagar ao convento cinco libras ou doze bezerros... a escolha será de vocês.

Harry pensou a respeito por um momento, procurando desvantagens, mas não pôde encontrar nenhuma.

- Está bem. Vamos lacrar o acordo?

- Como podemos fazer isso?

Para surpresa de Caris, ele beijou-a.

Segurou os ombros esguios de Caris com as mãos rudes, inclinou a cabeça, e comprimiu os lábios contra os dela. Se o irmão Sime tivesse feito aquilo, ela teria recuado, horrorizada. Mas Harry era diferente, e talvez ela se sentisse excitada por seu ar de vigorosa masculinidade. Qualquer que fosse o motivo, submeteu-se ao beijo, deixando que ele puxasse seu corpo, sem resistir, e movendo os lábios contra sua boca barbuda. Ele comprimiu-se ainda mais, para que Caris pudesse sentir sua ereção. Ela compreendeu que Harry poderia possuí-la ali mesmo, com a maior satisfação, no chão de ladrilhos das latrinas. Esse pensamento levou-a a recuperar o controle. Rompeu o beijo e empurrou-o.

- Pare com isso! O que pensa que está fazendo? Harry não se alterou.

- Beijando-a, minha cara.

Caris compreendeu que tinha um problema. Não podia haver a menor dúvida de que os rumores sobre seu relacionamento com Merthin haviam se espalhado. Afinal, os dois deviam ser as pessoas mais conhecidas em todo o condado de Shiring. Harry com certeza não conhecia a verdade, mas os boatos haviam estimulado sua ousadia. Aquele tipo de coisa poderia prejudicar sua autoridade. Devia reprimir imediatamente.

- Nunca mais deve fazer nada assim - declarou ela, com toda a severidade de que era capaz.

- Você pareceu gostar!

- Então seu pecado é ainda maior, por ter tentado uma mulher fraca a perjurar seus votos sagrados.

- Mas eu amo você!

Era verdade, compreendeu Caris, e ela podia adivinhar por quê. Ela entrara como um vendaval em sua aldeia, reorganizara tudo, moldara os camponeses à sua vontade.

Reconhecera o potencial de Harry e o elevara acima de seus companheiros. Agora, ele devia considerá-la como uma deusa. Não era de surpreender que tivesse se apaixonado. Seria melhor que se desapaixonasse o mais depressa possível.

- Se algum dia voltar a me falar desse jeito, escolherei outro bailiff em Outhenby.

-Oh...

A ameaça conteve-o de uma maneira mais efetiva do que a acusação de pecado.

- Agora, volte para casa.

- Está bem, madre Caris.

- E encontre outra mulher... de preferência uma que não tenha feito o voto de castidade.

- Nunca!

Mas Caris não acreditou nele.

Harry foi embora, mas ela permaneceu onde estava. Sentia-se irrequieta e lasciva. Se pudesse ter certeza de que ficaria a sós por um momento, não hesitaria em se acariciar. Aquela era a primeira vez em nove meses que o desejo físico a perturbava. Depois de finalmente se separar de Merthin, ingressara numa espécie de estado neutro, em que não pensava sobre sexo. Suas relações com as outras freiras lhe proporcionavam amizade e afeição: gostava de Joan e Oonagh, embora nenhuma das duas a amasse no sentido físico, como acontecera com Mair. Seu coração vibrava com outras paixões: o novo hospital, a torre e o renascimento da cidade.

E foi pensando na torre que ela deixou o hospital e atravessou o pátio gramado da catedral. Merthin escavara quatro buracos enormes, os mais profundos que alguém já vira, fora da catedral, em torno das fundações da antiga torre. Construíra enormes guinchos para retirar a terra. Ao longo dos meses chuvosos do outono, os carros de boi arrastavam-se durante o dia inteiro pela rua principal, atravessavam o primeiro vão da ponte, e despejavam a lama no terreno rochoso da ilha do Leproso. Ali, pegavam pedras de construção no cais de Merthin e tornavam a subir a rua, para largar as pedras em torno do terreno da catedral, em pilhas cada vez maiores.

Assim que as geadas do inverno acabaram, os pedreiros haviam começado a instalar as fundações. Caris foi para o lado norte da catedral, e deu uma espiada no buraco que havia ali, no ângulo formado pela parede externa da nave e a parede externa do transepto norte. A profundidade até causava vertigem. O fundo já estava coberto por uma camada de alvenaria, as pedras bem preparadas dispostas em linhas retas, unidas por finas camadas de argamassa. Porque as fundações antigas eram inadequadas, a torre estava sendo construída em fundações novas e independentes. Subiria fora das paredes existentes da catedral; portanto, nenhuma demolição seria necessária acima e além do que Elfric já fizera, ao derrubar os níveis superiores da velha torre. Só quando tivesse acabado é que Merthin removeria o teto provisório que Elfric construíra sobre a interseção. Era um típico projeto de Merthin: simples mas radical, uma solução brilhante para os problemas específicos do local.

Como no hospital, não havia trabalhadores ali naquela segunda-feira da Páscoa, mas ela percebeu que havia um movimento no buraco e constatou que alguém examinava as fundações. Um momento depois, reconheceu Merthin lá embaixo. Foi até uma das surpreendentemente frágeis escadas de cordas e galhos que os pedreiros usavam, e desceu trêmula para o buraco.

Sentiu-se contente ao chegar no fundo. Merthin ajudou-a a sair da escada, sorrindo. . .

- Você parece um pouco pálida.

- É uma longa descida. Como vai o trabalho?

- Muito bem. Mas levará muitos anos.

- Por quê? O hospital parece muito mais complicado, e já está quase pronto.

- Por dois motivos. Quanto mais alto subirmos, menos pedreiros poderão trabalhar lá em cima. Neste momento, tenho doze homens preparando as fundações. Mas à medida que subir, a torre se tornará mais estreita, e não haverá espaço para todos. O outro motivo é que a argamassa leva mais tempo para assentar. Temos de deixá-la endurecer ao longo de um inverno antes de pormos muito peso em cima.

Caris mal prestava atenção. Ao observar seu rosto, recordava como faziam amor, no palácio do prior, entre a Matina e a Laudes, com a primeira claridade do amanhecer entrando pelas janelas abertas e iluminando seus corpos nus, como uma bênção.

Ela passou a mão pelo braço de Merthin.

- Pelo menos o hospital não vai demorar tanto.

- Creio que poderá se instalar ali até a festa de Pentecostes.

- Fico contente. Embora tenhamos uma ligeira trégua da peste: menos pessoas estão morrendo.

- Graças a Deus! - exclamou Merthin, fervoroso. - Talvez esteja chegando ao fim.

Caris sacudiu a cabeça, desolada.

-Já pensamos antes que havia acabado, lembra? Foi mais ou menos nesta época, no ano passado. E voltou ainda pior.

- Que Deus nos ajude!

Ela encostou a palma da mão no rosto de Merthin, sentindo a barba firme.

- Pelo menos você está seguro. Ele parecia um pouco insatisfeito.

- Assim que o hospital terminar, podemos começar a bolsa de negócios de lã.

- Espero que você esteja certo ao prever que os negócios vão aumentar muito em breve.

- Se isso não acontecer, não terá muita importância, porque estaremos todos mortos.

- Não diga isso. Ela beijou-o na face.

- Temos de agir na suposição de que vamos viver. - Ele falou num tom irritado, como se Caris o estivesse aborrecendo. - Mas a verdade é que não sabemos.

- Não vamos pensar no pior.

Ela enlaçou-o pela cintura, comprimiu os seios contra seu corpo esguio, sentindo os ossos duros de Merthin em contato com sua carne macia. Ele empurrou-a, num gesto brusco. Caris cambaleou para trás, e quase caiu.

- Não faça isso! - gritou Merthin.

Ela se sentiu tão chocada quanto ficaria se tivesse levado um tapa.

- Qual é o problema?

- Pare de me tocar!

- Eu apenas...

- Só peço que não me toque! Você terminou nosso relacionamento há nove meses. Eu disse que era a última vez, e falava sério.

Caris não podia compreender tanta raiva.

- Mas apenas o abracei.

- Pois não faça mais isso. Não sou seu amante. Você não tem esse direito.

- Não tenho o direito de tocá-lo?

- Não, não tem!

- Não sabia que precisava de permissão.

- Claro que sabia. Não deixa as pessoas tocarem em você.

- Você não é as pessoas. Não somos estranhos.

Mas no exato momento em que disse isso, Caris compreendeu que estava errada e ele tinha razão. Rejeitara-o, mas não aceitara as conseqüências. O encontro com Harry de Outhenby incendiara seu desejo, e procurara Merthin em busca de uma descarga. Dissera a si mesma que o tocava numa demonstração de amizade afetuosa, mas isso era mentira. Tratara-o como se ele ainda estivesse à sua disposição, como uma mulher rica e ociosa que pegava um livro por um momento, só para largá-lo de novo. Depois de lhe negar o direito de tocá-la durante todo aquele tempo, era errado tentar restabelecer seu privilégio só porque um arador jovem e musculoso a beijara.

Mesmo assim, ela teria esperado que Merthin ressaltasse isso de uma maneira gentil e afetuosa. Mas ele se mostrara hostil e ríspido. Retirara sua amizade, além do amor? As lágrimas afloraram aos olhos de Caris. Ela virou-se e voltou para a escada.

Teve dificuldade para subir. Era extenuante e parecia ter perdido sua energia. Parou para descansar. Olhou para baixo. Merthin se encontrava parado na base da escada, firmando-a com seu peso.

Quando já estava quase no topo, Caris tornou a olhar para baixo. Ele continuava ali. Ocorreu-lhe que sua infelicidade acabaria se caísse. Era uma longa queda até as pedras implacáveis. Seria uma morte instantânea.

Merthin pareceu sentir o que ela pensava, pois fez um aceno impaciente, indicando que ela deveria se apressar e deixar a escada. Caris pensou como ele ficaria devastado se ela se matasse. Por um momento, gostou de imaginar o sofrimento e a culpa de Merthin. Tinha certeza de que Deus não a puniria na vida posterior... se é que havia uma vida posterior.

Depois, ela subiu os últimos degraus e parou em terreno sólido. Fora uma idiota, apenas por um instante. Não queria acabar com sua vida. Tinha muita coisa a fazer.

E voltou ao convento. Era a hora da Véspera, e ela liderou a procissão para a catedral. Como uma jovem noviça, ressentia-se do tempo desperdiçado nos serviços. Madre Cecilia até tivera o cuidado de incumbi-la de trabalhos que permitiam que fosse dispensada na maioria das ocasiões. Agora, ela acolhia agradecida a oportunidade de descansar e refletir.

A tarde fora um momento de depressão, ela decidiu, mas haveria de se recuperar. Mesmo assim, descobriu-se a fazer um esforço para reprimir as lágrimas, enquanto cantava os salmos.

No jantar, as freiras comeram enguia defumada. Uma carne fibrosa e de gosto forte, que não era o prato predileto de Caris. De qualquer forma, não estava com fome naquela noite. Comeu apenas um pouco de pão.

Depois da refeição, ela retirou-se para sua farmácia. Duas noviças estavam ali, copiando o livro de Caris. Concluíra o livro logo depois do Natal. Muitas pessoas haviam pedido cópias: boticários, prioresas, barbeiros, até mesmo um ou dois médicos. Copiar o livro tornara-se parte do treinamento das freiras que queriam trabalhar no hospital. As cópias eram baratas - o livro era curto, não tinha desenhos elaborados, não exigia tintas caras -, e a demanda parecia interminável.

Três pessoas faziam com que a sala se tornasse apinhada. Caris aguardava ansiosa pelo espaço e pela luz da farmácia no novo hospital.

Queria ficar sozinha, e por isso despachou as noviças. Mas seu desejo não seria atendido. Poucos momentos depois, lady Philippa entrou na sala.

Caris nunca sentira muita afeição pela reservada condessa, mas compadecia-se de sua situação difícil, e sempre se sentia contente em oferecer santuário a qualquer mulher fugindo de um marido como Ralph. Philippa era uma hóspede fácil, quase sem exigências, que passava a maior parte do tempo em seu quarto. Só tinha um interesse restrito em partilhar a vida de orações e abnegação das freiras... mas Caris, entre todas as pessoas, podia compreender isso.

Caris convidou-a a sentar num banco junto da bancada de trabalho.

Philippa era uma mulher extraordinariamente direta, apesar de suas maneiras corteses. Sem qualquer preâmbulo, ela declarou:

- Quero que você deixe Merthin em paz.

- Como?

Caris ficou atônita e ofendida.

- Claro que você tem de conversar com ele, mas não deve beijá-lo nem tocá-lo.

- Como ousa me falar assim?

O que Philippa sabia... e por que ela se importava?

- Ele não é mais seu amante. Pare de perturbá-lo.

Merthin devia ter falado com ela sobre a discussão naquela tarde.

- Mas por que ele lhe contaria...?

Antes mesmo de concluir a pergunta, Caris já sabia a resposta. Philippa apressou-se em confirmá-la.

- Ele não é mais seu agora... é meu.

- Oh, não! - Caris ficou atordoada. - Você e Merthin?

- Isso mesmo. -Vocês já...

-Já

- Eu não tinha a menor idéia! - Ela sentia-se traída, embora soubesse que não tinha esse direito. Quando isso acontecera? - Mas como... onde...?

- Você não precisa saber dos detalhes.

- Claro que não. - Na casa de Merthin na ilha do Leproso, ela calculou. A noite, provavelmente. - Há quanto tempo...?

- Não importa.

Caris podia deduzir. Philippa estava no convento há menos de um mês.

- Você agiu depressa.

Era um comentário indigno, e Philippa teve a gentileza de ignorá-lo.

- Merthin seria capaz de fazer qualquer coisa para continuar com você. Mas rejeitou-o. Agora, deve largá-lo. É difícil para ele amar outra mulher, depois de você... mas ele tem se esforçado. Não ouse interferir.

Caris teve vontade de censurá-la, em fúria, gritar que ela não tinha o direito de lhe dar ordens e de fazer exigências morais... só que Philippa estava certa. Caris devia largar Merthin, para sempre. Ela não queria deixar transparecer sua angústia para Philippa.

- Pode se retirar agora, por favor? - pediu ela, numa tentativa de dignidade ao estilo de Philippa. - Eu gostaria de ficar sozinha.

Philippa não se deixava intimidar, e insistiu:

- Vai fazer o que eu disse?

Caris não gostava de ser acuada, mas não lhe restava qualquer disposição.

- Claro que sim.

- Obrigada.

Philippa saiu. Quando teve certeza de que Philippa não podia mais ouvi-la, Caris começou a chorar.

Como prior, Philemon não era melhor do que Godwyn. Sentiu-se sufocado pelo desafio de administrar o patrimônio do priorado. Caris fizera uma lista, durante seu período como prior em exercício, das principais fontes de receita dos monges:

1. Arrendamentos

2. Uma parte dos lucros do comércio e indústria (dízimo)

3. Lucros agrícolas sobre terras que não foram arrendadas

4. Lucros de moinhos de grãos e outros, moinhos industriais

5. Pedágios de canais e uma parte de todos os peixes pescados

6. Estabulação em mercados

7. Lucros de justiça... honorários e multas de tribunais

8. Doações devocionistas de peregrinos e outras pessoas

9. Venda de livros, água benta, velas etc

Ela entregara a lista a Philemon, que a devolvera no mesmo instante, como se estivesse insultado. Godwyn, melhor do que Philemon apenas no fato de ter um certo charme superficial, teria agradecido e depois, discretamente, ignoraria a lista.

No convento, Caris introduzira um novo método de manter as contas, que aprendera com Buonaventura Caroli, quando trabalhava com seu pai. O método antigo era o de simplesmente anotar numa folha de pergaminho uma breve descrição de cada transação, para que sempre se pudesse voltar atrás quando se quisesse verificar. O sistema italiano era registrar a receita no lado esquerdo e as despesas no direito, fazendo as somas ao pé da página. A diferença entre os dois totais mostrava se a instituição estava ganhando ou perdendo dinheiro. Irmã Joan adotara esse método com o maior entusiasmo. Mas quando tentara explicá-lo a Philemon, ele se recusara bruscamente a ouvir. Considerava que as ofertas de ajuda eram insultos à sua competência.

Ele só tinha um talento, que era o mesmo de Godwyn: um instinto para manipular pessoas. Com a maior astúcia, fez uma filtragem na nova leva de monges, despachando o irmão Austin, o médico de mentalidade moderna, e dois outros jovens brilhantes para St.-John-in-the-Forest, onde estariam muito longe para desafiar sua autoridade.

Mas Philemon era agora problema do bispo. Henri nomeara-o para o posto e teria de lidar com ele. A cidade era independente, e Caris tinha seu novo hospital.

O hospital seria consagrado pelo bispo no Domingo de Pentecostes, que era sempre sete semanas depois da Páscoa. Poucos dias antes, Caris transferiu seus equipamentos e suprimentos para a nova farmácia. Havia espaço suficiente para duas pessoas trabalharem na bancada, preparando medicamentos, e para uma terceira sentar na escrivaninha, escrevendo.

Caris preparava um emético, Oonagh moía ervas secas e uma noviça chamada Greta copiava o livro de Caris quando um monge noviço entrou, trazendo um pequeno baú de madeira. Era Josiah, um adolescente que todos chamavam de Joshie. Ele se mostrou embaraçado na presença das três mulheres.

- Onde devo pôr isto? - perguntou ele. Caris virou-se para fitá-lo.

- E o que é isso?

- Um baú.

- Dá para ver que é um baú. - Caris foi paciente. O fato de alguém aprender a ler e escrever não o tornava, infelizmente, inteligente. Quero saber o que contém.

- Livros.

- E por que me trouxe um baú com livros?

- Foi a ordem que recebi. - Depois de um momento, ao compreender que a resposta não era bastante informativa, Joshie acrescentou: - Do irmão Sime.

Caris alteou as sobrancelhas.

- Sime está me dando livros de presente?

Ela foi abrir o baú. Joshie tratou de escapar, sem responder à pergunta. Os livros eram textos médicos, todos em latim. Caris examinou-os. Eram os clássicos: Poema sobre a medicina, de Avicenna, Dieta e higiene, de Hipocrates,

Sobre as partes da mediana, de Galeno, e De Urinis, de Isaac Judaeus. Todos haviam sido escritos há mais de trezentos anos. Joshie voltou com outro baú.

- O que é agora? - perguntou Caris.

- Instrumentos médicos. O irmão Sime diz que não devem tocá-los. Ele virá mais tarde para guardá-los nos lugares apropriados.

Caris ficou consternada.

- Sime quer guardar seus livros e instrumentos aqui? Ele planeja trabalhar aqui?

Joshie não sabia de nada sobre as intenções de Sime, é claro.

Antes que Caris pudesse dizer mais alguma coisa, Sime apareceu, acompanhado por Philemon. Sime correu os olhos pela sala e depois, sem qualquer exphcação, começou a tirar suas coisas dos baús. Afastou alguns recipientes de Caris de uma prateleira e pôs seus livros no lugar. Tirou facas afiadas para abrir veias e os frascos de vidro em forma de gota de lágrima usados para examinar amostras de urina. Caris indagou, em tom neutro:

- Planeja passar muito tempo aqui no hospital, irmão Sime? Philemon respondeu por ele, obviamente tendo previsto a pergunta:

- Onde mais? - O tom era indignado, como se Caris já o tivesse desafiado. Este é o hospital, não é? E Sime é o único médico no priorado. Como as pessoas serão tratadas, senão por ele?

Subitamente, a farmácia já não parecia mais espaçosa. Mas antes que Caris pudesse dizer qualquer coisa, um estranho apareceu.

- O irmão Thomas me disse para vir até aqui - anunciou ele. - Sou Jonas Powderer, de Londres.

O visitante devia ter em torno dos cinqüenta anos, e vestia um casaco bordado e um chapéu de pele. Caris notou o sorriso fácil e a atitude afável, e imaginou que ele ganhava a vida vendendo coisas. Ele trocou apertos de mão, e correu os olhos pela sala, acenando com a cabeça em aprovação para as meticulosas fileiras de potes e frascos rotulados de Caris.

- Extraordinário! - exclamou ele. - Nunca vi uma farmácia tão sofisticada fora de Londres.

- É médico, senhor?

O tom de Philemon era cauteloso: não tinha certeza sobre a posição de Jonas.

- Boticário. Tenho uma loja em Smithfield, perto da igreja de St. Bartholomew. Não deveria me gabar, mas é a maior em seu ramo de toda a cidade.

Philemon relaxou. Um boticário era um mero mercador, muito abaixo de um prior na hierarquia. Com uma insinuação de desdém, ele perguntou:

- E o que trouxe o maior boticário de Londres até aqui?

- Eu esperava adquirir uma cópia de A panacéia de Kingsbridge.

- Como?

Jonas sorriu, msinuante.

- Cultiva a humildade, padre prior, mas vejo aquela noviça fazendo uma cópia bem aqui em sua farmácia.

- O livro? - interveio Caris. - Não é chamado de panacéia.

- Mas contém curas para todas as doenças. Havia uma certa lógica nisso, refletiu Caris.

- Mas como soube do livro?

- Viajo muito, à procura de ervas raras e outros ingredientes, enquanto meus filhos cuidam da loja. Conheci uma freira de Southampton que me mostrou uma cópia. Ela chamou de panacéia, e disse que o livro havia sido escrito em Kingsbridge.

- A freira era a irmã Claudia?

- Era, sim. Pedi a ela que me emprestasse o livro apenas pelo tempo suficien te para fazer uma cópia, mas ela não quis se separar dele.

- Eu me lembro dessa freira.

Claudia fizera uma peregrinação a Kingsbridge, ficara no convento, e ajudara a cuidar das vítimas da peste, sem qualquer preocupação com a própria segurança. Caris lhe dera o livro em agradecimento.

- Um trabalho extraordinário - declarou Jonas, entusiasmado. - E em inglês!

- É para curadores que não são padres, e por isso não sabem muito de latim.

- Não há outro livro de sua espécie em qualquer língua.

- É tão excepcional assim?

- A disposição dos assuntos é incrível! - comentou Jonas, com um entusiasmo crescente. - Em vez dos humores do corpo, ou as classes de doenças, os capítulos referem-se às dores do paciente. Assim, quer a queixa do cliente seja dor de barriga, hemorragia, febre, diarréia, ou espirro, sempre se pode encontrar a página relevante!

Philemon interrompeu, impaciente:

- Bastante apropriado para boticários e seus clientes, tenho certeza. Jonas pareceu não perceber o tom desdenhoso.

- Presumo, padre prior, que é o autor deste livro tão valioso.

- Claro que não!

- Então quem...?

- Fui eu que escrevi - informou Caris.

- Uma mulher! - Jonas estava impressionado. - Mas de onde tirou todas as informações? Praticamente nada aparece em outros textos.

- Os textos antigos nunca provaram ser muito úteis para mim, Jonas. Comecei a aprender a fazer medicamentos com uma curandeira de Kingsbridge, que infelizmente deixou a cidade ao ser perseguida como uma bruxa. Aprendi mais com madre Cecilia, que foi prioresa aqui antes de mim. Mas reunir receitas e tratamentos não é difícil. Todo mundo conhece pelo menos uma centena. O difícil é identificar os poucos eficientes em todo o entulho. Mantive um diário ao longo dos anos, registrando os efeitos de cada cura que experimentei. Em meu livro, incluí apenas os tratamentos cujos resultados testemunhei, com meus próprios olhos, em sucessivas ocasiões.

- Estou comovido por falar com você pessoalmente.

- Claro que levará uma cópia do meu livro. Sinto-me lisonjeada por alguém ter vindo de tão longe à sua procura. - Caris abriu um armário. - Esta cópia seria para o nosso priorado em St.-John-in-the-Forest, mas eles podem esperar por outra.

Jonas pegou o livro como se fosse um objeto sagrado.

- Fico muito agradecido. - Ele entregou a Caris uma bolsa de couro mole. E como símbolo de minha gratidão, aceite um modesto presente de minha família para as freiras de Kingsbridge.

Caris abriu a bolsa e tirou um pequeno objeto, envolto por lã. Quando ela desembrulhou, encontrou um crucifixo de ouro cravejado de pedras preciosas. Os olhos de Philemon faiscaram de ganância. Caris ficou espantada.

- Mas é um presente muito caro! - Ela compreendeu no mesmo instante que não era o comentário mais apropriado, e apressou-se em acrescentar: - É muita generosidade de sua família, Jonas.

Ele fez um gesto como se aquilo não tivesse a menor importância.

- Somos prósperos, graças a Deus. Philemon interveio, invejoso:

- Isto... por um livro de receitas de mezinhas de velhas!

- Ah, padre prior, está acima dessas coisas, é claro - disse Jonas. - Não aspiramos às suas altitudes intelectuais. Não tentamos compreender os humores do corpo. E assim como uma criança que chupa um dedo cortado porque alivia a dor, ministramos as curas apenas porque funcionam. Quanto a por que e como essas coisas acontecem, deixamos aos cuidados de mentes maiores do que as nossas. A criação de Deus é misteriosa demais para que pessoas como nós possamos compreendê-la.

Caris pensou que Jonas falava com uma ironia quase indisfarçável. Viu Oonagh reprimir um sorriso. Sime também percebeu o escárnio, e seus olhos faiscaram de raiva. Mas Philemon não notou, e parecia exultante com a lisonja. Uma expressão insidiosa aflorou ao seu rosto, e Caris adivinhou que ele especulava como poderia partilhar o crédito pelo livro... e também ganhar crucifixos cravejados de pedras preciosas.

A Feira do Velocino foi aberta no Domingo de Pentecostes, como sempre. Era tradicionalmente um dia movimentado para o hospital, e naquele ano não foi exceção. Pessoas idosas caíam doentes depois de realizarem uma longa viagem até a feira; bebês e crianças pequenas tinham diarréia por causa da comida estranha e da água diferente; homens e mulheres bebiam demais nas tavernas e machucavam a si mesmos, ou uns aos outros.

Pela primeira vez, Caris pôde separar os pacientes em duas categorias. As vítimas da peste - que diminuíam rapidamente - e outros com doenças como distúrbios de estômago e erupções na pele, como a varíola, iam para o novo prédio, oficialmente inaugurado pelo bispo no início daquela manhã. Vítimas de acidentes e brigas eram tratadas no velho hospital, a salvo dos riscos de infecção. Ficavam para trás os dias em que alguém entrava no priorado com o polegar machucado e ali morria de pneumonia.

A crise ocorreu na segunda-feira de Pentecostes.

No início da tarde, Caris por acaso estava na feira, dando uma volta depois do almoço. Estava tranqüila em comparação com os tempos antigos, quando centenas de visitantes e milhares de moradores da cidade lotavam não apenas o pátio gramado da catedral, mas também as ruas principais. Mesmo assim, a feira daquele ano era melhor do que o esperado, depois do cancelamento do ano anterior. Caris calculou que as pessoas já deviam ter notado que o domínio da peste parecia estar enfraquecendo. Os sobreviventes até agora pensavam que deviam ser invulneráveis... e alguns eram mesmo, embora outros não, pois a peste continuava a matar pessoas.

O tecido de Madge Webber era a coisa mais comentada da feira. Os novos teares projetados por Merthin não apenas eram mais rápidos, mas também tornavam mais fácil produzir padrões complexos na trama. Ela já havia vendido metade de seu estoque.

Caris conversava com Madge quando a briga começou. Madge deixava-a embaraçada ao dizer, como já fizera muitas vezes antes, que sem Caris não passaria de uma tecelã pobre. Caris já se preparava para a negativa habitual quando elas ouviram gritos.

Caris reconheceu no mesmo instante o tom profundo de jovens agressivos. Os gritos vinham das proximidades de um barril de cerveja a cerca de trinta metros de distância. Foram aumentando depressa. Uma mulher gritou. Caris seguiu apressada para o local, esperando impedir a briga antes que escapasse ao controle.

Chegou tarde demais.

O tumulto já era generalizado. Quatro jovens valentões da cidade brigavam com um grupo de camponeses, identificáveis pelas roupas rudes, todos provávelmente da mesma aldeia. Uma moça bonita, sem dúvida a que gritara, tentava separar dois homens, que se esmurravam impiedosamente. Um dos rapazes da cidade sacara uma faca, enquanto os camponeses empunhavam pás de madeira. Quando Caris se aproximou, mais pessoas entravam na briga, nos dois lados. Ela virou-se para Madge, que a seguira.

- Mande alguém chamar Mungo Constable, o mais depressa possível. Ele deve estar no porão da casa da guilda.

Madge afastou-se apressada. A briga se tornava cada vez pior. Vários rapazes da cidade empunhavam facas. Um camponês estava estendido no chão, o sangue escorrendo abundante de um ferimento no braço. Outro continuava a brigar apesar de um talho no rosto. Enquanto Caris observava, dois rapazes da cidade começaram a chutar o camponês no chão.

Caris hesitou por mais um instante, para depois se adiantar. Pegou o rapaz mais próximo pela camisa.

- Willie Bakerson, pare com isso agora mesmo! - gritou ela, em seu tom de mais autoridade.

Quase deu certo.

Willie afastou-se do oponente, surpreso, e olhou para Caris, com uma expressão de culpa. Ela abriu a boca para falar de novo, mas nesse instante uma pá acertoua, num golpe violento na cabeça, certamente destinado a Willie.

Doeu demais. A visão ficou turva, ela perdeu o equilíbrio, e se estatelou no chão. Ficou caída ali, atordoada, tentando recuperar o controle, enquanto o mundo parecia girar vertiginoso ao seu redor. Até que alguém segurou-a por baixo dos braços e arrastou-a para longe.

- Está ferida, madre Caris?

A voz era familiar, mas ela não foi capaz de situá-la. A cabeça finalmente desanuviou, e ela fez um esforço para se levantar, com a ajuda de sua salvadora, que agora identificou como Megg Robbins, a musculosa mercadora de trigo.

- Só estou um pouco atordoada - murmurou Caris. - Temos de impedir que esses rapazes se matem uns aos outros.

- Lá estão os guardas. Vamos deixar que eles cuidem disso.

Mungo e seis ou sete ajudantes se aproximaram, todos brandindo porretes. Entraram para separar a briga, rachando cabeças indiscriminadamente. Causaram tantos ferimentos quanto os combatentes originais, mas sua presença confundiu o campo de batalha. Os rapazes ficaram aturdidos, e alguns fugiram. A briga terminou em poucos momentos.

- Megg, corra até o convento e chame irmã Oonagh - pediu Caris. - Diga a ela para trazer ataduras.

Megg afastou-se, apressada.

Os feridos em condições de andar logo desapareceram. Caris começou a examinar os que estavam no chão. Um camponês que fora esfaqueado na barriga tentava segurar as tripas: havia pouca esperança para ele. O que levara o corte no braço poderia sobreviver se Caris conseguisse estancar a hemorragia. Ela tirou seu cinto, passou-o pela parte superior do braço e apertou, até que o fluxo de sangue diminuiu para um filete mínimo.

- Agüente firme - disse ela.

E afastou-se para examinar um garoto da cidade que parecia ter quebrado alguns ossos da mão. Sua cabeça ainda doía, mas ela tratou de ignorá-la.

Oonagh e várias outras freiras apareceram. Um momento depois, Matthew Barber também chegou, com sua bolsa. Entre eles, prestaram os primeiros socorros aos feridos. Por instrução de Caris, voluntários pegaram os piores feridos e os levaram para o convento.

 

- Levem todos para o velho hospital, não para o novo - recomendou ela. Caris levantou-se, da posição ajoelhada, e ficou tonta. Segurou-se em Oonagh para não cair.

- Qual é o problema? - perguntou Oonagh.

- Já vou me recuperar. É melhor irmos logo para o hospital.

Elas se esgueiraram entre os estandes do mercado até o velho hospital. Quando entraram, descobriram que nenhum dos feridos estava ali. Caris ficou furiosa.

- Levaram os feridos para o lugar errado!

Levaria algum tempo para as pessoas compreenderem a importância da diferença, pensou ela, enquanto seguia com Oonagh para o novo prédio. Ao se aproximarem, encontraram-se com os voluntários que saíam.

- Vocês trouxeram os feridos para o lugar errado! - censurou Caris, irritada. Um deles disse:

- Mas, madre Caris...

- Não discutam, porque não há tempo! - exclamou ela, impaciente. - Levem todos para o velho hospital!

Ao entrar no claustro, ela viu o garoto com o braço cortado sendo levado para um quarto em que sabia que havia cinco vítimas da peste. Correu através do jardim.

- Parem! - berrou ela, furiosa. - O que pensam que estão fazendo?

Uma voz de homem respondeu:

- Estão cumprindo minhas instruções. u Caris parou e olhou. Era o irmão Sime.

- Não seja tolo! - gritou ela. - O rapaz tem um ferimento de faca. Quer que ele morra da peste?

O rosto redondo de Sime ficou vermelho.

- Não tenho a menor intenção de submeter minhas decisões à sua aprovação, madre Caris.

Era uma estupidez tão grande que ela achou melhor ignorar.

- Todos esses rapazes feridos devem ficar longe das vítimas da peste, ou vão pegá-la também.

- Acho que está muito nervosa. Sugiro que vá se deitar um pouco.

- Deitar-me? - Caris estava indignada. - Acabei de prestar os primeiros socorros a todos esses homens, e agora preciso tratá-los direito... mas não aqui!

- Agradeço seu trabalho de emergência, madre. Pode me deixar agora examinar os pacientes.

- Seu idiota! Você vai matá-los!

- Por favor, deixe o hospital até se acalmar.

- Não pode me expulsar. Construí este hospital com o dinheiro das freiras. Estou no comando aqui.

- É mesmo? - indagou ele, friamente.

Caris compreendeu que podia não ter previsto aquele momento, mas era evidente que Sime o fizera. Ele estava vermelho, mas mantinha os sentimentos sob controle. Era um homem com um plano. Ela fez uma pausa, pensando depressa. Olhou ao redor, e constatou que voluntários e freiras observavam a cena, à espera do resultado.

- Temos de cuidar desses rapazes. Enquanto discutimos, eles estão sangrando até a morte. Vamos chegar a um acordo. - Caris elevou a voz para acrescentar: Ponham todos no chão onde estão, por favor. Vamos cuidar de suas necessidades primeiro, e depois decidir onde eles ficarão.

Como fazia calor, não havia necessidade por enquanto de levar os pacientes para um quarto.

Os voluntários e as freiras conheciam e respeitavam Caris, enquanto Sime era novo para eles; por isso, obedeceram à ordem de Caris sem hesitação. Sime compreendeu que fora vencido, e assumiu uma expressão de fúria intensa.

- Não posso trabalhar nessas circunstâncias - declarou ele, retirando-se em seguida.

Caris ficou chocada. Tentara resguardar o orgulho de Sime com sua propôsta, sem imaginar que ele seria capaz de se afastar dos doentes num acesso de petulância.

Mas ela tratou de removê-lo de sua mente, enquanto voltava a cuidar dos feridos.

Durante as duas ou três horas seguintes ela se manteve ocupada, lavando ferimentos, costurando talhos, ministrando ervas tranqüilizantes e poções revigorantes. Matthew Barber trabalhava ao seu lado, consertando ossos quebrados e articulações fora do lugar. Matthew já estava agora na casa dos cinqüenta anos, mas seu filho Luke o ajudava com a mesma habilidade.

A tarde esfriou para o início da noite quando acabaram. Sentaram junto da parede do claustro para descansar. Irmã Joan trouxe canecas com sidra fresca. Caris ainda estava com dor de cabeça. Conseguira ignorá-la enquanto trabalhava, mas agora a dor a incomodava bastante. E decidiu que deitaria cedo. Enquanto tomavam a sidra, o jovem Joshie aproximou-se.

- Milorde bispo pede que o procure no palácio do prior à sua conveniência, madre prioresa.

Ela soltou um grunhido irritado. Tinha certeza de que Sime fora se queixar. Era a última coisa de que precisava.

- Avise a ele que irei imediatamente. - Em voz mais baixa, ela resmungou: É melhor acabar com isso logo de uma vez.

Caris esvaziou sua caneca e levantou-se. Cansada, atravessou o pátio gramado da catedral. Os mercadores fechavam os estandes para a noite, cobrindo as mercadorias e trancando seus baús. Ela passou pelo cemitério e entrou no palácio.

O bispo Henri sentava à cabeceira da mesa, em companhia do cônego Claude e do arquidiácono Lloyd. Philemon e Sime também estavam presentes. O gato de Godwyn, Arcebispo, sentava no colo de Henri, com uma pose presunçosa. O bispo disse:

- Sente-se, por favor.

Ela sentou ao lado de Claude, que murmurou, gentilmente:

- Parece cansada, madre Caris.

- Passei a tarde inteira cuidando de garotos estúpidos que se meteram numa briga. Até eu levei uma pancada na cabeça.

- Ouvimos falar da briga.

- E sobre a discussão no hospital novo - acrescentou Henri.

- Presumo que foi por isso que me chamou.

- Exatamente.

- Toda a idéia do novo hospital é separar pacientes com doenças infecciosas...

- Já sei sobre o que é a discussão. - Henri olhou para todos. - Caris ordenou que os feridos na briga fossem levados para o velho hospital. Sime deu uma contra-ordem. E tiveram uma briga inadmissível na presença de todos.

- Peço desculpas por isso, milorde bispo - murmurou Sime. Henri ignorou a intervenção.

- Antes de continuarmos, quero que uma coisa fique bem clara. - Ele olhou de Sime para Caris. - Sou o seu bispo e, ex officio, o abade do Priorado de Kingsbridge. Tenho o direito e o poder de dar ordens a todos, e vocês têm o dever de me obedecer. Aceita isso, irmão Sime?

Sime inclinou a cabeça.

- Aceito.

Henri virou-se para Caris.

- Aceita, madre prioresa?

Não havia como contestar, é claro. Henri estava absolutamente certo.

- Aceito.

Ela sentia-se confiante de que Henri não era bastante estúpido para obrigar os brigões feridos a contraírem a peste. Henri continuou:

- Permitam-me enunciar os argumentos. O novo hospital foi construído com o dinheiro das freiras, de acordo com as especificações de madre Caris. Seu plano era ter um lugar para as vítimas da peste e outras pessoas com doenças que, segundo ela, podem se espalhar dos pacientes para pessoas saudáveis. Ela acredita que é essencial separar os dois tipos de pacientes. E acha que tem o direito, em todas as circunstâncias, de exigir que seu plano seja cumprido. É uma avaliação justa, madre Caris?

- É, sim.

- O irmão Sime não estava aqui quando Caris concebeu seu plano, e por isso não pôde ser consultado. Mas ele passou três anos estudando medicina na universidade e recebeu um diploma. Ele ressalta que Caris não tem treinamento. Além disso, tem pouca compreensão da natureza da doença, além do que adquiriu pela experiência prática. Ele é um médico qualificado, e mais do que isso, é o único no priorado... o único em Kingsbridge.

- Exatamente - murmurou Sime.

- Como pode dizer que não tenho treinamento? - protestou Caris. - Depois de todos os anos em que cuidei de pacientes...

- Fique quieta, por favor - pediu Henri, mal alteando a voz; e alguma coisa em seu tom fez Caris se calar. - Eu já ia mencionar sua história de serviços. Seu trabalho aqui tem sido valioso. É conhecida por sua dedicação durante a peste, que ainda não nos deixou. Sua experiência e conhecimento prático têm um valor inestimável.

- Obrigada, bispo.

- Por outro lado, Sime é um padre, formado na universidade... e um homem. Os conhecimentos que ele adquiriu ali são essenciais para a direção apropriada de um hospital de priorado. Não queremos perdê-lo.

- Alguns dos mestres na universidade concordam com meus métodos... pergunte ao irmão Austin - disse Caris.

Philemon interveio:

- O irmão Austin foi enviado para St.-John-in-the-Forest.

- E agora sabemos por quê - comentou Caris.

- Eu é que tenho de tomar a decisão, não Austin ou os mestres da universidade - declarou o bispo.

Caris compreendeu que não se preparara para aquela confrontação. Estava exausta, sentia uma tremenda dor de cabeça, mal conseguia pensar direito. Viera parar no meio de uma luta de poder, e não tinha estratégia. Se estivesse plenamente alerta, não teria vindo quando o bispo chamara. Iria se deitar, superar a dor de cabeça, acordar revigorada na manhã seguinte, para só se encontrar com Henri depois de formular um plano de batalha.

Já era tarde demais?

- Bispo, não me sinto em condições de ter uma conversa assim esta noite disse ela. - Talvez possamos adiar até amanhã, quando estarei me sentindo melhor.

- Não há necessidade - declarou Henri. - Ouvi a queixa de Sime, e conheço suas opiniões. Além do mais, partirei amanhã de manhã, ao nascer do sol.

O bispo já tomara uma decisão, compreendeu Caris. Nada do que ela dissesse agora ou depois faria qualquer diferença. Mas o que ele decidira? Para que lado pularia? Ela não tinha a menor idéia. E sentia-se cansada demais para fazer outra coisa que não continuar sentada e ouvir a decisão sobre seu destino.

- A humanidade é fraca - disse Henri. - Como o apóstolo Paulo ressaltou, vemos como em um espelho, obscuramente. Erramos, nos desviamos do curso certo, raciocinamos de uma maneira precária. Precisamos de ajuda. Foi por isso que Deus nos deu sua Igreja, o papa e o sacerdócio... para nos orientar, porque nossos próprios recursos são falíveis e inadequados. Se seguirmos nossa própria maneira de pensar, haveremos de fracassar. Devemos consultar as autoridades.

Ao que tudo indicava, o bispo ficaria do lado de Sime, concluiu Caris. Como podia ser tão estúpido? Mas ele era.

- O irmão Sime estudou os textos antigos da literatura médica, sob a supervisão dos mestres na universidade. Seu curso de estudo é endossado pela Igreja. Devemos aceitar a autoridade da Igreja e, portanto, a dele. Seu julgamento não pode ficar subordinado ao de uma pessoa sem instrução, por mais extraordinária e admirável que ela possa ser. Suas decisões devem prevalecer.

Caris sentia-se tão exausta e doente que quase ficou contente pelo término da entrevista. Sime vencera; ela perdera; e tudo o que queria agora era dormir. Ela levantou-se. Henri disse:

- Lamento desapontá-la, madre Caris...

A voz dele definhou enquanto Caris se afastava. Ela ainda ouviu Philemon comentar:

- Um comportamento insolente.

- Deixe-a ir - murmurou Henri.

Ela chegou à porta e saiu sem se virar.

O pleno significado do que acabara de acontecer tornou-se claro em sua mente enquanto ela atravessava lentamente o cemitério. Sime ficaria no comando do hospital. Ela teria de seguir suas ordens. Não haveria separação entre as diferentes categorias de pacientes. Não haveria máscaras no rosto ou mãos lavadas com vinagre. As pessoas fracas se tornariam ainda mais fracas com as sangrias; os ferimentos seriam cobertos por cataplasmas feitos com esterco de animais, para estimular o corpo a produzir pus. Ninguém mais se preocuparia com higiene e ar fresco.

Ela não falou com ninguém enquanto atravessava o claustro, subia a escada e cruzava o dormitório, a caminho de seu quarto. Deitou na cama de barriga para baixo, a cabeça latejando.

Perdera Merthin, perdera seu hospital, perdera tudo o que importava.

As lesões na cabeça podiam ser fatais, pensou. Talvez pudesse dormir, e nunca mais acordar.

Talvez fosse melhor assim.

O pomar de Merthin fora plantado na primavera de 1349. Um ano mais tarde, a maioria das árvores já enraizara e exibia as primeiras folhas. Duas ou três ainda se debatiam para sobreviver, e apenas uma estava indiscutivelmente morta. Ele não esperava que qualquer das árvores desse frutos por enquanto, mas em julho, para sua surpresa, uma muda precoce tinha cerca de uma dúzia de pequenas peras, de um verde-escuro, ainda mínimas e tão duras como pedra, mas prometendo madureza no outono.

Numa tarde de domingo, ele as mostrou a Lolla, que se recusou a acreditar que cresceriam para virar as frutas sumarentas e de sabor agradável que ela tanto amava. Ela pensou - ou fingiu pensar - que o pai se empenhava em uma de suas brincadeiras para provocá-la. Quando Merthin perguntou de onde ela imaginava que vinham as peras maduras, Lolla fitou-o com uma expressão de censura e respondeu:

- Do mercado, seu bobo!

Ela também amadureceria um dia, pensou Merthin, embora fosse difícil conceber aquele corpo pequeno e ossudo adquirir os contornos macios e suaves de uma mulher. Ele especulou se algum dia Lolla lhe daria netos. Como ela tinha apenas cinco anos, faltava pelo menos uma década para que isso fosse possível.

Merthin pensava sobre a madureza quando avistou Philippa se aproximando pelo pomar. Mais uma vez, não pôde deixar de admirar os seios cheios e redondos. Como era inesperado que ela o visitasse à luz do dia, ele se perguntou o que a trouxera até ali. Como podia haver alguém a observá-los, recebeu-a apenas com um casto beijo no rosto, aceitável para um cunhado, sem despertar comentários.

Philippa parecia preocupada, e ele compreendeu que há vários dias agora ela se mostrava mais pensativa e reservada do que o habitual. Quando sentaram na relva, Merthin indagou:

- Algum problema?

- Nunca fui boa em dar notícias gentilmente. Estou grávida.

- Oh, Deus! - Ele estava chocado demais para disfarçar sua reação. - Estou surpreso porque você me disse...

- Sei disso. E tinha certeza de que era velha demais. Há dois ou três anos meu ciclo mensal era irregular, e depois parou por completo... pelo menos foi o que eu pensei. Mas tenho vomitado pela manhã e sinto os mamilos doloridos.

- Notei logo seus seios quando entrou no pomar.

-Já estive grávida seis vezes antes... três filhos e três abortos... e conheço os sintomas. Não há a menor dúvida. Merthin sorriu.

- Vamos ter um filho.

Ela não retribuiu o sorriso.

- Não fique tão satisfeito. Ainda não pensou nas implicações. Sou a esposa do conde de Shiring. Não durmo com ele desde outubro, não vivo com ele desde fevereiro, mas em julho estou grávida de dois ou três meses. Ralph e o mundo inteiro saberão que o bebê não é dele e que a condessa de Shiring cometeu adultério.

- Mas ele não...

- Não me mataria? Ele matou Tilly, não é mesmo?

- Oh, Deus, é verdade! Mas...

- E se ele me matasse, poderia matar o bebê também.

Merthin teve vontade de dizer que não era possível, que Ralph não faria isso... mas sabia que o irmão era bem capaz.

- Tenho de decidir o que fazer - declarou Philippa.

- Acho que não deveria terminar a gravidez com poções... é muito perigoso.

- Não farei isso.

- Então terá o bebê.

- Terei. Mas o que posso fazer depois?

- Não poderia permanecer no convento e manter o bebê em segredo? O lugar está cheio de crianças que ficaram órfãs com a peste.

- Mas o que não se pode manter em segredo é o amor de uma mãe. Todos saberiam que a criança ficou sob meus cuidados pessoais. E Ralph descobriria.

- Tem razão.

- Eu poderia ir embora... desaparecer. Londres, York, Paris, Avignon. Sem contar a ninguém para onde, a fim de que Ralph nunca pudesse ir atrás de mim.,

- E eu poderia ir com você.

- Mas neste caso não acabaria sua torre.

- E você sentiria saudade de Odila.

A filha de Philippa estava casada há seis meses com o conde David. Merthin podia imaginar como seria difícil para Philippa deixá-la. E a verdade é que seria uma agonia para ele abandonar sua torre. Durante toda a sua vida adulta sempre sonhara em construir o prédio mais alto da Inglaterra. Agora que finalmente começara, o abandono do projeto partiria seu coração.

E ao pensar na torre, ele se lembrou de Caris. Sabia instintivamente que ela ficaria arrasada com a notícia. Há semanas que não a via, pois ela estivera de cama, doente, depois de levar uma pancada na cabeça na Feira do Velocino. Agora, embora estivesse recuperada, quase nunca saía do priorado. Merthin adivinhava que ela perdera alguma espécie de luta pelo poder, pois o hospital vinha sendo dirigido pelo irmão Sime. A gravidez de Philippa seria outro golpe devastador para Caris.

- E Odila também está grávida - informou Philippa.

- Tão cedo? Mas é uma boa notícia. E mais uma razão para que você não vá para o exílio, pois deixaria de vê-la e não conheceria a criança.

- Não posso fugir, e não posso me esconder. Mas se não fizer nada, Ralph me matará.

- Deve haver uma saída.

- Só consigo pensar numa solução.

Merthin fitou-a. Compreendeu que ela já havia pensado a respeito. Não lhe contara o problema até ter a solução. Mas tivera o cuidado de lhe mostrar que todas as respostas óbvias estavam erradas. Isso significava que ele não gostaria do plano que Philippa formulara.

- Conte qual é.

- Temos de fazer Ralph pensar que a criança é dele.

- Mas, neste caso, você precisa...

- Isso mesmo.

O pensamento de Philippa deitando com Ralph era repulsivo para Merthin. Não era tanto por ciúme, embora esse fosse um fator. O que mais pesava para ele era como seria terrível para Philippa. Ela sentia uma repugnância física e emocional a Ralph. Merthin compreendia essa repugnância, embora não a partilhasse. Convivera com a brutalidade de Ralph durante toda a sua vida. Mas o homem brutal era seu irmão, e continuaria a sê-lo independentemente do que fizesse. Mesmo assim, sentia-se angustiado ao pensar que Philippa se obrigaria a fazer sexo com o homem que mais odiava no mundo.

- Eu gostaria que pudesse haver uma maneira melhor - murmurou ele.

- Eu também.

Merthin fitou-a em silêncio por um momento.

- Você já decidiu.

-Já

- Lamento muito.

- Eu também.

- Mas dará certo? Você seria capaz... de seduzi-lo?

- Não sei. Mas tenho de tentar.

A catedral era simétrica. O sótão do pedreiro ficava na extremidade oeste da torre baixa do norte, dando para o pórtico norte. Na torre de sudoeste havia um compartimento de tamanho e formato similares, que dava para o claustro. Era usado para guardar itens de pequeno valor que só eram usados raramente. Todos os trajes e objetos simbólicos usados nas encenações de histórias bíblicas ficavam ali. Havia também uma ampla variedade de coisas que não chegavam a ser completamente inúteis: castiçais de madeira, correntes enferrujadas, vasos quebrados e um livro cujas páginas de velino haviam apodrecido com o tempo, a tal ponto que as palavras escritas de uma maneira meticulosa não eram mais legíveis.

Merthin foi até lá para verificar até que ponto a parede era reta, pendurando um peso de chumbo num cordão pela janela; e, ao chegar lá em cima, fez uma descoberta.

Havia rachaduras na parede. As rachaduras não eram necessariamente um sinal de fraqueza: o significado tinha de ser interpretado por olhos experientes. Todos os prédios se moviam, e as rachaduras podiam simplesmente indicar como uma estrutura se ajustava para acompanhar a mudança. Merthin calculou que a maioria das rachaduras naquele compartimento era benigna.

Mas havia uma rachadura que o deixou perplexo por seu formato. Não parecia normal. Um exame mais atento indicou que alguém aproveitara uma rachadura natural para afrouxar uma pequena pedra. Ele removeu essa pedra.

Compreendeu no mesmo instante que descobrira um esconderijo secreto de alguém. O espaço por trás da pedra era o esconderijo de um ladrão. Ele tirou os objetos que estavam ali, um a um. Havia um broche de mulher, com uma enorme pedra verde; um xale de seda; e um pergaminho com um salmo escrito. E no fundo encontrou o objeto que lhe deu a pista sobre a identidade do ladrão. Era a única coisa ali que não tinha valor monetário. Um pedaço de madeira lixada, simples, com letras esculpidas na superfície: ”M: Phmn: AMAT.”

M era apenas uma inicial. Amat era a palavra em latina para ”ama”. E Phmn era com certeza Philemon.

Alguém cujo nome começava com M, homem ou mulher, outrora amara Philemon e lhe dera aquilo; e ele escondera junto com seus tesouros roubados.

Desde a infância havia rumores de que Philemon tinha dedos leves. Coisas costumavam desaparecer em suas proximidades. Parecia que aquele era o lugar em que ele as escondia. Merthin imaginou-o a subir até ali, sozinho, talvez à noite, para tirar a pedra da parede e admirar, exultante, seus despojos. Não podia haver a menor dúvida de que era uma espécie de doença.

Por outro lado, nunca haviam circulado rumores de que Philemon tivesse amantes. Como seu mentor Godwyn, ele parecia ser daquela minoria de homens para os quais era muito fraca a necessidade de amor sexual. Mas alguém se apaixonara por ele, em algum momento, e Philemon guardava a lembrança.

Merthin tornou a pôr os objetos no esconderijo, exatamente como os encontrara: tinha uma boa memória para esse tipo de coisa. Ajeitou a pedra solta no lugar. Depois, pensativo, deixou o compartimento e desceu pela escada em espiral.

Ralph ficou surpreso quando Philippa voltou para casa.

Era um raro dia de sol num verão muito chuvoso, e ele gostaria de sair para caçar falcões; mas não podia fazê-lo, o que o deixava furioso. A colheita estava prestes a começar, e a maioria dos vinte ou trinta intendentes, bailiffs e administradores do condado precisavam vê-lo com urgência. Todos tinham o mesmo problema: as colheitas amadurecendo nos campos e insuficiência de homens e mulheres para trabalhar.

Ele não podia fazer nada para ajudar. Aproveitara todas as oportunidades para processar os trabalhadores que desafiavam a ordenação ao deixaram suas aldeias em buscas de salários mais altos; mas os poucos que conseguia encontrar pagavam as multas de seus ganhos extras e fugiam de novo. Por isso, os bailiffs tinham problemas. Todos queriam lhe explicar suas dificuldades, e ele precisava escutar, dar sua aprovação aos planos improvisados.

O salão estava cheio de pessoas: bailiffs, cavaleiros e homens de armas, dois sacerdotes, e uma dúzia ou mais de criados fingindo que trabalhavam. Num momento em que todos se calaram, Ralph ouviu as gralhas lá fora, os gritos estridentes soando como uma advertência.

Ele levantou os olhos e se deparou com Philippa na entrada. Ela falou primeiro para os criados:

- Martha, esta mesa ainda está suja do almoço. Vá buscar água quente para lavá-la, agora. Dickie, acabo de ver o cavalo predileto do conde com o que parece ser lama de ontem, enquanto você fica aqui cortando um pedaço de madeira com sua faca. Volte para o estábulo, que é o seu lugar, e limpe o cavalo. E você, rapaz, leve esse cachorro para fora, pois ele acabou de fazer xixi no chão. O único cachorro que deve ter permissão para entrar aqui é o mastim do conde. Você sabe disso.

Todos os criados entraram em ação no mesmo instante; até mesmo aqueles a quem ela não havia se dirigido encontraram um trabalho para fazer.

Ralph não se importava que Philippa desse ordens aos criados. Eles se tornavam indolentes sem uma ama para pressioná-los.

Ela se aproximou e fez uma reverência profunda, como era apropriado depois de uma longa ausência. Mas não se ofereceu para beijá-lo. Ralph comentou, em tom neutro:

- Isto é... inesperado.

Philippa comentou, com alguma irritação:

- Eu não deveria ter a necessidade de fazer essa viagem. Ralph soltou um grunhido interior.

- O que a trouxe até aqui?

Qualquer que fosse o motivo, ele tinha certeza, haveria uma briga.

- Meu solar de Ingsby.

Philippa tinha um pequeno número de propriedades pessoais, umas poucas aldeias em Gloucestershire que pagavam tributo a ela, não ao conde. Desde que ela fora viver no convento, os bailiffs dessas aldeias a procuravam no Priorado de Kingsbridge, Ralph sabia, e prestavam contas diretamente. Mas Ingsby era uma exceção embaraçosa. O solar pagava tributo a ele, que transferia para Philippa... o que esquecera de fazer desde sua partida.

- Droga! Esqueci por completo.

- Não tem problema. Você tem muita coisa em que pensar. O que era surpreendentemente conciliador.

Ela subiu para os aposentos particulares, enquanto Ralph voltava a seu trabalho. Meio ano de separação a melhorara um pouco, pensou ele, enquanto outro bailiff discorria sobre os campos com trigo amadurecendo e lamentava a escassez de colhedores. De qualquer forma, Ralph torcia para que ela não planejasse ficar por muito tempo. Deitar a seu lado à noite era como dormir com uma vaca morta.

Philippa reapareceu na hora do jantar. Sentou ao lado de Ralph e conversou polidamente com vários cavaleiros visitantes durante a refeição. Mostrou-se fria e reservada como sempre - não havia afeição, nem sequer qualquer humor -, mas também ele não percebeu nenhum sinal do ódio gelado e implacável que ela exibira depois do casamento. Desaparecera por completo, ou se encontrava oculto lá no fundo. Ao final da refeição, ela tornou a se retirar, deixando-o a beber com os cavaleiros.

Ralph considerou a possibilidade de que ela planejasse voltar em caráter permanente, mas no final descartou a idéia. Philippa nunca o amaria, nem mesmo gostaria dele.

Acontecia apenas que a longa separação atenuara um pouco o ressentimento. Era bem provável que o sentimento por trás nunca a deixaria.

Ele presumiu que a encontraria dormindo quando subiu. Para sua surpresa, no entanto, encontrou-a sentada à escrivaninha, numa camisola de linho cor de marfim, uma única vela projetando uma claridade suave sobre as feições orgulhosas e os cabelos escuros e abundantes. A sua frente, havia uma carta longa, com uma letra infantil, que ele adivinhou ser de Odila, agora a condessa de Monmouth. Philippa escrevia uma resposta. Como a maioria dos aristocratas, ela ditava as cartas de negócios para um secretário, mas escrevia as pessoais.

Ralph foi até a privada. Ao sair, tirou as roupas externas. Era verão, e ele costumava dormir só com as roupas de baixo.

Philippa terminou de escrever a carta, levantou-se... e derrubou o pote de tinta que estava em cima da mesa. Pulou para trás, mas já era tarde demais. O pote caiu em sua direção, criando uma enorme mancha preta na camisola. Ela resmungou uma imprecação. Ralph quase riu; ela era tão meticulosa que se sujar de tinta era engraçado.

Ela ainda hesitou por um momento, depois tirou a camisola pela cabeça.

Ralph ficou surpreso. Em circunstâncias normais, ela não costumava tirar as roupas na sua presença. Devia ter ficado surpresa com a tinta. Ele admirou seu corpo nu. Philippa engordara um pouco no convento. Os seios pareciam maiores e mais redondos do que antes, a barriga tinha uma saliência suave mas discernivel, e os quadris exibiam uma curva ainda mais atraente. Para sua surpresa, Ralph sentiu-se excitado.

Ela abaixou-se para limpar a tinta do chão ladrilhado com a camisola entrouxada. Os seios balançaram, enquanto esfregava os ladrilhos. Philippa virou-se, oferecendo uma vista generosa do traseiro. Se não soubesse que isso era impossível, Ralph diria que ela tentava provocá-lo. Mas aquela mulher nunca tentara provocar ninguém, muito menos ele. Era apenas desajeitada e embaraçada. O que tornava ainda mais excitante contemplar sua nudez exposta enquanto ela limpava o chão.

Há várias semanas ele não deitava com uma mulher; e a última fora uma prostituta de Salisbury, bastante insatisfatória.

E quando Philippa se ergueu, ele já tinha uma ereção. Ela percebeu que era observada.

- Não olhe para mim. Vá se deitar.

Ela jogou a camisola no cesto de roupa suja. Foi levantar a tampa da arca de roupas. Deixara a maior parte de suas roupas ali quando fora para Kingsbridge, pois não era apropriado que uma mulher vestisse trajes mais ricos num convento, mesmo quando era da nobreza. Pegou outra camisola. Ralph não foi capaz de desviar os olhos enquanto ela se virava. Os seios empinados e a elevação do sexo, com seus cabelos escuros, deixaram-no com a boca ressequida. Philippa viu que ele a admirava.

- Não ouse me tocar. Se ela não dissesse isso, era provável que Ralph acabasse se virando para o outro lado e dormindo. Mas a rejeição deixou-o

- Sou o conde de Shiring e você é minha esposa. Eu a tocarei em qualquer momento que quiser.

- Não ousaria.

Philippa virou-se para vestir a camisola. O comentário enfureceu-o. No momento em que ela erguia a camisola para enfiá-la pela cabeça, Ralph deu um tapa em sua bunda. Foi uma pancada firme na pele nua, e ele pôde sentir que doera. Philippa deu um pulo e gritou.

- Eu ouso qualquer coisa.

Ela virou-se, com um protesto nos lábios. Num súbito impulso, Ralph deu um tapa em sua boca. Ela foi jogada para trás e caiu. Levou a mão à boca. O sangue escorria entre os dedos. Mas Philippa estava estendida de costas, nua, as pernas abertas, e ele podia ver o triângulo cabeludo no encontro das coxas, a fenda entreaberta, como se fosse um convite.

Ralph caiu em cima dela.

Philippa debateu-se em desespero, mas ele era maior e mais forte. Superou sua resistência sem muito esforço. E penetrou-a um momento depois. Ela estava seca, o que o deixou ainda mais excitado.

Tudo acabou num instante. Ralph rolou para o lado, ofegante. Olhou para ela depois de algum tempo. Havia sangue na boca de Philippa. Ela não o fitava: mantinha os olhos fechados. Mas ele teve a impressão de que havia uma estranha expressão em seu rosto. Pensou a respeito por um instante, até chegar a uma conclusão; e ficou ainda mais perplexo do que antes.

Ela parecia triunfante.

Merthin soube que Philippa havia voltado a Kingsbridge quando viu sua criada na Bell. Ficou esperando que a amante fosse até sua casa naquela noite, e sentiu-se desapontado quando isso não aconteceu. Não restava a menor dúvida de que ela se sentia constrangida, pensou ele. Nenhuma mulher se sentiria à vontade com o que ela fizera, embora as razões fossem prementes, embora o homem que ela amava tanto soubesse e compreendesse.

Outra noite se passou sem que ela aparecesse. Veio o domingo, e ele tinha certeza de que a encontraria na catedral. Mas ela não foi ao serviço. Era quase inédito que alguém da nobreza perdesse uma missa dominical. O que a mantivera ausente?

Depois do serviço, ele mandou Lolla para casa, com Arn e Em. Atravessou o pátio gramado até o velho hospital. Havia três quartos para hóspedes importantes no segundo andar. Merthin subiu pela escada externa.

No corredor, encontrou-se com Caris. Ela não se deu o trabalho de perguntar o que ele fazia ali.

- A condessa não quer que você a veja, mas provavelmente deve fazê-lo. Merthin notou que a frase era estranha. Não ”A condessa não quer vê-lo”,

mas sim ”A condessa não quer que você a veja”. Ele olhou para a bacia que Caris carregava. Havia ali um pano manchado de sangue. O medo deixou seu coração gelado.

- O que aconteceu ?

- Nada muito grave. O bebê está ileso.

- Graças a Deus!

- Você é o pai, não é mesmo?

- Por favor, não deixe que ninguém a ouça dizer isso. Caris parecia desolada.

- Só concebi uma vez durante todos os anos em que estivemos juntos. Ele desviou os olhos.

- Em que quarto ela está?

- Peço desculpa por falar a respeito. Sou a última pessoa pela qual você se interessa. Encontrará lady Philippa no quarto do meio.

Merthin percebeu a angústia indisfarçada em sua voz e hesitou, apesar de sua ansiedade por Philippa. Tocou o braço de Caris.

- Por favor, não pense que não me interesso por você. Sempre me importo com o que acontece com você, se é feliz ou não.

Caris acenou com a cabeça, as lágrimas aflorando a seus olhos.

- Sei disso. Apenas estou sendo egoísta. Vá falar com Philippa.

Merthin deixou Caris. Entrou no quarto do meio. Philippa estava ajoelhada no prie-dieu, de costas para ele. Interrompeu suas orações.

- Você está bem?

Ela levantou-se e virou-se. Tinha o rosto arrebentado. Os lábios estavam inchados, três vezes maiores do que o normal, a casca da ferida mal se formando. Merthin calculou que Caris lavara o ferimento, o que explicava o pano sujo de sangue.

- O que aconteceu? - indagou ele. - Pode falar? Ela acenou com a cabeça.

- A voz sai estranha, mas posso falar. A voz era um balbucio quase incompreensível.

- Ficou muito ferida?

- Meu rosto está horrível, mas não é grave. Afora isso, não tenho nada. Merthin abraçou-a. Ela encostou a cabeça em seu ombro. Ele esperou. Depois de um momento, Philippa começou a chorar. Ele afagou seus cabelos e costas, enquanto ela tremia em soluços.

- Calma, calma...

Ele beijou-a na testa, mas não tentou silenciá-la. Pouco a pouco, os soluços foram diminuindo.

- Posso beijar seus lábios? Ela concordou com um aceno de cabeça.

- Gentilmente.

Merthin roçou os lábios com os seus. Sentiu um gosto de amêndoas: Caris passara óleo no ferimento.

- Conte-me o que aconteceu.

- Deu certo. Ele foi enganado. E terá certeza de que o bebê é seu. Merthin tocou nos lábios com as pontas dos dedos.

- E ele fez isso?

- Não fique zangado. Tentei provocá-lo, e tive êxito. Deve se sentir contente por Ralph ter me agredido.

- Contente? Por quê?

- Porque ele pensa que teve de me obrigar. Acha que eu não teria me submetido sem violência. Não tem a menor suspeita de que eu tencionava seduzi-lo. Nunca desconfiará da verdade. O que significa que estou segura... e nosso bebê também.

Merthin pôs a mão em sua barriga.

- Mas por que não foi me procurar assim que chegou?

- Com esta cara?

- Quero ficar ainda mais do seu lado quando está machucada. - Ele deslocou a mão para o seio. - Além do mais, tenho sentido muita saudade.

Philippa afastou sua mão. ,

- Não posso ir de um para outro como uma prostituta.

- Ahn...

Ele não pensara assim.

- Você compreende, não é?

- Acho que sim. - Merthin podia entender que uma mulher se sentiria ordinária... embora um homem pudesse se orgulhar de fazer exatamente a mesma coisa. - Mas por quanto tempo...?

Philippa suspirou e recuou.

- O importante não é o tempo.

- Como assim?

- Concordamos em anunciar ao mundo que o bebê é de Ralph, e eu providenciei para que ele pensasse assim. Agora, ele vai querer criá-lo.

Merthin ficou consternado.

- Eu não havia pensado nos detalhes, mas imaginei que você continuaria a viver no priorado.

- Ralph não permitirá que a criança seja criada num convento, ainda mais se for um menino.

- Então o que pretende fazer? Voltar para Earlscastle?

- Isso mesmo.

A criança ainda não era nada; não era uma pessoa, nem mesmo um bebê, mas apenas uma saliência na barriga de Philippa. Mesmo assim, Merthin sentiu uma pontada de pesar. Lolla tornara-se a grande alegria de sua vida, e ele aguardava ansioso por outra criança.

Mas pelo menos teria Philippa por mais algum tempo.

- Quando voltará para Earlscastle?

- Imediatamente. - Ela viu a expressão de Merthin, e as lágrimas afloraram a seus olhos. - Não posso lhe dizer o quanto lamento... mas seria errado fazer amor com você e planejar voltar para Ralph. Seria a mesma coisa que ter dois homens. O fato de vocês dois serem irmãos torna a situação ainda pior.

Os olhos de Merthin ficaram turvos de lágrimas.

- Portanto, está acabado o que havia entre nós? Agora? Ela acenou com a cabeça em confirmação.

- E há mais uma coisa que tenho de lhe dizer, mais uma razão para que nunca mais possamos ser amantes. Confessei meu adultério.

Merthin sabia que Philippa tinha seu confessor pessoal, como era apropriado para uma mulher da alta nobreza. Desde que ela viera para Kingsbridge, o confessor vivia com os monges, um acréscimo bem recebido em suas fileiras reduzidas. Merthin esperava que ele fosse capaz de guardar os segredos do confessionário. Philippa acrescentou:

- Recebi a absolvição, mas não devo continuar a pecar.

Merthin também acenou com a cabeça. Ela tinha razão. Ambos haviam pecado. Philippa traíra o marido, e ele traíra o irmão. Ela tinha uma desculpa: fora forçada ao casamento. Ele não tinha nenhuma. Uma linda mulher apaixonara-se por ele e retribuíra seu amor, embora não tivesse esse direito. A angústia e o pesar que sentia agora eram as conseqüências naturais desse comportamento.

Merthin contemplou-a - os olhos angustiados, cinza-verdes, a boca machucada, o corpo maduro - e compreendeu que a perdera. Talvez ela nunca tivesse sido sua de fato. De qualquer forma, sempre fora errado, e agora acabara. Ele tentou falar, despedir-se, mas a garganta parecia obstruída, e nada saiu. Mal podia vê-la, por causa das lágrimas. Virou-se, tateou à procura da porta, e conseguiu sair, sem saber como.

Uma freira seguia pelo corredor, carregando um jarro. Ele não podia ver quem era, mas reconheceu a voz de Caris quando ela disse:

- Merthin? Você está bem?

Ele não respondeu. Seguiu na direção oposta, passou pela porta, e desceu a escada externa. Agora chorando abertamente, sem se importar com quem visse, Merthin atravessou o pátio gramado da catedral, desceu a rua principal e passou pela ponte, até sua ilha.

Setembro de 1350 foi um mês frio e chuvoso, mas mesmo assim havia um sentimento de euforia. Enquanto os feixes molhados de trigo eram reunidos nos campos ao redor, apenas uma pessoa morreu da peste em Kingsbridge: Marge Taylor, uma costureira de sessenta anos. Ninguém pegou a doença em outubro, novembro ou dezembro. Parecia ter desaparecido, pensou Merthin, agradecido... pelo menos por enquanto.

A migração antiga, de pessoas irrequietas e empreendedoras indo dos campos para as cidades, fora revertida durante a peste, mas agora recomeçara. Muitos vieram para Kingsbridge, instalaram-se nas casas vazias, e começaram a pagar o aluguel para o priorado. Alguns abriram negócios novos - padarias, cervejarias, manufaturas de velas - para substituir os antigos que haviam acabado quando os proprietários e todos os seus herdeiros morreram. Merthin, como regedor, tornara mais fácil abrir uma loja ou um estande no mercado, acabando com o processo prolongado que era imposto pelo priorado.

O mercado semanal foi ficando mais e mais movimentado.

Uma a uma, Merthin alugou as lojas, casas e tavernas que construíra na ilha do Leproso. Os arrendatários eram recém-chegados empreendedores, ou mercadores que já residiam na cidade, à procura de melhores locais. A estrada através da ilha, entre as duas pontes, tornou-se uma extensão da rua principal, e portanto uma área privilegiada para propriedades comerciais... como Merthin previra, doze anos antes, quando as pessoas achavam que ele era louco em aceitar a ilha rochosa e árida como parte do pagamento por seu trabalho na ponte.

O inverno chegou, e mais uma vez a fumaça de milhares de fogueiras pairava sobre a cidade, numa nuvem baixa e marrom; mas as pessoas ainda trabalhavam e faziam compras, comiam e bebiam, jogavam dados nas tavernas, e iam à igreja aos domingos. A casa da guilda testemunhou o primeiro banquete da véspera de Natal desde que a guilda da paróquia passara a ser a guilda do burgo.

Merthin convidou o prior e a prioresa. Eles não tinham mais o poder de prevalecer sobre os mercadores, mas ainda se destacavam entre as pessoas mais importantes da cidade. Philemon compareceu, mas Caris recusou o convite: tornara-se retraída a um ponto preocupante.

Merthin sentou ao lado de Madge Webber. Ela era agora a mercadora mais rica e a maior empregadora em Kingsbridge, talvez em todo o condado. Era vice-regedora, e poderia vir a ser regedora, se não fosse sem precedentes a presença de uma mulher nesse cargo.

 

Entre os muitos empreendimentos de Merthin, havia uma oficina que fabricava os teares de pedal que haviam melhorado a qualidade do Escarlate de Kingsbridge. Madge comprava mais da metade de sua produção; outros mercadores empreendedores vinham de longe, até mesmo de Londres, para comprar o resto. Os teares eram engrenagens complexas, e tinham de ser fabricados de maneira impecável e montados com precisão. Por isso, Merthin tinha de empregar os melhores carpinteiros disponíveis. Ele cobrava pelo produto acabado mais do que o dobro do custo de fabricação, e ainda assim as pessoas mal podiam esperar para lhe dar o dinheiro.

Várias pessoas insinuaram que ele deveria casar com Madge, mas a idéia não tentava nenhum dos dois. Ela nunca fora capaz de encontrar um homem que pudesse se comparar a Mark, que tinha o físico de um gigante e a disposição de um santo. Madge sempre fora cheia de corpo, mas agora estava gorda de fato. Na casa dos quarenta anos, virara uma dessas mulheres que parecem um barril, com a mesma largura da extensão dos ombros ao traseiro. Comer e beber bem eram agora os seus principais prazeres, pensou Merthin, enquanto a observava se empanturrar de pernil com gengibre, um molho de maçãs e cravos. Isso e ganhar dinheiro.

Ao final da refeição, foi servido um vinho temperado chamado hipocraz. Madge tomou um longo gole, arrotou, e chegou mais perto de Merthin no banco.

- Temos de fazer alguma coisa com o hospital - declarou ela.

- É mesmo? - Merthin não tinha noção de que havia um problema. - Agora que a peste acabou, pensei que as pessoas já não precisavam tanto de um hospital.

- Claro que precisam. Ainda têm febre, dor de barriga e câncer. Mulheres querem engravidar e não conseguem, ou sofrem complicações quando dão à luz. Crianças se queimam e caem de árvores. Homens são derrubados de seus cavalos, esfaqueados por inimigos, ou têm a cabeça quebrada por esposas furiosas...

-Já entendi tudo. - Merthin estava achando graça da loquacidade de Madge.

- Qual é o problema?

- Ninguém vai mais para o hospital. As pessoas não gostam do irmão Sime, e além do mais, não confiam em seus conhecimentos. Enquanto estávamos todos aqui enfrentando a peste, ele permanecia em Oxford, estudando textos antigos. O irmão Sime ainda prescreve tratamentos como sangria, em que ninguém mais acredita. Querem Caris... mas ela nunca aparece.

- O que as pessoas fazem quando estão doentes, se não vão para o hospital?

- Procuram Matthew Barber, ou Silas Pothecary, ou uma recém-chegada, Maria Wisdom, que se especializou em problemas das mulheres.

- Então o que a preocupa?

- As pessoas começam a se manifestar contra o priorado. Se não recebem ajuda dos monges e freiras, dizem, por que deveriam pagar a construção da torre?

- Hum...

A torre era um vasto projeto. Nenhuma instituição individual isolada teria condições de financiá-la. Uma combinação de recursos do mosteiro, do convento e da cidade era a única maneira de pagá-la. Se a cidade suspendesse os pagamentos, o projeto poderia ser ameaçado.

- Isso é mesmo um problema - acrescentou Merthin, preocupado.

Fora um bom ano para a maioria das pessoas, pensou Caris, sentada no coro durante a missa do dia de Natal. As pessoas vinham se ajustando às devastações causadas pela peste com uma surpreendente rapidez. Além de provocar terríveis sofrimentos e um quase colapso da vida civilizada, a doença também proporcionara a oportunidade para mudanças drásticas. Quase metade da população morrera, pelos seus cálculos; mas um efeito era o de que os camponeses remanescentes só cultivavam agora os solos mais férteis, o que significava que cada homem produzia mais. Apesar da Ordenação dos Trabalhadores e dos esforços de nobres como o conde Ralph para impor seu cumprimento, ela sentia-se satisfeita por constatar que as pessoas continuavam a se mudar para onde os salários eram mais altos, o que era em geral onde a terra era mais produtiva. Os cereais eram abundantes e os rebanhos de vacas e ovelhas cresciam de novo. O convento era cada vez mais próspero; e porque Caris reorganizara também os negócios dos monges depois da fuga de Godwyn, o mosteiro desfrutava de uma prosperidade que não conhecia há mais de cem anos. A riqueza criava riqueza, e os bons tempos nos campos traziam mais negócios para as cidades. Assim, os artesãos e lojistas de Kingsbridge começavam a recuperar sua antiga riqueza.

Quando as freiras deixavam a catedral, ao final do serviço, o prior Philemon procurou-a.

- Preciso lhe falar, madre prioresa. Pode ir até minha casa?

No passado ela aceitaria polidamente o convite, sem a menor hesitação. Mas esses dias haviam acabado.

- Não, não posso.

Ele ficou vermelho no mesmo instante.

- Não pode se recusar a conversar comigo!

- E não o fiz. Apenas me recusei a ir até seu palácio. Não admito ser convocada à sua presença como uma subordinada. Sobre o que deseja conversar comigo?

- Sobre o hospital. Tem havido queixas.

- Fale com o irmão Sime... ele está no comando do hospital, como sabe muito bem.

- Não é possível conversar com você? - indagou ele, exasperado. - Se Sime pudesse resolver o problema, eu conversaria com ele, não com você.

A esta altura, os dois estavam no claustro dos monges. Caris sentou no muro baixo de pedra em torno do jardim. A pedra estava fria.

- Podemos conversar aqui. O que tem a me dizer?

Philemon estava contrariado, mas cedeu. Ficou de pé na frente de Caris; e agora era ele quem parecia um subordinado.

- Os moradores da cidade estão insatisfeitos com o hospital.

- O que não me surpreende.

- Merthin queixou-se para mim no jantar de Natal da guilda. As pessoas não vêm mais para cá. Em vez disso, procuram charlatões, como Silas Pothecary.

- Ele não é mais charlatão do que Sime.

Philemon percebeu que havia vários noviços parados nas proximidades, escutando a conversa.

- Vão embora, todos vocês - ordenou ele. - Voltem para seus estudos.

Os noviços afastaram-se apressados. Philemon tornou a se virar para Caris.

- As pessoas da cidade acham que você deveria estar no hospital.

- Também acho. Mas não sigo os métodos de Sime. Na melhor das hipóteses, seus tratamentos não têm qualquer efeito. Na maioria das vezes, agravam o estado do paciente. É por isso que as pessoas não vêm mais para cá quando ficam doentes.

- Seu novo hospital tem tão poucos pacientes que passamos a usá-lo como casa de hóspedes. Isso não a incomoda?

Era um escárnio que acertou no alvo. Caris engoliu em seco e desviou os olhos.

- Parte meu coração.

- Então volte. Chegue a um acordo com Sime. Trabalhou sob as ordens dos monges médicos nos primeiros dias, quando veio para cá. O irmão Joseph era o médico mais antigo naquele tempo. Ele tinha o mesmo treinamento de Sime.

- É verdade. Naquele tempo, achávamos que os monges às vezes causavam mais mal do que bem, mas podíamos trabalhar com eles. Na maior parte do tempo, nem os chamávamos, apenas fazíamos o que julgávamos melhor. E quando eles tratavam de um paciente, nem sempre seguíamos suas instruções ao pé da letra.

- Você não pode acreditar que eles estavam sempre errados.

- Claro que não. Às vezes os médicos curavam as pessoas. Lembro de Joseph abrindo o crânio de um homem e drenando o fluido acumulado que vinha causando dores de cabeça insuportáveis... foi impressionante.

- Faça a mesma coisa agora.

- Não dá mais. Sime acabou com essa possibilidade, não é mesmo? Ele levou seus livros e equipamentos para o hospital e assumiu o comando. E tenho certeza de que fez isso com seu encorajamento. Mais até, é bem provável que a idéia tenha sido sua. - Ela percebeu, pela expressão de Philemon, que acertara em cheio. - Você e ele conspiraram para me expulsar do hospital. Conseguiram... e agora estão sofrendo as conseqüências.

- Poderemos voltar ao antigo sistema. Mandarei Sime sair. Caris sacudiu a cabeça.

- Tem de haver outras mudanças. Aprendi muita coisa com a peste. Estou mais convencida do que nunca de que os métodos dos médicos podem ser fatais. Não matarei as pessoas em prol de um acordo com você.

- Você não compreende o quanto está em jogo.

Ele exibia uma ligeira expressão de presunção. Portanto, havia mais alguma coisa. Caris vinha especulando por que Philemon levantara aquele assunto. Não era de se preocupar com o hospital: nunca se importara com o trabalho de cura. Só se interessava pelo que melhoraria sua posição e defenderia seu frágil orgulho.

- Está bem. O que mais você sabe?

- O pessoal da cidade está falando em cortar os recursos para a nova torre. Por que deveriam pagar um extra para a catedral, eles indagam, quando não obtêm o que querem de nós? E agora que a cidade é um burgo, eu como prior não posso mais exigir o pagamento.

- E se eles não pagarem..?

- Seu amado Merthin terá de abandonar seu projeto de estimação - arrematou Philemon, triunfante.

Caris compreendeu que esse era o trunfo de Philemon. E houvera mesmo um tempo em que essa revelação deixaria Caris sobressaltada. Mas isso não mais acontecia.

- Merthin não é mais meu amado. Você acabou com isso também. Uma expressão de pânico aflorou ao rosto do prior.

- Mas o bispo está empenhado na construção da torre... você não pode pôr o projeto em risco!

Caris levantou-se.

- Não posso? Por que não?

Ela virou-se e seguiu na direção do convento. Philemon ficou atordoado. Ainda gritou:

- Como pode ser tão irresponsável?

Caris ia ignorá-lo, mas depois mudou de idéia e decidiu explicar. Virou-se para fitá-lo.

- Tudo o que eu sempre prezei me foi tirado - disse ela, num tom apático. E quando você perdeu tudo...

A fachada sob controle começou a desmoronar e a voz tremeu, mas ela se forçou a acrescentar:

- Quando você perdeu tudo, não tem mais nada a perder.

A primeira neve caiu em janeiro. Formou um manto espesso no telhado da catedral, cobriu as delicadas esculturas das agulhas, mascarou os rostos dos anjos e santos esculpidos por cima da porta de oeste. A alvenaria nova das fundações da torre fora coberta de palha, para isolar a argamassa da geada de inverno; agora, a neve cobria a palha.

Havia poucas lareiras num priorado. A cozinha tinha fogos acesos, como não podia deixar de ser; e era por isso que o trabalho na cozinha sempre fora popular entre os noviços. Mas não havia fogo na catedral, onde os monges e freiras passavam sete ou oito horas por dia. Quando as igrejas pegavam fogo, era em geral porque um monge desesperado levara um braseiro de carvão para o prédio, e uma fagulha voara do fogo para o teto de madeira. Quando não estavam na igreja nem trabalhando, deveriam andar e ler nos claustros, expostos ao frio. A única concessão ao conforto era a sala de aquecimento, um pequeno compartimento próximo dos claustros em que se acendia um fogo nos momentos de frio mais intenso. Monges e freiras tinham permissão para entrar na sala de aquecimento por curtos períodos.

Como sempre, Caris ignorava as regras e tradições, e permitia que as freiras usassem roupas de baixo de lã durante o inverno. Não acreditava que Deus queria que suas servidoras tivessem frieiras.

O bispo Henri estava tão preocupado com o hospital - ou melhor, com a ameaça à sua torre - que seguiu de Shiring para Kingsbridge através da neve. Viajou numa pesada carroça de madeira, com uma coberta de lona e bancos almofadados, acompanhado pelo cônego Claude e o arquidiácono Lloyd. Fizeram uma pausa no palácio do prior apenas pelo tempo suficiente para secar as roupas e tomar um vinho quente, antes de convocarem uma reunião de crise, com Philemon, Sime, Caris, Oonagh, Merthin e Madge.

Caris já sabia que seria um desperdício de tempo, mas foi assim mesmo: era mais fácil do que recusar, o que exigiria que ficasse sentada no convento e lidasse com intermináveis mensagens suplicando, ordenando e ameaçando.

Ela olhava para os flocos de neve que caíam além das vidraças da janela, enquanto o bispo resumia, monótono, uma discussão pela qual não tinha o menor interesse.

- Esta crise foi provocada pela atitude desleal e desobediente de madre Caris

- declarou Henri.

Ela ficou tão irritada que não se conteve.

- Trabalhei no hospital aqui por dez anos. Meu trabalho... e o de madre Cecilia antes de mim... fizeram o hospital tão popular entre os moradores da cidade. - Caris apontou o dedo para o bispo, num gesto agressivo. - Você mudou isso. Não tente culpar outras pessoas. Sentou nessa cadeira e anunciou que dali por diante o irmão Sime estaria no comando. Agora, deve assumir a responsabilidade pelas conseqüências de sua decisão tão insensata.

- Você deve me obedecer! - Henri alteou a voz para um som estridente de frustração. - É uma freira... fez um voto!

A discussão perturbou o gato, Arcebispo, que se levantou e saiu da sala.

- Sei disso. E fico numa posição intolerável. - Caris falou sem ter pensado a respeito antes. Mas à medida que as palavras saíram, ela compreendeu que não eram inadequadas. Na verdade, eram o resultado de meses de reflexão. - Não posso mais servir a Deus dessa maneira.

A voz era calma, mas o coração batia descompassado quando ela arrematou:

- E por isso que decidi renunciar a meus votos e deixar o convento. Henri levantou-se.

- Não pode fazer isso! - gritou ele. - Não vou liberá-la de seus votos sagrados!

- Mas espero que Deus me libere - insistiu ela, mal disfarçando seu desdém. Isso o deixou ainda mais furioso.

- Essa noção de que as pessoas podem lidar direto com Deus é a pior heresia. Tem havido mais e mais dessa conversa absurda desde a peste.

- Não acha que isso pode ter acontecido porque as pessoas, quando procuraram a Igreja em busca de ajuda durante a peste, descobriram muitas vezes que seus padres e monges... - Neste ponto, ela olhou para Philemon. -... haviam fugido como covardes?

Henri levantou a mão para impedir a resposta indignada de Philemon.

- Podemos ser falíveis, mas mesmo assim é apenas através da Igreja e de seus sacerdotes que homens e mulheres podem se aproximar de Deus.

- Você pode pensar assim, é claro - disse Caris. - Mas isso não faz com que seja certo.

- Você é um demônio!

O cônego Claude interveio:

- Isto posto, milorde bispo, uma discussão pública entre você e Caris não ajudaria ninguém.

Ele ofereceu um sorriso cordial para Caris. Mostrava-se bem-disposto em relação a ela desde o dia em que Caris surpreendera ele e o bispo se beijando, nus, e não dissera nada a ninguém.

- Sua atual não-cooperação deve ser considerada à luz de muitos anos de serviços dedicados, às vezes heróicos - acrescentou Claude. - E as pessoas a amam.

- Mas o que acontece se a liberarmos de seus votos? - indagou Henri. Como isso resolveria o problema?

Foi nesse momento que Merthin falou pela primeira vez:

- Tenho uma sugestão. Todos olharam para ele.

- Deixem a cidade construir um novo hospital. Doarei um terreno grande na ilha do Leproso. Será cuidado por um novo convento, separado do priorado. As freiras estarão sob a autoridade espiritual do bispo de Shiring, é claro, mas não terão qualquer ligação com o prior de Kingsbridge ou qualquer dos médicos do mosteiro. O novo hospital teria um patrono leigo, que seria uma pessoa eminente da cidade, escolhida pela guilda. Essa pessoa indicaria a prioresa.

Todos permaneceram em silêncio por um longo momento, enquanto absorviam a proposta radical. Caris estava atordoada.

Um novo hospital... na ilha do Leproso... pago pelos moradores da cidade... aos cuidados de uma nova ordem de freiras... sem qualquer ligação com o priorado...

Ela correu os olhos pelo grupo. Philemon e Sime detestavam a idéia. Henri, Claude e Lloyd estavam perplexos. O bispo finalmente falou:

- O patrono será muito poderoso... representando os moradores, pagando as contas, designando a prioresa. Quem quer que assuma o papel vai controlar o hospital.

- Isso mesmo - confirmou Merthin.

- Se eu autorizar um novo hospital, os moradores daneidade continuarão a pagar pela construção da torre?

Madge Webber falou pela primeira vez:

- Se o patrono certo for escolhido, claro que sim.

- E quem deveria ser? - perguntou Henri.

Poucas horas depois, Caris e Merthin envolveram-se com mantos grossos, calçaram botas e caminharam pela neve até a ilha, onde ele mostrou o local que tinha em mente. Ficava no lado oeste, não muito longe de sua casa, à beira do rio.

Ela ainda sentia-se tonta com a súbita mudança em sua vida. Fora liberada de seus votos de freira. Voltaria a ser uma cidadã normal, depois de quase doze anos. Descobriu que podia considerar a perspectiva de deixar o priorado sem angústia. As pessoas que ela amara ali haviam morrido: madre Cecilia, Old Julie, Mair, Tilly. Gostava muito de irmã Joan e irmã Oonagh, mas não era a mesma coisa.

E ainda estaria no comando de um hospital. Como teria o direito de designar e dispensar a prioresa da nova instituição, poderia dirigi-la de acordo com o novo pensamento que se desenvolvera do combate à peste. O bispo concordara com tudo.

- Acho que devemos usar outra vez a disposição de claustro - disse Merthin. Pareceu funcionar muito bem pelo curto período em que você esteve no comando.

Caris contemplou o lençol imaculado de neve e se espantou mais uma vez com a capacidade de Merthin de ver paredes e quartos onde ela observava apenas uma brancura interminável.

- A arcada da entrada era usada quase como uma sala - comentou ela. - Era o lugar em que as pessoas esperavam, onde as freiras efetuavam o primeiro exame dos pacientes, antes de decidirem o que fazer com eles.

- Gostaria que fosse maior?

- Acho que deve ser uma verdadeira sala de recepção.

- Está bem.

Ela continuava perplexa.

- É difícil acreditar. Tudo aconteceu exatamente como eu queria. Merthin balançou a cabeça.

- Foi assim que planejei.

- É mesmo?

- Perguntei a mim mesmo o que você gostaria, e depois determinei como poderia conseguir.

Ela fitou-o, aturdida. Merthin falara em tom de indiferença, como se apenas explicasse o processo de raciocínio que o levara a suas conclusões. Parecia não ter a menor idéia de como era fundamental para Caris descobrir que ele pensava sobre seus desejos e a maneira certa de realizá-los.

- Philippa já teve o bebê? - perguntou ela.

- Já, sim. Há uma semana.

- Menino ou menina?

- Um menino.

- Meus parabéns. Já o viu?

- Não. Até onde o mundo sabe, sou apenas seu tio. Mas Ralph me mandou Uma carta.

- Já escolheram o nome?

- Roland, em homenagem ao velho conde. Caris mudou de assunto.

- A água do rio não é muito pura neste ponto da correnteza. E um hospital precisa de água limpa.

- Instalarei um cano para trazer água de um ponto mais acima do rio.

A nevasca diminuiu, para depois cessar por completo. Tinham agora uma vista clara do rio. Caris sorriu.

- Você tem resposta para tudo. Ele sacudiu a cabeça.

- Essas são as respostas fáceis: água limpa, quartos arejados, uma sala de recepção.

- E quais são as difíceis?

Merthin virou-se para fitá-la. Havia flocos de neve em sua barba ruiva.

- Perguntas como: Você ainda me ama? Ficaram se olhando por um longo momento. Caris estava feliz.

 

março a novembro de 1361

Aos quarenta anos, Wulfric ainda era o homem mais bonito que Gwenda já vira. Havia fios prateados agora em seus cabelos castanho-claros, mas faziam com que ele parecesse mais sábio, além de mais forte. Quando era jovem, os ombros largos se afilavam de uma maneira drástica para a cintura estreita, enquanto hoje em dia a mudança não era tão acentuada, nem a cintura tão estreita... mas ele ainda era capaz de fazer o trabalho de dois homens. E sempre seria dois anos mais jovem do que ela.

Gwenda pensava que mudara menos. Tinha cabelos escuros do tipo que só começavam a se tornar grisalhos tarde da vida. Não se tornara mais corpulenta do que era vinte anos antes, embora desde que tivera os filhos os seios e a barriga não fossem mais tão firmes quanto no passado.

Era apenas quando olhava para o filho Davey, com a pele lisa e uma agilidade irrequieta nos passos, que ela sentia o peso dos anos. Agora com vinte anos, ele parecia uma versão masculina do que a mãe fora nessa idade. Ela também tinha um rosto liso e andava em passos vigorosos. Uma vida inteira de trabalho nos campos, em todos os tempos, deixara as mãos calejadas e as faces avermelhadas, além de ensiná-la a andar devagar e poupar suas forças.

Davey era pequeno como ela, astuto e discreto: desde que era pequeno Gwenda nunca sabia direito o que ele pensava. Sam era o oposto: grande e forte, sem ter inteligência suficiente para ser enganador, mas com uma veia de maldade pela qual Gwenda culpava o verdadeiro pai, Ralph Fitzgerald.

Há vários anos agora os dois meninos trabalhavam lado a lado de Wulfric nos campos... até duas semanas antes, quando Sam desaparecera.

Sabiam por que ele havia partido. Durante todo o inverno, Sam falara em deixar Wigleigh e se mudar para uma aldeia em que pudesse ganhar um salário maior. E desaparecera no momento em que começava a aração da primavera.

Gwenda sabia que ele tinha razão sobre os salários. Era um crime deixar sua aldeia, ou aceitar um pagamento mais alto que os níveis de 1347. Por todo o país, no entanto, jovens irrequietos ignoravam a lei e fazendeiros desesperados os contratavam. Senhores de terras como o conde Ralph podiam fazer pouco mais do que ranger os dentes em fúria.

Sam não dissera para onde iria, e não dera nenhum aviso sobre a partida iminente. Se Davey fizesse a mesma coisa, Gwenda saberia que ele teria pensado em tudo com o maior cuidado e decidido que era a melhor coisa.

Mas tinha certeza de que Sam apenas seguira um impulso. Alguém mencionara o nome de uma aldeia, ele acordara cedo na manhã seguinte, e decidira partir imediatamente.

Ela disse a si mesma para não se preocupar. Sam tinha vinte e dois anos, era grande e forte. Ninguém haveria de explorá-lo ou maltratá-lo. Mas era sua mãe, e sentiu um aperto no coração.

Se não podia encontrá-lo, ninguém mais poderia, pelos seus cálculos, e era melhor assim. O que não a impedia de querer saber onde o filho estava, se trabalhava para um bom empregador, se as pessoas o tratavam bem.

Naquele inverno, Wulfric começara a arar os acres mais arenosos de sua terra. Na primavera, Gwenda e ele foram para Northwood, a fim de comprar uma relha de arado de ferro, uma das poucas coisas que não podiam fabricar. Como sempre acontecia, um pequeno grupo de moradores de Wigleigh viajou junto para o mercado. Jack e Eli, que operavam o moinho de fulling de Madge Webber, iam comprar suprimentos: não tinham terras, e por isso compravam todos os seus alimentos. Annet e sua filha Amabel, de dezoito anos, levavam uma dúzia de galinhas num engradado, para vender no mercado. O bailiff, Nathan, também foi, acompanhado pelo filho crescido Jonno, o inimigo de infância de Sam.

Annet ainda flertava com todos os homens de boa aparência que cruzavam seu caminho. A maioria exibia um sorriso tolo e flertava também. Na viagem para Northwood, ela conversou bastante com Davey. Embora ele tivesse menos da metade de sua idade, Annet sorria sedutora, balançava a cabeça, batia em seu braço de brincadeira, como se ela tivesse vinte e dois anos, em vez de quarenta e dois. Não era mais uma menina, mas parecia não saber disso, pensou Gwenda, irritada. A filha de Annet, Amabel, que era tão linda quanto Annet outrora fora, mantinha-se um pouco apartada, como se estivesse embaraçada pelo comportamento da mãe.

Chegaram a Northwood no meio da manhã. Depois de fazerem suas compras, Wulfric e Gwenda foram almoçar na taverna Old Oak.

Por tanto tempo quanto Gwenda podia se lembrar, havia um venerável carvalho na frente da taverna, uma árvore grossa, com galhos disformes, parecendo um velho encurvado no inverno, mas oferecendo uma sombra profunda e acolhedora no verão. Quando meninos, seus filhos costumavam correr atrás um do outro em torno daquela árvore. Mas a árvore devia ter morrido ou se tornado instável, pois fora cortada. Agora, havia apenas um toco, tão largo quanto Wulfric era alto, usado pelos clientes como uma cadeira, uma mesa e até mesmo

- por um exausto carroceiro - como uma cama.

Sentado na beira do toco, tomando cerveja de uma enorme caneca, estava Harry Plowman, o bailiff de Outhenby.

Gwenda, no mesmo instante, voltou ao passado, doze anos antes. O que aflorou à sua mente, com tanto vigor que trouxe lágrimas a seus olhos, foi a esperança que animara seu coração quando ela e a família, naquela manhã em Northwood, partiram pela floresta na direção de Outhenby e de uma vida nova. A esperança fora destruída em menos de quinze dias, e Wulfric fora levado de volta a Wigleigh - a lembrança ainda a fazia ferver de raiva - com uma corda no pescoço.

Mas Ralph não fizera tudo à sua maneira desde então. As circunstâncias haviam-no forçado a devolver a Wulfric as terras do pai dele. É verdade que Wulfric não fora bastante esperto para obter um arrendamento livre, ao contrario de alguns de seus vizinhos. Mesmo assim, Gwenda sentia-se contente por serem agora arrendatários, em vez de meros trabalhadores sem terras. Além disso, Wulfric realizara a ambição de sua vida. Mas ela ainda ansiava por mais independência, como um arrendamento livre de obrigações feudais, um arrendamento pago em dinheiro, o acordo escrito nos registros do solar, para que o senhor não pudesse voltar atrás. Era o que a maioria dos servos queria, e muitos estavam conseguindo, desde a peste.

Harry cumprimentou-os efusivo e insistiu em pagar uma cerveja. Pouco depois da breve estada de Wulfric e Gwenda em Outhenby, Harry fora promovido a bailiff por madre Caris. Ainda mantinha essa posição, embora Caris há muito tivesse renunciado a seus votos. A prioresa agora era madre Joan. Outhenby continuava a prosperar, a julgar pela papada e a barriga de cerveja de Harry.

Quando se preparavam para partir, com o resto do pessoal de Wigleigh, Harry informou a Gwenda, em voz baixa:

- Tenho um jovem chamado Sam trabalhando para mim. Gwenda sentiu o coração disparar.

-Meu Sam?

- Não pode ser.

Ela ficou aturdida. Se não era, por que mencioná-lo? Mas Harry bateu de leve em seu nariz vermelho, e Gwenda compreendeu que ele estava sendo enigmático.

- Esse Sam me assegura que seu senhor é um cavaleiro de Hampshire de que nunca ouvi falar, mas que lhe deu permissão para deixar a aldeia e trabalhar em outro lugar. Já o senhor de seu Sam é o conde Ralph, que nunca deixa seus trabalhadores partirem. É claro que eu não poderia empregar seu Sam.

Gwenda compreendeu. Essa seria a história de Harry, se algum dia houvesse perguntas oficiais.

- Portanto, ele está em Outhenby.

- Em Oldchurch, uma das aldeias menores no vale.

- Ele está bem? - indagou ela, ansiosa.

- Prosperando.

- Graças a Deus!

- Um menino forte e um bom trabalhador, embora às vezes possa ser brigão. Gwenda sabia disso.

- Ele mora numa casa boa?

- Ficou alojado com um casal mais velho de bom coração, cujo filho foi para Kingsbridge, a fim de aprender o ofício de curtidor de couro.

Gwenda ainda tinha uma dúzia de perguntas, mas nesse instante notou o vulto encurvado de Nathan Reeve, encostado na entrada da taverna, a observá-la. Ela reprimiu uma imprecação. Havia muito que queria saber, mas sentia pavor de fornecer a Nathan qualquer indicação sobre o paradeiro de Sam. Precisava se contentar com o que soubera. E ficou emocionada por saber pelo menos onde o filho se encontrava.

Ela afastou-se de Harry, para dar a impressão de que encerrava uma conversa sem importância. Pelo canto da boca, ela ainda disse:

- Não o deixe se envolver em brigas.

- Farei o que puder.

Gwenda acenou em despedida e foi ao encontro de Wulfric

Na volta para casa, Wulfric carregou a pesada relha de arado no ombro, sem qualquer esforço aparente. Gwenda sentia-se ansiosa em lhe dar a notícia, mas tinha de esperar até que o grupo se separasse. Só quando se encontravam a alguns metros dos outros é que ela relatou a conversa com Harry, em voz baixa. Wulfric mostrou-se aliviado.

- Pelo menos sabemos onde o rapaz está - murmurou ele, respirando com facilidade, apesar da carga.

- Quero ir a Outhenby - anunciou Gwenda.

- Imaginei isso. - Ele quase nunca a contestava, mas agora manifestou uma apreensão. - Mas é perigoso. Você terá de dar um jeito para que ninguém descubra para onde foi.

- Tem toda razão. Nate não deve saber.

- Como seria possível?

- Ele notará com certeza que me ausentei da aldeia por dois ou três dias. Temos de pensar numa história.

- Podemos dizer que você está doente.

- Seria arriscado demais. É bem provável que ele vá até nossa casa para verificar.

- Podemos dizer que foi para a casa de seu pai.

- Nate não acreditaria. Sabe que nunca fico ali por mais tempo do que o necessário.

Gwenda roeu uma unha, vasculhando o cérebro em busca da solução. Nas histórias de fantasmas e contos de fadas que as pessoas contavam junto do fogo, nas longas noites de inverno, os personagens em geral acreditavam nas mentiras dos outros sem questionar; mas as pessoas reais não se deixavam enganar com tanta facilidade.

- Podemos dizer que fui para Kingsbridge - sugeriu ela.

- Para quê?

- Talvez para comprar galinhas poedeiras no mercado.

- Você poderia comprar as galinhas de Annet.

- Eu não compraria coisa alguma daquela sem-vergonha, e as pessoas sabem disso.

- É verdade.

- E Nate sabe que sempre fui amiga de Caris. Por isso, acreditará que fui encontrá-la.

- Tem razão.

Não era uma história das mais plausíveis, mas ela não pôde pensar em nada melhor. E sentia-se desesperada para ver o filho.

Partiu na manhã seguinte.

Saiu de casa antes do amanhecer, envolta num manto grosso contra o vento frio de março. Atravessou a aldeia sem fazer barulho, na mais completa escuridão, encontrando o caminho pelo instinto e pela memória.

Não queria ser vista e interrogada antes de sequer se afastar da aldeia. Mas ninguém acordara ainda. O cachorro de Nathan Reeve rosnou baixinho, depois reconheceu seus passos, e ela ouviu o baque do rabo batendo no lado do canil de madeira.

Gwenda deixou a aldeia e seguiu pela estrada através dos campos. Já se encontrava a quase dois quilômetros de distância quando o dia amanheceu. Olhou para a estrada por trás. Estava vazia. Ninguém a seguira.

Ela mastigou um pedaço de pão dormido como primeira refeição. Parou ao meio-dia numa taverna em que a estrada Wigleigh-Kingsbridge cruzava com a estrada Northwood-Outhenby. Não reconheceu ninguém ali. Ficou observando a porta, nervosa, enquanto comia uma tigela de ensopado de peixe salgado e bebia uma caneca de sidra. Cada vez que alguém entrava, ela se preparava para esconder o rosto. Mas era sempre um estranho, e ninguém dispensou uma atenção especial à sua presença. Partiu logo, e pegou a estrada para Outhenby.

Alcançou o vale mais ou menos no meio da tarde. Só estivera ali doze anos antes, mas o lugar quase não havia mudado. Recuperara-se da peste com uma extraordinária rapidez. Além de algumas crianças pequenas, brincando perto das casas, a maioria dos aldeões se encontrava no trabalho, arando e semeando, cuidando dos cordeiros que haviam acabado de nascer. Olharam para ela através dos campos, sabendo que era uma estranha, especulando sobre sua identidade. Algumas pessoas a reconheceriam se chegasse mais perto. Estivera ali por apenas dez dias, mas haviam sido momentos dramáticos, e as pessoas se lembrariam. Não era com freqüência que os aldeões testemunhavam tanta agitação.

Ela seguiu o rio Outhen, que serpenteava pelo terreno plano entre as duas serras. Deixou para trás a aldeia principal e passou por povoados menores, que conhecia do tempo que passara ali, como Ham, Shortacre e Longwater, a caminho do menor e mais remoto, Oldchurch.

Seu excitamento aumentou à medida que se aproximava. Até esqueceu os pés doloridos. Oldchurch era um povoado mínimo, com trinta choupanas, nenhuma das quais bastante grande para ser um solar, nem mesmo a casa de um bailiff. Mas, de acordo com o nome, tinha uma velha igreja. Devia ter pelo menos várias centenas de anos, calculou Gwenda. Tinha uma torre quadrada e uma nave pequena, toda construída com pedras toscas. As janelas eram pequenas e quadradas, aparentemente distribuídas ao acaso pelas paredes grossas.

Ela se encaminhou para os campos além. Ignorou um grupo de pastores num pasto distante: o astuto Harry Plowman não desperdiçaria o enorme Sam em trabalho tão leve. Deveria estar gradando a terra, limpando uma vala, ou ajudando a controlar a equipe de oito bois da comunidade. Ela esquadrinhou os três campos, de uma forma metódica. Avistou um grupo, quase todo de homens, de gorro na cabeça, botas enlameadas, vozes bastante fortes para chamarem uns aos outros através dos acres. Esperava encontrar entre eles um jovem que era pelo menos uma cabeça mais alto do que os outros. Como não localizasse o filho, sofreu uma renovada apreensão. Ele já fora recapturado? Ou teria sido transferido para outra aldeia?

Encontrou finalmente o filho numa fileira de homens que espalhava estrume por uma faixa recém-arada. Sam estava sem casaco, apesar do frio, e manejava uma pá de carvalho, os músculos das costas e dos braços se contraindo e deslocando por baixo da velha camisa de linho.

O coração de Gwenda encheu-se de orgulho ao vêdo... e pensar que aquele homem enorme saíra de seu corpo tão pequeno!

Todos olharam quando ela se aproximou. Os homens fitaram-na com curiosidade. Quem era ela e o que fazia ali? Gwenda seguiu direto para Sam e abraçouo, apesar do fedor de estrume de cavalo.

- Olá, mãe - disse ele.

Todos os homens riram. Ela ficou perplexa com a hilaridade. Um homem magro e forte, com uma órbita de olho vazia, disse:

- Calma, Sam, calma... você vai ficar bem agora.

Todos riram de novo. Gwenda compreendeu que eles achavam engraçado que um homem tão grande tivesse uma mãe tão pequena, que ainda por cima vinha verificar se ele estava bem.

- Como me descobriu? - perguntou Sam.

- Encontrei Harry Plowman no mercado de Northwood.

- Espero que ninguém a tenha seguido até aqui.

- Parti antes do amanhecer. Seu pai ficou de dizer às pessoas que fui a Kingsbridge. Ninguém me seguiu.

Conversaram por uns poucos minutos. Depois, ele disse que precisava retornar ao trabalho, ou os outros homens ficariam ressentidos.

- Volte para a aldeia e procure a velha Liza - disse Sam. - Ela mora na fren te da igreja. Diga quem você é, e ela lhe dará alguma coisa para comer e beber. Estarei em casa ao crepúsculo.

Gwenda levantou os olhos para o céu. Era uma tarde escura, e os homens seriam obrigados a parar de trabalhar dentro de uma hora, mais ou menos. Ela beijou o rosto de Sam e se afastou.

Encontrou Liza numa casa um pouco maior do que as outras... com dois cômodos em vez de apenas um. A mulher apresentou-a ao marido, Rob, que era cego. Como Sam garantira, Liza era hospitaleira: pôs pão e potagem na mesa, serviu uma caneca de cerveja.

Gwenda perguntou sobre o filho deles, e foi como abrir uma torneira. Liza falou sem parar sobre ele, da infância ao aprendizado, até que o velho interrompeu-a, ríspido, com uma só palavra:

- Cavalo.

Todos ficaram em silêncio. Gwenda ouviu também as batidas ritmadas de um cavalo trotando.

- Uma montaria pequena - acrescentou o cego Rob. - Um palafrém ou um pônei. Pequeno demais para um nobre ou um cavaleiro, embora possa estar montado por uma dama.

Gwenda sentiu um calafrio de medo.

- Dois visitantes no espaço de uma hora - comentou Rob. - Devem estar ligados.

Era disso que Gwenda tinha medo.

Ela levantou-se e olhou pela porta. Um pônei preto robusto trotava pelo caminho entre as casas. Ela reconheceu o cavaleiro no mesmo instante, e sentiu um aperto no coração: era Jonno Reeve, o filho do bailiff de Wigleigh.

Como ele a descobrira?

Ela tentou recuar apressada para o interior da casa, mas Jonno já a avistara.

- Gwenda! - gritou ele, parando o cavalo.

- Seu demônio!

- Posso imaginar o que você está fazendo aqui - disse ele, zombeteiro.

- Como me descobriu aqui? Ninguém me seguiu.

- Meu pai me mandou a Kingsbridge para descobrir o que você estaria tramando ali. No caminho, parei na taverna de Cross Roads, e algumas pessoas ali se lembraram que você pegara a estrada para Outhenby.

Ela especulou se não poderia ser mais esperta do que aquele astuto jovem.

- E por que eu não deveria visitar meus velhos amigos aqui?

- Não há nenhuma razão. Onde está seu filho fugitivo?

- Não está aqui, embora eu esperasse encontrá-lo.

Jonno se mostrou indeciso por um momento, como se pensasse que ela poderia estar dizendo a verdade. Mas logo disse:

- Talvez ele tenha se escondido. Vou procurá-lo.

Jonno esporeou o cavalo. Gwenda observou-o se afastar. Não o enganara, mas talvez tivesse plantado uma dúvida em sua mente. Se conseguisse alcançar Sam primeiro, ele poderia se esconder.

Ela atravessou apressada a pequena casa, com uma palavra rápida para Liza e Rob, e saiu pela porta dos fundos. Atravessou o campo, permanecendo perto da sebe. Ao olhar para trás, na direção da aldeia, avistou um homem a cavalo. O dia começava a escurecer, e ela pensou que seu vulto mínimo seria indistinguível contra a sebe escura ao fundo.

Encontrou Sam e os outros voltando, cada um com sua pá no ombro, as botas enlameadas. A alguma distância, à primeira vista, Sam podia passar por Ralph: o corpo era o mesmo, as passadas confiantes, a cabeça bonita no pescoço forte. Ao mesmo tempo, porém, ela também podia ver Wulfric no filho: o jeito de virar a cabeça, o sorriso tímido, e um gesto desaprovador com a mão que imitava com precisão o pai adotivo.

Os homens avistaram-na. Haviam se encantado com sua chegada antes, e agora o homem de um olho só gritou:

- Olá, mãe!

Todos riram. Ela foi para o lado de Sam e murmurou:

- Jonno Reeve está aqui.

- Inferno!

- Sinto muito.

- Você disse que não foi seguida!

- Não o vi, mas ele descobriu minha trilha.

- O que farei agora? Não voltarei para Wigleigh de jeito nenhum!

- Ele está à sua procura, mas deixou a aldeia e seguiu para leste. - Gwenda esquadrinhou a paisagem cada vez mais escura, mas não podia ver muita coisa. Se voltarmos depressa para Oldchurch, poderemos escondê-lo... talvez na igreja.

- Está bem.

Os dois passaram a andar mais depressa. Gwenda olhou para trás e disse para os outros homens:

- Se encontrarem um bailiff chamado Jonno... nunca viram Sam de Wigleigh.

- Nunca ouvi falar dele, mãe - disse um dos homens.

Os outros murmuraram em concordância. Os camponeses sempre se mostravam dispostos a enganar qualquer bailiff.

Gwenda e Sam alcançaram o povoado sem encontrar Jonno. Foram para a igreja. Gwenda esperava entrar sem qualquer dificuldade: as igrejas rurais eram em geral vazias, com as portas sempre abertas. Mas se aquela fosse uma exceção, ela não saberia o que eles poderiam fazer.

Esgueiraram-se entre as casas e se aproximaram da igreja. Ao passarem pela porta da frente da casa de Liza, Gwenda avistou um pônei preto. Soltou um gemido de desespero. Jonno devia ter voltado sob a cobertura do crepúsculo. Apostara que Gwenda encontraria Sam e o traria de volta para a aldeia, e acertara em cheio. Possuía a astúcia insidiosa de Nate, seu pai.

Ela pegou o braço do filho para levá-lo através da estrada e entrar na igreja... e foi nesse instante que Jonno saiu da casa de Liza.

- Pensei mesmo que o encontraria aqui, Sam - disse ele.

Gwenda e Sam pararam e se viraram. Sam apoiou-se na pá de madeira.

- E o que pretende fazer? Jonno deu um sorriso triunfante.

- Levá-lo de volta para Wigleigh.

- Gostaria de ver você tentar.

Um grupo de camponeses, a maioria de mulheres, veio do lado oeste da aldeia e parou para assistir à confrontação.

Jonno enfiou a mão no alforje no pônei e tirou um aro de metal com uma corrente.

- Vou pôr um grilhão na sua perna. E se tiver um mínimo de bom senso, não vai resistir.

Gwenda ficou surpresa com a coragem de Jonno. Ele esperava mesmo capturar Sam sozinho? Era até corpulento, mas não tão grande quanto Sam. Contava com a ajuda dos aldeões? Tinha a lei do seu lado, mas poucos camponeses pensariam que sua causa era justa. Um jovem típico, ele não tinha a menor noção de suas próprias limitações.

- Eu enchia você de porrada quando éramos meninos, e tornarei a fazer a mesma coisa hoje - disse Sam.

Gwenda não queria que eles brigassem. Quem quer que ganhasse, Sam estaria errado aos olhos da lei. Era um fugitivo.

- É tarde demais para ir a qualquer lugar agora - declarou ela. - Por que não conversamos amanhã de manhã?

Jonno soltou uma risada desdenhosa.

- E deixar Sam escapulir antes do amanhecer, como fez ao deixar Wigleigh? De jeito nenhum. Ele vai dormir esta noite com o grilhão de ferro.

Os homens que trabalhavam com Sam apareceram, e pararam para olhar. Jonno disse:

- Todos os homens que respeitam a lei têm o dever de me ajudar a prender este fugitivo, e quem tentar me impedir estará sujeito à punição da lei.

- Pode contar comigo - respondeu o homem de um olho só. - Ficarei segurando seu cavalo.

Os outros riram. Havia pouca simpatia por Jonno. Por outro lado, ninguém se manifestou em defesa de Sam.

Jonno entrou em ação subitamente. Avançou para Sam, segurando o grilhão com as duas mãos. Abaixou-se, para tentar prender o artefato na perna de Sam, num movimento de surpresa. Poderia ter dado certo num homem mais velho, de movimentos lentos, mas a reação de Sam foi rápida. Recuou e desferiu um chute, acertando a bota enlameada no braço esquerdo estendido de Jonno.

Jonno soltou um grito de dor e raiva. Ergueu-se e usou o braço direito para desferir um golpe com a corrente, querendo acertar a cabeça de Sam. Gwenda ouviu um grito apavorado e compreendeu que partia dela. Sam recuou outro passo, para ficar fora do alcance.

Jonno percebeu que erraria o golpe, e largou o ferro no último momento.

Saiu voando pelo ar. Sam encolheu-se, virou-se e abaixou-se, mas não conseguiu se esquivar por completo. O aro de ferro bateu em sua orelha e a corrente roçou pelo rosto. Gwenda gritou, como se ela própria tivesse sido golpeada. Sam cambaleou, enquanto o grilhão caía no chão. Houve um momento de suspense. O sangue esguichou do ouvido e nariz de Sam. Gwenda deu um passo em sua direção, os braços estendidos.

No instante seguinte, Sam recuperou-se do choque.

Adiantou-se e desferiu um golpe contra Jonno com a pesada pá de madeira, num movimento gracioso. Jonno ainda não recuperara todo o seu equilíbrio depois do esforço para arremessar a corrente. Não conseguiu se esquivar. A beira da pá acertou-o no lado da cabeça. Sam era forte, e o som de madeira batendo em osso ressoou pela rua da aldeia.

Jonno ainda cambaleava quando Sam atacou de novo. Agora o golpe com a pá foi de cima para baixo. A beira da pá acertou em cheio a cabeça de Jonno, com uma tremenda força. Desta vez o impacto não ressoou. Foi mais como um baque surdo, e Gwenda temeu que o crânio de Jonno tivesse rachado.

Enquanto Jonno caía de joelhos, Sam acertou-o pela terceira vez, outro golpe com toda força, com a beira da pá de carvalho. Atingiu a testa da vítima. Uma espada de ferro não poderia ser mais mortífera, pensou Gwenda, desesperada. Ela adiantou-se para conter Sam, mas os homens da aldeia tiveram a mesma idéia um momento antes, e chegaram na sua frente. Puxaram Sam, dois homens segurando cada braço.

Jonno estava caído no chão, a cabeça numa poça de sangue. Gwenda ficou angustiada com a cena. Não pôde deixar de pensar no pai do rapaz, Nate, em sua dor e desespero pelos ferimentos do filho. A mãe de Jonno havia morrido da peste, e pelo menos se encontrava agora num lugar em que a dor não a afligiria.

Gwenda podia ver que Sam quase não se machucara. Sangrava, mas ainda se debatia com seus captores, tentando se desvencilhar para poder atacar de novo. Gwenda inclinou-se para Jonno. Ele tinha os olhos fechados e não se mexia.

Ela pôs a mão em seu coração e nada sentiu. Tentou encontrar uma pulsação, como Caris lhe ensinara, mas não havia nenhuma. Parecia que Jonno não estava respirando.

As implicações do que acabara de acontecer afloraram à sua mente, e ela começou a chorar.

Jonno estava morto, e Sam era um assassino.

No Domingo de Páscoa, naquele ano de 1361, Caris e Merthin estavam casados há dez anos.

De pé na catedral, assistindo à procissão da Páscoa, Caris recordou o casamento. Porque haviam sido amantes durante tanto tempo, de forma intermitente, consideravam a cerimônia como a confirmação de um fato antigo. Por isso, tolamente, previram um evento pequeno e discreto: um serviço simples na igreja de St. Mark, seguido por um almoço para poucas pessoas na Bell. Mas o padre Joffroi informara-os, no dia anterior, de que pelos seus cálculos no mínimo duas mil pessoas planejavam comparecer ao casamento. Por isso, foram obrigados a transferi-lo para a catedral. Só depois descobriram que Madge Webber organizara um banquete na casa da guilda para os cidadãos mais eminentes e um piquenique para todos os demais habitantes de Kingsbridge em Lovers’ Field. Ao final, acabara sendo o casamento do ano.

Caris sorriu à recordação. Usara uma túnica nova de Escarlate de Kingsbridge, uma cor que o bispo provavelmente julgava apropriada para uma mulher assim. Merthin vestira um rico casaco italiano, castanho com fios dourados, radiante de felicidade. Ambos descobriram que seu prolongado romance, que imaginavam ser um drama particular, vinha divertindo os cidadãos de Kingsbridge há muitos anos. Por isso, todos queriam comemorar o final feliz.

As lembranças agradáveis de Caris dissiparam-se quando Philemon, seu antigo inimigo, subiu ao púlpito. Ele se tornara bastante gordo nos dez anos transcorridos desde o casamento. A tonsura monacal e o rosto raspado revelavam um anel de gordura em torno do pescoço, o hábito de monge estufado como uma tenda.

Ele fez um sermão contra a dissecação.

Os cadáveres pertenciam a Deus, proclamou Philemon. Os cristãos eram instruídos a sepultá-los num ritual específico: os salvos em terrenos consagrados, os não-perdoados em outros lugares. Fazer qualquer outra coisa com os cadáveres era contra a vontade de Deus. Retalhá-los era um sacrilégio, declarou ele, com uma veemência inesperada. Havia até um tremor em sua voz quando ele pediu à congregação para imaginar a cena horrível de um corpo sendo aberto, as partes separadas, cortadas e estudadas por supostos pesquisadores médicos. Os verdadeiros cristãos sabiam que não havia desculpa para esses homens e mulheres monstruosos.

A expressão ”homens e mulheres” não saía com freqüência da boca de Philemon, pensou Caris; por isso, não podia deixar de ter um significado.

Ela olhou para o marido, parado ao seu lado na nave, e elevou as sobrancelhas, numa expressão de preocupação.

A proibição do exame de cadáveres era um dogma antigo, proposto pela Igreja em tempos muito remotos para Caris se lembrar. Mas houvera um relaxamento durante a peste. Os clérigos mais jovens e progressistas tinham uma nítida consciência do quanto a Igreja falhara para o povo. Por isso, estavam ansiosos em mudar a maneira como a medicina era ensinada e praticada pelos sacerdotes. O clero mais velho e conservador, no entanto, apegava-se aos costumes antigos e bloqueava qualquer mudança na política. Em conseqüência, a dissecação era proibida em princípio e tolerada na prática.

Caris vinha realizando dissecações em seu novo hospital desde o início. Nunca falava a respeito fora do prédio: não havia sentido em perturbar os supersticiosos. Mas ela efetuava uma dissecação em todas as oportunidades.

Em anos recentes, era em geral acompanhada por um ou dois monges médicos mais jovens. Muitos doutores treinados nunca haviam visto o interior de um corpo, exceto quando tratavam de ferimentos muito graves. Tradicionalmente, as únicas carcaças que podiam ser abertas eram as de porcos, os animais considerados como os mais parecidos com os humanos na anatomia.

Caris ficou perplexa, além de preocupada, com o ataque de Philemon. Ele sempre a odiara, Caris sabia, embora nunca soubesse qual era o motivo. Mas desde o grande impasse na tempestade de 1351 ele a ignorava. Como se fosse uma compensação pela perda de poder sobre a cidade, Philemon enchera seu palácio com objetos preciosos: tapeçarias, tapetes, talheres de prata, vitrais, iluminuras. Tornara-se ainda mais altivo, exigindo deferências elaboradas de seus monges e noviços, usando trajes espetaculares para os serviços e viajando, quando tinha de ir a outras cidades, numa carroça mais luxuosa que o boudoir de uma duquesa, conhecida como cbarette.

Havia vários clérigos visitantes importantes no coro para o serviço - o bispo Henri de Shiring, o arcebispo Piers de Monmouth e o arquidiácono Reginald de York -, e podia-se presumir que Philemon esperava impressioná-los com seu surto de conservantismo doutrinário. Mas com que finalidade? Procurava uma promoção? O arcebispo estava doente - tivera de ser carregado para a catedral -, mas Philemon, com toda certeza, não podia aspirar a esse posto, não é mesmo? Já era um milagre que o filho de Joby de Wigleigh se tornasse o prior de Kingsbridge. Além disso, a elevação de prior a arcebispo seria um salto excepcional, como ir de cavaleiro a duque sem virar um barão ou um conde no intervalo. Apenas um favorito muito especial podia esperar uma ascensão tão rápida.

Só que não havia limite para a ambição de Philemon. Não que ele se considerasse mais qualificado do que todos os outros, pensou Caris. Essa era a atitude de Godwyn, uma autoconfiança arrogante. Godwyn presumia que Deus o fizera prior porque ele era o homem mais inteligente da cidade. Philemon era o extremo oposto: no fundo de seu coração, acreditava que era um ninguém. Sua vida era uma campanha para convencer a si mesmo de que não era completamente sem valor. Era tão sensível à rejeição que não suportava se considerar imerecedor de qualquer posto, por mais elevado que fosse.

Ela pensou em conversar com o bispo Henri depois do serviço. Poderia lembrá-lo do ícortlo celebrado dez anos antes, pelo qual o prior de Kingsbridge não tinha jurisdição sobre o Hospital de St. Elizabeth, na ilha do Leproso, que se encontrava sob o controle direto do bispo; assim, qualquer ataque ao hospital era um ataque aos direitos e privilégios do próprio Henri. Mas, pensando bem, Caris concluiu que o protesto só serviria para confirmar ao bispo que ela realizava dissecações. Com isso, transformaria o que podia ser agora uma vaga suspeita, fácil de ignorar, num fato conhecido, que devia ser enfrentado. Por isso, decidiu se manter calada.

Ao seu lado estavam os dois sobrinhos de Merthin, os filhos do conde Ralph: Gerry, com treze anos, e Roley, com dez anos. Os dois estavam matriculados na escola dos monges. Viviam no priorado, mas passavam a maior parte de seu tempo livre com Merthin e Caris, em sua casa na ilha do Leproso. Merthin pousava a mão de leve no ombro de Roley. Apenas três pessoas no mundo sabiam que Roley não era seu sobrinho, mas seu filho. Eram o próprio Merthin, Caris e a mãe do menino, Philippa. Merthin fazia um esforço para não demonstrar um favorecimento especial por Roley, mas descobrira que era difícil disfarçar seus verdadeiros sentimentos; e experimentava uma satisfação especial quando Roley aprendia alguma coisa nova ou se saía bem na escola.

Caris pensava com freqüência na criança de Merthin que concebera e depois abortara. Sempre imaginara que seria uma menina. Seria uma mulher agora, refletiu Caris, com vinte e três anos, provavelmente casada, com suas próprias crianças. O pensamento era como o latejamento de um ferimento antigo, ainda doloroso, mas não angustiante.

Quando o serviço terminou, todos saíram juntos. Os meninos haviam sido convidados para o almoço de domingo, como sempre. Fora da catedral, Merthin virou-se para contemplar a torre, que agora se elevava acima do meio do prédio.

Enquanto Merthin estudava sua obra quase concluída, com o rosto franzido por causa de algum detalhe que só era visível para ele, Caris examinou-o, afetuosamente. Conhecia-o desde que ele tinha onze anos e o amara por quase todo esse tempo. Merthin tinha agora quarenta e cinco anos. Os cabelos ruivos recuavam por cima da testa e cresciam em torno da cabeça como um halo encrespado. Tinha o braço esquerdo um tanto rígido desde que um modilháo de pedra caíra de um andaime, pelo descuido de um pedreiro, e acertara seu ombro. Mas ainda exibia a expressão de ansiedade infantil que atraíra a menina Caris de dez anos, no Dia de Todos os Santos, um terço de século antes.

Ela virou-se para partilhar a vista do marido. A torre se projetava de forma impecável nos quatro lados da interseção, o peso apoiado em arcobotantes maciços, nos cantos externos dos transeptos que por sua vez apoiavam-se em novas fundações, separadas das originais. A torre parecia leve e arejada, com colunas delgadas e múltiplas aberturas de janelas, através das quais podia-se ver o céu azul quando fazia bom tempo. Por cima do topo quadrado da torre havia uma teia de andaimes, erguendo-se para o estágio final, a agulha.

Quando baixou os olhos, Caris viu a irmã se aproximando. Alice era apenas um ano mais velha, com quarenta e cinco anos, mas Caris sentia que ela pertencia a outra geração.

Seu marido, Elfric, morrera da peste, mas ela não casara de novo. Tornara-se desleixada e desgraciosa, como se achasse que uma viúva deveria ser assim. Caris brigara com Alice, há muitos e muitos anos, por causa do tratamento que Elfric dispensava a Merthin A passagem do tempo atenuara a hostilidade mútua, mas ainda havia uma insinuação de ressentimento na inclinação da cabeça quando Alice a cumprimentou.

Ela estava acompanhada por Griselda, sua enteada, apenas um ano mais moça do que Alice. O filho de Griselda, conhecido como Merthin Bastardo, estava ao seu lado, um homem enorme com um charme superficial... parecido com o pai, Thurstan, que desaparecera há muito tempo. Era tão diferente de Merthin Bridger quanto era possível. E também era muito diferente da filha de Griselda, Petranilla, que tinha dezesseis anos.

O marido de Griselda, Harold Mason, assumira o negócio depois da morte de Elfric. Não era grande coisa como construtor, segundo Merthin, mas vinha se saindo bem, embora não tivesse o monopólio dos reparos e ampliações do priorado que haviam enriquecido Elfric. Ele parou ao lado de Merthin agora e disse:

- As pessoas acham que você vai construir a agulha sem cambota.

Caris compreendia. A cambota, ou cimbre, era a armação de madeira que mantinha a alvenaria no lugar até a argamassa secar.

- Não há muito espaço dentro da agulha estreita para uma cambota - explicou Merthin. - E como seria sustentada?

O tom era polido, mas Caris pôde perceber, pela forma incisiva, que ele não gostava de Harold.

- Eu poderia acreditar se a agulha fosse redonda.

Caris compreendia isso também. Uma agulha redonda poderia ser construída ao se colocar um círculo de pedras por cima de outro, cada círculo um pouco menor do que o anterior. Não haveria necessidade de cambota porque o círculo sustentava a si mesmo: as pedras não podiam cair para dentro porque pressionavam umas às outras. O que já não acontecia em qualquer disposição que tivesse cantos.

- Você viu os desenhos - disse Merthin. - A agulha será octogonal.

Os torreões de cantos no alto de torres quadradas ficavam virados em diagonal pra fora, atraindo o olho à medida que subia para a forma diferente da agulha. Merthin copiara esse detalhe de Chartres. Mas só fazia sentido se a torre fosse octogonal.

- Mas como pode construir uma torre octogonal sem cambota? - indagou Harold.

- Espere e verá.

Merthin afastou-se. Enquanto desciam pela rua principal, Caris perguntou:

- Por que não conta às pessoas como vai fazer?

- Para que não possam me despedir. Quando eu estava construindo a ponte, assim que terminei a parte mais difícil, eles me mandaram embora e contrataram alguém mais barato.

- Não esqueci.

- Não podem fazer isso agora, porque ninguém mais é capaz de construir a agulha.

- Você era mais jovem na ocasião. Agora é o regedor. Ninguém ousaria despedi-lo.

- Talvez não. Mas é ótimo saber que não podem fazer isso.

No fundo da rua principal, onde ficava a velha ponte, havia uma taverna malafamada, a White Horse. Caris viu Lolla, a filha de dezesseis anos de Merthin, encostada na parede externa, com um grupo de amigos mais velhos. Lolla era uma jovem atraente, de pele azeitonada e cabelos escuros lustrosos, boca generosa e olhos castanhos intensos. O grupo se reunia em torno de um jogo de dados, quase todos tomando cerveja em canecas. Caris lamentou - embora não ficasse surpresa - ver a enteada bebendo na rua ao meio-dia. Merthin ficou furioso. Foi até Lolla e pegou-a pelo braço.

- É melhor você ir conosco para almoçar em casa - disse ele, a voz tensa. Ela sacudiu a cabeça, balançando os cabelos para um lado e outro, num gesto que obviamente se destinava a outro que não o pai.

- Não quero ir para casa. Estou feliz aqui.

- Não perguntei o que você queria fazer.

Merthin deu um puxão na filha, afastando-a do grupo. Um rapaz bonito, em torno dos vinte anos, aproximou-se. Tinha cabelos crespos e um sorriso zombeteiro. Pautava os dentes com um graveto. Caris reconheceu Jake Riley, um rapaz sem profissão específica, mas que mesmo assim parecia ter sempre dinheiro para gastar.

- O que está acontecendo? - indagou ele.

Ele falou com o graveto balançando no canto da boca, como um insulto.

- Não é da sua conta - respondeu Merthin. Jake postou-se na sua frente.

- A garota não quer ir embora.

- É melhor sair da minha frente, filho, a menos que queira passar o resto do dia no tronco da cidade.

Caris ficou imóvel de ansiedade. Merthin estava certo: tinha o direito de disciplinar Lolla, que ainda se encontrava a cinco anos da vida adulta. Mas Jake era o tipo de rapaz que podia agredi-lo mesmo assim, e arcar com as conseqüências. Mas Caris não interferiu, sabendo que isso poderia deixar Merthin furioso com ela, não mais com Jake.

- Suponho que você é o pai dela.

- Sabe muito bem quem eu sou. E acho melhor me chamar de regedor e falar com o devido respeito, ou sofrerá as conseqüências.

Jake fitou-o com uma expressão insolente por mais um momento, depois virou-se de lado e disse, em tom de indiferença:

- Está bem.

Caris sentiu-se aliviada porque a confrontação não terminara numa briga. Merthin nunca se envolvia em brigas, mas Lolla podia deixá-lo transtornado.

Encaminharam-se para a ponte. Lolla desvencilhou-se do pai e seguiu na frente, os braços cruzados, cabeça baixa, o rosto franzido, resmungando para si mesma palavras de irritação.

Não era a primeira vez que Lolla era vista em más companhias. Merthin sentia-se horrorizado e enfurecido pelo fato de sua filha querida procurar pessoas assim.

- Por que ela faz isso? - perguntou ele a Caris, enquanto atravessavam a ponte para a ilha do Leproso.

- Só Deus sabe.

Caris já observara que esse tipo de comportamento era mais comum em jovens que haviam perdido o pai ou a mãe. Depois da morte de Silvia, Lolla fora cuidada por Bessie Bell, lady Philippa, a empregada de Merthin, Em, e a própria Caris. Talvez ela se sentisse confusa sobre a quem deveria obedecer. Mas Caris não expressou esse pensamento, já que poderia sugerir que Merthin fracassara de certa forma como pai.

- Tive brigas terríveis com tia Petranilla quando estava com essa idade.

- Sobre o quê?

- Coisas parecidas. Ela não gostava que eu me encontrasse com Mattie Wise.

- Isso é completamente diferente. Você não freqüentava tavernas de segunda classe com vagabundos.

- Petranilla achava que Mattie era uma péssima companhia.

- Não é a mesma coisa.

- Acho que não.

- Você aprendeu muita coisa com Mattie.

Lolla sem dúvida também estava aprendendo muita coisa com o belo Jake Riley, mas Caris guardou esse pensamento inflamatório para si mesma, pois Merthin já se sentia bastante furioso.

A ilha se encontrava toda construída agora, e era parte integrante da cidade. Tinha até sua igreja paroquial. Onde outrora havia apenas um terreno árido, seguiram agora por uma trilha reta, entre prédios, com esquinas definidas. Os coelhos há muito que já não mais existiam ali. O hospital ocupava a maior parte do lado ocidental. Embora fosse até lá todos os dias, Caris ainda sentia um certo orgulho ao contemplar o prédio impecável, cinzento, as janelas grandes em fileiras regulares, as chaminés alinhadas como soldados.

Passaram por um portão para o terreno de Merthin. O pomar estava cheio de frutas, as flores brancas cobrindo as macieiras como neve.

Entraram pela porta da cozinha, como sempre. A casa tinha uma entrada imponente no lado do rio, que ninguém jamais usava. Até mesmo um arquiteto brilhante pode cometer um erro, pensou Caris, divertida; mas, outra vez, ela decidiu não dizer naquele momento o que pensava.

Lolla, ainda furiosa, subiu para seu quarto. Uma mulher chamou da sala da frente:

- Olá, todo mundo!

Os dois meninos correram para a sala com gritos de alegria. Era a mãe deles, Philippa. Merthin e Caris cumprimentaram-na efusivamente.

Caris e Philippa haviam se tornado cunhadas quando Caris casara com Merthin. A rivalidade no passado, porém, fizera com que Caris se sentisse contrafeita na presença de Philippa, por muitos anos. Até que os meninos as aproximaram. Quando Gerry e depois Roley foram matriculados na escola do priorado, era natural que Merthin tomasse conta dos sobrinhos; e, mais tarde, tornara-se normal que Philippa visitasse a casa de Merthin sempre que vinha a Kingsbridge.

A princípio, Caris sentira ciúme de Philippa por ter atraído Merthin sexualmente. Merthin nunca tentara fingir que seu amor por Philippa fora apenas superficial. Era evidente que ainda gostava dela. Mas Philippa hoje em dia era uma triste figura. Tinha quarenta e nove anos e parecia mais velha, os cabelos grisalhos e o rosto vincado em desapontamento. Vivia agora para os filhos. Era uma hóspede freqüente da filha, Odila, a condessa de Monmouth; e quando não estava lá, muitas vezes visitava o Priorado de Kingsbridge, a fim de ficar perto dos filhos. Dava um jeito de passar tão pouco tempo quanto possível com o marido Ralph, em Earlscastle.

- Tenho de levar os meninos para Shiring - informou ela, explicando sua presença. - Ralph quer levá-los ao tribunal do condado. Diz que é uma parte necessária de sua educação.

- E ele está certo - concordou Caris.

Gerry seria o conde, se vivesse pelo tempo suficiente; e se isso não acontecesse, Roley herdaria o título. Por isso, ambos precisavam ter conhecimento do funcionamento de um tribunal. Philippa acrescentou:

- Eu tencionava assistir ao serviço da Páscoa na catedral, mas a roda de minha cbarette quebrou, e tive de esperar por uma noite pelo conserto.

- Mas agora que você está aqui, vamos comer - declarou Caris.

Foram para a sala de jantar. Caris abriu as janelas que davam para o rio, deixando o ar fresco entrar. Ela especulou sobre o que Merthin faria em relação a Lolla. Ele não a chamou, e Lolla ficou remoendo sua raiva lá em cima. O que foi um alívio para Caris: uma adolescente sorumbática à mesa poderia deixar todos desanimados.

Comeram cordeiro assado com alho-poró. Merthin serviu vinho tinto, e Philippa bebeu com satisfação. Passara a gostar de vinho. Talvez fosse o seu consolo. Durante o almoço, Em entrou na sala, com uma expressão ansiosa.

- Há uma pessoa na porta da cozinha querendo falar com a ama.

- Quem é? - perguntou Merthin, impaciente. 7

- Ele não deu o nome, mas disse que a ama o conhecia.

- Que tipo de pessoa?

- Um jovem. Pelas roupas, um camponês, não um morador da cidade.

Em tinha uma aversão esnobe a aldeões.

- Ele parece inofensivo. Deixe-o entrar. Um momento depois, entrou na sala um vulto alto, o capuz puxado para a

frente, cobrindo a maior parte do rosto. Quando ele empurrou-o para trás, Caris reconheceu o filho mais velho de Gwenda, Sam.

Caris o conhecera durante toda a vida dele. Vira-o nascer, observara a cabeça viscosa sair do corpo miúdo de sua mãe. Acompanhara seu crescimento, enquanto mudava e se transformava num homem. Via Wulfric nele agora, na maneira como andava, parava e levantava um pouco a mão, quando estava prestes a falar. Sempre desconfiara que Wulfric não era o pai verdadeiro... mas nunca mencionara essa dúvida, embora sempre fosse muito amiga de Gwenda. Era melhor deixar algumas indagações sem resposta. Apesar disso, a suspeita inevitavelmente voltara quando ela soubera que Sam era procurado pelo assassinato de Jonno Reeve. Pois Sam, ao nascer, parecia com Ralph.

Agora, ele se aproximou de Caris, ergueu a mão no gesto típico de Wulfric, hesitou por um instante, e se abaixou, apoiado num joelho.

- Salve-me, por favor. Caris ficou horrorizada.

- Como posso salvá-lo?

- Esconda-me. Estou fugindo há dois dias. Deixei Oldchurch no escuro, caminhei durante toda a noite, e mal descansei desde então. Quanto tentei comprar alguma coisa para comer numa taverna, alguém me reconheceu, e tive de fugir.

Ele parecia tão desesperado que Caris sentiu um ímpeto de compaixão. Mesmo assim, ela disse:

- Mas você não pode se esconder aqui, porque é procurado por assassinato!

- Não foi assassinato, mas sim uma briga. Jonno me agrediu. Acertou-me com um grilhão de ferro... veja!

Sam tocou no rosto em dois lugares, para indicar os ferimentos na orelha e no nariz, uma casca começando a se formar.

A médica em Caris não pôde deixar de notar que os ferimentos tinham cerca de cinco dias, que o nariz estava curando direito, embora a orelha precisasse de um ponto. Mas seu principal pensamento foi o de que Sam não deveria estar ali.

- Você tem de enfrentar a justiça - declarou ela.

- Eles ficarão do lado de Jonno, tenho certeza. Fugi de Wigleigh para ganhar mais em Outhenby. Jonno estava tentando me levar de volta. Dirão que ele tinha o direito de acorrentar um fugitivo.

- Você deveria ter pensado nisso antes de agredi-lo. Sam protestou, em tom de acusação:

- Você empregava fugitivos em Outhenby quando era prioresa. Caris se irritou.

- Fugitivos, sim... assassinos, não.

- Eles vão me enforcar.

Caris estava angustiada. Como poderia recusar? Mas Merthin interveio:

- Há duas razões pelas quais você não pode se esconder aqui, Sam. A primeira é que é um crime esconder um fugitivo, e não estou disposto a ficar no lado errado da lei por sua causa, por mais que eu goste de sua mãe. Mas a segunda razão é que todos sabem que sua mãe é uma antiga amiga de Caris. Portanto, se os guardas de Kingsbridge estiverem atrás de você, este será o primeiro lugar em que virão procurar.

- É mesmo? - murmurou Sam.

Ele não era muito inteligente, Caris sabia... o irmão, Davey, herdara todo o cérebro.

- Você não poderia pensar num lugar pior do que este para se esconder. Tome um copo de vinho, leve um pão inteiro, e saia da cidade. - A voz de Merthin era agora mais gentil. - Terei de procurar Mungo Constable para comunicar que você esteve aqui, mas posso andar devagar.

Merthin despejou vinho num copo de madeira.

- Obrigado.

- Sua única esperança é ir para longe, até um lugar em que não seja conhecido, e começar uma vida nova. É um rapaz forte e sempre encontrará trabalho. Vá para Londres e embarque num navio. E não se meta em brigas.

Philippa disse subitamente:

- Lembro de sua mãe... Gwenda?

Sam confirmou com um aceno de cabeça. Philippa virou-se para Caris.

- Conheci-a em Casterham, quando William estava vivo. Ela foi me procurar por causa daquela garota em Wigleigh que havia sido estuprada por Ralph.

- Annet.

- Isso mesmo. - Philippa tornou a fitar Sam. - Você deve ser o bebê que ela tinha no colo na ocasião. Sua mãe é uma boa mulher. Lamento por ela que você tenha se metido numa encrenca.

Houve um momento de silêncio. Sam esvaziou o copo. Caris estava pensando - e, sem dúvida, Philippa e Merthin também - sobre a passagem do tempo, em como ele pode transformar um bebê inocente e amado num homem que comete um assassinato.

No silêncio, ouviram vozes.

Ao que parecia, havia vários homens na porta da cozinha.

Sam olhou ao redor, como um urso acuado. Uma porta levava para a cozinha, a outra para a saída pela frente da casa. Ele foi até a porta da frente, abriua, e saiu correndo. Sem qualquer hesitação, encaminhou-se para o rio.

Um momento depois, Em abriu a porta da cozinha. Mungo Constable entrou na sala de jantar, acompanhado por quatro ajudantes, todos empunhando porretes de madeira. Merthin apontou para a porta da frente.

- Ele acaba de sair.

- Atrás dele, pessoal.

Todos saíram correndo pela porta da frente. Caris levantou-se e seguiu-os, com os outros em sua esteira.

A casa ficava num penhasco rochoso baixo, com menos de dois metros de altura. O rio passava rápido por baixo do pequeno penhasco. A esquerda, a graciosa ponte de Merthin elevava-se sobre o rio; à direita, havia uma praia lamacenta. No outro lado do rio, as árvores começavam a exibir suas folhas, no cemitério antigo da peste. Pequenas choupanas haviam surgido, como ervas daninhas, nos lados do cemitério.

Sam poderia ter virado à direita ou esquerda. Caris viu, com um sentimento de desespero, que ele fizera a opção errada. Seguira para a direita, um curso que não levava a lugar nenhum. Ele corria pela praia, as botas deixando marcas na lama. Os guardas o perseguiam, como cães atrás de uma lebre. Ela sentiu pena de Sam, como sempre sentia pena da lebre. Nada tinha a ver com justiça; era apenas por ele ser a presa.

Ao perceber que não tinha para onde ir, Sam entrou na água.

Mungo permanecera no caminho calçado com pedras na frente da casa Agora, virou-se na direção oposta, para a esquerda, e correu para a ponte.

Dois guardas largaram os porretes, tiraram as botas e os casacos, e entraram na água. Os outros dois permaneceram na praia, presumivelmente por não saberem nadar, ou talvez relutantes em entrarem na água num dia tão frio. Os dois nadadores partiram atrás de Sam.

Sam era forte, mas o grosso casaco de inverno estava encharcado e agora puxava-o para o fundo. Caris ficou observando, num fascínio horrorizado, enquanto os guardas diminuíam a distância que os separava.

Soou um grito do outro lado. Mungo corria pela ponte, e parara para chamar os outros dois guardas, ainda parados na praia lamacenta. Os homens responderam e partiram em sua direção. Mungo continuou a correr pela ponte.

Sam chegou à outra margem pouco antes de os guardas alcançarem-no. Cambaleou pela parte rasa, sacudindo a cabeça, a água escorrendo das roupas. Virou-se e avistou um guarda quase em cima dele. O homem inclinou-se para a frente, inadvertidamente, e Sam acertou um chute em seu rosto, com a bota pesada de tanta água. O guarda gritou e caiu para trás.

O segundo guarda foi mais cauteloso. Aproximou-se de Sam, mas parou, ainda fora de alcance. Sam virou-se e correu para a frente, saindo da água para a grama baixa do cemitério da peste; mas o guarda partiu em seu encalço. Sam parou de novo, e o guarda também parou. Sam compreendeu que não teria como deixar o homem para trás. Soltou um grito de raiva, e correu para seu perseguidor. O guarda recuou, mas tinha o rio por trás. Entrou na parte rasa, mas a água retardou-o, e Sam conseguiu alcançá-lo.

Sam agarrou o homem pelos ombros, virou-o, e deu uma cabeçada. No outro lado do rio, Caris ouviu um estalo, quando o nariz do pobre coitado quebrou. Sam empurrou-o para o lado e ele caiu, esguichando sangue na água do rio.

Sam tornou a se virar para a praia... mas Mungo o esperava. Agora, Sam estava numa posição mais baixa, por causa da encosta inclinada, e estorvado pela água. Mungo avançou em sua direção, parou, deixou que ele se adiantasse, depois ergueu o pesado porrete de madeira. Fez uma finta; Sam esquivou-se. Mungo desferiu então o golpe planejado, acertando Sam no alto da cabeça.

Parecia um golpe terrível, e Caris soltou um grito, como se tivesse sido atingida. Sam berrou de dor. Num reflexo, estendeu as mãos por cima da cabeça. Mungo, experiente em combates com jovens fortes, atingiu-o de novo com o porrete, desta vez nas costelas desprotegidas. Sam caiu na água. Os dois guardas que haviam corrido pela ponte chegaram ao local. Saltaram em cima de Sam, e o seguraram na água rasa. Os dois guardas feridos se vingaram, chutando e esmurrando Sam brutalmente, enquanto os companheiros o seguravam. Quando ele arriou, os guardas levaram-no para a margem.

Mungo amarrou as mãos de Sam nas costas. Depois, os guardas levaram o fugitivo para a cidade.

- Uma coisa horrível... - murmurou Caris. - Pobre Gwenda.

A cidade de Shiring tinha um clima de parque de diversões durante as sessões do tribunal do condado. Todas as estalagens em torno da praça ficavam lotadas, homens e mulheres em suas melhoras roupas ocupavam as tavernas, sempre pedindo aos berros comida e bebida. Como não podia deixar de ser, a cidade aproveitava a ocasião para realizar um mercado. A praça ficava tão atulhada de estandes que se levava meia hora para percorrer apenas cem metros. Além dos barraqueiros legítimos, havia dezenas de oportunistas circulando: padeiros com bandejas de bolinhos, um homem tocando rabeca, mendigos aleijados e cegos, prostitutas exibindo os seios, um urso dançando, um frade pregando.

O conde Ralph era uma das poucas pessoas que podiam atravessar a praça rapidamente. Ele seguia a cavalo com três cavaleiros à frente e um punhado de servidores por trás, a comitiva avançando pela confusão como uma relha de arado, afastando a multidão para os lados pela força do impulso e por sua indiferença pela segurança das pessoas.

Subiram pela colina até o castelo do xerife. Pararam no pátio, com um floreio, e desmontaram. Os servidores começaram a clamar por cavalariços e carregadores. Ralph gostava de que as pessoas soubessem que ele havia chegado.

Ele estava tenso. O filho de seu velho inimigo se encontrava na iminência de ser julgado por assassinato. Muito em breve poderia desferir a mais doce vingança possível, embora uma parte dele ainda temesse que isso pudesse não acontecer. Seu nervosismo era tão intenso que sentia-se um pouco envergonhado: não podia permitir que seus cavaleiros desconfiassem o quanto aquilo era importante para ele. Tomava o cuidado de ocultar, até mesmo de Alan Fernhill, como sentia-se ansioso pelo enforcamento de Sam. Tinha medo de que alguma coisa saísse errada no último instante. Ninguém sabia melhor do que Ralph como as engrenagens da justiça podiam falhar: afinal, ele próprio escapara da forca duas vezes.

Sentaria na plataforma do juiz durante o julgamento, como era seu direito, e faria o melhor possível para evitar que houvesse qualquer empecilho.

Ele entregou as rédeas a um cavalariço e olhou ao redor. O castelo não era uma fortificação. Era mais como uma taverna com um pátio, embora fosse bem protegido, a construção reforçada. O xerife de Shiring podia viver ali a salvo dos parentes vingativos das pessoas que prendia. Havia masmorras onde os prisioneiros eram mantidos, assim como aposentos para hóspedes, onde os juizes visitantes não podiam ser incomodados.

O xerife Bernard levou Ralph a seus aposentos. O xerife era o representante do rei no condado, responsável pela cobrança dos tributos e pela aplicação da justiça. O posto era lucrativo, o salário muito bem complementado por presentes, subornos e porcentagens retiradas das multas e de fianças confiscadas pela fuga dos acusados. A relação entre o conde e o xerife podia ser hostil: o conde ocupava uma posição mais elevada, mas o poder judiciário do xerife era independente. Bernard, um rico mercador de lã mais ou menos da idade de Ralph, tratava-o com uma mistura constrangida de camaradagem e deferência.

Philippa esperava por Ralph nos aposentos reservados para a família. Os cabelos grisalhos compridos estavam presos por um chapéu refinado. Ela vestia um casaco luxuoso, em tonalidades de cinza e castanho. A atitude altiva fazia outrora com que ela parecesse uma beldade orgulhosa, mas agora era apenas uma indicação de uma velha rabugenta. Poderia passar pela mãe de Ralph.

Ele cumprimentou os filhos, Gerry e Roley. Não sabia como lidar com crianças, e nunca tivera muita convivência com os próprios filhos: quando pequenos, eram cuidados por mulheres, como não podia deixar de ser; e agora estudavam na escola dos monges. Ele tratava-os de certa forma como se fossem pajens a seu serviço, dando ordens num momento, mas no instante seguinte conversando e brincando na maior cordialidade. Seria mais fácil se relacionar com os filhos quando eles se tornassem mais velhos. Seja como for, não parecia ter importância: eles consideravam-no um herói, independentemente do que fizesse.

- Amanhã vocês sentarão na plataforma do juiz no tribunal - disse ele. Quero que vejam como se faz justiça.

Gerry, o mais velho, perguntou:

- Podemos dar uma olhada no mercado esta tarde?

- Claro... levem Dickie com vocês - respondeu Ralph, referindo-se a um dos servidores de Earlscastle. - E levem também algum dinheiro para gastar.

Ele entregou a cada filho um punhado de pennies de prata. Os meninos saíram. Ralph sentava no quarto, longe de Philippa. Nunca a tocava, e sempre tentava se manter à distância, para que não acontecesse um contato por acidente. Tinha certeza de que ela se vestia e se comportava como uma velha para ter certeza de que o marido não se sentiria atraído. Além disso, Philippa ia à igreja todos os dias.

Era um estranho relacionamento para duas pessoas que haviam outrora concebido um filho juntos, mas mantinham aquele afastamento há anos, e isso nunca mudaria. Pelo menos ele se sentia livre para acariciar as criadas e ir para a cama com prostitutas de tavernas.

Mas precisavam conversar sobre os meninos. Philippa sempre tinha opiniões firmes. Ao longo dos anos, Ralph compreendera que era mais fácil discutir as coisas com ela antes, em vez de tomar decisões unilaterais e depois se envolver numa briga quando ela discordava. Agora, Ralph declarou:

- Gerry já tem idade suficiente para ser um pajem.

- Concordo - disse Philippa.

- Ótimo!

Ralph ficou surpreso, pois esperava uma discussão.

- Já falei com David Monmouth a seu respeito - acrescentou Philippa. Isso explicava a disposição dela. Philippa já se encontrava um passo à frente.

- Ahn... - murmurou Ralph, procurando ganhar tempo.

- David concorda e sugere que o mandemos para lá assim que ele completar quatorze anos.

Gerry só tinha treze anos. Philippa estava na verdade adiando a partida de Gerry por quase um ano. Mas isso não era a maior preocupação de Ralph. David, conde de Monmouth, era casado com a filha de Philippa, Odila.

- O objetivo de ser um pajem é transformar um menino num homem - disse Ralph. - Mas Gerry se dá muito bem com David. E a irmã gosta dele... provávelmente vai protegê-lo. Ele pode se tornar mole demais.

Depois de pensar por um momento, Ralph acrescentou:

- Imagino que é por isso que você quer que ele vá para lá. Philippa não negou, mas argumentou:

- Pensei que você ficaria contente em reforçar sua aliança com o conde de Monmouth.

Ela tinha razão nesse ponto. David era o mais importante aliado de Ralph na nobreza. Mandar Gerry para a corte de Monmouth criaria outro vínculo entre os dois condes. David podia ficar afeiçoado ao menino. E em anos posteriores, talvez os filhos de David se tornassem pajens em Earlscastle. Essas ligações de família tinham um valor inestimável.

- Pode dar um jeito para que o menino não seja mais mimado do que é aqui?

- perguntou Ralph.

- Claro.

- Então está bem.

- Obrigada. Fico contente que esse assunto esteja resolvido. Philippa levantou-se. Mas Ralph ainda não acabara.

- O que faremos com Roley? Ele poderia ir também, para que os dois continuem juntos.

Philippa não gostou nem um pouco da idéia, percebeu Ralph, mas era esperta demais para contestá-lo expressamente.

- Roley é um pouco jovem - comentou ela, como se pensasse a respeito. - E ainda não aprendeu direito as letras.

- As letras não são tão importantes para um nobre quanto aprender a lutar. Afinal, ele é o segundo na linha de sucessão do condado. Se alguma coisa acontecesse com Gerry...

- Que Deus nos livre!

- Amém.

- Mesmo assim, acho que ele deve esperar até completar quatorze anos.

- Tenho minhas dúvidas. Roley sempre teve alguma coisa de mulher. Às vezes ele me lembra meu irmão Merthin.

Ralph viu um lampejo de medo nos olhos de Philippa. A mulher tinha receio de deixar seu bebê ir embora, adivinhou ele. Sentiu-se tentado a insistir, só para atormentá-la. Mas dez anos era mesmo muito cedo.

- Veremos - murmurou ele, evitando um compromisso. - Mas ele terá de ser fortalecido, mais cedo ou mais tarde.

- Tudo no momento apropriado - disse Philippa.

O juiz, Sir Lewis Abingdon, não era um local, mas sim um advogado de Londres, do tribunal do rei, enviado em excursão para julgar os casos mais graves nos tribunais dos condados. Era corpulento, com um rosto rosado e uma barba loura. Era também dez anos mais jovem do que Ralph.

Ralph disse a si mesmo que não deveria ficar surpreso. Tinha agora quarenta e quatro anos. Metade de sua geração fora exterminada pela peste. Não obstante, ele continuava a se espantar com os homens eminentes e poderosos que eram mais jovens do que ele.

Ficaram esperando, junto com Gerry e Roley, numa sala lateral na Court House Inn, a estalagem em que eram realizadas as sessões do tribunal, onde o júri se reunia e para onde eram levados os prisioneiros do castelo. Sir Lewis estivera em Crécy, como um jovem pajem, embora Ralph não se lembrasse. Tratou Ralph com uma cortesia cautelosa.

Ralph tentou sutilmente sondar o juiz para descobrir até que ponto ele era rigoroso.

- Já descobrimos que é muito difícil impor o cumprimento do Estatuto dos Trabalhadores - comentou ele. - Quando os camponeses vêem uma maneira de ganhar mais dinheiro, perdem todo o respeito pela lei.

- Para cada fugitivo que trabalha por um salário ilegal, há um empregador para pagá-lo - disse o juiz.

- É exatamente esse o problema. As freiras do Priorado de Kingsbridge nunca obedeceram ao estatuto.

- É difícil processar freiras.

- Não sei por quê.

Sir Lewis mudou de assunto.

- Você tem algum interesse especial pelos julgamentos desta manhã?

O juiz já devia ter sido informado de que era excepcional que Ralph exercesse seu direito de sentar ao lado do juiz.

- O assassino é um servo meu - admitiu Ralph. - Mas o principal motivo é mostrar a esses meninos como a justiça funciona. Um deles será o conde quando eu morrer. E eles podem também assistir ao enforcamento amanhã. Quanto mais cedo se acostumarem a ver homens morrerem, melhor.

Lewis acenou com a cabeça em concordância.

- Os filhos da nobreza não podem se dar ao luxo de ter coração mole.

Eles ouviram o escrevente do tribunal bater o martelo. O burburinho na sala ao lado cessou. A ansiedade de Ralph não se atenuara: a conversa com Sir Lewis não lhe revelara muita coisa. Talvez isso fosse revelador por si mesmo: podia significar que ele não se deixava influenciar com facilidade.

O juiz abriu a porta e ficou de lado para que o conde passasse primeiro.

Na extremidade próxima da sala havia duas enormes cadeiras de madeira, em cima de uma plataforma, com um banco baixo ao lado. Um murmúrio de interesse elevou-se da multidão quando Gerry e Roley sentaram no banco. As pessoas sempre ficavam fascinadas ao verem as crianças que cresceriam para se tornar seus suseranos. Mais do que isso, porém, pensou Ralph, era a expressão de inocência nos dois pré-adolescentes, o que parecia deslocado num tribunal em que se tratava de violência, roubo e desonestidade. Pareciam como cordeiros num chiqueiro.

Ralph sentou em uma das duas cadeiras e pensou no dia, vinte e dois anos antes, em que entrara naquele mesmo tribunal como criminoso, acusado de estupro... uma acusação absurda a se lançar contra um lorde quando a suposta vítima era uma de suas servas.

Philippa se encontrava por trás daquele julgamento inadmissível. E ele a fizera sofrer por isso.

Naquela ocasião, Ralph lutara para escapar da sala assim que o júri o declarara culpado. Mais tarde fora perdoado, ao ingressar no exército do rei e ir lutar na França. Mas Sam não escaparia, pois não tinha arma e estava com os tornozelos acorrentados. E as guerras francesas pareciam ter cessado por completo, o que significava que não haveria mais um perdão real para os condenados.

Ralph estudou Sam enquanto a acusação era lida. Ele tinha o corpo de Wulfric, não o de Gwenda: era alto, de ombros largos. Poderia se tornar um homem de armas muito útil se tivesse tido um nascimento melhor. Não parecia com Wulfric, embora suas feições levassem Ralph a se lembrar de alguma coisa que ele não sabia determinar. Como tantos acusados, exibia uma expressão de desafio superficial, sobrepondo-se ao medo. Era assim que eu me sentia, pensou Ralph.

Nathan Reeve foi a primeira testemunha. Era o pai do morto; mas o que era ainda mais importante, declarou que Sam era um servo do conde Ralph e não recebera permissão para ir para Oldchurch. Disse que mandara o filho Jonno seguir Gwenda, na esperança de localizar o fugitivo. Nate não era um homem simpático, mas seu sofrimento era genuíno. Ralph ficou satisfeito: foi um depoimento condenador.

A mãe de Sam estava parada ao seu lado, o alto da cabeça no nível do ombro do filho. Gwenda não era bonita: os olhos escuros eram muito próximos, por cima do nariz adunco, a testa e o queixo recuados, o que lhe proporcionava a aparência de um roedor determinado. Mas tinha um intenso magnetismo sexual, até mesmo na meia-idade. Mais de vinte anos haviam se passado desde que Ralph copulara com ela, mas ele ainda se recordava como se tivesse sido no dia anterior. Acontecera num quarto na Bell, em Kingsbridge, e ele a fizera se ajoelhar na cama. Podia imaginá-la agora, e a lembrança de seu corpo compacto deixou-o excitado. Recordou que ela tinha cabelos escuros.

Subitamente, ela fitou-o nos olhos. Sustentou o olhar de Ralph e parecia sentir o que ele estava pensando. Naquela cama, Gwenda se mostrara indiferente e imóvel, no começo, aceitando suas arremetidas passivamente, porque ele a coagira; mas no final alguma coisa estranha acontecera com ela, que passara a se movimentar no mesmo ritmo, quase contra a sua vontade. Gwenda devia ter lembrado a mesma coisa, pois uma expressão de vergonha aflorou ao seu rosto feio, e ela se apressou em desviar os olhos.

Ao seu lado havia outro jovem, presumivelmente o segundo filho. Era mais parecido com ela, pequeno e forte, com uma expressão astuta. Sustentou o olhar de Ralph com uma intensa concentração, como se estivesse curioso sobre o que se passava na mente de um conde, e achasse que poderia encontrar a resposta no rosto de Ralph.

Mas Ralph estava mais interessado no pai. Odiara Wulfric desde a briga na Feira do Velocino de 1337. Ele tocou no nariz quebrado, num reflexo. Vários outros homens haviam-no ferido em anos posteriores, mas nenhum desfechara um golpe tão grande em seu orgulho.

Mas a vingança de Ralph contra Wulfric fora terrível. Privei-o de seu direito hereditário durante uma década, pensou Ralph. Levei sua esposa para a cama. Deixei essa cicatriz em seu rosto quando ele tentou me impedir de deixar este mesmo tribunal. Arrastei-o de volta para casa com uma corda no pescoço quando ele tentou fugir. E agora enforcarei seu filho.

Wulfric se tornara mais corpulento, mas ainda tinha um porte impressivo. A barba grisalha não crescia em cima da longa cicatriz que Ralph fizera com a espada. O rosto era agora enrugado e curtido pelo tempo. Enquanto Gwenda parecia furiosa, Wulfric estava desesperado. A medida que os camponeses de Oldchurch testemunhavam que Sam matara Jonno com uma pá de carvalho, os olhos de Gwenda faiscavam em desafio, enquanto a testa larga de Wulfric se contraía em angústia.

O primeiro jurado perguntou se Sam sentira medo por sua vida.

Ralph ficou irritado, pois a pergunta insinuava uma desculpa para o assassino.

Um camponês magro, de um olho só, respondeu:

- Ele não estava com medo do bailiff. Mas ficou apavorado com a mãe.

A audiência riu um pouco. O primeiro jurado perguntou se Jonno provocara o ataque, outra pergunta que irritou Ralph, por indicar alguma simpatia por Sam.

- Se provocou? - disse o homem de um olho só. - Só bateu na cara dele com uma corrente de ferro, se chama isso de provocação.

Houve gargalhadas estrondosas. Wulfric parecia aturdido. Como as pessoas podem achar engraçado, dizia sua expressão, quando a vida de meu filho está em jogo?

Ralph sentia-se mais e mais preocupado. O primeiro jurado parecia indeciso.

Sam foi chamado para depor. Ralph notou que o jovem parecia mais com Wulfric quando falava. Havia uma inclinação da cabeça e um gesto com a mão que eram típicos de Wulfric. Sam relatou como propusera se encontrar com Jonno na manhã seguinte. A reação de Jonno fora tentar prender um grilhão em sua perna. Ralph falou para o juiz, em voz baixa, contendo sua indignação:

- Nada disso faz a menor diferença. Se ele estava com medo, se foi provocado, se propôs um encontro no dia seguinte.

Sir Lewis não disse nada. Ralph acrescentou:

- O fato puro e simples é que ele era um fugitivo e matou o homem que foi buscá-lo.

- Ele fez mesmo isso - murmurou Sir Lewis, cauteloso, proporcionando uma satisfação a Ralph.

Ralph olhou para os espectadores, enquanto o júri interrogava Sam. Merthin estava na audiência, junto com a esposa. Antes de se tornar uma freira, Caris gostava de se vestir com elegância; e depois de renunciar aos votos, revertera ao tipo. Usava hoje um vestido feito de dois tecidos contrastantes, um azul e o outro verde, com um casaco de Escarlate de Kingsbridge com remate de pêlo e um chapeuzinho redondo. Ralph recordou que Caris era amiga de infância de Gwenda, que também se encontrava presente no dia em que todos viram Thomas Langley matar dois homens de armas na floresta. Merthin e Caris estariam torcendo, pelo bem de Gwenda, para que Sam recebesse um tratamento misericordioso. Isto não vai acontecer se eu puder evitar, pensou Ralph.

A sucessora de Caris como prioresa, madre Joan, estava no tribunal, presumivelmente porque o convento possuía o vale de Outhenby, e portanto era o empregador ilegal de Sam. Joan deveria estar sendo julgada junto com o acusado, pensou Ralph; mas, quando fitou-a, ela lançou-lhe um olhar acusador, como se achasse que o assassinato era mais culpa dele do que sua.

O prior de Kingsbridge não viera. Sam era sobrinho do prior, mas Philemon não queria atrair atenção para o fato de que era tio de um assassino. Philemon tivera outrora uma afeição protetora pela irmã mais jovem, recordou Ralph; mas talvez o sentimento tivesse se desvanecido com o passar dos anos.

O avô de Sam, o infame Joby, estava presente, um velho de cabeça branca agora, encurvado e desdentado. Por que ele se encontrava ali? Há muitos anos que era brigado com Gwenda, e não era provável que sentisse muita afeição pelo neto. Devia ter vindo para roubar moedas das bolsas das pessoas, enquanto se mantinham absorvidas no julgamento.

Sam concluiu seu depoimento. Sir Lewis fez um resumo do caso que deixou Ralph satisfeito:

- Sam Wigleigh era um fugitivo? - indagou ele. - Jonno Reeve tinha o direito de prendê-lo? E Sam matou Jonno com sua pá? Se a resposta para todas as três perguntas for sim, então Sam é culpado de assassinato.

Ralph ficou surpreso e aliviado. Não havia qualquer referência à bobagem de Sam ter sido provocado. O juiz merecia toda confiança, no final das contas.

- Qual é o veredicto? - perguntou Sir Lewis.

Ralph olhou para Wulfric O homem estava arrasado. É isso o que acontece com aqueles que me desafiam, pensou Ralph, e desejou poder dizê-lo em voz alta.

Wulfric fitou-o nos olhos. Ralph sustentou o olhar, tentando ler o que havia na mente de Wulfric Qual seria a emoção? Ralph percebeu que havia medo. Wulfric nunca demonstrara medo de Ralph antes, mas agora ele desmoronava. O filho ia morrer, e isso o enfraquecia de uma maneira irremediável. Ralph experimentou uma profunda satisfação, enquanto contemplava os olhos apavorados de Wulfric. Finalmente consegui esmagá-lo, pensou ele, depois de vinte e quatro anos. Agora você se sente apavorado.

O júri conferenciou. O primeiro jurado parecia estar discutindo com os outros. Ralph observou-os, impaciente. Não podiam ter a menor dúvida depois do que dissera o juiz, não é mesmo? Mas nunca podia haver certeza com júris. Mas não é possível que tudo saia errado a esta altura, pensou Ralph, não é mesmo?

Os jurados pareciam ter chegado a uma conclusão, embora Ralph não pudesse adivinhar qual prevalecera. O primeiro jurado levantou-se e declarou:

Consideramos Sam Wigleigh culpado de assassinato.

Ralph manteve os olhos fixados em seu antigo inimigo. Wulfric dava a impressão de que fora apunhalado. Empalideceu e fechou os olhos, como se sentisse uma dor intensa. Ralph tentou não sorrir em triunfo.

Sir Lewis virou-se para Ralph, que desviou seus olhos de Wulfric.

- Quais são seus pensamentos em relação à sentença? - perguntou o juiz.

- Para mim, só há uma opção.

Sir Lewis acenou com a cabeça.

- Os jurados não fizeram nenhuma recomendação de misericórdia.

- Não querem que um fugitivo fique impune depois de assassinar seu bailiff.

- A pena máxima?

- Claro!

O juiz olhou para a audiência. Ralph tornou a se concentrar em Wulfric Todas as outras pessoas olhavam para Sir Lewis. O juiz disse:

- Sam Wigleigh, você assassinou o filho de seu bailiff, e por isso é condenado à morte. Será enforcado na praça do mercado de Shiring amanhã, ao amanhecer, e que Deus tenha misericórdia de sua alma.

Wulfric cambaleou. O filho mais jovem pegou o braço do pai e amparou-o; se não fosse por isso, ele teria caído no chão. Deixe-o cair, Ralph teve vontade de dizer; ele está acabado.

Ralph olhou para Gwenda. Ela segurava a mão de Sam, mas fitava-o. Sua expressão surpreendeu-o. Esperava dor, lágrimas, gritos, um ataque histérico. Mas ela fitava-o com firmeza. Havia ódio em seus olhos, mas também algo mais: desafio. Ao contrário do marido, ela não parecia arrasada. Não acreditava que o caso estivesse encerrado.

Gwenda dava a impressão, pensou Ralph, de que ainda tinha um trunfo escondido.

Caris estava em lágrimas quando Sam foi levado, mas Merthin não podia fingir que ficara abalado. Era uma tragédia para Gwenda, e ele sentia muita pena de Wulfric. Mas não era tão ruim assim, para o resto do mundo, que Sam fosse enforcado. Jonno Reeve estava cumprindo a lei. Podia ser uma lei péssima, uma lei injusta, uma lei opressiva... mas isso não dava a Sam o direito de matar Jonno. Afinal, Nate Reeve também perdera o filho e sentia-se desesperado. O fato de que ninguém gostava de Nate não fazia a menor diferença.

Um ladrão foi levado a julgamento, e Merthin e Caris deixaram o tribunal. Foram para a taverna. Merthin pediu vinho e encheu o copo de Caris. Um momento depois, Gwenda aproximou-se da mesa a que eles sentavam.

- É meio-dia agora - disse ela. - Temos dezoito horas para salvar Sam. Merthin ficou surpreso.

- O que pretende fazer?

- Devemos persuadir Ralph a pedir que o rei o perdoe. Isso parecia bastante improvável.

- Como poderia persuadi-lo a fazer isso?

- Eu não posso - respondeu Gwenda. - Mas você pode.

Merthin sentiu-se acuado. Não achava que Sam merecesse um perdão. Por outro lado, era difícil recusar qualquer coisa a uma mãe suplicante.

- Interferi uma vez antes junto a meu irmão por você... ainda se lembra?

- Claro. IVlo fato de Wulfric não herdar a terra do pai.

- Ele não atendeu a meu pedido, categórico.

- Sei disso. Mas você tem de tentar.

- Não tenho certeza se sou a pessoa mais indicada.

- A quem mais ele poderia escutar?

Ela tinha razão. Merthin tinha pouca possibilidade, mas ninguém mais tinha qualquer uma. Caris percebeu que ele relutava, e decidiu se manifestar em apoio a Gwenda.

- Por favor, Merthin. Pense como você se sentiria se fosse Lolla.

Merthin já ia dizer que garotas não se envolviam em brigas, mas depois compreendeu que isso era possível no caso de Lolla. Ele suspirou.

- Ainda acho que é uma iniciativa fadada ao fracasso. - Ele olhou para Caris.

- Mas, por você, vou tentar.

- Por que não o procura agora? - indagou Gwenda.

- Porque Ralph ainda se encontra no tribunal.

- É quase a hora do almoço. A sessão acabará daqui a pouco. E você poderia esperá-lo na sala particular.

Merthin não podia deixar de admirar a determinação de Gwenda.

- Está bem.

Ele deu a volta e foi para os fundos do prédio. Havia um guarda na porta da sala particular do juiz.

- Sou o irmão do conde - disse Merthin. - O regedor Merthin, de Kingsbridge.

- Eu o conheço, regedor. Tenho certeza de que não haverá nenhum problema se esperar lá dentro.

Merthin entrou na pequena sala e sentou. Sentia-se constrangido por ter de pedir um favor ao irmão. Os dois não eram ligados há décadas. Ralph há muito se transformara em alguma coisa que Merthin não reconhecia. Merthin não compreendia o homem que era capaz de estuprar Annet e assassinar Tilly. Parecia impossível que esse homem pudesse ter crescido do menino que Merthin outrora chamava de irmão. Desde que os pais haviam morrido eles só se encontravam em ocasiões formais; e mesmo então pouco conversavam. Era presunçoso de sua parte usar o relacionamento como justificativa para pedir um privilégio. Ele não faria isso por Gwenda. Mas não podia deixar de fazer por Caris.

Não precisou esperar muito tempo. Depois de uns poucos minutos, o juiz e o conde entraram na sala. Merthin notou que a manqueira do irmão - resultado de um ferimento sofrido nas guerras francesas - agravava-se à medida que ele envelhecia.

Sir Lewis reconheceu Merthin e apertou sua mão. Ralph fez a mesma coisa e comentou, irônico:

- Uma visita de meu irmão é um prazer raro.

Não era uma crítica injusta, o que Merthin reconheceu com um aceno de cabeça.

- Por outro lado - disse ele -, suponho que se alguém tem o direito de suplicar misericórdia a você, sou eu.

- Que necessidade você tem de misericórdia? Matou alguém?

- Ainda não.

Sir Lewis riu. Ralph perguntou:

- O que é então?

- Você e eu conhecemos Gwenda desde que éramos crianças. Ralph acenou com a cabeça.

- Acertei uma flecha no cachorro dela com aquele arco que você fez. Merthin esquecera esse incidente. Fora um dos primeiros sinais do que Ralph se tornaria, pensou ele, com uma percepção posterior.

- Talvez você deva misericórdia a ela por isso.

- Não acha que o filho de Nate Reeve vale mais do que isso?

- Não tive a intenção de sugerir o contrário. Apenas acho que você pode agora equilibrar a crueldade com a bondade.

- Equilibrar?

A raiva aflorou à voz de Ralph, e Merthin compreendeu que sua causa era perdida.

- Equilibrar?

Ele bateu no nariz quebrado.

- O que devo equilibrar contra isso?

Ralph apontou um dedo para o irmão, agressivo.

- Eu lhe direi por que não vou conceder perdão a Sam Porque olhei para o rosto de Wulfric no tribunal hoje, enquanto seu filho era declarado culpado de assassinato, e sabe o que eu vi ali? Medo. Aquele camponês insolente está com medo de mim, finalmente. Foi domado.

- Isto significa tanto para você?

- Eu enforcaria seis homens para ver aquela expressão.

Merthin já ia desistir, mas pensou no sofrimento de Gwenda, e decidiu tentar mais uma vez.

- Se conseguiu domá-lo, seu trabalho está realizado, não é mesmo? Então deixe o garoto partir. Peça o perdão real.

- Não. Quero manter Wulfric como ele está.

Merthin desejou não ter vindo. Pressionar Ralph só servia para atiçar o que havia de pior nele. Merthin sentia-se consternado pela insistência do irmão na vingança e na maldade. Nunca mais queria falar com Ralph. Já passara por aquilo antes. Mas era sempre um choque ser lembrado de como Ralph realmente era.

- Eu tinha de tentar. Adeus. Ralph tornou-se jovial.

- Venha almoçar no castelo. O xerife sempre serve uma boa mesa. Teremos uma conversa de verdade. Philippa veio comigo... você gosta dela, não é?

Merthin não tinha a menor intenção de aceitar o convite.

- Tenho de falar com Caris primeiro.

Caris, ele sabia, teria preferido almoçar com Lúcifer.

- Se não for possível o almoço, talvez possamos nos encontrar mais tarde. Merthin tratou de escapar.

Voltou à taverna. Caris e Gwenda fitaram-no em expectativa quando ele se aproximou. Merthin sacudiu a cabeça.

- Fiz o melhor que podia. Sinto muito.

Gwenda já esperava por isso. Estava desapontada, mas não surpresa. Achara que tinha de tentar através de Merthin. O outro recurso à sua disposição era muito mais drástico.

Agradeceu a Merthin, formal, e deixou a taverna. Seguiu para o castelo na colina. Wulfric e Davey haviam ido para uma taverna no subúrbio, onde poderiam ter um farto almoço por um quarto de penny. A força e honestidade do marido eram inúteis em negociações com Ralph e outros de sua laia.

Além do mais, Wulfric não podia descobrir como ela planejava persuadir Ralph.

Enquanto subia a encosta, ela ouviu cavalos por trás. Parou e virou-se. Era Ralph, acompanhado por sua comitiva e pelo juiz. Gwenda ficou imóvel, olhando para Ralph, cuidando para que ele a visse. Ralph compreenderia que ela queria lhe falar.

Entrou no pátio do castelo poucos minutos depois, mas o acesso à casa do xerife estava bloqueado. Ela foi para o pórtico do prédio principal e disse ao chefe da portaria:

- Meu nome é Gwenda de Wigleigh. Por favor, avise ao conde Ralph que preciso lhe falar em particular.

- Olhe ao redor. Todas essas pessoas precisam falar com o conde, o juiz, ou o xerife.

Havia vinte ou trinta pessoas ali, algumas segurando rolos de pergaminho.

Gwenda estava disposta a correr um risco terrível para salvar o filho da forca... mas não teria essa oportunidade se não conseguisse falar com Ralph antes do amanhecer.

- Quanto? - perguntou ela ao chefe da portaria. Ele fitou-a com um pouco menos de desrespeito.

- Não posso prometer que o conde a receberá.

- Pode dizer meu nome.

- Dois shillings. Vinte e quatro pennies de prata.

Era muito dinheiro, mas Gwenda trouxera todas as suas economias na bolsa. Mas achava que ainda não chegara o momento de entregar o dinheiro.

- Qual é o meu nome? - indagou ela.

- Não sei.

- Acabei de lhe dizer. Como pode dizer meu nome a Ralph se não é capaz de lembrá-lo?

Ele deu de ombros.

- Diga de novo.

- Gwenda de Wigleigh.

- Está bem. Direi ao conde.

Gwenda enfiou a mão na bolsa, tirou um punhado de pequenas moedas de prata e contou vinte e quatro. Era o equivalente a quatro semanas de salário para um trabalhador. Ela pensou no trabalho extenuante que tivera de fazer para ganhar aquele dinheiro.

Agora, aquele porteiro indolente e arrogante ficaria com o dinheiro sem fazer quase nada. O homem estendeu a mão.

- Qual é o meu nome? - indagou ela.

- Gwenda.

- Gwenda de onde?

- De Wigleigh. - Uma pausa. - Não foi de lá que veio o assassino condenado esta manhã?

Ela entregou o dinheiro e disse, com tanta veemência quanto era possível:

- O conde vai querer falar comigo.

O chefe da portaria embolsou as moedas.

Gwenda retirou-se para o pátio, sem saber se havia desperdiçado o dinheiro.

Um momento depois, ela avistou uma figura familiar, uma cabeça pequena sobre ombros largos: Alan Fernhill. Era um golpe de sorte. Ele vinha dos estábulos e seguia para a entrada. Os outros suplicantes não o reconheceram. Gwenda adiantou-se para interceptá-lo.

- Olá, Alan.

- É Sir Alan agora.

- Meus parabéns. Pode dizer a Ralph que quero vê-lo?

- Não preciso perguntar qual é o assunto.

- Diga que quero conversar em particular. Alan alteou uma sobrancelha.

- Sem ofensa. Era uma garota na última vez. Agora está vinte anos mais velha.

- Não acha que talvez seja melhor deixar que ele decida?

- Claro. - Alan sorriu, insultuoso. - Sei que ele se lembra daquela tarde na Bell.

Alan estava presente na ocasião. Observara Gwenda tirar a roupa e contemplara seu corpo nu. Vira-a se encaminhar para a cama e se ajoelhar ali, virada para o outro lado. Rira quando Ralph comentara que ela tinha uma aparência melhor quando vista por trás. Gwenda ocultou agora sua repulsa e vergonha.

- Eu esperava mesmo que Ralph lembrasse - murmurou ela, o tom tão neutro quanto possível.

Os outros compreenderam que Alan devia ser alguém importante. Começaram a cercá-lo, falando ao mesmo tempo, suplicando. Ele empurrou-os para os lados e entrou.

Gwenda acomodou-se para esperar.

Depois de uma hora, ficou evidente que Ralph não a receberia antes do almoço. Ela encontrou um lugar não muito enlameado. Sentou no chão, encostada num muro de pedra, sem desviar os olhos da entrada por um instante sequer.

Uma segunda hora se passou, depois uma terceira. Os almoços dos nobres muitas vezes se prolongavam pela tarde inteira. Gwenda não entendia como conseguiam comer e beber durante tanto tempo. Por que não estouravam?

Ela não comera nada durante o dia inteiro, mas estava tensa demais para sentir fome.

Era um dia cinzento de abril, e o céu começou a escurecer cedo. Gwenda estremecia no chão frio, mas continuou onde estava. Aquela era sua única chance.

Criados saíram e acenderam tochas em torno do pátio. Algumas janelas ficaram iluminadas. A noite caiu, e Gwenda compreendeu que faltavam apenas doze horas para o amanhecer. Pensou em Sam, sentado no chão de uma das celas subterrâneas do castelo, e especulou se ele sentia frio. Fez um esforço para conter as lágrimas.

Ainda não acabara, ela disse a si mesma; mas sua coragem começava a enfraquecer.

Um vulto alto bloqueou a claridade da tocha mais próxima. Ela levantou os olhos para se deparar com Alan. Seu coração disparou.

- Venha comigo - disse ele.

Gwenda levantou-se de um pulo e seguiu para a entrada principal.

- Não por aí.

Ela fitou-o, inquisitiva.

- Não disse que queria um encontro particular? Ele não vai recebê-la nos aposentos que partilha com a condessa. Pode me seguir.

Gwenda seguiu-o por uma porta pequena perto do estábulo. Passaram por vários cômodos e subiram uma escada. Alan abriu uma porta para um quarto estreito. Ela entrou. Alan ficou do lado de fora, mas fechou a porta.

Era um quarto baixo, quase todo ocupado por uma cama de dossel. Ralph estava junto da janela, de roupas de baixo. As botas e roupas externas estavam no chão. Tinha o rosto corado de muita bebida, mas a voz continuava clara e firme.

- Tire o vestido - disse ele, com um sorriso de expectativa.

- Não.

Ele ficou surpreso.

- Não vou tirar a roupa - acrescentou Gwenda.

- Por que Alan me disse que você queria se encontrar comigo em particular?

- Para que pensasse que eu estava disposta a fazer sexo com você.

- Mas se não é isso... por que está aqui?

- Para suplicar que peça um perdão ao rei.

- Mas não está se oferecendo a mim?

- Por que eu faria isso? Já fiz uma vez antes e você quebrou sua palavra. Repudiou o acordo. Entreguei meu corpo, mas você não devolveu as terras de meu marido. - Gwenda permitiu que o desprezo fosse evidente em sua voz. Você faria a mesma coisa de novo. Sua honra não vale nada. Você me faz lembrar de meu pai.

Ralph ficou vermelho. Era um insulto dizer a um conde que ele não merecia confiança, e ainda mais ofensivo compará-lo a um trabalhador sem terras que capturava esquilos em armadilhas na floresta. Furioso, ele perguntou:

- Imagina que esta é a maneira de me persuadir?

- Não. Mas você vai obter o perdão.

- Por quê?

- Porque Sam é seu filho.

Ralph ficou aturdido por um momento.

- Essa não! - exclamou ele, desdenhoso. - Como se eu fosse acreditar!

- Ele é seu filho - reiterou Gwenda.

- Não pode provar isso.

- Não, não posso. Mas sabe que fui para a cama com você na Bell em Kingsbridge nove meses antes de Sam nascer. É verdade que também deitei com Wulfric Então qual dos dois é o pai? Olhe para o garoto. Ele tem alguns jeitos de Wulfric, admito... adquiriu-os em vinte e dois anos de convivência. Mas repare em suas feições.

Ela percebeu que uma expressão pensativa se estampara no rosto de Ralph, e compreendeu que alguma coisa atingira o alvo.

- Acima de tudo, pense no caráter de Sam - continuou Gwenda, mais premente. - Ouviu os depoimentos no tribunal. Sam não se limitou a vencer Jonno na briga, como Wulfric teria feito. Não o derrubou e depois ajudou-o a se levantar, como seria o jeito de Wulfric. Meu marido é forte e rápido na raiva, mas tem o coração mole. Sam é diferente. Sam acertou Jonno com uma pá, um golpe que teria deixado qualquer homem sem sentidos. Depois, antes que Jonno caísse, Sam tornou a acertá-lo, com mais força ainda, embora ele já estivesse impotente; e antes que o corpo inerte de Jonno alcançasse o chão, Sam atingiu-o pela terceira vez. Se os camponeses de Oldchurch não o segurassem, Sam teria continuado a bater com aquela pá ensangüentada, até esmigalhar a cabeça de Jonno. Ele queria matar!

Gwenda compreendeu que estava chorando, e removeu as lágrimas com a manga. Ralph fitava-a com uma expressão horrorizada.

- De onde vem esse instinto assassino, Ralph? Olhe em seu negro coração. Sam é seu filho. E, que Deus me perdoe, meu também.

Depois que Gwenda foi embora, Ralph sentou na cama do pequeno quarto e ficou olhando para a chama da vela. Seria possível? Gwenda mentiria se fosse de sua conveniência, é claro; não havia por que confiar nela. Mas Sam podia ser filho de Ralph tanto quanto de Wulfric? Ambos haviam deitado com Gwenda na ocasião crucial. Talvez nunca se pudesse saber a verdade com certeza.

Mas até mesmo a possibilidade de Sam ser seu filho já era suficiente para encher de pavor o coração de Ralph. Estaria prestes a enforcar o próprio filho? A terrível punição que imaginara para Wulfric poderia ser infligida a ele mesmo.

Já era noite. O enforcamento ocorreria ao amanhecer. Ralph não tinha muito tempo para decidir.

Ele pegou a vela e deixou o pequeno quarto. Tencionava satisfazer um desejo carnal ali. Em vez disso, recebera o maior choque de sua vida.

Ralph saiu e atravessou o pátio, até a entrada das celas subterrâneas. No andar térreo do prédio ficavam as salas dos ajudantes do xerife. Ele entrou e disse para o homem de serviço ali:

- Quero ver o assassino, Sam Wigleigh.

- Está bem, milorde. Mostrarei o caminho.

Ele levou Ralph para a sala ao lado, carregando um lampião. Havia uma grade no chão, de onde saía um mau cheiro. Ralph olhou pela grade. A cela tinha cerca de três metros de profundidade, com paredes de pedra e chão de terra. Não havia móveis: Sam sentava no chão, encostado na parede. Ao seu lado havia um jarro de madeira, que devia conter água. Um pequeno buraco no chão parecia ser a latrina. Sam levantou os olhos, mas logo tornou a baixá-los, indiferente.

- Abra - ordenou Ralph.

O carcereiro destrancou a grade com uma chave. Suspendia sobre uma dobradiça.

Quero descer.

O carcereiro ficou surpreso, mas não podia argumentar com um conde. Pegou uma escada encostada na parede e desceu-a pela cela.

- Tome cuidado, por favor, milorde - disse ele, nervoso. - Lembre-se que o vilão não tem nada a perder.

Ralph desceu, com a vela na mão. O cheiro era repulsivo, mas ele não se importava. Chegou ao fim da escada e virou-se. Sam fitou-o, ressentido.

- O que você quer?

Ralph estudou-o atentamente. Agachou-se e aproximou a vela do rosto de Sam. Examinou as feições, tentando compará-las com o rosto que via quando se postava na frente de um espelho.

- O que foi? - indagou Sam, surpreso com o olhar intenso do conde. Ralph não respondeu. Sam seria mesmo seu filho? Podia ser, pensou ele. Era bem possível. Sam era um garoto de boa aparência, e Ralph era considerado bonito na juventude, antes de ter o nariz quebrado. Antes, no tribunal, Ralph pensara que o rosto de Sam lembrava-o de alguma coisa que não podia determinar. Agora, ele se concentrou, vasculhando a memória, tentando pensar em quem Sam lembrava. Aquele nariz reto, o olhar intenso, os cabelos abundantes que as moças deviam invejar...

E, de repente, ele se lembrou.

Sam parecia com a mãe de Ralph, a falecida lady Maud.

- Oh, Deus!

A voz saiu num sussurro.

- O que é? - indagou Sam, a voz traindo o medo. - O que aconteceu? Ralph tinha de dizer alguma coisa.

- Sua mãe... - A voz definhou. Sentia a garganta apertada de emoção, o que tornava difícil a passagem das palavras. Tentou de novo. - Sua mãe suplicou por você... com muita eloqüência...

Sam fitou-o cauteloso, e não disse nada. Pensava que Ralph viera para escarnecer.

- Diga-me uma coisa. Por que você bateu em Jonno com aquela pá... pretendia matá-lo? Pode ser franco comigo, pois não tem mais nada a perder.

- Claro que eu queria matá-lo. Ele estava tentando me levar prisioneiro. Ralph acenou com a cabeça.

- Eu sentiria a mesma coisa. - Ele fez uma pausa, olhando para Sam, e repetiu: - Eu sentiria a mesma coisa.

Ele ergueu-se, virou-se para a escada, hesitou, voltou e pôs a vela no chão, ao lado de Sam. Depois, subiu a escada.

O carcereiro ajeitou a grade no lugar e trancou-a.

- Não haverá enforcamento - disse Ralph. - O prisioneiro será perdoado. Vou falar com o xerife agora mesmo.

Enquanto ele saía da sala, o carcereiro espirrou.

Quando Merthin e Caris chegaram a Kingsbridge, de volta de Shiring, desçobriram que Lolla havia desaparecido. Os criados domésticos antigos, Arn e Em, esperavam no portão do jardim. Davam a impressão de que haviam passado o dia inteiro ali. Em começou a falar, mas desatou em soluços incoerentes. Arn teve de dar a notícia.

- Não conseguimos encontrar Lolla - disse ele, transtornado. - Não sabemos onde ela está.

A princípio, Merthin não entendeu.

- Ela estará em casa na hora do jantar, Em. Não se preocupe.

- Mas ela não veio para casa ontem à noite, nem na noite anterior - explicou Arn.

Merthin compreendeu agora o que eles estavam dizendo. Lolla fugira de casa. Uma rajada de medo, como vento gelado, deixou Merthin com a pele arrepiada e o coração apertado. Ela só tinha dezesseis anos. Por um momento, Merthin não foi capaz de pensar racionalmente. Apenas imaginou-a, no meio do caminho entre a infância e a vida adulta, com os intensos olhos castanho-escuros, a boca sensual da mãe, e uma expressão exultante de falsa confiança.

Quando a racionalidade voltou, ele se perguntou o que saíra errado. Vinha deixando Lolla aos cuidados de Am e Em, sempre por uns poucos dias, desde que ela tinha cinco anos de idade. Nunca houvera qualquer problema. Alguma coisa mudara?

Merthin compreendeu que mal falara com ela desde o Domingo de Páscoa, duas semanas antes, quando a agarrara pelo braço e a afastara de seus amigos malafamados da frente da taverna White Horse. Lolla ficara em seu quarto, contrariada, enquanto a família almoçava; não saíra nem mesmo quando Sam fora preso. Ainda continuava irritada poucos dias mais tarde, quando Merthin e Caris deram-lhe um beijo de despedida e partiram para Shiring.

Ele sentiu uma pontada de culpa. Tratara-a com muito rigor e a afastara. O fantasma de Silvia observava, e desprezava-o por seu fracasso em tomar conta da filha?

O pensamento dos amigos mal-afamados de Lolla aflorou.

- Tenho certeza de que Jake Riley está por trás disso. Tem falado com ele, Arn?

- Não, amo.

- É melhor eu procurá-lo imediatamente. Sabe onde ele mora?

- Ao lado do peixeiro, por trás da igreja de St. Paul. Caris disse a Merthin:

- Irei com você.

Os dois atravessaram a ponte de volta à cidade, e seguiram para oeste. A paróquia de St. Paul abrangia instalações industriais à beira do rio: matadouros, curtumes, serrarias, manufaturas diversas e os tintureiros que haviam brotado como cogumelos em setembro, desde a invenção do Escarlate de Kingsbridge. Merthin encaminhou-se para a torre de St. Paul, visível acima dos telhados das casas. Descobriu a peixaria pelo cheiro, e bateu na porta da casa grande e dilapidada ao lado.

Foi aberta por Sal Sawyers, a viúva pobre de um carpinteiro que morrera da peste.

- Jake vem e vai, regedor - disse ela. - Não o vejo há uma semana. Ele pode fazer o que bem quiser, desde que pague o aluguel.

- Quando ele partiu, Lolla foi com ele? - perguntou Caris. Sal lançou um olhar rápido e cauteloso para Merthin.

- Não gosto de criticar.

- Por favor, conte tudo o que sabe - pediu Merthin. - Não me sentirei ofendido.

- Lolla quase sempre está com ele. Faz qualquer coisa que Jake queira. Não direi mais do que isso. Se procurá-lo, vai encontrar sua filha.

- Sabe para onde ele pode ter ido?

- Jake nunca diz nada.

- Pode pensar em alguém que talvez saiba?

- Ele nunca trouxe os amigos para casa, com exceção de Lolla. Mas creio que seus amigos podem ser encontrados na White Horse.

Merthin acenou com a cabeça.

- Iremos até lá. Obrigado, Sal.

- Ela vai ficar bem - comentou Sal. - Só está passando por uma fase difícil.

- Espero que tenha razão.

Merthin e Caris foram até a White Horse, à margem do rio, perto da ponte. Merthin recordou a orgia que testemunhara ali, no auge da peste, quando o agonizante Davey Whitehorse servira de graça toda a sua cerveja. A taverna permanecera vazia por vários anos depois, mas agora tinha de novo um grande movimento. Merthin não entendia por que era tão popular. Os quartos eram apertados e sujos, havia brigas freqüentes. Pelo menos uma vez por ano alguém era assassinado ali.

Entraram na taverna. Era o meio da tarde, mas havia uma dúzia ou mais de fregueses embriagados sentados nos bancos. Havia um pequeno grupo em torno de um tabuleiro de gamão. Diversas pilhas de pennies de prata indicavam que se apostava no resultado. Uma prostituta de faces vermelhas chamada Joy levantou os olhos para os recém-chegados, esperançosa, mas depois viu quem eles eram, e recaiu em sua indolência entediada. Num canto, um homem mostrava a uma mulher um casaco que parecia de luxo, com a intenção evidente de vendê-lo;

mas quando viu Merthin, apressou-se em dobrá-lo e escondê-lo. Merthin teve certeza de que era mercadoria roubada.

O dono da taverna, Evan, comia um almoço atrasado de toucinho frito. Levantou-se, limpando as mãos na túnica, e disse, nervoso:

- Bom-dia, regedor... é uma honra recebê-lo em minha casa. Posso servir uma caneca de cerveja?

- Estou à procura de minha filha, Lolla - disse Merthin, incisivo.

- Não a vejo há uma semana. Sal dissera exatamente a mesma coisa sobre Jake, recordou Merthin. Ele disse a Evan:

- Ela pode estar com Jake Riley.

- Já notei que os dois são amigos - murmurou Evan, com o devido tato. Mas também não o vejo há uma semana.

- Sabe para onde ele foi?

- Jake é um homem que costuma se manter de boca fechada. Se alguém pergunta a que distância fica Shiring, ele sacode a cabeça, franze o rosto, e diz que não é da sua conta saber dessas coisas.

A prostituta, Joy, prestara atenção à conversa, e agora intervinha:

- Mas ele é mão-aberta. Não se pode deixar de reconhecer o que é justo. Merthin lançou-lhe um olhar duro.

- E de onde ele tira seu dinheiro?

- Cavalos - respondeu Joy. - Ele circula pelas aldeias comprando potros de camponeses, para vender nas cidades.

E bem provável que ele também roube cavalos de viajantes incautos, pensou Merthin, irritado.

- É o que ele está fazendo agora... comprando cavalos?

- Tudo indica que sim - respondeu Evan. - A temporada das feiras está para começar. Ele foi adquirir sua mercadoria.

- E talvez Lolla tenha ido com ele.

- Sem querer ofender, regedor, acho que sim.

- Não é você quem está me ofendendo.

Merthin acenou com a cabeça numa despedida brusca e deixou a taverna, acompanhado por Caris.

- Então foi isso o que Lolla fez - disse ele, furioso. - Foi embora com Jake. Provavelmente pensa que é uma grande aventura.

- Receio que você esteja certo. Só espero que ela não engravide.

- Eu bem que gostaria que isso fosse o pior a temer.

Voltaram para casa, num impulso automático. Ao atravessarem a ponte, Merthin parou no ponto mais alto e olhou por cima dos telhados suburbanos para a floresta além. Sua filha se encontrava em algum lugar por lá, junto com um negociante de cavalos de reputação duvidosa. Lolla corria perigo, e não havia nada que ele pudesse fazer para protegê-la.

Quando Merthin foi à catedral, na manhã seguinte, a fim de verificar a nova torre, descobriu que todo trabalho havia cessado.

- Ordens do prior - explicou o irmão Thomas, quando Merthin perguntou. Thomas tinha quase sessenta anos e demonstrava sua idade. O corpo militar se tornara encurvado, e ele quase arrastava os pés, um tanto trôpego.

- Houve um desabamento na nave sul - acrescentou ele.

Merthin olhou para Bartelmy French, um velho pedreiro todo enrugado da Normandia, sentado no lado de fora da oficina, amolando uma talhadeira. Bartelmy sacudiu a cabeça numa negativa silenciosa.

- Esse desabamento ocorreu há vinte e quatro anos, irmão Thomas - comentou Merthin.

- Tem razão - admitiu Thomas. - Minha memória já não é tão boa como antes.

Merthin afagou seu ombro.

- Estamos todos envelhecendo.

- O prior está lá no alto da torre, se quer falar com ele - informou Bartelmy. Claro que Merthin queria. Foi para o transepto norte, passou por uma pequena arcada, e subiu por uma estreita escada em espiral dentro da parede. Ao passar da antiga interseção para a nova torre, a cor das pedras mudou, do cinzaescuro de nuvens de tempestade para o pérola claro do céu da manhã. Foi uma longa subida. A torre já se elevava por quase cem metros. Mas ele já estava acostumado. Quase todos os dias, há onze anos, subia uma escada que se tornava mais alta a cada vez. Ocorreu-lhe que Philemon, bastante gordo agora, devia ter um razão compulsiva para obrigar seu corpo volumoso a escalar todos aqueles degraus.

Perto do topo, Merthin passou por um compartimento que alojava a grande roda, um mecanismo de madeira duas vezes mais alto do que um homem, usado para içar pedras, argamassa e madeira para os lugares em que eram necessárias. Mesmo depois de a agulha ficar pronta, a roda seria deixada ali, em caráter permanente, para ser usada em trabalhos de reparações por futuras gerações de construtores, até que as trombetas anunciassem o Dia do Juízo Final.

Ele emergiu no alto da torre. Uma brisa firme e fria soprava, embora não fosse perceptível lá embaixo. Havia um passadiço por dentro do cume da torre. Os andaimes haviam sido instalados em torno de um buraco octogonal, pronto para os pedreiros que construiriam a agulha. Pedras aparadas estavam empilhadas próximas; um monte de argamassa secava em desperdício numa plataforma de madeira.

Não havia trabalhadores ali. O prior Philemon estava parado do outro lado, junto com Harold Mason. Os dois conversavam, mas pararam com expressões de culpa quando Merthin apareceu. Ele teve de gritar acima do barulho do vento para ser ouvido:

- Por que interrompeu a construção? Philemon já tinha a resposta pronta.

- Há um problema com seu projeto. Merthin olhou para Harold.

- Está querendo dizer que algumas pessoas não são capazes de compreendê-lo.

- Pessoas experientes garantem que não pode ser executado - declarou Philemon, em tom de desafio.

- Pessoas experientes? - repetiu Merthin, desdenhoso. - Quem em Kingsbridge é experiente? Quem construiu uma ponte? Quem trabalhou com os grandes arquitetos de Florença? Quem já esteve em Roma, Avignon, Paris, Rouen? Não foi Harold, com toda certeza. Sem ofensa, Harold, você nunca esteve nem sequer em Londres.

- Não sou o único que acha impossível construir uma torre octogonal sem cambota - protestou Harold.

Merthin já ia fazer um comentário sarcástico, mas conteve-se. Philemon devia ter mais do que apenas isso, pensou ele. O prior optara deliberadamente por travar aquela batalha. Portanto, devia ter armas mais formidáveis do que a mera opinião de Harold Mason. Era de se presumir que obtivera o apoio de alguns membros da guilda... mas como? Outros construtores dispostos a alegar que a agulha de Merthin era impossível deviam ter recebido a oferta de algum incentivo. O que provavelmente significava um trabalho de construção.

- O que é? - perguntou ele a Philemon. - O que você está querendo construir?

- Não sei do que está falando - resmungou Philemon.

- Tem um projeto alternativo e ofereceu a Harold e seus amigos uma parte da construção. Qual é o prédio?

- Você não sabe do que está falando.

- Um palácio maior para você? Uma nova casa do capítulo? Não pode ser um hospital, porque já temos três. Vamos, diga logo. A menos que se sinta envergonhado.

Philemon foi espicaçado a responder:

- Os monges desejam construir uma capela para Nossa Senhora.

- Ahn...

Fazia sentido. O culto da Virgem era cada vez mais popular. A hierarquia da Igreja aprovava, porque a onda de devoção associada a Maria contrabalançava o ceticismo e a heresia que afligiam as congregações desde a peste. Numerosas catedrais e igrejas vinham acrescentando uma pequena capela especial no lado leste a parte mais sagrada do prédio - dedicada à Mãe de Deus. Merthin não gostava da arquitetura: na maioria das igrejas, a capela para Nossa Senhora parecia uma lembrança posterior, o que era de fato.

Qual era o motivo de Philemon? Ele estava sempre tentando se insinuar nas boas graças de alguém... era o seu modus operandi. Uma capela para Nossa Senhora em Kingsbridge sem dúvida agradaria ao clero mais velho e conservador.

Aquela era a segunda iniciativa de Philemon nessa direção. No Domingo de Páscoa, no púlpito da catedral, ele condenara a dissecação de cadáveres. Estava desfechando uma campanha, compreendeu Merthin. Mas qual era o objetivo?

Merthin decidiu não fazer mais nada até descobrir quais eram as intenções de Philemon. Sem fazer mais qualquer comentário, ele saiu do topo da torre e desceu por várias escadas até o solo.

Chegou em casa na hora do almoço. Caris veio do hospital poucos minutos depois.

- O irmão Thomas está ficando cada vez pior - comentou Merthin - Não há nada que se possa fazer por ele?

Caris sacudiu a cabeça em negativa. ., - Não há cura para a senilidade.

- Ele me disse que a nave sul desabou, como se tivesse acontecido ontem.

- Isto é típico. Ele se lembra do passado distante, mas não sabe o que está acontecendo hoje. Pobre Thomas. É provável que a deterioração seja bastante rápida. Mas pelo menos ele está num lugar familiar. Os mosteiros não mudam muito ao longo das décadas. Sua rotina diária deve ser a mesma que sempre foi. Isso ajudará.

Ao sentarem para o ensopado de cordeiro, com alho-poró e menta, Merthin relatou os acontecimentos da manhã. Os dois vinham batalhando com os priores de Kingsbridge há dezenas de anos: primeiro Anthony, depois Godwyn, e agora Philemon. Haviam pensado que a concessão da carta de burgo acabaria com as constantes disputas. Melhorara a situação, sem dúvida, mas parecia que Philemon ainda não desistira.

- Não estou realmente preocupado com a agulha - comentou Merthin. O bispo Henri vai revogar a ordem de Philemon e mandar que a construção seja reiniciada, assim que souber. Henri quer ser o bispo da catedral mais alta da Inglaterra.

- Philemon deve saber disso - ressaltou Caris, pensativa.

- Talvez ele queira apenas destacar sua tentativa de erguer uma capela para Nossa Senhora, recebendo o crédito por isso, ao mesmo tempo em que atribui o fracasso a outra pessoa.

- É possível - murmurou Caris, numa dúvida evidente.

Na mente de Merthin ainda havia uma questão mais importante.

- Mas o que ele de fato quer?

- Todos os atos de Philemon são motivados por sua necessidade de se sentir importante - declarou Caris, confiante. - Meu palpite é de que ele está atrás de uma promoção.

- Que cargo ele pode ter em mente? O arcebispo de Monmouth parece estar morrendo, mas Philemon não pode aspirar a essa posição, não é mesmo?

- Ele deve saber alguma coisa que ignoramos.

Antes que eles pudessem dizer mais alguma coisa, Lolla entrou na sala.

A primeira reação de Merthin foi um sentimento de alívio tão poderoso que trouxe lágrimas a seus olhos. A filha voltara, sã e salva. Ele fitou-a de alto a baixo. Lolla não exibia ferimentos aparentes, e andava com os passos firmes e ágeis de sempre. O rosto apresentava apenas a expressão habitual de descontentamento e mau humor. Caris falou primeiro:

- Você voltou! Estou tão contente!

- É mesmo?

Lolla muitas vezes fingia acreditar que Caris não gostava dela. Merthin não se deixava enganar, mas Caris ficava em dúvida, pois era sensível ao fato de não ser a mãe de Lolla.

- Estamos ambos contentes - interveio Merthin. - Você nos deu um susto.

- Por quê? - Lolla pendurou o manto num gancho e sentou à mesa. - Eu estava muito bem.

- Mas não sabíamos disso, e ficamos na maior preocupação.

- Não deveriam - declarou Lolla. - Posso cuidar de mim mesma. Merthin reprimiu uma resposta irritada.

- Não tenho tanta certeza se pode mesmo - murmurou ele, a voz tão suave quanto possível.

Caris interveio para tentar baixar a temperatura.

- Por onde andou? Esteve ausente durante duas semanas.

- Fui a vários lugares. Merthin pediu, tenso:

- Pode nos dar um ou dois exemplos?

- Mudeford Crossing. Casterham. Outhenby.

- E o que fez nesses lugares?

- E uma aula de catecismo? - indagou Lolla, petulante. - Tenho de dar todas as respostas?

Caris pôs a mão no braço de Merthin para contê-lo, e disse a Lolla:

- Só queremos ter certeza de que você não correu perigo.

- E eu também gostaria de saber com quem você viajou - acrescentou Merthin.

- Ninguém especial.

- Isso é uma referência a Jake Riley? Lolla deu de ombros. Parecia embaraçada.

- É, sim - respondeu ela, como se fosse um detalhe trivial.

Merthin estava disposto a perdoá-la e abraçá-la, mas Lolla tornava isso difícil. Com um esforço para manter a voz neutra, ele perguntou:

- Quais foram as disposições que você e Jake adotaram na hora de dormir?

- Isto é da minha conta apenas! - gritou Lolla.

- Não é, não! - gritou Merthin em resposta. - É da minha também e de sua madrasta. Se você engravidar, quem cuidará do bebê? Tem certeza de que Jake está disposto a assentar, virar marido e pai? Já conversou com ele sobre isso?

- Não fale mais comigo!

Lolla desatou a chorar. Saiu da sala e subiu a escada, batendo os pés.

- Às vezes eu gostaria que nossa casa só tivesse um cômodo... pois assim ela não poderia fazer isso - murmurou Merthin.

- Você não foi gentil com ela - comentou Caris, com ligeira desaprovação.

- Como eu deveria agir? Ela fala como se não tivesse feito nada de errado.

- Só que ela sabe a verdade. E foi por isso que chorou.

- Oh, inferno!

Houve uma batida na porta. Um monge noviço apareceu e disse:

- Desculpe incomodá-lo, regedor. Sir Gregory Longfellow está no priorado e agradeceria se fosse procurá-lo para uma conversa, assim que for conveniente.

- Droga! - resmungou Merthin. - Pode avisá-lo que estarei lá dentro de poucos minutos.

- Obrigado.

O noviço foi embora. Merthin virou-se para Caris.

Talvez seja melhor dar a ela algum tempo para esfriar.

- E a você também.

- Não vai tomar o lado dela, não é? - indagou ele, com alguma irritação. Caris sorriu e tocou no braço do marido.

- Estou sempre do seu lado. Mas lembro como é ser uma garota de dezesseis anos. Lolla sente-se tão preocupada quanto você por seu relacionamento com Jake. Mas não vai admitir, nem para si mesma, pois isso abalaria seu orgulho. E fica ressentida com você por falar a verdade. Havia erguido uma defesa frágil em torno de sua auto-estima, e você a destruiu.

- O que eu deveria fazer?

- Ajudá-la a erguer uma defesa melhor.

- Não sei o que isso significa.

- Tenho certeza de que vai descobrir.

- É melhor eu sair agora para a conversa com Sir Gregory. Merthin levantou-se. Caris abraçou-o e beijou-o nos lábios.

- Você é um bom homem, fazendo o melhor que pode, e eu o amo com toda a força do meu coração.

Isso atenuou a frustração de Merthin. Sentiu que se acalmava, enquanto atravessava a ponte e subia a rua principal para o priorado. Não gostava de Gregory. O homem era insidioso e inescrupuloso, disposto a fazer qualquer coisa por seu amo, o rei, assim como Philemon quando servia a Godwyn como prior. Merthin especulou, apreensivo, sobre a conversa. Gregory queria provavelmente falar sobre impostos... sempre uma preocupação do rei.

Merthin foi primeiro ao palácio do prior. Ali, Philemon, parecendo muito satisfeito consigo mesmo, informou-o de que encontraria Sir Gregory no claustro dos monges, no lado sul da catedral. Merthin não pôde deixar de se perguntar o que Gregory teria feito para obter o privilégio de conceder uma audiência ali.

O advogado envelhecera. Tinha os cabelos brancos e o corpo alto se tornara encurvado. Sulcos profundos destacavam-se nos dois lados do nariz. Um dos olhos azuis era agora embaçado, mas o outro continuava vigilante. Reconheceu Merthin no mesmo instante, embora não o visse há dez anos.

- Boa-tarde, regedor. O arcebispo de Monmouth morreu.

- Que sua alma descanse em paz - murmurou Merthin, numa reação automática.

- Amém. O rei pediu-me, já que eu passaria pelo seu burgo de Kingsbridge, que lhe apresentasse suas saudações e desse esta notícia importante.

- Fico agradecido. A morte não é inesperada. O arcebispo estava doente.

O rei com certeza não pedira a Gregory que se encontrasse com Merthin apenas para lhe dar uma informação interessante, pensou ele, desconfiado.

- Você é um homem intrigante, se não se importa que eu diga - comentou Gregory, expansivo. - Conheci primeiro sua esposa, há mais de vinte anos. Desde então, tenho visto os dois assumirem o controle desta cidade, de uma forma lenta, mas firme. E conseguiram tudo em que se empenharam de coração: a ponte, o hospital, a carta de burgo, um ao outro. São determinados... e são pacientes.

Era condescendente, mas Merthin ficou surpreso ao perceber um tom de respeito na lisonja de Gregory. Disse a si mesmo para permanecer desconfiado: homens como Gregory só elogiavam com um propósito.

- Estou a caminho de um encontro com os monges de Abergavenny, que devem votar para escolher o novo arcebispo. - Gregory recostou-se na cadeira. Quando o cristianismo chegou à Inglaterra, há centenas de anos, os monges elegiam seus superiores.

Explicar era um hábito do velho, refletiu Merthin: o jovem Gregory não se preocuparia com isso.

- Hoje em dia, é claro, os bispos e arcebispos são importantes e poderosos demais para serem escolhidos por pequenos grupos de idealistas devotos, que vivem desligados do mundo. O rei faz uma escolha, e Sua Santidade, o papa, ratifica a decisão real.

Até eu sei que não é tão simples assim, pensou Merthin. Há em geral alguma espécie de luta pelo poder. Mas ele não disse nada.

- Mas o ritual da eleição pelos monges ainda persiste - continuou Gregory. - É mais fácil controlá-lo do que aboli-lo. E é esse o motivo da minha viagem.

- Ou seja, vai dizer aos monges quem eles devem eleger - comentou Merthin.

- Em suma, é isso mesmo.

- E que nome pretende indicar?

- Eu não disse? É seu bispo, Henri de Mons. Um homem excelente: leal, digno de confiança, nunca cria problemas.

- Oh, não!

- Não está satisfeito?

A atitude descontraída de Gregory desapareceu por completo. Ele se tornou atento ao extremo.

Merthin compreendeu que era por isso que Gregory se encontrava ali: para descobrir como as pessoas de Kingsbridge - representadas por Merthin - reagiriam ao que ele planejava, e se haveria oposição. Merthin organizou seus pensamentos. A perspectiva de um novo bispo ameaçava a agulha e o hospital.

- Henri é a chave para o equilíbrio de poder na cidade - disse ele. - Há dez anos foi acertada uma espécie de armistício entre os mercadores, os monges e o hospital. Em conseqüência, as três partes prosperaram muito.

Num apelo para os interesses de Gregory - e do rei -, Merthin acrescentou:

- E é essa prosperidade que nos permite pagar tributos tão altos. Gregory reconheceu o fato com uma inclinação da cabeça.

- A partida de Henri, é evidente, acarreta um risco para a estabilidade de nossos relacionamentos.

- Eu diria que isso vai depender de quem for escolhido para substituí-lo.

- Tem toda razão. - Agora chegamos ao xis do problema, pensou Merthin. Já tem alguém em mente?

- O candidato óbvio é o prior Philemon.

- Não! - Merthin estava consternado. - Philemon! Por quê?

- Ele é um conservador irredutível, o que é importante para a hierarquia da Igreja nestes momentos de ceticismo e heresia.

- Tudo se torna claro. Agora compreendo por que ele fez um sermão contra a dissecação. E por que quer construir uma capela para Nossa Senhora.

Eu deveria ter previsto isso, pensou Merthin.

- Ele já avisou que não tem nenhuma restrição à tributação do clero... uma fonte constante de atrito entre o rei e alguns de seus bispos.

- Philemon vem planejando isso há algum tempo.

Merthin sentia-se furioso consigo mesmo por não ter percebido isso antes.

- Desde que o arcebispo caiu doente, eu diria.

- É uma catástrofe.

- Por que diz isso?

- Philemon é brigão e vingativo. Se ele se tornar bispo, vai criar disputas constantes em Kingsbridge. Temos de impedi-lo. - Merthin fitou Gregory nos olhos. - Por que veio até aqui para me avisar?

Assim que fez a pergunta, ele soube a resposta.

- Você também não quer Philemon. Não precisa que eu lhe diga que ele vai criar problemas, pois já sabe disso. Mas não pode simplesmente vetá-lo, porque ele conta com apoio entre o clero mais velho.

Gregory exibiu um sorriso enigmático, o que levou Merthin a concluir que estava certo.

- Mas o que quer que eu faça?

- Se eu fosse você, começaria a procurar por outro candidato para apresentar como alternativa a Philemon.

Então era isso. Merthin acenou com a cabeça, pensativo.

- Terei de pensar a respeito.

- Por favor, faça isso.

Gregory levantou-se. Merthin compreendeu que a reunião estava encerrada.

- E avise-me sobre o que decidir - acrescentou Gregory.

Merthin deixou o priorado e voltou para a ilha do Leproso, imerso em seus pensamentos. Quem poderia propor para ser o novo bispo de Kingsbridge? Os moradores da cidade sempre haviam se dado bem com o arquidiácono Lloyd, mas ele era muito velho... poderiam conseguir que ele fosse eleito, apenas para repetir todo o processo em menos de um ano.

Ele ainda não havia se definido por qualquer nome quando chegou em casa. Encontrou Caris na sala, à sua espera, ansiosa. Já ia pedir sua opinião quando ela falou primeiro. Levantou-se para dizer, o rosto pálido, uma expressão assustada:

- Lolla foi embora de novo.

Os padres diziam que o domingo era um dia de descanso, mas nunca fora assim para Gwenda. Hoje, depois da igreja pela manhã e do almoço, ela trabalhava com Wulfric no terreno atrás da casa. Era meio acre, com um galinheiro, uma pereira e um estábulo. Na horta, no outro lado, Wulfric abria os sulcos e ela semeava ervilhas.

Os meninos haviam saído para um jogo de rúgbi na aldeia vizinha, a recreação habitual dos domingos. O rúgbi era o equivalente dos camponeses às justas da nobreza: uma encenação de batalha em que os ferimentos eram às vezes reais. Gwenda rezava para que os filhos voltassem ilesos para casa.

Naquele dia, Sam voltou mais cedo.

- A bola arrebentou - resmungou ele.

- Onde está Davey? - perguntou Gwenda.

- Ele não foi ao jogo.

- Pensei que tinha ido com você. .

- Mas não foi. Muitas vezes ele sai sozinho.

- Eu não sabia disso. - Gwenda franziu o rosto. - Para onde ele vai? Sam deu de ombros.

- Ele nunca me diz.

Talvez ele esteja se encontrando com uma garota, pensou Gwenda. Davey era chegado a essas coisas. Se era uma garota, quem seria? Não havia muitas jovens aceitáveis em Wigleigh. As sobreviventes da peste haviam se apressado em casar de novo, como se estivessem ansiosas em povoar a terra; e as nascidas desde então ainda eram crianças. Talvez ele estivesse se encontrando com uma garota da outra aldeia, em algum lugar secreto na floresta. Esses encontros clandestinos eram muito comuns.

Quando Davey voltou para casa, duas horas mais tarde, Gwenda confrontouo. Ele não fez qualquer tentativa de negar que estivera fazendo alguma coisa às escondidas.

- Posso mostrar o que tenho feito, se você quiser - disse ele. - Não posso manter em segredo para sempre. Venham comigo.

Foram todos, Gwenda, Wulfric e Sam. O domingo era respeitado até certo ponto: ninguém trabalhava nos campos. Toda a área de Hundredacre estava deserta quando os quatro a atravessaram, sob uma brisa amena de primavera. Umas poucas faixas de terra pareciam negligenciadas: ainda havia aldeões que tinham mais terra do que podiam cultivar. Era o caso de Annet, que contava apenas com a filha de dezoito anos, Amabel, para ajudá-la, a menos que pudesse contratar trabalhadores, o que ainda era difícil. Sua faixa de plantação de aveia fora invadida pelo mato.

Davey levou-os por pouco menos de um quilômetro através da floresta, até uma clareira a alguma distância da trilha.

- É isto - anunciou ele.

Por um momento, Gwenda não entendeu a que o filho se referia. Estava parada à beira de um terreno indefinido, com moitas baixas crescendo entre as árvores. Ela examinou as moitas com mais atenção. Eram de uma espécie que nunca vira antes. Tinha uma haste meio quadrada, com folhas pontudas, crescendo em grupos de quatro. A maneira como cobria o solo fazia pensar que era uma planta rasteira. Uma pilha de vegetação desenraizada num lado da clareira indicava que Davey estivera arrancando ervas daninhas.

- O que é isto? - indagou ela.

- Esta planta é conhecida como garança. Comprei as sementes de um marujo naquela ocasião em que fomos a Melcombe.

- Melcombe? - repetiu Gwenda. - Mas isso foi há três anos!

- Foi o tempo que levou. - Davey sorriu. - A princípio, cheguei a pensar que nem cresceria. Ele me disse que a garança precisava de solo arenoso e tolerava alguma sombra. Preparei a clareira e plantei as sementes, mas no primeiro ano só obtive três ou quatro plantas fracas. Pensei que havia desperdiçado o dinheiro. Mas no segundo ano as raízes espalharam-se por baixo da terra e projetaram os rebentos. E agora estão por toda parte.

Gwenda sentia-se espantada por descobrir que o filho conseguira manter a plantação escondida dela por tanto tempo.

- Mas para que serve a garança? - perguntou ela. - Tem um gosto agradável? Davey riu.

- Não é comestível. Você arranca as raízes, seca e mói para fazer um pó que produz uma tintura vermelha. E vale muito. Madge Webber de Kingsbridge paga sete shillings por um galão.

O que era um preço espantoso, refletiu Gwenda. O trigo, o cereal mais caro, era vendido a cerca de sete shillings por quarto, e um quarto continha sessenta e quatro galões.

- Isto é sessenta e quatro vezes mais precioso do que o trigo! Davey sorriu.

- Foi por isso que eu plantei.

- Por que você plantou o quê? - indagou uma nova voz.

Todos se viraram para avistar Nathan Reeve, parado ao lado de um pilriteiro, tão encurvado e retorcido quanto ele. Exibia um sorriso triunfante: pegara-os desprevenidos. Mas Davey foi rápido na resposta:

- Esta é uma erva medicinal chamada... tirita. Serve para o chiado no peito da mãe.

Gwenda sabia que ele estava inventando, mas Nate não podia ter certeza. Nate olhou para ela.

- Não sabia que você tinha um chiado no peito.

- No inverno - respondeu Gwenda.

- Uma erva? - O ceticismo de Nate era evidente. - Há o suficiente aqui para atender a todo mundo em Kingsbridge. E você ainda prepara o terreno para plantar mais.

- Gosto de fazer as coisas direito - declarou Davey. Era uma resposta insossa, e Nate ignorou-a.

- Esta é uma colheita não-autorizada. Em primeiro lugar, os servos precisam de permissão para o que plantam... não podem cultivar qualquer coisa assim. Isto levaria ao caos total. Em segundo lugar, não podem usar a floresta do senhor para nada, nem mesmo para plantar ervas.

Nenhum deles tinha qualquer resposta para isso. Eram as regras. E podiam ser frustrantes: muitas vezes os camponeses sabiam que podiam ganhar dinheiro com colheitas fora dos padrões, que estavam em grande demanda e ofereciam altos preços. Era o caso do cânhamo para corda, linho para roupas de baixo de luxo, ou cerejas para o prazer das mulheres ricas. Mas muitos lordes e seus bailiffs recusavam permissão, por conservantismo instintivo.

A expressão de Nate agora era venenosa.

- Um filho é fugitivo e assassino. O outro desafia seu senhor. Que família!

Ele tinha direito a ficar furioso, refletiu Gwenda. Sam matara Jonno e escapara impune. Nate, sem a menor dúvida, odiaria sua família até o dia em que morresse. Agora, Nate abaixou-se, arrancou uma planta do solo, e disse, com evidente satisfação:

- Levarei o problema ao tribunal do solar.

Ele virou-se e afastou-se entre as árvores, claudicando. Gwenda e sua família foram atrás. Davey continuava determinado.

- Nate vai aplicar uma multa e terei de pagar. Mas ganharei dinheiro mesmo assim.

- E se ele der ordem para que a colheita seja destruída? - indagou Gwenda.

- Como?

- Pode ser queimada, ou pisoteada. Wulfric interveio:

- Nate não faria isso. A aldeia não admitiria. A multa é a maneira tradicional de resolver esses problemas.

- Só me preocupo com o que o conde Ralph dirá - murmurou Gwenda. Davey fez um gesto depreciativo com a mão.

- Não há razão para que o conde tome conhecimento de uma coisa tão insignificante.

- Ralph tem um interesse especial por nossa família.

- É verdade - concordou Davey, pensativo. - Ainda não compreendi por que ele perdoou Sam.

O garoto não tinha nada de estúpido. Gwenda apressou-se em dizer:

- Talvez lady Philippa o tenha persuadido.

- Ela se lembra de você, mãe - informou Sam. - Foi o que disse quando estive na casa de Merthin.

- Devo ter feito alguma coisa para conquistar suas boas graças - disse Gwenda, improvisando. - Ou pode ter sido apenas porque ela sentiu compaixão, de uma mãe para outra.

Não era uma grande história, mas Gwenda não tinha outra melhor. Nos dias desde que Sam fora solto, eles tiveram várias conversas sobre os motivos do perdão concedido por Ralph. Gwenda limitara-se a fingir que estava tão perplexa quanto todo mundo. Felizmente, Wulfric nunca fora do tipo desconfiado.

Chegaram em casa. Wulfric olhou para o céu, disse que ainda restava outra hora de claridade e foi para a horta, a fim de terminar de semear as ervilhas. Sam ofereceu-se para ajudá-lo. Gwenda sentou-se para consertar um rasgão numa roupa de Wulfric. Davey sentou na sua frente e disse:

- Tenho outro segredo para contar.

Gwenda sorriu. Não se importava que ele tivesse um segredo, desde que contasse à mãe.

- Pode falar.

- Estou apaixonado.

- Mas isso é maravilhoso! - Ela inclinou-se para a frente e beijou o rosto do filho. - Fico feliz por você. Como ela é?

- Ela é linda.

Gwenda vinha especulando, antes de saber sobre a garança, se Davey não estaria se encontrando com uma moça de outra aldeia. Sua intuição fora acertada.

- Tive um pressentimento a respeito.

- É mesmo?

Ele parecia ansioso.

- Não se preocupe. Não há nada de errado. Apenas me ocorreu que você podia estar se encontrando com alguém.

- Vamos para a clareira em que estou cultivando a garança. Foi mais ou menos assim que começou.

- E há quanto tempo vem acontecendo?

- Há mais de um ano.

- Então é sério.

- Quero casar com ela.

- Fico muito satisfeita. - Gwenda sorriu, afetuosa. - Você ainda tem apenas vinte anos, mas já é idade suficiente se encontrou a pessoa certa.

- Ainda bem que você pensa assim.

- De que aldeia ela é?

- Daqui mesmo, de Wigleigh.

- É mesmo? - Gwenda estava surpresa. Não pensara em nenhuma jovem de Wigleigh. - Quem é ela?

- Mãe, é Amabel.

- Não!

- Não grite.

- Não a filha de Annet!

- Não deve ficar zangada.

- Não devo ficar zangada? - Gwenda fez um esforço para se acalmar. O choque era tão grande que parecia até que ela havia levado um tapa. Respirou fundo várias vezes. - Preste atenção. Estivemos em conflito com aquela família por mais de vinte anos. Aquela vaca da Annet partiu o coração de seu pai e nunca mais o deixou em paz.

- Lamento muito, mas tudo isso pertence ao passado.

- Nada disso... Annet ainda flerta com seu pai em todas as oportunidades!

- Isto é problema de vocês, não nosso. Gwenda levantou-se. A costura caiu de seu colo.

- Como pode fazer isso comigo? Aquela vaca será parte de nossa família! Meus netos seriam também netos dela. Ela poderia entrar e sair desta casa a todo instante, fazendo seu pai de tolo com seu jeito coquete e rindo de mim, ainda por cima.

- Não vou casar com Annet.

- Amabel também será horrível. Olhe só para ela... é igualzinha à mãe!

- Não é, não. Amabel...

- Não pode fazer isso! Eu proíbo!

- Não pode proibir, mãe.

- Posso, sim... você ainda é muito jovem.

- O que não vai durar para sempre. A voz de Wulfric veio da porta:

- Por que toda esta gritaria?

- Davey diz que quer casar com a filha de Annet... mas eu não vou permitir!

- A voz de Gwenda era cada vez mais alta e estridente. - Nunca! Nunca! Nunca!

O conde Ralph surpreendeu Nathan Reeve quando disse que queria ver a estranha colheita de Davey. Nate mencionou o assunto de passagem, numa visita de rotina a Earlscastle. Um pequeno cultivo sem autorização na floresta era uma violação trivial das normas, que se costumava tratar com a aplicação de uma multa. Nate era um homem superficial, interessado em subornos e comissões. Não tinha a menor noção da profundidade da obsessão de Ralph pela família de Gwenda: seu ódio por Wulfric, o desejo sexual por Gwenda, e agora a possibilidade de ser o verdadeiro pai de Sam. Por isso, Nate se surpreendeu quando Ralph disse que inspecionaria a plantação na próxima vez em que fosse a Wigleigh.

Ralph seguiu a cavalo, em companhia de Alan Fernhill, de Earlscastle a Wigleigh, num belo dia entre a Páscoa e Pentecostes. No pequeno solar de madeira encontraram a antiga criada, Vira, encurvada e grisalha, mas ainda firme no posto. Mandaram que ela preparasse o almoço, e depois saíram com Nate para conhecer a plantação na floresta.

Ralph reconheceu a planta. Não era um camponês, mas conhecia a diferença entre um arbusto e outro. Em suas viagens com o exército, observara muitas colheitas que não cresciam naturalmente na Inglaterra. Inclinou-se da sela e arrancou um punhado de hastes.

- Esta planta é chamada de garança. Já a vi em Flandres. É cultivada pela tintura vermelha que tem o mesmo nome.

- Ele me disse que era uma erva chamada tirita, usada para curar chiado no peito - explicou Nate.

- Creio que tem propriedades medicinais, mas não é por isso que as pessoas a cultivam. Qual será a multa?

- Um shilling seria a quantia habitual.

- Não é suficiente. Nate ficou nervoso.

- Há muitos problemas, milorde, quando os costumes são ignorados. Eu preferia não...

- Não me interessa o que você prefere.

Ralph esporeou o cavalo e trotou pelo meio da clareira, pisoteando os arbustos.

- Venha, Alan.

Alan imitou-o. Os dois circularam pela plantação, pisoteando as plantas. Todos os arbustos foram destruídos em poucos minutos.

Ralp notou que Nate estava chocado com aquilo, mesmo diante do fato da plantação ser ilegal. Camponeses nunca gostam de ver uma colheita desperdiçada.

Ralph aprendera na França que a melhor maneira de desmoralizar a população era queimar o plantio.

- Já é suficiente - disse Ralph, depois de um momento, entediado.

Ele sentia-se irritado pela insolência de Davey ao fazer aquela plantação, mas esse não era o principal motivo de sua vinda a Wigleigh. A verdade era que queria ver Sam de novo.

Enquanto voltavam para a aldeia, ele esquadrinhou os campos, à procura de um jovem alto, de cabelos escuros. Sam se destacaria, por causa de sua altura, entre aqueles servos nanicos, debruçados sobre suas pás. Avistou-o, à distância, em Brookfield. Parou o cavalo e ficou observando, através da paisagem varrida pelo vento, o filho de vinte e dois anos que nunca soubera que era seu.

Sam e o homem que ele pensava que era seu pai - Wulfric - trabalhavam com um arado pequeno, puxado por um cavalo. Havia alguma coisa errada, pois eles paravam e ajustavam os arreios a todo instante. Quando estavam juntos, era fácil perceber as diferenças entre eles. Os cabelos de Wulfric eram castanho-claros; os de Sam eram escuros; Wulfric tinha o peito estufado, como um boi, enquanto Sam tinha os ombros largos mas era esguio, como um cavalo; os movimentos de Wulfric eram lentos e cuidadosos, enquanto os de Sam eram rápidos e graciosos.

Era o sentimento mais estranho olhar para um desconhecido e pensar: meu filho. Ralph considerava-se imune a emoções típicas de mulher. Se fosse sujeito a sentimentos de compaixão ou arrependimento, não poderia ter vivido como vivera. Mas a descoberta de Sam ameaçava privá-lo da insensibilidade masculina de que tanto se orgulhava.

Ele fez um esforço para se desvencilhar desse sentimento e seguiu para a aldeia; mas depois sucumbiu à curiosidade e ao sentimento, e mandou Nate procurar Sam e levá-lo para o solar.

Não sabia o que tencionava fazer com o garoto: conversar com ele, escarnecer, convidá-lo para almoçar, qualquer coisa. Deveria ter previsto que Gwenda não lhe daria liberdade para decidir. Ela apareceu com Nate e Sam, acompanhados por Wulfric e Davey.

- O que você quer com meu filho? - perguntou ela, falando com Ralph como se ele fosse um igual, não seu senhor.

Ralph disse, sem pensar:

- Sam não nasceu para ser um servo trabalhando nos campos.

Ele percebeu a expressão de surpresa de Alan Fernhill. Gwenda ficou perplexa.

- Só Deus sabe para que nascemos - protestou ela, tentando ganhar tempo.

- Quando eu quiser saber alguma coisa sobre Deus perguntarei a um padre, não a você - declarou Ralph. - Seu filho tem o temperamento de um guerreiro. Não preciso conhecê-lo a fundo para perceber isso... é evidente para mim, como seria para qualquer veterano das guerras.

- Mas ele não é um guerreiro. É um camponês, filho de um camponês, e seu destino é cultivar colheitas e criar animais, como o pai.

- O pai não interessa.

Ralph recordou o que Gwenda lhe dissera no castelo do xerife, em Shiring, quando o persuadira a perdoar Sam.

- Sam tem o instinto de um matador - acrescentou ele. - É perigoso num camponês, mas tem um valor inestimável num soldado.

Gwenda mostrou-se assustada, enquanto começava a adivinhar o propósito de Ralph.

- Onde está querendo chegar?

Ralph compreendeu para onde o levava aquela sucessão lógica.

- Deixe Sam ser útil, em vez de perigoso. Deixe-o aprender as artes da guerra.

- Isto é absurdo. Ele é velho demais.

- Tem vinte e dois anos. Já é um pouco tarde, mas ele é forte e capaz. Pode conseguir.

- Não sei como.

Gwenda fingia encontrar objeções práticas, mas Ralph podia perceber, através da dissimulação, que ela detestava a idéia com toda a força de seu coração. O que o deixou ainda mais determinado. Com um sorriso de triunfo, ele propôs:

- É muito fácil. Sam pode se tornar um pajem. E viver em Earlscastle. Gwenda dava a impressão de ter sido apunhalada. Fechou os olhos por um momento, o rosto azeitonado empalideceu. Ela movimentou os lábios para dizer ”Não”, mas nenhum som saiu.

- Ele está com você há vinte e dois anos - acrescentou Ralph. - É tempo suficiente.

Agora é a minha vez, pensou ele. Em vez disso, porém, apenas comentou:

- Agora ele é um homem.

Como Gwenda se manteve temporariamente em silêncio, Wulfric interveio:

- Não vamos permitir. Somos seus pais e não consentimos.

- Não pedi seu consentimento - declarou Ralph, desdenhoso. - Sou o conde e vocês são meus servos. Eu não peço, ordeno.

Nate Reeve entrou na conversa:

- Além do mais, Sam já passou de vinte e um anos. A decisão cabe a ele, não a seu pai.

Subitamente, todos se viraram para Sam.

Ralph não sabia o que esperar. Tornar-se um pajem era uma coisa com que muitos jovens de todas as classes sonhavam, mas ele não tinha certeza se Sam era um deles. A vida no castelo era suntuosa e excitante em comparação com o trabalho extenuante nos campos; mas, por outro lado, os homens de armas morriam jovens, ou - pior do que a morte - voltavam para casa mutilados, para passar o resto de seus dias miseráveis esmolando na frente de tavernas.

Mas assim que olhou para Sam, Ralph soube a verdade. Sam exibia um sorriso largo, os olhos faiscavam de ansiedade. Mal podia esperar para partir. Gwenda recuperou a voz.

- Não faça isso, Sam! Não caia na tentação. Não deixe que sua mãe o veja cegado por uma flecha, mutilado pelas espadas de cavaleiros franceses, ou entrevado pelos cascos de seus cavalos de guerra!

- Não vá, filho - suplicou Wulfric. - Permaneça em Wigleigh e tenha uma vida longa.

Sam ficou em dúvida. Ralph disse:

- Muito bem, rapaz. Ouviu sua mãe e o pai camponês que o criou. Mas a decisão é sua. O que pretende fazer? Continuar sua vida aqui, em Wigleigh, trabalhando nos campos, ao lado de seu irmão? Ou escapar?

Sam hesitou apenas por um momento. Lançou um olhar culpado para Gwenda e Wulfric, depois virou-se para Ralph.

- Eu irei. Serei um pajem. Obrigado, milorde.

- Bom rapaz - murmurou Ralph.

Gwenda começou a chorar. Wulfric passou o braço por seus ombros. Olhou para Ralph.

- Quando ele partirá?

- Hoje - respondeu Ralph. - Pode seguir para Earlscastle comigo e com Alan depois do almoço.

- Não tão depressa! - protestou Gwenda. Ninguém lhe deu qualquer atenção. Ralph disse a Sam:

- Vá para casa e pegue qualquer coisa que quiser levar. Almoce com sua mãe. Volte e espere por mim no estábulo. Enquanto isso, Nate pode requisitar um cavalo para sua viagem até Earlscastle. - Ele virou-se, encerrando a audiência com Sam e sua família. - Onde está meu almoço?

Wulfric e Gwenda saíram com Sam, mas Davey ficou. Já descobrira que sua plantação fora pisoteada? Ou era outra coisa?

- O que você quer? - perguntou Ralph.

- Milorde, tenho de lhe pedir um favor.

Isso era quase bom demais para ser verdade. O camponês insolente que plantara garança na floresta sem permissão era agora um suplicante. O dia estava se tornando bastante satisfatório.

- Você não pode ser um pajem, pois tem o corpo de sua mãe. Alan riu ao comentário.

- Quero casar com Amabel, a filha de Annet - explicou o jovem.

- Isto vai desagradar sua mãe.

- Serei maior de idade em menos de um ano.

Ralph sabia tudo sobre Annet, é claro. Quase fora enforcado por sua causa. A história dele se entrelaçava com a de Annet quase tanto quanto com Gwenda. E ele recordou que toda a família morrera da peste.

- Annet ainda tem algumas terras que eram de seu pai.

- Isso mesmo, milorde. Ela está disposta a transferi-las para mim quando eu casar com sua filha.

Um pedido assim normalmente não seria recusado, embora todos os lordes cobrassem uma taxa de transferência. Mas o lorde não era obrigado a consentir. O direito dos lordes de recusar esses pedidos por um capricho qualquer, frustrando a vida de um camponês, era um dos maiores ressentimentos dos homens do campo. Mas proporcionava ao senhor um meio de disciplinar os servos que podia ser extremamente eficaz.

- Não, não vou transferir as terras para você. - Ralph sorriu. - Você e sua noiva podem comer garança.

Caris tinha de impedir que Philemon se tornasse bispo. Aquela era a manobra mais ousada de Philemon até hoje, mas ele fizera os preparativos com todo o cuidado e tinha uma chance. Se conseguisse, voltaria a controlar o hospital e teria o poder de destruir a grande obra da vida de Caris. E podia fazer até pior. Restauraria a ortodoxia cega do passado. Designaria padres de coração duro como o seu para as aldeias, fecharia as escolas para moças, e pregaria sermões contra a dança.

Ela não tinha voz na escolha de um bispo, mas havia meios de exercer alguma pressão.

E começou pelo bispo Henri.

Viajou com Merthin para Shiring, a fim de se encontrar com o bispo em seu palácio. No caminho, Merthin olhava para todas as moças de cabelos escuros por que passavam; e quando não havia nenhuma, esquadrinhava a floresta nos lados da estrada. Procurava por Lolla, mas eles chegaram a Shiring sem se deparar com qualquer sinal dela.

O palácio do bispo ficava na praça principal, em frente à igreja e ao lado da Bolsa de Lã. Não era um dia de mercado, e por isso a praça estava vazia, exceto pela forca, que ali se encontrava em caráter permanente, uma sinistra advertência aos vilões do que as pessoas do condado faziam com os que violavam as leis.

O palácio era um prédio de pedra despretensioso, com um salão e uma capela no térreo, uma série de escritórios e aposentos particulares por cima. O bispo Henri impusera ao palácio um estilo que Caris achava que devia ser francês. Havia um quadro em cada cômodo. A decoração não era extravagante, como no palácio de Philemon em Kingsbridge, onde a profusão de tapetes e jóias sugeria a caverna de um ladrão. Mas havia uma elegância artística agradável em tudo na casa de Henri: um castiçal de prata que refletia a luz de uma janela; o brilho polido de uma velha mesa de carvalho; flores da primavera na lareira apagada; uma pequena tapeçaria de Davi e Jônatas na parede.

O bispo Henri não era um inimigo, mas também não podia ser considerado um aliado, pensou Caris, nervosa, enquanto eles esperavam no salão. Provávelmente diria que queria se elevar acima das disputas em Kingsbridge. Caris, mais cética, pensava que qualquer decisão de Henri era sempre baseada em seus interesses pessoais. Ele não gostava de Philemon, mas não podia permitir que isso afetasse seu julgamento.

Henri apareceu, acompanhado pelo cônego Claude, como sempre. Os dois pareciam não envelhecer. Henri era um pouco mais velho do que Caris, Claude era talvez dez anos mais moço, mas ambos ainda pareciam meninos. Caris já observara que o clero em geral envelhecia bem, melhor do que os aristocratas. Desconfiava que era porque a maioria dos sacerdotes - com algumas exceções notórias - levava uma vida de moderação.

O regime de jejum obrigava-os a comer peixe e legumes na sexta-feira, nos dias santos e durante toda a Quaresma. Além disso, em teoria, nunca se embriagavam. Em contraste, os nobres e suas esposas entregavam-se a orgias de comer carne e tomar vinho. Poderia ser por isso que seus rostos ficavam enrugados, a pele ficava flácida, o corpo, encurvado, enquanto os clérigos permaneciam empertigados e esguios por muito tempo, em suas vidas sossegadas e austeras.

Merthin deu os parabéns a Henri por ter sido escolhido para arcebispo de Monmouth, depois foi direto ao ponto:

- O prior Philemon interrompeu o trabalho na torre. Henri indagou, com uma neutralidade estudada: -Alguma razão?

- Há um pretexto e uma razão. O pretexto é uma falha no projeto.

- E qual é esse suposto defeito?

- Ele alega que uma agulha octogonal não pode ser construída sem uma cambota, mas eu encontrei um jeito.

- E qual é?

- Bastante simples. Construirei uma agulha redonda, que não precisará de cambota. Depois, acrescentarei ao exterior uma camada de pedras finas e argamassa, no formato octogonal. Em termos visuais será uma agulha octogonal, mas a estrutura será a de cone.

- Já disse isso a Philemon?

- Não. Se eu disser, ele encontrará outro pretexto.

- E qual é a verdadeira razão?

- Ele quer construir, em vez disso, uma capela para Nossa Senhora.

- Ahn...

- É parte de sua campanha para se insinuar nas boas graças do clero mais antigo. Ele fez um sermão contra a dissecação quando o arquidiácono Reginald estava presente. E disse aos conselheiros do rei que não fará campanha contra a tributação do clero.

- O que ele está querendo?

- Quer ser o bispo de Shiring. Henri alteou as sobrancelhas.

- Tenho de reconhecer que Philemon sempre teve muita ousadia. Caris falou pela primeira vez:

-Já sabia?

- Gregory Longfellow me contou. Claude olhou para Henri e comentou:

- E Gregory sabe disso melhor do que ninguém.

Caris compreendeu que Henri e Claude não haviam previsto que Philemon seria tão ambicioso. Para ter certeza de que eles não ignorariam o significado da revelação, ela acrescentou:

- Se Philemon realizar seu desejo, você terá um trabalho interminável, como arcebispo de Monmouth, para julgar as disputas entre o bispo Philemon e a cidade de Kingsbridge. Sabe quantos conflitos ocorreram no passado.

- Claro que sabemos - disse Claude.

- Fico contente por estarmos de acordo - declarou Merthin. Claude, pensando em voz alta, sugeriu:

- Devemos apresentar um candidato alternativo.

Era isso o que Caris esperava que ele dissesse. ,

- Temos uma indicação - disse ela.

- Quem? - perguntou Claude.

- Você.

Houve um momento de silêncio. Caris percebeu que Claude gostava da idéia. Adivinhou que ele podia sentir alguma inveja da promoção de Henri, e especulava se o seu destino seria o de permanecer para sempre uma espécie de assistente de Henri. Ele podia se desincumbir com a maior facilidade das funções de um bispo. Conhecia bem a diocese e já cuidava da maior parte da administração prática.

Mas os dois pensavam agora, com toda certeza, em suas vidas pessoais. Caris não tinha a menor dúvida de que eram em quase tudo como marido e mulher: vira-os se beijando. Mas décadas haviam se passado desde aquele momento de romance e sua intuição lhe dizia que eles podiam tolerar uma separação parcial.

- Ainda continuariam a trabalhar juntos durante a maior parte do tempo ressaltou ela.

- O arcebispo terá muitas razões para visitar Kingsbridge e Shiring.

- E o bispo de Shiring precisará ir a Monmouth com freqüência - acrescentou Henri.

- Seria uma grande honra para o bispo. - Com um brilho nos olhos, Claude acrescentou: - Ainda mais sob a sua autoridade, arcebispo.

Henri desviou os olhos, fingindo não perceber o duplo sentido.

- Acho que é uma idéia esplêndida.

- A guilda de Kingsbridge apoiará Claude... posso garantir - declarou Merthin. - Mas você deverá apresentar a sugestão ao rei, arcebispo Henri.

- Claro.

- Posso fazer outra sugestão? - indagou Caris.

- Por favor.

- Arrume outro posto para Philemon. Pode propô-lo para... não sei... arquidiácono de Lincoln. Alguma coisa que ele gostaria, mas que o levaria para muitos quilômetros daqui.

- É uma boa idéia - concordou Henri. - Se ele for candidato a dois postos, sua posição em ambos os casos será enfraquecida. Ficarei atento a todas as circunstâncias.

Claude levantou-se.

- Tudo isso é emocionante. Não querem almoçar conosco? Um servidor se aproximou e dirigiu-se a Caris:

- Alguém deseja lhe falar, senhora. É apenas um menino, mas parece transtornado.

- Deixe-o entrar - disse Henri.

Era um menino em torno dos treze anos. Estava sujo, mas as roupas eram de qualidade. Caris concluiu que pertencia a uma família em boas condições, mas passando por alguma espécie de crise.

- Pode ir à minha casa, madre Caris?

- Não sou mais uma freira, menino. Mas qual é o problema? O menino falou depressa:

- Meu pai e minha mãe estão doentes, e meu irmão também. Minha mãe ouviu alguém dizer que a senhora estava no palácio do bispo e me mandou chamá-la. Ela sabe que a senhora ajuda os pobres, mas tem condições de pagar. Pode ir comigo, por favor?

Como esse tipo de pedido não era excepcional, Caris sempre levava, para onde quer que fosse, uma bolsa de couro com suprimentos médicos.

- Claro que irei, rapaz. Qual é o seu nome?

- Giles Spices, madre, e devo esperar para levá-la.

- Está bem. - Caris virou-se para o bispo. - Pode começar a almoçar, por favor. Virei assim que puder.

Ela pegou sua bolsa de couro e saiu com o menino. Shiring devia sua existência ao castelo do xerife na colina, assim como Kingsbridge era uma decorrência do priorado. Perto da praça do mercado ficavam as casas grandes dos cidadãos mais eminentes, os mercadores de lá, os ajudantes do xerife, e autoridades reais como o juiz de instrução. Um pouco mais adiante ficavam as casas dos que eram relativamente prósperos, mercadores e artesãos, ourives, alfaiates, boticários. O pai de Giles negociava com spices, especiarias, como seu nome indicava. Giles levou Caris para uma rua nessa área. Como a maioria das casas ali, tinha um andar térreo de pedra que servia como depósito e loja, com os aposentos de madeira por cima. Hoje, a loja estava fechada e trancada. Giles levou Caris pela escada externa.

Ela sentiu o cheiro familiar assim que entrou. Hesitou por um instante. Havia alguma coisa especial naquele cheiro, que despertava uma lembrança em sua memória... e que a fazia se sentir muito assustada.

Em vez de ponderar a respeito, ela atravessou a sala e entrou no quarto... para descobrir a terrível resposta.

Havia três pessoas deitadas em colchões ali: uma mulher mais ou menos da idade de Caris, um homem um pouco mais velho e um adolescente. O homem tinha a doença em grau mais avançado. Gemia e suava em febre. A camisa aberta deixava à mostra manchas púrpura-pretas no peito e na garganta. Havia sangue em seus lábios e narinas.

Ele tinha a peste.

- Ela voltou - murmurou Caris. - Que Deus me ajude!

Por um momento, o medo a paralisou. Permaneceu imóvel, contemplando a cena, com um sentimento de impotência. Sempre soubera, em teoria, que a peste poderia voltar - essa fora a metade da razão para escrever seu livro -, mas mesmo assim não estava preparada para o choque de ver outra vez aquelas manchas, a febre, o nariz sangrando.

A mulher soergueu-se, apoiada num cotovelo. A doença não avançara muito nela: tinha as manchas e a febre, mas não havia sinais de hemorragia.

- Dê-me algo para beber, pelo amor de Deus... - suplicou ela.

Giles pegou um jarro de vinho. A mente de Caris finalmente voltou a funcionar, enquanto o corpo recuperava os movimentos.

- Não dê o vinho... só vai deixá-la com mais sede. Vi um barril de cerveja na sala. Encha um copo com cerveja.

A mulher concentrou-se em Caris. ,- - Você é a prioresa, não é mesmo? Caris não a corrigiu, e a mulher acrescentou:

- As pessoas dizem que é uma santa. Pode curar minha família?

- Tentarei. Não sou uma santa, mas apenas uma mulher que tem observado pessoas na doença e na saúde.

Caris tirou da bolsa uma faixa de linho e prendeu sobre a boca e o nariz. Não via um caso de peste há dez anos, mas adquirira o hábito de adotar essa precaução sempre que lidava com pacientes cujas doenças podiam ser contagiosas. Molhou um pano limpo com água-de-rosas e lavou o rosto da mulher. Como sempre, a providência acalmou a paciente. Giles voltou com o copo de cerveja. A mulher bebeu. Caris disse ao menino:

- Eles podem beber quanto quiserem, mas dê sempre cerveja ou vinho aguado. Ela foi examinar o pai, que não tinha muito tempo de vida. Sua fala não era coerente e os olhos não conseguiam focalizar Caris. Ela lavou seu rosto, limpou o sangue ressequido em torno do nariz e da boca. Finalmente cuidou do irmão mais velho de Giles. Ele só sucumbira pouco antes e ainda espirrava, mas tinha idade suficiente para compreender a gravidade da doença. E estava aterrorizado. Quando acabou, Caris disse a Giles:

- Tente mantê-los confortáveis e deixe-os beber sempre que quiserem. Você tem parentes? Tios ou primos?

- Estão todos em Gales.

Ela fez uma anotação mental de avisar ao bispo Henri que talvez precisasse encontrar um lugar para um menino órfão.

- A mãe disse que eu tinha de pagar.

- Não fiz muito para ajudar. Pode me pagar seis pennies.

Havia uma bolsa de couro ao lado da cama da mãe. Giles tirou seis pennies de prata. A mulher tornou a se ergueu e perguntou, mais calma agora:

- O que há de errado conosco?

- Sinto muito, mas é a peste.

A mulher acenou com a cabeça, fatalista.

- Era disso que eu tinha medo.

- Não reconheceu os sintomas da última vez?

- Vivíamos numa pequena cidade em Gales... e escapamos. Vamos todos morrer?

Caris achava que não se deviam enganar as pessoas nas coisas mais importantes.

- Umas poucas pessoas sobrevivem... mas não muitas.

- Neste caso, que Deus tenha piedade de nós. -Amém.

Durante toda a volta para Kingsbridge, Caris ficou pensando na peste. Haveria de se espalhar, é claro, como acontecera da última vez. Mataria milhares de pessoas. A perspectiva deixou-a enfurecida. Era como a carnificina sem sentido da guerra... só que a guerra era causada pelos homens, o que não era o caso da peste. O que ela faria? Não podia ficar sentada e observar a cruel repetição da tragédia que ocorrera treze anos antes.

Não havia cura para a peste, mas ela descobrira meios de retardar seu progresso assassino. Enquanto o cavalo trotava através da estrada pela floresta, ela pensou no que sabia sobre a doença e como combatê-la. Merthin manteve-se calado, reconhecendo a disposição da mulher, provavelmente adivinhando sobre o que ela pensava.

Assim que chegaram em casa, Caris explicou o que queria fazer. Merthin advertiu-a:

- Haverá muita oposição. Seu plano é drástico. As pessoas que não perderam parentes e amigos na última vez podem imaginar que são invulneráveis, e alegar que você exagera na reação.

- É nesse ponto que você pode me ajudar.

- Minha sugestão é dividir os opositores em potencial e lidar com eles em separado.

- Está bem.

- Você tem três grupos para conquistar: a guilda, os monges e as freiras. Vamos começar pela guilda. Convocarei uma reunião... e não chamarei Philemon.

A guilda reunia-se agora na Bolsa de Tecido, um prédio de pedra novo e grande, na rua principal. Permitia que os mercadores fizessem negócios mesmo com mau tempo. A construção fora paga com os lucros do Escarlate de Kingsbridge.

Mas antes de convocar a reunião, Caris e Merthin encontraram-se individualmente com os membros mais destacados, a fim de conquistar seu apoio antecipado, uma técnica que Merthin desenvolvera há muito tempo. Seu lema era: ”Nunca convoque uma reunião enquanto não tiver certeza do resultado.”

Caris foi conversar com Madge Webber.

Madge casara de novo. Para divertimento de todos, ela encantara um aldeão tão bonito quanto o primeiro marido e quinze anos mais jovem. Seu nome era Anselm e ele parecia adorá-la, embora ela continuasse tão gorda quanto antes e cobrisse os cabelos grisalhos com uma coleção de toucas exóticas. Ainda mais surpreendente, já na casa dos quarenta anos ela concebera de novo e dera à luz uma menina saudável, Selma, agora com oito anos, cursando a escola das freiras. A maternidade nunca impedira Madge de cuidar dos negócios, e ela continuava a dominar o mercado do Escarlate de Kingsbridge, tendo Anselm como seu ajudante.

Ela ainda morava na casa grande na rua principal para onde se mudara com Mark quando começara a ganhar dinheiro com tecelagem e tintura. Caris encontrou-a junto de Anselm, recebendo uma carga de tecido vermelho e tentando encontrar espaço para guardá-lo no abarrotado depósito no primeiro andar.

- Estou fazendo estoque para a Feira do Velocino - explicou Madge.

Caris esperou enquanto ela conferia a mercadoria. Subiram em seguida, deixando Anselm a tomar conta da loja. Ao entrar na sala, Caris recordou com absoluta nitidez a cena que encontrara ali, treze anos antes, quando fora chamada para examinar Mark... a primeira vítima da peste em Kingsbridge. E sentiu uma súbita depressão. Madge notou sua expressão.

- O que aconteceu?

Não se podiam esconder coisas das mulheres da maneira como se fazia com homens.

- Entrei aqui há treze anos porque Mark estava doente. Madge acenou com a cabeça.

- Esse foi o início da pior época da minha vida. Naquele dia tinha um marido maravilhoso e quatro filhos saudáveis. Três meses depois era uma viúva sem filhos, que não tinha nada por que viver.

- Dias de pesar - murmurou Caris.

Madge foi até o aparador, onde havia copos e um jarro. Mas em vez de oferecer uma bebida a Caris, ficou parada ali, olhando para a parede.

- Quer ouvir uma coisa estranha? Depois que eles morreram, eu não podia dizer Amém ao Paternoster. - Ela engoliu em seco e a voz se tornou mais suave.

- Sei o que o latim significa. Meu pai me ensinou. Fiat voluntas tua: Seja feita a tua vontade. Eu não podia dizer isso. Deus levara minha família, e isso era tortura demai... eu não podia aceitar.

Lágrimas afloraram aos olhos de Madge, enquanto ela lembrava.

- Não queria que a vontade de Deus prevalecesse. Queria meus filhos de volta. Seja feita a tua vontade... Eu sabia que ia para o inferno, mas não podia dizer Amém.

- A peste voltou - anunciou Caris.

Madge cambaleou. Teve que se apoiar no aparador para não cair. O corpo sólido parecia de repente frágil; e à medida que a confiança se desvanecia de seu rosto, ela parecia muito velha.

-Não!

Caris puxou um banco, segurou Madge pelo braço e sentou-a.

- Lamento ter deixado você chocada.

- Não - repetiu Madge. - Não pode voltar. Não posso perder Anselm e Selma. Não suportaria... não suportaria...

Ela estava tão pálida e tensa que Caris começou a temer que Madge pudesse sofrer alguma espécie de ataque.

Caris despejou vinho do jarro num copo. Entregou-o a Madge, que bebeu num gesto automático. Um pouco de cor voltou a seu rosto.

- Compreendemos a peste melhor agora - disse Caris. - Talvez possamos combatê-la.

- Combater a peste? Como faríamos isso?

- É o que vim lhe dizer. Sente-se melhor agora? , Madge finalmente fitou Caris nos olhos.

- Combater a peste... Claro que é isso o que devemos fazer. Diga-me como.

- Temos de isolar a cidade. Fechar os portões, guarnecer as muralhas, impedir que qualquer pessoa entre.

- Mas as pessoas têm de comer.

- Os camponeses levarão os suprimentos para a ilha do Leproso. Merthin agirá como intermediário e pagará os fornecedores... contraiu a peste na última vez e sobreviveu. Ninguém jamais pegou a peste duas vezes. Os mercadores deixarão as mercadorias na ponte. Depois que forem embora, as pessoas sairão da cidade para buscar os alimentos.

- As pessoas poderiam deixar a cidade?

- Claro, mas não poderiam voltar.

- E a Feira do Velocino?

- Essa pode ser a parte mais difícil. Deve ser cancelada.

- Mas os mercadores de Kingsbridge perderão centenas de libras!

- É melhor do que morrer.

- Se fizermos como você diz, evitaremos a peste? Minha família vai sobreviver? Caris hesitou, mas resistiu à tentação de dizer uma mentira tranqüilizadora.

- Não posso prometer. Pode haver alguém neste momento morrendo sozinho numa choupana perto do rio, sem ninguém para ajudar. Por isso, temo que talvez não escapemos completamente. Mas creio que meu plano lhe oferece a melhor chance de ainda ter Anselm e Selma ao seu lado no Natal.

- Então vamos fazer isso - declarou Madge, decidida.

- Seu apoio é crucial. Para ser franca, você perderá mais dinheiro do que qualquer outra pessoa com o cancelamento da feira. Por isso, é provável que as pessoas acreditem em você. Preciso que diga a todos como a situação é grave.

- Não se preocupe, Caris. Direi isso a todo mundo.

- Uma ótima idéia - disse o prior Philemon.

Merthin ficou surpreso. Não podia se lembrar de qualquer outra ocasião em que Philemon tivesse concordado tão prontamente com uma proposta da guilda.

- Então vai nos apoiar - disse ele, para ter certeza de que ouvira direito.

- Vou, sim. - O prior comia passas de uma tigela, enviando-as à boca tão depressa quanto podia mastigar. Não ofereceu a Merthin. - Mas é claro que não se aplicaria aos monges.

Merthin suspirou. Deveria ter imaginado.

- Ao contrário. Aplica-se a todo mundo.

- Não, não - disse Philemon, no tom de quem instrui uma criança. - A guilda não tem o poder de restringir os movimentos dos monges.

Merthin notou um gato aos pés de Philemon. Era gordo como ele, com um rosto mesquinho. Parecia com o gato de Godwyn, Arcebispo, embora a criatura já devesse ter morrido há muito tempo. Talvez fosse um descendente. Merthin disse:

- A guilda tem o poder de fechar os portões da cidade.

- Mas nós temos o direito de ir e vir como quisermos. Não estamos sujeitos à autoridade da guilda... seria um absurdo.

- Seja como for, a guilda controla a cidade e decidimos que ninguém pode entrar enquanto a peste estiver grassando.

- Não pode fazer as regras para o priorado.

- Mas posso fazer para a cidade, e o priorado por acaso está dentro da cidade.

- Está me dizendo que se eu deixar Kingsbridge hoje vai me recusar a entrada amanhã?

Merthin não tinha certeza. Seria altamente embaraçoso, para dizer o minimo, ter o prior de Kingsbridge parado na frente do portão exigindo admissão. Esperava persuadir Philemon a aceitar a restrição. Não queria que a decisão da guilda fosse testada de uma maneira tão dramática. Mesmo assim, ele tentou fazer com que sua resposta soasse confiante:

- Claro que sim.

- Vou me queixar ao bispo.

- E aproveite para avisar que ele também não poderá entrar em Kingsbridge.

O pessoal do convento quase não mudara em dez anos, compreendeu Caris. Os conventos eram assim mesmo, é claro: uma freira deveria permanecer para sempre. Irmã Joan ainda era a prioresa e irmã Oonagh dirigia o hospital, sob a supervisão do irmão Sime. Poucas pessoas vinham até ali agora em busca de cuidados médicos: a maioria preferia o hospital de Caris na ilha. Os pacientes de Sime, devotos ao extremo na maior parte, eram tratados no velho hospital, próximo da cozinha, enquanto o novo prédio era usado para hóspedes.

Caris sentou com Joan, Oonagh e Sime na velha farmácia, a sala agora usada como escritório particular da prioresa. Explicou seu plano.

- As pessoas fora das muralhas da cidade antiga que caírem vítimas da peste serão internadas em meu hospital na ilha. Enquanto a peste durar, as freiras e eu ficaremos dentro do prédio noite e dia. Ninguém sairá de lá, exceto os poucos afortunados que se recuperarem.

- E o que fazemos aqui na cidade antiga? - perguntou Joan.

- Se a peste entrar na cidade apesar de nossas precauções, pode haver vítimas demais para as acomodações de que vocês dispõem. A guilda decidiu que as vítimas da peste e suas famílias serão confinadas a suas casas. A regra se aplica a qualquer pessoa que vive numa casa atingida pela peste: pais, filhos, avós, criados, aprendizes. Qualquer um que for apanhado a sair de uma casa nessas condições será enforcado.

- É muito rigoroso - comentou Joan. - Mas vale a pena, se evitar a terrível mortandade da última peste.

- Eu sabia que você diria isso.

Sime permanecia calado. A notícia sobre a peste parecia ter esvaziado sua arrogância.

- Como as vítimas comerão, se estiverem aprisionadas em suas casas? - indagou Oonagh.

- Os vizinhos podem deixar comida na porta. Ninguém pode entrar... exceto monges médicos e freiras. Eles visitarão os doentes, mas não devem ter contato com os saudáveis. Irão do priorado para a casa, e da casa de volta ao priorado, sem entrar em qualquer outro prédio, sem sequer falar com as pessoas na rua. Devem usar máscara em todas as ocasiões, e lavar as mãos com vinagre cada vez que tocarem num paciente.

Sime parecia apavorado.

- Isso vai nos proteger?

- Até certo ponto, mas não completamente - respondeu Caris.

- Mas neste caso será muito perigoso cuidar dos doentes! Oonagh respondeu:

- Não temos medo. Aguardamos ansiosas pela morte. Para nós, é o reencontro com Cristo há muito esperado.

- Claro, claro... - murmurou Sime.

No dia seguinte, todos os monges deixaram Kingsbridge.

Gwenda sentiu uma fúria rancorosa quando viu o que Ralph fizera com a plantação de garança de Davey. A destruição sem motivo de colheitas era um pecado. Deveria haver um lugar especial no inferno para nobres que arruinavam o que os camponeses suavam para cultivar. Mas Davey não ficou consternado.

- Acho que não tem a menor importância - disse ele. - O valor está nas raízes, que não foram afetadas.

- Destruir as raízes seria trabalho demais para ele - comentou Gwenda, amargurada.

Mas ela logo se reanimou. Os arbustos recuperaram-se com uma rapidez extraordinária. Ralph não devia saber que a garança se propagava por baixo da terra. Ao longo dos meses de maio e junho, enquanto começavam a chegar a Wigleigh as notícias de uma nova erupção da peste, as raízes projetaram novos rebentos. No começo de julho, Davey decidiu que era tempo de fazer a colheita. No domingo, Gwenda, Wulfric e Davey passaram a tarde desenterrando as raízes. Primeiro, afrouxavam o solo em torno da planta, depois arrancavam-na. Removiam a folhagem e deixavam a raiz presa a uma haste curta. Era um trabalho extenuante, do tipo que Gwenda fizera durante toda a sua vida.

Deixaram a plantação como estava, na esperança de que se regenerasse no ano seguinte.

Levaram as raízes de garança empilhadas em um carrinho de mão através da floresta até Wigleigh, descarregaram no paiol, e espalharam sobre o feno para secar.

Davey não sabia quando conseguiria vender sua colheita. Kingsbridge era uma cidade fechada. As pessoas ainda compravam suprimentos, é claro, mas apenas através de intermediários. Davey estava fazendo uma coisa nova e precisaria explicar a situação para o comprador. E seria difícil fazer isso através de um intermediário. Mas talvez ele tivesse de tentar. Precisava secar as raízes primeiro, depois moê-las até se tornarem um pó, o que de qualquer maneira levaria algum tempo.

Davey não dissera mais nada sobre Amabel, mas Gwenda tinha certeza de que os dois continuavam a se encontrar. Ele fingia se manter jovial e resignado com seu destino. Se realmente tivesse desistido, estaria desanimado e ressentido.

Gwenda só podia torcer para que ele deixasse de amá-la antes de ter idade suficiente para casar sem permissão. Ainda não era capaz de suportar sequer pensar em ver sua família se unir com a de Annet. Afinal, Annet nunca deixara de humilhá-la flertando com Wulfric, que continuava a sorrir como um tolo a cada comentário coquete e estúpido que ela fazia. Agora que Annet estava na casa dos quarenta anos, com veias rompidas nas faces rosadas e fios brancos entre os cachos louros, seu comportamento não era apenas embaraçoso, mas também grotesco; Wulfric, no entanto, reagia como se ela ainda fosse uma garota.

E agora, pensou Gwenda, meu filho caiu na mesma armadilha. O que a deixava furiosa. Amabel parecia com Annet vinte e cinco anos antes, um rosto bonito com cachos que balançavam ao vento, um pescoço comprido, ombros brancos e estreitos, seios pequenos como os ovos que mãe e filha vendiam nos mercados. Amabel tinha a mesma maneira de sacudir os cabelos, o mesmo truque de contemplar um homem com uma expressão de falsa repreensão e bater em seu peito com o dorso da mão, num gesto que pretendia ser uma pancada, mas era na verdade uma carícia.

Davey, porém, pelo menos estava salvo e bem fisicamente. Gwenda sentia-se mais preocupada com Sam, vivendo agora com o conde Ralph no castelo, enquanto aprendia a ser um guerreiro. Na igreja, ela rezava para que Sam não fosse ferido em alguma caçada, nem aprendesse a usar uma espada, nem lutasse num torneio. Vira-o todos os dias durante vinte e dois anos, até que, subitamente, ele lhe fora tirado. É difícil ser uma mulher, pensava ela. Você ama seu filho com todo o coração e alma, até que um belo dia ele vai embora.

Por várias semanas ela procurou um motivo para ir a Earlscastle e verificar como Sam estava. E depois soube que a peste também chegara ali, e resolveu partir. Viajaria antes de a colheita começar. Wulfric não a acompanharia: tinha muita coisa para fazer na terra. De qualquer forma, ela não tinha medo de viajar sozinha.

- Sou pobre demais para ser roubada, velha demais para ser estuprada - gracejava ela.

A verdade era que ela era muito dura para deixar que qualquer das duas coisas acontecesse. E sempre viajava com uma adaga comprida.

Ela atravessou a ponte levadiça para Earlscastle num dia quente de julho. Havia uma gralha pousada nas ameias por cima do portão, como uma sentinela, o sol faiscando em suas penas pretas lustrosas. Gralhou em advertência para ela.

O som saiu como ”Vá, vá!”. Gwenda escapara da peste uma vez; mas isso poderia ter sido pura sorte; ela arriscava a vida ao vir até ali.

A cena na parte inferior do castelo era normal, embora um pouco quieta. Um lenhador descarregava uma carroça cheia de lenha junto da padaria, enquanto um cavalariço desencilhava um cavalo empoeirado na frente do estábulo. Mas não havia muita atividade ali. Gwenda notou um pequeno grupo de homens e mulheres junto da entrada oeste da pequena igreja, e atravessou a área de terra batida para investigar.

- Há vítimas da peste lá dentro - informou uma criada, em resposta à sua indagação.

Ela passou pela porta, sentindo o medo como uma mão gelada que apertava seu coração.

Dez ou doze colchões de palha estavam alinhados no chão, de forma a que os ocupantes pudessem olhar para o altar, como num hospital. Cerca da metade dos pacientes pareciam ser crianças. Havia três homens crescidos. Gwenda examinou seus rostos, apavorada.

Nenhum deles era Sam.

Ela ajoelhou-se e fez uma prece de agradecimento.

Lá fora, ela aproximou-se da mulher com que falara antes.

- Estou à procura de Sam de Wigleigh. Ele é um novo pajem.

A mulher apontou para a ponte que levava à parte interna do conjunto.

- Procure na torre.

Gwenda seguiu pelo caminho indicado. O guarda de sentinela na ponte ignorou-a. Ela subiu os degraus para a fortaleza.

O grande salão era escuro e fresco. Um enorme cachorro dormia na pedra fria da lareira. Havia bancos ao longo das paredes e duas cadeiras de braços imensas na outra extremidade. Gwenda notou que não havia almofadas, nem assentos estofados, nem ornamentos nas paredes. Deduziu que lady Philippa passava bem pouco tempo ali e não tinha o menor interesse pela decoração.

Sam estava sentado perto de uma janela, junto com três homens mais jovens. As partes de uma armadura estavam arrumadas no chão à frente deles, do elmo às proteções dos joelhos e tornozelos. Cada homem limpava uma peça. Sam esfregava o peitoral com um seixo liso, tentando remover a ferrugem.

Ela ficou parada por um momento, observando. Sam usava roupas novas, a libré vermelha e preta do conde de Shiring. As cores combinavam com sua beleza morena. Ele parecia à vontade, conversando descontraído com os outros, enquanto todos trabalhavam. Dava a impressão de estar saudável e bem alimentado. Era o que Gwenda esperava, mas mesmo assim sofreu uma descabida pontada de desapontamento por descobrir que o filho passava muito bem sem ela.

Sam levantou os olhos e avistou-a. Seu rosto registrou surpresa, depois prazer e divertimento.

- Amigos, sou o mais velho entre vocês, e podem pensar que sou capaz de cuidar de mim mesmo, mas não é o caso. Minha mãe me segue por toda parte para ter certeza de que estou bem.

Eles olharam para Gwenda e riram. Sam largou seu trabalho e adiantou-se. Mãe e filho sentaram num banco no canto, perto da escada que levava aos aposentos por cima.

- É uma vida maravilhosa - disse Sam. - Todos se divertem aqui, na maioria dos dias. Saímos para caçar e falcoar, temos disputas de luta livre, competições de equitação, e jogamos rúgbi. Aprendi tanta coisa! É um pouco embaraçoso passar o tempo todo com esses adolescentes, mas posso aturar. Só preciso adquirir a habilidade de usar uma espada e um escudo enquanto estou montado a cavalo.

Ele já falava de uma maneira diferente, notou Gwenda. Começara a perder o ritmo arrastado da fala na aldeia. E usou palavras francesas para ”equitação” e ”falcoar”. Já estava sendo assimilado pela vida da nobreza.

- E o que me diz do trabalho? Não pode ser tudo diversão.

- Há mesmo muito trabalho. - Sam gesticulou para os outros, limpando a armadura. - Mas é fácil em comparação com arar e colher.

Ele perguntou pelo irmão, e Gwenda deu as notícias de casa: a garança de Davey se regenerara e eles haviam arrancado as raízes; Davey continuava envolvido com Amabel; e ninguém em Wigleigh contraíra a peste até agora. Enquanto conversavam, ela começou a sentir que era vigiada, e teve certeza de que a sensação não era uma fantasia. Depois de algum tempo, olhou para trás.

O conde Ralph estava parado no alto da escada, na frente de uma porta aberta, obviamente ao sair de seus aposentos. Gwenda se perguntou há quanto tempo ele a observava. Sustentou seu olhar, que era intenso. Mas ela não foi capaz de decifrá-lo, não compreendeu o que significava. Começou a sentir que tinha uma intimidade embaraçosa, e se apressou em desviar os olhos.

Quando tornou a olhar, Ralph já havia desaparecido.

No dia seguinte, quando já estava na estrada a meio caminho de casa, um cavaleiro aproximou-se por trás, a galope, depois diminuiu e parou.

Gwenda estendeu a mão para a adaga comprida no cinto.

O cavaleiro era Sir Alan Fernhill.

- O conde quer falar com você.

- Então ele deveria ter vindo pessoalmente, em vez de mandar você.

- Sempre tem uma resposta esperta, não é mesmo? E acha que isso a faz cair nas boas graças de seus superiores?

Ele tinha razão nesse ponto. Gwenda ficou surpresa, talvez por nunca ter ouvido qualquer comentário inteligente durante todo o tempo em que Alan era comparsa de Ralph. Mas se ela fosse mesmo esperta, trataria de adular pessoas como Ralph, em vez de escarnecer.

- Está bem - disse ela, cansada. - O conde me chama. Devo andar por todo o caminho de volta ao castelo?

- Não precisa. Ele tem uma cabana não muito longe daqui, onde às vezes pára e descansa um pouco durante uma caçada. Ele está lá agora.

Alan apontou para um ponto da floresta ao lado da estrada.

Gwenda não gostava nem um pouco da situação, mas uma serva tinha de atender ao chamado de seu conde. De qualquer maneira, tinha certeza de que, se recusasse, Alan a derrubaria, amarraria e levaria até lá.

- Irei até essa cabana.

- Se quiser, pode subir na sela, na minha frente.

- Não, obrigada. Prefiro andar.

Naquela época do ano, o mato rasteiro era espesso. Gwenda seguiu o cavalo pela floresta, aproveitando a trilha que o animal abria pelas urtigas e samambaias. A estrada por trás logo desapareceu. Gwenda especulou, nervosa, sobre o motivo para Ralph realizar aquele encontro na floresta. E pressentiu que não podia ser uma boa notícia para ela e sua família.

Eles percorreram menos de um quilômetro e chegaram a uma cabana com teto de colmo. Gwenda teria presumido que era a casa de um guarda-caça. Alan prendeu as rédeas em torno de uma árvore nova e entrou na frente.

A cabana tinha a mesma aparência despojada e utilitária que Gwenda já notara em Earlscastle. O chão era de terra batida; as paredes, de taipa; o teto, apenas a parte de baixo do colmo. Os móveis eram mínimos: uma mesa, alguns bancos e uma cama simples de madeira, com um colchão de palha. Havia uma porta entreaberta nos fundos, onde os criados de Ralph deviam preparar comida para ele e seus companheiros de caçada.

Ralph sentava à mesa, com um copo de vinho à sua frente. Gwenda parou diante dele, esperando. Alan encostou-se na parede, por trás dela.

- Então Alan conseguiu encontrá-la - disse Ralph.

- Não há mais ninguém aqui? - indagou Gwenda, nervosa.

- Só você, eu e Alan. A ansiedade de Gwenda aumentou ainda mais.

- Por que queria se encontrar comigo?

- Para falar sobre Sam, é claro.

- Você tirou Sam de mim. O que mais há para dizer?

- Ele é um bom rapaz... nosso filho.

- Não o chame assim.

Ela olhou para Alan, que não demonstrou qualquer surpresa. Era evidente que ele já estava a par do segredo. Gwenda ficou consternada. Wulfric nunca deveria descobrir.

- Nunca o chame de nosso filho - reiterou ela. - Nunca foi um pai para Sam. Foi Wulfric quem o criou.

- Como eu poderia criá-lo? Nem sequer sabia que era meu filho. Mas venho compensando o tempo perdido. Ele lhe contou que tem se saído muito bem?

-Já se meteu em brigas?

- Claro. Os pajens devem brigar. É um bom treino quando vão para a guerra. Deveria ter perguntado se ele vence.

- Não é a vida que eu queria para Sam.

- É a vida para a qual ele foi feito.

- Mandou que eu viesse até aqui apenas para se gabar?

- Por que não senta?

Relutante, Gwenda sentou no outro lado da mesa. Ralph serviu vinho num copo, que empurrou em sua direção. Ela ignorou.

- Agora que sei que temos um filho, acho que devemos ser mais íntimos sugeriu Ralph.

- Não, obrigada.

- Você é uma desmancha-prazeres.

- Não me fale em prazer. Você tem sido uma praga em minha vida. Com toda a força do meu coração, gostaria de nunca tê-lo conhecido. Não quero ter nenhuma intimidade com você. Prefiro me manter o mais longe possível. Se você fosse para Jerusalém, ainda não seria bastante longe.

O rosto de Ralph contraiu-se em raiva, e ela se arrependeu da extravagância de suas palavras. Recordou a censura de Alan. Desejou poder dizer não com toda simplicidade e calma, sem comentários mordazes. Mas Ralph atiçava sua ira como nenhuma outra pessoa.

 

- Não pode perceber? - indagou ela, tentando ser racional. - Odeia meu marido... há quanto tempo... um quarto de século? Ele quebrou seu nariz e você cortou o rosto dele. Estuprou a mulher que ele havia amado. Ele fugiu e você trouxe-o de volta com uma corda no pescoço. Depois de tudo isso, nem o fato de termos um filho juntos pode fazer com que nos tornemos amigos.

- Discordo. Acho que podemos ser não apenas amigos, mas também amantes.

- Não!

Era o que Gwenda temia, no fundo de sua mente, desde que Alan parara o cavalo à sua frente na estrada. Ralph sorriu.

- Por que não tira o vestido? Ela ficou tensa.

Alan inclinou-se por trás e tirou a adaga comprida do cinto de Gwenda, num movimento suave. Era evidente que ele premeditara o movimento, e aquilo aconteceu depressa demais para que ela pudesse reagir. Mas Ralph disse:

- Não, Alan... isso não será necessário. Ela fará de bom grado.

- Nunca!

- Pode devolver a adaga, Alan.

Relutante, Alan inverteu a posição da adaga, segurando-a pela lâmina ao estendê-la para Gwenda. Ela pegou a adaga e levantou-se de um pulo.

- Vocês podem me matar, mas juro que levarei um de vocês comigo! Gwenda recuou, a adaga estendida à sua frente, pronta para lutar. Alan foi para a porta, cortando sua retirada.

- Pode deixar, Alan - disse Ralph. - Ela não vai a parte alguma.

Gwenda não tinha a menor idéia do motivo pelo qual Ralph se mostrava tão confiante, mas ele estava completamente enganado. Ela sairia daquela cabana, correria tão depressa quanto pudesse, e só pararia quando caísse de cansaço.

Alan permaneceu onde estava.

Gwenda alcançou a porta, estendeu a mão para trás, e levantou o trinco simpies de madeira.

- Wulfric não sabe, não é mesmo? - murmurou Ralph. Gwenda ficou paralisada.

- Não sabe o quê?

- Não sabe que sou o pai de Sam.

A voz de Gwenda baixou para um sussurro:

- Não, não sabe.

- Fico imaginando como ele se sentiria se descobrisse.

- Isso o mataria.

- Foi o que pensei.

- Por favor, não conte a ele.

- Não contarei... desde que você faça o que eu disser.

O que ela podia fazer? Sabia que Ralph sentia uma intensa atração sexual por ela. Usara esse conhecimento, em desespero, para conseguir encontrá-lo no castelo do xerife. Aquele momento na Bell, tantos anos antes, uma recordação infame para ela, vivera na memória de Ralph como uma ocasião áurea, provavelmente reforçada pela passagem do tempo. E ele metera em sua cabeça a idéia de reviver aquele momento.

Portanto, a culpa era sua.

Como poderia desenganá-lo?

- Não somos mais as mesmas pessoas que éramos há tantos anos - argumentou ela. - Nunca serei outra vez uma jovem inocente. Você deve voltar para suas criadinhas.

- Não quero criadas. Quero você.

- Não, por favor...

Gwenda teve de fazer o maior esforço para conter as lágrimas. Mas Ralph manteve-se implacável.

- Tire o vestido.

Ela guardou a adaga na bainha e desafivelou o cinto.

No momento em que acordou, Merthin pensou em Lolla. Fazia três meses agora que ela havia desaparecido. Ele enviara cartas para as autoridades de cidades em Gloucester, Monmouth, Shaftesbury, Exeter, WinChester e Salisbury. Cartas suas, como regedor de uma das maiores cidades da Inglaterra, eram tratadas com a devida seriedade, e ele recebera respostas cuidadosas de todas. Só o prefeito de Londres não fora prestativo, alegando que metade das garotas da cidade havia fugido de seus pais e que não era da conta do prefeito mandá-las de volta para casa.

Merthin fizera indagações pessoais em Shiring, Bristol e Melcombe. Conversara com o proprietário de cada taverna, dando uma descrição de Lolla.

Todos haviam visto moças de cabelos escuros, quase sempre na companhia de patifes bonitos, como Jake, Jack, ou Jock; mas nenhum pôde afirmar com certeza que vira a filha de Merthin, ou ouvira o nome Lolla.

Alguns amigos de Jake também haviam desaparecido, junto com mais uma ou outra garota, essas alguns anos mais velhas do que Lolla.

Merthin sabia que Lolla podia estar morta, mas recusava-se a perder a esperança. Era improvável que ela contraísse a peste. A nova erupção vinha devastando cidades e aldeias, matando a maioria das crianças com menos de dez anos. Mas sobreviventes da primeira onda, como ele e Lolla, deviam ser pessoas que por alguma razão tinham a força para resistir à doença, ou haviam conseguido se recuperar, em casos raros, como o seu; e não estavam ficando doentes desta vez. A peste, porém, era apenas um dos riscos a que se expunha uma garota de dezesseis anos que fugia de casa. A imaginação fértil de Merthin torturava-o, durante a madrugada, com pensamentos do que poderia ter acontecido com a filha.

Uma cidade que não fora devastada pela peste era Kingsbridge. A doença afetara apenas uma casa em cada cem, na cidade velha, até onde Merthin podia saber pelas conversas que mantinha, gritadas através do portão da cidade, com Madge Webber, que atuava como regedora dentro das muralhas, enquanto Merthin cuidava de todos os assuntos externos. Os subúrbios de Kingsbridge e outras cidades vinham tendo a média de uma em cada cinco casas atingida pela peste. Mas os métodos de Caris haviam prevalecido sobre a peste... ou apenas retardaram-na? A doença persistiria, e acabaria por superar as barreiras que ela erguera? No final, a devastação seria tão terrível quanto na última vez? Não saberiam até que a erupção esgotasse seu curso... o que poderia levar meses ou anos.

Merthin suspirou e levantou-se de sua cama solitária. Não via Caris desde que a cidade fora fechada. Ela vivia no hospital, a poucos metros da casa de Merthin, mas não podia deixar o prédio. As pessoas podiam entrar ali, mas não podiam sair. Caris decidira que não teria credibilidade se não trabalhasse lado a lado com as freiras; por isso, estava retida no hospital.

Merthin passara metade de sua vida separado dela, ao que parecia. Mas isso não tornava a situação mais fácil. Na verdade, ele ansiava mais por ela agora, na meia-idade, do que no tempo em que era jovem.

Sua empregada, Em, levantara antes dele. Merthin encontrou-a na cozinha, esfolando coelhos. Ele comeu um pedaço de pão e tomou um copo de cerveja fraca antes de sair.

A estrada principal através da ilha já estava abarrotada de camponeses e suas carroças, trazendo suprimentos. Merthin e um grupo de ajudantes conversaram com cada um. Os que traziam produtos padronizados, com preços combinados, eram os casos mais simples: Merthin enviava-os através da outra ponte para descarregar as mercadorias junto do portão trancado da cidade, depois lhes pagava quando voltavam sem nada. Com aqueles que traziam produtos sazonais, como frutas e legumes, ele negociava um preço antes de permitir a entrega. Para algumas cargas especiais, o acordo era fechado com alguns dias de antecedência, quando o pedido era feito: peles para o comércio de couro; pedras para os pedreiros, que haviam recomeçado a construção da agulha, por ordem do bispo Henri; prata para os palheiros; aço, ferro, cânhamo, para os fabricantes da cidade, que tinham de continuar a trabalhar, embora estivessem temporariamente isolados de seus clientes. Havia ainda as cargas isoladas, para as quais Merthin precisava de instruções de alguém na cidade. Hoje, nessa situação, havia um vendedor de brocado italiano, que queria vendê-lo a um dos alfaiates da cidade; um boi de seis anos para o matadouro; e Davey de Wigleigh.

Merthin ouviu a história de Davey com espanto e satisfação. Admirou o rapaz por sua capacidade de empreendimento, ao comprar as sementes de garança, cultivá-las apesar das dificuldades, até produzir o pigmento tão caro. Não ficou surpreso ao saber que Ralph tentara sabotar o projeto: Ralph era como a maioria dos nobres em seu desprezo por qualquer coisa relacionada a manufatura ou comércio. Mas Davey tinha coragem além de inteligência, e persistira. Até pagara a um moleiro para converter as raízes secas em pó.

- Quando o moleiro lavou a mó depois, seu cachorro bebeu um pouco da água que escorreu - disse Davey para Merthin. - O cachorro mijou vermelho durante uma semana. Por isso, sabemos que a tintura funciona.

Agora ele estava ali, com sacos antigos de farinha de trigo de quatro galões, empilhados num carrinho de mão, cheios do que acreditava ser as preciosas raízes moídas de garança.

Merthin disse-lhe para pegar um dos sacos e levar até o portão. Ali chegando, ele chamou o homem de sentinela no outro lado. O homem subiu para as ameias e olhou para baixo.

- Este saco é para Madge Webber - gritou Merthin. - Pode providenciar para que ela receba pessoalmente?

- Claro, regedor.

Como sempre, algumas vítimas da peste nas aldeias foram levadas para a ilha por seus parentes. A maioria das pessoas agora sabia que não havia cura para a peste, e elas simplesmente deixavam as pessoas amadas morrerem. Mas umas poucas eram ignorantes ou bastante otimistas para esperar que Caris pudesse fazer um milagre. Os doentes eram deixados na porta do hospital, como os suprimentos no portão da cidade. As freiras iam buscá-los à noite, depois que os parentes haviam partido. De vez em quando um sobrevivente afortunado saía do hospital com boa saúde, mas a maioria dos pacientes deixava o local pela porta dos fundos, para ser enterrada num cemitério novo, no outro lado do prédio.

Ao meio-dia, Merthin convidou Davey para almoçar. Enquanto comiam um pastelão de coelho com ervilhas, Davey confessou que era apaixonado pela filha da antiga inimiga de sua mãe.

- Não sei por que a mãe odeia Annet, mas é tudo de um passado distante, e não tem nada a ver comigo ou Amabel.

Ele falou com a indignação da juventude contra a irracionalidade dos pais. Quando Merthin acenou com a cabeça em simpatia, Davey perguntou: .

- Seus pais se opuseram a você desta maneira? Merthin pensou por um momento.

- Claro. Eu queria ser um pajem e passar a vida como um cavaleiro lutando pelo rei. Fiquei desolado quando me puseram para ser aprendiz de carpinteiro. No meu caso, porém, acabou dando certo.

Davey não ficou muito satisfeito com essa história.

A tarde, o acesso à parte interna da ponte foi fechado, no lado da ilha, e o portão da cidade foi aberto. Carregadores saíram e pegaram todas as mercadorias deixadas ali. Os suprimentos foram levados para seus diversos destinos na cidade.

Não havia nenhuma mensagem de Madge sobre o pó de garança.

Merthin recebeu um segundo visitante naquele dia. Quase no final da tarde, quando o fluxo de mercadores já era bastante reduzido, o cônego Claude apareceu.

O amigo e patrono de Claude, o bispo Henri, estava agora instalado em Monmouth como arcebispo. Seu substituto como bispo de Kingsbridge ainda não fora escolhido. Claude queria o cargo, e estivera em Londres para conversar com Sir Gregory Longfellow. Voltava agora para Monmouth, onde continuaria a trabalhar como braço direito de Henri, pelo menos por enquanto.

- O rei gosta da posição de Philemon sobre a tributação do clero - comentou ele, enquanto comiam pastelão de coelho e tomavam o melhor vinho gascão de Merthin. - E o clero mais antigo gostou do sermão contra a dissecação e do plano de construir uma capela para Nossa Senhora. Por outro lado, Gregory detesta Philemon... diz que ele não merece a menor confiança. O resultado é que o rei adiou a decisão, ao determinar que os monges de Kingsbridge não podem realizar uma eleição enquanto estiverem no exílio em St.-John-in-the-Forest.

- Presumo que o rei acha que não há muito sentido em escolher o novo bispo enquanto a peste continua a se espalhar e a cidade permanece fechada - comentou Merthin.

Claude acenou com a cabeça, em concordância.

- Mas consegui alguma coisa, embora pequena. Há uma vaga para embaixador inglês junto ao papa. O designado deve residir em Avignon. Sugeri Philemon. Gregory pareceu atraído pela idéia. Pelo menos não a rejeitou de imediato.

- Isto é ótimo!

A perspectiva de Philemon ser enviado para tão longe deixou Merthin mais animado. Ele desejaria poder fazer alguma coisa para fortalecer a posição de Claude; mas já escrevera para Gregory garantindo o apoio da guilda, e esse era o limite de sua influência.

- Tenho mais uma notícia... uma notícia triste, infelizmente - acrescentou Claude. - No caminho para Londres, passei por St.-John-in-the-Forest. Henri ainda é o abade, em caráter oficial, e me mandou repreender Philemon por deixar Kingsbridge sem permissão. Uma perda de tempo, é claro. Seja como for, Philemon adotou as mesmas precauções de Caris e não me deixou entrar. Mas conversamos através do portão. Até agora, os monges escaparam da peste. Mas seu velho amigo, irmão Thomas, morreu de velhice. Sinto muito.

- Deus permita que sua alma descanse em paz - murmurou Merthin, triste. Ele ficou muito frágil no final. Sua mente delirava.

- A mudança para St. John provavelmente não o ajudou.

- Foi Thomas quem me estimulou quando eu era um jovem construtor.

- É estranho como Deus às vezes leva os bons homens e deixa os maus. Claude partiu cedo na manhã seguinte.

Enquanto Merthin cumpria sua rotina diária, um dos carregadores voltou do portão da cidade com uma mensagem de Madge. Ela estava nas ameias e queria falar com Merthin e Davey.

- Acha que ela vai comprar minha garança? - perguntou Davey, enquanto se encaminhavam para a ponte interna.

Merthin não tinha a menor idéia.

- Espero que sim.

Os dois pararam lado a lado diante do portão fechado e olharam para Madge, inclinada sobre a muralha.

- De onde veio a mercadoria? - gritou ela.

- Eu cultivei - respondeu Davey.

- E quem é você?

- Davey de Wigleigh, filho de Wulfric

- Ahn... o menino de Gwenda?

- Isto mesmo. O mais novo.

- Testei sua tintura.

- Funciona, não é? - indagou Davey, ansioso.

- É muito fraca. Você moeu as raízes inteiras?

-Moí... o que mais eu deveria ter feito?

- Deveria remover as cascas antes de moer.

- Eu não sabia disso. - Davey estava desolado. - O pó não presta?

- Como eu disse, é fraco. Não posso pagar o preço da tintura pura. Davey estava tão angustiado que Merthin ficou com pena.

- Quanto você tem? - perguntou Madge.

- Mais nove sacos de quatro galões como o que entreguei - informou Davey, desanimado.

- Pagarei a metade do preço habitual... três shillings e seis pennies por galão. O que dá quatorze shillings por saco, sete libras exatamente por dez sacos.

O rosto de Davey era a própria imagem da exultação. Merthin desejou que Caris estivesse ali para partilhar aquele momento.

- Sete libras! - repetiu Davey.

Madge pensou que ele estava decepcionado e disse:

- Não posso fazer mais do que isso... a tintura não é bastante forte.

Mas sete libras eram uma fortuna para Davey. Representavam os salários de vários anos de um trabalhador, até mesmo aos preços de hoje. Ele olhou para Merthin e disse:

- Estou rico! Merthin riu.

- Não gaste tudo de uma vez.

O dia seguinte era domingo. Merthin foi à missa na pequena igreja da ilha, dedicada a St. Elizabeth da Hungria, a santa padroeira dos que curavam os doentes. Depois, foi para casa, e pegou uma pá de carvalho na cabana de ferramentas no pomar.

Com a pá no ombro, atravessou a ponte externa, passou pelos subúrbios, e entrou no passado.

Tentou se lembrar do caminho que percorrera pela floresta trinta e quatro anos antes, junto com Caris, Ralph e Gwenda. Parecia impossível. Não havia um percurso definido, exceto pelas trilhas imprecisas deixadas pelos veados. árvores novas haviam crescido e se tornado imensas, poderosos carvalhos haviam sido derrubados pelos lenhadores do rei. Mesmo assim, para sua surpresa, ainda havia pontos de referência reconhecíveis: a água que brotava do solo, onde a menina Caris de dez anos se ajoelhara para beber; um imenso bloco de rocha que ela dissera que devia ter caído do céu; um pequeno vale de encostas íngremes, com um fundo lodoso, onde ela enlameara as botas.

Enquanto andava, as recordações daquele dia na infância foram se tornando mais nítidas. Lembrou como o cachorro, Hop, seguira-os pela floresta, e como Gwenda seguira seu cachorro. Sentiu outra vez o prazer por Caris ter compreendido sua piada. O rosto ficou vermelho ao recordar como se mostrara incompetente, na frente de Caris, com o arco que fizera... e a facilidade com que o irmão mais jovem manejara a arma.

Acima de tudo, lembrou de Caris como uma menina. Eram pré-adolescentes, mas mesmo assim ele ficou fascinado por sua inteligência rápida, ousadia, a maneira como assumira sem esforço o comando do pequeno grupo. Ainda não era amor... mas era uma espécie de fascínio não muito diferente do amor.

As recordações distraíram-no e ele perdeu o rumo. Começou a sentir que se encontrava em terreno completamente desconhecido... e depois, subitamente, saiu para uma clareira, e compreendeu que chegara ao lugar certo. As moitas eram maiores; o tronco do carvalho era ainda mais largo; e a clareira era alegre, com muitas flores de verão, como não acontecera naquele dia de novembro de 1327. Mas ele não tinha a menor dúvida: era como um rosto que não via há anos, um rosto que mudara um pouco, mas continuava inconfundível.

Um Merthin mais baixo e magricela rastejara para baixo daquela moita, para se esconder do homem enorme, que avançava barulhento pelo mato. Ele recordou como um exausto e ofegante Thomas parara, encostado naquele carvalho, e desembainhara a espada e a adaga.

Viu em sua imaginação a repetição dos acontecimentos daquele dia. Os homens de libré amarela e verde alcançaram Thomas e perguntaram por uma carta. Thomas distraiu os homens, ao dizer que eram observados por alguém escondido numa moita. Merthin teve certeza de que ele e os outros seriam assassinados... e, nesse momento, Ralph, com apenas dez anos, matou um dos homens de armas, demonstrando os reflexos rápidos e implacáveis que tão bem o serviram, anos mais tarde, nas guerras francesas. Thomas liquidou o outro homem, não sem antes sofrer o ferimento que redundara na perda de seu braço esquerdo, apesar - ou talvez por causa - do tratamento que recebera no hospital do Priorado de Kingsbridge. Em seguida, Merthin ajudou Thomas a enterrar a carta.

Bem aqui, disse Thomas. Na frente do carvalho.

Havia um segredo na carta, Merthin sabia agora; um segredo tão poderoso que pessoas em altas posições tinham pavor de que ele fosse revelado.

O segredo proporcionava proteção a Thomas, mas mesmo assim ele procurara santuário num mosteiro, onde passara o resto de sua vida.

Se souber que eu morri, gostaria que abrisse o buraco e entregasse a carta a um padre, dissera Thomas ao menino Merthin.

Merthin, o homem, levantou a pá e começou a cavar.

Não tinha certeza se era mesmo essa a intenção de Thomas. A carta enterrada fora uma precaução para Thomas não morrer de forma violenta, em vez de causas naturais, aos cinqüenta e oito anos de idade. Será que ele ainda gostaria que a carta fosse desenterrada? Merthin não sabia. Decidiria o que fazer quando lesse a carta. Sentia uma curiosidade irresistível pelo conteúdo.

Sua memória do local exato em que enterrara a bolsa com a carta não era perfeita, e ele errou na primeira tentativa. Escavou por quase meio metro antes de perceber o erro: tinha certeza de que o buraco não fora além dos trinta centímetros. Tentou de novo, um pouco para a esquerda.

E desta vez acertou.

Trinta centímetros abaixo da superfície, a pá bateu em alguma coisa que não era terra. Era mole, mas resistente. Ele largou a pá no lado e enfiou os dedos no buraco. Sentiu um pedaço de couro antigo, apodrecido. Com todo cuidado, deslocou a terra ao redor e levantou o objeto. Era a bolsa de couro que Thomas levava no cinto tantos anos antes.

Ele limpou as mãos sujas de terra na túnica e abriu-a.

Lá dentro havia um saco de lã oleada, ainda intacto. Ele afrouxou o cordão para abrir o saco. Tirou uma folha de pergaminho, enrolada e lacrada com cera.

Merthin a manuseava com o maior cuidado, mas mesmo assim a cera se esfarelou quando ele a tocou. Desenrolou o pergaminho. Estava intacto: sobrevivera muito bem a trinta e quatro anos debaixo da terra.

Ele verificou no mesmo instante que não era um documento oficial, mas sim uma carta pessoal. Pela letra, dava para perceber que fora escrita com todo cuidado por um nobre instruído, porque não era a escrita de um escrivão experiente.

Começou a ler:

De Edward, o segundo desse nome, rei da Inglaterra, no Castelo de Berkeley; pela mão de seu fiel servidor, Sir Thomas Langley; para seu amado filho mais velho, Edward; saudação real e amor paternal.

Merthin sentiu-se assustado. Era uma mensagem do velho rei para o novo. A mão que segurava o documento tremia agora. Ele levantou os olhos e esquadrinhou a paisagem verde ao redor, como se pudesse haver alguém espiando através das moitas.

Meu amado filho, você ouvirá em breve a notícia de que eu morri. Saiba que não é verdade. i

Merthin franziu o rosto. Não era isso o que esperava.

Sua mãe, a rainha, a esposa de meu coração, corrompeu e subverteu Roland, o conde de Shiring, e seus filhos, que mandaram assassinos para cá; mas fui avisado por Thomas, e os assassinos foram mortos.

Portanto, Thomas não fora o assassino, no final das contas, mas o salvador do rei.

Sua mãe, depois de fracassar na tentativa de me matar, vai sem dúvida tentar de novo, pois ela e seu consorte adúltero não podem se sentir seguros enquanto eu estiver vivo. Por isso, troquei de roupa com um dos assassinos abatidos, um homem da minha altura e aparência geral, e subornei várias pessoas para jurarem que o corpo morto era o meu. Sua mãe saberá a verdade quando avistar o corpo, mas aceitará a farsa; pois se eu for considerado morto, não serei mais uma ameaça para ela, e nenhum rebelde ou rival na disputa do trono

poderá reivindicar meu apoio.

Merthin estava espantado. A nação pensara que Edward II havia morrido. Toda a Europa fora enganada.

Mas o que acontecera com ele depois?

Não direi para onde planejo ir, mas saiba que tenciono deixar o reino da Inglaterra e nunca mais voltar. Apesar disso, rezo para tornar a vê-lo, meu filho, antes de morrer.

Por que Thomas enterrara aquela carta em vez de entregá-la? Porque temera por sua vida, e concluíra que a carta era uma arma poderosa em sua defesa. E depois que a rainha Isabella se comprometera com a farsa da morte do marido, precisava lidar com as poucas pessoas que conheciam a verdade. Merthin recordou agora que o conde de Kent, no tempo em que ele ainda era adolescente, fora condenado por traição e decapitado, por alegar que Edward II ainda vivia.

A rainha Isabella enviara homens atrás de Thomas, e eles haviam-no alcançado nos arredores de Kingsbridge. Mas Thomas liquidara-os, com a ajuda de Ralph, um menino de dez anos. Depois, Thomas devia ter ameaçado denunciar toda a farsa... e tinha uma prova, a carta do velho rei. Naquela noite, deitado no hospital do Priorado de Kingsbridge, Thomas negociara com a rainha, ou mais provávelmente com o conde Roland e seus filhos, como agentes dela. Prometera guardar o segredo, sob a condição de ser aceito como monge. Ele se sentiria mais seguro no mosteiro... e para o caso de a rainha se sentir tentada a romper o acordo, deveria ter avisado que a carta fora escondida em lugar seguro, mas que seria revelada no caso de sua morte. Era o motivo para que a rainha precisasse mantê-lo vivo.

O velho prior Anthony soubera de alguma coisa. Antes de morrer, contara para madre Cecilia, que por sua vez, em seu leito de morte, repetira parte da história para Caris. As pessoas podiam guardar segredos por décadas, refletiu Merthin, mas sentiam-se compelidas a dizer a verdade quando a morte era iminente. Caris também vira o documento incriminador que concedia Lynn Grange ao priorado, sob a condição de Thomas ser aceito como monge. Merthin agora compreendia por que as indagações dissimuladas de Caris sobre aquele documento haviam causado tantos problemas. Sir Gregory Longfellow persuadira Ralph a entrar no mosteiro e roubar todos os cartulários, na esperança de encontrar a carta ameaçadora.

O poder destrutivo daquela folha de velino fora atenuado com a passagem do tempo? Isabella levara uma longa vida, mas morrera três anos antes. O próprio Edward II estava quase que certamente morto... se vivo, estaria com setenta e sete anos agora. Edward III ainda temia a revelação de que o pai continuava vivo quando o mundo pensava que ele havia morrido? Era um rei muito forte agora para ser seriamente ameaçado, mas enfrentaria grande embaraço e humilhação.

Mas o que Merthin devia fazer?

Ele permaneceu onde estava, sentado na relva da clareira na floresta, entre flores silvestres, por um longo tempo. Finalmente enrolou o pergaminho, tornou a guardá-lo no saco, e pôs o saco na velha bolsa de couro.

Largou a bolsa no fundo do buraco e tapou-o. Também tapou o primeiro buraco, o errado. Alisou a terra por cima de ambos. Tirou algumas folhas dos galhos e espalhou-as na frente do velho carvalho. Ficou satisfeito com o resultado: as escavações não eram mais visíveis a um olhar casual.

Depois, ele deixou a clareira e voltou para casa.

No final de agosto, o conde Ralph fez uma excursão por suas propriedades em torno de Shiring, acompanhado por seu antigo comparsa, Sir Alan Fernhill, e pelo filho recém-descoberto, Sam. Ele gostava da companhia de Sam, que era um filho já crescido. Os outros filhos, Gerry e Roley, ainda eram muito jovens para aquele tipo de excursão. Sam não sabia sobre sua paternidade, mas Ralph acalentava o segredo com prazer.

Ficaram horrorizados pelo que viam ao redor. Centenas de servos de Ralph estavam mortos ou morrendo, o trigo apodrecia nos campos sem ser colhido. Enquanto viajavam de um lugar para outro, a raiva e a frustração de Ralph foram aumentando. Seus comentários sarcásticos intimidavam os companheiros, e sua irritação deixava o cavalo irrequieto.

Em cada aldeia, além das terras que eram ocupadas pelos servos, havia alguns acres que eram mantidos exclusivamente para uso pessoal do conde. Deveriam ser cultivados por seus empregados e pelos servos obrigados a trabalhar para ele um dia por semana. Eram justamente as terras que se encontravam em piores condições. Muitos de seus empregados haviam morrido; o que também acontecera com alguns dos servos que lhe deviam trabalho; outros servos haviam negociado condições mais favoráveis depois da última peste, e por isso não tinham mais de trabalhar para o senhor; e, finalmente, era impossível encontrar trabalhadores para contratar.

Quando chegou a Wigleigh, Ralph foi direto para os fundos do solar e deu uma olhada no enorme celeiro de madeira. Aquela altura, deveria estar abarrotado de cereais para a moagem... mas se encontrava vazio, com uma gata dando à luz uma ninhada no canto.

- O que teremos para fazer o pão? - berrou ele para Nathan Reeve. - Sem cevada para fazer a cerveja, o que vamos beber? Por Deus, é melhor você ter um plano!

Nate reagiu de uma maneira um tanto brusca.

- Tudo o que podemos fazer é redistribuir as faixas de terra.

Ralph se surpreendeu com a rispidez. Nate era em geral um bajulador. Nate lançou um olhar furioso para o jovem Sam, e Ralph compreendeu o motivo do comportamento do verme. Nate odiava Sam por ter matado seu filho, Jonno. Em vez de punir Sam, Ralph primeiro o perdoara, e depois o fizera um pajem. Não era de admirar que Nate se mostrasse ressentido.

- Deve haver alguns jovens na aldeia capazes de cultivar alguns acres extras.

- Há, sim, só que não querem pagar a taxa de acesso.

. - Querem a terra de graça?

- Isso mesmo. Podem ver que você tem terra demais e não dispõe de trabalhadores em quantidade suficiente para cultivar tudo. Sabem que estão numa posição vantajosa para negociar.

No passado, Nate era sempre o primeiro a condenar a arrogância dos camponeses, mas agora ele parecia estar se divertindo com o dilema de Ralph.

- Agem como se a Inglaterra pertencesse a eles, não à nobreza - resmungou Ralph, furioso.

- É vergonhoso, milorde - disse Nate, mais polido, com uma expressão insidiosa surgindo em seu rosto. - Por exemplo, o filho de Wulfric, Davey, quer casar com Amabel e assumir as terras da mãe dela. Faz sentido. Afinal, Annet nunca foi capaz de cultivar direito suas terras.

Sam interveio:

- Meus pais não pagariam a taxa de acesso... são contra o casamento.

- Mas o próprio Davey poderia pagar - disse Nate. Ralph ficou surpreso.

- Como?

- Ele vendeu aquela colheita nova que plantou na floresta.

- Garança. É evidente que não fizemos um trabalho meticuloso para pisotear tudo. Quanto ele ganhou?

- Ninguém sabe. Mas Gwenda comprou uma vaca leiteira de pouca idade e Wulfric tem uma faca nova... e Amabel usava um lenço amarelo para cobrir a cabeça na igreja no domingo.

E um polpudo suborno foi oferecido a Nate, adivinhou Ralph.

- Detesto recompensar a desobediência de Davey - disse ele. - Mas estou desesperado. Deixe-o ficar com as terras.

- Teria de lhe conceder uma permissão especial para se casar contra a vontade dos pais.

Davey pedira isso a Ralph, que recusara. Mas isso ocorrera antes de a peste dizimar os camponeses. Ele não gostava de revogar tais decisões, mas era um pequeno preço a pagar.

- Eu lhe darei permissão.

- Está certo.

- Mas vamos visitá-lo. Quero fazer a oferta pessoalmente. N.ite ficou surpreso, mas é claro que não fez nenhuma objeção.

A verdade era que Ralph queria ver Gwenda de novo. Havia alguma coisa nela que o deixava com a garganta ressequida. O último encontro, na pequena cabana de caça, não o satisfizera por muito tempo. Pensara em Gwenda com bastante freqüência nas semanas desde então. Encontrava pouca satisfação hoje em dia com o tipo de mulher que normalmente levava para a cama: prostitutas jovens, mulheres de taverna, criadas. Todas fingiam estar encantadas com seus avanços, embora ele soubesse que elas só queriam o presente do dinheiro que vinha depois. Gwenda, em contraste, não escondia o fato de que o detestava e sentia calafrios ao seu contato; e isso o agradava, de uma forma paradoxal, porque era honesto e, portanto, real. Depois do encontro na cabana de caça, Ralph lhe dera uma bolsa com pennies de prata. Gwenda a jogara em cima dele com tanta força que machucara seu peito.

- Eles estão em Brookfield hoje, recolhendo a cevada colhida - informou Nate. - Eu os levarei até lá.

Ralph e seus homens deixaram a aldeia atrás de Nate. Subiram pela margem do córrego à beira do campo. Sempre ventava em Wigleigh, mas hoje a brisa de verão era suave e quente, como os seios de Gwenda.

Algumas faixas de terra ali haviam sido colhidas, mas em outras Ralph se desesperou ao ver a aveia madura demais, a cevada envolvida pelas ervas damnhas, e uma faixa de centeio que fora ceifado, mas não enfeixado, de tal forma que a colheita espalhava-se pelo chão.

Um ano antes Ralph pensara que todos os seus problemas financeiros haviam acabado. Voltara da mais recente guerra francesa com um cativo, o Marquês de Neuchatel, e negociara um resgate de cinqüenta mil libras. Mas a família do marquês não conseguira levantar o dinheiro. Algo parecido acontecera com o rei francês, Jean II, capturado pelo príncipe de Gales na batalha de Poitiers. O rei Jean permanecera em Londres por quatro anos, tecnicamente como um prisioneiro, embora vivendo em conforto no Savoy, o novo palácio construído pelo duque de Lancaster. Ralph mandara Alan Fernhill a Neuchatel para renegociar o resgate do prisioneiro. Alan reduzira o preço para vinte mil libras, mas outra vez a família não fora capaz de pagar. Pouco depois, o marquês morrera da peste. Por isso, Ralph estava insolvente de novo e tinha de se preocupar com a colheita.

Era meio-dia. Os camponeses almoçavam, ao lado do campo. Gwenda, Wulfnc e Davey sentavam no chão, à sombra de uma árvore, comendo carne de porco com cebolas cruas. Levantaram-se de um pulo quando os cavalos se aproximaram. Ralph seguiu até a família de Gwenda e acenou para que os outros mantivessem a distância.

Gwenda usava um vestido verde solto que ocultava seu corpo. Os cabelos estavam presos atrás, o que deixava seu rosto ainda mais parecido com um rato. Mas quando Ralph fitou-a, em sua imaginação viu-a nua, pronta, à sua espera, com uma expressão de repulsa resignada pelo que ele estava prestes a fazer; e isso o deixou excitado.

Ralph olhou para o marido dela. Wulfric fitava-o com uma expressão serena, nem de desafio nem intimidada. Havia agora fios brancos na barba de um castanho-claro, mas ainda não crescera nenhum cabelo na cicatriz deixada pela espada de Ralph.

- Wulfric, seu filho quer casar com Amabel e assumir as terras de Annet. Gwenda, que nunca aprendera a falar apenas quando lhe dirigiam a palavra,

interveio com evidente amargura: ,

- Você me roubou um filho... quer levar o outro agora?

Ralph ignorou-a.

- Quem pagará o heriot? Nate deu o valor:

- São trinta shillings.

- Não tenho trinta shillings - declarou Wulfric.

- Posso pagar - disse Davey, calmamente.

Ele deve ter ganhado um bom dinheiro com sua colheita de garança, pensou Ralph, para se dispor a pagar essa quantia alta com tanta calma.

- Ótimo. Neste caso...

Mas antes que Ralph pudesse continuar, Davey interrompeu-o:

- Mas em que condições faz a oferta? Ralph sentiu que seu rosto ficava vermelho.

- Como assim?

Nate interveio de novo:

- Nas mesmas condições em que Annet detém as terras, é claro.

- Então agradeço ao conde, mas não aceitarei sua generosa oferta - declarou Davey.

- Mas do que está falando? - indagou Ralph.

- Eu gostaria de assumir a terra, milorde, mas apenas como um arrendatário livre, pagando o arrendamento em dinheiro, sem as outras obrigações.

Sir Alan perguntou, ameaçador:

- Como ousa regatear com o conde de Shiring, seu filhote de cão insolente? Davey estava assustado, mas manteve a atitude de desafio.

- Não desejo ofender, milorde. Mas quero ter liberdade para cultivar a colheita que puder vender. Não quero cultivar apenas o que Nate Reeve determina, independentemente dos preços de mercado.

Davey herdara a veia de determinação obstinada de Gwenda, pensou Ralph, que disse, furioso:

- Nate expressa meus desejos! Acha que sabe mais do que o conde?

- Perdoe-me, milorde, mas o senhor não ara a terra nem vai ao mercado. Alan estendeu a mão para o punho da espada. Ralph percebeu que Wulfric olhava para a foice, no chão, a lâmina afiada faiscando ao sol. Do outro lado de Ralph, o cavalo de Sam agitou-se, nervoso, refletindo a tensão do cavaleiro. Se houvesse uma luta, pensou Ralph, Sam lutaria por seu lorde, ou por sua família? Ralph não queria uma luta. Queria que a colheita fosse feita, e matar camponeses tornaria isso ainda mais difícil. Ele conteve Alan com um gesto.

- É assim que a peste destrói a moral - comentou ele, repugnado. - Eu lhe darei o que quer, Davey, porque devo.

Davey engoliu em seco e indagou:

- Por escrito, milorde?

- Está exigindo também um aforamento?

Davey acenou com a cabeça em confirmação, assustado demais para falar.

- Duvida da palavra de seu conde?

- Não, milorde.

- Então por que pede um arrendamento por escrito?

- Para evitar dúvidas em anos futuros.

Todos diziam isso quando pediam um aforamento, o registro nos livros do solar. O que eles queriam dizer era que o senhor não poderia facilmente alterar os termos se o arrendamento estivesse escrito. Era mais uma afronta às tradições consagradas pelo tempo. Ralph não queria fazer mais uma concessão... mas outra vez não tinha opção, se queria que a colheita fosse feita.

E foi então que ele pensou numa maneira de aproveitar aquela situação para obter uma coisa que queria. Sentiu-se reanimado no mesmo instante.

- Está bem. Darei um arrendamento por escrito. Mas não quero que os homens deixem os campos durante a colheita. Sua mãe pode ir buscar o documento em Earlscastle na próxima semana.

Gwenda seguiu a pé para Earlscastle num dia quente, sufocante. Sabia o que Ralph queria, e a perspectiva deixava-a desesperada. Ao atravessar a ponte levadiça para o castelo, as gralhas pareciam rir desdenhosas de sua situação angustiante.

O sol esquentava implacável o castelo, com as muralhas bloqueando a passagem de qualquer brisa. Os pajens estavam empenhados em algum jogo na frente do estábulo. Sam se encontrava entre eles, absorvido demais para notar a presença de Gwenda.

Haviam amarrado um gato num poste, no nível dos olhos, de tal maneira que o animal podia mexer a cabeça e as pernas. Um pajem tinha de matar o gato com as mãos amarradas nas costas. Gwenda já vira esse jogo antes. A única maneira de o pajem alcançar seu objetivo era atingir o pobre animal com uma cabeçada, mas o gato naturalmente se defendia, arranhando e mordendo o rosto do atacante. O desafiante, um garoto em torno dos dezesseis anos, mantinha-se a alguma distância do poste, observado pelo gato apavorado. O garoto avançou com a cabeça num movimento repentino. A testa acertou em cheio no peito do gato, mas o animal reagiu com as garras estendidas. O pajem soltou um grito de dor e pulou para trás, o sangue escorrendo pelas faces. Todos os outros pajens caíram na gargalhada. Enfurecido, o desafiante adiantou-se e deu outra cabeçada no gato. Foi arranhado de forma ainda pior, tornou a gritar de dor, o que os outros acharam ainda mais engraçado. Chegando mais perto, ele simulou um ataque, o gato agitou as patas no ar, e o pajem acertou uma cabeçada em cheio na sua cabeça. O sangue esguichou da boca e das narinas do gato, que arriou, inconsciente, embora ainda respirando.

O garoto deu uma cabeçada final para matá-lo, e os outros gritaram e bateram palmas.

Gwenda sentiu-se nauseada. Não gostava muito de gatos - preferia cachorros -, mas era sempre desagradável ver uma criatura desamparada ser atormentada. Calculou que os rapazes tinham de fazer aquele tipo de coisa como preparativo para mutilar e matar seres humanos na guerra. Mas precisava mesmo ser assim?

Ela seguiu adiante sem falar com o filho. Suada, atravessou a segunda ponte e subiu os degraus para a torre. Ainda bem que o vasto salão estava fresco.

Sentia-se contente por não ter sido vista por Sam. Esperava evitá-lo tanto quanto possível. Não queria que ele desconfiasse de que havia alguma coisa errada. Sam não era muito sensível a essas coisas, mas poderia perceber a aflição da mãe.

Ela comunicou ao chefe da recepção no salão por que estava ali, e ele prometeu avisar ao conde.

- Lady Philippa está no castelo?

Gwenda acalentava alguma esperança de que Ralph pudesse se sentir inibido pela presença da esposa. Mas o homem sacudiu a cabeça.

- Ela está em Monmouth, com a filha.

Gwenda assumiu uma expressão sombria e sentou para esperar. Não podia deixar de pensar em seu encontro com Ralph na cabana de caça. Ao olhar para a parede cinza do vasto salão, ela viu-o a observá-la enquanto se despia, a boca entreaberta em expectativa. Ao mesmo tempo em que a intimidade do sexo era uma alegria com o homem que ela amava, era repulsiva com um homem que ela odiava.

Na primeira vez em que Ralph a coagira, há mais de vinte anos, seu corpo a traíra. Sentira um prazer físico, embora experimentasse ao mesmo tempo uma repulsa espiritual. O mesmo ocorrera com Alwyn, o salteador da floresta. Mas não se repetira desta vez, com Ralph, na cabana de caça. Ela atribuíra a mudança à idade. Quando era jovem, cheia de desejo, o ato físico desencadeava uma reação automática... uma coisa que não podia evitar, embora a deixasse ainda mais envergonhada. Agora, em sua maturidade, o corpo não era tão vulnerável, o reflexo não era tão imediato. Podia pelo menos se sentir agradecida por isso.

A escada no outro lado do salão levava aos aposentos do conde. Homens subiam e desciam a todo instante: cavaleiros, empregados, arrendatários, bailiffs. Depois de uma hora, o chefe da recepção avisou que ela podia subir.

Gwenda teve medo de que Ralph quisesse fazer sexo logo, mas ficou aliviada ao descobrir que ele tinha um dia movimentado. Com ele estavam Sir Alan e dois padres escriturários, sentados a uma mesa, com materiais de escrita. Um dos escriturários entregou-lhe um pequeno pergaminho.

Ela não examinou. Não sabia ler.

- Pronto - disse Ralph. - Agora seu filho é um arrendatário livre. Não é isso o que você sempre quis?

Ela sonhara com a liberdade para si mesma, como Ralph sabia. Jamais conseguira... mas Ralph tinha razão, Davey conquistara agora essa liberdade. Isso significava que sua vida não fora completamente desprovida de propósito.

Seus netos seriam livres e independentes, cultivando as colheitas que escolhessem, pagando o arrendamento e ficando com todo o resto que ganhassem. Nunca conheceriam a existência miserável de pobreza e fome em que Gwenda nascera.

Isso valia tudo por que passara? Ela não sabia.

Gwenda encaminhou-se para a porta, levando o pergaminho. Alan foi atrás e disse, em voz baixa, no momento em que ela saía:

- Passe a noite aqui, no salão. - O grande salão era o lugar em que dormia a maioria dos residentes do castelo. - Amanhã, na cabana de caça, duas horas depois de meio-dia.

Ela tentou sair sem responder. Alan estendeu o braço para barrar sua passagem.

- Entendido?

- Está bem. Estarei lá à tarde. Ele deixou-a passar.

Ela não falou com Sam até o anoitecer. Os pajens passaram a tarde inteira empenhados em diversas atividades violentas. Gwenda sentiu-se contente por contar com aquele tempo só para si mesma. Sentou no salão fresco, sozinha com seus pensamentos. Tentou racionalizar que não era nada demais ter uma relação sexual com Ralph. Não era mais uma virgem, no final das contas. Era casada há vinte anos. Fizera sexo milhares de vezes. Tudo acabaria em poucos minutos, e não deixaria cicatrizes. Faria aquilo e esqueceria.

Até a próxima vez.

O que era o pior de tudo. Ele poderia continuar a coagi-la indefinidamente. Sua ameaça de revelar o segredo da paternidade de Sam a deixaria apavorada enquanto Wulfric fosse vivo.

Mas Ralph se cansaria dela em breve e voltaria a procurar prazer nos corpos firmes das jovens das tavernas, não é mesmo?

- O que há com você? - perguntou Sam, ao crepúsculo, quando os pajens entraram no salão para jantar.

- Não é nada demais. Davey comprou uma vaca leiteira para mim.

Sam parecia um pouco invejoso. Gostava da vida que levava, mas os pajens não eram remunerados. Não precisavam de dinheiro - recebiam comida, bebida, acomodações, roupas -, mas mesmo assim um jovem gostava de ter alguns pennies no bolso. Conversaram sobre o iminente casamento de Davey.

- Você e Annet serão avós dos mesmos netos - comentou Sam. - Terá de fazer as pazes com ela.

- Não seja estúpido - disse Gwenda, ríspida. - Você não sabe do que está falando.

Ralph e Alan desceram dos aposentos de cima quando o jantar foi servido. Todos os visitantes e residentes se reuniram no salão. O pessoal da cozinha trouxe três enormes lúcios, cozidos com ervas. Gwenda sentou perto da extremidade da mesa, bem longe de Ralph, que não lhe dispensou qualquer atenção.

Depois do jantar, ela deitou para dormir na palha espalhada no chão, ao lado de Sam. Era um conforto dormir em companhia do filho, como fazia quando ele era pequeno. Ela lembrou como ficava escutando a respiração de Sam, suave e contente, no silêncio da noite. Sonolenta, pensou na maneira como as crianças cresciam para desafiar as expectativas dos pais. Seu próprio pai queria tratá-la como uma mercadoria a ser negociada, mas ela se recusara, furiosa, a ser tratada dessa maneira. Agora, cada um de seus filhos seguia o próprio rumo na vida, e nos dois casos não era o que ela planejara. Sam seria um cavaleiro, e Davey casaria com a filha de Annet. Se soubéssemos como eles seriam, pensou ela, ficariamos tão ansiosos em tê-los?

Ela sonhou que ia à cabana de caça e descobria que Ralph não estava ali. Mas havia um gato na cama. Sabia que precisava matar o gato, mas tinha as mãos amarradas nas costas, e por isso desferiu várias cabeçadas, até que o animal morreu.

Quando acordou, especulou se poderia matar Ralph na cabana de caça.

Matara Alwyn, tantos anos antes, enfiando a própria adaga dele pela garganta e empurrando para cima, até que a ponta saíra por um olho. Também matara Sim Chapman, mantendo sua cabeça debaixo d’agua, enquanto ele se debatia, até que a água do rio entrara em seus pulmões e ele morrera. Se Ralph fosse sozinho à cabana de caça, ela poderia matá-lo, se escolhesse o momento apropriado.

Mas ele não estaria sozinho. Os condes nunca iam sozinhos a qualquer lugar. Ralph seria acompanhado por Alan, como na ocasião anterior. Era excepcional que ele viajasse com apenas um companheiro. E improvável que não levasse ninguém.

Poderia matar os dois? Ninguém mais sabia que ela se encontraria com Ralph ali. Se os matasse e voltasse para casa, não seria sequer suspeita. Ninguém sabia de seu motivo... era um segredo, desde o início. Alguém poderia concluir que ela estivera nas proximidades da cabana de caça na ocasião, mas apenas perguntariam se ela vira homens de aparência suspeita... não ocorreria a ninguém que o enorme e forte Ralph pudesse ser assassinado por uma mulher pequena de meia-idade.

Mas ela seria capaz? Gwenda pensou a respeito, mas sabia no fundo de seu coração que não havia a menor possibilidade. Os dois eram homens de violência, experientes. Há vinte anos participavam de guerras, a mais recente a campanha no inverno retrasado. Tinham reflexos rápidos e suas reações eram mortíferas. Muitos cavaleiros franceses haviam tentado matá-los... e morreram na tentativa.

Ela até poderia matar um, usando a astúcia e surpresa, mas não os dois.

Teria de se submeter a Ralph.

Sombria, Gwenda deixou o salão, lavou o rosto e as mãos. Quando voltou ao salão, o pessoal da cozinha já estava servindo pão de centeio e cerveja fraca para a primeira refeição. Sam molhava o pão velho na cerveja para amolecê-lo.

- Você está de novo com aquela cara estranha, mãe. Qual é o problema?

- Não há nenhum. - Ela pegou a faca e cortou uma fatia de pão. - Tenho uma longa caminhada pela frente.

- É isso o que a preocupa? Não deveria ir sozinha. A maioria das mulheres não viaja sozinha.

- Sou mais dura do que a maioria das mulheres. - Gwenda sentia-se satisfeita pelo fato de o filho demonstrar preocupação com ela. Era uma coisa que o verdadeiro pai dele, Ralph, nunca faria.

Wulfric tivera alguma influência sobre o menino, no final das contas. Mas ela ficou embaraçada por Sam ter lido sua expressão e adivinhado seu estado de espírito. - Não precisa se preocupar comigo.

- Eu poderia ir com você - propôs Sam. - Tenho certeza de que o conde permitiria. Ele não precisa dos pajens hoje... vai para algum lugar com Alan Fernhill.

Era a última coisa que ela queria. Se não comparecesse ao encontro, Ralph revelaria o segredo. Podia imaginar o prazer que Ralph teria ao fazer isso. Não precisaria de muita provocação.

- Fique aqui. Nunca se sabe quando o conde vai chamá-lo.

- Ele não vai me chamar. É melhor eu ir com você.

- Proíbo terminantemente. - Gwenda pôs na boca mais um pedaço de pão e guardou o resto na bolsa. - Você mostra que é um bom rapaz ao se preocupar comigo, mas não é necessário.

Ela beijou-o no rosto e acrescentou:

- Cuide-se bem. Não corra riscos desnecessários. Se quer fazer alguma coisa por mim, permaneça vivo.

Ela afastou-se. Virou-se ao chegar na porta. Sam observava-a, pensativo. Gwenda forçou-se a lhe oferecer o que esperava ser um sorriso despreocupado, antes de sair.

Na estrada, Gwenda começou a se preocupar com a possibilidade de alguém descobrir sua ligação com Ralph. Essas coisas sempre davam um jeito de vazar. Encontrara-o uma vez, estava prestes a fazê-lo pela segunda vez, e temia que pudesse haver outras ocasiões. Quanto tempo levaria para que alguém a visse deixando a estrada e entrando na floresta em determinado ponto da jornada, e começasse a especular por quê? E se alguém por acaso entrasse na cabana de caça no momento errado? Quantas pessoas notariam que Ralph saía sozinho com Alan sempre que Gwenda viajava de Earlscastle para Wigleigh?

Ela parou numa taverna pouco antes de meio-dia, e tomou cerveja com queijo. Os viajantes costumavam sair dali em grupos, por segurança, mas Gwenda fez questão de se demorar, para ter certeza de que estaria sozinha na estrada. Quando chegou o momento de entrar na floresta, olhou para a frente e para trás, para se certificar de que ninguém a observava. Teve a impressão de divisar um movimento entre as árvores, a cerca de um quilômetro para trás. Espiou atentamente para a distância nebulosa, tentando divisar com mais nitidez o que percebera; mas não havia ninguém ali. Ela estava apenas nervosa.

Pensou outra vez em matar Ralph, enquanto avançava pelo mato rasteiro. Se Alan não estivesse ali, por um golpe de sorte, poderia ter uma oportunidade? Mas Alan era a única pessoa no mundo que sabia que ela se encontraria ali com Ralph. Se Ralph fosse assassinado, Alan saberia quem fora a assassina. Teria de matá-lo também. E isso parecia impossível.

Havia dois cavalos na frente da cabana de caça. Ralph e Alan sentavam a uma pequena mesa, com os restos de uma refeição à frente: metade de um pernil, um osso de pernil, a casca de um queijo e um frasco de vinho.

Gwenda fechou a porta depois de entrar.

- Aqui está ela, como foi combinado - disse Alan, com um ar de satisfação. Era evidente que ele recebera a incumbência de atraí-la para o encontro, e sentia-se aliviado ao constatar que Gwenda obedecera às suas ordens.

- Perfeita para sua sobremesa - acrescentou ele. - Como uma passa, um pouco enrugada, mas doce.

Gwenda perguntou a Ralph:

- Por que não manda ele sair? Alan levantou-se.

- Sempre o comentário insolente. Você nunca vai aprender?

Mas ele se retirou. Foi para a cozinha, batendo a porta. Ralph sorriu.

- Venha até aqui.

, Ela se aproximou, obediente.

- Direi a Alan para não ser tão rude, se você quiser - acrescentou ele.

- Por favor, não faça isso! - exclamou ela, horrorizada. - Se Alan começar a ser simpático comigo, as pessoas vão especular por quê.

- Como preferir. - Ralph pegou sua mão e tentou puxá-la. - Sente no meu colo.

- Não podemos apenas ter uma relação e acabar logo com isso? Ele riu.

- É o que aprecio em você... sempre é franca e honesta.

Ralph levantou-se, segurou-a pelos ombros, e fitou-a nos olhos; depois, inclinou a cabeça e beijou-a.

Era a primeira vez que ele fazia isso. Já haviam feito sexo duas vezes sem qualquer beijo. Agora, Gwenda ficou revoltada. Enquanto os lábios de Ralph comprimiam os seus, sentiu-se mais violada até do que no momento em que ele a penetrava com o pênis. Ele abriu a boca, e Gwenda sentiu o bafo de queijo. Desvencilhou-se, repugnada.

-Não!

- Lembre-se do que tem a perder.

- Não faça isso, por favor. Ralph começou a se irritar.

- Terei você de qualquer maneira! - gritou ele. - Tire o vestido!

- Por favor, deixe-me ir embora.

Ele começou a dizer alguma coisa, mas Gwenda elevou a voz. As paredes eram finas, e ela sabia que Alan, na cozinha, poderia ouvi-la suplicando, mas não se importava.

- Não me obrigue, eu suplico!

- Não me importa o que você diga! - gritou ele. - Vá para a cama!

- Por favor, não me obrigue!

A porta da frente foi aberta nesse instante. Gwenda e Ralph se viraram para olhar, aturdidos. Sam estava na porta.

- Oh, Deus, não! - balbuciou Gwenda.

Os três se mantiveram paralisados por uma fração de segundo. Nesse momento, Gwenda adivinhou o que acontecera. Sam estava preocupado com ela e - desobedecendo suas ordens - seguira-a desde Earlscastle, permanecendo fora de vista, mas nunca muito atrás. Vira-a deixar a estrada e entrar na floresta ela percebera um movimento quando olhara para trás, mas descartara-o como uma mera impressão de sua imaginação. Sam devia ter parado lá fora e ouvido os gritos. E devia ser óbvio que Ralph se encontrava no processo de forçar Gwenda a um sexo indesejado; e recordando tudo num relance, ela compreendeu que eles não haviam mencionado o verdadeiro motivo para que ela se submetesse. O segredo não fora revelado... ainda.

Sam sacou sua espada.

Ralph levantou-se de um pulo. Enquanto Sam avançava, ele conseguiu também desembainhar sua espada. Sam desferiu um golpe contra a cabeça de Ralph, que levantou sua espada a tempo de apará-lo.

O filho de Gwenda estava tentando matar o pai.

Sam corria um terrível perigo. Pouco mais que um menino, enfrentava um soldado calejado em batalha.

- Alan! - gritou Ralph.

E Gwenda compreendeu que Sam tinha de enfrentar não apenas um, mas dois veteranos.

Ela correu para o outro lado. Enquanto a porta da cozinha era aberta, Gwenda postou-se no lado, comprimindo-se contra a parede. Tirou a adaga comprida do cinto.

Alan entrou na sala.

Olhou para os combatentes, mas não viu Gwenda. Hesitou por um instante, apreendendo a cena. A espada de Sam tornou a cortar o ar, visando ao pescoço de Ralph, que outra vez aparou o golpe com sua espada.

Alan percebeu à primeira vista que seu amo estava sob um ataque furioso. Estendeu a mão para o cabo da espada, e deu um passo à frente. E foi então que Gwenda o apunhalou pelas costas.

Ela enfiou a adaga comprida e empurrou-a para cima, com toda a força de que era capaz, com o vigor de uma camponesa que trabalhava nos campos. A adaga passou pelos músculos das costas de Alan, subiu pelo rim, estômago e pulmão, na tentativa de alcançar o coração. A arma tinha cerca de um palmo de comprimento, era pontuda e afiada, e foi cortando os órgãos; mas a morte não foi imediata.

Alan rugiu de dor, mas logo ficou em silêncio. Cambaleou, virou-se para agarrá-la, puxando-a num abraço de luta livre. Gwenda desferiu outro golpe, desta vez atingindo o estômago, com o mesmo impulso para cima, atravessando órgãos vitais. O sangue esguichou pela boca de Alan. Ele ficou inerte, os braços caíram pelos lados do corpo. Fitou-a por um momento, com uma expressão de absoluta incredulidade, aquela mulher desprezível que acabara com sua vida. Depois, fechou os olhos e desabou no chão.

Gwenda olhou para os outros dois.

Sam atacou e Ralph aparou; Ralph recuou e Sam avançou; Sam golpeou de novo e Ralph aparou mais uma vez. Ralph defendia-se vigorosamente, mas sem atacar.

Ralph não queria matar seu filho.

Sam, sem saber que o oponente era seu pai, não tinha esses escrúpulos, e continuou a atacar.

Gwenda sabia que aquela situação não poderia perdurar por muito tempo. Um deles feriria o outro, e a luta passaria a ser até a morte. Empunhando a adaga ensangüentada, ela procurou desesperada por uma chance de interferir, apunhalando Ralph da mesma maneira como apunhalara Alan.

- Espere! - gritou Ralph, erguendo a mão esquerda.

Mas Sam estava furioso demais e continuou a atacar. Ralph aparou o golpe e gritou de novo:

- Espere!

Ele ofegava do esforço, mas conseguiu enunciar algumas palavras:

- Há uma coisa que você não sabe.

- Sei o suficiente! - berrou Sam.

Gwenda pôde ouvir o tom de histeria infantil na voz do homem enorme; e Sam atacou de novo.

- Não sabe, não! - insistiu Ralph.

Gwenda sabia o que Ralph queria dizer a Sam. Ele ia declarar Eu sou seu pai.

Isso não devia acontecer.

- Precisa me ouvir!

Sam finalmente reagiu. Deu um passo para trás, embora sem baixar a espada.

Ralph ofegava, recuperando o fôlego para falar; e quando ele fez uma pausa, Gwenda avançou.

Ele virou-se para enfrentá-la, ao mesmo tempo em que deslocava a espada para a direita, num arco. Sua lâmina atingiu-a, derrubando a faca de sua mão. Gwenda ficou completamente indefesa. Sabia que morreria se Ralph a golpeasse de novo, no sentido inverso.

 

Mas pela primeira vez desde que Sam sacara a espada, a guarda de Ralph se abriu, deixando a frente do corpo indefesa.

Sam adiantou-se e estendeu a espada para o peito de Ralph.

A ponta afiada da lâmina passou pela túnica leve de verão de Ralph e penetrou no peito, no lado esquerdo do esterno. Devia ter passado entre duas costelas, pois penetrou ainda mais fundo. Sam soltou um grito de triunfo, sedento de sangue, e pressionou a espada. Ralph cambaleou para trás, sob o impacto. Os ombros bateram na parede. Mas Sam se adiantou, cravando a espada com toda a sua força. A espada pareceu atravessar todo o peito de Ralph. Houve um estranho baque quando a ponta da espada saiu pelas costas e atingiu a parede de madeira.

Os olhos de Ralph fixaram-se em Sam, e Gwenda compreendeu o que ele pensava. Ralph sabia que o ferimento era fatal. E nos últimos segundos de sua vida, refletia que fora morto pelo próprio filho.

Sam largou a espada, que não caiu. Estava cravada na parede, empalando Ralph de uma maneira sinistra. Sam recuou, transtornado.

Ralph ainda não morrera. Tentou erguer os braços, num esforço para segurar a espada e arrancá-la do peito. Mas não era mais capaz de coordenar os movimentos. Gwenda pensou, num lampejo angustiante, que ele parecia com o gato que os pajens haviam amarrado no poste.

Ela abaixou-se e pegou sua adaga no chão.

E foi nesse instante, por mais incrível que pudesse parecer, que Ralph falou.

- Sam, eu sou...

O sangue esguichou da boca, numa golfada repentina, cortando suas palavras.

Graças a Deus, pensou Gwenda.

A torrente de sangue cessou tão depressa quanto começara, e Ralph falou de novo:

- Eu sou...

Desta vez ele foi impedido de continuar por Gwenda. Ela saltou para a frente, e enfiou a adaga na boca de Ralph. Ele soltou um som estrangulado horrível. A lâmina afundou na garganta.

Gwenda largou a adaga e recuou.

Ficou olhando para o que fizera, horrorizada. O homem que a atormentara por tanto tempo estava pregado na parede, como se crucificado, com uma espada através do peito e uma adaga na garganta. Ele não emitiu qualquer som, masos olhos indicavam que ainda vivia, deslocando-se de Gwenda para Sam e de volta, em agonia, terror e desespero.

Eles ficaram imóveis, olhando para Ralph, em silêncio, esperando. Até que finalmente ele fechou os olhos.

A peste desapareceu em setembro. Pouco a pouco, o hospital de Caris foi se esvaziando, à medida que pacientes morriam sem que novos dessem entrada. Os quartos desocupados foram varridos e lavados. Lenha de juníperos foi acesa nas lareiras, impregnando o hospital com uma intensa fragrância de outono. No início de outubro, a última vítima da peste foi enterrada no cemitério do hospital. Um sol vermelho enevoado subia pela Catedral de Kingsbridge no momento em que quatro freiras jovens e fortes baixaram o cadáver amortalhado para o buraco na terra. O corpo era de um tecelão corcunda de Outhenby. Ao contemplar a sepultura, Caris viu sua inimiga antiga, a peste, estendida na terra fria. Não pôde deixar de murmurar:

- Você morreu mesmo, ou voltará mais uma vez?

Quando as freiras retornaram ao hospital, depois do funeral, não havia nada a fazer.

Caris lavou o rosto, escovou os cabelos, e pôs o vestido novo que guardara para aquele dia. Era um vermelho de Escarlate de Kingsbridge. Depois, ela deixou o hospital, pela primeira vez em meio ano.

Seguiu imediatamente para o jardim de Merthin.

As pereiras projetavam sombras compridas ao sol da manhã. As folhas comecavam a avermelhar e encrespar, com uns poucos frutos atrasados ainda pendendo dos galhos, arredondados e castanhos. Arn, o jardineiro, colhia lenha com um machado. Ao avistar Caris, ele ficou a princípio surpreso e assustado; mas depois compreendeu o que significava a presença dela ali, e seu rosto se desmanchou num sorriso. Arn largou o machado e correu para a casa.

Na cozinha, Em fazia um mingau, num fogo alegre. Olhou para Caris como se fosse uma aparição divina. Ficou tão comovida que beijou as mãos de Caris.

Ela subiu e entrou no quarto de Merthin.

Ele estava parado na janela, olhando para o rio, que corria além da frente da casa. Virou-se para ela. O coração de Caris quase parou ao contemplar o rosto familiar, irregular, a expressão de inteligência alerta, o humor rápido na contração dos lábios. Os olhos castanho-dourados fitaram-na com uma profunda afeição, enquanto a boca se alargava num sorriso de boas-vindas. Merthin não demonstrou qualquer surpresa: já devia ter notado que menos e menos pacientes chegavam ao hospital e aguardava o retorno dela a qualquer dia. Parecia um homem cujas esperanças haviam se realizado.

Caris parou ao seu lado na janela. Ele passou o braço por seus ombros. Ela estendeu o braço em torno da cintura de Merthin. Havia mais alguns fios brancos na barba do que seis meses antes, e o halo de cabelos parecia ter recuado mais um pouco, embora talvez ela estivesse imaginando.

Por um momento, os dois ficaram olhando para o rio. A superfície se movimentava, interminável, brilhante como um espelho ou de um preto profundo, em padrões irregulares, sempre mudando e sempre igual.

- Acabou - murmurou Caris.

E eles se beijaram.

Merthin anunciou uma Feira de Outono especial para celebrar a reabertura da cidade. Foi realizada na última semana de outubro. A temporada dos negócios com lã já terminara, mas esta não era mais a principal mercadoria negociada em Kingsbridge. Milhares de pessoas vieram comprar o tecido escarlate pelo qual a cidade se tornara famosa.

No banquete da noite de sábado que inaugurou a feira, a guilda prestou uma homenagem a Caris. Embora Kingsbridge não tivesse escapado totalmente à nova erupção da peste, sofrera muito menos do que outras cidades. Quase todas as pessoas achavam que deviam a vida às precauções de Caris. Ela era a heroína de todos. Os membros da guilda insistiram em destacar seu trabalho. Madge Webber planejou uma nova cerimônia, em que Caris recebeu uma chave de ouro, simbolizando a chave do portão da cidade. Merthin sentiu-se muito orgulhoso.

No dia seguinte, domingo, Merthin e Caris foram à catedral. Os monges ainda continuavam em St.-John-in-the-Forest, e por isso a missa foi celebrada pelo padre Michael, da igreja paroquial de St. Peter, na cidade. Lady Philippa, condessa de Shiring, compareceu.

Merthin não a via desde o funeral de Ralph. Ela não derramara muitas lágrimas pelo falecido marido. O conde, em circunstâncias normais, seria enterrado na Catedral de Kingsbridge; mas porque a cidade estava fechada, Ralph fora enterrado em Shiring.

Sua morte permanecia um mistério. O corpo fora encontrado numa cabana de caça, ferido com uma espada no peito. Alan Fernhill estava caído no chão, também morto por ferimentos de uma lâmina. Os dois pareciam ter almoçado juntos, pois ainda havia os restos de uma refeição na mesa. Era evidente que ocorrera uma luta, mas não ficara claro se Ralph e Alan haviam infligido os ferimentos fatais um ao outro, ou se mais alguém estivera envolvido. Nada fora roubado: havia dinheiro nos dois corpos, as armas caríssimas continuavam caídas no chão, e dois cavalos valiosos pastavam na relva na clareira. Por causa disso, o juiz de instrução de Shiring optara pela teoria de que haviam matado um ao outro.

Em outro sentido, não havia mistério. Ralph fora um homem de violência, e não era surpresa para ninguém que sofresse uma morte violenta. Aqueles que vivem pela espada morrerão pela espada, dissera Jesus, embora esse versículo não fosse citado com freqüência pelos padres do reinado do rei Edward III. Se qualquer coisa era extraordinária, era o fato de Ralph ter sobrevivido a tantas campanhas militares, a tantas batalhas sangrentas, e a tantas cargas da cavalaria francesa, para morrer numa briga a poucos quilômetros de sua casa.

Merthin surpreendera a si mesmo ao chorar no funeral. Não entendera por que se sentira tão triste. O irmão fora um homem perverso, que causara muito sofrimento; sua morte era uma bênção. Merthin não tivera qualquer intimidade com Ralph desde que ele assassinara Tilly. O que havia para lamentar? Ao final, Merthin concluiu que lamentava pelo Ralph que poderia ter existido: um homem cuja violência não era impulsiva, mas controlada; cuja agressividade era orientada não pela ambição por glória pessoal, mas sim por um senso de justiça. Talvez tivesse sido possível outrora que Ralph crescesse para se tornar um homem assim. Quando os dois brincavam juntos, aos cinco e seis anos de idade, flutuando barcos de madeira numa poça lamacenta, Ralph não era cruel nem vingativo. Era por isso que Merthin chorava.

Os dois meninos de Philippa haviam comparecido ao funeral, e também a acompanhavam hoje. O mais velho, Gerry, era filho de Ralph com a pobre Tilly. O mais jovem, Roley, era visto por todos como o filho de Ralph com Philippa, embora na verdade fosse de Merthin. Por sorte, Roley não era um ruivo pequeno e irrequieto como Merthin. Haveria de se tornar alto e distinto como a mãe.

Roley segurava uma pequena escultura de madeira, que ofereceu a Merthin, com a maior solenidade. Era um cavalo, muito bem-feito para um menino de dez anos, compreendeu Merthin. A maioria das crianças esculpiria o animal firmemente apoiado nas quatro patas, mas Roley o fizera em movimento, as pernas em posições diferentes, a crina esvoaçando ao vento.

O menino herdara a capacidade do pai verdadeiro para visualizar objetos complexos em três dimensões. Merthin sentiu um inesperado aperto na garganta. Abaixou-se e beijou a testa de Roley.

Ele deu um sorriso agradecido a Philippa. Adivinhou que ela encorajara Roley a lhe dar o cavalo, sabendo o que significaria para ele. Merthin olhou para Caris e percebeu que ela também compreendia o significado; mas ninguém disse qualquer coisa.

O clima na vasta catedral era de alegria. O padre Michael não era um pregador carismático, e disse toda a missa num murmúrio. Mas as freiras cantaram tão lindamente quanto sempre, e um sol otimista brilhava através dos vitrais.

Depois, eles circularam pela feira, ao ar fresco do outono. Caris dera o braço a Merthin e Philippa andava no outro lado. Os dois meninos seguiam na frente, enquanto o guarda pessoal e a dama de companhia de Philippa vinham atrás. Os negócios eram bons, constatou Merthin. Os artesãos e mercadores de Kingsbridge já começavam a reconstruir suas fortunas. A cidade se recuperaria daquela epidemia mais depressa do que da anterior.

Os membros mais velhos da guilda circulavam pela feira verificando pesos e medidas. Havia padrões para o peso de um saco de lã, a largura de uma peça de pano, o tamanho de um alqueire, e assim por diante. Por isso, as pessoas sabiam o que compravam. Merthin encorajava os membros da guilda a fazer as verificações ostensivamente, para que os compradores pudessem perceber como a cidade controlava com cuidado seus mercadores. Se desconfiassem de que alguém enganava os compradores, é claro que fariam uma conferência discreta; e se a suspeita fosse confirmada, o culpado seria convidado a se retirar.

Os dois filhos de Philippa corriam excitados de um estande para o seguinte. Observando Roley, Merthin disse em voz baixa a Philippa:

- Agora que Ralph morreu, há mais algum motivo para que Roley não deva saber a verdade?

Ela ficou pensativa.

- Eu gostaria de poder lhe dizer... mas seria para o bem de Roley, ou pelo nosso? Durante dez anos ele acreditou que Ralph era seu pai. Há dois meses ele chorou à beira da sepultura de Ralph. Seria um choque terrível revelar agora que ele é filho de outro homem.

Os dois falavam em voz baixa, mas Caris podia ouvir.

- Concordo com Philippa - disse ela. - Você tem de pensar no menino, não em si mesmo.

Merthin percebeu que havia sentido no que elas diziam. Era uma pequena tristeza num dia feliz.

- Há outro motivo - acrescentou Philippa. - Gregory Longfellow foi me procurar na semana passada. O rei quer fazer de Gerry o novo conde de Shiring.

- Aos treze anos de idade? - indagou Merthin.

- O título de conde é sempre hereditário, depois que foi concedido, embora o mesmo não aconteça com os baronatos. Seja como for, eu administraria o condado pelos próximos três anos.

- Como você fez na ocasião em que Ralph se ausentou para lutar contra os franceses. Deve estar aliviada porque o rei não está lhe pedindo para casar de novo.

Philippa fez uma careta.

- Estou velha demais.

- Roley será o segundo na linha hereditária do condado... desde que guardemos nosso segredo.

Se alguma coisa acontecer a Gerry, pensou Merthin, meu filho se tornará o conde de Shiring. Imagine só.

- Roley seria um bom soberano - comentou Philippa. - É inteligente e muito determinado, mas não cruel como Ralph.

A natureza impiedosa de Ralph já era evidente desde cedo: ele tinha dez anos, a idade de Roley agora, quando matara o cachorro de Gwenda.

- Mas Roley pode preferir ser outra coisa.

Merthin tornou a olhar para o cavalo esculpido em madeira. Philippa sorriu. Não sorria com freqüência, mas se tornava deslumbrante sempre que isso acontecia. Ainda é uma linda mulher, pensou ele.

- Deixe-o ser o que quiser e se orgulhe dele.

Merthin recordou como o pai ficara orgulhoso quando Ralph se tornara o conde. Mas sabia que nunca se sentiria da mesma maneira. Teria orgulho de qualquer coisa que Roley fizesse, desde que ele se empenhasse ao máximo. Talvez o garoto se tornasse um escultor em pedra, criando anjos e santos. Talvez se tornasse um nobre sensato e misericordioso. Ou poderia ser alguma coisa que os pais nunca haviam imaginado.

Merthin convidou Philippa e os meninos para almoçar. Todos deixaram a área do priorado. Atravessaram a ponte, contra o fluxo de carroças carregadas a caminho da feira. Cruzaram a ilha do Leproso e passaram pelo pomar para entrar na casa.

Encontraram Lolla na cozinha.

Assim que viu o pai, ela desatou a chorar. Merthin abraçou-a, e ela soluçou em seu ombro. Onde quer que tivesse estado, Lolla devia ter perdido o hábito de se lavar, pois cheirava que nem um chiqueiro. Mas ele sentia-se feliz demais para se importar com isso.

Demorou algum tempo antes que eles pudessem encontrar algum sentido no que Lolla dizia. Quando finalmente conseguiu ser coerente, ela informou:

- Todos morreram!

E teve um novo acesso de choro descontrolado. Só depois de algum tempo, quando se acalmou um pouco, é que se tornou mais coerente.

- Todos morreram - repetiu Lolla, conseguindo agora reprimir os soluços. Jake e Boyo, Netty e Hal, Joanie, Chalkie e Ferret, um a um, e nada do que eu fazia por eles ajudava!

Viviam na floresta, deduziu Merthin, como um grupo de jovens fingindo ser ninfas e pastores. Os detalhes foram aflorando, pouco a pouco. Os rapazes matavam um veado de vez em quando, às vezes se ausentavam por um dia e voltavam com pão e um barril de vinho.

Lolla disse que compravam os suprimentos, mas Merthin achou que era mais provável que assaltassem viajantes. Lolla imaginara que poderiam viver assim para sempre: não pensara como a situação poderia ser diferente no inverno. Mas, no final, fora a peste, em vez do clima, que acabara com o idílio.

- Fiquei muito assustada - murmurou Lolla. - Queria Caris.

Gerry e Roley escutavam impressionados. Idolatravam a prima mais velha. Embora Lolla tivesse chegado em casa em lágrimas, a história de sua aventura só servia para engrandecê-la ainda mais aos olhos dos dois.

- Não quero nunca mais me sentir assim de novo - disse Lolla. - Tão impotente, com meus amigos doentes e morrendo ao meu redor.

- Posso compreender - comentou Caris. - Foi como me senti quando minha mãe morreu.

- Pode me ensinar a curar as pessoas? - pediu Lolla. - Quero realmente ajudá-las, como você faz, não apenas cantar hinos e mostrar a imagem de um anjo. Quero compreender sobre ossos e sangue, sobre ervas e as coisas que fazem as pessoas melhorar. Quero ser capaz de fazer alguma coisa quando uma pessoa fica doente.

- Claro que ensinarei, se é isso o que você quer. Terei a maior satisfação. Merthin estava atônito. Lolla era rebelde e mal-humorada há alguns anos, e parte de sua rejeição à autoridade fora a pretensão de que Caris, sua mãe adotiva, não era de fato sua mãe, e por isso não precisava ser respeitada. Ele sentiu-se exultante com a reviravolta. Quase que fazia valer a pena a agonia de preocupação por que passara. Um momento depois, uma freira entrou na cozinha.

- A pequena Annie Jones está com um acesso de tosse, e não sabemos por quê

- disse ela a Caris. - Pode ir ao hospital?

- Claro.

- Posso ir com você? - perguntou Lolla.

- Não. E esta é a sua primeira lição: você tem de estar limpa. Vá se lavar agora. Poderá ir comigo amanhã.

Quando Caris saía, Madge Webber apareceu.

- Já souberam da notícia? - indagou ela, com uma expressão sombria. Philemon voltou.

Naquele domingo, Davey e Amabel casaram na pequena igreja de Wigleigh.

Lady Philippa deu permissão para que o solar fosse usado para a festa. Wulfric matou um porco e assou-o sobre uma fogueira no pátio. Davey comprou passas bem doces e Annet fez bolinhos. Não havia cerveja - a maior parte da colheita de cevada apodrecera nos campos por falta de colhedores -, mas Philippa mandara Sam para casa com um barril de sidra de presente.

Gwenda ainda pensava, todos os dias, na cena na cabana de caça. No meio da noite, olhava para a escuridão e via Ralph com sua adaga na boca, o cabo se destacando entre os dentes marrons, enquanto a espada de Sam o pregava na parede.

Depois que Sam e ela arrancaram suas armas de Ralph, o corpo caíra no chão. A impressão era a de que os dois mortos haviam matado um ao outro. Gwenda espalhara sangue em suas armas limpas e deixara-os caídos onde estavam. Lá fora, afrouxara as rédeas dos cavalos, para que pudessem sobreviver por alguns dias, se necessário, até que alguém os encontrasse. Depois, ela e Sam se afastaram a pé.

O juiz de instrução de Shiring especulara que salteadores poderiam estar envoividos nas mortes, mas no final chegara à conclusão que Gwenda esperava. Ninguém desconfiara dela ou de Sam. Haviam escapado impunes de assassinato.

Ela apresentara a Sam uma versão alterada do que acontecera. Alegara que era a primeira vez que Ralph tentava coagi-la, e que ameaçara matá-la se recusasse. Sam sentia-se assustado por ter matado um conde, mas não tinha a menor dúvida de que sua ação fora justificada. Ele tinha mesmo o temperamento certo para um soldado, compreendeu Gwenda: nunca sofreria as agonias do remorso por matar.

Nem ela sofrera, embora recordasse a cena com repulsa. Matara Alan Fernhill e dera o golpe final em Ralph, mas não sentia o menor arrependimento. O mundo era um lugar melhor sem os dois. Ralph morrera na agonia de saber que o próprio filho o ferira fatalmente, e era exatamente o que ele merecia. Com o passar do tempo, Gwenda tinha certeza, a visão do que fizera na cabana deixaria de atormentá-la à noite.

Ela tratou de remover a lembrança da mente. Correu os olhos pelo salão do solar, observando os camponeses se divertir.

O porco foi comido e os homens beberam o resto da sidra. Aaron Appletree pegou sua gaita-de-foles. A aldeia não tinha um tambor desde a morte de Perkin, o pai de Annet. Gwenda especulou se Davey se tornaria o tocador de tambor agora.

Wulfric queria dançar, como sempre acontecia quando bebia muito. Gwenda dançou com ele a primeira música, rindo muito enquanto tentava acompanhá-lo nas voltas e pulos. Ele levantou-a, girou-a pelo ar, apertou seu corpo contra o dele, largou-a no chão, ficou dando enormes pulos ao seu redor. Wulfric não tinha o menor senso de ritmo, mas seu imenso entusiasmo era contagiante. Quando se declarou exausta, ele dançou com a nora, Amabel.

E depois, como não podia deixar de ser, dançou com Annet.

Ele olhou para Annet assim que a música terminou e largou Amabel. Annet sentava num banco, do lado do salão do solar. Usava um vestido verde curto como o de uma garota, os tornozelos à mostra. O vestido não era novo, mas ela bordara flores amarelas e rosas no busto. Como sempre, uns poucos cachos escapavam da touca, pendendo em torno de seu rosto. Era velha demais - pelo menos uns vinte anos - para aquele vestido, mas não sabia disso... nem Wulfric.

Gwenda sorriu quando eles começaram a dançar. Queria parecer feliz e despreocupada, mas compreendeu que sua expressão podia ser mais como uma careta, e desistiu de tentar. Desviou o olhar dos dois e observou Davey e Amabel. Talvez Amabel não fosse exatamente igual à mãe.

Tinha alguns jeitos coquetes de Annet, mas Gwenda nunca a vira flertando com ninguém; e naquele momento ela parecia desinteressada por qualquer outro que não o marido.

Gwenda olhou ao redor e localizou o outro filho, Sam. Ele estava com os jovens, contando uma história, gesticulando, segurando as rédeas de um cavalo imaginário, do qual quase caía. Todos se mostravam fascinados. Era bem provavel que invejassem sua sorte de se tornar um pajem.

Sam ainda vivia em Earlscastle. Philippa mantivera a maioria dos pajens e homens de armas, pois seu filho Gerry precisaria deles para cavalgar e caçar, treinar com a espada e a lança. Gwenda esperava que, durante a regência de Philippa, Sam aprendesse um código mais inteligente e misericordioso do que teria adquirido com Ralph.

Não havia muito mais coisa para observar, e o olhar de Gwenda voltou para o marido e a mulher com quem outrora ele queria casar. Como Gwenda receara, Annet tratava de aproveitar ao máximo a exuberância e o inebriamento de Wulfric Oferecia sorrisos sensuais quando dançavam separados, e grudava nele quando se juntavam, pensou Gwenda, como se fosse uma camisa molhada.

A dança parecia se prolongar por uma eternidade, com Aaron Appletree repetindo várias vezes a animada melodia em sua gaita-de-foles. Gwenda conhecia os ânimos do marido, e agora percebeu o brilho em seus olhos que sempre aparecia quando estava prestes a lhe pedir para fazer amor. Annet sabia exatamente o que fazia, pensou Gwenda, furiosa. Ela mudou de posição em seu banco, irrequieta, desejando que a música parasse logo, com um esforço para não deixar a ira transparecer.

Mas fervia de indignação quando a música terminou, com um floreio. Tomou a decisão de fazer Wulfric sentar ao seu lado, até se acalmar. Trataria de mantê-lo perto pelo resto da tarde, e não haveria qualquer problema.

Foi então que Annet o beijou.

Quando Wulfric ainda tinha as mãos em sua cintura, ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o em cheio nos lábios, por um breve instante, mas com firmeza; e Gwenda explodiu.

Levantou-se de um pulo do banco e atravessou o salão. Ao passar pelos recém-casados, o filho Davey percebeu a expressão em seu rosto, e tentou detê-la. Mas Gwenda ignorou-o. Foi até Wulfric e Annet, que ainda se fitavam, com sorrisos estúpidos. Espetou o ombro de Annet com um dedo e disse:

- Deixe meu marido em paz! Wulfric virou-se para ela.

- Gwenda, por favor...

- Não diga nada! Apenas fique longe desta prostituta! Os olhos de Annet faiscaram em desafio.

- Não é para dançar que as prostitutas são pagas.

- Tenho certeza de que você sabe tudo sobre o que as prostitutas fazem.

- Como ousa me falar assim?

Davey e Amabel intervieram. Amabel disse a Annet:

- Por favor, mãe, não faça uma cena.

- Não sou eu, mas Gwenda!

- Não sou eu quem está tentando seduzir o marido de outra mulher - protestou Gwenda.

- Mãe, você está estragando o casamento - disse Davey. Gwenda estava enfurecida demais para ouvir.

- Ela sempre faz isso. Rompeu o noivado há vinte e três anos, mas nunca o deixou em paz!

Annet começou a chorar. Gwenda não ficou surpresa. As lágrimas de Annet eram apenas outro meio de conseguir o que queria. Wulfric estendeu a mão para apertar o ombro de Annet, mas Gwenda gritou, ríspida:

- Não toque nela!

Ele retirou a mão num movimento brusco, como se a tivesse queimado.

- Você não compreende... - soluçou Annet.

- Compreendo muito bem!

- Não, não compreende. - Annet limpou os olhos e fitou Gwenda. - Não compreende que venceu. Ele é seu. Não sabe que ele a adora, respeita e admira. Não percebe que ele olha para você quando fala com outra mulher.

Gwenda estava espantada.

- Bom... Ela não sabia o que mais dizer. Annet continuou:

- Ele olha para mulheres mais jovens? Alguma vez fica longe de você? Quantas noites dormiu separado de você nos últimos vinte anos... duas? Três? Não percebe que ele nunca amará outra mulher enquanto viver?

Gwenda olhou para Wulfric e teve certeza de que tudo aquilo era verdade. Na verdade, era óbvio. Ela sabia e todos também sabiam. Ela tentou recordar por que sentia tanta raiva de Annet, mas a lógica do sentimento lhe escapou.

A dança parara e Aaron largara sua gaita-de-foles. Todos os aldeões agrupavam-se agora em torno das duas mulheres, as mães dos recém-casados. Annet acrescentou:

- Eu era uma garota tola e egoísta, tomei uma decisão errada, e perdi o melhor homem que já conheci. E você ficou com ele. Às vezes não posso resistir à tentação de fingir que aconteceu o contrário, e que ele é meu. Por isso, sorrio para ele, afago seu braço. Wulfric é gentil comigo, porque sabe que partiu meu coração.

- Você partiu seu próprio coração - comentou Gwenda.

- É verdade. E você foi a garota afortunada que se beneficiou da minha insensatez.

Gwenda estava espantada. Nunca pensara em Annet como uma pessoa triste. Para ela, Annet sempre fora uma figura poderosa e ameaçadora, sempre tramando para reconquistar Wulfric. Mas isso nunca aconteceria. Annet acrescentou:

- Sei que fica irritada quando Wulfric é gentil comigo. Eu gostaria de dizer que não vai acontecer de novo, mas conheço minha fraqueza. Você tem de me odiar por isso? Não deixe que isso estrague a alegria do casamento e dos netos que ambas queremos.

Em vez de me considerar como sua inimiga vitalícia, não poderia pensar em mim como uma irmã leviana, que às vezes se comporta mal e a deixa irritada, mas ainda assim deve ser tratada como uma pessoa da família?

Ela tinha razão. Gwenda sempre pensara em Annet como um rosto bonito e uma cabeça vazia. Naquela ocasião, no entanto, Annet era a mais sensata das duas, e Gwenda sentiu-se humilhada.

- Não sei... mas talvez eu possa tentar.

Annet adiantou-se e deu um beijo no rosto de Gwenda. Gwenda sentiu as lágrimas de Annet em sua face.

- Obrigada - murmurou Annet.

Gwenda ainda hesitou por um instante, mas depois passou os braços pelos ombros estreitos de Annet e apertou-a num abraço. Ao redor, os aldeões aclamaram e aplaudiram. A música recomeçou um momento depois.

No início de novembro, Philemon realizou uma missa de ação de graças pelo fim da peste. O arcebispo Henri compareceu, em companhia do cônego Claude. Sir Gregory Longfellow também foi.

Gregory devia ter vindo a Kingsbridge para anunciar a escolha do rei para o novo bispo, pensou Merthin. Formalmente, ele diria aos monges que o rei indicara alguém, e caberia aos monges eleger o nome indicado ou algum outro; mas, em última análise, os monges costumavam eleger o escolhido pelo rei.

Merthin não pôde ler qualquer mensagem no rosto de Philemon, e calculou que Gregory ainda não revelara a escolha real. A decisão significava tudo para Caris e Merthin. Se Claude ficasse com o posto, seus problemas acabariam. Ele era moderado e razoável. Mas se Philemon se tornasse bispo, enfrentariam mais anos de disputas e ações judiciais.

Henri conduziu o serviço, mas Philemon fez o sermão. Agradeceu a Deus por atender às preces dos monges de Kingsbridge e poupar a cidade dos piores efeitos da peste. Não mencionou que os monges haviam fugido para St.-John-in-theForest e deixado os moradores da cidade para se defenderem sozinhos; nem que Caris e Merthin haviam ajudado Deus a atender às preces dos monges ao fecharem os portões da cidade por seis meses. Pelo sermão, parecia que fora ele quem salvara Kingsbridge.

- Faz meu sangue ferver de raiva - comentou Merthin para Caris, sem se dar o trabalho de baixar a voz. - Ele está distorcendo completamente os fatos!

- Relaxe - murmurou ela. - Deus sabe a verdade, e as pessoas também. Philemon não está enganando ninguém.

Ela tinha razão, é claro. Depois de uma batalha, os soldados no lado vencedor sempre agradeciam a Deus, mas mesmo assim eles conheciam a diferença entre bons e maus generais.

Depois da missa, Merthin, como regedor, foi convidado a almoçar no palacio do prior com o arcebispo. Sentou ao lado do cônego Claude. Depois da oração de graças, as conversas começaram. Merthin perguntou a Claude, num sussurro urgente:

- O arcebispo já sabe quem o rei escolheu para bispo?

Claude respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível.

- É você?

Claude sacudiu a cabeça em negativa, um movimento também mínimo.

- Então é Philemon? Outro aceno de cabeça.

Merthin sentiu um aperto no coração. Como o rei podia escolher um idiota e covarde como Philemon, em vez de alguém sensato e competente como Claude? Mas ele sabia a resposta: Philemon manobrara com a eficiência habitual.

- Gregory já instruiu os monges?

- Ainda não. - Claude inclinou-se para Merthin. - Provavelmente fará uma comunicação informal a Philemon esta noite, depois do jantar, para em seguida falar com os monges no capítulo, amanhã de manhã.

- Então temos até o final do dia.

-Para quê? „

- Para fazê-lo mudar de idéia.

- Não vai conseguir.

- Posso tentar.

- Será em vão.

- Não se esqueça de que estou desesperado.

Merthin comeu pouco e fez um esforço para se manter paciente. Quando o arcebispo levantou-se, ele procurou Gregory.

- Eu gostaria que me acompanhasse até a catedral. Preciso falar sobre uma coisa que vai interessá-lo profundamente.

Gregory acenou com a cabeça, em concordância. Caminharam pela nave lado a lado, até um ponto em que Merthin teve certeza de que ninguém poderia ouvi-los. Respirou fundo. Era muito perigoso o que estava prestes a fazer. Tentaria dobrar o rei à sua vontade. Se falhasse, podia ser acusado de traição... e executado.

- Há muito tempo circulam rumores de que existe em algum lugar de Kingsbridge um documento que o rei gostaria muito de destruir - comentou ele.

Gregory manteve o rosto impassível.

- Continue.

Era um bom presságio.

- Essa carta estava em poder de um cavaleiro que morreu recentemente.

- Ele morreu? - indagou Gregory, surpreso.

- E evidente que sabe exatamente de quem estou falando. Gregory respondeu como um advogado:

- Em prol da argumentação, suponhamos que sei.

- Eu gostaria de prestar o serviço de devolver esse documento ao rei... qualquer que seja o seu conteúdo.

Merthin sabia muito bem qual era, mas podia adotar uma pretensão cautelosa de ignorância tanto quanto Gregory.

- O rei ficaria agradecido - murmurou Gregory.

- Agradecido até que ponto?

- Em que está pensando?

- Um bispo que esteja mais em sintonia com a população de Kingsbridge do que Philemon.

Gregory fitou-o nos olhos.

- Está tentando chantagear o rei da Inglaterra? Merthin sabia que aquele era o ponto perigoso.

- Nós, de Kingsbridge, somos mercadores e artesãos - disse ele, tentando parecer razoável. - Compramos, vendemos, fazemos negócios. Só estou tentando chegar a um acordo com você. Quero lhe vender uma coisa, e disse meu preço. Não há chantagem, não há coação. Não faço ameaças. Se não quiser o que estou vendendo, o assunto estará encerrado.

Chegaram ao altar. Gregory olhou para o crucifixo por cima. Merthin sabia exatamente o que ele estava pensando. Deveria prender Merthin, levá-lo para Londres, e torturá-lo até que revelasse o paradeiro do documento? Ou seria mais simples e mais conveniente para o rei indicar um nome diferente para bispo de Kingsbridge?

Houve um longo silêncio. A catedral estava fria, e Merthin se aconchegou em seu casaco. Gregory finalmente perguntou:

- Onde está o documento?

- Aqui perto. Eu o levarei até lá.

- Está bem.

- E o nosso acordo?

- Se o documento for mesmo o que você pensa que é, cumprirei minha parte do acordo.

- E o cônego Claude será o novo bispo?

- Será.

- Obrigado. Precisamos caminhar um pouco pela floresta.

Desceram lado a lado pela rua principal e atravessaram a ponte, a respiração formando nuvens de vapor no ar. Um sol de inverno brilhava com pouco calor quando entraram na floresta. Merthin encontrou o caminho com facilidade desta vez, pois fizera o percurso apenas poucas semanas antes. Reconheceu a pequena fonte, o imenso bloco de rocha, e o vale lamacento. Alcançaram a clareira com o enorme carvalho, e ele foi direto para o lugar em que o pergaminho fora enterrado.

E ficou consternado ao descobrir que alguém já estivera ali antes.

Alisara a terra com todo cuidado e a cobrira com folhas, mas mesmo assim alguém descobrira o esconderijo. Havia um buraco de trinta centímetros, com uma pilha de terra ao lado. E o buraco estava vazio. Ele ficou olhando, aturdido.

- Que inferno!

- Espero que isto não seja alguma brincadeira - disse Gregory.

- Deixe-me pensar! - pediu Merthin, um tanto ríspido. Gregory ficou calado.

- Só duas pessoas sabiam sobre isso - disse Merthin, pensando em voz alta. Não contei a ninguém. Portanto, só pode ter sido Thomas. Ele estava ficando senil antes de morrer. Creio que revelou o segredo.

- Mas para quem?

- Thomas passou os últimos meses de sua vida em St.-John-in-the-Forest, e os monges não permitiam que ninguém de fora entrasse. Portanto, deve ter sido um monge.

- Quantos são?

- Cerca de vinte. Mas não muitos saberiam o bastante sobre os antecedentes para compreender o significado dos murmúrios de um velho sobre uma carta enterrada.

- Mas onde está a carta agora?

- Acho que sei. Dê-me mais uma chance.

- Está certo.

Eles voltaram para a cidade. Ao atravessarem a ponte, o sol baixava sobre a ilha do Leproso. Entraram na catedral já escura, foram para a torre do lado sudoeste, e subiram pela estreita escada em espiral até o pequeno compartimento em que eram guardados os trajes para as encenações religiosas.

Merthin não entrava ali há onze anos, mas depósitos empoeirados não mudam muito, ainda mais em catedrais: aquele continuava como antes. Ele encontrou a pedra solta na parede e tirou-a.

Todos os tesouros de Philemon continuavam por trás da pedra, inclusive a mensagem de amor talhada na madeira. E ali estava também um saco de lã oleado. Merthin abriu-o e tirou o pergaminho.

- Foi o que pensei - disse ele. - Philemon arrancou o segredo no momento em que Thomas perdia o juízo.

Sem dúvida Philemon guardara a carta para usar como um instrumento de barganha se a decisão sobre o bispado lhe fosse contrária... mas agora era Merthin quem aproveitava.

Ele entregou o pergaminho a Gregory.

O advogado desenrolou-o. Uma expressão de espanto estampou-se em seu rosto enquanto ele lia.

- Santo Deus... então os rumores eram verdadeiros!

Ele tornou a enrolar o documento. A expressão era agora a de alguém que encontrara uma coisa que procurava há muitos anos.

- É o que você esperava? - perguntou Merthin.

- É, sim.

- E o rei ficará agradecido?

- Profundamente.

- Então sua parte no acordo...?

- Será cumprida. Claude será o seu novo bispo.

- Graças a Deus!

Oito dias mais tarde, no início da manhã, Caris estava no hospital, ensinando Lolla a prender uma atadura, quando Merthin entrou.

- Quero lhe mostrar uma coisa - disse ele. - Vamos para a catedral.

Era um dia de inverno claro e frio. Caris envolveu-se com um grosso manto vermelho. Ao atravessarem a ponte para a cidade, Merthin parou e apontou.

- A agulha foi concluída.

Caris levantou os olhos. Podia avistar a forma através da teia de andaimes que ainda a cercavam. A agulha era muito alta e graciosa. Enquanto seu olhar acompanhava a subida afilada da agulha, ela teve a impressão de que aquilo poderia se prolongar para sempre.

- É o prédio mais alto da Inglaterra? Merthin sorriu.

- É, sim.

Os dois subiram pela rua principal e entraram na catedral. Merthin subiu na frente pela escada por dentro das paredes da torre central. Já se acostumara com a escalada, mas Caris ofegava quando saíram para o ar livre no alto da torre, no passadiço em torno da agulha. Lá em cima soprava uma brisa firme e fria.

Contemplaram a vista, enquanto Caris recuperava o fôlego. Toda a cidade de Kingsbridge estendia-se para o norte e oeste: a rua principal, o distrito industrial, o rio, a ilha com o hospital. A fumaça se elevava de mil chaminés. Pessoas em miniatura passavam apressadas pelas ruas, a pé, a cavalo, ou guiando carroças, carregando sacos de ferramentas, cestas com legumes e frutas, ou sacos pesados; homens, mulheres e crianças, gordos e magros, as roupas pobres e finas, ou ricas e grossas, quase todas marrons e verdes, mas com alguns relances de azul e escarlate. A vista de todas aquelas pessoas deixou Caris maravilhada: cada pessoa tinha uma vida diferente, cada vida era rica e complexa, com dramas no passado e desafios no futuro, recordações felizes e pesares secretos, uma multidão de amigos, inimigos e entes amados.

- Está pronta? - indagou Merthin. Caris acenou com a cabeça.

Ele subiu na frente pelos andaimes. Era uma teia de cordas e galhos que sempre a deixava nervosa, embora não gostasse de dizê-lo: se Merthin podia subir, ela também podia. O vento fazia toda a estrutura balançar um pouco. A túnica de Caris adejava em torno das pernas, como as velas de um navio. A agulha era muito alta, e a subida pelas escadas de cordas foi extenuante. Pararam na metade para descansar.

- A agulha é muito simples - comentou Merthin, sem precisar recuperar o fôlego. - Apenas uma moldura arredondada nos ângulos.

Caris refletiu que as outras agulhas eram muito ornamentadas, com faixas de pedras e ladrilhos coloridos, recessos que pareciam janelas.

A simplicidade do projeto de Merthin dava a impressão de que se prolongava indefinidamente. Merthin apontou para baixo.

- Ei, olhe só o que está acontecendo!

- Prefiro não olhar...

- Acho que é Philemon partindo para Avignon.

Caris tinha de ver isso. Estava numa plataforma larga de tábuas, mas mesmo assim se segurou com as duas mãos no poste vertical para ter certeza de que não cairia. Engoliu em seco e olhou para baixo, em perpendicular.

O esforço valeu a pena. Havia uma charrette puxada por dois bois parada na frente do palácio do prior. Uma escolta consistindo de um monge e um homem de armas, ambos a cavalo, esperava pacientemente. Philemon estava parado ao lado da carroça, enquanto os monges de Kingsbridge se adiantavam, um a um, para beijar sua mão.

Depois que todos o fizeram, o irmão Sime entregou-lhe um gato preto-ebranco, em que Caris reconheceu um descendente do gato de Godwyn, Arcebispo.

Philemon subiu na carroça, e o cocheiro chicoteou os bois. O veículo arrastou-se lentamente pelo portão e desceu a rua principal. Caris e Merthin continuaram a observar até que a charrette passou pela ponte e desapareceu nos subúrbios.

- Graças a Deus ele foi embora - murmurou Caris. Merthin olhou para cima.

- Não falta muito para o topo. Daqui a pouco você estará num ponto mais alto do que qualquer mulher jamais esteve na Inglaterra.

Ele recomeçou a subir. O vento foi se tornando mais forte, mas Caris sentia-se exultante, apesar de sua ansiedade. Era o sonho de Merthin, e ele o convertera em realidade. Todos os dias, durante centenas de anos, as pessoas por quilômetros ao redor contemplariam aquela agulha e a achariam linda.

Chegaram ao alto dos andaimes, as tábuas em torno do pico da agulha. Caris tentou esquecer que não havia uma grade em torno da plataforma para impedir que eles caíssem.

Na ponta da agulha havia uma cruz. Parecia pequena lá de baixo, mas agora Caris via que era maior do que ela.

- Há sempre uma cruz no alto de uma agulha - disse Merthin. - Isto é convencional. Afora isso, há uma variação na prática. Em Chartres, a cruz sustenta uma imagem do sol. Fiz uma coisa diferente.

Caris viu que, ao pé da cruz, Merthin pusera um anjo de pedra em tamanho natural. A figura ajoelhada não olhava para a cruz, mas sim para oeste, na direção da cidade. Ao olhar mais atentamente, Caris constatou que as feições do anjo não eram convencionais. O pequeno rosto redondo era obviamente feminino. Parecia vagamente familiar, com feições precisas e cabelos curtos.

E depois ela compreendeu que o rosto era o seu.

Ficou espantada.

- Eles deixarão você fazer isso?

Merthin acenou com a cabeça, em confirmação.

- Metade da cidade já acha que você é um anjo.

- Mas não sou.

- Não, não é - concordou Merthin, com o sorriso que ela tanto amava. - Mas é a coisa mais próxima que já conheci.

O vento soprou mais forte, subitamente. Caris segurou Merthin. Ele abraçou-a, bem apertado, com os pés separados, confiante. A rajada passou tão depressa quanto surgira, mas Merthin e Caris permaneceram abraçados, no topo do mundo, por muito tempo depois.

 

                                                                                            Ken Follett

 

 

                      

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