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Os Mortos Vivem / Clark Darlton
Os Mortos Vivem / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Mortos Vivem

 

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos todos eles mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana. Porém...

Nesta aventura, Rhodan se vê às voltas com um seqüestro... O seqüestro de sua amada Thora!

 

                                    

 

— A solução mais simples seria matá-los todos, talvez com veneno de rato.

Reginald Bell, amigo e representante de Rhodan, fechou o punho e bateu na pesada mesa de carvalho que ficava junto à janela. Do lugar em que se encontrava tinha uma visão ampla sobre Terrânia, sede do governo mundial.

— Isso mesmo! Veneno de ratos — piou Gucky, que estava agachado em cima da mesa.

Perry Rhodan sacudiu devagar a cabeça e contemplou o oceano de pedra das construções erguidas em meio a uma área fértil, que já fora tudo menos isso. Essa área ficava na região que antigamente era conhecida como o deserto de Gobi.

— Nosso problema não será resolvido pela violência, amigos. Isso só nos traria novos inimigos. Se essa gente não puder concordar com nossos planos e nossa atuação, teremos de sugerir-lhes que procurem outro lugar para morar. Na Terra não há lugar para eles, pois este planeta pertence à humanidade unida, e a ela não pertencem os indivíduos que não queiram integrar-se.

— Será que terão de fixar-se na Lua? — perguntou Bell em tom admirado, lançando um olhar encorajador para Gucky, seu amigo do peito. Naturalmente não estava falando sério quando aludiu à possibilidade do envenenamento, mas de qualquer maneira sua atitude parecia mais radical que a de Rhodan. — Acho que até Vênus ainda ficaria muito perto.

— Vamos despachá-los para uma via láctea mais próxima — sugeriu Gucky. — Ali não poderão fazer mal a ninguém.

Mais uma vez Rhodan sacudiu a cabeça.

— Vocês caem de um extremo no outro. Procurem uma solução mais cabível para o caso. Tentem refletir. Os chamados colonos livres não querem submeter-se às nossas determinações. Não reconhecem o governo mundial. Vocês acham que devemos matar algumas dezenas de milhares de pessoas, somente porque alguns fanáticos não sabem raciocinar logicamente? Nada disso; devemos fazer exatamente o contrário. Vamos ajudá-los.

— Bem, bem — disse Gucky e lançou um olhar de tédio para o teto, como se por lá ainda pudesse fazer alguma descoberta interessante. — Devemos prestar auxílio aos coitados dos nossos inimigos...

— O que pretende fazer? — perguntou Bell inclinando-se para a frente, em direção a Rhodan, que estava sentado bem à sua frente. Gucky estava agachado um pouco ao lado, pois como telepata já conhecia a disposição que Bell tinha de engajar-se a favor de Rhodan.

— Serão expatriados — disse Rhodan. — Colocarei à sua disposição uma das grandes naves esféricas, dou-lhes uma tripulação de duzentos homens e mando que sigam viagem. Poderão deixar a Terra e procurar outro planeta, onde farão e deixarão de fazer o que melhor lhes aprouver Não nos preocuparemos mais com eles. Não acha que é a melhor solução e a mais simples?

Bell acenou lentamente com a cabeça, mas Gucky disse em tom estridente:

— Continuo a achar que seria melhor envenená-los, mas afinal não sou nenhum monstro. Concordo com qualquer coisa, desde que consigamos livrar-nos dos rebeldes. Só faço votos de que não se encontrem com nenhum saltador ao qual possam revelar a posição da Terra.

— Quando isso acontecer, não se recordarão da mesma — prometeu Rhodan ao perceber que seus amigos concordavam com a decisão que acabara de tomar. Fora mais fácil convencer o maciço Bell com os cabelos cortados à escovinha que ao teimoso Gucky, um rato-castor extremamente inteligente e um dos mutantes mais capazes. — Mandarei que nossa proposta seja apresentada aos porta-vozes dos colonos livres.

— Por que você vive falando em colonos livres? Será que os outros colonos da Terra não são livres pelo simples fato de se submeterem ao governo mundial? — Bell apoiou o queixo nas mãos. — Será que nisso não existe algum paradoxo?

— São eles mesmos que se designam assim — explicou Rhodan. — Em nossos registros oficiais estão consignados sob a designação de Colonos Livres Associados. Ou, abreviadamente, CLA.

— Que sensato! — disse Bell com um sorriso, olhando para Gucky. — Que acha disso, seu roedor de cenouras?

O rato-castor exibiu seu único dente, revelando estar disposto para uma brincadeirinha, pois não levara a mal a alusão às suas tendências vegetarianas.

— Nada mau, Bell, nada mau. A abreviatura poderia dar a entender que se trata de um novo apelido para você...

Bell procurou atingir Gucky, mas este foi mais rápido. Teleportou-se para a extremidade oposta da mesa, onde estaria em segurança. Em seus olhos brilhantes lia-se a intenção de utilizar a terceira faculdade parapsicológica de que dispunha, a telecinese, se Bell não ficasse bem comportadinho.

Acontece que Bell não estava com nenhuma vontade de ser atirado para o teto. Fez um gesto ligeiro com a mão.

— Continuemos amigos, Gucky. Não vamos brigar por uma tolice destas. O que pretende fazer mesmo, Perry?

Gucky voltou ao lugar anterior, completamente tranqüilizado.

Rhodan disse:

— A tripulação já está sendo selecionada. Daqui a algumas semanas, a nave poderá decolar, e com isso nos livraremos das preocupações com os rebeldes; é ao menos o que espero. Quem não estiver satisfeito com as condições reinantes na Terra poderá seguir nessa nave.

— Tomara que não sejam muitos — resmungou Bell, piscando os olhos. — Senão enviaremos uma frota.

— Dificilmente. O que houve, Gucky?

O rato-castor manteve a cabeça inclinada, numa posição esquisita: perscrutava seu interior. Evidentemente estava recebendo uma mensagem telepática. Também era possível que por pura coincidência tivesse captado alguma coisa em que estava muito interessado. Nesse meio tempo, Rhodan também se transformara num telepata, mas via-se obrigado a confessar que neste ponto o rato-castor tinha uma superioridade tremenda sobre ele. Rhodan geralmente só conseguia captar pensamentos enfeixados e direcionais, e mesmo estes apenas em condições extremamente favoráveis. Quanto a Gucky, este sabia localizar e compreender qualquer impulso cerebral. Mesmo que esse impulso não se destinasse a ele.

— Um instante! — piou Gucky e esperou. Subitamente levantou os olhos. — Daqui a pouco a central de comunicações vai chamá-lo, Rhodan. Trata-se de uma mensagem importante vinda do espaço. Não tenho a menor idéia do que se trata.

Rhodan contemplou a tela vazia que cobria a parede lateral da sala. Essa tela ligava-o diretamente ao centro de rádio de Terrânia. Se quisessem alguma coisa dele, usariam...

Já estava chegando!

De repente a tela iluminou-se e formou uma imagem muito real. Um homem sentado atrás da mesa de controle olhava para o interior da sala como se a parede tivesse desaparecido e, com ela, todos os muros divisórios. As câmaras e os microfones ocultos ligaram-se automaticamente. A comunicação entre o gabinete de Rhodan e a central de rádio acabara de ser estabelecida.

— Há uma mensagem importante vinda da Lotus, chefe. O comandante, Capitão Markus, expediu o sinal de emergência. A Lotus está regressando à Terra. Poderá chegar ainda hoje. A comunicação foi interrompida antes que eu pudesse confirmar.

O rosto de Rhodan tornou-se muito sério.

— Não tem qualquer outra indicação, Miller?

— Nenhuma, chefe. A mensagem veio sob a forma de um impulso concentrado cuja duração não foi superior a um décimo de segundo. Não tive oportunidade de realizar a determinação goniométrica.

— Obrigado — disse Rhodan. — Continue em recepção e avise-me imediatamente caso a Lotus volte a chamar.

— Então? — perguntou Bell, que também parecia muito preocupado. — O que significa isso?

— Isso significa que a quatro mil e trezentos anos-luz daqui ou, mais precisamente, no Sistema de Heperés, alguma coisa não anda bem. Não demoraremos em saber o que é. Talvez saibamos ainda hoje.

— E os CLA? — chiou Gucky.

— Isso tem tempo, Gucky. Não devemos dar-lhes tanta importância. No momento, só o comandante Markus é importante para mim.

Bell levantou-se.

— Vou ao espaçoporto. Afinal, Markus não poderá levar tanto tempo para percorrer estes miseráveis quatro mil e trezentos anos-luz. É apenas um pulo de gato pelo hiperespaço.

Gucky sacudiu-se e efetuou uma teleportação que o levou ao chão.

— Não sei por que Bell sempre tem de revelar tamanha insensibilidade, falando de gatos na minha presença. Será que ninguém lhe ensina que isso não se faz?

Rhodan seguiu os dois com os olhos, mas em seu rosto não havia o sorriso costumeiro para o qual nunca deixava de ter tempo quando os dois amigos se pegavam.

E foi o que aconteceu, no corredor, e não no gabinete de Rhodan.

 

O comandante Jim Markus só pousou dali a vinte horas.

Disse ter demorado devido a uma espera adicional de notícias do agente cósmico Fellmer Lloyd, desaparecido no planeta Volat. Quando viu que as mensagens não chegaram, resolveu voltar imediatamente à Terra a fim de informar Rhodan.

Além de Bell e Gucky, o mutante André Noir assistiu à palestra. Tratava-se de um excelente hipno que, de certo tempo para cá, também tornou-se possuidor do dom da telepatia.

— Quer dizer que, conforme era previsto, largou Lloyd no planeta? — perguntou Rhodan para certificar-se mais uma vez, depois que Markus havia iniciado seu relato. — O que aconteceu depois disso?

— O que sei é pouca coisa — confessou o comandante. — Lloyd se fez passar por um prebonense e procurou entrar em contato com Sikeron, nosso elemento de ligação que foi assassinado. Na oportunidade travou conhecimento com Kuri Onere, filha de um mercador galáctico estabelecido no planeta. Os habitantes primitivos do planeta de Volat são insetos, cuja vida se guia por ritos desconhecidos e que são chefiados por uma mulher, a mãe onisciente. Com o auxílio desta, conseguiu reunir em torno de si um grupo de inteligências, que foi posto em campo contra dois homens cercados de mistério. Os dois desconhecidos dotados de poderes sobrenaturais são membros de seu Exército de Mutantes, Sir. São dois rebeldes.

Rhodan inclinou-se para a frente. Seu rosto não revelou a menor emoção.

— Fale-me sobre eles, por favor.

— Trata-se de Nomo Yatuhin, um telepata pouco eficiente, e de Gregor Tropnow, um hipno. Ambos se sentem prejudicados porque no planeta artificial Peregrino não lhes foi concedida a ducha celular que prolonga a vida. Fixaram-se em Volat onde organizaram a resistência contra a Terra. Juntamente com os saltadores e outros súditos do Império Arcônida tramam o ataque à Terra, assim que surja uma oportunidade favorável.

— Minha gente! — murmurou Rhodan, fora de si.

Parecia que custava a acreditar no que acabara de ouvir.

Bell mantinha-se num silêncio obstinado.

— Em todo lugar aparecem traidores — disse Markus para consolá-lo. — Conseguiram localizar e assassinar Sikeron antes que o mesmo tivesse tempo de transmitir à Terra aquilo que ficara sabendo. Ao que parece, Fellmer Lloyd também foi liquidado. Ao menos não consegui captar-lhe mais nenhum sinal de vida. Sua última mensagem dizia mais ou menos o seguinte: “Três toques de sino. Alarma geral. Yatuhin e Tropnow são traidores. Ataque contra a Terra está sendo planejado. Cuidado!”

— O que aconteceu com Fellmer Lloyd?

— Ninguém sabe. Desapareceu juntamente com a moça chamada Kuri. De uma coisa temos certeza: não foram mortos pelos nativos, que até lhes prestaram ajuda.

Rhodan ficou em silêncio por alguns minutos. Os outros também se mantiveram calados para não perturbá-lo. Noir e Gucky, que eram telepatas, podiam acompanhar as reflexões do chefe, pois este não bloqueou o cérebro.

Finalmente disse:

— A Lotus está pronta para decolar, comandante Markus? Muito bem. Noir, Gucky e eu iremos com o senhor, ainda hoje.

O silêncio que se formou após estas palavras durou apenas um segundo. Bell logo gritou em tom indignado:

— E eu? Não me diga que pretende...

— Infelizmente pretendo, meu caro — disse Rhodan em tom tranqüilo. — Quem pode ocupar meu lugar por aqui a não ser você?

— Um bom cargo, que lhe proporciona muita honra — disse o rato-castor em tom zombeteiro e exibiu seu dente roedor num sorriso de escárnio. — Ao menos aqui sua preciosa vida não correrá o menor perigo. Além disso, Noir, o chefe e eu saberemos dar conta deste recado que não é nada difícil...

— Meia-porção — resmungou Bell em tom zangado, segurando-se na borda da mesa.

O rato-castor preferiu não dar nenhuma demonstração de suas faculdades telecinéticas. Com um salto ligeiro, transportou-se para o colo de Rhodan, lançou um olhar franco para o chefe e piou:

— Já não estou aqui, chefe. Antes de decolarmos quero arranjar uma coisa. Até lá.

Antes que Rhodan pudesse dizer qualquer coisa, Gucky se desmaterializou. Ninguém tinha a menor idéia do que pretendia arranjar.

— Que sujeitinho engraçado — observou Markus, fazendo Bell irromper numa risada que quase chegava a ser histérica.

Rhodan olhou para Noir, que estava sentado à sua frente.

— Providencie para que Anne Sloane seja avisada. No momento encontra-se em Port Vênus e deve ser informada sobre o paradeiro dos mutantes. Daqui a uma hora encontramo-nos no espaçoporto, a bordo da Lotus. Markus, venha comigo.

Bell acompanhou-os com os olhos enquanto saíam da sala. Depois levantou-se lentamente, caminhou para o lado oposto da mesa e acomodou-se na pesada poltrona em que Rhodan costumava sentar.

A modificação transitória no governo de Terrânia fora realizada sem o menor espalhafato.

Naquele momento, Bell segurava todos os fios: os fios que mantinham unido o Império Solar de Rhodan.

 

O choque surgiu poucos minutos após a decolagem da Lotus.

O pequeno cruzador ainda estava apoiado nas colunas telescópicas. Aquela esfera metálica reluzente media cem metros de diâmetro, mas isso não era nada em comparação com as naves esféricas de oitocentos e mesmo mil e quinhentos metros. A Lotus era uma nave pequena mas, se necessário, também saberia defender-se. Além disso, havia a bordo uma instalação de hiper-rádio e um compensador estrutural, equipamentos que de algum tempo para cá se encontravam em quase todas as naves do Império Solar. Esse estruturador fazia com que os hipersaltos não pudessem ser medidos. As naves de Rhodan podiam percorrer o espaço em silêncio, sem serem percebidas pelas estações localizadoras dos arcônidas ou de outras raças inteligentes, espalhadas por toda parte.

Os tripulantes dirigiram-se aos postos que deviam ocupar durante a decolagem.

Os passageiros se haviam reunido na sala de comando. Rhodan estava sentado na poltrona do co-piloto, ao lado de Markus. Como de costume, Gucky se encontrava deitado num dos sofás e, ao que parecia, sentia muito a falta de Bell. O hipno André Noir acomodara-se numa poltrona de reserva.

As telas estavam acesas. Na sala de astronavegação, que ficava ao lado, o cérebro positrônico expelia os dados do hipersalto iminente.

Markus colocou a mão sobre a chave do acelerador.

O espaçoporto, a cidade de Terrânia, o continente asiático e por fim o globo terrestre mergulharam na imensidão do espaço.

A aceleração era tamanha que, logo após vinte minutos, a Lotus atingiria a velocidade da luz. A transição poderia ser iniciada no setor espacial situado entre os planetas externos do sistema.

Foi mais por um pressentimento que Rhodan disse subitamente:

— O rádio está em recepção?

Markus parecia espantado.

— Por quê? Dentro do sistema solar só se costuma usar o rádio comum. Daqui a pouco as ondas não nos atingirão mais.

Uma ruga vertical surgiu na testa de Rhodan.

— Nem tanto! Em caso de necessidade também se permite o uso do hiper-rádio.

— Conta com alguma emergência? Qual é?

— Ninguém pode saber qual é a emergência que pode surgir neste ou naquele momento. Acho melhor que as comunicações com a Terra sejam mantidas até o último instante.

Markus deu de ombros e pegou o microfone do intercomunicador.

— Sala de rádio? Fique em recepção até que se realize a transição. Isso mesmo! São ordens do chefe.

Rhodan recostou-se na poltrona. Meio distraído, ficou ouvindo os sinais que estavam sendo captados e transmitidos para a sala de comando. Tinha os olhos pousados na tela de visão global, que trazia o espaço cósmico circundante para o interior da sala.

Ali estava a Terra, que mergulhava cada vez mais rapidamente no abismo do espaço e diminuía a olhos vistos. Qualquer astronauta estava perfeitamente familiarizado com o quadro, mas nenhum humano jamais se saciara de contemplar o formoso planeta verde-azulado.

Bem ao lado do disco ofuscante do Sol estava Vênus, que parecia uma foice bem iluminada. Marte, o planeta vermelho, passou numa posição lateral e, aumentando de velocidade, tomou a direção da popa da nave — se é que num artefato esférico se podia falar em popa.

As interferências no alto-falante tornavam-se cada vez mais fortes, embora a nave se afastasse do Sol. As ondas normais de rádio eram refletidas pelo anel de asteróides e captadas pelas antenas.

Subitamente uma voz rompeu a profusão de sinais e ruídos de interferência.

Era uma voz forte e áspera.

— Alô, Perry Rhodan! Responda. Aqui fala o Coronel Derringer, do Serviço de Segurança de Marte. Estou chamando Perry Rhodan. Aqui fala...

Rhodan estremeceu, mas a surpresa apenas durou uma fração de segundo. Antes que o comandante Markus pudesse fazer um movimento Rhodan saltou da poltrona e correu em direção ã sala de rádio. Gucky seguiu-o com os olhos. Parecia perplexo, mas continuou onde estava.

No momento em que Rhodan entrava na pequena sala repleta de aparelhos, o operador de plantão estava estabelecendo o contato com Marte. Lançou um olhar indagador para Rhodan.

— A mensagem veio pelo hiper-rádio. Quer responder?

— Estabeleça contato com Derringer. Quero falar com ele.

O Coronel Derringer continuava a chamar ininterruptamente e com a mesma insistência. Seu receptor devia estar em funcionamento, a fim de que não perdesse a resposta.

— O contato foi estabelecido — disse o operador de rádio, entregando o microfone a Rhodan. — Pode falar, Sir.

Perry aguardou que o coronel fizesse uma pausa e disse:

— Aqui fala Rhodan, a bordo da Lotus. O que houve, Coronel Derringer?

Por alguns segundos reinou o silêncio. Isso não foi devido ao pequeno espaço de tempo que a onda de rádio consumiria para percorrer os oitenta ou cem milhões de quilômetros de ida e volta a Marte, pois a demora não seria superior a um milésimo de segundo. O silêncio foi causado exclusivamente pela surpresa de Derringer, que não esperava receber resposta tão depressa.

Mas sua resposta foi lacônica e precisa:

— Graças a Deus, Sir! Qual é sua posição?

— Pouco antes do anel dos asteróides.

— Muito bem. Volte e pouse em Marte.

— Por quê?

— O senhor deu ordem ao mutante Gregor Tropnow para que viesse buscar Thora?

Rhodan empalideceu e segurou-se na mesa com a mão livre. Seus lábios transformaram-se num traço finíssimo, e só a contragosto se abriram para falar.

— Não, coronel. Estava previsto que minha esposa ficaria em Marte até o fim de suas férias. O que aconteceu?

— Sinto muito, Sir, mas, nesse caso, suspeita-se de que sua esposa tenha sido seqüestrada. Foi o que disse Mr. Bell, com o qual acabamos de entrar em contato. Há poucas horas o mutante Tropnow pousou no planeta e disse ter recebido ordens para levar Thora. Disse que surgiram imprevistos, e disseram ser necessária a presença da arcônida em Terrânia. Thora saiu de Marte há exatamente duas horas.

Ao que parecia, Rhodan recuperara o autocontrole. Sua voz não revelava a menor comoção, mas o rosto continuava pálido.

— Por que as investigações não foram iniciadas mais cedo?

O Coronel Derringer hesitou um pouco e respondeu:

— Ninguém poderia desconfiar de que Thora estava sendo seqüestrada. Os membros do Exército de Mutantes sempre têm merecido toda confiança.

Era verdade. Subitamente Rhodan deu-se conta de que nenhum homem podia merecer uma confiança absoluta e incondicional; em algum recanto recôndito do coração estava escondido o germe da traição. Ou estaria enganado? Não teria sido ele mesmo quem colocou o germe da traição no coração de Tropnow, ao recusar-lhe a ducha celular no planeta Peregrino?

Não importava...

— Preste atenção, Derringer. Não irei a Marte. Sei para onde Thora foi conduzida. Prossiga nas investigações e comunique em que tipo de nave Thora foi levada.

— Já descobrimos. Foi numa nave de reconhecimento de longo alcance tipo Gazela.

— Excelente! Já é alguma coisa. Mantenha-se em ligação com Bell. Estou em contato de hipercomunicação com o mesmo. Ele me avisará sobre qualquer novidade. Mais um detalhe. O senhor não tem culpa de nada, coronel.

Ouviu-se um suspiro de alívio.

— Obrigado. Apenas cumpri meu dever...

— Às vezes até isso pode ser um erro. Passe bem.

A comunicação foi interrompida.

O operador de rádio desligou com os dedos trêmulos e lançou um olhar aflito para Rhodan. Seus lábios moviam-se como se quisesse dizer alguma coisa, mas ao que parecia não tinha coragem. Perry, que imaginava os pensamentos daquele homem mais do que os lia, colocou a mão sobre seu ombro.

— Obrigado, amigo. Esse golpe sujo não adiantará nada para esse sujeito; apenas agravará a pena que o espera. Nada acontecerá a Thora.

Nada acontecerá a Thora...!

Enquanto voltava à sala de comando, as lembranças e os sentimentos atravessavam seu cérebro como se fossem raios eletrônicos. Continuava a sentir por Thora o amor que sentira desde o dia quando a conhecera, muito embora naquele primeiro encontro ainda não desconfiasse de que era o amor que o atraía para junto daquela mulher misteriosa, cujo mundo primitivo não era a Terra. Sim, ele a amava. Ele, o homem que havia alcançado a imortalidade relativa, e que tinha a idade de 104 anos e o aspecto de um homem de quarenta, amava a arcônida Thora, a qual não fora agraciada com o dom da imortalidade. Era bem verdade que o elixir da vida, subtraído aos aras, mais uma vez detivera o processo de envelhecimento. Mas por quanto tempo...?

E agora queriam tomar-lhe Thora.

Tolice!

Já a haviam tomado.

Quando entrou na sala de comando, André Noir veio a seu encontro. Uma vez que era telepata, já estava informado sobre o que havia acontecido.

— Esses patifes! Vamos...

— Deixe para lá, Noir. Ninguém escapa ao castigo que lhe cabe. Até agora sempre pude respeitar meus inimigos, pois geralmente travavam uma luta honesta e varonil. Seqüestrar uma mulher para exercer chantagem contra o marido é a coisa mais vergonhosa que se pode imaginar. Só mesmo um monstro conceberia uma idéia dessas.

— Eu mesmo torcerei o pescoço desse monstro — piou Gucky, que continuava imóvel no sofá. — Ele não me escapa.

Rhodan lançou um olhar para Markus.

— Quando será realizada a transição?

— Dentro de dois minutos e quarenta segundos, se não houver nenhuma modificação — hesitou um momento. — O curso e as coordenadas serão mantidas?

— Nosso destino é Volat. O seqüestrador é Tropnow, que foi reconhecido nesse planeta por Fellmer Lloyd. Não podemos perder um segundo, se não quisermos chegar tarde.

— Para Tropnow nunca chegarei tarde; poderei chegar cedo demais — resmungou Gucky no seu canto.

Rhodan não respondeu. Estava sentado em sua poltrona, mudo e com os lábios cerrados, fitando as telas.

Continuou assim, mesmo quando as estrelas haviam desaparecido, dando lugar ao terrível vazio do hiperespaço, em que não existia matéria nem tempo...

 

Seis planetas gravitavam em torno do sol Heperés, mas só o segundo estava habitado. O mundo de Volat, que se situava a mais de 4 mil anos-luz da Terra, ainda ficava dentro do Império Arcônida. Era um dos entrepostos comerciais mais importantes dessas inteligências da Via Láctea.

Em Kuklon, a capital, existia o maior espaçoporto; era ali que tinha sua sede o administrador arcônida de Volat. Permanecia nesse mundo estranho por ordem do cérebro positrônico de Árcon, a fim de defender os interesses do Império sempre que isso se fizesse necessário. O Império de Árcon era governado por um computador.

Volat tinha aproximadamente o tamanho de Marte. A gravitação, um pouco inferior à da Terra; o clima, tropical. A maior parte da superfície do planeta estava coberta de matas virgens.

No momento em que a Lotus rematerializou-se, precipitou-se para o interior do sistema à velocidade da luz. Graças ao compensador estrutural podia-se ter uma razoável certeza de que ninguém havia registrado a transição. Ainda agora a localização goniométrica era quase impossível. Mesmo que esta fosse realizada, provavelmente suporiam tratar-se de uma das numerosas naves mercantes que se dirigiam a Volat ou de lá saíam.

A sala de rádio funcionava a toda potência, mas não havia nenhum sinal que desse a entender que Fellmer Lloyd em sua Gazela procurasse entrar em contato com a nave. O mutante ainda devia supor que o comandante Markus continuasse a contornar o sistema com a Lotus, a fim de exercer as funções de estação retransmissora.

Porém Fellmer Lloyd permanecia em silêncio.

A inquietação fervilhava dentro de Rhodan.

— Prepare a Gazela V — ordenou, dirigindo-se a Markus e fazendo um sinal para Noir e Gucky. — Está na hora.

— Já não agüentava mais neste sofá — asseverou o rato-castor e escorregou para o soalho metálico a fim de saltitar em direção à porta. — É duro que nem uma tábua.

As preocupações de Noir eram diferentes.

— A presença da Gazela não poderá ser constatada durante o pouso?

Rhodan respondeu antes de dirigir-se a Markus:

— É claro que não pousaremos na área urbana de Kuklon, mas em alguma área desabitada do continente principal. Não sabemos onde está Lloyd, mas acontece que somos telepatas. Um de nós terá de encontrá-lo. E você, Markus, mantenha-se numa órbita constante, à distância de duas horas-luz de Volat. Acho que será suficiente. Emita a cada dez horas um raio vetor de um minuto de duração. Ainda não sabemos em que circunstâncias ocorrerá nosso regresso à nave, e por isso acho que essa precaução é recomendável.

— Está bem, Sir. O que deverei fazer se a Gazela for atacada?

Um sorriso surgiu no rosto de Rhodan.

— O senhor não fará nada, comandante. Absolutamente nada. Entendido?

Markus confirmou com uma expressão de perplexidade no rosto. Rhodan viu chegada a hora de uma ligeira explicação.

— Se formos atacados e chegarmos à conclusão de que o inimigo está em condições de superioridade, nós nos entregaremos. Talvez isso nos leve ao objetivo.

Seguiu Noir, que já se encontrava a caminho do hangar. Gucky preferiu poupar as perninhas curtas. Aguardou os dois homens diante da escotilha aberta da Gazela.

Esse tipo excelente de nave de reconhecimento tinha dezoito metros de altura e um diâmetro de quase trinta e cinco metros. O desempenho normal do sistema propulsor permitia a realização de hipersaltos até de quinhentos anos-luz. O armamento era suficiente para causar danos consideráveis a um cruzador. Os campos de gravitação artificiais compensavam bem a pressão causada pela aceleração ou desaceleração.

— O que estamos esperando? — perguntou o rato-castor. — Cada minuto é precioso, se quisermos pegar esse monstro — a seguir teleportou-se em direção à comporta.

Gucky devia sentir uma raiva imensa pelos dois traidores. Ao que parecia, não se dava ao trabalho de examinar os motivos que os tinham levado a proceder dessa forma. O rapto de Thora era um ato que falava por si.

Rhodan transmitiu mais algumas instruções à tripulação da Lotus e seguiu Noir e Gucky para o interior da comporta, cuja escotilha se fechou com um baque.

Dali a dez segundos, o disco saiu do cruzador e, mantendo velocidade constante, deslocou-se em queda livre em direção ao planeta distante. A Lotus mudou de curso e tomou o rumo que a conduziria à posição em que entraria na órbita prefixada.

Rhodan estava sentado atrás dos comandos. Noir achava-se a seu lado, esperando. As mãos do hipno encontravam-se pousadas nos controles, que ativariam numa questão de segundos o potencial defensivo da nave. Gucky manteve-se inativo. Estava sentado diante do equipamento de rádio, mas não o havia ligado.

Volat aproximou-se rapidamente. Logo chegou a hora de frear a Gazela, que desenvolvia a velocidade da luz. Embaixo deles, o planeta girava sob os raios ofuscantes do sol. Naquele instante, Kuklon estava penetrando no campo de visão, sob a forma de um emaranhado de grandes construções e vias elevadas perfeitamente identificável nas telas. Ao lado da cidade ficava o amplo espaçoporto, no qual se comprimiam as naves pertencentes a várias inteligências. Era ali que se encontrava a vida civilizada do planeta, diante da qual os habitantes primitivos mantinham uma atitude passiva.

Viviam nas matas e nos planaltos. Uma agricultura rudimentar e a caça propiciavam-lhes os meios de subsistência. Não se interessavam pelos arcônidas, saltadores e outras raças, que haviam transformado seu mundo numa base do império legendário.

Só queriam ser deixados em paz.

Rhodan fez a Gazela V descrever uma curva e aproximou-se da face noturna do planeta de Volat. Desceram mais e passaram pouco acima das matas infindáveis, raras vezes interrompidas por grandes lagos. Os vales largos dos grandes rios revelavam a existência de um suprimento apreciável de água. As telas de luz infravermelha revelavam que nas encostas havia indícios de atividade agrícola.

— Dentro de uma hora Kuklon atingirá a linha de interseção da face diurna e noturna — disse Noir. — Acho que devemos esperar até lá para pousarmos.

— Vamos pousar antes disso, Noir — respondeu Rhodan e deixou que o disco descesse mais um pouco. — Em algum lugar lá embaixo, não muito longe de Kuklon, deve estar Fellmer Lloyd — virou-se para Gucky. — Ainda não captou nenhum impulso?

O rato-castor sacudiu a cabeça sem dizer uma palavra.

Passaram pouco acima de um grande platô de pedra, mas nem sequer a tela infravermelha mostrou qualquer coisa fora do comum. O platô estava desabitado, ou então os volatenses haviam camuflado perfeitamente as suas habitações.

Rhodan cometeu um erro. Desativou o campo defensivo que no espaço os protegia contra os meteoritos. É que esse campo também os protegia contra os projéteis e os raios energéticos disparados pelas naves inimigas.

O ataque foi tão surpreendente que nenhuma defesa pôde ser esboçada antes que os danos ultrapassassem o limite crítico.

Um feixe energético verde-azulado surgiu do nada e atingiu a popa da Gazela V. O solavanco quase arrancou Rhodan do assento do piloto, atirou Noir ao solo e fez com que Gucky escorregasse através da sala de comando.

O disco começou a cair.

O segundo disparo energético passou ao lado deles e abriu uma clareira chamejante entre as árvores gigantes da mata.

O disco planou obliquamente em direção à mata. Não obedecia ao jato direcional, mas a queda pôde ser contida um pouco, motivo por que o impacto não seria tão forte.

— Foram os saltadores! — resmungou Gucky em tom furioso e continuou a perscrutar seu interior. — Isso mesmo, os mercadores galácticos, nossos velhos amigos. Não têm a menor idéia de quem sejamos. Agiram de acordo com as ordens superiores.

— Procure ler mais alguma coisa em seus pensamentos — gritou Rhodan. — Atenção! Pousaremos dentro de dez segundos. Assim que tocarmos o solo, corram para fora da nave.

Os dez segundos transformaram-se numa eternidade.

De repente, os microfones externos captaram o estalo dos galhos e o estrondo produzido pelo impacto da nave. Um forte solavanco sacudiu a Gazela. Todos os objetos móveis foram atirados para fora de seus lugares.

Segundos antes do impacto, Rhodan atirou-se para trás, apoiando-se nos braços e nas pernas. Escorregou lentamente, atravessou a sala de comando e acabou deitado junto à poltrona do piloto. E logo depois do baque, a tontura passou.

— Rápido! Vamos dar o fora antes que voltem e nos liquidem de vez.

Estas palavras despertaram Noir, que caíra de lado para fora da poltrona e batera com a cabeça contra o revestimento metálico de um instrumento. Um filete de sangue escorria de sua testa, mas de resto parecia estar em perfeitas condições.

Quem se dera melhor fora Gucky. Nem estava na sala de comando.

Antes que a Gazela tocasse o solo, teleportou-se para o ar livre. Não teve tempo de levar Rhodan ou Noir, motivo por que se viu só, a menos de cinqüenta metros de distância, quando a nave se precipitou pelas copas das árvores e tocou o solo. Assim que isso aconteceu, saltou para dentro da comporta de ar e abriu a escotilha interna e externa.

Rhodan arrastou Noir.

— Quebrou algum osso? — perguntou. No corredor ouviu-se um ruído; devia ser Gucky. — Sente dores?

— Só a cabeça dói — disse Noir com um gemido, colocando a mão na testa. — Acho que quebrei alguns instrumentos.

— Isso já não importa — disse Rhodan para consolá-lo e viu o rato-castor, que se encontrava do outro lado da escotilha aberta. — Procure controlar-se. Devemos sair daqui o mais rápido possível.

Os dois homens atravessaram o corredor estreito aos tropeções e atingiram a comporta. Dali a dez segundos, corriam juntamente com Gucky em direção à mata espessa, sem olharem para trás.

O ruído do destróier que se aproximava era inconfundível e dizia mais que quaisquer palavras.

Logo sentiram-se ofuscados pela luz da explosão. A onda de compressão obrigou-os a se atirarem ao chão. Rhodan ainda se deu ao luxo de virar a cabeça.

Uma sombra espessa encobria as inúmeras estrelas. Os contornos da outra nave eram pouco nítidos, mas a mesma devia ser maior que a Gazela. Os desconhecidos não tiveram nenhuma dificuldade em descobrir a nave derrubada por meio dos instrumentos de localização. Depois acenderam os holofotes, que mergulharam os destroços da Gazela numa luz ofuscante.

Rhodan, Noir e Gucky penetraram um pouco mais na floresta.

Foi então que os atacantes cometeram uma tolice. Destruíram os destroços com um radiador de impulsos, que numa questão de segundos fez com que os metais da Gazela derretessem e se evaporassem.

Rhodan suspirou aliviado.

— Tivemos sorte. Já receava de que fossem revistar nossa nave. Nesse caso poderiam ter encontrado certos indícios que dariam a um inimigo inteligente certas reflexões. Por enquanto Yatuhin e Tropnow não devem ter jogado seu trunfo principal; até agora ninguém sabe que a Terra ainda existe. É ao menos o que espero.

— E por enquanto ninguém sabe que Rhodan acaba de pousar no planeta de Volat — resmungou Noir em tom natural. Lançou um olhar ligeiro para o rato-castor e acrescentou: — E é claro que também não sabem da presença de Gucky, o temível lutador.

Rhodan não respondeu. Viu os destroços que se desmanchavam na incandescência. À luz vermelha produzida pelos mesmos, notou o bojo brilhante da nave desconhecida. Procurou em vão captar os impulsos mentais dos tripulantes, para descobrir alguma coisa sobre suas intenções futuras. Talvez Gucky tivesse mais sorte.

Mas o rato-castor sacudiu a cabeça.

— Já disse que são saltadores. Um desconhecido contratou-os e a central, que não sei onde fica, colocou-os na nossa pista. O sistema de alerta já devia ter nos localizado no espaço.

— É um sistema bem organizado — disse Rhodan. — Será que os dois mutantes estão por trás disso?

— Quem poderia estar senão eles?

Rhodan acenou com a cabeça e voltou a olhar o céu estrelado.

Ali o quadro era bem diferente daquele da Terra, situada nos confins da Via Láctea. Ali, na região central da Galáxia, o número de estrelas vistas a olho nu era bem maior. Uma faixa branca atravessava o firmamento e desenhava as nuvens escuras deixando-as nítidas.

A nave desconhecida desapareceu, mergulhou no escuro como se nunca tivesse estado ali. Acabara de cumprir sua missão e regressava à base desconhecida.

Rhodan fez um gesto furioso.

— Terão que pagar a Gazela; e olhem que uma nave de reconhecimento de longa distância não é barata.

Noir levantou-se.

— E agora? A cidade deve ficar a centenas de quilômetros daqui. A mata virgem...

— Bem; ainda temos Gucky — disse Rhodan em voz baixa e também se levantou. Em torno deles havia apenas o silêncio, interrompido pelo farfalhar do vento nas copas das árvores. — Gucky poderá transportar-nos à cidade, se fizermos tanta questão disso. Mas acho que por enquanto não devemos aparecer. É melhor acreditarem que estamos mortos.

— Porém estamos na mata virgem... Na minha opinião o ambiente não é nada confortável. Não sabemos quais são os riscos que nos ameaçam.

— Pelos dados de que dispomos a respeito do planeta de Volat, os animais perigosos são bastante raros. Por aqui só temos um inimigo: a organização montada pelos amotinados. Essa organização nos caçará assim que souber que ainda estamos vivos.

Noir encolheu os ombros.

— Não compreendo como um dos nossos homens pode conceber a idéia de matar o senhor — murmurou. — É uma coisa que ultrapassa minha capacidade mental.

Gucky emitiu um chiado furioso quando Rhodan respondeu:

— A inveja produz o ódio, Noir. E o ódio torna possíveis as coisas mais inconcebíveis. O motivo de atos incompreensíveis nasce com o ódio, que pode não ter fundamento, mas às vezes tem. A raiva que sinto por Tropnow tem fundamento. Será que isso faz alguma diferença sob o ponto de vista moral?

A resposta não veio. Noir manteve-se de pé, mudo e em atitude rígida, fitando a escuridão impenetrável da mata. Olhava para o oeste, na direção aproximada em que devia ficar Kuklon.

— O que houve? — perguntou Rhodan em tom preocupado.

O hipno apontou para a escuridão.

— Não sei qual é a distância, mas o fato é que por aí há seres vivos. Estão pensando, mas não compreendo suas idéias. Estão conversando sobre coisas que para mim não significam nada.

— São nativos?

— Não faço a menor idéia; provavelmente são volatenses. Que seres serão estes, Sir?

Rhodan recordou o ligeiro estudo realizado em Terrânia. O que os catálogos dos arcônidas informavam sobre Volat, o segundo planeta do sol Heperés?

— Os volatenses descendem de insetos, mas evoluíram para uma forma humanóide. Seu andar é ereto, têm quase dois metros de altura, o corpo é ligado por finas articulações, têm cabeça grande e olhos salientes, encimados por antenas. Têm pele marrom-preta, em parte coberta por formações córneas. É uma raça inteligente e inofensiva que segue ritos estranhos. Sua forma de governo é a do matriarcado. Provavelmente isto constitui uma tradição do tempo em que eram insetos. São governados pela mãe onisciente, que exerce um poder ilimitado. Sua linguagem é imperceptível ao ouvido humano, porque se desenvolve na faixa do ultra-som. Um telepata não tem a menor dificuldade em comunicar-se com eles, desde que recorra à mímica. Noir, o senhor deve dar-se muito bem com eles, pois além de ser um telepata é um hipno, e por isso poderá sugerir-lhes alguma coisa.

— São umas aves estranhas — resmungou Gucky e saiu em direção ao oeste. Seus olhos de lince haviam descoberto uma trilha estreita. — Estou curioso para saber o que dirão.

Rhodan sorriu ligeiramente. Também estava curioso.

— Vamos atrás de Gucky — disse, dirigindo-se a Noir. — Ele tem uma tendência inata ao escotismo.

Noir caminhou na retaguarda. Cochichou:

— No leste também há seres vivos. Estão atrás de nós.

— Estou captando os impulsos mentais, mas não consigo interpretá-los — respondeu Rhodan em voz baixa. — São saltadores ou arcônidas?

— São impulsos estranhos, idéias diferentes, sujeitas a uma limitação unilateral. Não, não são criaturas humanas.

— Não são humanos? Será que são volatenses?

Noir sacudiu a cabeça, mas Rhodan não pôde perceber o gesto.

— Em hipótese alguma. Os seres que estão à nossa frente são volatenses. Seu pensamento também é inumano, mas não é restrito. Os pensamentos que se desenvolvem atrás de nós parecem provir de cérebros condicionados. O senhor compreende?

— Acho que sim. O senhor quer dizer que só podem pensar numa coisa determinada. Não é isso?

— Exatamente, chefe. No cérebro deles há lugar apenas para a tarefa que lhes foi confiada.

— Uma tarefa?

— Isso mesmo — disse Noir em tom tranqüilo. — Só há lugar para a tarefa de prender-nos.

 

O platô erguia-se da planície coberta pela mata que se estendia até as cercanias da cidade de Kuklon. Não havia nenhuma estrada que conduzisse para lá, apenas caminhos solitários e trilhas secretas. Estas ultimas, conforme as circunstâncias, podiam ser utilizadas por certos veículos, mas bastava que chovesse por mais de dois dias para que até mesmo as esteiras mais largas atolassem na lama.

Não havia nenhum arcônida ou saltador que conhecesse a situação do platô. Era ali que residia a misteriosa governante dos volatenses, deusa e rainha ao mesmo tempo. O local servia de palco para certos ritos estranhos.

As residências dos nativos encontravam-se sob a proteção das copas das árvores, e eram feitas de um material semelhante ao usado pelas abelhas. Às vezes usavam a madeira, às vezes uma espécie de fibra, outras vezes o barro endurecido misturado com palha. As entradas pareciam tocas iguais aos buracos das colméias das abelhas; apenas eram maiores.

Esse platô de rocha, oculto e praticamente inacessível a quem não o conhecesse, era a verdadeira capital do mundo de Volat.

Numa das cabanas de aparência primitiva, Fellmer Lloyd achava-se estendido num leito baixo, segurando a mão de Kuri, que estava sentada sobre a cama, contemplando-o. Não podia ser considerada bonita na verdadeira acepção da palavra, pois sua formação óssea chamava demais a atenção; mas seus grandes olhos escuros com um ligeiro traço mongólico compensavam esse efeito. Tinha a pele avermelhada, e o cabelo cor de cobre. Era filha de um mercador galáctico.

Fellmer Lloyd lia seus pensamentos como quem lê num livro aberto. Era um localizador capaz de captar e analisar os modelos das ondas cerebrais. Além disso, era telepata, o que lhe permitia reconhecer perfeitamente as emoções de outros seres. Sabia que Kuri gostava dele.

— Estamos em segurança, Fellmer — disse Kuri, dando um tom firme à voz. — Aqui ninguém nos encontrará.

Fellmer confirmou com um gesto. Embaixo da coberta leve de fibra, seu corpo largo e musculoso quase chegava a parecer pequeno e débil.

— Ainda bem. Apenas gostaria de saber se o comandante Markus recebeu meu pedido de socorro e o retransmitiu.

— Antes de mais nada você tem de curar-se — ponderou a moça.

Fellmer sacudiu a cabeça.

— Não estou doente, meu bem. Apenas fui atingido pelo raio de uma arma de choque. Daqui a um ou dois dias, estarei em condições de andar. Precisamos fazer alguma coisa.

Kuri levantou os olhos. Alguma coisa se moveu na entrada da cabana. Alguém entrou.

Era um volatense. Kuri recebeu a estranha criatura com um sorriso amável, pois sabia que a mesma nunca lhe faria mal. As antenas que encimavam os olhos rígidos moviam-se, mas Kuri não ouviu nada. Lançou um olhar indagador para Fellmer que, de repente, aguçou o ouvido e ergueu o corpo.

— O inimigo perdeu a pista e voltou à cidade — disse o volatense.

Só Fellmer pôde ouvir e compreender a voz. Um sorriso surgiu em seu rosto.

— Obrigado, amigo. Vocês nos prestaram um grande serviço.

— A grande mãe, a onisciente, ordenou que vocês fiquem conosco tanto tempo quanto quiserem.

— Ainda hoje poderei sair da cama. Por mais que gostasse de aceitar o convite, vejo-me obrigado a recusar. Espero meus amigos, e estes nunca me encontrariam aqui.

O volatense aproximou-se.

— Seus amigos são como você? — perguntou para certificar-se. — São homens iguais aos que entendem a nossa voz?

— São iguais por fora — disse Fellmer, esquivando-se a uma resposta direta.

— Também vêm do grande vazio?

Fellmer sabia que o grande vazio era o espaço cósmico. Os volatenses não praticavam a navegação espacial.

— Sim, se quiserem ajudar-me terão que vir de lá.

O volatense acenou lentamente com a cabeça.

— Então são eles — disse.

Fellmer sobressaltou-se.

— Quem?

— Ontem de noite surgiu uma pequena nave redonda vinda do grande vazio. Acontece que foi atacada e derrubada. Acabamos de receber a notícia.

— Uma nave redonda?

— Isso mesmo; uma nave redonda e achatada.

Fellmer assustou-se. Só poderia ser uma Gazela, uma nave do tipo da que ele possuía.

Rhodan...

— O que aconteceu com os ocupantes da nave? — perguntou.

— Não sabemos; talvez estejam mortos.

Fellmer ergueu-se abruptamente e colocou os pés no chão. Quando se viu de pé quase caiu, pois ainda se sentia muito fraco. As conseqüências do choque ainda não haviam sido superadas. Num gesto resignado sentou-se à beira da cama. Kuri o ajudou.

— Ainda estou muito fraco — confessou. — Mas preciso saber o que aconteceu com as pessoas que se encontravam na nave derrubada.

O volatense fez um gesto afirmativo.

— Não demoraremos em saber. A mãe onisciente mandou que alguns dos nossos penetrassem na grande floresta para procurar sua pista. Se estiverem vivos, nós os encontraremos.

Fellmer Lloyd deixou-se cair na cama.

— Vocês têm de encontrá-los! — disse com um gemido e fechou os olhos.

O volatense afastou-se sem dizer mais nada. Kuri permaneceu em sua companhia. Lançou um olhar carinhoso para o rosto pálido do terrano.

Na Terra, a vida havia evoluído através de milhões de formas, a partir de uma única célula-mater. A conclusão final era a de que a evolução paralela da vida em todo o Universo só podia ser expressa através da respectiva potência.

E justamente essa conclusão revelara-se falha.

Nos diversos planetas, os terranos encontraram seres estranhos e formas inteiramente novas de evolução, mas o princípio da reprodução, da alimentação e da morte sempre se assemelhavam.

E os purrenses não constituíam exceção.

Viviam num planeta quente coberto de matas situado praticamente no centro da Via Láctea. Dispunham de uma inteligência limitada e, com os prós e contras, poderiam ser considerados uma raça feliz. Pelo menos o foram até que acabaram sendo descobertos pelas verdadeiras inteligências. Dali em diante, a felicidade chegou ao fim.

Foram principalmente os mercadores galácticos que perceberam o valor dos purrenses, que eram gatos grandes e robustos, fáceis de serem influenciados por via sugestiva. Se recebessem uma ordem hipnótica, eles a executavam, houvesse o que houvesse; nada conseguia desviá-los do objetivo. Os dentes robustos e as garras afiadas faziam com que se prestassem principalmente à vigilância de prisioneiros e à captura de fugitivos.

Cinco purrenses foram destacados para capturar os astronautas da nave derrubada, se os mesmos ainda estivessem vivos. E caso fosse necessário, matá-los. Deslocando-se num silêncio total através da selva noturna, seguiam seu instinto infalível, que nunca permitia que perdessem uma pista. Seus corpos ágeis, que mediam mais de dois metros de comprimento, desviavam-se de todos os obstáculos. Seus olhos de felino rompiam a escuridão. A ordem hipnótica transformara essas criaturas, originariamente tão pacatas, em feras perigosíssimas.

No momento em que os fugitivos resolveram fazer uma pausa para descansar, Gucky voltou a notar os impulsos cada vez mais intensos dos seres desconhecidos que os perseguiam.

— Não estou gostando — cochichou para André Noir, que estava sentado a seu lado. — Nos pensamentos das criaturas que estão atrás de nós, há alguma coisa que me assusta. Minha mente se rebela diante da perspectiva de um confronto com os perseguidores. Não é propriamente medo. Nunca me aconteceu uma coisa dessas.

Rhodan ouvira atentamente. Sacudiu a cabeça.

— Você nunca teve medo em toda sua vida, Gucky — disse em tom pensativo. Dirigiu-se a Noir. — O que é que o senhor está sentindo? Também está com medo?

— Não; talvez poderia dizer que é uma certa aversão. Os perseguidores são criaturas medonhas. O pensamento de capturar-nos é tão intenso como se vivessem exclusivamente para cumprir essa tarefa. Seus cérebros trabalham apenas para esta finalidade; todas as outras funções foram “desligadas”.

Gucky mexeu-se, bastante inquieto, e se levantou.

— Vamos dar o fora. Não quero...

Rhodan continuou sentado.

— O que é que você não quer? — perguntou em tom amável, mas em sua voz havia um ligeiro tom de censura. — Gucky, você não é mais o mesmo.

O rato-castor olhou para a copa da árvore mais próxima.

— Lá em cima estaríamos em segurança. Posso levar todos para lá. A corrida pelo mato deve ser inútil.

— Talvez você tenha razão — admitiu Rhodan. — Acontece que, como sabe, por enquanto vejo-me obrigado a não recorrer aos seus dons sobrenaturais. Por enquanto devem pensar que somos gente normal, não que somos feiticeiros. Mais tarde...

Calou-se. Bem perto ouviu-se um farfalhar quase imperceptível.

Gucky encostou-se ao tronco de uma árvore. Os pêlos da nuca arrepiaram-se. Face ao elevado grau de concentração em que se mantinha, concluía-se que estava preparado para a qualquer momento teleportar-se a um lugar seguro. A seu lado, Noir perscrutou atentamente a escuridão. Rhodan mantinha-se imóvel.

— Já chegaram muito perto. Seria preferível continuarmos, pois não quero encontrar-me com eles no escuro. De dia as coisas são diferentes. Se conseguirmos fazer com que só nos alcancem ao amanhecer, será mais fácil lidarmos com eles.

— É verdade! — apressou-se Gucky em dizer e imediatamente se pôs a caminhar.

Noir seguiu-o cauteloso. Rhodan ficou na retaguarda, seguindo os amigos e olhando sempre para trás. Os ruídos haviam cessado. Era evidente que os perseguidores, fossem eles quem fossem, não dispunham do dom da telepatia ou de outras faculdades parapsicológicas.

As horas restantes da noite passaram-se numa tensão quase insuportável. Rhodan nunca vira o rato-castor tão nervoso e com tamanha disposição para fugir a qualquer momento. Seu instinto realmente o avisava da existência de um perigo inconcebível, de cuja natureza Perry e Noir não tinham a menor idéia. Por isso, esses dois não sentiam a ameaça tanto quanto Gucky.

O céu começou a clarear ao leste e as sombras da noite dissolveram-se rapidamente. O calor aumentou.

Atravessaram uma grande clareira e pararam embaixo das primeiras árvores.

— Já que queremos esperar os misteriosos perseguidores, o melhor lugar será este — disse Rhodan e olhou em torno. — A vegetação é bastante densa para dar-nos cobertura. Por outro lado, o capim que cobre a clareira é tão baixo que não poderá esconder os perseguidores. Por isso seremos capazes de vê-los. O que acha, Gucky?

O rato-castor agachou-se e fungou cansado.

— Você é um irresponsável porque me faz correr desse jeito quando seria capaz de transportar-me à face oposta do planeta com um único salto. Minhas perninhas...

— Já sei — disse Rhodan com um sorriso bonachão. — Exigimos demais de suas perninhas, mas não posso fazer nada para evitar isso. Ainda estão muito longe?

Estava aludindo aos perseguidores. Gucky apontou na direção de onde tinham vindo.

— Não estão longe. Felizmente não têm muita pressa. Mas não perdem a pista. Devem ter um faro excelente.

Rhodan parecia surpreso.

— Um faro excelente? Quer dizer que seguem nossa pista que nem um cachorro?

— Isso mesmo; que nem um cachorro ou que nem um felino.

— Ah! — fez Noir e lançou um olhar pensativo para o rato-castor. — Que nem um gato?

O sorriso de Rhodan tornou-se mais intenso.

— Já começo a desconfiar por que você tem tanto medo dos perseguidores, Gucky. Talvez sejam mesmo gatos; e todo mundo sabe que você não aprecia essa espécie.

— Ao menos não gosto dos gatos grandes — disse Gucky. — Os gatos têm alguma coisa contra mim.

Noir olhou para a clareira.

— Será que realmente mandaram animais atrás de nós? Por que eles mesmos não saem em nossa perseguição? Não seria muito mais fácil?

— Não — disse Rhodan, seguindo o olhar de Noir. Por enquanto nada se movia em meio ao capim alto. — Não conhecem a mata e não sabem com quem estão lidando. O senhor não disse que os cérebros dos perseguidores só se ocupam dessa tarefa e parecem estar sujeitos a alguma forma de condicionamento? Pois é isso. Os gatos, se é que realmente são gatos, foram treinados para executar essa tarefa. Bem; veremos...

Subitamente Gucky ergueu o corpo. Sem aguardar permissão teleportou-se com um ligeiro salto para um galho grosso da árvore que ficava atrás dele. Encontrava-se a uma altura de quatro metros e olhava para a clareira. Seu pêlo continuava arrepiado. Soltou um grito estridente:

— Estão chegando! Realmente são gatos; que bichos enormes... Têm dois metros de comprimento e um metro e meio de altura.

Rhodan e Noir só perceberam o movimento do capim. Estavam num lugar muito baixo para poderem ver mais que isso. Não perderam tempo: subiram na árvore e logo se viram ao lado de Gucky. O galho era bastante forte para suportar o peso dos três.

Na verdade, cinco gatos gigantescos atravessavam a clareira a menos de duzentos metros do lugar em que se encontravam. Tinham o nariz grudado ao chão e deixavam-se levar pelo instinto infalível. Rhodan assustou-se ao lembrar-se de que estavam desarmados. Por outro lado, não lhe parecia recomendável fugir com o auxílio de Gucky. Os gatos teriam bastante inteligência para informar seus chefes sobre o fenômeno inexplicável, e era o que Rhodan queria evitar.

— Daqui a três minutos, estarão embaixo da árvore — chiou Gucky em tom exaltado. — Precisamos fazer alguma coisa.

— Talvez não saibam subir em árvores — disse Noir.

— Sabem, sim! — retrucou Gucky em tom indignado. — Só lhes garanto uma coisa: se fizerem isso, dou o fora. Vocês que façam o que quiserem com essas feras. Não quero ser estraçalhado por elas.

Nunca ouviram Gucky falar dessa forma.

O rato-castor era um “sujeito” valente, que não recuava diante de nada. O que teria acontecido com ele? Seria o pavor instintivo que sua raça sentia pelos gatos?

— Quem foi que lhe disse que não pretendemos defender-nos, Gucky? — falou Rhodan sem tirar os olhos dos gatos. — Se quiser, pode começar agora. Mas faça-me o favor de agir de forma a não provocar suspeitas.

Os pêlos da nuca de Gucky grudaram-se à pele, como se estivessem obedecendo a um comando. O dente roedor fez uma débil tentativa para aparecer à luz do dia, mas a tentativa não foi bem sucedida. Subitamente Rhodan e Noir viram uma rocha solta que se encontrava a menos de vinte metros subir ao ar. Subiu tanto que mal se podia vê-la, sofreu um ligeiro desvio lateral e precipitou-se em direção ao solo.

Ninguém notou a rápida correção de rota realizada por Gucky.

A pedra caiu do céu como se fosse um meteorito. A pontaria fora correta. Antes de os felinos perceberem o que estava acontecendo, dois deles foram comprimidos para dentro do solo e tiveram morte instantânea.

Os três gatos restantes espalharam-se apavorados, mas recuperaram o autocontrole com uma rapidez espantosa. O fenômeno era totalmente inexplicável para seus cérebros, e por isso nem procuraram descobrir-lhe a causa. Ao que parecia, eram de opinião que a queda da pedra não tinha qualquer relação com as pessoas perseguidas. Dois dos companheiros haviam sido mortos, mas três purrenses seriam suficientes para localizar os desconhecidos e colocá-los fora de ação.

Voltaram a seguir a pista.

— Isso não teria sido necessário — cochichou Rhodan para o rato-castor. — Por que teve que matá-los?

— Se a pedra tivesse caído devagar, eles teriam suspeitado de alguma coisa — disse Gucky, que não demorou em encontrar uma desculpa. — Talvez pensem se tratar de uma estrela cadente.

— Essa não é a pior piada que você já soltou — retrucou Rhodan e observou os três gatos que se aproximavam metodicamente da beira da mata. — Mas não posso deixar de confessar que também teria medo deles se fosse um rato.

— Não sou um rato como qualquer outro — disse Gucky em sua defesa e dispôs-se a uma fala mais longa, mas viu-se interrompido por Noir.

— Acabam de farejar-nos. Já sabem que estamos em cima da árvore.

Os três purrenses chegaram ao destino. Os olhos verdes e reluzentes olhavam para os fugitivos. Os três perseguidos encontravam-se bem perto, no galho mais baixo, e aparentemente os fixavam com um medo terrível.

Acontece que um purrense hipnotizado não sabe o que é compaixão.

No instante exato, Gucky levantou a barreira telecinética. Um dos gatos esbarrou na mesma em meio ao salto e caiu ao solo com um chiado furioso. Batera no obstáculo invisível enquanto se encontrava no ar.

Antes que o gato pudesse preparar o segundo salto, aconteceu uma coisa estranha, para a qual no primeiro instante não houve qualquer explicação.

No meio da mata, ouviu-se um “bum” abafado; o gato, que se dispunha a saltar, estremeceu e caiu lentamente. Executou alguns movimentos convulsivos com as pernas e imobilizou-se.

Ao que tudo indicava estava morto.

Rhodan esqueceu-se dos dois gatos que ainda restavam e procurou enxergar através da vegetação que se estendia ao leste. Não ouviu qualquer som, mas os órgãos telepáticos captaram alguns fracos impulsos mentais.

Eram volatenses!

O penúltimo dos gatos deu alguns saltos gigantescos em direção aos arbustos mais próximos. Porém foi atingido pelos atiradores invisíveis, caindo ao chão com um chiado agudo. Também estava morto.

O último gato fugiu em carreira desabalada.

Rhodan esqueceu-se dos volatenses e gritou para Gucky:

— Não o deixe escapar, mas não o mate. Precisamos descobrir quem são as pessoas que lhe dão ordens. Será que consegue segurá-lo? Enquanto isso eu me ocupo com os nossos aliados inesperados.

— Farei o que você pede, por mais difícil que seja — chiou Gucky e seus olhos seguiram o gato que se afastava em saltos gigantescos. — Vou prender o bicho.

Rhodan e Noir desceram da árvore e levantaram as mãos em direção à mata espessa. Sabiam que os seres que lhes haviam prestado auxílio os viam e não deixariam de compreender o gesto.

Ouviram um farfalhar; três volatenses saíram para a clareira. Suas mãos seguravam zarabatanas, que não estavam apontadas para Rhodan e Noir.

— Somos amigos — disseram em sua linguagem inaudível. — A mãe onisciente lhes envia seus cumprimentos.

— Ficamo-lhes muito gratos — disse Noir. — Os gatos nos estavam deixando num aperto.

— Costumam ser chamados de purrenses — informou um dos volatenses. — São servos dos senhores de nosso mundo e já estraçalharam muitos dos nossos. São verdadeiras feras.

— O último deles não escapará ao castigo; ainda não o matamos porque precisamos de algumas informações. Será que vocês conhecem um amigo nosso? Deve estar neste mundo. Seu nome é Fellmer Lloyd.

Era uma pergunta repentina, mas Noir não estava disposto a perder muito tempo. A resposta não foi menos abrupta.

— Está conosco e espera por vocês.

Rhodan suspirou aliviado. Adiantou-se e estendeu a mão para os três seres estranhos. A mão foi apertada, e com isso a aliança entre as inteligências desiguais ficou definitivamente selada.

Neste meio tempo, Gucky saltara da árvore e caminhava gravemente com seus passos balouçantes pela clareira coberta de capim, onde o último dos purrenses achava-se imóvel, aguardando o destino que lhe estava reservado. Os fluxos telecinéticos expedidos pelo rato-castor o mantinham preso ao chão. Um brilho malévolo enchia os olhos esverdeados, mas nas camadas mais profundas notava-se o medo que aquela criatura sentia pelo poderoso adversário que o subestimara de forma tão imperdoável.

Quanto a Gucky, este já havia vencido o medo. Sentiu certa satisfação em colocar-se diante do inimigo preso e deliciar-se com a visão do mesmo. Ele, apenas um grande rato, tinha em seu poder um perigoso felino. Era uma pena que seus companheiros de raça do planeta Vagabundo não pudessem vê-lo, embora fosse provável que nem soubessem o que vinha a ser um gato.

Rhodan, Noir e os três volatenses aproximaram-se. Estes últimos mantinham suas zarabatanas em posição, mas Rhodan tranqüilizou-os. Explicou que a essa altura a fera era totalmente inofensiva, incapaz de fazer qualquer coisa a quem quer que fosse. Após isso, o rato-castor foi alvo de uma respeitosa admiração, e isto evidentemente lhe fazia muito bem.

— Noir — disse Rhodan — procure tirar alguma coisa desse purrense. Pergunte quem lhe dá ordens, de onde veio e tudo que possa ser de interesse para nós. Provavelmente terá de remover o bloqueio hipnótico colocado em torno do cérebro do animal.

Foi mais fácil do que pensavam.

Uma vez libertado do comando hipnótico, o purrense transformou-se na criatura mais pacata que se poderia imaginar. Não soube informar muita coisa, mas o grupo de amigos ficou sabendo que em Kuklon havia um bando de saltadores e arcônidas dirigidos por dois personagens misteriosos, que dispunham de poderes mágicos. Um deles lia pensamentos, enquanto o outro sabia impor sua vontade a qualquer ser vivo.

Rhodan fez um gesto afirmativo.

Essas informações correspondiam ao relatório do comandante Markus. Yatuhin e Tropnow, os dois traidores, eram antigos membros do Exército de Mutantes.

— Pergunte ao purrense se sabe alguma coisa a respeito de Thora.

O hipno não teve a menor dificuldade em projetar as indagações mentais para dentro do cérebro do gato. A comunicação era extremamente simples.

Noir sacudiu a cabeça.

— Não tem a menor idéia da existência de uma prisioneira, mas supõe que a mesma se encontre no quartel-general do bando, se é que está no planeta.

— Onde fica isso?

Mais uma vez houve o jogo mental silencioso.

— Fica num grande edifício, perto do espaçoporto. Está disposto a mostrar o lugar, desde que não o matemos.

Rhodan parecia espantado.

— Não temos a menor intenção de matar uma criatura que sabe cooperar conosco. Transmita-lhe isto.

O que se seguiu após isso realmente foi espantoso.

Libertado do campo telecinético gerado por Gucky, o gigantesco gato rastejou em direção a Rhodan e lambeu-lhe os pés. Depois ronronou fortemente e espreguiçou o corpo.

Gucky contemplou o quadro com um espanto enorme e recuou instintivamente quando o inimigo hereditário se aproximou dele para lamber seu corpo. A língua áspera provocou tamanha cócega no rato-castor que o fez rir baixinho e exibir o dente roedor. Finalmente deitou de costas, numa atitude convidativa. O purrense fez-lhe o favor de lamber também a barriga.

Rhodan acompanhou o espetáculo por algum tempo e disse:

— Que gracinha!

Gucky levantou-se de um salto e fez com que o purrense recuasse apavorado.

— É isso mesmo. Seu nome será Gracinha. Vamos ficar com ele, não é, Rhodan?

— Ficar com ele?

— Sim. Vamos ficar com ele para sempre. É meu amigo e...

— Que coisa estranha — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Às vezes não consigo compreender como é que se pode mudar de opinião tão depressa — olhou o gigantesco gato com uma expressão pensativa. O animal parecia inofensivo e encostava-se carinhosamente a Gucky, como se quisesse agradecer pela confiança que este lhe concedera. — De outro lado, porém, é compreensível para quem vê o que está havendo. Pois bem; por enquanto Gracinha poderá ficar conosco. Se as coisas continuarem assim, ainda acabarei sendo dono de um zoológico.

Gucky inclinou-se sobre o purrense, que estava deitado. Subitamente o processo de comunicação entre as duas criaturas funcionava tão bem como se nunca tivesse havido o menor problema entre as mesmas.

Será que o rato-castor também era um hipno?

— Você ficará conosco e seu nome é Gracinha — telepatou Gucky, e Gracinha compreendeu.

Os três volatenses haviam acompanhado os acontecimentos sem compreender nada, mas a essa hora já pareciam estar convencidos de que o gato não representava qualquer perigo para eles. Afinal, os homens eram criaturas estranhas, conforme tantas vezes já tiveram oportunidade de constatar. Por que quebrar a cabeça?

— E agora — pediu Noir de repente — levem-nos ao seu esconderijo. Precisamos falar com nosso amigo Fellmer Lloyd.

Sem dizer uma palavra, os volatenses se puseram em marcha, seguidos por Rhodan e Noir.

Gracinha ia na retaguarda. O rato-castor estava sentado nas suas costas, deixando que seu novo amigo o carregasse.

Atrás deles, jaziam na mata quatro purrenses mortos. Ao morrerem, ainda eram feras sedentas de sangue; não tiveram tempo para voltarem a ser as criaturas inofensivas de sempre.

 

Rhodan ajeitou Fellmer Lloyd no travesseiro.

— Por enquanto o senhor ficará deitado, meu caro, para recuperar-se dos efeitos do choque. Se houver alguma coisa a fazer por aqui, eu cuidarei disso. Mas conte logo o que aconteceu. Não sei de nada além daquilo que Markus me contou, e isso não é muito, uma vez que ele mesmo não estava muito bem informado.

O agente cósmico acalmou-se e lançou um olhar ligeiro para Kuri. Os olhos de amêndoa da filha dos mercadores estavam dirigidos sobre Rhodan e havia neles uma expressão de admiração; ao que parecia, o rosto franco daquele homem a cativava. Não é que Fellmer sentisse qualquer coisa que pudesse parecer-se com ciúmes, mas subitamente deu-se conta de quanto gostava de Kuri, e de como sentiria sua falta se a perdesse.

— Escondi minha Gazela perto de Kuklon, no meio da mata, e fui à cidade, onde logo fiquei sabendo que Sikeron foi assassinado porque havia dado com a pista de Yatuhin e Tropnow. Kuri ajudou-me a montar uma organização por meio da qual esperava derrotar os amotinados. Porém subestimei o inimigo e fui derrotado. Bem, praticamente é só isso.

— Não é muita coisa — disse Rhodan, disfarçando o sentimento de decepção para não deixar o doente ainda mais abatido. — Sabe algo a respeito do inimigo?

Fellmer Lloyd lançou um olhar para Rhodan.

— Tem sua sede num edifício alto nas proximidades do espaçoporto. Esse edifício foi cognominado como edifício-sede de empresas comerciais ou coisa que o valha. Um clã dos saltadores aliou-se aos dois traidores mas, ao que parece, não sabe muito bem do que realmente se trata. Apenas lhes prometeram a vida eterna. Yatuhin e Tropnow preferem não falar em Rhodan ou no planeta Terra. Não tomaram essa atitude por qualquer espécie de consideração, mas por motivos puramente egoísticos. Quando dispuserem dos necessários recursos e de aliados em número suficiente, pretendem apoderar-se do legado conferido ao senhor.

— Meu legado? — disse Rhodan com uma risada; ao que parecia, a conversa o divertia. — Se esses indivíduos soubessem como um legado desses é pesado de carregar, desistiriam do intento.

— De qualquer maneira a vontade de possuir esse legado causou a traição — disse Lloyd olhando para Kuri Onere. — O que me preocupa é que um dia podem informar os saltadores de que Perry Rhodan e o planeta Terra ainda existem.

— De qualquer maneira há de chegar o dia em que isso não será nenhum segredo — disse Rhodan. — E o computador regente de Árcon ficará sabendo que alguém o enganou. O que mais me alarma é o fato de que em nossas próprias fileiras pôde ocorrer algo parecido com uma rebelião.

— Um mutante também é apenas uma criatura humana — disse Lloyd, defendendo seus inimigos. — Os dois se sentem prejudicados por lhes ter sido negada a ducha celular. Quem sabe se isso não foi um erro?

— Ninguém é infalível — disse Rhodan, esquivando-se de uma resposta objetiva. Ficou calado por um instante e perguntou:

— Quem é o representante de Árcon neste mundo?

— O nome do administrador é Mansrin. Não o conheço pessoalmente, mas pelo que dizem é um sujeito muito competente, muito embora a conhecidíssima arrogância arcônida leve a melhor. Por que fez essa pergunta?

— Por nada — disse Rhodan, que ainda não havia elaborado um plano definido. — É importante que a gente saiba com quem está lidando.

— Alguns dos meus aliados ainda devem estar neste planeta, se é que sobreviveram ao ataque. Não tive tempo para cuidar disso.

— É o que Noir está fazendo neste instante — disse Rhodan. — Pelo que estou informado, houve sobreviventes que neste instante estão tentando acostumar-se a Gucky e Gracinha.

— Gracinha? — perguntou Lloyd, esticando as sílabas. — Nunca ouvi falar nessa criatura. Trata-se de um novo membro de nosso Exército de Mutantes?

Rhodan riu.

— Infelizmente Gracinha não chega a ser um mutante; é apenas um purrense. Desde ontem...

— O que vem a ser um purrense?

— Trata-se de uma raça de felinos gigantes que vive em algum lugar no setor central da Via Láctea. Esses animais, originariamente inofensivos, são fáceis de serem hipnotizados e, quando isso acontece, podem transformar-se em feras. Os saltadores e outras inteligências souberam tirar proveito dessa circunstância. Conseguimos “desarmar” Gracinha e o acolhemos. Mantém excelente amizade com Gucky.

— O gato e o rato? — disse Lloyd, sacudindo a cabeça. — E olhe que Gucky sempre teve um respeito tremendo pelos gatos, especialmente os grandes. Lembro-me da visita ao zoológico de Terrânia. O rato-castor tremia de medo quando passamos pelo alojamento dos tigres. “É puro instinto”, disse para desculpar-se. E, de repente, acontece isso? Qual é o tamanho de Gracinha?

— Pode competir perfeitamente com um tigre real adulto.

Lloyd não podia compreender.

— E Gucky consegue dar-se com uma criatura dessas? É inconcebível.

Rhodan sorriu e mudou de assunto.

— Preciso de mais algumas informações, a fim de fazer meus preparativos. Quem sabe se poderia ajudar...

— Pergunte à vontade. Afinal, não estava dormindo no momento em que fui atingido pelo raio de choque.

Rhodan submeteu Lloyd a um interrogatório minucioso.

 

— Você devia usar algum disfarce! — recomendou Noir, contemplando Gucky da cabeça aos pés. — Desse jeito qualquer um logo o reconhecerá.

O rato-castor endireitou o corpo e alisou o pêlo marrom, desgrenhado pelas carícias de Gracinha.

— Usar um disfarce? — perguntou em tom de perplexidade. — Vou disfarçar-me de quê? De homem? Isso daria na vista de qualquer pessoa, por mais idiota que essa seja.

— Devia usar ao menos uma capa, para esconder um pouco o pêlo. Talvez achem que você é um anão.

Gucky suspirou.

— A vida das personalidades importantes não é nada fácil — constatou e, ao que parecia, o fato lhe servia de consolo. — Se eu fosse como um homem qualquer, tudo seria muito mais simples para mim. Mas assim...

Rhodan concluiu o desenho que elaborara num pedaço de papel.

— Infelizmente Lloyd não está muito familiarizado com os detalhes, mas ao menos descobriu onde fica o quartel-general dos traidores. Gucky, você vai saltar para o edifício e fará uma planta da parte interna. Vamos precisar dela mais tarde, quando começar a confusão.

— Que confusão?

— Você saberá em tempo. Não se deixe agarrar em hipótese alguma e dê o fora assim que apareça alguém. Volte quanto antes. Entendido?

— Voarei como o raio — prometeu o rato-castor e lançou um olhar desconfiado para Noir, que retornava com um pano colorido. — Para que serve esse pedaço de cortina de circo? Você não vai me dizer que devo usar esse pedaço de pano.

— Por que não? — perguntou Rhodan, que já compreendera os planos de Noir. — Se alguém o descobrir nesse disfarce, não saberá de onde você vem. Vamos logo, Gucky! Vista isso. Não seja tão melindroso.

— Mas... — piou Gucky em tom lamentoso. Parecia que teria de pagar por todos os pecados do Universo.

— Não há nenhum mas! — disse Rhodan em tom implacável. — Acha que vai participar de um concurso de beleza?

Gucky conformou-se com o destino cruel.

Parecia um macaco vestido à maneira dos animais que antigamente o pessoal de circo costumava levar para despertar a atenção das crianças. Os olhos recriminadores exprimiam todo o sofrimento do mundo. Num ponto mais afastado, Gracinha choramingava tristemente; até parecia que Gucky estava sendo conduzido ao cadafalso.

— Só os tolos são vaidosos — disse Rhodan, reprimindo o riso. — Salte logo, meu velho!

— Seus provérbios são sábios — murmurou Gucky, enfatizando as palavras — mas não representam nenhum conforto para o meu coração amargurado. Até logo.

Desapareceu antes que os circunstantes tivessem tempo de respirar.

O purrense continuava a choramingar.

Ou será que era uma purrense?

Por enquanto ninguém se dera ao trabalho de verificar este ponto.

 

A cidade de Kuklon, capital do planeta de Volat, era o único lugar desse mundo que apresentava características interestelares. Ali se concentrava a vida civilizatória. E era a partir dessa cidade que se administrava o mundo colonial. Os nativos, os volatenses, pouco se interessavam por essa administração e viviam sua própria vida. Porém sabiam que, naquele amontoado de lindas construções, moravam os seres que se arrogavam à qualidade de senhores do planeta.

Volat era antes uma base, e não um mundo colonial propriamente dito. Em algumas cadeias montanhosas, minérios valiosos eram extraídos. Mas a função principal de Volat era a de entreposto para os bens vindos de outros sistemas. No centro da cidade, ficava o edifício da administração de Árcon com sua gigantesca antena de hiper-rádio. A qualquer momento, o administrador podia entrar em contato com o gigantesco computador positrônico que governava o império estelar dos arcônidas.

Bem próximo ao amplo espaçoporto ficava outro edifício. Erguia-se bem alto e todo mundo acreditava que servia de sede a empresas comerciais dos saltadores. Boa parte das salas dos pavimentes superiores eram alugadas para servirem de escritórios. Centenas de firmas tinham sede ali.

Nos primeiros minutos Gucky quase não despertou a atenção de ninguém, pois a Galáxia estava cheia de seres estranhos.

O rato-castor materializou-se numa grande sala do vigésimo pavimento. Felizmente não havia ninguém por ali, motivo por que sua aparição do nada não foi percebida. Com um movimento contrariado, arrumou a capa colorida, soltou um profundo suspiro e saiu caminhando em direção à porta mais próxima.

Essa porta dava para um corredor largo. Havia janelas que permitiam a visão para o espaçoporto. As naves enfileiravam-se uma ao lado da outra e, entre elas, trafegavam veículos de passageiros e de carga. Transportadores rápidos deslizavam rapidamente sobre trilhos reluzentes e, a cada dois ou três minutos, decolava ou pousava uma nave.

— Que movimento! — disse Gucky em tom de admiração, esforçando-se para não pisar em sua vestimenta.

Caminhava com dificuldade; acontece que não conseguia ver os pés embaixo da capa, e isso se transformou numa circunstância bastante desagradável. Se alguém o visse cambaleando, ficaria admirado com o estranho anão que, segundo tudo indicava, bebera demais.

À sua direita, ficavam as portas com inscrições de nomes de empresas.

No edifício devia haver duas mil salas, talvez mais. Como poderia fazer para encontrar a sala procurada? Teria de confiar no acaso. Gracinha lhe havia contado que os estranhos feiticeiros só seriam achados nos pavimentes inferiores.

A porta de um elevador abriu-se bem à frente de Gucky. Alguns saltadores desceram e apressaram-se em seguir seus caminhos. Apenas um deles lançou um olhar de espanto para o anão colorido, mas nem se preocupou. Os negócios eram mais importantes.

Gucky suspirou aliviado e entrou no elevador. Dali a vinte segundos, viu-se no corredor que atravessava o terceiro pavimento. Pelo aspecto exterior o mesmo não se distinguia da galeria do vigésimo pavimento; apenas, não se viam as inscrições das empresas. Em compensação, havia sobre as portas algarismos arcônidas, que Gucky conhecia muito bem.

O rato-castor passou lentamente pelas portas e procurou captar os impulsos mentais vindos do outro lado das mesmas. Constatou que muitas delas estavam vazias. Em algumas delas, havia indivíduos inofensivos que não pensavam em nada que pudesse ser considerado suspeito. Apenas cumpriam as tarefas de cada dia. Não sabiam de nada que ultrapassasse suas áreas de competência. Só cuidavam de seus pequeninos trabalhos e nem desconfiavam dos grandes acontecimentos.

Talvez tivesse mais sorte no segundo pavimento, ou no primeiro.

Antes que pudesse voltar, uma porta abriu-se bem à sua frente e um homem saiu para o corredor. Estacou ao ver Gucky, e este logo reconheceu o perigo. Sabia que não se tratava de um funcionário como qualquer outro.

— O que está procurando por aqui? Quem é o senhor? — gritou o outro.

O fato aborreceu Gucky, que estava acostumado a ser tratado de maneira diferente. Porém não se deixou arrastar a qualquer ato irrefletido. Fez uma mesura formal e declinou seu nome, sacudindo a capa colorida de tal maneira que quase se chegava a ter a impressão de que se tratava de uma saudação da corte.

— Sou Brabul, rei de Voodoo, nobre saltador. Estou à procura de Mansrin, o administrador.

O saltador parecia bastante contrariado.

— O administrador mora no palácio. Quem foi que o mandou para cá?

— No espaçoporto alguém me disse que...

— Onde fica Voodoo? Quais são as coordenadas?

Gucky perdeu a paciência.

— Quero falar com o administrador, mas não tenho o menor interesse em contar-lhe quais são as coordenadas de Voodoo. Isso não lhe interessa.

O saltador também não parecia estar acostumado a que falassem com ele nesse tom. Levantou o braço e segurou a capa de Gucky.

— Escute seu anãozinho de jardim — disse em arcônida.

Evidentemente a expressão “anãozinho de jardim” tinha uma conotação diferente, mas Gucky compreendeu. — Você é um sujeitinho bem atrevido. Terei de vigiá-lo. Vamos, vá andando. E faça o favor de não pensar em bobagens. Vamos ver o que o chefe acha de você.

Gucky reprimiu a vontade totalmente compreensível de fazer seu interlocutor voar para o teto ou para fora da janela. Abaixou-se e não esboçou qualquer reação. Saiu cambaleando com uma expressão de espanto no rosto; fazia uma figura bastante triste.

“Mais tarde farei o saltador pagar por isso”, pensou e conseguiu conservar o necessário autocontrole.

O saltador parou diante de uma porta do primeiro andar. Uma das mãos segurava a capa de Gucky, enquanto a outra era encostada ao controle térmico da fechadura. A porta marcada com o número 18 abriu-se sem o menor ruído.

Gucky foi empurrado violentamente para dentro da sala. Por pouco não tropeça sobre o pano que o envolvia, e que se enlaçou em suas pernas. Conseguiu manter-se de pé graças às forças telecinéticas que emitia; felizmente ninguém notou.

Por alguns segundos esqueceu-se do saltador, pois atrás da enorme escrivaninha estava sentado um homem que conhecia.

Era Gregor Tropnow, o traidor.

Esse homem, que já tinha 88 anos, parecia muito mais jovem graças ao processo biológico de conservação celular. Quando levantou a cabeça e contemplou a criatura que acabara de entrar, seu rosto dava mostra de extrema concentração. Não reconheceu Gucky. O rato-castor não se admirou, pois nunca tivera um contato mais estreito com Tropnow.

— O que houve?

O saltador perdeu o ar de superioridade. Num tom que quase chegava a ser humilde informou:

— Este sujeito andou espiando no setor administrativo. Achei que talvez fosse conveniente o senhor ocupar-se com ele. Alega que quer falar com Mansrin.

Tropnow fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. Aguarde lá fora até que eu o chame — não se moveu até que o saltador acabasse de sair da sala. Depois inclinou-se para a frente e fitou Gucky. — Quem é o senhor?

— Sou Brabul de Voodoo — disse Gucky com uma mesura solene. — Quero entregar ao administrador alguns presentes de meu povo. Infelizmente pareço ter errado de casa.

— É verdade — disse Tropnow, esticando as sílabas, e passou a utilizar sua capacidade hipnótica.

A ordem silenciosa dirigida a Gucky mandava-o dizer a verdade. É claro que essa ordem não conseguiu atravessar o campo defensivo do rato-castor, motivo por que não produziu o menor efeito. Mesmo assim, Gucky teve o cuidado de não deixar que seu interlocutor percebesse qualquer coisa.

— Trata-se de babuínos adestrados — disse em tom compenetrado.

Tropnow estremeceu.

— O quê? — gemeu fora de si. — Babuínos?

— Isso mesmo — respondeu Gucky com um gesto sério. — Conseguimos adestrar esses animais raros. Queremos presenteá-los a Árcon. Uma vez que Árcon é o ponto do Império que fica mais próximo ao nosso mundo, julguei conveniente...

Gucky registrou o alívio no cérebro de Tropnow. O resquício de suspeita desapareceu da mente do hipno. Certamente estava convencido de que o anão de vestes coloridas estava dizendo a verdade. Não havia resistência contra a força sugestiva de um cérebro hipnótico. Por um segundo uma idéia atravessou o cérebro do traidor, e essa idéia literalmente eletrizou Gucky: Não é nenhum truque de Rhodan para descobrir o paradeiro de Thora. Ela está em lugar seguro.

— Não temos nada a ver com a administração — disse Tropnow com um sorriso condescendente. — Lá fora o senhor encontrará táxis que poderão levá-lo ao lugar em que está Mansrin. Tenha uma longa vida... hum, como é mesmo o nome?

— Brabul, senhor — informou Gucky prontamente e procurou descobrir mais alguma coisa sobre o paradeiro de Thora.

Mas Tropnow não fez mais nenhuma referência mental concernente a Thora. — Brabul de Voodoo.

O mutante comprimiu um botão. O saltador entrou.

— Mostre a saída a Brabul, que tem permissão para retirar-se.

Gucky cambaleou para fora da sala e saiu caminhando pelo corredor, em direção ao elevador. Ficou contrariado ao notar que o saltador o acompanhava. Isso não era nada agradável, pois não tinha a menor intenção de abandonar tão depressa a toca do leão. Parou subitamente, mediu o saltador perplexo com um olhar de desprezo e chiou em tom amargurado:

— Dê o fora, filho de um verme! Não ouviu o homem dizer que estou livre e posso ir para onde quiser? Dispenso sua companhia.

O saltador era musculoso e tinha quase dois metros de altura. Uma barba ruiva emoldurava o queixo, e em seus olhos a audácia emparelhava-se com o espírito empreendedor. Só se sentiu dominado pelo espanto por uma fração de segundo, mas seu verdadeiro caráter logo levou a melhor.

“Esse anão ridículo. Que atrevimento! Teve a audácia de insultar-me”, pensou. “Não posso suportar uma coisa dessas.”

Adiantou-se de chofre e segurou Gucky com ambas as mãos.

— Eu o mato, seu monstrinho — disse em tom furioso e puxou-o para junto de si. O rato-castor ficou satisfeito. Concentrou-se e realizou a teleportação.

No mesmo instante, voltou a materializar-se no platô em meio à mata virgem. O saltador continuava a segurá-lo. O contato físico fizera com que o rato-castor também o teleportasse. Evidentemente não teve consciência do fato. Ficou ainda mais espantado ao notar que, de um instante para outro, encontrava-se num ambiente bastante diverso.

— O que é que eu sou? — chiou Gucky em tom furioso e empurrou o saltador perplexo para longe. — Um monstrinho? E logo você é quem vem me dizer uma coisa dessas, seu colosso de carne com cérebro de pulga? Você ainda terá oportunidade de me conhecer melhor.

— Onde estou? — gaguejou o saltador, que já não compreendia mais nada.

Gucky soltou um assobio estridente. Rhodan saiu de uma das colméias. Noir seguiu-o de perto. Uma sombra cinzenta atravessou a praça e foi assumindo contornos: era Gracinha. Cumprimentou Gucky com um choro alegre e rosnou bastante zangado para o saltador.

— Vamos, seu monte de estupidez — disse Gucky, empurrando o prisioneiro à sua frente. — Meu chefe quer falar com o senhor, e quero dar-lhe um bom conselho: diga a verdade.

O saltador lançou um olhar apavorado para o purrense, que continuava furioso, e pôs-se a andar. Gucky ficou para trás e acariciou Gracinha.

Rhodan lançou um olhar curioso para o visitante forçado, que se aproximou aos tropeções e parou à sua frente. Não conseguiu ler nada em sua mente além da confusão. O saltador ainda não compreendia como fora parar ali. Havia algo de errado em tudo isso.

Antes que pudesse abrir a boca para formular uma indagação a esse respeito, o homem alto de rosto tão franco e severo adiantou-se. A pergunta dirigida a ele foi tão surpreendente e clara que teve de responder antes que pudesse pensar numa mentira:

— Onde está Thora, a mulher que foi seqüestrada por Tropnow?

— No subsolo...

Rhodan segurou a mão de Noir. Entre eles estava Gucky, que enlaçou os dois com os bracinhos. O contato seria suficiente para possibilitar a desmaterialização.

— É agora! — disse Rhodan.

Gucky concentrou-se sobre o palácio do administrador e saltou.

Tiveram sorte. Viram-se na cobertura do gigantesco edifício, bem acima da cidade e junto à antena do hiper-emissor. O local estava ermo. Havia uma escada que levava para baixo.

Separaram-se.

— Cuidem para que ninguém me perturbe — disse Rhodan. — Fiquem nas imediações das salas de rádio e intervenham sempre que seja necessário. Manteremos contato telepático.

O saltador preso lhes havia fornecido todas as informações desejadas. Estavam perfeitamente cientificados sobre a divisão das peças do palácio de Mansrin.

Ao chegar à porta da sala de rádio, Rhodan hesitou um pouco. Não estava armado. O que faria se houvesse resistência? A idéia de usar violência causava-lhe repugnância. Dessa forma, teria de influenciar os outros com o olhar sugestivo e com palavras enérgicas.

Com um gesto de cabeça, cumprimentou Noir e Gucky. Depois abriu abruptamente a porta.

Graças ao seu aprendizado hipnótico conhecia as instalações, de um hipertransmissor. Quase todos os controles eram automáticos. A dificuldade consistia apenas em regular o aparelho para as coordenadas corretas de transmissão e em conhecer o sinal de chamada do destinatário da mensagem.

Havia só um homem na sala. Estava sentado numa poltrona e lia. Quando Rhodan entrou, levantou a cabeça e cerrou os olhos. Por fora, Rhodan pouco se diferençava de um arcônida ou de um saltador, com exceção de alguns detalhes insignificantes.

— O que deseja? — perguntou o homem em tom indeciso e levantou-se. Não sabia o que fazer com o desconhecido. — Quem foi que o mandou para cá?

Rhodan olhou para o operador de rádio.

— Trago ordens do administrador. Faça uma ligação urgente para o regente robotizado de Árcon.

Talvez o homem aceitasse a ordem e executasse o trabalho. Porém o operador de rádio estava desconfiado...

— Trouxe uma ordem escrita?

Rhodan sacudiu a cabeça e reforçou a potência sugestiva de seu olhar.

A ação produziu o efeito desejado. O operador de rádio foi ao quadro de controle e dirigiu a energia para as instalações. Com alguns movimentos, ligou o transmissor e o receptor. Telas acenderam-se. Rhodan foi para o lado, a fim de não ser captado por uma câmara oculta. Não convinha que o robô o reconhecesse. Sua intenção era fazer com que o computador quebrasse “a cabeça” para descobrir por que seu interlocutor não aparecia.

— Aqui fala a estação Volat, sistema Heperés. Administração Mansrin. Responda, regente.

Rhodan chamou Gucky por via telepática. O rato-castor entrou. Perry acenou com a cabeça, o rato-castor compreendera. Por trás, aproximou-se do operador de rádio, que não desconfiava de nada, colocou o braço em torno de seu corpo e desapareceu com o homem. Dali a dez segundos, voltou a materializar-se, sem o operador de rádio.

— Eu o tranquei no porão — chiou muito alegre. — Levarão ao menos duas horas para encontrá-lo. E quando isso acontecer não poderá fornecer qualquer explicação sensata sobre a maneira pela qual chegou lá. Ninguém acreditará que algum espírito o retirou do seu posto.

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Vá para fora. Cuide juntamente com Noir para que no próximo minuto ninguém entre nesta sala. O computador regente não deve desconfiar de nada.

Gucky retirou-se.

A resposta da primeira mensagem chegou.

A tela iluminou-se e Rhodan voltou a ver o “rosto” conhecido do regente. Era uma gigantesca semi-esfera de aço puro que descansava sobre a seção do corte. Tratava-se do maior computador positrônico do Universo. Ficava a quase 30 mil anos-luz de distância e estava abrigado num enorme pavilhão, de onde governava o império estelar. As ondas de rádio percorreram o hiperespaço e transmitiram sua imagem em menos de um milésimo de segundo.

Ouviu-se a voz mecânica do computador...

— Aqui fala o regente de Árcon. O que houve, Volat?

Rhodan mantinha-se longe da instalação. Disse:

— Alarma, regente! Um grupo de rebeldes revoltou-se contra o Império. O administrador Mansrin pede o envio de uma pequena frota de apoio.

Houve uma ligeira pausa. Depois ouviu-se a pergunta:

— Não estou recebendo a imagem. Quem está falando?

— O radioperador de plantão, regente. As instalações estão com defeito. O transmissor de imagens está com defeito. O auxílio é urgente.

Seguiu-se mais uma ligeira pausa. Depois veio a resposta:

— Frota será enviada. Chegará a Volat dentro de vinte e quatro horas planetárias. Aliás, a imagem da sala de rádio está sendo captada com toda nitidez. Não constatei qualquer defeito.

Rhodan assustou-se. Não se lembrara da lógica inflexível do computador. Sua desculpa não fora bem pensada. Decidiu jogar todas as chances numa única carta. Com uma das mãos, pegou a chave principal que desligava a energia e disse:

— Estou falando por uma linha auxiliar. Os rebeldes... Socorro...

De repente moveu a chave. A instalação foi desligada.

O alto-falante emudeceu.

O computador teria tempo de sobra para refletir.

Um sorriso frio surgiu no rosto de Rhodan enquanto caminhava até a porta. Abriu-a e saiu para o corredor. Noir e Gucky estavam parados, sem fazer nada. Não aparecera ninguém que pudesse perturbar Rhodan.

— Pronto! — disse este e continuava a sorrir. — Dispomos de exatamente vinte e quatro horas para dar uma batida no quartel-general. O regente de Árcon não tolera qualquer revolta contra o Império. Quando tudo tiver passado, todo mundo acreditará que Árcon impôs a ordem. Ninguém desconfiará que nós estivemos atrás disso — segurou a mão de Gucky e de Noir a fim de estabelecer o contato que permitiria o salto de teleportação. — Deixaremos que Árcon trabalhe por nós. Afinal, já fizemos muita coisa em favor do regente.

Gucky assobiou para manifestar sua concordância e exibiu o dente roedor.

Foi a última coisa que Rhodan viu antes que se encontrasse novamente no platô da rocha situado em plena mata virgem. Quando rematerializaram-se, Perry quase pisou o rabo de Gracinha.

 

OS últimos detalhes do plano de ação foram acertados naquela mesma noite.

— Seria muito mais simples se eu saltasse sozinho para dentro desse ninho de víboras e tirasse Thora de lá — disse Gucky pela décima vez.

Sentado no chão, estava recostado contra a barriga macia de Gracinha, que se esticava gostosamente e ronronava baixinho.

— Não é possível — repetiu Rhodan, também pela décima vez. — Estou interessado principalmente em pôr os dois traidores fora da ação e colocar a culpa nas costas do computador regente.

— Será que o computador positrônico tem costas? — disse Gucky em tom de espanto, sacudindo a cabeça.

A expressão de seu rosto era muito séria.

Rhodan já parecia estar cansado de ocupar-se com as sutilezas do rato-castor. Prosseguiu:

— Quando a frota de guerra de Árcon chegar ao planeta para agir contra os rebeldes, deve haver prova evidente de que em Volat realmente existem rebeldes. Acontece que por enquanto ninguém sabe disso. Se houver uma pequena guerra no edifício que abriga as empresas dos saltadores, os oficiais de Árcon reagirão imediatamente. Tomara que Mansrin acompanhe a ação. Deve-se ter a impressão de que Tropnow e Yatuhin se rebelaram contra o Império.

— E as tropas de Árcon avançarão contra os mesmos — disse Noir com um gesto de concordância. Estava sentado ao lado de Lloyd, que já se recuperara perfeitamente e ansiava para vingar-se da derrota. — Mataremos dois coelhos com uma só cajadada. Vamos nos livrar dos inimigos, sem que ninguém saiba de quem eles eram inimigos.

— Desde que fiquem com a boca fechada... — resmungou Gucky.

Rhodan respondeu em tom bastante sério:

— Os traidores não devem ter a menor oportunidade de revelar o segredo. Gucky cuidará disso.

O rato-castor fez um rosto muito triste.

— Sempre eu! E olhe que sou pacifista. Não consigo matar ninguém...

— Quem está falando em matar? Quero que você se “apodere” dos dois mutantes. Depois Noir lhes aplicará um bloqueio hipnótico que fará com que se esqueçam de tudo. O resto será providenciado na Terra.

Gucky sentiu-se tranqüilizado. Fez um gesto de concordância. Rhodan prosseguiu:

— Amanhã pelo meio-dia penetraremos no edifício dos amotinados, com a ajuda da tropa auxiliar de Lloyd. Mais ou menos naquela hora, deverá pousar a frota de Árcon. Ainda ao mesmo tempo, alarmarei Mansrin. Este reagirá imediatamente e enviará os soldados do Império ao lugar em que estivermos. Em meio à confusão generalizada, seqüestramos os dois mutantes e libertamos Thora. Meu plano é mais ou menos este. Alguma sugestão?

Lloyd fez um gesto.

— Tenho uma pergunta. Vamos voltar ao platô?

— Naturalmente. Depois providenciaremos o resto.

— Minha Gazela está escondida nas proximidades da cidade. Suponhamos que neste meio tempo tenha sido encontrada. O que faremos se isso acontecer?

— Não se preocupe. Combinei um sinal de emergência com o comandante Markus. Além disso, não existe o menor indício de que a nave tenha sido descoberta.

Lloyd hesitou um pouco, mas logo se deu conta de que certamente já haviam lido seus pensamentos. Lançou um olhar ligeiro para Kuri Onere, que se mantinha um pouco afastada, acompanhando a palestra.

— O que será feito de Kuri? Se não fosse ela...

Rhodan mostrou um sorriso cheio de compreensão e acenou com a cabeça.

— Kuri irá à Terra conosco. Thora ficará satisfeita em ter mais uma amiga na qual possa confiar. Mais alguma pergunta?

Fellmer Lloyd suspirou aliviado. Não tinha outras perguntas.

 

Mais um dia raiou sobre a cidade de Kuklon. Como de costume, era um dia ensolarado e quente. Neste ponto esse dia não se distinguia dos outros de verão. Mas hoje aconteceria uma coisa que faria dele um dia todo especial.

Ao menos para aqueles que conseguissem sobreviver ao mesmo.

O administrador Mansrin ainda não tinha a menor idéia dos próximos acontecimentos. Tal qual fazia todos os dias, levantara não muito cedo, tomara um banho morno e saboreou o lanche.

Ouviu os pedintes costumeiros pertencentes à raça dos nativos e, ainda tal qual fazia todos os dias, recusara seus pedidos. O que tinha que ver com essas semi-inteligências primitivas? Poderiam ficar contentes porque pouco se interessava por elas, preferindo deixá-las em paz.

Depois leu as notícias que acabaram de chegar do setor de rádio. Era bem mais interessante. Havia cada coisa...

No sistema de Berila, acabara de ser sufocada uma revolta engendrada por uma raça de seres semelhantes a cobras. Uns vinte mil anos-luz mais adiante, próximo ao centro da Via Láctea, houve uma tempestade cósmica elétrica, que vitimara uma frota robotizada. Uma única nave conseguiu escapar à catástrofe e ofereceu um relato vivo. Mansrin ouviu-o com um ligeiro calafrio. Gostava mais desse tipo de entretenimento que dos modelos coloridos abstratos que eram projetados nas telas de recreação. Além disso, escutou que houve uma guerra entre os planetas de um sistema gigante. Nessa guerra estiveram envolvidos mais de cinqüenta mundos, mas o regente interviera de pronto.

Subitamente Mansrin descobriu o que havia de errado nesse noticiário.

Refletira sobre isso todo o tempo, mas não se deu conta do que lhe chamara a atenção. Agora sabia. No cronograma das confirmações de recepção, havia uma lacuna.

Uma lacuna considerável!

Durante três horas a estação de rádio esteve desguarnecida, ou então o operador de plantão dormira.

Procurou o nome e encontrou-o. Também descobriu quem era o operador substituto.

Mansrin, um arcônida não pertencente à classe das criaturas degeneradas e indolentes, não confiava integral e exclusivamente na tecnologia por eles criada. Ainda sabia pensar e agir.

E foi o que fez.

— Diga ao operador de rádio Bredag que deve comparecer aqui — ordenou assim que a ligação com o chefe do pessoal foi estabelecida. — Quero que venha imediatamente e que traga o cartão de controle eletrônico.

O administrador recostou-se na poltrona e ficou esperando. Não tolerava o desleixo, ainda mais entre seus colaboradores mais chegados. Se o operador de rádio não pudesse provar que naquelas três horas do dia anterior não havia chegado nenhuma mensagem, era porque havia dormido. Ou então porque não se encontrava na sala de rádio.

A porta abriu-se. Mas quem entrou por ela não foi Bredag, mas um jovem arcônida. Em seu rosto havia uma expressão de perplexidade, misturada com a consciência da culpa.

— Perdão, administrador. Entrei em serviço na sala de rádio depois do turno de Bredag. Não estava presente quando entrei na sala. Supus que tivesse saído mais cedo. Porém, quando o oficial de serviço perguntou por ele, vi que o cartão de controle se encontrava no quadro. Dessa forma, Bredag ainda não podia ter saído da sala de rádio!

Mansrin estreitou os olhos.

— Não estou com vontade de resolver charadas logo de manhã. Explique melhor o fenômeno.

— Não existe explicação para o fenômeno, senhor. O cartão de controle foi inserido no espia eletrônico que controla a única porta de acesso à sala de rádio. Esse cartão registrou a entrada de Bredag, mas não contém qualquer indicação de que tenha saído. Logo, Bredag ainda deve encontrar-se no interior da sala de rádio. Acontece que não está lá!

— Isso é impossível! — exclamou Mansrin e ergueu-se. — Não me venha com contos de fadas. O que houve com Bredag? Preciso saber.

— Revistamos a sala de rádio, mas não encontramos o menor vestígio de Bredag.

Não queríamos preocupá-lo e por isso preferimos informá-lo só depois que o incidente fosse esclarecido. Infelizmente isso ainda não aconteceu.

— Ninguém pode enganar o controle eletrônico. Bredag tem de estar na central.

— Acontece que não está — insistiu o operador de rádio. — Só existe uma explicação lógica: Bredag dissolveu-se no ar e desapareceu.

— O senhor acha que essa explicação é lógica? — esbravejou Mansrin. — Nunca ouvi uma tolice igual. Hum, talvez haja algum defeito no equipamento de controle. Mas mesmo se isto tivesse acontecido, tornava-se possível encontrar Bredag.

— Pois é justamente isso, senhor. Não conseguimos encontrá-lo. Nem mesmo nos seus aposentos.

Mansrin refletiu.

— As três horas que faltam no cronograma deixam-me bastante preocupado. No momento em que foi ocupar seu posto e não encontrou Bredag, o senhor deveria ter avisado imediatamente.

— Vez por outra acontece que alguém sai da sala de rádio alguns minutos antes do revezamento. Qualquer mensagem que chegue é recebida e registrada automaticamente. Mas no caso isso não aconteceu. A aparelhagem estava desligada.

— Desligada?

— Sim senhor. Ficou desligada durante três horas.

O administrador voltou a recostar-se na poltrona. Lançou um olhar pensativo sobre o jovem arcônida. Seu instinto lhe dizia que o mesmo estava falando a verdade. Mas nem por isso o mistério estava resolvido. Pelo contrário...

Uma inquietação começou a espalhar-se pela mente de Mansrin. Em seu pensamento lógico, orientado segundo os ditames da técnica, não havia lugar para fenômenos inexplicáveis. Tudo tinha uma explicação, até mesmo um milagre!

— Continue a procurar Bredag. Assim que for encontrado, quero falar com ele. Mantenha-me informado. Pode retirar-se.

Quando se viu só de novo, fechou os olhos e meditou.

Teve a impressão segura de que esse incidente não seria a única surpresa desagradável do dia.

E esta impressão seria confirmada.

 

Dali a duas horas, várias pessoas entraram discretamente no gigantesco edifício situado nas proximidades do espaçoporto. Vinham das direções mais variadas e pareciam não ter nada uma com a outra. Evidentemente essa conclusão era falha.

Fellmer Lloyd atravessou o corredor do primeiro andar e entrou no bem montado pavilhão de leitura, junto à sala de recepção. Cumprimentou alguns volatenses que estavam sentados nas poltronas confortáveis e mergulhados na leitura dos jornais espalhados por toda parte. Também sentou-se e pegou um livro sobre a construção da frota espacial arcônida.

A menos de cinqüenta metros dali Rhodan e Noir pararam diante de uma porta. Havia uma placa que indicava tratar-se da sala no 18.

— Gucky, onde está? — telepatou Rhodan e perscrutou intensamente seu interior.

A resposta veio com uma rapidez espantosa:

— No porão. A primeira sala, instalada como prisão, está vazia. Chefe, dê-me uma dica sobre o lugar em que devo procurar.

— Assim que tiver, darei — transmitiu Rhodan. — Enquanto isso continue a procurar.

Depois fez um sinal para Noir e bateu fortemente à porta.

Demorou bastante até que se ouvisse um leve zumbido. A porta poderia ser aberta. Rhodan ficou admirado por ter sido tão fácil. Esperara enfrentar dificuldades bem maiores, mas provavelmente Tropnow se sentia muito seguro.

Entrou acompanhado de Noir e fechou a porta.

O traidor estava sentado atrás de sua escrivaninha e fitava os dois homens que acabavam de entrar. Ao que parecia, seu cérebro recusava-se a compreender o fato de que o homem que supunha estar a 4.300 anos-luz de distância subitamente se encontrava diante dele. Demorou quase dez segundos até que a cor de sua pele se modificasse. Tornou-se branca como a neve; não havia uma gota de sangue nas bochechas. Tropnow ergueu-se ligeiramente na poltrona, mas logo voltou a afundar na mesma. Sua boca abriu-se e gaguejou alguma coisa, mas não conseguiu articular nenhum som inteligível.

— Bom dia — disse Rhodan em tom amável, mas sua voz continha um sinal de advertência para o traidor. — Estimo vê-lo bem disposto. Espero que minha esposa esteja tão bem disposta como o senhor.

— Rho-Rhodan — balbuciou Tropnow. — O senhor?

— No segundo subsolo há um arsenal. O que devo fazer? — transmitiu Gucky.

— Pegue um radiador de impulsos e solde a porta do lado de dentro — ordenou Rhodan com o rosto impassível.

Depois voltou a dirigir-se a Tropnow, que continuava trêmulo, e disse:

— Onde está Thora? Fale logo, senão Noir esvaziará seu cérebro. O senhor sabe perfeitamente como uma pessoa costuma ficar depois disso.

O traidor, também um hipno, sabia perfeitamente que uma intervenção violenta na consciência pode causar perda parcial da capacidade de raciocínio. Estendeu a mão num gesto de defesa.

— Direi tudo, Sir. Pode perguntar.

— Já formulei uma pergunta.

Na testa de Tropnow surgiram as primeiras gotas de suor. Brilhavam que nem pérolas.

— Thora está... está num lugar seguro. O senhor me concede a liberdade se eu revelar o lugar em que se encontra?

Como hipno que era, Tropnow conseguia ocultar seus pensamentos. Rhodan não conseguiu descobrir onde estava Thora. Fez um esforço para controlar-se e não demonstrou a raiva de que estava possuído. Mas sua voz soava fria e perigosa quando disse:

— Tropnow, eu o previno. O senhor não pode estabelecer condições. O fato de eu o ter encontrado a uma distância de milhares de anos-luz não lhe diz bastante? Neste instante, uma frota de guerra arcônida está pousando em Volat, a fim de restabelecer a ordem. O senhor não tem a menor possibilidade de exercer qualquer vingança contra mim. Desista Tropnow.

— Será que Thora significa tão pouco para o senhor?

Noir cerrou os punhos, mas Rhodan advertiu-o com um olhar.

— Tropnow! — disse Perry em tom enfático. — Nunca estrangulei um homem, mas hoje o farei. Neste instante e nesta sala. Eu o previno. O senhor dispõe de dez segundos.

Talvez Tropnow se desse conta de que Rhodan falava terrivelmente sério. Calculou suas chances, enquanto a mão procurava alcançar o botão de alarma. Faltavam dez centímetros.

— ...três... quatro... cinco...

Tropnow olhou de esguelha para os dois homens, enquanto sua mão atingia o botão e comprimia-o. Suspirou aliviado. Naquele mesmo instante, o alarma soaria em todas as salas em que as forças estivessem de prontidão e chamaria os homens às armas. Acontecesse o que acontecesse, daquele momento em diante não estaria só. Esse fato restituiu-lhe a autoconfiança.

— ...dez! — disse Rhodan. Continuava com o rosto impassível, sem demonstrar que vira o movimento do traidor. Ao desencadear o alarma, Tropnow colaborou com os planos de Rhodan. Era pouco antes de meio-dia. A frota dos arcônidas devia pousar naquele instante. — Então, onde está Thora?

Tropnow soltou uma risada sarcástica.

— O senhor disse que me mataria, Rhodan. Pois mate-me, e nunca descobrirá onde está Thora.

Outra mensagem silenciosa de Gucky foi captada:

— Acabo de descobrir Thora. Ela está passando bem. E agora?

— Espere aí mesmo, Gucky! — respondeu Rhodan e olhou para Tropnow. Depois disse em voz alta.

— Na verdade, devia aceitar seu convite. Quanto a Thora, não se preocupe. Já sabemos onde se encontra. Será que não acredita?

Tropnow soltou uma risada monstruosa.

— É verdade; não acredito — precisava ganhar tempo. A qualquer momento os homens por ele chamados poderiam entrar na sala.

— Pois o azar é seu, Tropnow. Thora está no subsolo. E Gucky está com ela.

— Gucky? Esse rato-castor?

— Então já o conhece?

Ouviu-se o ruído de passos vindo do corredor. Alguém bateu à porta. Tropnow dispôs-se a fazer um movimento, mas Rhodan advertiu-o com um olhar.

— Espere aí! Até parece que o senhor não preza a vida.

— O senhor não está armado.

Rhodan acenou lentamente com a cabeça.

— Isso não deixa de ser verdade. Mas o senhor não perde por esperar...

Passou a pensar intensamente:

— Ei, Gucky. Deixe Thora por mais algum tempo no lugar em que se encontra. Traga-nos alguns radiadores portáteis do arsenal. Venha à sala dezoito. Rápido!

Logo reiniciou:

— Mesmo sem podermos contar com sua colaboração no Exército de Mutantes, este ainda dispõe de muita gente capaz. Aguarde e verá.

O rosto de Tropnow, que já começara a recuperar as cores, tornou a empalidecer.

Voltaram a bater à porta. Desta vez as batidas foram mais fortes e insistentes.

Depois de uma ligeira pausa, um aparelho que se encontrava sobre a escrivaninha de Tropnow deu um estalo. Uma voz perguntou:

— O que houve com você, Gregor? Aqui fala Nomo. Por que não responde? Qual foi o motivo do alarma?

Antes que Tropnow pudesse completar o contato, Noir colocou-se a seu lado. Rhodan pôs o dedo sobre os lábios, ligou o transmissor e disse para dentro do microfone:

— Nomo, venha imediatamente à sala dezoito. Depressa!

Rhodan desligou sem dar outras explicações.

Na porta ouviu-se um chiado suspeito. Uma faixa de solda branca e fulgurante foi aparecendo. Tentavam penetrar no recinto à força. A situação começava a tornar-se crítica.

Subitamente, o ar começou a tremeluzir no centro da sala e Gucky surgiu do nada. Cinco radiadores portáteis caíram ruidosamente ao solo. Eram do tipo que, regulado à intensidade mínima, paralisava um homem por várias horas. Gucky ia desaparecer novamente, mas lembrou-se da raiva reprimida desde o dia anterior. Deu um passo rápido, colocou-se à frente de Tropnow, retesou o corpo e aplicou uma enorme bofetada no traidor.

— Isto não é nenhum babuíno, mas uma suculenta bofetada — chilreou em tom alegre. — E vem de mim.

A seguir, repetiu a cerimônia e explicou:

— E esta é pelo rapto de Thora.

No mesmo instante, desapareceu sem deixar o menor vestígio. As bochechas vermelhas de Tropnow e os cinco radiadores eram o único sinal da presença de Gucky.

Rhodan abaixou-se, colocou dois radiadores no cinto, pegou outro e passou os dois restantes a Noir.

— Bem, Tropnow, não vamos fazer essa gente esperar mais. Abra a porta antes que ponham fogo na casa. Ande logo!

Subitamente a porta incandescente abriu-se como que por mãos de um fantasma. Rhodan dedicou sua atenção ao que se passava no corredor. Sabia que a qualquer momento Fellmer Lloyd devia aparecer com sua tropa a fim de atacar o inimigo pela retaguarda.

Três homens passaram pela porta incandescente e precipitaram-se sala adentro. Estacaram quando viram três armas apontadas em sua direção. Mantinham as mãos quietas, pois os rostos dos homens que seguravam as armas pareciam muito resolutos.

Tropnow, que continuava atrás da escrivaninha, fez um movimento rápido. No corredor ouviram-se gritos, e logo alguns disparos de radiações começaram a chiar. Houve um tumulto. A esperança voltou a brilhar nos olhos dos três homens que acabavam de penetrar na sala.

Antes que Rhodan tivesse tempo de virar-se, viu pelo canto do olho que Gregor tirara uma arma da gaveta.

E a arma estava apontada para suas costas.

 

Há horas Bredag, o operador de rádio, martelava em vão as grossas paredes de sua prisão.

Não tinha a menor idéia do lugar em que se encontrava, e muito menos sabia explicar como fora parar ali. Estava sentado diante de seu equipamento de rádio, e de repente se vira nesse recinto escuro. O ar era viciado, como se o condicionador tivesse ficado sem funcionar há vários meses.

Já dera alguns passos tateantes para descobrir as dimensões do recinto. Media cerca de cinco metros por quatro. Não havia móveis, e uma porta de ferro o isolava do mundo exterior.

Certa vez ouvira passos do lado de fora e batera desesperadamente na porta, mas ninguém o escutara. O ruído dos passos foi tornando-se mais fraco para logo desaparecer ao longe. Logo depois, o silêncio apavorante voltou a reinar.

Bredag não sabia quanto tempo passara ali. Talvez fossem algumas horas. Ou seria um dia? Era possível que lá fora já fosse noite.

Agachado num canto, ficou matutando. Se ao menos soubesse como viera parar ali. Não acreditava em fantasmas. Lembrava-se daquele desconhecido que penetrara na sala de rádio e pedira uma ligação com Árcon. Será que o mesmo tinha algo a ver com o acontecimento inexplicável?

— Uma ligação com Árcon? Sim, foi isso mesmo! — exclamou em voz baixa.

Alguém se aproximara dele por trás e o enlaçara com os braços. Antes que tivesse tempo de descobrir o que significava isso, tudo ficou às escuras e logo ele se viu nesse cubículo escuro.

Sacudiu a cabeça e balbuciou:

— Será que eu podia encontrar alguém que estivesse disposto a acreditar nessa história?

Subitamente estremeceu. Teve a impressão de que voltara a ouvir passos diante da porta metálica. Levantou-se e encostou o ouvido ao metal frio. Só agora se deu conta de que estava sentindo muito frio.

Havia gente andando lá fora. Ouviu perfeitamente que os passos se aproximavam. Começou a bater na porta com toda a força. Talvez não bastasse. Abaixou-se ligeiro, tirou os sapatos e voltou a batê-los de encontro à porta.

Os passos silenciaram; depois aproximaram-se rapidamente.

Bredag ouviu que batiam de volta. Respondeu.

Logo ouviu o zumbido da fechadura eletrônica. A porta abriu-se. A luz inundou a prisão, e alguém gritou seu nome em tom de surpresa. Cambaleando, o infeliz operador de rádio saiu para o corredor e caiu diretamente nos braços de seus libertadores, que ficaram surpresos demais.

Levaram-no ao administrador Mansrin, que ouviu a história fantástica. Estava incrédulo, mas não ordenou qualquer medida de punição.

Dali a alguns minutos fitando a porta fechada, pensou:

“Quem será o desconhecido que pediu uma ligação com Árcon? Eu, Mansrin, não havia expedido nenhuma ordem nesse sentido. E quem carregou Bredag para fora da sala de rádio sem que o cartão de controle eletrônico registrasse seu modelo de vibrações cerebrais?”

Havia perguntas e mais perguntas, mas nenhuma resposta.

O aparelho de comunicação que se encontrava sobre a escrivaninha emitiu um zumbido. Ligou com um gesto distraído. Mas sua atitude sonolenta desapareceu quando ouviu a voz fria:

— No edifício comercial dos mercadores galácticos estão acontecendo coisas estranhas, administrador. Está havendo um combate com armas de fogo. Ao que parece, dois grupos inimigos travam uma luta. Um dos nossos homens entrou lá por acaso e a muito custo conseguiu escapar.

— Uma luta com armas de fogo?

— Sim senhor. Nos pavimentes inferiores do edifício está ocorrendo uma verdadeira guerra.

Mansrin sacudiu a cabeça.

— Como pode ser possível uma coisa dessas? Já notificaram a polícia?

— Não senhor. O que devemos fazer?

— Chame as tropas de segurança. Estas devem ocupar o edifício e prender os culpados. Nada de negociações. Em Volat não toleramos tumultos. Vamos agir de imediato. Irei pessoalmente ao local dos acontecimentos.

Porém, Mansrin não teve tempo para isso.

Mal desligou o aparelho, uma enorme tela presa à parede iluminou-se. Essa tela estabelecia ligação direta com a sala de rádio do hipertransmissor.

O que seria desta vez?

O vulto de um homem surgiu na tela.

— Administrador, o comandante de frota Arona quer falar com o senhor.

— Arona? Não sei quem é.

Antes que o operador de rádio pudesse responder, sua imagem foi substituída por outra. Um leve tremor indicava que vinha de grande distância e estava sendo conduzida pelo hiperespaço. Mas o tom da voz era claro e nítido; não havia a menor distorção.

— O senhor é Mansrin, administrador de Volat?

Mansrin acenou instintivamente com a cabeça. Sabia que seu interlocutor o via.

— Sim. Quem é o senhor e o que deseja?

— Sou Arona, comandante da sétima frota de guerra de Árcon. Fomos informados de que nesse planeta irrompeu uma revolta. Forneça os dados, para que eu possa organizar a ação de combate. Encontramo-nos a cinco horas-luz de seu sistema. Realizaremos uma transição ligeira e pousaremos dentro de meia hora. Ordene a suspensão imediata de todas as decolagens.

— Por aqui não houve nenhuma revolta! — exclamou Mansrin em tom de perplexidade. — Não transmiti o alarma para Árcon.

— Recebi ordens do computador regente — disse Arona, recusando outras explicações. — Tenho que guiar-me pelas mesmas.

“Foi... o desconhecido”, pensou Mansrin. “Quem será o estranho que penetrou em meu palácio e utilizou a estação de rádio para alarmar Árcon?”

— Volat é um mundo pacífico e...

— Vou desligar — disse Arona em meio à frase. — Pousaremos exatamente dentro de vinte e oito minutos. Tome todas as providências para que não haja nenhum incidente. Assim que pousar desembarcarei um exército de robôs e darei ordens para atacar. Desligo.

A tela apagou-se. Subitamente Mansrin viu-se só. Nunca estivera tão só em toda sua vida.

 

Noir agiu instantaneamente.

Não tivera tempo para regular seu radiador. Por isso, o traidor Tropnow foi atingido por toda a carga energética da arma, antes que pudesse disparar contra Rhodan. Teve morte instantânea.

Rhodan disse em tom frio:

— Larguem as armas, cavalheiros. Tenham cuidado, pois sei atirar tão depressa como meu amigo. Isso mesmo; estão sendo bonzinhos. E agora caminhem em direção à parede, fiquem de costas para nós, e não façam o menor movimento.

Empurrou os três radiadores com o pé para o lado oposto da sala. Para chegar até eles, os três homens apanhados de surpresa teriam que passar por Rhodan, e por enquanto isso não era possível.

Fellmer Lloyd surgiu na porta por um instante.

— Estão fugindo para baixo — disse. — Vamos persegui-los e, se possível, prendê-los em algum lugar.

— É preferível que não façam isso — respondeu Rhodan. — A frota de Árcon deve chegar a qualquer momento. E é bom que ela encontre ao menos alguns rebeldes ainda em luta, para que meu alarma pareça verdadeiro. Por isso o inimigo deve ser mantido apenas à distância e, quando nos retirarmos, deverá ter possibilidade de recuperar suas armas. Levem estes três.

— Entendido — disse Lloyd e saiu levando os três prisioneiros.

Rhodan suspirou aliviado.

— Gucky! — telepatou. — Traga Thora para cá.

Noir dirigiu-se à porta a fim de cuidar para que ninguém mais entrasse na sala. Rhodan foi até a escrivaninha e pôs-se a esperar. Subitamente sentiu-se muito inquieto; não via o momento em que podia apertar Thora nos braços. A arcônida, de início tão fria, transformara-se em sua esposa e na companheira de sua vida. Amava-a como nunca amara outra mulher, e isso há mais de seis decênios, durante os quais não envelhecera.

Acontece que agora Thora começava a envelhecer...

Por enquanto não se percebia quase nada, pois os métodos biológicos de conservação celular eram bastante eficientes, muito embora não conferissem a imortalidade relativa. O elixir da vida dos aras, subtraído do planeta de Tolimon, dera prova de sua eficácia. Por enquanto, o processo de envelhecimento de Thora estava sendo detido.

Mas até quando?

Rhodan não sabia. Porém havia outra esperança para Thora e Crest. Seu nome era apenas Atlan.

O ar começou a tremeluzir na sala, como se estivesse super aquecido. O vulto de uma mulher esbelta materializou-se juntamente com Gucky. Usava o uniforme leve da frota espacial terrana. O verde suave da jaqueta formava um belo contraste com os cabelos brancos da arcônida, cujos olhos vermelho-dourados procuraram e logo acharam.

— Perry...

Correu em direção ao amado, que a cingiu com os braços protetores.

— Thora, meu amor!

Gucky torceu o rosto e virou-se para outro lado.

— Para que tanta beijoquice? — chilreou num desespero esquisito, passando a pata pela boca. — Sinto náuseas com a simples idéia de que alguém me possa lamber o focinho desse jeito.

— Ninguém vai pensar nisso — disse Noir, que se encontrava junto à porta.

Gucky deu de ombros e “cambaleou” através da sala. Passou por Rhodan e Thora e olhou atentamente pela janela.

O barulho no corredor havia cessado.

De repente Rhodan começou a falar sem virar-se:

— Gucky, você não quer cuidar de Yatuhin? Pedi que viesse até aqui, mas certamente foi detido pelo caminho. Não podemos perdê-lo.

— Não podemos perdê-lo — repetiu

Gucky sem mudar de posição. — É claro que não podemos. Esperem; logo estarei de volta.

Disse isto e desapareceu.

 

O japonês Nomo Yatuhin desligou o aparelho de comunicação que se encontrava sobre sua mesa.

“Por que a voz de Tropnow soara tão estranha? Seria o nervosismo? Qual seria o motivo do alarma?”, pensou indagando-se.

Para ele, a revolta contra Rhodan já perdera todos os encantos, mas sabia que não havia nenhum caminho de volta.

Voltou a pensar:

“A vida eterna... afinal, o que vinha a ser isso? Talvez não passasse de uma miragem. Por que não me dera por satisfeito com o tratamento biológico, ao qual todos os mutantes de Rhodan tinham direito? Afinal, eu não era um homem jovem e disposto, apesar dos meus oitenta e nove anos? E agora? Se alguma coisa não desse certo?”

Lembrou-se do alarma.

— O que significava tudo isso? Seriam mais uma vez os volatenses? Ou será que Rhodan descobrira seu esconderijo? — balbuciou.

A lembrança de Rhodan fê-lo acordar.

Tropnow estava em perigo; do contrário não teria solicitado socorro.

Nomo levantou-se de um salto e saiu depressa para o corredor. Ao longe, ouviu o tumulto. Feixes energéticos emitiam um chiado ao baterem na parede e fundiam grandes pingos de metal. Os homens gritavam e passavam correndo. Eram saltadores, arcônidas e membros de outras raças aparentadas. Também havia alguns humanóides. Todos eles haviam sucumbido às promessas de Tropnow?

“Seria somente Tropnow?”, pensou.

Depois deu de ombros e continuou a correr. Mas de repente parou. Não trazia nenhuma arma. Como poderia defender-se se fosse atacado? Seu rosto assumiu uma expressão obstinada; prosseguiu.

Dois ou três homens passaram correndo.

— Agarraram Tropnow! — gritaram.

— Quem? — berrou Nomo atrás deles, mas não obteve resposta.

Quem seria?

Na rua começaram a soar sereias. Nomo foi à janela e olhou para fora. Pelo menos dez viaturas policiais pararam. Soldados armados da força de proteção do administrador saltaram e correram em direção ao edifício, carregando fuzis de radiações.

O que é que essa gente tinha a ver com isso?

Nomo já não estava compreendendo mais nada. Contara com um ataque do grupo de Rhodan, mas não com a intervenção da tropa de proteção do administrador.

Isso poderia tomar um curso fatal e despedaçar todas as esperanças. Em hipótese alguma, deveria haver uma luta entre eles e o poder oficial de Árcon. Nesse caso, a perspectiva da formação pacífica das divisões a serem lançadas contra a Terra teria chegado ao fim.

Teria mesmo?

E se Árcon ficasse sabendo que o planeta Terra não foi destruído pelos saltadores, que continuava a existir? Se o grande computador soubesse que Rhodan estava vivo? Qual seria sua reação? Até então Tropnow não quis assumir o risco de depender das decisões de um computador positrônico, mas o que faria se não houvesse outra alternativa?

O mutante japonês não teve tempo de tomar uma decisão.

Esteve a ponto de prosseguir cautelosamente para chegar ao lugar em que Tropnow se encontrava quando alguém bateu nas suas costas e uma voz fininha piou.

— Você se admiraria caso soubesse o que diria o computador positrônico, Nomo. Ah, não percebeu minha chegada? Bem, você nunca foi um bom telepata. Acontece que eu sou.

O japonês virou-se abruptamente, embora já soubesse quem estava às costas. Ao contrário de Tropnow, conhecia Gucky muito bem, pois lidara muitas vezes com ele. Sabia que não tinha a menor chance contra o rato-castor e não tentou qualquer truque. Parou em posição rígida.

— O que pretende fazer comigo? — perguntou.

Sua única esperança era que a polícia chegasse logo. Talvez o rato-castor receasse a descoberta. Afinal, não queriam que ninguém soubesse da existência da Terra.

“Se conseguisse entreter Gucky até lá”, pensou.

— Será que você não descobriu coisa melhor? — disse o rato-castor em tom de escárnio. — Acha que demoraremos em desaparecer daqui? Não tente soltar-se de mim enquanto estivermos teleportando. Você sabe perfeitamente que na quinta dimensão não há comida. Se eu o perder, você morre de fome.

Segurou Nomo e saltou.

O japonês teve a impressão de que o mundo estava mergulhando no vazio. Naquele instante, vira um longo corredor diante de si, ouvira o grito dos homens que lutavam, percebera os passos ruidosos dos policiais que se aproximavam... e, dali a um segundo, encontrava-se ao lado do rato-castor em meio a uma estepe cercada de mata virgem. Em cima deles, estendia-se o céu azul.

— Então? — chilreou Gucky satisfeito. — O que acha?

— O que pretende fazer comigo? — perguntou Nomo sem demonstrar o menor receio. — Se quiser matar-me, ande logo.

— Matar por quê? Rhodan quer que você lhe conte certas coisas.

— A Terra fica muito longe.

— A Terra sim, mas Rhodan não, meu caro. Tropnow morreu porque tentou matar Rhodan. Talvez Rhodan seja mais condescendente com você, desde que resolva abrir a boca.

— Rhodan está aqui, em Volat?

Gucky voltou a segurar Nomo.

— Estamos falando demais. Vou levá-lo a um lugar seguro.

Quando voltaram a materializar-se, Gucky dirigiu-se a uma rocha escarpada situada nas proximidades do platô de rocha.

Mal Nomo sentiu chão firme sob seus pés, abriu os olhos. Mas Gucky já havia desaparecido, deixando-o só. Será que não receava que ele, Nomo, pudesse fugir?

Mas o japonês logo viu que não havia como.

Gucky largara-o sobre a rocha que se erguia em meio à selva. A rocha tinha o formato de uma agulha gigante, vista de longe. Tinha mais de cem metros de altura e, na base, seu diâmetro era de cerca de vinte metros. As paredes eram lisas, sem qualquer fenda. A ponta consistia num minúsculo platô, cujos lados não mediam mais de um metro.

Em todo o Universo não poderia haver prisão melhor que esta.

Nomo trazia apenas alguns objetos no bolso. E, com estes, não poderia fazer nada. Mesmo que a camisa e a jaqueta bastassem para fazer uma corda, não teria onde amarrá-las. Não havia nenhuma árvore, nenhuma fenda naquele platô de um metro quadrado. Não tinha a menor esperança de escapar.

Nomo sentou e procurou vencer a tontura que começava a apoderar-se dele ao olhar para baixo. Havia algumas árvores muito altas, mas ficavam tão afastadas que seria impossível alcançá-las. Quando olhava para o céu, tinha a impressão de estar sozinho no mundo. Em torno havia apenas o nada e o sopro morno do vento.

Um metro quadrado para viver...

Será que o deixariam viver?

Tropnow já havia morrido. Rhodan não tinha nenhuma compaixão por traidores, pois os mesmos representavam um perigo não só para os seus planos, mas para a própria existência da Humanidade. E Nomo sabia perfeitamente que este fator seria decisivo. Rhodan dava maior valor à existência da Humanidade do que à própria vida.

Não, não deixariam de castigá-lo, e o castigo para a traição era apenas um: a morte.

Nomo Yatuhin era japonês. Em suas veias corria o sangue dos samurais, que preferiam matar-se quando caíam nas mãos do inimigo.

Nomo voltou a olhar em torno.

Como poderia matar-se? Não tinha nenhuma arma, nenhum objeto com que pudesse fazê-lo.

E a altura? A queda?

Estremeceu, mas subitamente deu-se conta de que para ele não havia outra alternativa, se quisesse continuar fiel aos seus propósitos. Levaria apenas alguns segundos para atingir o solo junto ao pé do rochedo. Talvez acabasse caindo mesmo numa copa de árvore. Neste caso teria uma chance pequenina de escapar com vida.

Foi em parte esse fio tênue de esperança que fez com que realizasse seu intento.

Inclinou-se em direção ao oriente, tomou coragem, adiantou-se um passo, mais um...

Caiu que nem uma pedra.

 

Os cinco cruzadores ligeiros pousaram sem o menor incidente no espaçoporto de Kuklon. Assim que tocaram o solo, as grandes escotilhas laterais abriram-se, as rampas foram baixadas, e os robôs de combate começaram a marchar.

Essas máquinas tinham uma semelhança longínqua com os homens. Mas sua altura era de mais de dois metros e tinham quatro braços. Os dois braços inferiores eram radiadores de impulsos pesados.

O exército de robôs entrou em forma com passos retumbantes e ficou aguardando ordens. Oficiais devidamente assinalados — que também eram robôs — colocaram-se na porta daquela medonha tropa. Suas antenas estavam em recepção. Essas antenas apontavam na direção da nave capitania. No interior desta, o comandante Arona pegava um minúsculo transmissor e o guardava numa pasta. Era apenas uma caixinha, mas bastava para comandar o exército de aço.

Arona, o arcônida, não tinha nada em comum com certos tipos degenerados de sua raça. Seu rosto altivo irradiava uma atividade que já não era fácil de encontrar no Império. Seu vulto esbelto e o cabelo branco impunham respeito. Saiu da nave com o corpo ereto e, dentro de poucos minutos, estava no campo de pouso. Segurava sob o braço o aparelho de comando.

Era acompanhado por um único oficial, também arcônida.

Arona emitiu o primeiro comando, e o exército de quinhentos robôs pôs-se em marcha.

O campo de pouso estava vazio. Não se via ninguém. Os veículos, que costumavam trafegar por ali, haviam desaparecido. Até a área periférica, onde o tráfego costumava ser bastante intenso, parecia deserta. O alarma policial já causara uma boa dose de confusão, mas o pouso de cinco cruzadores deu o remate ao quadro. Ninguém sabia o que havia acontecido. Por isso seria recomendável abrigar-se no interior das casas. Apenas alguns volatenses ingênuos não demonstravam o menor interesse pelas ocorrências, pois não as compreendiam. Imperturbáveis, continuavam a dedicar-se às ocupações habituais.

Mas até estes desapareceram das ruas quando Arona, o arcônida, se pôs à frente de sua tropa metálica e marchou em direção à cidade.

Um edifício alto e largo fechava a vista para a cidade propriamente dita. A rua principal passava junto ao mesmo.

Arona dirigiu-se ao oficial que o acompanhava:

— Tenente Ro, por que será que o tal do administrador Mansrin não compareceu para receber-nos? O que está acontecendo com a revolta?

Ro apontou para o pequeno receptor que trazia consigo, e que o ligava com a sala de comando da nave.

— Não sabemos, comandante. Mansrin nega ter enviado a mensagem ao regente. Afirma que em Volat não está havendo nenhuma rebelião.

— Isso é muito misterioso — disse Arona em tom irônico e ficou com os olhos fitos no grande edifício. Alguma coisa parecia chamar sua atenção. — Não há nenhuma revolta. Gostaria de saber por que estão atirando ali.

— Onde, comandante?

Arona apontou para a frente.

— A menos de quinhentos metros daqui. Não está vendo os raios característicos dos radiadores de impulso? Ali está sendo travada uma luta; uma luta encarniçada. É de estranhar que Mansrin tivesse preferido não nos informar a esse respeito, não acha?

Imediatamente, levantou a pasta e falou para dentro do pequeno microfone:

— Novo destino: rota trezentos e sessenta e nove. Armas de prontidão!

O exército de robôs mudou de direção, seguindo Arona e Ro.

Os braços inferiores das máquinas estavam em posição horizontal. No lugar das mãos, havia os bocais dos potentes radiadores energéticos, apontados para o edifício.

Um veículo saiu de uma rua lateral. Parou abruptamente do lado oposto da rua. Um arcônida saltou e correu apressadamente para junto de Arona. O cabelo branco esvoaçava.

— Arona! Sou o administrador Mansrin. Peço que me desculpe por ter cometido o erro de não lhe proporcionar a recepção costumeira. Houve um imprevisto...

— A rebelião, não é?

Mansrin sacudiu a cabeça.

— Pois é justamente isso que eu não compreendo. Não expedi nenhuma mensagem para Árcon nem solicitei o envio da frota, pois não havia motivo para isso. Em Volat reinavam a paz e a ordem. Até hoje. No mesmo instante em que o senhor anunciava sua chegada, uma luta com armas de fogo irrompeu no edifício-sede das empresas comerciais dos saltadores. Não sabemos quem está lutando contra quem, mas de qualquer maneira estão lutando. A guarda pessoal, à minha disposição, já interveio nos acontecimentos.

Arona lançou um olhar indagador para Mansrin.

— Não acredita que poderia ser uma revolta de grandes proporções? Quem sabe se os saltadores...

— Nunca, comandante. Conheço minha gente...

— Nunca paramos de aprender — interrompeu o arcônida. — Seja como for, meus robôs restabelecerão a ordem, e depois saberemos quem se permitiu a brincadeira de alarmar Árcon por uma ninharia. Tem certeza de que não foi o senhor?

— Foi um desconhecido, comandante. Já descobri isso. O mesmo introduziu-se sorrateiramente na sala de rádio e obrigou o operador a fazer uma ligação com o computador regente. Não há outra explicação lógica para o incidente.

Arona, que mandara parar seu exército, voltou a colocá-lo em marcha.

— Venha comigo, administrador Mansrin. Talvez consigamos solucionar em conjunto o mistério do alarma falso. O senhor tem razão; também não vejo a menor lógica nisso. Quem se exporia voluntariamente ao perigo de alarmar a maior potência da nossa Galáxia?

Soltou uma risadinha, e concluiu:

— Só mesmo um doido.

O tenente Ro disse num tom que quase chegava a ser tímido:

— Ou alguém que seja ainda mais poderoso, comandante.

Fitaram-no com os olhos arregalados, mas ninguém respondeu.

Os robôs puseram-se em marcha.

 

Na escada que conduzia ao subsolo, Fellmer Lloyd e seu grupo defrontaram-se com os rebeldes que lutavam obstinadamente por um objetivo desconhecido. Os chefes estavam mortos ou presos, mas os adversários do mutante não o sabiam. Agiam de acordo com as ordens recebidas ao abrirem fogo contra os volatenses que os seguiam.

Como localizador e telepata que era, Fellmer Lloyd descobriu as intenções deles, antes que as mesmas se concretizassem em atos. Gritava suas ordens. Os volatenses haviam sido submetidos a um treinamento intenso. Abrigados, iam pegando as mini-granadas do arsenal da Gazela e as atiravam para o corredor de baixo.

Depois Fellmer Lloyd ordenou tranqüilamente a retirada.

Mal os primeiros disparos energéticos começaram a chiar e a derreter algumas amuradas de aço, ouviram-se as detonações. Seguiram-se gritos e vozes de comando e os rebeldes precipitaram-se escada acima. O fedor das bombas de gases era mais apavorante que a perspectiva de serem recebidos com uma série de disparos dos volatenses.

Era exatamente o que Lloyd queria.

Devido à fumaça, os rebeldes estavam quase cegos. Esfregavam os olhos irritados. Já não reconheciam Lloyd ou os volatenses; apenas viam sombras que se destacavam na luz que penetrava pela janela.

Abriram fogo contra essas sombras.

Para azar deles, essas sombras não pertenciam aos volatenses, mas à força policial que acabara de penetrar no edifício. Por isso não era de admirar que os policiais acreditassem que realmente se defrontavam com um grupo de rebeldes.

Responderam ao fogo. Dali a pouco, outra batalha rugia furiosamente no corredor. Fellmer atingira seu objetivo. Quando o engano fosse esclarecido — se é que isso viria a acontecer — a Gazela já teria mergulhado nas profundezas do espaço.

Sempre correndo, Fellmer Lloyd e seus volatenses chegaram ao corredor que dava para a sala número 18. O localizador chegou no momento exato de assistir à rematerialização de Gucky. Noir encontrava-se junto à porta, enquanto Rhodan e Thora permaneciam junto à janela.

— Então? — perguntou Rhodan. Não disse mais nada.

Lloyd fez um sinal para os volatenses. Os nativos fizeram um gesto, atiraram as armas para o chão e saíram andando como se não tivessem nada a ver com aquilo — e de fato não deixava de ser assim. Alguns deles voltaram à sala de leitura e acomodaram-se. Outros dirigiram-se a vários andares e indagaram junto às empresas ali estabelecidas se havia um emprego. Faziam aquilo que fariam normalmente, em qualquer dia. Uma vez que a notícia dos acontecimentos que se desenrolavam nos pavimentos inferiores ainda não havia chegado a todos os recantos do edifício, o súbito interesse pelos empregos ou pelas mercadorias eventualmente oferecidas não provocou suspeitas.

— Está saindo tudo de acordo com o plano — informou Lloyd e fechou a porta, já amolecida pelo calor das armas dos rebeldes. O trinco da fechadura entrou ruidosamente no engate, o que fez Gucky soltar uma opinião de perito:

— Aqui ao menos sabem fabricar fechaduras muito resistentes!

— Quer dizer que os rebeldes se envolveram numa luta contra as autoridades? — perguntou Rhodan para certificar-se.

— Foram bastante idiotas para isso — disse Lloyd com um sorriso. — A esta hora não haverá mais a menor dúvida de que um grupo revolucionário procurou articular um golpe contra Árcon. É bem verdade que procurarão em vão pelos homens que tramaram tudo, mas isso não importa.

Rhodan lembrou-se do outro traidor.

— Para onde levou o japonês? — perguntou, dirigindo-se a Gucky.

— Levei-o a um lugar do qual nunca poderá escapar com vida. Está na ponta de um rochedo. Poderei buscá-lo a qualquer momento.

— Muito bem. Acho que já está na hora de darmos o fora. Thora irá em primeiro lugar. Leve-a ao platô, Gucky.

Dali a dez segundos, o rato-castor estava de volta.

— Kuri está cuidando dela, chefe. E agora?

Foi a vez de Noir empreender a viagem. Durante o grande salto Gucky pegava uma pessoa de cada vez, para não se cansar demais. Isso não influía muito no tempo da operação, pois cada teleportação durava apenas alguns segundos. Dessa forma, também Fellmer Lloyd voltou ao ponto de partida da aventura, ou seja, ao platô em que residia a mãe onisciente dos volatenses.

Rhodan aguardou pacientemente o último retorno de Gucky.

Embora apenas alguns segundos se houvessem passado desde o último salto, o regresso do rato-castor parecia demorar uma eternidade. No corredor estava acontecendo alguma coisa. Ouviram-se vozes de comando e o chiado dos disparos de radiações. Alguém soltou um grito de pavor e atirou-se contra a porta. Talvez tivessem reconhecido a superfície atacada pelo calor e estivessem suspeitando de alguma coisa.

Gucky materializou-se com um sorriso.

— Gracinha não me quis deixar sair — disse para explicar a demora. — Que gatinho querido! Queria brincar...

Rhodan continuou com o rosto sério.

— Daqui a dez segundos, estarão nesta sala. Quem será? A polícia?

— Quer que eu dê uma olhada?

— Não se atreva a fazer uma coisa dessas! Vamos é dar o fora. Nossa tarefa está concluída...

Gucky segurou a mão de Rhodan.

— Ainda não. Quer que vá buscar Yatuhin agora, ou devo esperar mais um pouco?

— Vamos primeiro ao platô. Ande depressa!

Enquanto o rato-castor se concentrava para dar o salto e criar o respectivo campo energético, a porta sofreu um forte abalo e abriu-se. Um homem entrou abruptamente, tropeçou por cima das armas espalhadas pelo chão e cambaleou de encontro à parede. Ficou parado e contemplou os dois vultos que se dissolviam no ar.

Rhodan ainda viu a porta abrir-se, mas depois os contornos dos objetos se desmancharam diante de seus olhos. Ainda chegou a ver o enorme vulto que penetrou como uma bala de canhão. Se o “colosso” não fosse cego, ainda devia ter assistido ao milagre.

Antes que Rhodan passasse à quinta dimensão, um grito atingiu seu ouvido. Já ouvira aquela voz. Era uma voz retumbante e máscula, que despertou uma lembrança em sua mente.

E essa voz exclamou:

— RHODAN!

Depois viu-se envolvido pela escuridão.

Logo a claridade voltou-lhe a surgir no platô de rocha. Desprendeu-se de Gucky, mas aquela voz continuava a ressoar em seus ouvidos.

— Viu o homem, Gucky? Quem foi? Ele me reconheceu.

O rato-castor estreitou os olhos.

— Não tive tempo para cuidar disso, pois nesse caso não poderia ter saltado. Quer que volte para dar uma olhada?

— Ele me reconheceu.

Gucky arregalou os olhos.

— Reconheceu você? Não é possível. Em Volat não há ninguém que o conheça.

— Acontece que chamou meu nome, Gucky.

Rhodan estava perplexo. Ficou refletindo sobre o lugar em que já ouvira aquela voz retumbante. Foi penetrando no passado, recuou vinte anos, trinta. Cinqüenta anos...

O vulto enorme, cuja largura era igual à altura.

...Um sujeito que pesava de quinhentos a setecentos quilos. A barba...

Seria um superpesado? Naturalmente. Só podia ser um superpesado do povo dos saltadores. A solução era esta mesma. Tratava-se dos combatentes dos mercadores galácticos. Só mesmo um superpesado seria capaz de arrombar a porta de aço.

E aquele havia reconhecido Rhodan e chamara seu nome.

Os superpesados, que Rhodan chegara a conhecer, estavam quase todos mortos, pois foram vitimados durante a última batalha em torno do falso planeta Terra. Só um deles não participara da luta decisiva. Fora bastante inteligente para manter-se afastado.

Talamon!

Subitamente Rhodan lembrou-se. Fora Talamon que entrara precipitadamente no gabinete de Tropnow. Talvez fosse uma simples coincidência. Era pouco provável que o superpesado estivesse ligado à conspiração. Por certo encontrava-se em Volat para acertar algum negócio, tivera sua atenção despertada para os disparos e foi ver do que se tratava.

E vira Rhodan desaparecer no nada.

Portanto, sabia que Perry Rhodan, o homem mais perigoso do Universo, não morrera, mas continuava bem vivo.

Não guardaria o segredo exclusivamente para si.

— Quer que eu volte e dê um jeito naquele gorducho? — perguntou Gucky, que acompanhara os pensamentos de Rhodan. — Se resolver falar...

Mas Rhodan já havia recuperado o sangue-frio. Sacudiu a cabeça, num gesto de tranqüila superioridade.

— Não, Gucky. Fique aqui. Não somos nós que vamos decidir quando o computador regente saberá da minha existência. Estamos preparados. A descoberta da verdade não representará nenhum perigo. Portanto, deixemos que Talamon decida.

— Mas se...

Gucky calou-se. Será que a época de paz havia chegado ao fim? Será que Rhodan teria que submeter-se à vontade do gigantesco computador? A Terra voltaria a constituir-se no alvo de ataques para as criaturas gananciosas?

Rhodan tornou a sacudir a cabeça.

— Nada disso, Gucky. Já estamos em condições de enfrentar Árcon e seus aliados. Mas não acredito que haja guerra. Aguardemos. Seja como for, nossa missão em Volat chegou ao fim.

— Isso mesmo; depois que tivermos liquidado Nomo.

Só agora Rhodan lembrou-se do prisioneiro.

— Vá buscá-lo, Gucky.

Rhodan não esperou que Gucky se desmaterializasse. Dirigiu-se às cabanas, onde os companheiros já o aguardavam. Kuri estava ao lado de Thora, cujo sorriso parecia exprimir alívio. A arcônida altiva continuava a ser bela; era um ser humano vindo de outra estrela, mas resolvera contrair matrimônio com ele, um filho da Terra.

Noir e Lloyd enxugaram o suor da testa.

— Vou pedir a Gucky que me leve até a Gazela — sugeriu Lloyd. — Se for a pé, levarei alguns dias, se é que consigo encontrá-la.

Rhodan estava prestes a responder, quando uma voz aguda soou atrás deles. Era Gucky. Estava de volta. Só.

— O japonês está morto — disse; parecia bastante assustado. — Atirou-se da rocha que tem mais de cem metros de altura.

Noir e Lloyd falavam ao mesmo tempo, mas Rhodan conservou a calma.

— Era o que eu imaginava — disse. — Afinal, o Nomo era japonês e como tal conservou os velhos costumes de seu povo. Preferiu a morte voluntária. Se dispusesse de um instrumento para isso, teria cometido sepuko segundo todas as regras da arte.

Ninguém disse uma única palavra.

Rhodan olhou para o céu. As primeiras nuvens se aproximavam, vindas do norte. A temperatura estava amena.

 

Talamon ainda se sentia paralisado pelo susto.

Apavorado, olhou para o lugar vazio no qual há menos de um segundo vira o homem que toda a Galáxia considerava morto.

Qualquer engano era impossível!

Vira Perry Rhodan e aquele animalzinho esquisito que costumava acompanhá-lo a todos os lugares e que dispunha de certas faculdades estranhas. O súbito desaparecimento de ambos constituía a melhor prova. Talamon ainda se lembrava perfeitamente daquelas histórias misteriosas que se contavam há meio século sobre Rhodan e seu exército de feiticeiros. O auxílio deste quase permitiu ao terrano abalar os alicerces do Império Arcônida.

A Terra e Perry Rhodan haviam sido destruídos num ataque de grandes proporções lançado pelos saltadores.

Era ao menos o que se acreditava até então.

Talamon estremeceu. Por que continuava parado, sem fazer nada? Devia prevenir o Universo. O computador de Árcon devia ser informado imediatamente de que a paz era aparente, já que Rhodan continuava vivo.

E os acontecimentos de Volat...

Talamon descobriu certas ligações entre os fatos.

“É claro que Rhodan está atrás dos acontecimentos que causaram a intervenção da guarda pessoal do administrador”, pensou. Ainda não sabia o que Perry pretendia alcançar com isso.

Apesar do aspecto desajeitado, o superpesado movia-se com uma rapidez e uma agilidade extraordinárias. Saiu rapidamente da sala número 18, sem que visse o cadáver atrás da escrivaninha. Antes de chegar à porta teve de abrigar-se. Um grupo de homens, que procurava alcançar o elevador, atirava furiosamente em todas as direções. A polícia seguiu o grupo, mas não notou a presença de Talamon.

Suspirou aliviado ao atingir a saída do prédio. Estava prestes a correr em direção ao carro que o esperava, quando estacou.

Arregalou os olhos na direção do espaçoporto. Um regimento de robôs de combate aproximava-se marchando retumbante, com as armas de prontidão. Três homens caminhavam à frente da formação. Talamon conhecia um deles: o administrador Mansrin. Os outros eram desconhecidos.

Hesitou por um instante, mas logo dirigiu-se aos três arcônidas. No curso dos últimos decênios, o velho preconceito contra o regime de Árcon e do computador se desvanecera. O computador regente provara que sabia governar melhor e com mais lógica que qualquer ser humano. A unidade foi restabelecida, e qualquer revolta, por mais insignificante que fosse, era reprimida por meio da atuação implacável das forças disponíveis. Por isso tinha o dever de informar os representantes oficiais de Árcon sobre a descoberta que acabara de fazer.

Mansrin diminuiu o passo quando percebeu a intenção do superpesado. Dirigiu algumas palavras a Arona, que imediatamente deu ordem para que os robôs parassem. Os três fitaram com olhos curiosos o enorme saltador que corria em sua direção, agitando os braços.

— Sou Talamon! — exclamou, respirando tão fortemente que por enquanto não conseguiu proferir outra palavra.

Aos poucos, foi se tranqüilizando. Mas Arona começou a impacientar-se.

— O que houve? O senhor está nos retendo.

A essa hora Talamon já devia reconhecer que devia uma explicação imediata aos arcônidas.

— Não é necessário que os senhores intervenham nos acontecimentos que se desenrolaram no edifício comercial — disse. — Acho que foi Árcon que o mandou para cá, não foi?

— Sou o comandante Arona — disse o oficial em tom orgulhoso. — O computador regente mandou que viesse para cá a fim de restabelecer a ordem.

Talamon não pôde deixar de sorrir.

— A notícia de um tumulto costuma espalhar-se muito depressa — observou em tom irônico. — O administrador Mansrin agiu depressa, mas aposto que não sabia do que se tratava.

— Não sei o que quer dizer — interveio Mansrin.

— Um sorriso de superioridade surgiu no rosto de Talamon.

— Não tenho a menor dúvida de que realmente não saiba. Contarei ponto por ponto, para que...

— Não temos tempo — disse Arona em tom áspero. — Árcon espera que eu lhe mande quanto antes um relatório em que anuncie que a rebelião foi sufocada.

Talamon espantou-se.

— Que rebelião? Está falando na briguinha que houve nesse edifício? Não seja ridículo, comandante. Eu seria capaz de dar conta sozinho da meia dúzia de desordeiros que andou por ali. Não se trata disso. Prestem atenção. Fechei um negócio com um amigo e pretendia sair do edifício. Foi quando ouvi os disparos. Resolvi dar uma olhada e por pura coincidência entrei numa sala onde vi uma coisa que me arrepiou os cabelos.

Mansrin passou a mão pela cabeleira branca e exclamou em tom impaciente:

— Fale logo, Talamon. O que foi que viu?

Talamon fez uma pausa de efeito e disse, falando lentamente e em tom enfático:

— Vi Perry Rhodan, o terrano.

Ao que parecia, Arona nunca ouvira falar no tal de Rhodan. Continuou com o rosto impassível. O tenente Ro também não demonstrou a menor surpresa.

Com o administrador Mansrin a coisa foi diferente.

O funcionário mais graduado de Volat estremeceu como se alguém lhe tivesse dado uma pancada.

— Rhodan? — gaguejou. — Será que o senhor ficou doido, Talamon?

— Então acha que fiquei louco, Mansrin? É claro que não posso provar o que acabo de dizer. Rhodan desapareceu assim que entrei na sala onde ele se encontrava. Mas reconheci-o perfeitamente. Em sua companhia estava um estranho animal, que há cinqüenta anos desempenhava um papel importante. Quanto a Rhodan... bem, cavalheiros, travei conhecimento pessoal com ele. Não existe a menor possibilidade de engano.

— Mas Rhodan está morto! — Mansrin parecia desesperado.

— Sim — confirmou Talamon sem abalar-se. — Foi o que todos acreditamos, e o terrano nos deixou nessa crença. E, neste meio tempo, certamente não dormiu. O fato de ter aparecido de repente serve-nos de advertência. O regente deve ser informado sem demora.

Arona contemplou seus robôs.

— Antes de mais nada vou cuidar da revolta — gritou uma ordem para dentro do aparelho de comando, e o exército voltou a colocar-se em movimento. — Mais tarde conversaremos, Mansrin.

Saiu marchando juntamente com os robôs e com o tenente Ro.

Mansrin ficou parado em atitude indecisa ao lado de Talamon.

— Acha mesmo que deveríamos informar o computador? E se o senhor se enganou?

— Acontece que não me enganei, administrador. Pode confiar nos meus olhos, embora não seja dos mais jovens. Venha; vamos no meu carro.

Dali a dez minutos aqueles dois homens tão desiguais fisicamente entraram na sala de hiper-rádio do palácio de Mansrin.

A comunicação com Árcon foi logo estabelecida.

— Quero falar pessoalmente com o regente — pediu Talamon. — Nesse caso, a responsabilidade será minha, não sua. Combinado?

— É claro que estou de acordo — respondeu Mansrin em tom de alívio.

A conhecida semi-esfera surgiu na tela. A voz dura e metálica disse:

— Aqui fala Árcon. Responda, Volat.

Talamon colocou-se à frente da câmera.

— Aqui fala Talamon do clã dos superpesados, pertencente ao povo dos saltadores. Estou agindo de acordo com o administrador. A revolta já foi abafada em Volat. Supomos que tenha sido uma simples manobra de camuflagem. A finalidade é desconhecida. Acabo de fazer uma descoberta muito importante, regente. Perry Rhodan está vivo. Há meia hora vi o terrano com meus próprios olhos aqui em Volat.

Seguiu-se uma ligeira pausa e a voz metálica começou a falar:

— Ontem uma pessoa falou comigo do lugar em que o senhor se encontra. Porém não pude vê-la, porque se colocou em posição lateral. Sua voz despertou-me certas “lembranças”. Aguarde um momento, Talamon. Vou verificar os dados armazenados em fita.

A imagem continuou, mas o som silenciou.

Mansrin cochichou:

— O que está fazendo?

— É simples, administrador. A voz lhe parecia conhecida. Se já a ouviu alguma vez, a mesma está registrada em fita. Uma comparação...

— Aqui fala o regente de Árcon. Talamon, o que o senhor viu corresponde à realidade. O homem que falou comigo ontem foi Rhodan, o terrano. Cometi um erro imperdoável ao não investigar imediatamente.

“Quer dizer que mesmo um computador hiper-programado comete erros!” pensou admirando-se.

Talamon sentiu-se ligeiramente preocupado, embora o fato devesse tranqüilizá-lo.

— E a Terra também existe, regente?

— Não tenho certeza, Talamon. É possível que a Terra tenha sido destruída enquanto Rhodan escapou. Estou “lembrado” de que, depois da batalha, fingiu ter sucumbido com a nave Titan e, dali em diante, continuou desaparecido.

— Seja como for, Rhodan está vivo, regente. Cumpri meu dever, avisando Árcon. O que acontecerá agora?

— Decidirei oportunamente. Peça a Arona que regresse a Árcon com sua frota. Em Volat não há mais necessidade dela, pelo que suponho.

— Providenciarei para que o comandante Arona decole — interveio Mansrin, achando que esse assunto lhe dizia respeito.

O computador confirmou e desligou. Talamon fitou a tela apagada.

— Esse montão de metais ao menos poderia ter agradecido — murmurou com a voz zangada. — Afinal, é a existência dele que está em jogo.

— Se Rhodan estiver vivo, nossa existência estará em perigo?

Talamon fez que sim e complementou:

— Está vivo; não tenha a menor dúvida, Mansrin.

Saiu da sala de rádio pisando firme. Mansrin seguiu-o.

— Quanto tempo pretende ficar em Volat, Talamon? O senhor ainda deve ter negócios por aqui.

— Negócios para cá, negócios para lá — resmungou o superpesado. — De qualquer maneira, dirigir-me-ei à minha nave o mais rápido possível e executarei um salto gigantesco pelo hiperespaço, a fim de afastar-me o mais possível de Volat. E de Rhodan.

— Acha que ainda está aqui?

— Isso não me interessa. O que sei é que vou dar o fora. Receio de que todos nós tenhamos notícias de Perry Rhodan em tempo relativamente curto. A idéia de que teve tanto tempo a fim de preparar-se para o encontro conosco me dá uma sensação bastante desagradável. Temo até que ele não tenha dormido.

O administrador não respondeu.

De repente parecia muito triste.

O posto em Volat sempre foi agradável e tranqüilo...

Os dois homens separaram-se. Talamon saiu apressadamente em direção ao espaçoporto, enquanto Mansrin voltou ao seu gabinete. O comandante de sua guarda pessoal já o esperava para comunicar a sufocação da revolta e a prisão de todos os implicados. Perguntou o que deveria fazer com eles.

— Arona, o comandante da frota de Árcon, é quem decidirá — disse Mansrin, que desejava livrar-se da responsabilidade. — Enquanto isso não acontecer, mantenha-os em lugar seguro.

E foi assim que um grupo de indivíduos, que haviam sido escolhidos para descobrir e destruir a Terra, subitamente foram parar em Árcon, onde passaram a ser considerados aliados secretos de Rhodan.

E esses homens fizeram com que o computador se defrontasse com mais algumas charadas.

 

Alguns dos homens aliciados por Yatuhin e Tropnow viram-se privados do prazer duvidoso de participar da viagem forçada para Árcon. No momento da revolta, estes não se encontravam em Kuklon, mas numa pequena clareira situada entre a cidade e o platô. Ficava afastada das trilhas mais utilizadas e dificilmente se poderia alcançá-la a pé.

Aqueles homens foram incumbidos de vigiar o veículo espacial prateado junto à clareira, sob as copas das árvores. Tinha o aspecto de um enorme disco.

Dedicaram-se ao serviço sem muito entusiasmo. Além deles, havia mais uma fileira de guardas a dois quilômetros, prontos para avisar, assim que qualquer criatura inteligente se aproximasse. Se os donos do disco voador resolvessem aparecer, teriam uma surpresa bastante desagradável.

Ninguém sabia quem havia descoberto aquele artefato misterioso. Seja como for, na época os chefes ficaram bastante nervosos e até chegaram a demonstrar medo. Em vez de destruir o disco, mandaram que o mesmo fosse vigiado ininterruptamente. Qualquer pessoa que tentasse aproximar-se da pequena nave seria detida.

No fim da tarde Lobthal, um lurano, voltava de uma ronda de inspeção e chegou à conclusão de que também na clareira tudo estava em ordem. Lobthal pertencia ao clã bastante ramificado dos saltadores e sentia-se satisfeito em ter encontrado um bom trabalho em Volat. Como ex-oficial de nave mercante estava acostumado a um estilo de vida semimilitarizado, motivo por que tratava seu pessoal com bastante rigor.

Ninguém havia tocado no disco. E isto o tranqüilizou visivelmente.

Dirigiu-se à cabana que ficava na beira da mata e sentou no banco de madeira. Por algum tempo ficou contemplando o cozinheiro, que preparava o jantar. Depois resolveu inspecionar os guardas postados na mata. Encontravam-se em torno do veículo espacial e serviriam de garantia adicional, caso alguém conseguisse romper a primeira barreira de sentinelas.

Enquanto percorria o local, teve a impressão de que um véu transparente se interpunha entre seus olhos e a nave. A menos de dez metros do lugar em que se encontrava, algo começou a tremeluzir. E subitamente dois vultos, que estavam de costas para ele, surgiram do nada.

Um dos vultos era humano, talvez um saltador. Usava uniforme verde, de um tipo que Lobthal jamais havia visto. No cinto balançava um radiador portátil de fabricação arcônida.

O outro vulto não era de homem. O animal, que teria pouco mais de um metro de altura, “trajava” apenas o pêlo marrom e liso. Ficava ereto sobre as pernas traseiras, como se estivesse acostumado a proceder assim e segurava a mão do companheiro. Não trazia nenhuma arma.

Lobthal procurou compreender o fenômeno incompreensível.

Os dois indivíduos haviam surgido diante de seus olhos, vindos do nada. Portanto, antes disso estavam invisíveis. Não havia outra explicação. Lobthal cometeu o engano de não procurar outra explicação, mas essa atitude correspondia ao seu caráter. O óbvio sempre lhe parecia o mais provável.

Com um movimento súbito, tirou o radiador que trazia no cinto e dirigiu-se para as costas do homem que, segundo acreditava, era a criatura mais perigosa.

— Pare! Não se movam!

Ao que parecia o desconhecido estremeceu, mas virou-se devagar. As mãos pendiam frouxamente junto ao corpo, longe do radiador. O animal também se virou e contemplou-o com uma expressão de espanto e de recriminação, o que Lobthal não conseguia compreender.

— Quem são os senhores e de onde vieram?

Fellmer Lloyd leu os pensamentos e os sentimentos de Lobthal e reconheceu o perigo que emanava desse homem. Seria inútil desaparecer de novo, embora com o auxílio de Gucky isso não fosse difícil. Então o disco fora encontrado e estava sendo vigiado. Era uma atitude inteligente, mas que infelizmente a essa hora já não servia para nada.

— Tire isso daí! — disse Lloyd apontando com a cabeça em direção à arma de Lobthal. — Com esse brinquedo o senhor não me obrigará a falar.

— Os senhores conseguem tornar-se invisíveis? — disse o lurano, ignorando o pedido.

Havia em sua voz um misto de curiosidade e ambição. Seus pensamentos revelaram o resto. Lloyd pensou em tirar proveito da disposição do inimigo.

— Para quem conhece o processo isso não é difícil. Como sabe, os velhos arcônidas já se ocuparam com isso e construíram certos aparelhos, que naturalmente não estão ao alcance de qualquer um.

— O senhor tem um aparelho desse tipo?

Lobthal se esquecera de suas obrigações e só se interessava pela invisibilidade. Ao que parecia, sentiu-se incomodado porque um dos guardas, que se encontrava na borda da mata, teve sua atenção atraída pelo incidente e caminhava para o lugar onde se encontrava.

— Temos o aparelho no bolso — piou Gucky. — Quer ver?

Era claro que na Galáxia havia seres inteligentes de todos os tipos, mas Lobthal assustou-se quando o animal se dirigiu a ele no mais puro arcônida. Não esperava uma coisa dessas.

— Hein? — fez cheio de perplexidade e fitou o rato-castor.

Gucky divertiu-se a valer, mas não tirou os olhos do guarda que se aproximava.

— Se quiser, eu o torno invisível — prosseguiu. — Mas você terá que mandar embora esses homens. Eles não precisam ver isso.

Lobthal não chegava a ser tolo, mas não se poderia dizer que fosse uma fina flor da inteligência. Nem de leve pensou na possibilidade de que aquelas criaturas misteriosas haviam aparecido por causa do veículo espacial.

— Ei, Kortu. Pegue os outros e vá até o lugar onde estão os postos avançados. Tomem cuidado para que ninguém rompa a linha. E levem o cozinheiro.

— Mas...

— Será que você não compreendeu? Depressa, senão lhe ensino como se corre.

Lobthal mantinha sua gente sob controle. O soldado, um saltador, obedeceu imediatamente, embora murmurasse algumas palavras incompreensíveis.

Com os olhos, Lloyd acompanhou o homem que se afastava. A Gazela estava na beira da mata, intata. Encontrava-se no mesmo lugar em que ele a deixara.

Lobthal quase chegava a estar febril quando se dirigiu a Lloyd.

— O que... Será que agora vocês podem mostrar como a gente se torna invisível? Estou disposto a pagar qualquer coisa pelo aparelho, se quiserem vendê-lo.

— Você não tem nem cinco tostões no bolso — disse Gucky em tom seco.

— Tenho dinheiro, mas não aqui — voltou a erguer o radiador. — Além disso, sou o mais forte. Posso obrigá-los.

— É preferível não experimentar — advertiu Gucky. — Aliás, terá que colocar esse brinquedo perigoso no chão, senão não poderá tornar-se invisível.

— O quê? Largar a arma? Nunca!

Gucky deu de ombros e pôs-se a caminhar em direção à Gazela.

— Está certo; deixe para lá.

Lobthal percebeu que não estava sendo levado a sério. Isso fez aumentar a raiva que sentia pelo animal que se encarregava da maior parte da conversa. Todavia...

— Espere! O que pretende fazer por aí?

Gucky parou e lançou um olhar perscrutador para Lobthal. Depois de algum tempo, acenou com a cabeça, num gesto condescendente. Nesse meio tempo os soldados já haviam desaparecido; a clareira jazia deserta sob o crepúsculo vespertino. O sol já se pusera há muito tampo.

— Está bem; eu lhe mostrarei — decidiu e voltou.

Lloyd mantinha-se ligeiramente afastado, contemplando o disco reluzente em atitude pensativa. Parecia não ter o menor interesse pelas “experiências” do companheiro.

— Quero ficar com a arma — disse Lobthal, insistindo na sua segurança.

— Está certo. Já que está com medo, pode ficar — concordou Gucky. — Vou segurar a mão. Será a mão vazia, para que você não perca seu brinquedo. Isso! Agora preste muita atenção, amigo barbudo...

Lobthal realmente se tornou invisível, mas só quem assistiu foi Lloyd. Gucky desapareceu juntamente com o lurano curioso. Depois o mutante caminhou tranqüilamente em direção à Gazela. O aparelho de controle baseado nas vibrações cerebrais funcionava perfeitamente, pois a escotilha abriu-se quando Lloyd se colocou abaixo da mesma e proferiu a palavra-código. Sem preocupar-se com o regresso de Gucky, subiu pela escada estreita logo que a mesma desceu.

Sentiu os impulsos mentais de vários homens, mas a escotilha já voltara a fechar-se e Lloyd se encontrava na sala de comando. Agora não lhe poderiam fazer muita coisa, quer estivessem desconfiados, quer não.

Com alguns movimentos da mão, colocou a Gazela em condições de decolar.

Na sala dos propulsores houve um zumbido, o soalho metálico vibrou e a clareira transformou-se numa manchinha clara em meio à mata. Lloyd não viu os homens que gritavam e corriam de arma em punho para o lugar em que pouco antes se encontrava o disco voador que deviam vigiar.

Orientou-se e tomou a direção de um ponto não muito distante. Dali a poucos minutos, avistou o platô, as cabanas em forma de colméias e o grupo de volatenses que corria ao encontro da nave prestes a pousar.

Lloyd desceu e, com um ligeiro cumprimento, passou pelos nativos que lhe acenavam amavelmente. Thora, Rhodan e Noir já o aguardavam. Haviam reconhecido a Gazela e acompanhado seu pouso.

— Gucky já voltou?

Leu a resposta no rosto dos dois homens. Sentiu-se dominado pela sensação de ter cometido um erro.

— Como? — perguntou Rhodan. — Será que esse moleque resolveu mais uma vez agir por conta própria?

— Alguém nos perturbou e ele se encarregou de levá-lo. Combinamos que voltaria imediatamente ao platô, para não perdermos tempo.

Rhodan olhou para o relógio.

— Está tudo preparado. A despedida dos volatenses foi simples, mas cordial. Seria conveniente que o senhor fosse apresentar suas despedidas à mãe onisciente antes de decolarmos, Lloyd.

— E Gucky?

— Este deve aparecer no último momento; não se preocupe. Apresse-se.

Já estavam esperando há quinze minutos na comporta aberta da Gazela, quando Gucky se materializou e se colocou a seu lado com um salto. Antes que alguém tivesse tempo de dizer qualquer coisa, o rato-castor pôs-se a chilrear:

— Já podemos ir embora, cavalheiros.

Rhodan fez um rosto zangado, segurou o desobediente pelas orelhas e arrastou-o em direção à sala de comando. Com um empurrão, fê-lo sentar no sofá.

Lloyd decolou.

O planeta Volat foi diminuindo na tela, até transformar-se numa estrela brilhante. Com os campos antigravitacionais ativados, a Gazela acelerava para atingir a velocidade da luz. Noir, que se encontrava na sala de rádio, procurou entrar em contato com o comandante da Lotus, Jim Markus.

— E agora, meu pequenino, você vai contar direitinho por onde andou todo esse tempo. Um teleportador não precisa de meia hora para levar alguém de um lugar a outro.

Gucky oferecia um aspecto triste. Arrependido, estava agachado no sofá com os olhos marrons e ingênuos semicerrados. Deixou pender tristemente as orelhas, e o dente roedor, que costumava aparecer constantemente, não surgiu.

— Eu o levei a Kuklon, chefe. Foi por isso?

— Foi? E não tem mais nada a dizer?

Gucky fez um gesto afirmativo.

— Posso ser punido quando faço alguma coisa sem ordem expressa, mas meu ato se revela útil à causa?

Rhodan esforçou-se em vão para ler nos pensamentos do amigo, mas o bloqueio erigido por Gucky impediu-o de realizar seu intento. Olhou para a tela e respondeu:

— Depende das circunstâncias. Desde que você não cause nenhum prejuízo que possa ser provado, a arbitrariedade pode ser perdoada. Mas fale logo. O que andou fazendo em Kuklon?

Gucky entesou o corpo e exibiu um sorriso tímido. A parte inferior do dente roedor tornou-se visível.

— Levei Lobthal a cidade e...

— Ora essa! Quem é esse Lobthal?

— É claro que só pode ser o sujeito que estava vigiando a Gazela. Ah, desculpe! É o bloqueio mental. Esqueci.

Liberou o acesso ao seu cérebro, para que Rhodan tivesse mais facilidade em orientar-se, e prosseguiu:

— Larguei-o em pleno centro, onde ficou um tanto deslocado, com a arma de radiações na mão. Não quis nem poderia impedir a intervenção da polícia. O segundo salto transportou-me ao palácio de Mansrin. Estava interessado em saber o que havia acontecido. Bem, fiquei satisfeito com o que consegui descobrir. Foi mesmo Talamon que reconheceu você. O administrador anda escondido depois que Árcon foi avisado. Quer dizer que já temos certeza, chefe. O “monstro”, que se encontra 30 mil anos-luz daqui, sabe que Rhodan ainda vive. Também já sabe que você esteve em Volat. Receio que já tenha chegado a hora de desistirmos do jogo de esconder.

Rhodan ouvira-o sem interromper. Aquilo que Gucky lhe contou não era nenhuma novidade e não o surpreendeu. Teria de esperar por isso. Mas havia uma coisa que Rhodan não compreendia: por que Talamon resolvera traí-lo? Afinal, já foram bons amigos. Será que agira assim sob o efeito do susto e já estava arrependido? Era bem possível que o choque sofrido, ao verse diante de uma pessoa que há tanto tempo acreditava estar morta, lhe turvasse o raciocínio por algum tempo.

Fosse como fosse, a essa hora o regente de Árcon já sabia que seu maior rival estava vivo e em atividade. O computador gigante se prepararia para iniciar a luta que colocaria em jogo a existência de um Império no qual brilhavam mais de mil sóis.

Noir anunciou em tom orgulhoso:

— Estabeleci contato com a Lotus. Tenho o raio vetor.

— Corrija a rota — ordenou Rhodan, acrescentando: — Procure colocar Markus na tela, Noir. Quero fazer-lhe algumas perguntas.

Noir não era especialista em matéria de rádio, pois do contrário teria conseguido mais depressa. Rhodan podia dar-se por satisfeito porque, dez minutos depois, o hipno pôde anunciar:

— O contato com o comandante Markus já foi estabelecido, chefe. Quer falar com o senhor; ao que parece está bastante nervoso.

Rhodan dirigiu-se à sala de rádio e ocupou o lugar de Noir. Acionou alguns controles e os contornos do rosto de Markus tornaram-se mais nítidos. Os detalhes da sala de comando da Lotus também. Noir era um bom hipno, mas não entendia quase nada de rádio. Aliás, não tinha necessidade disso, pois era telepata.

— Alô, Markus. Aqui fala Rhodan. Como está a ligação?

— Entendo-o perfeitamente, Sir. Qual é sua posição?

— Estou a cinqüenta e três minutos-luz de Volat. Por quê?

— Irei ao seu encontro. Ninguém sabe o que poderá acontecer nos próximos trinta minutos. Como foi que o descobriram?

Rhodan teve a impressão de ter levado uma pancada. Como foi que Markus soube?

— Descobriram? Por que diz isso?

— Alguém deve ter dito ao computador de Árcon que o senhor se encontra em Volat. Então não sabia?

— Sabia, Markus, mas estou procurando descobrir como foi que o senhor soube. Será que captou a mensagem de Mansrin?

— Não; captei a mensagem do regente.

Rhodan já estava acostumado às surpresas. Mas, diante de uma surpresa como esta, levou alguns segundos para formular a pergunta seguinte.

— O computador enviou uma mensagem? É para Mansrin?

— Não senhor — respondeu Markus. — É para o senhor.

Rhodan perdeu a paciência.

— Fale logo, homem! O que houve?

— Há meia hora estou recebendo um pedido transmitido pelo hiper-rádio. O pedido foi redigido em linguagem comum e é repetido automaticamente a cada dois minutos. Está interessado no texto?

Ouvia-se que Rhodan respirava com dificuldade.

— Quando o senhor estiver na minha frente, Markus...

— Está bem. Darei o texto da mensagem. Vou começar:

Chamamos Perry Rhodan, do planeta Terra. Sei que você está vivo. Entre em contato comigo pela freqüência anterior. Garanto sua vida e sua liberdade. O regente de Árcon.

 

Os psicólogos de robôs de Terrânia tiveram muito trabalho antes que a Lotus pousasse. Rhodan transmitiu alguns dados pelo hiper-rádio e pediu a interpretação imediata. Não permitiu que pairasse a menor dúvida sobre a urgência da tarefa.

Queria o resultado no momento da chegada à Terra.

Markus conduziu a Lotus habilmente à velocidade da luz, fazendo-a atravessar o anel de asteróides. Passou por Marte e, dali a pouco, pousou em Terrânia, a maior cidade da Terra.

Segundo se informou, o resultado dos exames cibernético-psicológicos poderia ser fornecido dentro de alguns minutos. Por uma questão de cautela seria enviado diretamente ao quartel-general.

Rhodan, Thora, Lloyd e Noir tomaram um carro para ir à cidade. Passaram por uma abertura da abóbada energética, que permanecia ligada ininterruptamente e, cinco minutos depois, chegaram à sala da qual haviam saído há poucos dias.

Sentado atrás da escrivaninha com os numerosos aparelhos de comunicação, Bell fitou-os com uma expressão indefinível. Estava com os cotovelos apoiados na tampa e o queixo repousava nas mãos. Essa pose lembrava vivamente as caricaturas dos diretores atacados pela “doença gerencial”.

— Por pouco não morro de tédio com esta rotina — lamentou-se em tom tão exagerado que ninguém o levou a sério. — Enquanto vocês passam uns dias de férias encantadoras, eu tenho... ah, Thora. Então está de volta? Que bom!

Subitamente estreitou os olhos.

— Onde está Gucky?

Rhodan esperou até que a onda de cumprimentos cessasse.

— Gucky está providenciando uma residência para seu novo amigo.

Bell respirou com dificuldade.

— Desde quando Gucky tem outro amigo? — em sua voz havia um pouco de ciúmes. — Nunca me falou a respeito.

— Você ainda o conhecerá — disse Rhodan para consolá-lo. — Aliás, faz pouco tempo que ele o arranjou. Você ficará encantado, Bell.

— Hum — fez Bell em tom de ceticismo, mas não teve tempo para outros comentários.

Um dos aparelhos que se encontravam sobre a mesa emitiu um zumbido. Rhodan aproximou-se e comprimiu um botão. A pequena tela presa à parede iluminou-se.

Viu-se um rosto. O rosto pertencia a um homem de meia-idade, que pela capa branca devia ser um cientista.

— Aqui fala Rhodan — disse Rhodan apressadamente. — Tem o resultado?

O homem fez que sim.

— Aqui fala o Dr. Gertz. Os exames e as análises por nós realizadas provam com toda evidência que o regente não garantiria sua vida e segurança se não houvesse um motivo imperioso para isso. E o grande computador positrônico de Vênus concorda conosco num ponto: a mensagem do regente só pode ter um motivo.

— Qual é esse motivo? — perguntou Rhodan, esforçando-se para ocultar a tensão.

— O regente de Árcon precisa do senhor. Encontra-se numa situação difícil, cujas características não conhecemos. Precisa do auxílio da Terra.

Rhodan respirou profundamente.

— Será que não está enganado, doutor?

— O material disponível exclui qualquer possibilidade da ocorrência de erro nos cálculos. Nossa análise é cem por cento correta. O computador positrônico, que exerce a regência de Árcon, está num “aperto” e, de certa maneira, parece satisfeito, tanto quanto um computador pode sentir-se satisfeito, porque a Terra e o senhor ainda existem. Isso representa para ele a salvação de uma situação extremamente difícil.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Árcon em dificuldade? Bem, para falar com franqueza, não tive a impressão de que o Império se encontra em situação difícil. Pelo contrário... Será que estávamos enganados?

Thora cochichou:

— Talvez se trate de problemas que só o computador conhece, Perry. Acho que seria conveniente entrar em contato com o mesmo.

— Farei isso assim que tiver liquidado as tarefas mais urgentes. Afinal, isso não representa qualquer risco para nós.

A tela apagou-se. Bell levantou-se e cedeu o lugar a Rhodan. Mas este não demonstrou muita vontade em reassumir no mesmo dia seu posto de Administrador do Império Solar.

— Acho que merecemos um dia de descanso — anunciou. — Receio que você tenha de agüentar até amanhã.

Bell seguiu-o com os olhos. Seu rosto não mostrou a menor emoção quando disse:

— Gucky ao menos poderia vir cumprimentar-me, Perry.

Rhodan virou-se na porta e exibiu um sorriso matreiro.

— Darei o recado, Bell. Oportunamente ele lhe apresentará seu novo amigo.

Bell viu a porta fechar-se e passou a tratar dos serviços administrativos que esperavam por ele. Eram coisas miúdas com as quais não precisaria preocupar-se. Mas todo homem necessita fazer alguma coisa, senão...

Ouviu um ruído vindo da porta.

Bell levantou a cabeça e viu o botão girar. A porta abriu-se um pouco. Será que o sujeito não sabia bater? Sem dúvida vinha trazer mais algum trabalho?

Ou será que era Gucky que estava chegando?

Bell ergueu-se lentamente da poltrona e sentiu que seus cabelos se arrepiavam. Naturalmente quando achava-se no escritório, não carregava nenhuma arma. Quem imaginaria que um tigre selvagem pudesse andar livremente por aí? Um tigre?

Era um animal gigantesco; Bell nunca vira coisa igual. Ao menos no interior do gabinete teve essa impressão. Abanando a cauda e ronronando gostosamente foi caminhando em direção a Bell, que parecia duro de pavor. Não tirava os olhos dele. Bell não se deu ao trabalho de examinar detidamente aqueles olhos, pois do contrário teria notado alguma coisa.

O tigre — ou fosse lá o que fosse — parou e parecia preparar-se para dar o salto. Continuava a ronronar. Bell não se atreveu a fazer o menor movimento, para não irritar a fera.

“Como foi que esse bicho conseguiu entrar aqui? Não é possível...”, pensou desesperado.

O tigre esticou o corpo e soltou um urro de satisfação que parecia dar notícia de que as dimensões do corpulento Bell correspondiam exatamente ao seu desejo para a refeição noturna.

Finalmente deitou aos pés de Bell, enrolou-se, bocejou gostosamente e fechou os olhos. De repente parecia não estar mais interessado na presa.

Bell suspirou de alívio e já se considerava praticamente salvo, quando ouviu outro ruído vindo da porta.

“Deve ser a fêmea do devorador de gente, que vem buscar sua parte da presa”, pensou.

Mas era apenas Gucky que, muito empertigado, entrou com seu andar balouçante, exibindo um sorriso insolente.

— Então, meu velho, já fez amizade com o Gracinha?

Bell não se moveu.

— Gracinha? Está se referindo a essa fera? Será que ficou louco?

— Seja mais comedido no seu vocabulário, seu gorducho, senão você vai ver o que é bom. Gracinha não é nenhuma fera; é meu amigo. Gracinha, mostre-lhe seus lindos dentes e as garras.

Sem abrir os olhos, Gracinha abriu a boca e exibiu os gigantescos dentes caninos. E as garras também não inspiravam muita confiança.

— Então, gorducho. O que me diz? Quer que peça a Gracinha para lhe fazer cócegas?

— Ele é manso? — perguntou Bell num sopro.

— Quando quer, sabe ser manso — disse o rato-castor e sorriu. Seu dente roedor brilhava de tão feliz que se sentia. — Mas só quando quer. Se daqui em diante você não ficar bem comportado, eu o toco para cima de você. No lugar de onde eu o trouxe, certa vez devorou três homens de seu tamanho. E isso depois do almoço.

Bell sentiu certo alívio. O perigo principal havia passado. Se o tigre pertencia a Gucky, as coisas não poderiam ser tão ruins.

— Deve ser para nosso zoológico, não é? — conjeturou.

— Para o zoológico? — disse Gucky era tom indignado. Gracinha lançou um olhar sonolento para Bell. A ponta do rabo moveu-se de forma quase imperceptível. — Internar Gracinha no zoológico? Se isso acontecer, farei com que você seja o primeiro petisco a ser servido a ele. Não tenha a menor dúvida — inclinou-se sobre o felino e acariciou suas costas.

Logo depois prosseguiu:

— Assim são os humanos. Acham que tudo que não se parece com eles deve ser internado no zoológico. Teria sido muito mais acertado se tivesse trancado os humanos no zoológico e deixado os animais livres. Isso pouparia muito aborrecimento para todo mundo.

Gracinha ronronou amistosamente.

— Ainda tenho muito trabalho a fazer — murmurou Bell com a voz tímida.

Gucky lançou-lhe um olhar de desprezo.

— Permissão concedida — disse em tom condescendente. — Vamos embora, Gracinha. Afinal, os homens são criaturas idiotas, e Bell não passa de um homem — o felino levantou-se e seguiu documente o dono.

Bell voltou a afundar na poltrona.

— Até logo mais, gorducho. Agora que tenho um amigo tão influente, poderei conversar “melhor” com você, Bell. Ainda preciso apresentá-lo a outras pessoas.

Bell fitou a porta fechada. Bateu com o punho na escrivaninha e murmurou com a voz zangada:

— Era só o que faltava. Vou...

Gucky materializou-se em cima da escrivaninha.

— Pois não — piou. — Você queria dizer alguma coisa?

Bell olhou de esguelha para a porta entreaberta, que deixava ver o bigode de Gracinha.

— Ora... apenas estava pensando... — principiou.

Porém Gucky logo o interrompeu:

— Pois é justamente isso que você não deve fazer. Faça o favor de deixar que os telepatas pensem por você. Estão mais treinados. Boa noite, meu velho.

A porta fechou-se e o rato-castor desmaterializou-se. Bell suspirou.

— Não se deve falar, não se deve pensar, tomara que ao menos se possa trabalhar...

Podia.

Ninguém o perturbou.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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