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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Os Condenados de Isan / Kurt Mahr
Os Condenados de Isan / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Condenados de Isan

 

Aquele mundo sofreu um trágico destino de que a Terra se livrou no último instante.

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1984.

Uma nova geração de homens surgiu.

E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar, não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.

Em Isan, os sobreviventes da guerra nuclear, confinados em abrigos subterrâneos, estão prestes a destruir-se mutuamente. Conseguirá Rhodan infundir-lhes novas esperanças?

 

                                         

 

Ivsera lançou um olhar pensativo para a fileira de objetos brilhantes e reluzentes.

“Devia estar triste”, pensou. “Quem dera que tivesse um único vestido, uma calça ou um casaco!”

Mas não havia nada disso. Nem vestido, nem calça, nem casaco. Nada além das poucas peças de roupa que trazia no corpo.

Ivsera não conseguia ficar triste por isso. Há dias os preciosos aparelhos estavam parados. E há dias não eram fornecidas peças de roupa cujas fibras orgânicas pudessem ser convertidas em alimentos sintéticos. Há dias os ocupantes do abrigo de Fenomat viviam de um pequeno estoque de provisões, que estaria esgotado amanhã ou depois.

Virou-se. Irvin estava atrás dela, encostado a uma mesa, mas com o rosto sério.

— Está triste? — perguntou.

Ivsera sacudiu a cabeça.

— Não. Já não me importo com mais nada.

— Você devia avisar Havan, não acha?

Ivsera lançou um olhar de perplexidade para o jovem.

— Havan? Já está informado. Há dez dias.

Irvin empurrou-se da mesa e aproximou-se alguns passos. Usava uma calça muito curta, que começava abaixo do umbigo e chegava até a metade da coxa. No abrigo de Fenomat, nenhum homem podia possuir outra roupa além desta.

— Não se lembrará — afirmou Irvin.

— Mas...

Irvin levantou a mão num gesto tranqüilizador.

— Não há nenhum mas. Acho que não preciso dizer-lhe que tipo de homem é Havan. Ou será que preciso?

Ivsera baixou a cabeça.

— Você não poderia ir em meu lugar e contar-lhe? — perguntou.

Irvin sacudiu a cabeça.

— Prefiro não ir. Não ganharia nada com isso. Havan gritaria para mim e explicaria que a química-chefe lhe devia prestar estas informações pessoalmente.

Ivsera respondeu com um suspiro:

— Você tem razão, Irvin — levantou a cabeça, fitou o jovem e em seu rosto surgiu um sorriso forçado. — Acho que é preferível liquidar isto logo.

Irvin fez um gesto afirmativo.

— Fico torcendo por você.

Ivsera abriu a porta e saiu para o corredor. O ar sufocante, morno e malcheiroso tirou-lhe a respiração. Olhou para os lados e ficou satisfeita ao notar que ninguém a via.

Caminhou depressa os cinqüenta metros que a separavam do elevador. Chamou a cabina, entrou e apertou o botão do pavimento inferior. A cabina começou a movimentar-se lentamente e aos arrancões, o que era um sinal de que as válvulas de ar comprimido já não funcionavam bem.

“Nada está funcionando”, pensou Ivsera. “A renovação de ar não funciona, não se encontra nada para comer e beber.”

Depois balbuciou:

— Quem dera que pudéssemos subir! E continuou pensando:

“Subir para as paragens onde há oito anos não vive mais ninguém. Para as áreas em que a tormenta tange nuvens de poeira radiativa e cada pingo de chuva contém uma quantidade de veneno que daria para matar dez pessoas. Para o lugar em que uma extensão de dez quilômetros de rocha derretida e vitrificada assinala o ponto zero, local onde a bomba fora arremessada quando da mais terrível guerra de todos os tempos.”

Ivsera procurou calcular quantas pessoas teriam sobrevivido. Seis mil haviam procurado refúgio no abrigo de Fenomat. Após oito anos, haviam passado a dez mil. Fenomat era a capital do país, motivo por que num subúrbio havia outro abrigo, o abrigo de Sallon. Sua capacidade era igual à do abrigo de Fenomat.

Em todo o país existia um total de cinco abrigos dessa espécie. Supondo que o inimigo dispunha de igual número no outro continente, concluir-se-ia que cerca de cem mil pessoas teriam sobrevivido à grande guerra de Isan.

Ivsera pensou admirada: “Cem mil num total de três bilhões!”

O elevador parou. A moça abriu a porta.

Do lado de fora, estendia-se um corredor igual àquele de que Ivsera acabara de sair. A jovem dirigiu-se para a esquerda, passou por algumas portas com placas e parou à frente da penúltima delas.

— Havan! — chamou em voz alta.

Teve de esforçar-se para pronunciar este nome. Havan era o homem que dois dias depois da morte de Ofaran acreditara que Ivsera se ligaria a ele. O homem que lhe causava dificuldades sempre que podia, somente porque ela lhe dissera que pretendia guardar ao menos um ano de luto durante o qual viveria só. Falara-lhe também que nem em dez mil anos um homem como Havan seria capaz de apagar a imagem de Ofaran em sua memória.

Havan respondeu em tom mal-humorado:

— Entre!

Ivsera abriu a porta. Ele estava sentado atrás de uma pesada mesa de imitação de pedra e olhava para ela. Nenhum músculo de seu rosto grosseiro e desagradável se contraiu ao reconhecê-la.

— Então, o que houve? — perguntou.

— Estamos sem mantimentos — respondeu Ivsera laconicamente.

Havan empertigou-se.

— Por que só agora fico sabendo disso? — perguntou.

Os olhos de Ivsera estreitaram-se.

— Já avisei a dez dias que estávamos sem matéria-prima.

Havan respondeu em tom áspero.

— E daí? — perguntou. — Como membro do Conselho tenho o direito de ser mantido constantemente a par — bateu com a mão aberta sobre a mesa. — Se não aprender a cumprir seu dever, mandarei destituí-la.

Vendo que Havan se esforçava ao máximo para humilhá-la e ofendê-la, Ivsera recuperou a calma.

— Não se esqueça de que neste abrigo não cabe exclusivamente ao senhor decidir sobre as pessoas que devem ocupar os postos — retrucou tranqüilamente. — Temos um Conselho, e só deixarei meu cargo quando este decidir assim.

Virou-se, abriu a porta e saiu. Enquanto fechava a porta atrás de si, ainda ouviu Havan gritar em tom furioso:

— Por enquanto, temos um Conselho... Não compreendeu o resto, e nem estava interessada em compreender.

No elevador, encontrou-se com Killarog. Tal qual Havan, também era membro do Conselho. Era um dos elementos mais jovens que participavam do órgão e, na opinião de Ivsera, era um dos que conseguiram um pouco de honra e de dignidade naqueles difíceis anos de pós-guerra.

Ivsera ia passar com um ligeiro cumprimento.

Mas Killarog parou e segurou-a pelo braço.

— Tem algum problema? — perguntou em tom lacônico, mas que nem por isso chegava a ser áspero.

Ivsera olhou-o.

— Quem não tem problemas numa época como esta? — perguntou.

Killarog continuou sério, embora em seus olhos houvesse um brilho de ironia.

— Conforme sabe — disse em tom propositadamente professoral — sou presidente da Comissão de Questões Pessoais e Psicológicas. Se alguma coisa a preocupa, a senhora tem o dever de me informar a respeito.

Enquanto falava, levantou o dedo. Mas o ar sério logo o abandonou. Voltou a segurar Ivsera pelo braço e levou-a para o corredor de onde havia vindo.

— O que houve, minha filha? Os mantimentos estão no fim? O Conselho sabe disso há dez dias. Não há motivo para preocupações.

Ivsera soltou uma risada amarga.

— Acontece que justamente o presidente da Comissão de Alimentação e Vestuário não sabe de nada — respondeu.

Killarog soltou uma gargalhada.

— Havan? Sabe, sim. Há poucas horas discutimos o assunto.

Ivsera contou o que havia acontecido. Killarog abriu a porta de seu gabinete e deixou que entrasse à sua frente. Convidou-a a sentar. Enquanto caminhava em torno da mesa de imitação de pedra para acomodar-se em sua poltrona, fez um gesto de desprezo.

— Não acredite em nada do que Havan lhe disse — exclamou. — Especialmente quando está falando com a senhora. Além disso, Havan cairia no ridículo se propusesse ao Conselho a destituição da senhora.

Contemplou Ivsera por cima da mesa larga. O olhar tranqüilizou a moça, que perdeu parte do ressentimento trazido desde que visitara Havan.

— Vamos mudar de assunto — principiou Killarog de repente. — O que vamos fazer quando não tivermos mais nada para comer?

Ivsera fez um gesto de perplexidade.

— Se soubesse, eu lhe diria — respondeu. — Talvez possamos sair do abrigo e dar uma olhada lá em cima, para ver se encontramos comida.

Ivsera proferiu estas palavras em tom casual. Por isso assustou-se quando Killarog se levantou de repente atrás da mesa, estreitou os olhos e perguntou:

— Quem lhe deu esta idéia? A senhora deve saber que não é possível sair do abrigo.

Ivsera parecia confusa.

— Desculpe. Não imaginei que estas palavras pudessem assustá-lo. Ninguém me deu a idéia; foi exclusivamente minha. Acho que não é tão difícil a gente lembrar-se desta possibilidade.

Killarog voltou a sentar e suspirou.

— Esqueça — murmurou. Parecia cansado e abatido. — Sou eu que lhe peço desculpas.

Colocou o rosto nas mãos, e olhou para Ivsera entre os dedos abertos.

— O fato é — disse, esticando as palavras — que estivemos lá em cima.

Ivsera levantou-se de um salto.

— Estiveram...

Killarog interrompeu-a com um gesto.

— Não fale tão alto. Ninguém deve saber do caso, senão todo mundo desejará subir. Foi por isso que fiz a pergunta. Aliás, suas esperanças não têm fundamento.

Ivsera quase não conseguiu respirar.

— Por quê?

— Lá em cima não há nada para comer. Nem uma batata cresceu nestes oito anos na área urbana de Fenomat, e numa área de quinhentos quilômetros em torno da mesma está tudo contaminado. Não conseguimos ir mais longe.

— Está certo; mas...

— Não há nenhum mas! — Killarog levantou-se. De repente seu rosto estava muito sério. — Quer ver uma coisa, minha filha? Uma coisa interessante, excitante e... decepcionante?

Ivsera respondeu com um gesto afirmativo.

— Venha comigo.

Saíram do gabinete. Killarog dirigiu-se para a esquerda. Passaram pelo gabinete de Havan. Antes de chegar à última porta do corredor, Killarog parou junto à parede cinza-clara. Pegou uma chave, enfiou-a na fechadura e abriu a porta. Ivsera viu uma sala vazia, com uma abertura na parede oposta. A luz tinha a mesma tonalidade fria que a das outras salas.

— Esta sala não é ocupada por ninguém — disse ele em voz baixa, ao ver que Ivsera o olhava e hesitava. — Pode entrar sem susto.

Entrou. Killarog seguiu-a e trancou cuidadosamente a porta. Atravessou a sala e abriu outra porta.

Com os olhos arregalados de pavor, Ivsera fitou um corredor estreito e baixo, que evidentemente não pertencia ao abrigo propriamente dito. As paredes eram de rocha nua, que mais para o fundo brilhava de umidade. A cada poucos metros uma barra de metal apoiava o teto.

Uma lufada de ar frio saiu do corredor, o que constituía uma verdadeira bênção na atmosfera superaquecida e poluída do abrigo.

Killarog falou em tom penetrante:

— A senhora terá que guardar exclusivamente para si tudo que vai ver daqui por diante. Nem pense em falar com qualquer pessoa a este respeito. As conseqüências não lhe seriam nada agradáveis.

Ivsera confirmou com um gesto, sem tirar os olhos do misterioso corredor.

— Irei na frente — sugeriu Killarog.

Ivsera deixou-o passar. Seguiu-o e fechou a porta atrás de si. Mais adiante havia uma série de lâmpadas, cuja luz era suficiente para que se percebessem os acidentes do terreno.

Killarog caminhava rapidamente; Ivsera teve de esforçar-se para não ficar para trás.

O corredor era mais comprido do que ela acreditara. Andaram durante quinze minutos e as lâmpadas, que ficavam adiante deles, demoraram para se aproximarem. Quando Killarog finalmente parou junto à primeira, haviam caminhado ao menos trinta minutos. Face à velocidade com que ele marchava, isso significava que haviam percorrido mais de um quilômetro.

— Pode andar mais um pouco? — perguntou Killarog em tom preocupado.

Ivsera fez um gesto afirmativo.

Killarog continuou a andar. As lâmpadas tornavam-se cada vez mais numerosas. A luz da última delas, Ivsera descobriu um vulto que parecia estar deitado, completamente imóvel.

Killarog pisou com força no chão. O vulto moveu-se. Ivsera viu uma cabeça levantar-se e um par de olhos desconfiados fitar os recém-chegados.

Ivsera não se lembrava de ter visto o homem diante do qual Killarog estava parado. O que chamava a atenção era que vestia roupa completa, e não apenas a calça curta que os homens deveriam usar.

— Alguma novidade, Thér? — perguntou Killarog.

Thér fez que sim.

— Sim. Estão avançando.

— Quanto tempo ainda nos resta?

Thér ergueu os ombros e abriu as mãos.

— Uns dois ou três dias. O que esta moça veio fazer aqui?

— Quero que esteja a par de tudo — respondeu Killarog.

Ivsera recuperou-se do espanto e perguntou:

— Por que este homem anda por aí com a roupa completa, Killarog? As peças que carrega inutilmente dariam para produzir ao menos cinco refeições completas.

Thér fitou-a perplexo. Killarog soltou uma gargalhada.

— Ela é nossa nutricionista — explicou, dirigindo-se a Thér. — A maior parte do que você comeu nestes últimos anos saiu de suas retortas.

Dirigindo-se a Ivsera, prosseguiu:

— Sabe lá o que aconteceria a Thér se tivesse de ficar deitado por aí quase nu?

— Bem — disse Ivsera em tom de espanto — ele costuma ficar deitado por aí?

Killarog fez que sim.

— Ele e dois outros. Cada um fica dez horas por dia. Não é nada fácil agüentar esse tempo.

— O que ficam fazendo por aqui?

Killarog apontou para o chão.

— Mostre, Thér — ordenou.

Thér levantou-se. Só agora Ivsera viu que havia vários instrumentos espalhados em torno dele. Viu caixinhas negras com chaves, botões e escalas.

Dali a poucos metros o corredor chegava ao fim.

Thér prendeu um cabo fino a um dos instrumentos. Na outra extremidade do fio havia um funil igual aos que Ivsera costumava ver nos telefones. Thér colocou o aparelho propriamente dito no ângulo esquerdo formado pelo chão e pela parede. Ivsera notou que a caixinha descansava sobre finos suportes metálicos.

Thér entregou-lhe o cabo com o funil.

— Ouça — pediu.

Um tanto medrosa, Ivsera comprimiu o funil contra o ouvido. Ouviu um ruído monótono. Depois de alguns minutos ainda não havia ouvido outra coisa. Fez menção de devolver o funil a Thér. Mas naquele instante escutou um ribombo surdo que parecia provir de um tambor enorme e muito distante. O ruído cresceu, chegou ao ponto máximo e foi diminuindo.

Ivsera ficou muito assustada. Pretendia indagar sobre a origem do som, quando voltou a ouvi-lo.

— Ah! — disse Thér com uma risada furiosa. — Nem precisamos mais do amplificador. Ouço sem ele.

Ivsera tirou o funil do ouvido e perguntou:

— O que é isso?

Killarog respondeu com outra pergunta:

— Quando irrompeu a guerra, a senhora ainda era uma menina. Sabe embaixo de que área de Fenomat nos encontramos?

Ivsera procurou recordar o que sabia a respeito do abrigo. A entrada principal ficava sob o centro da cidade, mas as galerias avançavam vários quilômetros, estendendo-se às vezes para além dos limites da cidade.

As galerias principais começavam no centro e corriam em direção ao norte, leste, sul e oeste. O trecho em que viviam os membros do Conselho pertencia à galeria principal do leste.

— Acho que estamos mais ou menos embaixo do subúrbio de Sallon — disse com a voz tímida.

Killarog confirmou com um gesto.

— Exatamente. O ponto em que nos encontramos fica a pouco mais de trezentos metros da extremidade oeste das galerias do abrigo de Sallon.

Ivsera procurou compreender as relações que poderiam existir entre esse fato e o tambor que acabara de ouvir.

— Conforme já disse — prosseguiu Killarog — estivemos lá em cima com alguns homens e demos uma olhada pelos arredores. Encontramo-nos com um grupo de gente estranha. Talvez sejam de Sallon, mas também é possível que tenham vindo de mais longe. De qualquer maneira, começaram a atirar assim que nos viram. Tivemos de fugir, pois as armas de que dispúnhamos eram insuficientes.

Ivsera parecia assustada.

— E aqui — disse, apontando para a parede da esquerda — os homens de Sallon estão tentando atingir o abrigo de Fenomat por baixo. Thér afirma que dispomos de apenas dois ou três dias para preparar-nos para visita deles. É o tempo que levarão para chegar aqui.

 

Ivsera não demorou a compreender. Em sua memória, os habitantes do abrigo de Sallon continuavam a ser o que haviam sido antes da guerra: cidadãos comuns que não quiseram a batalha, mas que se sentiam gratos pelo abrigo que lhes dava proteção.

Killarog afirmara não haver dúvida de que os estranhos com os quais seu grupo se havia defrontado eram pessoas vindas de Sallon. Em sua opinião, numa situação como aquela em que se encontravam, ninguém se arriscaria a ficar na superfície por mais tempo que o absolutamente necessário, e o abrigo mais próximo ficava a quase dois mil quilômetros.

Por outro lado, os abalos eram evidentes. Thér e seus dois companheiros os vinham observando há várias semanas. Os instrumentos ultra-sensíveis registravam as ondas de pressão, certamente provocadas por explosões. Vinham da direção do abrigo de Sallon e, no correr das semanas, haviam avançado até as imediações dos corredores mais afastados do abrigo de Fenomat.

Ivsera ainda conservou alguma esperança de que as intenções das pessoas de Sallon talvez não fossem hostis, mas Killarog disse em tom áspero e lacônico:

— Não diga isso! É claro que apenas pretendem roubar nossos mantimentos. Se não encontrarem nada, talvez até resolvam nos comer.

 

Os prognósticos de Killarog sobre o confronto que se aproximava eram sombrios.

— O grupo com que nossos homens se encontraram estava tão bem armado que parecia um destacamento da polícia secreta. Provavelmente esvaziaram o grande depósito de Sallon Norte. Enquanto isso, nós possuímos um total de cinqüenta armas portáteis. Na maior parte trata-se de pistolas antiquadas. E a munição é muito escassa. Se os habitantes de Sallon conseguirem introduzir mais de vinte homens em nossas galerias, sua cabeça-de-ponte estará praticamente garantida. Quanto ao resto, não adiantará nada ficar pensando.

O que impressionou Ivsera foi a resposta que Killarog lhe deu quando perguntou sobre a finalidade da construção da galeria em que Thér se encontrava de vigia:

— Será que a senhora ainda não adivinhou? É que nós pretendíamos roubar os mantimentos dos ocupantes do abrigo de Sallon. Infelizmente tivemos o azar de que eles não demoraram em ter a mesma idéia, e, além disso, estão mais bem armados. Mas — levantou a mão e de repente recuperou o bom humor — se conseguirmos rechaçá-los e persegui-los, economizaremos um bom tempo de trabalho. E, nesse caso, os homens de Sallon terão construído uma galeria para nós.

Ela lançou-lhe um olhar apavorado. Ele riu com uma expressão de amargura e exclamou:

— A senhora já devia ter compreendido. Oito anos depois da última guerra travada em Isan, só nos resta devorarmos ou sermos devorados. Estas palavras podem ser interpretadas literalmente.

 

Killarog tinha um plano.

Era um plano ousado, que envolvia riscos consideráveis. Por isso precisou de toda a força de persuasão para levar o Conselho a aceitar a idéia.

O Conselho concedeu-lhe oito homens que o acompanhariam, nove trajes à prova de radiações e quase metade das armas do abrigo de Fenomat. Além disso, segundo as instruções de Killarog, três homens foram destacados para montar guarda na comporta superior do abrigo. Os três homens e o grupo de Killarog receberam um radiotransmissor portátil que dispunha de seu próprio suprimento de energia.

O objetivo de Killarog era a comporta de superfície do abrigo de Sallon. Hora do ataque: o momento em que recebesse comunicação pelo rádio de que os homens de Sallon estavam penetrando na parte inferior do abrigo de Fenomat.

O Conselho impôs uma condição a Killarog: se notasse que sua missão não seria bem sucedida, devia voltar imediatamente. Nesse caso, suas armas seriam mais necessárias em Fenomat que na comporta de superfície de Sallon.

Killarog escolheu os homens que o acompanhariam. Mesmo sendo muito jovem, gozava de grande prestígio em todos os setores do abrigo. Apesar da indolência que costumava caracterizar os sobreviventes da grande guerra de Isan, todos se mostraram dispostos a acompanhá-lo na missão perigosa.

Três horas depois da sessão do Conselho, Killarog havia reunido seus homens. Mas, meia hora antes, Ivsera soubera do plano por intermédio de Irvin, que era um dos oito escolhidos.

Procurou Killarog e conseguiu convencê-lo, depois de algum tempo de discussão, de que teria de acompanhá-lo na expedição, em substituição a um dos homens. Seu argumento principal foi o seguinte: se conseguissem penetrar no abrigo de Sallon, deveria haver alguém capaz de identificar imediatamente tudo que fosse comestível.

Se Irvin não tivesse intervindo a seu favor, era bem possível que, apesar do argumento, Ivsera não tivesse conseguido seu intento.

— Leve-a, Killarog! — recomendou. — Senão essa moça nunca mais terá sossego. Desisto em favor dela.

Irvin podia dar-se ao luxo de um gesto deste, pois ele era conhecido como uma exceção humana ao ambiente de indolência e passividade generalizada.

Killarog acabou por concordar. Meio zangado, meio divertido disse:

— Minha filha, desconfio de que a senhora ainda carrega certas idéias românticas sobre as regras humanitárias e sobre as qualidades adoráveis daquela gentinha. Se levar um tiro enquanto estiver acenando com uma bandeira branca para os ocupantes de Sallon, atribuirei a infelicidade à sua falta de instinto.

Ivsera não revelou o verdadeiro motivo de seu gesto. Na verdade, estava cansada de se manter inativa no abrigo e assistir impassível ao que acontecia. Era de opinião que, qualquer pessoa que ainda dispusesse de um pouco de energia, tinha a obrigação de fazer alguma coisa. Não era necessário que fosse uma coisa bem sucedida. Bastava que a ação infundisse a convicção de que os sobreviventes da grande guerra não seriam simples joguetes do destino.

 

Era noite quando Killarog e seu grupo, depois de uma hora de viagem de elevador através do poço de dois quilômetros de altura, chegaram à comporta de superfície do abrigo de Fenomat.

No interior da comporta, colocaram os trajes à prova de radiações. Killarog mandou realizar os controles, e Ivsera viu um bom sinal no fato de que tudo deu certo na primeira verificação.

Ele fez questão de cercar a saída da comporta de modo áspero e com ordens proferidas em tom rude, a fim de reprimir qualquer laivo de sentimentalismo. Para cinco pessoas do grupo de nove era a primeira vez que nestes oito anos voltavam a pisar na superfície de seu mundo natal, Isan.

Ao oeste, pouco acima da linha do horizonte, Ivsera viu a gigantesca bola vermelha do sol. Procurou recordar, para verificar se Isan havia mudado depois da guerra. Mas o sol Vilan continuava grande e vermelho como sempre. Vários pontos da superfície pareciam apresentar cicatrizes, e a bola vermelha espalhava mais calor que claridade.

O céu vermelho-escuro estava salpicado de estrelas. Ivsera viu algumas nebulosas tênues. Sabia que essas nebulosas eram formadas por estrelas, e que juntamente com estas formavam um sistema designado pelos astrônomos como a Via Nebulosa.

Ivsera mal conseguiu controlar o nervosismo. Apelou para a razão e procurou convencer-se de que mesmo depois de oito anos de vida subterrânea não havia nada de extraordinário em ver algumas estrelas.

Não conseguiu. Que nem uma sonâmbula tropeçou pelo deserto de escombros no qual as bombas e o vento haviam transformado sua altiva cidade, Fenomat. Killarog teve de adverti-la três vezes para que controlasse seus sentimentos e se concentrasse na tarefa a cumprir.

 

A caminhada do poço principal até a comporta de superfície de Sallon era de oito quilômetros. Há oito anos essa distância teria sido percorrida num ônibus ou táxi, e não se gastariam mais que poucos minutos no percurso. Mas, no terreno perigoso e inóspito e com os pesados trajes espaciais, a caminhada consumiria um dia.

Depois de quatro horas de marcha, Killarog ordenou o primeiro descanso. Encontravam-se num setor do deserto de destroços em que, por estranho que pudesse parecer, o nível de radiações correspondia apenas à metade dos valores registrados nos demais pontos. Ninguém sabia explicar o fenômeno, mas de qualquer maneira o lugar era ideal para um descanso.

Na linha do horizonte, ao sul, surgiu o primeiro alvor do novo dia. A cor mortiça de Vilan e a torrente poderosa de luz azul que se derramava sobre o horizonte, vinda do sul, misturavam-se no céu, formando uma tonalidade estranha. As estrelas foram empalidecendo sob a luz de Vilanet, o pequeno sol azul-claro que era a verdadeira estrela central de Isan.

— Percorremos aproximadamente metade do caminho — disse Killarog. — Daqui para diante, teremos de ficar com os olhos bem abertos. Pelo que ouvimos, devemos concluir que os homens de Sallon não são bobos. É bem possível que lhes ocorra a idéia de que poderíamos atacá-los por cima.

Enquanto a claridade aumentava, Ivsera procurou descobrir em que parte da antiga cidade se encontravam. Sabia que a meio caminho entre o centro e o subúrbio de Sallon ficava a rua com as lojas mais caras e sofisticadas, onde sua mãe costumava fazer compras duas vezes por ano: no aniversário de seu casamento e no aniversário da própria Ivsera. Sabia que por ali houvera casas largas, maciças e antigas.

Agora nem sequer se viam os alicerces. A cidade fora aplainada ao nível do solo. Blocos de pedra estavam espalhados por todos os lados, mas não se poderia dizer se eram formados de rocha natural ou se provinham das paredes das construções.

O chão estava coberto de capim. Mas que capim! Os talos, que antigamente eram lindos e esguios, passaram a ser grossos e desajeitados. Atingiam metade da altura de um homem e formavam verdadeiras copas.

“É um fenômeno de mutação”, pensou Ivsera. “As radiações produziram alterações na massa genética do capim.”

Não apenas do mato. Pouco antes de iniciarem a marcha, viram um besouro gigantesco rastejar entre o capim sobre as longas pernas. Conseguiram vê-lo, embora o capim lhes chegasse até o umbigo. É que as pernas do besouro elevavam o corpo alongado e esguio a mais de um metro de altura, embora estivessem dobradas duas vezes, à maneira dos insetos. O corpo tinha um metro de comprimento.

O maior besouro, que existia em Isan antes da guerra, mal poderia cobrir a palma da mão.

Um dos homens levantou a arma para matar o monstro repugnante. Mas Killarog bateu sobre o cano e gritou:

— Pare com isso, seu idiota! Quer revelar nossa presença com o barulho?

Partindo do local de descanso, Killarog tomou a direção nordeste. Não pretendia dirigir-se diretamente a Sallon, porque o risco lhe parecia ser muito grande. Fez um desvio de duas horas para atingir o abrigo de Sallon de um lado em que não os esperariam.

Até então o rádio portátil se mantivera mudo, com exceção da mensagem ligeira transmitida por Thér:

— Agora já os ouvimos perfeitamente sem o amplificador. Vocês dispõem no máximo de cinco ou seis horas. Depois disso estarão aqui. Pelo que calculo, sairão em algum ponto no pavimento inferior.

Ivsera lembrou-se de Havan. A idéia de que, se não conseguisse fugir, seria uma das primeiras pessoas capturadas pelos homens de Sallon, não a deixava nem um pouco satisfeita, apesar do velho ressentimento que nutria por aquele homem.

Após a mensagem de Thér, Killarog insistiu em que se apressassem. Perguntou várias vezes sobre o bem-estar de Ivsera. Esta, depois que decidira manobrar seu próprio destino, já não conhecia o cansaço.

Vilanet subiu pelo céu branco e espalhou um calor que se tornou ainda mais insuportável, pois, na planície coberta de capim em que antigamente ficara a cidade, não havia uma única sombra.

Mais ou menos pelas nove da manhã, depois de outro descanso intercalado na marcha, Killarog impôs o silêncio total. Era verdade que os transmissores e receptores embutidos nos capacetes à prova de radiações funcionavam numa freqüência extremamente elevada. Só por milagre os homens de Sallon poderiam descobrir essa freqüência e captar as mensagens. Mas essa possibilidade não podia ser desprezada.

Killarog mandou que os membros do grupo só se comunicassem para transmitir informações de extraordinária importância. Mesmo nesse caso, deviam evitar na medida do possível a utilização do rádio, comunicando-se diretamente de capacete a capacete.

O terreno tornou-se uma ladeira. Ivsera lembrou-se de que o subúrbio de Sallon ficara na encosta sudoeste de uma colina.

“Ainda bem que as bombas não conseguiram arrasar as montanhas”, pensou satisfeita.

Pelo meio-dia atingiram a linha da cumeeira da colina, sem que tivessem visto uma única pessoa do abrigo de Sallon, fato que deixou Killarog muito satisfeito. Já Ivsera ficou desconfiada. Mas, como em relação à tática do combate de guerrilhas confiasse mais em Killarog que em si mesma, ficou calada.

A entrada e, portanto, a comporta de superfície do abrigo de Sallon era na encosta nordeste da colina. Ao contrário dos demais abrigos, no de Sallon as entradas secundárias não desciam na vertical em direção aos corredores do abrigo, mas atravessavam a colina em sentido horizontal.

A escotilha de superfície de Sallon era assinalada por uma espécie de construção de pedra, que se levantava solitária em meio ao tremeluzir do meio-dia de Vilanet. O ar tremulava sob os raios de sol. O terreno tinha o aspecto de uma terra que ficara abandonada há oito anos. No flanco nordeste da colina, o capim era amarelo e um pouco mais baixo do que o que haviam encontrado na área urbana. A leste, junto à linha do horizonte, o rio Ovial seguia sinuoso. As florestas que antigamente haviam marcado seu curso tinham desaparecido. A estepe estendia-se até onde a vista alcançava.

Killarog não se interessou pelo singular panorama. Através da lâmina do visor de seu capacete, Ivsera notou que os olhos dele brilharam quando viu aquela construção de superfície de Sallon.

— Chegamos! — disse em voz tão alta que Ivsera, deitada a seu lado, ouviu as palavras que tinham de atravessar dois capacetes. — Assim que recebermos o sinal de Thér, daremos nosso golpe.

 

Há poucas horas num outro lugar de Isan, num ponto não muito distante de Fenomat, uma nave espacial elíptica pousara em meio à ampla estepe coberta de capim.

A tripulação da nave constatou que o solo, o ar e os mares do planeta continham uma dose perigosa de radiatividade. Em vários pontos da superfície, notaram vestígios de aglomerações humanas e descobriram que esse mundo havia sido destruído por uma guerra nuclear, e que os habitantes deviam ter sido quase todos eliminados.

A nave elíptica havia pousado num ponto situado numa pequena área em que a dose de emanações radiativas chegava apenas a um décimo da média do planeta. Era bem verdade que os quatro tripulantes possuíam equipamentos protetores de radiações muito mais aperfeiçoados que, por exemplo, os de Killarog e seu grupo, movendo-se a quinze quilômetros dali, sem que tivessem notado a presença da nave. Acontece que o comandante do veículo espacial tinha por hábito guiar-se em suas decisões pelo princípio da maior segurança e do menor risco. E, em virtude desse princípio, não pousaria numa área em que a dose de radiações chegasse a cem rens por hora, se depois de uma ligeira busca encontraria outra área em que essa dose estava reduzida pelo quociente dez.

A nave, que media trinta e cinco por vinte metros, possuía equipamentos tão sofisticados que, se alguém perguntasse a Killarog ou a Ivsera, estes só poderiam ter respondido que nunca acreditariam que uma coisa dessas jamais poderia existir na história das inteligências galácticas.

Havia um aparelho que não se incluía nesse equipamento sofisticado, embora fosse bastante complicado e por certo teria provocado a admiração de qualquer técnico em alta freqüência de Isan. Era um localizador de impulsos, que classificava automaticamente segundo a respectiva freqüência qualquer transmissão captada pelo receptor acoplado ao aparelho, e ainda fornecia dados à calculadora eletrônica que, em conformidade com os mesmos, decifrava a transmissão captada. Caso o material verbal fosse suficiente, traduzia a mensagem de uma língua estranha para aquela dos tripulantes da nave.

Dessa forma, as comunicações entre Killarog e os membros de seu grupo haviam sido registradas e traduzidas. Constatou-se que a língua de Isan — ou ao menos a que acabavam de ouvir — apresentava forte semelhança com outra que, embora não fosse a dos tripulantes, era-lhes bastante conhecida.

O comandante da nave aproveitou o tempo de que acreditava poder dispor para, mediante um aparelho que pertencia à classe das maravilhas da técnica, aperfeiçoar seus conhecimentos e, principalmente, familiarizar-se com a língua usada por Killarog e pelos membros de seu grupo.

 

As horas passaram numa lentidão insuportável. Vez por outra, Ivsera percebia que os olhos, dirigidos ininterruptamente sobre a construção de pedra que dava acesso à comporta de superfície, começaram a iludi-la, fazendo crer ora que esta se levantava no ar, ora que afundava no chão.

A única coisa agradável que aconteceu durante a longa espera foi que o calor ia diminuindo. Vilanet havia passado pelo zênite e deslocou-se em direção ao norte. O capim começou a proporcionar um pouco de sombra.

O fato de que nem uma única pessoa do abrigo de Sallon apareceu junto à comporta deixou Ivsera desconfiada. Transmitiu suas suspeitas a Killarog e, para ser entendida melhor, assumiu um risco, levantando o capacete.

Killarog repeliu seus temores com um gesto e sorriu.

— Não tenha medo, minha filha — disse. — Nas proximidades da comporta de Fenomat não se viu uma única pessoa num espaço de oito anos. Por que teríamos de encontrar alguém em Sallon, justamente durante as poucas horas que estamos aqui?

Ivsera esteve a ponto de responder que não havia a menor dúvida de que os ocupantes do abrigo de Sallon eram muito mais ativos que os de Fenomat. Afinal, há poucos dias um grupo de Fenomat teve que fugir de certo número de homens de Sallon, bem armados. Sallon não podia ser comparado com Fenomat.

Mas preferiu ficar calada. Ainda se sentia constrangida em dar opinião sobre assuntos que pertenciam exclusivamente aos homens.

Vilanet baixou em direção ao horizonte e a esfera vermelha de Vilan subiu, de início fraca, mas tornando-se cada vez mais nítida. As estrelas começaram a brilhar, e seu número crescia a cada segundo que passava, até que cobriram o céu noturno como um tecido fino.

Finalmente Thér deu o sinal. Ivsera ouviu-lhe a voz exaltada no receptor:

— Conseguiram passar. Saíram no pavimento inferior, conforme esperávamos. Estão armados até os dentes. Não sabemos por quanto tempo iremos detê-los. Vejam o que podem fazer por Fenomat.

Essas palavras não eram muito encorajadoras, mas Killarog não parecia incomodar-se com isso. Levantou-se e gritou para que todos ouvissem, mesmo sem o rádio:

— Vamos, rapazes!

Tropeçavam mais do que corriam pela suave encosta abaixo. A construção da comporta de superfície ergueu-se em meio à escuridão. Durante as últimas horas, já a haviam perdido de vista.

A edificação não tinha janelas. Não havia meio de verificar se estava ocupada, ou se realmente o pessoal do abrigo de Sallon não tinha a menor idéia do que o esperava.

Killarog não perdeu tempo em verificar. Ivsera achava que isso era uma leviandade incompreensível. Colocou cargas explosivas de ambos os lados da pesada porta metálica e, na ânsia de lutar, recuou apenas alguns passos antes que as mesmas explodissem.

A porta foi empurrada para dentro. Em meio ao estrondo das explosões, ouviu-se o ruído das pesadas peças de aço que batiam no chão.

Killarog avançou em meio à fumaça, com a arma apontada para a frente. Voltou a ligar o transmissor de capacete e gritou:

— Vamos! A comporta está vazia! Avante!

Aquele recinto era menor que o de Fenomat. A escotilha foi aberta sem dificuldade. Killarog entrou apressado. Pediu aos que vinham por último que voltassem a fechar a porta.

Killarog soltou um grito de triunfo quando olhou para a fileira de botões do elevador e viu que o mesmo se encontrava na altura da comporta.

“Era o que bastava para abrir a porta que fica do lado oposto do recinto”, pensou.

Ivsera viu-o pegar a chave.

— Espere aí! — gritou. — Pense um pouco antes de precipitar-se na desgraça. Isto só pode ser uma armadilha. Estivemos aqui o dia todo e não vimos uma única pessoa; entretanto o elevador está aqui em cima.

— Que nada! — interrompeu Killarog em tom áspero. — Não me faça perder tempo, moça. Daqui a alguns minutos, o abrigo será nosso.

Moveu a chave e a porta do elevador deslizou para o lado.

Killarog esteve a ponto de precipitar-se para o interior. Mas, depois de ter dado um passo, parou como se esbarrasse numa muralha invisível.

Soltou um grito rouco, levantou a pistola destravada que trazia na mão, e disparou contra um grupo de homens que se encontravam no elevador, já com as armas apontadas.

Não foi longe. Estes logo responderam ao fogo, e Killarog caiu sob as rajadas cruzadas das pistolas automáticas.

Os tiros disparados naquele recinto apertado feriram mais cinco dos homens de Fenomat. Ivsera viu-os cair. Os dois últimos de seus acompanhantes que permaneceram de pé atiraram as armas ao chão e, gritando, correram para junto da parede.

Ivsera ficou parada, com o cano da arma apontada para o chão.

— Parem, seus idiotas! — gritou em tom furioso para os homens de Sallon. — Já foi derramado muito sangue. Nós nos entregamos.

Naquele instante, ouviu a escotilha externa da comporta abrir-se. Virou-se e viu do lado de fora um segundo grupo de homens de Sallon.

— Tudo em ordem? — perguntou o que se encontrava à frente.

— Quase tudo — respondeu um dos homens que se achavam no elevador. — Este idiota matou Ifers e feriu gravemente Holran. Mas a moça diz que quer entregar-se.

— A moça? — disse o homem que estava junto à escotilha e soltou uma risada. — Será que em Fenomat não existem mais homens?

Ivsera não respondeu. Sentiu-se tomada de cólera. A cólera dirigia-se contra Killarog, que com sua cega impetuosidade provocara o desastre.

— Quantos homens de Fenomat ainda vêm atrás de você? — perguntaram a Ivsera.

— Nenhum — respondeu.

— Não acredito.

— Pois então não acredite.

— Escute aí, moça, se você acredita...

— Cale-se! — ordenou uma voz áspera. — A moça será interrogada lá embaixo. Vocês ficarão lá fora, até que tenhamos certeza de que mais ninguém vem de Fenomat. A demora não será muita. Garok avisa que está progredindo bem.

“Garok”, pensou Ivsera, “deve ser o homem que dirige o ataque subterrâneo contra Fenomat.”

Tudo indicava que quem falara por último na cabina do elevador era o chefe da turma de superfície. Os outros obedeceram imediatamente. A entrada da comporta voltou a ser trancada. O segundo grupo retornou aos lugares de antes.

“— O capim constitui um ótimo abrigo” — dissera Killarog.

“Tanto para os homens de Sallon como para nós”, completou Ivsera, agora em pensamento.

Killarog foi arrastado para dentro da cabina, tal qual os feridos. Dois destes já estavam imóveis. Os dois homens não feridos, que haviam atirado fora suas armas, foram trazidos atrás dos feridos.

— Entregue sua arma — disse o chefe do grupo, dirigindo-se a Ivsera.

A jovem obedeceu sem dizer uma palavra. O homem estendeu a mão. Mas Ivsera deixou a arma cair ao chão.

Ficou espantada ao ouvir que o homem ria baixinho.

— É orgulhosa, hein, moça? Vocês não têm motivo para isso.

Fitou-o pela primeira vez. Pelo visor do capacete viu um rosto inteligente, que já não era muito jovem. Ao que parecia, o homem havia perdido seu sorriso gentil sob a força das circunstâncias.

Ivsera achou que devia dar uma resposta.

— Se tivessem feito o que eu queria — disse — talvez a esta hora teríamos algum motivo para orgulhar-nos.

O homem fez um gesto sério, mas amável. Depois de fechar a porta do elevador, comprimiu o botão correspondente a um dos pavimentes inferiores.

 

O elevador levou uma hora para chegar ao destino. Por isso Ivsera teve tempo para refletir sobre sua situação.

Quanto mais o elevador descia, mais improvável se tornava que Thér ainda conseguisse alcançá-la com seu transmissor de potência reduzida. Não mais dera qualquer aviso, e Ivsera não teve a menor dúvida em ver nisso um mau sinal.

Lembrou-se do que Killarog lhe dissera sobre as armas à disposição dos homens de Sallon, em comparação com as que se encontravam no abrigo de Fenomat. Notou que os homens à sua frente eram mais ativos e corajosos do que aqueles conhecidos em Fenomat.

Seus rostos estavam marcados pela fome. Talvez fosse isso que lhes dava coragem.

Na metade do caminho, os trajes à prova de radiações foram tirados do corpo. Ivsera suspirou aliviada quando deixou cair a pesada vestimenta ombro abaixo.

Ficou espantada ao notar que os homens de Sallon usavam roupas melhores que os de Fenomat. Até chegavam a usar mais vestimentas que ela, uma mulher.

O homem com quem havia falado começou a falar.

— Meu nome é Feriar — disse com uma ligeira mesura. — Sinto muito que tenha sido atingida tão cruelmente pelo destino. Quanto a mim, apenas pretendia aprisioná-los. Esse homem — apontou para Killarog — é o único culpado.

Colocara tamanha ênfase na expressão “quanto a mim”, que Ivsera teve sua atenção despertada para o fato. A essa hora já recuperara a naturalidade.

— Quanto ao senhor? Quem mais poderia estar ligado a isso?

Feriar soltou uma risada triste.

— Sou apenas uma pequena engrenagem do mecanismo. Com o correr dos anos, os dentes desta engrenagem se desgastaram. Por isso muita gente já se pergunta se essa engrenagem não deveria ser retirada do mecanismo para ser substituída por outra, de dentes mais afiados.

Lançou um olhar indagador para Ivsera, a fim de verificar se havia entendido a alegoria. Ivsera fez um gesto afirmativo e Feriar prosseguiu em voz baixa:

— Prepare-se. Em Sallon, quanto maiores as engrenagens, mais afiados são os dentes. Nem sempre as coisas serão tão amenas como estão sendo comigo. Terei de entregá-la assim que chegarmos lá embaixo.

Ivsera agradeceu com um sorriso. Depois sentou num canto do elevador, sobre seu traje especial, a fim de suportar melhor o restante da viagem. Olhava fixamente para a frente. Estava mergulhada em profundas reflexões.

Um acordo tácito parecia ter sido estabelecido entre ela e Feriar. Este, que durante quarenta e cinco minutos não falara com seus subordinados, agora parecia não ter outra coisa a fazer senão dar-lhes tudo quanto era ordem, e gritar-lhes quando não as executavam com a necessária rapidez.

O elevador continuou a descer.

Ivsera sondou a situação. O braço estendido de Killarog com a pistola na mão direita chegava perto de seus pés. Provavelmente não seria fácil abrir os dedos crispados para tirar-lhe a arma. Além disso, alguém poderia desconfiar se esta desaparecesse de repente.

À direita de Ivsera, estava deitado um dos feridos. Achava-se com os olhos fechados e respirava debilmente. Não conseguira tirar a pistola do coldre. Encontrava-se pendurada no suporte de plástico na altura da junção do cano com o cabo.

Depois de algum tempo, Ivsera sentou de modo a aproximar-se melhor do ferido. Abaixou-se para examinar o traje sobre a qual estava sentada.

Quando viu que ninguém estava notando, fez uma terceira investida. Num movimento rápido, tirou a pistola do coldre e escondeu-a sob o cinto da jaqueta que constituía a peça principal de sua vestimenta.

“Ninguém reparou?”, pensou, indagando-se. “Ninguém?”

Talvez Feriar. Mas este fez de conta que não havia percebido nada. Apenas parou de transmitir comandos a seus subordinados.

 

Na saída do elevador, os prisioneiros foram transferidos a outro grupo de homens armados. Feriar mal teve tempo para fazer um gesto animador para Ivsera.

Os prisioneiros foram tangidos para dentro da galeria que, partindo do poço do elevador, avançava para o leste.

Marcharam durante uma hora. Ivsera aprendeu a cerrar os dentes para agüentar o passo. Felizmente, com o tempo, os soldados também começaram a cansar-se e passaram a andar mais devagar.

Muita gente cruzou com o triste grupo. A moça notou que todos eles, tanto homens como mulheres, estavam mais bem vestidos que as pessoas que ocupavam o abrigo de Fenomat. Ivsera ficou quebrando a cabeça a este respeito. Depois de uma série de teorias temerárias, lembrou-se do motivo que provavelmente seria o mais plausível.

“Os ocupantes do abrigo de Sallon não dispunham de nenhum químico que soubesse transformar roupas em alimentos. Por isso não havia necessidade de desfazer-se das roupas”, pensou.

Mas só o diabo poderia saber de que teriam vivido durante todo esse tempo.

Finalmente os soldados levaram os três prisioneiros para uma galeria secundária, mais estreita, que seguia para a esquerda. Avançaram mais uns cem metros. Pararam diante de uma porta que, ao contrário das que geralmente são encontradas nos abrigos, quase chegava a ter a largura de um portal.

As duas metades deslizaram para o lado sem que qualquer dos soldados tivesse movido um dedo.

“Provavelmente”, pensou Ivsera, “o comandante do abrigo de Sallon se dava ao luxo de um olho mágico e de mecanismo elétrico que abria a porta.”

Os soldados enrijeceram assim que a porta se abriu por completo. Ivsera ouviu uma voz clara e enérgica, que disse em tom rangedor:

— Entrem!

Os soldados fizeram continência e entraram, acertando o passo. Os prisioneiros seguiram-nos. Ao que parecia, os dois homens de Fenomat sentiam medo e curiosidade ao mesmo tempo. Já Ivsera andava relaxadamente e o mais devagar possível, para mostrar ao povo de Sallon que nada do que eles possuíam a impressionava.

No entanto, o homem que infundia tamanho respeito nos soldados não deixou de impressioná-la. Pelo tom de voz acreditara que encontraria um tipo de oficial alto e rígido. Mas a figura com que se defrontou foi a de um homem ainda jovem, pequeno e gordo, em cujo rosto brilhava uma expressão presunçosa.

Os soldados pararam diante da enorme mesa, atrás da qual estava sentado.

— Retirem-se! — ordenou o gorducho. — Esperem lá fora.

Os soldados desapareceram. O oficial contemplou um a um os três prisioneiros.

Só no caso da jovem parecia satisfeito com o resultado da inspeção. Sorriu e com um gesto relaxado mandou que os dois homens de Fenomat se encostassem à parede. Fez outro gesto para dar a entender a Ivsera que devia aproximar-se, mas esta não reagiu.

Ele parecia aborrecido.

— Ei, moça! — gritou. — Aproxime-se.

Ivsera olhou em torno. Fez de conta que só agora o estava notando.

— Está falando comigo? — perguntou, aparentemente surpresa.

— Claro — resmungou o gorducho. — Com quem poderia ser?

Ivsera não respondeu. Limitou-se a fitá-lo com uma expressão séria. Isso deixou-o nervoso, e o nervosismo fez aumentar sua raiva.

— Eu disse que você deve se aproximar! — gritou depois de algum tempo.

Ivsera não se moveu. Belal levantou-se fungando, saiu de trás da escrivaninha e fez menção de puxar Ivsera pelo braço.

— Pense antes de fazer qualquer coisa — recomendou Ivsera tranqüilamente. — É bem possível que acabe recebendo uma bofetada.

O gorducho estacou, deixou cair a mão, cerrou os olhos e exclamou:

— Espere aí, minha filha. Vou domá-la. Guardas!

A porta abriu-se, e os soldados voltaram a entrar.

— Levem estes indivíduos. Coloquem-nos no campo de trabalho C. Nos próximos cinco dias ficarão sem alimento. São muito gordos.

Os homens de Fenomat não esboçaram a menor resistência ao serem levados. A porta voltou a fechar-se atrás dos soldados e dos prisioneiros por eles conduzidos.

O oficial ficou a sós com Ivsera. Esta receava que não demoraria a chegar o momento em que teria de fazer uso da arma de que se apoderara às escondidas.

Ele sorriu.

— Agora estamos a sós, moça — disse em voz baixa. — Você sabe o que isso significa?

— A única coisa que sei — respondeu Ivsera em tom seco — é que o Conselho do abrigo de Sallon, ou outro tipo de governo que o senhor tenha, não deixará de chamá-lo à responsabilidade por violação das leis da guerra.

O oficial escutou com uma expressão de espanto no rosto. Finalmente soltou uma estrondosa gargalhada.

— As leis de guerra — disse entre os risos — já têm mais de cem anos. Hoje ninguém mais se lembra delas. Ora essa, moça! Você é minha, tal qual o abrigo de Sallon. Não existe ninguém que me possa chamar a responsabilidade.

Ivsera não pôde deixar de observar:

— Pelo que vejo, Sallon pertence a um sujeito muito desagradável.

No mesmo instante, o gorducho perdeu o bom humor. Aproximou-se de Ivsera e chiou:

— Não me faça ficar zangado. Estou disposto a oferecer-lhe um estilo de vida que atualmente nenhuma mulher em Isan desfruta. Por outro lado, poderei dar-lhe um tipo de vida que faça você lamentar-se de ter vindo a este mundo. Entendeu?

Ivsera não perdeu a calma.

— Antes de mais nada, não me trate de “você”; trate-me de “senhora” — respondeu. — Além disso, dispenso o estilo de vida que o senhor me quer proporcionar. Prefiro estar morta que juntar-me a um tipo como o senhor.

Não sabia por quê, mas estava interessada em ofendê-lo. E conseguiu.

O homem espumou de raiva. Segurando-a pelo braço esquerdo, sacudiu-a com tamanha violência que os cabelos voaram de um lado para outro. Pôs-se a gritar:

— Você vai obedecer. Implorará para que lhe poupe a vida. Até hoje ninguém se opôs a Belal por mais que alguns minutos.

Face ao nervosismo do gorducho, Ivsera não teve a menor dificuldade em tirar a pistola. Empurrou o botão da trava e fez pontaria com toda calma, a fim de não errar o alvo.

Apenas cometeu um erro. Avaliou a agilidade do gordo com base no volume de seu corpo.

Belal viu a arma, deixou-se cair para o lado e na queda bateu na mão da jovem, que soltou a pistola. Ivsera gritou de raiva e decepção. Ele rolou rapidamente pelo chão, pegou a arma e levantou-se com um sorriso de deboche.

— Então é isso! — exclamou. — E as leis da guerra? Será que uma prisioneira pode ameaçar a segurança do abrigo inimigo com uma arma escondida?

A moça perdera totalmente o autocontrole:

— Mate-me logo! — gritou. — Vamos, atire!

Belal limitou-se a sacudir a cabeça.

— Não, minha filha. Você continuará a viver.

Ivsera investiu sobre ele, levantando as mãos para golpeá-lo, mas Belal empurrou-a para trás com a maior facilidade. A jovem caiu e bateu com as costas contra a parede.

Até parecia que Ivsera acionara um contato invisível. No momento do choque, a porta abriu-se.

Belal, que até então parecia dedicar todo seu interesse a ela, levantou a cabeça, espantado.

Ivsera fitou o homem alto e de vestes estranhas que parou na entrada e, depois de olhar ligeiramente em torno, penetrou na sala. A porta voltou a fechar-se atrás dele.

“Este homem tem olhos brancos”, pensou Ivsera apavorada. “Quem já viu um par de olhos desse tipo?”

Os de Ivsera e de todas as pessoas conhecidas eram avermelhados.

Belal recuperou o autocontrole.

— Quem é você? — gritou para o desconhecido. — E como se atreve a entrar...

O desconhecido interrompeu-o com um gesto indiferente.

— Não perca seu tempo, meu caro — respondeu em tom tranqüilo. — Não me atrevo a coisa alguma. Ouvi sua gritaria lá no corredor, e pensei que possivelmente alguém estaria precisando de auxílio.

Belal perdeu o fôlego. O desconhecido teve tempo de inclinar-se sobre Ivsera e levantá-la antes que Belal recuperasse a fala.

— Espere aí, rapaz! Logo espantarei essa sua audácia.

Comprimiu uma fileira de botões presos à escrivaninha. O ruído abafado das sereias de alarma penetrou pela porta fechada.

O desconhecido aguçou o ouvido.

— Está chamando sua gente, gorducho? Ainda bem! Só assim verão que seu comandante é um velhaco.

— Você está louco! — gritou Belal em tom histérico. — Daqui a pouco estará morto.

O desconhecido acenou com a cabeça.

— Talvez seja você — respondeu tranqüilamente.

Belal empalideceu. Sua segurança desvaneceu-se. Apoiou-se sobre a borda da escrivaninha e perguntou:

— Quem... quem é você?

— O que lhe adiantará saber meu nome? — retrucou o desconhecido. — Pode chamar-me de Perry; é quanto basta.

Naquele instante, a porta abriu-se. Uma horda de homens armados até os dentes dispôs-se a penetrar no gabinete.

— Matem-no! — berrou Belal. — Ele me ofendeu.

Ivsera viu o desconhecido que se identificara pelo nome de Perry virar-se abruptamente. Levantou o braço direito, do qual parecia emanar uma força misteriosa. Os soldados pareciam grudados ao limiar da porta. Até mesmo a voz esganiçada de Belal morreu.

— Não se apressem — recomendou o desconhecido com toda a tranqüilidade. — Belal está mentindo. Molestou esta moça, que é uma prisioneira de guerra.

Belal soltou uma risada de deboche. Estava acostumado a não ver levado a sério qualquer acusação dirigida contra sua pessoa. Tudo que fazia revertia em proveito imediato do abrigo de Sallon. Dessa idéia derivava a posição de força que o oficial desfrutava.

Mas, pela primeira vez, viu seus soldados com os rostos embaraçados. Não se atreviam a olhar nem para ele, nem para o desconhecido.

— Voltem, rapazes! — ordenou o desconhecido. — Aqui está sendo julgado um homem que durante vários anos cometeu crimes e ficou impune.

Ivsera não acreditou no que seus olhos viam. Os soldados fizeram meia-volta e retornaram ao corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Voltara a ficar a sós com Belal e o desconhecido chamado Perry.

O gorducho afundara em sua cadeira, incapaz de pronunciar uma única palavra.

— Viu? — disse Perry com um sorriso. — É o que acontece com quem muito se gaba.

— Isso... isso... — balbuciou Belal.

— Isso é impossível? Foi o que você quis dizer? Não, não está havendo nenhuma bruxaria.

Belal lembrou-se de ter ouvido uma alusão a qualquer julgamento. Sentiu o poder apavorante do desconhecido e percebeu que, se não fizesse alguma coisa, sua vida poderia correr perigo.

— Eu... eu... poupe minha vida! — implorou. — Não farei nada de que você não goste.

Perry soltou uma risada irônica.

— De repente? Não perca tempo, Belal, e não se preocupe. Poderá ficar com sua vida imunda. Tirarei a moça daqui e levá-la-ei a Fenomat. Já que demonstra tamanha boa vontade em fazer-me um favor, eu lhe darei uma dica. Não ponha as mãos em Fenomat, senão você se arrependerá.

Ivsera viu o sorriso de deboche que por uma fração de segundo passou pelo rosto de Belal. Será que o desconhecido havia visto?

Quase como um sonho, sentiu Perry segurar sua mão.

— Venha comigo — disse. — Vamos retirar-nos e deixar nosso amigo a sós com seus problemas.

A porta abriu-se. Ivsera e Perry saíram para o corredor. A jovem olhou para trás e viu que Belal permanecia imóvel atrás de sua escrivaninha. Ainda continuava paralisado pelo susto ou então era cauteloso demais para executar qualquer movimento rápido e revelar suas intenções antes do tempo.

 

Perry caminhou pelo corredor com a tranqüilidade de quem não tem um único inimigo em todo o Universo. Algum tempo passou-se até que Ivsera se recuperasse da surpresa o bastante para falar.

Até então haviam-se encontrado apenas com alguns homens sem armas, que os fitaram, mas não esboçaram o menor gesto hostil.

No corredor principal, as coisas seriam diferentes. Por lá havia mais soldados que civis.

— O senhor... — disse Ivsera, trêmula — o senhor acredita que conseguiremos sair sem sermos molestados?

Perry virou o rosto em sua direção e sorriu.

— Tenho certeza — respondeu tranqüilamente.

Foi só o que disse. E foi pouco para satisfazer a enorme curiosidade de Ivsera.

— De onde veio o senhor? Não é nenhum dos ocupantes do abrigo de Sallon, não é? E ainda menos é de Fenomat. Será que é de Othahey?

Othahey era o país com que Heyatha entrara em conflito antes que irrompesse a guerra. E Heyatha era a nação que tinha Fenomat por capital.

Perry sacudiu a cabeça.

— Não, não venho de Othahey. Se viesse, não poderia estar tão bem informado sobre os dois abrigos desta cidade.

Um pouquinho do velho espírito de contradição de Ivsera voltou a manifestar-se.

— Não seria totalmente impossível — respondeu. — Não acredito que os habitantes de Othahey tenham sido estúpidos a ponto de não manterem um serviço de espionagem.

Perry soltou uma risada alegre.

— Talvez tenha razão. Acontece que realmente não sou de Othahey.

Não contou de onde tinha vindo.

Dali a dois minutos, entraram no corredor principal. Perry seguiu para a direita, em direção ao elevador. Aquilo que Ivsera temera aconteceu. Com faixas brancas no braço, uma patrulha militar formada de cinco soldados fortemente armados barrou o caminho de Perry. Este só parou quando esbarrou no primeiro soldado e além do mais pôs-se a gritar:

— Seu pateta! Será que você não sabe sair do caminho?

O soldado parecia ter senso de humor. Levantou a arma, recuou um passo e contemplou Perry, que era muito mais alto que ele, dos pés à cabeça. Finalmente disse com uma risada:

— Queira desculpar, general. Será que apesar dos pesares o senhor não me poderia contar quem é o senhor? Ou será que possui algum documento?

Perry sacudiu a cabeça.

— Não, meu amigo, não possuo nenhum documento. Seu superior é o capitão Feriar, não é? Leve-me à presença dele.

Ivsera sentiu-se espantada, e o soldado também. Em Sallon os soldados não usavam uniforme. Uma pessoa que não os conhecesse não estaria em condições de adivinhar quem era o oficial que comandava cada um, mesmo que conhecesse os homens.

A patrulha fez meia-volta e, com Perry na ponta, marchou pelo corredor principal, em direção ao elevador. Ivsera seguiu-os de perto. O desconhecido passou a infundir-lhe pavor.

O gabinete de Feriar ficava próximo ao elevador. Quatro soldados postaram-se junto à porta, enquanto o quinto conduziu Perry e Ivsera para dentro do pequeno recinto.

Feriar levantou-se de um salto quando reconheceu Ivsera. Não deu a menor atenção a Perry.

— Santo Deus! — disse muito espantado. — Como conseguiu livrar-se tão depressa de Belal?

Ivsera fez um gesto e apontou para Perry. Feriar examinou o homem alto à sua frente.

— Quem é o senhor? — perguntou em tom desconfiado.

Perry sorriu.

— Sou um homem que não possui nenhum documento, mas faz questão de sair deste abrigo sem ser molestado, e com esta senhorita.

Feriar respirava com dificuldade.

— Acontece que é uma prisioneira! — disse, arfando.

Abriu a boca para chamar os guardas, mas Perry interrompeu-o com um gesto.

— Deixe de gritaria — disse em tom enérgico. — Pelo que vejo, o senhor é um homem sensato. Por que vai trabalhar para um sujeito imundo como esse Belal?

Feriar ficou com a boca escancarada.

— O senhor vê que...

— Exatamente. O senhor sente repugnância pelo governo autocrático de Belal, não apenas por uma questão de princípio, mas também porque o ditador vem usando os poderes de que dispõe em proveito próprio — falava rapidamente, não deixando que Feriar respondesse. — Faço-lhe uma proposta. Venha comigo a Fenomat. Garanto que nada lhe acontecerá.

Estas palavras pareceram exercer uma estranha coação sobre Feriar. O tom de sua voz não demonstrava muita convicção, quando procurou formular uma objeção:

— Mas Fenomat está...

— Já sei. Vamos reconquistar o lugar. Será que a tarefa seria de seu agrado?

Feriar fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. Irei com o senhor.

Ivsera teve a impressão de que estava sonhando. Uma coisa dessas não podia existir. Um homem solitário e, ao que parecia, desarmado, andava livremente num abrigo cujo comandante acabara de ofender mortalmente. Para vencer qualquer obstáculo, apenas dizia algumas palavras e levava os oficiais à deserção.

Acontece que era exatamente isso. Feriar pegou a arma e disse aos guardas que levaria os estranhos de volta para Belal. Depois dirigiu-se para a direita, onde ficava o elevador.

A cabina demorou quinze minutos em chegar. Quando a porta se abriu, estava vazia. Perry deixou que Ivsera e Feriar entrassem antes dele. Viu este último estender a mão em direção ao botão de cima, e exclamou:

— É o contrário, meu amigo. Vamos descer.

Feriar lançou-lhe um olhar perplexo.

— Não pretendo caminhar horas a fio por uma área contaminada — disse Perry. — Se passarmos pela galeria recém-aberta, a caminhada será mais fácil.

Feriar obedeceu. Comprimiu o botão de baixo.

Quando haviam descido quatro pavimentos, um sinal vermelho acendeu-se na parede dos fundos do elevador, junto ao teto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um zumbido e, lá fora, o uivo estridente das inúmeras sereias.

Feriar estremeceu.

— É o alarma! — fungou.

Perry fez um gesto de indiferença.

— O que esperava? Que Belal nos deixasse escapar sem mais aquela?

Logo depois, uma voz metálica soou no alto-falante instalado no elevador:

— Atenção! Alarma em todos os pavimentos! Dois prisioneiros muito importantes acabam de fugir: uma mulher vinda do abrigo de Fenomat e um desconhecido que surgiu não se sabe de onde. Ambos foram condenados à morte por sentença regular do tribunal de guerra e por isso terão de ser recapturados, vivos ou mortos.

Seguiu-se uma descrição dos dois prisioneiros. Cabia ressaltar que, em relação a Perry, Belal, que por certo fora o autor da descrição, se enganara um pouco. Ao menos, Ivsera não acreditava que alguém o pudesse reconhecer com base apenas nos dados vagos fornecidos por Belal.

Feriar começou a inquietar-se.

— Sabe quantas pessoas temos em armas em Sallon?

Perry sorriu.

— Espere... cinco mil e quinhentos, não é? Isso corresponde a quase oitenta por cento da população masculina entre quinze e cinqüenta anos.

Feriar ficou perplexo.

— Sabe onde essa gente nos procurará? — prosseguiu Perry. — Lá em cima, na comporta de superfície.

 

Perry teve razão. O elevador chegou ao pavimento inferior, sem que ninguém os molestasse. O corredor que se estendia diante deles estava vazio.

Sem a menor hesitação, Perry seguiu o caminho que dava para a direita.

— Guarde a arma — recomendou a Feriar. — Poderei cuidar de nós três. Na medida do possível, quero evitar o derramamento de sangue.

Feriar obedeceu sem dizer uma palavra. Desde o momento em que vira Perry pela primeira vez, Ivsera começou a acreditar que esse homem possuía um estranho poder. Será que ele sabia controlar os pensamentos e desejos de seus semelhantes?

Procurou examinar sua própria mente, mas não percebeu qualquer alteração.

Subitamente o corredor terminou numa parede cinzenta e nua. Mas isso não causou o menor embaraço a Perry. Abriu-a do lado direito e, para surpresa de Ivsera, atrás estendia-se um recinto que tinha o mesmo aspecto do compartimento de Fenomat, que Killarog lhe havia mostrado e, tal qual este, possuía duas portas.

A capacidade de orientação de Perry era espantosa. Dirigiu-se sem a menor hesitação aos dois homens que montavam guarda junto à segunda porta e disse:

— Deixem-nos passar. Temos de ir a Fenomat para executar uma tarefa muito importante.

Ao que tudo indicava, um dos guardas não teve a menor dúvida. Mas o outro baixou o fuzil, fechando o acesso à porta, e disse em tom desconfiado:

— O comandante Belal está procurando uma mulher e um homem que foram condenados à morte. Conheço o capitão Feriar. Mas será que vocês não são os fugitivos?

Perry pôs a mão no bolso. Ele o fez numa atitude indiferente, como quem já está cansado de exibir seus documentos. E, ao que parecia, os dois guardas pensavam que se tratasse da identidade de Perry.

Acontece que Perry acabou por tirar um objeto que tinha certa semelhança com uma pequena pistola. Ivsera não chegou a ver o que Perry fez com o objeto, mas no instante em que sentiu uma dor cruciante na cabeça, os dois soldados caíram imóveis. Nem tiveram tempo para soltar um grito.

Ivsera teve um calafrio.

— Vamos! — disse Perry em tom tranqüilo. — É uma pena que foram tão desconfiados. Levarão duas horas para recuperar a consciência. Mas antes disso alguém os encontrará... e então já saberão onde procurar-nos.

— Não estão... mortos? — gaguejou Ivsera, enquanto Perry abria a porta.

Perry riu.

— Não. Como já disse, não derramo sangue enquanto tenho um meio de evitá-lo.

O corredor pelo qual seguiram era mais largo e alto que aquele que Killarog mandou abrir em prosseguimento ao abrigo de Fenomat. Ivsera começou a compreender que a “guerra dos túneis”, nome que costumava dar ao conflito, fora preparada há muito tempo por parte de Sallon. Deviam ter levado pelo menos um ano para abrir uma galeria desse tipo numa extensão de alguns quilômetros.

O corredor estava profusamente iluminado. Percebia-se que, além dos dois guardas inconscientes, não havia ninguém por perto. Ivsera achou que isso era um mau sinal para Fenomat. Se ainda estivesse havendo luta, a galeria se encontraria repleta de gente armada.

Perry caminhava vigorosamente. Ivsera percebeu que Feriar examinava repetidas vezes o homem desconhecido, como se procurasse compreender com quem lidava. Porém, nada estava conseguindo pois, de vez em quando, sacudia a cabeça, bastante contrariado, e murmurava palavras incompreensíveis. Ivsera o entendia, porque com ela estava acontecendo a mesma coisa. O desconhecido livrara-a de uma situação muito perigosa e, ao que tudo indicava, estava prestes a impor respeito ao regime despótico de Sallon. Portanto, deviam sentir-se gratos. De outro lado, porém, começava a apavorá-la por causa dos seus conhecimentos e capacidades.

Assim, por exemplo, a arma com que acabara de reduzir os dois guardas à inação. O que seria aquilo? Não os matara; apenas lhes roubara a consciência. Ivsera tinha certeza absoluta de que em Isan jamais existira um aparelho daquele tipo.

A conclusão que se poderia extrair dali era um pouco arriscada: o desconhecido não era de Isan. Vinha de outro mundo.

Antes que tivesse início a guerra em Isan, os dois Estados rivais, Othahey e Heyatha, realizavam esforços para conquistar o espaço. Em virtude da inimizade que reinava entre os dois Estados, esses esforços assumiram a feição de uma corrida obstinada. Depois que vários satélites gravitavam em torno do planeta, o lançamento do primeiro foguete espacial estava iminente de ambos os lados. E, em ambos os casos, o destino do foguete seria Vilan II, o planeta que tinha uma órbita entre dois outros que giravam em torno de Vilan.

Mas sobreveio a guerra e destruiu tudo que havia sido criado. Havia uma única coisa que não conseguira destruir: o saber dos homens, que lhes dizia ser a navegação espacial não só possível, como necessária, pois em outros mundos poderia haver outros seres, talvez inteligentes, e que se deveria tentar entrar em contato com eles.

Será que Perry era um desses seres?

 

Depois de uma marcha de três horas, durante a qual se haviam encontrado com alguns soldados que não criaram o menor problema, Perry deu outra prova de seus conhecimentos sobrenaturais. Parou e perguntou:

— A senhora não disse que em Fenomat abriram outra galeria em direção a Sallon?

A pergunta foi dirigida a Ivsera. A jovem assustou-se. Tinha certeza absoluta de que nunca havia falado sobre essa galeria. A não ser com Killarog, que estava morto.

“Será que Perry sabia ler pensamentos?”, pensou.

— Não... — respondeu em tom hesitante — não disse nada disso. Mas de qualquer maneira essa galeria existe.

Perry sorriu.

— Onde?

Ivsera descreveu a situação da galeria com a maior exatidão possível. Por algum tempo, Perry parecia bastante pensativo. Finalmente apontou para a parede da esquerda do corredor e disse:

— Se neste ponto abrirmos uma galeria que desça dez graus em relação à horizontal, devemos encontrar a galeria de Fenomat numa distância de cem metros, não é?

Ivsera não sabia. Além disso, a observação lhe parecia ser puramente teórica.

“Quem poderia abrir uma galeria numa hora dessas, e para que poderia servir a mesma?”, refletiu.

— Será preferível que desapareçamos por algum tempo — apressou-se Perry em explicar. — Uma porção de gente está atrás de nós.

Ivsera e Feriar olharam para trás. Mas a galeria que se estendia às costas deles continuava vazia como estivera até então.

Perry pôs a mão no bolso e tirou a pequena arma com que fizera desmaiar os dois guardas; entregou-a a Feriar. Depois fez um gesto em direção à galeria.

— Se aparecer alguma coisa por aí — explicou — aponte o cano da arma nessa direção e aperte o botão vermelho. Isso nos livrará dessa gente. Convém olhar de vez em quando para o outro lado. Provavelmente Belal procurará agarrar-nos num movimento insinuante.

Não houve a menor objeção. Feriar pegou cautelosamente a estranha arma e examinou-a. Ivsera colocou-se a seu lado e, de tão curiosa que estava, nem percebeu de onde Perry tirou o instrumento comprido que dirigiu contra a parede esquerda do corredor.

Mas viu que do cano do aparelho saiu um raio luminoso esverdeado que se alargou em forma de funil e atingiu a parede. Dentro de poucos segundos surgiu um buraco profundo. A rocha abriu-se para ambos os lados, como se tivesse sido transformada em nuvens de gás.

Perry concentrou-se exclusivamente no seu trabalho. Apesar disso parecia notar os olhares espantados de Ivsera e Feriar.

— Tome cuidado, Feriar! — recomendou. — Senão de repente estarão aqui sem que percebamos qualquer coisa.

O misterioso raio verde trabalhava silenciosamente e com uma rapidez inacreditável. Ivsera assistia com o maior espanto, mas de repente sua atenção foi desviada.

Uma gritaria e o ruído de passos invadiram o abrigo de Sallon. À luz das lâmpadas, viam-se soldados que corriam apressadamente pelo corredor. Ao que parecia Perry os percebera, embora já tivesse penetrado bem longe para dentro da parede. Gritou para Feriar:

— Detenha-os apenas por um instante; daqui a pouco tudo estará resolvido.

Tremendo de medo, não dos soldados, mas da arma desconhecida, Feriar dirigiu o cano curto sobre os soldados de Sallon, que já o haviam reconhecido juntamente com Ivsera e se aproximavam em meio a uma gritaria furiosa.

— Atire! — exclamou Ivsera assustada.

Feriar apertou o botão. Os efeitos do tiro foram muito maiores do que imaginaria. Até parecia que os homens haviam batido numa parede: tombaram, ficando imóveis.

Os homens que vinham na retaguarda não sabiam o que tinha acontecido aos outros, mas compreenderam o perigo. Abrigaram-se atrás dos corpos dos homens inconscientes e apontaram os fuzis. Feriar hesitou.

— Cuidado! — gritou Ivsera. — Deite!

No mesmo instante em que os fuzis começaram a espocar, deixou-se cair para a frente. Feriar continuou de pé e voltou a levantar a arma. Comprimiu o botão e silenciou outro grupo dos soldados de Sallon. Só vez por outra, um ruído soava pelo corredor.

Ivsera ouviu os projéteis baterem contra as paredes e cantarem ricocheteando.

Algumas peças de metal reluzente caíram bem à sua frente, continuaram a rolar e imobilizaram-se. Incrédula, Ivsera pegou uma delas. Era um projétil de fuzil; alguma força misteriosa fizera com que interrompesse sua trajetória e caísse ao chão.

Ouviu a voz de Perry, que parecia vir através de uma parede muito espessa:

— Venham! Já consegui.

Feriar continuava de pé, com os olhos fitos nos homens inconscientes que estavam jogados no corredor. Ivsera teve de empurrá-lo suavemente para dentro da galeria lateral que acabara de ser aberta por Perry.

Com um espanto enorme, ela percebeu que neste meio tempo a galeria já havia avançado cinqüenta metros. De pé no fim do túnel, Perry lhes fez um sinal com a mão.

— Vamos fechar-lhes o caminho — disse. — Andem depressa!

Feriar despertou do torpor em que se encontrava e começou a caminhar vigorosamente.

— Cheguem bem perto! — pediu Perry. Dirigiu o cano comprido de sua arma contra o teto da galeria que acabara de perfurar. Concentrando os raios num feixe finíssimo, cortou fendas estreitas na rocha. Dentro de alguns segundos, fez com que sua entrada desmoronasse. Prosseguiu na operação, até que a galeria secundária ficasse obstruída numa extensão de cerca de trinta metros.

— Isso! — disse Perry com uma risada. — Acho que levarão pelo menos três dias para remover o entulho.

Prosseguiu no seu trabalho e, logo depois, abriu-se o último pedaço de rocha que dava acesso à galeria do abrigo de Fenomat.

A fuga fora bem sucedida. O corredor estava vazio. Talvez os ocupantes do subsolo de Sallon ainda não o haviam descoberto; ou então, o que era mais provável, não se interessaram por ele, porque de nada lhes poderia servir.

 

Para sua surpresa, no pavimento inferior do abrigo de Fenomat só encontraram dois guardas, postados na saída do corredor de Sallon, que dava diretamente para o antigo gabinete de Havan. Ivsera pensou na cara que este deveria ter feito quando de repente a parede desmoronou atrás dele e os soldados de Sallon se precipitaram pela abertura.

Perry liquidou os dois guardas com um único tiro e, ajudado por Feriar, levou-os a uma sala vizinha. Disse que a energia do disparo era suficiente para deixá-los inconscientes por dois dias, e que seria preferível não serem descobertos antes disso.

Depois dessas palavras, Feriar olhou Perry com uma expressão séria. Hesitou por um instante e disse:

— Nós lhe devemos muitos agradecimentos, e sabemos perfeitamente que em Isan deve ser considerado como um tipo de ser superior. Mas ficaríamos muito mais à vontade se quisesse dizer-nos o que pretende fazer e, principalmente, por que pretende fazê-lo.

Perry fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. A resposta à primeira pergunta é fácil. Pretendo reconquistar o abrigo de Fenomat. Para dar uma resposta parcial à segunda pergunta, direi o seguinte: se Belal conservar em seu poder no abrigo de Fenomat, isso representará o primeiro passo da escalada que fará dele a potência número um de Isan. Pelo que sei, aqui não existe nenhum lugar em que haja dois abrigos que fiquem tão próximos um do outro. Portanto, não haverá ninguém com maior domínio que Belal. Depois desse passo, o gorducho fará o possível para dominar todo o planeta; e, uma vez que será o maior poder, deverá conseguir.

Perry fez uma ligeira pausa e prosseguiu em tom ligeiramente irônico.

— Uma vez que Belal pretende instalar o sistema ditatorial em Isan, deveremos estragar seus planos.

Feriar fez um gesto afirmativo; parecia muito sério.

— E a outra parte da resposta? — perguntou Ivsera.

— Deveremos estar juntos por mais algum tempo antes que eu possa dar a resposta integral. Por enquanto, nada posso adiantar.

Feriar interveio:

— O senhor dispõe de uma série de armas que lhe garante uma superioridade absoluta sobre qualquer inimigo. Mas será que conseguirá dominar a guarnição do abrigo, que deve ser superior a mil homens? Convém não esquecer que estas instalações são muito complicadas. Para uma pessoa isolada é praticamente impossível orientar-se por aqui.

Perry exibiu um sorriso condescendente.

— Para mim não haverá o menor problema; pode acreditar — respondeu.

Perry pôs a mão num dos bolsos de seu traje esquisito. Tirou um objeto quadrado, achatado e que, de tão pequeno, facilmente poderia ser escondido na palma da mão de qualquer pessoa.

Ivsera ouviu-o dizer algumas palavras, enquanto encostava o pequeno aparelho à boca. Não compreendeu essas palavras.

Mas, em Isan havia uma única língua, motivo por que o conceito de idioma estrangeiro era totalmente desconhecido dos habitantes do planeta. Por isso Ivsera viu no fato de não ter entendido a fala de Perry mais uma prova de que o mesmo provinha de um mundo desconhecido.

Ao que parecia, Feriar ainda estava longe de chegar a uma conclusão desse tipo. Fitou-o com uma expressão incrédula enquanto Perry falava para dentro do minúsculo aparelho. Mas, quando de repente, ouviu uma voz saindo desse aparelho, e que tal qual Perry emitia sons de uma língua estranha, ficou apavorado.

 

John Marshall ocupou o lugar de Perry Rhodan, enquanto este foi verificar o resultado do empreendimento do qual tivera conhecimento por meio da escuta das palestras de Killarog.

E a transmissão que tanto espanto causou em Ivsera e Feriar foi dirigida a Marshall. E este captou um ligeiro relato da situação e obteve estas instruções:

— Arme-se com um desintegrador e um radiador de impulsos térmicos e venha até aqui. Vamos atacar o abrigo simultaneamente de dois lados. Laury ficará com Rodrigo. Entendido?

— Perfeitamente. Permanecerei em contato com o senhor.

— Está bem — concluiu Rhodan. — Faça o possível para não matar ninguém.

 

A reconquista do abrigo de Fenomat não passou de uma farsa. Perry atravessou os corredores e deixou todo mundo inconsciente com a arma misteriosa. Caberia a Feriar e Ivsera separar os homens de Fenomat dos de Sallon. Os primeiros ficariam estendidos no chão até que recuperassem os sentidos; os outros seriam amarrados.

Antes do início da operação, Perry fechara as extremidades de ambas as galerias, a fim de impossibilitar a remessa de reforços de homens e materiais para Fenomat, ao menos por via subterrânea.

O abrigo de Fenomat era formado de um total de cem pavimentos. Face à arma de grande alcance de que dispunha, Perry não demorou mais de uma hora na operação de limpeza de cada um. Vez por outra, recorria ao aparelho quadrado para conversar com alguém numa língua estranha. Quanto ao conteúdo das palestras, apenas disse a Ivsera e Feriar que um amigo seu havia iniciado a limpeza do abrigo, começando da parte de cima e que, dentro em breve, se encontrariam com ele na altura do qüinquagésimo pavimento.

Uma coisa que quase chegava a ser mais espantosa que a série de acontecimentos foi a persistência com a qual Rhodan se dedicou à tarefa. Depois de concluída a limpeza de dez pavimentos, Feriar teve de ser substituído por um elemento de Fenomat, já que não conseguia manter-se de pé de tão cansado que estava. Ivsera desistiu depois de mais dois pavimentos, após ter providenciado um substituto saído das fileiras dos homens que já haviam despertado.

Quanto a Perry, este não demonstrou o menor sinal de cansaço. Tinha o aspecto de quem acabava de acordar de um sono reparador. Ivsera sentiu vergonha, mas enquanto ainda estava com vergonha adormeceu.

Quando abriu os olhos, um silêncio total reinava em torno dela. A maioria das pessoas inconscientes havia recuperado os sentidos. Como estas não tivessem a menor idéia do que acontecera, mantinham-se em silêncio. Os prisioneiros vez por outra faziam um esforço de livrar-se das amarras ou sair dos calabouços fechados com portas de aço, mas não conseguiram nem uma coisa nem outra. Assim, acabaram por conformar-se com o destino.

Alguns lembraram-se de terem visto Ivsera em companhia do homem que com sua arma havia criado toda a confusão. Por isso, a mesma foi assediada com perguntas logo que se levantou. Mas em vez de responder correu em direção ao elevador e subiu a fim de procurar Perry.

Encontrou-o no quadragésimo oitavo pavimento. Ao seu lado estava Feriar e mais um homem que tinha olhos brancos que nem Perry e trazia na mão uma arma igual à que este usara.

Perry sorriu para a jovem.

— Tudo liquidado — disse. — O abrigo está em nosso poder. Ivsera, este é meu amigo Marshall. Se não fosse ele, teríamos mais algumas horas de trabalho.

Ivsera inclinou a cabeça para Marshall. Este cumprimentou-a com um sorriso alegre.

— Imagine! — prosseguiu Perry. — Ainda havia um foco de resistência em Fenomat. Um punhado de jovens defendia-se com as poucas armas de que dispunha contra as investidas dos homens de Sallon. Estavam entrincheirados nos laboratórios químico-biológicos.

Ivsera aguçou o ouvido.

— Sabe os nomes deles? — indagou.

— Sei os nomes de dois. Um se chama Thér e o outro Irvin.

Ivsera soltou um grito de alegria.

— Thér e Irvin. Coitados!

— Sim, quase não conseguiam manter-se de pé de tão famintos que estavam. Logo lhes dei alguma coisa para comer. Aliás, ao que parece a questão dos abastecimentos está se transformando no problema mais grave deste abrigo. Todos os ocupantes estão subnutridos. Não têm mantimentos?

Ivsera fez um gesto de desânimo.

— Não, mais nada.

Perry não se impressionou.

— Bem, nesse caso teremos de arranjar alguma coisa.

A tarefa de conseguir mantimentos para mais de dez mil famintos não causava a menor dor de cabeça a Rhodan.

Feriar tomou a palavra.

— Perry pretende apoderar-se também de Sallon. O que acha disso?

Ivsera abriu os dedos.

— Se quisesse poderia conquistar todos os abrigos de Isan.

— Não estou interessado nos abrigos; apenas em Belal — disse Perry, sacudindo a cabeça.

Ivsera sentiu que naquela altura as questões políticas já não exigiam sua presença. Um ser mais poderoso assumira a regência, e qualquer tentativa de ajudar ou oferecer resistência só poderia conduzir ao ridículo.

Depois de obter a concordância de Perry, ela instruiu alguns homens de Fenomat a tirarem as roupas dos prisioneiros, com exceção do estritamente necessário, e as levarem ao laboratório. Pelos seus cálculos, isso lhe permitiria fabricar uma ração completa de um dia para cada cidadão de Fenomat. Dessa forma, poderiam resistir até que Perry lhes trouxesse um auxílio que resolvesse a situação em definitivo.

No laboratório encontrou-se com Irvin e Thér. Irvin abraçou-a de tão eufórico que se sentiu. Antes, nunca se teria permitido esse tipo de liberdade.

— Moça, como estou satisfeito em revê-la! — exclamou.

Ivsera desprendeu-se dos braços de Irvin e fitou-o. Achava-se bastante mudado depois que o vira pela última vez. Ao que parecia, só faltara a luta para transformar o rapaz num homem de verdade.

— Pelo que ouvi dizer, você se transformou num herói — disse Ivsera.

Irvin riu.

— Não foi por minha vontade — respondeu. — Este feitor de escravos — prosseguiu, apontando para Thér — apareceu de repente com três homens, colocou um fuzil na minha mão e gritou: “O pessoal de Sallon está chegando! Atire neles, senão atirarão em você!” Atiramos em quatro. Não tive outra alternativa. Com os produtos químicos que temos aqui, fizemos granadas de mão e limpamos a área. Poderíamos resistir indefinidamente, se não fosse a fome. Mas aquele milagreiro desconhecido chegou bem na hora. Aliás, quem é?

Ivsera explicou que sabia tanto quanto ele mesmo.

— A esta hora está fazendo uma limpeza em Sallon, não é? — resmungou Thér de repente. — Tomara que encontre Havan, o traidor.

Ivsera virou-se abruptamente.

— O quê? Havan é um traidor?

— Então você ainda não sabia? — perguntou Irvin. — Há vários anos está compactuando com os homens de Sallon. Pelo que dizem, Belal lhe prometeu que depois da conquista de Fenomat, Havan seria uma espécie de governador. Não foi por acaso que a galeria escavada pelos ocupantes de Sallon saiu justamente no gabinete dele.

Ivsera soltou um gemido. Havan, um traidor! Há muito tempo ela o tinha na conta de um homem egoísta, arrogante, intrigante e mais uma porção de coisas. Mas nunca imaginaria que poderia transformar-se num traidor.

Subitamente lembrou-se de algumas palavras ditas por ele:

“— Por enquanto ainda temos um Conselho...”

Então foi isso que ele quis dizer.

Ivsera estremeceu ao pensar no destino que aguardaria Havan se conseguissem prendê-lo. Segundo as leis de guerra que prevaleciam em todos os abrigos, a pena pela traição era uma só: a morte.

Sacudiu esses pensamentos e passou os olhos pelas fileiras de instrumentos reluzentes. Seu olhar recaiu sobre o monte de roupas tomadas dos prisioneiros, que os coletores estavam empilhando num canto.

— Vamos ao trabalho! — disse, dirigindo-se a Irvin. — Precisamos comer alguma coisa.

 

Perry Rhodan não tivera a intenção de interferir nos acontecimentos que se desenrolavam em Isan.

Acompanhado de Gucky, o rato-castor, dos mutantes Laury Marten e John Marshall, e finalmente do conde Rodrigo de Berceo, libertado do zôo galático, Rhodan teve muito trabalho em escapar no seu jato espacial de Tolimon, o mundo dos aras. Marshall e Laury haviam recebido a incumbência de procurar descobrir em Tolimon o segredo do medicamento que retardava a decadência das células, exercendo as funções de um verdadeiro elixir da vida.

Laury conseguira obter permissão para penetrar no zôo galático, no qual os aras haviam internado seres de todos os setores conhecidos da Galáxia. Um dos ocupantes do zoológico, que segundo a classificação arcônida pertencia ao grau de inteligência C, era o conde Rodrigo de Berceo, um terreno do século XVII. Laury cometeu o erro de apaixonar-se por esse homem. No fogo da paixão, fez certas coisas que provocaram a desconfiança dos aras. Rhodan teve de intervir. Não conseguiu encontrar a fórmula estrutural do elixir da vida. Mas fugiu de Tolimon em companhia dos dois mutantes e do infeliz Rodrigo. Além disso, Laury conseguiu subtrair uma garrafa do precioso elixir.

Uma série de saltos de transição levou o jato espacial para além do alcance das naves que o perseguiam e para o interior do coração da Galáxia. O veículo espacial encontrava-se fora das rotas da navegação cósmica. Rhodan pretendia passar uns trinta dias no acompanhante do sol azul do astro geminado, esperando que nesse tempo a caçada fosse suspensa.

Sabia perfeitamente que os acontecimentos de Tolimon poderiam provocar o interesse da central positrônica do Império Arcônida. Se as informações sobre o incidente de Tolimon que chegassem ao seu conhecimento fossem suficientes, havia o risco de concluir que só Rhodan poderia ser responsável pelos mesmos. E Perry era considerado como morto pelo cérebro positrônico. E a crença de que há mais de cinqüenta anos a Terra fora destruída e a Humanidade eliminada por um ataque dos saltadores teria que ser mantida viva.

Só essa manobra desviacionista permitira à Terra chegar ao fim do século XX sem ser atingida pelas perseguições dos saltadores e pelos ciúmes do cérebro positrônico. E agora, cinqüenta e seis anos depois da manobra, o êxito desta poderia ser frustrado.

Será que cinqüenta e seis anos foram suficientes para transformar a Terra num mundo que pudesse afirmar-se no confronto das potências galácticas? Já teria chegado a hora de suspender o jogo de esconder?

Rhodan acreditava que sim, mas não tinha tanta certeza. Por isso achou preferível que os perseguidores perdessem sua pista.

Durante o pouso em Isan os instrumentos constataram uma radiatividade extraordinária na atmosfera do planeta. As ruínas existentes nos dois continentes faziam concluir pela ocorrência de uma guerra nuclear que deveria ter sido travada há alguns anos.

Depois do pouso do jato espacial, Rhodan acompanhou a troca de mensagens entre Killarog e seus companheiros. Mandou que Gucky, o rato-castor, procurasse localizar outros sobreviventes na superfície do planeta. Para executar a tarefa, Gucky recorreu aos seus dons parapsicológicos e paramecânicos: a teleportação e a telepatia.

Rhodan pôs-se a caminho para examinar os dois abrigos mais próximos. Nessa oportunidade, viu-se numa situação que o obrigou a intervir nos acontecimentos.

E agora, dois dias de Isan depois de sua primeira aparição, mantinha os dois abrigos firmemente em suas mãos e recebera de Gucky a notícia de que em Isan havia um total de onze abrigos intactos. Outros cinco, que ficavam exatamente no centro das explosões nucleares, não haviam resistido ao impacto.

A conquista do abrigo de Sallon correu sem incidentes, mas o resultado da operação não foi satisfatório para Rhodan e Marshall, pois não encontraram Belal nem Havan, o traidor.

Estavam desaparecidos e, conforme Rhodan soube de várias pessoas, com eles desapareceram cerca de cem homens fortemente armados.

De início, Rhodan acreditou que não teria a menor dificuldade em localizar Belal e Havan e obrigá-los a capitularem. Mas constatou-se que não estavam escondidos em nenhum dos dois abrigos, nem em qualquer lugar na superfície.

Rhodan convencera-se de que o abrigo de Sallon disporia de uma galeria secundária ou de um corredor situado bem embaixo da superfície e que levava a esta. Sobre a existência deste refúgio, apenas algumas poucas pessoas estavam informadas. E nenhuma dessas ficou para trás, conforme se apurou num rigoroso interrogatório dos prisioneiros.

Por isso, Rhodan teria de contar com os próprios recursos a fim de descobrir o caminho pelo qual Belal e Havan haviam fugido.

Por enquanto não pensava nem de longe que a fuga de Belal poderia representar um perigo para ele. Acontecia, porém, que sua permanência em Isan seria limitada, e assim queria providenciar para que mesmo depois de sua partida, Havan e Belal não pudessem colocar em perigo a democracia dos dois abrigos.

 

Belal não dava a perceber que se encontrava em situação difícil. Para ele, uma situação só se torna desesperadora quando está com a faca sobre o peito e as mãos amarradas. E essa atitude face ao destino era um dos motivos por que Belal era um inimigo muito perigoso.

— Então, o que me diz? — perguntou em tom áspero ao homem de meia-idade que se encontrava à sua frente.

O homem era Malanal, um cientista e um gênio em sua especialidade, as ciências naturais. Desde o início, Belal acreditara que um dia poderia precisar dele. Por isso interessou-se por sua pessoa e, valendo-se dos recursos existentes no abrigo, mandara construir um amplo laboratório equipado com instrumentos preciosíssimos. As salas em que foi instalado o laboratório haviam sido escavadas na rocha cerca de um ano depois da guerra e obtiveram dois acessos secretos. Alguns dos homens que trabalharam na obra pertenciam à guarda pessoal de Belal, na qual o mesmo confiava irrestritamente, e outros desapareceram em algum campo de trabalho, de onde nunca retornaram.

Quando surgiu a intervenção do desconhecido chamado Perry, Belal percebeu que sua precaução não fora supérflua. Retirou-se para o laboratório juntamente com sua guarda pessoal e alguns elementos de confiança, e teve certeza de que por enquanto não seria descoberto.

Esse “por enquanto” lhe bastava. Belal não pretendia reconhecer Perry por muito tempo como o dono da situação. Malanal desempenhava um papel importantíssimo em seus planos.

O cientista abriu os dedos, para dar a entender que não estava em condições de fornecer informações minuciosas e fidedignas.

— Mandei que dois dos seus homens subissem, Belal...

— Tomara que não tenham andado por aí de maneira a serem vistos do veículo — interrompeu Belal em tom zangado.

— Não. Agiram com todo o cuidado. Lá em cima não saíram ao ar livre. Do buraco atiraram algumas pedras contra o veículo.

Belal franziu a testa.

— Que bobagem é essa?

— A alguns metros do casco do veículo as pedras ricochetearam, como se tivessem batido numa parede invisível, e caíram ao chão. Vemo-nos diante do mesmo fenômeno relatado pelas pessoas que perseguiram a prisioneira Ivsera e o capitão Feriar. Os desconhecidos sabem envolver-se por um campo protetor no qual nenhum tipo de matéria consegue penetrar.

Belal olhou fixamente para a frente.

— Quer dizer que seria totalmente inútil tentar atacar o veículo? — perguntou depois de algum tempo.

Malanal sacudiu a cabeça. Belal impacientou-se.

— Fale logo!

Malanal inclinou ligeiramente o corpo.

— Num certo momento, esse desconhecido que atende ao nome de Perry desejará voltar ao veículo — explicou. — Uma vez que também é feito de matéria, não poderá entrar se os campos defensivos não forem desativados por um instante. Se no mesmo instante submetermos a nave a um bombardeiro cerrado, provavelmente conseguiremos destruí-la.

Belal contorceu o rosto.

— Não quero destruir a nave — exclamou. — Apenas quero danificá-la, pois pretendo retirar-lhe alguns instrumentos.

Malanal fez um gesto de concordância.

— Perfeitamente, Belal. Isso depende da intensidade do bombardeio. Este ponto não é da minha competência.

Belal levantou-se.

— Muito bem. Tomarei todas as providências. Acredito que dois lança-foguetes de três polegadas serão suficientes para danificar a nave e matar os desconhecidos ou colocá-los fora de combate. Mandarei que os homens assumam imediatamente seus postos na entrada da superfície. Foi uma sorte o desconhecido ter pousado justamente nesse lugar.

Saiu da sala sem dignar-se de dirigir outra palavra a Malanal.

O setor secreto em que ficava o laboratório do abrigo de Sallon consistia num único corredor com vinte salas. Cinco delas serviam de residência aos cientistas, enquanto as demais eram ocupadas pelo laboratório.

Nos sete anos decorridos desde a instalação do laboratório, os cientistas haviam adiantado as pesquisas e alcançaram resultados que, segundo acreditava Belal, não foram atingidos em qualquer outro abrigo.

Assim, Belal garantiu uma superioridade absoluta para o dia em que os habitantes de Isan pudessem voltar à superfície de seu mundo e começassem vida nova.

Numa das vinte salas do abrigo de Sallon, Havan instalara-se juntamente com três guarda-costas que Belal colocara à sua disposição. Não o fez porque receasse pela vida de Havan, mas por acreditar que o caráter deste se assemelhava tanto ao seu e, assim, não deveria confiar nele.

Nos dias que se passaram depois da queda do abrigo de Sallon, Havan parecia muito mais abatido que Belal. Este começou a acreditar que no entender do traidor a situação realmente era desesperadora.

Essa situação lhe convinha, e por isso só transmitiu pequena parte da conversa que manteve com Malanal e das esperanças que este lhe infundira.

Havan fez um gesto melancólico. Belal retirou-se para fazer uma ligeira sesta em seu quarto.

O traidor deu-se ao trabalho de ficar com a porta aberta e certificar-se de que Belal não voltaria. Depois dirigiu-se aos guarda-costas.

— Ele não me contou tudo. Vocês não perceberam? Malanal disse mais que isso. Provavelmente existe uma possibilidade de enfrentar os desconhecidos. — Preciso saber disso. Procurem descobrir! Já sabem qual é a recompensa que receberão.

Os guarda-costas confirmaram com um aceno de cabeça. Por certo, Belal não teria dormido tão tranqüilamente se soubesse que Havan sabia conquistar a dedicação de seus próprios subordinados por meio de um jogo de promessas e ameaças. Naquela hora já não se sentiam empolgados pelas funções que Belal lhes havia atribuído, pois Havan prometeu que lhes colocaria à disposição um abrigo com os ocupantes. Isto aconteceria quando o desconhecido e Belal tivessem sido subjugados e quando todos os abrigos de Heyatha e talvez também os de Othahey tivessem caído nas mãos de Havan através das artes técnicas de Malanal.

Por enquanto havia um ponto fraco no plano tático de Havan: o cientista Malanal. O traidor constatara que a equipe científica estava inteiramente dedicada ao velho. Não havia como obter acesso aos segredos do laboratório sem a cooperação de Malanal.

Acontece que Malanal era um homem que sabia guardar distância. Havan tinha a impressão de que Malanal não concordava com Belal em todos os pontos. Mas, quando o traidor pensou que poderia aproveitar esse fato como ponto de partida para minar as boas relações existentes entre o ditador e o cientista e conquistar o apoio do segundo, defrontou-se com a resistência deste. Na oportunidade, Malanal explicou-lhe que jamais trabalharia para Belal ou para Havan, mas apenas para a ciência.

Todavia, declarou-se disposto a não revelar a Belal o conteúdo da palestra que mantivera com Havan.

 

Perry Rhodan pretendia utilizar Gucky na operação de busca que visava à descoberta de Belal e Havan, assim que o rato-castor regressasse da viagem de inspeção.

Gucky era teleportador. Era capaz de saltar ao acaso pelos arredores do abrigo, o que lhe permitiria encontrar o esconderijo.

No entanto, dois dias depois da conquista de Sallon, Laury informou numa mensagem transmitida em tom exaltado que Gucky voltara para o jato espacial, inconsciente e gravemente ferido. O salto que o trouxera de volta à pequena nave espacial consumira suas últimas energias. Sangrava de várias feridas que, segundo as informações de Laury, haviam sido produzidas por simples tiros de fuzil. A mutante era bem versada em enfermagem, motivo por que Rhodan podia deixar Gucky entregue aos seus cuidados. Laury garantiu que dentro de alguns dias o rato-castor estaria em perfeita forma.

Por enquanto ninguém sabia o que lhe havia acontecido. Como também possuísse o dom da telepatia, dificilmente poderia ter sido atingido por qualquer atirador. Teria adivinhado os pensamentos do atacante. Talvez tivesse caído numa armadilha mecânica. Face à desconfiança que os sobreviventes da grande guerra de Isan nutriam uns para com os outros era perfeitamente possível que nos abrigos houvesse dispositivos automáticos de tiro ou outros mecanismos semelhantes. E Gucky estaria indefeso diante dos mesmos, caso se arriscasse demais.

Para Rhodan os ferimentos sofridos por Gucky representavam um inconveniente muito sério. Havia necessidade absoluta de encontrar Belal e Havan, pois do contrário todos os esforços em prol do estabelecimento de uma nova ordem nos dois abrigos provavelmente teriam sido realizados em vão.

Os ocupantes dos abrigos de Fenomat e Sallon consumiram metade dos alimentos concentrados que o jato espacial trazia a bordo. Face à natureza destes a sensação de saciedade duraria cerca de trinta dias. Rhodan esperava que nesse tempo conseguiria obter alimentos naturais não concentrados. Do contrário teria de chamar uma nave terrana com mantimentos.

 

No dia seguinte, Marshall fez uma descoberta importante. Depois de concluída a operação a dois na conquista nos abrigos, permaneceu em Sallon, onde procurava descobrir a pista de Belal e Havan.

Revistou cuidadosamente o abrigo e acabou parando na usina que gerava a energia necessária à iluminação, à renovação do ar e a várias outras finalidades.

Foi por simples acaso que nessa oportunidade Marshall fez a descoberta. O acaso consistia no fato de que ao mesmo tempo em que o chefe dos mutantes se encontrava na usina energética, Malanal realizava no laboratório secreto uma experiência que consumia uma quantidade considerável de energia elétrica.

Marshall realizara um cálculo aproximado e chegara à conclusão de que o abrigo consumia, em média, um total de duzentos mil quilowats. Estava tão convencido de seu conhecimento que não admitia uma variação acima de cinqüenta por cento.

Ao ler o quadro do cabo principal da usina, constatou que a energia fornecida naquele momento atingia mais de um milhão de quilowatts. Pelos seus cálculos, isso era impossível.

Chamou Rhodan, pois tinha certeza de ter descoberto uma pista. Rhodan veio imediatamente. Mandou que por alguns minutos todos os pontos de consumo de energia do abrigo propriamente dito fossem desligados. Com isso o desempenho da usina teria de baixar para zero. No entanto, ainda subsistiu um fornecimento de pouco menos de oitocentos mil quilowatts, ou seja, o quádruplo do que, segundo os cálculos de Marshall, representava o gasto total do abrigo. E essa força fluía para algum canal secreto.

Rhodan levou quinze minutos para localizar a série de cabos pelos quais corria a energia. Dali a pouco o consumo extraordinário diminuiu de repente para cem quilowatts.

Rhodan estava satisfeito.

— Está bem — disse, dirigindo-se a Marshall. — Espere aqui. Irei à nave e trarei um desintegrador de tamanho grande. Se seguirmos os cabos, encontraremos o esconderijo de Belal.

Sorriu ligeiramente e acrescentou:

— Belal não foi muito hábil, pois do contrário teria instalado uma usina energética autônoma no abrigo. Gostaria de saber o que faz com os oitocentos mil quilowatts.

Rhodan voltou à superfície pelo caminho mais rápido. O traje que usava, e que tanto chamara a atenção de Ivsera, representava um aperfeiçoamento do traje transportador arcônida. Não chamava tanto a atenção, mas em compensação a potência de seu gerador antigravitacional era dez vezes maior. O campo de deflexão e o campo defensivo trabalhavam com circuitos independentes; cada um dispunha de suprimento de energia em quantidade suficiente. No caso de numerosos impactos de projéteis, já não seria necessário renunciar à invisibilidade para evitar a penetração dos mesmos.

Assim que saiu da comporta de superfície, Perry subiu ao ar e, deslocando-se em alta velocidade pouco acima do capim, tomou a direção do jato espacial.

Já era noite.

“Uma noite muito estranha”, pensou Rhodan.

A bola vermelho-escura do sol Vilan brilhava no horizonte, e inúmeras estrelas salpicavam o céu tingido de vermelho.

Rhodan levou apenas alguns minutos para chegar à nave espacial. Usou o pequeno transmissor que sempre trazia para enviar o sinal codificado automático que desativava os campos defensivos por um instante, permitindo seu ingresso na nave.

 

De início Belal pretendera executar o golpe sozinho. Mas Havan insistiu tanto que acabou concordando com a sua companhia. O que o levou a tomar esta decisão foi principalmente a informação dos três guarda-costas de Havan, segundo a qual acabaria caindo na melancolia se não houvesse logo uma variação em sua rotina de vida. Belal estava firmemente decidido a eliminar Havan o quanto antes, para que este não pudesse interferir em seus planos. No entanto, por ora convinha que o traidor acreditasse que era um elemento útil, tratado de igual para igual. Havia vários motivos para isso. Um deles consistia no fato de que Havan dispunha de vários adeptos em Fenomat, que no caso de um confronto se guiariam exclusivamente por sua palavra.

Belal considerou tão importante a neutralização do veículo inimigo, do qual a essa altura também Malanal acreditava tratar-se de um tipo de nave espacial, que resolveu postar-se pessoalmente na saída do setor secreto do laboratório, em companhia de Havan e dois elementos de toda confiança. Os dois soldados colocaram os lança-foguetes em posição de tiro. No momento decisivo, bastaria abrir a portinhola e fazer fogo.

Um tipo de telescópio, cuja objetiva saía apenas alguns centímetros acima do nível do solo, garantia a visão perfeita do estranho veículo. A objetiva era de formato irregular e possuía o aspecto de uma pedra que se encontrasse ali por acaso. Belal tinha quase certeza de que os ocupantes do veículo — se é que no momento havia alguém a bordo — não perceberiam nada.

 

Laury não tinha mãos a medir. O rato-castor, gravemente ferido, precisava de cuidados constantes. Era bem verdade que o uso dos medicamentos que o jato espacial trazia a bordo eliminara por completo o risco de infecção. Mas Gucky estava bastante debilitado, e a reconstituição de suas energias seria levada a efeito progressivamente.

O rato-castor já recuperara a consciência. Contou a Laury o que lhe havia acontecido. Conforme supusera Rhodan, caíra numa armadilha mecânica enquanto examinava um abrigo do lado de dentro. Não havia ligado o campo defensivo, pois estava protegido pelo campo de deflexão e acreditava ter todos os motivos para pensar que ninguém atiraria contra uma criatura invisível. Enganara-se e agora, cheio de arrependimento, lembrava-se do conselho de Rhodan, que lhe recomendara que não assumisse o menor risco e, principalmente, que em hipótese alguma penetrasse num abrigo.

Além de Gucky, o conde Rodrigo de Berceo exigia os cuidados de Laury.

Rodrigo dera a entender, de forma pertinaz e inequívoca, que “o arranjo dos assuntos pessoais” de um homem deve ter primazia sobre o amor. Assim a paixão de Laury pelo conde asteca-espanhol diminuíra um pouco. Além disso constatou-se que para um homem raptado na Terra em pleno século XVII e mantido numa espécie de museu zoológico, longe do processo tecnológico, o salto para o mundo do século XXI estava ligado a dificuldades consideráveis que por vezes chegava a abalar os alicerces de suas estruturas mentais. Dali em diante, o resto da paixão desvanecera-se, cedendo lugar a uma afetuosa compaixão.

Laury conseguiu convencer Rodrigo de que seria ridículo andar por aí de botas de cano alto, cachecol, chapéu de penacho e mangas de renda. Rodrigo passou a usar o macacão dos astronautas terranos. É bem verdade que levou mais algum tempo para dispensar a espada. Laury ainda conseguiu fazer com que Rodrigo deixasse de acreditar que o mundo teria que curvar-se ante ele unicamente porque era descendente de nobres. Mostrara-lhe que hoje em dia, especialmente para quem se encontrasse numa situação como aquela com a qual o jato espacial se defrontara durante a fuga de Tolimon, a única coisa que importava era ser mais inteligente e forte que os outros.

Mas Laury esquecera um detalhe. Um conjunto de opiniões firmemente enraizadas não pode ser extirpado de um dia para o outro. Face a isso uma estranha mistura de concepções passou a reinar no cérebro de Rodrigo, e a cada dia que passava maior era a dificuldade de adaptar-se ao novo ambiente.

Assim, por exemplo, fez esforços comovedores para compreender de que tipo era o veículo em que se encontrava. Tomara conhecimento de que se tratava de uma nave espacial com a qual se podia voar em meio às estrelas. Acontece que para ele o mundo da tecnologia terminava na máquina a vapor, cujo princípio de movimento lhe fora explicado por Laury. Depois procurou entender o motor a vapor a partir do momento em que pela primeira vez vira o jato espacial em ação. Mas ninguém conseguiu explicar-lhe que a geração da energia necessária a uma astronave se processava por um princípio inteiramente diferente.

Rodrigo aprendeu a manipular este ou aquele botão. Sabia que devia apertar em tal e tal lugar para ligar as telas ou colocar em funcionamento o sistema de condicionamento de ar. Mas não sabia como funcionavam esses aparelhos, e Laury tinha certeza de que nunca aprenderia.

Por isso tinha algum trabalho em convencer Rodrigo a não revistar o jato espacial ou realizar experiências por conta própria.

Certa noite, depois de ter cuidado de Gucky, Laury encontrou o conde no poço de instrumentos. Com uma chave, havia retirado a tampa do gerador que alimentava o campo defensivo e, à luz de sua potente lanterna de mão, seguia o curso dos controles pressurizados coloridos.

Ao ouvir os passos de Laury, Rodrigo virou-se e sorriu para a moça.

— Acho que nunca acharei a máquina a vapor — disse um tanto triste.

A mutante ficou muito zangada.

— Você vai é demolir a nave — respondeu. — Vamos embora! Você sabe perfeitamente que não pode vir aqui sozinho.

Rodrigo confirmou com um gesto.

Imediatamente subiu à frente de Laury pela estreita escada de plástico. No momento em que chegou à sala de comando, ouviu-se um zumbido vindo do quadro de controle central.

— Ligue a tela — ordenou Laury. — Acho que é o chefe que está chegando.

Rodrigo obedeceu imediatamente. A tela panorâmica, cobrindo uma das paredes, iluminou-se e exibiu o quadro vermelho-escuro da planície de capim iluminada pela luz da noite, que se estendia para todos os lados em torno do jato espacial.

Perry Rhodan encontrava-se a cerca de cinqüenta metros da comporta principal. Rodrigo viu quando retirou um pequeno aparelho do bolso e passou a manipular o mesmo.

A tela tremeluziu ligeiramente. Rhodan começou a caminhar em direção à comporta.

 

Belal só viu o desconhecido quando este se encontrava a poucos metros do veículo. Achara preferível não girar a objetiva, para não ser descoberto.

— Atenção! — balbuciou. — Está na hora.

Os dois soldados sabiam o que fazer. Um deles abaixou-se sob a portinhola, fazendo com que ela descansasse sobre seus ombros. O outro segurou o lança-foguetes, pronto para empurrá-lo para a borda da saída.

Belal não sabia se os campos defensivos de que Malanal lhe falara já haviam sido desativados. Aguardou até que o desconhecido chamado de Perry chegasse ao veículo. Tremendo de tensão viu uma escotilha abrir-se na parede do veículo. Num lugar em que antes só havia o metal liso e sem emendas, uma porta abriu-se silenciosamente. Desta saiu uma faixa luminosa que tocou o solo junto aos pés de Perry.

Este pisou na faixa e deixou que a mesma o levasse em direção à abertura.

— Já! — gritou Belal. — Fogo!

A portinhola rangeu ao abrir-se. Com um gemido, o soldado empurrou o pesado cano para cima e colocou-o na borda da saída.

O outro deixou-se cair e ligou a ignição. Chiando e soltando chispas, o primeiro projétil saiu do cano, soltando uma nuvem de fumaça, e dirigindo-se para o veículo espacial.

 

No momento em que ia entrar na comporta, Perry sentiu pensamentos estranhos. Virou-se e imediatamente viu que a uns cem metros de distância alguma coisa comprida e arrendondada saía de um buraco no chão.

Não hesitou. No mesmo instante em que o primeiro disparo de Belal uivava ao sair do cano do lança-foguetes, deixou-se cair para o lado da fita transportadora.

 

Rodrigo sentia-se tolhido; não sabia o que fazer. Laury soltou um grito de pavor, mas seu grito morreu em meio ao estrondo que fez balançar a nave, apagando a tela panorâmica.

Laury caminhou em direção ao quadro de comando central.

— Ligue os campos defensivos! — gritou para o conde.

Acontece que Rodrigo não sabia o que vinha a ser um campo defensivo, muito menos seria capaz de ligá-lo ou desligá-lo.

Um fogo branco correu sobre a tela apagada. Outra explosão fez tremer a nave. Laury foi sacudida e caiu. Avançou engatinhando.

Antes que Laury pudesse ligar o campo defensivo, o jato espacial recebeu um terceiro impacto.

A tela não voltou a iluminar-se. Mostrava um reflexo débil toda vez que um dos projéteis traiçoeiros vinha em direção à nave e explodia de encontro ao campo defensivo sem produzir qualquer dano. A tela continuava apagada.

A nave havia sido danificada.

De repente, Rodrigo voltou a controlar-se.

— Rhodan está em perigo! — gritou. — Preciso sair.

Laury não teve tempo para detê-lo.

— Ele saberá cuidar de si — objetou. Com alguns passos apressados, Rodrigo colocou-se junto à comporta, acionou o mecanismo de abertura e passou pela escotilha antes que a mesma se abrisse numa extensão de cinqüenta centímetros.

Na ânsia em que se encontrava não percebeu que estava sem arma; nem sequer trouxera a espada. Apenas pretendia ajudar, conforme era de seu feitio. Mal teve paciência para esperar até que a escotilha interna da comporta voltasse a fechar-se.

A escotilha externa abriu-se automaticamente. Rodrigo precipitou-se, desceu pela fita transportadora e saiu correndo pela planície.

— Rhodan! — gritou. — Rhodan, onde está o senhor?

Os campos defensivos não impediam a passagem de uma pessoa que viesse de dentro. Rodrigo os ultrapassou. Abandonou o escudo protetor e aos gritos foi pelo campo afora.

 

— Aí vem alguém! — gritou Belal. Estava deitado na borda da saída. O lança-foguetes deixara de disparar desde o momento em que os projéteis explodiam contra uma parede invisível, longe do veículo inimigo.

Belal sempre andava com a pistola. Fez pontaria e esperou até que o desconhecido que saíra do veículo, gritando e olhando em torno, tivesse chegado mais próximo.

Apertou o gatilho.

Rodrigo apenas ouviu o tiro. Alguma coisa bateu em seu peito com uma força terrível.

Tombou e morreu antes que seu corpo tocasse o chão.

 

O primeiro impacto atirou Rhodan para longe. O campo defensivo de seu traje protegia-o contra os efeitos diretos do disparo, e o gerador antigravitacional fez com que não caísse ao solo, mas descesse suavemente.

Porém a pressão causada pela explosão atirou-o a cerca de duzentos metros do jato espacial. Levou algum tempo para sacar o pequeno aparelho com o qual há pouco desligara o campo defensivo da nave espacial. Alguns segundos preciosos passaram-se. Felizmente Laury conseguiu ativar os campos.

No momento em que transmitiu o sinal codificado, Rhodan viu um dos foguetes explodir bem longe do jato espacial. Com um suspiro de alívio desceu ao solo e, para não chamar a atenção, retornou a pé o trecho pelo qual a explosão o arremessara.

Viu Rodrigo sair da nave e ouviu-o chamar. Respondeu, mas Rodrigo não o escutou. Viu que um homem saiu do buraco aberto no chão e apontou a pistola para Rodrigo. Rhodan puxou sua arma e, sem fazer pontaria, disparou contra o atirador atocaiado.

Mas o feixe energético superaquecido passou por cima do alvo, enquanto Rodrigo, atingido pelo tiro de pistola, tombava.

 

— Vamos embora! — gritou Belal apavorado. — Ali vem aquele desconhecido.

Ouvira o silvo do tiro que passara poucos metros acima de sua cabeça e descobrira a figura de Perry. Os dois soldados fizeram menção de puxar o cano comprido para dentro da galeria e fechar a portinho-la, mas Belal mandou que debandassem.

— Não temos tempo a perder — fungou. — Vamos embora!

Correram apressadamente pela galeria; Havan ia na frente. Muito nervoso, Belal não percebeu que Havan, que nos últimos dias apresentara tamanha letargia, subitamente dava mostras de uma agilidade surpreendente.

Depois de um quilômetro a galeria descreveu uma curva fechada. Belal parou atrás da curva e mandou que Havan e os dois soldados continuassem a correr. Após afastarem-se o bastante para não o verem mais, Belal pegou uma pequena argola que se encontrava meio escondida no teto da galeria. Puxou-a, e uma fina corrente metálica saiu do teto. Quando soltou, a corrente e a argola voltaram à posição primitiva.

Belal aguardou pacientemente. Dali a alguns segundos, ouviu um ribombar que atravessava o solo. Além da curva, a galeria desmoronou. Nuvens de pó levantaram-se e envolveram Belal.

Este voltou-se e correu atrás de Havan e dos dois soldados. Não seria nada fácil para os desconhecidos removerem o entulho derrubado pela explosão e encontrar a pista que os levaria ao laboratório secreto.

Apesar disso, assim que chegou acompanhado por Havan e pelos dois soldados à entrada propriamente dita do laboratório, Belal postou ali vinte homens e ordenou-lhes que ficassem com os olhos bem abertos.

Depois de voltar ao alojamento, Belal recebeu o relato de seu elemento de ligação, ao qual cabia mantê-lo informado sobre os acontecimentos que se desenrolavam no abrigo.

A situação era favorável. O elemento de ligação informou que havia uma única pessoa estranha no abrigo. Belal não acreditava que essa pessoa poderia representar um perigo para ele.

Mandou que seus homens se preparassem para sair.

Havan ouviu falar nisso e procurou Belal.

— O que pretende fazer? — indagou.

— Danificamos o veículo deles — disse Belal. — E agora vamos pôr as mãos nos tripulantes.

— Pelo espírito universal — gemeu Havan. — O senhor acha que isso será tão simples? Esses desconhecidos têm armas que...

Belal interrompeu-o com um gesto.

— Pare com esse pessimismo. Não viu o desconhecido que matei diante da nave? Não parecia completamente louco? Acho que durante todo este tempo tivemos mais respeito por essa gente do que merecia. Está certo, eles dispõem de armas superiores às nossas. Mas a tripulação é reduzida, e se for atingida num lugar decisivo, perde a cabeça. Não, Havan, nossas chances são muito boas. Daqui a dois dias, voltaremos a controlar a situação.

Havan retirou-se sem dizer mais uma única palavra. Ainda fingia acreditar que os planos não tinham a menor possibilidade de sucesso. Mas, no seu íntimo, acreditava que Belal estava com a razão.

Porém, se assim fosse, estava na hora de eliminar Belal. Em hipótese alguma devia esperar até que o ditador conseguisse subjugar os desconhecidos. O triunfo que colheria e as armas que cairiam em suas mãos o colocariam numa posição tal que não mais poderia ser posto de lado.

Havan fez seus preparativos.

 

Os danos que os três foguetes causaram ao jato espacial foram mais graves do que Rhodan supusera. As explosões avariaram os sistemas de propulsão a tal ponto que não poderiam ser utilizados sem uma série de reparos de monta. Parte do suprimento de energia fora eliminado. O jato espacial não estava em condições de gerar campos gravitacionais ou de prover seu interior de uma iluminação suficiente. E os sistemas óticos também haviam sido destruídos.

Mas, o que pareceu mais grave a Rhodan foi que os geradores do campo defensivo, que voltaram a funcionar satisfatoriamente logo após os impactos, com o tempo se tornaram cada vez mais fracos e foram falhando um após o outro. Um estilhaço de bomba havia perfurado o revestimento dos geradores e causado avarias consideráveis em seu interior.

Com isso a nave espacial estava quase indefesa. Com exceção do grande radiador térmico, única arma que permanecera intacta, não tinha nenhum meio de defender-se de um ataque.

Laury Marten aceitou a morte de Rodrigo com toda resignação. Rhodan sentia-se satisfeito com a atitude da mutante porque muito antes já reconhecera que sua súbita paixão pelo conde asteca-espanhol não passara de uma loucura de menina. Se não fosse assim, não teria como consolar Laury pela perda na situação em que se encontravam.

 

Rhodan tinha certeza de que o inimigo não se limitaria ao ataque tão habilmente lançado contra a nave. Juntamente com Laury levou o rato-castor ferido ao abrigo de Fenomat, pois acreditava que lá as condições de segurança seriam melhores. Laury permaneceu em companhia de Gucky, para continuar a cuidar dele.

O próximo passo de Rhodan consistiu em examinar a saída da galeria pela qual Belal, Havan e os dois soldados se haviam aproximado do jato espacial. Não perdeu tempo com a portinhola, que possuía um fecho bastante complicado; removeu o obstáculo com o desintegrador.

Verificou que do outro lado da portinhola a galeria estava obstruída numa extensão de pelo menos cem metros. Para o desintegrador esses metros de entulho não representavam nada. Mas Rhodan tinha certeza de que Belal postara seus homens do outro lado dos escombros.

Por isso preferiu voltar para junto de Marshall que, depois de sua descoberta na usina energética do abrigo de Sallon, não abandonara seu posto.

O jato espacial ficou vazio e sem vigilância. Mas Rhodan gastara o tempo necessário em expedir uma mensagem de hiper-rádio à Terra, para solicitar o envio de uma nave espacial. A mensagem, fortemente condensada, ficou limitada a uma duração de dois milionésimos de segundo. A probabilidade de que alguma pessoa a decodificasse indevidamente era praticamente igual a zero. Em sua mensagem, Rhodan indicou a posição galáctica de Isan e pediu que uma nave viesse carregada de mantimentos até o limite de sua capacidade.

 

De pé diante da retorta de destilação, Feriar contemplava o líquido marrom-esverdeado que borbulhava ininterruptamente sobre uma chama de gás. Vapores escuros eram expelidos para a serpentina de condensação. Do outro lado do aparelho, um líquido límpido e inodoro caía numa vasilha.

Ivsera estava muito ocupada. Feriar interessava-se pela química, especialmente por uma química tão nutritiva como a que estava sendo praticada ali, e bem que gostaria de formular algumas perguntas.

Acontece que nenhum dos peritos, que eram Irvin e Ivsera, tinha tempo para ele. Thér talvez tivesse, embora continuasse a martirizar-se, classificando as peças de roupa e empilhando-as aqui e ali. Porém Thér entendia tão pouco de química quanto o próprio capitão.

Enquanto Feriar ainda contemplava o líquido borbulhante, a porta do laboratório abriu-se e alguém gritou:

— Aqui está uma pessoa que quer dialogar com um estranho chamado Perry. Caso não seja possível localizá-lo, o homem quer falar com Feriar ou Ivsera.

Ivsera respondeu sem interromper o trabalho.

— Mande-o falar com Feriar. Feriar, o senhor quer fazer isso por mim?

Feriar estava curioso. Foi até a porta e viu do lado de fora a pessoa que o chamara. Tratava-se de um homem robusto de rosto zangado. Envergava as poucas vestes que eram usadas por todos os homens de Fenomat e ultimamente também de Sallon.

Não trazia nenhuma arma. Feriar nunca o havia visto.

— Sabe onde está o estranho? — perguntou o homem.

O capitão sacudiu a cabeça.

— Não; mas posso descobrir.

O homem robusto tirou e entregou a Feriar uma folha de papel de dentro do único bolso de sua vestimenta, que parecia uma bermuda.

— Pois procure — disse em tom áspero. — Leia isto e conclua por si mesmo se o assunto é importante.

Antes que Feriar pudesse recuperar-se do espanto, o homem robusto deu-lhe as costas e foi-se afastando pelo corredor. Feriar desdobrou o papel e leu:

Hoje de noite, às 29 horas, Belal tentará apoderar-se do veículo dos estranhos juntamente com sua tripulação.

Estas palavras haviam sido gravadas por uma máquina de escrever cartas. O papel não trazia assinatura.

Feriar leu o texto duas vezes. Depois procurou descobrir o mensageiro que lhe trouxera o bilhete.

— Onde está? — perguntou perplexo.

— Desceu por ali — respondeu o homem.

— Vá atrás dele e traga-o de volta — ordenou Feriar.

O homem saiu correndo.

Feriar voltou ao laboratório e mostrou o bilhete a Ivsera que leu e imediatamente interrompeu a destilação já iniciada.

— Precisamos localizar Perry — disse em tom sério. — Isto é muito importante. Pelo que sei, sua nave sofreu avarias graves. Quase não tem armas para defender-se.

— Está certo — admitiu Feriar. — Mas onde poderemos encontrá-lo?

— Provavelmente na nave.

— E se não estiver lá? Nesse caso um de nós ficará por lá e esperará até que Belal apareça e o prenda?

Ivsera pôs-se a refletir.

— Em Sallon há um amigo dele chamado Marshall. Se conseguirmos avisá-lo, ele se comunicará com Perry — disse a química.

Feriar concordou com um gesto.

— Muito bem. Continue no seu trabalho. Procurarei encontrar Marshall.

Naquele instante, entrou o homem que Feriar mandara atrás do mensageiro.

— O homem desapareceu — falou arfando.

O capitão tranqüilizou-o com um gesto.

— Está bem. Devia ter-me lembrado disso antes.

Thér acompanhara a palestra. Interrompeu seu trabalho e aproximou-se de Feriar.

— Não sei, não — disse em tom contrariado. — Tenho a impressão de que qualquer pessoa saberá classificar e empilhar roupas melhor que eu. Não quer deixar que eu vá a Sallon?

Feriar franziu a testa.

— O senhor nem sequer tem uma arma. O que acontecerá se alguma coisa não der certo em Sallon?

— É verdade — disse Thér com um sorriso irônico. — Poderia dar-me sua arma.

Ivsera sorriu.

— Vão os dois — aconselhou. — Provavelmente terão de procurar Marshall, e quatro olhos sempre enxergam mais que dois.

Thér fez uma mesura irônica.

— Desde que a conheço sei que a senhora é uma menina inteligente — disse em tom solene.

 

— Daqui em diante continua em linha reta! — exclamou Marshall.

Rhodan descansou a pesada arma e olhou para dentro do canal com os cabos que o último tiro do desintegrador pusera à mostra.

— Qual é a direção? — perguntou. Marshall pôs-se a refletir.

— Já conheço a planta da situação do abrigo de cor. Diria que, se o tubo com os cabos não descreve outra curva, o esconderijo de Belal fica dois quilômetros ao nordeste da galeria principal, perto do rio Ovial.

— Por que justamente lá? — perguntou Rhodan perplexo.

Não teve necessidade de aguardar a resposta, pois percebeu nitidamente os pensamentos de Marshall:

— Porque Belal precisa de abastecimento de água. E este será tanto mais fácil quanto mais perto estiver do rio.

Rhodan mediu o tubo do elevador. Era retangular e achatado, com cerca de cinqüenta centímetros de largura por dez de altura. Teria que ser ampliado antes de dar passagem ao esconderijo de Belal.

— Será que não seria melhor aguardarmos a chegada de nossa nave de guerra? — perguntou Rhodan. — Se calcularmos todos os imprevistos, a demora será de um dia e meio, no máximo. Gostaria de dispor de mais algumas pessoas antes de atravessar dois quilômetros de terra.

Marshall fez um gesto afirmativo.

— Acontece que não sabemos o que Belal poderá tramar nesse meio tempo, não acha?

Rhodan sorriu.

— Exatamente; e não devemos esquecer-nos de Havan.

 

— Vinte e oito horas — resmungou Thér. — Já é tempo de encontrarmos Marshall.

Feriar olhou em torno, muito nervoso. Já haviam recebido quinze informações diferentes sobre o paradeiro de Marshall, seguiram todas elas e não o encontraram.

Parecia ter desaparecido. Nas últimas duas horas, ninguém vira nem a ele, nem a Perry.

Já haviam subido do primeiro pavimento do abrigo até o 35o. Lamentavam que Perry não julgara necessário entregar-lhes um dos rádios que usava para comunicar-se com seus homens.

Estavam caminhando por uma estreita galeria secundária, pouco iluminada, quando Thér subitamente pegou o braço de Feriar, que caminhava à frente, e o puxou até a parede.

— O quê...? — reclamou Feriar.

— Quieto! — cochichou Thér. — Olhe ali na frente.

Thér enxergava melhor que Feriar. Vira a fenda estreita que de repente se abriu na parede do lado direito. Juntamente com Feriar viu esta ampliar-se numa abertura que tinha a altura de um homem em pé; ainda notou que dois homens bem armados saíam cautelosamente da abertura.

Thér e Feriar mantinham-se junto à parede, na sombra de duas lâmpadas fracas.

Encontravam-se pelo menos a cinqüenta metros da misteriosa abertura. Thér tinha certeza de que os dois homens não poderiam vê-los.

Um dos soldados virou-se e fez um sinal para dentro da abertura. Foi para o lado e deixou que mais cinqüenta homens armados passassem por ele e entrassem no corredor.

O último era um homem baixo, gordo e calvo: Belal.

Thér sentiu que Feriar tremia atrás dele.

— Calma! — cochichou. — Por aqui não podemos fazer nada contra ele.

Caminhando em meio aos seus soldados, o ditador marchou na direção oposta. Thér e Feriar acompanharam-no com os olhos, até que o grupo desapareceu numa curva.

Poucos segundos depois, ouviram-se gritos violentos, um matraquear metálico e o som de tiros.

— Belal está abrindo caminho! — fungou Thér. — Quem dera que soubéssemos onde está o estranho.

 

Marshall havia alargado o tubo de cabos numa extensão de cem metros o suficiente para que um homem alto pudesse caminhar em seu interior. Quando Rhodan o chamou, estava fazendo uma pausa para descansar os braços que seguravam o desintegrador.

O chefe dos mutantes correu o caminho de volta.

— Preste atenção! — pediu Rhodan no momento em que Marshall descia do tubo de cabos para o recinto amplo que abrigava a usina energética. — Não está percebendo nada?

Marshall concentrou-se. Sentiu que nas proximidades alguém pensava nele ansiosa e intensamente.

— Alguém está à minha procura — disse em tom de espanto.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Acho que é o homem chamado de Thér. Parece que tem uma informação importante para mim. Chame-o.

Marshall abriu a porta e saiu para o corredor. Ouviu passos deslocando-se por uma galeria secundária que começava a poucos metros do lugar em que se encontrava. Chamou-o pelo nome.

Dali a um instante, Thér apareceu do corredor, fungando e suando. Reconheceu Marshall e pôs as mãos para o alto.

— Graças a Deus! — exclamou. — Finalmente conseguimos encontrá-lo.

Mas logo estacou.

— O senhor não acaba de me chamar pelo nome?

 

Marshall fez um gesto.

— Deixemos isso para depois. O que houve?

Feriar passou ao lado de Thér. Segurava na mão o bilhete que o mensageiro lhe entregara.

— Achamos que talvez o senhor poderia ajudar-nos a encontrar Perry. É muito importante. Leia!

Marshall leu as palavras escritas no bilhete e ergueu as sobrancelhas.

— Venham comigo — pediu. — Perry está perto daqui.

Rhodan leu a informação com toda atenção. Depois perguntou a Feriar:

— Tem certeza de que não é uma cilada que estão armando para nós?

Feriar deu de ombros.

— Não faço a menor idéia. Apenas quis entregar-lhe o bilhete. A decisão terá que ser sua.

Rhodan franziu o cenho.

— Quem mandou este bilhete? — perguntou.

— Não sei.

— Pois eu sei: foi Havan.

Feriar arregalou os olhos.

— Havan? — perguntou em tom de espanto. — Mas Havan e Belal estão trabalhando de mãos dadas.

Rhodan sorriu.

— Será mesmo? Mas quem poderia conhecer as intenções de Belal, se não fosse Havan?

Feriar não respondeu. Thér relatou a observação que acabara de fazer na galeria lateral.

— O grupo de Belal levará cerca de quarenta e cinco minutos a pé para percorrer a distância da saída do abrigo até o veículo — disse. — Com o armamento de que dispõem não terão o menor trabalho em abrir caminho. Estarão lá o mais tardar às vinte e nove horas.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Muito bem. Vamos estragar a brincadeira deles. Bem que precisaremos de auxílio quando tivermos colocado Belal e seu grupo fora de ação.

 

A planície apresentava o quadro vermelho-escuro de sempre, quando Marshall e Rhodan se deslocavam em seus trajes transportadores a baixa altura mas a grande velocidade, em direção ao jato espacial.

Ligaram os campos de deflexão, para que Belal não tivesse a menor chance de descobri-los antes que eles mesmos julgassem conveniente.

Belal e seu grupo tinham uma vantagem considerável. Marshall e Rhodan só os alcançaram cem metros antes do jato espacial, quando já se agrupavam para o ataque.

Rhodan viu que carregavam fuzis e morteiros leves. Os morteiros eram operados por dois homens. Estes empilhavam a munição no capim e colocavam os morteiros de forma a terem a linha de tiro livre.

Marshall e Rhodan precipitaram-se pela comporta aberta e entraram na nave. O mutante ficou deitado na comporta para manter Perry a par do que se passava lá fora, já que a aparelhagem ótica não estava funcionando. Enquanto isso Rhodan preparou o pesado radiador térmico e ficou aguardando as indicações de Marshall.

Essas indicações não seriam muito precisas. Ninguém conseguiria dirigir uma arma desse tipo a olho nu de tal forma que acertasse exatamente no alvo. Mas no caso do radiador de impulsos não era necessário que a pontaria fosse muito exata. O raio térmico poderia abrir-se para cobrir uma área maior. Além disso, o inimigo não possuía armas equivalentes. Mesmo que não fosse posto fora de ação com o primeiro tiro, o risco não seria muito grande.

 

Feriar e Thér viram de que maneira Belal e seu grupo abriram caminho pelo abrigo.

Quando Rhodan e Marshall conquistaram o abrigo de Sallon, Belal soubera esconder em tempo as armas mais potentes juntamente com a guarda pessoal no setor secreto em que ficava o laboratório. No abrigo propriamente dito, só deixaram alguns fuzis e pistolas antiquadas.

Quando os ocupantes do abrigo de Sallon viram Belal surgir com metade de sua guarda pessoal, alguns homens mais arrojados procuraram detê-lo. Havia um prêmio pela prisão de Belal, e não era só isto; Rhodan soubera esclarecer os homens sobre o perigo que um ditador como Belal representaria para a nova civilização de Isan.

Mas Belal abriu caminho a tiros sem mostrar a menor contemplação. Os poucos fuzis existentes em Sallon não estavam em condições de enfrentar as armas automáticas trazidas pelos seus homens. Houve alguns mortos e grande número de feridos. Depois, ninguém se atreveu a cruzar o caminho de Belal, quanto mais detê-lo.

Quando Feriar e Thér procuraram subir no elevador principal para seguir Rhodan e Marshall, que haviam ido na frente, houve um contratempo: todas as cabinas achavam-se ocupadas e em viagem. Demorou quinze minutos até que conseguissem entrar numa que os levasse para cima.

Na comporta de superfície, estavam os dois guardas que Rhodan mandara colocar ali porque receava que Belal procurava apoderar-se do abrigo de Sallon.

Belal e os homens de seu grupo não deram a menor atenção aos guardas. Passaram tranqüilamente. Os dois nem pensaram em impedi-los. Caso interferissem, o resultado não teria sido nada agradável para eles.

Feriar e Thér saíram da construção que abrigava a comporta e subiram a colina em linha oblíqua, tomando a direção em que ficava a nave espacial. Thér aguçou o ouvido, mas não ouvia o menor sinal de luta.

— Gostaria de saber... — disse em tom irritado, mas não conseguiu completar a frase, porque a surpresa o deixou sem fôlego.

Haviam chegado ao topo da colina e dispunham-se a ultrapassá-lo para descer do outro lado, passando ao lado da antiga cidade de Fenomat, quando, sem fazer o menor ruído, alguns homens se ergueram em meio ao capim.

No primeiro instante Thér pensou que pertencessem ao grupo de Belal. Mas depois ouviu uma risada esquisita e na luz vermelho-escura da noite viu um homem pequeno e magro caminhar em sua direção.

— Vejam só! Quem está aqui! — admirou-se o magricela em tom irônico, aproximando-se. — Ah, é nosso querido Thér, o amigo do peito do antigo e célebre membro do Conselho Killarog...

— Tome cuidado! — retrucou Thér furioso. — Alguma coisa poderá acontecer com você.

O magricela recuou um passo e gritou:

— Amarrem os dois!

Os homens precipitaram-se sobre Thér e Feriar. Feriar logo percebeu que não adiantava resistir. Mas Thér debateu-se furiosamente. Teria de agir contra sua natureza se quisesse deixar que o prendessem sem oferecer qualquer resistência. Afastou alguns homens a socos e, por um instante, conseguiu abrir espaço em torno de si. Mas a superioridade do inimigo era muito grande. Thér sentiu as cordas cingirem seus braços e pernas.

— Então? — perguntou o magricela. — Ainda está tão arrogante?

Thér lançou-lhe um olhar furioso.

— Você não perde por esperar, Havan. Um dia ainda ajustarei contas com você.

Ao que parecia a ameaça não o impressionava. Dirigindo-se para os homens de seu grupo, disse:

— Vamos levá-los. Façam com que não andem muito devagar. Temos de estar lá por volta de meia-noite.

 

— Gire ligeiramente para a direita, senhor! — gritou Marshall. — Se abrir bem o raio, poderá atingir dois morteiros ao mesmo tempo.

Rhodan não se apressou. Sabia o que poderia acontecer se atirasse antes da hora. Belal reconheceria a situação e se retiraria apressadamente. E isso não correspondia aos planos de Rhodan. Era necessário reduzir Belal à inatividade.

— Avise quando estiverem a vinte metros — disse, dirigindo-se a Marshall.

 

Belal viu o veículo em forma de lentilha brilhar à luz vermelha. Ao pensar no que pretendia fazer, chegou à conclusão de que não poderia haver nenhum imprevisto ou surpresa desagradável. No seu avanço já haviam deixado para trás o limite diante do qual o estranho de nome Perry parará a fim de ligar o campo defensivo do veículo. Portanto, a parede invisível tinha deixado de existir, pois do contrário não poderiam ter avançado até o ponto em que se encontravam.

Bastaria permanecer no lugar em que estavam, apontar com os morteiros e arrebentar o veículo.

Fariam exatamente isso, se Belal não tivesse a intenção de prender os estranhos vivos e apoderar-se dos instrumentos existentes no interior do veículo.

“Poderia haver alguma dificuldade em rastejar até a nave e dirigir-se aos tripulantes com as armas em punho, pedindo-lhes que se rendessem?”, pensou o ditador, depois monologou:

— Não, não poderia haver nenhuma dificuldade.

Assim mesmo, porém, Belal não se sentia muito bem. De repente teve suas dúvidas sobre se poderia avaliar os estranhos por aquele idiota nervoso e desmiolado que na noite anterior matara sem o menor esforço.

O ditador espantou suas indecisões com uma praga pesada.

— Adiante! — gritou para seus homens. — Vamos avançar o último trecho.

Quando deu essa ordem, não se encontravam a mais de trinta metros da nave. Passaram a rastejar mais depressa e com muito menos cautela.

Belal olhou para trás e viu bem perto de si os canos grossos de dois morteiros que avançavam acima do capim. Sentiu-se satisfeito. Ao menor sinal de resistência, os morteiros entrariam em ação.

Faltavam vinte metros.

A abertura escura da comporta desenhava-se em meio à parede da nave. Não compreendia por que a deixaram aberta, mas não viu nisso um sinal de perigo.

Mais quinze metros!

Ergueu ligeiramente o corpo e contemplou, com os olhos arregalados, o veículo estranho. Subitamente um raio branco e ofuscante de vinte centímetros de diâmetro saiu de uma abertura que ainda não havia visto.

Belal não teve tempo de fechar os olhos. A terrível claridade cegou-o. Círculos coloridos dançavam diante de seus olhos. Não enxergava nada.

Apavorado, deixou-se cair para a frente e ficou deitado no capim. Mas no mesmo instante, ouviu-se um ribombar e o chão foi sacudido. A pressão levantou Belal e atirou-o alguns metros para o lado. Os estilhaços assobiavam pelo ar e batiam no solo em torno dele.

Belal ouviu gritos apavorados assim que o ruído cessou. Alguém disse que dois morteiros haviam explodido juntamente com a munição. A seguir, houve outra detonação, pois o raio energético branco e escaldante atingiu mais um morteiro e a respectiva munição.

Belal sentiu-se tomado pelo desespero. Levantou-se e continuou a correr na mesma direção de onde havia rastejado. Segurava uma pistola automática e atirava loucamente em torno de si, até esvaziar o pente.

Ouviu gritos. Não sabia se vinham dos homens de seu grupo ou dos estranhos. Não via nada.

Corria, cambaleava e tropeçava até que sua cabeça bateu uma coisa dura e fria. O impacto atirou-o ao chão. Por algum tempo, ficou quase inconsciente.

Quando tentou erguer-se, teve a impressão de que uma bomba explodia no seu cérebro. Viu um raio ofuscante, sentiu um estrondo e, logo após, Belal estava fora de combate.

 

A luta havia chegado ao fim. Belal ficara inconsciente com um tiro certeiro da arma de choque disparado por Marshall. Rhodan fez ir para os ares o último dos quatro morteiros juntamente com a munição.

Depois que os morteiros deixaram de representar um perigo, Rhodan abandonou seu posto e saiu pela comporta. Disse que queria falar com uma pessoa autorizada a negociar com ele. Uma vez que, naquele momento, Belal não estava em condições de pôr em prática seu gênio obstinado, o desejo de Perry encontrou ressonância imediata.

Rhodan foi bastante lacônico. Pediu aos homens do grupo de Belal que escolhessem entre a capitulação e o aniquilamento. Resolveram aceitar a capitulação; não levaram mais de cinco minutos para tomar essa decisão.

Belal, que provavelmente não teria concordado, continuava inconsciente.

Os soldados largaram as armas e, vigiados por Rhodan e Marshall, que empunhavam as suas, sentaram bem próximos uns dos outros no capim ressequido.

 

Quando a porta do laboratório se abriu, Ivsera mal levantou a cabeça. Só o grito de surpresa de Irvin lhe despertou a atenção.

Ergueu-se da banqueta e fitou os dois homens que apareceram na porta.

Um deles ela nunca havia visto. Parecia um idiota. Mas a pistola automática destravada que apoiava no braço proibia a qualquer pessoa que risse de sua estupidez.

Já o outro homem Ivsera conhecia até bem demais. Fitava-a, seguia todos os seus movimentos com os olhos atentos e exibia o sorriso presunçoso e debochado que a química tanto odiava nele.

Era Havan!

Havan viu que Ivsera se assustou.

— Não há nenhum motivo para ter medo — gritou em voz alta. — A senhora sabe perfeitamente o que pode fazer pela sua segurança.

Ela sabia. Mas, naquele momento, ainda estava certa de que não precisaria pedir nada ao traidor. Perry estava por perto. Thér também. Até Feriar poderia vir em seu auxílio.

— Dê o fora o mais rápido que puder! — gritou furiosa para Havan. — Do contrário será executado.

O rosto de Havan contorceu-se numa careta.

— Será mesmo? — perguntou e entrou no laboratório. — Esperei para fazer esta visita até ter certeza de que todo o abrigo está em meu poder. Olhe!

Fez um sinal para o soldado parado à porta. O soldado transmitiu o sinal a outra pessoa, e dali a alguns segundos Thér e Feriar foram empurrados para dentro do laboratório, amarrados.

Ivsera empalideceu. Naquele momento, não pensava em Perry: era um estranho, e ninguém sabia o que pretendia fazer. Mas Irvin era um homem forte e inteligente. Sob sua proteção, sentia-se segura. Por isso pedira-lhe que permanecesse no laboratório, separando a roupa.

Havan prendera Thér e Feriar.

“Segundo afirma”, pensou, “todo o abrigo encontra-se em seu poder. Será que ainda resta alguma esperança?”

Não revelou o que se passava em sua mente. Continuou parada tranqüila enquanto Havan caminhava em sua direção.

— Vá para o inferno! — gritou furiosa.

O traidor parou e fez um sinal para o soldado.

— Amarre-a! — ordenou laconicamente.

 

Laury se sentiria muito mais à vontade se conhecesse algumas das pessoas que agora a rodeavam. Todos pareciam preocupados com ela e com o rato-castor ferido. Mas, a cada instante, via um rosto novo e estranho, e isso a deixava irritada.

Não ficou muito surpresa quando um homem armado entrou no recinto e a examinou atentamente.

— O que houve? — perguntou.

O homem armado continuou a olhá-la.

— Pare de me olhar desse jeito! — gritou. — O que está procurando por aqui?

Laury não passara pelo ligeiro treinamento especial que permitia a Rhodan falar a língua desse mundo sem o menor sotaque. Laury expressava-se em um arcônida polido que se usava em quase toda a Galáxia. Mas o homem compreendeu.

Estou procurando a senhora — respondeu o homem.

— Por quê?

— Para prendê-la.

Laury levantou-se de um salto. No último instante, lembrou-se da arma que trazia consigo. Mas antes que pudesse mover a mão, o homem apontou-lhe a pistola e disse:

— Fique bem quieta, senão atiro!

Laury obedeceu. Lançou um olhar desesperado para o rato-castor, que jazia imóvel sobre uma espécie de leito, no fundo do recinto. Gucky dormia o sono de um ser completamente esgotado e não estava percebendo nada do que se passava ao redor.

Laury não sabia que se encontrava em poder de Havan. O traidor era agora o senhor absoluto do abrigo de Fenomat.

 

Rhodan começou a impacientar-se porque Feriar e Thér não compareceram na hora combinada.

— Tenho uma sensação desagradável — disse em inglês, dirigindo-se a Marshall.

— Não devemos esquecer esse Havan. Quem sabe o que não andou tramando?

— Hum — fez Marshall, olhando para o lado. — Podemos mandar embora essa gente. Sem arma não representarão perigo para ninguém.

Rhodan levantou-se de um salto.

— Está bem. Avise-os. Tentarei entrar em contato com Laury.

Marshall logo se desincumbiu de sua tarefa. Encostou o capacete de seu traje transportador contra o capacete do prisioneiro que se encontrava mais próximo e disse:

— Dêem o fora, gente. Vocês estão livres. Procurem não aparecer mais em má companhia.

O homem transmitiu a notícia aos companheiros por meio do rádio de capacete. Hesitaram um instante, pois não acreditavam na sua boa sorte. Mas, depois de algum tempo, saíram correndo e desapareceram em meio à noite vermelha.

Marshall não se preocupou com eles. Procurariam chegar a um dos abrigos sem serem vistos e ali se misturariam aos demais ocupantes. Uma vez que não tinham armas, poderiam dar-se por satisfeitos caso ninguém os reconhecesse como membros da guarda pessoal de Belal.

O que devia causar maior preocupação era o fato de que Rhodan não conseguia entrar em contato com a mutante pelo telecomunicador. Laury não respondia.

Rhodan enfiou no bolso o pequeno aparelho de telecomunicação e procurou atingir Laury por via telepática. Laury era telepata, tal qual Rhodan, que só possuía o dom em circunstâncias extremamente favoráveis e em extensão reduzida; Marshall também possuía essa faculdade. O chamado de Rhodan chegou-lhe apesar das camadas de terra e concreto que teve de vencer.

Dali a cinco minutos, Rhodan e Marshall sabiam o que estava acontecendo no abrigo.

Laury, Gucky e os outros prisioneiros mais importantes de Havan foram trancados no laboratório químico-biológico. Não era proibido conversar. Thér e Feriar contaram o que Havan lhes havia dito no caminho.

Havan convencera Belal a ceder-lhe metade de sua guarda pessoal, para que pudesse apoderar-se do abrigo de Fenomat. Belal achara que o plano era útil e viável. Além disso, tinha certeza de que metade de sua guarda pessoal seria suficiente para conquistar o estranho veículo.

Belal não sabia que o inimigo havia sido informado sobre seu plano. O bilhete entregue pelo mensageiro de Havan preenchera duas finalidades distintas: Belal foi eliminado, e os estranhos estavam fora do abrigo, o que permitia a Havan agir livremente.

As comunicações entre as duas cidades subterrâneas foram interrompidas. Em Fenomat, Havan dominava a situação, e Laury soubera que o traidor pretendia enviar um emissário a Rhodan, que negociaria as condições para a libertação dos prisioneiros mais importantes.

Perry pediu a Laury que fizesse o que estava ao seu alcance para libertar-se juntamente com os demais prisioneiros. A mutante não possuía nenhuma arma, mas em compensação tinha o dom paramecânico da desintegração. Rhodan recomendou o seguinte:

— Tenho certeza absoluta de que Havan e seus homens nunca ouviram falar em dons parapsicológicos e coisas semelhantes. Sua guerra nuclear ocorreu há apenas oito anos, um tempo insuficiente para a formação de mutantes. Mas não se esqueça de que mesmo um mutante não é imune aos efeitos das balas. Procure não irritar Havan ou qualquer dos seus homens. Arranje-se juntamente com os outros prisioneiros. No momento, não podemos fazer nada por eles. Havan os mandaria matar assim que soubesse que penetramos no abrigo. Só nos resta esperar o auxílio que deverá vir da Terra.

 

Laury ficou conjeturando. Teve uma porção de idéias, refletiu sobre as mesmas, abandonou-as e procurou outras. Só aos poucos, um plano começou a surgir em sua mente.

A maior dificuldade consistia no fato de que no próprio laboratório havia três guardas. Ninguém estava impedido de falar com os outros prisioneiros, mas os guardas faziam questão de ouvir o que se conversava.

Laury deitou de lado, para se aproximar de Ivsera. Por meio de olhares comunicou-lhe que pretendia dizer-lhe alguma coisa que o guarda não devia ouvir. A química respondeu com outro olhar. Parecia um tanto surpresa e desconfiada.

A mutante voltou a deitar de costas, fechou os olhos e concentrou-se.

Imaginou encontrar-se diante da parede que separava o laboratório do corredor. Procurou ver com os olhos de sua mente as saliências e reentrâncias do concreto e do revestimento cinzento da parede. Imaginou fresta após fresta, e finalmente ordenou ao cérebro que ativasse o mecanismo que liberava as energias paramecânicas de seu apêndice cerebral.

O efeito foi tremendo.

Na parede surgiu um furo da espessura de uma agulha. A tremenda pressão das massas de terra logo o ampliou, transformando-o numa fenda. Dali a alguns segundos, a parede cedeu numa extensão de dez metros. Com um enorme estrondo, os blocos de concreto caíram no corredor, seguidos pelo farfalhar da terra úmida e fria.

Imediatamente os três guardas dirigiram-se à porta. Laury viu a terra marrom entrar no corredor, só parando alguns metros adiante. A terra obstruía metade da entrada. Os guardas engatinharam para fora e gritaram por socorro.

Laury voltou a deitar de lado.

— Procure fazer com que alguém a leve até Havan — cochichou para Ivsera. — Converse com ele, faça-lhe uma proposta. Quero que sua atenção seja desviada ao menos por quinze minutos. Faça o possível para que não deixe entrar ninguém no gabinete enquanto a senhora estiver com ele. Entendido?

A química fez um gesto afirmativo. Em seu rosto havia uma expressão matreira. A tarefa, que Laury lhe atribuíra, foi a mais repugnante possível.

Mas não se opôs. Aquela mulher desconhecida seguia um objetivo bem definido. Embora Ivsera não tivesse sido familiarizada com o plano, estava plenamente convencida de ter de cumprir o que estava sendo pedido.

A salvação dependia disso; e na situação em que se encontravam a salvação só poderia vir de uma pessoa desconhecida.

 

Os três guardas voltaram depois de algum tempo. Haviam constatado que as comunicações com o resto do abrigo não foram interrompidas. A terra que irrompeu no corredor só o obstruiu até a metade da altura.

Um grupo de prisioneiros estava carregando a terra em carrinhos e removendo-a. Ninguém sabia informar do desmoronamento parcial.

Ivsera chamou um dos guardas.

— Diga a Havan que quero fazer-lhe uma oferta! — exclamou.

O soldado sorriu.

— Qualquer pessoa pode vir com esta conversa — disse em tom ingênuo.

— Faça o que ela está pedindo — interveio um dos outros.

O guarda retirou-se. Voltou depois de algum tempo, soltou as amarras de Ivsera sem dizer uma única palavra e ajudou-a a levantar-se.

— Venha comigo — ordenou.

A jovem química lançou um olhar para a mulher desconhecida. Laury deu uma piscadela. Ivsera deixou que a levassem.

O quartel-general ficava no mesmo corredor, a cinco portas de distância. Conforme ela supunha, estava cercado por uma espécie de guarda pessoal. Mas, assim que foi introduzida no gabinete, Havan mandou todos saírem juntamente com a guarda que a trouxera.

Sorriu e convidou a jovem a sentar. Ele mesmo levantou-se e aproximou-se.

— Pelo que vejo andou pensando no assunto — disse.

Ivsera deu de ombros.

— Não sei — respondeu. — O que exige para libertar as pessoas que foram presas juntamente comigo?

Havan soltou uma gargalhada.

— Exijo a senhora.

Sentiu um calafrio. Controlou-se e perguntou com a maior calma:

— Quem me garante que o senhor cumprirá o acordo?

Ele excitou-se.

— Se quiser poderemos celebrar o acordo por escrito e assiná-lo na presença de testemunhas.

“Ah, velhaco!”, pensou Ivsera enojada. “As testemunhas seriam seus subordinados, e nunca se atreveriam a abrir a boca caso deixasse de cumprir o acordo.”

Mas fez de conta que estava refletindo sobre a proposta.

Em algum lugar do abrigo ouviu-se um leve ribombo, mas nem Havan nem Ivsera interessaram-se pelo ruído.

“Quinze minutos”, pensou Ivsera, concentrando-se ao máximo. “Terei que distraí-lo por quinze minutos.”

Subitamente a porta abriu-se e um guarda armado entrou correndo. Antes que pudesse abrir a boca para transmitir seu relato, Havan gritou furiosamente:

— Saia! Quem lhe disse que pode entrar aqui sem fazer-se anunciar? Fora!

O guarda hesitou, mas quando Havan puxou a arma e apontou-a para ele, virou-se e saiu correndo.

 

Assim que o guarda levou Ivsera, Laury pôs-se a trabalhar.

Fez desmoronar a parede lateral direita do laboratório. Os dois guardas que ali permaneciam puseram-se a gritar e saíram precipitadamente para o corredor.

Na parede do laboratório havia uma abertura que dava passagem a uma pessoa adulta e permitia a visão da sala contígua.

Laury ainda fez desmoronar parte da parede oposta. Depois soltou as amarras que a prendiam, fazendo simplesmente com que as mesmas se dissolvessem. Os dois guardas ainda não haviam voltado. Só os prisioneiros viram Laury levantar-se e atravessar a abertura que dava para a sala contígua.

Laury sentiu os pensamentos angustiados de Ivsera. Não podia estar longe. Provavelmente encontrava-se umas três ou quatro salas adiante. Laury atravessou a abertura da parede oposta e entrou num recinto escuro, que parecia estar vazio.

Ouviu gritos vindos de fora. Encostou o ouvido à outra parede e percebeu que do outro lado tudo estava em silêncio.

Laury concentrou-se e fez uma terceira abertura, através da qual penetrou em outro recinto, que também estava escuro e vazio.

Os pensamentos da química tornaram-se mais nítidos.

Esta acabou acenando com a cabeça:

— Acho que posso concordar — respondeu um tanto insegura, pois certamente era o que Havan esperava dela. — Quer redigir o acordo?

Ele ficou radiante. Pegou a mão de Ivsera, e esta deixou-se tocar a contragosto e cheia de repugnância.

— Nunca pensava que a senhora ainda chegaria a essa conclusão — balbuciou Havan muito feliz. — Agora...

Soltou a mão e correu para a escrivaninha atrás da qual estivera sentado. Impaciente, abriu uma gaveta e tirou uma pilha de folhas de papel, atirando-a sobre a escrivaninha. Pôs a mão no bolso, procurando uma caneta.

Ivsera assustou-se tanto quanto o próprio Havan quando de repente surgiu uma fenda na parede da direita. A brecha estendeu-se do chão ao teto e, poucos segundos depois, a parede desmoronou com um enorme estrondo. Uma nuvem de poeira levantou-se e pedaços da parede voavam pelo ar.

A jovem levantou-se de um salto e pôs-se a gritar de medo. Havan deixou-se cauda cadeira e rolou até a parede do lado oposto. Olhando através da poeira, Ivsera viu que protegia a cabeça com os braços.

Sobre os destroços da parede surgiu Laury, a mulher desconhecida.

Ivsera fitou-a perplexa. Viu Laury fazer um sinal, mas não compreendia o que ela queria.

Laury apontou para Havan, que continuava deitado no chão, completamente imóvel. Seus gestos tornaram-se cada vez mais impacientes.

Finalmente Ivsera compreendeu. Com dois ou três passos rápidos, colocou-se atrás de Havan. Antes que este percebesse o que estava acontecendo, tirou a pistola de seu cinto, destravou-a e apontou-a contra ele.

— Levante! — gritou. — Seu jogo está definitivamente findado.

O resto foi fácil. Em meio à confusão geral Laury não teve a menor dificuldade em libertar os outros prisioneiros que se encontravam no laboratório. Thér, o velho impetuoso subjugou o guarda que tirara a arma de choque da mutante. Só pelo ataque de Thér percebeu-se que alguma coisa não estava em ordem com os prisioneiros.

Thér usou a arma de choque, seguindo as instruções de Laury. Os guardas que acorreram ao local desmaiaram na porta do laboratório.

Desistiram da tentativa de apoderar-se novamente dos prisioneiros. A notícia de que o próprio Havan se encontrava em poder destes quebrou as últimas resistências entre os revoltosos. Perceberam que estavam perdendo o controle da situação e procuraram exceder-se em demonstrações de boa vontade para compensar o prejuízo que lhes poderia advir do fato de se terem juntado a Havan.

Para vencer a rebelião não houve necessidade de espalhar a sensacional notícia. Um veículo aéreo gigantesco e nunca visto estava pousando sobre a área urbana de Fenomat, para ajudar Laury e os demais ex-prisioneiros a assumirem o controle total da situação.

 

A Terra enviara a Drusus, uma nave que acabara de entrar em serviço. Era um veículo espacial esférico e seu diâmetro media mil e quinhentos metros. Nunca antes se vira em Isan um engenho gigantesco como este.

Seguindo as instruções de Rhodan, o comandante da Drusus só trouxera a tripulação indispensável e o armamento essencial. O resto do espaço disponível foi ocupado com caixas de mantimentos.

A bordo havia vinte mil megatons de alimentos. Aproximadamente metade dessa quantidade consistia em preparados alimentícios altamente concentrados. Era fácil calcular que essas provisões dariam para nutrir os cem mil habitantes de Isan pelo menos durante um século.

E um século era um tempo suficiente para que mesmo as radiações perigosas e duradouras do estrôncio-90 baixassem a um nível inofensivo. Dentro de um século, os habitantes de Isan poderiam iniciar sem o menor risco a produção de alimentos naturais. Até lá teriam de contentar-se com o presente recebido da Terra.

A Drusus trouxe outra coisa: más notícias. O comandante Harrings, que conduzira a enorme nave da Terra ao centro da Via Láctea, imediatamente após o pouso solicitou uma entrevista com Rhodan, que logo lhe foi concedida.

Perry foi informado de que em todos os setores da Galáxia as patrulhas terranas haviam descoberto uma atividade extraordinária das naves de Árcon e de outras procedências. A movimentação foi registrada segundo a rota e a data e os dados foram introduzidos no grande cérebro positrônico de Terrânia. O gigantesco aparelho, que também dispunha dos últimos relatórios que Rhodan enviara de Tolimon, concluiu com uma alta dose de probabilidade que o Império Arcônida tivera sua atenção despertada pelos acontecimentos, e que ligava os mesmos a uma pessoa chamada Rhodan, subitamente desaparecida há meio século. Na opinião do cérebro positrônico, os acontecimentos que se desenrolaram em Tolimon, e especialmente a maneira pela qual estes se sucederam, bastaram para que o sistema de combinação de dados de Árcon chegasse à conclusão quase inequívoca de que seu causador fora Rhodan.

A pausa de descanso que Perry Rhodan havia conseguido há cinqüenta anos para si e para a Terra, induzindo em erro a frota dos saltadores, havia chegado ao fim.

O Império saíra novamente em busca da Terra.

 

Para Rhodan essa descoberta significava que teria de encerrar quanto antes sua permanência em Isan e pôr-se a caminho da Terra.

A despedida precipitada foi muito difícil para ele. Depois de envolver-se por acaso nos acontecimentos de Isan, tinha na mente mais alguns planos, que incluíam a estabilização da situação em condições humanas e dignas.

Além disso, Rhodan desejava satisfazer sua curiosidade. No primeiro dia, sentira-se surpreendido ao notar que os habitantes de Isan falavam o arcônida, embora fosse um arcônida arcaico. Supunha que fossem descendentes dos emigrantes arcônidas, que na primeira fase da colonização, ou seja, há cerca de dez mil anos, penetraram até o centro da Via Láctea. Provavelmente as comunicações com o mundo de origem foram interrompidas pouco depois. A maravilhosa tecnologia arcônida caiu no esquecimento e a população de Isan regrediu à barbárie. No início da grande guerra, atingira aproximadamente o mesmo nível cultural em que a Terra se encontrava há cem anos.

Rhodan tinha certeza de que nos arquivos dos abrigos haveria alguma informação sobre a ascendência do homem de Isan. Mas não possuía tempo para vasculhar arquivos. A Terra chamava.

Rhodan mandou que duas naves auxiliares saíssem da Drusus e fossem tripuladas com dez homens cada uma. Os pequenos veículos espaciais foram equipados com armas que garantiam à pequena tripulação uma superioridade absoluta sobre tudo que vivia em Isan. Os vinte homens ainda se encarregaram de providenciar a distribuição justa e sensata dos mantimentos trazidos pela Drusus.

Rhodan designou Feriar, Thér e Ivsera como comissários-chefes dos abrigos de Fenomat e Sallon, e ordenou aos tripulantes das duas naves auxiliares que fizessem tudo que estivesse ao alcance deles para apoiá-los no desempenho de suas funções. Encareceu aos três chefes que se esforçassem a fim de não se perpetuarem no governo mas fossem substituídos quanto antes por um conselho eleito regularmente. Ivsera disse:

— Quando o senhor apareceu, eu estava cansada de não fazer nada e não me conformava mais com a idéia de que a mulher não deve intrometer-se na política. Mas nunca teria sonhado com a possibilidade de que, dentro de poucos dias, poderia atingir o posto de chefe do abrigo.

Rhodan sorriu. Antes que pudesse responder, Thér interveio na palestra:

— Não seja tão convencida, minha filha. Afinal, a senhora não está sozinha.

— Nem quero continuar nisso por muito tempo — exclamou Ivsera. — Basta que tenha chegado até lá.

Rhodan sorriu.

— Quer saber de uma coisa? — disse. — Tenho a impressão de que talvez a senhora possua uma visão um tanto romântica de tudo isto. Não quero interferir em sua vida privada, mas acho bem provável que a senhora sinta falta de um homem que, vez por outra, lhe endireite as idéias e lhe mostre como realmente são as coisas.

Ivsera baixou a cabeça e olhou para o chão.

— É o que vivo dizendo! — disse Thér.

— De alguns dias para cá, ou seja, desde o dia em que me tratou como um escravo no laboratório, procuro atrair sua atenção para minha pessoa. Acha que se dignou a olhar-me uma única vez com uma expressão amável?

A cena terminou numa série de estrondosas gargalhadas partidas de Rhodan e Feriar. Thér e Ivsera continuaram tão sérios como parecia ser a intenção das últimas palavras ditas por ele.

 

Poucas horas depois, a Drusus decolou.

No momento em que a Drusus penetrou no hiperespaço, Rhodan deixou para trás um mundo e uma experiência que já pertenciam ao passado. Tinha agora coisas muito mais importantes pela frente.

Já os homens de Isan haviam assistido a um milagre.

A população do planeta chegara ao estágio da extinção. Foi graças a um punhado de desconhecidos que o extermínio pôde ser evitado e a população teve as esperanças renovadas. Era um punhado de desconhecidos que dispunha de recursos misteriosos e apavorantes, e que não recuava diante de nenhum esforço para alcançar as soluções justas.

Instalaram a ordem e acabaram com a fome. Coisas que poucas semanas antes qualquer um consideraria impossível, tornaram-se possíveis: fizeram com que o planeta despertasse para uma vida nova carregada de esperanças.

Isan nunca se esqueceria dos desconhecidos.

A veneração incluiu o morto cujo túmulo solitário ficava no lugar em que a nave espacial dos estranhos pousou pela primeira vez, e que nada tinha a ver com os acontecimentos que se desenrolaram em Isan. Era o conde Rodrigo de Berceo, o homem que correu para a morte quando tentava ajudar Rhodan.

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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