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O CLUBE DO FOGO DO INFERNO - P3 / Peter Straub
O CLUBE DO FOGO DO INFERNO - P3 / Peter Straub

  

 

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O CLUBE DO FOGO DO INFERNO

Parte III

  

A DONA DA XÍCARA

      

PIPPIN FICOU EM SILÊNCIO DURANTE MUITO TEMPO, SENTADO AO CALOR E À LUZ BRUXULEANTE DO FOGO. ELE OLHOU ATENTAMENTE PARA O ROSTO DA VELHA. DEPOIS DE TUDO O QUE ELA HAVIA CONTADO, NÃO MAIS O ATEMORIZAVAM OS BIGODES BRANCOS QUE LHE BROTAVAM DO LÁBIO SUPERIOR OU SEU QUEIXO PONTUDO. NEM MESMO O CRÂNIO NO QUAL ELA BEBIA SUA FÉTIDA POÇÃO MARROM, E TAMPOUCO A PILHA DE CRÂNIOS ATRÁS DELA O AMEDRONTAVAM AGORA. ESTAVA POR DEMAIS INTERESSADO NA HISTÓRIA DELA PARA SENTIR MEDO. “NÃO ESTOU ENTENDENDO”, DISSE PIPPIN. “A SENHORA É MÃE DELE, MAS ELE NÃO É SEU  FILHO?”

 

NORA FICOU SEM FALA pelo que lhe pareceu uma interminável sucessão de segundos. Nem ao menos conseguia mover-se. A decidida velha à sua frente, com seus colares de moedas antigas, de pesadas correntes de ouro, de contas de cerâmica, pássaros de prata, penas de prata e cintilantes pedras verdes e vermelhas, imóveis sobre seu peito, as mãos largas pousadas sobre os joelhos, sentava-se inclinada ligeiramente para frente, avaliando os efeitos de suas revelações, enquanto Nora encarava atentamente as firmes sobrancelhas negras, os inteligentes olhos da mesma cor, o nariz proeminente, os lábios carnudos e bem desenhados, e o queixo redondo de Helen Day. A Dona da Xícara, O’Dotto — Day e O’Dotto, as duas metades de seu sobrenome — ignoradas por Davey, porque seu avô achava os nomes italianos por demais proletários para serem usados em sua casa.

       — Jeffrey — disse a mulher —, você devia ter contado a ela pelo menos alguma coisa. Não é justo soterrá-la com tantas informações ao mesmo tempo!

       — Pensei que estivesse sendo justo com você — respondeu ele.

       — Eu estarei bem — disse Nora.

       — É claro que estará.

       — É muita coisa para digerir de uma só vez. Davey me falou muito a seu respeito. A senhora é legendária. Eles ainda comentam suas sobremesas.

       — Aquela família sempre teve um fraco por doces. O velho sr. Chancel podia comer sozinho um bolo inteiro de sete camadas. Por vezes eu precisava fazer dois, um para ele, outro para os demais. O pequeno Davey tinha a mesma tendência. Eu costumava preocupar-me sobre ele engordar, quando crescesse. Ele engordou? Não, suponho que não. Você não o desejaria para marido, se ele exibisse um enorme saco de tripas, como o avô.

       — Sim, eu não o desejaria, e ele não engordou.

       — Enfim, quem sou eu para falar? — Helen Day pareceu quase melancólica. — Davey deve ter sentido minha falta, depois que seus pais se livraram de mim. Pobrezinho, devia sentir mesmo, tendo aqueles dois como pais.

       — Certa vez ele me disse — contou Nora — que julgava a senhora sua verdadeira mãe.

       — Sua verdadeira mãe mal passava algum tempo com ele. Na maior parte do tempo, nem sabia quando o filho estava em casa.

       — E, naturalmente, nem ela era a verdadeira mãe dele — disse Nora. — A senhora com certeza já estava em “Os Álamos” quando o primeiro filho morreu.

       Helen Day levou um indicador aos lábios e deu a Nora um longo e pensativo olhar. Depois assentiu.

       — Sim, eu estava lá durante a comoção.

       — Daisy e Alden nem mesmo queriam um filho, não é? Na realidade, não queriam. Foi Lincoln quem fez com que adotassem Davey.

       Houve outra pausa reflexiva.

       — Posso dizer que o velho declarou aos dois que queria um herdeiro. Durante essa época, não houve muitas noites tranqüilas na Mount Avenue. — Ela desviou os olhos, e seu rosto simpático endureceu-se como cimento. — Segundo Jeffrey, você queria falar comigo sobre minha irmã.

       — Sim, quero muito, mas antes posso fazer-lhe algumas perguntas sobre outras pessoas de sua família?

       A mulher ergueu as sobrancelhas.

       — Outras pessoas de minha família?

       — Sabina Mann é sua irmã?

       A idosa mulher olhou rapidamente na direção de Jeffrey.

       — Nós tivemos que ver Ev Tidy — disse Jeffrey. — Como o número dele não consta da lista telefônica, liguei para Sabina e pedi-lhe que o convidasse a ir até sua casa.

       — O que ela fez com o maior prazer, tenho certeza. Aposto que ficou alvoroçada, entrando e saindo com montes de biscoitos baratos e xícaras de chá “Earl Grey”.

       — Foi chá “Gunpower”, bem forte, e ela ficou alvoroçada apenas uma vez. Devo admitir que estava decepcionada comigo.

       — “Gunpower”! — exclamou Helen Day. — Santo Deus! Ela acabará compreendendo a situação. Suponho que você desejava falar com Everett sobre Shorelands, por causa do pai dele.

       — Exatamente — concordou Nora.

       — E ele ajudou em alguma coisa?

       — Ele tinha algumas idéias — disse Jeffrey.

       Ao mesmo tempo em que falava, ele dirigiu um olhar de advertência a Nora, que não passou despercebido a sua mãe.

       — Não quero intrometer-me. Não faz o meu gênero, exceto quando diz respeito à minha irmã. Entretanto, pelo que recordo do pai de Everett, ele não poderia ter muito a dizer sobre Katherine. Era minha impressão de que mal falou com ela. Ali não haveria muita coisa capaz de excitar as pobres e velhas Effie e Grace. — Quando Nora pareceu confusa, Helen Day acrescentou: — Minhas irmãs. Foram as tolas que viram aquele filme e contrataram um advogado.

       — Você está certa — disse Jeffrey. — Bill Tidy ignorava inteiramente o que Katherine estava escrevendo.

       — Não me surpreende. Em si, a idéia toda é louca. Agora estou informada de que essa loucura contagiou o infeliz homem que arrancou você de um posto policial. — Ela abanou a cabeça, desgostosa. — Deixe-me responder ao que perguntou. Não, Sabina Mann não é minha irmã, graças a Deus. Ela era Sabina Kraft, antes de casar com meu irmão Charles. Desta maneira, completou-se o corte de relações entre meu irmão e mim, que começou quando ele mudou de nome.

       — Por que ele mudou de nome?

       — Charles odiava meu pai. Mudar de nome não passou de um meio para causar sofrimento ao velho. Ele fez isso assim que completou vinte e um anos. A desgraça quase acabou com o escasso cérebro de Effie e Grace. Katherine pouco ligou, naturalmente. Isso nada significava para ela. Aliás, Katherine foi como um país em separado, a vida inteira.

       Nora refletiu que Helen Day, a qual aparentemente não protestara contra a vontade de Lincoln Chancel mudar-lhe o sobrenome, devia ser tão excêntrica quanto a irmã.

       — A senhora não se dava bem com Charles ou suas duas outras irmãs?

       — Eu me dou com os Deodatos muito melhor do que com minha própria família, se é o que quer saber. São pessoas bondosas, sensatas e calorosas, que ficaram encantadas em aceitar Jeffrey, quando ficou óbvio que eu não conseguia dar conta do recado, sendo mãe e sozinha. Evidentemente não ia sujeitar meu garotinho a Charles, muito menos a Sabina. Quanto a Effie e Grace, as duas mal conseguiam tomar conta de si mesmas. Entretanto, havia este glorioso clã, repleto de cozinheiros, policiais e professores de ginásio. Fiquei muito amiga de todos, e nenhum deles discutia meu sistema de vida, de modo que jamais houve qualquer dificuldade para que eu visse Jeffrey sempre que era possível. Quando deixei os Chancels, já sabia que tinha que vir para esta parte de Massachusetts. Aqui era a minha terra, o meu lar, onde meu marido morreu. É o único lugar do mundo que já amei de verdade. Jeffrey compreendeu.

       — Compreendi — disse Jeffrey — e ainda compreendo.

       — Eu sei disso. Apenas não desejo que Nora me julgue com severidade. De qualquer modo, todos juntos fizemos um bom trabalho com Jeffrey, não é mesmo? Ele fez um monte de coisas interessantes, embora sua metade Mannheim significasse que outras pessoas teriam dificuldade em compreendê-las. Há muito de mim em Jeffrey, e muito de Katherine também. Entretanto, ele é muito mais gentil do que ela jamais foi. Ou do que eu, verdade seja dita.

       — Katherine não era uma pessoa gentil?

       — Eu sou? Diga você.

       — A senhora é mais do que gentil — respondeu Nora. — É bondosa demais para ser apenas isso.

       Diminutos pontos de luz piscaram muito no fundo dos olhos da mulher mais velha.

       — Você acabou de descrever minha irmã Katherine. Eu gostaria que não esquecesse a minha oferta. Se estiver precisando de um lugar seguro para ficar, será bem-vinda aqui. Aprenderá todo tipo de culinária e poderá economizar algum dinheiro. Funcionamos em uma base comunal e todos partilham igualmente.

       — Obrigada — disse Nora. — Fico tentada a inscrever-me prontamente.

       — Eu devia saber — disse Jeffrey. — A famosa instituição Helen Day Metade Casa, Escola de Culinária, Salão Intelectual e Abrigo para Mulheres ataca novamente!

       — Não diga tolices — disse a velha senhora. — Nora entende o que eu quero dizer. Agora, vamos falar sobre minha irmã Katherine, portanto, pode parar de arreliar.

       — Aleluia! — exclamou Jeffrey, caminhando para o outro sofá e sentando-se de frente para as duas.

       — Katherine chegou a falar com a senhora sobre o que escrevia? — perguntou Nora.

       — Posso recordá-la lendo alguns poemas para mim, quando estava com doze ou treze anos. Eu tinha nove, na época. Foi um acontecimento, porque Katherine era sempre muito sigilosa sobre seus escritos. Não sobre suas opiniões, compreenda. Se ela achasse algo absurdo, você ficaria sabendo. De qualquer modo, como eu ia dizendo, costumava vê-la escrevendo seus poemas o tempo todo, e certa vez perguntei se eu podia lê-los. Não, ela disse, mas eu lerei alguns para você, e então leu uns dois ou três poemas, que já esqueci. Não entendi uma só palavra, de modo que nunca mais me interessei.

       — E mais tarde? Quando ambas estavam adultas?

       — A essa altura, falávamos uma com a outra apenas de dois em dois meses, e tudo que ela dizia sobre seu trabalho era que o estava escrevendo. Ligou para mim, anunciando que ia a Shorelands. Estava contente com isso, e veio passar umas duas noites comigo, quando partiu. Eu já vivia aqui, e Katherine morava em Nova York, sozinha, naturalmente, em Greenwich Village, num minúsculo apartamento em Patchin Place. Fui lá, duas semanas após ter voltado de Shorelands para casa. Eu sabia que minha irmã estava morta; espero que você aceite a minha palavra quanto a isso.

       — Em sua opinião, o que aconteceu a ela? — perguntou Nora.

       — Anos mais tarde, aquela velha e cretina faladeira que era Georgina Weatherall, fingiu achar que Katherine havia fugido levando algum desenho seu, e que mudara de nome para ocultar a identidade. Que história! Katherine jamais roubou coisa alguma em sua vida. Por que roubaria, ela que nunca desejava nada de nada e de ninguém? Essa versão ficou melhor para Georgina do que ter um de seus hóspedes morto no coração da floresta, tão longe que o corpo jamais foi encontrado.

       — Está bem certa de que foi o que aconteceu?

       — Fiquei sabendo, no segundo em que vi aquela mulher ridícula. Katherine sabia exatamente como amarrotar-lhe as penas, e a última coisa que esse tipo de mulher suporta é a idéia de alguém rindo dela.

       Era bem do feitio de minha irmã provocar semelhante tola, e em seguida desaparecer subitamente, uma fração de segundo antes de ser mandada embora da propriedade. Foi puro azar o dela, morrer no meio daquela particular caminhada, de modo que nunca pudemos dar-lhe um sepultamento. Seu coração fraco falhou no momento errado, eis tudo.

       — Como Georgina pôde ligar para a senhora, depois que ela desapareceu?

       — Katherine lhe tinha dado o meu número. Quem mais faria isso? Sabe Deus que ela jamais daria o telefone de Charles, de Grace ou de Effie. Katherine sempre gostou mais de mim do que deles. Quero mostrar-lhe algumas coisas.

       A velha levantou-se, com um chocalhar e tilintar dos colares. Cruzou o arco da sala, e Nora e Jeffrey a ouviram dando ordens na cozinha, depois a marcha lenta de seus passos em uma escada.

       — O que imagina que ela queira mostrar-me? — perguntou Nora.

       — Você acha que consigo saber o que minha mãe pretende fazer?

       — O que há de errado com Grace e Effie?

       — As duas são normais demais para minha mãe. Por outro lado, ambas ficaram escandalizadas por ela se dispor a trabalhar para Lincoln Chancel. Achavam que não era um emprego à altura dela. Minhas tias também não aprovam muito o que minha mãe faz agora. Consideram que não é uma função muito apropriada para senhoras.

       — É difícil imaginar algo que fosse mais apropriado para senhoras — disse Nora.

       Jeffrey sorriu.

       — Fala assim porque não conhece Grace e Effie.

       — Como foi que elas surgiram com o tal caderno de notas, ou seja lá o que foi que originou todo o problema?

       — Minha mãe costumava guardar os papéis de sua irmã aqui no porão, porém instalou mais dois quartos lá, e não sobrou muito espaço. Grace e Effie concordaram em ficar com os papéis — quatro caixas de papelão, cheias principalmente de rascunhos de histórias e poemas. Dei uma espiada neles, há muito tempo atrás.

       — Não havia nenhum romance?

       — Nenhum. — Ele olhou para trás, abarcando o arco e a cozinha repleta de mulheres. — Por falar nisso, a despeito da maneira como alude a Lincoln Chancel ou mesmo a Alden e Daisy, minha mãe continua leal a eles. Não comente com Ev Tidy o que estivemos falando, está bem? Ela ficaria danada da vida.

       — Percebi o olhar que você me deu.

       — Lembre-se de que, quando parou de trabalhar para eles, ela recomendou Maria, que na época tinha dezoito anos e acabava de desembarcar do navio. Maria mal falava inglês, mas eles a aceitaram assim mesmo. Também me empregaram. Ela acredita que os Chancels fizeram muito por nossa família.

       — Eu nunca compreendi por que Alden e Daisy a despediram — disse Nora. — Sua mãe era como um membro da família.

       — Não acredito que a tenham despedido. Ela é que saiu, quando juntou dinheiro suficiente para iniciar este negócio.

       Os degraus da escada rangeram.

       — Davey me disse que eles a despediram, tenho certeza. Perdê-la foi muito doloroso para ele.

       — Que idade tinha ele, quatro anos? Davey nem sabia ao certo o que estava acontecendo. — Jeffrey deu-lhe um breve e contido sorriso, enquanto as pisadas de sua mãe chegavam aos últimos degraus. — Foi pena não o terem enviado para Long Island. Teria feito algum bem a ele.

       — Poderia ter feito muito bem a ele — disse Nora.

       Virando-se para a cozinha, viu Helen Day ladeada por três de suas assistentes e inclinada para uma cuba de cobre. Ela inspirou fundo, refletiu e falou para uma jovem de expressão ansiosa, que se afastou rapidamente e voltou com uma xícara de um pó castanho, do qual jogou uma pitada dentro da cuba.

       Aquele longo dia começava a cansar Nora, que não pôde resistir a um gigantesco bocejo.

       — Que grosseria — comentou. — Desculpe.

       Helen Day tornou a cruzar o arco da sala, desculpando-se pela demora. Sentou-se a uma pequena distância de Nora e depôs dois objetos sobre o trecho de veludo castanho entre ambas. Nora baixou o rosto para uma fotografia emoldurada sobre uma placa flexível, tão antiga, que sua superfície negra, de couro granulado, havia desbotado para um irregular matiz de cinza.

       — Veja. Olhe para esta foto.

       Nora pegou a foto. Duas garotinhas de avental, uma delas com uns três anos, a outra com talvez oito, em pé e sorrindo para o fotógrafo, em um jardim ensolarado. A menor segurava uma xícara de porcelana para chá, própria para bonecas, acima de um pires do mesmo aparelho. Evidentemente irmãs, ambas tinham cacheados cabelos escuros e rostinhos simpáticos. A mais velha sorria apenas com a boca.

       — Pode imaginar quem sejam? — perguntou Helen Day.

       — A senhora e Katherine — respondeu Nora.

       — Eu brincava de tomar chá no jardim e, maravilha das maravilhas, Katherine apareceu e me fez companhia. Meu pai saiu de casa para documentar o momento, sem dúvida a fim de provar a ela em alguma data posterior, que um dia, afinal de contas, também havia sido criança. E a espertinha sabia o que ele estava fazendo, você pode ver em seu rosto. Katherine conseguia enxergar através dele.

       Nora contemplou a intensa auto-suficiência nos olhos da menina de oito anos. Ela seria capaz de enxergar através da maioria das pessoas.

       — A senhora encontrou esta foto no apartamento dela?

       — Não. O que encontrei lá foi o manuscrito. Esta foto estava sobre sua mesa de trabalho no chalé Pão de Mel, e foi a primeira coisa que vi, ao entrar lá. Santo Deus, falei para mim mesma, vejam só isto! Sabe o que significa, não?

       Nora não fazia a menor idéia, porém os olhos de Helen Day e sua voz deixavam bem claro o que aquilo significava para ela.

       Sua irmã se sentia próxima da senhora — disse.

       A idosa dama empinou o corpo para trás, com um tilintar de colares, e apontou um rechonchudo e rosado indicador para a garganta de Nora.

       — Acertou em cheio! Ela se sentia mais próxima de mim do que de qualquer outra pessoa em toda a nossa embaralhada família. Que endereço e número de telefone ela forneceria, para o caso de uma emergência? Os meus, naturalmente. Que foto ela levou para Shorelands e a colocou bem no lugar de honra, em sua mesa de trabalho? O meu. Não era uma foto do gorducho Charles, era?

       Como o dedo ainda apontava para sua garganta, Nora meneou a cabeça, em uma negação.

       — Nada disso! E tampouco era uma foto daquelas duas idiotas que nunca leram um livro na vida, Effie e Grace. Katherine se sentia tão próxima desses três como de quaisquer estranhos na rua. A princípio, não entendi por que minha irmã iria embora deixando o nosso retrato para trás, mas, quando reparei que também deixara seu robe de seda e um punhado de livros, vi o que ela estava fazendo. Katherine sabia que eu iria lá, recolher tudo para ela. Deixou aquelas coisas para trás pensando em mim, pois sabia que eu as guardaria até serem reclamadas. E aposto que você pode adivinhar o motivo.

       De novo, Nora deu a resposta que Helen Day queria ouvir.

       — Porque a senhora a compreendia melhor do que os outros.

       É claro que a compreendia. Enquanto viveu, Katherine nunca fez qualquer sentido para eles. Era como Jeffrey com os Deodatos. Eu os amava e eram pessoas maravilhosas, porém jamais conseguiram entender algumas das coisas que meu filho fez. Jeffrey e minha irmã nunca seguiram muito de perto as linhas do convencionalismo, não é verdade, Jeffrey?

       — Já que está dizendo, mãe... — respondeu ele. — Entretanto, algumas vezes você também andou fugindo do convencionalismo.

       — É justamente o que eu estava dizendo! Por umas duas vezes em minha vida, as pessoas falaram que eu era maluca. Charles me chamou de maluca. Trabalhar para Lincoln Chancel! Abdicar de meu filho, e não apenas isso, juntar-me a pessoas que ele considerava inferiores! Você deve ser tão maluca quanto Katherine, foi o que ele me disse. E eu respondi, bem, nesse caso não estou me saindo tão mal. Pode apostar que ele mudou de tom quando Jeffrey ganhou sua bolsa de estudos para Harvard e lá foi tão bem-sucedido. Quando os outros não fazem o menor esforço para compreender-nos, sua primeira reação é achar que somos malucos. Grace e Effie ainda pensam que sou maluca, porém estou indo bem melhor do que elas. As duas também achavam que Katherine fosse maluca. Ela as envergonhou, da mesma forma que eu, quando fui trabalhar para os Chancels.

       A mãe de Jeffrey cruzou os braços sobre o peito, com um clangor de moedas e contas que sobressaltou Nora.

       — Minhas irmãs pensaram que Katherine realmente fugiu com aquele desenho, mudou de nome e viveu com o dinheiro obtido na venda do quadro. Sabe o que me disseram? Disseram que, antes de mais nada, Katherine jamais tivera um coração fraco. O dr. Montross é que cometera um erro quando ela era garotinha e, desde então, Katherine fizera tratamentos especiais. Tinha roubado aquele quadro, mudado de nome, e agora estava rindo de todos nós. Elas disseram que Charles havia mudado seu nome, não havia? E eu, também não mudara o meu? Tinha sido com o sr. Day que me casara, não tinha? Respondi que nunca mudei meu nome, que quem fez isso foi o homem para quem eu trabalhava, que quando ele falava, a gente ouvia. Tudo que fiz foi acostumar-me com esse novo nome que, afinal de contas, era apenas o meu sobrenome de casada. Disseram que todos aqueles escritos eram também coisa de loucos, mas não eram, você não acha, Jeffrey?

       — Não eram, em absoluto — respondeu Jeffrey.

       — Ela foi convidada a Shorelands. Ninguém disse que aquelas outras pessoas eram malucas. Além do quê, o dr. Montross não era uma fraude. Katherine teve febre reumática aos dois anos, e seu coração poderia falhar a qualquer momento. Todos nós sabíamos disso. Ela morreu. Grace e Effie disseram, você nunca a encontrou, encontrou? E tampouco todos aqueles policiais, mas elas não chegaram a ver como era aquilo lá. Você poderia enviar vinte homens àquela floresta, durante um mês, que eles nada encontrariam.

       — Se ela pretendia ir embora, por que escolheria a floresta, em vez de um caminho mais fácil?

       — Ela não queria passar pela Casa Principal — disse Helen Day. — Katherine desejava sair sem ser vista. E, sabe como é, talvez tivesse chegado à estrada. Talvez até conseguisse uma carona e um quarto para pernoitar, mas seu coração parou, e ela morreu. Porque Katherine nunca entrou em contato comigo sobre seus pertences. Esperei duas semanas, mas nem ela e nem ninguém mais telefonou para mim, e então eu soube.

       — Certo, mas seu irmão e suas duas irmãs mais velhas não concordaram com a morte dela? Achavam que ela ainda poderia estar viva?

       — Charles não pensava assim. Estava certo de que Katherine tinha morrido; tão certo quanto eu. O dr. Montross havia dito a nossos pais que seria um milagre ela viver até os trinta anos. E, naquele ano, Katherine estava com vinte e nove.

       — E Grace e Effie?

       — Elas também sabiam disso, mas mudaram de idéia quando aquele livro foi publicado, quase dizendo em preto e branco que Katherine levara aquele quadro pendurado na sala de refeições. Na opinião delas, Katherine era incapaz de fazer alguma coisa certa. As duas nunca tiveram uma palavra amável sobre ela, até começarem a vasculhar os papéis de Katherine antes de jogá-los fora, papéis que entreguei às duas para que os guardassem, e elas viram alguns rascunhos em folhas soltas, os quais lhes recordaram um filme de que nem tinham gostado! Grace e Effie continuam achando que a irmã era maluca, porém não lhes desgosta a idéia de conseguirem algum dinheiro através dela. Velhas tolas! Katherine não escreveu aquele livro. Seu autor foi Hugo Driver. Se quer saber o que minha irmã estava escrevendo, examine aquela pasta.

      

INVADIDA POR UMA ONDA de expectante excitamento, Nora abriu o fecho da pasta. Jeffrey levantou-se, a fim de ver melhor.

 

PALAVRAS INESCRITAS

       por

       Katherine Mannheim

       15 Patchin Place, 3

       Nova York, Nova York

       (2a cópia)

      

       Ela virou a página-título e encontrou um poema denominado “Diálogo dos Últimos Dias”, pesadamente corrigido em tinta verde. Seu coração ficou opresso. Então era isto que Katherine Mannheim estava escrevendo? O poema continuava na página seguinte. Ela folheou as páginas e viu que ele ocupava vinte e três delas. O “Segundo Diálogo”, também fortemente corrigido, cobria vinte e seis páginas. O livro encerrava-se com outros dois “diálogos”, de trinta a quarenta páginas cada.

       — É um longo poema, ou imagino que seja, dividido nesses diálogos. Katherine tinha duas cópias e fez alterações em ambas. Ela deve ter levado a primeira cópia a Shorelands, a fim de passar o mês revisando-a lá, e penso que planejava datilografar uma terceira e última com todas as revisões, depois que voltasse.

       Ela estivera “inescrevendo” as Palavras Inescritas através de uma longa e laboriosa série de revisões.

       — Isto estava na mesa de trabalho dela?

       — Estava em seu apartamento, ao lado da máquina de escrever, juntamente com uma enorme pasta cheia de versões anteriores. A que ela levou a Shorelands ficou perdida, juntamente com tudo o mais que tinha posto dentro de sua mala.

       — Você nunca me mostrou isso — disse Jeffrey.

       — Você pouco aparecia por aqui e, quanto a mim, de nada adiantava ficar lendo o que ela escreveu. Sempre tive dificuldade para entender as coisas que Katherine criava, e estes poemas deram mais trabalho do que qualquer outra coisa, em especial com todos esses rabiscos das revisões. Após uns dois anos, comecei a descobrir um caminho. Eu vi, suponho ter visto, que ela escrevia sobre sua morte. Após conviver com essa morte, e durante tanto tempo, se quer saber, eu diria que ela nunca pensou muito a respeito, porque parecia não pensar. Katherine não era do tipo de pessoa melancólica, em absoluto, mas é claro que pensava na morte o tempo todo. Daí o motivo dela escrever da maneira como escreveu e de ter vivido da maneira como viveu. Acho que minha irmã Katherine era uma santa. Uma santa na vida real.

       Perplexa, Nora ergueu os olhos do livro.

       — Uma santa?

       Helen Day sorriu e deu um ligeiro olhar à fotografia.

       — Katherine era a pessoa mais sensível, mais inteligente e dedicada que já conheci, além de, bem fundo dentro dela, ser a mais pura. O que a maioria das pessoas chama de religião não a afetava nem um pouco, embora houvéssemos sido criados como católicos. Você encontrará mais pessoas espiritualizadas fora das igrejas do que dentro delas. Katherine não ligava para essas coisas sem importância com que a maioria das pessoas passa uma vida inteira se preocupando. Ela sabia como divertir-se, por vezes chocava as pessoas com idéias comuns, mas possuía foco. Quando recebo novas moças aqui, procuro ver se têm pelo menos um pouquinho do que Katherine tinha. Se têm, bem-vindas a bordo! E você, você tem um pouco também.

       — Sim... Um monte de pessoas de idéias comuns poderia acreditar que sou um pouquinho maluca — disse Nora, pensando em seus alegres demônios.

       — Não acredite nisso. Você tem sido machucada, posso ver que tem. Não é de admirar, considerando-se o que lhe aconteceu. No entanto, aqui está, rodando por Massachusetts em vez de voltar para casa, se é que ainda possui uma casa para onde voltar. — A idosa dama olhou para seu filho. — Alden Chancel poderia achá-la inadequada para esposa do filho dele, mas dificilmente você seria uma pessoa maluca. Se quer a minha opinião, acho-a uma daquelas pessoas que levam uma carga mais pesada do que a maioria de nós.

       — A senhora está me dando créditos em excesso — disse Nora.

       — Você é alguém que quer saber a verdade. Quando olho para trás, tenho a impressão de que a maior parte do que me foi ensinado em criança era errado. Enfiavam-nos mentiras garganta abaixo, dia e noite. Mentiras sobre homens e mulheres, sobre a maneira correta de viver, sobre nossos próprios sentimentos, e não creio que muita coisa tenha mudado. Continua sendo importante descobrir-se o que realmente é verdade, e se você não achasse isso importante, não estaria aqui neste momento.

       Sim, pensou Nora, eu acho importante descobrir o que realmente é verdade.

       Helen Day consultou seu relógio.

       — Preciso certificar-me de que está tudo certo antes de aparecer na Sociedade Asiática. Espero que você reflita em tudo o que lhe disse.

       — Obrigada por ter conversado comigo.

       Os três levantaram-se.

       — Vai ficar no Northampton Hotel?

       — Sim — disse Jeffrey.

       Helen Day não tirava os olhos de Nora.

       — Se ainda estiver acordada por volta das dez, poderia ligar para mim? Quero falar com você sobre uma coisa, mas primeiro tenho que pensar no assunto.

       — É a respeito de sua irmã?

       A velha abanou a cabeça lentamente.

       — Enquanto eu estiver pensando na minha pergunta, você deveria pensar em seu marido. Você é mais forte do que Davey, e ele precisa de sua ajuda.

       — Qual é essa sua “pergunta”? — quis saber Jeffrey.

       Virando-se para o filho, ela lhe tomou a mão.

       — Jeffrey, você virá aqui amanhã, não? Teremos tempo para uma conversa de verdade. Se aparecer lá pelas oito, poderia ajudar dirigindo a van. Temos que transportar um monte de vegetais frescos.

       — Você quer que eu dirija uma das vans, enquanto Maya e Sophie ficam sentadas na traseira, divertindo-se à minha custa, não é?

       — Você gostará disso. Venha amanhã.

       — Posso trazer Nora?

       Helen Day começara a mover-se lentamente para a porta da frente, mas, ao ouvir a pergunta, encontrou os olhos de Nora, com uma expressão tão significativa quanto um toque.

       — Ela resolverá — respondeu a mulher.

       Após falar, saiu para a noite cálida.

      

— VOCÊ GOSTOU DELA, não gostou?

       — Quem não gostaria? — replicou Nora. — Ela é extraordinária.

       Jeffrey dirigia pela Rua Principal abaixo, onde brilhavam as janelas de restaurantes, e grupos de três e quatro pessoas entravam e saíam dos jorros de claridade lançados pelos postes de iluminação.

       — Eu sei, mas ela encosta um bocado de gente contra a parede. Minha mãe avalia a pessoa assim que a conhece e, se o resultado for positivo, essa pessoa é bem-vinda. Caso contrário, fica na geladeira. Eu tinha quase certeza de que ela a aprovaria, mas... — Ele a fitou de relance. — Acho que agora entende por que eu não poderia, antecipadamente, dizer muito sobre ela.

       — Suponho que sim — disse Nora.

       — O que gostaria de fazer?

       — Ir para a cama — respondeu ela. — Depois disso, talvez passe o resto de minha vida picando aipo para sua mãe. Eu teria que trocar de nome, mas tudo bem, todos os outros já trocaram... Após uns dois anos, creio que talvez acabe ficando tão perceptiva quanto sua mãe pensa que sou.

       Jeffrey deu a ela um de seus longos olhares enviesados.

       — Pensei que você estivesse decepcionada lá. Desapontada, talvez.

       — Bem, você já é perceptivo o bastante para nós dois. Sim. Acho que eu esperava demais. Pensei que mesmo com tudo se desfazendo em pedaços à minha volta, eu conseguiria pelo menos provar que sua tia foi a verdadeira autora de Jornada na Noite. Em vez disso, contudo, tudo quanto pude descobrir foi que Hugo Driver era um vermezinho nojento, capaz de roubar coisas. Enfim, se não foi ele quem surrupiou Jornada na Noite, então tudo aquilo que pensávamos saber está errado. O que suas tias viram naquelas páginas, afinal? O que as deixou tão excitadas?

       — Frases. Descrições de paisagens, campos, nevoeiros e montanhas. Em sua maioria, mais ou menos no estilo de Driver, mas não idênticas a ponto de justificarem a intervenção de um advogado. Havia algo sobre morte e infância, de que forma uma criança veria a morte como uma jornada.

       — Isso faz sentido suficiente para Katherine Mannhein, mas dificilmente prova alguma coisa sobre o livro.

       — Duas outras frases, principalmente, as deixaram alvoroçadas. Uma era sobre um lobo negro.

       — Isso nada significa.

       — A outra era “a Dona da Xícara”. Elas ficaram excitadas com isso. A fachada do hotel flutuou por eles. Um guitarrista tocava música de bossa-nova na varanda.

       — Não entendi este ponto. Era como Davey costumava chamar sua mãe.

       — Você viu aquela foto delas duas quando garotinhas, na qual minha mãe está segurando uma pequenina xícara de brinquedo. Depois disso, Katherine começou a chamá-la de Dona da Xícara. — Jeffrey manobrou o MG para o estacionamento. Seu sorriso cintilou. — Esqueci que você nunca leu Jornada na Noite.

       — Continuo sem entender. — O Livro Oito de Jornada na Noite, intitula-se “A Dona da Xícara”. Foi o que de fato chamou a atenção de Grace e Effie. Isso e o lobo.

       Jeffrey levou o carro para um lugar vago e desligou o motor.

       — Ora, mas Davey já chamava sua mãe de Dona da Xícara, antes mesmo de ler o livro. Como ele ficou sabendo?

       — Ele deve ter visto a fotografia no quarto dela — disse Jeffrey. — Davey às vezes ia lá procurar minha mãe, quando Alden e Daisy o deixavam sozinho. Se ele a interrogasse a respeito, ela lhe contaria sobre o apelido. Este seria outro motivo para, mais tarde, o livro significar tanto para Davey, pois fazia-o lembrar-se de minha mãe.

       Nora sabia agora por que Davey ficara irritado com ela, ao perguntar-lhe sobre a origem do apelido. Jeffrey esperava pacientemente que ela encerrasse as perguntas, a fim de poderem sair do carro.

       — A “Dona da Xícara” descrita no livro mostra alguma semelhança com sua mãe?

       — Bem, deixe-me ver... — Jeffrey segurou o queixo com a mão. — Ela prepara uma beberagem de cheiro fétido. Não tem filhos, mas criou o de mais alguém. No geral, ela é uma figura temível. Eu poderia dizer que tem muito a ver com minha mãe.

       — Hugo Driver nunca viu aquela foto. De onde ele tirou a expressão?

       — Agora você me pegou.

       No ar quente da noite eles caminharam para os degraus de concreto, banhados em cheio pelas luzes que os deixavam reluzentemente alvos e conduziam à porta dos fundos do hotel. Com metade do rosto na sombra, o boné de Eton puxado de lado sobre a testa, Jeffrey parecia, mais do que nunca, um ladrão de jóias dos romances dos anos vinte.

       — Talvez não seja da minha conta — disse ele — mas se ela confia em que você ligue para Davey, pense bem antes de fazer isso. E, caso decida telefonar para ele, não lhe conte onde está.

       Virando-se, ele a guiou para os reluzentes degraus.

      

UMA PEQUENA e preocupada porção do cérebro de Nora havia esperado a notícia de que o hotel dispunha apenas de um só quarto vago, porém Jeffrey não se transformara em Dan Harwich. Ele voltou do balcão de recepção com duas chaves, a dela pertencente a um quarto no quinto andar, com vista para a varanda e o alto da King Street. Uma vez no quarto, Nora havia tomado um demorado banho e, envolta em um roupão branco, refestelada em uma larga e confortável poltrona, enquanto ouvia o rádio transmitindo uma rapsódia de Brahms e o ar-condicionado zumbindo, ela lia o romance favorito de seu marido, como uma fuga para não pensar no que fazer em seguida.

       O Pequeno Pippin perambulava de personagem para personagem, ouvindo histórias. Alguns desses personagens eram humanos e outros monstros, porém todos excelentes contadores de histórias. Suas narrativas eram coloridas e envolventes, repletas de perigo, heroísmo e traição. Uns diziam a verdade e outros mentiam. Alguns personagens queriam ajudar o Pequeno Pippin, mas até mesmo estes nem sempre eram sinceros.

       Alguns dos outros desejavam cortá-lo em pedaços e transformá-lo em um saboroso monte de carne, mas estes personagens não mentiam o tempo todo. A verdade que Pippin buscava era um mosaico a ser montado através do tempo e com grande risco. Quase todos em Jornada na Noite eram aparentados uns com os outros; constituíam uma única, enorme e contendora família e, como em tantas famílias, seus membros possuíam lembranças e interpretações variadas de eventos cruciais. Havia facções, segredos e ódios. Pippin precisava arriscar-se a penetrar no Campo de Vapor para aprender-lhe as lições — ou tinha de evitar-lhe o contágio; se permanecesse entre as Pedras de Toon adquiriria uma chave de ouro vital para a sua busca — ou seria atacado pelos demônios que fingiam possuir uma chave de ouro.

       Passava pouco de nove e meia da noite, meia hora antes da sugerida por Helen Day para que lhe telefonasse. Ela queria ligar para Helen Day? Não, se a mãe de Jeffrey não fizesse mais do que instigá-la a sentir pena de Davey. Nora já sentia pena dele. Então recordou que Helen Day falara em ter de refletir sobre certo assunto, antes de poder discuti-lo. Provavelmente a idosa senhora considerava contar-lhe algo que ela já adivinhara, ou seja, que os Chancels nunca tinham desejado seu filho.

       Podia perfeitamente continuar lendo Jornada na Noite, enquanto houvesse tempo. Se saltasse um trecho aqui e ali, conseguiria terminar as cem páginas restantes. Ou poderia ir diretamente às últimas vinte e cinco páginas, a fim de saber se Pippin chegara a ir à Clareira da Montanha. Na noite em que sua vida começara a desandar, ela despertara em tempo de ver Pippin correndo ladeira abaixo para uma casa branca de fazenda, que cometera o erro de achar “bonita” ou “simpática”, não se lembrava mais. Bonita? Ora, se isso aí é bonito, Davey tinha dito, ou qualquer coisa parecida, está tudo errado. Não se espera que essa propriedade seja bonita. O lugar dá a impressão de conter o grande segredo?

       Então, como seria esse lugar tão importante? O Senhor Noite havia dito que era “um profano covil de espíritos malignos, revelado pelas Pedras de Toon”; a Dona da Xícara o descrevera como “uma devastação capaz de exaurir uma alma, que você jamais deve ver”; e ainda menos satisfatoriamente, o Amigo Gentil o chamara de “cela trancada de prisão, na qual você sepultou seu maior medo”. Nora virou sem ler a maioria das páginas que faltavam para o fim do livro e saltou linhas, antes de encontrar este parágrafo:

      

“A enorme porta cedeu à chave de ouro e revelou o que ele mais havia temido, porém mais desejara ver — a face real da Clareira na Montanha. Muito no fundo da pétrea montanha incrustada de neve, ele avistou uma cabana informe, uma gélida morada de vidas tão desoladas quanto ela própria.”

       Pippin tinha voltado para casa.

      

Alguns minutos antes da hora marcada, Nora encontrou a lista telefônica de Northampton em uma gaveta, e sentou-se na cama para usar o telefone.

       — Bufê “Sabor Celestial” — disse uma voz de mulher.

       Nora perguntou por Helen Day, e o fone transmitiu o ruído de ser deixado sobre uma bancada. Ela ouviu um zumbido de joviais vozes femininas.

       — Alô? Aqui é Helen Day.

       Nora deu seu nome, acrescentando:

       — Parece que a senhora está dando uma festa aí.

       — Algumas das meninas voltaram da Sociedade Asiática mais cedo. Preciso trocar de telefone.

       Nora ficou segurando o receptor mudo, enquanto o tempo marchava. Moveu o telefone para mais perto da beirada da cama, deitou-se sobre o colchão, bocejou e fechou os olhos.

       — Está ouvindo? Nora? Tudo bem com você?

       O teto de um quarto estranho pendia acima da cabeça dela. Estava deitada em uma cama não familiar, um pouco macia demais para seu gosto.

       — Nora?

       O ambiente estranho em torno dela voltou a ser novamente o quarto no alto do Northampton Hotel.

       — Acho que cochilei por um segundo.

       — Disponho de pelo menos meia hora, antes que alguém torne a precisar de mim. Quer falar um pouco, ou prefere esquecer a idéia e voltar a dormir?

       — Estou ótima — disse Nora, bocejando o mais silenciosamente possível.

       — Costumo pensar muito em Davey. Era um garotinho tão simpático... Quero saber o que me pode contar sobre ele. Como Davey está agora? Como você o descreveria?

       — Continua sendo um garotinho simpático — respondeu Nora.

       — E isso é bom?

       Nora ignorava até que ponto podia ser sincera, nem quão sombria uma descrição sincera de Davey poderia ser.

       —- Devo admitir que ser um garotinho simpático aos quarenta anos tem suas desvantagens...

       — Ele é gentil? Bondoso com as pessoas?

       Nora compreendeu então o que Helen Day perguntava.

       — Ele não possui qualquer semelhança com o pai, isso eu lhe garanto. O problema é Davey ser inseguro, preocupar-se demais e ficar frustrado o tempo todo.

       — Imagino que ele esteja trabalhando para o pai.

       — Alden o mantém de rédeas curtas — respondeu Nora. —Paga a Davey um monte de dinheiro para fazer tarefas de pouca monta, com isto o deixando convencido de que não conseguirá fazer mais nada. Assim que o pai levanta a voz, ele entrega os pontos e encolhe-se como um cachorrinho.

       Helen Day nada disse por um momento.

       — Você e Davey vão freqüentemente a “Os Alamos”?

       — Pelo menos uma vez por semana. Geralmente nos domingos.

       — Como estão as relações entre Alden e você?

       — Tensas? Cambaleantes? Ele exibiu uma fachada de bonzinho durante seis meses, mas depois disso começou a mostrar como de fato se sentia a meu respeito.

       — Ele é educado, pelo menos?

       — Não mais. Alden me detesta. Fiz esta coisa idiota, e Daisy ficou fora de si, de maneira que Alden chamou Davey às falas, dizendo que, se não se separasse de mim, ele o demitiria da Casa Chancel e o cortaria de seu testamento.

       Helen Day ficou em silêncio.

       — Parece-me que a senhora tinha algo mais em mente, quando me pediu para telefonar — disse Nora.

       — Alden está chantageando Davey para que a deixe.

       — Essa é a idéia geral. Tentei convencê-lo de que não precisamos do dinheiro de Alden, mas acho que não me saí muito bem.

       — Qual foi essa coisa que deu a Alden uma justificativa?

       — Em conversa comigo, Daisy quis que eu lesse seu livro. Quando me ligou para falar a respeito, teve um comportamento violento e agressivo. Alden me culpou por isso.

       — Alden é um indivíduo tirânico. Respeito muito o homem, porém isso é o que ele é.

       — Eu não o respeito. Ele nunca desejou Davey, porém não consegue liberá-lo. Davey sofreu a vida inteira com a sensação de que, por não ser o verdadeiro Davey Chancel, jamais será bom o suficiente.

       — Era o que eu temia — disse Helen Day. — Alden fazendo-o pagar.

       — Lincoln fez a mesma coisa, não foi? Forçou Alden e Daisy a adotarem um neto, e eles lhe fizeram a vontade, por causa do dinheiro. Não era o que estava pensando em contar-me? A senhora não quis falar em presença de Jeffrey.

       De novo, Helen Day esperou bastante tempo antes de falar.

       — Eu gostaria de discutir esse assunto, mas não posso.

       — Eu já sei. Havia algo assim no livro de Daisy.

       — Daisy ficou furiosa com eles dois.

       — Ela também não queria a criança. Aliás, minha surpresa foi, antes de tudo, eles terem um filho.

       — Suponho que também foi surpresa para eles.

       — A senhora estava em “Os Álamos”, quando o primeiro filho nasceu. Viu-os passarem por tudo aquilo.

       — Naturalmente.

       — A “comoção”. Foi o nome que deu.

       — Esta é precisamente a palavra adequada. Barulho noite e dia, gritos e discussões...

       — E a senhora acha que Davey devia saber por que seus pais sempre o trataram da maneira como o tratam. Que ele foi apenas um meio para Alden continuar no testamento do pai.

       Silêncio.

       — Alden a fez dar sua palavra, não foi? Ele a fez prometer que jamais mencionaria isto a Davey. — Outra revelação despontou em sua mente. — Ele a fez ir embora e deu-lhe dinheiro suficiente para iniciar seu próprio negócio.

       — Ele me deu a chance de que eu precisava.

       — E a senhora tem sido grata desde então, embora nunca se sentisse bem quanto a isso.

       Após uma pausa, a velha senhora disse:

       — Ele não devia estar usando o mesmo truque sujo contra o filho. O mesmo que o pai usou contra ele. Isso me deixa muito infeliz.

       — Os dois chegaram a desejar o primeiro filho? Imagino que só o tiveram por causa de Lincoln.

       — Você é que está dizendo, não eu. Entendeu? Prossiga com suas suposições. Até agora, está fazendo um excelente trabalho.

       — Muito bem, então eles não o desejaram. Como foi que morreu esse primeiro filho?

       — Pensei ter ouvido você dizer que Daisy escrevera sobre isto em seu livro.

       — Ela escreveu, mas modificou tudo. — Um pensamento espantoso surgiu na cabeça de Nora. — Daisy matou o bebê? É horrível dizer isso, porém ela é quase louca o bastante para cometer esse horror. Além disso, Lincoln e Alden não teriam a menor dificuldade em abafar o assunto.

       — A única coisa que Daisy Chancel já matou foi o conteúdo de uma garrafa — disse Helen Day. — O que alguém faria com um bebê indesejado?

       — Poderia dá-lo para os parentes.

       — Sim, mas como agiria a maior parte das pessoas?

       — Entregaria a criança para adoção — disse Nora.

       — Exatamente!

       — Ora, mas então, por que inventarem uma história sobre ele ter morrido? Não faz sentido.

       — Continue supondo.

       — A pessoa dá um filho, para depois adotar outro? Nem mesmo sei se isso é possível. Nenhuma agência de adoção entregaria uma criança a um casal que desistiu do próprio filho.

       — Também acho certo.

       — Então, o primeiro filho morreu. Deve ter sido uma morte no berço. A menos que Alden o assassinasse.

       — O que Daisy colocou em seu livro?

       — Estava tudo confuso. Houve uma criança, que depois desapareceu. O personagem Lincoln esbraveja nas páginas, mas na metade do tempo veste um uniforme nazista. Lincoln Chancel não usava uniformes nazistas, ou usava?

       — O sr. Chancel colecionava bandeiras nazistas, uniformes, cinturões, braçadeiras, coisas assim. Depois que ele morreu, Alden me pediu que queimasse tudo. Você terá de continuar fazendo suposições, Nora. Acha que o bebê morreu?

       — Acho que não morreu — respondeu Nora. — Acho que ele foi adotado.

       — É uma boa suposição.

       — Só que... — começou Nora, interrompendo-se em seguida.

       Um momento do livro de Daisy bailou em sua mente: Adelbert Poison discutindo com Clementine em seu arruinado terraço. Ela tentou recordar o que Adelbert dissera sobre Egbert — uma palavra que Daisy escrevera. O que de fato havia acontecido a Davey, a única seqüência de ações fazendo sentido além daquelas brigas, emergiu em seu cérebro um instante antes de recordar a palavra, que era reclamar. A sensação foi a de que uma bomba explodira em seu peito.

       — Oh, não! — exclamou. — Eles não fariam isso!

       Após deixar escapar o que estava em sua mente, ela não teve mais dúvidas de que acertara.

       — Eles entregaram Davey para adoção, mas Lincoln os forçou a trazerem a criança de volta. Não houve nenhum primeiro Davey. Davey foi o primeiro Davey!

       — Parece-me uma excelente suposição — disse Helen Day. — Os Chancels possuem uma grande imaginação. A mentira tem pernas curtas.

       Nora deixou que a idéia do crime deles falasse por si mesma.

       — Nenhum dos dois desejou o filho. Tiveram de trazê-lo de volta por causa do dinheiro. Ficariam muito mais felizes se ele houvesse morrido.

       — E Alden o tem feito pagar desde então.

       — Sim, ele o tem feito pagar desde então — ecoou Nora.

       — Eu estava certa sobre você. Enxerga mais do que a maioria.

       — Eles mentiram para Davey durante toda a sua vida. Que idade ele tinha, quando o trouxeram de volta?

       — Uns seis meses. A outra família não queria perdê-lo, mas Lincoln fez Alden e Daisy irem até New Hampshire, os dois disseram todas as coisas certas e trouxeram o menino de volta.

       — Todos acreditaram que seu filho tinha morrido. A senhora era a única pessoa a saber o que de fato ocorrera. Quando Davey ficou mais velho, eles recearam contar-lhe a verdade, de modo que fizeram a senhora ir embora.

       Helen Day suspirou.

       — Foi uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida. Podia ver Jeffrey sempre que queria, e sabia que ele estava entre pessoas que o amavam. Davey, no entanto, ficaria absolutamente só. Quando o sr. Chancel morreu, eles simplesmente o ignoraram. São gente fina, porém não queriam ser país.

       Nora continuava perplexa.

       — Como pode dizer que são gente fina, se sabe o que eles fizeram?

       — Não é muito fácil julgar pessoas a quem compreendemos. Alden tem um coração frio e é tirânico, mas sei por quê. Por causa do pai que tinha. Esta é a pura e simples verdade.

       — Aposto que a senhora tem razão — disse Nora.

       — Você não conheceu Lincoln Chancel. O sr. Chancel tinha mais energia, mais cérebro e dinamismo do que seis homens juntos. Ele era mais um lutador. Algumas das coisas pelas quais lutou foram erradas e ruins, porém ele pouco ligava para a lei, a menos que a tivesse do seu lado. O sr. Chancel não passou a vida ronronando — ele rugia. Houve vezes em que estive mais aborrecida com ele do que jamais estivera com outra pessoa, porém havia algo de magnífico em relação àquele homem. Sempre achei que o sr. Chancel era muito parecido com minha irmã, tendo tudo por dentro virado do avesso. Nenhum dos dois era muito simpático, mas se o fossem, jamais teriam sido tão impressivos.

       — Não obstante, ele era um monstro.

       — Uma pessoa precisa ter um santo dentro de si para ser um monstro. O sr. Chancel causou muitos danos, porém seu coração nada tinha de frio, pelo contrário. Quando fui a Shorelands, quem você imagina que envidou os maiores esforços para encontrar minha irmã? Quem intercedeu com Georgina para que me permitisse ficar lá quatro dias? O sr. Chancel. Quem foi comigo e os policiais para a floresta? Ele tinha seus negócios para dirigir, tinha sua fita de teleimpressora e suas ligações telefônicas, porém deu mais ajuda para encontrar Katherine, do que qualquer daqueles outros escritores.

       — Entendo — disse Nora.

       — Espero que entenda mesmo. E ele viu em que situação me encontrava, com meu marido morto, meu filho longe de mim e meu coração em pedaços por causa da pobre Katherine. Então, ofereceu-me um emprego com um salário duas vezes maior do que eu estava ganhando, além de casa e comida.

       — A senhora se sente muito grata a ele.

       — Há coisas que a gente nunca esquece. Se o sr. Chancel vivesse, tenho certeza de que contaria a verdade para Davey.

       — Acha que eu deveria contar? — perguntou Nora.

       — Você fará o que julgar melhor, mas, afinal de contas, esse é o tipo de pessoa que você é. Desejo apenas que se lembre de que eu não lhe contei coisa alguma, porque também faço o que julgo ser melhor, e não costumo ignorar minhas promessas.

       — Ouça, eles não tiveram que providenciar alguma espécie de sepultamento? Supunha-se que houvesse um corpo.

       — Foi um sepultamento sigiloso. No cemitério atrás da igreja de Santo Anselmo. Estiveram presentes apenas Alden, o sr. Chancel e o prior. Uma cerimônia breve e terna, com o sr. Chancel sendo o único homem que chorava. Isto porque Alden sabia muitíssimo bem que o que estavam sepultando eram dois tijolos, embrulhados em uma mortalha, a fim de que não deslizassem soltos, dentro do ataúde.

       — Céus, que demônio! — exclamou Nora.

       — O pai dele disse coisas bem piores do que isso, quando descobriu.

       Helen Day surpreendeu Nora, ao dar uma ruidosa gargalhada.

      

DAVEY ESTAVA no apartamento de Jeffrey, onde a linha telefônica não estava grampeada. Se ligasse para ele, pensou Nora, não teria qualquer obrigação de revelar-lhe a traição de seu pai. Com o passar do tempo, Davey acabaria acreditando nela, mas se o perturbasse com a revelação de Helen Day, com ele ainda sob o fascínio de Alden, certamente a acusaria de estar mentindo. Uma vez aceita a verdade, Davey teria de ir embora de “Os Álamos”, da Casa Chancel e da vida de Alden para sempre.

       Estendendo o braço, Nora tocou o telefone. O plástico parecia morno e vivo. Ela recuou com a mão, depois tornou a estendê-la. A campainha do aparelho disparou como um despertador, sobressaltando-a. Davey.

       Pegando o fone, ela disse alô.

       — É você, Nora? — O homem no outro lado não era Davey.

       — Sim, eu mesma.

       — Aqui é Everett Tidy. Tentei ligar antes, mas você falava ao telefone. Acha que é muito tarde para conversar?

       — Não.

       — Pensei que você devia ficar a par de uma coisa. Não quero preocupá-la, mas isso me deixou um pouco perturbado.

       Nora perguntou o que tinha acontecido.

       — Recebi dois telefonemas. O primeiro, de um advogado chamado Leland Dart. Ele é o pai, não?

       Nora perguntou o que Leland Dart queria.

       — Ele pediu desculpas por tomar meu tempo, essas coisas. Explicou que era o advogado da Casa Chancel e perguntou se eu tinha conhecimento de alguma discussão recente sobre a autoria de uma das propriedades da firma. Respondi que nada sabia a respeito. Ele então me disse que a propriedade era Jornada na Noite e que, como eu indubitavelmente estava a par, meu pai certa vez tivera algum contato com seu autor, Hugo Driver. Leland Dart queria saber se eu tinha a posse de quaisquer documentos de meu pai, capazes de comprovar a autoria de Driver. Acrescentou que, se eu não dispusesse de tempo, ele teria prazer em enviar alguém de sua equipe a Amherst, a fim de fazer essa verificação em meu lugar.

       — O que o senhor respondeu?

       — Que, de uma forma ou de outra, nada escrito por meu pai poderia provar qualquer coisa sobre Jornada na Noite. Teria eu examinado tudo? Sim, respondi, e ele tinha de aceitar minha palavra por isso; não havia qualquer material que lhe pudesse ser útil. Então, o sujeito quis saber quantos diários ou agendas meu pai deixara e onde eu os guardava. Estariam depositados em uma biblioteca, em algum lugar, ou em minha casa? Respondi que estava tudo na Biblioteca da Universidade de Amherst. Se ele enviasse uma pessoa a Amherst, eu concordaria em deixá-la examinar os papéis? Nem por sonhos, respondi. Então ele disse que talvez precisasse manter uma correspondência comigo, e queria confirmar o meu endereço. Leu ao telefone o endereço de minha antiga casa. Estava correto? Respondi que, até onde eu sabia, era aquele mesmo, e que não tínhamos mais nada a falar.

       — Ótimo — disse Nora.

       — Ele perguntou então se eu havia discutido este assunto recentemente com mais alguém. Respondi que também não era da sua conta. Eu ouvira falar em uma mulher chamada Nora Chancel? Nora Chancel aparecera fazendo perguntas relacionadas com Hugo Driver?

       — Ele perguntou por mim?

       — Exatamente. Falei que não, que não tivera nenhum contato em absoluto com você e que, se ele queria ter uma discussão sensata de negócios, por que não telefonava em uma hora sensata? Bem, o sujeito quase me chamou de mentiroso, disse que Nora Chancel era uma fugitiva da justiça e que eu deveria recusar-me a qualquer relacionamento com você, pois as conseqüências ficariam sérias, caso ignorasse o conselho dele.

       — Por que Leland Dart...

       — A coisa seguinte que me disse foi que tinha um jovem advogado já na área de Amherst, e que eu concordaria em, pelo menos, ter um encontro com o homem? Não. Eu não concordaria. Ele ainda argumentou comigo durante um momento, quando então pude ouvir aquilo.

       — O quê?

       — O ruído ao fundo. Pessoas falando. Vozes. O estranho som tilintante. Depois pude reconhecê-lo: era a sineta que soa quando uma caixa registradora marca um total.

       — Uma caixa registradora?

       — Isso. Perguntei: “Está telefonando de um bar?” e ele desligou.

       — Oh, não!

       — Está pensando o mesmo que eu?

       — Que era Dick, fingindo ser o pai?

       — Eu refleti na tensão em que o homem está vivendo. Se o filho dele for Dick Dart, então o pai seria tentado a resolver alguns de seus negócios em bares. Entretanto, após a chamada seguinte, ocorreu-me que essa pessoa poderia ter sido o próprio Dick.

       Não mais de vinte minutos depois que o homem dizendo chamar-se Leland Dart desligara, Tidy havia recebido outro telefonema, agora de um certo capitão Liam Monoghan, da Polícia Estadual de Massachusetts. Segundo o policial, Everett Tidy estava prestes a ser levado para interrogatório, talvez inclusive acusado de vários crimes. E que, se ele tinha alguma esperança neste mundo de escapar a tais humilhações, essa esperança era o capitão Monoghan. Monoghan havia dito: Não creio que o senhor tenha conhecimento de que essa mulher era uma fugitiva do FBI, acrescentando que: Possuímos informações de que a sra. Chancel modificou sua aparência. Também fomos informados de que ela poderá estar na área de Northampton. Isso é correto?

       — Se ele houvesse mencionado outra cidade qualquer, eu não teria dito nada, Nora. Pensaria que o sujeito estava blefando. Entretanto, procure avaliar minha posição. Quero ajudá-la de todas as maneiras que puder, mas não quero ir para a cadeia. Esse homem afirmou que eu passaria pelo menos uma noite na cadeia, caso não revelasse a verdade dos fatos. Se isso acontecesse, eu temia envolver Jeffrey e sua mãe.

       — Professor Tidy, Dick Dart cortou e tingiu meu cabelo, mas a polícia não sabe disso. A única maneira deles poderem saber seria se o próprio Dick Dart lhes contasse.

       Houve um silêncio, quase tão demorado quanto o de Helen Day.

       — Não creio que o homem com quem falei fosse um policial — respondeu ele finalmente.

       — O que o senhor lhe contou?

       — Ele disse acreditar que eu estava agindo por motivos inocentes, se pudesse confirmar ou negar a informação de que você se achava em Northampton. Caso eu continuasse obstruindo a ação da polícia, havia gente na sede da Polícia Estadual desejando levar-me para passar a noite na cadeia. Pareceu-me que a forma de fazer o menor dano possível, seria confirmar o que eles já sabiam. Assim, respondi ser minha impressão de que você pretendia ir para Northampton, mas que eu ignorava qualquer outra coisa além disso. Ele agradeceu a minha cooperação e disse que dentro em pouco um policial viria tomar meu depoimento. Liguei para você assim que fiquei com o telefone livre.

       — Nenhum policial apareceu em seu apartamento.

       — Nenhum, mas talvez ainda apareça. O que você acha?

       — Eu acho que foi o próprio Dick Dart quem deu os dois telefonemas. Quando simulou ser o pai dele, ficou sabendo o suficiente para ter certeza de que eu visitara o senhor. Assim, fez a segunda ligação para ver se, blefando, conseguiria arrancar-lhe mais informações.

       — Eu sinto muito — grunhiu Tidy. — Eu não imaginava que poderia estar deixando-a em perigo, Nora. Como ele adivinhou onde você estava?

       — Ele não adivinhou — respondeu Nora. — Northampton foi apenas um tiro no escuro. Se não acertasse, ele simplesmente ficaria mencionando cidades, até encontrar a que interessava.

       — Você acha que devo chamar a polícia, a polícia de verdade?

       — Não. Não faça isso!

       — Vá embora daqui — disse Tidy. — Vá para Boston e esconda-se, até ficar certa de que está a salvo. Se puder chegar lá esta noite, ligue para mim e eu lhe mandarei dinheiro suficiente para manter-se durante algum tempo. Peça a Jeffrey para levá-la.

       — Quero descobrir se ainda estou encrencada. Se estiver, é provável que acate sua sugestão.

       — Tenho uma casinha em Vermont que, neste momento, me parece o lugar ideal. Acredita que Dart ainda possa estar tentando descobrir onde eu moro? Odeio imaginá-lo em Northampton, porém devo dizer que também não me agrada a idéia dele em Amherst.

       Houve uma pausa, que Nora desistiu de preencher.

       — Nesta última hora, estive aprendendo uma verdade bastante infeliz.

       — Que verdade?

       — Que sentir medo é extremamente desagradável — disse Tidy.

      

— DAVEY?

       O chocado silêncio, nascido em meio ao soar de violinos e clarins, persistiu até a própria Nora preenchê-lo.

       — Sou eu, Davey!

       — Nora?

       — Você pode falar comigo?

       — Onde é que você está? — perguntou ele, sua voz soando um pouco mais lenta que de hábito.

       — É seguro falar? r’

       — Como sabia que eu estava aqui?

       — Isso agora não vem ao caso. Essa linha está grampeada?

       — Como é que vou saber? Bem, acho que não está. Meu pai livrou-se de Jeffrey e da moça italiana, de modo que estou ocupando o apartamento de Jeffrey.

       Um jato de música sufocou suas palavras seguintes.

       — Por favor, baixe o volume da música, Davey. Não consigo ouvir o que você diz.

       Ele devia ter acionado um controle remoto, porque a música imediatamente diminuiu de tom.

       — E então, como você está? Tudo bem? Você parece legal.

       — É um pouco complicado. Como vai você?

       — Estou me sentindo um trapo — respondeu Davey. — Fiquei morrendo de preocupação, desde que Dart levou você à força do posto policial. Pensei que ele ia matá-la. Sabe como fiquei sabendo? A recepcionista viu tudo pela televisão, durante sua folga! Ela me chamou, eu corri lá para baixo. Havia umas vinte pessoas em volta da mesa dela. Durante meia hora ficaram mostrando material sobre você e Dick Dart, mas então papai me levou de volta a Westerholm. Desde então, tudo o que fazemos é ver o canal de noticiosos e falar com tiras. Já falamos também com aqueles caras, o sr. Hashim e sr. Shull. O tal sr. Shull é um tipo carrancudo, parece mais um palerma. Os dois têm verdadeiro ódio de Holly Fenn e gostariam de esfolá-lo vivo.

       Nora ouviu o som de cubos de gelo, tilintando contra um copo.

       — Holly Fenn devia ser demitido, fez uma série de baitas trapalhadas neste caso. Ei, Nora, você está realmente bem?

       — Em certos sentidos, Davey.

       — Quando o sr. Shull nos contou que você tinha escapado, fiquei realmente contente.

       — Contente?

       — Aliviado. Não acredita que eu ficasse aliviado?

       — Eu posso ir para casa, Davey?

       — O que está querendo dizer com isso?

       O coração de Nora afundou, quando ela percebeu a preocupação na voz dele.

       — Natalie continua acusando-me de tê-la raptado?

       — Pelo que ouvi dizer, ela ainda não disse coisa com coisa. O sr. Hashim e o sr. Shull continuam achando que você é culpada. — Ele vacilou. — Natalie tomava um monte de drogas, sabia disso?

       — Não.

       — Um daqueles tiras encontrou um esconderijo para cocaína, no quarto dela, preso com fita adesiva atrás de uma gaveta. Lembra-se dos ímãs na geladeira? Acho que eles poderiam ter-nos dito algo. — Ela tornou a ouvir os cubos de gelo chocalhando dentro do copo. — Você esteve em Holyoke?

       — Estive — respondeu ela.

       — Você dirigiu até Holyoke e livrou-se do carro daquele homem morto?

       — Não era minha intenção. Fui a um restaurante comer alguma coisa e, quando voltei, a polícia estava lá, por toda parte.

       — Você foi a um restaurante? Para comer alguma coisa? O que é isso, uma excursão no campo?

       — Preciso comer de vez em quando — replicou Nora.

       — Você poderia ter vindo para casa. Escondendo-se desta maneira, faz com que pareça culpada.

       — Ir para casa? Onde? Para “Os Álamos”? — perguntou Nora. — Imagino que Alden me acolheria com gritos de alegria.

       — Volte para casa e enfrente a música, é o que quero dizer. Meu pai nada tem a ver com isso. Ele não fez nada errado.

       — Nem eu tampouco — disse Nora. — Entretanto, aposto como seu pai tem se esforçado ao máximo para fazer você acreditar que fiz. — Outro tilintar de cubos de gelo. — O que está bebendo, Davey?

       — Vodca. Sabia que Jeffrey supostamente escreveu peças que foram encenadas no Teatro Público? Interroguei-o sobre os pôsteres pendurados em sua sala de estar, e ele alegou ter escrito as peças, sob o nome de Jeffrey Mannheim. Não acredito que tenha escrito, e você? Elas receberam excelentes críticas.

       — Jeffrey possui profundezas escondidas — disse Nora.

       — Ele é o sobrinho da moça italiana, pelo amor de Deus! Que espécie de profundezas escondidas teria? — Davey tomou outro tilintante gole da bebida. — Bem, esqueça papai. É claro que ele a critica o tempo todo. Mamãe é ainda pior. Ela pensa que você planejou ser raptada por Dick Dart e parece satisfeita com esta idéia que teve. Acho que o sr. Hashim quase acredita nela.

       — Que maravilha!

       — Vou ser franco, Nora. Fiquei de fato preocupado com você, mas não imagino o que pensa estar fazendo.

       A frase tinha um tom acusatório.

       — Antes de mais nada, Davey, tenho tentado ficar longe de Dick Dart e evitar a polícia, até ter certeza de que posso voltar para casa em segurança.

       — Os tiras encontraram naquele carro um monte de roupas novas compradas em uma loja exclusiva para homens, e quando foram à tal loja, o vendedor recordou-se de vocês dois muito bem. Dick Dart experimentou um punhado de ternos novos, e você simplesmente ficou lá sentada, assistindo. Depois disso, os tiras subiram e desceram a rua, tendo descoberto que vocês dois haviam estado em metade das lojas da cidade. Todo mundo se lembra do simpático casal de pombinhos.

       — Dick Dart é um lunático, Davey. Acha que cooperei porque gosto dele? Eu o odeio, ele me deixa com a pele arrepiada. Se fizesse qualquer coisa para chamar a atenção sobre mim, ele me mataria!

       — Não, se ele não pudesse vê-la — insistiu Davey. — Como na ocasião em que ele experimentava as roupas novas.

       — Eu não me sentia tão confiante, Davey. Pouco antes de sairmos em nossa expedição de compras, ele estuprou-me. Na verdade, eu não conseguia raciocinar com muita clareza. Era como se houvesse sido quebrada ao meio, e não estava preparada para atos de heroísmo.

       — Oh, céus, oh, não! Eu sinto muito, Nora.

       — Eu não cooperei com ele, caso você esteja querendo saber. Meus maiores esforços eram para continuar lúcida, sem perder os sentidos. Por outro lado, tinha as mãos amarradas atrás das costas e a boca tapada com fita adesiva.

       — Você deve ter ficado morta de medo.

       — Foi ainda pior do que isso, Davey, mas prefiro poupar seus sentimentos.

       — Por que não me disse antes?

       — Porque você não me fez nenhuma pergunta real. Ficou insistindo em Jeffrey, em ver as cenas na televisão da recepcionista. Além disso, não me pareceu muito compreensivo, e agora sei por quê. Imaginou que eu me divertia à grande com Dick Dart. Quer saber como consegui fugir dele? Acertei-o na cabeça com um martelo. Pensei que o tinha matado. Fui para fora e liguei o motor do carro, mas acontece que não cheguei a matá-lo, porque ele saiu do quarto do motel em minha perseguição. Então, girei o volante na direção dele e atropelei-o.

       — Santo Deus! Isso é terrível!

       — Seria terrível se eu o tivesse matado, mas não o matei. Ele continua perambulando pelos arredores, tentando encontrar pessoas capazes de ajudá-lo a provar que o seu adorado Hugo Driver não escreveu Jornada na Noite.

       Davey emitiu um estranho som de protesto e ultraje, mas Nora ignorou-o.

       — Ele acabou de descobrir onde me encontro e, agora, provavelmente está afiando suas facas, a fim de que possa fazer um trabalho muito bom em mim.

       — Onde você está?

       — Se eu lhe disser, você não poderá contar a mais ninguém. Nem mesmo deve contar a eles que tivemos esta conversa.

       — É claro.

       — Estou falando sério, Davey. Não conte para ninguém!

       — Não contarei. Só quero saber onde você está.

       — Estou em Northampton, em um quarto no Northampton Hotel.

       — Um momento.

       Ela o ouviu largar o fone. Uma porta de geladeira foi aberta e cubos de gelo caíram em um copo. Houve um som de líquido gorgolejando de uma garrafa. Ele retornou ao telefone.

       — O que você está fazendo em Northampton?

       — Escondendo-me. O que acha que estou fazendo?

       — Ouça, isto tem algo a ver com Jeffrey? Ele lhe contou que eu ia ficar em seu apartamento? Você está com Jeffrey? Que diabo está fazendo em companhia dele?

       — Eu precisava de ajuda e telefonei para ele.

       — Você telefonou para Jeffrey? Que loucura!

       — Eu não podia apelar para você, podia? Todas as linhas estão grampeadas. E quando Jeffrey percebeu que eu estivera fazendo perguntas sobre Katherine Mannheim, insistiu em apanhar-me.

       — Não sei o que dizer. Jeffrey é um empregado, o maldito sobrinho da italiana Maria. Como pode ser possível ele ter alguma coisa a ver com Katherine Mannheim? — Um gole sorvido de bebida, um tilintar de cubos de gelo. — Estou começando a odiar o nome dessa mulher. Espero que ela tenha tido uma morte horrível. Por que você fazia perguntas sobre ela?

       — Dick Dart tem feito mais do que apenas comprar roupas novas. — Por um momento, enquanto ela explicava a missão de Dart, Davey foi reagindo com gemidos de descrença. — Não me incomodo se você acredita ou não, mas é o que está acontecendo, Davey. Quanto a Jeffrey, ele é sobrinho de Katherine Mannheim, porque sua mãe, Helen Day, era irmã dela.

       — Mãe dele? Helen Day?

       — Ela conheceu seu avô em Shorelands, quando esteve lá, vendo se conseguia encontrar Katherine. Seu marido havia morrido, ela não estava satisfeita no emprego que tinha no momento, e ele a contratou.

       Nora continuou explicando as conexões entre Helen Day, Jeffrey e Maria.

       — Essas pessoas pensam que Katherine Mannheim escreveu Jornada na Noite? Isso poderia arruinar-nos!

       — Acontece que a Casa Chancel já está atolada em problemas, mesmo sem um escândalo envolvendo Hugo Driver. Segundo Dick Dart.

       — O perito em indústria editorial.

       — Ele sabe muitas coisas sobre a Casa Chancel. Seu pai a está levando à derrocada e agora tenta vendê-la a uma firma alemã. Esse caso de Katherine Mannheim o está deixando louco, porque pode prejudicar o entendimento com os alemães.

       — Não existe nenhum entendimento com firmas alemãs! Dick Dart é que inventou tudo isso.

       — Ele também contou outra história interessante. Sobre o Clube do Fogo do Inferno.

       — Oh! — exclamou Davey. — Bem, certo.

       — Bem, certo? O que quer dizer isso?

       — Que eu não lhe contei exatamente a verdade.

       — Você pertencia ao Clube do Fogo do Inferno.

       — Na realidade não havia nenhum Clube do Fogo do Inferno. Apenas era assim que a gente o chamava.

       — Não obstante, há uma filial em Nova York, não? E você é um membro.

       — Não é bem assim. Você insiste em deixá-lo semelhante a um clube de verdade, quando não passa de um lugar onde esses caras se reúnem para vagabundear. Eles contratam um bom cozinheiro de vez em quando ou, pelo menos, era assim que faziam. Também têm um porteiro e uma atendente de vestiário. Havia um bar, e a gente podia levar garotas para os quartos no andar de cima. Fui lá somente umas duas vezes, depois que eu e Amy rompemos.

       — Quem era a garota que você levou ao Clube do Fogo do Inferno, em New Haven?

       — A mesma pequena ameaça que acabou emergindo no departamento de arte. Em Yale, dava a si mesma o nome de Lena Ware. Cada vez que eu a via, ela estava lendo Jornada na Noite. Acho que foi a New Haven à minha procura.

       — Por que não me contou que a encontrou duas vezes?

       — Porque ficaria muito estranho. E eu não queria falar a você sobre... você entende... sobre o que Dart provavelmente lhe contou.

       — Sobre tê-la atropelado.

       — Eu não a atropelei. Bem, pensei que tinha atropelado, mas não foi assim. Quando a encontrei na Casa Chancel, uns dois anos mais tarde, ela dizia chamar-se Paddi Mann e explicou que quisera assustar-me, por ter ficado muito furiosa comigo. Nora, ela era biruta. Eu gosto de Hugo Driver, mas ela nunca pensava em outra coisa. Você devia ver seus amigos! Existem casas de fanáticos por Driver, sabia disso? Estive em uma dessas casas com ela. Ficava em uma sobreloja, em cima de um restaurante na Elizabeth Street. Francamente bizarro. Todos estavam altos o tempo todo, tinham quartos semelhantes a cavernas, as pessoas vestiam-se como lobos, coisas assim.

       — Foi isso o que você descreveu para mim, não?

       — Hum-hum. De qualquer modo, ela ficava insistindo comigo para ir a Shorelands, porque tinha uma singular teoria de que a propriedade era descrita em Jornada na Noite.

       — Como?

       — Ela achava que só se poderia entender o livro indo a Shorelands, porque Shorelands estava retratada nele. Havia qualquer coisa a respeito da propriedade, porém isso foi tudo que ela disse. De um modo geral, a idéia era idiota. Consegui um livro sobre Shorelands com um sujeito de nome curioso, mas ali nada constava sobre Jornada na Noite.

       — Apenas por curiosidade: o que de fato aconteceu da última vez que você foi ao lugar em que ela morava?

       — Encontrei o livro debaixo de sua cama, e cheguei a pensar que algo acontecera a ela, porque havia desaparecido de vista. Seu quarto estava absolutamente vazio. Os outros fãs de Driver que moravam lá ignoraram seu paradeiro e nem se importaram com o ocorrido. Ela não era uma garota para eles, e sim Paddi Mann, a real, a que está no livro. Quando saí de lá estava tão deprimido, que não suportei a idéia de ir para casa. Então, hospedei-me em um hotel por umas duas noites. Quando nos mudamos para nossa casa, o livro foi comigo. Eu o levei de “Os Álamos”.

       — O livro estava em nossa casa?

       — Lembro-me de tê-lo aberto e visto o nome dela. Por um segundo, Nora, quase desmaiei. Sempre que aquela garota aparecia, minha vida ficava de pernas para o ar. Eu o deixei na Casa Chancel, na estante de livros que fica no corredor. No dia em que encontrei Natalie na delicatessen da Main Street, ela mencionou que nunca lera Jornada na Noite. Natalie gostava de romances de horror, mas sempre achara Driver mais ligado a fantasias, de maneira que nunca tentara lê-lo. No dia seguinte, puxei da estante um exemplar de Jornada na Noite e o dei para ela, pois o livro era o mesmo que tinha o nome de Paddi.

       — Oh, Davey! — exclamou Nora. Ele bebeu mais um gole de seu drinque. — Então, você queria recolhê-lo antes que os policiais o vissem.

       — Eu lhe disse isso. Nele também havia o meu nome.

       — E para esconder o seu caso, você me contou essa história, era vez de dizer: “Bem, Nora, depois que compramos a casa, eu dei este livro a Natalie”.

       — Sim, foi isso. — Davey deu um grunhido. — Eu não queria deixar você perceber que eu a estava vendo. De qualquer modo, por que me pergunta tudo isso? Você não dá importância a Hugo Driver!

       — Eu hoje comprei os três livros dele.

       — Fala sério? Depois que terminar o primeiro, você tem de ler Jornada no Crepúsculo. É francamente espetacular. Céus, seria maravilhoso conversar com você a respeito. Quer saber o que diz o livro?

       — Tenho a impressão de que você deseja contar-me — disse ela.

       Como sempre, Davey logo ficava mais confiante se lhe fosse dada uma oportunidade para falar sobre Hugo Driver.

       — Como no primeiro livro, ele tem de continuar falando com todas aquelas pessoas e, através das histórias que lhe contarem, deduzir o que realmente aconteceu. Assim, fica sabendo que seu pai matou um punhado de gente, e que quase o matou, por recear que ele descobrisse. Seja como for, anteriormente no livro ele toma conhecimento de que seus pais não são seus verdadeiros pais, que eles apenas o encontraram na floresta certo dia, o que de certo modo é um tremendo alívio. Assim, ele parte em busca dos pais verdadeiros, e um Nellad, que é um monstro dono de uma mina de ouro e tem aparência de homem, embora não seja um, ataca-o com suas garras. Uma velha que lhe trata dos ferimentos conta que a mãe dele é de fato sua mãe. Seus pais o deixaram na floresta quando era ainda um bebê, mas ela saiu nessa mesma noite e o trouxe consigo. E ele diz então: Minha mãe é minha mãe.

      

PELA SEGUNDA VEZ naquela noite, uma enorme revelação pareceu formar-se no ar em torno do corpo de Nora, nublada, opaca, esperando o momento de exibir-se.

       — Incrível! — exclamou ela.

       — É um romance de ficção. O que você queria, realismo? — Os cubos de gelo cantaram no copo e soava música ao fundo. — É tão estranho! Você passou por toda essa terrível merda, e aqui estamos nós falando sobre Hugo Driver. Eu sou patético! Sou uma piada!

       — Não, o que está dizendo é interessante. Conte-me o que acontece no terceiro livro.

       — Em Jornada para a Luz? Pippin fica sabendo que o verdadeiro motivo deles viverem tão isolados, no seio da floresta ao pé das montanhas, é por seu avô ser ainda pior do que seu pai. Ele tentara trair a pátria, mas a conspiração fracassou, e fugiram todos para a floresta, antes que o papel do avô na trama fosse descoberto. Os Nellads são alguns outros descendentes de seu avô, do qual herdaram todas as características negativas. Por causa de sua perversidade, transformaram-se em monstros. O avô de Pippin matou muita gente para adquirir o controle de uma mina de ouro, mas isto era também um segredo. A mina de ouro tem de ser recuperada dos Nellads, Pippin tem de revelar a verdade, e então tudo fica acertado.

       Aquilo não era apenas incrível, mas estupidificante: Hugo Driver estruturara seus dois últimos romances em torno dos mais bem guardados segredos da família de seu editor. Não é de admirar que fossem publicados postumamente, pensou Nora, e então perguntou-se por que, afinal, tinham sido publicados. Estava maravilhada com a enormidade do cinismo de Alden Chancel; certo de que, além dele e de sua esposa, ninguém entenderia o código, valera-se da popularidade de Driver. Provavelmente sua audácia o divertiria.

       — Seu pai publicou esses livros — disse ela, mais para si mesma do que para Davey.

       — Os livros não dão a impressão de coisa feita por ele, certo? Contudo, você sabe o quanto ele se orgulha de jamais ler os livros que publica. Sempre diz que seria incapaz de publicar metade deles, se realmente tivesse de lê-los.

       Davey estava certo. Alden tinha um exibicionista orgulho de nunca ler os livros da Casa Chancel. Ele não tomara conhecimento do conteúdo dos romances póstumos de Hugo Driver.

       — Por que estamos falando sobre isto? — perguntou Davey. — Nora, volte para casa. Por favor! Venha cá e ajeitaremos tudo. — Com tais palavras, ele exibira sua própria chave de ouro. Queria-a de volta; não a abandonaria durante a provação com Slim e Slam. — Irei de carro até aí e a trarei de volta. Você poderá passar a noite na casa, e eu irei ao seu encontro de manhã, a fim de levá-la ao posto. Todos vão ficar danados da vida comigo, mas pouco estou ligando!

       Davey queria que ela ficasse na casa de ambos, enquanto ele retornava a “Os Álamos”. Queria a sua volta, mas somente porque assim não teria de preocupar-se com ela.

       — Você não se encontra em condições de dirigir, Davey — disse ela. — Esteve bebendo.

       — Não tanto assim. Dois drinques, talvez.

       — Quatro, talvez.

       — Eu posso dirigir.

       — Não, não pode. Aliás, só pretendo voltar quando souber que não serei presa.

       — E o que me diz sobre não ser morta? Isso não é um pouquinho mais importante?

       — Eu estarei bem, Davey. — Nora prometeu a si mesma deixar Northampton bem cedo, na manhã seguinte. — Ouça, eu estive dando uma espiada nesses livros que comprei hoje, e há algo que não consigo entender. Nas brochuras dos dois últimos, o texto no verso da capa diz que os manuscritos foram encontrados entre os papéis do autor.

       — E onde mais alguém encontraria manuscritos?

       — Encontrar os de Hugo Driver não foi assim tão fácil, concorda? Talvez Hugo Driver seja o único escritor da história que, ao morrer, não deixou quaisquer papéis ou documentos para trás.

       — Bem, os livros não caíram do céu sem mais nem menos.

       A revelação que pairava ao redor de Nora propiciou-lhe uma série de imagens: um bebê abandonado em uma floresta, depois reclamado por sua mãe; um velho, o avô do bebê, usando uniforme nazista; Daisy Chancel exalando fumaça, enquanto acariciava um exemplar do último livro de Driver. Você não é daqueles que consideram Jornada na Luz um terrível fracasso, é?

       Os dois últimos romances de Driver não tinham caído do céu; eles haviam fluído da diligente máquina de escrever que ficava logo depois do patamar da escada principal de “Os Alamos”. Vinte anos atrás, Alden se voltara para Daisy a fim de que ela produzisse os Blackbird Books, adulando-a para que escrevesse duas imitações dos romances de Hugo Driver. Ele precisava de dinheiro, e a dissimulada Daisy, sabendo que o marido nunca leria os livros, desafogara o seu ultraje, ao mesmo tempo em que salvava a firma. Alden — Adelbert — era uma fraude, não apenas em um sentido, mas em vários. Este era o verdadeiro motivo da histeria e fúria que ela exibira, quando Nora tinha descoberto que os Blackbird Books eram de sua autoria.

       — O que está acontecendo? — perguntou Davey. — Não estou gostando disso. Eu a conheço, sei que tem algo escondido na manga. Poderia voltar para casa esta tarde, mas em vez disso, faz Jeffrey levá-la de carro pelos Berkshires, a fim de que você possa conhecer a Dona da Xícara e fazer-lhe um monte de perguntas sobre Hugo Driver. Estará tentando ajudar esses Mannheims a destruir meu pai?

       — Não, Davey...

       — Jeffrey é como um espião, veio para cá a fim de recolher provas de que sua tia escreveu Jornada na Noite. Helen Day provavelmente fazia a mesma coisa; os dois queriam o dinheiro, mas então meu pai descobriu o que a Dona da Xícara pretendia e a demitiu, mas é um sujeito tão bondoso que, de qualquer modo, contratou metade da família dela.

       — Está falando sem base, Davey. Nenhum deles quer qualquer coisa de vocês. Helen Day está convencida de que sua irmã não escreveu Jornada na Noite.

       — Eles estão usando você, Nora! Será que não consegue enxergar a realidade? Céus, isso é terrível! Eu adorava a Dona da Xícara, mas ela mentiu para meus pais, mentiu para mim e mentiu para você. Toda a sua maldita vida é uma mentira, como também a de Jeffrey. Estou seguindo para aí esta noite, a fim de livrar você dessa gente.

       — Não, você não fará nada disso — disse Nora. — Helen Day não é uma mentirosa, e você não vai vir aqui apenas para entregar-me à polícia!

       — Espere um momento, volto logo. — O baque do fone contra a superfície da mesa, a porta da geladeira sendo aberta. O chocalhar dos cubos de gelo, o gorgolejar da vodca. — Tudo bem, Nora, tudo bem. Helen Day, maldita seja, que vá para o inferno! Não pode ver que, se ela fosse irmã de Katherine Mannheim, também seria irmã desses dois morcegos velhos que estão nos processando?

       — Ela jamais gostou dessas outras irmãs e nada tem a ver com elas.

       — Claro, foi o que lhe contou, não? E você foi tão ingênua que acreditou! O que significa essa história de “Day”, afinal? Não pode ser o sobrenome dela. Essa mulher veio para cá usando um pseudônimo. Suponho que isso seja um tanto suspeito.

       Nora explicou-lhe como e por que seu avô, Lincoln Chancel, abreviara o sobrenome dela.

       — Certo, mas ainda assim ela é uma mentirosa.

       — Helen Day não é o mentiroso nesta história, Davey — disse Nora, arrependendo-se imediatamente de haver feito tal declaração.

       — Oh, então sou eu, é isso? Muito, muitíssimo obrigado, Nora!

       — Eu não me referia a você, Davey.

       — E quem mais sobra? Eu estava certo antes, quando disse que você tinha algo escondido na manga. Oh, céus, o que há mais? Você odeia meu pai e gostaria de arruiná-lo, exatamente como querem fazer esses Mannheims, Deodatos ou seja lá qual for o verdadeiro sobrenome deles. Vou desligar e comunicar aos tiras onde você está.

       — Não faça isso, Davey, por favor. — Ela respirou profundamente. — Você tem razão. De fato existe algo que não falei, mas nada tem a ver com Jornada na Noite.

       — É mesmo? — exclamou ele, irônico.

       — Eu descobri algo. Entretanto, não tenho certeza se deveria contar-lhe agora, porque você não ia acreditar.

       — Formidável. Adeus, Nora.

       — Estou dizendo a verdade. Helen Day sabe desta coisa, deste fato a seu respeito. Ela guardou segredo a vida inteira, mas agora acha que você devia saber.

       Davey xingou e insultou Helen Day durante várias frases, para em seguida perguntar:

       — Se essa informação é tão importante, por que ela não me contou antes?

       — Porque prometeu não contar.

       — Sendo assim, por que contou a você? Ouço um leve som de sapateado, Nora.

       — Ela não me contou. Fez com que eu fosse deduzindo, até descobrir do que se tratava.

       Ele deu uma risadinha fatigada.

       — Por que acha que Helen Day deixou “Os Alamos”?

       Após mais umas duas frases insultuosas, ele disse:

       — Na época, segundo contaram meus pais, ela resolvera ir embora e abrir seu próprio negócio. Imagino que foi o que fez, não?

       — Com as economias dela? Acha que ela economizou tanto dinheiro assim?

       — Entendo. Você está querendo dizer que meu pai pagou a ela para ficar calada, certo? Um segredo que deve estar bem ao lado da chave para a decodificação da Pedra de Rosetta.

       — Para você, é a Pedra de Rosetta — disse Nora.

       — Já compreendi. Sou eu o verdadeiro autor de Jornada na Noite. Não, impossível, o livro foi publicado antes de meu nascimento. Ouça, Nora, a menos que você cuspa esse tal segredo imediatamente, vou desligar o telefone.

       — Ótimo — replicou ela. — Preciso apenas imaginar um meio de contá-lo. — Ela pensou por um momento. — Lembra-se do que sua mãe fazia, quando você era criança?

       — Acredito que estamos indo para Miami, passando antes aqui, por Seattle. Muito bem. Vou seguir seu jogo. Claro que me lembro. Ela ficava em seu escritório e bebia.

       — Não; quando você era criança, ela escrevia o dia inteiro. Sua mãe fez muitos trabalhos naquela época, mas nem tudo foi colocado no livro que ela me pediu para ler.

       — Certo, ela escreveu os livros de Morning e Teatime. Você tem razão neste ponto. Li esses livros quatro ou cinco vezes, tendo encontrado neles tudo aquilo que você mencionou. Foi até curioso, porque encontrei também algumas expressões que devo tê-la ouvido dizer mil vezes. Eu apenas nunca lhes dera atenção antes. Como, por exemplo, “mais triste do que um gato vira-lata em dia de chuva” ou coisas assim. “Gastamos muita sola de sapato.” Aí está um dos motivos que fizeram o velho mostrar-se tão duro com você. Foi uma reação exagerada da parte dele, porque não queria que alguém soubesse. Posso entender por quê. Isso não o deixaria em situação muito favorável.

       — Obrigada.

       — Não obstante, ela escreveu aqueles livros nos anos oitenta, e estamos falando dos sessenta.

       — Tem com você exemplares dos dois últimos romances de Driver?

       — Não me venha com essa, ouviu bem? Se está querendo dizer que minha mãe escreveu os últimos Drivers, você devia estar em uma cela de hospício!

       — Não estou querendo dizer nada disso — mentiu ela. — Toda a questão diz respeito à diferença entre os dois estilos.

       — Se quer saber, não vejo aonde pretende chegar.

       — Estou indo para Miami via Seattle, esqueceu? A menos que queira acompanhar-me nesse trajeto mais demorado, jamais acreditará em mim. Portanto, anime-se e pegue os livros.

       — Isto é loucura — resmungou Davey, mas largou o fone e voltou em poucos segundos. — Poxa, faz uns quinze anos que não leio nenhum dos dois... Muito bem, o que faço?

       Nora havia apanhado os dois volumes em sua bolsa, e agora abria Jornada no Crepúsculo, sem saber o que procurar e sem qualquer certeza de encontrá-lo. Virou umas trinta páginas e esquadrinhou os parágrafos, sem descobrir nada de útil.

       — O que você quer mostrar-me?

       Seus olhos encontraram algumas linhas na página 42. Precisava fazer Davey perceber estas frases “daisyanas”, mas sem parecer que as apontava para ele.

       — “É a pura verdade”, disse a encarquilhada criatura encarapitada no ramo. “É a pura verdade, deveras, meu caro menino” — leu ela. — Agora, vire até a página quarenta e dois. Dez linhas a partir do alto. Encontrou?

       — Encontrei o quê? “Ele ergueu os olhos e coçou a cabeça.” É isso?

       — Algumas linhas para baixo.

       Davey leu:

       — “Pippin girou lentamente em um círculo, desejando que a trilha não fosse tão escura e nem a floresta tão espessa.” Isso?

       Era a frase imediatamente abaixo daquelas com a marca registrada de Daisy.

       — Leia o parágrafo em voz alta e depois a página toda para você mesmo.

       — Está bem.

       Ele começou a ler, enquanto Nora procurava freneticamente através de mais páginas ao acaso.

       — Agora devo ler a página só para mim?

       — Sim.

       Ela examinou outra página e viu um segundo “deveras”.

       — Já li. O que há nesta página?

       — Não parece muito ter sido escrita por sua mãe, certo?

       — Sim, não parece — disse Davey, pouco à vontade. — Claro que não parece. Como poderia? O que está pretendendo, Nora?

       — Olhe na página oitenta e quatro, pouco depois da metade.

       — Hum... — fez Davey. — Está falando deste longo parágrafo, começando com “Todas as árvores pareciam ter-se movido”?

       Ela lhe pediu que lesse em voz alta, em seguida lendo a página inteira para si mesmo, como antes.

       — Estou achando tudo isso muito esquisito.

       — Por favor, leia.

       Ele começou a ler, e Nora procurou o final do livro, lá encontrando, bem acima do último parágrafo, a prova de que precisava. “Com um choque, Pippin recordou que apenas um dia antes ele se sentira tão desolado como um gato peludo numa tempestade.”

       Ela esperou que Davey terminasse de ler a página 84.

       — Você está querendo bancar a esperta ou o quê? — perguntou ele. — Falou que não tentava dizer que minha mãe escreveu isto. Algumas coincidências insignificantes nada provam. Estou começando a ficar novamente bronqueado com toda essa conversa.

       — De que coincidências está falando? Viu nesses parágrafos algo que não mencionou?

       — Estou ficando farto de seus joguinhos, Nora.

       Chegara o momento de arriscar: precisava fornecer a ele uma parte da verdade.

       — Não acredito que Hugo Driver tenha escrito este livro — disse ela. — Ele realmente surgiu de lugar nenhum, não foi? Não havia papéis, qualquer documento... Se eles existissem, você os teria visto há muito tempo.

       — Você está pisando em gelo fino. O que vem em seguida? Que Hugo Driver era minha mãe, travestida de homem?

       Nora aferrou-se a uma desesperada improvisação.

       — Eu acho que foi Alden quem escreveu estes livros.

       — Ora, vamos! Nunca ouvi nada mais ridículo.

       — Apenas considere a possibilidade. Alden sabia que podia fazer um monte de dinheiro rapidamente, se publicasse os romances póstumos de Driver. Como não havia nenhum verdadeiro, ele teve de fornecê-los. — Nora continuou improvisando. — Ninguém saberia que não eram verdadeiros, portanto ele não podia contratar alguém que os escrevesse. Não podia nem mesmo confiar em Daisy. Você não disse sempre que estes dois últimos livros eram diferentes do primeiro?

       — Você sabe que eu disse isso. Eles são bons, mas não iguais a Jornada na Noite. Muitos escritores nunca voltam a nivelar-se a seus primeiros sucessos.

       — A mesma pessoa escreveu estes dois, não concorda?

       — E a mesma pessoa escreveu Jornada na Noite. Alguém que, tão certo como o inferno, não foi meu pai.

       — Como se chama aquele monstro que fere Pippin com as garras?

       — Ele não tem nome. É um Nellad.

       — Nellad. Isso não lhe recorda algo?

       — Não. — Ele refletiu por um momento. — Tem um som parecido com Alden, se é o que quer dizer. — Ele riu. — Está me dizendo que ele colocou o próprio nome no livro?

       — Não seria bem próprio dele debochar de todo mundo dessa maneira?

       — Sou forçado a dar crédito à sua engenhosidade. Todas essas outras pessoas querendo mostrar que Driver não escreveu Jornada na Noite, e você dizendo, sim, ele escreveu esse livro, mas não os outros dois. Uma coisa que é quase possível, Nora. Sim, concedo-lhe esse crédito. Se não estiver totalmente errada, poderia de fato estar certa.

       — Um pouco disto realmente soa como Alden para mim. Veja agora na última página.

       — Certo. — Ele leu em silêncio por um momento. — Escute, você está falando desse gato?

       Nora respondeu que queria dizer a página inteira.

       — Acho que Alden escreveu isto. Nem mesmo reparei no gato molhado, até você falar.

       — Bem, soa mais como minha mãe do que meu pai, porque ele nunca escreveu outra coisa além de cartas de negócios.

       — Não acho que pareça a escrita de sua mãe — disse Nora.

       — Deus do céu, você nem está ouvindo o que digo! Pois fique sabendo que, em dois daqueles Blackbird Books, alguém está tão triste como um gato molhado. Aliás, minha mãe usava essa frase o tempo todo, quando eu era criança. E ainda a usa de vez em quando.

       — Oh, eu não sabia...

       — Ainda assim, não pode ser verdade. Minha mãe?

       — Alden poderia usar algumas das frases favoritas dela. Ele não chegaria ao ponto de confiar tanto em sua mãe.

       — Ela é a única pessoa em que ele confiaria. Preciso examinar isto melhor. — Nora o ouviu virando páginas, respirando alto, de vez em quando tomando um gole de sua bebida. — Não pode ser, pode? Há um milhão de maneiras diferentes para explicar... — Ele deixou escapar um ruído situado entre um gemido e um grito. — NÃO!

       — O que foi?

       — Um dos aldeões, bem aqui, na página cinqüenta e três, diz: “Você pode me perguntar vinte e sete vezes, e a resposta nunca mudará”. Vinte e sete vezes! Minha mãe costumava falar assim o tempo todo. Era a sua expressão para infinito. Que droga!

       — Sua mãe escreveu o livro?

       — Poxa, eu creio que sim — respondeu Davey. — Droga! Ela escreveu mesmo. Droga! Não é de admirar que eles ficassem nervosos, quando você a acusou de escrever os romances de horror. Isto poderia liquidar-nos, definitivamente.

       — Não vejo por quê — disse Nora. — Um fato desses não seria benéfico para sua mãe? Se é que ela escreveu esses livros, claro está.

       — Céus, como você é ingênua! Se isso vier a público, meu pai será acusado de fraude, e Jornada na Noite imediatamente se tornará uma obra suspeita. Haverá advogados enxameando pela casa inteira.

       — Só se o fato vier a público.

       — É melhor que não venha, Nora. Isto tem de permanecer em sigilo.

       — Tenho certeza de que permanecerá — disse ela.

       — Pelo menos, finalmente chegamos a Miami. Se a Dona da Xícara soubesse que minha mãe escreveu esses livros, penso que não ficarei surpreso se eles vierem suborná-la e se livrarem dela.

       — Não perca a calma — aconselhou Nora.

      

CONFORME ELA contou a Jeffrey na manhã seguinte bem cedo, no restaurante anexo ao terraço, o resto da longa conversa deles durara meia hora, no decorrer da qual Nora sentira o universo de Davey rodopiar e cambalear. O passado dele tinha sido virado do avesso; ela questionara o tema central da vida de seu marido. Ele ridicularizou, protestou, negou. Desligara após dez minutos, só tendo apanhado o fone de novo, depois da campainha tocar umas doze vezes.

       — Reflita no que ela escreveu — havia dito Nora, e Jeffrey, ouvindo o relato dela, enquanto espalhava conserva de ameixa em um croissant, meneou a cabeça. A princípio, também ele suspeitara das descobertas da noite. — Reflita em como era seu avô e no que seu pai fez a nós dois, mas antes de mais nada, reflita no que Daisy colocou nesse livro. É a sua história, Davey. É uma mensagem para você.

       Não, não, não! Helen Day havia mentido! Nora então o trouxera de volta, várias vezes, até a criança abandonada na floresta e mais tarde salva de lá, até Minha mãe é minha mãe.

       — Se isto for verdade, então eu sou Pippin — tinha dito Davey, fazendo a primeira nota soar cheia do temor que se segue a todas as grandes revelações.

       — Você sempre foi Pippin — Nora lhe tinha dito, mas sem acrescentar o que dissera a si mesma: Eu também.

       — Sinto-me como Leonard Gimmel ou Teddy Brunhoven — replicara ele. — Existe um código e eu posso lê-lo.

       — Sim, existe um código, e é sobre você.

       — Ela queria que eu soubesse. Ainda que não pudesse contar-me.

       — Ela queria que você soubesse — repetiu Nora.

       — Devo confrontá-lo? Devo ir lá e dizer a ele que sei?

       Pela primeira vez em seu casamento, Nora aconselhou Davey a não enfrentar o pai.

       — Você terá de dizer a ele como descobriu, e eu não quero que ninguém saiba onde estou.

       — Está bem. Vou esperar. Enquanto puder.

       Isto deixara Nora sem falar mais do que gostaria.

       — Seja como for, você acredita em mim, não?

       — Demorei um pouco para acreditar, mas, sim, agora acredito. Acho que, na realidade, até devia agradecer-lhe. Sei que soa esquisito, mas lhe sou grato, Nora.

       Ótimo, mas gratidão apenas não é o bastante, disse ela para si mesma, quando a conversa derivara para um final inconclusivo.

       Nora partiu um escamoso pedaço de croissant e o enfiou na boca. Em seu prato agora havia menos de um quarto do pãozinho, mas ela continuava com fome. Três mesas além, dois homens corpulentos, em blusões de lã com malhas na cintura e punhos, enfrentavam enormes breakfasts de ovos mexidos, bacon e batatas fritas. Nora tinha a impressão de que seria capaz de comer as duas refeições deles.

       A sua direita, no outro lado da parede envidraçada, um rapaz alto, de camisa azul, lavava o piso de lajes do terraço, com um balde, uma comprida vassoura e uma mangueira. Pequeninos regatos faiscavam e borbulhavam por entre as lajes reluzentes. Outro rapaz cobria as mesas com toalhas rosadas que se enfunavam como velas, depois alisando-as com as mãos. Era uma cena tão singela como os dois homens e seus breakfasts, mas, para Nora, de repente ela pareceu transbordar de significado. Então, lembrou-se de uma fotografia que Dick Dart lhe mostrara na biblioteca de Springfield. A chave de ouro.

       — Mudando de assunto, você acha que Dart ligou para Ev Tidy — disse Jeffrey.

       Ela assentiu e estendeu a mão para outro pedaço de croissant, mas já havia comido tudo.

       — Deixe-me providenciar mais alguns para você.

       Em poucos segundos, Jeffrey voltava carregando um prato cheio de pãezinhos doces, croissants e grossas fatias de melão. Nora atacou o melão de faca e garfo.

       — Acha que Ev esteja em segurança? — perguntou Jeffrey.

       — Ele me disse que ia para uma casa que possui em Vermont.

       Nora terminou o melão e passou para os pãezinhos. Sentia-se cheia de vitalidade, como se houvesse tido uma noite inteira de sono, e já sabia como preencher os próximos dias.

       — Você não pode ficar tão despreocupada como parece, com Dart estando na cidade — disse Jeffrey.

       — Não estou despreocupada quanto a isso, nem de longe. Quero ir embora de Northampton esta manhã.

       — Eu pensei em um interessante hotelzinho não muito longe de Alford. Se quiser, podemos ficar um pouco com minha mãe, e depois eu a levaria para lá. É um lugar encantador, e os donos são amigos da minha família. Além disso, oferece uma comida excelente.

       Para um monge secular, Jeffrey dava um sibarítico grau de importância às refeições.

       — Eu quero ver sua mãe, porém gostaria de ir a um outro lugar depois disso, caso você não se importe.

       — Quer ficar com Ev em Vermont?

       — Não é bem o que tenho em mente. Os antigos chalés de Shorelands costumam ser alugados, não?

       Jeffrey assentiu, com ar dubitativo.

       — Você quer ir para Shorelands?

       Nora buscou uma explicação que fizesse sentido para ele.

       — Passei dias ouvindo as pessoas falarem sobre esse lugar, de modo que gostaria de ver como é.

       Jeffrey cruzou os braços sobre o peito e esperou.

       Nora olhou para fora, para os rapazes, um deles puxando os restos da água espumosa de sabão, o outro arranjando cadeiras em volta das mesas, e deu um passo mais próximo da verdade.

       — Estou em uma posição única. Falei com Mark Foil e Ev Tidy, mas os dois nunca falaram um com o outro. Foil sabe o que Creeley Monk escreveu em seu diário, e Tidy sabe o que o pai escreveu, porém a única pessoa que realmente sabe o que está nos dois diários sou eu, e tenho a sensação de que falta uma peça. Ninguém antes já tentou juntá-las todas. Não quero dizer que serei capaz disso, mas esta noite e hoje cedo, quando refletia em todas estas conversas que venho tendo, pareceu-me que, afinal, tinha de dar uma espiada em Shorelands. Metade de mim não faz idéia do que está acontecendo ou do que fazer, porém a outra metade insiste em dizer: Vá a Shorelands, ou você perderá tudo.

       — “Perderá tudo” — repetiu Jeffrey. — “Falta uma peça.” Serei eu apenas, ou você está falando de Katherine Mannheim?

       — Ela se situa no centro de toda esta história. Não sei por que motivo, mas quase me sinto responsável por Katherine. — Jeffrey ergueu bruscamente a cabeça. — Todas estas pessoas têm pontos de vista conflitantes sobre ela. Katherine era rude, era impaciente, era uma santa, era implicante, era sincera, evasiva, dedicada, frívola, completamente louca, completamente lúcida... Ela vai a Shorelands, influencia todos de maneiras diferentes e nunca mais aparece. Em vez dela, o que aparece? Qual a única coisa que de fato emerge daquele verão? Jornada na Noite.

       Jeffrey a contemplava com o que parecia uma mescla de dúvida e interesse.

       — Da maneira como fala, a coisa soa como se o livro fosse uma espécie de substituto para ela. — Ele pensou por um segundo. — Ou, então, como se ela não fizesse parte do quadro.

       — Não diretamente, nada desse jeito. Entretanto, uma frase dela é: a Dona da Xícara. — Jeffrey abriu a boca, e Nora apressou-se em dizer: — Sei que já falamos a respeito antes, porém isto continua parecendo uma enorme coincidência. Davey viu aquela fotografia das duas irmãs, no apartamento de sua mãe em “Os Álamos”, mas Hugo Driver não podia tê-la visto. Portanto, isto é parte da peça perdida.

       — Se pretende bancar a detetive, conte comigo. É possível ficar-se lá. Faz cinco ou seis anos, um editor francês e grande admirador de Driver, desejou passar uma noite lá e teve alguma dificuldade em conseguir acomodações. Alden pediu-me que cuidasse disso para ele. Foi o que fiz. A propriedade agora é dirigida por uma Fundação, e parte de sua criadagem antiga ocupa a Casa Principal, mas os chalés Pote de Pimenta e Rapunzel têm quartos para pessoas que queiram passar a noite. Consegui um quarto no chalé Rapunzel para o francês, que ficou felicíssimo. E Alden também.

       — Você ligará para eles?

       — Enquanto você estiver arrumando sua bagagem, mas primeiro quero fazer-lhe uma pergunta.

       — Vá em frente.

       Nora preparou-se para o que ia ouvir, mas a pergunta de Jeffrey era mais branda do que havia esperado.

       — Por que você quis me contar os segredos da família? Quando fui para “Os Álamos” já era bem tarde, tanto que nem mesmo sabia que, supostamente, Davey fosse filho adotivo.

       — Eu não quis ser a única pessoa a saber — respondeu ela, parando de repente, antes de acrescentar, para o caso de acontecer alguma coisa comigo.

       — Lamento ouvir isso — disse ele, e fez sinal para a garçonete trazer a conta.

      

QUANDO O TELEFONE tocou, ela estava no banheiro, considerando a questão da maquiagem. No quarto toque, ergueu o fone e ouviu Jeffrey responder à pergunta que lhe fizera.

       — Espero que você não se importe de esperar meia hora — disse ele. — Liguei para minha mãe, a fim de dizer-lhe que estamos indo até lá, e encontrei-a em plena efervescência. Aparentemente, concordei em levar algumas das garotas a um mercado esta manhã, e já estou atrasado. Levarei no máximo quarenta minutos, e virei apanhá-la assim que voltarmos.

       — Perfeito — disse ela. — Eu estava pensando que seria mais seguro voltar a usar meu disfarce.

       — Seu...? Oh, a pintura de guerra. Boa idéia. Sua conta no hotel já foi fechada e eu a registrei no chalé Pote de Pimenta como a sra. Norma Desmond. Pensei que provavelmente já estivesse cansada de ser Dinah Shore.

       Os dois concordaram em encontrar-se no saguão dentro de quarenta minutos. Jeffrey ligaria para o quarto dela, caso voltasse antes disso.

       — Faça-me um favor — pediu ele. — Espere-me no saguão, certo? Não quero ser responsável por todos os esqueletos nos armários dos Chancels.

       Meia hora mais tarde, a jovem no balcão de recepção olhou para Nora quando ela saiu do elevador, e depois voltou a explicar as tarifas do hotel a um alvoroçado casal de idade que se queixava de sua conta. Uma suave claridade rosada banhava o saguão, onde, exceto eles, não havia mais ninguém. Nora puxou sua mala de rodinhas para uma poltrona perto de uma mesa cheia de brochuras, e sentou-se para ler “Os 100 Pontos Turísticos Mais Populares em Nossa Encantadora Região”. O casal de cabelos brancos ainda argumentava sobre suas contas no hotel, mas agora era a atendente que estava alvoroçada. O marido, um indivíduo de pernas finas, com um elegante blazer, gravata de plastrão e brilhantes fiapos de cabelos brancos, explicava em voz alta que a conta do telefone devia estar errada, porque nem sua esposa e nem ele próprio costumavam usar os telefones dos quartos de hotel. Por que pagar uma sobretaxa, quando se podia descer ao saguão e usar o telefone público?

       A atendente disse algumas palavras.

       — Tolices! — berrou o velho. — Acabei de explicar-lhe que eu e minha esposa nunca usamos telefones em quartos de hotel!

       A esposa recuou dele, e a jovem atrás do balcão tornou a falar.

       — Ora, mas isto é um erro! — bradou o homem. A atendente desapareceu, e o velho girou para sua esposa. — Você tornou a fazer, não foi? Preguiçosa demais para tomar o elevador, e o que acontece? Dois dólares desperdiçados, e aqui estou eu provocando um escândalo, e tudo por sua culpa!

       Sua esposa começou a chorar, mas estava amedrontada demais para erguer as mãos e enxugar os olhos.

       Nora viu um eco de Alden Chancel no janotinha dominador e não pôde suportar ficar no mesmo recinto que ele. Deixou a mala atrás da poltrona e caminhou até a saída que conduzia ao terraço. Através das janelas, viu meia dúzia de carros descendo a King Street, porém nenhum deles era o de Jeffrey. O sol arrancou reflexos das lajes recém-lavadas do terraço, e lírios amarelos inclinavam-se ao lado dos degraus que levavam à rua. Ela empurrou a porta e saiu para a fresca e brilhante manhã.

       Quando chegou ao alto dos degraus, perscrutou a King Street em busca do MG, pensando que gostaria de ter feito uma corrida nessa manhã. Seus músculos ansiavam por exercício; o breakfast parecia ter-se evaporado em uma necessidade de trabalho e movimento. Tornando a olhar para o hotel, através da parede envidraçada viu o idoso marido cuspindo invectivas, enquanto baixava a mala a fim de abrir a porta para a esposa. Era um cavalheiro da velha escola, completo com todas as tirânicas cortesias, e havia estacionado seu carro na rua, ao imaginar que poderia ter de pagar por usar o estacionamento do hotel. Aferrando a alça de sua bolsa de mão, Nora desceu a escada para a rua e caminhou cinco ou seis passos quarteirão acima, procurando Jeffrey.

       O MG não aparecia. Olhando por sobre o ombro, ela viu o casal descendo os degraus para a calçada. O rosto do homem estava congestionado de fúria. Nora expulsou-os da mente e concentrou-se no prazer de caminhar vivamente em meio ao ar de uma bela manhã de agosto, ainda maravilhosamente fresca e cheirando a lírios.

       Chegando à Main Street, ela olhou para a esquerda, e viu a fileira de lojas estendendo-se para o campus da Smith e a casa de Helen Day, agora esperando avistar Jeffrey dirigindo seu carro por entre aquele trânsito escasso. Nos dois lados da Main, metade das lojas continuava fechada, e nenhum dos poucos carros era o de Jeffrey. Com a rude sem-cerimônia de um ataque do coração, uma viatura policial surgiu de trás de um caminhão de entrega de pão e veio rodando para Nora. Ela forçou-se a permanecer imóvel. Por um longo momento, a viatura parecia vir diretamente para ela. Nora engoliu em seco. Depois endireitou o corpo e caminhou sem pressa, dirigindo-se ao cruzamento de ruas. Fingiu procurar algo em sua bolsa. A viatura passou diante dela, continuou rodando e entrou na King. Ela a viu mover-se, ainda sem pressa aparente, na direção do hotel. Decidiu esquecer o exercício e ficar esperando Jeffrey no saguão.

       Mais abaixo no quarteirão, o velhote janota estava parado ao lado de um antigo carro de turismo de curvas majestosas, estribo e uma maciça grade de radiador, decorada com distintivos metálicos. Ele abriu a porta do passageiro e estendeu a mão para a esposa. Trêmula, ela içou-se para o estribo. A viatura policial deslizou ao lado deles. O velho contornou o carro até o lado do motorista, dando um tapa no capô. Um pouco além, a viatura policial parou diante do hotel, e dois agentes começaram a subir os degraus da entrada.

       A King Street permanecia vazia. Quando Nora se virou para trás, os policiais cruzavam o terraço em largas passadas, na direção das portas envidraçadas. Dizendo para si mesma que eles provavelmente estavam atrás apenas de um café e sobras de torta de maçã para acompanhar, ela cruzou a rua e começou a caminhar para a marquise de um cinema. O velho ligou o motor de seu extravagante carro e afastou-se do meio-fio. Parada quase no meio da rua, Nora esperou que ele passasse. O carro freou à frente dela e o vidro da janela foi ruidosamente arriado. A velha permanecia olhando para o próprio colo, e seu marido inclinou-se para falar:

       — As esquinas foram marcadas e destinadas ao uso dos pedestres — disse ele, em voz agradável. — Acha-se boa demais para elas, minha jovem?

       — Estive observando você, seu idiota grosseiro — disse ela — e espero que quando estiver dormindo, sua esposa o mate qualquer noite.

       A esposa dele ergueu bruscamente a cabeça e fitou Nora de olhos arregalados. O velho rodou em frente, com uma barulhenta mudança de marchas. Pela janela aberta, Nora ouviu o resto de uma gargalhada ou de um grito. Ela quase correu para o outro lado da rua e moveu-se sob a marquise do cinema até o abrigo de uma parede em ângulo, perto da bilheteria. Olhou para o hotel, sem ver os policiais, depois concentrou-se no carro antigo, que esperava a luz do sinal mudar para verde, no final da rua. Um carro vermelho, não o de Jeffrey, mas também tão familiar, girou junto ao veículo antigo e entrou na King Street, seguido por um discreto sedã azul. Não é verdade, não pode ser!, disse Nora para si mesma, porém o Audi moveu-se firmemente em sua direção. Era verdade. Pôde ver os cabelos escuros e o rosto pálido de Davey, quando ele se agachou sobre o volante, a fim de espiar o Northampton Hotel.

       Ela saiu do ângulo na parede, depois moveu-se para trás. Davey passou, e o sedã azul o seguiu até o hotel. Os dois carros internaram-se no estacionamento e desapareceram.

       Nora permaneceu no abrigo da parede, rezando para que os policiais deixassem o hotel. Se Jeffrey aparecesse, acenaria para que ele parasse e explicaria que seus planos haviam mudado, que ia mesmo voltar para Westerholm. Shorelands representava o passado de mais alguém, e ela precisava viver o presente. Os policiais continuaram dentro do hotel, e ela abraçou-se apertadamente, vigiando as portas envidraçadas na borda do terraço.

       Crianças corriam para cá e para lá sobre as lajes, contornando os garçons. A porta de vidro foi aberta, dando passagem a um garçom com uma bandeja equilibrada no ombro e uma cadeirinha dobrável na mão. Antes que a porta se fechasse por si mesma, Davey surgiu por ela apressadamente e examinou as mesas. Como não visse Nora, cruzou o terraço e chegou até os degraus que levavam à calçada.

       Nora moveu-se para diante. Outra viatura policial dobrou para a King Street. Davey esquadrinhou a calçada em frente dele. O carro da polícia aproximou-se. Nora deixou o ângulo da parede e começou a caminhar de volta para a Main Street. O carro-patrulha passou sem parar. Ela voltou-se, na calçada, e viu Davey tornando a voltar para o hotel, abrindo caminho por entre as mesas. Quando a segunda viatura chegou à frente do hotel, fez uma curva em U e parou atrás da primeira. Dois agentes saíram e correram escada acima. Um terceiro carro-patrulha surgiu do fundo da King Street e manobrou para o estacionamento do hotel.

       Sua única esperança era que Davey voltasse sozinho ao terraço. Nora moveu-se um pouco mais, rua acima, e o viu entrar no hotel. Os dois policiais passaram também por entre as mesas, em meio aos olhares curiosos da maioria das pessoas ingerindo seu breakfast. Davey desapareceu, e os policiais alcançaram a porta, alguns segundos antes dela fechar-se. Volte, ela disse para si mesma. Saia daí e suba a rua!

       Dois corpulentos pais e três adolescentes ainda mais largos amontoaram-se na direção da porta. Davey saiu justamente quando eles a alcançaram, moveu-se para um lado e manteve a porta aberta. Nora começou a caminhar para o hotel. Quando o último membro da família entrou no hotel, Davey continuou mantendo a porta aberta para dois homens de ternos sóbrios. Um deles usava óculos escuros. Davey deu de ombros e enfiou as mãos nos bolsos. A respiração de Nora ficou presa em sua garganta, e ela recuou um passo. Os homens de terno eram o sr. Hashim e o sr. Shull.

       Conversando como velhos amigos, Davey e os homens do FBI caminhavam ao lado da fileira de mesas dando para a rua, em direção aos degraus da entrada.

       Chocada demais para digerir o que acabara de ver, Nora começou a subir a rua. Uns seis metros além havia um estacionamento para as lojas fronteiras à extremidade inferior da Principal. Se ela pudesse chegar até lá sem ser vista, conseguiria cruzar uma das lojas e depois seguir para a casa de Helen Day.

       Espiou por sobre o ombro. O sr. Shull apontava o polegar para o hotel e falava com o sr. Hashim, que olhava para ela. O coração de Nora bateu contra as costelas e seus joelhos pareceram de borracha. Recomeçou a andar, passando por desbotados pôsteres de atraentes edifícios antigos e árvores em suas tonalidades outonais, que cobriam as janelas de uma cabine de informações vazia. Um enorme aviso de FECHADO, em preto e branco, já tornado castanho pelo sol, havia sido colado no interior da porta da cabine. Nora internou-se no estacionamento e arriscou outro olhar por sobre o ombro.

       Davey e o sr. Shull moviam-se para a Main Street. O sr. Shull parecia discutir algo, e Davey estava assentindo.

       Seu verme, seu ordinário, como pôde fazer isto comigo?

       Um braço enrolou-se em torno de seu pescoço. O choque e o terror oprimiram-lhe o coração, e o braço apertado à volta de sua garganta transformou-lhe o grito em um grasnido. O homem a forçou a inclinar-se para trás, e a arrastou para o estacionamento.

      

— ESTOU ADORANDO estes nossos encontros — disse Dick Dart. — São tão importantes para continuarmos velhos amigos, não concorda? — Nora puxou o braço que lhe cortava a respiração, e seus pés debateram-se contra o asfalto sujo. — Especialmente aqueles que estendem o braço e nos tocam...

       Ela tentou chutá-lo, mas havia perdido o equilíbrio. Dart rodeou-lhe a cintura com a mão livre, ergueu-a do chão e a carregou mais para o fundo do estacionamento.

       — Você vai adorar o carro — disse ele. — Assim que o vi, soube que chegara o momento de juntar-me à minha querida Nora-docinho. Se você não parar de debater-se, esgano-a aqui mesmo, seu monte de bosta idiota! — Dart soltou-lhe a cintura e o corpo dela afrouxou-se contra o tórax do maldito homem. Por baixo do antebraço dele, uma ponta aguçada espetou o pescoço dela. — Nós não vamos querer isso, certo?

       Ela sacudiu a cabeça, dentro dos poucos centímetros permitidos pelo aperto do braço dele. Um matraquear seco subiu-lhe da garganta.

       — Sou um sujeito que gosta de perdoar — anunciou Dart, dentro do turbilhonar de sangue correndo nos ouvidos dela. — Compreendo a sua angústia, a sua confusão. Poxa, afinal de contas, você é um ser humano, certo? Aposto como gostaria de respirar direito de vez em quando.

       Ela esforçou-se ao máximo para concordar.

       — Assim que sumirmos de vista eu cuidarei disso. Ele a carregou entre duas vans e empurrou-a para a parede. A pressão de seu braço diminuiu. Uma só respiração de ar escaldante precipitou-se para os pulmões dela, depois ele tornou a aumentar o aperto.

       — Muito bem. Que tal mais uma?

       De frente para a parede, Dart a manteve com as costas sobre seu joelho. Se Nora lutasse, cairia no chão. Seus pés pendiam a cada lado da perna dobrada dele. Nora assentiu, e o braço afrouxou a pressão durante outra ofegante inalação.

       Torcendo a cabeça, ela o fitou com o lado direito do rosto. Dart sorria, as pupilas animadas de prazer abaixo da pala de um boné preto de popeline, que deixou à vista uma tira de atadura branca acima da orelha dele. Nora pôde apenas ver a borda reluzente da faca, onde encaixava-se no cabo.

       — Também senti sua falta — disse ele. — Como prova, vou deixá-la respirar outra vez. — O braço dele caiu. — Agora, vai ser boazinha e obediente, não é mesmo? — Arquejando para respirar, ela fez que sim. — O querido Davey a entregou, não foi? Que excitamento para o rapazinho, andando por aí com aqueles grandes e maus elementos do FBI! Parecia algemado àquele de óculos escuros. — Dart a puxou mais para cima sobre sua perna e fechou o braço em torno da garganta dela, um pouco menos apertadamente do que antes. — Já superou o choque inicial de alegria? Adaptou-se ao delicioso reaparecimento de um velho amigo? Ficou bem claro que qualquer rebeldia resultará em uma turbulenta cirurgiazinha de garganta?

       Nora chegou o mais próximo possível de dizer sim.

       — Vou provar uma coisa a você.

       Levantando-se, ele a depositou em pé no chão. Nora estava de costas para Dick Dart, nos noventa e poucos centímetros de espaço entre uma castigada van marrom e outra azul, ainda mais castigada, esta última tendo pintadas as palavras MACMEL. ENCANAMENTOS & CALEFAÇÃO. No final do túnel formado pelas duas vans, havia um trecho do estacionamento juncado de amarrotados envoltórios de doces e pontas de cigarro. Surpresa por continuar viva, Nora olhou em torno.

       Dart estava recostado contra o lado do quiosque de informações para turistas, com uma perna dobrada sob o corpo e os braços cruzados ao peito. O boné preto chegava um pouco acima dos olhos brilhantes. Uma sutil mancha de barba por fazer cobria-lhe as faces e o queixo e, na mão direita, ele segurava a faca alemã de cabo de chifre que comprara em Fairfield.

       — Viu só?

       — Vi o quê?

       As mãos dela tremiam e, em seu estômago, algo tremeu também.

       — Você não está fugindo.

       — Você me mataria se eu fugisse.

       — Isso mesmo. Entretanto, sou a sua melhor chance para livrar-se desta confusão. Sente medo de mim, mas começa a acreditar que estou muito interessado em você para matá-la por um motivo idiota, como vingança. Além disso, está furiosa com Davey. Enquanto eu me mostrar calmo e razoável, preferirá ficar comigo do que permitir que aquele fracote a veja sendo presa.

       Ela o olhou fixamente — o que ele disse era quase correto.

       — A diferença entre mim e Davey é que eu a respeito. Vou perder a cabeça, porque você agiu como uma mulher, quando baixei a guarda? Em absoluto. Você me machucou, mas não muito. Afinal de contas, tenho uma cabeça muitíssimo dura. Terei que tomar mais precauções com você, mas ainda não temos coisas a fazer juntos? Pois vamos fazê-las!

       — Tudo bem — disse Nora, pensando rapidamente. — Seja o que você quiser.

       — Suponho que você esforçou-se ao máximo em sua maquiagem, mas o resultado é ridículo. Manchou-se tanto, que parece ter usado uma colher de pedreiro.

       — Vai me deixar sair daqui ou não?

       Dart afastou-se da parede e a guiou entre as vans. Dois policiais uniformizados passaram em passos lentos pela entrada.

       — Você é responsável pela minha aquisição desta admirável obra de arte. — Deixando de observar os policiais, ela se virou para o carro antigo que pertencia ao tirano de gravata de plastrão e blazer. — Inclusive, podemos ficar com ele por algum tempo.

       Ele a conduziu à porta do motorista, depois ajudando-a a subir no estribo.

       — Sabe dirigir com alavanca de mudança?

       — Sei.

       — A mulher perfeita! — suspirou Dart.

       Ele deu uma corridinha em volta do carro, a fim de chegar ao lado do passageiro. Nora olhou para os assentos e o piso acarpetado, sentindo-se aliviada por não ver manchas de sangue.

 

A CLAREIRA NA MONTANHA

 

... O CORAÇÃO DA CLAREIRA, ONDE O GRANDE SEGREDO JAZIA ENTERRADO.

 

— FÁCIL E AGRADÁVEL, agora. Este é um verdadeiro Duesie, trate-o com respeito.

       — Um “dúzia”?

       Dart revirou os olhos, e Nora saiu de ré perfeitamente da vaga no estacionamento, engatou uma primeira e rodou para a saída da Rua King.

       — Um Duesie. Um Duesenberg, um dos maiores carros já fabricados. Um aristocrata. É realmente deliciosa a maneira como estas belezinhas me caem nas mãos, quando você está por perto.

       Davey e os dois agentes do FBI estavam no centro de um grupo de policiais fardados, diante do hotel. Alguns dos homens olharam para o Duesenberg, quando Nora manobrou para a Main Street.

       — As pessoas ficam tão ocupadas apreciando o carro, que não prestam a menor atenção em quem o está dirigindo.

       Levada pelo hábito, Nora dobrou à direita, entrando na Main Street. Duas jovens de idade universitária cruzavam a Gothic Street, enquanto espiavam a passagem deles, com rostos sorridentes. Dart estava certo; as pessoas olhavam para o carro, não para as pessoas que se achavam dentro dele.

       — Você teve tempo de considerar coisas, ver como é o mundo sem mim; portanto, tudo quanto precisa é de uma supervisão consistente, para logo retornarmos aos trilhos certos. Afinal, como aprendeu a dirigir um carro com alavanca de mudança? A maioria das mulheres não faz a mais remota idéia do que seja isso.

       — Aprendi a dirigir em uma velha pick-up. — Dart estava reclinado contra uma porta apainelada de nogueira, sorrindo afetadamente para Nora e acariciando a pistola que tirara do agente LeDonne. — Como foi que conseguiu este carro?

       — Nora, a feiticeira... Se não fosse esta evidência de sua aptidão para acalmar a minha conversa, eu poderia ter tratado o seu momento de rebelião muito mais duramente. Entretanto, ali estava você e ali estava o Duesie. Kismet. Destino. Embora eu estivesse de olho no MG de seu amigo. Ele é um ex-tira?

       — Ele é um ex-inúmeras coisas. — Nora olhou de relance para o sorriso torcido dele, não querendo deixá-lo perceber a sua angústia. — Inclusive um tira. Era o mordomo em “Os Álamos”.

       — Um servo dedicado — disse Dart. — Profundamente leal à bem-amada do jovem lorde. Um flerte romântico, talvez?

       — Não.

       Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu. Uma fileira de pedestres passou pela frente do carro, apreciando o veículo.

       — Nesta última noite, fiz algumas perguntas aos cidadãos locais. Um admirador de MGs tinha observado vocês dois e indicou-me o hotel. Lá, dei de frente com o carro em questão. Pensei em recolher seu amigo quando ele voltasse para apanhá-la esta manhã, porém você saiu e teve seu encontro com os donos anteriores do Duesie. A velha magia negra capturou-os em seus encantamentos, falei para mim mesmo. Lance um pouquinho de luz neste caso, Nora-docinho, conte-me o que disse para eles.

       — Eu disse esperar que a esposa dele o matasse na cama, qualquer noite.

       Dart latiu sua horrenda risada e bateu as pontas dos dedos contra o cano da arma, aplaudindo.

       — Você deu uma injeção de coragem, feiticeira, uma injeção de coragem! Quando os dois chegaram à esquina, a velhota estava ganindo para ele. E quando você refugiou-se na frente do cinema, corri rua abaixo atrás dele, movido apenas pela confiança, sempre pela coisa adequada a fazer. Antes que eles avançassem dez metros, Douglas Fairbanks parou o carro, a fim de castigá-la. A velhota saiu do Duesie e afastou-se. Doug lançou-se atrás dela, tão furioso, que esqueceu as chaves. Ele trotava para alcançá-la, gritava com ela, mas de repente caiu — bang! — e lá ficou, espichado na calçada. Outra vítima de um casamento inconveniente. Entrei no Duesie e comecei a dirigi-lo. Passei bem ao lado do ajuntamento na calçada e... sabe de uma coisa? Acho que a velhota me viu. Aposto que experimentou um dos grandes momentos de sua vida. E quando Douglas Fairbanks acordar no hospital, dará uma espiada para os monitores à sua cabeceira, os tubos saindo de cada orifício de seu corpo, e perguntará: O que aconteceu a meu carro? Então, a velhota dirá: Querido, fiquei preocupada demais com você, para pensar no Duesie. Isto vai ser a coisa mais importante na vida dela, mas poderá ele criticá-la por deixar que roubassem o carro? Ele sentirá vontade de partir-lhe o coração em pedacinhos e fritá-lo em fogo aberto, mas, em vez disso, terá de ser grato a ela!

       Dart sorriu para si mesmo.

       — Às vezes, até duvido de mim mesmo. Às vezes, paro e me pergunto se estou errado e todas as outras pessoas é que estão certas. Então, acontece algo como isto de hoje, e sei que posso relaxar. Os homens não passam de cães, mas as mulheres são leoas.

       Ele esticou o braço por uma distância parecendo muito maior do que seria o caso em outro veículo, e deu um tapinha no joelho dela.

       — Você, Nora, não passou ainda de uma leoa filhote, mas é um grande filhote, tendo crescido aos trancos e barrancos. Quando iniciamos nossa odisséia, você não sabia o suficiente para durar cinco minutos. Entretanto, após vinte e quatro horas aos pés do grande Dick Dart, é capaz de imaginar uma forma de ver o dr. Foil e Everett Tidy.

       Nora parou o carro no sinal vermelho antes do campus da Smith na State Street, onde as costumeiras jovens de mochila nas costas e blue jeans lançaram ao Duesie os habituais olhares apreciativos.

       — Achei que poderíamos sair de Massachusetts por umas duas noites e encontrar um bom motel em algum ponto do Maine. É o lugar mais seguro da América. Metade do Maine ainda nem ouviu falar em aparelhos de televisão. Eles continuam esperando para ver se aquele pouso na lua deu certo. — Dart abriu o porta-luvas. — Deve haver mapas por aqui. Esses caras ridículos, com medalhas em seus carros, sempre andam com um milhão de mapas. Acertou novamente, Dick! Sabíamos que podíamos contar com você!

       O campus da Smith desenrolou-se no lado da janela de Dart. Nora deu uma espiada pela Green Street acima, e viu Jeffrey cruzando a calçada para seu carro, em largas passadas.

       — Você consideraria outra possibilidade?

       Ele virou o rosto para ela, enquanto folheava os mapas.

       — Acha o Maine um tanto primitivo? Tenho uma idéia melhor. O Canadá. Não precisaremos de passaportes, eles apenas acenam, mandando a gente entrar ou sair de lá. Nossos encantadores primos do norte... As pessoas mais discretas deste mundo. Sabe o que diz um canadense quando você está prestes a matá-lo? “Posso palitar os dentes primeiro?”

       — Tenho uma reserva para um dos chalés em Shorelands.

       — Shorelands?! — exclamou Dart, deixando-se cair contra o banco de couro. — A idéia tem um decidido apelo. Prosseguindo com nossa busca original. Espero que tal reserva tenha sido feita em algum conveniente nome neutro.

       — Sra. Norma Desmond.

       — Excelente! Eu posso ser Norman Desmond. Meu personagem vai ganhando forma, já enquanto estamos falando. Norm, marido de Norma. Advogado durante o dia, e dedicado à palavra escrita durante a noite. Todos os meus papos com minhas queridas velhinhas foram muito úteis. De vez em quando recitarei alguns versos, para impressionar os imbecis guardiães da cultura. Não precisará ser Emily. Posso citar inúmeros outros idiotas também. Keats, Shelley, Gray... todos os grandes.

       — Você pode fazer isso?

       — Conforme lhe disse, assim que leio alguma coisa, ela me fica no cérebro para sempre. Com isso, ganhei umas duas apostas em bares, mas, depois de algum tempo, não encontrava mais ninguém que quisesse apostar como eu não conseguiria recitar “A uma cotovia”, do princípio ao fim. Você quer ouvir?

       — Sinceramente, não.

       — Ainda bem. É horrível. Bem, você pretendia chegar lá sozinha? Em Shorelands?

       — Jeffrey me levaria de carro e me deixaria lá.

       Dart assentiu.

       — Pare junto ao meio-fio, para que eu possa dar uma olhada em um destes mapas. Precisamos saber como chegar lá.

       Nora parou o carro. Dart tirou da pilha um mapa dobrado.

       — Muito bem, aqui está Lenox, e aqui estamos nós. Não há problema. Voltamos para a cidade, seguimos pela 9 o tempo todo até Pittsfield, e vamos para o sul pela 7. Enquanto rodamos, você pode me contar o que extraiu de Mark Foil e Everett Tidy. Antes disso, no entanto, explique por que decidiu ir até essa arruinada colônia literária. Documentos escondidos debaixo do assoalho? O rascunho de Katherine Mannheim para Jornada na Noite escondido num tronco de árvore?

       — Eu quero ver onde eles todos se conheceram.

       — E...?

       — Conseguir uma idéia melhor da situação. Do layout.

       — Encaixar as idas e vindas deles, esse tipo de coisa? E o que mais pretende?

       Nora recordou os rapazes que arrumavam o terraço, à luz pálida da manhã... recordou Helen Day.

       — Achei que talvez pudesse falar com algumas das empregadas.

       — Você me confunde.

       — Alguns dos antigos empregados continuam lá. Noites atrás, percebi que os empregados sabem tudo. Como aqueles rapazes sobre os quais me falou, os que trabalham no Iate Clube.

       — Fico muitíssimo lisonjeado, porém a harpia que mudou os lençóis de Hugo Driver há cinqüenta e cinco anos, provavelmente ignora o que ele escreveu ou não escreveu, mesmo que ela ainda esteja viva.

       — Katherine Mannheim não escreveu Jornada na Noite. A questão não é mais essa.

       Dart aceitou a idéia. Disse:

       — Então, por que Alden Chancel não disse às velhotas que enfiassem seu processo na velha válvula anal? Ele poderia ter mandado o advogado delas para o inferno, desde o início, mas, no entanto, colocou a firma Dart, Morris no caso. Se a razão estava do lado dele, por que gastar desnecessariamente com sua firma de advocacia?

       Nora recordou como se sentira ao ver Davey no terraço do hotel com seus novos amigos — o sr. Hashim e o sr. Shull. Dart ia adorar o que estava prestes a dizer-lhe.

       — Alden não quer que ninguém questione a autoria de Driver no tocante a seus livros. Este é um ponto sensível.

       Dart ficou imediatamente atento.

       — Continue falando. É sério. Fale.

       — Os romances de horror não foram os primeiros livros que Daisy escreveu para Alden, sob um falso nome. O outro nome que ela usou foi Hugo Driver.

       Dart pestanejou, depois deu uma risada.

       — Aquela velha balofa e bêbada escreveu Jornada na Noite? — Por um segundo, ele foi o homem atraente que teria sido, caso não fosse Dick Dart. Tornando a rir, exclamou: — Não é de admirar que Alden se livrasse do manuscrito! Não, não pode ser. Ela é jovem demais. Você está montando o cavalo errado, garotinha.

       — Ela não escreveu o livro bom — disse Nora. — Escreveu os outros dois.

       Dart abriu a boca, como se fosse dizer alguma coisa. Depois a contemplou com um ar de pura e apreciativa surpresa.

       — Bravo! Eles foram publicados nos anos sessenta. Como foi que você descobriu?

       — A gente jamais perceberia, a menos que fizesse uma comparação entre os livros de Driver e os romances de horror de Daisy. Feito isto, o resto salta aos olhos. Daisy tem certas expressões habituais, que usa constantemente. Nunca houve qualquer motivo para alguém ler os livros de horror que ela escreveu, cotejando-os com os dois últimos escritos por Driver, de maneira que não se chegou a perceber o estilo.

       Dart sorriu.

       — Odeio poesia, mas adoro justiça poética. Uma vez que alguém comece a questionar Hugo Driver, tudo dele fica ao alcance de qualquer um. Eis o motivo dele ter chamado o meu velho. — Dart bateu o cano da arma contra os lábios, suavemente. — Se Driver escreveu Jornada na Noite, por que cedeu os direitos autorais para Lincoln Chancel?

       — Penso que em Shorelands aconteceu algo do conhecimento apenas deles dois. Quando voltaram de lá, eles ficaram sócios. Inclusive, Chancel hospedou Driver para pernoitar em “Os Álamos”, umas duas vezes. Normalmente, ele não se daria ao trabalho de cuspir em um sujeito astuto como Hugo Driver, mesmo que este lhe rendesse um bocado de dinheiro.

       — Então”, Driver sabia de algo contra ele.

       — Ou Lincoln sabia de algo contra Driver. E queria ter certeza de que Driver não o esqueceria.

       — Só poderia ser uma coisa — disse Dart. — Diga-me o que é. Sem medo de errar. Eu lhe farei um grande favor.

       — Hugo Driver matou Katherine Mannheim. Talvez não tivesse tal intenção, mas o caso é que a matou, e Lincoln Chancel sabia. Chancel ajudou-o a esconder o corpo na floresta. Depois disso, Driver ficou em poder dele para sempre.

       Dart assentiu.

       — Um homem desesperado atua em desespero. Por quê? O que teria acontecido?

       — Certo dia, Bill Tidy surpreendeu Driver fazendo algo incorreto com a bolsa de Katherine. Talvez roubasse um bloco de anotações e nele descobrisse o suficiente para perceber que, a fim de sair do buraco em que se encontrava, bastaria conseguir um pouco mais da história. Driver era um ladrão; fez o que lhe era natural: roubou as idéias de Katherine. Talvez tenha invadido o chalé Pão de Mel em busca de mais material, e Katherine o pegou em flagrante. Ela lhe teria dito algo ferino, pois era boa nisso, você acabaria gostando dela. Talvez ele a tenha espancado. Seja lá o que fez, ela acabou morrendo. Driver não era impiedoso o bastante para ser um assassino, como Lincoln Chancel.

       Outro pensamento surgiu na mente de Nora.

       — Deve ter sido praticamente algo semelhante. Ela jamais convidaria Driver a entrar no Pão de Mel, mas ele estava lá dentro, porque usou no livro uma fotografia que ela mantinha em cima de sua mesa de trabalho.

       Dart sorriu para o teto do carro e cantarolou baixinho uns poucos compassos de “Maravilhoso demais para ser dito”. Seu sorriso ampliou-se.

       — Faça este calhambeque dar meia-volta e pegue a 9. Acabei de ter uma idéia particularmente espetacular.

       — Você não disse algo sobre um favor?

       — Acho que disse. Isto vai significar muito para você. Nora olhou brevemente para o rosto satisfeito dele.

       — Tempo virá em que não terei alternativa senão matá-la, mas farei isso rapidamente. Não me seduz um sacrifício a esta altura, porém garanto que você não sofrerá.

       — Você é um sujeito e tanto, não é mesmo, Dick?

       — Sou capaz de morrer por meus amigos — replicou ele.

      

QUANDO CHEGARAM a Pittsfield, Dart aferrou a mão no cotovelo dela e a guiou através de lojas, nas quais comprou apetrechos para fazer a barba, uma escova de dentes, uma lustrosa gravata de seda, cuecas e meias chegando acima da batata da perna. Fora da cidade, ele lhe disse que parasse em um posto de gasolina e a puxou para o banheiro dos homens. Nora desviou os olhos, enquanto ele enchia o cubículo ladrilhado com um fino e pulverizado jato de urina.

       — Se carros usassem mijo como combustível, eu seria uma fonte nacional. — Dart tirou o boné e inclinou-se sobre a pia, a fim de inspecionar a atadura em torno dos lados de sua cabeça. — Corte isso fora.

       Nora encontrou a tesoura e trabalhou com a extremidade de uma lâmina sob a camada superior da atadura. Logo estava desenrolando a comprida tira branca que envolvia a cabeça dele.

       — Quem fez o curativo para você?

       Ele a fitou com um olhar carregado de ironia.

       Quando o último pedaço da atadura foi removido, Dart balançou a cabeça e tateou os cabelos com os dedos, enquanto perscrutava-se no espelho.

       — Que dupla de “galos” para uma alma aventureira, hein? Doeu um bocado na hora, se quer saber. Tenho a nítida recordação da dor. Jatos de luz por trás de meus olhos. Foi a segunda maior dor de cabeça de minha vida.

       — E qual foi a primeira?

       Dart baixou a mão, e seus olhos subitamente inexpressivos encontraram os dela no espelho. Nora gelou, no pequeno e abafado banheiro.

       — Devo agradecer a Popsie Jennings. A velha puta me deu uma pancada e tanto com seu atiçador. Ainda me dói, bem mais do que qualquer dos galos que você me fez. — Desviando os olhos, ele tateou um ponto atrás da cabeça. — Preciso fazer a barba, escovar os dentes, tornar-me apresentável para Shorelands. Como é mesmo o meu nome?

       Nora levou um momento para entender o que ele perguntara.

       — Norm. Norm Desmond.

       Dart sorriu para ela e, de um saco de papel, tirou o aparelho de barba e o creme de barbear.

       — Esta noite, a sra. Desmond vai proporcionar ao sr. Desmond um prazer conjugai particularmente delicioso. Pelo menos, duas vezes. Você tem de pagar sua dívida. — Ele molhou os dedos e começou a deslizar o aparelho de barba no lado direito do rosto, de cima para baixo. — Você quer falar com as velhas damas, certo? Quer conquistá-las, extrair-lhes informações?

       — Exatamente.

       — Façamos isso da maneira mais rápida. Encha de medo a cachola de alguma velha dama, e ela cuspirá tudo o que sabe. Você já fez isso com Natalie Weil, por isso, não será difícil repetir a dose.

       Nora o ficou olhando barbear-se. Ao contrário de qualquer outro homem que conhecera, Dart limpava uma área da espuma e restos de barba, para então tornar a passar o aparelho de barba no mesmo trecho de pele, mas em direção oposta. Com efeito, barbeava-se duas vezes.

       — Você quer que eu rapte uma das empregadas.

       — Amarre-a, amedronte-a, faça o que for preciso, mas tire-a da casa e a coloque dentro do carro. Seja lá o que ela disser, depois eu a matarei. Será interessante. Há muito divertimento em uma velha senhora. — Ele abriu os braços, salpicando espuma nos ladrilhos. — Darei a mim mesmo o Prêmio Dick Dart por Façanha Extraordinária em Julgamento Deturpado. Serei o seu grupo de apoio, fornecerei a você toda a ajuda necessária para fazer a sua parte. — Ele terminou de barbear o rosto, lavou o aparelho de barba e começou no pescoço. — Depois disso, teremos de confiar um no outro. Seremos eu e você, gatinha, o Dream Team. Após o primeiro assassinato, os tiras não se preocupam mais com quantos outros você comete. Nos estados em que existe pena de morte, eles não o trazem de volta para ser executado vezes sem conta. Isso mostra o quanto estão de saco cheio, o pouco valor que dão à vida.

       Ele passou o aparelho sobre alguns trechos de espuma, inverteu a direção e barbeou os mesmos pontos novamente. Depois lavou o rosto com água fria e estendeu a mão para pegar um punhado de toalhas de papel.

       — Caso a pergunta não o incomode, como você acha que terminaremos?

       Dart enxugou o rosto, jogou ao chão as toalhas usadas e ficou meditativo por um instante, antes de tirar do envoltório a escova de dentes nova. Quebrou o plástico transparente ao meio e o jogou de lado.

       — Pasta de dentes.

       Nora remexeu em sua bolsa e encontrou seu próprio tubo de pasta dental.

       — E então?

       — Estradas bloqueadas. Um milhão de tiras e nós. Ei, se chegarmos ao Canadá, poderemos ter um ano inteiro. A questão essencial é não permitirmos, em quaisquer circunstâncias, que tornem a prender-nos. Já fugimos de uma prisão, e não queremos ser jogados em outra. Seremos livres ou morreremos!

       Inclinando-se para diante, ele começou a escovar os dentes.

      

APÓS A PLACA DE BRONZE dizendo FUNDAÇÃO SHORELANDS, eles passaram a rodar por entre altos pilares de pedra, rumando para um emaranhado de verdura.

       — Os tambores, os malditos tambores — salmodiou Dart —, será que eles nunca vão parar, Carruthers?

       Com árvores amontoadas nas duas margens, o caminho dobrava para a direita e desaparecia. Nora chegou à curva e viu que a estrada se dividia ante um poste indicador de madeira, fincado em uma franja de terreno relvado. Uma das tabuletas do poste indicador apontava para a esquerda, a outra para a direita, onde havia um campo lamacento. Quando chegaram mais perto, as palavras ficaram legíveis. CASA PRINCIPAL. PÃO DE MEL. CASA DO MEL. POTE DE PIMENTA. RAPUNZEL. CASA DOS TREVOS. VALE DE GLEN & OS PILARES CANTANTES. CAMPO NEVOENTO. Todos eles situavam-se em algum ponto da trilha do lado esquerdo. ESTACIONAMENTO DE VISITANTES apontava para o campo.

       Nora rodou para fora do matagal e dobrou à direita. Um homem em roupas cáqui de trabalho ergueu-se de uma cadeira de jardim, perto de um trailer sobre uma plataforma cimentada, e aproximou-se, admirando o carro.

       — Que beleza! — exclamou. — Deus Todo-poderoso!

       O homem tinha bochechas enrugadas e olhinhos brilhantes. Dart deu uma risadinha abafada.

       — Nós gostamos dele — disse Nora, fitando Dart de maneira brusca.

       O homem recuou e passou a língua pelos lábios.

       — Hoje em dia não fabricam mais belezinhas como esta.

       — Pode apostar que não, papai — disse Dart.

       O homem olhou de relance para Dart e decidiu fingir que ele não estava ali.

       — Madame, se está aqui para um dia de visita, a entrada custa dez dólares. Se for hóspede por uma noite apenas, basta rodar até aquele estacionamento e registrar-se na Casa Principal, depois que eu encontrar seu nome na lista.

       — Nós vamos passar a noite. Sr. e sra. Desmond.

       — Volto num instante — disse o homem, lançando outro rápido olhar para o carro e entrando no trailer.

       — Ele cumpriu uma pena leve, mas não por algo interessante — disse Dart.

       — Você não pode ter certeza.

       — Espere só!

       O homem tornou a sair de seu trailer, com uma prancheta da qual pendia uma caneta presa por um barbante. Passou-a pela janela do carro e apontou para um espaço em branco num formulário.

       — Basta assinar aqui, sra. Desmond. Espero que aprecie sua estada em Shorelands.

       Dart inclinou-se para o homem, com um sorriso maligno.

       — Por que eles o trancafiaram, veterano?

       — Como disse?

       — Esfaqueou um sujeito em um bar ou foi algo como roubar tijolos de uma construção em andamento?

       Nora entregou a prancheta.

       — Peço desculpas por meu marido. Ele se acha um comediante.

       — Nem todos os comediantes são engraçados.

       O rosto do homem havia ficado rígido e a luz lhe desaparecera dos olhos. Agarrando a prancheta, cruzou a plataforma de cimento em passos fortes, subiu em seu trailer e bateu a porta.

       — Isto talvez o surpreenda — disse Nora — mas você tem uma desagradável característica.

       — Agora, você quer apostar como não sei “A uma cotovia”, do começo ao fim?

       O terreno afundou sob os enormes pneus do Duesenberg.

       — Não — respondeu ela.

       — E que tal cada terceira palavra? Ligeiramente melhorada e burilada para aumentar o efeito?

       — Não.

       Ela freou o carro em um ponto no extremo direito do campo.

       — Que pena! Fica muito melhor à minha maneira...

      

Tu, pássaro, foste —

Celestial, em copioso e impremeditado apogeu

De ti destila um fogo. Intenso, e silente, e por demais

canoro.

      

Há muitas maneiras da gente ser um gênio. Acho que aqui me sentirei inteiramente em casa.

       Nora começou a caminhar pelo campo, pisando no chão lamacento. Disse:

       — Não estou certa de que fosse obra de um gênio ter escolhido este carro.

       Dart emparelhou com ela.

       — Depois que você fizer sua cena de rapto, encontraremos um outro carro. Nesse meio tempo, no estado inteiro não existe um lugar mais seguro para o Duesie do que este aqui. Foi uma idéia brilhante!

       Nora contornou uma poça enlameada e, com o coração opresso, percebeu que havia trazido aquele demente para um cercadinho de bebê. Depois que a administração de Shorelands decidira alugar chalés, eles certamente os tinham provido de telefones. Dart não poderia vigiá-la a cada minuto; a esta altura, ele nem mesmo achava que deveria ficar atento — os dois eram parceiros. Assim que fosse possível, ela chamaria a polícia local e fugiria para a floresta.

       O caminho que conduzia ao centro de Shorelands estava cheio de compridos e finos bolsões de água, cujos trechos mais altos reluziam de umidade. Devia ter chovido em algum momento durante a noite. Enquanto as ruas e rodovias tinham secado ao sol, o terreno aberto continuara molhado. Nora olhou para cima. Nuvens carregadas percorriam um céu sarapintado.

       — Vai ser bom para nós dois — disse Dart.

       — Tente imaginar como me sinto — replicou Nora.

       Seus saltos baixos afundaram na terra, e ela se moveu para uma orla molhada, mas pedregosa. As árvores de cada lado pareciam fechar-se sobre eles. Dart começou a cantarolar “Montanha verdejante”. Por fim, eles saíram do meio do arvoredo e caminharam para um pátio coberto de cascalho, circundado por um muro baixo de pedras e encimado por lajes de cimento. O muro dava passagem para um caminho branco entre dois trechos gramados estreitos; esse caminho então subia quatro largos degraus de pedra que conduziam à peça central desta paisagem: um comprido edifício de pedras com três filas de janelas em molduras de cimento, algumas ostentando manchas de água gotejante, parecidas com longas barbas. Em cada segunda janela, a fachada avançava para diante, de maneira que a estrutura dava a impressão de estender as asas e desdobrá-las a partir da entrada. Perto do extremo oposto um trabalhador, parado na metade de uma alta escada de mão, raspava um trecho de tinta descascada, enquanto outro reparava um peitoril rachado no andar térreo. Dick Dart enfiou o braço no de Nora e a guiou para a entrada da Casa Principal.

      

HOMENS E MULHERES de cabelos brancos permaneciam no interior de uma loja de presentes, do outro lado de uma porta negra com a inscrição ENTRADA PERMITIDA SOMENTE A FUNCIONÁRIOS. Mais além, degraus de mármore subiam para um amplo corredor com altas paredes cor de pêssego, interrompidas por lustrosas meias colunas de gesso. No grande saguão do outro lado do corredor, um grupo de cerca de vinte pessoas, mulheres em sua maioria, estava atento ao que dizia um guia invisível. Portas francesas abriam-se para um terraço. Dart guiou Nora pelos degraus. No extremo esquerdo do corredor, um punhado de turistas emergiu de uma sala da frente, na Casa Principal, seguindo uma mulher pequenina e de cabelos brancos, a qual entrou em outra sala, no lado contrário do corredor. À direita deles, uma escadaria encurvada passava por uma galeria de pinturas, antes de chegar ao segundo andar. Nora pensou em gritar por socorro, as palavras amontoaram-se em sua garganta, mas percebeu que, se as soltasse, Dart puxaria o revólver do bolso e mataria o maior número de pessoas que lhe fosse possível. O grupo no saguão começou a arrastar os pés atrás da guia, todos cruzando um arco interno, no lado mais distante da lareira.

       Dart virou-se para admirar as palmas e arabescos de gesso que salpicavam o teto cilíndrico e abobadado do recinto.

       — Ao diabo com o bloqueio nas estradas e a morte violenta. Vamos ficar aqui por algum tempo e depois ligo para meu velho, pedindo uns dois milhões de dólares. Iremos para o Canadá e lá compraremos uma propriedade como esta. Colocarei um par de escadas ocultas, o mais moderno cinema em funcionamento que existir e uma grande fornalha a gás no porão. Vai ser um barato!

       A guia baixinha e de cabelos brancos levou seu grupo para a grande sala no lado contrário do corredor, e estendeu os braços.

       — E aqui temos o famoso saguão, onde se reuniam os hóspedes da srta. Weatherall para coquetéis e troca de idéias, antes da refeição da noite. Se estão desejando poder ouvi-los, eu lhes contarei uma coisa que foi dita neste aposento. T. S. Eliot virou-se para a srta. Weatherall e cochichou, “Minha cara, devo dizer-lhe que...”

       Em voz firme, Dart anunciou:

       — O presunçoso Eliot ficou aqui exatamente dois dias, e tudo quanto fez foi queixar-se de má digestão.

       A maioria dos turistas, até então ouvindo atentamente as palavras da guia, virou-se a fim de olhar para Dart.

       — “A procriação da terra e a carregada primavera, nós, terra, neve, vida, tubérculos.” Cada terceira palavra do início de “A terra devastada”, com certos ajustes e burilagens para efeito poético, “Nós, a chuvarada; nós fomos a luz do sol. Café Hofgarten.” Diabo, fica um bocado mais vigoroso, não? O meu “Prufrock” — “A canção de amor de Alfred Prufrock” — fica ainda melhor.

       A guia tentava impelir seu rebanho para a sala vizinha.

       — Você consegue fazer isso com tudo? — perguntou Nora.

       — Com tudo. “Vá, e a amplitude, o paciente com; Deixe passar murmurantes, inquietos hotéis, restaurantes, insidiosos casulos. Leve um... Oh, peça-o.”

       Uma voz atrás deles perguntou:

       — O senhor é poeta?

       Uma mulher alta, já no final da casa dos vinte, o rosto salpicado de sardas e os cabelos louros-morango caindo retos sobre os ombros, permanecia ereta atrás deles, com um pé no topo do degrau. Usava um singelo conjunto não totalmente branco e era interessante. Dart sorriu para ela.

       — Que embaraçoso! Sim, espero que possa reivindicar essa honra.

       A jovem aproximou-se deles, estendendo uma mão inteiramente sardenta.

       — Sr. e sra. Desmond?

       Dart tomou-lhe a mão entre as suas.

       — Eu lhe direi, se me disser o seu nome.

       — Marian Cullinan. Uma das minhas incumbências aqui é cuidar dos Serviços de Hóspedes. Tony comunicou-me a chegada de ambos e lamento estar atrasada, mas tinha que resolver algumas coisas em minha sala de trabalho. — Dart soltou-lhe a mão. — Espero que não tenham tido dificuldade para encontrar-nos.

       — Absolutamente nenhuma — ronronou Dart.

       — Ótimo. E, por favor, não se constranja porque o inspiramos a pensar em seu trabalho. Gostaríamos de produzir o mesmo efeito em todos os escritores que nos visitam. Tem trabalhos publicados, sr. Desmond?

       — Fico feliz em dizer que sim. Não muitos.

       — Maravilhoso! — exclamou Marian. — Onde? Eu devia conhecer seu nome. Esforço-me ao máximo para ficar atualizada a respeito de pessoas como o senhor, para a nossa série de leituras recomendadas.

       Dart olhou de relance para Nora e exibiu a Marian uma expressão tímida, recatada.

       — Oh, aqui e ali...

       — Não pode eximir-se desta maneira! Estou interessada em poesia contemporânea. Aposto como sua esposa me contará onde o senhor publicou seu trabalho.

       Nora esforçou-se por recordar o título das revistas que havia sobre a mesinha de centro de Mark Foil.

       — Vejamos... Ele tem publicado numerosas peças em Avec e Conjunções. Também em Lingo.

       — Muito bem! — Marian ergueu os olhos para Dick Dart com um súbito aumento de interesse e respeito. — Estou impressionada. Pensei que o senhor fosse um poeta idiomático. Eu adoraria fazer-lhe mil perguntas, porém não desejo ser rude.

       — Poderia ser agradável — replicou Dart. — De um modo geral, os poetas não atraem muita atenção.

       — Por aqui é diferente. Tomaremos providências para que o senhor receba um tratamento VIP. Quando bons escritores nos dão a honra de sua visita, gostamos de estender nossa hospitalidade um pouco além da oferecida ao hóspede comum.

       — Não é formidável como as coisas se resolvem? — exclamou Dart, fitando Nora com olhos que dançavam.

       — Isto é maravilhoso! Posso mostrar-lhe o arquivo de fotos da srta. Weatherall, seus papéis particulares, na realidade, nada que o senhor se preocupasse em ver, e esta noite poderá jantar no refeitório com a sra. Margaret Nolan, a diretora da fundação, e eu. Seria esplêndido para nós. Teremos um excelente jantar, e fazemos isto para nossos hóspedes literários, oferecendo algo do cardápio original de Shorelands. Eu e Margaret adoramos a oportunidade de recriar o ambiente antigo. O senhor aceitaria?

       — Será uma honra para mim — respondeu Dart.

       — Margaret ficará felicíssima. — Marian dava a impressão de querer abraçar Dart. — Bem, será melhor providenciarmos o preenchimento de alguns papéis, a fim de que eu possa começar a tomar minhas providências extras. Poderia vir até meu gabinete?

       — Coloco-me em suas sardentas mãozinhas — disse Dart.

       Ela o fitou de relance com certa incerteza, antes de decidir que era jocoso o que ele havia dito.

       — Minhas sardas costumavam deixar-me inibida, porém deixei de pensar nelas. Confesso que por vezes bem gostaria de disfarçá-las, se encontrasse um cosmético que fizesse efeito.

       — Eu poderia ajudá-la nesse sentido — disse Dart. — Não há nenhum problema, em absoluto.

       — Está falando sério?

       Dart deu de ombros e assentiu. A jovem olhou para Nora.

       — Ele fala sério mesmo — disse Nora.

       — Os artistas são tão... extraordinários!. Tão... inesperados!.

       — Mantenho um pouco mais de contato com meu lado feminino do que o indivíduo mediano — explicou Dart.

       Marian conduziu-os pela porta marcada PRIVATIVO, no fim de um corredor funcional, em direção a uma segunda porta sem marcas. Passaram por ela para uma pequenina sala, com uma janela sobre a entrada.

       A fotografia de um jovem soldado fardado tinha sido presa ao quadro de avisos. Marian moveu-se para o outro lado da secretária, tirou um formulário da gaveta de cima, e sorriu para Dart.

       — Sr. Desmond, como suponho que irá preencher isto, talvez fosse melhor sentar-se, não? Eu desejaria ter duas cadeiras, mas, como podem ver, aqui dentro não há espaço.

       Dart examinou o formulário. Sorrindo, apanhou uma caneta em cima da mesa e começou a escrever. Marian olhou radiosamente para Nora.

       — Agora que sei quem são, fico feliz por termos colocado a senhora e o sr. Desmond no chalé Pote de Pimenta. Foi nele que Robert Frost ficou, quando foi hóspede da srta. Weatherall, em 1932.

       — E onde Merrick Favor e Austryn Fain ficaram, em 1938.

       Marian ergueu o queixo, e seus cabelos deslizaram para a nuca. Se o poético sr. Desmond apreciava sardas, ela pretendia dar-lhe uma boa visão das mesmas.

       — Penso que não conheço esses nomes.

       — Minha esposa tem um interesse especial pelo verão de 1938.

       Dart sorriu ao falar, como se sugerisse ser natural que esposas tivessem seus pontos fracos, e Marian correspondeu ao sorriso, em indulgente compreensão.

       — Veremos o que é possível fazermos para ajudá-la. — Ela leu o que Dart havia escrito no formulário. — Oh, mas que interessante! Seus nomes são Norma e Norman!

       — A poesia idiomática ataca novamente.

       Marian sorriu e sacudiu a cabeça com um jeito flertista. Norman Desmond era um folgazão.

       — Temos um tour que começará dentro de quarenta minutos, o que lhes dará tempo de sobra para que se instalem. Depois disso, eu os levarei a partes da casa que normalmente não são exibidas. Em realidade não somos um hotel, de maneira que não podemos proporcionar camareiros ou serviço de copa, mas se tiverem quaisquer necessidades especiais, farei o possível para atendê-los.

       Dart virou-se para Nora, com um sorriso lamentoso.

       — Vamos ter de contar a ela, Norma.

       Nora não fazia a menor idéia do que ele imaginava terem de contar para Marian Cullinan.

       — É, acho que temos.

       — A verdade é que estamos sem nossas malas. Foram roubadas de nosso carro quando fizemos uma parada de descanso, esta manhã. Temos apenas o que está dentro da bolsa de Norma e as roupas que vestimos.

       Marian pareceu abalada com a idéia.

       — Oh, mas isso é terrível! — Ela arrancou uma página de um bloco de folhas amarelas. — Falarei a Tony que traga da cidade escovas de dentes e pastas dentais, além do que necessitarem mais. Um aparelho de barba? Creme de barbear? Digam-me de que precisam.

       — Muito obrigado, mas temos todos os artigos de toalete necessários. Entretanto, estamos em falta de outras coisas e eu ficaria grato se as providenciasse para nós.

       — É só dizer — respondeu Marian.

       — Gostamos de um último drinque, antes de irmos para a cama. Seu empregado poderia trazer-nos um litro de vodca “Absolut”? Também seria interessante um balde com gelo, para acompanhar a bebida.

       — Parece-me razoável. — Marion escreveu. — Mais alguma coisa?

       — Eu gostaria de outros dois itens, porém não desejo que os ache estranhos.

       Ela ficou com a caneta no ar.

       — Cerca de três metros e meio de fio para varal e um rolo de esparadrapo.

       Marian ergueu os olhos, a fim de ver se aquela não era mais uma das piadinhas do hóspede.

       — Não precisa ser fio para varal — disse Dart. — Qualquer corda lisa, com meio centímetro de diâmetro, está ótima.

       — Nosso prazer é servi-lo — disse ela, anotando os pedidos dele. — Temos muitas cordas enroladas no banheiro, depois do corredor. Os operários as guardam lá, embora eu já tenha pedido e pedido...

       — São bastante ásperas — disse Dart.

       — Eu poderia perguntar-lhe...?

       — Suprimentos médicos — respondeu ele. — Trabalho de reparação.

       — Creio não ter enten...

       Ele deu um tapinha no joelho direito.

       — Infelizmente, esta não é a perna com que nasci.

       — Perdoe-me! Encontrará tudo em seu quarto, ao terminarem o tour. — Ela pareceu novamente abalada. — A menos que o senhor precise do material imediatamente.

       — Não há pressa. A velha articulação esteve treinando demais e ficou um pouco frouxa, algo bamba, e quero enrijecê-la mais tarde.

       — Sem dúvida. E a senhora, sra. Desmond? Há algo que eu possa fazer pela senhora? Espero poder chamá-la de Norma — disse Marian, depois observando Nora mais de perto. — A senhora está bem?

       — Algumas das pessoas que estavam em Shorelands no final dos anos trinta continuam aqui? Se continuam, eu gostaria de falar-lhes.

       Marian ofereceu um radioso sorriso.

       — Lily Melville é como se fizesse parte dos “móveis e utensílios” daqui, e foi camareira naquele tempo. Quando a fundação entrou em existência, ela foi tão prestimosa que a transferimos para a equipe de funcionários. Talvez a tenham visto guiando um grupo através do saguão.

       — De cabelos brancos? Um metro e cinqüenta e sete? Usando um colar de pérolas rosadas cultivadas, uma imitação de Geoffrey Beene?

       — Sim, isso mesmo! — exclamou ela, encantada com Dart. — Sr. Norman, é um homem incrível!

       — Ela me pareceu uma doce criaturinha — disse Dart.

       — Bem, ela vai ficar fascinada pelo senhor, mas não a deixe saber que o colar não é um Geoffrey Beene verdadeiro.

       Dart levantou a mão, como se fizesse um juramento. Nora interrompeu o diálogo.

       — Lily Melville é a única pessoa que sobrou daquela época?

       — Também temos conosco uma antiga camareira, Agnes Brotherhood. Anda adoentada ultimamente, mas pode ser possível que fale com ela.

       — Eu gostaria muito — disse Nora.

       — Hugo Driver — disse Marian, apontando para ela. — Eu sabia que havia algo sobre 1938! Então, a senhora é uma admiradora de Hugo Driver... — A funcionária sorriu, de uma forma que talvez não fosse inteiramente agradável. — Não temos tido tanto contato com os fãs de Driver, como seria de esperar. Como de praxe, eles tendem a não ser muito parecidos com os leitores comuns.

       — Não sou apenas admiradora de Driver — declarou Nora. — Também aprecio Bill Tidy, Creeley Monk e Katherine Mannheim.

       Marian envolveu-a em um olhar duvidoso.

       — Um grupo fascinante — disse Dart. — Classe de 1938. Possui um interesse tremendo para Norma.

       — Está envolvida em algum projeto de pesquisa?

       — Segundo Norma — disse Dart — Jornada na Noite não existiria se não houvesse a experiência de Shorelands. Foi algo essencial ao desenvolvimento do livro.

       — Oh, mas isto é muitíssimo interessante! — exclamou Marian, recostando-se em sua cadeira e dobrando as mãos diante do queixo. — Em vista da popularidade de Driver, devíamos estar trabalhando mais o nome dele, de algum modo. E se pudermos afirmar que Shorelands e estas pessoas que mencionou foram uma espécie de mola propulsora para Jornada na Noite, aí temos a forma de como fazê-lo! — Ela coçou o contorno perfeito do queixo e espiou pela janela, refletindo. — Posso ver um artigo na revista dominical do Times. Posso também ver algo na crítica de livros. Se conseguirmos isso, programaremos fins de semana de Hugo Driver. Que tal uma conferência Driver anual? Poderia funcionar. Terei de levar o assunto à atenção de Margaret, mas estou certa de que ela perceberá o potencial que encerra. Para lhes ser franca, o comparecimento de interessados tem sido pequeno ultimamente, de maneira que isto poderia movimentar as coisas à nossa volta.

       — Tenho certeza de que Leonard Gimmel e Teddy Brunhoven ficariam encantados em participar — disse Nora.

       Marian virou-se para ela e ergueu as sobrancelhas.

       — São eruditos em Driver — explicou Nora.

       — Com sorte, poderemos ter tudo providenciado na próxima primavera. O que acham de discutirmos estes assuntos com Margaret, durante o jantar? Bem, o preço de suas acomodações fica em noventa e seis dólares e vinte, imposto incluído. Se me derem um cartão, já podem ir caminhando para o chalé Pote de Pimenta.

       — Sempre usamos dinheiro vivo — disse Dart. — Pagamento na hora.

       —Isso é tranqüilizador.

       Marian viu Dart tirar a carteira do bolso da calça e maravilhou-se com a quantidade de notas que ela continha. Fez o troco com dinheiro retirado de uma caixa com tal finalidade, e entregou a ele duas chaves às quais estavam presas tabuletas de madeira com a inscrição POTE DE PIMENTA.

       — Encontrarão Lily ao lado do saguão, e eu os estarei esperando, quando o tour acabar. Acho que todos nos divertiremos muito, enquanto estiverem conosco.

       — São exatamente os meus planos — replicou Dart.

      

— EU DEVIA ter-me tornado poeta há muito tempo atrás. Se a esposa não estivesse presente, eu transaria com nossa nova amiga bem ali, dentro de sua sala de trabalho.

       — Você causou uma forte impressão nela — comentou Nora.

       — Aposto que a Donzela Marian tem sardas nas axilas. Sem a menor dúvida é sardenta no alto das tetas, mas você acha que também nas regiões inferiores?

       — Ela provavelmente tem sardas até nas solas dos pés.

       Eles haviam deixado a Casa Principal pela porta da frente e caminhavam na aléia que se internava no matagal, partindo do extremo oposto do pátio murado. Altos carvalhos, intercalados por vidoeiros e bordos, cresciam em cada margem da aléia. Um sinalizador em uma dobra do muro apontava para PÃO DE MEL, POTE DE PIMENTA e RAPUNZEL.

       — Não é maravilhoso como tudo se encaixa no lugar, quando estamos juntos? Surgimos como palermas comuns, e dois minutos mais tarde já somos VIPs. Ficamos donos do lugar, por assim dizer, e, para cúmulo, eles nos oferecerão um dos históricos jantares de tempos passados em Shorelands. Você entende por quê?

       — Marian acha que você é material quente.

       — Não, o motivo não é esse. Aqui temos esta enorme propriedade, com quatro ou cinco pessoas morando nela em caráter permanente. Noite após noite, elas tomam sopa e comem sanduíches na cozinha, uma se queixando para as outras dos tempos difíceis que os negócios enfrentam. Quando surge alguém que podem considerar um VIP, surge também o pretexto para uma refeição decente. Essa gente está sequiosa por um pouco de excitamento. Nesse ínterim, observaremos quantas pessoas há na casa, descobriremos onde ficam seus quartos, enfim, checaremos o lugar. Não poderia ser melhor!

       Outro indicador de madeira apareceu no lado esquerdo da aléia. Uma flecha marrom apontava para uma estreita alameda que conduzia ao chalé PÃO DE MEL. Nora espiou por sobre o ombro.

       — Eu gostaria que você não tivesse pedido a corda e o esparadrapo. Não há necessidade dessas coisas.

       — Pelo contrário. Vou precisar delas duas vezes.

       Chegaram ao pé do poste indicador. Nora olhou à esquerda, e divisou as vagas formas de uma acinzentada construção de madeira, oculta no meio das árvores. Uma janela cintilou à claridade cinza do dia.

       — Duas vezes?

       A boca de Dart contorceu-se.

       — No seu caso, talvez dispensemos o esparadrapo. Entretanto, a nossa querida velhinha é outro assunto. A restrição física acrescenta muita coisa ao efeito final. Qual delas você escolhe, Lily ou Agnes?

       Nora não respondeu.

       — Gosto do som de Agnes. Há o toque da invalidez, o que anula uma disputa. Estou pensando nos seus melhores interesses, querida.

       — É muito gentil de sua parte.

       — Bem, vamos apinhar-nos no caro e velho Saleiro, Moedor de Pimenta ou seja lá como se chame o tal chalé.

       Calada, Nora desviou-se de Pão de Mel, onde Katherine Mannheim provavelmente morrera ao lutar com Hugo Driver, e começou a mover-se para a margem da alameda. Dart deu-lhe um tapinha no ombro, e ela procurou conter o impulso de fugir àquele contato.

       — Você se sairá maravilhosamente bem — disse ele, desmanchando-lhe os cabelos atrás da cabeça.

       A alameda contornou uma enorme pedra arredondada pela erosão, do tamanho de um elefante, com um tapete de musgo cobrindo-lhe as ancas roliças. No outro lado da alameda, um sinalizador duplo, seu poste plantado na orla das árvores, indicava que RAPUNZEL ficava além de uma ponte de madeira que se arqueava sobre um estreito riacho, e POTE DE PIMENTA no final de uma trilha apertada, levando à floresta à direita deles.

       Dart deu um salto perfeito sobre um metro de lama reluzente e alcançou uma rocha achatada, de onde passou para a margem relvada. Ele sacudiu as pesadas chaves no ar.

       — Lar, doce lar!

       Movendo-se ao longo de seu lado da alameda, Nora encontrou uma série de pedras e trechos secos que lhe permitiram cruzar para o lado oposto.

      

A trilha iniciava uma subida através de pinheiros douglas, com agulhas cintilantes. Um pequeno chalé de troncos cortados a machado foi aos poucos surgindo à vista, no final de uma clareira. Estendendo-se de um teto de telhas de madeira, uma lona pendia sobre um alpendre achatado. Uma chaminé de tijolos subia pelo lado do chalé, e grandes janelas divididas em quatro vidraças interrompiam as linhas retas dos troncos, nos dois lados da porta da frente. Fora acrescentado um anexo nos fundos, por operários que haviam tentado imitar os troncos, com tábuas serradas por máquinas. Nenhuma linha telefônica partia da casa.

       — Ouve a música do banjo? — perguntou Dart. — Meu cavalo malhado me trouxe para uma cabana de faroeste.

       — Duas ou três pessoas construíram esta casa com as mãos — disse Nora. — E fizeram um bom trabalho.

       Dart ajudou-a a chegar ao alpendre, subindo por dois degraus de madeira grosseiramente esculpidos.

       — Seus modestos valores do meio-oeste fazem com que me sinta extremamente decadente. Venha, entre!

       Os dois passaram para um aposento escuro, com camas duplas e mesas de pinho em cada extremidade, encostadas às paredes. No meio do aposento, um sofá e duas poltronas marrons flanqueavam uma mesinha baixa. Ao longo da parede oposta havia uma bancada, armários de cozinha, uma pia sob uma janela quadrada e um fogão elétrico. Pesados guarda-roupas ocupavam os cantos extremos do aposento, e a plataforma da lareira de pedra projetava-se do piso de madeira. Dart trancou a porta atrás deles e acionou um interruptor, que acendeu um globo pendente do teto e os abajures das mesas-de-cabeceira.

       — Lugarzinho nojento! — Dart caminhou até a cozinha, onde abriu e fechou armários. — Nada de minibar, é claro.

       — Você não pediu uma garrafa?

       — Quando a gente não tem escolha, é mais ou menos como viver na Rússia. Quanto tempo nos sobra? Vinte minutos?

       — Acho que sim — respondeu Nora, satisfeita porque, na opinião de Dick Dart, este não era o tempo suficiente para uma prazerosa experiência sexual.

       — Será que este antro possui um banheiro de verdade?

       Ela apontou para uma porta na parede dos fundos.

       — Por ali.

       — Vamos. Pegue sua bolsa.

       Nora interrogou-o com o olhar.

       — Quero consertar sua maquiagem. Não suporto ver a bagunça em que você transformou o meu trabalho.

      

A GUIA BAIXOTINHA, de cabelos brancos, correu escada acima e seguiu em frente, apressada. Era energética e jovial, parecendo conhecer cada pessoa do grupo.

       — Olá, olá!

       Dois homens na casa dos sessenta, de paletó e gravata como Dick Dart, um deles com curtos cabelos grisalhos, o outro calvo, cumprimentaram-na por seu nome. O sorriso da guia congelou-se por um momento, quando percebeu a presença de Dart.

       — Bem, aqui estamos — disse ela. — Não costumo guiar grupos de um extremo a outro, mas fui informada de que temos entre nós um promissor e jovem poeta, o qual perguntou por mim especificamente. Assim, fico feliz em estar com o senhor. — Ela dirigiu seu sorriso para um rapaz de cabelos escuros, parecendo um ator de novela de rádio, um dos Edmunds e Dmitris de Daisy. — O senhor é o sr. Desmond?

       Edmond/Dmitri mostrou um ar sobressaltado, e respondeu:

       — Não!

       — Receio que seja eu — disse Dart.

       — Oh, agora compreendo — disse ela. — O senhor tem fortes opiniões, o que é apenas natural. De quando em quando, sr. Desmond, por obséquio, sinta-se à vontade para partilhar suas percepções conosco.

       — Será uma honra para mim — respondeu Dart.

       Ela sorriu para o grupo em geral.

       — O sr. Desmond, o poeta, nos dará seu ponto de vista especial, à medida que formos avançando. Estou certa de que todos o acharemos muito interessante, mas quero avisá-lo, sr. Desmond, de que idéias podem ser polêmicas.

       — Minhas idéias, polêmicas? — exclamou Dart, apertando uma das mãos contra o peito. — Pobrezinho de mim!

       Alguns membros do grupo deram risadinhas sufocadas.

       — Também quero comunicar aos senhores que mais duas pessoas criativas, velhos amigos nossos, estão hoje conosco: Frank Neary e Frank Tidball. Nós os chamamos de os dois Franks, e é sempre um prazer quando eles se juntam a nós.

       Os dois homens mais velhos murmuraram seus agradecimentos, levemente constrangidos por terem sido identificados. Seus nomes soaram familiares a Nora. Frank Neary e Frank Tidball, os dois Franks criativos? Ela achava que nunca os tinha visto antes.

       — Os senhores talvez se sintam interessados em saber como esta idosa dama à sua frente aprendeu tanto sobre Shorelands. Meu nome é Lily Melville, e passei a maior parte da minha vida neste lindo lugar. Sorte minha!

       Uma daquelas pessoas capazes de dizer algo pela milésima vez como se fosse a primeira, Lily Melville contou a eles que Georgina Weatherall a contratara como empregada para todo o serviço no ano de 1931, quando ela não passava de uma criança. Estava-se na Depressão, a situação financeira de sua família forçava-a a abandonar a escola, porém tinha recebido uma educação maravilhosa em Shorelands. Durante dois anos, ela ajudara na cozinha e servindo refeições, o que lhe deu oportunidade de ouvir o que conversavam à mesa alguns dos mais famosos e distintos escritores do mundo. Depois disso, ficou incumbida dos chalés, o que a deixou em contato ainda mais próximo com os convidados. Lamentavelmente, em fins dos anos quarenta, a srta. Weatherall sofrera um declínio em suas forças, não podendo mais receber seus convidados. Durante os anos seguintes à partida da srta. Weatherall de Shorelands, a srta. Melville havia sido procurada freqüentemente por escritores, homens de cultura e grupos comunitários que trabalhavam em suas memórias. Logo depois que a propriedade foi vendida e transformada em fundação, no ano de 1980, ela fora contratada como membro residente da equipe.

       — Iniciaremos o nosso tour por dois dos meus pontos favoritos: o salão e a biblioteca particular da srta. Weatherall; e depois prosseguiremos de lá. Alguma pergunta antes de começarmos?

       Dick Dart levantou a mão.

       — Já, sr. Desmond?

       — A Senhorita não está usando um Geoffrey Beene, com seu atraente conjunto?

       — Oh, que gentil! Sim, é verdade.

       — Estarei enganado, ao pensar ter captado um traço daquele delicioso perfume Mitsouko, quando a senhorita apresentou-se com tanta eloqüência?

       — Sr. Desmond, gostaria de acompanhar-me, enquanto levamos o nosso grupo ao salão?

       Dart contornou o lado do grupo e tomou o braço da srta. Melville. Feito isto, os dois começaram a descer o corredor, à frente de Nora e dos outros participantes.

      

Eles visitaram o salão, a biblioteca, o saguão e a famosa sala de refeições, onde uma mesa muitíssimo polida situava-se abaixo de reproduções de telas, fossem pertencentes a Georgina ou similares às existentes em sua coleção. Como sua biblioteca, os quadros dela haviam sido vendidos muito tempo antes. O grupo caminhou ao longo do terraço e desceu a escada para admirar a Casa Principal, vista do gramado oeste. Com a facilidade da longa prática, Lily falou das muitas peculiaridades de sua antiga empregadora, representando-as como encantadoras excentricidades de uma patrona das artes; ela solicitou os comentários, que variaram entre surpreendentes, irreverentes, respeitosos ou cômicos, da parte do poeta Norman Desmond, que agora a acompanhava pela longa extensão do gramado oeste em direção às ruínas dos famosos jardins, cuja restauração era superior aos poderes da fundação.

       Nora alcançou os dois Franks, novamente perguntando-se por que motivo os nomes de ambos pareciam familiares. Seus rostos certamente não o eram. Quase sem parecerem acadêmicos, ambos os Franks mostravam a pedante reserva e a íntima e involuntariamente maneira exclusiva de duradouros colaboradores ou casais casados. Alguns comentários de Dick Dart os tinham divertido, e o Frank de cabelos curtos e grisalhos pretendia claramente dizer algo sobre o interessante marido da sra. Desmond.

       Aqui estão os seus telefones, disse Nora para si mesma. Você precisa conseguir que esses sujeitos chamem a polícia. Só que, como convencê-los?

       — Seu marido é um homem incomum — disse Cabelo Curto e Grisalho. — Deve sentir muito orgulho dele.

       — Posso falar com o senhor por um segundo? — perguntou ela. — Preciso dizer-lhe uma coisa.

       — Por falar nisso, eu sou Frank Neary, e este é Frank Tidball. — Os dois homens estenderam as mãos, que ela apertou com impaciência. — Já fizemos o tour de Lily inúmeras vezes, e ela sempre surge com algo novo.

       Tidball sorriu.

       — De qualquer modo, ela nunca surgiu antes com algo como seu marido.

       Dart e Lily tinham parado na orla de uma série de crescidas cicatrizes no solo, remanescentes de uma seção dos antigos jardins. Além deles, um pedestal vazio erguia-se no centro de um tanque. Lily ria de algo que Dart estava dizendo.

       — Dificilmente alguém pode ser um poeta, se não possuir uma mente independente — comentou Neary. — Onde moramos, em Rhinebeck, à margem do rio Hudson, estamos cercados de artistas e poetas.

       Nora lançou um agoniante olhar através do gramado. Dart falou com Lily e começou a caminhar rapidamente para o grupo que se movia em sua direção, com Nora e os dois Franks um pouco afastados dos demais.

       — A senhora não queria dizer alguma coisa? — perguntou Neary.

       — Estou precisando de ajuda. — Dart avançava através do gramado, sorrindo perigosamente. — Pode dar-me o braço, por favor? Tenho uma pedra no sapato.

       — Naturalmente — disse Frank Neary, postando-se galantemente ao lado dela e sustentando-lhe o cotovelo.

       Nora ergueu a perna direita, tirou o sapato e o virou.

       — Pronto! — exclamou, e os dois homens contemplaram polidamente a queda de uma pedra inexistente. — Muito obrigada. — Quando Neary lhe soltou o braço, ela viu Dart aproximando-se em passos largos, sem abandonar seu perigoso sorriso. Então, de súbito recordou onde ouvira o nome dos dois homens. — Os senhores devem ser o Neary e Tidball que criam os problemas de palavras cruzadas da Casa Chancel.

       — Santos céus! — exclamou Neary. — Frank, a sra. Desmond conhece as nossas palavras cruzadas!

       — Isto não é adorável, Frank?

       Nora se virou e sorriu para Dart, o qual percebera o tom de sua conversa com os Franks e diminuíra as passadas.

       — A senhora conhece o nosso trabalho?

       — Os senhores são espetaculares — disse Nora. — Eu devia ter reconhecido seus nomes, assim que os ouvi.

       Dart chegara a uma distância em que podia ouvi-la, e Nora continuou:

       — Eu adoro suas palavras cruzadas, são tão inteligentes! — Algo dito por Davey certa vez voltou à sua memória. — Os senhores utilizam temas de maneira muito sutil.

       — Santo Deus, alguém nos compreende! — exclamou Neary. — Aqui está uma pessoa capaz de entender que um enigma é mais do que isso.

       Dart deixou a mão cair no ombro de Nora.

       — Enigmas?

       — Norman — disse ela, erguendo o rosto com o que esperava fosse uma expressão de esposa — o sr. Neary e o sr. Tidball são os criadores daqueles admiráveis enigmas de palavras cruzadas para a Casa Chancel.

       — É mesmo? — exclamou Dart, voltando prontamente ao seu papel. — São aquelas palavras cruzadas que deixam você acordada até noite alta, tentando descobrir uma palavra de oito letras para “condimento usado em defumadouros”?

       — Não é formidável?

       — Estou certo de que os três têm muito a discutir, mas devemos acompanhar os outros. — Dart sorriu para os dois Franks. — Eu me perguntei sobre o que estariam falando. Os senhores têm um editor, lá na Casa Chancel?

       — Sim, mas na verdade nosso trabalho não precisa de uma editoração real. Davey faz uma sugestão de vez em quando. É um rapaz muito afável.

       Juntos, os quatro emparelharam com o restante do grupo. Lily anunciou que após apreciarem o tanque com o pedestal, seguiriam para a Casa do Mel, onde seria concluído o tour oficial. Se alguém quisesse visitar o Campo Nevoento, os Pilares Cantantes e o chalé Rapunzel, tinha toda a liberdade para isso.

       — Os senhores vêm aqui freqüentemente? — perguntou Dart.

       Em frases alternadas, Neary e Tidball contaram a seus novos amigos que tentavam visitar Shorelands uma vez por ano.

       — Há cinco anos atrás ficamos hospedados no chalé Rapunzel, principalmente para podermos perambular pela Casa Principal, quando não estivesse cheia de turistas. Foi muitíssimo agradável. Agnes Broterhood sabia um bocado de histórias.

       — Que tipo de histórias?

       Neary olhou para Tidball, e os dois homens sorriram.

       — Há uma enorme diferença entre Lily e Agnes — disse Neary. — Agnes jamais gostou muito de Georgina e, naquele momento, ela se sentia com disposição para mexericos. Eu e Frank ouvimos coisas que jamais serão lidas nos livros de história.

       Lily começara a falar da borda saliente da laje que circundava o tanque. Frank Neary levou um dedo aos lábios.

       Após contar duas anedotas ligeiramente lascivas sobre os encontros acidentais de escritores de ambos os sexos, sem qualquer peça de roupa no corpo, Lily desceu da laje saliente e declarou que a parada final do grupo na Casa do Mel, o único chalé restaurado à sua condição original, era o encerramento perfeito daquele tour.

       Uma aléia de pedra, quase tomada pelo mato rasteiro, partia do tanque e encurvava-se na distância, perdendo-se entre as árvores. Na retaguarda do grupo, Nora e Dart caminhavam logo atrás dos criadores de palavras cruzadas, enquanto os outros dividiam-se em duplas, seguindo o conjunto cor-de-rosa de Lily. O ar havia escurecido.

       — Talvez chova — disse Dart.

       — Vai chover — declarou Tidball. — A chuva está chegando aqui um pouco antes do programado, o que é bom para eles. Em geral, quando chove não aparecem muitos visitantes. Shorelands vira um lamaçal. E já que estamos em época de chuvas, é melhor que o aguaceiro chegue agora do que no fim de semana.

       — O número de visitantes diminui? Quanto a isso, não há dúvida — disse Neary. — Nos visitantes, a chuva provoca o mesmo efeito que aquele sujeito que está nos jornais, Dart, provocou em suas vítimas.

       Lily e o casal atrás dela chegaram a uma ponte sobre o riacho que serpenteava através da extremidade norte da propriedade. Seus sapatos fizeram trip-trap, trip-trap no piso da ponte, como os três bodes rabugentos do conto de fadas.

       — Ouviram alguma novidade sobre o bom e velho Dart? — perguntou Dart. — Que história! Nós não conseguimos entender direito. O sujeito foi incriminado, porém nunca acusado do crime. O que estaria a mulher fazendo no posto policial? Aí há mais coisas do que podemos ver. O curioso casal continua foragido?

       — Oh, sim, continua — disse Neary. — Segundo o rádio, supõe-se que Dart esteja em Northampton, e isso fica bem longe daqui. — Seus olhos se tinham tornado grandes e sérios. — Concordo em que nessa história toda há bem mais do que a gente vê. Eu e Frank temos uma conexão com a mulher. — Ele inclinou-se diante de Nora, para encarar Dart. — O senhor perguntou por nosso editor, Davey Chancel. Bem, ela é esposa dele. Se quer a minha opinião, Nora Chancel tem algo a ver com esse tal Dart.

       — Eu diria que é uma séria possibilidade — replicou Dart. — O que sabe sobre essa mulher, a esposa de seu editor?

       Os outros já haviam cruzado a ponte, e agora os dois Franks, seguidos de perto por Nora e Dick Dart, começavam a atravessá-la. Trip-trap, trip-trap.

       — Ouvimos certos comentários — disse Tidball.

       — Continue — pediu Dart. — Sou todo ouvidos.

       — Aparentemente, a mulher possui uma personalidade instável. Achamos que os dois estavam mancomunados. Quando ele foi preso, ela apareceu no posto policial e encenou seu próprio “seqüestro”, a fim de tirá-lo de lá, e estou apenas repetindo o que dizem. Provavelmente é mais perigosa do que Dart.

       Neary riu e, um segundo mais tarde, Nora riu também.

       Eles acompanharam os outros até uma cabana construída mais além, na orla do arvoredo. Lily parou diante da porta principal, de frente para o grupo.

       — Uma verdadeira saga, não é mesmo? — comentou Dart.

       — Mal posso esperar pelo filme — disse Nora.

       Lily ergueu uma das mãos, como se prestasse um juramento.

       — Aqui em Shorelands, sentimos muito orgulho do que os senhores logo irão ver. O projeto teve início há quatro anos atrás, quando nossa diretora Margaret Nolan nos disse, durante o jantar: “Por que não tornamos possível aos nossos hóspedes a visita a um de nossos chalés, a fim de que experimentem o mundo criado por Georgina Weatherall? Por que não recriar-se o passado que celebramos aqui?” Todos ficamos encantados com a visão de Margaret Nolan e, durante um ano, reunimos registros e documentos que oferecessem um retrato do interior de como seria um chalé típico no período aproximado de 1920 a meados de 1935. Combinamos que o trabalho seria feito sem pressa. Se querem saber, quando é iniciado um projeto como este, a gente rapidamente descobre em quanta coisa é ignorante.

       Um riso polido elevou-se do grupo, com exceção de Nora e Dart.

       — Os senhores certamente gostariam de saber por que escolhemos a Casa do Mel. Serei franca sobre isso. O custo tinha que ser levado em consideração, e este é um dos menores chalés. Nossa última grande reforma geral aconteceu em 1939, e a tarefa à nossa frente era enorme. Com a ajuda dos registros de Georgina Weatherall, cobrimos as paredes com um tecido especial, conseguido com o fabricante original. Esse tecido estivera fora de produção desde 1948, mas vários rolos haviam sido preservados nos fundos do depósito da fábrica, e compramos todos eles. Descobrimos que a tinta original provinha de uma firma que se afastara dos negócios em 1935, e quase perdemos a esperança. Então soubemos que um fornecedor de tintas de Boston dispunha de quinze galões em seu porão, com a marca e cor exatas. Os donativos foram chegando. Há cerca de ano e meio atrás, a restauração de tudo isto chegava ao fim.

       “Creio ser desnecessária esta advertência, mas devo insistir com os senhores para não tocarem nos objetos ou tecidos do chalé. A Casa do Mel é um museu vivo. Por obséquio, dêem-lhe o respeito que merece, e permitam que outros também possam apreciar esta restauração por muitos anos ainda. Fui bem entendida?”

       — Ponto por ponto! — gritou Dart, e sua voz destacou-se acima do murmúrio de assentimento do grupo.

       Lily sorriu, virou-se para a porta, tirou do bolso do conjunto cor-de-rosa uma chave maciça, e olhou por sobre o ombro.

       — Eu adoro este momento — disse.

       Girou a chave na fechadura, escancarou a porta, e disse ao jovem casal diretamente à sua frente que acendesse as luzes.

       O rapaz liderou os primeiros membros do grupo através da porta. Os que ainda estavam do lado de fora captaram abafados sons de apreciação.

       — Todos eles fazem isso — disse Lily. — Assim que as luzes são acesas, sempre ouvimos Ooh! Aah! Vamos, sr. Norman, entre. Seus olhos não acreditarão no que virem.

       Dart deu-lhe um tapinha no ombro e seguiu Nora através da porta do chalé.

      

TODA SUPERFÍCIE POSSÍVEL havia sido coberta com figurinhas de porcelana, caixinhas de rapé, vasos antigos, velas em enfeitados castiçais, e uma variedade enorme de outras coisas, que Nora instintivamente classificou como quinquilharias. Pinturas em molduras douradas e espelhos engolfados em arabescos pendiam desordenadamente pelas paredes cor de berinjela.

Lily dirigiu-se ao grupo:

       — Agora, deixarei que se deleitem com esta esplêndida recriação. Sintam-se à vontade para interrogar-me sobre qualquer coisa que lhes chame a atenção.

       Os casais separaram-se por diferentes setores do interior, e Lily aproximou-se dos Franks com uma presunção de proprietária.

       — Não é maravilhoso? — exclamou.

       — Eu não fazia idéia de que os hóspedes vivessem nesta espécie de esplendor — disse Nora.

       — Nada era bom demais para as pessoas que vinham aqui — declarou Lily. — Na opinião da srta. Weatherall, elas eram a aristocracia cultural. O sr. Yeats, por exemplo. — Ela apontou, através do aposento, para a foto de um homem com um pince-nez sobre o nariz. — Ele era um perfeito cavalheiro. A srta. Weatherall adorava sua conversa.

       — Um escritor chamado Creeley Monk também hospedou-se aqui — indicou Nora.

       — Greeley Monk? Acho que não me lembro...

       — Em 1938.

       Os olhos de Lily mostraram claramente sua aversão.

       — Gostamos mais de demorar-nos em nossas vitórias. E aqui temos um exemplo, bem ao seu lado! Frank e Frank são publicados pela Casa Chancel, que nasceu naquele mesmo verão, quando o sr. Driver conheceu o sr. Lincoln Chancel. Sim, também ele era um perfeito cavalheiro.

       — Parece que, afinal de contas, não foi um verão tão ruim — disse Nora.

       Lily deu de ombros, com expressão afetada.

       — Esta é uma reconstituição de como teria sido aqui, durante os anos trinta?

       — Não, de maneira nenhuma — respondeu Lily, imperturbável ante a contradição com seus comentários anteriores. — Nós quisemos representar a propriedade como um todo, não apenas como um chalé. Quando é feita uma montagem como esta, adquirimos uma sensação real dos tempos passados.

       Um homem que aparentemente queria interrogá-la sobre uma coleção de pesos de papéis acenou para ela, e Lily escafedeu-se dali.

       — Mil novecentos e trinta e oito não é o ano predileto deles — comentou Tidball.

       — Eu me pergunto se os senhores sabem alguma coisa sobre uma poetisa chamada Katherine Mannheim — aventurou Nora.

       Tidball girou os olhos para cima e entrelaçou as mãos diante do corpo.

       — Está me parecendo que sabem — disse Nora.

       Dart apenas olhava, indulgente, satisfeito ao captar a presença de problemas iminentes. Os Franks trocaram um breve olhar.

       — Esperemos até que o tour termine — disse Neary. — Pretendem ver o Campo Nevoento e os Pilares Cantantes?

       — Quem não viu os Pilares Cantantes, não viu Shorelands -respondeu Dart.

      

Meia hora mais tarde, os quatro caminhavam atrás dos demais membros do grupo pela aléia que seguia pelo norte, através da floresta. Dart caminhava tão perto de Nora, que quase parecia absorvê-la.

       — De onde surgiram esses nomes de contos de fadas? — perguntou ele, em voz estentórea.

       — Idéia de Georgina — disse Neary, caminhando à testa daquela coluna de quatro pessoas. — Quando o pai dela era o dono da propriedade, o único chalé com nome era a Casa do Mel, por causa de um velho mordomo que morou lá, o sr. Mel, ou sr. Honey, como queiram. Depois que o pai transferiu a propriedade para ela, de repente tudo ganhou um nome novo. — Ele olhou para trás e sorriu para os outros. — A concepção romântica de Georgina sobre si mesma estendeu-se a seu domínio. Pessoas assim tendem a ser ditatoriais.

       Frank Neary era um homem inteligente. Dart não poderia mantê-la sob cerrada vigilância durante a tarde inteira, e ela precisava de apenas alguns segundos.

       — Foi nisso que a sua poetisa errou — disse Neary. — Ficamos sabendo de tudo através de Agnes Brotherhood, portanto precisam levar em conta que ela nunca se preocupou de fato com Georgina. Lily, por outro lado, adorava-a. Assim, Lily detestou Katherine Mannheim porque ela não dispensava a Georgina o devido respeito. Segundo Agnes, Katherine Mannheim pôde enxergar através de Georgina desde que a viu pela primeira vez, e Georgina a detestou por isso.

       — Na opinião de Agnes — interveio Tidball —, Georgina ficou enciumada. De qualquer modo, todo o assunto ainda parecia deixá-la nervosa.

       A aléia encurvou-se para a esquerda de um prado e desapareceu no meio das árvores em sua extremidade mais distante, onde várias e enormes pedras acinzentadas, eretas, eram vagamente visíveis.

       — Muito bem, eis aqui o famoso Campo Nevoento!

       — Campo Nevoento — repetiu Nora. — Por que isto soa familiar?

       — Costuma escrever todos os dias, sr. Desmond? — perguntou Tidball.

       — É o único jeito de produzir alguma coisa. Levanto-me às seis, rabisco uma ode antes de ir para o escritório. À noite, estou de volta à escrita, de nove até as onze. E já que falamos nisso, chamem-me de Norman, por favor.

       Eles começaram a subir a aléia novamente.

       — Faz parte de alguma comunidade de poetas?

       — Nós, os poetas idiomáticos, gostamos de reunir-nos em um agradável e pequeno saloon chamado Gilhoolie’s.

       — Como definiria a poesia idiomática?

       — Exatamente o que parece — replicou Dart. — Idiomática, tanto quanto possível.

       — Teve oportunidade de ler a poesia de Katherine Mannheim? — quis saber Neary.

       — Nunca toquei no que ela escreveu.

       Neary olhou para ele com um ar confuso.

       — Por que Agnes achava que Georgina sentia ciúmes de Katherine Mannheim? — perguntou Agnes.

       — Georgina estava acostumada a ser o centro das atenções. Especialmente com os homens. No entanto, eles começaram a ficar embasbacados pela atraente mocinha. Sendo o tipo de pessoa que era, Georgina precisou de umas duas semanas para entender o que acontecia. Lily Melville esclareceu-a sobre isso.

       — Deviam ter expulso a cretina em seguida — disse Dart.

       Neary pareceu sobressaltado com aquela escolha de palavras.

       — Eventualmente Georgina decidiu fazer isso, mas sem querer agir de um modo que pudesse prejudicar-lhe a reputação. Ela andava preocupada com finanças, e mandar um hóspede embora poderia parecer um sinal de problemas. Aqui estão os Pilares Cantantes e o Vale de Monty. Impressionantes, não?

       A uma curta distância da aléia, seis rochas altas, de extremidades achatadas, haviam sido colocadas em círculo, à volta de uma clareira natural. Os outros membros do grupo de Lily Melville já estavam voltando à aléia. Uma mulher sessentona, em um conjunto turquesa para ginástica, aproximou-se deles e apresentou-se como Dorothea Bach, professora aposentada de ginásio. Ela queria saber tudo sobre a poesia do sr. Desmond.

       — Minhas odes e elegias foram inspiradas originalmente pela minha própria professora de inglês no ginásio.

       A seguir, ele começou a soltar tolices que deixaram Dorothea excitada até seus tênis de corrida azul-rutilante. Fascinado, Tidball aproximou-se um passo.

       Nora posicionou-se rapidamente ao lado de Neary, que já se movia em direção às rochas. Ele a fitou com um sorriso conciliatório, desculpando-se antecipadamente pelo que tinha a dizer.

       — Ouvindo seu marido falar, a gente pensa que ele não entende absolutamente nada de poesia.

       — Preciso de sua ajuda.

       — Outra pedra imaginária? — disse ele, estendendo o braço.

       — Não, eu...

       A mão de Dart afagou-lhe a nuca.

       — Perdão por interromper este momento privado, mas eu não podia suportar aquela mulher nem mais um segundo!

       Neary virou-se para Nora com um olhar interrogativo. Ela abanou a cabeça.

       — A cada vez que venho aqui, penso em voltar na época de um dos espetaculares verões e ouvir a conversa neste lugar. Chego a ficar arrepiado! Bem aqui sentaram-se grandes escritores e falaram sobre aquilo em que estavam trabalhando no momento. Não gostaria também de tê-los ouvido?

       — Devia ser uma piada e tanto — respondeu Dart.

       — Nunca se sabe quando você está falando a sério, Norman — disse Neary.

       — Sou um humilde trabalhador dos vinhedos — replicou Dart.

       — Seja como for, Norman, eu não diria que a humildade é o seu ponto forte.

       — Talvez fosse melhor nos deixarem em paz, rapazes — disse Dart. — Após algum tempo, essas velhas vergastadinhas sibilantes começam a dar-me nos nervos.

       Frank Tidball olhou para ele como se houvesse levado uma tijolada atrás da cabeça, enquanto Frank Neary mostrava-se exasperado e aborrecido, de uma maneira à qual evidentemente se acostumara, desde muito tempo antes.

       — É isso aí. Este homem é um lunático, e ele me amedronta.

       — Eu devia amedrontá-lo mesmo — replicou Dart, com o rosto radioso de prazer.

       Neary manteve-se firme em seu ponto de vista.

       — Adeus, sra. Desmond. Desejo-lhe sorte.

       Dart riu dele — cada palavra dita pelo sujeito era ridícula.

       — Frank, sei que meu marido o ofendeu, mas o que estava dizendo sobre os problemas financeiros de Georgina? Isso talvez seja muito importante para mim.

       Nora tinha encarado o problema do dinheiro como a oportunidade de uma pista para uma resposta, e isto era importante demais para deixar que Dart a levasse dali.

       — Não tenho problemas com a senhora, sra. Desmond.

       Neary dirigiu um olhar irado a Dart, que rapidamente avançou um passo e sorriu para ele. Nora recusou-se a ser intimidada.

       — Os recursos de Shorelands não eram grandes o bastante para pagar todos os empregados e o fornecimento de comida e bebida para os hóspedes. O pai dela fez-lhe as vontades por muito tempo, mas, em 1938, ele perdeu a paciência. Retirou a ajuda financeira que lhe dava ou apenas a diminuiu, não tenho certeza. Georgina ficou quase histérica.

       — Lily Melville nos contou que ela teve a propriedade inteira reformada no ano seguinte — disse Nora.

       — Talvez o pai tenha voltado atrás. Tenho certeza de que ele estava acostumado a dar-lhe tudo quanto ela queria.

       — A História de Dois Ordinários — disse Dart.

       — Já passei tempo suficiente com este louco — disse Neary. — Vamos embora daqui!

       Tidball olhava fixamente para Dick Dart. Neary tocou seu cotovelo, como que para despertá-lo, e seu companheiro deu meia-volta, começando a caminhar para a orla da clareira. Neary o seguiu sem olhar para trás. Passaram por entre os pilares e tomaram a direção da aléia, com uma sugestão de fuga.

       — Vamos caminhar tranqüilamente para o chalé, ao encontro do querido cavalinho malhado. Ocorreu-me uma idéia. Pode adivinhar o quê?

       Antes de Nora responder a Dart que não sabia ler-lhe o pensamento, ela de fato o leu.

       — Você quer Marian Cullinan.

       Ele lhe deu um tapinha na cabeça e sorriu.

       — Talvez tenha chegado a minha hora de dar adeus a mulheres mais velhas. E a Donzela Marian tem duas grandes vantagens.

       Nora começou a caminhar sobre a grama espessa, na direção dos Pilares.

       — Quais são?

       — Uma, você não gosta dela. Marian é por demais parecida fisicamente com Natalie, e quer roubar seu homem. Vamos punir essa vaca; aliás, é justamente o que você quer fazer.

       — E a segunda vantagem?

       — Sem dúvida, Marian deve ser dona de um interessante carro.

       De cabeça baixa, caminhando um pouco mais depressa do que era necessário, Neary e Tidball já tinham cruzado mais de metade do prado. Indulgentemente, Dart os viu caminharem através da relva alta.

       — Há muito divertimento reservado para nós esta noite, Nora-docinho.

      

O ROSTO ANSIOSO de Marian Cullinan surgiu em sua janela, no momento em que eles se aproximavam da frente da Casa Principal. Quando entraram, ela os esperava e dirigiu-se a Dart com teatral admiração.

       — Norman, você encantou o dia de Lily! Ela deseja levá-lo em todos os seus tours.

       — O encanto é totalmente recíproco. Fez-me recordar algumas das minhas mais caras amigas.

       — No capítulo “charme”, ele chega a exagerar, não concorda, sra. Desmond?

       — Inteiramente — respondeu Nora. Esta mulher imbecil, tão entediada que flertava com hóspedes casados, provavelmente representava sua última esperança de chegar à polícia de Shorelands. — E, por favor, chame-me de Norma.

       — Oh, será um prazer!

       — Talvez você possa fazer-nos companhia para o último drinque da noite, no bom e velho chalé Saleiro, depois do jantar — disse Dart. — Temos tanto o que falar, tantas avenidas a explorar!

       As sardas de Marian deslizaram para um lado, com uma esperta torção da boca.

       — Isso depende da papelada que vou conseguir atualizar. Eu tinha uma assistente, mas a restauração da Casa do Mel absorveu a maioria do nosso orçamento... — Grande parte de sua espúria e viva ansiedade reapareceu. — Enfim, é claro que todos ficamos muito orgulhosos com o resultado. Não achou uma beleza?

       — Quem não acharia? — exclamou Dart. — Podemos contar com sua presença esta noite, Marian, ou teremos de raptá-la?

       — Se quer saber, estariam me prestando um favor. — Ela suspirou e fez uma pantomima de exaustão. — Gostariam de ver os aposentos do andar de cima?

       Nora perguntou se eles poderiam falar com Agnes Brotherhood.

       Marian fechou os olhos e apertou a testa com uma das mãos.

       — Esqueci de verificar este detalhe! Preciso antes ver como ela está passando. Por que não subimos para o segundo andar?

       — Este tratamento VIP aplica-se a um sanduíche, antes de começarmos a pôr mãos à obra na história?

       — Um sanduíche? Agora?

       — As circunstâncias privaram-me do meu costumeiro e saudável breakfast. Eu seria capaz de devorar escoteirinhas, juntamente com os biscoitos que elas vendem.

       Marian deu uma risada.

       — Neste caso, é melhor cuidarmos de você. E quanto a você, Norma?

       Nora respondeu que poderia esperar pelo jantar. Dart agarrou-lhe o pulso, matando suas esperanças de chegar a um telefone, enquanto ele devorasse quaisquer escoteirinhas das vizinhanças.

       — Em se tratando de apetite, Norman Desmond jamais ficou esperando.

       — Eu não faria tal coisa — respondeu Marian. — Vejamos o prejuízo que você pode causar em nossa cozinha. — Uma porta sem marcas, no lado direito da escada de mármore, dava para um inclinado lance de degraus de ferro. — Acha que conseguirá descer por estes, com o seu... ? — e ela tocou o próprio joelho.

       — Está tudo sob controle.

       Marian começou a descer a escada de ferro.

       — Importa-se, se eu lhe perguntar como... ?

       — Vietnã. Uma maldita mina terrestre. Seu irmão esteve lá, não esteve?

       Marian ergueu o rosto e olhou para ele.

       — Como é que sabe sobre meu irmão?

       — Vi uma simpática foto em seu quadro de avisos. Deduzi que ele foi morto em ação. Espero que aceite minhas condolências, mesmo depois de todo este tempo. Como ex-oficial, lamento a perda de cada homem naquele trágico conflito.

       — Obrigada. Você parece jovem demais para ter sido oficial no Vietnã.

       Ele deu uma gargalhada semelhante a um latido.

       — Disseram-me que fui um dos mais jovens oficiais a servirem no Vietnã, se não o mais jovem. — Ele suspirou. — Na verdade, éramos todos muito novos, cada um de nós.

       Nora sentiu vontade de empurrá-lo escada abaixo.

       — Vou preparar-lhe o melhor sanduíche que já comeu em sua vida — prometeu Marian.

       — Tenho a nítida impressão de que você estudou em um colégio para jovens católicas. Por favor, não diga que estou enganado.

       — Como é que adivinhou?

       Marian começou novamente a descer os ruidosos degraus, erguendo para ele o rosto com o sorriso de uma mulher que nunca ouviu um cumprimento que não apreciasse.

       — Há dois tipos de mulheres que passam pelas escolas católicas para moças. Um desses tipos compreende as que são sinceras, firmes trabalhadoras, inteligentes e polidas. Estas exibem as melhores maneiras do mundo. O outro tipo é das inconvencionais, intelectuais e boêmias. Também são inteligentes. Tendem a mostrar-se um pouco rebeldes.

       No pé da escada, Marian esperou que Dart e Nora a alcançassem e entrassem na cozinha de bom tamanho, com piso de ladrilhos vermelhos, um comprido bloco de madeira para cortar carne, armários de portas envidraçadas e um fogão a gás. Havia um meio sorriso malicioso no rosto dela.

       — E a que tipo eu pertenço?

       — Você se ajusta à melhor categoria de todas. Uma combinação das outras duas.

       — Não é de admirar que Lily apreciasse tanto a sua presença enquanto faziam o tour. — Sorrindo, Marian abriu um armário, tirou de lá um prato e um copo. Depois abriu a geladeira. — O jantar vai ser um de nossos especiais, de modo que prefiro mantê-lo como uma surpresa. De todo modo, aqui temos um pouco de rosbife. Eu poderia preparar-lhe um sanduíche com este pão de trigo integral. O que acha?

       — Hum-hum... Não haveria um pouco de mostarda, maionese e talvez umas duas fatias de queijo suíço para acompanhar o rosbife?

       — Penso que sim.

       Ao inclinar-se para vistoriar uma prateleira mais baixa, Marian ofereceu a Dart um bom panorama de seu traseiro.

       — E sopa?

       Ela riu e olhou para Nora.

       — Este homem sabe o que quer... Minestrone ou gazpacho?

       — Minestrone. Gazpacho não é sopa.

       Marian começou a tirar coisas da geladeira. Dart perambulava de um lado para outro e inspecionava a cozinha.

       — Norma pode dar-lhe uma mãozinha.

       — Uma vez oficial... — disse Nora.

       Marian disse a ela onde encontrar o abridor de latas. Nora pegou uma caçarola e nela despejou a sopa. Depois de colocar a panela no fogo, ergueu o rosto e viu que Dart a encarava. Ele olhou de relance para a sacola que ela deixara sobre a bancada às suas costas, depois para um ponto acima dessa bancada, atrás de Marian. Os cabos de pelo menos doze facas projetavam-se de um prendedor de madeira, adaptado à parede. Dart sorriu para ela.

       Marian tirou da geladeira um saco de sobras de alface e despejou o conteúdo na bancada.

       — Os homens são surpreendentes — disse ela. — Onde será que colocam tudo o que comem?

       — Norman coloca dentro de sua perna oca — replicou Nora.

       Em pé atrás da outra mulher, ela olhou para o prendedor de facas e deu de ombros. Não podia roubar uma faca sem que Marian visse.

       Quase despindo Marian com um sorriso, Dart disse:

       — Será que alguma cerveja achou o caminho da geladeira?

       — É uma séria possibilidade.

       — Não gosto de invadir geladeiras alheias. Vamos agachar-nos e examinar as safras de vinhos.

       Marian lançou um olhar para Nora, que mexia a sopa. Largando a faca que segurava, caminhou para a geladeira, de onde Dart sorriu radiosamente para ela, esfregando as mãos.

       — “Abre o teu cofre mais robusto, mais temível, Madame Ware” — cantarolou Dart, citando algo que Nora não identificou.

       — Eu conheço isso! — exclamou Marian. — É de Jornada na Noite, a parte quase no final, quando Pippin encontra Madame Lyno-Wyno Ware. Ele tem de falar dessa maneira porque, hum...

       — Porque a Dona da Xícara lhe disse para falar assim, já que do contrário não lhe contaria a verdade.

       — Sim! E o cofre o desaponta, porque é apenas uma caixa de metal. No entanto, quando ela o abre, Pippin vê que o interior é do tamanho de sua velha casa. Nesse momento, Madame Ware diz... algo sobre um livro, a mente... — Ela estalou os dedos duas vezes. — Ambos são maiores por dentro.

       — “Meu cofre, como um coração ou retículo de mulher, é maior por dentro do que por fora. Até mesmo um pequeno pippin foi, um dia, contido no interior de uma semente.”

       Nora estivera recuando da beira do fogão e estava quase dentro do alcance do prendedor de facas.

       — Certo! Isso mesmo! — Marian girou sobre os calcanhares e apontou um dedo afuselado e sardento para Nora. — Você viu? Não sou de todo ignorante em Hugo Driver. Podemos trabalhar juntos.

       — Marian — disse Dart, com um toque de impaciência na voz. — Quer abrir o cofre mais robusto?

       Dando as costas para Nora, ela transformou a abertura da geladeira em elaborada operação.

       — Agache-se, Marian. Sabe agachar-se?

       — Tão bem quanto qualquer um. — Ela acocorou-se diante das prateleiras apinhadas, seu joelho com o joelho de Dart. — Lá está a cerveja.

       — Não estou vendo nenhuma cerveja.

       Ela inclinou-se para apontar, gesto no qual roçou um seio no braço de Dart.

       — Você é dos que apreciam uma Corona? — perguntou Marian.

       Dart olhou para Nora, por cima da cabeça da outra mulher, e ela recuou, retirando a primeira faca do prendedor.

       — Nos momentos de poucas alternativas — respondeu Dart.

       Ele olhou para a pesadona e bem-acabada faca de trinchar na mão de Nora, assentiu imperceptivelmente e tornou a fitar o prendedor.

       — O que acha da Budweiser? — perguntou Marian, inclinando-se para ele com mais firmeza.

       — Acho que prefiro a aparência da que está ao lado dela.

       Nora puxou do prendedor um cutelo de açougueiro, e os olhos de Norman enrugaram-se.

       — Sim, tem um belo formato. Puxe-a para fora, a fim de que eu possa dar-lhe uma boa espiada.

       Marian introduziu o braço na geladeira, colocando-se em íntimo contato com Dart.

       — A Grolsch tem um belo formato, não acha?

       Nora carregou o cutelo e a faca de trinchar para a bancada. Enquanto Dart e Marian admiravam diferentes tipos de recipientes, ela abriu sua bolsa-sacola e nela guardou as duas facas. Depois voltou ao fogão para mexer a sopa, e os outros dois levantaram-se. Marian deu-lhe um sorriso incerto. Suas faces pareciam um pouco congestionadas no alto das maçãs do rosto.

       Nora despejou a sopa em um prato fundo. Marian encontrou uma colher de sopa e um abridor de garrafas em uma gaveta.

       Dart ergueu a garrafa de Grolsch e tomou um demorado gole.

       Nora fez sua bolsa-sacola deslizar para fora da bancada e a deixou sobre uma cadeira, abaixo de um telefone montado na parede.

       — Não fique longe, querida esposa. Junte-se ao grupo!

       Nora considerou sua sacola. Dart ainda estava de costas para ela.

       — Vai abandonar-nos? — perguntou Marian, sorrindo para Nora, enquanto arrumava carne, queijo suíço e alface em cima de uma fatia de pão.

       Dart acenou-lhe para que se aproximasse, e Nora abandonou a idéia de lhe enfiar uma faca de trinchar nas costas. Depois deu-lhe um tapinha em um ponto logo abaixo da omoplata esquerda.

       — Está feliz agora? — perguntou.

       Dart cantou a primeira frase de “Às vezes sou feliz”, e empurrou o prato de sopa vazio.

       — Agora, vamos à carne! — exclamou.

       — Não pensei que você soubesse citar Hugo Driver — disse-lhe Marian.

       Dart respondeu algo ininteligível em meio a uma dentada no sanduíche, aparentemente citando mais de Jornada na Noite.

       — Não o deixe começar — avisou Nora.

       — Poderíamos conseguir que ele recitasse algumas de suas poesias durante o jantar?

       Dart proferiu um alegre “Hummm!” em torno do sanduíche. Seus olhos faiscavam.

       Forçada a lidar diretamente com Nora, Marian retornou ao batido clichê:

       — De que parte do tour gostou mais?

       — Posso perguntar-lhe sobre as restaurações?

       — De um modo geral, elas são praticamente uma obsessão para nós. Lily deve ter-lhe dito como trabalhamos duro para deixar a Casa do Mel em condições. Eu poderia contar-lhe montes de histórias de horror.

       — Eu não me referia precisamente à Casa do Mel.

       — A Casa Principal é um problema mais interessante, sem dúvida. Apesar de toda a sua grandeza, Georgina Weatherall se foi deteriorando durante algum tempo antes de sua morte e, já perto do fim, praticamente isolou-se em um quarto do segundo andar. Isto significava que o teto tinha goteiras em cem lugares, com a água provocando muitos danos por toda parte. Como deve ter visto quando chegou, ainda temos operários trabalhando em consertos. O próximo grande projeto é a restauração dos jardins, e isso é um trabalho gigantesco.

       — Alguns dos antigos jardineiros continuam aqui?

       — Não. Georgina teve de deixar que todos fossem embora, exceto Monty Chandler, o jardineiro-chefe. Por falar nisso, viram os Pilares Cantantes e o Vale de Monty?

       — Vimos.

       — E quando estiveram lá, ouviram as pedras cantando?

       — Elas cantam? — perguntou Nora.

       — Quando há qualquer espécie de vento, a gente pode ouvi-las produzindo música. É algo com um toque sobrenatural.

       — Suponho que Monty Chandler já tenha morrido.

       — Ele faleceu uns dois anos antes de Georgina, o que foi outro motivo das coisas escaparem ao controle. Monty Chandler mantinha tudo em ordem, pois era a espécie de homem indicado para todo serviço-carpinteiro-força de segurança. Às vezes havia problemas com caçadores furtivos e pessoas que invadiam os chalés, mas Monty sempre os afugentava. E quando não estava supervisionando os jardins, remendava tetos e fazia outros reparos. Por causa dele é que Georgina conseguiu sustentar-se aqui por tanto tempo, sem ter de contratar operários. Sei que ela gastou muito dinheiro consertando os prédios, quando o pai a ajudava financeiramente. E ele a ajudou até o final dos anos trinta!

       — Eu soube que, então, ela estava enfrentando alguns problemas de dinheiro — disse Nora.

       Soaram passos na escada de metal da cozinha.

       — Margaret e Lily estão descendo para começar o jantar. Seria melhor irmos para o segundo andar.

       Surgiram nos degraus sapatos marrons fortemente amarrados no peito do pé e encimados por tornozelos inchados, seguidos por um comprido e amplo vestido de algodão azul-marinho, abotoado na frente até o alto.

       Depois eles viram um braço maciço e finalmente um rosto executivo, largo nas faces e testa, com cabelos grisalhos mantidos no lugar por uma echarpe enrolada apertadamente, também no tom azul-marinho. Margaret Nolan chegou ao último degrau e parou, a mão pousada no corrimão, seus olhos abrangendo o quadro diante dela, com uma viva curiosidade que não escondia de todo uma ligeira irritação. Lily Melville sorriu para Dart, por sobre o ombro dela.

       — Nossos hóspedes especiais interessaram-se pela cozinha, Marian?

       — Um deles mostrou um interesse especial por um sanduíche — respondeu Marian.

       Margaret inspecionou Dart com um rápido olhar.

       — Olhando para o sr. Desmond, suponho que isso não afetará seu desempenho durante o jantar.

       Desligando-se da escada, ela aproximou-se deles, bufando.

       — Margaret Nolan — apresentou-se, estendendo uma mão firme para Dart. — Eu dirijo esta babel. É um prazer tê-lo entre nós, sr. Desmond, embora deva confessar que nunca li o seu trabalho. Marian me disse que é muito excitante.

       — Fazemos o que podemos — respondeu Dart — e não podemos fazer mais.

       Margaret virou-se para Nora, dando a impressão de ter decidido ignorar tal comentário. Seu aperto de mão era breve e seco.

       — Sra. Desmond. Bem-vinda a Shorelands. Está satisfeita com o chalé Pote de Pimenta?

       — É formidável — respondeu Nora.

       — Fico feliz em saber. Agora, no entanto, se quisermos ser fiéis à programação, precisamos começar. Espero que nos perdoem.

       — Certamente — disse Nora.

       Ali, diante dela, com um metro e setenta de altura, pesando noventa quilos, cronicamente sem fôlego, irradiando poder de decisão, senso comum e força de caráter, estava a sua resposta. Esta mulher perceberia sua situação e idealizaria uma forma de resolvê-la, em apenas três segundos. Para ela, bastaria metade da explicação que fosse dada a Frank Neary e um décimo da fornecida a Marian Cullinan. Entretanto, quando conseguiria chamá-la em particular? Depois do jantar, poderia oferecer-se para levar os pratos até a cozinha — qualquer coisa, fosse o que fosse — a fim de ficar a sós com Margaret Nolan e sussurrar: Ele é Dick Dart. Chame a polícia.

       — Tudo certo, então. — Margaret sorriu, tão rapidamente como o aperto de mão dado a Nora. — Lily?

       Lily foi para um lado da cozinha, a fim de apanhar dois aventais brancos em um cabide, no extremo oposto ao telefone de parede. Ao voltar, parou junto da cadeira.

       — Esta não é a sua bolsa, sra. Desmond?

       — Sim, é, desculpe-me. — Nora deu um passo para Lily e a cadeira, porém Margaret a deteve com um toque.

       — Traga a bolsa para ela, Lily.

       Lily pegou a bolsa-sacola.

       — O que tem aqui dentro, soco-inglês?

       — Nunca vou a lugar nenhum sem a minha coleção de armas — declarou Nora.

       — Iremos lá para cima — disse Marian — e deixaremos que eles mostrem suas proezas.

       — Onde está aquela faca de trinchar? — perguntou Margaret. — Ela não podia, simplesmente, ter ido passear.

       — Estou morrendo de curiosidade — disse Dart. — Que petisco estas duas maravilhosas damas vão preparar para nós?

       Olhando para Dart como se ela fosse uma professora do segundo grau às voltas com um aluno impertinente, Margaret virou-se do prendedor de facas e colocou seu avental.

       — Vamos preparar um dos pratos favoritos de Ezra Pound.

       — Georgina gostava de Ezra, não?

       — Gostava.

       — Política do mundo real — disse Dart. — Nada daqueles discursos empolados sobre igualdade que nossos líderes esguicham, enquanto saqueiam a gaveta da registradora. Estou do lado deles. Vamos dar às coisas seu verdadeiro nome, certo?

       Lily e Margaret o encaravam fixamente. Dart ergueu uma das mãos.

       — Ei! O que foi bom o bastante para Ez, é bom o bastante para mim!

       Sorrindo para as duas mulheres que pareciam congeladas atrás do cepo de partir carne, ele puxou Nora na direção da escada.

      

MARIAN fechou a porta ruidosamente.

       — Norman, não compreende que eu poderia perder meu emprego?

       — Tem a minha palavra solene — disse ele. — Quando estivermos terminando a sobremesa, elas estarão me pedindo para voltar!

       — Como? Você praticamente chamou Georgina Weatherall de nazista!

       — A velha garota não era uma menina apaixonada pela majestade da Mãe Pátria? Isso não a torna uma pessoa má.

       Marian maneou a cabeça e procurou certificar-se de que ninguém ouvia o que diziam.

       — Ouça, Norman, você não pode andar por aí dizendo estas coisas na frente de Margaret.

       — Experimente detê-lo — disse Nora.

       — Eu compreendo — replicou Dart. — A criada perfeita para as artes divinatórias. Aristocrata natural. O meu problema é que não suporto mulheres assim.

       Marian acalmou-se o suficiente para dizer:

       — Não admitimos este fato com muita freqüência, mas estou certa de que era difícil conviver com Georgina Weatherall.

       — Não seria o caso dela, da Madame Diretora — disse Dart. — Mulheres desse tipo bem poderiam deixar a barba crescer e fumar charutos. Não obstante, prometo a você que esta será uma noite tremendamente divertida. — Ele lhe tocou o queixo com um dedo. — Quero que você viva momentos inesquecíveis. Ainda dependendo de sua ida ao chalé para aquele último drinque antes de dormir.

       — Este homem... — disse Marian. — Ninguém consegue se zangar com ele!

      

Retratos enfileiravam-se ao longo da ampla escadaria.

       — Este aqui ficava pendurado no quarto de Georgina — disse Marian, apontando para o retrato a óleo de um senhor idoso, trajando um sóbrio terno de homem de negócios e acomodado em uma poltrona de couro. Ele possuía um rosto rígido e fanático, dominado por um nariz maciço e um queixo protuberante. — George Weatherall.

       — “Meu coração é do papai.”

       Marian sorriu para ele do alto dos degraus, depois os conduziu por um corredor, mais penumbroso e estreito do que o existente no andar de baixo. Apesar das emolduradas contracapas de livros e fotografias da Casa Principal em vários estágios de reforma das paredes, aquele segundo andar era mais utilitário e doméstico do que o primeiro. Eles tinham passado da vida pública para a particular.

       — Por que vocês não mostram o quarto dela às pessoas? — perguntou Nora.

       — Espere só até vê-lo. Não é desta maneira que queremos que os visitantes recordem Shorelands.

       — Pensei que vocês estivessem desejando a precisão histórica.

       — Uma precisão precisa é forte demais para o público. Quanto mais tempo permaneço neste emprego, mais me pergunto se existe isso de precisão histórica. Entretanto, não posso dizer que ajude muito, quando você tem à sua frente um fornecedor de tintas querendo saber, imediatamente, qual o tom exato de púrpura em que a parede será pintada.

       — Ouvi Lily dizer que vocês conseguiram uma boa quantidade da tinta original. Como poderia haver problemas com a tonalidade? — indagou Nora.

       — Sim, nós tínhamos a tinta original, porém somente metade da quantidade necessária. Além do mais, a tinta se transformara em grude. A coisa virou um pesadelo. Por fim, misturamos uma nova tonalidade ao que pudemos salvar da tinta original.

       — Como descobriram qual matiz devia ser usado?

       — Graças ao quarto de Georgina.

       — A tinta que usaram na Casa do Mel era realmente da espécie usada na Casa Principal?

       — Ninguém sabe ao certo que espécie de tinta foi usada nos chalés. — Marian fez um gesto para as portas ao longo do corredor. — Os dois aposentos da esquerda são o quarto e o escritório de Margaret, e ela não gostaria de saber que entramos neles. Nos velhos tempos, Georgina Weatherall reservava o andar inteiro para seu uso pessoal. Emma Brotherhood, irmã de Agnes e sua criada pessoal, vivia neste primeiro aposento. O segundo era, ao mesmo tempo, um closet e quarto para trocar de roupa, tendo comunicação com o banheiro, a terceira porta em seguida, diretamente à frente do quarto de Georgina. Em seguida vinha a sala da manhã, onde ela escrevia suas cartas e planejava os menus. Atualmente, é onde estocamos todas as doações que não podemos usar.

       Marian sorriu para Dart.

       — De qualquer modo, por trás da porta, no outro lado dos degraus, fica a escada que leva ao terceiro andar. Tenho os dois aposentos que ficam imediatamente através do hall no alto da escada, sendo de Lily os outros dois perto dos meus. A secretária de Margaret, que está de férias esta semana, ocupa o quarto pegado ao de Lily. Todos os demais que existem lá, estão vazios. Esta sala à direita, que usamos para reuniões, era onde Georgina encontrava-se com hóspedes especiais. — Ela abriu a porta para um pequeno e eficiente cômodo, dominado por uma mesa de reuniões. — Era onde a srta. Weatherall fazia suas queixas, mexericava e conseguia recomendações sobre novos escritores. E daqui, pessoas como Lily e Agnes podiam passar adiante qualquer coisa que ela por acaso soubesse.

       — KGB — comentou Dart. — Fechaduras com ouvidos.

       — Compreendam, certa vez tivemos um roubo aqui.

       — Você me surpreende — disse Nora.

       — Uma jovem apossou-se de um valioso desenho, pouco antes de ser convidada a deixar Shorelands. Dá para imaginar? O desenho valia uma fortuna. Tratava-se de um Rembrandt, talvez Rubens, não me lembro.

       — Nem um nem outro — disse Nora. — Era obra de um artista chamado Redon.

       — Seja como for, alguém com um nome começando por R — disse Marian. — O quarto de Georgina vem a seguir. Durante seus dois últimos anos de vida, ela quase nunca o deixou. Era arrumado e desempoeirado duas vezes por semana, porém nós mesmas nunca entramos lá. Pessoalmente, acho-o um pouco fantasmagórico.

       Ela os levou para um espaço penumbroso, onde brilhos opacos de vidro e metal, além de um senso de presenças pairando, sugeriam um espetacular amontoado de objetos.

       — Georgina nunca abria as cortinas, de maneira que as mantivemos bem fechadas. Sempre tenho uma certa dificuldade para acender a luz, porque o interruptor fica atrás de... Lá vamos nós!

       Camada por camada, o aposento foi emergindo aos olhos. Em delirante profusão, sedas, desbotadas tapeçarias, surrados tapetes orientais e restos rendados pendiam da cama de dossel, assim como encostos de poltronas, também soltando-se das paredes apinhadas, dobrando-se para trás e drapejando sobre uma enormidade de ornados relógios, espelhos, desenhos emoldurados e fotos de uma mulher, cujo rosto, uma réplica do de seu pai, tinha sido suavizado por entusiástica maquiagem e uma coroa de informes cabelos escuros. Uma respeitável e feia secretária vitoriana jazia sepultada sob um turbilhão de papéis que circundavam animais de porcelana e tinteiros de vidro. Um gramofone com alto-falante em formato de sino ocupava a superfície de uma mesa de bronze dourado. Outras mesinhas cobertas de toalhas rendadas sustentavam pilhas de livros, escovas de cabelo com cabos de prata, e muitas coisas mais.

       O quarto recordou a Nora uma Casa do Mel mais caótica. Um segundo mais tarde, ela percebeu que fizera uma análise ao contrário: a Casa do Mel é que era uma versão mais apresentável deste quarto. Quando seus olhos adaptaram-se àquela balbúrdia, Nora começou a captar a verdadeira condição do dormitório de Georgina. Manchas antigas de água tinham desbotado o púrpura para um rosa enodoado. Os tecidos postos sobre os móveis estavam rasgados e descoloridos. Restos de rendas do dossel pendiam em farrapos. Manchas salpicavam o teto branco. Ao lado da cama, diante de um anacrônico cofre de metal com mostrador giratório, fios marrons apareciam por entre o padrão do tapete.

       — Acho melhor eu ir ver se Agnes recebe visitas — disse Marian, e desapareceu do quarto.

       Aqui estava a real Shorelands, o único aposento de toda a propriedade onde a história verdadeira ainda era visível. Escondido no centro da casa, era um segredo vergonhoso, importante demais para ser apagado. Georgina Weatherall, cujos maiores dons tinham sido dinheiro, vaidade e ilusão, levantara-se de sua cama, dia após dia, para admirar-se em seus espelhos, escovar os cabelos sem mesmo dar-se ao trabalho de penteá-los decentemente, pintando-se com camadas de maquiagem até os espelhos lhe dizerem que estava dominadora como uma rainha em um conto de fadas. Se percebia uma falha na cútis, ela a fazia desaparecer sob ruge e kohl, da mesma forma como sepultara as manchas em suas paredes e os rasgões nas rendas sob camadas de tecido.

       Monty Chandler jamais entrara neste quarto para consertar os danos produzidos pela água da chuva: ninguém, exceto Georgina e sua criada, era permitido ali dentro. A criada amara Georgina, que então exigira o amor que podia ver nas pessoas que zombavam dela. Sua monolítica desumanidade era o que era, em decorrência de uma romântica concepção de si mesma.

       Nora quase chegava a respeitar Georgina Weatherall. Georgina estivera doente de empáfia, e se Nora a houvesse encontrado em alguma festa, teria fugido do asfixiante closet que tais pessoas sempre criavam em torno de si mesmas. Entretanto, Georgina Weatherall trabalhara heroicamente a serviço das próprias ilusões. Nela, talvez pela primeira vez na vida, Lincoln Chancel encontrara uma igual.

       Marian abriu a porta e disse:

       — Maravilha das maravilhas! Vocês podem ter uma palavrinha com Agnes agora, se estiverem dispostos.

      

— BEM SEI QUE ELA de fato está doente, mas o tédio a deixa fora de si e, quando Agnes fica fora de si, torna-se um pouco inconveniente. Não posso prometer-lhes mais do que uns dois minutos. — Marian fez uma pausa. — Uns dois minutos, sem dúvida, serão suficientes.

     Uma voz irritada soou através da porta:

       — Você está falando de mim?

       — Por que não deixa que ela nos veja a sós? — sugeriu Nora. — Sei que você tem trabalho a fazer.

       — Eu não deveria... — Marian percorreu o corredor com os olhos, de um lado e do outro. — Talvez precisem de ajuda para escapar.

       — Daremos um jeito.

       — Talvez apenas esta vez. Margaret não... — e Marian mordeu o lábio inferior.

       Margaret não quer que estranhos fiquem a sós com Agnes?

       — Margaret não precisa ficar sabendo.

       — Tudo bem. Se eu terminar o meu trabalho, poderei ir ao chalé para aquele drinque antes de dormir. — Ela bateu à porta uma vez e depois girou a maçaneta. — Aqui estão eles, Agnes. Virei vê-la mais tarde.

       — Traga-me algumas revistas. Você sabe de quais eu gosto.

       Marian recuou dois passos, permitindo que Nora e Dart chegassem à soleira da porta.

       A velha jazendo na cama era tão espessa em torno de si mesma como um fósforo de cozinha. Os cabelos lisos, tingidos de preto, caíam de um repartido no meio da cabeça para cada lado do rosto enrugado, parecendo uma peruca de boneca. Tinha olhos brilhantes, vivos e desconfiados. Havia inserido um dedo fino como graveto entre as folhas do livro em seu colo, como se quisesse ver quem eram aquelas pessoas, antes de resolver quanto tempo dedicar a elas.

       Marian apresentou-os e saiu.

       — Aproximem-se, fechem a porta.

       Dart e Nora caminharam para a cama.

       — Estou surpresa por ela ter saído. Vocês pensariam que sou um cão raivoso, pela maneira como eles se comportam comigo. — Agnes examinou Dart. — Você é o sujeito que acham seja um poeta? Norman Desmond?

       — E você é o monumento histórico, Agnes Brotherhood.

       Ela o examinou mais atentamente.

       — Você não parece muito um poeta.

       — E o que pareço?

       — Parece com esses advogados que passam muito tempo nos bares. Eu devia saber seu nome?

       — Eu não chegaria tão longe — disse Dart, divertindo-se com aquilo.

       — Não finja ser modesto. Você não tem um osso modesto no corpo. — Agnes virou os olhos para Nora. — Ele tem?

       — Nem um só para amostra — respondeu Nora.

       — Marian não perderia tempo com você, se fosse um ninguém. Já publicou muitos livros?

       — Infelizmente, não.

       — Quem é seu editor?

       — A Casa Chancel.

       Agnes Brotherhood fez um gesto com a mão diante do rosto, como se quisesse expulsar um cheiro ruim.

       — Você os deixaria prontamente, se chegasse a ter o infortúnio de conhecer o fundador.

       — Ele ocupava uma classe especial — disse Dart. — Era a canalhice personificada.

       — Vocês podem ficar algum tempo. Puxem aquelas cadeiras para perto da cama.

       Ela apontou para duas cadeiras dobráveis encostadas na parede e enfiou um cartão em seu livro, a edição de Thoreau da Modern Library. Agnes percebeu o interesse de Nora.

       — Eu releio Walden uma vez ao ano. Gosta de Walden, sr. Desmond?

       Dart levantou o queixo e recitou:

       — “Quando escrevi as páginas seguintes, ou antes todas elas, morava sozinho na floresta, a quilômetro e meio de qualquer vizinho, em uma casa que eu mesmo havia construído”, etc., etc., etc. Isto responde à sua pergunta?

       — Vejamos o resto da frase.

       — ...às margens de Walden Pond, em Concord, Massachusetts, e ganhava o meu sustento com o trabalho de minhas mãos apenas.”

       — Acho que não é bem assim, mas as palavras são igualmente adoráveis. Bem, agora digam: sobre o que desejam que eu fale? A grande anfitriã e seus nobres convidados? O que D. H. Lawrence comia durante o breakfast? Esse tipo de coisas?

       Dart olhou de relance para Nora.

       — Você não me parece tão reverente como Lily Melville em relação à grande anfitriã, certo?

       — Acontece que eu a conheci bem demais — bufou Agnes. — Eu tinha um emprego e cumpria minhas obrigações. Lily tinha uma causa, a adoração por Georgina Weatherall. Eu costumava rir dela algumas vezes, e a coitada não gostava nem um pouquinho.

       — Você costumava rir de Georgina?

       — Não, de Lily. Ninguém ria de Georgina Weatherall. Ela possuía suas qualidades, mas senso de humor não entrava nesse número. Quem quisesse divertir-se à custa da srta. Weatherall, tinha de agir às suas costas; e muita gente fazia isso, mas não é uma coisa que você chegue a ouvir nos dias que correm. Estiveram no tour de Lily?

       Nora respondeu que haviam estado.

       — Um tour pelo santuário, eis o que conseguirão com Lily. Quando a patroa ficou doente e entregou os pontos, Lily passou a ser a perita de Shorelands, como guia de todos estes grupos. — Agnes riu. — E muito mais divertido conhecer pessoas sem Cara Sardenta ficar ouvindo o que se diz. Ela costumava interrogar pessoas do meu grupo, a fim de saber se eu dissera alguma coisa que não devia. Hah! Como se eu não conhecesse o meu trabalho! Sei mais a respeito dessa função do que elas gostam, e isso é que as preocupa. Porque sei coisas que elas ignoram.

       — Um bom motivo para manterem você por perto — disse Dart.

       Agnes franziu a testa ao fitá-lo.

       — Eu dediquei minha vida a Shorelands. Elas sabem disso muito bem. — Ela fez um gesto para um jarro d’água e um copo no peitoril da janela. — Podiam dar-me um copo? Canso de pedir a elas para me arranjarem uma mesinha com rodas, como nos hospitais, mas consigo alguma coisa? Até agora nada, e venho pedindo há dias!

       — Você se incomodaria se eu lhe perguntasse o que a prende à cama? — perguntou Dart. — Tem alguma espécie de doença?

       — Minha doença chama-se velhice — respondeu Agnes. — Juntamente com alguns poucos achaques.

       Dart espiou dentro do jarro.

       — Está vazio — disse.

       — Pode levá-lo ao banheiro e tornar a enchê-lo, por favor?

       — Bem... — Dart vacilou. — Posso fazer isso, meu bem? Ousar deixá-la sozinha? Odeio perder alguma coisa.

       — Eu mesma encho o jarro — respondeu Nora.

       Dart agitou um dedo como advertência para ela, e saiu do quarto com o jarro vazio. Agnes fixou em Nora os olhos vivazes e desconfiados. Depois que os passos de Dart cruzaram o corredor, Nora inclinou-se para ela.

       — A senhora tem um telefone?

       Agnes negou com a cabeça.

       — Já ouviu falar em um homem chamado Dick Dart?

       Agnes tornou a mover a cabeça negativamente. Do outro lado do corredor, chegou até elas o ruído de água caindo barulhentamente em um recipiente.

       — A senhora poderia ir até um telefone?

       — Há três ou quatro na sala da diretora.

       — Assim que formos embora, vá até lá e chame a polícia. — O ruído da água cessou. — Diga a eles que Dick Dart está jantando em Shorelands. Saiba a senhora que isto é tremendamente importante, um caso de vida ou morte. — Passos saíram do banheiro. — Por favor!

       Dart entrou no quarto, com água transbordando do jarro.

       — Acho que enchi demais. Sobre o que estiveram conversando, minhas queridas?

       — Sobre minha saúde — disse Agnes. — Presente e futura.

       Ela pousou nele um olhar perplexo, decididamente alarmado.

       — E quais são os seus problemas de saúde, querida? — Dart despejou vários centímetros de água no copo. — Desidratação? — Ela estendeu o braço para o copo, ele o puxou de seu alcance, riu, depois permitiu que Agnes o pegasse. — Uma brincadeirinha — disse.

       — Arritmia. Soa pior do que é. — Ela bebeu dois goles e entregou-lhe o copo. — Deixe-o no chão, perto da cama. Dentro de uns dois dias já estarei em pé. Ainda posso guiar um tour tão bem quanto Lily Melville.

       — É claro que pode, muito melhor do que aquela velha tola — disse Dart. Ele se sentou, cruzou as pernas e deu um tapinha nas costas de Nora — Sentiu minha falta, queridinha?

       — Terrivelmente — respondeu ela.

       Agnes olhava para ele com fixidez, como se quisesse memorizar-lhe as feições.

       — Quais são os títulos de seus livros, sr. Desmond?

       Ele olhou para o teto, sorrindo.

       — O primeiro era intitulado Contagem dos Corpos. Notas Cirúrgicas foi o nome do segundo.

       Agnes torceu as mãos.

       — Em que está especialmente interessada, sra. Desmond? Não quero que perca seu tempo ouvindo minhas queixas.

       — Eu gostaria que me falasse sobre o verão de 1938. — Agnes permaneceu absolutamente imóvel. — Interesso-me pelo que aconteceu naquele verão, mas especialmente por uma poetisa chamada Katherine Mannheim.

       A velha olhava para ela com uma concentração ainda maior do que a dedicada a Dart. Nora não saberia dizer se ela estava pensando ou sentindo algo.

       — Também estou interessada na reforma que aconteceu um ano depois desse verão.

       — Quem é você? O que deseja? — perguntou Agnes, em voz trêmula.

       — Sou apenas uma parte interessada.

       — O que significa isto? — exclamou Agnes, olhando de Dart para Nora e vice-versa, várias vezes.

       — História — disse Dart. — Uma luz lançada no passado. A maneira como devia ter sido a Casa do Mel. — Ele sorriu. — Diga-nos uma coisa, ela sempre pareceu como a loja de antiguidades que vimos hoje?

       Agnes ficou algum tempo em silêncio.

       — Eu entrei nos chalés e saí deles cada dia de minha vida, e o único que continha o que se chamaria um monte de coisas era o Rapunzel, onde se hospedava o sr. Lincoln Chancel, e tudo lá dentro foi ele mesmo que colocou. Se nossas casas de hóspedes o imitassem, alguns dos nobres indivíduos que as ocupavam teriam dado o fora com o que quer que pudessem enfiar em suas valises. Os curadores, bem, eles não se incomodam, desde que a aparência seja agradável.

       Ela virou os olhos para Nora.

       — De qualquer modo, esta foi uma propriedade fina e decente. Eu jamais afirmaria o contrário. E as coisas que penso, bem, não vou contar para nenhum policial, podem ter certeza.

       — Nós mencionamos policiais? — perguntou Dart.

       — De maneira alguma!

       Nora tentou comunicar-se silenciosamente com Agnes, mas viu apenas ansiedade nos olhos da velha.

       — Não entendo o que está acontecendo — gemeu Agnes.

       Nora inclinou-se para a velha senhora.

       — Tudo o que quero falar com a senhora é sobre aquele verão. Só isso. Está bem? — Ela captou um princípio de pânico. — O que quer que a senhora faça depois disso, será ótimo. Poderá fazer o que quiser. — Nora aguardou por um rápido instante, e Dart virou o corpo inteiro em sua direção. — Poderá falar com Margaret. Falar com quem quiser. A senhora entendeu?

       Os olhos escuros pareceram perder um pouco de sua confusão.

       — Sim, mas eu não saberia o que dizer.

       Nora recordou sua conversa com Helen Day.

       — Sei que isto é difícil para a senhora. Permita-me dizer-lhe o que acho. Em minha opinião, a senhora não quer ser desleal, mas, ao mesmo tempo, vem guardando algo secreto. Não é um belo segredo, e pessoas como Marian Cullinan e Margaret Nolan não desejariam que ficasse conhecido. Entretanto, elas nem mesmo sabem qualquer coisa a respeito, não é isso?

       — Elas são novas demais — disse Agnes, fitando-a com uma mescla de espanto e suspeita.

       — Lily conhece uma parte desse segredo, mas não tanto quanto a senhora, certo?

       Agnes assentiu.

       — E, de repente, aparecem duas pessoas que nunca viu antes e procuram pela senhora. Penso que uma parte sua quer desabafar essa coisa que lhe aperta o peito, enquanto outra parte não vê por que deveria contar para nós. Eu sinto o mesmo, porém estou interessada no que aconteceu naquele ano e quase ninguém mais está. Não sou da polícia e nem uma repórter. Além disso, tampouco estou escrevendo algum livro.

       Agnes olhou para Dart de modo penetrante.

       — Ele não se preocupa com o que aconteceu a Katherine Mannheim — disse Nora.

       Para indicar sua indiferença pelo desaparecimento de poetisas, Dart forçou um bocejo.

       — Talvez eu seja a única pessoa que a senhora encontrará, interessada neste assunto o suficiente para falar com pessoas que conheceram Bill Tidy e Creeley Monk.

       — Aqueles pobres homens... — disse Agnes. — O sr. Tidy era uma boa e honesta alma. Eu também gostava do sr. Monk, porque ele conseguia fazer a gente rir com vontade. Pouco me importava se era um...

       — Um bajulador? — disse Dart. — Um afetado? Um cara sonso?

       Agnes dirigiu-lhe um olhar desdenhoso.

       — Há muitas maneiras de alguém ser uma boa pessoa. — Ela voltou a concentrar-se em Nora. — Aqueles dois não sabiam de nada. Simplesmente estavam aqui, nada mais. Mesmo que tivessem ouvido alguma coisa, não pensariam duas vezes nela.

       Nora recordou e repetiu algo que Everett Tidy lhe dissera: “Na noite em que Katherine Mannheim desapareceu, Bill Tidy julgou ter ouvido passos furtivos.”

       Agnes meneou a cabeça.

       — Em mais de mil quilômetros à volta de Shorelands não havia um só invasor que arriscasse a pele neste lugar, não naqueles tempos. Monty Chandler encheu um deles com uma carga de chumbo para passarinhos e capturou outro em uma armadilha, deixando-o passar fome lá por dois dias, e isso foi um aviso para caçadores atrevidos.

       — Então ele ouviu qualquer outra coisa.

       Agnes puxou o robe para mais perto do pescoço.

       — Deve ter sido isso.

       Quase contra a vontade, Nora repisou no assunto.

       — Eu tenho algumas idéias. Se eu as contar para a senhora, diria se estou certa?

       Agnes apertou os olhos para vê-la melhor, e assentiu prontamente.

       — Eu poderia fazer isso. — Ela respirou fundo, depois expulsou o ar dos pulmões. — Depois de todo este tempo... — recomeçou Agnes. — Aquela moça tinha uma irmã mais nova. Mantinha o retrato dela em cima de sua mesa de trabalho. A irmã veio aqui. Uma jovem distinta. Se ainda estiver viva, merece saber a verdade.

       Agnes endereçou um olhar vacilante, quase amedrontado para Nora. E esta tentou dar a impressão de saber o que fazia.

       — Eu não creio que Katherine Mannheim tenha fugido de Shorelands. Acho que ela morreu. Estou certa?

       — Está — disse Agnes, seu lábio superior começando a tremer.

       — Penso que Hugo Driver teve algo a ver com a morte dela. Estou certa?

       — O que quer dizer?

       — Ela não entrou no chalé Pão de Mel e surpreendeu Driver remexendo em seus papéis? Não houve uma luta?

       — Não! Não foi nada disso!

       Agora foi o queixo de Agnes que começou a tremer. O arremedo de confiante autoridade exibido por Nora foi-se evaporando. Sua teoria predileta acabara de ser destruída.

       — Ela morreu naquela noite. Seu corpo tinha de ser escondido.

       Uma lágrima escorreu do olho direito de Agnes.

       — Ela foi enterrada em algum ponto da propriedade, não?

       Agnes confirmou.

       — E a senhora sabe onde é esse lugar.

       — Não, eu não sei. Fico contente por não saber. — Ela olhou de relance para Nora. — Compreenda, eu tenho de guiar os tours. Não poderia ir onde eles a puseram.

       — Hugo Driver e Lincoln Chancel.

       — Fizeram tudo juntos, aqueles dois!

       — Daí o motivo da senhora ainda odiar Lincoln Chancel.

       Agnes meneou a cabeça com surpreendente veemência.

       — Eu odiei o sr. Chancel desde o começo. Aquele homem pensava que tinha o direito de tocar na gente. Achava que podia agir como bem entendesse, porque depois acertava tudo com dinheiro.

       — Ele ofereceu dinheiro à senhora?

       — Eu lhe disse que estava tentando seus truques sujos com a garota errada. Ele riu de mim, mas, depois disso, manteve aquelas mãos para si mesmo.

       Por mais interessante que fosse essa digressão, Nora queria voltar ao tema principal. Tentou outra abordagem.

       — Georgina sabia que Katherine Mannheim não tinha simplesmente desaparecido, certo? Quando levou todos ao chalé Pão de Mel, depois do jantar da noite seguinte, já sabia que a moça estava morta.

       — Odeio dizer isto, mas ela sabia.

       — Como sabia que a porta estava destrancada, antes mesmo de abri-la.

       — Eu não estava lá — disse Agnes, com ar infeliz — mas a srta. Weatherall sabia.

       — Como a senhora ficou sabendo que a porta dela estava destrancada? Era quem fazia a arrumação no Pão de Mel?

       Agnes assentiu.

       — Quando fui fazer a limpeza aquela manhã, encontrei a porta destrancada, e a moça não estava no chalé. Achei que ela talvez houvesse ido dar uma volta pelos jardins. Ao meio-dia coloquei sua caixa do almoço diante da porta do chalé, porque era assim que fazíamos, e a caixa ainda continuava lá, na manhã seguinte.

       — A senhora ignorava que ela nunca mais voltaria.

       — Tinha de ignorar. A srta. Weatherall me disse que a moça tinha fugido. “Pulou o muro”, ela disse. Achei aquilo esquisito. Principalmente depois... depois do que tinha acontecido.

       Nora começou a tirar conclusões. A razão de Georgina Weatherall saber que sua problemática hóspede estava desaparecida, antes mesmo de abrir a porta do chalé Pão de Mel, estava diretamente à sua frente, tornando-se mais e mais perturbadora a cada segundo.

       — A senhora disse alguma coisa a ela? Viu algo que a perturbou e contou para Georgina o que era?

       — Eu desejaria nunca ter contado!

       Agnes permaneceu rígida por um momento, mas então outra onda de emoção a invadiu, e ela começou a chorar. Perfeitamente à vontade, Dart torceu a boca em um sorriso.

       Nora tentou imaginar o que Agnes teria visto, e recordou que Creeley Monk havia surpreendido Driver e Lincoln Chancel ao ar livre, já madrugada alta, naquela mesma noite.

       — Diga-me se estou certa. A senhora costumava dar caminhadas à noite? — Agnes olhou temerosamente para ela, depois assentiu. — Na noite em que Katherine Mannheim morreu, a senhora deu um de seus passeios. Subiu a trilha que levava ao chalé Pão de Mel. — Agnes ergueu a cabeça e tornou a fitá-la com expressão temerosa. — Eles estavam carregando o corpo dela? Foi isso que a senhora viu?

       — Não! Não! — Ela cobriu os olhos com as mãos. — Se fosse assim, então eu teria sabido imediatamente, não percebe? Eu vi... a senhora vai ter de dizer para mim.

       — A senhora os viu.

       Agnes meneou a cabeça.

       — A senhora viu Hugo Driver.

       Agnes olhou para ela, em furioso desapontamento.

       — Não!

       — Lincoln Chancel — disse Nora. Uma grande parte do que ainda ficara por dizer, ajustou-se ao lugar certo. — A senhora viu Lincoln Chancel saindo do chalé Pão de Mel. Meu Deus, Lincoln Chancel a matou!

       Dick Dart retirou as mãos de trás da cabeça e inclinou-se para diante, com um malicioso prazer animando-lhe o rosto.

       — Chancel ia voltar ao Rapunzel para trazer Driver — prosseguiu Nora. — Estou certa, não estou? A senhora o viu caminhando pela floresta, mas não sabia por que motivo.

       Agnes forçou-se a tomar uma funda respiração.

       — Ele estava correndo. Eu não sabia o que significava aquele barulho. Pensei que fosse algum animal. Parei junto ao pedregulho, no alto da trilha. Naquela época costumávamos ter ursos em nossas florestas, e às vezes eles ainda aparecem. Escondi-me atrás do pedregulho, e o ruído ficou cada vez mais perto. Então, ouvi um homem praguejando. Eu sabia que era o sr. Chancel. Espiei. Lá vinha ele pela beira da trilha, correndo como louco na direção do chalé Rapunzel. Passou correndo pela ponte, bang! bang! bang! Eu estava morta de medo. Cheguei a desejar que fosse um urso! Eu poderia...

       Agnes dobrou os joelhos para o alto e enterrou o rosto nas cobertas. Nora aproximou-se da cama e abraçou-a.

       — Solidariedade feminina — disse Dart.

       — A senhora achava que devia ter ido ao chalé — disse Nora, e Agnes suspirou em seus braços — mas estava com muito medo. Tinha toda razão em sentir medo. Eles poderiam tê-la agarrado.

       — Eu sei. — Agnes reclinou-se contra o peito de Nora e tornou a respirar fundo. — Comecei a caminhar para a Casa Principal, e então decidi que, afinal de contas, devia dar uma espiada na srta. Mannheim, mas ouvi o sr. Chancel e o sr. Driver descendo do Rapunzel. Assim, continuei atrás do pedregulho. Eles cruzaram a ponte, clump, clump, clump, e seguiram pela trilha do Pão de Mel.

       Ela afastou-se de Nora e abanou o rosto com as cobertas.

       — Pode sentar-se de novo.

       — Tem certeza?

       Agnes recuou de outra tentativa de abraço, e quando Nora saiu da cama, ela se deixou cair sobre seu travesseiro.

       — Voltei para a Casa Principal quase voando. Subi ao andar de cima, e a srta. Weatherall estava parada no corredor. O que está acontecendo, Agnes?, ela perguntou, por que está correndo no meio da noite? Exijo uma explicação! Contei tudo a ela. E ela disse, Agnes Brotherhood, deixe isso comigo. Enfiou na cabeça seu grande chapéu vermelho e saiu. Ela gostava daquele chapelão vermelho, mas era a coisa mais ridícula que já se viu — disse Agnes, olhando com ódio para o teto.

       — E a senhora ficou esperando que ela voltasse — disse Nora.

       — Esperei e esperei... Após muito tempo, ela abriu a minha porta e disse, Agnes, a srta. Mannheim é daquelas mulheres que precisam de companhia masculina quando estão deprimidas. O sr. Chancel deseja proteger-se do escândalo. Tire toda essa história de sua cabeça, ela disse.

       — E você tentou fazer isso.

       Agnes assentiu, com expressão infeliz.

       — Perguntei se a srta. Mannheim estava bem, e ela respondeu que mulheres assim sempre estão bem. — Dart grunhiu uma aprovação. Agnes franziu a testa para ele. — Bem sei que existem mulheres assim, mas a srta. Mannheim era uma pessoa muito distinta.

       — No dia seguinte, você achou que ela devia ter fugido.

       — Achei que ela havia ido embora. Há uma grande diferença entre fugir e ir embora. A srta. Mannheim não teria fugido de nada.

       Agnes apertou o robe em torno do corpo e olhou para Nora com frustrado desafio. Havia contado sua história, mas permanecia um vácuo no centro da mesma.

       Uma batida à porta cortou o que ainda poderia ter dito em seguida. Marian Cullinan deu uma espiada no quarto.

       — Devemos estar tendo excelentes momentos, para ficarem aqui tanto tempo...

       — Foi o ponto alto do tour — respondeu Dart. — Histórias fantásticas dos bons e velhos tempos.

       — Formidável! — exclamou ela, aproximando-se da cama.

       Nora olhou para Agnes, querendo saber se recordava o que lhe pedira para fazer. A velha assentiu com a cabeça, movendo-a uns dois centímetros.

       Marian postou-se entre elas.

       — Agnes, você conhece as regras. Aposto que sua pressão chegou ao teto!

       — Quero dizer uma coisa à sra. Desmond, Marian.

       — Diga, então. Uma coisa bem pequenininha, porque depois levarei comigo este casal tão simpático.

       Agnes segurou a mão de Nora.

       — Você tem de ouvir o resto.

       Marian deu uma risada.

       — Quer contar para eles a história de sua vida, Agnes? A sra. Desmond tornará a vir ao seu quarto, tenho certeza.

       — Esta noite — disse Agnes, apertando a mão de Nora.

       Marian exibiu uma certa impaciência.

       — Não vai ser possível, Agnes. Temos de proteger sua saúde.

       Agnes largou a mão de Nora.

       — Você não é o meu médico.

       — Bem, depois disso... — Marian sorriu para Nora. — Vamos?

       Ela os apressou para fora do quarto, com um olhar cúmplice para Dart e um sorriso forçado para Nora.

       — Espero que os relatos de Agnes não tenham sido tão terríveis — disse.

       — Está brincando? — exclamou Dart. — Foram melhor do que Psicose!

       Sacudindo a cabeça, ela os guiou para a escada.

       — Não sei como dizer a ela que não continuará guiando tours. Isto é, basta observá-la, não? Vocês seguiriam Agnes em uma caminhada pela propriedade?

       Uma porta se abriu com um clique, atrás deles.

       — O que será agora? — exclamou Marian.

       Aferrando o robe em torno do corpo, Agnes saiu cambaleando de seu quarto. Marian fincou as mãos na cintura.

       — Não acredito no que estou vendo! — exclamou.

       — A última rixa — disse Dart.

       Marian aproximou-se rapidamente da velha e sussurrou-lhe algo. Agnes experimentou outro passo para diante. Em um gesto brusco, Marian a fez dar meia-volta e levou-a novamente para o quarto. Agnes lançou a Nora um olhar de desolada humilhação. Segundos mais tarde, Marian surgia à vista e trancava a porta com chave.

       — Sinceramente, já tive muitas dificuldades com Agnes, mas antes nunca tive de trancá-la em seu quarto. Ela disse que precisava ir ao escritório, viram só?

       — Não creio que realmente haja necessidade de trancá-la lá dentro — disse Nora. — E se ela quiser ir ao banheiro?

       — Ela pode esperar, até trazerem o seu jantar. Margaret já está em excelente disposição de espírito, graças a Norman e suas tiranias. Quando o jantar terminar, vou precisar daquele último drinque da noite. — Marian os levou até a escada. — Não sei bem o que sugerir. Normalmente, desejariam retornar ao Pote de Pimenta ou caminhar em torno de Lenox, mas parece que está ameaçando uma tempestade e, quando chove, nossas alamedas ficam lamacentas e escorregadias. Vamos descer e ver o que está acontecendo lá fora.

       Uma rajada de vento açoitou o prédio. Em algum lugar, mais abaixo deles, janelas chocalharam em suas molduras.

       — Como eu estava dizendo! — exclamou Marian.

       A chuvarada atingiu a frente do prédio parecendo uma rajada de chumbo grosso para caça, cessou por um segundo e recomeçou logo depois, em uma onda mais forte e contínua.

       As luzes tinham sido acesas no saguão. As janelas mostravam um céu escuro, despejando chuva sobre um gramado encharcado.

       — Pelo menos, o último tour terminou antes que tivéssemos um bando de futuros advogados exigindo seu dinheiro de volta. — Na distância, árvores inclinavam-se ante a fúria do vento. — Esta é das piores. — Ela se virou para Dart. — O que desejam fazer? Poderiam dar uma corrida para Pote de Pimenta, se o temporal diminuir, mas estarão cobertos de lama quando chegarem lá.

       — Perspectiva rejeitada — disse Dart. — Odeio ficar molhado. E a lama me deixa furioso.

       Além do gramado varrido pela chuva, as árvores erguiam os braços.

       — Bem, parece que terão de ficar aqui até o fim do jantar. Poderíamos arranjar algumas botas para você, Norma, porém o que faríamos com Norm? — Marian esfregou a testa. — Direi a Tony que traga um impermeável e um par de botas depois do jantar. Norma poderá usar uma capa de chuva minha. E não se preocupem, caso as luzes se apaguem. Temos montes de velas. Por outro lado, nossa companhia de energia elétrica pode ser dirigida por um punhado de matutos, mas eles sempre conseguem fazer a luz voltar em mais ou menos uma hora, após o fim dos temporais. Prometi a ambos um jantar especial, e é isso que terão.

       — Excelente idéia.

       — O que gostariam de fazer? Tenho mais algum trabalho por terminar em meu escritório, e depois vou dar uma ajuda na cozinha, de maneira que ficarão mais ou menos entregues a si próprios.

       — Eu gostaria de conversar um pouco mais com Agnes — disse Nora.

       — Terá que adiar sua conversa para outro dia. — Três enormes rugas surgiram no meio da testa de Marian, desaparecendo logo em seguida. — Não estariam interessados nos papéis de Georgina?

       — Eu adoraria vê-los.

       Os registros certamente ficavam no escritório do segundo andar, e Dart teria que ir ao banheiro em algum momento.

       — Um homem sedento pode conseguir um drinque por aqui? — perguntou Dart.

       — Evidentemente! — exclamou Marian. — Venham comigo e providenciarei tudo o que for preciso.

       Jogando os cabelos para trás, ela os levou ao corredor principal, desceu os degraus de mármore, e olhou para Nora por sobre o ombro.

       — Não quer examinar os registros?

       — Eles não ficam no andar de cima? — perguntou Nora.

       — Ficavam, mas depois que dois escritores invadiram o escritório de Margaret, transferimos tudo para a salinha que era de minha secretária, quando eu tinha secretária.

       Marian conduziu-os a um cubículo sem janelas, no qual havia uma secretária, uma cadeira de sala de aulas e prateleiras de metal, cheias pela metade com livros de contabilidade, arquivos de correspondência e caixas rotuladas FOTOGRAFIAS.

       — Logo estarei de volta com o seu drinque, Norman. Vodca, está bem? Com gelo?

       — Beba para realizar um sonho!

       Se houvera algum telefone naquele cubículo, ele tinha desaparecido, juntamente com a secretária de Marian.

      

DEZ MINUTOS mais tarde, Dart repetia a primeira coisa que havia dito, após Marian deixá-los a sós. Estava recostado na cadeira, com os pés erguidos sobre uma prateleira, mexendo com um dedo os cubos de gelo no que sobrara de seu drinque.

       — Aquela história foi ainda pior do que o lixo de Jane Austen — comentou.

       Nora fechou um dos livros contábeis e pegou outro na pilha à sua frente. No transcorrer da década de vinte e princípio da de trinta, Georgina tinha gasto uma grande soma de dinheiro em champanha, adquirido por meio de um contrabandista de bebidas alcoólicas chamado Selden, o qual, após a revogação da Lei Volstead em 1933, aparentemente abrira uma loja de bebidas. Modelos de ordem em um sentido, os livros contábeis eram caóticos na maioria dos outros. Com uma mão que degenerara no correr dos anos, passando de um gótico espigado para garranchos semelhantes a arame farpado, Georgina registrara cada dólar que entrara em Shorelands ou dali saíra, porém não havia feito distinções entre despesas pessoais e as efetuadas com a propriedade. Uma despesa de cinco dólares por uma nova caneta-tinteiro surgia abaixo de outra registrando a compra de bulbos de tulipas holandesas no valor de trezentos dólares. Ela tampouco fora rígida a respeito de datas.

       — Talvez Agnes tivesse visto Chancel correndo trilha abaixo. É possível que ela inventasse toda a história, após uma noite bebericando amontillado além da conta, porém nós jamais saberemos. Sabe por quê? Porque Shorelands é o Motel Ponto Final para a realidade. A verdade entra aqui, porém nunca sai, e Georgina é o motivo disso. Acha que Georgina Weatherall seria capaz, mesmo naquele tempo antes dela barganhar xerez por morfina líquida, de fornecer um relato preciso do que tinha acontecido em um determinado dia?

       — A julgar pelo estado dos registros dela, sinceramente não.

       — Aqueles escritores devem ter-se sentido perfeitamente em casa. Todo este lugar é uma ficção. — Ele deu uma risada alta, satisfeito com sua esperteza. — O próprio nome é uma mentira. Shorelands — Terras Litorâneas — porque não existe nenhuma praia por perto. O velho George a julgava bonita, importante e adorada universalmente, porém a verdade é que Georgina era uma piada de mau gosto em roupas circenses, que induzia pessoas a se exibirem, fornecendo-lhes cama e comida grátis. O fato de ser explorada por escritores famosos fazia com que se sentisse importante. Ela não podia suportar a realidade, de modo que vagava por aí fingindo que as cabanas arruinadas onde seus empregados moravam eram “chalés”. Depois inventou os nomes de fantasia. “Eu te batizo ‘Pão de Mel’, eu te batizo ‘Rapunzel’, e já que estou neste clima, acho que batizarei aquele pantanal lamacento de ‘Campo Nevoento’. O que isso lhe diz? Não vai demorar muito, e veremos aparecer uma garotinha de avental trotando atrás de um coelho, a caminho de uma reunião para o chá.

       — Acho que eu sou essa garotinha — disse Nora.

       — É possível. Por que Agnes devia ser diferente? Ela passou a vida inteira nesta fábrica de ilusões. Não tem a menor idéia do que realmente aconteceu àquela moça.

       — Eu acho que tem — replicou Nora — e uma coisa que você disse há pouco, deu-me uma idéia.

       Novamente, Dart pareceu satisfeito consigo mesmo.

       — Não acredito nisso nem por um segundo, mas como foi que ela descobriu?

       — Georgina contou-lhe o que tinha acontecido a Katherine.

       — Isso faz bastante sentido. A grande dama conta para uma empregada que ajudou a encobrir um assassinato? Caso tenha sido assassinato, o que duvido muito.

       — Você ouviu o que Agnes contou.

       — Agnes está confinada à cama desde que sua arquirival Lily Melville sacode-se por aí, impingindo mentiras aos turistas. Ela está sozinha naquele quarto lá em cima, juntamente com Henry David Thoreau, e pensa que também ele é uma mentira.

       — Elas precisam de um pouco mais de realidade por aqui — comentou Nora.

       — Por volta das onze ou doze desta noite, elas enfrentarão mais do que conseguem manejar. Nesse ínterim, encontrou alguma coisa nesses livros?

       — Ainda não.

       Nora apanhou outro livro na pilha. As entradas começavam em junho de um ano sem especificação, com o recibo de um cheque de quinhentos dólares de G.W, provavelmente o pai de Georgina, e a despesa de 45,80 dólares em suprimentos de jardinagem. A entrada seguinte era 18 de junho — $75-, Beb. Selden, Veuve Clicquot, portanto o livro havia sido preenchido em alguma data após 1933. A caligrafia apenas começara a deteriorar-se.

       — Que criaturinha diligente você é, Nora-docinho — disse Dart.

       Ele esticou o braço para as prateleiras mais altas e desceu de lá uma caixa marcada com a palavra FOTOGRAFIAS. Nora folheou páginas do livro contábil, e Dart começou a remexer no interior da caixa. Ela continuou seu exame por mais três ou quatro páginas, sem encontrar nenhuma menção a qualquer soma além de uns poucos milhares de dólares. — Agnes até que era bem “apanhada” naqueles tempos — comentou Dart. — Não é de admirar que Chancel quisesse agarrá-la. Ele estendeu a Nora uma pequena foto em preto e branco. Ela olhou para o rosto agradável da jovem Agnes Brotherhood, cujos seios exuberantes salientavam-se na frente de seu uniforme negro. Sem dúvida, a empregada vira-se obrigada a afugentar um bocado de conquistadores. Tornou a devolver a fotografia para Dart e, no momento em que a entregou, soube como Katherine Mannheim havia morrido. Soubera o tempo todo, sem saber: sua própria vida lhe fornecera a resposta. Trêmula, virou algumas páginas ao acaso, ma! reparando nas enigmáticas entradas. Uma caixa de gim e duas garrafas de vermute, vindas da loja de bebidas pertencente ao antigo contrabandista de Georgina. Medicam., $28,95. Discos, $55,65. Carne em geral, c/gord., $2,00. Mann & Ware. fotgrfs., $65.

       — Um momento — disse Nora. — Fotógrafos profissionais tiraram alguma dessas fotos?

       — É claro. As fotos em que aparecem grandes grupos.

       Dart enfiou a mão no fundo da caixa e estendeu-lhe uma foto tamanho 20 por 30, mostrando o costumeiro grupo de homens em ternos e gravatas, rodeando uma régia Georgina. Carimbada nas costas, havia a inscrição “Patrick Mann & Liman Ware, Fotografias Finas, Estúdio Mann-Ware, Main Street, 26, Lenox, Massachusetts.”

       Patrick Mann, Paddy Mann, Paddi Mann.

       Lyman Ware, Madame Lyno-Wyno Ware, Lena Ware.

       Shorelands, Jornada na Noite, David Chancel.

       Dois fotógrafos que batiam fotos do grupo a cada ano, duas personagens de ficção, um perturbado fanático por Driver que perseguira Davey.

       — Uma abelhinha está zumbindo por aí.

       Ela devolveu a fotografia a Dart. Uma jovem chamada Patrícia Mann, Patty Mann, imergira-se no mundo de Driver e se tornara, primeiro Lena Ware, depois Paddi Mann. Parte de sua entrada para o mundo de lunáticos fãs de Driver havia sido a coincidência de seu nome assemelhar-se ao de um fotógrafo de Lenox.

       Nora então refletiu que Paddi Mann havia sido sobrinha de Katherine Mannheim; comentários familiares a tinham impelido para ainda mais fundo no mundo de Driver. Ela fora convencida de que o pai de sua inconvencional irmã fora o autor do livro que considerava sagrado, e por duas vezes resgatara sua tia do esquecimento. Chegara ao ponto de trajar-se como Katherine Mannheim.

       Nora folheou as páginas do livro contábil, e um nome e um número pareceram saltar das linhas em sua direção. Rec’b. L. Chancel: $50.000.

       — Lincoln Chancel deu a ela cinqüenta mil dólares.

       Dart inclinou-se, a fim de examinar a entrada.

       — Aqui nem mesmo há uma data. E, tão certo como o inferno, não prova que ela o chantageava. Ninguém seria capaz de chantagear aquele velho filho da mãe.

       Nora virou mais algumas páginas.

       — Aqui estão as reformas. Veja, quinhentos dólares para reconstituição do teto, duzentos a um pintor. Cerca de uma semana mais tarde, o mesmo pintor recebe outros duzentos. Quinhentos para um empreiteiro. Seiscentos para B. Smithson, eletricista. O pintor outra vez. Depois aqui, no fim da página, o empreiteiro recebe mais mil. Isso continua e continua...

       — A velha lacraia bebeu uma boa cota da viúva, não foi?

       — De que viúva está falando?

       — Da viúva Clicquot, sua ignorante. Tudo bem; ele deu para ela um bocado de dinheiro, que Georgina usou para ajeitar a casa. Chancel era mão-fechada, mas certamente não era sovina. Fez montes de dinheiro e jogou metade fora. “Georgina, seu saco de trapos, aqui tem cinqüenta milhas, ponha aqueles casebres em forma e adquira para você umas duas caixas da viúva, enquanto está com a grana.” Foi isso que aconteceu.

       — Lincoln Chancel deu voluntariamente cinqüenta mil dólares a uma mulher que provavelmente desprezava? Em uma época quando cinqüenta mil valeriam uns trezentos ou quatrocentos mil, em dinheiro de hoje?

       — O homem não era mesquinho. Por outro lado, ele tinha dois outros motivos para ser generoso com Georgina. Queria alistá-la em seu movimento, e conheceu Driver por causa dela. Aposto que ele fazia alguma idéia de quanto ia ganhar com Jornada na Noite. Assim, cinqüenta mil eram mixaria.

       Nora sorriu para ele.

       — Você não quer pensar que seu herói pudesse ter sido chantageado.

       — O homem era um herói — disse Dart. — Quanto mais a gente aprende sobre o sujeito, melhor ele fica. Se alguém tentasse chantageá-lo, ele usaria a serra elétrica. Acredite em mim.

       Dart adorava monstros, porque ele próprio era um deles, mas sobre Chancel estava certo; não seria fácil alguém extorquir dinheiro de Lincoln Chancel. Soou uma batida à porta.

       — Aí está o refill — disse Dart. — Adoro essa mulher.

       Marian Cullinan deu uma espiada para dentro

       — Lamento interromper, Norma, mas há um telefonema para você. Um sr. Deodato.

       Dart baixou os olhos e a fitou preguiçosamente.

       — Esperarei aqui até que você termine — disse Marian.

      

DART FECHOU A PORTA de Marian e sussurrou:

       — Agora, seja uma garota esperta.

       Sorrindo, ele fez um gesto para o telefone. Quando Nora ergueu o receptor, ele lhe ficou ao lado e pressionou sua cabeça à dela.

       — Jeffrey? — perguntou Nora. — Foi muito gentil de sua parte ter telefonado.

       — Essa é uma forma de situar o assunto — replicou Jeffrey. — Já liguei antes, mas uma mulher me disse que você estava em uma excursão. Por que não telefonou para mim?

       — Mal existem telefones nesta casa e, além disso, estive muito ocupada. Lamento por ter se preocupado, Jeffrey.

       — Como acha que eu ficaria? De qualquer modo, fiz a maioria do trajeto até aí, antes de ser impedido pela chuva. Como conseguiu chegar a Shorelands?

       — Não é importante. Assim que vi todos aqueles policiais no hotel, saí por uma porta lateral e então encontrei um amigo, que me deu uma carona. Sinto muito não poder ter entrado em contato com você. Onde está agora?

       — Em um posto de gasolina, na periferia de Lenox. Acho que ainda serei obrigado a ficar umas duas horas por aqui. Ouça, Nora, tenho algumas coisas importantes para dizer a você.

       — Você deve ter caído direto nas mãos daqueles tiras.

       — Acertou em cheio. Fiquei a maior parte do dia no posto policial. Estava certo de que iam deter-me, mas eles finalmente me deixaram ir embora.

       — Vi Davey pouco antes de escapar. Ele esteve com sua mãe?

       — Aí está uma das coisas que quero dizer-lhe. Ele esteve na casa dela com dois agentes do FBI. Foi uma cena daquelas. Pelo que ela me contou, o inferno esteve à solta em Westerholm esta manhã. Davey procurou o pai com o que você lhe contou ontem à noite, e Alden o expulsou de “Os Álamos”. Davey está em pedaços. Quer você de volta. Não sei qual a sua idéia a respeito, de modo que em vez de ligar para ele depois que falei com minha mãe, achei que antes deveria entrar em contato com você. Gostaria de falar-lhe pessoalmente, mas daqui para a frente, a estrada ficou debaixo d’água.

       — Em vez de ligar para ele? Por que você ligaria para Davey?

       — Para dizer-lhe que você talvez tivesse ido para Shorelands. Ou, o que eu temia, que Dick Dart conseguisse raptá-la novamente.

       — Não compreendo.

       — Não compreende porque ainda não sabe o que tenho mais para contar. Depois que eu chegar a Shorelands, provavelmente desejará voltar a Northampton comigo. Ou poderei dar-lhe uma carona até o Connecticut, se for essa a sua vontade.

       Dart puxou a faca da bainha do cinto e a manteve diante do rosto dela.

       — Vamos com calma, Jeffrey. Tenho que passar a noite aqui, e prefiro que você só venha amanhã. Sinto muito, mas tem de ser assim. Aliás, como eu poderia voltar ao Connecticut?

       — Bem, é algo um tanto estranho, mas foi tudo resolvido — disse ele. — Você não está mais sendo procurada.

       Os olhos de Dart moveram-se rapidamente para ela.

       — O que aconteceu? Aliás, como é que você sabe disso?

       — Por minha mãe. Ninguém parece ter entendido até agora, mas um dos homens do FBI disse que Natalie Weil voltou atrás totalmente. Ela contou à polícia que você não a raptou, em absoluto.

       — Quer dizer que estou limpa?

       — Até onde sei, sim. Toda a questão ainda parece bastante confusa, mas Natalie deve ter dito que estava errada, enganada ou qualquer coisa, e que lamenta ter envolvido você.

       O olhar de Dart tornara-se monótono e desconfiado.

       — Francamente, não estou entendendo isso — disse Nora.

       — Tenho a impressão de que Natalie deixou todo mundo um pouco desconcertado, mas sem dúvida são boas notícias, até onde lhe dizem respeito. O único assunto que a polícia pretende falar com você é sobre Dick Dart. Ele escapou de Northampton ao roubar um antigo Duesenberg, se é que você consegue acreditar nisso.

       — Ele fez mesmo isso? — perguntou Nora.

       — Por que não me deixa ir apanhá-la assim que eu puder, e levá-la para onde quer que deseje ir?

       — Sei que é uma tremenda inconveniência, mas quero ficar aqui e terminar o trabalho que estou fazendo.

       — Não acha melhor que eu espere neste posto de gasolina até a chuva parar e depois levá-la de volta a Northampton? — perguntou Jeffrey, quase confuso.

       — Eu gostaria que houvesse um meio de fazer isso, mas que fosse mais fácil para você.

       — Eu também. Pode ligar para mim amanhã? Por volta de oito da manhã devo estar na casa de minha mãe — respondeu ele, em voz inexpressiva.

       — Ligarei para você.

       — Quer que eu ligue para Davey e lhe diga que você está bem?

       — Por favor, não.

       — Deve estar às voltas com algo muito interessante, para querer ficar aí.

       — Sei que merece coisa melhor do que isto, Jeffrey. Você é um bom amigo.

       — Posso ter o direito de dar-lhe um conselho?

       — Mais do que isso.

       — Abandone-o. Ele nunca será coisa alguma além daquilo em que está no momento, o que não é suficientemente bom para alguém como você.

       — Até breve, Jeffrey.

       Dart desligou o telefone.

       — Acho que você partiu o coração dele. Jeffrey queria passar a noite com a minha Nora-docinho. Enfim, consideremos um assunto mais crucial. A pequena Natalie desmentiu o depoimento. Você nunca raptou aquela prostituta, afinal de contas. — Ele moveu as mãos em círculo aos lados da cabeça. — A maldição de Shorelands ataca novamente; estamos caminhando entre mentiras. — Colocando a ponta da faca debaixo do queixo de Nora, ele a esfregou contra sua pele. — Você vai ajudar-me a sair daqui.

       — Não consigo entender. — Nora ergueu o queixo, e Dart fincou a faca levemente, fazendo marca na pele, mas sem furá-la. — Você o ouviu. Ninguém entende o que Natalie está fazendo.

       — E você, entende alguma coisa?

       — Natalie ficou dias sendo medicada. Acho que nem se lembra do que aconteceu. Por outro lado, ela toma drogas. Davey me contou que os tiras encontraram um saquinho de cocaína em algum lugar de sua casa — disse Nora.

       — A aventureira Natalie...

       — Talvez ela não consiga recordar o que eu fiz. Talvez tenha outro motivo para mentir. Não sei e nem me importo. Eu ia matá-la.

       Dart esfregou-lhe a bochecha.

       — Essas ameaças de visitantes inesperados deixam-me pouco à vontade. Vou dizer-lhe o que farei esta noite. Tudo está correndo às mil maravilhas. Papai tem um novo plano.

      

PASSANDO UM POUCO das seis, Marian retornou para avisar que o jantar estaria pronto em poucos minutos. Ela havia aplicado batom rosa-claro nos lábios, um leve delineador, e pusera um colar de finos elos de ouro, que lhe caíam sobre as clavículas como um filhote de serpente.

       — Espero que você esteja novamente com fome — disse ela para Dart, que estava entediado e emburrado, porque não lhe tinham oferecido um segundo drinque.

       — Eu sempre estou faminto. Também tenho um lado sequioso.

       — Poderia isso ser uma sugestão? Margaret abriu uma garrafa de vinho e creio que você gostará da escolha dela.

       — Só uma garrafa? — Dart ergueu seu copo. — Por que não envida seus melhores esforços a fim de garantir a alegria, arranjando pelo menos mais uma garrafa para acompanhar nosso banquete?

       Marian sorriu, ligeiramente tensa, apanhou o copo e parou atrás de Nora.

       — Encontrou alguma coisa que valesse a pena?

       Nora havia encontrado mais duas entradas de pagamentos feitos por Lincoln Chancel, um deles de trinta mil dólares, o outro de vinte mil. Cada um era seguido por desembolsos com costureiras, chapeleiras, lojas de tecidos e o ubíquo Selden. Após ter gasto a maioria dos primeiros cinqüenta mil na propriedade, Georgina dedicara os outros cinqüenta mil a si mesma.

       — Estou chegando lá — disse Nora.

       — Vocês poderiam voltar aqui depois do jantar, se quiserem.

       Esta sugestão ajustava-se aos novos planos de Dart para a noite, e Nora forçou-se a dizer:

       — Obrigada, talvez eu siga sua idéia.

       — Acho melhor cuidar de seu marido sedento, ou ele ficará mal-humorado.

       — Sem sombra de dúvidas — disse Dart. — E por falar em humor, como está o de Lady Margaret? Ela voltou atrás?

       — Margaret não volta atrás — replicou Marian — mas eu diria que ainda há esperanças de uma noite civilizada.

       — Que tédio! Vamos descer e fazer uma sujeira.

       — Acho melhor apressar-se com aquele drinque.

      

O lustre não tinha sido aceso, e toda a iluminação da sala vinha de candelabros de parede e velas em altos castiçais de prata. Cinco lugares tinham sido preparados com enfeitada porcelana azul e dourada. As chamas refletidas das velas brilhavam nas cobertas de prata das travessas de aquecer e nas janelas escuras. Uma chuva invisível sibilava em cima do gramado. Margaret Nolan e Lily Melville viraram-se para Dart e Nora, uma delas mostrando uma expressão de neutras boas-vindas, a outra com um sorriso expectante. Lily pareceu dançar, com as mãos dobradas diante do corpo.

       — Não é uma tempestade terrível? Não ficam felizes por isto só acontecer depois de encerrarem sua excursão?

       — A chuva foi inventada pelos agentes do demônio.

       — As grandes tempestades sempre me amedrontam, especialmente aquelas com raios e trovoadas. Geralmente acho que algo terrível vai acontecer.

       — Nada terrível vai acontecer esta noite. — Margaret caminhou para eles. — Exceto pela costumeira falta de energia elétrica, mas estamos bem equipados para lidar com isso. Teremos uma noite muito agradável, não é mesmo, sr. Desmond?

       — Como nunca tivemos.

       Ela se virou para Nora.

       — Marian me disse que esteve examinando nossos antigos livros contábeis, em busca de dados sobre um projeto relacionado a Hugo Driver. Espero que partilhe seus pensamentos conosco.

       Margaret estava querendo minimizar as provocações de Dart, por causa do provável negócio resultante de conferências sobre Hugo Driver. Nora perguntou-se o que ela poderia contar-lhe a respeito da importância de Shorelands no romance de Driver.

       — O que foi feito de Marian? Esperávamos que ela descesse com vocês.

       — Ela foi providenciar uma libação — disse Dart.

       Margaret ergueu as sobrancelhas.

       — Teremos um bom Châteauneuf para o primeiro prato, além de algo que é bastante especial, um Château Talbot 1970 para o segundo. O que pediu a Marian para trazer-lhe?

       — Um duplo — disse Dart. — Para compensar-me pelo que ela esqueceu.

       — É um poeta da velha escola, sr. Desmond. Um copo deste delicioso vinho branco, sra. Desmond?

       — Água mineral, por favor — disse Nora.

       Ela caminhou para as garrafas, quando Marian entrou apressadamente, com o copo novamente cheio de bebida.

       — Espero que não se incomode, Margaret — disse ela, entregando o drinque — mas Norman achava que uma garrafa do Talbot talvez não fosse suficiente, de maneira que dei uma espiada nas prateleiras e abri uma garrafa de Beaujolais. Está na cozinha, em cima da bancada.

       Margaret Nolan considerou tal declaração, a qual incluía a informação não dada de que a segunda garrafa talvez custasse um décimo do preço da primeira, e lançou um olhar avaliador para Dart. Ele afivelou ao rosto uma expressão de seráfica inocência e engoliu metade de sua vodca.

       — Muito inteligente, Marian. O que nosso convidado não beber, pouparemos para vinagre. Por favor, sirva-se.

       Marian encheu um copo de vinho branco para si mesma.

       — Liguei para Tony e pedi-lhe que trouxesse roupas de chuva para Norman e as deixasse dentro da porta principal. As linhas telefônicas podem ficar mudas, e o pobre homem tem de voltar para o Pote de Pimenta. Para Norman, posso emprestar algumas coisas minhas.

       — Outra inteligente decisão — declarou Margaret Nolan. — Uma vez que está tratando nossos convidados por seu primeiro nome, todas devemos fazer o mesmo. Não é agradável?

       — Inteiramente, Maggie — disse Dart, levando o copo à boca e bebendo o resto da vodca.

       Com elaborada cerimônia, Margaret indicou os assentos: Norman à direita da cabeceira da mesa, Nora à frente dele, Marian perto de Norman e Lily ao lado de Nora.

       — Por favor, queiram ir até o aparador e servir-se do primeiro prato. Assim que nos sentarmos, descreverei nossa refeição, bem como alguns aspectos desta encantadora sala, não coberta durante as excursões normais. Lily, quer ser a primeira?

       Lily aproximou-se do aparador, onde ergueu a coberta de uma travessa, perto de uma cesta de pãezinhos. A cada lado de um monte de pálidas tiras de queijo jaziam pimentões grelhados, fatiados e sem pele, os vermelhos à esquerda, os verdes à direita, flanqueados por azeitonas pretas e coroados por anchovas. Quartas partes de ovos cozidos haviam sido arrumadas em cada extremidade da travessa. Um cheiro de alho e óleo levantou-se dos pimentões. Lily apanhou um prato de salada na pilha perto da travessa, e a segurou diante de Dart.

       — Esta é a própria porcelana de Georgina. Wedgwood.

       — “Florentina” — disse Dart. — Um dos meus padrões favoritos.

       — Norman, você sabe tudo!

       — Até os animais podem aprender — replicou ele.

       Lily serviu-se de porções diminutas das duas espécies de pimentões, algumas azeitonas e um só pedacinho de ovo cozido. Dart transferiu para seu prato metade dos pimentões vermelhos, nenhum dos verdes, a maioria das azeitonas, metade dos ovos e queijo, e tudo o mais, com exceção das fatias de anchova. Por cima de tudo, ele colocou um pedaço de uns quinze centímetros que partiu do pão francês. Os outros o seguiram, escolhendo o que havia sobrado.

       Dart sentou-se, piscou para Lily e encheu seu copo com o vinho branco do balde.

       Margaret também sentou-se, e fez ao prato dele um prolongado exame.

       — Isto é o que a srta. Weatherall denominava sua “Travessa Mediterrânea”. Monty Chandler cultivou os pimentões, juntamente com inúmeras outras coisas, em uma horta separada, ao norte da Casa Principal.

       Enquanto ela falava, Dart estivera enfiando pimentões na boca, demolindo os ovos cozidos, colocando tiras de queijo sobre pedaços de pão e devorando tudo. Quando Margaret terminou, ele deu uma dentada no pão e bebeu um gole de vinho para umedecê-lo. Depois estalou os lábios.

       — Que queijo esquisito!

       — É sírio. — Com expressão grave, Margaret o fitava enquanto ele comia. — Nós o conseguimos de um mercado para gourmets, mas a srta. Weatherall o encomendava a um importador de Nova York. Nada era bom demais para os seus convidados.

       Dart sacudiu a garrafa para ela.

       — Sim, por favor.

       Ele lhe deu meio copo e depois encheu o de Marian. Uma rajada de vento fustigou a casa, como uma gigantesca mão. Lily amarfanhou o guardanapo nas mãos.

       — Você já viveu através de mil das nossas tempestades, Lily — disse Margaret. — Enfim, a coisa não pode estar tão ruim quanto parece, porque a eletricidade continua funcionando.

       Nesse momento, os candelabros de parede apagaram-se. Os reflexos das chamas das velas oscilaram nas janelas negras, que foram novamente chicoteadas pelo vento.

       — Falei cedo demais — disse Margaret. — Não importa. Lily, pare de tremer! Sabe que a luz logo estará de volta.

       — Eu sei. — Lily enfiou as mãos entre as coxas e ficou olhando para o colo.

       — Coma.

       Lily conseguiu enfiar uma azeitona na boca.

       — Marian, talvez fosse melhor você levar uma vela para Agnes, lá em cima. Ela já comeu, não?

       — Se alguém pode dizer que aquilo é comer... — comentou Marian. — Não se preocupe, eu cuidarei disso. E trarei mais velas cá para baixo, a fim de podermos enxergar nossos pratos.

       — Você poderia checar os telefones? — pediu ela, virando-se para Dart. — Uma das poucas desvantagens de morar-se em um lugar como este é que, quando a eletricidade cai, cinqüenta por cento dos telefones também saem do ar. Eles são sovinas demais para instalarem linhas telefônicas subterrâneas.

       — Uma praga da democracia — disse Dart. — Todas as pessoas erradas dando ordens.

       Margaret dirigiu-lhe um olhar de viva indulgência.

       — Tem razão. Você partilha o gosto de Georgina Weatherall por líderes fortes, não é mesmo?

       Lily ergueu os olhos, por um momento esquecida de seu terror.

       — Estive pensando nisso. É verdade, ela costumava dizer que nações poderosas deveriam ser dirigidas por homens poderosos. Daí por que gostava do sr. Chancel. Ele era um homem poderoso, segundo ela, e alguém assim deveria estar dirigindo o país.

       Dart sorriu radiosamente para ela.

       — Boa garota, Lily, vejo que voltou a juntar-se aos vivos! Concordo plenamente com a srta. Weatherall. Lincoln Chancel daria um esplêndido presidente. Precisamos de um homem que saiba controlar as rédeas. Ouso dizer que também eu poderia fazer um bom trabalho nesse campo.

       — Sem dúvida — concordou Margaret.

       Dart tomou a última porção do vinho branco.

       — Pena de morte para quem fosse idiota o bastante para ser surpreendido cometendo um crime. Como estímulo, atuar no próprio local do crime. Execuções públicas, transmitidas ao vivo. Julgamentos televisados, entendem? Mostraremos a essa gente que está encerrado o que acontece depois do julgamento. Aboliremos o imposto de renda, a fim de que as pessoas capazes parem de carregar o populacho nas costas. Abrir escolas em uma base comercial. Em vez de notas, prêmios em dinheiro financiados pelos empresários. E etc., etc. Agora que a parte da salada desta refeição chegou ao fim, por que não descobrimos o que existe debaixo das tampas dessas travessas?

       Margaret disse:

       — Ocorreu-me agora que uma conversa jocosa como esta, com desenfreados vôos de fantasia, deve ter sido similar àquelas mantidas aqui, durante a vida da srta. Weatherall. Concorda, Lily?

       — Oh, sim! — exclamou Lily. — Quem ouvisse algumas daquelas pessoas falando, pensaria que tinham abusado da bebida.

       — Uma das telas nesta sala já existia aqui, nos tempos antigos. Juntamente com o retrato do pai da srta. Weatherall, na parede da escada, é tudo quanto sobrou da coleção de arte que ela possuía. Poderiam mostrar-me de que tela estou falando?

       — Daquela — e Nora apontou para um retrato de mulher, cujo rosto familiar espiava abaixo de um chapéu vermelho, do tamanho e formato de uma abóbora que houvesse ganho o primeiro prêmio.

       — Correto. O retrato da srta. Weatherall, naturalmente. Acredito que ele nos transmite toda a sua força de caráter.

       Marian retornou à sala, trazendo um castiçal em cada mão e dois outros presos com os braços em ambos os lados do corpo.

       — Creio que já poderia remover os pratos dos hors d’oeuvres, Marian, e dar-me os outros, a fim de que eu possa servir o prato principal. Como está a pobre Agnes?

       — Muito excitada, mas eu não saberia dizer o motivo. — Marian começou a tirar os pratos da mesa. — Os telefones estão mudos. Acho que voltarão a funcionar novamente pela manhã.

       — Eu gostaria muito de tornar a ver Agnes — disse Nora.

       Margaret ergueu a coberta prateada de cima do que parecia um pão, grande e redondo. Flocos esverdeados pontilhavam a crosta.

       — Norma, creio que eu e Lily poderíamos ser-lhe tão úteis quanto Agnes Brotherhood. Qual é o seu projeto? Algum livro?

       — Talvez eu escreva um, algum dia. Estou interessada em um certo período da vida de Shorelands.

       Margaret introduziu a faca na crosta. Com dois ágeis movimentos, colocou um pequeno pedaço do petisco dentro do primeiro prato da pilha. Pequeninas fatias assadas de carne, destilando um suculento molho, escorreram de sob a crosta espessa. A isto ela acrescentou cintilantes ervilhas nevadas do outro prato de servir.

       — Há biscoitos amanteigados na cesta. Quer passá-la para Lily, Norma, por favor?

       Dart observou a mistura fluindo de sob a crosta.

       — O que é essa coisa?

       — Torta de coelho e alho-poró, com ervilhas nevadas passadas na manteiga. O coelho está em um molho de beurre manié, e tenho certeza de que retirei todas as folhinhas de louro.

       — Estamos comendo um coelho?

       — Dos grandes e bons; além disso, tivemos sorte em encontrá-lo. — Ela serviu mais um prato. — Nos velhos tempos, Monty Chandler apanhava três ou quatro coelhos por mês, não foi o que disse, Lily?

       — Isso mesmo — disse ela, inclinando-se e aspirando o aroma.

       — Marian, poderia trazer-nos o Talbot?

       Margaret serviu os pratos remanescentes, e Marian encheu quatro copos de vinho. Assim que ela se sentou, Dart atacou sua torta e mastigou desconfiadamente, por um momento.

       — Um gosto muito bom para um animal silvestre.

       Margaret virou-se para Nora.

       — Segundo deduzi, Norma, a pesquisa de que fala concentra-se em Hugo Driver.

       Nora desejou poder saborear uma das melhores refeições de sua vida.

       — Sim, mas também estou interessada nas outras pessoas que estiveram aqui durante aquele verão. Merrick Favor, Creeley Monk, Bill Tidy e Katherine Mannheim.

       Lily Melville franziu o cenho para seu prato.

       — Um grupo um tanto obscuro. Lembra-se de algum deles, Lily?

       — Claro que me lembro — replicou Lily. — O sr. Monk era um homem terrível. O sr. Favor tão bonito quanto um ator de cinema. O sr. Tidy parecia um peixe fora d’água, e ficava na dele. Não gostava da srta. Weatherall, mas pelo menos fingia que gostava. Ao contrário dela. Ela não podia ser perturbada, requebrando-se pela propriedade inteira. — Lily olhou fixamente para Nora. — Conseguiu enganar a srta. Weatherall e enganou Agnes, mas não a mim. O que quer que lhe tenha acontecido, foi melhor do que ela mereceu.

       O ódio em sua voz, lealmente preservado por décadas, era o mesmo de Georgina. Esta parte era também a Shorelands real. Margaret ouviu igualmente o que fora dito, mas ignorava o background do assunto.

       — Nunca antes a ouvi falar dessa maneira sobre alguém, Lily — observou. — O que fez essa pessoa?

       — Ela insultou a dona da casa. Depois fugiu, além de roubar algo.

       O esboço de uma recordação parcial surgiu no rosto de Margaret.

       — Oh, você se refere à hóspede que encenou um desaparecimento misterioso. Ela não roubou um desenho de Rembrandt?

       — De Redon — corrigiu Nora.

       — A gente sentia repugnância, só em olhar para ela. Era uma mulher com cabeça de pássaro, muito morena e suja. Isso mostrava seus hábitos particulares. Eu apenas me lembro dela, eis a verdade.

       — Norma, talvez fosse aconselhável esquecermos essa infortunada pessoa, para concentrarmo-nos em nosso tema sobre Driver. Segundo Marian, você acredita que Shorelands possa ter inspirado Jornada na Noite. Poderia ajudar-me a entender como?

       Nora ficou agradecida por ter acabado de pôr na boca uma garfada da torta de coelho, porque isto lhe permitia uma pausa momentânea. Teria de inventar algo. O Senhor Noite era uma caricatura de Monty Chandler? O chalé Pão de Mel havia sido o modelo para a casinhola da Dona da Xícara?

       Uma rajada de vento passou uivando fora das janelas.

       Algum tempo antes, seguindo Lily no tour, ela havia sentido... tinha quase sentido... fora recordada sobre...

       — Devíamos visitar os Pilares Cantantes — disse Marian. — Dá para imaginar como soariam agora?

       Lily estremeceu.

       Uma porta se abriu na mente de Nora, e ela compreendeu exatamente o que Paddi Mann quisera dar a entender.

       — Os Pilares Cantantes são um bom exemplo da maneira como Driver usou Shorelands — comentou.

       Dart largou seu garfo e sorriu.

       — Ele colocou em seu livro certos pontos da propriedade. O motivo de mais pessoas não haverem percebido, é porque os fanáticos de Driver habitam um mundo demasiado insular. Por outro lado, ele nunca atraiu muita atenção acadêmica, e as pessoas que melhor conheceram Shorelands, como vocês, não ficam muito tempo pensando nele.

       — Eu nunca pensei nele — confessou Margaret — mas creio que estou disposta a compensar o lapso. O que acha que não percebemos?

       — Os nomes — disse Nora. — Marian acabou de mencionar os Pilares Cantantes. Driver os colocou em Jornada na Noite, e os batizou como as Pedras de Toon. Toon — song, canção, cantante? Ele trocou o nome de Campo Nevoento para Campo de Vapor. Clareira na Montanha é...

       Margaret olhava fixamente para ela.

       — Clareira na Montanha — Mountain Glade — é Monty’s Glen, o Vale de Monty. É verdade. Sim, isto é fascinante! Pensem em todas aquelas pessoas dedicadas a esse livro. Norman, sirva-se de mais desse vinho. Sua esposa o mereceu para você. Marian, apanhe a garrafa de Beaujolais que você abriu antes do jantar, e traga-a para cima, com o champanha que está na geladeira. Vamos ter uma comemoração digna de Georgina Weatherall e, por Deus, nós merecemos!

       Marian levantou-se.

       — Entende o que eu quis dizer acerca da conferência sobre Driver?

       — Eu vejo além disso. Vejo uma semana de Driver. Vejo camisetas Hugo Driver esvoaçando na loja de presentes. Em que chalé esse nobre homem hospedou-se, quando esteve aqui?

       — Rapunzel.

       Lily murmurou algo que Nora não captou.

       — Dêem-me três semanas e posso transformar Rapunzel em um santuário de Hugo Driver. Tornaremos Rapunzel o centro Driver do universo.

       — Ele não era nobre — resmungou Lily.

       — Pois agora é. Lily, esta é uma grande oportunidade. Aí está você, uma das poucas pessoas vivas que de fato conheceram o grande Hugo Driver! Cada única coisa que possa recordar sobre ele vale o próprio peso em ouro. Ele era desleixado? Podemos deixar cair algumas meias e bolas de papel datilografado pelo chão do quarto. Bebia demais? Colocaremos uma garrafa de bourbon em cima de sua mesa de trabalho. — Lily tomou um mal-humorado gole de vinho. — Vamos, conte-me! O que havia de errado com ele?

       — Tudo.

       — Oh, não pode ser verdade!

       — Você não estava aqui — disse Lily, olhando para Margaret com um toque de desafio. — Ele era servil. Era maldoso com os empregados e roubava coisas.

       Marian apareceu, carregada de garrafas e um segundo balde de gelo.

       — Quem é que roubava coisas?

       — Precisamos reabilitar o sr. Driver um pouco mais do que os nosso luminares costumeiros — declarou Margaret.

       — Você sabia que ele era um ladrão — disse Nora.

       — É claro que eu sabia. Roubou talheres desta sala. Roubou um cinzeiro de alabastro do saguão. Roubou duas fronhas e um par de lençóis do chalé Rapunzel. Livros da biblioteca. Também roubou coisas dos demais hóspedes. O sr. Favor perdeu uma caneta-tinteiro nova em folha. O homem era uma praga, sem tirar nem pôr.

       A rolha de cortiça saiu da Veuve Clicquot com um estouro suave e satisfatório.

       — Talvez devamos repensar nossa posição a respeito do sr. Driver — disse Marian.

       — Está falando sério? O que vamos fazer é polir o sujeito até ele brilhar como ouro, e se você não quiser tentar, Lily, que a tarefa fique para Agnes.

       — Ela não fará nada disso. — Lily bebeu o resto de seu vinho. — Foi Agnes quem me contou metade do que acabei de dizer. Também quero um pouco de champanha, Marian.

       — O que mais ele roubou, Lily? — perguntou Nora.

       A idosa mulher olhou para um ponto na parede, acima da cabeça de Nora, depois empurrou sua taça de champanha na direção de Marian.

       — Ele roubou aquele desenho, não foi? O Redon que está desaparecido. Aquele que você nunca apreciou.

       Lily olhou para Nora com expressão infeliz.

       — Eu não lhe contei. Não devia contar, e não contei!

       Margaret tomou um gole de champanha e seus olhos foram de Nora a Lily, com grande perplexidade.

       — Lily, há dois minutos atrás, você disse que a jovem Mannheim havia roubado o desenho!

       — Isso era o que me cabia dizer.

       — Quem lhe falou para dizer isso?

       Lily engoliu outro gole de champanha e fechou a boca.

       — Georgina, naturalmente — disse Nora.

       Dart deu uma risadinha satisfeita e serviu-se de mais um pedaço de torta de coelho. Lily encarava Nora quase temerosamente.

       — Ela sabia, porque viu o desenho em Rapunzel, na noite em que a srta. Mannheim desapareceu — disse Nora.

       Lily assentiu.

       — Quando foi que ela lhe falou sobre isso? E por quê? Você deve ter perguntado à srta. Weatherall se quem roubara o desenho havia sido realmente Hugo Driver, em vez da srta. Mannheim — disse Nora.

       Lily tornou a assentir.

       — Foi quando ela adoeceu.

       — Quando não havia mais hóspedes e ela praticamente não abandonava seu quarto. Agnes Brotherhood passava muito tempo com ela.

       — Isso era injusto — disse Lily. — Agnes jamais a amou como eu. Emma, a irmã de Agnes, era a camareira dela, mas então Emma morreu, e a srta. Weatherall quis Agnes ao seu lado. Ela não conhecia a verdadeira Agnes, e o caso era apenas que as duas irmãs pareciam-se uma com a outra. Eu teria cuidado melhor dela. Tentei ficar atenta, em seu benefício, mas naquela época era Agnes, Agnes, Agnes para tudo.

       — Então, foi Agnes quem primeiro lhe falou sobre o desenho.

       Margaret apoiou o queixo na mão e ficou acompanhando as perguntas e respostas, como um espectador em uma partida de tênis.

       — Agnes saiu do quarto da senhora, eu olhei para o seu rosto e perguntei: “O que há de errado, Agnes?”, porque qualquer um podia ver que ela estava perturbada. Agnes me disse que fosse embora, mas tornei a perguntar se havia algo errado com a senhora. Por fim, ela colocou a mão sobre os olhos e disse: “Eu estava certa sobre a srta. Mannheim. Estava certa, o tempo todo.” Aquela vagabundinha, respondi, divertindo-se à custa da senhora, além de roubar aquele quadro! “Não, ela não roubou o quadro”, disse Agnes. “O sr. Hugo Driver é que fez isso.” Ela começou a rir, mas não era como um riso de verdade. Então, disse que eu fosse ao andar de cima e perguntasse à senhora, caso não estivesse acreditando no que me dizia.

       — E você foi — disse Nora.

       Lily terminou sua bebida e estremeceu.

       — Fui lá, sentei-me ao lado dela e toquei seus cabelos. “Imagino que Agnes não conseguiu ficar calada”, ela disse, e isso foi antes de ficar doente, ainda tinha os olhos animados. Eu falei: “Agnes mentiu para mim.” Contei-lhe o que Agnes tinha dito, ela acalmou-se em seguida e disse: “Não, Agnes contou-lhe a verdade. Foi o sr. Driver quem levou aquele quadro”, e ela sabia o que dizia, porque o tinha visto no quarto dele, no chalé Rapunzel. “Por que foi ao quarto dele?”, perguntei, e ela respondeu: “Eu estava sendo a filha de meu pai. Você até poderia dizer que eu estava sendo Lincoln Chancel.” Então eu disse: “A senhora não devia deixá-lo levar o quadro.” Ela respondeu: “O sr. Chancel pagou por aquele desenho horrendo cem vezes mais do que vale. Chame Agnes de volta.” Assim, mandei Agnes de volta ao quarto dela. No dia seguinte, a senhora me disse que não podia pagar mais o meu salário, e que teria de deixar-me ir embora, mas que eu nunca contasse para ninguém quem roubara aquele quadro. E eu nunca contei, nem mesmo agora.

       — Você não contou — disse Nora. — Eu adivinhei.

       — Santo Deus! — exclamou Margaret. — Que história mais estranha! Entretanto, nela nada encontro que pudesse preocupar-nos, não é mesmo, Marian?

       — O sr. Chancel comprou o desenho — disse Marian. — Hugo Driver tomou-o emprestado antes do pagamento ter sido arranjado, eis tudo.

       — Estou adorando a história — disse Dart.

       — Se conseguíssemos que os herdeiros de Driver nos emprestassem o desenho, poderíamos pendurá-lo no Rapunzel e relacioná-lo à história completa de Jornada na Noite. — Margaret dirigiu a Lily um olhar de firme gentileza. — Sei que você não gostava do homem, Lily, mas já lidamos antes com este problema. Juntas, eu, você e Marian poderemos imaginar qualquer número de histórias simpáticas sobre o sr. Driver. Isso será uma sorte inesperada para a Fundação Shorelands. Mais champanha, Norman? Como petisco especial, teremos alguns petits vacherins. São pequeninos e deliciosos merengues recheados de sorvete e arrematados com calda de frutas. O sr. Baxter, nosso padeiro em Lenox, a maravilha das maravilhas!, tinha hoje alguns potes de merengue fresco, e a srta. Weatherall adorava vacherins.

       — Conte comigo — disse Dart.

       — Quer ter a bondade, Marian?

       Marian deixou a sala novamente, desta vez dando um tapinha nas costas de Dart, quando passou por ele. Assim que ela fechou a porta, Lily disse:

       — Não estou me sentindo bem.

       — Este foi um longo dia — replicou Margaret. — Guardaremos um pouco da sobremesa para você.

       Lily ficou em pé instavelmente, e, quando saiu da sala, Dart saltou de sua cadeira para abrir-lhe a porta e beijar seu rosto. Ao vê-lo ocupar sua cadeira novamente, Margaret sorriu para ele.

       — Lily teve algumas dificuldades esta noite, mas fará seu costumeiro e esplêndido trabalho durante as nossas comemorações para Driver. Não vejo problemas, e você?

       — Apenas atos de Deus — disse Dart, tornando a encher seu copo de vinho.

       Marian voltou com uma travessa de petits vacherins e mais uma garrafa de champanha.

       — Apesar dos escrúpulos de Lily, achei que tínhamos algo a comemorar, portanto espero que não se importe, Margaret.

       — Não pretendo beber mais, porém vocês sirvam-se à vontade — replicou Margaret. Não obstante, quando foram retirados os pratos de sobremesa e Marian dançou em torno da mesa despejando mais champanha, deixou que sua taça fosse enchida de novo. — Sr. Desmond — disse ela —, gostaria de saber se teria a gentileza de recitar-nos um dos seus poemas. Seria uma honra, ouvir algo de sua autoria.

       Dart sorveu um gole de champanha, enfiou na boca uma garfada de sorvete e merengue, tomou outro gole de champanha e ficou rapidamente em pé.

       — Compus este poema no carro, quando vinha para este paraíso das artes literárias. Espero que as sensibilize de algum modo. Chama-se “Dentro De”.

      

“O adeus, a beatitude — o mundo é, somos,

deles a morte luxuriosa, mas nenhuma

de suas cadeias eu, enfermiço, devo —

De nós, tende piedade, Senhor!

 

“Homens, nunca a opulência, não podem

Você, homem de ciência, todos devem ser

O apogeu se vai, e eu, enfermiço, devo —

De nós, tende piedade, Senhor!

 

“A beleza, não a flor,

Emurchece devorando quedas de Soberanas

Mortas, o pó lhes cerrando os olhos;

Morrerei?

Que pilhéria!

 

“A resistência à tumba nutriu as espadas de Heitor,

não com terra irá retê-la

Vem!

A impostura, eu,

Enfermiço, devo —

De nós, tende piedade, Senhor!”

      

       Dart passou os olhos pela mesa.

       — O que vocês acham?

       — Confesso que nunca ouvi nada igual — declarou Margaret. — A sintaxe está confusa, porém o sentido é perfeitamente claro. Trata-se de uma súplica por misericórdia, feita por um homem que não espera nenhuma. O que acho francamente extraordinário é que, mesmo sendo esta a primeira vez que ouvi o poema, ele me parece singularmente familiar.

       — O trabalho de Norman freqüentemente tem esse efeito — disse Nora.

       — É como algo reduzido à própria essência — comentou Margaret. — Já falou com Norman sobre nossa série de poesias, Marian?

       — Ainda não, porém este é o momento perfeito. Poderemos conversar sobre sua volta para fazer uma leitura, Norman?

       Sem saber, mais uma vez Marian havia colaborado nos planos de Dart para a noite. Ele fingiu refletir na proposta.

       — Cuidaremos disso esta noite. O único problema é que vou precisar de meu livro de apontamentos, que ficou no quarto. Entretanto, se você achar que gostaria daquele último drinque antes de dormir, poderia passar lá mais tarde.

       — E deixar que meu livro de apontamentos falasse ao seu? Sim, por que não faço isso?

       — Vocês, os jovens — disse Margaret — terão horas divertidas conversando sobre todo tipo de coisas, e eu vou pegar no sono, assim que for para a cama. Antes disso, no entanto, Marian, nós duas precisamos dar um jeito na cozinha.

       — Deixem-me ajudá-las — ofereceu-se Nora. — É o mínimo que posso fazer.

       — Bobagem — replicou Margaret. — Eu e Marian arrumaremos tudo em meia hora. Mais alguém para ajudar certamente atrapalharia.

       — Margaret, minha querida — disse Dart —, são apenas sete e meia. Não fala sério, quando diz que irá para a cama assim que os pratos forem lavados!

       — Eu bem que gostaria de dormir logo, mas ainda tenho cerca de uma hora de trabalho a fazer no escritório. Marian, vamos levar os pratos para baixo, e atacar a cozinha.

       Dart olhou para Nora, que disse:

       — Marian, eu gostaria de ficar mais algum tempo examinando os registros e fotografias, mas antes quero descansar um pouco. Para você não se dar ao incômodo de subir e descer a fim de atender a porta, será que me podia emprestar uma chave?

       — Podemos deixar a porta sem trancar — sugeriu Margaret. — Estamos absolutamente seguras aqui. Quando pretendem voltar?

       — Às nove, talvez? Até lá, a tempestade deverá ter cessado. Eu poderia completar algum trabalho, enquanto Norman e Marian combinam seus horários.

       — Oh? — Marian olhou para Dart. — O arranjo está bom para mim. Deixarei acesas as luzes do térreo, e irei até o Pote de Pimenta por volta das nove. Concordam?

       — Está perfeito — disse Dart. — Terei ouvido uma oferta de proteção contra a chuva?

       — Cuidaremos disso imediatamente.

       Marian saiu da sala, e Nora ajudou Margaret a empilhar os pratos. Em breve Marian retornava com galochas verdes de cano alto, um reluzente impermeável vermelho com botões de pressão, e um chapéu de abas largas da mesma cor.

       — Meu traje de soldado do fogo. Não se preocupe. Tenho inúmeras outras peças que me permitirão chegar seca ao chalé. Para você, Norman, o equipamento de Tony está junto da porta.

       Nora tirou os sapatos e enfiou as botas de cano alto. Marian tinha pés grandes. Depois de envergar o reluzente impermeável e abotoá-lo, Dart largou seu copo vazio.

       — O conjunto fica-lhe muito bem — disse.

       O som da chuva era mais forte na fachada do prédio. Dart examinou com asco a capa amarela e suja de Tony, e esfregou seu lenço no interior do chapéu, antes de colocá-lo na cabeça. Como os sapatos não coubessem nas botas, ele os tirou e enfiou nos bolsos da capa.

       — Já me sinto quase molhado — resmungou.

       — Esperem! Não vão ainda! — Era Marian, surgindo no topo da escada de mármore atrás deles, com a bolsa de mão de Nora e quatro velas novas. — Encontrarão fósforos na platibanda da lareira. Boa sorte!

      

O MUNDO QUE FICAVA depois da porta principal da casa, era uma escuridão líquida. Água gelada deslizou pela gola de Nora, e escorreu por suas costas, parecendo fogo de metralhadora, e chocou-se contra o chapéu rígido. Dart agarrou-lhe o pulso e começaram a correr para o pátio de cascalho. Chegando lá, ela quase caiu na lama, porém Dart a puxou, mantendo-a em pé e depois empurrando-a para frente. A água lambia o interior das mangas de Nora. As árvores das margens gemiam e sacudiam-se, enquanto vozes alucinatórias enchiam o ar.

       Nada havia funcionado; ela fora incapaz de falar com algum de seus possíveis salvadores, e Dart ia matar Marian Cullinan, depois disso passando cerca de duas horas macabras a dissecar-lhe o corpo, enquanto esperava que as mulheres mais velhas mergulhassem no sono. Em seguida, ele a empurraria através do dilúvio, de volta à Casa Principal, onde ansiava vê-la assassinar Agnes Brotherhood. Como ele lhe tinha dito, gênio era a capacidade de adaptar-se à mudança, sem perder o objetivo de vista.

       — Encaremos a situação — dissera. — Estamos presos aqui por esta noite, de maneira que o rapto fica fora de questão. Temos de cuidar de todas elas, inclusive daquelas três velhotas franzidas também. Fomos chamados de serial killer, e eu bem que poderia divertir-me um pouquinho e agir como um. Em primeiro lugar, convenceremos todo mundo de que você voltará aqui sozinha. Quando acabarmos com a Cavalo Malhado, trotaremos de volta à casa-grande e visitaremos os quartos que nos indicaram com tanta gentileza. Nada de alarmes ou telefones. Segurança, facilidade e conforto. Terminado o “serviço”, saborearemos na cozinha um breakfast de campeão — bife e ovos. Em seguida, partiremos no carro da Cavalo Malhado.

       Tentando acertar seu passo ao de Dart, Nora agachou-se e correu, incapaz de ver mais alguma coisa além da chuva escorrendo da aba do chapéu vermelho, e sentindo a lama que lhe chegava aos tornozelos. Dart agarrou-lhe a mão e ela perdeu a pressão dos dedos na sacola, que caiu na lama. O cutelo de açougueiro, a faca de trinchar e muitos outros artigos escaparam de dentro da sacola. Dart gritou algo inaudível, mas de tom indiscutível, puxou-a para trás e agachou-se, a fim de juntar os apetrechos caídos. À direita deles, um galho desprendeu-se de uma árvore, estatelando-se no chão. Dart jogou a sacola contra o peito de Nora, fez com que ela desse meia-volta e empurrou-a através da lama na direção do poste indicador de POTE DE PIMENTA e da trilha ascendente. Os pés dela escorregaram, fazendo-a deslizar para ele. Dart tornou a empurrá-la. A chuva batia no rosto de Nora como uma torrente de agulhas. Ela tentou caminhar para diante, mas seu pé direito escorregou da parte inferior da bota. Dart agarrou-a pela cintura e a ergueu do chão. O pé dela escapou da bota. Dart chutou a bota para um lado e carregou Nora até a trilha.

       Deixando-a de pé no alpendre, ele abriu os botões da capa, a fim de apanhar a chave no bolso do paletó. A chuva tamborilava sonoramente no teto. Da floresta veio um gemido fantasmagórico. O inferno novamente, pensou Nora. Pouco importa quantas vezes a gente vá lá, ele é sempre uma novidade. Poças escuras formaram-se à volta deles. Uma lâmina de água cobria-lhe o rosto, e suas costelas doíam, pelo aperto de Dart ao carregá-la. Abrindo a porta, ele apontou para dentro.

       O chapéu e a capa de chuva de Dart aterraram no piso. Nora largou a bolsa-sacola e pescou as velas dentro dos bolsos da capa de Marian. Dart apanhou-as, trancou a porta, e fez gestos tranqüilizadores com as mãos. Nora pendurou os pertences de Marian em um cabide ao lado da porta e descalçou a bota remanescente.

       — Pendure aquele lixo que eu tive de usar e encontre os fósforos. Depois coloque sua bolsa na banheira e volte aqui, para ajudar-me a tirar estas botas nojentas.

       — Colocar minha bolsa na banheira?

       — Está querendo destruir uma bolsa Gucci? Preciso limpá-la e tentar secá-la.

       Nora levou a gotejante bolsa-sacola para o banheiro, através do aposento escuro. Havia uma janela no banheiro, uma porta dos fundos? Um nítido retângulo negro pendia da parede oposta. Ela caminhou para lá, até suas pernas encontrarem a banheira, entrou nela, deixou a bolsa cair e passou as mãos ao longo da parte superior da moldura da janela. Seus dedos encontraram um fecho de latão. O ferrolho recusava mover-se.

       — O que você está fazendo aí? — gritou Dart.

       — Colocando a bolsa na banheira!

       Nora puxou o ferrolho, mas estava congelado no lugar.

       — Volte aqui!

       Uma coluna de trevas contra um fundo de escuridão menos densa indicou-lhe a posição da lareira, no lado oposto do quarto. Mantendo as mãos à frente do corpo, Nora pôs um pé adiante do outro, e assim fez o trajeto através do aposento.

       Aparentemente capaz de enxergar no escuro, Dart dirigiu-a até a lareira e os fósforos, depois disse-lhe para dar quinze passos em frente, dobrar à esquerda e continuar caminhando, até encontrá-lo.

       Dart tomou-lhe os fósforos das mãos, acendeu uma vela e afastou-se. Ela nada enxergava além da chama. Ele enfiou a vela em um suporte que havia no peitoril da janela, acendeu as outras duas e as colocou nos castiçais em cima da mesa, no centro do quarto. A corda e a fita adesiva jaziam ao lado de um balde de gelo e um litro de vodca. Dart tomou dois goles da bebida e emitiu uma áspera respiração. Marcas lamacentas de botas espalhavam-se pelo do piso, como instruções de dança.

       — Até parece o interior de um bombo. — Ele arriou em uma cadeira e esticou uma perna. — Vamos!

       Nora colocou as mãos sobre a bota escorregadia.

       — Puxe! — As mãos dela escorregaram. — Tire a roupa!

       — Tirar minha roupa?

       — Assim você poderá firmar minhas pernas em suas coxas e puxar. Não quero que estrague esse conjunto que veste.

       Enquanto ela se despia, Dart enviou-a à cozinha para apanhar um copo. Ele soprou dentro do copo, manteve-o contra a chama para inspecioná-lo, e tirou do balde um gotejante punhado de pedras de gelo.

       Antes de beber, Dart desenhou um círculo no ar com o copo, Nora retornou à cama e tirou o restante das roupas.

       — Pendure suas coisas. Elas precisam manter uma boa aparência, até podermos conseguir outras novas. — Ele a seguiu com os olhos. — Está bem, venha até aqui e vire-se de costas desta vez.

       Ela puxou a perna esticada dele, firmando-a em seu lado do corpo. As calças de Dart estavam enlameadas e dele evolava-se um cheiro de lã molhada. Contendo a respiração, Nora agarrou a perna dele com a mão esquerda, puxou no calcanhar, e a bota saiu.

       — Que haja paz para meus súditos! — Dart engoliu a vodca. — Uma já se foi, a outra logo irá!

       Quando a segunda bota foi tirada, Nora cambaleou para diante e sentiu dentro do corpo uma onda de quentura demasiado familiar. Tonteira, um súbito suor no rosto, uma ardente necessidade de sentar-se.

       — Oh, não! — exclamou.

       — A lama sai com água — disse Dart. Então, deu-se ao trabalho de olhar para ela. — Oh, Cristo, um fogacho de calor! Céus, isso não é nada bom. Limpe-se da lama e fique deitada.

       Ela foi ao banheiro e jogou água no rosto, antes de limpar os montículos de lama aderidos ao corpo. Quando saiu de lá, Dart apontou para a cama.

       — Mulheres! Escravas do próprio corpo, todas elas! — Nora teve uma vaga noção de que ele lhe dirigia outro olhar enfastiado. — Uma bolsa-sacola Gucci de setecentos dólares coberta de lama! Lá vou eu novamente fazer para você o trabalho que lhe competia!

       Ele despejou mais vodca no copo.

       — E, caso ainda não saiba, todo o gelo acabou.

       Nora viu o teto escurecer, quando ele levou uma vela para o banheiro. Seu corpo ardia. Ouviu barulho de água correndo. Dart falava para si mesmo, em tons de lamentosa autopiedade. Ela enxugou a testa. Podia sentir sua temperatura subindo. Inseto, onde está você, insetinho? Uma onda de calor, de fogacho, dificilmente está completa sem um toque de formigamento. Devemos formigar? Muito bem, experimentemos o circo da desfaçatez. Dick Dart sente repulsa da biologia feminina, então montemos o circo inteiro da menopausa. Dê-me um F, dê-me um O e dê-me um R. Formigamento, é para ti que canto! A barafunda em seu corpo fazia a cama oscilar suavemente, para cima e para trás. De além da lareira, chegaram um roçagar de asas coriáceas e um zumbido de regozijo. Fora, demônios, não quero vocês agora! Ela enxugou o rosto com uma ponta do lençol, que ficou melosa com a umidade.

       Dart assomou com a cabeça pela porta do banheiro e anunciou que, se ela não estivesse pronta para o momento em que Cavalo Malhado chegasse, haveria de lamentar. Muitíssimo obrigada, mas justamente agora já estou farta de lamentar-me.

       Após durar uns três ou quatro minutos, a onda de calor amainou, deixando para trás o costumeiro senso de esgotamento. Do banheiro brotavam sons sibilantes, acompanhados de resmungos de Dart. Nora recordou que ele havia colocado a arma na gaveta de sua secretária. Surpresa, surpresa! Ela enxugou o corpo com as mãos e girou as pernas para fora da cama. Os sons de água correndo e exclamações de ira testemunhavam a concentração do sr. Dart em sua tarefa. Embora Nora ignorasse tudo relacionado a revólveres e seu funcionamento, sem dúvida descobriria como fazer a coisa disparar, uma vez que o tivesse nas mãos. Moveu-se silenciosamente para o meio do quarto, e notou que a gaveta da secretária parecia ter sido deixada aberta. Mais seis passos na ponta dos pés a levaram até a secretária. Enfiou a mão na gaveta e tocou a madeira nua. O que está havendo, Dick? Você não confia em mim?

       Caminhando até a porta, ela vestiu a capa de chuva e pressionou os botões. No banheiro, Dart estava inclinado sobre a banheira, as mangas repuxadas bem acima dos cotovelos. Uma vela fora posta no fundo da banheira, e sombras trêmulas enxameavam pelas paredes. A tintura que pingava dos cabelos dele manchara de negro a aba do colarinho de sua camisa. Uma espessa linha escura corria do meio da banheira para o ralo, e notas flácidas de dinheiro estavam penduradas às laterais para secar. O cutelo de açougueiro e a faca de trinchar jaziam embainhados em lama, ao lado da sacola. Vários frascos, escovas e outros artigos cosméticos já haviam sido lavados e colocados sobre o vaso.

       Dart olhou enojado para a capa que Nora vestia.

       — Pegue uma toalha. Uma das pequenas.

       Ela passou-lhe uma toalha de rosto, que ele molhou na torneira aberta.

       — Limpe a lama do assoalho, antes que seque.

       — Perfeitamente, senhor!

       Nora foi para o quarto com a toalha, a fim de limpar as marcas lamacentas de pisadas. Quando retornou, Dart erguia a bolsa diante do corpo.

       — Afinal, esta coisa poderá sobreviver. — Ele entregou-lhe a bolsa molhada. — Procure secá-la o mais que puder. Rasgue as páginas de um daqueles livros, faça um chumaço com a toalha dentro da bolsa e depois amasse as páginas entre a toalha e o interior da bolsa. Não esqueça dos cantos. Faça isso aqui, para eu ter certeza de que fez direito.

       Nora levou os livros para o banheiro e os colocou no chão, ao lado do vaso, para rechear a bolsa com a toalha.

       — Use toda a água que for preciso. Deixe-a limpar os cantos inferiores.

       Nora enfiou a toalha dentro da bolsa, e Dart abaixou-se sobre a banheira, a fim de enxaguar em água quente a toalha que ela usara para limpar o chão. Depois ensaboou-a e começou a lavar o cutelo de açougueiro.

       — Você decora tudo o que lê e nunca mais esquece?

       Dart soltou um suspiro e reclinou-se contra a banheira.

       — Eu já lhe disse. Não decoro coisa alguma. Depois que leio uma página, ela fica lá, por si mesma. Quando desejo vê-la, apenas olho para ela, como se fosse uma fotografia. Se eu quiser, posso recitar de trás para diante todos aqueles livros que tive de ler para minhas velhas damas. Deixe-me verificar isso.

       Enrolando os dedos na toalha dela, ele os correu através do forro da bolsa.

       — Um chumaço de papel sanitário aqui para baixo. Você gostaria de ouvir Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, de trás para diante e do começo ao fim? É quase tão ruim quanto a leitura direta.

       Nora enfiou papel sanitário nas quinas da bolsa, e começou a rasgar páginas de Jornada na Noite.

       Dart passou o cutelo de açougueiro em água quente e tornou a ensaboá-lo.

       — Como pensa que consegui cursar a faculdade de Direito? Dê o nome de um caso, e poderei citar toda a maldita coisa. Se isso era tudo que me cabia fazer, eu o fiz sempre com a nota máxima.

       — Isso é extraordinário!

       Nora colocou as primeiras páginas bem coladas no manchado forro de seda.

       — Não imagina o quanto fiquei aliviado, ao ser indicado para alguém como Marjorie West. Setenta e dois anos, rica como a rainha da Inglaterra, sem jamais ter lido um livro na vida. Quatro maridos mortos e nunca mais feliz do que quando falando sobre sexo. A mulher ideal.

       Nora conhecera Marjorie West, cuja casa na Mount Avenue era ainda mais grandiosa do que “Os Álamos”. Ela própria era uma estrutura em excelente escala, embora muito reconstruída, principalmente no rosto. Nora descobriu que não queria pensar no relacionamento de Marjorie West com Dick Dart. Nestes momentos, também Marjorie West provavelmente não desejaria pensar demais nisso. Nora rasgou mais umas vinte páginas de Jornada na Noite.

       — Sendo assim, você também poderia fazer citações deste livro.

       — Você já me ouviu fazendo isso — disse ele, colocando o cutelo de açougueiro em cima do tapete e estendendo a mão para a faca de trinchar.

       — Fale-me sobre esse cofre volumoso, o que é maior por dentro do que por fora.

       — Você tem o livro bem à sua frente.

       — Não posso ler nesta luz. Qual é a aparência do cofre?

       Dart careteou para a quantidade de lama ainda aderida à faca.

       — A aparência dele por fora? Eu lhe fornecerei toda a sentença, a fim de que capte a atmosfera. “Com muitos temíveis e ferozes olhares de soslaio, muitos dolorosos empurrões nas costelas, muitos ajustamentos de seu enorme chapéu, Madame Lyno-Wyno Ware levou Pippin pelos corredores de sua mansão infestada de aranhas até um portal onde estavam escritas as palavras MUITO PRIVADO, depois até uma câmara de aspecto sombrio, em seguida a uma outra tendo escrito na porta MUITO, MUITO PRIVADO, e dali a uma câmara bastante mais sombria, cuja porta era marcada pelas palavras MUITO, MUITO PRIVADAMENTE PRIVADO, que rangeu ao abrir-se para a mais sombria de todas as câmaras, em cujo interior ela estendeu seu braço espaventosa para apontar, escondido atrás de um andrajoso sofá, um grosseiro cofre de chumbo, com não mais de trinta centímetros de altura.” Isso é tudo, “um grosseiro cofre de chumbo, com não mais de trinta centímetros de altura.” Daí em diante, o assunto é o desapontamento de Pippin, porque aquela coisinha não podia ser o famoso e volumoso cofre. Entretanto, ele resigna-se a aceitar tão infausta perspectiva e ganha a dianteira, diz as palavras adequadas e tudo fica certo, por assim dizer.

       Dart enxaguou a faca de trinchar, aproximou-a dos olhos para uma inspeção e esfregou a toalha ensaboada nas brechas em torno do cabo.

       — A chave de ouro o leva até Madame Lyno-Wyno Ware?

       — Mentira? Não. Ora, em absoluto! — Dart pegou seu copo com uma mão gotejante e terminou a vodca. — A verdade é sumamente importante, não se pode mentir para a sra. Lyno-Wyno Ware, de modo nenhum. — Ardendo de impaciência, ele espiou o recheio de papel dentro da bolsa. — Já chega. Dê uma corrida à cozinha e traga-me mais bebida.

       Quando ela voltou, Dart sorveu um gole, largou o copo e enxugou as facas meticulosamente. Uma forte mancha vermelha escurecia seus malares.

       — Limpe a confusão na banheira. Trabalhe depressa, porque tenho muito a fazer, devo preparar-me para a chegada da Cavalo Malhado, a doce Marian.

       Nora ajoelhou-se diante da banheira. Algumas moedas de dez e vinte e cinco centavos cintilaram por entre o líquido castanho que se escoava lentamente. O estrondo da chuva no teto duplicou-se subitamente. A janela acima da banheira inflou-se para dentro durante um segundo, e o chalé inteiro estremeceu.

       Nora saiu do banheiro. Dart olhava fixamente para o teto.

       — Pensei que toda essa coisa fosse desmoronar. Ponha a bolsa em cima da mesa e traga-me a corda. Nem vamos precisar da fita adesiva, não acha?

       Ela colocou a bolsa na mesa.

       — A capa.

       Dart removeu a gravata e a deixou cair sobre um ombro do terno. Nora desabotoou a capa vermelha, pendurou-a em um cabide e, com o coração disparando no mesmo compasso das pancadas da chuva no teto, caminhou para ele levando a corda.

       — Há uma ligeira possibilidade de que eu tenha abusado da vodca, mas está tudo bem.

       Dart concentrou-se em arrumar sua camisa em um cabide. As facas haviam sido colocadas debaixo do travesseiro dele, no lado esquerdo da cama, com o seu cuidado habitual.

       — A corda. — Nora aproximou-se para entregar-lhe o rolo de corda para varal. Ele despiu a cueca. — Sente-se.

       Com a faca de trinchar, que tirou de sob o travesseiro, Dart cortou dois pedaços de corda medindo quase um metro e meio, e girou o corpo para o lado da cama.

       — As mãos — disse. Logo em seguida amarrava os pés e mãos dela. — Durma um pouco. A festa ainda não terminou.

       Nora ajeitou-se com dificuldade na cama, e espiou Dart ocupado em alinhar a faca debaixo de seu travesseiro. Ele estirou-se na cama e fechou os olhos. Depois rolou a cabeça de lado no travesseiro e pareceu considerar algum ponto duvidoso. A corda mordia os tornozelos e pulsos de Nora.

       — Para que, diabos, tinha você de preocupar-se com o cofre volumoso, afinal de contas?

       O vento e a chuva castigaram as janelas da cozinha.

       — Gosto de ouvir você fazendo citações — respondeu Nora.

       — Tudo bem. Não se preocupe, porque acordarei em tempo.

       Em segundos, ele estava dormindo.

      

O CASTIÇAL CAIU ao chão, em uma poça líquida e móvel. No outro lado da mesa, uma claridade mais pálida infiltrava-se através da porta do banheiro. Todo o resto era uma informe escuridão. Dick Dart começou a emitir suaves e breves roncos, mal audíveis acima do ruído da chuva tamborilando no teto. As mãos dela começavam a ficar dormentes. Bêbado e apressado, Dart tinha feito nós mais apertados do que antes, de maneira que a corda interrompia-lhe a circulação. Ela abriu e fechou os punhos, flexionou os dedos, deslizou os pulsos para cima e para baixo. Em seus pés teve início um perigoso formigamento. Com os olhos atentos à luz da vela que deslizava pelo assoalho liso, Nora explorou o nó com os dedos.

       O erro de Dart em incluir o que seu pai no sonho chamava de “estrangulamento” significava que ela podia manipular a corda, sem imobilizar as mãos. Se conseguisse localizar a ponta da corda, deslizá-la por baixo da alça mais próxima, desenrolando-a em seguida e passando-a por baixo da alça seguinte, então todo o mecanismo se desfaria. Entretanto, a cada vez que seus dedos identificavam uma alça, esta tornava a desaparecer no emaranhado dos fios. Da primeira vez que se libertara deste nó, Dart a amarrara com as mãos na frente do corpo. Agora, com ambas as mãos atadas às costas, ela teria que usar os dedos para tatear e encontrar a ponta da corda.

       O ombro sob seu corpo doía, os pulsos começavam a queixar-se. Seus pés continuavam a dolorosa descida para o esquecimento. Nora girou os olhos para cima, concentrada, e percebeu que a escuridão era obliterada pela persistência de visão do castiçal. Se quisesse enxergar alguma coisa, qualquer coisa, teria que desviar os olhos da luz.

       Gemendo, ela rodou os joelhos e ficou deitada de costas. Um enorme círculo vermelho borrava o teto. Outra torção do corpo a deixou de frente para Dart. A respiração dele ficava presa na garganta, antes de explodir em um ronco sonoro. Nora tentou separar os pulsos à força, e a dor aumentou. Tornou a fechar as mãos em punhos, distendeu e encolheu os dedos, deslizou os pulsos de um lado para o outro. Houve uma folga, afinal. O formigamento das mãos começou a diminuir.

       Quanto tempo ainda teria? Era improvável que a Donzela Marian estivesse desesperada o suficiente para enfrentar um dilúvio a fim de dormir com Norman Desmond, mas a vaidade de Dart ignorava tempestades.

       Ele esperava a ansiosa Marian dentro de uns vinte minutos. Mesmo bêbado, com toda probabilidade seria capaz de acordar em tempo.

       Nora dobrou as mãos, esfregou as pontas dos dedos sobre o emaranhado da corda, e sentiu apenas fios entrelaçando-se. Manobrou o corpo de maneira a ficar deitada no lado contrário, e arrastou-se para o final da cama. Girou as pernas para fora do colchão e baixou os pés até o chão. Eles registravam apenas um profundo e doloroso formigamento. Seus dedos sondaram o nó, sem sucesso. Era preciso aumentar a quantidade de corda que poderia alcançar, e a única maneira seria fazendo toda a estrutura deslizar para mais perto das mãos.

       Se pudesse colocá-la entre os pulsos e puxar as mãos para cima, a maçaneta talvez funcionasse. Firmou os pés no chão e uma trilha vermelha queimou toda a distância entre suas solas e seus joelhos.

       O tempo está acabando, garota.

       Os dois primeiros dedos de sua mão direita encontraram um fio. O fio moveu-se. O coração dela disparou, a respiração acelerou-se. Algo voejou acima de sua cabeça. Ela forçou o fio a destacar-se do nó, enquanto terror e esperança chamejaram em brasa viva, no centro de seu corpo. O fio escapou-lhe dos dedos, e ela o perdeu. Outro ser inexistente cacarejou da bancada da cozinha. Nora trabalhou com os dedos, procurando o fio da corda, mas encontrou apenas entrelaçamentos.

       Mova-se!

       Plantando os pés ardentes no chão, ficou em pé, mordendo a língua para sufocar a dor. Seus tornozelos dissolveram-se, e ela caiu como uma torre de blocos de armar, em setores, as ancas indo para um lado, os joelhos para o outro. Um quadril se chocou contra o chão, depois um ombro. Dart arrotou, tossiu, recomeçou a roncar. Nora ajustou-se àquelas novas dores. Um par de felizes olhos vermelhos brilhou para ela, na porta do banheiro. Fodam-se! Nora pensou em sentar-se, e percebeu que um suporte corria a uns sete centímetros acima e atrás dela, indo dos pés da cama até a cabeceira. Um suporte talvez fosse tão bom quanto uma maçaneta.

       Ela dobrou os joelhos à frente do corpo, grunhiu e ergueu-se um pouco, com dificuldade. Achatados sob as pernas, os pés continuavam a queimar. Inclinando-se alguns centímetros para trás, ela ajeitou a corda contra a borda da madeira. Depois empurrou-a para baixo e tateou pelo fio frouxo. Nada. Ofegando, empurrou de novo. O nó cedeu menos de meio centímetro, e os dedos dela encontraram a linha em relevo do fio. O suor pingava de sua testa. Um som agudo e suave parecia ter-lhe escapado da garganta por si mesmo. O fio moveu-se para fora e ficou livre.

       De olhos fechados, Nora o manobrou em torno e embaixo. As algemas entrançadas afrouxaram-se. Ela sacudiu os pulsos e o nó caiu.

       Seus pés deslizaram pelas coxas. Ofegando, inclinou-se e fez os dedos tatearem através da corda em volta de seus tornozelos. Um empurrão, um puxão, um desemaranhar, e a corda tombou aos seus pés.

       Nora afastou-se da cama engatinhando, depois colocou um pé debaixo do corpo. O pé não queria estar ali, mas teria de fazer o que lhe fosse ordenado. Pondo-se de pé, ela deu um passo experimental para diante e conseguiu não cair. A tempestade, que parara desde que tinha percebido o suporte de madeira, explodiu em nova carga.

       Onde Dart deixara a arma? Nora não se lembrava de vê-lo colocando-a em algum lugar, de modo que devia continuar no paletó dele. Ela cambaleou na direção do armário. A sensação retornou-lhe aos pés, em ondas e estocadas, mas os tornozelos agüentaram. De mãos esticadas para diante, ela se moveu em frente, até sentir o tecido do terno de Dart. Deslizou com os dedos para baixo até encontrar um bolso e, enfiando a mão nele, encontrou as chaves. Tirou-as e alcançou o bolso vazio do outro lado.

       Apertando as chaves na mão esquerda, caminhou lentamente ao longo da cama. Dart pusera as facas debaixo do travesseiro — por que não o revólver também? Ele estalou os lábios. Nora estendeu uma mão trêmula, tocou a borda do travesseiro, e encontrou um cabo de madeira. Havia outro ao lado dele. Milímetro a milímetro, sua mão trêmula os foi puxando devagarinho de baixo do travesseiro. Dart suspirou e girou o corpo. Ela tateou pelo revólver e tocou algo metálico.

       — Quê? — exclamou Dart, e esticou a mão para o espaço onde ela deveria ter estado.

       Amedrontada demais para raciocinar, Nora apoderou-se da faca de trinchar e a enterrou nas costas dele. Por um instante, a pele de Dart resistiu, mas então a lâmina furou e penetrou. Ele deu um salto para diante, carregando a faca consigo. Nora remexeu debaixo do travesseiro, e sua mão se fechou sobre um cilindro de metal. Dart torceu o corpo e mergulhou para ela. Empunhando o revólver, Nora recuou e correu para o outro lado do quarto.

       Ele cambaleava, tendo caminhado uns poucos passos depois da cama.

       — Pare! — gritou ela. — Eu estou com a arma! — Tentou encontrar a trava de segurança que Dan Harwich mencionara, porém mal conseguia enxergar o revólver. — Atiro em você sem pensar duas vezes!

       — Você me esfaqueou! — gritou ele.

       Nora mergulhou para trás da segunda cama e moveu o polegar por cima da chapa atrás do cilindro. Não era ali que devia ficar a maldita coisa? A pistola que Harwich lhe dera não tinha tambor; isso fazia alguma diferença?

       Dart parou de mover-se, quando alcançou a mesa. Espantosamente para Nora, ele deu uma risada, sacudiu a cabeça, depois tornou a rir. Embora ela fosse apenas uma vaga silhueta na escuridão, Dart encontrou-lhe os olhos diante dos seus.

       — Devo dizer que isto dói.

       Dart girou o pescoço, a fim de ver a faca que se projetava de suas costas.

       — Pensei que já tivéssemos ultrapassado este tipo de bazófia. — Ele enxergou a faca, suspirou e moveu a mão para as costas. — Talvez eu precise dos serviços de uma enfermeira. — Dart fechou os olhos, enquanto puxava a faca. — Não pense que vou deixar isto passar. Trata-se de uma séria quebra de conduta.

       — Cale a boca e sente-se — disse Nora. — Vou amarrá-lo. Se você ainda estiver vivo de manhã, eu o levarei a um hospital. Com escolta policial.

       — Que generosidade! Entretanto, já que você tentou matar-me uma vez, duas se contarmos Springfield, inclino-me a pensar que Nora-docinho não está realmente de posse da grande arma malvada. Se estivesse, dispararia agora mesmo contra mim.

       Ele pressionou uma das mãos sobre o ferimento, atirou a faca na escuridão e deu um passo para a mesa.

       — Pare! — gritou Nora.

       — Por que não ouvi nenhum ruído? — disse ele, dando mais um passo.

       Uma vez que não encontrara a trava de segurança, Nora puxou o gatilho em pânico e desespero, certa de que nada iria acontecer. A explosão lançou sua mão a mais de metro além da cama, liberando um jato de chama e um enorme rugido. Seus ouvidos ensurdeceram.

       Dart desapareceu na escuridão. Ela apontou para onde pensou que ele teria ido, e tornou a puxar o gatilho. A arma saltou, o coice carregando sua mão consigo. Tornando a atirar, causou outra explosão que jogou sua mão para o teto. Nora apertou o punho da mão direita com a esquerda, e experimentou o revólver várias vezes contra os fundos do chalé. Um vivido retrato mental de Dick Dart rastejando pelo chão a fez recuar, até seu ombro colidir com a parede.

       Não tendo mais para onde ir, Nora engatinhou para baixo da cama. A uma distância inimaginável dali, as velas que ela não podia ver ardiam sobre uma mesa também fora de seu campo visual. Engatinhando um pouco mais, percebeu que deixara as chaves no chão. Quando chegou ao outro lado da cama, deslizou para fora e ficou em pé.

       Uma sombra enorme ergueu-se a meia distância, vindo em sua direção. Nora pressionou os dentes, firmou a mão esquerda sobre o punho direito, e disparou sem fazer pontaria. Comprimiu o gatilho devagar, isto também sendo uma lição que recebera de Dan Harwich. Um fogo sujo foi cuspido do cano, e a arma saltou em suas mãos. A sombra atacante desapareceu. Ela sentiu, embora não ouvisse, um corpo cair no chão.

       Rastejando para debaixo da cama, Nora esperou que as tábuas do assoalho vibrassem, que uma mão serpenteasse ao seu encontro. Nada aconteceu. Movendo-se para diante, sua mão tocou um líquido quente. Saindo de seu esconderijo, ela se moveu para os pés da cama. Uma sombra escura jazia a cerca de um metro de distância.

       Mantendo a arma bem firme à frente do corpo, Nora moveu-se em redor do corpo, fazendo um amplo círculo. Ele não se moveu. Ela chegou mais perto. Uma fita de sangue escorria da cabeça de Dart e corria cintilante pelo assoalho. Nora encostou o cano da arma na testa dele e, pelo que lhe pareceu um tempo imensurável, pressionou o gatilho, liberou-o, tornou a pressionar. A idéia de tocá-lo deixava seu estômago revolto.

       Procurando manter-se firme sobre os pés, ela se lembrou de apanhar as chaves e vestiu a capa de Marian Cullinan, surpresa por nada sentir além de uma inexpressiva aceitação. Os demônios tinham voado, restando somente um entorpecimento. O resto — o que quer que fosse o resto — viria mais tarde.

       Com os ouvidos tilintando, ela enfiou o revólver no bolso da capa vermelha, e os pés nas botas de borracha de Tony. Destrancou a porta. Quando a abriu, a tempestade arrebatou-a de suas mãos e a jogou de volta contra a frente do chalé. Toda Shorelands, talvez toda a parte oeste do Massachusetts, eram como o centro de uma queda d’água. Por um momento, Nora pensou em ficar dentro do chalé até que o temporal terminasse; então imaginou as velas queimando até o fim, e os dois — ela e Dart — esperando o final daquela noite.

       Ao enfiar o chapéu de Marian na cabeça, ouviu uma tosse arquejante. Seu coração gelou. Uma forma vaga ficou de joelhos, caiu, içou-se alguns centímetros para diante. Ela remexeu no bolso e pegou a arma. A forma ficou mais compacta, avolumando-se à frente em uma enorme sombra. A arma na mão dela liberou outro jato de luz. A explosão atirou-lhe a mão quase um metro para cima, e algo golpeou os armários da cozinha. A sombra negra parou de mover-se.

       Então ela estava no alpendre e movendo-se para a queda d’água sem nenhuma lembrança de haver cruzado a porta. Enfiando a arma novamente no bolso da capa, Nora correu para fora do alpendre do chalé.

      

SEUS PÉS PERDERAM apoio, e um coice do vento atirou-a na lama. O lado gelado abraçou-lhe as pernas e internou-se pela capa. Nora lutou para pôr-se de pé, porém o chão deslizava sob suas mãos, e durante uma eternidade ela rastejou por entre o encharcado lodaçal. Finalmente, uma relva, metade lama e metade relva, encontrou suas mãos. Ela esforçou-se em ficar de pé, e outra interminável onda de vento impelido pela chuva a deixou entontecida e vacilante.

       Miraculosamente, em poucos minutos não se sentiu mais cega nem surda. Os troncos de carvalhos maciços emolduravam seu campo visual. A pouca distância dali, o dilúvio continuava a assaltar o preguiçoso rio que certa vez fora uma trilha. O vento a empurrara para a floresta, onde o dossel de folhas e ramos entorpeciam a queda d’água. Sua respiração vinha em haustos arquejantes, e seu coração era um bater de tambor. Atrás dela, as árvores gemiam. Nora virou-se para a Casa Principal e deu um passo. Bem, mas a Casa Principal não ficaria à direita, em vez de à esquerda? Ela deu outro passo no que pareceu a direção errada, assim que moveu o pé. Um enorme galho quebrou acima dela e caiu ao chão, uns três metros à sua frente. Mais no interior da floresta, outro galho se partiu, caindo ao solo. Quando olhou para trás, viu que conseguira afastar-se do chalé apenas por uma pequena distância.

       Uma luz mortiça tremulou na porta do chalé; um segundo mais e a silhueta de um robusto corpo masculino encheu a abertura. A luz amarela refletiu-se em uma lâmina achatada. Ela recuou para uma árvore e gritou. O homem saltou do alpendre, desaparecendo na escuridão. Nora mergulhou na floresta, esperando estar indo para a Casa Principal.

       Tropeçava em galhos caídos e ia ao encontro de árvores invisíveis. Montículos que lhe chegavam à cintura saltavam para ela. Chuva encachoeirada brotava acima dela, galhos batiam-lhe na testa e espetavam suas costelas. Ela começou a caminhar com as mãos à frente do rosto; de vez em quando movia um pé no vazio e escorregava ladeira abaixo, até poder agarrar-se a um ramo. Tombou sobre rochas, sobre raízes. A arma em seu bolso arranhava-lhe a coxa, ao passo que as rochas e galhos que a golpeavam em suas quedas machucavam todo o resto. Nora não tinha idéia da distância que já percorrera e em que direção. A pior coisa que sabia era que Dick Dart — que deveria estar morto, mas não estava — agora a seguia de perto, identificando sua caminhada pelo som que ela produzia.

       Nora sabia disso porque também podia ouvi-lo. Um ou dois minutos depois que fugira da visão dele saltando para fora do alpendre, ouvira-o praguejar, ao ser atingido por um galho. Quando ela tombara contra um monte de terra e caíra em uma moita, pudera ouvir o som das risadas dele, um som fraco, mas distintamente audível, parecendo vir de todos os pontos em torno dela. Dart não a tinha visto, mas por entre os milhares de ruídos que o cercavam, ele ouvira os sons de sua queda e a luta contra a moita, o que lhe havia permitido compreender o que significavam. Com toda certeza, também ouvia-lhe as botas batendo e escorregando no lodaçal. Nora corria com os braços erguidos, ouvindo atrás de si o som fantasmagórico de Dart abrindo caminho por entre o arvoredo.

       Minutos mais tarde, esse som sobrenatural ainda chegava a ela através de uma renovação do estrondo da queda d’água; Nora abriu caminho por entre obstáculos quase invisíveis, e chegou à razão daquele barulho. Do outro lado de uma alameda de árvores, uma cortina de água abatia-se sobre um rio negro. Ela havia chegado a outra trilha, dando-lhe a quase certeza de que correra na direção errada: as trilhas levavam a chalés, e não havia chalés em linha direta entre Pote de Pimenta e a Casa Principal. Os passos-fantasmas de Dart avançavam firmemente para ela.

       Nora chegou às árvores que marginavam a trilha, baixou a cabeça e enfrentou o dilúvio. Lutando por equilíbrio, caminhou para diante com dificuldade, as botas tornando-se pegajosas e escorregadias. Por fim, a maré começou a solidificar-se sob seus pés, e ela espiou à frente, descobrindo outra muralha de árvores. A barragem diminuía a pesada tormenta.

       Olhando para trás, ela julgou ver uma forma pálida que aparecia e desaparecia entre a floresta, no outro lado da trilha. Encaminhou-se então para um maciço de carvalhos e começou a descida de uma pequena ladeira. O solo amolecera-se, depois cedeu, e seus pés deslizaram em um plano inclinado. Instintivamente, ela agachou-se para frente, a fim de manter o centro de gravidade no lugar, e continuou deslizando, deixando os carvalhos para trás, contornando rochas e balançando-se de um lado para outro a fim de não perder o equilíbrio. Conseguiu manter-se sobre os dois pés, até que um galho mais baixo acertou seu tornozelo direito e a enviou aos trambolhões contra um tronco de árvore. Fagulhas cintilaram diante de seus olhos, e seu corpo deslizou em um lento cruzeiro ladeira abaixo. Quando finalmente parou, o chapéu de Marian desaparecera, sua cabeça latejava e a metade inferior de sua perna direita parecia estar submersa. A perna saiu da água ao engatinhar sobre os joelhos.

       Achava-se agora em campo aberto, e a tormenta começara a amainar. Ao mesmo tempo, durante a viagem ladeira abaixo, o vento diminuíra. Estonteada e exausta, ela ergueu a perna direita para despejar a água que enchia a bota. Seus músculos doíam, e a cabeça latejava. A claridade do céu tinha aumentado. Mais depressa do que havia chegado, a tempestade estava terminando.

       Diante dela, uma grande porção d’água com cerca de metro e meio de diâmetro, movia-se rapidamente da direita para a esquerda. A chuva perfurava e martelava a superfície daquela água. Seria um rio? Nora perguntou-se até onde teria caminhado. Percebeu então que, engordado pela água da chuva e tendo inundado suas margens, este formava o pequeno regato que corria através da propriedade. Atrás dela, algum objeto enorme estalou, suspirou e se rendeu à gravidade. Dart estava ganhando terreno. Precisava esconder-se dele, até conseguir alcançar a Casa Principal.

       Por que ele não sangrara até morrer, como as pessoas normais?

       Nora deu uma passada para a água que se movia rapidamente, e seixos lisos encontraram as solas das botas. A chuva agora passara a ser um amontoado de pingos caindo. O vento agitava a superfície da água e comprimia a capa contra o corpo dela. No alto, uma sólida massa de grandes nuvens lanudas cruzava o céu. Com um choque, ela percebeu que agora passava um pouco das nove de uma noite de agosto. Acima da tormenta, o sol se pusera apenas recentemente. Ela escalou a margem oposta do regato, vadeando o terreno alagado a fim de alcançar a terra firme com árvores e lá esconder-se do homem que a perseguia.

       Ela ouviu risadas entre o tamborilar da chuva e o sibilo das folhas.

       Por entre o volume de troncos, Nora viu o que parecia um nevoeiro acinzentado. Seguiu em frente, e o nevoeiro transformou-se em um maltratado prado, onde o mato crescido inclinava-se diante do vento frio. No outro lado do prado, vozes agudas atacavam subitamente, guinchando como gaitas de foles, elevando-se em cromáticos intervalos, introduzindo dissonâncias, ascendendo em resolução, estilhaçando-se, tornando a unir-se em harmonia, dividindo-se e juntando-se em uma melodia interminável, sem pausas ou repetições.

       Cantando?

       Por um segundo, mais prolongado no exterior do que no interior, à semelhança do volumoso cofre, Nora despencou através do tempo e acordou para a música etérea, em um quarto na Crooked Mile Road, em Westerholm, Connecticut, ansiosa por encontrar uma pistola há muito desaparecida. Então, percebeu onde se encontrava. Ao invés de ir para o sul, ela correra quase diretamente para oeste. O prado à sua frente era o Campo Nevoento, e as vozes provinham dos Pilares Cantantes do Vale de Monty. Incapaz de esconder-se, ela puxou a arma do bolso e girou em torno, procurando Dart. Caminhou diante do arvoredo, apontando a arma para diante e para trás. Dart não se mostrou. Nora caminhou para a direita, depois para a esquerda, em seguida ficando parada, à espera dele surgir à vista.

       Foi quando compreendeu o que Dart havia feito. Ele a seguira e perseguira durante apenas um trecho, através do riacho e na direção do Campo Nevoento. Queria que ela encontrasse um esconderijo onde enfurnar-se e lá ficar, esperando que ele passasse. Nesse meio tempo, ele estaria a caminho da Casa Principal.

       — Oh, meu Deus! — exclamou ela.

       Começou a correr pela borda do prado até um ponto no arvoredo onde poderia vadear a torrente, passar pela Casa do Mel e aproximar-se da Casa Principal, pelo gramado oeste. Parou para livrar-se das botas que a atrapalhavam. Descalça, com o solo chapinhando sob seus pés, recomeçou a correr.

       Uma figura pálida emergiu da floresta, no canto mais distante do Campo Nevoento. Nora ficou gelada. O revólver queria escorregar de sua mão enlameada. Talvez estivesse sem balas, talvez não. Se carregado, talvez disparasse, talvez não. A figura moveu-se em sua direção. Ela ergueu o revólver, e o homem à sua frente chamou seu nome, transformando-se em um encharcado Jeffrey Deodato.

      

NORA deixou a arma cair. Jeff perdera seu boné de Eton. Coberto de sujeira e riscas lamacentas, o impermeável colava-se a ele como um trapo molhado. Outras riscas escorriam-lhe pelo rosto. Em se tratando de Jeffrey, aquilo sugeria que se camuflara deliberadamente. Ele chegou perto o suficiente para que ela lhe visse a expressão dos olhos. Sem a menor dúvida, a aparência dela era bem pior do que a dele.

       — Você veio, afinal — disse ela.

       — Pareceu-me uma boa idéia. — Jeffrey baixou os olhos para o revólver. — Obrigado por não atirar. Onde está Dart?

       Aparentemente, Jeffrey soubera muita coisa, desde que se tinham falado ao telefone.

       — Eu o matei — disse ela. — Mas não funcionou. — Ergueu o revólver e contemplou a arma. — De qualquer modo, acho que não sobraram balas nesta coisa.

       Jeffrey tomou-lhe o revólver delicadamente.

       — Quer dizer que você fugiu dele.

       — Era o que parecia. Entretanto, acho que após algum tempo ele começou a perseguir-me. Queria afastar-me do cenário, para poder divertir-se com as mulheres na Casa Principal. Depois viria atrás de mim e teria todo o divertimento da caçada, antes de acabar comigo. Não podemos ficar aqui conversando, Jeffrey; temos que entrar em movimento.

       Ele examinou o tambor do revólver.

       — Ainda lhe resta uma bala, mas não está em lugar muito seguro, a menos que você queira disparar na própria perna. — Ele girou o tambor, recolocou-o no lugar com um clique metálico, e estendeu-lhe o revólver, a coronha primeiro. — Vamos sair daqui e encontrar um telefone.

       Frenética de impaciência, Nora tornou a enfiar o revólver no bolso.

       — Os telefones estão mudos. — Ela olhou em torno, desvairadamente. — Temos que chegar à Casa Principal!

       Jeffrey continuava a observá-la. O espetáculo que ela apresentava obviamente não inspirava muita confiança em sua capacidade para lidar com Dick Dart. Nora baixou os olhos para a arruinada capa de chuva vermelha e suas pernas esfoladas. Parecia um moleque, puxado de um lodaçal.

       — Casa Principal? — perguntou Jeffrey.

       Ela o segurou pela manga do impermeável e o puxou de volta à floresta.

       — Se não formos, ele assassinará todo mundo. Vamos, caso pretenda ir. Do contrário, eu vou sozinha.

       Ela o viu decidido a animá-la.

       — Ganharemos mais tempo se permanecermos junto das margens da trilha. — Ela começou a dizer qualquer coisa, mas ele a interrompeu. — Eu lhe mostrarei. Tudo o que precisamos saber é onde fica a Casa Principal, a partir daqui.

       — Fica lá — respondeu ela, apontando para a floresta.

       Irritantemente, Jeffrey começou a correr de volta à direção da qual tinha vindo. Nora correu atrás dele.

       — Estamos indo para o lado errado!

       — Não, não estamos — respondeu ele calmamente. — Jeffrey, você está perdido!

       — Não. Não estou mais.

       No final do prado, Jeffrey apontou para a faixa de solo molhado, mas sólido, diretamente à frente das árvores. Ele estava certo. A trilha parecia um mingau, mas os dois podiam mover-se ao lado dela sem cair. A claridade vacilante diminuía, fazendo Nora recordar como era mover-se no seio da floresta e no escuro.

       — Viu só? — exclamou ele.

       — Está bem, vamos — replicou ela.

       Tão perto das árvores que Nora podia sentir as raízes sob os pés descalços, eles começaram a avançar em uma corrida a passos curtos e firmes.

       — Estou indo muito depressa para você? — perguntou Jeffrey.

       — Posso correr tão bem quanto você — respondeu ela. — O que foi que fez, depois de falarmos ao telefone?

       No posto de gasolina, esperando que a tormenta amainasse, Jeffrey fora ficando cada vez mais inquieto. A explicação de Nora sobre como tinha ido parar em Shorelands, e seus motivos para enviá-lo de volta a Northampton, pareciam incoerentes, sua atitude pouco natural. Ele conseguiu pôr o MG em movimento nas estradas alagadas para Shorelands, e vira o Duesenberg no pátio de estacionamento. Acabando de chegar em seu caminhão, Tony o mandara embora. Onde está a sra. Desmond?, perguntara Jeffrey, e Tony respondera: Se o senhor é amigo daquele Desmond filho da mãe, pode ir para o inferno! Seu telhado tinha goteiras, ele podia ficar na casa de sua irmã em Lenox, e pouco se importava com o que acontecia a Jeffrey. Jeffrey lhe suplicara que chamasse a polícia, tendo Tony respondido que era impossível, mesmo se quisesse, porque os telefones não funcionavam. Onde fica o chalé Pote de Pimenta? Tony respondera com um palavrão e afastara-se dali em seu veículo. Jeffrey começara a caminhar em meio à tempestade. Passou pela Casa Principal, subiu a trilha, encontrou o chalé Pote de Pimenta vazio, e tornou a penetrar na floresta. Percebeu que não tinha idéia de para onde ia. Então, diminuindo o aguaceiro, ele se viu na borda de um campo. Muito distante, à sua direita, avistou um enlameado espantalho, e o espantalho apontava-lhe uma arma.

       — Acho que Tony não se preocupa muito com Dick Dart — disse ele. — Conte-me o que está havendo na Casa Principal.

       À frente deles, a ponte diante da Casa do Mel arqueava-se para fora de uma lâmina móvel de água. Nora afastou-se de sob as árvores gotejantes e vadeou o riacho inundado, enquanto Jeffrey seguia ao seu lado, a barra do impermeável agitando-se atrás dele.

       — Eu gostaria de saber. Há quatro mulheres lá. Marian Cullinan, que trabalha para a administração, Margaret Nolan, que dirige a propriedade, e duas guias que costumavam trabalhar aqui nos velhos tempos. — No lado oposto do leito da torrente, eles começaram a correr a passos curtos novamente debaixo dos carvalhos. — Ele quer matá-las, sei disso muito bem. Um psicopata normal preferiria esgueirar-se no quarto delas e liquidar uma por uma, porém Dart deseja uma festa. Esteve animado a tarde inteira.

       — Uma festa?

       No final da avenida entre as fileiras de carvalhos, Nora chegou à borda do laguinho.

       — Ele adora falar e adora uma platéia. Quer reunir todas elas e proporcionar divertimento para si mesmo. Dart adorou a idéia de fazer com que elas fiquem olhando, enquanto ele as mata, de uma em uma.

       — Odeio dizer isto, mas ele não preferiria acabar logo com isso o mais depressa possível, para que então pudesse fugir?

       — Dart sente-se protegido. Ele presume que é capaz de fugir, não importa quanto tempo leve nisso.

       Jeffrey considerou o detalhe, enquanto se moviam para o laguinho e o campo aberto.

       — Quanto tempo ele já tem de dianteira?

       — Minha noção de tempo foi para o sul, com meu senso de direção. — Ela tentou imaginar por quanto tempo perambulara na floresta. — No começo, ele estava de fato me perseguindo. Tinha ficado fora de si. Eu o esfaqueei, depois atirei nele.

       — Você atirou em Dart? Onde?

       — Ele estava caído de bruços, de modo que tudo quanto vi era sangue fluindo de sua cabeça. Tive certeza de que estava morto, mas não consegui ver o ferimento. Teria checado seus sinais vitais, se pudesse suportar a idéia de tocá-lo. Acho que apenas o feri de leve, droga! Seja como for, comecei a correr e, cerca de um minuto depois, ele arranjou forças para ficar em pé e ir atrás de mim. Pare um momento, Jeffrey; quero fazer uma coisa.

       Ela foi até a borda do laguinho, enfiou as mãos lamacentas na água, esfregou-as até ficarem limpas, e só então voltou ao encontro dele.

       — Não quero que a maldita arma me escorregue das mãos.

       Jeffrey começou a subir o gramado encharcado.

       — Será que ele conseguiu uma meia hora de dianteira?

       Nora parou de andar. Olhou para as mãos molhadas, percebendo que Dart dera a eles mais tempo do que imaginavam.

       — Isso tudo, não. Ele provavelmente levou uns dez minutos indo atrás de mim, antes de mudar de idéia. Procurou dar-me a certeza de que estava perto, quase em meus calcanhares, e então desviou-se para a casa. Isso poderia ter sido há uns vinte minutos. Ele teria então uns dez a quinze minutos para alcançar a casa, mas não começaria logo.

       Jeffrey coçou a testa, deixando uma mancha de lama que acentuou o efeito de camuflagem.

       — Por que não?

       Ela ergueu as mãos que havia lavado no laguinho.

       — Esse sujeito é um dos homens mais melindrosos deste mundo. A primeira coisa que fará, assim que entrar na casa, será limpar-se. Há um banheiro em um pequeno corredor de gabinete, no andar de baixo. Ele pode, inclusive, ter tomado uma ducha. Todos estavam no andar de cima, de modo que haveria tempo de sobra de Dart limpar-se para sua festa.

       — Isso não é uma piada?

       — Jeffrey, ele é o tipo de sujeito que fica louco se tiver que passar um dia sem escovar os dentes. Caso não se sinta apresentável, Dart não terá metade do divertimento que deseja.

       Jeffrey decidiu acreditar piamente nela.

       — Espero que ele não tenha outra arma.

       — Não tem, mas quando o vi pela última vez, estava empunhando um cutelo de açougueiro e, além disso, a cozinha está cheia de facas.

       Acima do gramado, eles ergueram os olhos para a Casa Principal. A noite real já chegara, e os encurvados degraus de pedra subiam indistintamente para o terraço. Além do terraço, as grandes janelas do saguão resplandeciam de luz. Conforme havia predito Marian, a energia elétrica tinha sido restaurada com incrível rapidez.

       Nora olhou para o alto. Todas as janelas do segundo andar estavam escuras, mas na esquina esquerda da casa, as dos quartos de Lily e de Marian mostravam luz.

       — Dart gosta de facas — disse Nora.

       Jeffrey apontou para as janelas do saguão.

       — É para lá que, em sua opinião, ele levará essas mulheres?

       — Dart está com disposição de pavonear-se. Ele quer usar o melhor aposento da casa, que é aquele.

       — Se for verdade, então poderemos ver o que está acontecendo.

       Jeffrey desabotoou o impermeável, puxou os braços de dentro das mangas, e deixou a capa caída em cima da grama. Depois iniciou uma espécie de estudada corrida através do gramado. Quando ambos cobriram metade da distância, passaram a mover-se em quietas passadas.

       Juntos, deslizaram até os degraus da escada e agacharam-se à frente do último degrau. Os dois entreolharam-se, chegaram a um entendimento sem palavras e começaram a subir a escada lado a lado, inclinando o corpo a fim de permanecerem fora de vista. A quatro degraus do topo, espiaram para a parte inferior da janela do saguão, através do piso do terraço. Nora divisou apenas a franja branca de um tapete, o assoalho de madeira e as polidas pernas cilíndricas de uma mesa. Aproximando a cabeça da de Jeffrey, viu apenas um pouco mais do tapete.

       Jeffrey subiu cautelosamente mais dois degraus e inclinou-se para o terraço. Virou-se para trás, fez um gesto de cabeça para Nora, indicando que o esperasse, e então achatou o corpo contra o solo, enquanto rastejava diagonalmente pelo terraço. Nora seguiu atrás dele e via-lhe as solas dos sapatos avançando sobre os ladrilhos molhados. Quando estavam a uns dois metros de distância, ela agachou a parte superior do corpo na direção do solo e rastejou atrás dele, arrastando os joelhos e dedos dos pés nas pedras do calçamento. As presilhas de metal da capa de chuva deixavam escapar um som agudo contra o piso do terraço, e ela continuou engatinhando para diante, apoiada nos cotovelos e joelhos. À frente dela, Jeffrey deslizou o corpo com surpreendente velocidade e chegou até a janela da extremidade mais distante. A chuva brotava sem parar das calhas de águas pluviais.

       Pela primeira vez, Nora teve noção do profundo silêncio envolvendo o som dos pingos de chuva que tamborilavam no chão, do delicioso frescor de cada odor conduzido pelo ar. Até os ladrilhos ásperos debaixo de seu rosto exalavam um cheiro vibrante, penetrante e vivo. Jeffrey esticou o corpo debaixo da janela, e ela achatou-se com o rosto perto da cabeça dele. Depois, erguendo o pescoço, espiou para o interior do saguão.

       Vestindo uma camisola azul, Lily Melville sentava-se amarrada a uma cadeira, perto do centro do aposento. Outro pedaço de corda lhe prendia os tornozelos e vinha até os pulsos, que haviam sido puxados para as costas da cadeira. Sua cabeça estava quase encostada ao peito, e os ombros tremiam. De frente para a janela, ainda com o vestido usado durante o jantar e similarmente amarrada, Margaret Nolan falava com ela, mas Lily parecia não ouvir o que lhe era dito.

       Margaret olhou por sobre o ombro, e Nora afastou-se silenciosamente de Jeffrey, para conseguir ver a abertura que dava início ao corredor principal. Surgindo bem na entrada, estava uma histérica Marian Cullinan sendo empurrada por Dick Dart pelas costas. Ela dava a impressão de estar tentando fazer flexões sobre o braço cerrado em torno de seu pescoço. Na outra mão, Dart empunhava uma comprida faca contra o lado do corpo dela, e tinha o rosto animado pelo júbilo.

      

MARIAN TINHA POSTO um vestido preto, decotado e sem mangas para seu encontro poético. Dart estava nu e completamente limpo. Apenas ligeiramente amarfanhado, os cabelos lavados de pouco caíam sobre uma ensangüentada tira de gaze, presa ao lado da cabeça. Ele deixou Marian cair em uma cadeira de frente para Lily Melville, postou-se do lado dela e inclinou-se. Ela encurvou-se para diante. Sem ao menos preocupar-se em olhar para ela, Dart estendeu a mão esquerda, fechou-a em torno da garganta de Marian e a puxou para o chão. O grito que ela soltou penetrou a janela. Nora sentiu o corpo contrair-se.

       Dart baixou a faca e estendeu a mão para algo fora de vista. Marian sentou-se bruscamente e começou a golpeá-lo, mas Dart a puxou pelo pescoço para o chão, como se ela fosse um gatinho.

       — O que vamos fazer? — sussurrou Nora para Jeffrey.

       — Estou pensando a respeito — sussurrou ele de volta.

       Sacudindo a cabeça, Dart ergueu Marian, até os pés dela perderem contato com o assoalho. Depois a deixou cair, agarrou-a pela cintura e prendeu-lhe os braços. Enquanto ela se debatia, Dart deixou à vista uma das mãos segurando uma corda. Levando Marian para a cadeira, ele a deixou arriar no assento, com força.

       Ela tornou a dar um grito agudo.

       Margaret virou a cabeça para Dart e disse algo, surpreendentemente medido. Ignorando-a, ele ficou de joelhos atrás de Marian, passou a corda duas vezes em torno dela, e só então deixou de pressioná-la. Ela saltou, tentando afastar-se com a cadeira presa às costas. Ele a puxou de volta, passou-lhe a corda pelo ombro, por baixo do assento, e então caminhou de cócoras para a frente da cadeira. Ela o chutou, ele agarrou-lhe os tornozelos, enrolou a corda em volta deles e a passou por baixo da cadeira. Depois, cortando a corda, amarrou-a atrás das costas de Marian. Margaret tornou a falar com ele. O que quer que Dart tivesse respondido, fez com que o rosto dela tremesse.

       — Miserável filho da puta! — sussurrou Jeffrey.

       Marian corcoveou em sua cadeira, corcoveou novamente, depois caiu para trás.

       Dart endireitou a cadeira dela e se moveu ao lado das três mulheres, de testa franzida, esfregando o queixo. A cada lado de Margaret e afastadas dela uma pequena distância, Marian e Lily sentavam-se uma de frente para a outra. Dart fez alto diante delas e recuou para o terraço. Considerando as mulheres, ele passou suavemente os dedos pelo tampão de gaze que conseguira colocar sobre o ferimento nas costas. Seu corpo estremeceu, e uma mancha vermelha no centro da gaze ficou escura e aumentou de tamanho.

       Jeffrey moveu a cabeça para Nora.

       — Não há outra mulher?

       Ela apontou para cima.

       — Está doente e de cama.

       Dart vagou em torno das mulheres, mensurando o efeito que havia criado. Elas o espiavam, Marian taciturnamente e Margaret em pensativa concentração, como o próprio Dart. Até mesmo a parte de trás da cabeça de Lily expressava o mais profundo terror. Marian sacudiu os cabelos para fora da testa e moveu os lábios, em uma frase que Nora pôde ler: Você me machucou. Dart foi para trás de Lily, afastou-a um pouco na direção da janela e deu um tapinha em sua cabeça. Margaret permaneceu de boca fechada e lábios comprimidos, quando Dart arrastou sua cadeira alguns centímetros para trás. Marian tornou a falar: Norman, por que está fazendo isso?

       Margaret proferiu uma breve frase. O corpo de Marian ficou rígido e toda emoção lhe fugiu do rosto.

       Dart, cujo nome verdadeiro acabara de ser proferido, estendeu os braços e girou o corpo de um lado para o outro, agradecendo aplausos imaginários.

       — O que estamos esperando? — sussurrou Nora.

       — Que ele nos diga o que devemos fazer.

       Dart virou-se para Marian e beijou-lhe a face. Falando, foi para trás da cadeira dela e segurou-lhe a mão. Depois acariciou-lhe os braços, os cabelos, passou um dedo pelo contorno de seu queixo. Margaret olhava para tal procedimento sem demonstrar qualquer emoção. Marian fechou os olhos e tremeu. As sardas acentuaram-se em seu rosto. Ainda falando, Dart contornou a cadeira e a beijou. Ela moveu bruscamente a cabeça para trás e ele a esbofeteou, com força suficiente para o som ser transmitido através da janela. Então, tornou a beijá-la. Quando afastou o rosto, a marca vermelha na face de Marian escondia suas sardas.

       Erguendo as mãos como se dissesse Sou um cara razoável, Dart afastou-se de Marian e dirigiu-se às três mulheres. Sorrindo, apontou para Marian. Fez uma pergunta às duas mulheres mais velhas. Margaret deu-lhe um olhar impassível, e Lily sacudiu a cabeça. Dart pousou a mão sobre o coração, dando a entender que parecia ofendido. Saltou para junto de Lily e ergueu-lhe o queixo. Nora viu os lábios dele proferindo as palavras Lily, minha querida, eu a amo. Depois virou-se para Margaret e falou com ela. Margaret respondeu claramente, Não. Dart cambaleou para trás, em zombeteira incredulidade. Estava divertindo-se imensamente. Durante algum tempo andou de um lado para o outro, concentrado em algum debate hipoteticamente difícil. Meneou a cabeça com ar triste. Aproximou-se da faca no chão, fingiu surpreender-se ao vê-la e, em jubiloso contentamento, apanhou-a.

       Nora olhou para Jeffrey. Este sacudiu a cabeça.

       Dart caminhou para as mulheres, cruzando o tapete. Primeiro sua cabeça, depois todo o seu corpo desapareceram atrás da mesa. Jeffrey tocou a mão de Nora: Não se mova. Ela virou rapidamente a cabeça para ele: A arma? Jeffrey mal moveu a cabeça, respondendo: Agora não. As pernas de Dart giraram, seus pés começaram a mover-se. Quando o restante do corpo ficou à vista, ele não estava mais segurando a faca. Estalando os dedos, desapareceu. Margaret moveu os olhos, e Marian torceu o pescoço, para o verem afastar-se. Os rostos das mulheres registraram o reaparecimento dele e, quando surgiu de novo à vista, Dart empunhava o cutelo de açougueiro. Exibiu-o para as mulheres, riscou o ar com a lâmina e caminhou devagar para a mesa.

       De algum modo, Jeffrey conseguiu achatar o corpo perto da borda do peitoril das janelas francesas. Nora dobrou os braços sobre a cabeça e conteve a respiração. Quando se arriscou a espiar pela janela, as peludas pernas de Dart ainda avolumavam-se abaixo da mesa. Ele estava alinhando suas ferramentas. Um de seus pés escorregou para o lado, quando se virou a fim de olhar para as mulheres nas cadeiras. Uma delas devia ter-lhe feito uma pergunta.

       — A mulherzinha? — disse ele, perto da janela o suficiente para ser ouvido do outro lado. — Quando a vi pela última vez, minha antiga companheira fugia a toda velocidade através dessa floresta primitiva. No momento, esconde-se no matagal, esperando que eu desista de caçá-la. — Ele caminhou até a janela. — Nor-ma! Nor-ma! Volte para casa, meu bem, a brincadeira mal começou! Pode me ouvir, doçura? — Virando-se para as mulheres, ele baixou a voz. — Talvez ela esteja escondida bem aqui, do lado de fora! Vejamos!

       O coração de Nora parou, e seu corpo ficou gélido. Sentiu que Jeffrey preparava-se para saltar.

       Se Dart saísse pela porta-janela, o pé dele pousaria a dez centímetros do cotovelo dela. Erguendo o queixo, Nora espiou para o interior, e seu coração voltou à vida, com uma vigorosa batida. Dart afastava-se da mesa e ia para as outras janelas. Em segundos, desapareceu de vista. Mais abaixo, no terraço, uma maçaneta chocalhou e a porta-janela se abriu. Tudo fazia parte da representação — era uma exibição para as senhoras. Em excelente humor, Dart procurava demonstrar o quanto elas estavam indefesas. Inclinando-se para fora, berrou seu nome:

       — Norma! Norma! Sra. Desmond!

       Devia ter olhado para dentro do saguão, porque perguntou:

       — Ouviu alguma coisa, Marian?

       Ela respondeu, suavemente:

       — Não.

       Ele continuava inclinado para fora, através da porta-janela.

       — Vocês sabem quem é ela, não sabem?

       — A mulher que você raptou — respondeu Marian.

       — Nora Chancel — acrescentou Margaret Nolan.

       Dart suspirou de leve, zombeteiramente, como se lamentasse a traição de Nora.

       — Cometeu um grave erro, sr. Dart — disse Margaret. — Deixou-a ir. Por favor, entenda o que estou lhe dizendo. A sra. Chancel não está escondida na floresta, mas a caminho para encontrar ajuda. Por que não vai embora agora? Pode voltar ao chalé Pote de Pimenta, vestir suas roupas e pegar um carro. Se perder muito tempo conosco, certamente será capturado pela polícia. Entende isso, não?

       — Capturado? — exclamou Dart. — Que maravilhosa palavra! Parece sugerir uma fera da selva.

       — Não estamos pedindo que nos desamarre. Entretanto, se quiser conservar sua liberdade, tem de ir embora de Shorelands agora. Provavelmente a sra. Chancel já está falando com Tony.

       Após um longo momento de silêncio, uma coruja piou no outro lado do laguinho. A chuva caía com fraca intensidade nos ladrilhos. Dart deu uma risadinha abafada. Ela olhou para um lado. Ele estava sorrindo para o céu.

       — Quanta preocupação! Se Nora-docinho conversar com o sujeito que recolheram por caridade, ele virá aqui checar a história dela. Posso muito bem dar conta de Tony. Entretanto, sabem o que vai realmente acontecer? Dentro em breve, Nora vai introduzir-se nesta casa. Está escrito em pedra. A moça conhece minhas pequenas maneiras de agir. Não saberá fazer outra coisa: “Nunca o abandonarei, é impossível!”

       — Isso é tolice — disse Marian. — Procure salvar-se. Vá embora imediatamente. Você nem mesmo tem tempo para roupas.

       — Gosta de mim nu, não é mesmo, Marian? Eu também me prefiro nu. Adoro estar aqui, com o ar fresco correndo em torno de meu corpo. Deixa-me excitado. Se há uma coisa que aprecio imensamente é ficar excitado, como terá oportunidade de ver. Você tem sardas nas solas dos pés, Marian?

       Ela nada disse durante vários segundos. Dart esperou.

       — Não.

       — Que pena! Devemos ver se Nora já está aqui? Prometi a ela uma agradável surpresa e gosto de cumprir a palavra. — Dart gritou o nome dela, levou a mão em concha ao ouvido, tornou a chamá-la. — Não responde, garotas. Devemos prosseguir por nossa conta. Não receiem, a chegada de Nora não estragará nosso divertimento.

       Ele endireitou o corpo e tornou a fechar a porta-janela. Jeffrey virou a cabeça para a frente do terraço, e imediatamente começou a caminhar sobre os ladrilhos, sem produzir o menor som. Com um esforço sobre-humano, Nora ficou de gatinhas e o seguiu.

       Jeffrey deslizou em torno da parte inferior do pilar, no alto dos degraus, e esperou. Quando Nora o alcançou, ele a guiou escada abaixo até o gramado, moveu-se de um lado para a parede abaixo do terraço, encostou a cabeça na pedra e contemplou o escuro gramado.

       — Dart é sempre assim?

       — Sem tirar nem pôr — replicou Nora. — O que faremos?

       — Temos bastante tempo. Ele ainda está pavoneando-se. — Jeffrey sorriu. — Se quer saber, desde que não se importe demais sobre quem ele matou, Dick Dart poderia ter sido um terrível soldado de combate. É incrivelmente forte e rápido, pode absorver uma tremenda dose de dor e continuar funcionando. Situações adversas extraem, por assim dizer, o que ele tem de melhor.

       — Está me pedindo que admire Dick Dart?

       — Nem por sombras — respondeu Jeffrey. — Estou apenas descrevendo-o. Se eu não o levar em consideração, será difícil derrotá-lo. Não creio que ele sempre tenha sido como acabamos de vê-lo.

       — Ser detido por assassinato liberou-o. Agora, Dart não precisa mais esconder como era.

       Jeffrey tornou a sorrir.

       — A escapada liberou-o. Depois disso, ficaram suspensos todos os regulamentos normais. Ele é uma pessoa nova em folha em um mundo novo em folha, estirando as asas, descobrindo-se.

       Isto era tão exato, que Nora deixou sua impaciência de lado.

       — Pelo menos durante uma meia hora ele não fará qualquer mal a essas mulheres. Está tendo divertimento demais. Nesse ínterim, ficará esperando que você apareça. Sabe se a porta da frente está trancada?

       — Destrancada — respondeu Nora.

       — Tudo bem. — Jeffrey ergueu os olhos para o acaso e enxugou o rosto. — E ele sabe que você sabe que a porta está destrancada?

       — Sabe.

       — Então, é por onde espera que você entre. — Jeffrey afastou-se um pouco, caminhando pelo gramado, e ergueu os olhos para a casa. — Vamos preparar uma pequena surpresa para o sr. Dart. — Seus olhos percorreram a esquina que se dobrava para os fundos do prédio. — As portas-janelas também não estavam fechadas a chave. Mais além de onde estávamos, havia outra fileira delas, nos fundos do aposento em que ele foi apanhar o cutelo de açougueiro.

       — A sala de refeições.

       — Aposto que cada janela do prédio está destrancada. As mulheres confiam em seu isolamento e em Tony para conservá-las em segurança. Provavelmente nunca enfrentaram um assalto. Você disse que há outra mulher na casa, uma espécie de inválida, não?

       — Agnes Brotherhood.

       — Em que pavimento ela está?

       — No segundo.

       — Muito bem. Quando eu tentava encontrar você, vi uma escada de mão perto da parede, no pátio. Alguns operários devem tê-la deixado para trás. Entrarei na casa por uma janela do andar de cima. Uma vez lá, farei alguma espécie de ruído, e Dart pensará que Agnes está prestes a juntar-se à festa. Ficará deliciado. Você voltará para o andar e ficará na extremidade do saguão. Quando o vir deixar o aposento, vá para a sala de refeições e permaneça lá.

       — Certo.

       — Teremos que agir de improviso, exceto esconder-se na sala de refeições até você saber que pode surpreendê-lo. Ele não espera que você surja daquela direção. Por outro lado, também não conta com a minha presença. Se eu puder dar cabo dele, darei. Se não puder, ele me impelirá para o saguão, e então você aparecerá.

       — Você devia levar a arma — disse ela.

       — Não. Ficará com você. — Jeffrey ergueu uma perna, desamarrou o sapato, descalçou-o e o colocou junto da parede. Fez o mesmo com o outro pé. — Você ainda tem uma bala de sobra. Não a desperdice. Esse sujeito é duro como ferro.

       — Eu sei — disse Nora, mas Jeffrey já se afastava, deslizando em meio à escuridão.

      

A CAPA DE MARIAN era um ridículo estorvo. Nora tirou o revólver do bolso, abriu os colchetes de pressão, encolheu os ombros e baixou os braços. A capa escorregou e caiu pesadamente sobre a grama. Exceto pelos pontos de suas pernas lavadas pela água da chuva, toda a parte frontal de seu corpo estava obscurecida pela lama. Ela ajeitou o revólver na mão e começou a subir os degraus para o terraço. Silenciosamente, esgueirou-se através dos ladrilhos e colou o corpo contra o prédio, ao lado da segunda fileira de portas-janelas. Virando a cabeça, observou e divisou três quartas partes do saguão iluminado. As costas de Marian Cullinan escondiam metade de Lily Melville. Visível por inteiro, Margaret Nolan encarava Dick Dart, também plenamente visível. Ele segurava uma garrafa de champanha em uma das mãos, o pênis meio ereto na outra, e falava com Margaret, sem dúvida discorrendo sobre as muitas delícias que havia proporcionado a mulheres de mais idade. Ela o contemplava sem pestanejar.

       Pela primeira vez, Nora começou a duvidar de suas suposições a respeito de Agnes não estar com as outras. Dart não a deixaria no quarto simplesmente por estar fraca demais para sair da cama. Era mais provável que a tivesse amarrado e colocado em uma parte do quarto que as outras não conseguissem ver, reservando-a, como faria uma aranha ao deixar refeições extras em sua teia. Se houvesse levado Agnes para o andar de baixo, saberia que algo estava errado, no instante em que ouvisse algum ruído no interior da casa e, com isso, Jeffrey estaria em perigo ainda maior.

       Dart bebeu um gole do champanha e ofereceu a garrafa a Lily. Como ela não respondesse, ele se moveu à sua frente. Nora pensou que estaria levando a garrafa aos lábios dela. Ele fez um comentário de passagem com Margaret. Claro. Ela era a mais odiada, ele estava representando em seu benefício. Depois levou a garrafa até Marian, inclinou-a como faria um garçom para exibir o rótulo, e chegou o gargalo aos lábios dela. O que quer que Marian tivesse dito ou feito evocou uma expressão de infeliz descrença. Dart recuou, parecendo amuado, e cruzou o saguão para apanhar a faca que estava na mesa. Explicou que seria forçado a fazer isso, caso ela não o acompanhasse em um drinque, e repetiu a tentativa. Marian devia ter permitido que Dart lhe despejasse um pouco de bebida na boca, porque ele lhe deu um sorriso feliz. Então passou para Margaret, que abriu a boca contrariada e o deixou dar-lhe um pouco do champanha.

       Dart bebeu do gargalo e virou-se para Marian. Empinou as ancas, oferecendo-lhe o pepino. Não? Ele pousou a garrafa no chão e disse algo que envolvia apontar para a faca e o pepino. Ainda falando, deu um forte puxão em si mesmo, e o obediente pepino inflou-se para diante. Satisfeito, ele o exibiu para as duas outras mulheres. Lily tinha os olhos fechados, e Margaret mal olhava para o troféu de Dart. Retornando a Marian, ele novamente apontou para a faca e o pepino. A parte traseira da cabeça dela não deixou perceber qual fora a sua resposta. Movendo-se para um lado, Dart esfregou-lhe o pepino na face. Olhou para Margaret, cujo rosto mostrava a mais absoluta imobilidade. Lily ousou dar uma espiada para ele, mas imediatamente tornou a fechar os olhos.

       O que estaria Jeffrey fazendo? Admirando o quarto de Georgina Weatherall?

       Dart recuou, ergueu a faca, e seus dedos manipularam as laçadas da corda que amarrava Marian à sua cadeira. Após escolher uma laçada, ele fez a faca deslizar sob ela, cortou a corda e amarrou-a em um novo lugar. O braço direito de Marian ficou livre até o cotovelo. Era uma troca de favores. Seja boazinha comigo, que serei bonzinho com você.

       Friccionando-se, Dart postou-se diante de Margaret. Sacudiu-se para ela e repetiu a mesma hilariante pantomima que executara para Marian. Em benefício de Margaret, ele manipulou-se até ganhar mais uns três centímetros de intumescência. Puxando e friccionando, com uma expressão sonhadora concentrando-se nos olhos, ele esticou-se diante dela, exigindo admiração. Esfregou-lhe os cabelos com a mão livre. Então, sua cabeça se virou bruscamente para um lado.

       Os músculos nos braços e nas pernas de Nora estavam tensos. Dart dissera algo a Marian. Ela abanou a cabeça. Afastando-se de Margaret, ele caminhou para o lado da entrada e colou as costas à parede. Marian virou a cabeça, e Margaret lançou-lhe um olhar de curiosidade. Todos tinham ouvido algo, mas ninguém ali dentro pensou que fosse o som de Agnes Brotherhood vindo para o andar térreo. Os segundos escoavam-se. As mulheres estavam retesadas em suas cadeiras.

       Dart lambeu os lábios e ficou vigiando a entrada, pronto para saltar.

       O corpo de Nora decidiu por ela. Antes de ter tempo para pensar, moveu-se através da janela e empurrou a maçaneta para baixo. Dart virou a cabeça para um lado, sem perda de tempo, e ficou olhando para ela em choque, surpresa e fúria. Deu um passo à frente, exibindo os dentes. Nora escancarou a porta-janela, colocou um pé no piso do saguão e pareceu petrificar-se, quando Jeffrey voou para o aposento. Ele deu uma espécie de salto-mortal, caiu sobre os pés atrás de Marian e prontamente começou a circular em direção a Dart, o corpo inclinado para frente e os braços ligeiramente estendidos.

       Dart olhou para Nora, depois novamente para Jeffrey.

       — Quem você pensa que é, Homem de Ação? — Dart deslizou ao longo da parede. — Senhoras, digam alô para Jeffrey, o criado. Você já estaria morto, Jeffrey, se o bolo-de-lama não tivesse tomado meu tempo.

       — Norma! — gritou Marian agudamente. — Atire nele, atire nele!

       — Cale a boca — disse Nora, movendo-se ao longo de Lily, que agora a encarava com o mais genuíno pavor.

       — Atire nele, Norma! — tornou a gritar Marian.

       — Meu bem, ela tem péssima pontaria, e a arma já está descarregada — disse Dart. Já inteiramente ajustado à reviravolta dos eventos, ele mostrava, de novo, um confiante bom humor. Tinha que enfrentar apenas um homem desarmado e Nora-docinho, de péssima pontaria, especialmente agora que a arma estava vazia. — Venha, criado! — desafiou Dart.

       Jeffrey não tinha olhado para Nora, desde que saltara como um foguete para dentro do saguão. Estava tão concentrado em Dart, que parecia não ter ouvido os gritos de Marian, e avançava com um lento e deliberado passo de caranguejo, um após outro. Dart girou os olhos, divertido — Jeffrey não constituía uma ameaça séria. Abrindo os braços, ele deu de ombros para Nora.

       — Devo dizer-lhe a amarga verdade, queridinha. Eu menti para você. As maminhas não são bonitas. Pequenas demais e muito achatadas.

       Ao olhar para Jeffrey, seu sorriso ampliou-se.

       — Você gosta de usar roupas femininas, Dart? — perguntou Nora.

       Ele perdeu o sorriso, depois começou a mover-se para Jeffrey, com o ar de quem precisa dar andamento a um necessário, mas tedioso negocinho. Lily olhou temerosamente para Nora.

       — É a senhora mesmo, sra. Desmond?

       — Eu mesma, Lily — disse Nora, tocando-lhe o ombro. Os homens ficaram mais próximos um do outro. Nora apontava o revólver para Dart, porém não confiava em sua capacidade para atingi-lo. Acrescentou: — Posso ver o seu armário de roupas, Dick. Há dois vestidos dentro dele, mas ninguém mais chegou a vê-los, além de você.

       Dart grunhiu e saltou, enquanto Jeffrey parecia flutuar para trás. Dart voou cerca de metro e meio no ar, indo cair sobre o estômago, com um ruído surdo. Pôs-se de pé em um segundo, depois agachou-se.

       — Agora já sabemos que você é rápido — disse ele, e partiu para um novo ataque.

       Jeffrey saltou à direita, depois à esquerda, com tal velocidade, que parecia nem ter saído do lugar. Moveu-se diretamente para trás de Margaret que, ao contrário de Lily e Marian, estava com os olhos fixos em Nora. Olhos que se moveram para algo perto das janelas, depois retornando a Nora. Esta olhou para trás e compreendeu. Correndo até a mesa, apanhou o cutelo de açougueiro.

       — Ficou louca? — gritou Marian. — Você tem uma arma!

       Dart girou para a direita, e Jeffrey girou para a esquerda, uma imagem refletida em espelho.

       Marian gritou para que ela atirasse.

       Dart lançou sua faca através do ar vazio onde Jeffrey estivera, depois rodopiou sobre si mesmo e voltou ao ataque. Em vez de agora flutuar para trás, Jeffrey mergulhou de lado, segurou o braço de Dart, rolou o corpo sobre o quadril dele e o fez girar ao longo do tapete, até alguns passos após a cadeira de Marian. Nora recordou que, entre mais uma dúzia de coisas improváveis, certa vez Jeffrey havia sido instrutor de karatê.

       Pestanejando, Dart conseguiu erguer-se quase tão depressa como fizera da primeira vez.

       — Legal — disse. — Esfalfantes artes marciais. É uma maneira de lutar, quando você não pode realmente lutar.

       Dart saltou para diante, esgrimindo o punho fechado, e Jeffrey recuou. A dois metros de Dart, ele olhou por sobre a cabeça de Marian e falou com os olhos. Nora agarrou o cutelo de açougueiro com a mão direita e cortou as cordas que corriam por trás da cadeira de Margaret.

       — Agora eu! — gritou Marian.

       Margaret inclinou-se para diante. As cordas lhe caíram do peito, mas as mãos continuavam atadas.

       — Eu! — gritou Marian.

       Nora deixou o revólver no chão, ajoelhou-se e viu a folga entre os pulsos de Margaret. Lily gritou, quando um corpo abateu-se no chão. Dart estava ficando de joelhos, segurando uma faca ensangüentada. Jeffrey mergulhou para o corredor. Uma gotejante cutilada de uns trinta centímetros subiu-lhe pelo lado do peito, seu rosto dando a impressão de que ele ouvia música. Lançando-se através do ar, ele agarrou o braço de Dart e tornou a jogá-lo contra o tapete. Em vez de esperar que ele torcesse o corpo, ficasse de pé e voltasse ao ataque, Jeffrey o seguiu, em um regular e contínuo movimento. Com o elétrico imediatismo de um raio, Dart revirou-se para um lado e enfiou a faca nas costelas de Jeffrey.

       Durante alguns poucos e intermináveis segundos, com Nora tentando convencer-se de que estava enganada, de que havia presenciado outra coisa inteiramente diversa, os dois homens permaneceram atracados. Uma mancha vermelha desabrochou na camisa molhada de Jeffrey, e então ele tombou sobre o corpo de Dart. Nora ficou em pé, cambaleante.

       Marian gritou para que ela a libertasse.

       Dart deixou escapar um suspiro de triunfo e empurrou Jeffrey do seu peito. Jeffrey pressionou uma das mãos sobre o ferimento e ficou imóvel.

       Sentado, Dart escorregava para trás, a fim de deslindar suas pernas das de Jeffrey. Nora deu um passo para ele. Jeffrey ergueu os olhos para Dart e grunhiu, o primeiro som que emitia, desde sua portentosa entrada no saguão da Casa Principal. A imobilidade da intensa concentração não lhe deixara o rosto. Marian continuava gritando insistentemente. Frenética, Nora ergueu o cutelo de açougueiro acima do ombro e encaminhou-se para os homens.

       Dart ergueu-se com facilidade sobre os pés, e girou para enfrentá-la.

       — Francamente, Nora!

       Brincalhona, escarnecedora, a faca foi manobrada em sua direção. Era impossível, não conseguiria, Dart era ligeiro demais para ela.

       A faca saltou para diante, em outra paródia de golpe, e Dart aproximou-se, sorridente. Nora recuou, mantendo o cutelo de açougueiro no alto, sabendo que não poderia atingi-lo antes dele esfaqueá-la. Um divertimento extremo, argênteo, ganhou o rosto dele.

       — Esperei um pouco mais de sua parte — disse Dart. Após falar, ele arregalou muito os olhos e seu corpo tombou à frente dela, com espantosa, irreal velocidade.

       Nora olhou para baixo. Com os braços em torno dos tornozelos de Dart, os calcanhares dele pressionados contra seu tórax, Jeffrey o puxava mais alguns poucos centímetros para trás.

       No segundo de graça que Jeffrey lhe dera, Nora pulou para a frente, ergueu o cutelo de açougueiro bem alto acima do ombro, e o enterrou em um dos tufos de pêlos nas costas de Dart. A larga lâmina afundou cinco ou sete centímetros na pele dele, e o sangue esguichou em um jato, à volta do ferimento. Ela puxou pelo cabo, pensando em golpeá-lo na cabeça com o cutelo, mas Dart cabriolou como um cavalo e torceu o cabo do cutelo, arrancando-o da mão dela.

       — Ei, eu pensava que éramos amigos — choramingou ele. Esperneou para libertar-se do aperto de Jeffrey e arrastou-se para diante. Choramingou de novo, fincou os cotovelos debaixo do corpo e impeliu-se para ela. Nora recuou. Dart ergueu os olhos, as pupilas animadas por um irônico prazer. — Não entendo esta constante rejeição...

       O calcanhar de Nora pisou no cano do revólver.

       Os gritos de Marian elevavam-se ao teto. Nora envolveu as mãos em torno da coronha do revólver e deu dois passos para frente, sua mente em um vazio total, absoluto. Firmou-se nas solas dos pés e pressionou o cano contra a testa de Dart.

       — Formidável — disse ele. — Aperte o gatilho, mostre para os nossos espectadores que o espetáculo não pode parar.

       Nora apertou o gatilho. O martelo caiu com um clique monótono e metálico. Dart deu uma risadinha suspirada e apertou uma das mãos em torno do pulso dela.

       — Lá vamos nós!

       Puxou a mão de Nora para baixo, mas ela tornou a pressionar o dedo indicador. O revólver saltou para cima pela força da explosão, e a última bala fez uma perfuração queimada através do risonho olho de Dart, penetrou em seu cérebro e arrancou-lhe a parte de trás do crânio.

       Uma bruma cinza-avermelhada foi expelida para cima e para os lados, espalhando-se pela parede muito atrás dele. Uma bala no cérebro é melhor do que uma bala nas tripas. Até mesmo Dan Harwich às vezes tinha razão.

       Os dedos de Dart estremeceram sobre o pulso de Nora. Fracamente, como que vindo de um aposento distante, ela ouvia Marian Cullinan gritando.

      

MEIA HORA DEPOIS, o mundo exterior invadiu a vida de Nora, primeiro sob a forma de numerosos policiais que lhe providenciaram café, bombardearam-na de perguntas e anotaram tudo quanto ela dizia. A seguir, eles foram substituídos pelos muito mais numerosos e invasivos repórteres da imprensa e televisão que, durante um breve mas extremamente desconfortável período, perseguiram-na aonde quer que fosse, publicando suas várias invenções como fatos, irradiando simplificações, distorções e contínuas inverdades, em um processo que, como sempre, conduzia a praticamente a mesma coisa. Se houvesse concordado, Nora teria aparecido em uma dúzia de programas de televisão, da espécie talk-show ou tablóides, vendido os direitos de sua história a uma firma de produções televisivas, além de ver sua foto nas capas de muitas revistas, dedicadas a trivializar o que já era trivial. Ela não fez nenhuma dessas coisas, considerando-as não mais seriamente do que considerava aceitar qualquer das dezesseis propostas de casamento que lhe chegaram pelo correio. Quando o mundo público a envolveu, os exageros e cortes feitos em sua história a deixaram tão irreconhecível para si mesma, que até as fotos nos jornais pareciam pertencer a outra pessoa. Jeffrey Deodato, que suportou uma versão menor da temporária celebridade de Nora, também declinou de assistir à pública falsificação de sua vida.

       Após ter cumprido suas laboriosas obrigações com os funcionários mantenedores da lei em várias cidades, Nora desejava apenas espaço e tempo suficientes para organizar sua vida. Também desejava fazer três coisas específicas — e estas ela as fez, cada uma delas.

       Este longo e instrutivo processo, no entanto, só teve início quarenta minutos depois dela ter levado Dick Dart à morte, quando o mundo invadiu o local e a arrebatou. Nesse ínterim, Nora libertou as outras duas mulheres e deixou Margaret Nolan consolar Lily Melville, enquanto segurava a mão de Jeffrey e tentava examinar seu ferimento. Evidentemente sentindo dor, porém com sangramento menos grave do que temera, ele disse:

       — Eu viverei, a menos que morra de constrangimento.

       Marian Cullinan enfurnou-se em seu quarto, mas a sensata Margaret ofereceu-se para conduzir Jeffrey de carro ao hospital, e usou a grande força de sua personalidade para dissuadir Nora de acompanhá-los. Do hospital, ela tentaria ligar para a polícia de Lenox; se os telefones não funcionassem, iria ao posto policial, após deixar o hospital. Feito isto, ela correu ao pátio de estacionamento e voltou com seu carro. Cambaleando, suportado por Margaret e Nora, Jeffrey conseguiu chegar à porta e descer a escada. Enquanto o ajudava a entrar no carro, Nora lembrou-se de perguntar a Margaret o que fora feito de Agnes Brotherhood.

       — Oh, meu Deus! — exclamou Margaret. — Agnes está trancada em seu quarto. Deve estar frenética!

       Disse a Nora onde encontrar a chave em seu gabinete e sugeriu que ela talvez quisesse limpar-se e vestir algumas roupas, antes da polícia chegar.

       Nora havia esquecido de que estava nua, desde que despira a capa de Marian, mais abaixo no terraço.

       Margaret disparou com seu carro para Lenox, e Nora tornou a entrar na Casa Principal para ir ao encontro de Agnes, que só escapara às atenções de Dick Dart porque ele não conseguira entrar em seu quarto.

       Cruzou o saguão sem olhar para o corpo de Dart. As chaves, cada uma com uma etiqueta, estavam na gaveta superior esquerda da secretária de Margaret, exatamente como ela dissera. Após vestir a grande capa de chuva azul de Margaret, Nora seguiu pelo corredor, a fim de chegar ao quarto de Agnes.

       A esquálida figura na cama estava dormindo, foi o que pensou, porém mal deu dois passos dentro do quarto, e Agnes reclamou:

       — Por que demorou tanto, Marian? Não gosto de ficar trancada e também não gosto de você!

       — Não sou Marian — falou Nora. — Sou a mulher que a visitou esta tarde. Lembra-se? Falamos sobre Katherine Mannheim.

       Um roçagar de excitado movimento brotou das roupas de cama, e Nora pôde visualizar um corpo magricela esforçando-se em ficar sentado.

       — Elas deixaram você voltar! Ou veio até aqui às escondidas? Foi você que antes estava tentando entrar?

       Agnes não fazia a menor idéia do ocorrido no andar de baixo.

       — Não. Quem queria entrar em seu quarto era outra pessoa.

       — Enfim, agora está aqui e acho que fez muito bem. Quero que fique sabendo de tudo. Quero contar para você.

       — Pois então, conte — disse Nora, deixando-se cair em uma poltrona.

       — Ele a violentou — disse Agnes. — Aquele homem terrível, hediondo, violentou-a, e ela morreu de um ataque cardíaco.

       — Lincoln Chancel violentou Katherine Mannheim — disse Nora, mas sem acrescentar que, pelo menos, já deduzira que isso tinha acontecido.

       — Você não acredita em mim — queixou-se Agnes.

       — Acredito plenamente em você — replicou Nora, fechando os olhos e recostando-se no encosto da cadeira.

       — Ele a violentou e ela morreu. Depois ele foi chamar o outro, o outro homem horrível. Foi isso que eu vi.

       — Sim — disse Nora. Sua voz parecia vir de muito longe. — E então você contou para sua patroa, ela foi até o chalé Pão de Mel e os surpreendeu com o cadáver de Katherine. Entretanto, durante muito tempo você ficou sem saber o que ela havia feito depois disso.

       — Se soubesse, eu não poderia continuar aqui. Ela só me contou quando já estava doente e tomando aquele remédio que não fazia o menor efeito, a não ser deixá-la com a saúde pior.

       — Você a interrogou sobre o caso? Finalmente quis saber a verdade, não foi?

       Agnes começou a chorar, em sufocadas fungadelas.

       — Sim, eu a interroguei, queria saber. E ela gostou de me contar. Ainda odiava a srta. Mannheim.

       — Georgina conseguiu dinheiro do sr. Chancel. Muito dinheiro.

       — Ele lhe deu tudo o que ela quis. Tinha que dar. Ela podia mandar aqueles dois para a prisão. Tinha prova.

       Nora deixou a cabeça tombar para trás, sobre os ombros, e deixou escapar, quase sussurrada, a pergunta que tinha de fazer.

       — Que espécie de prova ela possuía, Agnes?

       — A nota, a carta, dê o nome que quiser. A que ela fez o sr. Driver escrever.

       — Explique melhor.

       — Foi no chalé Pão de Mel. A srta. Weatherall fez o sr. Driver escrever tudo o que eles fizeram e o que iam fazer. O sr. Chancel não queria que ele escrevesse, mas a srta. Weatherall disse que, se não escrevesse, voltaria à Casa Principal e chamaria a polícia para detê-los. Ela sabia que o sr. Chancel não a mataria, embora provavelmente ele tivesse vontade, porque estavam juntos no mesmo barco. O sr. Chancel insistia em não escrever coisa alguma, porém o sr. Driver escreveu. Uma confissão de culpa era tão boa como duas — respondeu ela. Indicou a eles onde enterrarem a pobre moça, e anotou isso no papel escrito com sua própria letra. Foi assim que se colocou no mesmo barco que os dois.

       Nora conseguiu dizer o que sabia.

       — Em seguida, ela guardou a nota em seu cofre, aquele debaixo de sua cama, não foi?

       — E continua lá — disse Agnes. — Às vezes eu tinha vontade de dar uma espiada naquela nota, mas se a lesse ficaria sabendo onde eles a enterraram. E aí estava uma coisa que eu preferia ignorar.

       — Você pode abrir o cofre?

       — Eu o abri mil vezes, quando estava cuidando dela. Era lá que a srta. Weatherall guardava suas jóias. Eu lhe entregava algumas, quando ela queria usá-las. Quer ver a nota?

       — Sim, quero — disse Nora, abrindo os olhos e espreguiçando-se.

       — Acha que pode caminhar até lá, Agnes?

       — Posso caminhar daqui à lua, se me der tempo suficiente. — Agnes estendeu o braço e fechou a mão em torno do pulso de Nora.

       — Por que sua pele é tão áspera?

       — Porque estou coberta de lama — replicou Nora.

       — Devia limpar-se. Uma moça tão nova...

       Agnes saiu da cama e caminhou para a porta arrastando os pés, sem largar o pulso de Nora. Quando se moveram para a luz, ela percebeu a real condição de Nora, com chocada desaprovação.

       — O que houve com você? Está parecendo uma selvagem!

       — Eu caí — disse Nora.

       — Por que está usando a capa de chuva de Margaret?

       — Oh, é uma longa história...

       — Nunca vi nada igual — disse Agnes, continuando a arrastar os pés corredor abaixo.

       No quarto de Georgina Weatherall, a idosa Agnes acendeu as luzes e pediu a Nora que colocasse uma cadeira ao lado da cama. Depois de apanhar o cofre, girou a combinação no dial.

       — Mesmo depois que esquecer meu próprio nome, ainda me lembrarei desta combinação...

       Ela abriu a porta do cofre, enfiou a mão em seu interior e de lá extraiu um comprido envelope, agora amarelecido pelo tempo. Entregou-o a Nora.

       — Fique com ele. Leve-o para fora desta casa. Agora preciso ir ao banheiro. Poderia ajudar-me?

       Nora esperou do lado de fora do banheiro até Agnes terminar, e depois a levou de volta a seu quarto. Quando a ajudava a deitar-se na cama, contou-lhe que houvera alguns problemas no andar de baixo. A polícia logo chegaria, mas estava tudo bem. Marian, Lily e Margaret não haviam sofrido qualquer dano, e a polícia certamente desejaria falar com ela, mas tudo quanto tinha a dizer-lhes é que ficara trancada em seu quarto. Então, todos eles iriam embora.

       — Em seu lugar, eu nada diria sobre a carta que me deu — falou — mas, naturalmente, a decisão é sua.

       — Não quero falar sobre essa nota — replicou Agnes. — Principalmente com algum policial. É melhor que você vá lavar-se e que se enfie dentro de algumas roupas de verdade, a menos que queira ter um bando de homens de olhos arregalados à sua frente. Para não falarmos em todas as pegadas lamacentas cruzando a casa inteira.

       Nora tomou uma ducha o mais depressa que pôde, enxugou-se e, de envelope na mão, correu para o quarto de Margaret. Minutos depois, envergando uma frouxa peça negra que escondia um comprido envelope em um dos bolsos laterais, desceu para o andar de baixo. Sentada à mesa da sala de refeições, Marian sobressaltou-se quando a viu entrar. Ela havia trocado de roupas e aplicado uma nova camada de batom.

       — Sei que devo agradecer-lhe — disse Marian. — Você e aquele homem salvaram a minha vida. O que aconteceu a todo mundo? O que aconteceu a ele? A polícia já está a caminho?

       — Deixe-me em paz! — exclamou Nora.

       Caminhou até uma cadeira na extremidade oposta da mesa e sentou-se, sem olhar para Marian. Uma torrente de emoções, complicada demais para ser identificada como alívio, choque, raiva, pesar ou tristeza, percorreu seu corpo, e ela começou a chorar.

       — Não devia estar chorando — disse Marian. — Você foi formidável!

       — Marian — replicou Nora —, você não sabe absolutamente nada de nada...

       Da frente do prédio chegou até elas o som de sirenes e de viaturas policiais entrando no pátio de piso de cascalho, trazendo consigo as ruidosas atenções do mundo exterior.

 

UM DIA, NO FIM DE AGOSTO

Um dia, no fim de agosto, uma mulher outrora extraviada, que pedia aos conhecidos que a chamassem de Nora Curlew, em vez de Nora Chancel, passou com seu carro pelos portões da Mount Avenue, sem anunciar-se, e continuou subindo a alameda encurvada até a frente de “Os Álamos”. Após Davey ter sido mandado embora da casa por seu pai, este lhe suplicara para voltar. Como Nora sabia que Davey faria, ele agora morava novamente no antigo apartamento de Jeffrey Deodato, em cima da garagem. Sozinha na casa da Crooked Mile Road, Nora passara a semana anterior lidando com intermináveis chamadas telefônicas e as freqüentes chegadas de câmeras, trilhas sonoras e locutores querendo falar com a mulher que matara Dick Dart. Ela tivera também que enfrentar as inevitáveis convulsões em sua vida particular. Mesmo após dizer a ele que queria o divórcio, Davey sugerira vir morar novamente com ela, mas Nora recusou. Também recusara o convite dele para partilharem o apartamento em cima da garagem, onde Davey imediatamente se sentira à vontade. Você contou para o FBI onde eu estava, havia dito ela, ao que Davey replicou, Eu estava tentando ajudá-la. Nora dissera então, Chegamos ao fim da linha. Acabou. Não preciso do seu tipo de ajuda. Não muito tempo depois desta conversa, ela ligara para Jeffrey, já fora do hospital e convalescendo na casa da mãe, para dizer-lhe que em breve o veria.

       Alden Chancel, cuja atitude em relação a Nora sofrera uma grande mudança, tentara encorajar a reconciliação propondo construir uma casa separada, uma mini-”Os Álamos” no mesmo terreno, porém ela havia também declinado da oferta. Já tinha empacotado a maioria das surpreendentemente poucas coisas que desejava conservar, e pretendia ir para algum lugar onde poucas pessoas soubessem quem era ou o que havia feito. Nora já se sentia impaciente com seu papel público; logo haveria outra explosão de repórteres e cameramen, e sua vontade era estar bem longe dali quando isso acontecesse.

       Nesse meio tempo, ela queria cumprir três tarefas. Ver Alden era a primeira delas.

       Ao vê-la, Maria abriu-se em um sorriso e disse:

       — Srta. Nora! O sr. Davey está em seu apartamento.

       Poucos dias após ser demitida, Maria fora readmitida. O processo contra a Casa Chancel tinha sido retirado, e Alden não temia mais quaisquer revelações ligadas a Katherine Mannheim.

       — Eu não vim ver Davey, Maria. Assim, por favor, não lhe diga que estou aqui. Quero falar com o sr. Chancel. Ele está?

       Maria assentiu.

       — Entre. Ele gostará de vê-la. Vou chamá-lo.

       Maria encaminhou-se para a escada interna, e Nora dirigiu-se à sala de estar, onde se sentou em um dos compridos sofás. Dentro de poucos minutos, irradiando contentamento, afabilidade e charme, Alden entrou na sala, em largas passadas. Usava um dos seus conjuntos de Almirante do Iate Clube: calças brancas, um blazer-jaquetão traspassado, camisa branca e um vistoso lenço no pescoço. Levantando-se, Nora sorriu para ele.

       — Nora! Fiquei encantado quando Maria me disse que você estava aqui. Espero que isto seja uma indicação para finalmente esquecermos nossas dificuldades e começarmos a andar juntos daqui para a frente. Eu e Davey precisamos de uma mulher nesta casa, e você é a única que seria aceita.

       Depois de falar, ele lhe beijou o rosto.

       Uma semana antes, anunciando que finalmente obtivera o suficiente dos abusos, fraudulências e adultérios do marido, Daisy deixara “Os Alamos” e se mudara para uma suíte do Hotel Carlyle, em Nova York, do qual se recusava a arredar pé. Não queria ver Alden e muito menos falar com ele. Ela emergira de seu colapso nervoso e subseqüente imersão em romances radiofônicos, com a decisão de fugir do seu aprisionamento e revisar seu livro. Durante um de seus implorativos telefonemas, Davey disse que sua mãe queria “estar viva novamente”, tendo-lhe dito que ele precisava “libertá-la”, tomando conhecimento da verdade sobre seu nascimento.

       — É muita gentileza sua, Alden — disse Nora.

       — Devemos chamar Davey para tomar parte nesta conversa? Ou apenas deixar que as coisas sigam seu próprio rumo durante algum tempo? Creio que isto seria útil, embora baste você falar, a qualquer momento, que quer Davey aqui conosco.

       Alden havia ficado impressionado pelo potencial comercial do que ela havia feito em Shorelands, e Nora sabia, através de comentários transmitidos por Davey, que ele pretendia fornecer um substancial adiantamento pelo relato, feito na primeira pessoa, de suas andanças com Dick Dart. O verdadeiro escritor seria suprido mais tarde. A noção de “romance não-ficcional de crime real” vivido por Nora pusera o coração dele fazendo “trip-trap, trip-trap”, exatamente como Daisy havia descrito. Entretanto, o motivo mais poderoso para aquela nova compatibilidade de Alden, era o que Nora tinha aprendido durante sua noite em Northampton. Ele não a queria tornando públicas as circunstâncias dos nascimentos, tanto dos romances póstumos de Hugo Driver como de seu filho.

       — Por que não guardamos isso conosco por enquanto? — disse Nora.

       — Adoro lidar com um bom negociador, adoro de fato. Acredite em mim, Nora, faremos um arranjo que você achará extremamente satisfatório. Ambos tivemos nossas dificuldades, mas tudo isso ficou para trás. Doravante, saberemos onde pisamos.

       — Concordo plenamente.

       Alden esticou a mão e alisou o braço dela.

       — Sem dúvida, sabe que sempre a considerei uma mulher tremendamente interessante. Gostaria de passar a conhecê-la melhor, e quero que você entenda mais a meu respeito. Nós dois temos muito em comum. Aceita um drinque?

       — Não agora.

       — Então, vamos para a biblioteca e lá acertaremos os básicos. Poremos o preto no branco. Devo dizer-lhe, Nora, que estive ansioso por este momento.

       — É mesmo?

       Ele enfiou o braço no dela.

       — Isto é uma família, Nora, e vamos todos cuidar uns dos outros. — Na biblioteca, ele fez um gesto para o sofá de couro, no qual ela e Davey tinham ouvido o ultimato dele. Alden recostou-se na poltrona que usara naquela mesma noite e dobrou as mãos no colo. — Aprecio a maneira como esteve manobrando a imprensa até agora. Você concentrou interesse, mas isso fica para quando convocarmos uma coletiva da imprensa. Eu não preciso envolver-me com agentes, certo?

       — Claro que não.

       — Conheço alguns dos melhores arquitetos da área de Nova York. Construiremos uma propriedade tão bonita, que fará a casa da Crooked Mile Road parecer uma cabana. Enfim, este é um projeto de longo alcance. Podemos divertir-nos com ele mais tarde. Você esteve pensando sobre o adiantamento pelo livro, não? Diga uma quantia. Talvez eu a surpreenda.

       — Não vou escrever um livro, Alden, e não quero uma casa.

       Ele cruzou as pernas, levou a mão ao queixo e tentou permanecer cortês, enquanto imaginava quanto dinheiro ela desejaria.

       — Eu e Davey queremos que esta situação funcione satisfatoriamente para nós três.

       — Não vim aqui para negociar, Alden.

       Alden sorriu para ela.

       — Então, por que não diz o que quer e me deixa partir daí?

       — Eu quero apenas uma coisa.

       Ele estendeu os braços, abrindo as mãos.

       — Desde que esteja ao meu alcance, conte como sua.

       — Quero ver o manuscrito de Jornada na Noite.

       Alden ficou olhando fixamente para ela por uns três segundos, parecendo não ter ouvido bem. Depois falou:

       — Infernos, Davey queria a mesma coisa, há dez anos passados. Entretanto, o manuscrito está perdido. Eu gostaria de tê-lo comigo.

       — Está mentindo para mim — disse Nora. — Seu pai nunca jogava nada fora. Basta olhar para o sótão desta casa e o depósito no escritório. E mesmo que se desfizesse de algo, conservaria o manuscrito, pois foi a base de seu maior sucesso. Tudo quanto desejo é dar uma espiada nele.

       — Lamento por você pensar que não lhe digo a verdade. Entretanto, se veio aqui para isso, suponho que esta conversa está encerrada.

       Ele ficou em pé.

       — Se não me mostrar o manuscrito, vou dizer coisas que você não deseja serem ouvidas pelos outros.

       Ele a fitou com ar exasperado e tornou a sentar-se.

       — Não entendo o que você espera conseguir com isto. Mesmo que eu o tivesse, não poderia ser-lhe útil de maneira alguma. Qual é a questão?

       — Eu quero saber a verdade.

       — E veio aqui para isso? Para saber a verdade sobre Jornada na Noite? O livro foi escrito por Hugo Driver. Todos sabem disso, e todos estão certos.

       — Essa é parte da verdade.

       — Aparentemente, suas aventuras a deixaram mais instável do que imagina. Se quiser voltar daqui a uns dois dias para falar de negócios, por favor, venha. No momento, contudo, nada mais tenho a falar.

       — Ouça-me, Alden. Sei que tem o manuscrito em algum lugar. Davey procurou você certa vez, com uma idéia que o faria ganhar ainda mais dinheiro com o livro. Entretanto, você nem ao menos se deu ao trabalho de estudar o caso. Davey o estudou, mas você, não. Você sabia onde estava o manuscrito, apenas não queria que ele o visse. Pois agora, eu quero vê-lo. Não abrirei minha boca para um único ser humano. Quero apenas saber que estou certa.

       — Certa sobre o quê?

       — Sobre Driver ter roubado a maior parte da história de Katherine Mannheim.

       Alden levantou-se e olhou para ela, com ar penalizado. Precisamente quando podia ter invertido a situação, juntando-se ao time, Nora revelava-se uma bisbilhoteira, o que era vergonhoso.

       — Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Nora. Você imagina estar a par de certos fatos que poderiam prejudicar-me. É verdade que eu preferiria não trazer tais fatos a público, mas enquanto puderem despertar qualquer publicidade sem estorvos para mim, eu sobreviverei. Vá em frente, faça o que quer que acha que deve fazer!

       Nora tirou da bolsa uma folha dobrada de papel.

       — Veja isto, Alden. É a cópia de uma declaração que, provavelmente, você não desejaria tornar pública.

       Alden suspirou. Cruzou a sala a fim de pegar o papel. Estava irritado, Nora jogara fora sua última chance de ser razoável, mas ele era um cavalheiro, de modo que deixaria passar aquela sua última sandice. Tirou do bolso do blazer os óculos de leitura e abriu o papel, enquanto tornava a voltar para sua poltrona. Nora contemplou este desempenho com imenso prazer. Alden leu uma frase e parou de súbito. Arrancando os óculos do rosto, virou-se para ela.

       — Leia tudo — disse ela.

       Até aquele momento, tivera dúvidas sobre se ele já saberia. O choque e o terror que emergiram à superfície através daquela atuação deixaram bem claro que Alden ignorava. Nora quase sentiu pena dele.

       Alden moveu-se por trás da poltrona de couro, inclinou-se sobre ela e leu a confissão de Driver, assim como o pós-escrito de Georgina Weatherall. Leu tudo até o fim, depois leu de novo. Ergueu os olhos para Nora, sem sair de trás da poltrona.

       — Onde foi que conseguiu isto?

       — E importa?

       — É uma falsificação!

       — Não, Alden, não é. E mesmo que fosse, você desejaria que essa história transpirasse? Quer que as pessoas comecem a especular sobre seu pai, Katherine Mannheim e Hugo Driver?

       Alden dobrou a nota, enfiou-a em um bolso e os óculos em outro. Ainda estava escondido atrás de sua poltrona.

       — Hipoteticamente falando, suponhamos que eu tenha o manuscrito de Jornada na Noite. Suponhamos que eu lhe satisfaça a curiosidade. Se isso acontecesse, o que você faria?

       — Iria embora feliz.

       — Tentemos outro cenário. Se eu lhe oferecesse duzentos mil dólares pelo original desta falsificação, unicamente para proteger o nome de meu pai, você aceitaria minha oferta?

       — Não.

       — Trezentos mil dólares?

       Nora deu uma risada.

       — Ainda não percebeu que não quero dinheiro algum? Mostre-me o manuscrito, depois eu irei embora e nunca mais nos veremos.

       — Você apenas quer vê-lo.

       — Eu quero vê-lo.

       Alden assentiu.

       — Tudo bem. Tanto eu quanto você somos pessoas honradas. Fique certa de que nunca tive qualquer idéia de que... de que Katherine Mannheim simplesmente não saiu daquela propriedade caminhando. Você me fez uma promessa, e eu lhe faço outra. — Ele conseguiu recompor-se. — Eu continuo afirmando que isso é uma falsificação, claro. Meu pai seguia suas próprias regras, porém não era um estuprador.

       — Alden, ambos sabemos que ele era, mas não me importa. Isto é história antiga.

       Alden saiu de trás de sua barricada.

       — É história antiga, se ele era ou não. — Movendo-se ao longo de uma estante de livros, Alden girou uma seção provida de dobradiças em uma prateleira ao nível dos olhos, para revelar um cofre de parede, outro volumoso cofre, maior por dentro do que por fora. Ele discou o segredo que abriria o cofre e, com mais reverência do que ela o julgara capaz, introduziu a mão em seu interior e pegou uma caixa de couro verde.

       Nora aproximou-se dele, e viu o que parecia a parte inferior de uma moldura de retrato, na prateleira mais alta do cofre.

       — O que é isso?

       — Um desenho que meu pai guardou.

       Alden puxou o desenho para fora e o mostrou a ela, antes de tornar a enfiá-lo no cofre.

       — Não me pergunte o que é e nem por que está aqui. Sei apenas que quando eu e Daisy nos mudamos para “Os Álamos”, ele me mostrou o desenho e disse que eu o mantivesse dentro do cofre, esquecendo sua existência. Creio que deve ter sido roubado. Alguém provavelmente o deu a ele, em pagamento de uma dívida.

       — Parece um Redon — disse Nora.

       — Não sei dizer. É coisa boa?

       — Boa o suficiente.

       Ela levou a caixa para o sofá e examinou-a por dentro. Um pequeno livro de apontamentos, com capas marmorizadas, sobre um punhado de páginas datilografadas. A assinatura de Katherine Mannheim estava no lado interno da capa. Ela havia escrito “Jornada na Noite, romance?” na primeira página. Nora folheou página após página, cheias de anotações sobre o Pequeno Pippin; este era o embrião do livro de Driver, roubado da bolsa de Katherine Mannheim. Aquele que rouba minha escória, escória rouba. Colocando o livro de apontamentos de lado, ela tirou o manuscrito da caixa. Parecia uma coisa pequenina demais, para ter afetado tantas vidas. Abriu-o ao acaso, e viu que alguém riscara uma linha na margem e escrevera, em uma caligrafia violenta e agressiva, pág. 32, livro de apontamentos de Mannheim. Virando outra página, ela viu, escrito pela mesma mão, págs. 40-43, Mannheim. Lincoln Chancel exigira o livro de apontamentos roubado, guardara o manuscrito e marcara nele tudo o que Driver havia roubado de Katherine Mannheim. Se Driver o arruinasse, ele arruinaria Driver.

       — Vê só? — exclamou Alden. — Driver escreveu o livro. Esses Mannheim não têm nenhuma base para queixas. Ele apenas aproveitou algumas idéias, nada mais. Escritores fazem isso o tempo todo.

       Nora devolveu à caixa o manuscrito e o livro de apontamentos.

       — Fico-lhe grata, Alden.

       — Ainda não compreendo por que isto era tão importante.

       — Eu só queria vê-lo, do princípio ao fim — respondeu ela. — Em mais um ou dois dias estarei me mudando para Massachusetts por algum tempo. Não sei para onde irei depois disso, mas você não precisa se preocupar comigo.

       Alden respondeu que se despediria de Davey em nome dela.

       — Eu já fiz isso — disse Nora.

      

A segunda missão de Nora conduziu-a à agência dos correios, onde retirou de um envelope sem selo, endereçado a The New York Times, uma carta descrevendo a dívida de Hugo Driver à esquecida poetisa Katherine Mannheim, bem como um relato da morte dela e seu sepultamento poucos metros ao norte da área conhecida como Vale de Monty, na floresta de Shorelands. À carta, ela acrescentou esta nota, em sua caligrafia apressada: “O livro de apontamentos original pertencente a Katherine Mannheim e o manuscrito de Hugo Driver, com notas marginais de Lincoln Chancel referindo-se a trechos específicos tirados do livro de apontamentos, acham-se em um cofre de parede localizado na biblioteca da casa de Alden Chancel, em Westerholm, Connecticut.” Mantendo sua promessa de jamais falar sobre tais assuntos, ela tornou a dobrar a carta, envolveu-a em outra cópia da confissão de Hugo Driver, colocou tudo de volta no envelope, selou-o e o enviou para Nova York, com porte registrado.

      

A terceira missão de Nora levou-a à Redcoat Road. A casa de Natalie Weil continuava precisando de uma pintura nova, porém as fitas demarcatórias da cena do crime já haviam sido removidas. Ela parou o carro diante da porta da garagem, subiu a trilha que conduzia à entrada principal da casa e apertou a cigarra. Uma voz amistosa de mulher respondeu, e passos desceram correndo os degraus até a porta. Assim que Natalie a viu, imediatamente tentou bater a porta, porém Nora introduziu-se dentro da casa, e a fez recuar para a escada.

       — Quero falar com você — disse.

       — Suponho que sim — respondeu Natalie. Parecia ofendida e relutante, o que não desagradou a Nora. — Sei como se sente, mas de uma hora para outra surgiram três novas listas de imóveis à venda, e preciso mostrar a meu chefe que ainda sou capaz de fazer o meu trabalho. Além disso, há um probleminha com a polícia, qualquer besteira sobre drogas, mas isso dará em nada. Assim, está tudo bem, certo? Vamos lá para cima, tomar uma cerveja.

       — Você está mais calma do que esperei — disse Nora.

       — A gente ganha uns, mas também perde alguns. Tomarei uma cerveja, caso você não queira beber.

       Nora subiu a escada e esperou por Natalie. A despeito de seu uniforme de fim de semana para Westerholm — blusa desbotada de denim e short cáqui — ela parecia circunspecta e defensiva. Embora não tivesse aparência tão idosa, como quando ocupara o sofá de Barbara Widdoes, estava mais velha do que Nora podia lembrar-se. Ela abriu a geladeira, tirou uma garrafa de Corona e a destampou.

       — Venha, sente-se, já nos conhecemos há muito tempo, e que diferença faz um maridinho transando entre velhas amigas? Não posso censurá-la por ter ficado furiosa comigo, mas se quer saber a verdade, dificilmente aquilo seria um grande negócio.

       — Sim — disse Nora —, eu quero. — Ela entrou na cozinha e sentou-se de frente para Natalie, na mesa que havia ali. — É exatamente o que quero saber.

       — Junte-se à turma. — Natalie bebeu pelo gargalo e colocou a garrafa suavemente em cima da mesa. Seus olhos pareciam esfolados. — Ei, ao menos por algum tempo, eu continuo no negócio de imóveis. Sabe o que isso significa? Significa que vendemos sonhos. A verdade é o que dizemos que é. Correto?

       — Muita gente pensa assim — disse Nora.

       As fotos algemadas tinham sido retiradas do quadro de avisos de cortiça e as figurinhas com ímãs que enfeitavam a geladeira haviam sido jogadas fora.

       Natalie tomou outro gole de Corona.

       — Como é ser famosa? Legal? Eu não me incomodaria de ser famosa.

       — Não é legal.

       — Ora, mas você matou Dick Dart! Liquidou o filho da mãe!

       A cerveja diante de Natalie evidentemente não era a primeira.

       — É o que dizem — respondeu Nora.

       Natalie ergueu um brinde com a garrafa de Corona.

       — Está tudo bem com você e Davey?

       — Ele se mudou para a casa do pai e eu estou indo embora da cidade. Portanto, sim, provavelmente está tudo bem conosco.

       — Céus, ele voltou para a casa de Alden! — Natalie retorceu a boca, em um meio sorriso. — Ouvi dizer que Daisy caiu fora. Já era tempo. Aquele sujeito dá azar, sempre deu. Quero dizer, a gente comete erros, mas Alden estava envolvido com o pior erro que já cometi. Enfim, vamos esquecer esse assunto.

       — Não, não vamos — disse Nora. — Afinal de contas, você e Alden causaram-me um bocado de problemas. Eu estava prestes a ser presa, quando o maravilhoso Dick Dart seqüestrou-me.

       — Ninguém é perfeito. Pela parte que me toca, Nora, eu sinto muito. — Natalie estava tendo dificuldade em olhar para ela. — Às vezes a gente faz coisas pelos motivos errados. É um negócio baixo, entende? Ficamos encurralados, concordamos com coisas que, de outro modo, jamais faríamos. Nunca desejei causar-lhe problemas; oh, merda, eu gosto de você! Sempre gostei. Antes de mais nada, a coisa toda foi idéia de Alden. Apenas uma questão de negócios.

       — N’gócios são n’gócios — disse Nora.

       Natalie teve uma expressão esquisita.

       — Sabe quantas casas foram vendidas aqui, no ano passado? Exatamente dezenove. E não precisamente na minha ponta de mercado, não senhora, eu figurei no alto da página final; coisas como a sua casa, sem querer ofender, mas o escritório não me passa propriedades de dois milhões de dólares. — Ela bebeu mais cerveja e deixou a garrafa na mesa. — Alden é um cretino, mas está querendo botar dinheiro na mesa, digo isso em benefício dele. E tirei você do sufoco, não tirei?

       — Sim — replicou Nora —, mas quase conseguiu que me prendessem por rapto.

       Natalie tomou outro gole de Corona.

       — Eu nunca pretendi ir a tais extremos, Nora. Ele apenas queria o idiota do Davey por perto, nada mais. Ele estava fulo da vida. Não sabia que estava para acontecer toda aquela coisa com Dick Dart. Aliás, quem poderia saber?

       — Fale-me do sangue em seu quarto.

       Natalie sorriu para ela, como uma conspiradora.

       — Oh, aquilo foi uma das brilhantes idéias de Alden. Ele queria convencer todo mundo, ligar-me àqueles assassinatos. Mexer o caldeirão, você entende? Ele conseguiu aquele sangue de porco em um açougueiro e jogou no meu quarto. Entretanto, agora está tudo certo com você, não está? Eu representei o meu papel, está tudo encerrado; portanto, qual é a diferença?

       — Se você não sabe, nunca serei capaz de explicar-lhe — disse Nora.

       Natalie virou a cabeça para um lado.

       — Natalie — disse Nora, e Natalie tornou a olhar para ela. — Você me enoja. Alden a comprou, e você arruinou minha vida.

       — Seja lá como for, você não gostava da vida que tinha. Como poderia, casada com aquele bebê?

       — Quanto foi que ele lhe pagou?

       — Nem por sombra o suficiente — respondeu Natalie. — Considerando-se o que provavelmente acontecerá comigo. Caso você não se importe, eu gostaria que fosse embora de minha casa. Penso que o assunto entre nós está encerrado. Se quer saber, eu lhe fiz um favor. Você saiu disso tudo muito melhor do que eu.

       — Eu não me ofereci como voluntária — disse Nora. — Fui recrutada.

      

Um carro não familiar estava de frente para a porta da garagem de Nora e, imaginando que pertencesse a mais um repórter ou qualquer dos homens desconhecidos que a tinham pedido em casamento, ela quase dirigiu até o final da Crooked Mile Road, até ver Holly Fenn sair do carro e caminhar para a porta de entrada. Nora manobrou para sua entrada de carros, Fenn acenou para ela e começou a caminhar lentamente de volta à garagem. Ela freou ao lado do carro dele, saiu e aproximou-se do policial. Ele precisava cortar o cabelo, estava usando a gravata mais feia que ela já vira, e havia pesadas bolsas sob seus olhos. Contudo, tinha uma aparência imponente.

       — Então, aí está você — disse ele. — Liguei umas duas vezes, mas tudo que consegui, foi ser atendido por sua secretária eletrônica.

       — Não estou respondendo a muitos telefonemas.

       — Posso imaginar. Seja como for, eu queria vê-la, de maneira que resolvi arriscar e vim até aqui. — Ele coçou o queixo, enfiou as mãos nos bolsos e olhou para ela, por baixo das sobrancelhas. Uma faísca de sentimento saltou entre eles. — Tenho algo a dizer-lhe, mas, acima de tudo, queria apenas ver como está.

       — Como estou?

       — Parece estar indo muito bem, ouso dizer. Gosto de seu novo cabelo. Ficou interessante.

       — Obrigada, mas está mentindo. Você gostava mais do jeito antigo. Eu também. Vou deixá-lo crescer novamente.

       Fenn assentiu sem pressa, como se concordasse com ela em um assunto de relevante importância.

       — Ótimo. Está recomeçando a organizar sua vida?

       — Estou juntando os pedaços muito bem, então suponho que não me tenho saído de todo mal. Não é mais a mesma vida, eis tudo. Holly, gostaria de uma xícara de café ou algo assim?

       — Eu bem que gostaria, mas preciso estar em outro lugar dentro de cinco minutos. Entretanto, achei que você devia saber algo que descobri sobre aquela velha escola infantil, na South Post Road. Ocorreu-me que eu não sabia quem era o responsável pelo aluguel daquela casa, de maneira que fui verificar. O prédio foi alugado para um sujeito em Nova York, chamado Gerald Ambrose. Liguei para ele, e fiquei sabendo que um cidadão aqui de Westerholm o sublocara dele, pelo resto do verão.

       — Ah! — exclamou Nora. — Você é um bom tira, Holly.

       — Sim, talvez eu seja mesmo, porém tendendo para o lado lento. Se houvesse checado isso antes, teria poupado a você um mundo de problemas.

       Ela sorriu para ele.

       — Não o censuro, Holly. Quem alugou o prédio?

       Ele sorriu de volta.

       — Tenho a impressão de que você já sabe... ou estou imaginando coisas?

       — Faço uma idéia, mas diga-me.

       — O cidadão que alugou o prédio é um grande editor, que disse a Ambrose estar precisando de um depósito temporário para um excesso de estoque. Você está em bons termos com seu sogro?

       — Meu brevemente ex-sogro e eu temos uma longa história de ódio mútuo. — Nora recordou Alden Chancel alisando seu braço e dizendo Eu gostaria de passar a conhecê-la melhor. — Holly, se você der uma paradinha na casa de Natalie Weil, ela provavelmente lhe contará uma interessante história. Eu acabei de vê-la, e ela dá a impressão de estar matando tempo, até seu mundo desmoronar.

       Fenn enxugou a mão no bigode áspero e assentiu.

       — Sua amiga fez uma excelente exibição.

       — Ela chegou a enganar Slim e Slam!

       Os olhos de Fenn apertaram-se.

       — Parece-me que algum dinheiro trocou de mãos.

       — Segundo Natalie, não o suficiente.

       Fenn sorriu para a entrada de carros, maravilhando-se com a inventiva da capacidade humana para cometer um erro sério.

       — E você disse que sou um bom tira.

       — Eu acho que você é muitíssimo bom, em todos estes arredores — respondeu Nora. — Ficou do meu lado.

       — Sim, bem, eu tentei. — Ele a fitou com um pesar que conseguia abranger compaixão pelo que ela suportara, e raiva, por não ter sido capaz de poupá-la de tal sofrimento. — Bem — disse —, acho melhor eu ir andando.

       — Se precisa mesmo ir...

       Nora o acompanhou até o carro.

       — Ouça, talvez isto não seja da minha conta, mas você disse que estava abandonando seu marido?

       — Já o abandonei.

       Fenn olhou para um ponto distante.

       — E vai ficar na cidade?

       — Creio que irei até Northampton por algum tempo. Posso trabalhar com uma senhora que dirige um negócio de bufê, durante umas duas semanas. Quero ficar longe do telefone e arejar a cabeça. Depois disso, quem sabe?

       Fenn assentiu, sua grande e emaranhada cabeça digerindo a idéia.

       — Depois que encerrar com a sra. Weil e seu brevemente ex-sogro, eu poderia voltar aqui e tomar o seu café ou coisa assim?

       — Holly, está querendo marcar um encontro comigo?

       — Sou velho demais para marcar encontros — disse ele.

       — Eu também. Portanto, volte mais tarde e não teremos um encontro, apenas ficaremos conversando. Quero ouvir sobre sua entrevista com Alden. Também poderá contar-me todas as suas histórias de guerra favoritas.

       Fenn sorriu para ela, com cada centímetro do rosto.

       — E eu prometo não pedir para ouvir as suas.

       — Ou contar-me algumas mentiras.

       — Eu não saberia como mentir para você.

       — Então, estamos combinados — disse Nora.

       — Certo, certo.

       Ele agachou o corpo para entrar no carro, piscou para ela através do pára-brisa e recuou da garagem. Segundos mais tarde, já tinha ido embora.

 

                                                                                            Peter Straub

 

 

                      

 

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