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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Robô Espião / Clark Darlton
O Robô Espião / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Robô Espião

 

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galático, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu.

E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terra-nos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante... A luta contra o invisível, por ora, ficou suspensa.

Perry aguarda notícias dos agentes cósmicos enviados a diversos lugares. O administrador do Império Solar quer ser informado a respeito do invisível...

Nesse momento, a Drusus recebe uma mensagem que indica situação de alarma: um robô espião começava a agir!

 

                                            

 

O silêncio reinava entre os ocupantes da Drusus, nave capitania da frota terrana. O gigantesco veículo espacial esférico mantinha-se em posição de espera, a trinta anos-luz da Terra. Aguardava o primeiro sinal de um novo ataque vindo de outra dimensão temporal.

Os oficiais de patente mais elevada da Drusus tinham ouvido diretamente as palavras de Atlan, enquanto os outros participaram do acontecimento através das telas instaladas nos seus alojamentos ou postos de trabalho.

O relato empolgante e bem estruturado de Atlan fizera desfilar um capítulo da história dos primórdios da Terra. Era o capítulo relativo ao continente legendário da Atlântida e aos seus habitantes.

Tornava-se muito difícil libertar-se do impacto produzido pelas palavras de Atlan. Durante milênios a Terra conhecera uma única indicação relativa à existência daquele continente fantástico. Tratava-se de ligeira alusão encontrada numa obra de Platão. Centenas de pessoas de fantasia muito viva procuraram extrair das palavras de Platão mais do que o filósofo dissera. E centenas de pessoas desse tipo procuraram em quase todas as partes da Terra os vestígios da Atlântida. Várias teorias acerca da catástrofe que teria causado a destruição daquele continente chegaram a ser formuladas.

E enquanto acontecia tudo isso, havia na Terra um homem que estaria em condições de pôr fim a todas as especulações, um homem que poderia ter desvendado o mistério, se quisesse.

Era Atlan, o arcônida, o imortal. Pertencia à família altamente conceituada dos Gonozal que, ao tempo em que partira de seu mundo, imperava em Árcon. Atlan era muito venerado pelos subordinados, tanto que estes deram seu nome a um continente do planeta situado num sistema solar recém-descoberto.

O que valiam diante disso os esforços dos filólogos, que com grande zelo haviam construído da raiz indo-germânica ti ou tia o equivalente de carregar, motivo por que viam em Atlas o homem que sustentava a Terra? Será que tudo não passava de uma semelhança de palavras entre as quais não havia a menor relação?

O relato de Atlan daria uma verdadeira manchete, se o encarássemos sob o ponto de vista dos redatores e repórteres dos veículos de comunicação. Mas era mais do que isso. Provava que o misterioso desconhecido, que vivia no mundo artificial denominado Peregrino, já reconhecera há dez mil anos da contagem de tempo terrana os imensos perigos que o inimigo, vindo de outro plano temporal, representava para a Galáxia. E desde então procurava meios de enfrentá-lo.

Procurava meios! A palavra procurar assumia um significado profundo para quem considerasse os recursos imensos de que dispunha o ser do planeta Peregrino, que não tivera a menor dificuldade em remover qualquer outro perigo.

O imortal do planeta Peregrino incumbira Atlan de enfrentar o ser misterioso vindo de um outro “ambiente” temporal. Se nos guiássemos pela lógica humana, chegaríamos à conclusão de que o grande desconhecido do planeta Peregrino não estava em condições de enfrentá-lo só.

E, se este ser não estivesse em condições de enfrentá-lo, quem poderia estar?

 

Perry Rhodan levantou-se e disse em voz calma e objetiva:

— Eu lhe agradeço, Atlan. Seu relato foi altamente elucidativo, se bem que não deixou de ser um tanto deprimente. Mas espero que nós, enriquecidos com sua experiência, consigamos realizar a tarefa que lhe foi atribuída pelo desconhecido.

Um sorriso ligeiro surgiu no rosto de Atlan, já totalmente recuperado.

— Minhas experiências não servirão para muita coisa, Rhodan. Naquela época limitei-me a desferir golpes no escuro, conforme vocês costumam dizer.

— Nunca se deve desistir — respondeu Rhodan, retribuindo o sorriso. — Você já conhece o ditado: quem não arrisca não petisca. Na situação em que nos encontramos, esse adágio pode ter uma conotação ridícula. Mas, em qualquer caso, aquele que sem desânimo entra numa empresa tem melhores condições de sair vitorioso.

Atlan fez um gesto afirmativo. — É verdade. Conheço a Humanidade há muito tempo. E conheço muitos exemplos onde a fé, que na verdade não passa de uma certa obstinação associada a uma convicção alógica, tem removido montanhas. Esta qualidade só é encontrada nos terranos. As outras raças sentem dificuldades imensas quando devem saltar por cima da própria sombra.

Depois levantou a cabeça e estendeu a mão a Rhodan.

— Então, bárbaro, vamos tentar!

Rhodan riu.

— Tenho a impressão de que o arcônida aprendeu muita coisa com os bárbaros. Se não fosse assim, a esta hora já teria desistido, e passaria a assumir uma atitude passiva.

O sorriso de Atlan parecia exprimir certa dor.

— Você atingiu meu ponto vulnerável, Rhodan. Mas a esta hora já sou obrigado a acreditar que meu povo se transformou num bando de sonhadores idiotas.

— Há exceções — ponderou Rhodan. — Por enquanto Árcon não está perdido.

Atlan confirmou com um gesto.

— Vamos...

Foi interrompido pelo zumbido do intercomunicador. Uma voz clara e áspera disse:

— Operador de rádio número dois chamando o comandante! Operador de rádio número dois chamando o comandante!

Com um salto, Rhodan colocou-se à frente do painel principal do piloto.

— Comandante falando! O que houve? — perguntou para dentro do microfone, depois de ter ligado para a transmissão.

— Um aviso importante da Central dos Agentes de Terrânia. A mensagem veio através da estação retransmissora que fica na direção de Rigel.

Rhodan hesitou um instante. Contemplando os rostos dos oficiais ali reunidos, disse:

— Um momento. Irei até a sala de rádio.

Sorriu para Atlan e retirou-se. Atlan continuava no mesmo lugar e fitava a porta fechada.

— Basta falar no diabo.... — começou a falar com o espírito cheio de pressentimentos, mas não concluiu.

 

Gucky não se deu ao trabalho de ouvir diretamente o relato de Atlan. Estava sentado em seu pequeno camarote e estremeceu quando a tela se apagou e o rosto do arcônida desapareceu.

Gucky era o único rato-castor existente a bordo da Drusus. Na verdade, era o único rato-castor da Via Láctea, desde que se deixassem de fora os habitantes do planeta Vagabundo, que gravitava em torno de um sol vermelho-púrpura, perdido em algum lugar na amplidão do cosmos.

Tinha cerca de um metro de altura e seu pêlo era marrom. Sua cabeça parecia ser de um gigantesco rato, e a cauda era achatada como a de um castor. Possuía ao menos três faculdades extraordinárias. Sabia ler pensamentos, sendo um ótimo telepata. Era capaz de desmaterializar-se para no mesmo instante reaparecer em outro lugar; em outras palavras: um exímio teleportador. Por fim, era um telecineta, isto é, sabia mover a matéria exclusivamente com a força de seu cérebro.

Por isso não era de admirar que Gucky fosse bastante chegado a Rhodan, além de um dos membros mais proeminentes do exército terrano de mutantes.

Reginald Bell, o representante de Rhodan e seu amigo mais íntimo, entrou no camarote sem bater. Retirara-se do recinto em que estava sendo realizada a reunião dos oficiais assim que Atlan terminou seu relato. Dirigiu-se imediatamente para junto do rato-castor, ao qual estava ligado pelos laços de uma amizade notável. Para qualquer outra pessoa a camaradagem deveria parecer bastante estranha, pois os dois viviam se desentendendo.

Gucky já sentira sua aproximação e sacudiu a cabeça.

— Você nunca será um gentleman, Bell — disse num inglês impecável.

Quem não conhecesse o rato-castor, ficaria apalermado ao ouvi-lo falar naquele tom. Acontece que a inteligência do rato-castor era muito maior que a de um homem normal.

— Já imaginou se eu estivesse mudando de roupa?

Bell não pôde deixar de sorrir. Quando não estava em missão, Gucky andava sem roupa. Face ao seu pêlo espesso não havia necessidade de um uniforme ou mesmo de vestes íntimas. Por isso não haveria nada demais se alguém surpreendesse Gucky no momento em que estivesse mudando de roupa.

— Suas piadas fedem tanto quanto um saco de batatas que ficasse guardado por três decênios embaixo de uma cama — disse Bell sem a menor comoção.

— Não me fale em batatas! — pediu Gucky, que sentia um apetite tremendo toda vez que alguém lhe falava em hortaliças frescas. — Se não parar, teleportarei você para outro lado da nave e o deixarei num lavatório abandonado, onde ninguém o encontrará tão cedo. Ou então deixo-o num recinto ainda menor.

— Não faça isso, Gucky — disse Bell em tom contemporizador — Quero falar com você.

— Pois fale! — pediu o rato-castor e afastou-se para o lado, a fim de que Bell pudesse sentar-se na cama. — Meus ouvidos estão preparados, embora já estejam doendo. Devo confessar que esse arcônida possui uma elevada dose de fantasia. Bem que gostaria de ser assim...

Bell arregalou os olhos.

— Não venha me dizer que você acredita que Atlan inventou essa história relativa à Atlântida! Ora, meu caro, se Rhodan souber disso...

— Não saberá, desde que você cale a boca — disse Gucky, resmungando ameaçadoramente. — Não se esqueça do lavatório em que poderei deixá-lo.

— De mim ninguém saberá nada — apressou-se Bell em asseverar e acrescentou: — Acontece que achei a história de Atlan muito interessante e elucidativa.

— Eu também — confessou Gucky e coçou demoradamente as costas.

Bell suspirou e cedeu ao pedido implícito nesse gesto. Aproximou-se do rato-castor e começou a acariciar seu pêlo. Não havia nada que deixasse o pequenino mais feliz.

— Mas quanto ao mais — disse Bell, olhando para o teto — isto já começa a ficar enjoado. Estamos parados no espaço com uma nave-gigante e esperamos. Você poderia dizer o que estamos esperando?

— Vou perguntar a Rhodan.

— Se acredita que este lhe contará alguma coisa, está muito enganado, baixinho.

— Não seja tão arrogante, gorducho — disse Gucky, adotando o mesmo tom de voz, pois seus freqüentes contatos com Bell lhe haviam proporcionado um vocabulário bem interessante. — Aliás, eu estou me dando muito bem com esta boa vida. Mas uma pessoa que nunca faz nada não precisa descansar.

Bell parou de acariciar o pêlo do rato-castor e empertigou-se.

— Será que você quer dizer que eu...

— Não se esqueça do lavatório! — advertiu Gucky em tom suave.

Bell suspirou e resmungou:

— Não sei por que vim para cá. Em vez de descansar, tenho de ouvir ameaças. Quem mantém contato com seres semi-inteligentes só colhe aborrecimentos.

Apressou-se em voltar a acariciar o pêlo de Gucky, pois enquanto fazia isso sentia uma relativa segurança.

— Espero que você saiba levar a brincadeira na esportiva, pequenino.

— É claro que sei, gorducho — asseverou Gucky em tom leal e exibiu o dente roedor.

Este lhe servia para mastigar o alimento — hortaliças frescas, de preferência cenouras — e ainda para exibir seus sorrisos. E quando Gucky sorria, via de regra não havia nada a recear. Bell suspirou aliviado.

Por alguns segundos um silêncio reconfortador espalhou-se pelo camarote. Esse silêncio só foi interrompido, de vez em quando, por um grunhido de satisfação de Gucky, que soube aproveitar até o fim a disposição de acariciá-lo que seu amigo vinha manifestando.

Mas subitamente o encanto foi interrompido.

Ouviu-se um zumbido, e uma voz muito conhecida disse:

— Alô, Gucky. Por acaso Bell está aí?

— É Rhodan! — disse Bell, levantando-se sobressaltado para mover uma chave.

Depois respondeu para dentro do microfone do sistema de intercomunicação de bordo:

— Sim, estou no camarote de Gucky. O que houve, Perry?

— Logo mais direi. Venha à sala de comando! Mas não demore; apresse-se.

O rosto de Bell parecia ser uma única interrogação.

— Será que você poderia fazer o favor de dar uma definição mais precisa da diferença sutil que deve existir entre os conceitos de andar e de apressar-se?

— Olá! — disse Gucky, que continuava na cama que durante o dia lhe servia de sofá. — Que linguagem rebuscada o gorducho está usando hoje!

Ao que parecia, Rhodan não estava de bom humor.

— Não podemos perder tempo, Bell. Espero-o exatamente dentro de dois minutos na sala de comando. Gucky conseguirá chegar mais depressa, se não tiver de trazer você!

Bell colocou a mão na chave, como se quisesse desligar, mas antes disso formulou a pergunta:

— Quer dizer que...

— Isso mesmo — disse Rhodan, respondendo à pergunta que não chegara a ser completada. — Isto quer dizer que a espera chegou ao fim.

Um ligeiro estalido mostrou que a comunicação chegara ao fim.

Gucky escorregou do sofá e colocou-se ao lado de Bell, segurando-lhe a mão.

— Vamos embora, gorducho — chilreou em tom alegre.

Dali a alguns segundos o ar começou a tremeluzir, e Gucky e Bell desapareceram.

No mesmo instante os dois materializaram-se na sala de comando da Drusus.

 

Rhodan aguardou até que se fizesse silêncio. Alguns dos oficiais que meia hora antes haviam ouvido o relato de Atlan também se encontravam presentes. Um deles era Baldur Sikermann, Primeiro-Tenente e imediato da Drusus; seu substituto, o Major Teldje van Aaafen e o Capitão Hubert Gorlat, oficial de segurança da nave.

A tripulação era composta de duas mil pessoas, inclusive os oficiais. O número não era de admirar, já que se tratava de uma nave de um quilômetro e meio de diâmetro.

Nos hangares da gigantesca nave estavam guardados quarenta Girinos, naves de sessenta metros de diâmetro, que poderiam ser bem tripuladas em caso de necessidade. Juntamente com a Titan e a General Pounder, que eram do mesmo tipo, a Drusus era a maior nave do Império Solar. Árcon era o único mundo que poderia dispor de algo igual.

— Acabamos de receber uma mensagem de hiper-rádio vinda da Terra — disse Rhodan em meio ao silêncio carregado de expectativa. — Não tenho certeza se tem algo a ver com nossa tarefa propriamente dita, mas mesmo que isso não seja o caso, não poderemos deixar de atender ao pedido.

Bell, um pouco afastado, perguntou:

— Que pedido é este?

Havia um tom de estranheza em sua voz. E com toda razão.

Um ligeiro sorriso surgiu no rosto de Rhodan.

— Vou ler a mensagem. Já devem saber que o texto chegou aos nossos receptores em estado condensado e linguagem codificada. Por isso não houve perigo de que alguém pudesse captá-lo, ou pudesse, com base na mesma, determinar a posição da Terra.

 

Chamando a nave Drusus! Sinal de emergência três toques de sino expedido pelo agente Jost Kulman, que se encontra em Swoofon, sistema de Swaft. Quer que alguém vá buscá-lo imediatamente. Não forneceu detalhes.

 

“A mensagem foi expedida pela central de Terrânia. Na minha opinião devemos atendê-la, dirigindo-nos a Swoofon. Alguém quer formular uma indagação?”

Foi tudo muito rápido; ninguém tinha uma pergunta preparada. Onde ficava Swoofon? Quem vivia lá? O que acontecera com Kulman? E quem era ele? Seriam estas perguntas apropriadas para serem formuladas numa situação como esta, ou será que havia outras, mais importantes?

Bell manifestou-se. Estava credenciado para isso.

— Será que Kulman não poderia ter dito qual era seu problema?

Rhodan fez um gesto de condescendência.

— É claro que poderia ter dito; acontece que não disse. Mais alguma pergunta?

— Quem ocupará nossa posição quando nos dirigirmos a Swaft? Com nossa saída haverá uma lacuna no sistema de vigilância, que deve ser mantido intacto.

— Dificilmente — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — O que fizemos foi apenas reforçar a frente de observações. Se sairmos dela, a mesma voltará ao normal.

— Neste caso não tenho outras perguntas.

Rhodan fez um sinal para Sikermann e olhou em torno.

— Não há mais nada a esclarecer? Bem, era o que eu esperava. Assim que houver o revezamento das sentinelas, saltaremos em direção a Swaft e daremos uma olhada por aquelas bandas. É bem possível que depois da mensagem de Kulman alguma coisa tenha mudado por lá. Não pretendo entrar numa armadilha. Portanto, preparem-se para algumas horas de serviço bem cansativo. Peço que Reginald Bell e o Capitão Gorlat permaneçam na sala de comando. Quero tomar todas as precauções. Muito obrigado.

Manteve-se imóvel e esperou até que todos tivessem saído, com exceção de Gorlat e Bell. Ninguém deu atenção a Gucky, encolhido no sofá. Rhodan pelo menos fez de conta que não estava vendo o rato-castor.

— Swaft é um sol relativamente desconhecido — principiou. — Dá vida a seu segundo planeta, denominado Swoofon. Este planeta é habitado por uma raça muito estranha, conhecida como os swoons. Dizem que são excelentes mecânicos e técnicos. Ou, para sermos mais exatos, são excelentes micromecânicos. Seus olhos enxergam melhor que nossos microscópios. Sua especialidade consiste na construção de mini-máquinas, que um homem normal dificilmente descobre a olho nu. É este o motivo principal de termos enviado o agente Jost Kulman a Swoofon.

— Se não me engano, Kulman pertence ao Exército de Mutantes — observou Gorlat, o oficial de segurança.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Kulman é nosso micrótico. Possui a capacidade espantosa de modificar à vontade a focalização de seu globo ocular, obtendo uma visualização aumentada. Por isso consegue reconhecer e identificar objetos de dimensões microscópicas, independentemente de qualquer recurso técnico.

Rhodan olhou para o relógio.

— Preciso fornecer ao setor de navegação os dados relativos a Swaft. O sistema fica a pouco menos de mil anos-luz de nosso sol. Se ligarmos os compensadores estruturais, podemos arriscar o percurso num único salto, sem que haja o menor perigo de que alguém descubra a posição da Terra.

— Ainda bem que temos esses compensadores — disse Gorlat com um sorriso de satisfação. — Sem eles um salto no espaço nunca poderia ser mantido em segredo. Seria horrível.

— E, o que é pior: a localização dos planetas iria ser facilitada — observou Bell.

— Para nós isso seria uma verdadeira calamidade — constatou Rhodan. — Afinal, a melhor arma que possuímos é o segredo da posição galáctica da Terra. Os arcônidas e os saltadores já andaram fazendo de tudo para descobri-lo. Realmente, o compensador estrutural representa uma felicidade para nós. Os rastreadores estruturais não servem de nada para os arcônidas quando não haja o que possa ser rastreado.

Despediu-se com um gesto e retirou-se da sala de comando.

Os outros seguiram seu exemplo, dirigindo-se aos seus postos.

Só Gucky continuou no sofá. Achou que seria conveniente tirar um cochilo.

 

A Drusus materializou-se, vinda do nada. A estrela Swaft surgiu como um sol reluzente. O segundo planeta ficava entre esse sol e a nave, que se mantinha imóvel. Havia retornado ao Universo normal sem provocar o menor abalo no contínuo espaço-temporal.

Uma das Gazelas foi preparada para decolar.

Tratava-se de uma nave de reconhecimento de primeira ordem, que tinha o formato de disco e media dezoito metros de altura e trinta de diâmetro. Seu alcance estava limitado a quinhentos anos-luz; era capaz de realizar saltos pelo hiperespaço até uma distância de cinco anos-luz.

O comandante designado por Rhodan foi Fron Wroma, um capitão africano, piloto muito competente. Seria acompanhado por dois cadetes e pelo sargento Redkens, da equipe de rádio.

No momento, Swoofon se encontrava a duas horas-luz e Rhodan deu ordem de decolar.

Uma escotilha abriu-se silenciosamente na zona equatorial da Drusus, e dela saiu rapidamente uma sombra prateada que se precipitou no espaço. Acelerando sempre, tomou a direção do planeta ainda distante.

Depois, a espera longa e tediosa teria início na Drusus.

Dali a duas horas o sargento Redkens transmitiu uma mensagem:

— O agente Kulman não responde. Onde poderemos encontrá-lo?

Rhodan fitou Sikermann com os olhos semicerrados. Este encontrava-se a seu lado, a fim de que os controles da nave nunca ficassem desguarnecidos. Ninguém contara com a possibilidade de que, depois de emitir o sinal de emergência e pedir que viessem buscá-lo, Kulman se mantivesse em silêncio. Segundo os catálogos dos arcônidas, Swoofon era um mundo pacífico e inofensivo. Por isso mesmo dificilmente Kulman se teria defrontado com algum perigo. Talvez uma informação importantíssima provocara o pedido de revezamento.

E agora mantinha-se em silêncio, embora não pudesse ter deixado de ouvir o pedido de transmissão do raio-vetor, emitido pela Gazela.

Havia algo de errado naquilo...

Rhodan falou para dentro do microfone:

— Prossiga. Tente a localização goniométrica, Redkens! Kulman não poderá deixar de responder. Espero receber notícias positivas dentro de dez minutos.

O tráfego de rádio era conduzido pelo sistema de hipertransmissão, com o que se evitava a perda de tempo ligada às ondas de rádio, excessivamente lentas. A possibilidade de interceptação da mensagem tornava-se remota. E ninguém conseguiria entender a mensagem codificada, a não ser que dispusesse do dispositivo de distorção.

— Voltarei a chamar — prometeu Redkens e desligou.

Rhodan ficou à espera. Enquanto isso Fron Wroma aproximou-se lentamente da face noturna do planeta silencioso. Viu poucas luzes; lembrou-se de que os swoons viviam principalmente sob a superfície. Haviam construído apenas umas poucas cidades na zona equatorial da crosta de seu mundo, que era tão estéril que nem mesmo as plantas mais primitivas poderiam ali crescer. Um dos aspectos mais estranhos de Swoofon consistia justamente na ausência de qualquer vegetação.

Redkens transmitiu ininterruptamente o sinal de chamada destinado a Kulman e manteve-se em recepção. Só mesmo se o diabo tivesse suas mãos naquilo o agente deixaria de ouvi-los.

Acontece que o diabo não interferiu de forma alguma.

Quando o prazo de dez minutos estava para terminar, o sargento estremeceu.

Simples sinais Morse saíram do alto-falante; ao que parecia, não tinham o menor sentido. A antena goniométrica girou automaticamente, indicando a direção em que devia ficar o respectivo emissor.

— Quarenta e cinco graus, direita, trinta graus.

Redkens forneceu os dados com a maior tranqüilidade, enquanto Wroma desviava a Gazela para a direita. A superfície do planeta aproximou-se. A luz tornou-se mais forte, pois o veículo espacial se aproximava da face diurna do planeta. A tela de luz infravermelha mostrava um deserto desolado, cheio de pedras, no qual dificilmente poderia existir qualquer forma de vida.

Será que Kulman estaria lá, esperando por ele?

Os sinais Morse tornavam-se cada vez mais fortes.

Atravessaram um planalto. Se a meia-luz ali reinante não os enganasse, o mutante deveria estar entre duas elevações, num vale estreito e profundo. Ninguém sabia explicar como Kulman fora parar lá. Nem Wroma nem Redkens imaginariam que esse mistério nunca poderia ser explicado...

A Gazela baixou e passou rente à parede rochosa, dirigindo-se ao fundo do vale. Pousou suavemente.

A poucos metros do lugar em que se encontravam, um vulto pouco nítido se destacava contra as montanhas, e abanava o braço para eles.

— Irei até lá — disse Wroma e desligou os propulsores. — Fique no interior da comporta de ar e mantenha o radiador térmico preparado para qualquer eventualidade. Não quero expor-me a uma surpresa desagradável. Não estou gostando nem um pouco desta história.

— Será que há algo de errado? — perguntou o operador de rádio e sacudiu a cabeça. — O sinal goniométrico é correto!

— A responsabilidade é minha — disse o africano, encerrando o diálogo.

Dirigiu-se à comporta, que ficava próxima ao lugar em que se encontrava.

Redkens iria segui-lo, mantendo o radiador pronto para disparar. Sabia muito bem que num caso como este a cautela nunca pode ser excessiva.

A escotilha abriu-se com um baque surdo. A atmosfera um tanto carregada do planeta penetrou na comporta. E com ela veio o grito de alívio de um homem:

— Meu Deus! Quanto tempo ainda terei de esperar?

Kulman, o micrótico do Exército de Mutantes, caminhou em direção a Wroma, que o aguardava na escotilha aberta. Fitava-o com os olhos semicerrados. Redkens, que se mantinha atrás dele, já ia baixar a arma, quando uma pequena sombra fugaz surgiu atrás de Kulman.

— Venha, Muzel! — chamou Kulman, virando a cabeça.

Wroma viu a “sombra” e arregalou os olhos para enxergar melhor. Não tinha a menor dúvida de que o homem que se encontrava à sua frente era Kulman. A identidade do agente não comportava a menor dúvida. Mas de quem seria aquela “sombra”?

Muzel — fosse lá quem fosse ele — obedeceu prontamente. Assim que Kulman o chamou, aproximou-se correndo e, como um menino bem-educado, parou junto ao pé esquerdo do agente.

Wroma ouviu Redkens gemer atrás dele.

— Epa! — gritou o operador de rádio em tom de espanto. — Isso é um cachorrinho bassê!

Kulman já havia chegado ao pé da escada que descia da escotilha.

— O agente Kulman anuncia o fim de sua missão. Vieram para buscar-me? Posso entrar?

Wroma inclinou-se para a frente, a fim de enxergar melhor.

— E sua bagagem?

— Bagagem? A única coisa que tenho comigo é o emissor goniométrico. E Muzel, naturalmente.

Mais uma vez Wroma sentiu-se desconfiado. Qualquer agente possuía sua bagagem, formada de aparelhos e instrumentos muito importantes. E essa bagagem só podia ser abandonada num caso de emergência. E, ao que tudo indicava, aqui não havia nenhuma emergência.

Decidiu que as investigações a este respeito ficariam a cargo de quem de direito.

— Vamos logo! Suba a bordo. Mas deixe esse bicho esquisito onde está.

— Está se referindo a Muzel? Não vou deixá-lo para trás. Em hipótese alguma. Prefiro ficar aqui com ele.

— Como é que um cachorro bassê foi parar em Swoofon? — indagou Redkens, como se nunca tivesse visto um cão dessa raça. — Será que o senhor o trouxe quando veio para cá?

— Muzel é um possoncal — disse Kulman com a naturalidade de quem acredita que qualquer astronauta terrano é obrigado a saber o que é um possoncal.

Mas Wroma e Redkens nunca haviam ouvido falar nessa espécie de animal.

— Animais desconhecidos não podem ser aceitos a bordo — disse Wroma, um tanto inseguro. — Rhodan nos diria umas boas.

— Se é assim, podem ir embora. Não posso deixar Muzel para trás. Esses patifes o matariam.

— Que patifes são estes?

— Os saltadores. Eles me deram este cachorro e depois tentaram matar-me. Logo vi que eram piratas. Então, como é que vai ficar? Posso levar Muzel ou não?

Wroma olhou para Redkens. Este deu de ombros.

O africano resolveu aceitar a responsabilidade por seu ato sem consultar a Drusus.

“O que poderia acontecer se Kulman levasse seu posson... possel... ou fosse lá qual fosse o nome do bicho?”, pensou.

— Está bem. Pode trazer o bassê para bordo. Mas tem de ficar preso até que cheguemos à Drusus. Ninguém sabe que tipos de pulga podem existir em Swoofon.

— Muzel não tem pulgas — disse Kulman em tom indignado.

Por uma questão de cautela, acrescentou:

— Se tiver, podemos pegá-las e matá-las.

— As instalações de desinfecção da Drusus poderão cuidar disso — disse Wroma e recuou, para que Kulman pudesse entrar.

Obedecendo prontamente à ordem de Kulman, Muzel subiu com uma habilidade espantosa os degraus da escada e entrou na célula da comporta, abanando o rabo. Finalmente sentou, lançando um olhar de expectativa para os homens.

A escotilha foi fechada.

— Leve este cão para a câmara de ar comprimido que fica ao lado e prenda-o — ordenou Wroma ao sargento que se encontrava em sua companhia. — Kulman, faça com que esse seu bastardo acompanhe o sargento.

Kulman estremeceu ao ouvir a ofensa dirigida ao seu companheiro, mas conservou o autocontrole. Inclinando-se para o bassê, disse:

— Muzel! Seja bonzinho e acompanhe o titio! Logo irei buscá-lo. Você entendeu? Seu doninho logo irá buscá-lo.

Wroma teve de esforçar-se para não rir. Já vira muito doido, mas o fato de um dos agentes do planeta Terra se entregar a esse tipo de sentimentalismo piegas ultrapassava sua capacidade de compreensão. Redkens fez uma mesura irônica, dirigindo-se a Muzel. O animal era muito inteligente: entendeu o convite e levantou-se, para caminhar pelo corredor em atitude quase majestática.

Wroma quase ficou sem fôlego.

Aquele bassê caminhava! Não saltitava, mas caminhava de verdade.

Kulman seguiu-o com os olhos. Em seu rosto havia um sorriso de orgulho.

— Escute, Kulman — disse o africano assim que se viu a sós com o agente na sala de comando e ligou os propulsores. — Já não entendo mais nada. O senhor transmite a mensagem e alarma metade da frota de guerra terrana e, quando chegamos aqui, vemos que se transformou em criador de cachorros. Rhodan ficará muito admirado.

O planeta Swoofon foi mergulhando rapidamente no negrume do cosmos e desapareceu em meio às outras estrelas.

— Rhodan? — não havia dúvida de que o espanto de Kulman era genuíno. — O que será que Rhodan quer de mim? Por que mandou buscar-me?

Wroma respirava com dificuldade. Corrigiu a rota.

— Por que mandou buscá-lo? Pois o senhor pediu que isso fosse feito.

Kulman contemplou a tela reluzente e disse:

— O quê? Eu pedi que viessem buscar-me? — sacudiu a cabeça. — Um de nós está louco, meu caro. Até duas horas atrás nem sonhei com a possibilidade de sair de Swoofon. Só quando recebi seus chamados...

Wroma começou a sentir que seu pressentimento não o enganara.

Alguma coisa não estava certa.

Quase nada estava certo...

 

A Drusus estava a duas horas-luz de Swoofon. Numa rápida manobra a nave de reconhecimento que regressava foi introduzida no gigantesco corpo da nave capitania. Seus ocupantes já haviam sido informados por meio de uma mensagem de rádio transmitida por Redkens que Kulman trouxera mais um passageiro.

Muzel teve de conformar-se em ser tratado como um cachorro igual a qualquer outro: foi colocado sob a ducha de desinfecção. O animal tremeu ao ser submetido a esse procedimento, mas dele saiu incólume.

Já Kulman recebeu instruções para comparecer imediatamente à sala de comando a fim de apresentar seu relatório a Rhodan.

Ele o fez, embora não se sentisse nem um pouco à vontade. Durante o vôo de regresso tivera tempo de sobra para conversar com Wroma e Redkens. Compreendera que em toda aquela história havia uma lacuna, que dificilmente poderia ser preenchida.

Rhodan estendeu a mão a seu agente. Kulman segurou-a e olhou apressadamente em torno. Estava interessado em saber quem mais se encontrava por ali, além de Rhodan e ele mesmo. O Primeiro-Tenente Sikermann estava sentado na poltrona do piloto e realizou mais uma vez os cálculos do primeiro hipersalto, que em hipótese alguma os levaria diretamente à Terra. Reginald Bell achava-se no sofá, ao lado de Gucky, e parecia muito interessado no relato a ser apresentado. Ainda havia Hubert Gorlat e John Marshall, chefe do Exército de Mutantes e superior hierárquico direto de Kulman.

“É um público respeitável”, pensou o agente, completamente perplexo. O que queriam? Não se lembrava...

— Bem-vindo a bordo da Drusus, Jost Kulman — disse Perry Rhodan e fitou atentamente os olhos do micrótico. — O senhor transmitiu o sinal de alarma. Imediatamente respondemos a seu pedido e viemos buscá-lo. Queira informar por que desejava sair de Swoofon.

Kulman respirou profundamente. Pretendia formular um protesto enérgico, mas logo se lembrou de que John Marshall era telepata. A partir deste instante todos seus pensamentos seriam controlados. Seria inútil tentar enganar os ouvintes.

— Swoofon é um mundo pacífico e laborioso. Seus habitantes, os swoons, são criaturas adoráveis, que não me criaram qualquer problema. Vivia com eles e tive livre acesso às suas casas, na medida em que isso era possível sob as condições existentes. O senhor deve saber que a altura dos swoons não ultrapassa trinta centímetros. E é evidente que as construções por eles levantadas se adaptam a esse tamanho. E, uma vez que a maior parte das fábricas fica sob a superfície, infelizmente não consegui penetrar nas mesmas.

— Peço-lhe que se pronuncie sobre o motivo do alarma.

Rhodan parecia impaciente. Kulman estremeceu. Marshall levantou-se e lançou um olhar penetrante para o agente.

— Nunca dei o alarma — respondeu Kulman. — Há poucas horas recebi o sinal de chamada da Gazela e fui informado de que vieram para me levar. Não sei como explicar o fato. Por acaso receberam um sinal de alarma vindo de Swoofon?

Rhodan estreitou os olhos e fez um gesto afirmativo.

— Não existe a menor dúvida, Kulman. E o alarma partiu do senhor! A central de Terrânia voltou a confirmar esse fato a meu pedido. Temos certeza absoluta de que há menos de um dia, tempo terrano, o senhor transmitiu-o e pediu que viéssemos buscá-lo. Se alguém deve explicações, é o senhor, Kulman.

Marshall examinou os pensamentos do agente enquanto este procurava formular a resposta. Não descobriu nada de suspeito. Pelo que o telepata pôde constatar, estava falando apenas a verdade. Nenhuma das palavras que proferira até então era uma mentira. Kulman não dera o alarma, nem pedira que viessem buscá-lo em Swoofon.

— Talvez isso tenha alguma ligação com o que aconteceu pouco antes de eu ter recebido o sinal de chamada da Gazela — disse em tom hesitante. — Não sei...

Kulman olhou em torno e ficou satisfeito quando Rhodan apontou para uma poltrona vazia. Suspirou aliviado e acomodou-se. Subitamente sentia-se muito cansado.

— Não pense que sou um covarde. Passei com distinção por todos os testes de bravura; além disso, não havia nada a temer em Swoofon. Até me dei muito bem com os saltadores de lá, e cheguei a trocar presentes com muitos deles. Foi assim que recebi Muzel, meu possoncal, ou bassê, como diria o senhor. Os possoncais vivem num mundo distante, nas proximidades de Árcon, e são considerados animais domésticos muito inteligentes e úteis. Caçam os animais daninhos e usam alimentação vegetariana; no entanto, também comem carne. Gostam de brincar e são fáceis de amansar. Em poucas palavras, fiquei satisfeitíssimo quando me deram o animal.

— Quando foi isso? — perguntou Rhodan.

— Há dois meses — respondeu Kulman depois de uma hesitação quase imperceptível.

Rhodan viu Marshall erguer as sobrancelhas.

— Isso mesmo, foi há dois meses. E nestes dois meses Muzel, é este o nome que dei ao bichinho, conquistou minha amizade e minha confiança. Hoje somos amigos inseparáveis.

— Será que o senhor não está exagerando um pouco com esse seu amor pelos animais? — perguntou Sikermann em tom irônico, sem dar a menor atenção ao olhar de advertência de Rhodan.

Gucky erguera-se no sofá e fitava Kulman. Ninguém podia adivinhar o que se passava na mente do agente. Nem mesmo Marshall.

— Será que há algo de errado em amar os animais? — perguntou Kulman em tom de espanto. — Muzel salvou minha vida, e não há mais ninguém que tenha feito isso. Nem mesmo o senhor, tenente.

Sikermann estremeceu quando Gucky se pôs a rir sem o menor constrangimento. O rato-castor achou que o oficial merecia essa resposta, ainda mais que também se considerava um animal e defendia abertamente a opinião de que certos animais têm um “caráter” mais bem formado que a maior parte dos homens civilizados.

— Ninguém tem nada contra a simpatia que dedica ao tal do Muzel — asseverou Rhodan. — Apenas queremos que nos informe logo sobre o acontecimento a que acaba de aludir. Talvez com isso possamos chegar a uma conclusão sobre quem terá transmitido em seu lugar a mensagem de alarma, já que afirma não ter sido o senhor.

Kulman fez um gesto embaraçado e prosseguiu:

— Até hoje foi tudo muito bem. Diariamente pousam naves no maior espaçoporto de Swoofon, chamado de Swatran. Dei pouca atenção a elas, pois do contrário não teria tempo para fazer outra coisa. Mas hoje tive minha atenção despertada para uma velha nave cuja tripulação se comportou de forma estranha e pouco civilizada. Logo desconfiei de que deviam ser piratas.

“Minha suspeita foi confirmada pelos fatos. Aquela gente procurava briga, e quem estava no seu caminho era eu. Acabara de fazer minhas compras na cidade e pretendia voltar à pequena aldeia na qual morara nesta última semana, quando essa gente começou a provocar-me. Eram uns patifes selvagens e barbudos, com armas de radiação no cinto. Tive a impressão de me encontrar no faroeste americano de anos atrás.

“É claro que me defendi, mas eles eram muitos. Não poderia esperar qualquer auxílio dos swoons, pois são muito pequenos e por princípio fogem a toda e qualquer luta. Dependia exclusivamente de mim mesmo. Dei um soco na boca do estômago do primeiro sujeito que se aproximou, fazendo-o cair ao chão. Isso apenas enfureceu ainda mais ou outros. Atacaram como que sob comando.

“Fugi o mais depressa que pude e desapareci numa rua lateral. O senhor deve estar lembrado de que a gravitação de Swoofon é apenas de um quarto G. Foi isso que me valeu. Percorri as ruas em largos pulos, saltando sobre as pequenas casas dos nativos, e logo me vi em segurança. Era ao menos o que eu acreditava.

“Cheguei à pequena aldeia em que morava, mas não encontrei Muzel. O cachorro havia desaparecido sem deixar o menor vestígio. Só me restava sair à sua procura. Alguém o vira correr para o norte.

“No Norte apenas havia desertos, montanhas e planaltos. O que estaria Muzel procurando por lá? Esqueci-me dos piratas de Swatran e fiz um passeio prolongado até uma grande planície. Foi lá que encontrei Muzel. Estava deitado numa pedra chata, dormindo e deixando-se tostar pelo sol. Quando me coloquei à sua frente, acordou, piscou os olhos e fez de conta que não poderia haver nada mais natural do que tirar uma soneca em pleno deserto. Foi então que aconteceu.

“Um raio desceu do céu azul e derreteu a rocha a vinte metros do lugar em que nos encontrávamos. Logo após pousou uma pequena nave cilíndrica, que não tinha mais de dez metros de comprimento. Cinco homens saltaram e correram em minha direção. As pistolas e os punhais antiquados que seguravam em atitude ameaçadora deixavam claro que não poderia esperar nada de bom.

“Não sei como explicar o caso. Nunca vira essa gente antes do incidente de Swatran, mas fizeram como se tivessem uma velha conta a ajustar comigo. Soltaram berros horríveis e precipitaram-se sobre mim. Foi então que Muzel entrou em ação.”

Kulman fez uma ligeira pausa e observou em torno com um ar de triunfo. Viu olhares curiosos pousados nele. Nos olhos do rato-castor Kulman viu, para sua surpresa, que não havia apenas espanto, mas também uma simpatia indisfarçável; esses olhos emitiam um brilho feliz. O rato-castor mantinha as orelhas de pé e adiantara o dente roedor, a fim de dar testemunho de sua satisfação.

Kulman prosseguiu:

— Muzel avançou sobre os cinco sujeitos, dando-me um exemplo, pois não posso deixar de confessar que já perdera a coragem. Com uma mordida arrancou a pistola da mão do homem que vinha na frente; depois ferrou os dentes em sua perna, fazendo-o cair ao chão com um grito de dor. Outro saltador, que ameaçava saltar diretamente em cima de mim, não teve sorte melhor. Desviei-me e pretendia usar os punhos, quando Muzel caiu sobre ele e o mordeu na nuca.

“Dei conta do terceiro com meus punhos, enquanto Muzel cuidava do quarto. O quinto deixou cair a arma e saiu correndo que nem um louco. Face à nave que se encontrava pousada nas proximidades, julguei preferível dar o fora. De longe ainda vimos os feridos serem recolhidos. Depois disso a pequena nave decolou e logo desapareceu no céu. Ainda não consegui descobrir o que essa gente queria comigo. Provavelmente nunca saberemos. Mas posso garantir uma coisa: se é que dei o alarma e pedi que viessem buscar-me, não foi por causa deles.”

— Ninguém afirmou isso — disse Rhodan. — E tal procedimento representaria uma impossibilidade técnica. Pelo que diz, o ataque ocorreu poucas horas antes do pouso da Gazela. Acontece que a mensagem foi captada ontem pela estação de Terrânia. Onde estava ontem?

A pergunta foi formulada em tom sério e objetivo.

— No meu rancho, na aldeia em que resido. Essa aldeia fica a uns duzentos quilômetros de Swatran. Os swoons haviam construído uma residência para mim, que pelos padrões deles era um verdadeiro armazém. No entanto, mal conseguia ficar de pé naquela cabana.

— Não chegou a ligar seu hipertransmissor?

— Não. Se tivesse ligado, eu saberia.

— Talvez soubesse — retificou Rhodan e lançou um olhar para Marshall.

Este confirmou que Kulman estava dizendo a verdade.

“Caramba! Qual seria o ponto errado dessa maldita história? Não era possível que Kulman estivesse mentindo e dizendo a verdade ao mesmo tempo. Ou era?”, pensou Perry.

Esse “ou” pôs Rhodan na pista certa. Mas por enquanto ele a guardou para si.

Kulman parecia bastante perturbado. Passou nervosamente a mão pelo cabelo.

— Já não compreendo mais nada, Sir. Depois do ataque dos piratas, voltei à aldeia. Muzel estava ferido; mal podia andar. Por isso carreguei-o nos braços e mais tarde tratei de sua ferida. Afinal, o animal salvara minha vida. Já compreendem por que não o quis deixar para trás?

Sem aguardar resposta, acrescentou:

— Há umas quatro ou cinco horas ouvi de repente o sinal de meu receptor. Uma voz que me era estranha disse que o chefe me estava esperando e que viriam buscar-me. Naturalmente fiquei surpreso; acreditava que pretendiam retirar-me de Swoofon por motivos táticos. Depois fiquei sabendo que, segundo se diz, eu mesmo teria solicitado o revezamento. O senhor há de compreender que me sinto um tanto confuso.

— Compreendemos perfeitamente, Kulman — confirmou Rhodan. — Logo chegaremos ao fim do interrogatório. A Drusus voltará à Terra. Lá seu relatório será examinado e analisado. Acredito que não haverá problemas para o senhor. Uma coisa é certa: alguém, repito, alguém usou seu transmissor para solicitar sua substituição. Mas prossiga no seu relato. Apenas mais algumas perguntas: Para quem trabalham as fábricas dos swoons? Quem são os principais compradores de seus produtos?

Kulman estava prestes a responder, quando o intercomunicador emitiu um zumbido. Rhodan ligou para a recepção. O rosto do oficial da equipe de rádio surgiu na pequena tela que ficava à frente do assento do piloto.

— Queira desculpar a interrupção — disse o oficial — mas acho que o assunto é importante. Recebemos sinais transmitidos numa hiperfreqüência totalmente estranha. Trata-se de sinais simples, sem qualquer modulação. Até parece que alguém está interessado em...

— De onde vêm os sinais? — indagou Rhodan.

— Não conseguimos determinar a posição exata. A transmissão durou apenas alguns segundos; só tivemos tempo de tentar a medição goniométrica com dois receptores próximos um ao outro. A única coisa que sabemos é que, em hipótese alguma, o transmissor fica a mais de dez quilômetros da nave.

— Dez quilômetros? — disse Rhodan em tom de espanto.

Apenas por alguns segundos pareceu surpreso e um tanto desorientado.

No momento em que o operador de rádio respondeu “sim senhor”, um sorriso fugaz passou por seu rosto. Até parecia que o estranho incidente, longe de preocupá-lo, representava um divertimento.

Olhou para os oficiais.

— Queiram desculpar — disse em tom tranqüilo. — Face ao imprevisto, a continuação do relato de Mr. Kulman evidentemente terá de ficar para uma ocasião mais apropriada. Os senhores ouviram o que aconteceu. E todos hão de compreender que devemos agir com a maior cautela.

Contava-se com a possibilidade de que o transmissor desconhecido, que emitia sinais goniométricos, voltasse a manifestar-se. Operadores de rádio com receptores goniométricos portáteis foram postados em diversos lugares e aguardaram o próximo sinal.

Rhodan deixou o comando da nave provisoriamente a cargo de Reginald Bell e foi à sala de rádio, para examinar os sinais registrados num oscilógrafo.

O oficial de rádio apresentou-lhe os registros. Rhodan viu foi uma curva sinusóide que quase chegava a ser matematicamente exata, modulada com outra curva, tão exata quanto a primeira, mas emitida em baixa freqüência.

Era a imagem parcial de um único sinal. Em outra fita oscilográfica toda a seqüência estava registrada em escala reduzida. Rhodan constatou que os sinais não haviam sido emitidos em intervalos regulares. Verificava-se neles uma distribuição aproximadamente estatística. Esses sinais ainda se distinguiam no comprimento.

— O que acha disso? — perguntou Rhodan, dirigindo-se ao oficial. — Acredita que o fenômeno poderia ter uma explicação natural?

O operador de rádio sacudiu a cabeça.

— Não senhor. Se é que o entendo bem, o senhor se refere a hiperondas que às vezes surgem quando partículas de poeira cósmica ou objetos maiores colidem com os campos defensivos da nave.

— Isso mesmo.

— O aspecto do sinal não é este — asseverou o oficial da equipe de rádio. — Nunca seria tão regular como este. O que temos diante de nós são duas ondulações matematicamente perfeitas. É altamente provável que tenham sido emitidas por um transmissor em perfeitas condições.

— É altamente provável? Quer dizer que não é certo?

O operador de rádio sorriu.

— Naturalmente não podemos afirmar com certeza. Em casos como este nunca pode haver uma certeza absoluta. A probabilidade de que um fenômeno natural possa provocar vibrações tão regulares é extremamente reduzida, mas não deixa de existir.

Rhodan acenou com a cabeça; parecia pensativo.

— Será que os intervalos irregulares entre os sinais não são um fato que fala a favor da formação natural destes? — perguntou depois de algum tempo.

— Ainda não pensei sobre isso — confessou o oficial. — Sou de opinião que depende exclusivamente da vontade do operador de um transmissor de hipercomunicação emitir os sinais neste ou naquele intervalo.

— O senhor acaba de falar em operador — observou Rhodan. — Acontece que talvez se trate de um transmissor automático. Nesse caso seria menos provável que os sinais fossem emitidos em intervalos irregulares, não é?

— Seria menos provável — admitiu o operador de rádio. — Mas não seria impossível.

Rhodan sorriu.

— Vejo que faz questão de não me tranqüilizar — disse. — Mais uma pergunta: no instante em que foram captados os sinais, constatou-se a presença de algo suspeito nas proximidades da nave?

— Não senhor. Não se constatou absolutamente nada.

Rhodan dispôs-se a sair.

— Está bem — disse a título de despedida. — Continue atento e avise-me assim que ouvir qualquer novidade.

 

Ao sair da sala de rádio, Rhodan encontrou-se com Atlan, o arcônida.

— Vejo que estou chegando tarde — disse Atlan. — Já deu uma olhada nos oscilogramas?

Rhodan fez que sim.

— Nem precisa entrar. São duas vibrações exatas que, segundo a opinião do operador de rádio, só poderiam ser transmitidas por um emissor.

Uma expressão de desconfiança surgiu no rosto de Atlan.

— Qual é sua opinião? — perguntou, esticando as palavras.

Rhodan deu de ombros.

— Neste caso não tenho opinião — respondeu. — O operador de rádio entende mais destas coisas que eu. Por isso não vejo motivo para bancar o inteligente.

— Compreendo — disse Atlan. — Você se vê numa situação melindrosa: está com pressa, mas tem de agir com cautela. Tem de equilibrar numa mistura exata a pressa e a cautela. É estranho...

Encontravam-se lado a lado sobre a fita rolante que os levava pelo corredor.

— O que é estranho? — indagou Rhodan.

— Não é nada de importante. Estava pensando que um problema como este seria fácil de resolver, se houvesse uma matemática específica para o caso. A solução mais favorável poderia ser obtida por meio da diferenciação de uma equação e da nulificação do valor extremo; seria simples.

Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto.

— Atlan, você é um filósofo — disse em tom irônico. — Acontece que no momento não preciso de um filósofo, mas de um criminalista...

— Oba! Acha que o caso é tão sério assim?

Rhodan respondeu com outra pergunta:

— E você, acha que o caso não é sério?

Atlan fez como quem quer assobiar, e sorriu ligeiramente.

— Antes de responder, gostaria de ouvir sua opinião.

— Está bem. Na minha opinião há uma pequena chance de que os sinais se tenham formado de maneira natural. Junto a uma grande nave equipada com campos defensivos sempre existem fontes de impulsos hipermagnéticos, que irradiam certos sinais. Durante uma batalha espacial, quando os campos defensivos têm de repelir um tiro após o outro, esses campos muitas vezes se tornam tão intensos que a telecomunicação é paralisada. É bem verdade que as perturbações desse tipo não assumem feitio regular. Portanto, a probabilidade de que não haja motivo para preocupações é extremamente reduzida.

“Em segundo lugar, o operador de rádio não conseguiu realizar uma medição goniométrica precisa. Por meio de dois receptores próximos um ao outro apurou que a fonte dos sinais não podia encontrar-se a mais de dez quilômetros da nave, e que ficava na direção do sol Swaft. A indicação é bastante vaga. Talvez os sinais poderiam provir de um ponto bem mais distante, de Swoofon, por exemplo, e não nos digam respeito. Para isso, porém, seria necessário que o operador de rádio tivesse cometido um engano tremendo.”

— E você não gosta de admitir que seus homens cometem enganos graves? — interveio Atlan.

Rhodan não respondeu à objeção.

— Em terceiro lugar — prosseguiu — evidentemente existe a possibilidade de alguém ter colocado um espião nas proximidades da nave, e que este tenha de informar seu chefe sobre a posição da Drusus. É claro que neste caso a situação seria bastante perigosa, e teríamos de tomar todas as medidas de segurança.

Lançou um olhar para o arcônida.

— Minha opinião é esta. Agora não continue a esconder a sua.

Atlan parecia muito alegre.

— Sabia que me pouparia muitas palavras se o deixasse falar em primeiro lugar — disse. — Minha opinião é exatamente a mesma que a sua. Há uma pequena probabilidade de que tudo não passe de um simples acaso, e uma probabilidade muito maior de que haja um espião por perto.

— O que me deixa admirado é o fato de que nossos instrumentos não localizem nada nas proximidades da nave — disse Rhodan com uma expressão contrariada.

— Posso explicar o fato. Caso se trate realmente de um espião, este não se encontra nas proximidades da nave, mas no seu interior.

Rhodan decidiu permanecer por cinco horas no mesmo lugar. Se dentro desse prazo o transmissor de sinais goniométricos não voltasse a emitir sinais, partiria para o hiperespaço, percorrendo numa única transição duzentos anos-luz em direção ao centro da Galáxia.

Se o emissor não voltasse a transmitir qualquer sinal, teriam sido vítimas de engano, e não haveria nada que objetar ao regresso à Terra. A principal tarefa do emissor de sinais goniométricos, se é que este existia, deveria consistir em transmitir sinais do ponto final de cada transição, a fim de que o receptor pudesse traçar a rota da nave.

Rhodan lembrou-se de que em outra oportunidade já fugira dos arcônidas que o perseguiam, em direção ao centro da Via Láctea. Se o espião que, segundo acreditava Atlan, se encontrava a bordo da nave, estivesse trabalhando para o computador-regente de Árcon, este receberia pela segunda vez, depois de sessenta anos, a informação de que uma nave terrana se deslocava em direção ao centro da Galáxia. A máquina possuía uma capacidade extraordinária de raciocinar logicamente. Contaria com a possibilidade de que Rhodan, quando se sentia ameaçado, fugia sem fornecer a menor indicação sobre a posição de seu mundo.

Perry divertia-se com a idéia de que talvez uma segunda fuga em direção ao centro da Galáxia pudesse fazer o computador-regente vacilar em suas conclusões. Quem sabe se não acabaria acreditando que a Terra realmente poderia ser encontrada nesse setor...

 

Bell viu Baldur Sikermann introduzir as coordenadas do salto no computador de pilotagem e disse:

— Acho que ainda temos um pouco de tempo, não temos?

— Algumas horas. No momento os riscos ligados a um salto seriam muito elevados. Se a bordo da Drusus existir um transmissor que comunica nossa posição a alguém...

— Acho que tudo não passa de acaso — disse Bell e acomodou-se numa poltrona, perto de Sikermann. — Não acha?

Antes que Sikermann pudesse responder, uma voz aguda cortou-lhe a palavra. Gucky escorregara do sofá, arrastou-se até a porta e abriu-a sem tocá-la. Gostava de usar suas capacidades telecinéticas para seu conforto.

— Vou dar uma olhada no tal do Muzel — anunciou e saiu caminhando pelo corredor. — Quem ouve Kulman deve pensar que bassê é um modelo de obediência...

— O que pretende fazer, Gucky? — perguntou Bell. — Deixe o cachorro em paz.

— O bicho já foi desinfetado; portanto, não poderei trazer pulgas de lá, se é isso que o preocupa — disse Gucky, piscando os olhos castanhos. — Quem sabe se ele pode coçar meu pêlo?

Mal acabou de pronunciar estas palavras, desapareceu. A porta fechou-se automaticamente.

Bell fitou-a.

— Tomara que não faça bobagens — observou.

Por enquanto Gucky nem estava pensando nisso.

Teleportou-se para o setor de desinfecção, que ficava nas proximidades da comporta principal. Chegou justamente na hora de poder perguntar aos químicos que retornavam de seu serviço onde haviam deixado Muzel. O segundo salto colocou-o diretamente no compartimento que viria a ser o camarote de Kulman.

O agente ainda se encontrava na sala dos tripulantes, mas poderia chegar a qualquer momento. O animal estranho, ao qual Kulman se referira em termos tão elogiosos, estava deitado junto da porta. Gucky materializou-se a dois metros do cão e deixou-se cair sobre as patas traseiras. Examinou atento o bassê, que parecia dormir profundamente.

Gucky expediu seus impulsos mentais, procurando penetrar suavemente no cérebro daquele ser estranho. Kulman afirmara que Muzel não tinha bastante inteligência para comunicar-se. Era claro que o bassê não sabia falar. Mas se possuísse um mínimo de inteligência deveria pensar...

— Que absurdo! — balbuciou o rato- castor.

Realmente, Muzel estava pensando. De início Gucky sentiu-se surpreso ao perceber que aquele cachorro, que geralmente era considerado um animal da terra, sonhava com a água e com plânctons que boiavam nela. Mas logo se lembrou de que mesmo os seres mais inteligentes, como o homem, costumam sonhar com as coisas mais absurdas. Geralmente as manifestações de consciência verificadas durante o sono são totalmente diversas das que se verificam no estado de vigília.

“Por que Muzel não poderia sonhar com o plâncton?”, pensou absorto.

Os pensamentos eram confusos e indefinidos, mas não havia dúvida de que eram pensamentos. Gucky sentiu-se um pouco mais tranqüilo, por saber que poderia fazer alguma coisa com aquele animal. Então passou a dedicar sua atenção ao aspecto exterior.

O companheiro de Kulman realmente se parecia com um bassê. As esquisitas orelhas penduradas não constituíam a única característica que lembrava o fiel quadrúpede terrano, que os entendidos de nosso planeta costumavam designar tanto com o nome de bassê como com o de cão rasteiro. Gucky não era nenhum entendido no assunto. Para ele um bassê era um bassê, quer tivesse pernas tortas, quer não. Os belos olhos cor de ouro formavam um contraste notável com o pêlo cinza-prateado; naquele instante o animal os abriu, como se durante o sono tivesse sentido a chegada de Gucky.

Este sorriu e exibiu o dente roedor. Enquanto isso telepatava intensamente:

— Olá, Muzel! Meu nome é Gucky; sou seu amigo. Vamos brincar de esconder?

Não houve nenhuma reação da qual Gucky pudesse concluir que Muzel recebera e compreendera sua mensagem telepática. Pelo contrário; nos olhos dourados de Muzel lia-se uma espécie de espanto enorme pelo fato de que existia um rato-castor daquele tamanho. De início Gucky chegou mesmo a ter a impressão de ler neles uma expressão de pavor, mas evidentemente isso podia ser um simples engano.

“Mas há os impulsos mentais...”, pensou o animal mutante.

Continuavam a ser fracos e indefinidos, mas sua presença era incontestável. O tal do Muzel sabia pensar, embora não fosse propriamente um telepata capaz de captar os pensamentos alheios. A conversa até então não passava de um monólogo.

“Talvez entenda o inglês”, pensou Gucky. “Afinal, Kulman deve ter falado com ele.”

— Meu nome é Gucky — disse, falando devagar e acentuando as palavras. — Sou seu amigo, Muzel. Vamos brincar de esconder?

Teve a impressão de que Muzel estava prestando atenção às suas palavras.

O bassê fitou o rato-castor. Um brilho amistoso surgiu em seus olhos. Subitamente o cérebro de Gucky captou a resposta, debilmente transmitida.

— Seu nome é Gucky. Vamos brincar de esconder. O que significa isso?

O rato-castor sentiu-se tão feliz que por pouco não acariciou Muzel. Conseguira estabelecer contato. Acabara de encontrar um companheiro de brincadeira.

— É simples, Muzel. Um de nós terá um minuto para esconder-se em qualquer lugar no interior da nave. E o outro terá de procurá-lo. Se não conseguir encontrá-lo dentro de dez minutos, terá perdido a partida. Você nunca brincou de esconder?

— Não; nunca.

— Então está na hora! — asseverou Gucky. — É muito divertido. Será que está cansado demais?

Muzel bocejou ao ser lembrado da idéia de cansaço, espreguiçou-se e levantou. Saltitou em direção a Gucky e farejou o mesmo.

— Você cheira muito bem.

O rato-castor ficou tão perplexo que não soube o que responder. “Então cheirava bem”, pensou admirado.

Até então ninguém havia dito isso, se bem que por outro lado ninguém havia afirmado que Gucky cheirasse mal.

— Onde está Kulman?

Gucky sentiu-se pego de surpresa.

— Deve chegar a qualquer momento, Muzel. Infelizmente está demorando porque... bem, porque...

Gucky refletiu se devia contar ao bassê o que havia acontecido.

— Bem, ficou com fome e está comendo — prosseguiu, sentindo-se satisfeito porque o cão não sabia ler pensamentos. — Você não está com vontade de comer?

Parecia que Muzel se assustara.

“Por que ele se assustou quando alguém perguntava se estava com apetite?”, pensou indagando-se.

— Sim, Gucky, estou com fome.

— Venha comigo; arranjarei alguma coisa para você. Gosta de cenouras?

— Cenouras?

O rato-castor achou que seria complicado demais explicar àquela criatura estranha as “excelências” de uma cenoura. Ele que experimentasse, e depois veria. Paciência; o cozinheiro-chefe da Drusus teria que soltar uma ração dupla. E se Muzel não ficasse entusiasmado com as cenouras, talvez se poderia... Os pensamentos de Gucky perderam-se numa série de especulações felizes; por pouco não esquece Muzel. Mas logo se lembrou dos seus deveres de anfitrião. Ergueu-se e com a pata dianteira abriu a porta que dava para o corredor.

Uma vez no corredor, Gucky voltou a fechar a porta. Cismou sobre o que acharia Muzel se lhe fosse apresentada uma demonstração ao vivo da teleportação. Mas seria preferível fazer uma coisa de cada vez, para que as surpresas não se esgotassem muito depressa.

Um oficial dobrou a esquina do corredor e aproximou-se deles. De sua perspectiva, Muzel, de início, só viu as pernas e desviou-se instintivamente. Já fizera experiências desagradáveis com as pernas dos grandes bípedes que passavam por Swoofon. Os saltadores não costumavam ser muito delicados.

Gucky prosseguiu em sua caminhada como se nada tivesse acontecido. Se o Tenente Hicks não tivesse baixado os olhos, teria tropeçado no cão e dado com o rosto no tapete de plástico.

O Tenente Hicks parou e esfregou os olhos.

“Gucky está passeando com um verdadeiro cão bassê! De onde vem o animal? Eu não sabia que havia um cachorro a bordo da Drusus, quanto mais um bassê, raça que nunca soube o que era disciplina. Há séculos esse fato era do conhecimento geral! Mas a bordo da Drusus...”, pensava o oficial.

— Não maltrate a cuca, homo sapiens — chiou Gucky e empertigou o corpo, para reforçar o efeito de suas palavras. — Ficaríamos muito gratos se pudesse sair do caminho, para que possamos passar.

O Tenente Hicks saltou para o lado com tamanha rapidez que por pouco não cai. Seus olhos quase saltaram das órbitas quando ouviu Gucky dizer “vamos andando” ao cachorro, e sair com ele.

Seguiu a estranha dupla com o olhar e murmurou:

— Será que estamos numa nave-couraçado do Império Solar ou num circo voador?

Gucky esperou até que Hicks se tivesse afastado e parou.

— Você sabe correr? — perguntou ao bassê.

Muzel, que se acomodara sobre a traseira do corpo, respondeu:

— Por que faz essa pergunta? Minhas pernas são curtas e estou cansado. Além disso, estou com fome. Por que Kulman não me dá comida?

— Um momento, Muzel. A cozinha fica lá embaixo. Vamos saltar.

Os olhos cor de ouro brilharam numa expressão de confiança, mas neles também se lia uma indagação muda: saltar?

Um sorriso alegre surgiu no rosto de Gucky quando se aproximou de Muzel, segurou-o pela nuca e passou a concentrar-se no ponto de destino.

Quando Muzel voltou a abrir os olhos viu que, sem saber como, fora transportado para outro lugar. Não poderia entender que num milésimo de segundo percorrera uma distância superior a um quilômetro. Porém compreendeu perfeitamente que se encontrava num lugar diferente. Gucky, seu novo amigo, falara em saltar. E...

— Pronto; chegamos! — disse o rato-castor com a voz alegre.

Abriu a porta à sua frente. Atrás dela ouvia-se o ruído da louça que batia, o praguejar baixo dos cozinheiros atarefados, o zumbido dos grandes aparelhos de grelhagem e outros ruídos misteriosos de uma cozinha eletrônica.

— Ei, Fatty!

Uma figura maciça, envolta pela fumaça desprendida pelas comidas, encolheu-se como se tivesse sido atingida pelo raio. Um homem de branco, gordo, de quase dois metros de altura atravessou a cozinha maravilhosa e parou à frente dos visitantes.

— Ainda não está na hora do almoço! — resmungou num ligeiro tom de recriminação, em que também se notava certo medo.

Fatty nunca se esquecera de que certa vez Gucky se valera da capacidade telecinética para trancá-lo no grande frigorífico, onde ficara preso durante algumas horas.

— Deseja alguma coisa? — só agora viu Muzel e teve o cuidado de não deixar que seu rosto se tornasse muito mais inamistoso. — Onde está o lindo au-au? Onde está...

— Que pergunta idiota! — interrompeu Gucky. — Não vê que está aqui?

Fatty voltou a endireitar o corpo e falou de modo sério:

— Não é permitida a entrada de cachorros na cozinha. Existe uma ordem terminante nesse sentido.

— Muzel não é nenhum cachorro; é um possoncal — informou Gucky. — Além disso, ninguém disse que quer entrar na sua cozinha fedida.

“Aqui está cheirando bem”, pensou Muzel, bastante animado.

— Cozinha fedida? — Fatty teve a impressão de que iria sofrer um ataque. — Se você repetir isso...

— O que acontecerá?

Fatty preferiu não discutir. Não queria entrar em conflito com esse bicho medonho. Há pouco um dos seus auxiliares subitamente perdera o peso e voara pela cozinha até que alguém conseguisse pegá-lo com um laço e amarrá-lo à coluna de concreto do grill, que nem mesmo Gucky conseguiria deslocar.

— Posso fazer alguma coisa por você? — perguntou Fatty com uma amabilidade fingida.

Gucky fez um gesto afirmativo e disse:

— Quero cinco quilos de cenouras cruas, meio quilo de carne e uma garrafa de água. Vamos logo!

Fatty virou-se e saiu praguejando. Dali a trinta segundos, voltou e trouxe as iguarias numa bandeja.

— Faço tudo que você quiser, Gucky. Mas ordens são ordens: não é permitida a entrada de cachorros...

— Você já disse isso — interrompeu-o o rato-castor, dirigindo-se para Muzel. — Vamos embora, senão ele acabará tendo “problemas psicológicos”. No meu camarote é mais agradável.

Fatty esperou até que os estranhos visitantes se desmaterializassem. Depois fechou ruidosamente a porta e pôs-se a gritar ordens. Nas próximas horas o pessoal da cozinha passaria por maus bocados.

Gucky e Muzel devoraram as iguarias. Depois deitaram no sofá e dormiram.

Neste meio tempo, Kulman voltou ao camarote e deu pela falta do companheiro. Em resposta à sua indagação, foi informado de que depois de desinfetado o bassê fora levado ao camarote e ainda deveria estar lá.

“Acontece que não estava”, pensou Kulman. Fazia questão de que seu cão fosse considerado um ser como qualquer outro.

Subitamente um vulto materializou-se ao lado de Kulman, que levou um tremendo susto. Identificou-o: era o rato-castor. Os olhos de Gucky pareciam sonolentos e exprimiam certa contrariedade.

— Ora esta! Você acorda tudo quanto é telepata, de tão preocupado que está com Muzel. Por quê? Ele está comigo. Acabamos de comer e estamos descansando um pouco. Quando acordarmos, pretendemos brincar.

— Brincar? — disse Kulman, respirando com dificuldade. — O que quer dizer com isso?

— Você deveria ter conservado um pouco de seu ânimo infantil — disse Gucky e desapareceu sem dizer mais nada.

Kulman sentiu-se um tanto perplexo.

 

Enquanto Perry Rhodan permanecia em seu posto na sala de comando, Atlan retirou-se para refletir sobre a situação. Sabia por experiência própria que muitas vezes a reflexão calma e concentrada oferece resultados admiráveis, que podem ser mais úteis à solução de um problema que a atividade incansável de outras pessoas, que pretendem atingir o objetivo desferindo golpes no escuro.

Depois de uma hora, porém, o arcônida chegou à conclusão de que nesse caso o princípio da reflexão não oferecia maior utilidade. Havia poucos pontos de partida. O único era o fato de ter a sala de rádio captado algo que se parecia com sinais goniométricos, e esse material evidentemente era muito escasso para servir a um trabalho mental proveitoso.

Atlan ficou curioso para saber se o grande computador positrônico da nave saberia fazer algo com essa informação, e pediu que lhe fosse concedido o tempo necessário para realizar essa tarefa. A Drusus pairava imóvel no espaço, e os dados para a transição já haviam sido apurados. Por isso seu desejo pôde ser cumprido imediatamente: Atlan teve licença para usar a máquina durante uma hora e meia.

A elaboração do programa-questionário causou sérias dificuldades ao arcônida. Era difícil formular uma pergunta inicial a fim de que o computador não desse a resposta, e sim formulasse perguntas adicionais, que pudessem servir de base à ampliação do programa.

O primeiro passo de Atlan consistiu em reunir uma série de fatos num programa de dados. O computador ficou sabendo que no momento a Drusus se encontrava nas proximidades do sol Swaft e que em Swoofon, um dos planetas de Swaft, viviam os swoons, uma raça anã à qual pertenciam os melhores microtécnicos da Galáxia.

Outro dado introduzido na máquina foi a atividade do agente Kulman e o recebimento dos sinais misteriosos. Atlan colocou na máquina um cartão-consulta, por meio do qual pediu que lhe fosse fornecida uma avaliação global da situação.

O grande computador começou a trabalhar. Ruídos estranhos se misturaram ao zumbido que constantemente enchia a sala de computação: o estalido dos relês, o leve chiado que por vezes era emitido pelas grandes válvulas...

Atlan recostou-se confortavelmente na poltrona. A pergunta que acabara de formular não era fácil de responder. Até mesmo uma máquina de grandes dimensões, como a que se encontrava no interior da Drusus, levaria ao menos quinze minutos para ativar as últimas ramificações de seu mecanismo combinatório e encontrar a resposta.

O arcônida recostou-se e fitou o teto. Enquanto o computador trabalhava, procurou descontrair-se, deslocando-se em pensamento na direção das linhas traçadas no teto e estreitando os olhos, para enxergar melhor as variações das tonalidades da luz branco-azulada.

Não havia mais ninguém na grande sala. Os sons emitidos pela máquina se ajustaram numa seqüência uniforme e tinham um efeito soporífero. Atlan mergulhou em meditações.

Não notou que alguém o observava.

Não viu o par de olhos que o fitavam pelo nicho existente entre dois fichários.

Ouviu um ruído. No momento em que se levantou, sobressaltado, a luz apagou-se. As luzes de controle do computador continuavam acesas. Mas logo depois a iluminação sumiu, não permitindo sequer que se enxergasse a mão diante dos olhos.

O arcônida teve a impressão de que um perigo o ameaçava. Levantou-se e foi recuando para junto da mesa de controle, tateando a parte frontal do grande computador. Ouviu um ruído; parecia que alguém se arrastava pelo chão. Antes que pudesse refletir a este respeito, viu um raio fulminante, que parecia ter saído do crânio do agressor. Uma dor insuportável envolveu-o; no mesmo instante desmaiou.

 

A Drusus partiu exatamente no momento previsto. Passou a algumas unidades astronômicas do sol Swaft e penetrou no hiperespaço.

O emissor goniométrico não dera mais nenhum sinal de vida. Na sala de comando voltou a manifestar-se a esperança de que tudo aquilo não passava de uma interferência absolutamente normal, e de que não havia nenhum emissor goniométrico a bordo da Drusus.

No momento em que a dor provocada pela distorção foi amainando e o novo quadro do espaço começou a surgir nas telas, todos se mantinham nos seus postos. Esforçavam-se para disfarçar o nervosismo de que se sentiam possuídos, e permaneciam sempre atentos em não perder qualquer ordem que viesse da sala de comando.

Os minutos foram passando num silêncio total.

Bell, que ocupava o assento do imediato, não conseguiu dissimular a impaciência de que se sentia possuído:

— Então! É isso mesmo. O medo foi em vão. Tudo não passou de um alarma...

Até parecia que o intercomunicador só aguardava o primeiro sinal de otimismo equivocado. O zumbido interrompeu Bell em meio à frase. O rosto de um operador de rádio surgiu na pequena tela que ficava à frente de Rhodan. Nos seus olhos arregalados se via tamanho espanto e combatividade que de pronto bastou para convencer Bell de que se enganara.

— Conseguimos realizar a localização goniométrica! — exclamou o operador de rádio sem dar a menor atenção às formalidades que normalmente deveria cumprir. — É no convés E, seção 2, na altura do corredor principal.

Rhodan agiu como que por instinto. Seus movimentos pareciam ser os de uma máquina, de tão rápidos e precisos que foram. O rosto do operador de rádio apagou-se na tela e a cabeça marcante do Capitão Farrington surgiu em seu lugar.

— Convés E, seção 2, na altura do corredor principal — disse Rhodan com uma calma surpreendente. — Fica bem perto do senhor, Farrington. Acho que o sujeito não lhe poderá escapar.

Farrington limitou-se a acenar com a cabeça. A tela logo se apagou. Rhodan levantou-se.

— Por enquanto Reginald Bell comandará a nave — disse. — Quero verificar in loco.

A própria sala de comando ficava no convés E, que correspondia ao pavimento central da Drusus. À distância até a seção 2 era de apenas trezentos metros. Com a fita rolante Rhodan conseguiu vencê-la em menos de dois minutos.

Farrington e seus homens já tinham chegado ao local. Bastava ver seus rostos para concluir que o grupo não havia encontrado nada, e já não sabiam onde procurar.

Farrington fez um relato objetivo.

— Bloqueamos o corredor dos dois lados e as salas contíguas — explicou. — Nem um rato conseguiria entrar ou sair. Mas não encontramos ninguém.

Rhodan sorriu, embora a situação fosse séria.

— Quem lhe diz que se trata de alguém, capitão? — perguntou. — É perfeitamente possível que seja alguma coisa.

Farrington não se deu por vencido.

— Não encontramos ninguém nem coisa alguma — respondeu prontamente. — Revistamos toda área. Está tudo em ordem. Neste meio tempo entrei em contato com a sala de rádio para saber qual é o grau de precisão da localização. Afirmam que a diferença máxima é de mais ou menos dez metros, provavelmente ainda menor. Não é possível que qualquer coisa nos tenha escapado.

Rhodan ergueu as sobrancelhas.

— Já que não encontrou nada nem ninguém, quer afirmar que nada houve por aqui?

Farrington parecia desolado.

— Parece inacreditável — respondeu — mas estou inclinado a afirmar isso mesmo.

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Neste caso ninguém de nós sabe o que é estranho e o que deixa de sê-lo. Mas antes de desistirmos convém que o senhor mande alguém à Seção Técnica para trazer um bom instrumento de sucção, de preferência um verdadeiro aspirador de pó.

Farrington arregalou os olhos.

— Um aspirador de pó?

— Isso mesmo — disse Rhodan. — E quando o aparelho chegar aqui, mande limpar cuidadosamente centímetro por centímetro do soalho, das paredes e do teto do corredor e das salas contíguas. A sala de rádio diz ter determinado a posição do transmissor com uma precisão de mais ou menos dez metros. Pegue quinze metros de cada lado do ponto indicado, pois não queremos assumir qualquer risco. Mais uma coisa: a poeira que for recolhida será entregue aos analistas. Quero que estes a examinem cuidadosamente. Preste atenção que nada escape aos homens que manipularem o aspirador de pó.

Farrington fez continência.

— Entendido! — e em seus olhos surgiu um brilho de compreensão.

Rhodan tinha certeza de que dentro em pouco saberia do que se tratava. Quando subiu na fita rolante para dirigir-se à sala de comando, ouviu Farrington ordenar a alguém que descesse à Seção Técnica e trouxesse ao menos cinco aspiradores de pó. Ao que parecia, a natureza não dotara aquele homem da mesma compreensão de que dispunha seu superior, pois este teve de repetir-lhe a ordem várias vezes.

Assim que Rhodan voltou à sala de comando, informou à Seção Analítica sobre a tarefa que tinha pela frente. Os analistas asseveraram que saberiam cumpri-la.

Dali a uma hora Farrington, que tivera o maior cuidado de que o trabalho fosse executado com toda minúcia, entrou em contato com Rhodan.

— Limpamos tudo com os aspiradores de pó.

— Pois mande um dos seus homens levar a sujeira à Seção Analítica.

— Sim senhor. Providenciarei imediatamente.

Os analistas já tinham preparado tudo. Levaram apenas uma hora para encontrar aquilo que estavam procurando. Rhodan foi avisado imediatamente.

— Trata-se de uma pequena esfera de plástico — informou o oficial. — Seu diâmetro é de zero vírgula dois milímetros. É artificial.

— Aguardem minha chegada! — gritou Rhodan. — Vamos examinar isso em conjunto.

Mais uma vez Bell assumiu o comando. Rhodan parecia ter muita pressa. Levou apenas alguns minutos para chegar à Seção Analítica, que ficava a cerca de setecentos metros da sala de comando.

O Major Hill, chefe da seção, preparava-se para abrir o estranho achado.

— Como foi que encontrou isso? — indagou Rhodan.

— Primeiro, porque é maior que uma partícula de pó — respondeu Hill — e depois, porque brilha um pouco.

— Brilha?

Hill fez que sim.

— Não é muito. Em seu interior deve haver uma pequena bateria. O fluxo de energia pôde ser constatado sem qualquer margem de dúvida.

— Muito bem; abra.

Usando o microtom — uma cortadeira automática, que abre perfeitamente minúsculos objetos — Hill dividiu-a em duas partes. No microscópio viu-se que a bola de plástico era apenas um fino envoltório, que continha uma confusão aparentemente inextricável de minúsculas válvulas, condutores, peças de relógio e coisas parecidas.

Rhodan logo percebeu de que se tratava. Reconheceu que aquilo tinha as características de um transmissor de hipercomunicação. Além do emissor propriamente dito, que era relativamente rudimentar e não poderia transmitir outra coisa senão simples zumbidos, usando sempre a mesma faixa de freqüência, havia algumas peças minúsculas que formavam uma espécie de relógio mecânico.

Hill, que reconhecera imediatamente o hipertransmissor, quebrou a cabeça a respeito do mecanismo de relógio.

— Para que será que serve isto? — perguntou em tom de espanto.

— É simples. O transmissor deveria emitir os sinais num momento previamente fixado — explicou Perry.

O Major Hill arregalou os olhos.

— Mas isso é... — murmurou, lançando mais um olhar ao microscópio, sem completar a frase — ...é muito simples — prosseguiu depois de algum tempo. — Basta um ligeiro impulso da bateria, para que o mecanismo seja ajustado para o momento desejado. Acontece que de cada vez só pode ser feita uma regulagem.

Fitou Rhodan; parecia um tanto inseguro.

— Tem toda razão — disse Rhodan para tranqüilizá-lo. — Se este objeto for responsável por ambas as seqüências de sinais que captamos, deve haver alguém a bordo que depois da primeira regulagem realizou outra, fazendo com que o transmissor entrasse em funcionamento logo após a transição.

— Isso mesmo — confirmou o Major Hill um tanto exaltado. — Dali se conclui que além do microtransmissor temos um espião a bordo. Este regula o transmissor de maneira tal que o mesmo revela a posição da nave sempre que isso se torna importante. Não é isso?

Rhodan riu.

— A hipótese não deixa de ser plausível. Mas não acredito que o espião deixe o microtransmissor em algum lugar e, depois que o mesmo irradiou seus sinais, volta cautelosamente ao esconderijo para efetuar outra regulagem. O sujeito agiu com tamanha habilidade que não devemos acreditar que complicasse as coisas dessa maneira.

— Mas... — disse Hill, respirando com dificuldade. — Se é assim, como...

— Porque possui vários transmissores deste tipo — interrompeu-o Rhodan.

Hill parecia perplexo. Olhava ora para Rhodan, ora para o minúsculo aparelho, cujas duas metades jaziam sobre a tampa escura da mesa.

— Um objeto destes, por causa do tamanho, vale pelo menos cem mil solares! — exclamou. — O senhor realmente acredita que um espião cometeria tamanho desperdício?

Rhodan fez um gesto afirmativo.

— Acredito. Não se esqueça de que uma de nossas naves pousou em Swoofon. E para os swoons, os minúsculos aparelhos não têm nada de extraordinário. É provável que em Swoofon um destes micro transmissores não custe mais que um aparelho de tamanho normal na Terra.

— Quer dizer que ainda corremos perigo? — perguntou Hill em tom preocupado. — Se o espião tiver outros transmissores deste tipo...

— Tenho certeza de que depois da próxima transição voltaremos a ter notícias de sua presença — admitiu Rhodan. — Se não conseguirmos pegá-lo, teremos de realizar transições seguidas, até que seu estoque de transmissores se esgote. Apenas receio...

Não completou a frase. Por enquanto o Major Hill não sabia quais eram os receios de Perry Rhodan. Suas preocupações eram tamanhas que até se esqueceu de fazer continência quando Rhodan se retirou.

Depois da descoberta do microtransmissor, Rhodan se tornara bastante pensativo. Sem dúvida os saltadores ou os arcônidas haviam incumbido os swoons de fabricar os microtransmissores. Era duvidoso que tivessem qualquer idéia sobre as finalidades do aparelho; e, de resto, isso não importava.

O que importava era apenas o fato de que na luta pelos dados relativos à posição da Terra surgira um fator novo. Este fazia representar-se por uma tecnologia estranha que, devido às dimensões reduzidas de seus produtos, tornava praticamente impossível a adoção de qualquer medida capaz de evitar que a mesma produzisse seus efeitos.

Uma vigilância ininterrupta e uma cuidadosa determinação goniométrica provavelmente tornaria possível a localização e a inutilização de um transmissor após o outro. Mas ninguém sabia quantos aparelhos desse tipo o espião trazia, e quanto tempo demorariam para encontrar todos eles. E o tempo de que dispunha a Drusus e sua tripulação não era infinito.

Quem seria o espião?

Só havia uma resposta plausível: era Kulman ou seu cachorro. Eram os únicos seres que subiram a bordo depois que a Drusus partira da Terra.

Rhodan recusou-se a acreditar na possibilidade de que Kulman pudesse ter modificado suas convicções tão radicalmente e num tempo tão curto. Por outro lado, não se sabia nada sobre o caráter do possoncal chamado de Muzel. Era evidente, porém, que um possoncal não seria capaz de esconder um microtransmissor num lugar cuidadosamente escolhido, quanto mais ativar o contato do minúsculo mecanismo de relógio.

Rhodan refletiu por um instante sobre se a situação mudaria de figura caso Muzel fosse um robô, mas logo abandonou a idéia. Kulman lhe contara que Muzel se ferira e sangrou durante a luta com os piratas ou os saltadores. Um robô não sangra. Além disso, Gucky, o rato-castor, era o companheiro de folguedos de Muzel. E Gucky possuía faculdades telepáticas bem desenvolvidas. Se seu novo companheiro fosse um robô, o fato não lhe teria escapado.

Havia outra possibilidade. Alguém poderia ter privado Kulman de sua vontade, impondo-lhe outra. Rhodan não sabia se os saltadores dispunham de meios para hipnotizar um homem e provocar os necessários efeitos pós-hipnóticos. De qualquer maneira, esta possibilidade não poderia ser desprezada.

Resolveu que Kulman seria apresentado imediatamente aos psicofísicos, que o examinariam. Os efeitos pós-hipnóticos produzem uma modificação reduzida, mas inequívoca na atividade mental do indivíduo. Os psicofísicos descobririam se havia algo de errado com Kulman.

Quando se encontrava a alguns metros da escotilha da sala de comando, Rhodan ouviu o som estridente das sereias de alarma. Passou a correr e chegou no momento exato em que Bell pegava o microfone do sistema de comunicação de bordo a fim de solicitar-lhe a presença.

Virou-se e, ao reconhecer Rhodan, baixou a mão que segurava o microfone.

— Encontraram Atlan — disse sem o menor intróito — na sala do computador. Está inconsciente. Parece que alguém lhe aplicou um choque.

 

Demorou meia hora até que o arcônida se recuperasse a ponto de conseguir falar. Não havia a menor dúvida de que recebera o impacto direto de uma arma de choque. A energia com que seu corpo fora atingido devia ser considerável. Na opinião dos médicos, Atlan só teria recuperado a consciência dentro de seis ou oito horas, se não fossem os medicamentos que lhe foram aplicados.

As informações fornecidas por Atlan eram muito escassas. Não vira nada; apenas ouvira. E os ruídos que conseguira perceber não permitiam a menor conclusão sobre a identidade do autor do disparo.

Rhodan apurou que naquele momento vários membros da tripulação se encontravam nas proximidades do centro de computação, mas nenhum deles notara qualquer coisa suspeita.

Assim, não se poderia extrair qualquer conclusão. O ato poderia ter sido praticado por um dos elementos que se encontravam ali.

Não havia coisa mais importante a fazer senão seguir as vagas indicações fornecidas por Atlan. Deviam descobrir o que o desconhecido fora fazer no centro de computação. Com toda certeza não fora para lá a fim de atingir o arcônida com a arma de choque. Teria realizado alguma operação com o computador?

Rhodan mandou que o mesmo fosse inspecionado. Queria que os matemáticos responsáveis pelo setor apurassem se alguém trabalhara no computador fora dos espaços de tempo que haviam sido concedidos, qual fora o trabalho realizado e quais as informações que a máquina poderia ter fornecido ao desconhecido.

Enquanto a inspeção estava sendo realizada, Rhodan lembrou-se do plano que concebera antes do alarma. Kulman deveria ser examinado.

O agente ainda estava dormindo, o que era de admirar. Neste meio tempo houvera uma transição, e a dor provocada pela mesma desperta qualquer pessoa, por mais profundamente que ela esteja dormindo.

Rhodan ordenou pessoalmente a Kulman que se submetesse a um exame psicofísico. Estava interessado em observar a sua reação.

Kulman não parecia espantar-se muito ao ouvir o que queriam dele. Fez um gesto de indiferença e disse:

— Naturalmente. Já contava com isso. É claro que as primeiras suspeitas têm de recair sobre mim.

— Sinto-me aliviado em notar que encara a coisa dessa forma — confessou Rhodan. — Por enquanto ninguém suspeita do senhor. Acontece que não podemos assumir o menor risco. Na situação em que nos encontramos, a confiança não basta.

Kulman sorriu.

— É claro que não — respondeu.

Dali a pouco Rhodan ficou sabendo o que o espião fora fazer com o computador positrônico.

A máquina havia sido ativada por um desconhecido às 10 horas e 32 minutos, tempo de bordo, ou seja, cerca de quinze minutos antes que começasse o tempo oficialmente concedido a Atlan. O chamado comando de prontidão provavelmente perturbara o desconhecido em seu trabalho e representara um aviso de que era iminente uma visita ao centro de computação. Esse sinal costumava ser transmitido à máquina dois minutos antes do tempo concedido a qualquer pessoa e tinha por fim erradicar todas as operações combinatórias ou de cálculo que eventuais usuários anteriores não tivessem concluído, e assim permitir o pleno funcionamento do computador.

Naturalmente o desconhecido se escondera e atacara Atlan para concluir tranqüilamente as operações já iniciadas. Não poderia esperar uma oportunidade mais favorável. Durante o tempo concedido ao arcônida não seria de esperar outras visitas, enquanto antes disso poderia ser perturbado a qualquer momento.

Também descobriu de que forma as luzes foram apagadas. O espião fizera desaparecer, pouco acima do chão, um pedaço do cabo-mestre, provavelmente por meio de um desintegrador. Nem sequer chegara a ocorrer um curto-circuito.

O ponto mais alarmante foram os dados que procurou extrair do computador. Os matemáticos deixaram claro que o espião estava interessado em conhecer o código utilizado nas hipertransmissões da nave.

As mensagens de hipercomunicação costumavam ser codificadas, com raríssimas exceções. Depois de reduzidas a um código, eram condensadas. Assim, uma mensagem cuja leitura poderia consumir meia hora seria irradiada numa fração de milésimo de segundo. O código fora criado por matemáticos terranos, e apresentava diferenças fundamentais face ao sistema arcônida. Havia uma série de modificações que dificultavam enormemente, ou talvez tornavam inteiramente impossível, a decodificação por uma pessoa não credenciada.

Quer dizer que o espião queria descobrir o código terrano de hipercomunicação. Sem dúvida pretendia transmitir a informação, pelo caminho mais rápido, a seu chefe, que provavelmente seria um agente-robô estacionado em Árcon. Dessa forma este estaria em condições de decifrar as mensagens de hipercomunicação da Terra.

Mas, havia uma pergunta para a qual por enquanto não se encontrava a resposta. Por que o espião não agira de forma mais discreta? Teria de contar com a possibilidade de que, depois do ataque a Atlan, o centro de computação seria examinado, e o comandante da nave procuraria descobrir o que ali fora fazer o espião. Se tivesse qualquer conhecimento, por menor que fosse, sobre o funcionamento de um computador positrônico, chegaria à conclusão de que os terranos logo teriam conhecimento de seu interesse pelo código de hipercomunicações. E com isso a informação obtida perderia todo valor para o espião e para o computador-regente de Árcon, pois era evidente que o terranos logo substituiriam seu código.

Quais seriam suas verdadeiras intenções?

 

A Drusus continuava parada no espaço. Na verdade, não estava propriamente parada, mas deslocava-se em queda livre, à velocidade da luz, em direção ao centro da Via Láctea. Mas em comparação com a velocidade que desenvolvera durante o salto pelo hiperespaço, podia-se dizer que estava parada.

Até então Rhodan não quis arriscar-se a realizar outra tentativa. No seu íntimo estava convencido de que, quando isso acontecesse, mais um minúsculo transmissor goniométrico entraria em funcionamento, a fim de revelar sua posição cósmica. Depois o destinatário dos impulsos registraria mais um ponto no mapa, e começaria a refletir sobre o possível destino da Drusus.

Rhodan não pôde deixar de rir ao lembrar-se de que não havia um perigo real, enquanto não realizasse o salto que o levaria de volta à Terra. Mas um belo dia esse salto teria que ser realizado. Porém isso só seria feito depois de encontrado o espião, fosse ele quem fosse.

Suas reflexões foram interrompidas pelo zumbido do intercomunicador.

Estava deitado no sofá, em seu camarote, a fim de descansar um pouco, depois do nervosismo das últimas horas.

“Atlan por pouco poderia ter capturado o desconhecido. Em certa oportunidade tive a idéia de que um desconhecido poderia ter entrado na nave a bordo da Gazela de Wroma. Era possível, mas pouco provável. De qualquer maneira...”, pensou.

Moveu uma pequena chave. O rosto de uma moça esbelta, de cabelos escuros, surgiu na tela.

— Desculpe a interrupção, Sir. O Ministro Bell informou-me sobre o lugar em que poderia encontrá-lo. Acho que o que tenho a dizer é importante.

— Pode falar, Miss Peres. O exame já foi concluído? O que descobriram a respeito de Kulman?

— Foi justamente por isso que entrei em contato com o senhor. Não lhe posso oferecer um resultado concludente. Não conseguimos progredir. Há uma barreira em torno do cérebro de Kulman...

— Uma barreira? O que quer dizer com isso? — Rhodan sentiu sua tensão aumentar.

A hipótese que lhe ocorrera em primeiro lugar ameaçava transformar-se em certeza. Havia algo de errado com Kulman. O que seria?

— Não me torture, Miss Peres.

— Acho que seria preferível que o senhor viesse até aqui. Se tentarmos romper a barreira por meio de um choque, estaremos assumindo um risco. O senhor sabe...

— Sei, sim — disse Rhodan. — Não faça nada antes que eu chegue. Deverei estar aí dentro de dez minutos.

Desligou o aparelho, refletiu por alguns segundos e comprimiu um botão que estabelecia a ligação com John Marshall.

— John, mande André Noir comparecer imediatamente à Divisão Psicológica. Peça-lhe que se apresse. Obrigado.

Depois pôs-se a caminho. Mal havia cumprimentado Rosita Peres, quando Noir chegou.

— O senhor mandou chamar-me?

— Não sei se precisaremos de você. Veremos. Conte o que houve, Miss Peres.

Encontravam-se numa sala cujas paredes haviam sido revestidas com azulejos brancos. Os cientistas que se encontravam presentes cumprimentaram-nos com gestos respeitosos. Jost Kulman estava deitado numa espécie de mesa de operações; mantinha-se imóvel. Mesmo que não estivesse inconsciente, não poderia esboçar o menor movimento, pois as finas correias de couro o prendiam. Acima de sua cabeça pairava um estranho objeto metálico, que lembrava vagamente um aparelho de raios ultravioletas. Mas não havia dúvida de que era outra coisa. Do objeto partiam fios que o ligavam a um aparelho de controle que emitia um ligeiro zumbido.

— Continua a falar apenas naquilo que já declarou — principiou Peres, apontando para o homem que parecia estar dormindo. —-Mas temos certeza de que existe uma barreira hipnótica que bloqueia sua memória. Na verdade, perdeu a memória, ou melhor, esta foi substituída por uma artificial. Quer dizer que Kulman mentiu, mas John Marshall não pode desmascará-lo.

Rhodan fez um gesto afirmativo.

— Era o que eu imaginava. Por que aconteceu isso? Tem alguma explicação para o fenômeno?

— A explicação é simples e apavorante — interveio um homem alto, de jaleco branco. — A lembrança da verdade foi retirada de Kulman. Este não sabe mais o que realmente lhe aconteceu em Swoofon. Só sabe aquilo que um desconhecido lhe sugeriu.

Por enquanto não temos como afirmar com segurança se isso foi realizado por meios mecânicos. O que desejamos saber é apenas se devemos restaurar a memória original e autêntica de Kulman pela força, ou se devemos agir com cautela.

— Queira explicar-se melhor, Mister Grothe. Qual será o risco que estaremos assumindo se agirmos pela força?

— Kulman poderá morrer.

— Não assumiremos este risco — resolveu Rhodan. — Ainda temos outras possibilidades.

Dirigiu-se ao mutante.

— Noir, tente romper a barreira. Não recorra à violência, pois a vida de Kulman é muito preciosa para nós; na verdade, não existe nenhuma vida que não seja preciosa. Procure romper a barreira.

André Noir confirmou com um gesto. Compreendera. Era um hipno, e como tal estava em condições de impor sua vontade a outros seres e transmitir comandos hipnóticos.

Pôs-se a trabalhar, sem dar a menor atenção aos homens que o rodeavam. Ninguém o perturbou. Fitavam-no extasiados.

Dali a dez minutos, Noir descontraiu-se e voltou a cabeça para Rhodan. Seu rosto parecia cansado; em seus olhos lia-se não só a decepção, mas também o espanto.

— É impossível. Não consigo penetrar pela barreira colocada em torno de seu cérebro. Isso foi feito por um hipno mais forte que eu. Se tivermos paciência, talvez consigamos.

— Um hipno mais forte que você? — na voz de Rhodan havia um tom de incredulidade. — Será que isso pode existir?

Noir fez um gesto afirmativo.

— Por que não? É bem verdade que pode tratar-se de um hipno artificial, de um robô. Se foi assim, restaria saber quem controlava o robô.

Rhodan viu confirmadas as suspeitas que trazia na mente. Mas desejava saber mais uma coisa que lhe parecia importante.

— Mais uma pergunta, Noir. Se Kulman recebeu este tratamento, que o fez perder a memória, e se esta foi substituída por outra, que serve de base aos seus atos, nesse caso um telepata poderia penetrar em sua mente? Em outras palavras, se o novo Kulman soubesse que é um espião, ele conseguiria ocultar esse fato de Marshall?

— Não — respondeu Noir. — Em hipótese alguma.

Rhodan suspirou aliviado.

— Quer dizer que não é o espião. Era apenas isso que eu queria saber por enquanto. Prossiga nas suas tentativas, Noir. Precisamos descobrir quem emitiu a mensagem de alarma, da qual Kulman, segundo afirma, não tem nenhum conhecimento. Talvez tenha sido o próprio Kulman, e alguém o privou da possibilidade de recordar o fato. Se foi assim, ele deve ter tido um motivo sério para pedir que fôssemos buscá-lo em Swoofon. Precisamos descobrir esse motivo. Quando isso acontecer, teremos a chave do enigma, e talvez um indício que nos leve ao espião que se encontra a bordo da Drusus.

Noir meneou a cabeça.

— Se não for Kulman, só poderá ser o cachorro.

Um sorriso ligeiro aflorou aos lábios de Rhodan.

— Muzel? Não; acho totalmente impossível. Muzel permanece constantemente em poder de Gucky, e tenho certeza de que nada escapa ao rato-castor. Mesmo assim, prevenirei Gucky, pois devemos contar com qualquer eventualidade. De qualquer maneira, o bassê não pode ser artificial, pois emite impulsos mentais orgânicos. Nenhum robô pode fazer uma coisa dessas. A única maneira de reconhecer um robô consiste em verificar se ocorre a ausência de verdadeiros impulsos mentais. E, se Muzel não é nenhum robô, também não pode ser o espião, pois não possui a inteligência que seria necessária para isso.

— Hum — fez Noir e voltou a fitar Kulman. — Farei o possível. Se conseguir alguma coisa, avisarei o senhor.

— Será um favor, Noir — disse Rhodan; cumprimentou seu interlocutor com um gesto e retirou-se da Divisão Psicológica.

Mergulhado em suas reflexões, caminhou pelo corredor e entrou no elevador antigravitacional, que o fez subir alguns andares. Prosseguiu na fita rolante. Saltou à frente da porta de um camarote, parou um instante e subitamente abriu a porta.

Gucky estava sentado, imóvel e ereto, no centro do camarote, e mantinha os olhos semicerrados, como se refletisse atento sobre alguma coisa. Evidentemente vira Rhodan, que voltou a fechar a porta, mas não tomou conhecimento de sua presença. Rhodan, que também dispunha de capacidade telepática pouco desenvolvida, esforçou-se em vão para penetrar na mente do rato-castor. Aquele ser versátil colocara uma barreira em torno de seu cérebro.

— O que é isso? — perguntou Rhodan em tom de espanto. — Onde está Muzel?

Quando notou que Gucky não respondia, prosseguiu:

— Pelo que ouvi, vocês são muito amigos. Dizem que sempre andam por aí...

Gucky não respondeu. Fez um movimento quase imperceptível com o dedo da mão direita e apontou para o teto. Foi o único movimento que executou.

— Está fazendo um exercício de meditação? — perguntou Rhodan em tom galhofeiro.

Mais uma vez apenas conseguiu colher um olhar que quase chegava a ser de desprezo. Ao que parecia, o rato-castor não estava disposto a permitir que o perturbassem em sua estranha atividade.

— Fale logo, senão eu lhe ensino a obedecer! — disse Rhodan em tom de ameaça.

Gucky abriu inteiramente um dos olhos e lançou um olhar de recriminação para Rhodan.

— Não me distraia! Não vê que procuro concentrar-me?

— Em quê?

— Nesse maldito possoncal, que não sabe fazer outra coisa senão enganar-me.

— Não compreendo — confessou Rhodan. — Onde está Muzel? Não o vejo. Por que resolveu concentrar-se nele?

— Estamos brincando de esconder — respondeu Gucky em tom sério. — Uma vez ele se esconde, outra vez eu. Pensei que para mim fosse simples, já que sou teleportador e posso usar a telepatia para localizá-lo, esteja onde estiver. Mas não é nada disso! Esse “sujeito” sempre encontra um esconderijo, cada qual melhor que o outro. Se não pudesse captar as fracas emanações de seu cérebro canino, provavelmente nunca o encontraria.

— Pare um pouco. Quero fazer algumas perguntas.

— Tem de ser justamente agora, que estamos numa brincadeira tão gostosa? — perguntou Gucky, que parecia indignado.

— Sim, justamente agora, que você está só. A pergunta é a seguinte: Você consegue comunicar-se com Muzel? Ele fala?

— Não fala, mas pensa — informou Gucky, que já parecia estar conformado com a idéia de perder essa partida do jogo. — Leio seus pensamentos.

— E como é que ele entende uma mensagem sua?

— Falo em inglês. Deve ter aprendido essa língua com Kulman. E olhe que para um cachorro isso representa muita coisa, embora nunca me canse de dizer que mesmo um cão terrano...

— Quer dizer que entende o que você diz? E responde através dos pensamentos, a fim de que você os ouça? Isso é muito interessante. O que costuma pensar seu amigo bassê quando está só? Acho que você entende o que quero dizer. Qualquer ser pensa ininterruptamente, mesmo que não tenha consciência desse processo mental. Será que com Muzel acontece a mesma coisa?

— Acontece, sim — respondeu Gucky em tom hesitante, pois não sabia aonde Rhodan pretendia chegar com sua pergunta. — Pensa ininterruptamente, embora seus pensamentos sejam pouco numerosos e um tanto indefinidos. Geralmente costumam ser mais fracos do que os que surgem em sua mente quando quer comunicar-se comigo. Mas sempre pensa.

— Ah — fez Rhodan, que viu confirmada a suposição surgida em sua mente. Muzel jamais poderia ser um robô. — O que é que ele costuma pensar?

Gucky soltou uma risadinha idiota.

— Acho que seus pensamentos são tolos para um cão bassê. Não pensa em coelhos ou ratos, em raposas ou na caça. Também não pensa em lingüiças grelhadas ou carne crua. Nada disso. Sabe o que costuma pensar?

— Como é que eu poderia saber? — disse Rhodan em tom impaciente.

Gucky fez um gesto de assentimento.

— É mesmo; como é que você poderia saber? Quando está só, os pensamentos de Muzel só giram em torno da água. Imagina que está nadando e pegando plâncton. Nem sei o que vem a ser isso...

— O plâncton é formado por seres minúsculos que bóiam no mar. Serve de alimento aos caranguejos e peixes pequenos, e também a outros animais...

— Ah! — exclamou Gucky e soltou uma gargalhada estridente. — Provavelmente Muzel costumava caçar caranguejos e não consegue livrar-se da recordação desses bichos.

Rhodan fez um gesto afirmativo, mas não disse nada. Em sua testa surgiram rugas de reflexão, e subitamente seus olhos se estreitaram.

Gucky acreditou que o interrogatório estivesse concluído. Voltou a fechar os olhos e subitamente deu um salto de mais de um metro.

— Sei onde está! — exultou com a voz fina. — Consegui localizá-lo. Está no convés F, bem em cima de nós, no interior de um depósito. Um momento; vou buscá-lo.

No mesmo instante Gucky desapareceu, mas não demorou em materializar-se de novo. Gemendo baixinho, o bassê saltou de cima de seus braços e aproximou-se de Rhodan, passando a farejar-lhe as pernas. Abanou alegremente a cauda.

— Está gostando de você — anunciou Gucky, que parecia sentir-se muito feliz com isso. — Os cachorros têm um sentido que lhes permite saber em quem podem confiar e em quem não podem.

— Fico muito satisfeito em saber disso — disse Rhodan e abaixou-se. — Então, bichinho, está gostando daqui? Já fez amizade com Gucky?

Muzel olhou para Gucky. Houve um silêncio total. Finalmente o rato-castor exclamou:

— Percebeu? Acha que você também é muito bacana.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não percebi coisa alguma. Será que você quer dizer que ele expediu uma mensagem telepática? Se fosse assim, eu não poderia deixar de captá-la, pois as condições são extremamente favoráveis.

O rosto de Gucky exprimiu espanto.

— Enviou uma mensagem inequívoca. Será que só eu sou capaz de entendê-lo, e mais ninguém? Devo ter o mesmo comprimento de onda que ele; só pode ser isso.

— Tolice! O motivo deve ser outro. Vamos tentar mais uma vez.

Mas o resultado da segunda e da terceira tentativa não foi diferente. Rhodan sentiu que o bassê pensava, mas não o entendeu. De qualquer maneira, convenceu-se de que o que tinha diante de si não era um robô, ainda mais que Gucky lhe disse o que haviam comido juntos.

A idéia de que Muzel pudesse ser um espião, ou mesmo um robô, era tão absurda que não devia sequer ser considerada.

Um robô não come carne ou cenouras, nem bebe água.

Despediu-se com um gesto e saiu para o corredor.

Estava na hora de iniciar a próxima transição. Devia-se contar com a possibilidade de que logo após o retorno ao espaço normal o misterioso espião voltasse a transmitir a posição da nave. O salto mais uma vez os levaria em direção ao centro da Via Láctea. A distância a ser percorrida seria de exatamente duzentos anos-luz.

Extensos preparativos haviam sido tomados.

Vários operadores de rádio, com aparelhos de radiogoniometria portáteis, continuavam distribuídos pelos pontos estratégicos da nave. Mantinham contato direto com a sala de comando, a fim de poderem transmitir imediatamente os resultados de suas medições goniométricas. Estes resultados seriam coordenados. Dessa forma a posição exata do transmissor colocado pelo espião poderia ser determinada numa questão de segundos.

O Capitão Farrington mantinha-se em posição junto à sala de comando, juntamente com um grupo de cinqüenta homens, a fim de agir assim que fossem fornecidos os resultados das medições goniométricas. Além do mais, a Drusus entrou em regime de prontidão. Cada tripulante mantinha-se em seu posto, do qual não poderia retirar-se sem licença especial.

Rhodan chegou à sala de comando e cumprimentou Sikermann. Sentados lado a lado junto aos inúmeros controles, os dois homens aguardavam. A transição estava iminente. Faltavam apenas alguns segundos...

Sikermann empurrou a alavanca vermelha para a frente. As estrelas apagaram-se, e com isso o Universo parecia desaparecer, apenas para voltar a surgir sob outra configuração. A nave fora trasladada para um ponto situado a duzentos anos-luz. Notava-se perfeitamente que a profusão de estrelas se tornara mais densa.

Na sala de comando reinava um silêncio ansioso.

Era tudo tal qual fora da primeira vez. Apenas, desta vez Bell permaneceu tranqüilamente em sua poltrona, sem dar mostras de um otimismo prematuro.

E teve razão em agir assim, pois os receios de Rhodan se confirmaram.

Oito minutos após a transição o alarma soou pela nave. Os resultados das diversas medições goniométricas foram chegando, e o oficial da equipe de rádio que se encontrava na sala de comando não levou mais de trinta segundos para determinar a localização do transmissor. Achava-se no convés inferior, junto ao eixo norte-sul da nave.

Aquilo quase chegava a ser uma rotina, e tudo se passou exatamente da mesma forma como da primeira vez, no sistema de Swaft. Quando Farrington e seu grupo chegaram ao convés A, não encontraram o menor sinal do espião. O comando equipado com aspiradores de pó pôs-se a trabalhar, sem aguardar as ordens de Rhodan. O Laboratório de Análise teve um serviço a executar, e dentro de meia hora o Major Hill encontrou o microtransmissor.

O aparelho era igual ao primeiro: um transmissor rudimentar e unifreqüencial, equipado com uma minúscula bateria de fusão, extremamente potente, e um mecanismo de relógio regulável bastante simples.

Apoderaram-se de mais um transmissor, mas quanto ao mais tudo continuava como antes.

O rosto de Rhodan adquiriu a rigidez de uma máscara.

— Ainda não nos lembramos de uma hipótese — disse de repente em meio ao silêncio.

Todos os olhares convergiram sobre ele. Bell inclinou-se para a frente.

— É perfeitamente possível que o espião tenha subido a bordo antes de chegarmos ao sistema de Swaft. Talvez se encontre na nave há bastante tempo e só agora entrou em ação. É o momento mais favorável, pois seria de supor que voltássemos à Terra com Kulman. A barreira hipnótica colocada em torno da mente de Kulman tem alguma ligação com isso.

Bell sacudiu a cabeça.

— E os micro transmissores? Só podem ter sido fabricados em Swoofon.

— E daí? Swoofon não começou a existir apenas há algumas semanas. Há séculos os swoons trabalham na confecção destes aparelhos.

Bell fez um gesto de assentimento e manteve-se em silêncio. O argumento era contundente.

Rhodan levantou-se.

— A terceira transição será realizada daqui a duas horas. Antes disso tenho de fazer uma coisa. Poderei ser encontrado no meu camarote.

Retirou-se da sala de comando mas, em vez de dirigir-se ao seu camarote, foi ao de Gucky.

 

Uma esfera de um quilômetro e meio de diâmetro é um verdadeiro mundo. Alguém que não conheça seus meandros pode perder-se irremediavelmente na mesma. Se isso acontecer, vários dias poderão passar-se antes que seja encontrado.

Não há necessidade de ressaltar que o imenso espaço existente no interior da Drusus representava um local de folguedos ideal para Gucky, que sempre sabia orientar-se. Como pudesse realizar saltos de teleportação, não tinha a menor dificuldade em transportar-se de um pólo a outro.

As coisas não foram nada fáceis para Muzel.

Fazia pouco tempo que o bassê havia chegado à nave, e o mesmo não possuía qualquer dom parapsicológico. Sempre que chegava sua vez de esconder-se, Gucky deixava que saísse do camarote e lhe dava uma boa dianteira. Vez por outra chegava a levá-lo a algum lugar e voltava ao camarote.

Havia, contudo, uma vantagem: Muzel não tinha razões para recear que desaparecesse no interior da nave ou até morresse de fome. Gucky sempre o encontrava. Em compensação Muzel perdia invariavelmente; mas isso não parecia incomodá-lo. Era mais um motivo para que Gucky se afeiçoasse a ele.

Gucky abriu a porta e disse:

— Desta vez esperarei dez minutos, Muzel. Procure um bom lugar e não pense tanto, pois do contrário logo será encontrado.

O bassê moveu as perninhas tortas, encostou as orelhas à cabeça e saiu em disparada pelo corredor afora. Sem a menor hesitação saltou para dentro de um elevador e deixou que os raios antigravitacionais o levassem para baixo, em direção ao centro do campo de gravidade.

Desceu algumas centenas de metros e, ao chegar ao convés C, abandonou o elevador. Mais uma vez saiu correndo, a fim de ficar o mais longe possível de Gucky. Era claro que isso não adiantava nada, pois o rato-castor saberia localizá-lo a algumas centenas de metros, bem como a dez mil quilômetros. Acontece que o possoncal não sabia disso.

Dobrou uma esquina e entrou num corredor estreito. Não sabia para onde ia, mas isso não lhe importava. Uma das inúmeras portas deveria estar aberta. Entraria, deitaria bem quietinho e não pensaria em nada. Que Gucky procurasse até cansar.

Muzel demorou demais em ver as pernas que surgiram à sua frente. Bateu contra as mesmas e deu duas cambalhotas.

O pedestre que andava por ali também se sentiu surpreendido com o encontro. Cambaleou, praguejou em arcônida e segurou-se na parede. Por pouco não perde o equilíbrio e cai ao chão. Mas controlou-se com uma rapidez surpreendente, revelando uma extraordinária presença de espírito.

Muzel chegou a voar, de tão forte que fora o impacto. Deu duas cambalhotas, bateu com as costas contra uma porta e escorregou para o chão.

Atlan — era este o caminhante solitário — abaixou-se para examinar o animal, que evidentemente devia estar ferido. Sentiu-se muito surpreso ao notar que o possoncal já se mantinha sobre as pernas. Um arranhão sangrento estava bem visível no pêlo prateado, mas seu comportamento não indicava que tivesse sofrido qualquer ferimento interno. Naqueles olhos dourados apenas se lia uma ligeira recriminação.

Atlan sacudiu a cabeça, surpreso. Subitamente uma expressão estranha surgiu em seus olhos. Tratava-se de um misto de suspeita e curiosidade.

— Sinto muito; coitadinho — disse, passando a mão pela ferida. Seus dedos tingiram-se de vermelho, e sentiu a tepidez do sangue, que gotejava da ferida recente. Fez tudo para que continuasse grudado aos seus dedos, sem ser removido pelo pêlo sedoso. — Está doendo?

Muzel choramingou baixinho, como se quisesse responder. Abanava lentamente a cauda e farejou as pernas de Atlan, que haviam provocado a queda. Deu um rosnado que significava não estar zangado com esse par de pernas.

Ao menos foi essa a interpretação que Atlan deu ao rosnado.

— O que veio fazer aqui embaixo? — perguntou o arcônida, sacudindo a cabeça numa suave repreensão. — Está brincando com alguém?

Muzel voltou a choramingar. De repente parecia sentir dores. Isso não era de admirar, pois o impacto devia ter sido muito forte. Era um milagre que o bassê não havia quebrado os ossos.

Antes que Atlan pudesse refletir a este respeito, Gucky surgiu à sua frente. Enquanto ainda se encontrava no camarote, procurara localizar Muzel e fora informado sobre o incidente que provocou algumas especulações bastante fantasiosas na mente de Atlan. Mas essas especulações foram desmentidas pelo comportamento de Muzel. Especialmente pelo sangue quente que saía da ferida.

— Por que é que você tinha de passear justamente por este corredor, Atlan? — perguntou o rato-castor em voz estridente, que revelava uma enorme dose de cólera. — A nave é muito grande, mas...

— Você quer fazer a gentileza de levar Muzel ao posto médico, onde cuidarão de sua ferida? — interrompeu-o o imortal. — Eu lhe ficaria muito grato. Da próxima vez prestarei mais atenção.

Fez um gesto para Gucky e afastou-se, cuidando sempre para que a mão direita não tocasse em nada, a fim de não remover o sangue.

Gucky seguiu-o com o olhar e estreitou os olhos. Procurou em vão romper a barreira que Atlan erigira em torno de seu cérebro. Nem mesmo o rato-castor conseguiu descobrir o que o arcônida estava pensando.

Gucky suspirou e dirigiu-se a Muzel.

— Está doendo, bichinho? Vamos, eu o levo aos consertadores de ossos. Estes consertarão sua carcaça.

— Isso não é necessário, Gucky. Não está doendo mais.

— Nada de discussões, Muzel. Uma atadura não faz mal a ninguém. Vamos, segure-se em mim!

Muzel voltou a choramingar e obedeceu à ordem que acabara de receber. Quando os dois apareceram na Divisão Médica, o médico-chefe, Dr. Arnulf Sköldson, quase morreu de susto. Era claro que aquele homem ligeiramente corpulento, de cabelos cor de palha, conhecia Gucky. Na Drusus não havia ninguém que não o conhecesse. Mas qualquer pessoa leva um susto quando de repente vê uma criatura materializar-se à sua frente.

— Santo Deus! — exclamou Sköldson, com o rosto pálido, e recuou dois passos, a fim de segurar-se na mesa.

Outro médico, que estava remexendo um armário, virou-se rapidamente e não compreendeu por que o chefe se assustara tanto. Acreditava que Gucky e Muzel tivessem entrado pela porta.

— Não invoque o nome de Deus em vão — disse o rato-castor e apontou para Muzel.

— O pobre do cachorro esbarrou na canela de um monstro e deve ter quebrado quase todos os ossos. Tem um pedaço de gaze?

Sköldson logo se recuperou do susto. Gostava muito de animais, e dedicava uma simpatia toda especial aos cachorros bassê. Assim que viu a ferida de Muzel, a compaixão instalou-se em sua mente.

— Ora, meu pobre au-au — disse baixinho e abaixou-se, o que não foi nada fácil em virtude do volume de sua barriga. — Onde está o dodói? Será que o cãozinho não morde?

Gucky revirou os olhos e deixou-se cair sobre o traseiro.

— Não sei como um homem maduro é capaz de fazer perguntas tão idiotas. Em vez de dizer tolices, seria preferível fazer alguma coisa pelo animal.

Sköldson lançou um olhar de desprezo para Gucky.

— Será que você entende de terapêutica psicológica? — levantou-se e dirigiu-se a outro médico. — Behrends, traga as ataduras. Espero que seja um caso leve. Se houver fratura, tiraremos uma radiografia.

Felizmente isso não se tornou necessário. Depois de um exame superficial apurou-se se tratar de uma ferida pouco profunda, sem outras conseqüências. Apenas a pele fora arranhada. Dali a alguns minutos, Muzel saiu do posto médico, com um esparadrapo nas costas, e deixou que Gucky o levasse ao camarote partilhado pelos dois.

O incidente poderia ser esquecido.

 

Acontece que Atlan não era da mesma opinião.

Assim que Gucky e Muzel desapareceram, seu comportamento tranqüilo modificou-se por completo. Correu o mais depressa possível para o elevador antigravitacional e dirigiu-se à Divisão de Física, que estava estreitamente ligada ao Laboratório de Análises.

Quando Atlan entrou, o Major Hill lançou-lhe um olhar curioso. Assim que viu o sangue grudado à mão do arcônida, seus olhos arregalaram-se de susto. Levantou-se de um salto.

— Meu Deus, Atlan, o senhor está ferido? Será que é grave?

— Não acredito — disse o imortal para tranqüilizá-lo. — O que o senhor está vendo não é o meu sangue. Apenas vim para fazer-lhe um pedido. Queria que analisasse este material.

— Material? Acreditei que fosse sangue...

Ao que parecia, Hill já não entendia mais nada.

— Sim, realmente é sangue. De qualquer maneira, quero pedir-lhe o obséquio de realizar uma cuidadosa análise. Peça à sua divisão que faça o trabalho que teria de realizar se tivesse diante de si uma substância desconhecida, cuja composição deve ser determinada. Não vou responder às suas perguntas, a fim de não influenciar o resultado do trabalho. Peço-lhe que não leve a mal a atitude estranha que estou adotando; tenho motivos para agir assim. Garanto-lhe que estes motivos são de importância vital para todos nós. Posso contar com sua colaboração irrestrita?

O Major Hill confirmou com um gesto e passou a mão pelo jaleco.

— É claro que farei o que o senhor está pedindo. Sei que isso corresponde às intenções de Rhodan. Será que ele está informado sobre isso? — apontou para a mão de Atlan. — O que gostaria de saber é se foi ele quem o mandou.

Atlan sacudiu a cabeça.

— Não faça perguntas, Hill. Eu lhe peço!

Por um instante Hill deu a impressão de que alguém lhe derramara um balde de água sobre a cabeça, mas logo viu que seria inútil tentar fazer com que Atlan lhe prestasse qualquer informação. Pôs-se a trabalhar com a precisão de uma máquina. O sangue foi removido cuidadosamente da mão do arcônida e colocado em diversos recipientes.

— Quanto tempo demorará? — perguntou Atlan.

— No mínimo uma hora — respondeu Hill.

— Avise-me assim que tenha o resultado. Poderá entrar em contato comigo pelo intercomunicador. Estarei no meu camarote ou no de Rhodan. Ou então na sala de comando. Muito obrigado, Major Hill. Mais uma vez lhe peço: esforce-se ao máximo. O assunto é extremamente importante.

Hill confirmou com um gesto.

Atlan colocou-se sobre a fita transportadora e por coincidência encontrou-se com Rhodan, antes que tivesse tempo para bater à porta de seu camarote.

— Olá, bárbaro! Deu para fazer passeios a pé?

— Fui ao camarote de Gucky — respondeu Rhodan em tom pensativo. — Não o encontrei.

Atlan aguçou o ouvido.

— Quando foi isso?

— Há quinze minutos, mais ou menos. Por quê?

Atlan sorriu e relatou o incidente. Não ocultou o fato de que se dirigira ao Major Hill e lhe pedira que realizasse uma cuidadosa análise. Rhodan fitou-o por algum tempo e disse:

— Gostaria de fazer-lhe algumas perguntas, Atlan. Poderíamos ir ao meu camarote?

— Fica mais próximo que o meu — respondeu o imortal.

Depois de terem fechado a porta, e quando já estavam acomodados nas macias poltronas, Rhodan deu início à palestra, mostrando logo o que mais o interessava:

— Você suspeita de Muzel, Atlan?

O arcônida fez que sim.

— Suspeito — confessou de pronto. — Continuo a acreditar que o espião é ele. Ninguém consegue ler os pensamentos de Muzel.

— Gucky consegue!

— Ainda não descobri como fazem para enganar o rato-castor. Nenhum robô consegue irradiar os impulsos mentais de um ser orgânico. Se Muzel fosse um robô, devia ter sido construído segundo princípios inteiramente novos, que tornam impossível a descoberta do fato. Talvez o sangue possa esclarecer alguma coisa.

— De qualquer maneira, seria de admirar que sangrasse — objetou Rhodan.

Depois de uma ligeira pausa, Atlan disse:

— Já tive oportunidade de conhecer os possoncais. Há dez mil anos já se contavam entre os animais domésticos mais apreciados pelos velhos arcônidas. Foram levados até mesmo nas expedições colonizadoras. Costumavam pegar insetos, ajudavam na caça e eram muito dóceis. Talvez Muzel tenha sido adestrado.

Rhodan sorriu.

— Quer dizer que naquela época você os levou à Atlântida? Será que isso confirma a afirmativa que muitos criadores de cachorros fazem a título de gracejo, que o bassê não é um verdadeiro cachorro?

Atlan fitou o amigo com uma expressão de perplexidade.

— Existem seres humanos que afirmam isso?

— Há — confirmou Rhodan. — E a explicação não é difícil. O bassê é uma criatura obstinada, que tende a levar uma vida psíquica bastante individualista. Fazem exatamente aquilo que ninguém pede que façam. Existem muitas piadas ligadas a essa peculiaridade da raça bassê, mas até hoje ninguém teve a idéia de estabelecer qualquer ligação entre a mesma e uma eventual colonização vinda do espaço. E essa explicação é bastante plausível.

“Vejamos o exemplo do gato. Está provado que é o único ser terrano capaz de executar movimentos perfeitos num estado de ausência de gravidade. Se atirarmos um gato para o alto, ele girará o corpo e estenderá as pernas em direção ao solo no momento exato em que vence a ação da gravidade. Para mim isso constitui uma prova de que o gato conhece a ausência da gravidade ou guarda uma lembrança desse estado. Quanto ao bassê...”

— Em nossas naves sempre existiram campos antigravitacionais...

— Isso mesmo! — confirmou Rhodan. — Era o que eu pretendia dizer. O possoncal não está acostumado ao estado de ausência de gravidade. Tal qual o bassê. O que eu pretendia dizer é que naquele tempo alguns dos seus queridos possoncais fugiram e adquiriram sua independência. O resultado disso é a alma ao mesmo tempo encantadora e misteriosa do bassê, sobre a qual muita gente já quebrou a cabeça em vão.

— Essas teorias são um tanto arriscadas, mas não podem ser desprezadas — admitiu Atlan. — Pois bem. Você conhece a raça bassê. Acredita que um desses animais poderia apostar corrida com um galgo?

— É claro que não.

— Pois bem. Você deveria ter visto Muzel no convés C. Tive a impressão de que uma bala de canhão tivesse atingido minhas pernas, tamanha foi a velocidade desenvolvida por esse animal. Quase chegou a derrubar-me.

— Foi? — perguntou Rhodan e estreitou os olhos.

— Um possoncal sabe correr, mas não tão depressa como essa criatura.

— Este fato não pode servir de prova contra ele — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Se Gucky pudesse ouvir suas palavras, você teria problemas pela frente.

— Aposto... — principiou Atlan, mas logo foi interrompido pelo zumbido do intercomunicador.

Rhodan levantou-se e estabeleceu o contato. O rosto do Major Hill surgiu na tela. Ao que parecia, não estava vendo Atlan.

— Desculpe, pensei que Atlan estivesse aí.

— Pois ele está aqui. Quer falar com ele?

— Gostaria — aguardou até que reconhecesse o rosto de Atlan, que logo se levantara e se colocara à frente da pequena câmera. — Concluímos a análise. O resultado...

— Qual é o resultado? — interrompeu Atlan em tom ansioso. — O que vem a ser esse líquido vermelho que se parece com sangue?

A expressão do rosto do Major Hill não se modificou.

— O líquido vermelho é sangue, sangue como qualquer outro.

 

Depois de longa permanência na sala de comando Rhodan voltou a seu camarote. No instante em que entrou, sentiu o cheiro estranho que se espalhava pelo recinto. Ficou tentando localizar a fonte do odor, mas não conseguiu. Depois de dez minutos de procura teve a impressão de que o cheiro diminuíra, e dali a mais alguns minutos não o sentiu mais.

Esqueceu-se do incidente, se é que era disso que se tratava.

Uma coisa era certa: Atlan se enganara. Tudo estava em ordem com Muzel. Pelo menos não era nenhum robô. Uma máquina não sangra nem sente dor.

Dirigiu-se ao intercomunicador e chamou a sala de comando. Bell respondeu.

— Diga a Sikermann que prepare a próxima transição, ainda em direção ao centro da Via Láctea. Deverá ser realizada dentro de uma hora.

— Perfeitamente, Perry. Alguma novidade?

— Nada. As medidas de precaução continuam em vigor. Viu Gucky?

— Não; não está aqui. Por quê?

— Estou à procura dele. Talvez esteja no camarote. Daqui a trinta minutos estarei aí na sala de comando.

— Enquanto isso mandarei realizar os cálculos de transição. Tomara que as “pílulas” do espião cósmico acabem logo.

Rhodan desligou o intercomunicador e pôs-se a caminho.

Desta vez encontrou Gucky em seu camarote. Muzel também se achava lá. O bassê estava agachado num canto do sofá. Ao que parecia, não se sentia muito bem. Havia uma expressão de tristeza em seus olhos dourados. Olhou Rhodan com uma expressão que quase chegava a ser de súplica.

— Muzel sente dores — disse Gucky a título de cumprimento. — Esse Atlan com os ossos de ferro...

— O que é que Muzel foi fazer no convés C? — disse Rhodan, levantando o dedo num gesto ameaçador. — Se quiserem brincar, fiquem pelos hangares. Por lá há espaço que chega.

De repente parou de falar. Sentiu o mesmo cheiro que pouco antes invadira seu camarote. Era um cheiro mau e esquisito, que pensara ter esquecido.

— Que cheiro é este, Gucky?

O rato-castor farejou fortemente.

— Não sinto nenhum cheiro. Quem sabe se Bell...

— Bell não fez coisa alguma — disse Rhodan em tom furioso. — Aqui fede, e no meu camarote também fedia. É estranho.

Passou os olhos pelas paredes e pousou-os sobre os insufladores. Sem dizer uma palavra subiu numa cadeira. Colocou o nariz na corrente de ar que penetrava no camarote e aspirou.

Não havia a menor dúvida.

O cheiro estranho vinha dali.

— Até parece que alguém jogou lixo no poço de ventilação — disse enquanto descia da cadeira. — Acho que a equipe da limpeza terá o que fazer. Gostaria de saber quem foi o porcalhão.

— Não fui eu! — protestou Gucky. Rhodan olhou-o.

— Alguém disse que foi?

Saiu sem dizer uma única palavra; até parecia que se esquecera por que viera. Uma vez na sala de comando, mandou que os poços de ventilação fossem examinados e limpos. Indicou o setor.

— Quando o serviço estiver concluído, quero receber informações precisas.

Bell estava sentado perto de Sikermann, que se ocupava com os cálculos.

— Do insuflador está saindo mau cheiro? — perguntou com um sorriso. — E logo no camarote de Gucky? Quem sabe se esse “sujeitinho”...

— Nada disso! — respondeu Rhodan em tom áspero. — Ele não fez nada disso. Aliás, manifestou a mesma suspeita tola em relação a você. Vamos aguardar.

Bell empalideceu.

— Que sem-vergonha! Como se atreve a acusar-me dessa forma? Eu lhe mostrarei uma coisa.

— Cuidado, que ele o fará voar.

Bell calou-se; parecia assustado.

Os computadores zumbiam e atiravam os resultados dos cálculos sobre a mesa, à frente de Sikermann. A transição era iminente, mas isso em nada. afetava a vida da nave.

Mais uma vez Farrington estava a postos com seu grupo de busca. Os receptores goniométricos, distribuídos pelos lugares mais diversos, foram ligados. Era perfeitamente possível que desta vez o transmissor entrasse em funcionamento mais cedo.

Dez minutos antes da transição, a Seção Técnica chamou.

— Localizamos a causa do fedor.

— O que foi?

— Lixo.

— Que tipo de lixo? Latas de conserva ou cascas de batata?

— Ainda não verificamos este ponto. Este material tem uma aparência um tanto indefinida e exala um fedor terrível. Um cadete já sentiu náuseas.

— Pegue uma amostra e mande examiná-la. Precisamos descobrir quem anda jogando lixo nos poços de ventilação. Tem alguma idéia sobre o lugar de onde poderia ter sido atirado aquilo?

— Na minha opinião não foi atirado. Estava no local, como se alguém o houvesse colocado cuidadosamente.

Rhodan ficou tão perplexo que apenas conseguiu transmitir esta ordem:

— Está bem. Mande realizar o exame. Peça ao Major Hill que me informe assim que tenha o resultado — desligou e viu o olhar sorridente de Bell pousado sobre seu rosto. — Qual é o motivo do riso?

— Hill não ficará nada satisfeito. Teve de analisar poeira, e agora lhe entregam um lixo fedorento.

Rhodan fez um gesto de pouco caso.

— Um analista está acostumado a lidar com coisas desagradáveis — disse em tom tranqüilo.

O momento da transição se aproximava. Faltavam apenas alguns minutos. O intercomunicador voltou a emitir um zumbido. Era o Major Hill.

— Caramba! Já terminou?

Hill fez um gesto afirmativo e pôs a mão no nariz. Em seu rosto havia uma expressão de censura.

— Isso é coisa do diabo — disse. — A matéria fundamental é simples: carne e cenouras. Mas...

— Cenouras? — interrompeu Rhodan. — Continue.

— O mingau foi misturado com um tipo de fermento — disse Hill. — Ao que parece, a finalidade deste consiste em apressar a putrefação e a decomposição do material. É esta a causa do cheiro infernal, que infelizmente está enchendo todo o laboratório. Mas o mais estranho é que o fermento é desconhecido à química terrana. Não concluí sua análise, e ainda não posso dar sua fórmula estrutural. Mas não há a menor dúvida de que se trata de uma substância estranha.

Rhodan acenou tranqüilamente com a cabeça.

— Então não se pode extrair uma conclusão segura — disse. — A bordo da nave existem vários seres que não nasceram na Terra. É possível que alguns produzam o fermento de forma inteiramente natural.

— Pode ser — admitiu o Major Hill.

Rhodan sorriu.

— Prossiga no exame do fermento — recomendou. — Quem sabe se não acaba fazendo uma descoberta monumental. Muito obrigado.

A tela apagou-se. Rhodan apoiou a cabeça na mão direita. Seu olhar passou por Atlan e dirigiu-se ao espaço.

— Cenouras... — murmurou.

— Posso refrescar sua memória? — perguntou Atlan de repente. — As comidas prediletas daquele lindo rato-castor não são cenouras e rabanetes?

Rhodan ergueu a cabeça; parecia surpreso.

— É isso mesmo! Agora me lembro que o pessoal da cozinha foi instruído a manter uma provisão de alimento fresco sempre que Gucky se encontre a bordo.

— Pois então! Qual é a conclusão que você tira disso?

Rhodan estreitou os olhos e piscou-os ligeiramente. Ao que parecia, não estava falando sério quando respondeu:

— É simples. Gucky devorou uma ração excessiva de cenouras. Teve uma indigestão e, como é uma criatura extremamente sensível, dirigiu-se ao poço de ventilação e lá despejou o conteúdo de seu estômago. A conclusão não é correta?

Atlan soltou uma gostosa gargalhada.

— Isso mesmo. Acertou em cheio.

Rhodan virou-se e pegou o microfone. No momento em que transmitiu a mensagem que seria ouvida em todos os compartimentos da nave, sua voz não parecia muito alegre.

— Um monte de lixo foi encontrado no interior das instalações de ventilação. É possível que uma pessoa não identificada tenha depositado lixo em outra parte. É claro que isso é anti-higiênico, além de representar um perigo para o equipamento de ventilação. Por isso peço-lhes que avisem a sala de comando assim que sintam um cheiro estranho. Desligo.

Atlan lançou-lhe um olhar de censura.

— Se isso tem algo a ver com o espião desconhecido, você acaba de preveni-lo — disse.

Rhodan soltou uma risada.

— Sua fantasia anda descontrolada. O que é que um espião poderia fazer com um montão de restos de cenouras?

O rosto de Atlan continuou impassível. Lançou um demorado olhar para Rhodan. Finalmente disse:

— Eu pagaria qualquer coisa para saber o que você está pensando neste momento.

 

A transição foi realizada conforme se planejara. Cinco minutos depois foi localizado o sinal goniométrico já conhecido. E o minúsculo transmissor era perfeitamente igual aos que haviam sido descobertos antes.

Rhodan não se surpreendeu com o fato.

Talvez seria possível surpreender o espião. Ordenou a Sikermann e Bell que preparassem outra transição na mesma direção, para daqui a duas horas.

Depois levantou-se e saiu, sem dar maiores explicações.

Nos amplos corredores da Drusus reinava o silêncio. Os tripulantes se encontravam nas posições de combate. Ninguém saía do lugar, a não ser que recebesse ordens específicas para isso.

O único ruído era o zumbido das fitas rolantes, que deslizavam incessantemente.

Rhodan marcara a nova transição para as 23:30 h. Até lá teria tempo de sobra para conversar com Gucky sobre o assunto ligado às cenouras.

Preferiu procurá-lo em vez de pedir seu comparecimento à sala de comando. Precisava de um pouco de exercício. Mas não pôde deixar de confessar que se deixara seduzir pela esperança pouco realista de, por algum acaso, encontrar o espião pelo caminho.

Não usou a fita rolante. Caminhando junto à parede, mantinha-se pensativo, com a cabeça abaixada.

O espião começava a enervá-lo, ainda mais que não queria que seus subordinados percebessem o que ia pela sua mente. A pior coisa que pode existir numa nave em perigo é um comandante nervoso, rezava um dos princípios ensinados na Academia de Terrânia. E na opinião de Rhodan, o mestre que o havia formulado era um homem muito inteligente.

“Está bem”, pensou, “mas o que adianta tudo isso? Quer estivesse nervoso, quer não estivesse, depois de cada transição o espião transmitiria uma mensagem goniométrica. Estamos puxando a corda com igual força de ambos os lados e não vamos para trás nem para frente. Quanto tempo iria demorar isso? Não temos mais tempo a perder.”

Mergulhado em pensamentos, passou pela escotilha larga dos registros positrônicos. Quando tinha dado mais alguns passos, acreditou ter ouvido alguma coisa.

Parou e olhou para trás.

Não viu nada.

— Quem pintou o diabo... — murmurou. — Não devia ter pensado nos meus nervos.

De qualquer maneira, voltou até a escotilha e abriu-a. Entrou e olhou em torno.

Os aparelhos de memorização, dispostos em ferradura, tinham o aspecto de armários. Havia canais invisíveis que os ligavam ao computador positrônico da nave e, a qualquer indagação, forneciam as informações de que um astronauta pudesse precisar para a fixação da rota, para a determinação da posição ou para quaisquer outros fins.

As informações estavam armazenadas nos diversos anexos, em ordem de importância. Aquelas que estavam ao alcance de todos — e que geralmente eram as que, em caso de emergência, teriam de ser fornecidas com a maior rapidez — achavam-se codificadas segundo o sistema transfor. Tratava-se de um sistema mais simples de codificação. As que eram solicitadas com menor freqüência, ou não poderiam ser colocadas ao alcance de qualquer um, estavam concebidas em Sira III ou Hangol. Uma terceira série de informações, as mais confidenciais, estava armazenada no agregado que se situava no centro da ferradura sob o código complicadíssimo e praticamente indecifrável de Fermat.

Estas idéias passaram-lhe ligeiras pela cabeça, antes que visse a luz vermelha de advertência, que se acendera na placa frontal do anexo das informações em Fermat.

Deu alguns passos e leu as letras luminosas: DEFEITO.

O resto foi feito instantaneamente, sem pensar e em gestos automáticos. Bateu com o punho fechado sobre o botão de alarma embutido na parede junto à escotilha. Respirou aliviado quando o som agudo das sereias encheu os corredores.

Dali a alguns segundos, a voz exaltada de Bell saiu dos alto-falantes espalhados por toda parte:

— Alarma no centro de memorização do convés C! Capitão Farrington, verifique o que está acontecendo.

Rhodan ficou parado junto à escotilha. O uivo das sereias cessou de repente. Dali a alguns segundos os homens de Farrington, com este na frente, apareceram na curva que o corredor descrevia na junção entre a primeira e a segunda seção.

Enquanto corria, Farrington fez continência.

— Bloqueie o centro de memorização, capitão! — ordenou Rhodan. — Ninguém deverá entrar ou sair.

Olhou para o relógio. Eram 22 horas e 35 minutos.

Farrington postou seus homens nos pontos estratégicos. Tinha uma pergunta na ponta da língua: devia ou não mandar trazer os aspiradores de pó. Mas naquele momento Rhodan voltou a falar:

— Enviarei alguns matemáticos, que examinarão o conjunto defeituoso. É claro que estes poderão entrar. Entendido?

Lançou mais um olhar para o relógio. Estava prestes a retirar-se, quando se lembrou de outra coisa.

— Quanto tempo levou para chegar aqui, Farrington? — perguntou. — Mais precisamente, quanto tempo se passou entre o momento em que ouviu a ordem de Bell e o momento de sua chegada?

— No máximo noventa segundos — respondeu Farrington. — O alarma soou às 22:33 h, e quase no mesmo instante ouvimos a ordem de Bell.

Rhodan agradeceu e foi embora.

 

O relatório dos matemáticos trouxe notícias desastrosas.

Perry Rhodan convocou à sala de comando todos os oficiais superiores.

— Encontramo-nos na iminência de uma catástrofe — disse sem qualquer intróito. — As esperanças de que possamos evitá-la são bastante reduzidas. O espião desconhecido conseguiu retirar do centro de memorização os dados relativos à posição da Terra.

Fez uma ligeira pausa, a fim de estudar os efeitos que suas palavras produziam nos ouvintes. Viu que os rostos se tornavam sombrios. Uma expressão de pavor surgiu nos olhos desses homens, mas logo desapareceu.

Eles não se deixavam intimidar por qualquer coisa.

— Devemos contar com a possibilidade de que o segredo que guardávamos com tamanho cuidado não demore a chegar ao conhecimento do chefe do espião, que provavelmente não é outro senão o computador-regente. Permitam que lhes exponha mais alguns detalhes.

“Conforme sabem, o desconhecido já obteve do computador positrônico os princípios dos sistemas terranos de codificação. Por isso dispõe dos instrumentos que lhe permitem decifrar qualquer código, mesmo modificado. Quando a modificação é ligeira, a decifração é rápida, quando complicada, será mais lenta.

“A posição galáctica da Terra foi armazenada no conjunto Fermat, vale dizer, segundo a variante de código mais complicada que possuímos. O espião levará algumas horas — segundo nossos cálculos umas quatro ou cinco — para decodificar os dados até um ponto em que possa irradiá-los. É o tempo de que dispomos para evitar a catástrofe.

“Os senhores hão de compreender que não podemos contar com um êxito seguro. Sob a chefia de Bell e com o auxílio do computador positrônico, alguns dos senhores procurarão fixar as normas de conduta a serem adotadas caso não conseguirmos impedir a revelação da posição de nosso planeta. A partir deste momento, todas as concessões para a utilização da máquina estão canceladas.

“Devem partir do pressuposto de que o computador-regente de Árcon não continuará a ser nosso aliado quando descobrir a posição galáctica de nosso mundo. É bem verdade que colocou à nossa disposição a maior parte de sua frota de guerra, para que combatêssemos o inimigo desconhecido, mas é de se supor que essa ordem poderá ser revogada imediatamente.

“Portanto, elaborem um plano que preveja a hostilidade do regente; e elaborem-no de tal maneira que, apesar de toda essa confusão, ainda nos reste uma chance.”

Bell escolheu os homens de sua equipe, quinze ao todo. Entre eles havia sete matemáticos, cinco oficiais saídos da Academia, que seguiam a carreira político-governamental, e três técnicos muito familiarizados com a máquina positrônica.

O grupo de Bell retirou-se imediatamente da sala de comando, a fim de iniciar seu trabalho. Os outros oficiais voltaram aos seus postos. Poucas pessoas permaneceram na sala de comando.

Não se pretendia pôr a nave em movimento antes que passasse o tempo de que o espião precisaria para concluir seu trabalho, ou antes que conseguissem prendê-lo.

Atlan, o arcônida, foi o único que não tinha nada a fazer.

— Você não admite a possibilidade de o espião irradiar os dados sobre a posição da Terra, tal qual os recebeu, juntamente com o princípio de codificação que já havia extraído do computador? — perguntou, dirigindo-se a Rhodan. — Nesse caso o destinatário da mensagem poderia quebrar a cabeça para decifrá-la.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não acho provável — respondeu. — Se ele possuir um hipertransmissor de maior potência que esses pequenos aparelhos que emitem sinais goniométricos, e não podemos deixar de admitir que ele o possua, pois do contrário não saberia o que fazer com as informações obtidas, nesse caso será um dos pequenos aparelhos, que trabalham com um único código transmitindo a mensagem literal. Evidentemente esse transmissor deve ser um produto arcônida, que funciona com palavras arcônidas ou segundo um código de Árcon. Portanto, nem estará em condições de transmitir uma mensagem modificada de acordo com um código terrano. Além do transmissor precisará de um transformador de código, que lhe permita decifrar os dados e transformá-los segundo seu código. E isso exige tempo. Graças a Deus!

Levantou-se.

— Caso não tenha nada a fazer — disse como que ao acaso — venha comigo. Irei ao centro de memorização. Ainda quero examinar alguma coisa por ali.

— Quer brincar de detetive? — disse Atlan com um sorriso. — Está bem; irei com você.

 

O único acesso ao centro de memorização continuava guardado pelos homens de Farrington. Dois matemáticos enviados por Rhodan ainda estavam examinando o anexo defeituoso.

— Já descobriu o defeito? — indagou Rhodan.

— Sim senhor. Uma corrente de diodos...

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Receio que não entenderei muito desse tipo de explicação. Prefiro que me diga qual foi a causa do defeito.

— A imperícia de quem usou o aparelho — respondeu prontamente o matemático. — O espião deve ser um principiante. Lidou com o anexo como se fosse uma calculadora manual. Provavelmente comprimiu todos os botões, a fim de obter as informações que desejava. Infelizmente, quando efetuou a ligação que produziu o defeito, já havia comprimido o botão correto, e a informação já estava a caminho no momento em que a máquina entrou em pane.

Rhodan acenou ligeiramente com a cabeça. Não se mostrou muito interessado; até parecia que não esperara outra coisa.

— Quando surgiu o defeito?

— Podemos dar esta informação com a precisão de um segundo — respondeu o matemático em tom orgulhoso. — O momento da pane foi registrado pela máquina: 22 horas, 30 minutos e 14 segundos, tempo de bordo.

Rhodan voltou a acenar com a cabeça. Desta vez parecia muito mais interessado. Chamou o arcônida para o lado.

— Com isso surge um novo aspecto — disse. — O alarma foi dado às 22:33 h, quase três minutos depois do momento em que surgiu o defeito. Vim da sala de comando sem usar a fita transportadora, mas não andei devagar. Não poderia ter deixado de ver o espião, se ele tivesse saído pela escotilha.

— É verdade? Será que seus cálculos são corretos? — perguntou Atlan.

— São tão corretos que já tenho certeza de que no momento em que passei junto à escotilha, o desconhecido ainda se encontrava no interior do centro de memorização. Lembro-me de ter ouvido um ruído; pensei que fosse uma simples impressão, pois estava muito nervoso. Mas agora já tenho certeza de que vinha do anexo Fermat e foi emitido no momento em que surgiu o defeito.

“Voltei até a escotilha depois de já ter caminhado um bom pedaço além da mesma. Devo ter refletido por algum tempo se valia a pena dar uma espiada. Finalmente abri a escotilha e dei uma olhada pela sala. Descobri a luz vermelha e aproximei-me para ler as letras luminosas. Depois disso dei o alarma.

“Esta hipótese está em harmonia com a seqüência temporal. Conclui-se que o espião não saiu pela escotilha. Precisamos descobrir o buraco pelo qual saiu, uma vez que evidentemente não está mais no centro de memorização.”

Atlan não formulou qualquer objeção. A ironia havia desaparecido de seu rosto inteligente. A caça ao desconhecido começou a fasciná-lo.

Revistaram a sala. Bateram nas paredes, pois era perfeitamente possível que o espião tivesse criado uma saída por meio de um desintegrador e recolocado o revestimento.

Mandaram trazer sondas de ultra-som, a fim de não dependerem exclusivamente do método das batidas. Não encontraram nada.

Subitamente Rhodan teve uma idéia. Lembrou-se do mingau putrefato de cenouras, que as equipes de limpeza haviam encontrado nos poços de ventilação.

Examinou as quatro grades que fechavam as saídas de ar existentes nas paredes. Três delas estavam intactas. Ao que tudo indicava, não haviam sido tiradas do lugar desde o momento da construção.

Mas na quarta grade faltavam os parafusozinhos que a prendiam ao caixilho de plástico. Rhodan segurou a tela e puxou-a. A grade saiu com a maior facilidade.

— Oh! — fez Atlan.

Rhodan deitou no chão e enfiou a mão direita na saída de ar. Sua mão chegou ao lugar em que essa saída desembocava no poço quase vertical. Mas não encontrou nada.

Levantou-se e lançou um olhar para o arcônida.

— Será que o espião saiu por aí? — perguntou Atlan.

Rhodan fez que sim.

— Com isso a coisa muda de figura, não muda? — indagou Atlan em voz baixa, mas profundamente impressionado.

Voltaram ao anexo Fermat, cuja placa frontal de revestimento estava sendo recolocada pelos matemáticos. A luz vermelha apagara-se; o defeito havia sido reparado.

— O que é isso? — perguntou Rhodan de repente, apontando para um tracinho branco, que descia verticalmente pela placa, partindo da série de botões de solicitação e chegando quase ao terminal de saída.

O matemático examinou o risco.

— É um arranhão — respondeu.

Rhodan já percebera isso.

— Já o viu antes?

O matemático sacudiu a cabeça.

— Não senhor.

— É possível que tenha sido feito pelo espião, não é?

O matemático parecia embaraçado, porque Rhodan o envolvia nesse tipo de indagações. Acenou ligeiramente com a cabeça e disse em voz baixa:

— Não há dúvida.

— Nesse caso deveria ter usado ao menos uma faca de material bem duro — interveio Atlan. — Esta placa de revestimento é de metal plastificado. Como poderia ter sido arranhada?

O matemático não soube responder. Rhodan sorriu.

— É simples — disse. — Tirou um canivete e arranhou a placa, para deixar um sinal. É o que costumam fazer muitos criminosos psicopatas da Terra. É uma mensagem que diz: “Estive aqui”.

Fitou Atlan. O arcônida riu.

— É isso mesmo. Deve ter sido assim.

O matemático parecia perplexo. Olhou alternadamente para um e outro dos interlocutores, mas nenhum deles lhe deu uma explicação.

Rhodan e o arcônida retiraram-se do centro de memorização.

— Já sabemos quem é — disse Atlan em tom alegre, enquanto subiam na fita rolante.

— Acho que sim — respondeu Rhodan.

— O que estamos esperando? Basta pormos a mão nele.

Rhodan fez um gesto negativo.

— Não acredite que é tão simples assim. No princípio também tive muita certeza. O espião deveria pensar que ninguém suspeitaria dele. Mas neste meio tempo cometeu uma porção de erros. Tenho certeza de que não será fácil encontrá-lo.

— Você acha que o rato-castor...

Rhodan levantou a cabeça, sorriu, e não lhe deu nenhuma resposta.

 

Ninguém sabia quando seria realizada a próxima transição. A que fora programada havia sido suspensa. Será que Rhodan queria fazer com que o espião se sentisse inseguro?

Bell caminhava em direção a seu camarote para descansar um pouco, quando teve uma idéia. Mudou de direção e caminhou aparentemente ao acaso, até que parou diante de uma porta. Entrou sem bater.

Gucky permaneceu sentado.

— Quero ver quando você vai aprender a comportar-se como um cavalheiro — resmungou e lançou um olhar de desprezo para Bell. — Nunca ouviu dizer que se deve bater à porta antes de entrar?

— Para quê? — perguntou Bell e franziu o nariz. Acrescentou em tom irônico: — Quem é você para ensinar-me boas maneiras? Aqui fede que nem um chiqueiro.

O rato-castor levantou-se devagar.

— Escute aí, gorducho. Em primeiro lugar, aqui não está fedendo; e, se fedesse, você não teria nada com isso. Quem decide se fede ou não fede por aqui sou eu.

— De acordo, baixote. Não tenho nada contra isso — olhou em torno. — Aliás, onde está seu amigo Muzel? Dizem que vocês são inseparáveis.

— Está com ciúmes? — perguntou Gucky em tom exultante. — Será que também tem alguma coisa contra Muzel?

— Tenho muita coisa contra ele — confirmou Bell e viu que o rato-castor já adivinhara seus pensamentos. — Não se pode confiar num bassê; todo mundo sabe disso. Se fosse você, não confiaria tanto nele e...

— Espere aí, gorducho! Você é um invejoso. Eu me dou muito bem com Muzel, e não será você quem vai nos separar.

— Nunca nos se-pa-ra-re-mos — ironizou Bell entoando em voz desafinada os acordes de uma canção da moda e sorriu. — Mas, para ser exato, o fedor que vinha do poço de ventilação era de cenouras. Não existe a menor dúvida. Então, o que me diz?

— Ah? Foi de cenouras? Será que descobriram mais alguma coisa?

— Oportunamente Rhodan lhe contará. No momento o ambiente anda bastante carregado na Drusus. O espião roubou as coordenadas da Terra do setor de memorização. Aliás, você ainda não respondeu à minha pergunta: Onde está Muzel?

— Na cozinha. Estava com fome e quis andar um pouco. Por quê?

— Apenas perguntei por perguntar. Então quis andar um pouco? Resolveu movimentar suas pernas tortas?

Gucky empertigou-se.

— Não admito que você ofenda meus amigos. Você já se olhou no espelho de short?

— Não... nunca — gaguejou Bell, que foi tomado de surpresa.

— Pois olhe. Só assim descobrirá quem tem pernas tortas.

Sem dignar-se de lançar mais um olhar para Bell, o rato-castor saltou para o sofá, enrodilhou-se e fechou os olhos. Dali a alguns segundos, seus roncos davam notícia de que devia ter adormecido.

Bell caminhou em direção à porta.

— Um dia essa sua arrogância ainda lhe custará muito caro. Você não perde por esperar. Ainda implorará para que eu brinque com você e lhe acaricie o pêlo. Quando isso acontecer, vou...

Não disse o que pretendia fazer. Retirou-se do camarote.

Foi à cozinha o mais depressa que pôde.

O cozinheiro-chefe aproximou-se e mostrou-se solícito em responder às perguntas do lugar-tenente de Rhodan. Sacudiu resolutamente a cabeça.

— Não senhor. Deve haver algum engano. O tal do Muzel não veio buscar carne por aqui. Quem costuma fazer isso é Gucky. Sempre pede ração dupla — disse em tom enfático. — Aliás, faço questão de cumprir o regulamento que proíbe a entrada de animais na cozinha.

— E faz muito bem! — disse Bell em tom de elogio e agradeceu.

Um tanto pensativo, dirigiu-se ao seu camarote para dormir um pouco.

Descobrira que não era tão fácil assim imitar o célebre Sherlock Holmes.

 

— É possível — disse Atlan, dirigindo-se a Rhodan, quando ambos se encontravam na cúpula panorâmica da Drusus, rodeados pela visão majestosa do Universo. Escolheram esse lugar para que ninguém os perturbasse. — Evidentemente essa possibilidade também existe. E não podemos desprezar qualquer hipótese, seja ela qual for.

Rhodan confirmou com um gesto. Estava muito sério.

— Pois bem. Vamos fixar alguns pontos. A ocorrência que se verificou no poço de ventilação não constitui nenhuma prova definitiva. Alguém, naturalmente o espião, está interessado em que as suspeitas recaiam em Gucky e Muzel. O arranhão feito com o canivete teve por fim chamar nossa atenção para as instalações de ventilação, e com isso para os menores passageiros da Drusus, que são Gucky e Muzel. Infelizmente ainda não tive oportunidade de ter uma entrevista com Gucky, para interrogá-lo a respeito desse mingau de cenouras. Tenho certeza de que o malfeitor é ele; apenas não quer confessar.

— Hum — fez Atlan, abstendo-se de qualquer comentário.

Por alguns segundos Rhodan fitou o infinito. Em algum lugar, a mais de mil anos-luz de distância, a minúscula Terra percorria sua órbita. Por causa dela alguém — sem dúvida o robô-regente de Árcon — introduzira um espião habilíssimo na Drusus. Provavelmente tratava-se de um robô. Quando teria acontecido isso?

As estrelas não lhe deram nenhuma resposta. Mantinham-se no espaço, imóveis e sem qualquer cintilação; parecia que esperavam. Já estavam esperando há milhões de anos.

“Esperando o quê? O fim?”, pensou Perry.

Atlan parecia adivinhar os pensamentos de Rhodan.

— Esperam pelo começo — disse com o sorriso. — Quem vai esperar pelo fim?

Rhodan retribuiu o sorriso.

— Quer saber uma coisa, arcônida? — perguntou, apontando com a mão direita para a profusão de estrelas. — Está vendo esses sóis que irradiam e mantêm seu calor, dando vida aos planetas?

Atlan acenou lentamente com a cabeça. Rhodan aproximou-se e cobriu seus olhos com a mão.

— E agora? Ainda está vendo os sóis? Atlan esperou até que Rhodan retirasse a mão. Em seu rosto havia uma expressão de espanto. Sacudiu a cabeça.

— É claro que não os vi. Qual é a finalidade da pergunta?

— Pois é muito simples. Se realizarmos uma transição — admitamos que vamos saltar em direção à Terra — e mantivermos o espião de Árcon perto de nós, ele não poderá transmitir.

Os olhos infinitamente profundos de Atlan estreitaram-se.

— Como pretende conseguir isso?

— No momento do salto reunimos os suspeitos em torno de nós. O momento da transição não será anunciado antecipadamente, para que o mecanismo de relógio não possa ser ajustado. Se depois da transição a equipe de goniometria não captar qualquer sinal, teremos certeza de que o traidor se encontra perto de nós. Não poderá transmitir sem provocar suspeitas; mas, sem saber, ele as terá provocado. Então, o que acha?

— Você deveria ser detetive, Rhodan. Concordo com você, mas acho preferível anunciar previamente a falsa transição. Quando pretende realizá-la?

— Bem, ainda temos o problema dos dados roubados. Pretendia não realizar qualquer transição enquanto não tivéssemos pego o ladrão. Acho que será recomendável rever este ponto.

Atlan mudou de assunto.

— O tratamento de Kulman já deu algum resultado?

— Infelizmente não. Receio que ainda tenhamos de esperar bastante.

— Quer saber o que aconteceu?

Rhodan fez que sim. Atlan inclinou a cabeça para trás, a fim de ver melhor as estrelas.

— Pois bem. Exporei uma teoria e tenho certeza absoluta de que esta se aproxima bastante da verdade. Kulman descobriu uma coisa importante em Swoofon, e desencadeou o alarma geral. Só depois surgiu a intervenção dos elementos de Árcon. Uma nova memória foi introduzida em Kulman, e esta o fez esquecer o que realmente havia acontecido. Acreditou que sua substituição fosse um ato de rotina. Ao entrar na nave, trouxe o espião previamente preparado. Assim foi atingido o objetivo que o inimigo tinha em vista, e Kulman não poderia revelar mais nada sobre aquilo que havia descoberto.

Rhodan ouvira atentamente as palavras de Atlan.

— Receio que tenha sido isso mesmo. Quer dizer que quando tivermos posto as mãos no espião, ainda teremos outro problema a resolver. Qual foi o motivo do alarma desencadeado por Kulman? O que foi que ele descobriu em Swoofon?

Um sorriso frio surgiu no rosto de Atlan.

— Vamos por parte. Em primeiro lugar, realizaremos seu plano. Vamos tapar os olhos do espião, para que ele não possa ver as estrelas...

 

O setor de controle recebeu ordens para preparar a próxima transição. O hipersalto foi marcado para as 5 horas e 30 minutos, tempo de bordo. Atingiria uma distância de trezentos anos-luz, levando diretamente à Terra. Era ao menos o que foi anunciado através do sistema de intercomunicação de bordo.

Rosita Peres e Sköldson, o chefe da equipe médica, ficaram muito espantados quando Rhodan compareceu a sua seção e lhes disse que por ocasião da transição o paciente Kulman deveria permanecer na sala de comando da nave. Formularam algumas objeções, mas não havia o que demovesse Rhodan desse intento. Kulman viu-se livre de uma situação nada invejável e esboçou um sorriso de agradecimento. Estava plenamente convencido de que o trabalho dos médicos e psicólogos seria inútil. Em sua opinião, a idéia de que alguém poderia ter introduzido nele uma nova memória não passava de vaga especulação.

Atlan foi buscar Gucky e Muzel.

Ou melhor, tentou buscá-los, pois não conseguiu encontrar os dois amigos. Não houve outra alternativa senão anunciar pelo sistema de intercomunicação que Gucky e Muzel deveriam comparecer à sala de comando.

Os ponteiros do relógio continuaram a avançar.

Atlan não voltou à sala de comando, mas dirigiu-se ao Laboratório de Análises. Dali foi até ao setor em que eram tratados os doentes. Fez perguntas aparentemente desconexas, e depois subiu à fita rolante para ir à cozinha, onde conversou com o cozinheiro-chefe. Voltou ao camarote de Gucky, e ali permaneceu por dez minutos. Só depois compareceu à sala de comando, onde ocupou seu lugar sem dizer uma palavra.

Rhodan lançou-lhe um olhar indagador, mas não disse nada.

Os ponteiros marcavam 5 horas e 20 minutos.

Como sempre, Farrington se mantinha de prontidão com seu comando equipado com aspiradores de pó. Os rádio-goniômetros portáteis haviam sido distribuídos pelos lugares adequados. Kulman conversou em voz baixa com Bell, e perguntou logo a ele como andavam as coisas. As informações que recebeu não foram muito tranqüilizadoras.

Rhodan olhou para o relógio. No momento em que pretendia dirigir-se ao quadro de comando do intercomunicador, o ar começou a tremeluzir no centro da sala. Gucky materializou-se, juntamente com Muzel. O bassê pulou dos braços do rato-castor, olhou em torno muito espantado e por fim chorou baixinho e dirigiu-se a Kulman, que o cumprimentou com demonstrações efusivas de alegria.

— Por que demoraram tanto? — perguntou Rhodan em tom áspero ao rato-castor. — Mandei anunciar...

— Estávamos brincando — disse Gucky em tom ressentido e acomodou-se sobre o largo traseiro. Seus olhos castanhos o fitaram com uma expressão tão fiel que Rhodan teve de esforçar-se para não rir. — Muzel fez questão de caminhar mais um pouco pela nave, antes que regressássemos à Terra.

Atlan levantou a cabeça.

— Ah! Quer dizer que Muzel só manifestou o desejo de brincar depois que havia sido transmitida a notícia de que iríamos para casa?

Gucky confirmou com um gesto; parecia espantado.

— Antes do aviso estávamos dormindo. Tínhamos comido pouco antes.

— Naturalmente comeram carne e cenouras?

Mais uma vez Gucky limitou-se a fazer um gesto afirmativo.

O relógio mostrava que faltavam cinco minutos para a transição.

Atlan caminhou a passos largos para um dos cantos da sala de comando e fez sinal para que Gucky se aproximasse. O rato-castor obedeceu. Longe do alcance do ouvido dos outros, o imortal cochichou algumas palavras para Gucky e envolveu seu próprio cérebro por uma barreira, para que ninguém pudesse ter qualquer idéia de seus pensamentos.

Gucky lançou um olhar ligeiro para Kulman, acenou lentamente com a cabeça e voltou ao seu lugar.

Faltava um minuto.

Naquele instante só quatro pessoas a bordo da Drusus sabiam que o salto não os levaria à Terra, mas apenas os faria percorrer mais alguns anos-luz em direção ao centro da Via Láctea. Essas quatro pessoas eram Rhodan, Atlan, Bell e Sikermann.

Cinco horas e trinta minutos!

O salto foi curto, mas ninguém deixou de sentir a dor provocada pela distorção, que não durou mais que três ou quatro segundos. Essa dor se manifestava numa contração acentuada dos nervos do rosto ou do corpo.

Atlan ficou com os olhos bem abertos e registrou um fato estranho, que parecia confirmar suas suspeitas. Kulman não percebeu nada. Continuava a acariciar seu possoncal, como se não houvesse outros problemas a bordo da Drusus. O cão parecia não sentir a dor causada pela transição.

Rhodan mantinha-se na expectativa. A qualquer momento, talvez, o transmissor de sinais goniométricos deveria entrar em ação desde que o espião ainda tivesse tido tempo para livrar-se do aparelho.

— Gucky — perguntou Atlan, e até parecia que a pergunta tivesse sido combinada antecipadamente. — Por onde andou com Muzel antes de vir para cá?

— Nos hangares. Mais precisamente, no hangar K-37.

Atlan limitou-se a acenar com a cabeça.

De repente Gucky caminhou decididamente em direção a Kulman, plantou-se à frente do mesmo e tomou impulso. O soco de sua pata direita atingiu o traseiro peludo de Muzel, atirando-o para fora do colo de Kulman, que parecia estupefato ao tomar conhecimento da incrível ocorrência.

Bell não compreendia mais nada. Ficou boquiaberto e assim permaneceu. Parecia não entender nada.

Gucky esbravejava:

— Seu animal nojento! Miserável!

Procurou desferir outro soco em Muzel, mas desta vez o bassê não foi tomado de surpresa. Com um salto incrível, que quase o levou até o teto da sala de comando, passou por cima de seu companheiro de folguedos, escapando à ação de sua pata.

Naquele momento Rhodan foi o único que deu atenção a Atlan, que segurava uma arma, mais precisamente um pequeno radiador de impulsos térmicos, mas muito potente.

Assim que o possoncal voltou a tocar o chão, o imortal atirou.

A energia fortemente enfeixada atingiu o crânio de Muzel, que se desmanchou em fumaça. Um cheiro repugnante espalhou-se. O cadáver do gracioso bassê jazia no centro da sala de comando.

Gucky desapareceu no mesmo instante. Fizera aquilo que Atlan pedira. Acreditara piamente nas afirmativas do imortal, por mais que isso lhe desgostasse. Agora, que via o corpo desfigurado do amiguinho, preferiu teleportar-se. Provavelmente dirigira-se ao seu camarote.

Kulman levantou-se gritando apavorado. Com os olhos arregalados fitou os restos de Muzel. Sua boca abriu-se e balbuciou alguma coisa. Os circunstantes não demoraram muito em entender sua palavras:

— Muzel! Querido Muzel! Atlan o matou... mas o que estou fazendo aqui? O sinal de alarma!... Isso mesmo; a Terra está em perigo... Preciso falar imediatamente com Rhodan!

Atlan acenou para Rhodan e guardou a arma.

— Kulman sofreu um choque. Acho que muitas vezes um bom susto vale mais que qualquer psicoterapia. Aposto que Kulman recuperou a memória. Kulman, já sabe por que transmitiu o sinal “três toques de sino”?

O agente acenou lentamente com a cabeça:

— Sei. Será que alguma vez fiquei sem saber? Por que matou Muzel? Ele lhe fez alguma coisa?

Atlan dirigiu-se a Rhodan:

— Deixe Kulman descansar. Depois de algumas horas de sono, poderá contar o que sabe.

Aguardou a chegada do pessoal da equipe médica, que levou Kulman. Depois prosseguiu:

— Foi uma pena eu ter destruído tudo que estava nesse crânio. Não acredito que no resto do corpo descubramos qualquer coisa interessante. Sköldson fez uma radiografia sem que ele o percebesse. Muzel possui tudo que faz parte de um autêntico ser orgânico: um esqueleto, nervos, sangue. Só na cabeça havia uma pequena cápsula. Uma vez que Muzel veio de Swoofon, suponho que essa cápsula tenha sido o robô. O resto não passava de substância biológica. Quer dizer que Muzel não pode ser considerado nem um robô, nem um andróide. Era ambas as coisas ao mesmo tempo.

Voltou a erguer-se.

— Aliás, você sabe como ele se traiu?

— Não — respondeu Rhodan.

— Em tempos idos, quando já era rico, mas ainda não estava carregado de honrarias, costumava caçar com possoncais. São os melhores cães de fila da Galáxia. Encontram qualquer pista e sabem fazer quase tudo. Mas há uma coisa que não fazem: saltar. Sob a gravitação normal um possoncal autêntico não consegue subir mais de trinta centímetros. Acontece que este aqui saltou quase até o teto; pedi a Gucky que o provocasse. Foi assim que Gucky traiu seu melhor amigo que, por pouco, não provoca um perigo terrível para a Terra. Como vê, até mesmo um robô comete enganos.

Naquele instante Farrington chamou.

— Alô, sala de comando! Localizamos e inutilizamos o transmissor goniométrico.

Rhodan fez um sinal para Atlan.

— Quer dizer que ainda conseguiu colocá-lo. Havia tempo de sobra para isso. Agora já sei por que fez tanta questão de brincar.

Falando para dentro do microfone do intercomunicador, perguntou a Farrington:

— Onde foi encontrado o transmissor? A resposta removeu as últimas dúvidas:

— No hangar K-37.

Atlan dirigiu-se lentamente ao lado oposto da sala de comando e sentou-se.

— Acredito que ainda lhes devo algumas explicações — disse.

 

Na opinião de Rhodan, todas as pessoas que se encontravam a bordo da Drusus tinham o direito de ser informadas sobre a situação. Por isso mandou ligar a instalação geral de intercomunicação. Foi como no dia anterior, quando Atlan havia contado a história da Atlântida.

Todos os ocupantes da nave podiam ver e ouvir o que estava acontecendo na sala de comando.

Atlan fez um gesto de cumprimento em direção às câmeras e aos microfones ocultos.

— Mister Kulman, acho que o senhor ainda não está dormindo. Por isso quero pedir-lhe que também participe do esclarecimento do caso. Afinal, o principal interessado é o senhor, pois foi depois de sua volta à Drusus que surgiu o misterioso espião. As escotilhas da nave não foram abertas, exceto no momento em que a Gazela saiu e voltou a entrar. Não havia outra alternativa. O espião era o senhor ou Muzel; ou então o espia deveria ter subido a bordo com um dos dois.

“Minhas primeiras suspeitas recaíram no senhor, Kulman. Constatamos a presença da barreira hipnótica, e por isso não estava eliminada a possibilidade de que o senhor estivesse distribuindo os minúsculos transmissores de sinais goniométricos. Acontece que depois de ter sido entregue aos cuidados da Divisão Psicológica, o senhor já não poderia ser considerado o autor de tais atos. Miss Peres asseverou que o senhor não saiu da mesa de operações, enquanto os pequenos transmissores continuavam a aparecer e eram prontamente encontrados. Com isso o senhor foi excluído. Portanto, só restava Muzel.

“Mas quem há de desconfiar de que um possoncal possa cometer tamanha traição? A inteligência desse animal não é suficientemente desenvolvida para reagir a um bloqueio hipnótico. Seria totalmente impossível. Por isso só restou a suposição absurda de que Muzel fosse um robô. Acontece que muitos fatos falavam contra essa hipótese. O senhor viu Muzel sangrar, se bem que não tenhamos condições de saber se esse fato foi gravado em sua memória real, ou se lhe foi sugerido. Ainda havemos de descobrir isso. Seja como for, eu mesmo vi Muzel sangrar, e mandei analisar o sangue em nosso laboratório. Não restava a menor dúvida: o sangue de Muzel era sangue autêntico de possoncal.

“Ainda acontecia que Gucky se mantinha constantemente em companhia de Muzel. Todos conhecemos a elevada capacidade telepática do rato-castor. Se Muzel fosse um robô, Gucky teria descoberto o fato logo no primeiro contato. Entretanto Muzel pensava como um ser orgânico e semi-inteligente. E pensava na água e nos microrganismos que bóiam na superfície. A conclusão era uma só: Muzel não era nenhum robô, pois um robô não possui cérebro, ou ao menos não possui nenhum cérebro pelo qual um telepata possa orientar-se. Com isso Muzel foi excluído do rol dos suspeitos, até o momento em que descobrimos o estranho mingau de cenouras.

“Gucky é o único ser a bordo que come cenouras frescas. O resto da tripulação alimenta-se quase exclusivamente de conservas, que são baratas e não exigem muito espaço. Já Gucky não pode parar de roer alguma coisa. Uma vez que se havia afeiçoado a Muzel, deu-lhe parte das suas cenouras, embora devorasse pessoalmente a maior quantidade da ração dupla. Muzel comia praticamente qualquer coisa, inclusive cenouras. Gucky acreditava que o possoncal deveria ter uma predileção toda especial por essa iguaria.

“O que é que um robô poderia fazer com alimentos orgânicos? Não podendo aproveitá-los, teve de livrar-se dos mesmos. E foi o que Muzel fez. Despejou o conteúdo de seu estômago nos poços de ventilação. Embora Muzel fosse principalmente um ser orgânico, sua digestão não funcionava muito bem. Seus... bem, seus construtores deram um jeito. Tinham de contar com a possibilidade de que o robô Muzel voltasse a expelir o alimento ingerido. Por isso implantaram em seu organismo uma glândula que impregnava o bolo alimentar de fermento de arconidizim, a fim de apressar a digestão ao máximo. Ninguém teria dado pelo fato, se Muzel tivesse despejado sua carga em outro lugar, mais precisamente no lugar adequado. Acontece que escolheu as instalações de ventilação. Foi o seu primeiro engano. Mas o erro definitivo foi cometido no centro de memorização.

“Enquanto a Drusus se mantinha em estado de prontidão, Muzel introduziu-se sorrateiramente no recinto e furtou as coordenadas da Terra. Seus conhecimentos sobre a maneira de lidar com aparelhos positrônicos, especialmente os terranos, eram praticamente nulos. Por isso danificou a máquina. Houve outro detalhe. Seu tamanho não lhe permitia atingir as chaves situadas na parte superior da máquina. Teve de saltar. Com isso arranhou a chapa de revestimento. A unha de um verdadeiro possoncal não seria capaz de arranhar uma chapa de metal plastificado. Acontece que Muzel era um robô. E suas unhas eram feitas de metal plastificado, com o que lhes foi conferida maior agilidade que a das unhas comuns, já que teriam de efetuar manipulações bastante complicadas.

“Mal terminou seu trabalho, Rhodan, o comandante, apareceu. Não sabemos se a fuga pelo sistema de ventilação estava nos planos de Muzel. De qualquer maneira, não há dúvida de que o caminho fora preparado antecipadamente, já que os parafusos da grade haviam sido removidos.

“Seu cérebro robotizado concluiu que Rhodan o notaria, se saísse pela escotilha. Conforme veremos, Muzel tinha dois cérebros. Por isso procurou fugir pelo caminho costumeiro. O sistema de canais de ventilação parecia especialmente talhado para ele. Os tubos lhe permitiam atingir num instante qualquer ponto da nave. Serviam também para esconder-se e obrigar Gucky a procurá-lo. Este não iria quebrar a cabeça para descobrir como o bassê conseguira deslocar-se tão depressa. É bem possível que Gucky, um teleportador, não seja dotado do sentido normal do tempo para os deslocamentos feitos a pé.

“Quanto ao segundo cérebro de Muzel. Os construtores do espião quase perfeito não haviam esquecido nenhum detalhe. Sabiam que temos telepatas, que logo teriam identificado um robô. Por isso Muzel teria de irradiar impulsos mentais autênticos.

“Provavelmente nunca descobriremos de quem foi o cérebro implantado no crânio do possoncal. Pelas indicações de Gucky parece ter o cérebro pequeno de um animal aquático, talvez um peixe ou uma medusa...”

Atlan calou-se, espantado.

Alguém começou a rir a bandeiras despregadas.

Era Reginald Bell, que se encontrava de pé ao lado de Rhodan. Suas gargalhadas eram tão fortes e gostosas que contagiaram a quase todos. Dali a pouco metade da tripulação ria, sem saber qual era o motivo da alegria de Bell.

Finalmente ficou quieto, ao que parece porque sentiu falta de ar.

— Permite uma pergunta? — disse Atlan em tom cortês. — Qual é o motivo da hilaridade do cavalheiro? Não me lembro de...

Por pouco Bell não irrompe novamente numa série de gargalhadas. Falando com dificuldade, foi dizendo:

— Quando penso que... ah, ah, ah... que Gucky dormiu todo este tempo com uma medusa... hi, hi, hi... e lhe deu cenouras para comer...

Voltou a irromper em gargalhadas.

Atlan aguardou tranqüilamente, e sem revelar a menor comoção, que a calma se restabelecesse. Depois prosseguiu:

— Kulman não sabia de nada. Acreditava que já conhecia o Muzel há semanas ou mesmo meses, mas é bem possível que ontem o tenha visto pela primeira vez. Os desconhecidos deram-lhe outra memória, agindo por ordem de Árcon; acredito que este ponto não comporta a menor dúvida. Kulman foi obrigado a esquecer o motivo do alarma e a levar Muzel para bordo da Drusus ou de outra nave que um dia voltaria à Terra.

Assim que houve uma ligeira pausa, Rhodan perguntou:

— E os pequenos transmissores goniométricos?

— Ah, sim... — disse Atlan, como se só agora se lembrasse disso. — Muzel tinha cerca de cento e cinqüenta aparelhos desse tipo na barriga. Teríamos de dar muitos saltos por aí para nos apoderarmos de todos. Em cada transição gastava apenas um deles. Estavam guardados numa espécie de depósito. Bastava que Muzel executasse determinado movimento para que um dos transmissores fosse introduzido num tubinho que terminava na boca. Enquanto o aparelho era expelido do depósito, o mecanismo era regulado automaticamente para o momento exato.

“Muzel agiu da seguinte maneira: depois de cada transição, afastava-se de Gucky dizendo que estava com vontade de brincar, “cuspia” o transmissor em algum lugar e esperava que Gucky o procurasse. Tudo correu perfeitamente, sem provocar a menor suspeita.

“Apenas por ocasião da última transição, que foi previamente anunciada e, conforme se dizia, nos levaria à Terra, Muzel expeliu o transmissor antecipadamente. Gucky, que ouvira o aviso, lhe comunicara que durante o salto deveria permanecer na sala de comando. E durante a transição notei outro detalhe...”

Atlan sorriu ligeiramente e olhou para os restos do espião, que estavam guardados numa caixa, para serem submetidos a um cuidadoso exame.

— Enquanto todos, inclusive Gucky, sofriam a dor da transição, Muzel manteve-se impassível. Não sentiu nada, absolutamente nada. Acontece que um possoncal é um ser orgânico como qualquer outro. Não poderia deixar de sentir a dor. Quando notei esse fato, tive certeza absoluta: Muzel era o espião.

— Acredito — disse Rhodan em meio ao silêncio que se estabeleceu de repente — que dentro em breve teremos de ajustar contas com alguém.

— Com quem? — perguntou Bell com a voz tensa, enquanto Atlan continuava a sorrir.

— Com o computador-regente de Árcon. Espero que isto não fira a sensibilidade de meu amigo Atlan.

Atlan fez que não.

— Acho que já lhe disse que para mim esses dois ou três milhões de toneladas de lata não são nenhum arcônida. Faça o que melhor lhe aprouver com o regente. Para mim isso é totalmente indiferente.

Rhodan sabia que tinha duas tarefas importantíssimas pela frente. Não poderia deixar de voltar a Swoofon. A Terra não poderia dar-se ao luxo de permitir que em suas imediações existisse um mundo cuja maravilhosa técnica microscópica estava ao inteiro dispor dos arcônidas e dos saltadores.

Nessa oportunidade lembrou-se de que ainda não ouvira o relato autêntico de Kulman. Isso devia ser feito assim que o agente despertasse do sono profundo em que estava mergulhado.

A segunda tarefa consistia em lembrar ao computador-regente de Árcon que um acordo havia sido concluído, e que ele, Rhodan, de forma alguma aceitava a “interpretação” que o robô regente estava dando a esse acordo. Teria de fazer o possível para que compreendesse que sem o auxílio dos terranos seria fatalmente derrotado na luta contra o inimigo vindo de outra dimensão temporal, pois uma máquina não tem a sensação do tempo, e esse fato iria reverter em prejuízo de Árcon.

Mas a mais difícil das tarefas era representada pelos seres atemporais, que naquela hora deveriam estar escondidos em algum lugar, aguardando o momento para atacar.

Continuavam a representar o perigo mais grave. E Rhodan levava esse perigo muito a sério.

Voltou a fitar Atlan, e depois dirigiu-se a Sikermann.

— Modifique a rota da Drusus, levando-a em direção ao sistema de Swaft. Anunciarei o momento da transição assim que tivermos ouvido o relato de Kulman. Até lá... bem, quanto a mim, até lá vou dormir um pouco. Recomendo que todos aqueles que não se encontrem em serviço façam o mesmo. Até logo mais.

Bell seguiu-o com os olhos.

— Eu também deveria dormir — resmungou um tanto contrariado. — Mas antes disso quero conversar com Gucky. Acho que agora, depois de perder seu amigo, precisa de alguém que o console.

Quando já se encontrava junto à porta, Atlan disse atrás dele:

— Caso daqui a pouco o senhor precise de consolo, não deixe de me avisar...

Bell fez como se não tivesse entendido a advertência velada que havia nas palavras de Atlan.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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