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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Regresso do Nada / Kurt Mahr
O Regresso do Nada / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Regresso do Nada

 

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galático, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu.

E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terra-nos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante...

Terra e Árcon voltam a aliar-se...

Surgiram acontecimentos estranhos que se tornam uma ameaça sem precedentes para todas as formas de vida da Via Láctea.

Em O Regresso do Nada se fazem presentes lances de pura magia... tecnológica!

 

                                                

 

— Estou com medo!

Rosita encolheu-se no pequeno sofá; parecia estar com frio.

Rous olhou em sua direção e brindou-a com um sorriso encorajador.

Não disse nada. Para a sensibilidade de Rosita isso bastava para mostrar que, também ele, achava a situação um tanto perigosa.

Lloyd portava-se de outro modo. Todo o mundo estava acostumado a ver Lloyd assim: com os cotovelos apoiados sobre a mesa e a cabeça nas mãos. Estava com os olhos semicerrados, fitando um ponto imaginário.

Mantinha-se em silêncio.

— Não poderíamos acender mais luzes? — perguntou Rosita.

Rous fez que sim e levantou-se. A sala tinha duas portas, e perto de cada uma delas havia um fio que saía da parede, junto ao batente, e enlaçava um botão de madeira que ficava a meio metro de altura. Rous pegou o botão e puxou-o. Uma fileira de tubos de luz fluorescente acendeu-se no teto baixo.

Rosita piscou os olhos.

Rous dirigiu-se a uma das janelas e olhou para fora.

— O quê...? — perguntou Rosita, erguendo-se apressadamente.

Rous fez um gesto negativo.

— Não é nada. No período noturno, o tempo será bastante agitado.

— Por que temos de passar a noite justamente nesta cabana? — perguntou Rosita.

Rous bocejou. Fazia questão de que Rosita soubesse que já havia respondido a mesma pergunta mais de vinte vezes nesse dia.

— Podemos mudar para qualquer outra cabana — disse em tom de tédio. — Se é isso que deseja.

Rosita não respondeu. Rous olhou para a rua que passava junto à casa. Havia outras casas, espalhadas ao acaso pelos jardins. Nenhuma delas era maior ou menor que aquela em que se haviam abrigado. Ao que parecia, sua construção obedecera a um modelo único. Um pouco sujas, mas tinham aparência de novas. Todas elas eram hexagonais. Em cada recinto havia duas paredes com janelas, que faziam um ângulo de cento e vinte graus e lhes davam um aspecto estranho.

“Um aspecto estranho para terranos”, pensou Rous.

Nos momentos em que as nuvens de poeira, tangidas pelo vento, não eram muito densas, via-se do lado oposto da rua, na parte dianteira de um pequeno jardim, outra casa de cujas janelas saía uma luz abundante.

A luz irritava Rous, mesmo agora que já estivera lá e se convencera de que a casa estava vazia, tal qual as outras.

Quando o sol mergulhou atrás de uma parede de nuvens escuras, aquela luz estranha tornou-se mais nítida. Depois de algum tempo foi a única coisa que se enxergava para além das janelas.

Rous afastou-se da janela e saiu da sala. Entrou em outra, que tinha o mesmo formato da primeira. Mas suas instalações eram diferentes. Além disso, possuía três portas em vez de duas. Rous abriu a da estreita parede dos fundos e tentou pegar o fio. Segurou-o na mão, encontrou o botão de madeira e puxou-o firmemente. A luz acendeu-se.

O tenente perguntou a si mesmo por que voltara para cá. Já vira ao menos dez vezes naquele mesmo dia aquela mesa redonda com as seis bacias quase cheias e os bastões de madeira rachados, que deviam servir de talheres.

Sentou numa das cadeiras, apoiou a cabeça na mão esquerda e levantou um dos bastões. Estivera jogado junto à bacia como se alguém o tivesse largado ao acaso.

Uma porta bateu atrás dele. Rous não teve necessidade de virar a cabeça para ver quem estava entrando. Conhecia o passo.

— Está com fome? — perguntou Rosita.

Parecia uma piada, mas Rous percebeu que aquela pergunta era apenas a manifestação de um humor negro.

— Procuro imaginar de que maneira essa gente esteve sentada aqui hoje de manhã, e o que aconteceu — respondeu.

Rosita procurou uma cadeira.

— Quer solucionar o problema por via intuitiva? — perguntou em tom de escárnio. — Acredita...

— É claro que acredito — interrompeu Rous. — Procure refletir. Pelas seis horas, tempo local, pousamos numa Gazela a aproximadamente sete quilômetros da localidade de Keyloghal, num terreno ondulado e de pouca visibilidade. Nossa missão consistia em descobrir que tipo de estrago o inimigo invisível está fazendo neste planeta. Recebemos ordens para agir discretamente. Teríamos de pegar um desses homenzinhos que habitam o planeta, e fazer-lhe uma análise estrutural para extrair todo o saber encerrado em seu cérebro. Depois submetê-lo a um condicionamento que o impedisse de lembrar-se do incidente, e soltá-lo.

“Assim, levamos uma hora para assimilar os conhecimentos adquiridos. Instalamos nosso equipamento de forma a não despertar muita atenção aos olhos das pessoas com que teríamos de lidar.

“Seguindo as instruções, deixamos a Gazela para trás e pusemo-nos a caminho para Keyloghal. Encontramos uma aldeia parecida com uma aldeia camponesa do planeta Terra, com exceção das casas hexagonais. Vimos uma porção de gente que lidava com veículos puxados a trator, dirigindo-se ao campo ou voltando de lá.

“Também nos viram e ficaram espantados com nossa presença, porque medimos uns quarenta centímetros mais que eles. Mesmo a cem metros perceberam isso; e não conseguimos aproximar-nos mais do que essa distância.

“De repente desapareceram. Dissolveram-se no ar. Os tratores e as carroças pararam nos lugares em que se encontravam, ou prosseguiam no seu movimento até baterem num obstáculo. Mas as pessoas que se encontravam por ali haviam desaparecido.”

Rous levantou-se e respirou profundamente.

— Quer saber por que repito tudo isto?

Rosita sacudiu a cabeça.

— Para que a senhora compreenda que não é nenhuma fábula — disse Rous em tom enfático. — E nem estávamos bêbedos ou hipnotizados. Vimos com os olhos bem abertos toda a população de uma aldeia, de tamanho regular, desaparecer repentinamente. Não nos adiantará nada relegar o fenômeno ao terreno da metafísica. Isso deve ter acontecido de maneira natural. E se é assim deve haver um meio de encontrar a solução do mistério.

Rosita lançou-lhe um olhar pensativo.

— Que tal lhe parece a hipótese do transmissor fictício?

Rous ergueu a cabeça.

— O que quer dizer com isso? Acha que é uma explicação para o que aconteceu aqui?

Fez um gesto de mão em direção à mesa posta.

— Exatamente.

— Já andei pensando nisso. Vamos partir do que já sabemos. Possuímos transmissores fictícios que, instalados em determinada parte, removem o objeto visado de outro lugar, atiram-no pelo hiperespaço e o fazem surgir num outro lugar. É nisso que consiste a ação de um transmissor fictício. Quer dizer que nós mesmos poderíamos fazer desaparecer todos os habitantes de Keyloghal, mas um por um, não todos de uma só vez. E há outro detalhe: se a pessoa contra a qual dirigirmos o transmissor fictício estiver segurando uma colher ou um garfo, estes objetos desaparecerão juntamente com a pessoa.

“Mas veja o que aconteceu aqui: esta gente estava almoçando quando o fato aconteceu. Foram arrancados de junto da mesa. Desapareceram. Seus talheres ficaram para trás, da mesma forma que os tratores e as carroças lá fora. Não; não acredito na possibilidade de um transmissor fictício.”

— Mas o que poderia ser, se não for isto?

Rous deu de ombros. Esteve a ponto de dizer alguma coisa. Mas, naquele instante, escutou uma porta bater. Da sala contígua ouviram-se passos surdos e vigorosos.

Fellmer Lloyd enfiou a cabeça pela porta.

— Alguém está chegando! — limitou-se a dizer.

Rous levantou-se de um salto.

— Apaguem a luz; rápido! — ordenou. — É uma única pessoa, Lloyd?

— Não, é uma porção. Calculo que sejam umas vinte. E vêm vindo bem depressa.

— De onde?

— Ao que parece vêm pela estrada que dá para Ferraneigh.

Era a mesma estrada pela qual os três haviam vindo na manhã daquele dia. Rous voltou à sala de cujas janelas podia ver a rua.

Uma estreita faixa de luz penetrava no recinto, vinda do outro lado da rua, onde alguns tubos luminosos estavam acesos atrás de duas janelas de uma casa.

Rous puxou a arma. Lloyd voltou para junto da mesa e segurou a cabeça com ambas as mãos. Rosita manteve-se junto à porta, com o botão de madeira da chave de luz na mão.

— Está ouvindo? — perguntou Lloyd de repente.

Rous aguçou o ouvido. Sentiu um ligeiro tremor no chão e ouviu um zumbido monótono vindo de longe. O ruído lhe parecia familiar. Não se tinha necessidade de ir ao centro da Via Láctea para ouvi-lo, pois esse tipo de ruído enchia todas as estradas da Terra.

— Acenda a luz — ordenou Rous. — Lloyd, fique aqui e cuide de Miss Peres. Irei lá fora.

— Pelo amor de Deus, Rous! — exclamou Rosita. — Não vá. Sabe o que é?

Rous já se encontrava junto à porta.

— Sei — respondeu em tom seco. — É um ônibus.

E era mesmo um ônibus.

Vinha com os faróis bem altos e deslocava-se pela estrada de Ferraneigh, desenvolvendo uma velocidade surpreendente. Rous viu as nuvens de poeira na frente dos faróis.

O pesado veículo entrou ruidosamente na aldeia, sem reduzir a velocidade. Ao que tudo indicava, o motorista não pretendia parar em Keyloghal.

Rous colocou-se no meio da rua e esperou até que fosse atingido pela luz dos faróis. Depois disso começou a agitar os braços.

Por alguns segundos não teve certeza sobre se não seria preferível saltar para o lado. Mas logo os freios começaram a ranger, o zumbido do motor assumiu um tom mais grave, o ônibus dobrou para a direita e parou a alguns metros de Rous.

A poeira levantada pelo veículo refletia bastante luz para que o tenente pudesse reconhecer o letreiro Resaz—Fillinan.

Uma porta foi aberta apressadamente. Um homenzinho saltou do veículo e caminhou em direção a Rous. Não tinha mais de metro e meio e teve de erguer a cabeça a fim de fitar o rosto de Rous. Mas ao que tudo indicava isso não o incomodava.

— O que houve? — perguntou em tom exaltado. — Por que não há mais ninguém em parte alguma? Para onde será que desapareceram?

Rous levantou a mão direita e curvou o dedo indicador, gesto que significava que não sabia.

— Não faço a menor idéia — disse na língua que aprendera naquela manhã durante a análise estrutural. — Não somos daqui. Chegamos hoje de manhã. Quando estávamos a uns duzentos metros da aldeia, todos os habitantes desapareceram. De onde vem o senhor?

— De Resaz — fungou o motorista. — Saímos hoje, às cinco da manhã. Entre as cinco e as oito paramos em Resaz-Gollan, Gortrup, Vineigh e Bostall. Até lá tudo estava em ordem. Às oito e meia chegamos a Millander, e não se via mais ninguém. E as coisas continuaram assim até agora.

Rous refletiu um pouco. Haviam chegado a Keyloghal entre as oito e as oito e meia. Ao que parecia, os homens haviam desaparecido ao mesmo tempo em todos os lugares.

— Não observou nada de extraordinário durante a viagem? — perguntou Rous.

— Não; nada. Quando estivemos em Millander, não tive tempo de olhar para nada. Os passageiros do ônibus tornaram-se histéricos. Uns queriam voltar, outros queriam que fôssemos logo para a frente, enquanto um terceiro grupo desejava levar-me a entrar em estradas secundárias, porque a estrada principal lhes parecia muito perigosa. Tive muito trabalho em acalmá-los e poder prosseguir viagem.

Rous tomou uma decisão rápida.

— Somos três — disse. — Quer levar-nos para Fillinan?

— Naturalmente; por que não? A passagem custa três unidades por pessoa.

Rous concordou. Achou que não era necessário avisar o motorista de que nem ele, nem Rosita e nem Lloyd possuíam dinheiro local. Em Fillinan encontrariam alguma coisa que poderia ser dada ao motorista em vez das nove unidades.

Foi buscar Lloyd e Rosita. Esta perguntou quais eram suas intenções.

— Pretendo ir a Fillinan — disse em tom lacônico. — Nunca mais teremos uma oportunidade como esta. O pessoal está tão nervoso que nem perceberá nosso tamanho.

Lloyd enfiou a bolsa com os microinstrumentos embaixo do braço. Rosita correu na frente.

Ao vê-la, o motorista arregalou os olhos, mas não disse nada.

Logo atrás do motorista havia um banco livre. Rosita sentou no mesmo, juntamente com Fellmer Lloyd e Rous. Este ocupou uma posição que lhe permitia examinar a estrada pelo pára-brisa.

As pessoas que se encontravam no ônibus conversavam exaltadamente. Mal notaram a presença dos novos passageiros. Apenas alguns lhes lançaram olhares esquivos e curiosos.

Era claro que todas as conversas giravam em torno dos acontecimentos estranhos daquele dia: o desaparecimento de todos os habitantes de certas aldeias. A única coisa que Rous conseguiu ouvir em meio à confusão de vozes foi aquilo que já sabia: que se tratava de um fenômeno inteiramente novo para aquela gente. Nunca haviam visto nada parecido.

Depois de poucos instantes, o ônibus saiu de Keyloghal. O motorista parecia querer vencer o medo e a insegurança, empurrando o acelerador até a tábua.

Realmente era um acelerador. Rous teve tempo de examinar o mecanismo de direção e de câmbio e compará-lo com aqueles que se usavam na Terra.

Não havia nenhuma diferença essencial. Rous achava que seria capaz de dirigir este ônibus sem receber um treinamento especial.

E o planeta Mirsal II ficava a quase quatorze mil e quinhentos anos-luz da Terra!

Dali a uma hora, o pesado veículo passou ruidosamente por outra localidade. Era Wimmanat. Não foi necessário parar para verificar que estava deserta, tal qual as outras que o veículo havia cruzado a partir das oito e meia da manhã.

Depois de Wimmanat a estrada tornou-se mais larga. Notavam-se sinais da proximidade da capital, Fillinan. Rous olhou para frente, para ver se conseguia enxergar o reflexo das luzes da cidade no céu; mas a distância devia ser muito grande, ou então a tempestade havia levantado muita poeira, pois o céu estava totalmente negro.

“Se os habitantes de Fillinan ainda não desapareceram”, pensou Lloyd, “com o tempo deverão surgir alguns veículos. Ou então as saídas da cidade em direção a Resaz haviam sido bloqueadas, e a respectiva área interditada.”

Olhou para Rosita. Esta estava com as pernas bem esticadas e a cabeça inclinada para trás, apoiando-a no encosto muito baixo. Estava com os olhos bem abertos e fitava o teto.

Rous esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas antes disso Lloyd subitamente se levantou de um salto.

— Cuidado! — gritou.

Rous encolheu-se. Lloyd olhou para além do motorista, mas não viu nada do lado de fora do veículo.

O motorista e os passageiros assustaram-se com o grito de Lloyd. O primeiro diminuiu um pouco a velocidade do ônibus e olhou para trás.

Foi então que Rous viu o feixe de luz... Atirou-se para a frente, a fim de segurar o homem que estava desaparecendo. Mas antes que completasse o movimento o motorista havia desaparecido. As mãos de Rous apenas atingiram o vazio.

— Olhe a direção! — gritou Rosita apavorada.

Rous inclinou-se por cima do assento vazio e esforçou-se para segurar o volante. Felizmente a estrada era reta e, uma vez que ninguém mais calcava o acelerador, o veículo não demorou a parar. Conseguiu mantê-lo no meio da estrada.

Assim que o perigo havia passado, ajeitou-se no assento estreito do motorista e puxou o freio de mão.

Depois levantou-se e olhou para trás. Os vinte passageiros que haviam feito a viagem de Resaz, Resaz-Gollan ou Gortrup até ali, haviam desaparecido juntamente com o motorista.

Só restavam Fellmer Lloyd e Rosita Peres.

Era um mutante, uma psicóloga e um tenente que se apresentara voluntariamente.

Lloyd voltou a sentar. Fazia como quem não tinha nada com aquilo.

— O que houve? — perguntou Rous. — O que foi que o senhor viu?

Lloyd sacudiu a cabeça, numa expressão contrariada.

— Não vi nada. Apenas senti. Senti uma porção de modelos cerebrais estranhos. Eram confusos e incompreensíveis. E, principalmente, duraram um ou dois segundos.

Lloyd já constatara a mesma coisa em outras oportunidades. Por exemplo, quando o foguete de Mirsal II desapareceu no espaço.

Rous soltou um gemido e deixou-se cair no assento. Tocou em Rosita e sentiu que a mesma estava tremendo.

— Não tenha medo, minha filha — disse em tom tranqüilizador. — A nós não fizeram nada. Desta vez só estão devorando os mirsalenses. Ao que parece, nós somos muito amargos para eles.

— Gostaria de saber por quê? — indagou assustada.

 

A cerca de trinta milhões de quilômetros do local em que se desenrolavam essas aventuras, os receptores da Drusus, a mais gigantesca das naves da frota espacial terrana, registraram um ligeiro fading dos sinais transmitidos pelos emissores existentes nos corpos dos três agentes que haviam sido colocados em Mirsal II.

O comandante da nave, Perry Rhodan, recebeu um relato lacônico:

 

Às dezenove horas e trinta e quatro, tempo de bordo, houve uma redução temporária na potência da transmissão dos emissores corporais de Rous, Peres e Lloyd. A redução foi temporária e teve a mesma duração de 2,8 segundos. Correspondeu no mínimo a um centésimo da intensidade usual. A seguir, a recepção voltou a ser perfeita.

 

Rhodan repetiu várias vezes a leitura da mensagem.

Depois dos acontecimentos estranhos — para não dizer apavorantes — que se desenrolaram em Mirsal III, e que pareciam indicar que um inimigo desconhecido e perigoso estava disposto a entrar em luta contra o Império Solar e o Império Galáctico dos Arcônidas ao mesmo tempo, Rhodan chegou à conclusão de que por enquanto a tarefa mais urgente seria a coleta de informações sobre o inimigo.

O desaparecimento da nave antiquada, de propulsão química que, segundo se apurou, provinha de Mirsal II, constituía uma indicação do caminho a ser seguido. Até então, ninguém sabia qual era o papel de Mirsal II nesse drama e como os habitantes desse mundo conseguiram ocultar sua existência por tanto tempo, muito embora sua tecnologia estivesse alguns séculos à frente da de Mirsal III, cujos habitantes os arcônidas já conheciam.

Rhodan julgara conveniente realizar as investigações com a maior discrição. Depois dos acontecimentos desenrolados em Mirsal III, e do desaparecimento da nave espacial de Mirsal II, convencera-se de que nem mesmo as armas potentes da Drusus e da Arc-Koor, cujo comandante, em conformidade com as instruções do computador-regente de Árcon, devia obedecer a Rhodan, não estavam em condições de enfrentar o inimigo desconhecido. Portanto, não havia como obter as informações necessárias pela força. Não havia ninguém contra quem se pudesse empregar a força. O inimigo dispunha de recursos que lhe permitiam escapar aos efeitos de qualquer tipo de interferência energética.

Por isso a única salda constituía-se num comando suicida, recurso de que Rhodan já se valera em diversas oportunidades, com resultados excelentes.

Como membros do comando foram designadas as três pessoas que, no instante em que Rhodan recebeu a estranha mensagem, se encontravam a alguns milhões de quilômetros de distância, num ônibus da linha Resaz—Fillinan, e procuravam, espantados, os demais passageiros do veículo.

Fellmer Lloyd fora escolhido por ser um dos poucos mutantes cujos dons parapsicológicos lhe permitiam localizar o inimigo, desde que o mesmo se encontrasse nas proximidades; Rosita Peres, porque a missão teria de ser cumprida num mundo totalmente desconhecido; assim se fazia necessário um estudo cuidadoso da mentalidade de seus habitantes; por fim, o Tenente Marcel Rous que, durante sua atuação em Mirsal III, já tivera suas experiências com o inimigo desconhecido e ainda tinha algumas contas a ajustar com este.

Rhodan concluiu que os três haviam entrado em contato com o inimigo. A conclusão era bem plausível, porque durante o desaparecimento da nave de Mirsal II fora observado por várias vezes um fading idêntico. Havia uma diferença: os sinais emitidos pela nave acabaram desaparecendo por completo, enquanto os micro emissores implantados sob a pele de Lloyd, Rosita Peres e Rous voltaram a recuperar a potência primitiva, depois da redução temporária.

Por isso era de se supor que os três agentes haviam escapado ao perigo. Além dos microemissores, que emitiam sinais diferentes para cada um dos três, ainda traziam um microcomunicador, que era um instrumento que, tal qual o telecomunicador, podia transmitir hipermensagens a distâncias consideráveis. Rous entraria em contato com ele, assim que isso se tornasse possível.

A Gazela com que os três agentes haviam pousado em Mirsal II possuía também um transmissor individual. Se o inimigo desconhecido não dispusesse de uma superioridade infinita, que lhe permitisse não se interessar pelos recursos técnicos do inimigo, veria naquele veículo espacial, que por ordem de Rhodan ficara no local de pouso, um ótimo objeto de estudo. Levá-la-iam, e o transmissor individual da Gazela revelaria o lugar para onde fora carregada.

Isso representaria muito. Por enquanto, os ocupantes da Drusus e da Arc-Koor não sabiam sequer em que área desse setor galáctico poderiam encontrar os desconhecidos.

 

O choque passou.

— O que há por perto? — perguntou Rous.

Lloyd sacudiu a cabeça.

— Nada — respondeu lacônico. — Absolutamente nada.

Rous levantou-se e espremeu-se no assento do motorista.

— Neste caso tentaremos ir adiante com esta geringonça.

Experimentou cautelosamente alguns botões, pedais e alavancas que havia no painel, no chão e na chapa que separava o capuz do motor da cabine dos passageiros.

O motor começou a trabalhar ruidosamente. Sentiu-se um cheiro de gasolina... de verdadeira gasolina!

Rous soltou o freio e acelerou. O ônibus deu um tremendo salto para a frente e o motor morreu. Rous experimentou outra marcha e desta vez teve mais sorte. Com um zumbido alto o veículo saiu lentamente pela estrada. Não conseguindo encontrar as outras marchas na primeira tentativa, Rous teve muitas vezes que parar.

Finalmente conseguiu. O ônibus aproximou-se da cidade a uma velocidade de cerca de cinqüenta quilômetros por hora.

Marcel Rous teve tempo para pensar num plano. A estrada estava completamente deserta; não havia necessidade de prestar atenção ao tráfego. Fellmer Lloyd voltara à letargia habitual; procurava “ouvir” eventuais modelos de vibrações cerebrais.

“O que vamos fazer em Fillinan?”, indagou-se mentalmente Rous. “Queremos descobrir a pista do inimigo desconhecido. Temos motivo para acreditar que em Fillinan isso será mais fácil que em qualquer das aldeias que já atravessamos? Não temos. Até agora só conseguimos um ligeiro indício. Os desconhecidos que operam aqui evidentemente não são nossos inimigos, pois por enquanto não nos fizeram nada; talvez estivessem combatendo apenas os habitantes de Mirsal III e de Mirsal II, que pareciam ameaçados do mesmo destino. Os invisíveis devem ter seus agentes neste mundo. E quem quer encontrar um agente deve dirigir-se à capital.”

Lloyd deu sinal de vida.

— Estou captando uma porção de modelos de vibrações cerebrais — resmungou. — Até parece um formigueiro humano.

— De onde vêm?

— Da frente.

Rous acenou com a cabeça.

— É lá que fica a cidade — disse. — Quer dizer que seus habitantes ainda não desapareceram.

Lloyd parecia não se interessar pelas palavras de Rous. Continuava a concentrar-se.

— Não existe nenhum modelo realmente desconhecido — disse depois de algum tempo.

— Qual é a porcentagem que o senhor consegue identificar? — perguntou Rous.

— Mais ou menos um entre mil — respondeu Lloyd. — Numa quantidade dessas, isto se torna difícil, especialmente quando a distância é grande.

Rous fez um gesto.

— Pelo que sabemos, Fillinan tem mais de três milhões de habitantes. Quer dizer que, se houvesse três mil desconhecidos, o senhor ainda os reconheceria. Não acredito que sejam tantos.

Lloyd resmungou:

— Neste caso teremos de esperar até chegarmos mais perto.

Voltou a inclinar-se para a frente e apoiar a cabeça nas mãos.

Dali a alguns minutos, Rous freou. Encostou o ônibus do lado direito da estrada.

— Vamos descer aqui — disse.

— Por quê? — perguntou Rosita.

— A cidade fica a cinco quilômetros no máximo. Daqui já se vêem as luzes. Não gostaria que alguém me perguntasse como me apoderei do ônibus e o que foi feito dos passageiros.

Desceram. Lloyd trazia uma pasta embaixo do braço.

A caminhada para Fillinan não foi nada agradável. Uma tempestade uivava em torno dos três andarilhos solitários, trazendo um frio cortante. A poeira cinzenta ardia na pele. Mantinham a cabeça abaixada, para melhor se protegerem.

Felizmente não se encontraram com ninguém. A estrada larga que, num ambiente terrano, estaria repleta de veículos de toda espécie, mostrava-se completamente deserta.

Quando as primeiras casas da cidade surgiram à sua frente, o dia estava amanhecendo. A tempestade amainara, mas o céu continuava encoberto. Mirsal, a estrela-mãe do sistema, não estava aparecendo.

As casas pareciam mortas. Eram hexagonais, como as que já haviam visto. Nas janelas não observaram nenhuma luminosidade.

Subitamente Lloyd estacou.

— Há três ou quatro homens à nossa frente — disse. — Estão perto, a aproximadamente duzentos metros de distância.

— Só quatro? — perguntou Rous em tom de espanto. — E nas casas?

— Não há ninguém; estão vazias.

Rous refletiu um pouco.

“Não há dúvida de que a cidade está habitada. Apenas as primeiras casas estão vazias. Por quê? Porque evacuaram esta área a fim de vigiar melhor a saída, seu idiota. Os quatro homens cuja presença foi constatada por Lloyd pertencem a um destacamento militar!”

— Pegue a arma psíquica! — ordenou, dirigindo-se a Lloyd. — Não temos outra alternativa senão ir em frente.

Lloyd confirmou com um gesto, retirou a arma do bolso.

Prosseguiram na sua caminhada. Rosita ia na retaguarda.

A primeira coisa vista por Rous em meio ao crepúsculo foi o cano de dez centímetros de diâmetro de uma arma, montada num jardim, à esquerda da rua.

Rous sabia se tratar de um tipo de lança-chamas. Em Mirsal II, a técnica das armas de fogo estava menos desenvolvida do que estivera na Terra, num estágio equivalente da evolução. Um fuzil de Mirsal não merecia mais confiança do que uma arma de carregar pela boca do tipo usado na mais remota antigüidade terrena, e era tão difícil de manejar quanto esta. Em compensação, os lança-chamas mirsalenses eram verdadeiras maravilhas da técnica. Os modelos maiores tinham um alcance de até dez quilômetros, com uma abertura mínima do feixe de chamas e uma geração de calor que chegava a atingir mais de mil watts por centímetro quadrado.

Rous fez como se não tivesse visto o lança-chamas. Não se sentia muito à vontade, pois conhecia muito pouco a respeito da mentalidade dos mirsalenses. Não sabia se não achariam preferível atirar em vez de fazer perguntas, especialmente agora que deviam estar espantados com o desaparecimento dos habitantes.

Mas suas preocupações revelaram-se infundadas. Das moitas que havia no jardim, logo atrás do lança-chamas, saiu um homenzinho moreno que agitou os braços.

— Pare! — gritou o outro.

Rous parou.

— Cuidado! — disse em voz baixa, dirigindo-se a Lloyd.

Lloyd confirmou com um gesto.

O homenzinho atravessou a rua. Rous viu que trazia na mão uma versão reduzida do lança-chamas. Esforçou-se para dar uma expressão de espanto ao rosto.

— O que houve? — perguntou. — Por que mandam a gente parar?

O homenzinho não disse nada até aproximar-se a cinco metros de Rous e de seus companheiros.

— De onde vêm? — perguntou em tom desconfiado.

Rous apontou com o polegar por cima do ombro.

— De lá.

— Não quero subterfúgios! Quero saber de onde vêm.

— De Wollaston — respondeu Rous.

Wollaston era uma ilha de tamanho regular, que ficava no oceano central. Seus habitantes, que formavam uma raça diferente e semicivilizada, tinham em média meio palmo mais que os outros mirsalenses.

— De Wollaston? — disse o guarda em tom de espanto. — Vieram a pé?

— Não. Viemos de avião até Resaz, e de lá viajamos de ônibus até Keyloghal. Depois disso viemos a pé.

— Os documentos!

Rous fez como se nem soubesse o que vem a ser um documento. O guarda virou a cabeça e gritou em direção às moitas do jardim:

— Ei! Venham cá. Peguei três pássaros muito interessantes.

Rous olhou para Lloyd, mas este sacudiu a cabeça. Ainda não havia acionado o projetor mental. O guarda agira por iniciativa própria ao chamar seus companheiros. Pequenos como ele e vestidos com roupas verde-escuras, que lhes serviam de uniforme, três homens saíram das moitas.

— Dizem que são de Wollaston — disse o primeiro dos guardas em tom de escárnio. — E não têm documentos.

— Eram estes que nós esperávamos! — exclamou um dos outros. — Se os revistarmos, deveremos encontrar uma porção de coisas interessantes.

Rous percebeu um movimento suave atrás de si. Era Lloyd que estava entrando em posição. A situação era favorável. Durante a ligeira palestra, as atenções do guarda mais próximo estavam desviadas de sua pessoa.

Rous ouviu o zumbido fino da arma psíquica. Viu o guarda virar-se apressadamente e fitar Lloyd com uma expressão de perplexidade. Lloyd saiu de trás de Rous. Segurava o projetor mental na direita.

— Larguem as armas! — ordenou com a voz tranqüila.

Os outros três guardas, que já se encontravam bem próximos, pararam e obedeceram. Tiraram os pequenos lança-chamas dos cintos e os deixaram cair. O guarda, que surgira primeiro, também não ofereceu a menor resistência.

— Coloquem-se em fila! — prosseguiu Lloyd.

Esta ordem também foi cumprida sem a menor resistência. Os quatro homens fitavam Lloyd como se este acabasse de descer dos céus num carro de fogo.

— Por que estão aqui? — perguntou Lloyd. — Vamos logo! Você aí: responda.

Apontou para um dos guardas.

— Coisas estranhas estão acontecendo — respondeu com a voz indiferente. — Os homens estão desaparecendo, regiões inteiras vêm sendo despovoadas. Um inimigo poderoso e invisível lançou um ataque contra nós. Precisamos encontrar-lhe a pista. Precisamos revistar todas as pessoas vindas das áreas despovoadas. Só assim poderemos descobrir o inimigo.

“A conclusão é bem plausível”, pensou Rous. “Quem viesse das áreas despovoadas só poderia ser um inimigo, a não ser que a situação se complicasse pela presença de três agentes de uma potência neutra.”

— Acreditam que somos inimigos?

— Acreditamos.

— Acontece que não somos. Entendeu?

— Compreendemos: vocês não são inimigos.

— Muito bem — disse Lloyd. — Quanto em dinheiro você tem?

O soldado começou a revistar os bolsos.

— Dezesseis unidades e alguns trocados.

— Passe para cá.

O soldado aproximou-se e colocou o dinheiro na mão de Lloyd. Os outros receberam a mesma ordem e, uma vez cumprida esta, constatou-se que Lloyd havia recolhido perto de cem unidades.

— Vocês se esquecerão do que acaba de acontecer — concluiu. — Dez minutos depois que eu tiver saído daqui não se lembrarão de mais nada. Hoje de manhã não aconteceu coisa alguma. Entendido? Ninguém veio pela estrada que vai de Resaz para Fillinan.

Os quatro repetiram estas ordens.

— Voltem aos seus postos.

Também esta ordem foi cumprida. Lloyd desligou a arma psíquica e voltou a enfiá-la no bolso. Os efeitos pós-hipnóticos durariam o tempo indicado: dez minutos.

— Vamos embora! — cochichou Rous. — Dentro de dez minutos, deveremos estar fora do alcance de suas vistas.

Correram um pedaço. A estrada descrevia uma curva, que os escondia dos olhares dos guardas hipnotizados.

Dois quilômetros depois, surgiram outros guardas. Mas Rous e seus companheiros passaram, e nem sequer as sentinelas os mandaram parar.

Logo depois começou o torvelinho da metrópole.

— Vamos alojar-nos num hotel — decidiu Rous. — O dinheiro que temos dá para um dia. Depois teremos de arranjar mais.

— O que vamos fazer no hotel? — perguntou Rosita.

— Antes de mais nada, vamos dormir. Estou muito cansado.

— Hum — fez Rosita. — Já tem algum plano para depois de acordarmos?

Rous fez uma careta.

— Que menina curiosa! Para dizer a verdade, não tenho nenhum plano. Não tenho a menor idéia de como poderemos agir. Receio que tenhamos de aguardar os acontecimentos.

Perguntaram a um transeunte se havia um hotel nas proximidades. O homem deu a informação solicitada, mas não ocultou seu espanto. Rous ficou sabendo que há três dias fora promulgada uma proibição absoluta de viajar, válida para todo o continente. Só quem dispusesse de licença especial poderia viajar. O informante contentou-se com a explicação de que os três homens vinham da ilha de Wollaston.

O hotel que o mirsalense lhes havia indicado ficava bem perto. Foram a pé. Os transeuntes paravam e fitavam-nos. Rous não se sentia nem um pouco à vontade. Rosita mantinha os olhos abaixados; nem uma única vez levantou a cabeça.

Já Lloyd parecia não se impressionar nem um pouco com o que estava acontecendo. Murmurava constantemente, fazia gestos afirmativos ou negativos e, ao que tudo indicava, estava tão ocupado com a palestra que mantinha consigo mesmo que nem se deu conta da curiosidade dos mirsalenses.

Subitamente parou.

— Caramba! — disse.

— O que houve? — perguntou Rous.

— Qualquer pessoa precisa de licença especial para viajar — disse Lloyd em tom pensativo. — Quer dizer que os passageiros de nosso ônibus devem ter sido pessoas muito importantes, não é mesmo?

Rous acenou com a cabeça.

— E daí?

— Veja onde estão estacionados os automóveis.

Rous olhou em torno. Já constatara que em Mirsal II costumavam trafegar pelo lado esquerdo, motivo por que se estacionava do mesmo lado. Mas não deu maior importância ao fato.

— Estacionaram do lado esquerdo — respondeu. — E daí?

— Acontece que o senhor estacionou o ônibus do lado direito. Está lembrado?

— Sim; será que há algum inconveniente nisso?

— Não se esqueça de que venho de Nova Iorque, tenente; diretamente de Nova Iorque. Se lá um ônibus com gente importante se perde, e posteriormente a polícia encontra estacionado na contramão, tirarão disso algumas conclusões. É possível que a polícia daqui seja tão inteligente quanto a de Nova Iorque. Ainda acontece que há três dias se acha em estado de alarma. E, finalmente: mesmo que os policiais do primeiro posto pelo qual passamos não se lembrem de mais nada, os do segundo saberão dizer de que direção viemos.

Rous tornou-se pensativo.

— Talvez tenha razão, Lloyd — admitiu. — De qualquer maneira, a esta hora só nos resta esperar para vermos se a polícia de Fillinan realmente é inteligente.

Prosseguiram na sua caminhada.

O grande hall do hotel estava vazio. Não havia ninguém na recepção. Mas havia uma campainha. Depois que Rous comprimira o botão várias vezes, um velhinho surgiu e ficou bastante espantado quando Rous lhe disse que queria três quartos. O homenzinho pediu documentos e a licença especial, mas o projetor mental de Lloyd logo fez com que mudasse de idéia. Não houve maiores problemas; os três foram alojados no segundo pavimento do edifício em que funcionava o hotel.

Já que Lloyd teve de fazer uso do projetor mental, os aposentos foram escolhidos por Rous segundo um critério utilitário. Havia portas que os ligavam, de maneira que ninguém teria necessidade de sair para o corredor se quisesse falar com o vizinho.

Rous instalou-se no chão, depois de estender o colchão e os cobertores existentes na cama, que era muito pequena para ele.

Dali a alguns minutos adormeceu.

 

Quando acordou já passava do meio-dia.

Alguém batia à porta.

— Entre! — gritou, usando por precaução a língua mirsalense.

Rosita entrou.

— Espero que tenha dormido bem — disse com uma leve ironia. — O senhor dorme enquanto acontecem as coisas mais Importantes.

— Ah, é? O que houve?

— O comando pós-hipnótico de Lloyd produziu os efeitos desejados. O homenzinho da recepção está convencido de ter recebido nossos passaportes e os ter perdido. A polícia veio aqui para interrogar-nos e nos fornecer novos documentos.

Rous levantou-se de um salto.

— Está bem; já vou.

Eram quatro policiais ao todo. Estavam esperando no hall. Quando Rous chegou, Lloyd e Rosita Peres já se encontravam presentes.

As declarações do velhinho que, segundo tudo indicava, era o gerente do hotel, foram registradas. Depois Rous e seus companheiros foram interrogados sobre suas procedências e a finalidade da viagem. Consideraram suas declarações satisfatórias, pois nesse meio tempo haviam colhido informações sobre sua pretensa cidade de origem, Wollaston. Rous disse que não sabia da necessidade de licença especial para viajar. Teria partido de Resaz há cinco dias, juntamente com seus amigos. Depois de várias paradas chegara a Keyloghal, onde constatou que a aldeia estava deserta. Dali em diante teria vindo a pé.

Um dos policiais era um velhinho grisalho que, a julgar pelo uniforme, devia ser de graduação superior aos demais. Apresentara-se como o comissário Flaring.

Ao concluir, indagou:

— Não estranhou o desaparecimento dos habitantes da aldeia?

Rous fez que sim.

— Naturalmente. Ficamos muito curiosos para saber aonde poderiam ter ido. Pensamos que se tratasse de uma evacuação realizada por um motivo de peso e apressamo-nos em prosseguir viagem para Fillinan.

— Por quê?

Rous balançou as mãos.

— Bem... poderia ser que naquela área tivesse sido descoberto um vulcão subterrâneo cuja irrupção fosse iminente, e que por isso a população tivesse sido evacuada.

Ao que parecia, Flaring ficou satisfeito com a explicação.

— Encontrou um ônibus pelo caminho, mais precisamente no trecho de Keyloghal para Fillinan?

Rous fez de conta que estava refletindo.

— Sim — disse depois de algum tempo. — Agora me lembro. A pouco menos de vinte quilômetros da cidade, vimos um ônibus vazio.

— Vazio? — perguntou Flaring em tom de espanto.

— Isso mesmo: vazio.

Flaring olhou para os companheiros e levantou-se.

— Está bem. Providenciaremos para que os novos passaportes lhes sejam enviados.

Saiu do hotel juntamente com os companheiros, sem despedir-se.

Rous, Lloyd e Rosita voltaram aos seus aposentos.

— Não gostei de Flaring — disse Rosita de repente.

— Por quê?

— Tive oportunidade de estudar a vítima que se encontrava na Gazela e fiquei conhecendo a mentalidade dos mirsalenses. Se por aqui alguém sai sem se despedir, isso tem uma importância muito maior que na Terra. Flaring tem alguma coisa contra nós, e quer que percebamos.

— Tomara que guarde suas suspeitas para si — respondeu Rous. — Enquanto for só ele, poderemos influenciá-lo com o projetor mental; mas se tornar públicas suas suspeitas, nossa situação ficará mais perigosa. De qualquer maneira, devemos evitar que sejamos identificados como estranhos, pois se isso acontecer, logicamente terão de acreditar que somos o inimigo que vai eliminando os mirsalenses de forma tão misteriosa.

Rosita fez que sim.

Lloyd interveio na conversa.

— Não adianta ficarmos escondidos nos quartos — disse. — Acho que devíamos dar um passeio.

— É verdade — disse Rous. — Mesmo que todo mundo nos olhe como se fôssemos bichos.

 

Era estranho que, de tarde, os mirsalenses pareciam estar menos curiosos que de manhã. Pouca gente virou a cabeça para olhá-los. Provavelmente a notícia da chegada de três pessoas vindas de Wollaston já correra pela cidade.

Rous e seus companheiros pegaram o metrô e foram ao centro da cidade.

A rua mais luxuosa de Fillinan era a Alameda dos Reis. Tinha cem metros de largura e cortava a cidade de norte a sul. Naquelas semanas, a título experimental e em certos trechos, geralmente de um quilômetro de extensão, haviam sido instalados os guias de microondas. Estes dispensavam o trabalho dos motoristas. Não era de admirar que, nos trechos experimentais, o público se comprimisse junto ao meio-fio, a fim de contemplar os veículos-teste da polícia, cujos motoristas mantinham as mãos ostensivamente entrelaçadas atrás da cabeça, provando que realmente não estavam interferindo na direção do veículo. Face ao interesse que os mirsalenses estavam dedicando ao espetáculo, quase ninguém deu atenção a Rous e seus companheiros.

As casas dessa rua eram grandes; ao que parecia, não se economizara em sua construção. Eram hexagonais como as outras casas de Mirsal II, e estavam rodeadas de jardins.

Havia edifícios tão altos como os velhos arranha-céus nova-iorquinos. Geralmente os pavimentos térreos estavam ocupados com lojas, e os andares de cima com escritórios e residências. Se não fossem as placas com letras estranhas, poder-se-ia pensar que se tratava de uma cidade do planeta Terra, construída por algum arquiteto dotado de maior criatividade.

Rous, Rosita e Lloyd passeavam tranqüilamente por essa rua. O mutante mantinha a pasta sob o braço, que nem um estudante que se esforça para não perder seu material de escola.

Falavam muito pouco. O perigo de que alguém os escutasse não poderia ser desprezado.

Depois de terem caminhado cerca de um quilômetro do lugar em que haviam saído, Lloyd estacou subitamente e olhou para trás.

— Um momento! — disse em voz baixa. — Alguma coisa está acontecendo.

Rous e Rosita também pararam. Lloyd olhou rua abaixo; não viu nada além do torvelinho normal do tráfego.

— O que houve? — perguntou Rous.

Lloyd fez um gesto impaciente.

— São os desconhecidos! — disse apressadamente. — Estão bem perto. Eu os sinto.

Rous sentiu um calafrio. Os mirsalenses continuavam amontoados junto ao meio-fio, contemplando o espetáculo dos carros-teste da polícia.

— É agora! — gritou Lloyd baixinho. — Estão chegando.

Contorceu o rosto, como se estivesse sentindo dores. Com um movimento automático, abriu a pasta e retirou um dos pequenos geradores de campo defensivo que costumavam ser instalados nos trajes especiais de procedência arcônida e, em versão bastante aumentada, nas naves espaciais.

Rous não sabia o que pretendia fazer com o aparelho. Rosita soltou um grito estridente e apontou para a frente.

— Olhe...!

Na direção em que Rosita estava apontando, Rous viu que mais adiante o ar parecia tremeluzir em toda a largura da rua. Notou que, atrás da cortina de ar tremeluzente, não havia mais gente nas calçadas. E os carros, que pouco antes ainda se deslocavam em boa ordem, passaram a correr em todas as direções, subiam nas calçadas, batiam nos edifícios e colidiam uns com os outros...

A cortina parecia aproximar-se cada vez mais. O panorama era enlouquecedor: os homens desapareciam das calçadas, e os veículos desgovernados pareciam empenhados num jogo maluco.

Amontoados junto à rua, os mirsalenses tiveram sua atenção despertada para o fenômeno. A ampla rua subia suavemente para o norte, oferecendo ampla visibilidade. Todos viram com os próprios olhos que uma cortina, que tornava invisíveis os homens e fazia os veículos comportarem-se loucamente, descia progressivamente pela avenida.

Dali a alguns segundos, começou o pânico. A multidão uivava, gritava, empurrava, enquanto se punha em movimento, procurando afastar-se do terrificante e do incompreensível que se aproximava deles.

Rous, Lloyd e Rosita afastaram-se. De um jardim, contemplaram a corrida dos fugitivos e fitaram a “parede” tremeluzente que descia pela rua.

Parecia deslocar-se cada vez mais depressa.

Subitamente Lloyd despertou de seu torpor.

— Segure um deles! — gritou para Rous.

Rous não sabia o que queria dizer. Lloyd apontou para os mirsalenses que fugiam.

— Segure um deles! — gritou. — Rápido; não temos tempo a perder!

Rous pegou ao acaso um dos fugitivos. O homem resistiu desesperadamente, mas o tenente era muito mais forte que ele.

A “parede” estava se aproximando.

O mirsalense pendia frouxamente na mão firme de Rous. Fitou os três terranos com os olhos arregalados, gemeu e não disse uma única palavra.

— Vamos colocá-lo no meio! — disse Lloyd.

Rous compreendeu o que o companheiro pretendia fazer. Havia ativado o gerador do campo defensivo.

E a “parede” chegou...

Rous sentiu um ligeiro formigamento e teve a impressão de que uma brisa passava por ele. Posteriormente, quando rememorasse o fenômeno, não saberia dizer se a sensação fora provocada pela parede ou por sua fantasia.

Por uma fração de segundo o barulho que enchia a rua cessou.

Rous, Lloyd e Rosita estavam de mãos dadas, formando um círculo em cujo centro fora colocado o mirsalense.

O barulho voltou. Rous olhou rua abaixo e viu que os fugitivos eram atingidos pelo fenômeno invisível, e desapareciam. Agora a velocidade da “parede” parecia ser dez vezes maior. Precipitava-se rua abaixo e a varria. Dali a alguns segundos, não se via mais nenhum mirsalense.

Nenhum indivíduo além daquele em torno do qual Rous e seus companheiros haviam formado um círculo protetor!

O homem tremia, arregalava os olhos e não foi capaz de dizer uma palavra. Olhava rua acima e rua abaixo, respirava violentamente e começou a soluçar quando compreendeu a extensão da catástrofe.

Rous examinou-o e perguntou-se mentalmente:

“Será que este indivíduo nos poderia ser útil?”

Fora um objeto de experiência muito útil. A esta hora já sabia que um mirsalense cercado por três terranos e protegido por um potente campo defensivo pode ser salvo do desaparecimento.

Rous colocou a mão no ombro do homem e lhe disse em tom amável.

— Vá para casa e dê-se por satisfeito por ainda estar vivo.

O homem obedeceu sem dizer uma única palavra. Saiu aos tropeções, sem olhar para trás.

Rous retomou o ritmo de sua atividade.

— Vamos embora! Precisamos descobrir se nesta cidade existe alguém que tenha escapado à desgraça.

Lloyd colocou o gerador na pasta e dirigiu-se à entrada de metrô mais próxima.

— Não se iluda! — gritou Rous atrás dele. — O metrô não está funcionando mais. Já imaginou o que deve ter acontecido com os trens quando de repente ficaram sem maquinistas?

Rosita teve uma idéia melhor. Alguns dos automóveis que se encontravam na rua no momento da catástrofe continuavam intactos. Escolheu o veículo mais potente.

— Venham! — gritou. — Acho que ele nos será bastante útil.

Pouco antes de chegar ao automóvel, Rous viu alguma coisa no chão. Era azul, emitia um brilho suave e tinha o formato aproximado de um pente sem dentes. Rous não sabia para que aquele objeto já poderia ter servido. Seguindo uma inspiração momentânea, colocou-o no bolso.

Rosita percebeu.

— O que quer com isso? — perguntou.

Rous deu de ombros.

— Analisar. Ficou bem embaixo da “parede”. Talvez apresente alguns vestígios...

Sentou-se à direção do carro. Depois de ter conduzido o ônibus, não tinha a menor dificuldade de movimentar o automóvel e manobrá-lo cuidadosamente por entre os numerosos obstáculos que havia na rua.

No primeiro cruzamento dobrou para a direita. A rua lateral era estreita em comparação com a Alameda dos Reis, muito embora tivesse seus quarenta metros de largura. Tal qual a outra, estava vazia.

Rous procurou lembrar-se do lugar em que ficava o hotel. Uma vez que havia vindo de metrô, não tivera oportunidade de rememorar o itinerário. Mas conhecia a direção e tinha certeza de encontrar o caminho pelas ruas totalmente vazias.

Quando Lloyd se sobressaltou, deviam ter viajado uns trinta minutos.

— Há gente pela frente — disse apressadamente. — São muitos. Ao que parece, o desastre não atingiu toda a cidade.

Rous estreitou os olhos.

— Nesse caso devemos ter cuidado. Pensarão que qualquer pessoa vinda da área central da cidade é um inimigo.

O hotel ficava na periferia da cidade, distando ao menos quinze quilômetros da Alameda dos Reis. Rous levou uma hora e meia para percorrer esses quinze quilômetros, uma vez que não conhecia a cidade.

Finalmente chegou a uma rua que lhe parecia conhecida. Rosita lembrou-se de uma espécie de joalheria diante da qual parara de tarde, e Lloyd já sabia que caminho tomar para chegar ao hotel.

Rous dobrou a esquina e por pouco não bate no veículo vermelho que estava atravessado na rua.

Lloyd já afirmara que os impulsos captados vinham de bem perto. No carro estavam sentados cerca de vinte policiais com as armas levantadas, e de cada lado da rua havia dois policiais.

Rous parou; não teve outra alternativa.

— Cuidado, Lloyd! — cochichou.

Três policiais saltaram do carro vermelho e aproximaram-se do automóvel. Rous baixou o vidro do lado direito.

— De onde vieram? — perguntou um dos policiais.

— Dos subúrbios do leste — respondeu Rous.

— Atravessaram a cidade?

— Atravessamos.

— Como estão as coisas por lá?

Rous fez um gesto de pavor; nem precisou esforçar-se muito.

— Tudo vazio; todo mundo desapareceu!

— Conseguiu ver para onde desapareceram?

— Não; não presenciamos o fenômeno. Viemos pela ponte de Finnestal. Do lado de lá estava tudo em ordem, mas do lado de cá...

— Está bem — disse o policial. — Pode prosseguir. Passe pela calçada.

Rous agradeceu, dobrou para a esquerda e contornou o veículo vermelho.

— Acaba de cometer um erro — disse Rosita em tom tranqüilo.

— Qual foi?

— Não se despediu.

— O quê?

— Agradeceu, mas não se despediu. Não se esqueça de que entre os mirsalenses os cumprimentos desempenham um papel muito importante.

— Caramba! — resmungou Rous. — Talvez não tenham notado.

— Ele notou — respondeu Rosita. — Vi pelo rosto. Acho que a permissão para prosseguir representa um simples estratagema. Acho que teremos problemas.

Rous não disse mais nada.

Dali a alguns minutos, parou à frente do hotel.

Por ali as ruas também estavam vazias. Pelo que dizia Lloyd, os impulsos que o mesmo vinha captando procediam do sudoeste. Provavelmente essa parte da cidade era a única que escapara à desgraça.

O hotel estava ainda mais vazio que antes. Até mesmo o velhinho havia desaparecido. Rous tocou a campainha algumas vezes e, como não aparecesse ninguém, ele mesmo foi pegar as chaves dos seus quartos.

O elevador não funcionava. A catástrofe fizera desaparecer também os operadores das usinas de energia. Não havia eletricidade.

Subiram pelas escadas. Não diziam; uma única palavra. Tinham muito em que pensar.

Não se separaram. Foram todos ao quarto de Rous. Antes que este abrisse ai porta, Lloyd lhe fez um sinal de advertência e apontou para a porta. Rous ergueu as sobrancelhas, refletiu por um instante e acenou com a cabeça. Apontou para a pasta de Lloyd. Este pegou o projetor mental.

Depois entraram.

Ao primeiro relance de olhos parecia que nada tinha mudado. Mas assim que Rosita fechou a porta atrás de si, surgiram rostos atrás das poltronas, das cadeiras e das mesas.

Eram rostos de policiais. Ergueram-se de vez e via-se que mantinham apontados os lança-chamas portáteis.

Rous reconheceu um dos policiais. Era Flaring.

O comissário saiu de seu esconderijo. Com uma expressão de escárnio no rosto, disse:

— Pensamos que os senhores pudessem contar-nos alguma coisa sobre a última catástrofe; foi por isso que viemos.

 

Na Drusus foi registrado outro fading dos sinais emitidos pelos transmissores embutidos no corpo dos três agentes. Tal qual o primeiro, não durou mais que três segundos. Depois os sinais voltaram a ser recebidos normalmente.

Já o emissor que se encontrava a bordo da Gazela não sofreu a menor perturbação.

Rhodan supôs que seus agentes tivessem entrado em contato com o inimigo pela segunda vez. O fato de que depois do primeiro contato Rous não transmitiu qualquer aviso levava à conclusão de que o incidente não se revestira de maior importância.

Restava saber se desta vez o caso seria o mesmo.

 

— Por que pensa assim? — perguntou Rous em tom tranqüilo.

Flaring fez um sinal em direção às poltronas e disse:

— Sentem. E não façam tolices.

Rous, Lloyd e Rosita obedeceram.

— Os senhores afirmam que vêm de Wollaston — principiou Flaring sem o menor intróito. — Em Wollaston vivem grupos de pessoas não civilizadas. Não acredito que qualquer dos senhores saiba guiar um ônibus sem receber a necessária instrução. E se souber, conhece as regras de trânsito e estaciona o veículo do lado esquerdo, não do direito.

Rous olhou-o atentamente.

— Muito bem — respondeu. — São suas suposições. E como continua a história?

— Desde que houve a catástrofe no campo, todas as saídas da cidade foram guarnecidas por duas fileiras de guardas. Ao virem de Resaz, os senhores passaram sem incidentes pela segunda barreira, ou seja, a interior; acontece que, por estranho que possa parecer, a barreira externa não se lembra de tê-los visto passar.

Rous levantou a mão direita, em sinal de concordância.

— Se a memória dos seus guardas é tão fraca, a culpa não é nossa — disse.

Flaring sorriu.

— A memória deles não é fraca coisa alguma. Além disso, ainda não cheguei ao fim. Os senhores estiveram na cidade, hoje de tarde, quando aconteceu o desastre. E são os únicos que não foram atingidos. Pode dar alguma explicação desse fato?

Rous baixou a mão.

— Não posso — confessou. — Apenas nos sentimos gratos por termos escapado.

Flaring tornou-se mais sério.

— Quer dizer que não mantém a afirmativa de que por ocasião do desastre se encontrava na ponte de Finnestal?

Rous ficou perplexo.

— O quê? Já sabe disso?

— Sim, já sei disso, e também sei que, contrariando todas as regras de etiqueta observadas em Wollaston, os senhores não cumprimentaram o guarda que os tratou com tamanha amabilidade.

Rous olhou para o chão.

— Preste atenção — prosseguiu Flaring. — Já somos bastante evoluídos para perceber que os senhores não são deste mundo. Nossa raça encontra-se no estágio inicial da Astronáutica. Provavelmente a sua já ultrapassou esse estágio. Resolveram atacar Mirsal; não sabemos por quê. Até agora não fizemos mal a nenhuma raça estranha, pois nem dispúnhamos de meios para isso.

“Portanto, não sabemos o que têm contra nós. Se soubéssemos, talvez poderíamos aplacar a raiva que evidentemente sentem por nós, evitando que nosso povo desaparecesse aos milhões.

“Não há nada que desejemos tanto como estabelecer uma paz em bases razoáveis com os senhores. Faremos o que estiver ao nosso alcance; apenas, não queremos que desapareça mais gente.

“Mirsal tem cerca de três bilhões de habitantes. Nos últimos dias cerca de dois milhões desapareceram. Não queremos que dentro de cinco ou dez anos nosso mundo fique totalmente desabitado.”

Rous ouvira com toda atenção. Depois olhou para cima, fitando Flaring, e perguntou:

— O senhor está autorizado a entabular negociações?

Flaring viu-se mais próximo ao objetivo.

— Sim, naturalmente. O senhor deseja...?

Rous fez um gesto negativo e levantou-se.

— Guarde isso! — disse em inglês, dirigindo-se a Lloyd.

Lloyd guardou o projetor mental na pasta.

Rous deu alguns passos. Subitamente parou e virou-se para Flaring.

— O senhor é um homem sincero, Flaring. Por isso usarei de toda franqueza. É bem verdade que terei que decepcioná-lo. Não somos quem o senhor acredita que sejamos. Somos estranhos, mas não somos responsáveis pelo desaparecimento de dois milhões de habitantes do planeta. Nem nós, nem qualquer membro de nossa raça.

Lançou um olhar penetrante para Flaring. Este retribuiu com uma expressão pensativa. Finalmente levantou a mão direita, em sinal de concordância.

— Logo vi que não confiariam em nós — disse em tom abatido.

Rous sacudiu a cabeça e nem se deu conta de que Flaring não compreendia o gesto, que era de origem terrana.

— O senhor está enganado, Flaring! — disse em tom enérgico.

Explicou-lhe tudo que o policial precisava saber para compreender a situação dos três terranos. Calou aquilo que não podia revelar, como por exemplo os dados sobre seu mundo de origem, o nome e a posição. Também não revelou o papel que o Império Solar desempenhava no jogo do poder galáctico. Era claro que não podia deixar de explicar que na Galáxia existiam vários blocos de potências e grupos de interesse.

A exposição de Rous durou cerca de quinze minutos. Ao concluir, disse:

— O pior erro que poderia cometer seria tratar-nos como inimigos. Dispomos de recursos face aos quais seu equipamento mais moderno equivale aos machados da Idade da Pedra. Se é que existe alguém que pode localizar o inimigo invisível, somos nós. E o senhor se privaria dessa chance, se nos causasse problemas.

Via-se que ainda faltava muito para convencer Flaring.

— Diga-me uma coisa — pediu. — Que interesse poderia ter sua raça nos acontecimentos que se desenrolam em Mirsal? O senhor confessa que por duas vezes se viu numa situação na qual meus patrícios desapareceram, enquanto nada aconteceu aos senhores. Por que demonstram tanto interesse por esses ataques, se os mesmos não são dirigidos contra os senhores?

Um sorriso surgiu no rosto de Rous.

— É uma boa pergunta — confessou. — Não acredite que estamos agindo apenas por amor ao próximo. Um dos fatores principais que consideramos ao agir desta maneira é o fato de que qualquer um que queira manter-se na Galáxia deve estar a par do que acontece no interior dela. Tem de conhecer seus inimigos em potencial. Quando se depara com um fenômeno que não o atinge diretamente, não pode fechar os olhos; deve procurar desvendar o mistério. Se não o fizer, poderá perfeitamente ser a próxima vítima do desconhecido. Quem não colhe em tempo as informações de que precisa, não terá elementos para defender-se. Compreendeu?

— Compreendi — limitou-se Flaring a responder.

— Muito bem. Ainda acontece que somos uma raça que gosta de ajudar os outros. Se pudermos fazer alguma coisa para impedir que esses desconhecidos exterminem sua raça, nós o faremos. Mas para isso torna-se necessário que os senhores não nos criem problemas.

Lançou um olhar indagador para Flaring. Este hesitou um instante e respondeu:

— Não estou autorizado a decidir sobre isso. Terei de expor a uma autoridade hierarquicamente superior o que acabo de ouvir, e ela decidirá. A única coisa que posso fazer para facilitá-los — disse com um ligeiro sorriso — é não os colocar sob guarda. Prometem não sair da cidade?

Rous levantou a mão direita.

— Garanto.

— Muito bem. Informá-lo-ei o mais cedo possível sobre a decisão que for tomada.

Despediu-se com a maior cortesia. E nenhum dos seus subordinados saiu sem despedir-se dos estranhos.

Lá fora a noite descia sobre a cidade. Escureceu. Não havia uma única luz acesa. A polícia tinha muita coisa para fazer; não iria mandar seus homens guarnecerem as usinas de eletricidade.

 

Lloyd e Rosita já se haviam retirado para seus quartos. Rous redigiu um relatório codificado sobre o que vira em Mirsal, relato este que pretendia transmitir à Drusus. Aludia às negociações realizadas com Flaring. O tenente pediu também o consentimento de Rhodan para a ação que pretendia realizar.

Depois de pronto, o relatório, formado por cerca de três mil palavras, estava resumido a uma série de pequeninos buracos abertos numa placa de plástico que poderia ser escondida na mão de uma pessoa.

Rous saiu à procura de Lloyd, que trazia o microcomunicador na pasta.

Atravessou o quarto de Rosita, que estava de pé, olhando pela janela. Ela não se virou à entrada de Rous, mas este ouviu-a dizer:

— Há um silêncio terrível por aí!

Rous foi à janela e colocou-se a seu lado. Não se via nada, nem mesmo a fachada dos prédios que ficavam do lado oposto da rua.

Cerca de um milhão e meio de pessoas haviam sido vitimadas pelo segundo ataque do inimigo invisível. Este número fora indicado por Flaring.

“Um milhão e meio de pessoas desapareceram de uma hora para outra da superfície deste mundo. Por quê? Qual será a finalidade disso?”, pensou o tenente.

Rous fervia de raiva ao pensar na desgraça.

— Espere! — disse. — Nós os agarraremos.

Rosita não respondeu. Rous saiu da janela e dirigiu-se à porta do quarto de Lloyd.

Quando entrou, viu-se envolvido por uma luz forte. Rous viu-se ofuscado, mas logo constatou que a claridade iluminava o quarto de Lloyd quase por igual e parecia vir de todas as direções. Parecia que tinha vindo de um quarto às escuras e entrado num outro que recebia a luz do sol por um grande número de janelas.

Rosita também percebeu quando a luminosidade penetrou pela porta.

Lloyd trabalhava em meio à claridade; ao que parecia, estava muito ocupado.

— O que é isso? — exclamou Rous. — O que andou fazendo?

Lloyd parou.

— Por enquanto não sei — respondeu um tanto contrariado. — Andei mexendo um pouco nisto, e de repente apareceu a luz.

— Andou mexendo em quê?

— No gerador do campo defensivo. Rous sentiu-se perplexo. Na pasta de Lloyd havia uma porção de objetos capazes de produzir luz. A iluminação de emergência da qual Rous se valera para confeccionar a chapa de plástico com o relatório destinado à Drusus também provinha dessa pasta. Mas de todos os objetos que Lloyd carregava, o gerador de campo defensivo era aquele do qual menos se esperava que pudesse ser usado como fonte de luz.

Rous e Rosita entraram e fecharam a porta atrás de si. Rous sentou-se numa poltrona.

— Explique! — pediu a Lloyd.

Lloyd passou a mão pela testa, como se tivesse necessidade de refletir.

— Deve estar lembrado de como salvamos aquele mirsalense na Alameda dos Reis — principiou. — Bem, desmontei o gerador para verificar se o campo defensivo poderia ser reforçado; para isso talvez se pudesse ligar o aparelho a uma fonte externa de energia. Como sabe, em princípio isso é possível. Só resta saber que volume de energia o pequeno aparelho pode absorver e utilizar.

— E depois? — perguntou Rous.

Lloyd deu de ombros.

— Depois não sei mais nada. Retirei algumas células e as liguei de forma diferente. Subitamente o quarto se iluminou. Não faço a menor idéia sobre a causa do fenômeno.

Rous levantou-se de um salto.

— Onde está?

Lloyd apontou para a mesa.

Rous aproximou-se cautelosamente do pequeno gerador. Não era maior que um maço de cigarros. Lloyd havia retirado a tampa e mexera no complicado mecanismo com uma pinça de soldar.

Lloyd era técnico. Além da sua extraordinária capacidade parapsicológica, possuía conhecimentos quase completos sobre todos os problemas eletrônicos e gravitomecânicos que devem ser considerados na construção de geradores de campos defensivos e numa série de outros aparelhos.

Neste ponto o tenente não ficava nada a dever a Lloyd. Na Academia realizara cursos de Eletrônica e Gravitomecânica.

Era versado no assunto e, ao primeiro relance de olhos, percebeu quais haviam sido as modificações que o mutante introduzira no pequenino mecanismo.

Examinou as soldas novas e repassou em sua mente os circuitos modificados. Repetiu a experiência e chegou ao mesmo resultado.

Lloyd estava parado atrás dele, olhando por cima de seu ombro.

— O senhor sabe o que acaba de fazer? — perguntou Rous.

Lloyd fez que sim.

— Ao que parece, apenas modifiquei o formato do campo defensivo.

— Exatamente. O gerador produz um campo defensivo esférico, de raio variável e limitado. E agora...

— Agora é apenas um campo anular — completou Lloyd.

— Isso mesmo. Um campo anular, cuja situação ainda não conhecemos.

Prosseguiu na experiência. Ao que parecia, estava encontrando o que procurava. Pediu a pinça de soldar, fez algumas modificações, regulou o botão que havia na parte da frente do aparelho e olhou várias vezes em torno.

— Procuro localizar o campo — explicou. — Agora tem a forma de anel, não de esfera; acontece que não sabemos onde fica esse anel.

Continuou a trabalhar. De repente, Rosita, que também se encontrava no quarto, soltou um grito de surpresa.

— Olhem! Ali, na janela...

Rous levantou a cabeça.

Junto à janela surgira uma mancha circular de luminosidade branco-azulada. Para além do círculo reinava uma escuridão completa. A luz que penetrava no quarto provinha exclusivamente dali.

— É estranho — murmurou Rous.

— Pensei que fosse um campo anular — disse Lloyd. — Acontece que isso não é um anel, mas um círculo.

Rous sacudiu a cabeça.

— Tolice. O que o senhor está vendo não é o campo, mas uma luz pura e simples. O campo é invisível. Estende-se em torno desse círculo de luz.

Rosita estava curiosa.

— De onde vem a luz?

— Bem que eu gostaria de saber — respondeu o mutante.

Por alguns minutos Rous fitou atentamente a mancha circular de luz. Subitamente estremeceu, como se acabasse de lembrar-se de algo importante, e pôs-se a trabalhar que nem um louco.

Lloyd e Rosita viram a mancha de luz diminuir; enquanto isso, a luz aumentava de intensidade e a iluminação já não era tão uniforme em todos os cantos do aposento.

Depois de algum tempo, o círculo, que de início medira uns setenta centímetros de diâmetro, se transformou num ponto de luminosidade muito concentrado.

Enquanto Rous continuava a trabalhar, o ponto voltou a estender-se. Rous percebeu a alteração e continuou a girar botões, fazer ligações e soldar peças até que o ponto voltasse a surgir sobre a vidraça.

Depois disso levantou-se.

— Aí está! — disse. — Sabe o que é isso?

Apontou para o ponto luminoso.

Lloyd sacudiu a cabeça.

— É claro que eu também não sei — confessou Rous. — Mas tenho uma hipótese. Suponho que nosso campo circular desempenha por assim dizer as funções de lente. Concentra em seu foco os raios de luz emitidos por um objeto muito distante.

Lloyd olhou-o sem compreender nada.

— Que luz é esta? De onde vem?

Rous cocou a cabeça.

— Aí que está o grande mistério. No momento em que desligo o gerador, a luz desaparece. Logo, não está em nosso espaço.

— Essa conversa é muito metafísica — resmungou Lloyd em tom irreverente. — Em que espaço poderia estar?

Entusiasmado com sua descoberta, Rous deu-lhe uma pancadinha amistosa.

— Não se esqueça de que nunca conseguimos ver os desconhecidos quando os mesmos se lançaram ao ataque! — exclamou. — Eram invisíveis. Se o senhor acha que a explicação baseada nos dois espaços diferentes, em que nós e os estranhos existimos, é complicada demais, basta imaginar que descobrimos um meio de destruir a invisibilidade desses seres.

“A realidade é a seguinte: o campo anular, com suas funções de lente, produz uma instabilidade na estrutura de nosso espaço. Essa instabilidade estabelece uma ponte entre dois contínuos: a luz pode passar de um ao outro.”

Lloyd fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. Acho que estou compreendendo. E daí?

Rous apontou para o ponto luminoso.

— O que estamos vendo é uma imagem. Uma imagem de qualquer objeto que se encontra naquele outro espaço. Se pegarmos uma lupa para ampliá-la, poderemos ver o objeto.

— Pois bem; vamos pegar uma lupa.

Rous fez um gesto negativo.

— Uma lupa seria apenas outra lente. Se a primeira lente é formada por um campo defensivo anular, a outra deverá ter as mesmas características. Tudo que temos de fazer é dissociar o círculo produzido pelo gerador em duas partes, a fim de que o mesmo produza dois campos anulares. Um deles servirá de objetiva, outro como projetor.

Olhou para trás.

— Ali temos uma grande parede branca. Se tivermos sorte, poderemos projetar-lhe a imagem.

Lloyd compreendera. Os dois começaram a trabalhar febrilmente no gerador. Rosita contemplava-os com os olhos curiosos, mas sem o menor conhecimento da matéria. Não sabia o que dizer de tudo isso.

— Sempre pensei — começou — que uma lente fosse feita de vidro. Será que não é?

Rous soltou uma risada.

— Geralmente são — disse. — Mas há cem anos os microscópios eletrônicos já tinham lentes feitas de campos elétricos ou magnéticos. Por isso um campo defensivo pode perfeitamente servir de lente.

— Está bem — disse Rosita. — Não entendo nada disso. Estou curiosa para ver o feitiço que sairá daí.

Face à atividade extraordinária de Lloyd e Rous só demorou meia hora até que um segundo círculo surgisse no meio do quarto. Mal se destacava da claridade ali reinante, e era maior do que o primeiro fora em qualquer momento. Rosita chamou a atenção dos dois homens sobre o fato.

— Muito bem! — exclamou Rous. — Esta é a ocular. Agora vamos girar até que...

Interrompeu-se em meio à frase, refletiu um pouco e bateu com a mão contra a testa.

— Que idiota que eu sou. Com uma ocular não se pode produzir uma imagem real. Para projetar precisamos de uma terceira lente. E o gerador não conseguirá formá-la. Portanto, devemos partir para a observação direta.

Colocou-se de tal maneira que o círculo que pairava no meio do quarto ficava entre ele e a janela.

— Apenas vejo claridade — disse um tanto decepcionado. — Gire o potenciômetro, Lloyd.

Lloyd começou a girar o pequeno botão. Rous olhava intensamente para o círculo luminoso.

— Pare! — gritou de repente. — Marque a posição, Lloyd!

Lloyd fez um pequeno arranhão na placa fronteiriça do aparelho, a fim de marcar a posição do potenciômetro. Rous fez mais alguns pedidos:

— Rosita, traga alguns panos e pendure-os sobre minha cabeça. A luz espalhada pelo quarto atrapalha minhas observações.

Rosita trouxe os panos.

Com a cabeça envolta nos mesmos, de tal maneira que apenas o círculo luminoso ficava à vista, Rous olhava fixamente para a frente, sem dizer uma palavra.

Só dali a uns dez ou quinze minutos, recuou e os deixou cair.

— Dê uma olhada — disse, dirigindo-se a Lloyd. — Não há dúvida de que é uma imagem; mas não faço a menor idéia do que seja.

Rosita não conseguiu dominar mais a curiosidade e perguntou:

— O que é que a gente vê?

Lloyd descreveu o quadro:

— Vê-se uma superfície ampla e plana. Nessa superfície estão espalhados ao acaso vários objetos escuros. A imagem é colorida. Mas, ao que parece, as cores não são muito numerosas. Os objetos escuros... bem, talvez sejam máquinas; não sei.

— Alguma coisa se move? — perguntou Rosita.

— Não. Está tudo parado. A imagem dá a impressão de fotografia. Não vejo nenhum... um momento, o que é isso? — calou-se por um instante e prosseguiu em tom exaltado: — Agora houve um movimento. A imagem se moveu em conjunto. Parece que alguém a aumentou. Os objetos escuros tornaram-se maiores; realmente são máquinas.

Nesse instante, as observações do mutante foram interrompidas sem a menor contemplação. Rosita não conseguiu dominar a curiosidade: arrancou os panos que também lhe envolviam a cabeça, empurrou-o para o lado e colocou-se à frente do círculo.

Rous e Lloyd deixaram-na à vontade. Por alguns minutos Rosita manteve-se imóvel e em silêncio, contemplando a imagem. Depois recuou e disse:

— Vejo que é uma planície que parece ter sido pavimentada de ladrilhos. Há ainda sombras que talvez sejam máquinas. As imagens não estão nítidas. Não vejo nisso nada de extraordinário.

— Ah, é? — disse Rous com uma risada. — Não acha nada de extraordinário? Sabe o que acaba de ver?

— Não — respondeu Rosita.

— Pois eu vou explicar. A senhora viu um mirsalense ser salvo pela influência de nosso gerador de campo defensivo. Por isso há de concordar em que esse campo exerce certos efeitos sobre o inimigo, seja ele quem for. Ainda não sabemos que efeito é esse. Esse mesmo campo defensivo, uma vez reduzido a uma forma adequada, cria certa instabilidade na estrutura espacial, e com isso uma ponte pela qual a luz pode passar do contínuo temporal do inimigo para o nosso.

Rosita começou a compreender. Fitou Rous com os olhos muito arregalados.

— Não venha me dizer que...

Rous acenou tranqüilamente com a cabeça.

— É isso mesmo que eu quero dizer. O mundo do inimigo é diferente do nosso. Encontra-se num outro contínuo, do qual vem lançando seus ataques. O que estamos vendo neste círculo não passa de um recorte pouco nítido do invisível.

 

Haviam dado o primeiro relance de olhos. Depois de longas semanas de luta contra o inimigo, conseguiram pela primeira vez lançar um olhar para o outro espaço, em que vivia esse inimigo.

Isso apenas serviu para fortalecer-lhes a confiança. Mesmo os fenômenos complicados e desenrolados durante a reprodução da imagem por meio do gerador de campo defensivo não faziam com que se tornasse possível saber onde poderia ser encontrado o objeto que viam reproduzido no círculo luminoso. Não havia como localizá-lo, e não se sabia se valeria a pena localizar alguma coisa que, por assim dizer, se achava em outro universo.

Nem sequer havia a menor indicação que permitisse uma conclusão sobre se aquilo que haviam observado realmente era um quadro estático, algo imóvel, ou se no outro espaço o fenômeno tempo sofria uma modificação que não lhes permitia notar os movimentos.

Rous acreditou que os súbitos deslocamentos do quadro, observados por várias vezes depois da primeira constatação de Lloyd — inclusive em sentido inverso, ou seja, no afastamento — não fossem um fenômeno real. Em sua opinião, tratava-se apenas de oscilações no gerador de campo defensivo.

Rous tentou transportar através do círculo luminoso um objeto para o espaço inimigo — um maço de cigarros, por exemplo. A tentativa foi um fracasso total. O maço de cigarros caiu ao solo do outro lado do círculo. Os dois campos anulares formavam um sistema de lentes de certa potência, mas não constituíam nenhum meio de transporte.

Além disso, Rous não ficou satisfeito com o grau de nitidez da imagem. Calculava que as máquinas vistas através do círculo luminoso, como produtos de uma tecnologia estranha que eram, talvez fossem objetos indecifráveis. Se conseguisse uma imagem mais nítida, talvez poderia reconhecer certas funções das máquinas. Talvez estas fossem as armas que o inimigo usava para lançar seus ataques cruéis contra Mirsal.

Todas as tentativas de obter uma imagem mais nítida resultaram em fracasso. Deviam dar-se por satisfeitos de terem obtido uma imagem, qualquer que fosse ela, por um meio tão estranho.

Depois de ter prosseguido nas observações por algumas horas, Rous desligou o gerador. Dali a meia hora, voltou a ligá-lo e sentiu-se aliviado. Ficou satisfeito ao constatar que o ponto e o círculo luminoso voltaram a surgir no mesmo lugar, e que através do círculo observado o quadro outra vez fazia-se presente.

A imagem podia ser reproduzida; era o que importava.

— Daqui por diante teremos que dispensar o campo defensivo — disse Rous. — Precisamos do gerador para outro fim, mais importante.

 

Na manhã do dia seguinte, bem cedo, apareceu Flaring. Trouxe boas notícias.

— Expus o assunto aos meus superiores — disse, depois de ter cumprimentado os três terranos um por um. — Fico satisfeito em poder anunciar que confiam plenamente nos senhores. Sentimo-nos gratos pela colaboração que nos oferecem e estamos dispostos a facilitar-lhes o trabalho na medida do possível. É bem verdade que gostaríamos de saber se têm algum plano bem objetivo.

— Queremos agarrar esses caras invisíveis — disse Rous com o rosto zangado.

Flaring sorriu.

— As intenções são boas — disse. — Mas será que já estão próximos disto?

— Não — suspirou Rous. — Um momento.

Tirou do bolso o estranho objeto de plástico que no dia anterior havia encontrado na Alameda dos Reis e estendeu-o em direção a Flaring. Explicou onde havia encontrado o objeto e disse:

— Gostaria que isto fosse analisado. Seus químicos devem saber de que é feito, ou melhor, de que deveria ser feito. O que desejo saber é se esta peça de plástico sofreu alguma modificação após o ataque do inimigo.

Flaring segurou cautelosamente o objeto.

— Providenciarei quanto antes. Tem mais alguma ordem?

Rous franziu a testa.

— Não temos nenhuma ordem. Ficaremos muito satisfeitos se pudermos formular alguns pedidos.

Flaring sentiu-se bastante lisonjeado.

— É isso mesmo — prosseguiu Rous antes que Flaring tivesse tempo de dizer qualquer coisa. — Gostaríamos de examinar num mapa as áreas atacadas pelo inimigo. Queremos saber onde ficam.

Flaring levantou a mão direita.

— Muito bem. Arranjarei imediatamente os mapas.

Despediu-se e saiu.

Rous aproveitou o tempo para completar o relatório que deixara de enviar na noite anterior, face às novidades importantes que haviam surgido. Apenas alguns furos a mais foram feitos na chapa de plástico. Depois introduziu-a no microcomunicador. Praticamente no mesmo instante os aparelhos da Drusus, que se encontrava a trinta milhões de quilômetros, captaram o interessante relato.

Mal Rous havia terminado o trabalho, Flaring voltou a aparecer.

— A análise ainda não foi concluída — disse, depois de ter cumprimentado os terranos. — Trouxe os mapas.

Espalhou-os sobre a mesa. O primeiro mostrava toda a província que se estendia de Resaz para Fillinan, e mais algumas centenas de quilômetros de ambos os lados. A área despovoada pelo ataque do inimigo invisível havia sido uma parte assinalada de vermelho e outra em negro.

Rous estacou ao constatar o estranho formato da parte circulada de negro.

— Tem certeza de que as informações desta anotação são corretas?

Flaring levantou a mão.

— Tenho certeza absoluta. Por certo pode imaginar que fazemos tudo para obter informações fidedignas.

— Está certo. O que acha desse formato?

O círculo vermelho descrevia aproximadamente o formato de uma calçadeira que tivesse sido aquecida e esticada o mais possível. Os contornos estranhos apresentavam duas “orelhas” ovais bem abertas no leste e no oeste, e entre as mesmas havia uma parte irregular e mais fina. Na “orelha” oriental havia uma falha elíptica, correspondente a uma área que não fora atingida pela desgraça.

Flaring dobrou o dedo, em sinal de que não tinha nada a dizer.

— Já quebramos a cabeça sobre isso — disse. — De início pensamos que o inimigo estivesse interessado em fazer desaparecer o maior número possível de pessoas. Acontece que justamente neste local — apontou para a falha da parte oriental — fica Kelleyhan, uma cidade de cerca de trezentos mil habitantes. A população de toda a área restante é setenta por cento menor que à de Kelleyhan.

— Quer dizer que a área não é das mais densamente povoadas?

— De forma alguma. A área industrial de Russom, situada ao norte, tem duzentos e cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. E aqui, entre Resaz e Fillinan, existem apenas vinte habitantes por quilômetro quadrado.

Rous passou a examinar o segundo mapa, que mostrava em escala maior os arredores de Fillinan, numa extensão de duzentos quilômetros. Soube então que a desgraça ocorrida no dia anterior não ficara restrita à área urbana de Fillinan, mas se estendia para o norte e o leste, numa extensão de cento e cinqüenta quilômetros. Apenas os subúrbios do lado sudoeste de Fillinan haviam escapado ao desastre. Era bem verdade que esta era a área mais densamente povoada. Assim, um milhão e meio de habitantes haviam dali desaparecido.

Do lado leste e norte da cidade vinha uma série de rios, dos quais o Finnestal era o maior. Em parte, a área era pantanosa. Flaring contou que em séculos passados haviam tentado drená-la. Mas ultimamente tinham desistido desse intento, para transformar a área num gigantesco parque natural. Fora da cidade de Fillinan só viviam umas cem pessoas.

Nesse mapa, a área atacada pelo inimigo apresentava o formato de um retângulo irregular. Havia quatro falhas de tamanho variável, que foram poupadas pelos inimigos.

Rous perguntou como fora possível determinar com tamanha exatidão os limites da área, uma vez que se tratava de regiões pouco povoadas.

— O senhor ainda não soube? — perguntou Flaring em tom de espanto. — Não só os homens desapareceram, mas também os animais. Nas áreas atingidas pelo invisível não existe sequer uma larva de inseto. Toda a vida orgânica desapareceu, com exceção apenas, o que é de estranhar, das plantas.

Rous acenou com a cabeça; parecia pensativo. Lloyd, que se encontrava a seu lado, fitava o mapa.

— Não parece absurdo? — perguntou em voz baixa.

Rous deu de ombros.

— Talvez o inimigo nem esteja interessado em fazer desaparecer muitas pessoas. Quem sabe se seu objetivo não é outro? Por enquanto não sabemos — concluiu.

Naquele momento entrou um ordenança, para informar Flaring de que a análise do pente de plástico que Rous entregara para ser examinado já estava concluída.

— Foi muito rápido — elogiou Rous. — Deixe-me ver.

O ordenança entregou-lhe o relatório da análise. Rous pôs-se a ler. Flaring também leu. Constatou-se que a composição química e a estrutura molecular daquela peça de plástico não sofreram a menor alteração. Nada havia acontecido com o objeto.

— Um momento — pediu Flaring. — Aqui embaixo ainda há uma observação. — Sabe o que vem a ser uma análise etária?

— Sei. Procuraram determinar a idade do objeto. Qual foi o método?

— Qualquer matéria orgânica contém certa quantidade de isótopos radiativos. São isótopos do sexto elemento...

— Do carbono! — interrompeu-o Rous apressadamente.

— Fizeram uma análise do C14 — disse Lloyd em inglês, dirigindo-se a Rosita.

Depois virou-se para Flaring e perguntou:

— Qual foi o resultado?

— Do isótopo mencionado sobra apenas uma pequena fração da concentração primitiva. Em compensação o elemento subseqüente foi aumentado na mesma proporção...

— Um momento! — pediu Rous. — Há quanto tempo este tipo de plástico é fabricado em Mirsal?

Flaring refletiu.

— Há cerca de quarenta anos, acredito.

Rous tornava-se cada vez mais nervoso.

Caminhou de um lado para outro, de cabeça baixa, e murmurou em inglês:

— Numa matéria plástica cristalina a substituição do C14 é praticamente impossível. Acontece que a parte desse isótopo que pode desaparecer dentro de quarenta anos é insignificante. Provavelmente a idade de quarenta anos nem poderia ser determinada por meio desse método. Aquilo que sucedeu com o C14 deve ter acontecido no espaço de tempo durante o qual a “parede” tremeluzente passou pelo objeto.

Parou à frente de Flaring.

— Até aqui tudo entendido — constatou. — Qual foi a idade que se constatou?

Flaring olhou para o bilhete trazido pelo ordenança. Uma expressão de incredulidade surgiu em seu rosto.

— Cerca de vinte mil anos — respondeu com a voz insegura.

Rous ergueu as sobrancelhas.

— Será que os métodos de análise usados neste planeta são fidedignos?

Flaring dobrou o indicador direito.

— Justamente este método foi experimentado numa série de amostras cuja idade exata era conhecida. Não acredito que tenha havido um erro.

Rous virou-se para Rosita e Lloyd.

— Dali se conclui — disse, falando em mirsalês, para que Flaring também o pudesse compreender — que nos instantes em que a “parede” passou pela Alameda dos Reis, vinte mil anos passaram por esta peça de plástico.

 

Era um aspecto surpreendente, mas em última análise não passava de mais um elo da corrente que, no seu todo, significaria a solução do mistério que cercava o inimigo invisível.

Flaring não sabia o que fazer com aquilo.

Pouco entendia das coisas misteriosas que havia no Universo. Sua raça mal começara a conquistar o espaço nas imediações de seu mundo.

Rous esforçou-se para tranqüilizar Flaring. Procurou explicar que a peça de plástico de vinte mil anos poderia perfeitamente ter adquirido essa idade de forma “normal”.

— Nesse caso — objetou Flaring — toda a matéria que se encontrava na área de ataque do inimigo deveria ter envelhecido na mesma proporção.

Rous balançou a mão.

— Não se pode afirmar isto. Por que teria envelhecido na mesma proporção? Não há dúvida de que tudo envelheceu, mas por enquanto nada podemos dizer sobre a proporção do envelhecimento.

— Pois bem — concordou Flaring. — Digamos que a casa na qual nos encontramos tenha envelhecido em mil anos, em vez de vinte mil. Não acha que apesar disso já deveria ter ruído?

— Não senhor! O senhor está confundindo as coisas: o envelhecimento do material, provocado por uma solicitação ininterrupta, com o envelhecimento representado pela simples passagem do tempo. Nos vinte mil anos que se passaram sobre esta peça de plástico, a mesma não esteve submetida a qualquer tipo de solicitação. Pelo que se lê aqui, sua estrutura é exatamente a mesma de antes. E a mesma coisa aconteceu com o outro material. Não se preocupe: os edifícios de Fillinan não vão ruir em série. Mas o senhor me deu uma idéia.

— Que idéia foi essa? — perguntou Flaring.

— Mande seus homens procurarem nas áreas atingidas amostras de peças cuja idade possa ser determinada por meio de uma análise. Preciso do maior número possível de amostras, recolhidas nos pontos mais diversos. Quero registrar neste mapa qual foi o envelhecimento que o ataque produziu em cada ponto. Será que pode começar logo?

Flaring concordou.

 

Alguns dias se passaram sem que em Mirsal se registrasse outro ataque do invisível. Enquanto isso os homens de Flaring recolheram, nas áreas atingidas, peças de plástico, de madeira e de outro material, que foram analisadas imediatamente.

O quarto de Rous transformou-se numa espécie de quartel-general. Depois de catalogadas, todas as informações foram registradas ponto por ponto nos mapas.

Depois de obtidos os resultados de cem análises; Rous percebeu como seria o quadro final. Os pontos correspondentes à mesma idade formavam uma linha paralela ao limite exterior da área de ataque. A idade aumentava, à medida que se avançava de fora para dentro. O conjunto tinha o aspecto de um mapa marítimo em que as profundidades estivessem registradas por meio de linhas. Porém, nas linhas desenhadas por Rous estava anotada uma idade, não uma profundidade. Os objetos recolhidos na periferia da área de ataque praticamente não haviam sofrido qualquer envelhecimento. Já no centro da área o envelhecimento era de muitos séculos. Num ponto situado a oeste de Fillinan, onde fora realizado o primeiro ataque, o enfraquecimento molecular era de 50 mil anos. Na área urbana de Fillinan, alvo do segundo ataque, atingiu a 33 mil anos.

Havia um fato estranho. No centro da área situada a oeste de Fillinan, entre esta cidade e Resaz, havia uma espécie de ilha; a idade das peças recolhidas na mesma foi avaliada em cerca de oitenta a cem mil anos. De início Rous acreditou se tratar de um erro de análise, mas Lloyd acabou achando a solução.

— Está lembrado dos passageiros do ônibus no qual viemos? Na verdade, houve dois ataques nessa área: um de manhã, quando estávamos chegando a Keyloghal, e outro na noite seguinte, quando estávamos viajando naquele ônibus. Dali se conclui que as peças recolhidas passaram por dois processos de envelhecimento. E as respectivas idades se somam. É por isso que os números são tão elevados.

A explicação era plausível. No mapa via-se que o ataque, durante o qual os passageiros do ônibus haviam desaparecido, só se estendera a uma área de menos de três quilômetros quadrados.

Depois que Rous havia desenhado em seus mapas um número de linhas que lhe permitia obter uma visão de conjunto, Flaring foi avisado de que seus homens poderiam suspender o trabalho de coleta.

“Por enquanto não podemos fazer mais nada”, pensou Rous de forma conclusiva.

 

— Será que um dia conseguiremos solucionar o problema? — perguntou Rosita.

Sua voz parecia desanimada.

Haviam terminado o trabalho do dia e feito um ligeiro jantar com conservas mirsalenses. Estavam sentados junto à grande janela do quarto de Rous, que dava para o sul.

A polícia já voltara a colocar em funcionamento uma usina de eletricidade. Havia luz: uma fraca luminosidade cobria os subúrbios do sudoeste da cidade.

Rous, Lloyd e a psicóloga estavam cada qual mergulhado nos próprios pensamentos.

— Conseguiremos — respondeu Rous em tom convicto.

— Por que se sente tão confiante?

— Por ser um terrano — respondeu Rous. — Há sessenta anos vimos lidando com problemas de toda espécie, e nenhum deles deixou de ser resolvido.

Rosita suspirou.

— Bem que gostaria de ter seu otimismo.

— Aguarde o próximo ataque — interveio Lloyd. — Cada vez que o inimigo entra em ação, avançamos um pedaço. Se considerarmos que nos encontramos em Mirsal apenas há dez dias, já sabemos muita coisa.

— Acontece que não temos a mais ligeira idéia de quem seja o inimigo invisível e quais suas intenções — respondeu Rosita. — Sou de opinião de que na verdade aquilo que designamos como ataques nem são ataques. As áreas atingidas, sua conformação, o número de homens e animais desaparecidos, tudo isso foi escolhido ao acaso? Não consigo enxergar uma finalidade definida atrás disso.

Rous refletiu por um instante e disse:

— O senhor se esquece de uma coisa. Se a finalidade do inimigo consiste apenas em espalhar a confusão, ele pode perfeitamente agir ao acaso, como está fazendo.

— Pode ser — disse Rosita. — Mas quem se lançaria num esforço destes apenas para espalhar a confusão?

— Não sabemos. Mas diga-me uma coisa: na sua opinião, de que se trata?

— Não tenho a menor idéia. Apenas acredito não se tratar de ação planejada, mas de uma série de fenômenos casuais.

— Nunca se deve desprezar a intuição feminina. Muitas vezes esta consegue compreender em poucos segundos aquilo que o homem só descobre depois de várias horas de reflexão. Mas acho que neste caso você está enganada. Tenho certeza de que ainda descobriremos a finalidade que o inimigo persegue com sua estranha atuação — concluiu Rous.

Rosita levantou-se.

— Tomara — disse com uma risada. — Mas acho que até lá ainda vamos dormir um pouco. Boa noite.

— Fico pensando — principiou Lloyd de repente — se não poderíamos...

Interrompeu-se no meio da frase.

— O que foi isso?

Rous levantou-se de um salto.

— Alguém gritou. Escute... agora está tudo quieto. Vamos!

Correram para fora e desceram rapidamente pela escada. No primeiro pavimento estavam os policiais de Flaring. Formavam grupos e observavam o comissário que, olhando para o chão, avançava cautelosamente em direção ao fundo do corredor. Lá não havia ninguém.

— Flaring! O que houve? — perguntou Rous.

Flaring ergueu-se e parou.

— Dez dos meus guardas desapareceram — respondeu.

— Desapareceram?

Flaring levantou a mão.

— Isso mesmo. Quando um deles, ao tentar entrar por aquela porta, tornou-se transparente e desapareceu, um outro gritou de susto; acho que o senhor ouviu.

— O que está fazendo por aí?

Flaring dobrou o indicador.

— Quero verificar se ainda existe algum perigo.

— Espere!

Rous passou pelos homens exaltados, que se mantinham em atitude de espera, e penetrou no corredor. Foi até o fim, onde uma ampla escada levava ao térreo, e voltou.

— Já verificou o que há nos quartos? — perguntou, dirigindo-se a Flaring.

— Já.

— Quais são os quartos?

Flaring apontou para três portas no fundo do corredor.

— E do lado esquerdo?

— Ali todos os quartos estavam desocupados.

— O que aconteceu do lado direito?

— Pois é isso — lamentou-se Flaring. — Do lado direito todos os quartos estão ocupados com os escritórios; são quatorze ao todo. Os três primeiros estão totalmente vazios; nos onze restantes não aconteceu nada.

Rous abriu a porta de um dos quartos dos quais os guardas haviam desaparecido. Apenas viu um recinto mobiliado provisoriamente com quatro leitos. Dois deles não haviam sido tocados.

— Os dois estavam de folga. Devem ter desaparecido dentro das camas! — disse o comissário um tanto aturdido.

Antes que Flaring passasse a ocupar o quarto com seu estado-maior, Rous o examinou.

“Provavelmente não era diferente daqueles que ficavam no pavimento superior”, pensou o tenente.

Logo em seguida, Rous teve uma idéia terrível e saiu correndo.

— Lloyd! — gritou. — Vamos ver o que aconteceu com Rosita.

Correram escada acima, passaram pelo corredor e pararam diante da porta do quarto de Rosita. Rous bateu, enquanto Lloyd procurava ouvir o que se passava do lado de dentro.

Não houve resposta. Lloyd sacudiu a cabeça.

— Não está lá dentro — afirmou.

Rous não perdeu mais tempo. A porta não estava trancada. Abriu-a, entrou no quarto e acendeu a luz.

Não encontrou Rosita. Sua cama não havia sido tocada. Rous revistou os quartos contíguos, isto é, o seu e o de Lloyd. Tudo continuava como antes, mas não encontraram o menor sinal de Rosita.

Gritou seu nome com tamanha força que foi ouvido em todo o edifício; Rosita não respondeu. E nenhum dos homens de Flaring a havia visto.

Não havia a menor dúvida: Rosita desaparecera.

O inimigo atacara de novo, e desta vez mais um terrano fora vitimado pelo ataque.

Esse ataque diferia dos outros sob vários aspectos.

A diferença mais marcante foi a da área atingida pelo último ataque. Além de Rosita, só haviam desaparecido mais dez pessoas, cuja ausência foi notada por Flaring, e isso pelo simples motivo de que além do limite entre os quartos quatorze e quinze só havia essas dez pessoas e a psicóloga.

Rous mandou realizar às pressas algumas análises etárias e constatou que a idade dos objetos era cerca de três mil anos superior à que tinham antes do grande ataque a Fillinan.

Dessa forma conseguiram delimitar a área atingida pelo quarto ataque. Tinha o formato de um bloco de cerca de vinte metros de altura, indo do subsolo do edifício ao terceiro pavimento. A extensão e a espessura do bloco, dez metros cada.

Dentro dessa área ficavam os três quartos ocupados pelos policiais, e os de Lloyd e Rosita. Ao saber disso, Lloyd cocou a cabeça e resmungou:

— Ainda bem que naquele momento me encontrava no seu quarto.

Rous não se deu por satisfeito com as pesquisas superficiais já feitas e mandou realizar outras investigações. Sabia que em condições normais um terrano não seria atingido pelos ataques que o inimigo vinha desencadeando em Mirsal II. Afinal, por três vezes haviam escapado a um ataque desses sem que enfrentassem o menor problema.

“Por que será que desta vez Rosita não escapou?”, indagou-se mentalmente.

Uma investigação mais exata trouxe resultados interessantes. O quarto de Rosita ficava aproximadamente no centro do bloco que fora atingido pelo ataque. Constatou-se que na periferia do bloco havia uma única linha etária, correspondente a três mil anos; por isso se chegara à conclusão de que o processo de envelhecimento fora uniforme dentro de todo o bloco.

Acontece que no quarto de Rosita havia muitos objetos que apresentavam idade mais elevada. Ao examinar o encosto de uma cadeira, verificou-se que todo o carbono havia desaparecido da madeira. Mas, como os analistas tivessem certeza de que deveriam encontrar ao menos um décimo-milionésimo da quantidade primitiva de C14, chegou-se à conclusão de que o envelhecimento deveria ser superior a cento e trinta mil anos. Por isso Rous ordenou uma análise do conteúdo de C14, que revelou que o envelhecimento do encosto da cadeira chegava a aproximadamente três milhões de anos.

Rous achou que a solução do enigma estava ali. Evidentemente o grau de envelhecimento verificado dentro dos vários setores da área de ataque dependia da violência com que o mesmo fosse levado a efeito. Nos casos anteriores registrou-se um envelhecimento de até cem mil anos, enquanto no último ataque este atingiu trinta vezes esse valor. Evidentemente essa intensidade seria suficiente para fazer desaparecer até mesmo um terrano.

Dali resultaram novos problemas. Depois do primeiro ataque lançado contra Mirsal II, Rous tinha certeza de que ele e seus companheiros estavam por assim dizer imunes ao desaparecimento. Acreditara que poderiam mover-se sem preocupação e realizar suas investigações mesmo em qualquer lugar onde um mirsalense corresse perigo de desaparecer de um instante para outro.

Agora já não era assim. O inimigo dispunha de reservas energéticas que poderiam representar um perigo até mesmo para um terrano.

Rous sabia o que devia fazer.

— Não podemos esperar mais — disse, dirigindo-se a Lloyd. — Devemos tomar uma iniciativa.

Lloyd concordou.

— Deve estar lembrado — disse — que aludi a uma idéia que tive antes que Miss Peres desaparecesse?

— Não. Que idéia foi essa?

— Calculei que nosso gerador de campo defensivo pode absorver um suprimento energético de até vinte megawatts. Se conseguíssemos fazê-lo funcionar com esse suprimento...

— ...poderíamos eventualmente transformar nosso sistema de lentes num meio de transporte? — concluiu Lloyd, fazendo um gesto afirmativo.

— Vamos tentar — respondeu Rous. — Pediremos a Flaring que coloque à nossa disposição uma de suas usinas energéticas.

Puseram-se a caminho.

Flaring e seus colaboradores logo se mostraram dispostos a atender ao pedido. Mais três usinas de eletricidade da cidade de Fillinan foram reativadas. Marcel Rous teve os vinte megawatts que estava pedindo.

A ligação com o gerador de campo defensivo foi providenciada por Lloyd e ele, que a completaram dentro de poucas horas. Depois estavam preparados para centuplicar a força do pequeno aparelho. Se suas suposições fossem corretas, com isso a potência das lentes do campo defensivo também cresceria cem vezes. Segundo pensava Lloyd, uma lente que tivesse essa potência poderia ser capaz de transportar outra coisa além da luz.

Só Flaring se encontrava presente quando Lloyd e Rous iniciaram a experiência decisiva. Antes explicaram-na a Flaring em ligeiras palavras.

Lloyd sentara diante da mesa em que estava instalado o gerador. Rous estava atrás do círculo luminoso que continuava a desenhar-se aproximadamente no centro do quarto, e olhou através do mesmo.

— Aumente lentamente o desempenho! — ordenou.

Lloyd obedeceu. A corrente fornecida pelos cabos das usinas de eletricidade passou a percorrer o gerador. O ponteiro do medidor que Lloyd intercalara antes do gerador começou a subir.

Mas o quadro que Rous via através do círculo luminoso não se modificou.

— Dê-lhe mais! — ordenou Rous.

Quando Lloyd ultrapassou, o limite do megawatt, o quadro começou a desmanchar-se. Rous pediu que Lloyd parasse e fez um reajuste.

Isso se repetiu várias vezes. O aumento do desempenho também ia modificando a distância focal das duas lentes, motivo por que de quando em quando se tornava necessário um reajuste.

Finalmente toda a energia fornecida pelas usinas passou pelo pequeno gerador. Chegara-se à regulagem final. Lloyd reclinou-se na poltrona e suspirou:

— Pronto! Podemos começar.

Rous dirigiu-se a outra mesa, sobre a qual estavam guardados vários objetos de diversos tamanhos, destinados às experiências. O primeiro deles, e o menor, era um maço de cigarros, igual ao que usara na primeira experiência realizada dias atrás, e que não fora bem sucedida.

Lloyd virou a cabeça e observou o círculo luminoso do lado da janela.

— Atenção! — disse Rous. — Vou começar.

Levantou a mão e jogou o maço de cigarros contra o círculo luminoso, a uma distância de cinqüenta centímetros. Teve a impressão de que o objeto hesitava em penetrar nesse círculo...

Por um instantezinho uma força invisível parecia detê-lo...

Subitamente desapareceu.

Lloyd, que se encontrava do outro lado do círculo luminoso, soltou uma expressão de surpresa.

— A caixa desapareceu! — exclamou.

Rous suspirou aliviado. A experiência fora bem sucedida. Aproximou-se do círculo para ver se conseguia descobrir o maço de cigarros que acabara de desaparecer. Não conseguiu, nem mesmo depois de envolver a cabeça em panos.

Era um mistério. Segundo sua suposição, o maço só deveria estar no lugar onde se podia olhar através do conjunto de lentes formado pelo campo defensivo.

Mas não foi o que aconteceu. O maço de cigarros desaparecera de vez.

— É estranho... — murmurou Rous e tirou um objeto maior de cima da mesa.

Aconteceu a mesma coisa que acontecera com o maço de cigarros: o objeto desapareceu e não se conseguiu mais vê-lo.

— Não estou gostando nem um pouco! — observou Lloyd. — Desse jeito será muito perigoso...

— Um instante. Tenho uma idéia. Dê-me uma ajuda.

Além da cama havia no quarto de Lloyd um tipo de sofá. Tratava-se de uma espécie de leito sem encosto e sem braçadeira. Havia sido construído segundo as medidas dos mirsalenses; mal poderia passar pelo círculo luminoso.

O sofá ofereceu alguma resistência.

— Vamos tomar um impulso! — disse Rous. — Tem de passar.

Com o estofamento para baixo e as pernas para cima, levantaram o sofá. Depois tomaram impulso a partir da parede do quarto. Rous, que segurava a parte da frente da peça, parou um pouco antes do círculo luminoso e deixou que o estofamento deslizasse sobre suas mãos. Lloyd continuava empurrando.

A resistência foi vencida. O sofá passou pelo círculo luminoso e desapareceu antes que Rous percebesse o que estava acontecendo.

Lloyd esfregou as mãos.

— Agora devemos ver alguma coisa — disse.

Rous postou-se diante do círculo luminoso, colocou panos sobre a cabeça e pôs-se a observar. Ao primeiro relance de olhos, teve a impressão de que o quadro continuava inalterado; mas de repente...

— Lloyd, venha cá! — ordenou Rous.

O mutante aproximou-se.

— Cubra a cabeça com panos, de tal maneira que possamos olhar ao mesmo tempo.

Lloyd obedeceu.

— O quadro sofreu alguma alteração? — perguntou Rous.

— Não — respondeu Lloyd decepcionado.

— Olhe com mais atenção.

Lloyd voltou a olhar mais detidamente.

— Não — respondeu. — Não houve a menor modificação.

— Está vendo esses pontinhos pretos?

Lloyd estreitou os olhos.

— Acredita que eles representem alguma coisa? — perguntou. — Sempre acreditei que fossem defeitos da imagem.

— Eu também — disse Rous. — Acontece que surgiu mais um ponto.

Lloyd fitou-o perplexo.

— Como percebeu isso?

— Já havia notado que os pontos que, segundo acreditávamos, eram defeitos da imagem, se acumulam na periferia do quadro; no centro não se vê um único deles. Observe com atenção.

Lloyd olhou atentamente.

— Isso mesmo; agora por lá também existe um ponto. Acredita que seja o sofá?

— Naturalmente. Dificilmente poderia ser outra coisa.

— Mas este pontinho não é maior que um grãozinho de poeira! — exclamou Lloyd perplexo. — Dali se conclui...

— Dali se conclui que cometemos um erro tremendo quanto às dimensões do quadro; apenas isto. As máquinas que vemos ali devem ter o tamanho de um arranha-céu.

Lloyd arregalou os olhos para ele.

— Quer ir para lá?

— Quero; imediatamente.

Atirou fora os panos.

— O risco não é nada desprezível — disse em tom tranqüilo. — Mas acredito que poderá ser reduzido se o gerador permanecer ligado ininterruptamente. Flaring poderá providenciar para que não haja nenhuma oscilação de corrente e, principalmente, nenhuma interrupção. Por enquanto não tenho a menor idéia de como será o mundo do outro lado. Mas é bem possível que qualquer modificação na regulagem do gerador, por menor que seja, torne impossível encontrar o caminho de volta.

— Está bem — disse Lloyd com a voz séria. — Terei o maior cuidado.

Rous dirigiu-se a Flaring.

— Compreendeu tudo? — perguntou.

— No que me diz respeito, compreendi — respondeu Flaring. — Pretende realmente ir para o outro lado?

Rous fez um gesto afirmativo.

— Naturalmente. Não adianta esperar mais, deixando que a iniciativa continue nas mãos do inimigo.

— Boa sorte! — disse Flaring.

Rous examinou o círculo luminoso. A curvatura mais baixa deste ficava cerca de metro e meio acima do solo, a altura exata que permitia a Rous olhá-lo sem maior esforço.

— Não sou nenhum atleta — murmurou Rous. — Preciso de alguma coisa em que possa subir para entrar no círculo.

Lloyd teve uma idéia. Um dos armários que guarneciam o quarto foi colocado de lado e empurrado para junto do círculo luminoso. Rous subiu e foi-se aproximando do círculo.

— Tentarei dar-lhe um sinal, quando estiver do outro lado — disse, dirigindo-se a Lloyd. — Portanto, não se assuste se de repente surgir um raio. Passe-me as armas.

Lloyd entregou-lhe o projetor mental e um pequeno desintegrador. Rous guardou-os e começou a penetrar no círculo.

Flaring mantinha-se de lado, de maneira a enxergar apenas a parte lateral do círculo. A visão que se ofereceu a Lloyd foi fantástica e apavorante. Rous enfiou a cabeça no círculo, mas esta não apareceu do outro lado.

Ao que parecia, Rous não precisou fazer qualquer esforço. Trinta segundos depois, desapareceu.

 

Rous esperara deparar-se com a mesma resistência acontecida durante a penetração do maço de cigarros e do sofá. Mas com ele deu-se exatamente o contrário. Mal enfiou a cabeça no círculo, vendo diante de si não o quadro com que estava familiarizado, mas um confuso tremeluzir, uma força de sucção apoderou-se dele, o arrastou e o deixou cair.

Rous gritou de susto. Não esperava cair em algum lugar, depois de passar pelo círculo.

Abriu os olhos e viu que estava deitado em chão firme. A sensação da queda fora apenas uma peça pregada por seus nervos.

Levantou-se. Seguindo um velho hábito, procurou verificar se a gravitação à qual estava exposto era diferente daquela reinante na Terra ou no planeta Mirsal, mas não constatou qualquer diferença.

Depois examinou os arredores.

O que mais lhe chamou a atenção foi o fato de que não havia um horizonte propriamente dito. O campo de visão era circular, conforme seria de esperar, mas em vez do horizonte havia uma impenetrável escuridão. Rous calculou que dois quilômetros o separavam daquele tal “horizonte”.

O conjunto parecia o trecho de um palco iluminado pelos holofotes. O resto estava mergulhado na escuridão.

Rous olhou para cima. Viu um céu azul-pálido, coberto por nuvens finas e transparentes. Admirou-se, pois notou que as nuvens não se moviam.

O chão do círculo estava pavimentado com grandes placas de pedra de formato irregular. Nenhuma delas tinha menos de trezentos metros quadrados. Nas junções das pedras viam-se faixas escuras, semelhantes aos pontos de solda de material plástico. Rous lembrou-se dos ladrilhos que Rosita acreditara ter visto ao olhar pela primeira vez através do círculo luminoso.

As máquinas, que por ocasião das observações realizadas no quarto de Lloyd assim lhes pareceram, eram um conjunto de construções gigantescas e estranhas. O cálculo de Rous não fora errado; qualquer dessas construções poderia comparar-se tranqüilamente com os maiores edifícios da Terra. Pelos cálculos de Rous, a altura média dos mesmos devia chegar a quinhentos metros.

O mais estranho era o formato das construções que, segundo parecia a Rous, correspondiam ao Finalismo levado às últimas conseqüências.

Viu-se diante de um dos gigantescos edifícios e contemplou a parede cheia de curvaturas, reentrâncias e saliências. Estava convencido de que cada uma dessas curvaturas, reentrâncias e saliências preencheria uma finalidade bem definida.

Não havia janela, a não ser que se quisesse dar esta designação às estranhas aberturas que surgiam, em grande número, nos mais diversos lugares da parede.

O edifício era cinza-escuro. Essa cor lhe dava um aspecto sombrio, que não combinava com o céu de inverno azul-pálido, com suas nuvenzinhas transparentes e imóveis.

Perto do lugar em que saíra, Rous encontrou o maço de cigarros, a lata de conserva e o sofá que foram atirados através do círculo. O sofá continuava na mesma posição em que Lloyd e ele o haviam empurrado: de pernas para cima.

Rous olhou para trás. Procurou localizar o círculo condutor, ou ao menos aquilo que daqui se poderia ver do mesmo.

Por um instante sentiu-se imobilizado pelo pavor: constatou que atrás dele o chão era plano como à sua frente.

Mas logo descobriu o ligeiro tremeluzir que surgia poucos metros atrás dele, pouco acima do solo, estendendo-se numa elipse inclinada até a altura de três metros.

Do lado em que se encontrava o círculo era diferente e — mais importante — era mais difícil de ser encontrado. Rous empurrou o sofá para junto da extremidade inferior da elipse, a fim de encontrá-la o mais depressa possível, assim que isso se tornasse necessário.

Não procurou atravessá-la. O simples fato de sua existência provava que o caminho de volta sempre lhe estaria aberto. Além disso, não tinha tempo a perder.

Procurou localizar os pontos que ele e Lloyd acreditavam resultar de defeitos da imagem e logo os encontrou. Estavam bem adiante, junto ao “horizonte” que de todos os lados fechava o “palco”.

Do lugar em que se encontrava, não pareciam muito mais nítidos que do quarto de Lloyd. Foi caminhando para examiná-los de perto.

Teve a impressão de que o chão por onde caminhava era de uma dureza sem par. Depois de algum tempo seus pés começaram a doer a cada passo dado. Rous parou, abaixou-se e passou a examinar o material de que eram feitas as grandes placas de formato irregular. Abriu um canivete o procurou arranhar a superfície de uma das placas. Teve que reconhecer que o material era mais resistente que a lâmina do canivete, e isso significava alguma coisa...

Uma vez que a caminhada tornou-se muito difícil, levou cerca de uma hora para percorrer um quilômetro e meio que o separavam do mais próximo dos pontos que pretendia examinar. Mas antes de chegar lá notou que o objeto em direção ao qual se deslocava era apenas uma estátua.

A estátua colorida representava um homenzinho moreno que nem sequer chegava à altura do queixo de Rous.

O homenzinho trazia manchas claras no rosto, que pareciam sinais de varíola. Sua roupa estava remendada em vários lugares, e os sapatos pareciam empoeirados. O artista registrara todas essas características.

Rous procurou descobrir de que era feita a estátua. Ao primeiro relance de olhos, teve a impressão de ser genuína: a carne era feita de carne, as roupas de tecido. Mas quando tocou a manta que o homenzinho usava, sentiu ser uma pedra dura e fria, que não conseguiu mover um milímetro sequer.

Rous parou e fitou a estranha figura. Quanto mais refletia, mais se convencia de que o artista desconhecido havia reproduzido um habitante do mundo Mirsal II. Aquele homenzinho não teria chamado a atenção de ninguém em Fillinan ou em qualquer outra cidade mirsalense, se tivesse vida.

Por alguns segundos Rous, suspeitando, pensou de modo esquisito: “Será que os próprios mirsalenses são os inimigos invisíveis? Será que os dois milhões de desaparecidos são apenas os atores de uma grande manobra de camuflagem, que não tem outra finalidade senão nos enganar e, se possível, fazer com que nós nos retirássemos dessa área?”

Rous voltou a arquivar suas suspeitas. Eram suposições verdadeiramente idiotas.

Mirsal II encontrava-se no estágio inicial da Astronáutica. Nem desconfiara da presença dos terranos em Mirsal III, onde o misterioso desaparecimento de gente fora observado pela primeira vez. Até então nenhuma nave mirsalense conseguira aproximar-se de Mirsal III, quanto mais pousar lá. Além disso, era de se supor que por enquanto Mirsal II ainda não sabia da chegada dos três agentes, e mesmo assim os homens começaram a desaparecer enquanto Rous e seus companheiros se aproximavam da aldeia de Keyloghal.

Não; os mirsalenses eram inocentes. Rous não teve outra alternativa senão supor que, só por coincidência, os habitantes desse mundo tinham certa semelhança com os de Mirsal III.

Olhou em torno. O “horizonte” negro, que fora a primeira coisa que notara depois de ter surgido ali, só se encontrava a cerca de quinhentos metros de distância. Interessava-se pelo mesmo. Queria olhá-lo e verificar por que motivo não havia nada para além. Lançou um último olhar para a estátua.

E estacou de susto...

Tinha certeza absoluta de que o homenzinho estava com os olhos bem abertos quando o vira pela primeira vez. Notara a estranha coloração violeta, que também era uma característica da raça principal dos mirsalenses. Agora, na posição em que o homem mantinha os olhos, nem poderia ver-lhe a íris. Parecia que suas pálpebras estavam se fechando de cansaço. Trazia os olhos semicerrados.

Rous parou. Uma terrível suspeita surgiu em sua mente. Olhou atentamente para o homenzinho imóvel. Não podia ver que as pálpebras continuavam a se fechar, porque o “fenômeno” era muito lento. Mas dali a mais quinze minutos, percebeu que os olhos estavam fechados de vez.

Rous sentiu-se tão perplexo que mais algum tempo passou antes que pudesse ter uma idéia nítida da profusão de sugestões confusas que lhe enchiam a mente: aquilo não era uma estátua. O homem estava vivo.

Mas que tipo de vida levava! Todos os movimentos do corpo pareciam ser mil vezes mais lentos que o normal. Rous não percebera nele o menor sinal de respiração; mas era impossível que o homem não respirasse, já que era capaz de mover as pálpebras.

Rous pensou, calculando rapidamente: “Quanto tempo demora uma piscada de olhos? Com toda certeza menos de um décimo de segundo. Admitamos que sejam cinco centésimos de segundo. Ainda admitamos que o ato de abaixar as pálpebras corresponda a metade de uma piscadela. Seria um fenômeno que normalmente durava 0,025 segundos. E aqui o homem levara 30 minutos para completar o movimento.”

Dali resultava um fator de conversão de 72.000. Em outras palavras, as atividades biológicas do homem que Rous julgara uma estátua eram setenta e duas mil vezes mais lentas que as desenvolvidas em condições normais, isso se suas suposições fossem corretas e não tivesse sido vítima de uma ilusão dos sentidos.

Não era de admirar que não se percebesse nenhum outro movimento. Era bem possível que naquele momento o homem estivesse prestes a virar a cabeça ou levantar a perna para andar. Mas um movimento que para Rous duraria um segundo, para ele demoraria vinte horas e seria tão lento que não poderia ser percebido.

Havia outro detalhe. O homem não poderia notar a presença de Rous. Quando muito, para ele, o tenente era uma sombra fugaz, que se movia de um lado para outro com a velocidade de um projétil de fuzil e nem poderia ser nitidamente percebido com o olhar.

Rous refletiu sobre se poderia fazer alguma coisa pelo infeliz. Talvez pudesse carregá-lo até o sofá e levá-lo de volta a Mirsal através da elipse tremeluzente. Já não havia a menor dúvida de que Rous tinha diante de si um dos dois milhões de seres que, nos últimos quinze dias, haviam desaparecido.

Rous desistiu de seu intento. Ainda não pretendia voltar. Queria examinar o “horizonte” e verificar o que havia atrás do mesmo. Quando voltasse, poderia levar esse homem, ou qualquer outro, pois todos eles estavam na mesma situação infeliz.

Correu. De tão nervoso que estava, esqueceu-se de que o chão era muito duro. A dor que sentiu nos pés lembrou-o disso. O fato lhe trouxe à mente mais uma idéia: a aparente dureza do material, que até então sentira, era apenas mais uma conseqüência da modificação da dimensão temporal. Qualquer porção de matéria, como por exemplo a manta que o infeliz mirsalense estava usando, levava um tempo infinito para ceder à pressão do dedo de Rous. Esse tempo sofria um aumento de mais de setenta mil vezes. O dedo de Rous só agia sobre o material por um período infinitamente menor.

O material não tinha tempo para ceder ou desviar-se, e Rous teve a impressão de ter tocado numa coisa extremamente dura.

A mesma coisa acontecia com o chão em que pisava. Provavelmente o material de que era feito não passava de um plástico igual a qualquer outro. Mas na dimensão temporal deste mundo mais lento, o pé de Rous tocava esse material com a velocidade de um foguete interestelar. E todos sabem que para alguém que cai numa piscina de grande altura — ou seja, com uma velocidade elevada — até mesmo a água mole transforma-se numa massa extremamente dura.

Rous dominou a dor e, dez minutos depois, venceu os quinhentos metros que ainda o separavam do “horizonte”.

A parede, que dava forma ao “horizonte”, não era feita de matéria, mas apesar disso tinha a impenetrabilidade de um campo defensivo potentíssimo. A mão de Rous tocou em alguma coisa que ele não pôde ver e foi detida. Rous aumentou a pressão, mas o obstáculo escuro não cedeu.

Chegara ao fim do mundo!

Enquanto ainda refletia sobre o caminho que devia tomar, Rous notou alguma coisa que talvez poderia proporcionar a explicação do estranho fenômeno.

O conjunto de lentes do campo defensivo só conseguia abranger uma pequena seção desse mundo. Por mais que se girasse e deslocasse o gerador, a imagem permanecia a mesma. O conjunto de lentes só possibilitava o acesso a este mundo por uma área extremamente limitada, que era precisamente aquela que podia ser vista pelas duas lentes.

“É uma conclusão lógica”, pensou Rous. Face a isso, o “horizonte” escuro e curvo não era uma propriedade daquele mundo. Apenas resultava dos limites postos ao alcance das lentes. O “horizonte” não existia neste mundo; fora colocado naquele lugar pelas lentes. Rous tinha certeza de que um habitante deste mundo, que aparecesse por acaso, nem o perceberia.

Voltou. Passou por várias “figuras” que pareciam estátuas e resolveu levar aquelas que se encontrassem mais próximas do sofá e do ponto de saída reluzente. O caminho era longo e, nas estranhas condições que reinavam aqui, tornava-se bastante penoso.

Pelo que Rous pôde ver, todas as pessoas que se achavam por ali eram mirsalenses. Nenhuma das figuras media mais de metro e meio; e o número de homens, mulheres e crianças, era aproximadamente igual.

Por fim, Rous aproximou-se da parede dos fundos do edifício junto ao qual surgira horas antes. Viu pouco acima do solo uma das estranhas aberturas, e refletiu sobre se devia entrar no edifício.

Já estava quase decidido, quando ouviu um estranho ruído.

De início parecia um zumbido fraco, que durante um minuto conservou a mesma força, para aumentar lentamente depois. Após cinco minutos atingiu uma força que fez os ouvidos de Rous doerem. Depois decresceu com uma lentidão incrível. Quando Rous tirou as mãos de cima dos ouvidos, vinte minutos se haviam passado desde que ouvira o ruído pela primeira vez. Alguma coisa, vinda não se sabe de onde, continuava a retumbar e a zumbir por aquele estranho mundo.

Rous não conseguiu identificar o ruído. E não se interessou por isso. Mas sentiu o perigo que estava ligado ao mesmo. Não sabia por quê, mas teve a idéia de que não deveria esperar mais. Uma ameaça se aproximava. A visita ao edifício teria de ficar para outra oportunidade.

Correu o mais rápido que seus pés doloridos lhe permitiam. Dobrou à esquerda e contornou o gigantesco edifício, para chegar o quanto antes ao lugar em que poderia regressar para Mirsal.

Enquanto se desviava dos obstáculos representados pelas ramificações, pelos anexos e pelas saliências do edifício, viu um vulto imóvel na sombra de dois objetos em formato de flecha.

Esteve a ponto de prosseguir na sua corrida, pois pensava se tratar de mais um mirsalense seqüestrado que levava sua vida lenta na penumbra. Mas notou que esse vulto era maior que os que havia observado até então. Virou-se e entrou entre as duas colunas.

Seus olhos estavam ofuscados pela claridade reinante sob o céu azul-pálido. Por enquanto só viu que o vulto diante de si era uns vinte centímetros mais alto que os demais. Depois descobriu que, ao contrário dos mirsalenses, tinha cabelo negro e longo. Depois os olhos se acostumaram à escuridão e viu que se tratava de Rosita Peres.

Rous dominou a surpresa com a determinação de um homem que sabe que uma ameaça estranha e mortal está no seu encalço. Procurou fazer Rosita passar entre as duas colunas, mas só o conseguiu depois de deixá-la cair para a frente, segurar sua cintura e carregá-la como um pedaço de pau.

Rosita não demonstrou a menor reação, pois estava submetida ao mesmo aumento da dimensão temporal que os demais mirsalenses. Não dobrou o corpo, como faria qualquer pessoa que estivesse sendo transportada por essa forma. Continuou dura como se fosse de pedra, facilitando o trabalho de Rous.

Rous apressou-se, mas era claro que agora avançava mais devagar que antes. O sofá, que lhe servia de orientação, ficava a duzentos metros. Mas com a carga que o tenente agora transportava, esses duzentos metros se transformavam numa eternidade.

Levou um susto tremendo quando junto ao sofá um vulto surgiu do nada e, ao contrário da lentidão reinante neste mundo, agitava os braços e emitia sons estridentes, que Rous não compreendia.

Rous parou, mas o vulto foi se aproximando. Sentiu-se aliviado ao notar que era Fellmer Lloyd. Seus gritos tornavam-se inteligíveis quando se aproximou.

— Venha depressa! O perigo está chegando.

— Ajude-me! — gritou Rous. — Encontrei Rosita.

Lloyd chegou ao lugar onde se encontrava Rous. De tão preocupado que andava, ainda não se dera ao trabalho de olhar em torno.

Agora, já sabendo que Rous estava em segurança, olhou para os lados. Rous notou que o mutante levou um susto.

— Meu Deus! — murmurou. — Que coisa estranha...

— Ajude! — interrompeu Rous com a voz impaciente. — Não temos tempo para ficar admirados.

Como carregassem em dois, o transporte de Rosita tornou-se muito mais fácil.

Dali a poucos minutos, chegaram ao sofá e à elipse inclinada e tremeluzente que ficava junto ao mesmo.

— Quem está do outro lado? — perguntou Rous. — É Flaring?

Lloyd fez um gesto afirmativo.

— Pedi-lhe que ficasse de vigia — respondeu.

— Venha. Vamos levar Rosita em primeiro lugar.

A operação não foi nada difícil. A psicóloga continuava dura como uma tábua. Empurraram-na para dentro da elipse reluzente e a viram desaparecer.

Depois Lloyd penetrou na elipse. Muito nervoso, Rous ficou impressionado ao ver as pernas de Lloyd desaparecerem aos poucos e a invisibilidade ir tomando conta de seu corpo. Dali a mais um instante, Lloyd havia desaparecido de todo.

Rous seguiu-o imediatamente. Desta vez não sentiu nada: nem a resistência quando da penetração inicial, nem a sucção que logo depois surgira. Subiu pela elipse e depois de um ligeiro susto viu-se sobre o armário que havia sido empurrado para junto do círculo luminoso.

Rosita já despertara de sua imobilidade. Reconheceu Flaring e perguntou-lhe, muito espantada, o que havia acontecido. A única coisa que Flaring pôde fazer foi dobrar o indicador. Não sabia de nada.

Depois fez algumas perguntas a Lloyd e Rous. Porém estes repeliram-nas com um gesto.

— Lloyd, você não tinha dito que existe uma ameaça?

O mutante apontou para o círculo luminoso.

— Olhe — disse.

Rous fitou o círculo. Mesmo sem usar os panos, viu que o campo de visão aumentara. Os limites do campo permaneciam inalterados: continuava a ver as mesmas coisas de antes. Apenas, a imagem se tornara maior. O sofá, por exemplo, já não era um ponto difícil de ser identificado, mas transformara-se num traço muito largo. Os gigantescos edifícios apresentavam-se maiores e ninguém mais acreditaria que as manchas escuras que representavam os mirsalenses imobilizados fossem simples defeitos de imagem.

— Aproximou-se, não é? — indagou Rous.

— Sim — confirmou Lloyd. — Houve um salto enorme e, de repente, os objetos se apresentaram com o tamanho aumentado.

— E daí o senhor conclui que existe algum perigo?

Lloyd ergueu os ombros.

— É preferível sermos cautelosos — respondeu. — Não acredito mais que os movimentos repentinos da imagem tenham sua causa nas oscilações do gerador. É possível que realmente alguma coisa se aproxime de nós. Pelo que vimos até agora, devemos fazer o possível para que este mundo estranho fique bem longe.

Rous lhe deu razão.

— Provavelmente haverá outro ataque — disse, dirigindo-se a Flaring. — O senhor será informado quando o pânico surgir em algum lugar?

— Naturalmente — respondeu Flaring.

— Todos os canais de comunicação vão ter a este hotel.

— Será que alguém poderia fazer o favor de explicar... — começou Rosita.

Rous repeliu-a com um gesto.

— Agora não, minha filha. Lloyd, prossiga nas suas observações e avise quando a imagem se aproximar. Transmitirei uma mensagem à Drusus.

Lloyd fez que sim. Ajeitou os panos por cima da cabeça e colocou-se à frente do círculo luminoso. Rous arranjou uma placa-matriz do hipercomunicador, na qual pudesse redigir a mensagem destinada a Rhodan.

Mal começara o trabalho, a porta abriu-se violentamente. Um dos ordenanças de Flaring entrou.

— Houve um ataque, comissário! A estação telegráfica de Fregnaat deixou de transmitir.

Rous levantou a cabeça.

— Onde fica Fregnaat? — perguntou.

— Na direção sudoeste — respondeu Flaring apressadamente.

— Seus postos ficam bem próximos um do outro para que se possa verificar em que direção se desenvolve o ataque?

— Ficam. Temos uma estação telegráfica a cada quinze quilômetros, em média, isso numa série de linhas que irradiam a partir de Fillinan.

— Muito bem. Mantenha-se sempre a par.

O ordenança retirou-se depressa. Dois minutos depois, voltou.

— O ataque prossegue em direção a Fillinan! — disse. — Mais duas estações foram silenciadas. Além disso...

— Além disso o quê? — perguntou Flaring.

— Além disso as estações que ficam em torno de Kovan também estão falhando. E essa frente também se desloca na direção de Fillinan.

Flaring lançou um olhar perplexo para Rous.

— O que vamos fazer? — disse em tom queixoso.

Rous mentalmente fez seus cálculos.

“As estações de Flaring ficam a uma distância de cerca de quinze quilômetros. Em cinco minutos, no máximo, duas estações foram silenciadas, numa ação que procedia de Fregnaat. Isso corresponde a uma velocidade de cerca de duzentos e quarenta quilômetros por hora...”

O tenente dirigiu-se ao ordenança.

— Procure averiguar a largura da frente de avanço. E verifique também se ela mantém uma velocidade constante. A que distância fica Kovan?

— Quinze mil quilômetros.

— Muito bem. Avise assim que haja qualquer novidade.

O ordenança retirou-se. Rous lançou um olhar sério para Flaring e disse:

— O senhor tem uma tarefa muito difícil pela frente. Teremos de evacuar cem mil pessoas da área ameaçada. Para isso dispomos apenas de três horas. O senhor acha que seria capaz de preparar cem mil pessoas para a evacuação sem que haja um pânico entre o resto da população?

Flaring parecia surpreso.

— Pretende... pretende evacuar cem mil homens...

Rous interrompeu-o com um gesto.

— É isso mesmo que pretendemos fazer. Por ora não se preocupe com isso. Acha que conseguirá reunir as cem mil pessoas?

Flaring levantou a mão.

— Muito bem; pode começar. Dentro de uma hora, no máximo, poderemos dar início ao embarque.

— Ao embarque? — murmurou Flaring sem compreender nada. — O senhor dispõe de navios?

Rous empurrou-o pela porta.

— Não faça perguntas — disse. — É preferível agir. Não temos tempo a perder.

Flaring saiu correndo. Rous dirigiu-se a Lloyd e ordenou:

— Pare com isso e venha para cá. Temos coisa mais importante a fazer. Pegue o microcomunicador e transmita o S.O.S. à Drusus e à Arc-Koor, ordenou Rous. — Peça que ambas as naves pousem imediatamente. Transmita uma indicação exata da posição de Fillinan. O tempo é escasso.

 

Perry Rhodan começava a agir...

Poucos minutos depois de ter recebido o pedido de socorro de Rous, as duas naves gigantescas já se haviam posto em movimento. Os trinta milhões de quilômetros que as separavam de Mirsal II foram percorridos em menos de trinta minutos. É bem verdade que o pouso consumiu outros trinta minutos. Dessa forma, passou-se uma hora entre a expedição da mensagem de S.O.S. e o pouso das gigantescas naves espaciais nas proximidades da cidade de Fillinan.

Nesse meio tempo Rous havia transmitido outras informações. Tornava-se necessário envolver os subúrbios do sudoeste de Fillinan com um potente campo defensivo. Rous pretendia repetir a manobra por meio da qual os três haviam salvo há poucos dias o mirsalense na Alameda dos Reis. Era certo que os geradores das duas naves tinham potência suficiente para envolver uma cidade inteira num campo defensivo. Esta ação se tornava necessária caso, conforme pretendia Rous, devesse ser salvo um número de pessoas que pudesse ser abrigado nos dois gigantes espaciais.

Rous e seus companheiros encontravam-se no local quando a Drusus pousou nas imediações da cidade. Trouxera todo o material que havia coletado. Ordenara à polícia que bloqueasse a área de pouso, a fim de que o embarque pudesse ser realizado rapidamente.

Avaliara mal a mentalidade dos mirsalenses. Aqueles homenzinhos, que por sua própria natureza não eram muito valentes e ainda se sentiam mais amedrontados pelos ataques dos invisíveis, nem pensaram em contemplar as gigantescas naves. Saíram correndo, tomados de pavor, e com eles correram os policiais que haviam sido postados ali para manter livre a área de pouso. Rous entrou em contato com Rhodan. Este concordou com o procedimento sugerido por aquele e aprovou o plano que previa a salvação do maior número possível de habitantes da cidade. Talamon, comandante da nave Arc-Koor, que havia pousado ao sul da cidade, recebeu instruções para ativar os geradores de campos defensivos de sua nave com a potência máxima, dando um formato tal ao campo, para que cerca de metade dos subúrbios do lado sudoeste fosse abrangida.

A Drusus fez a mesma coisa. Meia hora após o pouso das duas naves, toda a área habitada de Fillinan se encontrava sob uma abóbada energética impenetrável que, segundo esperava Rous, teria potência suficiente para deter o ataque do inimigo.

Na sala de rádio da Drusus foram captados os sinais transmitidos pelas estações telegráficas de Flaring. Ficaram sabendo que, vindo de Fregnaat, a frente de ataque inimiga tinha uma largura de duzentos e cinqüenta quilômetros até quatrocentos quilômetros, e a vinda de Kovan alcançava seiscentos quilômetros.

Se a velocidade de deslocamento das duas frentes não sofresse um aumento considerável, haveria esperança de concluir as manobras de embarque antes que o ataque atingisse a cidade.

Uma hora após o pouso, Flaring apareceu com o primeiro grupo de mirsalenses. O grupo era formado por quinze mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças. O comissário informou que havia nomeado um representante que estava levando outro grupo à Arc-Koor. Pelo que declarou Flaring, mais setenta mil mirsalenses aguardavam nas ruas da cidade o momento de serem embarcados.

Nos arrabaldes voltou a reinar a calma, depois que o pânico provocado pelo surgimento das duas naves-gigante se amortecera.

O embarque prosseguia regularmente; sob a direção de Flaring, que contava com o apoio de seu representante e dos oficiais das duas naves que possuíam senso de organização. Enquanto isso, Rhodan dispendia algum tempo em ouvir um relato minucioso oferecido pelos três agentes colocados em Mirsal II.

 

— Acabo de explicar os fatos que vivemos e presenciamos. Agora, gostaria de dar minha opinião pessoal a este respeito — disse Marcel Rous, concluindo sua exposição.

Rhodan concordou com um sorriso.

— Vamos logo! — pediu a Rous. — Estou curioso.

O tenente principiou:

— O inimigo que enfrentamos, seja lá quem for, ataca a partir de outra dimensão. Não vive em nosso Universo espaço-temporal.

“Em segundo lugar, os ataques que desfechou em Mirsal II não são tão perigosos para os terranos como para os nativos do planeta. Isso dá o que pensar. Poder-se-ia, por exemplo, definir uma estrutura peculiar, para cada ponto da Galáxia, e admitir que os pontos mais expostos ao ataque do inimigo são aqueles cuja estrutura mais se assemelha à que prevalece para este. Se continuarmos fiéis a esta imagem, poderemos concluir que a estrutura peculiar dos terranos difere tanto da dos mirsalenses, que nós só somos atingidos por ataques desfechados com uma violência extraordinária. Este fato pode ser comprovado, por exemplo, com o acontecido a Miss Peres.

“Em terceiro lugar, os objetos sem vida sofreram um processo de envelhecimento durante o ataque. Exatamente o contrário acontece com as pessoas que desaparecem no momento das operações. Já ouviu o relato de Miss Peres. Pelos nossos cálculos ficou vários dias no mundo do inimigo, mas ela mesma teve a impressão de só ter estado fora uns quatro ou cinco segundos, apenas o suficiente para olhar em torno de si.

“É desse efeito, ou seja, da aceleração do tempo para os objetos sem vida e seu retardamento para os seres vivos, que decorre provavelmente o fato de que homens e animais desaparecem, enquanto os objetos sem vida permanecem no mesmo lugar. Quando, conforme já relatei, tentei atravessar o conjunto de lentes, passei pela mesma experiência. Esperava sentir idêntica resistência surgida no instante da penetração do maço de cigarros, da lata de conserva e do sofá. Acontece que o efeito foi exatamente o contrário.

“Em vez de uma resistência, houve uma espécie de sucção. Para criar uma imagem plausível, poderíamos estabelecer comparação com um sistema de cargas positivas e negativas. Se admitirmos que homens e animais possuem uma carga positiva e os objetos inanimados uma carga negativa, poderemos imaginar que, ao lançar-se ao ataque, o inimigo não faz outra coisa senão empurrar uma placa com carga negativa pelo terreno. Todos os objetos de carga positiva serão atraídos e desaparecerão, enquanto os dotados de carga negativa serão repelidos. Peço-lhe que não...”

— Que não interprete esta imagem em sentido literal — completou Rhodan com um gesto de assentimento. — Está bem. Posso imaginar perfeitamente que na verdade ninguém “empurra uma placa” pelo solo. Prossiga, tenente Rous.

— Não sabemos qual é o papel que as plantas, também dotadas de vida orgânica, desempenham no processo. De qualquer maneira, não são atingidas pelos ataques.

“Em quarto e último lugar: a única coisa que podemos fazer é criar lentes formadas por campos defensivos e introduzir algumas pessoas no mundo do inimigo. Já sabemos que o campo de ação aberto pelas lentes é limitado. Não podemos atravessar os “horizontes”. Enquanto isso o inimigo evidentemente não sofre nenhuma limitação em seu mundo. Nós...”

— Um momento. Das suas observações não se deduz que um dos nossos homens que penetre pelas lentes de campo defensivo conserva sua dimensão temporal? Em outras palavras, essa pessoa não se movimenta setenta e duas mil vezes mais depressa que o inimigo?

— Era exatamente o que eu pretendia dizer — respondeu Rous em tom animado. — Seremos muito mais rápidos que o inimigo. Durante o tempo que ele gasta para respirar uma única vez poderemos libertar todos os prisioneiros... mais precisamente, apenas aqueles que se encontrarem dentro de nosso raio de ação.

— Os prisioneiros ficam submetidos à dimensão temporal do mundo inimigo, não é?

— Isso mesmo. É como já disse: Miss Peres teve a impressão de só ter passado uns quatro ou cinco segundos por lá. Só quem penetra através do conjunto de lentes goza da vantagem da rapidez. Por assim dizer, carrega sua própria dimensão temporal. Portanto, poderemos realizar investigações e libertar alguns prisioneiros; só isso. Dentro do círculo no qual pude mover-me, devia haver cerca de cem prisioneiros. Acontece que só de Mirsal II desapareceram mais de milhões de pessoas nestes últimos dias. A esse número devemos acrescentar todos os habitantes de Mirsal III. Não os vi em parte alguma. Provavelmente se encontravam atrás do “horizonte”.

— Não se preocupe por causa da superioridade do inimigo. Já nos vimos várias vezes em situações de que parecia não haver qualquer saída. O simples fato de ainda existirmos prova que encontramos um certo tipo de saída.

“Não se esqueça de que somos homens do planeta Terra, Rous. Não tenho a menor dúvida de que solucionaremos também este problema, sem que isso nos custe o pescoço.

“Obrigado.”

 

Trinta minutos depois dessa palestra a sala de rádio constatou que as duas frentes de ataque do inimigo, vindas do sudoeste e do norte, haviam aumentado a velocidade.

Dos cem mil mirsalenses que Flaring havia preparado para a evacuação, cinqüenta mil já tinham sido embarcados.

Os mirsalenses mantinham-se calmos. Estavam amedrontados com o tamanho das naves e tinham medo do que lhes aconteceria caso não se movessem com suficiente rapidez.

 

Pouco antes das dezessete horas, tempo de bordo, as duas frentes de ataque atingiram a cidade. Naquele momento, Rhodan encontrava-se na sala de comando da Drusus. Os aparelhos registraram a súbita solicitação dos campos defensivos, provocada pelo impacto sofrido pelos mesmos. Dali a poucos segundos, ouviu-se a voz nervosa e amedrontada de Talamon pelo telecomunicador:

— Os geradores queimarão se não decolarmos imediatamente.

Rhodan viu-lhe o rosto dominado pelo pânico na pequena tela do telecomunicador.

— Os campos agüentarão — respondeu com a voz fria. — Aquilo que acabamos de ver acontece duas vezes por hora quando nos encontramos no espaço. Controle seus nervos e cuide para que o embarque se processe em ordem. A hora da decolagem será determinada por mim.

O rosto amedrontado de Talamon desapareceu. Rhodan voltou a dedicar sua atenção aos instrumentos de registro.

Constantemente chegavam informações sobre o prosseguimento da evacuação. A Drusus estava inteiramente lotada; mas na Arc-Koor ainda havia lugar para muita gente.

Rhodan suspirou aliviado.

Dali a alguns minutos, os campos atingidos sofreram outro impacto, muito mais violento que o primeiro. Por alguns segundos os geradores quase falharam sob a violência do ataque.

Mas aqueles segundos se passaram e o que ficou para trás foi somente o medo de Talamon, que neste meio tempo já se transformara em histeria.

— Leve os homens para bordo! — gritou Rhodan em tom grosseiro. — E aguarde minhas ordens para decolar. Não acredito que o Grande Império tenha enviado um calhambeque, cujos campos defensivos falhem ao primeiro susto.

A ironia indisfarçada produziu seus efeitos. Dali em diante Talamon ficou quieto.

 

Rous, Rosita e Lloyd, que dominavam a língua dos mirsalenses, ajudaram Flaring nas operações de embarque. Pouco depois que o segundo ataque fizera os geradores trabalhar ao máximo de sua capacidade, levaram para bordo da Drusus o que restava dos sessenta mil mirsalenses que deveriam ser abrigados na mesma.

— Pronto; isso está liquidado — murmurou Flaring.

— Ainda bem; entre — pediu Rous. — Acho que partiremos a qualquer momento.

Flaring fitou-o com uma expressão de espanto.

— Eu? — sacudiu a cabeça. — Prefiro ficar aqui. Meu lugar é junto àquela gente que está esperando seu fim.

Rous assustou-se.

— Não seja idiota, Flaring. O senhor não pode fazer nada por eles. Assim que tudo tenha passado, voltaremos. O senhor ainda terá muita coisa a fazer.

Flaring levantou o braço e baixou-o lentamente, num gesto de negação.

— Não; ficarei — respondeu. — Talvez ainda estejamos vivos quando o ataque terminar; talvez não...

Rous viu que estava falando sério e sentiu que quaisquer palavras que visassem demovê-lo dessa resolução seriam inúteis. Apesar disso insistiu:

— Da segunda vez que nos encontramos eu lhe disse que o senhor é um homem honesto, Flaring. Garanto-lhe que não nos esqueceremos de Mirsal. Voltaremos com armas melhores. E então...

Nesse instante, a voz de Rhodan saiu da comporta de carga, que se encontrava aberta:

— Todos os tripulantes a bordo. Decolagem de urgência, dentro de quatro minutos. Todos os tripulantes a bordo.

Rous estremeceu. Se Rhodan marcava uma decolagem para dentro de quatro minutos, a situação devia ser mais que crítica.

A rampa começou a deslocar-se em direção ao corpo da nave. Rous, que se encontrava junto a Flaring e próximo da mesma, saltou.

— Venha conosco! — gritou para Flaring.

Mas Flaring voltou a baixar o braço. Fez uma mesura para cada um dos três agentes, voltou-se e, andando de cabeça erguida, dirigiu-se para a cidade.

Era um homenzinho valente que caminhava para a destruição.

 

O terceiro ataque provocara uma pane em um dos geradores da Drusus e em três da Arc-Koor. Rhodan sabia que não poderia perder nem um segundo. O quarto ataque representaria a destruição das duas naves.

Exatamente quatro minutos depois do primeiro aviso, os dois gigantes dispararam para o céu, neutralizando, por meio dos campos antigravitacionais, a pressão resultante da aceleração.

As duas naves ainda se destacavam perfeitamente contra o céu azul quando as duas frentes de ataque, que já não eram detidas por qualquer campo defensivo, irromperam sobre a cidade. Dentro de poucos segundos, um milhão e meio de mirsalenses desapareceram. Ou, mais precisamente, um milhão e meio menos cem mil.

Entre os desaparecidos estava certo comissário de polícia chamado Flaring. Não sentiu a desgraça que se abateu sobre ele. Viu um ligeiro tremeluzir branco-acinzentado, e ressurgiu num mundo que nunca havia visto.

 

As duas hipernaves saíram sem qualquer incidente de Mirsal II e avançaram rapidamente até a altura do quarto planeta do sistema de Mirsal. Durante o vôo, a sala de rádio da Drusus constatou que os sinais emitidos pela Gazela, que havia levado Rous e seus companheiros para Mirsal II, se tornavam cada vez mais débeis. Depois de meia hora, cessaram por completo.

O plano de Rhodan falhara.

O inimigo levara a Gazela. Mas os sinais de rádio emitidos no espaço em que a mesma se encontrava não atingiam a Drusus. A nave de reconhecimento estava perdida, tal qual o Girino que tempos atrás pousara em Mirsal III.

 

Rhodan já tomara sua decisão antes de pousar em Mirsal II. Uma vez concluída essa tarefa, iria a Árcon e teria um encontro com o computador-regente, a fim de discutir as questões que ainda permaneciam em aberto.

O dispositivo positrônico da Drusus confirmou que isso não representaria qualquer risco para Rhodan. O regente via-se diante de um perigo que não conseguiria dominar sem auxílio de Perry. Era o perigo representado pelo inimigo invisível, para o qual, segundo parecia, era fácil despovoar um planeta dentro de poucas horas. O computador precisava de um aliado. O cérebro positrônico acreditava que, como praticamente não dispusesse de quaisquer informações sobre a Terra, esse aliado só poderia ser Rhodan.

O computador era ininfluenciável e objetivo. Não seria tomado por problemas psicológicos caso confessasse a Rhodan ter alguns trunfos suficientes que colocasse fora de ação o inimigo invisível. Porém ele não os tinha...

Rhodan sabia disso. Pretendia extrair da situação atual algumas vantagens para a Terra. O computador-regente estaria disposto a fazer concessões ao aliado. Perry pretendia fazer com que essas concessões, por sua própria natureza, protegessem a Terra para além da guerra com os invisíveis.

Enquanto as duas naves saíam do sistema de Mirsal, Rhodan explicou a Talamon, comandante da Arc-Koor, que pretendia dirigir-se a Árcon. O superpesado, que se sentia ainda um tanto temeroso depois dos sustos sofridos em Mirsal II, não fez o menor comentário. Mas seu rosto revelava que a decisão de Rhodan o surpreendia, e que estava convencido de que o computador-regente não acederia ao pedido de Rhodan, que pretendia o acesso ao coração do Império dos Arcônidas.

Acontece que Talamon estava cometendo um engano; não conhecia os detalhes da situação.

A mensagem de telecomunicação que Rhodan enviou ao regente foi simplesmente esta:

 

Colhi informações valiosas sobre o inimigo invisível. Indispensável conferenciarmos sobre os passos que se seguirão e interpretarmos indicações já obtidas. Drusus e Arc-Koor estão a caminho de Árcon. Solicitamos permissão de entrada e designação de audiência.

Com a velocidade peculiar as máquinas positrônicas o regente refletiu sobre as vantagens e desvantagens da proposta de Rhodan. Dentro de dois milésimos de segundo preparou sua resposta.

O teor foi o seguinte:

 

Concordo. Pouse com ambas as naves. Estarei à sua disposição assim que chegar.

 

É bem verdade que a rápida concordância foi uma surpresa até mesmo para Perry Rhodan.

Começou a desconfiar. A rapidez da resposta permitia duas conclusões diferentes. O regente de Árcon realmente poderia estar numa situação gravíssima face à atuação do inimigo invisível; ou então estaria realizando um jogo falso, a fim de dominar o mais poderoso dos seus concorrentes.

A Drusus foi colocada em estado de alarma antes que entrasse em transição, quando se encontrava a apenas cem unidades astronômicas de Mirsal. Rhodan avisou a Arc-Koor de que acabara de receber permissão de ingresso em Árcon.

 

Perry mandou que a Drusus se aproximasse o mais possível — ou seja, pouco mais de quinhentos metros do envoltório da outra nave — e fez com que as duas naves se aproximassem nessa formação do anel exterior de fortificações. Rhodan teve a impressão de que, se o regente pretendesse capturá-lo, desistiria de seu intento assim que percebesse que teria de perder a mais potente de suas naves. A Arc-Koor seria o penhor da segurança pessoal de Rhodan.

O primeiro anel de fortificações foi atravessado sem o menor incidente. Mantendo sempre a menor distância possível, as duas naves avançaram velozmente em direção ao centro do sistema.

Árcon estava situado no grupo estelar M-13 e era formado por três planetas que gravitavam em torno da estrela central numa órbita idêntica. Essa disposição fora criada artificialmente. Originariamente só havia um planeta nessa órbita, que era Árcon I. Com o desenvolvimento progressivo, o planeta natal dos arcônidas tornou-se muito pequeno. Sua tecnologia permitiu-lhes movimentar outros planetas do sistema e colocá-los na mesma órbita de Árcon I.

Cada um dos três mundos preenchia uma função específica. Árcon I era o mundo residencial dos arcônidas; consistia num maravilhoso jardim artificial. Árcon II, um planeta bem maior, ficara reservado ao comércio e à indústria privada. E Árcon III era o mundo da frota espacial e do computador-regente.

Com a precisão extrema de que era dotada sua supertecnologia, os arcônidas fizeram com que o sistema de três planetas fosse estável. A matemática arcônida sabia tão bem quanto a terrana que isso só seria possível por meio de uma disposição especial dos três planetas. Juntamente com o astro central os três mundos formavam três triângulos eqüiláteros, cujo vértice era formado pelo sol de Árcon. Nesse sistema fora criada, por meios artificiais, uma constelação quase idêntica àquela que existe há bilhões de anos no sistema solar terrano, e é formada por Júpiter com seus dois grupos de satélites, os troianos.

As duas naves dirigiram-se a esse sistema tríplice. Seu destino era Árcon III, o planeta guerreiro, no qual o computador-regente tinha sua sede.

Rhodan não desperdiçara tempo. Passara aquelas horas numa espécie de diálogo com o computador positrônico de bordo, a fim de descobrir qual seria o procedimento provável do regente durante as negociações.

Teve prazer em usar uma máquina contra a outra.

Ao ser consultado, Rhodan deu ordem de pousar. As duas naves desceram lado a lado pela atmosfera límpida, em que não se via nenhuma nuvem. Pousaram no planeta bélico, a menos de dois quilômetros da linha na qual a parede reluzente da gigantesca abóbada energética se erguia contra o céu branco-azulado.

A nave de Perry Rhodan continuou de prontidão. Sabia que o regente tinha o costume de fazer suas visitas esperarem algum tempo. Enquanto isso todas as posições de combate ficaram guarnecidas, e a sala de rádio acompanhava as palestras travadas nas proximidades.

Uma hora passou.

Depois de uma hora e meia, a Drusus recebeu um chamado. A tela do telecomunicador que ficava acima do painel de Rhodan iluminou-se. Uma vez ligada a transmissão da imagem, o rosto de um oficial surgiu na tela.

— Bem-vindo em Árcon — disse o arcônida com a voz entediada. — Meu nome é Drenn. O regente pede que o senhor compareça à sua presença.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Para mim será uma honra — respondeu. — Como farei para chegar até ele?

— Eu o acompanharei — disse Drenn.

— Está bem; poderia passar por aqui?

Drenn concordou e suspendeu a palestra.

Rhodan transmitiu as últimas instruções.

 

Drenn parecia ser uma espécie de oficial de relações públicas, encarregado dos contatos entre o regente e o mundo exterior. Quando seu planador se aproximou da parede reluzente, esta se tornou transparente, deixando passar o veículo.

Além da barreira energética estendia-se um terreno liso, coberto por uma camada de plástico. Bem ao longe Rhodan viu uma construção sem janelas, de formato cúbico.

— O que é isso? — perguntou, dirigindo-se a Drenn.

— É o edifício da recepção — respondeu o arcônida. — Toda pessoa que tem a honra de falar pessoalmente com o regente é recebida ali.

Visto de perto, o cubo com suas paredes negras e brilhantes transmitia uma impressão sombria e imponente. Em nenhuma das paredes Rhodan descobriu qualquer saliência ou entrada.

Mas Drenn prosseguiu em direção ao edifício, sem reduzir a velocidade. No momento exato, uma abertura de cerca de quatro metros de altura e igual largura surgiu na parede, permitindo que o veículo entrasse no interior iluminado do edifício.

Drenn pousou o planador e desligou o motor.

— Desça e caminhe para a frente! — pediu, dirigindo-se a Rhodan.

Rhodan obedeceu.

Olhou em torno. O interior do cubo era formado de uma única sala, que estava inteiramente vazia. Havia apenas a luminosidade brilhante e ofuscante que parecia emanar de cada centímetro cúbico do ar puro e límpido.

Depois de ter dado vinte passos, olhou para trás. Não se surpreendeu ao notar que Drenn havia desaparecido.

Rhodan prosseguiu. Quando havia chegado aproximadamente ao centro do recinto cúbico, uma voz potente soou das alturas.

— Pare, Rhodan!

Perry Rhodan obedeceu sem olhar para trás.

Se o computador-regente estivesse em condições de assimilar impressões óticas, e se, além disso, soubesse interpretar a mímica humana, se espantaria. Ficaria assustado com a má impressão que o estranho cumprimento causara em Rhodan.

Perry sorriu. Acreditou que conhecia as idéias que os construtores daquelas instalações deveriam ter quando deram ao cérebro positrônico a possibilidade de dirigir-se dessa forma aos visitantes.

“Parece a voz de um deus irado”, pensou.

Alguém que não fosse dotado de tanta autoconfiança como Rhodan teria caído de joelho diante do timbre dessa voz.

“Os arcônidas bem que eram inteligentes! Ao montarem essa instalação, haviam considerado a mentalidade de todos os habitantes da Galáxia... com exceção da nossa, dos terranos...”, voltou a refletir.

— Estou parado — respondeu Rhodan.

Teve certeza de que havia um microfone que transmitiria sua resposta, proferida em arcônida, ao regente.

— Sou o senhor da Galáxia! — voltou a ressoar a voz. — Por algum tempo você conseguiu privar-me daquilo que de direito me pertence. Estou disposto a perdoar seu erro, desde que você confesse que agiu injustamente.

Rhodan prestou atenção à voz. Parecia diferente; seu timbre era menos mecânico, mais pessoal do que seria de esperar de uma máquina. Ao que tudo indicava, os arcônidas sabiam transmitir uma nota humana aos instrumentos mecânicos.

Quanto ao mais, fez de conta que não sabia de que o regente estava falando.

— Não compreendo o que você diz — respondeu.

— Estou aludindo ao seu mundo natal, Rhodan — explicou o regente. — Todos os mundos me prestam submissão, e o seu deve proceder da mesma forma. Até agora você tem resistido. Veio para declarar que está disposto a submeter-se?

— Não — respondeu Rhodan. — Não vim para isso.

— Conquistarei o direito que não me for concedido voluntariamente.

— Você não tem nenhum direito de assenhorear-se de meu mundo.

— O que vem a ser o direito? Sou o mais forte, e direito é aquilo que eu achar conveniente.

— Pois você deixará de achá-lo conveniente quando resolver recorrer à violência.

— Por que não? Em comparação com o Grande Império, seu mundo não passa de uma partícula de pó.

Rhodan riu.

— Talvez você acredite no que está dizendo; mas, se resolver tirar a prova, sairá decepcionado. Meu mundo é mais poderoso que o velho Árcon.

— Isso é impossível!

— Não. Não se esqueça de que não conhece minha raça, e que quase sessenta anos se passaram desde que estivemos em contato pela última vez. E em sessenta anos minha raça fez mais que as outras raças em trezentos.

— O que são sessenta anos? Para um ser como eu, o tempo não representa nada. Sou imortal, e para mim um lapso de tempo sempre é igual ao outro; pouco importa a designação que os mortais usem para o mesmo. Quer dizer que se recusa a submeter-se?

Rhodan esquivou-se. Subitamente teve uma idéia que lhe pareceu tão plausível que estacou.

— Quero fazer-lhe uma proposta — respondeu. — Vamos iniciar nosso contato com um diálogo sobre o inimigo comum. Depois poderemos falar sobre meu mundo. Sempre se deve começar pelo mais importante.

Ao que parecia, o regente não percebeu a recriminação. Hesitou um pouco e respondeu:

— Concordo. Relate o que conseguiu saber.

Rhodan contou exatamente aquilo que preparara horas antes a bordo da Drusus. Transmitiu as impressões gerais que seus três agentes haviam colhido em Mirsal II. Limitou-se a relatar o que havia acontecido, com exceção da tentativa bem sucedida de penetrar no mundo do inimigo, realizada por Rous, e de tudo que se relacionava com as dimensões temporais dos dois universos.

O regente não soube o que fazer com aqueles dados mínimos.

— É só isso? — perguntou. — Essas informações não nos fornecem qualquer meio de agir contra o inimigo.

— Mesmo que fosse só isto — disse Rhodan em tom de escárnio — não nos deveríamos esquecer de que quem descobriu esses fatos fomos nós, e não os seus comandados, que se esconderam atrás das paredes de sua nave.

Rhodan sabia que seria impossível ofender o regente, mas talvez seria conveniente que na memória dele ficasse armazenado o fato de ser a raça dos terranos mais ativa e arrojada que a dos arcônidas e a dos saltadores.

— Quer dizer que não é tudo? — perguntou o regente.

— Não. Reunimos muitos dados, e queríamos pedir-lhe que os interpretasse. Não dispomos de meios para isso.

— Concordo — respondeu o regente. — Instruirei Drenn a recolher as informações e apresentá-las a mim.

— Eu as entregarei a Drenn — confirmou Rhodan. — Quer dizer que por enquanto a palestra está concluída?

— Está. Pode retirar-se. Drenn o levará de volta à sua nave.

A viagem até a Drusus durou apenas alguns minutos, mas o tempo foi suficiente para que Rhodan resumisse suas impressões.

Sentia-se decepcionado. Imaginara que aquele que governava o Império — mesmo que fosse apenas uma máquina — seria uma coisa poderosa e impressionante. O que encontrara? Algo que procurava os efeitos dramáticos, que procurava causar impressão por meio de exigências grosseiras e inexeqüíveis e dispensava um tratamento prepotente e arrogante aos visitantes.

Seria este o coração do grande Império Arcônida?

 

Drenn já estava a par do que deveria fazer. Cabia-lhe receber as informações que haviam sido coletadas. Rhodan entregou-lhe as mesmas na sala de comando, depois que, conforme fora combinado, se submetera a um teste psicológico.

Drenn recebeu o maço enorme de anotações e fitas perfuradas, saiu da nave, pegou seu planador e voltou à abóbada energética que abrigava o regente. Rhodan viu-o desaparecer atrás da parede reluzente. Dali a menos de uma hora, Drenn voltou a aparecer. O simples fato de ter pedido permissão para entrar na nave e subir à sala de comando provava que as suposições de Rhodan foram corretas: Drenn viera para buscá-lo.

— O regente solicita outra entrevista com o senhor — principiou Drenn.

Rhodan fez um gesto de recusa.

— O regente superestima minha capacidade de ficar de pé — respondeu com a voz tranqüila. — Faz trinta horas que não vejo uma cama. Acho que bastará entrar em contato comigo pelo telecomunicador. Poderei poupar-me à canseira de mais uma viagem.

O rosto de Drenn ficou pálido como cera.

— Não... não posso fazer uma coisa dessas — gaguejou.

Rhodan fez um gesto reconfortador.

— É claro que pode. A iniciativa não é sua. Explique ao regente que me sinto tão cansado que não posso deixar a nave a esta hora. Poderá comunicar-se comigo aqui mesmo ou aguardar até que tenha dormido.

Drenn ficou com a boca escancarada e os olhos arregalados. Levou algum tempo para balbuciar:

— Darei o recado. Mas a responsabilidade será sua.

— Naturalmente — respondeu Rhodan. — Pode retirar-se; não se preocupe.

Drenn saiu aos tropeções. Depois de algum tempo, Rhodan viu-o entrar no veículo planador e sair pela terceira vez em direção à abóbada energética.

Não demorou que a tela do telecomunicador se acendesse. Rhodan ativou a recepção e o rosto de Drenn surgiu. Continuava assustado e incrédulo.

— Pois não!

— Estou autorizado a ligá-lo com o regente — disse Drenn. — Está pronto?

— Estou pronto, Drenn.

 

A palestra durou nada menos que uma hora. E Perry Rhodan saiu vencedor.

Obteve o comando de setenta e cinco por cento da frota de guerra dos arcônidas. Além disso, o regente lhe garantiu que nenhuma das naves colocadas à sua disposição seria equipada com robôs. Dali em diante Árcon III seria uma base independente para a frota que operaria sob o comando de Perry Rhodan, e continuaria a sê-lo enquanto o administrador do Império Solar o precisasse.

Além disso, teria à sua disposição uma série de bases espalhadas por toda a Galáxia. Os respectivos comandantes receberam instruções superiores para obedecer às ordens de Perry Rhodan.

— Daí se conclui — disse Rhodan, dirigindo-se a Baldur Sikermann, o imediato da Drusus — que por muito tempo o regente nem pensa em molestar a Terra. A partir de hoje, setenta e cinco por cento da frota arcônida estão submetidos ao meu comando. Uma vez que em nenhuma dessas naves poderá ser montado um robô, os respectivos comandantes não manterão contato direto com o regente e obedecerão exclusivamente às minhas ordens. Se quiser, até poderei ocupar Árcon.

Sikermann foi despertando do torpor.

— Ele lhe deu tudo isso em troca de nada?

— Não. A máquina precisa de meu auxílio, pois não sabe como defender-se do inimigo.

— Ainda não sabe? Pois nós lhe demos todas as informações.

— Essas informações não lhe serviram de nada.

— Por quê?

Rhodan sentou-se.

— A primeira palestra que mantive com o regente foi gravada em fita — respondeu. — Ouça a parte mais importante.

Rhodan tirou do bolso um pequeno aparelho, colocou-o sobre a mesa de instrumentos e ligou. Depois de procurar um pouco, encontrou o lugar correspondente ao trecho a que acabara de referir-se. Sikermann ouviu a voz de Rhodan:

— ...não se esqueça de que não conhece minha raça, e que quase sessenta anos se passaram desde que estivemos em contato pela última vez. E em sessenta anos minha raça fez mais que as outras raças em trezentos.

Depois ouviu-se a resposta do regente:

— O que são sessenta anos? Para um ser como eu, o tempo não representa nada. Sou imortal, e para mim um lapso de tempo sempre é igual ao outro; pouco importa a designação que os mortais usem para o mesmo.

Rhodan desligou. Sikermann fitou-o como quem não compreendia nada.

— Não compreendo — murmurou.

— Pois já deveria ter compreendido. Ao que parece, o ponto básico das informações que conseguimos reunir sobre o invisível é a diversidade das dimensões temporais reinantes nos dois universos.

“A máquina está em condições de medir segundos, minutos ou horas, e de registrar um lapso de muitos e muitos anos. Sabe calcular com o tempo, como com quaisquer outros dados numéricos. Mas no momento em que se deve jogar com dimensões temporais diversas, sua compreensão, ou seja, a compreensão do imortal, falha por completo.

“Em resumo, as informações que lhe fornecemos não lhe servem para nada. Torna-se necessário que lhe seja acrescentado um novo setor, capaz de calcular com várias dimensões temporais, ou então dependerá inteiramente de nós. É que entre os cientistas arcônidas haverá muito poucos que estarão dispostos a afastar-se das suas telas de imagens fictícias para dedicar-se a esse problema.”

Sikermann respirou profundamente.

— Quer dizer que estamos...

— Quer dizer que estamos fora de perigo — disse Rhodan. — E não é só isto; pode-se dizer que somos os donos do mundo. Os desconhecidos devem representar uma ameaça muito séria para o regente, pois do contrário nunca teria concordado em fazer tamanhas concessões.

 

A Drusus permaneceu por alguns dias em Árcon III. A submissão de grande parte da frota arcônida às ordens de Rhodan trazia uma série de problemas administrativos, cuja solução exigia algum tempo.

Durante esse tempo Rhodan manteve uma série de palestras com o regente, que passou a usar um tom muito mais amistoso. Basta dizer que Rhodan obteve autorização para deixar os cem mil mirsalenses evacuados em Árcon I até que os mesmos pudessem regressar ao seu mundo de origem.

Foi a primeira vez na história que o planeta residencial dos arcônidas passou a abrigar seres estranhos.

Quanto à frota arcônida, Rhodan tivera suas dúvidas. Pensou que os respectivos comandantes talvez relutassem em submeter-se às suas ordens. Mas teve de constatar que não soubera avaliar corretamente a mentalidade dos arcônidas. De um lado, face às próprias características de sua raça, eram tão indolentes que dificilmente seriam capazes de sentir qualquer emoção; além disso, ao que tudo indicava, preferiam ser comandados por um homem estranho do que por uma máquina.

 

A entrega da frota estava sendo concluída. As unidades que se encontravam no espaço foram notificadas e mantinham-se em posição de espera.

Rhodan preparou o grande golpe contra o inimigo invisível.

O regente voltou a garantir a Rhodan que poderia contar com todos os recursos do mundo tríplice de Árcon e de suas bases galácticas. Sentiu-se tranqüilizado pelas repetidas assertivas de Rhodan, de que não pretendia usar de violência contra Árcon.

Perry não se iludiu quanto aos efeitos desse tratado de paz. Enquanto ele mesmo estivesse no espaço, em luta contra os invisíveis, o regente procuraria recuperar ao menos parte da superioridade anterior. Para isso poderia construir maior número de naves, ou fazer com que os saltadores se ligassem mais estreitamente ao Império.

Era bem verdade que por enquanto o computador estava de “mãos atadas”. A Terra encontrava-se em segurança.

Rhodan pretendia cumprir sua palavra. Nunca empregaria a violência contra o Império. Aliás, os setenta e cinco por cento da frota arcônida nem seriam suficientes para isso. Mas, de maneira como andavam as coisas, haveria de chegar o dia em que o Império não mais conseguiria manter-se com seus próprios recursos, e então teria chegado a hora de uma anexação pacífica...

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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