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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BISTURI MÁGICO - P.2 / Frank Slaughter
O BISTURI MÁGICO - P.2 / Frank Slaughter

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O BISTURI MÁGICO

Parte II

 

Noutra vida, havia já muito tempo - era este, pelo menos, o sentimento actual de Ran - citara-lhe Frances Libby um melancólico ditado Francês: “Partir é morrer um pouco”. Nessa altura, não compreendera. Começara agora a ver nele um fundo de verdade. Adaptando-o: “a ausência é uma pequena morte”. Ann escrevia-lhe conscienciosamente, mas o próprio efeito desta conscienciosa aplicação era refrigerante. Se não fosse o conforto que lhe prestava Tim Brennan, mais cruel seria ainda a dor da separação.

Embora obstinadamente preso ao seu posto de Gray’s Run, Tim vinha agora três vezes por semana a Farmington, onde instalara consultório. Além das consultas e visitas na cidade, tinha doentes que não hesitavam em fazer o trajecto das cinquenta e cinco milhas que separavam Gray’s Run de Farmington. E, se não queriam ou não podiam resolver-se a fazê-lo, bastava-lhes esperar pelo dia em que ele vinha, ou passar sem os seus serviços.

- Quase todos têm carro, não é? - explicava Tim. - E a maioria, motorista. Porque é este o género de clientela em que eu caí. De qualquer modo, é cómico, hem. O Tim Brennan, o duro de roer, feito médico da moda! Cómico!

- Você é um médico espantoso! - disse Ran.

- Sim. Mas não tão espantoso como dou a entender. Aí é que está o segredo do êxito junto das mulheres, meu caro! Ser bom e parecer ainda melhor.

Muitas vezes, feitas as últimas visitas, Tim apoderava-se de Ran; instalavam-se depois diante de tardias canecas de cerveja acompanhadas de salsichas Francfort, e o visitante voltava com o habitante para ir dormir no leito da alcova - baptizado por Ann de “poleiro” de Tim” - donde partia cedo, na manhã seguinte. Certa meia-noite, após a terceira caneca, declarou:

- Tenciono oferecer um jantar, Ran.

- Quer espantar-nos e mundanizar-se, Tim?

- Um jantar corporativo. Ao corpo médico vindo de Lakeview.

- E quem é esse corpo? Você e eu.

- E a nossa única colega; é em honra dela.

- A Sybilla Barr? Está cá, ela? Oh! Que prazer em vê-la!

- Por enquanto ainda cá não está. Mas há-de vir daqui a pouco. O velho Matthews mandou-a comparecer para o ajudar na organização do novo edifício das mulheres em Saint-Francis. A doação Rathbun, bem sabe.

- E ela é capaz disso?

- Maravilhosamente capaz. E está mais bela do que nunca.

- Pobre Tim!

- Vá para o diabo e deixe-me em paz! Acho que ela não se consolou com a morte do Pee Wee Harter. Seja como for, conseguiu a licença necessária para levar a cabo esta missão, e passará aqui várias semanas. Pareceu-me que seria bom estar uns doze de nós para a acolher e lhe dar informações úteis cá no sítio.

- Rica ideia.

- Diga-me uma coisa, Ran: a bela Graeme Ellice já veio consultá-lo?

- Não. Marcou consulta e depois não apareceu.

- Lembrou-se de repente, talvez, de outra coisa que a seduziu mais nessa altura. É uma parte do mal dela.

,- Qual é o mal dela?

- Diagnostique. E abra os olhos.

- Para quê a recomendação?

- Perigo. Você encontrou-a. Viu-lhe os olhos. Já tinha reparado?

- Já reparou nos da Ann?

Tim deu-lhe uma pancadinha no ombro:

- As minhas desculpas. Vamos: volte para o castelo, Warren.

Foi um êxito o jantar que Tim ofereceu num dos pequenos clubes da cidade. E não podia deixar de sê-lo qualquer jantar que tivesse como vedeta Sybilla Barr. Esta cumprimentou Ran com ardente amizade. Estava ele, realmente, muito divertido quando, em meados da noite, Tim Brennan - no qual nem sempre à mais cordial boa vontade se aliava o tacto - se deixou arrastar por reminiscências de Lakeview, onde desempenhava papel importante Pee Wee Harter. Do mais íntimo de Ran brotaram recordações cruéis, e, com elas, aquele sentimento de dúvida e culpabilidade que nunca pudera apagar completamente. De repente, sentiu que Sybilla o mirava e teve um sobressalto, ao notar que ela lhe lia os pensamentos e tentava arrancá-lo à depressão. Era inútil. Levantou-se, deu volta à mesa, e dirigiu-se a Tim:

- Dá-me licença que o deixe? Tive um dia fatigante.

- com certeza, meu filho. vou ter consigo mais logo. Não ponha o ferrolho.

No momento em que Ran deixava a sala, Sybilla murmurou algumas palavras ao ouvido de Tim e depois seguiu o fugitivo, que apanhou na antecâmara. Passou-lhe um braço pelos ombros.

Foi por Graeme Ellice que Ran teve, depois, notícias de Rena. Ao volante do seu carro de desporto, perseguiu-o a jovem num cruzamento e entalou-o na borda do passeio. Parecia muito caro o automóvel. Muito cara também a gola de pele em que escondia o queixo, pequeno e pontiagudo.

- É absolutamente necessário ficar-se esmagado para se decidir a conversar com os amigos?

- Olá, Mrs. Ellice!

- Olá! Onde quer que o deixe?

- Basta-me dobrar a esquina para estar no consultório.

- Pois bem! Eu podia aproveitar a ocasião para lá ir ao mesmo tempo. Tive de me vencer para me decidir, sabe?

- Sou assim tão formidável?

- É. Suba. Estamos a impedir o trânsito. - Abriu a porta e Ran sentou-se ao lado dela. - Qualquer objecção a ter-me como doente?

Desafiavam-no, a rir, aqueles lindos olhos de veludo.

- Nenhuma. Mas não conheço ninguém que pareça precisar menos de médico.

- Nunca se sabe! Notícias da Rena Mclntyre?

- Não. Diga.

- Uma filha. Sete libras. Ontem de manhã.

- E ela está bem?

- com certeza. Procuraram o Dr. Sarnov, não foi? Há alguém melhor?

Como ela pisou o travão, um solavanco evitou ao médico o embaraço de ter de responder.

- Vá para o diabo, seu idiota! - Dirigia-se Graeme a um peão que parecia furioso e que só com um salto convulsivo, no último momento, salvara a integridade corporal. ^- Porque é que não olha para a frente?

- E porque não olha você? - sugeriu Ran.

Daqueles lindos olhos saiu uma luz rápida. E depois:

- Talvez com qualquer intenção. Ia interessada de mais no meu passageiro, sem dúvida. Salte daí. vou arrumar o carro e dentro de dois minutos estou lá em cima.

Enquanto se encontrava em Lakeview, resolvera Ran adoptar um bom sistema: estabelecer e conservar as suas relações com os doentes o mais estritamente impessoais que pudesse. De acordo com a limitada observação que de Graeme Ellice pudera fazer, considerava-a pouco estrita e de modo nenhum impessoal. Logo que ela entrou, Ran colocou a entrevista no campo profissional:

- Simplesmente para ter um ficheiro completo e claro, diga-me a que médico ia antes de me procurar.

- Isso tem importância?

- Se tem médico certo, eu não posso tomar conta de si sem você o prevenir.

- Mas não é esse o caso. Não tenho nenhum médico assistente. Nenhum me compreende. O Dr. Brennan garantiu-me que eu estava neurótica, com imaginação excessiva, uma imaginação ocupada em mim própria.

- E é verdade?

Os seus lábios cheios e frescos adquiriram expressão petulante:

- Você também me vai tratar como um caso desprezível?

- Não, evidentemente. É um caso a sério. Gostava de saber a sua opinião.

- Acerca da minha suposta neurose? Talvez sim, talvez não. - Era suplicante o seu sorriso. - Às vezes julgo que sim; mas não é por isso que se me vai recusar, pois não?

- com certeza que não. Não sou neurologista, bem sabe.

Não era preciso ser neurologista para compreender que ela se encontrava influenciada por qualquer perturbação funda, talvez pelo medo. Mas medo de quê? Era indispensável que ela lho dissesse, espontaneamente. Qualquer tentativa para lhe invadir o “eu” interior acordaria nela, decerto, um antagonismo defensivo.

- Talvez eu seja imaginativa - continuou - mas não estou doida. Há, com certeza, em mim, qualquer coisa que não anda bem. Às vezes, toda eu me sinto interiormente contraída. Outras vezes, detesto toda a gente.

As mãos brincavam com a gola de pele, crispavam-se-lhe os dedos.

- Quais são as suas relações com o seu marido? - perguntou Ran, cautelosamente.

Encolheu os ombros:

- Meio desligadas. O Fanshawe é muito bom rapaz. Mas é uma criança, imperfeitamente desenvolvido. Quero dizer... mentalmente. Aborrece-me. Mas a si não interessa o lado pessoal. Ou interessa?

- Gostava que você compreendesse uma coisa - disse Warren com ênfase. - É que tudo quanto se fala neste consultório é rigorosamente profissional e apenas profissional. Entendido?

- Lá está a querer tratar-me com aspereza! - lamentou-se ela.

- Talvez seja do que você precisa.

- Nunca ninguém experimentou. Ou nunca conseguiu.

- Daí é que lhe vêm os seus males.

Facto absolutamente imprevisto: ela concordou:

- Tem razão. Sou uma mimalhas. Sempre tenho sido.

Obtenho sempre tudo. Por isso, habituei-me a ter, como a

um direito, o que quero. - Olhou para outro lado, rindo. - Está prevenido, Dr. Warren.

Ran conteve a vontade de rir. A impudência dela era o

da criança que conta com a impunidade conferida pela graça.

- Falarei a seu respeito com o Dr. Dater - respondeu ele. - Mas parece-me saber já o que lhe hei-de aconselhar.

- Eu também: ter um filho. Eu sei. É o estribilho dos médicos. Pois muito bem: não quero.

- Porquê?

- Tenho apenas vinte e cinco anos. Não posso gozar um pouco a vida, primeiro? Aliás... não, acho que não devo dizer. - E levantou-se: - Chegue ao patamar.

- Para quê?

- Porque aqui é tudo profissional e o que agora quero dizer-lhe é pessoal.

Desta vez, ele não se conteve e riu:

- Acabou a consulta. Diga o que lhe apetecer.

- Quer ir jantar lá a casa na sexta-feira? É uma noite de bridge, mas não precisa de jogar. Pode conversar comigo.

- Fico encantado. Muito obrigado.

- E quando torna a receber-me... profissionalmente?

- Da próxima vez que se lhe manifestem os sintomas.

- Então, entendido! No fim de contas, não me desagrada ser tratada com aspereza por si. Até à próxima!

Ran acompanhou-a à porta.

- Até à vista!

Sentia-se pouco à vontade. Durante toda a visita, ela tinha-lhe torcido as voltas, mostrara-se furtiva, um pouco hesitante, mais do que uma vez assustada.

Um quarto de hora depois, já estava de volta, pedindo a Miss Gerbig que a mandasse entrar depressa. O que lhe recusaram, porque Ran estava com uma doente. Pôs-se então a dar grandes passadas dum lado para o outro, roendo as unhas. Mal a outra doente transpôs a porta, já ela entrava:

- Pensei que você tivesse adivinhado - gritou.

- Sente-se, Mrs. Ellice - disse Ran, devagar. - Bebeu?

- Só dois cocktails. Não conseguiria resolver-me a vir sem eles.

- Têm o seu lado bom. - Sorria, para lhe dar confiança. - Agora, deixe-se ficar tranquilamente sentada, e conte-me com calma de que se trata.

Ela desapertou a gola de pele.

- Olhe para a minha garganta.

O inchaço, muito leve, situava-se à esquerda. Papeira? O nervosismo da rapariga ficaria explicado por um estado hipertiróideo. Mas o diagnóstico instintivo e espontâneo não sugeriu a existência de bócio. Primeiro, o inchaço estava demasiado alto, exactamente sobre o maxilar.

- Há quanto tempo reparou nisso?

- Não sei. Esforçava-me por não acreditar. Várias semanas.

- Quem o viu já?

Dilataram-se-lhe dolorosamente os enormes olhos:

- O Dr. Baskewell. Sei que ele crê ser um can... - Sufocou, incapaz de pronunciar a palavra fatal.

- Foi ele quem lhe disse?

- Não. Começou e eu... pus-me a fugir... e mandei-lhe pedir a conta.

- Dói?

- Dói - murmurou. - Quando como.

Era mau. Ran carregou ao de leve no lado inchado, ela estremeceu e encolheu-se. O médico olhou-a, pensativo. Pareciam evidentes indícios de cancro numa glândula linfática, os quais indicariam ramificações, um princípio de tumor radicado mais fundo nas estruturas do pescoço. Todavia, o espírito recusava-se-lhe a admiti-lo. Talvez resistência extraprofissional à ideia de que tanta beleza pudesse ser invisivelmente devastada por aquele horrível mal. De qualquer maneira, não era impossível a alternativa, restava a esperança.

- Foi vista à radiografia?

- Fui. Não acusou nada.

Também isso era mau. Esperava ele que se tivesse formado um cálculo num dos canais salivares. Mas, em tal região, podia haver escapado aos raios X um depósito calcário situado por trás do maxilar.

- Foi o Dr. Verney quem fez a radiografia?

- Foi. Quando me disse que não dava nada, pensei que ia tudo pelo melhor. Mas, quando lho perguntei, ele mostrou-se melancólico. Significa isso que...

- ...que tenho de ir eu próprio ver as chapas.

- Deixando-me aqui? Eu não podia suportar.

- Saia. Passeie durante uma hora e volte depois. Mas não beba mais, por favor.

Era bondoso a falar. Ela obedeceu.

Enquanto, juntamente com Ran, examinava as chapas, o Dr. Verney meneou a cabeça:

- Nada visível. Bem gostaria de que houvesse qualquer coisa.

- Se é que há um cálculo, pode ficar escondido pela mandíbula - observou Ran. - Queria saber se não haverá um depósito no canal submaxilar, por trás do osso.

- Desejo que você tenha razão - respondeu dubitativamente Verney.

Quando Graeme Ellice se encontrou de novo perante Ran, tinha o rosto deformado pela angústia:

- Então? - A voz esganiçava-se-lhe: - Que há de concreto?

- Ainda não sei.

- Se for um cancro, mato-me.

- Que coisa tão absurda e má de dizer!

- Porque não ? Já que, de qualquer forma, ele me há-de matar...

- Não se sabe nada! A maioria das vezes, estes casos podem operar-se, mesmo se existir um tumor maligno, no que eu não creio.

- Você sabe o que isto é! Você sabe! Você mente-me!

Subia-lhe a histeria.

Ran repreendeu-a com severidade:

- Não me fale nesse tom, sim?

- Oh! Peço desculpa. Desculpe-me. Sou tão miserável...

Estendia as mãos desesperadas e soluçava baixinho, miseravelmente.

- Oiça-me, Mrs. Ellice. vou fazer-lhe uma anestesia local...

- Não me vai operar? - Estava ofegante: - Por agora, não. Peço-lhe: por agora, não.

- Não se trata de operar. Simples exploração local. Desconfio da existência dum corpo estranho que cause todo o mal. É claro que posso enganar-me. Mas não se deve falar antes de tempo!

Graeme pôs-se a tremer com tal violência que ele não ousou servir-se dum instrumento. Quando sugeriu o emprego dos gases, ela acalmou:

- Não me faça mal! - e fechou os olhos.

Tacteando ao longo do canal, Ran teve quase a certeza de encontrar um corpo duro. Mas de nada podia estar certo. A ser assim, era pequeno e fugia debaixo do dedo. Voltou a explorar. Tentou o instrumento, pôs-se a trabalhar com os dedos ágeis e robustos, deslocando o cálculo, devagar, com regularidade, continuamente, fazendo-o escorregar ao longo do canal da glândula salivar, mais, e mais, e, por fim, tinha-o cá fora!

- Aqui tem o seu cancro! - disse à doente, não sem justificado orgulho.

Ela segurou-o nos dedos, examinou-o com um olhar minucioso de espanto, quase de incredulidade.

- É tudo? - suspirou, baixinho.

- Tudo. Não há motivo para se suicidar, vê?

De repente, ela agarrou-lhe na mão, levou-a ao peito, beijou-a numa gratidão apaixonada.

- Não faça isso! - protestou ele.

- Perdão. Não vou ser outra vez ridícula - prometeu. - Tratemos do caso: isto tornar-me-á normal. Quanto devo?

- Cinquenta dólares.

- Pelo alívio e alegria que sinto, deviam ser cinco mil!

O correio da manhã levou-lhe um cheque de duzentos e cinquenta dólares de Fanshawe Ellice. Pagou logo o que ainda devia à firma que lhe fornecera a aparelhagem cirúrgica.

E, dois dias depois, estava de volta Graeme Eliice, que anunciou:

- Tem em mim uma cliente regular. Ainda estou longe de me encontrar bem. Nenhum dos outros me compreendera. Você, sim.

O experiente Tim Brennan advertiria Ran Warren de que aquela era uma declaração perigosa.

 

Não se surpreendeu Ran ao ouvir pelo telefone a voz inquieta de Bob Mclntyre:

- Estou no hospital. Pode cá chegar?

- Que há?

- A Rena está com febre.

- Que dizem aí?

- Oh! Dizem-me que não é nada de extraordinário. Mas ela não me parece bem. Além disso, deseja vê-lo. Confia no doutor.

Ran procurou ganhar tempo, perguntando a si próprio se isso significaria falta de confiança nos outros:

- Antes da operação, já as dores tinham começado?

- Já. As dores começaram em casa. Levei-a à pressa para o hospital Homestead e mandei chamar o Dr. Sarnov. Como o trabalho começou normalmente, ele só a operou no dia seguinte, à tarde... Ia você a dizer...

- Nada.

Sem dar por isso, Ran protestara em voz alta.

- Ficava mais tranquilo se cá viesse. E ela também.

- Parece-me que não é possível.

- Porquê?

- As regras da sociedade médica proibem o médico de assistir ao doente de um colega, a menos que seja convidado por ele próprio.

- Eu sei, eu sei - volveu Mclntyre. - Entre os advogados temos qualquer coisa de semelhante, e às vezes fico furioso ao ver um cliente nas mãos de certos canalhas, incapazes e perigosos. Mas isso não tem nada com o caso que nos ocupa. Suponhamos que eu peço ao Dr. Sarnov que chame um colega e sugiro que o escolha a si. Está bem?

- Perfeitamente - aquiesceu Ran. - Nesse caso, fico muito contente por examinar sua esposa.

Tudo se desenrolava na sequência das coisas e segundo os amargos pressentimentos de Ran: Sarnov operara a paciente em pleno parto, o que é processo sempre perigoso. Quando muito, pode empregar-se, bastante cedo, com um método especial que diminui o perigo de infecção. Depois de ter observado a técnica de Sarnov, sabia Ran que o obstetra não se embaraçava a seguir o método mais seguro, que era o mais difícil. A temperatura, a subir, indicava provavelmente uma infecção puerperal.

Ficou no consultório durante uma longa hora, depois de o fechar, esperando pelo telefonema de Sarnov. Nada! Só às oito da noite, e já em casa, o atendeu:

- Dr. Warren?

A sua voz era suave e mesclada de irritação.

- Sim.

- Fala o Dr. Sarnov. Tenho uma doente no Homestead: Mrs. Mclntyre. O marido está muito preocupado com ela (sem motivo nenhum), e, como são seus amigos, lembrei-lhes que o consultassem.

“Grande mentiroso!”, respondeu mentalmente Ran. Em voz alta, disse:

- De boa vontade a verei, juntamente com o Dr. Sarnov.

- Muito bem. Fica combinado que você cá virá amanhã de manhã.

- Tenho de operar muito cedo - retorquiu logo Ran. - vou já, agora.

- Como queira.

Um tinido anunciou o fim da conversa, que parecia não ter acabado com inteira satisfação do Dr. Sarnov.

Ran foi encontrar Rena Mclntyre mergulhada no austero leito do hospital, rodeada de flores. Era seca e quase ardia a mão que lhe estendeu, e as unhas ostentavam uma palidez de que ele não gostou. A seus olhos perspicazes havia outros sinais inquietantes: faces inflamadas, olhos demasiado brilhantes, alegria nervosa e forçada. Perguntou, com orgulho:

- Já viu a minha filha?

- Ainda não. Já Vou. Achei preferível vê-la primeiro a si.

Os dedos de Ran procuraram-lhe o pulso: era rápido e irregular. Actuava no sangue o veneno, fazendo subir a febre e activando o bater do coração.

Entrou no quarto uma enfermeira, que perguntou:

- O senhor é que é o Dr. Warren?

- Sou.

- Tem um recado para si na fiscalização.

Ran dirigiu-se ao gabinete da ponta do corredor.

O Dr. Sarnov fazia saber que não lhe era possível vir imediatamente. Pedia ao Dr. Warren que examinasse a pasta médica e sugerisse o que entendesse.

Ran sentou-se e começou a percorrer as folhas. Tudo seguia a contracorrente: o médico que chama outro, para o consultar, deve acompanhá-lo sempre à cabeceira do doente e seguir com ele os pormenores da doença, de ponta a ponta.

Encontrou a primeira folha relativa ao princípio do parto e observou o exame feito pelo interno: “A data da admissão, tudo parecia perfeitamente normal”. Nestas notas, nada, absolutamente nada indicava a necessidade duma cesariana. Meia hora depois, a segunda nota dizia: “Sódio de pentobarbital, 3 grãos. Dores fracas e espaçadas. Dorme”.

Ainda estava bem. Muitos médicos dão um sedativo às doentes para lhes atenuar os padecimentos do parto, e é comum as dores diminuírem dentro das cinco ou seis horas que se seguem à admissão no hospital.

A senhora Mclntyre entrou à uma da manhã. Às quatro horas, indicava outra nota concisa que estava tudo normal. “Membrana rompida. Coração fetal: 136. Pressão sanguínea:

120-80. Pulso 80”.

Até aí, tudo perfeito.

Trinta minutos depois:

“Preparação para a cesariana”.

Quando não se anunciava qualquer dificuldade, quando nada ameaçava o normal desenrolar do parto, insistira Sarnov em mergulhar de cabeça na “sua especialidade”, argumentando que o parto se preparava um pouco lentamente.

Enfim... era possível que as condições não fossem tão más como se receava. Ran continuava o exame: não tinham história os três primeiros dias após o nascimento. Depois, manifestara-se uma elevação quotidiana da temperatura. A linha das pulsações indicava também consideráveis variações. Atingia os 100 com uma temperatura máxima de 39,5 °. E ainda uma nota significativa: “Sete horas da tarde. Arrepios. Acrescentam-se cobertores”.

Indicavam as fichas do laboratório funcionamento normal dos rins.

Fechou a pasta e voltou para o pé da doente, para um exame superficial. Não havia nos seios qualquer obstrução que pudesse explicar a febre.

Eliminada a possibilidade de serem os rins ou os seios a causa da temperatura, era preciso procurar por outro lado.

- Acha que conseguirei sobreviver? - perguntou alegremente Rena.

- Bem!-Afectou solene importância.- Não me admira muito. A não ser, claro, que influa consideràvelmente a senilidade, que é muito difícil de curar, como sabe.

Ela pôs-se a rir:

- Calcule que me sinto bastante rejuvenescida, desde que estou aliviada deste peso! Quando vem cá a Ann ver o bebé e aprender como isto se faz?

- Logo que regresse. Daqui por dois ou três dias.

Mclntyre acompanhou Ran ao átrio.

- Parece com excelente moral, não? - perguntou com patético optimismo.

- Parece. E isso ajuda-a.

- Mas... está tudo muito bem... não?

- Não. Não está. Há uma infecção em qualquer parte.

- O que se chama febre puerpural? Frequente, enfim...

O rosto acinzentara-se-lhe:

- Não é impossível, evidentemente. Esperemos pelo que der e vier.

Ao descer a escada, Warren encontrou Sarnov. O obstetra sorriu com bom humor:

- Olá, Dr. Warren! Que pena não ter podido estar juntamente consigo à cabeceira de Mrs. Mclntyre! Mas não há nada de grave, claro. Nestes casos, é frequente a temperatura. O marido preocupa-se com uma coisa de nada.

- Não é essa a minha opinião - disse Warren, pausadamente. - Esta temperatura não me diz nada de especial. Por precaução, não acha que se devia fazer uma análise completa do sangue, uma contagem de glóbulos, uma cultura sanguínea, e administrar sulfamidas? Se se agravar a infecção, já estamos preparados.

- Boa ideia, Dr. Warren. Excelente ideia. vou tomar nota.

Mais de uma vez ouvira Ran aquele género de aprovação preguiçosa e não ignorava o que se podia esperar dela.

- Venha cá vê-la outra vez, amanhã - pediu.

- com certeza! Mas não se incomode com isso: eu trato de tudo!

Ao entrar em casa, dizia Ran para consigo que escusava de tentar intervir, pois seria completamente inútil.

Quando, na manhã seguinte, antes de começar as suas operações, foi ver a doente, encontrou mais graves motivos de preocupação. Conservava-se bom o moral de Rena, mas o gráfico de temperatura contava uma história inquietante. O ponto mais baixo da noite anterior eram os 39 °. Pela primeira vez depois da subida da noite, não regressara aos 38 °. Era claro o resumo dado às sete horas da manhã pela enfermeira da noite: “Dormiu pouco e mal. Agitada. Queixou-se de dores nos braços e nas pernas”.

Não se encaminhava bem a coisa, de facto. Ran verificou o relatório laboratorial: o interno da noite devia ter registado o resultado dos exames efectuados de acordo com as ordens de Sarnov. Mas, na página, nada de novo. Apenas o que já vira de véspera.

- E os trabalhos da noite relativos à senhora Mclntyre? - perguntou Warren à fiscal. - Não vejo aqui absolutamente nada. O Dr. Sarnov recomendou-os ontem à noite.

Ela verificou o livro: não figurava lá nenhuma ordem nova.

- Talvez se tenha esquecido - disse Ran. - Eu escrevo.

Rabiscou um pedido dos exames que sugerira e, em baixo, uma nota onde solicitava da enfermeira que lembrasse as sulfamidas ao Dr. Sarnov.

Quando Ran voltou à tarde, pelas seis horas, tinha Rena mais de 40 °. Estava com arrepios por baixo dum monte de cobertores, rodeada de escalfetas e almofadas eléctricas.

Na pasta, uma nota: “Os arrepios violentos começaram cerca das cinco e trinta”.

Ran saiu do quarto e foi chamar Sarnov, que prometeu ir imediatamente. Esperando-o, consultou Warren o livro de serviço. Sobre as ordens que lá escrevera, viu em letra vermelha: “Anulado. - Sarnov”.

Subiu o furor de Ran. A vigilante olhou-o com curiosidade, quando ele deixou o gabinete e se encaminhou para a janela. Dadas as circunstâncias, tinha direito de abandonar o caso e de recusar qualquer outra conferência com Sarnov. Não lhe ocorreu isso. Estava em causa uma vida: a não ser que ele fizesse o necessário, o outro médico ia deixar morrer a doente, apenas por confiar na sorte ou por ser excessivamente obstinado e vaidoso, demasiado biltre, para aceitar qualquer sugestão.

Ran estava decidido a não se deixar repelir. Devia haver maneira de passar a espada pelos rins de Sarnov e, sem dúvida, adiantar-se à infecção, com a rapidez necessária para salvar a vida de Rena Mclntyre. Pensou descobrir uma possibilidade.

Sarnov entrou no átrio em passos de herói conquistador.

De todos os cantos lhe sorriam as enfermeiras. Era inevitável o seu belo físico e os modos delicados, coloridos de certa ironia sarcástica, ganharem-lhe os sufrágios femininos.

- Que é que não está bem, Dr. Warren? - perguntou amavelmente.

Mas o seu olhar tinha um brilho gelado.

- Ontem, o Dr. Sarnov chamou-me para me consultar sobre este caso. Começou por não aparecer ao pé da doente, durante o meu exame. Em segundo lugar, ignorou por completo as minhas sugestões.

Desapareceu o sorriso a Sarnov. Os lábios reduziram-se-lhe a um leve traço do rosto.

- Não as achei úteis.

- Continua a achá-las inúteis?

- Continuo.

- Então, chame outro médico.

Sarnov tornou a sorrir. Mas com um sorriso desagradável:

- Lastimo que reaja assim, Dr. Warren. É claro que, se você deseja abandonar o caso...

- vou pedir ao Dr. George Matthews que me substitua.

- Trata-se de uma doente minha, Dr. Warren. Sou eu que decido a escolha do médico que devo consultar.

- Ouvi o que disse o Dr. Warren, Dr. Sarnov.

Tiveram ambos um sobressalto: não se haviam apercebido de que se aproximava Robert Mclntyre.

- Quer chamar o Dr. Matthews? Ou prefere que me encarregue eu disso?

Sarnov quis discutir, mas a voz firme de Mclntyre não deixava dúvidas sobre a inabalável resolução. Executou-se. Menos de meia hora depois, já lá estava o Dr. Matthews, que cumprimentou Sarnov e apertou a mão a Mclntyre e a Warren.

- Antes de o Dr. Matthews examinar minha mulher, devo pô-lo a par de certos factos. Ontem, a meu pedido, o Dr. Sarnov chamou o Dr. Warren para o consultar. Mas, quando este veio, à tarde, o Dr. Sarnov não estava presente. Fez depois o Dr. Warren ao Dr. Sarnov várias sugestões, que ele não considerou. Além disso, o Dr. Sarnov anulou pelo seu próprio punho as ordens dadas por escrito pelo Dr. Warren.

- Isto é o mais antiprofissional possível - protestou Sarnov. - Insisto no facto de continuar eu a ser...

Mclntyre virou-se ariscamente para ele:

- Seria mais sensato não insistir absolutamente em nada.

Muito pálido, virado para os outros dois, Sarnov comentou:

- Está sobreexcitado; é natural.

E não fez sequer menção de se retirar.

O Dr. Matthews examinou cuidadosamente primeiro a pasta, depois a doente. Por indicação sua, Ran levantou os pensos que cobriam a chaga operatória: ao longo da linha da costura, não havia aparências de abcesso, que poderiam explicar a febre. Quando, juntos, deixaram o quarto, Matthews mostrava-se sério.

- Que pensa, doutor? - inquiriu, ansioso, Mclntyre.

- É mais do que evidente tratar-se de perigosa infecção puerperal. O Dr. Warren reconheceu os sinais, ontem à noite. Se se tivessem seguido as suas instruções, as coisas teriam tomado outro rumo. Estaríamos, pelo menos, vinte e quatro horas adiantados relativamente ao mal.

- É tão grave como isso?

- Vamos fazer tudo que pudermos - volveu Matthews, pondo a mão no ombro do advogado. - Vá descansar, agora. Podemos precisar de todas as suas forças.

Ran lia no pensamento de Matthews: era a transfusão uma das armas mais poderosas que lhes restavam.

- Temos de actuar depressa, Dr. Warren. Culturas sanguíneas. Transfusões. Não sabemos qual é o germe, mas não podemos esperar pelas culturas para começarmos. Sulfamidas, em grande dose. Imediatamente, se é que você está de acordo.

Ran atirou-se com ardor à luta. Previram-se transfusões diárias de duzentos a trezentos centímetros cúbicos. Importantes doses de sulfamidas. Era-lhe familiar o terreno. Entrara em dezenas de batalhas semelhantes.

Menos de quarenta e oito horas depois, sabia já Ran que estava decidido o resultado do trabalho. Embora conhecendo que lhe era desfavorável a decisão, continuou sempre, estimulando internos e enfermeiros, a ponto de eles recearem a vinda ao átrio da sua alta figura. Já os germes haviam invadido todo o organismo de Rena Mclntyre; as culturas sanguíneas não deixavam a este respeito qualquer dúvida. E eram indícios que qualquer pessoa decifraria os arrepios quotidianos, os saltos bruscos de temperatura. Vigiou-a hora a hora, enquanto o corpo dela ardia literalmente de todos os focos do envenenamento. Apareceram abcessos, aqui e ali, à medida que a infecção se espalhava pelo sangue e se fixava nos vasos estreitos, que bloqueava com colónias novas e proliferantes de bactérias. Por sua vez, bloquearam as veias coágulos cheios de germes; as pernas e os braços incharam e avermelharam-se.

Depois, separou-se um coágulo qualquer, num vaso grande. Correndo rapidamente com o fluxo circulatório, chegou depressa - era inevitável - a uma veia pulmonar, onde parou e cortou o fluxo sanguíneo a um pulmão. Rena sufocou, sentou-se bruscamente na cama, lutando por recuperar a respiração. E tudo acabou: morreu antes de a enfermeira poder acomodá-la, de novo, no travesseiro.

Ran já tinha visto morrerem doentes assim. Na última linha da pasta, escreveu com uma letra de mão pouco firme: “Morta subitamente às 15.45. Embolia pulmonar”.

Ann telegrafara-lhe dizendo que chegaria no comboio das dez horas. Ao peso da fadiga e do desgosto, Ran foi esperá-la. A primeira impressão que teve, ao vê-la na estação, foi a de que ela havia avolumado surpreendentemente durante aqueles dois últimos meses. Ann acenou-lhe. No rosto, lia-se-lhe um sorriso contrariado. Ran teve a sensação de que a mulher precisara de reunir coragem para se encontrar com ele e que vinha de má vontade. Confirmou isso a angústia que lhe causaram as suas cartas frias e impessoais: não deixara de pensar no desvio dos fundos do bebé e não esquecia a ofensa.

- Estás pálido - disse ela, languidamente. - Tens trabalhado de mais?

- Tenho más notícias para te dar, Ann.

- Que notícias? Morreu alguém?

- A Rena Mclntyre. Hoje de manhã.

- O Sarnov?

- Sim; uma cesariana depois de ter começado a coisa. Infecção puerperal.

-- Oh!... Oh! - exclamou ela, num quase soluço. - Que horror! Pobre Bob!

Os olhos aumentaram-lhe de repente, a uma ideia:

- Não os preveniste das cesarianas do Sarnov?

- Não. Como podia eu fazê-lo? - volveu ele, lamentoso.

- Evidentemente! Como podias? Ética, claro. E morreu a Rena! Não consigo admitir.

Voltaram em silêncio, que Ann quebrou, ao descer do carro:

- E aquele caso da pneumonia, para que compraste o soro? Curou-se?

- Não. Morreu.

- Dinheiro perdido, portanto! - exclamou, triste.

Ran, que havia mais de vinte e quatro horas não largava a mesma roupa, foi logo para a casa de banho. Ao sair, em pijama, não estava ninguém no quarto.

- Ann!

- Boa noite! - respondeu uma voz da outra sala. -

Durmo aqui.

Fizera quarto na alcova.

 

Em sucessivas fases, numa espécie de gradação em sentido contrário, transformaram-se as relações entre Ann e Randolph. Na opinião de Ran, o responsável desta mudança era o estado fisiológico da mulher, porque, em parte, lhe alterava as reacções psicológicas. A primeira, a que se seguira ao episódio das economias, fora um espanto indignado.. Durante a ausência, dera tal virulência numa apatia física, numa espécie de indiferença distraída. Se alguém sugerisse que se lhe apagara o amor pelo marido, ela revoltar-se-ia. Não alimentava qualquer projecto de o deixar, mas o seu estado de espírito actual apoiava-se num rancor surdo, em profundo ressentimento.

Se fosse um homem qualquer, Ran poria fim à situação, sem mais delongas. Mas, sobretudo e antes de tudo, era médico; talvez demasiado médico. com toda a filosofia que pôde reunir, aceitou o afastamento físico e moral da mulher como consequência da gravidez, como um facto de que não poderia considerar-se ela a responsável. Exteriormente, tudo parecia pelo melhor, porque ambos eram pessoas educadas e polidas. Mas cada vez se encontravam menos. Ran trabalhava muito, à tarde. A instâncias dele, renunciou Ann ao seu trabalho no consultório, apesar do que lutara por o retomar, quando voltasse, pois a assaltava a avidez de cada dólar que pudesse apanhar, para enriquecer o capital do bebé.

- Restituí os cento e cinco dólares - disse ele, um dia.

- Já vi. Donde vieram?

- De duas ou três operações menores que apareceram no momento próprio.

- O bebé podia ter mais isso! - suspirou Ann.

Uma noite, estava ele a ler em voz alta e ela a fazer um coletinho de malha para criança, quando tocou o telefone:

- Chamada de serviço? - inquiriu ela.

- Não. A Graeme Ellice.

- Que queria ela?

- Dão um jantar na sexta-feira à noite. Queres lá ir?

- Bem sabes que não posso. Olha para mim!

- É uma situação perfeitamente respeitável, numa senhora casada. Havias de gostar da noite, creio eu. Há bridge.

- Oh! Então quer dizer que já lá foste?

- Já. Duas ou três vezes.

Ann sorriu:

- Aí estás tu apaixonado por ela, como todos os homens.

- Nada. Não me deixo prender pelas clientes. Nesse sentido, não.

Ela ergueu as pálpebras:

- Então é tua cliente?

^- É. O que já constitui uma oportunidade.

Ann continuou o fio do discurso, bem disposta:

- Os negócios progridem! E de que é que ela sofre? Parece resistente que nem um rinoceronte!

- Uma nevrose esquisita, ao que parece.

- Achei-a muito bonita, mas bastante leviana.

-- São os modos. É mais inteligente do que parece.

- Fazias bem em ir à festa - aconselhou Ann.

- Sem ti?

- com certeza. Porque não? Já lá foste sem mim, não é verdade?

- Apenas porque tu estavas ausente.

Ann sorriu mais uma vez:

- Ela não sofre com a minha ausência. As mulheres não lhe interessam. A sério, Ran: vai lá.

- Óptimo. Irei.

 

Ao passar pela memória a evolução das suas relações com Graeme Ellice, a si próprio perguntava Ran se não devia ter dado informações mais completas a Ann. Porquê, afinal? Graeme voltara à consulta, uma vez em estado de negra e completa depressão, outra vez em estado de exaltação nervosa. Olhara-o de soslaio:

- É bom cavaleiro?

- Em tempos gostava de montar. Porquê?

- Trata-me como se eu fosse um poldro respingão.

- E afinal não será isso o que você é?

- De qualquer modo, tem sobre mim a influência dum calmante. Será hipnotismo? Acho que você seria capaz de me levar a fazer fosse o que fosse. E eu não sou lá muito dócil!

- Não. Dócil não me parece realmente a expressão adequada. Não a classificaria em tal categoria.

- O que, da sua parte, é uma negra ingratidão. Até que horas fica cá?

- Até às cinco.

- Se nessa altura me vir lá em baixo, é capaz de ir comigo tomar qualquer coisa ao Country-Club? - Vendo-o hesitar, tornou-se mais persuasiva: - Estou hoje terrivelmente agitada. Você deve sentir responsabilidade pela sua doente... Ou não tem consciência profissional? Ouvi dizer que a sua consciência particular é muitíssimo exigente... Então? A bebida?

- bom. Combinado. com todo o prazer.

Quando ela saiu, Ran, perplexo, perguntou de si para consigo em que poderia a sua consciência particular interessar a Graeme.

As cinco horas, encontrava-se ela à espera, no pequeno e elegante carro; acolheu-o alegremente:

- Fiquei contente por não me ter desiludido. Tão raro me desiludem, que, quando isso acontece, é-me sempre nefasto. Não acha?

- Não. Ia mesmo dizer que só poderia ser-lhe salutar, uma vez por outra.

- A mortificação da carne. Não fui talhada no puritanismo, mas você podia tentar modificar-me. E, em primeiro lugar, qual é a boa, a verdadeira bebida dos puritanos? Eles iam direitos ao rum. Vamos nós aos daiquerís.

Por trás de Ran sentou-se um grupo, a que Ellice fez um sinal desinteressado com a mão.

- Está ali um amigo seu, que o olha com desaprovação. Virando-se ligeiramente, Ran viu Tim Brennan instalado no meio dum grupo de senhoras elegantes, entre as quais parecia um vagabundo. O que o não impedia de se encontrar perfeitamente à vontade.

Pouco depois, cruzaram-se no átrio.

- Então? Anda em cavalarias altas, parece-me <- disse Tim.

- Não é tanto assim, até agora.

- Será preciso avisar a Ann que vigie uma propriedade em perigo?

- Onde está o perigo?

Apagou-se o sorriso naquele rosto avermelhado:

- Que se passa entre você e a Graeme Ellice?

- Como? O quê? Nada! Ela foi consultar-me por qualquer coisa que parecia um estado hipertiróideo, mas não é. E não sei de que se trata.

- Sei eu!

- Então, diga.

- Ela anda perdida por si.

- Você está doido.

- Estou? Oiça-me. Não sabe que certas mulheres se deixam prender pelo médico, exactamente como as dactilógrafas pelo patrão ou as estrelas de cinema pelo produtor? É o atractivo da autoridade, meu caro. É provável que você a tenha impressionado gentilmente, e ela gosta disso e portanto pede mais. Abra os olhos, digo-lhe eu. Olhe que ela é perigosa!

Sem saber porquê, Ran sentiu-se subitamente furioso.

- Que sabe você da Graeme Ellice?

- Eu? Nada do que o Ran pensa: não sou o género dela. Demasiado camponês do Danúbio. Você é uma criança, Ran, um bebé ingénuo. Parece não perceber que não repele ninguém, sobretudo uma mulher insatisfeita física, mental e psicologicamente. Para a nossa boa amiga, suponho, o que marca são, em especial, os dois últimos pontos. E é o que faz as mulheres mais perigosas de todas. Além disso, descosem-se. Sem saber como, você ainda se encontra na secção de ecos escandalosos à’ A Terceira Alerta.

- Oh! Que disparate! A convivência com tanta velhada é que lhe deu esse complexo dos mexericos.

Calava-se o bom Tim. Evidentemente, Ran encontrava Graeme Ellice com mais frequência do que às outras clientes. E porque não? Onde estava o mal? Considerava-a agradável. Ela interessava-lhe não só como cliente, mas também como pessoa humana. Reconhecia mesmo sentir que alguma coisa o atraía para ela. Mas nunca lhe penetrara o consciente a ideia de ser infiel a Ann. E a própria Ann insistira em que ele fosse ao jantar e à festa.

Encontrava-se Graeme particularmente à vontade quando presidia à mesa, no meio do habitual luxo. Sentado à sua esquerda, gostaria Ran de que Tim estivesse presente para ver quão mal interpretara a situação. A atitude de Graeme para com ele era a de camaradagem franca, simples, à vontade. Pelo menos enquanto estiveram com os outros. Já tarde, uma vez terminado o bridge, ela conduziu-o à pequena biblioteca, para lhe mostrar um velho tratado de medicina que encontrara e adquirira num alfarrabista. Ele percorreu-o:

- É bastante raro, creio. Mas talvez de pouco valor.

Graeme não olhava para o livro, mas sim para o homem.

- vou pedir-lhe uma coisa, Ran.

- Diga.

- Talvez tenha vontade de me bater.

- Procurarei refrear esse mau ímpeto.

- Você refreia muito bem os seus impulsos, não acha?

Sem esperar pela resposta a uma pergunta que ele não compreendia claramente, Graeme acrescentou:

- Foi amante da Frances Mayfield, não é verdade?

- Nunca!

Por muito que detestasse a mentira, Ran mentiria sem hesitar, em tal circunstância, mas felizmente não precisou de o fazer: salvou-o a própria forma da pergunta. Graeme sorriu e, aproximando-se mais:

- Sim, eu devia ter dito “Frances Libby”. Não lhe suspeito qualquer infidelidade, desde que casou com o primo Bob. É uma mulher que sabe fazer o seu jogo.

- Você precisa de deixar um bocado a imaginação em descanso, Graeme. Essas fantasias são novo sintoma do seu caso.

Ela ignorou a observação e continuou:

- É claro que você também sabe jogar. Mente como homem bem educado que é. Mas dá-se o caso de eu saber. Não que a Frances me tenha feito a mais pequena confidência. Mas pela maneira como ela fala de si. Uma mulher compreende.

- Não vi a Frances Lib... Frances Mayfield uma única vez desde que casou. Como está ela?

- Mais encantadora do que nunca. É espantosa! Sabe o que espera da vida. (Pausa). Eu nunca tive um amante - continuou, com calma deliberada - embora, provavelmente, o Ran não queira acreditar.

- Porque não, se você o diz?

- É verdade. Esteve quase a acontecer, uma vez. Alguma coisa me deteve. Talvez fosse melhor ter ido até ao fim. Que acha?

- Serviço de moralidade. Não é o meu campo.

Ran tentava mostrar-se desinteressado, mas ela contrariou-o:

- Não é você o meu conselheiro, o meu guia? Sabendo o que ia acontecer, ele conservava-se imóvel e silencioso, como que enfeitiçado, vendo-lhe a excitação do peito a palpitar, as pálpebras a descerem pesadamente, até lhe cobrirem o olhar. Os dedos da rapariga foram-lhe para o pescoço - estavam gelados. A respiração da rapariga foi-lhe para a boca - ardia, e espalhou o seu fogo nas veias do homem. Ao cabo de um longo momento, ela desligou-se do abraço, dizendo, muito depressa e baixinho:

- Vem aí alguém. - E depois, com um sorriso: - Eu já o tinha prevenido de que obtenho sempre o que desejo...

Terminou a reunião. Ela disse-lhe adeus em termos que qualquer pessoa podia ouvir. De facto, vários convidados os ouviram. Apenas para Ran eles tinham evidente significado:

- Parto para Nova Iorque, onde vou passar três semanas. A vista...

 

Encontrava-se presentemente bem organizado no hospital municipal o trabalho de Warren, que, operando e despachando os casos o mais depressa possível, aumentara consideràvelmente o rendimento do serviço de doentes externos. A maioria dos outros serviços tinha grandes listas de doentes à espera, de que nunca mais tratavam. Devido à eficácia e rapidez que dera à organização do seu, este já não lhe exigia permanente concentração.

Por outro lado, diminuía lastimosamente a actividade do consultório.

Para ocupar o espírito, que não podia suportar a inacção, decidiu tomar parte mais activa nos trabalhos das organizações médicas locais.

Em Baltimore, no tempo de Lakeview, tinham sido estimulantes, vivificantes as reuniões da sociedade médica do hospital. Nessa grande clínica todos participavam delas, ao menos com a simples presença, encontrando-se para ouvir palestras cheias de interesse e para intervir na discussão que se lhes seguia. Reinava uma atmosfera de camaradagem, de colaboração amiga, e todos os meses se ouviam comunicações espantosas acerca de assuntos que apaixonavam um ou todos os serviços do hospital.

Em comparação (e em si próprias!), as sessões da Academia de Medicina de Farmington, que Ran agora frequentava, revestiam-se de uma insipidez, de um vazio, de uma poeirenta inutilidade, que ultrapassavam quanto se pudesse calcular.

Certo membro, cujo nome ele até ignorava, lia às vezes uma memória sobre o cancro, compilação informe, com elementos colhidos num manual, raramente no mais moderno. Outros se levantavam então, cortesmente, com a ponta dos dedos tocando no queixo, e agradeciam ao orador aquela comunicação tão particularmente luminosa e apaixonante. Depois, para impressionarem os confrades com o próprio saber e a amplitude da sua experiência, acrescentavam a narrativa duma operação que haviam feito, ou referiam-se ainda a qualquer jornal estrangeiro.

Warren estava mais ou menos resolvido a renunciar a estas sessões insípidas, quando recebeu o programa da próxima reunião, onde se lia: “Da operação cesariana nos casos de toxemia, com notícia de vinte casos... Dr. Cari S. Sarnov”.

Como sempre, instantemente se solicitava aos membros que comparecessem daquela vez, particularmente importante. Ran não necessitava de insistências. Não podia decidir de antemão como conduziria a nau, mas estava firmemente disposto a dizer o que pensava, desde que lhe surgisse oportunidade, e embora tivesse ele de a fazer surgir. Sabia que lá se encontraria, em peso, a clínica Metzger-Sarnov-Miller-Hospital Municipal. com efeito, por sua política de sociedade, eram eles quem dominava quase a Academia. Presidiria o Dr. Miller. Para garantir apoios úteis, em caso de debate violento, Ran convidou pelo telefone Howard Dater, Porky McNab, Joe Pound, Mark Riley, Bill Williams, e, após reflectir bastante, o Dr. George Matthews. Todos prometeram aparecer.

Antes de entrar, Warren encontrou à porta, à sua espera, Dater e Bill Williams:

- Olhe quem está ali à esquina - disse Dater.

Ran estendeu o pescoço, mas alguns vultos tapavam-lhe a vista.

- O Bob Mclntyre - precisou Dater.

- com a inteligente Herpel, que nos ajudou naquele famoso caso de pneumonia - acrescentou Bill. - E logo a seguir a ter-lhe morrido a mulher...

- Não tem nada uma coisa com a outra - disse, severo, Howard. - Já reparou na cara do Bob? Completamente desfigurado. Receio alguma desordem.

- E eu tenho esperança - disse Porky McNab, que acabava de se lhes juntar. - Se ele pudesse rebaixar aquele... do Sarnov!

Um aviso de dentro convidou-os a ocupar os seus lugares. Mclntyre e a enfermeira sentaram-se ao fundo. Ran ouviu Sarnov desenvolver um texto habilmente preparado, em que recomendava a operação cesariana no tratamento da toxemia pré-eclâmptica da gravidez. Ran sabia que tal assunto se prestava sempre a discussões entre os ginecologistas, apesar de as clínicas mais conservadoras se recusarem a aderir-lhe. Era um modo dramático de acabar a gravidez, impedindo o desenvolvimento da verdadeira eclampsia com convulsões, cegueira ou qualquer dos terríveis sintomas que a acompanhavam. Todavia, mostravam as estatísticas organizadas na generalidade dos países, sem refutação possível, que os resultados obtidos na toxemia tratada pela secção cesariana estavam longe de equivaler aos obtidos pelos métodos habitualmente empregues. Devia-se, porém, reconhecer que, com suas maneiras polidas, sua voz untuosa, seus gestos seguros e confiantes, Sarnov valorizara convenientemente a tese. E eis que, no fim, veio uma afirmação que deixou Ran completamente atónito e quase desconfiado dos ouvidos:

- E assim - e, erguendo os olhos do papel, Sarnov sublinhava com ênfase todas as palavras - podemos apresentar vinte casos de toxemia pré-eclâmptica tratados por secção cesariana, sem um malogro.

“Sem um malogro!” Ran só deu por que se tinha levantado num salto quando Dater e McNab o puxaram violentamente para a cadeira.

- Ainda não é a sua vez - sussurrou Porky.

Era verdade. Ran voltou a si, lembrou-se de que tinha de esperar que terminasse a leitura das outras comunicações; aguardando a hora de falar, ocupou o espírito a reunir mentalmente notas de resposta ao estudo de Sarnov.

O facto de poder apresentar vinte casos de cesariana já em si era bastante mau. A maioria dos parteiros não contava tantos em toda a vida. E os melhores médicos modernos não tratavam a toxemia com cesarianas. Mas - e era isso o mais grave - Sarnov mentia a respeito da mortalidade. Era muito possível ele ter operado vinte casos de toxemia (e, muito provavelmente, com toxemia bastante para o autorizar a discutir a favor da operação), sem se lhe seguir a morte. Nesse caso, suprimira do relatório, pelo menos, as duas operações fatais que Ran conhecia. Muito mais do que duas, talvez. Mas aquelas, certas e incontestáveis, omitia-as ele, para anunciar um recorde de cem por cento de bons êxitos. Tal resultado, garantido por aquele untuoso e plausível demónio, podia acarretar perigosas consequências: grande quantidade de médicos, que se tinham por cirurgiões, sentir-se-iam assim encorajados a operar, e daí a perda de numerosas existências; e o processo da cesariana cairia em desfavor junto do público, de modo que médicos parteiros de verdade se viriam impossibilitados de o empregar, quando fosse realmente necessário.

Se é que Ran ouviu os outros números do programa, só a custo o conseguiu. O presidente chamou vários membros para os discutirem e anunciou por fim que estava aberta a discussão geral. Levantou-se Ran:

- Senhor presidente!

(Nem reconhecia o som da sua própria voz.) O presidente passeou o olhar míope:

- Quem pede a palavra? Ah, sim, o Dr. Warren!

- Queria fazer uma pergunta ao Dr. Sarnov.

- Estou certo de que o Dr. Sarnov...

- Para o estrado, para o estrado !

Eram os elementos mais novos que, prevendo a desordem, desejavam aproveitá-la ao máximo.

O curto instante de se dirigir à pequena tribuna permitiu a Ran recompor-se. Estava calmo e senhor de si, ao dirigir-se ao parteiro:

^- Devemos entender, Dr. Sarnov, que apresentou o relatório de cem por cento de bons êxitos, na prática da operação cesariana?

- Os números são eloquentes, suponho eu, Dr. Warren.

- Os números são completos, sem reticências?

Reinava no auditório um silêncio total. A réplica de Sarnov foi acerba, com certa irritação:

- Referi-me a vinte cesarianas autênticas, em casos de toxemia, sem nenhuma perda.

- Omitiu duas, que terminaram fatalmente. Dois casos que eu pude observar. - Falando pausadamente, Ran voltou-se para o presidente: - Gostaria de completar o relatório do Dr. Sarnov, o seu incompleto relatório...

Estava de pé o Dr. Metzger:

- Esta observação é de todo inconveniente. Peço à presidência que intervenha.

- Obrigado, Dr. Warren - disse o presidente, empregando a fórmula que põe fim a qualquer intervenção.

- Devo entender que não tenho o privilégio da palavra? - perguntou Ran, incrédulo.

O presidente Miller martelou secamente na mesa:

- Obrigado, Dr. Warren - repetiu, com maior ênfase. - Há mais pedidos de discussão? Senão...

- Senhor presidente!

Viraram-se todas as cabeças, quando interveio uma voz, fina e clara como lâmina de aço, e igualmente cortante.

- Dr. Matthews?

O presidente encontrava-se, sem sombra de dúvida, surpreso e descomposto.

- Isto, aqui, é um foro aberto a todos. Peço que se oiça tudo quanto o Dr. Warren disser. E sem protestos, doutor! - acrescentou, imperiosamente, vendo que o presidente se preparava para objectar.

De todos os presentes, nunca nenhum vira o decano do corpo médico, tão perfeitamente digno e cortês, chegar àquele ponto de cólera.

- Fale, Dr. Warren.

Ran recomeçou:

- Um dos dois casos suprimidos...

- Protesto contra a palavra suprimidos - gritou Sarnov.

Interveio o Dr. Miller, infeliz e suado:

- Tenho a certeza de que o Dr. Warren vai respeitar a cortesia dos debates...

-- Vou. Retiro o termo. Um dos dois casos que escaparam à memória do Dr. Sarnov...

- Fora! Embora! Sente-se!...

- Aquela súcia Metzger - Sarnov associava-se e opunha-se.

- ...situa-se no hospital municipal -” prosseguiu Ran, imperturbavelmente. - Assisti à operação. Era uma apresentação transversal, com a mão e o braço fora da vulva. O Dr. Sarnov executou uma das mais belas secções que eu já vi: felicito-o pela sua soberba técnica operatória. Por infelicidade, a doente morreu, devido à infecção semeada e espalhada, do útero ao peritoneu, quando o operador levou o braço e a mão para o interior do abdomen. Eis um dos casos sup... dos casos omitidos. Ofereço-o como primeiro correctivo à pretensão dos cem por cento de bons êxitos.

Metzger levantou-se, foi falar ao ouvido de Sarnov, e depois virou-se para a assistência, que, silenciosa, estava empolgada pelo drama:

- É-me impossível - começou ele - falar dessa operação. As condições eram excep...

- É minha a palavra, senhor presidente? - informou-se Warren.

Ergueu-se o jovem Matson, do hospital municipal:

- Isto já chegou muito longe. Pode haver repórteres na

sala.

- E depois? - indagou Porky McNab. - Estamos numa

assembleia pública.

- Guardem ao menos a roupa suja para a lavarem em casa - respondeu uma voz forte, vinda do fundo.

- É minha a palavra, senhor presidente? - interrogou Ran, com a mesma paciência.

Metzger interveio de novo:

- Senhor presidente: passaram os cinco minutos do orador.

- Obrigado, Dr. Warren - repetiu Miller, sem força. - Agora, Vou...

- Abaixo!

- Deixem-no acabar!

- Prolongamento!

- Dêem-lhe uma oportunidade!

- Nada de intervenções!

Surgiam e multiplicavam-se os mais variados protestos. Na história da Sociedade, nunca se vira reunião tão tumultuosa, tão inconveniente.

- Acabo num minuto, senhor presidente - recomeçou Ran. - O segundo caso era o de uma doente particular. Talvez fossem claras aos olhos do Dr. Sarnov (mas só aos do Dr. Sarnov) as indicações que requereram o processo operatório. Para os outros observadores, eram obscuras. Julgo exprimir aqui exactamente a opinião do Dr. George Matthews, chamado como consultor, e, igualmente, a minha.

- Exprime, sim. E muito bem - garantiu o decano.

- Obrigado, doutor. Infelizmente, passados alguns dias, morreu a paciente, também de infecção, porque se praticara nela um tipo clássico de operação, cerca de doze horas depois de rota a membrana, com o útero já quase inteiramente dilatado e sem que qualquer obstrução impedisse o parto por via natural, pelo método normal.

- Esses casos não têm nada com o meu papel - disse Sarnov, voz trémula, rosto lívido.

- Mas têm alguma coisa com a vida de cada qual! - clamou Bill Williams.

Ran ergueu a mão para sossegar o crescente murmúrio:

- Enquanto os doentes estiverem expostos a uma cirurgia sem garantias, enquanto não houver fiscalização à capacidade do médico ou ao seu diagnóstico, haverá coisas deste género. Obrigado!

Voltou para o seu lugar, no meio de uma rajada de aplausos.

- Dr. Sarnov?

O presidente interrogava com o olhar, para convidá-lo a concluir, como era costume. Mas o parteiro abanou negativamente a cabeça. Tinha a necessária prudência para não tentar dizer fosse o que fosse, depois das fulminantes acusações de Ran.

Terminou a reunião, sem, contudo, os grupos se separarem logo. Aqui e ali, retomavam a discussão - uns aprovadores e entusiastas, outros indignados e exacerbados, e todos muito excitados.

Ran ouviu a voz ácida de Metzger:

- É absolutamente necessário fazer tudo para o expulsarmos.

Frase a que se seguiu a tranquila advertência de Matthews:

- Permita-me que lho desaconselhe.

Considerava a maioria da opinião haver Ran dito coisas que tinham cruel necessidade de se dizerem. Entre a multidão que o arrastava para a cervejaria “Guenther”, a fim de aí festejar o acontecimento com salsichas e cervejas, acercou-se de Ran Miss Herpel.

- Belo trabalho, Dr. Warren. Está lá em baixo o senhor Robert Mclntyre, que gostava de lhe falar, antes de sair. Pode ser?

- com certeza. Desço consigo.

- Eu vou atrás, Ran - declarou Howard Dater.

Miss Herpel pareceu hesitar um momento, e, depois, disse:

- Muito bem. - E preveniu: ^- Ele está terrivelmente nervoso...

Desde logo ficaram os dois homens surpreendidos com o aspecto grisalho e murcho do advogado que, sem o menor cumprimento, se dirigiu a Ran:

- O segundo caso que você citou era o de minha mulher?

- Era.

- E o primeiro caso, o do hospital, tinha-se passado antes?

- Tinha. Mas...

- Você não me preveniu! Não preveniu a Rena!

- Não podia! - protestou Ran, desolado. - Há regras que eu não posso violar.

- É um caso de ética, Bob - interveio então Dater. - Um médico não tem direito de intervir contra outro...

- Um momento. Então você, Howard, também sabia?

- O Howard não assistiu à primeira operação. Não viu o que eu vi. Não pode ser considerado responsável.

com um gesto, o viúvo impôs silêncio a Ran.

,- Você sabia, ou não, Howard, que o Sarnov é um incompetente?

Dater respondeu, com lealdade:

- Se o senhor quer censurar o Dr. Warren, tem de me incluir a mim na censura: eu sabia que a operação era inútil.

- E eu que o julgava meu amigo! E amigo da Rena! - Escapou-lhe um som rouco e duro, uma voz onde tremia o ódio: - Saiam-me da frente, os dois! Saiam-me da frente! Não quero mais nada com vocês. Só uma coisa: vou inscrever-me com dez mil dólares na Liga da Reforma Médica. Será a minha oferta à memória de minha mulher. Desde este momento, sou pela medicina estadualizada. Sou por tudo que puder quebrar essa danada conspiração médica do silêncio, essa maldita cumplicidade. Ética médica! Linda porcaria! É tempo de nos desembaraçarmos desta moral falsa que sacrifica inocentes para proteger criminosos diplomados e licenciados. - E de súbito: - Rena! Rena! - e desfez-se em soluços.

Todo sacudido, Ran caminhava ao lado do amigo. Teve de reunir todas as suas faculdades para perguntar:

- Que liga é essa da Reforma Médica? Nunca ouvi falar nela.

- É um movimento a favor da fiscalização do Estado sobre a medicina. Não sei nada ao certo. Não tem fins muito declarados. Julgo haver compreendido que a fachada política dessa Liga é o pai do seu amigo Larry Wilson... Então, Ran? Não vem tomar uma caneca connosco?

- Não. Volto para casa.

- Também não me sinto com muita disposição. Pobre Bob! Parece um cadáver. Mas que havíamos nós de fazer? Qual não seria o estado da profissão, se os médicos se lembrassem de ir prevenir os doentes da incompetência dos outros!

- Eu sei - disse Ran. - Eu sei. Procedemos bem. Mas não é isso que me consola!

Como contrapartida à dolorosa tensão resultante do encontro com Robert Mclntyre, teve, no dia seguinte, a segunda continuação da sua aventura, ao encontrar na secretária um cheque do hospital, com um aviso de extrema concisão:

A partir de 15 do corrente, ficam dispensados os seus serviços no Hospital de Farmington.

 

Embora lhe tivesse custado o emprego, o escândalo provocado por Ran na Academia de Medicina valeu-lhe também compensações. Teve contactos mais estreitos e frequentes com os colegas. Aproximavam-se dele homens com quem até aí não trocara meia dúzia de frases: felicitavam-no pela sua coragem. A opinião ia-se declarando contra a pandilha Metzger - Sarnov - Miller. Numa semana, chegaram a Ran três casos - de pouca importância, verdade se diga - enviados por médicos cujos nomes lhe eram bastante familiares. Uma esquina para transpor, uma entrada em meios para ele novos; se tratasse esses casos satisfatoriamente, enviar-lhe-iam outros. Teve o cuidado de os examinar a todos com minúcia e de fazer chegar a cada um dos médicos assistentes que lhos enviaram um relatório pormenorizado das observações.

- Talvez tenha feito mal em bater com tanta força nos médicos de clínica geral - confiou um dia à mulher. - Agora, que começo a conhecê-los, vejo que há entre eles alguns tipos muito capazes.

- Não te tenho dito eu, sempre, que devias sair mais e procurar encontrar os teus colegas?

Mesmo com estes proventos novos, a perda do salário mensal era para o jovem médico golpe bem duro. Poucas semanas faltavam para vir ao mundo o bebé de Ann. Obrigado a encarar o problema de frente, Ran tinha de reconhecer que não via como sair da situação.

- Se uma Providência amiga quisesse enviar-me um apêndice bem inflamado, encostado a uma conta de banco assaz gorda - disse ele um dia a Howard Dater, que fora visitá-lo

- sempre podia pensar em pagar a casa.

Enquanto a rapariga andava às voltas com o frigorífico, Howard, inclinado para o amigo, perguntou-lhe a meia voz:

- A Ann está absolutamente bem?

- Está. Pelo menos, que eu saiba. Porquê?

- Não sei. Há qualquer coisa no seu aspecto que me não agrada lá muito. Tem ido ao Dr. Matthews?

- Mando-a lá amanhã - prometeu Ran, que sabia como Dater utilizava frequentemente aquele sexto sentido próprio dos que nasceram para diagnosticar.

O Dr. Matthews tinha saído por alguns dias. Atrasou-se, pois, a visita a que Ann só se decidira após muita insistência do marido, protestando que se encontrava absolutamente bem, e a qual só se fez quando o parteiro regressou; a rapariga voltou para casa a rir das inquietações conjugais. Mas Ran encontrou no consultório um papel do Dr. Matthews pedindo-lhe que o procurasse cerca das quatro horas.

- Olá, Warren! - saudou-o o outro. - Venha comigo à sala de radiografia: quero mostrar-lhe uma coisa. - com ar grave, pegou numa chapa que tinha em cima da secretária e pô-la à luz: - É a imagem que ontem tirei ao abdome e bacia de sua mulher.

- Sim. Ela disse-me que o doutor tinha querido determinar exactamente a posição do bebé.

- Foi o que eu lhe expliquei. Mas a minha intenção era outra. Não vê nada de especial nesta chapa?

Ran tornou a examiná-la. Viam-se, nítidos, os ossos da coluna vertebral da criança, e, mais ao de leve, a sombra dos braços e das pernas. A cabeça devia estar na extremidade da bacia. Mas não se distinguia. Depois, à custa de muita atenção, discerniu, vaga e esbatida, a linha geral duma estrutura redonda e volumosa, na extremidade superior da coluna vertebral. Essa concha, revelada pelos raios X e que devia ser osso, representava três ou quatro vezes uma cabeça normal.

Hidrocéfalo! A cabeça duma criatura que, a nascer, ficaria incuravelmente idiota!

Ran procurou apoio: sentia-se desfalecer.

- Há muito que suspeitava de... desta coisa?..- perguntou, quando se considerou capaz de dominar a voz.

- Tirei a radiografia para ter a certeza.

- O desastre do Natal? Será isso?

- Nunca se sabe. É muito provável que a queda tenha feito perigar certas células.

- Que havemos de fazer?

Era rouca e ansiosa a voz de Ran.

O Dr. Matthews apagou a luz do aparelho e meteu a chapa no sobrescrito cinzento:

- A meu ver, temos dois caminhos, e só você poderá talvez escolher o que devemos seguir. O primeiro, evidentemente, é a cesariana. Garante o nascimento do bebé vivo, e, se se fizer antes de a coisa começar, não põe a vida da mãe em perigo.

Ran inclinou miseravelmente a cabeça.

- A alternativa consiste no que é habitual fazer.

Ran compreendia. Isso valia mais, sem dúvida. Tudo valia mais do que deixar viver um monstro.

- Dou-lhe liberdade, Dr. Matthews. Mas, pela minha parte, não operava.

- Eu não operaria sem sua ordem expressa. Vai-lhe dizer?

- Não - e abanou a cabeça. - Ela não tem necessidade de saber: pode ser nado-morto.

Sofria por ela a dor que ia causar-lhe esta perda, mas sabia-a infinitamente menor do que as consequências de se adoptar a outra decisão.

Se é que Ann deu conta de qualquer alteração da parte do marido, não teve tempo para pensar nela, porquanto nessa mesma noite começaram as dores - duas semanas antes da data prevista. Pouco depois da meia-noite, Ran levou-a ao hospital. O Dr. Matthews deu-lhe um forte sedativo, já que não havia preocupações com a respiração da criança. Levaram-na a dormir para a sala de operações, às seis horas da manhã.

Ran encontrava-se à espera no vestiário. Havia muito que não chorava. Mas tinha os olhos inchados e vermelhos, quando, meia hora depois, o Dr. Matthews voltou, pálido, limpando grandes gotas de suor:

- Ela está bem, meu filho. O bebé não respirou.

Ann teve de ficar dez dias no hospital. Duas vezes ao dia, Ran ia vê-la e procurava, em vão, distraí-la. Mas ela conservava-se triste e distante. Certa manhã, ao chegar, encontrou o quarto repleto de flores caras.

- Oh! Que luxo! Quem é o generoso?

Nos olhos de Ann brilhava algo da antiga estrela, quando respondeu:

- Tenho um novo apaixonado!

com o dedo, apontou para um bilhete de duas linhas:

Restabeleça-se depressa.

com todos os votos do seu amigo

Martin T. Bayner.

- O Marty Bayner! Veio ver-te?

- Veio. Passou meia hora a explicar-me como tu és admirável. Eu quase ia acreditando...

- É um excelente juiz. Aprecia com muito acerto os homens. E as mulheres também. Nunca vi tantas flores juntas. As rosas do Larry Wilson, comparadas com isto, não passavam de morriões para os passarinhos.

- Suponho que o senhor Bayner podia auxiliar-nos. Quero dizer: na crise actual, se achas que é uma crise. Se por acaso houvesse na cidade alguns empregos disponíveis para um médico novo, talvez ele pudesse fazer alguma coisa.

- Mesmo que eu quisesse servir-me duma cunha política (e não quero!), acho que ele nada poderia fazer por mim. Outra coisa seria se houvesse vigilância do Estado. Se o tio Sam se ocupar de nós (ou quando se ocupar), os homens como eu hão-de ver que a sua situação depende quase inteiramente da boa vontade das manobras políticas no Conselho Municipal. Linda perspectiva!

- Essa ameaça está tão perto para tu te preocupares assim?

- Às vezes sinto-me tão seguro da sua iminência que a mim próprio pergunto por que motivo continuo a inquietar-me. Talvez devesse fazer tudo pela sua chegada. Se estivéssemos às ordens do Estado, não tinha agora ralações por me haverem despedido.

- Compreendo que essa organização podia dar mais segurança aos médicos novos - disse Ann, meditando. - Mas isso compensaria... tudo o mais?

- Não. Não compensava. Nem pensar nisso é bom.

Ann mudou de conversa:

- A propósito: o Larry volta daqui a pouco. Recebi uma carta dele, datada de Dálias. Ah! E o Dr. Matthews quer falar contigo no gabinete da vigilante.

Ran desceu e encontrou Matthews, sozinho, a fumar.

- Que aconteceu no hospital municipal, Warren? Você demitiu-se?

- Não foi preciso, nem tive tempo: demitiram-me.

- Logo vi que isso havia de acontecer, pela maneira como você tratou o Sarnov. E como ficou você? As suas finanças andam por baixo, se me permite a indiscrição?

- É a maneira mais suave de dizer...

- Então talvez lhe interesse uma proposta que tenho para lhe fazer. Viu a nossa prisão no campo, não é verdade?

- Ao longe e por fora.

- Talvez eu consiga metê-lo lá dentro - disse Matthews, sorrindo. - Está vago o lugar de médico, e o director pediu-me que lhe arranjasse um rapaz competente. Isso implica a presença durante a manhã e, é claro, a necessidade de estar à disposição, em caso de urgência. O ordenado é de duzentos e cinquenta dólares por mês.

- Duzentos e cinquenta dólares! Mais do que no hospital municipal! E em troca de algumas horas de presença, de manhã.

Matthews continuou:

- O director apoia o candidato que eu lhe apresentar. Já lhe disse que pensava em si. É claro que a política tem sempre o seu papel nas nomeações deste género. Mas parece-me que posso garantir-lhe esta, se você quiser.

- Se eu quiser! É mesmo um dom do céu. Nem o doutor pode saber o que isso representa para mim.

Ao vê-lo excitadíssimo, Ann mirou-o com surpresa:

- Quem te deixou por herdeiro?

- O Dr. Matthews. Ou é como se deixasse. Nada de aflições: vou para a prisão.

- Acalma-te e repete. Não tens mais aflições porque vais para a prisão. Parece realmente muito vantajoso, mas... e eu? Que faço eu lá dentro?

- Podes ir acenar-me às grades. Estou na lista para o lugar de médico da prisão, com duzentos e cinquenta dólares por mês! Que achas tu? E por metade do tempo, o que ainda é melhor. De manhã e as urgências. Posso assim ficar com o consultório e a clientela particular. O Dr. Matthews pensa que me consegue a nomeação.

Ficou surpreendido Ran quando o director da prisão o levou a visitar a enfermaria, que se encontrava num edifício isolado a um canto da cerca de arame farpado. Compreendia: duas salas, de cinco camas cada uma; várias camas, separadas, para os mais e menos doentes; e uma grande sala de operações, de aparelhagem muito completa. Havia mesmo um pequeno aparelho de raios X, um fluoroscópio e um laboratório apetrechado para as análises de sangue e urina. Hospitalizados, havia apenas uns três ou quatro doentes, à vigilância de uma enfermeira de cabelo cinzento, cujo aspecto calmo e respeitoso lhe agradou.

- Tem aqui um hospital muito melhor que em muitas cidadezinhas - disse Ran ao director.

- É o que me têm dito. Costumávamos mandar os nossos doentes para o hospital municipal, o que apresentava sérios inconvenientes:éramos obrigados a enviar simultaneamente alguns guardas, cujo serviço precisávamos de garantir, e isso, afinal, custava tão caro ao Estado que eu pedi autorização para mandar construir esta enfermaria, feita inteiramente pelas mãos dos presos. De modo que os instrumentos puderam comprar-se graças às economias que representa o não haver empreiteiro. E os meus homens são hoje muito mais bem tratados do que quando os mandávamos para a cidade.

- Será decerto um prazer trabalhar aqui.

- Visitamos os doentes todas as manhãs. Se cá chegar pelas sete e meia, deve poder, normalmente, voltar ao consultório cerca das onze. Entre os presos, há um ex-estudante de medicina, que serve de anestesista.

“Vai ser extraordinário!”, pensou Ran, que estabelecia mentalmente uma comparação entre a pequena enfermaria, limpa e clara, com a sua fila de leitos asseados, e toda a barafunda, a desordem e a agitação do hospital municipal. Era uma nota desagradável os pobres vadios das ruas, que quase nunca sabiam donde lhes viria a próxima refeição, não poderem obter cuidados médicos tão bons como os dos encarcerados. Devia haver um meio de melhorar as condições de vida que condenavam a arraia miúda a uma miséria e a uma sujidade tais que lhe enfraqueciam a resistência natural e a tornavam presa de qualquer epidemia que por ali passasse.

- Espero poder tê-lo connosco, Dr. Warren - disse o director.

Nas suas maneiras, na sua voz, algo sugeria uma dúvida, que Warren notou:

- Há algum obstáculo?

- É possível que tudo se arranje. Ouvi falar no nome do Dr. Willeston. E ele tem fortes apoios políticos. Você não conhece ninguém que se mexesse?

- Suponho que não.

- Em todo o caso, você tem fortes apoios médicos. E eu farei o que puder.

A guisa de adeus ao hospital municipal, estava Warren resolvido a ter uma explicação com o Dr. Metzger. Alguns membros do pessoal - especialmente Riley e Bill Williams - insistiram com ele para que não deixasse de o fazer.

- Diga a esse velho malandro que vai requerer um inquérito - aconselhou Williams.

- Por quem?

- Não sei. Mas pode fazer-lhe dores de barriga.

Quando Ran visitou, com hora marcada, o Dr. Metzger, a atitude deste não denotava qualquer pânico. Parecia até ainda mais satisfeito que de costume.

’- Que posso eu fazer por si, Dr. Warren?

- Penso que tenho direito a uma explicação acerca da minha despedida.

- Eu não penso o mesmo. Mas, se insiste...

- Insisto.

- Muito bem. Tanto pior!

Metzger carregou num botão e disse ao contínuo que apareceu:

- Traga-me as cópias das pastas e relatórios clínicos do hospital Saint-Francis relativos ao caso Maud Leopold.

O caso acerca do qual o enganara Barkett! Ran sentiu-se de repente ferver de cólera, e gelar de apreensão, depois.

- Você sabe muitíssimo bem que esse caso me chegou com diagnóstico falso.

- Sei muitíssimo bem que praticou uma raspagem e um parto em gravidez absolutamente normal. O vocábulo mais preciso e desagradável é aborto.

Ran agarrou-se aos braços do sofá para se conter.

- Não apresentarei nenhuma acusação, a menos que me obrigue a fazê-lo. Entende-se, claro, que qualquer inquérito oficial relativo à sua despedida traria à luz, automática e inevitavelmente, a operação Maud Leopold.

- Õ Metzger: eu devia espancá-lo até dar cabo de si. Mas tenho medo. É a verdade: tenho medo! Alguém se há-de encarregar disso, um dia. Só desejo uma coisa: é ver!

A Terceira Alerta publicou um anúncio onde dizia que o Dr. Lester Willetson havia sido nomeado médico da prisão. A informação já fora dada a Ran por Metzger.

 

De todas as epidemias, a menos previsível, a mais indefinível e, por isso mesmo, a que os Serviços de Saúde mais receiam, é a gripe. Propaga-se, às vezes, gradualmente, e, antes do desenvolvimento crítico, constitui uma espécie de advertência o progressivo aumentar das constipações. Mas também pode varrer subitamente um país, do mesmo modo que a calema varre toda uma região baixa.

Desta vez, a epidemia invadiu Farmington às ocultas, com cautela, como o animal que persegue e força a presa. Abriram o caminho alguns dias de vento glacial, amontoando neve junto dos passeios - a neve que tão raro se vê naquela cidade do Sul.

O tufão atravessou com o seu bafo as finas muralhas das casas, dèbilmente construídas, do bairro pobre - o bairro das fiações. Nos pátios, diminuíram os pequenos montes de carvão. E, naquele recanto, onde eram raras as compras, foi difícil satisfazer, à falta de organização habitual, os pedidos que surgiram, de súbito, cada vez mais numerosos.

Vinda aparentemente de lado nenhum, caiu então a epidemia.

Certo dia, houve alguns casos do que os médicos consideraram gripe benigna: aqui e além, um homem, uma mulher, ao deitarem-se, queixavam-se de dores de cabeça, às vezes de grande cansaço, de dores nas articulações, de pequena febre, ou até de arrepios. Não era isso motivo para cuidados: sabiam os médicos que, após um período de mau tempo, deviam sempre prever-se alguns doentes deste género. Especialmente no Sul, onde as pessoas não estão habituadas a frios rigorosos, à humidade penetrante da geada e da neve. Pouco faltava para se ocasionarem aquelas subidas de febre, aquelas dores de cabeça, aquelas dores articulares ou ósseas, indefinidas, que os médicos catalogavam com a designação de “indisposição geral”, e os Negros, mais pitorescamente, com a de “miséria em toda a parte”.

No dia seguinte, contavam-se cem casos.

Vinte e quatro horas depois, quinhentos. Depois, mil.

A quatro dias das primeiras manifestações, tornava-se impossível calcular o número das vítimas. Três mil? Cinco mil?... Talvez dez mil...

Só havia a certeza duma coisa: que Farmington estava a braços com a mais grave epidemia da sua história. Não se conhecia uma casa onde não se visse, ao menos, um doente, extenuado e cheio de febre. No bairro superpopulado das fiações, atingiu o mal percentagens terríveis. Não se podia já impedir o contágio.

Em período de epidemia, a gripe declara-se, por vezes, a bordo de navios no mar, inteiramente privados de contacto com qualquer ponto do mundo onde pudesse tocar a calamidade. Como era mais fácil o propagar da doença naqueles reduzidos espaços onde comiam, dormiam e viviam - com tudo que a palavra viver comporta - cinco pessoas, todas bebendo pelo mesmo copo, pousado junto da bomba do pátio!

A pedido do Conselho local do Serviço de Saúde, convocou-se uma reunião extraordinária da Academia de Medicina. Trémulo e não mais afável, mas grave e calmo, presidia o Dr. Miller, rodeado pelos Drs. Sarnov e Metzger. Desde o incidente entre o parteiro e Ran, perpassara por todas as reuniões um bafo de inimizade. Desta vez, dissipara-se, evaporara-se. Nenhum mau humor, nenhum espírito de dissidência. Perante o inimigo, apertavam-se as fileiras.

Expôs as circunstâncias o Dr. Joseph Pound, oficial de saúde da cidade: o mal já escapava a qualquer possibilidade de o deter. com pouco pessoal, era o Serviço de Saúde insuficiente para lhe pôr um dique. Telefonara-se para Washington, e o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos -- esse veterano das organizações de peritos altamente qualificados - enviara de avião três dos seus mais eminentes epidemiologistas. Propuseram a divisão em subdistritos do bairro, particularmente afectado, das fiações, assim como dos recantos habitados pelos negros. Quereria o presidente apresentar tal plano à aprovação da assembleia e pedir aos membros da Academia que se oferecessem como voluntários para se ocuparem das disposições aplicáveis nos ditos sectores?

O Dr. Miller negou, abanando a cabeça. Era perfeitamente inútil uma moção de tal género. Pediu aos membros presentes que assinassem o acordo. Em menos de um quarto de hora, todos os nomes figuravam na lista de Pound, excepto os de um grupo de médicos demasiado idosos ou enfermos, que ele não quis aceitar, dizendo-os excessivamente preciosos para correrem esse risco e necessários como auxiliares e conselheiros de trabalho, numa segunda fila. Não é costume, sublinhou, irem para a frente de batalha os oficiais superiores do estado-maior.

Não se encontrava na sala um médico que não transbordasse já de clientela particular, pois o mal não respeitava nem os privilegiados da fortuna nem os bairros residenciais. Apesar disso, ninguém desertou.

Ran lançou-se à obra com o seu habitual e metódico ardor. Ela não estava, de modo nenhum, dentro das suas atribuições: não recebera qualquer formação epidemiológica. Mas pouco importava. A despeito da falta de treino preliminar, tinha a vasta experiência geral dos anos de internato. A faculdade de pensar por si próprio, que duras necessidades desenvolveram nele, tornava-o muito mais eficaz do que boa metade dos homens actualmente em acção. Seria uma interrupção não remunerada nos seus trabalhos, porquanto a maioria das vítimas não dispunha de recursos para satisfazer honorários médicos. As famílias ainda menos, quando houvessem pago as contas de farmácia e adquirido o combustível indispensável ao relativo bem-estar dos seus doentes.

A princípio, desagradara-lhe parte da sua actividade voluntária. com meias desculpas, Pound restituíra-lhe o lugar no hospital, de modo que aí passava as manhãs, com a simples diferença de ser agora subordinado no serviço de que fora chefe. Ran era soldado suficientemente bom para recusar. Muito isso faria rir Metzger! No dia seguinte a haver retomado as antigas funções, encontrou-o no corredor; mas este não tinha vontade de rir:

- Você conhece isto a fundo, Dr. Warren. Não preciso de lhe dar quaisquer instruções.

No sector que lhe confiaram, passava todos os minutos de que podia dispor. Era aí o centro da batalha. Nas voltas que tinha de dar, encontrava Howard Dater, Porky McNab, George Matthews, nas suas inspecções biquotidianas; Mark Riley, Bill Williams e Matson, sempre que lhes era possível evadirem-se do hospital por uma hora; Ashton Bakewell, que intimara a clientela de milionários a conservar-se na cama, até ele ter tempo de lhe acudir; Phil Vernay, que abandonara os raios X; Metzger, na rápida limusina; Sarnov, envolvido num sobretudo forrado de lontra, olhar sardónico, vista cansada e narinas ofuscadas, considerando os aborrecidos circunstantes, enquanto mandava o motorista dar inúmeras voltas e entrava em casebres mal cheirosos - género de trabalho absolutamente novo para o ávido ginecologista; os três emissários do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, que pareciam estar em toda a parte ao mesmo tempo e haver encontrado meio inédito de passarem sem beber, sem comer e sem dormir; não menos dotados de ubiquidade, os infatigáveis oficiais de saúde locais; médicos voluntários, chegados das vizinhas aldeias ainda não atingidas pelo flagelo, entre os quais Tim Brennan, que vinha todos os dias de Gray’s Run trazer à luta o tributo do seu fervor irlandês; e - sim, _não havia razões para dúvidas nem desconfianças - alta, bela, perfeitamente cuidada, a Dra. Sybilla Barr. Que vinha ela fazer a esta galera? Não tinha nada que aparecer, não era nada com ela.

Ao dobrarem uma esquina às cinco horas da manhã, Ran e Joe Pound quase foram apanhados pelo seu carro.

- Eh, Sybilla! Que lhe aconteceu? Que faz você?

- Esqui, nas encostas do Monte W^ithney. Não percebem?

- com certeza! É isso mesmo! E com que brilho! Conhece o Joe Pound?

- Não. Oficialmente, não.

- Porquê? - perguntou o oficial de saúde.

- Porque eu pratico a medicina ilegalmente e não tenho vontade nenhuma de cair nas mãos de um oficial, nestas condições.

- Não há tempo para a prender, antes de tudo isto acabar - replicou Joe. - Pelo que ouço dizer, você tem feito, ilegalmente, trabalho bastante para merecer prisão perpétua. Você pratica, de facto, a medicina! E de que maneira! - concluiu, com admiração na voz.

- Café? - propôs ela. - Tenho um termo de dois litros.

- Não me faça chorar como a uma criança - suplicou Ran. - E não tem, por acaso, um bocado de pão que nos ofereça, ao mesmo tempo?

Claro que tinha. Comeram e beberam juntos, debaixo de chuva miúda.

- Tem visto o Larry? - perguntou ela, numa voz que a sanduíche tornava pastosa.

- Não. Está na cidade?

- Está. com a sua missão especial.

- Nesta altura, não há muito tempo para isso. Que distrito lhe confiaram?

- Nenhum. Não trabalha - disse Pound. -- Veio explicar-me que nos daria a mão de boa vontade, mas que, cirurgião especializado em obstetrícia, sem licenciatura em medicina, não estava em condições de poder permitir-se violar as leis, mesmo por uma causa boa.

- Sim - disse Sybilla, sorrindo. - É absolutamente um político, o nosso Larry.

Ran defendeu o amigo:

- O Larry é um tipo muito como deve ser.

- Nem todos podemos ser criminosos como a Sybilla Barr, aqui presente - comentou Joe, com um trejeito para a rapariga.

Sobre a impiedosa marcha do flagelo e devastações, pouco efeito tinham toda a energia despertada, toda a dedicação, toda a habilidade técnica dos voluntários. Ran, desolado, dizia consigo mesmo: era infernal, e insuficiente, sem dúvida, o melhor esforço!... Muitas vezes repetia a frase constantemente ouvida a Powers e pronunciada pelo grande George Waughn num dos campos mais duramente atingidos na primeira guerra mundial, quando a epidemia de gripe assolava a sua terra: “Deus me perdoe, se algumas vezes eu ainda me gabo dos progressos e triunfos da ciência médica!”

A gripe era tão fugidia, tão diversa, tão incompreensível, e havia realmente tão poucas coisas que pudessem fazer-se! Eram tão lamentavelmente escassas as indicações! Não contando com a temperatura, com o pulso demasiado rápido e com outros sintomas de haver bactérias lançando veneno no sangue, não se encontrava ponto de apoio.

Talvez, de quando em quando, uma leve pieira nos pulmões, uma vermelhidão granulosa na garganta - e era tudo. Não havia maneira de descobrir o tipo de micróbios nos escarros e de tratá-los com soro; a maior parte das vezes, nem sequer se descobriam os germes e, para mais, não existia soro para eles. As sulfamidas, que punham o estreptococo e seus amigos fora de combate, não tinham aqui efeito. Também podia dar-se aspirina. Sempre e em toda a parte, a mesma história: “muitas tisanas e sumo de frutas” (mas, de todos aqueles desgraçados, quem podia tomar sumos de frutas?). “Dêem-lhe aspirina para aliviar as dores. Volto amanhã”.

No dia seguinte, o doente podia estar melhor, a temperatura podia haver baixado, podiam ser menos dolorosas as articulações dos braços e das pernas. Mas também era possível - e até mais frequente - a curva da temperatura mostrar-se um pico. Auscultava-se o peito, e não se ouvia nada mais que na véspera. Era assim, dia a dia. E depois, repentinamente, descobriam-se pontos cuja nota de percussão era diferente do que havia sido. Não tão baixa como a do pulmão de Peters, atulhado em massa pela pneumonia, mas sim surda, amortecida. O estetoscópio acusava alteração nos sons respiratórios, e talvez houvesse arquejos, aquela espécie de ferver que a humidade causa no peito quando o atravessa o ar. Erguendo os olhos, encontrava-se o olhar angustiado dum pai, duma mãe ou de qualquer parente próximo.

- Pneumonia? - ouvia-se murmurar. Faziam sinal que sim, e custava ver a angústia que passava por aqueles rostos. Todos conheciam o perigo.

Ran considerava bênçãos as contínuas e esgotantes chamadas a tal dever, que lhe deixavam pouco tempo para pensar em certos problemas, como a sua situação financeira, praticamente desesperada, e, ainda pior, o afastamento de Ann, que continuava...

Todos esses esforços de corpo e espírito ficavam absorvidos pela necessidade, dia após dia, noite após noite, até cair duma vez no país dos sonhos, no sono do esgotamento total.

Ann regressara do hospital, mas não regressara a ele. Voltara a ocupar os seus aposentos particulares na alcova. Ele explicava a si próprio que isso era compreensível, que a rapariga não havia ainda recuperado o estado normal. O choque sofrido deixara-a deficiente, sem vitalidade, passeando pela casa uma fraqueza, uma distracção, um vazio que fazia pena ver. Seria a falta de vigor físico razão suficiente? Por duas ou três vezes, surpreendera a mulher de olhos fixos nele. Examinava-o, e os seus olhos, habitualmente francos e sinceros, exprimiam uma espécie de perplexidade, como se estivessem a estudar um estranho para descobrir qual o melhor caminho a seguir nas relações entre ambos. Outras vezes, parecia ter medo dele. E isso magoava-lhe o mais fundo do coração. Por outro lado, ocupava-se conscienciosamente do quarto e preparava convenientemente as refeições, que tão raro ele tinha ocasião de vir comer. Viam-se muito pouco os dois. Passavam-se às vezes dois, três dias sem que Warren chegasse sequer a entrar em casa.

Uma noite, depois do jantar, ela disse-lhe bruscamente:

- Ran: quero trabalhar.

- Ainda não tens força para isso.

- Tenho. Tu não sabes se tenho ou não. vou oferecer-me como voluntária para tratar as urgências.

- Por enquanto, não; não resistias.

- Vou.

Mas havia uma dúvida no seu desafio.

- Contra a minha opinião?

- Tu não és meu médico.

- Mas é-o o Dr. George Matthews. Ele não te daria licença. E, se desse, o Serviço de Saúde não te aceitava. Eu trataria disso.

- Mas eu enervo-me. Aborreço-me. Não estou habituada a viver assim.

- Tens de te habituar - respondeu ele, secamente. Tinha os nervos arrasados, de cansaço e falta de sono, mas continuou com mais meiguice: - Não te deixo correr esses riscos.

Ela levantou as pestanas:

- Isso parece-me mesmo uma ordem! É?

- Toma-o assim, se te agrada.

- Não me agrada - e foi para a cozinha.

Viu-o dois dias depois, à refeição do meio-dia, que era também o primeiro almoço de Ran.

- Saí ontem à noite com o Larry Wilson - disse ela.

- A sério? Onde foram?

- Jantar ao Metrópole. Depois dançámos.

Ele carregou o sobrolho:

- Tens a certeza de não te faltarem as forças?

- Preciso de fazer alguma coisa - respondeu ela, agastada. - Ele quer que eu volte amanhã.

- E então?

- Há algum motivo para eu não ir?

- Nenhum, se te sentes com forças físicas. Mas era bom não voltares a casa muito tarde.

Se ele tentasse impedir-lho, Ann ficaria furiosa. Devia, pois, logicamente, saber apreciar a atitude do marido. Mas não. Ficou vexada, contrariada.

Ran sentia-se menos tranquilo do que parecia. Não que pensasse, sequer um momento, em duvidar da intangibilidade de Ann. Mas, se ela estava bem para ir jantar à cidade e dançar, porque é que não o estaria para... Que diabo! Não se ia discutir tal assunto, numa ocasião daquelas. Não era razoável esperar que uma mulher se encontrasse normal tão pouco tempo depois de haver passado pelo que Ann passara.

Pensou numa carta de Graeme Ellice, endereçada ao consultório. Carta estranha, hábil, cheia de subentendidos subtis, que supunha muito e implicitamente prometia tudo, sem conter uma palavra directamente comprometedora.

Respondeu-lhe com um telegrama. A epidemia estava no auge. Farmington ser-lhe-ia muito perigosa. Não devia pensar no regresso, por enquanto.

Graeme Ellice era mais inteligente do que, ao princípio, ele julgara. Não era, decerto, uma nulidade, do ponto de vista mental. E como voava alto! Mas não desejava que viesse agora complicar-lhe mais a vida. Ainda não estava disposto a resolver-se a respeito de Graeme.

 

Nos confins do distrito confiado a Ran, havia um grupo de casas de argila, cuja respeitabilidade era puramente exterior. Dentro, dispensavam hospitalidade comercial certas damas anónimas, que respondiam aos sedutores diminutivos de Cissie, Maisie, Maudie, Clarrie, etc. A clientela particular de Ran não se estendia até lá. Mas a Morte poisa a sua mão gelada tanto nas prostitutas como nos reis, e ele era presentemente o médico da Rua das Meninas.

Um pequeno foco de gripe tinha como centro o mais importante e caro estabelecimento do bairro, dirigido por uma dama que escolhera o nome de Kittie Magellan. Embora : tivesse havido sete mortes na dita rua, duas das quais na casa ; de Kittie, Ran não foi lá chamado até aquela noite na qual o flagelo atingiu proporções terríveis, que conservou durante cinco dias. Supondo que as cidadãs da Lanterna Vermelha haviam preferido os cuidados do seu médico assistente habitual, sentia-se Ran bastante satisfeito por se encontrar livre disso. Demora, apenas, e demora que não durou nada.

Ia a passar na Rua, uma noite, quando, a correr, saiu uma das meninas da Magellan, braços no ar para lhe obstruir o caminho:

- Doutor, doutor! A Myrtle está à morte! Sufoca, doutor, sufoca, vai morrer! Venha, peço-lhe, doutor, venha! .

Ele seguiu-a até um quarto que dava para o salão; estava lá deitada uma rapariga, que lutava desesperadamente por recuperar a respiração. Era um dos raros casos com aparência de difteria. Foram precisos cinco minutos para limpar as vias e restabelecer a respiração normal - cinco minutos de surpreendente actividade. E, enquanto ele retirava as mucosidades que atulhavam a faringe, com os dedos envolvidos de gaze, era uma improvisada angústia que impedia a doente de o morder.

Injectou-lhe depois um estimulante da respiração, que se regularizou logo, embora viesse ruidosa.

Pálida e cansada, com mais aparência de professora primária solteirona do que de directora de lar, estava de pé, por trás dele, a senhora Magellan.

- Já está livre de apuros, acho eu - disse Warren. A abelha acompanhou-o ao salão.

- Obrigada por ter vindo, doutor. Quanto lhe devo?

- Não falemos disso por agora. Volto amanhã.

- Agradecia-lhe - murmurou, reconhecida. - Tenho outras duas doentes. Pode ir vê-las?

- Está bem. Mas não posso demorar-me.

Uma tinha gripe caracterizada mas anódina; a outra “estava quase”. Foram breves e tranquilizadoras ambas as visitas. Ran ia já a sair quando, no corredor, ouviu, vinda dum quarto, uma voz pesada e obstruída de barítono, que cantava:

Para o pôr na sua cabeça. Dei-lhe eu o meu lenço. E para recuperar o seu quarto. Dei-lhe a minha palmatória. Eu era uma simples rapariga E não pensava em mal...

- Mesmo assim a coisa continua! - comentou Ran, um pouco acerbo.

- Não se trata de coisa nenhuma.

O humor de Ran aqueceu. Pôs a mão no fecho da porta donde vinha a alegre canção:

- Quer que o ponha na rua? Encarrego-me disso de boa vontade...

- Não entre nesse quarto - intimou secamente Kittie.

Tirou a mão, estupefacto. Lá dentro, passos incertos e arrastados. Abriu-se a porta e descobriu-se uma monstruosa aparição, desgrenhada, vestida com uma camisa de noite imprópria, de berloques, o menos possível adaptada à personagem. Era dum vermelho uniforme o rosto inchado, cheio. Flutuava no ar mau cheiro a álcool.

- Deus me perdoe, se este não é o meu antigo associado, o Dr. Barkett!... - exclamou Ran. - Como está?

O abortador fixou-o com um olhar vítreo:

- Aqui não é lugar para si - articulou com voz pastosa. - Volte para a cama, doutor! - suplicava Kittie.

- Onde está a Lizzie? Tenho de ver a Lizzie! Levem-me à Lizzie.

Vacilou até o primeiro apoio, que foi o visitante, e os seus dedos viscosos agarraram-se ao pescoço dele. Um sobressalto de cólera e desgosto traspassou o rapaz: foi um impulso mais do que um golpe, mas um impulso onde inconscientemente, pôs toda a sua força atlética. O Dr. Barkett rodopiou através do corredor, foi contra a parede, com um barulho inquietante, e caiu no meio do chão.

Logo a seguir, teve Ran de defender os olhos e a garganta das unhas duma gata furiosa. Afastou-a com uma rasteira e ouviu uma série de injúrias e ameaças: que fosse para o diabo, que fosse três vezes maldito, havia de esventrá-lo (o que, aliás, tentou fazer, com um selvagem pontapé que Ran, atento, desviou)! Peter Barkett valia, dez imbecis como ele, dez bonifrates idênticos. Gradualmente, conforme diminuíam os vitupérios, ocorreu a Ran a ideia dum lamentável mal-entendido:

- Está bêbedo, não é verdade?

Kittie desfez-se em soluços, que, desta vez, eram de dor:

- Está à morte! Morre de cansaço. Há quatro dias que não come nem dorme. Acabei por o obrigar a tomar um Wiske e só assim consegui que ele se deitasse. Mas tive de lhe garantir que o chamava, se qualquer das raparigas piorasse. Era a Lizzie a mais atingida: morreu hoje de manhã. Acabou depressa. Era a que ele queria ir ainda salvar...

- Meu Deus! - exclamou Ran.

Levaram ambos a pesada massa para a cama. Nunca, em toda a sua carreira, Ran trabalhara com mais zelo do que Daquela noite, embora com esperanças mínimas. Olhos ardentes, errando à volta do quarto sem nada ver, inchado e com dedos marcados acima dos tornozelos, com humidade a eHcher os pequenos sacos dos pulmões, onde, a cada respiração, provocava um barulho de chumbos para pardais, a sonbria flecha da coluna de mercúrio, que ultrapassava em muito os 40 graus do termómetro, coração cansado de tanto trabalhar (esgotado pelo vírus da gripe, difundido por todo o corpo, já não era capaz de vencer dias e noites), a cor escura da pele, a respiração a um tempo difícil e precipitada, o bater das grandes narinas - todos os sintomas davam o mesmo testemunho.

- Quando começou?

, - Não sei. Há dois dias. Talvez três. Oh ! Ele vai morrer, Doutor?

- Não, se Deus quiser ajudar-me a salvá-lo - murmurou Ran, que teve um sobressalto, admirado com o seu inconsciente apelo ao Poder Supremo.

Barkett estava em coma. Ran deu-lhe uma injecção de adrenalina, e depois esperou junto da cama.

. Dr. Warren... - chamou uma voz fraca mas clara.

_- Fica-lhe bem, isso...

^- Esteja calmo. Descanse um pouco.

Barkett tentou erguer-se num cotovelo:

- Tenho doentes para ver. Ajudem-me a levantar-me. Sinto-me muito abalado.

Ran viu-se obrigado a afirmar cordialmente:

- Estão bem, as suas doentes. Está tudo bem. Eu trato delas até você poder voltar a fazê-lo. Durma tranquilo.

Barkett deixou-se cair com um suspiro:

- Volto daqui a um bocado - segredou Ran ao ouvido da dona da casa.

Ao fundo dos degraus, esperava um grupo de cidadãs da Rua: tinha-se espalhado a nova do caso Barkett. Circundavam Ran, inquietas e suplicantes. Todas podiam citar um exemplo da dedicação de Barkett, da sua inesgotável solicitude, do seu espírito indomável e alegremente combativo. Curava-se, não era verdade? Curava.

- Estamos a fazer o possível - respondeu ele. E, ao ver-lhes os rostos desolados, à medida que se ia tornando claro o sentido da triste expressão, acrescentou:-Há sempre esperanças.

- Porque há-de ser um homem daqueles a ir-se embora? - implorou uma delas, num soluço rouco.

E, luminosa e humilhante, revelou-se a Ran a insuficiência dos juízos humanos.

Só pôde voltar à Rua quatro horas depois - quatro horas ocupadas por solicitações imperativas, por casos urgentes e graves.

- Na mesma - informou Kittie.

O doente mostrava-se bastante calmo, excepto por um momento em que quisera, à força, aproximar-se da mesa para escrever qualquer coisa, mas ela não sabia o quê. Uma receita? Uma carta? o testamento? Estava decidido e obstinava-se, mas, apesar de tudo, ela conseguira detê-lo.

- Fez bem - concordou Ran. - Ele precisa de todas as forças. Ao menos não perdeu terreno, o que já não é mau. Mas esta temperatura escaldante, que não cede...

Consistia o projecto de Ran em refestelar-se com três horas de sono - grandes, certas, voluptuosas - no fim do trabalho. Mas não podia ser. O seu tempo disponível pertencia a Barkett. Queria ficar à cabeceira dele, até ao fim, mas recusaram-lho. Pound, o chefe, chamou-o a uma conferência onde examinariam o mapa dos novos focos epidémicos e traçariam o plano de combate para o dia que ia começando.

Rompera já a aurora quando ele pôde voltar à casa de argila cinzenta.

Recebeu-o Kittie Magellan, com aspecto de culpada.

- Não pude impedi-lo, doutor. A Myrtle estava a chamar, e eu tive de ir ver o que era. Entretanto ele levantou-se e encontrei-o a escrever. Acha que isso pode ter-lhe feito mal?

, Ran examinou rapidamente aquela forma pesada que se agitava na cama.

- Não.

Nada podia fazer-lhe bem nem mal. Nunca houve a mais pequena esperança.

Não era, para ele, experiência nova o encontrar-se junto do leito dum moribundo, mas nunca conseguira habituar-se. Mais de uma vez vira um pobre diabo lutar com um destino inexorável, lutar como Barkett, e sem maior êxito. E, quando o coração, fatigado, deixou de poder resistir ao crescente afluxo do veneno que o invadia, quando começou o estertor do edema pulmonar, quando, enfim, tudo acabou pela invasão duma espuma avermelhada que afogou literalmente as vias respiratórias - Ran estava esgotado do moral e do físico.

Sentiu, vagamente, que Kittie, a soluçar, lhe metia qualquer coisa na algibeira. Dinheiro? Bem sabia Deus que ele não queria dinheiro por haver tentado salvar Barkett! Não; não era dinheiro: era um papel. Não teve coragem de o ver. Queria apenas ir embora, partir, sozinho, disciplinar o espírito confuso, procurar encontrar-se nesta ’sombria ironia do destino, que enobrecia uma criatura ignominiosa para a abater depois.

“Inocente e abençoado!” Retinia-lhe no espírito a fórmula solene. Também Peter Barkett, com os colegas de promoção, fizera o juramento, aceitara a consagração, fora tocado pelo fogo sagrado que, sempre latente no seu fundo, respondera ao apelo e se ateara em grande fogueira que lhe consumiu a vida. “Inocente e abençoado?” Culpado e abençoado! Eco deformado da história de Maria Madalena, que, por haver amado de mais, o fazia morrer naquele local infecto, ardendo de febre.

Era em ocasiões destas (pensava Ran, caminhando pesadamente pelo distrito, pois se havia esquecido do automóvel na Rua) que ganhavam força e se desenvolviam os heroísmos estranhos e vagos da alma humana. O soldado precisava de coragem para ir bater-se, para lutar, para se acachapar na trincheira com balas a rebentarem à sua volta, para conduzir um avião em pleno céu, na traça do inimigo. Esta espécie de coragem ganhava medalhas e cruzes. Mas havia outra espécie: a da coragem que nos lança às cegas contra um inimigo que enche o ar por todos respirado, um inimigo contra o qual não temos qualquer arma a não ser a saúde e a força, fracas defesas numa epidemia como aquela, onde eram os mais vigorosos a presa mais fácil do mal. Poucas medalhas havia para consagrar -este género de coragem. Não as havia para Peter Barkett. Mas, de qualquer modo, era heroísmo. E mais subtil do que aquele que as cruzes de ferro recompensam.

Encheu-lhe as veias um grande orgulho da profissão. A não ser nela, onde encontrar um grupo tal de homens? Onde encontrar outro em que, do maior ao mais pequeno membro, todos estivessem dispostos a dar todo o peso da sua energia e dedicação a uma luta obscura e duvidosa, sem esperança de recompensa, sem esperança de lucro, sem pensar em perigos? Estavam muito longe, sim, de serem perfeitos, na sua maioria. Na rotina quotidiana, muitos se lançavam avidamente em perseguição dos dólares. Outros, por indolência ou indiferença, desdenhavam pôr-se a par do progresso médico, deixavam-se arrastar na cauda, e, assim, privavam quem a eles se confiava do benefício das melhores descobertas, dos métodos de cura mais seguros, dos tratamentos que poderiam salvar-lhes a vida.

Mas - Deus do Céu! - podia alegar em seu favor o seguinte: quando se tratava de empenhar todos os recursos dos seus conhecimentos, do seu vigor, da sua energia, no combate a um inimigo desconhecido, cujos ataques nem sequer podiam prever-se, cujas armas eram venenos subtis e prontos, todos aqueles tipos se encontravam presentes!

Alguém pousou a mão no ombro de Ran:

- Eh, lá! Para onde vai? Onde tem o carro?

- Lá adiante, não sei onde. Morreu o Barkett.

- Sim, eu sei. Fez um trabalho estupendo, o tipo. Quem diria?

- Sim, quem diria? - repetiu Warren, lentamente.

Dater virou-se para o outro lado e gritou:

- Joe. Ó Joe Pound!

O oficial de saúde passou a cabeça pela janela do carro, olhou, e o seu corpo cansado desceu:

- Que há?

- Não estou a gostar do ar daquele pássaro - disse Dater.

- Eu também não. Você anda aborrecido, Ran?

- Não; estou óptimo.

-- Não parece. Tem uma cara horrível. Ia apostar que está com febre.

- Não - volveu Ran, esforçando-se por rir. - É apenas cansaço devido ao reajustar das ideias e pensamentos.

- Era muito melhor ir dormir - aventurou Howard.

- Dormir? Que é isso? Parece-me ter ouvido essa palavra...

- Em casa, meu rapaz - disse Pound. - Em casa e na cama, oito horas de sono.

- Deve andar por aí o Marty Bayner. vou ver se consigo descobri-lo - anunciou Dater.

Ran dormia apoiado a um candeeiro, quando parou junto dele o potente carro de Bayner, que ouviu as instruções de Pound:

- Leve-o para casa e meta-o na cama, nem que tenha de ser à força.

- Entendido - afirmou o jovem político, cujo rosto, habitualmente limpo e corado, estava descomposto e por barbear. - Vamos!

- Que faz aqui, Marty? - perguntou Warren, subindo para o carro.

- O que posso. Procuro tornar-me útil. O Joe é o meu chefe. É o meu bairro, percebe? É o Inferno! Morrem como moscas. E que fazer? Nada! É cada vez pior!

- Não - contestou Ran - não. Suponho que estamos a descer a colina.

Deteve-os uma luz vermelha.

- Como é que você perdeu a prisão, Ran?

- Pergunte ao Metzger. Tenho a impressão de que ele se meteu nisso.

- Esse pulha! - Fez uma jura.

Acendeu-se a luz verde, mas, logo a seguir, fê-los parar outra luz vermelha.

- Posso fazer-lhe uma pergunta, Ran?

- com certeza. Diga.

- Que fantasias são essas a propósito dum aborto?

- Ah! Já chegou aos seus ouvidos? - Ran suspirou: - Fui um idiota, sabe? Deixei-me enrolar pelo Peter Barkett.

- Oh! Bem me parecia que devia ter sido um truque do género! Porque é que não me procurou? Eu posso meter medo ao Barkett.

- Oh, não! Não pode!

- Quem o disse? Porque não havia eu de poder?

- Porque ele morreu.

- Ah, bem ! Não se perdeu nada.

- Ontem, eu diria o mesmo.

E resumiu ao amigo as recentes actividades de Barkett.

- Paz à sua alma - concluiu o outro. - Nunca se pode dizer nada, não é verdade?

- Ah, já me esquecia! Ele deixou um papel para mim.

Tirou-o da algibeira, todo amarrotado, endireitou-o no joelho e leu-o: era uma ilibação completa e pormenorizada de Warren no caso Leopold.

Desceu sobre ele uma paz enorme, e, ao mesmo tempo, um grande desejo de dormir. Deixou-se cair para cima do companheiro, que o encostou ao ângulo oposto e apanhou o papel caído. Marty leu-o, assobiou e meteu-o no bolso. Quando acordou Ran, à porta deste, estava o cirurgião demasiadamente atordoado para pensar no bilhete.

Subiu a escada. O quarto encontrava-se vazio. Caminhou para o abençoado refúgio, despiu de uma vez sobretudo e casaco, e - ainda o chapéu ia a rolar pelo chão – deixou-se cair, dormindo já, no leito.

O crepúsculo envolvia o quarto quando ele acordou. Estava tudo em silêncio, mas ouviam-se duas vozes no quarto vizinho: a de Ann e a de um homem - Larry Wilson. Muito bem. Devia ele levantar-se e revelar sua presença? Não: faltava-lhe a energia. Ann afirmava:

- Não, Larry. Não pode fazer isso. Seria abandonar a causa.

- Não posso, não! A causa está perdida. Digo-lhe eu: acabou a peça, a clientela particular já fez época.

- Mas isso significaria medicina estadualizada! Você não pode ser a favor disso, Larry.

- Quem me impedirá? O carro da música já está em andamento. Abra os olhos e vai ver como o bebé trepa.

- Os da profissão nunca hão-de aceitá-lo.

- Têm de aceitar. Já se trabalha no projecto de lei.

Ran ficou de tal modo surpreendido que quase se levantou para ir juntar-se à conversa. Quase; mas não conseguiu resolver-se. O sono ainda lhe pesava muito. Podia apanhar Larry mais tarde. Deixou-se cair para o travesseiro. E, quando

acordou, já era noite.

 

Um traço de luz marcava o estreito intervalo entre a porta e o chão. Ainda vozes. Sempre as de Ann e Larry. Ran tinha a vaga impressão de haver dormido durante horas. Então eles tinham ali ficado todo aquele tempo? Era mais provável haverem saído para jantar fora e estarem agora de regresso. Ouviu as frases despreocupadas de Larry:

- Tem a certeza de que ele não voltou?

- Não. O carro estaria na rua.

- É quase meia-noite.

- Ultimamente, quase nunca está em casa.

- Não era uma epidemia, decerto, que me obrigaria a estar longe de si - garantiu Wilson, numa voz quente e acari ciante.

- Vai-se tornar sentimental para mim, Larry?

- Sempre o fui, minha querida, e disso nunca me curei.

- Não acha que seria muitíssimo melhor sentar-se outra vez onde tem estado até aqui?

Ran teve o pressentimento de ser esta frase mais uma provocação do que uma censura.

Conseguiu pôr-se de pé e dar alguns passos, com propositada lentidão e barulho. Ao mexer no fecho da porta, ouviu uma exclamação abafada e depois abriu:

- Oh, vocês dois!

- Oh, Ran!

Larry era plenamente cordial. Fria e um pouco pálida, Ann estudava o rosto do marido:

- Há quanto tempo estás tu à escuta, Ran?

Era bem próprio dela aquele ataque directo, sem preparações.

- Estava a dormir. Mal consegui acordar, agora. Mas ouvi certas coisas...

Larry começou uma explicação precipitada:

- Não as leve muito a sério, Ran. Bebi vários copos de gin e, além disso...

- Espere, Larry. - com a mão, ela impunha-lhe silêncio. Os seus olhos não saíam do marido.- Bem, Ran. Então?

- Estás apaixonada pelo Larry?

- Não.

- Então, não preciso de te perguntar se me enganaste com ele.

- No teu lugar, eu abstinha-me.

- Então, Larry, qual é o seu papel aqui?

- Não sei - foi a resposta. - Vai pôr-se no lugar de esposo ofendido e dar cabo de mim à pancada?

- De que serviria isso? Você não pode nada. É como é.

- Dominando-lhe a fadiga, o seu bom-humor era mais mordaz do que o desprezo declarado. - E penso que, acima de tudo, você é parvo e mostra que o é.

Lentamente, mecanicamente, alterou-se-lhe o rosto, que corou:

- Pode ser. Boa noite, Ann. Suponho que não tornarei a vê-la.

- Porquê? Você foi idiota, não é motivo para continuar a sê-lo. No fim de contas, estamos no século XX e somos pessoas civilizadas.

- Porquê? - perguntou Ran, quase ao mesmo tempo. Em dose moderada, parece-me bom para Ann. Um divertimento inofensivo; não sei se percebe o que eu quero dizer.

- Boa noite! - exclamou simplesmente Larry Wilson, que pegou na capa e no chapéu e partiu.

- Ele nunca lhe perdoará - disse Ann. - Nunca.

- Não é isso que me há-de impedir de dormir. Nem isso nem nada.

Afogado de novo na necessidade de sono, atravessou o quarto, bocejando e titubeando; nos seus aposentos, despiu-se e, cheio de beatitude, deslizou para dentro dos lençóis.

Só e de pé, Ann olhava com ressentimento para a porta fechada.

Que falhanço o seu casamento!

Qualquer coisa de obstinado, rancoroso e tímido a impediu de dar o primeiro passo.

 

Pouco a pouco, e porque se esgotara a força daquela corrente particular de vírus, a epidemia de gripe diminuiu e libertou a cidade.

Aqui e além, ainda se notavam alguns casos isolados, últimos esforços da retaguarda bactérica. O hospital, cheio a mais não poder, tinha horas suplementares de serviço. Arrastavam-se os casos de pneumonia, e a sua convalescença levava tempo a transformar-se em cura. Todos os dias chamavam Ran para drenar pulmões congestionados ou pleuras infectadas. Mas poucos casos novos se apontavam.

Amenizada a temperatura, podiam os habitantes sair de casa sem terem de verificar, ansiosos, se não aparecia a qualquer canto da rua um possível contagiador. Fora terrível a mortalidade, e em sítio algum mais do que entre os próprios que combatiam o flagelo. Sucumbiram umas vinte das melhores enfermeiras da cidade, entre as quais a linda Herpel, que ajudara Bill Williams e Ran naquela noite em que fora quase saldada, a favor do soro para Peters, a conta bancária do segundo. Quanto a Bill, não mais analisaria qualquer germe nem determinaria qualquer tipo de bactérias: o seu enterro foi o primeiro - mas não o último - no pessoal hospitalar. O pobre Dr. Muller, hesitante e a gaguejar tanto, caíra no infortúnio, dando o último suspiro na própria ambulância que o transportava. Mark Riley, esse ia-se curando, vencendo os micróbios após uma luta prolongada e dolorosa. Mas Bill Matson, o borbulhento e servil sobrinho do Dr. Barkett, soubera, tal como o tio, morrer melhor do que vivera. Para Ran, o mais duro de suportar era a partida de Howard Dater, exilado em Arizona, donde nunca poderia voltar: a tuberculose imprimira-lhe num dos pulmões o seu selo - uma grande mancha, do tamanho dum dólar, no ponto em que haviam cedido as defesas enfraquecidas pelo excesso de trabalho.

Última maldição do flagelo: após o pesado tributo em vidas humanas, um tributo igualmente oneroso em corpos esgotados, em nervos a rebentar, em cérebros vazios por uma luta forçada contra o impossível, em corações a que não restava qualquer reserva vital capaz de os aguentar, na eventualidade de nova crise.

Através desta borrasca mortal, passavam figuras a um tempo triunfantes e estranhamente incôngruas: esplêndida e radiosa como uma jovem valquíria, Sybilla Barr; o velho George Matthews, que resolutamente ignorara todas as tentativas feitas para o arrancarem à primeira linha de batalha; de dia para dia mais delicado, mais sardónico, mais infatigável e mais activo, Sarnov; Porky McNab, que, pelo carinho ou pela ameaça, pela persuasão ou pelas injúrias, trazia à vida os doentes fracos; Tim Brennan, que esta luta apaixonava como nenhuma outra; Joe Pound, o homem mais sobrecarregado de toda a cidade, e que nunca conhecera uma hora de descanso total; e o próprio Randolph Warren, entristecido, vergado às dificuldades pessoais, quando tinha tempo para pensar nelas, mas fiel ao dever, sem falha.

Chegou um dia em que o oficial de saúde disse a Ran e a Porky:

- Abandono as perseguições.

- O bom timoneiro mereceria repouso? Não me parece. Deixe-me tomar-lhe o pulso - disse Porky.

- Já não tem o direito de tomar o pulso a quem quer que seja - retorquiu Pound. - Oficialmente, pelo menos. Está despedido! E fica dito para ambos: praticamente, acabou-se a peça.

- Tem a certeza de que triunfámos do mal? - interrogou Ran.

Pound gracejou:

- Nunca ouviram a história dos três marinheiros numa jangada? Um navio apanha-os meio mortos. O único ainda em condições de falar grita: “Eh, rapazes! Bem se pode dizer que batemos este Atlântico!” Foi mais ou menos assim que nós triunfámos da epidemia: partiu, depois de fazer de nós o que quis. Antes, não. Mas nós resistimos. Evitámos a propagação do pânico e salvámos muita gente. Não lhes vou dizer o que penso de vocês.

- Diga-o com cerveja! - sugeriu Porky.

Agora, que tinha passado o pior, afloravam duas ideias ao espírito de Ran: -- Havia o futuro sem emprego nem promessa; o que ainda podia esperar um pouco. Havia Graeme Ellice; e Graeme Ellice não era mulher que esperasse. Ela escrevera-lhe de novo e telegrafara-lhe depois. E Ran acabava de lhe telegrafar em resposta, dizendo que o perigo passara e que podia regressar com toda a segurança. Não escondia até que ponto esta resposta o comprometia implicitamente. E então? Porque não? Se Ann já não queria ser sua companheira, não tinha motivo para se queixar, no caso de ele procurar satisfação por outro lado. Que poderia ela esperar? Ran era um ser humano normal, com necessidades físicas normais. Pelo prisma médico, via todas as funções do corpo mais por um ângulo realista do que moral. E, por tal ângulo, era poderoso o apelo de Graeme Ellice. E, além disso, pelo terceiro lado do triângulo, pelo lado de Graeme, sabia que o que ela podia dever de fidelidade conjugal ao marido estava, havia muito, anulado pela notória infidelidade de Fanshawe Ellice. Lúcido em matéria de emoções, não tentava iludir-se nem procurar crer que sentia por Graeme o amor que sentira por Arm. Sentira? Que sentia ainda e que estava pronto a testemunhar, se ela lho permitisse. Todavia, não se enquadrava na sua maneira de ser o fazer um pedido à mulher, antes de dar o passo. No macho de qualquer espécie, existe um orgulho sexual que, no caso de Ran, se apoiava no que ele entendia ser um argumento legítimo. Era preciso Ann regressar espontaneamente a ele. Quanto a si, não se sentindo culpado, não faria figura de suplicante. Iria para Graeme, e, se Ann desconfiasse, tanto pior. Acontecesse o que acontecesse, a partir daquele momento, considerava Ann responsável. Assim, como macho, racionalizava ele a crise.

Esperava que Graeme lhe telefonasse à chegada. Em vez disso, encontrou-a à espera no consultório, ao voltar do almoço. Quando entrou, ela ergueu-se, fez-lhe sinal que fechasse a porta, e, sem dizer-lhe palavra, atirou-se-lhe para os braços. Durou apenas um momento: o de um grande beijo, faminto, ávido, e de algumas palavras em segredo:

- Ele parte para os fins da semana. Tu vens?

- Vou.

Ela tinha saído, e Ran poderia crer que esse breve episódio era imaginário, se não houvesse ficado a flutuar no espaço um leve perfume e nas suas veias uma sensação de desesperada embriaguez. Nunca Graeme parecera mais terna, mais sensual, mais apetecida.

Tim Brennan apareceu sobre a tarde:

- Importa-se de receber um hóspede esta noite?

- com certeza que não, Tim. Encantado! Quer dizer que...

- Que foi? Há outro candidato à minha alcova?

- Não, não. Arranjamos maneira... vou falar nisso à Ann.

- Falo eu. Volte à cliente que está à sua espera. Bócio exoftálmico, se não me engano - acrescentou, profissionalmente.

Perturbado por qualquer coisa de vago nos modos de Ran, Tim renunciou à sua primitiva ideia de telefonar à amiga e foi procurá-la a casa. Acolheu-o com o costumado calor, e ele cumprimentou-a com toda a sinceridade.

- Você é extraordinária! Cada vez mais bela! Que diz à ideia de hospedar hoje este marmanjo? Fico na cidade.

Incomodada, ela corou:

- Quer dizer, Tim...

- Se isso a incomoda em alguma coisa, diga com toda a franqueza, que eu vou para um hotel.

- Não, que ideia! Você pode ir para o quarto do Ran, e ele vai para o divã.

- O quarto do Ran? E porque não o meu humilde poleiro?

- Está ocupado. Estou lá eu.

- Que fantasia vem a ser essa? - interrogou Tim, espantado. - Você não dorme com o Ran?

- Não - respondeu Ann, erguendo o queixo em ar de desafio.

- Bem... Não tem nada que contar a um velho amigo como eu?

- Não. ^

Tim foi-se embora, melancólico. Sentia necessidade de se aconselhar e de conforto: ligou para Sybilla Barr, com intenções de convidá-la para jantar.

- Impossível, meu caro! Estou ocupada - respondeu a doutora.

- Interessa-me bem que esteja ocupada ou não! Hoje, tem de ser.

- Bem. Combinado.

Para Tim empregar tal expressão havia algo de grave.

- Arranjo uma mentira qualquer. Fale-me para o hospital às sete horas.

A primeira pergunta de Tim foi esta:

- Tem visto o Ran, ultimamente?

- Tenho, várias vezes. Não parece feliz.

- Não.

- Aposto que é por causa daquela tipa!

Sybilla Barr era rapariga de linguagem livre e amiga leal e dedicada de Ran.

- A Ann é minha amiga.

- Bem. Que lhe fez ela?

- Parece-me que vai deixá-lo.

- O quê? Vai-se embora?

- Ainda não deixou a casa e as coisas. Apenas as coisas, até aqui.

- Que parva! O Ran não é homem para suportar esse disparate. Que houve? Uma terceira personagem?

-- Acho que não. A Ann não é para trafulhices.

- Tem aparecido muito com o Larry Wilson, ultimamente.

- O Larry é um parasita. Um verme. Mas acho que não tem que ver com o caso.

- Não me diga que é o Warren quem muda...

- Ainda não.

- Quer isso dizer que...

- Que a nossa sereia nº 1 anda doida por ele. Seria impossível a qualquer homem com sangue nas veias resistir-lhe. Oiça, Syb: não posso ver este casamento ir por água abaixo, e, apesar disso, não sei que faça.

- Porque não fala com o Ran?

- Para ele me partir a cara?

’- Eu não sei que possa estar ao meu alcance.

- Tinha-me eu lembrado - sugeriu Tim, hesitante - que você podia procurar a Ann. com habilidade, claro...

- Para ela me arrancar os olhos?

- Não, que ideia! Ai, no seu lugar, estão muito bem. Mas, se há alguém capaz disto, é você.

Sybilla Barr semicerrou os olhos, concentrando-se:

- Quase não a conheci em Lakeview. Sabe como a coisa é: as enfermeiras, em geral, têm uma certa dor de cotovelo perante as médicas. Não me seria fácil ir ter com ela para saber o que se passa. Há-de concordar, Tim. Mas gostaria de auxiliar o Ran. vou procurar, ou provocar, a maneira de o fazer.

 

Se é que esperava por um comentário do marido acerca da hospitalidade recusada a Tim Brennan, Ann ficou desiludida. Ou talvez aliviada. Além disso, Ran parecia ensimesmar-se. Ela sabia por que motivo andava triste e com a consciência perturbada, mas sentia-se no fundo do beco e faltava-lhe a coragem necessária para sair de lá. Sexta-feira, ao jantar, o marido emergiu duma crise de ausência e abstracção e inquiriu:

- Achas que a tia Lydía era capaz de te receber durante algum tempo?

Ann arregalou os olhos:

- Mandas-me embora?

- Não estás a restabelecer-te tão depressa como eu queria.

A ferver em sincera indignação, ela replicou:

- Nunca estive melhor! Não é isso. Que há?

Se Ran quisesse falar com franqueza, Ann estava disposta a ir ao seu encontro a meio caminho e tudo poderia arranjar-se - enfim e ainda. Mas ele respondeu com esforço:

- A não ser que aconteça alguma coisa imprevista, temos de renunciar a este apartamento. E tenciono procurar uma pensão barata, pelo menos provisoriamente.

- É assim tão grave, Ran?

- O falhanço da minha candidatura à prisão foi um golpe terrível. Despeço Miss Gerbig.

- Ran: não é próprio de ti desmoralizar assim. - Enchiam-se-lhe de solicitude os olhos, ao encarar o marido: - Não descansaste convenientemente, uma hora que fosse, desde a epidemia da gripe. Tu é que precisas de mudar de ares. Porque não vais passar o fim de semana com o Tim?

-Ah! Como eu gostava! Mas não posso...

Esta decisão pareceu vacilante a Ann. Mal ele tinha saído, já ela estava a falar pelo telefone com Tim Brennan:

- Tim: acho que o Ran já não aguenta. Adoece com preocupações.

Tim reprimiu a tentação de lhe dizer que ela devia saber melhor do que ninguém porquê.

- Não consegue chamá-lo aí por um ou dois dias? Não arranja um caso em que pudesse consultá-lo?

- Tenho mesmo um em que o Ran me seria extraordinariamente útil; mas isso não eram férias, era uma viagem de serviço.

- É exactamente do que ele precisa: de desviar o pensamento de si próprio e das suas preocupações. Encontra-o no consultório daqui por meia hora.

Quando Ran abriu a porta do consultório, estava o telefone a tocar.

,- Está? É o Dr. Warren? Daqui, o Tim. Não pode dar aqui um salto, Ran? Ando aborrecido: uma úlcera em estômago perfurado. Operei na semana passada, mas isto não vai para a frente. Há qualquer coisa que me escapa. Receio alguma obstrução.

- Entendido. Chego ao fim da tarde, Tim.

Ann soube com satisfação que ele partia para Gray’s Run. Sem mais que fazer, pensou que era boa ocasião para ir ao Homestead ter com o Dr. Matthews, que manifestara desejo de a examinar cuidadosamente. Não o encontrou a ele, mas sim a Sybilla Barr, que saía do elevador:

- É Mrs. ”Warren, não é verdade? Como está? Eu ia tomar chá; quer acompanhar-me? - Vendo a outra hesitante, Sybilla insistiu: - Venha.

Parecia tão grave, que Ann ficou interessada:

- Bem, com todo o gosto.

Como aproximação de duas quase estranhas, o chá falhou. Sybilla falava ao acaso, evocando Lakeview, e a sua convidada exprimia, de vez em quando, uma aprovação amável. Estava a conversa em perigo quando Ann, com um sorriso onde havia mais curiosidade do que cortesia, perguntou:

- Gostava de saber porque me convidou a doutora...

Syb suspirou de alívio:

- Assim é melhor! Podemos ir ao assunto. Foi para lhe falar do Ran.

- Do meu marido? - continuou Ann, friamente.

- Do seu marido, sim. Mas você tenciona conservá-lo como marido?

-- Que pergunta!

- Trata-se de saber se você se empenha em conservá-lo ou em perdê-lo: é tudo.

O rubor invadiu o rosto de Ann:

- É muita amabilidade da sua parte. Está apaixonada por ele?

- Não. E você?

Se tivesse tempo para reflectir, ignoraria Ann esta intolerável impertinência, mas surpreendeu-a a rapidez da resposta.

- É claro que estou! - atirou-lhe, irritada.

- Então, porque não se porta como uma mulher?

- Julgo saber a que se refere, mas o que ignoro é como se encontra a par da minha vida... a menos que o Ran tenha ido chorar para o seu ombro.

- Talvez daqui a pouco se arrependa do que acaba de dizer.

- Arrependo-me. Mas não por sua causa, doutora.

- Deixe-me então fora de combate. Você parece ter um bocadinho de bom senso, Ann.

- Obrigada! - ripostou, sardónica, a outra.

- Conhece Graeme Ellice?

- Mrs. Ellice? É cliente de meu marido.

- Mais nada?

- Agora compreendo porque é que me convidou. Para arranjar mexericos. Pois isso não me interessa.

- Peço-lhe que me oiça. Eu não sou nenhuma comadre, nem desejo fazer discórdias. Muito pelo contrário. É precisamente a discórdia que procuro impedir. Graeme Ellice anda apaixonada, anda louca pelo Ran. São coisas que acontecem aos médicos. As mulheres demasiado impressionáveis constituem importante risco profissional.

- Quer dar-me a entender que o Ran tem alguma ligação com ela?

- Não. Que eu saiba, ainda não houve nada entre eles. Mas Fanshawe Ellice parte para uma viagem na próxima semana.

Pela memória da rapariga passou uma cruel recordação: não quisera Ran mandá-la para junto da tia? Tentaria assim desembaraçar-se dela?

Sybilla não se calara ainda:

- Graeme é uma mulher linda, terrivelmente sexual e muito perigosa. E - concluiu, deliberadamente - se você pensa que, pelo seu capricho, o Ran vai fazer vida de celibatário, se o considera tão pouco homem como isso, é porque não passa duma pateta!

Agora, Ann estava lívida. Levantou-se, procurando manter o melhor possível a dignidade:

- Acho que devo agradecer-lhe. Agradeço. Mas... mas não gosto de si.

Sybilla sorria:

^- Isso não tem importância absolutamente nenhuma. Gosto eu muito de si, de certo modo. Mas, na realidade, não foi pela Ann que eu fiz isto, e sim pelo Ran. Ele é infeliz.

Teve pena de haver pronunciado estas últimas palavras, porque Ann deu um gritinho de aflição e correu para a porta.

 

O doente de Tim vivia algures, no campo. Longe de tudo. Caso muito difícil. Ran teve de operar de urgência com os mais primitivos utensílios cirúrgicos e passou o resto da noite lutando por salvar a vida do paciente. Voltou com Tim, ao meio-dia: o homem ficara livre de perigo. Após ter jantado tarde com o amigo e de haver passado o tempo a recordar Farmington, dormiu Ran seis estupendas horas no divã de Tim Brennan.

Era meia-noite quando subiu a escada. Entrou em casa sem barulho, e teve uma vaga impressão de qualquer coisa inabitual. Na cadeira perto da alcova, nenhuma roupa de Ann. Por trás das cortinas fechadas, nem um leve respirar. Afastou-as: a cama estava vazia.

- Ann! - gritou, aflito. - Ann!

Nem um ruído. Acendeu maquinalmente a luz, que encheu horrendamente todos os cantinhos do quarto - quarto horrivelmente vazio. Vazio de Ann. Constrangeu o coração do rapaz um arrepio gelado. Esmagado pela angústia, abriu a outra porta - a sua, dele. Inteiramente escondida sob as coberturas, mexeu-se na sua cama uma massa, que fez ouvir um som abafado. Ele lançou, a tremer:

- Salve, nobre estrangeira!

Entre a roupa, uma pequena agitação. Na vaga e frouxa luminosidade que banhava o quarto, destacou-se do travesseiro um brilho, um clarão de cobre. Estenderam-se para ele dois braços. Meio soluço, meio murmúrio, Ran ouviu o seu nome várias vezes repetido.

Ao almoço, Ann disse com ressentimento:

- Mesmo assim! Podias ter-me pedido que voltasse.

 

Desta vez, o boletim oficial da Academia de Medicina anunciava um programa fora de série: a próxima assembleia geral seria posta à disposição do Dr. Laurence Wilson, que dirigiria um debate sobre o futuro da medicina. Ran calculou, com vivo interesse, a linha de discussão que o orientador ia seguir.

A menos que ele estivesse naquele dia demasiado adormecido para ouvir e compreender exactamente o que Larry confiava a Ann, tinha a confidência um perfume muito nítido de apostasia: “O carro da música já está em andamento. Abra os olhos, e vai ver como o bebé trepa...”

Dada a sua posição de observador no serviço da corporação médica, Larry não podia, com certeza, ser simultaneamente pioneiro da fiscalização governamental da medicina. Ou representava papel duplo?

E qual seria a sua atitude pessoal? Era, talvez, demasiado aborrecido encontrar um amigo a cuja mulher se tinha feito a corte - e que corte!

Se é que Ran esperava encontrar Larry perturbado pelas contingências, subestimava-lhe a habilidade mundana. Ao chegar, cedo, à reunião, encontrou-o no meio de um grupo atento.

- Ora viva o Ran! - e acenava-lhe de longe. - Então vai dar-nos esta noite uma fatia do seu apurado socialismo, hem!

- Olá, Larry! Foi para ouvir que eu vim. O predicador é você.

- Hoje, não. Apenas um caixa. Juntarei as ideias dos que valem mais do que eu, e farei o devido relatório à Comissão.

Este o sentido do seu breve discurso de introdução, no qual houve um ponto que atraiu Ran: o Congresso ia em breve consagrar algumas sessões ao estado da saúde pública e da profissão médica. Explicou o orador que, durante todo o Inverno, haviam surgido murmúrios de descontentamento, pedidos de alteração no sistema médico em uso. Havia motivos para supor que eles emanavam em parte de vários interesses egoístas, hostis ao actual estado de coisas. Apesar disso, os da profissão deviam admitir que as pessoas em geral, as massas, consideravam que nem tudo corria pelo melhor.

Haviam-se publicado estatísticas por onde se via não terem sido examinados a tempo milhões de seres humanos, cujos males continuavam sem diagnóstico nem tratamento; milhões doutros, por receio de deverem saldar pesadas contas, passeavam o perigo por toda a parte, muitas vezes até ser demasiado tarde para a cura ou simplesmente para se evitar a propagação. Havia tuberculose e sífilis em excesso; morria gente de mais com pneumonia - gente que poderia salvar-se, se tivesse sido tratada a tempo, se se tivesse feito um diagnóstico e se lhe tivesse sido posto à disposição o soro apropriado. Mas os soros eram muito caros. Só o seu preço ultrapassava muitas vezes aquilo de que dispõe a maioria das pessoas atingidas por pneumonia. Começava a ouvir-se a voz de organizações sindicais, que pediam se assegurasse protecção médica aos contribuintes, exactamente como se lhes assegurava protecção policial e, como esta, paga por impostos. Estes pedidos coincidiam perfeitamente com a política encarada pelo Governo e que consistia em colectar os ricos para aliviar os pobres.

Eram por demais visíveis - sublinhou o orador - os perigos inerentes a tal projecto. Mas cada vez mais a opinião pública queria saber, ao menos, o que impedia o sistema actual de funcionar convenientemente. Era esse um dos pontos a que a Comissão atenderia.

O Dr. Metzger, que presidia, informou-se:

- Quem é o presidente dessa Comissão, Dr. ^Vilson?

-- O senador Wilson, meu venerando pai - respondeu Larry, com o seu sorriso ingénuo.

- Como é gentil! - lançou uma voz afectada e trocista, que não vinha de nenhum sítio especial.

O sorriso de Larry apagou-se.

- com razão ou sem ela - continuou o emissário visitante - alguns profanos dizem que nem tudo vai pelo melhor na organização médica actual.

Ainda vacilante na convalescença da gripe, Mark Riley dirigiu-se ao presidente:

- Gostava de perguntar ao Dr. Wilson se este movimento de reforma médica, digamos, não visa de facto a obter a fiscalização governamental da medicina.

- Indubitavelmente - respondeu Larry. - E apoia-se em muito dinheiro.

- E então?

Era uma voz anónima que desafiava.

- Que censurar, em suma, à medicina nacionalizada? Tínhamos, pelo menos, a certeza de ganhar o pão!

Na animada discussão que se seguiu, George Matthews pediu a Ran que enunciasse os seus pontos de vista. Ran começou por duas proposições: em primeiro lugar, que a fiscalização da medicina pelo Governo apenas significaria a deterioração e degenerescência do médico individual; depois, que, se quisesse evitar a fiscalização do Estado, a medicina devia procurar, e desde logo, socializar-se por si própria, até certo ponto, com proveito do paciente economicamente fraco (indivíduo distinto e diverso do paciente que recorre à caridade), o qual se achava na trágica impossibilidade de obter os cuidados convenientes.

- A resposta - disse Ran - é a clínica de grupo, a cooperação de equipa, mais o seguro médico. Um sistema nacional de seguros médicos, mantendo através de todo o país clínicas de equipas de primeira classe, de valor e competência absolutas, garantiria assistência conveniente por preços acessíveis aos milhões de doentes que deles mais precisam.

A saída da reunião, Larry Wilson converteu-se num centro, em redor do qual continuava a discussão, não oficial mas animada. Parecia perturbado:

- Em toda a parte por onde tenho passado, as gerações novas parecem-me excitar-se mais ou menos inconsideradamente a respeito dos seguros médicos e do trabalho de equipa.

- No fim de contas - replicou, seco, Porky McNab - desejam talvez ganhar o pão.

- Eu chamo a isso comunismo médico - decretou Larry.

- É fácil apor o rótulo de “comunismo” a tudo que lhe desagrada, não acha? Mas não percebo aonde o leva isso.

Esta observação de Tim Brennan estimulou Ran a fazer uma pergunta:

- Em suma, Larry, qual é a sua posição neste caso?

Larry não podia duvidar de que fora ouvida a confissão feita a Ann relativamente ao “carro da música”.

- Eu? Sou, é claro, pelo progresso. Por um progresso razoável.

- Quando disse você que começam as audiências?

- Na próxima semana. Se quer um conselho, digo-lhe que vá.

Na manhã seguinte, Ran contou à mulher a discussão.

- Sessões oficiais em ”Washington? Não será a altura de apresentares as tuas ideias? O plano Warren. É o que devia acordá-los.

Toda ela era febre, excitação entusiasta.

- Dava a minha última camisa para poder lá ir. Mas não posso.

- Porquê?

- Não tenho meios.

- Tens. Precisas de ter.

- Talvez precise. Mas não tenho. Renda em atraso.

- Eu tenho dinheiro, Ran. Algum dinheiro.

Ele corou violentamente:

- Eu não me servia do teu dinheiro para ir.

- Não é exactamente meu. É o que resta da conta do bebé.

- E achas que eu lhe tocava?

Tremeu o queixo da rapariga, que apoiou a cabeça nos punhos e disse, hesitante:

- Deves tocar. É a melhor maneira de me perdoares.

- Querida Ann! Perdoar-te o quê? O quê?

- O ter sido tão mesquinha para ti! Foi para castigo que perdi o nosso bebé. E depois... ainda... depois continuei... não te deixei... aproximares-te... até que... eu própria... já não podia suportar...

Soluçava. Ele levantou-se, foi ter com ela, e, apoiando a cabeça morena à cabeça de cobre, disse, meigo:

- Pronto, querida. Cala-te. Está tudo arranjado. Está bem, eu pego no dinheiro, se é isso que te consola.

De noite, já muito tarde, o telefone acordou-os. Ran praguejou. Primeiro, à ideia de ter de fazer uma visita distante àquela hora. Depois, porque não era isso, mas um “é engano, queira desculpar”. Notou, porém, que Ann estava agitada.

- Não consegues dormir?

- Não.

- Que tens?

- Nada.

- Não calculas como mentes mal.

- Bem, então sim, há qualquer coisa.

- Vamos. Despeja o saco.

- Não. Sim. Não sou capaz. Está bem, Ran, digo-te.

Acariciou-lhe o rosto, depressa, e retirou a mão, antes de acrescentar:

- Ran: estás apaixonado pela Graeme Ellice?

- Acredita ou não acredita, Mrs. Ann Warren, que eu nunca senti amor, nem sequer pensei em sentir, por ninguém a não ser pela maluquinha que a senhora é?

Ela teve um suspiro profundo de contentamento:

- Belo. Nunca mais te faço a mesma pergunta. A respeito de ninguém.

Ran sabia que ela não era pessoa para faltar à promessa.

Em resposta ao telegrama que enviara à Comissão de Aperfeiçoamento da Medicina, recebeu Warren do secretário deste organismo o aviso de estar inscrito para uma intervenção de quinze minutos. Foi grande a sua decepção:

- Mal terei tempo para começar. Não vale a pena lá ir.

- É claro que vale! - O entusiasmo de Ann não se deixava arrefecer. - Dá-me o sumário do teu plano. Fá-lo breve, actualizado e o mais vivo possível. vou tirar doze ou quinze cópias, para poderes oferecer uma a cada membro da Comissão e ficares com outras para distribuíres eventualmente pelas pessoas a quem o programa possa interessar.

- Mas - insistiu Ran - eu quero falar. O papel, deitam-no eles para o cesto.

- Expõe os principais pontos. Dá-lhos bem claros e precisos, de ataque, em cinco minutos. Assim ficam com tempo para perguntar e discutir.

- Era melhor ires lá tu do que eu. Aposto que defendias melhor o projecto.

,- Muito provável! De qualquer maneira, eu apressava o movimento. Vamos: põe-te ao trabalho sobre o que tens para dizer. E não te esqueças: que seja arrebatador!

Embora tivesse a palavra marcada para as onze horas, às nove já Ran se encontrava na antecâmara, com o maço das cópias debaixo do braço.

- Que traz aí? - perguntou o contínuo, desconfiado.

- Cópias do plano de tratamento médico que eu apresento.

- Como diz, Dr. Warren? - O funcionário percorria uma lista. - Aqui está. Das onze às onze e quinze.

- Haverá maneira de conseguir alguns minutos de prorrogação?

- Não. Quinze minutos por pessoa. Pode esperar ali dentro, se quiser.

Ran preferiu passear para trás e para diante.

Enquanto esperava que um dos sonolentos ascensores emergisse das profundezas, ouviu a seu lado uma voz de espanto:

- Ran!

Virou-se. De mão estendida, encaminhava-se para ele Frances Mayfield.

- Frances!

Durante alguns segundos, sentiu-se embaraçado, mas depois disse para consigo que tal atitude era pueril e parva. Pô-lo à vontade o prazer sincero que ela sentia ao encontrá-lo de novo.

- Não mudou nada!

- Porque havia eu de mudar? Mas mudou você. Mais maduro. A sua linda Ann veio consigo?

Coisa incôngrua e que o assustava: o seu passado com Frances caía no vago, tornava-se um tanto fictício. Quase não conseguia acreditar que ela tinha sido sua amante ardente e que haviam passado juntos aquela quinzena de total intimidade. Sacudiu-se e voltou ao presente.

- Não. Ficou em Farmington.

- Que pena! Gostava de a ver. Porque está você aqui? Oh! É claro... - respondia ela própria à pergunta - para a audiência médica, evidentemente.

- Pois. É você?

- Também. O Robert interessa-se imenso por isto. Está lá dentro, neste momento, com o senador McDonough. vou ter com ele. Não quer vir ao mesmo tempo?

Sim. Era exactamente a mesma Frances. com todo o encanto de outrora e toda a antiga quietude. Exactamente como se ela lho explicasse em termos formais, Ran sabia que Frances deixara para trás o passado. Sem vergonha. Calma e resoluta. Que era e continuava a ser a esposa fiel de Robert Mayfield. E, esperava, a sua fiel amiga - dele, Ran Warren.

Robert Mayfield entrava na antecâmara de McDonough.

- Lembras-te do Dr. Warren, Bob?

- Quem? Ah, lembro! Lakeview.

Cumprimentaram-se com um aperto de mão.

- Muito prazer em tornar a vê-lo.

Achou-o Ran mais simples que nos dias de Lakeview, despojado daquela leve camada de pomposa solenidade que muitas vezes acompanha a opulência, quando esta não foi ganha por méritos próprios. O casamento com Frances Libby teria civilizado qualquer esposo. Ela explicou:

- O Dr. Warren apresenta-se à Comissão. Tem um plano para expor.

- Sim? Gostava de o conhecer. Traz aí alguma cópia?

e apontava para o embrulho.

”- Trago. Mas o senhor tem agora tempo?

- Arranjo.

Sentou-se para estudar o trabalho. Pelo seu lado, Frances fez o mesmo. Passado um minuto, Mayfield ergueu os olhos:

- É preciso que o McDonough veja isto.

- Porquê o senhor McDonough?

- Faz parte da Comissão. É mesmo o único membro da Comissão que conhece alguma coisa a este respeito. Vê qualquer inconveniente em que eu lhe entregue esta cópia?

- Nenhum. Ficarei até muito contente, e agradeço-lhe. A minha intenção era fazer chegar um exemplar às mãos do senador Wilson.

- Hum... Hum... Hum... - murmurou Mayfield. - Não me parece bem.

- Porquê, Bob? O plano afigura-se-me notável, parece responder a todas as perguntas.

O marido, batendo com a palma da mão no papel, volveu:

- O Wilson é um político. Que podem tirar os políticos do seu plano? Que benefícios, que vantagens?

- Nada. E é essa mesma a ideia. O divórcio entre a medicina e a fiscalização governamental.

- com que resultado? Sem patrocínios para as nominações públicas, sem usuras, sem tráficos de influência, sem votos comprados... Então para quê? Terrível! Pelo menos, analisando as coisas do ponto de vista do Wilson.

- E o senhor McDonough não é também um político?

- Mas não da mesma espécie.

- Bem. O fim secundário do meu plano, depois de procurar cuidados médicos de primeira classe por preços o mais baixos possível, é impedir as infiltrações da política. Num estado ideal, poder-se-ia, em rigor, conceber que o Governo se ocupasse, com competência e desinteresse, de fiscalizar a medicina. Mas, com os nossos partidarismos desenfreados, nacionalização significaria incompetência, desordem, tumultos.

- Inteiramente de acordo. E tenho a certeza de que o McDonough pensa do mesmo modo. vou pedir-lhe que passe já uma vista de olhos pelo seu projecto.

- Vá jantar connosco hoje - disse Frances. - Tentarei apanhar o Larry Wilson.

- O Larry está contra mim - afirmou Ran, a rir. - Considera-me um radical perigoso.

Abriram-se de espanto aqueles grandes olhos cinzentos:

- Por causa deste plano? Que loucura! Diz o Robert que a medicina deve socializar-se a si própria ou ter a certeza de que, de fora, a socializarão. Mas o Larry estará sempre pelo melhor partido, se consegue descobrir a tempo de que lado este se encontra. Até logo, Ran. Estamos no Carlton. Logo, às oito horas.

Quando Ran voltou à sala de audiências, encontrava-se ocupada mais de metade dos bancos e cadeiras da grande sala de espera. Numa porta interior, fechada, lia-se em grandes letras:

ENTRADA PROIBIDA ANTES DA CHAMADA

Dificilmente se imaginaria reunião mais díspar do que a das pessoas que ali esperavam. Lá se viam um ou dois novos, alerta, ardentes, na esperança de obterem os favores públicos e, se possível, um emprego. Várias mulheres de aspecto decididamente viril, com pastas importantes e vozes que o não eram menos, falavam, alto e à vontade, acerca da iminente revolução médica. E uma nuvem de entusiastas pareciam curandeiros naturistas, vindos em linha recta do fundo dos mais recônditos e extensos bosques.

Faltavam três minutos para as onze. Por muito que tentasse o contrário, Ran sentia-se cada vez mais excitado. Dispunha apenas de quinze minutos, e sabia que precisava de entrar ali já em combate e de expor o seu plano ao mesmo tempo que o distribuísse aos membros.

Da sala onde se reunia a comissão precipitou-se uma mulher que falava com arrogância.

O contínuo chamou:

- Dr. Randolph Warren.

À entrada, Ran estendeu a convocatória e entrou na arena: sentia um nó na garganta.

O senador Wilson fez-lhe um pequeno gesto para testemunhar que o reconhecia. Havia, à volta da grande mesa, mais dez ou doze homens, cujos rostos, à falta de nome, eram conhecidos de tanto aparecerem nos jornais e nas actualidades cinematográficas. Chamou-lhe especialmente a atenção um, de cabeleira cinzento-escuro e olhos azuis. Parecia muito mais atento que os outros.

O senador Wilson abriu fogo:

- Tem qualquer sugestão para apresentar, Dr. Warren?

- Tenho, sim, senhor.

Ran sentiu firmar-se-lhe a voz, que se estabilizou completamente e se tornou mais confiante, à medida que falava.

- Aqui está - disse, enquanto dava a volta à mesa, distribuindo o texto - um plano que, creio eu, cobre as necessidades de todos, ao prever a organização do serviço médico por clínicas de equipa em cada estado, de acordo com a população. Muito gostaria de que fosse incluída nas minutas do Congresso uma cópia deste projecto.

O senador Vilson atirou um exemplar ao escrivão, que, laboriosamente, tomava notas num bloco. E perguntou:

- Como será pago o serviço?

- As classes pobres serão tratadas gratuitamente, graças ao dinheiro auferido dos impostos. As classes médias terão um sistema de seguros administrados pelas grandes associações médicas. As pessoas abastadas procederão à vontade.

Do outro lado da mesa, um homem calvo abriu um olho e quis saber:

- Esse seguro será colectado e as despesas médicas serão vigiadas pelos cuidados dos governos locais ou dos estados?

- Não. A manipulação dos fundos de seguro é de todo independente de fiscalização por parte de qualquer serviço governamental. Encarrega-se de o administrar uma comissão, constituída por um médico da Associação Médica, um homem eleito peio povo e um membro do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos.

Perante a desilusão deste informe, o homem calvo resmungou qualquer coisa e voltou a fechar o olho. Ran sentiu uma falta geral de interesse: nada conseguiria junto da Comissão, já estava a ver. Mas talvez alguém de influência - podia ser o presidente - reparasse no plano e compreendesse as suas vastas possibilidades, por muito pouco que se quisesse esperar algo diferente dum eventual meio de garantir votos.

Vários membros fizeram perguntas desinteressadas e superficiais. As do homem de cabelo cinzento e olhos azuis, em que ele reparara ao entrar, não foram nem superficiais nem desinteressadas, mas sim inteligentes e atentas. Pelo menos - pensou Ran, quando o contínuo veio anunciar que se esgotara o seu tempo - tinha interessado a um homem.

- Como correu aquilo? - perguntou Frances Mayfield, nessa mesma noite, quando tomavam os aperitivos.

- Não correu lá muito bem! Mal viram que não havia

política no plano, pegaram outra vez no sono. Todos, excepto um. Esse um parecia compreender qualquer coisa.

- Devia ser o Paul McDonough - disse Robert Mayfield. - Janta hoje connosco.

- Tendo-se escusado de um jantar mais importante, unicamente para o encontrar e discutir consigo, Ran - completou Frances.

Larry Wilson, ao que parecia, jantava numa embaixada, mas era possível que aparecesse um bocado mais tarde.

Durante a refeição, a conversa foi sobretudo técnica. O senador McDonough aprovava sem reservas o plano, embora descobrisse dificuldades menores e inconvenientes de aplicação.

- Não haverá o perigo de os médicos, com uma remuneração fixa garantida, se relaxarem e descurarem o seu aperfeiçoamento e até os deveres profissionais?

E Robert Mayfield sublinhou imediatamente:

- É a principal objecção que se apresenta à estadualização da medicina, que transformará o médico em funcionário remunerado.

- O perigo, realmente, não é para desprezar >- admitiu Ran - mas pode atalhar-se. Só tive ocasião de dar um esquema de plano. Num outro, completamente desenvolvido, obrigam-se as clínicas a manter todo o pessoal em certo nível de conhecimentos e qualidade. De resto, devem contentar os doentes do seu distrito, ou então perdem-nos a favor dum grupo melhor. Demais, para dar garantia dupla às coisas, vou acrescentar um artigo que preveja que a Associação Médica de cada estado organize, como já se faz na Florida e em vários outros sítios, breves cursos, aos quais os médicos devem assistir por turnos, de três em três anos, e que lhes permitam estar a par de tudo quanto se fizer de novo na sua especialidade e até na sua profissão.

- De resto, os vários membros duma mesma clínica hão-de estimular os outros, e a emulação nunca perde os seus direitos - observou Frances.

Ran aprovou:

- Sim. Isso há-de ajudar muito os médicos a não se deixarem levar de reboque.

- Receio que nada se possa esperar da Comissão - disse

o senador. - Mas vamos tentar que a sua ideia não morra. Gostava de ficar com todas as cópias de que você pudesse dispor.

- Hoje, realmente, tive a impressão de que os membros da Comissão já estavam decididos. Pareciam pura e simplesmente liquidar uma ordem do dia.

O senador McDonough abanou a cabeça:

- Infelizmente, não se engana muito. A maioria deles vê este caso, como todos os outros casos, apenas pelo ângulo político. E duma política mercantil, o que é pior. Nada lhes agradaria mais do que ter nas mãos a fiscalização médica. E, como sabem de que lado sopra o vento, preparam as velas a feição. Tem seguido a extravagante propaganda que ainda agora começou? Um dia destes, lançam-se como um furacão. Os interesses por trás da fiscalização médica não deixam nada ao acaso, exactamente como o estado-maior dum exército.

- Acha então que vamos realmente ter a medicina dependente do Estado?

- Acho. A estadualização vai a caminho, Warren. Que Deus nos ajude: ela aí vem - respondeu o senador.

Larry Wilson chegou muito tarde. com novas.

- O pai foi directamente atacado por este bando de reformadores médicos. Reúnem todos os despeitados e descontentes do país. Devem ter muito dinheiro por trás! Poderosas fortunas médicas, não é para admirar. Esperem por qualquer coisa antes de a Comissão apresentar as suas conclusões.

- Para onde vai, quando deixar Washington, Ran? perguntou Frances.

- Pensei ir a Baltimore, para apertar certos laços antigos.

- Teria muito gosto em convidá-lo para ir a nossa casa - disse Robert Mayfield - mas esta semana não estaremos lá. Vamos ao Oeste da Virgínia, onde eu tenho interesses mineiros.

- Conhece a região, Ran? A volta e para lá de Stoneville?

-- Não. É um distrito de montanha, creio eu.

- É. Bastante primitivo e terrivelmente pobre. Mas nada se pode fazer. A indústria do carvão betuminoso anda muito doente.

- A medicina também - disse Ran, com um suspiro. E julgo-a próximo de ter de sofrer grave operação.

 

- Pergunta para o Governo: que vamos fazer para ganhar a vida?

- Gosto de Farmington - respondeu Ann.

- Eu também - declarou Ran. - Mas... Farmington não gosta de mim. Pelo menos, não gosta tanto que me pague o bastante para eu viver.

- Ainda não estamos assim tão mal, querido. Tenho o pressentimento de que vai surgir qualquer coisa favorável.

- Se fosse um milionário com qualquer obscura e persistente complicação cirúrgica ... -Ao observar atentamente Ann, Ran sentiu uma desconfiança. - Dize lá... estás extremamente bonita hoje... Mas flutua à tua volta qualquer coisa de fraudulento... de inconfessável... Não confio em ti para lá da porta.

- Não beijes a cozinheira - advertiu Ann, afastando-o - que lhe perturbas o trabalho.

- Que estiveste tu a fazer?

- A reparar barreiras!

Nada conseguiu obter dela, além do conselho de se meter na própria vida, indo para o consultório. Onde o esperava Marty Bayner.

- Viva, doutor! Porque não foi procurar-me?

- Não o sabia doente, Marty.

- Doente? Eu? Não, que ideia! Nunca estive. Não tenho tempo para tanto.

- A política dá-lhe então muito que fazer? - perguntou Ran, cortês.

- Sabe qual é a primeira regra da política, doutor?

- Não. Nunca me preocupei muito com isso, Marty.

- Ah, eu percebo! A primeira regra é a seguinte: “Sirva-se dos seus amigos”.

- Não tenho amigos nesse campo.

- Ora bolas! Vá passear! Não tem amigos nesse campo! Que tem você para me censurar?

- Não tenho nada para lhe censurar, Marty.

- Mas não quer nada comigo, não é?! - exclamou o político, melindrado.

- Não é assim que se devem ver as coisas.

- Então! A sua mulher tem muito mais caco do que você.

- Lá isso é verdade! Que fez ela agora?

- Colidi com ela, na cidade, um dia destes, mas desta vez a pé! E soube que você precisa mesmo daquele emprego na prisão.

’- Como? - perguntou Ran, com fervor.

- Olá! Pega na mochila e mete-te ao trabalho, magalinha!

Ran ficou por um momento de boca aberta, perplexo.

- Não compreendo, Marty.

- O tipo que eles meteram no lugar não prestava para nada. O director não está pelos ajustes, e isso deu-me uma oportunidade. De repente chego ao Metzger com munições: a carta do pobre Barkett...

- A carta do Barkett? - interrompeu Ran, assustado.

- Sim. Eu tinha-a caçado - explicou sucintamente um Marty Bayner sem vergonha. - Pareceu-me que saberia servir-me dela melhor do que você, quando fosse preciso. Não o foi. O Metzger não gosta do doutor e nunca gostará, mas, depois da epidemia, reconsiderou o seu ponto de vista e candidata-o ao emprego, em substituição do Willetson, que se demitiu... Compreende? E se tenta agradecer-me, parto-lhe a cara...

- Óptimo, Marty. Salva-me por agora, e peço a Deus que isto continue. Mas não queria apostá-lo.

Por um momento embaraçado, o político compreendeu e concordou:

- A história da fiscalização médica pelo Estado, é isso? Sim, eles dizem que a coisa marcha. Eu tenho-lhe horror. A medicina é uma das coisas em que a política não deve intervir. Pela minha parte, sou absolutamente partidário do velho médico de família, que dá as suas voltas provido de pílulas, envia a conta quando se lembra dela, e que fica em paz, tanto no consultório como na rua. Vamos a ver que acontece, se a política lá meter a. unha. Até dá dores de barriga o pensar nisso. Mas estamos prontos para que tal nos aconteça, a não ser que vocês, os médicos, se lhe atirem, e depressa!

- Acho que, seja como for, não vale a pena preocuparmo-nos tanto, por agora. O Governo há-de querer fazer as coisas progressivamente, e os males aparecerão logo às primeiras. De modo que a experiência vai ficar por aí.

- Ah, sim?! É assim que vê as coisas? Pois bem: está redondamente enganado. Redondamente. Oiça o que eu lhe digo e acredite: têm muito com que se preocupar. Mesmo muito. E para breve.

- Vejamos, Marty. Não supõe, com certeza, que o Governo vai fazer tudo duma vez. Era impossível! Sempre pensei que eles começariam por organizar um serviço do Estado para os que não podem pagar, e que deixariam o resto tal qual está.

Bayner abanou a cabeça, para sublinhar com ênfase o seu desacordo:

- Ou tudo duma vez ou nada. E é evidente. Você não acha, decerto, que os figurões que estão por trás da coisa se contentam com pouco... Não ouve daqui os berros dos pobres diabos como os que povoam o meu sector? Cuidariam que os desprezávamos, entregando-os a médicos de tuta e meia, ao passo que os ricos podiam pagar os serviços dos melhores. De todas as vezes que um pelintra rendesse a alma, o Governo havia de apanhar. Não: pode crer que nem todos estão doidos em Washington, e não querem assim correr o risco de perder votos.

Ran parecia uma pessoa a quem se acabasse de mostrar que caminha à beira dum precipício, sem dar por isso.

- Quer você dizer que eles haviam de deitar logo a mão aos hospitais, às clínicas, aos dispensários, à clientela particular, a tudo e ao mesmo tempo, enfim?

- Exactamente. Não há uma probabilidade em cem de fazerem doutra maneira. É claro que ainda se podia atirar um pau às rodas. O projecto não será lei enquanto o Presidente não o tiver assinado em baixo. Mas, se os senhores médicos se contentam com ficar sentados em cima das suas coroas, pode ter a certeza de que não levará muito tempo a pôr-se em andamento a máquina. E então, com ela a rodar, será tarde para a deter.

A sorte bafejava Warren. As consultas particulares aumentaram em número e rendimento, resultado inevitável - quando se consegue esperar bastante por que ele chegue - de sincero fervor profissional junto a uma habilidade técnica certa.

Marty Bayner tocava a rebate por ele. Clientes reconhecidos cantavam-lhe louvores aos amigos. Médicos que a sua firme independência impressionara, aquando da desordem verbal na Academia, enviaram-lhe casos. Sabendo que ele não praticava a clínica geral nem dependia de qualquer roda, mandavam-lhe os doentes com toda a segurança, certos de que estes não lhes seriam roubados.

O aumento de recursos permitiu aos Warren instalar-se num apartamento maior e escolher uma enfermeira-secretária para o consultório.

Ann queria reocupar o seu lugar, mas o marido sabia que ela ainda precisava de repouso. Um ano durante o qual trabalhara intensamente em casa e no consultório, e depois a perda do bebé, haviam-na esgotado. Ran gostava de vê-la sair mais, arranjar amigos, começar a vida para que a educação a preparara e para a qual se inclinava pela sua alegria e simpatia inatas. E encontrar-se-ia cem por cento satisfeito se não lhe pesasse no fundo da consciência um sentimento inconfortável. Cordial, e talvez sãmente, tinha vergonha do episódio Graeme Ellice. Escrevera a esta, de Washington, uma carta que era (ele bem o sabia) uma obra-prima de embaraço.

“com que diabo - perguntava a si próprio - pode um homem desculpar-se perante uma mulher de não haver desejado dormir com ela, depois de lhe haver dado todas as razões para supor que sim?” Não percebia também por que motivo tinha vergonha do seu actual procedimento, em tudo tão moral que o mais exigente júri de anjos sensatos aprovaria. Havia alguma coisa a tocar onde quer que fosse. Ela escrevia:

com certeza, você tem razão. Esqueçamos tudo. Vou sossegar. Mas espero não o ver dentro de algum tempo.

O que mais o feria era ela ter junto um cheque para liquidar os tratamentos médicos posteriores à operação. O facto de o haver rasgado não equivalia em nada a uma justificação.

Em fins do Verão, Ann apareceu ao pé dele, toda orgulhosa, com o livrinho preto das economias:

- 25 de Agosto - leu ele - cem dólares.

- É o começo de novos fundos para o bebé.

- O quê? - quis saber Ran.

- Não, ainda não. Mas fui ao Dr. Matthews, e ele pensa que posso ficar outra vez grávida daqui por um ano.

- Se a minha colaboração te pode ser útil, não hesites em dar as tuas ordens. - disse Ran, com o seu ar mais mundano.

- E se tu te calasses, meu idiota?

Ann corou até às orelhas, e Ran exclamou:

- Aguenta esse rubor franco de menina de escola. O tecnicolor podia aproveitá-lo.

Era, aos seus olhos, um dos encantos de Ann: o poder sempre fazê-la corar. Ela levantou o nariz, com dignidade:

- Nunca consegues levar a sério as coisas sérias.

- Se eu estivesse a par das tuas intenções, tinha poupado todo aquele dinheiro que desperdicei com a ida a Washington.

- Não foi dinheiro desperdiçado - afirmou Ann. O plano será aprovado mais cedo ou mais tarde. E, de qualquer maneira, tu precisavas da mudança.

- Ainda não apareceram nos jornais grandes títulos a respeito do plano - respondeu o marido, triste.

Durante todo o Verão, e assim nos princípios do Outono, nada de definido se produziu, se bem que certas informações indicassem, de quando em quando, que em várias cidades estavam em funcionamento algumas forças antimédicas. Provisoriamente, a política destas parecia apenas destrutiva, procurando abalar a confiança do público na medicina. Ran, bem como os colegas e confrades com que discutia o caso, pressentia que a corporação, no conjunto, não apreciava a verdadeira força da ameaça nem procurava efectivamente contrariá-la.

Demorava o relatório da Comissão do Congresso. Certos rumores vindos de Lakeview pareciam indicar que nenhum dos planos apresentados era visto com favor e que a Comissão pendia nitidamente para a política do Governo.

Sem ninguém esperar por tal, decidiu o Presidente que haveria uma reunião especial do Congresso, a 1 de Novembro, para estudar a legislação médica. Começaram então a chegar os episódios com dramática rapidez. Levantou-se em todas as frentes uma barreira antimédica. Um imponente tesouro de guerra, constituído sobretudo pelos fabricantes de remédios falsos, permitiu obter os serviços das mais célebres autoridades em matéria de publicidade e orientar na imprensa vigorosa campanha “educativa”.

Um famoso charlatão, inventor de drogas para pele de cão, organizou uma campanha de panfletos pelo correio. Inspirados em artigos dos grandes jornais, rebentaram outros nas folhas regionalistas e em órgãos mais importantes, que a tal puderam ser levados pelo dinheiro, pela persuasão ou pelo medo. Falou a rádio. Reuniram-se e apresentaram-se sensacionalmente horríveis exemplos de erros médicos: as ocasiões em que os hospitais se haviam recusado a aceitar casos desesperados, as circunstâncias em que as sociedades médicas demasiado conservadoras se haviam enganado, a táctica obstrutora de medicarrões de V/ashington (que estupidamente tentaram combater pela greve um projecto legítimo de segurança) - tudo foi enaltecido, deformado, habilmente preso por alfinetes, até que acabou por formar um volume impressionante de ódios e desconfianças, o qual adquiriu forma legislativa num acto respeitante à prática da medicina, apresentado pelo senador Vilson e apoiado (embora não unanimemente) pelo grupo adhoc formado.

Especiosamente redigido, tal projecto de lei depunha nas mãos dos políticos a medicina, em todos os seus ramos e actividades anexas e afins - hospitais, clínicas, enfermeiros, até farmacêuticos. Previa a criação de novo ministério, com um secretário da Saúde no gabinete. Considerava-se automaticamente que os médicos, fossem eles quais fossem, praticavam a clínica geral, e por isso se obrigavam a figurar como tais nos estados de pagamento governamental, excepto se ficassem aprovados nos exames que as repartições oficiais iam fazer passar por cada estado, a fim de lhes determinar os estatutos de especialistas. Cada estado se dividiria em certo número de distritos, cada qual com um ou vários hospitais; os médicos de clínica geral viveriam e exerceriam a sua actividade fora dos hospitais, e os especialistas dentro dos hospitais. Todos os médicos seriam empregados do Estado e não poderiam escolher o lugar de actividade ou residência. Previa-se, contudo, que os homens de idade continuassem no actual distrito. Estabelecer-se-ia uma escala de salários, e o nível dos vários escalões correspondia sensivelmente ao estabelecido para os médicos do Exército e da Marinha e para os do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos. Era, na forma mais virulenta, a estadualização da medicina, inteiramente submissa à fiscalização da burocracia, que não deixaria de implantar-se em Washington, para manobrar o conjunto e os pormenores do sistema.

Apanhados de surpresa, pouco tempo ficou aos médicos para organizarem a oposição a projecto tão cuidadosamente preparado; começava-se a saber a coisa pela Comissão do Congresso, em conjugação secreta com charlatães, maníacos e recrutas honestos que se haviam revoltado por causa de práticas duvidosas ou venais, observadas nas fileiras da profissão. Tarde demais, os diversos corpos médicos reuniram assembleias, aprovaram resoluções, denunciaram o projecto de lei, alertaram o público. Comparados aos trabalhos dirigidos por brilhantes especialistas em publicidade, eram irrisórios os seus esforços. À hora fixa, uma chuva de cartas, telegramas e editoriais fez submergir a oposição no seio do Congresso.

A lei passou, de bandeira desfraldada, e depressa foi assinada pelo Presidente, que, em discurso radiodifundido por todo o país, anunciou a aplicação do sistema para o 1º de Janeiro. O senador Wilson foi logo nomeado secretário do recém-criado ministério da Saúde. A toda a largura, os jornais ostentavam títulos enormes:

O PRESIDENTE ANUNCIA TRATAMENTOS MÉDICOS IGUAIS E GRATUITOS PARA RICOS E POBRES

Aqui e além, em entrevistas e declarações, médicos distintos anunciaram que mais depressa se retirariam da profissão do que se submeteriam a um governo médico socializado.

Ran não experimentava por eles qualquer simpatia:

- Figurantes que abandonam o navio por julgarem que ele vai soçobrar! - exclamou, furioso, para Tím Brennan, que o visitava. - Podíamos lutar contra isto. Não o fizemos. Agora, não vamos afrouxar. Quem se ocuparia dos doentes?

- O Congresso, diabos o levem!

- Podíamos ter-lhe acertado em cheio, no Congresso, se tivéssemos tido um bocado de coragem. Os Estados Unidos contam mais de cem mil médicos. com eles como ponto de partida, tínhamos apanhado as enfermeiras e todos os que trabalham nos hospitais: um milhão de votos. Mas os nossos corpos médicos, habituados a descompor-se mutuamente a propósito dos seguros e grupos, não apresentaram uma única sugestão construtiva, quando era evidente a todos os olhos que as coisas iam mudar.

- Admito que nos tenhamos tornado, no conjunto, bastante molengões e reaccionários; mas será você capaz de me dizer o que há-de estimular-nos ao trabalho, nestas novas condições?

- Não nego que isto há-de representar esmagamento e opressão. E depois? Quer trabalhemos para nós mesmos, quer para o Governo, desde que nos chamemos médicos, incumbe-nos tratar dos doentes. Pela minha parte, nunca o esquecerei, e hei-de aguentar.

A despeito da sua resolução de continuar o trabalho, as semanas que correram antes da entrada em vigor da lei encontraram Ran cada vez mais desencorajado. Sabendo que não mais teriam contas de médico para pagar, as pessoas só tarde e a custo se resolviam a liquidar as que já deviam. Os proventos de Ran começaram a baixar perigosamente, numa ocasião em que lhe era indispensável a sua regularidade, porquanto comprara, havia pouco, um carro novo, que tinha de pagar em prestações mensais.

Chegou-lhe a tempo o formulário de pedido de emprego médico. Havia, para começar, um longo questionário de três páginas, onde era preciso indicar os ascendentes, precisar a formatura e pormenorizar a experiência profissional, desde a data do diploma. Mas, se a tal se não podia escapar, não ficavam por aí as coisas. Teve de arranjar uma certidão de nascimento, um certificado da escola médica, para atestar que saíra realmente com a licenciatura completa, e um outro certificado do hospital de Lakeview, para provar que havia passado por todos os graus: interno, assistente-residente, residente de cirurgia. Encontrou depois dificuldades para explicar o motivo da demissão do hospital municipal de Farmington. Quando, enfim, dispôs de todos os documentos necessários, quando, sob palavra de honra, declarou a absoluta exactidão das várias informações dadas no primeiro questionário, sentia-se aborrecido e furioso. Bastante lúcido, porém, apesar do furor, para não omitir, em grandes capitais, a indicação CIRURGIA, no canto reservado a, “eventualmente, indicar a especialidade”.

Poderia, pelo menos, dedicar-se exclusivamente ao trabalho que amava, especializar-se talvez num ramo. Era a sua única alegria. Se pudesse limitar o seu trabalho ao peito e cérebro? Eram pouco numerosos os médicos formados neste duplo sentido. E se pudesse agregar-se a qualquer grande centro médico da metrópole?

A noite, estendia-se, com um braço à volta do pescoço de Ann, e ficava às escuras, a falar, durante horas, dos seus sonhos, das coisas que esperava realizar no futuro. Começava a ver possibilidades no sistema que, amanhã, havia de reger toda a actividade médica da nação. Talvez, afinal, não fosse tão negro como se pintara. Alguns médicos iam, claro, deixar-se arrastar pelo desleixo, pela negligência, por uma facilidade degradante, uma vez que não teriam concorrência que os obrigasse a caminhar como deviam. Mas, nas clínicas importantes, os bons médicos continuariam a praticar boa medicina: os homens dignos deste nome, os que preferiam o trabalho aos lucros do trabalho, aqueles para quem a maior recompensa era ver os corpos devastados recuperarem vida e vigor, nas suas mãos hábeis e salvadoras.

Ann, conquanto menos optimista, nada dizia que pudesse desencorajá-lo. Lá no íntimo, vivia a aflitiva angústia de ver subitamente desmoronar-se qualquer coisa na arquitectura dos seus sonhos: não havia grandes possibilidades de eles se realizarem, quando tudo trabalhasse para o Governo. Este não era humano. Não passava dum monstro, ávido e cruel, destinado a transformar em autómatos os homens e mulheres ligados ao seu serviço e que ele prendia, por sua vez, a máquinas de escrever e de calcular, ou encarregava de passar os dias a vender selos, por trás dum postigo.

A 1 de Dezembro, Warren recebeu convocação para ir a uma cidade próxima fazer exame de cirurgião especialista.

- - Enfim, lá Vou! . - disse para a mulher, ostentando a carta. - Encher-lhes-ei a vista. Quando lerem o papel que Vou redigir-lhes, nomeiam-me pelo menos cirurgião-chefe dum hospital.

. - Aí está o espírito que se deve ter! - volveu Ann, que acrescentou depois, prática: - Os exames são daqui por uma semana. Não fazias mal em pôr-te desde já a estudar. Vai, não percas um minuto.

Durante toda a semana, Ran trabalhou com coragem. Na véspera da prova, meteu-se no comboio da noite e entrou no edifício federal, pouco antes das nove horas da manhã. O júri reunia-se num vasto auditório. Uma nuvem de empregados picava os papéis de quem ia chegando. Ran deu o nome e viu uma cópia fotostática do formulário que preenchera tão excitado. O empregado tirou-a duma pasta de cima da secretária, picotou-a, pôs o número dela num bilhete e entregou este a Ran:

- Aqui está a sua referência, o número de chamada. A partir deste momento, é o G. - 1805.

À indicação G. - l805, Ran reagiu com um sorriso sem alegria: no que se transformara o Dr. Randolph Warren, operador a quem as pessoas confiavam a vida! Um número, nada mais. Uma mola da grande máquina. bom. Muito bem. Ia mostrar-lhes. Provaria, em todo o caso, que era uma mola de tal valor que não podiam desprezá-la, mas a que tinham, pelo contrário, de reconhecer importância.

Entrou na sala do exame, encontrou o lugar marcado com o seu número e viu o júri aparecer e sentar-se. O penúltimo da fila era o Dr. Sarnov.

Ran não conseguiu dominar perfeitamente a contrariedade. com Sarnov no júri, podia contar, de antemão, com o chumbo. Mas macacos o mordessem se ele desistisse! Sarnov podia usar de toda a sua influência para o reprovar, mas isso não aconteceria por serem medíocres os trabalhos apresentados pelo candidato. Sabia-se mais bem formado e mais prático do que noventa por cento dos outros candidatos que, naquele momento, esperavam a distribuição das perguntas.

O exame durava dois dias e cobria literalmente todos os ramos da cirurgia geral. Transpirou conscienciosamente sobre as várias perguntas e terminou no segundo dia, já bastante tarde.

R. - 2030, seu vizinho da esquerda, ao terminar, por sua vez, a prova, veio ter com ele, fora da sala:

- Não notou nada de estranho nestas perguntas? - indagou Ran.

O outro riu:

- É claro! Tão claro como o nariz a meio da cara. Foram concebidas e redigidas de maneira suficientemente vasta e vaga para os examinadores poderem, à vontade, aceitar ou rejeitar as respostas que lhes convierem.

- É essa mesma a minha impressão - concordou Ran.

- Que esplêndido e bem organizado bando vai ser esta medicina do Estado! A propósito: em quem tem votado, nestes últimos tempos?

- Em ninguém.

- Não é o melhor caminho. Muitos de nós cometeram o mesmo erro. Menos grave, porém, do que se tivesse votado mal! Por mim, logo que regresse a casa, Vou à procura do nosso deputado e vejo se consigo que ele atire uma palavra a meu favor.

E então Ran, desencorajado:

- Eu nem sequer sei como o meu é feito...

Dias de preocupações, dias inquietos, um após outro, constituíram semanas. E nenhuma notícia a respeito das provas. Na antevéspera do Natal, chegou o grande sobrescrito oficial por que se esperava.

Ran leu o que vinha dentro e ficou mudo de incredulidade:

G. - 1805 (Randolph Warren). Fica informado pela presente de que é rejeitado o seu pedido de classificação como cirurgião especialista. A sua classificação será medicina geral.

1ª classe. Compete-lhe o décimo distrito da Virgínia. Deve apresentar-se ao oficial médico do distrito, C. W. WADE, até 1 de Janeiro, sem o que lhe será retirada a sua classificação.

Por ordem,

W. W. CAMP,

Oficial de Colocações Médicas, Serviço de Saúde.

- Pronto! - murmurou Ran à mulher. - Desaparece o Dr. Randolph Warren, cirurgião. Apaga-se, a favor do G. - l805, médico para todos os serviços. Começa a fazer as malas, Ann!

 

 

A chuva que corria no pára-brisas condensava-se em delgada folha, através da qual filtrava uma luz refractada que deformava os letreiros, de modo que as coisas exteriores adquiriam o aspecto das imagens loucas que horrorizam o cérebro dos esquizofrénicos. Atirada para um canto do carro, Ann tremia.

Levantou os olhos para as montanhas que os rodeavam à esquerda e à direita, enquanto seguiam ao longo da estreita fita de gelo que era a ribeira. Deviam ser bem bonitas na Primavera aquelas montanhas, com o verde da erva e das árvores, as cores brilhantes dos redodendros e, lá em cima, no céu, a brancura dos cornisos. Naquela altura, estavam pálidas e ameaçadoras; pontos de rocha cinzenta projectavam suas sombrias escarpas, e a neve envolvia os picos. Aqui e além, restos de madeiramentos que dominavam um grupo de hangares desertos e em ruínas contavam a história das minas de carvão abandonadas, de poços outrora iluminados pelas lanternas dos mineiros e hoje reduzidos às trevas, abandonados sob os telhados, consumidos, roídos pelo perpétuo gotejar da água.

Ran, silencioso havia minutos, inquietou-se:

- Frio?

- Nem por isso - respondeu, bem disposta. - Graças a Deus e ao meu casaco quente.

- Bem faríamos se nos puséssemos de bem com o Céu, que me oferece, para o resto dos dias, a amável e brilhante perspectiva de receitar comprimidos de aspirina e pílulas de aloés.

Ann inclinou-se para o marido, a cujo sobretudo encostou o rosto. com a mão livre, ele segurou-lhe nos dedos e apertou-os com muita força:

- Desculpa!... -disse-lhe, passado um momento.

A cidade caiu-lhes em cima antes de darem por isso. Pouco mais do que algumas ruas transversais vindas duma via comercial única, ladeada pelas habituais tendas, mercearias, igrejas, e terminada por um miserável tribunal de tijolo. Réplica - tirada em centenas de exemplares espalhados um pouco por toda a parte - de numerosas cidades atravessadas já durante a tarde. O único sinal distintivo que a caracterizava era o letreiro, descolorido pelas intempéries e colocado na avenida principal, à entrada da cidade:

ADSON

(comuna)

Pop. 3500 h.

- O Dr. Wade?

O empregado, por trás da banca dos paços, coçou a cabeça:

- Ah, sim! É o novo oficial médico cá do distrito. Encontra-se no tribunal.

Ran considerou a amarga lógica dos factos: a medicina, decaída dos altos píncaros da Ciência, residia agora no tribunal. Não lhe foi difícil encontrar o escritório. Elucidou-o um letreiro desbotado em porta de vidro despolido:

Ministério Federal da Saúde

C. W. WADE Oficial médico do distrito

Era formidável o homem ali sentado! Ao erguer-se, a pança espalhou-se-lhe generosamente pela mesa, parecendo muito satisfeita e reconhecida por não ter de suportar o próprio peso. Quando sorriu, os olhos retiraram-se lá bem para o fundo dumas faces vermelhas e redondas, e depois, quando abriu as pálpebras, saltaram-lhe da cabeça, cintilantes. Ran perguntou:

- Dr. Wade?

O outro abanou a cabeça:

- O próprio.

- Sou o Dr. Warren, e esta a minha mulher.

Wade estrondeou:

- Encantado por o conhecer, Dr. Warren. E a si também, minha senhora. Estava à vossa espera.

Apertou-lhes a mão, com a ameaça de engoli-los numa cordialidade tão transbordante como a sua própria massa.

- Tentei fazer restabelecer a minha classificação - explicou Ran. . - Eu sou, na realidade, cirurgião.

- Ultrapassa tudo que se possa imaginar a quantidade de cirurgiões que há hoje em dia! - exclamou Wade, divertido. - Nenhum moço quer instalar-se na medicina geral. Assustam-se! Fi-la eu próprio durante vinte e cinco anos. Nas minas.

Ran dizia para consigo que ele bem tinha ar disso: produto típico e barrigudo da “medicina por contrato”.

- O meu lugar é mesmo aqui, na cidade, Dr. Wade?

- Não. - Sorria de novo: - Um lugar excelente para você. Em Stoneville. Seis milhas distante. Já lá está um homem muito capaz, o Dr. Porter. Vai gostar muito dele. Hão-de entender-se bem.

- O hospital é aqui, não é verdade?

Wade aquiesceu com um abanar de cabeça e um grunhido:

- E até um lindo hospitalzinho. Deseja, com certeza, encontrar o cirurgião, já que se interessa por cirurgia. O Dr. Branch é um ás. Feliz operador. Sai-se às mil maravilhas. No exército, antigamente.

- Tenho de seguir os casos hospitalizados?

- Claro, claro. Temos uma bela equipa de médicos, no hospital. Hão-de cooperar consigo pelo melhor.

O Dr. Wade consultou o relógio.

- Caramba! Já cinco horas! - Transbordava de alegria. Já eram cinco horas! - Altura de fechar a loja, por hoje. É o que tem de bom trabalhar para o Governo: horas regulares e definidas.

“Falas por ti! - pensou Ran. - Mas nós? Nós, os outros todos, que temos de estar à disposição, dia e noite, e acudir à chamada de qualquer cólica ou cãibra no estômago?”

- Bem! - disse Wade. - Pode chegar a Stoneville ainda esta noite. O dispensário é ao lado da farmácia. Amanhã de manhã está lá o Dr. Porter para lhe dar as indicações necessárias.

 

Ao descerem a escada do tribunal, Ann, sorridente, perguntou ao marido:

- Que tal o teu novo superior? Ran afectou um sorriso:

- Eu ficava aflito se lhe acontecesse qualquer coisa na barriga! Não sei, francamente, se seria melhor operar, se fazer explodir.

 

Era noite quando chegaram a Stoneville. Mesmo à entrada da cidade, abanava num vaso plantado na relva um letreiro com a palavra TURISTAS. A casa que ficava por trás da relva era uma construção irregular, de tecto coberto por ripas. Ran bateu à porta. Na luz incerta, sorriu-lhe uma mulher de cabelo cinzento.

. - Arranja-se um quarto para passar a noite?

- Ah! São turistas? Quase não aparecem aqui nenhuns, mas tenho sempre uma cama pronta para as ocasiões.

Para corpos fatigados, oferecia-se repousante o conforto antigo do quarto. A hospedeira, Mrs. Field, era viúva dum contramestre falecido num desmoronamento de mina. Sentiram-se ambos mais bem dispostos depois da refeição quente que ela lhes serviu, cuidando deles com a atenção duma mãe de família. Era patética a sua alegria por ter com quem conversar:

- É então o senhor o novo médico do Governo! - disse ela, quando Ran pousou o prato. - As coisas estão a transformar-se !

- A gente cá da terra está contente por não ter mais contas de médico para pagar? - perguntou Ann.

- Oh, meu Deus! Desde que me conheço, nunca aqui houve contas de médico para pagar. As companhias organizavam isso. É claro que havia gente a quem a coisa não agradava. A maior parte das vezes, o médico contentava-se com deixar uma garrafa. Agora, contam que os médicos do Governo não valem sequer os das companhias. Diz-se que, se já não se era bem tratado quando se pagava, hoje, que não se paga, ainda vai ser pior.

Não faltava lógica a este ponto de vista - pensava Ran, ao deixar a confortável salinha, onde um minúsculo fogão quase saltava nos pés de ferro fundido, tal era o ardor que punha no aquecimento.

- Oh! - exclamou, quando, ao meter-se na cama, se afundou nas profundezas dum colchão de penas. - Há quanto tempo não durmo numa coisa destas!

- Para uma noite tão fria, é bem agradável! - disse Ann, que apagou a luz.

Encontrava-se satisfeita por haverem caído em casa da meiga Mrs. Field, na sua casa morna como um ninho. Talvez pudessem lá ficar por algum tempo. Talvez Mrs. Field gostasse de os ter como hóspedes. Talvez o conforto familiar dos profundos sofás da sala de baixo e o ardor do pequeno fogão ajudassem Ran a esquecer-se do desaire.

Na manhã seguinte, o tempo estava claro, mas ainda glacial, quando Ran saiu para o dispensário. Era Stoneville uma comunidade pouco numerosa, mas extensa. Tinha uma tenda e duas bombas de gasolina. O resto era uma dispersão de casinhas, ao longo da estrada e nos flancos escarpados das montanhas, semeados de poços de minas e de acumulações de escória fundida, que limitavam de modo preciso e irrevogável dois lados da cidade.

O dispensário encontrava-se numa antiga mercearia. Na fachada, um letreiro de fresco:

DISPENSÁRIO DE STONEVILLE

DISTRITO MÉDICO N.” 10

Ran abriu a porta e entrou. Sentada a uma pequena mesa, certa enfermeira lia uma revista de confissões sentimentais; levantou um olhar lânguido:

- O médico só chega às nove horas. Sente-se.

E continuou a leitura.

Ran cerrou os dentes. Era mais ou menos por aquilo que esperava.

- Eu sou o Dr. Warren.

A enfermeira deu sinais de regresso à vida:

- O Dr. Porter há-de gostar de o conhecer. - E mudando a pastilha elástica para o outro lado: - Ontem praguejou por o doutor não ter vindo.

- É capaz de me mostrar as minhas instalações de trabalho? - perguntou Ran, com uma cortesia forçada.

Ela indicou o corredor:

- Décima porta à direita.

Ran atravessou o estreito corredor que bissectava o estabelecimento. Tinham construído duas divisórias, para criar compartimentos dos lados. Na porta envidraçada de um, lia-se: DR. WARREN. Na porta em frente, o letreiro dizia: DR. PORTER.

Investigou. O seu gabinete era miseravelmente mobilado por uma secretária, uma cadeira vulgar para o doente, e outra, um tudo-nada menos austera de linhas, para ele. Por trás, uma minúscula sala com mesa de observações, visivelmente a mais barata que se pôde descobrir. Um espaço outrora existente por trás do edifício fora convertido em sala de urgências e tratamento. Aí, a mesa parecia um bocadinho mais utilizável. O seu gabinete e o do Dr. Porter comunicavam ambos com esta sala. A um canto, uma vitrina com alguns instrumentos cirúrgicos e seringas. Não pareciam ter servido muito o esterilizador e a pequena autoclave. Outro canto da sala destinava-se, evidentemente, a servir de laboratório, pois viam-se lá frascos para urina e um microscópio. Pairava no ar aquela insipidez, aquele odor de mal lavado, característicos dos laboratórios que não se esfregam muito bem todos os dias.

Ran voltou ao escritório, acendeu o cachimbo e reflectiu. Que grande distância separava aquilo da activa clínica que sonhara!

Entrou, sem bater, um homem alto, rosto pergaminhado de cadáver, maçãs do rosto em cima e tão salientes que ameaçavam romper a pele distendida. Na cara tinha uma expressão de misantropia, que parecia fundida em matriz ao mesmo tempo que os traços e não poder mudar-se. Durante todo o tempo em que Warren trabalhou com o Dr. Porter, não viu realmente alterar-se em nada aquela expressão de total misantropia.

- O senhor é que é o Dr. Warren? - perguntou, sem amenidade.

- Sou. E o senhor o Dr. Porter, suponho eu...

- Já devia ter chegado mais cedo.

- Lastimo. - A sua primeira impressão fora reagir à grossaria; mas conteve-se: não serviria de nada, para melhorar uma situação que se anunciava desde já desagradável, começar por uma discussão. - Fiquei retido pelo atraso de certas peças.

- Sempre este diabo da burocracia! Eu achava o ofício uma escravatura no tempo das companhias mineiras, com todas as fórmulas de seguros que era preciso preencher. Mas isso não era nada. Sabe que, hoje, nem sequer pode dar um comprimido de aspirina sem preencher um destes papéis 52 b? E, acabado o tratamento, tem de preencher em triplicado uma fórmula recapituladora de três páginas. Em triplicado, não

se esqueça

Ran seguiu-o até o gabinete e sentou-se na cadeira do doente. O serviço médico do Governo estava plenamente convencido do axioma de que uma cadeira desconfortável reduz ao mínimo a presença do doente. “Esta”, pensou Ran, “deve servir maravilhosamente o objectivo”.

- Quais são ao certo as nossas obrigações? - perguntou Ran.

- É simples. O médico de clínica geral faz todo o trabalho e não obtém qualquer crédito.

- Que se faz dos casos graves?

- Hospitalizam-se. Pelo menos é o que dizem. É a teoria. Mas já não cabem mais em Adson. Pelo menos é o que dizem. Mas vejo que a certas pessoas não custa nada entrarem para lá.

. - E as horas?

Porter expirou um anel de fumo e, atento, viu-o subir o tecto. Foi a primeira coisa por que, perante Warren, ele se interessou.

- Arranjamos isso entre nós.

- Tem alguma objecção ao serviço de noite por turnos, para as urgências?

- Não é má ideia - consentiu o outro. - Estava-me a apetecer ir um bocado a Adson, esta noite. Você fica de serviço?

- Por mim, está bem.

A enfermeira passou a cabeça por uma greta da porta e anunciou:

- Há gente.

Porter levantou-se, de má vontade:

- Vamos lá I Tratamo-los conforme forem chegando. Eu um, você outro. Uma receita para o que quer que eles precisem. Q farmacêutico vem falar-lhe mais tarde.

Queria saber para quê, mas Porter já tinha deixado a sala.

Ran foi-se sentar no seu compartimento, e a enfermeira mandou entrar a primeira doente. Observou a história completa dos males e fez um exame aprofundado, que levou uma hora. Mas, ao acompanhar a doente, ficava satisfeito: ela não tinha precisado de qualquer droga, de nada a não ser algumas indicações relativas à dieta e a um tratamento para a prisão de ventre.

Ainda havia cinco doentes na sala de espera. O gabinete do Dr. Porter estava aberto, mas ele não se via.

A enfermeira desprezou a pastilha elástica para dizer:

- O Dr. Porter limpou a metade dele e saiu para uma visita.

- A propósito - perguntou Ran. - Como devo tratá-la?

- Trate-me por Miss Payne. E se eu puder ser útil à sua instalação...

- É muita amabilidade da sua parte. Pode ser que a minha mulher queira que a menina a ajude a procurar casa.

Ran voltou para o gabinete, sem reparar na súbita congelação do sorriso às palavras “minha mulher”.

O dispensário teve muita gente naquela manhã. Porter só voltou da visita quase ao meio-dia. Ran foi vendo doente por doente. Alguns mesmo mal. Outros vinham ao acaso, de passagem, já que um conselho, uma opinião, nada custavam. Fez o que pôde por separar os males verdadeiros dos que o não eram.

Quando, a meio da tarde, foi ao balcão beber uma soda, ficou elucidado acerca da misteriosa alusão ao droguista feita por Porter. O caixeiro levantou uns olhos interrogadores:

- O senhor é o novo médico, não é verdade?

Ran disse que sim e o empregado restituiu-lhe a moeda:

- De graça. O senhor bebe a expensas da casa.

O médico ficou perplexo quando, como um mocho ameno, avançou um homem calvo, de rosto redondo, óculos na ponta do nariz.

- bom dia, doutor. Sou o Dr. Daily. Na realidade, sou farmacêutico, mas gostam de me chamar Dr. Daily. Deixo-os dizer. Ah! Ah!

Ran deixou-se levar atrás do balcão, até junto duma grade com o nome Receitas. A si próprio perguntou como conseguia Daily encontrar o necessário para executar uma receita. Passeavam garrafas por todos os lados, quase todos os rótulos manchados; a pia estava suja, meio cheia de frascos e copos graduados e por lavar. Daily deu uma cadeira a Ran e empoleirou-se num banquinho.

- Tencionava procurá-lo, doutor. O Dr. Porter disse-lhe como arranjamos nós as coisas, aqui?

- Não. Apenas disse que entregasse aos doentes receitas, que você aviaria. Suponho que o Governo lhe paga. Por tarifas previstas e fixas, penso eu.

- Previstas, mas escassas. Extremamente escassas.

Abanou a cabeça e deu-se a exibir alguns ruídos que denotavam simpatia por si próprio, obrigado como era a comerciar com um governo que deixava tão pequena margem de lucros.

- Não se ganha nada nas receitas para o Governo. Mesmo nada.

Ran não respondeu.

- Nós dois podemos arranjar as coisas com proveito para ambos. Sim. Indubitavelmente, proveito para ambos. Interrompeu-se. Ran virou-se para ele:

- Que género de proveito? Dê às coisas os respectivos nomes.

Daily aprovou com um sorriso:

- É assim mesmo. Falar clara e lealmente. - Inclinou-se numa confidência: - O Governo dá-me uma percentagem nas drogas que utilizo nas receitas. Mas umas são mais caras do que outras: está a ver?

Estava a começar.

- Quer que eu receite drogas caras. É isso?

- Shiu... - e, significativamente, apontou com o olhar para o postigo aberto: - Fale mais baixo.

- E em que é que isso me trará proveito?

Daily escancarou os dentes num sorriso:

- Podemos arranjar a coisa entre nós. Que pensa o senhor do... da metade da soma... economizada todos os meses?

Ran levantou-se:

- Quando receito, receito exactamente o que acho que se deve dar ao doente, e o preço não tem nada com a coisa. Obrigo-o a fazer os remédios tal qual eu mandar, se não quer ver-se com uma sindicância às costas. - Pousou uma moeda na mesa: - E aqui tem o preço do meu consumo.

Tinha de ir ao campo ver uma criança atacada de bronquite. Por isso, eram seis horas quando entrou em casa de Mrs. Field; tirou o chapéu e a capa, e deixou-se cair numa cadeira, defronte do alegre fogãozinho.

- É o doutor? - perguntou Mrs. Field, do fundo da cozinha. - E veio até à porta: - A comida está pronta dentro dum minuto.

- Acha-la amável? - perguntou Ann, quando a proprietária voltou à cozinha. - Sabes em que estive a pensar?

- Não - disse Ran, pegando-lhe na mão e fazendo-lhe girar a aliança à volta do dedo. - A não ser que tu penses alto...

- Bom, acho que o melhor era nós ficarmos aqui. Não há apartamentos cá na parvónia.

- Nem sei para que os haveria - comentou o marido.

- Sondei-a. Sai-nos mais barato que o aluguer de residência mobilada. E como tu não ficas mais de seis meses, não vale a pena montarmos casa.

- Está bem. - Alegrava-se ao pensar que isso descansaria a mulher. - Aquela cama de penas, lá em cima, é bem agradável para as noites frias.

Ann pôs-se a rir:

- Espera por Julho. Nessa altura já não a achas tão agradável.

- Isto não há-de durar até Julho, creio eu.

Estava a contar-lhe o “escândalo” com o droguista quando Mrs. Field anunciou o jantar.

Perto das dez horas, bateram à porta. Mrs. Field subiu e disse:

- Estão à sua procura, Dr. Warren.

- Pronto! - exclamou Ran, ao vestir o sobretudo. - Começa o trabalho nocturno.

Estava à porta um homem mal vestido, de rosto angustiado.

- É o médico do Governo?

- Sou. Sou o Dr. Warren.

- Levei o meu filho à consulta.

- com quê?

- Sentiu-se mal do estômago, à tarde. Teve dores e vomitou; é qualquer coisa de terrível!

- Eu Vou consigo.

A guarda que tratava do dispensário durante a noite já tinha estendido o doente na mesa de observações. Rosto contraído, olhos febris, pernas instintivamente levantadas para aliviar a dor no lado direito - sugeriam o diagnóstico. O desenrolar do súbito padecimento - vómitos e temperatura actual de 39° - era típico. Completavam o quadro a sensibilidade e rigidez locais.

- Apendicite aguda - disse ao pai ansioso. - Ainda não há perfuração, mas é preciso levá-lo sem demora para o hospital.

Tirou uma ficha da secretária, escreveu nela o nome, o diagnóstico e a hora, assinou-a em baixo e entregou-a ao pai.

- Tem aqui o carro?

- Tenho.

- Então leve-o imediatamente a Adson, onde tratam dele.

- Chegaram mesmo a tempo - disse Warren à mulher, explicando-lhe os sintomas. - Duas horas depois, tínhamos o apêndice perfurado. Tão certo como eu estar aqui.

Ao adormecer, dizia para consigo - ainda com uma certa consolação - que podia fazer bem, mesmo na clínica geral.

- Antes de abrir o dispensário - comunicou à mulher, no dia seguinte - Vou dar um salto a Adson, para ver como está o pequeno.

- Eu Vou contigo. Preciso de ar. Hoje está um bocado mais quente.

Encontrou a criança deitada mais ou menos a meio duma grande sala do hospital. Ninguém se prontificara a chamar um dos médicos da casa e ela nada pedira. O rosto continuava contraído, e a febre fazia-lhe arder os olhos. Sorriu corajosamente quando Ran lhe tomou o pulso, demasiado rápido.

- Sentes-te melhor desde a operação?

- Ainda não me operaram.

- Como?

- O doutor disse que se podia deixar para hoje de manhã. Ainda incrédulo, Ran afastou os cobertores. Não havia penso... Também não havia qualquer vestígio de incisão no abdome, agora completamente rígido e sensível ao tacto. De véspera, tal sensibilidade e rigidez circunscreviam-se à região do apêndice: portanto, a infecção também se localizava aí. Agora, espalhava-se por todo o ventre. O que só significava uma coisa: a certa altura da noite, rompera-se o apêndice (talvez não passasse de pequena perfuração perto da base) e corria para o peritoneu o pus mortal, bem como o conteúdo do intestino.

- Que se passou ontem à noite, quando aqui chegaste?

- Um homem de branco examinou-me. E depois foi ao telefone e ouvi-o chamar o Dr. Branch. Disse que eu tinha apendicite aguda. E depois ouvi-o dizer que, se o outro médico o dizia, é porque se podia esperar pela manhã de hoje. Meteram-me então uma agulha no braço, e a dor foi-se embora.

Na sala, Ran viu um interno de branco e um homem mais velho, vestido rigorosamente também de branco. Pararam junto do leito, sem ligar importância ao médico: se é que o viam, tomavam-no decerto por parente.

- Aqui está o rapaz para quem eu o chamei ontem à noite, Dr. Branch - disse o interno.

- Fui eu que o enviei - disse Ran. - Sou o Dr. Warren, de Stoneville.

Branch estendeu a mão, cordialmente:

- Muito prazer, doutor. Eu sou o Dr. Branch, cirurgião do hospital.

Era homem dos seus quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, de barba bem aparada e aspecto muito militar. Acabou de ler a folha, à cabeceira do doente, e avançou depois para lhe apalpar o abdome. Foi um dos exames mais superficiais que Ran até então observara.

- Belo caso de peritonite que nos enviou, doutor. Excelente diagnóstico. - E virando-se para o interno: - O melhor é abri-lo já.

Se não estivesse a ferver interiormente, Ran sorriria à irónica situação. Operador de longa experiência, era felicitado pelo Dr. Branch por um diagnóstico que seria evidente aos olhos de qualquer segundanista.

- Parece-me que se engana, Dr. Branch - disse ele, pausadamente. . - Eu não diagnostiquei um caso de peritonite. Examinei esta criança ontem à noite, vi que ela tinha apendicite aguda, mas ainda sem ruptura, e enviei-a ao hospital, para a operarem sem demora. A peritonite veio depois, durante a noite. E quem quer que seja aqui o responsável pode meter esta peritonite no seu activo.

Branch, que se dirigia para a cama seguinte, parou de repente:

- Não gosto da sua atitude, doutor - disse ele, seco.

- Nem eu da sua cirurgia - volveu Ran, distintamente, de modo que nem o interno nem a enfermeira puderam deixar de ouvir.

Depois, rodando nos calcanhares, deixou a sala.

Ann percebeu logo que ele ia alterado, mas não lhe fez qualquer pergunta. De maneira geral, mas, sobretudo, agora, valia mais calar-se. O que Ran tinha para dizer sairia na devida ocasião. Como saiu:

- É um inferno, este belo hospital!

- Que é que não está bem?

- O pessoal. Lembras-te da apendicite de que ontem te falei?

- Lembro.

- Não operaram. A criança está com uma peritonite generalizada.

Ann susteve a respiração. E depois:

- Morre?

- Aposto dobrado contra singelo que não tem possibilidades nenhumas de se salvar.

- Que género de pessoa é então esse Dr. Branch, o responsável? - perguntou Ann, indignada.

- Uma besta! Embora não pareça.

- Não. Até parece muito capaz.

- Onde o viste?

- Apareceu aqui. Deve ter tido uma boa clientela antes de vir para esta terra. Olha para o carro dele! Não custa menos de cinco mil dólares - e indicava um automóvel estacionado ali.

- Pois não. Mas não é dele: é do Dr. Wade.

- Não gosto do Dr. Wade - disse ela, devagar. - Não lhe achaste nada de especial, Ran?

- De estranho, queres tu dizer... Apenas que é ao mesmo tempo gordo e ordinário e que não cuida da higiene.

- Não. Acho que são os olhos. A expressão.

- Ceratite intersticial, ou outro horror qualquer. Tenho esperança, tenho. Olá, se tenho! - disse Ran à gargalhada.

- Talvez isso nos libertasse.

- Mas eu não estou a brincar. Há qualquer coisa.

- Quando a identificares, e se identificares, diz-me.

Ran falava a sério. Sabia que ela possuía uma espécie de hipersensibilidade que se manifestava às vezes em inesperadas apreciações das pessoas.

- Precisava de tornar a vê-lo, para isso - disse ela . - o que não é lá um grande prazer.

Ao dobrarem a rua que levava a casa de Mrs. Field, Ran exclamou:

’- O Porter aqui, o Branch e o Wade ali! Que feliz conjunção ! Diabos os levem!

- Vê lá, querido. Deita fora o excesso de pressão das artérias.

. - Tenho vontade de lhes dizer que apanhem o lugar e que vão todos para o diabo!

- Faz por aguentar seis meses - aconselhou ela. - Dessa vez tens a certeza de passar no exame.

“Seis meses daquela vida!” pensava ele. “Ainda seis

meses!”

 

Em breve se tornou evidente que Ran tinha de fazer mais de metade do serviço do dispensário de Stoneville. As ausências do Dr. Porter “para visitas” eram cada vez mais frequentes. Raramente se encontrava disponível à tarde, quando os doentes do campo em redor invadiam o consultório.

Assim, competia a Ran o grosso do trabalho. Depressa teve de reconhecer que os doentes o preferiam a Porter, perguntando e esperando por ele durante horas, mesmo quando o colega lá estava. Longe de se ofuscar com tão manifesta popularidade, Porter aproveitou-se dela para cada vez se ausentar mais. com os seus modos ácidos, tentou até dar um bom conselho a Ran, acerca do “Dr.” Daily:

- De todos os pedaços de asno que conheço, você é o que leva a palma!

Ran afectou um sorriso:

- Que fiz eu agora?

- Que é que o levou a sair do seu caminho para ir cortar o de Daily?

- E que queria você que eu fizesse? Que recebesse a minha parte nos lucros?

- Não pode impedir nada, pois não? Então, porque não aproveita?

- É assim que fazem os médicos cá da terra?

- Pois claro. Porque não?

- Não é exactamente a minha maneira de encarar a medicina.

- Mas, penso eu, todo este sistema não entra na sua maneira de encarar a medicina. Não pedimos para trabalhar para o Governo. Ele saltou para cima de nós e disse-nos o que tínhamos de fazer, sem o quê... É ou não é verdade?

- É - admitiu Ran. - É assim, de facto, mas...

- Mas, nada! Não somos obrigados a nada que não esteja rigorosamente expresso como obrigação. E, pela minha parte, Vou tentar auferir quanto puder. E muito parvo será você, se não fizer o mesmo.

Trabalhando dia e noite, cansando-se de mais, quando regressava nem tinha tempo para pensar na injustiça da organização. Sentia, ao menos, a satisfação de saber que cumpria melhor do que ninguém no distrito. Conhecia já os médicos que operavam nos outros dispensários. A maioria eram “contratados” por companhias, os quais continuavam o seu ofício para o Governo, mais ou menos como no tempo das minas. De vez em quando, vinham pessoas de fora contar-lhe histórias de tentativas inúteis para encontrar um médico disposto a vir a meio da noite, e de casos de cirurgia ou obstetrícia que haviam tido de ficar sem tratamento ou, na melhor das hipóteses, sem tratamento bastante, até se seguirem perigosas complicações. A gente do campo desconfiava do hospital de Adson. Morria lá muita gente, dizia-se. Operações que não deviam representar mais de uma semana - quase sempre menos - de hospitalização, resultavam em estadas de três e quatro. Produziam-se infecções e complicações, que num hospital moderno não deviam ser possíveis.

Tudo isso confirmava as observações pessoais de Ran.

Depois da questão com o Dr. Branch, não podia ser persona grata ao hospital. Os doentes aceites eram tratados, bem entendido, mas, muitas vezes, dos doentes que ele enviara com um diagnóstico cuidadosamente estudado, muitos se viam recusados, mesmo que por eles tivesse primeiro esgotado todos os recursos do seu pequeno laboratório.

Estava ele no gabinete, uma tarde, quando se abriu a porta à frente da vasta pança e do sorriso jovial do Dr. Wade. Ran ficou levemente surpreendido: o oficial médico do distrito costumava habitualmente visitá-los mais tarde, todos os meses.

^- Viva, Dr. Wade! Vem antecipado, este mês.

O gordo sorriu:

- Visita especial, Dr. Warren. Venho por um momento, para conversar consigo.

Balançando-se, deu a volta ao gabinete e deixou-se cair para a única cadeira mais ou menos confortável; suspirava de alívio.

Ran esperava pelo que ia passar-se.

- Tem feito aqui bom trabalho, Dr. Warren. Belo e excelente trabalho!

- Obrigado. Supunha que o senhor vinha comunicar-me qualquer coisa de desagradável.

- Bem, para dizer a verdade, ouvi-as. - Cruzou as mãos na pança. - Diz-me o Dr. Branch que você lhe tem faltado várias vezes ao respeito. Mau hábito, esse de as pessoas novas se habituarem a ser quezilentas com as mais velhas.

Ran dominou o mau humor:

- O Dr. Branch disse-lhe porquê?

Wade agitou um pouco a mão, num gesto que fechava o assunto:

- Não falemos mais disso. Sei que você há-de tratá-lo com mais cortesia, daqui para o futuro.

O outro ficou-se por ali: discutir apenas agravaria o estado das coisas.

- O principal motivo por que vim foi para lhe pagar o ordenado. Queixam-se de que você dá poucos medicamentos.

- Quem se queixa, por exemplo? - quis saber Ran, interessado.

- Sei lá! Várias pessoas. Aqui, ali... Estão habituados a tomar drogas. Se o médico as vai ver sem deixar qualquer remédio, acham que não receberam aquilo a que tinham direito.

- Tenho-lhes receitado aquilo de que realmente precisam. O senhor sabe tão bem como eu que metade dos remédios distribuídos não fazem bem nenhum. Servem para enganar o doente, levando-o a supor-se tratado e curado, e entretanto a natureza actua e conserta.

- Não me direi de acordo consigo a esse respeito, doutor. Há alguns remédios espantosos. Mesmo espantosos.

- Não terá sido o farmacêutico quem se queixou das minhas receitas?

O desprazer marcou o rosto abonecado, que retomou, instantes depois, a máscara afável sob a qual o homem dissimulava os seus pensamentos.

- Bom, de certo modo os droguistas são nossos aliados. Parentes, se quiserem. Devemos, por assim dizer, colaborar com eles.

Ran respondeu com uma pergunta acerba:

- Quer o senhor dizer que se devem prescrever mais drogas, para os droguistas poderem ter mais lucros?

Os pequenos olhos de Wade abriram-se e escancararam-se, e, de repente, a sua expressão foi a duma criança inocentíssima. Protestou:

- Vejamos, doutor! Que é que o levou a conceber tal ideia? Tudo o que os farmacêuticos pedem é um pouco de colaboração. Tenho a certeza de que você há-de ficar muito contente se, de futuro, pensar nisso.

Ergueu a sua pesada massa, num esforço preparatório para a partida. Mas, então, Ran observou:

- E supondo que eu não vejo o processo de colaborar com os farmacêuticos e droguistas? Então?

O rosto de Wade deixou de ser o do querubim inocente e carregou-se logo:

- A lei sobre a profissão dá-me o direito de justiça e disciplina sobre os médicos que não trabalham a bem dela. E este direito vai ao ponto de poder despedi-los do serviço.

As faces encheram-se-lhe subitamente, até readquirirem o tamanho natural, e ele recuperou a expressão amena.

- Não é que eu não pense em usar aqui desse direito. Não e não! bom dia, doutor.

E foi-se embora.

Assim, tal era o estado das coisas, presentemente. Se não queria “trabalhar à comissão” com Daily, exerceriam sobre ele pressões doutro género. Recordava-se de ter ouvido dizer que o farmacêutico estava metido na política local até ao pescoço. Era, evidentemente, protegido - ou então tinha forte influência sobre o oficial, para conseguir que este activasse o médico no sentido desejado.

Nessa mesma tarde, Ran encontrou outra visão dessa política, em forma mais sinistra. Ainda estava à secretária, a apontar os últimos relatórios dos trabalhos do dia, quando na porta se ouviu violenta pancada. Foi abrir e encontrou-se diante dum rapaz forte, que se lembrou vagamente de ter visto algures em Adson.

- Onde está o Dr. Porter? - perguntou a visita, fazendo má cara.

. - Saiu.

. - Não há cá outro médico?

. - Estou eu. Que posso fazer pelo senhor? Sou o Dr. Warren.

- O meu nome é Regan, Bud Regan. - Mordia os lábios, perplexo e contrariado. - Parece-me que tem de ser você a fazer a coisa - disse ele, malicioso. - Venha.

- Um momento - respondeu Ran, calmo e frio. - Onde e para fazer o quê?

- Um homem atingido por um tiro, lá ao fundo. - com um gesto de cabeça, designava as sombrias formas das montanhas, por trás da cidade. - Feriu-se a si próprio.

. - É grave?

- É. Morreu.

Ran pousou o saco que se preparava para levar:

- Nesse caso, já não precisa de mim. Leve-o para a agência funerária, que eu Vou lá examiná-lo.

O homem olhou-o fixamente:

- E se ele não tiver morrido? Se parecer só morto? Era melhor vir, doutor.

Ran encolheu os ombros e meteu-se no automóvel. Durante algumas milhas após a saída da cidade, seguiu o carro enlameado de Regan e parou quando este se deteve em frente duma pequena casa entre as árvores. Ran seguiu o homem, que entrou numa cabana semiescondida. Da sombra saiu alguém:

- Oh, doutor, há um tipo!... - Parou quando viu Ran. Depois, exclamou, furioso: - Mas que diabo! Não é o Porter!

- O Porter está ausente. É o novo médico. Dr. Warren, apresento-lhe Paul Creeshaw.

Creeshaw mostrou boa cara a uma sorte que, visivelmente, não lhe corria bem e apertou a mão a Ran, dizendo-se encantado. Como Regan, era do tipo “mandão”, mas mais velho.

- Parece que chega demasiado tarde para poder fazer mais do que assinar a certidão de óbito ao pobre rapaz.

- Foi para isso que me trouxe aqui? - perguntou Ran, desconfiado, a Regan.

- Bem, é preciso um atestado para estes acidentes, não é verdade?

- Acidente? - O olhar de Ran andava à volta da casa, registava a cadeira partida, a garrafa, de conteúdo derramado no chão, os dados do paker espalhados. Saturando o ar, o cheiro desagradável de mau whisky.. - Quem é este homem?

- O Lem Preyar.

- Que faz ele?

- Bom... Faz.

(Fazer é o termo local para o fabrico clandestino do álcool.)

- Matou-se ao limpar a espingarda - comentou Creeshaw.

Ran vergou-se para o homem estendido no chão. Estava bem morto e começava a tornar-se hirto.

- Quando morreu?

- Não sei.

Regan abriu muito os olhos, que protestavam total inocência.

- O Paul e eu viemos ver o Lem e demos com ele assim.

Ran continuou o exame. Não é costume encontrar vestígios de luta e marcas de poker espalhados numa sala onde se encontrava um homem sozinho a limpar a espingarda. E também não é costume acertar em cheio no coração, quando se está a fazer isto. No ventre ou estômago, sim. Na cabeça, talvez. Mas em cheio no coração? A menos que tenha apontado para aí... ou que alguém tenha apontado...

- Tenho de advertir a polícia. Não me parece nada um acidente.

- Que foi?

Da voz de Regan desaparecera totalmente a afabilidade.

- Parece-me uma coisa esquisita.

- Vai fazer um relatório nesse sentido?

- com certeza.

Creeshaw, calmo e raciocinando, interveio:

- Não é prudente fazer barulho por uma coisa destas, doutor. Se o Lem quis acabar, nada mais simples do que atestá-lo. Pronto!

- Mais simples, talvez. Mas não é lei.

O tom do homem carregou-se:

- Sabe quem é o Bud? O pai é presidente do Conselho da terra. É alguém em Richmond.

- Deixa-me arranjar isto! - lançou Regan. Avançou para Ran, levando a mão direita à sua aba esquerda. - Diga, vá! Nós queremos um certificado. O que o senhor tem de fazer é escrever crise cardíaca, ou um truque deste género. Senão... vinha logo outro acidente. Então? Pense, mas depressa.

Ran pensou. E depressa. Lembrou-se, sobretudo, de Ann. Para quê torná-la viúva por causa dum traficante qualquer por quem ele não se interessava? A segunda ideia foi que o facto de ser médico ao serviço do Tio Sam era um emprego que punha a pessoa em embaraços. E estava, ao mesmo tempo, furiosíssimo. Mas não tanto que não fosse capaz de saber, com fria satisfação, onde se encontrava o revólver de Bud Regan. Apoiou o queixo à mão e pôs-se a meditar; depois, disse:

- Talvez me tenha enganado. Vou ver outra vez.

Inclinou-se para o cadáver, com Regan atrás, de pé.

Levantou-se com grande rapidez e, reunindo quantas forças possuía, deu um soco a Regan, por baixo do queixo; virando-se, num truque aprendido no colégio, meteu-lhe o cotovelo à garganta, arrancou-lhe o revólver e apontou-o prontamente a Creeshaw, paralisado de espanto:

- Deixe-se estar onde está!

As arrecuas meteu-se no carro e voltou à aldeia a toda a velocidade. Havia luz no gabinete de Porter. Ainda a tremer de excitação, entrou e contou a história.

Foi sóbrio o comentário de Porter:

- Está metido em boas!

- Porquê?

- O Marcus Regan, pai do Bud, é quem conduz tudo, aqui. São dele o Wade e todas as suas criaturas. Não precisam de nada. Se você tem dois dedos de bom senso, passe o atestado e pense noutra coisa. Que resolve?

- Está resolvido. Apresento o meu relatório à polícia.

Porter encolheu os ombros, com desprezo:

- E nunca ouvirá falar de nada.

Profecia que se realizou. Não houve investigações. Lem Preyar foi enterrado. Mais um defraudador morto. E a sua lembrança desapareceu da memória dos homens. E Bud Regan continuou em paz as suas duvidosas actividades.

Tudo aquilo era bastante aborrecido. - Mas Ran não podia escolher. Sem outros meios de subsistência, precisava de aguentar. Via a libertação, pois se aproximava a outra época de exames: seria em Junho. Trabalhara imenso, sempre que tinha um momento livre, estudando todos os assuntos possíveis, prevendo todas as perguntas cirúrgicas que podiam aparecer. Se obtivesse colocação como especialista, podia realizar o trabalho que ardentemente desejava. Entretanto, a clínica geral mostrava-lhe mais pobreza e miséria do que sempre conhecera, nos mais recônditos tugúrios de Farmington.

Fez os exames em Junho. Desta vez, as perguntas eram mais honestas, mais definidas. Durante dois dias, escreveu assiduamente, respondendo em frases breves, concisas. Na viagem de regresso, sentia-se confiante e feliz, como havia muito não lhe acontecia. Não se lastimava dos seis meses passados na clínica geral: tinha aprendido muito; aprendido a sentir-se mais seguro de si; aprendido uma simpatia mais viva e mais profunda por aqueles que nada têm e que, sabendo que nada terão, continuam, apesar disso, a viver as suas vidazinhas sem importância.

Mas ficaria contente se saísse de lá. Contente se pudesse lavar de novo as mãos numa bacia de porcelana branca e imaculada e mergulhá-las no anti-séptico; se pudesse enfiar de novo as vestes e luvas esterilizadas e pegar outra vez no bisturi. Sim. Seria uma alegria magnífica regressar à cirurgia! A medicina estadualizada não passava dum bem mesquinho sucessor do antigo sistema, que dera provas. Talvez houvesse sítios onde ela fosse maravilhosa: nas grandes clínicas, onde os homens de valor dispensassem a todos os cuidados que outrora só aos ricos podiam oferecer-se.

Cabeça encostada à almofada rugosa do compartimento, começou a sonhar com outra viagem - havia só seis anos quando partira para o Sul, ainda a tremer com a emoção sentida quando Paddy Ryan lera o nome dele. Olhava então para o futuro, ia começar a nova vida. Hoje, era mais ou menos a mesma coisa. Dentro de algumas semanas, podia prender-se a novo trabalho, resolver novos problemas.

Ann ficou encantada quando o marido lhe comunicou a sua certeza de, esta vez, ter vencido.

Três semanas depois, Ran encontrou na secretária o grande sobrescrito oficial. Coração aos saltos, abriu-o e tirou de dentro a única folha. Lá estava o seu passaporte para o futuro, para o regresso à cirurgia. Desdobrou-o e percorreu rapidamente o texto:

A presente vem informá-lo de que é recusada a sua candidatura à licenciatura em cirurgia. Considerando o facto de ser a sua segunda reprovação em menos dum ano, o júri vê-se obrigado a negar-lhe o direito de fazer novo exame, antes de expirar um período de doze meses.

Era ao que tinham chegado todos os seus estudos, toda a sua experiência, toda a sua autoconfiança! Durante o resto do dia, deu-se ao trabalho com uma espécie de bruma mental.

Antes do jantar, chamaram-no para um acidente, longe, na montanha, e telefonou à mulher dizendo-lhe que talvez se atrasasse. com a sua subtil sensibilidade, ela compreendeu que o marido estava a sofrer:

. - Há alguma coisa que não te corre bem, querido?

- Não.

Para que dizer-lho logo? Depressa o saberia.

- Vai com cuidado. Para aqueles lados, as estradas são horríveis. Fico à tua espera.

- Não. Deita-te. Não sei a que horas volto.

Ann estava deitada e a dormir quando ele regressou, passava da meia-noite. Mexeu-se preguiçosamente e deu-lhe as boas noites, beijando-o. Mas não conseguiu continuar o sono interrompido. Normalmente, Ran adormecia à primeira, com a facilidade dum bebé. Naquela noite, estava ali, estendido, mas não distendido. com o seu sentido interior, Ann compreendeu que o marido tinha os olhos abertos para a escuridão. Estendeu a mão e tocou-lhe no rosto.

- Ran!

- Diz.

- Que tens?

- Nada. Dorme.

- Não consigo. Alguma coisa te feriu. Senti-o quando me telefonaste. Foi o exame?

- Foi: chumbaram-me outra vez.

- Que horror! Como são injustos!

- São. Mas para quê?

Ela escorregou o braço à volta do pescoço de Ran. Os lábios quentes, e meigos, e persuasivos, murmuraram muito perto dele:

- Querido... querido... Não estamos batidos... Eles não podem bater-nos... Estamos juntos... Eu tenho-te a ti e tu tens-me a mim... Esqueçamos o resto!...

Esqueceram-no.

 

Pode-se ir duas vezes ao tapete sem se ficar vencido por tanto. Lembrava-se Warren do seu primeiro combate de boxe intercolegial, em que se levantara titubeante após a primeira queda; mas aguentara até ao fim e acabara por sair empatado com o adversário. Hoje, estava resolvido não só a não se confessar vencido, mas também a não terminar no simples empate. Havia de ganhar, queria ganhar; pouco importava o número de vezes que tivesse de ir primeiro ao tapete. O pior era ele sentir, claramente, que o adversário fazia batota, e batota suja.

Antes de poder tentar outra vez a sorte, tinha de passar ainda um ano de mortificação, a marcar passo, numa rotina miserável.

Mas nem tudo era rotina e marcar passo: Ran sentia-se satisfeito com o criar boa reputação e estender a sua clientela até longe, nos campos. Chegavam-lhe clientes doutros dispensários: podia recusar-se a tratá-los, mandando-os para os respectivos distritos, mas a sua consciência profissional impedia-lho.

Dizia e repetia Porter que ele não passava dum doido. Era muitíssimo provável.

Não conseguia compreender Porter. Convencia-o a observação de que aquele desperdício abandonado, aquele cínico - pois dava bem a impressão de tudo isso - era realmente um médico de primeira categoria. Precisava de querer incomodar-se um pouco. Mas satisfazia-se plenamente com o estender a mão a Ran, deixando-o tratar quase todos os seus doentes, guardando apenas para si a longa teoria de casos compensatórios, que esperavam todos os sábados à porta por que ele lhes assinasse o atestado de incapacidade para o trabalho, o qual eles iam depois entregar à companhia de seguros, uns prédios mais abaixo, na mesma rua.

Teoricamente, assegurava o serviço de noite alternando com Ran, mas, de quase todas as vezes que aparecia uma chamada, o operador da pequena central telefónica dizia sempre o mesmo: “O Dr. Porter saiu para uma visita”.

Uma manhã, pouco depois de o júri ter excluído Ran pela segunda vez, o Dr. Porter veio sentar-se no gabinete do rapaz e pôs-se a fumar, em silêncio. E, após estar assim bom bocado, disse:

- Você é um óptimo cirurgião, não é verdade, Warren?

- Onde foi buscar isso? Não tenho autorização para praticar aqui a cirurgia.

- Conheço gente em Farmington - volveu o outro, na sua habitual indiferença.. - Isso não o faz progredir lá muito, hem?

- Pois não. Porquê?

- O júri tornou a reprová-lo.

- Como sabe? - perguntou, seco, Ran. - Mexeu na minha correspondência?

- Não. Não foi preciso. Duas semanas antes de você, já o Wade e o Daily o sabiam. Podem mesmo ter mexido os cordelinhos para isso, que não me espanto. Deram-mo quase a entender. Mas são dois gabarolas e mentirosos. - Fumou mais um bocado, contemplativo e absorto: - Está você a ver como este distrito médico se encontra admiravelmente organizado?

- Nunca - disse Ran, calorosamente indignado - nunca vi, em parte nenhuma, uma organização médica pior. É uma vergonha!

- Ah, desculpe! Eu disse distrito médico, não disse medicamente organizado. Do ponto de vista médico, absolutamente de acordo. Referia-me à organização fundamental e subjacente. Política!

- A política não me interessa.

- É um erro. Nada conseguirá sem ela. Trabalha como um mouro, tenta reparar as aldrabices duma data de incompetentes. Energia desperdiçada. Tenho-o visto estafar-se com casos de que outros se desembaraçariam com qualquer receita fácil, por dar trabalho o diagnóstico certo e completo. E se houvesse, nesse número, alguns dos meus casos, não me admirava - confessou, numa franqueza terrível. - Porque há-de matar-se por nós? Deixe correr!

- E deixo morrer os doentes, não? Não é pelos senhores, é por eles que eu o faço.

- E porquê, se chegou a hora de eles morrerem? E afinal, que razão têm para viver?

- Não sei, francamente. Mas a minha obrigação é defender os vivos.

Desconfiava Ran de ser ponto de vista geral a teoria da adaptação. O grande cuidado dos espíritos consistia em “viver bem” com o Dr. Wade. E o próprio Wade, de incompetência notória, mantinha-se graças às suas úteis relações políticas.

Eram lamentáveis as condições de trabalho no hospital de Adson. O cirurgião, o Dr. Branch, mais ou menos do género dos colegas. Dos cinco homens que trabalhavam no hospital, Ran apenas respeitava um, Roberts, otorrinolaringologista, brusco em cirurgia, mas com sólido fundo de bom senso e real independência de espírito. Só ele, de todo o estado-maior, tivera coragem para apoiar Ran contra Fossiter, o obstetra, aldrabão incompetente e bêbedo.

Estava a discórdia latente, quando Ran, chamado a um bairro mineiro, para assistir a uma mulher grávida, diagnosticou um caso de placenta prévia e a enviou ao hospital, para um parto imediato com fórceps, ou, em caso de necessidade, uma cesariana. Na manhã seguinte, furioso, descobriu que a mulher acabava de dar à luz uma criança morta e que ela própria estivera a morrer com uma hemorragia. Censurou Fossiter e viu-se chamado à ordem, com maus modos.

- O caso é meu, Dr. Warren, e não seu.

- Era meu quando o mandei para cá ontem à noite. Onde estava então você?

- Não tem nada com isso.

- Você não é capaz de assistir ao parto duma vaca! <- exclamou Ran, com desprezo. - A partir de hoje, eu próprio trato dos meus doentes, em casa deles. Têm mais possibilidades de se salvarem do que nesta nitreira de mandriões e nulidades.

- Ouviu-o, Dr. Roberts? - gritou Fossiter, com os nervos visivelmente excitados. - Vou participar ao Dr. Wade. Apresento-o como testemunha, Dr. Roberts.

- Acho melhor não apresentar - disse simplesmente o laringologista.

- Porquê?

- Para não me obrigar a dizer que, ontem à noite, você estava de tal modo bêbedo que não pôde tratar da parturiente.

O outro foi-se embora, resmungando coisas indistintas. Roberts disse ao colega:

- Ali tem a medicina no seu pior dia. Licenciado por uma escola de terceira categoria. Prática em terras perdidas: óleo de rícino e morfina. Tio dum dos nossos políticos do futuro. E aí está.

- Irá ele ter com o Wade?

“- Oh, é muito natural! O Wade acalma-o. Grande tipo para acalmar, o nosso gorducho!

com o regresso do frio, sobreveio o aumento das doenças respiratórias próprias da estação: constipações, bronquites, e a frequentíssima consequência: a pneumonia. Em fins de Janeiro, pela meia-noite, ia Ran no carro por estradas da montanha, que o gelo tornava escorregadias. A esquerda, a muralha abrupta da rocha; à direita, um parapeito com menos de um metro, aqui e além esmigalhado, ao longo do qual começava um declive de várias centenas de pés, rápido como a parede dum precipício.

A mais pequena derrapagem, o carro levaria o ocupante por ali abaixo; este risco fazia parte do trabalho diário, e era até rotina quase quotidiana, desde que a difteria, de esporádica que era nos distritos afastados, ameaçava tornar-se epidémica.

Conhecia bem a aldeola para onde seguia com um avô ao lado. Era um dos centros perigosos. Ainda na véspera, encontrara culturas em duas pequenas gargantas, vermelhas e inchadas, onde, num ou noutro ponto, manchas inquietantes dum branco sujo indicavam tratar-se de coisa diferente de simples amigdalite. Aquelas duas crianças felizes iam escapar à morte, pois, nessa mesma tarde, ele percorrera milhas e milhas para lhes injectar nas veias fortes ampolas de soro.

Tinham sido precisas semanas para este soro chegar no grau requerido ao corpo dos cavalos que iam dever garantir a salvação de centenas de crianças, semanas durante as quais lhes foram injectadas, diariamente, doses crescentes de toxina diftérica, até se encontrarem em estado de suportar uma dose quotidiana, que mataria dez cavalos normais. Mas a este soro bastariam alguns minutos para combater activamente, na garganta das crianças, os germes mortais; e, quando se trata de salvar uma vida, todos os minutos têm o seu valor.

- É aqui que deve virar - informou o velho.

- Sim, eu sei. Vive lá o Brad Carlton.

A neta de Brad era uma das duas crianças a quem ele administrara o soro salvador.

. - Sim. Cerca de meia milha mais acima. A filha dele e a nossa Annie andam na mesma classe, na escola - disse o montanhês.

À tarde, passara Ran pela pequena escola de sala única. Todas as crianças das imediações - e as imediações contavam com umas vinte casas - estavam amontoadas naquela mesma sala, desde que surgira a doença, exactamente como no tempo normal. O que significava umas cinquenta crianças de várias idades haverem-se exposto à infecção mortal, que, inexplicável mas indubitavelmente, se introduzira naquele ponto recuado, isolado.

Os adultos não preocupavam muito a Warren. Talvez alguns deles a apanhassem, mas a maior parte tinham adquirido imunidade suficiente para afastar todo e qualquer perigo verdadeiro. As crianças, essas, não, a menos que houvessem sido previamente vacinadas: o mais seria esperar muito.

Informou-se por meio do avô:

- Foram muitas as crianças vacinadas aqui contra a difteria?

- Que eu saiba, nenhuma. No Outono, passou por cá um homem do Serviço de Saúde. Viu-as e fez qualquer coisa, não sei o quê, para saber o que devia pensar, e depois disse que algumas precisavam de ser vacinadas. Mas o pregador disse que não se devia deixar fazer isso, que não era vontade de Deus.

Ran carregou o sobrolho:

- O pregador? Qual pregador?

- Rambley, o apóstolo. Também curandeiro. Cura a gente com ervas da montanha e das pedras.

- De modo que as crianças não tiveram qualquer tratamento?...

- Não. O homem do Serviço de Saúde ficou como doido. Disse que, se nós não queríamos, não podia obrigar-nos.

Ran virou subitamente o volante, pois a estrada tinha uma curva brusca. O carro patinou e continuou para o pequeno vale que se cavava à frente deles e tinha, aqui e ali, uma luzinha acesa: indicava esta a presença, em tal casa, duma criança doente da garganta e cheia de febre. Seria terrível o declarar-se verdadeira epidemia naquela aldeola fechada, onde viviam uns sobre os outros, onde os adultos todos os dias se reuniam na única loja do sítio e as crianças estavam engaioladas na minúscula escola.

- É ali a nossa casa - indicou o velho.

Ran meteu o automóvel no pátio e penetrou no quarto, onde uma criança deitada se agitava, caracóis pretos espalhados no algodão rugoso do travesseiro. Esses cabelos escuros e os olhos negros e brilhantes pediam faces vermelhas. Quem dera! As faces estavam quase azuis, menos, porém, do que os lábios e a raiz das unhas. Era difícil a respiração da pequena, cujos músculos se contraíam entre as costelas, a cada inspiração (que era esgotante), no esforço de as atirar para fora e alargar a caixa torácica, para atrair o ar aos ávidos pulmões. Mas qualquer coisa impedia a passagem deste ar vital, qualquer coisa que transformava cada inspiração numa espécie de grito de agonia.

Escutou o coração: o bater era demasiado rápido, mas ainda relativamente vigoroso, e isto significava que as toxinas da difteria não o haviam atingido em quantidade suficiente para o envenenar com perigo. Examinou a garganta. Nenhuma das manchas brancas habituais aparecia nesta. O que achou estranho: numa difteria, em princípio, encontram-se tais manchas esbranquiçadas. Mais de um médico ficaria por ali: não havia manchas dum branco sujo - não havia difteria.

Ran, porém, lembrava-se de que acontecia, às vezes, nem tudo poder observar-se numa garganta, especialmente se os germes diftéricos se encontram na laringe, fora do alcance do aplanador de língua e dos raios luminosos. Remexeu o saco: devia lá estar um espelho laringoscópio. Estava, sim: um espelhinho na ponta de fino cabo de metal.

- Arranjam-me um pouco de água quente num copo?

Quando a obteve, mergulhou nela o espelhinho, durante cerca dum minuto, para o levar à temperatura do corpo, sem o que ele se cobriria de vapor e não permitiria ver a imagem da laringe, no ponto onde o ar deixa a passagem dos alimentos e entra na traqueia.

Orientando o espelho e dirigindo sobre ele o jacto luminoso, Ran acabou por ver o que procurava: membranas de branco sujo obstruíam, entre as cordas vocais, a passagem onde o ar devia circular sem embaraços. Normalmente da largura dum dedo mínimo, a passagem encontrava-se invadida por mucosidades e membranas, que testemunhavam a actividade dos micróbios, e só se apresentava aberta na largura dum alfinete.

Bem inútil, em circunstâncias daquelas, fazer uma experiência, uma análise - inútil e até impossível. Era a pior forma laríngica. Dum momento para o outro, a passagem podia ficar completamente fechada ao ar. Então, a não ser que se encontrasse presente quem fizesse uma traqueotomia (quer dizer: uma abertura artificial na traqueia, abaixo da laringe, para permitir ao ar a entrada e saída), a criança morreria asfixiada.

- É preciso levá-la já para o hospital - decidiu Ran.

- É assim tão grave? - perguntou a mãe, numa voz que não passava de angustiado murmúrio.

Não servia de nada estar com rodeios. Mais valia que eles ficassem a par do que se passava, e assim preparados para qualquer eventualidade:

- É sempre mau, a difteria. Talvez não se consiga salvar...

Warren tinha uma ampola de soro no saco. Sob a acção da cianose, a pele da criança estava quase tão azul como as veias, o que tornava difícil a busca dum vaso onde injectar. Faltava tempo para uma reacção cutânea. Em caso de necessidade, reacção com adrenalina. O importante era ir depressa. Não se tornava necessário chamar uma ambulância. Levaria ele mesmo a criança, e era preciso contar com uma hora de caminho. O essencial consistia em chegar antes de a laringe se encontrar tão cheia que impedisse completamente a respiração, o que o obrigaria, a ele, a fazer uma traqueotomia de urgência - expediente desesperado, com o mínimo de instrumentos que o seu saco continha.

Ia ser uma verdadeira corrida contra a morte, esse trajecto de vinte milhas em plena noite, pela estrada fora, até Adson, para a sala de operações, para os instrumentos esterilizados, para o soro.

Duas horas depois, travava na rampa do hospital. Veio ao seu encontro uma enfermeira, pela porta das urgências.

- Difteria da laringe. Chame o Dr. Roberts. E prepare o necessário para uma traqueotomia.

Ela aquiesceu e partiu. Durante quinze minutos, Ran esperou, numa impaciência crescente. Por fim, chegou um interno, ainda a dormir.

- Onde está o Dr. Roberts?

- Fora da cidade.

O interno pegou num estetoscópio e dispôs-se a aplicá-lo.

- Então, chame o Dr. Branch o mais depressa possível. Já examinei a criança. Caso certo de difteria da laringe.

O interno foi telefonar. A enfermeira fechou a porta, mas Ran saiu pela outra e passou para um gabinete contíguo à sala do telefone. Ouviu bocados da conversa, frases descosidas, mas que diziam muito:

- O Dr. Warren afirma que é uma difteria da laringe... Eu não vejo nenhuma membrana... Parece-me um tipo particular de cianose... Bem... chamo o Dr. Milton.

Milton ^- Ran sabia - estava encarregado da medicina orgânica no hospital. Se possível, era ainda mais reles do que Branch.

Outra conversa murmurada, que terminou assim:

- Combinado, Dr. Milton: Vou tentar uma intubação.

Ran esgueirou-se pelo escritório e voltou à sala das urgências. Confirmavam-se as suas suspeitas. Nem Branch nem Milton faziam a mais pequena ideia de abandonar o aconchego quente do leito. Iam atirar toda a responsabilidade para o interno. Se o doente morresse... Enfim, a mortalidade era sempre elevada, naquela espécie de difteria... Se, ao menos, Roberts estivesse presente!

Parecia inevitável a Ran ter de ficar ali, vendo a criança morrer à sua frente, após haver percorrido vinte milhas na crueldade do frio, para a conduzir ao hospital, após haver suado as estopinhas, lá longe, na aldeola, à procura febril duma veia onde injectasse o soro. Agora, tinha as mãos atadas. A doente estava no hospital, entre outras mãos supostas experientes. Que vontade de rir! Ele não era cirurgião, assim decidiram dois júris de exame. Só lhe restava voltar para casa e ir-se deitar.

Não, não, e não! Tudo, menos aceitar aquilo. Se as coisas não corressem como deviam, ele próprio meteria mãos à obra.

- O Dr. Milton encarrega-se do caso, Dr. Warren - informou o jovem Sneed, o interno. - Não pode vir já- Mas nós vamos pôr um baião de oxigénio na doente e talvez tentar depois uma intubação. Vamos tratar-lha, Dr. Warren.

“Não te desembaraças de mim com tanta facilidade.” pensou Ran, enraivecido. E, alto, disse:

- Eu fico aqui ainda um bocado. Dei-lhe uma ampola de soro. Não achava bem dar-lhe outra?

- Talvez fosse boa ideia - aprovou Sneed.

Foram precisos dez minutos para encontrar e preparar o soro. Ran vigiava com angústia a cor da criança, que não respirava melhor; se houvesse alteração na cianose, era para pior. Tinham-na deitado numa cama, com um balão de oxigénio. Mas o próprio oxigénio nada faz, se não puder entrar nos pulmões. Por fim, chegou o soro, que injectaram na veia.

- E glicose?

- Acha que ela precisa?

Sneed parecia duvidar.

- Não é a combinação intravenosa de soro e glicose que se considera o melhor tratamento para impedir as toxinas de afectarem o coração?

- Exacto. Li-o num manual de pediatria.

“Neste hospital, provavelmente, só tu e o Roberts leram qualquer coisa do ofício, sem que esse acontecimento se tenha perdido na noite dos tempos”, pensou Ran. Ajudou à injecção. A cianose podia subir um pouco ainda, mas ele não estava a gostar daquele aumento. Sentado à beira da cama, segurava a mãozinha, que via empalidecer, e, de quando em quando, observava o bater demasiado rápido do pulso - Mal deu por uma enfermeira, que entrou e em voz baixa disse algumas palavras ao interno; este desapareceu imediatamente. Durante muito tempo, ninguém falou. Só as respirações dolorosas da rapariguinha cortavam o silêncio, com seu barulho agudo e arquejante - e, a um canto, os soluços abafados da mãe.

O interno voltou meia hora depois. Qualquer pessoa percebia que a laringe da criança se entupia definitivamente e que esperava a Annie a asfixia total: era caso de minutos.

- Experimente a sua intubação! - disse Ran.

Talvez isso ajudasse, mas era muito difícil de fazer. O próprio Ran a tentara uma ou duas vezes, e supunha que o interno não teria mais experiência do que ele - devia ter até menos. Tratava-se de fazer deslizar um tubozinho duro ao longo da língua, depois por trás desta, na laringe, forçando assim em cheio, na massa membranosa e já quase compacta, uma passagem artificial por onde o ar pudesse entrar. Uma vez metido o tubo no devido sítio, tudo correria bem. O difícil era metê-lo. Tornava-se mesmo perigoso empurrá-lo por uma passagem quase hermeticamente obstruída.

Ran conservava a cabeça da criança bem deitada para trás, enquanto o interno fazia escorregar o tubo sobre o instrumento destinado a ampará-lo e guiá-lo. Mas a inabilidade dos movimentos provava que ele não estava nada familiarizado com o emprego do aparelho. Ran, que tinha na memória a imagem da laringe “rolhada” reflectida no laringoscópio, sabia que seria quase um milagre se Sneed, ou qualquer outra pessoa, conseguisse inserir o tubo.

Tentativa vã e repetida: escorregando na epiglote inchada que cobria a traqueia, o instrumento desviava-se sempre para o esófago. Só o fio preso ao alto do tubo, e pelo qual Sneed a cada passo o pescava, impedia que este fosse engolido. A terceira tentativa, aconteceu o que Ran temia: o tubo fez pressão na massa esbranquiçada, e, sem a atravessar, entrou. Produziu-se instantaneamente uma alteração dramática: tapada agora a estreitíssima abertura, parou o barulho do ar. Foram vãos os esforços respiratórios da criança: contorceram-se-lhe os músculos, as costelas tornaram-se salientes com o esforço, e ela sufocava.

- Os instrumentos de traqueotomia. - Seca e decidida, a voz de Ran.

Estendeu a criança na cama. A enfermeira descobriu uma bandeja na mesa. O rosto de Annie escureceu enormemente. A mãe e o avô, de pé, conservavam-se à beira do leito, olhos secos, agarrados às barras, as mãos gretadas pelo vento e por trabalhos duros. Ran esperou que o interno enfiasse as luvas esterilizadas. Entretanto, barrava de mercúrio-crómio a garganta da pequena.

Mas o interno virou para Ran um rosto pálido, onde corria o suor, e balbuciou:

- Não sei fazer uma traqueotomia. Vou chamar o Dr. Branch.

- Não é preciso: tem de se fazer! Antes de você chegar ao telefone, morre a criança.

O rapaz, porém, continuava hesitante. Warren, então, enfiou as luvas a toda a pressa, e, impaciente:

- Venha para aqui e segure-lhe na cabeça. Vou operar.

Não dera pela entrada doutro homem. Na febre, também não reparou em que as mãos grandes e morenas que seguravam a cabeça não eram as de Sneed. Estava absorvido pelo trabalho. Para as suas mãos experientes, não havia dificuldades: apenas uma incisão rápida até a traqueia, um corte através dum dos anéis cartilagíneos desta traqueia e a inserção dum tubo na abertura assim feita. Não mais lhe saiu da memória o som tão suave do ar a afluir num momento aos esgotados pulmõezinhos. Passada a urgência, trabalhou mais devagar, aproximando a pele por meio de profundas suturas de seda e colocando um leve penso. Ordenou:

- Volte a pôr-lhe o balão de oxigénio.

Era reconfortante ver desaparecer a cor escura da cianose, enquanto o oxigénio descia pelo tubo traqueotómico para os brônquios, onde já não existia qualquer obstrução, para os sacos de ar, donde passava para o sangue. Era reconfortante ver regressar o vermelho àquelas faces - o vermelho da febre, verdade seja, porquanto não estava ainda vencida a infecção. Mas dava muito mais alegria o vermelho da febre do que o azul da falta de oxigénio, que, escassos momentos antes, ainda invadia aquele pequeno rosto. Um sorriso aliviou os lábios da enfermeira, que procurava o pulso e o achava mais forte, menos rápido, mais regular.

- Foi maravilhoso! - exclamou ela.

Agora, já afastado o perigo, lembrava-se Warren das mãos magras e morenas que tão bem seguraram a cabeça da criança, precisamente quando fora mais necessária a ajuda. Virou-se, enquanto ia tirando as luvas. Contornou o leito e dirigiu-se-lhe um homem alto, bastante calvo, com um sorriso de sedutora fealdade e olhos cândidos. Ran simpatizou logo com ele:

- Sou Barton, de Ridgeville. E o senhor é o Dr. Warren, não é verdade?

Cumprimentaram-se com um aperto de mão.

Ridgeville era o centro de outro distrito, e Barton o cirurgião-chefe do hospital. Gozava de excelente fama entre todos os médicos do Estado. Antes da nacionalização, orientava a sua clínica particular, num ponto qualquer da montanha. Agora, dirigia um hospital de distrito - na opinião de todos, o melhor do Estado.

- Belo trabalho! Nunca vi melhor traqueotomia.

- A sorte esteve pelo meu lado, ao trazer aqui o senhor. Ajudou-me muito, no momento em que era indispensável.

- Vinha a atravessar Adson. Tinha ido a Fairweather visitar um amigo doente. De regresso, apanhei à beira da estrada um pobre diabo ferido e vim aqui trazê-lo.

- Vai-se embora hoje à noite?

- Vou. Várias operações, amanhã de manhã.

Ran virou-se para a cama. Annie Hazlitt respirava regularmente, com o ar cantando, ida e volta, no tubo.

- Era preciso dar-lhe outra ampola de soro - disse ele ao interno. - Pode deitá-lo na glicose.

- Sim, Dr. Warren.

Respondendo com um respeito nítido e absolutamente novo, o interno foi pedir o soro. Perdera o ar vago de não-cooperação do princípio. Pensassem o que pensassem a seu respeito os senhores Branch e Milton, a verdade é que Ran ganhara com certeza três admiradores, nas pessoas dos Drs. Barton e Sneed e da enfermeira.

Esta, muito cortesmente, arranjou-lhes café. Sentado diante da chávena fumegante, Barton perguntou a Warren:

- Que anda você a fazer na clínica geral? Está-se mesmo a ver que é um cirurgião mais que experiente...

- Era o que eu supunha ser. Mas o júri dos exames disse que não!

Contou a sua formatura, a sua experiência e o duplo desaire, sentindo poder falar com toda a liberdade àquele estranho simpático.

- Gostava de saber mais dessa coisa dos exames - disse Barton, pensativo. - Deve-se poder fazer algo.

- Agarrava-me com unhas e dentes fosse ao que fosse que me arrancasse a esta infâmia da clínica geral!

- Então, quando puder, apareça em Ridgeville. Vai ver as nossas instalações.

 

Pelo modo por que o convite era feito, qualquer coisa fez nascer no coração de Ran uma esperança súbita, inexplicada, mas ardente.

 

Ao elaborar a impressionante lista dos seus inimigos, Ran omitia sempre Porter. Porquê? Que pensar de Porter? Solitário, hábil no evitar trabalhos e maçadas, era cinicamente franco no confessar suas negligências. com ele, pelo menos, sabia-se com que contar. Embora considerasse Warren abertamente um ingénuo, um simplório altruísta, saía às vezes de sua inocência para dar àquele novo, àquele caloiro, algum conselho útil.

Devia Ran ter novo exemplo da benevolência dele.

Uma vez certo de que Annie Hazlitt se encontrava fora de perigo, pelo menos imediato, voltou a casa para jantar. Esperavam-no na cozinha Ann e Mrs. Field. Havia comida quente no fogão e um púcaro de café que espalhava saboroso aroma.

- Voltaste a trabalhar toda a noite! - acusou Ann.

- É o que tu pensas. Mas a verdade é que andei a dançar até de manhã com uma deliciosa beldade da montanha.

- E suponho que acabaste por lhe apanhar o apêndice - respondeu Ann, nada impressionada.

- Pior que uma apendicite. - Contou-lhe a história de Annie Hazlitt, e depois: - Mal liquide a multidão do dispensário, tenho de voltar lá acima, para imunizar todas as crianças da terra, ou então podemos contar com uma epidemia a todo o tamanho. Primeiro que tudo, preciso de ir a Adson buscar soro.

- Pára aqui antes de seguires para a montanha, queres, querido?

- Combinado.

No dispensário, o Dr. Porter entrou no gabinete de Warren e atirou-lhe para a secretária um pesado sobrescrito de aparência feminina:

- Bela letra, sim senhor!

A qualquer outra pessoa, Ran exprimiria a sua opinião em termos francos. Mas a experiência de Porter fê-lo circunspecto. Informou-se tranquilamente:

- Vê algum inconveniente em explicar-me o que faz ao meu correio?

- Parece-me mais seguro nas minhas mãos do que nas da loirinha...

- Loir... Ah! De Miss Payne?

- Em pessoa! Ficaria surpreendido (surpreendido e edificado !) se soubesse a quantidade de vapor que ela consegue obter por meio duma simples lamparina de álcool. É, tenho a certeza, inultrapassável em operações de papel, sobretudo a espécie de papel utilizado para fazer sobrescritos de luxo.

- Quer dizer que ela remexeu no meu correio? - Ran ainda não acreditava. - Para que se daria a esse trabalho?

- Nunca se sabe - retorquiu, negligente, o outro. O Dr. Wade gosta sempre de saber o que acontece no seu distrito. E Miss Payne passa por ser a mais directa colaboradora do Dr. Wade. Dia e noite - acrescentou, após um silêncio longo.

- Bem! Tudo isto é uma linda porcaria! - exclamou Ran, enquanto o seu mentor continuava, sempre com a mesma negligência:

- Ainda há a questão das comunicações telefónicas. Não Vou ao ponto de dizer que os fios são interceptados, mas... enfim, há qualquer coisa que não está bem. Ou, pelo menos, há um extremo interesse sensível a este assunto.

- Obrigado - agradeceu Ran. - Hei-de lembrar-me disso, na devida altura.

A letra do sobrescrito, pequena mas audaciosa e certa, era desconhecida a Ran. Abriu, viu uma folha timbrada com o nome de SYBILLA BARR, médica, notou que a carta provinha de Washington e meteu-a na algibeira.

- Tem de tratar dos doentes esta manhã ^- disse ele a Porter, o qual, contra o costume, não protestou.

E partiu para Adson.

Ao entrar no gabinete do Dr. Wade, estava precisamente este a deixar a sua massa escorregar para dentro dum sofá.

- bom dia, Dr. Warren. Belo dia, hoje; manhã alegre e tudo!

- Não me parece tão bela como isso, pelo que a mim diz respeito. Estive a pé toda a noite, com um caso de difteria.

- Vocês, os novos, levam tudo muito a sério! - protestou Wade, sorrindo. - Verdade seja que eu, no meu tempo, fazia o mesmo...

- Sim, sim...

- Mais duma noite, oh!, quantas noites não passei eu à cabeceira duma parturiente! A medicina era então muito diversa. Não havia nenhuma das modernas invenções, que hoje a tornam fácil.

- Estou aqui para lhe pedir cinquenta doses de soro antidiftérico e cinquenta doses do reactivo de Schick.

- Cinquenta! Cinquenta! Que diabo quer você fazer com cinquenta?

- Pelas minhas contas, há cerca de cinquenta crianças, lá em cima, expostas à difteria.

- Mas não é um caso que faz uma epidemia, meu rapaz! O soro é caro! E eu tenho de reduzir as despesas.

- Aumentando o número de crianças perdidas?

- Que diabo! Não hão-de morrer - garantiu Wade. - São fortes, pode crer. Trate delas e, se surgir qualquer coisa, temos tempo para pensar no soro. No meu tempo, curavam-se sem isso.

- Em que proporção? No melhor dos casos, cinquenta por cento. A outra metade morria.

- Os meus doentes não! - afirmou Wade.

Como após reflexão, e seguindo um segundo e melhor caminho, Ran concedeu:

- Bem... Podíamos correr o risco...

O oficial do distrito mostrou um sorriso afável:

- Mais vale! É assim que se deve ser. Já me chegaram pedidos de informação acerca da quantidade de soro por si usada neste Inverno.

- É claro que eu tenho de fazer um relatório completo <- disse Ran, pensativo. - Não haverá dificuldades com os inspectores federais, desde que eu acrescente uma nota onde refira que o consultei e que o doutor decidiu contra a imunização profiláctica das crianças.

Um clarão vacilante no porcino olhar de Wade mostrou a Ran que o golpe acertara em cheio. Decorreu um instante, e depois:

- Espere um momento. Talvez não fosse mau, no fim de contas, examinar toda a malta e imunizar os que possam parecer aptos a ser contaminados.

- Será como o doutor quiser. Sabe melhor do que eu como se fazem as coisas aqui.

Wade foi à sala do abastecimento e voltou com as ampolas e o material necessário para o emprego do reactivo de Schick, método que permite reconhecer em alguns minutos se o indivíduo examinado possui ou não imunidade natural à doença; não se mostrava nada aborrecido com a chantagem que o obrigava a dar o soro:

- Belo trabalho o seu, Dr. Warren - disse, com voz suave, enquanto Ran se dirigia para a porta. - Excelente trabalho. Grande coisa, o entusiasmo!

Ran passou pelo hospital, a buscar os Hazlitt, enternecedores no seu reconhecimento. Como poderiam eles alguma vez retribuir-lhe aquilo? Não tinham dinheiro nenhum...

- Podem fazer uma coisa: ajudar-me a impedir que o mal se espalhe.

- Diga-me ao certo o que quer - pediu o avô.

- Mal cheguem, procurem saber onde há crianças atacadas da garganta. Contem aos pais o que aconteceu à Annie e como ela esteve perto da morte, para eles me deixarem fazer as vacinas de soro que hão-de salvar as outras.

- Há alguns que só acreditam no que diz o pregador Rambley - disse a mãe, com a voz vulgar e melancólica das montanhesas. - Mas vamos fazer o que pudermos.

Esquecido da promessa de parar em casa, de passagem, teve Ran de voltar atrás, quando já havia andado duas milhas. Encontrou Ann à porta, à espera, saia de lã, camisola e meias também de lã grossa, botas pesadas e resistentes.

- Que quer isso dizer?

’- Vais precisar duma enfermeira.

E, sem ser convidada, entrou para o automóvel.

’- É verdade, mas não me admiro se precisar também duma escolta de polícia!

Ao passarem diante da austera igrejinha, sem pintura, lembraram-se de que era domingo, porquanto, atravessando a porta, atingiu-os em cheio uma violenta explosão de exortações, lançada em tom de violento fanatismo.

- É o Apóstolo que arranja isto - disse o avô Hazlitt. - Venham para nossa casa e sentem-se à mesa, até podermos reunir esta gente. Seja como for, o senhor nada consegue antes de eles saírem da igreja.

No casebre miseravelmente mobilado, onde esperavam, Ran leu à mulher a carta de Sybilla Barr:

Você nunca vem a Washington? Há inúmeras coisas de que eu. quero falar-lhe e que não são para dizer pelo correio. Lembra-se da Comissão dos Trezentos, que antigamente tanto lutou por libertar a medicina? E dos fósseis musgosos da Associação Médica - a maioria hoje caída do Governo, graças a Deus - que estorvaram as várias tentativas para melhorar as condições da profissão, de modo que estamos todos, actualmente, nesta marmita do diabo? Pois bem: eu trabalho para a Comissão.

O emprego no hospital de Nova Iorque tornou-se excitante de mais para mim. Política e mentira em excesso. Também, no meu actual emprego, há um ângulo político, mas é uma política limpa e decente. O senador McDonough trata da parte médica. E continua interessadíssimo pelo plano Warren.

Recomende-me à sua linda Cabeça Vermelha. Ela não gosta lã muito de mim, mas eu tenho toda a consideração por ela, por saber que possui o necessário para fazer o Ran feliz.

- Tudo isso parece extremamente misterioso - sugeria Ann. - A tua amiga andará intoxicada de romances policiais?

- É uma paz de alma. Não consigo compreender porque é que não gostas dela.

- Eu sei. Não. Para falar com franqueza, eu também não compreendo. - A honestidade de Ann não falhava: - Mas reconheço que ela é, sem dúvida, uma paz de alma.

Neste momento, foi interrompida a conversa pela chegada duma mulher nova, de ar inteligente:

- O senhor é o Dr. Warren, de Stoneville?

- Sou. E esta a minha mulher.

- Eu sou Miss Rolfe, a mestra-escola. Como fico contente por ver os dois! Ando preocupadíssima: muitas das minhas crianças queixam-se de dores de garganta.

- A senhora estava cá o ano passado, quando os serviços do Estado lhes aplicaram o reactivo de Schick?

- Estava, estava. Lutei o que pude pela inoculação. Mas havia um pregador à moda antiga, o Rambley, que ainda cá está e que dissuadiu muitos.

- É capaz de arranjar uma lista dos que tiveram reacção positiva?

- Não... acho que não. - De repente, iluminou-se-lhe o rosto: - Suponho que guardei essa lista. Deixou-ma o homem do Serviço de Saúde.

’- Isso é óptimo; poupa muito tempo.

Miss Rolfe mostrou-lhe o caminho da escola, onde já umas trinta crianças e respectivos pais se encontravam reunidos à volta do fogão recém-aceso. Cerca de metade dos alunos inscritos tinham acusado reacção positiva. O velho Hazlitt adiantou-se à lista:

- A maioria está aqui, doutor. - Virou-se para a multidão atenta: - Eis o Dr. Warren. Na noite passada, salvou a vida da nossa Annie. Pode fazer o mesmo pelos vossos filhos. Tem qualquer coisa para dizer a tal respeito.

Ran passou a perna por cima da mesa branca, sentou-se nela, à vontade, e considerou o auditório. Os mais velhos mostravam-se impassíveis, não muito certos ainda do que se ia desenrolando, mas desconfiados de qualquer intervenção que pudesse alterar-lhes a rotina da existência. As crianças mostravam-se curiosas, e Ran descobria, aqui e além, uns olhos mais inflamados do que outros. Ao fundo da sala, reconheceu um rosto: o do homem que, dois dias antes, levara a neta ao dispensário. Estava encostado à parede, espingarda ao lado. Havendo encontrado difteria, Ran seguira para a aldeola, a fim de lhe levar soro.

- Como está a sua netinha, senhor Carlton?

- Bem, doutor, bem! - respondeu ardentemente o montanhês. - Acho que desapareceu a febre!

’- Fico muito satisfeito. Vou lá vê-la, antes de voltar à cidade. - Percorreu a sala um murmúrio favorável. Ran sentiu-se encorajado e prosseguiu. - Pedi ao senhor Hazlitt que vos reunisse a todos, aqui, para vos falar dos vossos filhos. Não desejamos que lhes aconteça o mesmo que à neta do senhor Carlton. A Annie estava mesmo à morte quando a levámos para o hospital, a noite passada.

Manifestou-se uma mulher:

- O meu filho tem agora dores de garganta e febre. Ecoaram várias vozes:

- O meu também...

- E o meu...

- E o meu...

- Portanto, é absolutamente necessário impedirmos esta epidemia de se estender. Nem sempre teríamos tanta sorte como com as duas pequenas já atingidas e tratadas. Trouxe comigo o soro necessário para pôr os vossos filhos em estado de defesa perante o mal. Alguns apresentaram reacção negativa: vamos tornar a fazê-la para termos a certeza. O que vos peço é licença para dar uma dose de soro a cada criança que precisar. Em caso nenhum lhes fará mal, garanto-vos absolutamente. E pode salvar muitas vidas.

Calou-se: que dizer mais? Não sabia (mas era uma realidade) que o seu simples enunciar dos factos, sem floreados de linguagem, influenciara muito mais o auditório do que quaisquer comentários.

Decorreu um instante em que ninguém falou. Depois, decidiu-se um lenhador nodoso, molestado pelas intempéries:

- Aprecio a sua maneira de falar, meu rapaz. Faça pela minha família o que achar melhor, e nada mais lhe peço.

Magra e cuidadosa, perguntou uma mulher:

- Esse soro que o senhor doutor diz é veneno?

- Não - começou Ran.

Mas, neste momento, houve uma interrupção vinda da porta.

Ali estava uma figura incôngrua pela altura, pela magreza, pelas vestes negras e bafientas que a cobriam da cabeça aos pés, dominando a massa, braços estendidos, olhos resplandecentes de fervor fanático.

- Parem com essas obras ímpias - ordenou, em voz alta, fina e choramingas.

- Aquele é o apóstolo Rambley - murmurou Hazlitt.

A informação era supérflua, porquanto Ran já o identificara.

- Voltem para casa! - continuou o intruso, cuja voz tremia de paixão convicta. - E deixem-me desmascarar este malfeitor.

Warren viu o perigo da situação. Tinha de enfrentar o mais formidável tipo de fanático, o homem que, na profunda intensidade de um egoísmo inconsciente, acreditava com fervor em si próprio e na sua inspiração. Devagar, e com cortesia, disse-lhe:

- Entre, senhor Rambley.

- Reverendo Rambley - corrigiu o outro, fechando a porta atrás de si.

- Reverendo Rambley, desculpe. Quer subir ao estrado?

Esperou que, arrastando os pés, o homem subisse os dois degraus e se encontrasse de pé, junto dele, mais alto uma cabeça.

- O senhor e eu queremos a mesma coisa, tenho a certeza: salvar estas crianças.

- Mas não por obra do diabo! - ripostou o Apóstolo. - Não pelo seu veneno infecto ! Você vem para aqui mentir e...

- Um momento, por favor - interrompeu cortesmente Ran. - Estou aqui, enviado pelo Governo, para distribuir aos que quiserem - aos que quiserem - sem qualquer espécie de constrangimento, o soro que salvará a vida a estas crianças.

- Soro! Soro! - vociferou o pregador. - Donde vem esse soro? Responda!

- De laboratórios cuidadosamente vigiados, onde o preparam pessoas especializadas.

Isto não era absolutamente certo: Ran sentia-se em terreno escorregadio e aventurava-se o menos possível.

- Vem de cavalos, não é verdade? De cavalos mortos?

- Não! De cavalos mortos, não! - contrapôs Ran, observando com mágoa o murmúrio de receio e desgosto que subia para ele.

- Dos animais que morrem! - clamou o exortador. - Quer que as nossas crianças se tornem como os animais que morrem? Irmãos e irmãs: deixareis vós este estranho vir aqui injectar nos inocentes tripas de cavalos mortos? Digo-vos eu: a morte e a condenação encontram-se nas artes diabólicas deste doutor.

Perto do lume, ergueu-se um homem, que disse:

- Seja qual for o médico do Governo que entre em minha casa, faço-lhe saltar os miolos! Um segundo ameaçou:

- Passe ao largo da minha casa, se quer que eu o chumbe na barriga!

Juntaram-se várias vozes às primeiras, denunciando, protestando, ameaçando. A pequena professora tentava em vão utilizar a sua influência. Via-se que a população estava dividida mais ou menos ao meio. Mas faltava a última palavra.

Enquanto os separatistas se dirigiam para a porta, levando à frente o rebanho da sua progenitura, Brad Carlton estendeu a mão para se apoiar na espingarda e disse:

- Oiçam, vizinhos: o carvoeiro é rei em sua casa, e a casa dum homem é o seu castelo. O doutor não vai invadir sítio nenhum. Mas vai dar uma volta. E eu Vou com ele. Se houver banzé - e tornaram-se menos agradáveis as suas intenções - quem começar faz bem em preparar-se depressa, porque sou capaz de começar eu. É tudo!

- É caçador, o Brad. E que caçador! - segredou o velho Hazlitt ao ouvido de Ran.

Entre as crianças que ficaram na escola, Ran separou as que haviam acusado reacção positiva e observava cuidadosamente garganta por garganta. A mais pequena vermelhidão, à mais leve subida de temperatura, logo aplicava uma dose profiláctica de soro, que constituiria protecção imediata. Os suspeitos podiam depois imunizar-se por segunda injecção: do que aquelas pequenas criaturas precisavam era de protecção imediata.

Descobriu dois casos de difteria no primeiro estado: gargantas vermelhas, temperatura elevada, e manchas brancas já formadas à volta das amígdalas. A essas duas, deu doses mais fortes de soro, e Ann levou-as a casa no automóvel, recomendando-lhes que se deitassem, isoladas das outras crianças e tratadas com cuidado.

Não teve idêntico êxito o giro de porta em porta. Em meia dúzia de casas, recusaram categoricamente a entrada. Noutros sítios, achou-se Ran em famílias divididas, onde a mãe defendia o Apóstolo e o pai desejava os serviços médicos, ou vice-versa. Nem em todos os casos os argumentos de Miss Rolfe, dos Hazlitt e de Carlton conseguiram fazer pender a balança para o seu lado. Num tugúrio imundo, choravam duas crianças, enquanto, à porta, uma avó selvagem ameaçava Ran com os dentes e com uma pá de forno, até que Brad a empurrou, sempre a urrar, para a retrete, onde a manteve fechada até ao fim da visita.

As duas crianças estavam com difteria. Bem como às três outras que descobriu, deu-lhes Ran uma dose de soro. Atacando assim de princípio, esperava que não fosse grande o mal. Neste grupo, não haveria outras laringes perigosamente inchadas, nem corridas loucas, de noite, para o hospital, em busca dum balão de oxigénio, duma intubação ou de uma traqueotomia que permitisse ao ar encher pulmões esgotados.

Quando Warren regressou, esperava-o desagradável surpresa. Tinha na secretária uma carta com o timbre do oficial médico do distrito. Randolph Warren, médico de clínica geral, 1ª classe, era citado para responder à acusação de prática de cirurgia sem licença. O queixoso era o Dr. Cari Branch, do hospital de Adson; a audiência estava marcada para de sábado a quinze dias.

Como o Dr. Barton, de Ridgeville, lhe pedira notícias de Annie Hazlitt, Ran havia redigido um bilhete, dizendo que nenhuma complicação ou perigo parecia de temer, quanto ao coração ou a qualquer outro órgão vital. Em rápido pós-escrito, acrescentou:

Coisa interessante, a respeito deste caso: sou convocado para ir perante o oficial médico do distrito responder à acusação de ter praticado cirurgia sem licença e sem classificação de especialista.

Ann ficou inquieta, mas Ran não fazia muito caso da convocatória. Tinha outras preocupações. Continuava séria a situação da aldeola. O apóstolo Rambley, numa cabana, tratara três crianças com orações e “simples de Deus”, ervas inertes que não faziam mal nenhum, mas também não impediam a doença de continuar o seu curso e as devastações nos corpinhos indefesos. Uma das crianças morreu, o que abalou um pouco o prestígio do curandeiro. Ran ameaçou-o de o citar perante os tribunais, mas viu surgir triunfalmente um papel com timbre do Governo: “Licença limitada para curar os doentes segundo os dogmas e princípios da sua crença”.

Manifestaram-se cinco outros casos, quatro dos quais nos sequazes de Rambley. Warren conseguiu isolá-los por métodos semelhantes aos da cirurgia de guerra, e a epidemia não foi mais longe. Era um triunfo de medicina preventiva. Chegaram a Ran calorosos aplausos do Serviço de Saúde do Estado e do inspector federal.

Uma vez passada a crise, deixou-se desencorajar. Que estava ele a fazer ali? Que poderia fazer de verdadeiramente útil? Desejava, com todo o ardor, regressar à cirurgia. Era esta a sua verdadeira utilidade. com o escalpelo, trabalhava-se de acordo com métodos definidos, em busca dum resultado que podia prever-se. Em medicina - pelo menos como ele era obrigado a praticá-la - a pessoa esgotava-se por nada, e baldavam-se-lhe metade dos esforços.

Foi para Ran um alívio na monotonia dos trabalhos e do tempo o levantar-se no sábado em que ia ter de defender-se das acusações do Dr. Branch.

 

Olhando ao efeito dramático, o Dr. Wade dispusera as coisas de modo que a audiência se realizasse no tribunal local. Aquele pequeno e pretensioso Warren estava a tornar-se muito popular e a ganhar demasiada influência na terra. O objectivo do oficial de Saúde era, pois, desacreditá-lo com o máximo de publicidade. Ao entrar na sala, dez minutos antes da hora, ficou surpreendido vendo-a cheia de gente, cuja presença lhe parecia incompreensível e, portanto, suspeita.

Quando o Dr. Warren entrou, alargaram-se em pequenas e sucessivas vagas os aplausos. Sem se lembrar de que a sessão não estava ainda aberta, Wade bateu várias vezes na mesa. À sua volta, reunia-se o pessoal de Adson: podia contar com todos os membros, todos, excepto um: Roberts, o otorrinolaringologista, revoltado de nascença. O que a presença de vários médicos de outros dispensários pressagiava é que ele não conseguia descobrir. Na primeira fila, o Dr. Porter, “o do rosto triste”: com o médico de Stoneville, nunca se podia contar. Nos últimos bancos, numerosos montanheses, homens e mulheres. O magistrado da polícia municipal do distrito descobriu entre eles, encostado à parede, um “rapaz mau” da terra - Brad Carlton. E pareceu-lhe que formava por trás dele uma saliência certo objecto semelhante a uma espingarda. Seria bom o presidente fazer qualquer coisa a este respeito? Mais valia que não, talvez.

Martelo no ar, preparava-se o Dr. Wade para declarar aberta a audiência, quando vislumbrou dois atrasados. A mão caiu-lhe lentamente: um dos recém-chegados era o Dr. Barton, de Ridgeville; o outro, o senador McDonough. Ambos se dirigiram para o sítio onde o Dr. Warren estava sentado e apertaram-lhe a mão. O rosto de boneco e normalmente alegre do Dr. Wade ficou pálido de apreensão doentia. Rodando na cadeira sua repleta pessoa, murmurou qualquer coisa, nervosamente, ao ouvido do Dr. Branch, que, após algumas hesitações, acabou por aquiescer com a cabeça.

- Temos a honra de contar entre nós com o senador McDonough - declarou, em voz pausada, o presidente. Quer sentar-se aqui no estrado?

- Não, obrigado, senhor presidente - respondeu tranquilamente o interpelado. - Estou aqui muito bem.

Sentou-se atrás de Ann.

O Dr. Wade bateu na mesa com o martelo:

- Está aberta a sessão. - E aclarou várias vezes a voz. - Minhas senhoras e meus senhores: foi bem contra a vontade que provoquei esta reunião. O Dr. Warren, de Stoneville, é acusado pelo Dr. Branch, do hospital municipal de Adson, de haver praticado a cirurgia sem estar classificado de especialista e sem ter licença para cirurgião. É uma acusação muito séria, e, desejando eu fornecer ao Dr. Warren todas as possibilidades de se defender, decidi que fosse pública esta audiência. O Dr. Branch vai falar.

Branch levantou-se. Deu à voz um tom de afectação e começou, devagar:

- Permitam-me que o diga, antes de mais: custa-me profundamente ter de acusar um colega. Seria, porém, traidor ao meu juramento de médico, se não tentasse, por todos os meios, proteger o público de quem quer que queira encarregar-se de coisas para que não está apto...

Ran mostrou um sorriso sem alegria: “Proteger o público, hem?” pensava ele. “O público precisa é de ser protegido de pessoas como tu, que deixarias rebentar um apêndice, que deixarias sangrar até à morte uma placenta prévia, para não abandonares de noite o calor da cama”.

- A 29 de Janeiro - prosseguiu Branch - o Dr. Warren trouxe ao hospital uma criança com difteria. Recebeu-o na sala das urgências o interno de serviço, Dr. Sneed, e a doente foi admitida no hospital, onde imediatamente começou o tratamento.

“Sim, sem dúvida”, pensava Ran. “Lá começar o tratamento começaram. Mas quanto não se esperou, insistindo por obter o balão de oxigénio, pedindo os instrumentos de traqueotomia?!”

- A paciente - continuava o acusador - deixava nesse momento de depender dos cuidados do Dr. Warren. Todavia, ele ficou ali, intimando o interno, e, no fim de contas, sem motivo aceitável, sem procurar encontrar o cirurgião de serviço (que era eu), operou a criança. Constitui isto uma infracção às leis médicas do País, de natureza a legitimar a sua baixa de serviços.

Violenta reacção no fundo da sala: tinha-se levantado e, a grandes passos, avançava para a mesa o velho Hazlitt:

- Esperem um minuto! A doente de que ele fala é a nossa Annie...

Wade bateu com o martelo:

- Vá sentar-se. Não está no uso da palavra.

O velho olhou à volta, incerto, incrédulo:

- Eu estava lá e vi. Não terei eu o direito...

Pum! Pum! Pum! Ao barulho do martelo seguiu-se outro, mais seco, mas mais formidável, irregular - e Brad Carlton avançou pesadamente, espingarda atrás. Falou com desinteresse:

- Suponho que ainda existe nesta terra liberdade de expressão...

- Polícia! . - gritou, nervoso, o presidente. - Não há aqui um polícia? Restabeleça a ordem!

Havia um polícia, mas não avançou. Disse apenas:

- Vou procurar o xerife.

E não tornou a aparecer. Levantou-se então o senador McDonough:

. - Se me é permitida uma sugestão, senhor presidente... Parece-me que será testemunha útil e para ouvir quem assistiu à operação.

- Muito bem - aquiesceu Wade, irritado. - Avance. Nome?

- Hazlitt; a rapariguínha é minha neta. É verdade, cavalheiros, que, como disse este senhor, o Dr. Warren nos trouxe ao hospital naquela noite: a minha neta, a mãe e eu. Apareceu aquele rapazola - e apontava para o interno - mas ele parecia não saber que fizesse. Chamou então o Dr. Brandi e um outro doutor. Ouvi os nomes enquanto ele telefonava. Não quiseram aparecer.

Limpou o suor do rosto.

- Continue - atirou com violência o presidente.

- Enfim, pôs à Annie um balão de oxigénio, depois de o Dr. Warren o haver obrigado a ir procurá-lo, e foi o Dr. Warren quem o mandou deitar qualquer coisa no sangue da nossa pequena. Depois, quando parecia mesmo que ela ia morrer, aquele doutor >- e mais uma vez indicava Sneed - tentou meter-lhe um tubo na garganta. Penso que fez o melhor que soube, mas o tubo empurrou qualquer coisa, porque ela ficou imediatamente toda negra e sem poder respirar. Pensei que já estava... Mas o Dr. Warren pegou numa faca e fez-lhe um buraco na garganta.

- Posso chamar a atenção do presidente para o facto de a testemunha provar que o Dr. Warren operou a criança? - sublinhou Branch.

Ran estava de pé e avançava, apesar da tentativa fútil de Ann para o deter. Fervia e transbordava agora toda a sua cólera contida contra Wade e Branch:

- Sim, eu operei - declarou ele. - E quem é que pretende o contrário? Operei, e voltarei a operar. Que esperavam os senhores de mim? Que ficasse a ver uma criança morrer, sem nada fazer por a salvar, quando os senhores não a salvavam? Sem nada fazer, por causa da administração e da burocracia?! O Dr. Branch está tão exclusivamente interessado pela cirurgia, no hospital dos senhores... - Virando-se, encarou Branch: - Porque não se levantou para ir ele próprio operar a criança, quando o Sneed lhe disse que ela estava cianótica e que o Dr. Roberts tinha saído? Bem sabia que pesava a ameaça duma epidemia diftérica, bem podia ver que se tratava dum caso verdadeiro e grave. E, ao procurar explicação para isto, procure também uma para justificar o motivo por que, ainda em Janeiro, deixou perfurar-se um apêndice no hospital. E aproveito ainda a ocasião para perguntar como é que esse obstetra que vocês têm no hospital quase deixou morrer de hemorragia uma placenta prévia operada com doze horas de atraso. E, o que é mais grave, tenho uma lista...

- Não é esta a ocasião nem o lugar para acusar os outros - trovejou Wade. . - Não é a sua vez...

- Perfeito - disse Ran, súbito acalmado. - Posso ao menos fazer uma pergunta? Muito contente ficaria se o senhor Daily, droguista cá do sítio, quisesse vir contar as condições que me propôs para a repartição dos lucros, no caso de eu indicar nas minhas receitas produtos caros, que ele pudesse substituir na execução por outros, menos raros e menos caros.

Pálido, venenoso, Wade bateu com força na secretária, gritando por fim:

- Basta dessas histórias. Não é assim que consegue melhorar o seu caso. Dr. Sneed: vamos ouvir o seu testemunho. Suba à tribuna.

- Sim, senhor - disse o interno, visivelmente embaraçado.

- Assistiu à operação feita pelo Dr. Warren?

- Assisti.

- A seu ver, ela era imediatamente necessária?

- Não tive tempo para confirmar o diagnóstico - respondeu Sneed, que (era evidente) procurava um subterfúgio por onde, sem se pôr de mal com a sua consciência, pudesse não se pôr de mal com o oficial médico do distrito. - Não queria tomar a responsabilidade de dizer...

- Pode afirmar positivamente que era um caso imediato de vida ou morte? - interrogou o examinador.

- Bem... não... senh... senh... senhor... não... não... podia...

- Então o curto prazo necessário à chegada do Dr. Branch não seria infalivelmente perigoso?

. - Infalivelmente não, não era mesmo infalivelmente!

- Chega. Obrigado. Miss Boedecker, se faz favor.

Subiu para o estrado a enfermeira que tratara de Ann Hazlitt. Compreendia intimamente que o seu emprego, de que tanto precisava, dependia da sua maneira de testemunhar; que tinha de depor no sentido esperado por Wade e Branch, e só nesse.

- Miss Boedecker: viu o Dr. Warren operar?

- Vi, sim, senhor - respondeu a rapariga, numa voz quase imperceptível.

- Confirma a opinião do Dr. Sneed?

- Confirmo.

- E o Dr. Sneed formulou verdadeiramente uma opinião? - interrogou Warren, calmo.

- Não ouvi nada que se parecesse com isso.

- Não é o senhor que conduz os interrogatórios, Dr. Warren - disse com severidade o presidente, que aclarou a voz, olhou para o Dr. Branch, e afirmou: - O caso contra o Dr. Warren é perfeitamente claro. Ele próprio confessa...

- Senhor presidente!

Estava de pé o Dr. Barton. Wade olhou-o, cheio de apreensão:

- Dr. Barton?

- Posso ser ouvido?

O Dr. Branch opôs-se, notando com uma voz adocicada:

- O Dr. Barton não é deste distrito. Ficaríamos, claro, muito contentes de ouvir o Dr. Barton, em circunstâncias vulgares, senhor presidente, mas as nossas regras de...

O cirurgião cortou-lhe a tirada:

- Eu assisti à operação, senhor presidente.

E o senador McDonough interveio suavemente:

- Se me é permitido sugerir uma vez mais... O depoimento do Dr. Barton será, parece-me, pertinente e de grande peso. E, como presumo que o senhor pretende reunir os factos...

- com certeza, com certeza, senador. Quer subir à tribuna, Dr. Barton?

- Obrigado. O que eu tenho para narrar diz-se em dois minutos. A pequena doente estava na fase final duma laringite diftérica. O diagnóstico não deixava dúvidas. A membrana apresentava-se inteiramente desenvolvida. A meu ver, a morte era caso de minutos - dois, quando muito três - se o Dr. Warren não tivesse intervido. Obrigado, senhor presidente.

Sentou-se. De toda a assistência se exalou profundo suspiro. O presidente lançou um olhar irritado ao Dr. Branch, que o metera naquele sarilho.

- Terminou a audiência. Improcedência judicial - disse. E depois, noutro tom: - Se eu tivesse conhecimento das circunstâncias exactas e verdadeiras ao peso das quais o Dr. Warren foi levado a operar, nunca permitiria que se formulasse esta acusação. Lamento ter sido mal informado. Fica revogada a sessão.

O auditório separou-se com grande barulho.

O Dr. Barton e o senador McDonough esperavam no portal a saída de Ann e Ran. O senador estendeu a mão ao rapaz:

- Precisamos de si, antes que seja tarde. Prepara-se uma luta, uma luta cerrada. Se quisermos arrancar a profissão médica aos escroques, aos charlatães e aos políticos, é necessário que todos os homens como devem ser se reunam e amparem. Gostava de ter mais tempo para falar consigo.

- Eu também.

Ran respondeu com fervorosa convicção. Havia algo de dominador e poderoso naqueles olhos calmos, uma força cuja sinceridade o impressionava, como o impressionara naquele memorável dia em que, perante a Comissão do Congresso, vira o seu plano rejeitado por não se enquadrar em combinações políticas, mas, apesar de tudo, compreendido e apreciado pelo senador McDonough.

Este continuava:

- Voltarei cá daqui a algum tempo, talvez no Outono.

O Dr. Wade, que se aproximara, importante e deslocando muito ar, mostrou-se cordialíssimo:

- Esperamos vê-lo no nosso hospital, senador. Sabemos como se interessa pelas coisas da medicina. Temos aqui um pequeno estabelecimento, muito capaz. Muito prazer em recebê-lo, senador.

- Obrigado, Dr. Wade -respondeu o outro, polido, mas, ao que pensou Ran, um pouco secamente.

Ao entrarem em casa, encontraram os Warren, no pátio da hospedaria, um automóvel de matrícula desconhecida.

- Shiu! - disse Ann, prudente. - É talvez o turista: não o assustemos!

Tornara-se clássica a graça de o letreiro desbotado e desconjuntado de Mrs. Field faltar completamente à presumível missão, que consistia em atrair à pequena hospedaria o cliente da estrada. Ran andava sempre a falar à excelente mulher no quase nulo poder persuasivo do seu painel publicitário. Mas ela apenas sorria, considerando-se satisfeita com os dois pensionistas, por assim dizer, adoptivos.

Ann abriu a porta. Um homem, que estava de pé junto da janela, estendeu o braço, cingiu a rapariga e esmagou-a num abraço de urso. Ela ofegou:

- Oh!-Viu depois quem era:-Tini! Tim Brennan! Querido Tim! Donde vem você?

Ran, que acabava de entrar, tinha-o preso pelo outro lado:

- Ora quem havia de ser! Quando acabar de abraçar a minha mulher, talvez diga que é feito de si!

- Quem tem mais direito do que ele? - insurgiu-se a esposa. - Tim, quando fez você a barba pela última vez?

- Sei lá! Vim à pressa, a tempo de chegar aqui para a execução. - E informou-se, num ar de ansiedade muito bem imitado: - Haverá qualquer coisa de beber para um viajante sedento?

- Há rum. Rum caseiro, fabricado e oferecido por um doente grato. Como a nossa proprietária não aprova, temos de subir a bebê-lo no quarto.

- Quarto? O quê? Já não há alcova?...

- Cale-se, seu pateta ! - disse Ann, corando.

- E como tem passado, afinal? Gosta da clínica geral?

- Não é tão mau como isso. Mas que trabalho!

- Sim, mas eu, em tudo isto? - Ann protestava, numa convicção barulhenta. - As coisas chegaram a tal ponto que nunca vejo o Ran, a não ser quando o acompanho como auxiliar nas visitas. De dia ou de noite, para perto ou para longe, nunca deixa de ir ver quem o chama.

- Sempre o complexo de Jesus Cristo, hem? Carregar com o fardo dos outros? É preciso reconhecer que isso já não se encontra na medicina. Está mesmo a desaparecer.

- É preciso que alguém trabalhe. E nós temos por cá um sortido muito completo de barqueiros! Para se esquivarem, estão por aqui!

Ofereceu a Tim um grogue cientificamente preparado. O amigo, batendo uns lábios de entendido, declarou:

- Estou a ver que você ainda não se esqueceu da maneira de preparar uma receita. Mas que é feito da cirurgia? Voltou a tentar?

O rosto de Ran carregou-se:

- Chumbado, outra vez.

- Delícias do Inferno! Há qualquer coisa que não está bem.

- Não falemos de mim. Conte-nos antes que faz você.

- Talvez eu me decida, se o Ran me der outra coisa destas. - Sem esperar que o amigo o preparasse, acrescentou: - Sou contrabandista. Contrabandista médico: clínica fraudulenta.

- Clínica fraudulenta? - admirou-se Ann. - Que vem a ser isso?

- Cresceu como os agriões em todos os estados. Imensas pessoas que podem pagar ao médico encontram-se insatisfeitas com o género de tratamento que o Governo lhes oferece. Então, arranjam outra coisa. Organizam-se grupos de médicos que também não apreciam a medicina do Estado. E depois põem-se a praticar, como era antes de o Governo nos fazer o que fez. Os tipos da política fazem em Washington um alarido enorme a respeito da coisa, mas não conseguem quase nada, desde que há pessoas dispostas a pagar para obterem cuidados melhores do que os das clínicas governamentais.

Ann disse logo, ardente:

- Talvez o Ran pudesse arranjar emprego numa dessas novas organizações...

Ran carregou o sobrolho e depois abanou a cabeça:

- com certeza! Isso parece muito bonito, mas acho que, por esse caminho, não vamos longe. Devemos vencer legalmente. A única coisa, por agora, é aguentar e deixar o público ver como isto assim é mau e corre mal.

- Quanto a ser mau, é; e quanto a correr mal, corre! Trabalhei nas estatísticas. A mortalidade fetal e a materna duplicaram de há seis meses para cá, em Chicago e Nova Iorque. Em Chicago e Nova Iorque, está a ouvir? As cidades onde tínhamos as melhores clínicas de parteiros de todo o mundo.

- Chiu! Isso não pode durar assim para sempre. Qualquer dia, a gente levanta-se nas patas de trás e deita os políticos para fora da medicina! - exclamou Ann.

- Nessa altura, já nós estaremos a fazer tijolo há muito tempo - profetizou Ran.

- Talvez não! - disse Tim. - A coisa anda mais agitada do que você supõe. Se pudéssemos expulsar do Gabinete médico o camelo do Wilson, já seria uma grande coisa. É verdade: vi em Washington o seu amiguinho, esse proxeneta do Larry.

- Lembrem-se de que está aqui uma senhora. Ou eu voltei a ser enfermeira? - disse Ann, com dignidade. - Pela maneira como falam, parece que sim. Que fez ele, afinal, o Larry?

- Anda cheio de massa. Ninguém sabe para onde deita ele aquilo tudo. E, de resto, é com grande entusiasmo que afaga a garrafa! A propósito: que diz à ideia de me deitar mais um bocadinho aqui no copo?

- Não deites nada, querido, antes de ele ter contado mais. Está a esconder-nos qualquer coisa.

Tim pousou o copo:

- É muito astuta, Ann. Conhecem o senador McDonough?

- Acaba de assistir ao meu processo.

- Ando a fazer um discreto trabalhinho de comissão para ele.

- Comissão? Não a dos Trezentos, pois não?

- Sim. Mas como é que você sabe isso?

- Nós, indivíduos do fundo dos bosques perdidos, sabemos mais coisas do que vocês supõem - retorquiu a rapariga, impertigando-se ironicamente.

- Bem! Que sabem então deste triste pássaro do Wade?

- Pouca coisa, a não ser que é cem por cento político e cinquenta por cento escroque - respondeu Ran.

- E que guia um automóvel de cinco mil dólares - acrescentou a mulher. - E, para mais, ainda tem qualquer coisa de estranho, como pessoa.

Tim deu-lhe logo atenção:

- Estranho? Que quer dizer com isso? Explique-se. Diagnostique, por favor.

- São os olhos que costumam ter os doentes depois da picada.

- Hum!... - resmungou Tim. - Interessante. Gostava de saber mais coisas do Dr. Wade. Conserve bem abertos esses olhos que sabem ver, Ann. com a ideia de que persegue algum objectivo. Ele fá-las boas, na cara do tio Sam!

Tim só podia dormir lá uma noite. Ficaram desgostosíssimos de o verem partir. Nada como a presença de algumas horas os havia reportado a uma época mais feliz, quando se sentiam mais novos, mais livres, quando o ardor do entusiasmo ainda não havia sido atenuado pelas arrelias e desencorajamentos do trabalho quotidiano que esmagava Ran.

 

Chegou o mês de Maio, e com ele o florescer dos louros nas encostas da montanha. A erva reverdejava nas margens dos inúmeros ribeiros que serpenteavam através de todos os valezinhos agachados entre a confusão dos picos do horizonte. Em breve se cobririam todas as vertentes. Nos montes, já branquejava o corniso.

Ran aspirava o ar como um cão à solta, enquanto conduzia o carro pela estrada de assustadoras armadilhas. Deu uma curva um pouco mais depressa do que devia e travou de repente, enquanto do outro lado uma mulher, num salto rápido, se encostava à muralha rochosa.

- Desculpe... - ia ele a começar. Mas logo: - Frances!

- Oh! Ran! - O rosto de Frances estava pálido. - Acaba de se dar um acidente. Vinha em busca de socorro...

- Entre. Onde é?

- Não é longe. Quando muito, meia milha.

Ao lado dela, Ran ia com mais cuidado. Ambos falavam pouco.

- Que a traz aqui ao fim do mundo?

- O meu marido tem propriedades mineiras para estes lados. Não sabia? Vá devagar. O caminho está obstruído.

Um grande carro havia patinado na estrada, indo embater com a roda da frente contra o muro de quartzo que a dominava, formidável e vertical. Primeiro, supôs Ran que o motorista tivesse sido tomado de pânico, ao deparar com a descida vertiginosa que se lhes oferecia à vista, sem qualquer espécie de protecção, pelo que teria cortado a curva demasiado depressa, com o risco - que se efectivou - de se atirar para a falésia. Todavia, ao avançar, com a prudência que as circunstâncias exigiam, chegou mais perto e viu, no mais instável equilíbrio, suspensa de rocha que descia a pique uns vinte pés, uma velha carripana, prima daquela de que ele outrora se orgulhava.

Um homem de cinzento, sem chapéu, e um motorista fardado estavam ali a olhar, em pé.

- Robert! - chamou Frances. - Está aqui o Dr. Warren.

- Há um homem ali debaixo - disse Robert Mayfield.

Ran procurou o macaco do seu automóvel e desceu com precaução. O espigão rochoso, estreito, mal oferecia espaço para uma pessoa se mexer. Meio sepultado sob o carro desfeito, jazia um pequeno montanhês, seco e com rugas, inanimado, mas ainda a respirar.

Qualquer cirurgião competente é um pouco mecânico. Dando-se todo ao problema do momento, Ran colocou o macaco:

- Levantem à minha ordem. Mas não se deixem ir arrastados, quando isto começar a pesar.

Lentamente, a massa do carro foi-se erguendo, balançou, e caiu no vazio. Atrás, rolaram algumas pedras soltas pelo declive. Segundos depois, vindo de baixo, de muito longe, bateu, de eco em eco, nas paredes da montanha, um barulho de destroços. Pálidos, Mayfield e o motorista olharam-se. Ran já estava ao pé do ferido, e só o via a ele, cujos braços e pernas pendiam frouxos, de modo assustador. A respiração era curta, mas quase regular.

- Receio bem que seja a coluna vertebral - disse Ran. . - Agora é preciso levá-lo para a estrada.

Tarefa árdua, laboriosa, à qual Ran pouco podia auxiliar, obrigado a manter direitas as costas do homem, para evitar qualquer perigo novo a uma medula já provavelmente ferida. Em cima, na estrada, Frances colocara duas almofadas do carro, para improvisar uma cama. Não fez perguntas, mas conservou-se pronta. Foi o marido quem interrogou:

- Grave?

Ran fez um exame rápido. A ausência de sensações e a paralisia na região dos ombros indicavam um traumatismo ao alto da coluna vertebral, possivelmente na base do pescoço. A exploração atenta revelou deformidade ocasionada, evidentemente, pela deslocação duma vértebra que avançava para a seguinte; não precisava de muito para apanhar o cordão espinal dos nervos que estabelecem contacto entre o cérebro e as extremidades.

- Bastante grave . - respondeu ele a Mayfield. - Fracturou o pescoço.

. - Podemos levá-lo para o hospital?

- com vida, parece-me que não. A coisa tem de se fazer aqui, e já. Dêem-me as suas capas.

Preparava-se para as embrulhar em forma de apoio quando Frances voltou com duas almofadas.

- Assim é melhor, claro. - Deu a seguir indicações breves e concisas aos dois homens. - Estabilizem-lhe o corpo. Quando me sentirem puxar, puxem para o outro lado. Acha-se capaz de fazer isto? - perguntou ao motorista, cujo rosto empalidecia cada vez mais.

Por Mayfield, não se inquietava.

- Acho - respondeu o homem, com voz apertada.

Ran pôs as almofadas debaixo das costas da vítima, na região da fractura. Se conseguisse virar bastante o pescoço e aplicar força no sítio exactamente necessário, poderia levar a vértebra ao alinhamento e suprimir a pressão, causa da paralisia - e causa de morte rápida, se se estendesse aos nervos da respiração o inchaço resultante do choque.

Dedos entrelaçados na nuca do ferido e polegares sob os ângulos do maxilar, Ran exerceu tracção contínua, ao mesmo tempo que pressão regular para baixo, estendendo o pescoço no rolo formado pelas almofadas. Os assistentes não tiravam os olhos dele. Aumentava pouco a pouco o poder do seu esforço, sem qualquer sacudidela que agravasse as coisas, vencendo o espasmo dos músculos e dos ligamentos que, na automática protecção da região atingida, corriam o risco de fazer perigar os nervos vitais anichados na coluna vertebral. Um estalido leve, mas audível - e sentiu a vértebra saída dos eixos voltar ao seu lugar.

- Pronto! - exclamou, alegre. - É o que podemos fazer por agora, enquanto não chegamos ao hospital.

O motorista, com um gorgolejo gemente, inclinou-se no precipício e teve violenta náusea. Robert Mayfield limpou o rosto, onde corria o suor.

- Pode dar esperanças?

- Não muitas. Mas não creio que a espinal medula esteja cortada. Só há, com certeza, hemorragia e inchaço local. Se conseguir aguentar as coisas até ele chegar ao hospital, tenho esperanças. Mas precisamos duma ambulância.

O motorista propôs, em voz tremente:

- Se posso levar o seu carro, doutor, Vou ao telefone mais próximo.

Enquanto esperavam e Ran mantinha direita a cabeça do homem, Mayfield explicou o acidente:

- Ouvimos o outro carro muito tarde. O Joseph bem buzinou, mas o homem vinha a toda a pressa na curva, e, ainda que nós nos tenhamos lançado para a muralha do rochedo, ele fez ricochete e saltou.

- Estes montanheses andam sempre com pouca atenção nas curvas - disse Warren, que acrescentou: - Eu sou o médico do Governo em Stoneville, a seis milhas daqui.

- Uma sorte para todos nós, o termo-lo encontrado! - sentenciou Maifield.

Ran estava quase rígido, à força de imobilidade, quando chegou a ambulância. Os Mayfield seguiram no seu carro, cujos estragos eram superficiais, e o motorista conduziu o de Ran. No hospital, este levou Robert Mayfield à cabeceira do ferido (de que o Dr. Branch se encarregou), fez as apresentações, e saiu para aliviar nervos e músculos. Deixando o automóvel, Frances foi ao seu encontro:

- Cura-se?

- Suponho que sim. E creio que não haverá consequências prolongadas.

- Tudo lhe corre bem, Ran?

- Tudo. E a si?

- É um excelente homem - respondeu-lhe simplesmente. - Aprendemos a esquecer. Mas não tudo. A amizade, não.

Pertencia ela a um passado já esbatido - a sua intimidade breve e apaixonada. Mal podia conceber o facto de ele, ele próprio, haver sido o comparsa. Tudo aquilo podia ter acontecido a qualquer outra pessoa e em qualquer outro sítio. Frances já não lhe perturbava nem o coração nem os sentidos. Mas experimentava por ela admiração quente e sincero respeito.

- Não - reconheceu ele. - A amizade, não.

. - Gostava que você também fosse amigo do Robert.

- Ele sabe? O que diz respeito a nós...

- Não. Para que havia de saber? Isso só serviria para o ferir. Nunca mais haverá nada de semelhante na minha vida. Não pode haver.

Ele hesitou um instante, e depois:

- Gostava de saber que isso não a... que você não lastimou, depois...

- Lastimar? . - Virou para ele a inviolável serenidade do seu olhar: - Porque havia eu de lastimar? Foi o melhor momento da minha vida. Talvez o encantamento se tivesse diluído com o tempo. Tout lasse, tout casse, tout passe, bem sabe. E mais para os homens do que para as mulheres. Nunca me iludi a seu respeito, Ran. Você sempre gostou da Ann.

- É verdade: sempre. Mas não dava por isso, enquanto estivemos juntos.

. - Fico contente por mo dizer. Gostava um dia de me encontrar com a sua Ann. Vê algum impedimento?

- Impedimento? Meu Deus! Pensa que eu tenho vergonha, Frances?

- Espero que não. Eu também não tenho. Portanto, está tudo bem.

Robert Mayfield saiu do hospital e veio juntar-se-lhes.

- Que espécie de homem é este Dr. Branch? Quero dizer: do ponto de vista profissional?

- Não posso exprimir a minha opinião sincera sobre esse ponto, sem deixar de ser correcto - volveu Ran, duro.

- Acredito, sem dificuldade - concordou o outro, com um sorriso. - E confesso que me sentiria mais tranquilo pelo nosso paciente, se você se tivesse encarregado do caso.

- A falar verdade, eu também. Mas não podia ser, compreende... Eu não sou cirurgião...

- O quê?! . - exclamou o outro, suspenso. - Supunha, de Lakeview, que era especialista de cirurgia...

- A Graeme Ellice disse-nos por carta que você era o melhor cirurgião de Farmington! - acrescentou Frances.

- Os júris de exame não têm a mesma opinião...

- Não acredito!

- Mas é o que está na minha caderneta.

- Oh! Gostava de saber mais coisas a esse respeito - disse Mayfield. - Importa-se que tire o caso a limpo?

- O Robert é presidente do Conselho de Administração do Hospital de Lakeview - explicou a esposa. - Tem fontes de informação.

- Ficava-lhe muito reconhecido.

- Receberá notícias minhas - prometeu Mayfield.

Chegou de forma imprevista o primeiro testemunho da influência de Mayfield. Ran foi avisado, oficialmente, de que tinha duas semanas de licença para ir fazer um inquérito sobre o estado da medicina em três cidades do Sul, e de que devia enviar um relatório escrito ao presidente da Comissão do Senado para a Saúde, o venerável Paul McDonough. Ao mesmo tempo, recebia uma breve missiva de Robert Mayfield:

Não é cirurgia. Mas será uma mudança. Na obtenção das informações de exames, há um atraso que creio devido a obstruções deliberadas. Voltaremos a falar disto.

Quando Ran lhe propôs que o acompanhasse na viagem, Ann declinou o convite, pretextando que só podia incomodá-lo. Além do que, só lhe faria bem estar longe dela ao mesmo tempo que do trabalho. E disse sabiamente: - Não quero tornar-me um hábito para ti, querido. Nunca!

- Não me parece provável! E duas semanas, é imenso tempo!

- Oh! Encontrar-me-ás no regresso.

Uma semana após a partida do marido, Ann foi chamada ao telefone, numa ligação de longe. Mrs. Field, que atendera, explicou:

- Creio que é de Washington. É um homem, mas não quer dizer o nome.

- Intriga e mistério! Estou a tremer. Não se afaste. A excitação podia ser-me fatal.

Ao telefone, a voz masculina disse:

- Mrs. Warren? Ann?

- Sim. Quem fala?

- Tem de adivinhar. E sem dizer nomes.

- Ah! Se tenciona brincar...

- Não tem nada de brincadeira! - O tom do interlocutor acalmava a rapariga. - Onde está o Ran?

- Ausente.

- Sim, eu sei. Mas onde está ele? Tenho de o encontrar.

- Não gosto deste mistério. Creio saber quem fala...

- Não diga! - interrompeu vivamente o outro.

- ...mas a sua voz tem um tom bem engraçado.

- Questão de nervos. Vou dar-lhe sinais de referência. Em primeiro lugar, Lakeview. Depois, um jantar no Metrópole e uma noite de dança.

. - Já sei. Dá a impressão de estar assustado. - Ann sentiu medo na voz quando perguntou: - Aconteceu alguma coisa ao Ran?

- Não, não. Nada disso. Tenho de o encontrar. É terrivelmente importante!

Que podia ter acontecido a Larry Wilson? Não supunha que ele tivesse bebido, porquanto a sua voz não parecia de bêbedo... Fosse como fosse, Ran não era homem para abandonar, na amargura, um amigo, mesmo desleal.

- Não desligue, Vou dar-lhe o itinerário dele.

Ele agradeceu-lhe em poucas palavras - poucas, mas de comovido reconhecimento, e disse adeus. Dois dias depois, a carta de Ran nada explicava:

Tive notícias dum dos teus antigos amigos. Não fales a ninguém da chamada telefónica. Ainda não estou a ver exactamente como devo agir. Mas passam-se coisas engraçadas, algumas não muito longe de nós.

Ran voltou com dois dias de atraso, em relação à data prevista. Através da alegria do encontro, Ann sentiu-o preocupado, mesmo arreliado.

- A propósito do Larry? - perguntou ela.

- Especialmente.

- Que fez ele?

- É um idiota! Não sei pormenores. Talvez cá venha.

- A Stoneville? Pai do Céu! Para quê?

- Em férias, diz ele. Parece-me antes que procura um refúgio. Gostava mais que não viesse. Mas anda aterrorizado, Ann. Queres que o afaste?

- De que servia eu dizer que sim? - ripostou a mulher, com afectuoso desprezo. - Já alguma vez na vida afastaste alguém que precisasse do teu auxílio? Não procure enganar a esposa que o conhece, Randolph Warren!

Aviso de Richmond, a pedir ao Dr. Warren que se apresentasse a um exame especial no dia 15 de Junho. Tratava-se de uma concessão: ainda não se tinham passado os doze meses. Jogara - era mais que evidente - a influência de Mayfield. O espírito independente de Ran revoltava-se à ideia de se aproveitar duma cunha. Mas, desta vez, sentia não ser isso mais do que legítima compensação a injustiças precedentes. Pôs-se de novo ao trabalho, para polir e apurar os conhecimentos livrescos.

Batiam as duas horas no relógio de parede que constituía o tesouro mais caro de Mrs. Field, e Ran, de olhar pesado, lutava por não adormecer até o fim do capítulo sobre fracturas, quando parou no pátio um pesado carro. Apagaram-se logo os faróis. com um suspiro abafado, Ran dirigiu-se à porta. De fora, uma voz prudente inquiriu:

- É você, Ran?

- Larry!

- Nada de nomes! - ordenou logo a voz.

- Bom. Esperava por si. Entre.

- Há uma cama?

- Há.

Larry ainda não se decidia a deixar o automóvel:

- Mais alguém cá em casa?

- Mrs. Field (a dona) e a Ann.

- Temos de ser muito prudentes, Ran. Eu sou Lorrimer Thompson, a quem mandaram para a montanha por motivos de saúde.

. - É assim tão mau?

- É.

com cuidado, desceu do automóvel, inspeccionando a escuridão à volta. Quando Larry apareceu à luz da lâmpada, Ran sentiu um choque: tinham-lhe desaparecido do rosto todo o encanto, toda a vivacidade, toda a beleza dos traços. Uma suspeita:

- Você não toma estupefacientes, Larry?

- Não. Mas bebo muito. Não conseguiria aguentar-me sem beber.

- Quer contar-me o que foi?

- Já tenho falado demais. É por isso mesmo, aliás, que estou metido nestas.

- Que quer que lhe faça? Estou ao seu dispor.

- Bem sei. - O olhar de Larry fixava-se para lá do interlocutor, e nos olhos inchados passou-lhe um clarão de tristeza: - Você não me deve nada, Ran. Menos que ninguém. Mas é o único em que posso ter confiança. Se me descobrir aí um abrigo seguro onde eu passe um mês, há um emprego à minha espera numa ilha do Pacífico, até se arranjarem as coisas.

- A Ann já procurou. Há uma casinha de campo, a umas duas milhas daqui. Não será uma existência luxuosa.

- Vai fazer-me bem. Oh, meu Deus! Oh, Ran! Se eu pudesse ter ao menos uma noite de sono!

Stoneville foi informada de que um antigo doente do Dr. Warren, um grande nervoso esgotado, tinha alugado a casa Smithing, para breve estada. Desejava viver retirado, não recebia qualquer correio, excepto jornais e revistas, e nunca ia à cidade; mas encontravam-no, por vezes, pescando nas correntes de água da montanha ou passeando nos sítios mais distantes e solitários. As únicas visitas eram os Warren.

Ran foi a Richmond, sentindo-se excelentemente preparado. Todavia, experimentava a mesma confiança das outras duas desastrosas tentativas. Ao cabo de dois dias, encontrava-se fatigado que nem um cão, mas tinha a consciência satisfeita. Sabia ter dado o melhor de si próprio às respostas. Parecia-lhe impossível a falta de êxito. De resto, supunha indispensável fortificar a alma contra qualquer eventualidade, quando se lembrava do optimismo antigo.

Lembrou-se da carta de Sybilla Barr. Que quereria ela dizer-lhe de tão importante e urgente? Telefonou-lhe.

- Ran! Onde está você? Em Richmond? Porque não vem até Washington? Não, não aceito desculpas. Tem de vir, Ran; deve vir. É extremamente importante. Eu arranjo licença para o resto do dia, se você vier.

- Combinado. Daqui por dois dias lá estou.

O gabinete de Sybilla Barr mostrava actividade ordenada e traía os hábitos de trabalhadora competente. Nada sugeria que o trabalho fosse médico.

- O senador McDonough não está na cidade . - disse ela, trocando os primeiros cumprimentos. . - Esperava que cá se encontrasse. Tem notícias de Lakeview?

- Nada de especial.

- O Powers, o Stokoff, o Volmer e mais dois ou três são acusados. Está a ver, o nosso Powsie!

- Deus do Céu! E porquê? Acusados de quê?

- Violação de um condenável, mesquinho, trivial e estúpido tecnicismo qualquer! Ran: você faz ideia do que se passa neste país?

- Nem por isso. Estou fora do movimento.

- É a escória que leva a nau. Um charlatão, um bufarinheiro, um escroque, qualquer faquir, qualquer curandeiro místico ou propagandista aldrabão que apareça, introduz-se na medicina graças a essa danada cláusula da “licença especial”. Há seis meses que estudo isto e vejo que a medicina já perdeu mais do que em cinquenta anos tinha ganho. Digo-lhe eu, Ran: é pior do que tudo quanto de pior nós tínhamos podido imaginar.

- Mesmo assim, não é cem por cento lastimável. Vi em Ridgeville uma organização verdadeiramente de primeira categoria.

- Exacto. É uma das raras excepções. Conseguiram resistir à pressão política. Lakeview também, porque Baltimore tem um orgulho local extremo, e os intriguistas, os oficiosos, os exploradores e os traficantes de influências foram chamados à ordem e avisados de que deixassem as patas bem em baixo. Os jornais fazem tal algazarra com o caso de Powers e dos outros que as responsabilidades caem discretamente no olvido. Há lugares ainda onde os homens bons e corajosos erguem bem alto a velha bandeira. Mas, por cada um deste género, há cem onde a medicina se afogou na lama.

- Ali onde eu estou, é detestável.

- Temos as vistas no seu distrito. Há lá coisas!...

- Que coisas?

Em vez de responder directamente, ela perguntou:

- Já reparou que o novo regulamento nacional da Saúde transferiu a fiscalização do comércio dos narcóticos e estupefacientes do Tesouro, que fazia um excelente trabalho, para o ministério da Saúde?

- Já. Mas sem compreender porquê.

- Antes de tudo, para abrir as portas do mar aos contrabandistas da droga. Ressuscitou a velha organização, com o que ficara das organizações de gangsíers nas grandes cidades, e isso trabalha de mãos dadas com alguns médicos canalhas, tais como... Não... por agora, não cito nomes.

- O pai Wilson está metido nisso?

- No tráfico de influência não, que eu saiba. O nosso venerável secretário de Estado da Saúde não passa de mais um político, levado pelos obreiros do último plano, que o lisonjeiam e troçam dele. Já se vê Presidente dos Estados Unidos. Megalomania senil.

- Sabe alguma coisa do Larry, Syb?

- Não nos ocupemos do Larry. Ele não tem nenhuma importância. Vou mostrar-lhe uma coisa, Ran, para você ler e registar na memória. E para se esquecer logo de falar dela. O senador McDonough deu-me uma licença especial. Vamos ao escritório dele.

Ali, após breve troca de palavras entre Sybilla e uma secretária particular, foram introduzidos em sala privativa, onde viram um documento, expressamente tirado para eles dum cofre-forte.

Por sugestão de Sybilla Barr, Ran percorreu rapidamente a primeira parte, que tratava das condições gerais da medicina no país inteiro e era resultado mais que evidente de longos, atentos, hábeis e conscienciosos inquéritos. A segunda parte tratava da organização nacional da droga: comércio da cocaína, da morfina, da heroína, do ópio, e de outros narcóticos e estupefacientes. Sinais indubitáveis indicavam que este comércio havia ganho as pequenas cidades e os distritos rurais, muito tempo indemnes. Previa-se a publicação dum mapa de agências. A leitura da última folha abalou Ran como um choque eléctrico. Era uma lista de “mortalidade”, por acidentes ou no hospital - sobretudo no hospital - de pessoas retidas, oficialmente ou pela Comissão dos Trezentos, em inquéritos relativos ao bando: detectives, oficiais da Saúde pública, médicos particulares. A lista comportava dezassete nomes. O primeiro era o de Albert Ballington, camarada de Lakeview, inventor de um anti-séptico que a proba firma de produtos farmacêuticos Daminger & Heene lhe comprara - a firma que depois o encarregara de um relatório sobre o comércio ilícito da droga. Morrera num hospital obscuro, após pequeno acidente. Em cada dez mortes catalogadas, haviam-se dado nove nos hospitais - sobretudo por “septicemia” ou “infecção”. Havia uma oficialmente catalogada como “dose demasiado forte”, outra como “suicídio”.

- Crimes, todos, sem excepção - disse Sybilla Barr embora não possamos, por enquanto, prová-lo.

. - Morre-se muito no hospital de Adson.

- Ao que sabemos, há lá sobretudo desleixo e condições higiénicas deploráveis. Conhece para esses lados um certo Regan? Marcus Regan?

- O grande homem da terra! Conheço o filho. É um péssimo actor.

- O pai é rico, não é verdade? - Vive como os ricos.

- É o Dr. Wade?

- Se vive como vive apenas com o salário, é um mágico!

- Nunca se lembrou de pensar como é que eles ganham o dinheiro?

- Não, francamente.

Ran olhou para as folhas de papel, e depois para Sybilla, que as guardou no cofre.

- Ande de olhos abertos, Ran. Se desconfiar de alguma coisa, não telefone. Escreva e ponha a carta no correio fora do seu distrito... Valia ou não a pena vir de Richmond?

- Valia - concordou Ran. - Mas era talvez melhor não saber!

 

Quando se desligou do abraço da mulher, ao chegar, Ran perguntou:

- Novas cá da terra?

- Montes delas. Primeiro tu: correu tudo bem?

- Do meu ponto de vista, correu. O que o júri pensa, é outra história.

- Sim. Bom! Por onde hei-de começar?

- Tanto faz: quero tudo.

- Fala-se da transferência do Daily. O Dr. Wade anda carrancudo que nem um urso com dores no rabo. E o Dr. Porter deve ter apanhado um destes sustos!... Ou foi tocado pela graça, ou então não sei. A verdade é que se atirou ao trabalho.

- O Porter é um médico cheio de competência; o que precisa é de resolver-se a trabalhar. Que mais?

- Nada! Ah, sim! O teu amigo Brad Carlton disparou sobre um.. - como se diz?... um fiscal.

- Matou-o?

- Não. Feriu-o no braço. Nada de grave. Não tencionava matá-lo, mas apenas adverti-lo, se não me engano.

- Que fizeram ao Brad?

- Ao Brad? Nada. Porque é que haviam de lhe fazer alguma coisa, aqui, nestas montanhas americanas livres? O Brad tomou-o por um gamo. É a explicação oficial, embora, acho eu, ele não estivesse vestido como esse animal. Talvez persigam o Brad por caçar no defeso...

- E o nosso amigo Lar... senhor Thompson?

- Nunca mais o vi desde que partiste. Podíamos ir até lá, amanhã. Quando esperas saber o resultado do exame, Ran?

- Da última vez foram precisas seis semanas. Como este é especial, talvez seja mais rápido. Mas, se concordares, não falemos nem pensemos mais nisso.

No dia seguinte, quase ao pôr-do-sol, foram a pé até à casa Smithing, a pretexto de fazer exercício. Estava fechada. Uma folha de papel, presa à porta por um prego, ostentava esta indicação, em caracteres de imprensa:

AUSENTE POR UMA SEMANA OU MAIS

DEIXAR O CORREIO NA ESTAÇÃO

L. THOMPSON

- Não me parece escrito pelo Larry. Não gosto disto!

- Nem eu - respondeu Ann. ^- Mas que havemos nós de fazer?

. - Nada, penso eu. Esperar. Olha, Vou ver se ainda tenho gabinete.

Porter acolheu-o com o seu sorriso afectado, sob o qual Ran descobria uma ponta de troça. Informou-se:

- Prepara alguma carreira política?

- Que eu saiba, não. Porquê?

- O Grão-Mogol telefonou à sua procura. O pai Regan, o próprio chefe da dinastia, nem mais nem menos!

- Pergunte-lhe! Talvez se manifeste depressa.

Ran não teve dificuldades em identificar a personagem ofegante, de rosto duro, que, no dia seguinte, a vaporosa Miss Payne lhe introduziu no gabinete. O grande homem escolheu adoptar um tom jovial.

- Não se trata de visita profissional, Dr. Warren - disse ele, estendendo um encorpado charuto. - Resolvi falar-lhe do seu belo trabalho. Pensei vir dar uma volta por aqui.

- Encantado por o ver, senhor Regan - e a frase de Ran, se bem que polida, faltava à verdade.

- Passou bem o tempo em Washington?

- Passei. Muito bem - volveu Ran, antes de ter tempo de a si próprio perguntar como podia o visitante estar a par dessa breve passagem pela capital.

- Agrada-lhe o serviço médico do Estado?

- Agradar ou não, é absolutamente secundário. É o meu trabalho.

O visitante mastigou, pensando, o charuto:

- Boas ocasiões, neste serviço, para um rapaz suficientemente esperto, que as aproveite.

- Todos os dias se aprende.

’- É assim mesmo! - aprovou o “patrão”. - Vou dizer-lhe uma coisa, doutor. - Inclinou-se para apoiar um dedo no joelho de Ran. Ao reparar nas articulações inchadas, Ran fez um diagnóstico interior: depósito calcário. - A melhor maneira de um jovem avançar na vida, é mostrar-se leal. Leal para com os superiores. A outra coisa importante é preocupar-se apenas com o que lhe diz respeito. Faça a sua vida e deixe cada qual fazer a dele. Compreenda que lhe digo isto por ver que tem futuro na profissão.

- É muito amável!

- Wade: bom tipo - continuou o conselheiro. - bom médico, também. Há-de correr-lhe tudo pelo melhor com ele. Mas, se não correr, procure-me, que eu arranjo as coisas. - Recostou-se no sofá. Rosto e voz se carregaram ao mesmo tempo. - O que se passa neste distrito só diz respeito a nós e a mais ninguém. Não precisamos de ideias de Washington para nos governarmos. Compreendido?

- Perfeitamente.

Estava extremamente interessado. Fazia por parecer ingenuamente receptível, esperando que a conferência continuasse, mas incerto do êxito, porquanto, olhando para ele, Regan berrou:

- Agora, depende de si. Até à vista, doutor.

Saiu, arrastando os pés, respirando com barulho. Ao diagnóstico interior, acrescentou Ran um excesso de tensão sanguínea, com prováveis complicações renais: receava (pelo senhor Regan) que o senhor Regan não andasse muito mais tempo neste perturbado mundo.

No domingo seguinte, Ran saiu para um parto. Ligeiras complicações o ocuparam até o jantar. De regresso a casa, lembrou-se de passar pelo dispensário, a ver se não havia correio ou algum doente: a enfermeira saía sempre às cinco horas. Havia, sim, um sobrescrito oficial timbrado de Richmond. Achou-lhe ar sinistro, com o seu papel cor de camurça desbotada, que se salientava no mata-borrão sujo de tinta. Dispunha-se a abrir, mas pensou melhor e resolveu guardá-lo na algibeira. Podia levá-lo para casa, para Ann. Se as notícias fossem más, suportariam melhor o golpe, estando juntos.

Ao entrar, Ann entretinha-se a pôr a mesa com Mrs. Field. Correu para ele e beijou-o. Pescando o sobrescrito do fundo do bolso, Ran estendeu-lho e disse:

- Dissabor?

Ela olhou, perplexa: o marido sorriu levemente.

- Falta-me coragem para o abrir.

- Ah, sim?! Encarregas a mulher dos trabalhos maus, hem? - A voz de Ann era hesitante, embora quisesse mostrar-se alegre. Rasgou o sobrescrito, tirou a carta, leu-a num relance, e: - Oh, querido! Deixas-me chorar um pouco?

- Chora. Sou capaz de fazer o mesmo. Mostra.

Leu em voz alta:

É-me agradável informá-lo de que as suas classificações, no recente exame que fez para ser declarado especialista em cirurgia, atingem noventa e sete por cento. É o nível mais alto obtido em todo o país durante o corrente ano. O seu certificado ser-lhe-á enviado sem demora, mas, dado o importante número de cirurgiões hoje inscritos à espera de nomeação em hospitais de distrito, pode passar-se um ano sem que qualquer alteração o atinja.

- Um ano! - exclamou a rapariga, com a voz a tremer.

- Um ano! Que é um ano?

Ran agarrou-a por debaixo dos braços e levantou-a no ar, fazendo-a dar algumas voltas.

- Tem cuidado, meu tolo. Então o meu estado?

- Hem? O quê? Que foi?

- Não há muito tempo que tenho a certeza e esperava não te falar disto antes de saber em que ficava a questão do exame.

- Então, diz. Em palavras duma sílaba.

- Bem... confesso não as encontrar... Grávida é ainda o mais simples que encontro... Em estado de gravidez é mais comprido. Diria visitada pela cegonha, mas parece-me que tem sílabas a mais... Sabes: há uma operação fisiológica chamada...

- Oh! Bravo! Estupendo! Magnífico! Quando chove é sempre a cântaros! Uma felicidade nunca vem só! Dois títulos a sete colunas, num dia, para a família Warren!... Vou buscar cerveja.

A notícia do êxito obtido por Ran em Richmond espalhou-se depressa. O primeiro resultado exterior veio do hospital, já famoso, de Ridgeville.

Caro Dr. Warren:

Parabéns pelo certificado de cirurgião que, desta vez, brilhantemente conquistou. Leio no Jornal que as suas notas batem todos os recordes do país, neste exame.

Andei um pouco adoentado neste Verão, e o nosso médico Rollins entende que eu devo ter férias de um mês. Neste caso, precisarei dum bom cirurgião que oriente o trabalho na minha ausência; pergunto se você se encontraria interessado em preencher tal emprego. Poderia habitar a nossa casa, com sua esposa. Posso enviar-lhe um dos meus internos, que se ocupará dos seus doentes enquanto você cá estiver.

Diga-me o mais breve possível se lhe é fácil chegar até princípios do mês. Estamos bastante satisfeitos com o nosso pequeno estabelecimento, e creio que o trabalho lhe agradará.

Sinceramente seu, Joseph Barton

Não esperou por enviar uma carta de aceitação a Barton: depois de jantar, passou logo um telegrama afirmativo. Sentia-se confortado ao ver que Barton o considerava capaz de satisfazer ao trabalho cirúrgico do hospital. Ran conhecia a reputação e a actividade da clínica Barton. Chegavam-lhe doentes não só de todo o seu distrito, mas ainda de outros. Era lá preciso um homem de valor, que pudesse organizar o trabalho.

Ao princípio, sentir-se-ia talvez um pouco enferrujado: havia dois anos, por assim dizer, que não operava, pois não levava em conta, verdadeiramente, a traqueotomia de Annie Hazlitt, apesar de Branch ter tentado expulsá-lo por causa dela. Devia ser dura de roer, para Branch, aquela nomeação!

De regresso, e de acordo com o seu consciencioso costume, parou no dispensário. Encontrou lá Porter, que fumava e lia com grande interesse. Não estava nos hábitos do azedo cínico estudar depois da hora - nem, propriamente, em momento algum! Deitando uma olhadela para o livro, Warren sentiu segundo abalo: eram Os Meneemos, de Flauto, no original latino. Assim, Porter era um sábio. Pela milésima vez, perguntou Ran a si próprio que circunstância amarga ou trágica do passado lhe havia atrofiado a ambição e a consciência. O leitor ergueu os olhos.

- Gosto de o ver. Poupa-me uma volta.

- Não fico de serviço esta noite, nem saio para visitas - declarou Ran, irreflectidamente.

- Não é em serviço. Tencionava ir a sua casa. Não se admire - disse com um sorriso. - Feche a porta, sim? Talvez não esteja ninguém por trás, mas vale mais ser prudente. O senhor Lorrimer Thompson (duvido de que seja o verdadeiro nome dele) é seu doente, não é verdade?

- É. E depois?

- Está no hospital de Adson. Na sala dos isolados.

- Para?

- Tiro no braço.

- Uma ferida de tiro não leva à sala dos isolados...

- Leva, quando se considera preferível pôr o ferido ao abrigo de contactos... e conversas.

- O senhor sabe mais do que me está a dizer.

- É muito possível. De facto, como eu sou idiota, já disse mais do que me convinha.

- Obrigado, Porter. Só mais uma coisa. É mesmo ele, esse tipo sobre quem o Brad Carlton disparou?

- com toda a certeza.

Apesar de ser muito tarde, Ran foi buscar o automóvel e voltou à montanha. Insistentes buzinadelas trouxeram o contrabandista à porta:

- É o Dr. Warren, Brad. Saia, sim?

- Como, doutor? - disse o outro, emergindo logo de casa. - Precisa de mim?

- Sim, falar-lhe do homem que você feriu. Porque é que disparou?

- Tomei-o por um gamo! - respondeu, frio, Brad.

- Não vale a pena, Brad. Fale com franqueza. Ele é meu amigo.

- Jesus! - exclamou Brad, honestamente contrariado. - Se eu soubesse... Mas afirmaram-me que era um fiscal...

- Quem lhe disse isso?

- O Bud Regan. Contou-me que o Dr. Wade lhe tinha escrito. Que sabia de ^Vashington tudo quanto respeita ao tipo. Que pertencia ao fisco. Que trabalhava aqui com um nome falso.

- E disseram-lhe que o matasse?

- Ó doutor! - protestou Carlton. - Se eu tivesse atirado para matar, acha que ele estaria vivo, hoje? Depois de falar com o Bud, calculei que, se lhe metesse chumbo no corpo - nada de grave, compreende? - ele não continuaria a farejar por aqui. E, agora, diz o senhor que ele é seu amigo. Mas, diga, doutor, como é que é amigo dum tipo que tem uma profissão tão porca?

- Ele é tanto oficial do fisco como você ou eu. É muito diferente, Brad: os outros serviram-se de si para fazerem o seu porco trabalho, deles.

Os olhos do montanhês fecharam-se até se reduzirem a finíssimo traço.

- Ah, é assim?! O Bud Regan também tentou virar-me contra o doutor. Mas, neste ponto, não conseguiu nada, claro. Acho que Vou dizer duas palavras ao Bud!

- Por agora, não. Deixe isso para depois. Posso precisar de si para remediar esta trapalhada.

- Pode encontrar-me pelo jornal. Eles avisam-me.

Ran consultou o relógio: meia-noite e meia hora. Só chegaria a Adson uma hora depois. Demasiado tarde para tentar qualquer coisa sem criar burburinhos. E todavia andava profundamente preocupado. Alguma coisa lhe dizia que, a querer ajudar “Lorrimer Thompson”, tinha de ser imediatamente. Sem o que, haveria no hospital de Adson uma certidão de óbito redigida a preceito. Depois, era uma vez um Larry Wilson.

Havia em Adson um homem que ele considerava honesto e digno de confiança: o Dr. Shepard Roberts. Foi ter com o otorrinolaringologista e obrigou-o a levantar-se.

- O Thompson? - Roberts mal acordara. - É o “caso mental”.

- Não é. Tiro de espingarda no braço.

- Caso mental, também. Por isso é que o isolaram. Doido furioso, pelo que me deram a entender. Delirante.

- Ouviu-o delirar?

- Não.

- Alguém ouviu?

- É de supor. Creio eu, pelo menos.

- Eu não. Truque. Ele é meu amigo. Quer ir agora visitá-lo?

- Eu não sou psiquiatra nem cirurgião. com que pretexto quer que o visite?

- Difteria - respondeu Ran, sem hesitar.

- Hem? Como sabe?

- Não sei. E isso não existe. Foi a primeira coisa que me ocorreu. Chame-lhe papeira, se quiser. Ou mastoidite. Tudo está em que eu preciso de que alguém me leve à sala H. Você pode fazer-mo. Quer? Não lho pedia, se não fosse terrivelmente grave para mim.

Roberts já estava completamente acordado.

- Espere que eu enfie a roupa, e tem-me ao seu inteiro dispor.

O vigilante de noite hesitava, sonolento, mas rendeu-se à autoridade do Dr. Roberts. Os dois médicos encontraram o doente em estado de semientorpecimento. Roberts levantou-lhe as pálpebras:

- Medicamentado.

Ran, que examinara o braço, concluiu:

- Esta ferida que, em si, não tem importância, não está a ser convenientemente curada.

Entreolharam-se. Roberts perguntou:

- Diz que ele é seu amigo?

- É.

- Então, o melhor é tirá-lo daqui.

- Belo amigo! - exclamou Warren, reconhecido.. - Acho que ele é transportável. Que pensa?

- Há um risco. Há outros mais, talvez, em deixá-lo cá.

- É o que eu penso. Vou dar-lhe uma injecção de adrenalina.

Ao estímulo do poderoso remédio, o paciente abriu uns olhos a que, pouco a pouco, regressava a inteligência.

- Olá, Ran! - murmurou, em voz pastosa.

- Olá, meu caro Larry. Como se sente?

- Assim-a^sim. - Descobriu o outro homem, teve violento sobressalto, e perguntou numa voz que denotava o terror: - Quem é?

- O Dr. Roberts. Veio comigo.

- Não é o especialista que eles mandaram vir? O homem de Washington?

Continuava a tremer.

- Não. É um amigo meu. Um grande amigo.

- Qual homem de Washington, senhor Thompson? - perguntou Roberts.

O falso Thompson tornou-se subitamente volúvel, em monótono e rápido murmúrio:

- É assim que eles fazem. Arranjam as coisas para nos apanharem no hospital. Fazem-nos durar um pouco. Para evitar qualquer suspeita. O doente não melhora. Então, mandam vir um especialista de Washington, de Chicago, ou de Cincinnati. É o mesmo. Ele encarrega-se de nós: e é o fim. Foi assim que aconteceu com o pobre Gessler, e o MacVey e o Porteous, e muitos outros.

<- Santo Deus! - exclamou Ran, que se lembrara de dois nomes do relatório secreto que Sybilla Barr lhe mostrara.

’- É tudo perfeitamente regular. A certidão de óbito fica impecável. Mais nada. Não há por onde se pegue para uma acusação. - Pôs-se a bater nas coberturas: . - Tirem-me daqui. - Era uma súplica dolorosa, sempre no mesmo murmúrio insistente e monocórdico. - Vão acabar comigo. Morrerei bruscamente de embolia. Ou, mais devagar, de envenenamento do sangue. Sei muitíssimo bem.

O Dr. Roberts escreveu qualquer coisa e chamou o guarda de noite:

- Leve isto ao farmacêutico. Arranque-o da cama e diga-lhe que prepare a receita, a toda a pressa. Vá, corra!

O outro afastou-se prontamente.

De caminho aberto, Ran e Roberts embrulharam Larry em todos os cobertores e meteram-no no carro do primeiro.

- Para onde me levam?

- Primeiro para a montanha. E daí mando-o para casa do Tim Brennan. A não ser que você me indique outro lugar mais seguro.

- Para mim, nenhum lugar é seguro. O Tim detesta-me. Nunca pôde suportar-me.

- Deixe. Escrevo-lhe uma carta. Você é meu doente, Larry. O Tim trata de si. Ele é leal.

- Sim. O Tim é leal. Mas eu? Que sou eu? - e começou a soluçar: - Eu sou o mais vil de todos os desgraçados que existem. Não sou digno de viver. Vocês deviam ter-me deixado no hospital.

- Cale-se! - ordenou Ran, bruscamente.

- Mas você ignora tudo. Eu sabia dos seus dois exames. Falsificaram-lhe as notas. Era proeza do bando de Farmington. Eu podia ter evitado. E não quis. Sempre o invejei, Ran, por saber que você era o melhor de todos nós e por não ser capaz de o admitir.

- Deite-se. Está a falar demais, Larry. Precisa de juntar forças.

- Sempre tenho falado demais: o mesmo erro de sempre. Mas agora quero falar. Preciso de falar a alguém. Deixe-me falar.

Toda a sórdida e perigosa história se espalhou num fluxo de palavras com que Larry se aliviava, acusava e desculpava. Insensivelmente, fora levado ao turbilhão de defraudações médicas, de tráfico de influência, à volta do qual se organizava o bando dos gangsters da droga. Não descera a comerciar ele próprio em estupefacientes; aceitou, porém, consideráveis honorários por trabalhos médicos aparentemente legítimos, mas que lhe chegavam em virtude de ele ser filho do poderoso e venerado secretário de Estado da Saúde. Tanto e tão bem, que cada vez se achara mais comprometido, cada vez mais a par de segredos perigosos, cada vez mais temeràriamente envolvido em perigosas associações - e tudo isso enquanto ia entrando com abundância o dinheiro fácil:

- Bem sabia até que ponto isto era detestável, em que porcalhão eu me ia tornando - disse aos ouvintes fascinados. - Mas não tinha dado pelo vulcão em que estava sentado, até o dia em que me trouxeram, para eu o tratar, um dos grandes bonzos. Cocaína e whisky. O belo deliriam tcemens. E melhor, o segundo ataque. Custou-me imenso a fazê-lo vencer. Se tivesse tido o juízo duma criança de dez anos, deixava-o morrer. E até talvez o empurrasse para esse lado. Uma noite, pôs-se a conversar. Oh, Jesus! Mesmo agora, mal consigo acreditar no que ele contou! Há homens, cujos nomes não citarei - grandes nomes da política e da medicina - que se sentariam na cadeira eléctrica se alguém tivesse tomado notas a este respeito. Depois, ele deve ter-se lembrado de que havia falado, embora isso seja muito raro, ou, pelo menos, pensou que podia ter falado.

- Mas, ó Larry, você, com certeza, nada repetiu a ninguém em que não pudesse ter confiança...

- Por quem me toma? Nunca repeti nada, e nunca nada repetirei.

^- Então, porque é que eles procuram apanhá-lo?

- Porque uma noite em que eu estava completamente bêbedo, dei a entender que tinha tratado o referido gangster. Não foi preciso mais.

- Quer dizer que eles procuram apanhar-lhe a pele apenas por isso? - interrogou Roberts, céptico.

- E não só a minha. A enfermeira que estava de serviço, na noite em que ele morreu, desapareceu. Passou uma noite num restaurante à beira duma estrada, e nunca mais ninguém tornou a vê-la. Quanto a mim, sofri dois ou três acidentes suspeitos, mas estas tentativas não obtiveram êxito, porque, até eu vir para aqui, eles não me tinham apanhado...

- E desta vez também não, Larry - afirmou Ran.

Acordou um pouco da antiga virilidade de Larry:

- Não vou permitir que os dois fiquem metidos em tudo isto. Levem-me a casa e deixem-me lá. Posso dizer que, aproveitando-me da vossa saída, fugi pela janela, numa crise de delírio.

- Agora é que você está em plena crise de delírio! - afirmou Warren, a rir. - Como se nós fôssemos capazes duma coisa dessas! Vamos fazê-lo aterrar em segurança. E o homem que se encarregará disso vai ser o meu bom amigo Brad Carlton, o mesmo que por engano o feriu.

Acordado pela segunda vez nessa noite, Brad aceitou de boa vontade a incumbência de entregar no domicílio o ferido senhor Thompson. Ran deu-lhe vinte dólares e confiou-lhe o automóvel, para que ele demorasse menos tempo. Entregou a Brad Carlton uma carta explicativa e peremptória para Tim. Após o que pegou, para uso temporário, na velha carripana 1924 do montanhês. Quando dizia adeus a Larry, este segredou-lhe ao ouvido:

- Previna McDonough de que se acautele. Eles conhecem a existência do relatório.

De novo em Adson, Roberts disse:

- E isto, penso eu, é o nosso fim.

- Talvez não. Se houver barulho, requeremos investigações ao Conselho. com o que sabemos do hospital, já podemos fazê-las bonitas! E suponho poder arranjar por fora com que tirar ao Wade, Regan e Companhia todo e qualquer apetite de acusação.

A chantagem - reconhecia-o perfeitamente - era, em si, um instrumento duvidoso de defesa; mas Ran sentia-se pronto a empregá-la quando necessário - e se necessário - a favor de Roberts, que o ajudara e apoiara.

 

Mercadoria recebida em mau estado. Seguirá para o destino indicado logo que terminem reparações. Vê’lo-ei talvez daqui a pouco. Cumprimentos à Ruiva.

Tal era o bilhete enviado na mesma noite por Tim. Aliviado acerca de Larry, Ran ficou preocupadíssimo com as complicações que podiam surgir no hospital: não costuma ser permitido aos estranhos levarem impunemente os doentes hospitalizados.

Nada aconteceu. Ran calculou que Branch, responsável na ausência de Wade - numa das suas frequentes ausências - decidira que, pelo menos até o regresso do chefe, a expectativa silenciosa representava, em suma, a melhor solução. Enganava-se: os factos verdadeiros diferiam um pouco do seu cálculo. Wade fora logo advertido do episódio Lorrimer Thompson. Recomendou que nada fizessem. Era um homem prudente, com muitas coisas para esconder, e ficara bastante impressionado, aquando do processo proposto por Branch, com ver o apoio fornecido ao jovem pelo influente e formidável senador McDonough. Tanto assim, que, quando voltou às suas abandonadas obrigações, manifestou para com Ran uma polidez mórbida. Polido, mas vigilante e atento.

Foi notável esta atitude, especialmente por ocasião do incidente entre Miss Payne e Warren. Bastara a breve ausência deste, durante a viagem a Richmond, para que a enfermeira deixasse tudo a trouxe-mouxe. Não é preciso muito para a desordem e a porcaria invadirem um dispensário de que ninguém trata. Os relatórios andavam pintalgados, os instrumentos sujos ou enferrujados, metade dos frascos de medicamentos vazios nas bandejas; o interno do hospital de Adson, que substituíra Warren durante aqueles curtos dias, tentou reagir, mas, vendo que o Dr. Porter não se preocupava com a negligência da enfermeira, renunciara a ser baldadamente zeloso.

Ran deitou uma olhadela à sujidade da sala das urgências, e depois, atravessando o corredor, dirigiu-se à sala de espera. Miss Payne levantou os olhos, atirou para trás a revista de confissões sentimentais, e mostrou-se agressiva.

- Limparam isto alguma vez depois de eu ter partido?

Ela respondeu, contrariada:

- Deram-se ordens. Se certas pessoas ficassem para tratar daquilo de que estão encarregadas, em vez de...

- Responda à minha pergunta: porque é que não limparam ontem à tarde?

- A mulher da limpeza estava doente.

- Estava você de serviço.

- O Governo não me paga para eu esfregar o chão.

- Quanto tempo acha que conservaria o emprego para o qual o Governo lhe paga, se um inspector visse aquilo assim? Eu devia mandar uma participação acompanhada de fotografias.

- Experimente, e vai ver o que lhe acontece - respondeu ela, com efeitos de galantaria. - O Dr. Wade é meu primo. - E, fungando Warren de desespero, ela atirou-lhe um olhar rápido e acrescentou: - Acho que ele arranjaria as coisas de maneira a eu ser convenientemente tratada.

De modo que, quando o oficial médico do distrito se ocupou do caso, Ran ficou surpreendido, um pouco duvidoso, de o encontrar perfeitamente cortês. O Dr. Wade escolhera o tom do “nós formamos todos uma só família”. Para quê maus sentimentos? Para quê rancores? Miss Payne era rapariga muito “bem”, de excelente origem, e talvez isso a tornasse exageradamente sensível, mesmo susceptível. Fazia o que estava ao seu alcance. Não se podia esperar que uma enfermeira tomasse para si serviços de mulheres-a-dias, pois não? Não, claro. Ia falar-lhe e tudo havia de correr bem. Exprimiu a cordial esperança de que tivesse sido bom o exame de Richmond, e que o resultado fosse de todo satisfatório. Esperança sincera, a dele: se Ran obtivesse o diploma, era, ao menos, possível transferirem-no para outro distrito. Nada - oh, mesmo nada! - podia encantar mais o Dr. Wade.

A popularidade do dispensário ia-se tornando importante. Toda a gente, ou quase toda, insistia em ser tratada por Ran. Porter, que de novo se deixava arrastar e readquirira os hábitos negligentes, entrava de tempos a tempos e ficava encostado à porta, lábios torcidos num sorriso velhaco:

- Curar a multidão e outras histórias no género, hem?

- Pois . - respondia Warren, com bom humor. - Porque é que o senhor não tenta? É um excelente treino.

- Você devia ser curandeiro místico. A tarifa de dólar por cabeça, podia fazer muitíssimo mais dinheiro do que espalhando pílulas e comprimidos em nome do Tio Sam.

Levaram-lhe um homem de certa idade, cujo sofrimento era evidente. Tinha pequena respiração e era preciso amparar-lhe as costas, enquanto se encontrava na mesa onde o examinava Ran. Lábios azuis, o rosto ostentava a expressão ansiosa, característica das perturbações avançadas do coração.

Ran olhou para a ficha. Vira o senhor Blount seis meses antes, já se lembrava, embora o estado do homem se tivesse agravado consideràvelmente. O diagnóstico da ficha era: “reumatismo do coração com aperto mitral”, e, na rubrica “prognóstico”: “mau”.

Warren tomou o pulso a Blount. Achou-o intermitente, não firme e regular como devia, mas sim com saltos e omissões, uns tempos fortes, depois um ou dois bateres fracos, e de novo dois ou três tempos fortes. Fazia lembrar o comportamento de um homem habitualmente preciso e regular em seus hábitos e que de repente enlouquecesse. Só uma doença podia ocasionar tais perturbações: a fibrilação auricular. E era dramática para um homem da idade de Blount.

Ran perscrutou toda a periferia do coração e achou-a sensivelmente mais grossa do que da primeira vez, o que significava começo de dilatação. Grave sintoma. com o estetoscópio, descobria no coração uma mistura de sons confusos, e, às vezes, era impossível isolar o barulho de um bater individual. Também não era possível contar todas as pancadas do pulso, sendo demasiado fraca a quantidade de contracções cardíacas. Constituíam estas “faltas” um dos principais sinais da fibrilação auricular.

Blount dirigiu-lhe um olhar cheio de apreensões:

- É mau, não é, doutor?

- Podia ser pior - respondeu Warren, entregando-lhe uma receita com este conselho: - Vá para casa, meta-se na cama e não se levante. Eu passo por lá daqui por dois dias.

Era a quinidina o único remédio apropriado para este género de doenças. A maioria dos males de coração cedem ao emprego da dedaleira, mas, neste tipo particular, ela mostrava-se, pelo contrário, muito perigosa; o seu emprego podia provocar um assédio repentino do coração, ao passo que a quinidina o ajudaria a estabilizar-se e poria fim àquela alternância louca de bateres pequenos e grandes - pelo menos se o coração não houvesse ultrapassado a possibilidade de todo e qualquer alívio.

Na agenda, Ran tomou nota de uma visita a Blount na quinta-feira seguinte, da parte da tarde.

Quinta-feira de manhã, apareceu Tim Brennan, anunciando que trabalhara até perder a cabeça, mas que, em troca, ganhara um dia de férias e descanso.

- Férias de ferroviário - disse Ran. -E se fôssemos dar um passeio, hoje à tarde, pelos arredores?

- Era preciso ser coisa de jeito e que valesse a pena.

- É: fibrilação auricular típica.

- Hum! O último caso desse género que vi foi com o Dr. George Matthews. Sabe que ele foi preso?

- Não me admira - disse Ran, com amargura. - Quem tentar trabalhar convenientemente debaixo deste regime tem todas as probabilidades de arranjar aborrecimentos. - Ao dizê-lo, pensava nos inculpados de Lakeview. - Porque é que prenderam o velho George?

- Oh! Qualquer porcaria sem interesse. Obra suja do seu velho amigo Sarnov. Atira-se à grande cirurgia e consegue ser encarregado por Washington de casos importantes em todo o país.

- Sim, eu sei, já vi o nome dele nos jornais. Até faz parar o coração. - Levou o amigo ao dispensário, onde o apresentou ao Dr. Porter. - A propósito, Porter. quer fazer o favor de me render no dispensário, hoje, à tarde e à noite? Tenho de visitar o Blount, e depois o meu amigo Tim e eu estamos a contar com um bom trago de conversa e cerveja.

O outro médico hesitou: todas as quintas-feiras se organizava no hospital um jogo de poker, que terminava à uma da manhã; esperavam-no lá. Mas Ran substituíra-o vezes sem conta:

- Combinado, eu encarrego-me do serviço. Basta desligar o telefone, e ninguém pode incomodá-lo.

com Tim Brennan ao lado, Ran foi aos arredores, a casa de Blount. Este era contramestre de equipa numa das minas ou, pelo menos, fora-o até o estado do coração o incluir na lista dos pensionistas. Ran deu com ele mergulhado na cama, quase em estado de coma, palpitando por respirar, lábios e unhas muitíssimo azuis; a tosse levava-lhe à boca uma massa suja de sangue. Estava muito pior: praticamente moribundo.

- Há quanto tempo se encontra ele neste estado? - perguntou Warren a Mrs. Blount.

- Desde que o doutor o viu, tem piorado sempre. Esta manhã, a respiração tornou-se-lhe terrivelmente curta e começou a ter desfalecimentos. Parece a morte. Graças a Deus por ter vindo, doutor!

Ran mal podia crer na evidência dos seus próprios dedos sobre o pulso do doente. Em vez da desordem e confusão do outro dia, havia agora um bater lento e regular. Demasiado lento, infelizmente. E demasiado fraco. Onde seriam precisas cem pulsações, mal se conseguiam descobrir quarenta. Verificou a pressão sanguínea e, após três tentativas seguidas, acabou por determinar sessenta pulsações. Não podiam baixar muito mais sem se perderem todas as esperanças de manter a vida. Blount estava tão longe que não reconhecia Ran.

- Que pensa você, Dr. Brennan? - inquiriu Ran, muito profissionalmente.

Tim carregou o sobrolho:

- Não tomou dedaleira, por acaso?

- Não. Quinidina.

Tim concordou.

- Tem-lhe dado o remédio indicado, minha senhora?

- Tenho, sim, doutor. Até hoje de manhã. Mas como ele me parecia cada vez pior, parei esta manhã, à espera de que o doutor viesse.

Tim pegou num frasco meio vazio.

- É o medicamento?

- É. Vinte gotas de quatro em quatro horas.

- É capaz de me trazer um copo de água? - pediu Ran.

Mal ela saiu, Tim perguntou:

- Isto parece-lhe quinidina?

- De maneira nenhuma. A quinidina é incolor.

- Se é que há outra droga diferente da digital que tenha este tom verde-escuro, não a conheço. Que se passou, Ran?

- Ignoro. Mas Vou ver se consigo saber.

- Bela ideia que ela teve ao cortar a medicamentação! Já apanhou digital bastante para lhe causar um assédio do coração.

Ran aprovou, com um gesto de cabeça. Aqueles desmaios não tinham sido - já sabia - desmaios. Síncope era o termo médico. Paragens do coração, fórmula mais simples e popular. Dum momento para o outro podia uma crise fazer parar definitivamente o fraco pulso de Blount.

Ran tirou a capa e abriu o saco. Grande batalha ia suportar para desfazer o assédio do coração! Inútil levar o homem para o hospital: naquele estado, o transporte matá-lo-ia. Ran tinha no saco, à cautela, ampla provisão de adrenalina, atropina e algumas ampolas de solução de quinidina. E contava com o benefício da presença de Tim Brennan, com a experiência deste, mais vasta que a dele, e agradeceu isso à Providência.

Durante horas, os dois amigos trabalharam para ressuscitar o moribundo. Atropina para quebrar o bloqueamento e para secar aquele musgo, sintoma de edema pulmonar com congestão dos pulmões, que podia afogar a respiração do doente nas próprias secreções. Para activar a desblocagem, adrenalina, estimulante poderoso que auxiliaria a circulação a regressar mais ou menos à normalidade. Quinidina para sossegar a aurícula irritada, casinha ao alto do coração, onde nasce o impulso que provoca o bater deste, o qual se estenderá a todas as artérias.

Primeiro, o tratamento nada parecia conseguir no organismo esgotado. Depois, pouco a pouco, foram compensados os seus esforços: as pulsações ganharam amplitude e força, e a respiração, liberta da cega-rega mortal do edema, tornou-se mais profunda. Pelas onze horas, Blount, já melhor, dormia com leve dose de morfina que lhe assegurava repouso calmo. Não viveria, sem dúvida, muito tempo, pois o coração estava gravemente ameaçado, mas encontrava-se fora de perigo imediato.

Ran meteu o frasco do remédio na algibeira:

- Vamos pela farmácia do Daily.

A botica encontrava-se vazia, pois Daily fazia parte do grupo de jogadores de poker. Mas descobriram o ajudante, que os mandou entrar.

- Queria verificar a receita nº 50735 - disse Ran.

O rapaz abriu a pasta das receitas:

- Aqui a tem, doutor: “Blount. Tintura de digital”.

- Isto não cheira bem! - disse Tim ao ouvido de Ran.

- Nem isto - respondeu o amigo, que dirigiu para o papel o feixe luminoso da sua lanterna.

Quase obliteradas pela palavra digital, ainda eram, porém, legíveis as letras da palavra quinidina. O médico lembrou-se de haver escrito a receita a lápis, o que permitira a Daily apagar quinidina e substituir por digital, muito mais barata. Não sem que primeiro fizesse uma factura de quinidina.

- Levo este papel para o apontar - disse, calmo.

- Muito bem, doutor - respondeu o caixeiro, sem suspeita nem malícia.

Quando saíram da botica:

- Quanto acha que o seu amigo farmacêutico terá ganho nesta pequena transacção?

- Cerca de um dólar e meio.

- Não é caro, por uma vida humana.

- Vou procurar o Dr. Daily amanhã de manhã. Por agora, voltemos a casa e vamos beber, enfim!

Passavam alguns minutos da meia-noite, quando o telefone tocou. Ran lançou uma praga. Porque o não teria desligado, segundo o conselho do colega? Quem estava de serviço era Porter: o operador não tinha que incomodar Ran.

- É urgente. É de Harston. Pedem um médico para já.

- Eu não estou de serviço. Onde está o Dr. Porter?

- Saiu para uma visita.

- Quando?

- Pelas sete horas. Ainda não voltou.

Uma visita - ou pelo menos uma ausência - de cinco horas: nunca, mesmo nunca, Porter estaria cinco horas à cabeceira dum doente, por mais grave que fosse o caso.

- Dê-me o nome - disse Warren, resignado. - E diga que eu Vou o mais depressa possível.

- Que vida esta! - exclamou o irlandês. - Enfim, já que comecei por lhe servir de assistente, posso acompanhá-lo mais uma vez.

Lá muito em cima, na montanha, chegaram à cabeceira dum rapaz de vinte anos, rosto contorcido, lábios chupados pela dor. com algumas perguntas que fez aos pais, Warren soube a história. Apalpou-lhe o abdome: era como se pusesse as mãos numa tábua: todos os músculos estavam rígidos. Não necessitava de exame mais longo. A história das pequenas indigestões, de um padecimento súbito e torturante, horas antes de começar a rigidez abdominal, só podiam significar uma coisa: úlcera perfurada, muito provavelmente na parte de trás do estômago, na primeira parte do duodeno. Só a operação imediata oferecia possibilidade de salvar o doente.

Em pouco tempo, estava Ran à porta do hospital. Tim levou o rapaz lá para dentro, nos seus braços de macaco.

- Caso de extrema urgência; peça ao Dr. Branch que venha já - disse Ran à enfermeira que os recebeu.

Ao fundo do corredor que levava à sala das urgências, uma porta entreaberta deixava ver uma faixa de luz. Ran entrou.

Seis homens à volta duma mesa coberta de cartas, tentos e copos: Wade, Branch, o interno Sneed, o farmacêutico Daily, o obstetra Fossiter, e enfim Porter. Todos em mangas de camisa e - exceptuando Wade, que, apesar do calor, conservava os punhos apertados - de braços nus. Pelo espírito de Ran passou uma ideia incôngrua: nunca vira Wade doutro modo, nem sequer quando tratava dum doente.

Porter levantou os olhos e viu Ran, seguido da impressionante massa de Tim. Esboçou um sorriso, a que faltava convicção.

- Visita importante, hem, Porter? Eu supunha que era você quem esta noite se encarregava do dispensário...

- Vá para o diabo! Porque não desligou o telefone, como eu disse?

- Está na sala das urgências um rapaz com uma úlcera perfurada. - Ran fazia um esforço por conservar calma a voz: - Se tivesse desligado o telefone, só de manhã aquela gente encontrava médico. Isso não lhe diz nada?

- Rigorosamente, nada - garantiu Porter. - Não pedi ao Tio Sam que me pusesse aqui. Se ele não gostar da maneira como eu faço as coisas, pode ir para o diabo, e você com ele.

- Acho que está bêbedo. O que é uma sorte para si. - Dirigiu a atenção para Branch. - Dei uma injecção de morfina. É uma perfuração indubitável.

- Entendido - respondeu o cirurgião, que continuou a distribuir as cartas.

Aprendera a aceitar, sem discutir, os diagnósticos de Ran.

- Então? Vai ou não vai?

- Um minuto. É só a última volta.

Sem o estímulo das bebidas que ingerira em companhia de Tim, Ran nada faria, decerto. Nas circunstâncias presentes, não hesitou: duma vez, depressa, varreu tudo - cartas, dados, copos, cinzeiros - e tudo deitou para o chão, num caos irreparável e reconfortante. Caiu um espanto silencioso, cortado por Tim, que disse, na sua voz mais suave:

- Por aqui, Dr. Branch, faz favor.

O Dr. Branch saiu, vacilante, pálido de raiva, mas bastante prudente para não ficar no mesmo sítio. Wade foi o primeiro a recompor-se. Tinha a camisa e as calças salpicadas do que fora whisky com água. Levantou-se, pesado, e começou:

- Diabos o levem!

Mas Ran, frio e senhor de si, agora que estava iminente a acção, respondeu com absoluta calma.

- A si, falo daqui por um minuto.

O oficial médico do distrito avançou, mãos prontas para o ataque, mas encontrou o caminho obstruído pela impressionante massa do irlandês:

- Sente-se, Dr. Wade - sugeriu Tim, amável.

O Dr. Wade não se sentou, mas recuou até se encostar à parede. Ran começou:

- Daily: você modificou uma receita minha.

- É mentira. Eu nunca modifico uma receita.

- Aqui está a prova. - Mostrou a receita que tirara da pasta de Daily. - Está a ver os vestígios da borracha, e ainda se lê quinidina por baixo da palavra digital, substituída pelos seus cuidados.

O farmacêutico gaguejou uma resposta apressada e vaga.

- Estávamos com falta de quinidina. Ambos os remédios se empregam para o coração.

. - No caso do Blount, não. A digital esteve tão perto de o matar, que ele ainda está à morte. E, se ele morrer, este papelinho vai para o tribunal criminal, como prova de uma acusação de crime.

- Acha que sim? Primeiro, hei-de eu vê-lo no diabo!

E pôs todo o vigor do seu corpo maciço num directo à esquerda.

Como pugilista prático que era, Ran podia mergulhar e evitar uma cotovelada na cabeça. Mas o golpe acertou em cheio no estômago. Dobrou-se bruscamente em dois, e sentiu a prova perigosa arrancada dos dedos: Daily, considerando ser esse o meio mais simples, mais imediato e mais certo de se desembaraçar dele, meteu o papel na boca e pôs-se a mastigar vigorosamente. Continuava a mastigação (que se tornara só mecânica), precisamente quando a direita de Tim Brennan tomou contacto com o maxilar dele. No mesmo instante, o jovem Sneed, como leal servidor, atirou-se a Tim com toda a força de que dispunha: não chegava, porém, para produzir qualquer efeito.

Do resto da confusão, apenas ficou a Ran uma vaga ideia. Doía-lhe o estômago, e o estado geral não melhorou com a pancada que o Dr. Fossiter lhe deu com uma garrafa de cerveja, que, felizmente, lhe bateu no pescoço e não no crânio. Avançou para o parteiro e atirou-o ao chão. Depois, teve ideia de notar um sorriso, à sua frente: Porter estava de pé, à entrada, e, cinicamente, gozava o espectáculo. Ran lançou um murro na direcção do sorriso, falhou, e o sorriso desapareceu prudentemente na segurança do exterior. Quando Warren se recompunha, deu de cara com o interno.

- Não quero bater-me consigo - resmungou Sneed, que recuou.

Daily conseguira pôr-se outra vez de pé, mas já não mostrava veleidades combativas. Fosse como fosse, perdera-se a prova do papel. O último acto deste singular drama levou Ran a desconfiar dos sentidos. Brennan segurava Wade com as duas mãos, e, perante o horror deste, parecia morder-lhe o braço. Houve um barulho de roupa rasgada, e expôs-se à vista a carne a suar.

- Venha cá, Ran! - gritava o amigo, no cúmulo da excitação. - Olhe-me para este braço: vê-as? Vê as picadas? Cerradas que nem marcas de bexigas! Deve haver anos que toma a droga!

- É contra as dores - gemeu o oficial médico do distrito. - Sofro de nevralgias crónicas.

- Droga crónica! - retorquiu, impiedoso, Tim Brennan.

- Onde é que você ganhou a sua carripana? Como é que com o seu salário pode aguentar a enfermeira loira? Não responda, a não ser que esteja certo de a sua resposta não o levar direito à prisão. - Largou a vítima e acrescentou: - Caramba! Acho que disse de mais. Voltamos?

No carro, Ran perguntou:

- Que história é essa da prisão para o Wade? Bluff?

- Espero poder dizer-lhe que não. Há algum tempo que sabemos da existência, para estes lados, de um ramo do bando de estupefacientes.

- E acha que o ^Afade está metido na história?

- Não acho: sei. E o Regan também. Mas guarde isso na algibeira, com o lenço por cima, meu caro. A maioria dos telefonistas daqui são igualmente morfinómanos ou cocainómanos, sabe?

- Que é que o pôs na pista do Wade?

- Principalmente a Ann. Reconheceu nele um tipo cheio de drogas. Lembra-se do que ela dizia dos olhos dele? A sua Ann é melhor diagnosticadora que você, Ran.

- Não me admiro. Depois disto, a vida aqui não há-de ser muito alegre para mim.

- Talvez lhe seja útil a partida para Ridgeville. Se bem que eu suponha que o Wade não vai procurar sarilhos, que lhe chegarão sem querer, quando tratarmos dele. Espero apenas por ter todas as provas na mão.

- Nós, quem? A Comissão dos Trezentos? Tim piscou o olho:

- Não perca o McDonough de vista. Quando ele der sinal, vai haver uma das maiores limpezas da história da medicina!

Partiu de manhã, pedindo a Ran que lhe mandasse dizer se Blount tinha morrido ou se se curava.

 

Para os Warren, foi Ridgeville um alívio e até uma delícia. Era calma aquela cidadezinha situada a este de Adson, no meio dum campo cheio de vales, menos montanhoso que as regiões selvagens a que se haviam habituado. Calmo também o ambiente médico, após a agitação e as desavenças do posto a que Ran se encontrava ligado. Barton reunira à sua volta um grupo de primeira classe, ao todo cinco membros: Rollins, para a medicina; Gilbreath, para a obstetrícia e ginecologia; Sanders, otorrinolaringologista; Fenton, para os raios X e laboratório; e o próprio Barton, na cirurgia.

Ran logo percebeu que não seria uma sinecura substituir Barton: este homem era, sem dúvida alguma, um verdadeiro dínamo de energia. As ocupações previstas para cada manhã ocupavam Warren bem até metade do dia.

Preocupava-se com Ann, desde que a sabia grávida. Todas as semanas lhe media a tensão sanguínea e fazia análises, para se assegurar do estado dos rins. Até aí, tudo parecera normal. Mas acolheu com alegria a possibilidade de ela ser examinada por um especialista competente, como Gilbreath. Este deu à rapariga uma atenção o mais minuciosa possível e pediu depois a Ran que passasse pelo gabinete dele:

- Há alguma coisa que não esteja bem? - perguntou, ansioso, o marido.

Gilbreath tranquilizou-o com um sorriso:

- As proporções pélvicas estão abaixo da média. O bebé, esse, é normal. Mas não acho que o parto tenha dificuldades.

- Nunca ninguém na minha família teve dificuldades em partos - declarou Ann.

- E os vestígios de albumina? - inquiriu Warren.

- É o que é preciso vigiar.

- - Não devo por isso contar com toxemia ou qualquer coisa no género, não acha? - quis saber Ann.

- Não. Há senhoras que conservam estes vestígios durante toda a gravidez. Todavia, se aparecesse um edema ou se a albumina aumentasse, o Dr. Warren dizia-mo logo.

- Combinado. De resto, eu tencionava trazê-la cá umas duas semanas antes do parto. Gostava de que o doutor se encarregasse do caso.

- com muito prazer.

Ran sentia-se tranquilo com Gilbreath. Ao levar Ann para o automóvel, dizia-lhe:

- Não permitiria a um Fossiter que te tocasse nem com a ponta do dedo.

- Arranjas muitas histórias a meu respeito - respondeu ela, sorrindo. - As mulheres felizes têm filhos fáceis. Não o sabias de nenhum dos teus calhamaços? Se não está lá, devia estar.

Não havia, de facto, dúvidas: ela andava mais feliz do que nunca, toda contente com o casamento e com tudo que ele lhe dava, comovida ao sentir os movimentos do corpinho que se lhe mexia no ventre, ao experimentar uma dor deliciosa quando os musculozinhos se contraíam na simples alegria de viver, quando as perninhas e os bracinhos se agitavam em todos os sentidos, em movimentos desordenados. E, acima de tudo, ficava satisfeita por ter tido no corpo força bastante para absorver uma parte da vida de Ran, uni-la e fundi-la com a sua própria vida, e produzir um novo ser.

O feliz interlúdio de Ridgeville prolongou-se imprevistamente. Ao voltar do Sul, em princípios do Outono, o Dr. Barton apanhara uma constipação, que se transformou em gripe, leve mas indubitável. O Dr. Rollins aconselhou a cama até o regresso à temperatura normal.

Quando Ran foi cumprimentá-lo, o Dr. Barton perguntou-lhe:

- Então, Warren? Acha que pode ficar mais uma semana?

- O ano inteiro, pela minha parte. O que eu menos desejo é voltar ao 10º Distrito, e acho que eles têm sentimentos análogos a meu respeito.

- Nesse caso, está tudo arranjado - disse Barton.

E Rollins foi-se, satisfeito.

- Dizem-me que você fez aqui um trabalho excelente, Dr. Warren.

- Gostei deste trabalho.

Sentira certas dificuldades, ao princípio, evidentemente, mas depressa voltara à antiga forma e soubera como estavam ali organizadas as coisas. Passara como um sonho feliz o mês de cirurgia.

- O que eu mais desejo é ser em breve agregado a um grupo tão Bom. Infelizmente, creio que são raros e disseminados.

- Devo confessar-lhe que não tenho boa impressão dos que vi. Mas, como as coisas não podem piorar, é de esperar que melhorem. Julgo saber que depressa aparecerá o relatório McDonough. Se corresponder ao que se espera, há-de suscitar tal rebuliço que bem podemos contar com novo secretário de Estado da Saúde.

- Não há possibilidade de ser o próprio McDonough?

- Há até muitas, creio eu. Se escolherem para o lugar um homem que não pertença à profissão médica, e isso parece ser o preferível, não podiam arranjar outro melhor do que ele. Falou-me das ideias do Warren: o seu plano interessa-lhe muito. Se for nomeado, talvez isso represente um bem para o doutor.

- Para mim, só pretendo a possibilidade de exercer a cirurgia como acho que ela deve ser praticada. A minha maneira e na minha clínica - respondeu Warren.

O Dr. Barton restabeleceu-se. Os Warren fizeram as malas e, com toda a resignação que puderam, voltaram a Stoneville. Sobre os ombros de Ran recaiu um trabalho mais pesado do que nunca. Debaixo da orientação ilusória de Wade, o distrito rolava cada vez mais depressa pela desorganização.

A mortalidade atingiu no hospital de Adson proporções tais que a própria tolerância dos médicos-políticos conciliadores e indiferentes, que povoavam o ministério nacionalista da Saúde, se assustou a pontos de formular um protesto.

O jovem Sneed, rapaz ainda por desbastar, mas consciencioso, demitira-se, com desprezo, e era um parente do todo-poderoso Regan quem o substituía. Roberts pedira transferência e esperava-a com a convicção de que nada, em sítio nenhum, podia ser pior do que o actual emprego.

Raramente Wade se inquietava com as suas obrigações oficiais. Agora, conhecendo a fraqueza do chefe, Ran notava que a intoxicação desgastava progressivamente a resistência dele. De todas as raras vezes que o encontrava, Ran admirava-se de não haver descoberto desde logo o vício secreto, de que Ann, mais perspicaz, suspeitara à primeira olhadela. O rosto dilatado, sujo de manchas de fígado, os olhos embasbacados, o andar pesado e desajeitado, o pendor para a excitação nervosa, a aparência geral de desinteresse sem reacção, sem sombra de tentativa para vencer a corrente - tudo nele indicava um adepto, de longa data, dos estupefacientes.

Wade andava frequentemente em companhia de Marcus Regan, o déspota local, que mandara construir na encosta da montanha uma casa de pedra, muito ornamentada, onde recebia, como celibatário magnificente que era, visitas equívocãs vindas em automóveis caros. Parecia crescer também a prosperidade de Wade. Desde a noite no hospital, quando Brennan lhe arrancara a manga do braço cheio de picadelas, Wade evitava o mais possível Ran. Quando se viam, era polido, quase obsequioso, mas desaparecera todo aquele logro de ruidosa e artificial camaradagem.

Quando Dezembro mergulhou no regelo e na neve, o estado de Ann preocupava a sério o marido. Não perdia a albumina. Os tornozelos inchavam-lhe periodicamente. Tinha dores de cabeça dias e dias seguidos. Perturbações que, verdade seja, desapareciam quando ela se metia na cama, com a dieta láctea. Mas, mal retomava a actividade normal e a alimentação corrente, surgiam de novo os inquietantes sintomas. Alguns dias antes do Natal, estes foram tais que Ran pensou metê-la numa ambulância e levá-la para Ridgeville. Uma semana de cama, porém, e mais uma vez se arranjaram as coisas. O marido nem sempre podia estar presente, claro, para a obrigar a conservar-se deitada, e ela, mal se sentia um pouco melhor, levantava-se logo e punha-se nas voltas. Não que gostasse de o contrariar: era apenas a reacção duma pessoa (normalmente de saúde e alerta) perante o sentir-se ligeiramente doente. Não podia pensar, um minuto sequer, em que corria o risco de lhe acontecer fosse o que fosse de grave.

Na primeira semana de Janeiro, aqueceu e houve tempo bonito. De modo que, um dia, Ran meteu a mulher no carro e levou-a a Ridgeville, onde Gilbreath a examinou em pormenor e lhe tirou várias análises.

- Eu sou uma cobaia - observou ela, com melancólico sorriso. - Admiro-me de tu não me engaiolares. com tantos exames e investigações, ainda acabo por crer que estou de facto doente.

O parteiro abanou a cabeça:

- Nem pense nisso, sobretudo! Quanto ao bebé, está perfeito. Você está a seis ou sete semanas do termo.

- Conto que será para a segunda quinzena de Fevereiro, nos princípios.

- Quanto a esta ligeira toxemia, não posso dizer que esteja a gostar dela - afirmou, pensativo, Gilbreath. - A sua tensão sanguínea, neste momento, está no máximo normal.

Ann franziu o nariz insolente:

. - Continue. Eu sou um cavalo de corrida. Quais são os meus outros pontos defeituosos?

. - Não é, com certeza, a falta de equilíbrio - respondeu Gilbreath, rindo. - Se você estivesse mais perto do termo, aconselharia que se começasse a coisa, sem demora. A toxemia que tem pode não ser mesmo nada, mas pode também tornar-se grave.

- Pensa na eclampsia, não é verdade? - perguntou Ran.

- E porque havia eu de ter eclampsia? - retorquiu ela, indignada. - Nunca fui amiga de espasmos nem de convulsões, mesmo quando eram os outros que os tinham.

- Todavia, devemos encarar...

Ela interrompeu-o:

- Se você provocasse o parto já agora, quais seriam as possibilidades do bebé?

- Nenhumas, parece-me. Ou, pelo menos, mínimas.

- Então, não. Não quero ouvir falar disso. Já perdemos um, não Vou perder o segundo.

- Mas, querida Ann, nós queremos fazer as coisas pelo melhor para ti - aduziu, ansioso, o marido.

’- E eu quero fazer as coisas pelo melhor para o meu filho - ripostou Ann, com um trejeito no lábio inferior.

- Filhos, podemos ter outros. Mas tu, há só uma.

Ela respondeu com uma careta.

- De qualquer modo - continuou Gilbreath - acho que não devemos contar com grandes riscos para já. Mas tem de se conservar tranquila, minha senhora; deve descansar muito. Em meados de Fevereiro, haja ou não agravamento da toxemia, provocaremos a coisa.

Embora Ann ficasse desesperada com as proibições, o repouso fez-lhe bem. Ran pôde informar Gilbreath de que, em conjunto, as condições eram satisfatórias, se bem que ainda não normais. Ann nunca se queixava. Mas Ran, agora mais esposo do que médico, andava preocupadíssimo, embora discretamente atento. As vezes, vendo-a perdida num devaneio, descobria-lhe no rosto uma expressão que o assustava, reveladora de que ela se sentia secreta e confusamente angustiada. Todavia, quando se forçava a retomar o papel de observador médico e imparcial, não encontrava qualquer motivo de inquietação.

Numa manhã fria, em fins da primeira quinzena de Fevereiro, perguntou:

- Que dizes tu a irmos para Ridgeville daqui por um ou dois dias?

- Se quiseres... Mas duvido que já haja qualquer coisa.

- Ficava mais tranquilo.

Ela reencontrou a antiga impudência:

- Enfim, qual de nós vai ter este bebé? Tu ou eu?

- Queres que marque lugar no comboio para segunda-feira?

- Está bem.

Pouco depois do jantar, chamaram Warren à montanha. Tratava-se de parto difícil, e ele só voltou a casa, morto de fadiga, na tarde seguinte. Mrs. Field veio ao seu encontro, ao pátio. Ao vê-la, ele teve um sobressalto:

- Que foi? É a Ann?...

- Estou tão contente que o senhor cá esteja! Ela diz que está tudo bem, mas os seus olhos mostram o contrário.

Ran subiu os degraus quatro a quatro. Ann estava na cama, encostada às almofadas, com um jornal aberto e dobrado, caído junto da mão.

- Sentes-te mal, querida?

- Dores de cabeça todo o dia. E, quando tento ler, as letras baralham-se todas.

Ran tirou do saco o instrumento para medir a pressão sanguínea e aplicou-o ao braço da mulher, que teve uma expressão súbita de dor, apesar de ele nada haver feito que a ferisse.

- Que foi, querida?

- O estômago. Há três horas que isto dura. Pode ser indigestão?

- Comeu pouco - disse Mrs. Field.

- Por agora, sinto uma espécie de fita apertada em roda do peito...

Na véspera, a tensão era de cento e trinta. Hoje, atingido este número, continuavam as pancadas, fortes e duras como tiros de pistola. Cento e quarenta contra cento e trinta. Era mesmo mais grave do que ele supunha.

E aquela perturbação na vista, de que Ann se queixava? Poderia ser um começo de edema na retina? A separação desta dá-se às vezes com a toxemia da gravidez. Nem queria pensar nisso. Mais provavelmente, não passaria de dilatação pupilar devida ao aumento de venenos no sangue. Examinou-lhe as pupilas atentamente e achou-as um pouco dilatadas. Mas a penumbra que reinava no quarto podia ser também causa parcelar. Baixou os cobertores e apalpou delicadamente os contornos do bebé. Não começara ainda o parto, sob as suas mãos não se dava qualquer contracção do útero, e Ann não tinha dores daquele lado. Ao estetoscópio, revelou-se vigoroso e regular o coração da criança.

- Creio que ele se virou ontem à noite - disse Ann.

- Isso não quer dizer que não possa ainda virar-se. Talvez seja acrobata...

Mrs. Field ajudou Ann a vestir-se, enquanto Ran pedia a ambulância. Caíra o crepúsculo quando saíram. A velhota agitou a mão, para lhes dizer adeus, com os olhos cheios de lágrimas.

 

Ann procurou os dedos do marido, para os apertar entre os seus, que Ran acariciou com a mão livre.

- Fatigam-te os solavancos?

- Não.

- Conserva-te o mais calma e à vontade que puderes. Tudo há-de correr bem.

Como ele queria acreditar nisso!

- Sinto-me muito esquisita, amor.

Ele passou-lhe o braço à volta do pescoço:

- Que sentes?

- O peito apertado. Não posso respirar.

Começou por uma expressão de súbita apreensão nos olhos, uma aparência vítrea nas pupilas, como se ela procurasse às cegas descobrir qualquer coisa, ao longe... Depois, os olhos oscilaram dum lado para o outro, num movimento rítmico particular. As pupilas foram subindo, até que só ficou visível o branco dos olhos. O rosto contorceu-se-lhe, deformou-se. Agarrou-se ao marido com uma força desesperada.

Ran pegou à pressa numa lâmina de madeira, afastou os maxilares, que já se apertavam, e pô-la entre os dentes, para evitar que, num espasmo, ela mordesse a língua.

É terrível de ver uma convulsão eclâmptica. Temem-na os próprios médicos, habituados a considerarem todos os aspectos da doença. Ran sentia o coração arrancado pelas raízes, enquanto Ann, agachada nos seus braços, cravava os dentes na madeira, enquanto os músculos do rosto se lhe torciam como lâminas de aço, a respiração se tornava rouquejante, sufocada, e a língua, nos esforços por se dobrar para trás, ameaçava bloquear a passagem do ar.

Ran agradeceu ao Céu o facto de ela estar inconsciente e de não experimentar a atroz agonia de sentir os músculos recusarem-lhe obediência e contorcerem-se contra sua vontade. Por cada convulsão - “Deus queira que não haja outra!” - teria alguns minutos de coma, um breve período de inconsciência. Podia sentir-lhe todo o corpo endurecer-se-lhe nos braços, agitar-se com violência, quando o espasmo se espalhava através de todo o organismo. A nuca de Ann inclinou-se para trás, os braços agitaram-se no ar, e de repente ela desenvolveu uma força tal que o marido não era capaz de dominá-la: durante vários segundos, conseguiu por um triz impedi-la de se ferir, enquanto tinha nos braços um corpo torturado.

Tão depressa como começou, acabou aquele horror. A respiração tornou-se-lhe de novo fácil e regular. As maxilas desenrijaram-se, a placa de madeira caiu, Ann abriu os olhos, fitou, meiga, o rosto do marido e sorriu-lhe de contentamento:

- Estou tão feliz por teres vindo! Tinha tanto medo de que acontecesse qualquer coisa de horrível, enquanto não estivesses ao pé de mim!

Não se lembrava nada da convulsão, não conhecera o horrível momento em que o marido quase tivera a certeza de que ela não suportaria a tensão...

- Onde estamos nós? - perguntou, numa voz de sono.

- Levo-te para o hospital, querida. Chegou quase o momento de teres o teu bebé.

- O nosso bebé - rectificou Ann.

Fecharam-se-lhe as pálpebras sobre umas pupilas dilatadas. A energia do seu corpo jovem e vigoroso fora despendida pelos músculos durante a convulsão. Agora, ia dormir. Dormir, enquanto o corpo descansaria, recuperaria... para ser mais tarde esgotado, sem dúvida, ainda por outra convulsão...

Não devia ter outra. No hospital, afastavam-se com calmantes aqueles terriveis acidentes. Mas o tratamento tinha de começar imediatamente. Isso significava Adson e não Ridgeville. Era preciso levá-la a Adson, chamar de urgência Gilbreath, e pedir a Deus que lhe evitasse novas crises, até começar o parto e a criança nascer.

Ran bateu no vidro que o separava do motorista.

- Volte para trás. A minha mulher está pior. Para hospital. O mais depressa que puder.

 

Warren encostou a si o melhor que pôde o corpo de Ann, que os solavancos da velocidade cruelmente sacudiam: a consideração primordial era agora o tempo. “O tempo é essência do contrato. O tempo é...” Não! Não podia permitir àquela infernal lengalenga que se lhe instalasse no espírito, como na noite daquele outro nascimento, naquela noite em que Ann e ele pela primeira vez aprenderam a conhecer-se. Noutro mundo e noutro tempo. Como parecia longe!...

Enquanto o carro ia cortando as trevas, ele conservava Ann adormecida nos braços e, sentia na face o calor daquele bafo querido. Um século antes, meio século mesmo, estaria condenada sem esperanças; dentro de um século, de meio século mesmo, nada disto acontecerá e poupar-se-ão às mães tais sofrimentos. Os efeitos da eclampsia podem hoje curar-se; as suas causas, ainda obscuras para a ciência actual, poderão vencer-se amanhã. Porque são vítimas certas mulheres e outras não, ignora-o a medicina. Mas, dentro de cinquenta anos, saber-se-á, sem dúvida, e terão encontrado resposta outros mil e um problemas médicos e cirúrgicos.

A ambulância virou no pátio do hospital e, defronte da porta das urgências, parou com grande barulho de travões.

- Eclampsia - disse Ran à enfermeira. - Chame o médico.

Ela não fez qualquer pergunta. A palavra eclampsia era suficiente para pôr as enfermeiras a correrem depressa. Por a terem visto, todas conheciam a terrível coisa.

Ann abriu os olhos. Escapou-lhe um lamento:

- Oh! Como me dói o estômago !...

Seria sinal de nova convulsão? Ran pousou-lhe as mãos no abdome: os músculos estavam rígidos; havia contracção certa do útero. Começara! Talvez tudo corresse pelo melhor. Talvez houvesse parto normal.

O Dr. Fossiter entrou, enquanto as enfermeiras despiam Ann. Ran quereria ter de lidar com quem quer que fosse, mas não com aquele homenzinho adocicado, de modos importantes - sem que nele houvesse alguma outra coisa de importante, como Ran muito bem sabia. Infelizmente, era Fossiter em pessoa, e ele não ousava efectuar o parto da mulher. Fossiter perguntou:

- Que há, Dr. Warren?

- Eclampsia. Uma convulsão na ambulância.

- Hum!

O obstetra pareceu reflectir:

- Muito interessante.

- Vai dar-lhe morfina, penso eu. Não tive tempo de lhe ministrar fosse o que fosse.

- Eclampsia. Sim.

Falava como em sonho. Ran perguntava a si próprio se ele fazia um esforço para se lembrar ao certo do que aquilo era.

- Parto imediato... Sim, é isso... Parto imediato...

Ran soltou uma exclamação de estupefacta incredulidade:

- Não vai partejá-la já, pois não? Ainda agora está no começo.

- Por enquanto, não - disse Fossiter, numa voz tranquilizadora. - Por enquanto... Primeiro, levamos isto um bocado mais longe. Vamos tratar-lha bem.

“Fazes bem em tratá-la convenientemente, porque senão torço-te o miserável pescoço!”, pensava Ran.

- Trata-a o Dr. Gilbreath. Tenho de lhe telefonar já - disse Ran.

- Pode telefonar do meu gabinete - respondeu Fossiter. - Vamos começar sem demora.

Ran teve a sensação de que a telefonista era abominàvelmente demorada em obter a ligação para Ridgeville; na realidade, não foram precisos mais de dois minutos para Gilbreath lhe garantir que partia imediatamente.

Quando voltou, sorriu-lhe uma enfermeira, passando algodão embebido em álcool sobre a picadela deixada pela agulha que acabava de retirar.

- Morfina?

- Pituitrina.

- O quê?

Ran nem conseguia acreditar.

- Uma ampola de pituitrina. Ordens do Dr. Fossiter.

Ainda a enfermeira não acabara de falar e já Ran saíra e corria pelo corredor. Fossiter estava a conversar com o vigilante.

- Porque é que deu pituitrina à minha mulher? Para a matar? Ela precisa é de calmantes, de morfina, de cloral!

Fossiter corou violentamente:

- Peço-lhe que me deixe dirigir o tratamento deste caso - disse ele, não sem dignidade. - Dei-lhe pituitrina por uma razão importantíssima: como estimulante.

- Para o diabo os seus estimulantes! Não vai fazer nada para impedir as convulsões?

- Não teve nenhuma convulsão desde que entrou para o hospital.

Neste momento exacto, passou no corredor e chamou, ansiosa, a enfermeira que ficara junto de Ann:

- Dr. Fossiter, por favor!

Ran pôs-se na sala com um salto; e quando o Dr. Fossiter chegava à porta, já ele tinha uma placa de madeira entre os dentes da mulher. Uma vez mais, passou pela abominável angústia de apertar nos braços um corpo rigido e convulso e de ver o lindo rosto horrorosamente deformado por uma dor que lhe contorcia todos os músculos. Terminada a convulsão, Ann voltou a tombar nas almofadas, mas, antes de cair em coma, ainda teve uma contracção que lhe distendeu todo o corpo, da nuca aos calcanhares, num arco rígido. E depois a respiração tornou-se-lhe regular, liberta dos roncos e barulhos de matraca que assinalaram a crise.

- Vai ou não dar-lhe morfina e amital? Ou tenho de ser eu a fazê-lo?

Ran lançava as frases num furor mal contido, e, como o que se passara havia até certo ponto abalado a soberba de Fossiter, este saiu sem objecções, para encomendar os medicamentos requeridos: morfina para distender os músculos e tranquilizar a irritação dos nervos; sedativos para provocar o sono, para medicamentar o sistema nervoso de modo que os venenos da eclampsia não pudessem espalhar-se e lançar uma vez mais os músculos no horrível espasmo. Interveio um interno, o qual preparou a injecção intravenosa que ia enviar à circulação meio litro de solução de glicose. Ann dormia agora, mas Ran sentia nos dedos experientes o pulso da mulher, mais rápido e mais fraco. Não são fáceis de suportar tais convulsões, por causa do veneno que as ocasiona. com isso morrem mulheres, mesmo que sejam tratadas pelos melhores parteiros do país. E morrem depois de se dominarem as convulsões, depois de a criança nascer. Morrem porque as toxinas envenenaram de tal modo as células do corpo que se tornaram impossíveis as funções vitais.

A pituitrina começou depressa os seus estragos. A princípio, a dor foi lenta e suportável. Não despertou Ann, que gemeu no sono, crispando as mãos no ventre. Depois, a droga fez os músculos do útero contraírem-se com mais violência e a dor tornou-se cruel. A cada contracção, lançava a rapariga um grito de agonia, mas, entretanto, não tinha forças para responder às perguntas. Parecia impossível dominar aqueles espasmos musculares, atenuar aqueles sofrimentos. Interiormente, Ran maldizia-se por a haver abandonado durante o tempo necessário a obter a comunicação com Gilbreath. Se não se tivesse ausentado por aqueles curtos minutos, nunca lhe haveriam administrado a pituitrina.

Foram para Warren infernal tortura as duas horas que precederam a chegada de Gilbreath. Apesar das enormes doses de calmante que absorvera, Ann ainda teve duas convulsões. Passado esse tempo, as dores tornaram-se quase ininterruptas. Nem a carne nem o sangue poderiam suportá-las muito tempo mais. Alguma coisa tinha de ceder. Ou o colo da matriz se dilatava o suficiente para permitir a passagem da criança, ou então as próprias paredes rebentavam ao esforço das contracções para fazerem descer o bebé. Lembrou-se de propor que levassem a mulher à sala de partos, para terminar a dilatação do colo e extrair a criança. Mas sabia muito bem quão perigoso seria isso.

Ran só deu pela chegada de Gilbreath quando ouviu a porta e o viu de pé junto da cama, procurando adaptar a vista à semiescuridão do quarto.

Apertando-lhe a mão com toda a força, Warren murmurou fervorosamente:

- Graças a Deus, você veio!

- Como está ela?

- Bastante mal. Quatro convulsões. O Fossiter deu-lhe pituitrina enquanto eu falava consigo ao telefone.

- Meu Deus! - exclamou Gilbreath. Examinou rapidamente Ann. E depois: - Acho que devo levá-la para a sala dos partos e fazer um exame completo.

Enquanto este durou, Warren esperou do outro lado da porta. Sentia-se melhor, uma vez que estava ali uma pessoa competente. Gilbreath saiu, ainda de branco, e com as luvas.

”- Está dilatada a três quartos, mas tenho medo de a deixar ir mais longe. Esta pituitrina continua a fazer um mal dos diabos.

- A matriz não rebentou?

- Não. Mas não pode suportar por muito tempo as contracções. Creio preferível uma extracção imediata a...

- Faça o que achar melhor - resignou-se Warren. - Deposito-a inteiramente nas suas mãos.

Só a custo deu pelo que fazia, na meia hora que se seguiu. Caminhou dum lado para o outro, a grandes passadas, furiosamente, e fumando o cachimbo ainda mais furiosamente, até que o partiu nos dentes.

Parecia-lhe que haviam decorrido séculos quando Gilbreath apareceu à porta, dizendo:

- Está tudo pronto. O bebé é espantoso. Um rapaz.

- E a Ann?

A voz do marido enrouquecera de súbito.

- Debaixo da influência do choque - admitiu Gilbreath. - O parto não foi difícil, mas há uma hemorragia. Este trabalho duro e forçado não lhe fez bem, com certeza. Estão a dar-lhe glicose neste momento. Penso que tudo há-de correr bem... A não ser que...

- A não ser que haja nova hemorragia - completou Ran.

Era um perigo de que se dera conta, antes mesmo de ela entrar na sala de partos. Existe sempre a possibilidade de hemorragia pós-natal onde houve parto duro, acelerado.

A enfermeira, que vinha da sala de partos, com um berço, parou um instante no corredor para deixar o pai ver a carinha rosada, olhos inchados, ainda não de todo abertos, as mãozinhas rechonchudas. Era um bebé grande, de aspecto saudável.

- A Ann vai ficar maluca com ele - disse lentamente Ran.

Mais tarde, sentiria sem dúvida um orgulho paterno, um sentimento de terror sagrado, à ideia de que essa parte do seu próprio corpo se desenvolvera noutro corpo, para se tornar um corpo absolutamente novo e diferente. Naquela altura, o que ele estava, sobretudo, era ansioso.

Gilbreath voltou à sala, donde, minutos depois, saiu de rosto carregado:

- O útero não se dilata como eu queria. Receio que algumas fibras musculares tenham sofrido uma tracção demasiado violenta e contínua.

- Transfusão?

Batia seco a voz de Ran.

- Ajudava - reconheceu Gilbreath. - - Sabe a que grupo sanguíneo pertence ela?

- Há anos, quando receávamos um aborto, comparámos os nossos sangues. Compatíveis.

- Então, basta verificar se persiste a compatibilidade. Vou dar ordem para tratarem já disso.

Enquanto a técnica procedia às indispensáveis verificações, gritava em Ran todo o seu instinto puramente humano, que escapava à disciplina profissional: “Depressa!... Depressa !...”

Entrou Gilbreath:

- Compatíveis?

A técnica estudava as lamelas.

- Compatíveis - respondeu. - Não houve coagulação em quinze minutos.

- Então, tudo deve correr bem. Era bom despacharmo-nos, Warren. As coisas não estão a seguir pelo melhor, posso ter de fazer uma histerectomia rápida, de tirar completamente a matriz para dominar a hemorragia interna.

Ran já fora obrigado a recorrer a esta solução desesperada, que, às vezes, salvava a parturiente. com mais frequência, era apenas um episódio de batalha perdida. Mas ele sabia que Gilbreath só operava se não se lhe oferecesse outra alternativa.

Levaram Ran à sala de operações e estenderam-no numa maca ao lado da cama onde estava deitada Ann, estranhamente pálida, ainda inconsciente, graças às drogas que lhe haviam sido administradas, respirando devagar, esperando - longe, muito longe - pelo único auxílio que ele podia levar-lhe naquele instante: a infusão dum sangue vigoroso que talvez pudesse pôr a situação do lado dela.

Quase não sentiu a agulha que o interno lhe enterrou numa veia. Só teve consciência do clique-clique amortecido da máquina de transfusão, que lhe ia aspirando o sangue das veias para o enviar às de Ann. Por cima da máscara, podia ver os olhos do Dr. Gilbreath, que, de pé, ao lado de Ann, conservava os dedos no pulso dela. Depois, o parteiro desapareceu do seu campo visual, e ele ouviu-o dar instruções em voz baixa, enquanto tirava a blusa e as luvas e mergulhava as mãos numa bacia de álcool.

- Decide operar? - perguntou Ran, sem um movimento.

- Acho que vale mais. Ela continua a perder terreno.

Passaram-se alguns minutos, cheios do odor penetrante do anti-séptico e do barulho das pinças hemostáticas, enquanto Gilbreath fazia a incisão.

- Quinhentos centímetros cúbicos - disse o interno que vigiava a transfusão.

- Dê-lhe mais, se ela precisar - ordenou logo Ran.

Embora não pudesse ver, compreendeu a olhadela de Gilbreath a interrogar a anestesista, e ouviu-a responder em voz baixa:

- O pulso continua fraco. Tensão oitenta.

Gilbreath deve ter feito um sinal afirmativo ao interno, pois continuou o clique-clique da máquina de transfusão. À medida que mais sangue lhe ia deixando as veias para encher as da mulher, começava Warren a sentir-se invadido por um cansaço quente. Pareceu-lhe que podia levantar-se à vontade da maca e mexer-se, livre, no espaço. Notava também os movimentos mais precipitados do coração, que se esforçava por adaptar-se àquela perda súbita.

- Oitocentos - disse o interno.

- Continue - mandou Ran. - Por mim, está tudo bem.

- Mil - informou o interno, pouco depois.

Então Gilbreath decidiu, lentamente:

- Chega...

Afastou-se da mesa e descalçou as luvas, enquanto o assistente colocava um penso na incisão de novo fechada. Não seria tão depressa que o hospital deixaria de falar daquela extraordinária operação: uma histerectomia em dezasseis minutos! Era um recorde jamais atingido em hospital algum.

O interno retirou a agulha da veia de Ran, que tentou logo sentar-se. Mas Gilbreath empurrou-o, lentamente, advertindo:

- Devagar, Warren, vamos devagar. Sempre é alguma coisa perder um litro de sangue em vinte minutos...

E, como se aquele ligeiro esforço lhe houvesse introduzido no corpo ondas de vertigem e náuseas, o rapaz deixou-se cair para trás, com satisfação. Ouviu Gilbreath dar ordens, enquanto Ann, respirando com calma e regularidade, era transferida da mesa de operações para uma maca.

- Ponha um calorífico debaixo da cama. E levante os pés da cama. Se for necessário, dê-lhe um estimulante.

Tudo que se podia fazer fora feito. O resto ficava nas mãos do destino.

- Gostava de estar ao pé dela - pediu Ran. E Gilbreath:

- Levamo-lo para lá.

Era um esforço para o rapaz articular algumas palavras; mas, apesar deste enfraquecimento temporário, dizia que, se pudesse segurar a mão da mulher, talvez conseguisse fazer passar um pouco da sua força para aquele corpo esgotado e ajudá-la a recuperar o equilíbrio.

A mão de Ann pendia, estranhamente mole, para a roupa; o pulso continuava fraco e rápido. Virou a cabeça para ver o rosto pálido, os lábios a tornarem-se azuis, os olhos fechados, e a coberta que o fraco movimento respiratório mal levantava.

Durante um grande bocado, apenas pôde ficar ali estendido, entregue ao destino, esperando e pedindo... E depois... Não seria apenas ilusão? Ou o pulso batia um pouco mais depressa, um pouco mais forte, de maneira menos brusca? Sim. Às faces pálidas subia uma cor leve. Primeiro fraca, depois mais viva, à medida que Ann ia emergindo da anestesia e dos calmantes.

Ann não morria! Ele dera-lhe a vida, dera-lhe um pouco da sua vida para substituir o que passara à vidazinha que esperneava no berço, ali ao fundo, na ponta do corredor. Tentou levantar-se, mas mergulhou num mole, escuro e doce oceano de sono.

Acordou, duas horas mais tarde, noutro quarto, em cama limpa e branca. De pé, a seu lado, Gilbreath.

- A Ann? - perguntou. - Está tudo a correr bem?

- Absolutamente. Passou o choque. Está a descansar, tranquila.

- Graças a Deus! E o bebé?

- Alvoroça a ama!

Ran sentou-se. Por instantes, o ar pareceu-lhe animado de uma dança de mosquitos. Sacudiu a vertigem do cérebro.

- Quer passear um bocado? - perguntou Gilbreath.

- Vou tentar. Ainda me sinto um pouco confuso. Você ajuda-me?

Percorreu cautelosamente o corredor até o quarto da mulher. Ela ainda dormia, tez viva e animada, respiração profunda e regular.

- Fico um bocado ao pé dela - disse à enfermeira.

- Eu estou lá fora a fazer o gráfico. Se precisar de mim, toque.

Ann mexeu-se e deslocou os dedos na cobertura, mas não abriu os olhos. Tinha a mão firme, tépida e viva, e ”já não inerte e mole como horas antes. No quarto, apenas o ritmo calmo e leve da sua respiração. E depois as pálpebras palpitaram-lhe e ela virou a cabeça, murmurando:

- Ran!

. - Amor? - e inclinou-se para ela.

- O bebé está bem?

- Admirável. O rapaz mais bonito que eu já vi.

- Que encanto ser um rapaz! Vai ser como...

As palavras apagaram-se-lhe lentamente: voltou a ador-

Chegou a manhã, o sol entrou de esguelha no quarto hospitalar onde Ran passara a noite, e acordou-o cheio de alegria: tudo ia desde então correr pelo melhor na família Warren! Ann viveria. Tinham o seu filho. Ela nunca mais poderia ter outro, mas depressa voltaria a ser forte e alegre, reencontraria o antigo eu, tão vivo, tão sedutor, tão feliz. Dentro de alguns meses, ele teria a sua nomeação cirúrgica. A vida era bela! A vida era boa! A vida era magnífica! Cantou, enquanto se ia vestindo.

Bateram à porta. Voz de mulher:

- Dr. Warren!

- Diga.

Abriu logo. Era a enfermeira:

- Venha já ao pé de sua mulher, doutor.

Semivestido, Ran lançou-se pelo corredor, perguntando:

- Ela está?...

A voz de Ann interrompeu-o, inumana à força de terror:

- Ran! - gritava ela. - Ran! Ran!

Chegou logo ao pé dela, que se debatia na cama, braços agitados no ar. Os olhos, estranhos e fixos, não o procuraram. Ele ajoelhou apoiando à sua face o rosto desesperado.

- Ran ! Ran !

- Que há, Ann? Que há, minha querida?

- Não te vejo! Não vejo nada! Eu estou cega, Ran?

 

- Há um homem, há só um homem que eu quero ao pé dela - disse Ran a Gilbreath.

Tinha os traços carregados pelo desgosto e pelo cansaço. Ann dormia, à força de calmantes.

- Eu sei - respondeu o obstetra. - Eu sei: o Volmer. Já lhe telefonei.

- Quando é que ele chega?

- Ele não virá, Ran...

- O quê?

Incrédulo, assustado, Warren ficou estúpido: Volmner, o mais famoso especialista de olhos, o homem em quem o génio e a caridade iam de mãos dadas, o homem cuja ciência igualava a dedicação, o homem que respondia a todas as chamadas, por mais humildes e custosas que fossem, Volmer não iria?

- Volmer não virá? Mas eu fui aluno dele! Ele deve-se lembrar, com certeza. Não lhe disse?...

- Ele não pode vir, Ran. Anda em dificuldades com as autoridades federais por insubordinação. Um julgamento proibe-o de praticar fora de Maryland. Você não quer metê-lo na prisão, pois não? Se bem que - murmurou Gilbreath - se você insistisse, ele vinha.

Ran desatou a praguejar contra uma burocracia imbecil que lhe entravava toda a carreira e ameaçava agora Ann com um abominável desastre, contra o mecanismo desumano duma medicina impessoal e funcionarizada... Para que servia aquela cólera? Ele, vaso de terra, tinha de se haver com um vaso de ferro sólido. Acalmou-se.

- Eu levo-a então a Baltimore. Quando poderá ela aguentar a viagem?

- Só daqui a um mês.

- Um mês!-repetiu o rapaz, desesperado. - E cada dia que se perca pode diminuir-lhe as possibilidades!

- Não. Eu perguntei ao Volmer. O atraso não fará qualquer diferença.

- Mas a demora, amigo! A demora nas trevas! Na inquietação e na incerteza! A perguntar a mim próprio se ela ainda poderá ver! Como anunciar-lho?

- A sua mulher é muito corajosa, Warren, e continuará a sê-lo agora. Se tivesse perdido o bebé, eu não respondia por ela. Assim, como estão as coisas, precisará de todo o apoio e de toda a força que você puder dar-lhe.

A censura implícita acalmou Ran. Era verdade. Não podia fraquejar, se é que deviam construir uma existência válida sobre o que a sorte quisesse reservar-lhes.

Foi o período mais cruel, a prova mais dura da sua vida. Ann era estòicamente paciente, mas os seus esforços de alegria despedaçavam o coração do marido. De regresso ao lar, acharam-se rodeados de bondade. A pequena Mrs. Field mostrou-se um anjo de serviçal piedade. As tímidas famílias dos montanheses desceram das suas aldeolas, trazendo ervas, flores, gulodices caseiras. Uma garrafa de whisky de contrabando, com cinco anos, foi o presente de Brad Carlton. Ora um, ora outro, vinham oferecer-se, nos dias bonitos, para levarem a doente a passear nas suas campanas antigas.

No dispensário, o esplenético Porter tomara conta de todo o seu trabalho, e mesmo, quando podia fazê-lo discretamente, de uma parte do de Ran. Nas horas de lazer, mergulhava em obras oftalmológicas, donde emergia com histórias encorajadoras de brilhantes curas, que contava à rapariga, em gorjeios optimistas.

A prova mais difícil para Ran foi conservar a alegria pelo diapasão da de sua mulher (que sabia artificial). Uma vez, entrando sem barulho, encontrou-a vergada para o bebé, arranjando-o com gestos ternos, incertos, e murmurando:

- Sem dúvida, eu tenho de viver...

Esta pobre resignação feriu-o mais do que se ela se revoltasse, se ameaçasse suicidar-se.

Não era, de modo nenhum, desesperado o seu caso. Volmer escrevera uma longa carta a Gilbreath, que a enviou a Ran: não continha promessas - o grande homem era a própria verdade - mas sim uma nota de optimista encorajamento. A sua opinião seria a última palavra, a decisão final e sem apelo, donde surgiria a cura, ou a noite, de Ann.

A coragem e a docilidade da rapariga auxiliaram consideràvelmente o regresso das forças. Três semanas depois do parto, Gilbreath autorizou a viagem a Baltimore.

 

À entrada do Dr. Volmer no gabinete, Ran levantou-se. Estudante, tantas vezes se levantara à entrada do mestre na sala de aula, que este inolvidado reflexo instantaneamente o pôs de pé, quando apareceu o grande homem, de olhar recto e tão Bom. Uma enfermeira trazia Ann da sala interior onde fora feito o exame. Os olhos desta, de pupilas dilatadas pela atropina utilizada para permitir um estudo completo do perigo, pareciam-se com lagos escuros. Avançava em passos hesitantes, que despertavam dó, apalpando o chão com o pé, como se receasse que um obstáculo à frente a fizesse tropeçar. Coração apertado, o marido imaginava a tragédia que seria o destino, se ela tivesse de andar sempre assim. Ann! A Ann, que a policromia primaveril da montanha tantas vezes alegrara, a Ann cujos dedos eram tão hábeis e precisos no tempo (ainda tão próximo!) em que trabalhava na sala de partos daquele mesmo hospital onde hoje se encontrava, inválida, angustiada pelo destino! Senhor! Não! Não podia ser! Volmer era o melhor de todos. Já realizara tanto milagre, já dera vista a tantos olhos onde ela havia muito faltava... com certeza que encontraria um meio...

O Dr. Volmer levantou os olhos das notas que trazia num gráfico.

- Creio - disse - que tenho boas notícias para si.

Ann soluçou uma vez e depois aprumou-se, em rígido autodomínio.

- Como, com certeza, calcula, Dr. Warren, sua esposa está atingida por um bastante grave descolamento bilateral da retina.

- Diga-me, peço-lhe, o que significa isso exactamente - pediu Ann.

- O forro interior do globo ocular, a membrana sensitiva, que é o verdadeiro órgão da vista, separou-se do interior do olho. Indubitavelmente, no momento das convulsões de eclampsia, produziu-se um edema considerável com corrimento de fluido para baixo da retina. A coisa, em si, não é excepcional.

- Era o que Gilbreath pensava - disse Ran.

- Habitualmente, o edema desaparece em poucos dias, às vezes uma semana depois do parto, e a retina junta-se de novo à coroideia, membrana sobre a qual ela própria se encontra. No caso presente, julgo compreender o que aconteceu.

Ann e Ran ficaram hirtos nas suas cadeiras. As frases seguintes iam esclarecer toda a história.

. - Na retina de cada olho, deu-se uma leve fractura - continuou Volmer. - Distinguimo-la com o oftalmoscópio. Esta fractura permitiu que um pouco da espécie de geleia humoral que enche o globo ocular deslizasse para trás da retina, conservando-a assim afastada da posição normal.

- E enquanto o humoral ficar do outro lado da retina concluiu Ann - eu serei cega!...

Tinha os dedos nos do marido, unhas na palma da mão dele.

. - Sim. O nosso problema é, pois, levá-lo à posição normal.

- Que possibilidades há? Eu sou capaz de aguentar a verdade.

- Tenho a certeza. Há ainda poucos anos, eu apenas podia dar-lhe uma fraca esperança. Hoje, as coisas alteraram-se. Uma operação diatérmica com ondas curtas permite reunir de novo a retina em mais de metade dos casos. Temos, antes de mais, de deixar à natureza a possibilidade de mostrar o que está ao seu alcance. Digamos seis meses.

- Seis meses!...

A voz de Ran tremia de decepção.

Estimulada pela esperança, Ann mostrou-se mais corajosa e disse:

- Que são seis meses?!...

A mão, a um tempo delicada e poderosa, de Volmer caiu-lhe ao de leve no ombro:

- É assim mesmo que se devem levar as coisas. Há-de ter muitos seis meses de vida e, espero, de vista.

No átrio, esperavam duas mulheres.

- Syb! - exclamou Ran. E depois: - Frances!

Frances Mayfield avançou e tomou as mãos de Ann entre as suas:

- Você não pode lembrar-se muito bem de mim - começou ela.

- Espere! A sua voz não é das que se esquecem com facilidade. Não era Mrs. Libby?

- E eu sou a Sybilla Barr - disse a médica, aproximando-se, por sua vez. - Vamos levá-la para casa de Frances até à hora do seu comboio.

- Oh! Como eu gostava! Estou tão cansada!... E como foram gentis em virem ambas!

Syb deteve Ran mais atrás:

- Que aconteceu? Soube da visita ao Volmer e dei logo um salto de Washington até aqui.

- Separação da retina, consecutiva à eclampsia.

- Meu Deus! É grave, não acha? Que possibilidades há?

- Cinquenta por cento.

- Porque não me avisou?

- Andava demasiado perturbado.

- Pobre Ran! - Deixou a mão no ombro do médico, por um instante; depois, continuou em tom menos pesado: - Aí tem um quadro lindo para si! - Mostrava Frances, que, com um braço à volta de Ann, a ajudava a subir para a limusina de Mayfield. - Aí tem como se prova que podem arredondar-se os ângulos do eterno triângulo. A pequenina Cabeça de Fogo sabe?...

- De quê?

- Do que houve entre si e a Frances! Oh! Não faça essa cara de inocente, Ran - continuou ela, rindo. - Sim, eu sei que tudo acabou. A Frances é modelo das esposas escrupulosas e perfeitas. Pecadora e santa, e tudo o mais.

- O seu cinismo não me comove, Syb. É afectado.

- Exactamente. É afectado. Procurava fazer o Ran sair da sua calma, e mais nada. Mas a sua Ann, que não gosta de mim, parece simpatizar imenso com a Frances. Eu acho isto cómico!

- Nas mulheres, tudo, ou quase tudo, é cómico. Por exemplo: porque é que você não casa com o Tim Brennan?

- É talvez o que eu hei-de fazer, se ele voltar a pedir-mo: ser-me-ia muitíssimo útil um bom assistente - respondeu Syb, com impertinência. - Mude de velocidade: tenho notícias para si. A Comissão do senador McDonough começou o bombardeio final. Vai haver muito pêlo queimado nos grandes gatos da casa médica! E, quando o fumo se dissipar, haverá decerto trabalho para si. O senador não se esqueceu do plano Warren. Bem: eu por mim Vou para Washington. Fico à espera de notícias suas e da sua Ann, meu caro.

 

Com o aproximar da Primavera, espaçaram-se as visitas médicas, Ran não precisou de passar tantas noites pelas perigosas montanhas. Pôde dispor de mais tempo para estar junto de Ann e da sua miniatura, que tão alegremente esperneava ao sol, numa cobertura estendida no pátio. O bebé crescia bem e depressa. Já havia muito que se sentava, costinhas apoiadas à mão do pai, com quem se parecia surpreendentemente, mas com a animação e a coragem da mãe, nos olhos. Essa mesma coragem que a conservava alegre, pronta, aprendendo a contar os passos que tinha de dar para se dirigir a tal ou tal ponto da casa e do pátio, e até mesmo para procurar, na rua, a única mercearia.

- Parece que me saio muito bem com olhos emprestados

- dizia ela, fanfarronando. - Tenho o olho grande do Ran e o olho pequeno do Ran.

Durante aquela Primavera, nos jornais como no Congresso, orientou-se viva ofensiva contra o secretariado da Saúde e toda a burocracia que estrangulava a medicina. Para tal batalha, abundavam munições. Aumentava terrivelmente a taxa de mortalidade, que já ultrapassava o nível vinte anos antes atingido. Por toda a parte, morriam mães e filhos que deviam sobreviver. Aqui e além, uma ou outra clínica estadualizada fazia bom serviço, mas a despeito das interferências políticas, a despeito da burocracia insensata que acompanhava todas as acções governamentais. Por cada Ridgville, por cada Lakeview, havia várias centenas de Adsons.

Por outro lado, tornava-se ostensiva a evidência da dispendiosa confusão, da ruinosa e incompetente extravagância do novo regime. Não se podia negar que, por cada médico activo e útil, havia numeroso grupo de pessoal administrativo inútil, empregados supérfluos, pequenos e grandes parasitas, ocupados em transcrever pormenores fúteis e desprovidos de todo e qualquer interesse. As contribuições médicas representavam não só um fardo opressivo, mas também um escândalo berrante.

Em discurso corrosivo que a rádio difundiu através de todo o país, sublinhou McDonough que nunca a medicina chegara àquele estado. E que não devia nem podia continuar assim. O toque de reunir passou a ser: “Restituam a medicina aos médicos!”

- Tudo isso está muito bem - comentava Ann, perspicaz. - Mas a que espécie de médicos?

Agora, discussões a três reuniam na clínica - e até muito tarde - Porter, Warren e a mulher deste.

- Vocês têm a impressão de que faziam outrora truques tão espantosos? - inquiria Ann.

- Muitíssimo mais espantosos do que hoje - resmungava Porter.

- Sem exagero. É claro que o trabalho podia ser melhor, mas... De resto, se ele fosse absolutamente Bom, o Governo não nos tinha caçado a medicina.

- Donde resulta que tu nos julgas pelos pecados do conjunto da profissão?... - perguntou Ran.

- Em todo o caso, pelas falhas e insuficiências - respondeu Ann.

- Ela não se engana - admitiu Porter. - É impossível voltarmos ao antigo estado de coisas. Isto está irremediàvelmente lançado à sucata. Os velhos fósseis que dirigiam a Associação Médica Americana doutros tempos já fizeram época, já não se pode contar com eles. Nem com as podridões médico-políticas que atulhavam as associações dos estados.

’- O que há de curioso na história - distraía-se Ran é que bom número destes pássaros foram progressistas, ou mesmo radicais, em pontos de aperfeiçoamento técnico. Como explicar que sejam tão retardatários, de vistas tão curtas, de mentalidade tão tacanha, quando se trata de pontos económicos ou sociais?

- Uma oligarquia hereditária e em circuito fechado não pode deixar de ser estagnante - comentou Porter.

Ran mirou-o com atenção:

- Francamente, não o sabia tão interessado por estes assuntos, Porter.

- Porque não tens conversado muitas vezes com ele disse Ann, que não estava no mesmo caso.

Todas as suas discussões, que acentuavam vivas diferenças de opinião nos pormenores, reuniam-nos em absoluto acordo quanto ao essencial: restituir a medicina à velha fraternidade médica, tantas vezes egoísta, negligente e inábil, com seu sistema defensivo e sua “ética” autoprotectora, não seria na verdade solução vantajosa para as ingentes dificuldades da profissão nem, decerto, melhoraria as necessidades do serviço público. Ficaria sempre sem solução o problema do auxílio dos economicamente fracos, por um lado, e, por outro, o da retribuição dos médicos que aos doentes dariam o melhor do seu tempo, da sua dedicação e das suas capacidades.

Nada de válido se realizara desde a implantação da desastrosa medicina do Estado, excepto o horrível exemplo da maneira por que não deviam fazer-se as coisas. Proposta como remédio aos males inerentes à prática particular, esta panaceia mostrara-se, pelo contrário, uma espécie de monstro de Frankenstein, destruindo a profissão que, por hipótese, devia socorrer.

 

Continuava severa a temperatura, quando, uma manhã, o Dr. Gilbreath telefonou de Ridgeville para saber notícias da rapariga.

No fim da conversa, disse o obstetra:

- Não desligue: está aqui o Dr. Barton, que quer falar-lhe.

Elevou-se a voz precisa e clara do cirurgião:

- Está lá, Warren? Os pormenores deste precioso plano estão em dia?

- Sem dúvida. Porquê?

- Tem aqui um amigo a quem eles muito interessam.

- Não será o senador McDonough? - perguntou Ran, palpitante de alegria.

- Eu não mencionei nenhum nome.

- Oh ! Desculpe! Como vai o hospital?

- Óptimo. Você faz-nos falta. Que pena não serem melhores as notícias de sua esposa! O amigo de que acabo de lhe falar vai meter-se no carro para ir trocar umas ideias consigo. Eu também. Temos de verificar certas coisas em Adson. Porque é que você não pega no seu carro para ir ter connosco a Adson?

- com muito prazer. Perguntem pelo Dr. Roberts. Vou para casa dele.

Uma voz de megera, de soprano furioso, ergueu-se no corredor no momento em que ele desligava.

- O senhor é um mentiroso! Eu não me abaixarei assim. Eu sou uma senhora! - gritava a voz em que palpitavam lamentos.

O Dr. Porter apareceu à porta do gabinete de Ran.

- Interessa-lhe saber que a nossa sereia loira estava uma vez mais a ouvir a sua conversa?

- Mentiroso ! Mentiroso ! Mentiroso ! - soluçava a “senhora” insultada. - Eu tentava apenas obter uma ligação!

Pegando no casaco e no chapéu, atirou-se para a rua. Porter bocejou:

- Era importante?

- Não. Sim. Talvez. A mim mesmo pergunto. Podia ser.

- Dez contra um, então, que ela está a tentar ligar para Adson, para dar informes.

Perturbado, Ran dizia para consigo não haver qualquer mal no que ela tinha ouvido. Pela janela, viu-a entrar na farmácia. E se fosse efectivamente telefonar a Wade? Não seria, com certeza, para se lamentar de Porter.

com duas horas à frente, antes de dever partir para Adson, Ran deu-se ao trabalho quotidiano. Foi interrompido por uma barulheira de vozes excitadas no átrio, e ouviu o seu nome várias vezes pronunciado. Meia dúzia de rapazes da cidade transportavam um outro, muito capaz, chamado Stoner. Ia atordoado e cheio de sangue. Ran examinou-o, viu que as feridas eram superficiais, pensou-as, e mandou-o para a cama. Entretanto, a conversa fragmentada do grupo permitiu-lhe obter os pormenores do acidente.

Marcus Regan, que conduzia o seu potente carro, descera da montanha em busca do filho, tornara a partir após tê-lo descoberto, e, com ele, levava o seu companheiro Paul Creshaw. A saída da cidade, numa esquina apertada, o automóvel do déspota local derrapara no gelo, galgara o passeio e atirara o jovem Stoner de encontro a uma vitrina. Depois de se terem informado do sucedido, os homens seguiram caminho, buzinando com força.

Existiria qualquer relação entre a pressa de Regan e a comunicação telefónica interceptada? Porque tinha o senador McDonough de parar em Adson? Seria motivo da visita o negócio dos estupefacientes, no qual Warren estava plenamente convencido de que Wade e Regan desempenhavam papel importante? Mais preocupado agora, bem menos livre de espírito, Ran deixou o dispensário aos cuidados do Dr. Porter, passou por casa a dar um beijo a Ann e pôs-se a caminho de Adson.

Por não encontrar o Dr. Roberts no dispensário nem no hospital, dirigiu-se a casa dele. Havendo obtido transferência, o otorrinolaringologista fazia as malas. Ran, que contava ter de esperar uma hora, começou a discutir a situação local. Roberts disse que o Dr. Wade parecia muito nervoso e deprimido. Branch assumira a superintendência do hospital.

A hora de espera transformou-se em duas, depois em duas e meia, e os médicos ouviram então, ao longe, o gemido agudo e prolongado da sereia duma ambulância. Aumentou, virou a esquina e enfraqueceu para o lado do hospital.

O telefone tocou:

- Para si - disse Roberts.

Ran pegou no auscultador. Era uma voz feminina.

- É do hospital, Dr. Warren. Esperam-no com toda a urgência.

- Deve haver engano. Não me iam chamar...

- Venha sem demora, peço-lhe - interrompeu a voz, cada vez mais aflita. - Um acidente.

- Curioso - disse Ran a Roberts, enquanto vestia o sobretudo. - Pergunto se, ainda por cima, não se tratará duma chamada falsa.

- Quer que o acompanhe? Em caso...

- Sim. Gostava.

No átrio do hospital, foram acolhidos por dois polícias do Estado.

- Para este lado, doutor -- disse um deles.

- De que se trata?

- Catástrofe. Senador McDonough. Parece grave.

 

À porta das urgências, juntou-se-lhes o Dr. Branch, que chegava de fora, à pressa.

- Que está você a fazer aqui? - perguntou ele a Ran, sem sequer simular cortesia.

- Chamada particular.

Ran empurrou-o e passou. Seguiu-o Roberts. Dirigiu-se-lhes o Dr. Barton. Numa mesa, uma forma coberta. Branch dirigiu-se a Barton, resolutamente:

- Mando já preparar a sala de operações, doutor.

- O doente é meu - declarou Barton, pálido e trémulo.

- E o hospital meu - atirou Branch, irritado. - Lembre-se de que quem manda aqui sou eu.

Saiu. Barton virou-se para Ran:

- Você vai ter de operar.

- Eu?. - perguntou o outro, estupefacto.

- Tem de ser você ou o Brandi. Não quero nada com o Branch.

- E porque não o doutor?

Barton mostrou a mão direita, negra e inchada:

- Nem sequer posso servir de assistente.

- Eu sirvo - declarou Roberts.

Bastou a Ran olhar para Barton para confirmar a opinião dos polícias: aquilo parecia grave. Os cabelos grisalhos de McDonough estavam colados por cima da têmpora esquerda, onde um pequeno golpe no coiro cabeludo havia abundantemente sangrado. A coagulação do sangue tinha detido o derramamento. A periferia do corte estava inchada, o olho negro e pisado.

McDonough parecia inconsciente e não saiu do seu torpor quando Warren lhe levantou as pálpebras para examinar as pupilas. Tinham sensivelmente o mesmo aspecto; a da esquerda talvez se houvesse dilatado um tudo-nada. O feixe de luz que projectou sobre uma delas não provocou a menor contracção. Perguntou a Barton:

- Há quanto tempo?

- Hora e meia, mais ou menos.

- Como aconteceu?

- Caiu de cima uma rocha, exactamente quando o carro dele entrava numa curva.

- Ficou debaixo de qualquer coisa?

- Acho que não. A cabeça deve ter batido no carro quando este se virou.

Pareciam assim fracos os riscos de lesão interna; Ran podia prestar toda a atenção às feridas da cabeça. A mais grave parecia a da têmpora esquerda. Mexeu as pernas e os braços do ferido: seria a mesma a flexibilidade dos dois lados? Não podia dizer. Nem que sim, nem que não. Todos os sintomas pareciam indicar fractura temporal, com provável hemorragia entre a membrana que serve de forro ao crânio (a dura-máter) e este. Tais hemorragias podiam exercer pressão sobre qualquer parte vital do cérebro e, até, provocar a morte. A presente era particularmente de temer, pois interessava a região motriz, parte do cérebro que comanda os movimentos dos músculos.

- Quer fazer o favor de verificar as funções? - pediu Warren a Roberts.

A enfermeira, disse:

- Traga uma maca e ponham-no na cama, evitando todos os solavancos. Enfermeiras especiais de serviço. Mande esterilizar uma seringa e uma solução de glicose para uma injecção intravenosa, que pode ser necessária. - Virou-se para o cirurgião: - Que acha que devemos fazer, Dr. Barton?

- Está nas suas mãos. Eu não confio nos meus raciocínios, tão abalado estou.

O cirurgião levantou-se, vacilou, e cairia se o Dr. Roberts e as enfermeiras não o agarrassem. Estava fora de jogo, naquela altura.

Ran injectou novocaína na chaga de McDonough, sempre inconsciente. Mãos cobertas de luvas esterilizadas, apalpou o crânio por baixo da ferida: não encontrou qualquer vestígio de depressão óssea, nenhuma fractura perceptível, mas sabia que tal nada garantia. com efeito, as fracturas do crânio não se produzem necessariamente no próprio lugar do choque. Às vezes, aparecem no oposto, em consequência do que os cirurgiões chamam confre-coup. Outras vezes, atravessam a base do crânio, ocasionando sangria numa ou nas duas orelhas. Mas não havia sangue em nenhuma destas, nem fresco, nem seco.

Warren supunha encontrar-se uma fractura na região temporal, um pouco abaixo e por trás da ferida exterior. Não precisava de ser muito grande para causar bastante perigo. Bastava que uma artéria se encontrasse levemente afectada e deixasse escorrer sangue, ou que, à falta de exutório, se acumulasse infalivelmente no interior. Se a hemorragia não parasse por si, a acumulação do sangue comprimiria a matéria cerebral mole e maleável, e chegaria o momento em que só uma intervenção cirúrgica poderia impedir a morte. Tudo consistia, portanto, em julgar se ainda se podia contar com o auxílio da natureza ou se era indispensável intervir para ligar o vaso ferido e parar o derramamento mortal.

Trabalhando depressa, Ran fechou o golpe com dois pontos e colocou um pequeno penso. Roberts levantou-se, terminado o seu exame, precisamente quando Branch entrava na sala, no passo mais militar, anunciando:

- Está tudo pronto. Podem levar o doente sem demora.

Ran olhou-o com curiosidade e interrogou:

- Qual é a sua ideia?

- Levá-lo para a sala de operações. Acho indispensável operar imediatamente, para ver a extensão do perigo.

- Eu não acho.

- Você não tem nada com isto, não tem direitos aqui, Dr. Warren.

- Eu confio o ferido ao Dr. Warren - disse Barton, levantando-se.

- Lamento ter de declinar a sua autoridade, Dr. Barton. O que o Dr. Warren tem em mente é bastante simples de adivinhar: quer eliminar-me deste caso, e operar ele. Pretende os louros de haver salvo a vida dum importante senador, se não o matar.

A paciência de Ran esgotou-se.

- Saia-me da frente! Saia, antes que eu o corra daqui! - ordenou em voz baixa e violenta.

- Chame o Dr. Wade pelo telefone, Miss Durbin - pediu Branch.

- Fique ao pé do doente, Miss Durbin - impôs Warren à desnorteada enfermeira.

Carregado de furor o rosto arrogante, Branch saiu, cheio de cólera. Ran seguiu-o até ao corredor.

- Como está ele, doutor? - interrogou, ansioso, o mais velho dos soldados.

- É um ferimento grave. Grave. Quer ser útil?

- Quero, sim, doutor. Devo a minha situação ao senador. Faremos o que o doutor mandar.

- A vida dele vai estar em jogo por algumas horas. Ninguém deve ser admitido no quarto sem licença minha ou do Dr. Barton. Compreende?

- Compreendo, sim, doutor.

- A família está avisada?

- Só tem uma irmã. Mandámos um ter com ela. Devia estar cá esta noite.

- Bem.

Ran voltou ao quarto e disse a Roberts:

- Aposto que o Branch foi à procura do Wade.

- Não o encontra, ao menos para já. Vi-o deixar a cidade no carro do Regan, em direcção à propriedade deste.

A enfermeira, depois de pensar a mão ferida do Dr. Barton, insistia, apoiada por Roberts, em que ele bebesse um bom copázio de aguardente. Ele bebeu e arribou:

- Que acha que devemos nós fazer?

A pergunta era espinhosa. Se respondesse “operemos imediatamente”, isso podia significar (ou, pelo menos, parecê-lo), como insinuara o verrinoso Branch, que estava desejoso de ser ele a operar. Por outro lado, se se adiasse a operação, podia fazer-se demasiado tarde para McDonough ainda poder suportar o choque.

- Por agora - respondeu, lentamente - acho que o que se impõe é a temporização: muitas fracturas do crânio se curam mesmo que haja uma pequena hemorragia intracraniana. O senhor McDonough encontrava-se em perfeito estado físico; portanto, podemos sem risco deixá-lo um pouco à espera e debaixo de vigilância, tratando-o do abalo. Qual é, nesta região, o melhor especialista da cirurgia cerebral?

- É o Carrollton, de Richmond. É preciso chamá-lo?

- Eu ficava mais tranquilo.

- Compreendo - interveio Roberts. - Mas não se esqueça de que, por estas estradas, é preciso contar com seis horas.

Ran reflectiu. Se aquele vaso sanguíneo continuassse a deitar para o interior do crânio, podia ser perigosa uma demora de seis horas. Nesse momento, talvez a própria experiência de um Carrollton não chegasse para impedir o pior. Além disso, não era a morte o único perigo a temer. O lado direito já começava a paralisar-se: se se agravasse rapidamente a pressão hemorrágica, o pulso e a respiração atrasar-se-iam proporcionalmente, o que enfraqueceria o doente, diminuindo-lhe a resistência. E ainda podia acontecer que, da demora demasiado longa, resultasse um mal permanente para o cérebro.

Ran sabia-se capaz de realizar a delicada tarefa. Mais duma vez, em Lakeview, em casos de graves fracturas do crânio, operara descompressões, cortando uma placa de osso para tirar de baixo o coágulo apoiado ao cérebro.

- Porque não uma radiografia ao crânio? - inquiriu Roberts. - E talvez uma punctura espinal...

- Há, de facto, excelentes especialistas que recomendam as duas - volveu Warren, pensativo. - Mas ensinaram-me que se perde muito e ganha quase nada em levar o doente aos raios X.

- E além disso não indicava nada que você não soubesse já - apoiou Barton.

- E quando se dá uma hemorragia sob a dura-máter, a punctura espinal pode agravar as coisas, ao aliviar a pressão do fluido espinal contra o vaso em perigo.

- Vê-se que você viveu aos pés do Stokoff, Warren notou Barton. - Ouvi-o dizer exactamente isso, em mais de uma reunião médica.

Passaram duas horas. O ferido estava na mesma; apenas a pupila esquerda se dilatara nitidamente e paralisara-se o lado direito. Encontrava-se ali estendido, em coma, respirando devagar, fundo, com o pulso a vibrar lentamente no dedo de Ran.

Mais uma hora, e deu-se uma alteração. A respiração tornou-se um pouco menos curta, menos ruidosa, o pulso ligeiramente menos forte, omitindo por vezes uma ou duas pancadas, precipitando-se outras vezes por minutos. Ran deixou o quarto e foi telefonar ao Dr. Roberts, que regressara às malas.

- Receio dificuldades. A respiração e o pulso estão a baixar, indubitavelmente.

- Bem. Vou já.

Roberts voltou a examinar, com toda a minúcia, McDonough. Dirigiu-se com Warren à sala onde o Dr. Barton descansava. Comunicaram-lhe as suas observações: pulso lento e irregular, respiração reduzida, aumento de pressão sanguínea, o que indicava, no interior do crânio, compressão tal que impedia a circulação nos centros vitais do cérebro e forçava por isso o aumento da pressão na circulação geral do corpo. Mas este esforço, obrigatoriamente limitado, não chegava para impedir perigosa anemia cerebral, e após esta - só a morte.

- Gostava que fosse examiná-lo de novo, Dr. Barton.

Os três homens voltaram junto do paciente.

- Como eu queria que chegasse a irmã! - exclamou Barton.

- Já há dez minutos que está lá fora à espera - respondeu a enfermeira.

Pediram-lhe logo que entrasse. Era alta, cabelos negros, olhos atentos e inquietantes. Ran pensou logo à primeira que se podia contar com a coragem e o sangue-frio dela.

- Posso ouvir tudo, Joe - disse ela, apertando a mão a Barton. - É grave?

- É. Chamámos o Carrollton. Mas agora temos medo de esperar mais.

- Qual é a outra alternativa? Operar?

- Sim.

- Era você que se encarregava de o fazer?

Barton mostrou a mão entrapada.

- Eu não. Impossível. O Dr. Warren. Pode ter toda a confiança nele.

- Ouvi falar dele. - Ran pôs-se a escutar atento. - Acha que pode suportar a operação?

Ran olhou para Barton, mas, perante o silêncio deste, compreendeu que tinha aos ombros o fardo da responsabilidade.

- Deve haver grandes possibilidades, a não ser que sejam mais graves do que suponho os estragos do cérebro. Mas, se ficarmos horas à espera... duvido...

- Também acho - opinou Barton.

- E eu também - confirmou Roberts.

A irmã inclinou a cabeça, fechou os olhos por instantes, e os lábios mexeram-se-lhe sem barulho. Ao levantar a cara, disse claramente:

- Opere.

Quinze minutos depois, levaram ao centro brilhantemente iluminado da sala de operações a forma estendida de McDonough, coberto por um lençol. Ran e Roberts desinfectavam-se. Calmo, atento, sério, Barton tinha os olhos em tudo. Aliás, tudo estava pronto, os instrumentos esterilizados nas mesas cobertas de branco, com as seringas, as agulhas, a corda de tripa para a sutura, os fios de seda esterilizados na cera a ferver.

Rapada de todo o lado esquerdo, a pele do crânio do ferido encontrava-se estranhamente escura. A cabeça assentava num quadro estreito, fixo à cabeceira da cama, o qual facilitava o acesso à têmpora. Abria-se nitidamente o pequeno golpe, preso pelos dois pontos. A incisão que Ran ia fazer não cortaria a ferida, mas, partindo da orelha, iria para cima, com leve inflexão para trás, quase até meio do crânio.

A respiração de McDonough estava um pouco menos profunda do que uma hora antes, e o pulso, irregular, batia-lhe a setenta. A tensão sanguínea, que subira dez pontos, indicava agravar-se rapidamente a compressão do cérebro.

Várias injecções sabiamente repartidas de novocaína e adrenalina cercaram os nervos nos pontos onde eles penetravam no músculo, a fim de suprimir a dor quando o escalpelo começasse o trabalho, e reparavam as fibras musculares para permitir o acesso ao osso.

Trabalhando com o bisturi, com as pinças hemostáticas, com uma verruma que se parecia bastante com o berbequim do marceneiro, o cirurgião descobriu primeiro o próprio crânio, esbranquiçado ao fundo da chaga, e depois, ao fundo dum buraco em forma de taça aberto no crânio, uma membrana dum branco morto, que mais ou menos fazia lembrar uma casca de ovo: a dura-máter.

Entraram então de serviço os “roedores”, espécie de vigorosos fórceps de maxilares potentes e capazes de morder o osso. Ran serviu-se deles para aumentar o buraco até o tamanho dum meio dólar. Sob a brancura da membrana, distinguia-se uma mancha azul-escura, quase negra, que, normalmente, não estaria ali: o coágulo.

Ocupar-se-ía com este depois, quando tivesse ligado a artéria meníngea média, pois o mais urgente consistia em deter a hemorragia.

Era fácil de seguir na dura-máter o trajecto do vaso, que nela deixava um traço em relevo. Afastando-se da têmpora, ramificava-se como uma árvore, mas, na extremidade inferior do círculo, donde fora retirado o osso, era apenas um tronco simples, da largura aproximada dum bico de lápis. Ran fez leve corte na dura-máter, passou delicadamente para baixo da artéria, fez passar pela estria uma agulha enfiada, tão fina que tinha de ser segura entre os braços dum hemostático, e obrigou-a a sair do outro lado da artéria que, em seguida, ligou solidamente, detendo as pulsações do sangue no troncozinho principal e, em consequência, nos seus inumeráveis ramais. A colocação do coágulo indicara-lhe o ponto onde se encontrava ameaçada a artéria e, assim, onde devia ligar, para impedir a hemorragia.

Ran soltou um suspiro de alívio. Estava pronta parte da tarefa, e as coisas haviam-se passado com mais facilidade do que supunha. Podia ter sido muito mais difícil. Lembrava-se duma ocasião em que Stokoff transpirara por todos os poros para conseguir o mesmo.

Tratava-se agora de retirar o coágulo.

Para impedir um mal-estar sempre possível após a abertura da dura-máter, Warren solicitou ao Dr. Roberts que desse ao paciente uma intravenosa de solução de glicose a cinquenta por cento: às vezes, a glicose faz maravilhas no cérebro.

O efeito da injecção foi quase imediato. Logo que Ran sentiu a membrana menos distendida, levou de novo o “director” ao devido lugar e, cortando na dura-máter um círculo mais ou menos do tamanho do buraco antes aberto no osso, dobrou-a sobre ela mesma, expondo, por sua vez, o cérebro.

Normalmente, este apresenta-se como uma substância branco-rosada, superfície com circunvoluções rodeadas por uma rede de vasos cheios de sangue. Agora, estava suja de sangue, num coágulo escuro. Dos bordos da ferida, escapava-se um fluido esbranquiçado imbuído de vermelho.

Observou a anestesista:

- Respiração difícil. Pulsações rápidas e um tanto irregulares.

Ran já previra: os centros vitais, muito tempo privados de afluxo sanguíneo, e que, descomprimidos pela abertura da dura-máter, se encontravam outra vez novamente irrigados, precisavam de algum tempo para retomar o equilíbrio funcional.

Cobriu a parte do cérebro, posta a nu, com um pouco de algodão húmido, e, em pé junto do ferido, esperou pela regularidade, a fim de continuar.

Dois minutos, cinco minutos. Roberts e a anestesista verificavam a respiração, o pulso, a tensão sanguínea.

- Melhorou. Acho que pode tirar o coágulo - informou Roberts.

Chegavam ao ponto crucial da operação. Eram imprescindíveis nervos estáveis, mão precisa. Ran preparava-se, quando de súbito, rebentou no corredor violenta desordem. Uma voz estridente barafustava:

- Eu sou o oficial médico deste distrito.

- Chegou o Wade! - murmurou Roberts. - Parece tudo doido!

- Isto custa-lhe o emprego! - ameaçou de fora outra voz: Regan, o déspota, apelava para a pressão política.

Os dois polícias do Estado conservavam-se firmes:

- Os senhores não podem entrar; são estas as ordens. E não entram mesmo! - disse um, que acrescentou em voz logo imperativa: - E não se mexa para este lado, meu amigo!

Regan sénior disse então ao filho:

- Calma, Bud. Não vai haver aqui tiroteio.

- É mesmo o que acontece se algum de vocês tenta passar - ameaçou o segundo agente.

Desta vez era o Dr. Branch que tentava a persuasão:

- Acaba de chegar de avião, de Washington, um grande especialista do cérebro, que vem tratar do senador. Doutor, dê-me os seus papéis oficiais. Vejam, rapazes. Não vão pôr em dúvida a autoridade do secretário do Estado da Saúde, pois não?

Mas o mais velho dos guardas manteve obstinadamente a sua posição:

- Não sei nada disso! Estamos aqui para não deixarmos entrar ninguém antes de acabar a operação, e ninguém entra. Mais nada; é assim mesmo !

Barton encaminhou-se para a porta, lentamente, e disse:

- Não deixem passar.

No desespero provindo dum excesso de fadiga nervosa, Ran perguntou:

- Estarei eu em condições de continuar?

- Se não continuar, é o especialista deles que acaba a operação. E você sabe o que isso significa.

Sim. Warren sabia. Conservavam-se, em letras de fogo, na sua memória, as palavras de Larry Vilson: “Mandam vir um especialista... e é o fim... morte súbita por embolia... ou morte lenta por septicemia... Foi o caminho do pobre Jessler... do Metey... do Porteous... e doutros...” Era o que aconteceria a McDonough, ao homem que dispunha das provas capazes de lhes arruinar todos os planos. Só passando pelo seu cadáver é que Ran deixaria o especialista junto do senador.

Ouviu a voz clara duma mulher. Intervinha a irmã do senador, que protestava, advogando, e lhes pedia que se fossem. E mais um esclarecimento:

- O meu único desejo, minha senhora, é oferecer a seu irmão aquilo em que posso ser-lhe útil. Por ordem especial do secretário Wilson...

Era o emissário! Onde ouvira Ran aquelas inflexões suaves e melodiosas? Não tinha agora tempo para pensar nisso. Atravessava as paredes a cólera de Regan:

- Venham, rapazes. Eu vou-me embora. Mas voltaremos com o grupo do xerife, e vocês, os meninos da espingarda, o melhor será não aparecerem.

No silêncio restabelecido, Ran atirou-se ao trabalho.

com habilidade maior do que nunca, continuou o que tão bem começara e tirou da coroa da cabeça um coágulo do tamanho aproximado dum dólar. Não conseguiu descobrir outro, e, no caso de vir depois uma efusão do fluido espinal, não haveria mais hemorragias: fora coroada de êxito a ligadura da artéria meníngea média, e estancara o corrimento.

O que faltava, agora, podia dizer-se relativamente simples e fácil. Suturou a dura-máter e levou o músculo temporal à abertura da caixa craniana, onde se formaria de novo, aos poucos, uma membrana óssea. Este ponto ficaria sempre fraco, sem que daí adviesse qualquer perturbação ao interessado.

Recosida a chaga do couro cabeludo, e tapada por um penso e uma ligadura, Warren contava com o vigor são de McDonough para fazer o resto e garantir a cura.

- Belo trabalho, Warren - disse Barton. - O McDonough deve estar bem, agora.

Ran pensava o mesmo. Nem por isso deixou de ficar quase toda a noite à cabeceira do ferido: podem trazer surpresas as doze horas que se seguem à descompressão duma fractura do crânio; Warren não queria deixar qualquer responsabilidade a mãos inexperientes.

Durante a noite, com efeito, houve alarme: tornou-se irregular o pulso do doente e menos profunda a respiração. Preparado para a eventualidade, Ran deu uma injecção de glicose e, quinze minutos depois, tudo se normalizava outra vez.

De manhãzinha, McDonough mexeu-se, abriu os olhos, gemeu uma ou duas vezes de dor e agitou o braço que estivera paralítico. Ran mandou a enfermeira buscar um calmante e, deixando o doente a dormir tranquilamente, saiu do quarto em bicos dos pés. Agora estava tudo bem, ele sabia. McDonough vencera a crise imediata.

A enfermeira havia encomendado almoço para o doutor. Antes de ir engoli-lo, ele agradeceu aos dois sonolentos polícias, dizendo-lhes que tudo estava a correr bem e que já não seriam precisos. Partiram. Pálida, mas alegre, Miss McDonough veio ter com Ran:

- Viu o especialista de Washington?

- Não, ainda não.

- Está no átrio, a conversar com o Dr. Wade e com um homem de rosto grande, bem vestido.

- O Regan, talvez. Vou deitar uma olhadela ao meu ilustre confrade. - Foi até à porta. Virou-se um homem magro, de cabelos negros. - Mas é o Dr. Sarnov! - disse Ran. Não contava com este prazer!

- Muito lhe agradeço que me entregue o seu relatório, Dr. Warren - disse o ex-obstetra, inflexível. - A partir deste momento, sou eu que me encarrego do caso do McDonough.

- Ah, não! De maneira nenhuma! Ele não precisa de cesarianas!

Ran ficou muito satisfeito ao ver o rubor que cobriu as faces de Sarnov.

- Você já não risca, Warren - advertiu Wade. - O Dr. Sarnov recebeu a sua autoridade directamente de Washington.

Regan dirigiu-se para a porta. Uma suspeita invadiu o espírito de Ran, que logo procurou Miss McDonough.

- Oiça-me com atenção - disse-lhe ele. - Seja com que pretexto for, e seja em que circunstâncias for (está a ouvir bem?), seja em que circunstâncias for, não deixe o seu irmão sozinho com o Dr. Sarnov. Nem sequer por um segundo. Avise o Dr. Barton. Chame o Dr. Roberts. Ou um ou outro devem estar constantemente junto do senador. E arranje maneira de advertir o mais depressa possível os seus amigos de Washington de que ele se encontra em perigo.

- Que espécie de perigo? - perguntou ela, branca até aos lábios.

- Cirúrgico - respondeu Warren, melancolicamente. - Não permita que ninguém, mesmo ninguém, toque naquela ferida, a não ser o Dr. Barton ou o Dr. Roberts. Ninguém! Telegrafe à Comissão a dizer que se despache a ameaçar o secretário da Saúde, o Wilson.

- Mas você não vai abandonar-nos? - gritou ela.

- Não pensa que eles me deixam a alternativa, pois não? Querem o caminho livre. Faça por que não o consigam.

Abriu-se a porta num repente. O xerife e dois homens seus prenderam Warren e deitaram-lhe algemas.

- A que pretexto? - perguntou ele.

- Coma e cale! Mais tarde saberá.

Levaram-no para fora.

- Eu queria dizer uma palavra, profissionalmente, ao Dr. Sarnov.

- Seja o que for - afirmou Wade - pode dizê-lo em público e todos nós devemos poder ouvir.

- Assim o quero! - garantiu friamente Ran. - Dr. Sarnov: o senhor quer encarregar-se do meu doente; portanto, torno-o responsável, médica e legalmente. Se acontecer algum acidente - e acentuou a palavra - alguma complicação inexplicável, prometo-lhe um inquérito. Nem o secretário Wilson, nem qualquer outra potência, política ou não, poderá abafá-lo, garanto-lhe eu. E o motivo do inquérito - Ran interrompeu-se e olhou sucessivamente para os olhos de Sarnov, Wade e Regan, antes de concluir, pausadamente - será “crime”.

- Que pretende insinuar com isso? - rugiu Sarnov.

- Levem-no! - ordenou Regan.

Ao sair pela porta principal, Ran viu Barton a entrar no átrio com Miss McDonough. O cirurgião dirigiu-lhe um gesto tranquilizador:

- Há-de correr tudo bem! Eu aguento.

Ran desejou do coração que tal promessa pudesse cumprir-se.

 

Não preocupou muito a Ran que o conduzissem para a prisão. Levassem-no para onde quisessem, contanto que o deixassem dormir imediatamente, e muito. Andava esgotado de todo. E mal o carcereiro fechara a porta da célula, logo os seus olhos se cerraram, vencido pela fadiga.

O que muito o incomodou foi sentir-se sacudido até acordar.

- Um repórter à sua procura.

Não diminuiu com isto a sua indignação. Levantou os olhos para uma figura magra, impecavelmente vestida, e para o rosto plácido e benevolente dum homem que devia andar pelos quarenta anos. Warren partilhava da desconfiança geral entre os da sua profissão perante os jornais; pensou por alto’ que aquela aparição não se assemelhava em nada aos marotos desesperantes de que a cena e a tela fizeram o tipo clássico do jornalista. O visitante apresentou-se:

- Vereker. D’A Voz, de Washington.

. - Washington? - repetiu Warren, estupidamente. - Como chegou tão depressa?

- Avião particular. O senhor operou o senador McDonough, não é verdade?

- Não tenho nada que dizer. Não falo dos meus casos. Não dizem respeito aos jornais. E, além disso, preciso de dormir.

- O senador McDonough representa uma informação

legítima. Morto ou vivo.

Ran sentou-se:

- Como? Que foi? Ele não morreu?...

- Não. Mas - e Vereker escolhia deliberadamente os termos - estes casos apresentam sempre certo perigo. O perigo, por exemplo, de uma lenta e incurável infecção no tempo de hospital.

Ran já estava agora bem acordado. E era todo ouvidos.

- Repita isso, por favor.

O repórter repetiu com muita amabilidade. Acrescentando até este comentário:

- Vários membros do estado-maior do senador já têm sucumbido a esta epidemia. Mas talvez o senhor não saiba de nada...

- Gostava de saber como é que você sabe.

O outro ignorou o desejo, mas continuou:

- O Dr. Barton mandou um recado para o senhor: o doente encontra-se o melhor possível.

- Obrigado. Mas, se falou com o Dr. Barton, não precisa de nada meu.

- Se preciso! Para várias coisas. É você o herói da aventura. Operação desesperada, enquanto dois polícias do Estado têm de se impor para conservarem à distância as autoridades locais, etc

- Santo Deus!

- Ou qualquer coisa neste género. Se eu o tirar daqui, o senhor dá-me uma entrevista?

Ran considerou, não sem cepticismo:

- Gostava de saber como é que me tirava daqui.

- Bom: a bem dizer, o doutor não devia estar cá.

- Isso sei eu!

- Não foi muito mau, em Adson.

- Que quer dizer com isso: “muito mau”? Eu não podia bater-me com a escolta do xerife, não acha?

Ran estava sinceramente indignado. A resposta veio calma:

- Muito menos mau que o Dr. Barton. Pensa bem e depressa, este. Quando quiseram tirá-lo do quarto do senador McDonough, pegou num... (como é que os senhores chamam àquilo?) ...bem, cortante, a brilhar, cara de mau, e depois fê-lo valer com muito brio: “Eu sou”, disse ele, “oficial médico federal, estou em propriedade federal, e ao primeiro de vocês que tentar pôr um só dedo que seja em mim, corto-lhe o pescoço com esta coisa infecta, e, depois, se conseguir salvar-se, mando-o para Atlanta, perpetuamente. Tenho dito!” Não foram talvez estas as palavras exactas, mas, mesmo assim, a citação ficará muito bem num artigo. E com isto amarrou-os.

- Irra! Porque é que eu não havia de me lembrar do mesmo? Então, o Dr. Barton continua lá?

- De pedra e cal. O mais que deixaram o Sarnov fazer foi ler o gráfico. Cidadão muito indesejável, esse Sarnov.

Radicava-se em Ran, de minuto para minuto, a impressão de haver subestimado Vereker.

- E acha que pode tirar-me daqui?

O repórter consultou o relógio.

- A esta hora, já tiraram o prato do lume. Andámos atrás do grupo McDonough para se apressarem a obter do palácio federal uma ordem de soltura e a mandarem-na por avião. Deve cá chegar ainda antes de ser noite. Agora já fala?

- Suponho que não tenho outro caminho. Que pretende o senhor saber?

- Conte-me o que se passou no hospital. com os pormenores técnicos. Mesmo que eu os compreendesse (do que duvido), os nossos leitores não os entendiam com certeza.

Estimulado por algumas perguntas astutas, precisas e calmas, Ran fez uma narrativa bastante completa, pondo-se em último plano; era esta, pelo menos, a sua intenção, apesar das pacientes tentativas do repórter para o iluminar bem.

-- Fica estabelecido - disse, por fim, Vereker. - Passemos ao próprio acidente. Que pensa dele?

Ran contrariou:

- E você?

- Ainda não tive tempo de ir lá ver. Dê uma ideia.

- Está bem. Mas não para ser publicada.

- De acordo. Acabou a entrevista. Agora agradeço-lhe qualquer ideia, qualquer sugestão que possa dar-me.

- Já pensou no tempo que estava?

- Não. Catástrofe devida ao nevoeiro?

- De modo nenhum. Tempo claro e frio. Solo gelado.

Vereker contemplou-o, meditando:

- Solo gelado?

- Gelado, duro. Os pedregulhos não costumam arrancar-se sozinhos dum solo gelado para deslizarem pelas encostas das montanhas no momento mais oportuno. Pelo menos aqui.

- Não - admitiu o outro. - Não costumam. Muito bem. É pena que não fiquem passos no solo gelado.

- Passos não. É verdade. Mas uma alavanca, talvez.

Vereker levantou-se e dirigiu a Warren o mais belo cumprimento que conhecia:

- O senhor devia ter ido para repórter! Vou levar um fotógrafo lá acima.

- Gostava - disse Warren, ansioso - de que você me fizesse chegar notícias do senador.

- Farei o que puder - prometeu o outro. - O doutor merece-mo.

As quatro horas, chegou à prisão a ordem federal de soltura, e Ran foi logo libertado. Apressou-se a voltar a casa, para tranquilizar Ann. Esteve meia hora ao telefone, tentando em vão falar com Barton ou Roberts. A cada pedido, a mesma resposta desesperada: “Impedido... Impedido... Impedido...”

Porter chegou e encontrou Ran a praguejar.

- Que é que o excita assim?

- Porque não hei-de eu conseguir falar com ninguém do hospital?

- Empregue a inteligência - aconselhou o outro. - É muito possível que estejam “incomunicáveis”. Comunicações interrompidas.

- Então Vou lá.

- Eu não ia.

- Porquê?

- Não será útil em nada. E vai naturalmente encontrar novos aborrecimentos, o que será mau para sua esposa.

- Peço-te, Ran: não vás! - suplicou a rapariga. - Se soubesses como me afligi!...

- Bom.

Cedia, mas instalou-se junto do telefone, em inquieta vigília, com frequentes e infrutuosas ligações para o hospital de Adson.

As oito e um quarto, tocou a campainha. Ran saltou para o aparelho.

- Dr. Warren? Uma chamada de Adson. Uma voz calma:

- Dr. Warren? Daqui Vereker.

- Sim, sim.. - com a mão impaciente, deteve Ann, que se debruçava para ele. - Como vai...? - Fui lá acima dar o passeio previsto.

- Sim? E então? Encontrou alguma coisa?

- Se encontrei! E com diagrama. Você tinha razão.

- Então era mesmo uma...

- Por aqui não! - cortou Vereker. <- É uma história ainda fresca. Já lhes telegrafei seis mil palavras e preveni que esperassem até o último momento para fechar o jornal.

A actividade profissional de Vereker deixava Ran bastante frio. O que ele queria era saber do estado do ferido. E disse-o sem cerimónias.

- Perfeitamente satisfatório - respondeu o jornalista.

Ran, agora excitadíssimo, interrogava:

- Então viu o Dr. Barton? Que disse ele, ao certo?

- Não. Não o vi. Ninguém o viu. O Wade e o xerife puseram guarda à volta do hospital.

- Então, como sabe que...

- O Dr. Barton atirou um papel pela janela, encarregando-me de lhe dizer que o estado é normal, que não há complicações, e que o senhor não tem com que se preocupar.

- Óptimo. Mas se o Wade e satélites decidem fazer patifaria?

- É o que eles estão a fazer. E com entusiasmo. O Regan e o xerife apanham todos os tipos maus da cidade e fazem-nos prestar juramento de agregados às forças policiais da terra.

- Mas, Senhor! - exclamou Ran, assustado. - Isso quer dizer que eles tencionam entrar em acção! Que diz? Então?

- Então, dava uma história espantosa!... - garantiu plàcidamente Vereker. - Os dois polícias do Estado encontram-se agora no quarto do senador. São rapazes à altura; safam-se.

- Eu não faria bem em ir? - A voz de Ran era ansiosa, com as duas mãos de Ann a suplicarem-lhe no braço. - Podia levar reforços.

Pensava em Brad Carlton, no velho Hazlitt, em alguns outros montanheses, que também disparariam.

- Não é necessário. Não tentam nada antes de amanhã de manhã, penso eu, e, nessa altura, a situação está ganha. Ganha - acentuou. - Compreende?

- Não.

- Hum! É pena. Mas eu Vou arriscar, esperando que quem está a ouvir a conversa (é uma quase certeza) não compreenda o francês. Você compreende, doutor?

- Não. Mas - Ran teve uma ideia - está aqui a minha mulher.

Pôs o auscultador na mão de Ann.

- Está? - disse Ann.

Encontrava-se intrigada, e lia-se-lhe isso no rosto.

- Soldados? Soldados da... Ah! Sim, sim! Cães do diabo, nem? Óptimo! Quando? Amanha?

Obteve a resposta e comentou:

- Belo trabalho! Ideia sua?

Ran, de ouvido entre o da mulher e o aparelho, escutou uma réplica modesta.

- Talvez eu tenha dado a entender...

Desligou e pôs-se a rir, sem se conter:

- Acredites ou não, Ran, vem aí a infantaria da Marinha.

- Fala em termos claros ^- pediu ele, irritado.

- É verdade. Chegam ainda esta noite. O teu amigo repórter é um cavalheiro cheio de fontes!

- Dizes tu que ele chamou a infantaria da Marinha?

Ran estava céptico.

- Ele ou outro qualquer. Chamaram-nos. Os soldados do mar. Os cães do diabo. A situação está ganha. Que pena, querido - disse ela, altiva e superior - não te teres instruído quando estavas no colégio!

- Vai-te deitar, vá!

- Eu não. Fico a pé para saber as últimas novidades.

Chegaram ainda antes das vinte e quatro horas, quando o comboio da noite fez em Adson uma paragem especial para desembarque de fuzileiros, comandados por um sargento, que logo os dirigiu para o hospital.

Voltou ao telefone a voz de Vereker:

. - Agora, já se podem dizer as coisas em inglês. A infantaria da marinha está de posse do terreno. Duvido de que o senhor Regan e seus rapazes se lancem ao assalto. Mesmo que ele tivesse feito prestar juramento a toda a terra!...

- Mas (que diabo!)... como arranjaram isso?

- Bem! Ó secretário de Estado da Marinha, Westover, é grande amigo do senador McDonough. Alguém se deve ter lembrado de lhe explicar que este se encontrava em perigo.

- Alguém? Não terá sido você, por acaso?

- Talvez eu tenha dado a entender... - repetiu Vereker, modesto.

O artigo de uma página de A Voz ofereceu várias comoções à família Warren. A discrição de Ran ficou magoada, quando se viu passar dum momento para o outro ao estado de personagem nacional e de primeiro plano, em diversas colunas do jornal. Considerou a “história” um escandaloso exemplo de jornalismo de sensação. Recusou-se obstinadamente a lê-la à mulher e pôs-se a roer as unhas quando ela telefonou ao Dr. Porter, que veio e leu o texto de ponta a ponta,com efeitos oratórios e ênfase nos passos heróicos, que constituíram o suplício do interessado, a quem arrancavam protestos vãos. Pelo seu lado, Ann rejubilava. Reconhecia-se enfim o justo valor do marido, tantas vezes mal apreciado, e davam-lhe a sua parte de louvor e celebridade. Amou e admirou a “folha” de Vereker e varreu os protestos de Ran, arreliado por texto tão explosivo.

Pois era indubitável, pelo método e pela forma, tratar-se de jornalismo sensacional. Mas era também jornalismo exacto, compreensivo, honesto, embora um pouco colorido. Franca e ousada a acusação de perfídia e tentativa de assassínio. Fotografias onde se viam os traços da alavanca no solo, no sítio onde o pedregulho fora voluntariamente solto - a acusação. A Voz expunha que o senador McDonough estava em vésperas de publicar os resultados do seu inquérito sobre o tráfico de estupefacientes e a corrupção médica na hierarquia nacional, e dizia mais que o bando ameaçado preparava o grupinho para eliminar, para se desembaraçar do perigo que isso representava.

Só - afirmava Vereker - a inteligência, a ciência e a habilidade do Dr. Warren haviam salvo a vida de McDonough. O ponto de vista de Ran consistia em que qualquer pessoa conhecedora do ofício faria o mesmo, e esta humildade excitou a indignação furiosa de Ann, que teve a última palavra, em suma, quando, entrevistado, o eminente e constitucionalmente inentrevistável Dr. Carrollton, que chegara na véspera à noite, espalhou elogios calorosos e sinceros à habilidade técnica do jovem cirurgião.

Até o doente recuperar as forças necessárias para poder seguir para Ridgeville, ficou incessantemente vigiado por Barton, Roberts ou Warren, que se revezavam. No quarto do ferido, nunca se permitiu a entrada a Branch, nem a Wade, nem a qualquer médico local, e todas as enfermeiras e assistentes eram escolhidas entre pessoal capaz: o mais pequeno erro pode matar um doente dum momento para o outro.

Ao cabo de duas semanas, Barton permitiu o transporte do senador, que foi levado para Ridgeville numa ambulância escoltada pela polícia estadual.

Mal descansou, McDonough mandou chamar Warren. À parte uma leve palidez e uma ligadura à volta da cabeça, nada dizia que ele acabava de estar à morte. Ran sentiu o poderoso magnetismo daquele homem, quando ele lhe apertou a mão e, deixando-se cair para as almofadas, o olhou sorridente:

- Bem. Que ordens há?

- Ordens?... - repetiu Ran, sem compreender.

- Sim. As ordens da Faculdade. Continuo a considerar-me seu doente.

Ran corou:

- com certeza que o Dr. Barton pode apreciar melhor o seu estado do que eu.

- O Joe é um excelente cirurgião. Um médico de primeira classe. Não há melhor. E conhece-me. Mas eu quero a sua opinião, Warren. Quando posso voltar ao trabalho?

- Por enquanto, não - respondeu Warren, decidido. - Antes de dois meses não poderá ser. Este golpe na cabeça pode provocar complicações.

- Não falta muito, Warren, para que se dêem grandes alterações na profissão médica. O público anda farto e desconfiado. Caminhamos para uma organização nova, onde terão lugar homens como você. Entretanto, Vou fazer por que se limem as garras do Wade. Você deixa de estar sujeito a aborrecimentos com ele. E não pense que me esqueci do plano Warren. Há-de receber notícias minhas.

Dias depois, ao chegar ao dispensário, Ran foi detido por um Porter cujo sorriso era ainda mais trocista que de costume.

- Há uma gravura de modas, acabada de sair d’A Revista do Homem Elegante, que tenho ali à sua espera.

- De que sofre?

- Curiosidade, diria eu. Tem o ar inocente do bebé antes de apanhar, mas é capaz de fazer mais perguntas do que... Aí tem o objecto.

Apareciam o rosto benevolente, os olhos cândidos e a impecável figura de Vereker d’A Voz, de Washington. Porter eclipsou-se. O visitante acabou de dissipar as opiniões hollywoodianas e preconcebidas de Ran quanto ao procedimento duma artista, e não quis beber. Estava ali para tratar duns assuntos - explicou.

. - Que assuntos? Não tenciona despedaçar-me outra vez para gozar um espectáculo de circo, pois não?

- Não. Não é o senhor o herói desta página. Esteve aqui alguém com o nome de Lorrimer Thompson?

- Esteve.

- Que me diz o doutor a esse respeito?

- Nada. Clientela particular.

- Se o senhor não quiser dizer nada, digo eu - ofereceu generosamente o redactor. - Lorrimer Thompson era o Dr. Laurence Wilson, filho do secretário de Estado de Saúde.

- Era!

- É. Morada actual lá para as ilhas Hawai.

- Como vê, sabe mais do que eu.

- É a minha profissão, saber as coisas. Por agora, o seu amigo está seguro. Na viagem para lá, só teve um acidente.

- Acidente?

- Nada permite afirmar que fosse outra coisa. E não foi grave. Quem tentou “apanhá-lo” aqui, Dr. Warren?

- Lastimo, mas não posso falar disso.

- O Marcus Regan meteu-se nessa história, tenho a certeza. Mas o seu chefe, o artificioso Wade?

Ran abanou a cabeça, em silêncio. Vereker considerava-o com a paciência já um pouco cansada.

- Bem. Eu sei que dispararam sobre ele. Mas ignoro quem. De resto, não me preocupa. O que me interessa é conhecer o cérebro que trabalhou por trás dessa mão. Os homens que ordenaram a coisa. Isso ajudá-lo-á a falar?

Passou a Warren uma carta de McDonough:

O senhor Vereker trabalha em íntima ligação com a Comissão; tem toda a nossa confiança. E eu gostaria de que V. lhe desse todos os auxílios possíveis.

- Combinado - disse Ran. - Vou falar. Mas, desta vez, ponha o meu nome nas últimas linhas, peço-lhe.

Orientado pelas experientes sondagens de Vereker, Ran explicou com pormenores a história do tiro recebido por Larry, da sua estada no hospital de Adson, do rapto para ponto de segurança. Ao fim de bastante tempo, o repórter meteu nas algibeiras os vários linguados de papel onde escrevera as notas:

- Isto vai ter para nós grande interesse.

O artigo, onde o caso Wilson era apenas um episódio entre muitos pormenores sensacionais, encheu duas páginas da edição de domingo. Outros jornais reproduziram longos extractos, e a rádio difundiu-o por todo o país. Era o sinal de alarme que abria a campanha final orientada por McDonough e a Comissão, segundo uma técnica magistral, fundamentando as acusações de gangsterismo médico, de tráfico de estupefacientes, de crimes, nas menos comovedoras, mas não menos significativas estatísticas de mortalidade na nação em geral, mortalidade cujo considerável e constante aumento nada podia explicar.

Vivo pânico nos suspeitos. Vários deles deixaram o país o mais depressa que puderam. Alguns - poucos - discutiram as provas fornecidas. O secretário de Estado da Saúde demitiu-se, embora protestando inocência. Várias luzes da Nova Ordem Médica, manifestamente ineptas para receberem a autoridade a que haviam sido erguidas, seguiram-lhe o exemplo. Fez-se grande limpeza entre os médicos-políticos incompetentes e ávidos. A medicina começou progressivamente a ressurgir da lama onde a política a metera e, aos poucos, foi restituída aos médicos. Ran, modesto e satisfeito por ter o seu pequeno papel na luta, ao salvar McDonough, admirava o desenrolar das operações e a si próprio perguntava qual seria o resultado definitivo.

Esperava, cria, que a profissão ia restabelecer-se por completo, esquecer as manobras egoístas de política interior de vistas curtas, e viver, a partir de então, à altura das novas oportunidades, da pureza reencontrada.

 

E Ran instalou-se no cumprimento dos deveres quotidianos. Estava - ou pretendia convencer-se de estar - agora satisfeito com a sua existência de rotina; olhava por Ann e interessava-se pelo desenvolvimento do filho. Localmente, as coisas tinham-se-lhe tornado mais agradáveis e mais fáceis: o distrito médico nº 10 orientava-se de maneira diferente e entrava no caminho da virtude.

Na sequência das revelações publicadas por Vereker, Bud Regan fora preso por tentativa de crime. Abandonando as suas despóticas prerrogativas, o pai foi para a América do Sul em férias súbitas.

O Dr. Wade desapareceu, metido em clínica de desintoxicação, e Daily foi encontrado uma manhã fora do alcance da justiça humana, graças a uma das suas mais caras e garantidas manipulações.

Sem nada fazer nesse sentido, Ran viu-se transformado, de certo modo, na autoridade médica do distrito. Washington consultava-o muitas vezes e seguia as suas opiniões. A seu conselho, o Dr. Porter foi transferido das águas estagnadas do dispensário de Stoneville para o hospital de Adson, onde, num emprego de primeiro plano, logo confirmou o juízo de Warren quanto ao valor dele, até aí refugiado algures: lançou-se ao trabalho com entusiasmo e dedicação. O Dr. Roberts deixou-se facilmente convencer a ficar; Branch e Fossiter foram discretamente evacuados, e escolhidos para os substituirem dois médicos competentes. Para completar o estado-maior, chegaram de Lakeview dois internos, e o hospital de Adson começou a modelar-se pelo de Ridgeville.

Pouco tempo antes de Ran dever levar a mulher a Baltimore, telefonou-lhe o senador McDonough a pedir que desse um salto a sua casa.

- Você deseja saber, sem dúvida, por que motivo eu o chamei - disse o senador, uma vez instalados na varanda da velha casa colonial.

- Sim, confesso...

- O presidente telefonou-me ontem a convidar-me para o cargo de secretário de Estado da Saúde.

- Era o que todos esperávamos ^- disse Warren.

- Se eu aceitar, preciso de quem me ajude.

- Terá por si toda a profissão. Pelo menos, todos os homens dignos deste nome.

- Bem o espero. E você?

- Eu estarei por si, evidentemente.

- Eu não o quero por mim, quero-o comigo.

- Ao seu dispor. Acabo de passar bons momentos a colocar o distrito mais ou menos em ordem.

- O que eu tenho em mente não é um trabalho de distrito. É mais importante. Preciso de ter ao meu lado um homem que conheça todos os problemas médicos, compreenda as dificuldades, e possa construir para o futuro. Eu posso manejar toda a parte política e ministerial. Mas, a respeito de problemas técnicos, preciso dum médico em quem os outros tenham confiança. Parece-me que devia ser você.

Ran ficou em silêncio por um grande bocado. Não estava preparado, de modo algum, para tal género de proposta, que lhe cortou a respiração. Ser o segundo comandante - sim, nem mais nem menos - de toda a organização médica da nação? Não conseguia acreditar...

- Tem a certeza de que me conhece bem? - perguntou, enfim. - Sabe que eu chumbei duas vezes no exame, antes de passar à terceira.

- Sim, sei tudo isso.

Ran perguntou a si próprio que não saberia o outro.

- Não se trata, agora, de uma prova de exame, mas sim duma nomeação. Aceita?

Ran ficou mais uma vez calado, contemplando, do fundo duma névoa de ideias, a cinza na ponta do excelente charuto para ele escolhido por McDonough. Era tudo muito rápido. Grandes as possibilidades. Poder realizar o seu plano, experimentá-lo, combater pela sua aplicação, vê-lo em acção... Ver espalhar-se pelo país um imenso sistema de clínicas, ver as doenças a recuarem... Seria magnífico! Mais, a bem dizer, do que aquilo que um homem pode esperar conseguir numa existência inteira. Haveria, de princípio, dificuldades, descontentamentos, escolhos. Talvez o falhanço. Talvez, no fim de contas, o plano não rendesse nada. Talvez não fugisse às características fundamentais da natureza humana, que levaram a gorar-se tantos empreendimentos e ideias. E havia Ann. Se Ann tivesse saúde, se Ann se encontrasse ao lado dele para o auxiliar na luta, então, sim. Posto o problema nesses termos, resolver-se-ia pela afirmativa. Mas com Ann... cega... Como se sairia ela de tudo aquilo?

- Creio adivinhar parte das suas dificuldades. O Dr. Barton falou-me de sua mulher. Acredite que me faz muita pena.

- Obrigado - agradeceu Ran. - E queira compreender que eu não estou em condições de tomar já uma resolução definitiva... Mas, se eu vir possibilidades de aceitar, tem alguma ideia sobre o modo de começar?

McDonough abriu uma pasta que estava sobre a mesa, perto dele:

- Esbocei uma espécie de anteprojecto. O que eu considero a primeira coisa, por onde devemos começar, consiste em pôr de pé e a funcionar uma das suas clínicas: precisamos, antes de mais, de provar que isso se pode fazer e de mostrar como funcionará. Para esta tentativa inicial, seria preciso escolher um ponto onde sejam numerosos os economicamente fracos.

Ran aquiesceu: se uma clínica se aguentasse onde a maioria dos clientes tivesse proventos mínimos, poderia, claro, funcionar em toda a parte.

- A minha ideia era deixá-lo escolher o seu grupo e instalar a sua clínica no vale do Tennessee.

Escolher o seu grupo! Instalar a sua clínica! Aí o conduzira o sonho, quando trabalhava no plano. Era o fim que entrevia então. Tinha todos os nomes na cabeça: Mark Riley, Porky McNab, Tim Brennan naturalmente, Sybilla Barr eventualmente. Todos aqueles que haviam dado provas da sua competência e dedicação. Joe Pound, se quisesse deixar-se arrancar ao seu trabalho da Saúde Pública. Roberts, sim, com certeza. E Porter. Porter, que seria precioso, assim rodeado. Que grupo! Mostraria ao mundo uma clínica útil. Daria a todos cuidados como nunca haviam tido, como nunca haviam pensado ter. Um grupo modelo, que ofereceria aos outros um exemplo tal que todas as clínicas do plano se sentiriam estimuladas e se esforçariam o mais que pudessem por o atingir.

McDonough olhava para Warren, enquanto ia evocando o trabalho a realizar e lhe preparava, em espírito, os caminhos e meios; olhava para os olhos dele, onde se acendia a generosa flama do entusiasmo, e sabia não haver podido escolher melhor auxiliar do que Ran.

- Já não falta muito para resolver o caso dos olhos de sua mulher, não é verdade?

- Duas ou três semanas.

- Então, pode decidir. A minha nomeação só se efectivará daqui por um mês.

- Obrigado. Não é que eu não queira aceitar o seu convite. Sabe Deus o que eu não daria para ter essa sorte. Mas isso quase não me deixava tempo para estar em casa, pois não?

- Durante o primeiro ano, com certeza que não.

- Pois é aí que está tudo.

De regresso a Stoneville, decidiu nada dizer a Ann. Se ela não recuperasse a vista, deixava-a na ilusão de não ter havido, entre ele e o senador, mais que troca de ideias sobre assuntos gerais e não pessoais.

Já era grande alegria lembrar-se de que o plano tinha êxito, ainda que ele não devesse tomar parte activa na acção.

Três semanas após a conferência com McDonough, começou a acalmar-se o furor levantado pela anunciada elevação do senador militante ao cargo de secretário de Estado da Saúde. Quando no Congresso se pronunciasse o nome deste, para aprovação, haveria resistência tenaz dos políticos da velha guarda, mas o voto favorável era já uma certeza. A escolha do presidente fora acolhida pelo público e pelos da profissão com tanto e tão confiante fervor, por maioria tão próxima da unanimidade, que não poderia ser longa a discussão à volta da sua investidura, a qual nem sequer deixava dúvidas.

Ran estava de pé, junto da cama de hospital onde sua mulher se encontrava deitada. Quinze dias antes, sentado na galeria de observação, vira o Dr. Volmer realizar a operação infinitamente delicada, cujo resultado ia conhecer dentro de minutos. Ainda durante estes, estavam os olhos da rapariga cobertos de panos pretos, para proteger os órgãos sensíveis, após o bisturi ter feito o seu trabalho. A um canto, a enfermeira activava-se a preparar todos os instrumentos de que o Dr. Volmer pudesse necessitar para tirar a venda e os pensos.

Operara apenas um olho, o direito. Conforme tivesse ou não êxito, o Dr. Volmer decidiria operar ou não, um pouco mais tarde, o esquerdo.

Ann suportara a primeira intervenção com coragem. Sabendo que o marido não tirava dela o olhar, sorrira até o momento em que lhe puseram no rosto um penso estéril; e ainda agitava a mão amiga, antes de a cobrirem com um lençol branco e volumoso.

Fascinado pela habilidade mágica de Volmer, Ran seguira-lhe todos os movimentos dos dedos. A operação apenas levara quinze minutos.

Nos dias que se seguiram, deu-se uma irritação sob a esclerótica, na coróide, onde haviam actuado as ondas curtas; tal irritação, se tudo corresse bem, atrairia progressivamente a retina ao lugar normal, e assim se restabeleceria a vista no olho cego. A ideia de provocar uma inflamação capaz de remediar o deslocamento da retina era um triunfo de génio empírico.

E, agora, Ann e ele aguardavam que tirassem as vendas, esperavam por saber se a irritação cumpriria o seu papel.

O Dr. Volmer entrou e saudou Ran. A enfermeira deu-lhe tesouras esterilizadas...

Um após outro, foram caindo os pensos. Ran, calado, não respirou até o momento em que os delicados dedos de Volmer afastaram minuciosamente as pálpebras. Correspondendo a um sinal quase imperceptível, a enfermeira colocou uma lâmpada de modo que a luz tocasse por um segundo na pupila dilatada de Ann.

- Ran! Ran!... - O seu grito ecoou pela sala. - Já vejo!

Ran quis falar, mas não pôde. Não podia ver, ele. Pelo menos naquele momento.

- Por hoje chega - disse Volmer, cobrindo de novo o olho. - Amanhã, damos-lhe mais tempo.

O grito exultante, a súbita certeza de que Ann não ficava condenada a tactear nas trevas, de que em breve conheceria o seu filho, transtornaram Ran a ponto de sentir desejo de se ajoelhar ali mesmo, para agradecer a Deus, que permitira se realizasse tal milagre pelas mãos inspiradas de Volmer.

Ainda não tinha acabado tudo: ainda haveria dias de pensos, dias durante os quais a luz penetraria pouco a pouco no olho reconquistado, e depois desapareceria a venda a favor de óculos pretos. E quando estes fossem inúteis, por sua vez, recomeçaria a operação no olho esquerdo.

Quando o cirurgião partiu, seguido da enfermeira, Ran deixou-se cair de joelhos ao pé da cama, passou um braço à volta do pescoço da mulher e apoiou a sua face áspera à face lisa e morna. Não necessitavam de palavras. Sem que ele dissesse uma palavra, Ann sabia como o marido estava feliz por ela não ficar cega, por ver o filho e achá-lo lindo e vigoroso, por contemplar de novo as encostas das montanhas escurecidas à aproximação do Inverno.

Fora, o sino do hospital tocou o meio-dia.

- Tenho de ir telegrafar ao senhor McDonough - disse. <- Ele quer...

Parou, de repente, lembrando-se de que nada dissera à mulher acerca da conversa com o senador, hoje secretário de Estado da Saúde, e nada lhe diria se a operação falhasse.

- Ao senhor McDonough? Porquê? - perguntou ela.

Contou-lhe então tudo. E a possibilidade que se lhe oferecia. E a nova clínica no vale do Tennessee. A sua clínica.

Por momentos, ela ficou sem nada dizer. Quando pôde falar, não dominava bem uma voz um pouco esponjosa:

- Ias perder tudo isso por mim? Por... por... um peso cego? Por um peso morto?

- Então, querida... - começou Ran.

Mas ela interrompeu-o:

- Foste capaz de supor que eu deixava? Que pensavas então de mim?

Ele inclinou-se para a mulher:

- Levava muito tempo a dizer-to, agora.

Na escuridão (presentemente temporária), apurara-se a sensibilidade de Ann. Adivinhava, interpretava o olhar distante do marido, cheio de sonhos. Sonhos ainda hoje, realidades amanhã... Organizava uma activa clínica, com Tim e Porky, com Mark e Howard - não, o pobre Howard não, que abandonara às austeras exigências da profissão a sua saúde e esperança; Larry também não, mas com certeza Porter e Joe Pound. Ran também queria Sybilla Barr. Bem! Se ele insistisse, ela até aceitava Sybilla Barr naquela gloriosa companhia de santos da medicina, que trabalhavam todos em conjunto por uma causa comum. Via Ran de novo na sala de operações ou no anfiteatro. Vestido de branco, de máscara, com o aço reluzente na mão enluvada... A espera apenas do sinal da anestesista para realizar uma vez mais, naquela forma estendida e velada, o milagre da cirurgia... Trabalhava... como trabalharia sempre, de alma e coração, para que viessem tempos melhores e se realizasse a sua maior esperança - para que ninguém sucumba à falta da magia salvadora do bisturi...

 

O PLANO WARREN

Conforme a densidade da população, os médicos poderão organizar-se em clínica de grupo, que compreenda o número de elementos justificado pela população da zona interessada, sendo cada um dos membros do grupo diagnosticador competente, ou especialista de primeira categoria, em qualquer ramo da profissão.

A Associação Médica Americana estabelecerá um tipo mínimo para as clínicas, que deverão conformar-se com este tipo e não descer relativamente a ele, sem o que lhes será retirada a licença e transferida a qualquer outra organização mais satisfatória.

As clínicas tratarão todos os doentes da sua zona que se lhes dirigirem, mas não se obrigam os doentes a procurarem determinada clínica, a não ser os grupos de proventos mínimos, como adiante se precisará. Este grupo, cujas despesas serão pagas pelas administrações do Estado e da cidade, com auxílio nacional, eventualmente, deverá recorrer à clínica da sua cidade.

Os departamentos nacional e estadual da Saúde continuarão a funcionar sensivelmente da mesma maneira que hoje, para a prevenção de doenças, mas qualquer tratamento necessário deverá obrigatoriamente remeter-se às clínicas.

Os tuberculosos e doentes mentais serão, como hoje, tratados a expensas das administrações do Estado ou das cidades, com a pequena diferença de que poderão abrir-se clínicas especializadas, semelhantes às clínicas particulares antituberculosas ou psiquiátricas de hoje.

Este plano não inclui o médico de família, o médico de clínica geral. Em cada clínica, os médicos de clínica orgânica serão médicos de família, no sentido de que visitarão os doentes em casa, sendo necessário; esta tarefa competirá em princípio aos mais novos.

Por agora, o médico de clínica geral não associado a uma clínica poderá livremente tratar da sua clientela, mas um sistema como este plano prevê conduzirá inevitavelmente à dispensa desse médico, por se entender que não fica lugar para os seus serviços.

O trabalho das ambulâncias será assegurado pelas clínicas, e todo o doente cujo estado justifique observação constante será conduzido sem demora ao hospital da clínica.

Nas zonas de fraca população, serão instalados pela clínica central ou vários dispensários ou postos de socorro, de maneira que os serviços médicos possam encontrar-se constantemente à disposição dos que deles precisarem.

O Governo, ao organizar as clínicas, conceder-lhes-á empréstimos a grande prazo, para aquisição dos edifícios e aparelhagem necessários. Tais empréstimos deverão ser progressivamente reembolsados, com taxa e cadência previstas. Em certas regiões, todavia, serão indispensáveis subsídios. A concessão de tais subsídios por parte do Governo de modo algum dará a este qualquer direito a interferências. Cada Estado, bem como as associações médicas nacionais, dirigirão inteiramente a gerência das clínicas.

O pagamento dos serviços médicos fornecidos pelas clínicas organizar-se-á como segue:

1º) A população do país será dividida em três categorias, baseadas nos seus proventos:

A - Categoria de proventos fracos.

Proventos anuais inferiores a mil dólares para o chefe de família ou oitocentos dólares por pessoa isolada.

Cuidados médicos garantidos pelos governos do Estado e da cidade, que pagarão as despesas de clínica, a preço fixo, por doente tratado. Os doentes serão tratados quer no domicílio, pelos serviços exteriores, quer nas enfermarias dos hospitais. As operações serão geralmente feitas pelo pessoal do estabelecimento, debaixo das vistas gerais dos especialistas das clínicas. Todos os cuidados médicos serão prestados exactamente como se se tratasse de pessoas das categorias com proventos maiores. Isto não causará aumento considerável de despesas, pois a maioria destas pessoas já são gratuitamente tratadas pelos hospitais das suas regiões.

B - Categoria de proventos médios.

Proventos anuais de mil a três mil dólares para o chefe de família e oitocentos a dois mil e quinhentos por pessoa isolada.

Admissíveis de acordo com um sistema de seguro sanitário, cobrado sobre os proventos, em taxas de dois a cinco dólares mensais por família, e um dólar mensal por pessoa isolada. Este seguro será cobrado como imposto e entregue a uma comissão especial em cada estado, formada por um membro da Associação Médica do Estado, um membro do Serviço da Saúde Pública dos Estados Unidos e um representante eleito pelo povo.

O Governo não terá qualquer direito de fiscalização sobre o destino destas somas.

A Associação Médica estabelecerá uma escala de preços de hospitalização e tratamento, que convenha a todas as clínicas membros da associação.

Todos os doentes têm liberdade de se apresentarem a qualquer clínica do seu estado, à escolha, onde receberão os cuidados e tratamentos necessários, sem qualquer pagamento suplementar. As clínicas serão reembolsadas destas despesas pelo fundo de seguro do Estado. As pessoas que não pagarem ou não tiverem pago o seguro não poderão ser admitidas nesta categoria.

C - Categoria de proventos fortes.

Proventos anuais superiores a três mil dólares pelo chefe de família e a dois mil e quinhentos por pessoa isolada. Estes doentes pagarão as suas despesas como hoje. Receberão, em clínica à sua escolha, o tratamento que quiserem pagar - em quarto particular ou semiparticular. As enfermarias serão reservadas à categoria A, de proventos fracos.

O paciente pode fazer o seguro que lhe convier e pagar de seguida à clínica, ou regularizá-lo pelos seus próprios meios. Mas, estando seguro, a clínica terá direito a caução ou garantia sobre o seguro, até ficarem pagas todas as despesas.

Os doentes pertencentes à categoria A têm dias e horas de visitas fixadas pela clínica do seu distrito e devem respeitá-las, excepto em casos de urgência.

Os da categoria B têm liberdade de escolher a clínica que lhes convier, no seu Estado, ou, em caso de necessidade e por concessão especial, noutro Estado.

Os da categoria C podem ir para onde quiserem, pois pagam por si próprios a totalidade das suas despesas.

2º) As clínicas assegurarão os cuidados médicos aos que vêm das caixas, pelos preços estabelecidos para os seguros dos doentes da categoria B.

 

                                                                               Frank Slaughter

 

 

                      

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