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A Prisão do Tempo / Clark Darlton
A Prisão do Tempo / Clark Darlton

 

 

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A Prisão do Tempo

 

Mil anos são como um dia... para os terranos que vivem em outra dimensão!

Cinqüenta e sete anos se passaram, desde a pretensa destruição da Terra!

Rhodan tornou-se aliado do robô regente de Árcon, pois uma ameaça de proporções incalculáveis ocorreu na Via Láctea: os invisíveis...

Perry, através de uma sofisticada aparelhagem, já está ciente do local do próximo ataque desse inimigo sem dimensões. Trata-se do segundo planeta do sol Morag: Tats-Tor.

O administrador do Império Solar envia uma expedição àquele estranho mundo. O Tenente Rous, comandante desta expedição, usando o GCR, invade o universo inimigo... Entretanto um contratempo naquele planeta sem tempo levou a expedição a tornar-se prisioneira...

 

                                          

 

— Dessa forma, parece que vencemos o espaço e o tempo. Há cem anos uma viagem à Lua ainda constituiria uma verdadeira utopia; é um fato do qual não devemos esquecer-nos. Apenas trinta anos depois disso, em mil novecentos e setenta e um, o homem chegou à Lua, e assim teve início o progresso vertiginoso da navegação espacial, que perdurou até agora, quando nos encontramos no ano de dois mil e quarenta e um. Graças ao auxílio que recebemos dos arcônidas, os saltos pelo hiperespaço, que nos levam a estrelas situadas a milhares de anos-luz da Terra, já não representam o menor problema. Conseguimos vencer o espaço e, portanto, também o tempo. Ao menos era o que se acreditava até pouco tempo atrás.

A pessoa que proferira estas palavras fez uma ligeira pausa, e fitou os seis homens sentados do lado oposto da mesa comprida. Em seus olhos lia-se a tensão e a expectativa que antecedem a ação iminente, cujos detalhes ainda não lhes eram conhecidos. Perry Rhodan sabia que neles poderia confiar, pois cumpririam as tarefas que lhes fossem confiadas, mesmo que isso parecesse impossível.

Havia mais dois homens, que estavam sentados ao lado de Rhodan. À sua direita, Reginald Bell conseguira enfiar-se numa poltrona muito pequena para seu corpo, e seus olhos azuis olhavam em torno com uma expressão amável. Os cabelos ruivos cortados à escovinha continuavam bem penteados, do que se concluía que estava passando por um dos raros períodos de paz de espírito, e que excepcionalmente não acontecera nada que o aborrecesse.

À esquerda de Rhodan estava sentado Atlan, o imortal. Seus olhos, desligados do tempo, brilhavam numa expressão profunda e pensativa; parecia que estava à procura de algo que pudesse dar resposta a todas as indagações. E, ao que tudo indicava, ainda não o havia encontrado.

— Infelizmente, conforme já sabem, estávamos enganados — prosseguiu Rhodan, inclinando-se ligeiramente para a frente, a fim de fitar os seis homens. — É verdade que vencemos o espaço e o tempo em nosso contínuo temporal, mas não nos lembrávamos de que pudessem existir outros planos. Mais do que isso, esquecemo-nos de que os dois planos temporais podem encontrar-se. E foi o que aconteceu.

Esperou até que cessasse a ligeira movimentação que se notou entre os ouvintes.

— Deparamo-nos com duas dimensões temporais prestes a colidirem. É claro que um fenômeno deste tipo não pode deixar de produzir seus efeitos. Suponhamos que nosso Universo seja um plano, semelhante ao que é formado pela lâmina espessa da Via Láctea. O plano temporal dos desconhecidos é semelhante ao nosso, mas encontra-se em posição inclinada em relação ao nosso e desloca-se lentamente em direção ao mesmo. Nos lugares em que isso acontece, verifica-se o desaparecimento de toda vida orgânica; os seres tornam-se invisíveis. Mundos inteiros foram despovoados dessa forma, e por isso não é de se admirar que o computador de Árcon tenha solicitado nosso auxílio e concordado em estabelecer uma sociedade. Árcon e o Império Solar vêem-se diante de um inimigo comum, que ameaça despovoar toda a Via Láctea.

Atlan fez um movimento ligeiro. Ao notar o olhar indagador de Rhodan, disse:

— Pelo que sei, seus homens descobriram que no plano dos desconhecidos prevalece uma dimensão temporal diferente da nossa. Em comparação com nosso plano, o tempo passa muito devagar. Será esta a chave?

— A chave de quê?

Atlan sacudiu lentamente a cabeça.

— Não pergunte por enquanto, Rhodan. Só falarei quando minhas suposições se confirmarem. Apenas gostaria de dar uma indicação. Sua equipe científica apurou que no plano dos invisíveis o tempo corre setenta e duas mil vezes mais devagar que o nosso. Portanto, para eles passaram-se apenas alguns meses desde que cheguei à Terra.

Rhodan lançou um olhar perscrutador para Atlan. Fazia mais de dez mil anos que o imortal se encontrava na Terra. Onde pretendia chegar? Atlan não esclareceu este ponto. Por enquanto.

Rhodan voltou a dirigir-se aos seis homens.

— Marcel Rous e Fellmer Lloyd conseguiram construir um aparelho que nos permite penetrar no outro plano temporal sem nos privarmos da dimensão que nos é própria. Em outras palavras: qualquer pessoa que penetre no mundo dos invisíveis continua a viver como antes, mas tem de conformar-se com o fato de que a existência de tudo que se encontra a seu redor se processa num ritmo setenta e duas mil vezes mais lento.

“O aparelho foi batizado com o nome de gerador de campo de refração que funciona como lente. Já construímos o protótipo, instalado numa gazela cujos geradores foram reforçados a fim de fornecerem a energia suplementar. Além desse gerador de campo de refração, possuímos outro dispositivo, que nos permite prever com boa margem de segurança onde se verificará a próxima interseção dos dois planos temporais. Pelo que se supõe, acontece uma superposição irregular das duas zonas temporais. Precisamos nos certificar se nossa suposição é correta. Quero que os senhores façam essa verificação.”

Os seis homens fitaram-se. Em seus olhos Rhodan não viu pavor, mas apenas uma alegre surpresa. Todos eles arriscariam a vida por Rhodan e pelo planeta Terra. Nos últimos decênios tiveram muitas oportunidades de lutar contra inimigos reais e palpáveis a fim de proteger a Terra. Mas desta vez a muralha do tempo interpunha-se entre eles e o inimigo. Acontece que essa muralha possuía aberturas...

— A expedição será dirigida pelo Tenente Rous. É o único que já teve vários contatos com o inimigo. Da expedição ainda participará um mutante, André Noir, o hipno que, se necessário, poderá impor sua vontade aos desconhecidos. Talvez assim se torne possível trazermos um prisioneiro ao nosso plano temporal. Além deste, participarão Fritz Steiner, físico, químico e um dos construtores do gerador ampliado; Ivã Ragow, biólogo, zoólogo e médico; Fred Harras, um técnico e mecânico altamente qualificado; e finalmente Josua, nosso meteorólogo e metalúrgico africano. Bem, os senhores já se conhecem. Partirão amanhã num cruzador pesado, que os deixará no setor espacial onde fica o sistema solar a que se destinam. É tudo que lhes posso dizer por agora. Não pretendo cancelar a folga que terão hoje de noite em Terrânia. Alguma pergunta?

O Tenente Marcel Rous, um francês baixo, moreno e vivaz, sacudiu vivamente a cabeça. Sabia que não haveria perguntas, pois na manhã do dia seguinte — ainda hoje, mais tarde — lhes diriam tudo que ainda não sabiam. Os outros cinco homens do grupo também se mantiveram em silêncio.

Rhodan parecia satisfeito, como se não esperasse outra coisa.

— Fico-lhes muito grato. Encontramo-nos amanhã, às dez horas, meia hora antes da partida. Tenente Rous, peço-lhe que fique mais um pouco. Os outros podem retirar-se. Se permitirem que lhes dê um conselho, direi que não devem dormir tarde. Não sei se no outro plano temporal terão tempo para dormir.

Noir, o hipno, sorriu enquanto se deslocava em direção à porta. Os outros quatro não deram mostras de seus sentimentos; apenas se apressaram para sair. As noites em Terrânia costumavam ser curtas. Queriam aproveitar a última delas, esperando naturalmente que não fosse a última de sua vida.

Rhodan esperou que a porta se fechasse. Depois dirigiu-se a Rous.

— Amanhã não teremos tempo para discutir todos os detalhes; por isso vi-me obrigado a pedir que ficasse mais um pouco. O senhor deverá ser informado sobre tudo que acontecerá amanhã e sobre o que deverá fazer se a experiência não for bem sucedida, já que é o chefe da expedição. Infelizmente não podemos afastar a hipótese do fracasso. Não nos devemos esquecer de que o gerador de campo de refração ainda se encontra na fase experimental. Foi construído com base nos dados que possuímos, e só podemos fazer votos de que em sua construção não tenha ocorrido qualquer engano.

“Segundo os cálculos do computador positrônico, a próxima interseção deverá ocorrer no sistema solar de Morag, e isso dentro de uma semana. Quando isso acontecer, o senhor deverá encontrar-se nas imediações da área atingida, para acompanhar o ataque. O senhor sabe qual é o risco: não há como voltar do outro plano temporal, a não ser que se possa contar com o gerador de campo de refração. Se for atingido sem ele, estará perdido, pois viverá setenta e duas mil vezes mais devagar que antes. Vários meses e até anos se passarão antes que possa fazer qualquer movimento para libertar-se. Não se esqueça que um segundo de nossa dimensão temporal corresponde a vinte horas no outro plano.”

Atlan acenou lentamente com a cabeça, mas não disse nada.

Bell também se manteve em silêncio. Sentia-se satisfeito em não ter de participar da expedição. Sempre estava pronto a enfrentar um inimigo que pudesse ver. Mas quando se tratava de seres invisíveis, atemporais, vindos de outro nível de existência... bem, nesse caso preferia estar longe.

— Preste atenção — prosseguiu Rhodan, fitando Rous. — Neste momento lhe darei algumas informações que lhe poderão ser de importância vital...

 

Nos catálogos estelares, aquela estrela constava com o nome de Morag. Tratava-se de um sol branco-amarelento, cujo espectro era quase idêntico ao do nosso astro rei. O segundo planeta desse sol era do mesmo tamanho da Terra, tinha uma atmosfera de oxigênio perfeitamente respirável e sua gravitação, um pouco superior à da Terra. Sua distância do sol Morag era ligeiramente inferior à que separa o sol de nosso planeta, motivo por que o clima era quente e seco, embora houvesse muitos oceanos. As áreas litorâneas não tinham por que queixar-se da falta de chuvas. As gigantescas matas virgens constituíam prova disso.

O nome do segundo planeta desse sol era Tats-Tor, e sua colonização fora iniciada pelos arcônidas há pouco menos de três mil anos. Nele se encontravam matérias-primas de elevado valor, motivo por que Tats-Tor se transformara num importante espaçoporto para as naves do Império. No grande campo de concreto de Akonar, capital de Tats-Tor, pousavam as naves de muitas raças. As ruas da cidade estavam repletas das criaturas mais estranhas que a natureza fantasiosa havia criado no curso dos milênios nos mais diversos mundos da Galáxia.

Os verdadeiros donos de Tats-Tor eram os novos arcônidas, nome que haviam dado a si mesmos.

E esse nome não fora escolhido sem motivo, conforme Marcel Rous não demoraria a constatar. Pelo aspecto exterior em nada se distinguiam dos arrogantes arcônidas da “tróica” de Árcon, onde o maior computador positrônico do Universo governava um império estelar. Além de orgulhosos, demonstravam uma enorme presunção em virtude de sua origem e tratavam os membros de outras raças com uma afrontosa arrogância. Os outros seres conformavam-se com esse tratamento, porque estavam interessados em adquirir as preciosas mercadorias encontradas em Tats-Tor.

O cruzador pesado da classe Terra materializou-se a duas horas-luz de Tats-Tor e desembarcou uma gazela. Tratava-se de uma pequena nave de reconhecimento de longo curso, que não possuía o formato esférico; lembrava um disco achatado que media dezoito metros de espessura, uns trinta e cinco metros de diâmetro.

Assim que a gazela se encontrava a distância segura e se deslocava em direção ao planeta ainda distante, o cruzador da classe Terra voltou a desmaterializar-se.

Desapareceu pura e simplesmente, deixando para trás não apenas um espaço vazio, mas uma sensação de terrível solidão.

Foi ao menos a sensação que o Tenente Rous teve quando subitamente fitou a tela negra, interrompida apenas pelas estrelas cintilantes que davam vida a centenas de planetas.

A hora tinha chegado. Estavam sós e dependiam exclusivamente das suas próprias capacidades. Quando se aproximasse o terrível momento, ninguém poderia auxiliá-los.

E Rhodan havia dito que tinha cem por cento de certeza de que isso aconteceria dentro de uma semana do planeta Terra.

Rous soltou um suspiro e corrigiu a rota pelos meios visuais. Preferiu não realizar um salto de transição para ganhar tempo. Ganhar tempo para quê? Para preparar o encontro com os novos arcônidas, cujo caráter, segundo se dizia, não primava pela gentileza das maneiras.

— Bobagem! — disse em voz alta. Noir, que estava saindo da sala de rádio, levantou os olhos.

— O que é bobagem, Marcel? Será nossa expedição?

— Como pode dizer uma coisa dessas, Noir? Na minha opinião trata-se de um empreendimento indispensável, mesmo que esteja ligado a um risco considerável, isto é, o de “encalharmos” no tempo. Estava aludindo apenas aos novos arcônidas. Pelo que dizem, não são muito agradáveis.

— Já conseguimos lidar com muitos seres difíceis — disse o hipno a título de consolação. — Se não quiserem ser amáveis, nós os obrigaremos.

— O senhor poderá influenciar alguns “exemplares”, mas não todos os habitantes do planeta — ponderou Rous. — Aguardemos para descobrir o que os arrogantes acharão do ataque iminente dos desconhecidos. Pautaremos nosso procedimento de acordo com isso.

— Onde pretende pousar?

— No espaçoporto de Akonar, capital do planeta. É lá que reside o administrador, ao qual teremos de entregar a mensagem de Rhodan. Se existe alguém que pode dar-nos algum apoio é ele.

Fritz Steiner entrou na sala de comando. Ouvira as últimas palavras. Falando no tom exaltado que lhe era peculiar, disse:

— Que apoio poderia ser este? Se não estiverem dispostos a ajudar, poderão esperar que o invisível os alcance e “devore”. Afinal, temos o GCR.

Rous arregalou os olhos.

— Temos o quê?

Steiner soltou uma estrondosa gargalhada.

— O GCR. São as iniciais de gerador de campo de reflexão.

— O senhor é muito inteligente — disse Rous em tom sarcástico, aborrecido por não ter descoberto o sentido daquelas letras. — Tem certeza de que o aparelho funcionará?

— O senhor não tem? Pois foi construído com base nos dados fornecidos pelo senhor. De repente lhe surgiram dúvidas sobre sua eficiência?

— De forma alguma. Apenas acontece que costumo ser cauteloso, Steiner. Basta o menor erro para que estejamos perdidos.

— Ninguém sabe — disse Steiner com uma estranha tranqüilidade — como são cientificamente as coisas atrás da muralha do tempo. O outro plano temporal deve oferecer as mesmas condições de vida do nosso. Se pudermos chegar a eles, o contrário também deverá ser possível. Será que fui suficientemente claro?

— Um homem sem esperança é um homem sem futuro — disse Rous. — Sim, o senhor foi suficientemente claro. Nossas concepções são idênticas.

Duas horas depois dessa discussão, pousaram no espaçoporto de Akonar. Receberam o chamado do controle de vôo, que lhes forneceu as coordenadas exatas para o pouso. Ao que parecia, a pessoa que os chamara não estava interessada em saber quem eles eram, tanto que não perguntara de que planeta vinham. Dali se concluía com absoluta segurança que em Tats-Tor havia um tráfego espacial intenso e pacífico.

Rous pediu que Steiner permanecesse na sala de comando, com o receptor ligado. Rous e Noir procurariam o administrador, a fim de avisá-lo sobre o perigo iminente. Um transmissor embutido no anel manteria Steiner ao par sobre aquilo que fosse falado. Se houvesse algum imprevisto, poderia intervir.

Uma das características principais de um porto interestelar consiste no fato de que ninguém se interessa pelo outro. Rous e Noir traziam sob os macacões os trajes de combate arcônidas, que haviam recebido vários aperfeiçoamentos. Se surgisse algum perigo poderiam tornar-se invisíveis, voar ou envolver-se num campo energético. Antes de mais nada, porém, o traje possibilitaria uma fuga rápida, caso surgisse um ataque de surpresa dos seres invisíveis.

Foram à cidade num veículo robotizado, que os deixou à frente do palácio do administrador. Para isso não tiveram de fazer outra coisa senão dizer ao robô de direção o lugar a que pretendiam chegar.

Mas agora teriam de enfrentar o primeiro controle.

O palácio do administrador ficava exatamente na área circular, situada entre o espaçoporto e o bairro comercial. Dentro dessa zona não havia qualquer controle ou obstáculo. Qualquer indivíduo poderia pousar sua nave no espaçoporto e andar pela cidade, sem que ninguém perguntasse qual era seu nome ou planeta de origem. Só teria de sujeitar-se ao controle quando saísse da área delimitada.

Dois arcônidas uniformizados, que Rous reconheceu pelo cabelo branco e pelos olhos albinos avermelhados, encontravam-se junto à barreira de radiações, que só podia ser atravessada num lugar. Evidentemente não seria difícil aos dois terranos atravessar essa barreira por meio de um campo energético, que seus trajes poderiam criar num instante, mas a finalidade de suas presenças no planeta não era a de ficar tapeando os arcônidas. Por isso tiraram tranqüilamente do bolso as finas chapas de metal e as entregaram aos arcônidas.

O maior deles pegou os elementos de identificação, que tinham validade em todo o Império, enquanto o outro fitava atentamente os dois desconhecidos. Ao que parecia, pretendia classificá-los. Talvez pensasse que eram descendentes dos saltadores.

— São do planeta Terra? — perguntou o arcônida que estava examinando as placas, fitando Rous, que se encontrava mais próximo. — Não vejo os dados relativos à posição. O documento não é válido.

— Poderíamos ter indicado dados falsos — disse Rous com a maior tranqüilidade. — Nesse caso escaparíamos às perguntas que desabam sobre nós sempre que pousamos num mundo subdesenvolvido. Os dados relativos à posição deixaram de ser inseridos com o consentimento do regente. Será que isso não basta?

— Qualquer um pode alegar isso — respondeu o arcônida. — Antes de deixá-los passar tenho de solicitar informações. O que pretendem fazer em Tats-Tor?

— Viemos para prevenir o administrador contra uma invasão que está iminente.

O arcônida lançou um olhar perplexo para Rous, enquanto o outro recuou um passo.

— Uma invasão? Será que o senhor ficou louco?

— Pareço um louco? — perguntou Rous. — Não pense que fizemos toda esta viagem para engolir ofensas do senhor. Se acha que deve consultar antes de nos deixar passar, ande depressa. Não temos tempo a perder.

A perplexidade do arcônida cedeu lugar à costumeira arrogância.

— Ouça, terrano; o senhor esperará tanto tempo quanto eu quiser. Sem nossa permissão não entrará em Akonar. Ei, Rof — disse, dirigindo-se ao colega — chame a central e televisione os dois passaportes.

Rous e Noir fitaram-se, sorriram ligeiramente e prepararam-se para uma longa espera. Infelizmente não havia como evitar isso, mas depois não teriam mais a menor dificuldade em passar por qualquer controle. Quando fossem conhecidos, tudo se tornaria mais fácil.

O arcônida que ficou para trás voltou a dirigir-se a Rous.

— Então a posição de seu mundo não precisa constar do passaporte? Isso é muito estranho. Trata-se de uma norma geral: todo viajante espacial deve portar um documento que consigne o lugar onde pode ser encontrado o mundo a que pertence. Trata-se de uma precaução cuja finalidade os senhores hão de compreender. Se houver um crime, será mais fácil...

— Eu já lhe disse que a Terra é uma exceção. Nunca ouviu falar nesse planeta?

— Nunca — confessou o arcônida. — Quando foi colonizada a Terra? Os senhores já não têm muita semelhança com os arcônidas.

As últimas palavras foram ditas com certo desprezo. Rous reprimiu a cólera; permaneceu calmo. Provavelmente esse guarda nem sabia por que estava tão convencido de si mesmo.

— Faz poucos meses que a Terra pertence ao Império — disse ao guarda, cujo rosto começava a ficar pálido. — Aliás, nem é bem assim, pois ainda não consentimos em sermos governados por um computador, se é que está interessado nisso. Mas para evitar contratempos, consentimos em tornar-nos sócios. Nem sei por que lhe conto isto. Parece que o senhor não entende nada da alta política.

O arcônida levou dois minutos para recuperar-se do susto. Lançou um olhar desconfiado para os dois homens que aguardavam calmamente junto à barreira.

— Sócios? O que quer dizer com isso? No Império só existe uma raça dominante, que é a dos arcônidas. Nunca ouvi falar na Terra.

— Isso não é de admirar — disse Rous em tom indiferente. — Sem dúvida também não ouviu falar na outra raça, a qual vai atacar Tats-Tor. Então, qual é o problema? Será que ainda teremos de esperar muito tempo?

O arcônida hesitou por um instante, mas depois deixou livre a passagem.

— Vamos logo. Acredito que poderão passar. Meu colega já está voltando. Então, Rof, a central resolveu alguma coisa?

— Ninguém conhece a posição da Terra. A central acha que devemos deixar passar os desconhecidos.

Rous pegou os passaportes e entregou o de Noir.

— É provável que nos próximos dias tenhamos de passar várias vezes por esta barreira. Tomara que não seja sempre tão demorado como hoje. Seja como for, os senhores apenas estão cumprindo seu dever.

Mais tarde, ao lembrar-se da cena, Rous se admiraria por ter perdido tanto tempo. Teria sido facílimo impor sua vontade aos dois guardas. Mas, segundo dizia Rhodan, os novos arcônidas se disporiam de modo voluntário a cooperar com eles.

Normalmente não seria fácil falar com o administrador do planeta, mas a central de comando das barreiras da área fronteiriça já informara o comando sobre o incidente. Assim que entraram no hall, dois arcônidas compenetrados que envergavam o uniforme dos guardas palacianos aproximaram-se de Rous e Noir. Ao que parecia, por aqui ainda se dava muito valor às tradições.

— São os terranos? — perguntou um deles.

Rous não se surpreendeu ao notar que a notícia de sua chegada se havia espalhado tão depressa. Era quase certo que os novos arcônidas nunca tinham ouvido o nome de Perry Rhodan, mas a simples idéia de que o Império pudesse ter um sócio bastaria para aguçar suas curiosidades.

— Sim; somos nós.

— O administrador quer falar com os senhores. Queiram seguir-me.

Apesar do trato cortês, o funcionário não conseguiu ocultar seu orgulho e arrogância. Agora, que caminhava à frente de Rous, este teve vontade de dar-lhe um pontapé, mas lembrou-se em tempo das diretrizes que lhe haviam sido fornecidas. Não usar de violência, não ser petulante, conservar sempre a paciência.

Em todos os lugares se viam empregados que não faziam nada, e lançavam olhares curiosos para Rous e Noir. O hipno não pôde resistir à tentação de dar uma pequena prova de sua capacidade, sem que ninguém o notasse.

Subitamente dois ou três funcionários fizeram meia-volta e saíram andando a passos majestosos. Noir dera-lhes ordem de tirarem cinco dias de férias. Sabia que essa ordem seria cumprida de qualquer maneira, mesmo que Akonar e o administrador ficassem de pernas para o ar. Ninguém saberia explicar a atitude tomada por aqueles dois homens; nem eles mesmos seriam capazes de dizer por que agiam dessa forma.

Um sorriso ligeiro surgiu no rosto de Rous, quando registrou o incidente. Fazia votos de que Noir não se sentisse tentado a realizar outras experiências desse tipo.

Os dois arcônidas pararam ao chegarem ao fim do corredor.

— O administrador os espera atrás dessa porta. Peço-lhes que deixem aqui as armas que porventura portem.

Não tinham armas.

A porta abriu-se, deixando livre a entrada.

Rous esperara encontrar um ambiente bastante luxuoso, mas teve uma surpresa agradável. A sala, que não era muito grande, lembrava antes um laboratório eletrônico que uma sala de audiências. As paredes estavam cobertas de telas e dos respectivos controles. Os fios se reuniam embaixo do teto e desapareciam atrás das paredes. Havia dois intercomunicadores pequenos colocados sobre mesas, junto com os respectivos microfones. Era aqui que confluíam “os fios” de todo um planeta. Pelo que acreditava Rous, dali mesmo o administrador poderia entrar em contato com qualquer ponto de Tats-Tor.

O arcônida estava sentado atrás de outra mesa. Próximo, havia duas poltronas.

— Sejam bem-vindos — disse no mais puro arcônida imperial, acenando ligeiramente com a cabeça. — Os guardas de fronteira me informaram sobre sua chegada, mas devo confessar que nunca ouvi falar no planeta Terra.

— O senhor é administrador de um pacato planeta colonial — disse Rous, parando perto de Noir, junto às poltronas. O arcônida não fez menção de levantar-se. — Se fosse um saltador ou membro da frota de guerra do Império, sem dúvida já teria ouvido falar a nosso respeito.

— O que quer dizer com isso? — o administrador lembrou-se dos seus deveres de anfitrião e apontou para as poltronas. — Façam o favor de sentar.

Rous sentou. Noir também. Seus olhares se cruzaram.

— O que quero dizer é que já tivemos um conflito violento com Árcon, mas atualmente a situação está pacificada. Hoje somos sócios do regente, em pé de igualdade. O administrador do Império Solar, cuja sede é o planeta Terra, celebrou um acordo com seu regente supremo, a fim de lutar contra um inimigo poderoso. É por isso que viemos para cá.

— Por que vieram justamente para Tats-Tor? O senhor mesmo acaba de dizer que este planeta é pacato e não tem nada a ver com as guerras travadas pelo Império.

— É verdade. Acontece que o homem mais pacato não pode viver em paz se o mau vizinho não deixa. Ao que parece, os invisíveis são os maus vizinhos.

— Os invisíveis? Não sei a respeito de que está falando.

Rous respirou profundamente e resolveu ser breve. Sabia que, apesar da cortesia do administrador, seria mais fácil lidar com um inimigo que com esse arcônida manhoso.

— Nosso Universo está sendo cortado, cruzado por uma dimensão estranha. Os conceitos de tempo que prevalecem nessa dimensão são diferentes dos nossos. Nos pontos em que as duas dimensões se encontram, a matéria viva e, com ela, toda vida animal desaparece de nosso campo de visão. Até hoje não conseguimos recuperar um único dos seres desaparecidos.

— Isso é muito interessante — interrompeu o arcônida sem a menor comoção.

— Infelizmente ainda não percebi indício desse fenômeno.

— Isso não é de admirar — explicou Rous. — O regente preferiu não alarmar o Império. Ainda acontece que até pouco tempo atrás não era possível prever um ataque iminente. Quando os desconhecidos atacavam, não havia nada que se pudesse fazer.

— Por que veio justamente para Tats-Tor a fim de revelar o segredo do regente?

— Porque, segundo nossos cálculos, Tats-Tor será o próximo planeta a ser atingido pelos invisíveis.

O administrador lançou um olhar de incredulidade para Rous, mas não demonstrou qualquer comoção ou sequer um interesse especial.

— Será? — perguntou, estreitando os olhos. — Quer dizer que veio para nos prevenir?

— Exatamente.

— Por quê? O que pretende receber em troca? Para que servirá a advertência se não há nada que se possa fazer?

As perguntas deixaram Rous decepcionado.

— Pretendemos descobrir uma arma para deter os seres da outra dimensão temporal. Foi este o principal motivo de nossa vinda para Tats-Tor. Queremos realizar uma experiência com um novo invento.

Mas para isso precisamos de sua permissão. Acho que o senhor não terá nenhuma objeção se tentarmos...

— Em hipótese alguma a experiência poderá ser realizada em Akonar — disse o administrador. — Não posso permitir que vidas humanas sejam colocadas em perigo. Façam suas experiências onde quiserem, menos na capital.

— Não fazemos questão de realizar a experiência aqui. Antes de mais nada, teremos de considerar os indícios da aproximação da frente inimiga. Não sei se teremos possibilidade de salvar seu mundo da destruição, mas queremos colher algumas experiências. O senhor compreende?

— Só compreendo uma coisa — disse o arcônida, reclinando-se na poltrona. — Os senhores querem aproveitar um perigo que, segundo dizem, se aproxima de nosso mundo, para colher vantagens. Provavelmente, têm intenções inconfessáveis. Sinto muito, senhores terranos, mas gostaria que abandonassem nosso mundo o mais cedo possível. Digamos antes do pôr do sol. Combinado?

Rous não fez menção de levantar-se. Subitamente viu-se em seus olhos um brilho frio, que recomendava cautela. Colocou calmamente ambas as mãos sobre a mesa. Essa calma não combinava com sua personalidade, pois todos sabiam que aquele francês moreno era um homem Impulsivo.

— Quer dizer que não acredita no que acabo de dizer? — perguntou num tom que quase chegava a ser amável.

— Não quero que o senhor crie qualquer agitação — disse o arcônida, esquivando-se à pergunta direta que acabara de ser formulada. — Nosso mundo nunca foi atacado, e se isso acontecer algum dia, gozaremos da proteção da frota de guerra do Império. Bastará um pedido de socorro...

— Desta vez não — esclareceu Rous em tom tranqüilo. — O senhor sofrerá uma decepção amarga, pois o regente não luta contra os invisíveis vindos de outra dimensão temporal. Todos os mundos que já foram atacados por eles ficaram vazios e abandonados. Até mesmo os insetos desapareceram. Não existe mais qualquer forma de vida animal.

O arcônida empalideceu. Os olhos vermelhos pareciam brasas em meio ao rosto pálido.

— O senhor está mentindo, terrano! Nosso regente não tem medo de qualquer inimigo. Ainda descobrirei quais são as verdadeiras intenções dos senhores.

Rous levantou-se abruptamente.

— O senhor pode negar-nos apoio, mas não acredita que possa proibir nossa permanência em Tats-Tor. Portanto, não se dê ao incômodo de dizer quando devemos partir. Quanto ao mais, não deixaremos de avisá-lo assim que surgirem indícios de que a invasão tenha começado.

O administrador retribuiu o olhar de Rous com uma expressão fria e arrogante.

— Dispenso seu aviso. Se realmente houver um ataque, saberei o que fazer. É claro que não posso proibir sua permanência na área do espaçoporto, mas vejo-me obrigado a pedir encarecidamente que não alarmem a população de Akonar com suas histórias fantasiosas. Ficaria muito grato se pudessem despedir-se.

Noir também se levantara. Falando em inglês, perguntou:

— Não quer que lhe aplique um “tratamento”, Marcel? Poderia convencê-lo a ceder-nos alguns colaboradores.

— Isso seria contrário às instruções de Rhodan, André. Se essa gente arrogante não quiser ajuda, que se arranjem como puderem.

Dirigindo-se ao administrador, Rous prosseguiu em arcônida:

— Seria altamente recomendável se quisesse manter sua estação de rádio em recepção, na faixa normal. Passe bem, arcônida.

Absteve-se de propósito de citar o titulo do administrador. Este estremeceu. Isto provava que compreendera a ofensa que Rous quis colocar em suas palavras. Sem esperar resposta, os dois homens saíram da sala e voltaram às suas naves.

Ninguém procurou impedi-los.

 

O russo Ivã Ragow era um daqueles homens que pensam que todo e qualquer indivíduo é um tipo pacato. É claro que essa idéia tinha sua origem no desejo de não ser incomodado e poder viver em paz. Além disso, tal qualidade parecia corresponder à sua especialidade. Uma pessoa que, além de lidar constantemente com plantas e animais, exerce as funções de médico, forçosamente há de acreditar na convivência pacífica das mais diversas criaturas.

Caminhando tranqüilamente pelas ruas de tráfego intenso da cidade de Akonar, Ragow realizava estudos por conta própria. Rous não fizera nenhuma objeção a que fosse dar umas voltas pela capital. O minúsculo radiotransmissor praticamente invisível, que os swoons haviam montado num anel, mantinha-o em contato ininterrupto com a gazela. O operador de rádio de plantão, que naquele instante era Fred Harras, mantinha-o constantemente sob controle.

Ragow desviou-se cuidadosamente de um ser disforme, que caminhava à sua frente, dentro de sua “atmosfera” especial, encerrada num traje espacial. Passou à frente do estranho ser e teve o cuidado de não dar mostras muito evidente de sua curiosidade. Mas não pôde resistir à tentação de lançar-lhe um olhar de esguelha. Nunca vira uma coisa dessas, embora tivesse andado por inúmeros mundos. No capacete transparente, balançava a “atmosfera” da estranha criatura, consistente num líquido oleoso cuja composição Ragow não conhecia. Só agora viu que aquele ser possuía guelras na parte lateral da cabeça.

Infelizmente teve de olhar para o lado oposto, a fim de não chamar a atenção. Só um provinciano costumava olhar insistentemente para qualquer criatura estranha, mostrando admiração por seu aspecto e achando que ele mesmo era a criatura mais perfeita deste mundo.

Ragow manteve-se na principal artéria comercial, que ficava junto ao espaçoporto. Era ali que os comerciantes e visitantes moravam em grandes hotéis, cujos letreiros brilhavam à luz do sol. Não entendeu uma única palavra da confusão de línguas que ouvia em torno de si; naquele instante lamentava-se de não ser telepata.

Parou diante de uma das numerosas lojas. O vendedor não era arcônida, como se poderia supor. Um saltador de barbicha apregoava em voz alta e insistente as mercadorias que tinha para vender; tratava-se de souvenirs de todos os pontos da Galáxia.

Ragow aproximou-se e examinou os objetos expostos. Felizmente a descrição fora feita em língua arcônida, de forma que não teve necessidade de formular perguntas inconvenientes que atraíssem a atenção do saltador para sua pessoa. Este mantinha-se muito ocupado, fazendo ofertas tentadoras aos transeuntes.

Havia mugglis empalhados; tratava-se de seres vindos do terceiro planeta do sol Thorakl, situado a dois mil anos-luz. Pareciam lagartos e tinham três caudas. Se a descrição dada pelo saltador era correta, a do centro servia de antena transmissora. E, pelo que se dizia, este transmissor orgânico continuava a funcionar, embora o animal estivesse morto.

Ainda havia a pedra brilhante e colorida, vinda do planeta Temporalis, situado no centro da Galáxia. Bastava colocá-la num projetor recentemente inventado para fazer reviver o passado. A pedra emitia raios que podiam ser projetados numa tela eletrônica, que reproduzia os acontecimentos desenrolados há vários milênios. Aquela pedra recolhera todas as impressões óticas e as armazenara como se fosse uma câmara automática.

Ragow refletia sobre se convinha adquirir a pedra, quando viu um pequeno objeto que ficava na terceira fila.

Quase ficou sem fôlego.

O que viu diante de si era uma simples navalha, do tipo que costumava ser usado há um século atrás. E o bilhete que se encontrava junto à mesma dizia mais ou menos o seguinte: “Instrumento de degola do planeta Terra, cuja posição é desconhecida. Os terranos usam-no para livrar-se das esposas, quando querem arranjar outra. Seu uso é muito disseminado. Trata-se de precioso documento, que revela as características de uma estranha cultura.”

Ragow ficou sem saber se devia rir ou chorar. O exagero enorme da descrição o fazia duvidar da veracidade das indicações relativas aos outros objetos, mas nem por isso ficou sabendo como o dono da loja conseguira uma navalha terrana.

“Deveria perguntar?” indagou-se mentalmente.

Quando ia formular a pergunta, viu dois homens a seu lado. Eram arcônidas. E o uniforme revelava serem policiais ou soldados.

— O senhor é um dos terranos que vieram naquela pequena nave achatada? — perguntou um deles com a arrogância do “grande” funcionário cônscio do poder que exerce sobre o simples mortal. — Faça o favor de seguir-nos.

Ragow não estava disposto a deixar que o levassem sem mais nem menos. Livrou-se da mão que o segurava.

— Sou terrano, mas nem por isso o senhor tem o direito de me prender em plena rua. O que deseja de mim?

— Essa informação lhe será dada pelo administrador — respondeu o arcônida. — Quer vir por bem, ou teremos de forçá-lo? Depois da entrevista poderá voltar à sua nave.

Ragow lembrou-se de seu traje de combate. Devia tornar-se invisível e deixar aqueles homens para trás, numa perplexidade total? Ou sairia voando? Não; com isso apenas atrairia as atenções sobre si, fato que em nada facilitaria o cumprimento de sua missão. Além disso, talvez seria interessante descobrir o que o administrador pretendia deles. Ainda há três dias mostrara-se extremamente reservado diante de Rous e Noir.

— Irei, mas só se me deixarem caminhar à vontade — disse depois de algum tempo, após lançar mais um olhar sobre a ignominiosa navalha exposta na loja do saltador. Oportunamente cuidaria disso. — Caminhem à frente; eu os seguirei.

Os dois fizeram o que Ragow pedira. Provavelmente haviam recebido ordens terminantes de não recorrer à violência. Ragow deixou que se afastassem um pouco. A seguir, colocou a mão à frente da boca e cochichou:

— Ei, Harras! Ouviu? Tenho de ir ao gabinete do administrador. Avise Rous.

— Já foi avisado, Ragow. Ele quer que o senhor os acompanhe. Não se preocupe; cuidaremos do senhor. Se surgir qualquer perigo, apareceremos para levá-lo.

— Quando chegar a hora, não percam tempo — pediu Ragow e seguiu os arcônidas.

Desta vez, não houve qualquer problema junto ao posto de controle. Em dez minutos, Ragow viu-se à frente do administrador.

Pelo que Rous lhe dissera, pensara que fosse diferente: mais orgulhoso e arrogante. Mas, ao que parecia, por ora o presunçoso funcionário não tinha tempo para palhaçadas. Em seus olhos vermelhos brilhavam vários sentimentos, principalmente a insegurança.

— Faça o favor de sentar-se, terrano — disse com a voz rouca e numa calma forçada. — Desejava falar com os dois terranos, que me procuraram há dois dias. Acontece que apenas o senhor foi encontrado. Já está informado sobre o assunto que os trouxe para cá.

— Para Tats-Tor?

— Isso mesmo.

— Estou informado sobre o ataque iminente dos invisíveis, se é isso que quer dizer.

— E esse ataque a que está aludindo se manifesta através do desaparecimento de todos os seres vivos?

— Exatamente.

O administrador fitou os olhos de Ragow.

— Tenho certeza de não se tratar de um ataque de criaturas invisíveis ou desconhecidas, mas de uma trama diabólica dos terranos, cuja finalidade ainda não consegui descobrir. Se não fosse assim, seria impossível prever com tamanha exatidão o tempo em que ocorre o fenômeno. Isso não lhe parece lógico?

— Não acho, administrador — disse o russo, sacudindo a cabeça e lançando um olhar atento para o equipamento técnico da sala. — Por que iríamos ter todo esse trabalho para assustá-los?

— É o que eu gostaria de saber — reconheceu o arcônida, que recuperou um pouco de sua costumeira petulância. — Pelo menos já vejo que realmente pretendem cumprir suas ameaças.

Ragow já não compreendia mais nada. Ainda pensava naquela navalha maluca que vira na loja do saltador, e teve dificuldade em acompanhar o raciocínio do administrador, que só dizia tolices.

— Que ameaça? — perguntou em tom tranqüilo.

O administrador respirou profundamente e disse:

— Há meia hora desapareceram todos os habitantes de uma cidade de tamanho médio, a quinhentos quilômetros ao leste da capital. Não ficou nenhum ser vivo. Pelo que dizem, até os peixes desapareceram dos rios.

Ragow parecia despertar de um sonho.

— Está começando! — exclamou e levantou a mão, para dizer em voz alta em direção ao anel: — Harras, a frente do tempo começou a avançar. Avise imediatamente o Tenente Rous, e venham buscar-me. Ou preferem que voe?

— O que é isso? — perguntou o administrador, apontando para o anel que Ragow trazia no dedo.

Acontece que o russo já estava saturado daquela desconfiança.

— Isto — disse em tom condescendente — é a arma milagrosa com a qual fiz desaparecer sua cidade miserável. Se não calar a boca e se insistir em não nos dar apoio, o senhor será o próximo a ser tragado pela torrente do tempo. Compreendeu?

O administrador manteve-se num silêncio obstinado. Fez um gesto de mão, dando a entender que Ragow tinha permissão para retirar-se.

Mal se viu a sós, o arcônida chamou alguns dos seus oficiais e deu-lhes algumas ordens inequívocas.

— Está acontecendo mais cedo do que esperávamos — constatou Rous um tanto preocupado, assim que todos estavam reunidos na gazela, onde Ragow havia apresentado um minucioso relato. — Na minha opinião só pode ser um precursor da frente propriamente dita, ou seja, de uma espécie de abaulamento da área de superposição.

— Nesse caso a frente é assimétrica — constatou Noir. — É o que o chefe queria saber.

— Por enquanto nada está provado — advertiu Rous, para evitar conclusões precipitadas. — Devemos examinar o local dos acontecimentos e aguardar novos ataques.

— Tenho minhas dúvidas de que realmente se trate de ataques — disse Ragow de repente. — Pelo contrário; tenho certeza de que os desconhecidos invisíveis, que vivem em outra dimensão temporal, nem sabem o que estão fazendo por aqui. Provavelmente não têm meios de impedi-lo.

Rous fez um gesto afirmativo.

— Uma das nossas tarefas consiste justamente em verificar este ponto. Sugiro que decolemos imediatamente para darmos uma olhada na cidade despovoada.

Não se deram ao trabalho de cumprir qualquer formalidade. A nave de reconhecimento de Rhodan decolou sem prévio aviso e subiu rapidamente, desaparecendo dentro de poucos segundos no azul do céu.

Rous, que pilotava a nave, nem chegou a ver os rostos espantados dos soldados que marchavam pelo campo de pouso e haviam recebido ordens de deter os terranos e apreender sua nave. Marcel dirigiu a gazela para o leste e só desceu quando viu lá embaixo a cidade a que se destinavam. O medidor de radiações montado na gazela entrou em funcionamento, marcando num mapa os limites da área de superposição. Toda e qualquer matéria inorgânica que tivesse permanecido no outro plano temporal, mesmo por um tempo insignificante, envelhecera vários milênios. A decomposição radiativa de certos elementos representava prova inequívoca desse fato. Por isso era fácil delimitar a zona de influência.

— O formato é elíptico — disse Fritz Steiner, técnico responsável por essa parte da operação. — Parece que a área de superposição só atingiu o planeta de raspão. Da próxima vez será mais extensa.

Pousaram na periferia da cidade e examinaram-na ligeiramente. Não havia nenhum ser vivo. Até os insetos, tão abundantes em toda parte, haviam desaparecido.

Subitamente Fred Harras, operador de rádio que estava de plantão, gritou:

— O administrador diz que somos responsáveis pelo fenômeno e colocou suas forças em estado de prontidão. A polícia de I Akonar recebeu ordens de prender-nos imediatamente, recorrendo à força caso isso se torne necessário. A operação de busca já foi iniciada.

Rous fitou as casas desertas com os olhos semicerrados.

— As suposições de Rhodan se confirmaram. A decadência e arrogância dos arcônidas é tamanha que só confiam em suas experiências. Não dão a menor importância às palavras de outras raças. Pois bem; colherão suas experiências. Apenas receio que não poderão fazer muita coisa com elas. Não irão nem sentir que de repente saíram de nossa dimensão, ingressando numa outra...

Steiner não demonstrou tanta sensibilidade pelo destino dos arcônidas.

— Devemos estar preparados — disse em tom de advertência. — Um dos próximos ataques, por enquanto poderemos usar esta expressão menos exata, ocorrerá a uns cem quilômetros de Akonar, nesta mesma direção. Vamos pousar nessa área para aguardar os acontecimentos? Acho que não adiantará voltar à capital. Isso só nos daria aborrecimentos.

Rous soltou um suspiro.

— Nossa tarefa antes de tudo! Por enquanto não temos meios de ajudar os habitantes deste mundo.

Fez um sinal para Steiner e colocou a mão sobre o acelerador.

— Vamos aguardar no deserto, perto de Akonar. Ainda bem que por lá não existe mata virgem. Em compensação, se não me engano, há manadas. Bem que gostaria de comer um bife fresco.

— Concordo, enquanto esse bife não envelhecer dez mil anos na outra dimensão temporal — disse Steiner e voltou à sala de máquinas, onde os complicados instrumentos aguardavam o momento de serem postos a funcionar.

 

A zona limítrofe entre a mata e o deserto foi um verdadeiro paraíso inesperado!

Mais ao sul começava a selva cada vez mais densa, que se estendia até o litoral. A oeste, a cerca de cem quilômetros, ficava a cidade de Akonar. Ao norte via-se a estepe, seguida pelo deserto. A leste, o panorama era semelhante ao do lado oeste; apenas, ali não havia nenhuma cidade.

A gazela descansava sobre os suportes telescópicos, em meio a alguns arbustos que não constituíam um bom esconderijo, mas sempre proporcionavam uma sombra agradável quando o calor fosse demais. Um dos seis homens achava-se constantemente na sala de comando da pequena nave, a fim de que esta pudesse decolar a qualquer momento. Steiner mantinha toda a aparelhagem em estado de prontidão. Bastaria apertar um botão, e o GCR abriria a porta para a outra dimensão temporal. Havia outro aparelho muito importante, o medidor de radiações, que ficava constantemente ligado. Qualquer modificação na idade dos objetos seria prontamente registrada, dando notícia da aproximação de uma frente temporal.

Armados dessa forma, os membros da expedição resolveram descansar um pouco. Harras e Noir saíram para caçar e voltaram com um quadrúpede que tinha uma semelhança longínqua com um veado. Até mesmo o pacato Ragow dispôs-se a participar dos preparativos do banquete. Examinou a carne e constatou que era comestível. O Tenente Rous usou uma arma de radiações térmicas que, regulada para a potência mínima, constituía uma fonte de calor. E minutos depois teriam um belo assado.

Enquanto aquele aroma delicioso enchia a estepe, Steiner continuava de serviço na sala de comando da gazela. Os rádios ligados mantinham-no informado sobre tudo que acontecia em Tats-Tor. O administrador confirmara a prontidão de todas as forças armadas estacionadas no planeta, pois tinha certeza absoluta de que os terranos eram os únicos culpados pelo desaparecimento da população de uma cidade inteira. Sua lógica era formidável: só os terranos haviam previsto o fenômeno; logo, deveriam ser responsáveis pela catástrofe.

Como já se ressaltou, Tats-Tor era um mundo pacífico. O administrador não dispunha de uma frota espacial, nem de um exército propriamente dito. Só podia contar com a polícia e as “viaturas”. Entre estas se contavam alguns caças e bombardeiros leves, que dificilmente estariam em condições de realizar vôos prolongados pelo espaço. Se houvesse complicações interestelares, o administrador poderia solicitar auxílio de Árcon.

De qualquer maneira, Steiner não podia concluir por qualquer das numerosas mensagens por ele captadas de que o regente estivesse informado sobre os acontecimentos que se desenrolavam em Tats-Tor. E isto vinha a ser o sinal evidente de que o administrador não se sentia muito seguro.

A ação contra os terranos, que seria levada a efeito no espaçoporto, ainda pôde ser suspensa em tempo, mas um caça seguira a gazela e constatara que esta havia pousado na cidade sem vida. Esse fato parecia confirmar as suspeitas do administrador.

Voltou a ordenar à polícia que prendesse os seis terranos.

Steiner avisou Rous; parecia muito sério.

— O que vamos fazer? Estamos de pés e mãos amarradas, e nem sequer temos o direito de defender-nos se formos atacados. Não sei o que Rhodan espera conseguir com isso.

— Não quer que obriguemos ninguém a aceitar nosso auxílio — tentou explicar Rous. — Alias, ele não nos proibiu de agirmos em legítima defesa. Apenas, quer que tenhamos cuidado para ninguém sair machucado. E Noir não deve intervir. É só isso.

— Para mim chega! — exclamou Steiner em tom contrariado. — Será que devemos atirar confete contra os arcônidas quando eles vierem prender-nos?

Harras, que se encontrava perto do fogo, gritou:

— Um avião está circulando lá em cima. Parece que vai pousar. O que será?

Rous e Steiner, que se encontravam junto à escotilha aberta, olharam para o alto.

Eram três aviões que em poucos segundos aterrizaram a menos de duzentos metros do lugar onde se encontravam. Imediatamente após isso mais de duas dezenas de soldados armados saíram das cabines, entraram em forma e se puseram em marcha em direção à gazela, com as armas em posição de tiro.

Steiner manteve-se impassível.

— Poderiam ter esperado ao menos até que comêssemos o churrasco!

Rous fitou os homens que se aproximavam e, dirigindo-se a Harras disse:

— Vamos, Harras! Para dentro da nave! Dê um jeito para que a gazela não possa decolar. Nunca se sabe o que poderá acontecer. Basta mover uma chave.

— Até parece que ainda não sei disso — disse Harras em tom zangado, afastando-se do churrasco.

Apenas Ragow ficou para trás, e contemplou o pedação de carne com uma certa tristeza. Josua veio do córrego próximo, com uma bolsa plástica de água fresca. Quando percebeu os arcônidas que se aproximavam, arregalou os olhos e abriu a boca.

Rous foi ao seu encontro. Andava sempre desarmado, mas sabia que não estaria sem proteção. Na sala de controle da gazela, Steiner não estava dormindo, e sem dúvida não estaria disposto a cumprir rigidamente as ordens de Rhodan.

O arcônida que ia à frente dos demais parou. E o pequeno corpo de exército automaticamente seguiu seu exemplo.

— O administrador ordenou que o senhor se entregue sem esboçar a menor defesa — disse em tom presunçoso. Levantou o braço e apontou para a gazela. — A nave está confiscada.

— Permita-me ao menos perguntar qual é a finalidade disso?

— Os senhores atacaram nosso mundo, e supomos que a arma de ataque se encontre no interior da nave.

— O senhor poderá procurar até morrer — disse Rous em tom irônico.

No interior da gazela havia muitos aparelhos complicados, cujo funcionamento não poderia ser explicado tão depressa. Os arcônidas poderiam pensar que qualquer deles fosse a arma misteriosa que causara o desaparecimento dos homens.

— Pretende resistir? — perguntou o oficial.

— Por quê? Somos inocentes.

O grupo prosseguiu em sua marcha e cercou o acampamento. Rous apontou para a gazela e disse:

— Cumpra sua obrigação, oficial. Mas quero preveni-lo! Se as suspeitas do administrador não se confirmarem, farei queixa contra o senhor em Árcon. Seu mundo está ameaçado por um terrível perigo, e a única coisa que o senhor resolve fazer é molestar-nos. E olhe que viemos para ajudar.

— Apenas estou cumprindo ordens — disse o oficial.

Usou a desculpa mais idiota e banal de toda história da Humanidade. Não havia melhor meio de escapar à responsabilidade, e geralmente o mesmo se tem revelado eficiente.

— Se alguém tiver de ser responsabilizado, será o administrador — completou o oficial arcônida.

Sem dúvida, Rous teria dado uma resposta adequada, se tivesse tempo. Mas não teve.

Naquele instante, aconteceram várias coisas estreitamente ligadas.

Steiner apareceu na escotilha da gazela e gritou:

— Está havendo novos contatos. Na periferia de Akonar está ocorrendo uma superposição de grande porte. Mais de dez mil habitantes desapareceram. E neste mesmo instante, outro ataque está sendo levado a efeito na face oposta do planeta. As noticias são confusas e pouco precisas. Mas não é só isto. Uma frente larga avança à velocidade da rotação do planeta em nossa direção. É ao menos o que dizem as notícias. Mande esses policiais para o inferno, Rous; eles só nos fazem perder tempo.

Rous teria muito prazer em seguir esse conselho, mas ateve-se estritamente às instruções de Rhodan, por mais que estas lhe causassem aborrecimento. Além disso, as notícias sobre os estranhos acontecimentos também estavam sendo captadas pelo destacamento policial. O oficial ouviu o que o soldado que veio correndo lhe disse; em seu rosto pálido surgiu uma expressão de expectativa. Lançou um olhar de perplexidade para Rous.

— Outros ataques. Já devem saber. Mas ainda estão aqui. Como é possível uma coisa dessas?

— Quem sabe se aos poucos não nasce a luz no seu espírito? — esclareceu Rous. — Que tal pensar com a própria cabeça? Afinal, isto não seria exigir demais de um policial! Uma pessoa que se encontra à sua frente não pode estar despovoando um mundo. O senhor não poderá deixar de reconhecer este fato.

— Tenho de cumprir as instruções recebidas — o arcônida voltou a demonstrar a arrogância de sempre. — Revistarei a nave juntamente com três dos meus homens e mandarei levá-la para Akonar. O senhor virá comigo.

— Tomara que ainda haja tempo para isso — disse Rous, aludindo ao perigo que se aproximava. — As notícias falam de uma frente dos invisíveis que se desloca em direção ao lugar em que estamos...

— Dos invisíveis?

— Ah, então ainda não sabe? Pois o administrador deixou de lhe contar o mais interessante Os atacantes são invisíveis e vêm de outra dimensão temporal. Nós, os terranos, procuramos descobrir uma arma contra eles e, ao chegarmos aqui, solicitamos apoio para nosso empreendimento. Infelizmente... mas por que estou perdendo meu tempo? Não adianta falar.

De qualquer maneira, Rous conseguira despertar a desconfiança na mente do oficial. Ainda havia a impossibilidade evidente de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Os terranos estavam aqui, enquanto os atacantes...

Steiner gritou pela escotilha:

— Fuga em massa no espaçoporto! Os saltadores estão tomando as naves de assalto e decolam precipitadamente. Os seres visitantes de Akonar comprimem-se junto aos balcões das linhas espaciais. É o que está anunciando a emissora oficial do administrador. Quem sabe se ele não resolveu outra coisa?

Bem no oeste, pontos chamejantes subiam ao céu e desapareciam rapidamente nas profundezas do espaço. Até se podia sentir o medo que devia assolar os pilotos.

O oficial de polícia lembrou-se de suas obrigações. Fez sinal para que três dos seus subordinados se aproximassem e, juntamente com eles, entrou na gazela. Deixou que Steiner o conduzisse pela nave e lhe explicasse a finalidade dos aparelhos e instalações. Finalmente voltou para junto de Rous, que o esperava do lado de fora.

— Diga ao seu homem que saia. Meus soldados levarão a nave para Akonar. Rápido!

Rous deu de ombros e chamou Steiner. Os arcônidas não conseguiriam tirar a gazela dali e logo desistiriam de seus esforços.

E a frente invisível continuava a aproximar-se...

Ragow virou pela última vez o espeto com a carne e desligou o radiador.

— Acredito — disse com a maior calma deste mundo — que já podemos comê-la. Seria uma pena deixá-la esfriar.

Pegou uma enorme faca, cortou um pedaço de carne e pôs-se a mastigar ruidosamente a porção que lhe coubera. Josua não perdeu tempo: logo seguiu o exemplo do colega. Os dois fizeram como se não existissem arcônidas nem seres invisíveis.

Rous e Steiner olharam-se, sorriram e juntaram-se a Josua e Ragow. Noir e Harras viram nisso um sinal de que também deviam esquecer-se das preocupações de cada dia e dedicar-se às facetas mais agradáveis da vida.

O oficial dos arcônidas ficou parado como se alguém o tivesse esquecido.

Dali a algum tempo, um de seus homens pôs a cabeça para fora da escotilha da gazela.

— A máquina não funciona — disse.

Os terranos não se perturbaram. Deliciaram-se com o churrasco. Rous foi o único a não tirar os olhos dos três aviões que se encontravam a duzentos metros dali e dos soldados que os rodeavam.

— Tem de pegar — respondeu o oficial em tom firme.

Acontece que o motor bloqueado não pegou. Por mais que os três arcônidas se esforçassem, não havia como pôr o motor em funcionamento.

Rous já havia engolido o último pedaço de carne. Começou a sentir que não lhe restava muito tempo. Não sabia com que velocidade se aproximava a frente de ataque da outra dimensão temporal. Mas pelos seus cálculos esta devia chegar a qualquer momento ao lugar onde se encontravam os três aviões. E quando isso acontecesse, não teriam tempo para mais nada.

Levantou-se e dirigiu-se ao oficial.

— Acho que seria preferível cuidar dos seus homens — sugeriu. — Daqui a alguns minutos, será tarde. Além disso...

Um grito estridente de pavor interrompeu-o. Virou-se apressadamente e olhou para os aviões, no momento exato em que um dos soldados se tornava invisível. Apenas a cabeça continuou a flutuar por mais algum tempo em determinada direção. Mas, dali a pouco, esta também havia desaparecido.

Outro soldado gritou como se estivesse sendo assado no espeto. Também foi atingido pela frente temporal, que o envolveu.

O pânico espalhou-se entre os homens.

O oficial gritou algumas ordens absurdas e correu na direção dos três aviões, que evidentemente não foram atingidos pelo misterioso fenômeno. Seus subordinados seguiram-no em grupos desordenados. Rous ia gritar para que se cuidassem, mas já era tarde. Os homens correram para a desgraça; desapareceram em dez segundos. O único sinal deles era a pista deixada na areia.

Rous virou-se para seus homens:

— Vamos para a nave. Não podemos perder um segundo!

Os três soldados que estavam revistando a gazela deixaram-se cair pela escada abaixo e saíram em carreira desabalada. Não se poderia fazer nada por eles.

Steiner foi o primeiro a entrar na gazela. Ligou o hipertransmissor, conforme fora combinado. A central de Terrânia devia ser informada sobre o fenômeno, antes que tivesse início a experiência propriamente dita. Segundos depois, Rous também chegou à sala de comando e conduziu a energia do reator para o gerador de campo de refração.

Depois que Josua entrou na gazela, a escotilha fechou-se com um ruído surdo. Automaticamente o equipamento de ar condicionado entrou em funcionamento.

Steiner recebeu a confirmação da estação de Terrânia. Sem preocupar-se com os acontecimentos que se desenrolavam em torno dele, transmitiu a mensagem já preparada:

 

Tenente Rous, da gazela, chamando a central de Terrânia. Ataque foi iniciado. Encontramo-nos na área A. Constatações realizadas até agora: zona de superposição percorre de forma assimétrica os planos estáticos. A interseção atinge 99%. Procuraremos obter visão do outro plano temporal mediante gerador de refração. Chamaremos dentro em breve. Desligo.

 

Rous aguardou que o gerador começasse a funcionar, formando a fresta de luz. Subitamente um círculo luminoso de pelo menos um metro de diâmetro surgiu no centro da sala. Josua fitou-o como se fosse um milagre, embora soubesse perfeitamente do que se tratava. Mas Rous não pôde deixar de confessar que também não se sentia muito à vontade. A luminosidade provava que naquele instante a frente temporal chegava ao lugar onde se encontravam.

Steiner desligou o hipertransmissor e aproximou-se de Rous.

— Está na hora — disse em tom indiferente, embora em sua voz houvesse um tremor quase imperceptível. — O que estamos esperando?

Subitamente Ivã Ragow, que se encontrava num ponto mais afastado, soltou um grito de pavor.

— Olhem meu braço! Esses malditos invisíveis estão me agarrando.

Noir agiu em primeiro lugar.

— Depressa, Steiner! Ragow tem de passar em primeiro lugar. Dê-me uma mão.

Rous levantou o braço.

— Será que vocês ficaram doidos?

— Se não quisermos perder nossa dimensão temporal, teremos de arriscar! — berrou Noir sem a menor consideração. — Quer que paremos no outro plano temporal, perdendo nossa dimensão? Provavelmente nunca mais conseguiríamos voltar.

Rous compreendeu onde Noir pretendia chegar.

Mas Ragow compreendeu mais depressa.

Deu um salto para a frente, soltou um grito de dor quando o braço perdido voltou a tornar-se visível e saltou bem para dentro do anel luminoso.

E desapareceu de vez.

Rous sentiu que alguém o agarrava e o empurrava através do anel luminoso. Enquanto a cabeça passava para outra dimensão temporal, seus olhos perceberam a modificação. Não que ficasse mais claro ou mais escuro; a intensidade luminosa permaneceu inalterada. O que se modificou foi a paisagem. Parecia que ao passar pelo anel luminoso realizara um salto de teleportação que o levara a um mundo estranho. Ou seria apenas o mundo de Tats-Tor, situado em outra dimensão temporal?

Viu Ragow, que “caíra” os dois ou três metros que o separavam do solo.

Naquele instante, o russo procurava levantar-se e olhou em torno com os olhos espantados, sem compreender o fenômeno que se desenrolava à sua frente. No entanto, não poderiam esperar outra coisa.

Subitamente Rous sentiu um empurrão vindo do nada e perdeu o apoio. Felizmente caiu em pé. Olhou para trás e viu Harras, que pairava numa altura de três metros, envolto por um círculo que emitia uma luminosidade pálida.

— Salte! — pediu.

Harras saltou e foi parar perto de Rous.

— Santo Deus, o que será isto?

Rous esperou até que todos se tivessem reunido. A luminosidade pálida do anel constituía o único marco que indicava o caminho para a dimensão temporal da qual tinham vindo. Se o perdessem de vista, não haveria como voltar.

— Este é o mundo dos invisíveis, Harras. Por aqui nada se move, com exceção de nós; nem mesmo o vento. A existência corre setenta e duas mil vezes mais devagar que a nossa. Somos invisíveis aos olhos dos habitantes desta dimensão temporal, porque nos movemos com excessiva rapidez.

— Onde estão esses habitantes? — perguntou Josua com a voz amedrontada, mantendo-se ao lado de Steiner.

— Nós os encontraremos — disse Rous em tom vago, apontando em direção a uma cadeia de montanhas próxima. — Está vendo o grupo de policiais arcônidas, Noir? Perderam sua dimensão temporal e sua existência passou a desenvolver-se na outra. Esses homens não parecem umas estátuas de pedra?

Olharam em torno e mantiveram-se calados, embora tivessem muitas perguntas. Supunham que Rous não demoraria em dar resposta a todas elas, pois não era a primeira vez que se encontrava na outra dimensão temporal.

O horizonte estava encoberto por uma muralha escura, que subia ao céu. Esta representava o limite do alcance do GCR. Só poderiam avançar até ela; o que ficava além permaneceria em segredo.

Viram-se em meio a uma planície fértil, cortada por vales e montanhas. Nos vales, os rios e regatos corriam para um lugar desconhecido, que provavelmente ficaria atrás da muralha negra. As árvores mantinham-se imóveis; nenhum vento as movia.

O ar estava relativamente quente e abafado. As nuvens que cobriam o céu revelavam que a chuva não se faria esperar por muito tempo.

Um estranho tremeluzir do ar levou Harras a formular uma pergunta:

— O calor não é tanto que pudesse fazer subir o ar quente. E, se sua teoria fosse exata, caro Rous, a movimentação do ar deveria ser tão lenta que nem a notaríamos. Pode dar uma explicação?

Rous fitou o horizonte e percebeu a luminescência. Cerrou os olhos, acenou lentamente com a cabeça e respondeu:

— Sim; tenho uma explicação. O senhor encontrará uma explicação para todos os fenômenos que surgirem aqui, desde que não se esqueça que por aqui tudo vive e existe num ritmo mais lento. É o que acontece com as moléculas gasosas da atmosfera. A luminescência que o senhor está vendo provém da refração da luz, causada pelas moléculas de ar.

Steiner gemeu baixinho e desprendeu os olhos da estranha visão. Viu um cristal límpido e transparente do tamanho de um grão de ervilha, que se mantinha imóvel no ar, a uns dois metros de altura. O físico quase chegou a assustar-se. Apontou para o objeto e perguntou perplexo:

— Qual é a explicação, Rous? Este objeto cristalino flutua no ar como se não estivesse submetido à ação da gravidade. A gravitação também é influenciada com o ritmo mais lento do tempo?

Rous examinou o cristal; um sorriso de alívio surgiu em seus lábios.

— Meu caro Steiner, eu já disse que tudo tem sua explicação. É o que acontece com este cristal, que não é outra coisa senão um pingo de chuva que cai com uma lentidão infinita. Não se esqueça que sua queda é setenta e duas mil vezes mais lenta que na Terra. Aliás, tenho quase a certeza disto. Qual é a conclusão? O pingo de chuva cai à velocidade aproximada de dez centímetros por hora, se considerarmos a velocidade da queda que se costuma observar na Terra. Fitaram a maravilha cristalina que quase não conseguiam compreender. Ao que parecia, Steiner não estava muito convencido do que acabara de ouvir. Estendeu a mão em direção ao pingo de chuva e procurou segurar o mesmo. Não conseguiu. O “cristal” parecia pregado no ar. Steiner não conseguiu movê-lo um milímetro que fosse. A inércia da massa crescera na mesma proporção da alteração do tempo. Para segurar um pingo de chuva, seria necessário despender setenta e duas mil vezes o volume de energia que se gastava na Terra. Acontece que Steiner não possuía tamanha força.

— É uma coisa inconcebível! — disse e desistiu. — Ao menos por aqui não nos molharemos.

Rous olhou para trás. Seus olhos procuraram o anel luminoso. Ao vê-lo, soltou um suspiro de alívio.

— Acho que vamos dar um passeio até a “muralha” negra. Talvez ainda consigamos descobrir o que há atrás dela. Cuidado, Ragow! Não tropece no oficial da força policial.

O russo parou e, com uma expressão indefinível no rosto, contemplou o arcônida, que se mantinha imóvel e aparentemente sem vida. Os olhos estavam entreabertos; não se sabia se as pálpebras tendiam a mover-se para cima ou para baixo. De qualquer maneira, umas oito ou dez horas se passariam antes que o movimento se completasse. Um segundo correspondia a vinte horas.

Ragow encostou o dedo na face do arcônida. Meia hora se passaria até que o calor gerado pelo corpo do arcônida atingisse os nervos do dedo do médico.

O rosto transformado em máscara demonstrara nada ter sentido; ainda não houvera tempo para isso.

“O arcônida levará umas cinqüenta horas para perceber o que aconteceu com ele”, pensou Rous cheio de pavor. “Agora mantém-se imóvel. Foi arrancado de seu tempo existencial!”

— Será que poderíamos vê-lo fazer algum movimento? — perguntou Harras.

— Ele não nos vê — disse Rous, fazendo um gesto para Ragow. — Somos rápidos demais para ele. Para tornar-nos visíveis ao seu mundo, teria de nos filmar com uma câmera que tirasse mais de um milhão de fotografias por segundo. Para ele somos mais rápidos do que o projétil de uma arma é aos nossos olhos.

Depois de refletir um pouco, Rous disse:

— É simples, Harras. Teríamos de filmar a estátua na base de dezesseis exposições em vinte horas. Se rodássemos o filme à velocidade normal de dezesseis exposições por segundo, veríamos o arcônida tal qual realmente é.

Steiner apontou para a boca entreaberta do oficial.

— Isso também se aplica aos efeitos acústicos?

— Naturalmente — Rous compreendeu imediatamente o que o físico queria dizer. — As ondas sonoras também refletem um retardamento em relação aos padrões a que estamos acostumados. Se por aqui prevalecem as mesmas leis naturais de nosso ambiente, o som se deslocaria à velocidade de menos de dezessete metros por hora. Isso não ocorre às ondas sonoras produzidas por nós, que estão submetidas a leis distintas.

Nesta dimensão a velocidade do som, para nós, é de cinco milímetros. Talvez isto o ajude a compreender a velocidade enorme com que nos deslocamos.

— Vamos romper a barreira do som — disse Harras, o homem pragmático, e pôs-se a andar com movimentos hesitantes.

Seu rosto parecia transformado numa única indagação quando sentiu a resistência do ar, que parecia uma massa viscosa, que cedia com certa dificuldade.

Aproximaram-se lentamente da “parede” negra. Bem no centro da área delimitada pela mesma, brilhava uma fresta luminosa, pálida mas perfeitamente visível, que permitiria o ingresso daqueles homens no reino irreal da outra dimensão temporal. O diâmetro da área circular devia ser de cerca de dois mil e quinhentos metros.

Rous teve tempo de olhar para o céu. As formações de nuvens não haviam sofrido qualquer modificação, e vários dias se passariam antes que os pingos de chuva, que já caíam, atingissem a superfície do pavoroso planeta. Dias terranos, evidentemente. Não seria difícil calcular quanto tempo duraria o dia desta dimensão temporal. Se o planeta fizesse uma rotação completa em torno de seu eixo dentro de vinte e quatro horas terranas, o sol brilharia por cerca de cem anos. Levaria cem anos para percorrer o caminho do nascente ao poente.

O dia teria uma duração de duzentos anos!

Rous sentiu um calafrio ao lembrar-se desse fato. Não era de admirar que um indivíduo levasse vinte horas para pestanejar.

O céu tinha uma coloração avermelhada, ligeiramente entremeada de verde. O sol estava oculto atrás das nuvens e, na posição em que se encontrava, vários anos poderiam passar-se antes de voltar a brilhar.

Subitamente Rous compreendeu.

Antes que pudesse comunicar aos outros o resultado de seus cálculos, estes fizeram outra descoberta. Um riacho muito largo ainda os separava da “muralha” negra, que cortava a paisagem a algumas centenas de metros do lugar em que se encontravam.

Um riacho...?

A superfície da água, tangida pela tormenta que não sentiam, enrijecera em meio ao movimento. Percebia-se perfeitamente qual era a direção do vento. Alguns respingos mantinham-se imóveis no ar, como se fossem cristais reluzentes. Várias horas poderiam passar-se antes que voltassem a unir-se à massa líquida.

— Como vamos atravessar isso? — perguntou Harras em tom de decepção. — Até parece a “corrente do tempo” materializada.

— Tolice! — respondeu Rous, desviando o pensamento do problema sobre o qual refletira tão intensamente. — Basta seguir-me.

Prosseguiu em sua caminhada como se o riacho nem existisse. Seu pé entrou em contato com a superfície enrijecida da água e encontrou um apoio firme. Antes que os outros compreendessem o que estavam vendo com os próprios olhos, Rous já se encontrava no meio do riacho e continuava a andar como se pisasse numa superfície de pedra.

— Não há o menor perigo — gritou para os companheiros. — Pelo menos dez minutos se passarão antes que a água tenha tempo para ceder sob a pressão de meus pés.

Era como se caminhasse sobre gelo, com a única diferença de que a superfície não era lisa. As ondas imobilizadas indicavam a direção do vento que as formara. E essa direção também se revelava em algumas árvores. A julgar pelos galhos retorcidos, a tormenta que movimentava o ar devia ser muito forte. Mas não sentiram nada, pois para eles até mesmo um furacão não desenvolveria velocidade superior a meio milímetro por segundo.

Atingiram a “muralha”.

Rous tateou-a com ambas as mãos e sentiu uma resistência muito forte. A “parede” era negra, mas não era de um negrume absoluto e opaco, conforme esperara; emitia um brilho suave, como se fosse de mármore cristalizado. A escuridão completa só começava poucos centímetros depois da superfície translúcida.

Ao menos parecia que era assim.

A “parede” era lisa; não apresentava a menor fresta que pudesse servir de apoio ao dedo ou ao pé. Levantava-se para o céu. Era bem verdade que a coloração se tornava menos intensa, à medida que subia. No zênite dava passagem aos raios avermelhados do sol, e as nuvens tornaram-se visíveis através dela.

Concluía-se que o GCR criava um campo temporal-energético, que o envolvia como se fosse uma esfera. Rous tinha certeza de que também devia estender-se ao subsolo. Começou a desconfiar que não viam tudo que havia no mundo misterioso da outra dimensão temporal. Mais uma vez surgiu a indagação decisiva:

O que havia atrás da “muralha” negra?

Só havia um meio de descobrir, mas Rous achou-o muito arriscado. Teriam de desligar o GCR enquanto se encontrassem na outra dimensão temporal. Com isso a “muralha” desapareceria.

Mas, ao mesmo tempo, o caminho de volta lhes seria trancado.

Rous virou-se instintivamente e olhou para a planície. Suspirou aliviado ao ver o pálido círculo luminoso que pairava pouco acima da superfície. Por um simples acaso viu junto ao mesmo uma árvore raquítica cujo formato lembrava o de uma forca.

— Aqui não podemos prosseguir! — admirou-se Steiner, fazendo uma constatação supérflua. — Ninguém consegue atravessar a barreira — tocou a “muralha” com o dedo. — Que material será este?

— Não é nenhum material — disse Rous, apoiado por gestos enfáticos de Noir. — Trata-se pura e simplesmente de energia.

— Energia? — espantou-se Josua, inclinando-se para a frente.

Era o metalúrgico da expedição, motivo por que a muralha misteriosa se enquadrava em sua especialidade.

— Uma muralha sólida feita de energia? Nunca vi uma coisa dessas!

— Já viu, sim — afirmou Noir. — Não se esqueça dos campos defensivos de nossas naves. Um objeto atirado contra os mesmos também não poderá passar.

O africano sacudiu a cabeça; parecia desesperado.

— Pois é aí que está a diferença, Noir! Os campos energéticos que conhecemos, ao simples contato, transformam a matéria em energia. Acontece que esta “muralha” pode ser tocada com a mão. Não parece fria ou quente, nem expele raios mortíferos. Além disso, não transforma a matéria em energia.

— A abóbada energética neutra de Terrânia também pode ser tocada por qualquer pessoa, sem que a mesma corra o risco de morrer; e nenhuma porção de matéria pode passar por ela — disse Steiner em tom enfático, refutando a argumentação de Josua. — Portanto, é perfeitamente possível que esta “parede” negra seja formada por energia. Mais precisamente, pela energia gerada pelos aparelhos que se encontram no interior da gazela, e que por isso mesmo é regida pelas nossas leis. Deve-se ter em vista esta última circunstância, caso alguém fique curioso para saber como remover o obstáculo.

— Está bem — disse Rous com certa malícia. — Acontece que não quero andar por este mundo irreal, quando o caminho de volta estiver trancado. A não ser que alguém fique junto ao GCR e o ligue depois de certo tempo.

— Acho que já descobrimos um meio de penetrar no mundo dos desconhecidos — começou Noir em tom objetivo e passou a mão pela parede. — Mas talvez deveríamos encarar a situação sob outro ângulo. É possível que esta “parede” nos proteja dos perigos existentes atrás dela.

Ninguém disse nada. Concluía-se que todos concordavam tacitamente com o que o mutante acabara de afirmar.

Caminharam uns duzentos ou trezentos metros ao longo da “parede”. Depois voltaram a atravessar o rio e seguiram na direção do anel reluzente que os aguardava a mais de mil metros do lugar onde se encontravam.

Subitamente Ragow se pôs a praguejar e colocou a mão no rosto. Recuou um passo e fitou o objeto minúsculo que pairava imóvel à frente de seu nariz. Esbarrara nele.

— É um inseto! — disse em tom de incredulidade, sacudindo a cabeça. — Esbarrei numa mosca. E o bicho não quer sair do meu caminho.

Os outros reuniram-se em torno do “objeto” com o qual Ragow acabara de “colidir”. Realmente era uma espécie de mosca. Tinha longos tentáculos e asas brilhantes; além disso, ostentava oito pernas finamente articuladas e um par de olhos enormes.

Subitamente Rous teve a impressão de ter percebido um movimento insignificante naquele mundo de imobilidade total.

Seria o inseto?

Mas isso não era possível! Mesmo que o animalzinho voasse a uma velocidade de cem quilômetros por hora, levaria vinte segundos para percorrer um centímetro. E seria difícil controlar a olho nu um objeto que se deslocasse a essa velocidade.

Mas havia uma coisa no inseto que se movia...

Eram as asas!

Os outros também viram. Num movimento extremamente lento e quase imperceptível, as asas reluzentes do inseto se levantaram; não havia a menor dúvida. Dali a pouco menos de dez segundos, voltaram a descer, para recomeçar tudo depois de meio minuto.

— Um minuto para cada batida de asas — disse Harras e calculou febrilmente. — Caramba! Quer dizer que este bicho bate as asas mil vezes por segundo... na outra dimensão, evidentemente. É inacreditável!

— Certos insetos terranos fazem muito mais que isso — explicou Ragow com toda calma e viu as asas atingirem a posição mais elevada e voltarem a baixar. Nesses dois ou três minutos, o inseto já havia percorrido alguns centímetros. Portanto, era relativamente veloz; na realidade, percorria uns trinta metros por segundo.

— Se por aqui alguém resolver atirar em nós, poderemos desviar-nos tranqüilamente da bala — disse Steiner em tom de satisfação.

Calculou a meia voz e, ao anunciar o resultado, estava radiante de alegria:

— Um projétil comum percorreria cerca de um metro por minuto. É incrível. Estamos vivendo no mundo da câmera lenta.

— Não acredite — disse Rous com a voz séria — que um projétil que avançasse tão devagar o deixaria incólume, se o atingisse. Se ficar parado, o mesmo penetrará lentamente em seu corpo e o matará.

— Que bela perspectiva! — o físico sacudiu o corpo e voltou a dedicar sua atenção ao inseto reluzente, que prosseguia em vôo lento. — Será que a gente poderia matar este bicho?

Rous ergueu as sobrancelhas.

— Por que matá-lo? Ele não nos fez nada.

— Só perguntei por perguntar — respondeu Steiner. — Apenas gostaria de saber se é possível matar um ser que se encontre nesta dimensão temporal.

— Acredito que seria perfeitamente possível — admitiu Rous a contragosto. — Mas faço votos de que nunca tenhamos necessidade de fazer uma coisas dessas. Na situação atual temos uma superioridade de setenta e dois mil para um.

— Com isto nossa missão está praticamente cumprida — disse Harras em tom de triunfo. — Apenas pediram que verificássemos como poderemos derrotar o inimigo Invisível.

— Bem — disse Rous sem o menor entusiasmo. — É claro que o senhor tem toda razão, Harras. Mas acontece que por enquanto não vimos nenhum desses terríveis Inimigos. Nem sequer sabemos como são, quem são e o que estão tramando. Se encararmos nossa missão sob este aspecto, esta nem de longe foi cumprida. Nem sequer começamos a executá-la.

Prosseguiram em sua caminhada e andaram mais depressa. Josua, que caminhava atrás dos outros, gritou de repente:

— Que ruído é este? Parece um rumorejar e vem da frente.

Rous parou, mas os outros prosseguiram.

— Um ruído? Não ouço nada.

— Sim; é grave e baixo. Até parece um murmúrio. É estranho: ficou mais fraco.

Rous manteve-se imóvel e aguçou o ouvido. Agora também estava ouvindo, mas logo o ruído cessou. Fitou em atitude pensativa os quatro homens que caminhavam a alguma distância do lugar em que se encontrava.

Que ruído seria este?

Uma expressão de espanto surgiu em seu rosto, mas logo foi substituída por um sorriso.

— É claro; só pode ser isto. É como disse Harras: rompemos a barreira do som. Atrás de nós surge um vácuo. E quando o ar penetra no mesmo, surge o estranho ruído que acabamos de ouvir.

Rous ficou satisfeito de ter obtido uma explicação e prosseguiu na caminhada. Ao observar a atmosfera, lembrou-se de outro problema sobre o qual refletira várias vezes, mas sempre sem resultado. Talvez seria preferível nem pensar mais sobre isso.

A quinhentos metros do lugar em que se encontravam brilhava o luminoso anel salvador, através do qual poderiam voltar ao mundo a que pertenciam. Por um instante surgiu na mente de Rous a indagação sobre se a permanência em outra dimensão temporal teria algo a ver com um deslocamento no espaço, ou se os dois mundos existiam no mesmo lugar. Era uma idéia louca demais para ter uma base real. Seria mesmo?

Rous esbarrou em Steiner, que parará de repente. Esteve a ponto de perguntá-lo sobre esta idéia, mas logo viu que o rosto do físico havia se transformado numa máscara. Os outros homens também estacaram.

Seguiu seus olhares...

Ficou pálido como cera e teve a impressão de que seu coração parará de funcionar. Por alguns longos segundos seu cérebro recusou-se a aceitar o que os olhos presenciavam...

Teriam de permanecer eternamente na dimensão temporal estranha, porque o caminho de volta deixara de existir!

O anel luminoso desaparecera de repente.

 

Rous venceu o pavor, e a inteligência voltou a funcionar. A abertura luminosa desaparecera — isso era um fato irreversível. Mas sua extinção provocara outras modificações importantíssimas, que talvez poderiam influir em seus destinos.

O céu mudara de cor. Parecia que uma camada de alguma coisa que encobrira a visão do firmamento acabara de ser removida. As nuvens continuavam a ocultar o sol, mas agora via-se claramente que o astro devia ser vermelho. E o céu também era vermelho.

Rous ainda viu outra coisa.

A “muralha” negra havia desaparecido.

Puderam ver o horizonte distante, mas a visão representou uma amarga decepção.

A paisagem situada atrás da parede era praticamente igual à que ficava à frente da mesma. Era bem verdade que viram uma cadeia de montanhas elevadas, que se estendia em direção ao céu chamejante como se quisesse apagá-lo. Grandes vales cortados por rios prateados que pareciam cobertos de sangue estendiam-se até as montanhas distantes. As florestas e as estepes introduziam um elemento de variação no panorama natural daquele mundo estranho.

Mas não viram nenhuma criatura viva.

Ivã Ragow também conseguiu vencer o pavor.

— Meu Deus! O que aconteceu? O anel luminoso...

— ...desapareceu! — completou Steiner com uma calma pouco natural. — Talvez alguém que se encontra do outro lado tenha mexido no aparelho.

— Quem poderia ter feito uma coisa dessas? — perguntou Rous. — A frente do tempo passou pela gazela. Se nossos cálculos foram corretos, todo o planeta de Tats-Tor deve ter desaparecido de nosso mundo normal. Ou, ao menos, todos os seres orgânicos que viviam nele. Não vejo nada. Não deveriam estar aqui?

Desta vez Harras demonstrou maior senso lógico.

— Entre o lugar em que estávamos acampados e a capital, Akonar, não havia nenhuma povoação. Eram cem quilômetros de estepes e matas. Portanto, teremos de andar ao menos cem quilômetros para encontrar aqueles que foram transferidos para essa dimensão temporal.

Rous tinha outros problemas.

— Como poderemos voltar ao nosso plano temporal?

Steiner deu de ombros e fitou Ragow. O russo colocou a mão sobre a arma de radiações de Steiner e falou:

— Se formos atacados, poderemos defender-nos. Quanto ao mais, acho que devemos ficar por aqui; não devemos afastar-nos muito, para que vejamos imediatamente quando o anel luminoso voltar. Talvez tenha havido uma interrupção nos suprimento de energia da gazela.

— Isso é bastante improvável — comentou Harras, sacudindo a cabeça. — Afinal, o senhor que é botânico não poderia conhecer essas coisas. O aparelho foi desligado. É a única explicação que encontro para o fenômeno.

— Existem milhares de explicações — disse Rous, contraditando o técnico. — E nenhuma delas pode ser admitida com cem por cento de certeza. Se não encontrarmos o caminho de volta, nunca descobriremos o que aconteceu. Mas Ragow tem razão. Vamos ficar por perto; ou então, pelo menos um de nós deve ficar.

— Será que o senhor está com vontade de passear por aí? — perguntou Steiner. — O que espera conseguir com isso?

— Bem; a muralha desapareceu, e isso já representa uma vantagem. Não há mais nada que nos impeça de percorrer este mundo a uma velocidade setenta e duas mil vezes maior que a normal para realizarmos nossas investigações e...

— Não se esqueça — interrompeu o físico em tom seco — que nem por isso o senhor conseguirá correr mais depressa. Sempre levará doze segundos para percorrer cem metros. Para vencer um quilômetro precisará de dez minutos. Em outras palavras, marchará à velocidade de seis quilômetros por hora. Não posso negar que essas figuras petrificadas levariam alguns anos para percorrer o mesmo trajeto, mas daí não se pode concluir que o senhor poderá caminhar mais depressa. E há outra coisa que me preocupa. Será que por aqui existe alguma coisa que possamos comer?

Rous deu de ombro.

— É este um dos motivos por que se torna necessária uma expedição. É claro que alguém terá de ficar aqui para montar guarda. Quem será? Qualquer um de nós tem qualificações suficientes para estar presente quando chegar a hora da decisão. Devemos deixar a escolha ao acaso, tirando a sorte?

— Talvez esta seja a melhor solução, pois ninguém poderá sentir-se ofendido — disse Harras e pôs a mão no bolso para tirar uma moeda de um solar. Pesou-a na mão; parecia pensativo. — Será que algum dia poderemos comprar alguma coisa com isto?

Josua foi o infeliz que teve de ficar só. Rous apontou para a árvore solitária, que tinha o aspecto de uma forca.

— Dez metros à direita desta árvore está nossa gazela, isto é, na outra dimensão. Seria preferível ficar junto a esta rocha, pois daqui poderá observar uma coisa e outra. Assim que o anel luminoso volte a aparecer, avise-nos. Acho que seu rádio ainda está funcionando.

Um ligeiro ensaio do transmissor embutido no anel deu resultado positivo.

— Pois bem — disse Rous, dando uma palmadinha no ombro do africano. — O senhor não tem nada a recear, pois neste mundo ninguém lhe poderá fazer mal. O senhor é muito mais rápido que qualquer coisa que possa existir por aqui, com uma única exceção... Mas se contássemos com a mesma estaríamos renunciando a todas as esperanças. Passe bem. Logo estaremos de volta.

O africano seguiu-os com os olhos; não parecia muito satisfeito. Enfiou no cinto a arma de radiações que Harras lhe havia deixado. Relutou em confessar a si mesmo que a posse da pistola o tranqüilizava.

Rous e seus acompanhantes aproximaram-se do rio que os separara da “muralha”. Retardaram o passo ao atingirem o lugar onde a “parede” negra se erguera diante deles. Rous estendeu a mão, mas a vista não o enganara. A “muralha” desaparecera. E não deixara o menor vestígio no solo pedregoso.

— Não devemos esquecer o risco que assumimos se prosseguirmos além deste ponto — disse Rous e lançou um olhar pensativo para os companheiros. — Admitamos que alguém ligue o GCR quando nos encontrarmos além da parede. Como faremos para voltar ao interior da abóbada? Já pensaram nisso?

— Temos de assumir o risco — respondeu Steiner em tom irritado. — Aliás, Josua ficou para trás. Se existe alguém que possa ligar o aparelho, este alguém só poderá ser Rhodan. E ele não terá nenhum problema em encontrar-nos. Não tenho o menor receio de prosseguir na marcha. Afinal, não poderemos ficar eternamente sem comer e beber.

— Acho que a água não será muito refrescante — disse Rous, apontando para as ondas enrijecidas que se desenhavam na superfície do rio. — Chego a duvidar de que tenhamos possibilidades de sobreviver neste mundo. Está vendo esse capim? Será que alguém de nós conseguirá arrancá-lo? Não; ninguém conseguirá, pois a resistência que oporá a qualquer movimento será muito intensa. E é o que acontece com tudo que se encontra por aqui. Se não encontrarmos o caminho de volta, morreremos de fome e sede.

— Tenho comigo uma boa provisão de tabletes energéticos — disse Ragow de repente, com um sorriso matreiro nos cantos dos olhos. — Acho que não foram afetados pela ruptura da barreira do tempo.

Rous fitou-o por algum tempo e sacudiu a cabeça.

— Por que não disse isso antes, Ragow? Poderia ter-me poupado alguns minutos de preocupações.

— Tanto maior é a alegria que sente agora — disse o médico, entregando uma caixinha de tabletes a cada companheiro. — Tenham cuidado com isso! Nestas caixinhas existe uma ração de emergência e alguns tabletes de água. Com isto um homem poderá viver uma semana, desde que saiba regrar-se. Pelo menos não morreremos de fome tão depressa. Então, vamos prosseguir?

Prosseguiram.

Dali a pouco a paisagem modificou-se. A planície pedregosa foi substituída por uma estepe coberta de capim. Mesmo assim a marcha não se tornou mais agradável. Com suas arestas rígidas e afiadas, o capim era extremamente perigoso. Tinham que desviar-se de cada moita, para não se ferirem. As hastes de capim pareciam lâminas de aço.

Ficaram satisfeitos quando o mato se tornou cada vez mais baixo, até ceder lugar a uma camada de musgo, que também era dura, mas não incomodava tanto. As solas de plástico das botas até pareciam ter uma leve elasticidade, mas isso talvez não passasse de pura imaginação.

O terreno começou a subir.

Steiner enxugou o suor da testa.

— É possível que por aqui o tempo passe mais devagar — disse e parou para lançar um olhar sobre a planície.

Em algum lugar, lá embaixo, Josua estava montando guarda. Até então não chamara.

— Mas sei que a gente transpira tão depressa como em qualquer outro lugar em que faça calor — prosseguiu Steiner.

Encontravam-se sobre um pequeno platô. Atrás deles, o terreno descia até a ampla planície, enquanto à sua frente continuava a subir em direção às montanhas. Depois de duas horas de marcha haviam percorrido dez quilômetros, mas estavam tão curiosos para saber o que haviam atrás das montanhas que nem se lembraram da canseira que estavam enfrentando.

Subitamente notaram um movimento.

Surgiu ao oeste, junto à linha do horizonte, onde a camada de nuvens era mais densa. Sem dúvida por ali já estava chovendo há horas, segundo o tempo que prevalecia nesse plano. Os pingos estariam caindo com uma lentidão infinita. Levariam alguns dias para atingir o solo. A simples idéia era enlouquecedora.

O movimento que seus olhos haviam percebido surgira nas nuvens. Parecia um raio de luz que descia rapidamente e em linha sinuosa em direção à superfície, atingindo-a dentro de um ou dois segundos. Mas o fenômeno luminoso não desceu. Ficou parado entre o céu e a terra, como um arco luminoso.

Steiner fitou prolongadamente o fenômeno luminoso e disse:

— O que é isso?

Rous empalideceu. Viu confirmadas, suas suposições.

— É um relâmpago, Steiner. Um simples relâmpago; apenas seu ritmo é setenta e duas mil vezes mais lento. Talvez fique parado no céu durante dez horas. O senhor viu? Levou nada menos de dois segundos para descer das nuvens ao solo. Dali se conclui que...

— Não! — interrompeu o físico e sacudiu a cabeça. — Não é possível. Isso seria... seria...

— É apenas uma conclusão lógica extraída dos dados de que dispomos, Steiner. Se nesta dimensão tudo é muito mais lento, porque vivemos setenta e duas mil vezes mais depressa, o mesmo deve acontecer com a luz. Nesta dimensão temporal se desloca a uma velocidade de apenas quatro quilômetros por segundo. Ainda não sabemos quais poderão ser as conseqüências disso, mas o raio que o senhor está vendo prova que deverão existir certas conseqüências!

Na Terra um relâmpago pode permanecer no céu durante um ou dois segundos. Enquanto isso, o raio que viam ao oeste poderia permanecer no céu durante vinte ou quarenta horas, pois ficaria preso pela lei natural das duas dimensões temporais, que todavia possuíam leis comuns!

É que, sob o aspecto relativo, também aqui a velocidade da luz era de 300 mil quilômetros por segundo.

— Será que a cor vermelha do sol tem alguma relação com isso? — perguntou Harras, apontando para o sul, onde o céu parecia arder em chamas vivas.

Rous fez um gesto afirmativo.

— Foi justamente o sol que me deu essa idéia. Os raios do sol, infinitamente retardados, constituem um exemplo evidente do efeito duplicado. Nem sei como ainda conseguimos ver alguma coisa.

— Se ficarmos aqui por algum tempo, estudarei o fenômeno — prometeu Steiner, fitando com os olhos semicerrados o relâmpago, que não havia sofrido qualquer alteração. — Aqui a velocidade da luz é de apenas quatro quilômetros por segundo. O que acontecerá se eu usar meu radiador? Os nêutrons devem ter conservado o tempo que lhes é peculiar?

Rous deu de ombros.

— Sei lá — disse.

Prosseguiram na caminhada. Cada qual estava mergulhado em suas reflexões. Um ligeiro contato com Josua revelou que não havia nenhuma novidade. O africano recebeu instruções para avisar assim que o círculo luminoso voltasse a aparecer. Depois deveria passar para a outra dimensão e desligar o GCR por duas horas, a fim de que pudessem voltar sem se depararem com o obstáculo da “parede” negra.

André Noir notou que a temperatura estava subindo.

— Acho que está muito quente — disse, olhando na direção do cume da montanha. — Não sei por que temos de esforçar-nos tanto. Já quis perguntar há tempo, mas acredito que deve haver um motivo todo especial para andarmos a pé. Qual é mesmo o motivo, Tenente Rous?

— Acho que está aludindo aos trajes arcônidas. Isso já é outro problema. Não se esqueça da velocidade tremenda que representaria um vôo por este mundo. Não tenho certeza, mas acredito que se desenvolvêssemos apenas alguns metros por segundo logo nos tornaríamos incandescentes.

Steiner lançou um olhar mordaz para seu interlocutor, abaixou-se e levantou uma pedra. Ou melhor, tentou levantá-la. Não conseguiu. A inércia da massa da pedrinha aumentava-lhe o peso em setenta e duas mil vezes.

Rous não conseguiu reprimir o riso.

— Já sei o que pretende fazer, Steiner, mas posso garantir que não é possível. Essa pedra está submetida a leis, sobre as quais não podemos exercer a menor influência. Já sei que nunca conseguiremos levar um prisioneiro desta dimensão temporal para a nossa, a não ser que realizemos uma operação muito hábil com o GCR. Se quiser experimentar para ver se minha suposição foi correta, use um dos objetos que trouxemos, talvez uma moeda. Atire-a nessa grota. Veremos o que vai acontecer.

Todos se sentiram satisfeitos em poderem fazer uma pausa. A idéia de que talvez pudessem voar era muito estimulante. Mas se Rous tivesse razão, essa idéia não devia ser realizada.

Steiner tirou do bolso uma pesada moeda de platina, lançou-lhe um olhar triste e dirigiu-se à beira do precipício. A rocha descia verticalmente por cerca de cem metros. Lá embaixo havia um prado verde.

— Deixe cair a moeda — disse Rous, esforçando-se para não trair a tensão que sentia. — Será suficiente.

Steiner fez que sim.

Noir, Harras e Ragow colocaram-se ao lado de Rous e lançaram um olhar curioso para Steiner, que moveu o braço e atirou a moeda bem longe.

Esta descreveu uma curva bem aberta e caiu na vertical. A queda não durou mais de um segundo.

Depois o objeto sofreu uma estranha modificação. De início parecia que estava sendo iluminado por uma fonte de luz invisível. Emitia um forte brilho prateado. Depois de algum tempo passou para o vermelho e depois voltou ao branco. Uma fina nuvem de vapor marcava a trajetória. Finalmente, antes que chegasse ao solo, desapareceu, devorada pelas “preguiçosas” moléculas daquela atmosfera.

Ouviram-se gritos de espanto.

Rous conteve a respiração e disse com um suspiro de alívio:

— Foi exatamente o que eu imaginei. E agora já sei que um disparo de nossos radiadores de impulsos produziria conseqüências catastróficas! Vocês não podem nem imaginar?!

Steiner afastou-se da beira do precipício o acenou lentamente com a cabeça.

— Posso imaginar, Rous. Um raio, que se deslocasse na Terra a uma velocidade 72 mil vezes superior à da luz, não só deixaria um rastro na atmosfera, mas afetaria a própria estrutura temporal. Esta poderia estourar e esfacelar-se. E aqui?

— Aqui — disse Rous em tom decidido - não arriscaremos a experiência. Não quero causar uma “explosão do tempo”.

Nem se deu conta de que os outros empalideceram. Lançou mais um olhar para a planície e reiniciou a marcha.

Os outros seguiram-no.

 

No cume da montanha, o ar estava tão imóvel como na planície. Mas era menos transparente e mais quente. Não se enxergava além de dez metros. As “correrias” foram inúteis, pois não tiveram uma visão ampla. Parecia que o cume achatado da montanha estava envolto em algodão.

— Gostaria de saber de onde vem este calor — disse Noir, sacudindo a cabeça. — Será que ninguém pode dar uma explicação razoável.

— Eu posso.

Steiner, que proferira estas palavras, abaixou-se e colocou a mão sobre a rocha nua, mas logo a retirou. Seu rosto exprimiu o espanto. Voltou a levantar.

— Então? — perguntou Rous, pedindo que desse o resultado da experiência em palavras inteligíveis. — O que é?

— O solo está quente — começou Steiner em tom inseguro. — Quase chego a acreditar que há um fogo aceso sob a rocha.

Harras começou a rir. Steiner virou-se furioso.

— Não sei o que há de engraçado nisso. Não seria possível que por aqui existisse um vulcão ou coisa semelhante?

— Ora, o fogo! — disse Harras com um sorriso. — Gostaria de saber qual seria o aspecto do fogo neste lugar. Uma chama leva algum tempo para arder. O que aconteceria aqui? Veríamos uma chama congelada?

— É justamente por isso que emite o mesmo calor — disse Steiner, apontando para o solo. — O calor teve tempo para propagar-se pela rocha; talvez durante milênios.

Rous examinou a encosta do lado oposto.

— Não sei, mas é possível que o lugar em que nos encontramos não seja o ponto mais elevado. Suas palavras me deram uma idéia, Steiner. Se isto for um vulcão, talvez estejamos na beira de uma cratera. Isso explicaria o calor.

Harras, que se adiantara um pouco, gritou de repente:

— Venham cá, amigos. Vocês ficarão admirados. Tenham cuidado para não escorregar.

Steiner e Rous logo se puseram em movimento, enquanto Ragow e Noir ainda esperavam. Não tinham muita pressa nesse mundo em que o tempo passava devagar.

Rous sentiu que o calor aumentava. Quase chegou a ter a impressão de estar sendo atingido diretamente por uma fonte de calor. Depois viu através da neblina que Harras fazia um sinal para ele.

— A cratera propriamente dita fica aqui — gritou o técnico e apontou para uma abertura vermelha e incandescente que havia a seus pés. — Olhe a lava.

Parecia uma massa sólida e incandescente, que não se movia. Mas as ondas enrijecidas provavam que a massa estava subindo e que num tempo imprevisível atingiria a beira da cratera.

— Está aí a fonte de calor — disse Steiner. — Minha suposição foi correta; era o que eu queria saber. Quem sabe com que velocidade se processa a irrupção vulcânica a que estamos assistindo?

— Uma irrupção vulcânica?! — Rous parecia surpreso.

Steiner apontou para a lava.

— O que poderia ser senão isso? A lava já está subindo; tenho certeza absoluta. Chegará à beira da cratera dentro de dois ou três anos, talvez antes. De qualquer maneira não corremos o menor perigo. Quando o fogo líquido começar a correr pelo vale, ainda haverá muito tempo para nos colocarmos em segurança. Mas é bastante duvidoso que a mesma coisa aconteça com os seres que vivem na mesma dimensão temporal do vulcão.

— Uma irrupção vulcânica! — disse Ragow em tom de admiração. — E estamos parados, assistindo a tudo. Isto até parece mais espantoso que aquela história das asas do inseto.

Noir pigarreou.

— Para dizer a verdade, o calor está demais. Provavelmente não poderemos prosseguir na mesma direção, pois ninguém sabe qual é a largura da cratera. O que vamos fazer? Voltar?

— Não vejo outra alternativa — disse Rous.

— Se quisermos caminhar em direção à cidade de Akonar, teremos de escolher outro caminho — sugeriu Ragow.

— Nunca encontraremos a cidade propriamente dita, porque permaneceu na outra dimensão temporal, ou seja, na nossa. Mas encontraremos seus habitantes. Talvez possamos dar uma lição nesse administrador arrogante — comentou Steiner.

— Isso não adiantará nada, pois levará três dias para sentir a bofetada — disse Harras em tom irônico.

Rous constatou que o motivo da visibilidade reduzida eram os vapores que enchiam o ar. Lembrou-se de que estes talvez pudessem ser venenosos.

— Vamos voltar — anunciou, pondo-se a caminho. — Não adianta expormo-nos a um perigo desconhecido. Lá na planície o ar é mais puro.

Quando estavam a meio caminho, Ragow subitamente soltou um grito. Levantou o braço e, de lábios trêmulos, apontou para a encosta rochosa que ficava à sua esquerda. No início não viram o que lhe chamara a atenção, pois nada se movia. Mas deveria haver qualquer coisa que se movesse neste mundo louco?

— Olhem o animal! — balbuciou Ragow em tom nervoso. — Não estão vendo?

Rous forçou a vista, mas apenas viu blocos de pedra imóveis de vários tamanhos.

“Será que Ragow estava aludindo aos mesmos?”, pensou o tenente interrogando-se.

O russo baixou o braço e inclinou a cabeça para escutar melhor. Havia alguma coisa no ar; era um ruído estranho. Parecia um trovejar surdo. Mas o raio, que continuava imóvel no céu, ficava muito longe.

Logo o som não poderia ter percorrido a distância, pois não ultrapassava a velocidade de dezessete metros por segundo. Mas o ruído surdo continuava no ar.

— ...uuuum... uuuum... Ragow disse:

— Está ouvindo, tenente? Escutei no instante em que vi os animais.

— Que animais? — perguntou Steiner. — Não vejo nenhum animal.

— Estão parados, ou melhor, rastejando à frente dessas cavernas. Nunca vi um ser desse tipo. Serão lagartas?

— Lagartas? — perguntou Rous em tom impaciente. — Não vejo nenhuma lagarta. E a distância é muito grande...

— Eu disse que são como lagartas — comentou Ragow com a voz tranqüila. — Mas são muito maiores. Vejam aquelas pedras à frente das cavernas!

As cavernas abertas na encosta rochosa pareciam bocas. Degraus irregulares de pedra levavam às mesmas. Eram trilhas estreitas, pisadas por inúmeros pés. E lá embaixo, no início das trilhas, estavam as pedras... quer dizer, as lagartas...

Todos viram. Aqueles objetos que acreditavam serem pedras tinham o mesmo formato. Pareciam esculpidas na rocha. Jaziam imóveis, isolados e em grupos, e não se moviam.

No ar ouvia-se o ruído ininterrupto.

— ...uuuum... uuuum...

— Não há dúvida de que são seres vivos que habitam essas cavernas — disse Ragow e caminhou resolutamente na direção do estranho grupo. — Na dimensão temporal normal nunca vi seres desse tipo. Por isso é altamente provável que se trate de habitantes deste plano temporal. Talvez sejam os grandes desconhecidos!

Rous já se recuperara do espanto. Seguiu o sábio, que se encontrava bem no meio dos seres vivos petrificados e os estudava atentamente. Os outros três homens também se aproximaram.

Realmente pareciam lagartas enormemente aumentadas. As pequenas asas davam provas de que aqueles animais sabiam voar, ou ao menos já haviam sido capazes disso. Nenhuma lagarta tinha menos de metro e meio. Em vez dos pêlos finos, possuíam um casco blindado marrom-escuro, que envolvia todo o corpo. Pouco abaixo da cabeça redonda ficavam duas tenazes finas, que se distinguiam perfeitamente das pernas dispostas ao longo do “tronco”. Segundo tudo indicava, esses ferrões só serviam à locomoção.

— ...uuuum... uuuum...

Enquanto os homens se aproximavam dos animais, os estranhos sons tornaram-se Sinais breves e agudos. Mas assim que a expedição parou, voltaram às características interiores.

Seria uma distorção sonora?

Ao perceber a indagação que Steiner pretendia formular, Rous fez um gesto afirmativo.

— É isso mesmo. Estes animais emitem sons que, em virtude da distensão do tempo, chegam muito lentamente ao nosso ouvido. Se os gravássemos em fita e os reproduzíssemos com a velocidade aumentada em setenta e duas mil vezes, perceberíamos os sons originais.

Ragow acenou com a cabeça.

— É verdade, tenente. Os animais se comunicam entre si. Por isso não são animais na verdadeira acepção da palavra, pois possuem certo grau de inteligência. Talvez mais do que desconfiamos.

— Quem sabe se não são as inteligências máximas da outra dimensão temporal?

— perguntou Rous.

— É possível — disse Ragow, abaixando-se para examinar uma das lagartas.

— Talvez descubramos um dia.

Rous esteve a ponto de responder, mas nesse instante ouviu o zumbido fino do receptor embutido no anel. Josua estava chamando.

Ligou apressadamente o aparelho.

— Pois não, Josua. Aqui fala Rous. O que houve?

A voz do africano parecia insegura.

— Não sei se realmente aconteceu alguma coisa, tenente, mas julguei conveniente avisá-lo.

— Diga!

— Há um objeto no ar, acima de minha cabeça. Parece uma nave, deve ter uns dez metros de comprimento e seu formato é o de um torpedo. Deve ter saído das nuvens. Está descendo lentamente, como se quisesse pousar.

Os outros participantes da expedição aguçaram o ouvido. Rous logo percebeu o ponto que despertara sua atenção e exprimiu-o por meio de palavras.

— Consegue ver o movimento da nave, Josua?

— Até vejo muito bem, tenente. Acontece que se move muito devagar. Deverá demorar umas duas horas para pousar — se é que vai pousar.

— Vamos voltar — prometeu Rous, lançando um olhar triste para as lagartas petrificadas. — O pouso de uma nave torna-se um fato que justifica plenamente a suspensão das investigações que estamos realizando.

— Se houver alguma novidade, avisarei — disse Josua.

Dali a alguns segundos, Ragow sacudiu a cabeça; parecia contrariado.

— Será que devemos ignorar nosso achado? Talvez possamos levar uma das lagartas...

— O senhor sabe perfeitamente que isso é impossível, ao menos nas circunstâncias atuais e sem outros recursos. Para deslocar uma dessas lagartas, o senhor precisaria da mesma energia que seria necessária para conferir a um ser humano que se encontrasse na Terra uma aceleração de setenta quilômetros por segundo. Seria mais fácil atirar um homem às nuvens terrestres, apenas com o auxílio das mãos, que levantar um destes animais a uma altura de um metro. A não ser que tenha muito tempo, Acho que gastaria umas vinte horas por metro.

Ragow parecia desesperado.

— Aos poucos começo a compreender a importância do tempo. Apenas receio que, quando compreenda de vez, acabe enlouquecendo.

Rous lançou mais um olhar para as lagartas e prestou atenção ao estranho som de suas vozes, que foi penetrando lentamente em seus ouvidos.

— Mais tarde daremos outro olhar nos “uuuns”. Por enquanto vamos...

— Daremos um olhar em quem? — perguntou Steiner em tom de surpresa.

— Eu os chamo de “uuuns”, porque é assim que soam suas vozes — explicou Rous. — Agora vamos andando, para dar uma olhada na nave desconhecida que pretende pousar nas proximidades de nossa fresta de luz.

Em parte aliviados, em parte contrariados, os participantes da expedição puseram-se em marcha.

Por mais devagar que se arrastassem, ainda alcançariam o futuro...

 

A nave-mãe tinha mais de mil metros de comprimento e circulava em torno do planeta a grande distância. Em seu interior havia uma infinidade de instrumentos de controle, instalações automáticas de alarma e salas inteiras cheias de instrumentos positrônicos. Vultos pouco nítidos moviam-se na semi-escuridão; pareciam ser a única coisa viva existente naquela nave.

O veículo espacial controlava aquele planeta que se deslocava na periferia do plano temporal e penetrara mais de uma vez numa dimensão estranha, para retornar depois de algum tempo. De cada vez, vinha sobrecarregado de organismos estranhos, dos quais os cientistas pretendiam apoderar-se para conseguir a fusão das duas dimensões temporais.

Dessa forma, mais um mundo fora despovoado, sem que seus habitantes pudessem fazer qualquer coisa para acelerar, retardar ou evitar o fenômeno.

Ao retornar, o planeta apresentara uma população nova, cuja inércia temporal propiciava certo grau de adaptação ao outro plano temporal.

Os desconhecidos tiveram uma amarga decepção ao constatar, durante a primeira interseção, que a dimensão normal não era a sua, mas aquela outra, com a qual cruzavam. Deviam adaptar-se à mesma, a não ser que quisessem continuar a viver como degredados. Poderia haver uma existência mais solitária que um exílio no tempo?

As telas de controle iluminaram-se, e os ponteiros deslizavam pelas escalas. Em algum lugar, nas profundezas da nave, os reatores e os aparelhos começaram a zumbir. A vigilância robotizada do planeta estava entrando em funcionamento.

Era claro que os desconhecidos já tinham conhecimento de seu encontro com o outro universo. Todos os seres orgânicos do outro planeta temporal viviam 72 mil vezes mais depressa que eles. Só se tornavam visíveis com o auxílio de aparelhos e instrumentos extremamente complicados. Aquilo lembrava a técnica de uma câmara lenta verdadeiramente inacreditável. Os filmes teriam de passar pelas câmaras a uma velocidade tremenda, para que uma projeção retardada pudesse produzir ao menos algumas sombras fugazes na tela.

Mas sempre que penetravam no outro plano temporal e retornavam do mesmo, os organismos trazidos de lá estavam presos e ficavam sujeitos às leis naturais do plano temporal dos desconhecidos. Talvez com isso se conseguisse realizar uma adaptação das duas dimensões.

As sombras corriam de um lado para outro; não havia como identificá-las.

Aparentemente as telas em nada se distinguiam umas das outras; na verdade, porém, eram diferentes. A primeira tela a partir da esquerda estava relativamente vazia. Nela se viam montanhas distantes, situadas na periferia de uma extensa planície entrecortada por rios e vales. O céu estava nublado; a qualquer momento começaria a chover. Mais ao longe, junto à linha do horizonte, uma trovoada estava rugindo. Os primeiros relâmpagos saíam das nuvens e corriam em direção à superfície.

A segunda tela exibia o mesmo quadro, mas os acontecimentos eram mostrados em ritmo mais lento. Os seres em forma de lagarta continuavam a mover-se devagar, a água dos regatos também parecia correr bem mais devagar. O setor abrangido pela imagem era idêntico ao anterior. Mostrava a planície, as montanhas e os rios.

Só na terceira, a ação da câmara lenta tornava-se nitidamente perceptível. O que havia de fascinante em tudo aquilo era a certeza de que a reprodução não correspondia a um filme, mas a uma imagem captada ao vivo.

A quarta representava um retardamento de cinqüenta por cento.

Na quinta, o relâmpago rastejava em direção à superfície, e a chuva caía tão lentamente que até parecia que os pingos estivessem presos a fios invisíveis, que estivessem sendo soltos aos poucos. As lagartas mal se moviam; pareciam transformadas nos seres mais preguiçosos do Universo.

Na sexta tela, sombras fugazes corriam pela lâmina abaulada. Como a redução fosse de um para seiscentos mil, era fácil imaginar com que velocidade aquelas sombras deveriam correr na realidade.

Só na décima, as sombras moviam-se normalmente e tornaram-se identificáveis. Mas o retardamento era tão pronunciado que a vida normal parecia paralisada. A trovoada e o relâmpago pareciam uma pintura. A chuva parecia presa no ar, e os rios estavam congelados. Apenas as sombras dos seres vindos de outra dimensão moviam-se normalmente, como se não tivessem nada com aquilo.

Alguns rostos indefiníveis inclinaram-se sobre a décima tela...

 

Rous teve a impressão de que estava sendo observado.

Não sabia como explicar essa sensação, mas o fato é que estava e teria de conformar-se com a mesma. Evidentemente não passava de uma tolice, pois não havia ninguém que pudesse observá-lo.

Quando Rous manifestou suas suspeitas, Ragow não riu.

— Por que não podemos ser observados por alguém? — perguntou. — O pouso da nave, que deverá ocorrer daqui a algum tempo, não constitui indício dessa circunstância? Por enquanto nem sabemos se realmente pretende pousar. Talvez...

— Talvez...

— Talvez seja apenas um veículo teleguiado, que tem por fim observar-nos. Aí está. Não conhecemos as inteligências desta dimensão temporal, mas as mesmas não devem ser subestimadas. De qualquer maneira, os “uuuns” me infundem certo pavor.

Caminharam pela planície e cruzaram o rio cuja água corria junto à mata espessa. Bem ao longe viram a árvore em forma de forca, e um vulto conhecido, que era Josua.

E a nave pairava a cerca de cem metros de altura.

Rous ligou o transmissor embutido no anel.

— O que houve, Josua? A nave não vai pousar?

— Parou — respondeu a voz do africano. — Não está descendo mais. Quer dizer que não pretende pousar. Será que fomos vistos?

— É impossível! Nós nos movemos muito depressa.

Rous teve uma sensação indefinida enquanto proferia estas palavras. De repente não tinha tanta certeza de que os “uuuns” não podiam vê-lo. Se tivessem apenas uma ligeira idéia da tecnologia — e deviam ter, tanto que sabiam construir naves espaciais — deveriam ser capazes de romper a barreira do tempo.

Dali a pouco encontravam-se ao lado de Josua, bem embaixo da nave imobilizada.

Rous viu que suas suposições se confirmavam.

— Trata-se de uma estação de observação — disse, apontando para cima. — Está vendo as objetivas dirigidas para nós? Acredito que se trata de uma estação retransmissora. Estão captando nossa imagem por meio de câmaras de televisão e a transmitem para outro lugar; não sei que lugar poderia ser este. Talvez seja uma de suas cidades ou outra nave.

— O senhor acha que nessa nave não há ninguém? — perguntou Steiner em tom de perplexidade. — Será que é dirigida por robôs?

— Não tenho certeza absoluta, mas acho que é bastante provável que esta nave seja apenas um veículo auxiliar. Não querem expor-se a qualquer risco, e por isso enviam uma câmara móvel de televisão. Se estivéssemos no lugar deles, dificilmente agiríamos de outra forma.

Steiner estreitou os olhos.

— Tenente, queira responder a duas perguntas que vou formular, e não indagarei mais nada.

— Pergunte!

— Primeiro: Por que instalam suas câmaras numa posição em que podem ser vistas? Segundo: Por que as câmaras dirigidas contra nós são umas oito ou dez? Será que uma única não bastaria?

Rous enrugou a testa enquanto refletia sobre as perguntas que o físico acabara de formular. Sabia que o cientista não formularia qualquer pergunta sem que para isso tivesse um motivo todo especial. E a resposta não era muito simples.

— Não sei por que não embutiram as câmaras. Será difícil encontrar uma explicação plausível a este respeito. Mas quanto à segunda pergunta, acredito que conheço a explicação. Recorramos a uma comparação. Se tenho dois ou três gravadores de fita, poderei esticar à vontade a representação de uma peça musical. Se a mesma dura três minutos, será fácil transformá-la num simples impulso de três segundos. É claro que a música se tornaria praticamente irreconhecível, mas isso não vem ao caso. De outro lado, os três minutos poderiam ser convertidos em três horas. Assim cada som duraria alguns minutos.

— Formidável! — disse Steiner. — Onde pretende chegar com isso?

— Procure transferir esta noção acústica para o terreno da ótica. Os desconhecidos querem ver-nos. O que têm de fazer? Captam nossa imagem com as câmaras, e simultaneamente a transferem de uma para outra. O curso dos acontecimentos sofre um retardamento, e estes desconhecidos, que vivem num ritmo 72 mil vezes mais lento que o nosso, conseguem ver-nos.

Steiner levantou os olhos para a nave dos invisíveis, que pairava exatamente acima deles e disse em tom inseguro:

— Conseguem ver-nos, já não estamos em segurança. Se quiserem, poderão matar-nos.

— Como?

— Se conseguem retardar o curso dos acontecimentos para poderem captá-los, também serão capazes de possuírem projéteis suficientemente rápidos para atingir-nos.

Rous acenou lentamente com a cabeça.

 

— Não devem continuar a viver.

— Por quê?

— Porque exercem uma influência nociva sobre o processo de fusão dos dois planos temporais. Se permitirmos que continuem vivos, serão eternos estranhos. Por outro lado, não poderão retornar à sua dimensão temporal.

— Como foi que vieram parar na nossa dimensão?

A resposta demorou. Não houve qualquer modificação nas dez telas que reproduziam as imagens em velocidades diferentes. Os seis humanos eram perfeitamente reconhecíveis. Olhavam para cima, como se estivessem procurando alguma coisa. Todos os outros objetos estavam reduzidos à imobilidade. O relâmpago continuava no céu, junto à linha do horizonte. Era uma imagem apavorante de um tempo que subitamente tivera seu fluxo interrompido.

— Não sabemos. O fato é que pela segunda vez seres do outro plano temporal vêm para cá, conservando sua dimensão temporal. Para as finalidades que temos em vista isso representa um contratempo. Se quisermos realizar a fusão dos dois planos, todos terão de adotar nosso fluxo temporal.

— Acontece que o outro plano é mais forte, maior...

— Acontece que não queremos renunciar a nós mesmos.

Surgiu outra pausa.

Finalmente a ordem vinda da sala de comando removeu qualquer idéia de uma solução conciliatória.

A ordem dizia o seguinte:

— Matem-nos!

 

Ivã Ragow fitou a nave imóvel por algum tempo. Depois disse com a voz entediada:

— O que é que eu tenho com isso? Se quiserem pousar, levarão algumas horas, talvez mesmo dias. Até lá estarei de volta.

Rous aguçou o ouvido.

— Estará de volta? Como?

— Darei uma olhada nas lagartas, ou seja, nos tais dos “uuuns”. Talvez ali encontre a solução.

— Não vá só, Ragow. André Noir vai acompanhá-lo. Talvez possa ajudar em alguma coisa.

Noir não ficou muito entusiasmado, mas reconheceu perfeitamente que o cientista não deveria andar só pelas montanhas. E não havia dúvida de que Ragow não se deixaria remover do seu intento.

Os dois homens partiram imediatamente. Combinou-se que qualquer novidade seria comunicada imediatamente pelo rádio.

Rous, Steiner, Harras e Josua ficaram para trás.

Por algum tempo seguiram os companheiros com os olhos. Depois voltaram a dedicar sua atenção à nave desconhecida.

Foi Rous quem percebeu em primeiro lugar.

— Está se movendo, Steiner! Em sentido lateral. O movimento é muito lento.

Só dali a cinco minutos o físico fez um gesto de assentimento.

— O senhor tem razão, tenente. A nave se desloca para a esquerda. Acredito que desenvolve no máximo o dobro da velocidade do som.

— Isso seria um centímetro por segundo. Ora... o que é isso?

— Veremos. Bem que gostaria de saber para onde são transmitidas as imagens. Talvez para uma cidade, talvez para uma nave maior.

Harras disse, esticando as palavras:

— Tenho um pressentimento nada agradável, tenente. Estamos em plena planície, sem a menor proteção. E a nave estranha está bem acima de nós. Se quisessem matar-nos, não teríamos a menor chance de defesa.

— Que motivo poderiam ter para matar-nos?

— Motivo? Não acha que está perdendo um tempo precioso, refletindo sobre os motivos?

Steiner fez que sim.

— Harras tem razão, tenente. Afinal, o que é que sabemos dos desconhecidos que se mantêm numa dimensão estranha? Ragow até que foi inteligente quando resolveu ir às montanhas.

— Se andarmos depressa, ainda poderemos alcançá-lo — disse Rous, olhando para cima. — A nave desloca-se cada vez mais depressa.

Josua mexeu nervosamente nos controles de seu traje de luta. Rous franziu a testa, mas Steiner e Harras seguiram o exemplo do africano.

— Não me digam que querem voar! — admirou-se Rous.

— E se nos tornássemos invisíveis? — perguntou Harras. — Até agora supúnhamos que os habitantes da outra dimensão temporal não nos viam, porque aos seus olhos somos rápidos demais.

— Podemos usar os campos energéticos defensivos! — a sugestão de Steiner era muito melhor que a de Harras.

Mas Josua sacudiu a cabeça.

— Não; deveríamos sair voando. Para as montanhas, as cavernas.

Rous sabia que uma velocidade não superior a três metros por segundo não representaria o menor perigo. Face à composição dessa atmosfera, uma velocidade relativamente elevada como esta não teria nenhum efeito desfavorável. Sentiriam apenas um ligeiro calor provocado pêlo atrito.

— Devemos ter muito cuidado — advertiu. — Ninguém deverá voar mais depressa que eu. Também acho que uma marcha a pé não nos adiantaria muito.

Steiner foi o último a elevar-se no ar. Sustentado pelos campos antigravitacionais, pairou poucos metros acima dos companheiros.

— É maravilhoso deixar as pernas balançando. Vamos voar em formação unida?

— Gostaria de ver os rostos dos “uuuns”, se é que nos viram — disse Harras enquanto subia, seguido de perto por Josua, que parecia muito satisfeito porque sua sugestão fora aceita.

Rous subiu por último.

— Fiquem logo atrás de mim e não voem muito depressa. Assim que o calor se torne muito forte, freiem. Garanto-lhes que eu nunca poderia imaginar que a densidade do envoltório atmosférico depende do tempo que se escoa em seu interior.

A expressão não era bem correta, mas atingia o cerne do problema. Na verdade, era o tempo que modificava este mundo a ponto de causar uma subversão aparente nas leis mais elementares da natureza. Se o fluxo do tempo pudesse ser acelerado em 72 mil vezes, este mundo estranho voltaria ao normal.

Ou será que este mundo era real?

Será que o plano temporal estranho era o normal?

Estas indagações atingiram a mente de Rous com a intensidade de um raio. Sentiu a impressão de ter envolvido a chave do problema.

Deslocaram-se poucos metros acima do solo pedregoso. Rous deu-se conta de que no início de sua aventura nem pensaram na possibilidade de que, se necessário, poderiam voar.

Quase haviam esquecido seus trajes especiais.

Steiner lançou um olhar para o céu e exclamou:

— A nave persegue-nos, mas é mais lenta que nós! Quer dizer que não nos querem perder de vista. De qualquer maneira, estamos desenvolvendo sessenta vezes a velocidade do som, se quisermos encarar a coisa sob este ângulo.

Rous acenou lentamente com a cabeça.

— Estão sentindo o calor? Atrás de nós está surgindo um verdadeiro vácuo, porque o movimento do ar é muito lento — também olhou para o alto. — É verdade, Steiner. A nave-câmera nos persegue.

Cruzaram o rio e o vale e atingiram a encosta suave que já conheciam. A pequena nave ficara bem para trás. Ao que parecia, conseguia percorrer uns dois centímetros por segundo, isto é, desenvolvia pelo menos quatro vezes a velocidade do som.

— Será que ainda nos vêem? — perguntou Harras.

— Não acredito que o alcance das câmaras chegue até aqui — disse Rous, sacudindo a cabeça. — Do contrário não teriam necessidade de seguir-nos.

Dali a alguns minutos, viram junto à rocha dois vultos humanos que se moviam. E neste mundo imobilizado qualquer movimento logo despertava a atenção.

Eram Ivã Ragow e André Noir!

No momento em que o pé de Rous tocou o chão, Steiner soltou um grito estridente. O braço estendido do físico apontava para a planície. Os homens seguiram seu olhar e ficaram estarrecidos.

Rous sentiu uma mão fria comprimir seu coração, pois estava assistindo a fatos que comprovavam suas suspeitas. No lugar em que pouco antes estivera a árvore em forma de forca só havia um feixe energético ofuscante, que parecia descer verticalmente, envolvendo a árvore a ponto de só deixar Rous perceber uma silhueta confusa da mesma.

Disse com a voz zangada:

— Eles demoraram muito a atacar. O raio mortífero nos teria atingido, e não seríamos suficientemente rápidos para desviar-nos. Afinal, a luz ainda desenvolve seus quatro quilômetros por segundo, o que representa uma velocidade inconcebível para este mundo da rigidez. Aquilo ali é um raio energético disparado contra nós. Isso prova que os “uuuns” nos descobriram. E descobrimos mais uma coisa: têm a intenção de matar-nos.

— Aquilo ali é um raio energético? — perguntou Rous e inclinou a cabeça, enquanto procurava rememorar seus conhecimentos de física. — Pode ser tão demorado?

Rous sorriu e continuou:

— Qual é o significado da palavra demorado num mundo como este? Admitamos que o senhor dispare um raio energético com a duração de um centésimo de segundo. Se a nave estiver a quatrocentos quilômetros de altura, o raio levará exatamente um minuto e quarenta segundos para atingir a superfície. E depois, feita a respectiva conversão, permanecerá no espaço por doze minutos. Para os “uuuns” doze minutos equivalem exatamente a um segundo. Se minha suposição for correta, daqui a pouco o raio se apagará. O processo de extinção começará na parte superior e progredirá à velocidade de quatro quilômetros por segundo.

— É inacreditável! — observou Steiner, mas acrescentou: — Contudo, não deixa de ser lógico.

Rous disse em tom pensativo:

— Nem por isso podemos concluir que em quaisquer circunstâncias poderemos desviar-nos de um disparo energético. Tivemos sorte por termos mudado de posição. Se ainda estivéssemos perto daquela árvore, estaríamos irremediavelmente perdidos. Mesmo que o raio se desloque à velocidade de apenas quatro quilômetros por segundo, não o veremos antes de sermos atingidos por ele. Para todos os efeitos práticos, tanto faz que o raio se aproxime a uma velocidade de quatro ou de trezentos mil quilômetros por segundo.

Steiner olhou para o céu nublado.

— O que acontecerá se resolverem fazer nova ajustagem de seus dispositivos de mira?

Rous sacudiu a cabeça.

— Não se preocupe, Steiner. Já pensei nisso. Aqui não corremos o menor perigo. O senhor acha que os “uuuns” seriam capazes de matar sua própria gente? Dificilmente assumirão o risco de destruir uma de suas povoações.

Ragow, que se encontrava agachado perto de um provável habitante daquele mundo, voltou a erguer-se. Em seu rosto havia uma expressão indagadora.

— Não compreendo — disse enquanto se levantava. — Esses seres têm naves espaciais e canhões energéticos, mas vivem em cavernas. Como podemos combinar esses fatos?

Mesmo desta vez a resposta de Rous foi imediata.

— Basta recuar cem anos, Ragow. Como eram as condições na Terra? Os antepassados de Josua talvez ainda vivessem na selva africana e ficavam felizes quando conseguiam abater um leão com suas lanças. E na mesma época a primeira bomba atômica foi construída a cinco mil quilômetros daquele lugar. Se entre os habitantes de um mesmo planeta pode haver tamanha diferença no desenvolvimento técnico e cultural, essas diferenças serão muito maiores quando a mesma raça povoa uma série de sistemas solares...

Ragow acenou lentamente com a cabeça.

— E claro que o senhor tem razão, tenente. Nunca se devem tirar conclusões precipitadas, esquecendo a própria história. Quer dizer que o senhor está convencido de que estas lagartas são as inteligências dominantes desta dimensão temporal?

— Apenas podemos formular suposições, Ragow. Só poderemos ter certeza quando pela primeira vez nos defrontarmos com os “uuuns”. Devo confessar que a perspectiva desse encontro me causa uma sensação nada agradável.

Noir apontou para o céu.

— A nave-câmara não se aproxima. Está parada.

— Acho que seria fácil voar até lá e derrubar esse artefato. — conjeturou Harras.

Rous lançou-lhe um olhar rápido.

— O senhor ficou louco?

— Por quê? Afinal, fomos atacados. Temos o direito de nos defender. Ninguém sabe quanto tempo teremos de passar neste mundo. Não estou com vontade de correr constantemente dessas “lesmas”.

— Harras tem razão! — disse Steiner.

Noir e Josua fizeram um sinal de assentimento. E o rosto de Ragow também não parecia exprimir uma opinião contrária.

— Hum — fez Rous, compreendendo que acabara de ser derrotado pela maioria. — Acho que a coisa não será tão fácil como Harras imagina. Não nos esqueçamos de que os “uuuns” podem ver-nos e...

— Só nos vêem quando estão na nave-câmera. Se esta for destruída, levarão uma eternidade para encontrar um substituto — Harras parecia entusiasmado pela idéia. — Pego um radiador portátil e fundo as câmaras. Depois procurarei danificar a nave, para que caia.

Rous lançou os olhos para o alto.

— Olhem! — gritou subitamente. — O raio energético está se apagando.

Viram perfeitamente.

O processo prosseguia de cima para baixo, com uma velocidade enorme, mas também com uma relativa lentidão. Pela primeira vez na história, olhos humanos puderam seguir o percurso da luz. Nada menos de dez segundos se passaram até que o raio se extinguisse de vez.

O centésimo de segundo havia chegado ao fim.

Harras mexeu no cinto em que estavam guardados os instrumentos.

Rous disse:

— Andei pensando em certas coisas, e quero pô-los a par do resultado de minhas reflexões. Há uma hora ainda receávamos que um disparo de nossas pistolas de radiações poderia causar uma catástrofe, porque os impulsos luminosos percorreriam a dimensão estranha a uma velocidade 72 mil vezes maior. Até receávamos que a estrutura espaço-temporal pudesse ser rompida. Agora já não penso assim.

— Por quê? — perguntou Steiner em tom indiferente.

— Porque estamos transmitindo mensagens pelo rádio. E as ondas de rádio desenvolvem a mesma velocidade da luz. Alguém observou um efeito estranho? Ninguém, não é? Conclui-se que nada acontecerá se nesta dimensão alguma coisa se deslocar em velocidade superior à da luz, em termos relativos. Por isso acredito que Harras poderá usar tranqüilamente seu radiador de impulsos.

— Para dizer a verdade — começou Harras, esforçando-se para conservar a calma — já me tinha esquecido dessas especulações. Teria atirado de qualquer maneira.

— O senhor sempre foi um homem impulsivo — repreendeu-o Ragow, lançando um olhar pensativo para os “uuuns” que se encontravam diante das cavernas. — Tomara que depois disso tenha oportunidade de examinar estas lagartas.

— Não tenho a menor idéia de como pretende fazer isso — confessou Rous.

O cientista sorriu.

— Mas eu tenho — disse com a maior tranqüilidade.

 

— O processo de retardamento ainda é muito demorado.

— Nunca conseguiremos matá-los, pois são rápidos demais.

— Foram para as montanhas. Enquanto permanecerem nas proximidades dos escravos de asas, não poderemos atacar.

Os contatos de relê deram um estalido, as telas iluminaram-se e figuras coloridas percorreram a lâmina opaca. Em algum lugar, nas profundezas da nave, os reatores estavam zumbindo.

— Devemos tentar acelerar o processo de retardamento, para que os acontecimentos não resvalem longe demais para o passado. Como poderemos destruir um inimigo que sempre se mantém umas cinco ou dez unidades de tempo no futuro? Nunca o alcançaremos!

Mais uma vez, os rostos envoltos em sombras inclinaram-se sobre as telas. Examinaram principalmente a décima, que retransmitia os acontecimentos de alguns minutos atrás. Mostrava-os da forma pela qual os veria alguém que vivesse setenta mil vezes mais depressa que o espectador.

— Eles sabem voar, mestre.

— Sem asas. Provavelmente conseguem eliminar a gravidade.

Houve uma pausa prolongada. Depois alguém disse:

— Um deles aproxima-se de nós.

— Sozinho!

— O que pretende fazer? Subitamente a voz prosseguiu num tom apavorado e com uma súbita certeza:

— Traz uma arma e se dirige para nossa nave-câmera. Acontece que aquilo que estamos vendo aconteceu há algumas unidades de tempo. Devemos fazer alguma coisa e...

— Já é tarde!

De um instante para outro as dez telas se apagaram.

A análise dos desconhecidos, realizada pelo sistema de câmara lenta, foi interrompida.

Viviam num passado de cinco minutos. E esses cinco minutos eram demais...

 

Fred Harras não se sentiu muito bem quando se aproximava lentamente da nave imóvel, com o radiador de impulsos pronto para disparar.

A nave devia ter uns dez metros de comprimento; seus cálculos haviam sido corretos. Cem metros abaixo de Harras ficava a superfície do planeta desconhecido. Flutuava sobre a mesma, libertado de seu peso, e controlava o vôo por meio dos instrumentos embutidos no cinto que trazia sob o uniforme. Era como se boiasse na água.

A nave estava a apenas alguns metros. Viu nitidamente as objetivas de dez câmaras. A primeira delas dirigiu-se para ele. Devia ter demorado uns cinco minutos até que notassem sua presença.

A teoria de que a análise pelo processo de câmara lenta demorava alguns minutos parecia confirmar-se.

Falando para dentro do microfone do transmissor embutido no anel, Harras disse:

— Estou à distância de tiro. Devo...?

— O que está esperando? — soou a pergunta de Rous, que na verdade representava uma ordem.

Harras acenou com a cabeça e fez pontaria para a primeira câmara. O estreito feixe energético atingiu-a e a fundiu num segundo. Acontece que a câmara havia sido produzida em outra dimensão temporal, motivo por que obedecia às leis naturais que prevaleciam nesta. Harras pôde notar o processo de fusão, mas os pingos de metal e os gases produzidos pelo mesmo tiveram o mesmo comportamento dos demais objetos desse mundo tresloucado.

As peças incandescentes se deslocavam com uma lentidão inacreditável, embora tivessem recebido uma aceleração notável, produzida pelo impulso energético que se deslocava à velocidade da luz. Mas dali a alguns metros sua velocidade diminuiu.

A segunda câmara também se derreteu, depois a terceira, a quarta...

Dentro de trinta segundos a destruição foi completada. Se os desconhecidos não possuíssem outra nave-objetiva, estariam “cegos”.

Harras hesitou. Deveria descer à superfície, ou seria preferível tentar derrubar a nave? A mesma executou um movimento quase imperceptível. Não representava um perigo para eles, mas era possível que em seu interior existissem elementos que poderiam representar alguma indicação sobre o inimigo desconhecido da outra dimensão temporal.

Que Rous decidisse. E Rous tomou sua decisão:

— Caso acredite que pode atingir e destruir uma peça vital, tente. Talvez a derrube. Nesse caso Steiner terá o que fazer.

“Talvez na popa”, pensou Harras e contornou cautelosamente o objeto prateado.

Teve o cuidado de não penetrar no raio de propulsão perfeitamente visível, que saía dos bocais a uma velocidade não superior a quatro quilômetros por segundos. O que representavam esses quatro quilômetros face à verdadeira velocidade da luz?

Recuou um pouco, desviou-se, levantou a arma e dirigiu-a para o conjunto de bocais de popa. Depois comprimiu o botão acionador.

O resultado foi perfeitamente visível e bastante impressionante. A nave explodiu.

Mas explodiu em câmara lenta. No início, a dilatação chegava a cinqüenta centímetros por segundo, mas depois foi-se tornando mais lenta. Harras não teve a menor dificuldade em desviar-se dos destroços que começavam a descer com a lentidão de penas. Trinta segundos depois da explosão, esses destroços flutuavam, aparentemente imóveis. Tinha de olhar atentamente para notar que desciam com uma lentidão incrível, enquanto as peças menores caíam mais depressa. O envoltório esférico assumiu o formato de um ovo, isso em virtude da gravitação.

Em seu receptor Harras ouviu as exclamações dos companheiros, que contemplavam o fenômeno do solo.

— É incrível!

Devia ser Steiner, que nunca deixava de admirar-se sobre os efeitos oticamente perceptíveis da dilatação do tempo, embora os compreendesse perfeitamente.

— Volte! — gritou Rous em tom preocupado. — Senão o senhor acabará sendo atingido pelo raio vingador da nave-mãe, se é que esta existe.

— Quem poderia ter descoberto nossa entrada nesse mundo senão ela? — disse Harras e desceu obliquamente. Passou pelos destroços, que atingiriam o solo a pouco menos de duzentos metros dali, no lugar exato em que devia encontrar-se a gazela, naturalmente em sua própria dimensão temporal.

 

Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam, Ivã Ragow não permaneceu inativo.

— Parece impossível — disse Rous, enquanto o zoólogo explicava seu plano — que até a gravitação está ligada ao tempo. O que lhe deu essa idéia, Ragow?

O cientista exibiu um sorriso quase tímido.

— Bem, as relações não são tão estreitas como as que existem entre o tempo e o espaço, mas são inegáveis. E convém não esquecer que minha opinião não passa de uma simples teoria. Só a prática dirá se é correta. O que me deu a idéia? É simples! Fiquei refletindo para descobrir um meio de vencer a inércia destas lagartas petrificadas. Só a energia não basta; logo, deve-se recorrer a outra coisa. E essa outra coisa poderá perfeitamente ser a gravitação.

— O senhor tem razão — disse Steiner e lançou um olhar para o alto, contemplando Harras que se esforçava para não se aproximar excessivamente da onda de calor. Descia à velocidade de quatro metros por segundo. — Quer dizer que pretende colocar uma dessas lagartas num campo antigravitacional a fim de vê-la se mover?

— Exatamente! — confirmou o russo e passou a manipular os controles de seu traje especial arcônida. — Além disso, porei a funcionar minha abóbada energética. Talvez consiga gerar um campo temporal próprio no interior da mesma. Não sei se compreende o que quero dizer.

Os homens fitaram-se. Rous sacudiu a cabeça.

— O senhor tem muitas idéias; ninguém poderá negar isso. Criar um campo: temporal autônomo...?! Quer dizer que o senhor acredita que talvez seja possível’ aproximar os dois planos temporais, através da criação de outro campo, um campo neutro, que possibilitaria a comunicação com os desconhecidos, mais precisamente, com os “uuuns”?

— Sim; é o que quero dizer. Exatamente isso.

— E pretende fazer tudo isso no interior de uma pequena abóbada energética?

— Perfeitamente; ali posso criar as condições que desejar. Poderei eliminar a gravitação, gerar qualquer temperatura que me agrade, modificar minha posição, enquanto as condições permanecem...

— Mas não conseguirá modificar a condição temporal preexistente.

Ragow continuava a exibir seu sorriso modesto.

— Quem foi que lhe disse isso? Até parece que o senhor se esquece de que a velocidade da luz é parenta próxima do tempo. E, conforme constatamos, neste mundo a velocidade da luz não ultrapassa quatro quilômetros por segundo. E no interior da abóbada energética estarei protegido contra o calor gerado pela fricção com a atmosfera. O que acontecerá, portanto, se nessas condições eu me deslocar à velocidade de doze ou treze mach?

Rous fitou-o perplexo. Em seus olhos surgiu um início de compreensão. E Steiner acenou lentamente com a cabeça. Noir demonstrou uma admiração indisfarçada pelas conclusões arrojadas do cientista. Josua manteve uma atitude de expectativa.

Quando Harras pôs os pés no chão, mal teve tempo de assistir ao início da experiência.

Um dos “uuuns” manteve-se um pouco afastado do grupo. Ragow colocou-se a seu lado e com um gesto resoluto ativou a abóbada energética. A figura cintilante tinha um metro e meio de diâmetro e três de altura. Envolveu o cientista e a lagarta que parecia petrificada.

Depois Ragow acionou outra chave de seu traje. Manteve-se completamente imóvel, para não esbarrar no teto da abóbada energética, pois com a eliminação da gravidade perdia seu peso.

Um sorriso leve surgiu em seus lábios quando se abaixou e levantou o “uuum” com uma das mãos. Isso mesmo: levantou-o. Aquele ser, aparentemente emparedado no tempo, começou a mover-se de uma hora para outra. Era bem verdade que seu interior continuava petrificado e aparentemente morto, mas o conjunto do corpo perdeu a rigidez. A gigantesca lagarta com suas asas vítreas flutuava lentamente ao lado de Ragow.

Subitamente Ragow mexeu em outro controle. A abóbada energética com seu conteúdo vivo subiu rapidamente. Dentro de poucos segundos, a velocidade de Ragow ultrapassou o limite de segurança que até então vinham observando e o cientista desapareceu rapidamente dos olhares dos companheiros.

Rous fitou Steiner.

— Não deveríamos ter permitido que voasse por aí — disse o tenente. — Quem sabe se suas teorias são corretas?

— Deveríamos ter pensado nisso mais cedo — respondeu o físico. — Mas acredito que não temos motivo para preocupações. Será que poderíamos entrar em contato com ele por meio do rádio?

Rous tentou, mas o resultado foi negativo.

— Talvez não tenha tempo — conjeturou Harras, que fora posto a par da situação por Noir. — Deve ser isso! Quando me encontrava lá em cima para destruir a nave, quase cheguei a esquecer-me de que possuo um transmissor.

— Ragow não tem tempo? — perguntou Steiner em tom de incredulidade. — Ele está modificando o tempo; logo, não pode deixar de tê-lo.

Ninguém disse nada. Sentiam-se oprimidos pelo peso da imobilidade.

E pelo silêncio, interrompido somente por um prolongado uuuuum...

 

— Devemos deixar para depois os estranhos que penetraram em nossa dimensão. Por enquanto temos de providenciar para que os escravos cuidem das criaturas de que nos apossamos. Trata-se da população de um planeta. Será que com isso não conseguimos uma aproximação sensível das dimensões temporais?

— Pelo que dizem os cientistas, os estranhos acabam adotando nosso fluxo temporal, motivo por que não exercem qualquer influência sobre o mesmo. Não se espera um ajustamento total das duas dimensões.

— Temos de alcançar esse ajustamento; do contrário voltaremos a viver na solidão como sempre vivemos. Voltaremos a resvalar para a eternidade solitária da ausência do tempo. É bastante duvidoso que depois disso voltemos a ter uma chance de entrar em contato com as outras inteligências do Universo.

A grande nave voltou a acelerar e sua velocidade ultrapassou a da rotação do planeta colonial.

Dali a alguns minutos, o alarma soou pelos amplos corredores e salões.

— O que aconteceu?

— Não sei. O mestre dirá.

— Atenção, todos! Houve uma invasão de nossa dimensão, vinda de outro plano temporal. Trata-se de uma invasão violenta. Estamos sendo atacados.

— Atacados?

— Sim, atacados!

Levaram nada menos de cinco segundos para esboçar a reação.

Foram cinco segundos preciosos. Cinco segundos que foram demais...

 

Ivã Ragow estava com o “uuum” imobilizado.

Numa altitude de dez quilômetros, atravessava vertiginosamente a atmosfera do planeta estranho; a abóbada energética protegia-o. O reator de seu traje especial garantia uma velocidade cada vez maior. Ao contrário do Tenente Rous, Ragow estava convencido de que a ultrapassagem da velocidade da luz que prevalecia nesse mundo provocaria certos efeitos.

Três quilômetros por segundo!

Isso correspondia aproximadamente a 255 mil quilômetros por segundo, no Universo de Ragow. A dilatação einsteiniano ainda não se tornou perceptível, ao menos num grau em que pudesse ser registrada.

O “uuum” não se mexeu. Mantinha-se imóvel ao lado de Ragow sustentado no interior da cabine energética pelos campos energéticos. Neste meio tempo, a lagarta levantara a presa direita por alguns centímetros.

Ao ler nos instrumentos que estava percorrendo três mil novecentos e noventa metros por segundo, Ragow percebeu a primeira modificação no objeto de sua experiência. De início as duas presas se moveram, depois os pés e finalmente as finas asas e os olhos.

Os olhos! Fitavam Ragow!

Quatro quilômetros por segundo. Pouco menos que a velocidade da luz. Talvez fosse suficiente.

O “uuum” parecia despertar de um sono profundo. Uma expressão inteligente surgiu em seus olhos. Ao que parecia, começava a compreender que algo de extraordinário estava acontecendo com ele ou com o ambiente em que se encontrava. Fez um movimento que o projetou contra a barreira invisível do campo energético, que o repeliu e fez com que se deslocasse em sentido oposto.

Soltou um grito ligeiro e agudo.

Ragow sorriu; estava satisfeito. O ajustamento ótico era seguido pelo acústico. O “uuum” longo e profundo transformara-se num pio agudo. Talvez a lagarta ainda se movimentasse um pouquinho mais devagar que ele mesmo. Mas de qualquer maneira fora arrancada daquela rigidez notável.

— Fique bem quietinha, lagartinha — disse o cientista em tom paternal e apontou para baixo, onde uma camada de nuvens fechava a vista sobre a superfície do planeta. — Se você cair daqui quebrará os ossos, a não ser que escorregue imediatamente para seu preguiçoso plano temporal.

O “uuum” inclinou ligeiramente a cabeça e procurou ouvir o som da voz de Ragow. Não compreendeu o sentido das palavras, mas parecia sentir o tom de advertência. A expressão dos olhos passou do espanto ao pânico.

Ragow reduziu a velocidade da cápsula energética. Imediatamente os movimentos do “uuum” voltaram a tornar-se mais lentos. Com a redução da velocidade aquele ser retornava ao seu plano temporal.

O cientista praguejou baixinho.

— Paciência, tenho que tentar de outro jeito! — disse em tom obstinado e voltou a acelerar.

Nem ele nem o “uuum” sentiram qualquer espécie de pressão, pois os campos antigravitacionais criavam um ambiente que não poderia ser atingido por qualquer influência vinda de fora.

— Estou curioso para ver o que vai acontecer! — sussurrou.

O minúsculo ponteiro da escala aproximou-se de uma marcação que não estava assinalada, pois no Universo normal não possuía qualquer significado especial.

— Quatro mil, cento e sessenta metros por segundo! Era a velocidade da luz! Ao menos aqui... — disse admirado.

Os movimentos do “uuum” eram completamente normais e em relação à velocidade correspondiam exatamente aos de Ragow. O ajuste total das duas dimensões temporais acabara de ser realizado, mas a situação criada era instável. Qualquer modificação na velocidade faria com que os dois planos temporais voltassem a afastar-se.

Quatro mil, cento e sessenta metros por segundo!

Sem dúvida aconteceria aquilo que ele previra quando a velocidade voltasse a ser inferior à da luz. Mas o que aconteceria se antes disso a velocidade da luz fosse ultrapassada? Ragow já se formulara esta pergunta, mas não encontrou qualquer resposta que possuísse fundamento lógico. Praticamente não havia qualquer possibilidade de ultrapassar a velocidade final, mas neste ambiente de tempo retardado era possível.

O que aconteceria?

Cinco quilômetros por segundo. Dez quilômetros.

Era muito mais que a velocidade da luz. Ragow observou o “uuum” com a mesma atenção que dedicou ao próprio corpo. Não notou qualquer alteração. Os movimentos da lagarta continuavam absolutamente normais; apenas tentava adaptar-se ao estado de ausência de gravidade.

Ragow ligou o transmissor e chamou Rous. A resposta demorou alguns minutos. As pessoas com que pretendia entrar em contato encontravam-se trezentos quilômetros à sua frente.

— O que houve? — perguntou Rous. — Onde se meteu, Ragow? Já estávamos preocupados.

— Sem motivo, como sempre — disse o russo para tranqüilizá-lo. — Neste instante, estou correndo a uma velocidade relativa superior à da luz pelas camadas superiores da atmosfera. O comportamento do “uuum” é normal. Permanece em nosso plano temporal.

— Pretende pousar?

A resposta demorou um pouco:

— Estou com vontade, mas receio que depois disso o objeto de minhas experiências volte a transformar-se numa massa petrificada. É bem verdade que tenho uma esperança que pode parecer maluca...

— Diga logo!

— Ultrapassei a velocidade da luz. É possível que algum fenômeno desconhecido tenha estabilizado a dimensão temporal.

— É apenas uma suposição! — disse Rous em tom decepcionado. — Pouse logo.

Ragow reduziu a velocidade, sem tirar os olhos do “uuum”.

Três quilômetros por segundo... dois...

Os movimentos do “uuum” continuaram normais. Não se via o menor sinal de retorno ao plano temporal mais lento.

Um quilômetro por segundo.

Ragow quase não acreditou, mas não havia a menor dúvida: a dimensão temporal do “uuum” ajustara-se à sua. A ultra-passagem da velocidade relativa da luz produzia a fusão das suas dimensões.

Só o futuro diria se o processo era duradouro, ou se apenas se tratava de efeito transitório.

Ragow continuou a reduzir a velocidade e desceu. Mal tocou o solo pedregoso do planeta, desligou o campo energético e deixou que a gravitação normal retornasse. O “uuum”, que mantinha o corpo ereto, tinha uns vinte centímetros menos que ele.

A estranha criatura lançou olhares atentos e curiosos em todas as direções.

Evidentemente a visão de seres humanóides não constituía novidade para ele.

— Até que é um sujeito engraçado — disse Steiner. — Está completamente normal? Move-se com a mesma rapidez que nós? É incrível!

Ragow deu de ombros.

— Depois poderemos quebrar a cabeça sobre isso. De qualquer maneira, sei que podemos trazer qualquer ser para nosso plano temporal, desde que queiramos. Para os “uuuns” a coisa é mais fácil; basta passar por cima de nós com sua frente temporal, e estamos transformados.

— O que pretende fazer com ele?

Ragow não respondeu. Fitou atentamente o “uuum” quando o ser se pôs sobre as pernas curtas e saiu andando. Soltou gritos agudos, que nem de longe lembravam o “uuum” que antes emitira.

A lagarta caminhou até as cavernas e subitamente estacou. Ragow, que o seguira, percebeu o motivo: reconhecera seus companheiros imobilizados.

Era a primeira prova visível da inteligência desses seres. A hipótese de se tratar realmente dos donos da outra dimensão obteve um reforço.

Ragow quase chegou a assustar-se quando percebeu a expressão indagadora nos olhos negros do “uuum” que o fitava. Depois o estranho ser começou a tatear os companheiros enrijecidos com as presas e a examiná-los. Isso demorou dez minutos. Os seis homens acompanhavam seus movimentos numa expectativa muda e ansiosa, sempre dispostos a repelir um eventual ataque.

Subitamente o “uuum” virou-se e caminhou em sua direção. Parou à frente de Ragow.

Será que o conhecia?

Noir saltitava nervosamente. Rous cochichou ao seu ouvido:

— É telepata? Está notando alguma coisa?

— Sou apenas um hipno — respondeu Noir. — Infelizmente não sei ler pensamentos; só posso influenciar o cérebro de outras criaturas. Mas posso criar no cérebro do “uuum” certas imagens mentais que o façam compreender o que desejamos dele. Se formulo uma imagem visual em minha mente, o “uuum” também a enxergará. Ainda posso ordenar-lhe que não fuja, se é isso que o senhor deseja.

— Por enquanto prefiro que conserve sua vontade — disse Ragow. — Por isso peço-lhe que se limite a procurar uma forma de comunicação através de imagens mentais.

O hipno acenou com a cabeça e pôs-se a trabalhar.

Encontrou um aluno muito inteligente...

 

Trouxeram mais dois “uuuns” para sua dimensão temporal, com o que provaram que o resultado obtido com a primeira experiência de Ragow não era fruto do acaso. Mas nem mesmo Steiner conseguiu encontrar uma explicação fundamentada para o fenômeno. Só lhes restava aceitar o fato como tal e deixar as perguntas em aberto. Rous afastou-se juntamente com Harras, a fim de não perturbar as experiências de Noir. Ragow também estava muito ocupado, e preferia ficar só. Steiner voava em direção aos destroços da nave-câmara, que continuavam a descer, a fim de iniciar o exame dos mesmos. Josua montava guarda sobre uma rocha mais elevada.

— Será que devíamos trazer um dos arcônidas de volta ao nosso tempo? — disse Rous, apontando para a planície, onde o destacamento policial petrificado do administrador de Tats-Tor levava uma existência imóvel.

— Para quê? — perguntou Harras. — Não devemos nada a esses sujeitos convencidos; pelo contrário. Além disso, não compreenderiam; diriam que somos culpados de tudo.

— Concordo plenamente com o senhor, mas não é assim que devemos pensar. Rhodan nos confiou uma tarefa, e esta foi cumprida quase completamente. Apenas não conseguimos voltar e apresentar nosso relatório. A esta hora devem estar preocupados conosco e talvez resolvam agir. A gazela ainda deve estar no mesmo lugar.

— Se é que resistiu ao ataque e o GCR continua intacto — comentou Harras.

Uma sombra passou pelo rosto de Rous.

— Este é o ponto mais importante. Qual é o motivo da falha do aparelho? O fato deve ter ocorrido independentemente de qualquer intervenção humana, pois quando aconteceu não havia um único ser humano em Tats-Tor. Além disso, estou convencido de que isto aqui — com um movimento amplo apontou para a planície, até o horizonte distante — não é Tats-Tor. Encontramo-nos em outro planeta. Apesar disso a gazela só pode estar perto da árvore-forca. Será que dois planetas podem existir simultaneamente no mesmo lugar?

Harras sacudiu a cabeça.

— Simultaneamente nunca, tenente. Acontece que os dois planetas constituem mundos que vivem em dimensões temporais diferentes; por isso é possível que se encontrem aparentemente no mesmo lugar. Na verdade, só permaneceram simultaneamente no mesmo lugar por um milionésimo de segundo, que é o momento em que se verificou o contato.

Rous pôs as mãos nos quadris.

— Quer saber de uma coisa, Harras? Não devemos pensar muito sobre isso. Nunca desvendaremos o mistério, ao menos enquanto permanecermos no terreno das sutilezas especulativas. Se um dia conseguirmos esclarecer tudo, isso só se verificará por meio da física ou da matemática. Talvez Steiner possa ajudar.

Olharam para cima. Viram perfeitamente que a uns cinqüenta metros de altura o físico achava-se entre os destroços da nave. Steiner ainda estava examinando as peças que lhe pareciam importantes e procurava introduzi-las no envoltório energético. Conseguiu fazê-lo por meio do campo antigravitacional.

Rous ligou o rádio.

— Conseguiu alguma coisa, Steiner?

— Depende... — respondeu Steiner prontamente. — Ainda não sei como estes fragmentos poderiam ser examinados. Estão submetidos às leis da outra dimensão temporal. Assim que saem do campo antigravitacional de meu traje especial; não consigo movê-los.

— Aplique o método de Ragow. Aquilo que aconteceu com os seres orgânicos também deverá funcionar com a matéria inorgânica. Faça uma viagem com eles.

Steiner compreendeu imediatamente.

— É uma ótima idéia. Ultrapassarei a velocidade da luz e trarei as peças para nosso plano temporal. Se começarmos a refletir sobre isso, concluímos que é um absurdo.

Deixou que os dois homens que se encontravam em terra contraditassem sua tese e saiu voando com sua abóbada energética. Os destroços que ficaram para trás continuaram a descer tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. A velocidade da queda aumentava lentamente, mas demorariam a atingir o solo. Provavelmente o impacto infinitamente lento os romperia ou deformaria com a mesma vagarosidade.

— Quer saber o que estou pensando, tenente? — perguntou Harras, olhando para o lugar em que Steiner desaparecera no horizonte.

— O que é?

— Estamos vivendo na outra dimensão, e até agora conseguimos rechaçar todos os ataques. Até gozamos de certa superioridade sobre os desconhecidos. Mas as diferentes concepções sobre o tempo deixam-me confuso. Veja só o que Ragow fez: conseguiu... bem, quase diria que conseguiu inverter “os pólos do uuum”. Mas o que gostaria de saber, tenente, é quanto tempo se passou realmente... Lá na nossa dimensão, quero dizer.

Rous fitou-o atentamente.

— Isso é uma coisa que ninguém de nós sabe, meu caro. Só podemos fazer votos de que a diferença não seja muito grande.

Calou-se, porque nesse instante o receptor embutido em seu anel emitiu um zumbido. Comprimiu um botão.

— Alô; quem está falando?

— É Steiner. Preste atenção, Rous! Acabo de encontrar uma coisa. Está a uns cem quilômetros ao oeste do platô em que você se encontra. Poderia vir o mais rápido possível?

— O que é?

Seguiu-se uma ligeira pausa, depois da qual Steiner disse:

— É um girino da classe de sessenta metros, pousado no solo. Se não me engano, traz uma designação usual entre nós: K-7.

O Tenente Marcel Rous teve a impressão de que seu coração iria parar.

A K-7 era comandada por ele há exatamente três meses, quando o planeta Mirsal III foi assaltado e despovoado pelos seres da outra dimensão temporal. De início Becker tornou-se invisível e desapareceu por completo juntamente com dois outros homens. Depois, quando retornou duma excursão à cidade abandonada, a nave auxiliar K-7 também deixara de existir. Os desconhecidos haviam levado a nave juntamente com os tripulantes, e desde então esta foi dada como perdida.

E agora... três meses depois!

Rous respirou profundamente e disse:

— Fique onde está e transmita sinais goniométricos, Steiner. Irei imediatamente.

— Irei com o senhor — disse Harras em tom resoluto.

 

Só encontraram Steiner graças aos sinais goniométricos irradiados por seu transmissor. De uma grande altitude dificilmente se reconheceria o girino, que mal se destacava do fundo rochoso. Mas à medida que os dois homens foram descendo, a nave esférica surgia cada vez mais nítida. Estava parada no platô, com a escotilha principal aberta, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

A K-7 desaparecera num tempo em que ninguém suspeitava de que maneira ocorria o cruzamento entre os dois planos temporais.

Steiner fez um sinal para Rous e Harras, que desceram devagar e pousaram suavemente.

— Podia ter entrado, mas pensei que isso cabe ao tenente. Realmente é uma das nossas naves?

Rous acenou com a cabeça; parecia zangado.

— Se é! Até é minha nave, que é considerada desaparecida há três meses. Já desistimos das buscas. Nunca pensei que pudesse reencontrar minha boa e velha K-7. Como foi que a encontrou?

— Foi por um simples acaso, tenente. No momento em que ultrapassei a velocidade da luz e desacelerei para retornar, meus instrumentos registraram a presença de grande quantidade de minérios. Bem, foi só isso. Quando procurei localizar os minérios, encontrei o girino — só agora Steiner parecia compreender o que Rous havia dito. — O que foi que disse, tenente? Esta é sua antiga nave? É mesmo sua nave? Isso seria...

Não soube mais o que dizer.

Rous não lhe deu mais atenção; dirigiu-se à K-7. Harras seguiu-o, depois de ter dado umas palmadinhas no ombro dei Steiner. Às vezes, o físico custava a compreender.

O girino — este nome dado às naves esféricas já se tornara oficial — estava apoiado sobre os suportes telescópicos e, ao que parecia, esperava por alguma coisa. A escotilha aberta levava à conclusão de que os tripulantes se sentiam seguros e tinham certeza de que não corriam qualquer risco.

Enquanto o Tenente Rous se aproximava da K-7, os acontecimentos de três meses atrás voltaram a passar por sua mente.

Naquele tempo, pousaram no planeta Mirsal III, a fim de encontrar-se com o embaixador do computador-regente de Árcon. Foi então que souberam do imenso perigo que ameaçava o Universo. Enquanto ainda se discutiam os detalhes da aliança entre a Terra e Árcon verificou-se um ataque dos inimigos invisíveis contra Mirsal III.

Durante uma missão isolada desapareceram o cadete Becker e mais dois tripulantes da K-7. O Tenente Rous estava presente quando se verificou o acontecimento inacreditável. Logo após saiu da K-7, a fim de fazer uma excursão pela cidade. Quando retornou ao lugar em que estivera pousada a K-7, notou que o girino desaparecera sem deixar o menor vestígio. Pela primeira vez os terranos ficaram sabendo que o temível inimigo não se apoderava apenas dos seres orgânicos.

Isso acontecera em princípios de setembro de 2.040. E agora estavam em princípios de janeiro de 2.041. Quatro meses haviam passado.

E ali, a centenas de anos-luz do local dos acontecimentos, estava a K-7, intacta, como se nada de alarmante tivesse acontecido.

Rous chegou à escada que levava à comporta de ar. Harras estava a seu lado. Os dois homens olharam-se. Cinqüenta metros atrás deles, Steiner achava-se recolhendo os destroços que agora estavam sujeitos às leis de sua dimensão temporal.

— Será que ainda estão vivos? — perguntou Harras em voz baixa. Rous deu de ombros.

— Não sei, Harras. Já se passou muito tempo.

— Talvez — disse Harras em tom misterioso e começou a subir a escada. Nem pensou em deixar o chefe da expedição passar à frente. — Logo saberemos.

Rous seguiu-o até que chegaram à ampla comporta. A escotilha interna também estava aberta. Se estivesse fechada, não saberiam como abri-la. Era de supor que a K-7 estivesse sujeita à nova dimensão temporal e se regesse pelas leis naturais que prevaleciam na mesma.

O corredor estava vazio.

— Vamos à sala de comando — disse Rous e estremeceu quando o eco de suas palavras foi devolvido pelas paredes do corredor. — Talvez estejam em conferência.

Não se encontraram com ninguém. Felizmente os receios de Rous não se confirmaram: todas as portas estavam abertas. A nave parecia deserta. A porta que dava para a sala de comando estava entreaberta.

Um homem que envergava o uniforme verde-claro do Império Solar acabara de entrar na sala de comando e estava fechando a porta. Rous o conhecia de vista. Pertencia à equipe técnica. Estava imóvel e como que petrificado, com o rosto dirigido para o corredor vazio e a mão sobre a maçaneta. Estava fechando a porta, mas isso levaria algumas horas.

Cautelosamente, Rous abaixou-se para passar sob o braço dele e entrou na sala de comando. Suas suposições revelaram-se corretas. Toda a tripulação estava reunida ali. O recinto era apertado, mas todos os homens haviam encontrado lugar. O Tenente Hiller, imediato da K-7, estava de pé sobre um caixote e proferia um discurso. Estava com a boca bem aberta e a palavra que estava proferindo devia conter a letra O.

“Santo Deus, quanto tempo duraria um ‘o’ num lugar como este? Duas horas ou três?”, pensou interrogativamente.

Os olhos dos seqüestrados estavam dirigidos para o Tenente Hiller, com exceção daquele que estava entrando.

— Meu Deus! — gritou Harras, que seguira Rous. — Isto até parece uma reunião... de cadáveres...

— Realmente estão mortos, ao menos para nós — disse Rous com a voz tranqüila. — Felizmente já sabemos como trazê-los de volta à vida. Ah — disse, apontando para um homem que envergava o uniforme dos cadetes da Academia Espacial — ali está Becker. Gostaria de saber como conseguiu chegar ao girino. Quando os desconhecidos foram buscá-lo, estava bem longe dos outros.

Harras não respondeu. Aproximou-se do orador que, segundo dissera Rous, era o Tenente Hiller. Fitou por algum tempo a boca arredondada do oficial e deixou que a visão de um homem congelado no tempo o fascinasse. Depois prestou atenção ao zumbido que enchia a sala de comando e não queria cessar.

— Uma batida do coração dura umas quinze ou vinte horas — disse Rous em meio ao silêncio.

Harras fez um gesto afirmativo; parecia despertar de um sonho.

— Sei, tenente, sei. Como poderemos libertá-los?

— Usaremos o mesmo método que aplicamos para trazer o “uuum” ao nosso plano temporal.

Harras apontou para a porta.

— Acho que devemos andar depressa. Quando esse sujeito tiver fechado a porta, estaremos presos. Conhece algum meio de sairmos de uma armadilha como esta? Eu não conheço.

Rous empalideceu. Infelizmente Harras tinha razão. Quando a porta que dava para a sala de comando estivesse fechada, não haveria como sair dali. Se o imediato resolvesse falar durante dez minutos, isso bastaria para que na realidade se passassem quase dois anos.

Embora a temperatura fosse amena, subitamente sentiu um calor abrasador.

Há quanto tempo se encontravam no plano temporal estranho?

Quanto tempo se passara lá fora? Rous fez um esforço para controlar-se. — O senhor tem razão, Harras. Devemos andar depressa. Pelos meus cálculos ainda deverão passar algumas horas antes que a porta se feche. Peça a Ragow, Noir e Josua que venham até aqui. Aproveite para levar um dos homens. Eu cuidarei de Becker.

Ligou o campo antigravitacional de seu traje, segurou Becker pela cintura e conduziu-o cautelosamente ao corredor. Becker estava rígido como vidro, mas em virtude da ausência de gravidade foi fácil movê-lo. Lá fora explicou a situação a Steiner, que o seguira, deixando para trás os destroços da nave. A tarefa que os esperava ali era mais urgente e mais interessante.

O físico também correu para o interior da nave para tirar um tripulante.

Rous ativou seu campo defensivo e subiu com Becker. Quando atingiu a altitude de dez quilômetros acelerou e assistiu ao “despertar” de seu cadete. No inicio, os movimentos de Becker eram quase imperceptíveis. Mas à medida que os dois planos temporais se aproximavam, tornavam-se cada vez mais visíveis. Depois entraram em sintonia.

Os olhos arregalados de Becker constituíam sinal evidente do que estava acontecendo. Rous fez um gesto e disse:

— Um momento, Becker! Explicarei tudo. Não fale!

Becker olhou para baixo e viu a superfície do planeta deslizar. Rous aumentou a velocidade para cinco quilômetros por segundo, descreveu uma curva bem aberta, retornou pela mesma rota, e reduziu a velocidade. Voltaram a pousar na superfície do planeta, junto à K-7.

Rous desligou o campo defensivo e o campo antigravitacional.

— Seja bem-vindo, cadete Becker — disse com um sorriso forçado. — Pergunte à vontade. Enquanto isso meus homens libertarão seus companheiros. Acho que já sabe que foram prisioneiros. Prisioneiros de outra dimensão temporal.

Becker acenou lentamente com a cabeça, olhou em torno e cochichou em tom assustado:

— Como veio parar aqui? O que diz Sikermann?

Rous empalideceu; viu confirmadas suas suposições, por mais estranhas que fossem.

— Sikermann... bem, Sikermann já se esqueceu do incidente. Fique bem tranqüilo, Becker. Está lembrado do que aconteceu? Ainda sabe como começou tudo?

O cadete Becker acenou com a cabeça; parecia espantado.

— É claro que sei. O senhor mandou que entrasse naquela casa, que desapareceu juntamente com todas as outras casas da cidade. Depois tive a impressão de que alguma coisa me arrastava para fora do mundo visível. Deve ter sido uma espécie de teleportação forçada. Quando voltei a abrir os olhos, estava aqui. Durante um instante Horrahk, Jeffers e eu ficamos sós no platô. Depois a K-7 materializou-se perto de nós, juntamente com a tripulação. Não compreendemos o que estava acontecendo, mas o imediato, Tenente Hiller, mandou que fôssemos à sala de comando. Acreditou que tinha encontrado uma explicação. Apenas disse algumas frases, e depois aconteceu uma coisa estranha.

Os pensamentos de Rous começaram a atropelar-se em seu cérebro. Desconfiava da verdade e receava extrair as conseqüências da mesma. Aquilo que ocorria com Becker e seus companheiros também se aplicava a eles.

Ou será que não se aplicava? Afinal de contas, haviam permanecido em seu plano temporal, embora se encontrassem em outra dimensão.

— O que aconteceu?

— Foi quase a mesma coisa de antes. Vi o Tenente Hiller desaparecer diante dos meus olhos; era como se uma nuvem se interpusesse entre nós. Alguma coisa me arrastava, mas levei alguns instantes para perceber a modificação. Por algum tempo não vi mais nada, e depois vi o senhor.

Rous compreendeu. Antes que os nervos de Becker pudessem transmitir os reflexos, a modificação já se completara.

— Conservamos nossa extensão temporal, muito embora nos encontremos num plano estranho. Mais tarde Steiner poderá explicar tudo. Achamos um meio de transferir seres vivos e matéria orgânica da outra dimensão para a nossa. Resta saber o que acontecerá com o girino. É muito grande para que possamos libertá-lo da prisão do tempo.

Becker sacudiu a cabeça.

— Como foi que o senhor conseguiu fazer isso tão depressa? Quem é Steiner? Também não conheço os outros, com exceção do hipno...

Rous colocou a mão no ombro de Becker.

— Diga-me mais uma coisa, e não se espante com minha pergunta. Sabe dizer quanto tempo se passou desde o momento em que saiu da casa em Mirsal e o outro plano temporal o atingiu e devorou?

Becker lançou um olhar pensativo para seu superior. Percebeu que o Tenente Rous prendeu a respiração enquanto aguardava a resposta.

— Bem — disse, falando devagar — no máximo dois minutos. Mal cheguei ao platô, a K-7 surgiu, abriu a escotilha, o Tenente Hiller apareceu para mandar que...

Rous não estava ouvindo mais.

Começou a desconfiar de que era perfeitamente possível que, ao rever o planeta Terra — se é que um dia conseguisse revê-lo — o mesmo tivesse envelhecido alguns milênios, a não ser que acontecesse um milagre.

Entretanto milagre havia acontecido poucos segundos antes.

 

Dali a pouco, Harras sacudiu energicamente a cabeça.

— Não, tenente, isso é impossível! A K-7 terá de ficar onde está. Nunca conseguiremos retirá-la do plano em que se encontra e restituir-lhe a dimensão temporal que lhe é própria. Aliás, o que teríamos a ganhar com isso? Já temos possibilidade de levar os mantimentos, a água e outras coisas de que precisamos para subsistir neste plano temporal. Poderemos agüentar até que recebamos auxílio. Se não voltarmos, Rhodan nos procurará. Neste meio tempo, poderemos morar na K-7. Constatamos que, se ligarmos o campo antigravitacional, as portas podem ser abertas e fechadas.

— É verdade que encontramos um lugar para abrigar-nos. — Começou Rous — mas tenho minhas preocupações. Não nos esqueçamos que, enquanto envelhecemos três meses, o cadete Becker e os tripulantes da K-7 apenas envelheceram dois minutos. O que acontecerá se a mesma lei não se modificar? Haverá uma dilatação. Ainda não sabemos qual é a extensão da mesma e qual é sua proporção em relação ao verdadeiro fluxo do tempo.

Steiner fez um gesto negativo.

— Acho que estamos nos preocupando à toa. Se realmente tivesse passado um tempo muito longo, Rhodan já teria tomado alguma providência. Será que alguém acredita que Rhodan é capaz de abandonar seus homens? Pois então! Se ainda não apareceu, isso só pode ter um motivo: o tempo decorrido é tão curto que ainda não teve motivo para preocupar-se.

— É possível que o lugar onde estamos fique em outro setor espacial — disse Harras com a maior tranqüilidade. — Nesse caso, não haveria como encontrar-nos.

Steiner preferiu não apresentar qualquer argumento contrário. Aliás, não dispunha de nenhum.

Degenhoff, o operador de rádio da K-7, encontrava-se num ponto um tanto afastado, ouvindo a conversa. Aproximou-se e disse:

— Tenente Rous, permita uma sugestão. Por que não expedimos uma mensagem pelo rádio? A bordo do girino temos um hipertransmissor de alta potência. Pouco importa se os arcônidas ou quem quer que seja nos localizem. Interessa-nos é que Rhodan receba nosso pedido de socorro.

Rous esteve a ponto de fazer um gesto de recusa, mas conteve-se em meio ao movimento. Lançou um olhar indagador para Steiner e Harras.

— Como poderíamos manipular o transmissor? — perguntou.

— Na verdade, é muito grande para ser transportado à nossa dimensão temporal; mas poderíamos desmontá-lo, tenente. Depois de realizada a transferência, poderemos montar as peças.

— Excelente — disse Rous com um sorriso malicioso. — O que acontecerá com os impulsos que irradiarmos depois de realizada essa operação? Será que conseguirão deixar o plano temporal em que nos encontramos e atingir os receptores do planeta Terra? Acho que nem mesmo o senhor, Degenhoff, poderá responder a esta pergunta.

— Ninguém poderá — interveio Steiner com ligeira recriminação na voz. — Todavia, mais vale experimentar que estudar. Sou a favor da proposta de Degenhoff.

— Eu também — disse Harras. — Se bem que estou convencido de que os impulsos de rádio sofrerão alguma alteração. Serão absorvidos pela barreira do tempo, ou então sofrerão uma aceleração ou um retardamento tamanho que ninguém conseguirá decifrá-los.

— Está bem — disse Rous, encerrando a discussão. — Vamos experimentar.

Degenhoff pôs-se a trabalhar. Dali a duas horas, anunciou que o transmissor havia sido desmontado em três partes. Por enquanto o complicado receptor não sofreria a mesma operação.

Dali a mais duas horas o hipertransmissor estava montado à sombra da K-7, pronto para entrar em funcionamento. Degenhoff aguardou o sinal.

Rous disse:

— As chances são muito reduzidas, pois nem sequer sabemos em que direção fica a Terra ou qualquer outra estação receptora. Pelo que vê, Degenhoff, não é só o tempo que representa um problema para nós. Também o espaço deverá causar-nos certas dificuldades.

— Farei a fita reproduzir a mensagem, e manterei a antena de transmissão em rotação contínua. Dessa forma, todos os setores deste segmento de esfera serão atingidos. Depois teremos de levar o transmissor e o reator à outra face do planeta, para repetir o procedimento. Assim poderemos ter uma certeza relativa de que alguém captou nossa mensagem.

— Qual será o teor da mensagem? — perguntou Steiner em tom de ceticismo.

Rous pegou um pedaço de papel e começou a escrever.

Steiner lançou os olhos para o céu, que continuava encoberto. Estava à procura do relâmpago que devia pairar junto à linha do horizonte. Ainda não sofrerá qualquer modificação, e a vista já se acostumara ao mesmo. Concluía-se que ao todo haviam passado menos de um segundo neste mundo. Josua, que voltara a montar guarda junto à árvore-forca que continuava a arder, avisara que o círculo luminoso não reaparecera. Dentro de duas horas, Noir o revezaria. Uma pessoa deveria estar constantemente nesse lugar.

Rous fez algumas correções no texto. Finalmente deu-se por satisfeito com o trabalho.

— Acho que poderá ser isto — disse sem muita convicção, e entregou o bilhete a Degenhoff. Este o pegou e leu:

 

Pedido de socorro. Aqui fala expedição do tempo de Marcel Rous. Dirijo-me a qualquer receptor. Caminho de volta bloqueado, gerador de campo de refração falhou. Posição desconhecida. Fluxo do tempo constante. Tripulação da K-7 encontrada. Tudo bem.

Ten. Marcel Rous.

 

Steiner fez um gesto afirmativo.

— Será uma bela mensagem, desde que alguém a ouça.

Degenhoff fez um gesto nervoso.

— Alguém ouvirá; eu lhe garanto. Se estes “uuuns” a captarem, levarão algum tempo para retardá-la o bastante para poderem alcançar a percepção acústica. E quando isso acontecer, ainda terão que decifrá-la. Quanto aos arcônidas... bem, se estes ouvirem a mensagem, Rhodan será informado.

Rous fez um gesto impaciente.

— O que está esperando, Degenhoff?

Steiner olhou para o operador de rádio que se afastava e estreitou os olhos. Quando acreditava estar a sós com Harras e Rous, disse em tom contrariado:

— Diga-me uma coisa, tenente. Está realmente convencido de que adiantará alguma coisa expedir a mensagem? Será que conseguirá romper a barreira do tempo? Comigo pode ser franco. Saberei suportar a verdade.

Rous lançou um olhar indagador para o físico. Depois mostrou um sorriso frio.

— Para dizer a verdade, Steiner, não sei. Não posso responder nem sim, nem não. Só o tempo poderá dar a resposta.

— E o tempo não terá pressa — disse Harras com a voz tranqüila.

— É bom que saiba uma coisa, tenente. Se a transmissão da mensagem não der resultado, ainda nos restará uma esperança. Confesso que se trata de uma esperança louca, mas não deixa de ter seu fundamento e não se baseia em simples suposições ou especulações vagas. Se nada der certo e não aparecer ninguém para buscar-nos, desmontaremos a K-7 e a libertaremos da prisão do tempo, peça por peça. Depois voltaremos a montá-la e teremos um veículo espacial apto a entrar em ação, que obedecerá às nossas leis do tempo. Aposto qualquer coisa que com ela encontraremos a Terra.

— Sim; é possível que encontremos a Terra. Apenas faço votos de que não seja Uma Terra em que ninguém se lembre de nós porque lá decorreram alguns milênios.

Steiner não respondeu. Franziu a testa, meio assustado, hesitou por alguns segundos e afastou-se. Parou junto à encosta do platô e lançou os olhos para a grande planície.

Harras seguiu seu exemplo. Seu rosto não traía o que se passava em sua mente.

Degenhoff estava sentado à frente do transmissor e preparava a fita. Dali a alguns minutos, o reator começou a zumbir. A antena expeliu os impulsos invisíveis que subiram ao céu avermelhado daquele mundo desconhecido, que flutuava nos limites da eternidade, procurando conquistá-la pedaço por pedaço.

O Tenente Rous contemplou o operador de rádio por alguns minutos. Subitamente deu-lhe as costas e afastou-se. Sem olhar para trás subiu pela escada da K-7, atravessou a comporta e, espremendo-se pela porta semi-aberta, entrou na sala de comando.

Caiu pesadamente na poltrona do piloto e, absorto em pensamentos, fitou as telas apagadas e os instrumentos imobilizados.

Era praticamente um morto, um prisioneiro de outro tempo que não o seu, que tanto podia pertencer ao passado, como ao presente ou ao futuro?

Seu olhar caiu sobre o calendário de bordo ligado a um relógio. Era a única coisa que se movia nesse mundo estranho, pois indicava até os milésimos de segundo.

Afinal, um milésimo de segundo ali sempre duraria um minuto e doze segundos!

Fazia exatamente dois minutos e um segundo que pousara em Mirsal.

E exatamente há um segundo atravessara o anel luminoso do GCR...

Soltou um suspiro.

Num gesto de resignação, deixou cair a cabeça sobre o painel de instrumentos e resolveu dormir um quarto de segundo.

Ninguém, nem mesmo ele, poderia dizer qual seria a verdadeira duração desse quarto de segundo...

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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