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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAVALO AMARELO / Agatha Christie
O CAVALO AMARELO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAVALO AMARELO

 

       Forças estranhas e perigosas, que aliam as velhas crenças aos novos conhecimentos científicos, são responsáveis por assassinatos a distância, por telepatia. Uma organização particular criminosa dedicada à eliminação de pessoas ricas, que não emprega assassinos profissionais, uma vez que suas vítimas morrem de ‘doenças’. Deixando sempre, é claro, sobreviventes que lucram com as mortes.

       E o inspetor Lejeune, um homem de imaginação, capaz de considerar as possibilidades menos ortodoxas, consegue chegar ao terrível deslindamento de uma trama macabra, que arrebata a fantasia e a imaginação do leitor como só Agatha Christie, a grande mestra do gênero, logra fazer.

 

                                                     

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       A máquina de café expresso sibilou atrás de mim como uma serpente enraivecida; um som sugestivamente sinistro e demoníaco. Por uns instantes, fiquei a cismar se os barulhos da vida moderna não possuíam esta implicação: o grito intimidadoramente raivoso dos aviões a jato, cruzando os céus; o som vagaroso e ameaçador de um trem subterrâneo, aproximando-se de um túnel; o rumor dos caminhões, sobre as calçadas, sacudindo as fundações das casas... até os pequenos ruídos domésticos, embora úteis, carregam consigo uma espécie de sinal de alarme: lavadores de pratos, geladeiras, panelas de pressão, aspiradores de pó. — Cuidado! — parecem murmurar — Sou um gênio obrigado a servi-lo, mas se você falhar...

       Um mundo perigoso, sem dúvida!

       Levantei a xícara escaldante e aspirei o agradável odor.

       — Que mais deseja? Que tal um bom sanduíche de bacon com banana?

       Pareceu-me uma combinação esdrúxula. Banana para mim estava associada a minha infância ou como sobremesa servida flambée com rum; bacon sempre com ovos. Porém eu estava em Chelsea1, portanto devia seguir os costumes locais. Concordei com a sugestão e pedi banana com bacon.

       Embora eu estivesse morando em Chelsea, nos últimos três meses, ainda era um estranho no bairro.

      

1 Bairro de Londres conhecido por sua boêmia. NT

 

Estava escrevendo um livro sobre arquitetura mongólica, o que significava que eu poderia estar vivendo em qualquer outro bairro de Londres. Não precisava participar da vida do bairro, para exercer minha profissão. Por outro lado, não tinha o menor interesse na vida da vizinhança. Vivia encasulado no meu mundo particular.

       Nesta noite, porém, eu estava em casa, quando fui atacado pela revolta tão comum aos escritores.

       Arquitetura mongólica, imperadores mongóis. O cotidiano mongol e todos os seus fascinantes problemas tinham se transformado, para mim, numa montoeira de cinzas. O que importava tudo isso? Por que escrever sobre este assunto? Folheei distraidamente o manuscrito, relendo algumas passagens. Pareceu-me uniformemente fraco, mal escrito e sem interesse. Quem disse (Henry Ford, talvez), que a História é um montão de besteiras! estava com a razão. Empurrei o manuscrito para o lado, levantei-me e olhei o relógio. Quase onze horas da noite. Tentei lembrar-me se tinha jantado... pelo movimento do meu estômago achei que não. Que tinha almoçado eu me lembrava perfeitamente, sabia até o nome do restaurante. Mas, jantado?

       Dei uma olhada na geladeira: um resto de língua defumada que não me inspirou. Resolvi sair e eventualmente fui parar no Bar Café Expresso Luigi, atraído pelas luzes de gás néon vermelho da porta envidraçada. Agora estava diante de um sanduíche de banana com bacon enquanto conjeturava sobre as sinistras implicações dos barulhos da vida moderna e seus eventuais efeitos atmosféricos.

       Esses barulhos para mim se relacionavam com minhas recordações infantis sobre pantomima. O mocinho aparecendo do espaço envolvido em fumaça! Alçapões e janelas que puxavam as vítimas para o inferno desafiando a vontade da Fada Boa que sacudia sua inevitável varinha de condão, recitava uma cansativa preleção sobre as vantagens do bem e cantava o último sucesso das paradas de música, que geralmente não tinha a menor relação com a história. Veio-me a idéia de que o mal era geralmente mais imponente do que o bem. O mal precisava se exibir, assustar e desafiar. Era a instabilidade atacando a estabilidade. No final a estabilidade sempre acabava triunfando; suplantando mesmo a doçura e a chatice da Fada Boa. Débeis armas que no final sempre triunfavam, encerrando a pantomima com otimismo. Na hora dos agradecimentos, seguindo a procissão a Fada Boa procurava não ficar na frente (mas também não no fundo) e colocava-se ao lado do vilão diabólico, agora totalmente manso e dominado pelas forças do Bem.

       A máquina de café sibilou novamente ao meu ouvido. Pedi outra xícara e examinei o bar. Minha irmã vivia me acusando de falta de senso de observação e desinteresse pelos outros. — Você vive no seu mundo — acusava-me ela. Tentando corrigir minhas faltas, comecei a olhar para os freqüentadores do bar. Diariamente os jornais publicavam algo sobre os moradores de Chelsea e suas excentricidades. Cá estava minha chance de examinar de perto a veracidade das notícias.

       Como o bar estava meio no escuro, eu não podia ver bem. Os freqüentadores eram todos jovens e membros da chamada geração LSD. As moças, com seus cabelos eriçados e suas roupas estranhas, só me davam a impressão de serem sujas e superagasalhadas. Umas noites antes, quando eu jantava com uns amigos, num restaurante, notei uma moça de uns vinte anos, numa mesa próxima. O restaurante estava quente mas ela estava usando uma suéter de lã amarela, saia de veludo preta, meias de lã e durante toda a refeição o suor escorria pelo seu rosto; cheirava a lã ensopada de suor e cabelos sujos.

       Meus amigos acharam que ela era muito atraente, mas não para mim. Minha única vontade era oferecer-lhe um bom sabonete, antes de atirá-la numa banheira de água quente. Acho que este pequeno parêntese serve para demonstrar quanto sou quadrado! Talvez o fato de eu ter vivido no estrangeiro tantos anos, vendo as belas indianas com seus saris coloridos e seus cabelos cheirosos, tenha influenciado meu relacionamento com a juventude atual.

       Fui acordado desses pensamentos pelo barulho. Duas jovens, na mesa ao lado, começaram a brigar. Os dois acompanhantes tentavam acalmá-las, mas sem sucesso. De repente, elas estavam aos gritos. Uma delas, a loura, esbofeteou a ruiva; esta arrancou a outra do lugar e a briga degenerou num quebra-quebra histérico e violento. As duas pareciam peixeiras brigando.

       O porquê da briga não entendi.

       As outras mesas participavam vaiando ou aplaudindo.

       — Viva! Muito bem! Dá-lhe! Agora!

       O dono do bar, que presumi fosse o italiano Luigi, saiu de trás do balcão para apartar a luta.

       — Vamos com isso! — gritou com seu puro sotaque Cockney.2 — Daqui a pouco a polícia baixa aqui. Parem!

       A loura a esta altura estava agarrada na cabeleira da ruiva.

       — Você não passa de uma cadela no cio!

       — Cadela é você!

       Luigi e os dois acompanhantes conseguiram separar as litigantes.

      

2 Linguajar típico da classe pobre de Londres. NT

 

Via-se nas mãos da loura um enorme tufo de cabelos vermelhos que foi atirado ao chão com desprezo.

       A porta da rua foi aberta e a Autoridade, toda de azul, entrou.

       — O que está acontecendo aqui? Imediatamente formou-se uma frente unida contra a Lei.

       — Estávamos brincando — disse um dos acompanhantes.

       — Era só brincadeira — interveio o proprietário, enquanto empurrava com o pé o tufo de cabelos ruivos para baixo do balcão. As lutadoras trocavam sorrisos de amabilidade.

       O policial não pareceu convencido.

       — Estávamos de saída — disse a loura. — Venha, Doug.

       Por coincidência estavam todos de saída. O guarda, sem sorrir, viu-os partir, insinuando com o olhar que, na próxima vez, não seria tão leniente. Em seguida retirou-se também.

       O companheiro da ruiva pagou a conta.

       — Você está bem? — perguntou Luigi, para a ruiva, enquanto esta amarrava um lenço na cabeça. — Lou levou a melhor, arrancando os seus cachos!

       — Não doeu — respondeu a moça. — Desculpe a confusão, Luigi — acrescentou ela, sorrindo.

       Com a saída do casal o bar ficou praticamente vazio. Procurei uns trocados no bolso.

       — Ela é muito boazinha — explicou Luigi, apanhando uma vassoura para varrer o tufo de cabelo e os cacos de vidro.

       — Deve ter sentido uma dor horrível — comentei, pensando no chumaço caído ao chão.

       — Se fosse comigo eu teria gritado até me acabar — disse Luigi. — Mas Tommy é muito bacana...

       — Conhece-a bem?

       — Ela vem aqui todas as noites. Chama-se Thomasina Tuckerton, mas aqui é conhecida por Tommy. Rica até não poder mais. O pai deixou uma fortuna para ela. Resultado: ela mora aqui perto num quartinho coberto de percevejos e anda com este pessoal mulambento. Todos ricos, podiam morar onde quisessem, mas não, o “quente” é viver num cortiço. Vá se entender uma coisa dessas!

       — O senhor não faria isso?

       — Eu!? Não sou tão louco — respondeu Luigi. — Só faturo nas costas deles.

       Levantei-me para sair.

       — Por que foi a briga? — perguntei.

       — Tommy conquistou o namorado da outra. Ele não vale uma briga.

       — A outra moça não parece ser da mesma opinião — observei.

       — Ah! Lou é muito romântica — disse Luigi, num tom benevolente.

       — Que romance! — quase comentei antes de me retirar.

      

       Uma semana depois, mais ou menos, na coluna de óbitos do jornal, eu li a seguinte nota: “TUCKERTON — Dia 2 de outubro no Hospital de Fallowfield. Thomasina Ann, 20 anos, filha única do falecido Thomas Tuckerton. O féretro sairá da capela do Hospital. Pede-se não enviar flores nem coroas.”

      

       Nada de flores para a pobre Tommy e adeus vida boêmia em Chelsea. Senti uma grande pena por todas essas moças perdidas. Mas me perguntei se tinha motivo para sentir pena. Como poderia saber se a vida dela tinha sido desperdiçada? Quem sabe não seria minha vida de pesquisador, mergulhado nos livros, fora do mundo, que era desperdiçada? A verdade é que eu não andava à cata de sensações novas. Mas será que não deveria andar? Um novo enfoque sobre minha vida que eu deveria examinar melhor.

       Esqueci de Tommy Tuckerton e voltei minha atenção para as cartas que havia recebido.

       Uma delas, da minha prima Rhoda Despard, pedia-me um favor. Agarrei-me à incumbência, pois não estava com vontade de trabalhar, adiando minha pesquisa para mais tarde.

       Peguei um táxi e dirigi-me pára a casa de uma amiga, a Sra. Ariadne Oliver, famosa escritora de novelas policiais.

       Milly, a empregada e eficiente guardiã da Sra. Oliver, abriu a porta. Ao vê-la levantei as sobrancelhas como que perguntando em que humor se encontrava a dona da casa.

       — É melhor o senhor subir, Sr. Mark — disse ela. — Está com um humor daqueles! Talvez o senhor consiga melhorar sua disposição.

       Subi os dois lances de escada, bati na porta e entrei sem esperar pela resposta. O escritório da Sra. Oliver era uma sala espaçosa, toda forrada de papel de parede, representando pássaros exóticos. A Sra. Oliver, num estado pré-esquizofrênico, passeava de um lado para outro, resmungando. Deu-me um rápido olhar, desinteressada, e continuou a andar, abrindo e fechando os olhos. De vez em quando olhava pela janela ou se apoiava na parede, sofrendo o que parecia ser um grande espasmo de agonia.

       — Mas, por que — perguntou ela ao universo — o imbecil não diz logo que viu a cacatua? Por quê? Não podia deixar de tê-la visto! Se ele não falar nela, a história perde o sentido. Deve haver uma saída... deve haver uma saída... Em seguida, a Sra. Oliver gemeu, passou os dedos sobre os cabelos grisalhos e agarrou um punhado deles com energia. De repente, como se estivesse me vendo naquele instante, disse: — Alô, Mark! Sabe que estou enlouquecendo?

       As lamúrias, porém, não tinham acabado.

       — E Monica? Quanto mais faço ela ficar boa mais irritante se torna... uma perfeita idiota... burra... Monica? Este nome não lhe vai bem. Que tal Mary? Será que faria alguma diferença? Ou Joan? É um nome muito comum. Anne também. Susan? Já tive uma Susan. Lucia? Lucia! Posso visualizar uma Lucia... cabelos ruivos, col roulé, meias pretas... Por que não?

       Este momento de satisfação foi rapidamente eclipsado pelo problema da cacatua. A Sra. Oliver voltou a andar pela sala, pegando coisas a esmo da mesa e colocando-as nos lugares mais incríveis. Depois guardou cuidadosamente os óculos, num estojo de madrepérola, junto com um leque chinês, e deu um grande suspiro.

       — Que bom que você veio!

       — Muito obrigado.

       — Podia ser uma outra pessoa, uma tola qualquer que precisa da minha presença num baile a fantasia, ou um senhor que trate do seguro de Milly (aliás, não consigo fazê-la guardar as apólices num lugar só) ou o bombeiro... mas isto já seria demais, não acha? Ou quem sabe um jornalista querendo uma entrevista, só para poder perguntar: — O que fez a senhora dedicar-se à literatura? Quantos livros escreveu? Quanto ganha por mês? Geralmente não sei responder estas perguntas e fico com cara de idiota. Hoje naturalmente não tem importância, porque estou enlouquecendo com esta maldita cacatua.

       — Quer que eu vá embora? — perguntei.

       — Não, fique. Preciso me distrair.

       — Aceitei este elogio dúbio.

       — Quer um cigarro? — perguntou, tentando ser hospitaleira. — Devo ter um maço por aí. Olhe embaixo da tampa da máquina de escrever...

       — Eu trouxe cigarros, obrigado. Aceita um? Ah! É verdade, a senhora não fuma.

       — Nem bebo — disse a Sra. Oliver. — No que faço muito mal. Eu queria ser como os detetives dos policiais americanos, que vivem com garrafas de uísque embaixo da cama; parece que é o suficiente para solucionar todos os problemas. Eu não acho possível uma pessoa cometer um crime e não ser preso. Na minha opinião, assim que se comete um crime todas as pistas apontam para o culpado.

       — Não é isso que a senhora conta aos seus leitores.

       — Nem sempre — disse a Sra. Oliver. — A parte do assassinato é fácil, o difícil é encobrir as pistas. O culpado passa a brilhar que nem gás néon.

       — Quando eu leio um livro seu quase nunca acerto o assassino.

       — E o que isto me custa! — sorriu a Sra. Oliver, amargamente. — Para começar, não é natural que cinco ou seis pessoas estejam no local do crime quando B é assassinado; além do mais, para o cúmulo das coincidências, todas essas pessoas têm um motivo para querer eliminar B... a não ser que B seja um homem tão desagradável que qualquer um gostaria de se ver livre dele... mas neste caso ninguém vai se preocupar em achar o assassino e sim soltar um profundo suspiro de alívio.

       — Compreendo o seu problema — disse eu. — Mas se já resolveu tantos casos complicados, vai ser capaz de resolver este também.

       — É o que eu vivo me dizendo, mas não acredito e o resultado é que vivo em eterna agonia — gemeu a Sra. Oliver, dando mais uma puxadela nos cabelos.

       — Pare com isso! — disse eu. — Vai acabar arrancando um tufo pela raiz!

       — Não diga bobagem — respondeu a Sra. Oliver. — Cabelo não sai assim, a não ser quando eu tive sarampo, aos quatorze anos, e ardia de febre. Caiu uma porção de cabelo, bem aqui da frente. Fiquei morta de vergonha. Demorou uns seis meses para crescer de novo. É uma experiência horrível para uma mulher. Ainda ontem pensei nisto quando fui visitar Mary Delafontaine no hospital. O cabelo dela está caindo aos chumaços; ela disse que quando ficar boa vai ter que comprar uma peruca. Acho que depois dos sessenta o cabelo não cresce mais.

       — Outro dia vi uma garota arrancar o cabelo da outra pela raiz — disse eu, orgulhoso de poder relatar um acontecimento inédito, além de demonstrar como eu estava participando ativamente do mundo.

       — Por onde você tem andado?

       — Um café em Chelsea.

       — Ah! Parece que tudo de insólito acontece em Chelsea. Beatniks, Sputniks, caretas quadrados... não escrevo sobre eles porque tenho medo de usar as expressões erradas. É mais seguro escrever sobre o que eu sei.

       — Por exemplo?

       — Turistas veraneando, cruzeiros pelo Caribe, hospitais, paróquias, vendedoras, festivais de música, comitês de senhoras, jovens que pedem carona para conhecer o mundo...

       Ela parou um instante para tomar fôlego.

       — Já me parece o suficiente — eu disse.

       — Mesmo assim você bem que podia me levar a um bar em Chelsea... para alargar meus horizontes — disse a Sra. Oliver.

       — Quando a senhora quiser. Hoje?

       — Hoje não posso. Estou ocupada escrevendo ou preocupada porque não consigo escrever; é a pior coisa em literatura, embora tudo nela seja terrível, a não ser quando vem uma idéia que você acha que vai funcionar e fica louca enquanto não sentar na máquina. Diga-me Mark, você acha possível matar por controle remoto?

       — Como assim? Apertando um botão, emitindo um raio mortal radioativo?

       — Não, não, nada de ficção científica — disse a Sra. Oliver. — Eu me refiro à magia negra.

       — Bonecos de cera cheios de alfinetes?

       — Bonecos de cera não se usam mais — disse a Sra. Oliver com desprezo. — Não se pode negar que coisas estranhas acontecem na África e nas Caraíbas. É o que dizem. Contam que certos nativos se enroscam e morrem... Voodoo ou Joo joo... Você sabe o que eu quero dizer...

       Expliquei à Sra. Oliver que a maior parte das coisas, hoje em dia, é atribuída ao poder de sugestão. Informa-se ao nativo que ele foi condenado pelo pajé e o subconsciente completa o trabalho.

       A Sra. Oliver deu uma gargalhada.

       — Se alguém viesse me dar esta informação eu ficaria encantada e só sobreviveria para desapontá-lo.

       — A senhora tem séculos de ceticismo no seu sangue ocidental. Não possui a predisposição necessária.

       — Mas você acha que isto é possível?

       — Não conheço o assunto profundamente a ponto de discuti-lo. Por que está pensando nisso? Sua última obra-prima vai chamar-se Morte por Sugestão?

       — De jeito algum. Sou fã do arsênico e do veneno contra ratos. Ou uma boa faca. Não simpatizo com revólver, porque as armas de fogo são geralmente imprevisíveis. Afinal você não veio aqui para discutir sobre meus livros.

       — Para dizer a verdade vim trazer um recado da minha prima Rhoda Despard. Ela está organizando uma quermesse para a igreja...

       — Nem me fale nisso — interrompeu a Sra. Oliver. — Sabe o que aconteceu na última quermesse a que eu fui? Organizaram um jogo chamado Caça ao Assassino e acabaram descobrindo um cadáver. Até hoje ainda não me recuperei do susto!

       — Não vai ter nada disto, a senhora vai sentar numa barraca e vender seus livros autografados.

       — Ah! Bom, isso já é outra história. Não vou ter que abrir a quermesse, cortando a fita simbólica? Ou fazer discursos?

       Garanti que não.

       — Além disso será apenas por uma ou duas horas no máximo — acrescentei, encorajando-a. — Depois deve ter um jogo de bola ou um baile campestre ou...

       A Sra. Oliver interrompeu-me com um grito agudo.

       — Achei! — exclamou. — Achei! Ele assiste a tudo da janela, o jogo, a gritaria, e na confusão esquece de mencionar a cacatua! Meu querido, que bom que você veio. Foi uma visita maravilhosa!

       — Eu não...

       — Claro que não, mas eu entendo e é o bastante — disse a Sra. Oliver. — É uma história muito complicada e eu não posso perder tempo explicando. Apesar de adorar sua companhia prefiro que agora vá para casa...

       — E a quermesse?

       — Vou pensar no caso. Agora não me amole com bobagens. Onde terei posto meus óculos? A facilidade que as coisas têm de desaparecer...

 

       A Sra. Gerahty abriu a porta da sacristia com a habitual eficiência; o fato de ouvir a campainha e conseqüentemente lutar contra a porta emperrada era um desafio do qual ela sempre saía vencedora.

       — O que quer? — perguntou mal-humorada a um menino, igual a muitos outros, que estava parado na porta. Parecia estar resfriado pois fungava quando falava.

       — É aqui a casa do padre?

       — Está procurando o Padre Gorman?

       — Estão.

       — Quem, onde, e por quê?

       — Na Rua Benthal, 23. Uma mulher que está morrendo pediu um padre. Quem me mandou foi a Sra. Coppins, a senhoria.

       A Sra. Gerahty disse ao menino para esperar e foi chamar o padre.

       — Sou o Padre Gorman — disse o velho religioso. — Rua Benthal, é? Perto dos trilhos da estação?

       — É lá mesmo.

       O padre apanhou uma pasta e saiu com o menino.

       — Você falou na Sra. Coppins?

       — É a senhoria. Parece que aluga quartos. Uma das pensionistas é que chamou pelo senhor. Acho que se chama Davis...

       — Davis? Não conheço. Por que será?

       — Ela é católica, sim. Disse que um outro padre não servia...

       O padre fez um sinal de assentimento com a cabeça. Rapidamente atingiram a Rua Benthal; o menino indicou uma das casas.

       — É ali.

       — Você não vem?

       — Eu não moro aqui. Só ganhei uma gorjeta da Sra. Coppins para ir chamar o senhor.

       — Ah! Como é seu nome?

       — Mike Potter.

       — Obrigado, Mike.

       — Não tem de quê — respondeu o menino, que se retirou assobiando.

       A presença da morte não parecia impressioná-lo.

       Uma mulher de cabelos vermelhos, a Sra. Coppins, abriu a porta e recebeu o padre.

       — Entre, entre — disse sem entusiasmo. — Acho que ela está péssima. Devia estar no hospital e não aqui. Já chamei a ambulância mas sabe Deus quando pretendem chegar. Meu cunhado quando quebrou a perna teve que esperar seis horas. É um absurdo! Medicina socializada! Levam o dinheiro mas quando se precisa deles...

       Enquanto falava, conduzia o padre, pelas escadas, até o segundo andar.

       — O que ela tem?

       — Uma gripe muito forte. Quando parecia bem melhor resolveu sair. Ontem, quando voltou, parecia um cadáver. Foi direto para cama sem comer. Também não queria médico. Hoje de manhã encontrei-a ardendo de febre. Acho que pegou os pulmões.

       — Pneumonia — disse o padre.

       A Sra. Coppins, quase sem fôlego pelo esforço de galgar as escadas, fez um ruído semelhante a um apito para expressar concordância. Abriu a porta e postou-se de lado, para dar entrada ao padre, gritando para a doente:

       — Não era o padre que você queria? Cá está ele! Agora tudo vai dar certo.

       Com este alegre prognóstico retirou-se.

       O padre entrou num quarto muito bem arrumado, mobiliado à vitoriana. Sobre a cama, perto da janela, uma mulher virou o rosto com dificuldade. O padre percebeu logo que estava prestes a morrer.

       — O senhor veio... não tenho tempo — disse ela, lutando contra a falta de ar.

       — A maldade, a maldade... preciso... não posso morrer assim... confessar... confessar... meus pecados.

       Os olhos da doente reviraram e por uns instantes ficaram semicerrados. Um cantochão monocórdico escapou de seus lábios.

       O padre Gorman aproximou-se da cama. Falou, como sempre fazia, as mesmas frases de autoridade, apoio, fé e esperança. A paz invadiu o quarto; dissipou-se a agonia do rosto torturado.

       Assim que terminou a extrema-unção a moribunda falou.

       — Deve impedi-los... impedi-los... o senhor conseguirá.

       — Farei tudo o que for necessário. Confie em mim — disse o padre num tom confiante.

       A ambulância chegou e foi recebida pela Sra. Coppins.

       — Como sempre tarde demais! — disse ela num tom triunfante. — Ela já morreu!

      

       O padre Gorman voltou para casa, enfrentando a escuridão. O nevoeiro crescia de densidade a cada minuto. Ele parou um momento: “Que história impressionante”, pensou. “Seria delírio da pobre mulher? Ou uma confissão motivada pela febre?” É claro que existia um fundo de verdade. De qualquer maneira seria conveniente anotar os nomes enquanto estavam frescos na memória. Olhou o relógio, e percebeu que já estava atrasado para a reunião com os associados de São Francisco.

       Entrou num bar, pediu um café e sentou-se. Apalpou o bolso interno da batina. — Ah! A Sra. Gerathy havia esquecido de costurar o bolso. Como sempre aliás! A caderneta de notas, um lápis e algumas moedas tinham escorregado para dentro do forro. Conseguiu apanhar o lápis e algumas moedas, mas a caderneta, apesar dos esforços, foi impossível. Quando o café chegou ele pediu um pedaço de papel.

       — Este serve?

       Era um pedaço de papel de embrulho. O padre agradeceu e começou a escrever uns nomes — o importante era não esquecer os nomes, ainda mais ele que não conseguia guardar o nome de ninguém.

       A porta abriu-se e três rapazes entraram, fazendo uma grande algazarra.

       O padre terminou a lista; dobrou o papel e ia colocá-lo no bolso quando lembrou-se do furo. Resolveu colocar dentro do sapato, como era seu hábito.

       Um homem entrou e sentou-se num canto. O padre bebericou mais uns golpes do ralo café, pediu a conta e saiu.

       O homem que acabara de entrar pareceu mudar de idéia. Olhou o relógio como se tivesse perdido a hora e saiu rapidamente.

       O nevoeiro aumentou de densidade. O padre apressou o passo; como conhecia bem a zona, resolveu tomar um atalho que encurtaria o caminho, ou talvez ele tivesse ouvido passos que pareciam segui-lo. Mas, por quê?

       A paulada o apanhou desprevenido. Ele cambaleou e caiu...

      

       O Dr. Corrigan entrou na sala do Inspetor Lejeune assobiando.

       — Já fiz o padre — disse.

       — E o resultado?

       — Vou deixar os termos técnicos de lado. Uma boa paulada. Morreu na hora. O assassino porém quis ter certeza, por isso fez aquele estrago.

       — Nem fale — comentou Lejeune.

       O Inspetor era um homem forte, de olhos verdes e cabelos castanhos. Apesar de parecer calmo, seus gestos, as vezes bruscos, revelavam sua ascendência hunguenote.

       — Não havia necessidade de ter tanta certeza se fosse um roubo.

       — E foi um roubo? — perguntou o médico.

       — É o que se suspeita. Os bolsos revirados e o forro da batina rasgado.

       — Não deviam estar contando com muita coisa — disse o médico. — Geralmente esses padres são pobres como ratos de igreja.

       — Esmagaram a cabeça do homem — disse Lejeune. — Gostaria de saber por quê!

       — Por dois motivos — disse Corrigan. — Primeiro: um delinqüente tarado que gosta de ver sangue, espécie que infelizmente prolifera atualmente.

       — E segundo?

       O médico deu de ombros.

       — Alguém tinha raiva do padre. Não é possível?

       Lejeune sacudiu a cabeça.

       — De jeito algum. O padre era muito querido no bairro, não tinha inimigos.

       Um assalto também não parece provável, a não ser que...

       — Não me diga que a Polícia já tem uma pista — disse Corrigan.

       — Não levaram uma coisa que ele guardou no sapato.

       Corrigan assoviou.

       — Parece história de espionagem.

       Lejeune sorriu.

       — É mais simples talvez. Ele estava com um bolso da batina furado. O sargento Pine conversou com a governanta que parece ser meio relaxada; não remendava as roupas dele como devia, ela mesma concordou. Para não perder as coisas o padre tinha por hábito enfiar dinheiro ou certos bilhetes nos sapatos.

       — Mas o assassino não sabia disso?

       — Nem pensou nisso. Se é que o que ele estava procurando era aquele pedaço de papel e não alguns trocados para o ônibus.

       — O que está escrito no tal papel?

       Lejeune tirou um pedaço de papel da gaveta.

       — Uma lista de nomes!

       Corrigan examinou a lista com curiosidade.

                   ORMEROD

                   SANDFORD

                   PARKINSON

                   HESKETH-DUBOIS

                   SHAW

                   HARMONDSWORTH

                   TUCKERTON

                   CORRIGAN?

                   DELAFONTAINE?

       — Vejo que meu sobrenome está na lista — disse o médico, levantando as sobrancelhas.

       — Estes nomes significam alguma coisa para você? — perguntou Lejeune.

       — Não.

       — Você não conheceu o padre Gorman?

       — Não.

       — Então não vai poder nos ajudar.

       — Tem alguma idéia sobre o significado desta lista?

       — Um menino chamou o padre Gorman, às 7 horas da noite, pedindo que ele fosse atender uma mulher que estava morrendo e que queria se confessar. O padre foi.

       — Mas onde estava essa mulher?

       — Nós soubemos logo. Rua Benthal 23, na casa da Sra. Coppins. A moribunda chamava-se Davis. O padre chegou lá mais ou menos as 7h 15m e ficou com a mulher uma meia hora. Ela morreu, assim que a ambulância chegou para levá-la ao hospital.

       — Sei.

       — Em seguida o padre foi a um café. Um bar decente, pobre e pouco freqüentado. O padre pediu um café, mexeu nos bolsos e certamente não encontrou o que precisava pois pediu um pedaço de papel ao dono. Este pedaço de papel — disse Lejeune, apontando com o dedo.

       — E depois?

       — Quando Tony trouxe o café o padre já estava escrevendo. Logo depois saiu, deixando a xícara quase cheia (Com certa razão, diga-se de passagem). Antes porém deve ter colocado a lista no sapato.

       — Quem mais estava no bar?

       — Três rapazes e um senhor que saiu sem pedir coisa alguma.

       — Será que ele seguiu o padre?

       — Talvez. Tony, o proprietário, não o viu sair, nem notou como ele era. Fez uma descrição vaga: um sujeito respeitável com uma cara comum, parecido com todo o mundo; estatura mediana e vestido de azul-marinho ou marrom. Nada nos leva a crer que tenha sido ele. Porém não temos certeza. Estamos pedindo que as pessoas que viram o padre, àquela hora, se comuniquem conosco. Por enquanto não apareceu ninguém, mas ainda é cedo. Duas pessoas já vieram: uma mulher e um farmacêutico, aliás vou falar com eles agora. Dois garotinhos encontraram o caderno do padre às 8h 15m, caído num beco perto dos trilhos da estação. O resto você já sabe.

       Corrigan assentiu com a cabeça.

       — Que acha disso? — perguntou, apontando para a lista.

       — Acho que é fundamental.

       — A mulher, antes de morrer, deu esta lista de nomes para o padre. Ele os anotou assim que saiu com medo de esquecer. Mas será que ele poderia revelar algo contado sob confissão?

       — Mas se a morta quisesse que seus segredos fossem revelados? — perguntou Lejeune. — E se estes nomes têm alguma ligação com uma chantagem?

       — É o que você imagina?

       — Não imagino nada, por enquanto. É uma hipótese: estas pessoas estavam sendo achacadas. A falecida poderia ser uma chantagista ou uma conivente. Quis confessar a fim de obter perdão. O padre ficou encarregado de impedir que isto continuasse.

       — E daí?

       — O resto são conjeturas — respondeu Lejeune. — Podia ser um caso de extorsão e alguém não quisesse que o pagamento fosse suspenso. Esta pessoa sabia que a Sra. Davis estava à morte e iria querer se confessar. O resultado foi este.

       — Por que será — perguntou Corrigan — que existe um ponto de interrogação nos dois últimos nomes?

       — Talvez o padre tivesse alguma dúvida sobre eles...

       — Por exemplo: Mulligan em vez de Corrigan? — perguntou o médico, sorrindo.

       — Pode ser. Agora, com um nome como Delafontaine não há jeito. É o tipo do nome que a gente guarda ou esquece. O estranho é que não existe nenhum telefone — continuou Corrigan, examinando a lista. — Parkinson é um nome comum, Sandford também, Hesketh-Dubois. Não deve existir uma família muito numerosa com este sobrenome.

       O médico apanhou o catálogo de assinantes.

       — J... H... Hesketh... Sra. John... Sir Isidore... Hasketh-Dubois, Lady. Praça Ellesmere, 49. Que tal darmos um telefonema?

       — Dizendo o quê?

       — Na hora a gente vê — respondeu Corrigan.

       — Ligue — disse Lejeune.

       — Como?

       — Ligue — repetiu Lejeune, — não faça esta cara de espanto.

       Lejeune apanhou o telefone e pediu uma linha externa.

       — Qual é o número? — perguntou.

       — Grovesnor 64578.

       Lejeune repetiu o número à telefonista e passou o aparelho a Corrigan.

       — Divirta-se — recomendou Lejeune.

       Espantado, Corrigan colocou o telefone ao ouvido. Depois de tocar por uns instantes uma voz ofegante de mulher atendeu.

       — Alô, Grovesnor 64578.

       — É a residência de Lady Hesketh-Dubois?

       — Bem... é...

       O Dr. Corrigan não tinha tempo para hesitações.

       — Posso falar com ela?

       — De maneira alguma. Ela morreu em abril.

       — Oh! — exclamou Corrigan, ignorando a interlocutora que perguntava quem estava no aparelho.

       Desligou cuidadosamente e encarou Lejeune com frieza.

       — Já sei porque você queria que eu falasse com ela.

       Lejeune sorriu maliciosamente.

       — Não podemos nos dar ao luxo de negligenciar o óbvio.

       — Em abril — disse Corrigan, pensativamente. — Há cinco meses que ela não se preocupa com chantagem ou coisas parecidas. Ela por acaso cometeu suicídio?

       — Não, morreu vitimada por um tumor cerebral.

       — Vamos dar outra olhada na lista — disse Corrigan desanimado.

       Lejeune suspirou.

       — Não sabemos se esta lista tem alguma relação com o assassinato do padre. Ele pode ter sido real mente vítima de um delinqüente que só apanharemos se tivermos sorte.

       — Você se importa se eu tirar uma cópia desta lista?

       — Não. Desejo-lhe sorte!

       — Você diz isto porque acha que eu não vou conseguir descobrir mais nada do que vocês já descobriram. Vou me concentrar no nome Corrigan. Senhor, senhora ou senhorita com um grande ponto de interrogação.

 

       — Ora, Sr. Lejeune, não sei mais o que dizer! Já falei horas com o sargento. Não conhecia bem a Sra. Davis, não sei de onde veio. Morou aqui uns 6 meses, pagava o aluguel em dia e parecia uma pessoa distinta. Não entendo o que o senhor quer mais de mim.

       A Sra. Coppins parou um instante para tomar fôlego, encarando o Inspetor com impaciência. Este, por sua vez, sorriu com melancolia como se estivesse pedindo desculpas.

       — Não é que eu não queira ajudar — falou a Sra. Coppins mais calma.

       — Obrigado. É da sua ajuda que nós precisamos. As mulheres geralmente, por instinto, percebem mais as coisas do que os homens.

       Ela mordeu a isca.

       — Ah! — exclamou a Sra. Coppins — se meu marido estivesse aqui para ouvi-lo. Achava que eu tinha muita imaginação, que vivia inventando coisas. E na maioria das vezes eu tinha razão.

       — Por isso gostaria da sua opinião sobre a Sra. Davis. Ela era infeliz, por exemplo?

       — Não, não creio. Muito trabalhadora, na minha opinião. Metódica, como se tivesse construído a vida e agisse de acordo com um esquema. Acho que trabalhava numa dessas firmas de opinião pública. Essas que vão de casa em casa, perguntando o sabonete ou a farinha que a gente usa, quanto se ganha por mês etc. Tipo do negócio para mexeriqueiros! Até hoje não entendi por que o governo ou as fábricas se interessam tanto pela vida particular das pessoas. A conclusão desses inquéritos é simplesmente uma resposta que todo o mundo já sabe. Mas enfim, é a moda hoje em dia! Acho que a Sra. Davis desempenhava bem esta função; era uma pessoa agradável e profissional.

       — Por acaso a senhora não sabe o nome da firma em que ela trabalhava?

       — Não. Não sei.

       — Ela alguma vez falou nos parentes?

       — Não. Eu sempre achei que fosse viúva há anos. Uma vez ela falou no marido inválido mas eu não entrei em detalhes.

       — De que lugar ela era?

       — Acho que do Norte.

       Tenho certeza de que não era de Londres.

       — Não havia algo de misterioso na vida dela?

       Lejeune hesitou antes de perguntar com medo de que a Sra. Coppins fosse sugestionável... ela, porém, não aproveitou a deixa.

       — Não. Era uma mulher até bastante comum. A única coisa que me intrigava era a mala, de boa qualidade, meio usada, com as iniciais pintadas por cima de outras. J.D... Jessie Davis. O jota estava pintado por cima de um agá ou de um a. Na época não dei muita bola para isso; afinal ela podia ter comprado uma mala de segunda mão e naturalmente alterado as iniciais. Era tudo o que tinha no mundo, aquela mala!

       Lejeune sabia disso e achou estranho que uma mulher pudesse ter tão poucos objetos pessoais. Não encontraram cartas, fotografias, cartões de identidade, talões de cheques. As roupas era boas e novas, para uso diário.

       — Ela parecia satisfeita?

       — Acho que sim.

       Lejeune notou um tom de dúvida na resposta.

       — Acha mesmo?

       — Não era bem da minha conta, não é? Eu achava que ela ganhava bem, tinha um bom emprego, portanto devia estar satisfeita. Não era uma mulher esfuziante. É claro que quando ela ficou doente...

       — O que houve?

       — Assim que apareceu o resfriado ela pareceu assustada. Ia transtornar-lhe a vida, disse-me ela, teria que desmarcar tantos compromissos... Bem, mas uma gripe é uma gripe, a gente não pode fazer de conta que não está acontecendo nada. Ela foi para a cama com um chá e um comprimido. Eu recomendei que ela chamasse um médico mas não houve jeito. Ela respondeu que para curar uma gripe bastava ficar de repouso, se cobrir e pronto. Além disso, recomendou que não chegasse perto se não quisesse ficar doente também. Assim que ela melhorou um pouco cozinhei umas coisinhas para ela. Caldo quente com torradas, arroz doce, coisas leves. Ela ficou muito abatida por causa da febre, como todo o mundo fica... o senhor sabe, aquela depressão que dá quando acaba a gripe. Ela ficava sentada junto da lareira e me dizia: — Se ao menos a gente não pensasse tanto! Não gosto de ficar parada, pensando. É tão deprimente!

       Lejeune continuou olhando fixamente para a Sra. Coppins.

       — Emprestei umas revistas para ela, mas coisa alguma parecia distraí-la. Um dia ela disse: — Se todas as coisas não são o que parecem ser é melhor a gente nem saber, não é? Eu concordei. Ai, ela disse: Não sei, nunca tive certeza. Sempre agi corretamente na vida. Não tenho do que me recriminar. Eu disse: Claro que não tem, minha querida. Mas, cá comigo, trapaça no lugar em que ela trabalhava, algo que ela tivesse descoberto mas que não tinha ligação alguma com ela.

       — Talvez — disse o inspetor.

       — Enfim ela melhorou ou achou que melhorou e voltou ao trabalho. Eu recomendei que ela ficasse em casa mais uns dias, mas ela não me deu atenção. Foi tiro e queda. De noite quando ela chegou mal podia subir a escada. Eu disse que ela devia chamar um médico mas ela disse que não. Só sei que piorou a olhos vistos, ficou vermelha e mal podia respirar. No dia seguinte pediu um padre: “Um padre, depressa, antes que seja tarde demais.” Também não servia qualquer padre, tinha que ser católico. Para dizer a verdade eu nem sabia que ela era católica...

       O inspetor Lejeune havia encontrado um crucifixo na mala da Sra. Davis, mas achou melhor não fazer comentários com a Sra. Coppins.

       — Aí eu vi Mike na rua e pedi que ele fosse chamar o padre Gorman na igreja. Telefonei para o hospital e pedi uma ambulância sem falar com ela.

       — Foi a senhora quem levou o padre até lá em cima?

       — Foi. Deixei os dois sozinhos.

       — Ouviu eles dizerem qualquer coisa?

       — Não sei bem. Eu estava apresentando o padre a ela, dizendo que tudo ia dar certo, tentando alegrá-la, sabe como é? Mas, enquanto fechava a porta ouvi ela dizer qualquer coisa sobre maldade. Falou também de um cavalo, talvez de corrida. Eu, às vezes, jogo no turfe, mas já ouvi falar que há muita malandragem neste negócio...

       — Maldade! — repetiu Lejeune, impressionado com a palavra.

       — Os católicos precisam confessar os pecados antes de morrer, não é? Pois foi o que ela fez.

       Lejeune não tinha dúvidas sobre as intenções da falecida. O que intrigava sua imaginação era a palavra: maldade.

       E que maldade seria esta que justificaria até o assassinato de um padre?

      

       Dos outros três inquilinos pouco se conseguiu apurar. O primeiro e o segundo, um bancário e um velho caixeiro de uma sapataria, só conheciam a Sra. Davis de vista. A terceira, uma moça de vinte e dois anos, trabalhava numa loja e mal conhecia a falecida.

       A mulher que tinha visto o padre Gorman, na rua, na noite do crime, não pôde auxiliar a Polícia. Conhecia o padre de vista, pois não freqüentava aquela igreja, mas tinha visto o mesmo entrar num café.

       Um farmacêutico chamado Osborne, dono de uma farmácia na Rua Baron, foi o único que pôde dar à polícia uma pista mais concreta. Osborne era um homem pequeno, de meia-idade, careca, de óculos, de rosto redondo e ingênuo.

       — Boa noite, inspetor. Pode entrar — disse o Sr. Osborne, abrindo a tampa do balcão para Lejeune.

       Passaram por um quarto, onde um rapaz de avental branco preparava uns líquidos, engarrafando-os em vidros de remédios com a rapidez de um feiticeiro profissional. O Sr. Osborne conduziu Lejeune a uma saleta mobiliada com duas poltronas, uma mesa e uma escrivaninha. Em seguida, o farmacêutico puxou uma cortina e sentou-se ao lado de Lejeune com um ar de espião profissional. Seus olhos brilhavam de antecipação e excitamento.

       — Acontece que estou em condições de lhe ajudar. Foi uma noite fraca, aqui na farmácia, devido ao mau tempo. A mocinha estava atrás do balcão, pois quinta-feira ficamos abertos até as oito horas. O nevoeiro vinha baixando e a rua estava quase sem movimento. Fui até a porta, para ver melhor o tempo, que segundo as previsões ia baixar. Fiquei uns instantes olhando a rua pela vitrine, despreocupado com a farmácia... tinha uma freguesa só, querendo uns sais de banho e cremes de limpeza, coisas que a balconista sabe atender direito. Aí vi o padre Gorman, vindo do outro lado da rua. Eu o conhecia de vista, aliás que coisa brutal foi este crime! Atacar um homem tão distinto. Lá vai o padre, pensei, cá comigo. Ele ia indo em direção à Rua Oeste, quase na esquina dos trilhos da estrada de ferro. Um pouco atrás dele, vinha vindo um homem. Não me ocorreria prestar atenção se ele não tivesse parado bruscamente, quase na porta da farmácia. Não entendi por que ele parou, mas eu notei que o padre, um pouco adiante, também tinha diminuído o passo; não chegou a parar, mas caminhava como se estivesse tão absorto em seus pensamentos que até tivesse esquecido de que estava andando. O padre voltou a apertar o passo e o homem também, só que desta vez com mais decisão. Pensei — se é que pensei em alguma coisa — devia ser alguém que conhecia o padre de vista e que resolvera falar com ele.

       — Quando na verdade é possível que estivesse seguindo o padre?

       — Agora tenho certeza, mas naquela noite não dei mais atenção ao fato. Com o nevoeiro perdi os dois de vista, logo depois.

       — O senhor seria capaz de descrever esse homem?

       Lejeune parecia hesitante. Sua experiência lhe dizia que esse tipo de descrição geralmente era falho ou impreciso. Mas, o Sr. Osborne era mais observador do que o dono do café.

       — Acho que sim — disse o farmacêutico, calmamente. — Era um homem alto...

       — Alto? De que altura, mais ou menos?

       — Um metro e oitenta a um metro e oitenta e quatro... por aí. Talvez fosse até mais alto, pois era muito magro. Os ombros meio caídos e um pomo de Adão muito pronunciado. Sob o chapéu um cabelo bastante comprido, cinzento, e um nariz bem adunco. Naturalmente não pude ver a cor dos olhos. Só o vi de perfil. Pelo jeito de andar deve ter perto de uns cinqüenta anos. Uma pessoa mais jovem se movimenta de outra maneira, com mais agilidade.

       Lejeune mentalmente relembrou a distância da rua para a farmácia e duvidou da eficácia da informação. Duvidou seriamente, pois este tipo de descrição muito precisa só poderia significar duas coisas: uma imaginação muito fértil, que ele já conhecia de sobra, principalmente das testemunhas femininas, mestras em criarem assassinos de acordo com seus desejos e fantasias, mas facilmente elimináveis pelo número espúrio de detalhes: olhos arregalados, sobrancelhas cerradas, queixos prognáticos, ou ar de ferocidade animal. A segunda, que poderia ser o caso do Sr. Osborne, era fantasticamente real e precisa para ser verdadeira. Mas quem sabe o Sr. Osborne fosse um homem que observa as coisas desinteressadamente e se preocupa com os mínimos detalhes?

       Lejeune pensou novamente na distância entre a vitrine e a rua. Olhou calmamente para Osborne.

       — O senhor seria capaz de reconhecer esse homem se o visse novamente?

       — Claro — respondeu Osborne, confiante. — Nunca esqueço uma fisionomia. É o meu passatempo. Sempre disse que se um desses envenenadores de esposa viesse a minha farmácia comprar um pacotinho de arsênico, eu seria a testemunha-chave da promotoria. Aliás, sempre desejei que isso acontecesse.

       — Mas ainda não aconteceu?

       — Ainda não — admitiu Osborne, contrariado. — E não acredito que vá acontecer. Consegui um bom preço pela farmácia e quando fechar o negócio vou me aposentar. Vou me mudar para Bournemouth.

       — A farmácia está num bom ponto — comentou Lejeune.

       — É um lugar de classe — disse Osborne com orgulho. — Já estamos aqui a uns cem anos. Antes de mim, era meu pai e o meu avô. Um negócio de família, bastante rendoso. Quando eu era jovem, porém, me rebelei. Não queria ser farmacêutico. Queria ser ator, tinha certeza de que seria um grande ator. Meu pai não tentou refrear minha vocação. — Vê se dá certo, filho! — disse-me ele. — Vá descobrir que não é Sir Laurence Olivier! Ele tinha razão... era um homem muito inteligente. Fiz teatro uns meses e voltei para casa. Com o tempo passei a gostar do negócio, a me orgulhar dele. Nós sempre tivemos mercadoria de primeira, podemos estar fora de moda mas vendemos qualidade.

       Osborne sacudiu a cabeça.

       — Hoje em dia — prosseguiu ele, — um farmacêutico que se preza não se interessa mais por isto. Todas estas loções de toalete. Se a gente não comprar, não fatura; metade dos lucros vem desta porcaria: pó, batom, creme, shampoo, estojos de maquilagem. Eu não lido com isso. Botei a mocinha, lá na frente, para tratar do assunto. Não é como antigamente, que o farmacêutico aviava pessoalmente todas as receitas. Contudo, como guardei um bom dinheiro, vou vender bem a farmácia. Paguei a primeira prestação de uma casinha em Bournemouth. Meu lema é: “Aposentar-se enquanto é tempo” — continuou Osborne. — Tenho vários passatempos: coleciono borboletas, adoro pássaros, jardinagem (estou cheio de livros sobre plantas) e gosto de viajar. Talvez eu faça um cruzeiro por um desses lugares exóticos.

       Lejeune levantou-se.

       — Bem, desejo-lhe sorte — disse o inspetor. — Se por acaso, numa destas viagens, o senhor encontrar...

       — Comunico-lhe imediatamente, é claro — interrompeu Osborne. — Pode contar comigo, como já disse, sou ótimo fisionomista. Estarei sempre alerta e para mim será um prazer entregar um assassino aos braços da lei.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       Hermia Redcliffe e eu fomos ao teatro assistir a Macbeth. Quando saímos, chovia a cântaros. Hermia comentou, sem razão, que sempre que íamos ao teatro chovia.

       — Você nunca reparou? — perguntou ela.

       Discordei, comentando que ela invariavelmente só lembrava às vezes que chovia quando ia ao teatro.

       — Nos festivais de música de Glyndebourne — disse Hermia, quando entramos no carro, — dou muita sorte. Tudo perfeito! A música, os jardins em flor, principalmente os canteiros de cravos brancos...

       Falamos sobre o Festival por uns momentos.

       — Vamos tomar café no Canal?

       — Por quê? Que idéia! Pensei que íamos ao Fantasie. Depois de ver tanto sangue, precisamos comer bem. Shakespeare me dá sempre multa fome.

       — Wagner também. Os sanduíches de salmão defumado que servem nos intervalos não dão para o gasto. Perguntei se íamos ao Canal porque você está tomando a estrada de Dover.

       — Mas precisamos dar a volta — protestei.

       — Mas você já deu duas voltas. Já estamos na estrada de Kent.

       Examinei bem as indicações da estrada e percebi que, como sempre, Hermia estava com a razão.

       — Sempre me perco por aqui — disse eu.

       — É confuso mesmo — disse Hermia. — Temos que dar a volta pela Ponte de Waterloo.

       Assim que tomamos o rumo certo, continuamos a discutir sobre a peça. Minha amiga Hermia Redcliffe era uma bonita moça de vinte e oito anos, de uma beleza clássica, perfil grego, cabelos castanhos. Minha irmã a chamava de “A Garota de Marte”, enfatizando as aspas num tom que me irritava sobremaneira.

       No restaurante, fomos recebidos com a costumeira hospitalidade; o Fantasie é um restaurante bastante popular, onde as mesas são colocadas bem perto umas das outras. Assim que sentamos fomos cumprimentados efusivamente por David Ardingly, um professor de História da Universidade de Oxford, que, em seguida, nos apresentou sua acompanhante, uma moça muito bonita que exibia um complicadíssimo penteado e um simplíssimo decote. Tinha uns enormes olhos azuis, uma boca sensual, eternamente entreaberta e, como todas as namoradas de David, a mentalidade e a inteligência de uma garota de 8 anos. David, um jovem brilhante, só conseguia relaxar em companhia de mulheres quase débeis mentais.

       — Minha namorada favorita, Poppy — disse ele. — Poppy, este é Mark Easterbrook e Hermia Redcliffe, um casal muito sério e intelectual. Preste muita atenção no que eles dizem. Acabamos de ver uma revista chamada: Agora a Coisa Vai! Uma beleza! Aposto que vocês foram ver Shakespeare ou Ibsen.

       — Macbeth.

       — O que achou da direção de Batterson?

       — Gostei — respondeu Hermia. — A iluminação é muito interessante e a cena do banquete é especialmente bem montada.

       — E o que dizem das bruxas?

       — Como sempre horríveis — respondeu Hermia.

       David concordou.

       — É inevitável o elemento pantomímico nestas cenas — disse David. — As três bruxas, pulando e se comportando como o Rei Mau de uma peça infantil. A gente fica esperando que a Fada Boa apareça e quebre o encanto com sua varinha de condão.

       Rimos, mas David, sempre muito observador, perguntou:

       — Em que você está pensando?

       — Nada — respondi. — É que outro dia estava refletindo sobre a pantomima, pensando no Rei Mau e na Fada Boa...

       — A propos de quoi?

       — Num bar em Chelsea...

       — Como estamos para frente! Você em Chelsea... é lá que Poppy devia ir. Dizem que as milionárias casam com os gigolôs...

       — Mas eu detesto Chelsea — protestou Poppy. — Gosto do Fantasie, adoro a comida.

       — Viva Poppy! Além do mais você não é suficientemente rica para morar em Chelsea. Fale mais sobre Macbeth e sobre as bruxas, Mark. Se eu fosse dirigir esta peça, sei como apresentaria as bruxas.

       David, nos tempos de estudante, tinha feito sucesso no teatro universitário.

       — Como seria?

       — Eu as apresentaria como três velhinhas comuns. Como as feiticeiras das cidades do interior.

       — Como, se hoje em dia não existem mais feiticeiras? — perguntou Poppy.

       — Você diz isto porque mora em Londres. Em qualquer cidade do interior da Inglaterra existe uma feiticeira. Há sempre uma Sra. Black a quem os meninos não devem incomodar e que recebe ovos e bolos da vizinhança. Sabem por quê? — perguntou David, sacudindo o indicador, num gesto de ameaça. — Porque se ela se zanga com alguém, a vaca deixa de dar leite, a praga invade o pomar ou o filho da Sra. Smith torce o pé. É tacitamente aceito que não se deve contrariar a Sra. Black.

       — Você está brincando! — disse Poppy.

       — Não estou não. Diga, Mark, se eu não tenho razão?

       — Hoje em dia estas superstições já acabaram— declarou Hermia, incrédula.

       — Não na zona rural. O que você acha, Mark?

       — Creio que tem razão — respondi embora nunca tenha morado no interior.

       — Não vejo como, em Macbeth, seria possível apresentar as bruxas como se fossem velhas de um asilo. A feitiçaria é cercada de uma atmosfera sobrenatural — disse Hermia.

       — Pense bem — insistiu David. — O problema é igual ao da loucura. Se aparece em cena um ator fazendo-se de louco, com os cabelos desgrenhados, gritando, ninguém fica com medo. Uma vez, fui entregar uma carta a um médico, num asilo de loucos. Pediram que eu esperasse pela resposta numa sala de visitas onde encontrei uma velhinha muito simpática, tomando um copo de leite. Ela puxou prosa comigo, fazendo alguns comentários bastante banais. De repente ela debruçou-se para frente e perguntou: É sua a criança que está enterrada nesta lareira? Em seguida sacudiu a cabeça e concluiu: Doze e dez em ponto! Sempre a mesma coisa a esta hora. Faça de conta que não percebe o sangue. O que mais me apavorou foi o tom natural do comentário!

       — E tinha mesmo uma criança enterrada na lareira? — perguntou Poppy.

       David fingiu não ouvir.

       — Veja as médiuns, por exemplo. Passam do transe, em salas escuras, batidas na mesa, transformando-se em senhoras distintas, arrumadas que ouvem novela, cozinham para os maridos.

       — Então, para você as bruxas — disse eu — seriam três velhas escocesas que praticam suas seitas em segredo, murmurando maldições em torno de um caldeirão, conjurando espíritos, mas aparentando ser boas donas de casa. Acho que poderia causar um bom efeito!

       — Se é que você conseguiria que algum ator representasse desta forma — disse Hermia.

       — Você tem razão — disse David. — Qualquer sugestão de loucura em uma peça e imediatamente o ator resolve dar tudo o que tem. Já viram algum ator morrer de repente em cena? Nunca! Eles caem, se esgoelam, viram os olhos, apertam o coração, se descabelam! Que você achou da interpretação de Fielding como Macbeth? A opinião dos críticos parece bastante dividida.

       — Eu achei sensacional! — disse Hermia. — Acho que ele representou divinamente a luta entre o medo e o amor. Suas inflexões me pareceram perfeitas.

       — Shakespeare ia levar um susto se visse suas peças representadas hoje em dia — comentei.

       — Os autores sempre se surpreendem com as interpretações das suas peças — disse Hermia.

       — Não foi um tal de Bacon que realmente escreveu as peças de Shakespeare? — perguntou Poppy.

       — Esta teoria já saiu de moda — disse David, carinhosamente. — Onde você ouviu falar em Bacon?

       — Foi o inventor da pólvora, ora essa! — exclamou Poppy num tom de triunfo.

       David olhou para nós.

       — Compreendem agora por que amo esta mulher? — perguntou. — Sempre sai com uma novidade. Não confunda Francis com Roger Bacon, meu bem!

       — Achei interessante — prosseguiu Hermia — que Fielding representasse também o papel do terceiro assassino. Já tinham feito isso antes?

       — Creio que sim — respondeu David. — No tempo de Macbeth é que devia ser bom. Se a gente queria se ver livre de alguém bastava chamar um sicário. Pena que não possamos mais fazer isso.

       — Quem disse? — perguntou Poppy. — E os gangsters, os capangas, o pessoal de Chicago?

       — Não estou me referindo a quadrilhas organizadas — disse David. — Estou me referindo a gente comum que gostaria de se ver livre de algum... um sócio incômodo, uma tia rica e centenária, um marido onipresente. Imaginem se a gente pudesse telefonar para uma loja e pedir: Quer mandar dois bons assassinos, por favor?

       Rimos com a piada.

       — Mas acho que isto é feito hoje em dia — disse Poppy.

       A mesa inteira voltou os olhos para ela.

       — Como assim? — perguntou David.

       — Acho que hoje também se faz isso, só que sai muito caro — murmurou Poppy, arregalando os olhos

       — Explique-se — exigiu David.

       Poppy pareceu confusa.

       — Acho que fiz confusão. É aquela história do Cavalo Amarelo.

       — Cavalo Amarelo?

       Poppy corou até a raiz dos cabelos.

       — Besteira minha — disse, abaixando os olhos. — Alguém deve ter falado numa coisa parecida e eu acabei fazendo uma grande confusão.

       — Coma uma sobremesa, meu amor — disse David. — Você deve estar precisando de açúcar.

      

       Uma das coincidências mais estranhas da vida é quando ouvimos pela primeira vez falar num assunto e vinte e quatro horas depois o mesmo tema volta à baila. Foi o que aconteceu comigo no dia seguinte de manhã.

       O telefone tocou.

       — Flaxman 73841 — respondi.

       Ouvi uma espécie de gemido pelo aparelho.

       — Pensei sobre o assunto e resolvi ir — disse uma voz estertorante num tom de desafio.

       — Ótimo — disse eu perplexo, tentando ganhar tempo até identificar a misteriosa voz.

       — Além do mais — continuou a mulher mistério, a sorte não bate duas vezes na mesma pessoa.

       — A senhora tem certeza de que ligou o número certo?

       — Claro. Você não é Mark Easterbrook?

       — Ora, é a Sra. Oliver — exclamei triunfante.

       — Como, você não reconheceu minha voz? Nem pensei nisso! Estou telefonando para falar da quermesse. Irei autografar meus livros se Rhoda quiser.

       — Que ótimo. A senhora certamente ficará hospedada com eles!

       — Só se garantirem que não haverá festas e coquetéis — disse a Sra. Oliver, apreensiva. — Tenho horror a reuniões sociais onde as pessoas se sentem na obrigação de elogiar meus livros e perguntar se ainda estou escrevendo. Se agradeço os elogios parece que estou dando bom dia ou até logo. Espero que não precise também tomar drinques no Cavalo Cor-de-Rosa.

       — Cavalo Cor-de-Rosa?

       — Esses bares modernos tipo inferninho. Se não for cor-de-rosa é amarelo!

       — O que a senhora quer dizer com Cavalo Amarelo?

       — Não é o nome da boate local? Ou será cor-de-rosa? Ou é outra loucura que eu imaginei...

       — Como vai a cacatua? — perguntei.

       — A cacatua? — perguntou a Sra. Oliver, atônita.

       — E o jogo de futebol?

       — Francamente — disse a Sra. Oliver, indignada. — Ou você está louco ou andou bebendo. Que conversa! Cavalo cor-de-rosa, cacatua, jogo de futebol!

       Desligou o telefone. Fiquei uns instantes pensando sobre o Cavalo Amarelo quando o telefone tocou. Era Soames White, famoso advogado, me informando de que, segundo o testamento da minha madrinha Lady Hesketh-Dubois, eu deveria escolher três quadros da coleção da falecida.

       — Nada de grande valor, é claro — disse o Dr. Soames, no seu tradicional tom de derrotismo. — Mas sei que o senhor desejaria guardar alguma recordação da sua madrinha.

       — Ela tinha umas aquarelas com cenas indianas muito bonitas — disse eu. — Creio que o senhor me escreveu sobre isso, mas acho que me esqueci.

       — É verdade — disse o advogado. — Porém o inventário chegou ao fim e temos que distribuir as peças aos herdeiros antes do leilão. Por favor, passe pela casa de Lady Hesketh na Praça Ellsmere.

       — Pode deixar — disse eu — vou agora mesmo. Afinal de contas não estava com a menor vontade de trabalhar.

      

       Com as três aquarelas debaixo do braço, retirei-me da casa da minha tia. Na entrada esbarrei com um cavalheiro e enquanto pedia desculpas percebi que se tratava de um velho conhecido.

       — Corrigan? — exclamei.

       — Ora... Mark Easterbrook?

       Tínhamos sido colegas em Oxford, mas não nos víamos há uns quinze anos.

       — Quando esbarrei em você, achei que o conhecia, mas não sabia de onde — disse Corrigan. — Volta e meia leio seus artigos no jornal. São excelentes!

       — E você, continua fazendo pesquisas? — perguntei.

       Corrigan suspirou.

       — Muito pouco. Sai muito caro por conta própria... a não ser que apareça um milionário que queira financiar meus estudos.

       — Ainda sobre os parasitas do fígado?

       — Que memória! Não, esse trabalho eu abandonei. Atualmente me dedico às propriedades das secreções das glândulas mandarianas. Você naturalmente não sabe o que é isso! Mas tem uma grande relação com o humor, apesar de aparentemente não servirem para nada.

       Corrigan falava com o entusiasmo de um cientista.

       — Por que este interesse pelas glândulas?

       — Bem — respondeu Corrigan, quase se desculpando. — Eu acho que elas influenciam o comportamento. Para ser mais específico, para mim essas glândulas funcionam como o fluido dos freios de um automóvel. Se não pomos fluido os freios não funcionam. Nos seres humanos, uma deficiência destas secreções poderá ou não transformá-lo num assassino.

       Dei um assobio de admiração.

       — Mas aonde vai parar o pecado original?

       — Sei lá — respondeu Corrigan. — Sei que os padres não vão gostar desta história. Até o presente não consegui interessar pessoa alguma nesta teoria.

       — Estou trabalhando como médico legista da Polícia. Para mim é interessante porque encontro vários tipos de assassinos. Se quiser se aborrecer mais um pouco eu o convido para almoçar.

       — Com prazer — respondi. — Mas você não ia entrar?

       — Não propriamente, eu ia só dar uma espiada.

       — Tem uma servente tomando conta.

       — Foi o que pensei. Estou querendo saber uma coisa sobre a falecida Lady Hesketh-Dubois.

       — Acho que posso informá-lo melhor do que a servente. Ela era minha madrinha.

       — É mesmo? Que sorte a minha! Onde vamos almoçar! Conheço um restaurante na Praça Lowndes que serve uma sopa de mariscos maravilhosa.

       Fomos ao restaurante indicado por Corrigan. Os garçons, vestidos de marinheiros franceses, nos serviram um enorme bouillabesse.

       — Está ótimo — comentei. — Diga, Corrigan, o que quer saber sobre minha madrinha? E por quê?

       — É uma história bastante longa — respondeu Corrigan. — Primeiro descreva sua madrinha.

       Fiquei uns instantes pensativo.

       — Era uma senhora convencional, tipo viúva vitoriana. O marido tinha sido ex-governador numa das ilhas. Era rica, gostava de viver bem; costumava passar o inverno no Estoril. A casa era horrenda, repleta de mobília vitoriana e da mais hedionda coleção de prata da Inglaterra. Lady Hesketh-Dubois não tinha filhos mas cuidava de um casal de poodles. Era dogmática e reacionária, boa mas contraditória. Sabia sempre o que queria. Que mais quer saber?

       — Não sei — disse Corrigan. — Você acha que ela seria capaz de ser vítima de uma chantagem?

       — Chantagem? — perguntei espantado. — Não posso imaginar como! Afinal, o que houve?

       Soube então, pela primeira vez, das circunstâncias que envolveram o crime do padre Gorman.

       — A lista de nomes, deixe-me ver — disse eu, apoiando a colher no prato.

       — Esta aqui é uma cópia.

       Peguei o papel.

       — Parkinson? Conheço dois Parkinsons. Arthur que entrou na Marinha e Henry que trabalha no Ministério. Ormerod... conheço um major Ormerod Tuckerton? Será Thomasina Tuckerton, por acaso?

       Corrigan olhou para mim curioso.

       — Pode ser. O que você sabe sobre ela?

       — Nada. Li a notícia da morte dela no jornal.

       Corrigan suspirou.

       — Shaw... conheço um dentista chamado Shaw — disse eu, prosseguindo a leitura da lista. — Além de Jerome Shaw... Delafontaine... ouvi este nome recentemente, não me lembro onde. Corrigan... será você?

       — Desejo ardentemente que não. Tenho a sensação de que quem está nesta lista tem os dias contados.

       — Pode ser. Por que você pensou em chantagem?

       — Foi uma sugestão do Inspetor Lejeune. Parecia a razão mais provável... se bem que possa ser uma lista de traficantes, espiões, contrabandistas, enfim qualquer coisa. A única pista é que a lista é tão valiosa que para consegui-la cometeram um assassinato.

       — Você sempre se interessa pelo lado policial do seu trabalho? — perguntei.

       Corrigan sacudiu a cabeça.

       — Não. Meu interesse é no caráter, no desenvolvimento, na criação e nas glândulas dos criminosos.

       — Por que este interesse nesta lista de nomes?

       — Nem eu mesmo sei — respondeu Corrigan, vagarosamente. — Talvez por constar nela o meu sobrenome. Sempre estarei disposto a defender o nome dos Corrigan.

       — Se está disposto a defender quer dizer que acha que os componentes desta lista são vítimas e não agressores. Convenhamos que tanto podem ser uma coisa como outra...

       — Você tem razão. O estranho é este pressentimento de que algo irá acontecer com essas pessoas. Ou talvez algo relacionado com o padre Gorman a quem eu conhecia ligeiramente mas sabia ser um sujeito respeitado e querido pela congregação. Não consigo tirar da cabeça a idéia de que para ele esta lista era uma questão de vida ou de morte...

       — E a Polícia o que acha?

       — Essas coisas levam tempo. Verificam todos os detalhes... as discrepâncias. Estão verificando as informações da mulher que chamou o padre.

       — E descobriram?

       — Até agora, nada. Era viúva. No começo pensamos que o falecido marido tivesse alguma relação com corridas de cavalo, mas não era verdade. Ela trabalhava em consultas de opinião pública, uma firma pequena mas conhecida. O pessoal lá não a conhecia bem, só sabiam que ela era proveniente do Norte da Inglaterra. A única coisa estranha sobre ela era a pequena quantidade de objetos pessoais que possuía.

       Encolhi os ombros.

       — É um mundo de solitários, meu caro Corrigan, muito mais do que nós imaginamos.

       — Acho que tem razão.

       — Mas enfim, você resolveu fazer algumas averiguações?

       — É. Hesketh-Dubois por exemplo é um sobrenome raro. Pensei perguntar coisas sobre a... — Corrigan fez uma pequena pausa — mas pelo que você já disse não tem coisa alguma a descobrir.

       — Minha madrinha não era viciada, nem traficante de entorpecentes — frisei. — Certamente não era espiã e sua vida particular era tão imaculada que não oferecia campo para chantagens. Não sei por que ela estaria nesta lista... lembro-me também de que ela mantinha as jóias num cofre do banco, de maneira que não poderia ser assaltada...

       — Existem outros Hesketh-Dubois?

       — Ela não tinha filhos. Só um sobrinho e uma sobrinha mas usam outro sobrenome. Meu padrinho era filho único.

       Corrigan agradeceu azedamente minha colaboração. Olhou o relógio, disse que estava atrasado para uma autópsia e partiu.

       Fui para casa, mas não consegui trabalhar. Finalmente telefonei para David Ardingly.

       — David? Aqui é Mark. Lembra-se daquela pequena que estava com você outra noite? A Poppy? Como é o sobrenome dela?

       — Vai querer cantar minha garota? — perguntou David, dando uma gargalhada.

       — Você tem tantas — respondi — que podia me ceder uma...

       — Mas você já tem uma garota, pensei que fosse casar com ela...

       — Casar!?

       Por uns instantes pensei no assunto. Meu relacionamento com Hermia só poderia ser descrito assim: casamento à vista. E no entanto, a idéia me deprimia embora eu sempre achasse que iria, um dia, casar-me com ela. Afinal... gostava de Hermia, tínhamos tanta afinidade... mas o tédio que me invadiu naquele momento me fez bocejar. Vi diante dos olhos meu futuro com ela; indo ao teatro assistir a peças clássicas, discussões sobre arte, música. É, sem dúvida Hermia seria minha companheira ideal. Uma luzinha acendeu-se na minha mente: Mas que tédio! Fiquei chocado com minha frieza.

       — Adormeceu? — perguntou David.

       — Claro que não; para ser sincero, achei sua amiga Poppy um refrigério.

       — Boa palavra... precisa porém tomá-la em pequenas doses. O nome da dita é Pamela Stirling, trabalha numa casa de flores muito chique em Mayfair, você conhece essas lojas! Três galhos secos, uma tulipa desfolhada e uma folha de louro pintada de purpurina, pelo módico preço de centenas de libras.

       David deu o endereço.

       — Leve-a para jantar, é divertida — recomendou ele. — Vão passar uma noite maravilhosa. Ela não sabe nada, não entende de nada e não pensa em nada. Acreditará em tudo que você disser, mas não avance o sinal porque ela é moça de família.

       E desligou.

      

       Cruzei os umbrais da Loja Estudos Florais Ltda. com certo receio. Um forte aroma de flor de gardênia invadiu minhas narinas quase me asfixiando; várias moças, vestidas de batas verde alface, absolutamente iguais a Poppy, atendiam à ilustre clientela. No meio da confusão consegui, finalmente, identificá-la. Poppy estava ocupada, escrevendo com certa dificuldade o endereço de uma cliente. Em seguida, debateu-se um certo tempo com o troco.

       — Nós nos encontramos a semana passada — disse eu, me aproximando. — Sou amigo de David Ardingly.

       — Queria lhe fazer uma pergunta — disse eu, sentindo o coração bater, — mas para não tomar muito seu tempo seria aconselhável que eu comprasse umas flores.

       — Recebemos hoje estas maravilhosas rosas — disse Poppy, mecanicamente.

       — Que tal estas amarelas? — perguntei. — Quanto está a dúzia?

       — Baratíssimo — respondeu Poppy, num tom profissional. — Cinco shillings, cada.

       Engoli em seco e pedi meia dúzia.

       — Com folhas de louro?

       Olhei as folhas com certa dúvida e preferi uma folhagem menos viçosa, o que não pareceu agradar muito a Poppy.

       — O que eu queria saber — disse eu, observando Poppy arrumar canhestramente o ramo de rosas — se relaciona com o Cavalo Amarelo.

       Como se tivesse levado um jato de água fria, Poppy deixou cair as rosas no chão.

       — Gostaria de saber maiores detalhes — insisti.

       Poppy controlou-se e apanhou o maço do chão.

       — O quê?

       — Gostaria de saber algo sobre o Cavalo Amarelo.

       — Que cavalo amarelo? Não sei o que é isto!

       — Mas falamos nele outra noite.

       — Eu!? Nunca! Jamais ouvi falar nisso.

       — Quem foi que contou a você esta história?

       Poppy prendeu a respiração.

       — Não sei do que está falando. Além do mais estamos proibidas de conversar com os fregueses; quer me dar o dinheiro por favor?

       Entreguei o dinheiro a Poppy, ela me devolveu o troco, mas notei que suas mãos tremiam. Quando olhei novamente para ela vi que estava ocupada com outro freguês. Saí da loja devagar. No caminho me dei conta de que ela tinha feito o troco errado, devolvendo muito mais do que devia. Pensei na beleza opaca do seu rosto e sorri... seus olhos revelaram algo...

       — Medo — pensei. — Pavor! Mas por quê? Por quê?

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Que alívio! — suspirou a Sra. Oliver. — Tudo se passou sem problemas...

       A quermesse organizada por Rhoda tinha ocorrido como todas as quermesses do mundo. A ansiedade inicial em relação à temperatura; as eternas discussões sobre a colocação das marquises; a preocupação sobre o fornecimento de doces etc....

       Tudo resolvido a contento por Rhoda.

       Outra preocupação dos organizadores concentrou-se nos cachorros de Rhoda que periodicamente ameaçavam irromper por entre as barracas e os convidados. Por fim a quermesse foi inaugurada com a indefectível presença de uma estrelinha de cinema coberta de peles que encantou os presentes com sua beleza e amabilidade. Claro que faltou troco, que as bebidas não estavam bastante geladas, nem foram suficientes para os consumidores. À noite, as mesmas quadrilhas e os fogos de artifício.

       — Este ano rendeu mais do que o ano passado — comentou Rhoda.

       — O que eu acho fantástico — comentou a Srta. Macallister, a governanta escocesa de Rhoda — é a facilidade com que Michael Brent descobre o mapa do tesouro. É o terceiro ano consecutivo que isto acontece! Será que alguém não lhe dá a pista?

       — Lady Brookbank ganhou um porquinho — disse Rhoda. — Pela cara dela acho que não era bem o que desejava.

       Estávamos reunidos no jardim: minha prima Rhoda e o marido, o Coronel Despard, a Srta. Macallister, uma jovem ruiva chamada Ginger, a Sra. Oliver, o reverendo Caleb Dane Calthrop e sua esposa. O reverendo era um senhor simpático, estudioso, cuja principal distração era citar um provérbio clássico, relacionando-o com um acontecimento momentâneo. Este hábito murchava qualquer conversa, possuía o dom de embaraçar os presentes, e só satisfazia o próprio reverendo pois geralmente a maioria das pessoas desconhecia latim ou grego.

       — Como dizia Horácio... etc. etc. — observou ele, sorrindo para os presentes.

       Depois de uma pequena pausa Ginger interveio.

       — Acho que a Sra. Horsefall trapaceou com aquela garrafa de champanha. Quem acabou ganhando foi a sobrinha!

       A Sra. Dane Calthrop, uma mulher imprevisível, de olhar aguçado, observava a Sra. Oliver.

       — O que a senhora esperava fosse acontecer nesta festa? — perguntou abruptamente.

       — Ora, um crime ou qualquer coisa excitante.

       — Por quê? — perguntou a Sra. Dane Calthrop, interessada.

       — Por nada. Por ser improvável talvez. Lembro-me de um crime que ocorreu numa quermesse...

       — Ah! A senhora ficou impressionada?

       — Muito.

       O reverendo fez uma citação em grego.

       Seguiu-se outro breve silêncio.

       — Achei muita vantagem o dono do Bar Armas do Rei nos mandar aquelas cervejas para o tiro ao alvo.

       — Armas do Rei? — perguntei.

       — É o nome do bar local, meu caro — explicou Rhoda.

       — Não existe outro pelas redondezas... O Cavalo Amarelo, não foi? — perguntei olhando para a Sra. Oliver.

       Nenhuma reação por parte dos presentes. Todos olharam para mim imperturbáveis.

       — O Cavalo Amarelo não é um bar — disse Rhoda. — Ou melhor, não é mais um bar.

       — Mas já foi — disse Despard, — lá pelo século XVI. Hoje em dia, é uma casa, embora a proprietária tenha mantido o mesmo nome.

       — Por que havia de mudar? — quis saber Ginger. — Um lugar daqueles não poderia ter um nome bobo como Nosso Lar ou Recanto Feliz. Acho o nome de Cavalo Amarelo divino. Elas têm uma plaqueta antiga colocada em cima da lareira que é uma beleza.

       — Quem são elas? — perguntei.

       — A casa é de Thyrza Grey — informou Rhoda. — Não sei se você viu uma mulher alta, de cabelos cinzentos?

       — É dada ao ocultismo — disse Despard. — Dedica-se ao espiritismo, ao transe, à magia. Não tem nada com Missa Negra ou coisas assim...

       Ginger deu uma gargalhada.

       — Desculpe — disse a ruiva. — Mas por um instante eu imaginei a Srta. Grey vestida de Mme. de Montespan, num altar de veludo negro.

       — Ginger, respeite o reverendo! — disse Rhoda.

       — Desculpe, reverendo.

       — Não tem a menor importância — disse o Sr. Calthrop. — Como dizem os antigos...

       Seguiu-se uma longa citação em grego, acompanhada de um respeitoso silêncio de aprovação.

       — Mesmo assim quem são elas?

       — Uma amiga, que mora com ela e chama-se Sybil Stamfordis que acho que funciona como médium. Você já deve tê-la visto, cheia de colares e escaravelhos; às vezes, veste-se com um sari, não me pergunte por que... acho que ela nem conhece a Índia...

       — Não esqueça de Bella — interveio a Sra. Dane Calthrop, a cozinheira que dizem ser uma feiticeira nascida num vilarejo, onde era famosa por suas bruxarias. Dizem que a mãe dela também era bruxa.

       — A senhora fala em bruxaria como se fosse a coisa mais natural do mundo! — exclamei.

       — E é mesmo! Não existe mistério algum. As vezes é um dom de família... quando o senhor era pequeno, não se lembra de uma vizinha a quem se devia dar bolos e doces?

       Olhei para ela como ceticismo mas parecia falar com sinceridade.

       — Sybil nos ajudou hoje na quermesse — disse Rhoda. — Lendo a sorte. Ela ficou na barraca verde e fez muito sucesso.

       — Predisse para mim um futuro maravilhoso — disse Ginger. — Dinheiro, um amante estrangeiro, dois maridos e seis filhos. Que mais poderia desejar?

       — A filha dos Curtis saiu da barraca às gargalhadas — comentou Rhoda. — Mais tarde, quando a vi de novo, ela repetiu para o namorado que ele não era o único galo do galinheiro.

       — Coitado de Tom! — suspirou o marido de Rhoda. — Ele respondeu alguma coisa?

       — Respondeu que não podia dizer o que Dona Sybil tinha lido na mão dele.

       — Bem feito!

       — A velha Parker é que não gostou da sorte — disse Ginger. — É tudo bobagem! me disse ela, só espero que vocês não acreditem nessas histórias. A Sra. Cripps, porém, interrompeu para dizer que a Srta. Grey prevê a morte de qualquer pessoa e que nunca se engana! A Sra. Parker concordou, mas disse que morte já é outra conversa. Finalmente a Sra. Cripps arrematou que não valia a pena ofender nenhuma das três.

       — Que interessante! — exclamou a Sra. Oliver. — Gostaria de conhecê-las.

       — Podemos dar um pulo lá amanhã — prometeu o Cel. Despard. — Vale a pena ver a casa. Elas a decoraram com muito gosto e inteligência... ficou um lugar confortável e de estilo.

       — Amanhã dou um telefonema para Thyrza — disse Rhoda.

       Confesso que fui dormir ligeiramente desapontado. O Cavalo Amarelo que para mim tinha se tornado o símbolo do sinistro e do desconhecido, de repente tinha se transformado numa história da Carochinha.

       A não ser que existisse um outro Cavalo Amarelo!

       Nestas conjeturas acabei adormecendo.

      

       O domingo amanheceu preguiçoso e azul; o ar parecia invadido pela ressaca. As tendas e barracas armadas sobre a relva balançavam as bandeirolas, esperando a hora de serem desmontadas. Segunda-feira, todos recomeçariam a trabalhar e avaliar os lucros e perdas da quermesse... por isso Rhoda resolveu passar o domingo fora com os amigos.

       Fomos à igreja e ouvimos respeitosamente o erudito sermão do Sr. Dane Calthrop, baseado num texto de Isaías que parecia ter mais afinidade com a história da Pérsia do que com religião.

       — Vamos almoçar com o Sr. Venables — disse Rhoda, à saída da igreja. — Você vai gostar dele, Mark. Trata-se de um homem fascinante, que já fez de tudo e já viu de tudo. Comprou uma casa por aqui há uns três anos que, julgando pela reforma, deve ter custado uma fortuna. Teve paralisia infantil, por isso anda de cadeira de rodas, o que deve ser horrível para ele, pois vivia viajando. Como já disse, deve ser riquíssimo, a julgar pela maravilha que fez da casa... quando ele a comprou estava praticamente em ruínas. Hoje em dia seu maior interesse são os leilões.

       Chegamos à mansão do Sr. Venables e fomos recebidos por ele no hall.

       — Que bom que vieram — disse ele, cordialmente. — Devem estar exaustos de ontem. Aliás você está de parabéns, Rhoda.

       O Sr. Venables era um homem de uns cincoenta anos, de rosto magro, um ar de falcão com um nariz adunco, bastante agressivo. Suas roupas eram caras e convencionais, o que lhe dava um aspecto ligeiramente demodé.

       Rhoda fez as apresentações.

       O Sr. Venables sorriu para a Sra. Oliver.

       — Conheci-a profissionalmente — disse o Sr. Venables. — Comprei seis livros seus autografados que servirão de ótimos presentes de Natal. Gosto muito do que escreve; por favor não pare, sou seu fã incondicional. Venables sorriu para Ginger. Por sua causa quase ganhei ontem na tômbola! — Em seguida, voltou-se para mim: — Gostei muito do seu artigo publicado no Suplemento do mês passado.

       — Foi muita bondade sua ter vindo à quermesse, Sr. Venables — disse Rhoda. — Depois daquela sua magnífica doação financeira não esperava contar com sua presença.

       — Mas eu adoro quermesses. Faz parte da vida rural inglesa, não acha? Voltei para casa com uma horrenda boneca de pano. Achei muito divertido ouvir as relações proféticas da nossa querida Sybil, envolta naquele turbante fantástico com todos aqueles colares pseudo-egípcios!

       — Sybil é muito divertida — comentou o Cel. Despard. — Hoje à tarde vamos tomar chá com Thyrza. Creio que o senhor concorda comigo que a casa é bastante interessante.

       — O Cavalo Amarelo? Mas no fundo eu preferiria que tivessem deixado como estava, intocada no seu manto de maldade e mistério. Não creio que fosse usada por piratas, pois estamos longe demais da costa... talvez fosse uma estalagem para bandoleiros? Ou ricos viajantes que resolviam passar a noite e nunca mais apareciam? Hoje em dia eu considero uma injustiça uma casa daquelas ter se transformado numa simpática residência de três solteironas.

       — Mas eu não as considero assim — exclamou Rhoda. — Talvez Sybil seja ligeiramente ridícula com suas fantasias indianas e visões esotéricas. Mas pense em Thyrza. Não acha que existe algo de aterrador nela? Como se ela soubesse sempre o que a gente está pensando... O estranho é que ela não se vangloria de possuir uma intuição fora do comum, mas todo mundo sabe que ela possui poderes extraordinários.

       — E Bella não pode ser considerada uma solteirona — interrompeu Despard. — Já enterrou dois maridos.

       — Peço desculpas, então — disse Venables.

       — Além de possuir o dom de matar os vizinhos — continuou Despard — quando estes a aborrecem. Dizem que quando ela olha arrevezado para alguém a pessoa começa a definhar e acaba morrendo!

       — Ela é a feiticeira da cidade?

       — Segundo a Sra. Dane Calthrop.

       — A bruxaria não deixa de ser um assunto fascinante — disse Venables pensativo. — É encontrada em todas as modalidade possíveis pelo mundo afora. Lembro-me de quando estava na África...

       A conversa do anfitrião fluía como um córrego manso; falou sobre pajés africanos; cultos desconhecidos de Bornéu, e prometeu nos mostrar algumas máscaras africanas depois do almoço.

       — Tem de tudo nesta casa — comentou Rhoda, rindo.

       — Já que não posso ver tudo que existe — disse o Sr. Venables — procuro arrebanhar perto de mim o maior número de curiosidades.

       Naquele instante sua voz revelou certo amargor. O Sr. Venables lançou um rápido olhar de desprezo para as pernas paralisadas.

       — “O mundo está cheio de coisas” — citou ele. Creio que esta curiosidade em conhecer tudo é que me prejudica. Existem tantas coisas que eu quero ver! Mas não posso me queixar, já fiz mais do que devia, e mesmo hoje ainda encontro muitas distrações.

       — Por que, aqui? — perguntou a Sra. Oliver, de repente.

       O ambiente estava ligeiramente carregado como sempre acontece quando se menciona algum assunto delicado ou desagradável. A Sra. Oliver porém não pareceu tomar conhecimento disso. Fez a pergunta porque queria saber a resposta. Sua curiosidade devolveu ao ambiente a antiga atmosfera de calor e simpatia.

       O Sr. Venables olhou para ela surpreendido.

       — Por que veio para cá? — perguntou novamente a Sra. Oliver. — Não é longe demais da civilização e do convívio cultural? Ou o senhor tem amigos por aqui?

       — Não. Aliás, já que a senhora perguntou, escolhi esta região porque não conhecia uma pessoa sequer.

       Um sorriso irônico assomou aos lábios de Venables.

       Até que ponto, pensei, a paralisia tinha afetado aquele homem? Seria possível que a incapacidade de andar, a falta de liberdade para explorar o mundo, tivesse deixado uma marca tão profunda na sua alma? Ou será que ele havia se adaptado às circunstâncias com equanimidade e grandeza de espírito?

       Como se Venables tivesse lido meus pensamentos, disse:

       — No seu artigo, o senhor questiona o significado do termo “grandeza”, comparando-o com seus diversos significados tanto no Oriente quanto no Ocidente. Gostaria de saber como se considera, por exemplo, um grande homem na Inglaterra?

       — Grandeza de intelecto — respondi — e certamente pela força moral!

       Venables olhou para mim com um estranho brilho nos olhos.

       — Não poderia então existir um homem mau dotado de grandeza? — perguntou.

       — Claro — gritou Rhoda. — Veja Napoleão, Hitler, e milhares de outros. Todos grandes homens!

       — Por causa dos distúrbios que causaram? — perguntou Despard. — Se você os conhecesse pessoalmente talvez não tivesse esta impressão.

       Ginger debruçou-se para a frente e correu os dedos pelos cabelos ruivos.

       — Que interessante! — comentou. — Será que eles foram pessoas patéticas e mesquinhas? Comportando-se como galos de briga, sentindo-se inferiores aos outros, mesmo que tivessem o mundo nas mãos?

       — Ah! não! — replicou Rhoda. — Se eles fossem como você os descreve não poderiam ter causado tanta comoção.

       — Não sei — interveio a Sra. Oliver. — Afinal, até uma criança pode incendiar uma casa.

       — Ora, ora — disse o Sr. Venables. — Não vamos entrar na moda e subestimar o mal como se ele não existisse. O mal existe, é poderoso. Geralmente mais poderoso do que o bem. É uma entidade que precisa ser reconhecida e combatida, senão... — Venables fez um gesto largo com as mãos — mergulharemos na escuridão.

       — Eu fui criada acreditando no diabo — disse a Sra. Oliver, como se desculpando. — Apesar de achá-lo um tanto tolo. Para que o rabo, os cascos de cabra, e o comportamento de canastrão de opereta? Mas minhas novelas sempre tem um personagem que é um criminoso genial, o público adora este tipo de coisa. Mas, cada vez se torna mais difícil dar veracidade aos estereótipos. É muito mais natural um gerente de banco cometer um estelionato, um marido querer se ver livre da mulher para casar com a governanta.

       Todos riram.

       — Não sei se me expliquei bem — disse a Sra. Oliver, timidamente. — Mas vocês perceberam aonde eu quero chegar...

       Concordamos com ela.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       Eram mais de quatro horas quando saímos da casa de Venables. Depois do almoço o anfitrião nos conduziu por toda a casa, divertindo-se em mostrar suas preciosidades.

       — Ele deve estar nadando em dinheiro — comentei, assim que saímos. — As peças de jade, as esculturas africanas, a coleção de prata. Vocês têm sorte em tê-lo como vizinho.

       — Nós sabemos disso muito bem — replicou Rhoda. — A maioria do pessoal das redondezas é simpático mas meio sem graça. Comparado a eles, o Sr. Venables é definitivamente fora de série.

       — O dinheiro que ele tem é de família? — perguntou a Sra. Oliver.

       Despard comentou que atualmente ninguém podia enriquecer com uma herança por causa dos impostos de transmissão.

       — Contaram-me que ele começou como estivador — continuou ele — mas acho pouco provável. Venables não fala sobre a família ou sobre a infância. Um verdadeiro homem mistério — concluiu, voltando-se para a Sra. Oliver.

       Esta replicou, prontamente, que estava cansada de personagens misteriosos. O Cavalo Amarelo era um prédio de pedra e madeira, ligeiramente afastado da estrada, cercado por um jardim murado que dava à casa um agradável aspecto de outra era.

       Confessei meu desapontamento.

       — Não é bastante sinistro — queixei-me. — Não tem atmosfera.

       — Espere até ver a casa por dentro — prometeu Ginger.

       Saltamos do carro e nos dirigimos para a entrada. A porta foi aberta e deparamos com uma mulher alta, ligeiramente masculina, vestida num tailleur severo de tweed; cabelos cinzentos e ásperos saltando da cabeça, nariz adunco e olhos azuis. Era a Srta. Thyrza Grey.

       — Finalmente — disse ela com sua voz de contralto. — Pensei que tivessem se perdido.

       Notei uma estranha e disforme figura atrás da dona da casa nos espiando pelas sombras, com curiosidade. O rosto, disforme, parecia feito de barro por uma criança. Um rosto semelhante aos que se encontram numa multidão de um quadro primitivo italiano ou flamengo.

       Rhoda nos apresentou e explicou que nos demoramos por causa do almoço com o Sr. Venables.

       — Ah! — exclamou a Srta. Grey. — Eis a razão! Aquela maravilhosa cozinheira italiana e aqueles tesouros encerrados naquela maravilhosa casa. Ainda bem que o pobre homem tem com que se divertir. Entrem... entrem. Nós também nos orgulhamos da nossa casinha, século quinze e algumas partes século dezesseis.

       A entrada era escura e pequena, com uma sinuosa escadaria ao fundo. Uma grande lareira e um quadro completavam o hall.

       — É a placa do albergue — explicou a Srta. Grey, notando meu olhar. — Nesta luz não dá para ver bem. O Cavalo Amarelo.

       — Vou limpá-lo para você — disse Ginger — assim que tiver tempo. Vai ver que maravilha vai ficar.

       — Não sei bem — disse Thyrza Grey. — E se você estragar a placa? — acrescentou bruscamente.

       — Claro que não vou estragar! — exclamou Ginger indignada. — É minha profissão! Trabalho no Museu de Londres — disse, voltando-se para mim. — Divirto-me imensamente com essas coisas.

       — A gente precisa se acostumar com as novas técnicas de restauração — interveio Thyrza. — Quase desmaio quando vou a um museu, hoje em dia. Todos os quadros parecem que levaram um banho de detergente.

       — Você não vai me dizer que os prefere em tons mostarda escuro e cinza! — protestou Ginger. Ela olhou novamente para a placa. — Iam aparecer tantas coisas. Talvez tivesse até um cavaleiro sobre o cavalo!

       Passei a olhar a placa com atenção, ao lado de Ginger. Era um quadro mal feito, cujo único mérito residia na antiguidade e sujeira. Uma figura amarela de um cavalo brilhando foscamente sobre um fundo preto.

       — Ei, Sybil, nossos convidados estão falando mal do nosso cavalo! — gritou Thyrza. — Já se viu tal impertinência?

       Sybil Stamfordis apareceu. Era uma mulher alta, de cabelos escuros e oleosos, uma expressão de choro eterna e uma boca de peixe fora do aquário. Usava um sari verde escuro que não lhe ia bem. Falava numa voz fraca e desafinada.

       — Nosso querido cavalo — disse. — Nos apaixonamos por esta placa e acho que foi a causa de acabarmos comprando esta casa. Não foi, Thyrza? Mas vamos entrar.

       Ela nos conduziu para um pequeno aposento que deveria ter sido, antigamente, um bar. Atualmente, tinha sido transformado numa sala de visitas campestre com móveis Chippendale e vasos de crisântemos.

       Fomos levados para ver o jardim que deveria ser uma maravilha no verão e depois voltamos para a casa onde encontramos a mesa preparada para o chá com sanduíches e bolos. Carregando o bule de prata a velha que eu tinha visto de relance na entrada. Esta criada usava um simples avental verde e, se bem que seu rosto tivesse um aspecto primitivo, não me parecia mais tão sinistro.

       De repente, senti-me irritado com minhas fantasias. Quanta bobagem em torno de três senhoras e um velho albergue.

       — Obrigada Bella — disse Thyrza.

       — Tem tudo de que precisa?

       A voz de Bella parecia um resmungo.

       — Sim, obrigada.

       Bella retirou-se sem olhar para os convidados. Antes de fechar a porta, porém, dirigiu-me um breve olhar. Fiquei espantado, sem saber por quê. Naquele olhar havia maldade e uma estranha e íntima cognição. Senti que ela, sem se esforçar e sem querer, sabia exatamente o que eu estava pensando.

       Thyrza Grey notou minha perplexidade.

       — Bella é estranha, não é, Sr. Easterbrook? — perguntou delicadamente. — Reparei como o senhor a observou.

       — Ela é das redondezas? — perguntei, tentando parecer apenas interessado por educação.

       — Sim, apesar dos boatos implicarem que ela seja uma bruxa.

       Sybil Stamfordis bateu com o colares.

       — Confesse Sr... Sr...

       — Easterbrook.

       — Easterbrook. Tenho certeza de que o senhor já ouviu dizer que praticamos bruxarias. Confesse! Somos até bem conhecidas por aqui!

       — E não é para menos — interveio Thyrza. — Sybil possui grandes poderes.

       Sybil suspirou feliz.

       — Sempre fui fascinada pelo oculto — murmurou. — Desde criança percebi que possuía poderes raros. A escrita automática veio naturalmente, quando eu ainda nem sabia escrever. Eu costumava ficar sentada com um lápis na mão e imediatamente perdia a noção de tempo e espaço. Claro que eu sempre fui supersensível... uma vez desmaiei quando fui tomar chá na casa de uns amigos. Algo de horrível havia acontecido naquela sala. Eu tinha certeza! Mais tarde soubemos o que era. Naquela sala, havia ocorrido um crime vinte e cinco anos antes!

       Ela olhou em tomo, triunfante.

       — Extraordinário! — comentou o Cel. Despard, tentando disfarçar a irritação.

       — Nesta casa, mesmo, ocorreram coisas sinistras — disse Sybil sombriamente. — Mas nós já tomamos as precauções... já conseguimos libertar os espíritos acorrentados.

       — Uma espécie de faxina espiritual? — sugeri.

       Sybil encarou-me duvidosa.

       — Que maravilhosa a cor do seu sari — interveio Rhoda, desconversando.

       Sybil sorriu.

       — Não é mesmo? Comprei na Índia, onde vivi aventuras extraordinárias. Estudei ioga e outras religiões mas achei todas muito sofisticadas, distantes demais do primitivo, do natural. Devemos voltar às origens, aos poderes primitivos. Sou das poucas mulheres que conhecem o Haiti profundamente. Lá sim, a gente toca as fontes naturais do ocultismo, misturadas é claro com um pequeno grau de distorção e corrupção. Mas a raiz está presente.

       — Quando souberam que eu tinha uma irmã gêmea, mais velha do que eu apenas alguns minutos — prosseguiu Sybil — resolveram abrir o jogo. O segundo gêmeo, dizem, possui sempre poderes sobrenaturais. Estranho, não é? O senhor precisa assistir as danças da morte! Eles usam caveiras, ossos e todos os apetrechos dos coveiros. Pás... enxadas... aliás até se vestem de coveiros... O sacerdote supremo é o Barão Samedi e o deus invocado é o Legba, único capaz de “remover as barreiras”. O culto consiste em evocar os mortos para que eles tragam a morte. Estranho, não é?

       — Veja — continuou Sybil animadamente, dirigindo-se ao peitoril da janela. — Este é o meu Asson, um morceguinho seco todo enfeitado de contas; está vendo estes rabinhos? São de cascavel!

       Olhamos para o objeto com interesse, mas pouco entusiasmados, enquanto Sybil chacoalhava carinhosamente o amuleto.

       — Muito interessante — comentou Despard por cortesia.

       — Mas não é só isso...

       Por esta altura, perdi o interesse pela conversa e comecei a olhar em volta. Ao longe, ouvia Sybil discursar sobre feitiçaria, voodoo, Maitre Carrefour, a Coa, Família Guidé.

       Voltei-me e deparei com Thyrza Grey me examinando com curiosidade.

       — O senhor não acredita nestas histórias? — murmurou ela. — Pois devia! Não podemos explicar o sobrenatural, apelidando-o de superstição, ou medo ou preconceito religioso. Existem verdades e poderes elementares... sempre existiram e sempre existirão.

       — Disso não tenho a menor dúvida — respondi.

       — Muito bem, venha comigo à biblioteca.

       Encaminhamo-nos pelo terraço até o jardim.

       — Fica ali ao lado da antiga estrebaria — explicou Thyrza Grey.

       A estrebaria tinha sido reconstruída e transformada numa enorme sala. Dirigi-me, imediatamente, para uma das paredes, cobertas de estantes de livros.

       — A senhora possui algumas raridades — comentei. — Este Malleus Maleficorum é um original? Vejo que possui verdadeiros tesouros!

       — Eu sei.

       — Este Grimoire, por exemplo, é raríssimo! — retirei alguns volumes das estantes. Thyrza me observava com um estranho ar de satisfação. Recoloquei no lugar o Sadducismus Triumphatus.

       — É bom encontrar uma pessoa que sabe admirar meus tesouros. A maioria limita-se a bocejar ou manter a boca aberta.

       — Pode haver o perigo de exagero na prática da feitiçaria e do ocultismo — disse eu. — Como começou a se interessar por isso?

       — Não sei bem... faz tanto tempo. Um dia folheei um livro e devo ter-me impressionado com alguma coisa. É fascinante estudar o comportamento das pessoas que acreditam no sobrenatural.

       Dei uma pequena risada.

       — Ainda bem que não acredita em tudo o que lê — comentei.

       — Não me julgue pela pobre Sybil. Percebi seu olhar de superioridade enquanto ela falava! Devo dizer que o senhor se engana, ela pode ser uma simplória que mistura voodoo com demoniologia, mas possui o poder.

       — O poder?

       — Não saberia defini-lo de outro modo. Existem pessoas que se tornam ligações vivas entre este mundo e o mundo dos poderes invisíveis. Sybil é uma dessas pessoas. É uma médium de primeira. Nunca faz comércio deste dom excepcional. Quando eu, ela e Bella...

       — Bella?

       — Sim, Bella também possui poderes, como todo o mundo. É apenas uma questão de grau. Em conjunto...

       Ela calou-se.

       — Bruxaria Ltda.? — sugeri, sorrindo.

       — Se quiser.

       Olhei para um volume que tinha entre as mãos.

       — Nostradamus e etc.?

       — Nostradamus e etc.! — concordou ela.

       — A senhora realmente acredita nisso — disse eu.

       — Não é questão de crença, eu sei — disse ela triunfante.

       — Como? De que maneira? Por que razão? — perguntei, olhando-a com curiosidade.

       Ela fez um gesto largo com as mãos, abrangendo as estantes.

       — Tudo isso! Tanta bobagem, tantas frases bombásticas! Mas tente afastar as superstições e os preconceitos da época e verá que a base é verdadeira. É como religião... vem enfeitada, sempre foi enfeitada para impressionar o povo!

       — Não entendo.

       — Meu caro, o que motiva os homens a procurarem os feiticeiros, os pajés?

       Por duas razões tão fortes que justificam o risco da danação eterna: a poção do amor e o veneno da morte.

       — Ah!

       — Simples, não é? Amor e morte. A poção do amor para se conseguir a pessoa desejada; a missa negra para conservar o amante. Esta poção deve ser ingerida em noite de lua cheia, recitando os nomes dos demônios ou dos espíritos, enquanto se desenha no chão ou na parede alguns rabiscos estranhos. Tudo isto não adianta nada porque a verdade está no conteúdo afrodisíaco da poção.

       — E a morte?

       — A morte? — repetiu Thyrza com um risinho perturbador. — O senhor se interessa pela morte?

       — Como todo o mundo — respondi.

       — Será mesmo? — perguntou, sorrindo com um olhar perscrutador que me surpreendeu. — Sempre houve mais intercâmbio com a morte do que com o amor. Antigamente, porém, faziam tanta encenação. Veja os Borgias e os venenos secretos. Sabe o que eles usavam? Arsênico comum, como qualquer mulher que deseja se ver livre do marido. Hoje em dia, porém, já estamos mais adiantados. A ciência expandiu nossas fronteiras.

       — Venenos que não deixam vestígios? — perguntei num tom cético.

       — Venenos! Bah! Isto é para amadores. Vieux jeu, mon ami. Existem novos caminhos.

       — Quais, por exemplo?

       — A mente. O conhecimento do que é a mente, do que ela pode fazer e do que podemos fazer com ela.

       — Que interessante. Continue.

       — O princípio é bastante divulgado. É o mesmo que os pajés empregavam nas comunidades primitivas. Não se mata a vítima, simplesmente ordena-se que ela morra.

       — Sugestão? Mas não funciona se a vítima é descrente!

       — Talvez com os europeus não funcione — ela corrigiu. — Não tenho tanta certeza. Mas não é aí que eu quero chegar. Através da psicologia já nos desenvolvemos mais do que os feiticeiros. O desejo de morrer existe e está presente em todos os homens. Nisso é que se trabalha.

       — Interessante! — murmurei num tom científico. — Deve-se influenciar a vítima a cometer suicídio. É isto?

       — Não exatamente. O senhor já ouviu falar nas doenças traumáticas?

       — Claro.

       — Das pessoas que inconscientemente não desejam voltar ao trabalho e que por isso ficam realmente doentes, e passam a sentir todos os sintomas de uma enfermidade, às vezes até dores? Os médicos até hoje são incapazes de explicar este fenômeno satisfatoriamente.

       — Estou começando a compreender — disse eu vagarosamente.

       — Para destruir a vítima precisa-se exercer um perto poder sobre o “eu” inconsciente. Deve-se estimular o desejo de morte. Percebe agora? — perguntou ela entusiasmada. — Uma doença verdadeira poderá ser induzida, causada pelo próprio desejo de autodestruição. Uma pessoa deseja ficar doente, deseja morrer, portanto fica doente e morre.

       Ela atirou a cabeça para trás num meneio de triunfo. Senti-me completamente gelado. Quanta besteira, pensei, Esta mulher é louca... mas, mesmo assim...

       Thyrza Grey soltou uma risada.

       — O senhor não me acredita?

       — Acho suas teorias fascinantes, Srta. Grey, porém, como a senhorita pretende estimular este desejo de morte que todos nós possuímos?

       — É um segredo. O modo, os recursos! Existem comunicações sem contato. Pense no telégrafo, no radar, na televisão. As experiências em percepção extra-sensorial, por exemplo, não se desenvolveram como era esperado, porque as pessoas não entenderam o seu princípio básico. Pode-se chegar a uma experiência por acidente, mas depois que percebemos seu mecanismo podemos empregá-lo sempre...

       — A senhorita saberia, por exemplo? Ela ficou calada por uns instantes.

       — Não me peça, Sr. Easterbrook, para revelar todos os meus segredos.

       Segui-a até a porta do jardim.

       — Por que me contou tudo isto? — perguntei.

       — Porque o senhor compreendeu meus livros. Às vezes, a gente precisa de alguém... para conversar. Além do mais...

       — Sim?

       — Eu achei... e Bella também... que talvez o senhor pudesse vir a precisar de nós.

       — Precisar?

       — Bella acha que o senhor veio à nossa procura. Ela dificilmente se engana.

       — Por que eu haveria de precisar das senhoras?

       — Isto — respondeu Thyrza Grey, suavemente, — ainda não sabemos.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Finalmente! Estávamos a sua procura — disse Rhoda, entrando com os outros convidados. — É aqui que vocês fazem as sessões?

       — Você está bem informada — respondeu Thyrza Grey, rindo. — Nesta cidade todos sabem mais sobre a vida dos outros do que sobre as próprias. Sei que temos fama de sinistras. Há alguns anos atrás seríamos queimadas como bruxas. Para dizer a verdade, umas duas tias-avós, lá na Escócia, pereceram na fogueira. Bons tempos aqueles!

       — Sempre pensei que você fosse irlandesa!

       — Só por parte de pai. Do lado de minha mãe sou escocesa. Nossa pitonisa, Sybil, é descendente de gregos; só Bella é que é cem por cento inglesa.

       — Um macabro coquetel humano — comentou Despard.

       — Nem diga!

       — Até que é bem divertido — interveio Ginger.

       Thyrza lançou-me um rápido olhar.

       — Eu também acho. A senhora — disse Thyrza, voltando-se para a Sra. Oliver — deveria escrever um livro policial baseado na magia negra. Posso lhe dar muitas informações.

       A Sra. Oliver limitou-se a piscar os olhos e perder a graça.

       — Minhas novelas só têm crimes normais — desculpou-se a Sra. Oliver, como uma cozinheira que só faz bem um tipo de prato. — Limito-me a falar de pessoas que querem afastar seus inimigos e tentam fazê-lo de uma forma inteligente.

       — Inteligente demais para o meu gosto — interveio Despard, olhando para o relógio. — Rhoda, eu acho...

       — É mesmo! Vamos indo. É muito tarde.

       Cumprimentos e endereços foram trocados e finalmente nos dirigimos para a saída, por um portão lateral.

       — Quantas aves — comentou Despard, examinando os galinheiros.

       — Detesto galinhas — disse Ginger. — O cacarejo delas me deixa louca.

       — São frangos, na maioria — esclareceu Bella, aparecendo pela porta dos fundos.

       — Frangos brancos? — perguntei.

       — Nós precisamos deles — resmungou Bella, com um olhar malicioso.

       — Quem se ocupa dos frangos é Bella — informou Thyrza.

       Sybil Stamfordis reapareceu para as despedidas.

       — Não gostei daquela mulher — disse a Sra. Oliver, quando estávamos no carro. — Não gostei mesmo.

       — Não leve Thyrza a sério — disse Despard, com indulgência. — Ela se diverte em parecer sinistra.

       — Não estou falando dela. É uma criatura sem escrúpulos, uma oportunista. É a outra quem é realmente perigosa.

       — Bella? Uma velha estranha mas...

       — Não é dela que estou falando. Não gostei da tal de Sybil. É uma sonsa com aqueles enfeites e plumas, com aquela conversa fiada sobre voodoo e reencarnações. (O que eu me pergunto é porque uma pessoa feia, velha ou pobre não se reencarna. Sempre são princesas egípcias ou escravas babilônias. Dá para desconfiar!) Voltando a Sybil, apesar de ser uma idiota, creio que é capaz de conseguir algumas coisas excepcionais... não estou me expressando bem... o que quero dizer é que ela poderia ser usada por alguém. Aposto que não entenderam... uma palavra sequer do que eu disse — arrematou a Sra. Oliver num tom patético.

       — Eu entendi. — disse Ginger. — E acho até que tem razão.

       — Precisamos comparecer a uma sessão, isso sim!

       — De jeito algum — disse Despard com firmeza. — Não quero vê-la metida nestas confusões.

       A discussão acabou entre risadas, e por esta altura a Sra. Oliver já estava preocupada com o horário dos trens.

       — Pode voltar comigo — disse eu.

       A Sra. Oliver pareceu em dúvida.

       — Acho melhor voltar de trem...

       — Não vai dizer que está com medo de andar comigo de carro. Sabe que sou ótimo chofer.

       — Não é isso, Mark. É que tenho um enterro para ir, amanhã. Não posso chegar tarde. — A Sra. Oliver deu um suspiro. — Odeio enterros.

       — E por que vai?

       — Não posso deixar de ir, principalmente no caso de uma amiga como foi Mary Delafontaine. Sei que ela gostaria de que eu fosse...

       — Imagine! — exclamei. — Delafontaine...

       Todos me olharam com curiosidade.

       — Não se espantem. É que eu ouvi este nome em algum lugar não faz muito tempo. Não foi a senhora? — perguntei, dirigindo-me para a Sra. Oliver. — Não me disse que ia visitá-la numa casa de saúde ou coisa parecida?

       — É possível.

       — De que ela morreu?

       A Sra. Oliver franziu a testa.

       — Polineurise tóxica — respondeu.

       Ginger olhou para mim curiosa, tentando ler meus pensamentos.

       Quando chegamos pretextei querer dar uma volta para fazer a digestão. Larguei o pessoal, antes que alguém se oferecesse para vir comigo. Precisava ficar só para poder pensar.

       O que estava acontecendo? Tudo tinha começado com o estranho comentário de Poppy, recomendando o Cavalo Amarelo, caso alguém quisesse eliminar um inimigo.

       Em seguida, aquele encontro com Jim Corrigan, a lista de “nomes” relacionada com a morte do padre Gorman. Na lista estavam escritos os nomes de Hesketh Dubois, Tuckerton, o que me fez lembrar do restaurante do Luigi. Lembrei-me também vagamente do nome Delafontaine. A Sra. Oliver falou numa amiga doente, essa amiga no entanto tinha morrido.

       Não sei por que fui procurar Poppy na loja de flores onde ela negou veementemente saber qualquer coisa sobre o Cavalo Amarelo. O que era mais estranho ainda foi que ela pareceu assustada.

       E hoje... a conversa com Thyrza Grey.

       Certamente o Cavalo Amarelo e as proprietárias não tinham coisa alguma que ver com a lista de nomes. Mas por que então minha mente insistia em agrupá-los? Por que eu imaginava que deveria existir um elo de ligação entre eles?

       A Sra. Delafontaine certamente morava em Londres. Thomasina Tuckerton vivia em Surrey. Ninguém daquela lista deveria ter ligação alguma com o vilarejo de Much Deeping. A não ser que...

       Parei em frente do King’s Arms, um elegante bar da localidade. Resolvi entrar. Como era cedo o bar ainda não estava funcionando. Inalei um odor de fumaça. Perto da escada uma plaqueta: Escritório. Olhei em volta. Tudo deserto. Num balcão, um velho livro de hóspedes; distraidamente folheei o mesmo, passando os olhos. Poucos nomes, uma média de uns cinco ou seis hóspedes por semana, a maioria só pernoitando uma ou duas noites. Comecei a examinar os nomes mais atentamente, pouco depois fechei o livro. O lugar continuava deserto. Como realmente não precisava falar com o gerente resolvi sair. A noite estava fria.

       Seria coincidência que Sandford e Parkinson tinham se hospedado, em épocas diversas, no mesmo hotel no ano passado? Os dois homens estavam na lista do padre Gorman. Outro nome que eu havia guardado era o de Martin Digby, que se era quem eu pensava que fosse, era o sobrinho de minha tia Min... ou melhor Lady Hesketh-Dubois.

       Passei a andar a esmo, procurando com quem pudesse conversar. Jim Corrigan ou David Ardingly ou Hermia, sempre tão sensata... Eu estava confuso, cheio de pensamentos caóticos e não queria ficar só. O que eu queria, verdadeiramente, era uma pessoa sensata que discutisse comigo e me convencesse de que eu estava errado.

       Depois de andar pelas vielas lamacentas fui parar na porta da casa do vigário. Resolvi entrar.

      

       — Não funciona — disse a Sra. Dane Calthrop, abrindo a porta.

       Eu já havia desconfiado.

       — Consertaram duas vezes — continuou ela — mas não durou. Por isso fico sempre alerta para não perder coisa alguma de importância. É importante?

       — Sim, bem... quero dizer... para mim é.

       — É isso que eu queria saber — disse ela, olhando para mim com apreensão. — Pelo jeito parece grave. Quer falar com o vigário?

       — Não sei.

       Na verdade eu queria falar com o vigário, mas naquele momento estava em dúvida. Sem querer a Sra. Dane Calthrop me deu a resposta.

       — Meu marido é um homem muito bom além de ser vigário e religioso. Isto às vezes dificulta as coisas. As pessoas boas não entendem o mal. É melhor falar comigo — concluiu ela depois de uma breve pausa.

       Desenhei um ligeiro sorriso.

       — É seu departamento?

       — Acho que sim. Numa paróquia é necessário alguém que conheça todos os pecados que existem no mundo.

       — Mas não é esta a profissão do seu marido? Pelo menos a profissão oficial?

       — Ele perdoa os pecados — corrigiu a Sra. Dane Calthrop. — Absolve-os, eu não posso fazer isto, mas em compensação — prosseguiu ela animadamente — posso dividi-los, classificá-los. Tomando conhecimento dos pecados podemos impedir que eles prejudiquem as pessoas. Não posso ajudar muito, só Deus pode, como o senhor já sabe. Ou não sabe? Hoje em dia ninguém sabe...

       — Não posso competir com seu profundo conhecimento da matéria, mas gostaria de impedir que prejudicassem outras pessoas.

       Ela olhou para mim espantada.

       — É isto então? É melhor entrar.

       A sala da paróquia era uma peça espaçosa e desarrumada, repleta de folhagens mal tratadas; apesar disso não tinha um aspecto lúgubre mas sim de paz. As velhas poltronas, um relógio de pé, tudo enfim, dava ao visitante a calma necessária para uma conversa profunda em que se pudesse dizer tudo o que se pensa, esquecendo os problemas exteriores.

       Nesta sala, pensei, muitas moças deviam ter chorado quando vieram confessar que estavam grávidas e confiando na Sra. Dane Calthrop receberam a ajuda compreensiva, e nem sempre ortodoxa, que ela podia oferecer; outros vieram se queixar dos sogros ou sogras; algumas mães justificaram os filhos; casais pediram ajuda para a resolução dos problemas conjugais.

       E cá estava eu, Mark Easterbrook, professor, estudioso, autor, confrontando uma senhora simpática de cabelos grisalhos e olhos bondosos, pronto para confessar meus problemas. Por quê? Não sabia! Mas tinha certeza de que tinha vindo ao lugar certo

       — Acabamos de tomar chá com Thyrza Grey — disse eu.

       Não era difícil explicar certas coisas à Sra. Calthrop. Ela possuía o dom da inferência.

       — Compreendo. O senhor ficou perturbado? Também acho que são três mulheres muito estranhas! Vivo me perguntando se tanta bazófia é necessária... como regra geral sei que cão que ladra não morde mas... Elas podiam ao menos ser mais discretas. Agem como se os pecados que cometem não fossem tão terríveis e por isso discutem com a maior naturalidade. O pecado no fundo é uma coisinha tão ignóbil e desprezível, que as pessoas sentem obrigação de engrandecê-lo ou torná-lo importante. Geralmente as bruxas da cidade não passam de velhas tolas que se divertem em assustar as pessoas. Aliás não é difícil assustar os crédulos. Quando, por exemplo, as galinhas de Dona Fulana morrem, é muito fácil menear a cabeça e murmurar: Se ao menos o menino não tivesse maltratado a gata dela a semana passada! Bella Webb talvez seja este tipo de feiticeira ou talvez seja algo mais... este outro tipo de maldade é mais perigoso e não está ligado à necessidade de impressionar as pessoas. Sybil Stamfordis é uma das criaturas mais tolas que conheci mas é realmente uma médium e Thyrza, bem... essa eu não sei... o que ela disse para o senhor? Foi ela quem o perturbou de tal forma?

       — A senhora tem um grande tirocínio, Sra. Calthrop. Gostaria de que me dissesse se acha possível alguém destruir uma pessoa a distância, sem conexão aparente?

       Os olhos da Sra. Dane Calthrop se arregalaram.

       — O senhor quer dizer assassinar? Fala em destruir no sentido físico do verbo?

       — Sim.

       — Eu diria que é besteira — retrucou ela com ênfase.

       — Ah! — suspirei aliviado.

       — Mas posso estar enganada — continuou ela. — Meu pai considerava os aeroplanos uma impossibilidade e meu avô provavelmente tinha esta mesma opinião a respeito das estradas de ferro. Os dois tinham razão na época, porque essas coisas não existiam. Do que Thyrza Grey pretende ser capaz? Ativar um raio mortal? Ou desenhar pentagramas no chão e invocar forças ocultas?

       — A senhora está me devolvendo a objetividade — respondi, sorrindo. — Aquela mulher deve ter-me hipnotizado.

       — Não creio. O senhor não me parece tão sugestionável. Deve ter havido outra coisa... que antecedeu a visita. O que foi?

       — Tem razão.

       Descrevi o melhor possível o crime do padre Gorman e a história de Poppy sobre o Cavalo Amarelo. Em seguida, tirei do bolso a lista de nomes que o Dr. Corrigan me havia dado.

       — Hummm, compreendo — disse ela, — estas pessoas têm algo em comum?

       — Não sabemos. Pode ser chantagem ou drogas...

       — Não creio — disse a Sra. Calthrop. — E não é isto que o preocupa. O senhor está preocupado com a possibilidade de eles estarem mortos...

       Suspirei.

       — Sim é isso. Só não tenho certeza. Três já morreram: Minnie Hesketh-Dubois, Thomasina Tuckerton, Mary Delafontaine. Todas as três de causas naturais, como Thyrza Grey diz ser capaz de eliminar as vítimas.

       — Ela disse isso?

       — Não exatamente. Ela não se referiu a uma pessoa especificamente, expôs somente uma possibilidade científica.

       — Que parece ser bastante improvável — concluiu a Sra. Calthrop, pensativa.

       — Sei bem disso. Naturalmente não levaria esta conversa a sério se não fosse a história do Cavalo Amarelo.

       — Ah! O Cavalo Amarelo.

       A Sra. Calthrop ficou calada por uns instantes. Em seguida, levantou a cabeça.

       — Não gosto disso — disse ela. — Seja lá o que for temos que pôr um fim nesta história.

       — Sei bem... mas que podemos fazer?

       — O senhor precisa descobrir tudo e sem perda de tempo — disse a Sra. Calthrop, passando pela sala, cheia de energia e atividade. — Já! Não conhece alguém que possa ajudá-lo?

       Pensei em Jim Corrigan que eliminei imediatamente pois vivia ocupado. David Ardingly que não acreditaria em mim e em Hermia, uma mulher inteligente, lógica, um pilar de força e sabedoria. Minha noiva...

       — Pensou? Ótimo! — exclamou a Sra. Dane Calthrop. — Vigiarei as três bruxas apesar de achar que a resposta não está com elas. É como ouvir as sandices de Sybil sobre pirâmides e templos egípcios, e no entanto existem pirâmides e templos egípcios. Creio, contudo, que Thyrza Grey sabe algo e usa este conhecimento para pavonear seu ocultismo, engrandecendo desta forma sua importância. As pessoas, às vezes, se orgulham da própria maldade. Só os bons não sentem esta necessidade. Estranho, não é? Creio que é isto que chamam humildade cristã; isto é, o desconhecimento da própria bondade. — Ela calou-se por uns instantes e finalmente concluiu: — O que precisamos é um elo. Uma ligação entre estes nomes e o Cavalo Amarelo. Algo palpável.

      

       O Inspetor Lejeune levantou a cabeça ao ouvir um assobio no corredor. Era o Dr. Corrigan.

       — Desculpe interrompê-lo mas não encontrei álcool no chofer do Jaguar. O guarda deve ter confundido com halitose.

       Lejeune porém não estava interessado nestas ocorrências.

       — Entre e venha dar uma olhada nisto. Corrigan apanhou a carta que o inspetor lhe estendeu. A letra era clara e pequena:

       Everest, Bournemouth

       Caro Inspetor Lejeune:

       O senhor deve se lembrar que pediu para ser informado caso eu visse o homem que seguiu o padre Gorman na noite em que o assassinaram.

       Fiquei alerta, mas não consegui vê-lo outra vez. Ontem porém fui a uma festa numa cidadezinha, atraído pelo nome da Sra. Oliver, famosa escritora policial, que segundo contava iria autografar seus livros; como sou grande fã da referida autora resolvi ir. O que encontrei, porém, para minha grande surpresa, foi o homem que eu descrevi para o senhor na noite do crime. Parece também que ele deve ter-se acidentado pois estava numa cadeira de rodas. Discretamente consegui descobrir que se tratava de um residente de Much Deeping, chamado Venables, proprietário de uma mansão chamada Priors Court. Disseram também que é um homem bastante rico.

       Espero que estas notícias sejam do seu interesse.

                Sinceramente,

                Zachariah Osborne

       — Que acha? — perguntou Lejeune.

       — Não me parece provável — respondeu Corrigan.

       — Não vamos nos deixar levar pelas aparências...

       — Este tal de Osborne não poderia ter visto pessoa alguma numa noite de nevoeiro como aquela. Você sabe muito bem que cada vez que a polícia pede uma informação sobre um desaparecido sempre vem um louco prestar declarações.

       — Mas Osborne não é desse tipo — disse Lejeune

       — Que tipo é?

       — É um farmacêutico respeitável, antiquado, e muito observador. O sonho da vida dele é poder um dia identificar um assassino que tenha comprado arsênico na sua farmácia!

       Corrigan riu.

       — Então esta carta pode ser um típico caso de pensamento mágico...

       — Talvez.

       Corrigan olhou para Lejeune com seriedade.

       — Então você acha que talvez ele tenha razão?

       — Não custa nada fazermos algumas averiguações sobre este Sr. Venables.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       — A vida no campo é outra coisa — exclamou Hermia.

       Tínhamos acabado de jantar. A nossa frente um bule de café fumegava.

       Olhei para ela surpreso. Durante meia hora eu vinha relatando minha história, que ela ouviu com interesse e sagacidade. O que mais me irritou foi o tom indulgente do comentário de Hermia.

       — Quem disse que o campo é monótono e as cidades excitantes não sabe o que é viver — prosseguiu ela. — As bruxas se refugiaram nas aldeias, e ajudadas pelos camponeses oficiam missas negras; a superstição campeia, solteironas sacodem guizos e desenham, no chão, símbolos cabalísticos. Não sei como ainda não escreveram sobre isso. Por que você não tenta?

       — Não cheio que você tenha entendido o que eu estava tentando dizer.

       — Claro que entendi, Mark. Achei maravilhoso, interessantíssimo. Parece uma página histórica ligada a uma lenda medieval.

       — Não estou interessado em história — respondi irritado — e sim, em fatos. Numa lista de nomes fico sabendo o que aconteceu a algumas dessas pessoas, mas o que acontecerá com os outros?

       — Você não está se deixando levar pela imaginação?

       — Não — respondi obstinado. — Não creio. A ameaça é verdadeira e não sou eu quem pensa assim A mulher do vigário concorda comigo.

       — Ah! A mulher do vigário — comentou Hermia com desprezo.

       — Não diga “a mulher do vigário” neste tom. Trata-se de uma senhora inteligente e culta. O que eu relatei é verdade, Hermia.

       Hermia deu de ombros.

       — Pode ser.

       — Mas você não está convencida?

       — Acho que você é muito fantasioso. Concordo que aquelas solteironas medievais acreditem no que dizem ser capazes de fazer. Acho mesmo que elas devem ser horripilantes.

       — E não sinistras?

       — Ora, Mark!

       Calei-me por uns instante. Senti minha cabeça turva por um momento, oscilando entre a luz e a escuridão. A luz irradiada por Hermia e a escuridão representada pelo Cavalo Amarelo. Afinal, ela estava iluminada pela luz elétrica, a mesma luminosidade artificial e cotidiana que ilumina todas as coisas. Minha mente voltou para o escuro.

       — Quero investigar esta história, Hermia. Vou até o fim.

       — Concordo, acho que é o certo. Deve ser muito interessante e até mesmo divertido.

       — Não tem nada de divertido — protestei. — Quero que me ajude — continuei mais calmo.

       — Ajudá-lo? Como?

       — Nas investigações. Chegaremos às últimas conseqüências.

       — Mas meu querido, no momento eu estou ocupadíssima. Tenho o artigo para o jornal, aquele trabalho sobre Bizancio e prometi a dois alunos...

       Ela prosseguiu, explicando no seu irritante tom racional. Eu nem me dei o trabalho de ouvir.

       — Sei, sei — disse eu, finalmente. — Você já está sobrecarregada demais.

       — Estou mesmo — sorriu Hermia aliviada.

       Mais uma vez notei o sorriso de indulgência maternal, como se eu fosse um menino ocupado com um novo brinquedo.

       Maldição! pensei. — Não sou uma criança, não estou procurando uma mãe, especialmente uma mãe do tipo de Hermia. Minha mãe fora encantadora e incompetente, cercada de amor e amparo por todos nós que adorávamos cuidar dela. Olhei para Hermia friamente: tão bonita, tão madura, tão intelectual, tão culta! E... tão... tão... infinitamente chata!

      

       Na manhã seguinte tentei em vão encontrar Jim Corrigan. Deixei recado que estaria em casa às seis horas, caso ele quisesse aparecer para um drinque. Como ele era um homem muito ocupado duvidei que pudesse vir mas, para minha surpresa, ele apareceu às dez para as sete. Enquanto eu preparava um uísque com soda, Corrigan deu uma olhada nos quadros e livros. Concluiu, por fim, que preferia ter nascido um imperador Mongol em vez de um médico legista.

       — Embora esses imperadores — continuou Corrigan, sentando-se — sofressem muito com as mulheres. Deste problema eu escapei...

       — Não é casado?

       — De jeito algum. Você também não, a julgar pela confortável bagunça em volta. Uma esposa arrumaria isto tudo em cinco minutos.

       Argumentei que as mulheres não eram tão más assim. Em seguida, encaminhei-me, com meu drinque, para a poltrona em frente.

       — Deve ter-se perguntado por que eu precisava falar com você tão urgentemente. Acontece que descobri algo que creio tem alguma relação com a conversa que tivemos há algum tempo...

       — Conversa? Ah!... sim... sobre o padre Gorman?

       — Isto mesmo. Para começar o nome “Cavalo Amarelo” significa alguma coisa para você?

       — Cavalo Amarelo? Cavalo Amarelo? Não, acho que não... Por quê?

       — Porque talvez tenha alguma relação com a lista de nomes que você mostrou. Estive no interior com uns amigos... um vilarejo chamado Much Deeping. Levaram-me a uma velha hospedaria chamada: O Cavalo Amarelo.

       — Espere ai! Much Deeping? É perto de Bournemouth?

       — Uns dez quilômetros mais ou menos...

       — Por acaso você conheceu um sujeito chamado Venables?

       — Conheci.

       — É mesmo? — Corrigan empinou-se na cadeira, animado. — Que coincidência. Como é ele?

       — Um homem muito estranho.

       — É mesmo? Como, estranho?

       — De muita personalidade. Embora seja vitima de paralisia infantil...

       — O quê?— interrompeu Corrigan.

       — Ele teve poliomielite há alguns anos. Ficou totalmente paralisado da cintura para baixo.

       Corrigan atirou-se para trás, quase deitando na poltrona.

       — Acabou... bem que eu achei bom demais para ser verdade...

       — Explique-se...

       — Você precisa conhecer o Inspetor Lejeune. Quando Gorman foi assassinado Lejeune pediu para as pessoas que tivessem visto o padre naquela noite se apresentarem para prestar informações. Como sempre a maioria foi inútil. Contudo, um tal de Osborne, um farmacêutico, contou que viu Gorman passar pela farmácia dele, naquela noite, seguido por um homem. É claro que na hora ele não deu maior atenção ao fato, embora mais tarde tenha descrito o tipo detalhadamente, garantindo que seria capaz de reconhecê-lo caso o encontrasse outra vez: Dias atrás, Lejeune recebeu uma carta de Osborne, que atualmente está morando em Bournemouth, dizendo que compareceu a uma quermesse e que viu o suspeito numa cadeira de rodas. Segundo Osborne o nome do tipo é Venables.

       Corrigan olhou para mim. Meneei a cabeça.

       — Venables realmente estava na quermesse. Mas não podia ter seguido o padre naquela noite, seria fisicamente impossível. Osborne se enganou.

       — Ele descreveu o suspeito com uma impressionante riqueza de detalhes. Um metro e oitenta, nariz adunco, pronunciado pomo de Adão etc. Confere?

       — Sim, é a descrição de Venables.

       — Acho que Osborne não é tão bom fisionomista quanto imagina. É óbvio que ele está confundindo Venables com algum sósia. O que tem isto tudo com a estalagem do Cavalo Amarelo?

       — Você não vai acreditar! Para dizer a verdade nem eu acredito.

       — Conte.

       Relatei minha conversa com Thyrza Grey.

       — Quanta besteira! — foi a reação imediata de Corrigan. — O que há com você?

       — Não sei.

       — Não sabe? Búzios, galos brancos, missas negras, sacrifícios humanos. Três velhas solteironas expelindo raios mortais. É loucura, loucura completa.

       — Eu sei — concordei sombriamente.

       — Não concorde comigo desta maneira, Mark. Dá a impressão de que você está certo. No fundo, você acha que está certo?

       — Posso fazer uma pergunta? Existe realmente uma teoria científica sobre o desejo de morte sempre presente no ser humano?

       Corrigan pareceu hesitar.

       — Não sou psiquiatra. Aqui entre nós acho esses caras uns loucos. Vivem formulando teorias absurdas. Nós, da Polícia, detestamos as testemunhas eruditas que sempre aparecem para defender o réu e explicar por que ele matou a velhinha e roubou o dinheiro do cofre.

       — Você prefere a teoria glandular?

       Corrigan sorriu.

       — Concordo também que sou um teórico. Mas minha teoria está apoiada numa base física. Agora esta conversa de subconsciente!

       — Você não acredita nela?

       — Claro que acredito. Mas não como esses dementes. Sei que existe um desejo de morte inconsciente mas não creio que atinja os exageros desses psiquiatras.

       — Mas existe! — insisti.

       — Por que você não compra um bom livro de psicologia?

       — Thyrza Grey diz que já atingiu o âmago desta ciência.

       — Thyrza Grey! — remendou Corrigan, com desprezo. — Como uma solteirona do interior pretende entender problemas psicológicos tão profundos?

       — Ela diz que entende.

       — E eu digo que é besteira.

       — É a reação típica das pessoas que não querem mudar suas teorias preconcebidas.

       — Quer dizer que você engoliu toda aquela xaropada?

       — Não é bem isso — retruquei. — Quero saber se existe alguma teoria cientifica baseada nesta história.

       — Teoria científica!

       — Está bem, está bem. Só estava querendo saber.

       — Daqui a pouco você vai dizer que ela é a dona da Caixa.

       — Dona da Caixa?

       — Uma dessas invencionices tipo Nostradamus. Tem gente que acredita em qualquer coisa.

       — Pelo menos diga como vai indo a lista de nomes.

       — Meu pessoal tem trabalhado nisso, mas não é fácil. Tipo do serviço rotineiro que leva tempo. Não é fácil acharmos uma pessoa só pelo sobrenome.

       — Examinemos a questão por outro ângulo. Num período relativamente curto... de um ano e meio para cá, por exemplo... cada um desses sobrenomes apareceu num atestado de óbito, não é mesmo?

       Corrigan olhou para mim espantado.

       — Não sei aonde quer chegar, mas tem razão.

       — Esses nomes, portanto, têm em comum somente a morte.

       — O que não quer dizer muita coisa, Mark. Você sabe quantas pessoas morrem diariamente? Além do mais, alguns nomes da tal lista são bastante comuns...

       — Delafontaine — disse eu. — Mary Delafontaine. Não é um nome muito comum. Morreu quinta-feira passada.

       — Como sabe? Leu no jornal?

       — Uma amiga dela me contou.

       — Não morreu de nada suspeito, segundo soube. Para dizer a verdade a causa mortis de pessoa alguma dessa lista é suspeita. Não se trata de acidentes e sim de mortes naturais: pneumonias, hemorragias cerebrais, tumores, um caso de poliomielite... como vê, nada suspeito.

       — Não é acidental, nem envenenamento. Uma doença que leva à morte. Exatamente como Thyrza Grey promete ser capaz de matar.

       — Você acha possível que essa mulher possa causar pneunomia numa pessoa que ela não conhece e que inclusive mora em outra cidade?

       — Não disse isso. Ela é quem diz que é possível. Acho fantástico e gostaria de acreditar que fosse mentira. Mas existem fatos estranhos, como a menção do Cavalo Amarelo, relacionados em conexão com o afastamento de pessoas indesejáveis. Nas redondezas vive um homem que foi reconhecido como o suspeito que seguiu o padre Gorman na noite do crime quando foi revelado ao padre um caso de “grande maldade”. Não acha muita coincidência?

       — Mas, segundo você, esse suspeito não pode ser Venables, uma vez que este senhor é paralítico.

       — Quem sabe não é uma paralisia falsa?

       — Não. Os membros não estariam atrofiados.

       — Por esse lado não poderemos prosseguir — suspirei. — Pena! Se existe uma organização que se especializa na “remoção” de pessoas, Venables seria o cabeça. É um homem riquíssimo... mas eu gostaria de saber como ficou tão rico. — Fiquei uns instantes calado, formulando meu raciocínio.

       — Essas pessoas que morreram desta ou daquela doença deixaram outras que lucraram com sua morte?

       — Sempre alguém lucra com a morte de uma pessoa. Nesses casos, porém, não houve nada que nos parecesse suspeito.

       — Sei.

       — Lady Hesketh-Dubois, como você sabe, deixou uma herança de 50.000 libras para um sobrinho e uma sobrinha. Ele vive no Canadá, e ela no Norte da Inglaterra. É verdade que ambos necessitavam do dinheiro. Thomasina Tuckerton era herdeira de uma grande fortuna; caso morresse, antes de completar vinte e um anos, o dinheiro reverteria a sua madrasta que me pareceu ser uma criatura honesta. No caso da Sra. Delafontaine a herança foi para uma prima que mora em Quênia.

       — Todos conspicuamente ausentes — comentei, com amargura.

       Corrigan fuzilou-se com os olhos.

       — Um tal de Sanford, que empacotou também, deixou uma esposa muito mais jovem que já casou outra vez. O falecido não queria dar-lhe o divórcio. Sydney Harmondsworth, que faleceu de uma hemorragia cerebral, estava sendo procurado pela policia: suspeita de chantagem. Creio que vários figurões da política ficaram satisfeitos com seu desaparecimento.

       — Você está insinuando que todas essas mortes não foram tão casuais?

       Corrigan sorriu.

       — Não esqueça que meu nome é Corrigan e também está na lista. Os Corrigan que morreram nestas três semanas não trouxeram benefícios para pessoa alguma.

       — Então quem sabe você não é o Corrigan que eles querem? Tome cuidado.

       — Obrigado. Espero que a Bruxa-Mor não me mate de úlcera no duodeno ou de gripe espanhola. Não sou tão ingênuo assim!

       — Ouça, Jim, quero investigar esta história de Thyrza Grey. Posso contar com sua ajuda?

       — Não. Não compreendo um cara inteligente como você embarcar numa xaropada dessas!

       Suspirei.

       — Você não podia usar outra palavra? Já cansei desta...

       — Besteirada, se prefere.

       — Não gostei.

       — Teimoso, hein?

       — Alguém tem que ser teimoso nesta história.

      

       Era uma propriedade nova em folha. Tão nova que ao fundo viam-se pedreiros trabalhando nos muros que envolviam os jardins da casa. No portão principal lia-se o nome da casa: Everest.

       O Inspetor Lejeune reconheceu sem dificuldade uma figura rubicunda que estava de costas para ele, ocupado no plantio de alguns canteiros. Assim que o inspetor abriu o portão o Sr. Zachariah Osborne levantou-se para ver quem era o intruso. Ao reconhecer a visita seu rosto corou de prazer. O Sr. Osborne não havia mudado quase nada com sua transferência para o campo; era o mesmo farmacêutico, só que agora estava fantasiado num macacão.

       Enxugando a careca reluzente, o Sr. Osborne aproximou-se do policial.

       — Inspetor Lejeune — exclamou, — quanta honra! Recebi sua carta mas não esperava receber sua visita. Bem-vindo ao meu castelo, bem-vindo ao Everest. Está surpreendido com o nome? Sempre me interessei pelo Himalaia. Segui passo a passo a expedição do Everest. Que triunfo para nós! E que homem admirável Sir Edmund Hilary. Que perseverança! Pessoalmente nunca passei por situações difíceis, mas admiro um homem que larga uma boa vida para se arriscar numa escalada desta natureza. Mas, entre e venha tomar um refresco.

       O Sr. Osborne conduziu o Inspetor até um bangalô decorado simplesmente, mas imaculadamente limpo.

       — Ainda não está pronto — explicou Osborne. — Freqüento muito liquidações para arranjar umas peças, às vezes valiosas, e que nas lojas custam os olhos da cara. Que deseja tomar? Um sherry? Cerveja? Chá? Posso ferver água e fazer um chá num minuto.

       Lejeune preferiu cerveja.

       — Ótimo! — exclamou Osborne retornando, em seguida, com duas canecas de estanho. — Sente-se e descanse.

       Findas as amenidades sociais o Sr. Osborne inclinou-se para o inspetor.

       — Minha informação foi de alguma utilidade?

       Lejeune procurou agir com tato.

       — De certa forma, não.

       — Que pena! Se bem que eu sei que uma pessoa, vista na rua, na mesma direção do padre Gorman, não precisaria necessariamente ser o assassino. Seria querer demais. Além disso, esse Sr. Venables é rico e muito benquisto na cidade, freqüentando sempre as melhores famílias.

       — O caso é que não pode ter sido o Sr. Venables a pessoa que o senhor viu naquela noite.

       Osborne quase pulou da cadeira.

       — Mas era! Não tenho a menor dúvida de que era. Nunca me engano com uma fisionomia.

       — Desta vez, porém, creio que se enganou — disse Lejeune. — O Sr. Venables sofreu um ataque de poliomielite. Há três anos é paralítico das pernas.

       — Poliomielite! — exclamou Osborne. — Neste caso... mas, sem querer ofender ninguém, o senhor tem algum dado médico que comprove isso?

       — Sim, tenho. O Sr. Venables é cliente de Sir William Dugdale, uma das maiores sumidades médicas da Inglaterra.

       — Claro, claro. Um médico muito conhecido. É, acho que me enganei redondamente, mas tinha tanta certeza. Desculpe incomodá-lo com tão pouco.

       — Não fique aborrecido — disse Lejeune. — Sua informação é muito valiosa. Veja bem, o homem que o senhor viu lembra muito o Sr. Venables, que é um tipo marcante e estranho. Portanto, não devem existir muitas pessoas que correspondam a esta descrição.

       — É mesmo — concordou Osborne, alegremente — Um criminoso que se parece com o Sr. Venables. Talvez nos arquivos da polícia...

       Osborne olhou ansiosamente para Lejeune.

       — Não creio que seja tão simples assim — disse o Inspetor. — O suspeito pode não ser fichado e além do mais, como o senhor disse há pouco, pode não ser necessariamente o assassino do padre Gorman.

       O Sr. Osborne ficou triste novamente.

       — Desculpe, mas eu tinha tantas esperanças! Queria ser testemunha de um crime... queria ver se a defesa conseguiria me destruir. Ah!

       Lejeune olhou para Osborne pensativo.

       — Sim? — perguntou Osborne ansioso, diante do olhar do Inspetor.

       — Por que o senhor não seria destruído?

       Osborne pareceu surpreso com a pergunta.

       — Porque tenho tanta certeza... sei, sei que o senhor me explicou que não era possível que fosse o mesmo homem. Mesmo assim...

       — Talvez o senhor esteja se perguntando por que vim hoje aqui. Além do mais, se eu tenho provas médicas de que o senhor não poderia ter visto o Sr. Venables, que posso querer?

       — É mesmo. Por que veio?

       — Porque a certeza ferrenha da sua identificação me impressionou — respondeu Lejeune. — Queria saber em que o senhor baseia sua certeza. A noite era de nevoeiro, lembra-se? Já estive na sua farmácia, parado no lugar em que o senhor parou naquela noite. Pois bem, numa noite de neblina me parece que seria difícil, quase impossível, distinguir tão precisamente as feições de uma pessoa.

       — O senhor tem razão até um certo ponto. A neblina estava começando a baixar, em camadas. Certas partes da rua, portanto, ainda estavam claras. Quando eu vi o padre Gorman, andando depressa, vi nitidamente também o homem que o seguia. Por coincidência, quando ele parou, debaixo de um poste, para reacender o cigarro, seu perfil se delineou nítido como à luz do dia: o nariz, o queixo, o enorme pomo de Adão. Que homem estranho! pensei. Nunca o tinha visto antes, pois me lembraria dele caso fosse meu freguês. Logo eu...

       — Entendo — interrompeu o Inspetor.

       — Um irmão? — sugeriu Osborne. — Um irmão gêmeo, quem sabe? Seria o ideal.

       — Ideal? — sorriu Lejeune, sacudindo a cabeça. — Estes casos só acontecem no cinema, na vida real porém...

       — Acho que tem razão, mas quem sabe um irmão ou um parente próximo?

       — Não temos conhecimento de que o Sr. Venables tenha um irmão — respondeu Lejeune.

       — Não tem conhecimento, o senhor disse? — perguntou Osborne, vagarosamente.

       — Embora ele tenha passaporte inglês, nasceu no estrangeiro e só veio à Inglaterra com onze anos.

       — No fundo sabe-se pouco sobre ele e sua família, não é?

       — Com efeito — concordou Lejeune. — Não é fácil conhecer bem os antecedentes do Sr. Venables, a não ser que alguém vá diretamente ao próprio... e infelizmente não temos razão para fazê-lo.

       Lejeune falou num tom deliberado, sem dar a entender a Osborne que a polícia possuía meios de descobrir a origem de um suspeito.

       — De maneira que — prosseguiu Lejeune, levantando-se, — se não fosse pela evidência física o senhor teria certeza da sua identificação?

       — Teria — respondeu Osborne, prontamente

       — Tenho mania de guardar fisionomias. Já surpreendi muitos fregueses desta maneira. Como vai a asma? eu perguntava a uma freguesa que não via há anos. Ela naturalmente se espantava! Ou então: A senhora esteve aqui em março do ano passado com uma receita do Dr. Hargreaves. A criatura naturalmente ficava admirada e além do mais eu lucrava com isso. As pessoas gostam de ser lembradas, embora eu não fosse tão bom para guardar nomes. Há anos que venho fazendo isso... afinal, se os membros da família real podem conseguir isso, eu também achei que poderia. Depois de certo tempo torna-se automático, e a gente nem precisa se esforçar.

       Lejeune suspirou.

       — Gostaria de ter uma testemunha assim — disse, — a identificação geralmente é um negócio perigoso. As pessoas são muito descuidadas e dizem coisas como: Alto, eu acho, de aparência comum, olhos azuis ou cinzas, talvez castanhos. Capa de chuva cinza, ou será que era azul?

       Osborne riu.

       — Não são de grande valia, não é?

       — Para dizer a verdade, uma testemunha como você seria uma dádiva dos céus.

       Osborne sorriu feliz.

       — É um dom — disse ele, satisfeito. — Um dom cultivado, note bem! Se colocarem uma porção de objetos numa bandeja e em seguida me vendarem os olhos, serei capaz de repetir todos os objetos que vi. Nas festas quando faço esta proeza sou muito aplaudido.

       Os dois riram.

       — Estou satisfeito com esta casa e com os vizinhos. Há anos que venho esperando por isso, mas, aqui entre nós, sinto falta do trabalho. Sempre alguém entrando ou saindo; tipos para estudar. Aqui tenho meu jardim e alguns hobbies: colecionar borboletas, observar os pássaros, mas nunca pensei que fosse sentir falta de gente. Não me interesso por viagens. Quando estive na França só passei um fim de semana e francamente não gostei. Para mim não há lugar como a Inglaterra. Em Paris não sabem fritar ovos com presunto.

       Osborne deu um suspiro.

       — Como o senhor vê, a natureza humana é muito complexa. Não via hora de me aposentar e agora já estou com vontade de abrir uma pequena farmácia em Bournemouth. Nada que me prenda o dia inteiro, mas que seja o suficiente para que eu me sinta útil. O senhor terá o mesmo problema quando se aposentar.

       Lejeune sorriu.

       — A vida de um policial não é tão romântica quanto imagina. O senhor vê o crime do ponto de vista de um leigo. A maior parte dos casos é pura rotina; não passamos o dia perseguindo criminosos ou investigando pistas misteriosas. Na verdade, meu caro Sr. Osborne, é um trabalho bastante monótono.

       — O senhor é quem sabe — disse Osborne, num tom incrédulo. Adeus, Inspetor, e desculpe não poder ajudá-lo. Em todo caso, estou sempre às ordens.

       — Não se preocupe que se precisar eu o procurarei — prometeu Lejeune.

       — O dia da quermesse pareceu-me uma ocasião rara... — murmurou Osborne tristemente.

       — Compreendo, mas infelizmente o laudo médico sobre Venables é enfático.

       — Bem — disse Osborne.

       Lejeune não pareceu ouvir, pois retirou-se fechando o portão. Osborne ficou na janela, olhando para fora.

       — Laudo médico! — murmurou. — Quem é que acredita em médico? Se ele conhecesse os médicos tão bem quanto eu! A polícia é de uma inocência!

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Primeiro Hermia, agora Corrigan. E daí? Que importância tinham eles? Que me chamassem de louco! Para mim aquela xaropada era verdade. Eu tinha sido hipnotizado por uma vigarista chamada Thyrza Grey e passei a acreditar em todas as loucuras possíveis!

       Resolvi esquecer tudo. Afinal, não podia continuar perdendo tempo, mas uma frase continuava a ecoar na minha mente: — Você precisa agir! Era a voz da Sra. Dane Calthrop.

       Fácil falar.

       — Precisa de ajuda! — disse-me ela.

       Precisei de Hermia, de Corrigan, mas eles não me ouviram. Não podia contar com amigo algum. A não ser que...

       Fiquei de pé, uns instantes, pensando.

       Resolvi telefonar para a Sra. Oliver.

       — Alô... aqui quem fala é Mark Easterbrook.

       — Sim, como vai?

       — Como é o nome daquela moça que estava conosco na quermesse? Lembra-se?

       — Creio que sim... Ginger, eu acho.

       — Até aí eu também me lembro. Espero que ela tenha um sobrenome.

       — Claro que tem! Só que eu não sei qual é! Hoje em dia não se usa mais isso. Aliás, eu a conheci naquele dia. Acho melhor você telefonar para Rhoda.

       Não gostei da idéia; não sei por que, senti vergonha.

       — Fico sem graça... — disse eu.

       — É muito simples — interveio a Sra. Oliver, — Diga que perdeu o endereço dela e que lhe prometeu enviar um dos seus livros; ou então que quer saber o nome da loja que vende aquele caviar divino; ou que precisa devolver um lenço que ela lhe emprestou no dia em que correu sangue do seu nariz; ou que precisa do endereço para uma milionária que quer restaurar um quadro. Qual destas desculpas você acha melhor? Se quiser, posso sugerir pelo menos mais uma dúzia...

       — Muito obrigado, não é necessário.

       Desliguei. Telefonei para Rhoda.

       — Ginger? — perguntou Rhoda. — Mora em Calgary Place, n.° 45. Espere aí que vou dar o telefone... é 35787. Anotou?

       — Sim, obrigado. Qual é o sobrenome dela?

       — É Corrigan. O nome completo dela é Ginger Katherine Corrigan. O que você disse?

       — Nada... obrigado, Rhoda.

       Pareceu-me uma estranha coincidência. Corrigan! Seria um aviso? Disquei o número.

      

       Ginger encontrou-se comigo para tomar um drinque num bar chamado Cacatua Branca. Confirmei minha impressão sobre ela: uma bela ruiva, sardenta, de olhos verdes sempre alertas.

       — Levei um certo tempo para descobri-la — disse eu. — Não sabia seu sobrenome, seu endereço ou seu telefone. Estou com um problema.

       — Minha empregada disse que pela sua voz tinha certeza de que você estava em apuros.

       — Não é bem isso. Ouça...

       Contei em poucas palavras o mesmo que havia relatado a Hermia. Como temesse um sorriso de indulgência ou um incrédulo espanto refletido nos verdes olhos, evitei olhar para ela. O conteúdo da história me pareceu mais absurdo ainda, e achei que realmente só a Sra. Dane Calthrop poderia me compreender. Disfarçadamente fiquei desenhando com um garfo a toalha de plástico.

       — É tudo? — perguntou Ginger, vivamente.

       — É — concordei.

       — O que pretende fazer?

       — Ainda não sei, mas não posso ficar parado enquanto uma organização dessas satisfaz uma clientela criminosa.

       — O que acha que posso fazer?

       Tive que me conter para não beijá-la. Ginger calmamente continuava sorvendo seu Pernod. Deste momento em diante não me senti mais só.

       — Você vai ter que descobrir tudo — disse ela, depois de uma pausa.

       — Concordo, mas como?

       — Acho que existem dois caminhos e talvez eu possa ajudá-lo.

       — Mas, e o seu emprego?

       — Não me ocupa o dia inteiro — respondeu ela. — Esta tal de Poppy deve saber algo mais... não tenho a menor dúvida...

       — Eu sei que sabe, mas quando tentei averiguar ela se assustou.

       — Comigo seria diferente — sorriu Ginger. — Para mim ela diria coisas que não contaria a você. Procure arranjar um encontro, para irmos ao teatro ou um jantar. Se não lhe atrapalhar financeiramente, é claro.

       Assegurei-lhe que meus problemas eram outros.

       — Quanto a você — prosseguiu Ginger, — creio que deve partir do caso de Thomasina Tuckerton.

       — Como, se ela morreu?

       — E alguém queria que ela morresse... se é que sua teoria tem algum fundamento. Se foi combinado no Cavalo Amarelo existem duas suspeitas. A madrasta ou a moça com quem ela brigou no restaurante. Qualquer uma das duas pode ter contratado os serviços do Cavalo Amarelo. Como era o nome da outra moça?

       — Acho que era Lou.

       — Uma loura de cabelo cinza, alta, bem servida de busto?

       Concordei com a descrição.

       — Acho que sei quem é. Lou Ellis, que por sinal também tem bastante dinheiro.

       — Não parecia.

       — É moda hoje em dia não parecer rica. De qualquer maneira, Lou poderia pagar a tarifa do Cavalo Amarelo. Imagino que eles não trabalhem de graça.

       — Não creio.

       — Enquanto isso, você vai visitar a madrasta...

       — Não sei onde mora nem...

       — Luigi deve saber. Além do mais, você viu o comunicado da morte de Thomasina no jornal. Basta procurar nos arquivos do jornal.

       — Tenho que arranjar um pretexto para procurar essa senhora.

       Ginger garantiu que não seria difícil.

       — Você é um homem conhecido — continuou ela, animadamente. — Um historiador, um conferencista, um autor. A Sra. Tuckerton ficará impressionada e feliz de conhecê-lo.

       — Sob que pretexto?

       — Alguma peça de interesse da casa dela, por exemplo? — sugeriu Ginger. — Deve haver algo antigo ...

       — Mas eu sou historiador.

       — Ela não precisa saber. Além do mais, para a maioria das pessoas qualquer objeto com mais de cem anos passa a ter interesse histórico ou arqueológico. Talvez um quadro? Deve haver um quadro qualquer. Enfim, você tenta marcar uma entrevista, encanta a mulher com seu charme e casualmente refere-se à filha dela, ou melhor, à enteada. De repente, sem maiores explicações, faz menção sobre o Cavalo Amarelo. Seja até um pouco sinistro, se quiser.

       — E daí?

       — Daí observe as reações. Se falar no Cavalo Amarelo e ela tiver culpa no cartório, duvido que não demonstre coisa alguma...

       — Caso demonstre, que faço eu?

       — O importante é sabermos se estamos na pista certa. Quando tivermos certeza teremos que agir de outra forma. Além do mais — prosseguiu Ginger, — por que será que Thyrza Grey falou tão abertamente com você?

       — Porque é louca?

       — Não é só por isso. Por que escolheu você em particular? Tinha tanta gente. Deve haver uma razão.

       — Por exemplo?

       — Espere aí, deixe-me pensar. Ficamos uns instantes calados.

       Suponha que Poppy saiba vagamente o que acontece no Cavalo Amarelo, não por ser uma participante da organização, mas porque ouviu alguma conversa. Aliás, ela parece ser o tipo de pessoa de quem não se toma muito conhecimento por ter cara de débil mental. Pois bem, quem sabe alguém ouviu a conversa que vocês tiveram no restaurante? E a ameaçou? No dia seguinte, quando você foi procurá-la, ela já estava apavorada... mas o que deve ter intrigado a organização é o seu interesse por eles. Eles sabem que você não é da Polícia, portanto o mais provável é que você talvez seja um possível cliente.

       — Mas com certeza...

       — É o mais lógico. Você ouviu um boato e quer descobrir a fonte para poder usufruir dos seus benefícios. Aparece numa quermesse, é levado ao Cavalo Amarelo, e quem sabe não forçou a ida? Em seguida, o que acontece? Thyrza Grey lança mão do mostruário de vendas!

       — Pode ser — concordei. — Você acha que ela é capaz de matar a longo alcance?

       — Para dizer a verdade, não. Mas as coisas mais estranhas acontecem. Veja o hipnotismo, por exemplo: você manda uma pessoa dar uma mordida numa vela. No dia seguinte, sem saber por que, a pessoa às quatro horas da tarde levanta-se e dá uma mordida na vela! São coisas estranhas... quanto a Thyrza, não creio que seja capaz, mas Deus nos livre se ela tiver razão.

       — É exatamente o meu ponto de vista.

       — Vou averiguar o mais que puder sobre Lou — disse Ginger. — Sei onde encontrá-la. O primeiro passo, porém, é Poppy.

       Não foi difícil marcar o encontro. Três dias depois nos encontramos para ir ao teatro, David com Poppy a tiracolo, Ginger e eu. Mais tarde fomos jantar no Fantasie, onde Ginger e Poppy depois de horas no toalete reapareceram felicíssimas. Durante o jantar não houve discussões controvertidas, segundo sugestão de Ginger. Finalmente, nos despedimos amigavelmente e eu levei Ginger para casa.

       — Não tenho muito que contar — disse ela. — Estive com Lou, ontem. O causador da briga foi Gene Pleydon, um tipo indesejável, que faz muito sucesso com as mulheres. Parece que estavam de romance quando Tommy apareceu e, como era mais rica, Gene largou Lou no ato, o que naturalmente a enfureceu. Quanto à briga, ela disse que não passou de uma forte discussão.

       — Forte discussão!? Ela arrancou os cabelos de Tommy pela raiz!

       — Estou contando a versão de Lou. É uma moça franca que fala dos seus casos para quem quiser ouvir. Tem um novo caso, por quem está loucamente apaixonada, portanto não parece ser cliente do Cavalo Amarelo. Além do mais, quando falei da estalagem, ela não tomou conhecimento. Creio que podemos eliminá-la da lista de suspeitos. Luigi, por seu lado, também não achou a briga muito séria; acha que Tommy estava realmente interessada em Gene, no que era correspondida. E a madrasta?

       — Está no exterior, deve voltar amanhã. Mandei minha secretária escrever uma carta, marcando um encontro.

       — Ótimo. Espero que tudo dê certo.

       — Será?

       — Uma das pistas vai funcionar — respondeu Ginger entusiasmada. — Outra coisa, segundo você me disse, o padre Gorman foi assassinado porque ouviu a confissão de uma mulher. Que aconteceu com esta mulher? Morreu? Quem era ela?

       — Morreu mas não sei coisa alguma sobre ela. Acho que se chamava Davis.

       — Não pode descobrir mais?

       — Vou ver.

       — Poderemos descobrir o que ela sabia quando morreu.

       — Entendo.

       No dia seguinte telefonei para Jim Corrigan.

       — Deixe ver... conseguimos algumas informações sobre a mulher... seu nome de solteira era Davis... tenho uns apontamentos sobre a investigação. Cá estão! O nome dela de casada era Archer, foi casada com um larápio de quem se divorciou. Voltou a usar o nome de Davis.

       — Que tipo de larápio era Archer? Onde se encontra atualmente?

       — Nada de importante. Roubava objetos das lojas. Preso várias vezes. Atualmente se encontra no cemitério, morto.

       — Por esse lado não iremos longe. Continue.

       — A firma em que a Sra. Davis trabalhava, por ocasião do seu falecimento, chama-se R.C.C. (Reação Classificada de Consumidores) e lá não souberam informar muita coisa nem sobre ela nem sobre o seu passado.

       Agradeci e desliguei.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Ginger telefonou três dias depois.

       — Tome nota — disse ela — de um nome e um endereço.

       — Pode falar.

       — O nome é Bradley e o endereço é Prédio Municipal, 78, em Birmingham.

       — E o que vem a ser isto?

       — Como é que eu vou saber? Duvido que Poppy saiba...

       — Poppy? Este é...

       — Consegui arrancar este endereço dela, depois de muito custo.

       — Que método você empregou?

       Ginger riu.

       — Conversa de mulher, você está por fora. Geralmente as mulheres confiam nos membros do próprio sexo.

       — Como se fosse um sindicato?

       — Mais ou menos. Almoçamos juntas e eu falei de minha vida amorosa. Inventei um homem casado com uma megera católica que não lhe daria o divórcio e transformou a vida dele num inferno. Além do mais, ela é inválida, cheia de doenças mas que não vai morrer tão cedo; aliás, seria até bom para ela que morresse. Aí eu disse que tinha ouvido falar no Cavalo Amarelo, mas que não sabia como dar o primeiro passo. Será que eles cobram muito caro? Poppy tinha ouvido dizer que os preços eram exorbitantes. Aí eu entrei com uma conversa sobre um tio-avô que vai deixar uma fortuna para mim... o que aliás é verdade, apesar de eu não ter o menor interesse em que ele morra já. Perguntei a Poppy se o pessoal do Cavalo Amarelo receberia uma garantia. Só sei que ela apareceu com este nome e este endereço. Acho bom você tentar...

       — Fantástico — murmurei.

       — Não é mesmo?

       Ficamos uns instantes calados, ocupados com estas novas revelações.

       — Ela falou sem medo? Abertamente? — perguntei, incrédulo.

       — Você não entende — respondeu Ginger, impaciente. — Contar uma coisa dessas para uma amiga não tem importância. Afinal, como é que eles vão negociar se não fazem propaganda? Na certa estão precisando de novos clientes, de maneira que precisam fazer publicidade.

       — Que loucura! Como é possível acreditarmos nisso?

       — Também acho que somos loucos. Mas só quero saber se você vai ou não falar com o Sr. Bradley?

       — Claro que vou — respondi. — Se é que ele realmente existe.

       Achei a história de Ginger incrível, mas logo descobri que era verdadeira. Cheguei sem maiores dificuldades ao Prédio Municipal e descobri que o Sr. Bradley ocupava uma sala no terceiro andar. Numa porta de vidro lia-se, em letras pretas:

                C. R. BRADLEY

                AGENTE

                    pode entrar

       Obedeci.

       Penetrei numa pequena saleta. Ao fundo uma porta entreaberta.

       — Entre, entre, por favor — comandou uma voz.

       Entrei num escritório espaçoso, mobiliado com uma escrivaninha, duas poltronas, um arquivo e um telefone. Atrás da mesa o Sr. Bradley, um homem baixo e moreno, de olhar brilhante e perspicaz, vestido num correto terno escuro. O retrato escrito da honestidade e da correção profissional.

       — Queira fechar a porta, sim? — pediu ele, agradavelmente. — Sente-se nesta cadeira, é mais cômoda. Aceita um cigarro? Não? Em que posso ser-lhe útil?

       Olhei para ele sem saber como principiar. Não tinha a menor idéia do que deveria dizer. Creio que o desespero me fez partir para um ataque frontal.

       — Quanto custa? — perguntei.

       Ele pareceu levar um susto, notei com satisfação, mas sua calma e frieza o mantiveram impassível.

       — Bem, bem — disse o Sr. Bradley, — o senhor parece que não gosta de perder tempo...

       Mantive minha posição.

       — Qual é a resposta?

       — Não é assim que vamos conseguir chegar a um acordo — retrucou ele, sacudindo a cabeça, num tom de reprovação. — Devemos observar o protocolo.

       — Qual é o protocolo?

       — Ainda não nos apresentamos, não é verdade? Não sei o seu nome.

       — No momento não estou com vontade de dizer meu nome.

       — Cuidado?

       — Sim.

       — A precaução é uma excelente qualidade, mas não é prática. Quem o mandou aqui? Quem foi nosso contato?

       — Também não posso dizer. Um amigo de um amigo que conheceu um amigo seu...

       — Geralmente trabalho com muitos clientes desta maneira — disse Bradley, meneando a cabeça. — Alguns com problemas bastante delicados. O senhor sabe qual é minha profissão, não é?

       Bradley não esperou minha resposta.

       — Sou um agente turfista — continuou ele. — O senhor se interessa por cavalos? Houve uma ligeiríssima pausa antes de pronunciar a última palavra.

       — Não costumo jogar — respondi inseguro, sem querer me comprometer.

       — É um esporte cheio de possibilidades. Veja as corridas, a caça, a criação. Eu, particularmente, me interesso por qualquer tipo de aposta...

       Bradley calou-se por um momento e depois acrescentou num tom casual, casual demais, eu diria:

       — O senhor está interessado por algum cavalo especificamente?

       Sacudi os ombros e resolvi queimar meu último cartucho.

       — Um cavalo amarelo...

       — Muito bem, excelente. Apesar de parecer um tipo interessado em outros cavalos... não se inquiete, por favor, não há motivo!

       — É fácil falar — disse eu rudemente.

       O Sr. Bradley tornou-se mais solícito ainda.

       — Posso compreender muito bem seu estado de ansiedade. Posso garantir também que não há razão para seu nervosismo. Eu, que sou advogado, ex-advogado, é claro, seria o primeiro a desaconselhá-lo de qualquer atividade ilegal. Só recomendo coisas seguras, legais. Trata-se de uma aposta e não há lei no mundo que proíba um homem de apostar no que quiser, seja na chuva de amanhã, na ida de um russo para a Lua ou nos gêmeos que talvez sua mulher esteja esperando. Pode apostar também que a Sra. B morrerá antes do Natal ou que a Sra. C vai viver muitos anos ainda. A aposta é feita, um julgamento puramente subjetivo e pessoal. Nada mais simples.

       Senti-me como um paciente duvidoso da habilidade de um cirurgião. Não pude deixar de admirar a competência profissional de Bradley.

       — Para falar a verdade — disse eu, vagarosamente, — não conheço bem o funcionamento do Cavalo Amarelo.

       — E isso o preocupa? Na verdade preocupa a maioria dos nossos clientes. Existem mais coisas no céu e na terra, Horácio etc. etc.1 Para ser franco, nem eu conheço bem, mas sei que dá sempre ótimos resultados...

       — Se o senhor pudesse ser mais explícito...

       Mantive minha posição: cuidadoso, angustiado e medroso. Obviamente uma atitude bastante comum por parte da clientela do Sr. Bradley.

       — O senhor conhece o lugar?

       Seria estúpido negar.

       — Conheço... estive lá com uns amigos.

       — Uma estalagem maravilhosa, repleta de interesse histórico. Elas se esmeraram na restauração. O senhor conheceu minha amiga Thyrza Grey?

       — Sim, claro. Achei-a uma mulher extraordinária.

       — Não é mesmo? Não é mesmo? O senhor disse o adjetivo exato. Uma mulher extraordinária, dona de poderes extraordinários.

 

1 Citação do Hamlet de Shakespeare.

      

       — Mas é impossível acreditar-se nela!

       — Exatamente. Por isso mesmo funcionamos tão bem. Por ela dizer que torna possível o impossível. Imagine esta conversa num tribunal...

       Os olhos de Bradley faiscaram de contentamento.

       — Num tribunal — repetiu ele, destacando as palavras, — tudo seria considerado ridículo. Se esta mulher declarasse que é capaz de matar por controle remoto ou pelo poder da vontade a confissão seria invalidada. Mesmo se fosse verdade (mas nós que somos homens inteligentes sabemos que não é) o caso não poderia ser registrado legalmente, pois o assassinato por controle remoto não é assassinato, é fantasia! A beleza da nossa organização está justamente nesta discrepância.

       Compreendi que Bradley estava tentando me tranqüilizar. Um assassinato cometido através de poderes ocultos não é um assassinato para um tribunal inglês; já se eu contratasse um sicário para matar alguém seria preso como cúmplice e assessório ao crime. Agora, o fato de contratar Thyrza Grey para eliminar alguém, empregando o ocultismo, não poderia me incriminar de forma alguma.

       — Mas, com os demônios — explodi. — Não é possível.

       — Concordo com o senhor plenamente. Thyrza Grey é uma mulher extraordinária, dona de poderes extraordinários, mas é impossível acreditarmos nela. Como o senhor mesmo disse, é fantástico! Impossível, portanto, no século XX, acreditarmos que uma pessoa, numa estalagem, no interior da Inglaterra, através de um médium, emita ondas curtas capazes de causar a morte ou mesmo uma doença numa vítima que se encontra em Londres ou Capri.

       — Mas ela diz que é capaz!

       — Pois não. Ela é irlandesa e eles são conhecidos pelos poderes ocultos. Entre nós o que eu acredito, e acredito piamente — disse Bradley, sacudindo o dedo para mim, enfaticamente, — é que Thyrza Grey sabe de antemão quando uma pessoa vai morrer. É um dom.

       Bradley reclinou-se na poltrona e ficou um instante me observando.

       — Faça de conta que o senhor, por exemplo, deseja saber quando sua tia-avó Eliza vai morrer. Um dado importante e útil de se ter conhecimento por razões financeiras. Sabe-se lá se a pobre Eliza ainda vai durar mais dez anos alimentada pelos médicos? Apesar de o senhor adorar sua tia, seria útil saber quando ela passará desta para melhor.

       Bradley fez uma pausa para melhor apreciar o efeito dás suas palavras.

       — É aí que eu entro. Sou um apostador, disposto a apostar qualquer coisa, dentro dos meus limites, é claro. O senhor me procura e naturalmente por delicadeza de sentimentos hesita em apostar sobre a duração da vida de um ente querido. Portanto, formulamos a aposta da seguinte forma: o senhor aposta que sua tia Eliza estará viva e feliz até o fim do ano e eu aposto que não. — Os olhos brilharam novamente.

       — Nada de ilegal, não é? Simples! Podemos até discutir o assunto, num bar. Eu acho que tia Eliza está fadada a morrer breve, o senhor acha que não. Eu digo que não dou quinze dias para a publicação da nota de falecimento, o senhor discorda. Se tiver razão eu pago a aposta, se eu tiver razão o senhor paga.

       Olhei para Bradley. Tentei imaginar como agiria um homem que desejasse a morte da tia. Em seguida imaginei-me vítima de um chantagista, um sanguessuga que vinha me arrancando dinheiro há anos. Eu queria matá-lo, mas não tinha coragem... quando falei novamente estranhei o tom convicto da minha voz.

       — Quais são os termos?

       O Sr. Bradley transformou-se num risonho e saltitante homem de negócios.

       — Depende de vários fatores, baseando-se na quantia que a pessoa pretende receber. Às vezes, também levamos em conta as posses do cliente. Um marido indesejável ou um chantagista, por exemplo, estão valorizados na proporção que o cliente pode pagar. Devo deixar claro, porém, que não costumo apostar com clientes pobres, a não ser nos casos citados.

       O Sr. Bradley deu um suspiro como que se desculpando do lado pouco filantrópico da sua organização.

       — No caso da sua tia Eliza, por exemplo, o preço depende da herança que ela vai deixar. Os termos, portanto, são a combinar, uma vez que ambos lucraremos. Devo adiantar que nossa margem de apostas é na proporção de quinhentos a um.

       — Quinhentos a um? É bastante alta.

       — Nossos preços também são altos. Caso tia Eliza tivesse seus dias contados e o senhor soubesse disso não haveria razão para me procurar. Uma base de 5.000 libras não é uma aposta muito cara quando se tem em vista muito mais.

       — E se o senhor perder?

       O Sr. Bradley deu de ombros.

       — Seria uma pena. Só me restaria pagar.

       — Caso contrário, a despesa é minha. E se eu não quiser pagar?

       O Sr. Bradley recostou-se na poltrona, semicerrando os olhos.

       — Não aconselho esta medida — disse ele suavemente. — Realmente não aconselho.

       Apesar do tom de voz ter sido suave, senti um arrepio na espinha. Uma terrível ameaça estava explícita nas suas palavras.

       — Preciso de tempo para pensar — disse eu, levantando-me.

       O Sr. Bradley reverteu ao papel de bondoso e compreensivo corretor.

       — Claro, não há pressa. Se quiser estamos aqui prontos para lhe atender. Não se preocupe conosco, pense bem.

       Saí com estas palavras ecoando nos ouvidos.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Resolvi procurar a Sra. Tuckerton, enfrentando minha natural timidez. Finalmente, cedi à insistência de Ginger, apesar de achar que não estava devidamente preparado para a tarefa. Ginger, porém, sempre que lhe convinha, demonstrava grande eficiência e determinação.

       — Ouça, não há com que se preocupar. O construtor da casa foi Nash e é uma das poucas residências que ele projetou em estilo gótico.

       — E por que então eu vou desejar ver semelhante raridade?

       — Porque você vai escrever um artigo ou um livro sobre as influências arquitetônicas na vida moderna. Uma coisa dessas...

       — Não acho fácil de engolir — protestei.

       — Não seja tolo — insistiu ela. — Em arte ou literatura podem-se criar as teorias mais absurdas; se duvidar posso lhe mostrar um tratado sobre a Origem da Besteira.

       — Por isso acho você mais qualificada do que eu para fazer essa visita.

       — Aí é que se engana — replicou Ginger. — A Sra. Tuckerton, se for desconfiada, recorrerá a um catálogo de historiadores e descobrirá seu nome O meu ela não encontraria!

       Apesar de vencido pela argumentação, continuei relutante.

       Quando voltei da incrível entrevista com Bradley reuni-me com ela para confabularmos. Ginger, porém, achou tudo muito natural.

       — Além do mais, dissipa nossas dúvidas — ajuntou ela. — Agora sabemos que existe uma organização para eliminar parentes ricos...

       — Através do ocultismo — concluí.

       — Não seja sarcástico. Não pense que só porque Sybil usa aqueles colares ou porque o Sr. Bradley não seja um astrólogo que este pessoal não possui uma fórmula mágica qualquer...

       — Se está tão convencida, por que preciso visitar a Sra. Tuckerton?

       — Não custa nada termos mais um dado — respondeu Ginger. — Sabemos o que Thyrza Grey diz ser capaz de fazer; sabemos como funciona a parte financeira. Agora precisamos saber o comportamento do cliente.

       — E se a Sra. Tuckerton não der mostras de ter sido uma cliente?

       — Teremos que partir para outra.

       — E se eu falhar?

       Ginger tentou me encorajar.

       Finalmente cheguei ao palácio semigótico da Sra. Tuckerton. Realmente o estilo era completamente diverso da obra do arquiteto. O único porém é que o livro prometido sobre a obra de Nash não chegara a tempo, obrigando-me a fazer a visita completamente despreparado para a entrevista.

       — Sr. Easterbrook — perguntou o criado. — A Sra. Tuckerton o está aguardando.

       Fui conduzido a uma sala de visitas ricamente decorada. Imediatamente senti uma desagradável sensação: tudo muito caro mas de péssimo gosto. Se não tivessem tido tanta preocupação em ostentar riqueza, seria uma sala simpática. Uma série de quadros dos quais somente dois possuíam algum valor. Um excesso de brocado amarelo completava a opulência do recinto. Minhas conjeturas estéticas foram interrompidas pela entrada da Sra. Tuckerton. Levantei-me com alguma dificuldade das profundezas de um sofá forrado de amarelo-ouro. Não sei descrever o que esperava encontrar, mas senti um certo desapontamento. Diante de mim, estava uma senhora de meia-idade, parecida com todo o mundo, e sem o menor vestígio de maquiavelismo. Não se tratava de uma senhora interessante, nem bondosa. Os lábios, apesar do excesso de batom, eram finos e severos; o queixo ligeiramente recuado; os olhos, de um azul claro, davam a impressão de avaliar o preço de qualquer objeto colocado à frente. Era uma mulher que certamente dava gorjetas pequenas e pensava duas vezes antes de abrir a bolsa. Contrariando o tipo, a Sra. Tuckerton vestia se com esmero e cuidado.

       — Sr. Easterbrook? — perguntou ela, obviamente encantada com a visita. — Que prazer! Imagine estar interessado na minha casa. É claro que sabia que foi construída por John Nash; meu marido não se cansava de repetir, mas nunca pensei que pudesse interessar estudiosos famosos como o senhor.

       — Na verdade, Sra. Tuckerton — balbuciei, — como é de um estilo completamente diverso da obra dele...

       Ela interrompeu minha peroração.

       — É pena nada entender sobre o assunto. Real-mente não sei coisa alguma de arquitetura ou arqueologia. Espero que minha ignorância não vá atrapalhar.

       Quase respondi que a falta de conhecimento por parte dela era exatamente o que eu queria.

       — Porém — continuou a Sra. Tuckerton — sempre achei este tipo de coisa bastante interessante.

       Expliquei-lhe que nós estudiosos geralmente éramos indivíduos monótonos e sem imaginação. A Sra. Tuckerton protestou, dizendo que era mentira. Em seguida perguntou-me frontalmente se eu desejava tomar chá antes ou depois de visitar a casa.

       Não esperava tomar chá, mas não pude recusar. Aceitei, para depois da visita.

       Como ela falou o tempo todo, não me senti obrigado a emitir apreciações arquitetônicas.

       A Sra. Tuckerton, no meio da conversa, comentou que estava para vender a casa.

       — Ficou grande demais para mim, depois da morte do meu marido. Os corretores fizeram a avaliação a semana passada e parece que já arranjaram um comprador.

       — Também não gostaria — continuou ela — que o senhor visse a casa vazia. A personalidade de uma casa está na vivência dos ocupantes, não acha?

       Sinceramente preferia a casa vazia, mas não poderia ser tão franco. Perguntei se ela pretendia continuar morando no mesmo bairro.

       — Para dizer a verdade, não sei. Acho que vou viajar um pouco, em busca do Sol. Odeio nosso clima. Minha idéia é passar o inverno no Egito, onde já estive há dois anos. Que país! O senhor, é claro, já o conhece.

       Respondi que não sabia nada sobre o Egito.

       — O senhor certamente é um homem modesto — sorriu ela, num tom vago. — Aqui é a sala de jantar octogonal. Não é assim que se diz?

       Confirmei suas palavras, admirando a proporção da sala.

       Por fim, terminamos a visita e retornamos à sala de visitas. A Sra. Tuckerton pediu o chá. Um criado, mal-humorado, entrou com uma bandeja. Notei que o bule de prata vitoriano precisava ser polido.

       — Hoje em dia os empregados são um problema! — suspirou a dona da casa. — Depois que meu marido morreu, o casal que estava com ele há anos quis ir embora. Disseram que iam se aposentar mas eu descobri que na verdade tinham arranjado outro emprego, percebendo um salário altíssimo. Pessoalmente acho um absurdo gastar-se uma fortuna com empregados! O senhor já imaginou quanto eles ganham tendo casa, comida e roupa lavada?

       Exatamente como eu pensava. Os olhos claros, a boca cerrada, enfim, os indícios certos da avareza.

       Não foi difícil fazê-la falar. A Sra. Tuckerton adorava falar e eu, simplesmente deixando-a livre, consegui saber e apreender mais do que ela certamente desejaria que eu soubesse.

       Casou-se com Thomas Tuckerton, um viúvo, cinco anos atrás. Ela era “muito, muito mais jovem” do que ele. Encontraram-se num hotel de veraneio onde ela era recepcionista. Ele tinha uma filha que estava internada no colégio.

       — O pobre Thomas era tão só... tinha perdido a mulher e sentia muita falta dela.

       A Sra. Tuckerton continuou descrevendo sua imagem para mim: uma senhora bondosa, que teve pena de um velho solitário. Falou da precária saúde do falecido e da devoção com que ela o tratou.

       — É claro que no fim eu acabei tendo que abrir mão até dos meus amigos...

       Será que Thomas Tuckerton desconfiava dos amigos dela? Talvez fosse esta a razão para deixar um testamento tão estranho. Ginger tinha ido ao cartório e conseguido uma cópia: Boas quantias aos velhos empregados e alguns afilhados. Uma renda mensal razoável mas não generosa à esposa enquanto fosse viva. O capital e os dividendos para a filha Thomasina Ann, quando se casasse ou completasse vinte e um anos. Caso morresse solteira, a herança reverteria para a madrasta.

       O prêmio era grande e a Sra. Tuckerton parecia gostar de dinheiro. Até casar com Tuckerton vivera em dificuldades. Creio que a possibilidade de ficar rica, viúva, ainda jovem, lhe subiu à cabeça.

       O testamento certamente devia ter sido um grande golpe. Ela sonhara com algo mais substancial, com a possibilidade de viajar, comprar roupas e jóias, enfim, gozar o simples prazer de ter dinheiro no banco.

       No entanto a garota ia ficar com tudo! Ia ser a herdeira. Uma garota que não escondia seu ressentimento contra a madrasta. A garota ia ficar com tudo... a não ser que... a não ser quê? Seria possível que esta criatura loura e banal fosse capaz de contratar os serviços do Cavalo Amarelo? Não — não era possível.

       Mesmo assim eu precisava ter certeza.

       — Não sei se a senhora sabe que eu conheci sua filha, ou melhor, sua enteada — disse eu abertamente.

       Ela olhou-me com certo espanto, quase desinteressada.

       — Thomasina? É mesmo?

       — Sim, em Chelsea.

       — Ah! em Chelsea... é claro — ela suspirou. — Esta mocidade de hoje. Tão complicada. Não se tem mais como controlá-los. O pai vivia preocupado, e eu, é claro, mas não podia interferir demais. Além do mais, ela nunca ouviria meus conselhos!

       — É uma posição muito difícil — disse eu, com simpatia.

       — Não tenho do que me reprovar. Fiz o que pude.

       — Disso tenho certeza.

       — Mas não adiantou nada. É claro que Tom nunca permitiu que ela fosse grosseira comigo, mas o senhor pode crer que ela não era fácil. Quando decidiu morar sozinha senti-me aliviada. O que aconteceu foi que ela passou a freqüentar uma roda muito pesada.

       — É o que eu imaginei.

       — Pobre Thomasina! — exclamou a Sra. Tuckerton, ajustando um cacho de cabelo louro. — Talvez o senhor não saiba que ela morreu o mês passado, de encefalite.

       — Dizem ser uma doença que só ataca os jovens.

       — Eu sabia que ela tinha morrido — disse eu, levantando-me para ir embora. — Obrigado, Sra. Tuckerton, pela sua gentileza.

       Apertei-lhe a mão e dirigi-me para a porta.

       — Por falar nisso — disse eu, voltando-me do hall. — A senhora conhece o Cavalo Amarelo, não conhece?

       Não havia dúvida possível diante da reação da Sra. Tuckerton. Pânico, puro pânico, estampado nos olhos azuis. O rosto debaixo da maquilagem tornou-se branco.

       — Cavalo Amarelo? Que Cavalo Amarelo? Não sei coisa alguma sobre isso — gritou ela estridentemente.

       Fiz um ar de surpresa.

        — Ah! Desculpe. Existe uma estalagem antiga em Much Deeping onde passei um dia. Foi transformada numa confortável residência, mantendo porém o estilo. Pensei que fosse seu nome que foi citado, mas talvez tenha sido o da sua enteada ou quem sabe alguma homônima. É um lugar muito famoso.

       Retirei-me triunfante. Num dos espelhos do hall, vi o rosto da Sra. Tuckerton refletido. A imagem de uma mulher velha, aterrorizada... um retrato terrível.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Agora temos certeza — disse Ginger.

       — Já tínhamos.

       — Mas esta história fecha o circulo.

       Calei-me um instante e imaginei a Sra. Tuckerton, indo para Birmingham encontrar o Sr. Bradley. A apreensão nervosa por parte dela em contrapartida com a reconfortante bonomia de Bradley; gentilmente sublinhando a ausência do perigo. Podia vê-la partindo sem se comprometer, deixando aos poucos a idéia enraizar-se no pensamento. Quem sabe se a enteada não veio passar um fim de semana em casa e sugeriu um casamento iminente? E durante todo o tempo o pensamento constante: DINHEIRO. A possibilidade de não ter mais que se preocupar com economias, o início de uma vida de prazeres e diversões! Mas, no caminho uma garota degenerada, sem educação, eternamente metida nuns blue jeans imundos, gastando a vida em bares mal afamados, convivendo com a laia de Chelsea. Por que uma moça dessas, uma criatura que certamente iria acabar mal, teria o direito de roubar-lhe a felicidade?

       Por isso voltou a Birmingham, tomando todas as precauções. Discutiram os termos, o que me fez sorrir, pois não creio que o Sr. Bradley tenha conseguido levar a melhor com uma mercenária da classe da Sra. Tuckerton. Finalmente devem ter chegado a um acordo qualquer. Mas e depois?

       Não consegui visualizar o desconhecido. Notei que Ginger me observava.

       — Já imaginou como funciona o negócio? — perguntou ela.

       — Como você sabe que eu estava imaginando isso?

       — Começo a compreender o mecanismo de seu raciocínio. Você estava tentando visualizar a Sra. Tuckerton sendo entrevistada por Bradley.

       — É mesmo, mas fui interrompido quando ela conseguiu fechar o negócio. O que aconteceu depois?

       Entreolhamo-nos atônitos.

       — Mais cedo ou mais tarde — disse Ginger — alguém tem que descobrir o que acontece no Cavalo Amarelo.

       — Como?

       — Não sei. Sei que não será fácil. Nenhuma delas falará e só elas podem falar porque são as únicas que sabem. É um problema... será que...

       — E se fôssemos à polícia? — sugeri.

       — Por que não? Já temos o material suficiente para abrir o caso.

       Sacudi a cabeça em dúvida.

       O material prova que há intenção, mas não é o suficiente. Caímos naquela história do desejo de morte. Sei que não é besteira — fiz um gesto com a mão, antecipando a resposta de Ginger — mas num tribunal ninguém nos acreditaria. Nem ao menos sabemos como eles agem.

       — Portanto temos que descobrir isso também. Mas como?

       — Precisamos estar presentes para ver e ouvir. Mas não vejo possibilidade de alguém esconder-se naquele galpão, onde elas fazem sabe Deus o quê!

       Ginger empertigou-se e jogou os cabelos para trás.

       — Só temos uma saída. Você precisa se tomar cliente da firma.

       Olhei para ela espantado.

       — Cliente?

       — Sim. Ou eu ou você, não importa. Precisamos querer eliminar uma pessoa. Um de nós tem que contratar Bradley.

       — Não gosto disso.

       — E por quê?

       — Porque nos expõe ao perigo.

       — Para nós?

       — Talvez. No fundo eu estava pensando na vítima, pois vamos ter que arranjar uma. Não podemos inventar uma pessoa... eles devem verificar todas as informações.

       Ginger pensou uns momentos.

       — Realmente a vítima precisa ser uma pessoa verdadeira que more num lugar determinado.

       — Por isso não gosto da idéia. Além do mais precisaremos de uma razão para eliminar essa pessoa.

       Calamo-nos um instante, considerando esta possibilidade.

       — A vítima teria que saber de tudo e concordar conosco — disse eu. — Não acha que seria pedir demais?

       — Tudo tem que ser preparado nos mínimos detalhes — disse Ginger. — Numa coisa você tem razão. O único defeito do negócio é que o segredo não pode ser tão inviolável, senão eles não arranjariam outros clientes.

       — O que me espanta — retorqui — é a polícia não saber disso. Geralmente ela está a par de tudo...

       — A única explicação que posso oferecer é o fato de eles possuírem uma organização totalmente composta por amadores. Não devem empregar, nem envolver criminosos profissionais. Não se trata da Mafia, tudo é feito por diletantes.

       Concordei com Ginger.

       — Vamos imaginar — continuou ela, que eu ou você (examinaremos as duas possibilidades) estamos desesperados para eliminar um inimigo. Quem seria? Eu tenho um tio de quem vou herdar uma bolada assim que ele morrer. Os herdeiros somos eu e um primo que mora na Austrália. Portanto tenho um motivo. Como meu tio já está com setenta e tantos anos, e um pouco caduco, seria mais razoável esperar que a natureza se encarregue dele. Porém, vamos imaginar que eu esteja precisando de dinheiro, mas como vamos criar esta situação? Além do mais, caduco ou não, eu adoro meu tio e não quero privá-lo de um minuto sequer de uma existência que tanto o diverte. Não posso correr este risco. E você? Tem algum parente de quem vai herdar?

       Sacudi a cabeça.

       — Ninguém.

       — Que pena! Talvez possamos inventar uma situação de chantagem? Mas isto certamente daria muito trabalho. Você não tem nada a perder, não é político, nem membro do Corpo Diplomático. Eu, muito me nos. Há cincoenta anos atrás seria fácil, forjaríamos umas cartas, tiraríamos umas fotografias comprometedoras, mas hoje em dia quem dá importância a isto? Que mais poderíamos tentar? Bigamia! Que pena você nunca ter casado — suspirou Ginger, com ar de reprovação, poderíamos partir de uma confusão matrimonial.

       Pela expressão do meu rosto, Ginger notou ter tocado num ponto nevrálgico.

       — Desculpe — disse ela. — Eu toquei num ponto sensível?

       — Não propriamente. Já faz tanto tempo, que acho que ninguém mais se lembra disso.

       — Você já foi casado?

       — Sim, quando ainda era universitário. Não contamos a ninguém. Minha família seria contra. Além do mais não tínhamos ainda atingido a maioridade.

       Fiz uma pausa, rememorando o passado.

       — Não duraria muito — continuei, — hoje sei disso. Ela era bonita, meiga, mas...

       — O que aconteceu?

       — Fomos passar umas longas férias na Itália. Houve um acidente de automóvel. Ela morreu instantaneamente.

       — Você também ficou ferido?

       — Não, ela estava com outro homem... um amigo...

       Ginger lançou-me um rápido olhar, compreendendo o que senti quando descobri que a moça com quem tinha me casado não me era fiel.

       — Você se casou na Inglaterra? — perguntou ela, voltando ao assunto que nos interessava.

       — Sim, num cartório em Peterborough.

       — Mas ela morreu na Itália?

       — Sim.

       — Portanto, o atestado de óbito não foi tirado aqui?

       — Não.

       — Que mais precisamos? É o ideal. Você está apaixonado e quer se casar, mas não sabe se sua mulher ainda está viva; você está separado há anos e não teve mais notícias dela. Nesta altura reaparece a esposa, se recusa a dar o divórcio e além disso ameaça contar tudo a sua namorada.

       — Quem é minha namorada? — perguntei confuso. — Você?

       Ginger pareceu surpresa.

       — De maneira alguma! Quem iria acreditar que eu largaria você só porque não podemos casar na igreja? Não, sua namorada é aquela morena escultural e distante com quem você freqüenta os concertos...

       — Hermia Redcliffe?

       — Esta mesmo.

       — Quem lhe falou sobre ela?

       — Poppy. Sua namorada é bastante rica, não é?

       — É. Mas eu não...

       — Não estou insinuando que você vai casar com ela por causa do dinheiro. Um tipo como Bradley porém acreditaria nisso... Muito bem, aí está nossa estratégia: quando você está para pedir Hermia em casamento, surge sua ex-esposa. Você pede o divórcio mas ela nega. Trata-se de uma criatura vingativa. Aí você ouve falar no Cavalo Amarelo. Além do mais aposto o que você quiser que Thyrza e Bella acharam que sua visita, naquele dia, foi intencional, por isso Thyrza foi tão incisiva. Ela estava simplesmente demonstrando as vantagens da sua organização.

       — Pode ser — concordei, rememorando a visita.

       — Sua ida a Bradley, em seguida, se encaixa perfeitamente neste esquema. Você é um possível cliente.

       Ginger ficou me olhando com um ar de triunfo.

       — Mesmo assim — insisti — eles vão fazer uma investigação minuciosa.

       — Claro que vão — concordou Ginger.

       — É fácil inventar uma esposa, mas eles vão querer saber outros detalhes: onde ela mora, como se chama etc. Quando eu tentar desconversar...

       — Você não vai desconversar. Para que a coisa seja bem feita, na hora H você vai mostrar uma esposa.

       Ginger fez uma ligeira pausa.

       — Segure-se bem. A esposa serei eu!

      

       Fiquei tão espantado que não consegui dizer coisa alguma. Só me admirei de Ginger não ter rido da minha expressão.

       Quando comecei a recobrar a fala, Ginger interveio:

       — Não precisa ficar tão espantado. Não estou lhe pedindo em casamento.

       — Você não sabe o que diz!

       — Claro que sei! Estou sugerindo uma ação prática que possui a vantagem de não ameaçar uma pessoa inocente.

       — Mas vai pôr sua vida em perigo.

       — É problema meu.

       — Não é. Além do mais quem iria acreditar nisso?

       — Todo o mundo, ora essa! Alugo um apartamento para onde me mudo, dando o nome de Sra. Easterbrook... quem é que pode negar que eu seja a Sra. Easterbrook?

       — Todas as pessoas que a conhecem.

       — Quem me conhece não vai me encontrar pois vou inventar uma viagem. Tinjo o cabelo... sua mulher era loura ou morena?

       — Morena — respondi mecanicamente.

       — Ótimo! Visto-me com outras roupas, carrego na maquilagem e nem meu melhor amigo me reconhecerá. Como você não está casado há quinze anos, não vejo muita possibilidade de duvidarem da minha identidade. Por que no Cavalo Amarelo duvidariam de uma mulher que diz ser sua esposa? Se você que é o maior interessado está disposto a apostar que eu sou sua mulher, não são eles que vão questionar esta assertiva. Você não tem ligações com a polícia, disso eles sabem. Se quiserem ter certeza podem verificar no Cartório de Somerset o registro civil; podem também verificar facilmente se existe uma noiva chamada Hermia etc.... Não vejo por que duvidem.

       — Você parece não querer ver os riscos, as dificuldades ...

       — Que risco, que nada! — gritou Ginger. — Quero ver se você ganha esta aposta.

       Olhei para Ginger com carinho. Examinei encantado as sardas, os cabelos ruivos, o espírito empreendedor. Mas, não podia deixá-la correr este risco.

       — Não posso concordar, Ginger. Imagine se acontece alguma coisa?

       — A mim?

       — Sim.

       — Mas já disse que é problema meu.

       — Não. Eu a envolvi na história.

       Ela sacudiu a cabeça num gesto afirmativo.

       — Talvez tenha sido você, mas não creio que isto tenha tanta importância. Nós dois estamos metidos nisso e temos que deslindar esta enrascada. Estou falando sério, Mark. Não estou mais brincando. Se é verdade o que nós sabemos não podemos ficar parados. Não se trata de crimes passionais e sim da profissionalização de uma indústria odiosa que nem sequer sabe quem é a vítima. Caso tudo isto seja verdade...

       — É verdade — respondi. — Por isso estou com medo.

       Ginger colocou os cotovelos sobre a mesa, e começamos a discutir os prós e os contras do nosso empreendimento.

       Finalmente Ginger fez o arrazoado da situação.

       — Um homem prevenido vale por dois. Sei o que querem fazer contra mim e não acredito que ela consiga ir muito longe comigo. Meu desejo de morte não está bastante desenvolvido! Tenho ótima saúde e não creio que vá sofrer de meningite ou pedras na bexiga só porque Thyrza resolveu fazer um desenho cabalístico no chão.

       — Bella deve matar um galo branco em sua homenagem — disse eu.

       — Você há de convir que é muita palhaçada junta — protestou Ginger.

       — Nós não sabemos como elas agem.

       — Por isso nossa aventura é importante. O que é inacreditável é elas pretenderem assassinar uma pessoa por telepatia.

       — Realmente é duro de acreditar — concordei. — Mas eu acredito.

       — Por isso estamos fazendo esta experiência.

       — E que tal — sugeri eu — se nós trocássemos? Eu ficaria aqui e você seria a cliente. Poderíamos inventar...

       Ginger sacudiu a cabeça com vigor.

       — Não, Mark — disse ela, — não iria dar certo por vários motivos. Para começar sou conhecida no Cavalo Amarelo como Ginger. Você está bem situado: para eles não passa de um cliente nervoso que ainda não se decidiu. Temos que seguir avante desta forma.

       — Não gosto de deixar você, só, num lugar, com um nome falso sem alguém para protegê-la. Primeiro acho que deveríamos ir à polícia...

       — Concordo — disse Ginger, — aliás desde o começo penso assim. Você acha que alguém nos acreditaria?

       — Não — disse eu, — mas poderemos tentar o Inspetor Lejeune.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Eu tinha simpatizado com o Inspetor Lejeune desde que o conhecera, não só pelo seu ar eficiente como também por parecer um homem de imaginação; ele me dava a impressão de ser capaz de considerar as possibilidades menos ortodoxas.

       — Dr. Corrigan me contou que esteve com o senhor — disse ele. — No começo parece que ele se interessou muito pelo caso: o padre Gorman era muito respeitado e conhecido naquela zona. O senhor parece que tem alguma informação para nos fornecer.

       — Uma informação relacionada com o Cavalo Amarelo — expliquei.

       — Aquela casa situada em Much Deeping?

       — Sim.

       — O que o senhor gostaria de me informar?

       Relatei a conversa com Poppy no Fantasie, descrevi a visita com Rhoda e finalmente a entrevista com Thyrza Grey.

       — O que ela disse o impressionou?

       Fiquei embaraçado com a pergunta.

       — Não propriamente... é claro que não acreditei.

       — Não, mesmo, Sr. Easterbrook? Tenho a impressão de que acreditou.

       — O senhor tem razão. É desagradável admitir que acreditamos em crendices.

       Lejeune sorriu.

       — Mas o senhor já estava interessado no Cavalo Amarelo quando foi lá a primeira vez. Por quê?

       — Creio que intrigado pelo ar de pavor de Poppy.

       — A moça da loja de flores?

       — Sim. Ela falou sobre o Cavalo Amarelo casualmente; depois, quando se apavorou realmente fundamentou minhas suspeitas. Depois encontrei o Dr. Corrigan e ele me mostrou a lista, da qual dois nomes eu conhecia, pois eram pessoas recentemente falecidas de quem eu ouvira falar. Além de uma terceira que mais tarde descobri que havia morrido.

       — A Sra. Delafontaine?

       — Sim.

       — Continue.

       — Decidi investigar a fundo esta história.

       — Por onde começou?

       Falei sobre a Sra. Tuckerton e depois sobre a entrevista com o Sr. Bradley em Birmingham. A esta altura tinha conseguido captar o interesse de Lejeune.

       — Bradley? — repetiu ele. — Então Bradley está metido nisso?

       — O senhor o conhece?

       — Claro que a polícia conhece todos os tipos indesejáveis; ele não é nada burro e consegue se manter no limiar da justiça. Sabe todos os truques e meandros legais de maneira que ainda não conseguimos apanhá-lo. Bradley devia escrever um livro chamado: Cem maneiras práticas de burlar a lei. Não sabíamos que havia enveredado para o crime.

       — Com o que eu lhe contei o senhor poderia prendê-lo?

       Lejeune sacudiu a cabeça.

       — Não, não poderia. Para começar não houve testemunhas e ele simplesmente negaria qualquer acusação. Além do mais, não há lei que proíba um sujeito de fazer apostas sobre a vida de outra pessoa. Não há ilegalidade alguma nisso. Se não conseguirmos ligar Bradley com algum desses crimes não poderemos agarrá-lo. Aqui entre nós, não vai ser fácil.

       Depois de uma pequena pausa, Lejeune sorriu para mim.

       — Por acaso o senhor, quando esteve em Much Deeping, conheceu um homem chamado Venables?

       — Sim — respondi. — Almocei com ele.

       — Ah! E que impressão teve dele?

       — Um homem de forte personalidade. É um inválido.

       — Sim, vítima da paralisia infantil.

       — Vive numa cadeira de rodas, mas parece que a invalidez aguçou sua determinação de gozar a vida.

       — Fale-me mais sobre ele.

       Descrevi a casa de Venables, os tesouros de arte as coleções raríssimas.

       — Que pena! — comentou Lejeune.

       — O que é uma pena?

       — Que Venables seja paralítico — respondeu Lejeune, secamente.

       — Quem sabe ele finge ser inválido? — arrisquei.

       — Temos certeza de que não. O médico dele Sir William Dougal, um profissional acima de qualquer suspeita. Um tal de Osborne, porém, insiste que o viu, andando atrás de Gorman, na noite do crime. Mas, está enganado, é claro.

       — Compreendo.

       — Digo que é uma pena porque, se realmente existe esta organização criminosa, Venables seria o homem capaz de dirigi-la.

       — Certamente.

       Lejeune distraidamente traçou umas linhas com o indicador.

       — Vamos reunir os fatos, isto é, juntar o que o senhor sabe com o que nós sabemos. Parece que existe uma organização particular criminosa dedicada à remoção de pessoas ricas. É uma firma que não emprega assassinos profissionais, uma vez que suas vítimas morrem de “doença”. Além dos três casos que o senhor conhece temos algumas informações sobre as outras vítimas — todas falecidas de causas naturais, embora sempre deixem sobreviventes que lucram com isso.

       — Trata-se, portanto, de uma organização diabólica, Sr. Easterbrook — continuou Lejeune. — Quem elaborou esse negócio é um gênio. Pense bem, até agora só temos uma lista de nomes e a confissão de uma mulher em agonia. Nem ao menos sabemos quantas vítimas essa organização já fez.

       Lejeune sacudiu a cabeça furioso.

       — Essa Thyrza Grey tem razão de se gabar dos seus feitos. Possui imunidades. Se a acusarmos de ser uma assassina estaria em liberdade em uma semana. Sabemos que ela não teve o menor contato com as vitimas e nem enviou sequer chocolate envenenado para os pobres. Segundo ela, basta sentar numa cadeira e empregar a telepatia! O tribunal iria dar risada de um promotor que se atrevesse a acusá-la.

       — A esta altura Lúcifer deve estar às gargalhadas — murmurei.

       — Realmente é um negócio diabólico, Sr. Easterbrook.

       — Quem diria que no século XX empregaríamos este adjetivo para definir uma organização!

       — Só vejo uma possibilidade — continuei depois de uma ligeira pausa: — eu e uma amiga bolamos um plano que talvez lhe pareça pueril...

       — Vamos ver...

       — Primeiro vamos partir do princípio de que esta organização existe e funciona.

       — Muito bem, e daí?

       — Mas não sabemos como funciona. Só sabemos que o cliente ouve falar numa organização, pede mais informações e acaba indo a Birmingham ao encontro do Sr. Bradley. Se chega a um acordo o cliente deve ser levado até o Cavalo Amarelo, mas daí em diante não sabemos o que acontece. Este é o ponto crucial. O que acontece no Cavalo Amarelo? Alguém tem que descobrir...

       — Muito bem...

       — Pois se não descobrirmos o que Thyrza Grey faz não podemos ir adiante. Segundo Jim Corrigan isto não passa de uma xaropada, mas eu lhe pergunto, será mesmo?

       Lejeune suspirou.

       — O senhor sabe minha resposta, isto é, a resposta de qualquer homem normal. É realmente uma xaropada estúpida. Porém extra-oficialmente muitas coisas estranhas acontecem. Quem diria, cem anos atrás, que seria possível falar daqui com um homem em Nova York, através de um fio? E assim milhares de outras coisas...

       — Em outras palavras, tudo é possível?

       — Exatamente, portanto, se o senhor me diz que Thyrza Grey é capaz de matar uma pessoa, enrolando os olhos ou caindo em transe, eu não devo duvidar, pois talvez ela tenha descoberto algo...

       — Entendo — intervi. — O sobrenatural parece sobrenatural mas a ciência do futuro á o sobrenatural da atualidade.

       — Nossa conversa não é oficial — enfatizou Lejeune.

       — O que pretendo fazer é ver de perto o que acontece. Esta é minha proposta.

       Lejeune olhou para mim espantado.

       — Já dei o primeiro passo — disse eu.

       Contei em detalhes o nosso plano. Lejeune não pareceu muito satisfeito.

       — Sr. Easterbrook, vejo aonde quer chegar. O acaso o conduziu a uma descoberta, mas quero que saiba que os ricos são grandes, pois o senhor e sua “esposa” estarão lidando com gente perigosa...

       — Sei muito bem — protestei. — E ela também sabe, mas não há nada que a demova.

       — O senhor disse que ela é ruiva?

       — Sim — respondi espantado.

       — Não discuta com as ruivas — disse Lejeune. — Vá por mim!

       Fiquei me perguntando se a mulher dele seria ruiva.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Quando fui procurar Bradley, novamente não senti o mínimo nervoso. Achei até divertido.

       — Imagine o que um homem nestas condições sentiria — disse Ginger.

       Segui o conselho.

       O Sr. Bradley recebeu-me com um sorriso.

       — Que prazer revê-lo — disse ele, estendendo a mão. — Com que então esteve pensando no problema? Felizmente não temos pressa...

       — Infelizmente eu tenho pressa. Trata-se de um caso urgente.

       Bradley olhou-me com espanto, notando meu nervosismo.

       — Vamos ver então o que podemos fazer pelo senhor. Quer fazer uma aposta, não é mesmo? Nada como uma aposta para distrair as idéias...

       — O caso é o seguinte — disse eu, interrompendo a frase no ar.

       Deixei o campo livre para Bradley agir.

       — Noto que está nervoso. O senhor é um homem cauteloso, e eu aprecio a cautela. Não confia na própria mãe! O senhor não desconfia de que eu tenha um microfone escondido aqui nesta sala?

       Olhei para ele como se tivesse lido meus pensamentos.

       — Posso lhe garantir que não tenho aparelhagem alguma nesta sala e nossa conversa não será gravada. Caso não acredite, aliás tem todo o direito de duvidar, estou disposto a procurá-lo num outro lugar para podermos discutir...

       Afiancei que não haveria necessidade.

       — Muito bem. Além do mais nenhum de nós lucraria com uma chantagem desse tipo. Procuraremos, no entanto, evitar no nosso colóquio o emprego de termos que poderiam legalmente ser usados contra nós. Por exemplo, o senhor está preocupado com algo, resolve desabafar comigo, sabe que sou um homem experiente e capaz de lhe dar bons conselhos... Que lhe parece?

       Gaguejei minha história.

       O Sr. Bradley foi bastante solícito. Sempre que me via em dificuldades, ajudava-me com palavras ou expressões ou sorrisos encorajadores. Não levei muito tempo para descrever meu casamento desastroso com Doreen.

       — Acontece freqüentemente — comentou Bradley, sacudindo a cabeça. — Tão freqüentemente. Um jovem inexperiente, cheio de vida, uma garota bonita e pronto! Casamento e depois...

       Contei o resultado. Fui propositadamente vago em relação aos detalhes pois o tipo de homem que eu pretendia representar não entraria em detalhes sórdidos. Apresentei somente o retrato de um jovem tolo e desiludido; insinuei uma briga de casal e não neguei nem afirmei que ela tivesse outros amantes.

       — Embora ela não fosse a mulher que eu imaginei, não esperava que viesse a se comportar dessa forma...

       — Que forma?

       — Que... ela fosse reaparecer... enfim.

       — O que o senhor pensou que tivesse acontecido com ela?

       — Por incrível que pareça achei que ela tinha desaparecido da minha vida.

       — Por um passe de mágica? — perguntou Bradley, delicadamente. — E por quê?

       — Bem, ela nunca escreveu ou mandou notícias.

       — Na verdade o senhor queria esquecer-se dela...

       Bradley era um fino psicólogo.

       — Sim — respondi, agradecido. — Além do mais não tinha intenção de casar outra vez...

       — Mas, agora tem?

       — Bem.

       — Fale francamente.

       Admiti que queria casar de novo, recusando-me obstinadamente a dar detalhes sobre minha noiva. Minha tática pareceu acertada pois ele não insistiu.

       — Compreendo. O senhor encontrou uma pessoa que poderá compreendê-lo melhor.

       Uma mulher que tem os mesmos gostos e os mesmos interesses.

       Percebi que ele sabia da existência de Hermia. Aliás qualquer investigação a meu respeito revelaria o fato de ela ser minha companhia constante. Certamente quando Bradley recebeu minha carta, marcando uma entrevista, imediatamente fez algumas investigações a meu respeito.

       — Por que não tenta o divórcio? Não seria a solução natural?

       — Fora de cogitação. Minha mulher recusa-se terminantemente a me dar o divórcio.

       — Que pena! Qual a atitude dela em relação ao senhor?

       — Quer voltar para mim... quer viver comigo. Não... ela sabe que eu estou apaixonado por outra e...

       — E resolveu criar caso. É, realmente não vejo outra saída, a não ser que... ela é jovem?

       — Muito. Ainda viverá anos!

       — Isso não se sabe, Sr. Easterbrook. Ela morou no estrangeiro?

       — Foi o que me disse. Não sei bem onde esteve...

       — Quem sabe ela não andou pela Ásia e apanhou um germe qualquer, desses que ficam adormecidos e um dia reaparecem. Conheço alguns casos; assim, pode ser que também aconteça com sua esposa. Creio que podemos fazer uma aposta!

       Sacudi a cabeça.

       — Ela viverá eternamente.

       — O senhor está levando uma grande vantagem, mas quero apostar mesmo assim. Aposto 150.000 libras contra uma que ela embarca antes do Natal.

       — Não posso esperar tanto... — balbuciei incoerente. Quis propositadamente dar a Bradley a idéia de que estava sendo ameaçado por minha esposa.

       — Então podemos modificar a aposta. 180 contra um que sua esposa embarca dentro de um mês. É uma espécie de pressentimento.

       Achei que tinha chegado o momento de pedir um abatimento. Protestei que não tinha tanto dinheiro. Bradley, porém, como um bom negociante, sabia qual a quantia de que eu podia dispor; sabia também que Hermia tinha dinheiro. Deliberadamente insinuou que quando eu estivesse casado não sentiria falta do dinheiro. Além do mais, minha pressa o colocava numa boa situação, portanto, manteve o preço.

       Quando saí tinha deixado uma promissória de 180.000 libras e um contrato cheio de cláusulas legais absolutamente ininteligível.

       — Este contrato tem validade legal?

       — Não creio que tenhamos oportunidade de descobrir — disse Bradley, num tom desagradável. — Uma aposta é uma aposta. Se um homem não cumpre...

       Olhei para ele.

       — Não aconselho — disse Bradley — de forma alguma. Não gostamos de caloteiros.

       — Não sou caloteiro — protestei.

       — Claro que não, Sr. Easterbrook. Bem, agora vamos tomar as providências. A Sra. Easterbrook está em Londres?

       — Precisa do endereço?

       — Preciso de todos os detalhes. Vou marcar uma entrevista sua com Thyrza Grey. Lembra-se dela?

       Respondi que sim.

       — Uma mulher extraordinária. Repleta de poderes. Ela vai pedir um objeto pessoal de sua esposa: uma luva, um lenço...

       — Para quê?

       — Não me pergunte para quê! Eu não sei. A Sra. Grey não conta seus segredos.

       — Mas como ela consegue...

       — Acredite-me, Sr. Easterbrook, quando eu digo que não sei e nem quero saber. Eis meu conselho — prosseguiu Bradley, depois de uma pequena pausa. — Vá procurar sua esposa e convença-a de que está disposto a voltar para ela. Sugiro também que o senhor passe uns tempos no exterior... quando regressar...

       — Então?

       — O senhor irá a Much Deeping, levando uma peça qualquer de sua esposa. Quando esteve lá ficou hospedado com uma prima?

       — Isso mesmo.

       — Portanto nada mais simples do que passar dois dias lá.

       — A maioria das pessoas o que faz?

       — Uns ficam no hotel, ou se alojam na cidade vizinha... não sei.

       — Que devo dizer aos meus primos?

       — Que ficou impressionado com sua visita e que deseja participar de uma sessão espírita presidida por Thyrza Grey... não precisa dizer mais do que isso.

       — E depois?

       — Não sei. Depois disso a Srta. Grey dará as instruções necessárias. Não esqueça de levar uma luva ou um lenço. Em seguida viaje para o exterior. A Riviera Italiana é encantadora nesta época do ano... não precisa demorar, basta uma ou duas semanas.

       Insisti que não poderia sair da Inglaterra.

       — Pois não, pois não. Mas não fique em Londres. Não aconselho Londres.

       — Por que não?

       O Sr. Bradley olhou para mim com desaprovação.

       — Garantimos um serviço perfeito aos nossos clientes se eles seguirem à risca nossas instruções.

       — Não posso ficar em Bournemouth?

       — Pode. Hospede-se no hotel e faça algumas amizades. Não se exceda em coisa alguma e se enjoar de Bournemouth vá visitar Torquay...

       Bradley falava como se fosse um agente de viagens. Apertei a mão gorducha e retirei-me.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Você vai mesmo a uma sessão espírita na casa de Thyrza? — perguntou-me Rhoda.

       — Por que não?

       — Não sabia que você se interessava por esse tipo de coisa.

       — Para dizer a verdade, não é minha especialidade, mas elas são tão estranhas que despertaram minha curiosidade.

       Nunca soube mentir bem, de maneira que não me senti à vontade, tentando despistar Rhoda e Hugh. Despard, principalmente, parecia possuir um sexto sentido em relação às pessoas.

       — Então irei com você — disse Rhoda. — Sempre quis ver uma coisa dessas.

       — Não, Rhoda, você não vai — rosnou Despard.

       — Ora, por quê? Você sabe que eu não acredito nestas besteiras. Quero ver só por curiosidade.

       — Para começar, não há razão alguma para manifestar curiosidade — disse Despard. — Acho que elas não estão brincando e não quero vê-la envolvida em encrencas.

       — Por que não tenta convencer Mark?

       — Mark é maior de idade — respondeu Despard, olhando-me de soslaio.

       Tive certeza de que ele desconfiava de algo.

       Rhoda ficou irritada mas teve que se conformar. Por acaso encontramos Thyrza Grey, na cidade, um pouco mais tarde.

       — Alô, Sr. Easterbrook. Não esqueça, contamos com sua presença hoje à noite. Sybil é uma grande médium, portanto nunca se sabe, de antemão, quais os resultados que obteremos. Só peço uma coisa, relaxe ao máximo e procure não debochar.

       — Eu queria ir — interveio Rhoda — mas Hugh não deixou. Você sabe como ele é cheio de preconceitos.

       — De qualquer maneira, não iríamos querer que você viesse. Basta um estranho — respondeu Thyrza, voltando-se para mim. — Que tal se viesse mais cedo e fizesse um lanche conosco. Nunca comemos nada pesado antes de uma sessão. Podemos esperá-lo às sete?

       Concordei e ela se despediu, sorrindo.

       Por uns instantes não ouvi o que Rhoda dizia.

       — O que você disse?

       — Você tem andado muito esquisito ultimamente, Mark. O que há?

       — Nada, por quê?

       — Está preocupado com o livro? Qual é o problema?

       — Livro? — por uns minutos não consegui me lembrar a que livro ela se referia. — Ah! sim, o livro. Não, até que está indo bem.

       — Já sei! Está apaixonado — disse Rhoda, num tom acusador. — É isso mesmo. Sempre que um homem se apaixona fica com este ar abobalhado. As mulheres, porém, parece que florescem, tornam-se vibrantes, mais belas. Por que será que isto acontece? As mulheres ficam mais jovens e os homens ficam parecendo uns bodes doentes.

       — Obrigado — respondi.

       — Não se zangue comigo, Mark. Estou achando ótimo e estou encantada... ela é maravilhosa.

       — Quem é maravilhosa?

       — Hermia Redcliffe, é lógico. Ou acha que não sei com quem você anda? Há anos que espero por isso. Vai ser perfeito porque ela é a mulher ideal para você: inteligente e bonita.

       — Típico comentário venenoso.

       Rhoda olhou para mim.

       — De certa forma — disse ela.

       Retirou-se pretextando uma visita ao açougueiro, com quem precisava conversar. Eu disse que ia até a casa do vigário.

       — Mas não para marcar a data do casamento — acrescentei.

      

       Entrei na casa do pastor como quem entra em casa. Encontrei a porta hospitaleiramente aberta e ao cruzar o umbral senti como se tirasse um peso dos ombros.

       A Sra. Dane Calthrop vinha entrando por outra porta, carregando, não sei por que, um enorme balde plástico verde.

       — Ah! é você. Já o esperava.

       Entregou-me o balde. Fiquei parado sem saber o que fazer.

       — Coloque-o na porta do lado de fora — disse ela impaciente.

       Obedeci, em seguida fomos para a sala de visitas. A Sra. Calthrop avivou a chama da lareira e jogou uma tora de lenha ao fogo. Com um gesto convidou-me a sentar e colocando-se ao meu lado esperou ansiosamente pelas notícias.

       — Bem? — perguntou. — O que tem feito?

       Julgando pela intensidade da boa senhora, parecia que estávamos prestes a perder um trem.

       — Estou seguindo seus conselhos.

       — Ótimo. E daí?

       Contei tudo.

       — Hoje à noite? — murmurou a Sra. Dane Calthrop.

       — Sim.

       Ela ficou calada, pensando.

       — Não gosto disso! Meu Deus, não gosto disso! — explodi.

       — Mas não é para gostar.

       — Tenho medo do que possa acontecer com Ginger.

       Ela olhou para mim com um ar bondoso.

       — A senhora não imagina como ela é corajosa. Se eles conseguirem de certa forma prejudicá-la...

       — Não vejo como vão conseguir — disse ela vagarosamente. — Como?

       — Mas eles já fizeram mal a outras pessoas.

       — É o que parece — disse ela duvidosa.

       — Tomamos todas as precauções. Ela não poderá sofrer dano algum...

       — Exatamente o que elas dizem que são capazes de fazer — disse a Sra. Calthrop. — Dizem que podem atingir o corpo através da mente por doença. No fundo é interessante mas horrível demais para ser verdade. Temos que pôr um fim nessa história.

       — Mas é ela que está correndo o risco — resmunguei.

       — Bem, alguém teria que correr este risco — disse a Sra. Calthrop, calmamente. — Você está com o orgulho ferido por não ter servido de cobaia. Ginger encaixou-se perfeitamente no esquema. É uma mulher controlada e inteligente. Tenho certeza de que ela não irá nos desapontar.

       — Não estou preocupado com isso!

       — Não se preocupe com o resto. Não adianta coisa alguma. Além do mais, se ela morrer terá sida por uma boa causa.

       — Que horror!

       — Sempre espere o pior — aconselhou a Sra. Calthrop. — É o melhor calmante. Possui o dom de amenizar qualquer golpe.

       — Talvez — murmurei.

       A Sra. Dane Calthrop garantiu que estava com a razão.

       — A senhora tem telefone?

       — É claro.

       Expliquei o que queria.

       — Depois dessa história de hoje à noite eu vou querer manter contato constante com Ginger. Telefonarei diariamente. Posso ligar daqui?

       — Claro. Na casa de Rhoda tem sempre tanta gente, além do mais existe sempre o perigo de ouvirem alguma coisa.

       — Ficarei mais uns dias na casa de Rhoda e depois parto para Bournemouth. Não posso voltar a Londres.

       — Não adianta colocarmos o carro adiante dos bois — disse a Sra. Calthrop. — Vamos ver o que vai acontecer hoje à noite.

       — Hoje à noite! — levantei-me. — Peço que a senhora reze por mim.

       — Claro — respondeu ela, surpreendida com minha súbita conversão religiosa.

       Ao sair resolvi fazer uma pergunta.

       — E o balde? Para que serve?

       — O balde? Para os meninos catarem amoras no campo. É um balde horrível mas muito prático.

       Olhei para a beleza outonal do campo. Quanta beleza...

       — Anjos e ministros do céu, protejam-nos — disse eu.

       — Amém — murmurou a Sra. Dane Calthrop.

      

       Não sei como esperava ser recepcionado no Cavalo Amarelo, mas posso dizer que a acolhida fria e convencional me desapontou um pouco.

       Thyrza Grey, usando um simples vestido de lã, recebeu-me na porta.

       — Ah! Já chegou. Que bom! — comentou, num tom profissional. — Assim podemos lanchar logo.

       O tom cotidiano me espantou. A mesa já estava posta e Bella nos serviu uma sopa, um omelete e uns queijos. Sybil deu a única nota exótica: um vestido comprido estampado, representando umas penas de pavão, todo debruado em ouro; dois enormes braceletes de ouro, em volta dos braços, e excepcionalmente nenhum colar de contas. Ela comeu pouquíssimo e falou menos ainda, certamente preocupada em me impressionar. Por meu lado, confesso que achei a representação artificial e falsa.

       Thyrza Grey animou como pôde a conversa, fazendo comentários sobre os personagens da cidade. Estava empenhada em representar a típica solteirona inglesa.

       Pensei com meus botões que talvez estivesse louco, completamente louco. Que razão tinha eu para sentir medo? Até Bella me parecia, esta noite, uma velha camponesa imbecil!

       Em retrospecto a conversa com a Sra. Dane Calthrop me pareceu fantástica. Creio que nos deixamos levar pela fantasia e acabamos vitimas da nossa própria imaginação.

       Finalmente terminamos o lanche.

       — Não vou servir café — desculpou-se Thyrza; — não devemos nos estimular demais. Sybil?

       — Sim — respondeu Sybil, assumindo uma expressão supostamente esotérica. — Já sei, devo me PREPARAR.

       Bella retirou os pratos. Fui até ao hall examinar a tabuleta da estalagem. Thyrza seguiu-me.

       — Com esta luz não dá para ver bem — disse ela.

       Era verdade. A imagem amarelada contra a ferrugem escura mal dava para distinguir a figura do cavalo.

       — Aquela moça ruiva... como é mesmo o nome dela? Ginger?... é Ginger, queria restaurar esta tabuleta — disse Thyrza — mas creio que se esqueceu. Ela trabalha numa galeria de arte, em Londres — acrescentou casualmente.

       Senti um calafrio ao ouvir o nome de Ginger.

       — Talvez não fosse má idéia — comentei, olhando para a tabuleta.

       — Não é uma boa pintura — disse Thyrza — mas combina com o lugar... deve ter mais de trezentos anos.

       — Pronto.

       Voltamo-nos. Bella estava parada na porta, nos chamando.

       — Está na hora — disse Thyrza.

       Segui-a até o velho celeiro, atravessando o jardim escuro. Se de dia o celeiro parecia uma agradável biblioteca restaurada, à noite era outra coisa. As luzes não estavam acesas e a iluminação fria provinha das frestas do teto. No centro da sala encontrava-se uma cama ou um divã coberto por um pano vermelho bordado com desenhos cabalísticos. No fundo um velho caldeirão fumegando, ao lado uma bacia de cobre. Do lado oposto, encostada na parede, uma cadeira de carvalho, onde Thyrza me mandou sentar.

       Obedeci, notando que Thyrza havia mudado sem que eu pudesse definir como. Não era uma atitude teatral como a de Sybil e sim como se o cotidiano tivesse sido retirado da sua existência. Mais parecia um cirurgião pronto para uma operação complicada. Essa impressão foi reforçada quando ela vestiu um avental comprido, feito de um tecido metálico.

       — Preciso tomar certas precauções — preveniu-me Thyrza.

       Achei a frase bastante sinistra.

       — Devo prevenir que o senhor deve manter-se absolutamente quieto e de forma alguma sair desta cadeira, se não quiser correr perigo de vida. Lembre-se de que não estamos brincando e sim lidando com forças perigosas e estranhas.

       Thyrza Grey fez uma ligeira pausa.

       — Trouxe o que lhe pedimos?

       Puxei do bolso uma luva de suedine marrom. Rapidamente Thyrza colocou a luva em frente de um estranho abajur; acendeu a luz e segurou a luva, diante da lâmpada, que deu ao tecido uma estranha coloração cinza.

       — Muito bem — disse ela, apagando a luz. — As emanações físicas da dona ainda estão bem presentes.

       Em seguida, colocou a luva sobre um aparelho semelhante a uma vitrola.

       — Bella, Sybil — disse, levantando a voz, — estou pronta.

       Sybil entrou, trajando uma capa preta, que ela deixou deslizar sobre os ombros, caindo ao chão como uma mancha de tinta.

       — Espero que dê certo — disse. — Nunca se sabe. Por favor, não adote uma atitude crítica, Sr. Easterbrook. Atrapalha os trabalhos.

       — O Sr. Easterbrook não veio para brincar — preveniu Thyrza, severamente.

       Sybil deitou-se no divã vermelho.

       — Está bem cômoda? — perguntou Thyrza solícita.

       — Oh! Sim, obrigada.

       Thyrza acendeu umas luzes, deixando Sybil no escuro, circundada por um raio de claridade.

       — Muita luz atrapalha o transe — explicou. — Estamos prontas, Bella.

       Bella surgiu das sombras e encaminhou-se com Thyrza em minha direção.

       Thyrza com a mão direita pegou minha mão esquerda, deu a outra mão para Bella; esta apanhou minha mão direita. Senti-me repelido pelo contato com Bella. Thyrza deve ter acendido um comutador qualquer, pois ouvi os acordes de uma música a distância. Parecia a marcha fúnebre de Mendelssohn.

       — Mise en scène — pensei. — Uma verdadeira palhaçada.

       Apesar disso, senti como se uma corrente subterrânea de apreensão emocional tivesse invadido a sala.

       A música parou. Fez-se um longo silêncio, onde só se ouvia nossa própria respiração.

       De repente, Sybil começou a falar, com outra voz. Era uma voz masculina, gutural, com sotaque estrangeiro.

       — Cheguei — disse ela.

       As duas soltaram minhas mãos. Bella desapareceu nas sombras.

       — Boa noite — disse Thyrza. — És Macandal?

       — Sim, sou Macandal.

       Thyrza moveu uma lâmpada e iluminou o rosto de Sybil, que parecia mergulhado num sono profundo. Seu rosto estava inteiramente mudado; parecia mais jovem e até mais bonita.

       — Estás preparado, Macandal, para obedecer a meus desejos e minhas vontades?

       — Estou — respondeu a voz.

       — Tomarás conta do corpo de Dossu, que está aqui deitado e no qual você está incorporado para que não sofra dano físico algum? Dedicarás tua força vital aos meus propósitos para que eu consiga através deles realizar meus desejos?

       — Sim.

       — Dedicarás este corpo para que a Morte, passando por ele, atinja outro corpo?

       Thyrza deu um passo para trás. Bella reapareceu com uma espécie de crucifixo. Thyrza colocou-o de cabeça para baixo, sobre o peito de Sybil. Bella, em seguida, trouxe um vidro verde. Duas gotas foram colocadas na testa de Sybil, onde Thyrza fez um pequeno desenho que me pareceu o sinal da cruz ao contrário.

       — Água benta da igreja católica de Garsington — explicou Thyrza, numa voz comum que deveria ter dissipado o encanto mas, no entanto, deu à cerimônia um ar mais assustador.

       Thyrza apanhou um terrível guizo, sacudindo-o três vezes, diante de Sybil.

       — Tudo está pronto! — disse Thyrza, dando um passo para trás.

       Bella repetiu as mesmas palavras.

       — Não acho que esteja muito impressionado com este ritual — disse Thyrza. — A maioria dos nossos clientes, porém, fica apavorada. É claro que há um pouco de palhaçada nisto, mas não deve duvidar de tudo. O ritual possui um certo efeito sobre o espírito humano. O que causa a histeria nas massas? Não sabemos ao certo, mas admitimos que é um fenômeno atuante. Por isso empregamos esta cantilena; é necessária, creia-me.

       Bella saiu do celeiro, voltando com um galo branco. Com um pedaço de giz, ela ajoelhou-se e fez alguns riscos no chão, em volta do braseiro e da bacia de cobre. Colocou o galo dentro da bacia; a ave, como por encanto, ficou imóvel. Fez outros riscos, cantando num tom gutural. Não pude compreender suas palavras mas percebi que ela estava se excitando até poder atingir um certo clímax de paraxismo obsceno.

       — Não gosta? — perguntou Thyrza, observando-me. — É a velha receita da morte, que vem de geração em geração, transmitida de mãe para filha.

       Não podia compreender onde Thyrza pretendia chegar, pois em vez de tentar me convencer ela parecia agir como uma cética comentarista.

       Bella estendeu as mãos para o aquecedor e uma chama começou a crepitar. Atirou umas ervas na fogueira, enchendo o ar de um estranho perfume.

       — Estamos prontas — disse Thyrza.

       Como um cirurgião, ela dirigiu-se para o aparelho parecido com uma vitrola, abriu-o e pude ver uma maquinaria eletrônica complicadíssima. Ela empurrou a estranha máquina para perto do divã. Ajustou os controles.

       — Direção... Norte, norte... leste... grau... é isso mesmo. Pegou a luva, acendendo uma luz violeta, e colocou o foco de luz numa certa posição. — Sybil Diana Helen — disse Thyrza, dirigindo-se à figura inerte no sofá. — Estás livre do teu invólucro mortal. Macandal tomará conta dele. Voe para o lado da dona desta luva que, como todos os seres humanos; só possui um desejo na vida: MORRER. Só a Morte soluciona todos os problemas, só a Morte dá paz verdadeira. Os grandes sabem disso. Veja Macbeth, veja Tristão e Isolda. Amor e Morte. Amor e Morte.

       Sua voz ecoava, repetindo as palavras enquanto a máquina produzia um zumbido e as lâmpadas acendiam e apagavam-se. Senti-me aterrorizado. Não era mais caçoada, pois Thyrza dominava completamente a figura inerte no sofá, usando-a para um fim criminoso. Percebi então por que a Sra. Oliver tinha tido uma má impressão de Sybil e não de Thyrza; pois a primeira possuía um dom natural nada relacionado com a mente ou com o intelecto. Thyrza, porém, estava controlando o corpo da outra, usando-a... e a máquina? Que relação tinha esta máquina com isso tudo? Senti medo da máquina. Que segredo diabólico possuiria? Que raios emitiria, tão letais capazes de destruir uma pessoa?

       Thyrza prosseguia a diabólica liturgia.

       — O ponto fraco... há sempre um ponto fraco na carne de uma pessoa. Desta fraqueza vem a força, a força e a paz mental... a meta é a Morte, a morte natural. Os tecidos do corpo obedecem à mente. Comandando-os em direção à Morte. A Morte vencedo-te: MORTE. O grito aterrorizante foi acompanhado de um gemido animal de Bella, que se levantou com uma faca na mão, decepando a cabeça do frango. O sangue pingou dentro da bacia de cobre. Bella levantou a bacia e gritou:

       — Sangue... sangue... SANGUE.

       Thyrza apanhou a luva e entregou-a a Bella. Esta mergulhou a luva dentro da bacia, devolvendo-a em seguida.

       — O sangue... o sangue... o sangue... — gritava Bella, frenética, correndo em volta do braseiro. A chama reacendeu e apagou-se em seguida.

       Senti-me mal. Minha cabeça começou a rodar, obrigando-me a segurar no espaldar da cadeira para não cair.

       A máquina pareceu desligar-se automaticamente.

       A voz de Thyrza voltou a soar pela sala, num tom normal.

       — A velha e a nova magia. As velhas crenças e os novos conhecimentos científicos. Juntos vencerão...

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Como foi? — quis saber Rhoda, na manhã seguinte.

       — O mesmo de sempre — respondi, incomodado pelo olhar inquietante de Despard.

       — Desenharam figuras no chão?

       — Sim.

       — Usaram frangos brancos?

       — Claro, senão qual seria a participação de Bella?

       — Transes e tudo o mais?

       — Transes e tudo o mais — repeti.

       Rhoda pareceu desapontada.

       — Você fala como se tivesse achado tudo monótono — disse ela num tom magoado.

       Expliquei que essas coisas são sempre iguais e que minha curiosidade já estava satisfeita.

       Assim que Rhoda foi para a cozinha, Despard voltou-se para mim.

       — Você ficou um tanto abalado...

       — Bem.

       Tentei desconversar, mas Despard não era um homem fácil de enganar.

       — Foi terrível — murmurei, finalmente.

       — Apesar de não acreditar — disse ele — essas coisas surtem um certo efeito. Assisti a umas cerimônias na África, onde os pajés possuem um poder sobrenatural sobre os nativos. Por mais cético que eu seja, devo confessar que vi coisas incríveis.

       — Mortes?

       — Claro. Se um homem sabe que está condenado a morrer, ele morre.

       — Por sugestão? — perguntei.

       — Talvez.

       — Mas você não parece acreditar nessa teoria.

       — Para dizer a verdade, não sei em que acreditar — disse Despard. — As teorias científicas ocidentais não explicam esses fenômenos, porque os europeus não pertencem a essas seitas. Caso pertencessem, creio que morreriam também...

       — Concordo com você que não podemos ser muito didáticos. Coisas estranhas acontecem em todo lugar. Anos atrás, num hospital, em Londres, apareceu uma moça queixando-se de dores terríveis nos ossos do braço. Nenhuma razão clínica para a sintomatologia. O médico sugeriu que tentassem passar um ferro em brasa pelo local dolorido, caso ela concordasse. Como ela estava desesperada de dor, concordou. O médico pediu que vendassem os olhos da paciente. Pegou um ferro em brasa, mergulhou-o num tanque de água fria e passou pelo braço. Ela gritou de dor. — Você vai ficar boa, disse ele. — Acho que sim, disse ela, mas doeu tanto! Queimou meus braços inteiros. O estranho é que ela acreditou que tivesse sido queimada e realmente no lugar por onde o médico havia passado o ferro havia uma marca como de uma queimadura.

       — E ela ficou boa? — perguntou Despard.

       — Sim, nunca mais sentiu coisa alguma. Mas teve que se tratar das queimaduras no braço.

       — Estranho, não é?

       — O médico também ficou admirado.

       — Imagino como! — disse Despard. — Por que você quis ir à sessão ontem à noite?

       Dei de ombros.

       — Essas mulheres me intrigaram. Queria vê-las em ação.

       Despard calou-se. Não creio que tivesse acreditado na minha resposta.

       Mais tarde fui à casa do vigário. Apesar de encontrar a porta aberta, a casa parecia deserta. Resolvi telefonar para Ginger.

       Pareceu-me durar uma eternidade até que ela atendesse.

       — Alô?

       — Ginger.

       — Ah! É você. Que houve?

       — Você está bem?

       — Claro que estou. Por que não estaria?

       Uma onda de alívio me invadiu.

       Ela estava bem e eu fiquei feliz. Como pude acreditar que aquela cantilena doida iria afetar uma moça forte e saudável como Ginger?

       — Teve algum pesadelo?

       — Não. Pensei que fosse ter, mas só consegui ficar acordada a noite inteira me perguntando por que não estava tendo um pesadelo. Fiquei até com um pouco de raiva.

       Dei uma boa risada.

       — Conte-me o que aconteceu. — pediu Ginger.

       — Nada de extraordinário. Sybil deitou-se num sofá e caiu em transe.

       Ginger riu.

       — É mesmo? Que maravilha! Ela estava vestida de negro ou estava nua?

       — Sybil não é Mme. de Montespan. Não foi uma missa negra. Ela estava vestida dos pés à cabeça.

       — E Bella?

       — Bella matou um frango e mergulhou sua luva no sangue.

       — Que porcaria. Que mais?

       — Uma porção de histórias... Thyrza invocou Macandal, acendeu luzes, cantou. Creio que o espetáculo deve fazer muito sucesso entre os acólitos.

       — E você?

       — Confesso que fiquei com um pouco de medo de Bella. Ela tinha uma faca e eu fiquei preocupado que ela perdesse a razão e resolvesse me confundir com um galo.

       — Nada mais o assustou? — persistiu Ginger.

       — Não sou tão crente assim.

       — Por que suspirou aliviado quando eu atendi?

       — Porque...

       — Está bem, não precisa responder. Também não precisa dizer que tudo foi tão pueril. É óbvio que você ficou impressionado com alguma coisa.

       — Talvez porque Thyrza parecia tão confiante nos resultados...

       — Confiante que só a invocação pudesse matar alguém? — perguntou Ginger.

       — Isso mesmo.

       — Bella também?

       — Bella parecia mais satisfeita com a morte do galo e das imprecações obscenas que era obrigada a emitir. Gritava: o sangue... o sangue...

       — Queria estar lá para ouvir.

       — Queria que você estivesse lá. No fundo foi um grande espetáculo.

       — Agora você está bem? — perguntou Ginger.

       — Como assim?

       — Porque quando me telefonou não estava, ora essa!

       Ela tinha razão.

       — Que fazemos agora? Tenho que ficar aqui?

       — Se quisermos receber o dinheiro do Sr. Bradley.

       — Então pode contar comigo. E você, vai ficar com Rhoda?

       — Uns dias. Depois vou para Bournemouth. Vou telefonar diariamente daqui da casa do vigário para você.

       — Como vai a Sra. Calthrop?

       — Bem. Ela é a única que sabe de tudo.

       — Eu imaginei. Bem, acho que é só. Até logo. Vai ser muito monótono ficar aqui sozinha estas duas semanas. Ainda bem que trouxe um trabalho para fazer e uns livros que há anos tencionava ler.

       — E a galeria?

       — Eu disse que ia viajar.

       — Alguma coisa estranha aconteceu?

       — Não — respondeu Ginger. — O mesmo de sempre: o leiteiro, o medidor do gás, uma mulher perguntando sobre produtos de beleza e uma pessoa pedindo para eu assinar contra as explosões nucleares. Os porteiros, é claro... um deles trocou um fusível para mim.

       — Até aí, nada de estranho...

       — O que você esperava?

       — Sei lá — respondi.

       Creio que esperava algo de suspeito que desse algum indício, porém as vítimas do Cavalo Amarelo morriam por vontade própria...

       Insisti com Ginger que talvez o medidor de gás fosse um membro da organização.

       — Ele me apresentou as credenciais — disse ela. — Quando saiu verifiquei se não tinha deixado nenhum escapamento.

       Além do mais, o Cavalo Amarelo não lidava com escapamento de gás; costumava agir de forma menos concreta.

       — Tive outra visita — prosseguiu Ginger, animadamente. — O Dr. Corrigan, que é muito simpático.

       — Deve ter sido mandado por Lejeune — disse eu.

       Desliguei aliviado.

       Ao voltar para casa, encontrei Rhoda, no jardim, cuidando do cachorro.

       — O veterinário acabou de sair — disse ela, ocupada em esfregar uma espécie de ungüento no pelo do animal. — Parece que ele está com sarna. Tenho que tomar cuidado por causa das crianças.

       — E dos adultos também — acrescentei.

       — Geralmente são as crianças que pegam. Ainda bem que estão internas. Quieta, Sheila, não se mexa. Este preparado faz cair o pelo, mas o veterinário garantiu que depois, aos poucos, cresce de novo.

       Ofereci minha ajuda, que felizmente foi recusada.

       O que eu acho monótono quando estou no interior é que sempre existem somente três opções, quando se quer dar uma volta. Em Much Deeping ou se tomava o caminho para Garsington, ou a estrada para Long Collenham, ou então para Shadhanger Lane, no caminho de Bournemouth—Londres.

       No dia seguinte, depois do almoço, resolvi experimentar a terceira opção. Como estava no caminho, resolvi visitar o Sr. Venables.

       Por que não? Nada que pudesse levantar suspeitas; era portanto bastante natural que eu fosse visitá-lo, pretextando rever alguma peça da sua maravilhosa coleção.

       O fato de Venables ter sido identificado pelo farmacêutico ... Odgen? ou Osborne? era muito interessante. E embora Venables, por causa da invalidez, não pudesse ser a pessoa suspeita, ainda assim o engano era intrigante.

       Venables era uma figura misteriosa, disso não havia a menor dúvida. Era inteligente e tinha um ar predatório, destrutivo. Não seria um assassino e sim um chefe de uma quadrilha criminal.

       O mestre do crime era um papei que lhe caía como uma luva. Porém o farmacêutico disse tê-lo visto “andando numa rua de Londres”! Uma vez que isto era impossível, resolvi dar uma outra investigada. Abri o portão e caminhei pela longa alameda.

       Fui recebido pelo mesmo criado que informou estar o Sr. Venables em casa. Pediu, porém, que eu aguardasse no hall, pois nem sempre o patrão encontrava-se em estado de receber visitas. Pouco depois voltou, dizendo que o Sr. Venables estava encantado com a minha presença.

       Venables recebeu-me cordialmente, como se fôssemos velhos amigos.

       — Que prazer recebê-lo, meu caro. Soube que estava por aqui e ia telefonar a Rhoda, hoje à noite, convidando-o para jantar.

       Desculpei-me pela intrusão, alegando um impulso momentâneo.

       — Além do mais — prossegui — gostaria de rever suas miniaturas mongólicas. Não tive tempo de vê-las direito naquele dia.

       — Compreendo. Acho-as maravilhosas também.

       Nossa conversa discorreu sobre termos técnicos, o que para mim foi um prazer, pois Venables possuía raridades interessantíssimas em casa.

       Na hora do chá, Venables insistiu para que eu o acompanhasse.

       Saboreei o delicioso chá chinês servido em delicadas xícaras de porcelana. Provei uma maravilhosa fatia de pão com anchovas e um pedaço de pudim de ameixa que me fez recordar os chás em casa da minha avó.

       — Feito em casa! — comentei encantado.

       — Naturalmente. Bolo feito em padaria não entra em minha casa.

       — O senhor tem uma maravilhosa cozinheira. Não é difícil manter-se uma boa criadagem, morando no interior?

       Venables deu de ombros.

       — Sempre me cerco do que há de melhor. Naturalmente pago caro por isto.

       Que arrogância! — pensei.

       — Claro que nem todos podem dizer o mesmo — comentei secamente.

       — Depende do que o indivíduo pretende conseguir da vida. Basta desejar algo ardentemente. Tantos fazem fortunas sem sequer saber para quê! Terminam devorados pela própria engrenagem, tornam-se escravos! Acordam cedo e deitam tarde, não têm um minuto de folga. Para quê? Para obterem carros mais caros, esposas ou amantes mais dispendiosas e dores de cabeça gigantescas.

       Venables inclinou-se ligeiramente.

       — Ganhar dinheiro é a meta de todos os milionários para, em seguida, jogá-lo de volta em outros investimentos. Para quê? Será que eles se perguntam ao menos isso? Creio que não sabem.

       — E o senhor?

       — Eu? — Venables sorriu. — Eu sabia o que desejava. Eterno descanso para poder apreciar todas as belezas naturais e artificiais do mundo. Como atualmente estou privado de viajar, faço as coisas virem a mim.

       — Mas para isso é preciso muito dinheiro.

       — Planejamento — respondeu ele. — É necessário planejar bem um golpe... não necessariamente um golpe ilegal.

       — Não compreendo.

       — Estamos num mundo em revolução, Sr. Easterbrook. Sempre estivemos, porém atualmente as mudanças são mais rápidas. O ritmo acelerou... é preciso aproveitar.

       — Um mundo em mudança — disse eu, pensativo. — Abre novos caminhos! É claro que o senhor está falando com um homem cuja vida é voltada para o passado e não para o futuro — acrescentei como que pedindo desculpas.

       — O que é o futuro? Quem poderá prevê-lo? Falo do presente — do agora — do momento imediato. Não tomo conhecimento de outra coisa. As novas técnicas estão aqui! Já temos as máquinas que respondem as nossas perguntas em segundos.

       — Os computadores?

       — Isto mesmo.

       — Será que elas tomarão o lugar do homem?

       — Do homem que vive em termos de energia, sim. Do homem mente, não. O pensador sempre fará perguntas...

       Sacudi a cabeça.

       — O Super-homem? — tentei dar à pergunta um tom de deboche.

       — Por que não, Easterbrook? Lembre-se de que estamos começando a descobrir o Homem, o animal humano. A prática do que comumente se chama lavagem cerebral abriu uma enorme possibilidade nesta direção. Não só o corpo, mas também a mente do homem responde a certos estímulos.

       — Uma doutrina perigosa.

       — Perigosa?

       — Perigosa para os sábios — disse eu.

       Venables sacudiu os ombros.

       — Tudo na vida é perigoso. Nós, que fomos criados em pequenos círculos de civilização, esquecemos isso. Pois nada mais somos do que pequenos núcleos de civilização, unidos para nos proteger e controlar a natureza. Vencemos a selva temporariamente, pois ela a qualquer momento voltará a nos atacar. Cidades outrora altaneiras atualmente são meros escombros.... a vida é sempre perigosa, não esqueça. No final poderemos ser destruídos não só pelas grandes forças, como pelas máquinas montadas por nós mesmos. Aliás, estamos próximos disso...

       — Não posso negar que o senhor tem razão. Mas estou mais interessado na sua teoria sobre a mente.

       — Ah! — exclamou Venables acanhado. — Creio ter-me excedido. Devo ter-me excedido.

       Achei estranho este desconversar. Um homem como ele, que vive só, tem necessidade de falar seja com quem for. Será que ele falara demais?

       — O Super-homem — disse eu. — Quase me converteu a sua teoria...

       — Não é nova, certamente. Existe há centenas de anos. É a base filosófica de vários autores.

       — Mas seu Super-homem me parece um pouco diverso; como um homem poderoso que distribui o poder anonimamente, que trabalha por controle remoto.

       Olhei para ele. Venables sorria.

       — O senhor está me dando um papel como numa peça de teatro? Realmente preciso de algo para compensar... isto!

       Suas mãos desceram pelos joelhos e eu senti a amargura da sua inflexão.

       — Não posso lhe oferecer minha perna — disse eu, — pois é pouca coisa para um homem como o senhor. Mas se eu tivesse que fantasiar um personagem para o senhor, seria de um homem que torna a catástrofe em triunfo.

       Ele riu.

       — O senhor está me bajulando.

       Senti porém que ele gostara do elogio.

       — Não — continuei, — conheci várias pessoas e sei reconhecer um homem extraordinariamente dotado.

       Tive medo de ter exagerado. Mas a bajulação tem limite? Anotei mentalmente este pensamento deprimente, como uma utilidade futura.

       — Não sei o que o leva a dizer isto. É por causa da casa?

       — Acho que ela prova — respondi — que é um milionário que sabe comprar, que tem gosto e tirocínio. Acho também que existe mais do que o desejo de possuir. Sua meta, creio, é alcançar a beleza e o equilíbrio e pelo que o senhor disse não creio que se chegue lá através do trabalho honesto.

       — O senhor tem razão. Só os tolos trabalham. Os espertos planejam suas campanhas nos mínimos detalhes. O segredo do sucesso é simples mas precisa ser estudado com cuidado. Pensa-se e depois executa-se. É tudo!

       Olhei para Venables. Seria uma coisa simples como a eliminação de pessoas ricas? Um planejamento cuidadoso executado por Thyrza Grey, enquanto ele, na cadeira de rodas, dirigia o espetáculo?

       — Sua conversa sobre controle remoto lembrou-me algo que Thyrza Grey dissera.

       — Nossa cara Thyrza — disse Venables, num tom quase indulgente. (Ou será que notei um leve trêmulo na sua voz?) — Como diz loucuras! E elas acreditam no que dizem. O senhor já foi a uma sessão na casa delas? Já viu coisa mais ridícula?

       Resolvi mudar de tática.

       — Sim, fui a uma sessão.

       — Não achou uma palhaçada? Não vai dizer que ficou impressionado?

       Procurei parecer embaraçado.

       — Creio — balbuciei, contemporizando — que o senhor não... — olhei para o relógio. — Céus! Como é tarde. Devo voltar... minha prima está me esperando.

       — O senhor divertiu muito um pobre inválido. Dê lembranças a Rhoda. Precisamos breve almoçar juntos. Amanhã devo ir a Londres, visitar um leilão. Tem umas peças medievais de marfim que me interessam. Se conseguir comprá-las creio que o senhor as apreciará.

       Despedimo-nos afavelmente. Será que notei um ar de riso, quando fingi ficar acanhado com sua pergunta sobre a sessão espírita? Não podia ter certeza. Provavelmente eu estava imaginando coisas.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       Quando saí da casa de Venables já era noite. Encaminhei-me, tateante, pela longa alameda, voltando-me para trás para examinar a bela casa iluminada. De repente, tropecei numa pessoa que vinha na direção oposta. Era um homem baixo, encorpado, que falava com um sotaque pedante.

       — Desculpe.

       — Não há de que, a culpa foi minha — protestou ele.

       — Eu nunca estive aqui antes — expliquei — por isso estou meio perdido. Deveria ter trazido um isqueiro.

       — Com licença — disse o estranho, tirando um isqueiro do bolso.

       Quando o acendi, notei que o estranho era um homem de meia-idade, de rosto redondo, bigodes negros e óculos de aro de tartaruga. Usava uma capa de boa qualidade e todo seu aspecto transmitia uma imagem de respeito e integridade. Mesmo assim, eu me perguntei por que ele não havia usado o isqueiro, já que estava tão escuro.

       — Ah! — disse eu, num tom idiota. — Saí da estrada. Agora já posso achar o caminho — acrescentei, devolvendo-lhe o isqueiro.

       — Pode ficar com ele até chegar ao portão.

       — Mas... o senhor não vai entrar?

       — Não, não. Eu vou tomar a estrada também. Vou até o ponto do ônibus de Bournemouth.

       — Sei, sei.

       Caminhamos juntos. Meu companheiro parecia incomodado com algo; perguntou se eu também ia tomar o ônibus; respondi que estava hospedado por perto. Outra pausa. O embaraço do homem crescia. Devia ser do tipo que não gosta de situações escusas.

       — O senhor esteve visitando o Sr. Venables? — perguntou, pigarreando.

       Respondi que sim, acrescentando:

       — Pensei que o senhor estivesse indo para lá.

       — Não — respondeu ele, — não. Eu moro em Bournemouth, isto é, perto da cidade. Tenho uma casinha lá.

       Por um instante fiquei me perguntando onde ouvira falar de uma pessoa que tinha uma casinha perto de Bournemouth...

       — O senhor deve achar muito estranho encontrar uma pessoa rondando uma casa. É realmente difícil de explicar, embora eu possua razões para isso. Apesar de morar há pouco em Bournemouth, existem pessoas que estariam prontas a afiançar que sou um homem honesto e cumpridor dos meus deveres. Sou um farmacêutico aposentado que resolvi mudar para esta região.

       Fez-se a luz. Imediatamente associei quem era aquele homem.

       — Sou Zachariah Osborne. Tinha uma farmácia em Londres, perto da estação. No tempo do meu pai era um ótimo bairro, mas atualmente decaiu muito.

       Suspirou.

       — Esta é a casa do Sr. Venables, não é? É seu amigo?

       — Não diria que sim — respondi, deliberadamente. — Só o encontrei uma vez, quando almocei com ele.

       — Ah! Sei, sei...

       Chegamos ao portão. O Sr. Osborne parou. Devolvi-lhe o isqueiro.

       — Obrigado.

       — Não tem de quê. Eu não... — as palavras pareciam jorrar — não gostaria de que o senhor interpretasse mal minha presença aqui. Asseguro que não se trata de mera curiosidade. Gostaria de poder esclarecer melhor minha atitude.

       Fiquei parado, esperando. O Sr. Osborne calou-se um instante.

       — Gostaria de explicar, Sr....

       — Easterbrook.

       — Sr. Easterbrook, meu estranho comportamento. Pode me dispensar alguns minutos? Podemos tomar um café no posto de gasolina, que fica aqui perto. Meu ônibus só passa daqui a uns vinte minutos. Aceita?

       Aceitei o convite. Em pouco tempo estávamos no bar do posto. Pedimos um café com biscoitos. Em seguida, Osborne desabafou.

       — Tudo começou com um caso que o senhor deve ter lido nos jornais; não foi propriamente manchete mas foi bastante comentado. Trata-se do assassinato de um padre católico, perto do lugar onde eu tinha minha farmácia. Infelizmente esses casos acontecem com freqüência hoje em dia. Embora eu não seja católico, ouvi grandes elogios sobre a bondade do padre. Mas vamos ao que interessa. A polícia notificou que estava interessada em entrevistar todas as pessoas que viram o padre na noite do crime. Por acaso, naquela noite eu estava parado na porta da farmácia e vi o padre Gorman passar. A poucos metros de distância, notei um homem estranho, que obviamente parecia seguir o padre. É claro que na hora não dei maior atenção ao fato, mas como sou um excelente fisionomista, gravei as feições do desconhecido e as descrevi para a polícia. Aí, então, começa a espantosa segunda parte da história. Há uns dez dias fui à quermesse de uma igreja e fiquei admirado de encontrar o mesmo estranho. Como ele estava numa cadeira de rodas, imaginei que tivesse tido um acidente. Andei perguntando quem era e disseram que se tratava de um milionário chamado Venables. Depois de certa hesitação, escrevi à polícia. O Inspetor Lejeune, com quem eu tivera uma primeira entrevista, me informou que o Sr. Venables era paralítico, há anos, vítima de pólio, e que portanto eu devia ter me enganado.

       O Sr. Osborne calou-se. Tomei um gole de café, enquanto ele punha açúcar em sua xícara.

       — É, parece que não há mais saída — comentei.

       — É o que parece — concordou Osborne. — Creio que devo suplementar este relato. Quando criança — continuou Osborne, apoiando os cotovelos sobre a mesa, — um amigo de meu pai, um farmacêutico, foi chamado como testemunha do caso de Jean Paul Marigot, o tal que envenenou a mulher com um preparado de arsênico. O amigo de meu pai identificou-o como o comprador que havia dado um nome falso. Fiquei impressionado, devia ter uns nove ou dez anos, e creio que, daquele dia em diante, decidi que tomaria parte numa cause célèbre e que ajudaria a Justiça na batalha contra o crime. Foi por essa época que comecei a guardar fisionomias, talvez na esperança de que um homem entrasse na farmácia e comprasse arsênico para matar a esposa.

       — Ah! Uma história como Madeleine Smith?1

       — Exatamente — Osborne deu um suspiro. — Infelizmente isso nunca aconteceu mas agora surgiu a possibilidade de eu testemunhar num processo!

       O rosto de Osborne iluminou-se como o de uma criança.

      

1 Famosa envenenadora inglesa do Século XIX.

 

       — Mas parece que estão tirando suas esperanças — comentei.

       — É... mas eu sou um homem teimoso, Sr. Easterbrook. Com o passar do tempo, cada dia me convenço mais de que estou com a razão. O homem que eu vi era Venables.

       — Sei, sei — disse ele, levantando a mão, quando tentei falar — que era uma noite de nevoeiro e que eu não estava ao lado do suspeito, mas sei também que tenho prática em guardar fisionomias. Embora digam que eu estou enganado, não consigo me convencer. A polícia insiste que é impossível, mas eu pergunto: Será mesmo?

       — Mas, certamente, sendo paralítico...

       Ele me interrompeu com a mão.

       — Ouça, sou farmacêutico e conheço a classe médica. Sei do que é capaz quando o dinheiro está em jogo. Existem drogas que induzem à paralisia, às febres, às irritações de pele...

       — Mas uma atrofia dos membros?

       — Mas quem disse que o Sr. Venables tem os membros atrofiados?

       — Ora, o médico.

       — Exatamente. Procurei informações sobre o médico de Venables, um figurão que mora em Londres. O médico daqui, que atendia Venables, aposentou-se e mudou para o estrangeiro. O novo médico nunca esteve com Venables.

       Olhei para Osborne com curiosidade.

       — Mas até aí, não vejo má-fé alguma — protestei.

       — O senhor não sabe o que eu sei — disse Osborne. — Como exemplo posso citar o caso da Sra. H., que vive dos seguros da própria morte, recebendo polpudos dividendos de três companhias como se fosse uma irmã mais nova.

       — Não entendo...

       — Pois então imagine — continuou Osborne, excitado, — que o Sr. Venables conheça um homem pobre vitimado pela paralisia. O homem é abordado por Venables e, por acaso, até parece fisicamente com ele. Por uma certa quantia, vai procurar um especialista, dando o nome de Venables. O verdadeiro Venables aluga uma casa no campo, traz toda a falsa documentação médica e apresenta-se ao médico local. Como este deseja aposentar-se, nada como uma polpuda soma para fechar os olhos sobre a “suposta” paralisia e partir para o estrangeiro.

       — Mas os criados não saberiam?

       — E se fossem parte da quadrilha, isso teria importância?

       — E para que todo esse trabalho?

       — Não vou revelar minha teoria, pois não quero ser ridicularizado pelo senhor. O que não se pode negar é que Venables possui um álibi perfeito. Pode ser visto andando em qualquer lugar, mas obviamente não é ele, uma vez que é paralítico!

       Osborne deu uma olhada no relógio.

       — Meu ônibus está para chegar, por isso serei breve. Pois bem, como tenho muito tempo disponível (sinto falta da farmácia) resolvi vir até aqui fazer algumas investigações. Sei que não é direito, mas afinal estou agindo assim para ajudar a lei. Imagine se eu visse o Sr. Venables dando uma voltinha pelo terraço depois do jantar?

       — Mas por que tem tanta certeza de que o homem que viu naquela noite é Venables?

       — Porque sei que é.

       Osborne levantou-se.

       Meu ônibus chegou. Prazer em conhecê-lo, Sr. Easterbrook, e obrigado por ter-me ouvido. No fundo eu acho que é loucura, mas que posso fazer?

       — Talvez não seja — disse eu. — O senhor só não disse o que acha que Venables pretende.

       O Sr. Osborne corou.

       — O senhor vai achar graça: todos dizem que ele é rico, porém não sabem como ganhou tanto dinheiro. Pois bem, vou dar meu palpite: acho que ele é um desses gênios do crime do tipo que planeja os golpes para a quadrilha. Pode parecer uma besteira mas...

       O ônibus parou e Osborne correu.

       Voltei para casa, pensando na teoria de Osborne, que era fantástica, mas tive que concordar que talvez não fosse de todo improvável.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       Na manhã seguinte, quando telefonei para Ginger, contei que estava de mudança para Bournemouth.

       — Encontrei um hotel bem simpático, cheio de entradas e saídas. Quem sabe não dou uma escapada até aí?

       — Não creio que seja prudente, mas bem que seria bom. Estou morrendo de tédio. Se você não puder vir quem sabe eu vou até aí.

       — Ginger, sua voz está diferente!

       — Não é nada demais. Não se preocupe.

       — Mas sua voz?

       — Estou um pouco rouca.

       — Ginger!

       — Ouça, Mark, qualquer pessoa pode ficar rouca. Devo ter me resfriado ou quem sabe apanhado uma gripe.

       — Gripe? Não tente minimizar os sintomas. Você está realmente passando bem?

       — Não se preocupe, já disse. Estou ótima.

       — Descreva os sintomas. Está sentindo um princípio de gripe?

       — Bem... sinto umas dores no corpo.

       — Febre?

       — Talvez um pouco...

       Fiquei imobilizado de pavor. Percebi que Ginger, apesar de negar, estava com medo também.

       — Mark, não entre em pânico. Controle-se, senão tudo estará perdido.

       — A primeira providência é telefonar imediatamente para seu médico.

       — Está bem, só que ele vai achar um absurdo.

       — Não importa. Quando ele for embora telefone para mim.

       Fiquei uns instantes contemplando o telefone. Pânico, não podia me entregar ao pânico... afinal gripe todo o mundo tem, principalmente nesta época do ano... o médico nem ia dar bola.

       Uma série de imagens apareceram em minha mente... Sybil estendida no sofá... a voz de Thyrza, comandando a Morte... e Bella invocando os maus espíritos enquanto sacrificava o galo.

       Bobagens... tudo bobagens... e superstições.

       E a caixa? Que dizer da caixa? Não se tratava mais de uma superstição e sim do desenvolvimento de uma possibilidade científica. Mas, não era possível...

       A Sra. Dane Calthrop encontrou-me ainda absorto, em frente do telefone.

       — O que aconteceu? — perguntou ela.

       — Ginger não está se sentindo bem.

       Desejei que ela me convencesse de que eu estava fantasiando.

       — Que pena! Não gosto nada disso.

       — Não é possível — protestei — que eles sejam capazes de fazer isso!

       — Você acha?

       — A senhora não acredita que...

       — Meu caro Mark — interrompeu a Sra. Dane Calthrop, — nós três, eu, você e Ginger admitimos esta possibilidade, senão por que continuaríamos com esta investigação?

       — O fato de acreditarmos torna a coisa mais real.

       — Não sei realmente se acreditamos... eu creio que estávamos querendo uma prova para podermos acreditar.

       — Prova? Que prova?

       — O fato de Ginger ter ficado doente é uma prova — respondeu a Sra. Dane Calthrop.

       — Precisa ser tão agourenta? Ela está resfriada ou gripada. Não há razão para fazermos um drama.

       — Mas se for um drama é melhor enfrentarmos a situação em vez de agirmos como avestruzes.

       — Como posso acreditar que aquela cantilena, aqueles transes deram resultado?

       — Alguma coisa dá resultado — respondeu ela. — Isto não se pode negar. É claro que elas criam um espetáculo para dar mais atmosfera, mas atrás disso tudo está uma coisa que funciona.

       — Como uma onda curta?

       — Algo parecido. A ciência avança dia a dia e torna-se cada vez mais assustadora. Qualquer variação desses novos avanços tecnológicos poderia ser adaptado por pessoas inescrupulosas. O pai de Thyrza foi um físico...

       — E daí? Aquela maldita caixa! Se ao menos pudéssemos examiná-la; se a polícia...

       — Não se pode contar com a polícia para dissipar suspeitas...

       — E se eu invadisse a casa dela e arrebentasse a caixa?

       — Pelo que você me contou, o mal, se houve algum, foi cometido naquela noite.

       Dei um gemido.

       — Por que fui me meter nisso?

       — Motivado pela justiça. Não adianta chorar agora. Certamente Ginger, depois da consulta médica, vai telefonar para a casa de Rhoda...

       — Então é melhor eu ir para casa...

       — Estou sendo uma idiota — murmurou a Sra. Dane Calthrop, — sei que estou sendo uma idiota. Não podemos nos preocupar com os objetos de cena da representação. Tenho certeza de que é isso que elas desejam...

       Talvez ela tivesse razão.

       Duas horas mais tarde Ginger telefonou.

       — Ele veio — disse ela, — ficou intrigado, mas acha que talvez seja uma gripe. Está havendo um surto por aqui. Vai mandar um remédio e disse para eu ficar na cama. Estou com febre alta. Deve ser gripe, você não acha?

       Havia um apelo na pergunta.

       — Você vai ficar boa — disse eu, sem convicção. — Está se sentindo tão mal assim?

       — Bem, estou com febre, com dores no corpo, nas pernas... um calor dos diabos...

       — É a febre, meu amor. Ouça, vou para aí, não diga que não.

       — Que bom! Estou contente que você venha... afinal estou achando que não sou tão valente quanto pensei...

      

       Em seguida, telefonei para Lejeune.

       — Ouça, a Srta. Corrigan está doente.

       — O quê?

       — Você entendeu, está doente. Já chamou o médico que disse que talvez fosse uma gripe forte. Acho que você devia mandar um especialista dar uma olhada nela.

       — Que tipo de especialista?

       — Um psiquiatra, um psicanalista ou um psicólogo... sei lá! Enfim um sujeito que entenda de sugestão ou hipnotismo... ou lavagem cerebral. Não tem gente que lida com estas coisas?

       — Claro que tem. Acho que você tem razão, pode ser uma gripe mas também pode ser uma espécie de indução psicológica qualquer. Era o que nós estávamos esperando, Easterbrook!

       Desliguei o aparelho. Que me importavam as armas psicológicas? A única coisa que me interessava realmente era a saúde de Ginger. Nós dois não acreditamos na história, brincamos de bandido e mocinho e agora podíamos ser vítimas da própria brincadeira.

       O Cavalo Amarelo estava nos desmentindo.

       Segurei a cabeça entre as mãos e chorei de desespero.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       Os dias subseqüentes transformaram-se em pesadelos dispostos, sem forma ou seqüência, num caleidoscópio diabólico. Ginger foi internada numa clínica particular, onde só era permitida minha entrada.

       O médico dela não parecia dar muita atenção ao caso; diagnosticou uma broncopneumonia, em conseqüência de uma gripe. Apesar da doença apresentar alguns sintomas estranhos, nem por isso ele mudou de opinião. Segundo ele, nenhuma doença era típica e alguns pacientes não respondiam bem a certo tipo de antibióticos.

       Na verdade ela estava com pneumonia e em estado grave.

       Tive uma entrevista com um psicólogo, enviado por Lejeune, que me crivou de perguntas, mas não ofereceu resposta alguma. Tentou, é verdade, hipnotizar Ginger mas não creio que tenha obtido grandes resultados.

       Passei a evitar meus amigos e a recusar convites. Minha vida tornou-se solitária e triste.

       Finalmente, um dia resolvi convidar Poppy para jantar comigo no Fantasie.

       Ela aceitou prontamente.

       Consegui me distrair com a conversa inconseqüente da florista e depois de fazê-la beber mais do que devia, comecei um interrogatório cuidadoso. No fundo, eu achava impossível que Poppy soubesse de alguma coisa sem se dar conta disso.

       — Você se lembra da minha amiga Ginger?

       — Claro — respondeu ela, arregalando os olhos. — O que ela anda fazendo?

       — Está muito doente.

       — Coitada — disse Poppy, preocupada até onde sua cabeça oca permitia que se preocupasse.

       — Ela se meteu com um pessoal esquisito, aconselhada por você, creio. Um negócio de Cavalo Amarelo que lhe custou os olhos da cara.

       — Ah! — exclamou Poppy. — Então era você?

       Por uns instantes não entendi coisa alguma. De repente, percebi que Poppy estava me identificando com o homem casado cuja mulher “inválida” estava atrapalhando nossa vida. Preocupada com o lado romântico da história a pobre esqueceu seu medo do Cavalo Amarelo.

       — E deu certo? — perguntou ela excitada,

       — Deu errado — respondi. — O feitiço virou contra o feiticeiro.

       — Que feitiço? — perguntou ela, atônita.

       Percebi que não podia conversar com Poppy por metáforas.

       — O negócio parece que acabou fazendo mal a Ginger. Você já ouviu falar de algum erro deles?

       Poppy respondeu que não.

       — É claro — continuei — que essas sessões que elas dão lá no Cavalo Amarelo, em Much Deeping... você não sabia disso, não é?

       — Não sabia o nome do lugar, sabia que era no interior.

       — Pois é, Ginger não soube explicar o que elas faziam...

       — Parece que tem alguma coisa com raios, não tem? — perguntou Poppy. — Qualquer coisa de astral...

       Percebi que Poppy estava baseando as informações na própria imaginação.

       — Uma coisa assim — concordei. — Sei que deve ser perigoso senão Ginger não ficaria tão doente.

       — Mas não era sua mulher que devia ficar doente e morrer? — perguntou ela.

       — Era, mas acho que o tiro saiu pela culatra.

       — Quer dizer... — disse Poppy, fazendo um enorme esforço mental — que foi como se ligasse o ferro na tomada errada e levasse um choque?

       — Isto mesmo — disse eu. — Você ouviu falar de um caso semelhante em relação a eles?

       — Não desta maneira.

       — Como assim?

       — Ora, se por exemplo uma pessoa não paga depois do serviço... como um sujeito que eu conheci. Foi assassinado no metrô, caiu da plataforma em frente ao trem.

       — Talvez fosse um acidente.

       — Que nada! Foram eles.

       Servi Poppy de mais champanha. Ali estava minha oportunidade de descobrir algo, se pudesse selecionar o bric à brac que era o cérebro da moça; ela ouvira coisas, assimilara algumas, misturara tudo e ninguém se preocupou muito em esconder coisa alguma, pois sabiam que ela era quase débil mental. O mais irritante é que eu não sabia como dirigir as perguntas. Tinha medo de dizer algo errado e assustá-la.

       — Minha mulher é paralítica, mas por enquanto não está pior.

       — Que pena! — disse Poppy, bebericando o champanha.

       — Que faço agora?

       Poppy arregalou os olhos.

       — Foi Ginger quem arrumou tudo — continuei — portanto, não sei a quem recorrer.

       — Tem um escritório lá em Birmingham.

       — Já está fechado. Sabe de mais alguém a quem eu possa procurar?

       — Talvez Eillen Brandon saiba.

       O aparecimento deste novo personagem me surpreendeu. Perguntei quem era ela.

       — Uma mulher muito careta — respondeu Poppy. — Destas que usam o cabelo em coque e salto baixo. O fim! Estudamos na mesma escola, ela era ótima em Geografia...

       — O que ela tem que ver com o Cavalo Amarelo?

       — Não sei ao certo. Acho que ela descobriu qualquer coisa e pediu demissão.

       — Pediu demissão de onde?

       — Do R.C.C.

       — O que é R.C.C?

       — Para dizer a verdade, não sei. Eles dizem R.C.C. É qualquer coisa com pesquisa de mercado...

       — E Eillen Brandon trabalhava para eles fazendo o quê?

       — Perguntando sobre pastas de dentes, fogões a gás etc. Tipo do emprego monótono. Além do mais o que a gente tem a ver com o que os outros usam?

       — Talvez o R.C.C. tenha — respondi, intrigado.

       Uma mulher desta organização fora visitada pelo padre Gorman na noite do seu assassinato. E Ginger falou sobre uma entrevistadora. Devia haver um elo nesta coincidência.

       — Por que ela largou o emprego? Se aborreceu com o trabalho?

       — Acho que não. Parece que eles pagam bem. Creio que ela descobriu que eles não são bem pesquisadores ...

       — Ela achou que eles estavam relacionados de alguma maneira com o Cavalo Amarelo? Foi por isso?

       — Não sei. Pode ser... agora ela está trabalhando num bar em Tottenham, Court Road.

       — Preciso do endereço.

       — Ela não faz seu tipo.

       — Não quero dormir com ela — respondi bruscamente. — Quero saber sobre essa organização. Estou pensando em comprar umas ações dessa companhia.

       — Ah! Entendo — disse Poppy, satisfeita com a explicação.

       Como não poderia arrancar mais nada dela, terminamos o champanha e eu a levei para casa, agradecendo pela encantadora companhia.

      

       Na manhã seguinte tentei telefonar para Lejeune, mas não foi possível. Depois de certa dificuldade consegui falar com Corrigan.

       — O que aquele psicólogo vigarista, que você mandou, disse? Que acha de Ginger?

       — Falou, falou e não disse nada — respondeu Corrigan. — Se quiser minha opinião sincera, acho que ele, como todo o mundo, pensa que Ginger está com pneumonia; afinal é uma doença muito comum.

       — Tão comum que várias pessoas naquela lista morreram... Todas de doenças como pneumonia, gastrenterite, tumor no cérebro...

       — Sei como se sente mas o que podemos fazer?

       — Ela piorou mais, não é?

       — Bem... piorou.

       — Temos que fazer alguma coisa.

       — O que, por exemplo?

       — Tenho uma idéia. Que tal irmos a Much Deeping, prendermos Thyrza Grey e assustá-la de tal forma que ela faça um contra-feitiço?

       — Pode ser que funcione.

       Contei a Corrigan a teoria de Osborne sobre Venables.

       — Aquele sujeito encasquetou com o pobre Venables...

       — Mas... e se ele por acaso tivesse razão?

       Corrigan calou-se por um instante.

       — Tudo pode ser possível... neste caso seria necessário o silêncio de várias pessoas... e por um preço muito alto.

       — Que importância tem o preço se Venables é tão rico? Lejeune descobriu como ele fez fortuna?

       — Ainda não. É claro que existe algo de escuso com esse milionário. Os negócios dele são tão emaranhados que levaríamos anos para colocar tudo em pratos limpos. Sei que o Imposto de Renda anda atrás dele, mas Venables é matreiro. Por que você acha que ele é o chefe da troupe?

       — Não lhe parece óbvio?

       — Talvez. Pelo menos inteligência para isso ele teria. Agora não creio que cometeria um ato tão grosseiro como assassinar pessoalmente o padre Gorman.

       — Creio que foi uma emergência. O padre precisava ser silenciado antes de bater com a língua nos dentes. Além do mais...

       Calei-me de repente.

       — Está me ouvindo?

       — Sim... continue... é que eu tive uma idéia

       — O que foi?

       — Ainda não está bem formulada. Sei que só há uma forma de se obter segurança perfeita... vou pensar melhor no caso. Agora preciso desligar porque tenho um encontro. Mais tarde falamos.

       Desliguei o telefone e olhei para o relógio. Quando já estava na porta, o telefone tocou. Eu podia apostar que era Jim Corrigan, querendo mais informações. No momento, porém, eu não queria falar com ele, resolvi sair ao som insistente do telefone. E se fosse do hospital?

       — Alô? — respondi com certa impaciência.

       — È você, Mark?

       — Sim. Quem é?

       — Sou eu, é claro — respondeu uma voz feminina.

       — Ah! A senhora! — suspirei, reconhecendo a voz da Sra. Oliver. — Ouça, estou atrasadíssima para um encontro. Mais tarde eu telefono.

       — De forma alguma — disse ela, firmemente. — Ouça o que eu tenho para dizer, é muito importante.

       — Sim? Depressa, por favor, porque não gosto de deixar as pessoas esperando.

       — As pessoas sempre esperam por alguém.

       Tentei refrear minha impaciência.

       — Ouça Mark. É muito importante.

       — Diga.

       — Minha empregada Milly foi para o interior, pois está com amigdalite. A irmã dela tem uma casinha...

       Rangi os dentes.

       — Sinto muito mas...

       — Ouça, meu amigo, eu ainda não comecei a história. Onde estava mesmo? Ah! Sim. Milly foi para o interior, o que me obrigou a chamar uma agência...

       — Por favor!

       — Para perguntar que tipo de empregada eles tinham disponível. Disseram que está difícil, o que aliás sempre dizem, mas que iam fazer o possível...

       Jamais achei a Sra. Oliver mais enervante.

       — Só sei que hoje de manhã surgiu aqui uma criatura. Adivinhe quem era?

       — Não tenho a menor idéia.

       — Uma mulher chamada Edith Binns, que conhece você muito bem.

       — Eu não! Nunca ouvi falar em Edith Binns.

       — Claro que conhece. Inclusive esteve com ela há pouco tempo. Ela trabalhou na casa da sua madrinha: Lady Hesketh-Dubois.

       — Ah!

       — Ela esteve com você no dia em que você passou por lá para apanhar uns quadros.

       — Muito bem, ótimo, parabéns por ter arranjado uma empregada tão maravilhosa. Agora...

       — Quer fazer o favor de esperar? Ainda não cheguei ao fim da história. Bem, ela sentou-se e falou horas sobre a doença de Lady Hesketh. Você sabe como os empregados adoram doenças e mortes. Aí, ela disse...

       — Disse o quê?

       — Algo que me chamou a atenção. Ela disse: Pobre mulher, sofrendo daquele jeito. Uma mulher saudável que, de repente, fica com um tumor na cabeça. O cabelo dela caía aos cachos pelo hospital. Um cabelo tão lindo! Aí, Mark, eu pensei em Mary Delafontaine, aquela amiga minha. O cabelo dela também caia aos chumaços. Lembrei-me do que você me disse sobre aquela briga de mulheres, em Chelsea, em que uma arrancou uns tufos de cabelo da outra. Cabelo não sai assim facilmente, Mark. Tente arrancar um pedacinho! Tente para ver se consegue. Está vendo? Não é natural essas pessoas todas perderem o cabelo dessa maneira. Deve ser uma nova doença...

       Agarrei o telefone para não cair. Milhões de imagens juntaram-se diante dos meus olhos. Rhoda e os cachorros no pátio, um artigo que li numa revista médica... é claro!

       Percebi que a Sra. Oliver continuava matraqueando do outro lado.

       — Deus a abençoe. A senhora é maravilhosa.

       Bati com telefone. Em seguida, liguei para Lejeune. Por sorte ele estava.

       — Ouça — perguntei — o cabelo de Ginger está caindo?

       — Está. Deve ser por causa da febre alta!

       — Febre alta, uma ova! Ginger, como todos os outros, está sofrendo de envenenamento por tálio. Deus queira que ainda possamos salvá-la.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Dá tempo? Ela vai viver?

       Eu não podia ficar quieto, um minuto sequer. Lejeune me observava com impaciência.

       — Estamos fazendo o possível!

       Não era uma resposta muito satisfatória.

       — Mas será que eles sabem tratar deste tipo de envenenamento?

       — Sei que não é comum. Estão tentando o impossível. Acho que ela tem grandes chances.

       Olhei para ele sem saber se realmente dizia a verdade ou queria me consolar.

       — De qualquer maneira verificaram se era tálio mesmo?

       — Sim.

       — Eis a verdade sobre o Cavalo Amarelo! Veneno. Nada de magia negra, hipnotismo ou raios científicos. Veneno! E ela me atirou na cara seus grandes poderes, morrendo de rir com certeza.

       — De que você está falando?

       — De Thyrza Grey. Lembra-se quando eu fui tomar chá na casa dela? Toda aquela conversa sobre os Borgias, dos venenos que não deixam vestígios, das luvas envenenadas etc. Puro arsênico, disse ela. Continuam fazendo o mesmo, só que caem em transe, matam galos, desenham pentagramas no chão, colocam crucifixos de cabeça para baixo. E para quê? Para enganar os supersticiosos. A caixa eletrônica é para os materialistas racionais como nós, por exemplo, que não acreditamos em bruxas ou pragas, mas não negamos a existência e a eficácia dos raios, das ondas e dos fenômenos psicológicos. O Cavalo Amarelo não passa de um cavalo de pau. Tudo feito para desviar a atenção sobre o envenenamento das vítimas. O melhor é que elas não corriam risco algum, podiam até, como no caso de Thyrza, gabar-se dos seus poderes ocultos. Caso fosse levada a um tribunal bastaria mostrar a caixa cheia de válvulas inúteis e seria absolvida.

       — Elas três estão metidas nisso?

       — Acho que não — respondi. — Bella deve acreditar piamente em bruxaria, o mesmo acontecendo com Sybil, que realmente possui o dom da mediunidade. É uma coitada que acredita cegamente em Thyrza.

       — Então Thyrza é a chefe?

       — Pelo menos do Cavalo Amarelo. Mas, não creio que seja a cabeça de tudo; o verdadeiro líder deve trabalhar escondido, organizando, planejando. Tudo é feito com um verdadeiro senso de equipe, cada um ocupando uma função: Bradley, a parte legal e financeira; Thyrza, encarregada da magia negra. Certamente os dois são muito bem pagos...

       — Pelo visto você já descobriu tudo — comentou Lejeune, secamente.

       — Ainda não. Sabemos somente os fatos básicos. Trata-se de envenenamento.

       — Quem lhe deu a idéia do tálio?

       — Uma série de coisas. Tudo começou com aquela briga em Chelsea; estranhei o comentário da moça de quem haviam arrancado o cabelo: — Não doeu nada! Ela não estava se fazendo de forte. Realmente não sentiu dor alguma. Há alguns anos, quando estive nos Estados Unidos, li um artigo sobre envenenamento por tálio. Uma porção de operários de uma mesma fábrica morreu em conseqüência de várias causas como: apoplexia, nevrite alcoólica, paralisia, epilepsia, gastrenterite etc. Os sintomas variavam. Na mesma época uma mulher envenenou sete pessoas; os diagnósticos atestaram tumor cerebral, encefalite e pneumonia. O estranho é a variedade de sintomas que podem ser diarréia, vômito ou intoxicação, dor nos membros etc.

       — Você parece um dicionário médico.

       — É claro que andei fazendo umas pesquisas. Um sintoma porém sempre aparece: a queda dos cabelos. O tálio já foi inclusive usado como depilatório mas acabou sendo desaconselhado. Quando usado como remédio a dosagem varia de acordo com o peso do doente. Hoje em dia é usado como veneno contra ratos por ser uma substância solúvel e sem gosto. Você percebe como é difícil num caso desses suspeitar-se de envenenamento.

       Lejeune concordou.

       — Exatamente — disse Lejeune. — Por isso a insistência do pessoal do Cavalo Amarelo de afastar o cliente da vítima. Para evitar suspeitas. O trabalho é feito por alguém que não tem a menor ligação com a vítima. Uma pequena visita é o bastante. Não acha?

       — Creio que tem razão. O único fator comum é a visita de uma agradável senhora com um questionário sobre utilidades domésticas.

       — Será que esta senhora é quem dá o veneno? Como se fosse uma amostra por exemplo?

       — Não creio que seja tão simples assim — respondi. — Para mim essas entrevistadoras são verdadeiras e participam da história sem saberem coisa alguma. Acho que descobrirei qualquer coisa depois de conversar com uma mulher chamada Eillen Brandon.

      

       Eillen Brandon tinha sido bem descrita por Poppy: um cabelo alourado em coque, no alto da cabeça, como um ninho de passarinho. Pouca pintura, sapatos de salto baixo, roupas severas. O marido tinha falecido em conseqüência de um desastre de automóvel, deixando-a viúva com dois filhos.

       Seu emprego anterior tinha sido numa firma chamada Reação Classificada de Consumidores onde trabalhara um ano e pouco. Largou o emprego pois não gostava do serviço.

       — Por que Sra. Brandon? — perguntou Lejeune

       — O senhor é da polícia, não é?

       — Sou.

       — Acha que há algo de errado com aquela firma?

       — Estou simplesmente investigando. A senhora suspeitou de algo? Foi por isso que saiu?

       — Não tenho coisa alguma a declarar.

       — Compreendemos. Gostaria de que soubesse que esta investigação é totalmente confidencial.

       — Pois não, mesmo assim acho que não tenho muito a dizer.

       — Pode nos contar porque se despediu.

       — Achei que estavam acontecendo coisas que eu não compreendia bem.

       — Coisas que não lhe diziam respeito?

       — Mais ou menos. Como se a firma não fosse cem por cento profissional. Suspeitei de que coisas escusas estivessem acontecendo, mas não podia precisar o quê.

       Lejeune quis saber mais detalhes sobre o emprego. Eillen explicou que uma lista de nomes era dada a cada entrevistadora, cujo trabalho era visitar algumas pessoas, fazer umas perguntas e anotar as respostas.

       — E o que tinha isso de errado?

       — As perguntas não pareciam conclusivas com qualquer tipo de pesquisa. Como se quisessem descobrir alguma outra coisa...

       — O que, por exemplo?

       — Não sei. Isso é que me intrigava.

       Eillen Brandon calou-se por uns instantes.

       — Pensei a princípio — continuou ela, — que fosse uma gang de assaltantes ou coisa parecida. Conclui que não pois o questionário não pedia descrição dos quartos etc.... nem mesmo os horários em que as pessoas estavam em casa...

       — Que tipo de produtos faziam parte do questionário?

       — Variavam. As vezes eram sobre comida, cereais, misturas de bolos, ou tipos de sabão, detergentes. As vezes sobre remédios, aspirinas, pastilhas contra a tosse, calmantes, gargarejos.

       — Não lhe pediam para levar amostras? — perguntou Lejeune.

       — Não.

       — Seu trabalho, portanto, consistia em anotar as respostas?

       — Sim.

       — Com que finalidade?

       — Isto é que eu não compreendia. Também não éramos informadas. Eles pretendiam que certas firmas gostariam de obter informações mais detalhadas sobre o mercado de consumo. O que eu estranhava era exatamente a forma amadorística e desorganizada com que o trabalho era conduzido.

       — Seria possível que entre as perguntas que a senhora devia fazer houvesse uma específica que contivesse a meta do questionário e que as outras fossem unicamente empregadas como disfarce?

       Ela pareceu intrigada com a pergunta.

       — Sim — respondeu, depois de uma certa hesitação. — Talvez por isso as perguntas fossem tão disparatadas. Só não imagino qual seria ou quais seriam as perguntas chaves.

       Lejeune olhou para a Sra. Brandon.

       — A senhora deve saber mais — disse ele com suavidade.

       — O estranho é que eu não sei. Eu simplesmente achei que havia algo de errado. Cheguei a falar com a Sra. Davis.

       — Falou com a Sra. Davis?

       — Ela também não estava muito satisfeita.

       — E por quê?

       — Parece que ouviu qualquer coisa.

       — O que foi?

       — Já lhe disse que não posso ser tão precisa. Ela não falou claramente. Só disse: — Isto aqui não é o que parece ser! Disse também: — Afinal não temos nada com isso. Ganhamos um bom dinheiro e não estamos infringindo a lei, portanto não vejo motivo para nos preocuparmos.

       — É tudo?

       — Ela disse mais, mas confesso que não entendi. Às vezes, me sinto como um vírus maligno! disse-me ela. Não compreendi o que ela quis dizer.

       Lejeune tirou um papel do bolso e entregou à Sra. Brandon.

       — Conhece alguns destes nomes? Visitou-os alguma vez?

       — Não lembro. Visitei tanta gente...

       Os olhos da Sra. Brandon pousaram sobre um nome: Ormerod.

       — Lembra-se de algum Ormerod?

       — Não, mas a Sra. Davis falou nele. Morreu de repente vitimado por uma hemorragia cerebral. Ela ficou abaladíssima. — Ela estava na minha relação de clientes há quinze dias. Estava tão bem de saúde, comentou ela. Foi então que fez aquele comentário sobre o vírus maligno. Disse mais: — Basta eu visitar uma pessoa para que ela abotoe o paletó em seguida! Ela riu, dizendo que devia tratar-se de uma coincidência. Mas eu notei que ela tinha ficado impressionada.

       — É tudo?

       — Bem...

       — Fale.

       — Tempos depois encontrei-a num restaurante. Contei que tinha me demitido da firma e ela quis saber por quê. Expliquei que me sentia mal por não entender direito o que acontecia lá. — Pode ser que você tenha feito bem, disse-me ela, mas eles pagam bem e o horário é ótimo. Eu nunca tive sorte na vida, por isso vou aproveitar minha oportunidade. Afinal, que me importa o que acontece aos outros?

       Respondi que não estava entendendo bem, perguntei o que havia de errado naquilo tudo. — Não sei ao certo, respondeu-me ela, — só sei que vi, outro dia, saindo de um apartamento, um sujeito que não tinha razão alguma para estar lá. Carregava uma maleta de ferramentas. O que estaria ele fazendo lá? Em seguida ela perguntou se eu havia conhecido uma mulher que trabalhava no Cavalo Amarelo. Perguntei o que era o Cavalo Amarelo e o que tinha a ver com a firma.

       — E o que ela respondeu?

       — Leia a Bíblia, foi a resposta. Não sei o que ela quis dizer com isso! Foi essa a última vez que eu a vi. Não sei onde anda ou se ainda trabalha na firma.

       — Ela morreu — informou Lejeune.

       Eileen Brandon teve um choque.

       — Morta? Como?

       — De pneumonia. Há dois meses.

       — Que pena!

       — Gostaria de nos contar algo mais?

       — Não sei. Já ouvi falarem do Cavalo Amarelo, mas sempre que quero mais informações as pessoas se calam. Parece que ficam com medo.

       A Sra. Brandon parecia nervosa.

       — Não quero me envolver em negócios perigosos, Inspetor. Tenho dois filhos pequenos. Sinceramente, não sei mais nada.

       O Inspetor a olhou fixamente e fez sinal para que ela se retirasse.

       — Demos um bom passo — disse ele, assim que ela saiu. — A Sra. Davis certamente sabia demais. Tentou fechar os olhos para o que estava acontecendo, mas o fato de ela saber algo acabou condenando-a. Quando ela ficou doente e percebeu que ia morrer chamou o padre e contou tudo o que sabia ou suspeitava. O que ela falou não sabemos. Devia ser a tal lista, com os nomes das pessoas que ela visitou e que morreram em seguida. Daí o comentário dela sobre o vírus maligno. Gostaria de saber também quem ela reconheceu, saindo de um apartamento disfarçado de operário. Foi por isso que ela morreu, pois o tal homem também deve tê-la reconhecido. Se ela falou com o padre é claro que precisavam matá-lo também, senão tudo estaria perdido. Que acha?

       — Acho que você tem razão — concordei.

       — Talvez você saiba quem é esse homem...

       — Tenho uma idéia, mas...

       — Já sei, já sei. Não temos prova...

       Lejeune fez uma pequena pausa; em seguida, levantou-se.

       — Vamos apanhá-lo. Só precisamos ter certeza de quem seja. Quando soubermos ao certo vamos preparar uma boa armadilha. Você vai ver.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       Três semanas depois um carro parou em frente à residência de Venables. Quatro homens desceram: eu, o Inspetor Lejeune, o sargento Lee e o Sr. Osborne, que mal podia se conter de tanta excitação.

       — Não diga coisa alguma — preveniu Lejeune.

       — Pode contar comigo. Não abrirei a boca.

       — Tome muito cuidado.

       — Sinto-me um privilegiado. Só não entendo por que...

       Como ninguém estava para explicações, Osborne achou melhor não insistir. Lejeune tocou a campainha e pediu para chamarem o Sr. Venables. Como se fôssemos um conselho parlamentar em visita ao prefeito municipal, fomos levados para a biblioteca.

       Se Venables ficou surpreso com a visita, não o demonstrou. Tratou-nos com toda a cortesia possível e eu não pude deixar de notar, enquanto ele movimentava a cadeira de rodas, quão estranha e marcante era sua aparência pessoal. O pomo de Adão que subia e descia entre as abas do colarinho, o perfil de águia, o nariz de ave de rapina.

       — Prazer em revê-lo, Easterbrook. Parece que você agora vive por estes lados.

       Senti um leve tom de sarcasmo em suas palavras.

       — O senhor é o Inspetor Lejeune, não é? — perguntou Venables. — Confesso que estou curioso. Nosso vilarejo é geralmente tão calmo, tão pacato! Mas, mesmo assim, sou visitado pela polícia! Que posso fazer pelos senhores?

       — Gostaria de que o senhor nos ajudasse — disse Lejeune, suavemente.

       — Não sei onde ouvi esta frase. Como posso ajudá-los?

       — No dia sete de outubro um padre católico, chamado Gorman, foi assassinado na Rua West, bairro de Paddington. Ouvi dizer que o senhor esteve pela vizinhança entre sete e quarenta e cinco e oito e quinze, e que talvez o senhor pudesse nos dar alguns esclarecimentos.

       — Será que eu estive lá nessa noite? Duvido. Duvido muito. Acho mesmo que nunca estive neste bairro de Londres. Se não me falha a memória, creio mesmo que nem em Londres eu estava nessa ocasião. Vou a Londres, é verdade, somente para assistir a uns leilões ou visitar meu médico.

       — Sir William Dougdale?

       — O senhor parece bem informado, Inspetor — respondeu friamente Venables.

       — Não tanto quanto o necessário. Confesso que estou desapontado com sua ajuda; no entanto, gostaria de relatar alguns fatos ligados à morte do padre Gorman.

       — Pois não, embora eu nunca tenha ouvido falar nele.

       — O padre Gorman foi chamado naquela noite para atender uma mulher agonizante. Parece que ela estava ligada, sem saber, a uma organização criminosa e que começou a suspeitar da seriedade da firma. A organização especializava-se na morte de pessoas por um preço, é claro.

       — Não me parece grande novidade — disse Venables. — Nos Estados Unidos...

       — Esta organização, porém, agia de outra maneira. Em primeiro lugar, a remoção das vítimas era feita ostensivamente, sob um pretenso método psicológico. O que os psicólogos conhecem como “o desejo de morte”, que dizem ser inerente ao ser humano. Pois bem, este desejo era estimulado...

       — Forçando a pessoa a suicidar-se? Parece, Inspetor, uma idéia boa demais para ser verdade...

       — Não se trata de suicídio, Sr. Venables. A vítima morria de morte natural.

       — Ora, ora, o senhor não vai dizer que acredita nisso?

       — O centro desta organização é a estalagem do Cavalo Amarelo.

       — Ah! Compreendo. Por isso vieram para cá. Atrás de Thyrza Grey... bem, não sei se ela acredita no que diz, mas posso afiançar que se trata de uma bobagem. Ela tem uma amiga médium e uma cozinheira bruxa (aliás, são corajosas em comer aquela comida). Só sei que as três ganharam fama de videntes etc. Não vai dizer que a polícia leva esta conversa a sério?

       — Para dizer a verdade, levamos.

       — Acredita realmente que Thyrza Grey é capaz desses milagres? Que por causa de umas invocações, uns transes e uns passes de magia negra, uma pessoa venha a morrer?

       — Oh! não, Sr. Venables. A causa da morte é muito mais simples...

       Lejeune fez uma pausa.

       — A morte é causada por envenenamento.

       Por uns instantes reinou um silêncio opressor.

       — O quê?

       — Envenenamento através de sais de tálio. Nada mais simples mas, assim mesmo, era necessário encobrir o crime sob a capa de uma organização pseudo-científica ou psicóloga. A meta era desviar a atenção sobre o veneno.

       — Tálio — murmurou Venables. — Não conhecia este sal!

       — Não? Usado contra ratos ou como depilatório. Fácil de comprar. Por falar nisso, encontramos um envelope com tálio na sua estufa.

       — Na minha estufa? Impossível!

       — Pois é verdade. Já fizemos inclusive alguns testes...

       Venables começou a ficar agitado.

       — Alguém deve ter posto lá. Desconheço esse produto...

       — É mesmo? O senhor parece um homem de posses, Sr. Venables.

       — E o que tem isso que ver com nossa conversa?

       — O Imposto de Renda tem-lhe feito algumas perguntas embaraçosas, não é verdade? Explicações sobre fonte de rendas e coisas semelhantes...

       — A maldição da Inglaterra está no seu sistema tributário. Ultimamente tenho pensado seriamente em mudar-me para a Jamaica.

       — Não creio que possa ir tão cedo...

       — O senhor está me ameaçando, Inspetor? Por que, caso esteja...

       — Não, absolutamente. Estou emitindo uma opinião pessoal. Posso continuar com a história?

       — Já que está decidido a contar, não vejo outro remédio.

       — É uma organização eficientíssima; os detalhes financeiros são tratados por um ex-advogado chamado Bradley, cujo escritório fica em Birmingham, e onde os clientes o procuram para fechar os contratos. Trata-se simplesmente de apostar se a pessoa visada, que está atrapalhando o cliente, vai ou não morrer dentro de um certo tempo. Caso o Sr. Bradley ganhe a aposta, o dinheiro tem que ser pago imediatamente; o não cumprimento desta cláusula acarreta conseqüências funestas para o cliente. O Sr. Bradley, no entanto, limita-se a apostar. Simples, não?

       — Em seguida — continuou Lejeune, sorrindo, — o cliente vai ao Cavalo Amarelo, onde Thyrza Grey e as amigas representam um espetáculo de muito efeito para os não iniciados.

       “Ouça, porém, alguns detalhes curiosos: algumas inocentes senhoras são contratadas para pesquisar o mercado consumidor. Para tanto, recebem um questionário e uma série de nomes com endereços. — Qual o pão que preferem? Que artigos de toalete usam? Qual o laxativo, tônico ou sedativo? etc. Hoje em dia o senhor sabe como estamos condicionados a responder perguntas, portanto, ninguém costuma reclamar. Passa-se, então, para a etapa final. A mais simples, diga-se de passagem, e a única executada pelo chefe da organização, que geralmente usa vários disfarces: porteiro, zelador, medidor de gás, bombeiro, ou eletricista e até operário. Dependendo das circunstâncias, ele apresenta as credenciais necessárias, entra na casa da vítima e substitui um produto (que o questionário já revelou que a vítima usa) por outro igual porém envenenado. Não importa que verifique o gás ou bata nos canos, o que ele veio fazer é trocar os produtos. Cumprida a missão, ele desaparece.

       “Por alguns dias nada acontece. Porém, mais cedo ou mais tarde a vítima começa a ficar doente. Chamam um médico que não tem razão para suspeitar de coisa alguma, que naturalmente pergunta sobre os hábitos alimentares do paciente e logicamente não vai desconfiar do remédio que o mesmo vem tomando há anos!

       — Veja, portanto, Sr. Venables, que engenhosidade! A única pessoa que realmente sabe o que o chefe da organização faz é o próprio chefe. Ninguém poderá acusá-lo.

       — E como o senhor sabe tudo isso? — perguntou Venables, sorrindo.

       — Quando suspeitamos de alguém temos maneiras de nos informar.

       — Como?

       — Não precisarei entrar em detalhes, mas temos o recurso da fotografia. Hoje em dia um homem pode ser fotografado sem saber. Temos, por exemplo, maravilhosos retratos do porteiro, do medidor de gás etc. É claro que a pessoa em questão recorre a vários elementos como bigode, barba, dentes postiços, mas conseguimos reconhecê-lo. Primeiro pela Sra. Mark Easterbrook, aliás Katherine Ginger Corrigan, e depois por Edith Binns. A identificação é um estranho fenômeno, Sr. Venables. Por exemplo, este cavalheiro aqui, o Sr. Osborne, está disposto a jurar que viu o senhor seguindo o padre Gorman na noite de sete de outubro, às oito horas da noite.

       — E vi mesmo — disse Osborne, se contorcendo de excitação. — Descrevi o senhor nos mínimos detalhes...

       — Talvez este fosse o erro — interrompeu Lejeune. — Pois o senhor não viu o Sr. Venables naquela noite, enquanto estava parado defronte da farmácia. Porque o senhor não estava parado e sim andando atrás do padre Gorman. Quando ele entrou pela Rua West o senhor o assassinou.

       — O quê? — disse Zachariah Osborne.

       — Sr. Venables, permita que lhe apresente o Sr. Zachariah Osborne, farmacêutico. O senhor gostará de saber que ele colocou na sua estufa uns tabletes de sal de tálio e que estava disposto a lhe dar o papel de vilão do filme. Ignorando sua invalidez, divertiu-se em acusá-lo e, como é muito primário e teimoso, insistiu que tinha razão quando o identificou.

       — Primário? O senhor se atreve a me chamar de primário? Se soubesse o que eu fiz...

       Osborne tremia de ódio.

       Lejeune encarou-o friamente.

       — O senhor não devia se fazer de tão inteligente. Se ficasse calado na sua lojinha não estaria nesta situação. Nem eu precisaria lembrá-lo de que tudo que disser de agora em diante será anotado e poderá ser usado contra o senhor no julgamento.

       Foi então que Osborne começou a gritar.

      

Narrativa de Mark Easterbrook

       — Quero uma explicação!

       Depois das formalidades policiais, consegui agarrar Lejeune e levá-lo a um bar.

       — Pois não, Sr. Easterbrook. Creio que ficou bastante surpreso.

       — Fiquei nervoso... estava convencido de que o culpado era Venables. Você não me deu pista alguma...

       — Não podia fazer isto. Tinha que agarrar todos os fios da meada para não perder um ponto sequer. Com a colaboração de Venables conseguimos enganar Osborne e pegá-lo desprevenido.

       — É um louco?

       — A esta altura já está completamente incoerente. O ato de matar pessoas dá uma sensação de poder. O indivíduo sente-se Deus, porém, quando confrontado com a realidade, recorre à loucura, aos gritos. Você viu como ele ficou.

       — Então Venables tomou parte do espetáculo? Ele achou divertido?

       — Acho que sim — respondeu Lejeune. — Além do mais, foi bastante impertinente a ponto de pedir um favor em troca.

       — Qual seria este favor?

       — Não sei se devo dizer — respondeu Lejeune. — Peço portanto sua discrição. Há oito anos, houve uma série de assaltos em bancos, sempre com a mesma técnica. Os ladrões escaparam. Os roubos foram planejados por uma pessoa que não tomava parte neles; e embora nós suspeitássemos quem fosse, nunca pudemos agarrá-lo. O homem era um gênio, especialmente do ponto de vista econômico, e além do mais era tão esperto que nunca mais cometeu outro assalto. Tratava-se de um grande ladrão e não de um assassino.

       — Você sempre suspeitou de Osborne? Desde o começo?

       — O fato de ele chamar atenção sobre si mesmo me pareceu suspeito. Se ele se contentasse em ficar quieto, nunca desconfiaríamos de um respeitável farmacêutico. Mas, geralmente, os criminosos não ficam calados, não sei porquê.

       — O desejo de morte — sugeri. — Uma variante da teoria de Thyrza Grey.

       — É melhor esquecer esta senhora e os conceitos que ela emitia — aconselhou Lejeune. — Acho que no fundo os assassinos se sentem sós. Não adianta ser um gênio do crime se não se tem com quem comentar as próprias proezas.

       — Você ainda não disse quando começou a suspeitar dele — insisti.

       — Desde o princípio ele mentiu. Pedimos informação às pessoas que tivessem visto o padre Gorman na noite do crime. O testemunho dele era obviamente falso. Ele disse que vira um homem seguindo o padre; descreveu o suspeito nos mínimos detalhes, quando seria impossível identificar uma pessoa numa noite de nevoeiro como foi aquela. O fato de ele mentir não me pareceu muito importante; afinal, ele poderia estar querendo se vangloriar. Tem tanta gente assim! Quando voltei a atenção sobre ele é que foi fatal. Imediatamente Osborne começou a falar de si e ai está o seu erro. Ele descreveu um homem que sempre quis ser mais importante do que era na realidade, um homem insatisfeito em ser como o pai. Parece que esteve no teatro por algum tempo, mas obviamente não fez grande sucesso. A razão talvez tenha sido a rebeldia natural dos paranóicos... pois creio que ninguém poderia ensiná-lo como representar um papel! É claro que ele gostaria de ser testemunha de um crime, identificando o assassino que comprou veneno na sua farmácia. Sei que a descrição que Osborne fez me pareceu interessante, pois é muito difícil descrevermos uma pessoa que nunca vimos. Tente descrever um desconhecido e verá como é difícil. Imediatamente começamos a descrever traços e características de alguém que já vimos em algum lugar. Osborne descreveu uma pessoa bastante invulgar. Acontece que ele deve ter visto Venables sentado no carro em Bournemouth e ficou impressionado com a fisionomia do milionário. O que ele não podia saber é que o homem era paralítico.

       “Outro detalhe que me chamou a atenção foi o fato de Osborne ser farmacêutico. Achei que aquela lista do padre tinha alguma relação com uma quadrilha de narcóticos e se não fosse Osborne eu teria enveredado por esse caminho. Aí ele manda uma carta, dizendo que viu Venables na quermesse, ignorando ainda que o falso acusado fosse paralítico. Quando soube, não se calou por vaidade; aliás, vaidade típica de um louco, pois para ele seria impossível admitir que tivesse errado. Tive uma reunião muito interessante na casa dele, em Bournemouth. O bangalô chama-se Everest, pois ele é um grande admirador dos escaladores do Himalaia.

       “Por outro lado, a firma funcionava com a precisão de um relógio; Bradley em Birmingham, Thyrza Grey em Much Deeping. Pois bem, quem suspeitaria de que Osborne tivesse alguma conexão com Thyrza Grey ou com Bradley ou com alguma vítima? Uma verdadeira peça de teatro que duraria muitos anos em cartaz, se ele tivesse ficado quieto.

       — O que será que ele fazia com o dinheiro? Afinal, era pelo dinheiro que ele matava?

       — Claro que sim. Certamente se imaginava viajando, recebendo, sendo convidado para grandes recepções. Naturalmente ele não era a pessoa que gostaria de ser, mas o fato de poder matar impunemente lhe dava uma sensação de força. Quando for julgado, é claro que vai se divertir muito. Imaginem só, todo o mundo olhando para ele.

       — Mas, o que fazia ele do dinheiro?

       — Fácil — respondeu Lejeune, — apesar de ele ser um grande sovina! É o típico avaro que gosta de guardar dinheiro para vê-lo amontoado.

       — Guardava todo num banco?

       — Não, provavelmente encontraremos debaixo de um colchão...

       Calamo-nos por um instante, recordando a estranha figura de Zachariah Osborne.

       — Segundo Corrigan — disse Lejeune, pensativo — tudo isso seria atribuído à atrofia ou hipertrofia de uma glândula qualquer. Eu, como sou um sujeito simples, acho que Osborne não passa de um louco. O que me impressiona é a estranha combinação de burrice com inteligência.

       — Quando se fala num gênio do crime, sempre se imagina uma figura sinistra e onipotente...

       — Quando na realidade não é nada disso — interveio Lejeune. — A maldade não é sobre-humana, é até subumana. Um assassino quer sempre ser importante, mas nunca o será porque não é um homem completo.

 

Narrativa de Mark Easterbrook

       A vida em Much Deeping retornou ao normal.

       Rhoda, ocupada com os cachorros; desta vez, creio que o problema era vermes...

       Assim que me viu entrar, perguntou se eu queria dar uma ajuda. Recusei prontamente, pois queria saber onde estava Ginger.

       — Foi ao Cavalo Amarelo.

       — O quê?

       — Disse que tinha que resolver um assunto lá...

       — Mas a casa está vazia!

       — Eu sei.

       — Ela ainda está cansada, não está em condições de...

       — Você parece uma galinha, falando dos pintinhos! Ela está ótima. Você já leu o último livro da Sra. Oliver: A Cacatua Branca? Está em cima da mesa.

       — Deus abençoe a Sra. Oliver e Edith Binns.

       — Quem é Edith Binns?

       — Uma senhora que identificou uma fotografia, além de ter sido governanta da minha madrinha.

       — Você enlouqueceu? Não fala mais coisa com coisa...

       Saí sem dar resposta. Resolvi ir ao Cavalo Amarelo. No caminho encontrei a Sra. Dane Calthrop, que me acolheu efusivamente.

       — Eu sabia que estava me deixando enganar pela encenação daquelas mulheres.

       Ela fez um gesto com o braço, indicando a estalagem vazia.

       — A maldade não estava lá, como supúnhamos. Nada de conluios com o Demônio ou invocações mágicas. Simplesmente uma organização criminosa sórdida e mesquinha.

       — O Inspetor Lejeune também acha.

       — Gosto dele — disse a Sra. Dane Calthrop. — Vamos ao Cavalo Amarelo buscar Ginger.

       — O que ela foi fazer lá?

       — Limpar uma coisa.

       Entramos e fomos invadidos por um forte cheiro de terebintina. Ginger, cercada de trapos e vidros, olhou para nós; ainda estava pálida e magra, usava um lenço na cabeça para cobrir os lugares onde tinha perdido cabelo.

       — Ela está bem — disse a Sra. Dane Calthrop, lendo meus pensamentos.

       — Olhe! — exclamou Ginger, triunfante.

       Ela mostrou a velha tabuleta da estalagem. A ferrugem tinha sido removida e podia ver-se a figura de um esqueleto, com uma foice na mão, montado num cavalo amarelo.

       — Apocalipse, Sexto Capítulo, oitavo verso. “E apareceu um cavalo amarelo; e o que estava montado sobre ele tinha por nome MORTE, e seguia-o o Inferno” — disse a Sra. Calthrop, atrás de mim, citando a Bíblia.

       Por alguns instantes ficamos em silêncio, até sermos novamente interrompidos pela mulher do pastor.

       — Então era isso! — disse ela, num tom de quem despeja um resto de comida podre na lata do lixo. — Tenho que ir andando para a reunião das mães.

       Na porta a Sra. Dane Calthrop parou e virou-se para Ginger.

       — Você seria uma excelente mãe. Ginger.

       Ginger enrubesceu.

       — Você quer, Ginger? — perguntei.

       — Quero o quê? Ser uma boa mãe?

       — Você sabe o que eu quero dizer.

       — Talvez, mas prefiro uma proposta mais definitiva.

       Fiz a proposta.

      

       Horas depois Ginger perguntou:

       — Você tem certeza de que não quer casar com Hermia?

       — Meu Deus! Tinha até esquecido dela.

       Tirei uma carta do bolso.

       — Recebi esta carta dela há três dias. Ela me convidou para ir ao teatro assistir a Trabalhos de Amor Perdidos.

       Ginger arrancou a carta da minha mão e rasgou-a em pedaços.

       — Daqui por diante você só irá ao teatro comigo.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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